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Carvalho 1979 Jurupari EstMitologiaBras

Este documento apresenta um resumo do livro "Jurupari: Estudos de Mitologia Brasileira" de Silvia Maria S. de Carvalho. O livro analisa os mitos e religiões do povo do Alto Rio Negro, no norte do Brasil, com foco no mito de Jurupari. Ele começa com uma introdução explicando o objetivo original do estudo e como o caminho percorrido para entender os mitos foi tão importante quanto o objetivo final. O livro então apresenta vários capítulos analisando diferentes mitos da região para compreender

Enviado por

Sandro Nandolpho
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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Carvalho 1979 Jurupari EstMitologiaBras

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Jurupari: Estudos de •

B Mitologia ~raSileira Silvia Maria S. de Carvalho

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JURUPARI: ESfUDOS DE
MITOLOOIA BRASllEIRA

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Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai
www.etnolinguistica.org

Sílvia Maria S.de Carwlm


Assistente-Doutora da Cadeira de Antropologia
do Instituto de Letras, Ciências Sociais e
Educação da UNESP - Araraquara.

JURUPARI: ESTUDOS DE
MITOLOGIA BRASILEIRA

'

São Paulo, Editora Ática, 1979.


CAPA (layout): Ary Almeida Normanha


PREPARAÇÃO DOS ORIGINAIS: Katumi Ussam.i
DIAGRAMAÇÃO: Elaine Regina de Oliveira
SUPERVISÃO GRÁFICA: Ademir C. Schneider

CIP-Brasil. Catalogação-na-Fonte
Câmara Brasileira do Livro, SP

Carvalho, Sílvia Maria Schmuziger de.


C328j Jurupari : estudos de mitologia brasileira / Silvia
Maria Schmuziger de Carvalho. - São Paulo : Atica,
1979.
(Ensaios ; 62)
Bibliografia.
1. lndios da América do Sul - Brasil - Religião
e mitologia. 2. lndios da América do Sul - Brasil - Ri-
tos e cerimônias 1. Título.

79-0825 CDD-299 . 8

lndices para catálogo sistemático:


1. Jndios : Brasil : Mitologia 299 . 8
2. lndios : Brasil : Ritos e cerimônias 299 . 8
3. Mitologia indígena : Brasil 299 . 8

Todos os direitos reservados pela Editora Âtica S.A.


R. Barão de lguape, 110 - Tel.: PBX 278-9322 (50 Ramais)
C. Postal 8656 - End. Telegráfico "Bomlivro" - S. Paulo

CONSELHO EDITORIAL
Para Maria Piubellini Sch111uziger,
ALFREDO Bos1, da Universidade de São Paulo . n1inha segunda mãe.
. Az1s SIMÃO, da Universidade de São Paulo.
tDUGLAS TEIXEIRA MONTEIRO, da Universidade de São Paulo. Este livro é un1a pequena
FLÁVIO VESPASIANO DI GIORGI, da Pontifícia Universidade Cat6lica. homenagen1 póstu1na a
HAQUIRA OSAKABE, da Universidade de Campinas. meus pais
.
RODOLFO ILARI, da Universidade de Campinas. Jean e Pauline Schn1uziger
RuY GALVÃO DE ANDRADA COELHO, da Universidade de São Paulo.
e a nteus mestres
Gioconda Mussolini e Plinio Ayrosa.
Coordenador: José Adolfo de Granville Ponce
..

Queremos agradecer a todos que nos esti-


mularam a empreender o presente trabalho que,
na sua forma original, foi apresentado como tese
de doutoramento. Ele não teria sido possível sem
a orientação e a ajuda, a boa vontade em em-
prestar-nos livros e facilitar-nos o acesso ao ma-
terial necessário, particularmente por parte de
Professor Doutor Carlos Drumond, Professor Dou-
~r Egon Schaden e Professora Doutora Thekla
Hartmann. Uma r~visão do trabalho beneficiou-
-se de muitas das criticas e sugestões dos Professo-
res Doutores Antonio Rubbo Miller, Alfonso Tru-
jillo Fe"ari, Erasmo de Almeida Magalhães e
João Baptista Borges Pereira, que, ao lado do
Professor Doutor Carlos Drumond, integraram a
banca examinadora.- A eles e a todos os amigos
que nos ajudaram, nossa sincera gratidão.
INDICE

INTRODUÇÃO . . . : . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . 1l
CAP . 1 - O Alto Rio Negro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
CAP. 11 - Os povos vindos do oeste . . . . . . . . . . . . . . . . 24
CAP . Ili A guerra e as armas de Buopé ........... . 33
CAP. IV A serpente mítica primeva: a importância do
TIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
CAP . v - Desâna - A tartaruga mítica e o colibri . . . . 61
CAP . v1 - O mito kobéwa das andanças dos ancestrais 77
Apêndice ao capítulo VI: A mandioca e os
" espíritos temerosos" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 19
CAP. v11 - Um ogre antropófago e gêmeos que vingam
a mãe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
.
CAP . Vlll "História de Luna" barasana : o mito dos gê-
meos (dois em um) no Rio Uaupés . . . . . . . . 175
CAP . 1x - A "cabeça rolante" e o mito de Kasána-podole 213
CAP. X Dois paralelos com Jurupari: o mito de Koro-
bona e o mito de Auké ................ . 253
CAP . XI Ainda o problema do preço a pagar pela con-
dição humana. . . quem se sacrifica ao ''ser
terr1,ve )"?. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ..... . 276
CAP . Xll As lendas aruák - O ·'Filho da Fruta" 298
CAP . XIII A "Leggenda dei Jurupary" de Stradelli 334
CONCLUSOES 364
BIBLIOGRAFIA 375
INTRODUÇÃO

Quando começamos este trabalho, o objetivo era tentar uma


interpretação do mito e da religião de Jurupari no Alto Rio
Negro, região mitológica deixada de lado por Lévi-Strauss em seus
"Mythologiques", após algumas observações gerais, pois ela real-
mente apresenta certa complexidade (quando comparada, por
exemplo, à área jê ou mesmo às Guianas), o que implica na neces-
sidade de um estudo à parte.
Contudo, à medida em que nos fomos aproximando do obje-
tivo, compreendemos que o caminho percorrido até ele havia se
tornado um elemento tão essencial para a sua com.preensão que,
' '
sem ele, o objetivo perderia o sentido.
Assim, o que se segue aqui é não uma análise compacta.
objetiva, mas sim todo o esforço de compreensão que fizemos
para chegar a ela.
Cremos que, sem querer, topamos com as respostas (parciais,
como todas são) a uma das questões deixadas em aberto por
Lévi-Strauss, segundo já o observou Dan Sperber, 1 e que se refere
à compreensão de como as estruturas mitológicas se constituem.
Cremos sinceramente que, apesar de todas as falhas, o que se
procura mostrar neste trabalho ajudará a compreender o meca-
nismo de dispersão dos mitos e da transfarmação dos sistemas
míticos, principalmente através da verificação da importância do
inito da mulher despedaçada pelos animais e sua ligação com cren-
ças e ritos arcaicos de compensação.
Por vezes, fomos levados a trabalhar com mitos alheios à
região do Alto Rio Negro, como; por exemplo, 0< mito de Auké
(área jê). :! Partindo da estrutura· deste mito, procuramos com-
preender qual o sentido mais profundo das oposições, e percebe-
mos, em primeiro lugar, que a ambigüidade da mensagem, isto é.
1 SPERBER. (Estrutura/ismo e Antropologia. p. 59) : ''Seria necessário poder
dizer: a) como essa mesma estrutura mitológica se constituiu; b) segundo
quais regras é possível passar dessa estrutura à própria narrativa".
:! De que trataremos no capítulo X.
12 JNTRODUÇAU
JNTRODL:ÇÂO JJ
a possibilidade de se .. ler·· o mesmo mito atribuindo a seus ele-
mentos pelo menos duas conotações opostas, desdobrando-se mui- vras, o modo como serão absorvidos internamente os temas míti-
tas vezes estas em infinitas outras, ;{ é a própria essência do mito, cos dependerá não só da ideologia do povo como também das
que garante a sua grande permanência através dos tempos: os mitos oposições existentes entre o povo receptor e o doador; disso, por
de criação 4 são as mais dolorosas e aflitivas interrogações que o vezes, resultará um curioso ··jogo de espelhos" (as inversões já
homem faz para si mesmo, mais do que propriamente respostas. notadas por Lévi-Strauss). em que o vilão por vezes passa a ser
Cada mito de criação contém todas as "dores de parto" da huma- o herói e vice-versa. •í
nidade inteira, se conseguirmos sentir todos os problemas que ele Tivemos a impressão de que há uma constante nos mitos em
reflete e propõe. Só se pode senti-los se tivermos uma visão geral: todos eles refletem o dilema que a humanidade enfrenta,
razoável do estado atual da cultura e das suas transformações; desde que surgiu na face da terra, de como e o que fazer para res-
portanto, não só um bom retrato interno da cultura, como uma tabelecer o equilíbrio do Universo, rompido pelo homem. Todo
retrospectiva histórica. ao menos na medida em que isto é pos- grupo humano rege suas relações com o mundo exterior (qual
sível. " seja, o da natureza, o sobrenatural, o dos inimigos) pelo princípio
À medida em que a sociedade em questão passa de bando da reciprocidade (ainda que se trate de reciprocidade negativa).
nômade fechado para bando nômade aberto (em relações mais Efetivamente, a lei da reciprocidade que rege, como já foi
freqüentes com outros grupos, ainda que possam ser hostis ... ) ; suficientemente demonstrado pela Antropologia, as trocas de es-
do nomadismo para o sedentarismo: da caça e coleta para a agri- posas entre os grupos, originando ciclos mais curtos ou mais lon-
cultura e pesca, por exemplo; mas, ao mesmo tempo, de uma gos, tem que ser forçosamente anterior às próprias trocas, desde
situação de contatos majs pacíficos para contatos mais hostis ou que se entenda que ela rege também as relações do grupo com o
vice-versa (através da exogamia e das trocas em geral) com as sobrenatural, com os entes que personificam a natureza, ainda que
tribos vizinhas, o mesmo mito alarga e aumenta, transforma, en- isto se faça, às vezes, só de forma negativa, através do sacrifício
fim, os sentidos das oposições, e capta e integra elementos de fora. humano. 7
A integração desses elementos de fora depende não só do tipo Essa idéia de ·•pagar" a caça com vidas humanas parece estar
de contatos com os povos vizinhos dos quais se obtêm os ele- presente no pensamento dos caçadores em geral e se reflete não
mentos em questão como também do modo como se apresenta o só nos mitos mas também em outros setores do pensamento, como,
sistema mitológico que vai integrar os elementos. Em outras pala- por exemplo, entre os Rukuba (Nigéria), na interpretação dos
sonhos. 1:1
~ Pois o mito estabelece uma ponte entre o que é estável e o que é dinâmico, A noção do princípio da reciprocidade não é nova em Antro-
o que é perecível e o que é eterno, entre a morte e a vida ...
Em outras palavras, pode-se ler um mesmo mito com, ao menos, duas pologia , 11 mas parece que não se insistiu ainda no fato de que
lógicas diferentes. Cremos que é isto que Edmund Leach tem em mente
quando, apresentando o artigo de WoRSLEY, P. (''El Totemismo de Groote li No capítulo IX, tentamos, embora sem grande sucesso, estabelecer um
Eylandt y ·Le totémisme aujourd'hui ' "), na ·· Introdução" da coletânea paralelo entre um mito das Guianas e um do Rio Negro, em que é possível
Esrructuralismo, Miro y Totemisnw, escreve à p. 15 : ··Los mensajes que notar uma inversão que parece corresponder. entre outras coisas. a uma
surgen de este aparato dificilmente pueden estar sujetos a un análisis lógico valorização diferente da magia.
simple. Worsley piensa que esta interpretación satisfactoria puede exigirnos 7 GODELIER. ("'Refléxions sur les fondements de la pensée sauvage"'. Amrales
pensar en varios tipos de lógicas diferentes operando ai mismo tiempo··. - ESC) : Embora em desacordo com nosso pensamento em outros aspectos,
4 Qualquer tema mítico apresenta condições internas para representar este tem razão quando afirma (p. 549) que a organização fundada nas relações
papel. Evidentemente, alguns se desvitalizam e acabam transformados, às de consangiiinidade e aliança não pode ter sua origem nem nas farmas vazias
vezes, até em simples narrativas jocosas. do pensamento puro, nem nos modelos da natureza, e que só se pode buscar
r. Isto justifica o tipo de abordagem usada nos primeiros capítulos, em que essa origem na sociedade e na história.
se procura verificar em que medida nos podem auxiliar, na reconstrução do 8 MÜLLER, J. C. ,~ "Pouvoir mystique, sorcellerie et structure· sociale chez
passado, o estudo de certos mitos e lendas e a arqueologia comparada. les Rukuba.'" L'homme): Os Rukuba interpretam o sonho ao contrário : · se
Embora não tenhamos logrado resultados mu ito satisfatórios, cremos que o caçador sonha que matou seu filho, é sinal que matará caça; se sonha
a tentativa é válida e que outros estudiosos mais competentes que se aven· que matará caça, é seu filho que irá morrer.
11
turarem neste campo. conseguirão certamente resultados melhores. O ·· Essai sur le don" de Marcel Mauss apareceu já em 1923 ( Extrait de
rAnnée Sociologique. 21'. série. 1923-1924. t. I) . Em 1932. BROCHER, Henri
14 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO 15

muitos mitos refletem, quando há mudanças no gênero de vida e ensão do simbolismo desâna. 1 ::! Ele sugere mesmo que se estude
nos costumes em geral, justamente as dúvidas sobre a validade a possibilidade de certos ritos (superstições e simpatias) da Euro-
dos ritos: quem, como ou com o que se deverá pagar ao mundo pa ainda dos nossos dias (particularmente dos tabus al11nentares ]:{
exterior aquilo que o grupo dele retira; 10 este é o problema que terem se originado no paleolítico europeu, numa civilização de
o herói procura resolver, diante de uma esfinge que está sempre caçadores nômades.
pronta a devorá-lo, pois, de certa forma, a resposta correta que se Seriam , pois, .. simpatias" os ritos de um mito esquecido.
espera (que o grupo espera) de seu ~erói ou heroína é que des- (Também para Cazeneuve, 14 a magia nasce de concepções reli-
cubra que ele próprio é que tem que ser devorado, para salvar giosas perdidas.)
o grupo .. . Mas, se alguma vez é o rito que subsiste, esvaziado das con-
No decorrer do trabalho, muitas vezes estabelecemos compa- cepções religiosas, em outras são os ritos que desaparecem, em-
rações com povos de cultura diferente, da mesma área (como os bora continue viva a ti:adição que os fundamentou. :E: o caso que
Yanonami) e de áreas distantes do U aupés. Existem analogias vem ocorrendo com muitas festas, que antigamente reuniam a
curiosas nos mitos de povos muito distantes entre si, no tempo e população de várias aldeias e que exigiam vários meses de prepa-
no espaço. f: claro que essas analogias não implicam em que ração. Com a população indígena masculina sendo absorvida pe-
tenha havido contato entre os povos, que a cultura de uns derive los seringais e castanhais, não há tempo nem condições para a
da de outros. Mas, embora admitindo que Jean Pouillon 11 esteja realização de tais festas; 15 ou então é a ação do missionário que
certo ao afirmar que "la historia de un mito y la de las poblaciones acaba suprimindo a sua realização. 1 6 Então é só nos relatos mí-
en que se lo recogió no son paralelas" de modo absoluto, cremos ticos que encontramos material para a sua reconstituição e para a
poder mostrar que certas características dos mitos estão relacio- compreensão de sua real importância. 11
nadas e refletem o maior ou menor isolamento do grupo, seu gê-
nero de vida, através da visão do mundo e dos problemas que se 1
~ Nota-se uma :nítida divisão do cosmos em setor masculino e setor femi-
apresentam aos heróis míticos. nino, de tal f orm~ que, desde .os f enômenos naturais até as plantas, a técnica
Que muitas dessas analogias de concepções se prendem às de preparo de alimentos (cozido-assado) são concebidos como feminino ou
condições semelhantes em que viviam os caçadores paleolíticos é . ' masculino ...
13 REICHEL-DoLMATOFF (Desâna. . . p. 183): O autor considera a divisão
o que parece admitir também Reichel-Dolmatoff, após a apre- e'!1 ~ategorias mascul~nas e _femininas de alimentos, conforme ·a sua proce-
denc1a, um traço muito antigo que deve pertencer ao horizonte arcaico da
(Le mythe du héros et la mentalité primitive) dedica um capítulo inteiro cultura de caça. .<~ divisão ,dos alimentos em "frios" e "quentes", que
(cap. V, p. 53) à ..compensação" e escreve: "La croyance que tout bien, estabeleceu a med1cma greco-arabe para o Mediterrâneo e também conse-
toute valeur, nc peut s'acquérir que par une pei·n e ou une souffrance, mais qüentem~nte, para a América Latina, parece, segundo Reichel, relac'ionar-se
qu•en revanche tout effort, toute douleur aura sa recompense ou son de- com as 1deações dos caçadores. No fundo, o frio e o seco· são o masculino;
dommagement, nous J'.appellerons la 'compensation' ". A busca 'do equilíbrio o quente e o úmido, o feminino; e a divisão entre quente e frio que
também foi ressaltada por DuR.KHEJM (La Division dei Trabajo Social.· p. estabelece o camponês e o índio seria, pois, a lembrança distante da lei
281) quando fala da necessidade imperiosa desse equilíbrio, no sentido de exogâmica ... ) -
14 CAZENEUVE (Les rifes et la condition húmaine. p. 204): .. Une réligion
não haver: nem escassez nem excesso, relacionando com este último o alto
índice de suicídios que, pensa ele, só aparece com a civilização. Mais ·recen- appelle magiques les restes d'anciens cultes, avant même que ceux-ci aient
temente, ELIADE, M. (Le mythe de /'éternel reto11r), ao tratar do sacrifício cessé d'être pratiqués religieusement".
15 Entre os Suruí e Akuáwa-Asuriní, os ''ritos de passagem não são mais
do primogênito no Oriente arcaico, escreve: "les divinités de la f ertilité
epuisaient leur propre substance dans J'effort déployé pcur soutenir le monde executados"; entre os Gaviões ··~ora não tem mais corrida de tora".
et assurer soo oppulence, cites avaient donc elles mêmes besoin d'être LARAJA e MATA. lndios e Castanheiros: a empresa extrativa e os índios no
régénerées periodiquement" (p. 130). Médio Tocantins. p. 60 e 134.
lO ELIADE, M . (Me/isto/eles y el Andrógino. p. 272) : "Los símbolos ligados rn NJMUENDAJÚ (''Reconhecimento dos Rios Içana, Ayari e Uaupés." JSAP.
a las fases recientes de cultura se constituyeron de la misma manera que los p. 146) ainda assiste a uma festa de Jurupari entre os Wânâna; SousA,
símbolos mas arcáicos, es decír, como resultado de las tensiones existenciales Boanerges Lopes de (Do Rio Negro ao Orenoco: a terra - o homem. p.
y de las captaciones globaJes dei mundo". 95) assiste a outra em tutica, já a pedidos ...
11 POUILLON. "EI Análisis de los Mitos". ln: lntrodución ai Estruturalismo.
17 Como o rito é um mito dramatizado, esta reconstituição. em linhas gerais,

p. J85. é válida.
16 INTRODUÇÃO INTRODUÇÃO 17

E, desde que forçosamente lidamos com mitos recolhidos em o que se convencionou chamar de "memória hist6;ica", não quer
épocas diferentes, entre grupos indígenas que direta ou indireta- dizer também que o pensamento mítico não possa refletir trans-
mente sofreram a influência do processo civilizatório; que já esti- fo rmações na ideologia. Naturalmente, como ele tende a mostrar
veram ou ainda estão sob a ação d!i catequese, não podemos de um quadro atemporal, não é fácil descobrir só pelos mitos em si
maneira alguma estudá-los sem ter em conta, além das condições o que exatamente se refere a mudanças culturais.
econômico-sociais atuais, também as do passado, isto é, a história. Mircea Eliade chega a se referir aos mitos como sinônimo
de ideologia, 21 pois eles refletem realmente uma determinada visão
Ainda que nos seja difícil reconstituir realmente o passado
do mundo. Essa visão do mundo, contudo, não nasce do nada.
de povos pré-letrados, cremos que se deva tentar essa reconstru-
Ela corresponde a determinadas condições econômicas, a determi-
ção, mesmo porque há hoje mais probabilidades de não se fazer
nadas condições político-sociais. Ela surge porque o conjunto de
simples história ··conjetural'', 1 ~ do que ao tempo de Radcliffe-
indivíduos que lidera o grupo enxerga o mundo de um determinado
-Brown.
modo e resolve insistir em que se deva viver a vida de acordo c.om
De qualquer modo, cremos poder demonstrar que, ao menos, determinados padrões. :t:?
o princípio da reciprocidade, aplicado às relações globais do grupo E é esta ideologia, expressa nos mitos, que faz um Desâna
com o mundo exterior, se aplica a qualquer sociedade, do passado se sentir superior a um Kobéwa, e um Kobéwa superior a um Makú.
ou presente, e que na origem do conceito de trocas es!á a noção Ela implica em um juízo crítico por parte do índio e ele tem,
de sacrifício. 10 sem dúvida, conhecimento suficiente de sua própria cultura e
Parece-nos assim que os mitos na ·área do religioso refletem um conhecimento razoável da dos seus vizinhos mais imediatos,
justamente o que se poderia chamar de uma. ideologia do sacrifício, para que, nas comparações, muitos aspectos da vida sejam focali-
com suas transformações. zados. Claro, não estamos querendo discutir o valor destes julga-
É que, apesar de o ritmo de mudança-, na nossa civilização, mentos: a vida que para um sedentário é encarada como de des-
ter-se àcelerado evidentemente de modo espantoso, se fizermos prezível vagabundagem pode ser a única que mereça ser vivida
uma comparação com as mudanças ocorridas nas sociedades cha- ( por representar a própria liberdade) para um nômade.
madas primitivas, não se pode ter destas, em absoluto, uma con- O etnocentrismo mantém as tensões ·entre os grupos pouco
cepçào a-histórica. :!o E o fato dos povos pré-letrados não terem integrados politicamente . Mas, para que ele exista, é preciso haver
algo diferente a ser comparado . . . e desprezado. E este "algo
1Fo No sentido pejorativo que Radcliffe-Brown dá ao termo, pois evidente- diferente" pode estar tanto num plano horizontal, geográfico, como
mente a história é, de certa forma , se.mpre conjetural. Aliás, de certa num plano vertical ou temporal (histórico) .
forma, dá no mesmo por onde se começa. Se, seguindo o conselho de
RADCLIFFE-BROWN ( Method i11 Sucial A nthropology. p. 19 et seqs.), pro- É tão importante afirmar a superioridade do que é atual frente
curarmos leis, em vez de procurar as ori1:e11s e tivermos chegado a uma ao que é passado como do que é próprio frente ao que é alheio.
lei realmente universal do comportamento dos grupos humanos, logicamente No primeiro caso, trata-se justamente da necessidade de negar cos-
ela deverá funcionar em todas as culturas, e desde que elas existem. Pensa-
mos que se poderá testá-lo com mitos de várias procedências, inclusive os
tumes antigos (costumes estes, contudo, atribuídos, geralmente, não
da Grécia arcaica de que temos conhecimento. ao ancestral direto do grupo, mas aos afins do ancestral).
1 11 Isto implica, contudo, numa nova · formulação da teoria do sacrifício, o A mudança dos ritos reflete-se, portanto, nos mitos.
qual está longe de representar "um discurso particular e desprovido de bom No Antigo Testamento, temos um exemplo bem conhecido :
sentido'', como o afirma Lévi-Strauss em O Pensamento Selvagem. p . 262.
A diferença reside em que Lévi-Strauss entende por "sacrifício" uma opera-
ção mais específica: a de estabelecer uma dívida para com o homem junto · impotentes para lê-la (devido à nossa repugnância por algo que não entra
a uma divindade distante e desligada . Na nossa concepção, "sacrifício" é nos quadros do historiador ). vemos os povos sob os traços de uma realidade
tudo que se entrega ao mundo exterior em troca do que o grupo dele já estagnada".
2 1 " • •. l'idéologie elle-même c'est-à dire, les m ythes." ELIADE, M . M ytlie.\ ,
retirou ou ainda vai retirar, incluindo, onde existe, o abandono dos velhos,
o infanticídio por vaticínios funestos. etc. rêves et mysteres. p. 97.
2
:! Em se tratando de sociedades segmentárias como as de que nos ocupamos.
:to Como observou recente.mente BURGUIERE ("Histoire et structure." Annales ):
"Cada um desses povos leva em si o peso de uma história (movimentada a homogeneidade interna da ideologia é grande e talvez só se possa dizer
com guerras, migrações. transformações econômicas) e tensões sociais. Somos que a "classe dos homens" a impõe à ''classe" das mulheres e crianças . . .
\
18 INTRODUÇÃO

a imolação de Isaac por Abraão, que o anjo impede. Sabemos que


no passado nenhum anjo impedia o sacrifício dos primogênitos
pelos patriarcas. Talvez nem existisse então um mito instituindo
o sacrifício, talvez já existisse, não importa. Mas a verdade é que
quando a atitude em relação ao sacrifício mudou, esta mudança CAPÍTULO I
se refletiu na mitologia.
Procuraremos mostrar que muitos mitos americanos se origina- O ALTO RIO NEGRO
ram exatamente do mesmo modo . . . Só que, como se verá, nem
sempre o anjo do Senhor já fornece tão pronta e simplesmente a so-
lução da substituição do sacrifício humano pelo do carneirinho ... Este trabalho, visando a uma interpretação dos aspectos prin-
cipais da mitologia, focaliza a região compreendida entre os rios
Negro, com seus afluentes o Xié e o Tçana (mais o Cuiary e Aiary,
afluentes deste último); o Uaupés (mais seus afluentes Cuduiari,
Querarí, da margem esquerda, e Papory e Tiquié, da margem di-
reita) e finalmente (limitando a área ao sul) o Curicuriary. 1
t uma região compreendida aproximadamente entre os paralelos
de 2º norte e a faixa do Equador, estendendo-se desde as imedia-
ções do meridiano de 67° oeste até niais ou menos 70° oeste. O
melhor levantamento cartográfico da região· foi organizado por
Boanerges Lopes de Sousa, 2 de que nos utilizamos. 3
A região foi percorrida por vários exploradores, particular-
mente a partir de meados do século passado, quando Wallace
subiu o Uaupés. Seguiram-se-lhe, entre outros, escrevendo sobre
a região, Stradelli, Coudreau, Koch-Grünberg e, mais recentemente,
Kok, Nimuendajú, Boanerges Lopes de Sousa, José Cândido M.
de Carvalho, Eduardo Galvão, Ettore Biocca.
Dos missionários que trabalharam ou trabalham ainda no
Uaupés e lçana, P." A1cioní1io Brüzzi Alvez da Silva publicou,
além de importantes estudos da língua tukano, 4 também uma ,
valiosa descrição da cultura material e costumes atuais das tribos
do Alto Rio Negro. 5 Também Antônio Giacone, Wilhelm Saake,

1 Ao sul do Curicuriary, entre os pequenos afluentes lnuixi, Téia, grupos


identificados como makú e, entre o Marauiá e Cauaboris, Waiká, Waharibos,
Karautari foram assinalados por E. Galvão.
2 SousA, Boanerges Lopes de. Do Rio N egro ao Orenoco : a terra - o
homem. ·
3 Para a localização das tribos, as referências nos mitos e ritos e para com-
parar os dados fornecidos por Wallace, Coudreau, Koch-Grünberg e outros.
4 SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. Observações Gramaticais da Língua Daxseyi
ou Tukano. Amazonas, Centro de Pesquisas de la uareté, 1966.
5 ld. A Civilização Indígena do Uaupés. Infelizmente não tivemos oportuni-
dade de adquirir. a discoteca etno-lingüístico-musical do mesmo estudioso
salesiano.
20 C AP. 1 - O ALTO RIO NEGRO O ALTO RIO NEGRO 21

Casimiro Beksta contribuíram para o conhecimento das tribos in- Como no Alto Xingu, os casamentos intertribais (a exogamia
dígenas com que trabalharam. tribal, com patrilocalidade) mais as festas ( dabucuris) religiosas
Na parte já colombiana do Uaupés, trabalharam Marcos e profanas (para trocas de produtos, correspondentes ao moitará
do Alto Xingu) foram os fatores dessa aculturação, desempe-
Fulop, Alfonso Torres Laborde, Reichel-Dolmatoff, Irving Gold-
man e outros. nhando a religião de J urupari o papel unificador que no Alto Xin-
gu foi representado principalmente pelas competições esportivas
Encontramos aí, localizadas nos rios principais, tribos aruák e pelo Quarúp.
e tukano, além de tribos ou bandos que se ''aruaquizaram" ou
"tucanizaram" e cuja origem não pode ser bem determinada, de- A religião de Jurupari compreende um culto secreto (asso-
signados geralmente como tendo sido outrora ''Makú", termo que ciações secretas masculinas), revelado aos iniciandos principal-
se aplica às hordas nômades que ainda hoje vagueiam pelas flo- mente durante a segunda iniciação. Os ritos incluem flagelações,
restas entre os rios e nas cabeceiras dos afluentes. o uso do tabaco e coca, ilusógen0s como o yagé (caapi) e (mais
no extremo sudoeste da região) também o paricá.
Segundo Nimuendajú, o estrato de população mais arcaico é
constituído' justamente por esses "Makú", além de nômades waiká A mulher é excluída ostensivamente deste culto, representaôa
e xirianá (grupo lingüístico yanonami), hoje já influenciados pela como criatura leviana, impaciente, curiosa, incapaz de guardar
população da segunda camada ou segundo estrato, constituído de qualquer segredo e, percebe-se bem que, devido à exogamia tribal,
tribos de cultura mais complexa (com clãs exogâmicos e de suces- é através desta hostilização ritual da mulher (a qual, contudo, goza
são paterna), aruák, vindos do norte, e tukano, procedentes do de uma liberdade muito grande no U aupés e parece não se sentir
oeste. A terceira camada é da população cabocla de hoje. muito constrangida, já ultimamente, com esta sua exclusão da
Os Aruák localizám-se principalmente no lçana, e apenas os área do sagrado) que o grupo mantém sua autonomia.
Tariâna encontram-se mais para o sul, no Rio Uaupés, entre a Já Goldman percebeu a que funções corresponde esta espécie
população tukana que aí domina. de ideologia anti-feminista: "The Cubeo defend the unity of the
Das tri~os aruák, os Manaos estão hoje extintos e, pratica- sib by regarding the in-marrying women as permanent strangers". 1
mente, também os "Warikéna" e Baré, segundo Galvão. A tribo Na "Introdução", falamos da necessidade de se tentar uma.
aruák mais ·importante é a dos Baniwa de que os Siucí-Tapúya, reconstituição histórica dos povos cuja mitologia se pretende com-
Sucuriú-Tapúya, Arara-Tapúya, Cáua-Tapúya, etc. são apenas preender.
clãs ou sibs. u Grupos .como os Hohódene e Kadauapuritana fo- b claro que, em se tratando de povos ágrafos, esta tarefa não
ram aruaquizados pelos Baniwa. Galvão, confirmando dados de pode ser empreendida de maneira inteiramente satisfatória. Mas
Nimuendajú, reconheceu três dialetos principais entre os Baniwa impossível ela não é .
.do lçana: Káru, ún-hun e Karupáka. Cremos que, não só para a região do Alto Rio Negro, mas
Este mesmo autor cita como tribos tukano principais os para outras áreas também, de um modo geral, já se deveria tentar
Kobéwa, Wanâna, Pira-Tapúya, Desâna, Tukano propriamente di- essa empresa, com os dados já conhecidos sobre os poucos vestí-
tos; "tucanizados" de origem desconhecida: Arapáso, Curauá, Mi- gios deixados em alguns pontos do Brasil e países vizinhos por
riti-Tapúya e Uçá. povos que, segundo os próprios vestígios, só poderiam ter emigrado
. Como no Alto. Xingu, a reg1ao vem sofrendo, já há tempos, de outras regiões para aí. Estamos pensando nos poucos dados
um intenso processo de aculturação intertribal, com tendência da que temos sobre a cerâmica arqueológica e sobre um escasso pu.-
língua tukano substituir · outros dialetos, na comunicação entre os nhado de objetos líticos, único material resistente às condições
membros de tribos diferentes (com pouca aceitação da língua desintegradoras das regiões quentes e úmidas onde seus autores
geral). viveram até se diluírem lentamente na população vizinha, "regre-
6
dindo" para um género de vida mais de acordo com as condições .
Embora RADCLIFFE-8ROWN (Structure and Function in Primitive Society.
p. 39) aconselhe usar o termo sib, apenas para o grupo bilateral de descen-
dência, permitimo:nos, à maneira de Lowie, usá-lo como equivalente a clü. i GOLDMAN. The C11beo . . . p. 125.
22 CAP. I - O ALTO RJO NEGRO O ALTO RIO NEGRO 23

da floresta equatorial, ou mesmo desaparecendo em contato com Outras correlações que podem ser úteis para a compreenS'ão
grupos vizinhos mais agressivos. de certos aspectos dos movimentos religiosos, ritos e cultos, são
:h verdade que os dados são escassos, sua cronologia ainda as que se podem fazer entre os relatos lendários que se sabe mais
P?uco e~ata, mas parece-.n?s que há correlações para as quais recentes e o que se conhece sobre migrações já históricas, como,
amda nao se chamou suficientemente a atenção: são as correla- por exemplo, as grandes movimentações do contingente indígena,
ções entre os temas, as representações desse material arqueológico após os primeiros choques mais violentos com o colonizador por-
que, pelo que sempre se tem confirmado quanto ao material etno- tuguês. Deslocamentos de várias aldeias ·indígenas reunidas cor-
gráfico de tribos ainda hoje existentes, correspondem às represen- respondendo a uma gigantesca retração de populações litorâneas
tações míticas do povo; e isto, tanto em se tratando do materia1 têm sido registrados pelos cronistas.
funerário como do de outras funções, pois os objetos rituais têm A influência de movimentos desse tipo faz-se sentir sobre as
que refletir forçosamente algo profundamente significativo para a áreas invadidas, rompendo muitas vezes um relativo equilíbrio en-
cultura que os elaborou. tre as populações lo~ais qu~ são obrigad~s a se arregimentar, des-
pertando para uma 1deolog1a guerreira, quando até então tinham
Assim, os muiraquitãs batraquiformes têm que estar em cor-
vivido em condições relativamente pacíficas.
relação com uma mitologia em que o animal representado tem
Cremos que a ideologia guerreira dos Tupi do litoral foi leva-
um papel preponderante. Percebemos a sua presença até hoje
da para o interior; com ela, as técnicas e armas de ataque dos
ainda, no mito dos heróis gêmeos (em uma região que corres-
Tupinambá, técnicas e armas que passaram a impulsionar a arte
ponde à área de difusão principal dos muiraquitãs), em que a
guerreira de tribos vizinhas; uma delas, ao que tudo indica antes
mãe das onças é representada justamente sob a forma de uma rã
pacífica, dos Tariâna, teve uma importância grande, a nosso ver,
dona do fogo. Se o sapo-cunauarú é intercambiável simbolica-
na unificação cultural do Uaupés; e é justamente nos seus relatos
~ente com a onça, o povo que fabricou os muiraquitãs tem algo
lendários que encontramos elementos para o estudo de influências
dtretamente que ver com essa questão. E já que estes objetos de
de outras áreas sobre o Alto Rio Negro e de uma possível influên-
jade aparecem também em outras regiões da América Central, cia dos Tupinambá no Vale Amazônico. (V. "A Guerra e as
certamente. seus autore·s participaram do fundo mítico que em .A rmas de Buopé" - cap. III, p. 33).
Teotihuacán deu origem à concepção de Tlaltecuhtli ("Seííor de
la Tierra . . . una rana fantástica con la boca armada de grandes
· colmillos .. . " s) .
.Nada se pe_rde ~nteirame~te. Os deuses que um povo carrega
consigo pelos m1stenosos caminhos que trilhou, antes de se trans-
formarem simplesmente em pedra, marcando o fim da civilização
que os criou, deixam suas marcas nas representações míticas dos
depauperados "sobreviventes do dilúvio" e mesmo dos povos com
que entraram em contato e que talvez foram os causadores deste
"dilúvio": muito provavelmente estes os identificaram simbolica-
m~nte com o personagem mítico que centralizou seus ritos e que
foi, conseqüentemente, absorvido em sua mitologia com alguma
conotação particularmente sinistra.
No que diz respeito ao Uaupés, tentaremos uma abordagem
desse tipo, quanto às influências antigas de migrações, no próximo
capítulo ("Os Povos Vindos do Oeste") .
8 SÉJOURNÉ. Pensamiento y Reli~ión en e/ México Antiguo. p. 149.
OS POVOS VINDOS DO OESTE 25

Muitas tribos que falam dialetos tukano dão a impressão de


estarem na reg1ao desde tempos muito remotos, e, se vieram de
outro lugar, toda a lembrança ·dessa origem já se perdeu. t: o que
diz Giacone :; dos Pira-Tapúya, "de língua semelhante à dos Tuka-
no e provavelmente da mesma raça". Naturalmente, é difícil de se
CAPÍTULO II
saber quais os que realmente eram do mesmo grupo étnico dos
Tukano e quais os .. tukanizados" . 6
OS POVOS VINDOS DO OESTE
Uma tribo que apresenta, neste sentido, certos problemas é
a dos Wanâna; Nimuendajú os classifica na família lingüística tu-
Existe uma certa unanimidade em se admitir uma origem kano ( Op. cit. p. 170) e não há referências a que tenham sido
ocidental para as tribos tukano. Admite-se que tenham vivido " tukanizados" ; mas Giacone afirma que "emigraram também do
originalmente nos vales interandinos do Equador, onde ainda fica- Alto Orenoco, como os Tarianos, se bem que chegados ao Uaupés
ram (GIMPERA. Las Razas Humanas. p. 136) os Quillasingas e em época anterior''. (Op. cit. p. 6)
Pastos, como prováveis representantes dos Tukano, e, no Alto Como a sua mitologia apresenta uma série de elementos curio-
Potumayo e Napo, os Auxhiri e Pioye, chegando até os Andes do sos, ainda falaremos dos Wanâna adiante.
Equador. Como observa Giacone, "parece que os conquistadores da
Os Tukano ocidentais 1 não têm ·canoas, e tem-se a impressão Colômbia, à medida que avançavam no interior do país, obriga-
de que eles só vieram a conhecê-las após a sua migração para o vam os silvícolas a se internarem cada vez mais, até chegarem às
Uaupés, pois, pela localização das tribos, por sua cultura material cabeceiras dos rios Papurí e Tiquié, por onde entraram no Brasil,
e pelos textos míticos, certamente vieram por terra, passando de para aqui se fixarem definitivamente". (p. 5)
uma vertente a outra. Mas não foi só a conquista européia que obrigou populações
A julgar pelo material mítico recolhido por Fulop, o conheci- a se deslocarem de oeste para leste. A organização dos estados
mento detalhado, pelos Tukano colombianos, do território cujo andinos, direta ou indiretamente, deve ter provocado muitos des-
centro é o U aupés, vai pouco além de Manaus. locamentos; um dos mais importantes, ao que parece muito antes
A frase , enganosa à primeira vista, "los colombianos y los do descobrimento, ao longo do grande rio, seguiu talvez a "se-
espafloles ·se quedaron en la desenbocadura del rio Amazonas en gunda entrada" para o Rio Amazonas, que d'Acuiía descreve em
el mar Atlântico, pues allí es donde queda Diabarowi", 2 mostra seu célebre relatório, ' desde o Rio Aguarico, na província equato-
que o conhecimento do Amazonas a jusante de Manaus é bem ne- riana do N apo.
buloso, pois na realidade "Diabarowi . . . ahora es Manaos" 3 Os motivos da fase marajoara se reduzem praticamente a um
(a antiga São José da Barra). 1 só: a representação mais natural ou mais estilizada (e esta estili-
zação chega a um máximo nas "tangas", que, ao primeiro exame,
l Os C oró (Coto Oregón, Orejón, Payaguá) , entre Napo e Potumayo: os
Encabellados ( Pioje, Icaquate. Cieguaje, Santa Maria, Angutera, Ruma, Ma- ;, G lACONE. Os Tucanos e outras Tribus do Rio Uaupés . Afluente do Negro
caguaje) no Napo médio e superior e no Aguarico; os Siona, no Potumayo - Amazonas. p. 7-8.
superior: os Tama, no Rio Orteguaza; os Correguaje, no Orteguaza. BÕDIGER. 6 Ni muendajú dá como "tukanizados", de origem desconhecida, os Arapáso-
Die R eligion der Tukano im nordwestlichen Amazonas. p. 7-8. ·T ap úya. Curauá. Usá-Tapúya, Yi-Tapúya e Miriti-Tapúya. NIMUENDAJÚ.
2 F u LOP. " Aspectos de la Cultura Tukana - Cosmogonia" RCA . p. 117. "Reconhecimento dos Rios ... ·• JSA P. p. 170.
3 Jd .. ibid . p . 136.
De fa to, GIACONE ( Op. cir. p. 7) diz que .. os índios Arapaços são os que
-t J:. possível que a confusão se deva ao fato de não existirem, em muitas
primeiro tiveram habitat no Rio Uaupés, onde ocupavam os melhores sítios
línguas indígenas, vocábulos diferentes para "rio" e ''mar", usando-se para antes da chegada dos Tucanos e Tarianos. Não consta que tenham emigrado
o segundo um aumentativo de rio ou uma palavra composta em que entra
o termo '' rio'', como acontece também na língua Tukano : mar = ·'Diá-pahirí
de outras regiões" .
7 ACUNÃ ... Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas." RIHGEB.
maá" ( "Diá" = rio ) . G1ACONE. Pequena G ranuírica e Dicionário da Língua p. 2 12.
Tu ca11a. p. 180.
26 CAP. II - OS POVOS VINDOS DO OESTE OS POVOS VINDOS DO OESTE 27

parecem de decoração puramente geométrica) de um jacaré (em zer, J 4 em que o jacaré, contudo, é introduzido no fim do relato,
muitos casos, justamente do Crocodilus sclerops). s num episódio em que ele tem a língua queimada (e por isso fica
Ora, esta constatação levantou um outro problema: o jacaré: "sem língua") numa tentativa, frustrada pelo herói, de roubar o
na mitologia brasileira, é um pobre enjeitado. Já Câmara Cas- fogo, que havia sido obtido pelos homens (através de uma mulher
cudo 9 notou este seu status desprivilegiado, quando comparado ao que o tinha escondido no ventre). 15
que gozam seus congêneres, particularmente no Egito Antigo. Mas, embora se trate de um tema mítico incomum no Brasil,
Entre os índios brasileiros, o jacaré é principalmente um sím- muito provavelmente se encontrarão representações análogas na
bolo da lascívia masculina. Compartilha com a anta (igualmente América Central e noroeste da América do Sul (Colômbia, Equa-
"desprezada", por simbolizar a gula e a força bruta) o papel de dor, Venezuela). Entre os Aztecas, Cipactli 16 é o signo de um
sedutor. 10 dos dias do calendário, aparecendo nos tonalpohualli 17 com o no-
me do deus Tonacatecuhtli. 18 O deus do fogo é outro ("Xiuhte-
Assim também num mito kobéwa é o jacaré que força a mu- cuhtli"), mas, como o deus-crocodilo é um dos· deuses da Criação,
lher de Kuwái a ter relações com ele; 11 e em outro mito desâna 12 não é impossível existir alguma relação dele com o fogo. (Os deu-
um rapaz é transformado em jacaré por ter sonhado com relações ses mais antigos são geralmente também deus~s do fogo.) 19
sexuais e não ter cumprido as restrições.
Contudo, a lenda a que Câmara Cascudo se refere ao tratar
Só esporadicamente, em um ou outro mito, o jacaré desem- do jacaré na obra citada atrás, e que fora registrada por Stradelli,
penha um papel mais relevante. Entre os Yanonami (segundo o é a que atribui ao jacaré a origem dos terremotos, sendo por isso
que contou Fousiwe a H. Valero) era ele o primitivo dono do chamado de "Jacaré tyrytyry manha" (Jacaré mãe do terremoto).
fogo. 13 Isto faz lembrar um mito dos Taruma (Aruák do sudeste E isto nos dá a certeza de que estamos diante de um elemento
da Guiana Inglesa), recolhido por Farabee e reproduzido por Fra- oriundo ou da América Central ou dos Andes. Como a tradição
existe na Amazônia em geral e não é das G.uianas, tudo parece
8 PALMATARY. Tlze Pottery o/ Marajó Island, Brasil.
9 CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. p. 364.
H FRAZER. Mytlres sur f origine du feu. p. 163. Uma variante deste mito
10 Referente a um mito karajá, EHRENREICH ("O Jacaré e as Mulheres existe também no Uaupés, entre os Baré (Aruák), com a diferença que o
Belicosas" e "Contribuições para a Etnologia do Brasil." RMP. p. 83-84) dono do fogo é um velho. V. PER.EIRA, Nunes. Moronguetá . . . v. 1, seqüência
já chama a atenção para o fato de se tratar de um mito das Amazonas. III, p. 224-25.
De fato, este mito é encontrado, quase na mesma forma, nas Guianas. 15 Tema mítico comum nas Guianas. V., por exemplo, o mito "warrau",
(Aliás, não é a única analogia que . os Karajá apresentam com as tribos Mito 259, analisado por LÉVI-STJt.Auss (Du miei aux cendres. p. 182 et seqs.).
desta região.) Como dono primitivo do fogo ele aparet:e também, não na Austrália propria-
Num mito borôro muito semelhante (Le cru er /e cuit. Mito 21. p. 102) mente dita (ou só numa pequena área do norte do continente), mas nas
sobre a origem dos porcos selvagens, analisado por Lévi-Strauss, são as ilhas do Estreito de Torres e na Nova Guiné, particularmente entre os
lontras que desempenham a função do jacaré. . Kiwai, do Rio Fly. FRAZEJt.. Op. cit. Cap. IV, p. 38 et seqs.
Também os mitos guarani não dão maior importância ao jacaré, que, em 16 VAILLANT. Aztecs o/ Mexico. p. 188.
um dos contos recolhidos por J. e A. TAYLOR ("Nove Contos Contados l i Urna das divisões do calendário azteca, com a sucessão ritualística dos
pelos Kayová e Guaranis." RA. p. 98) se comporta como um menino mal- dias. ld., ibid. p. 187.
-educado, que derrama a chicha da rã, que não quer tomar banho, e que JS "Tonacatecuhtli, Lord of Our Subsistence, Creator God, chief of the
é por isso castigado pelos pais. gods." Jd., ibid. p. 182.
11 GoLDMAN. Tlie Cubeo . . . p. 182. 19 O jacaré teve uma importância fundamental na mitologia dos povos pré-
12 REICHEL-DoLMATOFF. Desâna ... Mito 11 , p. 203. -colombianos do Panamá, a julgar pela freqüência de representação, na
13 B1occ A. Yanoama. p. 219 : "Il y a eut un temps ou les Yanoama ne ourivesaria, particularmente em Coclé e também em Chiriqui, cuja · área
connaissaient pas le feu; Omawe n'avait pas montré coniment le faire. Alors cultural estendia-se até Costa Rica. Mas o estilo desta arte difere bastante
le crocodile commença à faire : 'ah, ah, ah ... ' et cracha une braise de sa do de Marajó. Além disso, "en ellas se manifiesta casi siempre la influencia
boucbe ouvérte; avec cette braise ils firent le feu. Voilà pourquoi le croco- sudamericana y en especial la de Colombia" (LEHMANN. Las Culturas Pre-
dile à la langue si courte: le feu a brulé toute la pointe". Existe a crença colombinas. p. 79) e sua época de florescimento é bastante recente (WINNING
de que os jacarés não têm língua. LÉVT-STRAUSS. Du miei aux cendres. p. and STENDAHL. Pre-Columbian Art of Mexico. and Central America. p. 340)
194. a partir de 800 d .C.
28 CAP. II - OS POVOS VINDOS DO OESTE OS POVOS VINDOS DO OESTE 29

indicar que ela foi difundida por essas populações que desceram que as pesquisas confirmam a procedência equatoriana dos cera-
o Amazonas, procedentes dos vales interandinos. mistas da fase Marajó.
A estilização do jacaré na cerâmica marajoara, a ausência Não temos em mãos o artigo de Hilbert sobre as investigações
praticamente total de qualquer outro animal representado, 20 con- arqueológicas próximas à foz do Rio Negro, mas, em um artigo de
ferem características tão sui generis a este estilo que se torna rela- H. Baldus sobre "Os Carimbos dos lndios do Brasil", 27 nota-se
tivamente fácil reconhecer a sua filiação, particularmente por que que um dos "pontos de parada" desses autores da cerâmica mara-
ele já chegou, como o reconheceram Meggers e Evans, 21 plena- joara bem poderia ter sido Manacapuru. Efetivamente, as estam-
mente desenvolvido à foz do Amazonas. Tanto que, das peças pas dessas peças de cerâmica, que poderiam ter sido usadas como
apresentadas por Helen Palmatary como exemplares de cerâmicas carimbo, lembram muito o estilo marajoara. Figura 35 (p. 58)
(da costa norte da América do Sul, da parte continental e insular é um arranjo do motivo do duplo jacaré; figura 36 (p. 59) mostra
da América Central) de possíveis vinculações com a cerâmica o mesmo desenvolvimento da cauda do jacaré e também a figura
marajoara, apenas em uma o elemento tipicamente marajoara está em "S" que, por vezes, preenche o centro do corpo do sáurio
presente: trata-se de uma uma procedente do Rio Aguarico, no estilizado na cerâmica de Marajó.
Equador. 22 Nela, uma cabeça triangular, estilizada na mesma Como dissemos, não temos em mãos os artigos sobre os cerâ-
maneira como em Marajó, arremata uma figura representando o mios de Guarita e Coari, mas a data indicada 28 para sua introdu-
corpo do sáurio. Na fotografia dessa peça apresentada por Palma- ção no Brasil (cerca de 1000 a.C!) ainda representa o período
tary, devido à refração da luz, a parte esquerda não é visível, mas formativo, em que a policromia na cerâmica ainda não havia sur-
temos certeza, pela simetria do restante, que a cabeça triangular se gido. 2 n O pleno desenvolvimento do estilo marajoara, na área de
repete do outro lado, formando o duplo-jacaré, tão típico da cerâ- sua procedência, na Província do Napo, só poderia ter ocorrido em
. .
mica mara1oara. data posterior. Sanders e Marino 30 indicam para as migrações do
Infelizmente não tivemos oportunidade de consultar os tra- Equador até a Ilha de Marajó o período entre 1000 e 1300 d.C.
balhos de Betty Meggers sobre a arqueologia do Equador 23 nem o Os povos de Guarita e Coari devem representar, portanto, as
artigo sobre as evidências de migrações do Napo à foz do Ama- primeiras vagas de povos ceramistas vindos do oeste.
zonas, 24 e dos trabalhos de Hilbert só temos em mãos o estudo Quanto a Manacapuru, parece tratar-se antes de um estilo
da cerâmica de Oriximiná. 25 Só tomamos conhecimento deles marajoara decadente, a julgar pelo escasso material publicado por
Baldus. Não é de todo impossível que os últimos remanescentes
com a reedição do artigo de Altenfelder Silva e Meggers sobre
desse povo ceramista tenham tentado voltar (abandonando Mara-
"Desenvolvimento Cultural do Brasil" 26 e por este artigo vê-se
jó, ante a invasão aruã?) à. pátria de seus antepassados, cuja locali-
20 Só cm umas poucas urnas, duas cobras em relevo, representam os braços zação bem pode ter ficado perpetuada na memória tribal, nos mi-
da figura. tos de origem.
21 MEGGERS e EVANS. Archeological lnves1igatio11s "' tlie Mouth of the
Amazon e Uma lnterpreração das Culturas da ilha de Marajó. 27 RMP. N. s.
1961/1962. V. XII, p. 7-74.
~!? The Pottery o/ Marajó Jsland, Brasil. PI. 112-a. Trata-se segundo Palmatary, 28 ALTENFELDER SILVA e MEGGER~ ··oesenvol.vimenlo Cultural no Brasil."
de uma peça descrita por GILLIN, John. "An urn from the Rio Aguarico, RA. p. 15. .
eastern Ecuador" - 1936. Amer. Anthropologist 38. (3) pt. 1:469. :!O Segundo HARDOY ( Ciudades Precolombi11as. ? · 317) é por volta do pri-
2a A biblioteca da F. F. C. L. de Rio Claro possui este trabalho, mas se meiro milênio a.C. que se deu a gradual expansão do estilo Chavin. Um dos
encontra extraviado. centros mais importantes desse estilo foi uma localidade situada num dos
2-1 "Archeological Evidence of Prehistoric Migration from the Napo to the afluentes do Rio Marafion, próxima à atual cidade de Huarás (Peru), bas-
Mouth of thc Amazon", citado por Altenfelder e Meggers no artigo men- tante ao sul da região de Aguarico. SANDERS e MARJNO (Pré-História do
cionado, logo abaixo. N ovv Mundo. p. 115 e 121 ) dividem a história dos Andes Centrais em
25 A Cerâmica Arqueológica da Região de Ori:rimÍliá. uma fase antiga (1200-750 a.C.), "caracterizada por uma rápida difusão
:!6 "Desenvolvimento Cultural no Brasil." Apud ScHADEN. H omem, Cultura da cerâmica monocrômica" e uma fase média (de 750 a 400 a.C.) em que
e Sociedade 110 Brasil. p. 11 a 25; além destet há um outro artigo de Betty se difundiu um estilo já altamente evoluído, com cerâmica de pintura bicro-
J. Meggers sobre "Filiações das Culturas Arqueológicas na Ilha de Marajó''. mática em branco e vermelho e em negativo.
apresentado no XXXI Congresso Internacional de Americanistas. :;o SANDERS e MARINO. Op. cit. p. 148.
30 CAP. II - OS POVOS VINDOS DO OESTE OS POVOS VINDOS DO OESTE 31
..
De qualquer maneira, acreditamos que sempre houve contato um eco muito distante dessas crenças, mas é antes o arremedo de
entre os Andes e a Amazônia, e deve ter sido intensificado durante um culto do que a lembrança de um culto. 39 Tem-se a impressão
a expansão inca, provocando novos deslocamentos. Aliás, um de que se trata de representações rechaçadas pelas populações
mito desâna 31 fala de um misterioso fugitivo 32 que lhes . teria mais distantes do grande rio.
ensinado a arte de fabricar enfeites de ouro e prata. 33 i;: claro que não se pode ter a menor idéia das relações_que
Repare-se que a região da Província do N apo é a mesma em existiam entre o povo de Coari ou o de Manacapuru e as popula-
que se encontram atualmente os EncabeIIados, também Tukano. ções com que entraram em contato. Mas pelas localidades em que
Alguma das populações tukano chegadas ao U aupés poderia ser se tem encontrado vestígios arqueológicos, pode-se pressupor que
descendente do mesmo grupo que fabricou a cerâmica de Marajó? 8 4 eram navegantes e que dominavam em várias regiões o rio principal.
Quanto ao, podemos dizer, total desaparecimento da arte Resta perguntar se a outra função que os mitos brasileiros
ceramista, isto não seria difícil de explicar, neste grande espaço atribuem freqüentemente ao jacaré, a de Caronte ("le passeur sus-
de tempo. 35 Mas, e quanto às representações míticas? Não seria ceptible" de Lévi-Strauss, L'origine des manieres de table. p. 359
de se esperar que houvesse sobrevivido alguma coisa desse culto
et seqs.) não se prende a uma identificação destes povos donos
ao jacaré que pareceu centralizar toda a vida ritual desse povo?
Não temos em mãos nenhum material sobre os íudios macuna, do rio com o animal mítico a que prestavam culto. O jacaré que
mas é possível que entre eles encontraríamos alguma sobre"Vivência serve de canoa ao herói ou à heroína dos mitos desse tipo é sempre
do culto ao jacaré, pois uma máscara desses índios fotografada representado como poderoso e vaidoso, e a atitude em relação a
por Reichel-Dolmatoff 36 lembra demais a figura do duplo-jacaré ele, "recomendada" pelo sentido do mito, é de astúcia, de disfarce
de Marajó. A fotografia foi tomada em Ginogojé, no Apaporis. 37 da hostilidade, enquanto se depende do desagradável e fedorento
:E: possível que a dramatização em que homens kobéwa "co- "Uati-pung-pung". i;: a atitude típica de trickster, assumida tantas
zinham" o jacaré, e que faz parte das cerimônias do ôyne, 38 seja vezes pelo jabuti frente ao jaguar, e, tal qual este último, o jacaré
é caracterizado como tolo, porque susceptível tão f acilrriente a
31 REICHEL-DoLMATOFF. Desâna.. . Mito 1, p. 199, (Apêndice). qualquer lisonja. 4 0
32 Um vanacuna ou um espião? MURDOCIC Nuestros Contemporáneos Pri-
mitivos. p. 337 e 343.
33 SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da (A Civilização Indígena do Uaupés. 39 Na realidade, trata-se de uma representação cômica. Os homens "cozi-
p. 31 O) diz que os antigos viajantes se referiam a adereços de ouro e nham" o jacaré (feito de tecido de entrecasca, sendo que Goldman ressalta
prata. Hoje só algumas mulheres usam colares feitos de lâminas trian- a significação obscena que a roupa de entrecasca tem entre os Kobéwa),
gulares de prata batida, enfiadas num cordel e chamadas de "fatias de demonstrando as maiores inaptidões, para gáudio das mulheres. Oferecem
borboleta" - "mómõ-ro Khiwíri''. a "comida" às mulheres, que jogam os pedaços no Abúhuwa. Goldman ainda
a• "Entre 1000 e 1300 da nossa era, numerosos grupos com uma cultura faz um comentário a uma cena ulterior em que um jaguar é igualmente
mais elaborada, incluindo cerâmicas polícromas e cômoros funerários, des- "cozido" e oferecido às mulheres: estas já não o jogam de volta, porque
ceram o rio do Equador até a Ilha de Marajó, no delta do Amazonas." reconhecem a distinção simbólica entre os dois.
SANDERS e MARINO. Pré-História do Novo Mundo. p. 148, baseados em Evans Note-se que os Macuna fotografados por Reichel-Dolmatoff, a que nos refe-
e Meggers. · rimos atrás, usam todos roupas de entrecasca.
35 ALTENFELDER. SILVA e MEGGER.S. "Desenvolvimento Cultural do Brasil." RA. Simples coincidência ou uma oposição real entre povos limítrofes?
p. 15: "No meio ambiente da floresta tropical, a produção agrícola inten- Aliás, a cena a que Goldman assistiu parece em tudo a dramatização do
siva necessária para suportar um sistema social altamente diferenciado não "mito das Amazonas" a que nos referimos atrás: nele, os homens matam
pôde ser mantida" e "a cultura experimentou uma gradual simplificação que o sedutor, simbolizado pelo jacaré e obrigam as mulheres adúlteras a esse
a transformou em algo semelhante ao modelo da floresta tropical". repasto macabro. A impressão que se tem é que o jacaré é o símbolo de
36 RElCHEL-DoLMATOFF. Boletin lndigenista. México, mar. 1958. v. XVIII, uma tribo rival. (Afinal, o rapto de mulheres é muito comum entre os
n.º 1. indígenas.)
40 Embora, entre os Kobéwa, o jacaré só seja temido no seu aspecto sobre-
a1 Será que as migrações foram inicialmente terrestres até o Apaporis, se-
guindo aproximadamente a linha do Equador e entrando no Amazonas pelo natural (pois o que tem seu habitat aí é de uma espécie pequena), segundo
Japurá? Ou a localização dos Macuna já foi bem mais próxima ao Rio observa GOLDMAN. (Op. cit. p. 10), a espécie maior, que AVÉ-LALLEMENT
Amazonas? (Viagem pelo Norte do Brasil. 2.0 v. p . 166) viu entre Tefé e Fonte Boa
38 GoLDMAN. The Cubeo ... p. 237. O ôyne é o conjunto de longos e com- (bem em frente à foz do Japurá) inspira pavor: "De todos os animais.
plexos ritos funerários dos Kobéwa. nenhum é tão temido no seu elemento, a água, quanto o aJigátor".
32 CAP. II - OS POVOS VINDOS DO OESTE

Finalmente, no terreno dos mitos mais ligados às auto-repre-


sentações, é possível que tenha ficado uma vaga lembrança dessas
migrações nos mitos da viagem de canoa do Sol e da Lua, 41 uma
canoa que finalmente encalha na foz do grande rio: 42
CAPÍTULO m
"Quand tout se trouvait sous l' eau et qu' on ne voyait même plus
la f orêt Omawe et Y oawe comrnencerent à descendre le fleuve
avec ce;te espece de canoe qui est encore là en travers, à l' endroit
A GUERRA E AS ARMAS DE nuon
ou f init fleuve. ( . .. ) Moukakao ets ce grande fleuve qui inonda
tout. ( . . . ) A /' embouchure du fleu.ve, il y a, en travers, leur
radeau. 01nawe et Yoawe vivent /à-bas, car eux ne sont pas morts; As lendas tariâna i referem-se várias vezes ao uso da funda
ils ne meurent jamais". 43 e de um escudo feito de couro de anta.
Na guerra contra os Arara e Wanâna, Buopé mata a gente de
Munstero Jairo de funda, ao que parece, com a intenção de humi-
lhá-la, pois a funda é reputada arma menos nobre do que a flecha
e usada para matar animais, 2 conforme se vê nas "Lendas em
Nheêngatú e em Portuguez", de A. Brandão de Amorim. À página
13 dessa obra, lê-se uma passagem em que os Tariâna matam
antas, para fazer iáua ou escudo. (J;: verdade que Stradelli traduz
cuidarú, que Amorim refere como sendo funda, por "mazza di
guerra fatta di legno durissimo," mas inclui a funda entre as armàs
que menciona. 3 )
· Quanto à funda, achamos que vale a pena chamar a atenção
para duas passagens de Capistrano de Abreu sobre os Kaxináwa: •
"As migrações devem ter sido por via terrestre, pois os Panos
não possuem expressões communs para canoa: em caxinauá o
mesmo termo designa canoa e pilão". (p. 341)

1 Ou "Tarya", segundo RODRIGUES, Barbosa ("Complemento da Poranduba


Amazonense." Anais da Biblioteca Nacional. p. 49), que derivaria simples-
mente de arya = tronco, o que não parece muito provável. Uma tribo aruák
usaria uma autodenominação derivada do tupi? Em todo caso, como muitas
palavras da língua-geral passaram a ser correntes em outros dialetos da
·Amazônia, é possível que assim seja ...
2 RODRIGUES, Barbosa. Op. cit. p. 18: "matar de funda, como se mata ani-
mal". Também p. 69: fala de Buopé: "Eu não sujo minha flecha em sangue
11 LÉv1-STRAuss ( L'origi11e des ma11ieres de table. p. 109-84) procedeu a de gente de tua qualidade".
3 STRADELLI. "La Leggenda dei Jurupary" e Outras Lendas Amazônicas.
uma análise de uma série de mitos deste tipo.
12 Aqui, excepcionalmente. não se trata propriamente do Sol e da Lua. Pelo RIGB. p. 96. ~ possível que ele tenha razão e que a confusão seja de
menos, os "Yanoama'" de Yalero não se referiam aos dois personagens Amorim, pois neste lemos : "Quando passaram a uaióro (paliçada) foram
como sendo a personificação dos dois ast ros, mas, antes, de um princípio matando então somente a cuidaru". Op. cit. p. 18.
bom, positivo ("Omawe") e do princípio mau ou negativo ('' Yoawe" ). 4
ABREU, J. Capistrano de. "Os Caxinauás". Ensaios e Estudos: crítica e
1:: B10CCA. Y anoama. p. 191-92. história.
34 CAP. Ili - A GUEllllA E AS .ARMAS DE BUOPÉ A GUERRA E AS ARMAS DE BUOPÉ 35

A página seguinte, após referência à tradição de uma estadia conhecida ao longo do Amazonas, na área do Madeira, do Juruá-
na região que identifica como o Peru, 5 escreve Capistrano: -Purus onde, segundo observou Darcy Ribeiro, 10 havia uma "gran-
de homogeneidade cultural, em que grupos das fanu1ias lingüísti-
"Por onde andaram até alcançar o Juruá, nada consta; é possível cas pano, aruák e katukína fundiram seus patrimônios, alcançando
que chegassem ao Madeira e seus tributários onde ainda hoje alto desenvolvimento e uma pedeita adaptação ao ambiente".
são muitas as tribus panas; de la por caminhos mysteriosos re- Koch-Grünberg, em sua cuidadosa descrição das armas do
fluíram ao Juruá. No luruá, abaixo da t:Qnflulncia do Tarauacá,
deu-se a grande dispersão".
noroeste brasileiro, 11 não menciona o uso da funda e parece que
nem ouviu referências a tal arma, nem tampouco Kok. 1 2
Segue-se o mito de Harucun e Apô, uma história de adultério, Mas, quanto ao escudo de couro de anta, Koch-Grünberg 1 3
dando origem a guerras (captura de mulher~s) entre as tribos, . refere-se, segundo as informações detalhadas dadas a ele por um
dentre as quais se destacam os "Bitinauás", que teriam entrado remador Opaina, a seu uso não para as tribos do Uaupés e as
pelo Rio Juruá ("Cujubim") : 6 tribos setentrionais que não o têm, 1 • mas justamente a sudoeste,
na região mais próxima ao Rio Amazonas, entre os Opaina do
"Sobre os Bitinauás, a gente de couro, informa Tuxinr que matam
uma anta, esfolam, penduram o couro para secar, tiram cipós Apaporis e entre os Dãtúana e a tribo aruák dos Matapi-Tapúya
com que amarram o couro cortado, /ar.em nelle olhos, e ensi- do Rio Boopãyaká (afluente do Médio Apaporis). 15 Entre os
nam a matar Caxinauá. Eu te atiro, dizem, vai atrás do caxi- Yahuna visitados por Koch-Grünberg, esse escudo já tinha caído
nauá, pega-o para eu matá-lo. O bitinauá atira: o couro vae · ro- em desuso, assim que ele não chegou a ver nenhum; mas, segundo
lando, bate na canella do caxinau4, derruba-o, cobre-o, e o biti- o informante, tratava-se de um escudo grande, redondo, com uma
nauá mata-o. saliência no centro, munido de uma corda ou faixa para ser usado
Parece evidente que o couro, assim enfeitiçado representa uma no braço esquerdo, sendo chamado de áhiia. Esta descrição con-
funda, e bitinauá significa na realidade fundibulário, o que os fere com a que encontramos em Amorim. 1 e
afastaria bastante da bacia do Amazonas onde não existem pe-
dras. 1 A explicação exposta ao narrador, não mereceu· a appro- Amorim, dessa vez relacionado aos Wanâna: "Quando chegaram ao pau
vação delle, que a impugnou convictamente". (p. 345-46) grande" (da paliçada, supõe-se) "fecharam logo · as portas com couro de
Tudo indica, assim, que o uso da funda 8 e do escudo de Tapir, depois pegaram fogo n'elle. Gente que saia de dentro da casa para
o terreiro era logo flechada". (AMOllIM. "Lendas em Nheengatú e em·
couro de anta 9 não se restringiu só aos Tariâna. Era técnica Portuguez." RIHGB. p. 42). t possível que se tratasse de uma técnica
usada por alguns grupos de modo a surpreender o inimigo ainda dormindo
5 Os Kaxináwa teriam ido morar junto ao lnka mas, enganados por ele,
na maloca. Na mitologia aparece também a idéia de que se pudesse capturar,
teriam fugido em seguida para longe.
e ABREU, J. Capistrano de. Op. cit. p. 289. dessa maneira, os ocupantes . . . é bem verdade que por rede mágica.
1 Não seria, a nosso ver, motivo ... sabemos hoje que muitas matérias-primas REICHEL-DoLMATOFF. Dest2na ... p. 21.
e artefatos são conseguidos por permuta com outras tribos e trazidos de 10 RIBEIRO, D. Os lndios e a Civilização. p. 43. A página 39, Ribeiro refe-
distâncias consideráveis. re-se ainda aos Mura que se seguiram aos Torá no Rio Madeira, estendendo
s Deve existir motivo para que tenham sido chamados de fundibulários, seu domínio até a foz dele no Amazonas e daí até o Purus, "concentrando-
ainda que o couro de anta provavelmente nada tenha a ver com a funda. -se, principalmente, na região do Autaz. Ddta: posição dificilmente acessível
Uma tradição conta que também os Mawé, outrora, matavam "de pedra": pelo intrincado sistema de lagos, furos e canais, passaram a atacar, quase
"No princípio do mundo houve um homem. Abiaiaê, que matou, com impunemente, as populações civilizadas do Amazonas, Solimões e Rio Negro,
a pedra N6-aitêc, um índio Maué. Ahiaiaê era o próprio Mal. Os Maués obrigando mesmo algumas vilas a se mudarem para longe de sua área de
tomando, porém, a pedra de Ahiaiaê, o mataram com ela própria, cantando: ação" .
. . . (Eu vinguei a morte com a mesma pedra com que Ahiaiaê matou outro 11 KOCH-GRÜNBERG. "Jagd und Waffen . .. " Globus.
homem antes de haver armas.) . . . PEllEillA, Nunes. Os lndios Maués. p. 92. 12 Kox:. "Quelques notices ethnographiques sur les indiens du Rio Papuri."
Não se fica sabendo, contudo, se teria sido pedra lançada com funda Anthropos. p. 924.
ou simplesmente · outra arma de pedra. Entre os Tariâna, a julgar pelos 13 KocH-GRÜNBERG. Op. cit. p. 220.
mitos, a funda já era conhecida há muito tempo . .. 14 S6 encontrou os escudos desâna, trançados, de uso cerimonial.
9 Seria também, arremessado sobre o inimigo, como faz pensar a descrição 15 KocH-GRÜNBEl.G. Zwei Jahre ... Band II, p. 287.
do informante kaxináwa? 16 AMORJM. Op. cit. p. 13, nota: "preparado com repetidos banhos adstrin-
Aliás, há referência a outro emprego do couro de anta, num texto de
,
36 CAP. li - A GUERRA E AS ARMAS DE BUOPE A GUERRA E AS ARMAS DE BUOPÉ 37

Koch-Grünberg cita Martius, que achou escudos semelhantes made de pré-agricultores. Estes precon~eitos marcam igualmente
entre os Yurí da margem esquerda do Japurá, que os conseguiram a mitologia de todos os povos americanos. Quais seria!ll estas tri-
dos Miranha. Esses escudos são do mesmo tipo dos descritos por bos nômades? As do outro lado do Amazonas, do Rio Uatumã e
Jean de Léry, entre os Tupinambá do Rio de Janeiro: J atapu? Possivelmente os povos ceramistas de Oriximiná, um pou-
co mais a nordeste da Ilha de Tupinambaranas, já de há muito
"rodelas ou escudos de couro seco, feitos com a parte mais es- haviam deixado de existir. D'Acuiía não fala nada de especial dos
pessa da pele do tapirassu,· são largas, chatas e redondas como povoadores da foz desse rio, por ele considerado a boca para a
um fundo de tamboril da Alemanha. Entretanto não as usam nação das Yacamiabas. (Op. cit. p. 246) 20
no combate de perto como os nossos soldados, utilizam-nas apenas E com quais povos faziam os Tupinambá comércio de sal?
para resguardo contra as flechas inimigas". 1 i Entre o Japurá e o Rio Negro, d'Acuiia (p. 231) menciona os
Zurína e Karipúna, 21 "gente a mais curiosa que há em todo elle,
Brandão e Abbeville também os citam entre os Tupinambá da . . . fazetn bancos feitos em forma de animal com tanto pri-
costa noroeste, conforme já foi referido por Florestan Fernandes mor . . . fazem de um lenho tosco um polosinho ( idolillo) . . . 22 "
(Op. cit). Era um elemento comum, portanto, aos Tupinambá e que ele reputa uma obra-prima. Usariam também o propulsor. 23
é mesmo possível que tenham sido eles que o disseminaram na Estas tribos, segundo d' Acuiía, comerciavam com outras nações.
área de que estamos tratando.
20 FREITAS, Affonso A . de. ("Distribuição Geográfica das Tribus Indígenas
Quando d'Acuiía passa, já em meados do século XVII, pela na ~poca do Descobrimento." RIHGEB. p. 504) indica para a região entre
ºIlha Grande dos Tupinambá" (Tupinambaranas) ainda recolhe o Uatamá e o Rio Negro, os "Aruaqui, Paraqui, Seden, Terecú e Uassahys"
a tradição de uma longa migração que os índios de 84 aldeias de (estes últimos seriam os Jauaperí ou Yauaperá); (cita também os "Turumá"
Pernambuco teriam empreendido, fugindo das investidas dos por- já misturados aos "Aruaqui").
21 Segundo- uma indicação de BALDUS (Bibliografia Crítica da Etnologia
tugueses e cansados de derrotas. Teriam chegado às cabeceiras do Brasileira. p. 293) sobre um vocabulário recolhido por W. Hanke, os Kari-
Rio Madeira, descendo-o em seguida, após novas desilusões com púna são Pano.
o colonizador espanhol. Diz-nos ainda que, embora em menor nú- 22 Segundo ZERRJES (Les religions amérindiennes. p. 428 et seqs.), os Tupi
mero que os naturais do Rio Amazonas, bateram a todos, "con- do Baixo Xingu (Xipáya, Kuruáya, Yurúna) faziam estátuas (upási)
sumindo nações inteiras"; e que faziam comércio com umas nàções representando Kumaphari, etc. Seria a estátuas deste tipo que se referia
d'Acuõa?
fronteiriças (de que obtinham sal 18 e com quem estiveram em As estátuas de madeira feitas pelos Witóto e Yágua nos dias de hoje
paz durante bastante tempo), enquanto que a outras, bem ao norte, são, ainda segundo ZERRIES (Op. cit.), representações feitas em ·memória de
desprezavam, porque não faziam guerra entre si e só se alimenta- seus mortos (encontramos analogias deste elemento cultural, no Alto Xingu,
vam de frutas e pequenos animais silvestres. 10 nos toros de madeira do kuarup).
Também entre os Desâna encontram-se figuras de madeira de uns 20 cm,
Isto mostra os preconceitos que as tribos de cultura mais representando o Sol e a Filha do Sol. REICHEL-DoLMATOFF. Desdna ... p.
adiantada, quaisquer que sejam, têm em relação à população nô- 106.
2 3 Tanto a funda como o propulsor eram armas conhecidas nas culturas
gentes. Antigamente com 5 palmos de largura, hoje só com três; ovalados, andinas (MUIU>OCIC. Nuestros Contemporáneos Primitivos. p. 343) . NoR-
abaulados, com alça por dentro". DENSKIÕLD (Apud GALVÃO, E. "O Uso do Propulsor entre as Tribos do
l7 Conforme citação de FERNANDES, Florestan. A Função Social da Guerra Alto Xingu." RMP.) refere o propulsor como arma de grande importância
Ira Sociedade Tupinambá. nota 64, p. 34. na região do Alto Amazonas, até o século XVIII, quando então teria caído
is O sal de caruru era fabricado e permutado pelas tribos do Uaupés. Há em desuso, substituído por outras armas. Isto poderia significar que já
referências a dabucuris de sal, e mais de uma localidade deve seu nome à estivesse em desuso na época da campanha de Buopé, pois esta arma não
existência do caruru ou "uapé de cachoeira": Caruru do Uaupés (sede dos é mencionada nos mitos, entre as armas tariâna. Se for certo que a saraba-
Siusí-Tapúya), a cachoeira de Caruru no Tiquié, referida como "Mo", nos tana foi concebida a partir do propulsor, é possível que, na sua expansão
textos publicados por FuLoP ("Aspectos de la Cultura Tukana - Cosmo- a partir das culturas andinas, este, já encontrando no noroeste amazônico a
gonia." RCA . p. 133) . sarabatana em pleno uso, não tivesse uma grande aceitação por parte de
10 AcuNA. "Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas." RJHGEB. muitas tribos.
38 CAP. Ili - A GUERRA E AS AllMAS DE BUOPÉ A OUEIUlA E AS ARMAS DB BUOPÉ 39

Mas, certamente as populações do Uaupés também partici- Como as lendas mostram os Tariâna subindo o Rio Negro,
pavam dessas trocas, senão diretamente com os Tupinambá, 2• ao antes de sua entrada no lçana (obrigados por Cucuhy 21 ), poder-
menos com povos vizinhos destes. -se-ia pensar que numa estadia no Baixo Rio Negro teriam assi-
Não é de todo impossível que os próprios Tupinambá te- milado o uso do escudo de couro de anta. Mas a tradição de sua
nham feito alguma expedição, entrando pelo Rio Negro, se levar- entrada no Içana não se refere ainda ao escudo em questão. Aliás,
mos em conta o quanto eram guerreiros e a facilidade com que se não há propriamente referência a lutas na descrição dessa migração
deslocavam por distâncias consideráveis. · pelo lçana e Aiarí. Possivelmente não tinham ainda o preparo
Não seriam acaso Tupinambá os povos que (segundo um para a guerra que adquiriram depois. ªº E muito provavelmente
mito, publicado por Amorim "Lendas em Nheêngatú e em Por- o adquiriram durante sua estadia no J apurá, a que se refere Stra-
tuguez: Guerra dos Pakaraos", p. 9 a 11) subiram o Rio Negro, delli:
roubando mulheres, fazendo fumaça "aborrecida"? A recordação
desse roubo de mulheres se abranda no mito, pois que o inimigo "Os Tarias, depois de occuparem o Caiary, estenderam-se ao
as teria enfeitiçado (com fumaça de "iraity cheiroso" assoprada Yapurá e um troço delles, já em tempos muito próximos a nós
em direção à "cidade", para que "o coração das mulheres se vol- (segundo contava o Tuicháua de Yauareté) Mandú (Kueánaca),
tasse para eles"), mas parece realmente tratar-se de uma técnica desceo pelo Solimões ao Amazonas e parou nas immediações de
de guerra, pois é expressamente mencionado que "elles viram que Santarém onde ainda ha poucos annos, ao dir.er de Bibbiano,
essa gente podia fazer fumaça para ninguém enxergar ... " Trata- filh.o do mesmo Tuicháua, se encontravam . .• " 81
-se de fumaça do arbusto da pimenta caiena, a conhecida técnica
tupi dos "gases nocivos" (irritantes)? Isto parece se confirmar porque, das outras armas citadas na
Seriam os "Pakaraos" um grupo tupi? Segundo Nordens- lenda da "Guerra de Buopé" também o curaby, se estiver eerta a
kiõld, citado por Florestan Fernandes, 26 os Oiampi 24 também informação de Stradelli de se tratar de lança envenenada, 12 é um
usam os gases irritantes da pimenta caiena, para seus ataques, elemento que Koch-Grünberg s6 encontrou justamente a sudoeste
ainda hoje. Esse grupo tupi se situa, hoje ao menos, muito mais d.o Uaupés, no Baixo Apaporis, 88 entre os Y ahúna e Makúna. 14
a leste, no entanto. 21 Seria Y ahúna o "povo-anta" com que, segundo a lenda da
De qualquer maneira, existiu uma influência tupi recente em "Guerra de Buopé", os Tariâna fizeram um tratado de paz, após
área contígua ao Uaupés, e é possível que ela se deva aos Tupi- tê-lo atacado (antes de sua inyestida ·contra os Arara-Tapúya),
nambá. Estes não devem ter chegado à Ilha de Tupinambaranas justamente para fazer (roubar?) escudos de couro de anta? aG
antes do fim do século XVI, senão mais tarde. 2s
séc. XVII. MiTllAUX (Religions et magies inditnnes d' Amlrique du Sud~
24 As populações uaupesinas parecem ter ocupado outrora um território maior. p. 20) diz que já ·em 1549 habitantes do Peru ("chacbapoyas") capturaram
25 FEllNANDES, Florestan. À Função Social da Guerra na · Sociedade Tupi· 300 índios· identificados como Tupinambá, vindos da costa brasileira.
nambd. p. 28. V. também NoRDENSKIÕLD. 'Thc American Indian as an 29 Y. AMOllIM. '"Origem dos · Tárias." RIHGB. p. 181 et seqs.
Inventor!' JA.l. p: 277. · 80 Na lenda acima ("Origem dos Tárias." p. 187) s6 se menciona que os
28 Ou "Oyanpík", seaundo a grafia adotada na 2.ª Reunião Brasil de Antro- "Scusys ficaram com medo dos Tárias ~r eles serem tio bons caçadores".
pologia, 1955. · O tuxáua procura convencer Buopé a sair da terra dele. Mais tarde, este não
27 Limites do Amapá, próximo à 8erra de Tumucumaque. se teria deixado "convencer" tão facilmente.
Quanto à construção de paliçadas (mesmo paliçadas com fosso) em si STllADELLI. "La Legg~nda dei' Jurupary" e Outras úndas Amazónicas.
volta da maloca, parece que já era uso antigo no Uaupés. GoLOMAN (Tht p. 73. .
Cubeo. . . p. 32) nos diz que até umas poucas gerações passadas as malocas ~2 '1reccbia da lanciarsi a mano, sempre avvclenata." SrllADELLI. Op. cit. p.
kobéwa eram f~ificad~ com uma paliçada de paus afiados; ·e sabemos 96.
que mesmo entre os nomades das florestas, as choupanas recebiam est~ ss Justamente onde, a julgar pelas informações de Stradelli, ainda se encon-
reforço (paliçada de paxiúba) quando se esperava qualquer ataque. BIOCCA. trava "o maior núcleo Tárias" (Snw>ELLI. Op. cit. p. 73). Se a informaçãi>
Yanoama. p. 271. estiver certa, abandonaram essa posição logo depois, pois Koch-Grünberg
21 Afinal o estabelecimento dos portugueses cm Pernambuco é de 1534. Se- já não encontra mais Tariâna aí.
gundo QUEntoz, M. 1. P. (0 Messianismo no Brasil e 110 Mundo. p. 144) 84 KocH-GR:ÜNBEllG. "Jagd und Waffen ... " Globus. p. 218-19.
cheaaram em 1684, mas a viagem de Acuiía é ainda da 1.a metade do 8 5 Y. AMOllIM. Op. cit. p. 14, e cm STRADELLI. Op. cit. p. 96.
_,
40 CAP. III - A GUERRA E AS ARMAS DE BUOPÉ A GUERRA E AS ARMAS DE BUOPÉ 41

Outro dado da "Guerra de Buopé" que ao menos sugere certa O que é curioso é que, pretendendo f.azer guerra para a im-
analogia com a área cultural ao longo do Amazonas, entre o Ma- plantação dos "novos costumes", os Tariâna parece que reaviva-
deira e o Japurá, é a existência de um código para se comunicar ram certos costumes antigos na região, como, por exemplo, a
com os de sua tribo à distância (sem ser por meio do trocano, depilação pública feminina, que passa a ser sinônimo de decência
também conhecido): 3 6 e pudor. 40
Mais difícil é saber se eles reavivaram também a endofagia
"Todos os dias, contam, elle (Buopé) ia para a beira do rio, ahi de cinzas que, como veremos adiante, parece ter caracterizado
fazia um funil de folha, cuspia dentro, assoprava depois e deixava
·seguir de bubuia pelo rio. Assim, contam, elle fazia para chamar
alguns bandos nômades do Uaupés (como os Desâna) ,4 1 tendo
mais gente para encher este rio". (Op. cit. p. 17) muito provavelmente caído em desuso, com a sedentarização e uma
tucanização.
Como isto teria ocorrido quando os Tariâna já estavam esta- Embora Zerries aponte os Tukano como endófagos e (ao
belecidos em Y auareté, se as suas tribos se deslocavam do Baixo lado dos Yanonami e Pano) como "difusores" desse rito funerário,
Apaporis para o Uaupés, como ficou aventado atrás, o resto da e apesar de serem endófagos 42 os Icaguate (uma subdivisão dos
tribo deveria encontrar-se no Baixo Uaupés, mas não no Rio Encabellados, Tukano Ocidentais), cremos que não foram os Tu-
Negro. 87 k~no que trouxeram este c~stume para o U aupés.
Outro trecho .sugere o desconhecimento da canoa, entre os Se classificamos os Wanâna (como se costuma fazer) 43 como
Tariâna, na época da invasão (AMORIM. Op. cit. p. 14): "Buopé Tukano, temos que admitir que essa vaga anterior aos Tukano pro-
passa sua gente para o outro lado do rio, em cascas. (Ainda não
havia canoa.)" Supomos que o termo "canoa" tenha aí o signifi- p. 207), há uma hostilidade latente: ''The allusion to a fighter training for
cado de canoa de tronco de árvore escavado com fogo, ·que é a a match is not as old friends coming togethér but rather as jealous, aggressive,
canoa usada nos rios encachoeirados do Uaupés, onde, segundo and fiercely independent segments who have resolved to be friends".
Alcioru1io Brüzzi A. da Silva, 38 as simples canoas de casca não Ainda assim, compare-se os textos míticos tukano (FuLOP. "Aspectos
de la Cultura Tukana - Cosmogonia". RCA. p. 133-34): As terras uaupe-
podem ser usadas. sinas, Yupuri Baúro, afirmando seu direito sobre elas, as "arrenda" às
Certo é que, ao mesmo tempo em que obtiveram novas téc- outras tribos do Tiquié, Uaupés e afluentes, mencionando mesmo os Miranha
nicas e armas de guerra (não usadas no Uaupés e que garantiram como seus "suseranos". Aos índios do Potumayo, mais distantes (Karihõna
a Buopé uma campanha vitoriosa), os Tariâna imbuíram-se de uma e outros) simplesmente as "dá de presente". Há certamente referências a
guerras de represália (como a contra os Kobéwa), mas a guerra não é exal-
acentuada ideologia guerreira. Esta valorização da guerra natural- tada como ideal de vida.
mente existe também nas outras tribos do Uaupés, mas ao menos 40 HuxLEY (A/fab/e Savages) encontrou a mesma aversão por mulheres não
nos mitos ela não se encontra tão acentuada. S9 depiladas, entre os Urubu-Kaapor, poucos anos atrás. Parece um costume
de vasta distribuição, entre tribos tupi, inclusive entre os chamados Tupi
86 RODlllGUES, Barbosa. " Poranduba Amazonense." Annaes da Biblióteca antigos ou os que, com Hngua diferente, têm costumes semelhantes a estes,
Nacional do Rio de Janeiro. p. 267, nota: "Os Muras tinham uma lingua- como, por exemplo, os do grupo witóto. Segundo MURDOCK (Nuestros Con-
gem por assovios para não serem entendidos e quando queriam participar temporáneós Primitivos. p. 362): "Ambos sexos se quitan todo el vello de
aos seus que habitavam longe qualquer ocorrência enviavam uma frecha la cara y el cuerpo, aun las ceja~ y las pestanas, aplicando látex de caucho
que nos enfeites levava a explicação". que desprenden de la piei después que se ha secado".
41 Mais aspectos da endofagia serão discutidos no capítulo XI.
37 As migrações se faziam por terra, pois, segundo os mitos, ainda não
42 Z ERRIES. E/ Endocanibalismo en la América dei Sur. p. f 67.
conheciam canoa, possivelmente passando ao norte das nascentes do Rio 4 ª Os Wanâna que se defrontaram com os invasores Tariâna (que lhes fo-
Mauarí e Rio Curicuriarí, até entrar nos Uaupés, nas proximidades de
Taracuá (posteriormente, um dos centros da tribo). ram superiores, ao que parece, em técnicas de guerra) dão a impressão
38 SILVA, Pe. A. Brüzzi A. A Civilização Indígena do Uaupés. p. 179 et seqs. de ter dominado antigamente até o Baixo Uaupés e região vizinha
39 Também os Kobéwa mantiveram campanhas vitoriosas mais ou menos
de sua confluência com o Negro, e que foram se retraindo depois. As lendas
recentes no U aupés, e isto se reflete não só na própria mitologia como na os referem, na época. da invasão, já concentrados na região de Caruru.
de outros povos (V., por exemplo, os textos míticos tukano, publicados por Curioso é que, enquanto os mitos os referem como originários de um
Fulop), evidentemente, com uma valorização dif crente. Mesmo entre clãs lugar rio abaixo, no meio de uma grande serrania, na beira de um lago
da mesma tribo, como o observou Goldman para os Kobéwa (Tire Cubeo . .. chamado Katiana (AMORIM. "Lendas em Nheêngatú e em Portuguez." RIHGB.
42 CAP. Ili - A GUERRA E AS ARMAS DE BUOPÉ A GUERRA E AS AR.MAS DE BUOPÉ 43

priamente ditos trouxe, ao contrário, o enterro em cemi~rio e em um dos centros de ~ispersão que Zerries não ressaltou foi a Amé-
cemitério diferenciado para "plebeus" e "nobres". 44 · \
rica Central pré-colombiana, que muito provavelmente é responsá-
Zerries admite que a cultura tapajó possa ser responsável vel por alguns focos de endofagia das Guianas. 4e
por uma difusão do costume, na área mais a leste. 45 Cremos que ~ bem possível que, em contato com os Desâna e tendo-se
tomado nômades em sua marcha para o Uaupés, 47 os Tariâna
p. S8), Giacone afirma que "emigraram também do Alto Orinoco, como os tenham reavivado um ·costume dos seus ancestrais, pois a "leg-
Tarianos, se bem que chegados ao Uaupés em época anterior" (Os Tuca- genda" de Stradelli apresenta a Jurupari instituindo o costume em
nos . . . p. 6). função do nomadismo. •s
2 provável que se trate do mesmo processo de "naturalização" no
Uau~s que observamos para outras tribos da região. E é possível que
este "ponto de emergência" no Uaupés corresponda exatamente ao lugar
onde se seõentarizaram, há muito tempô, modificando seus costumes, lugar
que passou a ser por isso seu centro ritual, o centro do mundo. (Processo
igual a este do Rio Negro ocorreu no Alto Xingu, onde o "Morená" passou
a ser o "eden" comum.)
Nas cerimônias de batismo; a alma da criança wanlna é levada, pelo
pajé, por uma peresrinação simbólica, ao alto das serras de "Kurikuriahi, ·
Kabari, Kuriari, Kaburi, Tunuhi e Jacamin" (AMOllIM. Op. cit. p. 51). A
Serra de Tunuí, no Içana, ainda é um local próximo às malocas wanâna
de hoje e logicamente bem conhecido, assim como a Serra de Curicuriari
(próxima à foz do rio do mesmo nome). Mais distante um pouco ficam ·
as serras de Cucui (na fronteira venezuelana) e a "Serra de Caburi de
encostas inacessíveis com alcantila das cavernas que se debruçam para o
lado do Rio Negro . .. " (FR61s, Ricardo de Lemos. "O 'Cerro de la Neblina'
Seria um Pico da Serra do Caburi?" Revista Brasileira de Geografia. p.
536) . a possível que as grandes altitudes dessa serra a tomem visível no
Uaupá, mas provavelmente num ponto mais próximo à foz do que o local segundo o autor, subtribo dos Tapajó: "They left their dead exposed until
em que se encontram os Wanâna, hoje. Sua importância nos ritos poderia the flesh had decayed away. The remained bones were then pulverised and
indicar uma longa permanência dessa tribo, outrora, no Baixo Uaupés. the bone powder mixed with chicha wa8 then drunk". Acha 7.erries que o
(Também a Serra do Jacamim se localiza abaixo da foz do U aupés no costume de os Tarairiu consumirem os ossos pulverizados do sacerdote
Rio Negro.) pode ser associado aos Tapajó e Arapium. .
Se existe correspondência de uma dessas serras rio abaixo com a origem Quanto às tribos pano, ABllEU, Capistrano de. ("Os Caxinauás'~. Ensaios
idealizada no mito, é difícil saber. A tradição se refere a uma emigração e Estudos: crítica e história. p. 302) é de opinião que a cremação e
de uma parte dos Wanâna, após a guerra contra Buopé, Rio Negro abaixo, endofagia é um caso excepcional, mas não tivemos oportunidade de verificar
para muito longe. Amorim aventa uma remota possibilidade desse contin- outras fontes.
46 O costume aparece nos grupos parUkotó (de oeste) que são karibe.
gente fugitivo ter constituído a tribo katiana do Alto Puros. Trata-se de uma
tribo assinalada como Aruák por Adaucto Fernandes, segundo uma classi- Também os Urukuyána (FllIKEL. ''Tribos Indígenas do Pará Seten-
ficação de RONDON, Candido M. (Povos Indígenas do Brasil. p. 157). t . trional". RA .· p. 123 ) adotam a cremação do cadáver, mas o enterram no
uma pista que, infelizmente, não se poderá mais seguir: ScHuLTZ, H. e chão, t~ qual os Waríkyana, Pianokotó-Tirió e Aparai, que não usam a
CHIARA, V. ("Informações sobre os lndios do Alto Rio Puros.." RMP. p. cremaçao.
183) constataram, já faz quase 20 anos, ~ extinção dessa tribo, no meio , Se os povos ceramistas de Santarém e de Oriximiná realmente chegaram
de outras aruák bastante descultur.adas. Assim, os Tukurina afirmaram "que at~ aí passando pelo interior (o caminho dos Aruã, de que se falará ainda
não mais conheciam as lendas de origem e os mitos da tribo". Op. cit. p. adiante) , o costume entre os Karibe pode bem se dever a uma miscigenação
194. com frações desses povos, nos locais em que se detiveram mais tempo e
Em todo caso, se realmente esta tribo dos Katiana tem algo que ver que correspondem, como veremos adiante, a certos locais elevados da Serra
com os Wanâna (simples suposição, apenas pela questão do nome), teria de Tumucumaque e outras serras das Guianas.
i Os Tariâna entraram pelo lçana e deram uma verdadeira volta no Uaupés~
4
que ·se admitir que a informação de Giaco'.rie teria a sua explicação numa
origem Aruák para os Wanâna que, em contato com os . Arara já há um passando pela região do J apurá.
48
tempo bem remoto, teriam se tucanizado. " ••• bcviano le ceneri dei nostri parenti, perche non si perdano nel seno
44 AMOltIM. Op. cit. p. 49. . della terra ... " (STIU.DELLI. "La Leggenda dei Jurupary" e Outras Lendas
45 ZEluuES, "Some Aspects of Waica Culture." ·Anais do XXXI Congresso Amazônicas." p. 49). 2 uma razão que está de acordo com o estilo ou uma
Internacional de Americanistas. p. 80-81. Sobre os Arapium, provavelmente. fase nômade de um povo.
- A SERPENTE MÍTICA. • • 45

os rios até as cabeceiras. Ao chegar a Ipanoré, tropeçou com uma


grande rocha ... então as pessoas saíram por um buraco. Cada
tribo tem assim o seu ponto de emergência, pois a tradição de
Pamuri-maxse tornou-se comum a todas as tribos do Uaupés .
. CAPÍTULO IV Como já o observou Ehrenreich, 8 a origem dos homens e de
outros seres de buracos pode ser considerada uma característica
A SERPENTE M1TICA PRIMEVA: da mitologia aruák. Percebe-se que a tradição da canoa-serpente
A IMPORTANCIA DO RIO como que se sobrepõe a este tema, pois entre outras tribos aruák
ela não existe. 4
Na realidade, a tradição da canoa-serpente é característica do
Em seu livro Xingu, seus lndios, seus Mitos, os irmãos Villas Uaupés e não pode ter sido trazida pelos Tukano, pois os Tukano
Boas chamam a atenção para "a grande fusão cultural que se de Oeste (de onde parecem ter vindo igualmente os Tukano Orien-
observa entre tantas tribos diferentes. Nas suas tradições mítico- tais) nem possuem canoas.
-religiosas, particularmente, é muito significativo o fato de sempre O tema mítico de uma serpente primeva, no entanto, não lhes
estarem especificados, dentro da região, os lugares onde viveram devia ter sido estranho. Segundo Hardoy, 5 um dos motivos de
e agiram seus heróis, o que denuncia, evidentemente, uma pro- ornamentação mais freqüentes na cerâmica de Chavín foi o do
funda e perfeita ambientação geográfica. Assim, a trama da grande dragão hermafrodita, que simbolizava a divindade suprema. 6 Cer-
história mítica dos xinguanos, na qual se encontram o fundo e a tas representações míticas, de origem andina ou do litoral pacífico,
forma ritualística das suas crenças religiosas, passa-se, conforme a subsistem na mitologia do Uaupés, mesmo entre grupos que, como
lenda, na confluência dos formadores do Xingu - o Morená, na os Desâna, foram até há pouco, em grande parte, nômades da
língua dos índios. ~ a sua terra mística, envolta numa aura de floresta, e que pouco têm de povo fluvial. Assim, por exemplo, a
mistério e sobrenaturalidade. Ali residia Mavutsinim (nome Ka- centopéia "Nyangi" é concebida como um monstro do mar.;
maiurá) , o personagem que criou a mãe dos heróis gêmeos - Sol Efetivamente, a civilização Nazca conheceu um deus-centopéia. 8
e. Lua - e que distribuiu, numa das praias do lugar, os vários Mas a serpente primeva ou dragão hermafrodita andino não
tipos de armas que os homens hoje utilizam e os distinguem entre tem características de um ser oceânico; nas representações de tri-
si". (p. 46) bos indígenas vizinhas ao Uaupés não a encontramos. Assim, entre
Assim é que muitas tribos que, outrora, não se encontravam os Witóto, segundo Wavrin (Moeurs et coutumes des indiens sau-
certamente no Alto Xingu, foram se "naturalizando", xinguanas vages. p. 54 7), Kusinamy é identificado com a serpente Boa. 9
(se podemos dizer assim) , à medida em que se estabeleciam trocas
:J EHRENREICH. V ber die Verbreitung und Wanderung . .. p. 664.
(de produtos e de mulheres) e em que foram adotando os mesmos 4 Como por exemplo entre os Paresí, também Aruák, em cuja mitologia uma
valores. mulher de pedra ("Maisõ") representa esta origem, dela nascendo os rios e
Fenômeno semelhante ocorreu no Alto Rio Negro. Como o também os primeiros homens. EHRENREICH. Op. cit.
Morená, para as tribos xinguanas, assim o Uaupés passa a ser o A mesma concepção CASPAR, F. (Tupari. p. 211) encontrou entre os
Tu pari.
lugar de emergência das tribos que vão adotando a cultura tukano. s HARDOY, J . E. Ciudades PrecolombinlJ$. p. 319.
Não se trata, contudo, de um só ponto de emergência. 6 T alvez mais precisamente o deus-criador.
Em um lugar que o mito não determina, o Sol faz um homem i "EI ciempiés Nyangi era la representación de los mares, no de los rios.''
"Es la fiera dei mar. Los monstruos dei mar son como el ciempiés/'
d~ cada tribo ( Desâna, .Pira-:Tapúya, Wanâna, Tuyuka, etc.). En-
REICHEL-DOLMATOFF. Desâna .. . p. 23.
via um personagem, Pamuri-maxse, 1 que é como uma grande ca- MURDOCK. Nuestros Contemporáneos Primitivos. p. 321.
noa 2 e, nô seu interior, vinham as gentes. A serpente-canoa subiu n Kusinamy é o mesmo Moma-Husiniamui a que se refere ZERRIES (Les
re/igions amérindiennes. p. 360 et seqs.), comentando as observações de
~"Gente". em Dacsé: "maxsê" (sing.), "maxsá" (pi.) . Preuss e J ensen sobre as características desse personagem mítico. A sua
Na. realidade, uma canoa-serpente, chamada Pamuri-gaxsíru . . . Conforme particular ligação com as árvores frutíferas (''Morna réssucite sans cesse
o mito de criação desâna. REICHEL-DOLMATOFF. Desâna .. .. p. 18. dans les fruits .. . ") evoca muito mais a sua representação como serpente

46 CAP. IV - A SERPENTE MÍTICA ••• A SER.PENTE MÍTICA. • • 47

Aliás, o mito de origem witóto, publicado por Nunes Pereira, 1o renasce. Desde então ela ali existe. 16 Outros exemplos desâna
conta que "Um dia começou a sair gente de um grande buraco ... ". serão apresentados mais adiante. .
Temos aí a característica identüicada como aruák por Ehrenreich, Também Koch-Grünberg recolheu um mito de origem das
como que num estrato mais antigo, pois não há referências a uma cachoeiras que apresenta uma cobra aquática gigantesca como um
serpente aquática ou a um buraco em pedra de cachoeira como no ser invasor e inimigo. Os outros animais querem matá-la e levan-
Ua~pés. 1 ~ ~ tam~ém uma Minhoca Grande, entidade ~tológica tam obstáculos à sua penetração. Estes obstáculos são as cachoei-
muito mais hgada a representação de animal terrestre do que aquá- ras que hoje existem. Finalmente, a cobra grande é morta. 1 1
tico, 12 ,que emprenha Hiteroegueçá, filha de Monadjururama, num A serpente é, contudo, um símbolo de ser primordial em mui-
mito de origem do fogo e da mandioca, em que se encontram tas mitologias. Seu simbolismo é complexo. Mais importante que
muitos elementos comuns ao mito dos gêmeos. 1s o . aspecto sexual, sempre bastante ressaltado por psicanalistas e
Mesmo entre os Siona, as serpentes terrestres parecem estar que por vezes é . evidente nos mitos, 18 parece ser a sua identifica-
muito mais próximas das representações religiosas (segundo BO.. ·ção com a vida eterna, devido à sua capacidade de "rejuvenescer"
diger, elas representam a liana Yagé 14 ) do que a mulher-serpente trocando de pele, 19 ou talvez de morrer e renascer. 20 Importante
("mãe-d'água"). 13 · é ainda a sua capacidade de entrar em buracos no chão 21 e de
Mas é na mitologia desâna que melhor se espelha o conceito subir em árvores, ligação mundo subterrâneo-terra-céu, de modo
da serpente aquática como algo estranho à tribo, algo identificado a se tomar um elemento capaz de representar a ligação, o eixo na
não com a criação (apesar do mito da canoa-serpente) , não com ideologia do centro do mundo, 22 (do culto da árvore), características
o ancestral da tribo, mas sim com o mundo exterior, o inimigo. essas que fundamentaram a sua identificação, entre muitos povos,
Repare-se num mito, cuja seqüência inicial tem muita seme- com o arco-íris. 23
lhança com o mito witóto de Hiteroegueçá, a que nos referimos
atrás; pois nele se conta que uma cobra de sete cabeças se enamo- 16 REICHEL-DoLMATOFF. Desâna . .. Mito 4, p. 200. Reichel-Dolmatoff es-
tranha o tema da bidr~ no Uaupés. Parece-nos que se trata de uma trans-
rara de uma moça reclusa. ~ uma cobra aquática, pois chega com formação do mito de origem das Plêiades. Na mitologia de outras tribos
outras feras, subindo pelos rios, juntamente com a Pamuri-maxse, do Uaupés, Seucy, a mãe de Jurupari, tem um certo éaráter ofidico de
nos dias mesmo da criação. O pajé consegue, contudo, matá-la. que ainda falaremos. Quanto às sete cabeças, parece-nos uma variante do
Queimada, produz um grande barulho e uma fumaça negra que tema mítico comum às Guianas, em que a origem das Pl~iades se acha
ligada à história de sete meninos gulosos ou barulhentos.
sobe para a Via-Láctea. O vento a leva para o mar, onde a cobra 1 7 Tema que por sua vez tem analogia com o mito arekuná de origem dos
venenos de pesca, em que da serpente aquática Keiemé (que mata o filho
terrestre do que como aquática, embora, é evidente, deva existir também de Kulewénte, personificação do timb6) se originam as cores dos pássaros.
uma ligação com a água, senão dos rios, ao menos com a chuva (e a KocH-GRÜNBEllG. "Mitos e Lendas dos lndios Taulipáng e Arekuná." RMP.
nenhum povo passa desapercebida, por sua vez, a ligação água terrestre - p. 76 et seqs.
água celeste) . .. 18 Como num mito urubu-kaapor, em que o amante primordial das mulheres
io PER.ElllA, Nunes. Moronguetá. . . v. 2, p. 480. é um membro personificado. HUXLEY. Affable Savages. p. 150.
1 9 Assim, num mito bakairi (ABREU, Capistrano de. "Os Bacaeris." ln:
11.0 que parece indicar que a concepção de uma serpente aquática ligada à
cnação se sobrepôs a uma concepção mais antiga, da origem dos homens Ensaios e Estudos: crítica e história. p. 255), o "senhor do céu (e dos
de um buraco. Esta última representação também existe entre os Karajá, mortos) Nakoeri" não morre. Ao banhar-se, pela manhã, ele "se pela".
hoje ao menos bem identificados com o rio. EHR.ENREICH. "Contribuições 2 º Parece que as serpentes passam por um estado de torpor, quando trocam
para a Etnologia do Brasil." RMP. p. 197; "Lenda de Kaboi .'' de pele.
12 " .(\, ,,moça . . . yivia presa em casa, sentada sobre folhas da palmeira 21 Mesmo em formigueiros ou cupins abandonados, em muitos mitos sul-
buntJ, quando foi fecundada. Id., ibid. p. 481. -americanos concebidos como as portas para o mundo inferior. A serpente
13 PER.EIRA, Nunes...Lenda do Aparecimento do Fogo." - (mito witóto). mesmo, quando venenosa, representa um "veículo de transporte" do homem
ln : Moronguetá ... v. 2, p . 481. ao mundo inferior . . .
14 BÕDI?~R. Die ReligiÓn der , Tukano im nordwestliclren Amazonas. p. 45 . 22 ELIADE, M . lmages et symboles. Les essais LX. cap. l : Sobre o simOO.
13 /~., 1b1d. p. 35: Matar a · mulher-serpente" (a "mãe-d'água") seria fatal lismt> do Centro. -
2 ª HEUTZE, Carl von. "Die Regenbogenschlange in Alt-China und Alt-Ame-
ao mcauto pescador. Uma. maldição se estenderia sobre sua familia. Bõdiger
refere-se também a um mito em que uma mulher comete adultério com uma rika." Anthropos 61 . A serpente-arco-íris, também representada na arte
cobra-d·água. Op. cit. p. 24. pré-colom'biana andina. Trata-se, segundo Heutze, de uma representação
,
48 CAP. IV - A SERPENTE MITICA ••• ,
A SERPENTE MITICA ••• 49
Quanto aos hábitos alimentares, são os ovos, os pequenos dren', des principes spirituels, qui servent encore d' âmes aux
animais, as presas habituais da serpente, correspondendo, pode-se vivants d'aujourd'hui. Le Wollunqua est même consideré comme
dizer, à caça-coleta dos nômades mais primitivos, o que poderia une sorte de totem éminent." (Op. cit. p. 538)
habilitar a serpente como símbolo da coleta, atividade comumente
concebida como pré-cultural, como atividade anterior à utilização À primeira vista, a semelhança com a Pamuri-maxse (a ca-
do fogo e anterior ao fabrico de armas pelo homem. noa-serpente) do Alto Rio Negro é impressionante.
Com estas características, ela é um pouco o pai de todos, o Ambas têm uma característica que as aproxima estranhamente:
totem comum da humanidade. serpe~te mítica colossal, aqui verdadeiramente o arquétipo, pois
Durkheim 24 já ressaltou este caráter excepcional e único da dela saíram os outros totens; seu reconhecimento como ancestral
serpente Wollunqua, na Austrália, e é especialme~te importante a comum numa região razoave.lmente grande indica o que poderia
sua observação de que as cerimônias ligadas a ela não são de fe- ter sido o primeiro passo, ainda bastante vago, em direção a um
cundidade, pois ela não se reproduz. Serpente · mítica colossal, conceito de deus-criador supremo.
dela saíram os outros totens. Também não é propriamente uma Wollunqua, contudo, não é uma divindade. Seria porque a
divindade, pois dela não se espera nada definido, em troca do sua única atividade, a da criação, a coloca num cenário concebido
culto. como pré-cultural, mesmo por coletores nômades atuais como os
"li sert de nom collectif et d' embleme à tout un groupe d'indi-
australianos? Seria por que o tempo em que Wollunqua andava
vidus qui voient en lui leur commum ancêtre . . . Àu temps de pela terra corresponde à época nebulosa em que nenhuma conquista
l'Alcheringa, Wollunqua parcourait en tous sens le pays. Dans cu.ltural se fizera, nem mesmo a do fogo, à época em que os pró-
les diff erents localités ou il s'arrêtait, il essaimait des 'spirit chil- pnos seres por ela desovados não são considerados homens na
ideologia atual e, portanto, nenhuma relação se poderia ter esta-
antiqüíssima na China e no Irã (desde 3000 a.C.). "Die Schlange hãutet belecido entre estes seres e seu progenitor (ou progenitora)? :h
sich und fãllt dabei zuerst in eine totenãhnliche Erstarrung, aus der sie zu
einem neuen Leben hervorgeht. Sie kennt das Geheimnis von Tod und possível que, ser mítico primevo para muitos povos, por demais
Leben, sie holt es sich vom Mond, der stirbt und wiederkehrt. . . . die Idee natureza para poder ser divindade, representando mais o Universo
von der aus der Mondsichel trinkenden Schlange als ein zeitloses Symbol . . . " Cósmico, pré-figuração da natureza mais do que pré-figuração da
(p. 261).
Ainda segundo Heutze, na China Antiga há a representação de uma humanidade, 25 nem mesmo teve vitalidade suficiente para desem-
serpente arco-íris no oeste (que traz chuva) e uma no leste (que traz sol). penhar o papel de um "deus ocioso". Temos mesmo a impressão
Encontramos esta mesma concepção, sem dúvida, de um estrato bem de que, na evolução ideológica posterior na cultura ocidental a
arcaico, justamente entre uma população nômade de caçadores bem primi- "serpente mítica", que nada mais fez cio' que desovar a huma~i­
tivos: Os Guayaki acreditam que o arco-íris seja duas enormes serpentes
(Membo Ruchú, a Grande Serpente, e Kriju Braá, a Boa Negra, de cono- d~de, de transformação em transformação, recebeu finalmente o
tação maléfica). V. CADOOAN. "Animal and Plant Cults in Guarani Lore." tnste destino de tornar-se o anti-Deus.
RA. p. 108.
Entre vários po~os prim~tivos, inc~usive do Brasil, encontramos a crença
LÉVI-STRAuss (Le cru et /e cuit. p. 252), faz observações semelhantes 25
sobre o arco-íris entre outras tribos indígenas do Brasil, traduzindo, à p. de q:ie os seres amma1s pnmevos existem no céu (muitas vezes como cons-
310-11, um mito vilela ( Chaco Boliviano, área próxima à dos Kadiwéu), tela~ao ou nebulosa homônima ) .
em que as cores das aves também se originaram de uma "serpente a~co-íris". Assim, en.t~e os Guarani (CADOGAN. A yru Rapita Ili. p. 38), .·'el primer ser
"Peu apres, il plut, et le cadavre du monstre apparut dans les airs, sous
forme de l'arc-eri-ciel ... "
que e.nsuc10 la morada terrena! fué la víbora originaria ("nandurié"= L eima-
dopl11s almadens_is); no es más que su imagen la que existe actualmen-
Quando cai muita chuva, é comum ver-se cobras nadando à superfície te en n~estra uerra; la serpiente originaria genuína esta en las afueras
das águas, na primeira frente da enxurrada, o que deve ter contribuído para dei Para1so dei nuestro Padre". ScHADEN ("Fragmentos da Mitologia Kayuá."
sua identificação com a chuva (água celeste) e reforçado sua ligação sim- RMP.) _anotou a f!lCSma concepção entre essa subdivisão guarani ("Agora
bólica com o céu, mesmo em regiões desérticas (e, quem sabe, particular- bosta sao os que vieram para cá, que estão andando aqui ... ", p. 123) . Os
mente aí, onde as raras chuvas são geralmente torrenciais) . Kakadu (norte da Austrália) também concebem a serpente mítica como
24 DUJUCHEIM. Les formes élémentaires de la vie religieuse: le systeme toté- doub/e, alma da serpente. RADCUFFE-8RowN. "The Rainbow-Serpent Myth
mique en Australie. p. 538. of Australia.'' JA /. p. 24.
50 CAP. IV - A SERPENTE MÍTICA • •• A SERPENTE MÍTICA. • • 51

Wollunqua difere, contudo, de Pamuri-maxse, pois parece que oceânico na mitologia das tribos uaupesinas, 81 não parece ter sido
não dependeu dos rios para a sua locomoção. a uma serpente terres- este o caso.
tre, por mais associada que possa estar na mentalidade primitiva 26 O animal mítico primevo dos Desâna é a· tartaruga, como
à ideia de água e origem da vida. Pamuri-maxse teria derivado de se verá adiante, e não a serpente. 32 Quanto aos Kobéwa, é düícil
um conceito semelhante ao de Wollunqua ou, ao menos, de uma dizer-se até que ponto os ancestrais anacondas são representações
representação indefinida como a "Rahara" dos Yanonami? 27 Teria antigas. a a cutia ("Bwü"), e não um animal aquático, que parece
uma parte dos Tukano Ocidentais, que não são povos canoeiros, liderar a equipe de fundadores de clãs. 33
após a sua migração para o Uaupés, "naturalizado" concepções :E: principalmente entre estas duas tribos (os Desâna e os
mais antigas, tomando-se a serpente primeva (que um povo ter- Kobéwa) que a "naturalização" fluvial recente ainda não apagou
.restre deveria conceber, mais logicamente, como terrestre tam- concepções que procedem do estágio anterior de vida como caça-
bém), 2s uma serpente fluvial? 29 Ou alguma representação her- dores nômades, afastados dos rios principais, rios estes que só pas-
dada de alguma cultura pré-colombiana do litoral pacífico, apaga- sariam a ter, evidentemente, uma maior atração, concomitantemen-
da durante centenas de anos, reavivou-se com a adoção da canoa te com a· adoção da canoa.
e com a importância que o rio passou a ter para a vida tribal? so Assim, para os Desâna, a anaconda (a grande serpente aquáti-
Apesar do dragão hermafrodita de Chavin, a que já nos refe- ca, Eunectes murinus gigas), ao mesltlo tempo que é símbolo uteri-
rimos, apesar de se ter preservado certamente algum elemento no, 34 tem uma conotação sinistra, como cobra aquática "brotada da
água", simbolizando a podridão. A "Boa" ("Maxka Piru" = Cons-
26 E não só na mentalidade "primitiva" ... trictor, constrictor), animal terrestre, simboliza a alegria do baile
21 Nome traduzido simplesmente por "serpente mítica". BIOCCA. Yanoama.
p. 192. . e se opõe ao "guio negro". 35
28 Em linhas gerais, esta é a tendência, ao menos. Os Kobéwa distinguem um "guio negro" ou anaconda negra
29 Parece que esta "naturalização" fluvial ocorre também com o~tros s~res (serpente mítica ancestral, a canoa-serpente) da anaconda branca,
míticos aparentemente muito menos aptos para tal transformaçao. Assam,
como ~e verá adiante, existe entre muitos povos da Amazônia a crença de conotação sinistra. 3 6
em "onças d'água". . . , . ,. . _ Compare-se estas concepções com as de nômades atuais da
30 O rio realmente passou a ter, no Uaupes, uma 1mportanc1a tao funda-
floresta, como os "Janoama" de H. Valero. "Wa'lkougna", a ana-
mental que esta "naturalização" se justifica plenamente. Não é, porém, em
termos econômicos propriamente ditos que esta importância do rio é sentida: conda, só tem para eles conotação maléfica, 37 como bem o mostra
os Desâna, por exemplo; acham a pesca desprezível e se dizem com orgulho o radical do nome que lhe dão. "Wa'lka" é nome depreciativo
caçadores, embora só 25% do sustento venha da caça. REICHEL-DoLMATOFF. ("inimigo") que dão à tribo vizinha, muito temida, do mesmo
Desâna. . . p. 6-7.
A moradia nos rios principais é sinónimo de alto status, garante a comu- grupo lingüístico.
nicação fácil com outras tribos igualmente importantes. Além disso, a utili- Quanto à Pamuri-maxsá dos Tukano propriamente ditos, 38
zação da via fluvial e da canoa é tão valorizada entre os Tukano que sua peregrinação pelos rios amazônicos corresponderia realmente
dificilmente os homens andam a pé. Situação análoga tem sido estudada
por muitos pesquisadores, no J\lto Xingu, ~alientando a import~ncia. do à época primordial, pré-cultural, em que nenhum bem cultural
kuarup, do moitará e, outrora mais do que hoJe, parece, da exogarrua tribal. fora ainda inventado? Certamente que sim, e esta colocação para
No Uaupés também, seria talvez dispensável repeti-lo, a comuni~açã? com fora dos tempos é um processo bem conhecido e típico do mito.
outras tribos prestigiadas não foi importante somente pela valonzaçao das
grandes festas (profanas e sagradas) como pela possibilidade de obte~ção A primeira parte do relato tukano é a descrição da peregrinação
de artefatos e matérias-primas, que depende de trocas, das trocas matnmo-
'niais e conseqüentes alianças, como também das perspectivas que abrem 31 Como é o caso da centopéia na mitologia desâna a que já nos referimos.
para um aperfeiçoamento através da aprendizagem com outras tribos. Só 32 Veja-se adiante o capítulo sobre os Desâna.
o estabelecimento de contatos mais ou menos constantes, através de uma 33 Vide o mito kobéwa das andanças ancestrais.
exogamia já regulamentada (portanto, contatos relativamente estáveis), é 34 REICHEL-DoLMATOFF. Desâna ... p. 167-68.
que possibilitaria o aparecimento de uma verdadeira escola de pajés como 35 ld., ibid. p. 76.
a que se desenvolveu no Uaupés e a conseqüente homogeneização (relativa) 36 ÜOLDMAN. The Cubeo .•. p. 257.
das concepções e práticas religiosas. Conseqüentemente, a moradia no rio 37 B·IOCCA. y anoama. p. 196.
' ·
principal passa a ser sinônimo de adiantamento, progresso, cultura. 3 8 FULOP. "Aspectos de la Cultura Tukana-Cosmogonia." RCA . p. 355 .
,
52 CAP. IV - A SERPENTE MITICA .•• A SERPENTE MÍTICA •• • 53
por todos os rios que os Tukano conhecem como seu universo, Aliás, esta utilização da Pamuri-maxsá tem muita analogia
tal qual o fez Wollunqua, só depois se seguindo a descrição da com uma cerimônia dos Witóto, que têm não poucos elementos
origem da noite. culturais comuns com os Tukano. Trata-se de uma festa do tron-
Ao mesmo tempo que Diaojpekowi é referido como local de co 41 ou jadiko, descrita por Murdock: 4 2
origem dos Tukano 39 (localizado a leste, no Brasil), há referên-
cias ao Pacífico, que tanto podem se dever a uma "atração" para " ... se celebra todos los anos en la época de la recolecci6~. 'Varios
meses antes se corta un árbol, se le limpia, se le lleva a1 claro,
oeste do foco central da imagem que os Tukano têm do mundo
y se le esculpe o se le pinta con una imagen de mujer en un
moderno (uma vez que Bogotá fica a oeste do U aupés e que extremo, un caimán en el otro, y una serpiente en el medio. Luego
Fulop trabalhou com indígenas politicamente sujeitos ao governo se le pone sobre un madero transversal con un balancín y se le
colombiano) como a uma lembrança muito vaga e imprecisa de mantiene en posición por medio de cuatro estacas verticales. La
sua procedência ocidental. Representações míticas recentes se in- tarde de la ceremonia seis hombres disfrazados de árboles, ja-
tegram e confundem com as mais arcaicas e, sendo assim, é difícil guares y pájaros atacan la casa con palos y hachas y tratan de
distinguir umas das outras. arrancar los sembrados de los campos. Los hombres dei clan los
Mas, de qualquer maneira, a Pamuri-maxse não parece ter compran con regalos de comida. Empieza el baile en la noche
y dura hasta la tarde siguiente. Las mujeres forman un círculo
chegado ao U aupés com os Tukano. E isto já pela sua insistência
alrededor dei madero. Los hombres bailan encima de él, pateando
em subir os rios uaupesinos e não descê-los, como seria de se espe- ai unísono de modo que el leíio se eleva y luego golpea el suelo
rar de um -ancestral mítico de povo que penetrou na região, pelo alternativamente con un ruido de trueno. Cànciones religiosas de
oeste, pelos altos rios e não pela foz do Rio Negro. acción de gracias acompafian el baile. Una vez terminada la
Além disso, Wollunqua é realmente uma espécie de progeni- ceremonia, los hombres hacen pedazos la imagen de la mujer y
tora, matriz gigantesca de serpentes-filhas, o uno se desdobrando, queman los restos en sus diversas lumbres".
enquanto que Pamuri-maxsá serve realmente de canoa a ancestrais
que não são ancestrais serpentes. Seria a lembrança de uma cerimônia semelhante, hoj~ tr·ans-
E é justamente nos textos míticos publicados por Fulop que f ormada, que se espelha na representação da Pamuri-maxsá passa-
rei a de guerreiros indígenas se exercitando? .
se nota mais esta "coisificação" da Pamuri-maxsá, servindo de
canoa aos ancestrais, realmente como simples veículo, sem vontade . E não é estranha também a ' atitude de "K wünkwü,' o velho",
que, considerando não valer a pena ser humano, renuncia à honra
própria, sendo guiada c5>nforme somente os desejos de Yúpuri
de continuar a ser o ancestral mítico do clã Bahúkiva 43 do Kobé-
Baúro, o grande ancestral dos Tukano. E, pior ainda, a mando
wa, 44 e volta a ser anaconda? 4 õ Parece quase uma prova ao
de Deus ("Yepá Huáke"), Yúpuri Baúro e toda a sua gente pas- contrário, como se quisesse dizer: "os Kobéwa são realmente oriun-
sam a fazer exercícios militares, servindo-lhes (humilhação extre- dos d~ serpente-mítica primeva, pois um dos ancestrais, K wünkwü,
ma 40 ) Pamuri-maxsá como tapete! voltou mesmo a ser anaconda" .
.
De qualquer modo, a representação de um ser primevo, cria-
39 ld., ibid. p. 105.
40Humilhação a nossos olhos, é claro: o episódio não é conscientemente dor, como serpente aquática é muito mais freqüente na área cir-
sentido como humilhação para Pamuri-maxsá, apesar de Yepá Huáke (que
Fulop identificou, ao que parece com razão, com um conceito de Deus 41 Como os Witóto fazem canoas escavadas a fogo em troncos de árvores;
supremo, recentemente adotado dos brancos) tratá-la com uma indelicadeza poder-se-ia pensar que a fest a estivesse ligada a representações míticas refe-
espantosa: "Y entonces Yepá Huáke le dió una puiíalada al guio en la rentes à canoa. Pelo texto pode-se ver que isto não parece ser o caso.
cabeza con el palito que tiene la campanita". FULOP. "Aspectos de la 42 MURDOCK. Nuestros Contemporáneos Primiti~os. p. 372.
Cultura Tukana-Cosmogonia." RCA. p. 128. 43 Justamente o clã kobé\1\ta de status mais baixo, que até há pouco ainda
Temos a impressão de que um fenômeno semelhante ocorreu entre os era "Makú". Koch-Grünberg refere-se a eles como os "Bahúna" e identifica-os
Mosetene (Bolívia), segundo um mito recolhido por Nordenskiõld e repro- com um grupo borowa (ou Makú) . GoLDMAN. The Cubeo ... p. 100.
duZido por KOCH-GRÜNBERG (lndianermiirclren ... p. 266-68). Nele Dohit 44 ÜOLDMAN. Op. cit. p. 111-12.
(um deus do trovão e dos terremotos) encontra um pajé lidando como um 45 A favor de Djurédo (que em 9utro local Goldman anotou como fundador
peão, a cavalo . . . em uma cobra~ do clã Bahúkiva)?
54 CAP. IV - A SERPENTE MÍTICA .•• A SERPENTE MÍTICA. • • 55

cuncaribe do que na Amazônia, como é encontrada particularmen- particularmente, ao que parece, seguindo o Orenoco. Representa-
te entre os Tukano. ções análogas às dos Calüía foram encontradas, ainda segundo
Segundo a mitologia calma (Karibe), a origem do Universot Zerries (Op. cit. p. 247-48), entre os, hoje extintos, Tamanac. 5 3
a essência do tempo, é Amana, mãe-virgem, deusa das águas, bela Sua influência se faz sentir, também, particularmente na mitologia
mulher, sem umbigo (nunca nascida), cujo corpo termina em ser- tariâna, como veremos adiante. ·
pente. Exerce seu poder das Plêiades. Ela se .renova sempre, dei- Voltemos à representação da canoa-serpente.
xando sua pele, como uma cobra. E também chamada Wala Yu- Lévi-Strauss tratou do tema em L'origine des manieres de
mu 46 "espírito das espécies", e é chefe de todos os espíritos aquá- table, rH ao tratar de mitos em que a canoa ainda aparece com
ticos. Seus dois filhos (correspondendo à luz e à sombra, aspecto outras funções, 55 além de servir de veículo aos irmãos míticos Sol
. positivo, manifesto, e aspecto negativo, escondido, da deusa-mãe, e Lua, 56 ou a um grupo de animais diferentes. 57
segundo Haekel, citado por Zerries), correspondem à constelação Lévi-Strauss reproduz uma gravura em osso de Tikal, em que
das Plêiades e à Serpente Celestial, 47 a segunda sempre ameaçando aparece uma piroga em forma de serpente, com a seguinte obser-
devorar a primeira 48 e ocasionar assim o fim do mundo. 49 vação: "En effet, la pirogue des animaux revêt parfois l'apparence
Seguem-se, nas observações de Zerries, 50 referências à opinião d'un- serpent velu (fig. 40) créature mythique dont, comme doublet
de J. Gillin sobre os Karibe de Barama River (o conceito de di- du serpent cornu, la notion est familiere aussi bien aux Waiwai
vindade suprema entre os Karibe não pode derivar de influências de la Guyane, qu'aux Cheyenne ... et aux Menomini ... "58
cristãs) . . . · Haveria alguma possibilidade dessas representações se deve-
Achamos que Gillin te~ razão. . . Resta saber se este traço rem a influências maia? Não propriamente maia, acreditamos,
circuncaribe se deve a influê!lcias andinas ia ou a influências cen- pois a cultura maia é relativamente recente. &te povo, contudo,
tro-americanas e do nordeste sul-americano não andino, 52 ou talvez herd~u suas representações míticas, em grande parte, de povos
mesmo a ambas, em épocas diferentes. antenores.
Deixando de lado, por ora, esta questão, note-se que estas As concepções que têm como centro a figura de Quetzalcoatl
parecem ser particularmente antigas na América Central.
influências tiveram uma penetração para o interior do continente,
Por ora, queremos ap~nas apontar alguns dados:
1. ~ C?, fato ~e Q~~tzalcoatl ("a Serpente-Emplumada"), "re-
0
46 Pode ser uma simples coincidência de nomes. Mesmo sendo, não é curiosa .
a semelhança entre "Wala Yumu" e o nome do monstro aquático "Waila- JUvenesc1do como hero1 cultural, certamente não só uma, mas vá-
lima", que aparece num mito dos Taulipang (outra tribo karibe), segundo
KocH-GRÜNBERG. lndianermiirchen . . . p. 319. 53 E entre .outras tribos, como os Arikena e os Cunuana (parte dos Makiri-
47 ~ a "Boiassú" (Escorpião), que também tem muita importância no Rio tare no Rio Cununuma, afluente do Orenoco). Entre estes últimos encon-
Negro. CARVALHO, José c. Notas de Viagem ao Rio Negro. p. 43: " ... a tramos, sempre conforme Zerries, a crença em um criador "Uan~ri" em
boiaçu. Eles dizem que quando ela desaparece no céu, é porque vem comer luta constante contra "Káhu". Zerries observa que, apesar do' nome ("Kahú"
os peixes do rio, não have~o pois razão para pescar nesses dias". Esta em Caliiía significa "céu"), este personagem tem uma conotação completa-
indicação confere com as observações de KocH-GRÜNBER.9 (Zwei Jahre . .. mente divorciada de céu. Parece-nos mais um exemplo do que se poderia
Band II, p. 202-03: Quando "Keitápana" se põe, nenhuma ou pouca chuva; chamar "analogias opostas", de que falaremos adiante.
as águas atingem seu nível mais baixo). 54 Cap. "Le passeur susceptible." p. 359 et seqs.
55 Como de origem das ilhas, em um mito karajá publicado por Baldus,
48 Note-se a analogia com representações como as dos Tukúna: o demônio
Venkica, ameaçando devorar a Lua. segundo Uvi-Strauss.
5 6 LÉVI-STRAu~. Op. cit. p. 109-16.
49 ZERRIES, et. alii. Pré-Colom'bian American Religions. p. 245, et seqs.
57 Tema mítico que tem grande analogia com o da viagem de Yúpuri Baúro
50 ZERRIES. Op. cit. p. 247 et seqs.
1>1 Como o procura assinalar, para os Warrau (foz do Orenoco), Wilbert e de sua gente. Lembremos que os ancestrais clânicos são comumente seres
em "Rasgos Culturales Circuncaribes entre los Warrau y 6US lnferencias." míticos, sob a forma de animais antropossociais.
58 LÉVI-STRAuss. Op. cit. p. 370. A serpente-canoa representada . (fig. 40)
Memorias de la Sociedad de Ciencias Sociales La Salle.
'
52 Como acreditamos poder demonstrar neste trabalho.
é antes "barbuda" do que peluda . ..
56 CAP . IV - A SERPENTE MÍTICA .•• A SERPENTE MÍTICA . • • 57

rias vezes, no decorrer da história, 59 representar inicialmente um que fundamentaram sua construção terão que ter tido, evidente-
ser primevo, criador, possivelmente com a mesma caracterização mente, raízes ainda mais antigas.
da deusa-mãe Caliõ.a, a que nos referimos atrás. Isto se depreende 3.0 ) As tradições míticas das peregrinações de Quetzalcoatl,
de trecho de um sermão que o confessor azteca dirigia ao peni- depois de sua saída de Tula, 64 referem que o mesmo, chegado ao
tente: mar, construiu, com serpentes, uma jangada, com a qual inicia a
viagem para Tlapallan. "Coatlapechtli", o nome do veículo, tra-
"Cuando fuiste criado y enviado, y tu padre y madre duz-se por "jangada de cobras" ou "serpente-jangada" . 65
Quetzalcoatl, te formó como una piedra preciosa . .. " ao
Mas, já que "ninguém sabe como ele chegou a Tlapallan", 6 6
2.º) As representações míticas centralizadas em Quetzalcoatl deixemos, por ora, Quetzalcoatl de lado, e vejamos o que significam
costumam ser atribuídas aos Toltecas, cuja capital teria sido Tula- estas deserções de ancestrais e deuses. Porque, de certa forma, há
-Xicotitlan. 61 Séjourné, contudo, chama a atenção para o fato uma analogia entre a atitude de um Quetzalcoatl que deixa, cho-
de que imagens de Quetzalcoatl já existiam em Teotihuacán, "una. rando, a sua cidade, e a do ancestral kobéwa Kwünkwü (V. adian-
ciudad cerca de mil afíos más antigua". 62 Efetivamente, embora te, p. 79) que conclui não valer a pena ser humano·, tornando a
o Templo de Quetzalcoatl, segundo Hardoy, 63 pareça ter sido ter- colocar a sua pele de anaconda e desaparecendo para não voltar. 61
minado durante Teotihuacán II, sua construção começou no pe- Aliás, este virar as costas à humanidade é uma atitude bem
ríodo pré-clássico ou formativo de Teotihuacán 1. As concepções conhecida do deus criador. A nosso ver, representa exatamente
a substituição de uma ideologia por outra, conseqüência de novas
59 O mito é algo vivo, que se transforma com as vivências do povo através condições económico-sociais, advindas de mudança de habitat for-
dos tempos. Além disso, os sumos pontífices que saíam do Calmecac (colégio çada por outros povos, ou de contatos maiores com povos vizinhos,
sob a égide de Quetzalcoatl) eram chamados "sucessores de Quetzalcoatl".
SÉJOURNÉ. Pensamiento y Religión en el M éxico Antiguo. p. 34, segundo sujeição como vassalos ou lenta absorção por eles (e, às vezes,
Sahagún. tudo isso ao mesmo tempo).
60 Texto de Sahagún, transcrito por SÉJ OURNÉ (Op. cit. p. 16) . Palavras
O sentimento de que Deus abandonou seu povo sempre sur-
sublinhadas por nós : o caráter hermafrodita de Quetzalcoatl fica patenteado
ge de forma aguda, em época de crise de valores. Pode, sem dú-
nelas.
61 "Durante el congreso organizado por la Sociedad Mexicana de Antropo- vida, também surgir no seio de um povo de conquistadores, 68
logía en Tuxtla Gutiérrez en el ano de 1942, fue finalmente acJarado un pois todo cootato mais íntimo com outros povos abala os valores
antiguo error que identificaba a Teotihuacán con los toltecas. Desde mucho antigos. A própria guerra e o posterior mecanismo desenvolvido
tiempo atrás se reconocía que los orígenes de la cultura teotihuacana debían
buscarse fuera de la meseta central del México, pero solo al ampliarse los
ü4 Percebe-se que a referência a Tula pode muito bem ser uma atualização
conocimientos que se tenían de la cultura olmeca y sobre su vinculación
de uma aventura mítica "mais antiga" de Quetzalcoatl.
con el desarollo de las culturas preclásicas mexicanas, y al identificarse a
u5 K UNJKE. Aztekische Miirchen : nach dem spanischen des Sahagun. p. 30.
Tula, en el Estado de Hidalgo, como uno de los centros de la cultura tolteca,
pudo definirse con mayor precisión el período de ocupación de Teotihuacán" oo "Niemand weiss, wie er nach Tlapallan kam". Id., ibid.
(HAROOY. Ciudades Precolombinas. p. 77) . SÉJOURNÉ (Op. cit. p. 94) não 6 1 Como se viu no capítulo IV ( V. p. 51 ), temos a impressão de que o
concordou com esta opinião dos antropólogos mexicanos, justamente por ancestral-anaconda foi um conceito estranho originalmente às representações
ser o culto a Quetzalcoatl anterior à fundação de Tula. Em outras palavras, L:obéwa. Pode parecer, por isso, que o exemplo para estabelecer uma analogia
a figuração de Quetzalcoatl como rei de Tula seria apenas uma das muitas com a deserção de Quetzalcoatl foi mal escolhido. Não é Kwünkwü que
"atualizações" deste personagem mítico, cuja concepção tem que ser pro- abandona seu povo : é este que o repele. Mas Quetzalcoatl, de certa forma,
curada forçosamente no período formativo das culturas meso-americanas. tem a mesma queixa do povo de Tula: o abandono não é gratuito . . . De
62 SÉJOURNÉ. Op. cit. p. 94. Segundo Ekholm, citado por HARDOY (Op. cit. qualquer maneira, parece confirmar que, em ambos os casos, estamos lidando
p. 107) , o fim do período pré-clássico em Teotihuacán (transição do Teoti- com uma substituição de ideologias.
huacán 1 ao Teotihuacán II) teria se dado por volta de 300 a.C . (outros 68 Infelizmente poucas vezes no seio da classe dominante. Em todo caso,
opinam por data mais .recente: 100 d.C. segundo Pina Chan) . De qualquer há umas raras e famosas exceções que honram a espécie humana : Amenófis
forma, uma considerável antigüidade. IV, no século XIV a.C.; Agis de Esparta, no século III a.C.; Nezahualcoyotl
63 HAROOY. Op. cit. p. 85. de Texcoco, no ~écul o XV ...
. ,
58 CAP . IV - A SERPENTE MITICA •.. A SERPENTE MÍTICA ••• 59

para manter o domínio exigem uma nova ideologia, acentuação uma mulher. Este que é o pa' dos Umutinas de hoje, chamado
de hostilidades antigas, ao mesmo tempo neutralizadas de certa Tumoniepá. Aí acabaram os filhos de Haipuku e as fruteiras".
"Tumoniepá escapou e a outra mulher procurou até achar este
forma por uma maior proximidade física, etc. Neste particular,
homem, e casou e ai tiveram filhas e filhos. Aí o pai mandou
temos o exemplo bem conhecido dos Aztecas, absorvendo a cultu- eles casar com as pr6prias irmãs para aumentar a casa, e ai fez
ra dos povos conquistados, inclusive suas representações míticas mais e mais ma/ocas e muitas aldeias dos V mutinas''. 12
(como é o caso de Quetzalcoatl), não conseguindo, contudo, pôr
em prática os ideais da religião de Quetzalcoatl, 69 deturpando-a, Voltamos a frisar que, com este exemplo, não queremos vol-
a ponto de as contradições terríveis que criaram eclodirem numa tar a um historicismo estéril e afirmar que detrás de todo "dilúvio
espécie de complexo de culpa, que explica personalidades como universal" se esconde, na realidade, uma sujeição de um povo a
Nezhualcoyotl, ;o por um lado, e Montezuma, por outro. A expec- outro mais forte. Seria por demais ingênuo.
tativa de um desastre iminente agiganta qualquer düiculdade, trans- O que queremos ressaltar é que nenhum povo vive tão isolado
forma qualquer evento prejudicial em verdadeira catástrofe. e uma vida tão sem mudanças que seu passado seja a história
Sem querer buscar propriamente eventos históricos em todo linear de uma mesma ideologia.
mito de dilúvio universal ou em todo motivo "dei mundo trastro- Quando a mudança de gênero de vida se efetuar como algo
cado", ; i temos, contudo, a impressão de que atrás desses temas valorizado, vantajoso para o grupo, muitas vezes, ela se reflete na
míticos se escondem mudanças na ideologia de um povo; de que mitologia sem qualquer conotação catastrófica. Ora é um ances-
são símbolos de vivências históricas, naturalmente, do povo de que tral, cujo simbolismo está mais preso ao tipo de vida anterior, que
se onginaram. dá de ombros e resolve retirar-se do cenário, ora alguma desilusão
Não nos parece, assim, que se possa explicar uma visão cíclica decorrente das novas condições é projetada no herói (de procedên-
fatalista como a que tinham os Maia do Yucatã simplesmente por cia estrangeira preferentemente ;s).
ela mesma. Vivências cíclicas é que têm que explicá-las. Essas Ou ainda, após uma mudança de gênero de vida, como se verá
vivências cíclicas, evidentemente, podem ser, para muitos povos, adiante, num mito kobéwa, a vida anterior passa a ser concebida
micro-cíclicas, como as mudanças estacionais, desde que elas mar- como inumana (porque indigna do homem verdadeiro). Algum
quem intensamente a vida do povo. Mas elas podem também ser mito de criação de procedência estrangeira pode então muito bem
macro-cíclicas (se podemos falar assim), mudanças ideológicas que ser integrado pelo grupo, com o decorrer do tempo, como uma
acompanham as transformações do gênero de vida na história de segunda criação, um episódio aos poucos ordenado, pela própria
um povo. Não podeJll.OS deixar de ter a impressão também de coerência interna, como tendo ocorrido após um dilúvio ou incên-
que, para que um fim de ciclo seja concebido como se fora um dio "universal".
fim do mundo, é preciso que essas mudanças sejam excepcional- A verdade é que são muito provavelmente os povos de cul- ·
mente dolorosas. tura mais complexa , da América, conseqüentemente os que entra-
Temos um exemplo de mito assim, do tipo "dilúvio univer- ram em contato com muitos povos, pelas guerras e pelo comércio,
sal", que se formou (ou reformulou?) recentemente, entre os Umu-
12 ScHULTZ, H. "Informações Etnográficas sobre o Umutina." RMP. p. 229.
tina: Schultz comenta ainda, em nota de rodapé, que "o casamento entre parentes
consaogüíncos de 1.º e 2.0 grau era proibido. Aplicavam a pena de morte
"Depois os civilizados inventaram as armas de fogo. Aí, nas pri- aos infratores. Numa das lendas - 'Barukolotó' - Estrela d'Alva, o casal
meiras lutas com os Barbados mataram tudo quanto é índio, pois incestuoso foge para o céu. A ordem expressa do casamento entre 'irmão e
estes não sabiam o que estalava, pensando que eram faiscas. Em irmã' dada pelo pai Tumóniepá, na alternativa da sobrevivência ou não
lutas seguidas mataram todos, menos um Barbado, um homem e da tribo, deve ser considerada uma exceção in extremis, que ainda vem
reforçar a proibição normal".
69 Como o mostrou tão bem Séjourné em seu Pensamiento y Religión en e/ 73 E. o caso das desventuras de Koái (GoLDMAN. The Cubeo ... p. 147-48) .
México Antiguo, já citado. Se elas servem, segundo sugere o autor, de consolo para os homens kobéwa
i O SÉJOURNÉ. Op. cit. p. 43. com problemas domésticos, - que ocorrem freqüentemente entre recém.casa-
i l TRIMBORN. "El Motivo Explanatório en los Mitos de Huarochirí." RA. dos, o fato de Koái ser um herói estrangeiro deve ter sua função no caso.
,
60 CAP. IV - A SERPENTE MmCA •••

que absorveram assim mitos de várias procedências, que passaram


por várias fases, mudando sucessivamente os gêneros de vida e
correspondentes ideologias, os responsáveis pela concepção de
várias criações e destruições sucessivas do mundo. . . (início mes-
mo de uma memória histórica) . CAPÍTULO V
O valor místico dos números só por si não explica estas con-
cepções ... DESÃNA - A TARTARUGA MmCA E o COLmRI

Os Tukano, dos quais ainda apresentaremos, mais adiante,


alguns textos míticos publicados por Fulop, fixaram-se no rio, na
atividade da pesca, aparentemente, há bastante tempo.
Já é um pouco diferente o caso dos Desâna, também tukano,
mas "tukanizados", ao que parece, recentemente, ao menos no
que diz respeito a uma boa parte de seus clãs.
Assim os Desâna 1 afirmam que Pamuri-maxse era um pajé
(como o Sol, mas não como este um criador). Ele apenas é refe-
rido como o primeiro que bebeu chicha, e em Dixtiró se encon-
trariam ainda as marcas deixadas na pedra onde descarregou suas
armas e teve relações sexuais com uma mulher. Não tem real-
mente funções como criador de bens culturais. 2
O conceito da serpente mítica entre eles é mais personificado.
O próprio nome que lhe dão o indica: enquanto em Fulop se lê
"Pamuri-maxsá" (coletivo), o informante de Reichel-Dolmatoff
emprega o termo "Pamuri-maxse". :{
Os Desâna parecem ter tido, originalmente, um mito de cria-
ção, ligado, não à serpente (como se o poderia ainda admitir, para
os Kobéwa), mas à tartaruga: 4
Uma vez, no "lugar de recreio" da Filha do Sol havia uma
árvore muito frondosa. O primeiro desâna experimenta uma a uma
as frutas de espécies diferentes, que dela caem. r; Por último cai
uma grande tartaruga. O informante explica a Reichel-Dolmatoff
que os Desâna crêem que a tartaruga vem desta árvore. A tarta-
ruga procura orientar-se: olha para leste, para sul (sic), para

l REICHEL-DOLMATOFF. Desâna . .. Textos XII, Xlll , p. 25.


2 Os Desâna têm também um mito ( REICHEL-DoLMATOFF. Op. cit. p. 201)
de um "homem-serpente" que desiste de ser homem, mas não se trata de
representação de um ancestral. Ao contrário, a ele se opõe ''Emekóri-maxse''
( um dos seres da Aurora dos Desâna. criado pelo Sol e protetor da esfera
espiritual. C/. texto Ili , p. 19) .
a V. nota 1, p. 44 .
.j REICHEL-DOLMATOFF. Op. cit. Apêndice. Mito 2. p. 199 .
.-, Tema da árvore universal. como se vê.
A

62 CAP. V - DESÂNA - A TARTARUGA MÍTICA E ••• DESANA A TARTARUGA MÍTICA E. . • 63

Axpikon-diá, mas não era. Para a parte escura, não era. Depois ou, ao menos, não é explícita. 10 De qualquer modo, dir-se-ia
olha para o lado dos Desâna: era ali. Assim a tartaruga povoou que os mitos colocam os ancestrais desâna sob o · signo do seco.
a terra. O infarmante ressaltou que da árvore caíram todos os Os seres míticos que procedem da água são os representantes do
frutos silvestres. Dos animais, só a tartaruga. mundo exterior, com que os Desâna ·entram em contato, por vezes
Animal primordial (como a Wollunqua) a tartaruga é igual.. recebendo e integrando novos elementos, 11 outras vezes rechaçan-
mente um símbolo da vida pré-cultural (come raízes, coisas po- do o intruso. 22
dres), e, como tal, aparece em inúmeros mitos. Mas ela é um Que a tartaruga desâna é o jabuti e não a tartaruga aquática
animal êtônico por excelência: símbolo, em várias áreas culturais (a "Peyuburu" e não a "Peyudiáge", tartaruga de rio) confirma-se
das mais distantes, da Terra, no sentido de solo firme, habitável,
que, em alguns mitos, emerge da água, do oceano universal. 6 planta na ponta da flecha, faz armas ( ervadas) iguais e se transforma em
grande caçador. KocH-GRÜNBERG ("Jagd und Waffen . . . " Globus. p. 200)
No caso desâna, a árvore de que ela cai é, presumivelmente, viu-a pela primeira vez no Tiquié superior e menciona os Buhágana (literal-
o eixo céu-terra. 7 mente "lndios-sarabatana", também do grupo lingüístico tukano) como espe-
Ute Booiger 8 comentou dois mitos dos Siona (Tukano cialistas em sua fabricação.
10 A tartaruga aquática tem uma distribuição que não alcança o Alto Rio
Ocidentais) em que a tartaruga está igualmente associada ~
Negro. Por outro lado, o tronco inicial desâna, sendo originalmente de língua
árvore universal ("árvore da vida", "árvore de todos os fru- tukano, é de se esperar ·que o animal mítico fosse mesmo a tartaruga
tos") ; em um dos mitos identificado com uma Bombácea terrestre (o jabuti}, pois os Tukano originalmente (lembremos que os Tukano
(Ceibo-Erythra crista galli, espécie de Paineira), em que o Ocidentais não têm canoa.s ) são povos terrestres de caçadores, o que no caso
animal mítico esconde a água. Existe aí, portanto, a asso- dos Desâna ainda corresponde à auto-representação.
Neste particular, eles se aproximam muito mais dos Tukúna do que
ciação da árvore com a água, o que falta no mito desâna, 9 dos Siona, também Tukano. Na mitologia tukúna, a sumaumeira é a causa
da noite eterna. Sua derrubada provoca não o dilúvio mas o aparecimento
6 Assim, em um mito iroquês publicado por KUNIKE (Priirie-Indianer Miirchen. do dia, pois a sua imensa copa impedia que a luz se espalhasse pelas terras.
p. 73) é a tartaruga que se oferece para servir de fundamento ao primeiro (PEREIRA, Nunes. M oronguetá . . . v. 2, p. 4 70) Quanto ao jabuti, encon-
torrão de terra que os animais fazem aparecer do oceano primordial. (A tramos entre os Tukúna um mito que muito se parece com a lenda karajá
impressão que se tem é que o tema teve origem entre povos ilhéus.)
7 Existe naturalmente . uma razão da associação da tartaruga a determinada
árvore, mas o mito desâna já não especifica (mais?) o seu nome. " Podemos
\ . de "Tahina-Can, a Estrela Vésper" (BALDUS. Lendas dos lndios do Brasil.
p. 19): O "homem-estrela" é um doador de plantas cultivadas, o "homem-
-jabuti" da lenda tukúna é um ótimo caçador. E, enquanto no mito karajá
informar que as sementes das sumaumeiras (este é o nome que se dá, no é a irmã mais moça que se apiada do velho e por isso consegue-o como
Brasil, à paineira citada acima) representam um alimento para os quelônios marido, transformado em belo jovem, despertando o ciúme da irmã que o
dos rios amazónicos, sendo causa, muitas vezes, da morte dos mesmos, pelo rejeitara, no mito tukúna é a mais jovem que se apiada do pobre jabuti,
entupimento do estômago e do trato intestinal, quando as comem excessiva- com iguais conseqüências. PEREIRA, Nunes. Op. cit. p. 458.
mente. P~~JRA, Nunes. Moronguetá . . . v. 1, p. 127. Entre os Iroqueses (KUNIKE. "Kosmogome der Irokesen." Priirie-lndia-
8 BÕDIGER. Die Religion der Tukano im nordwestlichen Amazonas. p. 16. ner Miirchen. p. 77) é também a tartaruga o único pretendente aceito pela
9 Que se trata da sumaumeira, pode-se depreender talvez ainda, além da mãe e filha primevas. e curioso que ele fecunda a filha de Atahensic pelo
mencionada associação com a tartaruga, de sua descrição no mito desâna conta to de duas flechas (uma com ponta de pedra, outra com ponta de
como "muito frondosa". LE COINTE (Amazónia Brasileira III: árvores e casca dura de árvore) . Esta dá à luz os heróis gêmeos, Yoskiki e Thoitsaron.
plantas úteis. p. 441 ) descreve-a como "gigantesca, com enormes sapupemas; 11 A filha do peixe Aracu é a doadora da mandioca, cºo mo veremos adiante.
até mais de 50 m de altura". Ela realmente contém água: "Os toros da raiz 12 REICHEL-DoLMATOFF. Desâna ... Mito n.0 7, p. 201. e o mito do ''homem-
descoberta da margem dos riachos secos, em tempo de verão, dão água -serpente" repelido por Emekóri-maxse, :·eferido atrás: "En estos precisos
potável excelente". (/d., ibid. ) Esta característica, contudo, no clima ama- momentos estaba Emekóri-maxse viéndoto; estaba rendijiándolo en un paio
zônico, sem secas, deve ter passado para um plano secundário. Mesmo assim, llamado waxsupúye. Tiene raíces altas y estaba escondido allá. We'á tenía
ela tem aí a sua importância, particularmente na área da sarabatana, pois é una especie de maleta pesada. Mientras que comia la danta, dejó la maleta
da paina dessas bombáceas que são feitos os chumaços que envolvem a de un lado. Emekóri-maxse bajó y alzó la maleta y se internó en el monte.
parte posterior das setas, envenenadas na outra ponta. Para os Desâna não Allá abrió la maleta a ver qué estaba cargando. En esta maleta reunía
existia, certamente, esta significação. Os mitos não os referem como fabri- repuestos de la lengua, en forma de cuchillo; tenian imán. En el centro traía
cantes dessa arma. Embora em um deles (REICHEL-DOLMATOFF. Op. cit. p. como ranuras de sangre. Estas eran la representación de todas las culebras
25) o Sol apareça como inventor do curare, em outro ( p. 64), um desâna Y la propiedad de absorber, como papel de lija, con la le.ngua. Emekóri-
rouba as armas de um "Tore Vaxti" (que, curiosamente, leva um cilindro de -maxse, viendo eso, que estos aparatos no eran buenos para los hombres.
quartzo preso ao pescoço por um cordel) e, reparando haver restos de los echó ai a2ua y se fueron rio abajo ... "
64 CA P. V - DESÂNA A TARTARUGA MÍTICA E ..• DESÂNA - A TARTARUGA MÍTICA E... 65

ainda pelas histórias de animais (REICHEL-DOLMATOFF. Desá- , afluentes, a norte e leste o próprio U aupés, de Mitu até aproxima-
na. . . p. 204, texto mítico n. 0 13) , todas histórias do jabuti. i:i damente o Yapu-igarapé. 16 Alinham-se principalmente numa faixa
Quanto ao tema prometéico (do roubo da semente) que Bõ- sul-norte, cujo eixo aproximado é o Macu-Paraná. (afluente do
diger assinalou entre os Siona com referência ao milho e à pupu- Papori) , não diferenciado· em linhas gerais da lQcalização dada por
nha (Die Religion. . . p. 16) ele existe também entre os Desâna, outros exploradores (Coudreau, Koch-Grünberg, Kok). Wallace
numa forma especial, que será discutida adiante. ( 1848) só os menciona como tribo do Titjuié, 1 7 mas isto não quer
As analogias encontradas entre a mitologia desâna e a dos dizer que só se encontravam aí, pois Wallace só navegou ao longo
Witóto e Okaina, além das apontadas com a dos Tukúna (nota do Uaupés.
p. 63) fazem pensar num estrato arcaico comum para estes povos Aliás, segundo Koch-Grünberg, 18 apesar das numerosas ma-
e, por outro lado, poderiam indicar que os Desâna foram atraídos locas deles no Tiquié (aproximadamente uma dúzia, naquela época,
para a região do U aupés vindos do sul, pois a direção que corres- e com 200-300 indivíduos), não tinham os Desâna, no Tiquié,
ponde aos Desâna no Mito n. 0 2 (de Reichel-Dolmatoff) atrás apesar disso~ nenhum tuxáua, mas só óka-iára. Erant, ainda en~
resumido é justamente a direção norte. (Os outros pontos cardeais tão, 19 considerados invasores pelos velhos moradores tukano, que
para os quais a tartaruga olha são expressamente mencionados; os chamavam de papury-uára (senhores do Papuri, óriginários do
"Axpikon-diá'' é o mundo subterrâneo.) Papuri).
Aliás, Giacone (e tão só ele. . . Os Tucanos. . . p. 7) diz O Macu-Paraná é mencionado nos mitos com uma grande
que os Desâna viviam no Tiquié, antes da chegada dos Tukano, e insistência, 20 realmente, como se se tratasse da verdadeira pátria
daí se dirigiam para o Papuri, subindo os igarapés Umari, Casta- dos Desâna. Ainda assim, diante da infarmação de Giacone · e d'o.
. nho, Ira. Teriam eles vindo em uma época bem remota do sul e mito da tartaruga primeva, poder-se-ia perguntar se eles não teri_am
se fixado no Macu-Paraná, de onde, em tempos bem recentes, te- sido, originalmente, uma horda nômade vinda do sul, p'etmahecido
xiam voltado ao Tiquié? depois por muito tempo no Papuri, particularmente no Macu-Pa-
O informante desâna de Reichel-Dolmatoff explicou-lhe que raná, onde se teria dado a sua sedentarização e onde surgiram,
ainda hoje essa tartaruga serve de orientação para os extraviados após a absorção de contingentes makú, como tribo realmente im- ·
no monte: é preciso trepar na tartaruga, invocar uma oração e ela portante, deslocando-se depois novamente para o sul, para o Tiquié.
indicará com a cabeça o caminho ... A julgar pelos mitos, um contingente importante de nômades
Como se menciona o local (extraviados no monte ... ) , acha- do Macu-Paraná foi incorporado aos Desâna. O Mito n.0 10 (REI-
mos que os Desâna acabaram identificando com a tartaruga algum CHEL-DoLMATOFF. Op. cit. p. 203), ao menos, faz referência ex-
rochedo, cuja localização (tendo-se em vista a localização dos clãs plícita ao fato, tendo o cuidado de ressalvar no início que se trata
desâna), dentro do Uaupés, teria que ser no alto Tiquié. Alcio-
nílio Brüzzi Alves da Silva menciona realmente no Tiquié uma 16 No triângulo formado pelo Uaupês e Baixo Tiquié. Do Yapú-Paraná
jabuti-cachoeira. 1 ~ Ela também é mencionada por Boanerges L. para baixo dominam os Tukano e Tariâna, não tendo sido assinalada aí
maloca desâna pelos exploradores antigos da parte brasileira. Boanerges
de Sousa, 1 ;; que por ela passou entre Pari e Caba ri. anotou, contudo, um contingente desâna entre aldeias tukano, no Baixo
Os clãs desâna mencionados por Reichel (Op. cit. p . 147. Ve- Uaupés, margem direita, após a confluência do lgarapé Coró-Coró; uma
ja-se também mapa esquemático, à p. 6) localizam-se principal- informação de GIACONE (Op. cit. p. 118-19) parece indicar que o seu esta-
belecimento aí e também no Rio Negro até a foz do Curicuriari foi bem
mente numa área que tem por limite sul o Alto Tiquié e seus recente e teve por motivo o comércio com os civilizados: "Dessana mais
esperto pegou 1.0 uma velha espingarda".
i:: ''Jabutí e a onça'', "Jabuti e a anta". ''Ja buti e o veado", todas bem co- 17 WALLACE. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. p. 615.
nhecidas. 18 KocH-GRÜNBERG. Zwei Jahre ... Band 1, p. 241.
H SILVA, Pe. A. Briizzi A. da. A Civilização lndíReria do Uaupés. p. 334. 19 A expedição cie Wallace, que já os menciona no Tiquié, é meio século
Nela exi stiria uma ··pedra da mulhe r" ( " flo'mya-ga") . Poderia ser a pedra anterior.
do mito? 20 REICHEL-DOLMATOFF. Desâna .. . p. 200. Mito n.0 6, p. 201; mito n. 0 7,
1:; S O USA. Boa nerges Lopes de. Do R io N ef.!ro ao O re noc:o : a terra - o p. 20: O Sol fez no Gaxpi-bu, a la maloca Desâna (Wainabi) e é no Macu-
homem. p. 179-80. ·Paraná que surgem as primeiras matas de yagé (caapi).
66 " 67
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CAP. V - DESÂNA - A TARTARUGA MITICA E •••
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DESANA - A TARTARUGA MÍTICA E...

de uma tribo "como los Makú, mas. . . "Estos Makú eran muy O produto de intercâmbio de Buxpú-maxse são os peixes 0
grandes, corpulentos e simpáticos": 21 que provoca o ciúme de "Waí-bogó-quien era de la f amilia de ios
peces y los representa". Este personagem, sob a proteção da "Mãe
"Hay una tradición que existió una tribu como los Makú. Tentan do P:scado~' é muito provavelmente um símbolo dos Pira-Tapúya
la propiedad de cuidar ... ,, (REICHEL-DoLMATOFF. Op. cit. Mito que sao assinalados por Boanerges Lopes de Sousa na região entre
n.0 10. p. 203) o Macu-Paraná e o Rio Uaupés e que Koch-Grünberg (que já os
encontrara aí) chama de "Uaikãnã". 24 Aliás, segundo Giacone
O mito se refere claramente aos processos da endofagia (inci- (Op. cit. p. 8) os Pira-Tapúya seriam autóctones, pertencentes à
. neração, mistura do pó à chicha ... ) , mas apresenta o costume mesma etnia e ~alando um idioma semelhante aos Tukano, que
como canibalismo, 22 embora se procdre explicar que o praticava chegaram ~ostenormente e provocaram uma fuga dos Pira-Tapúya
com "boa intenção". . · - para. o_ Baixo .uaupés. O seu "autoctonismo" na região lhes dá
·· Reichel-Dolmatoff confirma .a .endofagia entre os Desâna, mas condiçoes de f1gur~re~ ~o mito como os primitivos donos do P.ei-
somente com resp~ito ao "Kumu" (sacerdote, status mais alto que xe, uma vez que sao t1p1camente pescadores. Aliás, o mito sugere
pajé). Não há referências a ·pajés ou tuxáuas, o que parece mos- mesmo mal-entendidos surgidos nas trocas. Mas, se a "matéria-
trar um processo de evolução do oostume, de que ainda falaremos. -prima" do mito é tirada de certas vivências históricas não há
Quanto ao Kumu, este é enterrado na maloca, desenterrado após nenhuma intenção de retratá-las: o sentido do mito é ~xplicar a
cinco a seis anos, sendo só os ossos dos pés e das mãos queimados. pobreza em peixes do Uaupés, pelo envenenamento com timbó
O crânio e os ossos grandes são enterrados numa panela, junto com de Waí-bogó e seu povo (portanto, efetivamente, d~s peixes) . '
os adornos e figuras sagradas do morto. (Op. cit. p. 107) Parece, assim, que se haviam estabelecido relações de troca
Outro mito que se refere a ascendentes "makú" par-a os De- entre os Ta~ân~ e hordas nômade~ já aliadas dos Pira-Tapúya,
uma das quais, 1ustamente a representada por Waxsú, foi assimi-
sâna é o n.0 8, p. 202 (REICHEL-Dc;>LMATOFF. Op. cit.); sobre
lada a~s Desâna. 1;fetivamente, Reichel-Dolmatoff ( Op. cit. p.
a origem do timb6. 151 ) cita um dos elas (ele emprega o termo sib) desâna com este
Na ·realidade é uma história de trocas entre tribos. Um dos nome ("Waxsüpe-poná" == Hijos de Waxsú). 211
personagens, "W~sú", é definido como representante da fruta. M~is dif~c~l é se saber exatamente a que grupo lingüístico
." Era vivo, pero no u~ clan." Não há dúvida de que isto quer dizer ~ert~?c~am ongtnalmente" estes "Waxsú", pois parece que a filiação
que se trata do símbolo de uma horda de nômades. Mais ainda, hngu1stica dos grupos nomades que se têm encontrado perambu-
estes nômades falavam uma língua diferente, pois inicialmente lando pelo território do Uaupés não está inteiramente esclarecida.
Waxsú entendia-se com os outros por sinais. Parecem representar bandos locais de grupos diferentes.
O outro personagem é "Buxpú-maxse". Parece tratar-se dos O colibri é tido como o "totem comum" dos Desâna (como
Tariâna, que dominam na margem direita do Uaupés, nas proxi- diz Reichel-Dolmatoff), mais concebido como protetor do que
midades da confluência do Papuri. 28 como ancestral. Ele é também um dos primeiros doadores do
21 Para um uaupesino é sempre muito constrangedor admitir que tem qual-
algodão na mitologia sul-americana. 26 Vê-se pelo mito que Wax-
quer ascendancia makú. '
22 Acusando a tribo de assar vivos os meninos de outras tribos de que
24
=
"p·irá" . (l'mgua geral) . Em tukano segundo Giacone
peixe
U~íue ("Uaí" em Wanâna, Tariâna, Baní;,.a e em Makú) . '
"peixeº =
cuidava, aliás (o mito faz questão de o frisar) muito bem, dando-lhes apenas
"comida pura". Como é sabido, os Tukano e Tariâna empregavam e ainda
211
~ 1ntere~ante se notar que nos mitos os "Filhos da Fruta" são sempre
empregam, ao que parece, .índios ..JDakú para cuidar de seus filhos e para o sím~Io de populações nômades, geralmente pré-agrícolas.
outros serviços.
26
"a.uJour~'hui en&>re, les colibris volent le coton pour faire leurs nids".
21 ..Buxpó" = Trovão (Giacone). GIACONE (Os Tucanos e Outras Tribus O mito foi contado a H . Valero pelo tuxáua Fousiwe (seu marido). Yanoama.
p. 163: ~ verdade que em Reichel-Dolmatoff não · encontramos referências
do Rio Uaupés. Afluente do Negro - Amazonas. p. 118-19) identifica os
Desâna como "Uüna" ou "Filhos do Trovão", mas todos os outros infor- ªº. co~br~ c?m~ doador do algodão. Mas o informante dele classifica os
mantes como Winá = Vento. (Convergência de idéias, devido ao parentesco a~mais tao insistentemente segundo o critério do "puro" e "impuro" (como
ahmento e do "masculino" e '•feminino" de acordo com o código sexual),
mitológico entre Tariãna e Desâna?)
,. , DESÂNA - A TARTARUGA Ml' T JA·
C E ...
68 CAP. V - DESANA - A TARTARUGA MITICA E ••• 69

sú "tenía la costumbre de traer algodón". O plantio de algodão dos povos do rio, com que os Desâna mantêm relações de exoga-
e a endofagia de cinzas (que o mito sugere claramente ter existido) mia, particularmente os Pira-Tapúya) acaba passando uns tempos
pod~riam indicar uma filiação do grupo ao grupo lingü.ístico yano- numa maloca de um personagem identificado como o "dono da
nam1. palha", num lugar com muitas palmeiras, nas nascentes do Macu-
~ verdade que os nômades que hoje se encontram na região -Paraná. A avó deste "dono da palha", compadecida do Boréka-
do Uaupés, por vezes como vassalos das tribos tukano, parece que -poná, q~e não conseguia trabalhar com a presteza exigida por seu
nada têm a ver com os "Yanoama" de H. Valero. 27 Migliazza dá neto, ensina-lhe, ao que tudo ind~ca, o uso de um alucinógeno:
os Makú dos rios Negro e Japurá como de língua puinave. (Os
Puinave, hoje ao menos, não são endófagos.) 2 s "En la ma/oca estaba la abuela de Wuá; a e/la le di6 lástima
Por outro lado, E. Biocca, numa obra que não pudemos con- porque no le rendía torcer la cabulla. Le hab/6 y e/ hombre /e
sultar, 2 9 aponta, só no Rio Negro, 25 grupos de yanonami ("Ya- contó lo que había sucedido. Elia dijo que W uá es mi nieto;
noama"), além dos agrupamentos do Rio Branco ( 13), das nas- es el Dueíío de la Paja que él ha sembrado. Yo sé que Ud no
centes do Paraguá, Caura, Erebato e Ventuari ( 15) e do Alto puede torcer cabulla. El regresará por la tarde y si no le entrega
Orenoco ( 66). ao · la tarea, lo va a devorar. Entonces ella /e dijo para que se libre
Um outro mito, curiosíssimo, dos Desâna 81 relata como um de este peligro, le voy a dar el secreto. Entonces ella le dió y
Boréka-poná (veremos adiante que se trata de um representante regres6 donde e[ hombre. Le di6 el secreto para torcer rápido la
cabulla. Consisti6 en lo siguiente: que el cumare debía ser que-
que desconfiamos que nesta sua preocupação demasiada, se perdeu, sem ele mado en su totalidad y la ceniza de cumare debía amontonarla
se dar conta disso, algo mais importante. Temos a impressão de que esta sobre la mano en un montoncito y después debía aspirar todo e/
preocupação excessiva com o sexo e com a pureza ritu~l é uma acentuação polvo de cumare. EI hombre hizo así y por la punta de la naríz
de algum problema surgido em conseqüência de situações de contato, como
se procurará explicar adiante. le asom6 una puntica de cabulla, ya torcida. Sali6 por cantidades
De qualquer modo, entre os Yanoama de H . Valero, que também são Y así se formó siete ovillos en un momento. Se libr6 de Wuá.
nômades da floresta, existe um mito em que o colibri, que ainda hoje rouba Este vino y el pidio la tarea; y no lo comi6 . .. " (p. 201)
o algodão para fazer seus ninhos, aparece como o dono original das redes
de algodão, e é ele que ensina aos índios o plantio e os cuidados que o Ao paricá, os Desâna dão o nome de "Vixó". Parece um
algodão requer, como fiá-lo e tecer as redes. Por outro lado, este caráter
de antigos donos do algodão, aproxima os Desâna novamente dos Tukano elemento cultural muito velho, entre eles, pois "Vixó-maxse" é um
Ocidentais, pois o algodão é também de importância entre os Siona. Segundo dos seres da aurora, justamente com função de intermediário entre
BÕDJGER (Die Re/igion der Tukano im nordwestlichen Amazonas. p. 39), os homens e o mundo sobrenatural. 3 2
os xamãs Siona, sob os efeitos do yagé (caapi), vêem um povo sobrenatural
("Yagé-paí") de médicos-feiticeiros, de quem recebem ornamentos, mas par- O fato da lenda se referir a um processo de aspirar cinzas de
ticularmente a linha e o algodão. tucum como se fossem paricá parece estar ligado à identificação da
J;: possível que afinidades culturais como estas tivessem facilitado bas- tomada de rapé com a melhor disposição dela resultante para o
tante a assimilação dos grupos nômades pelo núcleo desâna primitivo.
27 A região dos Yanoami dista bastante desta área do Macu-Paraná. Helena trabalho. (~ em conseqüência do pó inalado que o Boréka-poná
Valero foi raptada wr índios num igarapé (Dimiti) do Rio Negro, acima consegue enrolar os novelos de tucum exigidos por Wuá.)
de Marabitanas. Mas os Yanonami, e particularmente os Xirianá, têm se Não encontramos referências de que se pudesse obter uni
deslocado consideravelmente. Segundo Migliazza, foram eles que empurraram
os Máku do Roraima do Alto Padano e Cunucunuma (afluente do Orenoco) rapé da casca ou das amêndoas da palmeira Tucuma (Astroca-
para o Urari e Uraricuera, onde hoje se encontram. ry um V ulgare M art ) ou mesmo de outras variedades de tucum
28. . . ressaltando que nada têm a ver também com os Máku dos rios Urari- ("cumare" ) . 3 ª
cuera e Uraris (Roraima ) de que este autor trata em "Fonologia Máku".
BMPEG. Os Máku estão mais em contato.' com os Mayongong (Karibe) de 12
que p~recem ter incorporado muitos elementos culturais. Também pertencem : REICHEL-DOLMATOFF. Desâna .. . p. 19. Muito pouco comum também
a outro grupo (Saliva) os Macó-Piaroa do Baixo Ventuari (Venezuela ). no~ parece o mito de origem deste pó narcótico desâna : a Filha do Sol o
2fi B1occA. Yiaggi tra g/i Jndi. Alto Rio Negro - A /to Orinoco. v. II. teria descoberto e retirado do umbigo do Sol ( Op. cit. p. 25 ). i:. como se
ao BIOCCA'. "Annexes." Yanoama. p. 453. o Sol fosse filho de· Vixó, apesar deste ser o intermediário.
33
:11 REICHEL-DoLMATOFF. "Apêndice." Op. cit. Mito n.º 6, p. 200-01. LE Co1NTE. Amazônia Brasileira Ili : árvores e plantas úteis. p. 355-57.
70 CAP. V - DESÂNA - A TARTARUGA MÍTICA E • •• DESÂNA - A TARTARUGA MÍTICA E... 71;

Ora, o paricá não é um elemento cultural dos Tukano. Koch- línguas e dialetos diferentes, devendo apresentar também uma
-Grünberg 3 -1 não o encontrou em todo o Uaupés. A única tribo cultura material diferenciada, que se revelara de Um.a pobreza ex-
que o usava, os Bará, parece tê-lo introduzido a partir do Japurá. 8 5 trema entre os Makú do Curicuriari. 40
No Baixo Apaporis, Koch-Grünberg notou que a inalação de pa- O termo makú é tão vago que ele chega a ser u.sado, muito
ricá e o uso da coca mascada substituíam o fumo de tabaco, que longe do Uaupés, pelos Urubu-Kaapor para designar os Guajaja. 41
caracteriza o Uaupés, juntamente com a coca e o caapi. 3 6 . E, enquanto que, na área estudada, o termo tem conotação pejora-
Este paricá do Baixo Apaporis que Koch-Grünberg identifica tiva, 4 ? a oeste, já na região andina, a mesma palavra (o que é
como preparado com a semente seca de uma Mimosa ( acacioides curioso) tem um sentido completamente oposto. Assim, por exem-
Benth) parece ser o mesmo niopó ou épena dos Yanonami, que plo, Preuss 43 dá como sinônimo de "Makú", na língua dos Kágaba,
Biocca esclarece ser procedente dos grãos da Piptadenia peregri- "senhor", "chefe".
na. 3 7 :b possível, contudo, que o alucinógeno sugerido pelo mito
desâna (já que não se menciona o "Vixó") seja um outro tipo de A nosso ver, a mitologia desâna oferece-nos ocasião de mos-
paricá? Não poderia tratar-se do "épéna d'écorce" de que fala trar outro aspecto digno de menção, qual seja, o fato do sentido
Biocca? 38 cronológico nem sempre estar inteiramente ausente do mito e de
se poder encontrar mesmo, por vezes, uma certa fidelidade à rea-
De qualquer forma, deixamos aqui registrada a nossa impres-
lidade histórica ou etnográfica, no modo como os temas míticos
são de que alguns clãs dos Desâna se originaram de uma população
·são captados, selecionados e reordenados pela cultura.
nômade muito mais próxima dos Yanonami do que dos Makú
de hoje. Enquanto · à Filha do Sol é atribuída a instituição das cerimô-
Koch-Grünberg 30 já havia notado que as populações nôma- nias fúnebres (REICHEL-DoLMATOFF. Op. cit. texto XI, p. 24),
des da margem direita do Rio Negro (sem canoas) falavam várias a arte ceramista, a dieta de pescado e de frutos silvestres, a inven-
ção do fogo '. (ensinando os homens a produzi-lo), o cobre-sexo
84 KocH-GRÜNBERG. Z wei Jahre . . . Band I, p. 324. . para as mulheres e, curiosamente~ 44 também a invenção do m•-
s~ ld., ibid. p. 323. Os "Barasana" de Laborde conhecem o caapi e aspiram chado de pedra e técnic~ cesteira (texto X, p. 24), a Filha de
o tabaco como rapé (Op. cit. p. 159 e 164). Boréka (peixe Aracu) é que institui as observâncias rituais do
36 Jd., ibid. p. 289. parto, é doadora da mandioca (yuca) 45 e inventora do tipiti (p. 21
l:. curioso como os mitos de origem, mesmo da coca e do tabaco, et seqs.) . .
publicados por FULOP ("Aspectos de la Cultura Tukana - Mitologia." RCA .
p. 370 ) dão a impressão de que se trata de elementos de aquisição recente Parece-nos difícil explicar essa dualidade de heroínas civiliza-
por parte dos Tukano: doras, 46 a não ser identificando uma com a própria tribo e suas ·
Yúpuri Baúro não tinira nem tabaco nem coca. Manda duas mulheres primitivas realizações e vendo na. outra a representante ou o sím-
até a m·aloca de Uaí Ma jsé. Enquanto Numiangó conversa, Pareroang6
acha um m enino chorando, atrás da ma/oca. O menino tem 6 dedos, bolo da tribo ou da·s tribos com que os Desâna trocam mulheres.
mas ela os vê como se fosse coca. Arranca um dos dedos para levá-lo Principalmente, quando Reichel-Dolmatoff nos explica que, como
a Yúpuri-Baúro (p. 372-73) .
s; BroccA. Op. cit. p. 461. 1:. o "Paricá da terra firme" ("Angico dos •o ld., if:Jid. p. 217. Estes não tinham rede, dormiam no chão e faziam
Cearenses" ). LE ÇorNTE. Op. cit. p. 389-90 (parasita) . choças de folhas de altura apenas um pouco superior à de um homem.
FLURY ("El hatay ou cebil") identifica-o como sendo a Piptadenia 41 HUXLEY. A/fable Savages. p. 98.
m acrocarpa Bent'1. Cita-o em uso entre os Omágua (segundo La Conda- •2 Maku = mau (entrando na composição do nome "Macunaíma") Mdku =
mine ) , Ilhas da América Central e entre os Comechingones da Serra de
Córdoba . .MARCOY ( Voyage à travers l'Amérique du Sud. p. 398) entre os
= macaco (Karibe)
48 "Forschungsreise , zu den Kágaba-Indianer." Anthropos. p. 366.
Antis;. WAVRIN (M oeurs et coutumes des indiens sauvages. p. 152-53 ) entre
os· Guahibo, Guayavero, Piapoco ( Orenoco), e, bem longe desta área, 44 Pois, normalmente, nos mitos, é um personagem masculino o instrutor
CASPAR, F. ( T upari) o encontrou em uso entre estes índios (p. 105). do artesanato masculino.
as "l'épéna d'écorce serait preparé fondamentalment par raclage de la partie 45 Que o povo dela (os Araéús) tentam "roubar" de volta através da paca.
interne de l'écorce d'arbres appartenant au genre Virola . .. " (BIOCCA. Op. 46 Não é comum, mesmo na área estudada, a existência de uma heroína
cit. p. 461 ). civilizadora, pois geralmente encontramos personagens masculinos nesta ca-
aD Z wei Jahre . . . Band 1, p. 23. racterização. Mas sobre a heroína civilizadora ainda se falará adiante.
A ' A ,
72 CAP. V - DESANA - A TARTARUGA MITICA E .•• DESANA - A TARTARUGA MITICA E .• • 73
os Desâna conseguem suas mulheres em tribos p~scadoras, 47 cos- . A associação milho-água terrestre ainda pode ser entendida à
tumam conceber os peixes como "as mulheres do rio,,. 48 base _de uma realidade etnográfica, se lembrarmos que a técnica
Se lembrarmos que l:lill desâna jamais assiste 49 ao parto de de plantio compreende uma imersão prévia em água, por uns três
uma companheira de clã, já que esta (tia-paterna, irmã ou filha) dias. 53
casa-se fora, a associação parece lógica. Já nos ritos mortuários Mas para a mandioca a situação já não é a mesma. Apesar
a companheira de clã (e, no caso dos Desâna, isto equivale a dizer das mulheres irem comumente ao porto para descascá-la, 54 a
companheira de tribo) está presente, e é nos ritos mortuários que operação não implica nenhuma idéia de origem.
ela tem uma participação real. Nos mitos em que se explica a origem de várias plantas além
Referíamo-nos à Filha de Boréka 150 como doadora da man- do milho, ao mesmo tempo, pode-se pensar que a associação se
dioca. Lévi-Strauss já chamou a atenção para a associação das estendeu às outras plantas por serem, como o milho, cultivadas ...
plantas cultivadas com a água. Nos mitos jê notou ele a constân- Mas, e onde encontramos somente a mandioca?
cia da proximidade entre o primeiro milho e a água: Parece mais razoável admitir que se trate de uma aquisição
relativamente recente e poderíamos mesmo perguntar até que pon-
"C' est une femme au bain qui en reçoit . la révélation; ou bien
encore, on explique que les grains ou les épis tombés remplissent to a importância do conceito da Filha do Sol como heroína civili-
la riviere. Chez les Gê comme en Guyane, par conséquent, l'arbre zadora, 55 entre os Desâna, não se deve a uma tentativa incons-
des nourritures est associé à l' eau: soit qu' elle bagne son pied, ciente de compensar o prestígio da mulher estrangeira, mediante
soit qu'e/le se trouve enclose dans ses racines sous forme interio- uma auto-afirmação no mito, através da mulher tribal.
risée, elle est, sinon créatrice . . . au moins conservatrice des Que a Filha do Sol representa essa mulher tribal parece fora
·gi:ains ou des épis". (Le cru et le cuit. p. 193) de dúvida; e o incesto (pai-filha, irmão-irmã 56 ) é a única repre-
sentação pela qual uma desâna poderia tornar-se ancestral dos
O relato desâna obedece mais ao modelo jê do que ao das patrilineares e exógamas desâna. 57
Guianas. :n Embora os possuidores originais da mandioca tam- Esta exogamia é tão enfatizada pelos Desâna, que se tem a
bém procurassem impedir a difusão da planta, o egoísmo do pos- impressão de, para uma boa parte dos seus clãs, tratar-se de um
suidor é neutralizado pela generosidade da doadora, ambos repre-
sentantes do mesmo grupo. 52 da tribo amazônica (certamente canoeira, daí a associação com a água)
de que obtiveram os conhecimentos da agricultura.
47 Segundo SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da (A Civilização Indígena do Uaupés. 5 3 Este processo é assinalado por H. Valero entre os "Yanoama" (B1occA.
p. 408), os Desâna casam-se com Tuyuka, Pira-Tapúya e Arapâso-Tapúya, Op. cit. p. 214), que o deven1 ter adquirido recentemente e parece ser de
mas não com Tariâna. Os Pira-Tapúya não se casam com Wanâna e uso generalizado. .
Arapáso. E os Arapáso não se casam com Miriti-Tapúya, Wanâna e Desâna.
48 "Los peces son mujeres." "Ir a pescar las mujeres del rio" é oração que
5 :,0
~ue é mencionado no mito desâna de que estamos.:ratando: " . . . cuando
la H1Ja de la Trucha · lavaba la yuca en el rio .. . " (p. 22).
tem sentido erótico (REICHEL-DoLMATOFF. Desâna. . . p. 71). 55 Poder-se-ia pensar numa aproximação com a "mulher-estrela" dos mitos
49 Não falamos só no sentido de observar diretamente o parto, é claro, mas jê. Mas esta aproximação é mais adequada, justamente, com a figura da
através de sua participação emocional no acontecimento e nos ritos. Filha do Aracu, pois esta, como a "mulher=estrela", magoada por seus afins,
l>O Reichel-Dolmatoff traduz por truta, peixe que não ocorre na região. Ele acaba por abandonar o marido e volta para a maloca subaquática (REICHEL-
tem a impressão de que se trata do peixe aracu e com razão, pois KocH- -DoLMATOFF. Op. cit. p. 22).
-GRÜNBERG (Op. cit. p. 146-47) traduz assiJJl os nomes "Bolikakõ", "Boli- No Uaupés, como já ficou dito atrás, os heróis civilizadores são todos
kakó" em Kobéwa. personagens masculinos. Ainda assim, LABORDE (Mito y Cultura entre los
51 Os mitos de origem das plantas cultivadas, das Guianas, que se prendem Barasana, un Grupo Indígena Tukano dei Vaupés. p. 55-56) publicou um
ao tema da árvore universal, supõe esta guardada ciumentamente em proveito mito barasana, "História de estrelas" que não só apresenta analogias com
de um só (anta, cutia) ou generosamente doada como coleta fácil, dom os mitos jê, como ainda apresenta o tema dos instrumentos mágicos (que
que a ingratidão, segundo Lévi-Strauss (ou talvez mais precisamente a im- trabalham sozinhos). Sobre a heroína civilizadora ainda se falará adiante.
previdência, a atividade extrativa desabusada), põe a perder pela derrubada 56 Biológico ou classificatório . . . como praticado pelos primeiros seres
da árvore. criados, só poderia ser expresso como biológico.
52 Esta generosidade da doadora faz lembrar os mitos jê da "mulher-estrela", 57 Não queremos dizer com isto, é claro, que o tema seja um arranjo recente
analisados ·por LÉv1-SnAuss (Le cru et !e cuit. p. 174 et seqs.). :e. bem possí- ou uma invenção desâna, mas a cultura seleciona e preserva aqueles temas
vel que, igualmente para os Jê, esta mulher~estrela seja o símbolo também que melhor a representam.
74 CAP. V - DESÂNA - A TARTARUGA MÍTICA E •••
A
DESANA -
.. " ,
A TARTARUGA MITICA E. • • 75

costume bem recente, que está sendo imposto como símbolo ' e sinas (como, por exemplo, os Kobéwa), a periculosidade do ato
meio para uma nova forma de vida. . / \ sexual. Entre os Kobéwa, o clã estrangeiro exógamo é captado,
A exogamia tribal parece ser uma terrível aventura, no início. "kobeizado". Düerentes dos Kobéwa, mais que exógamos de fra-
Por mais que uma horda valorize o casamento distante, pro- tria, os Desâna são exógamos de tribo.
, curando os homens de cada grupo local (geralmente uma só famí- Pela forma que entre eles apresenta ainda o mito de "Bisiú",
lia extensa) -suas esposas nalgum outro grupo, por troca ou rapto, de que falaremos adiante, pela existência de uma heroína cultural,
as distâncias entre os cônjuges não são grandes, nem em termos percebe-se que as suas concepções religiosas até há pouco não .
culturais (pois falam a mesma língua ou dialetos inteligíveis da düeriam muito das dos "Yanoama" de H. Valero. 68 Nem diferem
mesma língua), nem em termos biológicos (serão primos em p~­ ainda consideravelmente ...
meiro ou segundo grau, ou então tio e sobrinha). Falamos há pouco que os Desâna · mal começaram a estabe-
.Onde quer que passem a moràr estão dentro de seu Il!undo. 58 lecer fórmulas de mediação com o mundo exterior. Não será -ir
Além das aldeias do mesmo grupo só existe a natureza, que é longe demais? Após 100 000 anos de História das Religiões, não
o mundo exterior, que pertence aos animais e ao inimigo, este será ingenuidade pensar que um grupo fosse incapaz de estabele-
último, às ve·zes, apenas um animal a mais no meio dos outros. 59 cer, neste sentido, técnicas mágico-religiosas satisfatórias?
Quando se é abandonado neste mundo exterior, sabe-se o Por que o mundo exterior deveria continuar tão· hostil aos
que se deve esperar. Se homem, ser despedaçado pelo inimigo; Desâna?
se mulher, ser violentada coletivamente, humilhada, debochada. 60 Já falamos na exogamia tribal. Tem-se a impressão de que
As concepções míticas desâna ainda refletem muito desse ela foi regulada, para os Desâna, muito recentemente. Tanto
u~iverso de bando nômade que há pouco seus ancestrais deixaram
" quanto os Kobéwa, os Desâna têm fama de ser "Makú"; mas, en-
de ser. · quanto o Kobéwa é (como mostram os mitos tukano publicados
O universo .externo nada dá de graça: a única "mediação" por Fulop) o vilão, o desâna é Miriápura Tun'lcaro, o irmão mais
é tentar pagar de antemão a pena de talião. Se as trocas com o · novo de Yúpuri Baúro., sempre trapalhão, incompetente, frente
mundo hostil se definem pela "reciprocidade negativa", 61 como a quem o ancestral tukano assume uma atitude condescendente,
falar em mediação? até certo ponto, pois o admite como irmão, mas o repreende a
· O Desâna, em suas relações com a natureza, com o mundo todo momento. É um aliado, mas um desajeitado e ridículo, na
exterior, na sua preocupação de manter com eles o equilíbrio do melhor:. das hipóteses.
seu grupo, nem procura ainda se subtrair ao preço a pagar, com . É claro que os Desâna têm consciência desta situação e acre-
a oferta de algo menos essencial para si: é olho por olho, dente ditamos que é por isso que se empenham tanto em c~prir fiel-
por dente, alma por alma. 62 mente as restrições e ritos. É o modo de se elevarem, de aumen-
Não é à toa que o Desâna se resguarda com tantos tabus, tarem a distância entre eles e os Makú de hoje, dos quais, por
não é à toa que ele sente, mais que o índio de outras tribos uaupe- azar, não . se distinguem nem pelo tipo de especialidade: ambos
são excelentes cesteiros, ainda que a técnica makú seja diferente
58 aclaro que esta segurança pode ser mais aparente do que real. a só da desâna. 64
lermos as passagens de Y anoama, referentes aos maus momentos que Helena
Valera passou após a morte de seu marido Fousiwe ...
1>9 Efetivamente, é comum o índio (e não só o índio, infelizmente . .. ) só certo número de almas por um lote de animais que este "senhor-dos-animais"
conhecer como verdadeiramente humana a própria tribo. então libera para que os homens os cacem.
60 Esta é a imagem que o bando tem do mundo exterior. Infelizmente, não 6 3 Os ''Yanoama" invocam as "Hékouragnouma" ("mulheres-espíritos" muito
poucas vezes, mas quase sempre, particularmente, quando o mundo exterior belas) para que ajudem a curar doentes (REICHEL-DoLMATOFF. Op. cit.
é o do civilizado, a imagem corresponde à realidade. p. 195) e Fousiwe supunha que uma dessas belas "moças-espíri~os" da flo-
61 SAHLINS. Sociedades Tribais. p. 127 et seqs. e SERVICE, E. R. Os Caçadores. resta, que dele se acercara dançando, havia processado nele uma operação
p. 26 et seqs. de substituição de órgãos (da língua, particularmente), para que ele apren-
62 REICHEL-DoLMATOFF. . Desâna. . . p. 1o1 a 103: o principal objetivo do desse a cantar bem (Op. cit. p. 197).
pajé ao tomar vixó é entrar em contato com Vixó-maxse e ir à "casa dos 64 A técnica desâna é a do sobreposto (twilled) com desenhos· geométricos
cerros" para negociar com Waí-maxse. A troca que se estabelece é de um em preto e vermelho, enquanto a dos Makú é torcida (twined), usada na
A '
76 CAP. V - DESANA - A TARTARUGA MITICA E •••

Com a decadência da arte plumária e das artes em geral, 65


esta situação naturalmente persiste. h verdade que nos últimos
anos surgiu uma nova forma de elevação de status, embora se
trate de uma arma de dois gumes: é a de garantir para si uma
posição fronteiriça no intercâmbio com os civilizados, o que os
Desâna, ao que parece, tentaram conseguir. 66 CAPÍTULO VI
Ainda assim, temos a impressão de que os Desâna não esta-
vam preparados para tantas mudanças juntas. O ;MITO KOBtWA DAS ANDANÇAS DOS ANCESTRAIS
Talvez se pudesse dizer que a razão principal é que para os
Desâna não foi um "grito de Kowai" que ampliou o mundo. Eles
nem tinham ainda verdadeiramente um herói tribal a que se pu- Os homens emergiram e largaram as suas peles de anaconda.
Dirigiram-se para a rocha da arraia-estrela, onde atravessaram a
desse agregar a história da divindade-dema morta na fogueira. água leitosa. Chegaram à rocha onde passam os filhotes de peixe,
Em outras palavras: as cadeias "sintagmáticas" dos seus ci- à colina chamada kanúrübo, e depois até os· rápidos dos quatro
clos míticos evidentemente estavam (e estão) abertas como as canais. Chegaram a bwühürüküwu, a rocha onde Bwü (AgOti)
de todas as mitologias, mas as seqüências mais simples, ou, para pulou através dps rápidos de byátakwe, no lugar da pimenteira.
não usarmos esta palavra que pode causar uma impressão falsa, Chegaram ao lugar de Kwákü o Ancestral e depois ao lugar de
as seqüências arranjadas de forma mais arcaica, não permitiram Borikakü o Ancestral, ao lugar onde f!le derramou o leite da
o encaixe de determinados mitemas. árvore enquanto o estava bebendo. Chegaram ao lugar do povo-
Como aconteceu freqüentemente na história da catequese, o -verme, e à árvore atravessada na correnteza sob a qual Bwü
neófito absorveu o ritual, mas não as concepções. E, como todo passou. Chegaram à rocha da onça, onde um Ancestral matou
neófito, ele passa a observar com um rigor fanático os ritos que uma onça e ela se transformou numa rocha. Chegaram ao riacho
aprendeu. do macaco, onde um Ancestral matou um macaco é ele se trans-
formou em areia. Chegaram à ribanceira da onça, onde uma
h por isso, a nosso ver, que Jurupari é entre os Desâna onça, falhando em escalar o alto barranco, amedrontou-se à vista
apenas um estado de espírito. . . 6 i de um Ancestral e arrojou-se numa árvore, onde ficou trespas-
sada. Chegaram ao riacho da planta kumari, onde um Ancestral
cortou um arbusto de kumari e ele se transformou em areia.
Chegaram ao lugar da clava de guerra, onde um Ancestral vindo
para beber água, encontrou um parente. Brigaram e o Ancestral
confecção de cestos de carga globulares (segundo GALVÃO. "Breve Notícia matou seu parente com a clava. Chegaram a um lugar chamado
sobre os índios Juruna." RMP. p. 17). "leite da árvore", onde um Ancestral distribuiu uma calabaça de
6õ Id., ibid. p. 32 a 37. Segundo Pe. A. Brüzzi A. da Silva, o algodão hoje leite de palmeira. Depois, na rocha chamada "bebendo leite",
não é mais plantado no Uaupés. eles o beberam.
66 Como foi referido em outro lugar, segundo Giacone, os Desâna se estabe-
Chegaram ao Lugar da água tumultuosa, um remoinho d:.: leite,
leceram ultimamente no Baixo Uaupés e mesmo Rio Negro, atraídos por
este comércio. aos rápidos da pomba, onde uma pomba caiu na água e se
67 "El Yurupari no es una persona: es un estado. Es una advertencia de no transformou em rocha. Chegaram ao rio dos numerosos peque-
cometer incesto y en cambio casarse solo con las mujeres de otra fratria ... " nos peixes e à rocha onde crescia a árvore amári. Chegaram à
(frase do informante desâna de REICHEL-DoLMATOFF. Op. cit. p. 130). ponta da rocha, e aí os Ancestrais atravessaram para residir.
Reichel-Dolmatoff observa também (p. 226) que a versão mais poética Pararam aí e fizeram potes de cerâmica. Depois atravessaram
e menos acertada é a de Stradelli e que Koch-Grünberg estava muito mais
perto da interpretação correta quando associou _as flautas com "Ko'wai", i. uma colina e aí moraram, na colina do pássaro hán han. Para-
e., "gó á mee". ; ram na rochosa colina de leite, lugar onde brincavam os pás-
Neste ponto, porém, é preciso ressaltar que, embora talvez Reichel- saros hán han. Chegaram à rocha do macaco marúku, onde
-Dolmatoff possa estar com a razão quando diz que o mesmo conceito dos mataram um marúku e ele se transformou numa rocha. Chega-
Desâna se encontra entre os Pira-Tapúya, Tukano e Wanâna, já não pode ram ao alto barranco para o qual os Ancestrais olharaúi com os
ser estendido aos Aruák, como mostraremos adiante.
olhos redondos de admiração. Foram rio acima e atravessaram
78
0

CAP. VI :-- O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS .•• o MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS ••• · 79

pela passagem de espuma, pelas águas negras do pidári a dentro, tando sobre uma rocha, perfurou seu reto e morreu. Foram ao
na cabeceira da baia waníndo. Aí um Ancestral fez um escon- lugar da palmeira de leite, ao jardim da onça, ao lugar onde o
derijo e deixou nele uma calabaça de leite. Neste lugar, cha- kamíndü se transformou em pedra. Chegaram a kwünkwüntoto,
mado "o rasto de leite", eles deixaram o rio para residir numa onde Kwünkwü, o Ancestral, decidiu fixar residência. (Este é o
colina alta na curva do kavárebo (onde o Cuduiarí se lança no ancestral Bahúkiwa que posteriormente decidiu que não valia a
Vaupés). Seguiram adiante e chegaram a kwit6tedo, a kwit6teku, pena ser humano, e se transformou novamente em uma ana-
e a nyemí hwainéndi (onde se encontra agora Mitú). Aí, junto conda.)
à baia leitosa, junto à rocha escorregadia, na correnteza de san- Os Ancestrais deslocaram-se para o lugar do peixe hákú e puno
gue onde as águas ficam avermelhadas pelos raios do sol, ai os (piranha), para o lugar de Warí o afim, à colina do pássaro-car-
Ancestrais chegaram e ai eles viveram. Dali eles exploraram o pinteiro, para os rápidos rochosos ·onde Kom6ri o Ancestral se
rio acima e depois voltaram a hivéda. . fixou, depois até a rocha bico de papagaio, depois para o lugar
Eles voltaram e beberam leite, o leite frio · junto aos rápidos do bicho-preguiça, depois para o lugar das árvores de tecido de
dos quais eles tinhâm emergido. Aí eles se tornaram vivos, no cortiça, depois para as rochas dos raladores de mandioca, depois
lugar onde as águas eram como leite, junto ao lago do barro , ao lugar do veado, e depois para o lugar dos pequenos periquitos
amarelo. Depois seguiram até que chegaram ao lugar do peixe onde Op6mbibekü vivia (um anão com um pênis enorme). Final-
namúkoriba (perto da desembocadura do Cuduiarí). E então pas- mente, eles chegaram ao lugar do povo de pedra· (nas cabeceiras
saram uma corredeira que era como uma urna de leite. Aí se
encontraram com os seus afins. Eles já se encontravam na baia do Cuduiarí). (GoLDMAN. The C~beo ... p. 111-12. Tradução
nossa)
lamacenta, no lugar da baía fechada (um sítio acima do lago
Garaffo no Cuduiarí). Acima deles estava o remoinho de Guassí
e as águas profundamente negras. Aí, no remoinho do tronco Se colocarmos este texto lado a lado com um dos muitos
de árvore, em hívakapunáwü, no lugar das asas de papagaios, fragmentos míticos publicados pelos que lidam com a mitologia
eles atravessaram por terra e rapidamente chegaram ao lugar australiana, a analogia espantosa salta à vista, uma analogia que
das borboletas bupekü junto ao lago com formato de um reci- não só se revela na identidade dos temas, 1 como na identidade
piente de curare. do processo narrativo. 2
Eles chegaram ao lugar de muitas larvas que eles cozinharam
num guisado. Chegaram ao barranco alto onde a água penetra . . Ainda que para populações mais meridionais da América
coin um barulho de sucção, ao lugar do emaranhado de raízes. do Sul (da Patagonia e Terra do Fogo) Paul Rivet tenha sugerido
Chegaram ao lugar das onças, a mahópanwa waríndo, ao lugar (baseado em analogias lingüísticas 3 ) a possibilidade de uma origem
dos peixes de escamas de cortiça, à baia do pássaro mimikü, e
1 Já muitos têm chamado a atenção para certas semelhanças de conccpções
depois ao lugar das árvores de pupunha. Daí eles voltaram e
chegaram à baía da fruta wakúdjari, a tcipédikoríba e tcipéü entre a Austrália e a América. Entre outros, LÉVI..STRAuss (Le cru et le cuit.
taváno, e depois ao lugar escorregadio, e depois· ao barranco do p. 249) : "II est plus .curieux de retrouver la même association entre l'eau
les visceres et les plantes aquatiques, en Australie (segundo Spencer et
barro amarelo, e depois a tuíbü, onde está a baía do peixe ver- Gilles) ... "
melho, e· depois à - colina do peixe
'
háku. Depois, em um lugar 2
Não acreditamos que a tradução livre ("free translation") de Goldman
chamado hororákipúru, chegaram ao barranco alto de limo, de- tenha alterado o texto neste sentido ...
pois ao lugar dos papagaios (o sítio atual do sib Bahúkiwa). 8 ~VET, P. As Orig~ns do Homem Americano. Cap. V, em que aponta uma
Na baía dos papagaios eles encontraram um fosso circular cha- séne de concordâncias ~ntre o Txon (Con) e dialetos australianos, além de
seme~anças entre crâmos patagões e australianos, e mais uma apreciação
mado "trincheira das mulheres" (porque foram as mulheres que da hipótese de Mendes Corrêa, referente às possíveis migrações dos austra-
cavaram este fosso). Aí um Ancestral que foi capturado pelos lianos em direção à América, pela Antártida.
seus inimigos conseguiu libertar-se e escapar. Então continuaram Contudo, Nimuendajú (Curt Unkel), certamente um dos melhores co-
a subir a baía até o lugar- da batata-doce, e chegaram à baia do nhecedores de idiomas indígenas, critica Rivet, em carta a Mansur Guérios
porco selvagem e daí ao lago dos pássaros e ao lugar do pássaro. de março de 1945: ' '
. "Exatamente o m~smo é o caso das relações entre o Txon e o que
Dai eles foram até a baia das águas doces, até o lugar das Rivet chama 'l'Austrahen', como se isto fosse alguma unidade lingüística
pombas. E depois eles foram ao lugar onde crescia o milho e e não uma multidão de línguas isoladas e ·pequenos grupos que entre si sÓ
depois até a rocha escarpada da onça. Aí um Ancestral, sen- tem muito pouca ou nenhuma relação de parentesco. Outra vez o grande
,
80 CAP. VI - O MITO KOBEWA DAS ANDANÇAS ••• O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS ••• 81
australiana, nada indica realmente que se possa atribuir tais ana- ao que parece, à medida em que o grupo passa a regulamentar as
logias a ·uma ascendência australiana para parte da população suas relações matrimoniais de forma mais definida, particularmente
americana. 4 as suas relações com outra tribo. 8
Além disso, há uma outra diferença muito importante entre Assim mesmo, nunca o motivo sexual aparece, entre os nos-
a narrativa kobéwa e os mitos australianos. · sos indígenas, com a intensidade com que aparece na Austrália.
Psicanalistas como Gézá Roheim, que exultariam com a lei- t que as tribos australianas em questão centralizam seus interesses.
tura do livro de Reichel-Dolmatoff sobre o simbolismo desâna nas cerimônias iniciatórias, e uma boa parte dos mitos se refere
(de que falaremos adiante), teriam ficado certamente decepciona- à instituição dessas cerimônias.
dos com o mito kobéwa: se excluirmos uma possível identificação As sociedades primitivas australianas não desenvolveram uma
da água da cachoeira com o leite materno, 5 somente para o final ideologia guerreira, centralizada em cerimônias antropofágicas, 9
do texto (penúltimo parágrafo) há uma referência a um mau jeito como a dos nossos Tupinambá seiscentistas. 10 Será que a inexis-
de se assentar numa rocha (de que resulta a morte de um ances- tência de animais ferozes na Austrália, excluindo da atividade
tral) e uma única referência a uma espécie de "proto-Poronomi- caçadora uma luta efetiva (que se constituísse em fonte de ação
nari" (último parágrafo), que, contudo, parece não ter tido os heróica) , não terá contribuído para esta centralização da vida
problemas de transporte que irmanam de forma ab~olutamente ritual nas cerimônias de iniciação? A verdade é que a realização
original o nosso Poronominari ao herói australiano Witanygula. 6 heróica do australiano se faz através desses ritos de auto-mutila-
Além disso, nada sobra que pudesse revelar, mesmo de forma in- ção e de resistência passiva à dor, 11 forma não encontrada em
direta, preocupações libidinosas.
Por que um povo que possui uma cerimônia de caráter acen- s O mito kobéwa revelaria assim características mais arcaicas do que os
tuadamente sexual, como o óyne, descrito por Goldman, não apre- próprios mitos australianos que, na verdade, longe estão de ser "arcaicos".
senta a mesma característica no seu mito de origem? Parece-nos Parece-nos por isso que o "arcaísmo" do mito kobéwa não é um "arcaísmo"
que é esta a pergunta que deveria ser formulada e não a que original. Temos a impressão que sempre que um grupo, proceda ele de onde·
proceder, se reduzir numericamente e passar durante várias gerações a levar
Goldman faz à página 286 do seu livro. 7 uma vida nômade, no isolamento da floresta, o "arcaísmo" de certa forma
Não cabe aqui uma discussão do problema em si, ao qual, se reconstitui. Poder-se-ia perguntar se existe realmente um grupo primitivo,
contudo, pretendemos voltar mais adiante. Parece-nos importante, hoje, que tivesse vivido desde o Paleolítico em cond~ções tão isoladas que
o arcaísmo original ficasse preservado em grau elevado ...
no entanto, ressaltar desde já que, em várias culturas, o relato 9 Para DESCAMPS, Paul (Etait social des peuples sauvages.), ó canibalismo
.mítico não enfatiza o elemento libidinoso. Este começa a aparecer, dos Jajaurong (Alto Rio Loddon, próximo a Daylesford) se manifesta em
função da escassa dieta de carne durante o inverno (tempo das chuvas)
número de formas torna ilusórias as equações. Parece-me que semelhante em que não se caça o opossum (p. 23) e o dos Kabi e Wakka (sudeste de
caçada •J. vocábulos parecidos só pode dar um resultado apparente" (Corres- Queensland) é mais esporádico ainda e coincide com o final da estação de
pondência publicada na RMP. N. S. v. II - Trecho cifado, à p. 233). coleta dos frutos de bunya (uma araucária), quando, durante vários meses,
4 Parece-nos uma posição difícil de sustentar; ter-se-ia que explicar a perma- uma dieta exclusivamente vegetal aguça a necessidade de alimentos azotados
nência de uma estrutura narrativa, de certos temas mitológicos, apesar de (p. 31).
uma total diferenciação da' população em termos genéticos e lingüísticos, · Quanto aos Aranda da Austrália Central, informa MURDOCK · (Nuestros
de tecnologia e de "fauna,- mitológica". Contemporaneos Primitivos.) que ''Las relaciones entre los grupos, aunque
5 É apenas uma suposição. Goldman não nos dá nenhuma indicação quanto sean de tribus diferentes, son casi igualmente amistosas. No existe nada
ao sentido exato da palavra kobéwa traduzida por milk. que se parezca a un estado crónico de hostilidad" ... "La verdadera guerra
6 RoHEIM. The Eternal Ones of the Dream . .. p. 34. "Myth of Witanygula": es una cosa casi desconocida" (p. 50).
o herói, após uma passagem em que se sugere uma relação sexual com uma 1o FERNANDES, Florestan. A Função Social da Guerra na Sociedade Tupi-
"mulher-demônio" (na realidade, o herói coloca o pênis num buraco que nambá.
ela fez na areia, urinando), tem seu · membro distendido, a ponto de ser 11 Mesmo RoHEIM (Op. cit. p. 97) reconhece que "the significance of the
obrigado a carregá-lo, enrolado, num bolso ("como um canguru", diz o · phallic element in the make-up of Australian totemism is equalled by that
mito ... ). of another factor . . . narcisism". Entre os nossos indígenas, nem mesmo
7 s•what is surprising about finding coitus as a model for ritual ethos is not HUXLEY (Af/able Savages) que encontrou entre os Urubu-Kaapor uma
· this obvious pattern has been drawn upon, but that it is not drawn upon atitude anormalmente desinibida referente ao sexo, encontrou algo que se
more often." GOLDMAN. The Cubeo.. . p. 286. assemelhasse ao comportamento, natural para um australiano, de um grupo
~ ,
82 CAP. VI - O MITO KOBEWA DAS ANDANÇAS .•• O MITO KOBEWA DAS ANDANÇAS. • • 83

muitos bandos nômades, como, por exemplo, entre os Yanonami (que se trata de peixes pequenos é mencionado expressamente no
do noroeste amazônico, destituídos de ritos iniciatórios masculinos, texto) . E na frase seguinte, após a primeira fixação do grupo,
que têm na luta o processo essencial de afirmação. portanto, menciona-se a fabricaçã~ de cerâmica. É significativo
Voltando ao texto kobéwa ... que a mencione num estágio que é definido pelo mito, pode-se
O relato se divide em etapas (correspondendo, em linhas dizer, como acultural (ou ao menos como protocultural). 18
gerais, aos parágrafos do texto), que sem dúvida espelham as Isto confere com a suposição de Koch-Grünberg de que os
lembranças de épocas de peregrinações, no interior da mata. Kobéwa teriam se originado da junção de grupos não só "Makú" _
O cenário do primeiro parágrafo é a região montanhosa, 12 e Tukano, mas também Aruák. 19
de riachos encachoeirados, 13 riachos facilmente transponíveis, 14 Os Aruák, como difusores da arte ceramista na região, pare-
onde não faltam as lutas contra a terrível onça e onde também são cem ter ficado confirmados pelas observações de Koch-Grünberg:
sugeridas lutas internas i:; (dessas lutas que resultam em fissões entre os Tsoloa 20 (do grupo lingüístico tukano) só encontrou al-
do bando em grupos. locais, cada qual sob a chefia de seu pater- guns potes muito ruins, enquanto que as tribos Aruák ou as que
-familias). Caça e coleta são os meios exclusivos de subsistência. tomavam mulheres de grupos aruák apresentavam uma cerâmica
Importante é a citação do arbusto da pimenta 16 e do kumari. li de qualidade superior. 21.
Jamais se menciona neste parágrafo uma parada, o que ocor- É verdade que existem dois estilos ceramistas no Uaupés:
re pela primeira vez só no parágrafo seguinte ("and the Ancients um de procedência tukano, cerâmica não oxidada, preta, rara-
crossed over to reside"). Não é por acaso que se menciona na mente decorada e de formas simples; outro, aruák, com cerâmica
frase imediatamente anterior, pela primeira vez, um rio piscoso oxidada, engób~o branco e desenho·s geométricos em vermelho, de
formas bastante variadas. 22 Linné, contudo, parece admitir que
de homens em torno da fogueira a elogiarem mutuamente, uns aos outros, a técnica da envernizagem preta proceda do norte (provável in-
o tamanho das subincisões ou dos órgãos genitais. Cf. RoHEIM. Op. cit. p.
94-95. fluência aruák, portanto, também para este estilo). 23 Se esta opi-
12 Há referências constantes a colinas e rochedos, possivelmente a região
montanhosa entre os altos Cuduiarí e Querarí, de onde parecem ter vindo 1s Animais mortos, plantas arrancadas ou cortadas, tudo se transforma em
os antepassados dos Kobéwa. rocha, árvores, areia . . . como a indicar que a assimilação do alimento não ·
13 Milky waters. resultava em crescimento do indivíduo, ou melhor, do grupo.
H "Bwú jumped across the rapids . . . the tree across a stream under which 19 KocH-GRÜNBERG. Zwei iahre . . ; Band II, p. 88 et seqs.: Os Bahuna e
Bwu, passed .. . .. Malapióua do Cuduiari teriam falado uma língua "horrível" e só abandonado
15 "An Ancient . . . rnet a kinsman. They quarreled and the· Ancient clubbed o nomadismo, obrigados pelos Kobéua· (Kobéwa) ou talvez antes pelos
bis kinsman to death." Aruák.
16 A pimenta caiena, importante não só na alimentação indígena como tam- 20 "TsOloa" na grafia de Koch-Grünberg, localizados entre o Pirá-Paraná e
bém na magia. CouDREAU (La France Equinoxiale. t. 2. 0 , p. 214) menciona o Apaporis (afluente do Japurá), já em território colombiano, (como aliás
uma dessas aplicações: a mistura fervida de uma mecha de cabelo com os próprios Kobéwa, estudados por· Goldman). ld., ibid. p. 269.
pimenta, para provocar decomposição na pessoa. Evidentemente, isto não 21 Assim, KocH-GRÜNBERG (Op. cit. Band 1, p. 78) observa que no Içana
quer dizer que também tivesse aplicação na magia entre os Kobéwa. Ao (dominado por Aruák, Siusí-Tapúya particularmente) , as mulheres são ótimas
menos, parece que não entra na composição dos venenos vegetais a que poteitas, com exceção apenas das "Káua" (Káwa-Tapúya) e das "Huhuteni"
Goldman se refere à página 268 da obra citada. (Hohódene) . Para os Káwa-Tapúya isto se poderia explicar, porque se trata
17 As fibras de cumare, conforme textos publicados por 4borde, aparecem de um grupo "cobeizado" : ÜOLDMAN (The Cubeo . . . ISA . p. 104) o men-
também na mitologia barasana, pois em "História de Luna", no processo de ciona como clã (aliás, ele usa o termo sib) da frátria kobéwa III (tomando,
ressurreição do herói incestuoso, os seus ossos são amarrados com cumare. portanto, mulheres de uma das outras frátrias ) , embora estivessem voltando,
~ mais conhecido por tucum. A variedade que é conhecida por cumari na no Aiarí, para as proximidades dos Siusí-Tapúya, retornando assim aos
Venezuela é, segundo LE CoINTE (Amazonia Brasileira III : árvores e plantas costumes aruák. Os Hohódene são considerados "makú" aruaquizados por
úteis. p. 355 ) a A strocarym vulgare Mart. (de que se come também o Nimuendajú.
palmito). Segundo o mesmo autor (p. 356) há outra variedade com o habitat 22 GALVÃO, Eduardo. "Aculturação Indígena no Rio Negro." BMPEG. p. 16.
no Alto Amazonas, o Astrocaryum Tucuma Mart. Ambas as variedades O mesmo também resume as opiniões de Nimuendajú (p. 14 ) - (referente
apresentam troncos com espinhos (a primeira só na parte superior), frutos aos Hohódene serem descendentes de makú "aruaquizados" ).
comestíveis (servindo para fabrico de um vinho) e folhas que, depois de 23 LINNÉ. (The technique of South American Ceramics ), aliás baseado em
maceradas, fornecem fibras de pr~meria qualidade, resistentes: o tucum. Koch-Grünberg, aponta como possuidores de cerâmica de verniz preto, além
, O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS. • • 85
84 CAP. Vl - O MITO KOBEW A DAS ANDANÇAS ..•

· nião estiver certa, teríamos assim, em linhas gerais, a filiação dos Deixando de lado, por ora, o problema da cerâmica pintada e
dois estilos ceramistas do Uaupés a tribos aruák e uma penetração de sua penetração no Uaupés, vamos abordar inicialmente apenas
na região em épocas diversas. · uns dados referentes aos Kobéwa, relacionados ao mito que esta-
mos analisando.
"Uns poucos séculos antes dà conquista européia (escrevem
Altehfelder Silva e B. J. Meggers 2 4 ) outra onda de influência Após a fabricação da primeira cerâmica, os ancestrais conti-
pode ser identificada pelo aparecimento, no Médio e Baixo Ama- nuam a sua peregrinação, parando mais adiante, 28 e agora, admi-
zonas, de cerâmica decorada com linhas incisas paralelas, cuida- te-se, mais vezes e possivelmente por mais tempo. Aves, caça e
dosamente traçadas, e adornos modelados e pontuados. O melhor macacos, mais adiante peixes, são mencionados. Só bem adiante
exemplo conhecido é o da cerâmica de Santarém." aparece referência a um guisado feito com larvas a um lugar onde
crescem muitas raízes e a outro com árvores de pupunha. Plantas
Este estilo de cerâmica, justamente limitado ao . Médio e
que caracterizam a agric~ltura ~e ~oresta na região sã~ me?cio-
Baixo Amazonas, teve seus centros de fabricação (pelo que sa-
nadas só para o fim do texto: pnme1ro a batata-doce, mais adiante
bemos) restrito às regiões vizinhas à foz dos afluentes como o
o milho; por último, após a referência à árvore do tururi, 29 fala-
Tapajós (Santarém), o Trombetas e o Jamundá (Namundá), 25
-se em "rocks of the manioc graters". 30
não chegando a ser propriamente representado na região do
Uaupés. Isto nos faz voltar ao artigo de Altenfelder e Meggers:
Após se. referir à introdução, pelo estilo Arauquim, do reci-
Como, no entanto, ainda segundo o artigo de Altenfelder . e
piente para o preparo do bolo de mandioca, o artigo ressalta ,
o
Meggers admite-se uma procedência desse estilo ceramista do Rio ~
fato de que não há certeza quanto ao cultivo da mesma em epoca
Orenoco,' tendo penetrado no Amazonas descendo o Rio N egr~, 26
anterior. 3 1
estes deslocamentos aruák düundiram sem dúvida a arte ceramista,
em onda de intensidade menor, também em áreas adjacentes às Pelo texto kobéwa sabemos já que uma cerâmica mais sim-
grandes vias de penetração (como o U aupés) . ples existia, associada ao cultivo do milho, da batata-doce e, ante-
Importante é que se conseguiu uma datação pelo Carbono 14, riormente, de certas raízes e muito provavelmente da pupunha. 32
para o aparecimento deste estilo arauqu~ no Rio Orenoc?, para A técnica do cultivo e preparo da mandioca, os Kobéwa,
aproximadamente 1000 d. C., sendo que entre os novos tipos de parece-nos, obtiveram dos Baniwa.
t
recipiente introduzidos nesta época, está uma forma redonda, usual- E é ainda na mitologia que encontramos apoio para esta
mente associada com a preparação do bolo de cassava". 27 afirmação:
Isto nos permite uma orientação melhor também para a com- Koch-Grünberg 33 refere Homanikõ (herói ancestral dos Ko-
preensão de certos aspectos da mitologia do Alto Rio Negro. béwa) como tendo dois irmãos: Kúai e Mianíkõ tõibo. Deste

28 " •• • there they resided . . . They paused at the rocky hill . . . Here an
das tribos do Uaupés e Içana, tribos da Guiana, os Yekuaná e Guinaú.
(Mapa de distribuição da técnica do verniz.) .. Ancient made a borrow . . . there they lived ... º
20 "Tururi (Sterculiácea) - o líber da casca, composto de fibras entrela-
24 ALTENFELDER SILVA e MEOOERS. "Desenvolvimento Cultural no Brasil'',
artigo publicado pela RA, em 1960, e reeditado por E. Schaden em Homem, çadas, é utilizado pelos índios para fazer vestuários; também é usado para
Cultura e Sociedade no Brasil. p. 11-25. calafetar embarcações." LE Co1NTE. Amazônia Brasileira III: árvores e
25 Trata-se do estilo "konduri", da mesma tradição ceramista dos Tapajó
plantas úteis. p. 475. O tururi, do Solimões, ele dá como Moreácea.
(HILBERT, Peter Paul. A Cerâmica ~rqueo_~ógica ~<! R egião ~e. Orfx~miná.~. ao ,f;: verdade que se refere a rochedos com este nome, não ao cultivo da
Neste artigo, escrito em 1955, Hilbert Jª admitia C<?m.o itm~rano mai~ mandioca (e poderia se alegar que já a conheciam antes). Mas
provável para a dispersão deste estilo de grande pl.ast1:a. (vinculado a o sentido do texto é realmente de ressaltar as experiências fundamentais, de
América Central), o caminho por terra, ao longo dos tnbutános do Orenoco grande significação para o grupo e, neste caso, isto é, nos textos deste tipo,
e do Amazonas. Ainda se falará sobre a questão mais adiante. parece haver um respeito absoluto pela seqüência real em 'IUe foram feitas
26 ''um movimento do Orenoco, via Cassiquiare, para o Rio Negro e, des- as aquisições: se o ralador é mencionado no fim é porque foi a aquisição
cendo, para o Amazonas" (ALTENF~LDE~ SILVA _e M~ERS. Op: ~it. P·. 15). cultural mais recente.
31 ALTENFELDER SILVA e MEGGERS. Op. cit. p. 16.
Ao que tudo indica, como se vera adiante, nao f 01 esta a unica via de
32 Os Yanonami a cultivam e no Uaupés é cultivada até hoje.
penetração.
3 3 KocH-GRÜNBERG. Zwei Jahre ... Band n, p. 160-65.
27 ld., ibid. p. 16.

,
86 CAP. VI -· O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS ••• O MITO KOBEWA DAS ANDANÇAS... 87

último ainda falaremos mais adiante. Quanto a Kúai, já Koch- Assim, conclui-se que foi há mais tempo, de outro grupo
-Grünberg notou que se trata de um herói "adotado" dos Aruák, aruák (talvez os Baniwa, não os Káwa-Tapúya), 40 que os Kobé-
o que se confirma, aliás, entre outras coisas, 84 pela localização de wa receberam não só a técnica de fazer máscaras de cortiça como
também o ralador e os outros apetrechos do que Cruls 41 chamou
sua casa ("Kúaikolami") na região de campos do Caruru-Igarapé
o "complexo da mandioca" (certamente o grande prato de cerâ-
Superior, 85 isto é, o Aiarí, que Koch-Grünberg 38 encontrou já po- mica para a confecção do bolo de mandioca a que Altenfelder e
v<;>ado por Káwa-Tapúya (Káua) e Siusí-Tapúya (o mais impor- Meggers se referem, possivelmente também o tipiti) .
tante clã Baniwa 87 ). :t;: verdade que, além de Kúai, também Hõmanihikõ se rela-
Entre as aquisições que os Kobéwa devem a Kúai, encontram- ciona com a mandioca, não propriamente, contudo, com o seu
-se justamente o plantio da mandioca, técnicas de cultivo em geral, cultivo, pois o refere roubando tubérculos de mandioca dos Uira-
assim como métodos de pesca. uasú. Parece muito provável tratar-se da representação mítica de
Além disso, a Kúai se atribui a fabricação das máscaras, o uma tribo da região; de fato, é este o nome em língua geral dos
que parece estar de acordo com a referência à árvore de tururi, Hianákoto, a sudoeste dos ·Kobéwa (a oeste das nascentes do Pa-
pois é desse líber que até hoje os Kobéwa fabricam a veste de suas puri e Tiquié, já próximos ao Apaporis 42 ) e que são parte de um
máscaras. 38 grupo karibe maior, conhecido por Umáua. Koch-Grünberg nos
informa que se trata de um nome de xingamento kobéwa ("Umáua"
Aqui, contudo, é preciso atentar-se para dois pontos impor- = rã) . 4 3 As relações entre os dois grupos devem ter sido caracte-
tantes: rizadas outrora por uma grande hostilidade, que, ao tempo de
1.0 ) para o fato de que Kúai ensinou os Kobéwa a fazer as Koch-Grünberg, já se achava contudo bem atenuada. 44
máscaras de tururi e não de outro material. Portanto, os Kobéwa De qualquer modo, a tradição mítica parece indicar que, ain-
já faziam máscaras antes, embora de outro tipo; 39 da que tenham conhecido a utilidade da ma.ndioca através do con-
2. 0 ) a opinião de Koch-Grünberg de que os Káwa-Tapúya tato com outra tribo, 4 5 foi pelo estabelecimento de relações mais
adquiriram as máscaras dos Kobéwa deve ser respeitada, pois o seu estreitas - possivelmente de alianças matrimoniais - com algum
depauperamento como povo aruák era grande (p. 83, nota 21) clã baniwa, que os Kobéwa adquiriram as técnicas de plantio e
e eles foram, frente aos Kobéwa mais receptores de cultura do que preparação da mandioca.
doadores.
. 40 GoLDMAN. (Op. cit. p. 223) chama a atenção para o fato de que os
34 Além de GoLDMAN, SCHADEN (A Mitologia Heróica de Tribos °Indígenas Tukano Ocidentais não têm máscaras. São, contudo, encontradas entre os
do Brasil. cap. IX, p. 149), GALVÃO, E. ("Aculturação Indígena no Rio Yagua, Okâina, Tukúna e nó grupo de língua witóto.
Negro") e BõDIGER (Die Religion der ·rukano im nordwestlichen Amazonas) Assim que, muito provavelmente, a máscara primitiva kobéwa (de
fizeram observações importantes sobre este e outros personagens míticos do . folhas de palmeira é não de entrecasca) deve-se à influência de algum dos
Uaupés, embora Bõdiger se preocupe em demasia com o que poderíamos grupos citados sobre o Uaupés.
41 CRULS, Gastão. Hiléia Amazônica. p. 212.
chamar de uma caracterização externa. Faremos referências a essas obser-
vações à medida que tratarmos dos ·diversos aspectos. 42 KocH-GRÜNBERG. "Die Indianerstamme ... " ZE. p. 181 , (Hianákoto =
Geier-Indianer ) . ~ verdade um grupo miranha, mas muito mais distante da
35 O Caruru-Jgarapé desemboca no Uaupés, pela margem esquerda, pouco
acima da famosa cachoeira bomônima. {"egião, é também designado com o nome, em língua geral, de "Uirauasu-
36 De acordo com o mapa de distribuição das tribos em "Die lndianerstamme •Tapuyo" (p. 157).
43 Koc H-GRÜNBERG. Op. cit. p. 181 ; "Omá" em Tukano (GIACONE. Dicionário
am oberen Rio Negro und Japurá".
37 Segundo N1MUENDAJÚ. "Reconhecimento dos Rios Içana, Ayarí e Uaupés." 1 Prático da L íngua Tucana ).
44 Koch-Grünberg se refere a freqüentes visitas de Umáua aos Kobéwa (Op.
JSAP. O mapa de SousA, Boanerges L. de (Do Rio Negro ao Orenoco .. . )
os assinala dominando o Alto Cuiary e todo o lçana, do •meridiano ~e 69º0, cit. p. 183) e Coudreau chega mesmo a afirmar que os Kobéwa já estavam
rio abaixo, além de terem mantido as mesmas posições no Aiarí. misturados com Umáua ("Omauás"). CoUDREAU. La France Equinoxiale . ..
38SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. A Civilização Indígena do Uaupés. p. 312 t. 2, p. 162.
et seqs. 45 Claro que, a menos que se tratasse da mandioca-doce (o que não é pro-
39 Segundo GOLDMAN (The Cubeo . . . p. 230), no começo os Kobéwa só vável) , para roubá-la e aproveitá-la, teriam que conhecer já a técnica de
sabiam fazer máscaras de folhas. extração do veneno . ..
,
88 CAP. VI - O MITO KOBEWA -DAS ANDANÇAS ••• O MITO KOBÉWÀ DAS ANDANÇAS ••• 89

Parece-nos importante também que justamente um grupo ka- E, quanto a Kari? O mito recolhido por Saake õo apresenta
ribe em área contígua ao Uaupés já estivesse de posse da mandio- Kari como um ser todo constituído por mudas de mandioca. Esta
ca, caso o mito kobéwa nos tenha realmente levado a uma pista representação, parece-nos, não é comum na mitologia brasileira.
certa. Koch-Grünberg, baseado na analogia entre as suas clavas de Personagens-árvores são relativamente comuns, 51 como também é
guerra e as dos Karibe das Guianas, julga os U máua de proce- comum a transformação em plantas cultivadas das partes do corpo
dência oriental. 46 Isto poderia indicar uma penetração para oeste de seres míticos sacrificados (neste caso geralmente enterrados ou
de alguns grupos karibe, provavelmente fornecendo alguns ele- queimados). Kari é representado pelos Baniwa como "todo cons-
mentos culturais a outras tribos. Apesar da infarmação de Cou- tituído de mudas de mandioca", assim como lnapirikuri é um ser
dreau de que os Umáua praticavam a religião de Jurupari, e por- "todo constituído por ossos". Uma idéia que se assemelha à con-
tanto já teriam, por sua vez, trocado muitos elementos culturais cepção baniwa é a que aparece entre os "Barasana" (Bará) de
com as tribos do U aupés, é difícil se dizer até que ponto foram Laborde, 52 os Desâna 53 e os Tukano propriamente ditos, 54 não
eles os difusores de elementos karibe na região e quais exatamente com respeito à origem da mandioca, mas sim da coca e do caapi:
os elementos permutados. • trata-se do tema mítico dos "dedos-mudas".
Para os Baníwa, não se trataria propriamente do complexo
da mandioca (relacionado com outro herói cultural, Kari, e não
:E: que realmente a mandioca está relacionada a um tipo de
Kowái), mas possivelmente de certos elementos do culto, pois, mito em que do corpo retalhado de um personagem nascem plan-
tas cultivadas. 55
como o observou Bõdiger, o Jurupari Baniwa tem um nome ka-
ribe. 47 Limitar-nos-emos, por ora, a ressaltar que geralmente este
Pelas informações de Coudreau, os Umáua tinham outrora personagem é representado como um menino, de uma forma ou
uma localização mais oriental. Ao menos, ele nos informa que, outra sacrificado.
na época de Jesuíno Cordeiro, os Umáua desciam até São Gabriel O tema se apresenta, já bastante transformado, em um mito
(em pleno Rio Negro, portanto, um pouco acima da foz do Curi- da Amazônia (ao que parece, do Rio Branco), traduzido para o
curiari), tendo se retirado, no entanto, depois, definitivamente para
50 SAAKE. "Aus der überlieferung der Baniwa." Sraden-Jahrbuch.
as suas montanhas. 48 Aliás, Coudreau afirma ter notado muitas õ1 As plantas mágicas ("Ayúg") da Guiana, particularmente Meseyég, a
palavras karibe na língua dos Tariâna e de seus aliados Baniwa, árvore do paricá (KOCH-GRÜNBERG. "Mitos e Lendas dos lndios Taulipáng
o que lhe sugeriu uma filiação a este grupo lingüístico para as duas e Arekuná." RMP. p. 35) e o "homem-palmeira" do mito warrau de Haburi
tribos aruák. Não temos evidentemente nenhum meio de saber analisado por LÉVI-STRAuss (Du miei aux cendres. p. 152 et seqs.). Home~
que se transforma em árvore: Num mito umutina (SCHULTZ. "Informações
se as observações de Coudreau foram corretas; mas, se este é o Etnográficas sobre os Umutina." RMP. p. 233) o Sol se transforma numa
caso, tendo em vista a rapidez dos processos aculturativos no figueira e destino semelhante se sugere para Baitogogo (embora não defini-
Uaupés, 49 certamente com formas dialetais intermediárias, é bem tivo) num mito borôro: Enciclopédia Bororo. v. II, p. 139.
52 LABORDE. "História de Yebá". Mito y Cultura entre los Barasana, um
possível que a presença dos vocábulos karibe se devesse a um Grupo Indígena Tukano dei Vaupés. p. 45-50. Aqui é o yagé (caapi) que
maior intercâmbio, outrora, com os Umáua. nasce dos dedos de Hino (serpente). A coca (p. 116 et seqs. ) nasce do corpo
de uma mulher morta estendida na roça.
:13 REICHEL-DOLMATOFF. Desâna. . . Texto XIII, p. 25 et seqs. O caapi
46 KocH-GRÜNBERG. "Jagd und Waffen . .. " Globus. p. 221.
47 KocH-GRÜNBERG. Op. cit. p. 87 e 139.
procede de uma filha de Waí-maxse que estava para dar à luz. Uma velha
48 COUDR.EAU. Op. cit. p. ·166. desâna quer ajudá-la, segurando-a pela mão, mas a moça se retorce tanto
49 Um exemplo sempre citado é o dos Káwa-Tapúya, aruák que haviam que seu dedo é arrancado. A velha o guarda em sua maloca, mas um jovem
morado uns tempos no Querari, onde se "kobeizaram". (De fato, Coudreau o rouba e semeia. O dedo de outra filha de Waí-maxse, arrancado em
ainda encontrou Baniwa no Querari e informa que ao tempo do Pe. Gregório circunstâncias semelhantes, dá origem à primeira mata de coca.
M FULOP. "Aspectos de la Cultura Tukana - Mitologia." RCA . p. 370.
a vila baniwa contava aí com 300 habitantes. Op. cit. p. 160.) Ao tempo
de Koch-Grünberg tinham já saído do Querari e estavam no Aiarí Superior, A coca nasce de um dedo arrancado a um menino polidáctilo.
55 A mandioca-doce é conhecida também mais a oeste, na vertente oriental
.~ "re-aruaquizando" em contato com os Siusi-Tapúya. O etnólogo alemão
encontrou os mais velhos ainda falando kobéwa, enquanto os mais novos, dos Andes, e sua origem é mencionada também nos textos míticos do
o dialeto siusí. KocH-GR.ÜNBER.G. Zwei Jahre. . . Band 1, p. 116. Popol-Wuh. Mas não a mandioca-brava. V. apêndice, p. 119.
90 CAP. VI - O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS . •• O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS. • • 91

francês por Sant'Anna Néry. 56 Trata-se de uma versão da lenda atribuídos a este- animal os abundantes castanhais, permitimo-nos
de "Pahy-Tuna": repetir uma informação verbal de um senhor que veio há uns dez
anos de uma região da Bahia, no polígono da seca. Disse-nos ele
"Pahy-Tuna était déjà fort âgé quand une des plus jeunes fem- que a gente de sua localidade (que é extremamente pobre) sai à
mes donna /e jour à un enfant si laid, si couvert de boutons, si cata de sementes de maniÇoba que sempre se encontra em abun-
'piroca', que la mere en eut pitié et ne le tua pas. ll ne lui était dância à entrada das tocas de um roedor 60 que se alimenta dos
pas possible de /e garder: elle le cacha dans une grotte, dans frutos dessa Euforbiácea. 61 Dessas sementes extrai-se um óleo.
l' endroit le plus mystérieux de la forêt, loin de la montagne. Pour As armazenadas pelo animal encontram-se muitas vezes já perfu-
le guérir, elle eut recours aux proprietés des plantes, mais tous
ses efforts échouerent.
radas, e acontece também que, se depositadas em terreno menos
ll lui vint alors une idée: elle prit un 'tipity', y mit l'enfant, rochoso, acabam germinando; são recolhidas também dos excre-
le suspendit, passa la 'tipity-pema', s'assit à l'autre bout, serrant mentos do gado.
ainsi son propre enfant dans le tube. Les humeurs qui en sor- O motivo da árvore universal, como já o observ.ou Lévi-
tirent furent telles que, quand elle retira l' enfant celui-ci avait -Strauss, 62 encontra-se, na mitologia da Guiana, associado ao do
subi une métamorphose complete. C'était l' enfant le plus joli dilúvio universal, pela representação dessa árvore primordial como
qu ,on p at vozr. . .. ,, uma planta que contivesse outrora toda a água do mundo. São
árvores da família das Bombáceas o modelo dessa representação.
Bõdiger (Die Religion der Tukano . . . p. 85) refere-se ainda Trata-se, portanto, de motivos originalmente diversos, cuja asso-
a um outro mito da origem da mandioca entre os Kobéwa: é o da ciação já não se encontra, por exemplo, nas lendas karibe reco-
"árvore da mandioca". f: de fato com esse nome que Goldman lhidas por Im Thum e Roth, como o observou Koch-Grünberg. 63
recolheu um mito em que "Bwü", a cutia, é a dona da árvore uni- Assim, no caso dos Kobéwa também temos que lidar com
versal. 5 7 Não se trata, contudo, propriamente de uma árvore da duas tradições míticas diferentes, uma referente à influência da
mandioca, como a seqüência de plantas (correspondentes aos ga- Guiana no citado mito da árvore universal que acabou sendo iden-
lhos cortados) o prova: tanchagens (cana-de-açúcar), turú ( vene- tificada como árvore da mandioca; e outra referente a um mito
no), pudjú (um tubérculo como a batata), yapíka (batata-doce). sobre a origem do Querarí e Cuduiary como transformações dos
·(Subentende-se que a mandioca seriam as raízes.) ~ muito natural .;
dois irmãos de Kuái, que haviam subido, sob suas ordens, a uma
que hoje os Kobéwa concebam a árvore universal como sendo palmeira que o herói faz ser ameaçada por enchente, por ele pro-
uma "árvore da mandioca". Goldman (The Cubeo . .. p. 30) no-
vocada, como também arrancada pelo vento. 6 '
tou entre eles uma substituição do milho (ainda importante nos
tempos de Koch-Grünberg) por este tubérculo, como base da Voltando à questão dos mitos que se referem à mandioca,
alimentação. 58 entre os Kobéwa, teríamos assim três versões, todas refletindo uma
Originalmente, uma "árvore da cutia" (ou de outro roedor) faceta da verdade: uma, a de Homãnih:1<õ, mitização de saques
é sempre uma árvore que se reproduz pelos seus frutos, suas se- que os Kobéwa efetuaram em tribos vizinhas; outra, a mitização
mentes. Pode-se entender facilmente a associação. Além da infor- da aquisição das técnicas do plantio e preparo, através de um con-
mação de A. Couto de Magalhães 59 de que no Rio Purus são tato mais íntimo com outra tribo; somente a terceira representa

56 SANT'A.NNA NÉRY, F. J. Folk-lore brésilien. Chap. III, p. 154. Reproduzido a sua provisão. Mas o que geralmente acontece é que o roedor deixa de
de acordo com a versão dada por Barbosa Rodrigues na R evista Brasileira encontrar grande parte das sementes enterradas, e daí germinam, crescem e
(Rio de Janeiro, out. 1881) . se espalham os castanhais pelas terras firmes da Amazônia" (MAGALHÃES,
õ7 B" · p. 51 .
ODIGER. Op. Cll. A . Couto de. Ensaio sobre a Fauna Brasileira. p. 254).
58 O que parece confirmar a adoção recente, por parte dos Cubeo, de seu 60 Identificado como um animal com o dobro do porte de um preá.
cultivo. 61 Classificação de LE Co1NTE. Manihot Glazovii-Muell. Arg. p. 284.
59 "Dizem que esse animal procede como os cães: quando se farta de comer, 62 LÉVI-STRAuss. Du miei aux cernires. p. 86, também importante na mito-
enterra as deliciosas amêndoas, em pontos distantes, cuidadosamente, satis- logia dos antigos Maias.
fazendo um instinto de previdência que não se observa entre os símios. 68 KocH-GRÜNBERG. V om Roraima zum Orenoco. . . p. 286.
Quando chega o verão e não há mais as saudosas castanhas, ela vai procurar 64 GoLDMAN. Op. cit. p. 147.
,
92 CAP. VI - O MITO KOBEWA DAS ANDANÇAS ••• O MITO KOB:ÉWA DAS ANDANÇAS ••• 93
um tema mítico já padronizado aparentemente, recebido de fora Como observaram os irmãos Villas Boas, inclinando-se a
e através de uma tribo karibe (não associado ao dilúvio universal) , admitir a possibilidade de que servissem realmente de abrigos contra
tema mítico que contudo se adaptou à realidade econômica atual o frio, "o traçado das valas nunca enquadra completamente uma
dos Kobéwa, pela transformação da árvore universal em uma "ár- área, nem indica qualquer preocupação com fatores estratégicos".
vore da mandioca". 65 (Op. cit. p. 22)
Percebe-se assim que na análise dos mitos não é suficiente Contudo, como o povo construtor é identificado no mito
uma comparação e classificação de temas, como a que Bodiger kuikuro com um curioso personagem "pema-pontiaguda" que
empreendeu. Tem que se considerar o presente e o passado da também aparece em outras mitologias, 68 poderíamos perguntar se
própria tribo, a representação que a mesma faz de seu presente e este herói tão estranhamente automutilado não corresponderia por
de seu passado, além dos elementos que ela recebe de fora, através acaso a uma versão "invertida" do mito de origem de Orion, o
do contato com outros grupos e o modo como ela recebe e integra unijambista, de que falaremos mais detalhadamente no próximo
esses elementos. capítulo, e que é um mito típico das Guianas, onde a sua versão
"dextra" deve-se, a nosso ver, aos Aruák.
No mito kobéwa há uma passagem curiosa que encontra um
paralelo muito longe do Uaupés, no Alto Xingu. Trata-se de uma Trata-se realmente de uma história que gira em tomo de um
trincheira circular referida como tendo sido feita por mulheres. homem (Viti-Vití), sua mulher e um cunhado (o trio que aparece
Os irmãos Villas Boas descrevem trincheiras semelhantes em quase freqüentemente nas histórias de origem de Orion) . Os três vão
todos os lugares de aldeamentos antigos e atuais, 66 tendo recolhido tirar mel de cupim e é o cunhado que decide que quem subirá na
mesmo um mito sobre a origem das valetas. Trata-se de mito de árvore é Viti-Vití. A mulher e seu irmão, que pretendem aparar
um grupo karibe (Kuikúro). 67 Importante também a descrição o mel numa panela, percebem que, em vez de mel, é sangue que
das próprias valetas: escorre da perna de Viti-Vití, que ele estava "cortando .. ·. ou
melhor, raspando para que ela fosse ficando fina e terminasse numa
"A todos recomendava fizessem aldeia fora da valeta, do lado ponta". 69 Os dois personagens acabam fugindo disfarçadamente
de dentro do semicírculo traçado por ela. Às valetas quase de Viti-Vití, pois percebem que o mesmo enlouqu~cera e estava
sempre tinham formato de arco, sendo que uma das extremi- transformando a própria perna numa arma para matá-los. Des-
dades sempre chegava ou partia da água. Às valetas, recomen- cendo da árvore, cansado de chamar pela mulher e cunhado, que
dava Viti-Vití, deviam ser utilizadas quando fosse preciso pro- se trancaram em casa e não mais o deixaram entrar, Viti-Vití
teger-se dos ventos frios. Em quase todo lugar bom de morar decide emigrar com o seu povo ...
que encontrou, Viti-Vití deixou um pouco de sua gente e uma
Nos mitos de origem de Orion, 70 é geralmente a mulher que,
funda valeta como abrigo . .. " (Op. cit. p. 139)
ajudada por um irmão ou cunhado ou instigada por um feiticeiro
G11Associação semelhante encontramos num mito witóto, em que do corpo mau, acaba decepando a perna do herói, que sobe num abacateiro
de um menino nasce "um pé de mandioca - as raízes mergulhadas na ou em outra árvore para colher frutos. A história de Viti-Vití
terra e na água e os galhos cheios de frutas boas: abiu, banana, ananás".
(PER.EIRA, Nunes. "Lenda do Aparecimento do F<:>go". Moronguetá. . . v. 2, 68 BANNER. "Mitos dos lndios Kayapó." In: ScHADEN. Homem , Cultura e
p. 481. Sociedade no Brasil. p. 125. Num mito warrau, publicado por Koch-Grünberg
66 VILLAS BOAS, 0 . e C. Xingu, os lndios, seus Mitos. p. 21: "Consistem falta o personagem feminino. A causa aparente da "loucura" do personagem
esses vestígios, principalmente, numas valas existentes em quase todos os que assim.. se auto-sacrifica para agredir os outros, transformando suas pró-
lugares de aldeamento, antigos e atuais, com as seguintes dimensões médias: prias pernas (desta vez, as duas) em lanças, é o fato de ele ter participado
2,5 m de profundidade, 3 a 4 m de largura, 1 000 m de comprimento, ha- de uma festa dos espíritos warekki (grandes sapos que tomaram a forma
vendo na altura da confluência Kuluene-Rônuro uma vala de dimensões humana). V. KocH-GRÜNBERG. • Indianermiirchen aus Südamerika. p. 26.
muito maiores. Cabe considerar que essas escavações deviam ser no passado, 69 VILLAS BOA.S, o. e e. Op. cit. p . 138.
muito mais profundas, levando-se em conta o entulhamento natural por que 10 V., por exemplo, o mito akawoio de "Serikoai" ou o mito galibi (Kalynia)
vêm passando, não se sabe há quanto tempo". de "Epetembo", conforme Koca-GRÜNBERG. lndianermiirchen aus Südame-
Ui "Viti-Vití: a origem das valetas". VJLLAS BOAS, o. e e. Op. cit. p. 137. rika. p. 86 e 76.
94 CAP. VI - O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS ••• . O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS •• , 95

parece, pois, uma história qe origem de Orion, mas contada pelos terizaram-se pela construção de represas. 76 E ,, quem sabe, ainda
"autores do crime". se poderia perguntar se, afinal, a construção das valas não visava
Capistrano de Abreu já chamou a atenção para essas inver- ao mesmo tempo, também ~ obtenção de teria para uma agricul-
sões que ocorrem, sob outro aspecto, nos _mitos: tura 77 de "chinampas" como as do México, pois Max Schmidt, 78
estudando os "aterrados" dos índios guató, chama a atenção para
"Imaginemos a história de Abrahão contada pelos filhos de Agar;. o fato de que o cultivo coin mounds é um dos métodos mais anti-
o papel do patriarcha seria approximadamente o mesmo; Isaac e gos· de agricultura na Am.érica do Sul, que parece ter precedido
Ismael mudavam de categoria". 11 o cultivo de coivara. 79 .

B lógico que não estamos pensando no mito como ·o relato De qualquer fºnl!ª' se a impressão dos Villas Boas de essas
de um crime realmente ocorrido. Seria absolutamente absurdo! valas terem servido realmente de abrigo contra ventos frios estiver
Mas algo ligado a ritos contados de forma simbólica, isto o mito certa, poder-se-ia pensar que os seus autores pertencem a uma
réflete; 72 e os mitos e ritos de um povo são percebidos e sentidos civilização que se originou. numa região em que essa necessidade
com uma conotação muitas vezes diametralmente op0sta pelos .<de se abriga~ ~de ven~os frios) fosse maior do que no Alto Xingu,
povos vizinhos. • isto é, na regiao andma, no planalto boliviano ou numa latitude
B possível assim que estejamos diante de uina versão sinistra mais meridional, como o noroeste argentino.
do mito de Orion. Pode-se mesmo supor que deva existir um De volta ao texto kobéwa, após a menção da cerâmica segue-
mito de Orion semelhante ao que encontramos nas Guianas, justa- -se o relato da peregrinação por região de rios de águas pretas,
mente na mitologia do povo autor das valas do Alto Xingu. Mas com trechos ensolarados. 8 ° Finalmente . ' os ancestrais se estabe-
que povo foi este? ·
B difícil fazer suposições no casO'I De qualquer forma, e tado numa permanência desses elementos nessas outras áreas, evidentemente
ainda que a distância do Alto Xingu até o noroeste argentino durante muito mais tempo. Assim HlBBEN, F. e. (L'homme primitif améri:
seja considerável, temos que considerar que, no V ale de Hualfin, cain. p. 228) observa, com referência à cultura de "Mounds" da América
na mesma área da cultura Condorhuasi~ viveu também um povo do Norte: "Un texte espagnol obscure signalaJ.t également que l'babitude
d'édifier des monticules subsistait encore en quelques endroits du Sud-Est
que construía grandes casas-poços. 73 Aliás, segundo Collier 7 ' quand les Européens y arriverent la prem.iere fois. 11 semblait donc tout
("El Desarollo de la Civilización Peruana". RCA), a primeira au moins possible que les lndiens d'époque plus récente fussent simplement
cultura agrícola do litoral pacífico ("Huaca Prieta" 75 ) apresentava les descendants des Mound-bilders d'autrefois et que l'habitude de construire
aldeias de casas semi-subterrâneas. Outras culturas do noroeste· des tumulus se füt perdue juste avant l'arrivée des hommes blancs".
76 GoNZALEZ, A. R. Op. cit. p. 715.
argentino, mais recentes, como a de Condórhuasi, já. citada, carac- 77 Não é curioso que o mito kobéwa especifique que a vala foi aberta por
mulheres?
71 .ABREU, J. Capistrano de. Ensaios e Estudos: crítica e história. "Os Caxi- 78 ScHMIDT, M. "Anotaciones sobre las Plantas de Cultivo .. . " RMP. p.
1
nauás." p. 313. 240 et seqs.
72 Dumézil, citado por CAILLOIS. Le mythe et l'homme. "Les essais VI." p. 79 Gnwm. "Mito Guatemalteco de Origen de la Sonaja." Anais do XXXi
31, nota 1), escreve: "La verité, c'est que ' les mythes naissent et prosperent
dans des conditions obscures, mais presque toujours solidaires de rites: des Congre~s'? Internacional de Americanistas, diz que o "Pucbalchaj" representa
mythes de 'monstres en bande' ont bien des chances d'être nés avec des o arque~po da t_umba e ~a horta ao mesmo tempo, uma associação que
rites de déguisement. un mythe de castration avec des castrations rituelles". • sugere ntos arcaicos, possivelmente responsáveis pelas concepções e mitos
78 GoNZALEZ, A. R. "Contextos y Secuências Culturales en el Area Central
das divindades-dema.
80 I_<ocH-GRÜNBERG ( Op. cit. Band I, p. 38) observa que o Içana tem águas
dei N. O. Argentino." Anais do XXXI Congresso Internacional de America-
nistas. p. 716. mais escuras ainda que o Rio Negro, não tendo, contudo, boa caça. Não é
7• CoLLIBR. "El Desarollo de la Civilización Peruana." RCA. p. 271 et seqs.
de todo impossível, pois, que, nas suas migrações, tivessem entrado no
75 Id., ibid. p. 271. O povo de Huaca Prieta vivia de pesca, coleta, agricultura Iç~1:1ª' dele saindo novamente, após contato com tribos aruák, pois no texto
incipiente (algodão, cabaça, pimenta). HAilooY (Ciudades Precolombinas. mitico se menciona, logo a seguir, uma ''volta" ao Cuduiari. Mesmo em
p. 311) nos informa que este período de Cerro Prieto (ou Huaca Prieta) tempos mais recentes, os Kobéwa não são inteiramente estáveis em suas
terminou, se os últimos testes com C. 14 estiverem corretos, por volta de P?sições. Nimuendajú refere uma invasão recente, no Alto Aiarí, de Kobéwa,
2000 a.e. A irradiação de certos elementos para outras áreas pode ter resul- vindos do Querari (Op. cit. p. 168).

'
O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS. • • 9.7
96 CAP. VI - O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS •••
nas) em que há cantos e danças, em que se medem forçás e co-
lecem no lugar mesmo de onde haviam emergido, como anacon- nhecimentos, numa auto-afirmação de guerreiros e pajés. 86 Signi-
das, no Cuduiari. 81 fica também ter mais segurança para enfrentar inimigos (em ata-
Todo este período de nomadismo é definido como estéril: ques ou defesas). Não que a exogamia levasse prepriamente ou
não é vida humana propriamente dita. 82 _Esta só começa no Baixo prontamente a uma pacificação; ao menos não necessariamente.
Cuduiari, 83 rico em peixes, cujas espécies passa o mito a nomear. Contudo, ela estabelece laços que podem ser reativados, quando
Pela primeira vez, menciona-se um outro grupo de afins ( in se julgar de interesse. 8 7 Evidentemente, estas vantagens todas se
law) e, entre outras coisas, a pupunha, a batata-doce e o milho tornam maiores quando se consegue estabelecer laços com um
(princípios da agricultura) . · gtupo mais organizado, mais poderoso.
No momento, queremos somente ressaltar esta condenação A concepção de que o estabelecimento de alianças com grupos
ideológica da vida nômade, a valorização, pelo grupo, em termos .mais poderosos é vantajoso sempre foi um dado importante no
de progresso, da vida no rio principal, com uma substituição, ao ·processo de relacionamento dos povos, e achamos que foi um
menos parcial, da caça pela pesca. 84 / . - . . . .
fator importantiss1mo ·na atraçao para os nos pnnc1pa1s, na con-
Outro ponto que nos parece importante é o aparecimento, no seqüente substituição da caça pela pesca, como atividade econo-
texto, de referências claras a relações com outros grupos (tanto micamente mais importante, implicando numa sedentarização. Este
hostis como de alianças matrimoniais), apenas após a entrada e fenômeno, parece-nos, vem de há muito em processo, tanto no
fixação no Cuduiari. Rio Negro como em outras áreas do Brasil (Alto Xirigu, por
:E: que o grupo nômade vive num isolamento maior, nas suas exemplo).
andanças pela floresta. Os Y anonami, entre os quais viveu Helena As sociedades ao nível de bando, predominantemente patri-
Valero, evitam contatos com outros grupos, mesmo em se tratando lineares são comumente também patrilocais, pois as mulheres são
de grupos falando a mesma língua ou dialetos da mesma língua, ·conseguÍdas freqüentemente por rapto (mesmo entre bandos locais
inteligíveis a ambos. 8 5 da mesma horda), antes de aparecer uma regulamentação da exo-
Ter afins em muitas outras localidades significa para o grupo gamia. A atração de mulheres é, portanto, aí o processo normal
convidar e ·ser convidado para festas (tanto sagradas como profa- para se estabelecer vínculos com outros grupos.
81 Não se trata, logicamente, de uma volta, mas, como é comum ~ . tribos
Mas existem duas formas de se conseguir aliados, e às duas
dos Uaupés, a aculturação faz com que se auto-representem como onund?s técnicas correspondem ideologias diferentes.
da Pamuri-maxse (a "serpente-canoa" do Alto Rio Negro). "When a s1b
is newly admitted into the phratry it must adapt its own origin traditions 86 Pode-se avaliar a importância do canto, por exemplo, entre os Yanonami
to the common mythical theme of emergence ín the form of an anaconda (que não têm instrumentos musicais), pelo relato de Helena Valero (Yanoa-
at a preferred emergence site" (GOLDMAN. The Cubeo. . . p. 94). ma. p. 236-37): " ... Elle dit qu'elle avait entendu ce chant lorsqu'elle était
82 Como, aliás, é geral, também os indígenas do Uaupés dão grande impor- enfant, quand des femmes Waika (portanto, inimigas) le chantaient" ...
tância às coisas culturais. Assim, por exemplo, entre os Kobéwa, Goldman Mais adiante, quando Helena reluta em atender ao pedido que lhe fazem
notou que a ausência de ornamentação dos "Makú" é um .dos mot~vos de para cantar. . . "les vieux Mahékototéri répondaient: 'Pour toi, fille de
sua marginalização: "The Macú, for example, are sometlmes dended as Blanc, nous avons perdu nos nieces; chante au moins un chant pour nous.
'not human' ". (Op. cit. p. 153 ). Quand nous inviterons les Kachorawétari, nous dirons: Ce beau chant que
83 'There they carne to live ... " . chantent maintenant nos filles, nos nieces, c'est Napagnouma qui le leur
84 Poder-se-ia alegar que esta ideologia não é espontânea, que se trata da a appris.' "
assimilação de ideais tukano, que exigiram a negação como vida real, do Goldman notou, nas festas kobéwa (Op. cit. p. 204) uma ostentação
período longe do Cuduíari, uma vez .que os Kobéwa são invasores na da capacidade econômica e dá-nos ainda uma idéia da importância da assis-
região, para poderem enfatizar a sua origem local. Trata-se realmente . de tência, quando observa que uma cerimônia a . que assistiu deveria ter conti-
um processo de "naturalização". Mas o mesmo repúdio ideológico da vida nuado (após a flagelação dos iniciandos), mas foi encurtada por falta de
nômade surge também em outras áreas. estímulo, uma vez que muitos dos convidados não vieram.
8~ B10CCA. Y anoama. Veja-se, por exemplo, o temor que estes índios têm 87 Goldman notou (p. 162) que assaltos em pequena escala são aparente-
dos Waiká ("Wa1ka" de Biocca), que Nimuendajú identifica com os Xirianá mente comuns, ainda hoje, no Uaupés (alguns ataques para tomar mulheres
( Op. cit. p. 171), também do grupo Yanonami. "Ils disaient que les Ihitéri ou por vingança). Há lutas também entre clãs de frátrias opostas, mas o
sont Wai"ka, tres méchants, qu'ils tuent tout le monde, même les femmes medo maior é das tribos aliadas.
jeunes, afin qu'elles ne puissent plus faire des enfants qui les vengent" (p. 390).
98 CAP. VI - o MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS ••• O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS. • • 99

Na já descrita, uma vez regulamentada a exogamia há uma mente amigos não trocam mulheres entre si. 91 Seria já uma re-
valorização eqüitativa da descendência quanto ao sexo: tanto quan- interpretação da atitude dos Tukano com relação a eles, Kobéwa?
•to de filhos, precisa-se de filhas para as trocas matrimoniais. Pois a concepção tukano neste sentido, diverge da kobéwa. 92
Em outras áreas, como nas Guianas e nas tn"bos kanõe do No Uaupés, na aproximação entre um grupo nômade e um
Pará setentrional (segundo Frikel 88 ), também patrilineares, mas grupo sedentário, o baixo conceito do grupo nômade impede, ao
em que encontramos uma matrilocalidade, mesmo que ~mente menos inicialmente, o estabelecimento de relações matrimoniais.
temporária (o mais comum por um ano, pois corresponde ao pe- Estabelecem-se, antes, relações de vassalagem, como as que exis-
ríodo de prestação de serviços do jovem ao sogro), há uma valo- tem hoje ainda entre grupos makú e tribos aruák ou tukano. Estes
rização maior das filhas, pois elas são o meio de atrair para si Makú, embora admitidos como agregados, são fortemente discri-
verdadeiros agregados, indivíduos que, além de representarem uma minados, não se admitindo mulheres makú como esposas. Con-
· mão-de-obra a mais, têm naturalmente um dever de solidariedade tudo, se por acaso houver filhos das relações com alguma con-
para com o sogro, o que redunda em prestígio crescente para o cubina makú (apesar de se evitar nestes casos descendência), estes
mesmo. 89 sei:ão da tribo do pai. 98 (Vê-se assim que sempre há absorção
Esta diferente valorização da filha mulher reflete-se não pou- de elemt'.ntos makú, mesmo que em quantidade mínima.) No pas-
cas vezes na mitologia, e é, a nosso ver, responsável não pelo mito sado, porém, parece que muitos grupos makú, possivelmente com
das amazonas em si, mas pela idéia de o "reino das amazonas" se uma coesão social e densidade maior que os atuais, 9 ' acabaram
localizar na área em questão. sendo absorvidos como novos clãs de tribos tukano e aruák, de
. Um grupo exogâmico que se sedentariza tem que· fazê-lo que foram vassalos e de que, em algumas gerações, adotaram com-
evidentemente numa relativa proximidade com outro grupo de onde pletamente a língua e os costumes, passando assim a estar em
possa obter mulheres por rapto ou por troca. A plasticidade que condições de entrar em trocas matrimoniais com clãs (provavel-
ainda hoje apresenta a frátria kobéwa 90 parece indicar que Gold- mente de status também mais baixo) ou das frátrias opostas ou de
man tem razão quando afirma que "a changing soçial order. . . has tribo diferente da que passaram a integrar.
gradually built up a phratric system .out of exogamous loéal groups". Para os Kobéwa, o próprio mito que estamos analisando pa-
(The Cubeo ... p. 213) rece indicar (apesar da insistência do relato na origem comum no
Curioso é que a inclusão de um novo grupo na frátria não U aracapuri) que foi paulatinamente, um após o outro, que os clãs
parece se iniciar através do estabelecimento de relações matrimo- apareceram das montanhas próximas, a começar do clã do Aguti
niais com a frátria contrária, mas antes como uma espécie de "capi- (Bwü): "They carne to the place of Kwákü th~ Ancient and then to
talização" de grupos agregados, o que, em princípio, deverá re- the place of Borikakü the Ancient ... " (p. 111)
sultar num status mais baixo para os grupos ( clãs) mais recente-
mente admitidos. 91
''The Cubeo invariably identify social intimacy with fraternity. They have
Seria uma tendência de tribos exogâmicas que estabeleceram granted asylum to alien groups on their river by adopting them into tbe
fratry on the theory that aliens intermarry but truly friendly people do not''
relações matrimoniais com grupos mais prestigiados, mais nume- (p . 43 ) .
rosos, para conseguir um ·equiUbrio frente a seus afins? Curioso é 92 FULOP. "Aspectos de la Cultura Tukana - Cosmogonia.'' RCA . p. 154.
que os Kobéwa desenvolveram a teoria de que grupos verdadeira~ Reproduz um trecho mítico em que Yepá Huáke (Deu5) instruí Yupuri
Baúro (o grande herói mítico tukano) , quanto às tribos de que estes poderiam
88 FluliL. "Tribos Indígenas do Pará Setentrional." JU. Os karibe, segundo obter mulheres, comentando depois que as seis tribos indicadas (Yuruti-
Frikel, são todos patrilineares, menos os Warikyana (Arik!na), entre os -Tapúya, Tariâna, Desâna, Tuyúka-Tapúya, Siriano e Wanâna) passarão a
-quais mesmo a mulher pode ser tuxáua (p. 122). Contudo, a influencia da ser para os Tukano como amigos íntimos (hermanos) .
9 8 SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. A Civilização Indígena do Uaupés. p. 408.
mulher é grande, mesmo entre os outros (patrilineares) . 9 ' C~são social e densidade são sinônimos de poderio bélico e são por isso
89 Desenvolvimento do sistema de ºpeito". KmclHIOFP. "Die Verwandtschafts-
organization der Urwaldstãmme Südamerikas." ZE. p. 129 et seqs. fator importante de prestígio. Por ocasião de invasões, como a dos Tariâna,
90 Pela inclusão, por exemplo, de grupos aruák que se estabelecem no no Uaupés; a necessidade de aliados deve ter atenuado, ao menos tempo-
Cuduiarí. GOLDMAN. Op. cit. p. 100 a 104. rariamente, as diferenças.
100 CAP. VI - O MITO KOBÉWA DAS ANDÃNÇAS. • • O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS... 101
Pelas condições kobéwa, conhecidas desde Coudreau e par- No Alto Paro do Oeste, na Serra de Tumucumaque, Frikel
ticularmente desde Koch-Grünberg, e da análise de material mítico visitou dois lajedos e nele~ um alinhamento de pedras que lem-
desâna (a que se procedeu atrás), percebe-se que po~ este proces- bram bancos. Além destes sítios (Waipá e Manákamã), ele ainda
so de um núcleo tribal acabar integrando grupos nomades como ouviu falar de outros ligados à mesma tradição: 99
aliados estes eram absorvidos pela cultura de tal modo que, em
alguns 'casos, acabavam por reconhecer, como herói tribal, o ante- "Quando os Aibüba moravam no Wáipa, houve uma noite muito
passado mítico do núcleo líder. longa. O sol não quis aparecer. Eles saíram para o campo e se
Entre os Kobéwa e os Desâna (de que tratamos no capítulo sentaram ali para esperar o aparecer da luz. Mas a escuridão não
V), a organização hierarquizada assim resultante é certamente uma quis findar e os Aibüba não quiseram sair sem ver o nascer do
imitação fraca do modelo tukano, 95 suficientemente recente ainda sol. Assim ficaram sentados até se tornarem pedras. E lá ainda
para não se ter desenvolvido uma hierarquização complexa, com~ estão ... " (Op. cit. p. 2)
a que se refere na terminologia de parentesco dos Tukano, pubh-
cada por Fulop. 96 No segundo sítio, Frikel obteve mais informações. Rep.rodu-
. Até a chegada dos invasores aruák mais ·recentes, parece que zimos aqui o que achamos mais importante:
foi a organização clânica dos Tukano propriamente ditos que ser-
viu de modelo ao processo de organização político-social no U aupés. "O informante mencionou estas pedras como tendo sido colo-
cadas de prop6sito para servirem de assentos ou bancos. ( . .. )
Vimos que a primeira parte do texto Kobéwa se caracteriza · Confirmou-se assim a suposição feita nos 'transformados do
pela transformação de animais e plantas em pedra. Essa transfor- W áipd de se tratar de uma fileira de assentos que a crença po-
mação em pedras é também uin tema mítico comum nas Guianas, pular, mais tarde, tomou como os pr6prios Aibüba, transforma-
embora aí se trate geralmente de resul~ado da ação de heróis dos ou encantados nessas pedras. ( . .. ) Trata-se também aqui
culturais. 9 ; dos Aibüba, mas de um grupo (talvez uma linhagem) diferente,
Ela é uma atitude comum também ao Jurupari de Stradelli. a saber, dos Aibüba do Terêcheróge, enquanto os do Wáipa pro-
No Pará setentrional, entre os Tirió ("Tiriyo" na grafia de vinham do Mopéwaka, uma serra que fica mais central, ao norte
Frikel) 98 encontramos, contudo, um mito curioso e diferente, um de Terêcheróge. ( ... ) Yônare relatou: Antigamente, os homens
viviam na penumbra. A noite não era inteiramente escura, mas
mito que, a julgar pelo material que tivemos oportunidade ?e ex~­ também não tinha sol. Estes homens de então são chamados de
minar, não encontra verdadeiramente um paralelo na nutolog1a 'N ikomanyámba' (os homens da penumbra). Eles tinham medo
brasileira. Trata-se da lenda de "Ometanímpe, os transformados", da escuridão e queriam a luz e o sol. Fizeram 'warúnu' (sessões
que mostra um grupo de ancestrais sendo transformados em pedra, coJTt cerimônias xamanistas) e então o sol apareceu, . devagar,
sem qualquer interferência de outro personagem mítico, simples- meio apagado, primeiro pouco (= pequeno?) e depois sempre
mente esperando, sentados e angustiados, o sol que não queria =
mais ( maior?), sempre mais e o dia tornou-se mais . comprido
mais nascer. que agora. Mas a noite (grande) sempre voltava; e os antigos,
com medo, sempre fazendo 'warúnu'. Depois, os Nikomanyámba
911Grupo que, a julgar pela própria complexidade da hierarquia, já deve ter trocaram de lugar. Fizeram 'warúnu' grande e s6 (desde) então
trazido esta organização (como um elemento andino em sua cultura) quando o sol apareceu ligeiro como ainda agora". (Op. cit. p. 11-12)
da invasão do Uaupés.
06 FULOP. "Notas sobre los Términos y el Sistema de Parentesco de los Acreditamos que, na concepção tirió atual do mito (a julgar
Tukano." RCA .
01 Feitos de Makunaíma . . . do outro lado do Roraima, o trickster volta e principalmente pela explicação do informante yônare), este se re-
meia transforma gente em pedra . . . (Feitos de Makunaíma. nos mitos fira à obtenção de técnicas mágicas, com a idealização do período
arekuná e taulipáng recolhidos por Koch-Grünberg, em Vom Roraima zum
Orinoco, que foram traduzidos para o português por H. Roenick e publi- 99 Numa nota à página 14, Frik.el observa que "também Evans e Meggers
cados na RMP. N .S. v. VII, p. 9-202.) falam da existência de 'sítios cerimoniais' do Alto Rupununi e no território
98 FRIKEL. "Ometanímpe, os 'Transformados'." Boletim do Museu Paraense do Amapá, consistindo, da mesma forma, em fileiras de pedras". V. adiante
Emílio Goeldi: Antropologia 17. neste trabalho.
102 CAP. VI - O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS ..• O MITO KOBBWA DAS ANDANÇAS. • • 103

anterior, como o do caos primevo, em que os homens (ainda des- mais recente e de localização tal no tempo e no espaço que se
conhecendo as artes mágico-religiosas) não eram ainda verdadeira- torne viável a sua filiação a ele.
mente homens. Infelizmente não temos no momento à mão material suficiente
Mas, e as pedras que, conforme Frikel pôde constatar, se para uma pesquisa mais aprofundadà sobre a questão. Mas, como
encontram num alinhamento norte-sul e numa posição que, pratica- alguns problemas da mitologia do Alto Rio Negro dependem da
mente, só deixa a vista livre para o lado leste? Frikel aventa a solução de uma série de questões histórico-culturais da Guiana,
possibilidade de tratar-se de um "lugar freqüentado e usado para apontaremos por ora para um confronto com uma passagem do
reuniões e cerimônias tribais. Cerimônias, quiçá ligadas a um culto Popol-Wuh, referente à terceira criação do homem: 108
solar". 100 Nota ainda Frikel que "a tradição tribal relata que os Nela se refere como ós três ancestrais rebeldes Tohil, Awilís
Aibüba imigraram nesta região, assimilando e absorvendo nuin e Hakawic partem de Caqol, Bitol para Tula, ·recebem ali seus
processo de aculturação primitiva grupos tribais ali já preexistentes". deu$es, deixam Tula e sua língua se confunde (em outra passa-
· Não o tema da noite longa, em si (pois este aparece também gem eles se vangloriam no alto da montanha, dando-se em conse-
em outros mitos, 10 1 mas justamente a existência dos referidos sí- qüência a confusão das línguas), depois atravessam o mar, · pas-
tios em que o alinhamento de pedras sem dúvida alguma foi obra sando entre ·os rochedos (esclarece-se ainda em outra passagem
do homem 1 º2 e tem que ter tido uma função, leva-nos a crer que que o mar foi dividido por um bastão vermelho) e chegam ao
Frikel não errou muito quando sugeriu que se tratasse talvez de monte "das leis". Lá, ou já no caminho, jejuam e sofrem fome.
lembrança de antigas migrações, transmitidas aos ancestrais dos Incansáveis, carregam seus deuses. 104 O monte parece· ter três
cumes, em cada um dos quais um dos ancestrais se fixa, com seu
Tirió por outros povos com que se mesclaram, sem terem estes
povo e seu deus. Outros se afastam mais com seus deuses. Eles
ancestrais, contudo, absorvido inteiramente o significado dos anti-
se vangloriam, dão uns aos outros nomes diferentes, escondem
gos ritos e crenças. Também não é de todo impossível que o
seus deuses, uns após os outros, e esperam o aparecimento da
tema <Ja "noite longa" em geral se prenda a uma difusa lembrança luz. 105
do que devia ter sido a noite polar, qua.ndo das migrações dos
primeiros invasores da América. Mas isto é perseguir um tema Toda essa migraçãó, ao que parece, originou-se porque "os
muito longe demais para os nossos atuais conhecimentos. Para seus corações já estavam cansados de esperar pelo nasciménto do
uma lembrança dessas ter tido condições de se perpetuar através tos A primeira tentativa foi a da criação de homens de barro, que falam,
do espaço e do tempo percorridos, era preciso realmente que todo mas não entendem e não se revelaram consisténtes, sendo por isso destruídos;
um culto e todo um sistema de concepções religiosas a tivesse . a segunda criação, de homens de madeira, termina com a transformação
mantido · viva, dando-lhe novas e novas formas e novo alento. dos mesmos em animais, após uma rebelião dos utensllios, um dilúvio e
Temos que ligar o tema, portanto, a
um sistema mítico-religioso
perseguição por animais demoníacos (duas aves e dois jaguares, o que não
deixa de trazer à lembrança a crença dos Kayová-Guarani no gwirak4,
"pássaro fantástico e temido que no dia da grande catástrofe devorará a
100 p. 6, ressaltando, porém, que "em todo o tempo de perman!ncia entre quantos seres humanos puder apanhar" (ScHADEN. "Desenhos dos lndios
os Tiriy6 nunca me foram feitas alegações que apontassem para um culto Kayová-Guaraní." RA. p. 81).
ou cerimônias solares, nem atuais nem passadas" (p. 9) . Ou mesmo a onça celestial que devora o Sol, também da mitologia
101 Freqü~ntemente concebida como decorrente de um aprisionamento do guarani (CADOGAN. "Animal and Plant Cults in Guaràni Lore." RA.. p. 107).
sol ou da luz numa caixa, como ocorre num mito warrau referido por 104 Trata-se do mesmo processo de deslocamento usado pelos Tenochcas (os
LÉVI-Snu.uss (L'origine .. . p. 143.) ou no mito araucano do velho Tatrapai. Aztecas da cidade do México) quando se deslocavam no s6culo XII d.C.,
Na Amazônia, contudo, a origem da periodicidade do dia e noite é antes. desde o Méxiço Ocidental em direção a sudeste, por Tula e Zumpango, até
concebida a partir de um dia eterno, conforme uma série de mitos sobre entrarem na região de Texcoco. "The Tenochcas carried their new god's
a origem da noite, bastante conhecidos. Fulop publicou sua versão tukano, image with tbem on their joumey. At each stopping place they set him up
em que Yepá Huáke manda dois irmãos de Yúpuri buscarem a noite nos to be worshiped, and in retum he advised them" (VAILLANT. Aztec.s of
Andes, na Cordilheira Central ("Aspectos de la Cultura Tukana - a;smo- Mexico. p. 88). ·
gonia." RCA. p. 122). Seria uma técnica de deslocamento comum à cultura centro-americana,
102 Próximo a um dos lajedos, F~el refere a existencia de um sitio arqueoló- mesmo mais arcaica? ·
105 ~HULTZ, W. Einleitung in das Popol-Wuh. p. 43-44.
gico com restos de cerâmica e objetos líticos (p. 17).
104 CAP. VI - O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS ••• O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS... 105

sott'. Acresce-se que "então ainda não invocavam nem madeira Não seria de se esperar que povos que atingiram um desen-
nem pedra, mas apenas seguiam as ordens de Caqol (o coração volvimento tão grande como os Olmecas e os Toltecas não tives-
do céu) e Bitol (o coração da terra)". 100 sem também as suas rotas de comércio. 112
Segue-se o relato dos problemas e dificuldades enfrentadas Tem-se a impressão de que um dia, porém, estes contatos ces-
por não terem fogo, pois atravessam região fria ou faz frio. Final- saram. Os descendentes dos primitivos emigrantes passaram a fa-
mente Tohil consegue fogo por fricção em seu sapato. Em outra lar outras línguas, internaram-se pelas florestas ... 11 ª
passagem, descreve-se a alegria dos animais e -dos homens pelo Provavelmente o período de decadência inicia-se com os ata-
aparecimento, finalmente, do sol, e logo em seguida a transforma- ques astecas ao Império Tolteca, na época mesmo em que, no
ção de Tohil, Awilís e Hakawic em pedra, juntamente com -os Yucatã, Chichen-Itzá caiu em poder de Hunac Ceei (aproximada-
deuses da Puma, do Jaguar, da Víbora, de "K'anti" (cobra) e o mente 1 200 d. C.). 114 Mas, quanto às migrações lembradas na
"acendedor de fogo". 107 Eles ficaram presos pelos braços nas lenda, a dificuldade de se estabelecer. uma época é maior. Os
árvores, quando surgiram o sol, a lua e as estrelas. De todos os supostos emigrantes seriam realmente toltecas ou populações que
lados, tudo se transformou em pedras. io8 · não quiseram sujeitar-se a eles, quando submeteram o povo de
Infelizmente não temos no momento possibilidade de consul- Teotihuacán? (aproximadamente 1 000 d. C.). Trata-se, afinal,
tar diretamente a obra de Sahagún, 100 por isso nos valemos nova- dos "homens de madeira" ... 1 1 5
mente de uma tradução, desta vez de Kun.ike: 1 10 De qualquer forma, a cerâmica arqueológica atesta não só
Em um mito tolteca menciona-se uma serra, cujo nome, os contatos entre a ·América Central e o litoral norte da América
"Tzatzitepetl", significa "monte do grito". Nele se encontrava um do Sul como uma penetração para o interior até o Baixo Amazo-
arauto encarregado de chamar cidades e aldeias afastadas até cem nas. Os fabricantes desta cerâmica tiveram uma história, viveram,;
milhas no litoral. Podia-se ouvir a sua voz nestas grandes distân- uma ·epopéia (como todos os povos a vivem), entraram em contato
cias e imediatamente os povoadores acorriam para saber o que com outros grupos, diluíram-se inteiramente neles, mas não sem
queria deles Quetzalcoatl. Segue-se a descrição das riquezas que ter deixado seus traços nas representações míticas destes grupos. 116
possuía Quetzalcoatl. Não pensamos em atribuir realidade histó-
112 Posteriormente, sob os Astecas, uma classe opulenta de comerciantes (os
rica a este rei dos textos de Sahagún. 111 Mas cremos poder ver Pochteca) comerciava por todo o México ·e estabelecia contatos com tribos
nele, isto sim, um símbolo do apogeu da civilização tolteca. A distantes, fazendo ao mesmo tempo serviços de espionagem (VAILLANT.
julgar pelas lendas, houve não só migrações para regiões bastante Op. cit. p. 117). A tradição já não viria de épocas anteriores? "Durante o
afastadas como também, ao menos durante algum .tempo, comuni- Formativo Médio (dizem SANDERS e MARINO. Pré-História do Novo Mundo.
p. 93), aldeias sedentárias salpicavam toda a área desde El Salvador ao
cações entre os Toltecas e as colônias fundadas por eles ou por México Central, e muitas, mas não todas, participavam dessa rede de
povos dá me~ma etnia; ou ainda relações comerciais. com outros comércio." Não seria de se esperar que ocasionalmente os contatos f<;>Ssem
povos, certamente também do litoral norte da América do Sul ' o até mais longe?
. na Não é o que sugere a alusão ao seu aprisionamento pelas árvores?
que não é de estranhar, pois hoje sabemos como até entre povos 114 Segue-se, para o Yucatã, um período em que houve realmente um retro-
de cultura material menos desenvolvida distâncias consideráveis cesso cultural, uma espécie de estagnação, representado pelo estilo Mayapán.
são percorridas para se efetuarem _trocas de produtos manufatura- BRAINERD. "The Archeological Ceramics of Yucatan." Anthropologica/ Re-
cords.
dos ou para se obterem determinadas matérias-primas. 115 Como é freqüente acontecer, qualquer lembrança de migração pode tomar
a forma de um mito antigo revivido. Os capítulos 12, 13 e 14, livro III,
106 Id., ibid. p. 30 e 43. traduzidos para o alemão por Kunike, tratam da fuga do próprio Quetzalcoatl
107
N_ão ~e trata do instrumento, aqui, mas de um pássaro (talvez o pássaro- para o país do crepúsculo (matutino), sempre precedido de tocadores de
-carpinteiro?). · flautas. As ·aventuras terminam finalmente à beira-n1ar, onde ele ordena a
108 SCHULTZ, W. Op. cit. p. 45. construção de uma jangada ("Coatlapechtli'', a "jangada-cobra"). Nela ele
109 SAHAGÚN. História de la Nueva Espafía. se senta, como se fora um navio e navega pelo mar afora. Ninguém soube
110 KUNIKE. Aztekisclze Miirchen ... p. 14-15. como ele chegou a Tlapallan. Op. cit. p. 30.
111 116 A expedição de Francis Maziere e Dominique Darbois ao Tumucumaque
L. Séjourné já tratou, magistralmente, dessa questão (Pensamiento y
Religión en el México Antiguo). fotografou cenas da vida dos índios Oiana de uma aldeia do Alto J ari
,
106 CAP. VI - O MITO KOBEWA DAS ANDANÇAS ••• O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS ••• 101
A representação kobéwa nada tem a ver com o mito tirió. );: curioso que os mitos de andanças de ancestrais, na Austrá-
Parece ligar-se a representações que encontramos espalhadas lia, se referem com igual freqüência a coisas transformadas em pe-
um pouco por toda a América do Sul, possivelmente mais a partir dra, inclusive os próprios ancestrais. Isto significa que se transfor-
dos Andes (e não das Guianas). Que elas estejam completamente rnam em tjurungas, a que correspondem em parte os zunidores usa-
isentas de influências centro-americanas não se pode afirmar, pois dos nas cerimônias religiosas. 120 Não reencontraríamos aqui na
a permuta de elementos pelo istmo foi muito grande desde a aurora América um complexo do que poderíamos chamar de "civilização
das primeiras civilizações e é difícil se dizer o que as andinas devem da pedra", 12 1 aproximadamente com os mesmos elementos encon-
às centro-americanas e vice-versa. 117 trados na Austrália ou no paleolítico e nas civilizações arcaicas do
Repare-se que no mito kobéwa os seres petrificados são tão Velho Mundo?
somente animais e não ancestrais. O processo de sedentarização Os ancestrais kobéwa teriam conhecido o zunidor? A tribo
dos Kobéwa é relativamente recente e ocorreu, além disso, não ·está realmente ~entro da área geral de distribuição deste instrumento,
como uma sujeição a um povo militarmente mais poderoso e sim conforme mapa elaborado por Zerries. 122 :e bem verdade que
através de lutas vitoriosas contra tribos cuja cultura absorveram. estamos justamente na região em que Zerries o julga, aliás com
Seus ancestrais, ligados ainda suficientemente aos seus padrõ:s de razão, eclipsado pelas flautas e máscaras sagradas que aí represen-
humanidade, não poderiam, por isso, transformar-se em pedra. Um tam a voz do espírito e ele próprio, nas cerimônias de iniciação.
deles, contudo, como vimos (p. 57 e 79), resolve abdicar da con- Mais exatamente, entre os Bora, como entre inúmeras outras
dição humana de uma o~tra maneira. · tribos, eclipsado pelo "Botuto", grande trombeta, comumente asso-
:e bom lembrar que o mito sempre surge, não propriamente ciada aos ritos fúnebres. Tessmann (citado por ZERRIES. Op. dt.
pela difusão, mas justamente porque, nas tradições recebidas de p. 286) encontrou entre estes últimos o zunidor já apenas como
fora, o grupo consegue "reconhecer" de certa forma alguma expe- brinquedo. A seu nome, tsixtsi, voltaremos adiante.
riência por que passou ou julga ter passado. Lembremos assim que Não teria que se esperar ao menos uma "sobrevivência" do
o Alto Cuduiari, a Serra de Aracuara, tida como pátria de muitos zunidor num grupo recém-sedentarizado como é o grupo kob6wa
clãs kobéwa, não dista muito das nascentes do U aupés, ficando si- (ou como é pelo menos boa parte de seus clãs)? Deixando de
tuada no mesmo paralelo que o Alto Rio Fragua, sendo que entre lado os Baniwa (entre os quais, segundo Izikowitz, tamb6m citado
este e o Alto J apurá (o Caquetá dos colombianos) , numa área con-
por Zerries - Op. cit. p. 285 - , o zunidor teria existido), não
tígua aos Tama (grupo tukano ocidental), encontram-se os famosos
monolitos de San Agostin. 118 (0 felino estilizado é um motivo seria de se esperar referências a ele na população nômade, mor-
típico dos blocos de pedra esculpidos.) 119 mente quando populações arcaicas vizinhas como os Bora e os
Koto (estes também Tukano) o possuíam?
(Amap,). Trata-se de uma tribo karibe, mas que parece ter muita coisa Encontramos realmente em Goldman referência a um zunidor
em comum com os Tirió. ~ impressionante a semelhança dos altos toucados de pedra, que não é um brinquedo como entre os . Bora, mas um
de penas com ·certas representações do México Antigo. Mesmo muitas fisio-
nomias lembram bastante as de índios Lacandon do sul de Yucatã. E não é
só: na cerimônia do Maraké, uma esteira em forma de tamanduá (como
12 º Tomemos, como exemplo, o "mito de Waweri e Multultu'' (RoREIM.
não podia deixar de ser, pois é este o vencedor da tocandira) lembra-nos The Eternal Ones of the Dream ... p. 36): Nem mesmo a passagem corres-
vagamente que Quetzalcoatl -tinha ''uma fisionomia horrível, era . barbudo pondente da "pré-vida" para a vida, falta no texto:
e tinha cabeça alongada". KUNIKE. Op. cit. p. 14. ''They had no tail at first but then they got under the rubbish tbey
117 Nordenskiõld, citado por Koch-Grünberg, recolheu entre os Mosetene, had one" (justamente a partir do momento em que fazem a primeira rudi-
Bolívia, um mito que o etnólogo alemão reproduz em lndianermiirchen aus mentar morada) .
SÜtla!Mrika ("Dohit" p. 266), em que os homens, fugindo do dilúvio, vão 121 Apesar de a madeira e o osso terem substituído, quase totalmente, no
sendo também, automaticamente, transformados em pedra. Brasil, em muitas áreas os utensílios de pedra, parece que se pode sempre
118 Veja-se, por exemplo, WESTHEIM e KELEMEN. Arte Ibero Americana. perceber um estrato arcaico em que estes últimos foram particularmente
p. 116. importantes, em parte justamente porque os nômades se refugiam de prefe-
uo Além de uma pomba, um macaco e animais não identificados ("Ka- rência nas regiões montanhosas das cabeceiras dos rios, onde a pedra de
mindü"), um jaguar é transformado em pedra e menciona-se também uma qualquer modo é uma matéria-prima disponível.
"rocha do jaguar". i22 ZERllIES. ''.The Bull-roarer among South American Indiana~" RMP. p. 305.
,
, O MITO KOBEW A DAS ANDANÇAS ••• 109
108 CAP. VI - O MITO KOBEWA DAS ANDANÇAS •• •

cias foram suficientemente antigas para explicar a difusão do zuni-


objeto ritual, do arsenal mágico do médico-feiticeiro: quando este dor entre populações arcaicas tão a leste do continente. ~ bem
o agita, a vítima sente-se atingida como por uma clava. 123 verdade que Zerries chama a atenção para o fato de que estas
E, como a confirmar que ele teria que ser encontrado nessa populações não seriam em verdade assim tão "arcaicas": 12 s
cultura mais arcaica (como o previra Zerries), os Desâna (que,
como se verá, também são de sedentarização recente) o possuem "São classificadas, freqüentemente, como caçadores 'superiores',
igualmente. Segundo a descrição de Reichel-Dolmatoff, 124 é uma mas a verdade é que passaram, há muito tempo, a lavrar também
"tablilla zumbadora", também chamada nurá-mee, que se faz girar o solo" . 12 º
presa a um fio. Diz-nos ainda que hoje está em desuso, mas que E Zerries é de opinião que "o zunidor pertence, na América
antigamente era um objeto sagrado, ligado a um rito comemorativo do Sul, em grande parte, a uma antiga camada cultural de la-
do caos. (Os seres disturbadores da ordem social, explica o in- vradores, relativamente homogênea, que veio do noroeste para a
formante desâna, tinham uma linguagem como o zumbido do Amazônia, estendendo-se principalmente a este dos Andes". 1 ªº
inseto.) 1215 ·
Sobre a ocorrência do zunidor na região amazônica, Zerries Esta opinião parece se reforçar pelo fato de que os Ona,
cita Izikowitz: apesar de terem cerimônias de iniciação semelhantes às dos povos
que possuem o zunidor, 131 não conhecem este instrumento.
" ... its distribution leads me to believe that it belongs to one Ficamos, contudo, a nos perguntar se ele não poderia ter
of the oldest cultural strata in Amazonas. It may possibly have surgido também na linha de evolução local das culturas líticas da
come to this territory with one of the earliest culture currents parte meridional da América do Sul. como invenção independente,
from northwestern South America, a current which did not f ollow
ao menos para a área jê.
the Andes or the west coast, but, so to speak, went directly down
to the lowlands east Ôf the Andes". 1 26 Inicialmente se objetará que nã<? se pode cogitar dessa possi- ·
bilidade, pois justamente entre as populações meridionais ( Argen-
Que Izikowitz (que não pudemos consultar) aponte para o tina, Chile) não aparece o zunidor.
Istmo do Panamá como provável centro de dispersão parece signi-
ficar que ele supõe, como também Zerries ( Op. cit. p. 303), que sido o modelo para o zunidor de madeira de populações mais primitivas,
a distribuição tlo zunidor na América do Sul se deva a uma cor- vizinhas.
Também no Pacífico, como se verá adiante, lá onde existe uma arma
rente vinda da América do Norte, atingindo grande número de de pedra semelhante ao zunidor (o onewa da Nova Zelândia) faltam zuni-
povos a leste dos Andes (sem, contudo, passar pelos Andes pro- dores, presentes, no entanto, numa área relativamente próxima, na Melanésia.
priam·ente ditos). 12 i "Convém lembrar, outrossim, que melanésios e australianos foram loca-
Se admitirmos uma dispersão do elemento a partir da Mela- lizados na América bastante ilogicamente à base de uma evidência um
nésia, onde existem zúnidores notavelmente semelhantes a · alguns pouco maior que a classificação de crânios. STEWART. "O Problema do
exemplares sul-americanos, teríamos que verificar se estas influên- Povoamento das Américas." ln: MussoLINI, Gioconda. Evolução, Raça e
Cultura. p. 318.
12s "Não se pode comparar validamente um achado arqueológico americano
128 GOLDMAN. The Cubeo . . . ISA. p. 268 (Koch-Grünberg, citado por e um objeto atual oceânico, salvo, naturalmente, se esse achado traz a data
l.erries, p. 283, menciona zunidores entre os Kobéwa, também como orna- de uma época muito recente." (Josué C. Mendes, citando Anette Laming-
mentos de dança). "' -Emperaire, em Conheça a Pré-História Brasileira, p. 13 3) .
124 REICHEL-DoLMATOFF. Desâna. . . p. 43.
120 A inexistência do zunidor entre os Yanonami, grupo lingüístico que com-
125 O mesmo zumbido, aliás, que o mito baniwa (recolhido por Saake) .
atribui a Jurupari-Kuái. preende alguns bandos realmente sem agricultura, pode reforçar esta idéia.
126 ZEIUUES. Op. cit. p. 301. 130 ZERRIES. Op. cit. p. 308-09. (Resumo)
127 Embora possa ter havido uma difusão neste sentido, cremos que não 13 1 CooPER, John M. "The Ona." Handbook of Soutlz American Indian. p.
se deveria desprezar a id_éia de uma invençã~ independente poder ter ocorrido, 120. A cerimônia "Klóketen'', a que só podem assistir homens e meninos
por parte de povos, na periferia de culturas agressivas, com armamento adolescentes (as mulheres são afastadas e castigadas se não obedecem às
lítico bem desenvolvido, . como queremos mostrar adiante. Isto explicaria a restrições). Os iniciadores usam máscaras mas não zunidores.
falta do zunidor nos Andes, onde armas eficientes de pedra poderiam ter
110 CAP. VI - O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS ••• O .MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS... 111

Contudo, o zunidor é um objeto de uso só ritual mácnco- desuso, quando ele passa a representar o passado, próximo ainda,
. .
-re11gioso. 132 ora, as 1'dé'ias, as concepções de objetos rituais
' O"
não mas passado, isto é, quando ele passa a simbolizar o ancestral
sur~em do nada ... . !1-em ~ampouco tão diretamente das represen- que o usava: o cajado do pastor, na liturgia cristã, é um exemplo ...
taçoes das fantasias infantis de um subconsciente libidinoso como Não vemos razão para que o processo entre primitivos seja
o teria preferido Roheim. iss diferente. Parece-nos muito provável que, na concepção do ·zu-
. Tomemos do próprio Roheim um exemplo, que aproxima nidor, a técnica de o agitar preso a um cordel, sobre a cabeça,
mais uma vez concepções australianas e concepções indígenas da tenha sido inspirada numa arma de arremesso. Aliás, o exemplo
área que estamos estudando: kobéwa parece confirmar esta idéia, pois o médico-feiticeiro real-
mente usa o seu zunidor de pedra, como vimos, esperando dele
"T~e Brisbane natives thought that the spirit of the turrwan um efeito de fundá. Mas, é preciso lembrar que esta é uma função
(ra1nbow) puts the crystal into the victim, who cou/d ·only be específica na magia, talvez restrita, mesmo, a esta área, provavel-
cured by getting a medecine man to suck it out again". 1 8 4 mente relacionada a um uso ainda recente da funda, em área pró-
xima à dos Kobéwa, como vimos atrás. 136
De onde poderia vir tal concepção de doença senão da visua- Assim mesmo, detenhamo-nos um pouco neste exemplo.
lização de um processo usual de ferir animais ou inimigos? ·(Em Entre os Motilon (Serra de Perijá, Colômbia) onde Reichel-
todas as partes do mundo, uma humanidade primitiva usou pontas -Dolmatoff encontrou igualmente o zunidor, Wavrin 181 menciona
de flechas de SI1ex . . . ) uma cerimônia funerária de desterramento em que se representa
Da mesma forma que RadcÜffe-Brown apontou uma anterio- uma grande serpente, acrescentando que se crê serem as serpentes
ridade do rito sobre o mito, 135 em muitos casos, poderíamos dizer os raios da lua. A associação lua-morte é comum, e a concepção
que a c~ncepção t~nica ~recede a concepção mágica. Não que- de que as serpentes são flechas aparece também em outras mito-
~e~os _dizer coll?- isso, ve1a-s~ bem, que a magia é uma simples logias. Assim, num mito warrau, 138 "Yar" (o Sol), para cumprir
~m1taçao da técnica. (Isto sena voltar atrás, ignorando tudo o que uma série de exigências que lhe faz o sogro, agarra uma enorme
Já se escreveu sobre o assunto, e esvaziar a magia de sua essên- cobra que este lhe indica· como sendó uma flecha, em que ela real-
cia.. . . ) Só queremo~ di~er que os ritos mágico-religiosos e os mente se transforma. Outro mito, krahó, 139 mostra os dois heróis
Objetos neles us~dos 1mphcam numa determinada técnica opera- míticos Pud e Pudleré criando a cobra que o segundo, no papel
cional e _que esta, obviamente, tem que estar de acordo com certas de trickster, 14 º pensa dotar de asas, para que ela atinja as pessoas
vivências do grupo. de longe, como se fosse uma flecha. A rapidez da picada da cobra
. Voltando ao zunidor... Normalmente, quando é que um não deixa de ter certa analogia, mesmo, com o modo como as ·
instrumento ou utensílio de uso cotidiano, geral, se transforma em armas de arremesso atingem suas vítimas (independente dessas
um elemento ritual? Muito comumente, quando ele vai caindo em armas serem envenenadas ou não).
Se voltarmos agora para o zunidor. . . Poderia ter ocorrido
182
.Ou então, usado como brinquedo, com visível esvaziamento de seu sim- uma invenção independente dele aqui na Améric~, a partir dos
bohsmo.
188
Se o zunidor fosse simplesmente uma representação fálica (sem querermos 13 6 ZEluuEs (Op. cit. p. 289) diz-nos, baseado em Ahlbrink, que os m6dicos-
negar que um significado erótico ou fecundador poderá ser encontrado, mais -feiticeiros karibe fazem uso do zunidor como se fosse um maracá. Seu
ou me~os acentuado, cm seu ~so entre muitos povos) não seria mais lógico ruído afugentaria os maus espíritos, mas a idéia de algo arremessado não
o zun1d~~ ser usado cm mov1~entos semelhantes· aos da dança fálica que existe, provavelmente. . ·
Koch-Grunbe~g ~ . C!oldman Vlfam no Uaupés? Por mais imaginosa que Os Incas concebiam um deus-trovão arremessando os raios com uma
fosse a fant;<tsia hb1dmosa de um povo; não vemos como poderia ter chegado, funda, no entanto.
só por meio d~sta, à representação de un1 falo sendo agitado acima da
cabeça, como o é o zunidor.
ª
1 7 WAVIUN. ·Moeurs et coutumes des indiens sauvages. p. 460, baseado em
A. L. Clark. .
18" RoHEIM. The Eternal Ones of the Dreams . . . p. 188. Como é conhecido 18 8 KocH-GRÜNBERG. lndianermiirchen aus Südamerika. p. 7.
~contramos exatamente a mesma representação da doença entre os n~ 139
ScHULTZ, H. "Lendas dos lndios Krah6." RMP. p. 70-71.
mdíaenas. 140
Revelando as mesmas tendências sádicas de "Oxinhede, o doido", dos
136 Citado por SERVICE, E. R. Os Caçadores. p. 100. índios Mandan. LÉ.VI-STRAuss. L'origine . .. p. 363 .


112 CAP. VI - O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS ••• O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS . . . 113

elementos culturais do complexo lítico dos Pampas e da Patagô- qualquer dos zunidores reproduzidos por Zerries derive da arma
nia? Aparentemente as condições para essa invenção existiram. polinésia, mesmo porque não sabemos se a difusão da Polinésia,
Mas não parece viável que ela tenha ocorrido a partir de instru- neste caso, é mais recente ou mais antiga do que a difusão do
mentos líticos de formas arredondadas como a bola da conhecida zunidor a partir da Melanésia. 148 Só queremos chamar a atenção
boleadora da América do Sul, esta sim, ao que tudo indica, o re- para o fato de que, a nosso ver, se deveria estabelecer uma corre-
sultado de uma evolução local da cultura lítica americana. 141
Parece-nos que entre esta forma e o instrumento ritual de grosseur de la piece de pierre essentielle; certains nga meré n'ont pas plus
que tratamos deveria existir um instrumento lítico intermediário, de huit centimêtres de long et l'usage était pour les chefs de porter une
de ces petites massues dans la main droite, lorsqu'ils s'adressaient à une
algo como uma lâmina de pedra presa a um cordel, que fosse assemblée. Le meré de Te Heu Heu a cinquante centimêtres de long, la lame
usado como arma de arremesso. A julgar pelo fato de que a a douze centimetres de large et environ trois centimêtres d'épaisseur à sa
boleadora ainda se encontrava em uso na época do descobrimen- base qui va en s'effilant vers le bord tranchant; le jade est vert pâle, avcc
to, 142 os povos dos Pampas e da Patagônia nunca chegaram a des trainées d'écume de mer.
Le meré est considéré três sérieusement par toute la tribu comme un
usar outro tipo de arma presa a cordel. 1 43 trésor, et les meilleurs d'entre eux rappellent des souvenirs cruels; ils ne
Já na vertente pacífica da América, esta arma aparece. Tra- portent pas d'entailles pour indiquer le nombre de têtes qu'ils ont pourfen-
ta-se de uma "clava-insígnia" descrita por Imbelloni 144 e encon- dues, mais le souvenir en est gardé et les circonstances dans lesquelles ils
furent mis en action peuvent être relatées par les membres de la tribu, avec
trada em vários lugares, tanto na América do Norte como na do autant de précision que par un disque de gramophone.
Sul. 14 s O estilo de fabricação, seu tamanho e espessura são em Yate (1835) écrit: '11 existait autrefois différentes sortes d'armes offen-
tudo iguais aos dos "Onewa" da Nova Zelândia, assim que, segundo sives, adaptées aux différents modes de guerre; le javelot, pour l'attaque à
Jmbelloni, a sua filiação à Oceania é indiscutível. 146 O exemplar distance, la massue et le meré, pour le combat corps à corps. Ce dernier
est fait de pierre verte et a la forme d'une queue de castor; on l'emploie
procedente de Villa-Vicencio (Departamento de Mendoza, Ar- pour faire jaillir la cervelle ou couper la tête d'un ennemi quand il est à
gentina) descrito por Imbelloni, assim como as congêneres da terre, c'est la seule arme indigêne à laquelle les chefs n'aient pas renoncé;
Nova Zelândia, tem forma elíptica, é de pouca espessura e apre- c'est encore une marque de distinction que de porter, sous le vêtemcnt de
dessus ou suspendu à la ceinture, un des plus beaux de ces magnifiques
senta um pequeno punho perfurado para receber o cordel. Note- spécimens d'artisanat local, et, pour ainsi dire, aucun · motif ne peut décidcr
-se bem que na Nova Zelândia o zunidor não é conhecido, estamos son propriétaire à s'en séparer. Ceux qui sont en bois, en os de baleine,
tratando realmente de uma arma. u; Não estamos afirmando que ou en tout autre matiere que la pierre verte n'ont pas beaucoup de valeur;
on peut les acheter contre un canif, une paire de ciseaux ou même parfois
contre la simple bagatelle d'une carotte de tabac' ".
141 A funda teve uma dispersão quase universal, mas a boleadora, não. Ainda que o cordel sirva para a fixação na cintura, nada impede que
Com exceção de uma pequena "boleadora" de osso para aves, usada pelos a forma tenha evoluído de arma de arremesso ou que, antes das batalhas,
csquimós, aparece realmente apenas na América do Sul, Pampas, Patagônia, se agitasse o meré para ameaçar o inimigo.
e também na cultura dos sambaquis. As bolas de pedra, presas por amar- 148 HEYERDAHL. (American lndians in the Pacific. p. 122 a 125), que tam-
ração, apresentam às vezes sulcos múltiplos, que chegam a lhes dar aspectos bém trata dos patu-onewa (meré), cita uma opinião de Skinner, segundo
curiosos (de "Bolas Erizadas", segundo GoNZALEZ, A. R. "Mazas Líticas a qual o patu seria não uma invenção maori, como anteriormente havia .
dei Uruguay y Patagonia" e outros artigos). sugerido, mas um elemento antigo pan-polinésio. Op. cit. p. 124.
142 E continuou sendo usada ... As informações abaixo, colhidas por DONNE, T. E. (Op. cit. p. 195),
143 Ao menos, não parece ter sido encontrado nenhum objeto que lhe cor- parecem indicar que, ao menos nas Ilhas Chatham, sua introdução foi muito
respondesse na forma. · recente :
14-t lMBELLONI. Epítome de Culturologia. p. 217 et seqs. "En 1834, une partie de la tribu Ngati Awa émigra de Taranaki, vers
1415 Rio Limay, Rio Arkansas, onewa do Oregon, da Califórnia, de Washington. le district de Wellington; celui-ci appartenait aux Nga Mutunga, qui avaient
146 Cori:espondente ao mere pounamu, segundo lmbelloni.
été molestés pendent des années ·par leurs ennemis, les Nga Kahuhunu. Les
14 i Não há referência de que se ira te de arma de arremesso, nem que se
use agitá-la acima da cabeça, pelo cordão. DoNNE, T. E. ("Le jade ou pouna- Ngati Mutunga déciderent de chercher une nouvelle résidence et, au moyen
mu." Moeurs et coutumes des maoris. p. 187) dá uma descrição detalhada d'une douce persuasion appuyée de quelques especes sonnantes et d'un certain
da importâpcia desta arma entre os Maori: déploiement de forces, ils amenerent le commandant d'un bateau anglais à
"On choisissait habituellement la meilleure qualité de jade pour en faire les convoyer jusqu'aux iles Chatham; avant de quitter Wellington, ils cédercnt
un meré. Aucune regle spéciale ne fixait sa taille: j'en ai vu qui avaient f ormellement leur territoire et leurs intérêts dans ce distric~ à un chef nommé
plus de soixante centimêtres de long, la longueur étant déterminéc par la Wharepouri, 'maison triste', en échange de quelques nga meré pounamu••.
,
114 CAP. VI - O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS ••• O MITO KC!BEWA DAS ANDANÇAS. • • 115
lação entre a existência de uma arma de arremesso ou outra arma Aliás, Marquez Miranda ("Los Diaguitas") chamou a nossa
real, com formato semelhante ao zunidor (uma determinada téc- atenção para a cultura barreales (ou draconiana), que não se
nica lítica) e o aparecimento do zunidor, este último como uma confunde com a diaguita, pois apresenta certos elementos que não
réplica mágico-religiosa de uma técnica que já estivesse em desuso, estavam em uso na área calchaqui: 154 cabeça-troféu, lançadeira
como dissemos atrás, ou então como a representação (e conse- propulsor e, inclusive, o boomerang. 1 5õ '
qüente "domínio") 149 de algo que simbolizasse o inimigo. 15º Embora os Mosetene não figurem na lista, é grande o núm:ero
Temos a impressão de que Zerries acertou ao colocar em de tribos bolivianas que possuem o zunidor 156 e ele caracteriza
conexão o mito borôro da origem do aíge lõl com um mito recolhi- também a parte setentrional da Argentina, o que poderia indicar
do por Tastevin de uma mulher yuri tõ 2 do Amazonas superior: a possibilidade de uma penetração do elemento a partir desta .re-
gião, ao menos para a área jê no Brasil.
"The grandmother of this woman is said to have f ed many snakes
in pots of clay. The snakes grew up and the pots had to be Se nos afastamos assim dos problemas do Uaupés, é porque
larger and larger. Finally the snakes became gigantic mythical a· presença do zunidor naquela região, o complexo a que se liga,
ophidians called Boyusu. Their skin colours and designs serve as vias de penetração do elemento em geral no Brasil podem ajudar-
now as samples for the ceramics patterns. lt may be noted, that -nos a compreender certos aspectos da religião e mitologia do
the aige of the Bororo is also connected with a spotled face noroeste amazônico.
painting," ajunta Zerries (Op. cit. p. 293 ).
Um desses aspectos é justamente o nome tariâna de Jurupari:
De u·ma área mais próxima dos Borôro, contudo~ procede Bõdiger 157 observa que não encontrou uma correspondência para
um mito análogo, mais interessante ainda. Foi recolhido por Nor- "lzy" na língua tukano, apesar do parentesco que apresenta com
denskiold entre os Mosetene (Bolívia) e incluído por Koch-Grün- "ltsiaha" (nome Buhágana para "deus"). De fato, a significação
berg em lndianermiirchen aus Südamerika ("Die grosse Schlange." que Ehrenreich dá para "lzy" ("Sol") não procede do tukano.
p. 269). :E: a história de um casal que quer criar uma minhoca, Mas a encontramos, para vocábulos análogos, em n1uitas outras
cujo alimento se revela ser corações. O animal cresce cada vez línguas indígenas. Aliás, o nome ora significa "sol", ora "estrela",
mais, e o seu dono (pai adotivo) começa a matar homens para ora "fogo" e, entre os lpuriná (Aruák, como os Tariâna), entra
fornecer-lhe o alimento predileto, mas acaba sendo flechado e · na composição da palavra que designa os feiticeiros lõS e, sob forma
morto. Sua mulher manda Nyoko, a cobra grande, procurá-lo. análoga, da palavra ynkysy (a "Grande Cobra d' Agua" 159). Tal-
Esta mata toda a aldeia e acorda (ressuscita) o homem que a vez até mesmo a palavra "Kamutxi" tenha algo que ver com as
criou. Ambos comem todos os corações. Nyoko transforma-se outras duas citadas, pela sua terminação. 1 6 º Há mais um detalhe:
na Via-Láctea.
1 114 V. também BOMAN. Antiquités de la région andine de la Rép. Argentine
O elemento não amazônico aqui é a caça a corações. Não
et du désert d'A tacama.
é difícil estar correlacionado a antigos ritos, há muito desapare- l õll Não sabemos, é claro, se se tratava de um "verdadeiro" boomerang,
cidos, de culturas pré-incaicas do noroeste argentino. 1.õa mas de qualquer maneira uma arma "boomerangóide". Segundo IMBELLO.NI
("Ciclo del Bumerang." Op. cit. p. 94), sua distribuição na América do Sul
149 No sentido de domínio mágico. (A própria dramatização é uma forma abrange a Amazônia, Brasil Oriental, C~co e Argentina Austral.
156
de dominar, controlar uma força perigosa.) Veja-se mapa de distribuição, à p. 305, op. cit.: Caripuna, Chacobo,
150 Representando o morto ou uma força incontrolável (o caos e seus agen- Itonama, Guarayu, Churapa, Yuracaré, Chimane, Chiriguano, Chané.
157
tes, como entre os Desâna) , o zunidor é sempre um "instrumento das tre- BõoIGER. Die Religion der Tukano im nordwestlichen Amazonas. p. 117.
158
vas". V. LÉVI-STRAUSS. Du miel aux cendres. p. 311 et seqs. "entitxi" - V. EHRENREICH. "Contribuições para a Etnologia do Brasil."
151 A.LBISErn e VENTURELLI. "O Chefe Baitogógo Apodera-se do Espírito RMP. p. 124. .,
159
Aíge." Enciclopédia Bororo. v. II, p. 119. ld., ibid. p. 125. Ehrenreich observa que essa "Grande Cobra d'Agua"
152 Yuri ou "Boca-negras", numa localização, aliás, ao longo da margem parece estar em relação com os espíritos Kamutxi. .
esquerda do Rio Amazonas, justamente ao sul do Uaupés. 16
° Como também koitxi (flautas de taboca) usadas na festa de Kamutxi.
158 Sacrifícios de crianças (inumadas nas conhecidas urnas, em que é fre- "A diferença é que eles (os Ipuriná) admitem a existência de numerosos
qüente a estilização, pintada, do urutáu ) caracterizaram a região diaguita. Kall}utxi, seres fantásticos, que imaginam cobertos de penas ou pêlo fino,
Mais a oeste, no litoral, a cultura nazca se destaca pelas cabeças-troféu. e que consideram nefastos a todos os não-iniciados, mesmo sendo homens!'
,
116 CAP. VI - O MITO KOBEWA DAS ANDANÇAS •••
O MITO KOBÉWA DAS ANDANÇAS. • • 117
?s Paresí (igualmente Aruák) usam o termo zuri para estrela, 161
1ustamente o nome pelo qual os Baniwa designam o princípio da fundamenta um culto nenhum detalhe é realmente sem significado.
cura por sucção (magia medicinal). Embora este raciocínio possa parecer estranho, há uma evolução
inevitável do zunidor de madeira em direção a Jurupari queimado
Outra tribo, aruák, waurá (Alto Xingu), usa a mesma pala-
na fogueira.
vra itséi para "fogo" e "lenha". 16!! A importância desse detalhe
Por hora, queremos chamar a atenção para o seguinte: se
é maior do que pode parecer ao primeiro exame. :E: que as lendas
estivermos certos em imaginar qu~ um zunidor originalmente de
aruák afirmam que "só de fogo morre Jurupari". Se txixtsi em
pedra possa representar uma cultura ou se originar de concepções
Bora (nome que designa entre estes índios o zunidor) tem algo
religiosas de uma cultura em que armas líticas, possivelmente de
que ver com "fogo", "estrela", "sol", se o Kówai-Jurupari, ao nas- arremesso, tiveram grande importância~ a ponto de seu efeito des-
cer, faz um barulho idêntico ao do zunidor, poder-se-ia aventar a
truidor ser associado à ação destruidora do relâmpago, do raio; 1 er
possibilidade de lssi-Jurupari representar justamente este ser assus-
tador, terrível, que o zunidor encarna, isto é, de ser, de certa for- se este zunidor representa, além do trovão, um ser que é identifi-
ma, o .próprio zu~~~r que, sendo de madeira, só o fogo consegue cado também com o sol, a estrela, o fogo; não é curioso que seja
destruir. Ao sacrif1c10 do velho deus que rosna e ameaça tão-so- justamente na região mais vizinha da Bolívia (Rondônia, Mato
mente, segue-se um "Novo Testamento" em que o deus, na voz Grosso - área do Alto Xingu), que encontramos (como também
das flautas sagradas, passa a travar um diálogo mais inteligível e na própria Bolívia) o termo itxê e variantes para designar exata-
harmonioso com o homem. mente os elementos representados?
Como Zerries observou, 1 <13 há realmente evidência de uma Damos a seguir alguns exemplos:
substituição, no Uaupés, do zunidor pela flauta, na representação fndios Karipuna-Eroé - família lingüística Pano - (Madeira
do ser cuja visão é proibida aos não-iniciados e às mulheres. En- Superior) fogo == Xi 16s
tre os lpuriná 1 64 e outros ittdígenas, 1 61s os instrumentos musicais Dialeto Jarú, Urupá, U6mo, Pacaá-Novo (Rondônia): fogo/ lenha
sagrados esvaziaram a sacralidade do zunidor, passando este a ser == icê 169
às vezes simples brinquedo de crianças. Waurá (Alto Xingu): fogo == itze-i e lenha == itzé-i 17 º
Se é assim, o ser assustador que é representado pelo zunidor Bakairi (do Rio Kulisehu): fogo == chichi; (do Paranatinga): fo-
começa a fraquejar no momento mesmo em que este último é con- go == tchichi 171
feccionado, não mais em pedra, 1 u11 como ainda o é o zunidor Concha (freqüentemente associada simbolicamente ao sol)
kobéwa, mas em madeira, pois no conjunto de concepções que corresponde em Bakairi a trishi.
A piaká : sol = tschitschi, semelhante ao tschíschi (sol) Bakairi 1 7 2
(E~NREICH. Op. cit. p. 12). Falam um genuíno dialeto aruák, que se
aproxuna gramaticalmente do moxo, e ao bare e manao do ponto de vista 167 Repentinamente, nos ocorreu que os machados de pedra, que são encon-
do léxico. trados 'ocasionalmente nos campos, são chamados pelo povo de "pedras
1 61 STEINEN. "Entre os Aborígines do Brasil Central." Separata da Revista de raio".
do Arquivo. p. 684 et seqs. 168 FERNANDES, A. Pot·os Indígenas do Brasil. · p. 79.
162 /d., ibid. p. 671 et seqs. e ScHMIDT. "Los Waurá". RMP. p. 63. 169 ld., ibid. p. 63 -65. .
163 ZERRIES. "The Bull-roarer among South American Indians." RMP. 7
1 0 ScHMIDT. "Los Waurá." RMP. p. 63.
164
~HRE~R.Ef.CH. f?,,P· cit. fig. 48, p. 128, adquiriu dos lpuriná um pequeno 171 Jd. "Los Bakairi." RMP. p. 48 e 52.
z~mdor 1ct101de ( Yueneru"). O nome lembra um pouco o que os Bakairi Talvez se devesse juntar, também, os termos semelhantes para outros
dao ao apetrecho, yélo, iyelo, "termo que na língua deles significa tanto símbolos usuais do sol, como, por exemplo, a ave. Assim, os lrantxe
relâmpago como trovão, correspondendo, pois, aproximadamente a trovoa- (!dünkü) (Mato Grosso - ao norte dos Paresi) designam por itxi o passa-
da" ... (STEINEN. Op. cit. p. 422). Não sabemos se yueneru tem significação nnho. PEREIRA, P. A. Holanda. " Vocabulário dos lndios Irantxe." RA. p. 109.
semelhante; mas é bem possível (apesar dos lpuriná serem aruák e dos Os Kamayurá dão o nome de ilsí ao bico de ave. STEINEN. Op. cit. p.
Bakairi serem karibe ). 679.
1 6 5 Como os do Alto Xingu, conforme Steinen, já citado. 172 STEINEN. Op. cit. p. 509.
166 Como dissemos atrás, acreditamos que exista um modelo original parn Os Apiaká, assinalados por MELATTI, J. e. (Indios do Brasil - V.
o zunidor: uma, arma de pedra. mapa), na ponta norte de Mato Grosso, no Juruena (aproximadamente em
Boa Nova), já tiveram localização mais meridional. FLORENCE, H . (Viagem
118 CAP. VI - O MITO KOBÉWA DAS· ANDANÇAS •••

Nahuquá: sol = iti, liti, riti 113


Kustenau: fogo = tséi 174
Mehinakú: fogo = tséi, tse 1 15
Yaulapiti: estrela = .Jlitsitsi 1 1e Apêndice ao capítulo VI:
Parentintin (possuem o zunidor) : estrela = oquitsi 17 i
Chiquito: diabo = itxé-boréce 1 18 A mandioca e os "espíritos temerosos"
ltÔnama: estrela = okitzi 179
Umotina_: sol = zóru, fumaça = zóri-xixí l8o
Isto nos mostra que deve ser levada em conta a possibilidade Segundo Nordenskiõld, citado por Saake, 1 tanto a mandioca-
de ·terem penetrado, no Brasil, ·vários elementos culturais (inclu- -brava 2 como a doce 3 são originárias da América do Sul.
sive religiosos) da Bolívia. Embora persistam dúvidas quanto a qual das variedades pre-
cedeu a outra como planta de cultivo e se a mandioca-brava teria
sido usada originalmente como veneno, 4 é certo que a área de
distribuição da mandioca-doce é maior do que a da outra, restrita
à floresta equatorial úmida.
Seu conhecimento parece ser recente entre os indígenas do
noro·este amazônico, como sugerem os textos míticos kobéwa e
desâna já analisados. .
Sanders e Marino são de opinião que a sua descob~rta se deu
entre grupos que residiam ~o longo do Médio e Baixo Amazonas,
nos trechos inferiores dos seus principais afluentes, dentro da Bacia
do Orenoco e nas Antilhas. 5
Pelo material que tivemos em mãos temos a impressão de que
o local de origem do cultivo é na verdade o Baixo Rio Amazonas,

1 SAAK.E. "Der giftige Maniok im Haushalte brasilianischer Indianer." Staãen-


-Jahrbuch. p. 135: "Cunow acredita que a variedade não venenosa da man-
. dioca seja um produto de. cultivo recente. Nordenskiõld é de opinião que
amb~ as variedades são · originárias da América do Sul e que é muito
difícil provar qual delas foi primeiro cultivada. Onde ambas as espécies são
cultivadas, no entanto, a não venenosa muito provavelmente terá sido pos-
terior à venenosa. A mandioca não venenosa, mais resistente ao frio, se
Fluvial do Tietê ao Amazonas. p. 260) os encontrou na época (1825-29) dá bem em latitudes mais meridionais e em localidades mais elevadas.
no Rio Arinos. 2 Manihot utilíssima Pohl (Euforbiáceas) "Deve ser originária da América
173 SnilNEN. Op. cit. p. 663. tropical, mas não tem sido ainda encontrada no estado selvagem". LE
174 Jd., ibid. p. 670. Co1NTE. Amazônia Brasileira Ili: árvores e plantas úteis. p. 280.
175 ld., ibid. p. 666. 3 "Macaxeira-Manihot palmata Muell. arg., Manihot Aypi Pohl (Euforbiáceas)
176 Jd., ibid. p. 674. - aipim - mandioca-doce - Cramanioc (G. fr.)." LE CoINTE. Op. cit.
177 FONSECA, João Severiano da. Voyage autour du Brésil. p. 287. p . 267.
178 Jd., ibid. p . 256. 4 Segundo uma referência de Martius, citado por CitULS (Hiléia Amazônica.
179 Jd., ibid. p. 141 - o termo itxe entra na formação de um grande número p. 213 ), o suco seria usado à maneira de timbó para atonar o peixe. Este
de palavras do idioma chiquito, a julgai' pelo vocabulário publicado: assim, uso, contudo, deve ser raro. SAAKE (Op. cit. p. 135) é de opinião que dele,
taquara = =
vuai-paitxé, leite piaitxé, mamas= paitxé-piaitxé, boca= no entanto, deve ter derivado a observação da possibilidade de se eliminar
=
= aixe, longe taitxe-sinemande. a toxicidade com a expressão do suco e o conseqüente aproveitamento da
massa.
1so ScHULl'Z, H. ''Informações Etnográficas sobre os Umutina." RMP. p.
102-03. 5 SANDERS e MARINO. Pré-História do Novo Mundo. p. 144-45.
,
120 CAP. VI - O MITO KOBEWA DAS ANDANÇAS ••• APftNDICE AO CAPÍTULO VI 121
que os Karibe a conheciam antes dos invasores aruák e que a elle fut sortie, une méchante femme /e jeta dans la marmite qui
estes últimos se deve apenas a intensificação de seu cultivo, com bouil/ait sur le /eu.
o aperfeiçoamento do instrumental e a invenção do prato grande De retour dans la hutte, l'Esprit chercha partout son enfant, et
de cerâmica para a confecção do beiju, a que já aludimos atrás. quand, passant pres de la marmite, elle remua machinalement le
Aliás, segundo Frikel, o Rio Amazonas é conhecido pelo nome ragoút avec la cuiller à pot, elle vit le petit cadavre monter à la
de "Rio Beiju" entre as tribos do Pará setentrional. 6 surface. Toute en /armes, elle accabla les lndiens de reproches
et /eur annonça, que désormais, et pour qu'ils pleurent comme ils
J;; um texto mítico karibe recolhido por Roth 7 e analisado l'avaient fait pleurer, leurs enfants mourraient. Les femmes
por Lévi-Strauss em Le cru et le cuit, página 208, que sugere a souffriraient aussi les douleurs de l' accouchement. Quant aux
idéia de que os Aruák não conheciam a variedade venenosa da hommes, il ne leur souffirait plus vider les cours d' eau avec leurs
mandioca, 8 ao aportarem 9 no litoral das Guianas, ao menos no calebasses pour y ramasser le poisson, et les remplir à nouveau
início das migrações. pour que les poissons y abondent. 1 º Dorénavant, il leur faudrait
Trata-se de um mito de origem das doenças e do veneno de travai/ler, peiner, et se donner du mal pour empoisonner les étangs
pesca: avec des racines. Enfin, l'Esprit de la forêt tua la femme coupa-
ble, et offensa les enfants en insultant grossierement la mémoire
"M. 162 - Carib: origine des ma/adies et du poisson de pêche. de leur mere. Les Esprits ayant ce tubercule en horreur, il dis-
Dans les temps anciens, les hommes ignoraient la maladie, la parut seulement quand le mot 'patate' vint à être prononcé".
souffrance et la mort. Il n'y avait pas de dispute. Tout le monde
était heureux. Les Esprits de la forêt vivaient dans la societé des Mais adiante, à página 315, Lévi-Strauss escreve:
hommes. "L'Esprit de M. 162 comme tous ses congenéres éprouve
Un jour, l'un âeux qui avait pris l'apparence d'une femme allai- une violente antipathie pour la patate douce (être chtonien?) dont
tant son bébé, rendit visite aux lndiens qui lui offrirent du ragout Ja seule évocation verbale suffit à provoquer sa disparition".
si chaud et si pimenté que la f emme surnaturelle /0.t brulée Em nota de rodapé, ele prossegue:
'jusqu'au coeur'. Elle demanda vite de l'eau, mais son hotêsse
malveillante, prétendit en manquer. L'Esprit courut alors se dé- "Nous reconnaissons volontiers que cette derniere interpretation
saltérer à la riviere, laissant son enfant dans la hutte. Des qu' est f ragile. On pourrait peut-être l' étayer par un autre mythe de
la Guyane (M. 176), de provenance arawak. li se rapporte à un
6 F.RlKEL. ''Tribos Indígenas do Pará Setentrional." RA: "A expressão Aríkya- pêcheur, qui capture et épouse l'esprit féminin des eaux. Tout
na, Arikiéna, por sua vez, não significa senão 'gente, povo, tribos, moradores va bien jusqu'à ce que la belle-mere ivre révele l' origine surna-
do Amazonas', porque de lá vieram. A explicação etimológica é a seguinte:
o Rio Amazonas entre eles é denominado: 'Ari-kurú', ou seja: Beiju-rio turelle de sa bru, violant ainsi /e secret imposé par la sirene.
(Rio Beiju). Arihá quer dizer beiju e, em sentido mais amplo, também Offensée, celle-ci décide de quitter les hommes et de regagner
mandioca; Ku, Kuru é o antigo radical de 'rio' ou 'água corrente' ". . . (p. avec son époux son séjour aquatique, mais non sans avoir rem-
128-29) ... "O nome Urukuyána tem, ao que parece, a mesma explicação que placé /e poisson (dont elle approvisionnait abondament sa famille
o dos Waríkyana ou Arikiêna. Em seu dialeto, como no dos vizinhos Aparaí humaine) par une jarre de cassiri - Biere de manioc et de
e Tiriyó, ôuru, uru significa beiju. O nome vem a dar, pois, no mesmo: 'patates rouges' (Dioscorea?) - et une provision de patates dou-
uruku-yána = beiju-rio-povo, ou seja: gente do Rio Beiju" (p. 130). ces, qu' elle leur envoie du fond de l' eau. Apres s'être rassasiés,
7 .Não pudemos consultar a obra de Roth, por isso utilizamos a tradução de les lndiens rejettent à l'eau la jarre vide et les pelures de patates.
Uvi-Strauss. La sirene transforme la premier en grand silure (Silurus sp.) et
8 A variedade doce, ao contrário, p,arece ter sido conhecida também na les secondes en imir ' (Sciadeichthys) qui sont des petits poissons
América Central desde tempos remotos. Segundo GIRARD ("Mito Guate- trapus. Les Arawak appellent, pour cette raison, le silure 'jarre
malteco de Oriacn de la Sonaja." Anais do XXXI Congresso Internacional du pêcheur', et l'imiri 'patates du pêcheur'." (Segundo Roth)
de Americanistas. p. 44 ), os Maya-Quichés cultivavam desde tempos ime-
moráveis três classes de raízes tuberosas: yuca doce, batata e "jícama"
(nome dado a várias plantas com raízes tuberosas comestíveis). Chamamos a atenção para o fato de que um dos mitos, justa-
9 Algumas vagas de migrações provavelmente procedentes das Antilhas, outras mente o do espírito amedrontado ante a simples menção da pala-
possivelmente diretamente da Venezuela ou de outras áreas, como aventamos
atrás. 10
Quanto a esta técnica mágica, veja adiante, cap. IX, p. 232.
,
122 CAP. VI - O MITO KOBEWA . DAS ANDANÇAS ••• APâNDICE AO CAPITULO VI 123 ·
vra "batata", é um mito karibe. O outro, a que se refere Lévi- o grande domínio de uma técnica muitas vezes faz o homem
-Strauss, em nota de rodapé, é arawák. . esquecer-se do perigo original.
Ora, isto parece mostrar que estes Arawák receberam de É o que explica, a nosso ver, que no mito resumido por Lévi-
outro grupo, representado no mito pela sereia, não só a técnica -Strauss a vingança original ficasse esquecida, e tem-se a impressão
de preparação do cauim (de mandioca), como as estranhas bata- de que a sereia é a doadora não só da mandioca como também
tas vermelhas. 11 Ao mesmo tempo, ela lhes servia do fundo das da batata-doce.
águas uma provisão de batata-doce. O espírito sobrenatural do mito karibe corresponde (por uma
Se ela o fez por vingança, o mito não o diz, mas ela real- analogia oposta, aqui bem compreensível, pois os Karibe sempre
mente não estava satisfeita com o povo do marido. Se era um foram povos agressivos, guerreiros) à sogra da sereia.
presente, por que ela substituiu uma comida por outra? Parece- A explicação aventada não passa de uma hipótese, mas é ao
-nos que a intenção poderia ser perfeitamente que se confundisse
as "batatas vermelhas" com as batatas-doces, colocadas assim lado menos uma explicação plausível para o horror demonstrado pelos
a lado. espíritos da floresta. Se porventura ela estiver certa, essa pobre
A verdade é que povos vindos há pouco de qualquer ponto gente devia ter tido realmente razão para se apavorar, ao perceber
que fosse da América Central ou do litoral da Colômbia conheciam pela primeira vez que uma suposta batata podia causar tanto mal!
de há muito a batata-doce, mas não a mandioca-brava (cuja téc- Do · complexo instrumental da mandioca, já nos referimos ao
nica:de preparo é, ao que tudo indica, uma invenção amazônica 12 ). tipiti (p. 89) que aparece num mito como instrumento de trans-
Como a "mulher-estrela" jê que cospe no alimento, 18 a sereia formação de uma criatura horrível em uma pessoa belíssima (ex-
do mito arawák deve ter querido vingar-se de seus ingratos afins. traindo-lhe, portanto, o veneno ... )
A aceitação da mandioca-brava ocorreu, contudo, ao que É curioso que a armadilha de pesca homônima ( matapi em
tudo indica, de uma forma tão rápida entre os imigrantes, que são Karibe) é justamente o apetrecho em que Jurupari se deixa apa-
estes mesmos ou seus descendentes imediatos que, pouco tempo nhar. 14
depois, como autores da cerâmica Arauquim, parecem ter adapta- Há certamente uma convergência de idéias no fato de o tipiti
do a concepção dos metates de pedra à do ralador de mandioca e ser manuseado pela mulher, do homem uaupesino ser um pescador
que espalham o complexo material da mandioca pela região. por excelência (que se dá ao grupo na forma do peixe que ele
pesca) e na referência de alguns mitos de Jurupari ou heróis con-
11 Uvi-Strauss pensou na Dioscorea Brasiliensis, certamente. a o cará-mimoso. gêneres 1 5 só poderem ser apanhados em redes feitas com cabelos
Segundo LE CoINTE, (Op. cit. p. 119-20) "à casca do tubérculo é quase femininos. 16 Mas, dos perigos da mulher na mitologia aruák
preta, mas, depois da primeira camada, é colorida de roxo". SA.AlK.E ( Op. cit.
p. 129) nos diz que os Aruák usam colorir' a bebida fermentada obtida com . ainda se falará adiante.
a mastigação da mandioca, ralando nela uma batata vermelha. (Ele se
baseia em Roth.) Essa batata vermelha, que Roth designa com o nome de 14 Que Jurupari passa a substituir a mãe no sacrifício parece se confirmar
yam (que realmente corresponde ao cará-mimoso, segundo Le Cointe . .. pela lenda de "Hõmãnihikõ que KocH-GllÜNBEllG (Zwei Jahre ... Band II,
"lndian yam"), seria també111 chamado de cashiri pelos Aruák, de onde p. 159) recolheu entre os Kobéwa. Nessa lenda é ainda a mãe do herói
derivaria o nome cassiri para a bebida. que, tendo feito um matapi, cai da margem alta dentro da própria arma-
Poder-se-ia pensar também em uma "batata-de-caboclo", descrita por dilha e morre. - .
LE CoINTE (Op . cit. p. 70) como sendo a Bignonia exoleta Vell (Bignoniá- 15 Como Piripiri, no mito "Origem de Piripirioca." AMOllIM. "Lendas em
ceas), de cujos tubérculos se extrai uma tinta, sendo comestível assada, mas· Nheêngatú e em Portuguez." RIHGB. p. 112-13.
de gosto pouco agradável. a mais provável, no entanto, tratar-se mesmo l6 Segundo SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. (A Civilização Indígena do Uaupés.
do cará. p. 441), o cabelo cortado às moças na cerimônia de iniciação pubertária,
12 Se fosse uma invenção das Antilhas, não seria mais lógico que o complexo serve (ainda hoje, ao que parece, embora os macacaráua estejam se tornando
instrumental (particularmente o grande prato de cerâmica para beiju), viesse raros) para a confecção da máscara de Wãx-tf. Parece conferir com a idéia
também dali com os povos aruák? Segundo EVANS ("Filiações das Culturas de que Jurupari se deixa capturar por um apetrecho de cabelos femininos.
Arqueológicas no Território do Amapá, Brasil." Anais do XXXI Congresso Afinal, ~ representação de Jurupari através de um mascarado é uma forma
Internacional de Americanistas), existe na cerâmica arqueológica das Anti- de capturá-lo (e transformá-lo, controlando-o, porque representado, na "fera
lhas uma forma semelhante, mas consideravelmente menor. domada") . Que essa máscara (descrita, entre outros, por CoUDREAU. La
1a ScHuLTz, H . "Lendas dos fndios Krahó." RMP. p. 75. France equinoxiale. t. 2. 0 p. 187) seja usada justamente nos ritos fúnebres,
, APÊNDICE AO CAPITULO VI 125
124 CAP. VJ - O MITO KOBEWA DAS ANDANÇAS .••

cachimbos de Santarém 22 e nos ritos e padrões (embora estili-


Voltando às analogias com as representações religiosas centro- zados) de desenho no Alto Rio Negro ... 23
-americanas, o herói cultural que nasce horrível, desfigurado, 17 Tudo isto parece indicar que existe um fundo comum de re-
tem seu paralelo nas representações de Quetzalcoatl como um ser presentações e que em.. ~arte os Aruák, em suas migrações para
cheio de pústulas. 18 O que significa? No mito referido por Sant' as Guianas e a Amazon1a, trouxeram de volta certos elementos
Anna Néry, a mãe poupa o filho porque é feio e chaguento. Mas, transfarmados por culturas mais desenvolvidas centro-americanas.
afinal, o remédio para curá-lo corresponde, assim mesmo, a um elementos esses que tiveram, muitos deles, origem no próprio noro-
sacrifício, já que o menino é passado no tipiti. :h a necessidade do este da América do Sul. 2 •
sacrifício que o mito pretende mostrar? No Popol-Vuh, os gêmeos
míticos Hun bac e Hun cowen, logo que nascem, choram sem
parar, e só se calam (e dormem otimamente bem) quando colo-
cados num formigueiro e, numa segunda vez, sobre espinhos. ' 11
Eles pedem, portanto, o sacrifício, exigem o sacrifício. :E: a provo-
cação ritual, e a passagem mostra toda a problem~tica religiosa:
o sacrifício liberta, a morte é a vida eterna . ..
Não param aí as analogias corn a América Central. Egon
Schaden (Aculturação Indígena,. p. 254) já chamou a atenção
para as analogias entre o mito da Fonte da Juventude dos Aruák
Setentrionais com o mito da Terra sem Males Guarani.
Além disso, há o enigma das flores ...
Sabemos o que representaram as flores na religião pré-colom-
biana da América Central, como oferendas aos deuses. Sabemos
que elas pouco representam para os nossos indígenas . . . Elas
aparecem, contudo, nos mitos. A mãe dos gêmeos apapokuva
apanha flores a pedido de seus filhos ainda no útero; 20 o colibri
do mito warrau, sobre a origem do tabaco e dos poderes xama-
nísticos, 2 1 que se oferece a buscar o tabaco na ilha no meio do
mar, engana-se e traz flores . . .. e as flores estão presentes nos
22 BARATA, Frederico. "A Arte Oleira dos Tapajós II." RMP.
parece-nos uma f orrna de canalizar o "ser terrível" para estes ritos. O morto 23 SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. A Civilização Indígena do Uaupés. p. 293:
não poderia ser encarado e.orno a vítima de um sacrifício já consumado? reprodução de alguns padrões de desenho geométrico, representando flores
O portador do macacaráua, como o aíge borôro, representando ao mesmo (de árvores frutíferas como a pupunheira, etc.).
tempo o morto (que se transforma em ancestral) e o próprio "ser terrível" SAAKE ("Uma Narração Mítica dos Baniva." RA. p. 36-37) refere-se
que vem contemplar sua vítima? a danças do inajá, da flor do jenipapo; e as meninas que acompanham os
17 Como o Kówai baniwa que nasce sem boca, na lenda recolhida por Saake. meninos, tocadores das flautas pequenas de japurutu, usam uma flor ama-
18 Segundo WELLS (Ossos, corpos e doenças. p. 99), a máscara de Quetzalcoatl rela no cabelo. . . .
reproduzida sob fig. 48, mostra um rosto deformado pela oroia, ou verruga 24 Muitas das perguntas, particularmente as referentes aos Tupi-Guarani,
peruana, doença que se propagou também no México. cremos que só serão respondidas quando se tiver um conhecimento melhor
JENSEN (Mythes et cultes chez les peuples primitives. p. 173) refere-se sobre os povos autores da cerâmica arqueológica de regiões vizinhas ao
a uma "divindade-dema" ("Geb" ) da Nova Guiné Holandesa, igualmente Paraguai, inclusive os autores da cerâmica do Baixo Paraná (chaná-timbú),
coberto de pústulas de varíola e que vive num formigueiro. E Nanauatzin, cuja semelhança com a América Central Nordenskiõld já assinalou em
deus humilde e chaguento, é o único entre os deuses que não titubeia no L'archéologie du Bassin de l'Amazone. Foram povos cultivadores do milho
auto-sacrifício para alimentar o sol. SÉJOURNÉ. Pensamiento y Religión en (cultivo de mounds, possivelmente), o que atesta o alisamento da cerâmica
el México Antiguo. p. 86-87. com espigas de milho e a representação abundante de pitacídeos. V. BADANO,
19 ScHULTZ, W. Einleitung in das P.opol-Wuh. p. 55 . Víctor M. "Caracteres dei Arte Plástico Indígena del Paraná Inferior." Anais
20 NIMUENDAJÚ. "Apontamentos sobre os Guarani." RMP. p. 45. do XXXI Congresso Internacional de Americanistas.
21 LÉVI-STR.Auss. Du miei aux cendres. p. 366.
UM OGRE ANTROPÓFAGO E... 127

vida habia visto el fuego. Y con sumo gusto acept6 la invitaci6n


del extranjero para acercarse a la hoguera y calentarse. El hombre
extrano era Ucara en persona. Y cuando el hijo de Mayowoca
se inclin6 hacia el fuégo. Ucara, empujándole, hízole caer de
bruces en medio de la hoguera gigantesca. Ucara as6 el cuerpo
CAPÍTULO VII dei muchacho. AI atardecer, Mayowoca también hall6 por casua-
lidad a Ucara, quien le invitó a probar un pedazo de carne, que
UM OGRE ANTROPõFAGO E GtMEOS decía ser de venado. Pero Mayowoca se dió perfectamente cuenta
QUE VINGAM A MÃE de que aquellos restos eran los de su hijo y no aceptó la oferta.
y en un terrible silencio y en la angustia terrible dei padre he-
rido, vió, fingiendo indiferencia, como Ucara comía a su hijo.
Mayowoca decidió matar a Ucara. Para tal fin, hizo un pájaro
No decorrer do trabalho de análise e comparação de mitos grande: el águila. Y mandóle vengar la muerte de su joven hijo,
da mesma área e de áreas diferentes, embora contíguas, tivemos devorado por Ucara. Durante muchísimos anos el águila se en-
muitas vezes a nítida impressão de surpreender o mecanismo mes- trenó /levando cosas pesadas a través de toda la tierra. AI fin
mo do processo de diferenciação e elaboração local dós mitos. pudo llevar los animales más grandes de la tierra. Llegó entorces
Tomemos como exemplo um Iajto de área próxima à dos la fecha y el día de un ataque directo dei águila contra Ucara.
Tukano, o de "Ucara e os Máwari", dos índios Y abarana: Voló el águila a casa de Ucara dando vueltas encima de la
entrada. V cara asomóse a la puerta para deshacerse dei visitante
"Ucara y los Máwari inportuno por intermedio de un Máwari. Agarróle el águila con
Los hombres tuvieron una numerosa descendencia, que se dis- sus bien probadas garras y llevóle a la cop_a de un árbol gigan-
tribuyó por la faz entera dei mundo. Hubieran podido vivir en tesco, donde devoró todas sus carnes, dejando caer abajo su es-
la paz más, sin preocupación alguna, a no ser por la existencia queleto. Un jaguar, ai. pie dei árbol, acabó de devorar por com-
dei malvado Ucara, el cacique poderoso de la tribu vecina de pleto los restos óseos del maldito Ucara.
los Piaroa. El aspecto exterior de Ucara era de un verdadero La família de Ucara cayó en la más negra de las melancolías,
demonio. Tenía un cuerpo gigantesco, cubierto con pelos, como y un dia la hija de Ucara salió, triste, para hablar con Mayowoca
una danta. Era caníbal. y mucha gente de las tribus vecinas habfa e interceder por su padre, a quien creía prisionero de Mayowoca.
ido a parar a las hogueras preparadas para sus orgías de carne Enternecióse Mayowoca ante los ruegos de la piedad filial Y
humana. accedió a la petición de la hija. 'Entra en casa y allí verás a tu
Pero su fama más siniestra estríbaba en la posesión de una cesta padre esperándote'. Entró la muchacha en casa y gozosa ofreció
misteriosa donde tenía encerrada una gran cantidad de espíritus a su padre una totuma de 'óki', pero Ucara rechazó la oferta
maléficos, servidores en sus planes de exterminación. Estos espí-
y pidió sangre y carne humanas. Y .U cara continuó matando
ritus se llaman Máwari, con estos horribles genios empez6 la
muerte entre los hombres, con toda la serie de sus preludios y sacrificando hombres y más hombres, para sus orgías caniba-
aberrantes: enfermedades, heridas, sufrimientos . . . lescas. ·
Ucara era el malo por excelencia entre los hombres, porque sin Mayowoca, antes estos desmanes, irritóse sobremanera. Trans-
él, los hombres nunca hubieran podido enfermar o morir. figuró a V cara en oso hormiguero, y · así ya no pudo comer· éste
Ucara fué uno de los primeros entre los seres de la tie"ª· carne humana ni tampoco podía dar órdenes perversas contra los
Y desde el principio era enemigo declarado de los dos hermanos hombres, ya que cada vez que lo intentaba, su boquita de oso
héroes. Un día apareció una posibilidad espantosa para que hormiguero no podía decir sino: 'UMPF, UMPF!'
Ucara pudiera destrozar a Mayowoca: y la utilizó sin ningún Cierto día Ucara-oso fué matado y cortado en pedazos (por
reparo y con refinamiento, en la primera oportunidad, justo O chi?), y de sus pedazos descuartizados y resucitados surgieron
cuando Mayowoca había perdido a su hijo en la selva. Salieron todos los animales comestibles.
padre e hijo de cacería y de repente el padre perdió de vista a Los Piaroa son la descendencia de V cara. Los Y abarana de
su hijo. Por mucho tiempo el hijo de Mayowoca erró en el Mayowoca". (WILBERT, Johannes. "Mitos de los Indios Yaba-
monte, hasta que encontró a un hombre sentado junto a un rana." Antropologica. p. 62 a 64)
enorme fuego, cal.entándose. El hijo de Mayowoca nunca en su
,
128 CAP. vn - UM OGRE ANTlt.OPOFAGO E • • • UM OGRE ANTROPÓFAGO E ••• 129

Os mitemas (como se diz hoje) são todos conhecidos. 1 Só Isto evidencia, não seria preciso dizê-lo, que os dois mitos,
o seu arranjo (o trabalho de bricolage no dizer de Lévi-Strauss 2 ) ambos do ciclo de mitos de origem do fogo, apesar de suas analo-
difere. gias, têm funções diferentes e exprimem ideologias diferentes. Não
Ucara poderia ser aproximado ao próprio Jurupari-Ualri que dispomos de material mítico dos Piarôa, mas seria muito interes-
devora meninos . . . Mais ainda que na transformação final ele sante verificar como o ou os mitos correspondentes se apresentam
renasce como um tamanduá. 3 entre eles.
Ao mesmo tempo ele corresponde ao velho Cunafare do mito Como já se mostrou com referência à religião dos Nuer, D a
baré de lnapirico, • que é, como Ucara, dono do fogo. is E esta rede de parentesco se estende aos personagens mitológicos. Dos
identifi~ação é ainda reforçada pela passagem do treino da águia, mitos "recebidos", só aderem às façanhas dos heróis concebidos
respecttvamente por Mayowoca e por Inapirico, treino a que este como ancestrais ou como autóctones as ações de qualquer forma
procede para vingar o irmão (Poerare, morto pelos cunhados, valorizadas, ou pela ação em si ou pelo resultado dela.
quando transformado em surubim) e aquele para vingar o filho O que acontece depois da conquista, com a absorção e re-
(assado no fogo e devorado por Ucara). 6 interpretação de motivos cristãos, 10 vem acontecendo há centenas
Cunafare transforma-se finalmente em instrumento útil para e centenas de anos na América pré-colombiana. Nenhuma cultura
o grupo, pois as suas carnes apodrecidas, caindo sobre a terra, dão cresceu isolada. Mesmo onde os contatos com as tribos vizinhas
origem ao timbó. Mas Cunafare não é propriamente um estranho, foram sempre hostis, houve transmissão de mitos através de prisio-
ele é sogro de lnapirico. neiros, de algum membro da tribo capturado pelo inimigo e que
conseguiu voltar, e principalmente através de mulheres raptadas
Ucara também se torna, de certa forma, útil ao povo de
e integradas no grupo. O interesse pelos mitos e por tudo o que
Mayowoca, 7 mas não como técnica dominada pelo homem. De
concerne ao inimigo é evidentemente muito grande.
dono do fogo e feiticeiro ele passa a ser idealizado como caça,
Por vezes, o inimigo é, no entanto, se podemos falar assim,
~orno o que se come . . . Concepção que bem corresponde à hosti-
"nacionalizado". Dois mitos, de que se falará adiante ("Koro-
hdade do grupo para com os Piaroa, "seus descendentes". 8
bona" e "Auké") mostram justamente este processo.
1 Assim, por exemplo, ZERRIES ("El Endocanibalismo en la America dei
Sur." R.MP. p. 159) cita uma tradição kaxináwa de um processo semelhante: por outro lado, devorado pela onça, é referido no mito como uma espécie
dos ossos de um caçador, morto na selva, e reanimados pela feitiçaria, nasce de anti-onça.
um tamanduá. Curiosa essa oposição "onça-tamanduá" . . . como Ualri, também Ucara
2 LÉVI-STRA.uss. O Pensamento Selvagem. p. 37 ct seqs. é concebido como antropófago, na caracterização de velho e tamanduá.
3 Ualri significa "tamanduá". V. observações de BõoIGER. Die Religion der ~ uma antropofagia que mais corresponde à antropofagia do feiticeiro
Tukano im nordwestlichen Amazonas. p. 134. mau que à antropofagia natural da onça (como representante de uma vida
•PEREIRA, Nunes. Moronguetá ... v. 1, p. 219-25. V. parte do mito repro- "5elvagem", pré-cultural).
duzido aqui à página 224. A oposição "onça-tamanduá" e a valorização diferente desses dois seres
IS Seqüência III do "mito de Inapirico", em que este pede o fogo ao sogro. míticos parecem ligar-se a influência e a reflexos distantes de duas correntes
Acreditamos que isto nos permite identificar o dono do fogo (e, aliás, tam- do pensamento mítico-religioso; uma procedente dos Andes, a outra proce-
bém da noite, conforme seqüência li) com Cunafare, embora no relato dente das Guianas.
a obtenção do fogo (e da noite) seja apresentada como episódio posterior. Quanto a Ucara, ele não foge para o céu, como acontece, na maioria
6 Talvez se pudesse mesmo aproximá-lo de Auké, (V. p. 267) pela sua das versões, com a onça antropófaga do mito dos gêmeos. Ele continua a
antropofagia reincidente, quando ressuscitado. Como Auké cai num preci- ex~stir duplamente, na forma humana, como os inimigos piaroa, e na forma
pício, Ucara cai de uma árvore, após o que é devorado pela onça. Mas ~ruma] , c?mo caça; tornando-se assim, o piaroa e a caça, simbolicamente
observe-se que este último é inteiramente estranho ao grupo; Auké, embora 1ntercam b1á veis.
9 Y ., por exemplo, as observações sobre a religião dos Nuer (com bâse nos
rebelde, é membro do grupo.
7 Não só pelo conhecimento do fogo que dele procedeu, como porque de seu trabalhos de Evans-Pritchard) de SAHLINS. "O Sobrenatural como um Sistema
corpo retalhado (o tema típico dos caçadores arcaicos ) , nasceram todos os Segmentário." Sociedades Tribais. p. 153 et seqs.
10 Bons exemplos encontram-se na mitologia guarani. V . ScHADEN. Acultu-
animais comestíveis.
8 Assim, se por um lado, Ucara corresponde de certa forma à função da ração Indígena. p . 103-43.
onça na história dos gêmeos míticos (por ser dono do fogo e antropófago) , V., entre outros, um mito de criação iíandéva (nota · 18, p. 123 ).
130 CAP. vn - UM OGRE ANTROPÓFAGO E . • • UM OGRE ANTROPÓFAGO E.. . 131

Sentindo-se irremediavelmente vencido frente a um inimigo pele 16 e pela sua voz de tro~ão 17 , pelo brilho de seus olhos que
muito mais poderoso, o grupo, muitas vezes, engrandece o vence- a habilitam a enxergar de noite.
dor em suas representações míticas, e, estabelecendo com ele algum Esta associação "olhos == fogo interno, fogo próprio" fica
laço de parentesco, torna menos humilhante a · sua derrota. 11 confirmada por um trecho mítico, recolhido entre os Kayuá por
E Ucara, o ancestral dos Piarôa? Bem, parece que as duas E. Schaden, 1 8 em que, após a onça ter ficado privada da visão no
tribos se defrontaram no passado em pé de igualdade e, a julgar "jogo dos olhos" 19 com o tamanduá e ter recebido novos "olhos
pelo mito, não deve ter existido miscigenação entre elas, a não ser de água" do macuco, 2 0 o Sol faz o seguinte comentário: "Se os
ocasionalmente, por rapto de mulheres, durante os assaltos. olhos da onça não ficassem lá em cima, no galho, a onça arranjaria
Outro problema é o da antropofagia de Ucara. No mito dos fogo outra vez. Se o tamanduá-bandeira não tirasse os olhos da
gêmeos, numa grande maioria de versões, procedentes das mais onça ela arranjaria fogo outra vez para queimar esta terra. Foi
afastadas tribos sul-americanas, os heróis, ao vingarem sua mãe, por isso que o Sol, a mandou virar bicho. Se arranja fogo agora,
eliminam seres mitológicos antropófagos que são as onças ou seus apaga logo, porque os olhos dela são pura água". (p. 114)
equivalentes. 12
Por sua vez, se o velho Ucara do mito yabarana é dono do que esta representação se prende a um culto felino muito antigo no con-
fogo, a onça do mito dos gêmeos, como já ficou dito atrás, igual- tinente.
16 V. nota anterior.
mente o é. 13 11 O trovão é comparado por muitos povos indígenas com o espoucar do
Por que a onça é dona do fogo? Por ser um animal solar, fogo; inclusive entre os Guaraní. CADOGAN. Ayvu Rapyta Ili. p. 46.
como a representavam as culturas andinas 14 e em áreas sob 18 ScHADEN. "Fragmentos da Mitologia Kayuá." RMP. Schaden refere também
sua influência . . . 15 E é um animal solar pelo colorido de sua uma variante colhida por ele no Posto Indígena C. Nimuendajú, e chama a
atenção sobre a distribuição do tema (p. 121).
19 Os Borôro (Enciclopédia Bororo li. p. 665) conhecem uma le~da em
11 O estabelecimento de um parentesco mitológico com o civilizado aparece que o Tamanduá arranca os olhos da Onça. Isto mostra como é vasta (e
também na mitologia guarani. V., por exemplo, ScHADEN. "Fragmentos da antiga) a distribuição de certos temas mí~icos (e, gostaríamos de acrescentar,
Mitologia Kayuá." RMP. p. 108: Aí foi que Nhanderuvuçu chamou o brasi- particularmente estes temas ligados à onça, lograda por outros seres, aparen-
leiro de uaixã (genro), porque ia casar-se com uma filha dele. Aí o para- temente mais frágeis, como o próprio jabuti ... ) na América do Sul. Como
guaio veio casar-se com uma filha de Nhanderuvuçu também. Tinha dois observou Egon Schaden, além de um mito semelhante recolhido por Wirth
genros já. (Do mito: '.'O Dilúvio, os Primeiros Homens e o Governo do entre os Wapitxâna, encontra-se uma variante do tema entre os Taulipáng
Mundo".) ( V . KocH-GRÜNBERG, "Mitos e Lendas dos fndios Taulipáng e Arekuná."
12 Uma das permutações do animal mítico é o gambá ou micura, que RMP. p. 135). Em lndianermiirchen (JUS Südamerika, o etnólogo alemão
corresponde efetivamente a um dos gêmeos, ao "Mikur mimi" do mito reeditou o mito (originalmente publicado no seu Vom Roraima zum Orinoco),
urubu-kaapor (Cf. HUXLEY. Aftable Savages. p. 217 et seqs.) e de outros notando que até então o mito só fora encontrado nas Guianas e tinha
mitos tupi, o que prova sua equivalência com a onça mítica, representando grandes semelhanças com outros mitos norte-americanos. Neste sentido, veja-
muitas vezes apenas seu aspecto negativo. Mas pode aparecer também, como -se, por exemplo, BoAs, F. Race, Langur.ge and Culture. p. 460: "Tbe
se verá em um mito do Uaupés, que será discutido adiante, como macaco second· group has a decided We~tern distribution, and is found ex~ensively
antropófago. Esta sua caracterização ou essa permuta onça-macaco aparece on the Plateau and on the Pacif1c coast; although some of the stones have
ainda em vários mitos brasileiros e deles se falará adiante. Uma terceira also crossed tre mountains, and are found on the Eastern Plains. To this
permutação, sobre a qual já Lévi-Strauss chamou a atenção, é a "onça- group belongs the story of the Eye-Juggler ... "
-cunauarú", particularmente nas Guianas e geralmente a rã representando 20 MAGALHÃES, A. Couto de. (Ensaio sobre a Fauna Brasileira. p. 113)
a mãe das onças.
1s Como dona do fogo a onça aparece também numa série de mitos jê, descreve o macuco ( Tinamus solitarius ) como extremamente astuto. O
analisados por Lévi-Strauss em Le cru et le cuit. caçador não consegue atraí-) o facilmente, nem mesmo imitando-lhe o pio
14 TIUMBORN. "El Motivo Explanatório . .. " RA.: '"Manifiestamente se con-
no período do acasalamento. " ... solerte como nenhum pássaro da mata,
ceptúa aq~i ai puma, ai condor Y. ai halcón como seres teriomorfos helíacos o lança mão de todas as suas faculdades instintivas de defesa, procura~~º
solares". espreitar quem está a piar e desenvolvendo nesse trabalho toda a penc1a
15 Como por exemplo na mitologia desâna (V. RE1cHEL-DoLMATOFF. D e- de que é capaz uma ave selvagem . . . " Certamente é por isso que, em~ora
sâna. . . p. 20), em que o Sol cria o jaguar para representá-lo neste mundo. viva percorrendo o matagal e nidificando rente ao chão, a ave dificilmente
"Le dió el calor de su poder y le dió la voz dei trueno que es la voz dei é presa do jaguar. (No mito, este passa a poupá-la por gratidão, por ela
Sol." J:: protetor da maloca e da criação em geral. Reichel (p. 58) já nota ter-lhe restituído a visão ... )
132 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E ••• UM OGRE ANTROPÓFAGO E. • • 133
Também os Sirionó (Bolívia) concebem os olhos, a v1sao, suprema e, segundo Hardoy, 26 a expansão desse estilo (chavin)
como uma espécie de fogo interno, e a tradução de uma das ex- coincidiu com a época da introdução do milho (entre os séculos
pressões d' "O canto matinal dos Sirionó" 21 o confirma: "antes IX ao VI a. C.) :
que ela apague seu próprio fogo" por "antes que ela feche os
olhos". 22 "Los motivos principales de la ornamentaci6n Chavín fueron el
Mas há talvez ainda outra explicação, como que comple- dragón hermafrodita, que simbolizaba la divindad suprema,· el
mentar, pois a associação, ao que tudo indica, aparece em algumàs jaguar y el ave (buho, halcón o c6ndor), que eran agentes de
áreas da mitologia indígena brasileira. la divindad; la serpiente; el pez fluvial y representaciones de ca-
};: que, apesar do exemplo desâna referido atrás (p. 130, nota bezas humanas y de felinos con rasgos humanos. . . . Todas estas
15), apesar da onça ser o totem de clãs 28 entre várias tribos in- representaciones eran de animales ajenos ai sitio de Chavín de
dígenas, apesar de certos ritos que lhe dão um destaque todo espe- H uantar pero existían en la no muy lejana selva oriental en
cial (como o m6ri entre os Borôro 24 ), e com toda a importância donde se cree comenzó a desarrollarse el culto y el arte que lo
que ela tem nos mitos, não se pode falar, verdadeiramente, de um representa". 27
"culto felino" entre os indígenas do Brasil, ao menos em época
atual. Por sua vez, estas mesmas culturas permutaram muitas in-
Nas culturas andinas, sim. A própria arqueologia o atesta, fluências com a América Central, particularmente, no que se refere
com os monumentos de San Agostin. !H" ao mito dos gêmeos míticos e do jaguar, da civilização olmeca,
Trata-se aí, em verdade, de um culto muito antigo. Na cul- que se estendeu também por Vera Cruz. (No início do período
tura chavin, o jaguar é um dos principais agentes da divindade formativo costuma-se admitir uma origem comum para as culturas
centro e sul-americanas.)
21 KELM, Heinz. "O Canto Matinal dos Sirionó." RA. p. 45. Mas, se no mito olmeca os gêmeos são realmente, como
22 Como simples curiosidade: Goethe expressou a mesma assoc1açao, em supomos, "filhos do jaguar'', 28 concebido como uma divindade
outras palavras: "Se nos olhos não houvesse qualquer coisa de Sol, nunca suprema da criação, nos mitos encontrados entre os nossos indí-
eles poderiam vê-lo". Apud UEXKÜLL. Dos Animais e dos Homens. p. 162.
23 Como, por exemplo, entre os Tukúna (OLIVEIRA, Roberto C. de. "O
genas · mostra-se uma certa indecisão quanto à identidade do pai
fndio e o Mundo dos Brancos." p. 66; do mesmo autor, "Aliança lnter- dos heróis.
clânica na Sociedade Tukúna.", RA . p. 19) . Entre os Kobéwa, os "Yaví- Ora este é o próprio Sol, mas sem que, ao menos expressa-
manawa" ("Filhos do Jaguar") reúnem vários clãs, tidos como emergidos mente, a onça seja mencionada como seu símbolo, outras vezes
no mesmo lugar. ~ subdivisão de frátria. GoLDMAN. The Cubeo. . . p. 97. ele é o próprio herói ancestral da tribo, ora o pai simplesmente
24 V. Enciclopédia Bororo, v. 1, verbete "Adugo" (p. 1-2) e "Móri" (p. 803-
-804). Note-se, contudo, que não se trata de uma homenagem à onça, muito não é mencionado. 29 Em muitas versões, principalmente nas ver-
ao contrário: ela paga com a vida, na caçada mori, a perda de uma vida sões tu pi, o jaguar é o pai, mas o "bom jaguar", opondo-se aos
borôro.
Observe-se como isto se opõe, no seu sentido, ao rito conciliatório que 26 HARooY. Ciudades Precolombinas. p. 319.
teria que ser efetuado, caso se matasse um puma ou um falcão, conforme 27 ld., ibid.
referido por TRIMBORN. ("El Motivo Explanatorio ... " RA. p. 33) , para 28 Infelizmente não tivemos oportunidade de ler The Jaguar's Children de
a cultura de Huarochiri: ''y, cuando alguien te mate, anualmente te sacará Michael D. Coe, de que G. Holtker apresenta uma resenha na revista
en una gran fiesta, poniéndote en su cabeza (de máscara) y sacrificará Anthropos 61 (1966-1 / 2), p. 349. Do resumo: Os "Filhos do Jaguar" eram
una de sus llamas, y en honor tuyo hará bailes ... '' os donos divinos do relâmpago, trovão e chuva. Todas as divindades da
25 Também na cerâmica condorhuasi é freqüente o motivo do felino (GON- chuva da América Central derivam deles. A representação dos "Filhos do
ZÁLEZ, A. R. "Contextos y Secuencias Culturales en el Área Central dei
Jaguar" em pedra ou cerâmio mostra figuras geralmente nuas, sem sexo,
NO Argentino." Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas. com face de traços infantis, olhos oblíquos e boca de cantos caídos" (a
p. 714-15). Segundo González, "la profusión con que aparece la figura chamada "boca olmeca" ).
29 Como por exemplo num mito waiwai (Karibe), a que se refere LÉVJ-
felínica sugere una importância religiosa o ritual muy grande, tal como la -STRA.uss (L'origine des manieres de table. p. 136), em que uma tartaruga
que se asigna en las altas culturas precolombinas especialmente en la America grávida é devorada pe1a onça, sendo seus filhos. nascidos de dois ovos,
Andina, a la figura similar dei felino provisto de longos colmillos" ( p. 708) . criados por uma velha.
134 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E •.• UM ÓGRE ANTROPÓFAGO E. . . 135
seus irmãos, ao seu povo, que acaba sendo exterminado ou quase togogo", teria o sentido de "confinado". 36 De qualquer modo, os
exterminado pelos filhos que vingam a mãe devorada pelas feras. 8o heróis que não mais conseguem descer do alto de árvores ou de
Dir-se-ia que na floresta equatorial a caracterização do Sol rochedos são realmente confinados e, durante este confinamento,
e da Onça .não combinam inteiramente, 31 não são facilmente inter- a morte é comumente sugerida de forma muito clara.
cambiáveis. Assim, no mito canela a que nos referimos atrás:
A onça é um ser antropófago. Se o temor que inspira é va-
riável de tribo para tribo, 32 pode-se dizer, contudo, que repre- "O pequeno, que sem a árvore não podia descer, ficou sentado
sentações como as dos Desâna (de protetor da maloca, protetor junto ao ninho. Ele quase morreu de sede e as araras velhas
da criação) são relativamente raras. Mais comumente é encontra- voando por cima dele, defecaram-lhe na cabeça a ponto dele
da como símbolo do inimigo. Em algumas línguas os termos que criar vermes . . . ., (Op. cit. p. 8~)
designam "onça" e "inimigo" têm o mesmo radical. 83 ~ verdade ~
depois que os filhotes de araras já se acostumaram ao me-
que, em alguns mitos, o jaguar revela o que Uvi-Strauss chamou nino (a ponto de o considerar como um igual?) que a onça apa-
de "uma vocação paternal" em relação ao herói, ª4 o que nos faz rece, prestando serviços ao herói, não sem devorar antes os filho-
rever nele o "bom jaguar" do mito dos gêmeos, tão bom que real- tes das araras . . .
mente, como aquele adota ou protege um filho estranho, este re- Teria tido a onça algo a ver com antigas cerimônias de inicia-
conhece como seu "Mikurmimi". ção, hoje parcialmente esquecidas? Há uma observação de Mircea
Os mitos jê a que nos referimos aludiriam a cerimônias de Eliade que nos faz pensar nessa possibilidade:
'
iniciação? Lévi-Strauss já chama a atenção para o fato de que
num mito borôro por ele analisado, 35 o sobrenome do herói "Bai- "No hay que olvidar, sin embargo que el Tigre-Antepasado mí-
tico esta considerado en toda la zona sureste asiática como el
so Em alguns casos, mesmo, é o pai que é morto pela onça má e é a ele. 'iniciante': es e/ que guía a los neófitos por la selva para iniciarlos
· em primeiro lugar, que os gêmeos míticos vingam. B o que acontece na ( en realidad para 'matarlos' y 'resucitarlos'). En otras palabras,
"Estória dos Gêmeos" witóto (PEREIRA, Nunes. Moronguetá.. . p. 482) es parte de un conjunto extraordinariamente arcáico". (El Cha-
e no mito kayuá publicado por ScHADEN ("Fragmentos da Mitologia Kayuá.'', m anisme. . . p. 268) 87
RMP. p . 112) em que o pai, Tupã, é morto pela onça.
31 Claro, se dirá que a caracterização do tamanduá e a da onça também Ainda hoje os ritos iniciatórios masculinos incluem, entre
não combina e, no entanto, são intercambiáveis. A nosso ver, há contudo muitas tribos, uma estada dos iniciandos na floresta, sob as ordens
uma diferença : a onça, o tamanduá, o sapo-cunauaru, o macaco-da-noite,
todos esses animais podem funcionar como auto-representações ou não,
de um guia, mas o chamado "tema de Jonas", embora presente em
enquanto que o Sol, ao que parece, mais comurnente funciona no terreno alguns mitos, :: is não parece ser muito comum entre as tribos
das auto-representações, como deus criador ou co~o herói mítico ancestral. brasileiras . ..
32 Enquanto, entre os Kobéwa, o jaguar só é temido no seu aspecto sobre-
natural (GOLDMAN. The Cubeo . .. p. 10), entre os Guarani ele é cercado ~:6 / d., ibid. p. 63 ( Lévi-Strauss baseia-se em Colbacchini. Em Enciclopédia
por uma série de tabus, como o mais temido dos inimigos. CADOGAN. "Animal Bororo, v. J. não encontramos referência a este sentido. ) V. também
e Plant Cults in Guarani Lore.'' RA. L'l10mme nu. p. 153 et seqs., para um paralelo entre os mitos jê e mitos
33 KocH-GRÜNBERG. "Les indiens ouitotos." JSAP. p. 157. O nome parece norte-americanos.
=
querer dizer "inimigos". . Bakairi, onça utoto. ABREU, Capistrano de. "Os ;H Segundo BÉoou1N. (Les Masques. p. 120) um mistério tibetano muito
a ntigo é a da nça do ''Diable Tigre Rouge", posteriormente transform ado
Bacaeris." ln: Ensaios e Estudos: crítica e história. p. 270: udo-do (onça);
udo, udoréri= inimigo. por influ ências do Budismo.
::s Um dos exemplos é, segundo Ehrenreicb, citado por KocH-GRÜNBER9
34 LÉvt-STRAuss. Du miei aux cendres, sobre o mito warrau de
(111dia11ermiirc/1en . . . p . 272 e 334) , um mito publicado por Nordenskiold
''Haburi", p. 158 e nos mitos jê do "dénicheur d'oiseaux" de que o
(procedente da Bolívia. " Por que as serpentes Boa não comem gente" ).
"mito do fogo" canela (resumido e analisado por Roberto da Mata em Outro é um mito borôro referido por LÉVI-STRAUSS (le cru et /e cuit. p.
..Mito e Antimito entre os Timbira." Mito e Linguagem Social. p. 81-83 ) 135 ) . Trata-se do mito "O Macaco Juko e a Onça Adúgo", Enciclopédia
é um bom exemplo. Bororo. v. 11. p. 615. O tema aparece também na América do Norte. V ..
35 Uvr-STRAuss. "Origine de l'eau, des par ures, · et des rites funebres." L<• por exemplo, KUNIKE ( Priirie-/11dia11ermiirchen. p. 14 : "Manabozho e o rei
cru et /e cuit. mito 2, p . 56-58. dos peixes··. Ojibwa).
,
136 CAP. VII - U M OGRE ANTROPOFAGO E .•• UM OGRE ANTROPÓFAGO E ••• 137
Tornam-se os ritos iniciatórios, entre populações nômades, dos "Arapesh" que M. Mead estudou na Nova Guiné 40 do que
de contingentes escassos, de uma forma geral menos violentos, a dos Astecas do Código Mendoza. 41
ponto de desaparecer a idéia de ser o neófito devorado pela fera? Mas, terá sido sempre assim?
A limitação de filhos, comum entre nômades, contribui para um Não seria possível que em tempos mais remotos (e mesmo
apego maior aos poucos que escapam da seleção natural, a ponto recentemente, em algumas tribos 42 ), as mães tivessem que ser
de não se conceber a sua perda devido a provas por demais seve- afastadas violentamente do palco da iniciação, para que seus filhos
ras? Afinal, de certa forma, os que escapam (o infanticídio sendo entrassem finalmente na sociedade dos homens, no mundo dos
igualmente um sacrifício) já passaram por uma espécie de inicia-
guerreiros, através de ritos a que nem todos conseguissem sobre-
ção. h lógico que, se maior ou menor densidade de população
tem realmente algo que ver com este problema, este fator só por viver? 43
si jamais explicará uma questão tão complexa que depende de Quem era o iniciador terrível? O jaguar ou a serpente?
tantos outros aspectos. Em todo caso, uma coisa é certa: a sua- Embora a serpente pudesse ter tido esta função em algumas
vidade da educação dos filhos entre os índios brasileiros. Todos áreas, acreditamos, a julgar mesmo pelos mitos, que no Brasil
os que viveram durante algum tempo em comunidades indígenas este papel coube principalmente à onça.
são unânimes quanto a este aspecto. Não há castigos, nem mesmo Entre os Barasana, o jaguar é realmente a força que castiga
há censuras. 39 O carinho de que se cerca os rebentos, aproxima o incesto. 44 A separação entre mãe e filho, pela iniciação deste,
a maior parte dos nossos índios muito mais do comportamento marca realmente o fim de uma situação "incestuosa". Seria esta
a concepção primordial? f: possível ...
39 Há uma série de mitos sobre a origem das Plêiades, em que um grupo Queremos chamar a atenção para um artigo de Hans Becher,
de crianças (geralmente sete) se transforma nesta constelação (também co-
nhecida no Brasil por "Periquitos" ) simplesmente por ter sido repreendido "Observações de Wilhelm C. G. von Feldner entre os Maxakarí 45
por sua mãe ou avó. · na Primeira Metade do Século XIX".
Nas Guianas, que apresentam outro mito de origem das Plêiades (mais Segundo o relatório, esses índios acreditavam então em um
particularmente de Orion), o de "Zilizoaibu" (taulipáng, o mito do herói
que teve a perna amputada) , as crianças que não são atendi.das pela mãe "ser terrível" ("Akjanam") . Este vive nas serras mais altas e é
quando pedem caxiri fraco transformam-se em Mauari, após porem fogo ele que provoca o trovão ("Taei"). É inimigo, especialmente, de
em muitos lugares (KOCH-GRÜNBERG. "Pelauenapen e seus Filhos." Vom
Roraima zum Orenoco .. . p. 108).
Entre os Borôro, meninos gulosos que roubam milho, matam a avó, 40 M EAD, M . Sexo e Temperamento.
sobem por uma corda ao céu, transformados em estrelas. V . DRUMOND, 41 A História Universal (Col. dirigida por Walter Goetz) , Espasa t. IV (entre
C. Contribuição do Bororo à Toponímia Brasílica. nota 32, p. 57. p. 604 e 605 ), publicou uma reprodução de seqüências desse código ("Escri-
Entre os Kadiwéu, a julgar pelo que escreve Lévi-Strauss (não temos tura Mejicana por Imágenes en la l:.poca de la Conquista Espaõola") sobre
à mão o livro de D . Ribeiro ... ) a transformação nas Plêiades (Nibetad) a educação das crianças no Império Asteca. A partir dos oito anos infun-
das crianças, que fazem muito barulho, após o cair da noite, é concebida diam-lhes medo, e depois castigos realmente violentos eram aplicados, além
mais como castigo a elas do que decorrência da repreensão materna. (LÉYI- da ração que recebiam (tortillas de milho) ser expressamente estabelecida.
-STRAuss. Le cru et le cuit. nota 1, p. 223 ) . Mas num curiosíssimo mito 42 Se na informação não há exagero, as tatuagens feitas com espinho de
cherokee, que liga o tema ao do aparecimento do primeiro (abeto), evocando palmeira, por ocasião dos ritos de iniciação masculinos, provocavam, não
um certo parentesco até com o mito de Jurupari, a castigada é a mãe mesmo: raro, mortes entre os Yuri (localizados justamente ao sul do Uaupés).
"Sete meninos fazem muito barulho e a m ãe, incomodada por isso, GlMP ERA. Las Razas Humanas. p. 135.
dá-lhes alimento com pedras. As crianças começam a dançar em círculos,
erguendo-se lentamente no ar. A mãe ainda consegue reter um deles, os
4
ª Mas não só os ritos iniciatórios são importantes. Outros, de que se falará
outros transformam -se nas Plêiades (em Cherokee, os " Meninos" ). O sétimo logo mais adiante, e em que a mulher e não o homem representava uma
aterrissa com tanta violência no solo que af unda no chão, desaparecendo. espécie de "divindade-dema", parecem ter centralizado as atenções em mais
Sua mãe chora todos os dias no lugar onde ele sumiu e assim ocorre um de uma tribo.
44 LABORDE. Mito y Cultura entre los Barasana, um Grupo Indígena Tukano
milagre: no lugar onde suas lágrimas caem como chuva, nasce um broto,
o primeiro pinheiro. Ele tem um coração de fogo e é o irmão das estrelas". dei Vaupés. p. 89.
(CRANE. Indianer Mi:irchen. p . 10-12). Note-se a incrível semelhança da parte 4
:1 Monoxó, pela grafia adotada na 2.ª Reunião Brasileira de Antropologia.
inicial com o mito kadiwéu. Nimuendajú refere ainda "Monacó" como autodenominação.
,
138 CAP. VII - UM OGRE ANTROPOFAGO E ••• UM OGRE ANTROPÓFAGO E . . . 139
. .
todas as mulheres. Acima dele, Matupa, criador de todas as coi- Aliás, na mitologia guarani, a onça mítica corresponde ao
sas, é quem ordena ao "rosnador" andar por aí e manda-o, enfim, mesmo conceito de "ser rosnador" associado a fenômenos meteo-
embora. Akjanam é possuidor de uma grande barba úmida, que rológicos como os relâmpagos e trovões. 411 ·

sacode a rosnar, fazendo dela caírem as gotas de chuva. 46 .t bem possível assim que originalmente existisse o zunidor
entre os povos em que encontramos algum mito de "onça com
Nimuendajú esteve entre os Monoxó um século depois 47 e
vocação paternal'' a rosnar (a favor do iniciando) contra a mu-
poucas informações pôde obter sobre sua religião. Diz-nos, con- lher. ;;u
tudo, que: Pode-se alegar que entre os Borôro em absoluto o zunidor
representa o jaguar; nem ao menos no mito de origem do aíge há
"A religião consiste num culto às almas dos defuntos (nyamí).
qualquer referência a esse felino. ;; 1 f, antes, como já foi visto
Este culto é privativo dos homens e dos meninos maiores de 12
em outro lugar deste trabalho, com mitos de origem da "serpente
anos. Todo o sexo feminino e os meninos menores são manti-
arco-íris" (e esta por sua vez relacionada com a origem das cores,
dos em ignorância ou mesmo propositadamente iludidos sobre o
que se passa entre os iniciados. Fazem-nos crer que as próprias inclusive da pintura da cerâmica e possivelmente relacionada à
almas dos defuntos passeiam de noite pela aldeia, metidas em pintura corporal entre os Borôro) que o mito de Rubugu tem
c~rtas vestimentas de 1náscaras (toktáub), e que o ruído noturno
analogias.
dos brinquedos do 'Cão' é voz dessas mesmas almas. O lugar do Mas há talvez uma remota lembrança de antigas concepções
culto é um rancho um pouco distanciado da aldeia, onde ne- na imagem que faz o borôro do aige como animal mítico: a des-
nhuma mulher jamais põe os pés. Não vi nenhuma manifestação crição não corresponde à figura de serpente. Muito mais se pode-
de culto solar ou lunar, mas é de notar que num poste (mi-manáum) ria pensar no "Wailalima" ("Tapirjaguar") dos Taulipáng, um
que levantam em certa época, para por ele descerem as almas do
céu à terra, se acham pintadas as imagens do Sol e da Lua". w CADOGAN. "Animal and Plant Cults in Guarani Lore." RA . p. 107-08. A
onça que escapa da vingança dos gêmeos (aqui se trata de uma onça fêmea,
(Op. cit. p. 59)
grávida ) é transformada por Kuaray no "ser barulhento" (noisome being);
um ser barulhento como o zunidor'?
Como se trata de indígenas que, apesar das constantes lutas .\ ~.o A impressão que se tem é que entre os Desâna, que têm o zunidor, mas
contra os Botocudos, mantiveram uma certa independência desde não o concebem como sendo a voz do felino, alguma influência andina mais
direta tenha acentuado as características protetoras da onça na mitologia.
os dias do descobrimento, 48 e como o leste do Brasil é uma área Não parece existir entre eles também nenhuma versão mais apagada do mito
mais resguardada de influências "modernas" dos Andes e da Amé- dos gêmeos. Contudo. o zunidor representa o barulho que fazem os "kusiro"
rica Central, acreditamos encontrar, nestas concepções e ritos, um ( ..tábanos", espécie de grandes moscas varejeiras) que invadiram o mundo
em seguida a uma série de pragas e feras, quais sejam os veari-maxsá,
estrato bem arcaico, exatamente o estrato cultural que correspon- seres enganadores que atacavam as malocas sob a forma de amigos e parentes
deu à difusão do zunidor no leste brasileiro. Que o brinquedo do ( REJCHEL-DOL MATOFF. Desâna. . . p. 23-24 ). Estes veari-maxsá aparecem
"cão" a que se referiu Nimuendajú representa, além da voz das também na mitologia dos Tukano propriamente ditos (ueari majsa) e, além
deles, os pijsubariyái, espíritos-jaguares antropófagos (FULOP. "Aspectos de
almas, igualmente a voz do "rosnador" Akjanam, cuja lembrança la Cu ltura Tukana - Mitologia." RCA . p. 340) . Curiosa é a origem do
talvez já esteja apagada entre os índios deste século, nos parece nome We'âri. Segundo REtCHEL-DOLMATOFF (Desâna ... p. 201 ), significa
muito provável. ·'raspar". Trata-se de um ápodo. de um ..homem-serpente". . . Estes seres
míticos são representados como enganadores, que raptam as pessoas, mas
não as matam.
46 Naturalmente não se pode afirmar que os Monoxó concebiam a Akjanam :'i l ALBJSETTI e VENTURELLI. Enciclopédia Bororo. V. li , p. 119 : "O Chefe
como onça. O pequeno vocabulário desses índios, coletado por NEUWIED Baitogógo apodera-se do espírito Aíje". Veja-se também as observações de
(Viagem ao Brasil. p. 509-10) não inclui a palavra usada para "onça", e DRUMOND, e. (Co11tribuiçào do Bororo à Toponímitl Brasílica. p. 45-50) .
mesmo nas línguas pataxó, macuní e malali (aparentadas ao Monoxó, segundo Rubugu, o herói que encontrou o aíge era do cl ã dos Paiwoe (bugios) e o
Nimuendajú) não encontramos palavras que pudessem indicar o sentido de clã que se tornou possuidor dele é o dos. Aroroe (larvas) . O adúgo (onça)
"Akjanam". é o ancestral mítico dos Baádo Jebáge Xebegiwuge e dos Baádo Jebáge
47 NIMUENDAJÚ. "lndios Machacarí", entre os rios Contas e Doce. Xobugiwuge, ambos pertencentes à metade "Exérae ·•• enquanto os Paiwoe
-i8 Segundo NIMUEN~º-AJÚ. o p. cit. C OS Aroroe são da metade "Tugarége''. DRUMOND. C. Op. cit. p. 30.
140 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E ••• UM OGRE ANTROPÓFAGO E.. . 141

mons~r? das águas em forma de onça, mas maior do que a anta, interior de cavernas. r.6 Parece-nos que a isto poderia levar uma
ser m1t1co que aparece como sedutor das mulheres em um "mito de modificação do género de vida, possivelmente em conseqüência
Amazonas" recolhido por Koch-Grünberg. 52 do contato com povos de cultura mais adiantada.
A nosso ver, trata-se de certas concepções de povos nômades Uma importante via de penetração das influências andinas
que passaram a simbolizar culturas ligadas ao rio ou talvez sim- foi sem dúvida o Amazonas, e é possível que a maioria das in-
plesmente (e isto parece ser também o caso dos Borôro), simbo- fluências penetraram por ele. :>i Mas é preciso não esquecer que
lizar o mundo inferior (o mundo das almas, o reino da morte 53) deve ter havido influências também do altiplano boliviano, da
que passa a ser concebido como aquático. civilização tiahuanaco. Por pouco importantes que tenham sido
quanto à cultura material, ao menos no que se refere às influências
Num estrato mais primitivo, parece-nos que não existe ainda mais recentes, elas podem ter tido uma importância maior no
uma diversificação clara entre "mundo exterior" (em que se inclui passado. Pelo menos, ainda não se pode ter uma idéia dos conta-
o mundo das outras tribos) e "reino dos mortos" ou, ao menos, tos que os povos pré-incaicos do altiplano mantinham com as
o caminho para se chegar .(as provas que se tem que enfrentar) áreas vizinhas e até onde penetraram estes contatos. 58 Caso se
a esse reino não difere do "caminho dos inimigos". 5 4 tratasse de povos canoeiros, sua penetração no Brasil, a partir do
Não nos parece, portanto, impossível que se tenham transfor- altiplano, . não teria encontrado os obstáculos das Cordilheiras,
mações em espíritos aquáticos 55 certas representações míticas de que marcam o trecho inicial de qualquer uma das entradas para
espíritos-animais terrestres e, como tais, imaginados· como tendo o rio das Amazonas, apontadas por Acuõ.a, a que já nos referimos
seu habitat (se podemos falar assim) no fundo da floresta ou no em outra parte do trabalho.
Por outro lado, é preciso não esquecer que, no caso das
:
2
K?c~-G~~NBERG. lndianermiirchen aus Siidamerika. p. 319. Neste mito, Guianas, parecem estar presentes muitas influências centro-ameri-
. Wa1lahma desempenha o papel de sedutor numa história de que "O canas. Em nota de rodapé, noutra parte deste trabalho, 50 chama-
Jacaré e as mulheres belicosas" dos Karajá (EHRENREICH. "Contribuições
f;ra a Etnologi~ do Br~sil." ~~P. p. 83-84) é uma réplica quase perfeita.
· ~o m,enos hoje em dia, a ultima morada dos ossos decorados dos mortos 56 Representação mítica que existe entre os Desâna. Protótipos gigantes das
bororo e a água. espécies animais, vivendo em cavernas, onde viveriam também milhares de
M Segundo LÉv1-STRAuss, os Kaxináwa dão este nome ao arco-íris (L'origine animais, guardados pelos porcos selvagens ( REICHEL-DOLMATOFF. Desâna . ..
des manieres de table. p. 89). p . 59) .
õõ o~ Umotina, ,d? mesmo grupo lingüístico dos Borôro (ScHULTZ, H . "Infor- 57 Mais ainda que a direção geral das migrações, no povoamento das Amé-
~açoes .~tno.~ra!~c~s sobre os Umutina." RMP. p. 99), acreditam numa ricas, foi de norte a sul. Na mitologia dos piro (perto de lquitos), o jaguar
º!1ça d agua :,, Dizem que onde tem onça d'água e sucuri, tem muitos é pai do herói tribal Tsla. Pouco antes deste mais seus três irmãos nascerem,
peixes gr~n~es! (Op . cit. p. 253 ) . Schultz observa, em nota de rodapé à os três irmãos do pai devoraram a mãe, ao esta se admirar do enorme
m~sma pagma: "Os Umutina mencionaram com freqüência a 'onça d'água'. piolho que catara na cabeça de um deles. :E: o nosso mito dos gêmeos,
Nao me parec~ !ratar-se ªl?Cnas d'.um animal de fábula. Verifiquei que em portanto. MATIESON. "Sketch of Piro Ethnography Based on Analyzed Text."
toda a ~mazon~a este ammal misterioso é mencionado pelos moradores. Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas.
Talvez seja a anranha". 58 E vice-versa. Sabemos que em época já próxima da conquista, os Chiri-
Os Krahó também acreditam em espíritos d'água, os "Kokridhô" re- guano (Guarani que se deslocaram para oeste) chegaram a ameaçar o Impé-
presentados em máscaras de dança. "No livro Da Vida dos Nossos Ani:nais rio Inca. Os Chiriguano atacaram também Jujui . A técnica ceramista do
de R. von .Ihering, foi-me indicado pelos Krahó o 'percevejo d'água' com~ noroeste da Argentina tem afinidade com a dos Kadivéu pelo emprego da
sendo o ammal representado pela máscara. Vários índios confirmaram espon- decoração com corda. Além disso, a influência andina se faz notar no estilo
taneamente esta indicação" (ScHULTZ, H. "Lendas dos lndios Krahó." RMP. da arte Kadivéu. Certa influência andina nota-se também na cerâmica dos
p. 151 ) . Contudo, segue-se adiante uma descrição que, se não tem nada a Payaguá (SCHMJDT. "Los Payaguá." RMP.), que tinham primitivamente
~er real:"1ente c.o m uma onça, também não o tem com um percevejo d'água: vasilhas com asas (que é um elemento tipicamente andino). Ora, os Payaguá
Marq.umh~ af1ri:na que o~ Kokri~ vivem n.as águas do Tocantins. Ele já eram índios canoeiros, que chegaram a penetrar no Estado de São Paulo,
os teria visto sair na praia. Os filhotes deitam no chão. Os adultos tão pelos afluentes do Rio Paraná, impedindo, no· início do século XVIII, muito
grande~ como as máscaras originais, pedem muito. A cantiga é tão 'forte paulista de atingir as minas de Cuiabá. E é bem possível que fossem eles
que nao gostava de ouvir. E imita: 'RRRRRRRR'. Têm chifres grandes os autores da cerâmica encontrada por Manuel Pereira de Godóy em
~u~~~~ acabam de vadiar no seco, voltam a mergulhar nas águas". Op. cu: Pirassununga (de uma parte da cerâmica que não é tu pi-guarani) .
50 V. p. 54, nota 46.
, UM OGRE ANTROPÓFAGO E. . . 143
142 CAP. VII - UM OGRE ANTROPOFAGO E •••

Talvez se pudesse dizer, até certo ponto, que se trate da


mos a atenção para a semelhança entre o nome "Wailalima", a
representação de um aspecto negativo do Sol, 62 pois, entre os
que ·nos referimos atrás e "Wala Yumu" (a deusa-mãe das águas
Tupinambá, 11a a "onça celestial" parece que era identificada como
dos Caliõa). uma estrela, " Ianouâre", que acompanha de perto a Lua, amea-
Parece que, em princípios da era cristã, havia se desenvol- çando devorá-la. Diz Abbeville que:
vido, em uma área indeterminada do Golfo do México (e quem
sabe com uma dispersão abrangendo o Mar das Antilhas ou mesmo "Quando a lua permanece muito tempo escondida durante o tempo
dele se irradiando), um culto a uma divindade aquática ("jaguar- das chuvas acontece surgir vermelha como sangue da primeira
-serpente"), cuja influência se faz sentir em Teotihuacán, logo vez que se mostra. A/irfnam então os índios que é por causa da
no início do período clássico. 'w estrela januare que a persegue para devorá-la. Todos os homens
pegam então seus bastões e volta1n-se para a lua batendo no chão
' Ainda discutiremos essas correlações. Se falamos nelas não com todas as forças e gritando, eicobé cheramoin goé, goé, goé,·
é porque achamos que, desde que tenha existido um culto como eicobé cheramoin goé, au, au, au, boa saúde, meu avô, boa saúde.
o que acabamos de referir, necessariamente representações com~ A s rnulheres, porém, têm medo da morte e por isso gritam, cho-
as de Wailalima tenham que decorrer de influências externas. As ram e se larnentam". 414
influências são sempre recíprocas. Quantas concepções centro-
-americanas não terão tido suas raízes em representações de povos (Um charivari, portanto, como outras tribos fazem por oca-
nômades localizados na América do Sul! A prova é que, em s1ao dos eclipses.) r.r.
:h contudo, curioso como na mitologia brasileira, em geral,
algumas áreas, nem sequer existe a espécie ou as espécies animais ' . . . .
o Sol dificilmente aparece como maléfico. Nos mitos que tivemos
sob a forma das quais certas divindades são cultuadas.
em mãos, o sol nunca aparece com aquela caracterização terrível
O que nos parece importante é ressaltar desde já certas ana-
de monstro devorador, de velho canibal, como ocorre em alguns
logias opostas que se notam: um elemento com as mesmas caracte-
mitos norte-americanos. ""
rísticas (ou com características análogas) e até com nome igual Na mitologia do Alto Rio Negro isto naturalmente se explica,
ou semelhante ao de uma divindade cultuada numa determinada em parte, pelo fato de que Sol e Lua são c.oncebidos ~orno dois
região pode, numa área vizinha, aparecer com uma conotação aspectos (diurno e notu.rno) da mesma entidade, fup~1onando o
sinistra, oposta, sem receber qualquer culto. aspecto noturno como catalisados dos caracteres malef1cos.
Voltando à mitologia, o que vem a ser essa onça celestial No mito de criação dos Desâna, é o Sol que comete incesto
que escapa da vingança dos gêmeos míticos? O fato de ser con- com a filha. A Lua, no entanto, é que é o ser maldito, só porque
cebida como fêmea e grávida pelos Guarani, como citado atrás, tentou conquistar a Filha do Sol. 07
deve-se em parte à questão dessa onça celestial representar o pro- Acreditamos que, apesar de muitos temas míticos terem ape-
tótipo da espécie. n1 nas a função de representar a exageração perigosa de determinados
Contudo, apesar de ser ela concebida como ser masculino fenômenos, concebidos num plano puramente ideal, mesmo assim
em quase todas as outras versões que conhecemos, não quer
02 Desde que, naturalmente, se conceba uma diferenciação entre Sol e Lua .. .
dizer que se trate propriamente de uma representação do Sol.
ua ABB EVILLE. História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha do Mara-
nhão e Terras Circunvizinhas, referido também por LÉv1-STRAUSS. L'origine
ao .. Pífia Chan considera que la pirámide dei Sol fue construida a principios d es manieres de cable. p. 71.
de T eotihuacán J l ( 100-250 d.C.) coíncidiendo con un período de coexis- G-t ABBEVlLLE. Op. c ir. p. 247.
tencía de dos culturas, una de ellas altamente esotérica que trae un arte G:i Os Kaapor (Urubu ) de hoje ainda apresentam muitos elementos da cult{&ra
abstracto y desarolla un elevado culto intelectualizado ai dios dei agua desses a ntigos Tupinambá. HUXLEY (Affah.le Savages. p. 41) assistiu, entre
(jaguar-serpiente) y que ai parecer provenía de la costa dei golfo ... " HAR· eles, a um charivari, assim por ocasião de um eclipse de lua.
oov. Ciudades Precolombinas. p. 107. ü6 A que se refere Lévi-Strauss. em Le cru et /e cuit. p. 297 e em outras
111 Ainda segundo CADOGAN (''Animal and Plant Cults in Guarani. Lore.''
partes dos "Mythologiques''.
RA .) concebe-se os animais atuais como imagens imperfeitas de protótipos t.i i REICHEL-DOLMATOFF. Desána ... p. 17.
enormes e eternos.
UM OGRE ANTROPÓFAGO E... 145
144 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E . . •

O mesmo ocorre nas concepções dos Kaiapó: "Até hoje


as condições climáticas em que vivem os povos tenham algo que
para os Kayapó, a Lua é aitchuêra (má) enquanto o Sol é meitir~
ver com a acentuação dessa caracterização benéfica do Sol.
(bom) , e isto apesar de sua antiga fama de valentão e perseguidor
Não sabemos também até que ponto Lévi-Strauss 68 tem
da família humana" . 7 2
razão ao criticar M. 1. Pereira de Queiroz, por esta ter sugerido,
E os Tupari não caracterizam o que parece ser um fenômeno
baseada em Nimuendajú, que a cerimônia do "Grande Jejum"
comum em tempo de seca, 73 como doença e fraqueza do Sol
( cerimônia complexa e importantíssima, que tem por finalidade
(como se uma entidade tão boa somente por doença não pudesse
aplacar a ira do Sol e apressar o fim do período seco) tenha se
corresponder às expectativas)?
originado quando os Xerénte se encontravam (num passado mais
N ão é, portanto, o Sol que se identifica com a "onça celeste".
ou menos remoto) numa região mais árida do Nordeste. Afinal,
Nimuendajú não se baseou tão só na mitologia ... Só q~and~ .º p~i d?s gêD?eos é definido como a "onça boa", é que
esta 1dent1f1caçao e poss1vel. (Assim, Mení, o pai de Méneri-Yá
Ainda que a maior parte das entidades míticas se caracterizem
do mito barasana que se analisará adiante, é sem dúvida o Sol'
pela ambigüidade, após ter-se cristalizado a concepção de determi-
mais ainda que o seu nome corresponde ao Mini (Sol) do Umotin~
nada entidade como benéfica por excelência, é mais difícil atribuir-
e ao M éri (Sol) do Borôro.)
-se-lhe ações maléficas.
Por exemplo, J. Cândido Carvalho refere-se a dois incê.ndios Como a onça que escapou da vingança dos gêmeos míticos, 74
ela é representada freqüentemente como um ser mutilado. No mito
terríveis, na região de Barcelos e Baixo Rio Negro: o primeiro
barasana, por exemplo, são as piranhas que lhe devoram uma
em 1912, durante um forte verão, em que a floresta queimou
das patas.
durante vários meses, impedindo a navegação; o segundo, em
1926, lavrou durante mais de um mês, com grande destruição da E muito provavelmente é neste mito que temos que procurar
fauna. 69 Pode-se imaginar o que deve ter representado um in- a orige_m da crença, referida por Câmara Cascudo, na "Onça Ma-
cêndio desses que, provavelmente, também em tempos pré-colom- neta". 15
bianos ocorria, de quando em quando ... Mas isto nos leva a pensar também em um mito tukuna,
Como a correlação entre Sol e fogo é uma idéia mais ou analisado por Lévi-Strauss, 7 6 em que o irmão do chefe dos ma-
menos geral, poder-se-ia admitir que algum mito responsabilizaria cacos, junto aos quais "Cimidyue" (a heroína) vive algum tempo,
o Sol pelos prejuízos. Entre nossos indígenas, não. O bom con- revela-se na realidade "Venkicà" (uma onça antropófaga). Para
ceito que tem o Sol é tão arraigado que, não os índios do Uaupés, escapar, Cimidyue machuca Venkicá no joelho e este se transforma
neste caso, 70 mas os Umotína atribuem a culpa de um incêndio em Orion, constelação a que os Tukuna atribuem os eclipses da
mítico à Lua não ao Sol. 11 L ua. Nunes Pereira 77 recolheu outra variante do mito entre os
!uku~a , q~e publicou com o nome de "Lenda de Djaê". O qué
68 Após comentar o mito de Asaré (Le cru et /e cuit. p. 206) e outros temas. e cunoso e que a peregrinação de Cimidyue ou de Djaê se inicia
V. op. cit. p. 297. exatamente pelo mesmo motivo que a da mãe dos gêmeos míticos:
O mito de Amorim a que Lévi-Strauss se refere como tema do sol
maléfico, na Amazônia, é o mito de Dué: "Um dia, Dué se lembrou de
matar toda gente sobre a terra. Fez um sol grande, matou tudo . . . " Contudo, Pudleré (herói de caráter lunar, que não consegue pegar o enfeite de cabeça
Dué não é o Sol, e o sol que ele fabrica é um simples instrumento, não em cha~as, que Pud lhe joga) , que provoca o incêndio. SCHULTZ, H . "Lendas
um personagem. O mito mundurucu a que Lévi-Strauss se refere (segundo dos índios Krahó." RMP. p. 57.
Stromer) não conhecemos, infelizmente. Mas há um mito bakairi (ABREU, ~ 2 BANNER. "Mitos dos lndios Kayapó." RA . p. 49.
13
Capistrano de. "Os Bakairi." ln: Ensaios e Estudos: crítica e história. p. A cor vermelha e esfumaçada do sol, devido às queimadas durante a
228) em que o Sol aparece como destruidor que tudo seca. Ainda assim, seca. CASPAR, F . Tu pari. p. 169.
é rara a concepção dele como entidade maléfica. ~4 Nem sempre é uma onça só que escapa. Na versão Urubu-Kaapor são
69 CARVALHO, J. c. Notas de Viagem ao Rio N egro. p. 16.
70 Não sabemos se também no Uaupés existe uma versão desse mito.
7_~as (um casal;). Hm:LEY. A f/able S~vages. p.. 218.
C~scuoo, Luis da Camara. Geografia dos Mitos Brasileiros. p. 397.
71 ScHULTZ, H. "Informações Etnográficas sobre os Umutina." RMP. p. 230: .ci LEv1-STRAUSs. "Mesaventures de Cimidyue." L'origine des manieres de tab/e.
O Sol e a Lua roubam a panela das ariranhas, mas esta está muito quente p. 92.
e a Lua a deixa cair, provocando um incêndio em que ela própria é queimada. 77
PEREIRA, Nunes. Moronguetá . . . v. II, p. 473-77.
Entre os Krahó, há outra versão do mito, sendo também a imperícia de
146 CAP. VII - U M OGRE ANTROPÓFAGO E •• • UM OGRE ANTROPÓFAGO E... 147

em busca do mari:io· que a deixou para trás. . . E, se atentarmos anta (dona da árvore dos frutos). ~ quando Makunaíma tem uma
bem, encontraremos uma série de analogias entre um e outro mito. perna amputada e assim se transforma em Orion. 88
Parece que o mito dos heróis gêmeos penetrou em quase Não se pode esquecer que o mito dos heróis gêmeos é, na
todos os rincões do Brasil, sendo, como era de se esperar, absor- realidade, uma história de adultério. Aliás, a idéia de que, em
vido de forma diferente, é claro, por cada tribo indígena. Quanto caso de nascerem gêmeos, devem existir dois pais (um dos gêmeos
aos Tukúna, os gêmeos míticos nada têm a ver com Cimidyue- ser adulterino) , existe de uma forma geral em todas as tribos indí-
-Djaê, pois eles nasceram de um tumor (causado por uma picada genas do Brasil. 84
de vespa) no joelho de Nutapá. Assim mesmo, o tema da luta dos Mas, se Orion é na realidade a "onça má'', então parece
irmãos (Djói e lpi ) contra a onça está presente; desta vez para existirem duas correntes de apreciação por parte da cultura, a res-
vingarem o pai (um pai materno, como se vê) , pois este foi
devorado por uma onça, aliás, curiosamente, por ter escorregado peito do tema.
No mito dos gêmeos, estes, que se identificam com os pró-
de uma ponte e caído na água, exatamente pelo mesmo motivo
pelo qual a onça assassina cai na água e é devorada pelas piranhas prios heróis tribais, vingam a mãe, cujo pecado na realidade se
criadas por Djói e lpi. (Este fato, mais . o "aleijão" no joelho, omite no mito ou aparece apenas sugerido. Muitas vezes, ela é ·
bem parece indicar que Nutapá e quem o devorou sãc os dois apresentada mais como vítima das circunstâncias. De qualquer
aspectos opostos da mesma entidade.) modo, o mito enfatiza muito mais a maldade da onça que devora
Mas, se a onça má é Orion, então ela corresponde exatamente a mulher do que da mulher que trai o marido. Nos mitos de
a Jilijoaíbu que se transforma em Tamekan (Plêiades). 78 Orion, é este, o mutilado (e por vezes mutilado pela própria mu-
Há um grande número de versões da Origem de Orion, o lher adúltera) , que é o herói, inocente na maioria das versões, em
unijambista, particularmente nas Guianas. 79 Numa delas, por uma delas subindo ao céu, tocando flauta, estóico em sua dor,
exemplo, 8 0 a mulher de Serikoai (Orion) é er.feitiçada (seduzida) dando sábios conselhos ao irmão que, se não o traiu propriamente,
por um feiticeiro-anta, 8 1 que lhe dá um machado mágico que a ao menos nada fez para ajudá-lo ... 8 1>
leva a amputar a perna do marido, quando este sobe em um Não muito longe das Guianas, vítimas-divinizadas, reencar-
abacateiro. Socorrido peia mãe, o aleijado, com uma perna de nações de Tezcatlipoca, subiam outrora os degraus do altar, que-
pau, mata a anta, cuja sombra assiin mesmo persegue a mulher brando em cada um deles uma flauta, sozinhos e estóicos, para o
até o céu. Serikoai segue atrás deles. sacrifício final ... 8 6 Seria simples coincidência?
Em um mito, também karibe, 82 a mãe de Makunaíma e Pia Claro que, se não é coincidência simplesmente, se existe
é morta pelo jaguar, quando, em sua busca pelo marido, o Sol, alguma influência de uma cultura sobre a outra, não a podemos
chega à morada de Kobo(bo) =
aru (a sapa, mãe das onças, que
83 Koch-G rünberg observa que ao mito dos gêmeos se juntaram dois outros
tenta, inutilmente, escondê-la). Segue-se uma passagem em que
episódios (um da árvore universal, o outro de Orion) pertencentes a outros
os gêmeos, salvos, continuam à procura do pai e arpoam uma mitos. Na realidade, existe uma unidade: percebe-se que, sendo a anta o
aspecto maligno do pai (o Sol), a busca realmente termina no céu, com
78 KocH-GRÜNBERG. "Mitos e Lendas dos lndios Taulipáng e Arekuná." a mutilação de Makunaíma ("o grande malvado" ), que se opõe a Pia
RMP. p. 65. (seu aspecto benéfico) e é assim, na realidade, uma reedição da "onça-má".
84 Veja-se o que foi dito atrás sobre o mito de "Viti-Vití" {p. 93 et seqs.)
79 Kocn-GRÜNBERG, no capítulo traduzido sob o título de "Parentescos e
Analogias" (Op. cit. p. 154 et seqs. ) , refere uma série de versões do mito 85 "O ferido lá fora se ergueu no esteio da porta, subiu no teto, tocou na
taulipáng de Jilijoaíbu (Jilikawáí, na versão Arekuná): algumas recolhidas sua fl auta de bambu: 'tin-tin-tin'. O irmão dentro da casa chorava, pois
por Brett (uma, entre os Akawoío, outra de fontes karibe, que é a de tinha pena dele. Este tirou a flauta da boca e disse para o irmão: 'Fica
Serikoai.) ; outras recolhidas por Rotb, a de Epetembo, dos Galibi ( Karibe na casa! Vou-me embora! Junta uma boa família, mas tem cuidado com a
de Surinam), além de variantes warrau (Roth e Pena rd ) . e do mito de mulher e desconfia sempre dela!' O irmão perguntou: · 'Para onde vais?' Ele
Pecbioço (Macuxi), segundo Barbosa Rodrigues. respondeu: 'Vou para o céu. Quero ser T amekán, corpo com uma perna
80 BREIT. Apud KoCH-ÚRÜNBERG. India11ermiirchen aus Siidamerika. p . 86. que fi ca para trás!'" (KocH-GRÜNBERG, "Mitos e Lendas . . . ", RMP. p. 67) .
86
s1 Figura mitológica característica de amante, sedutor. V: SÉJOURNÉ, transcrevendo Sahagún : Pensamiento .v R eligión en e/ México
82 Koc H-GRÜNBERG. Indianermarchen . . . p. 78. A nt1g 110. p . 180-8 1.
148 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E •••
UM OGRE ANTROPÓFAGO E... 149
exagerar, por outro lado: Serikoai, Epetembo, Jilijoaíbu são figu-
ras míticas a que, aparentemente, não se presta nenhum culto. si Também entre os Urubu-Kaapor, é Maír, na sua caracteriza-
ção de Maír-mimi, no que procura ser imitado como ideal-tribal:
Não são heróis tribais. O modo como o mito se apresenta pode
denotar uma atitude de maior ou menor aceitação com respeito "Formal manners, feather ornaments, paint: these not only mark
ao comportamento do herói, mas <l:e certa forma este, no caso, the Urubus as being caápor-té, true Indians, but are the signs of
não parece representar nenhum ideal tribal. Qual deus ocioso, an ideal they are constantly trying to realise in heir lives - the
o unijambista retira-se definitivamente para o céu estrelado. ideal o/ being hantan, hard, like their culture-hero Maír". 91
Parece que não se pode dizer o mesmo com referência ao
mito dos gêmeos. Estes, identificados com o Sol e a Lua em várias Outros exemplos poderiam ser dados ...
mitologias, constituem-se em heróis civilizadores de várias tribos Note-se bem: se Maír-mimi é uma reedição do pai (o Sol,
brasileiras. E, mesmo quando esta sua caracterização é posta em a "onça-boa") e como tal se opõe a Mikur-mimi (caracterizado
dúvida, 88 percebe-se que o Sol representa, entre muitas delas, freqüentemente como Lua), este último por sua vez pode ser
justamente o padrão de caráter masculino valorizado pela cultura. considerado uma reedição do aspecto negativo, sinistro, do Sol,
Assim, o "Sol é o indivíduo ideal para a comunidade timbira: não como "onça-má", o que se confirma, de certa forma, pela .lenda
de Makunaíma e Pia, referida atrás, em que Makunaíma tem uma
briga, cede ante os rogos impertinentes e importunas do compa-
perna amputada.
nheiro, é modesto, quieto, acomodado, não faz valer seus direitos
Percebe-se, assim, que, nas Guianas, duas correntes ideoló-
(embora convencido deles) a fim de não desencadear disputas,
gicas diferentes se encontram: pois o herói tribal que mais se des-
pois evita o mais possível as brigas". so taca é Makunaíma e não seu irmão mais velho (Pia ou Jigué).
87 Embora possa haver, eventualmente, alguma festa pela volta das Plêiades.
As ações de Makunaíma, a julgar pelos textos míticos, não são
Estas têm certa significação, praticamente, em todas as tribos do Brasil. propriamente desvalorizadas pela cultura. Em outra parte deste
Seu aparecimento em junho marca, na região amazônica, o início de um trabalho, chamamos a atenção para umas observações de De Goeje
período mais chuvoso (daí a associação: "origem de Orion" = "origem dos sobre o caráter trickster de uma aranha mítica da Guiana Inglesa,
peixes". V. LÉVI-STRAUSS. L'origine des manieres de table. p. 29. como decorrência de determinadas situações de contato entre o
Na Amazônia, as "Três Marias", o cinto de "Orion", é chamado Arara-
pari (o Pari da Arara) , que aparece no mito da "Origem de Piripirioca" " primitivo" e a civilização. Poderia a ênfase em Makunaíma, e
(AMORIM. "Lendas em Nheêngatu e em Portuguez." RIHGB. p. 115). V. não no irmão mais velho, ser explicada por situações análogas,
também CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do Folclore Brasileiro. p. 240: surgidas quando um grupo mais fraco se defronta com outro que
"Epépim dos Macuxis é o Araparí ou Ararapari dos T apuios." RODRIGUES,
Barbosa. "Complemento da Poranduba." Anais da Biblioteca Nacional. p. acaba, de certa forma, por dominá-lo? Achamos que essa possi-
60-61 : Orion é o Ararapari, "as cercas dos currais de peixes". O Sete bilidade existe e mereceria ser investigada, o que, evidentemente,
Estrelo (ltapitiontára) é invocado pelos Wanana, nos rituais da 2.ª iniciação só seria possível desde que se conseguisse reconstituir a história
(a mais importante) dos rapazes. Segundo AMORIM (Op. cit. p. 55), pede- desses povos. Pensamos que um estudo comparativo da mitologia
-se-lhe que adoce as falas do rapaz e que o faça calar os segredos de
Mahsankero. GIACONE (Os Tucanos. . . p. 117 ) refere uma lenda em que mais os conhecimentos que vão sendo obtidos através do estudo da
ocorre uma troca dos filhos de Orion (Araraparí-Paia) e o de Plêiades cerâmica arqueológica podem fornecer, em linhas -gerais, uma base
(Ciuci-Paia), pois as Plêiades propriamente ditas correspondem, no Uaupés, para essa reconstituição ...
a Seucy, a mãe de Jurupari.
88 QUEJROZJ M . I . P. de. "Organização Social e Mitologia entre os T imbira l>O HUXLEY. A ffable Savages. Huxley observa que ambos, na realidade, são
de Leste." Revista IEB. · p . 109. Entre eles, é antes a " moça-estrela" que equivalentes ao pai, conforme passagem que reproduzimos a seguir:
corresponde à definição de~ herói-cultu ral . "They go to find their father. He is making bows for them, a tacit
89 "Lua é criatura arrogante, exigente, insatisfeita, que insiste em satisfazer avowal that he is their father: for men not only make bows and arrows
todas as suas vontades, que rezinga e briga por qualquer coisinha, que for their sons, but present them with miniature ones, together with tawari
impõe a prioridade de seus desejos sobre os desejos dos outros e que por cigars, fi re-sticks and macaw feathers, when they are born. The twins turn
isso mesmo acaba levando na cabeça e fazendo papel ridículo; é, pois, o the bows into snakes, which frightens Maír so much that he runs away:
tipo desprezado pela civilização timbira" (Op. cit. p. 108) . it is clear they are his equals .. .'' (p. 222).
!l t ld., ibid. p. 65.
,
150 CAP. VII - UM OGRE ANTROPOFAGO E • •• UM OGRE ANTROPÓFAGO E ••• 151

Voltando ao ogre antropófago do mito dos gêmeos e à lenda mas como afins de um dos ancestrais 95 ), no mito dos gêmeos,
de Orion, pode-se perguntar: o que tudo isso tem a ver com a tal qual ele se apresenta numa grande parte das tribos do Brasil,
mitologia do Alto Rio Negro? pode ser interpretada como o símbolo da passagem de uma vida
Permita-se-nos apenas, como uma simples manobra de xadrez, de inteiro nomadismo para uma vida mais sedentária, centralizada
substituir um instante Jilijoaíbu-Tamekan por seu equivalente (sob numa maloca ou aldeia de população mais densa.
um aspecto sinistro) , a onça antropófaga e maneta do mito dos A pesca, como atividade econômica dominante, a utilização
A
gemeos . .. da canoa, contribuíram tanto quanto o plantio da mandioca 96
Teríamos um ser antropófago, sujeitando-se estoicamente à para uma sedentarização da vida, particularmente na região de
punição que a sua própria gente lhe inflinge, subindo ao céu, que estamos tratando, onde a localização da maloca, proposital-
tocando uma flauta . . . o que lembra, de certa forma, estranha- mente junto a uma cachoeira, Ili permite uma navegação livre
mente, o sacrifício de Ualri-Jurupari. ..
(sem obstáculos até as próximas cachoeiras, rio acima e rio abaixo)
Voltando ao simbolismo da onça ...
Deixando de lado as concepções desâna e barasana (em que num perímetro que parece suficientemente grande para permitir
transparece um verdadeiro culto ao jaguar) , 92 parece que muito um suprimento diário e, ao mesmo tempo, o retorno diário à
raras vezes a onça funciona como uma auto-representação tribal maloca. fl M
entre os indígenas do Brasíl. Como dissemos atrás, a identificação A importância da pesca é ressaltada por todos os que escre-
entre "onça" e "inimigo" 93 parece muito mais freqüente. Além veram sobre a região. Giacone trn fala mesmo que aí o índio tem
disso, este animal parece simbolizar a natureza, o mundo selvagem,
opondo-se ao humano, à cultura. 1i5 Com certeza a diferenciação entre totem e ancestral que Latcbam faz
Frikel 94 observa que nas tribos karibe do Pará setentrional questão de manter ("The Totemism of the Ancient Andean People". p. 59),
considerando o totem como aliado do ancestral do clã e não ancestral
as tribos bravias é que são chamadas de kakui (onça). Talvez propriamente dito, encontra sua explicação aqui. Daí também, quando se
isto comporte uma explicação complementar. inclui o animal mítico na linha ancestral, ele se tornar, de preferência, avô
Se as tribos da mata, particularmente as inimigas, as mais e não pai. DUR.KHEIM. Les formes élémentaires de la vie religieuse: le
temidas, são identificadas com as onças, porque a onça é também systeme totémique en Australie. p. 240: "Les Matais des Pbilippines consi-
derent Je crocodile comme leur grand-pere; le tigre est traité de la meme
o inimigo animal mais temido; vice-versa, a onça será dona do maniere et pour la même raison". Assim, num mito tsimsbian referido por
fogo também por outra razão: porque os nômades caçadores-cole- DuRKHElM (Op. cit. p. 200) são os descendentes da irmã do herói caçador
tores são, mais do que os povos sedentários,. donos do fogo. Estes que vai morar com os ursos que passam a usar o emblema do urso. Também
últimos preservam com facilidade o fogo, não o deixando extinguir entre os negritos semang, o médico-feiticeiro (que tem o poder de se trans-
(o que lhes possibilita o seu sedentarismo)·, ~' embora geralmente form ar em onça) invoca, não diretamente a Kari (divindade que representa
o raio, a tormenta), mas os espíritos cenoi·, os sobrinhos de Kari (ELIADE,
dispondo de instrumento para o obter, dificilmente dele se servem. M. El Chamanismo y las Técnicas Arcáicas del ~xtasis. p. 267) . Acreditamos
Os nômades da floresta, ao contrário, são obrigados a saber fazer que o exemplo dos Kobéwa (uma subdivisão de frátria é chamada "Yavima-
fogo, e a qualquer momento. nawa" = os filhos do jaguar .. ·. · GoLDMAN. The Cubeo . . . ISA . p. 97)
Tudo indica, portanto, que a eliminação dos ancestrais "on- apenas confirma nossa idéia, uma vez que a sedentarização Kobéwa é bem
recente . . . ' ·
ças" (concebidos geralmente, aliás, não como ancestrais diretos, fl u Apesar da transformação da mandioca em alimento ser bastante traba-
lhosa, esta raiz tem a vantagem de produzir durante o ano todo.
92 Que atribuímos à influência andina, como já foi dito .. . ?ti Vantagem de localização já posta em realce por LAMUS, L. R. Rodrigues
93 Como ocorre na língua bakairi (V. p. 134, nota 32) . ("La Arquitetura de los Tukano.'' RCA . p. 257 ).
94 FRIKEL. "Tribos Indígenas do Pará Setentrional." RA . p. 135: "Os kakui ns A distância média entre uma e outra maloca realmente não ultrapassa,
('onça') são portanto as tribos bravias. Explicam-se assim certas informações em gera], um dia. ~ um dos aspectos que se reflete nitidamente nos textos
em parte mal interpretadas pelos exploradores, quando, por exemplo, os míticos. V. , por exemplo, FULOP. "Aspectos de la Cultura Tukana - Mito-
índios lhes afirmavam que os antepassados desta ou daquela tribo tinham
sido 'onças bravias'. O que queriam dizer com isto era: eles descendem de logía. " RCA . p. 350-56. •
l)O GIACONE. Os Tucanos e Outras Tribus do Rio Ua11pés. p. 58.
tribos bravias, são selvagens aculturados".
,
152 CAP. VII - UM OGRE ANTROPOF AGO E .•• UM OGRE ANTROPÓFAGO E ••• 153
uma verdadeira paixão pela pesca, que é a sua atividade prefe- irmãos, concebido como parente ou aliado do ancestral, que é
rida. 100 responsável pela morte da mãe e contra quem se dirige a vingança
O peixe, complementado principalmente pela mandioca, for- dos gêmeos ou de seu equivalente.
ma assim a base da alimentação. Parece-nos 105 que isto não deixa de representar uma velada
Os frutos selvagens tiveram sem dúvida a sua importância acusação de selvageria contra clãs menos civilizados da mesma
diminuída. Até mesmo em relação à pupunha ( Guilhelma gassi- tribo, ou contra alguma tribo já absorvida com que foi mantido
paes H . B. K. Bailey), que, aliás, é planta cultivada na região um intercâmbio matrimonial, acusação que, para a linhagem do-
(ao contrário de outras árvores frutíferas, 101 a atitude do índio minante, garante a imposição da civilização.
pode ter mudado um pouco, apesar de sua importância como ali- Já nos mitos que se enquadrariam, em linhas gerais, no tipo
mento ainda ter sido grande na época de Wallace. 102 É que o do de Jurupari (tomado no sentido dos mitos em que o represen-
grupo, não precisando mais abandonar as roças porque não é mais tante da posição dos gêmeos - dois em um - é castigado com o
nômade, 1 03 não sentirá mais uma dependência tão angustiante suplício do fogo por seu crime de antropofagia), 1 º6 é no seio
das árvores frutíferas e da caça, podendo, além disso, estar seguro do grupo que surge a antropofagia, como um elemento de desor-
quanto à obtenção da pupunha, plantando-a em torno da maloca.
dem que precisa ser eliminado, para a preservação da integridade
Assim, a ou as palmeiras que nascem da cinza do herói sacri- tribal, da civilização.
ficado (Jurupari ou seu equivalente) representam a aquisição de
Note-se que o crime apresenta características diferentes, pois,
um patrimônio cultural no setor espiritual (pois delas se fazem as
em primeiro lugar, a vítima do ciclo dos gêmeos é uma mulher,
flautas sagradas), e o mito não mais implica numa valorização da
árvore tão só como doadora de bens materiais (de alimentação). em muitas versões adúltera ou incestuosa, embora a causa imediata
O que o fruto representou no passado e que ele representa de sua morte seja, geralmente, o fato de se ter comprazido do
o passado evidenciam-se, contudo, pelo fato de que Jurupari é o ato ( não o ato em si), ou simplesmente em decorrência de sua
filho da fruta, ao menos nas versões aruák. Na " leggenda" este ausência de cultura, se podemos falar assim. 107
fruto é o da árvore do pihycan. 104 É o seu sumo que gera juru- Mas há um outro ponto que parece importante: a mãe dos
pari, e é junto à pupunheira (poder-se-ia mesmo dizer dentro dela) gêmeos é, na realidade, "a misteriosa múlher de madeira" los de
que Jurupari passa a sua infância. É a árvore de Seucy. tantas versões sul-americanas e, mais ainda, permutável (como
Há ainda muito que falar sobre o fruto proibido . ..
Antes, porém, voltemos por uns momentos ao tema da antro- l Oã D ando seqüência ao raciocínio desenvolvido linhas atrás, supondo uma
identificação de tribos bravias com a onça .. .
pofagia. Aliás, a outra identificação que é bem conhecida, a do feiticeiro mau
Nos mitos que se enquadram no ciclo dos gêmeos, como já com a ~:mça (a crença de que o pajé pode se transformar em onça, ou de
foi observado, é um ser, uma ou duas gerações acima da dos dois que, apos a morte, se transforme em onça), é muito generalizada na América
do. Sul. Ainda assim, normalmente se admite que no próprio grupo não
lOO A Missão Salesiana de Iauaretê-Cachoeira reúne indígenas de várias existem maus pajés, só nas tribos vizinhas ...
106, Pela estrutura do mito (mas apenas pela estrutura e comportamento
tribos, sendo o grupo tukano, no entanto, maior. Os Desâna atribuem valor
maior à caça, apesar de dependerem mais da pesca. analogo . do
. personagem), poder-se-ia incluir neste ciclo o mito de Auké '
101 PATINO. "El Cachipay o Pijibay . . . " América Indígena. p. 183-84. em P.nmeITo. lugar , porque na variante canela a antropofagia é claramente
102 WALLACE ( Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. p. 366) notou muitas sugerida, pois Auke se transforma em peixe (que morde) quando em água,
árvores de pupunha em volta da maloca de Iauaretê, e se refere à sua impor- e expressamente em onça, quando em terra, em companhia de outros.
tância na alimentação indígena. KoK ("Quelques notices ... " Anthropos. Como mostra a variante krahó, o tema da antropofagia é permutável
Band XX, XXI. p. 921) também se refere à pupunha ( ecne) como usada com qualquer atitude desintegradora, perturbadora das categorias e normas
para o fabrico .de bebida fermentada. estabelecidas .. .
107
103 Na construção de maloca nova, sua localização deveria permitir que se Pouca educação, pouca paciência ou, enfim, não saber reconhecer correta-
continuasse a usar a roça antiga, até que a nova produzisse. E sabemos que, mente o caminho; indefinição, certamente.
108 Tradução do título em alemão de um mito tsimshian, apresentado por
após uns 8 a 10 anos, os terrenos abandonados, invadidos pelo mato, podiam
ser roçados novamente. V. SAHLINS. Sociedades Tribais. p. 48 et seqs. CRAN;E em lndianer Miirchen. p . 25. Como era de se esperar, a mulher pri-
104 V. adiante, cap. XII, p . 300. rnord1a1 de madeira também está presente na mitologia norte-americana.
. .
154 CAP. VU - UM OGRE ANTROPÓFAGO E . •• UM OGRE ANTROPÓFAGO E... 155

mostra o mito waiwai, karibe, a que Lévi-Strauss se refere à página uma dentre elas, previamente escolhida, é conduzida para o in-
136 de L'origine des mar.ieres de table) com a tartaruga. terior, ficando debaixo daquela armação; a seguir, todos os ho-
mens presentes, um ap6s outro, também se dirigem para lá . .. " i1-:
Ela é assim também o símbolo (encarnado na tartaruga, co-
medora de raízes cruas e de coisas podres) da condição pré-cultu- Trata-se de um trecho das observações de Feldner entre os
e
ral, assim, por uma lógica interna do mito, destinada a desapa- Monoxó, a respeito dos quais já referimos a crença em um "ser
recer, ao entrar em cena a onça, dona do fogo. terrível" que "é inimigo especialmente de todas as mulheres".
Repare-se, contudo, na persistência com que surge um tema, Deixemos de lado por enquanto o mito dos heróis gêmeos,
na mitologia de tribos indígenas do Brasil: o da mulher estraça- em que é vingada a morte da mulher despedaçada, que já nos
lhada. Uma mulher andarilha (como o estágio que ela representa), parece uma evolução posterior do tema, trazendo consigo uma
grávida ou não (a mãe dos gêmeos míticos e a moça do mito de ideologia que repudia o rito, evidentemente. .
Autxepirire, 101> respectivamente), abandonada, deixada para trás Vejamos os mitos · em que do corpo despedaçado de uma
pelo marido ou pela família, e que acaba sendo devorada (no sen- mulher nascem, não heróis culturais, mas bens culturais:
tido figurado e literal) pelos animais. Como exemplo jê, temos o mito de Autxepirire, que Lévi-
.E porque é justamente esta mulher que, como elemento inte- -Strauss aborda em Le cru et le cuit, página 258. Embora com
grante do mito de origem da tribo, ascende à dignidade de mãe isto se percam alguns detalhes importantes, reproduzimos apenas
primeva? o resumo publicado (em seguida ao mito, bastante extenso) por
Não poderia o mito ter fundamentado (ou fundamentar-se Schultz: 113
em) algum rito de há muito esquecido? Outros povos primitivos,
com cultura semelhante à dos nossos indígenas (na Africa, na "A esposa de um índio o traí.a, apesar dos conselhos do marido,
Melanésia), praticavam sacrifícios humanos. Eles ocorriam tam- que, aborrecido, resolveu abandoná-la. Os filhos, desaprovando
bém nas culturas andinas, 110 presumivelmente desde tempos remo- a conduta da mãe, acompanharam o pai. Caminharam um pouco
tos. Não parece fora de cogitação que tenha existido algum rito e se transformaram em cavalos, com exceção de um filho, que
(possivelmente secreto e por isso praticamente inestudado) em não sabendo transformar-se, corria atrás dos parentes arrancando
capim e tentando comê-lo. Um índio da a!deia foi atrás dos fu-
que se dramatizas~e um mito de tão vasta distribuição. gitivos e viu-os comendo capin1. Quando voltou contou o que
Existe, ao menos, uma série de indí~ios entre os povos mais tinha visto.
arcaicos. Passado algum tempo a esposa de outro índio também o traía. -
Temos, além disso, um relato, do início do século XIX, de Este fez o mesmo que o primeiro, isto é, abandonou a mulhe1• e
uma .pessoa que ainda assistiu ao menos à parte inicial, prepara- saiu com os filhos. Chegando à mata, todos se transformaram em
tória, de um rito deste tipo. b verdade que a descrição se inter- veados, com exceção da filha 'mais moça, que não conseguia trans-
rompe, mas, a nosso ver, o que ela sugere é exatamente a drama- formar-se e caminhava atrás dos outros. Num córrego encon-
traram Autxetpirire que estava pescando com timbó. Transfor-
tização da história da mulher de madeira "devorada" pelos ani- maram-se em mergulhões e roubaram o pescado. À mocinha não
mais : soube transformar-se. O pai aconselhou-a a não ir · perto do
Autxetpirire mas ela teimou e foi. O Autxetpirire achou-a muito
" num compartimento do rancho, ergue-se uma armação 111 em bonita, disse que queria casar-se com ela e perguntou quem a
forma de mesa, fechada de todos os lados, com esteiras e peles.· pintara tão bem. Os parentes da moça responderam que a tinham
Logo que anoiteça, reúnem-se as mulheres em redor da cabana: assado no moquém. O Autxetpirire queria ficar bonito como a
112
109 ScHULTZ, H . "Lendas dos índios Krah6." RMP. p. 144. A armação erguida corresponde a uma espécie de santuário primitivo.
no Como também no noroeste argentino: o sacrifício de crianças na cultura A sua construção confirma a característica religiosa do rito: "The place
diaguita, por exemplo. V. p. 174, nota 149. of the ceremony must be sacred: outside a holy place immolation is mere
111 BECHER, Hans. "Observações de Wilhelm Christian Gotthelf von Feldner murder". HUBERT e MAUSS. Sa~rifice: its· nature and function. p. 25.
entre os Maxakarí na Primeira Metade do Século XIX." RA . p. 67. ua Sc HULTZ, H. "Lendas dos lndios Krahó." RMP. p. 150-51.
UM OGRE ANTROPÓFAGO E. • • 157
156 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E .••
das ameaças. As custas de seu sacrifício, os animais obtêm suas
moça. Os parentes dela fizeram um moquém, puseram o Àutxet- casas, reproduzem-se e provêm, sendo caçados, o sustento do grupo.
pirire · nele, cobriram com palha e pedras e foram embora. À É a lei da reciprocidade, dentro da mesma concepção dos Desâna,
moça esqueceu sua •cabacinha e voltou para buscá-la. Quando com referência às relações entre o caçador e a caça 11 is e dos ani-
chegou junto ao moquém cavou e tirou um pedaço do pênis
assado do Autxetpirire, que estava falando embaixo do moquém. mais (ou do espírito que os representa) com os humanos. 11 6
À menina correu, perseguida pelo bicho. Seguiu os rastros dos Como o bouc émissaire, por sua vez, é tido como concentrando em
parentes até que alcançou um córrego. Aí gritou. Veio um ja- si as impurezas ou "pecados" do grupo, é lógico que o mito repre-
caré e a levou no dorso para o outro lado do córrego, recomen- senta a moça com características quase de herói trickster. Ela
dando-lhe que o xingasse ao chegar à margem. A moça xingou-o tem que se tomar culpada. Por isso a passagem um tanto estra-
e ele a perseguiu. A moça transformou-se em inambu, voou e nha em que o jacaré se oferece para transportá-la para o outro
se escondeu sob a asa da ema, que enganou o jacaré dizendo ]ado do rio, desde que ela o insulte, após o favor recebido. Toda
estar com a asa doente. Depois que o jacaré foi embora a moça a série de aventuras, até o desenlace final, é um lento processo
saiu debaixo da asa da ema continuando em busca dos parentes. de impregnação da vítima pela impureza. :S possível que a idéia
Alcançou outro rio que não podia atravessar. O jacaré agiu como
o primeiro e desta vez a moça se escondeu numa casa de marim- de pureza ritual como condição necessária da vítima do sacrifício
bondos. À moça continuou a caminhar e encontrou os parentes seja um conceito mais tardio. Provavelmente ainda não existia
em cima dum pé de buriti. Ordenou-lhe que ficasse pequeno para entre os caçadores arcaicos. Mas, de qualquer maneira, já existe
nele subir. Os parentes recomendaram à moça que nada jogasse a idéia de que o estado de impureza tem que ser ritualmente cria-
ao chão para não se trair aos Àutxetpirire que vinham ao seu do, justamente porque se trata de uma transferência mágica da
encalço. À moça esqueceu-se e cuspiu. Os Autxetpirire os des- impureza do grupo para a vítima. Seja como for, desconfiamos
cobriram e perguntaram como eles tinham conseguido subir no que a festa da moça Vú-tú é um último vestígio ou a mais recente
buriti. Enganaram-nos dizendo que subiram com uma corda. transformação de um rito mais bárbaro, fundamentado no mito
Quando os Autxetpirire estavam subindo na corda de imbira, de Autxepirire.
cortaram-na, e os Autxetpirire caíram, transformando-se em ca- Também os Umotina têm uma lenda, "A Mulher dos Bi-
ranguejos e entrando na terra.
chos", 1 1 7 que morre pourrie de caresses, na tradução pitoresca de
Os parentes foram embora tão ligeiro que a mocinha não podia
acompanhá-los. Chorando e caminhando avi~tou de longe a casa Lévi-Strauss. E nos mitos da Filha de Baíra, dos Kawahiwa-Pa-
da seriema, do urubu e do urubu-rei. Escondeu-se perto da fonte. rintintín transparecem as mesmas concepções de reciprocidade en-
Quando alguém vinha buscar água, a moça cuspia na direção da tre caçadores e o mundo animal que encontramos entre os Desâna:
vasilha, quebrando-a. Assim quebrava todas as cabaças dos bichos
que vinham buscar água na fonte. À seriema queria surrar seu 115 REICHEL-DOLMATOFF. "O Caçador e sua Presa." Desâna ..• p. 170 et seqs.
Nas invocações propiciatórias da caça, nunca se fala em "matar" ou em
filho por ter quebrado as cabaças todas e ele contou que vira a "comida". Descrevem-se os animais como se se tratasse de um elemento
moça. Todos os moradores da aldeia foram ver a moça. Todos feminino, um objeto sexual, que se quisesse "namorar'', "acariciar" (p. 173).
tiveram relações com ela, os urubus, urubus-reis, gaviões e se- Respondendo a certas perguntas de Dolmatoff, "el informante contestó seca-
riemas, até que a moÇa morreu. Cada um tirou um pedaço da mente: Matar es cohabitar" (p. 174). Idéias semelhantes encontramos entre
moça. Penduraram os pedaços em varas e fizeram por magia os Selknam (Terra do Fogo), onde o caçador faz um discurso à sua vítima,
pedindo-lhe desculpas por precisar matá-la, dizendo-lhe que a ama e o quanto
que esticassem a fim de cobrir com eles suas casas''. ela lhe é simpática: ZERRIES. Les religions amérindiennes. p. 384.
116 Jd., ibid. p. 61: Outro aspecto de "Waí-maxse" (o dono dos animais) é
Parece-nos que a imagem invocada por essa moça deixada seu interesse sexual por seres humanos. "Waí-maxse" persegue as mulheres,
para trás pelo grupo, a moça inábil, imprudente, é justamente a do sobretudo as meninas impúberes. . . No lugar onde se dá a violação, pouco
tempo depois aparece grande número de animais . . . A idéia está presente
bode expiatório. 114 As custas de seu sacrifício, o grupo escapa também nas lendas de outros povos: no lugar da violação de uma donzela,
nascem flores, fontes . . . A lenda escandinava da "Fonte ·da Donzela" trans-
114V. CAZENEUVE. Les rites et la condition humaine. p. 114, sobre "transfe- formada em filme por Ingmar Bergman é um exemplo.
r8ncia simbólica da impureza", citando Loisy: "Les victimes choisies figurent 117 SCHULTZ, H . "Informações Etnográficas sobre os Umotina." RMP. p. 257.
le mal qu'on s'imagine incarner en elles".
158 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E •••
UM OGRE ANTROPÓFAGO E. • • 159

" ... Houve um tempo em que os Cauaiua estavam que a amputação da pata do jaguar antropófago é justamente o
passando fome. Não matavam peixe, veado, anta, símbolo desse repúdio. 122 O jaguar de instintos patemais encontra
porco, inhambu. facilmente um enteado, um protegido, entre as tribos jê, 1 2s mas
Baíra, então, disse a um Àriramba: 118 não nas tupi.
- Vai pescar para nós. ~ difícil dizer até que ponto o status da mulher mudà, porque
- E tu dás a tua filha para me ajudar? o rito é considerado bárbaro pela nova mentalidade. Parece que
- Dou ... " 119 as mudanças não lhe dizem muito respeito. O que importa é que
com o mito dos gêineos adota-se, em muitas tribos, o exocaniba-
A ajuda, já se vê, é sempre a mesma. . . Em outro mito, 1 20 lismo ritu~l. Aceita a idéia de que o guerreiro inimigo a ser sacri-
Baíra empresta a filha ao Vaga-lume, desta vez em troca de uma ficado representa o seu dono, é nas cerimônias de matança ~ele
boa caçada. que se centraliza a vida ritual do grupo, como o mostrou Florestan
~bem possível que entre os Parintintín houvesse existido ou- Fernandes com relação aos Tupinambá. Efetivamente, a guerra
trora um rito semelhante ao que Feldner descreveu entre os Monox6 canaliza a hostilidade para fora do grupo, e o sacrifício do bode
ou ao da "Máscara de Envira" dos Gorotirí, em que os olhos de expiatório não mais implica numa parcial autodestruição.
missionário de Horace Banner viram apenas imoralidade e a im- Poderíamos perguntar agora se não seria justamente esta a
posição brutal da autoridade da classe guerreira do "Barracão" ao outra razão (a que nos referíamos páginas atrás 124 ) de certas tri-
resto do grupo. 121 bos apresentarem heroínas culturais, como é o caso dos Desâna
De qualquer maneira, o tema da mulher pevorada ( simbolica- e sua Filha do Sol e o caso dos Jê com sua "mulher-estrela"?
mente ou não) pelos animais, reflete uma mentalidade que se po- Se os caçadores primitivos desenvolveram um simbolismo se-
deria definir, de certa forma, como endocanibalística, já que a melhante, em que os animais caçados são representados como ele-
vítima sacrificada é escolhida entre os membros do próprio grupo. mento feminino a ser "conquistado" pelo caçador, o equilíbrio as-
E é neste sentido que a difusão do mito dos gêmeos repre- sim rompido deveria ser restabelecido realmente através de um
senta também uma inovação ideológica: ela reflete na realidade elemento humano, sendo "caçado" pelos animais (ou seu represen-
uma mentalidade exocanibalística. tante). Isto, é bem verdade, já não transparece das representações
O sacrifício da mulher, que o mito de Autxepirire apresenta desâna, mas temos que considerar que nelas se fizeram notar ou-
como necessário, é repudiado pelos gêmeos míticos, que vingam tras influências, particularmente de culturas mais avançadas ( andi-
a mãe. Como em toda a luta ideológica, trata-se· de combater nas), como já vimos. 125 Já na mitologia jê, a "mulher-estrela"
costumes "bárbaros" e impor outros, considerados mais dignos da tem certa analogia com a "árvore dos frutos" das Guianas; proprie-
condição humana. dade de um só, inicialmente, depois de "repartida" ela desaparece,
O repúdio do passado se patenteia na recusa do reconheci- mas os bens culturais que ela aportou ao grupo permanecem, em-
mento, por parte dos irmãos míticos, de filiação ou parentesco bora exigindo agora certo sacrifício para sua manutenção (cultivo)
com os cúmplices do assassinato da mãe. Temos a impressão de e ainda que a "mulher-estrela" castigue o grupo, pelo tratamento
que dele recebeu.
ns Martim-pescador. Percebe-se que o personagem é aqui um "dono da
pesca", assim como o Vaga-lume do outro mito mencionado, é um "dono 122 Se lembrarmos que no mito tukúna é do joelho de Nutapá que nascem
da caça", como o "Waí-maxse" dos Desâna. os gêmeos Djói e Ipi, parece mais evidente que a amputação da perna do
119 PEllEDlA, Nunes. Moronguetá ..• 2.0 v. p. 570-71.
pai ou equivalente simboliza o rompimento dos laços com o mesmo. Laborde
120 ld., ibid. p. 572. (Mito y Cultura entre los Barasana .. . p. 39 e 89) sugere que o iema,
121 ~ANNER. "A Casa-dos-Homens Górotire." RMP. p. 458. B a festa cha- também presente num mito de que se falará adiante, simboliza castração.
mada B6. Por tratar-se (como diz Banner) de uma violação pública das 123 Nos mitos de origem do fogo analisados por Lévi-Strauss em Le cru et
mulheres pelos guerreiros, deve ter parecido ao autor totalmente destituída /e cuit, e também em "A Obtenção do Fogo", mito krahó, ScHULTZ. "Lendas ,
de religiosidade. Mas o fato do rito cumprir-se no "Barracão" e a partici- dos tndios Krahó." RMP. p. 72-74. -
pação dos dois mascarados mostram que não se trata de uma simples demons- 1 24 V. capítulo sobre os Desâna, p. 73, nota 55.
tração de força do elemento guerreiro. Uma significação. mais profunda do 125 Jd.
rito, contudo, escapou a Banner.
160 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E ••• UM OGRE ANTROPÓFAGO E... 161
Veja-se, por exemplo, a terceira versão do mito de "Katxerê, trato mais primitivo e .é deste estrato mais primitiyo de caçadores
a mulher-estrela", publicado por Schultz. 126 O mau-trato de que arcaicos que provavelmente evoluiu (na cultura olmeca) a con-
se queixa a "mulher-estrela" é justamente uma violaç~o a que um cepção dos heróis gémeos do mito tupi.
grupo de cinco rapazes a submeteu, o que lembra, evidentemente, Mas estes heróis arcaicos "ainda" não são gêmeos, são com-
tanto o rito dos Monoxó a que Feldner aludiu como a "festa da panheiros, são cunhados.
Envira" dos Gorotirí. 127 É que o caçador dificilmente vai caçar sozinho. (Aliás, o
Compreende-se assim também que o mito dos gêmeos não trabalho masculino, como já foi muitas vezes ressaltado, é comu-
pode ser encontrado na mitologia krahó, embora os contatos com mente um trabalho de equipe, em oposição ao feminino, em regra
as tribos tupi vizinhas tivessem s!do, sem d~vid~, sufi.cien.tes p~ra geral mais individual, menos associativo.)
que os Krah6 tomassem conhecimento da h1st6na, cu1a d1spersao, Mas a caça é, mais do que a pesca, uma atividade ideal para
como já dissemos, parece ser bastante antiga. 128 A prova de que dois:
os elementos do mito são todos conhecidos é que os encontramos "Um homem foi caçar mais o cunhado .. . " 1 30
no mito de origem do fogo krahó, mas invertidos. A mulher. da Em outro mito, é o sobrevivente de dois irmãos que se la-
onça (como a mãe dos gêmeos) est~ gr~~ida, mas .ª sua , grav1d_:z menta amargamente: "Eu não pode ir sozinho pro rumo da casa
aparentemente não tem função no mito 1e. O herói kraho ( ~ nao de meu avô, porque sozinho assim é ruim mesmo andar. Eu pre-
o par mítico Pud e Pudleré, cuja caracterização ~orre~p~nde ~ ~º,~ ciso morrer também no bico do Kukói como o meu irmão. . . Faz
gémeos tupi e que, assim, aparentement~, ,e~tanam d~spon1ve1: uma tristeza anda sozinho. Se aonde outra nação quer me matar,
para assumir o papel destes últimos !1ª histona . . . ) .ª~e1t~ (e, n~o deixa me matar, porque eu não quero andar sozinho!" 181
se rebela contra) a sua adoção pelo 1aguar (em opos1çao a propna Pud corresponde também ao mais velho, mais experiente, que
"mulher-onça", como no mito dos gêmeos a . "onça-má"; ~~ui, passa a ensinar, a orientar e corrigir os erros do seu companheiro
contudo, assumindo por isso um aspecto exclusivamente benefico, mais jovem, Pudleré. Em "Viagem de Aventuras," 1 3 2 aventuras.
"solar") . E é finalmente a criatura grávida (na posição estrutural essas de nítido caráter iniciático, percebe-se também que os dois
correspondente à da mãe grávida dos gémeos tupi) que é hostil companheiros correspondem igualmente ao pajé e seu aprendiz, o
ao herói, ameaçando. devorá-lo, pelo que (não é curioso este de- que é de se esperar: comumente todo o homem adulto é iniciado
talhe?) é por ele flechada "na mão" ("a onça velha estava deitada nas artes mágicas. 1 33
de barriga cheia, bochuda, chorando a dor na mão" 129 ). É ela, Ainda teremos que falar sobre companheiros, irmão mais ve~
portanto, (o elemento feminino, prenhe) que é "a onça-maneta". lho, irmão mais novo, na mitologia uaupesina.
Nem mesmo falta na mitologia krahó um personagem que, Quanto ao mito dos gêmeos, queríamos ainda ressaltar que,
como Jurupari, morre na fogueira. Mas, e isto é importante, não em muitas tribos que não são tupi, ele é encontrado. Assim, entre
são os heróis Pud e Pudleré (ou tão-somente Pud) que o quei- 130 l d.,ibid. p. 119, idem em outro mito ("O buraco de tatu", p. 160-62)
mam. Mas deste mito (de "Auké") falaremos adiante. . .. "E quando dois estavam caçando sozinhos . .. " (p. 121). A expresSão
Vemos assim que a existência de um par mítico independe parece indicar que é 2 o mínimo de gente que caça sozinh~ . Também os
do mito dos gémeos, na mitologia sul-americana. Vem de um es- personagens do mito de obtenção do fogo são cunhados . . .
131 A mitologia iroquesa (MÜLLER, W. Les religions amérindiennes. p. 260)
chega mesmo a expJicar a história do mundo como tendo todas as coisas "o
12s SCHULTZ, H . "Lencias dos lndios Krahó." RMP. p. 83-85. seu irmão mais velho" (inclusive a estrela, o vento).
127 Gostaríamos de adiantar que não se exclui a possibilidade de que certos 132 Id., ibid. p. 123-28.
elementos do mito da "mulher-estrela" jê procedam de experiências de con- 133 No caso dos Gorotirí, ·parece que se estabelece uma relação de mestre
tato do grupo com grupos agricultores vizinhos mais adiantados, talvez ini- e aprendiz entre um guerreiro adulto e um rapazinho, que o primeiro ensina
cialmente pacíficos, rompidos em seguida pela estranheza que causaram os a caçar e brigar (Banner enfatiza o espírito agressivo da tribo). "Quando
costumes jê a esses povos ... me-roronura vai caçar, ou brigar, me-ôkre vai também. Substitui me-kurere-
128 O que não impede que outras tribos. de que se falará ainda. como, por ra na cozinha. Põe a comida preparada aos pés do guerreiro a quem serve.
exemplo, ~s Borôro, tenham "absorvido" uma versão do m ito. e come qualquer resto que ficar." BANNER. "A Casa-dos-Homens Górotire."
129 ScHULTZ, H . "Lendas dos Indios Krahó.'' RMP. p. 74. RMP. p. 458.
162 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E •••
UM OGRE ANTROPÓFAGO E. .. 163
os Borôro, que são matrilocais e que apresentam ao mesmo tempo 1nais apagado ..?º temaA do gambá-Mic~ra . dos mitos tupi), das
também o mito do tipo dénicheur d'oiseaux (Lenda do Herói Tori- aventuras da mae dos gemeos com os an1ma1s que vai encontrando
búgu" 1 3 4 onde o animal que ajuda o herói a sair do seu confina- no caminho em busca de seu marido.
mento não é o jaguar, e sim urubu, mas servindo ao herói sem
querer, pois na realidade quer devorá-lo. Portanto, o personagem "Então seguiu viagem e chegou a outro morador que lhe fez a
que ocupa no mito a posição do jaguar p~temal do mito krahó mesma pergunta: era Ríe. A mulher afastou-se dele e dos outros
tem conotação tão-somente sinistra, como aliás ocorre com a pró- que encontrou, tendo dormido, enganada, com todos eles". 1a1
pria onça nos mitos borôro, em muitos, porém, passando mesmo
a desempenhar o papel de lograda, ridicularizada. Em muitas versões do mito dos gêmeos, a culpada imediat~
Tinham os Borôro, no passado, algum rito do tipo "Bõ"? da morte da mãe é uma onça fêmea, sogra da assassinada, l as 0
:e difícil dizer. Sua vida cerimonial, como é sabido, acha-se tão que sempre faz lembrar um pouco a agressiva "mulher-onça" do
centrada nos ritos fúnebres que possivelmente essas antigas repre- mito krahó da origem do fogo.
sentações do mundo dos caçadores, com as suas preocupações de Ao mesmo tempo, o fato da heroína ser apresentada no mito
manter o equilíbrio entre o "reino animal" por eles atacado e o tendo. sido enganada pelos animais 13 D já demonstra uma mudança
mundo dos homens, terão desaparecido em parte e em parte se de atitude em relação ao mecanismo "de compensação caçador-
atenuado. As relações entre vivos e ancestrais parecem não com- -ca~a". Nos mitos parintintín da Filha de Baíra, a compensação é
portar o mesmo tipo de compensações, ainda que estes mesmos óbvia, normal, nem mesmo implica uma idéia de sacrifício. No
ancestrais certamente passem a desempenhar as funções do dono- mito krahó de Autxepirire a moça se torna culpada, porque nele
-dos-animais ou a "controlar" este último, o que se evidencia ainda encontramos a idéia de sacrifício necessário; idéia que ainda se
no mori aos mortos. 1 3 5 reflete aqui e ali nas versões xinguanas, em que várias "moças de
Há sem dúvida certos indícios de ter existido entre eles, ou- madeira" são enviadas; das que morrem no caminho, algumas tor-
trora, uma "mulher dos bichos": trata-se da passagem, também nam-se de certa forma "merecedoras" do castigo. 1-to ·
existente em versões de outras tribos 1 36 (e de que há um vestígio Temos assim uma série de formas intermediárias entre o mito
de Autxepirire e o mito dos gêmeos tupi, mostrando sem dúvida
134 ALBISETTI e VENTURELLI. Enciclopédia Bororo. 2.º v., p. 303. uma gradual modificação, senão de ritos realmente praticados, ao
lS!S LÉVI-STllAUSS. Traurige Tropen. p. 186: oferta
de pedaços da caça, etc. menos de uma visão do mundo e das técnica~ mágico-religiosas
Quanto a nós, temos a impressão que o aíge, assim como o zunidor em correspondentes, pelas quais o grupo crê poder manter o equilíbrio
geral, entre os povos caçadores, representava outrora esse "ser terrível",
rugidor, senhor dos animais e do mundo exterior. Repare-se que em um entre a sociedade humana, com suas necessidades, e o mundo ex-
mito borôro, "O chefe Akarúio Bokodóri e as 9nças" (Enciclopédia Bororo II. terior que, devido a elas, é obrigado a violar. .
p. 263 ), a onça femea (seu espírito e emblema) é atribuída ao clã Aróroe, Mas o tema do mito de Autxepirire comporta mais de uma
dono atual do aíge.
136Veja-se, por exemplo, o mito kuikúru de "Kuatungue: A origem dos transformação, como é lógico. E ·essa outra transformação nos
gêmeos Sol e Lua" (VILLAS BOAS. o. e e. Xingu, os lndios, seus Mitos. p. Jeva aos mitos tukúna de Cimidyue 141 ou da variante também
69) . Em primeiro lugar (como aliás também na versão tu pi dos Kamayurá ). tukúna, recolhida por Nunes Pereira, 142 e ainda ao mito de Haburi
as "filhas de madeira" são fabricadas expressamente para serem sacrificadas ( warrau) . H a ·
à onça (em troca dela ter poupado a vida de Kuatungue . .. Não temos
dúvidas de que outra não é a origem. num longínquo paleolítico europeu,
do mito de "A Bela e a Fera.. ... ) Uma das moças morre por tomar água J Si A LBISETTIe V ENTURELLJ . Enciclopédia Bororo. V. 2, p. 188.
envenenada, evocando assim a imagem de "Asaré" (o herói sedento xerénte). ª
1 8
13
Nos mitos das Guianas, esta é a onça-rã dona do fogo.
Uma segunda, f ol/e de miei. é violada pela irara. em pagamento ao mel, 9 No mito borôro referido atrás.
14
da mesma forma que. antes, em pagamento de pousada. outra tem relações ~ Pa_ra uma compara~~º.. das versões xinguanas,. veja-se LARAIA. Roque de
com o Martim-Pescador. Embora só uma delas morra cm conseqüência de B:, LEvr-STRAUSS et t1lu. O Sol e a Lua na Mitologia Xinguana." Mito e
ter tido relações com a anta, uma terceira morre após o encontro com um Lmguagem Social.
141
tatu-peba interessado nas moças. e a quarta devido a uma mutuca a ter L ÉVI-STRAUSS. L 'originc de.f manieres d e table. p. 92 et seqs.
picado, aparecendo a mutuca, em mais de um mito como símbolo de agressão 2
H PEREIRA, N unes. M oronguerú . . . 2.º v., p. 473.
sexual (por exemplo, na mitologia desâna ). H:l L Év1 -SntAUSS. D1~ miei m1x ccndres. p. 152 e 18 t.
164 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E • ••
UM OGRE ANTROPÓFAGO E... 165
Na ~ariante tukúna é, tal qual no mito de Autxepirire, a moça embora a "Lenda de Origem dos Tucuna" 146 seja também um
que contmua sendo personagem central, conseguindo, contudo, "mito dos gêmeos", desta vez sem dar ênfase ao elemento f emi-
salvar-se de todas as ameaças do mundo exterior, durante suas nino. 147
peregrinações pela floresta, depois que o marido a abandona. Os
O que é importante é que pela primeira vez temos no mito
favores que Djaê faz aos bichos já são de outra ordem, mas não mesmo uma identificação do personagem mítico com a represen-
é dif~cil perceber. ':estí~os de versões mais antigas: a zanga do tação que dele faz a sociedade através da máscara. ·
Jabuti, quando D1ae deita numa outra rede, o pernoite da moça
na .casa da Inhambu, que eram as próprias asas da ave, o bicho E quem são os personagens mascarados que, nas festas de
iniciação das moças tukúna, investem contra a inicianda e en-
Onim que pede comida. O modo como ela é, transformada em
libélula, transportada para o outro lado do rio, pela Borboleta quanto ela ainda se encontra reclusa, jogam flechas contra o
"curral"?
Azul, é fácil de ser imaginado, embora a versão atual explique que
Segundo Alviano, 148 duas máscaras são indispensáveis: a do
ela subi~ à~ costas da borboleta. Ainda assim o velho tema pre-
Jurupari 149 (sinônimo de demônio, espírito imundo) e a do ma_,
serva-se 1ndisfarçado, ao menos uma vez, "quando o bicho Curaim
entrou no corpo dela". O ma~ido que a abandona para que Muã- caco (símbolo da obscenidade).
quitcha 144 a devore é, como é lógico, um duplo do próprio ogre Acreditamos assim que estamos diante da verdadeira origem
antropófago, e é morto não por algum herói, mas pela própria do tão discutido personagem da mitologia da Amazônia ocidental:
heroína: Jurupari foi originalmente um "dono dos animais", "senhor terrí-
ve1,, , " onça ant ropófaga" que poupa o caçador porque este lhe
"E antes de chegar à casa da festa ele pôs palha de milho na oferece a virgem de madeira como compensação: é uma troca,
cabeça e em todo o corpo. E entrou no terreiT:o, todo mascarado, "justa", "limpa", como ainda transparece nos mitos parintintín da
para perseguir Moça Nova, beber e dançar. Filha de Baíra. Onde o rito realmente existiu (como entre os
Djaê desconfiou e foi à casa da festa com a sua gente. Ali che- Monox6) era sem dúvida um rito religioso, mesmo que, a julgar
gando viu o marido, já bêbado, dançando e perseguindo a Moça pela descrição de Feldner, as máscaras não caracterizassem exte-
Nova. riormente os homens como animais.
A gente de Djaê a aconselhou que o matasse. E: também a explicação mais lógica para a já referida iden-
Djaê pegou o marido pelo cabelo. e o levou até perto do fogo. tificação ou equivalência onça/macaco. Já que os macacos são
O fogo passou pela palha que cobria o corpo do bêbado. as presas mais comuns do caçador índio, é evidente que o seu
O mascarado correu para o rio.
E ali mesmo morreu". 145 representante se caracterizasse como ser antropófago a reclamar
d? homem uma compensação. Parece-nos que esta sua importân-
Isto parece estar de acordo com a realidade tukúna: toda a cia como caça explica, muito mais do que a sua caracterização
vida cerimonial dessa tribo se centralizou nos ritos da "moça- como animal "obsceno", o seu caráter felino nos mitos.
-nova", uma moça ameaçada pelos animais que querem ver nela, Só quando ·O rito foi lentamente modificado, "condenado", é
ao ql}e parece pelo visto até agora, uma compensação a ser dada que algum conceito de obscenidade talvez se tenha introduzido
ª.eles pela sociedade dos homens, em troca do que lhes exige em nas representações de Jurupari e do Macaco, no voréqui ou festa
vidas, o caçador. Vê-se que a sociedade tukúna absorveu o mito da Moça-Nova.
dos gêmeos, nesta versão, sem dar ênfase ao elemento masculino, 146 PEREIRA, Nunes. Moronguetá ... v. 2, p. 457. Djói e Ipi são filhos do
144 velho Nutapá a quem já nos referimos.
Corresponde ao jaguar chefe dos macacos, entre os quais Cimidyue vive 147 Os gemeos nascem d e um tumor no 1oelho•
e q~e ~uer ,,devorá-la, assi!11.. col}lo o "Pau-Torto" ("torto como a perna d~
A
de Nutapá. Este é devorado
Muaq~1tcha ) em que D1ae da uma cacetada; corresponde ao irmão do
por uma onça porque, como a "mulher de madeira", "foi ficando para trás".
148 .A1:_VIANO, Frei Fidelis de. "Notas Etnográficas sobre os Ticunas do Alto
chefe 1a~ar, a~ ogre Venkica, que Cimidyue machuca no joelho. Percebe-se Soltmoes". RIHGB.
que aqu~ ?S dois aspectos da figura do pai do mito dos g~meos tornam-se 149 Gostaría~os de poder identüicá-lo com a onça mítica, apesar de existirem.
ambos s1mstros.
146 PEREIRA, Nunes. Moronguetá. . . v. 2, p. 477.
segundo Alv1ano, doze máscaras, entre elas uma da própria onça; ele é,
ao mesmo tempo, a serpente que engole ...
166 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E .•. UM OGRE ANTROPÓFAGO E. . • 167

Mas, para que o perigo que ameaça a moça fosse dramatizado Outro detalhe que poderia ser explicado é a inversão que en-
com a intensidade com que o é entre os tukúna, para que a socie- contramos, nos mitos dos gêmeos xinguanos, quanto à situação de
dade se sinta no dever e na iminência de defendê-la, centralizando abandono da "mulher de madeira". O tema original, a nosso ver,
nesse rito toda a sua vida cerimonial, não parece razoável admitir o que corresponde ao rito arcaico e à história da heroínâ ·de
que no passado um rito sacrificial tivesse constituído um perigo Autxepirire, é o da moça que é deixada para trás pelo grupo,
real? abandonada às feras, ao mundo exterior. Para os grupos xin-
Não queremos dizer com isto, evidentemente, que todas as guanos, que entraram · em relações de exogamia, bem mais impor-
tribos do Brasil tinham antigamente um rito semelhante. 15º Certa- tante outrora do que hoje 152 é a "mulher de madeira" que é ex-
mente não se terá concebido uma só forma de negociar com o pulsa do grupo, mandada para longe, para se casar. :e
claro que
mundo exterior, com "Waí-maxse". Mas a solução desâna 151 pare- esta inversão poderia também corresponder a uma sedentarização
ce já fruto de uma elaboração posterior. Assim mesmo, o sim- do grupo. Em todo caso, o zunidor existia entre as tribos que hoje
bolismo desâna confirma que, entre alguns povos caçadores, con- estão no Alto Xingu, mas sem ter já qualquer significado misterioso
cebia-se como viável o pagamento de mortes (os animais caçados) na época em que Von den Steinen esteve na região. 158 Curioso é
com favores sexuais, já que "matar es cohabitar". que justamente duas tribos tu pi (os A wéti e os Kamayurá) não
Por outro lado, a penetração que teve o mito dos gêmeos que apresentavam o zunidor, nem mesmo como brinquedo. 154 :e que
os Tupi são tidos como os difusores do mito dos gêmeos (e, diría-
vingam a mãe, sob forma modificada, entre grupos indígenas dos
mais diversos do Brasil, parece ter coincidido com uma neutrali- mos, concomitantemente, de uma nova ideologia). Parece que en-
tre eles os gêmeos míticos já haviam matado o "ser terrível" há
zação do zunidor, ora substituído por instrumentos de sopro, ora
identificado só com os ancestrais (os antigos ancestrais onças ou um tempo considerável ...
Parece-nos que esta nossa interpretação também possibilita
aliados onçás dos ancestrais) e relegados ao culto dos mortos,
uma explicação para o fato de que, em culturas, como a dos De-
como entre os Borôro. (Certamente, é por isso que o aíge passa
sâna, que ainda apresentam o zunidor (fora de uso, mas tendo, ao
do clã Páiwoe (Macacos) ao dos Aróroe (Larvas, que parecem
menos, um significado), aparentemente os mesmos antigos símbo-
um símbolo mais ou menos generalizado dos mortos ... )
los do "ser terrível" são usados, agora, para promulgar a lei da
Contudo, é difícil saber se o zunidor entre os Borôro ainda
exogamia. Assim, o zumbido do tábano ou motuca, que era a voz
representa, caso o nosso raciocínio esteja certo, a voz do "ser
terrível" a exigir o móri original (a compensação em sentido con- 152 B que, com o decorrer do tempo, possibilitadas pela própria homogenei-
trário), que hoje a sociedade não está mais disposta a fornecer dade cultural iniciada pela prática da exogamia e do intercâmbio de produtos
(por ter encontrado novas fórmulas de manter o seu equilíbrio (moitará), outras práticas vão se estabelecendo, como a das competições
com o mundo exterior). Os conceitos mudam. Em todo caso, a esportivas intertribais (que passaram a centralizar a própria cultura) e a
do "estágio" ("que consiste na longa perman~ncia, às vezes durante anos,
proibição às mulheres e não-iniciados (e entre os Krahó há também de membro de uma aldeia em outra aldeia diferente." VILLAS BOAS, O. e C.
meninos Vutú ... ) de verem o aíge encontraria assim uma expli- Xingu, os lndios, seus Mitos. p. 19).
cação bem plausível. 153 "Sem cerimônia alguma, os Nabuquá mostraram-nos o uso dos instru-
mentos, publicamente, na praça da aldeia; como se fora outro uten-
150 Os Yanonami, ao menos a julgar pelo livro de BIOCCA (Yanoama) não sílio qualquer, sem en.Xotarem a~ mulheres. . .. Os Nabuquá e os Mehinakú
apresentam nenhum indício de qualquer rito parecido. Em tempos pré-colom- têm .a mesma denominação para o zunidor; estes o chamam 'matápu', e .
bianos, parece fora de dúvida que o mito estava ligado a ritos sacrificiais. aqueles 'matáhu'. Entre os Auetõ, Kamayurá e Trumaí não observamos o
Em Chicol (Guatemala), descobriram-se tumbas de pessoas sacrificadas, instrumento. Os Bakairí dão-lhe o nome 'yélo', 'iyelo', termo que na língua
entre elas uma mulher com seus gêmeos, aparentemente imolada no ato deles significa tanto relâmpago como trovão, correspondendo pois aproxi-
mesmo de dar à luz. LEHMANN. "Différentes formes de sacrifices humains madamente a 'trovoada'. Se quisermos falar à maneira deles, não devemos,
pratiqués à Chicol (Guatemala) d'apres de familles." Anais do XXXI Con- como fiz anteriormente, chamar os zunidores de 'relâmpago', mas de 'trovão',
gresso Internacional de Americanistas. p. 673. de acordo com o ruído." STEINEN. "Entre os Aborígines do Brasil Central."
_u1 Verdadeiras trocas energéticas, através da entrega de almas pelo pajé ao RA. p. 421-22.
··waí-maxse." 154 V. nota anterior.
,
168 CAP. VII - UM OGRE ANTROPOF AGO E ••• UM OGRE ANTROPÓFAGO E ••• 169
do zunidor, tem seu paralelo no zumbido do Colibri, que é uma rior, 16 º pois pela lei da exogamia ele é, de certa forma, obrigado
advertência contra o incesto e pro~ulga a lei exogâmica . .155 O a entregar todas as mulheres em troca de outras estranhas.
informante de Reichel-Dolmatoff ainda acrescenta que o Colibri No caso desâna, como ficou dito atrás, parece-nos que (le-
representa o pênis e que o ato de chupar mel tem caráter sexual. vando em conta que uma grande parte dos clãs atuais eram, ainda
A primeira vista, o símbolo parece mal escolhido. Acredita- há pouco, grupos nômades) a exogamia tribal é uma experiência
mos que só o compreenderemos melhor se lembrarmos que o deus recente que (aliada ao sentimento de inferioridade que parece de-
solar azteca Huitzilopochtli 156 (cujo simbolismo tem evidentemente correr de um status menos elevado dos Desâna no Uaupés) deve
raízes em culturas pré-aztecas) era representado como o "Sol a contribuir bastante para o sentimento de angústia que ressaltou
sugar o sangue humano com os longos raios em forma de lín- Reichel-Dolmatoff nesta tribo.
gua". 157 Como para os Desâna, como já ficou dito, existe uma Vimos, além disso, que não há propriamente uma sublimação
equivalência simbólica entre o ato de matar e o ato sexual, o in- do problema de troca anterior. Embora agora o pagamento seja
formante realmente não se enganou ... feito em almas, o "senhor terrível" que é "Waí-maxse" continua
cobrando os seus favores.
Efetivamente, há uma analogia quanto à situação da mulher
"sacrificada aos bichos" 158 e da mulher que é obrigada a se casar Empregamos a palavra "agora", mas não podemos ter, evi-
numa tribo estranha. Ambas são expulsas de seu grupo, deixadas dentemente, a certeza de que no passado, entre os Desâna, a troca
era feita em outros termos.
para trás, entregues ao mundo exterior. Ambas servem a seu grupo
da mesma forma: seu desligamento dele é uma forma de intercâm- Sabemos que entre os Witóto, que têm muitos elementos cul-
bio com o mundo exterior, ainda que o primeiro seja um mundo turais comuns com o grupo lingüístico tukano, há um rito, a que
infra-humano, animal, e o segundo um mundo humano, mas dife- nos referimos em outra parte do trabalho, 161 que dificilmente pode
rente. (No Uaupés, onde a mulher que casa em outra tribo con- ser explicado sem se recorrer ao mito dos gêmeos: 1 6 2 nele, uma
tinua de certa forma a ser uma estranha, a ponto da viúva muitas "mulher de madeira" é despedaçada pelos homens, que levam, cada
vezes ser obrigada a voltar· para a maloca de seus pais, deixando qual, um pedaço para ser queimado em casa, no fogo familiar.
suas crianças, 159 parece que se trata de um mundo em princípio Não é difícil também perceber a identidade entre o "ser terrí-
vel" e o Uakti dos Tukano do Tiquié, 163 mas o Bisíu desâna 164
bastante hostil, ainda que humano.) O medo que ele deve ins-
pirar à mulher, contudo, certamente não será o mesmo que o l60 Empregamos o termo "endogâmico" no sentido de cndogamia de tribo.
do "ser terrível". Para o homem, ao contrário, a situação é mais A exogamia da frátria (como a dos Kobéwa) e a exogamia de bando, entre
angustiante, parece-nos, do que na situação endogâmica ante- os nômades que procuram casar com mulheres de alguma fração distante,
não é tão angustiante. Seja como for, a mulher se casa dentro da mesma
tribo ou dentro do mesmo grupo lingüístico, não existindo, entre muitos
155 REICHBL-DoLMATOFF. Desâna ... p. 75 e 105. nômades (como os Yanonami) uma verdadeira regulamentação dos casa-
156 Lembremos que o colibri é um animal solar. Entre os Guarani é tido mentos.
como mensageiro de deus, intermediário (CADOOAN. "Animal and Plant 161 V. capítulo IV, p. 53.
Cults in Guarani Lore." RA. p. 112), e entre os Jívaro (como também entre 102 Aliás, o mito dos gêmeos witóto é muito complexo e também muito
os Witóto, segundo PEREIRA, Nunes. Moronguetá ... v. 2, p. 249) é ele elucidativo sobre vários aspectos. PEREIRA, Nunes. Moronguetá . .. v. 2, p. 482.
o personagem mitológico que rouba o fogo. WAVRIN. Moeurs et Coutumes 163 SCHADEN. A Mitologia Her6ica ... p. 153. A mudança de atitude com
des indiens sauvages.. p. 160. respeito ao Uaxti, no entanto, é visível: espírito malvado, violava as mu-
157 WESTIIEIM e KELEMEN. Arte Ibero Americana. p. 90. lheres, que ficavam imundas, doentes. Os homens resolvem capturá-lo e
158 Evidentemente, não sabemos se a moça violada coletivamente morria. matá-lo. Já é uma mudança. Não faltam também as palmeiras que nascem
(Empregamos o termo "sacrificada" em sentido mais amplo.) Mas ritos de sua sepultura. Não é contudo o herói tribal, Yúpuri Baúro, que o mata.
análogos da Melanésia terminavam com o sacrifício da vítima (a "Iwag"), Como entre os Kobéwa, a mudança de atitude parece recente. (V. GoLDMAN.
que era "queimada e devorada" (conforme as cerimônias Majo, descritas por The Cubeo ... p. 257) sobre o ogre K6mi: "às vezes o povo o pega e o
PEUCXERT. Geheim Kulte. p. 167). Peuckert se baseia principalmente em queima vivo. Morrem todos os que chegam perto de suas cinzas mas os
Wirz, que presenciou os ritos entre os Marind-Anin. Zunidores são usados. feiticeiros as aproveitam". Sobre essas representações ainda falaremos (ao
lli9 GIACONE (Os Tucanos. . . p. 24) retrata a situação da viúva de forma tratar da "leggenda" de Stradelli).
muito pungente. 164 REICHEL-DOLMATOFF. Desâna. . . Mito 21, p. 206.
170 CAP. V~I - UM OGRE ANTROPÓFAGO E • •• UM OGRE ANTROPÓFAGO E... 171

já se apresenta com algumas características ligeiramente diferentes ra se trate de um inseto um pouco diferente. A respeito deste
e dele falaremos adiante. último, Koch-Grünberg 170 observa que é temido como muito ve-
Uma coisa, contudo, precisa ser ressaltada: apesar de todo o nenoso no Aiarí. Segundo Caillois, ele tem uma distribuição limi-
caráter "solar" da Filha do Sol, apesar de ser ela, como observa tada a~ Surinam e norte do Brasil e a crença indígena o representa
Reichel-Dolmatoff, 165 não a vítima desgraçada, 166 mas a cúm- como sendo gerado por uma mosca cujo zumbido se ouve de
plice de um crime cuja transcendência ela nunca teve em conta, longe (como o tábano). Se por acaso os Desâna ident!fica~ com
apesar de ser uma heroína civilizadora da tribo, não deixa de ter o mesmo nome ambos os insetos (o louva-deus e o 1equ1t1rana-
bóia), teríamos aí uma ligação com o inseto que zune, que é de
certas características da "mulher dos bichos". Em primeiro lugar,
certa forma o aspecto negativo, sinistro, do pássaro que zune (o
na mitologia desâna, o Sol. criou o jaguar para representá-lo neste
Colibri). Mas isto são apenas suposições . . . Do simbolismo do
mundo. "Le dió el color de su poder y le dió la voz dei trueno
louva-deus ainda falaremos.
que es la voz dei Sol; debe protejer la creación, cobijarla y cui-
O que é espantoso é a incrív.el lógica dos mitos! São puros
daria"; 1 6i sendo assim, pode-se dizer, no caso desâna, a onça
tratados de Psicanálise, embora não exatamente no esquema freu-
equivale realmente ao Sol. E, e~bora ~ste S~l-j.a~uar-criador (que diano.
não mais corresponde a concepçoes muito primitivas, como as dos
Veja-se o caso da "mulher de madeira" exigida pelas onças
Monoxó, uma vez que nelas encontramos influências das culturas
em troca da vida de Kuatungue, no mito kuikuro, a que há pouco
andinas) defenda sua filha é mulher contra as investidas de outras
nos referimos. Ela estava destinada, evidentemente, a desaparecer,
criaturas (inclusive de seu irmão Lua) com um exclusivismo mais
e sem deixar descendência. Seria o lógico, nos moldes do rito
próprio de uma divindade, não há dúvida de que a Filha do Sol )
arcaico : ou desaparecer ou ela própria transformar-se em animal,
é uma "mulher que a onça devorou". A evolução do conceito está
como ocorre em muitos mitos de caçadores que matam mais do
em que ela não é uma "mulher dos bichos", como o é a Filha de
que o necessário. 1 i 1 Seria a troca justa, ol~o por. olho, den!e F.r
Baíra, e um passo adiante (pois, embora não se "tenha queimado
dente, e o fim da história. Desde . que deixou ftlhos, a ~1stona
a onça" entre os Desâna, o incesto não deve ser mais repetido)
continua: os filhos têm laços com a mãe, mais cedo ou mais tarde
constitui a transformação do louva-deus, 1 6 8 "única testemunha do teriam pena dela . . . 1 j 2
incesto", de animal em pessoa que fabricou a primeira flauta yuru-
pari, denunciadora do pecado. 169 O processo dialético inicia-se ...
Aliás, talvez se pudesse dizer que ela ter filhos não seria a
Por que o louva-deus?
única forma de estabelecer-se o processo dialético, mas é, sem
O informante desâna não explicou seu simbolismo. Em todo dúvida, o que mais corresponde, o que melhor simboliza a evolu-
caso, a característica mais marcante dos hábitos deste inseto, a ção ocorrida.
sua voracidade, não escapou aos indígenas, pois o chamam de
bári-uaxti (bári significa "comer" em desâna). O louva-deus tem liO KocH-GRÜNBERG. Zwei Jahre . . . Band II, p. 190, sobre a dança do
uma conotação sinistra e é possível que o seu simbolismo entre os ..Yakiranambóya" ("Fulgora laternaria"). IHEiUNG (Dicionário dos Animais
Desâna correponda em linhas gerais ao do jequitiranabóia, embo- do Brasil. p. 438) o designa como "cobra do ar" e "pseudo-cigarra~bra".
Acha que a fosforescência que se lhe atribui deve· ser resultante de micror-
ganismos que traz presos ao abdômen. Caillois acha que houve co!1fusão
165 ld., ibid. p. 56. por parte dos viajantes europeus que primeiro escreveram sobre o inseto:
166 Dessa característica dela ainda se falará no último capítulo. e que a luminosidade não existe. (CAILLOIS. "O C?mpl~xo de Medusa.'
lGi REICHEL-DoLMATOFF. Op. cit. p . 20. Revista Anhembi. p. 469). Sobre o louva-deus e seu s1mbohsmo, encontra-se
168 Transformação, de certa forma, em sentido inverso ao que sofreram os um estudo muito interessante em "Le mythe et l'homme" (p. 39: "La mante
animais que assistiram ao ato sexual do primeiro desâna com a filha do religieuse"), do mesmo Caillois, de que ainda se falará.
peixe Aracu (1d., ibid. p. 21). 111 Como, por exemplo, no mito arawak da origem dos peixes Aimara.
1 HH O som produzido pelo instrumento fabricado pel~ ]ouva-deus era triste KOCH·GRÜNBERG. lndianermiirchen aus Südamerika. p. 62.
e ameaçador, pois procJamava a existência de "\lm grande pecado. . . ld., 112 Aparentemente, os heróis míticos custaram um pouco a entrar na fase
ibid. p. 129. edipiana .. . .

·.
UM OGRE ANTROPÓFAGO E . . • 173
172 CAP. VII - UM OGRE ANTROPÓFAGO E •••

sucedido. 178 Nianderequey nos leva ainda mais longe: ele é que
Contudo, só o fato de um alter ego do personagem mítico titubeia em reconhecer o pai. 179
central sentir pena indica o início do processo dialético. I 1
Se agora lembrarmos que os Opayé-Xavánte não praticam
Veja-se, por exemplo, um mito dos Opayé-Xavánte, 173 que a couvade, 18 º não poderíamos ver na história dos gêmeos o funda-
conta como "os Ofaié se transformaram em animais". mento mitológico da couvade e a imagem de Maír, no seu aspecto
O Sol é definido como ruim, "não prestava mesmo; neste Lua solar, positivo, deitando-se na rede e pedindo que lhe tragam (e
não já era do lado dos homens, ajudava eles contra o Sol". Mas, já não para devorá-la ... ) a prole que não é só dele?
o q~e acontece durante o relato desmente essa afirmação: :E: que Talvez pareça estranho que se sugira ver na couvade um rito
o Sol, sendo chefe dos homens, que estavam loucos por não terem de adoção. Parece não corresponder à bem conhecida concepção
nada para comer, 174 resolve todos os problemas destes, transfor- tupi de que o filho é tão-somente o germe paterno desabrochando
mando uma parte deles em animais. O mito termina dizendo: no útero materno como a semente dentro da terra. 181 Por que um
"Agora tinha bastante caça ali". Na realidade, é a atitude do Sol, rito de adoção, na vida real, se o filho é só do homem? Seria ri-
como chefe intransigente, decidido, "durão", que é valorizada. 175 dículo, evidentemente, imaginar que todo pai tupi tivesse o complexo
Ele, ao contrário de seu irmão Lua, não teve pena dos homens de Maír, mais ainda que os "gêmeos não são criados, sendo enterra-
que ele foi transformando em bichos: tinha que fazer aquilo, era dos imediatamente após nascer". 182 (Aliás, a aversão à sugestão
um sacrifício necessário (correspondente a uma ideologia que mes- de adultério entre os Guarani é tão grande que, conforme o notou
mo em pleno século XX não nos é tão estranha) . E. Schaden, 1 83 os Nandéva chegam a apresentar uma versão que
Mas, possivelmente, a pena demonstrada por seu irmão e destoa das outras, sem dúvida correspondendo a esta aversão.)
alter ego criou terreno propício para o episódio delicioso que se Quanto à eliminação dos gêmeos não há o que estranhar: o
segue : mito não retrata algo físico, simboliza algo cultural, por isso o
"O último virou este bugio e gritou de lá pro sol: puramente orgânico jamais será sua reedição. 1 8 4
- Ocê me paga, desgraçado, corno, ocê me paga. Ocê fez nós
178 "Maíra-yra desafiou então o pai a cravar uma flecha numa pedra. O
virar bicho, mas também ocê vai ver". 176 velho disparou a flecha, que se despedaçou ao bater na rocha. Maíra-yra
disparou a sua flecha que se cravou fundo na pedra, demonstrando o seu
Se atentarmos para o fato de que, pelo seu comportamento, poder. Mafra e os filhos foram viver na 'morada longínqua', onde há
este Sol não é o Sol-filho dos mitos tupi, mas o Sol-onça de con- fartura de tudo" (transcrição parcial de Wagley e Galvão em LEOPOLDI.
cepções mais antigas, o Waí-maxse dos Desâna, percebemos que, "A Linguagem Social de um Mito Tenetehara." RCV. p. 39). ,
110 "Os irmãos resolveram ir em procura do pai. Andaram, andaram, ate
por incrível que pareça, a praga do bugio "pegou". Porque a chegarem ao primeiro céu, onde mora Nianderu - Aqui vamos ficar, disse
história dos gêmeos míticos Tupi é também uma história de adul- Chyvyi, mas Nianderequey replicou: Este talvez não seja o nosso pai. Segui-
tério. E, se Mair-mimi do mito urubu-kaapor ainda não consegue ram, pois, o seu caminho, chegando a Cheruvucu, no segundo céu. Aí
dobrar inteiramente seu pai, que titubeia em reconhecer como filho ficou Chyvyi, mas Nianderequey foi adiante e como nunca voltou, deve
também Mikur-mimi, 177 Maíra-yra do mito tenetehara já é melhor estar certamente no terceiro céu ... " NIMUENDAJÚ. ''Apontamentos sobre
os Guarani." RMP. p. 48.
180 RIBEIRO, Darcy. Op. cit. p. 111.
173 RIBEIRO, Darcy. "Notícia dos Ofaié-Chavante." RMP. p. 119. 181 Uma concepção que tem que ter emergido, como se vê, de uma menta-
Ii4 A própria tentativa que os homens, ensinados pela Lua, fazem para lidade de agricultores (não mais de caçadores arcaicos) .
matar o Sol, cercando-o com um círculo de fogo, redunda em benefício dos 182 No caso tenetehara, segundo Wagley e Galvão, citados por LEOPOLDI
rebelados (é um método de caça xavante) . . . . (O p. cit. p. 41) . Mas o repúdio dos gêmeos é generalizado.
175 A piedade humana é apresentada muitas vezes nos mitos como a piedade 183 ScHADEN. "Caracteres Específicos da Cultura Mbüa-Guarani." RA . p. 89.
tola de quem nada compreende, piedade que é fraqueza e que desencadeia 184 Um problema análogo é estudado por Mircea Eliade em Me/isto/eles y
muito mais desgraças que a fria crueldade dos "deuses" . . . não é o que e/ A ndrógino, p. 127: "El hermafrodita concreto, anatómico, estaba consi-
ocorre, de certa forma, no próprio mito de &iipo (na forma literária de derado como una aberración de la Naturaleza o como un signo de la cólera
S6focles)? de los dioses y, por consiguiente, era suprimido en el acto. S~lo el andrógino
176 RIBEIRO, Darcy. Op. cit. p. 120. ritual constituía un modelo, por implicar no la acumulac1ón de órganos
111 Pois no mito recolhido por Huxley, Mikur-mimi não consegue passar nas anatómicos, sino simbolicamente la totalidad de las potencias mágico-reli-
provas que Maír propõe aos gêmeos, com a finalidade de testar se são giosas solidarias de ambos sexos".
mesmo seus filhos . . . HuxLEY. A/fable Savages. p. 218-20.
174 CAP. vn - UM OGRE ANTROPÓFAGO E •••

Mas, se o rito tem algum modelo mítico, a figura que mais


corresponde à couvade é, sem dúvida, a do jaguar com vocação
paternal, que deita na rede e pede o menino; e a de Maír, fazendo
flechas para os gêmeos.
CAPÍTULO VIII
Porque essa "adoção" que nos sugere a couvade implica por
outro lado refazer ritualmente o modelo original: o filho surgindo
da perna do criador andrógino primevo, como no mito de Nu- ''HISTÓRIA DE LUNA" BARASANA:
tapá. 185 Que este conceito ainda se acha, no fundo, por detrás O MITO DOS G:f:MEOS (DOIS EM UM) NO RIO UAUPi:S
das representações da paternidade mostra-se pela persistência de
um tema que representa justamente a rejeição por parte do filho,
do pai no seu aspecto sinistro: a amputação .da perna. Se falamos tanto do mito dos gêmeos no capítulo anterior, é
. (Essa correlação entre a couvade e o mito da partogênese porque realmente ele também ocorre no U aupés. Apenas, con-
pnmeva, mas sem se referir ao mito dos gêmeos, foi desenvolvida forme ao esquema de ser Sol e Lua aí concebidos como aspectos
por Carl Schuster, 186 com uma série de observações muito inte- da mesma entidade, 1 designados como "Sol de dia" e "Sol de
ressantes 187 que, a nosso ver, ajudariam a esclarecer certos aspec- noite", 2 não são gêmeos que nascem da mulher dilacerada pelas
tos do mito dos gêmeos tupi.)
Seria a couvade, ao mesmo tempo, a morte do pai no seu feras.
aspe~to . sinist!o (simbolizada pela amputação da perna, o que Mas há outro detalh~ também. Sol e Lua aparecem como
exphcana muito bem o repouso n~ rede), seguida da adoção do que deslocados para a geração acima da dos gêmeos, se é que se
filho por parte do pai, no seu aspecto benéfico? ... pode falar assim baseado no fato de que uma boa parte dos mitos
identificam estes últimos como os dois astros. 3
Efetivamente, a "mulher de madeira", que no mito dos gê-
meos tu pi é cobiçada por animais ou (se ,preferirmos) "espíritos-
-animais" (onça e gambá e ainda outros animais, como nas ver-
sões xinguanas), é, já no mito desâna, como foi visto, mais exclu-
siva de um só ser mítico, expressamente identificado como Sol,
ocupando a posição correspondente ao gambá (mas no caso desâ-
na sem ocorrer adultério), o irmão do Sol, Lua. g por isso que,
apesar das concepções desâna terem características das dos caça-
dores arcaicos, certos conceitos parecem. ter emanado de uma cul-
tura mais desenvolvida, em que o "senhor dos animais" já se havia
solarizado, tendendo a divindade suprema.
1 O que não quer dizer que não distingam os dois astros como fenômenos
naturais. V . REICHEL-DoLMATOFF. Desâna ... p. 32. :e. o mesmo conceito
(a que já nos referimos, citando Cadogan) que encontramos entre os Gua-
185 Lenda ran~ distinguindo o animal celeste, eterno, espírito, dos outros, terrestres,
da origem dos Tukúna, a que já nos referimos. PEREillA, Nunes. que são apenas imitações "vazias" do ser primevo.
Moronguetá ... v. 2, p. 457.
186 ScHusTER. "Genealogical Patterns in the Old and New Worlds." RMP.
2 Correspondendo aos termos lamica muhipu (noite-muhipu = lua) e /meco
p. 101 et seqs. =
rnuhipu (dia-mihupu . sol) em tukano, segundo Giacone.
3 V. LARAIA e MATTA. lndios e Castanheiros: a empresa extrativa e os índios
187 Como, por exemplo, o epíteto de Dionísio, significando "nascido duas ve-
zes" e o rito da couvade como tendo sido conhecido na Grécia arcaica. no médio Tocantins; LÉVI-STRAuss er alii. Mito e Linguagem Social.
176 CAP. VIII - "HISTÓRIA DE LUNA" ••• "HISTÓRIA DE LUNA" . . . 177

Os Barasana, que ocupam uma posiç~o mais periférica no do tabaco, conseguem ressuscitar Muyhu, dando-lhe um macaqui-
Uaupés, chamam a este mito de "História de Muyhu", 4 e passamos nho preto ("Riá Isíkamo") 13 como xerimbabo. Muyhu vai ver a
a resumi-lo, baseado no texto de Laborde: sua irmã, mas esta não o reconhece. Ela pergunta a Muyhu o que
"História de Luna'': 5 Muyhu (filho de Meni 6) dorme com come o animalzinho que ele carrega. A resposta é que ele só come
sua irmã Méneri-Y a, e esta só vem a conhecer a identidade do caimo ( "kanea"), isto é, coca. Méneri-Ya sobe na árvore de coca
amante, quando, já grávida, marc·a-o no rosto com tinta de jenipapo. para buscar alimento para o xerimbabo de Muyhu. 14 Subindo na
Muyhu tenta, inutilmente, lavar o rosto, e, vendo seu reflexo nas árvore, ela, contudo, vai para o céu ("úmea Sabú") ... de cas-
águas, morre de vergonha, sendo devorado pelo morcego. 1 Mení tigo, frisa o narrador. 15 Umu, o pássaro de Méneri-Ya, a procura
manda urna ave-pajé 8 buscar os restos mortais de seu filho, mas em todas as direções; encontra-a finalmente no céu, mata a abelha
esta não encontra a coca necessária para a ressurreição mágica 9
Os Adyába 10 sobem o rio e encontram os ossos podres de Muyh~. portanto); a outra porque as galinhas cegas encarregadas de levar a coca
Com o auxílio das formigas para juntar os ossos, embora afir- a Mení trazem um tição (fogo) por engano. Em uma lenda amazônica
muito conhecida (do "Caçador e o Curupira") o caçador ressuscitado (feito
mando não serem pajés, os três Adyába amarram os ossos com de cera) não pode tomar alimentos quentes, portanto, aqui também deve
t ucum, 11 e apos
" duas tentativas
. f racassadas, 12 por meio da coca e ter um sentido que nos escapa no momento. Mas, como os episódios do
mito se duplicam, opondo-se as ações, esta ação, em vez de recriar o incesto,
4
!..ABORDE. Mito y Cultura entre los Barasana, um grupo Jndigena Tukano como a anterior, deve ter função disjuntiva, de eliminação do incestuoso
dei Vaupés. p. 31. (pelo fogo?) .
~ Laborde traduziu Muyhu como "Lua" porque a história começa com o 1a "Riá Isíkamo" (miguito negro). Talvez um macaco da noite? Acreditamos
tema de _,incesto irmã-irmão em que este é comumente transformado em Lua. que tenha que ver algo com as manchas negras de jenipapo do rosto de
(V. capitulo seguinte.) Muyhu.
6 14 A coleta de coca, segundo l...ABORDE (Op. cit. p. 153), é feita diariamente,
Conforme já foi esclarecido atrás, o nome "Mení" parece corresponder a
"Sol" ("Méri" em borôro, "Míni" em umotina). mas é trabalho masculino. ~ geralmente o capitão que recolhe. Percebe-se
7 uma certa analogia com outro tema mítico, de que se falará adiante (ligada
l...ABORDE (Op. cit. p. 80) nota que os Barasana associam o morcego à
p~rid~o, à morte. Entre os Desâna (REICHEL-DoLMATOFF. Op. cit. p. 74) à ideologia de Jurupari), e que "condena" a subida de mulheres em árvores.
s1mboh~a. a vagina, a menstruação, a diarréia, e é precursor e companheiro 15 Realmente, é curioso o paralelo entre este episódio e o da subida atrás
dos esp1ntos da floresta. Sobre o simbolismo do morcego veja LÉv1-STRAuss do porco-espinho no mito arapaho da mulher que se casa com a estrela.
Du miei aux cendres. p. 329. · (V. LÉVI-STRAUSS. "Quand on est demoiselle." ln: L'origine des manieres de
BBúho (coruja). Entre os Desâna (REICHEL-DOLMATOFF. Op. cit. p. 76) table. p. 170). E com o mito da mulher-estrela jê que é arremessada. no
ela é tida por guardiã dos cemitérios, simboliza a morte. ' espaço, quando sobe na árvore.
9
O text~ di~ .que lá não havia coca. Simples problema criado pelo pensa- A constante é que, enquanto o homem que sobe em árvore, embora
mento m1tologico, que no fundo (por tradição) resiste à idéia da ressurreição, possa permanecer aí confinado durante muito tempo, consegue geralmente
ou à sugestão de que a coca é uma aquisição recente por parte dos Barasana. voltar, a mulher não volta.
(Tivemos a mesma impressão dos textos míticos tukano de Fulop.) Que a mulher que casa com a estrela e a "mulher dos bichos" são uma
10
Adyába ("os que fizeram toda a criação"). Segundo ScHULTZ, W. (Ein- e a mesma fica mais do que confirmado por uma passagem da versão que
leitu!'g in das Popol-Wuh), o número três, e não o quatro, teve uma impor- Lévi-Strauss apresenta à p. 203: "La jeune fille alla chez le porc-épic colorié.
tância fundamental nas concepções religiosas dos povos centro-americanos Je m'offre à toi, dit-elle, car Jes temps sont durs: ma chere mere n'a plus
na fase formativa. Concepções como as dos Aruák do Uaupés (a tríad~ de piquants pour sa broderie. Je serai tienne et tu nous aideras, mes parents
Inapirikuri, Dzuri, Mariri) tem certa analogia com esses Adyába que tam- et moi".
bém ~ão três. ~o . presente tex_to ~ítico, a existência de 3 Adyába explica-se ~ provável que outra não é, já esquecida na aurora dos tempos, a º!ige~
tambem po: e~stir uma duphcaçao de todas as ações, mas, como se verá, do mito de Circé, a feiticeira que transforma seus amantes em amma1s.
co~ ~ tenden~ia de !-11!1ª ann}ar a outra. No caso do personagem principal, ELIADE, M. ("Mythologie et histoire des religions." Diogene. p. 113) já
'Ynnu, a terceira posiçao (a s1ntese das duas antagônicas) aparece na história observou que o tema tem que estar em relação com cerimônias iniciáticas.
fmal, após sua "~xpulsão do pa~aí~"· T~atando-se de Muyhu, que desapa- A mulher nunca consegue voltar? Mac; o mito nã.o diz que Méneri-Ya
rece após o nascimento de Wanm1 (obviamente substituído por este) teria voltou pela corda feita pelo apaixonado Umu? Repare-se num detalhe impor-
que , haver também uma posição (de síntese), representado pelo terceiro tante : na metade ela cai; exatamente o que ocorre numa das versões da
Adyaba. Pode-se s~por qu~ Muyhu ressuscita, mas como personificação mulher do estrela-porco-espinho da América do Norte (V. ilustrações do
da l!lorte e da ma.g1a (possivelmente a imagem do feiticeiro). mito na "orelha" de L'origine des manieres de table). A heroína do mito
11 Fibras da palmeira Tucuna ou cumari. norte-americano morre na queda, mas seu filho vive. E Méneri-Ya? A queda
12
Uma delas porque o incesto foi mencionado (a palavra recriando o ato, na metade é apenas mais uma dessas situações conflitantes que marcam o
178 CAP. vm - '' ,
HISTORIA DE LUNAtt .•• "HISTÓRIA DE LUNA" ••• 179
que a estava devorando 16 e confessa-lhe seu amor. Depois Umu mito dos gémeos, bem conhecidas, ela passa primeiro na casa do
vai buscar água, pois Méneri-Ya estava morrendo de sede. 17 Após gambá, cuja mãe a recebe bem; ela, contudo, não quer ficar, pois
Méneri-Ya pedir à ave um adorno de perna, 18 esta faz uma corda a rede do gambá cheira mal. 24 Chegando à casa das onças, é
para que a amada desça. Embora caindo na metade da descida~ recebida pela mãe das mesmas, que é irmã de Mení 25 e a previne
Méneri-Ya consegue regressar, para espanto de Muyhu: "U. re- de que seus filhos não são humanos. Estes voltam para casa, can~
gressa ... como yo?" 19 Ele manda-a ao porto buscar água, ao tando o Komé Basá (o canto do machado de pedra). 26 Méneri-
que parece com uma vasilha quebrada, pois a água sempre seca -Ya esconde-se em um vaso de argila, 27 cobrindo-se com um
na vasilha. 20 Enquanto isso, Muyhu e seu pai escapam dela, que- balaio, no alto da casa. Um dos jaguares a vê, entretanto, pelo
brando antes tudo o que havia na casa, a qual desaparece. 21 Só espelho. 28 O jaguar toca um instrumento que parece ocarina
fica um caco de cerâmica que conta a Méneri-Ya qual o caminho
tomado pelo pai. Numa encruzilhada, Mení colocara contudo uma 24 A ambigüidade, como é de se esperar, existe também em outras versões
vasilha 22 adornada com penas de ave e que era como uma pessoa. do mito: a rede cheira mal, mas a moça se deitou nela. Não é só a
provocação ritual que se espelha no procedimento ambíguo da moça. Possi-
Se a moça chorasse, :!s se viesse chorando, a vasilha deveria indi- velmente é também a dúvida sobre a validade ou não do rito de se sacri-
car o caminho certo, se viesse rindo, o caminho errado. Méneri- ficar uma mulher ao "ser terrível".
-Y a ri de longe, de perto chora, e a vasilha lhe indica o caminho 2õA mãe dos tigres, que aqui aparece sob aspecto benéfico como tia paterna
errado que leva à casa dos jaguares. Como em outras versões do de Méneri-Ya, é a mesma sogra da "moça de madeira", que nos mitos
xinguanos é causa de sua morte. ·
26 ~ uma das danças do Uaupés, em que se usa machados de pedra (ou
mito todo. A heroína é devorada pela abelha, mas salva pelo pássaro Umu, "lanças de pedra'', ugtakome a que se refere KoK? ("Quelques notices
é salva mas não é salva, volta mas não volta ... ethnograpbiques sur les indiens du Rio Papuri." Anthropos. p. 924). De
16 "Umu, el pajaro mochilero de Méneri-Ya". Laborde o identifica com o qualquer forma, o apetrecho hoje só tem função ritual, como também a
oropendulo (vermelhão), ave associada à água (ela se banha duas vezes borduna, que KocH-GRÜNBERG (Zwei Jalrre ... Band II, p. 131) só ainda
antes de ir ao encontro de sua dona), em oposição à ·a belha que a devora encontrou como arma entre os Kobéwa. O machado de pedra, associado
(só lhe fornece mel, nos mitos um aforismo - de sêmen - la femme folie a representações do ancestral, do passado, aparece nos mitos comumente
de miei). · como mágico. Veja-se, por exemplo, o mito "Koieré, o machado que canta"
l i Este tema está também presente numa versão Kuikúro publicada pelos (ScHULTZ, H. "Lendas dos lndios Krahó." RMP. p. 53). ~ a história de
irmãos Villas Boas, a que já nos referimos atrás, o que nos mostra que a um machado, relegado, por displicência do homem, aos cuidados de uma
"mulher de madeira" é, de certa forma, a versão feminina de Asaré. mulher, a quem a arma ensina a cantar. O significado do mito tem muito
18 O adorno de perna Yuhtá-Gatséro. Corresponde ao yuxtá-seri a que se em comum com o mito de usurpação dos instrumentos sagrados, mas parece
refere SILVA, Pe. A. Brlizzí A. da. (A Civilização Indígena do Uaupés. p. proceder de um nível mais arcaico. Os Motilon (NoRDENSKIÕLD. "Thé Amer-
31 O). .e uma faixa de fios de caroá, às vezes pintada de amarelo ou ican Indian as an Inventor." JAI. fig. 6, p. 282.) possuem mesmo uma flauta
vermelho. O autor não se refere a isso quando descreve os ritos pubertários que tem a forma de um machado de pedra. Quanto a nós, parece-nos bem
femininos (p. 439 et seqs.), mas em outras tribos é nesta ocasião que são provável que uma das origens dos instrumentos de música tenha que se
colocadas essas ligas. (Elas significariam, portanto, reclusão pubertária, em procurar, de certa forma, no ruído feito pelas armas agitadas durante a
oposição com a corda que a libertaria da reclusão?) Entre os Kobéwa é comemoração das vitórias sobre o inimigo . ..
~ímbolo de vida longa. GOLDMAN. The Cubeo. . . p. 286. A ritualização de armas .foi observada já por K. von den Steinen entre
I9 O espanto de ' Muyhu se explica: ela não deveria regressar. (V. nota os indígenas do Alto Xingu: "O propulsor e a maça perdem seu valor de
anterior, 15, da p. 177.) armas entre os agricultores de índole mais pacífica, conservando-se, entre-
20 No mito de Autxepirire é a moça que quebra as vasilhas dos bichos que tanto, corno adorno para danças .. . " ("Entre os Aborígines do Brasil
vêm buscar água (destruindo um utensílio que só pertence ao homem). Central." Separata da Revista do Arquivo. p. 418).
~ possível que Méneri-Ya já não consiga desempenhar as funções próprias 2 7 Esconde,..se do tigre: inversão de sentido do episódio da moça monoxó
de uma humana, porque já é dos bichos e com eles assim se identifica. que se esconde na armação erguida, para ser "devorada". Embora os sentidos
21 e; a recusa da casa à heroína, sempre confirmando a sua expulsão do se transformem, poder-se:-ia perguntar se esta não é exatamente a origem
mundo humano. do costume de se construir uma cabaninha de reclusão ("curral'' como se
:.!2 Nova dúvida . .. Ela não deveria ser salva? As penas colocadas na vasilha diz entre os Tukúna) para a moça-nova. Alcionílio B. A. da Silva nos diz
tornam-se compreensíveis quando comparadas com outras versões da história que durante os ritos pubertários o Kumu debruça a moça sobre o fogo,
(de que se falará adiante, pois são do Rio Negro ) , em que o caminho certo cobrindo-a com uma peneira e sopra sobre ela (SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da.
é marcado com um tipo de penas, o errado com outro. A Civilização Indígena do Uaupés. p. 441).
:!a Laborde diz que ela ainda teria salvação, caso mostrasse arrependimento 2
ª Aí está um dos temas mais fascinantes da história, pois Méneri-Ya se
do seu crime (o incesto). Logo adiante se falará dessa questão. esconde em um yerao (cobrindo-se com um balaio, que é feito pelos ho-
180 CAP. VIII - "HISTÓRIA DE LUNA" . .• "HISTÓRIA DE LUNA". . . 181
(o mukuki). 29 O canto "Má la ri ya ba; yio pue, pue" signüica: Oako (a mãe dos jaguares) ao porto. Ao menino que ela retira
"Que bela mulher está aí". Ela o acha feio e lhe cospe na mão. 30 dos despojos avisa que os tigres tencionam devorá-lo quando cres-
Ele lambe a saliva e chama os seus irmãos. Méneri-Ya ordena cer. 32 Ele então se refugia nas águas. Os jaguares, convertidos
que eles se pintem com tinta de jenipapo, por ordem de nasci- em pequenos animais que caminham sobre a água, 38 procuram
mento, para dançar com eles. O primeiro e segundo se recusam, Warimi (assim se chama o menino) . Este os despista, conver-
só o último dança com Méneri-Ya, e acaba arrebentando-lhe os tendo-se em sapo; mas dá-lhe uma alma 3 4 para que as onças o
dedos do pé com o bastão de dança, 81 comendo-os. Ela é assim devorem, pensando tratar-se de Warimi. Este foge e desce até
devorada pelos jaguares, que só poupam as entranhas, levadas por onde termina a água, 35 chegando à casa de Mení. É aí carregado
pelos meninos, no ombro, 36 apesar do mito especificar que eles,
mens . . . ) na parte alta da maloca. O espelho não é mencionado antes da que eram seus irmãos maiores, não o conheciam. Havia muitas
chegada dos tigres, e, se o tigre a viu pelo espelho, este teria que estar matas de piiía 3 í neste local, e Warimi se põe a escrever coisas nas
evidentemente em algum lugar no chão, virado para cima. Ora, o tigre que
a viu é "Hikaniké", o que terá a pata amputada. Como os índios do Uaupés folhas das árvores com uns pausinhos, criando assim a escritura. 38
não conheciam o espelho antes do descobrimento (supõe-se), seria a intro-
dução de um elemento estranho no mito? Achamos que não. Achamos que 32 Em outras versões, mas só quando se opõe à mãe, má, do gambá, é
no espelho que lhes adveio do civilizado reconheceram uma imagem que esta que o cria. Opõe-se evidentemente à mãe de Warimi, por pertencer a
ficou apagada, mas não de todo, de uma representação que deve ter sido outra categoria de idade, mas não, como nas versões xinguanas, por ser
familiar aos seus ancestrais (lembremo-nos de que a América Central co- da raça das onças em oposição à "mulher de madeira" (de procedência
nheceu os espelhos de obsidiana já no período formativo). Por mais que humana). Méneri-Ya também é filha de Mení, o "tigre bom". A verdade
pensemos numa explicação do curioso episódio, a imagem que nos vem à é que na ideologia que vigorava entre os Desâna e os Barasana, o "~er
mente é uma só: a de Tezcatlipoca, personificação do Sol noturno: "este terrível" era considerado "humano", tão humano quanto o Sol do mito
dios lleva el espejo en lugar dei pie que le ha sido arrancado por el opayé-xavânte que mencionamos atrás, o qual sacrificava uns homens
monstruo de la tierra" (SÉJOURNÉ. Pensamiento y Religi6n en el México (transformando-os em animais) para poder salvar os outros da fome.
Antiguo. p. 189). Naturalmente, isto apenas quer dizer que, sendo a "onça 83 Parece ser o fundamento mitológico da crença, a que já nos referimos,
maneta" e "Tezcatlipoca, el sei'íor del espejo humeante" uma e a mesma em "onças· aquáticas".
pessoa, ambas as concepções desenvolveram-se do mito olmeca dos "Filhos 84 E evidente que as onças devoram Warimi, mas a ele se permite a ressur-
do Jaguar" a que já nos referimos; e que a interpretação de Séjourné sobre reição.
o simbolismo do pé ausente e do espelho fumegante decorre de uma outra, 35 :h a figura de Haburi, do mito warrau. LÉVI-STRAuss. Du miei aux c~ndres.
mais simples, mais arcaica, que os mitos dos gêmeos sul-americanos aparen- p. 152 et seqs. Mas, repare-se bem: enquanto no mito warrau mencu~na-se
temente permitem : este "espejo bumeante como un lago que se evapora, o herói só fazendo canoa na segunda seqüência da fuga (para fugir da
un lago cuya materia, puesta en movimiento por el calor, se eleva al cielo'', mãe adotiva), Warirni volta mais tarde para a maloca das onças, rio acima,
que SÉJOURNÉ (Op. cit.) identifica com o símbolo da "água queimada", na canoa de Mení. O mito retrata por isso, certamente, ao mesmo tempo
não representa as duas formas pelas quais os gêmeos ou seus equivalentes que o abandono de um rito, a adoção de outro gênero de vida ( qt;te evid~nte·
matam as onças? mente causou o abandono do rito por provocar uma mudança ideológica).
29 A ocarina é mencionada por SILVA, Pe. A. Brüzzí A. da. (Op. cit. p. 302 36 Na lenda da "Guerra dos Uananas" (AMORIM. "Lendas em Nheêngatú
et seqs.) - uxpitu, ocarina de barro. Ele menciona também um caramujo e em Portuguez." RIHGB. p. 55 et seqs. ), há uma passagem em que os
de soprar pelo nariz que diz ser desconhecido de muitos da nova geração. homens foram convidados para "carregar os meninos n'essa festa de Jurupari",
ao E a mesma atitude de provocação da moça do mito de Autxepirire que, (frase 94, p. 61). Trata-se, portanto, de um rito usado, evidentemente, para
cuspindo, quebra as vasilhas dos bichos que vêm buscar água. Não este ato, estabelecer um parentesco com os iniciandos, com função de padrinhos.
37 A tradução de pUía seria fruto do pinheiro. Parece, contudo, não se ·
evidentemente, mas um análogo, o de jogar massa de mandioca no rosto
do rapaz, equivale, entre os Kobéwa (GOLDMAN. Op. cit. p. 233 ) ao con- tratar da Araucária (nem, logicamente, do ananás). Infelizmente não anota-
mos o termo tukano. Que Warimi colha as folhas dessa árvore pode ter
vite sexual (que parte da moça) . alguma relação com o fato de que são os pajés que mais comumente , se
a1 Deve corresponder ao yaígo, o "pau da onça" ou Murucú-maracá que abastecem de folhas (de coca, no caso ), mas pode representar tambem
Pe. Alcionílio menciona como sendo usado nas danças, pelo tuxáua. Quanto como o espelho de que falamos, algo perdido na região mais profu~da da
a ser o tigre mais novo o que aceita dançar com ela (e devorá-la), o tema memória tribal, urna lembrança de elementos concebidos hoje como pnmevos
nos mostra outra vez a transição entre uma ideologia e outra. Nos mitos e pré-culturais, pertencentes aos deuses e não aos homens. . .
tukano, é sempre o irmão mais novo que quebra tabus (o "errado" ) . Se o :3s Difícil é saber se a alusão à escrita é ou não um elemento introduzido
mito condena Muyhu pelo incesto, é seu aspecto mais fraco (lunar) que após o contato com os civilizados. Pessoalmente, como dissemos atrás, temos
cometeu o incesto. Neste caso, o vingador deveria ser um elemento definido a impressão de que há certos temas que se encontram muito ap~gado~ !1ª
como "irmão mais velho". memória tribal. (Urna verdadeira escrita, na América do Sul, nao eXJshu,
182 CAP. Vlll - ..HIST6RIA DE LUNA" . . . ' "HISTÓRIA DE LUNA". . • 183

Warimi introduz entre as gentes de Mení os jogos eróticos. 39 nos com as sarabatanas, matando pequenas aves (como os peri-
Brinca e molesta as crianças, tocando seus corpos. Não entrava quitos) e finalmente flechando uma ave azul, 45 que se transforma
na maloca. Borboletas são mencionadas, associadas a estes jogos em gente, não morre e sai gritando "ai, ai, ai!" Finalmente Warimi
eróticos: a umas ele pinta, a outras devora. Os ineninos avisam vai ao monte buscar material para fazer cestos e com um pedaço
os pais, que se escondem para ver Warimi. Quando a menina de vime espeta o avô no ombro, fazendo-o transformar-se em um
maior, enterrada por ele na areia, 40 o agarra, ele volta a ser um caranguejo. 46
menino pequeno. Mení ouve seu choro e o reconhece seu neto. •1
num renascimento simbólico, trata-se de uma "retrospectiva" ou repetição
Warimi só se cala quando a filha caçula de Mení o carregou nos (ocorrida, pode-se dizer, duplamente fora do tempo, quando aparece no
braços (o adotou). 42 Seguem-se os ritos de batismo, em que Me- mito) , de um processo biológico que evidentemente já ocorreu.
ní, q?e se crê seu avô, 43 tem uma função ritual: ele é que sopra 4 5 Os treinos costumeiros dos meninos indígenas. A ave azul ( ratsui) que,
os alimentos da mãe adotiva e o leite desta, que Warimi mamava. flechada por Warimi (mas não para matar) vira gente e sai gritando "ai,
Segue-se o crescimento milagrosamente rápido do herói, 44 os trei- ai, ai", não é identificada por Laborde, mas ele diz ter visto uma ave assim
no ombro de um Kumi dos Wái Masá (Bara). Parece tratar-se de um
mas houve emprego de escrita pictográfica e de certos recursos mnemônicos. aJter ego de Warimi.
46 O caranguejo pouco aparece nos mitos brasileiros! Num mito das Guianas
Koch-Grünberg mesmo relata em Zwei Jahre .. . Band li, p. 120, o hábito
dos Omáua fazerem entalhes em paus para marcarem os dias de viagem.) de que se falará adiante, acaba ficando com o remo mágico. mas isto pouco
A lembrança muito difusa de que tais recursos foram usados outrora por ajuda aparentemente a compreensão do texto barasana.
tribos de que se supõem descendentes ou aparentados, são reavivados ao Laborde diz que o simbolismo do caranguejo não lhe foi explicado.
rontato com o civilizado: de certa forma, como o mito nunca é uma Entre os Desâna, por seus movimentos lentos, cuidadosos, se o invoca para
invenção propriamente dita, é preciso que se "'reconheça" os elementos que cuidar dos doentes (REICHEL-DOLMATOFF. Desâna . .. p. 77). -.;: também a
realmente se integram ao personagem mítico, símbolo da tribo. comida predileta de Boráro (Op. e.ir. p. 62) . Como o autor diz à página
ao A atitude de molestar os outros encontra paralelo no mito de Auké, de 141 que os Desâna têm animais domésticos porque acreditam que atraem
que se falará adiante. Ao mesmo tempo, é uma referência direta à puber- para si as doenças (por suas "qualidades apotropaicas"), não é difícil que
dade de Warimi. Está na hora de ele ser iniciado, de renascer. i;-. só após uma concepção esteja em função da outra : sendo o caranguejo que cuida
este renascimento que Mení (o criador-jaguar de caráter solar) o reconhece. do doente, Boráro devora o enfermeiro e não o paciente. J;: curioso que
40 Temos a impressão de que não nos enganamos se interpretamos o episódio ouvimos o mesmo conceito, quanto à utilidade dos animais domésticos (a
como uma alusão ao rito arcaico da mulher sacrificada. Warimi só consegue de atrair para si as doenças, salvando delas a família) , de uma velha
renascer depois de ter enterrado uma menina na areia, sendo que todos os
outros urinam em cima da sepultura. senhora italiana, que possivelmente não o adquiriu no Brasil.
•1 Ele efetivamente o é, mais ainda, é seu filho, pois Muyhu é apenas o
Isto não explica, no entanto, a passagem do mito. h possível, contudo,
aspecto negativo, sinistro, de Mení e, curiosamente, passa a não ser mais que, como sugerimos coµi referência ao espelho, a explicação se encontre
mencionado, a partir do nascimento d~ Warimi. Muito interessante é, assim, em alguma representação centro-americana do período formativo. Se houver
estabelecer um paralelo entre este mito e um mito de gêmeos tupi; por alguma possibilidade de analogia entre Sipakna (o caçador de caranguejos
exemplo, o relatado por HUXLEY (Affable Savages. p. 217 et seqs.) entre de Popol-Wub, cf. S CHULTZ, W. Eileitung i1i das Popol-Wuh. p. 47) e
os Urubu-Kaapor: nele, os gêmeos vão ao encontro de Maír, após terem Warimi , talvez se a encontre. ·
vingado a mãe, fazendo-se reconhecer por ele como iguais, após uma série E é preciso não esquecer que os índios do Uaupés identificam como
de provas em que Maír-mimi ressuscita Mikur-mimi e tenta fazer Maír "Caranguejos" (M anápnae dzáka e D záka ) as duas constelações próximas
reconhecê-lo, igualmente, como seu filho. Warimi, ao contrário, só vinga às Plêiades (Oalíperi = os jovens). V . KocH-GRÜNBERG. Zwei la/ire . ..
a mãe depois de ser reconhecido como neto por Mení, e isto só se dá, como Band II, p. 204.
sugerimos acima, depois que ele se torna igual ao pai, pelo mesmo pecado: Aliás, temos certeza de que os Barasana, como os povos primitivos ern
o incesto (aliás, uma observação de La borde já ressalta o caráter incestuoso geral, concebem o grande mito tribal como que "escrito" todo ele nas
dos jogos eróticos inventados por Warimi) e o sacrifício da menina. · constelações e astros em geral.
42 Como Oako ("deusa") é o aspecto purificado ou solar de Méneri-Ya,
E isto porque, de certa forma, eles sabem que o que já existiu uma
º,
assim a c~~ula é aspecto puro da irmã mais velha, que Warimi (conspur- vez, o que tocou e transformou o homem, não pode desaparecer inteiramente.
cou? sacrificou? da no mesmo ... ) enterrou na areia. Dissemos que a "mulher-estrela" (na versão mais primitiva ) é arre-
4 3 Parece que os "costumes estranhos" que Warimi tem (os jogos incestuosos
messada no espaço e não volta de maneira alguma. Não é bem verdade.
o hábito de devorar borboletas) o chocam, portanto, menos do que se~ nada se anula: como estrela, ela volta, justamente com a temporada de
congênere no mito krahó de Auké, de que se falará adiante. caça ou com a época do amadurecimento dos frutos. Ela permanece com
44 O crescimento rápido dos heróis renascidos, de certa forma, é "real".
Como os ritos de passagem (V. GENNEP. R(tes of Passage) implicam sempre os homens, olhando-os do céu, e permanece dentro deles (como exemplo
184 CAP. VIII - "HISTÓRIA DE LUNA" .•• "HISTÓRIA DE LUNA". . • 185
dignificante do valor do sacrifício e como o alimento que ela lhes pagou). de maior número de rios determina um máximo do nível das águas (5,70 m)
Isto os antigos sabiam e o homem moderno esqueceu . .. em junho e julho, a subida das águas começando lentamente desde março
E por que, quando os mitos se tomam contos folclóricos, aos poucos e a vazante terminando com um nível mais baixo em novembro-dezembro,
perdem a conotação astronómica, a conotação estacionai? Porque, com o para em janeiro apresentar uma pequena enchente, com nova descida de
desenvolvimento das técnicas, da multiplicação das formas de sustento, o águas de fevereiro para março. No quadro de Pe. Alcionílio essa pequena
homem (e evidentemente o homem da cidade acima de tudo, pois o ligado enchente corresponde à enchente da arraia ou de Vênus (ou "repiquete
à terra bem que ainda o sabe) perde aos poucos o significado das estações dos mortos") , um pouco antes (outubro-novembro). A enchente maior (da
e das estrelas. "barba da onça" e de "Yoxkwatéro") corresponde a maio-junho, junho-julho.
e um processo, aliás, que já se nota no mito barasana. Não· lhes basta GoLDMAN (''The Cubeo ... " ISA. p. 50) refere-se, entre os Kobéwa, a duas
mais saber que Méneri-Ya se transformou numa estrela; há uma necessi- estações secas: ihibo (verão) correspondendo aos períodos de outubro a
dade de afirmar que ela voltará sob a forma de um determinado fruto (sem dezembro e de fevereiro a março; e uma estação das águas, ilákoro (inverno)
dúvida a pupunha). Isto indica que é deste fruto mais do que dos outros de ma io a agosto e também em janeiro.
que o grupo passa a depender; porque, para explicar a dependência dos A dificuldade é estabelecer uma correlação exata entre estes dados e
outros em geral, o mito da origem das Plêiades do grupo de meninos o aparecimento das constelações. As Plêiades, segundo RODRIGUES, Barbosa
gulosos satisfaz plenamente (pois não é sem razão que esta constelação é (LÉvr-STRAUSS. Le cru et le cuit. p. 223-24), desaparecem na A.mazônia em
designada com o nome de "Periquitos", as aves que comem as frutas. Que maio e reaparecem em junho, o que confere com os dados para os Tapirapé.
sentido profundo há nos mitos! Pois ao sacrifício das crianças corresponde E no Uaupés? KocH-GRÜNBERG (Zwei la/ire ... Band II, p. 202) nos diz
efetivamente um "Sacrifício" dos filhotes de passarinhos, de que o homem que quando o quadro composto pelos dois "Caranguejos" mais as Plêiades
subtrai o alimento ... ) . se põe, começa a estação chuvosa e a subida do rio no Uaupés. Mas ele
não nos dá a época do ano. Admitindo que não tenha havido mudança
considerável nos dados climáticos de Koch-Grünberg até nossos dias (pois
maná pane o homem até 1950 praticamente não modificou o quadro natural aí)
Odzáka úpitsi teríamos assim para o Uaupés: início da enchente com o desaparecimento
ualíua

) oalíperi
>- das Plêiades em maio. Pela sua localização, os Barasana de Laborde devem
ter, contudo, uma distribuição do período chuvoso mais parecido com o
dos Desâna (as chuvas começando em março). Em todo caso, pode-se
presumir que a história de Warimi, transformando o avô em Caranguejo
possa ser "lida" no céu até maio. O quadro celeste seguinte compreende um
1-' dzáka Kakudzúta
Matapi (Fischer-reuse) como parte de Orion e também, do outro lado da
Via-Láctea (e/. outro esquema de Koch-Grünberg, apud LÉVI-STIUuss. Op.
cit. p. 238-39), a Pomba, lembrando o episódio de Warimi apanhado no
seu próprio matapi e Mení transformado em pomba. O desaparecimento
"a" "b' "c" dessa constelação no horizonte ocidental indicaria, segundo Kocb-Grünberg,
Segundo KocH-GRÜNBERG. Zwei Jahre unter den lndianern. Band II, p. 204. o nível mais alto das águas, o que efetivamente permitiria a viagem de
canoa de Mení e Warimi. No quadro "b" (Zwei Jahre . . . Band II, p. 202)
e pena que não conseguimos recompor o código astral do mito, mas nos mostra a boiassú ("Keitápana" = "Escorpião''), que não é difícil iden-
algumas relações conseguimos perceber. tificar com a serpente aquática morta por Mení e Warimi, iniciando a época
Compare-se inicialmente o quadro das estações que SrLVA, Pe. A. Brüzzi "seca" (nenhuma ou pouca chuva, nível mais baixo das águas). No esquema
A. da (A Civilização Indígena do Uaupés. p. 257 et seqs.) apresenta para reproduzido por Lévi-Strauss, contudo, a leste de Orion, aparece ainda a
o traupés, com o apresentado por REICHEL-DoLMATOFP (Desâna ... p. 184, constelação do Jaguar (a mesma que os Tukúna opõem ao Tamanduá. V.
tabela n. 0 3). LÉVI-STRAUSS. Du miei aux cendres. p. 112). No esquema de Zwei Jahre . ..
Os dados não correspondem inteiramente. A subida das águas, por não aparece, mas é possível que se ligue a Kakudzúta, que Koch-Grünberg
exemplo (duas ao ano), começa, pelas indicações de Reichel-Dolmatoff, um identifica como a parte norte de Erídano (os indígenas chamam a esta
pouco mais cedo. Certamente isto se explica pelo fato de que as indicações constelação de hache de danse - machado de dança, bastão de dança) .
de Pe. Alcionílio correspondem à Yauaretê, enquanto as de Reichel talvez Teríamos assim a onça mais o apetrecho de dança mencionado no início
correspondam à localização dos Desâna mais no Rio Macu e Alto Tiquié, do mito.
o que equivale a dizer que se trata de enchentes quase torrenciais, logo Temos assim uma série de representações análogas no céu e no mito,
nas primeiras chuvas, enquanto as enchentes maiores do Uaupés, na altura e é evidente que existe uma correspondência. Mas é difícil de saber, por
de Yauaretê, se atrasarão um pouco e serão logicamente bem mais volu- exemplo, a que episódio do mito corresponde a "enchente da barba da
mosas, pois contam também com as águas do Papuri e seus afluentes. Isto \ onça" (em maio-junho, presumivelmente quando essa constelação surge no
parece se confirmar pelos dados apresentados por AzEVEOO, Aroldo de. céu; Pe. Alcionílio não o explica) e se devemos ver em "Yoxkwatéro" (um
(Brasil, a Terra e o Homem - Bases Físicas. v. I, p. 591) para uma personagem lendário associado à enchente de junho-julho) um equivaJente
localidade ainda mais rio abaixo (Barcelos): aí, a convergência das águas de Hikaniké. Não conseguimos descobrir o . significado de "Yoxkwatéro",
'

186 CAP. VIII - "HISTÓRIA DE LUNA" •• , "HISTÓRIA DE LUNA''. . . 187


Segue-se uma passagem em que Warimi faz balaios, canastras canoa, virando gente nova. Warimi pede para acompanhá-lo na
e um matapi 47 para pescar, depois do que ele se transforma em viagem. 51 Só então, durante a viagem rio abaixo, Mení conta a
peixe, sendo capturado por Mení dentro do matapi que ele pró- Warimi que as onças comeram a mãe dele. Segue-se uma cena em
prio fizera. Mení aparentemente o devora, juntamente com ou- que os dois matam uma serpente ("Hino"-guio), encontrando
tros peixes. "8 Mení prepara os peixes, jogando as tripas na dentro dela, ao lhe cortarem a cabeça, a "Mãe do . pescado". r; :.!
água. Após comer pescado (com as tias ... de Warimi, presume- Com a gorqura dela, fizeram gasolina e motor para a canoa. :;::
. -se), "!) Mení, transformado em pomba, cruzou a cabeceira do rio Passam num lugar abandonado em que encontram restos de co-
Pirá, pela cachoeira Pina. 30 Depois pega um remo, monta numa mida, 54 depois sobem o rio e o barulho do motor diminui, à medi-
da em que o motor se faz pequeno e desaparece. Chegam à maloca
mas não é de todo impossível que se trate de um unijambista ou equivalente, r i
dos tigres e Warimi faz com que haja muito calor lá dentro. Os
pois okpá-cuci, okpaci, okpatu significam respectivamente "coxo'', ..cotoco",
"corcunda". Outras palavras que têm terminações iguais ao nome são da/itero tigres saem, mas não o enxergam. No meio da maloca há um
(meio-dia), olióktero (jardim), iehero (serrote), mas só mesmo quem co- espelho grande, que Warimi limpa bem. iiõ Deita-se em seguida
nheça Tukano para resolver a questão. numa rede, a qual rebenta em cima de uma panela com casabe; riiJ
No quadro . de Reichel-Dolmatoff não encontramos menção da época
de maturação da pupunha (ri em "Desãna", ãré em Tukano, segundo Pe. Warimi guarda os cacos quebrados e volta a ser bebê. As onças
Alcionílio). Seu florescimento se dá em "setembro-outubro" (ã ré puxtir6),
o plantio em fevereiro-março. O tempo de pupunha parece corresponder começa a contribuir efetivamente para o sustento do grupo), ele logicamente
assim, em linhas gerais, aos dados colhidos por Patino ("El cachipay ... ". se dissocia, lentamente, dele (tornando-se adulto), provavelmente é essa
p. 190) para os flancos da Cordilheira Oriental, com uma colheita em dissociação lenta que o mito mostra no episódio referido.
setembro-outubro, outra no começo do ano (entre janeiro e março); esta
segunda colheita possivelmente também existindo no Uaupés. A volta de Wari-
mi, seu encontro com a avó (simbolizando seu reencontro com a mãe) deve
. .)
:>1 Laborde observa que as andanças dos meninos barasana são muito co-
muns. Parece parte da preparação dos rapazes . . .
Há uma passagem curiosa neste ponto, que parece confirmar o que
ocorrer próximo ao solstício de verão do Hemisfério Sul, e, como o Uaupés sugerimos na nota anterior: A canoa está tão cheia de balaios que, só
já se localiza no Hemisfério Norte, corresponde, portanto, ao período em depois de juntá-los, há lugar para se sentar no posto de piloto (um deveria
que o sol mais se afasta, com trajeto declinado para o sul, mais um indício se sentar na proa, outro na popa, mas só há referência ao posto de piloto.
de uma certa oposição entre Warimi e o Sol, após sua "expulsão do paraíso". Evidentemente, os dois continuam sendo um só. "Mas, para haver espaço,
4 ; Aí está um apetrecho que parece fatal a Warimi e seus congêneres, que juntam-se os balaios (em vez de Mení e Warimi). Assim, o aprendizado
também se deixam apanhar nele. Mas dele falaremos mais adiante. da arte cesteira, identificando Warimi mais com Mení, permite:"lhe reser-
48 A contrapartida da transformação dele, Mení, em caranguejo? ~ possível. var-se um lugar na canoa. Mas, como Mení e Warimi ocupam um só
O mito diz que Mení o pegou, tirou as tripas e as deixou na água. Se . espaço (porque são um só, sob outro ângulo), isto se representa por uma
:...;
Warimi tivesse feito o mesmo com o caranguejo, só poderia aproveitar, duplicação das cestas (e de Warimi, simbolicamente), para em seguida
justamente, a parte interna. Talvez o episódio seja uma ilustração da identi- juntá-las. Daria uma linda equação ... infelizmente temos uma incapacidade
dade entre Mení e Warimi (sendo um por fora o que o outro é por dentro total para a Matemática ...
ou algo parecido) . · 52 Entre os Siona (BÕDIGER. Die Religion der Tukano. . . p. 35), matar a
40 Parece efetivamente um rito de iniciação, mas tem outra explicação, como mulher-serpente (mãe-d'água) é fatal: os filhos do matador morrem e há
se verá adiante. uma maldição sobre toda a família. Parece tratar-se da mesma representação
M Pomba não come peixe. Parece evidente que uma passagem nega a outra. mítica de que Lévi-Strauss trata em Antropologia Estrutural ("A Serpente
Seria a recusa total de todo o mito? Mas então ele não seria absorvido do Corpo Cheio de Peixes." p. 292-96).
e não teria a importância que tem. Laborde diz que é recitado, aos trechos, 58 A "falta de respeito" para com essa serpente-aquática parece que não se
noites em seguida, sendo repetido ... limita aos Tukano dos mitos recolhidos por Fulop . ..
E. muito curioso também que, enquanto a parte de Warimi que não ' ~ possível que seja, contudo, mais uma vez, a representação do sacrifício
pode ser consumida (as tripas) fazem um percurso na água, a parte de de Méneri·Ya, desta vez em troca de bens culturais.
Mení que não o devora (só assim se pode entender a figura) dá uma volta 54 A viagem para o alto rio é, duplamente, uma viagem ao passado, na
por cima. Evidentemente· encontram-se (e recompõem-se) num ponto que , medida em que se pode refletir num quadro atemporal.
seguindo as tripas, deveria ser, logicamente, rio abaixo. Mas, seguindo a l55 Parece que Warimi se sente à vontade na maloca ' das onças. Se ele
pomba, nos dirigimos rio acima. Achamos que, apesar de ser normal essa limpa o espelho, com que Hikaniké havia visto Méneri-Ya, possivelmente
oposição de um episódio a outro no mito, toda oposição existe, não por tenciona usá-lo; comporta-se como se o espelho fosse dele.
uma pura concordância estrutural, mas porque quer dizer algo específico. 56 Laborde sugere, êom acerto, que a vasilha que se quebra é o útero
Aqui no caso, como, à medida em que Warimi se identifica com Mení materno (um útero materno, na casa das onças, podemos acrescentar).
(adulto) através dos treinos (mais particularmente, a partir de quando ele Warimi tam~ém o reconhece, pois guarda os cacos quebrados.
"HISTÓRIA DE LUNA". . • 189
188 CAP. VIII - " HISTÓRIA DE . LUNA" ..•
tro animal. 63 Na beirada da roça, ele mata um grande tatu e o
não o vêem. Chega um pássaro carpinteiro e as onças perguntam devora. 6 4 As onças estavam jogando com um apetrecho feito de
ao avô de Warimi quem é. Este responde que é seu neto. 57 As cuia, que soava. 65 Este apetrecho era a cabeça de Méneri-Ya e
onças tomam a perguntar: "Onde está este homem amargo ( W a- ela chamava a Warimi: "Meu filho!" Warimi a pegava com o
rimi Sué)? !'iS O jaguar que comera a mãe de Warimi toca a Warimi pé. 66 O jaguar convida Warimi para dormi~ ~a mesma r.ede. 67
na cabeça e chupa o dedo. Era amargo. 59 No dia seguinte Mení Este aceita; mas, enquanto a onça dorme, Wanm1 escapa, deixando
volta; Warimi fica só. 6 ° Corta pedaços de cana que dá aos tigres em seu lugar, na rede, um banco de madeira, us o qual é devorado
para que o esquecessem. O jaguar que comeu Méneri-Ya apenas pela onça. 60 Na manhã seguinte, enquanto jogavam com a ca-
chupa a cana e cospe sangue. 61 Warimi pensa que é sangue de
veira, Warimi lhe dá uma patada 70 e ela cai em cima de uma mata
sua mãe. Converte os tigres em outros animais, um em paca,
outro em anta, etc. Estes se comem uns aos outros. 62 O jaguar homens, mas não conseguem mais devorá-los porque Warimi os transformou,
que comeu a mãe de Warimi, contudo, não foi convertido em ou- o que representa um benefício, anulado, contudo, pela subtração da caça ...
Parece fora de dúvida que a maneira como os Barasana absorveram
57 O pássaro carpinteiro, "Koné", no mito barasana, Laborde diz que sim- 0 mito redunda numa espécie de "neutralização" do mito. Mas a subtração
boliza o órgão sexual masculino. Parece-nos, contudo, importante notar que da caça, como veremos adiante, não significa mais o mesmo que no mito
num mito desâna (REICHEL-DOLMATOFF. Op. cit. Mito 19, p. 206) simboli- opayé-xavante ...
zava originalmente o órgão sexual feminino, situação que só se inverte após 6a e, naturalmente a onça eterna, a que existiu no céu antes de andar pela
uma competição com o pato, de que o "Koré" desâna sai vitorioso. Parece- terra.
-nos importante que a aposta era de se ver quem era mais resistente para 64 Laborde observa que o episódio ficou sem explicação. Talvez a explicação
subir pelas serras e trepar em árvores. (A mesma aposta fazem lnapirikuri esteja em AMORIM ("Lendas em Nheêngatú e em Portuguez. RJHGB. p.
e Amaru na lenda de Jurupari, recolhida por Saake entre os Baniwa, de 52) Diz ele que a moça iniciada, depois do banho, pode comer tatu, porque
que se falará adiante.) a c~rne de tatu contém todas as outras. REICHEL-DOLMATOFF (Desâna . ..
58 O herói passa a ser designado com esse nome só a partir desse ponto
p. 74) diz que ele é, entre os. D.e~âna, um animal uterino; simboliza a
astúcia por se esconder, fazer-se 1nv1s1vel; e que sua concpa se compar~ com
da narrativa. Admite-se que ele se tornou amargo, renascendo como onça.
a proteção que dá a maloca. O mito ~qui. não é, portan~o, ,uma, su~1ples
Ainda falaremos do porquê dessa designação. repetição da cena da onça comendo M~ne~1-Ya (o tatu ~ao e, .Menen-Ya,
59 Parece que confere com o simbolismo de "Koné". O jaguar viu-o inicial- é a comida que simboliza todos os amma1s concretos, nao m1t1cos. Como
mente como réplica da mãe e experimenta devorá-lo. Percebe o engano, a "moça-nova" (uma sutil "humilhação" da onça é sugerida pelo episódio),
quando chupa o dedo. Subentende-se que o dedo em contato com a cabeça a onça passará a comer só animais, não mais moças. .
se lambuzasse de sangue ou suor. Na realidade, isso não tem importância: 65 Uma bola-maracá, que contudo é uma caveira. O jogo. de bola ntua~ d~
chupando o próprio dedo, em vez de Warimi, o jaguar percebe que Warimi México antigo tem fundamentação muito parecida demais para ser comc1-
é seu igual, melhor ainda, é ele mesmo também. dência · ele também está ligado ao motivo do troféu de cabeça. Assim o
60 Depois de "experimentado" pelo jaguar ou, se quisermos, depois de se Popol-Wuh refere um jogo de bola em que o troféu é a cabeça cortada
defrontar com este em condições de igualdade, Mení parece decidir que de Hun Ahpu (SCHULTZ, W. Einleitung in das Popol-Wu/J . p. 59). A ~abeça
Warimi agora é adulto, ou realmente ele próprio, e desaparece. de Méneri-Ya parece intercambiável com o maracá (apetrecho de cUla que
61 N ão há dúvida de que chupar cana é um eufemismo, aqui, por chupar soa).
sangue, tanto que o tigre cospe, efetivamente, sangue. Os outros tigres têm 66 Não há dúvida de que Warimi nesta cena identifica-se inteiramente com
uma atitude menos "solar", participam do banquete mais como feras. o jaguar., Apesar de ouvir a mãe chamá-lo, ele levanta a cabeça dela
O fato de Warimi dar a cada jaguar um pensamento para que eles o com o pe. , .
esqueçam é análogo ao sentido do sacrifício da mulher "aos bichos", pelos Gi Eis aí o ogre com instinto paternal. Como observou Lev1-S.tr~u~ ao
caçadores arcaicos: dão-lhes a mulher, para que se esqueçam (de vingar-se) comentar o mito de Haburi (Du miei aux cendres. p. 158) , o pai md1gena
deles. gosta de colocar o filhinho a seu lado na rede. Pode ser interpretado, por-
62 O que o gêmeo de aspecto solar faz é converter animais agressivos, hostis tanto, como uma tentativa de adoção.
ao homem, ou animais que se comportam como homens, em verdadeiros GS Exatamente como ocorre no mito de Haburi, só que a iniciativa parte
animais, em caça para os homens (mas não ma is como o Sol opayé-xavante, da mãe e tia, que logram o jaguar.
a partir de homens, pois essa representação pertence ao estrato anterior). oo Curioso é que Warimi só ·se furta a essa adoção depois de se dar conta
Warimi evidentemente não consegue completar, pela sua natureza ambígua, que a sua própria mãe foi devorada pela .onça. Pe>e!.e-se s~por que, . ca;o ele
essa transformação. Por isso transforma parte dos tigres em paca, anta, não a recusasse, agora consciente, morreria para nao mais ressu~1tar . .
mas continuando com uma natureza felina, pois se comem uns aos outros. 70 A tradução de Laborde é patada e não pontapé; alusão ao carater fehno
Mas ele conseguiu, o que é notável, uma espécie de dupla inversão de de Warimi.
polaridades: transformados em caça, recusam-se a servir dessa forma aos
190 CAP. VIII - "HISTÓRIA DE LUNA
0
••• " HISTÓRIA DE LUNA" . . • 191

de bananeiras. 71 Warimi vai ao monte e manda as "Hoaróa" também comer frutas, é logrado pelo dono, que retira a escada, 7 8
(aranhas que andam sobre a água) 72 colherem cascas de miriti 73 ficando Warimi confinado. 79 As garças chegam, não o livram,
e colocarem-nas por dentes. A casca se converte em piranha. mas prometem que virá outra gente 80 ajudá-lo. Finalmente, mu-
Como a anta chegou a comer dessa casca, Warinii a arrojou ao nido de asas feitas de penas e algodão, junta-se a um bando de
rio, onde as piranhas a devoraram. Depois foi à outra maloca garças que o leva até a casa de Rumí-Kumu, após ele ter vencido
dizer que fizessem chicha para a festa-. Após outra referência aos os obstáculos que se interpõem. 81 Rumi-Kumú 82 desconfia que
tigres cantando o "Kome Basá", segue-se a conhecida passagem há alguém estranho no meio de seus hóspedes. Quando finalmente
da construção de uma ponte por Warimi, 74 por onde os tigres os outros partem, Warimi fica com Rumi-Kumú. 83 Esta o leva
passam, caem no rio (pois Warimi solta a ponte) e são todos devo- à casa de seu pai Riináhinó (a serpente dona dos venenos), de
rados pelas piranhas, menos um, a quem as piranhas comem ape- quem ele rouba o curare, escondido no estômago deste. 84 Para
nas uma pata (é Hikaniké, o jaguar que devorara Méneri-Ya). 75 isto, transforma-se em pulga e morde Rimáhinó no ombro. 85 Este
Warimi vai procurar o avô, com o corpo cheio de feridas que ele
mesmo se fizera, pedindo ajuda contra as onças. 76 Mení percebe, 78 Essa escada aparece também em muitos outros mitos, como, por exemplo,
contudo, 77 que Warimi o está enganando e que Warimi (apesar nos dos Parintintín, ligados ao .ciclo de Baíra (V. PEREIRA, Nunes. Moron·
guetá ... v. II, p. 565). Temos a impressão de que nada tem a ver com a
de sua negativa) é quem· matara as onças que encontram mortas. "escada-pinça" dos Yanonami, mas a possibilidade de relação existe .. .
Repreende-o e proíbe-lhe a permanência em Umea Gatsero. Se- PATINO (América Indígena. p. 302) assinala a "escada-pinça" entre os
guem-se outras aventuras de Warimi, mandado por Mení a todas Wit6to, mas apenas no Potumaio (Rio Içá) . '
79 ~ o tema característico da iniciação. Desta vez, Warimi parece encontrar-
as partes. Warimi se coloca em oposição a um personagem ·dono -se. Recusa-se a uma solarização, recusa-se a abandonar sua natureza huma-
de uma árvote fruiífera e, pedindo para subir na mesma, para na. Fica no meio-termo: vira pajé, e, depois de uma experiência tão
crucial, parece que os Barasana têm toda razão de fazer dele seu herói
11 "platanillo", uma espécie de banam~: ela se transforma, portanto, em fruta. tribal principal: melhor pajé não encontrariam em parte alguma.
12 Warimi fabrica "jaguares aquáticos,. ... 80 As garças aparecem em outros mitos, ligados ao ciclo de Poronominare,
78 Na luta contra os jaguares não se menciona nenhuma vez a coca, o que veremos adiante.
yagé, embora episódios como esse nos façam pensar, não propriamente na 81 Não sem ter aspirado, antes, tabaco, pelo nariz. Agora, no cenário "ter-
coca, mas no yagé ( caapi) que é preparado da casca maceráda de cip6s restre", no mundo dos homens, o tabaco é mencionado. Os obstáculos são
diversos do gênero Banisteria (SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. A Civilização temas relativamente bem conhecidos, que pouco diferem dos que aparecem
Indígena do Uaupés. p. 228). O mito menciona, contudo, o miriti. Evidente- em "Viagem de Aventuras" (mito de caráter iniciat6rio - nas artes xama·
mente a luta entre Warimi e as onças, estando ambos no mundo supra- nísticas - dos índios krahó, segundo Schultz).
natural, não s6 dispensa o emprego de armas sobrenaturais, que muito 82 Rumi-Kumú é a mãe das flautas de Jurupari. (Entre os Desâna, a figura
provavelmente nem funcionariam contra os tigres, como exige outras armas, que corresponde ao conceito geral de heroína civilizadora, é feminina.)
de que se falará adiante. 83 "Warimi tocou no corpo dela" (alusão ao ato sexual). Parece lógico que,
74 Os índios do Uaupés não· construíam pontes sobre os rios. Só se as diante dessa ambivalência entre matar e coabitar (que também transparece
encontra mais a oeste, ligada a influências da cultura andina. De certa forma, do mito barasana), os índios tomem o máximo cuidado ao mencioná-lo
a ponte representa aqui o que representa a corda no mito da mulher do e usem de preferência perífrases. Mas perífrases dentro do mito é redun-
"estrela-porco-espinho" dos mitos norte-americanos . e a corda pela qual dância. Warimi estaria se tornando casto? Parece antes que o mito tenha
desceu Méneri-Ya. O rio é a separação entre os dois mundos, o sobrenatural, que "suavizar" a linguagem, porque nele "coabitar" é efetivamente matar,
exterior, dos mortos, e o mundo humano. Warimi, fiel à própria ambigüi- e Warimi não matou Rumi-Kumú. De qualquer modo, aqui o mito nos
dade até o fim do mito, faz uma ponte, como a propiciar às. onças a invasão leva ao terreno do maravilhoso, mas humano: trata-se apenas da união de
do mundo humano, e impede a passagem delas no ato seguinte. Mas este um homem e uma mulher, embora · filha da serpente (não há nenhuma
tema está presente em muitas . versões do mito dos gêmeos que, já normal- idéia de sacrifício; talvez, quando muito, idéia de adoção de Warimi por
mente, apresenta ambigüidade. A ambigüidade no mito barasana é quádrupla, Rumi-Kumú, pois, como ela pergunta: "No quedaria ahi un huerfano?"
em vez de dúplice. pode-se deduzir que entre ela e Warimi as relações são relativamente
75 Percebe-se a analogia entre Hikaniké e o "pernapontiaguda" (conotação ma ternaís).
04
mais sinistra), Tezcatlipoca e Orion (caráter com tendência à solarização). Aqui temos o tema de Jonas que, como dissemos, não é muito comum na
76 Ele próprio faz em si as feridas; mas elas indicam de qualquer forma nossa mitologia.
sua identificação com as onças. Lutando contra elas, forçosamente luta contra 85 Talvez exista alguma forma ritual de provocação entre os Barasana. Como
si mesmo. · quando Warimi machuca Mení, aqui também ele morde (como pulga)
77 O subterfúgio de Warimi não convence Mení. Rimahinó no ombro.
192 CAP. VIU - "HISTÓRIA DE LUNA" .•. "HISTÓRIA DE LUNA"... 193
0 engole, sendo depois libertado por um espirro. Convertido em citado, Warimi espanta as cobras e, com o veneno, prepara-se para
pássaro, escapa, sendo reconhecido por Rumi-Kumú. Segue-se matar mais gente. O sangue de uma águia morta transforma-se em
uma passagem em que Warimi cria formigas, de frutas, e elimina rios 9 1 e peixes. 92
determinada espécie de cobras, deixando outras vivas. 86 Chega Apesar de não sentirmos preparados para explicar uma série
à casa de sua avó, mulher de Mení, que o buscava chorando. Si de detalhes deste extenso texto mítico, ele nos pareçe fundamental
Era tempo de chontaduro. 88 Warimi converte-se novamente em para a compreensão da mitologia do Alto Rio' Negro. Percebe-se
pássaro e canta em cima da palmeira. A avó não acredita que seja nele, pela sua complexidade e pelo que parece, à primeira vista, ·
seu neto. Ele manda que uma lacraia escondida na fruta pique a uma duplicação de episódios ou enxerto de outros temas estranhos,
velha, depois a cura. Warimi cozinha veneno. 8 9 Cozinhava e ex- uma ambigüidade de concepções resultantes de correntes ideoló-
perimentava com um dedo e então morreu. Então chegam muitas
gicas diferentes que convergiram ali no U aupés, integrando-se a·
cobras que roubam o veneno (por isso são venenosas). 0 0 Ressus-
concepções míticas forçosamente mais arcaicas, pois (como vimos
86 Algumas ele não consegue matar. Empresta uma sarabatana da águia
com os exemplos desâna e kobéwa) correspondem a uma popu-
Gáa para matar as cobras de quatro narizes (?), mas as outras não pode lação recém-saída de um nomadismo de caça e coleta, cuja men-
matar. (0 empréstimo feito à águia se justifica: os falconídeos em geral talidade, pelo tipo de relações que se estabelecem entre o homem
devoram as cobras.) e a natureza e entre o grupo e os grupos vizinhos, tende a não
87 Pela primeira vez se menciona a mulher de Mení, avó (paterna e materna
diferir muito da mentalidade dos Opayé-Xavânte a que nos refe-
ao mesmo tempo) de Warimi. E ela se comporta de forma duplamente
maternal em relação a Warimi.
rimos no capítulo anterior.
88 Chontaduro ou tembe é um dos nomes pelos quais é conhecida a pupunha As antigas influências andinas (vimos em capítulo prece-
(Guillelma gassipaes HBK Bailey ), segundo PATINO (Op. cit.). Aqui que- dente que as migrações dos vales interandinos do Equador para
remos nos referir a uma possível associação do tema cabeça de Méneri-Ya o Amazonas são particularmente antigas), juntam-se outras, umas
no alto de um bananal ao tema da pupunbeira, pois o Pe. Alcionílio B. A. mais antigas, outras mais recentes, via Orenoco e através das
da Silva nos diz que o caxiri de pupunha (ãré), que é o mais apreciado, Guianas, aportadas por populações aruák; sem deixar de lado as
é conservado em buracos, envolto em folhas de bananeira, durante meses.
(Op. cit. p. 222 ). Além disso, Patino refere-se a concepções dos frutos de possíveis influências tupi, mais recen~es ainda, irradiadas ao longo
pupunha (devido a seu aspecto mesmo) como caveiras transformadas em do Amazonas: (Se houv.e influências na técnica guerreira, como
frutas. vimos num capítulo anterior, possivelmente também houve influên-
Das representações centro-americanas falaremos adiante. cias ideológicas.)
Por ora, lembremos que o mito menciona expressamente que era tempo Como se reflete tudo isso no mito?
de pupunha, quando Warimi encontrou sua avó (sem dúvida, uma equiva-
lente da mãe). Quanto a Warimi, não perdeu, em relação à Méneri-Ya, Em primeiro lugar, o próprio personagem feminino, a mãe de ·
a sua ambigüidade, mas ela se suaviza. Convertido em pássaro, vai à pupu-. Warimi, parece apresentar em igual dose características da heroí-
nheira (evidentemente deveria ser para picar os frutos, mas o mito o na do mito de Autxeplrire (veja-se o comportamento de Méneri-
desmente: é para cantar). Se a avó é um equivalente da mãe, ~le a castiga -Y a na casa dos tigres.93 ), da irmã incestuosa de um tema mítico
porque esta não o reconhece, mandando que uma lacraia se esconda no
fruto e a morda. Mas se o fruto é um símbolo da mãe, ele a está defen- que parece distribuir-se mais no sentido norte-sul, ao longo dos
dendo contra a avó, que vai comê-lo. A hostilidade, contudo, agora se Andes,94 (não reconhecendo o irmão nem mesmo após tê-lo mar-
interioriza mais ainda. O episódio da avó comendo o fruto (e sendo mac~u­
cada por isso), se a nossa interpretação está certa, tem quase um sentido transformando-se ele próprio em uma "cobra voadora venenosa" (entrando
de automutilação, ou autoflagelação . . . Ao mesmo tempo, lembra o tabu na própria sar abatana) .
sobre a fruta, como aparece na "leggenda" ... 9 l Analogias com o mito kobéwa a que já nos referimos, em que Kuái
89 Esse episódio tem analogias com trechos da lenda de J urup~ri, como se transforma no Cuduiari e Querari, a seus dois irmãos, arremessando-os ao
verá adiante. Warimi cozinha o veneno e ele m esmo o expenmenta. Isto espaço. Ramé, a águia má, pousa agonizante em várias serras.
parece confirmar o que falamos na nota anterior. 92 Os Barasana têm, segundo Laborde, uma série de tabus sobre várias
90 Há uma certa identificação de Warimi com as cobras terrestres. Parece espécies de peixes. O sangue de Ramé é a causa do tâbu.
lógico : a identificação dele com R umi-Kumú foi perfeita, tanto que ela o 93 A provocação evidente que representa cuspir na mão do tigre e querer
reconhece, sob qualquer forma que ele assuma. Por isso, Warimi apenas dançar com todos eles (sendo que só o mais novo não a recusa) .
espanta as cobras, mas mata a águia R amé (as águias se opõem às cobras) 0 4 A RAoz. "En el Escenário d_e un Mito." Separata de la Revista de Educación.
f94 CAP. VIII - ''HISTÓRIA DE LUNA••... "HISTÓRIA DE LUNA''. • . .195"

cado com tinta de jenipapo, após sua ressurreição uã) e da "mu- a) Warimi nasce pela primeira vez porque o irmão de sua mãe
1her de madeira" mãe dos gêmeos, devorada pela onça. a devorou (da primeira vez, como Muyhu, em sentido figu-
Daí a duplicação de um episódio já por si contraditório, 1"' rado; da segunda vez, como onça, em sentido concreto).
como o em que "Méneri-Ya vinha rindo, então o caco de cerâmica O mito mantém essa dupla condição, pois o herói renasce
lhe contou por onde o seu pai tinha ido". Pelo esquema do mito em casa de Mení e novan1ente na maloca das onças ( con-
dos gêmeos, subentende-se que, se ela viesse arrependida (chorando), firmando a sua identificação como filho de Mení e filho
ensinaria-lhe o caminho certo (seria devolvida ao pai, não sacri- do Jaguar. Entre avô, pai e filho não há diferença quan-
ficada). Mas, pelo esquema do mito de Autxepirire, o caminho to à natureza ... ) .
certo é o do sacrifício e ela teria que vir rindo (a atitude de pro- b) Como já observamos em nota, ele se comporta com sua
vocação que assume a heroína, que ela é obrigada a assumir ritual- irmã (o mito designa as crianças com que brinca na casa
mente ... ) . Portanto, o mito reúne os dois, num primeiro episó- de Mení expressamente como seus irmãos) da mesma forma
dio deixando claro que qualquer atitude que a personagem assumis- que Muyhu e o jaguar se comportaram em relação à mãe
se, o caminho seria um só. O da salvação ou da perdição? Não de Warimi (os ''jogos eróticos" seguidos de um enterro).
há resposta: o pai (tigre-bom) não foi embora sozinho, seu filho e) A prova que ele é o mesmo iniciador terrível é que não
(e aspecto negativo, desdobrando-se por sua vez Muyhu também entrava na maloca de Mení, ficando sempre a fazer n1iste-
em ''Sol" e "Lua", devorador e incestuoso, como vimos) segue riosos desenhos nas folhas das árvores (na floresta. por-
com ele. No episódio seguinte, mais uma tentativa de definição: tanto). Evidentemente, a pintura ritual e toda a arte
a panelinha personificada, enfeitada de penas, lhe ensinaria o ca- (confecção de máscaras ou instrumentos rituais) são un1a
minho certo, se viesse chorando. Se esta fosse realmente a condi- espécie de "escrita". Ao mesmo tempo, ainda que pinta
ção estipulada, não seria "mais lógico" se esperar que a heroína algumas das borboletas (representando os iniciandos sal,
viesse chorando de longe e rindo de perto, para que fosse conde- vos), devora outras, tal qual o .. ser terrível". Mas, repa-
nada? Não; ela é condenada porque ri de longe e chora de perto. re-se que as borboletas são, por assim dizer, o alter ego dos
(Deveria ela então rir de perto o rir ritual do sacrifício, exatamente iniciandos: estas chegam atraídas pelo "cheiro de sangue".
o mesm0 do guerreiro tupinambá prestes a ser sacrificado pelo A borboleta ( "Morphol" 118 ) é um símbolo de Wãx-ti. São.
inimigo?) portanto, os espíritos da mata (onças sob outro aspecto)
Pode-se apontar este tipo de duplicação de ambigüidades em que vêm tomar parte no repasto sacrificial. (Percebe-se
todas as passagens do mito. Vejamos o caso de Warimi. Ele não que, também em relação aos espíritos da mata, a atitude
tem gêmeo. Mas, se repararmos bem, cada ação dele se duplica, de Warimi é ambivalente.)
pois Warimi não se define nem como Sol nem como Lua ou, se d) Os tigr.çs morrem quando caem no rio, devorados pelas
quisermos, nem como Maír-mimi, nem como Mikur-mimi. t1 7 piraol;hs (com exceção de um que escapa). Mas, numa
Talvez se pudesse dizer que ele é antes a Lua, pois mal ele seqüénda· anterior, é Warimi que foge dos tigres, na água
nasce, · seu pai ressuscitado não é mais mencionado no mito. Con- ( transt:onnado em sapo), e só o consegue porque, dando
tudo, como Lua (admitindo que Mení personifique o Sol) ele não un.1a aLma ao sapo, deixa que os tigres comam seu alter
se opõe realmente ao avô, como se verá:
ego por engano. Isto nos mostra também que os "Ohkó
H5 Trata-se de uma ressurreição dúbia também, que lembra o episódio de
~ · -" Os
Tukano chamam essas oorholetas de ..w ,·1x-ti-turu". L Év1-STR A US~
Miriápura Turíkaro. tentando ressusCitar o filho adúltero (que teve relações
sexuais com a cunhada) sem o conseguir. FuLOP. "Aspectos de la Cultura LCoriJ!i11e des mwiiêrn ele tahle. p. 94-95) observa que no mito de Cimidyue
Tukana - Mitologia." RCA. p. 348 et .seqs. o valor semântico da borboleta ( considerad<1 maléfica nas Guianas e nu
Efetivamente, uma vez · ressuscitado, a única função de Muyhu é fugir Am azônia) se inverte. De animal "'ªu para prestativo. Note-se que est<ts
da mulher, desaparecendo para sempre, o que implica numa negação da inversões só se explicam se levarmos em conta (como já assinalamos no
ressurreição, a não ser através de seu filho e igual. capítulo anterior) que Cimidyue é a heroína do mito de Autxepirire. que
uu Característico de todo mito. a cultura resolveu poupar. Os Desâna ( REICHEL-DOLMATOFf. Ve.wí11ll . . .
n7 Pois, efetivamente, ele continua sendo M uybu (dois em um). p. 64) representam as borboletas cobrindo as espaldas do Nengeri Uaxti.

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196 CAP. VIII - "HISTÓRIA DE LUNA" ... "HISTÓRIA DE LUNA". . • 197

Buyáma" (pequenos animais que andam sobre as águas) em Assim, apesar de reconhecer a mãe no joguete (que o chama)
que se transformam os tigres, perseguindo Warimi, na rea- participa inicialmente do jogo da bola, como se fora um jaguar:
lidade são as mesmas "Hoaróa" (aranhas que andam sobre pegando a . cabeça da mãe com o pé. Acei~a o convite do tigre
as águas) a quem Warimi provê de dentes de casca de para dormir com ele na rede para, em seguida, lográ-lo e livrar
miriti que se transformam em piranhas para devorar os o símbolo da mãe dos tigres. 103 A anta do monte onde Warimi
tigres. prepara a vingança simboliza em parte sua própria mãe, 10• que é
~
mais uma vez "entregue às onças" pelo filho. Efetivamente, a ela
e) Warimi mata com sua sarabatana as moscas que molestam
se segue (após um episódio que Laborde qualificou como estranho
o avô em uma passagem; e o espeta no ombro na outra,
no t~xt.o, mas que é réplica de outro anterior, 1 º5 ) a armadilha que
como se ele fosse uma mosca aborrecida. 99 Da mesma
Wanm1 faz para as onças, que acabam devoradas pelas piranhas.
forma, faz um matapi para apanhar .peixe, mas ele mesmo
Warimi, contudo, ·não enfrenta o avô, como faz Maír-mimi com
é o peixe apanhado.
seu pai. Nega sua ação, apresenta-se como vítima 1oe e, não con-
Como o vingador da mãe, Warimi apresenta a mesma inde- seguindo enganar Mení, é, qual Adão, expulso do paraíso.
finição: uma ação o apresenta como identificado com a mãe, a A primeira vista, os conflitos apresentados no mito parecem
seguinte com os tigres. Por isso, o mito desâna da competição não ter solução. A ambivalência do herói parece neutralizar-lhe
entre o Pato e o Pássaro Carpinteiro 100 certamente é a chave da todas as ações. O problema da mãe, como acontece aliás em todas
explicação para a compreensão do texto em que Warimi se mani- as versões, não tem solução. Quando os gêmeos tentam ressuscitá-
festa aos tigres sob a forma de "Koné" (pássaro carpinteiro). ~l~ .ta~bém _ não ~ con_seguem. Mulher não passa por rito de
Assim, não resta dúvida que é sob o seu aspecto "feminino" 1n1ciaçao. 10 ' Se foi destinada ao sacrifício, ao "ser terrível", mor-
· (de identificação com a mãe) que Warimi é experimentado (de- 1 os ~ej~-se a analogia entre o modo como Warimi lança (com uma "patada")
gustado) pelo jaguar. O seu gosto amargo está em oposição ao o cramo materno no alto de uma mata de platanillo (bananeiras), trans-
da cana que W a ri mi fomece aos tigres no dia seguinte. Esta real- formando-o em fruto, (o retorno do sacrifício em alimento para o homem ... )
mente parece simbolizar Méneri-Ya, tanto que o jaguar cospe san- e a patada que ele dá na anta sacrificada às feras que Warimi mesmo fabrica.
104 Aliás, a anta aparece comumente nos mitos simbolizando a mulher
gue que Warimi julga ser de sua mãe. 101 Nota-se uma ligeira mu- adúltera. ou incestuosa. Mas há outro detalhe: de certa forma ' a anta deverá
dança no arranjo da seqüência das oposições, a partir do episódio ter praticado ato análogo ao da mãe de Warimi para poder representá-la.
em que Warimi transforma alguns jaguares em outros animais. Sabemos que se trata do ato de comer miriti, mas o que significa? Associação
Até aqui, a uma identificação de Warimi com a mãe segue-se uma com a casca, cipó de yagé (caapi)? A participação no caapi por parte de
uma mulher equivaleria a uma ação de deboche. . . Mas achamos que é
identificação dele com os tigres. 102 De agora em diante, sem antes a invasão pelo animal do mundo cultural.
deixar de existir nele os dois aspectos, Warimi se identifica numa J0 5 Warimi faz um fardo de miriti e o amarra com uma cobra. Num episódio
cena com a onça que devorou a mãe e na seguinte surge como seu anterior, Mení e ele matam. uma cobra aquática (mãe dos pescados),
usando-a como motor e gasolina na canoa. Desta vez parece tratar-se do
vingador: diferença sutil que apont~ , a direção que há de tomar a "~eículo" preparado para as onças, a ponte, a "canoa" que afunda. O texto
evolução do conflito no futuro. . d1~: "Se colgaba dei güio y caminaba por encima porque lo veía como un
•. be1uc?" (p. 39). Ao mesmo tempo, faz pensar na cerimônia witóto, a
99 Talvez uma nova manifestação da borboleta "Morpho", pois é no ombro
que Já nos referimos (V. p. 53), a qual certamente tem algo a ver com
que Warimi atinge o avô (o qual também contém o aspecto Uaxti). o relato mítico semelhante.
106
J OO V. p. 188, nota 57. Todo .machucado, com ferimentos que ele mesmo se inflige. Compare-se
101 Enquanto os outros tigres comem a cana, o que devorou a mãe de com a at1~ude de Maíra-yra n<;> final do mito tenetehara (V. p. 172-73). A
Warimi chupa a cana (que se traduz em sangue), evocando o deus-solar !11es_?la at!tude, negando a vmgança praticada (quando interpelado pelo
azteca sugando sangue humano. Mas o fato de cuspir sangue não é sem irmao ~ais velho), tem Wma Watu ("sapo-diabo" ) personagem de um
significado: ofertado por Warimi, em troca de esquecer ele o herói, além outro mito barasana (LABORDE. Mito y Cultura entre los Barasana. . . p.
do encantamento não surtir efeito de todo (Hikaniké escapa) é, ao menos 50-52) que mata o amante de sua mulher.
em parte, repelido. lOi Tomado no sentido de elemento que se inicia para lidar ativamente com·
io2 Primeiro ama a menina, depois a enterra; primeiro defende o avô das ~ sagrado. Uma iniciação passiva existe, é lógico, entre os Tukúna, centra-
moscas, depois ·o espeta, etc. lizando mesmo os interesses do grupo (que, através dela, salvam a moça
198 C AP. VIII - "HISTÓRIA DE 1.UNA ••• •. " HISTÓRIA DE LUNA'". • • 199

re. Méneri-Ya não tem escapatória: se fica, o bicho come; se Bem que o gêmeo solar tenta ressuscitá-la, mas seus esforços
corre, o bicho pega. Assim mesmo, o mito implica numa transfor- são comumente anulados pela precipitação do irmão. 111 Os gé-
mação : enquanto a réplica animal, natureza pura de Méneri-Ya meos tupi vingam a mãe, mas finalmente a negam. ·
(personificada pela anta) , que invade o mundo cultural por puro Warimi não. Sua obstinação é outra. Ainda que, como os
deboche. 1011 perde-se definitivarnente como alimento imundo (ela xingu~nos, ?1embro de socied~de patrilinear, patrilocal, exógama~
é devorada pelas piranhas da mesma forma que os tigres. portanto ele nao desiste de ter uma mae. Mas, a única forma de obtê-la
identificada com eles), a cabeça de Méneri-Ya sofre um processo precisando ela ser eterna no seu aspecto solar, é separá-la em dois;
de elevação, pois ela, cujo sacrifício já pagara uma dívida dos aspecto positivo e negativo, humano e animal, puro e impuro e
humanos ao '"senhor dos animais," passa a ter uma possibilidade assim por diante; aspectos todos de algo que será, evidentemente,
de voltar a eles, embora na forma de alimento ainda, renascendo sempre alimento, mas que, como fruto, renasce eternamente; como
metamorfoseada num fruto. Daí para a sua transformação em anta, é consumida, sem salvação, pelas piranhas.
Perséfone falta apenas um passo, 1011 n1as nem por isso deixa de f: por isso que a mística dos Tukúna, dos Tukano, difere da
ser eterna. mística tupi.
Os mitos dos gémeos em que a mãe é representada po1: uma Mas, enquanto as atenções dos primeiros se centralizam intei-
•·mulher de madeira'', aparentemente não apresentam tal transfor- ramente n~s ritos. de purificação da mulher, os segundos se preo-
mação. E: verdade que, sendo a ''mulher de madeira" permutável cupam muito mais em separar mecanicamente a mulher do "ser
com a tartaruga, está mais próxima da natureza que Méneri-Ya; terrível". Impedem-na de vê-lo, ameaçarp de morte a que invadir
e o fato de ser de madeira talvez já implique numa leve sugestão o recinto de J urupari.
de renovação. Como o seu alter ego (a ''sogra onça.,) morre pelo Por quê? Dominam eles menos a fera? Temem-na mais?
fogo, sugerindo a queimada da roça, e como em algumas versões Os Tukúna também são patrilineares e exógamos. 11 :! · Têm
é uma onça fêmea que escapa ou é um casal, presume-se que uma em linhas gerais, o mesmo tipo de economia. f: verdade que o rit~
real niilificação é efetivamente impossível. Mas percebe-se que há do defloramento artificial tukano é, como dissemos, uma espécie
menor insistência na questão. Parece que, coerente com a noção de "vacina" contra o ··ser terrível". Mas percebe-se que a atitude
tupi de que a mãe é só terra em que germina a semente, o mito em .relação à mulher difere: os Tukúna a integram carinhosamente,
festivamente, fazendo de toda festa da "moça-nova" um aconteci-
dos gêmeos simplesmente ignora, podemos dizer, seu destino final.
mento de máxima importância para o grupo, que, vitorioso sobre
Concebendo a mulher entregue às feras como sendo fabricada
o "ser terrível", ganhou mais uma moça (é uma filha, uma irmã
especialmente com essa finalidade, sem dúvida o mito não apre-
que .foi poupada, uma mãe que desabrocha, e isto é n1aravilhoso.! ) .
senta sua entrega como tão aflitiva qyanto a entrega de Méneri-
-Ya. 1111
Por que os ritos tukano não refletem essas 'm esmas concep-
ções? Por que o homem tukano se preocupa mais com a sua pró-
do "'ser terrível "): entre os Tukano (pela defloração artificia)). colocando-a
pria purificação, por que escolheu a mística da sociedade secreta
ritualmente (o perigo control<1do é um perigo vencido ... 1 em contato com dos homens, deixando a mulher relegada a um segundo plano, pre-
o ·'ser terrível''. Entre o rito monoxó e o tukano há essa diferença funda- ten~endo mesmo. através de sua continência, da valorização da
mental : no primeiro é o ..ser terrível" que toma conta dos homens. neles castidade, não precisar dela?
se encarnando parn devorar o sacrifício. que <1ssim lhe é realmente entregue.
No rito t11kuno do defloramento artificial. sflo os homens que ascendem Tem que existir uma resposta, mas é ainda cedo, nesta parte
i1 sacral idade de deuses pan1 efetuar ritualmente o que representa antes uma do trabalho, para aventá-la. Claro que não temos a pretensão de
vacina do q ue um sacrifício.
111!' Realmente. o episódio da anta nada revela de característica sacrificial.
tanto J corresponde. de certa form a. ~' substituição do menino na rede da
É só o retrato do deboche . Ao contrário, a cabeça de Méneri-Ya chamando o nça por um banco de madeira.
o filho é despojada de qualquer animalidade. 111
Num<1 das versões. é a precipítaçào do gêmeo menor querer mamar que
111 !• Este passo. como veremos adiante. foi dado pela mitologia centro-ameri-
frust ra a operação.
cana. ao que tudo indica. já no seu período formativo, e seus reflexos nos 1
~'.! Consti~uem bandos divídidos em duas metudes exógamé1S. com subgrupo'
chegam através dos Aruák . nao localizados; o que já mostra condições hem .diferentes das tukano.
J 111 Afina l. o fato de se fabricar uma ··mulher de madeira" ("boneca", por-
200 CAP. VIU - "HISTÓRIA DE LUNA" .•• "HISTÓRIA DE LUNAº. . . 201

conhecê-la inteiramente. Toda a resposta a "porquês" deste tipo Há uma outra transformação importante neste renascimento
é perigosa: se nos julgamos com a verdade nas mãos e explicamos em casa de Mení. Na realidade, não só a filha caçula é a preferida
que os fatores são estes mais aqueles, estamos no caminho de· um entre os Barasana, como em todos os textos míticos dos Tukano 11~
determinismo que (apesar de reforçar aparentemente a idéia da é a irmã mais velha que se concebe como mais impura, é ela que
unidade da natureza humana 118 ), facilmente pode dar a impressão quebra os tabus, que estabelece o caos, enquanto a mais nova é
de que se considera a humanidade como um robô cujo mecanismo o símbolo da pureza feminina. 116 Assim, Warimi passa a ter, em
se pode conhecer até os últimos detalhes (o que seria, evidente- casa de Mení, uma mãe humana, normal, simplesmente uma mãe
mente, além de um desrespeito ao homem, a maior das ingenui- como todo mundo tem.
dades). Não temos dados sobre as cerimônias de iniciação barasana.
Se, por outro lado, não procuramos resposta e dizemos sim- Entre os Desâna, tra~a-se de uma longa preparação que se inicia
plesmente: tal cultura escolheu este padrão, tal aquele, tão-somente aos 9-1 O anos e termina aos 16, com uma espécie de festa de com-
porque o preferiu a outro qualquer, não incorreríamos facilmente provação do treinamento recebido. 11 7
num preconceito, mesmo admitindo que a diversidade entre as Já entre os Wanâna 118 essa iniciação concentra-se em duas
culturas, ou melhor, entre os caminhos escolhidos pelas culturas, é cerimônias principais, o "Kamuano-nindé" (a partir da qua~ os
apenas aparente, e que, no gigantesco processo dialético, todos os meninos são afastados das mães) e a segunda iniciação, que só se
caminhos tendem a levar-nos ao homem universal? realiza após a maturação fisiológica (com reclusão de dois meses) .
Tentaremos por isso apenas apontar alguns fatores impor- B nesta ocasião que, pela primeira vez, os rapazes vêem Mahsan-
tantes que nos mostram que, apesar de serem muitos os caminhos keró. Esta segunda iniciação corresponde assim ao "Cariamã",
que se apresentam a um grupo, existem determinadas condições, descrito por Monteiro, 119 em que o iniciando e a "fera domada"
muitas vezes fortuitas, imprevisíveis (e que jamais se repetirão pela primeira vez se defrontam.
numa ~onjuntura idêntica) , que motivam a escolha de um caminho Temos a impressão de que o texto barasana, desde o mo-
e não outro. mento da confecção dos balaios, 12º seguido do episódio em que
Antes disso, voltemos ao mito . de que estávamos falando.
Warimi, transformado em peixe, é comido por Mení, 1 21 até o mo-
E quanto a Warimi? Se foi expulso do paraíso, é porque, ape- mento de seu renâscimento na casa dos tigres, retrata este período
sar de tudo, ficou ao lado de seu povo. Aliás, o drama de Warimi da primeira à segunda iniciação, 122 período em que Warimi tem
é muito mais profundo, muito mais humano do que pode parecer
numa leitura rápida. Evoca a figura de Carlitos, assumindo ati- 115 V. FULOP. "Aspectos de la Cultura Tukana - Mitologia." RCA. A eles
tudes contra elementos muito mais poderosos que ele, perante os nos referimos à p. 259.
116 Por isso, a menina mais velha (a dos jogos eróticos e que é enterrada
quais se sente fraco. Ousado em um momento, apesar do respeito
por Warimi), apesar de ter condições fisiológicas maiores para ser a mãe
que lhe infunde Mení, acovardando-se no seguinte, Warimi é muito do herói (pois já tem uma iniciação erótica), é recusada por este. (Vê-se
mais comovente do que seus congêneres tupi; mesmo se levarmos que ambas representam sua mãe, uma o aspecto negativo, outra o positivo.)
em conta ~ apego pungente de Maír-mimi por seu irmão, no mito 117 REICHEL-DoLMATOFF. Desâna... p. 109.
us AMORIM. "Lendas em Nheêngatú e em Portuguez." RIHGB. p. 51-54.
urubu-kaapor. 119 MONTEIRO, Mario Ypiranga. "Cariamã, Pubertatsritus der Tukano-In-
Réplica de seu pai, comporta-se qual pajé malvado até seu dianer." ZE.
primeiro renascimento em casa de Mení. A bem dizer, ele ainda i 20 O aprendizado da arte cesteira é importantíssimo entre os Tukano em

não é humano, 114 o que corresponde perfeitamente à realidade geral. Um rapaz é desprezado como pretendente se não sabe fazer com
arte uma cesta.
social. Só o nascimento ritual (e não biológico) é o verdadeiro; 121 O que representa também que, de ora em diante, ele ajuda efetivamente
só a partir do batismo é que a criança tem alma. no sustento do grupo (as tia~ vêm participar do repasto).
1 22 Pensamos no episódio de Warimi transformado em peixe e preparado

u s Os estudiosos não deveriam se preocupar em querer prová-la; é preciso por Mení como uma primeira iniciação e é possível que assim seja mesmo.
saber eleger certas verdades como absolutas sem provas. Ao mesmo tempo, simboliza o início de sua colaboração efetiva no sustento
114 l! um ser estranho, o que nasce, fruto do pecado original. da família. ( V. nota anterior.)
202 CAP. VIII - "HISTÓRIA DE LUNA' ' ••• "HISTÓRIA DE LUNA" . . • 203

a assistência de Mení, que se retira depois, deixando Warimi, já uma exogamia tribal 125 é um dos fatores (e a nosso ver talvez o
homem feito. · principal) dessa lenta mudança ideológica que constitui a transfor-
Mas por que Warimi tem que renascer na casa dos tigres? mação da "fera" em "fera domada".
Bem, é que existe uma diferença entre ser um jaguar de natureza, Ao nível de bando, as mulheres perdidas para o mundo exte-
por condição de h~rança ancestral e tornar-se um jaguar, ritual- rior (as guerras motivadas pelo rapto de mulheres são muito fre-
mente. Somente como seu igual, Warimi pode defrontar-se com qüentes 126') de certa fQrina equiparam-se à mulher sacrificada ao
"ser terrível". (A analogia, aliás, é válida, porque às custas da
as onças; mas, para isso, é preciso ter sido, antes, humano . .
perda de algumas mulheres que o grupo "é obrigado a deixar para
Como é na segunôa iniciação que o rapaz toma, pela primeira trás, nas mãos de um inimigo momentaneamente .mais forte, 121
vez, yagé ( caapi), entende-se por que Warimi é um "homem amar- é que ele consegue salvar-se na fuga. 1 28 ) E é por isso que mesmo
go". Curiosamente, quem não o pode ver, até o episódio do pássaro- que, muitas vezes, temos a impressão de que há uma certa identi-
-carpinteiro que pica os paus da maloca, são as onças. De certa ficação do "ser terrível" com alguma tribo iniQliga (pois esta não
forma, nó~ o sabemos, esse 1nirn báua · (a fera domada) a quem o difere, na sua caracterização por parte dos índios, da onça, do
iniciando é apresentado é ele mesmo, pois o renascimento ritua- feiticeiro mau 12!)) e a· mitização da derrota, a absorção de sua lem-
lizado na casa das onças o torna ·exatamente isto, uma fera doma- brança pelos grandes temas míticos, torna-a mais suportável. 1 a o
da (domada por ele mesmo, pelo seu aspecto solar, humano ou Quando se regulamenta a exogamia tribal, o mundo exterior
cultural, como queiram). Percebe-se assim que o yagé não só tem torna-se menos hostil. Naturalmente a necessidade de manter um
a função de provocar visões 12 ~ (é nelas que surge mimbáua, é equilíbrio nas relações çom a natureza, com o mundo animal (de
claro que, como toda a súbita iluminação, de dentro da alma do que continua depeJ;1dente para .seu sustento), permanece. Mas,
iniciando) mas também a função de proteção, a fim de que este humanizando-se uma parte do mundo exterior, na figura da tribo
mesmo "ser terrível" já não possa devorá-lo. Ele se torna "amar- aliada, afim, outras fórmulas de intercâmbio com o "senhor dos
go", o que difere um pouco do conceito de hantan que Huxley animais" vão surgindo; 131 as mulheres têm que ser liberadas para
registrou entre os Urubu-Kaapor, mas tem, em todo caso, a mesma 125
conotação de autodoinínio. Se Warimi não enfrenta Mení com Há um grupo de barasana ("Yuhkú Komiá") no Rio Pirá-Paraná (afluen-
te do Apaporis )e outro ("Hanera", no meio dos quais esteve Laborde) no
a audácia de um Maír-mimi é porque sua luta é muito mais interio- Alto Cano Tatú (afluente direito do Pirá-Paraná).
12
rizada do que a deste último. Ele está bem mais próximo do "ser 6 DAVIE (La guerre dans les sociétés primitives: son rôle et son évolution.
terrível" que os gêmeos, ele se sente mais identificado com a fera, p. 153) cita, se bem que baseado em Lubbock, os índios do Brasil do
Chile e Terra do Fogo (sul-americanos) como tendo o costume de capturàr
como seria de se esperar num grupo cuja economia ainda é ba- mulheres na guerra. É bem verdade que Lubbock (Les Origines de · la Civi-
seada muito na caça e coleta e cujo intercâmbio com outros gru- lización y la Condición Primitiva dei Hombre. p. 76-77) se refere ao
pos é mínimo, segundo Laborde. 1 2 4 t "matrimônio" por rapto, o qual, contudo, parece realmente ser neste caso
a ritualização de at.aques reais de outrora. . . ' '
De certa forma, a regulamentação matrimonial para a exoga- 127
Os assaltos são praticados de surpresa (ataques de madrugada, enquanto
mia (entre os Barasana, apesar do intercâmbio existir com outras o inimigo ainda está dormindo), conseqüentemente; é mais desse fator que
depende a vitória.
tribos, ainda se trata mais de uma exogamia de frátria do que de 12
8 Pode-se ver relatos dramáticos de ataques assim em Y anoama de E.
Biocca.
E, segundo LABORDE (Mito y Cultura entre los Barasana . .. p. 153) 129
123 Assim, no mito yabarana, o velho Ucara reúne as três características,
provocar a sensação de voltar· à infância o que também é representado de ser terrível dono do fogo, de feiticeiro mau e de ancestral da tribo inimiga
no mito. . · (dos Piaroa) .
124 LABORDE. "Introdução." Op. cit. Os Barasana trocam cuias decoradas 130
Num capítulo seguinte, falaremos de um mito warrau ("Korobona") em
por raJadores dos grupos do -Rio Cananari. A lém da mandioca, só plantam que essa mitização da derrota se torna bem evidente.
um pouco de milho, cana-de-açúcar e algumas espédes de bananas. A coleta 131
Decorrência sem dúvida do desenvolvimento de um certo espírito de
é importante (frut as silvestres, mel , nozes. formigas e larvas ) . A pesca barganha. Aos poucos, as divindades "deixam tudo um pouco mais barato...
não é atividade diária e há um a série de tabus sobre o pescado. Tabuam-se Veja-se as ofertas que se fazem ainda hoje, no Uaupés, em certos lugares
também animais terrestres nos períodos das festas religiosas. do rio, habitados por algum "encantado".
204 CAP. vm - "HISTÓRIA DE LUNA" . .• "HISTÓRIA DE LUNA". • . 205

a troca matrimonial 132 que agora passa a absorver uma boa parte desenvolvimento espiritual barasana já está, . sem dúvida, a meio
das atenções do grupo. . caminho dessa concepção. 135 Para que ela se concretize, é preciso
Outró fator importante é a sedentarização. Como grupo nô- que um herói puro ou purificado tome sobre si ritualmente todas
made no interior da floresta, volta e meia o homem sente sua as culpas do mundo e as expie num sacrifício para o qual ele se
chou;ana invadida pelos espíritos animais hostis. Daí se explica oferece espontaneamente, sem qualquer coação. Na América pré-
por que, no mito de Autxepirire, os ani~ais que submeteram a -colombiàna, parece que só Quetzalcoatl foi capaz disso. 18 6
heroína a uma violação coletiva confecc1onam cada qual a sua As tribos aruák participaram, até o momento de sua emigra-
casa com um pedaço dos órgãos genitais da vítima. De i~~c~o, ção para a América do Sul, das concepções religiosas que na
tem-se a impressão de que o homem nada lucrou com o sacnf1c1?, América Central deram nascimento à figura de Quetzalcoatl, pois
mas é engano: desde que cada animal tenha a sua própria casa, elas deixaram as suas marcas inconfundíveis na lenda de Jurupari
não há de querer morar na casa do homem. das tribos aruák do Rio Negro. 1 ª7
Quanto aos Barasana (assim como entre os Desâna de que Percebe-se que, de certa forma, humanizar o "ser terrível"
Jalamos atrás), esse processo está numa fase /bastante interiorizada. nada mais quer dizer do que ampliar as relações com outros gru-
Para salvar a mulher do sacrifício, o homem tem que lutar contra pos, reconhecendo-os como seus iguais. Parece que isto não está
a fera dentro de si mesmo; isto explica os ritos secretos com seus se~do uma tarefa fácil para a humanidade, qualquer que seja o
jejuns e automortificações, com ,s eu "cálice amargo" d~ yagé e · caminho escolhido.
coca·, que deverão levá-lo a sentir-se pronto e protegido ?ara O que leva ao auto-sacrifício tende a formar uma classe sa-
poder enfrentar a "fera". E ele a mata dentro ~e si mesm?, a1n~a cerdotal, o que quer dizer que sempre a maior parte contorna o
que para o Barasana isto represente sua expulsa~· do panuso, po.1s problema, deixando em seu lugar, na rede da onça, um simples
seu conceito de deus ainda não se modificou muito, caso contráno banco de madeira. Mesmo que com uma vida de purificações
pague as dívidas do povo, a interiorização da luta formará uma
Mení não se zangaria com Warimi. Evidentemente, o mito não
sociedade isolada, e, ainda que uma filosofia realmente universal
termina aí. Sua parte final nos mostra um Warimi muito mais à
possa levá-la a reconhecer os povos vizinhos como seus iguais,
vontade; 1 3 3 mais seguro de si, numa aventura do tipo "dénicheur
estes é que não conseguirão compreender a filosofia sacerdotal, e
d' oiseaux-viagem ao céu" que representa possivelmente sua trans- dificilmente se estabelecerá um diálogo. Além do mais, leva à
formação, como homem já iniciado, em grande pajé. ·formação de castas, como na lndia.
Sua solarização (sua conversão em "salvador" .134 ) não pode A tendência contrária desenvolve uma ideologia guerreira.
ocorrer numa mitologia que reflete as concepções barasana. O Os Tupinambá, como os Astecas, sacrificavam o inimigo como
• seu alter ego. Reconheciam-no, portanto, como seu igual em
1s2 Mesmo quando se trata de uma mulher raptada por outra tribo, um
natureza, participavam das mesmas crenças, mas trocavam os sa-
intercâmbio crescente com esta tem como conseqüência a constatação, por
parte dos parentes da mulher, de que o diabo que a raptou não é t~o crifícios como se fora uma troca de mulheres.
feio assim~ pois a mesma continua viva, tem fi_lhos e, possive1!!1ente, ~ fe!ll;~
Acreditamos que isto possa redundar tambem numa lenta humamzaçao 185 Warimi tem já humanidade suficiente, como vimos, para arriscar apenas
do "ser terrível". a si próprio, colocando-se como único objeto de sua experiência com o
133 Laborde vê neste episódio, que conta como Warimi se apodera do curare veneno.
(símbolo da atividade sexual masculina entre os Barasana) e de todos . os 136 Embora incestuoso, o texto de Sahagún ( V. SÉJOURNÉ. Pensamiento y
outros venenos, o roubo, por parte de Warimi de uma car~cterística sexual R eligión en el México Antiguo ) o mostra sendo levado inconscientemente
masculina, de que o herói se sente desprovido. B possível que este aspecto ao pecado e ele aceitando a · impo'sição dos deuses como que tendo uma
esteja presente. A repressão da sexualid~d~ .viril corresponde à do~açã? da antevisão do que dela decorreria, portanto, um sacrifício.
fera, repressão essa compensada pela v1tona nas provas q~e . lhe ~~pc;>e o 137 Elas também têm algo a ver com as concepções dos Tupinambá que,
roubo dos venenos (conhecimento importante para todo med1co-fe1tice1ro ) . com a sua ideologia do sacrifício do inimigo como alter ego, têm muito
134 Percebe-se que no tipo "salvador", a identificação com a mulher é elimi- em comum com os Astecàs. (Parece que o mito dos gêmeos personifica
nada pela purificação (na ideologia dos h<?~ens, ~ mulhe; ~e~pre repre- b.em esse mecanismo de desdobramento do próprio eu, seguido de uma ten-·
senta a vida voltada para si, para sua fam1ha, senao a propna impureza) . dência a se identificar apenas com o gêmeo solar e substituindo, como
A luta de Warimi implica numa maior identificação com a mãe. bode expiatório, a mãe pelo outro gêmeo, personificado no inimigo.)
206
,, ,
CAP. VIII - "HISTÓRIA DE LUNA" ••• HISTORIA DE LUNA", . • 207
No fundo, os Tupinambá sabiam que o único verdadeiro sa- Então, de qualquer maneira, por um caminho ou outro a
crifício é o auto-sacrifício; 138 por isso a única salvação estava na " onça maneta" acaba ganhando a sua posta de carne. Apare~te­
atitude assumida pelo guerreiro na hora da morte. ~ por isso que mente não há so!~ção ._ Há, é verdade, de quando em quando,
ele não foge, é por isso que ele assume a mesma atitude de provo- uma troca de pns1one1ros de guerra, mas são simples números
cação ritual da heroína de Autxepirire. trocados ao acaso, tantos por tantos, homens já sem nome e sem
E. a nossa civilização ocidental, qual dos caminhos escolheu? rosto, esfarrapados e famintos, talvez já nem mais conscientes de
Evidentemente, houve épocas em que ao menos certas seitas sa- sua condição humana.
cerdotais ta9 opunham-se à classe guerreira dominante, como "'!"a- Ainda assim, se um é trocado pelo outro, por um acordo que
rimi a seu alter ego. Mas parece evidente que o nosso caminho já não é mais motivado por piedade, mas por simples conveniên-
sempre foi o dos Tupinambá. Claro que, com o tempo,. o "s~r cias políticas (as tais manobras e negociações comparáveis às
terrível" recebe outros nomes. Por fim, nem mesmo a atitude ri- altas e baixas da Bolsa), isto significa (ainda que se não o queira
tual de sacrifício se mantém: a distância entre o ideal apregoado reconhecer) que um equivale ao outro e, como os farrapos de um
e o destinado a ser sacrificado por ele torna-se tão grande que o representam uma bandeira e os do outro outra, evidentemente e
sacrifício vira pura chacina, como ocotreu entre os Astecas na forçosamente elas entram na troca: por uma lógica matemática elas
época do descobrimento; como nas guerras modernas. 140 O sol- valem exatamente o mesmo. Assim, mesmo na coisificação extrema
dado é mesmo só bucha para canhão. .. renasce uma sutil esperança e uma frágil flor: mais uma vez o
"ser terrível" é logrado. . . '
138 Este reconhecimento está muito mais próximo dos primitivos, embora o
sacrifício seja concebido na forma mais simples possível. Voltemos à mulher sacrificada aos bichos ...
13!> Como, por exemplo, os seguidores de São Francisco de Assis e demais Se chegamos à conclusão de que o verdadeiro sacrifício só
ordens que se baseavam na penitência e no sacrifí~io. , . _ pod~ .ser o auto-sacrifício, como se coloca a questão da mulher
140 Huizinga no-las mostra dentro de uma perspectiva analoga, na opos1çao
"jogo-seriedade" : "Baseada na constante prontidão para a guerra, quando
sa~nf1cada pelo seu grupo, da moça deixada para trás? Parece
não em sua preparação efetiva, a política contemporânea p~r~ce apresentar evidente que, na concepção mais primitiva ainda seria indiferente
escassos vestígios da velha atitude lúdica. Despreza-se o cod1go de honra, que se sacrifi~as~e uma moça ou um menino. E 'sem dúvida algu-
põem-se de parte as regras do jogo, infringe-se o direi~o internacio~a!~ ~ ma entre os Je ainda se tem consciência disso, pois é entre eles que
perdem-se todas as antigas relações da guerra com o ntual e a rehg1ao
(Homo Ludens . . . p. 233) . E : "Essa teoria recusa-se a considerar o inimigo encontramos o mito de Asaré, o menino Vú-tú ao lado da menina
sequer como um rival ou um adversário : acontece simplesmente que ele V~-tú ~ da heroína de Autxepirire. ~ão há dúvida de que os
está em nosso caminho e, portanto, precisa ser destruído" ( p. 232). Só não d?1~ mitos se referem a mitos análogos, como parece não haver
podemos concordar inteiramente com ele quando prossegue: "~e al.gum.a duvida de que eles emanam de outro mito, o da origem das Plêia-
vez houve na história algo que pudesse co~responder a esta grosselfa s1mph-
ficação da inimizade, que reduz esta quase que a uma relação mec~nica,
des como transformação de meninos gulosos. 141
foi precisamente aquele antagonismo primitivo entre as frátrias, elas ou . Trata_ndo-se de um sacrifício no sentido concreto da palavra
tribos, onde, conforme vimos. o elemento lúdico era hipertrofiado e distor- (a imolaçao de uma pessoa), realmente se pode admitir que para
cido". A antropofagia tupinarnbá está absolutamente dentro da~ regras. do o " ser terrível" fizesse pouca diferença tratar-se de um homem ou
jogo, assim como de certa forma estão dentro das regras do 1ogo (amda
que nos pareçam o caos total), as lutas e chacinas entre os bandos. Isto de uma mulher. Isto quer dizer, contudo, que inicialmente, nos
se percebe por um trecho de Yanoama em que se relata um ataque dos
Chamatari à choupana dos Hékourawétari (as chacinas descritas por H. vilain ~ot, cela veut dire que c'est fermé là par ou on fait ses excréments".
Valero são terríveis!): " Pausiwe, frere de Xoxotami, cria de nouveau: - Qui ( Op. cu. p .. 5~ ). ~ evidente que o chefe Chamatari representava (e com
êtes-vous? Ka rawétari, Kebrouétéri, Aramamisétéri? Je veux le savoir. toda a conv1cçao) o seu papel de "ser terrível".
fléche r. li y eut un silence; les fleches cesserent de tomber. II répéta: - Qui _ O problema crucial da humanidade não é, pois, o abandono do lúdico.
êtes-vous? Karawétari, Kebrouétéri, Aramamisétéri? Je veux le savoir. Nao é capacidade de identificação que falta ao homem. Ele só se tornou
Une voix forte répondit tout pres du chapouno: Kamigna Chamatari. . . Moí homem através dela. O difícil é o problema do sacrifício.
C~mpare-se, por exemplo, a lenda de "O Sete-estrelo" recolhida por CHIA-
14 1
Chamata ri. Je suis le fils de Pocécomématéri; je suis Chamatari. Je suis ce
Chamatari dont vous entendez sans cesse rappeler te nom". Em nota de RA, V1lm~ ("Folclore Krahó.'~ RMP. p. 333-38) com o mito de Autxepirire e
rodapé, Biocca reproduz a resposta de H. Valero à pergunta sobre a signi- ~om, ~ mito do grupo de memnos gulosos ou barulhentos, a que nos referimos
.ficação do nome "Pocécomématéri" : "Je ne voudrais pas le dire, c'est un a pagma 136 nota 39 .
208 CAP. VIII - "HISTÓRIA DE LUNA" .•.
" HIST'
ORIA DE I.UNA" ..• 209

grupos nômades que viviam em maior isolamento, o status da mu- Percebe-se assim a tendência de centralizar o rito sacrificial
lher deveria ser igual ao do homem, 142 com maior freqüência na mulher já é, pode-se dizer, um início de transformação, não
do que se parece admitir. Pois, pelo sacrifício, ela se transforma só por identüicá-la (como os Tupinambá faziam em relação ao
em divindade-dema. Efetivamente, parece que não se precisou inimigo) com o gêmeo mais fraco, como também por uma substi-
tuição de "matar" por "coabitar". Efetivamente, se esta substitui-
esperar pelo início da agricultura para que divindades femininas
ção faz da mulher o bode expiatório po·r excelência, como já
fizessem a sua aparição; senão femininas, ao menos hermafro.. · ) vimos, mostra também que, como a Antropoiogia o tem ressaltado
ditas, já que representavam indistintamente o homem e a mulher, ultimamente, a mulher foi realmente o ' primeiro produto de troca
como os dois aspectos do mesmo grupo de que pagavam as dívidas com o mundo exterior (englobando tanto o mundo sobrenatural
para com a natureza (ou para com o "senhor da caça e dos fru- como o inimigo, com quem, como vimos, inicialmente se identi-
tos"). Veja-se, por exemplo, que entre os Yanonami alguns grupos ficam). -
ainda ·são pré-agricultores. Pois os seres da floresta que iniciam Mas, sería esta a única substituição possível, a única forma
os homens nas artes mágico-religiosas são concebidos como mu- de abrandar o "ser terrível"?
lheres muito belas, filhas dos espíritos (Hékoura). 143 A história de Warimi responde a essa questão~
O mito descreve cuidadosamente ~ sua preparação para a
142 Como o é entre algumas populações que viveram durante muitos e muitos vida, em casa de Mení. Com dez anos ..caça aves, depois aprende
séculos em ·grande isolamento, como os pigmeus do Congo. (Os Twides
descritos por M. Gusinde, com exogamia de clã e monogamia como regra a fazer balaios e finalmente um matapi para pescar peixes. E o
geral.) · peixe de Warimi, o peixe que ele apanha no apetrecho que ele
143 Certamente, em parte devido à própria poligamia, resultante, por sua vez, mesmo confeccionou, não é efetivamente uma parte de Warimi
entre outros fatores, da guerra para rapto de mulheres, o status da mulher oferecida ao grupo (e sem dúvida sua parte melhor, sem que hou-
entre os Yanonami já não é o mesmo que entre Ôs Twides. Em todo caso,
suas concepções religiosas apresentam figuras que se as'semelham à Filha vesse qualquer problema de reconstituição, tanto que o mito nem
do Sol desâna: "ce sont les Hékouragnouma, de três belles jeunes filies, qui se preocupa em mencioná-la ... ) , que vale tanto quanto o sácri-
portent sur le visage et sur le corps des dessins resplendissatits. 11 nous fício concreto ao "ser terrível"?
disait, à nous les f emmes: 'Vous pensez que les Hékouragnouma sont comme O rio tem uma importância fundamental, ao que parece: é
vous? Pas du tout; elles sont três belles. Elles sont perfumées comme cette
fleur blanche et parfumée de la forêt. Quand on sent ce parfum, on n'a através dele, de canoa, que Warimi volta à maloca dos jaguares,
plus ni faim ni soif'. Ils n'invoquaient jamais les Hékouragnouma pour presume-se que. já bastante preparado para enfrentá•los. A pesca,
qu'elles les aident dans la guerre, mais ils les invoquaient au moment de substituindo lentamente a caça, é, por assim. dizer, o ponto de
soigner les ma/ades, pour qu'elles passent leurs mains sur les corps chauds
de fievre et sur les parties douloureuses, afin d'éloigner le mal" (B1occA. apoio de Warimi na sua luta contra os tigres. E a agricultura não
Yanoama. p. 195). A iniciação parece-se curiosamente com os ritos de terá importância? C~aro que tem. Tanto que o algodão é mencio-
iniciação australianos (substituição de órgãos). Veja-se um canto de Fousiwe, nado como alvo dos treinos de Warimi, quando ele ainda não tinha
reproduzido por H. Valero: "Les Hékoura m'ont trouvé; j'étais seul en un
jour de silence. La fille de Hékoura venait vers moi en dansant et décrivant adquirido pontaria para uma caça efetiva. A cana-de-açúcar que
de beaux cercles". . . (~ dançando em círculos que as "crianças-Plêiades" ele oferece aos tigres é plantada no U aupés; não poderia o calor
ou "crianças-periquitos" se transformam ... ) ... "Quand elle est arrivée à grande que Warimi mandou fazer na maloca das onças, saindo as
côté de moí, elle m'a poussé et je suis tombé. Elle a ouvert ma poitrine,
ma gorge et elle a nettoyé tout mon sang. Elle a arraché ma langue et a mesmas de lá sem conseguir vê-lo, referir-se à técnica da fumaça
mis à sa place des plumes de Hékoura. J'étais étendu mort, mais j'entendais com pimenta-caiena? Mais signüicativa é a passagem do renas-
tout ce que la filie de Hékoura chantait. Elle était belle, i1 n'y avait pas cimento dele entre as onças. Ele já não cai no vazio, mas sim
de femme aussi belle qu'elle. Depuis la venue de la fille de Hékoura,
maintenant oui, je chante bien. On a mis une nouvelle langue dans ma em cima de uma panela com casabe. E o que signüica uma panela
bouche, c'est pour cela que je chante les chants des Hékoura ... " (Op. cit. de mandioca na maloca de onças antropófagas, a não ser que, de
p. 197). . orà em diante, entre o animal e o homem se interporá sempre,
Embora, aparentemente (a julgar pelo relato de H. Valero), não haja
mais lembrança alguma de qualquer rito de sacrifício humano entre os (

Yanonami, pode-se perguntar se uma representação dessas não teria que representante de um personagem que já passou ]:,elo sacrifício é que alguém
derivar forçosamente de sua existência num passado longínquo. Só como pode ~gir como iniciante ...
210 CAP. VIU - "HISTÓRIA DE LUNA'' ••• " HISTORIA
, DE LUNA". • • 211
amortecendo os choques, a planta cultivada que a mulher trans- De ce~a forma, como Warimi não consegue separar mesmo
formou em alimento? dentro de s~ mesmo os elementos .antagônicos, precisa justamente
Não é a agricultura, contudo, o elemento decisivo na luta de de armas nao carregadas de sacrahdade (nem positiva, nem nega-
Warimi contra os tigres. Também, como vimos, a independência tiva, simples técnicas), para resolver seus problemas. Efetiva-
em relação à caça não é tão grande como a que espelha o mito mente, Goldman notou (para darmos um exemplo) a pouca ritua-
dos gêmeos tupi. Com que facilidade o Sol kayuá transforma os lização da agricultura entre os Kobéwa, 148 mas é nas representa-
homens-animais (de que nos contou a origem o mito opayé-xa- çõ~s míticas que melhor se mostra o fenômeno. Por que Warimi
vânte relatado atrás ... ) , de seres hostis, agressivos. desafiantes, deixa em seu lugar um banco e não um simples pedaço de madeira?
em simples caça! 1 44 Mas é também no fogo e não na água que
morrem as onças em várias versões do mito. 1-1 :. De qualquer Por que os balaios que Warimi faz têm que ir com ele na canoa,
modo, a agricultura do milho, as muitas espécies de plantas culti- aparentemente sem função alguma? Isto quer dizer que, com a
vadas conhecidas pelos antigos Tupinambá, 146 a localização das adoção de novas técnicas para seu sustento e mesmo para uma
aldeias, próximas a rios piscosos ou à beira-mar, dão-nos a certeza troca, embora limitada, i 4 v com outros grupos, a comunidade não
de que, caso faltasse a caça, os produtos cultivados e a pesca depende mais tão desesperadamente das relações com um elemento ·
supririam facilmente o sustento do grupo. só para sua sobrevivência. A divisão enfraquece: sendo em núme-
Mas, não são os peixes também animais? Seria Waí-maxse ro maior. os elementos de que depende, um deles podendo suprir
dos peixes menos terrível que "Waí-maxse" dos animais terrestres? temporanamente a falta do outro, o homem já não os sente tanto
(Está aí um problema curioso.) A julgar pelas representações como "seres terríveis".
desâna, diríamos que sim. 147 E, diante da facilidade com que Ao mesmo tempo, com a sedentarização e o contato com os
Warimi simplesmente fabrica peixes terríveis como as piranhas povos vizinhos, o problema da sobrevivência não depende mais
(que teriam todas as qualidades para figurarem o "ser terrível"), de uma fortuita alternância entre atacar de vez em quando e fugir
tornando-as seu instrumento para matar os tigres; e da pouca "con- de vez em quando; mas. de estabelecer uma forma mais ou menos
vicção" com que são integradas concepções como as da Serpente- equilibrada de interação. Trata-se assim sempre de uma questão
-Canoa original (simples imagem exterior não realmente vivida. de encontr~r u~ ~quilíbrio nas relações entre o grupo e os deuses
como processo de naturalização só por decorrência de moradia), (de. f?rma 1ntenonzada) e entre o grupo e os grupos vizinhos, sem
diríamos que as tensões entre o homem e o rio já não são exata- pre1u1zo de su~ própria individualidade como grupo economica-
mente as mesmas que aquelas entre o caçador e a caça. Pode-se ~en~e auto-suf1c1ente. Claro que nunca se consegue condições
também perceber, no episódio do matapi, a que nos referimos atrás, 1dea1s ~m todas as frentes. Assim é que as atenções passam a
que o rio só pode ser nefasto a Warimi no seu aspecto técnico: o c~~tr~hzar-se nos problemas que parecem mais angustiantes, mais
matapi que o aprisiona é um utensílio fabricado pelo próprio homem d1fice1s de resolver . . . Não parece ser uma das razões das dife-
(por Warimi mesmo). renças entre as culturas?
Voltando ao mito barasana, dissemos atrás que encontramos
1H SCHADEN. "Fragmentos da Mitologia Kayuá." RMP. p. 112-14. Seria nel~ .<como ~~s _mitos desâna e tukano de que já falamos) uma
interessante analisar-se o porquê do tratamento dispensado ao galo e à
galinha (animais que o índio conheceu através do civilizado) diferir ligeira-
e~pec1e de. re1e1çao ?º tema da serpente aquática (apesar da ado- ·
mente do dispensado aos outros animais . .. çao do mito de ongem da serpente-canoa). Como explicar de
H ií Parece haver uma alusão à coivara neste tema . outra fon_na a transformação da "Mãe do Pescado" simplesmente
H6 .Basta verificar a descrição que nos dá Gabriel Soares de Sousa ( Notícfo ) em gasolina e motores para sua canóa?
do Brasil): mandioca-brava, aipim, batata-doce, cará, mangarito. taioba. 1
fava (cumã) , jerimu, amendoim, pimenta. além das frutas como o caju. Achamos ~esmo ~u~ aqui, Warimi e Mení agindo juntos, ~
pacoba (banana), mamão, ingá, piqui. umbu. etc. (V. t. 1.0 , p. 316 et seqs. no mesmo sentido, participando das mesmas ações, podemos pôr
e t. 2.0 • p . 5 a 33.)
147 e realmente com o •·waí-maxse" das grutas e nas grutas mesmo, que o 148 G OLDM AN . Th e Cubeo ... p . 4.
pajé ne&ocia ... 't i -10 No caso dos Barasana .
212 CAP. VIU - "HISTÓRIA DÊ LUNA" •••

à prova a concepção da "canoa-serpel)te" como sendo ou não


tukano. .
E verdade que Mení já tem uma canoa, mas ela é um objeto
e permanece um objeto até o fim, ainda que seja possível identificá- CAPÍTULO IX
-la com a piroga que leva o Sol e a Lua (dois em um). Quanto
à serpente aquática, tanto Warimi quanto Mení se opõem a ela A "CABEÇA ROLANTE" E O MITO DE KASANA-PODOLE
(o mito é bem claro), tanto no seu aspecto negativo e patente de
serpente (pois é degolada), quanto no seu aspecto positivo e sacra-
lizado de "mãe do pescado" (implicando numa coisificação do O tema da cabeça rolante já foi estudado por Lévi-Strauss
ser). 150 em L'origine des manieres de table (p. 42 et seqs.).
Temos a impressão, pc;>r isso, que, como já foi sugerido atrás, Ele demonstrou, para uma série de mitos, a associação do
existem duas correntes principais do pensamento mitológicd, que motivo a dois outros: origem da lua e atitude imoderada em re-
se encontram na região do U aupés. E verdade que as duas têm lação ao casamento (incesto ou celibato) .
raízes comuns (num estrato primitivo que se formou na área entre Nesta associação, o tema tem uma distribuição leste-oeste,
os Andes, a noroeste da América do Sul, e o México) ; uma pene- atravessando a Amazônia, e nesta faixa Lévi-Strauss indica, à
trando da direção oeste-leste no noroeste brasileiro, outra, através medida que caminhamos para oeste, uma transformação dupla
das Guianas e do Orenoco, em sentido norte-sul. do incesto, de maternal em sororal, e da periodicidade, de esta-
Gostaríamos de dar um exemplo dessa diferença entre uma cionai em mensal.
corrente e a outra, que se faz notar, entre outras coisas, por uma O mito se transforma de maternal em sororal. . . por quê?
valorização diferente das artes mágicas.
Sabemos que os soberanos Incas, tal qual os Maori e os
Egípcios, casavam com a própria irmã. O incesto sororal a~arece
aí, portanto, solarizado, divinizado, evolução purificada, hberta
das ambivalências, do sacrifício da heroína de Autxepirire.
Pois é claro que a "mulher dos bichos" é uma incestuosa ou
adúltera ritual (haja visto a cerimônia gorotire descrita por Ban-
ner a que nos referimos atrás) .
A noção de sacrifício continua. A "solarização" de um dos
deuses corresponde à linhagem soberana (a estratificação social,
a formação de uma unidade política caminham passo a passo c~~
essa solarização), faz com que se conceba a mulher como sacrifi-
cada tão-só ao "tigre-bom", opondo-se este, evidentemente, a todos
os concorrentes, 1 eliminando-os mesmo, 2 pois a noção de pureza
tem que persistir através do exclusivismo. A irmã-esposa do Inca
é, portanto, uma "mulher-estrela" .como a ~eroína do mit.o ~ahó, 3
só que as situações quanto à castidade se_ mv~rt~m; os Irmaos do
marido jê (que violam a casta esposa) sao ehmmados da compe-

1 Como ele faz na mitologia desâna com seu irmão Lua, afastando-o da
1so Parece evidente que só matando a cobra animal se pode aproveitá-la no filha. REICHEL-DoLMATOFF. Desâna ... p. 17. , ..
seu aspecto positivo, que é a transformação de sua gordura em motores e 2 Outro homem por quem a filha se apaixonara e eltmmado com curare.
gasolina. Mas recusamo-nos. a admitir que o índio imagine essa transfor- ld., ibid. Texto XIII, p. 25 et seqs.
mação viável. Possivelmente a cobra aquática representa a cultura estran- a SCHULTZ, H. "Lendas dos fndios Krahó." RMP. p. 75-79.
geira que possui certos bens que só podem ser adquiridos pelo saque.
214 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E .•• A "CABEÇA ROLANTE" E. . • 215

tição de antemão pelo Inca que comete incesto (a repetição. do Assim sendo, nos Andes a Lua se afemina, transformando o
sacrifício primordial ritualizado) com sua irmã. Claro, o Inca incesto em algo, poder-se-ia dizer, completamente inócuo para o
não é propriamente o Sol, pois este cometeria incesto com a pró- homem, justamente porque não é mais um homem-animal que o
pria filha; ele é o "Filho do Sol"; daí o incesto com a irmã, como comete, mas tão-somente a manifestação positiva, solar, do deus-
representante do pai que ele é. -criador.
Mas, como Sol, Filho de Sol, ele representa apenas um dos Claro que esta substituição ocorreu lentamente, à medida que
gêmeos míticos. Que fim levou o alter ego que representa o as- r não só as transfarmações político-sociais foram se processando,
pecto negativo? Identificá-lo com uma tribo vizinha, como faziam mas também as transformações econômicas, aspectos que acha-
os Tupinambás, não parece viável. Seria admitir uma oposição mos dispensável abordar.
com essa tribo em condições de igual para igual, pois bem sabiam Isto explica por que a oeste predomina o mito do incesto
os Tupinambás que o sacrifício só teria sentido, se eles permitissem sororal. Sua forma original, contudo, parece ter sido, no entanto,
que o inimigo, na hora de ser sacrificado, assumisse uma atitude o mito do homem incestuoso, transformando-se em Lua, com o
solar (de desafio, de morte heróica ou de negação da morte pela desaparecimento ou transformação de sua amante e irmã em
coragem de enfrentá-la), o que evidentemente só seria possível Urutau.
oferecendo ao outro grupo um direito tácito de proceder da mesma Mas, se a transformação em astro é um sinônimo de rito
forma. (Uma luta de igual para igual, como a que a nobreza sacrificial consumido, então, numa versão original, tanto o homem
guerreira, com seus conceitos de honra e tudo mais, idealizou.) como a mulher eram imolados. Parece que estes sacrifícios exis-
Sabemos que a política de unificação dos Incas dava certa tiam realmente nas culturas andinas primitivas. A solarização da
liberdade aos povos, conquistados de preferência pelas manhas Lua deve ter correspondido uma lunarização ou Urutau.
políticas e pela diplomacia que pela guerra, que mantinham mesmo A predominância do incesto maternal, nas versões mais a
os chefes como governadores (educando os filhos destes, como leste, ainda será analisada mais adiante. Pode-se adiantar, con-
~obres, na capital, e garantindo dessa forma süa fidelidade ao Inca). tudo, que Alcionílio B. A. da Silva se refere realmente a um in-
Não cremos, contudo, que os !ncas chegassem a conceder ao cesto ritual do iniciando tukano com a própria mãe, no final do
povo conquistado um status de irmão gémeo. Ainda assim, quem período de iniciação. 5 Pelo capítulo anterior percebe-se que teria
sabe, um dos reinos mais importantes ou todos os domínios reu- que ser assim mesmo. n
nidos talvez pudessem formar a segunda cabeça da águia bicéfala Como no mito barasana, que acabamos de analisar, a mãe
que aparece na arte andina pré-colombiana e de que ainda se volta com a estação dos frutos ("era tiempo de chontaduro"),
falará neste capítulo. Mas uma águia de duas cabeças não corres-
ponde, mesmo assim, exatamente ao Sol contendo a Lua. A Lua comer. Se recostó sobre una piedra, muriendose, y todavia se ve eso en
é uma imagem por demais ligada à morte e ressurreição, para que una gran roca en el raudal de Wainabi. Cuando el Sol vió eso decidió hacer
ela possa representar a segunda cabeça de uma águia solar. Desde gamú bayári, la invocación que se hace cuando las muchachas llegan a la
pubertad. El Sol fumó tabaco y la revívió." REICHEL-DOLMATOFF. Desâna . ..
que, no entanto, o sacrifício se transformou em incesto ritualizado p. 20.
evide?teme.n te a ,..moça ressuscita; e é exatamente o que . acontec~ ~ um pouco estranho que ela escolhesse justamente uma pedra para
na m1tolog1a desana, a qual parece neste aspecto mais impregnada morrer . . . Alguma alusão muito vaga à pedra de sacrifício?
5 SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. A Civilização Indígena do Uaupés. p. 439:
de concepções andinas do que a mitologia barasana. A morte da
"O termo desse curso é o incesto com a própria mãe, com a assistência do
Filha do Sol é relatada no texto IV do livro de Reichel-Dolmatoff pai e do pajé ou Kumú. Marca o início da vida sexual pública (até então
seguida de sua ressurreição, promovida pelo pai. 4 ' às escondidas) ".
6 Parece fora de dúvida que a defloração artificial e iniciação sexual ritual
4
A filha gostou do incesto e vivia com o pai como se fora sua mulher. "De da moça (V. descrição em SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. Op. cil. p. 440-41)
!.anto pensar. ;n eso" (que .º i~forma~te já define como "grande maldade") feita pelo pajé, como encarnação de Muyhu, é uma espécie de "vacina", da
ell~ se volv10 flaca y fea sm vida. As1 se vuelven las recién casadas, palidas mesma forma que o coito com a mãe: "devorando-a" em sentido figurado,
e fla~~s, por pensar en el ato sexual y eso se llama gamúri. Pero cuando ritualmente, o filho jamais a devorará como onça, repetindo o pecado
Ja H1Ja dei Sol tuvo la 2. ª menstruación, ya le hizo dano y no queria original.
216 CAP. IX - A "'CABEÇA ROLANTE" E ..• A "CABEÇA ROLANTE'' E. • • 217

entende-se por que Lévi-Strauss fala em transformação da perio- eia de sua expulsão da comunidade (porque transformada em
dicidade mensal (ligada às fases da lua)" em periodicidade estacionai. "cabeça rolante"), o que corresponde à sua ação incestuosa cons-
f ) ciente e persistente de indivíduo que não respeita, que não quer
Examinemos agora o tema do incesto sororal.
respeitar as leis sociais.
Nele, o irmão incestuoso é desmascarado pela amante que o
Quanto à irmã, ela é, até certo ponto, a vítima inocente ...
mancha no rosto com tinta de jenipapo, com urucum ou até mes- até certo ponto só . . . (e é por isso mesmo que ela também é cas-
mo com sangue menstrual. tigada), pois o erro dela é justamente o de não procurar saber
~ claro que, à medida que a sociedade regulamenta a de antemão qual a identidade do amante.
exogamia, há uma tendência para esquecer ou atenuar o aspecto Enquanto alguns mitos frisam essa displicência imperdoável,
de comportamento anti-social ritualizado do incesto apresentando- 1 que faz dela uma equivalente da mulher folie de miei, uma mulher
-se os personagens com ênfase no aspecto negativo, comporta- que não sabe esperar (ou mesmo uma mulher adúltera, porque
mento anti-social não ritual. pensa mais no sexo do que no marido, nos filhos), outros ressal-
Em se tratando dos grandes mitos tribais (que não são sim- tam mais a sua co-participação.
ples histórias moralizantes, mas, como vimos pela história de Wa- Assim, vemos umas personagens condenadas porque, uma
rimi, epopéias de grande dramaticidade, qu~ refletem todos os vez conscientes do ato incestuoso, não se compenetram de sua gra-
problemas mais angustiantes de um povo), nunca a ambigüidade vidade: ... é a mulher que vem rindo, quando deveria caminhar
deixa de existir inteiramente. Quando o mito toma a forma de chorando 9 e outras que querem continuar na situação criada, per-
uma história puramente moralizante, parece existir uma tendência seguindo o amante, qual f emme-collante, mulher-rã, a própria
para ser o culpado tragado pelo mundo subterrâneo, desaparecer personificação das manchas lunares. ~ nesta caracterização que
t \
nas águas, transformar-se em duende da floresta, de preferência ela poderia se transmutar na cabeça antropófaga (que é sempre
a sofrer transformação astral. uma cabeça "colante").
Como se pode "ler", contudo, a história do incesto sororal Contudo, não é o que acontece, porque, nestes casos ela segue
duma sociedade que já sedimentou há muito a sua exogamia? um irmão que dela foge, que deixa a sociedade, e já no mundo
Na realidade, na maioria dos casos, é o irmão incestuoso que exterior é que ela vai encontrar seu destino infeliz, sua perdição
total.
se transforma em Lua, 7 voluntariamente, reconhecendo a gravida-
de da culpa 8 (literalmente, entregando a cabeça ao cadafalso) - A ação do homem, concebido pela sociedade como o ele-
mento obrigatoriamente mais responsável, parece ter sempre maio-
e neste caso obviamente não existe o tema da cabeça antropófaga
res conseqüências. Assim mesmo, antropófaga só se toma a ca-
ou simplesmente cabeça "colante" - ; ou então, como conseqüên- beça cujo dono ameaça a sociedade, teimando em permanecer
nela. 10 Esta é a razão por que, no mito kaxináwa (L'origine . ..
7 Num mito jivaro, por exemplo, a Lua é assediada por seu irmão, Sol.
LÉVI-Sn.Auss. L'origine des manieres de table. p. 84. Mito 394, p. 78) é a f emme-farouche que se transforma em "ca-
A tendência geral, contudo, é o irmão se transformar em Lua. Quanto beça rolante" (ainda assim não propriamente antropófaga, pois
à irmã, quando o mito a menciona, a transformação mais freqüente é a importuna só a própria família ... ) , porque se recusa a deixar
em Urutau (Lenda do Kukuy), ave cujo simbolismo foi muito importante seu grupo, quando deveria fazê-lo para se casar.
na área diaguita, caracterizando a decoração das urnas funerárias. ARAoz.
"En el Escenário de un Mito." Suplemento de la Revista de Educaci6n. Antropófaga ou não, a "cabeça rolante" representa um peso
A caracterização do Sol como feminino (e Lua como masculino) está para a sociedade ou para o indivíduo: é um ser que precisa ser
presente entre os Toba e Pilaga do Chaco. (V. BIANcm. "Mitologia de alimentado, sem nada dar em troca. 11
los Pueblos del Chaco, según los Autores de los Siglos XVII y XVIII."
América Indígena). Também entre os Mocovi, Gadsea (o Sol) é mulher
e Sidíaco (a Lua) é homem. :e possível, contudo, que o caso único de uma 9 Como acontece com a mãe de Warimi em "História de Lua".
transformação da mulher no Sol na lenda do Urutau citado por ARAOZ
1 º A condenação pelo grupo,às vezes, não é tanto do incesto em si: o que
(Op. cit. p. 30) , numa versão recolhida na costa Atlântica, seja uma rein- não se tolera é que ele seja tornado público.
11 Tal qual a esposa que fica paralítica (porque já mesmo antes o marido
terpretação devida a influências da civilização.
8 Como o Sol desâna que se entristece com sua culpa. "a carregava" sempre consigo), na história do casal apaixonado demais da
218 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E •• • A "CABEÇA ROLAN T E'' E . . • 219

Percebe-se assim que o episódio da cabeça da mãe de Wari- O tema está ligado aos mitos tipo "Viagem ao céu", em que
mi, transformada em joguete das onças, tem que prender-se a este um sogro ou uma sogra colocam à prova um jovem marido.
tema mítico. Ela é realmente uma irmã incestuosa. Já que o mito A explicação da ausência deste tipo de mito no U aupés é
não visa explicar a origem da Lua (sendo, contudo, o amante a óbvia :. ele só ocorre em sociedades matrilocais (ainda que com
própria Lua), é a mulher que se transforma em "cabeça rolante", matrilocalidade temporária, por vezes) . Ao menos neste caso, a
um pouco gratuitamente, à primeira vista (se não quisermos re- realidade sociológica se espelha claramente no mito. Mitos centra-
correr à questão das inversões estruturais) , porque, já no mundo lizados em sogros e sogras implicantes, pondo à prova severamente
exterior, ela não é mais um peso para a sociedade. o genro, não poderiam caracterizar uma sociedade tipicamente
Mas é justamente porque nós já nos encontramos numa área patrilocal, em que não existem propriamente provas a que os
em que representações de caçadores de cabeças deixaram uma pretendentes tenham que submeter-se. 15
certa influência. Na realidade, a "cabeça joguete" da "História A mulher não consegue levar seu amado para o mundo exte-
de Luna" é o inverso de uma cabeça "colante." Em vez de domi- rior, a não ser, como numa lenda tukano, 16 por um subterfúgio
nar, ela é dominada: no mundo exterior, ela se transforma ·em como o do pai que procura induzir o genro a buscar o fantasma
"cabeça troféu", indefesa nas mãos dos inimigos. 12 da moça que morrera após ser devolvida, doente, pelo marido.
Esta representação, ao menos a julgar pelo material mítico Se os problemas entre genros e sogro ou sogra sempre existem
de que dispomos, 13 só aparece entre os Barasana (Bara): trata-se e com gravidade suficiente para serem expressos em mitos também
de uma área mais próxima do Rio Ainazonas e talvez s~ devesse nas sociedades patrilocais, ao menos sua expressão nestas leva a
pensar numa influência dos Munduruku, não tivesse essa tribo outras fórmulas míticas. De uma delas, do ciclo de Inapirikúri,
·feito um aparecimento bastante tardio no Baixo Tapajós e Baixo falaremos adiante.
Madeira. :.b possível assim que o tema se deva a uma antiga in-
Claro está que sempre um ou outro desses mitos típicos da
fluência de concepções dos Jivaro (quando os ancestrais de alguns
Guiana pode ser encontrado em outra área. Mas é curioso como,
grupos do Uaupés ainda estavam em área mais ocidental) ou dos
Witóto, que também têm um culto ao crânio. Por outro lado, o por vezes, a sua não-correspondência, a sua falta de lógica para
destino final de Méneri-Ya sugere uma transformação em fruto , uma mentalidade formada ein outro tipo de organização social se
o que lembra um mito de uma área bem mais distante (Bolívia), 1 4 espelham na indecisão de relato de um mito recolhido por Barbosa
em que um povo de canibais dá origem · à pupunha cujos frutos Rodrigues, com o título ''Urubu e as filhas casadas", 17 que co-
parecem cabeças com cabelos. meça assim: "Um velho urubu tinha quatro filhos casados" ( sic).
Talvez se devesse falar de certo·s temas que não aparecem em S a história das filhas casadas (ou dos filhos casados) respectiva-
determinada área, particularmente se, pela proximidade com ou- mente com um lagarto, uma coruja, um pato e uma pomba, cuja
tras áreas em que ocorrem, se deveria esperar a sua presença. correspondência com o mito taulipáng de "Mai'uag e Korotoikó"
Estamos pensando no tema dos personagens com duas cabe- já fora notada por Koch-Grünberg, sem comentário à substituição
ças, e isto porque, por um mito taulipáng, sabemos que uma delas do gênero no texto. 18
é uma "cabeça rolante". A certeza da direção da procedência nos dá, neste caso, o
fato de que os animais continuam, na versão de Barbosa Rodrigues,
"Lenda do Tambatajá" (taulipáng). PEREIRA, Nunes. M oronguetá . . . v. l, a ter um comportamento mais de homens do que de mulheres.
p. 70.
12 Logicamente, não com a valorização que a "cabeça troféu" tem entre os
15 Mas relatos semelhantes, em que o perigo é representado por um perso·
"caçadores de cabeças" históricos.
13 Infelizmente, trata-se sempre de uma análise parcial, pois não se dispõe nagem que se poderia identificar como "sogro", ocorrem, como vimos na
de muito material mítico da região. Só após as prometidas publicações de seqüência final da "História de Luna".
Beksta e de Brüzzi provavelmente se terá uma melhor visão de conjunto. 16 PEREIRA, Nunes. "Lenda de Huenique Haripona". Op. cit. p. 294.
17 RODRIGUES, Barbosa. ''Poranduba Amazonense." A nnaes da Biblioteca
14 LÉVI-STRAUSS. L'origine . .. p. 79.
A identificação que o mito apresenta entre a cabeça de Méneri-Ya Nacional do R io de Janeiro. p. 184.
e a sua relação com a coca serão discutidos em outro lugar deste tçabalho. lS K o CH·ÜRÜNBERG. Vom R oraima zum Orenoc:o .. . p. 41 e 124.
220 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E ... A "CABEÇA ROLANTE" E. • • 221

Provavelmente, a contradição se conservou porque a indecisão apresentando o motivo da cabeça múltipla, modelo do banco a ser
podia permanecer sem invalidar o mito. Afinal, o que era preciso confeccionado pelo herói.
ser dito, fossem genros ou fossem noras os animais em questão, O desdobramento na arte já foi estudado por Lévi-Strauss 26
ficaria dito da mesma forma: "As sogras do mundo inteiro não à b~se de uma interpretação, poder-se-ia dizer, quase psicanalítica,
prestam". 19 E, se elas tiverem mais de uma cabeça, tanto pior, que ele aplicou também às suas observações sobre o estilo da pin-
poder-se-ia acrescentar. tura facial kadiwéu, revelando o ego e o ai.ter ego, o ser humano
E aqui chegamos a este tema curioso da sogra 20 ou do sogro e seu status (a sua máscara) .
de duas cabeças, que parece desenvolver-se numa faixa desde o Mas, apesar da máscara warrau (que permite uma interpre-
Roraima até o Amapá. Wirth recolheu duas versões, entre os tação deste tipo) , achamos que somente esta explicação é insufi-
Wapitxâna, uma no Amapá outra em Malacacheta. 21 Koch- ciente para o aparecimento do tema mítico de que estamos tra-
-Grünberg publicou a versão taulipáng 22 e que ela existe entre tando. 27 Aliás, uma explicação se encontra praticamente elabora-
os Arekuná ficou claro pela descrição feita pelo informante dessa da pela própria mitologia indígena, pois em outro mito ("Etetó".)
tribo a Koch-Grünberg, das "viagens ao céu" do médico-feiticeiro, se explica "como Kasána-podole, o urubu-rei, recebeu a sua se-
nas curas noturnas, que seriam em tudo a repetição do mito. 23 gunda cabeça". 28
Além da versão arawák a que já nos referimos, Van Coll Etetó é o personagem que, morando com a sogra, tem, como
recolheu outra, esta na foz do Orenoco, entre os Warrau: é a também ocorre em outros mitos, seus problemas com os cunhados.
história de "Makanaura e os jacarés". 24 Estes o desprezam por ele ser panema, e esta situação só se modi-
Nesta, contudo, em vez de duas cabeças, o agressivo sogro fica com a obtenção~ peló herói, dos apetrechos mágicos. 29
jacaré traz uma máscara de cabaça (com dois orifícios) . Sejam apetrechos mágicos ou seja uma esposa do mundo
Da viagem ao céu, com suas provas ao herói, há natural- exterior, dotada de qualidades excepcionais, neste tema mítico de
mente muitas versões, 25 nenhuma porém fora da área citada, tão grande distribuição, 30 a manutenção do segredo é muitas vezes
a condição do sucesso.
19 Comentário do informante, ao narrar o mito. V. também a tradução em Contudo, em geral, embora o herói destas histórias acabe,
RMP. "Mitos e Lendas dos índios Taulipáng e Arekuná." nota 3, p. 129.
20 A sogra tinha que ter mais cabeças do que o sogro! "Pelo menos uma
,. .\
pela perda dos apetrechos mágicos ou pela perda da esposa, tão
dúzia", diz o mito arawák da sogra-urubu "Acathu", recolhido por Van
Coll e republicado por KocH-ÜRÜNBERG ("Der Zauberarzt Makanaholo." Orfeu", é um modelo mítico intimamente ligado a técnicas xamanísticas
ln: Jndianermarchen aus Südamerika. p. 53). Mas, como se trata do único (iniciação de xamãs e curas), conforme o mostrou para os Krahó MELATII,
caso (embora o tema nos faça vir à lembrança uma boneca karajá com J. C. ("O Mito e o Xarriã." ln: MitQ.-L_Linguagem Social). Particularmente,
muitas cabeças, cujo simbolismo curioso nos foi explicado por quem a o xamanismo siberiano e polinésio. ELIADE, M. El Cha-manis.mo y las Tecni-
trouxe do Araguaia), deixamos de lado uma tentativa de explicação. cas Arcáicas del Extasis. p. 247-90.
21 WntTH, D. M. "Lendas dos índios Vapidiana." RMP. p. 192-93. Numa 26 LÉVI-STRAUss. Antropologia Estru(ural. cap. XIII, p. 7.
outra versão, o banco é de pedra e não há referência a uma segunda 21 Não que este tema não se preste também (como todos QS mitos, se
cabeça. Comentários de H. Baldus (Lendas dos lndios do Brasil. p. 89), quisermos) a uma interpretação psicanalítica; mas esta nos parece insuficiente
que publicou nesta obra a versão de Malacacheta ("O Urubu-rei e o Homem") para explicar a formação e para a compreensão real da mitologia.
com o título de "A Viagem ao Céu", e traduziu em Ensaios de Etnologia 28 KocH-GRÜNBERG. Vom Roraima zum Orenoco. Band li, p. 92. Trad.
Brasileira o mito taulipáng publicado por Koch-Grünberg, se referem tam- "Mitos e Lendas ... " RMP. p. 98.
bém às considerações que teceu Ehrenreich sobre o tema e chamam a 29 Respectivamente, a obtenção sucessiva de uma cabaça e um remo mágicos,
atenção para a distribuição dos mitos que apresentam os motivos das provas propiciando uma pesca milagrosa; uma flecha para caça a aves e um cho-
a que são submetidos os heróis, nas Américas. calho mágico, associado (também em outros mitos) aos porcos-do-mato.
22 Vom Roraima zum Orenoco. Mito 27, p. 81. A tradução, para o Portu- Aliás, num outro mito sobre os instrumentos mágicos da mesma região,
guês, de todos esses mitos taulipáng e arekuná, se aéhará na RMP. N. S. 1953. de que falaremos logo mais, a obtenção do chocalho mágico acaba levando
v. VII. (0 mito em questão à p. 88.) à transformação do herói em "zauelezáli'', o "pai dos porcos-do-mato"
2s KocH-GRÜNBERG. Op. cit. p. 289. ("Mitos e Lendas ... " RMP. p. 104-05).
24 Publicado por Koch-Grünberg em Indianermarchen aus Südamerika. Mito 30 Uma série desses temas foram tratados por Lévi-Strauss em' seus "Mytho-
13, p. 40. • l logiques". V. também a importância da "esposa celeste" do xamã, em ELIADE,
2õ "A Viagem ao Céu", com suas provas, também o chamado "tema de M. El Chamanismo. . . p. 76 et seqs. ·
222 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E ..•
~

A " CABEÇA ROLANTE'' E. . • 223

panema como na situação inicial, ele, que geralmente beneficia a Não é preciso apelar para exemplos indígenas: ainda nos dias
comunidade com a arte mágica (provendo seus afins de abundante de hoje, há cidades em Minas Gerais que "estão afundando" por
caça, pesca 31 ), vinga-se da inesma apenas pela própria interrupção causa de praga de padre. :i-:t
do benefício. Quantas vezes um sentimento de culpa coletiva está subja-
cente a uma representação .mítica! Segundo Séjourné, não foi)l:;
Mesmo quando o mito o apresenta castigando os cunhados,
isto que aconteceu com os ·Astecas, no período que antecedeu à
percebe-se que coloca a razão do lado do herói. 32
conquista?
Não no mito taulipáng. O revide de Etetó, provocando a Não podem as relações entre genro e sogra, bem como cunha-
morte (em outros mitos, como dissemos, concebida como mere- dos, ser tão generalizadas a ponto de a sogra de Etetó se tornar a
cida) do cunhado, é vingado pela sogra, 33 e, o que é importante, sogra de todo índio? Etetó, não só a personificação da vingança,
nesta vingança Etetó se transforma em algo terrível para a comu- mas também da força descontrolada, Tanatos feito pessoa, a
nidade, para a humanidade toda. Aliás, se temos que identificar ameaçar o mundo inteiro, só se contentando quando ele próprio
até certo ponto "comunidade" e "humanidade", aqui podemos se identifica com o rei do mundo dos mortos?
dizer que ele se tornou também um perigo para o mundo exterior Certo, admitimos que esta interpretação é válida, num nível
e, ainda que se possa alegar que os animais não são necessaria- mais profundo. :w
mente símbolos de outras tribos, também para elas passa a consti- Mas, por que por vezes os personagens simplesmente desapa-
tuir perigo, uma vez que se incluem no mundo exterior. recem no mundo exterior, transfarmados em "Mauari", :17 e em
Como podem relações entre um homem e a família de sua outras as situações se complicam tanto, a história relata golpe e
mulher degenerar num conflito universal? contragolpe até o desenlace final? Provavelmente dir-se-á que as
Responderão que é o processo normal do pensamento mítico: · histórias simples são fragmentos de outras mais complexas, cujo
quebre-se um tabu, nem isso, desrespeite-se uma regra de boas relato completo foi esquecido. É possível que assim seja e em
maneiras e se terá um dilúvio universal. Dir-se-á também que muitos casos se têm mesmo fortes razões para pensar nisto. Mas
numa pequena comunidade ·os problemas de família são os pro- é preciso não esquecer que neste caso faltou o estímulo para que
blemas do grupo e este por sua vez o centro do universo. fosse o mito perpetuado e parece-nos justamente que este estímulo
vem muito mais das relações do grupo com o mundo exterior, em
ai Ou mel, como no mito arawák analisado por Lévi-Strauss em Du miei casos como este, do que propriamente de condições internas.
aux cendres. Mito 233, p. 129.
a2 No caso da esposa(o) animal, portador(a) de cultura, a enunciação de :;-1 Esta era a explicação popular para uma "voçoroca " existente bem no
seu nome tabu (freqüentemente uma falta cometida pelo cônjuge) é motivo centro de uma cidade do sudoeste mineiro.
comum de sua perda (V. LÉVI-STRAUSS. Op. cit. p. 262), como no mito ~:r. SÉJOURNÉ. Pensamiento y Religión en el México Antiguo.
acima citado, de Maba a "esposa-abelha" (Mito 233). Trata-se geralmente ;H; O mito nos diz que, nas relações com os afins, é preciso que se estabeleça

de uma condição imposta que representa, a nosso ver, um sutil modo de um equilíbrio que nem Etetó nem seus cunhados se revelam aptos a estabe-
respeito exigido em troca de imensos benefícios, como se depreende de lecer. Estes últimos, pela inveja, falta de respeito pelo alheio, irresponsabi-
lidade e modo desleal de agir com o sobrinho, levam-no a trair o próprio
um belo mito ojibwa, "Die gute und die bõse Schwester" - A irmã boa
pai. O primeiro peca porque, embora recrimine os cunhados, suporta, de
e a irmã má (KUNIKE. · Priirie-Indianer Miirchen. p. 32).
certa forma, passivamente, o roubo de seus apetrechos mágicos, passividade
Pode-se perceber, contudo, que a conservação do cônjuge "maravilhoso" que é mais acentuada ainda no outro mito a que nos refer.imos atrás, o de
depende também, fundamentalmente, em muitos mitos, da integração que "Wewé e seus Cunhados", em que, mesmo após ter perdido o próprio filho
lhe permitem os familiares do marido (ou da esposa), · como ocorre nos por culpa deles, embora se comprazendo intimamente com a desgraça que.
mitos de "apetrechos mágicos"; por isso falamos dos dois tipos aqui como por fim, alcança também a estes, não reage, quando a sogra (indiferente à
se se tratasse do mesmo grupo de mitos. Efetivamente, enquanto uma esposa morte do neto por culpa dos filhos) ainda o responsabiliza indevidamente
"maravilhosa" pode ser estrela ou animal, um esposo pode ser "maravilhoso'', pela morte deles e o desacredita como médico-feiticeiro. O ódio recalcado,
além disso, por conhecer as artes mágicas. represado, explode numa imagem de destruição.
!!ll Ela induz o fantasma de seu filho morto a enfeitiçar tudo o que Etetó ~li ... espíritos, fantasmas, como acontece no mito n. 0 38, "Como Surgiu a
tentasse comer (literalmente transformando-se ele no alimento), do que Dança Uraiukurukog." KocH-ÜRÜNBERG. "Mitos e Lendas ... " RMP. p.
resulta Etetó tornar-se um 9gre antropófago (um "come-tudo"). 125-26.
224 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E ••• A "CABEÇA ROLANTE" E. • • 225

Além disso, há certos fenômenos que a interpretação dada E isso bastou para que se sentisse com mais forças e mais
até aqui não explica. disposição para o trabalho.
Um deles é que em áreas vizinhas e relativamente próximas, Então, foi para onde estavam os companheiros e se pôs a
f derrubar as árvores, deixando os cunhados Je lnapirico para trás.
entre tribos que não mantêm relações matrimoniais com as da Os cunhados de lnapirico desconfiaram que Poerare havia
área em questão, encontramos mitos em que, por vezes em forma descoberto a vasilha com as tocandiras. Porque essas formigas
atenuada, a história é conhecida, com uma diferença: o herói se eram a puçanga deles para dar força e resistência.
toma vilão e vice-versa. Os seus companheiros foram procurar a vasilha e a acharam
J;', como se ouvíssemos o relato de um jogo de futebol, con- cheia de mofo e sem nenhuma formiga.
tado sucessivamente por dois torcedores fanáticos de times contrá- Combinaram vingar-se.
rios: o juiz que nos foi apresentado primeiramente como imparcial, O menor dos cunhados de 1napirico - o curumi - contou
justo, pelo torcedor do time vencedor, de repente se transforma a Poerare o que os cunhados de lnapirico pretendiam fazer.
em ladrão e trapaceiro no relato seguinte. J;', o que chamamos Convidaram Poerare para fazer tapagens num igarapé.
atrás de "jogo de espelhos". 38 E isto numa área em que, como Nessa ocasião mandariam que ele mergulhasse, levando às
vimos, com referência ao mito publicado por Barbosa Rodrigues, 89 costas umas varas, pois assim, tapado o igarapé, poderia ter mais
não há razão alguma para que se tome partido dos sogros - e peixe.
não se toma mesmo, porque são as ações dos personagens e não Isso era, porém, para o enganar.
a posição dentro do sistema de parentesco que recebem diferentes Porque se vingariam dêle, por haver roubado tocandiras,
atributos de valor. 40 . ' flechando-o.
Tomemos como exemplo a primeira seqüência do "Mito de Poerare foi e. mergulhou.
Inapirico", contado a Nunes Pereira por índios Baré. e Tukano Mas, quando o quiseram arpoar e flechar, como já sabia,
deu um jeito no corpo e os cunhados erraram o alvo.
do Rio Negro: Vindo à tona d'água Poerare disse aos cunhados do irmão
que eles haviam errado o peixe que pretendiam matar.
"INAPIRICO tinha três cunhados. O curumi havia explicado, também, que, na ocasião de ser
E seu irmão mais velho era POERARE.
tinguijado o igarapé, ele não fosse apanhar o peixe no meio, por-
Um dia seus cunhados o convidaram para fazer uma roça. que ali correria risco de ser arpoado e morto.
Eles tinham, porém, uma puçanga para dar forças a quem
ia derrubar as árvor:es. Tendo subido a um pau, que estava atravessado sobre o
Poerare foi com os cunhados. igarapé, Poerare escorregou e caiu nágua.
E, chegando ao mato, tratou de pôr as árvores abaixo. Os cunhados do irmão, então, aproveitaram a oca$ião para
Mas trabalhava muito devagar, enquanto seus cunhados tra- o matar.
balhavam rapidamente. Mas, ao ser arpoado, Poerare virara Surubim.
Poerare desconfiou. Logo que os seus companheiros o mataram lnapirico soube
E foi espiar os cunhados de lnapirico que estavam conver- o que acontecera com seu irmão, pois do céu começou a cair um
sando no mato, defronte de uma vasilha cheia de formigas to- chuvisco de sangue que ele aparou na mão direita.
candiras. Então, imediatamente, lnapirico se transformou em Caba e
Poerare esperou que seus companheiros se afastassem dali. foi ao igarapé, para roubar o coração de Poerare, assim que seus
E foi correndo abrir a vasilha. cunhados o esquartejassem.
Tirou-lhe a tampa, às pressas, e as formigas, assanhadas, lhe Lá chegando, lnapirico furtou o coração do irmão e foi
ferraram o braço direito. moqueá-lo.
Com o calor do fogo, daquele sangue que ia pingando, nas-
88 V. p. 13 . ceu um gavião pequenino, comedor de borbQletas, o TAVATó.
89 ''Urubu e as Filhas Casadas" (RODRIGUES, Barbosa. "Poranduba Amazo- Esse gavião estava gritando que queria comer o velho
nense." Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. p. 184).
40 A .invariável, nesta equação, é, portanto, a animosidade entre genro e
CUNAFARE, que era o sogro de lnapirico, para se vingar da
sogros e entre cunhados adultos. morte de Poerare.
226 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E ••• A "CA.BEÇA ROLANTE" E. • • 227

lnapirico disse ao gavião TAUATÓ que ele era muito pe- lnapirico e a mulher estavani procurando saúvas 1nas iam
quenino para comer uni homem. a/astando-se cada vez mais, de propósito, para deixdr o velho
Aí pingou outra gota de sangue do coração de Poerare, dele só com o gavião.
nascendo o gavião que come calango, cobra e passarinho - O Ta1nhém iam fazendo barulho, pelo caminho, para ninguém
CAUR~. desconfiar.
E ele disse tan1bén1, como o TAUATÓ, que queria comer o Quando já estava agarrado no ombro do velho o gavião
velho CUNAFARE. UAUA cresceu, de repente, abriu as grandes asas e as garras,
Coni o calor do fogo, de novo, pingou outra gota de sangt1l' ) para o carregar.
do coraç<io dé Poerare, dele nascendo um gavião 1naior, o UAUA Depois o gavião voou para fora de casa, carregando o velho
- co111edor de aves, inha112bu, jacu, quatis e macacos. CUNAFARE.
E este gaviâo, tmnbérn, disse que queria conier o velho Antes, lnapirico, com cautela, já havia feito o cupin1 estragar
CU.\'AFARE. as armas, as sarahatanas, as flechas e os cacetes, para não ser-
Jnapirico lhe disse que podia, de fato, porque o resto do virem na ocasião.
coração de Poerare jú se derretera de todo. Enquanto o gavião estava no ar, mas ainda 1nuito haixo, o
Ele poderia comer a carne dura do coração do velho. velho gritava.
lnapirico, porém, soprou sobre o gavião UAUA niuita fu- Nisso lnapirico chegou, e, e1n vez de flechar o gavião, fle-
1naça de cigarro para fazer esse gavião tornar-se pequenino e o chou o velho, ajudando o gavião a matá-lo.
velho não saber que ele já o poderia co1ner. Então, a filha do velho CUNAFARE, chegando, ta1nbéni,
Desde aquele dia lnapirico con1eçou a fazer roça perto da perguntou por que lnapirico estava flechando o velho.
casa do velho Cunafare. lnapirico mentiu: dizendo que queria · acertar no gavião.
Durante esse tempo aproveitou para ensinar o gavião UAUA O gavião, ouvindo-o, voou e foi poisar, com o velho nas
a carregar cousas pesadas. garras, 11u1n" ingazeira.
Urn dia lnapirico cortou um galho de inajazeira e o gavião (É por isso que essa árvore é baixa e de copa esparramada.)
foi experbnentar se já podia carregar peso. Daí o gavião saiu e foi poisar na CUCURA-YUA.
Estava fazendo exercício para carregar, depois, o velho Voando, depois, dessa árvore, deu 1nuitas voltas pelo ar com
Cunafare. o velho Cunafare preso entre as gttrras, para logo voar sobre a
Todos os dias a gente da casa do velho Cuna/are ouvia ba- casa deste. Estava dando tenipo para que o velho apodrecesse
rulho de pau caído e pensava que era lnapirico que estava e os seus restos, caindo nas terras firmes, se trans/ornu1s.\'P.lll e1n
roçando. TlMBó.
Mas era o gavião UAUA experimentando força. Assim foi vingada a morte de Poertire, irmão do Grande
No outro dia lnapirico 1nandou que o gavião fizesse a mesma Chefe TNAPIRJCO".
coisa com um pedaço maior de inajazeira.
Para o gavião não ficar grande de uma vez lnapirico sempre Compare-se o texto com a primeira parte do mito de ''Wewé
soprava sobre ele fumaça de cigarro. e seus cunhados", narrado a Koch-Grünberg por um índio arekuná,
E o gavião V A V A continuava pequenino. que reproduzimos aqui, de preferência ao de "Etetó", porque nele
Um dia. chegando à casa, a n1ulher de lnapirico pediu se contam com muito mais detalhes os episódios referentes à
aquele gavicio2mlio para criar. obtenção dos apetrechos mágicos, que .na lenda de Etetó, em que
lnapirico,· pri1neiro, não quis atender à mulher, 1nas, depois, o interesse central da narração está na explicação da origem da
cedeu.
No dia em que entregou o gavião à mulher, lnapirico f e::.
segunda cabeça de "Kasána-podole'', são referidos só por alto,
chover, sendo esse urn sinal para que as fonnigas salÍvas roasse111. mencionando-se, contudo, que o herói os esconde sempre em um
Enquanto <1 mulher e lnapirít:o saírmn para pegar saúvas, o oco de árvore, o que, de certa forma, confirma a anterioridade
velho CVNAFARE pediu para ficar em casa co1n o gaviãozinho. do n1ito de Wewé com relação à versão taulipáng, que é um novo
Estava tirando hichos-de-pé p~!ra o gavião cvm.er. E o gariiio a.rranjo do mito, como queremos demonstrar, corre::;pondente pos-
já estava ficando i1r1paciente e zangado. sivelmente à representação de um perigo externo mais grave:
228 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E .•• A "CABEÇA ROLANTE" E ••• 229
"Um médico-feiticeiro, de nome Wewé, era cunhado de três -feiticeiro disse: 'Irei pescar durante dois dias! (Agora eles tinham
caçadores que matavam muita caça, veados, porcos, mutuns e oportunidade de descobrir como ele pegava os peixes.)
outros animais. Ele também ia diariamente caçar, mas nada en- O médico-feiticeiro voltou com um cesto cheio de peixes.
contrava. Um dia encontrou uma árvore, Dzalauráieg, que estava Os cunhados mandaram-lhe ao encontro a mulher e as três irmãs
caída e morta. Todos os passarinhos, Hauálipezámui, Dákupi, dela, para lhe oferecerem caxiri. (Como é costume ainda hoje.)
Elekéike, Kurádji, Uraíke, Kauánalu, Bakákag, Kéluma, Kúiakeg, As mulheres encontraram-no e derám-lhe muito caxiri; ficaram
Wó'la, Pálupali, choravam pela árvore, porque ela tinha sido muito entusiasmadas com· ele. Depois voltaram para casa. Tam-
1r bém os cunhados se divertiram com W ewé. Antes nunca acon-
seu tio.
. O médico-!eiticeiro queria abater os passarinhos que esta- tecia isto. Tinham ralhado com ele e lhe batiam, porque nada
vam chorando pela árvore, com a sarabatana. Os passarinhos se trazia. (Como ainda hoje é o costume;) Então beberam muito
transformaram em gente e gritavam: 'Não atires em nós!' A ár- caxiri e dançaram Tukúji na casa.
vore morta tinha perto dela uma pequena cabaça. O médico- W ewé tinha trazido a cabaça consigo; ·Às mulheres tinham-
-feiticeiro queria receber a cabaça dos passarinhos. Estes disse- -se encontrado com ele no riacho (que ficava bem perto) e ele
ram: 'Tu não sabes lidar com ela!' Antes ele se tinha queixado não teve tempo para esconder a cabaça no buraco da árvore.
aos passarinhos e lhes tinha contado que nunca conseguia abater Depois não se lembrou mais. A cabaça estava dentro de sua
caça alguma. Os passarinhos deram-lhe a cabaça e ensinaram-lhe · bolsa de caça. Bebeu muito caxiri, dançou e deu a bolsa à sua
o seu uso. Disseram-lhe que o dono· da cabaça sempre a havia mulher para que a guardasse. Enquanto ele estava dançando, os
enchido pela metade com água. Disseram ainda: 'Nada fales cunhados foram procurando nas suas coisas e perguntaram a seu
sobre a cabaça aos teus cunhados! Tu nos disseste que nada filho (ao qual ameaçaram de matar, se não contasse) onde o
consegues caçar'. Disseram-lhe que não aparecesse com a cabaça pai guardava suas coisas. Agarraram o menino fora de casa.
na casa dos cunhados. Quando ele chorou, a mãe saiu para ver o que estavam fazendo
Então o médico-feiticeiro encheu a garrafa com tanta água com ele. Perguntou aos irmãos: 'Por que querem matar seu
como os passarinhos lhe tinham ensinado. Encheu-a pela me- sobrinho?' Eles responderam: 'Queremos saber onde está a ca-
tade e a deitou na beira do riacho. O riacho secou e ele pegou baça do pai dele'. (Eles ainda nada sabiam de certo a esse res-
muitos peixes. Depois despejou a água da cabaça dentro do peito, mas queriam descobrir como ele pegava peixes.)
riacho. Este ficou novamente cheio dágua. A mulher disse: 'Para que querem a cabaça? Vocês estão
Depois escondeu a cabaça no buraco do tronco duma árvore embriagados e não podem pegar peixes agora!' Então eles sol-
e foi para casa com os peixes. A.ntes nada trazia para casa. taram o menino e a mulher disse onde estava a cabaça. Tomaram
Então comeu muitos peixes com seus cunhados, mas os cunhados a cabaça e foram pescar. Levaram também o filho do médico-
ficaram desconfiados, porque ele nunca havia trazido·coisa alguma. -feiticeiro. Estavam bêbedos e o menino também. Queriam que
Comeram peixe durante dois dias. Ele os tinha trazido num cesto ele lhes mostrasse como se pegavam os peixes. O pai do menino
que tinha feito de · folhas das árvores Kunuazá (palmeira Bacaba). estava bêbedo e dormindo; de nada sabia. _
No outro dia os cunhados mandaram o filho junto com ele Chegaram junto ao riacho e puseram um pouco de água
para ver como pegava os peixes. Ele fez como antes e pegou na cabaça. O menino disse: 'Meu pai disse que a cabaça deve
novamente muitos peixes; o filho viu tudo. Também viu onde levar água pela metade!' Então encheram a cabaça pela metade.
o pai guardou a cabaça. Depois voltaram para casa. O cunhado O riacho secou e eles pegaram muitos peixes. Quando tinham
que tinha mandado o menino ir - com o pai fez muitas perguntas, apanhado os peixes, um dos cunhados disse: 'Agora vamos en-
mas o menino nada descobriu. Seu pai o tinha mandado ficar cher a cabaça completamente!' Mas o menino disse: 'Não! Meu
calado. pai só a enchia pela metade!' O tio disse: 'Não; nós vamos
Então o tio disse: 'Que vamos fazer agora com o nosso encher por inteiro, para que o riacho fique completamente seco
cunhado? V amos preparar caxiri!' Fizeram caxiri para o médico- l\ e assim podermos apanhar mais peixes!'
-feiticeiro. O caxiri era muito azedo. Ele aceitou o caxiri. (Foi Encheram a cabaça e ela estourou. Correu tanta água da
um erro por parte do médico-feiticeiro aceitar o éaxiri. Bem ele cabaça que tudo ficou inundado e os três homens com o me-
devia saber que só lho deram, para conseguir que ele revelasse nino foram carregados pela enxurrada. Os três homens se sal-
tudo.) Seus cunhados disseram-lhe que fosse pescar, para que varam. O menino, porém, foi levado com a cabaça e afogou-se.
tivessem o que comer. (Como é costume ainda hoje.) O médico- A cabaça perdeu-se. Depois os três homens voltaram para casa.
230 CAP. IX - A " CABEÇA ROLANTE" E •.• A "CABEÇA ROLANTE" E. • • 231

Quando voltaram, o cunhado já estava acordado. Disseram à água!' Só disse isto para amedrontar a lontra. Dzaló comeu
irmã: !Perdemos a criança. À água carregou!' À irmã brigou apenas o corpo do caranguejo e deixou os braços, porque es-
com eles e disse que eram muito maus, e sem-vergonha, porque r tava com medo que saísse muita água. (À lontra até hoje faz
tinhwn perdido a criança. 1 assim.) O remo ficou nos braços do caranguejo até h.oje. À
O pai ficou procurando pelo filho todos os dias. Então lontra disse ao médico-feiticeiro: 'O caranguejo escondeu o remo,
encontrou Dzaló, a lontra. Ela tinha urn remo comprido na mão, mas não sei onde! Procura o remo, talvez o aches!' Wewé saía
tão comprido que alcançava de uma 1nc1rge1n do rio até a outra. todos os dias à procura do remo, mas não o encontrou mais".
Quando batia com ele na água, o rio ficava parado e seco na
parte de baixo. W ewé tinha-se escondido para apanha.r sorratei- Falta no mito de Etetó o episódio da árvore morta, junto à
ramente o remo da lontra. Quando estendeu a mão, a lontra qual choram as aves de que o herói obtém a cabaça mágica, em
perceheu sua intenção e perguntou: 'Para que queres o remo, troca de ele não usar a sua flecha contra as mesmas, possibilitando
cunhado?' Então W ewé. pediu à lontra que lhe desse o remo. em compensação o aparecimento, po mito taulipáng, de uma flecha
Estava pedindo muito. À lontra deu-lhe o ren10 e ensinou-lhe a mágica para a caça a pássaros que, logicamente, tem que estar
numejá-lo. Disse: 'Não batas muito para o rneio do rio, mas ausente no mito arekuná. Conseqüentemente, na história de Etetó,
se1npre perto da margem. Se bateres no meio, o rio inundará
tudo'. Devia bater sempre perto da margem, pois a água ficaria
tanto a cabaça como o remo mágicos são dados ao herói pela
parada. lontra ( "Fischotter"), conforme Koch-Grünberg traduz tanto "Za-
A lontra deu-lhe o remo e Wewé levou-o consigo. Foi para
ló", nome do dono da cabaça, como "Paluá", o do doador do remo
um outro rio e /ez co1no a lontra lhe tinha ensinado. Bateu mágico. 41
com o ren10 dentro da água, perto da margem. Então o rio Lévi-Strauss refere-se justamente a estes dois apetrechos má-
secou na parte de baixo e ele apanhou muitos peixes. Todos gicos (baseado no mesmo mito, de Etetó) . Com referência à
os dias trazia peixes para casa. cabaça, diz ele:
No dia seguinte os cunhados souberam que ele trazia sempre
1nuitos peixes. Mas pensaram que ele tinha achado novamente "Pour allusif que soit [e texte, il renvoie d'autant plus certaine-
cabaça. Ficaram desconfiados. No dia seguinte o feiticeiro foi ment aux mythes tumupasa et uitoto déjà cités et, par delà, aux
pescar e os cunhados foram atrás dele, vendo tudo. Esconde- croyances péruviennes et méxicaines, ':l:? que, selon l' autre version
ram-se e viram onde ele escondia o remo. Quando Wewé já dont nous disposons, la calebasse appartenait en premier lieu à
tinha ido, roubaram o remo e fizeram tal como o seu cunhado la loutre qui est un Esprit des eaux". ("Les instruments des téne-
tinha feito. Pegaram peixes todos os dias, sem que ele sou- hres." ln: Du mie[ aux cendres. 4.ª parte p. 388).
besse.
Então disseram: 'Vamos bater corn o remo mais no meio :J:. possível que o exame das técnicas de pesca, usadas por
do rio, para que este fique mais seco e para que possamos algum dos grupos mencionados, revele o porquê desse simbolismo. 4 i1
apanhar ainda mais peixes!' Um deles disse: 'Não vamos fazer A única referência que encontramos é a do uso, entre o~ nossos
isto! Já perdemos a cabaça e agora não vamos perde; também
o remo do nosso cunhado!' Mas os outros assim mesmo o fize- 41 Tratar-se-ia, num caso, da lontra, e, noutro, da ariranha (ambos mus-
ram. Bateram com o remo no meio do rio. Veio muita água telídeos)?
que tudo inundou e eles perderam o remo. Então voltaram para 42 Estes, à p. 386 da mesma obra.
casa e disseram ao médico-feiticeiro que haviam perdido o remo. 43 A recomendação de deixar a cabaça cheia só pela metade pode sugerir
Ele não lhes respondeu, mas ficou zangado e calou-se. um objeto usado à semelhança de um covo, mas pode ter também uma
Depois W ewé saía todos os dias à procura do remo. En- função puramente estrutural, neste caso, por analogia ao remo mágico. A
controu Dzaló, o dono do remo, a quem se queixou de que os idéia do uso como se fosse um covo transparece do fato de o informante
ter usado, a julgar pela tradução de Koch-Grünberg, ao menos uma yez a
cunhados tinham perdido o remo. À lontra disse: 'O caran- palavra "garrafa" (Op. cit. p. 104). Portanto, na forma em que o mito se
guejo tem o remo. Ele brinca com o remo e seca o rio'. O apresenta entre os Arekuná e Taulipáng, a concepção é a de um objeto
caranguejo ficou com o remo debaixo do braço. Dzaló pegou usado à semelhança de um covo. Por outro lado, nada tem a ver c~m o
o caranguejo. Este disse à lontra: 'Se me quiseres comer, come covo propriamente dito. Além de este ser um artefato tranç}ldo .e afuml~do,
só o meu corpo e deixa os braços, porque deles sairá muita parece que nem era usado no Roraima. (BALDUS. Tapirape: tnbo Tup1 no
232 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E . . . A "CABEÇA ROLANTE" E. • • 233

indígenas, da cabaça como apetrecho de caça a aves aquáticas. 44 rachada, depois de seca, transformá-la assim em recipiente) po-
O fato de ela ter sido ·doada, na versão Arekuná, por aves não deria habilitá-las para uma representação mítica como doadoras
aquáticas, faz pensar que aí se encontra a explicação. Embora no do apetrecho.
mito ela sirva efetivamente para uma pesca milagrosa, tem-se a Lévi-Strauss, no capítulo citado, está preocupado em exa-
impressão de que, pela lógica interna da narração, cada apetrecho minar os dois objetos sob outros aspectos, como apetrechos má-
devesse referir-se inicialmente a um tipo distinto de obtenção de gicos benéficos (de mediação, com a função equivalente ao cho-
sustento. 46 calho mágico) ou maléficos (desde que fossem utilizados em águas
};; possível que a técnica de captura de aves aquáticas, referida mais profúndas e desde que, supõe ele, fizessem aí um barulho
na nota 44 não seja conhecida na região, o que libera o tema para diferente) .
uma associação, no mito de Etetó, entre cabaça e lontra, baseada Naturalmente a inundação que se segue ao uso indevido dos
em crenças a que já se referiu Lévi-Strauss. O fato de a lontra, apetrechos mágicos é o castigo a uma pesca desabusada, ,que cor-
animal muito brincalhão, atirar pedras e frutos à água, parece responde ao castigo da cegueira que sofrem caçadores desrespei-
estar à base das crenças peruanas na existência de um demônio tosos e imoderados, em uma série de mitos amazônicos. 4 8
que, para· atrair e capturar os homens, usava cabaças que ele fazia No mito tukano, a árvore também aparece, mas apenas como
alternadamente dançar sobre a água e nela mergulhar. 46 elemento a ser derrubado na abertura da roça, trabalho em que
Entre as aves citadas no mitó de Wewé há vários ranfastídeos, os cunhados do irmão superam Poerare. 49
pássaros que se alimentam principalmente de sementes e frutos. Quanto ao primeiro apetrecho mágico do mito arekuná, ele
Sobre o tucano, escreve Agenor Couto de Magalhães: "Sua ali- encontra um correspondente na vasilha do mito tukano, cujo es-
mentação consiste em bagos e frutos silvestres de toda sorte, sem conderijo Poerare descobre. f: uma vasilha cheia de formigas e
excluir mesmo os mais azedos e duros". 4 i A capacidade que estas
r.·
não cheia de água, mas é evidentemente uma espécie de "objeto
aves· têm de comer o conteúdo de frutos como a cabaça (e, quando mágico", pois a sua posse propiciaria a Poerare, efetuado o rito
da tocandira, uma árvore abatida a seus pés. Se a ação se frustra
Brasil Central. p. 175, ao menos não menciona esta região entre aquelas em
que foi encontrado.) para os cunhados de Wewé devido a uma cabaça cheia demais,
44 "Os indígenas lançam mão de processos originais na caça das marrecas, Poerare logra os cunhados do irmão por deixar a vasilha vazia.
como se vê pela descrição seguinte, de Couto de Magalhães, que inserimos O rito de se sujeitar a picadas de formigas não é comum no
a título de curiosidade: "Nas lagoas, a que elas costumam afluir, deixam
os índios grandes cabaças, a cuja presença elas e os patos acabam por se °
Rio Negro. 5 Caracteriza muito mais a região para o leste 51 e
habituar. Os caçadores vão então pela madrugada, antes que esses pássaros
venham para a lagoa aos primeiros clarões do dia, metem os porungos na 48 BÕDIGER (Die Religion der Tukano im nordwestlichen Amazonas.) men-
cabeça, entram na água, escondem-se e esperam, pacientemente; até que o ciona alguns, ao estudar o motivo entre os Tukano Ocidentais. Na área
bando pouse nágua. Os índios dirigem-se então de mansinho para o bando Tukano Oriental também aparece. Um mito recolhido por GIACONE (Os
e, quando se acham bem juntos dele, seguram as patas das aves e afogam-nas. Tucanos e outras Tribus do Rio Uaupés - Afluente do Negro-Amazonas.
E são tantas quantas as mãos podem conter" (MAGALHÃES, A. Couto de. p. 104) apresenttl o motivo da perda dos olhos associado à imprevidência
Ensaio sobre a Fauna Brasileira. p. 66). Note-se, neste caso, a cabaça não de se dormir na floresta, falha menos grave, certamente, tanto que os
poderia realmente estar. mergulhada na água, "cheia d'água". faltosos recuperam posteriormente a visão.
45 E técnicas ligadas à obtenção de animais aquáticos e não terrestres, como 40 Poder-se-ia diz~r que os cunhados de Inapirico têm uma árvore caída
veremos mais adiante. pela frente (como Wewé), pois conseguem trabalhar mais rapidamente na
46 LÉVI-STRAuss. Du miei aux cendres. p. 386. derrubada do mato do que o herói tukano.
Talvez se trate da ariranha, animal noturno. . . Note-se que isto confere so Só uma vez encontramos referência a rapazes que testam sua resistência
com a indicação de que a caça às marrecas é efetuada antes de nascer o dia. à dor, submetendo-se a picadé\S de formigas, sem se atribuir, contudo, a essa
índios que, não conhecendo esta técnica, dela tivessem referências indiretas,
facilmente, poderiam criar esta associação com demônios aquáticos. Além competição qualquer caráter oficial ou conotação mágica. ÜOLDMAN. Tlze
disso, a técnica foi usada, com toda certeza, também para uma aproximação Cubeo .. . . p. 201.
do inimigo, nas manobras de espionagem dos atos deste, tão comuns entre 51 Os Oiana da Guiana Francesa e Alto J ari, Serra de Tumucumaque, em
os indígenas, espionagem a que os mitos freqüentemente se referem. território brasileiro (Rukuyéne), onde a expedição de F. Maziere-D. Darbois
47 MAGALHÃES, A. Couto de. Op. cit. p. 168. assistiu e fotografou cenas do "Maraké". MAZIERE. Indiens d'Amazonie.
234 CAP. IX - A "CABEÇA .R OLANTE" E . . . A " CABEÇA ROLANTE'' E. . . 235

para o sudeste do Uaupés. 3 :! A menção no mito deixa, no entanto. como também de matar e arrastar para fora das águas enormes
fora de qualquer dúvida, como se vê, que no Rio Negro se sabe surubins. ;;x
muito bem como e com que finalidade povos vizinhos executam o Além disso, pela descrição do uso que se faz do " remo má-
rito da tocandira. gico", acreditamos que a lontra faça uso de sua cauda, em feitio
Curiosa é também a analogia representada pelas funções do de pá, '•H para, em beiradas onde o rio já se encontra parcialmente
curumim nos dois mitos. Num, ele é o filho do herói, que o trai, represado por saliências naturais do solo, espanar a água para
solidário com os tios maternos; no outro, é o irmão menor que fora, diminuindo seu nível e represando o trecho completamente,
trai os mais velhos, em ~enefício do irmão do tio materno. impedindo assim a fuga dos peixes. t.lu
Num dos mitos a criança reflete a influência da mãe, no Na pesca coletiva, Poerare comete um erro paralelo ao dos
outro a influência da irmã. De fato, no Uaupés, se pudermos cunhados de Wewé: estes foram bater com o remo mais no meio do
generalizar os dados sobre os Kobéwa ( Goldman), a influência rio, perdendo-o; aquele, embora prevenido pelo cunhado do ir-
da irmã mais velha é grande. ij:{ En1 um deles, o curumim torna-se mão, Hl acha a sua perdição, afundando-se ele próprio, no meio
traidor do herói apesar de ser ele seu pa:i, noutro o herói é bene- do igarapé, onde é arpoado pelos inimigos.
ficiado porque o menino trai, igualmente, seu próprio pai. .
Os cunhados do irmão convidam Poerare p_ara a construção
Na segunda seqüência há um paralelo entre a tapagem que
os cunhados fazem no rio e o remo de Wewé, símbolo, como ve- da tapagem no igarapé: à maneira de lontras, donas do remo má-
remos, da mesma técnica.
(pois é arisco demais). está em processo de extinção (pela caça às peles)
f: verdade que a lontra não tem hábitos semelhantes ao do
o que faz supor que seus hábitos, no seu ambiente natural , não nos sejam
castor. Mas seria ela dona do remo mágico simplesmente por ser inteiramente conhecidos.
dona do rio e do pescado, como exímia pescadora que é? ;,g "Vi, de uma feita, no Purus, uma ariranha mergulhar nas proximidades
Ihering ;; 4 só nos fala de -seu hábito de rejeitar a cabeça e de um paraná denominado Surara. Minutos depois aparecia na barranca
as espinhas do peixe, o que nos esclarece o modo pelo qual o . mito oposta, a parte posterior do animal, que pouco a pouco emergia da água
arekuná mostra-a devorando o caranguejo. 55 como que arrastando um pesado fardo. Realmente, não demorou para que
aparecesse, preso à boca do carnívoro, um enorme surubim." Op. cit. p. 296.
Mas Agenor Couto de Magalhães 56 descreve a lontra pe- '1!J Um ··remo'' portanto: "longa cauda, em feitio de pá, defendida por um
quena (Lutra paraensis - Lutra platensis) como capaz não só de couro grosso, guarnecido de dois pêlos, um mais espesso e comprido, outro
cavar .. os buracos dos lagos em lugar aonde não chegam as águas" 5 ; mais curto, tênue e impermeável". Op. cit. p. 297 .
<•0 .Achamos de,c;necessário frisar que isto não quer dizer que estejamos ima-
.">2 V .. entre os Mawé, descrição da "Festa da Tocandira". PEREIRA, Nunes. ginando que o índio tenha aprendido suas técnicas dos animais. Seria menos-
Os l11dios Mau és. prezar por demais a inteligência humana, embora isso possa, quem sabe,
:-,:: GoLDMAN. Op. cit p. 11&: "An older sister who has been a substitute ter ocorrido ocasionalmente, em um remoto passado. No entanto, pode-se
mother to ali lhe younger siblings is regarded by them with a mixture of admitir que, após a aquisição de uma técnica pelo homem, o fato de ele
respect and affection". notar uma analogia entre esta e algum hábito animal o faz conceber esta
:; 4 IHERING. Dicionário dos Animais do Brasil. p. 108. ou aquela espécie como dona ou inventora da técnica em questão.
:-,;,Como já o havia notado Lévi-Strauss em Du miei aux cendres, p. 171. O mesmo se pode dizer, quanto à identificação de outras tribos com
Do capítulo em questão ("Le festin de la grenouille" ) se poderia depreender determinados animais, ou mesmo uma auto-identificação, que DESCAMPs
ainda que a lontra do mito arekuná, corno a lontra-encarnação de Tlaloc (Etat social des peuples sauvages. p. 23 ) não está longe da verdade quando
do México antigo, tem certa relação com afogamento de pessoas, (e, mais procura explicar o fato do corvo ser o emblema "d'une phratrie dans la
ai nda, como numa crença da Guiana ) de crianças ( p. 168-69). Coincide Wes te1~ 1 Australia et dans te Victoria par des peuples qui n'avaieot aucune
também com a sua disposição, num mito yupa, de ajudar somente ao homem. relation entre eux . . . Quand un chasseur s'enfonce dans la forêt, il est
desde que se concebam os cunhados de Wewé como o partido feminino, que, rare qu 'i l ne soit pas suivi par un corbeau. Dans les pays de forêt moins
como parentela da mulher do herói, realmente o constitui ( p. 180 ). · dense l'aigle-fo ucon peut, s 'ebattre et i1 est un grand destructeur d'opossums.
ã6 MAGALHÃES, A. Couto de. Ensaios sobre a Fauna Brasileira. p. 294-98. lesquel étaient rares dans ces régions avant la chasse des rapaces par les
:;; "aí fazem os ninhos, param e criam os filhotes até o ponto em que estes Blancs. P<:1r contraste on a pu attribuer le pullulement de l'opossum dans
adquirem forç a para aventurar-se ao rio'· ( Op. cit. p. 297). Jsto sugere que les forêts denses à une protection du corbeau" ( p. 23).
talvez ela também possa represar a água, em lugares de nível baixo. A m O .menor dos cunhados, justamente o que com mais probabil idade poderia
julgar pelo que escreve o autor·, este animal, além de ser de difícil captura ver na irmã casad a uma substituta da mãe. (V. nota 53, p. 234.)
236 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E ••• A "CABEÇA ROLANTE" E. . . 237

gico, eles puxam Poerare, transformado em surubim, para fora Pela coerência interna do mito deveríamos admitir que sim.
das águas .. . Deixando de lado o tema do chocalho, 63 e se levarmos em conta
Daqui para a frente os mitos divergem bastante. A versão
63 Que aparece associado aos porcos selvagens também em outros mitos e
arekuná difere da versão taulipáng não só pela inclusão de um pertence sem dúvida a um ciclo distinto (da origem de magia e técriicas
quarto apetrecho mágico, que corresponde a um pente, doado por de caça).
Alautá, p macaco, como pela seqüência da transformação de Trata-se de mitos sobre a origem dos porcos selvagens, comumente
Wewé em "Pai dos porcos do mato", enquanto Etetó se transfor- associados à origem do tabaco, tema tratado por Lévi-Strauss em Le cru
et /e cuit ("Rondeau du caetetu." p. 92).
ma, como já vimos em Wewé, o "come-tudo", com as caracte- ~ um tema mítico de ampla distribuição no Brasil que parece proceder
rísticas com que são representadas nos mitos as cabeças antropó- de um estrato mais arcaico de caçadores. (Lévi-Strauss analisou mitos jê,
fagas, em que ele realmente acaba transformado, na sua identifi- borôro e munduruku). A idéia central é a de que os porcos procedem do
cação final com o urubu-rei. mundo subterrâneo. (Poderia se pensar nas cavernas de "Waí-maxse" dos
Desâna .. . ) , o que sugere a Lévi-Strauss uma técnica de aprisionamento
A seqüência final do mito tukano difere também consideravel- de porcos selvagens, hoje esquecida. ~ bem possível. Em todo caso, prende-se
mente dos mitos karibe. também, provavelmente, a certos hábitos dos porcos selvagens, pois até hoje
Comparando-a, contudo, com o mito de Etetó, notamos uma persiste a idéfa de que os porcos (queixadas) ficam presos no mundo sub-
terrâneo: "não sai mais, só em fevereiro, quando sai os porcos. No dia que
nova analogia oposta: enquanto os cunhados no mito tukano, vai saí fais um rastão". CHIARA, Vilma. "Folklore Krahó". RMP. p. 350.
como se vê, arpoam e matam o herói, o herói ( Etetó) do mito tau- S1~vA, Pe. A. Brüzzi A. da. (A Civilização Indígena do Uaupés. p. 214 et
lipáng procede de forma semelhante com o seu cunhado "vilão". 6 2 seqs. ) nos diz realmente que as manadas de porcos do mato só aparecem quan·
do o "javarizeiro" amadurece seus cocos, quando então se fazem no Uaupés
O ódio de Etetó se deve ao fato dos cunhados terem furtado as caçadas ao animal, hoje uma das únicas formas de caça organizada na
seus apetrechos mágicos. O de Wewé, além deste motivo, ainda região, onde agora mais se caça por esporte. Koch-Grünberg já assinalou
apresenta a mágoa de eles terem provocado a perdição de seu os perigos que representa a caça às queixadas ("Jagd und Waffen ... ") .
filho , enquanto Poerare, ele próprio ladrão de apetrechos mágicos, A periodicidade do aparecimento das varas de porcos coincide, por-
tanto, com a do amadurecimento de determinados frutos. Possivelmente o
é morto pelos cunhados do irmão, · reputado incompetente por ele "javarizeiro" a que se refere Brüzzi é o mesmo Acuri, preferido pelo animal,
não possuir tais apetrechos, ou melhor, por não saber executar os conforme LÉv1-STRAuss (Op. cit. p. 116, baseado na Enciclopédia Bororo).
ritos adequados. Sua morte provoca a mágoa de lnapirico, que Segundo LE Co1N;rE (Amazónia Brasileira Ili: árvores e plantas úteis. p. 357)
trata-se da palmeira babaçu ( "Uá-Uaçu" ou A ttalea Speciosa) . A maturação
somente agora entra em cena, alter ego de Poerare, ao qual vin- de seus frutos, contudo, não se dá em fevereiro, segundo Le Coiote. Possi..
gará, usando exatam~nte o mesmo expediente de Etetó: a entrega velmente, devido à grande distribuição da palmeira, os dados colhidos se
aos afins de um objeto útil, aparentemente inofensivo. As únicas refiram a outra área que a ·dos Krahó.
Os Siona (grupo Tukano Ocidental) também acreditam (como os
observações que ainda poderiam ser feitas é que o gavião que lna- Desâna, conforme Reichel-Dolmatoff) que os animais em questão precisam
pirico cria para vingar a morte do irmão é apresentado comó ser liberados pelo seu dono ("Uatti") para que os homens possam caçá-los.
devorador justamente dos animais prestativos (aves, macacos) que (BÕDIGER. Die R eligion der Tukano im nordwestlichen Amazonas. p. 35).
A concepção de um dono (senhor, chefe) dos porcos é facilmente explicada
ajudam Etetó; como também o velho Cunafare é de fato um dono pelo fato ·de cada vara de queixada (Dicotyles albirostris) ou de catetos
da pesca, como Etetó, pois se transforma em timbó. (Dicotyles torquatus ) ter seu guia, o porco mais velho e experimentado do
Poder-se-ia perguntar se a mesma transformação não ocorre bando (MAGALHÃES, A. Couto de. Ensaios sobre a Fauna Brasileira. p. 317
et seqs.).
com Etetó. Os mitos referentes aos porcos selvagens seguem por vezes o esquema
do moti vo da esposa animal, idéia que parece ainda subjacente (ainda que
62 KocH-GRÜNBERG. "Mitos e Lendas dos lndios Taulipáng e Arekuná." apagada ) à versão Jivara publicada por WAVRlN (Moeurs et coutumes des
RMP. p. 1O1. O anzol de que o cunhado se apodera, certo de se tratar de indiens sauvages. p. 627 ) em que o Sol é solicitado a fornecer ao sogro
outro apetrecho capaz de propiciar uma pesca milagrosa, é mágico, sim, um porco grande em troca da filha deste, como esposa.
mas não serve mais ao dono, como os anteriores: ele transforma, ao ser O tema se encontra invertido, conforme o notou LÉVI-STRAuss (Le
manipulado, o pescador em pescado. Uma função análosza tem, num conto cru et le cuit. p. 94) em um mito warrau, em que um espírito sobrenatural,
folclórico europeu, o terceiro de uma série de oójetos máDãcos (mesa, burro casado com uma humana, presenteia os cunhados, que só sabiam caçar
e porrete). aves, com o dom da caça aos porcos selvagens. Trata-se de uma história
238 CAP. JX - A "CA BEÇA ROLANTE" E ... A ''CABEÇA ROLANTE" E. . . 239

que o pente mágico n.i é um objeto concebido nesta área como pela sogra, o cunhado morto transformado, é que teriam que
doado por um espírito aquático, ';" tem-se uma seqüência de obje- s!mbolizar o timbó. 6 7
tos doados por um espírito dono dos peixes e estes objetos são Parece correto. Não existe, contudo, qualquer referência ex-
usados para matar animais aquáticos. plícita ao timbó, cuja origem é explicada pelos mesmos indígenas
Seu emprego desabusado redunda em um desequilíbrio que por outro mito diferente. 68
pode ser simbolizado pela perda dos objetos mágicos. A longo Acreditamos que a análise feita é válida e mesmo necessária
prazo, na realidade, poderia ocasionar uma extinção de determina- para a compreensão de muitos detalhes do mito.
das espécies. (Que este perigo não deixa de ser real, o sabemos A análise ordena os temas míticos e nos mostra a I6gica do
hoje bem demais. Infelizmente, no mundo civilizado, certos mitos pensamento que os elaborou, por mais inconscientes que certas
esvaziam-se completamente ... ) fórmulas se tornem depois de mitizadas.
A perda dos apetrechos mágicos não é mostrada no mito com Mas, se na mente indígena a associação primordial que n6s
a forç.a de um real castigo para os infratores. A única técnica que estabelecemos (e que deve ter existido, sem dúvida) não existe
podena resultar num castigo imediato, violento, é de fato 0 em- mais?
p:e~o. do timbó; i;i; Seri~, _portanto, uma solução lógica para a Será válido continuarmos a falar do mito como um mito de
h1stona "de .Eteto e a pos1çao que ele deveria ocuP.ar por sua cor- origem do timbó?
respondenc1a com Cunafare e oposição a Etetó. Claro, não se pode ter certeza que a associação deixou inteira-
mente de existir, mas pelo fato do informante, que forneceu de-
. Poderia .se ~dmitir, realmente, que Etetó represente não pro-
talhes explicativos sobre' outras questões, não ter feito nenhuma
priamente o t1mbo, mas o peixe envenenado. O alimento fornecido
consideração a respeito, pode-se presumir que ela realmente não
idêntica .ri de . Wewé, em que os receptores do apetrecho mágico fazem dele existe, na forma atual do mito; o que não é de se estranhar, por
um uso m?ev1do, provocando com isso a morte do filho do espírito benfeitor. ser da própria natureza do mito a permuta de significados, res-
Esta inversão permite no mito de Wewé (e de Etetó) a inclusão da peitando uma determinada equação estabelecida. Não fosse assim,
cabaça de caça ª?s porcos, entre _os outros apetrechos mágicos. os quais os mitos seriam sistemas fechados.
representam , t~m ciclo de pesca. Não é só isso. contudo: a associação entre
chocalh<;> ?1ag1c_o_ e. tabaco pa~ece evidente (pelo próprio ·emprego do maracá O que nos faz pensar em outra explicação é particularmente
pe~o med1co-fe1ttceiro), e LEv1-STRAUSS ( Op. cit. p. 115) mostrou como a associação final de Etetó ao urubu-rei. Este animal come coisas
ex1~te um<~ correlação entre tabaco ingerido e transformação em ariranha podres e Etetó (imaginado como peixe podre) não lhe faz real-
(mito bororo sobre a origem do tabaco). o que confere de certa maneira
com o arriinjo do mito de Wewé (ou Etetó): tabaco inspirado. engolido mente mal. A associação é, portanto, possível e neutralizante.
~u. cab~ça negada aos outros redundaria em transformação em ariranha. O Mas por que ele se transforma na segunda cabeça de Kasaná-
u.lt1mo instrumento da série é colocado à disposição dos cunhados volunta- -podole? Por que, como peixe podre, ele simplesmente não desa-
namen~e. pelo herói, embora não propriamente movido pela gen~rosidade.
A part1lh.~ redunda em transformação do personagem em "dono dos porcos parece?
selvagens . Lembremos aqui de um mito kaxináwa da "cabeça rolante",
Quanto à i~versã~ d? tema na Guiana (como também entre os Shipaia analisado por Lévi-Strauss em L'origine . .. ( M. 394, p. 78). Nele,
e .M u~a ), .sua 1mportancia parece-nos bem maior do que pode parecer à
primeira vista. um guerreiro que confia demais no seu inimigo e desconfia demais
114
Que só aparece na versão arekuná. dos seus amigos, acaba se transformando em Lua, não sem pri-
u:; .. La dame de l'ea u ( que Lévi-Strauss parece identificar com a lontra ) meiro ter examinado todas as possibilidades de transformação,
des ~ra_w:~k <~ba ndonne sur la berge le peigne d'argent avec lequelle elle decidido a escolher a que menos implicasse em qualquer utilidade
~~ co1 fa1t. LEv1 -STRAUSS, s~gundo Roth . Du miei '"' u•1u/res. p. 169.
'•" Parece que o~orre~. na ~poca da pesca com timbó. em conseqiiência do
para o gênero humano.
con.sumo de . pe1~e , nao mais ~resco ou mal defumado (pois a quantidade
obtida pelo t1n:bo e grande .e nao se consome toda no mesmo di a) freqiiente - Hi'Por ana logia. aliás. a Poerare que. morto e transformado em águia. mata
mente verdadeiras :·ep1de~1<1s" que seriam justamente intoxicações generali- ingerind o o inimigo e não sendo ingerido.
zadas. Ver um mito kanbe que associa a origem das doenças e a do n~ K ocH·GRÜNBERG. ··como os Venenos Azá e lne g. para Matélr Peixe ,
veneno de pesca. LÉv1-STRAuss. Op. cit. p. 2X4. Vie ram ao Mund o:· ln : i'vliro.\' e Lendas ... p. 76 a 83 . .
240 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E ..• A "CABEÇA ROLANTE" E... 241

O caminho percorrido pelo guerreiro kaxináwa é justamente o betas e Jamundá, região justamente fronteiriça à do tema mítico
inverso do percorrido por Etetó. O primeiro procura uma aliança de que falamos).
com o inimigo, que o trai. Morto, não aceita sua reintegração no Sabendo-se hoje o quanto o índio se preocupa com a movi-
grupo. Etetó procura uma fórmula de convivência com o seu mentação das tribos vizinhas ao seu território, sabendo-se que as
próprio grupo de afins, que não o aceita. A expulsão do grupo trocas de produtos especializados abrangem e abrangeram áreas
pelo envenenamento transforma-o em inimigo, não só de seus pró- até mais distantes entre si que estas, e levando em conta que, exis-
prios companheiros de residência, como também do mundo exterior, tindo ou não essas trocas, o interesse por costumes de outros povos
representado pelos animais por ele átacados. é normalmente grande, não seria de se esperar que as tribos karibe
Queremos lembrar aqui que o urubu de duas cabeças é um localizadas numa área tão próxima não tomassem conhecimento
. tema bastante curioso. Em linhas gerais poderia ser classificado dos estranhos donos das águas grandes. Se realmente foram endó-
juntamente com o tema da águia de duas cabeças, cujo simbolismo f agos, como se supõe, 70 a sua representação por parte dos Karibe
é bem conhecido, devido à sua · representação em bandeiras e como urubus-reis, donos do mundo exterior, 71 não estaria muito
brasões. Pretende figurar antes uma associação voluntária de dois em desacordo com a imagem que deles poderiam fazer.
reinos, pois um corpo com duas cabeças exprime melhor esta idéia Havíamos pensado, inicialmente, nesta possibilidade, não só
do que a coroa dupla (como a usada por Menés, simbolizando a pelo simbolismo do mito de Etetó, como também pelo fato de que
união do Alto e Baixo Egito) . o tema mítico da prova que consiste na confecção de um banco
É possível que não seja por acaso que se encontre a represen- não acompanha, ao que parece, a distribuição do próprio banco
tação da águia de duas cabeças na América do Sul, justamente na para oeste. O simbolismo do banco entre os Desâna não parece
área andina, onde houve a formação de um império. 69 · corresponder ao das Guianas. 72
Parece também que uma águia de duas cabeças é um símbolo Existe também uma espécie de " ...\cathu" nas concepções an-
y y

mais comum de auto-representação do que um urubu bicéfalo. tigas dos Maias. Trata-se de Ciraqan Smukane, 7 ª uma espécie de
sobera.na do mundo exterior. Ela é a mãe de Hun hun ahpu e
A área em que aparece o mito do urubu de duas cabeças é Wubuq hun ahpu, 74 dois irmãos míticos de cujas aventuras ainda
a dos altos rios que fluem para o Médio e Baixo Amazonas. falaremos. O mundo exterior apresenta-se no Popol-Wuh como
Levando em conta que a colonização teve por conseqüência uma concepção paralela ~ de Sib~lba, o mundo inferior, o mundo da
retração geral do contingente indígena, subindo os rios, é possíve1 morte. No reino de Ciraqan Smukane, como em Sibalba, os heróis
que o tema também tenha existido numa área mais próxima ainda que têm a coragem de o penetrar são submetidos a certas provas,
do Baixo Amazonas. e o paralelismo entre os dois mundos levanta um curioso problema
1
Os últimos 500 anos anteriores à conquista assistiram ao que é o de se procurar saber até que ponto as aventuras em um
domínio da foz do grande rio por parte de dois povos, principal-
mente: os da última fase marajoara e os de Santarém· e culturas 76 HARCOURT ("As Artes Plásticas no Brasil." ln: L'Amazonie et les Guianes.)
já indica a cremação dos ossos ·(ingestão das cinzas) para Santarém.
correlacionadas (Konduri e Oriximiná, esta última do Baixo Trom- HILBERT (A Cerâmica Arqueológica da Região de Oriximiná. p. 73)
aponta também para o estilo Kondurí, uma "ausência de urnas funerárias",
69 A RA, v. 2. 0 , n. 0 2, reproduz o desenho de uma águia bicéfala e uma provavelmente em virtude da absorção ritual das cinzas dos ossos dissolvidos
tricéfala, "según una tendencia del arte indigeno puesta en evidencia con em bebidas.
los estudios actuales. No se trataria por lo tanto de una imitación de sím- 11 Nos mitos tipo "Viagem ao Céu".
bolos espaiioles sino de una costumbre local puramente indígena cuya 72 REICHEL-DoLMATOFF. Desâna ... p. 83. O banco é um símbolo de esta-
interpretatión simbólica merece estudios especiales". Os desenhos e pinturas bilidade e de sabedoria. Há um banco especial talhado em forma de tatu
foram fotografados em Tuaco (Depart. de La Paz, Bolívia) por uma co- (tatu-branco) que é um utensílio especial do pajé. Existe a idéia de que
missão de estudos argentinos chefiada por A. Sacchetti. é sentando-se num banco destes que o homem pensa profundamente, com
Um artigo, que não temos infelizmente à mão, trata de uma repre- ponderação.
sentação do tema, que parece ter sido tomado por alguns como uma figuração 73 ScHULTZ, W. Einleitung in das Popol-Wuh. p. 31-32.
do brasão dos Habsburgos, por coincidência, a dinastia espanhola da época i4 Segundo Schultz, a palavra "gambá", "mucura", entra na composição deste
da conquista. nome: "Wuc".
242 C AP. I X - A ·'cAHEÇA ROLANT E .. E •.. A "CABEÇA ROLANTE" E. • • 243

mundo exterior não teriam sido, de certa forma , o modelo das do c~raqan bed~!"ttet die'mit dem Beine' oder 'die auf dem Beine.' Op.
outro, o qual se reencontra na Guiana, como era de se esperar. czt. p. 32); Smukane" corresponderia a "Avó da Lua".
numa direção oposta: mundo exterior e celeste ao mesmo tempo. Schultz supõe que ela era concebida como um ser com três
Naturalmente, se estas co ncepções representassem idéias rel i- pernas, 76 • mesmo porque ela pertence a uma tríade, de que os
giosas do período clássico e posterior, não teriam o mesmo inte- o~t~os ~01s person~gens ~~o Huraqan, o "unijambista" ( 0 herói
resse para a questão de que tratamos. Mas elas parecem ser muito m1hco hgado a Onon), Jª tão conhecido das análises de Lévi-
antigas. Aliás, como Tula (Tulan ) é várias vezes referida no texto -Strauss, ~ e Kabraqan, cujo nome significa "com duas pernas".
' Tenamos portanto que lidar com uma curiosa inversão das
parece tratar-se de concepções herdadas dos Toltecas, pois Tula
caracter~sticas, ao passar o tema para a América do Sul: a uma
foi a grande capital deste povo. É verdade que as influências
toltecas chegaram ao Yucatan, ou mais precisamente a Chichén- anormahdade das pernas, na concepção tolteca corresponde uma
-Ttzá, justamente durante o período clássico, pois esta cidade foi . anormalidade no extremo oposto. '
conquistada por um povo guerreiro, geralmente identificado com Que ocorre uma inversão no sentido da "localização" do
os Itzá, entre 950 e J000 d. e. mundo exterior parece facilmente compreensível. Quanto à inver-
Mas queremos salientar que, diante de nosso desconhecimento são .das _caract.erísticas de éiraqan Smukane, sugerimos a seguinte
exphcaçao, evidentemente apenas com uma das possibilidades do
da verdadeira extensão das influências, tanto toltecas como olme-
cas, na América Central e possivelmente no li toral no.r te da Amé- mecanismo de substituição, que talvez um dia será melhor co-
nhecido:
rica do Sul e mesmo nas Antilhas (de onde a população aruák
foi quase totalmente expulsa posteriormente pelos Karibe, e de Os mensageiros (Corujas) de Sibalba chamam-se respectiva-
mente Cabi ("Flecha", devido à sua espantosa velocidade), Hu-
cuj~s representações religiosas quase nada se ficou sabendo ), é
muito possível que concepções religiosas tenham tido uma difusão raqan ("o com uma perna só",. como já vimos) "AraFa" e "Cabe-
por esta área sem terem passado por Chichén-Itzá, anteriormente ~a" (ele não tinha pés, somente asas) . 77 Cert~mente a seqüência
· à conquista da cidade pelos mexicanos. e a de seres com, respectivamente, muitas pernas, uma perna só,
duas pernas e o motivo da "cabeça rolante" (desta vez "volante").
, Se estamos nos uti lizando de textos extraídos do Popol-Wuh
Como entre as tribos brasileiras a "c·a beça rolante", como já-vimos,
e porque nos falta material de outra procedência, tolteca e olmeca,
representa sempre o inimigo que sai do próprio seio da comuni-
e mesmo po rq~e não pretendemos resolver o problen1a, mas apenas
dade (que se transforma em estranho porque não acata as normas
apontar pesquisas que terão que ser feitas para resolvê-lo. (Uma
soda.is ou porque não consegue uma integração no grupo resi-
delas então seria saber se os Toltecas, no caso os ltzá, não esta-
~enc1al), é este o motivo que está mais disponível para se identi-
beleceram algum domínio mais para o sul de Chichén- Itzá, em
ficar com "Holom", o mensageiro "Cabeça". Assim, Etetó acaba
algum ponto do litoral sul-americano. 1maginar que isto tenha
se integrando ao mundo exterior, dando a Kasána-podole não três
ocorrido a partir dos Maias de Chichén-ltzá é atribuir ao aconte-
pernas, mas duas cabeças.
cimento uma data bastante recente, pois ele teria que ser situado
entre 950 e 1200 d.C., época em que a dinastia que subjugou Certo, isto satisfaz em parte o raciocínio puramente matemá-
Chichén-ltzá caiu por sua vez ante Hunac Ceei ( in kFo do período tico das inversões estruturais: uma anormalidade da extremidade
de Mayapán. d ura nte o qual os Quiché-Maia, em cuja língua foi inferior correspondendo a uma anormalidade da extremidade su-
perior. ; s
escrito o Popol-Wuh , tiveram a supremacia no Yucatan) .
Voltando à ··esfinge'· do Popol-Wuh . Segundo Schu ltz. seu -6"
' .. ;,co~o Baba Yaga com a perna de osso, que tem por sua vez três
nome significa ··a com a perna''. ··a sobre a perna" (' lhr Name pernas , diz ScHULTZ, W. (Einleitung in das Popol-Wuh. p. 32).
. Como se tra~a de personagem feminino e como em suas origens a cerâ-
::. F.stumos nos baseando mais em TH OMPSON <Grlllule~a ,. /) enule11cia de· m1~a parece ter tido uma função doméstica, ligada ao atelier feminino, não
los Mt~ya.\· ): 9ue ~ào dedic'.1 uma atençfio especial a C hi<.:hén- lt zú . .Aliás, sena o caso de se perguntar se a cerâmica trípode originária da América
n<io fo i a unit:<i cidade mata que esteve sob domínio estran~ciro: .. esto-; ~e.~tral. não se prendeu inicialmente à sua representação?
itzaes. así como los .xiues. que <.:onquistaron a ht gente de Uxn; al ... ·· 1Or. ~ 1 Cab1, Huraqan, Kaqis, Holom" (Op. cit. p. 31) .
t'it. p. 125). 's Claro que uma explicação "lógica" sempre existe para concepções como
244 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E •.•
A "CABEÇA ROLANTE" E • • • 245
Mas, a concepção parece bastante complexa. Como con-
muito mais o sacerdote 82 paramentado com sua máscara de deus
cepção religiosa, a imagem do urubu de duas cabeças só poderia . .,
como a arte centro-amencana Jª o apresenta em tempos bem re-
'
ter evoluído "sem influência externa" (se podemos falar assim), 1 9
com a existência de todo um mito de criação em torno do tema. cuados. 83
Mais precisamente, Makunaíma precisava ser concebido com esta De fato, se prestarmos bastante atenção aos textos míticos
segunda cabeça do Kasána-podole. (Pelas características do herói, nada indica que Kasána-podole não pudesse ostentar a segund~
a associação parece viável, mas o material mítico recolhido por cabeça em cima da primeira. E verdade que o informante de
Koch-Grünberg mostra que o tema não se liga ao ciclo dos heróis Koch-Grünberg identifica Etetó textualmente como a "cabeça es-
míticos tribais.) Portanto, para que chegassem a esta idéia de querda" do urubu-rei. Mas o modo como ela foi parar aí deixa
representação, parece-nos que teriam que ter tido um modelo ex- alguma dúvida: "De noite veio o urubu-rei, o pai dos urubus.
terior, ao mesmo tempo que as vivências, os dilemas que a pró- Wewé pegou-o pelo ombro e sentou-se em cima." 84
pria vida se encarrega de apresentar para serem exteriorizados em
82 Ou, em tempos mais recentes, o nobre guerreiro, como se encontra
determinado modelo. Mas que modelo? caracterizado, num desenho de Keith Henderson (mas baseado em pinturas
Vaillant nos diz qu-e no Vale do México as culturas do pe- astecas), na terceira parelha de nobres (da esquerda para a direita), repro-
ríodo médio caracterizavam-se particularmente pela · n1odelagem duzido por VAILLANT (o p. cit. Plate 33).
83 As culturas ocidentais do México (área de Colima-Jalisco) apresentavam,
de pequenos ídolos de terracota. Em Copilco-Zacatenco, as esca- num período formativo tardio (ou início do período clássico, recentemente
vações mostram que este estilo ceramista (que quas.e nunca apre- estabelecido pelo carbono 14 como de aproximadamente 150 a.C., segundo
sentava pintura) sofreu modificações, devido à introdução de um WlNNING ( Pre-Columbian A rt. .. p. 64)' antes, portanto, de uma influência
novo estilo de características centro-americanas, que parece ter sido tolteca, segundo o autor, figuras de cerâmica representando dançarinos com
desenvolvido originalmente pelos escultores de Tres Zapotes, du- máscaras (Op. cit. fig. 62 e 64, p. 84-85, procedentes de Colima), ou de
dançarinos com capuzes em forma de cabeças de animais (fig. 63) e tam-
rante o primeiro período de dominação olmeca. Um dos aspectos bém um guerreiro usando um capacete com a figura de um felino (fig. 68).
mais típicos desta nova fase é a representação em cerâmica de Acreditamos que estudos posteriores sobre a área de influência (migrações
um ser bicéfalo. so de povos fq,gindo da ocupação tolteca?) da cultura de Colima poderão
ajudar a esclarecer.:certos problemas sobre a origem da cerâmica de Santarém
t verdade que· esta representação que o livro de Vaillant re- e de Oriximiná. Esta última apresenta sinais evidentes de constituir a fase
produz numa fotografia (PI. 17, canto direito superior da segunda final e decadente de uma arte trazida de fora por um povo que se adaptou
f otografi~) não corresponde em nada à idéia que nos havia suge- ao gênero de vida da floresta equatorial. Repare-se como os colares usados
rido o mito de Kasána-podole. t que a figurinha apresenta real- . pelo dançarino (fig. 63) fazem pensar na ornamentação típica de Orixi-
miná. Este mesmo tipo de ornamentos de conjuntos de colares, cobrindo
mente duas cabeças, mas não bifurcadas, como as da águia im- quase todo o peito, é usado ainda hoje, em dias de festa, pelos índios
perial dos Habsburgos, 81 e sim uma sobre a outra. E isto sugere Choco (de Darien, Panamá) como se pode ver nas belas fotografias do
livro de Hosr (Des phoques et des indiens. Fig. 29, 34 e outras).
estas. Pode-se, por exemplo, alegar que a mulher de três pernas forçosamente Quanto às analogias com Santarém não faltam em Colima, os vasos
representa um ser hermafrodita e que como tal também se a pode repre- • trípodes com cariátides formando os pés (WINNING. OP.. cit. Fig. 103, 109),
sentar com duas cabeças, uma masculina, outra feminina, cada qual repre· as evoluções barrocas de figuras, formando apêndices e alças (fig. 116, 117
sentando um de seus aspectos contraditórios. · e fig. 121, ambos incensários) ou outros elementos, como, por exemplo,
79 Como representação religiosa, o urubu tem evidentemente atributos que um jarro em forma de um fruto (fig. 11 O e outros) que lembra certos
o qualificam (como aliás uma série muito grande de outros animais) para cachimbos tapajônicos apresentados por F. Barata na "A Arte Oleira dos
r.epresentar criadores primevos; além disso, como ave planadora, ela se Tapajó". . . Não acreditamos que · a confecção dos cachimbos seja, como
liga provavelmente a representações como as do volador centro americano. o autor parece sugerir, de época post-colombiana, produto de uma indústria
Mas, quando chegamos às auto-representações como "reinos unidos" a orientada pelos missionários. Não parece concebível que missionários, cuja
"solarização" das imagens tenderia à escolha de um símbolo menos lig~do primeira preocupação era de lutar contra as crenças e ritos religiosos, ·esti-
com a podridão. mulassem a fabricação de um apetrecho que, por servir para a inalação de
so VAILLANT. Aztecs of Mexico. p. 28-35. tabaco (que, ao lado do copal - o incenso americano - , da coca, do
81 Ou também, con10 é representada, na arte asteca, a Mãe dos Deuses paricá e do yagé, sempre teve funções mágico-religiosas) estava estreita-
("Coatlicue"), conforme reprodução fotográfica no livro de Vaillant, Plate 54. mente associado aos cultos nativos.
84 KocH-GRÜNBERG. "Mitos e Lendas dos lndios . .. " RMP. p. 103.
246 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E ...
A "CABEÇA ROLANTE" E... 247

Os povos que, fugindo da ocupação olmeca, foram parar em terizasse como urubu, usando uma máscara? Não seria de se estra-
Zacatenco, teriam vindo parar também aqui na América do Sul, con- nhar, pois até h~je ainda enco!1tra~os, máscaras de animais (e
tinuando a modelar em barro seus ídolos bicéfalos? A resposta não algumas bem realistas) entre tnbos 1nd1genas brasileiras. Do Não
é tão simples assim e é cedo para aventá-la. Mas são os estudos nos lembramos, contudo, de ter lido algo sobre o uso exclusivo de
de cerâmica arqueológica e uma determinação mais precisa de tal máscar.a por algum grupo na região. Temos a impressão de
que as antigas crenças passaram, como representações míticas mais
suas filiações que nos darão um dia essa resposta. E acreditamos
apagadas, para os grupos locais que acabaram absorvendo os
que só se a conseguirá se estudarmos os motivos da cerâmica como invasores.
expressões de representações mítico-religiosas (que geralmente são) ,
e os compararmos com o que sabemos sobre a mitologia dos po- Poder-se-ia alegar que o tema das provas também aparece
vos pré-colombianos. na parte meridional do continente, entre os Araucanos. Trata-se ·
Para o território de Amapá, parte dessa resposta nos dá um do mito do velho Tatrapai, publicado em alemão por Koch-Grün-
artigo de C. Evans 85 sobre a mais antiga cultura ceramista do berg 91 e comentado tanto por Baldus 9 ::i como por Imbelloni. 93
território, a fase "aruã", para a qual ele indica uma filiação se- As provas exigidas são .as do assento cheio de pontas ( "Stachel-
tentrional, 86 com suas figurinhas toscas de argila e "as contas e sitz':), derf1;1bada de árvore com um só golpe (para o que, os
os pendentes de pedra verde polida, especialmente os que se asse- hero1s, sobnnhos do velho, recebem um machado defeituoso) e a
melham à cabeça de um urubu." 87 caça a um to1:1ro selvagem ou guanaco antropófago. Mas a deten-
O fato dessa cultura, que é, segundo Evans, a mais antiga ção do Sol, provocando a noite eterna, de que já falamos em outra
cultura ceramista do território de Amapá, representar justamente ocasião, está presente também no mito, além das provas apresen-
a mais recente fase ceramista em Marajó (sobrepondo-se à mara- tarem características que poderíamos chamar de mais primitivas.
joara) , tem certamente a sua explicação no fato de que as tribos Provas como o assento com pontas e as portas que batem
aruák, dedicadas à agricultura e, segundo cremos, a um intercâm- ("Symplegades") são temas muito comuns na mitologia das Amé-
bio pacífico com outras tribos, 88 terem permanecido por muitas e ricas em geral e fora delas. A vida do herói depende da habilidade
muitas gerações no território das Guianas e no Amapá, antes de ou agilidade dele escapar dessas armadilhas mortíferas. Parece-
se deslocarem mais para o sul, penetrando na Ilha de Marajó. 8 9 -nos que foi dos perigos imaginados a partir das armadilhas de
O urubu tinha, portanto, um significado religioso para os caça que o homem prepara para os animais que surgiram as
antigos povoadores do Amapá, cujos ancestrais vieram de fora. concepções do perigo no "maravilhoso". 94
Chegaram eles a preservar ritos em que o pajé ou tuxáua se carac- Numa forma mais simples, estas provas podem aparecer sem
85 EVANS. "Filiações das Culturas Arqueológicas no Território do Amapá, qu~ um personagem as esteja a exigir. Veja-se, por exemplo, a
Brasil." Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas. "Viagem de aventuras", mito dos índios krahó 95 em que um índio
86 Analogias com a Guiana Inglesa, Guiana Holandesa, Venezuela e Antilhas. convida seu cunhado a acompanhá-lo numa longa viagem para
Evans parece estar inclinado a admitir uma origem comum dos Taino e lon~e da aldeia, para lhe mostrar os perigos do mundo lá fora,
Aruã, nas Antilhas. Como a cerâmica da fase Aruã coincide, segundo o
autor, com os alinhamentos de pedra, a que nos referimos em capítulo pengos sobrenaturais que ele vence e estimula o companheiro (po-
anterior ao comentar a lenda de "Ometanimpe", parece que essa origem
comum deva ser procurada não nas Antilhas mas em algum ponto da América • 90 ~om_o, por exemplo, ~ntre os Tukúna. O urubu tem, contudo, uma função
Central ou extremo noroeste da América do Sul, diríamos mesmo, talvez em mmto importante nos ntos xamanísticos das Guianas: é o espírito auxiliar
migrações de povos deslocados pela expansão tolteca. · do pajé, nas "viagens ao céu" que o mesmo efetua durante os transes.

l
87 EVANS. Op. cit. p. 803. n1 KocH-GRÜNBERG. Indianermiirchen aus Siidamerika, com comentários à
88 Se estas relações é que motivaram uma intensificação do costume da pres- p. 285 et seqs.
tação de serviços por parte do genro aos seus sogros (ainda hoje existente 02 BALDUS. Lendas dos lndios do Brasil.
nas tribos m~trilocais da região), não podemos dizer, mas o mito faz pensar, 93 IMBELLONI. Epítome de Culturologia. p. 307.
ao menos, rusto. 94 V. a larga distribuição de armadilhas como as pit-fall e as sliding door-
89 Segundo EVANS (Op. cit. p. 809), a "Fase Aruã foi posta fora do Terri-
-trap em RYDÉN. "A Study of South Amerícan Indian Hunting Traps." RMP.
tório do Amapá e fugiu para as ilhas da foz do Amazonas, com a chegada 95 ScHULTZ, H. Lendas dos lndios Krahó. p. 123.
da Fase Mazagão-Aristé''.
248 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E ••• A "CABEÇA ROLANTE" E... 249

deríamos dizer, aprendiz de médico-feiticeiro, talvez) a vencer


também.
Na Guiana, a situação se inverte. As provas não são propria-
,,
1
Mas, para o outro povo com que se entra em contato, parti-
cularmente se os coiltatos são hostis (e esta é a norma geral, pois,
mesmo quando as divergências se atenuam, o etnocentrismo con-
mente perigosas em si (o perigo é o mandante não ficar satisfeito), 1 tinua alimentando um sentimento hostil para com o grupo de
fora), o herói provavelmente não será um her6i, mas sim um
mas apenas difíceis de serem executadas. Não é o herói que é
;eonvidado a sentar-se num banco cheio de pontas, pois é ele que vilão. Em nossa própria história não temos mil exemplos disso?
tem que con!eccionar um banco para o sogro, assim como tem que Joana d'Arc não era uma santa para os fran,ceses e uma
construir uma casa de pedra para o mesmo, sem dever '8afar-se bruxa para às ingleses, só porque estava, para estes, do lado erra-
de cair debaixo de alguma laje. :É verdade que às vezes o motivo do? (E isto que ambos eram cristãos ... )
arcaico ainda aparece, quando o herói, por vingança, transforma Seria curioso sabermos se, caso ·os Tamoios da célebre "Con-
magicamente o banco em agressor. 96 federação" quinhentista, sob a influência dos huguenotes, tivessem
"
Não é curioso que e~ sua descida a Sibalba (SCHULTZ, H. tomado conhecimento da crença dos índios catequizados pelos
Op. cit. p. 53) os irmãos míticos Hun bac e Hun Cowen sejam jesuítas e aliados dos portugueses, numa suposta aparição de São
convidados a se sentarem em pedras incandescentes e depois condu- Sebastião no meio deles para dar-lhes a vitória, não o teriam toma-
zidos a uma casa escura ("Casa das trevas", "Casa do frio")? do (não só eles, os índios, como também os franceses) pelo próprio
Poder-se-ia pensar no banco de madeira e na casa em cima da pedra, Lúcifer.
cuja construção o urubu-rei exigiu de seu genro no mito recolhido O que é importante é que as inversões estruturais tão bem
por Wirth entre os Wapitxâna do Amapá. 9 7 . percebidas por Lévi-Straúss têm uma razão de ser e elas só podem
x Além disso, um dos irmãos míticos tem sua cabeça cortada em ser explicadas, não tanto pela história em si (pois esta de certa
;-sibalba, o que nos faz pensar na segunda cabeça de Kasána-po- forma só existe após a análise do historiador), mas pelo modo
dole. . . mas isso provavelmente é ir longe demais. Que essa cabe- como ocorreram os contatos entre os povos, pelo modo como
ça cortada, contudo, teve a sua representação correspondente aqui cada qual concebeu estes contatos.
na América do Sul se verá mais adiante, quando tratarmos. da Assim mesmo, como se vê, não se pode fugir à História ...
lénda de Jurupari de Stradelli. 98 A esta in-versão que acabamos de salientar corresponde, como
E claro que não estamos pensando que uma ação corresponde o notou Lévi-Strauss, 99 conotação diferente para o céu: o con-
à outra, como episódios reais. traste entre a estrela e o gambá se amortece na figura do urubu.
O que estamos querendo dizer é que qualquer expedição his- Enfim, a irllpressão que se tem é de que as prestações de ser-
tórica, qualquer tentativa de colonização de terras longínquas, viços, que caracterizam as relações entre genros e sogros nas socie-
acaba sendo lembrada pelo povo que a empreendeu (ou melhor, dades matrilocais, ultrapassaram aí o âmbito familiar, e que são
a que pertenceram os que emigraram) de uma forma difusa, nos relações de escambo as que se espelham nos mitos.
moldes das aventuras de algum herói mítico original (modelo pri- Ao tratar de certas passagens da lenda de Jurupari (de Stra-
mordial que teríamos que procurar na aurora dos tempos, neste delli), voltaremos a falar sobre a questão, com novas analogias
caso, para o México, possivelmente nalgum mito preservado pelos do Popol-Wuh e .de mitos astecas (que herdaram,· como se sabe,
velhos desde o tempo do povoamento e que fosse ganhando novo muitas de suas concepções religiosas dos Toltecas).
alento de quando em quando), com elementos mitológicos proce- Voltemos ao ponto de partida: a comparação entre os mitos
dentes de outras áreas e, logicamente, através dos feitos mitizados arekuná de "Wewé", taulipáng de "Etetó" e o mito de "Inapirico"
_ dos seus próprios heróis concebidos como reencarnações do herói (na seqüência sobre a origem do timbó) .
primordial. Pode-se perguntar se, mesmo que o mito de Etetó não se
96
refira a nada do que estamos imaginando, mas represente real-
Como acontece no mito "A Visita no Céu" (taulipáng) . V . KoCH-GRÜN- mente um mito de origem do timbó, o paralelo é válido. Afinal,
BERG. "Mitos e Lendas . .. " RMP. p. 96.
97 Wmm. "Lendas dos lndios Vapidiana." RMP. p. 192.
98 Estamos pensando na pupunha e "fruta-caveira". 99 LÉVI-STllAUSS. Le cru et /e cuit. p. 192.
-- ~

250 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E .•• A "CABEÇA ROLANTE" E. • • 251


os elementos dos dois mitos não parecem realmente corresponder- da representação que faz quem os recebe do povo de quem os
-se. O utensílio mágico que Poerare tenta roubar é uma vasilha recebeu.
cheia de formigas e não cabaça ou remo mágico. Pode-se alegar As façanhas de um herói mítico de povo aliado poderão ser
que se trata de mitos completamente diferentes, o que de certa facilmente absorvidas como as de um companheiro, de um coad-
forma é verdade. juvante do herói tribal. Quando as duas culturas já se assemelham
Pode-se alegar também que, no meio de tantos mitos que o suficientemente (por conquista 100 ou integração mais pacífica)
índio conhece, essas analogias opostas são simples coincidências. ocorrerá provavelmente uma identificação entre os dois persona-
Pode-se alegar que, uma vez conhecido todo o material mítico gens. 101
do Uaupés, se há de verificar certamente que o mito de Wewé ou Mas as façanhas de um herói de tribo inimiga, se o seu relato
de Etetó também é conhecido por lá, nas farmas karibe em que chegar a impressionar vivamente, são tão reais quanto as prece-
foi publicado por Koch-Grünberg, e que os elementos do mito dentes, justamente porque pelas suas características se julga reco-
tukano nada têm a ver com os dos outros dois e vice-versa. nhecer, no personagem que as praticou, o antagonista do herói
Devemos dizer, contudo, que o fato de um mito ser conhecido tribal (e neste caso, percebe-se bem, tem muita importância o tipo
diz pouco. Importante é que ele seja enfatizado, o que geralmente de atividades econômicas que o grupo mais valoriza, em que se
acontece quando ele é associado ao herói tribal, incluído no seu julga mais exímio, as técnicas que já conhece e que reputa de in-
ciclo mítico, e por isso mesmo mais lembrado. Estes mitos mais venção de seus próprios ancestrais, etc.).
lembrados é que fundamentam os ritos e são eles os arranjos que Devido a este mecanismo de encaixe, passando de uma área
melhor exprimem os valores de um povo, sua concepção do uni- para outra, encontramos muitas vezes curiosas inversões, como a
verso e do homem. Mitos que são conhecidos, mas não repetidos, que acabamos de analisar.
são também os primeiros a desaparecer, quando ocorre um depau-
peramento cultural. Isto não quer dizer, é lógico, que tenhamos que conceber as
relações entre os personagens como realmente tendo existido: te-
De certa forma não é tão importante saber de onde procede
mos certeza de que o fenômeno ocorreria mesmo que em tempo
o mito, mesmo porque geralmente os elementos de que se compõe
um mito procedem de muitas direções diferentes e pode-se, quando algum um grupo tukano tivesse entrado em relações de exogamia
muito, reconhecer que este ou aquele elemento possivelmente pro- com alguma tribo karibe; portanto, não se deve interpretar as
cede desta ou daquela área. nossas expressões "Wewé equivale aos cunhados de Inapirico" ou
Mais importante parece-nos a compreensão do próprio meca- "Poerare equivale aos cunhados de· Wewé" como sugestão de que
nismo de formação dos mitos, do modo como são captados novos os Arekuná ou Taulipáng tivessem permutado diretamente qual-
elementos. quer elemento com alguma tribo tukano. .
Aliás, trata-se de um processo tão lógico, que a própria defi- Podem e têm que tê-lo feito através de outras tribos, cada
nição do mito o faz compreender: uma selecionando os elementos que mais se adaptam, como vimos,
muitas vezes integrados com valores diferentes.
Se o mito é para o índio uma vivência real e a verdade trans-
cendente (e pensemos aqui no ciclo do herói mítico, na área mais ) O que nos parece importante reconhecer é que as represen-
sagrada da mitologia), a ele só se poderão assimilar, na difusão, tações que se fazem de tribos vizinhas estão à base desta valoriza-
elementos de episódios sentidos como experiências reais. ção, com muito mais razão do que as analogias que se observa
Tudo o que· impressiona vivamente: o conhecimento da posse entre os hábitos de determinados animais e as técnicas e o com-
de técnicas valiosas e eficientes por parte de outros povos, o co- portamento humano.
nhecimento de seus ritos mágico-religiosos, fragmentos de sua mi-
tologia, integram-se de forma ordenada e esta ordem. depende da 100 Embora dificilmente reconhecida por parte do povo conquistador.
101 Entre os Baniwa, encontramos Cristo identificado com Inapirikuri. Entre
ideologia do povo que os recebeu, das características que apre- os Mbüa, ocasionalmente, com o filho de Nanderú Tenondé (a divindade
senta no momento sua própria mitologia e, não se pode esquecer, suprema). ScHADEN. Aculturação Indígena. p. 125.
252 CAP. IX - A "CABEÇA ROLANTE" E •••

Por isso achamos que, se quisermos procurar um perigo ex-


terno real, um inimigo, o medo e a hostilidade (fundada ou não
numa guerra efetiva), por baixo da roupagem de algum animal
perigoso ou desprezível, não estaremos esvaziando o mito, nem CAPÍTULO X
transformando-o em simples relato histórico, mas sim procurando
compreender melhor o próprio simbolismo do grupo, o processo DOIS PARALELOS COM JURUPARI:
de sua formação ideológica. ·
O MITO DE KOROBONA E O MITO DE AUKt

Dissemos há pouco que o processo de encaixe, na mitologia,


de certas histórias ou mesmo informações recebidas, se . faz de
acordo com a representação que o grupo tem dos seus doadores
(informantes) ou, melhor, a partir da identificação do herói dos
episódios referidos, como elemento de tribo aliada ou inimiga,
valorizada ou desvalorizada.
Em muitos casos, e ppr motivos óbvios, o grupo aliado corres-
ponde ao valorizado, o inimigo ao desvalorizado.
Mas nem sempre é assim. Em se tratando de grupos aliados,
depende do grau de intimidade e do tipo de relações que se esta-
beleceram entre eles. Isto se toma particularmente evidente no
U aupés, onde o Makú poderia entrar, em linhas gerais, na classi-
ficação de "aliado", embora sendo usado como verdadeiro "bode
·•
expiatório" pelas tribos de cultura tukano. E sabemos que entre
estas também encontramos uma hierarquização, n~o só das tribos,
como interna (dos clãs) .
Do modo como esta situação se reflete na mitologia, ainda
se falará adiante.
E quanto à atitude frente ao inimigo? Parece que a tendência
"lógica" só poderia ser a da desvalorização.
Mas, e quando se evidencia muito a superioridade do inimigo,
principalmente após anos de luta defensiva e batalhas perdidas?
Quando, estabelecida uma situação de dependência que pro-
voca reconhecimento do valor do inimigo e a permanência de re-
calques, as expressões de menosprezo sutilizam-se sob a forma da
acentuação da superioridade de inteligência e habilidade do mais
1 Ciclo do jabuti, bem conhecido.
2 "Kone'wó", série de mito publicada por KocH-GllÜNBEllG. "Mitos e Lendas
dos índios Taulipáng e Arekuná.'' RMP. p. 142 et seqs.
254 CAP. X - DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO ... DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO. . • 255

fraco, desumanizado aparentemente na figura de um jabuti, 1 de se vinga dos tios, matando-os e à sua gente, em terrível batalha.
um "Kone'wó" 2 ou de "Anansi". 3 (Mito recolhido por Brett 6 .)
Por outro lado, ao sobrevir uma situação em que os recalques Koch-Grünberg chamou a atenção para a semelhança deste
são amainados, após o sofrimento de anos de perseguições e raptos mito com o de lssi (Jurupari), publicado por Barbosa Rodrigues, i
de suas mulheres, ao atingir o grupo uma condição de estabilidade, e parece que esta semelhança contribuiu para a impressão que ele
pode haver uma verdadeira nacionalização do inimigo, a que se tinha 8 de que certos traços característicos do cerimonial e da
atribuem então poderes sobrenaturais para justificar as derrotas mitologia do noroeste brasileiro, inclusive as sociedades secretas
infligidas por ele. de homens, deviam-se à influência aruák sobre a região.
Isto, que ocorreu em função das lutas com os civilizados, Parece que a semelhança, neste caso, se deve, contudo, ao
sempre se verificou também em situações pré-colombianas, como fato de que os Warrau, assim como grande parte das tribos do
por exemplo nas relações entre os Warrau e os Karibe. Uaupés e regiões vizinhas, pertencem originalmente a um estrato
No mito de Korobona, duas moças warrau banham-se numa mais arcaico de caçadores nômades e recoletores (que ainda até
lagoa proibida. Korobona, a mais velha e mais bonita, vai até ao há pouco tempo atrás tinham muitos traços culturais em comum
meio do lago e mex~ num poste de madeira, despertando assim o com os atuais nômades, como por exemplo os Yanonami).
espírito do lago. Este, uma cobra grande que por vezes assume Já Kirchhoff, 9 apoiado em Schomburgk e Brett, nota que os
a forma de um homem, a fecunda; Korobona dá à luz uma me- Warrau não são nem Karibe nem Aruák. (Para Sanders e Marino,
nina, que é poupada pelos tios maternos devido às súplicas da são paezan.) 10
mãe. Mas a curiosidade a faz aproximar-se novamente do lago e Mais recentemente, .Wilbert, 11 que estudou os Warrau do
ela se toma mãe pela segunda vez. Ela se oculta no mato com delta do Orenoco, 12 assinala entre eles, ao lado de reminiscências
a criança (desta vez, um menino). Um dia, contudo, alguém de povos circuncaribes, indiscutíveis influências andinas, que se
ouve a criança chorar e conta o fato aos irmãos de Korobona, revelam na estrutura de classes e no culto sacerdote-templo-ídolo.
que matam o sobrinho a flechadas, deixando-o insepulto para que Wilbert chega a levantar a seguinte hipótese:
a mãe o enterre. Mas o menino revive, passando a viver escondido
numa árvore oca, de onde só sai quando a mãe se aproxima. Esta "Antes de que los warrau migraron ai Delta del Orinoco, vivían
en e/ occidente venezolano, posiblemente cerca de los Andes. Su
vem todos os dias alimentar o filho e conversar com ele. Sua cultura era n1arginal en esencia, pero con elementos culturales
irmã guarda-lhe, fiel, o segredo. Assim mesmo os irmãos nova- social-religiosos de típica estirpe andina-circuncaríbe (p. 251 ).
mente descobrem tudo, desta vez pelas pegadas deixadas por Koro- ( . .. ) En nuestra opinión, pertenecen ellos a los pueblos reco-
bona. Esta não consegue salvar o filho das flechas, apesar de lectores que vivieron en un área casi ininterrumpida al norte y
protegê-lo com seu próprio corpo. Ante o corpo estraçalhado do oeste del Orinoco., extendiéndose hacia el oeste hasta el piedmonte
menino, amaldiçoa os assassinos. Vela seu morto, cobrindo seus de los Andes venezolanos y por el sur hasta el rio Vichada, remon-
tando posiblemente por el norte hasta el mar Caribe. Los warrau,
restos com folhas largas e flores vermelhas e assim eles não se
decompõem. Depois de algum tempo, dos pedaços reconstituídos 6 Kocu-GRÜNBERG. lndianermiirchen aus Südamerika. p. 3 et seqs. A impor-
surge o primeiro Karibe, invencível. com penas brancas nos curtos tante obra de BRETT, W. H. (Legends and Myth's o/ the Aboriginal lndians
e negros cabelos, 4 de pele mais clara que 3 dos Warrau. 5 Ele of British Guiana) não tivemos, infelizmente, oportunidade de consultar.
7 RODRIGUES, Barbosa. "Poranduba Amazonense." Annaes da Biblioteca Na-
cional do Rio de Janeiro. p. 105 et seqs.
3 "Anansi, l'Araignée rusée", personagem de contos da população Peg1~.1 e s E com certa razão, aliás.
mestiça de Surinam. GoEJE. "Anansi, l'araignée rusée." RMP. ·l 9 KIRCHHOFF. "Die Verwandtschaftsorganization der Urwaldstãmme Südameri-
4 A referência cuidadosa de detalhes como este, nos mitos, revela a impor·- kas." ZE.
tância que o índio dá a penteados e ornatos, os quais, juntamente com a 10 SANDERS e MARINO. Pré-História do Novo Mundo. p. 147.
pintura corporal, estilo e tipo de armas, implicam num determinado conceito n WllRERT. '·Rasgos Culturales Circuncaribes entre los Warrau y sus Infe-
de valores. rcncias:· 'i\-temorias de lu Sociedad de Ciencias Soc:iales La Salle.
5 De fato, os Warrau são mais escuros de pele do que os seus vizinhos. J 2 Onde formam um bloco contínuo. Schomblll·!!k os estudou na Guiana
ÚIMPERA. Las Razas Humanas. p. 135. Baseado em Wilbert. l nglesa. ,- ··~ ·
256 CAP. X - DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO .•• DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO... 257

junto con las demás tribus recolectores que en épocas pretéritas a) Em primeiro lugar, na fecundação sobrenatural de Koro-
debieron extenderse desde Alaska hasta Tierra del Fuego". p. bona e no fato da concepção ser uma conseqüência de
253)
uma quebra de tabu.
b) Na existência de uma lagoa proibida, cujo contato é fe-
~ão temos conhecimentos suficientes para discutir a hipótese
cundador.
?e W~bert. Entre o oeste venezuelano e o Uaupés colombiano
in!e.rpoe-~e o depa.rtamento de Vichada, e não temos idéia de qual
c) As crianças do sexo feminino nascidas de uma fecundação
o itmeráno que Wdbert supõe terem os Warrau percorrido fugindo sobrenatural, nos dois mitos, sobrevivem. No mito de
de seus temidos inimigos Karibe (antropófagos) . :E: pos~ível que Jurupari, entretanto, (versão Barbosa Rodrigues e Stra-
procedessem de uma região um pouco mais ao sul da apontada delli) esta criança é a mãe e não a irmã do herói.
por Wilbert? d) Morte ou desaparecimento, por duas vezes seguidas, do
Mas, tenham vindo do oeste venezuelano, tenham vindo do herói.
departamento de Vichada, a hipótese de Wilbert parece-nos refor- e) Finalmente, sua transformação em tuxáua que se impõe
çada por um paralelo que estabelecemos entre o mito de Korobona a seu povo.
e outro da área tukano, de que se falará adian~e.
Por ora, vejamos a série de elementos culturais de estrato O Lago de Muypa, da "leggenda dei Jurupari", é concebido
arcaico que Wilbert aponta entre os Warrau: culto do poste sa- como centro mesmo do território tribal, sendo tabu, ao que parece,
gra~o centra~ ~P· ~?O), que Wilbert acredita, pensamos que com mais por sua "sacralidade pura" do que por uma "sacralidade
razao, .t er existido Jª antes da adoção do culto do templo; as festas impura" (se é que podemos falar assim) . É o céu, são as Plêiades
centrahzadas na palmeira (Mauritia, "moriche") 1 s; um idioma que nele se espelham, 18 enquanto que no mito de Korobona é
(nem aruák, nem karibe, nem tupi) que parece representar "una um espírito do mundo inferior que se manifesta.
supervivencia de las primeras invasiones dei sub-período I (900 Poder-se-ia alegar que o fato de existir um poste central (cujo
~· C.! ". 14
Tais cara~terísticas levaram Wilbert a propor a classi- toque por Korobona desperta o espírito do lago - sem dúvida
uma serpente mítica) indica (lembremos do culto do poste central
ficaçao dos Warrau 1unto a outros povos marginais da Guiana
(Xirianá, Wáika, Guaharibo, hoje incluídos sob a denominação entre os Warrau) que o lago também representa um "centro do
d~ Y anonami) ou ju,~to dos marginais antilhanos ( Guanahatabey, Universo"; mas a situação parece um pouco diferente: ao passo
C1boney) antes que con los pueblos circuncaribes o los de selva que a ação de Korobona vai em direção ao mundo subterrâneo
tropical". 1 5 e não em direção ao céu, o banho no Lago de Muypa é sugerido
~esta l?erspectiva, as semelhanças que possam apresentar,
e recomendado por um pajé dos Tenuiapa (uma quebra ritual do
nos mitos e instrumentos, 16 com o noroeste brasileiro, se deverão tabu, que implica em sacralização), 19 enquanto que os empreendi-
ao fato de que estes elementos são igualmente arcaicos no noro- mentos de Korobona, percebe-se, têm como única cúmplice sua
este brasileiro (deixando naturalmente de lado influências andinas irmã (justamente uma irmã menor) . 20
mais recentes, como observa Wilbert, e influências aruák igual- Mais surpreendente (e reforçando bastante, parece-nos, as
mente mais tardias que atingiram o Uaupés). suposições de Wilbert) é a analogia do episódio com um trecho
Em que se resumem, no entanto, as semelhanças do mito de de um longo relato mítico recolhido por M. Fulop ("Aspectos de
Korobona com o de Issi-Jurupari? 11 la Cultura Tukana - Mitologia: Relaciones sexuales." p. 341).

18 Se lembrarmos que, nos mitos, as Plêiades são crianças sacrificadas, per-


13 "
· · .cosech a de 1a flor de monche
. en la preparación de la fiesta Nahanámu" cebemos que há realmente uma diferença. ~ como se as Plêfades fo~m
(WILBER.T. Op. cit. p. 245). Palmeira buriti.
seres sacralizados, pelo sacrifício . . . .
14 /d., ibid. p. 248.
19 CAzENEUVE. Les rites et la condition humaine. p. 259.
_ 15 /d., ibid. p. 248. 20 Menor, mais pura, mas não chega a criar propriamente uma ambigüidade
16 Jd· "Los 1nstrumentos Mus1cales. de los Warrau." Antropol6gica J. nas ações de Korobona como alter ego desta. Em parte, seria porque no
17 A mesma a~alogia se nota com o mito de Jurupari publicado por Stradelli. caráter femin ino só se admite ou passividade ou desobediência total?
258 CAP. X - DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO ..• DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO... 259

Yúpuri Baúro (o herói ancestral tukano) prediz a Miriápura po, 23 tem-se uma · preferência pelas filhas mulheres, pois elas
Turíkaro (concebido no mito como o herói ancestral desâna) que permitem, quando em idade núbil, a atração de mão-de-obra mas-
em Numiá Pejtawi ia aparecer um poste no porto, e, ao pé deste culina, o que reverte em prestígio e certo poderio (desenvolvi-
poste, Tun1caro deveria guardar os instrumentos juruparis. Yúpuri mento do sistema de "peito") para o chefe da casa. Além disso,
Baúro diz ainda que a mesma coisa iria ocorrer, com ele, em como existia a poligamia (ainda Kirchhoff, p. 146, citando Brett,
Diawipejtá. As duas filhas de Miriápura Turíkaro (nascidas da que afirma ter encontrado mesmo um homem com nove espo-
mais nova de duas irmã·s desposadas por este personagem, sendo sas ... ) , sendo a segunda esposa e as posteriores obtidas por
que a esposa mais velha lhe tinha dado um filho ... ) ouviram a presentes, vê-se que a sociedade warrau praticava uma dupla capi-
música dos juruparis e, apesar do pai lhes ter proibido banhar-se, talização de mulheres. Mas isto não explica a passagem referida.
não resistiram à tentação da curiosidade e acorreram ao porto, A nosso ver, só existem para ela duas explicações possíveis: ou,
com uma vasilha e uma tocha. Nada encontraram ao pé do poste, num passado não muito remoto, possivelmente no período de
pois a caixinha dos instrumentos havia desaparecido. Subitamente nomadismo que antecedeu à sua fixação na foz do Orenoco, os
viram um raio e uma das irmãs se assustou, pois o "raio era uma Warrau formavam bandos patrilineares (como o são geralmente os
pessoa". A outra quis ficar e verificar melhor o poste, dizendo bandos nômades), e foi então que se introduziu o relato em sua
que era o que soava como música no dia anterior. (p. 357 et seqs.) mitologia; 24 ou então uma filiação primitiva de passagem ao mito
Segue-se no relato a conhecida história da usurpação dos ins- das Amazonas, hoje esquecido. (Preferimos a primeira explicação.)
trumentos sagrados pelas mulheres (que aqui elas mesmas fabri- Parece-nos importante também o fato de, em outro trecho
cam, de acordo com o tamanho dos dois misteriosos personagens mítico recolhido por Fulop, ser expressamente a irmã mais velha
que viram), ao mesmo tempo que elas se transformam nas famosas a mais imprudente, a menos recatada. (A mais nova, contudo,
amazonas que vagam sem destino, atacando aldeias, matando seus assiste-a no parto, revelando-:.- se companheira e solidária, tal qual
próprios filhos e poupando apenas as fêmeas. a irmã de Korobona.)
Parece que aqui temos uma chave para um problema que Vale a pena reproduzir o trecho em questão, um dos mais
não encontraria, a nosso ver, diretamente na realidade sociológica profundos e dolorosamente trágicos que conhecemos:
warrau, uma explicação inteiramente satisfatória.
"Bejpó vi'o entonces que las mujeres ya se habían ido a banar
Apesar das dúvidas que Kirchhoff ("Die Verwandtschaftsor- al puerto, y Bejpó sacó dos moneditas, una se llamaba Pajsí y
ganization ... ") levanta quanto a uma série de questões (as quais
não sabemos até que ponto foram esclarecidas por Wilbert e 23 Os Warrau segundo Kirchhoff (baseado em Schomburgk) se enquadram
pesquisadores posteriores), ele transcreve uma informação de nesse tipo (p. 146 - "Desde o noivado, em baixa idade, até a puberdade,
Schomburgk em que se afirma que os filhos de uma índia warrau o noivo serve o sogro, levando depois a moça para onde resolveu erguer
com um Aruák são reconhecidos como warrau. 21 Parece que sua casa") .
24 Após a morte de seu marido, quando Helena Valero busca refúgio, não em
existe, portanto, entre eles, a matrilinearidade. Por que então se tribo inimiga, mas tão-somente em outro bando local dos Yanonami (inci-
procuraria eliminar o filho homem de Korobona, poupando-se a dentalmente irritados contra o grupo local a que ela pertencera), por pouco
menina? 22 É verdade que nas tribos sujeitas à matrilocalidade e, (e não fosse sua coragem) seus filhos teriam sido mortos. "Pourquoi es-tu
venue avec ses enfants? Ne sais-tu pas que les enfants mâles ne peuvent pas
em geral, naquelas em que o genro serve o sogro por algum tem- aller dans une tribu ennemie parce qu'on les tue?" B preciso notar que as
pessoas que moravam na choupana (chapouno) em que a moça foi recebida
21 KIRcllllOFF."Das Kind einer Warrau Indianerin und eines Arawak wird com estas palavras, não só eram da mesma horda, como aparentadas com
zu den Warraus gezahlt." Op. cit. p. 146. gente da choupana do tuxáua que fora seu marido (BIOCCA. Yarioama. p.
22 Na análise do mito de "Auké", Roberto da Mata pensa em explicar o 362). Acreditamos que as condições reinantes entre sociedades ao nível de
mesmo problema pelo fato de que da mulher, mais impura, mais "natureza" bando, ao menos da região de que estamos tratando, sejam semelhantes.
pela própria condição biológica, não se exigiria tanta "coerência" (se lhe E, neste caso, o mito de Korobona poderia ser encarado como o mito que
perdoaria mais facilmente o comportamento anormal, no caso de Auké, "institui" a matrilinearidade: reconheça-se o filho do estrangeiro como sendo
ainda como feto). Parece correto, mas achamos que a explicação não satis- da tribo e não se terá nele um inimigo. Contudo, ele é filho do estrangeiro,
faz inteiramente. do estranho, do .numinoso: reconhecê-lo, portanto, · também é perigoso.
260 CAP. X - DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO ••• DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO... 261

la otra Eroná. Y Bejpó sacó estas dos moneditas para secar ai tância à Lua. (LÉVI-STRAUSS. L'origine des manieres de
sol. Y las dos mujeres se vinieron para Diawí otra vez. Y cuando table. p. 115). 26
ellas iban regresando a Diawí, alcanzaron a ver las moneditas, y b) a valorização, no mito, da castidade feminina (L'origi-
se las quedaron mirando. Y las dos mujeres dijeron: 'Qué serán ne. . . Mito sobre a origem da luz do dia, p. 143). 21
esas dos cositas?' Y las dos mujeres se enamoraron de esas dos
cositas. Y esas dos cositas parecían como nenitos y chillaban. c) como o filho de Miriápura Turíkaro faz com o cadáver
Pero solamente una de las mujeres veía a las dos mo- de seu irmão, Korobona cobre com folhas o de seu filho. 2 8
neditas como nenitos, mientras que la otra sólo podía ver dos d) o irmão mais velho é concebido como o mais prudente, o
moneditas. Y aquí fue donde salió la vagabundería, y por eso mais sério, enquanto o mais novo é irresponsável e se
de cada dos mujeres, una saldrá formal y la otra saldrá ra- perde definitivamente (LÉVI-STRAUSS. Le cru et le cuit.
mera. Meropagnijí Majsó, que era la hermana menor, véia las Mito sobre a origem das estrelas. p. 117). Nisto também
dos cositas como nenitos, mientras Nijí Majsó, que era la her-
mana mayor, veía las dos cositas como moneditas. Entonces dijo o paralelo é com os heróis tukano em mitos tukano. 29
Meropagnijí Majsó a Nijí Majsó: 'No las coja'. Entonces Nijí
Majsó dijo: 'Yo las cojo'. Y Nijí Majsó las cogió, las olió, y . Mas, veja-se bem: não estamos querendo dizer, de maneira
las dos cositas olían a monedas. Y apenas las olió, Nijí Majsó · alguma, que os Warrau sejam uma parte dos Desâna, deslocados
se las comió. Y no duró ni un minuto para prenarse. Entonces para a foz do Orenoco devido ao fato de que na mitologia tukano
Meropagnijí Majsó dijo: 'No ve. Yo le dije que no las coja'.
Y el estómago de Nijí Majsó se estaba hinchando. Pero estas 26 Temos que fazer uma ressalva para os mitos tariâna, em que o Sol passa
dos mujeres tenían la apariencia de hombres y no tenían tetas ni a ter uma importância maior.
hueco. Entonces dijo Meropagnijí Majsó: 'Qué hacemos?' En- 27 Até certo ponto a observação está correta, particularmente se comparada
tonces ambas llamaron a Yepá Huáke. Y Yepá Huáke vino com os mitos aruák do Uaupés. Deve-se levar em conta, no entanto, que
donde ellas. Entonces ellas dijeron a Yepá Huáke: 'Ahora qué os Tukano praticavam o defloramento artificial das moças púberes.
vamos a hacer?' Entonces Yepá Huáke dijo: 'Está bien. Ahora 28 " ••• recogió la varillita de Imisa y comenzó a hacer un ataúd con esa
toca que nazca el nino. Van a tener marido. M orirán' ".21S varillita. Pero no enterró a su hermano menor en ese ataúd, . . . y después
(FULOP, Marcos. "Aspectos de la Cultura Tukana - Cosmo- de caminar un poquito hizo como una mesa de paios de Omuamujpúri.
gonia." RCA. p. 126.) Encima de esa mesa puso el ataúd y lo tapó con unas bojas" (FULOP.
''Aspectos de la Cultura Tukana - Mitologia." p. 348). A descrição lembra
muito o modo como os Yanoama suspendem o cadáver, para depois inci-
Parece-nos terrível que o índio se veja tão impotente diante nerá-lo. Aliás, os Desâna, ao que parece, praticavam a endofagia antes da
da corrupção aportada pelo branco, que tudo compra com o di- sua "tukanização". No mito de Korobona, só se fala na cobertura do
cadáver com folhas e flores. Não deixa de ser curioso que se trata do
nheiro, a ponto de a conceber hoje como um fenômeno confundido mesmo processo referido nos mitos tipo "Viagem ao Céu'', pelo qual o
com a própria origem da pocriação. Bem sabemos que em parte urubu-rei prepara a sua comida. Num dos mitos wapitxâna publicados por
isto se deve à tendência do processo de mitização, situando os WIRTH ("Lendas dos índios Vapidiana". RMP. p. 194), o urubu-rei pretende
deixar o próprio genro apodrecer assim coberto por folhas de miriti.
fatos em um quadro atemporal. Ainda assim, se não existisse este 29 Além disso, o mito de Haburi, analisado por LÉVI-STRAuss (Du miei au
sentimento de impotência diante da realidade, outro poderia ter cernires. p. 152), parece traçar um itinerário que bem poderia representar
sido o modo do tema se manifestar no mito. uma vaga lembrança do passado:
De uma vida de coleta (com o "marido-palmeira"), em que se men-
A mitologia warrau revela ainda por outras características o ciona a palmeira buriti, além da açaí, duas irmãs empreendem uma fuga
parentesco com o noroeste amazônico: de uma onça que se faz passar pelo marido que devorara. (Feras, "onças-
-espíritos" ou espíritos de pajés que se fazem passar por parentes, é um
a) como no Uaupés, não existem termos distintos para Sol tema comum no noroeste amazônico.) A rã Wau-uta as salva, porque se
apiada do menino Haburi que a mãe obriga a chorar. Segue-se, por ordem,
e Lua - a Lua "contém" o Sol, pois se dá maior impor- menção da mandioca, obtenção de flechas e flautas, confecção das primeiras
canoas e potes de cerâmica.
Note-se que a estrutura do mito é a mesma do relato das duas irmãs que
21S A segunda fuga ocorre já por iniciativa de Haburi, para se livrar de
desrespeitaram o tabu dos instrumentos sagrados e do trecho inicial do mito Wau-uta, que se fizera passar por sua mãe e o queria por amante. E esta
de Korobona. fuga se faz em piroga, rio abaixo.
262 CAP. X - DOIS PARALELOS COM JURUPARI : O MITO ••• DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO. • • 263

o episódio das moças faltosas é atribuído a Miriápura Turíkaro. que falta em "Korobona": a cremação do herói (após seus dois
Muito menos que tenham algo a ver com a seqüência seguinte do desaparecimentos anteriores), seguida do nascimento da palmeira
mito tukano das Amazonas perseguidas por outras tribos, embora, de que são feitos os instrumentos sagrados, símbolos do nasci-
provavelmente, para os Tukano, qualquer povo mais fraco, em mento da nova religião.
constante fuga frente a um inimigo mais poderoso, teria certa Cremos que devemos tentar explicar agora o porquê dessa
conotação feminina, e apesar da curiosa coincidência do mito de persistência das duas mortes e ressurreições de Jurupari, antes de
Haburi, a que nos referimos em nota, começar como se se tratasse sua morte efetiva (e ascensão ao céu . .. ) na fogueira.
de uma continuação do relato tukano, no momento em que as Se lembrarmos da "História de Luna" Barasana, da duplica-
duas irmãs, sozinhas, começam elas mesmas a fabricar das pal- ção das ações de Warimi, 81 sempre uma se opondo à outra, du-
meiras os instrumentos sagrados. plicação essa que nos mitos de gêmeos ou heróis irmãos como
Mas admitimos a possibilidade de que no passado, durante a Pud e Pud-leré, é substituída por uma duplicação do personagem
sua permanência rio acima (provavelmente numa área que teria (um alter ego do outro), percebemos que essa ambigüidade é a
como centro a confluência do Atapabo e do Inirida com o Alto própria essência do mito. 82 ·um mito como o de Warimi nos
Orenoco) tenham participado de certas representações míticas já mostra que não é nem nunca foi fácil ser Homem. 88 Pois ele é,
comuns então no noroeste amazônico. como o são todos os grandes mitos tribais, também um mito de
Não queremos dizer com isso que tivessem pertencido em criação do homem. E o que . é o homem? "L'homme est ni l'ange,
alguma época passada ao culto de Jurupari, 80 mas é possível que ni la bête et le malheur veut que ce qui veut faire l'ange, fait la bête."
tivessem recebido outrora certas representações paralelas, como, O dilema é tão velho quanto o homem: é com ele, através dele, que
por exemplo, a de que certos trechos de águas são tabu para o homem nasce. A fera, a reciprocidade nula 84 não impõe ne-
mulheres porque neles está guardado algo de madeira, com cono- nhum dilema: um dia devora, no outro é devorada. Mas o homem
tação não propriamente religiosa, mas sobrenatural, perigosa. Po-
dem ter recebido essas representações de outro povo que não fosse, 81 Admitimos que jamais um fenômeno desses ocorre por simples questão
evidentemente, os Tukano, podem tê-las recebido mesmo de ini- de inversões estruturais. Estas têm que ser explicadas, concomitantemente,
por uma série de outros fatores.
migos como os Karibe. No caso de Auké, isto significa que não só a geração velha como
Está aí um mito ("Korobona") de certa forma aberto para também a geração nova querem, por motivos comuns, sacrificar (e ao mesmo
um encaixe da lenda de J urupari, caso os Warrau tivessem entrado tempo poupar) Auké. (V. adiante p. 275.)
em contato mais íntimo (relações exogâmicas ou filiação em frá- A duplicação reflete, portanto, uma oposição de gerações que se atenua
em certo sentido, mas aumenta em outro.
tria) com algum grupo "convertido" a esta religião: Além disso, como as transformações surgem devido a mudanças no
Um herói karibe ambivalente como Jurupari, pois este tam- gênero de vida, forçosamente deverão ter também um código astral, estacionai
bém "devorou" o povo de sua própria mãe, "seria facilmente quei- (refletindo enfim a periodicidade de certas atividades do grupo), e os dois
mado" pelo herói tribal ou por determinação deste (veja-se a ati- renascimentos de Auké, como também de Jurupari e do filho de Korobona
têm que ter ainda outras explicações.
tude de Inapirikúri em relação a Kówai ... ) , acrescentando-se 82 Isto se torna mais patente, é claro, nos grandes mitos tribais, nos chamados
assim ao mito a terceira seqüência do "mito típico" de Jurupari, mitos verdadeiros, os da área mais sagrada. Mas a ambigüidade não desa-
parece de todo nem mesmo nos mitos como os do jabuti, agora só contos
ao Tal qual ele se apresenta no Uaupés ou em formas congêneres. Entre folclóricos, destituídos de qualquer sacralidade e nos desenhos ''Tom e Jerry"
outras razões, nenhum dos instrumentos musicais Warrau parece ter sido da nossa época.
tabu para mulheres, mesmo a trombeta tocada na festa sagrada do Náha- 88 Pode-se alegar que o exemplo tomado do mito de Warimi mostra uma
námu (WILBERT. "Los Instrumentos Musicales de los Warrau." Antropo- situação anormalmente conflitante. Concordamos. Mas os grandes mitos nas-
lógica). Muitos elementos novos devem ter recebido de algum grupo de pro- cem todos de situações "anormalmente" conflitantes.
cedência centro-americano (ilhéu), com que entraram em relações matrimo- 84 Mais do que os homens da cidade, o caçador sabe no fundo muito bem
niais. Ao menos é o que os mitos fazem supor, quanto ao maracá, como que nem mesmo entre os animais o relacionamento se faz puramente à base
instrumento sagrado, por exemplo. No noroeste, a representação se coaduna da reciprocidade negativa. Se não houvesse algo humano nos animais, eles
mais com a do maracá do xamã, .cujas pedras têm conotação maléfica (como não lhe falariam no mito. . . Assim a reciprocidade nula é realmente a
· entre os Desâna), em oposição co.m o maracá do sacerdote. situação irreal, anterior à Criação, o Caos inicial.
264 CAP. X - DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO .• • DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO... 265

negocia: furta-se ao "ser terrível", deixando-lhe a filha, e é neste A ausência de dúvida é a perdição total.
momento que a ambigüidade começa: se ele entrega à onça um Se a matrilinearidade tem que ter um mito de instituição,
pouco do seu próprio "eu", ele é a vítima e paga a dívida de certa Korobona parece o mito feito sob encomenda. Pois sabemos muito
forma, mas ao mesmo tempo - não há outra opção - ele se bem que a dificuldade no caso não é reconhecer a filha de um
transforma em carrasco. A ambivalência é pois essencial ao pen- estranho como membro da tribo (a autoridade será sempre exer-
samento mítico. Mesmo assim, a síntese do mito de Warimi é cida pelo elemento masculino, tio materno ou equivalente, até
uma verdadeira profissão de fé, justamente quando se poderia es- mesmo onde encontramos a matrilocalidade), 37 mas o filho ho-
perar dele uma atitude como a do ancestral Kobéwa ... mem, que pode mesmo tornar-se tuxáua. 38 Por duas vezes, por
Ficamos a nos perguntar se não é exatamente esta a base de medo de uma criança, mata-se um sobrinho, permitindo a única
toda a mística do número três. Wolfgang Schultz, como também equação possível na síntese: (-) (-) == +
~ Morto por duas
outros, acreditam que as · concepções religiosas do Popol Wuh es- vezes, negado porque não se o reconhece nem no aspecto mais
condem, sob uma mística mais recente, baseada no número quatro, puro, ele adquire exatamente as qualidades necessárias para tomar
uma mais primitiva, baseada exatamente na tríade. 35 o lugar dos tios matemos: transforma-se neles.
E o mito de Korobona? Entendemos que a repetição do O que falta ao mito de Korobona para se tomar um "mito
episódio seja reconhecível na duplicação de Korobona em sua de Issi-Jurupari" não é, portanto, tão-somente a terceira seqüên-
irmã, na repetição do nascimento da criança . . . Constata-se con- cia, isto é, não é porque o filho de Korobona não morreu na
tudo algo curioso: é uma duplicação sem oposições. Por duas fogueira, que ele não corresponde a Jurupari. 39
vezes, movida pela curiosidade, Korobona se deixa fecundar pela 87 Como dissemos atrás, mÚitas tribos matrilocais promovem uma verdadeira
serpente. Sua irmã, menos arrojada, não se lhe opõe, contudo; é capitalização de mulheres, para obter, não propriamente filhos, mas genros.
sua cúmplice. Se ainda existe qualquer coisa do desafio ritual na 88 K1RCHHOFF. ("Verwandtschafts organisation ... " ZE. p. 119 et seqs.)
curiosidade de Korobona, ela já não é, como a heroína ·de Autxe- refere-se a ocorrências dessas entre os Rukuyéne.
39 Nem é por serem desconhecidos dos Warrau os elementos do mito dos
pirire, deixada para trás por seu grupo; nem enviada pelo pai, gêmeos. Aliás, este como que se bifurca. Por um lado temos a "história de
como a Bela entregue à Fera dos mitos xinguanos. É verdade que Haburi", analisada por LÉvI-STRAuss (Du miei aux cendres. p. 152 et seqs.),
ao arrojo gratuito da amante opõe-se o arrojo admirável da mãe, ..' em que se renega o "ser terrível" na forma da onça, aceitando a proteção
mas o primeiro neutraliza o segundo: o corpo que não se resguar- de um "espírito maternal" (na forma de uma rã, como é a mãe das onças
dou da serpente não tem consistência suficiente para proteger o nas versões das Guianas), poupando as mulheres (tal qual os irmãos de
Korobona), mas "devorando" os personagens masculinos (matando o ogre
filho contra as flechas. Os irmãos de Korobona, como não, se identi- e seduzindo Haburi). Percebe-se que, na terceira seqüência, Haburi emancipa-
ficam com o "ser terrível", também não são hostis à mulher. -se tanto do padrasto, como da madrasta. . . Por outro lado, temos a "história
Estão dispostos a ver nela mais uma vítima. 36 Mas, dispostos a do velho Nahakoboni" ("Die Sonhe, der Frosch und die Feuerholzer", mito
( recolhido por Brett e reproduzido por KocH-GRÜNBERG. lndianermiirchen
poupar Korobona por duas vezes (como mãe e como filha), não aus Südamerika. p. 7), em que se conta o nascimento dos gêmeos Makunaíma
se reconhecem no "ser terrível", apesar da inocência do filho de e Pia com algumas inversões especialmente significativas. A uma solarização
Korobona desmentir a natureza estranha do pai. Talvez não te- da "fera" (um pouco dúbia, já se vê, pois, "Yar", o Sol, é o genro),
nham outra escolha, porque não sentindo efetivamente o cunho corresponde um aspecto mais feroz (comparado a Mení, o tigre bom do
mito barasana) do doador e pai da virgem de madeira, pois ele (Nahakoboni,
religioso do ''ser terrível" (vendo-o só sob o seu aspecto negativo), "o que come muito" ) faz o Sol passar por duras provas em troca da mulher
são incapazes de sentir a inocência do filho. Opondo-se ao "ser que não é bem mulher, deixada para trás (por estar grávida e não poder
terrível" na figura de seu filho, eles é que se transformam total- acompanhar o marido em sua viagem para o poente), para ser devorada,
mente em "ser. terrível", permitindo exatamente ao ser estranho finalmente, não pelo marido, nem pelo pai, mas pelo seu equivalente femi-
nino, a rã dona do fogo, que cria os gêmeos e que é morta por sua vez por
transformar-se neles. próprios. estes (que assim obtém o fogo), não por quererem vingar a mãe (tratar-se-ia
V
de vingar a mãe da própria mãe, pois parece claro que a rã corresponde a
35 Tríadessão também Huraqan, Kabraqan, Ciraqan e os ancestrais míticos Usi-diu) e sim porque ela os anti-nutriu (para usar uma expressão sugerida
Tohil, Awilis e Hakawic. ScttULTZ, W. Einleitung in das Popol-Wuh. p. 40. pela leitura dos "Mythologiques").
36 No Uaupés, não há dúvida, ela seria condenada à morte, pois o "ser do Mas, o que acontece ao "ser terrível" (a onça), se Haburi deixa que
lago" é o mesmo "ser terrível", Jurupari primevo. a mãe adotiva o mate e depois a renega, se nem Yar nem Nahakoboni
266 CAP. X - DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO . . . DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO... 267

Temos, aliás, a prova em um outro mito, a que não falta Trata-se do mito de Auké, estudado por Roberto da Mata e
nem mesmo esta terceira seqüência. cuja "continuação" (ou mais recente atualização) encontramos
em "Folklore Krahó". 40
desempenham as funções de ser terrível, levando Usi-diu (o sacrifício não Percebe-se bem, pela análise deste mito, como o conhecimento
tem volta) à auto-destruição? Se são os gêmeos Makunaíma e Pia que
matam a dona do fogo e protetora mágica da caça, enquanto Haburi a de certos temas de certa forma nada significa. Ainda que apre-
abandona, ouvindo os conselhos da lontra, dona da pesca? E pena que não sentem a mesma estrutura, ainda que apresentem uma história se-
caiba aqui examinar o significado de transformação do gênero de vida dos melhante, sua articulação ao sistema mítico depende das condições
Warrau, através de seus mitos, pois há muitas deduções que eles permitem ... preexistentes na sociedade. E isto, mesmo em se tratando de uma
e isto apesar de "la historia de un mito y de las poblaciones en que se lo
recogió no son paralelas" (PouILLON. "El Análisis de los Mitos." ln: lntro- sociedade como a timbira, em que "o cerimonial é de maior im-
duci6n al Estructuralismo. p. 185.) portância, absorvendo grande parte do tempo e da energia dos
Aparentemente, a onça é expulsa da sociedade humana. E é verdade: indivíduos. Ao mesmo tempo é tão predominantemente secular
ela volta a ser animal, hostil ao homem, mas hostil como animal e não que considerá-lo como parte de uma religião é violentar os fatos". 4t
como "ser terrível".
E, mostrando mais uma vez que os personagens míticos não desaparecem Reproduzimos abaixo a versão timbira segundo Roberto da
sem que o mito examine todos os seus "prós" e "contras" nas relações com · Mata 42 :
a sociedade humana; e que, se em dois mitos complementares como o de
Haburi e de Nahakoboni, a onça é rejeitada por duas vezes pela sociedade "O Mito de Auké"
dos homens, terá forçosamente que aparecer um terceiro enfoque, represen-
tando a síntese ou solução num mito que é o reverso da medalha da história "Uma rapariga de pátio de nome Amcukwéi estava grávida.
dos gêmeos: Certa vez quando ela, em companhia de muitas outras, estava
"Por que a Onça Negra Mata as Pessoas" (mito warrau, recolhido por tomando banho, ouviu de repente o grito do preá. Admirada,
Roth, reproduzido por KocH-GRÜNBERG. Op. cit. p. 13): ela olhou para todos os lados sem descobrir de onde o grito
"Um dia, Tobe-horoanna, o jaguar negro, pega um homem, o arrasta
para casa e o coloca num pote, dizendo-lhe que não tema, pois nada lhe partira. Logo depois ouviu-o novamente. Voltando para casa
fará. A irmã e o irmão do jaguar chegam, perguntam se ele o alimentou. com as outras, ela se deitou na sua cama de vâras quando o
'Dê-lhe um porco do mato; se ele não o comer todo, nós o comeremos'. grito se fez ouvir pela terceira vez, reconhecendo ela agora que_
Por mais que se esforce, o homem só consegue devorar duas pernas. Dão-lhe partira do interior do seu próprio corpo. Depois ela ouviu a
uma cabaça de caxiri, ele engole a bebida, mas vomita e o jaguar acha criança falpr: 'Minha mãe, tu já estás cansada de me carregar?'
que há algo errado com seu hóspede (é óbvio que o mito mostra que este 'Sim, meu filho!', respondeu (ela), 'saia'. 'Bom', disse a criança,
não precisa mais tanto da caça ... ) ; manda os irmãos segurarem a boca 'em tal dia eu sairei'.
do homem aberta e despeja o caxiri. Como a irmã-onça intercede, deixa-o
em paz e pede-lhe uma prova para aceitá-lo como cunhado. (Confirmando
que a caça não é mais problema para ele, traz 10 javalis de uma vez, para param? Será que algum dia não voltarão, neste mesmo aspecto sobrenatural
os cunhados.) Vive muito tempo feliz com sua mulher-onça que lhe dá e terrível em que Quetzalcoatl (na figura de Cortez) voltou para os Astecas?
gémeos. Quando já engatinham, o pai cuida deles, enquanto a mulher vai à Pois é claro que são apenas outra faceta de Makunaíma e Pia ...
roça; mas se assusta porque eles rosnam e fazem um barulho como Naharani, - De qualquer forma, percebe-se que se trata do abandono de uma ideolo-
o trovão. A mulher lhe assegura que · isto nada significa, que é o barulho gia (não propriamente a recusa de uma nova, só superficialmente aceita,
que a gente da tribo dela sempre faz, quando atravessa a mata. Um dia, o representada pelo ancestral anaconda dos Kobéwa ... ) , mas de uma ideologia
homem decide visitar sua família. Quando esta sabe que ele tem uma mulher velha, profundamente arraigada, e da qual é difícil se livrar.
e dois filhos que sabem rosnar, pede que os traga para que os conheça. No momento em que a solarização do herói tribal, pelo auto-sacrifício,
Ele o faz mas, na festa de bebida, a mãe o recrimina por ter casado com conseguir neutralizar os aspectos opostos, Tobe: horoanna será bem capaz
uma onça que certamente um dia o matará. Na bebedeira, a mãe e a irmã de surgir do fundo da floresta e, agora sob a forma de uma simples assom-
(outra vez .personagens feminin~s a matar e não um elemento masculino) bração (equivalente warrau da nossa 'onça maneta') fazer alguma vítima
matam o filho e a nora. Os gemeos conseguem escapar e contam ao tio que se descuidou das prescrições rituais ... "
Tobe-horoanna o que aconteceu. Ele se transforma num jaguar novamente 40 CHIARA, Vilma. "Folklore Krahó." RMP. p. 351-52 ("explicação da técni-
(o casamento da irmã o havia humanizado, presume-se) e vai à festa matar ca"), em que Auké aprende com o próprio Deus (Pápam) a fabricar e pilotar
a todos. aviões.
Que podemos deduzir deste último jogo de espelho? Que o homem não 41 QUEIROZ, M. 1. P. de. "Organização Social e Mitologia entre os Timbira
precisa mais dos favores do jaguar, que não depende mais tanto da caça; de Leste." Revista IEB. p. 102, citando Nimuendajú.
que a onça volta a ser fera e que pouco importa que ela enfrente o homem; 42 MATA, R. da. "Mito e Antimito entre os Timbira." Mito e Linguagem
como 'ser terrível' não o fará mais. Correto. Mas, e os gêmeos que esca- Social. p. 83-85.
268 CAP. X - DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO ••• DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO... 269

Quando Amc!-'kwéi começou a sentir as dores do parto, ela dois homens à aldeia abandonada para ver se ainda o encontra-
foi s6 ao mato. Deitando folhas de pati no chão, disse: 'Se vam. Quando chegaram no lugar, descobriram que Auké tinha
fores um menino, eu te matarei, se fores uma menina, eu te se transformado no homem branco: tinha feito uma casa grande
criarei'. Então nasceu um menino. Ela cavou um buraco, sepul- e criados negros do âmago preto de certa árvore, cavalos de
tou-o vivo e voltou para casa. Sua mãe, vendo-a voltar, ralhou madeira de bacuri e bois de piquiá. Ele chamou os dois enviados
com ela: que tivesse trazido o menino porque ela, a av6, o criaria; e mostrou-lhes a sua fazenda. Depois mandou chamar Amcukwéi
e quando ela foi lá, desenterrou o menino e depois de lavá-lo o para que morasse com ele. Aukê é o Imperador D. Pedro 11."
trouxe para casa. Amcukwéi não lhe quis dar de mamar, mas a
avó o amamentou. Mas o pequeno Auké se levantou e disse para A versão krahó foi publicada por H. Schultz. 44 B uma
sua mãe: 'Então não me queres criar?' Amcukwéi, muito assus- narração extensa, de que segue o resumo 45:
tada, respondeu: 'Sim, eu te criarei'.
Auké cresceu muito rapidamente. Ele possuía o dom de "A mãe de Aukê ficou grávida durante muitos meses além
transformar-se em qualquer animal. Quando tomava banho ele do tempo natural. Ao nascer, Auk~ já sabia transformar-se em
se transformava em peixe e na roça assustava os seus parentes
diversas coisas. Quando um menino da aldeia ia visitar o recém-
em forma de onça. -nascido, Aukê transformava-se num menino da sua idade e corria
Então o irmão de Amcukwéi resolveu ·matá-lo. Estando o ao seu encontro. Visitado por um velho, Aukê ia recebê-lo ca-
menino sentado no chão comendo bôlo de carne, 43 ele bateu por minhando apoiado a um pau, e de barba branca.
trás com o cacete, enterrando-o depois atrás da casa. Pela manhã
Os pais e avós de Aukê ficaram com medo de sua magia e
seguinte, porém, o menino cheio de terra voltou para casa: 'Avó,
resolveram matá-lo. $aindo juntos à caçada, o avô chamou Aukê
disse ele, por que me mataste?' 'Foi teu tio que te matou, por- para perto de· um abismo, empurrando-o. Mas Aukê transfor-
que andas assustando a gente'. 'Não, prometeu Auké, eu não
farei mal a ninguém'. Mas, logo depois, brincando com as outras ·
( mou-se em folha seca e deslizou para baixo. Logo correu de
volta para a aldeia.
crianças, ele se transformou novamente em onça. Seu tio, então,
resolveu desfazer-se dele de outra maneira: chamou-o para ir O avô lamentava a morte do neto; ao voltar da caça, entre-
com ele buscar mel. Eles passaram duas serras. Chegando ao tanto, ficou surpreso ao vê-lo brincando no pátio.
cume da terceira, ele agarrou o menino, atirando-o do abismo. Pela segunda vez o avô empurrou o menino pelo abismo,
Mas Auké transformou-se em folha seca, desceu vagarosamente ., mas Aukê salvou-se de novo, transformando-se em folha seca.
em aspirais para o chão. Ali ele cuspiu e de repente se ergueram Mandaram então fazer uma fogueira e jogaram Aukê dentro
em redor do tio dele rochedos íngremes dos quais este debalde dela. Ele então morreu.
procurou escapar. Auké voltou para casa dizendo que seu tio Seus pais lamentaram muito a sua morte. Passado algum
vinha atrás dele. Como depois de cinco dias ele ainda não tivesse tempo, visitaram o lugar onde mataram Aukê. Ao se aproxi-
voltado, Auké fez desaparecer outra vez os rochedos, e então, marem escutaram ruídos de gado e aves, que desconheciam, e
finalmente o tio conseguiu voltar; ele estava quase morto de fome. julgaram ser Aukê que ressuscitara.
Logo depois, concebeu outro plano para matar Auké: sen- De volta à aldeia contaram o que viram aos índios, reuni-
tando-o numa esteira, deu-lhe comida, mas Auké disse que bem dos no pátio. Estes não quiseram dar crédito à narrativa e resol-
sabia o que ia fazer com ele. Depois o tio o derrubou pelas veram averiguar, por sua vez, os fatos.
costas com o cacete e queimou-lhe o corpo. Todos abandonaram Chegaram à casa de Aukê, que os recebeu bem e os con-
em seguida a aldeia, mudando-se para um lugar bem longe. vidou para comer. Os índios aceitaram, depois de muita relu-
Amcukwéi estava chorando; mas sua mãe disse: Por que estás tância, vencido o temor inicial.
chorando agora? Tu mesmo não quiseste matá-lo?' Aukê já tinha se tornado cristão. Reconheceu pai e mãe.
Algum tem po depois Amcukwéi pediu aos chefes e conse- Resolveu distribuir algumas dádivas entre os índios. Ofereceu
lheiros que mandassem buscar a cinza de Auké e estes mandaram primeiro uma espingarda, mas os índios a rejeitaram, preferindo
o arco, pois tinham medo de atirar com a espingarda. Aukê
48 Segundo Nimuendajú, o aprendiz de xamã deve abster-se de bolos de entregou a espingarda ao negro, que logo atirou com ela.
carne. ~ELAITI, J. e. "O Mito ... e ? ~amã." ln: Mito e Linguagem Social.
p. 65. Ve-se que nenhuma referencia e realmente gratuita num mito .. . 44 ScliuLTZ, H. "Lendas dos índios Krahó." RMP. p. 86-92.
Auké recusa-se a aprender a controlar sua estranha natureza .. . 4:1 ld., ibid. p. 92-93.
270 CAP. X - DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO ••• DOIS PARALELOS . COM JURUPARI: O MITO... 271

Os índios despediram-se de Aukê prometendo voltar. Aukê Mas o que Jurupari faz, ele o faz (ao menos é isto que o mito
pediu-lhes que o chamassem Intxú (pai). procura acentuar) em nome do grupo, daquilo que o grupo resol-
Se os Krahó não tivessem queimado Aukê, hoje seriam iguais veu considerar como sagrado, como mais importante que a pró-
aos cristãos.. pria mãe,. que a própria família. O seu crime, poder-se-ia dizer'
é que ele foi "patriota" demais, intransigente demais por amor à
É curioso como o tema lembra em parte os mitos da "cabeça lei. ..
rolante", pela dificuldade de desfazer-se do ser incômodo. Auké não: com o seu comportamento ele não castiga ninguém
Compare-se, por exemplo, o mito tembé colhido por Nimuen- que tenha infringido tabus. 48 O seu comportamento é absoluta-
dajú e reeditado por Koch-Grünberg em Indianermi:irchen aus Sü- mente gratuito. Ele é uma ameaça ao grupo a que ele pertence,
damerika, página 191 ("Der rollende Totenschãdel"). É uma mas que em nada representa. Na realidade, ele peca por uma total
história de caçadores desabusados e do castigo que lhes é dado falta de respeito por sua própria cultura. Em vez de ouvir os
por Curupira. Só um menino e seu pai, mais prudentes, escapam, conselhos dos mais velhos com submissão, ele fala com eles de
mas a cabeça de um dos caçadores mortos os segue. Apesar do igual para igual (é isto certamente o que quer dizer o mito com
homem atraí-la a um alçapão e enterrá-la, ela se livra e, munida a capacidade que ele tem de mudar seu tamanho conforme o da
de asas e garras, devora a quem se atravessa em seu caminho. pessoa que vem falar com ele) . Em vez de se tomar um exemplo
Temos aí ao menos três traços comuns com o mito de Auké e o para os mais novos, ele nada tem a ensinar às crianças menores,
de Jurupari: porque ele nada aprendeu: é tão irresponsável quanto um bebê.
1 . tendências canibais do ser mítico; Enfim, ele se recusa ao processo de socialização.
2. indivíduo pertencente ao próprio grupo; Castigado, ele não sofre realmente com o castigo: escapa
46
ileso, não se emenda. Reage mesmo contra quem tem o direito
3 . dificuldade de se desfazer do ser anormal. de admoestá-lo. Os rochedos íngremes que se erguem em tomo
Poderíamos, então, dizer que Auké se identifica de certa for- do tio bem simbolizam a tragédia final. O diálogo se torna im-
ma com Jurupari? possível: o jeito é expulsar o rapaz, sacrificá-lo, para que ele não
Sim e não, ao mesmo tempo. Sim, no sentido de o mito destrua a cultura. :E: triste e lamentável para ambas as partes, mas
obedecer, em linhas gerais, ao mesmo esquema, dele ser fabricado é um conflito sem mediação, pois transformar-se eni branco é re-
com o mesmo "material mitológico". Não, porque Auké em abso- . nunciar a todos os seus próprios valores culturais. É ou a civiliza-
luto não representa o que representa o Jurupari da "leggenda" ... ção do branco ou a cultura tribal, não há outra escolha.
Procuraremos abordar inicialmente o mito focalizando a sua É ·bem curioso o profundo sentido histórico que tem o episó-
mensagem mais recente, após as experiências e desilusões por que dio do abandono da aldeia e a mudança para algum lugar longe
passaram os índios em contato com os civilizados, isto é, o dilema dali. É o recuo de toda a tribo indígena diante do branco. Mas
que representa, para o indígena de hoje, a opção entre a fidelidade também a volta ao lugar, ou melhor, à situação de contato, foi
para com a sua cultura e a adoção da civilização. inevitável. Diante da fatalidade, o índio se ilude a si mesmo: se
Roberto da Mata 47 tem razão em identificar Auké como algo ele tivesse permitido o aniquilamento das tradições, ele é que teria
insólito, desintegrador, terrível, porque não reconhece as catego- os bens materiais do branco. 49
rias estabelecidas pela cultura. Em parte Jurupari é terrível por .· 48
isso também: afinal, uma entidade antropófaga, uma entidade que Claro que, no fundo, a gratuidade não é total. Na versão timbira, por
exemplo, a mãe de Auké é uma "rapariga de pátio". Não temos idéia de
não vacila em castigar a própria mãe, a qual se revela mesmo uma qual a atitude do grupo frente a um eventual filho de uma moça nessas
mãe extremada, heróica, na assistência ao filho, é algo terrível. condições que, evidentemente, não teria um pai determinado. O fato do
tio materno ter uma importância ritual maior que o pai não significa que
46 Já por uma comparação dos mitos resumidos acima se percebe como, o grupo aceite facilmente que um indivíduo não tenha pai. De resto, a
apesar disso, dá-se aos temas soluções e significados diferentes. outra versão também se enquadra no tipo de mitos do "filho da cobra".
47 MATA, R. da. "Mito e Autoridade Doméstica". ln: Antropologia 3: ensaios 49 Sabemos que infelizmente é o oposto que ocorre: os índios são integrados
de Antropologia Estrutural. na parte mais baixa da escala social dos civilizados.
272 CAP. X - DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO •.. DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO... 273

E aqui deparamos finalmente com a crença de que as rique- a direção em que ocorre a perda do bem é inversa: enquanto o
zas, os bens materiais do branco, têm que ter alguma origem má- ancestral é "expulso do paraíso" por uma falta ritual ou incom-
gica. 50 Afinal, Auké é bruxo e, se ele pode se transformar em ve- preensão de uma mensagem, e · o grupo todo, em conseqüência
getal e em animal, nada o impede de se transformar também em disso, perde as vantagens iniciais, em "Auké" e "Korobona" é o
D. Pedro II. A crença na magia persiste como um último consolo. elemento expulso pelo grupo (pelo seu caráter insólito, perturba-
Em outro artigo em que trata do mesmo mito, 51 Roberto da dor, bem mais acentuado ainda em Auké do que no filho de Koro-
Mata, ressaltando a mensagem, digamos assim, negativa, da histó- bona) que conquista, por assim dizer, a imortalidade.
ria, chega a dar-lhe o nome de "antimito", pois "enquanto o mito Mas o processo de mitização é o mesmo. A necessidade de
visa ressaltar conquistas, relações sociais e valores criados para a mitizar os fracassos, os insucessos, às vezes é maior ainda do que
sociedade tribal, o antimito seria o primeiro esforço feito pela a de mitizar as conquistas, pois assim como (pela noção de equilí-
sociedade indígena no sentido de encontrar um lugar para o homem brio, sempre tão presente ao pensamento primitivo) uma conquista
branco no seu sistema de classificações e também de forjar para é sempre paga com alguma perda, uma derrota precisa ser com-
si um instrumento que permita controlar, ainda que num plano pensada, senão por alguma vantagem "real" (que, ao que parece,
ideológico, os eventos do contato e da dominação da sociedade no caso dos W arrau frente aos Karibe e dos Timbita frente aos
envolvente." 52 brancos, nem os próprios interessados conseguem idealizar) pelo
Devemos contudo ressaltar que não é somente após o contato menos por um sentimento de que este mesmo adversário se origi-
com o branco que surgiram mitos desse tipo. O mito de Korobona, nou no próprio grupo, possibilitandq assim (como bem o observou
de que falamos atrás, seria, neste caso, outro exemplo de "anti- Roberto da Mata) uma mediação, ainda que mais ilusória do que
mito", entre muitos . . . 53 real. 5 4 Talvez se possa também perceber uma atitude (semelhante
à da raposa frente às uvas inacessíveis) : a de poder dizer que só
Como vimos, Korobona mostra o mesmo processo de mitiza- não se conseguiu o que Auké conseguiu por não ter querido, por
ção de um outro grupo (karibe), cujo poderio e invencibilidade ter preferido continuar fiel às tradições tribais.
devem ter angustiado os Warrau por muito tempo. O que nos parece importante ressaltar é que o mecanismo da
E o que dizer então de uma grande maioria de mitos de cria- mitização é fundamentalmente o mesmo. Antes do contato com o
ção que mostram não uma conquista do homem mas a perda de branco, sempre houve contatos com os grupos vizinhos, e certa-
um bem. Neles, o herói é, muitas vezes, como Auké, um "herói mente nenhum grupo terá existido que não tenha tido necessidade
às avessas"; tem, como ele, certas características de trickster. de mitizar algum fracasso.
Tomemos como exemplo os mitos de perda. da imortalidade. Claro, Não há uma quebra do processo de mitização, com a vinda do
branco (o que há é uma intensificação de derrotas e frustrações
50 A idéia é comum entre os indígenas ...
Veja-se por exemplo o artigo de QUEIROZ, Maurício V. de. "Cargo-Cult para o índio) .
na Amazônia." América Latina. out./dez. 1963. Ano 6, n. 0 4. (Observações Aliás, exatamente o mesmo processo que ocorreu no Velho
sobre o milenarismo tukuna.) " ... ritos mágicos, poderão fazer com que os Continente, na Europa, durante a Idade Média, por exemplo.
navios e aviões tragam as provisões que desejam .. . " (p. 58). Mitos que originalmente explicavam a fecundidade e a sorte na
51 MATA, R. da. "Mito e Antimito entre os Timbira", já citado.
52 Id., ibid. p. 80.
caça, conseguidos por meios mágicos, reaparecem, com a mesma
53 Seriam do mesmo tipo uma série de mitos da "mulher-estrela", já anali-
. sados por Lévi-Strauss e que procedem principalmente da área jê. 54 Percebe-se, também, que há um paralelo entre a figura de Auké e a
Quanto a mitos que apresentam paralelos com o de Auké, por também dos "chefes" índios nomeados pelo Governo Federal, em substituição aos
tratarem de situações de contato e de aculturação, veja-se por exemplo o chefes primitivos das aldeias, depostos pelo antigo SPI, conforme conta
mito de Etoriká (ScHULTZ, H . "Informações Etnográficas sobre os Umutina." Schultz em "Lendas dos índios Krahó" : "Estes 'chefes' não têm, geralmente.
RMP. p. 250-53). O herói umutina acaba transformado . . . em touro. O nenhuma interferência na vida interna da sociedade krahó. Respondem so-
porquê dessa transformação se toma mais claro quando se fica sabendo que mente a todas as negociações externas, quer dizer, aos entendimentos entre
na Bacia do Paraguai, entre os "Kinikinaus", FONSECA, J. Severiano da os índios e os encarregados do Posto Indígena ou neo-brasileiros. Os índios
(Voyage autour du Brésil. p. 114) ouviu dizer, para se dar uma idéia da denominam-nos 'donos da aldeia' " (p. 51). Como Auké, eles não são os
força da onça, que ela só teme o touro porque este é um homem. verdadeiros representantes da tribo ...
274 CAP. X - DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO ••• DOIS PARALELOS COM JURUPARI: O MITO. • • 275

estrutura, confeccionados com materiais ou personagens semelhan- vel" 59 a quem se abandona a heroína do mito de Autxepirire. Sua
tes, para explicar a obtenção, também por meios mágicos, da fe- avó (mais velha, mais lembrada dos ritos antigos) bem que o reco-
cundidade e da riqueza. 5ts . nhece. A geração mais nova, da mãe, do tio materno vê nele
E o que são contos como os da "Mesa, burro e porrete má- apenas um menino insubordinado que deve ser corrigid~. Daí a
gicos" ou do "Soldadinho pobre, a bruxa e os cães encantados", tristeza e resignação de Auké, fazendo-o não mais fugir ao sacri-
análogos a alguns contos recolhidos por Vilma Chiara entre os fício-: "mas Auké disse que bem sabia o que ia fazer com ele".
Krahó, 56 senão expressão de idéias de cargo? ... A mais nova geração não o reconhecia mais como "pai terrível".
Passemos agora a um enfoque ligeiramente diverso, pelo qual Em vez de se sacrificar alguém a Autxepirire (talvez algum rito
se verá toda a dinâmica do mito através do tempo, só possível, análogo ao da festa da máscara Bõ dos Gorotiré), sacrifica-se,
aliás, devido à ambigüidade, maior ou menor, mas sempre pre- embora, não o próprio Autxepirire, seu equivalente Auké.
sente, de todas as forças que se opõem. Aqui, porém, a ambigüidade continua: não é Auké por sua
Dissemos há pouco que o mito de Auké exprime uma atitude vez também um equivalente masculino da heroína de Autxepirire,
de pretenso orgulho: em vez de seguir o comportamento desinte- com suas provocações rituais "pedindo" para ser sacrificado? Não
grador de Auké, tornando-se branco, o grupo preferiu continuar é ele uma réplica do que imaginamos que representou original-
fiel às tradições tribais. Quais tradições tribais? Evidentemente, mente o menino V u-~ú? E, neste caso, a geração velha, representa-
o processo de socialização da tribo, as atitudes adequadas e coeren- da pela avó de Auké (na versão Timbira) não é menos culpada
tes para com os parentes e co~panheiros de clã, estabelecidas pela que a nova (pois realmente Auké é as duas coisas ... ) , uma vez
cultura. Contudo, este pretenso orgulho encobre sempre (e isto que o "egoísmo maternal", a "fraqueza" do amor pelo neto, a
não só no caso específico dos Krahó) um velho sentimento de induz a querer subtraí-lo de um sacrifício necessário.
culpa. 57 O homem peca porque não entende ou imagina não Contudo, nessa dupla negação ou nessa dupla incompreens-
ter entendido uma mensagem; o homem peca porque não reconhe- são de que o grupo se confessa culpado, novamente constatamos
ceu seu deus. Este é o aspecto mais profundo do drama. Pois é que duas negações equivalem a uma afirmação: negado como "ser
claro que Auké, o nascido da rapariga de pátio (apenas outro terrível" pela geração nova, negado como vítima do "ser terrível"
nome para a "mulher dos bichos" 5 8 ) , é o mesmo "ser terrí- pela geração mais velha (negando-se-lhe a transformação em es-
trela ... ) , o aspecto sobrenatural ressurge, mas agora no mundo
<S5Um estudo interessante sobre as transformações de um tema é o artigo exterior dos brancos, de que D. Pedro II é o maior pajé. Por outro
de LE GOFF e LE Roy LADURiE ("Mélusine maternelle et defricheuse." lado, Auké pertence ao grupo, pela geração nova reconhecido, em
Annales - Economies, Sociétés, Civilisations), em que se mostra que o
"Roman de Mélusine" já era conhecido na Europa no século XIV e não, vez de "pai terrível", filho desobediente e rebelado que precisa ser
como pensava Sant'Anna Néry, apenas a partir do início do século XIX (C/. castigado; pela geração· velha, igualmente como humano, ·como
SANT'ANNA NÉRY. Folk-lore brésilién. p. 266). A "Mélusine", mulher-dragão, neto, que não deve ser sacrificado ao "ser terrível". Este reconhe-
ou mulher-serpente, é uma congênere das nossas mulheres-animais (Maba, a cimento humaniza 60 Auké, mesmo após sua expulsão do grupo,
"esposa-abelha'', por exemplo) e das "mulheres-estrelas" jê.
56 V., por exemplo, "Josia" (CHlARA, Vilma. "Folclore Krahó." RMP. p. já no mundo exterior: D. Pedro II é uma figura "real", histórica,
356-64) . . . O herói recebe de Deus uma toalha mágica, que contém, além gente (apesar de se encontrar no mundo dos brancos, que, eviden-
de instrumentos de música, tudo em matéria de comida e bebida. Apesar temente, são grandes mágicos), e continua a ter a qualidade que
dos elementos de origem civilizada, o sabor indígena do relato é notável do nenhuma das gerações lhe negou, a única que ambas lhe queriam
começo ("O pai dele era pobre, cristão, cheio de pulga . .. ") até o fim, e
não acreditamos, mesmo que, necessariamente, haja influência de contos reconhecer: a de ser uma criatura humana como outra qualquer.
europeus. Como tal, D. Pedro II gentilmente lhes estende a mão. . . (no
57 O sentimento de que se foi ingrato aos deuses e estes por isso deixaram mito, é claro) .
seu povo. . . ou a consciência do pecado original, que dá no mesmo.
58 Na versão krahó, a anormalidade que também é representada pelo nasci-
mento de gêmeos, frutos da união com mais de um ser (onça e gambá)
ou de ser com duas naturezas (o que dá no mesmo), é simbolizada por
50
uma gestação anormal (como se o nascimento de gêmeos, na realidade, Aliás, a palavra "Autxepirire" contém evidentemente a palavra "Auké".
devesse levar 18 meses ... ) . 60 No sentido universal.
AINDA O PROBLEMA DO PREÇO. • • 277

Não quererá isto dizer que Warimi só conseguirá dar o passo


de Quetzalcoatl quando ele conseguir, com idêntico resultado (o
de obter sustento para o grupo), num plano puramente técnico
o sacrifício da "virgem de madeira"? '
CAPÍTULO XI Como "onça dona do fogo", manejando o fogo como ela, eJe
poderá devorar a "virgem de madeira", substituída por uma sim-
AINDA O PROBLEMA DO PREÇO A PAGAR PELA ples tora de buriti: desde que a agricultura passe a prover realmen-
CONDIÇÃO HUMANA. . . QUEM SE SACRIFICA AO te o sustento do grupo, o sacrifício real se toma aparentemente
"SER TERRlVEL"? dispensável.
Mas, se ele se torna dispensável, por que Warimi deveria dar
o passo de Quetzalcoatl?
Note-se que, após toda a aventura de Warimi com as onças, E, não havendo aparentemente diferença entre a economia
o episódio final é uma história do tipo "viagem ao céu" ou, antes, barasana e a tariâna ou baniwa, por que notamos algo diferente
do tipo "viagem de aventuras", 1 pois acreditamos que nas Guia- (algo que representa justamente um passo em direção a Quetzal-
nas a conotação celeste (embora neutralizada pela figura do urubu) coatl) nas concepções aruák, enquanto que o espírito das flautas
se deve ao encontro de duas culturas, uma aruák, 2 a outra karibe, jurupari permanece (pois que Warimi não se auto-imola) feminino
esta última apresentando, no momento em que começou a estabe- entre os Barasana? 7
lecer relações com a primeira, concepções religiosas não muito dife- Quanto à primeira . pergunta, parece lógico que, apesar do
rentes das de tribos jê como os Krahó. 3 progresso técnico, apesar do aprendizado recente pouco ritual re-
E há um elemento importante, nesta última parte da "História presentar um instrumento de luta contra o "ser terrível", à medida
de Luna": Warimi se recusa a uma "iniciação" pelo fogo. 4 Wari- em que ele substitui a "vítima humana efetiva" cada vez mais por
mi identifica-se com a mãe, mas não o suficiente para ser devorado um "sacrifício-trabalho", um "sacrifício-artesanato" s na forma de
em seu lugar: é por isso que ele se comporta em relação ao fogo trocas com outros .grupos, mas também nos próprios "sacrifícios"
exatamente como os dois heróis cunhados do mito Krahó que ven- ao "ser terrível" 9 ) , a contradição interna (fiel ao princípio de que
cem o fogo, passando por cima dele, sem se deixarem queimar. 5 o que existiu uma vez, existirá sempre) continuará a martirizar o
~ bem provável que esse "Kloopók" seja uma alusão ao trabalho homem: 10 se ele é, em parte, a "onça dona do fogo", o próprio
da coivara. a. fogo, por outra (por parte da mãe) ele será sempre de madeira. 11

1 Em "Viagem de Aventuras" (ScHULTZ, H . "Lendas dos Indios Krahó.'' 7 V. cap. "História de Luna." p. 175.
RMP. p. 123-33 ), aparecem obstáculos mágicos e animais, sem que real- 8 Huizinga enfatizou a necessidade do aspecto lúdico como fator funda-
mente outro grupo e nem mesmo qualquer ser sobrenatural (e neste aspecto mental de realização do homem. De fato, não é o trabalho em si, por mais
a História de Warimi se aproxima mais da "Viagem ao Céu" guianense) esforço que ele represente, que se torna enfadonho, mas sim o trabalho
seja mencionado. · esvaziado de seu sentido ritual que por sua vez sempre implica em um
2 Corresponderia possivelmente a uma primeira vaga "aruã", no caso do sentimento de sacrifício inútil.
9 Lembremos que Warimi deixou em seu lugar, na rede da onça, um banco,
Amapá.
a ~ claro que as concepções que se refletem nas "Lendas dos lndios Krahó", que a mesma devorou.
recolhidas por Schultz, já estão longe das que deviam ter existido no 10 É o preço pago pela condição humana, por ter adquirido consciência, por
começo da colonização. Ainda assim, percebem-se nelas muitos "arcaísmos" ter provado os frutos da "árvore do bem e do mal".
11 No Popol-Wuh, a segunda criação, a dos "homens de madeira" termina
que já não estão presentes em outras mitologias.
4 _V. neste trabalho, p. 204 et seqs. com a destruição pelo dilúvio, conjugada com a perseguição movida por
5 V. ScHULTZ, H . "Viagem de Aventuras." Op. cit. p. 126-27. "O Kloopók seres demoníacos (duas onças e duas aves) e transformação dos homens
é o fogo mesmo que sai por dentro do tora do pé de buriti." "O fogo em macacos, uma transformação que possivelmente corresponda (além das
sai em jato e intervalos regulares." Acreditamos que o jato corresponda ao suas analogias com o mito de origem dos animais opayé-xavánte, a que
acompanhante-noviço do pajé (o iniciando) e o fogo contido, ao iniciador, aludimos atrás) ao internamento nas florestas da parte da população que
que já o dominou em viagens anteriores. não conseguiu compreender (aderir) a nova ideologia ... assim como ocorreu
6 V. nota anterior. com os "hereges Tohil, Awilis e Hakawic . . . enfim com população que
278 CAP. XI - AINDA O PROBLEMA DO PREÇO ••• AINDA O PROBLEMA DO PREÇO. • • 279

E, a partir do momento em que, baseado na agricultura, o uma dedução absurda. Apesar de todas as misérias e fraquezas
sedentarismo determina um aumento considerável da população, em todas as sociedades (e isto desde o momento em que 0 home~
e possivelmente só a partir daí, surgirão as condições necessárias se deu conta de sua natureza), sempre houve muitos que souberam
para que, da autodestruição gratuita que representaria para os sacrificar pelos outros a própria vida. É o sacrifício do guerreiro
Barasana o sacrifício de Warimi, 12 se possa passar à compreensão que fica para trás, para enfrentar o inimigo (numa luta que sabe
como sacrifício sublime e redentor, da autodestruição de um indi- de antemão resultar infalivelmente em sua morte), para que 0
víduo que já passou e venceu as provas de iniciação, um homem resto do bando tenha tempo de escapar; é o sacrifício do esquimó
que está, portanto, apto e capacitado, tanto como elemento pro- qu~ não mais consegue contribuir para o sustento da família, que
dutor e sustentáculo do grupo quanto como mediador atuante e vai ao encontro da morte na neve, ao encontro do urso branco
indispensável entre o grupo e as forças sobrenaturais. Trata-se do que o devorará (e que por sua vez será um dia comido pelo
sacrifício de um indivíduo que já se tomou ritualmente um inicia- homem); é o sacrifício do aróe et-awára-áre borôro que se trans-
dor. 13 forma em animal para que o grupo o cace. 16
Mas, se é só um ser já ritualmente iniciado que pode se tornar Trata-se, contudo, de sacrifícios que assumem outras formas
um Quetzalcoatl, isto quer dizer que, de certa forma, este tipo de .e não se transformam, se podemos falar assim, em exclusividade
concepção do sacrifício implica na existência de uma classe sacer- de uma classe sacerdotal. É verdade que há o exemplo do aróe et
dotal já bastante individualizada. 14 aw~ra-áre, mas ele só ocorre, ao que parece, em casos extremos
Isto não quer dizer, de modo algum, que o homem só apren- de insucesso na caça. Não é um auto-sacrifício' instituído oficial-
deu o auto-sacrifício com o aparecimento da agricultura. 15 Seria mente, que ocorre em ~eterminadas épocas do ano · e para cuja
preparação o sacerdote gasta toda sua vida no mosteiro. .
permaneceu ou voltou ao estado nômade. Assim mesmo, baseado nas pala- Auto-imolação na fogueira tem que ter um sentido muito
vras "es sind dies die Menschen auf Erden" ("estes são os homens profundo de compensação para o grupo (de salvação, garantia de
sobre a Terra") Schultz observou que não há dúvida de que os homens
de madeira eram homens de verdade. . . ScHULTZ, W. Einleitung in das boas colheitas), senão deixa de ser sacrifício e passa a ser um
· Popol-Wuh. p. 41. simples suicídio. O herói que se suicida, ou é fraco e sucumbe na
12 Lembremos que os sacrifícios ao "ser terrível" sempre (no que poderíamos luta, ou ac'1ou que não valia · a pena ser homem. O herói que se
chamar de estágio krahó arcaico dos ritos vú-tú) são de crianças (o sacri- sacrifica, ao cQntrário, o faz porque crê com todas as suas forças
. fício sendo concebido por outro lado como o fracasso de passar na iniciação,
haja visto que a criança deixada para trás tem dificuldade, não consegue que vale a pena ser homem.
se transformar, como o fazem seus irmãos. V. mito de Autxepirire ... ). Na Mas, se no Uaupés a agricultura ainda não se tornara impor-
fase em que a morte é substituída tão-somente pelo coito ritual, a sacri- tante a ponto do homem se sentir realmente identificado com ela
ficada é a mulher que nunca vence verdadeiramente uma iniciação, nos (apesar da derrubada e coivara) e a ponto de permitir uma densi-
mitos do tipo ''História de Luna" barasana.
13 Nos textos de Sahagún, reproduzidos por SÉJOURNÉ (Pensamiento y reli- dade populacional grande, como nas áreas do milho da América
gi6n en el México Antiguo. p. 66-67), Quetzalcoatl já existe como deus, Central, quem trouxe para a região a ideologia da "água-queimada"?
antes de sua queda. Tanto assim que é preciso que os outros deuses o Achamos que Koch-Grünberg tinha razão ao atribuir aos
forcem a pecar (provocando sua inconsciência, pois conscientemente ele não
o faria), para que o processo de redenção pudesse ter início. . . A diferença Aruák a instituição· das sociedades secretas masculinas ...
entre essa concepção e a de Cristo é que, embora ambos tenham que se É verdade que o Uákti dos Tukano do Rio Tiquié morre na
tornar homens (Cristo pelo nascimento; Quetzalcoatl porque, olhando-se no fogueira, tal qual o Ualri da "leggenda". Mas há uma diferença
espelho, ganha um corpo), este último peca inconscientemeI\te e redime no importante: em primeiro lugar, ele não é concebido como alter
seu pecado, o pecado do seu povo todo, enquanto . que Cristo é concebido
· como ritualmente puro até o fim e toma apenas simbolicamente a si os
pecados de seu povo. l6 ALBISEITI e VENTURELLI. Enciclopédia Bororo. p. 116. Entre os poderes
14 REDFIELD (0 Mundo Primitivo e suas Transformações) já analisou, den-
do ar6e et-awára-áre figuram o de transformar-se em animal venatório. Em
tro desta perspectiva, a evolução da sociedade no Yucatã, assim que achamos geral, o xamã muda-se em anta, arara, lontra, ou peixe, para satisfazer os
dispensável nos determos nela. desejos dos Borôro. Se, no exercício deste último poder, for flechado, morre
15 Para JENSEN (Mythes et cultes chez les peuples primitives. p. 78), o somente o animal .que ele encarna. Embora sofra as dores das feridas, volta
auto-sacrifício teria surgido realmente no neolítico. . . mas ele se refere justa- log? a ser ar6e et-awára-áre. Acreditamos, contudo, que se o conceba,
mente à instituição do rito religioso. muitas vezes, como tendo sucumbido em conseqüência desse seu sacrifício.
280 CAP. XI - AINDA O PROBLEMA DO PREÇO ••• AINDA O PROBLEMA DO PREÇO. • • 281

ego do herói tribal; não é filho da "mulher de madeira", pois é Talvez um mito a que já nos referimos antes possa nos indicar
um ser constituído de ossos, à semelhança de Jnapirikuri: é o "ser uma pista. Trata-se de um mito iroquês dos "irmãos hostis" 19
terrível", sem dúvida, mas sua natureza vegetal, se existe, não é · em que a mãe dos gêmeos é fecundada pelo contato de duas fle-
enfatizada. Como o Auké dos Krahó, o Uákti do Tiquié dá a chas, colocadas sobre seu ventre, formando uma cruz, 20 sendo
impressão de "ter sido imolado" numa época mais recente que o uma delas com ponta de obsidiana, a outra com ponta feita de
Jurupari-Ualri da "leggenda" de Stradelli ou o Kówai do mito madeira dura. 21
recolhido por Saake. Ao menos, temos aí a prova de que o homem se identi-
22
Nas lendas aruák, é o próprio herói tribal que ordena a fica com as armas e os artefatos que ele produz. Na dualidade
execução de Jurupari ou de qualquer modo se sente identificado "eterno-perecível", sem dúvida, o osso corresponde à pedra e a
com ele, aproximando-se realmente muito do auto-sacrifício, que, madeira à carne. 2 3
aliás, é simbolizado nos mitos. 17 E, embora a agricultura, devido às condições de sedentarismo,
Mas aqui chegamos a um problema que preocupou Zerries, promova um desenvolvimento do artesanato em geral, é evidente
quando estudou o endocanibalismo na América do Sul. Parece que a confecção de armas de madeira independe do sedentarismo.
que ele não conseguiu resolvê-lo inteiramente, e quanto a nós, não Além do mais, numa economia pré-agrícola, a coleta de raízes,
cremos que possamos resolvê-lo, pois falta-nos, além de tudo, frutos, nozes e sementes em geral, fungos e brotos, constitui logica-
isto é, além da capacidade de Zerries, conhecimentos melhores so- mente a complementação da dieta de carne. Isto parece indicar
bre os povos endófagos atuais, particularmente quanto à mitologia. que não foi necessário ,esperar pelos inícios da agricultura para
A endofagia de cinzas é praticada principalmente por popu- que o homem se sentisse identificado com o vegetal (sem levar
lações nômades; e um nomadismo prolongado evidentemente acaba em conta que a coleta, em certas áreas, se tomou tão importante
por "empobrecer" também as concepções religiosas, quando estas
se originaram durante uma fase de maior sedentarismo. (0 fato I9 KUNIKE. "Kosmogonie der Irokesen" ("Die feindliche Brüder"). ln:
de se encontrar, entre povos como os Tirió, uma lenda como a de Priirie-Indianer Mi:irchen. p. 73 et seqs. O mito tem muitos pontos em co-
·mum com o nosso mito dos gêmeos. (Não se trata, evidentemente, de um
"Ometanimpe", que aparentemente só se pode explicar por uma mito de povo pré-agricultor.) ·
filiação ao Popol-Wuh, mais a existência de inúmeros centros cera- • i 20 .E: tentador pensar nas analogias com a cruz centro-americana, o signo do

mistas de estilos que desapareceram simplesmente, sem deixar o movimento, que acreditamos, como dissemos atrás, coincidir com a ideologia
do mito dos gêmeos (com a identificação de um dos gêmeos, aquele que
mínimo vestígio, nos dão a certeza de que a volta ao nomadismo, . deve ser sacrificado, como sendo o povo com que se guerreia).
e conseqüente depauperamento cultural de populações que emi- 21 O marido primevo que assim fecunda sua mulher (filha da mulher adúltera
gram, conquistando novas terras, não só é um fenômeno muito punida) é uma tartaruga, animal que freqüentemente simboliza o homem
na condição primordial em que se o concebe como pré-homem: antes vege-
freqüente, como deverá apresentar até um certo caráter cíclico.) tariano do que carnívoro, pois, para se tornar um caçador por excelência,
Assim, poder-se-ia perguntar: as idéias básicas que levaram é preciso que, além de já possuir o fogo, se torne um bom fabricante de
armas, o que já se define como um passo adiante.
ao costume da endofagia de cinzas não teriam se originado numa 22 Como já o observamos, aliás, ao analisar o mito de Warimi.
população sedentária? Em outras palavras, tem Volhard, citado 23 Aliás, a palavra "deus" nas línguas tukano é derivada de "osso" (como
por Zerries, 18 razão ao afirmar que a identificação do homem com g6 á = =
osso; g6 á mee deus-força suprema (Cf. REICHEL-DoLMATOFF.
Desâna. . . p. 36). Isto corresponde às observações de ELIADE (E/ Chama-
a planta é típica dos povos agricultores?
nismo y las Técnicas Arcaicas dei Éxtasis. p. 135): " ... en los pueblos
Mas então com o que se identifica o homem pré-agricultor? cazadores los huesos representan la fuente esencial de la vida, tanto del
Tão-só com o animal ( a carne, representando o aspecto perecível, hombre como dei animal; manadero a partir del cual la especie se recupera
a medida de su deseo".
os ossos, o elemento eterno)? Em parte sim, mas é evidente que
- .
nao e" so,, isso.
Quanto à oposição madeira-pedra, veja-se um mito kuikuro publicado
por VILLAS BoAs, O. e C. (Xingu, os lndios, seus Mitos. p. 175), em que
se explica que os índios um dia morrerão porque responderam ao grito da
1í V. adiante. neste traba lho. árvore, enquanto que os civilizados nunca desaparecerão, porque responderam
J S ZERRJES. "El Endocanibalism o en la América dei Sur." RMP. p. 150. ao apelo da pedra que nunca morrerá.
282 CAP. XI - AINDA O PROBLEMA DO PREÇO ••• AINDA O PROBLEMA DO PREÇO. • • 283

que, tanto quanto a agricultura, determinou um aumento de popu- cluídas das atividades xamanísticas, elas também são cremadas
lação e um sedentarismo comparável ao menos com o da agricul- (não se lhes negando, portanto, o repouso eterno igual ao dos
tura de floresta). 24 homens 2 9 ) • Mais importante ainda é que todos participam (todos
Vemos assim que, mesmo que certos temas míticos tenham os parentes do morto) da cerimônia de ingestão das cinzas. :e
surgido numa fase já agrícola 25 de um determinado povo, em sua um elemento purificado pelo fogo e o rito é realmente uma co-
difusão para povos não agricultores, o simbolismo do homem ou munhão. Não se deveria ver nesta comunhão a repetição de um
mulher de madeira seria facilmente absorvido. 26 sacrifício, como os católicos o vêem na hóstia? ao
A que nos leva este raciocínio? Só uma análise dos mitos yanonami pode dar uma resposta a
Bem, se admitimos que, ao nível de bando, a forma mais essa pergunta, e não tivemos oportunidade de ler nem o material
"normal", mais fácil ou mais primitiva (levando em conta o isola- que foi publicado por Biocca 31 nem mesmo o estudo de Zerries a2
mento em que o bando vive, o contato mínimo, resumido no pro- à base dos resultados da expedição Frobenius para o sudoeste da
cesso de afastamenio dos vizinhos) de manter o equilíbrio entre o Venezuela. 33 Por alguns mitos relatados por H. Valero e algumas
mundo exterior de que extrai o alimento e o seu grupo (colocando, observações de Zerries sobre os mitos de criação dos Wáika, 34
portanto, o problema da reciprocidade na raiz de todos os pro- pa.receu-nos que a mitologia dos Y anonami é bastante complexa.
blemas humanos 27 ), é o de compensar com mori humanos a vida Mitos como o da transformação de homens em frutos e animais
que se tira aos animais, (e que, à medida em que o grupo sente apresentam entre eles uma forma mais primitiva do que o mito
que está levando uma vantagem nessa troca, ou porque procura opayé-xavánte, de .que falamos em outra parte do trabalho, a5 pois
levar vantagens na ·troca, passa a oferecer de livre e espontânea quem transforma os homens em animais não é um dos heróis tri-
vontade uma vítima, a fim de garantir a sobrevivência dos ou- bais, mas o próprio "senhor-dos-animais", "Hayaliwa", o "Hekula"
tros 28 ), vemos que deveríamos de esperar que, entre povos nôma- do veado vermelho. 86 Significaria isto que nenhum membro- do
des como os Yanonami, se encontrassem ritos semelhantes aos 29~ verdade que os cuidados para com os mortos do sexo masculino parecem
que tanto desiludiram Banner entre os Gorotiré. Por que não os m~1or~s do _que os que se dedicam a mulheres e crianças, pois, enquanto os
encontramos (ao menos entre os "Yanoama" de H. Valero)? pnmeuos sao .envoltos cuidadosamente em uma espécie de esteira de hastes
Qualquer que seja a resposta, parece que os Yanonami transforma- ou galhos, m'!1to ~em amarrada, as mulheres e crianças, nesta primeira sepul-
ram o sacrifício inicial em cerimônia de purificação post-mortem tura aér~a, s~o simplesmente colocadas em grandes cestos, recobertos com
um bala10, nao sendo pouco freqüente que a onça os derrube, para devorar
para o grupo como um todo; pois, embora as mulheres sejam ex- o cadáver (Yanoama. p. 287), o que nos faz pensar, de certa forma na
passagem do esconderijo de Méneri-Ya no mito de Warimi e em passagens
24 V. SAHLINS. Sociedades Tribais. p. 64-66. Onde a coleta é excepcional análogas de muitas versões do mito dos gêmeos.
(como a da bolota, na Califórnia e a do sagu na Nova Guiné) ela propicia 3?Que a simples cremação do cadáver não corresponde ao sacrifício em si
densidades populacionais grandes e o aparecimento da organização tribal. fica bem claro nas observações de E. Biocca de que o cadáver dos inimigos
25 Admitindo-se, em princípio, que a idéia da cremação do cadáver só possa llJ-O~tos freqüentemente também é queimado, mas fora da choupana e é
ter surgido a partir do mito do herói sacrificado .. ·. o que é naturalmente log1~0, sem que as suas cinzas sejam ingeridas. Uma coisa é, porta~to
apenas uma suposição ... queunar o morto (uma medida de purificação), outra absorver suas cinzas'
º
2 Naturalmente, o desaparecimento, pelo dilúvio, da geração dos "homens s1 Conforme relação em Yanoama. p. 459.
32 Só tivemos oportunidade de ler um retatório que àntecipou o livro: "Some
·
de madeira", no Popol-Wuh, jã não corresponde ao fim da fase nômade,
como entre os Umutina, em que ele marca, não só o fim dessa fase, como Aspects of Waica Culture", publicado nos Anais do XXXI Congresso Inter~
o fim dos Umutina como tribo. (V. p. 58-59.) nacional de Americanistas, 1954.
27 e. lógico que se trata, de certa forma, de um enfoque unilateral. Em todo ~ 3 "Die Kulturgeschichtliche Stellung der Waica-Indianer des oberen Orinoco
caso, como uma das funções mais importantes da religião parece ser, efetiva- im Rahmen der Võlkerkunde Südamerikas" (resenha de W. Saake em
mente, o estabelecimento de um equiHbrio entre o homem e o mundo que Anthropos. 1966. v. 61, p. 351).
34 ZERRIES. "Schõpfung und Urzeit der Waik.a-Indianer des Oberen Orinoko
o cerca, o que, por sua vez, implica numa definição do homem frente ao
Unive!8º• cremos que se trata realmente de um ponto de partida válido. ~ienezuela)." XXXII Congresso Internacional de Americanistas.
28 Mais ou menos como os boiadeiros amazônicos, sacrificando um dos bois V. p. 172.
36 ZERRIES observa que este mito de transformação de homens em animais
às piranhas, para que o resto passe ileso. A comparação é um pouco crua,
mas parece que é realmente uma analogia que se pode estabelecer para o sem dúvida, típico de caçadores arcaicos, também existe entre os Jivaro'
processo do "bode expiatório". Kaxináwa, Yamana (Terra do Fogo). '
284 CAP. XI - AINDA O PROBLEMA DO PREÇO ••• AINDA O PROBLEMA DO PREÇO. • • 285
.
grupo jamais encarnou entre eles este espírito e que nunca houve um rito sacrificial "interno". O sacrüício exteriorizado elimina o
entre eles sacrifícios humanos? :e possível . . . Zerries observa que interno, 42 embora a coesão do bando assim conseguida não seja
alguns destes povos dos estratos marginais não têm pajés ou têm lá muito grande. ·
pajés com funções fracas. Além disso, a julgar pelos "Yanoama" Assim, qualquer que tenha sido, originalmente, o significado
de H. Valero, a repulsa pelo incesto é tão grande que dificilmente se da cremação, o modo como se apresenta hoje entre os Yanonami
poderia pensar numa ritualização do mesmo, como entre os Tuka- não implica em qualquer noção de sacrifício e, ainda que se possa
no. 37 Por outro lado, Zerries tem a impressão de que Omáua, que imaginar que a ingestão de cinza dos mortos seja concebida como
aparece na mitologia wáika como o grande Criador, é uma figura algo benéfico, todo o rito é encarado antes como um favor que
discrepante 88 do conjunto. Sabemos que na mitologia não podem os vivos fazem aos seus parentes falecidos. "L'ombre du mort ne
existir realmente "figuras discrepantes". Simplesmente, as con- peut être tranquille que si les cendres de ses os ont été comple-
cepções wáika correspondem a um outro tipo de relacionamento tement ingérées par les personnes chêres. Alors seulement l'ombre
entre o homem e o mundo exterior, diferente do que Zerries (em Poreana, peut se diriger vers le chapouno du Tonnerre et vivre
busca de um estrato bem arcaico) esperava encontrar. dans un état d'éternelle jeunesse. On comprend donc le sens de
A impressão que se tem é de que, se é que a cremação dos leur pire menace: - 'Quand tu seras mort, personne ne mangera
mortos teve, em tempos remotos, realmente origem em concepções tes cendres' ".4 8 A idéia de vingar os mortos evidentemente tem que
semelhantes às que levaram a América Central à figura de Quet- estar presente também: "Avant un attaque, les guerriers Yanoama
zalcoatl, os Yanonami já de há muito aderiram à ideologia do qui doivent venger la mort d'une personne qui leur est chere, man-
"movimento", identificando "o gêmeo" 39 a ser sacrificado com o gent ses cendres dans une bouillie de bananes, pour qu'augmente
"inimigo de casa" mais próximo. As lutas são tão encarniçadas, ainsi leur désir de vengeance et pour justifier les futures massa-
a ideologia guerreira tão acentuada e são tantas as vítimas que se cr~s". 44
fazem nos ataques (cada grupo transformando-se verdadeiramente
em "ser terrível"), que qualquer sacrifício ritual ou simbolizado um convite dos Namoétéri, sabendo que é uma cilada, e decide mesmo
parece um puro "desperdício". "Nous sommes en ce monde pour levar consigo, para a morte, seu próprio filho:
nous venger" 40 são palavras do tuxáua Fousiwe que bem definem " . .. Pere, je ne rentrerai pas. Quand tu entendras le Tonnerre, pense:
o mundo tenso em que vivem os "Yanoama": as lutas mesmo sem On a tué mon fils! C'est mon fils qui fait entendre son signal! - Ensuite,
dit-on, Rohariwe s'adressa à son fils: 'Toi, viens avec moí; qu'adviendrait-il
ódio, entre velhos amigos, que se defrontam para "lavar a honra"; de toi aprês ma mort? - 11 emmena son fils avec lui; et ils moururent'."
o estoicismo do homem que, sabendo que vai morrer, luta assim Afinal, isto já é um sacrifício ...
mesmo só para provar que não é covarde; o sacrifício de pessoas Em outra passagem, Fousiwe sacrifica um adolescente de outro bando
de quem se gosta só como gesto de provocação para uma luta que, yanoama, "Pichaansétéri", que se criara em sua choupana desde menino
pequeno, pelo simples fato de ser ele meio-irmão de Rachawe, pois quer
sem mágoa, não chegaria a se concretizar, 41 tudo isso substitui magoar ao velho amigo para que este o enfrente numa luta de morte:
"Pourquoi, pensa-t-il, est-ce justament toi qui viens? . . . Je dois le
37 Os incestuosos não são cremacjos. Aliás, admite.:.se que aqueles, cujo corpo tuer: c'est le frere de Rachawe. Quand cet adolescent sera mort, c'est pour
não quer queimar, cometeram incesto com a irmã. B1occA. Yanoama . p. 267. de bon que Rachawe aura une raison d'être en colere contre moi. BIOCCA.
38 ZERRIES. Op. cit. p. 287. Op. cit. p. 314.
89 Não queremos dizer com isso que o mito dos gêmeos necessariamente 42 Cremos que esta perspectiva, (partindo da concepção do sacrifício como
tenha existido entre os Yanonami em outros tempos. mecanismo de estabelecer o equilíbrio do grupo com o mundo exterior)
40 BIOCCA. Yanoama. p. 205. corresponde muito mais a uma verdadeira compreensão da natureza do
4 1 "Le touchawa se battait souvent; il était, apres, tout enflé, tout violacé. Homem. Colocar a questão, como se a agressividade fosse um instinto funda-
Là ou l'on appuyait le doigt, il se formait un trou dans sa peau. Il passait mental do homem e dizer que a proibição severa da agressão, no seio de
ensuite les nuits à gémir, et ne dormait pas. Ils luttaient, échangeaient des uma sociedade como a tupinambá, "encoraja" a guerra, como válvula de
coups de bâton, je ne sais pourquoi; pour être plus tranquilles, pour être escape para a agressão, pode não ser uma distorção, mas é uma visão só
amis, disaient-ils." Comentário de H. Valero após descrever uma luta entre superficial (da parte exterior, mecânica) do problema, sem chegar às suas
os dois chefes mais wai"teri (mais corajosos) Rachawe e Fousiwe, então raízes mais profundas.
grandes amigos. B1occA. Op. cit. p. 187. 48 BIOCCA. Op. cit. p. 459.
A página 259, H. Valero nos conta como outro chefe Rohariwe aceita 44 /d., ibid. .
286 CAP. XI - AINDA O PROBLEMA DO PREÇO •• •
AINDA O PROBLEMA DO PREÇO. • • 287

O endocanibalismo yanonami corresponde, portanto, ao exo- o "ser terrível" ressurge: a alma penada, já tendo vivido dupla-
canibalismo dos Tupinambá seiscentistas, tendo mesmo, em parte, mente seu papel de "ser terrível" fora e dentro do grupo, só fica
a mesma função. 45 Só que, chegando às oposições interno-externas vagando pela floresta para fazer o que não soube, em vida, fazer
pelos outros: sofrer.
das concepções yanonami, nem o canibalismo pode se exteriori-
zar, 46 nem o sacrifício pode se interiorizar, pois este já foi banido Estas concepções se aproximam bastante, como se vê da
das representações nos ritos funerários. Por isso não se pode co.ncepção cristã de salvação ou perdição da alma, e cremos' que
foi por transformações análogas (quanto à essência) que se che-
encontrar entre eles o mito do herói queimado na fogueira, de gou a ela.
cujas cinzas nascem bens culturais. O mito de Issi-Jurupari per-
tence a uma outra equação do problema. A mesma transferência do julgamento, ou melhor, neste caso
do sacrifício, para depois da morte, encontramos nas concepçõe~
Dissemos atrás que o Yanoama se comporta, nas suas rela- desâna, pois o pajé negocia almas de índios mortos 5 º com o Waí-
ções com os outros bandos locais, como a verdadeira personifica- -~axse das ~avernas. A angústia criada por este tipo de negocia-
ção do "ser terrível". Que o impede de agir da mesma forma, çao, que Re1chel-Dolmatoff descreve como muito grande entre os
dentro de seu grupo? Justamente a inversão do valor semântico Desâna, 51 deve realmente ser incomparavelmente maior do que
do canibalismo. 47 Se a pior ameaça que se pode fazer a um Yano- en~re . os. Y anonami, entre estes últimos o juiz é o grupo do pró-
nami é a de que ao morrer não terá ninguém para ingerir-lhe as pno indivíduo : desde que o indivíduo não chegue à velhice com-
cin~as,_ ~ porque seu sacrifício ao "ser terrível", no seu aspecto pletamente solitário, 5 2 tendo, ao menos, alguns parentes que o
mais s1n1stro, na forma da perdição da alma, 48 depende das rela- amem, sua salvação está ·praticamente assegurada. Poder-se-ia di-
ções de paren.tesco que ele conseguir criar e manter de forma satis- zer também que o castigo do mau Yanonami não implica uma
fatória dentro do grupo. 49 De suas cinzas levadas pelo vento, nem noção de compensação a Waí-maxse ou a uHayaliwa", no caso. c;a .
Entre os Desâna, a mediação do pajé só aparentemente pro-
45 A de . irmanar no ódio e no desejo de vingança. Afinal, a antropofagia. tege o grupo como um todo. 54 Efetivamente, presume-se que o
dos Tu~mambá era d~ ~erta forma concebida como endofagia, pois o matador
pretendia ver no sacrificado seu alter ego, não podendo comer por isso "de
sua própria carne". Nos sacrifícios aztecas, deste mesmo tipo, quando às mais de umà esposa (como ocorre entre os Yanonami), e ter filhos em
vezes se chegava a sacrificar um escravo como alter efô, a pele arrancada número considerável.
50 REICHEL-DoLMATOFF. Desâna . . • p. 60.
à vítima (personificação do próprio Xipe Totec) era vestida pelo sacri- 51 ld., ibid. p. 47.
ficador (dono).
4 6 No caso dos Yanonami, é claro que a endofagia não pode coexistir com 5 2 A adoção de uma criança ainda pode ser uma solução ...
53 A longo prazo, digamos assim, a cinza pode ainda funcionar como uma
o exocanibalismo. Se os Araucanos (ZERR.IES. "El Endocanibalismo en la
América dei Sur." RMP. p. 157) tomam as cinzas dos inimigos mortos compensação, é verdade; e o menor cuidado que se tem com o cadáver de
misturadas a bebidas, é porque as suas concepções são neste aspecto dife: mulheres e cr~an~as sempre permite que a onça busque, de quando em
rentes das dos Yanonami (mesmo que na origem do costume da endofagia, quando, seu qu1nhao . . . Mas, de uma certa forma, a acentuação da violência
em épocas passadas, tenham sido análogas) . O que os Yanonami oferecem através ~as lutas entre os grupos locais da horda, centralizando as atenções,
ao morto, ingerindo suas cinzas, é a salvação eterna. . . Esta não se oferece parece liberar o setor das trocas entre o "senhor dos animais e dos frutos"
ao inimigo. . . a menos que o pavor da represália se tome tão grande (e e os homens, para que ocorram num ambiente de menos tensão. Nem mesmo
a ~te processo assistimos no século atual da guerra atômica), que se resolva a iniciação nas artes mágicas (a substituição de órgãos, a que nos referimos
abnr as portas do paraíso também aos "maus", isto é, aos inimigos. em outra parte do trabalho), parece implicar numa operação dolorosa.
47 :e em inversões deste tipo que devem ser procuradas as razões da cono- V. nota 62, p. 74.
54 Não há nenhuma indicação de que a "troca" se faça, encarregando-se
tação oposta que tem o termo Omáua (nas formas "Umauari'', "Umauali",
"Mauali" ), entre tribos karibe e aruák. Conforme observou ZERR.128 o pajé de "matar magicamente" as pessoas cuja alma ele "vende" a "Waí-
("Schõpfung .. . " p. 286), enquanto entre os Yanonami ("Wáika") "Omáua,, -maxse". Presume-se que se tràta de uma espécie de hipoteca. Mas Reichel-
é .º ser _criador ("<?m!lwe" em Yanoa~), os termos correspondentes entre -Dolmatoff anotou um caso de epidemia que foi atribuída a negociações
tribos nao-yanonam1 tem antes conotaçao maléfica. Veja-se também o mito "exageradas" de um pajé kuripako (REICHEL-DoLMATOFF. Op. cit. p. 103 ),
yabarana "Ucara y los Máwari". WILBERT. "Mitos de los Indios Yabarana." o que mostra que não se exclui a suspeita de que ele possa agir de tal modo.
Antropologica. cap. VII, p. 130. ( ~ referida epidemia dizimou particularmente os Makú do Uaupés, que
ey1d~ntemente ~~o participam dessas concepções, pois não temem as nego-
48 Pois o julgamento se transfere para depois da morte.
c1açoes dos pa1es. Naturalmente, o episódio deve ter sido, por sua vez,
49 Parece evidentemente um estímulo para que o indivíduo procure ter
288 CAP. XI - AINDA O PROBLEMA DO PREÇO ••• AINDA O PROBLEMA DO PREÇO... 289

bom pajé nunca negocie com as almas do seu próprio grupo. Como o desâna entrega-se de corpo e alma a ritos purificat6rios, 57 evita-
cada grupo, presumivelmente, tem um bom pajé, pode-se perceber ções de alimentos e situações impuras, para, através do yagé, con-
muito bem a inutilidade do seu esforço. É muito provável que a seguir a revelação de que ele não é uma vítima a ser enviada, na
insegurança assim criada estimule um aperfeiçoamento nas artes hora da morte, inconsciente e indefesa, para as cavernas de· Waí-
mágico-religiosas, correspondendo ao primeiro passo em direção -m~xse. Através das visões do yagé, ele treina simplesmente con-
a uma hierarquização da classe sacerdotal, tHs hierarquização essa seguir um domínio sobre a sua própria morte; nelas se vê todos os
que se costuma apontar como influência andina, t1 6 mas, que para personagens míticos, Waí-maxse e as cavernas (aprendendo a do-
subsistir em outra área, na dispersão, é preciso, evidentemente, minar, portanto, o medo que o deixaria paralisado). Só assim se
que corresponda a uma necessidade interna. pode compreender a curiosa definição que o informante de Rei-
Percebe-se bem, outrossim, que, se as ações dos pajés, anta- chel-Dolmatoff lhe deu sobre o rito do caapi: "Tomar yagé es
gônicas por representar cada qual um grupo e lutar por este, às morir ... " 58
custas do outro, tendem a se anular, como defesa das almas; o A que se deve essa complexidade da situação desâna? Já
terceiro elemento, o "Kumu", só pode aportar uma esperança de falamos em outra parte do trabalho que suspeitamos que algum ou
solução, se · ele lutar com outro tipo de armas, ou melhor, em alguns clãs desâna foram outrora Y anonami, ou, de qualquer mo-
outro plano. E ele o faz: como sacerdote, pedindo clemência ao do, apresentavam uma cultura que incluía mesmo a endofagia ri-
velho deus solarizado.
É muito curioso que se encontre entre os Desâna, por um 57 Não só nas explicações do informante de Reichel-Dolmatoff se nota um

lado, uma transferência das "negociações" para depois da morte, "puritanismo" muito acentuado, mas em muitos mitos do apêndice da obra,
particularmente no de n. 0 24, em que se descreve o herói que corresponde
ao mesmo tempo em que, em vez destas dependerem de um "jul- ao padrão masculino ideal entre os Desâna: "Megadiáme era la hormiga.
gamento do morto" por parte de seus familiares, como entre os Era un DesânFl y vivia abajo de Mitú. En el puerto opuesto vivia el ZQTI'O oá.
Y anonami, a reciprocidade da ação dos pajés as faz reverter a uma Megadiáme fue un personaje muy pulcro, muy · puro y cumplidor. A la
condição quase que pré-cultural, de modo que o indivíduo não vez era muy enamorado. Tenía aptitudes para la atracción: atraía por su
tenha a mínima idéia de quando e por que justamente ele ou outro modo de ser. Su comida era supremamente no contaminada, como son carne
y pez, sino era hormigas, comida pura pués. En cuanto se refiere a las
qualquer será "devorado pelo ser terrível", ou melhor, convertido, prácticas, se madrugaba mucho. Ese sonido que hacía en el agua era muy
na acepção desâna, em energia para substituir "almas" animais a cristalino. También su modo de hacer bulla con la mano, de soplar con
serem abatidas pelo homem. Uma situação aflitiva que nos ajuda la mano. Era un hombre con todas las cualidades que requiere la juventud.
a compreender melhor o porquê da adesão desâna à religião de A las 3 de la madrugada tocaba el tambor y el sonido era muy retumbante,
muy claro. Sus pinturas de la cara eran per!ectas, mezcladas con la grasa
Jurupari, sem que se encontrem, propriamente, em sua mitologia, dei cutis, a consecuencia dei ají. Su cuerpo tenía un olor a matas que in-
os temas que a instituem entre os Aruák, sem que nem ao menos f luyen respecto y amor. Tenía un puerto muy limpio. El aspecto del puerto
exista um herói cultural que possa tomar sobre seus ombros (ainda era atractivo para las muchachas jóvenes. Pero en esos viajes, cuando pasaban
por su puerto, pasaban Tukanas, Uananas, Pira-Tapuyas. Pero el puerto
que meio à força, como acontece com o Uákti dos Tukano do revelaba el aspecto de su dueíio. La maloca era muy bien pintada. Vivia con
Tiquié), o fardo de lssi-Jurupari. una abuela que era la representante de su tribu. Esta vieja le avisaba las
Jurupari passa a ser um estado de espírito. Como os pnm1- horas oportunas para tales tareas. Este comió también coca. Era un gran
bailarín, a la vez que cantaba bien" (REICHEL-DOLMATOFF. Op. cit. p. 207).
tivos calvinistas, desesperados frente à questão da predestinação, Sublinhamos algumas frases que mostram como a preocupação com a higiene
corporal e limpeza em geral pode aparecer também entre "primitivos" como
"reinterpretado" pelos outros pajés: o Kuripako conseguiu fazer um bom uma verdadeira obsessão ritualística, e na mesma direção como entre os
negócio porque os Makú não têm pajés que os defendam.) civilizados, isto é, a preocupação do homem não ser contaminado pelo
õts O "Kumu" encontra-se acima do pajé, correspondendo realmente mais a universo circundante e não vice-versa. Não falta nem mesll)O a preocupação
sacerdote, e como tal sua atitude "es siempre la de imploración y adoración, de fazer tudo corretamente dentro de um horário pré-determinado. Possivel-
nunca la de imposición". Id., ibid. p. 107. mente se possa ver na avó representante da tribo a presença ainda indispen-
õ6 Ou, no dizer de Reichel, vestígios do complexo subandino Templo-tdolo- sável da verdadeira heroína-civilizadora: a Filha do Sol.
-Sacerdote. Id., ibid. Nota 6, p. 225. 158 REICHEL-DOLMATOFF. Op. cit. p. 132.
290 CAP. XI - AINDA O PROBLEMA DO PREÇO ••• AINDA O PROBLEMA DO PREÇO. • • 291

tual; endofagia que teria desaparecido com a tucanização, 59 pois, ella se priv6 de susto. Entonces Bisíu la enseii.a a sembrar piii.a,
ao contrário de Zerries, temos a impressão de que não foram os plátano y yuca. Luego desaparece en fuego, quemándose. Las
Tukano que aportaram a endofagia ao U aupés. Levando-se em partículas de las quemaduras son como cucarrones negros (ukasiá).
conta a cessação de hostilidades maiores, com a constituição de Viene por épocas. Bisíu ensefza como en un consejo. La mujer
frátrias de exogamia regulamentada e mesmo exogamia tribal con- se vuelve entonces una gran productora. Pero ai morir, ella se
jugada com um status mais baixo frente aos Tukano propriamente vuelve un Bisíu". 63
ditos, 60 é compreensível que o encontro de uma fórmula de equi-
líbrio seja particularmente difícil para os Desâna, e que, assim Como analisar este texto? Se imaginamos que o mito vem de ·
sendo, nem todas as observações que a leitura do livro de Reichel- clãs primitivamente yanonami, 64 diríamos que Bisíu pode repre-
-Dolmatoff permite possam se aplicar a todo o Uaupés. sentar o próprio Trovão, para cuja morada as almas dos "bons"
Mas, se concepções andinas (correspondentes, quem sabe, a Yanonami vão, após desaparecerem no fogo, como ele. Tomar-se
algum estrato de migração menos antigo) solarizaram o "ser terrí- Bisíu, portanto, seria exatamente o prêmio da mulher trabalhadora,
. vel" entre os Desâna; se a Filha do Sol (redimida dos pecados da grande produtora de abacaxi, bananas e mandioca .
Filha de Baíra 6 1 ) acompanhou essa solarização, transformada, qual Com o desaparecimento da endofagia, desaparecer no fogo
mulher-estrela jê, em heroína-civilizadora; se o ajuste de contas passaria a ter uma conotação sinistra, 65 comparável à da cremação
(em termos de "trocas energéticas") é protelado para o além-tú- de monstros e feiticeiros maus de tantos mitos uaupesinos. 66 Te-
mulo, nada mais existe que possa lembrar a "mulher dos bichos", ríamos assim, ao lado do sacrifício da mulher ao "ser terrível" em
a heroína de Autxepirire, entre os Desâna? troca de benefícios para o grupo, sua equiparação com a "mulher-
Bem, o informante de Reichel-Dolmatoff explica que ocorre -estrela", uma divindade-dema como a Filha do Sol ou a Filha
às vezes que Waí-maxse, encontrando uma mulher sozinha na flo- do Aracu. Este último aspecto, porém, não transparece no mito:
resta, viola-a (resultando daí geralmente a morte da vítima), apa- a cultura nega-se a reconhecer nesta transação um sacrifício. Por
recendo em seguida, no lugar do ocorrido, muita caça (se for no quê?
porto, muitos peixes ... ) ª2 Em primeiro lugar, talvez porque, tal qual o informante de
Mas há também um mito em que o "ser terrível" aparece, Reichel-Dolmatoff explicou, com referência ao caso da violação
por um lado, como partner masculino da Filha do Sol, com carac- da mulher pelo Waí-maxse da floresta, teme-se que um favor não
terísticas de herói-civilizador, portanto; por outro, como Waí-max- pedido pelo pajé (não controlado ritualmente, portanto) possa
se, apoderando-se da mulher, mas não imediatamente como o provocar novas vítimas, qu.al uma força maléfica às soltas. Mas,
Waí-maxse da floresta, e sim como o Waí-maxse das cavernas dos no caso, a própria mulher, tendo recebido certos poderes, não seria
cerros, mediante a hipoteca da alma da vítima: claro que se trata encarada como uma espécie de pajé feminino? Justamente não:
de uma transação às avessas da descrita acima: em vez de entrar nega-se à mulher uma verdadeira iniciação que, aliás, já tem seus
de posse da mulher e posteriormente pagar o favor em alimento
para o grupo, esta outra manifestação de Waí-maxse paga primei- 63 Id., ibid. Mito n. 0 24. p. 206.
ro, para cobrar depois: 64 Poderia tratar-se de algum bando puinave, timbém. Aliás, Migliazza
("Fonologia Máku." BMPEG.) considera os Makú do Rio Negro puinave.
"Bisíu se manifesta en las chagras. Es como un hombre. Baja Mas, devido à impressão que a mitologia desâna (e mais as referências ao
del cielo y hace sonar la atmósfera como con viento y lluvia. enterro do filho de Miriápura Turíkaro, num mito tukano a que já nos
Suena también como música extrafía. Cuando una mujer lo vió, referimos) nos dá de que os Desâna foram até há pouco endófagos, teríamos
que admitir que os Puinave, que não o são, o foram num passado não muito
59 Não inteiramente, pois se pratica a endofagia das cinzas do Kumu (ossos distante. (Não temos elementos para opinar.)
65 Apesar das queimaduras serem apresentadas como pintura, no mito.
dos dedos das mãos e pés apenas). Id., ibid. p. 107.
so De que já falamos em outra parte do trabalho. V. p. 74-75. 66 Como aliás acontece, em outro mito desâna, com uma cobra de sete
61 V. capítulo sobre os Desâna, p. 61 e p. 157. cabeças que identificamos com as Plêiades, que também, como Bisíu, voltam
62 REICHEL-DOLMATOFF. Op. cit. p. 61. em certas épocas do ano.
292 CAP. XI - AINDA O PROBLEMA' DO PREÇO . • • AINDA O PROBLEMA DO PREÇO. • • 293

ritos e fases estabelecidos no trato com o sobrenatural, 67 assim Tem-se alegado que a mulher é ·impura por natureza. Na
que, apesar dos benefícios recebidos, evidentemente, reverteram realidade, nada existe que seja mais ou menos puro "por natureza".
para o grupo tanto quanto uma boa caçada ou uma pesca abundan- Toda condição biológica é ambígua. É verdade que a mulher tem
te, a mulher que consegue poderes de Bisíu é e continua impura: sido posta freqüentemente do lado impuro, do lado da natureza, e de
se ela se destaca das demais é por ser simplesmente feiticeira. 68 uma forma tão predominante por quase todos os povos, que a
A monopolização da área do sagrado pelos homens é um fenômeno explicação tem que ser tão "óbvia" como se se tratasse de uma
já tão discutido e explicado que não vale a pena determo-nos nela.
decorrência de sua condição de nascimento.
Mesmo em sociedades matrilineares e matrilocais, a tendência é Assim, pode-se dizer que o mais "lógico" é ela cuidar dos
do homem assumir as funções rituais como representante do clã filhos, já que é ela que os tem e amamenta, enquanto o homem
vai procurar comida, e, nessa sua função de matar e, assim, rom-
de sua mãe, de forma que não é muito comum depararmos com
per o equilíbrio biótico, é ele evidentemente que tem que se preo-
sociedades em que as funções religiosas podem ser indistintamente cupar em restabelecê-lo. Até certo ponto isto é verdade. Mas
exercidas por homens e mulheres, 69 e, menos freqüentemente ain- escolhemos um ponto de partida "ideal", uma divisão de trabalho
da, em que estão monopolizadas pela mulher. que nunca terá existido para o homem (e nem tampouco para a

maioria dos animais) nesta simplicidade tão rígida e absoluta.
Apenas após a menopausa, por já não ser mais propriamente reconhecida
como mulher pela sociedade, se lhe concede um status praticamente igual Quantas formas de equação diferentes há para o que se con-
ao do homem velho e se lhe permite mesmo certas atitudes masculinas. cebe como atividades femininas e atividades masculinas! Tantas
6 8 Esta mesma atitude "antifeminista", na nossa própria sociedade ocidental,
quantas culturas; e Margaret Mead 70 nos mostrou que as diferenças
mandou não poucas mulheres para o banco dos réus durante a Idade Média .. .
A propósito: lembramo-nos de um dito popular da Suíça, hoje naturalmente inatas entre o homem e a mulher, ainda que existam, estão tão
usado jocosamente, mas que se prende a estas representações. Se a dona drenadas pela cultura para determinados padrões de comporta-
de casa tem sorte de nunca fazer mau tempo no dia da semana em que mento, que a divisão de campo de atividades tem que ter a sua
lava roupa, é porque é "bruxa". explicação numa série de fatores que estão bem longe de corres-
69 Na América do Sul, entre os Araucanos, os xamãs (machi) são em grande
número mulheres. Os homens machi (termo que significa "dois sexos" ) são ponder· diretamente à maternidade óbvia da mulher. Mas é verda-
todos homossexuais. Parece evidente que a masculinidade "exclusiva" não
apresenta condições ideais, nessa ·cultura, para lidar com sucesso com o para testar o efeito que pode matá-lo ou salvar a humanidade inteira de
sobrenatural (V. MÉTRAUX, A. Religions et magies indiennes d'Amérique du certa doença .. .
Sud. p. 180 a 21 O). Mas cremos que ainda se possa ver na escada sagrada Em todas as culturas, de uma forma ou outra, a árvore cósmica está
(rewe ) a árvore pela qual a mulher-estrela jê é arremessada ao céu ou pela presente ...
qual a sua congênere norte-americana sobe atrás do porco-espinho (sacrifi- Mas, este mesmo poste sagrado assume também a forma da faca de
cando-se a ele). Efetivamente, Métraux anota que kurewe significa couple, obsidiana que arranca o coração das vítimas a Huitzilopochtli, do ibirapema
kureton = copulation e neikurewe, a cerimônia anual de renovação à qual com que o Tupinambá mata seu suposto "alter ego'', da cruz em nome da
se sujeita a mach.i significaria portanto que "la machi est remariée à son qual cristãos matam judeus ou da estrela de Davi em nome da qual judeus
échelle (rewe)''. Mas, repare-se bem, neste caso é o nome da "escada" que matam árabes, da haste da bandeira de qualquer país em guerra com qual-
originalmente tem uma conotação de "cópula" ... quer outro. Ele é o sabre da guerra-santa e a forca em que se dependuraram
Aliás, o poste sagrado (a árvore cósmica) existe em todas as mitologias, todos os supostos "homens maus" da história, que com tanta facilidade se
mas a sua conotação está em função de quem se faz subir nela e como se reconhece . . . nos outros.
imagina que suba. Mas, veja-se bem, árvore cósmica é também a seringa com heroína que
Como a menina arapaho (LÉVI-STRAUSS. L'origine des manieres de table. torna a comunicação com o suposto paraíso fácil e rápida; ela é a posição
p. 203) , se sacrifica voluntariamente ao porco-espinho, por amor aos seus? que assume o yoga quando se desliga do que é contraditório e humano;
Mas era assim mesmo? ela é o apetrecho ritual para a inalação de paricá, que encurta o caminho
Claro que ela existe, essa criatura que se auto-sacrifica, e em todas as para meia dúzia de iniciados e torna o mundo pequenino e isolado .. .
culturas e em todas as épocas. · Por mais que a humanidade caminhe, está sempre, como nos dias da
Por isso, a árvore cósmica ora se converte na cruz que Cristo carrega Criação, na encruzilhada entre os caminhos do suicídio, do crime e do
voluntariamente para o Calvário, ou na lenha da fogueira em que Quetzalcoatl verdadeiro auto-sacrifício.
se imola; ou ainda no mastro do navio que afunda com a parte da tripulação E é por isso que o mito é atemporal: ele é um passado sempre presente
que decidiu ficar para que os outros escapassem nos poucos salva-vidas e um presente que existe desde que o homem se deu conta de ser homem ...
disponíveis; ou na seringa com a vacina que o cientista aplica em si mesmo, ;o MEAD, M . Educación y Cultura; Sexo e Temperamento; Macho e Fêmea.
294 CAP. XI - AINDA O PROBLEMA DO PREÇO ... AINDA O PROBLEMA DO PREÇO. • • 295

de que em quase todas as culturas a função de matar (animais e ples imagem invertida e irreal, históna . tiO:-:$Omente surgida para
inimigos) cabe ao homem. Não sabemos até que ponto se poderia enfatizar a "necessidade" de dominaçã~, masculina.
considerar a coleta de pequenos animais, de que a mulher participa Por um lado, se nos ritos mais :"priiiíánosn para restabelecer
ativamente (particularmente nos bandos nômades) como equiva_- o equilíbrio com o mundo exterior, a mulher era, tanto quanto ..o
lente à caça feita pelo homem, pois evidentemente também se homem, sacrificada efetivamente, ela realmente se transformava
trata de uma ação de matar e, portanto, de romper o equilíbrio em divindade-dema, em heroína-civilizadora, como, a "mulher-es-
biótico. 71 Mas parece existir uma certa diferença de conotação trela" jê, espírito-iniciador como as Hekouragnouma dos Yanona-
entre o ato de matar um veado ou uma anta e o de coletar larvas mi ou a Rumi-Kumu, a mãe das flautas Hé dos Barasana. (Pois,
ou formigas para se comer. De qualquer forma, parece que o não é que entre os Barasana até hoje ainda uma mulher possui os
·homem, como caçador, sentiu, com certa anterioridade em relação instrumentos sagrados?)
à mulher, que toda lança tem dois gumes, e um justamente voltado :f: evidente que essa representação da mulher no mito tem
para a direção do matador. E, por cuidar geralmente da caça e que corresponder a certa autoridade do elemento feminino, sem
da guerra, o homem foi o primeiro a aprender a lidar com o sobre- que se possa falar propriamente de um matriarcado. Entre os Ya-
natural. Ao construir a primeira choça um pouco mais duradoura, noama, que nem ao menos possuem instrumentos musicais, a mu-
já de há muito que a humanidade havia ritualizado a arte de ma- lher não pode cantar os cantos que o pajé entoa, nem mesmo
tar. O homem já se tomara pajé, já estava "comerciando" há deve ouvi-los, 73 pois correria o risco de ficar surda ou cega. Em
tempo com o "ser terrível". uma ocasião em que os homens haviam saído para a caça, com
Embora, como aventamos atrás, seja o homem o pajé por Fousiwe, a velha mãe deste, entretanto, exorta, em nome do filho,
excelência, parece que ao nível nômade a mulher participa bas- os espíritos protetores da choupana 74 a acordarem para defendê-
tante, e de forma ativa também, das artes mágico-religiosas. Ela -la contra Koumareme. 75 Esta mesma matrona era a única pessoa
o acompanha, ajudando-o muitas vezes na caça, ao mesmo tempo que tinha certa ascendência sobre Fousiwe, chegando a repreendê-
que carrega o filho e os poucos apetrechos. Num bando de caça- -lo e interferir para que ele não fosse injusto com alguma das
dores nômades, que é constituído no máximo de umas 50 a 60 noras. 76
pessoas, a divisão de trabalho não pode ser tão rígida quanto Como a matança de homens válidos 77 por vezes praticamente
nas sociedades semi-nômades, que já possuem ao menos uma destrói um agrupamento local, é bem fácil de compreender que a
habitação que as abriga durante uma boa temporada. mãe que por acaso consiga escapar com filhos pequenos para junto
À medida em que essa habitação vai se tornando mais per- de parentes (e que consiga evitar que os matem, como ocorre fre-
manente, ao que parece, há uma tendência na maioria das socie- qüentemente com os meninos órfãos de pai) 78 tenha certa influên-
.dades do homem monopolizar as artes mágico-religiosas, colocando ·cia sobre o filho que conseguiu criar com tanta dificuldade, mesmo
a mulher cada vez mais no setor do profano. depois deste casado e chefe local. 79
Veja-se bem: não estamos partindo da suposição de que a
mulher em qualquer época tivesse monopolizado as artes mágicas. 73 Todos os homens, entre os Yanonami, podem iniciar-se nas artes mágicas,
Se isto ocorreu alguma vez, foi exceção; e não cremos que tenha tomando-se "Chapori". V. BIOCCA. Y anoama. p. 197.
havido uma exceção no Brasil, nem mesmo na área que os mitos 74 Id., ibid. p. 215.
7:> Um duende da floresta.
apontam como a pátria das misteriosas amazonas. 76 B1occA. Op. cit. p. 176. · ·
O mito das Amazonas, contudo, existe, e tem que ter uma 77 H . Valero refere-se a uma junção de grupos por falta de tuxáua Id. , ibid.
interpretação além da puramente psicanalítica, 7 2 e não só como sim- p. 344.
78 Aliás, mesmo a supressão das viúvas ocorre entre os Yanonami (ld., ibid.
71Além disso, o equilíbrio biótico pode ser rompido também pela coleta p. 3 54). Claro que de certa forma esta viúva corresponde à "mulher de
de vegetais ... e é a mulher que põe no mundo novos seres humr1nos, fu turos madeira" que se tornou uma estranha, un1 elemento capaz de criar per-
caçadores. Em Desâna. . . (p. 61), .lemos que Wai-maxse tem ciúme das turbação.
mulheres grávidas e parturientes, por não ter sido ele o pai da criança. í !l Os Y anonami tendem a matar os filhos homens, quando a mãe se refugia
12 Como Geza Roheim interpretou o mito análogo entre os Aranda. ROHEtM. num grupo local vizinho. Como as alianças entre os grupos são mu~to ef~me­
The Eternal Ones o/ the Dreams. p. 175. ras e fortuitas, teme-se que o filho homem, quando crescer, queira vmgar
296 CAP. XI - AINDA O PROBLEMA DO PREÇO ..• AINDA O PROBLEMA DO PREÇO. • • 297

Por outro lado, se o contato com outros grupos locais é tão as onças são as protetoras mágicas da maloca. Quando pensamos
hostil, tão difícil de ser mantido, se o mundo lá fora é tão traiçoeiro em todo simbolismo da onça, a única forma de compreender o
e perigoso, não é natural a tendência de tornar a maloca (real- mecanismo desta proteção é entender que o índio concebe a ma-
mente o lugar de repouso do guerreiro) cada vez mais protegida? loca e tudo o que se encontra nela, por um lado, como que não-
Mas, proteger a casa como? É claro que, pelo fato do mundo -nascido (ainda no útero e guardado, porque, como já dissemos,
exterior ser tão hostil, a luta pela vida ser tão dura, o mundo ainda não está iniciado em nada) , e, por outro, como já tendo
"interno", que passa a corresponder cada vez mais à casa, não se sido mesmo devorado pelas onças, pertencer a elas como já irre-
torna automaticamente isento de conflitos; nem o Yanonami pode mediavelmente devorado, assim que nenhum mal mais lhe poderá
fantasiar para si a maldita ilusão que uma parte da humanidade acontecer.
de hoje adquiriu de que resguardará a paz interna levando a guer- Aparentemente, este raciocínio parece absurdo e talvez não
ra para partes distantes de seu país. 80 O ataque que hoje ele faz tenhamos sido muito felizes em sua demonstração. Mas, de qual-
ao chapouno vizinho, amanhã ele tem que aparar no seu próprio. quer forma, tudo o que é perigoso para o homem se situa entre
Só a cerca de paxiúba 81 não é suficiente. É preciso tentar o momento em que ele nasce e o momento em que ele morre. O
proteger a casa, magicamente. Mas como? Fousiwe, quando sai que vem antes e o que vem depois, em tese, é a estabilidade. Se
para a caça, deixa metade dos espíritos que controla, como pajé, a maloca é colocada magicamente, sob os dois signos ao mesmo
para vigiar a casa. Curiosamente, estes espíritos dormem ( aparen- tempo, ela ganha de certa forma uma estabilidade neutralizante.
temente dependurados nas vigas do teto, como os animais nas O fato de não se permitir uma verdadeira iniciação à mulher
cavernas de Waí-maxse), só sendo acordados quando se precisa não terá em parte o sentido de proteção? Concebida como criança
deles. Poder-se-ia perguntar se o fato de serem espíritos contro- nunca iniciada, mas ao mesmo tempo carregando o "pecado ori-
lados por Fousiwe não é suficiente para eliminar neles a ambigüi- ginal" de já ter sido devorada pela onça, não está ela nessa situa-
dade, ambigüidade essa de que o próprio Fousiwe, aliás, não con- ção neutra que se poderia definir como' profana?
segue se livrar (pois, apesar dos conselhos maternos, muitas vezes De qualquer forma, não se precisa provar que lidar com o
ele é hostil aos seus) . numinoso é perigoso. Colocando a mulher fora da área do sa-
Os Desâna aprenderam a fazer "cercas alrededor de la malo- grado, o homem, que não sabe exatamente como salvá-la (por-
ca, cercas invisibles en las portas para atrapar todo lo maio que que ele próprio ainda não deu o passo de Quetzalcoatl), de certa
fuera penetrar en la maloca". 82 Com isto, a maloca se compara forma a protege. E este é um aspecto que se precisa levar em
a um enorme útero materno. 83 Concebe-se assim, aparentemente, conta, quando se quer compreender Issi-Jurupari.
as pessoas que nela vivem como criaturas que ainda não nasceram,
ainda não iniciadas em nada.
Por outro lado, para os Desâna, os três suportes transversais
da viga central (ou "Gumú") representam onças. 84 Efetivamente,

a morte do pai. Percebe-se que a situação criada é semelhante à apresentada


por "Korobona": o filho do demento "estranho" tende a ser eliminado.
Id., ibid. p. 362.
80 A ilusão dos Astecas com suas "guerras floridas". . . Nossos Tupinambá
eram mais coerentes ...
8l Os Yanonami também fortificam as choupanas. B1occA. Op. cit. p. 271. ·
82 Antes porém, quando o Sol fez a primeira maloca, Yixó-maxse escondeu
as doenças nos buracos da maloca, as águias más a prenderam em suas
redes e foi preciso uma ação de purificação. Id., ibid. p. 20-21.
83 ld., ibid. p. 79. o que confirma a opinião de que o culto do jaguar se irradiou para a Amé-
s4 Também entre os Uro-Cipaya, do planalto boliviano, os pos~es transversais rica a partir de uma dispersão norte-sul ao longo dos Andes. .Uma impor-
do teto são considerados s~grados e a eles se fazem mesmo sacrifícios san- tante publicação de KuNIKE (Jaguar und Mond in der M ythologie des andinen
grentos (MÉTRAUX. R eligions et magies indiennes d'Amérique du Sud. p. 256), Hochlandes." Leipzig, 1915.) infelizmente não nos foi possível consultar.
AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" 299

close link with the Creator, and reappears among the neihbou-
ring Achagua, an Arawakan tribe, as Gurrana Minari. ( . .. )
The neighbouring Guahibo, another linguistically isolated group,
have merged the words for · two related concepts into one.. and
called the god Purna Mina/li. The Maipure, an Arawakan people
CAPÍTULO XII
of the Ventuari estuary, once knew this composite deity as Purá
Minari, and in one of the myths of the Baré, another Arawakan
AS LENDAS ARUAK - O "FILHO DA FRUTA" tribe on the Casiquiare, Porona Minari (or Poronominare) is dis-
cribed as lord of ali things and ruler of heaven and earth.
Porona Minari has a special link with animais, and it was he
Observe-se que a "História de Luna" ·termina com uma identi- who gave them their allotted place on earth". 5
ficação da mãe de Warimi com os frutos, mais especificamente,
com a pupunha. Falta-nos conhecimento para discutir o assunto, mas gosta-
J;: um traço que não aparece no mito dos gêmeos que vingam ríamos de chamar a atenção para:
a mãe, embora a natureza vegetal da mulher imolada seja inc!is-
cutível. 1 a) o fato de que, em um mito baré, publicado por Nunes Pe-
A história de Warimi termina harmoniosamente num ponto reira (Moronguetá ... v. 1, p. 232 et seqs.), de que ainda
em que começam as lendas aruák, com uma diferença (que terá se falará adiante, "Poromina Minare" aparece como filho
que ser explicada) : a mãe de Warimi transforma-se em pupunha, de Poácare e uma entidade feminina chamada Poromina.
a mãe de Jurupari, numa das versões, é fecundada pelo sumo da b) a significação do sufixo gnouma, na grafia francesa de
pupunha. Yanoama, entre estes índios, é "mulher" (como em He-
A palmeira, como árvore frutífera, cujo nascimento a "Histó- koura (espírito), Hekouragnouma, 6 e em "Nape", Napa-
ria de Luna" Barasana conta, de certa forma, parece um elemento gnouma; 7 ou ainda para terminação kougna ou ougna
presente há muito tempo, na mitologia aruák. que aparece em W aikougna, 8 palavra que deve vir, sem
dúvida, do radical waika) . 9
O equivalente baré de Warimi (mas com outra problemática)
é Poronominare. 2 Mas, quem é este herói? c) · o nome purumá, dado à cucura (a "Diagcê" dos Tukano,
Zerries 3 já mostrou que se trata de um nome composto. Após a Pourouma cecropiaefolia Mart.), árvore da família das
se referir a Purá e Mura dos Arikena (p. 243 et seqs.) e ~o deus Moráceas, que é também (segundo Nunes Pereira) 10 cha-
mada "Mapati" ("embaúba de cheiro", "embaúba-mansa",
Purú dos Sáliva (p. 245), faz o seguinte comentário:
"embaúba-do-vinho", "árvore-da-preguiça").
"Haeckel sees in the features of the Sáliva god Purú definite
affinities with the Arikena conception of Purá. 4 . One of the esta característica. A opinião de Zerries sobre essa questão, a encontramos
também em um artigo publicado na RA de julho-dezembro de 1954, sob
personified natural forces who emanate from Purú, Gurrama o título "A Representação de um Ser Supremo entre os Povos Primitivos da
Minari, the hidden power of vegetation, seems to have a specially América do Sul".
5 ZERRIES. Op. cit. p. 245.
1 Como mulher esculpida na madeira, ela tem, no mito dos gêmeos, geral- 6 BIOCCA. Yanoama. p. 195.
mente uma função mais ligada à origem do fogo, pois em algumas versões 7 Id., ibid. p. 417 e 465.
(como no mito warrau, já citado) ela é até, sob a forma de seu alter ego, 8 /d., ibid. p. 466, nome de anaconda, animal com conotação maléfica.
a mãe adotiva dos gêmeos, a dona do fogo, e queimada por eles. 9 Nome dado pelos Yanoama de H. Valero a um grupo vizinho; nome pelo
2 Uma das versões de Poronominare encontra-se em AMORIM. "Gente Baré." qual se costuma designar também as tribos do grupo lingüístico yanonami.
"Lendas em Nheêngatú e em Portuguez." RIHGB. p. 131 et seqs. Segundo Helena Valero, é, contudo, nome de xingamento, para o grupo
3 ZERRIES. Pré-Colombian American Religíons. com que conviveu. Por outro lado, deve ter uma raiz comum com waitéri
4 Zerries faz, no trecho citado, uma revisão crítica das idéias de Haeckel que, (corajoso).
perseguindo a idéia de um monoteísmo primitivo, identifica como "deus º
1 V. PEREIRA, Nunes. Moronguetá: um decameron indígena. v. 1, p. 330
supremo", muitas divindades que, como Zerries observa com razão, não têm e V. 2, p. 473.
300 CAP. xn - AS LENDAS ARUÁK - o " FILHO DA FRUTA" AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" 301

Temos assim: De qualquer maneira, o que é importante é que tanto o Juru-


pari da versão de Stradelli, o Izy (lssi) da versão de Barbosa Ro-
a) Poromina Minari é filho de Poromina. drigues, como o Poronominare são "filhos da fruta" por serem re-
b) Os "Yanoama" de H. Valero formariam o feminino de
Poré (espírito), se a forma fosse usada, 11 provavelmente a cochilar. É o Jupará que, vindo comer das frutas, reduz Poromina Minare
em "Poréougma" ou "Porougma". à sua condição anterior (com um método pouco imaginativo mas eficiente).
c) Jurupari é "Filho da Fruta". 12 Na versão de Stradelli, é Este episódio tem, como se vê, certa analogia com o do encontro de
Warimi com a sua avó, na última seqüência da "H istória de Luna'', mas os
filh9 da pihycan, 13 na de Barbosa Rodrigues é filho do episódios se opõem, como se um fosse o outro, contado de trás para frente,
uacu; 14 e em Amorim 15 lemos que Jurupari foi concebido e com metáforas inversas.
pelo contato com o sumo da cucura. O de \Varimi começa na árvore, ele como ave que canta e não agride;
seu alter ego: a lacraia que pica a avó que não o reconhece como neto.
11 Ela não o é; Poré é uma forma neutra. O de Poromina Minare termina na árvore, ele transformado em fruto (ou
"anti-fruto") por não ter reconhecido na velha sua própria avó e seu alter
12 O motivo da fruta, não como elemento fecundador, mas como elemento
ego castigando-o para livrá-lo do castigo.
causador da menstruação, aparece também na mitologia tukano. FuLOP.
Mas, se lembrarmos da envoltura de folhas de cucura e do detalhe
"Aspectos de la Cultura Tukana - Mitologia". RCA . p. 341. de que a lacraia está dentro da pupunha (na história de Warimi), perce-
1s STRADELLI. "La Leggenda dei Jurupary" e Outras Lendas Amazónicas. bemos facilmente q ue Jurupari se identifica também com as larvas que
p. 16. comem as frutas.
Segundo CASCUDO, Câmara (Geografia dos Mitos Brasileiros. nota 29, Talvez isto explique a facilidade com que as tribos do Uaupés "adota-
p. 102) a "Piicã" é a "Cucura do Mato, Porumã". Por nomes semelhantes, ram'' o nome "Jurupari", que, segundo muitos autores, foi levado à região
no entanto, é cónhecida também a Guilielma gasipaes Bailey ou uma das pelos missionários, devido ao conhecimento que estes tinham da entidade
variedades da Guilielma Speciosa Mart. (LE CoJNTE. Amazônia Brasileira Ili: "Jurupari" entre tribos tupi (sem dúvida, também uma das manifestações
árvores e plantas úteis. p. 354-55), que no Uaupés é chamada também do "ser terrível", assim que, sem o saber, sem compreender qualquer uma
"pipire". PATINO ("EI Cachipay o Pijibay .. . " América Indígena.) nos for- delas, de certa forma acertaram). Mas, o nome não seria aceito se os
nece toda série de designações regionais, entre elas também pijiguao, que índios não o "reconhecessem", se não o ligassem a algo que também fosse
mais se aproxima da grafia de Stradelli. símbolo de "Kowai" ou "Issi".
14 "Monopterix Uacú Spruce'', com habitat no Alto Rio Negro, apresentando Que o verme que come frutos pode ser um dos símbolos de Jurupari
"sapopemas muito altas, enormes, ramificadas acima do chão. O óleo das parece confirmado pelo conselho que o Poronominare da versão publicada
sementes é comestível; as sementes podem ser comidas assadas ou cozidas". por AMORIM (Op. cit. p. 132) dá aos três meninos filhos de Ainau: "Vocês
(LE COINTE. Op. cit. p. 477) . Segundo PEREIRA, Nunes (Moronguetá ... não mordam uacu, não comam seu bicho".
v. 1, p. 330), as folhas das árvores do uacú são semelhantes às das Não sabemos se o termo é conhecido designando algum verme, também
embaúbas). no Uaupés, mas, de qualquer maneira, é curioso que os Yanonami identifi-
15 AMORIM. Op. cit. nota 6, p. 230. Baseou-se ele em StradeJli, traduzindo
quem com o nome de "Jurupuri" (ou Jouroupouri na grafia francesa) um
pihycan por "cucura"? Embora de espécies diferentes, as árvores da cucura verme que come as raízes da planta ouhina (B1occA. Yanoama. p. 86).
Biocca esclarece tratar-se de uma Colocasia que corresponde, para LE CoINTE
e o uacú parecem ter certas características semelhantes e um aproveitamento (Amazónia Brasileira III: árvores e plantas úteis. p. 222-23 ), a duas varie-
parecido por parte dos indígenas. . dades de Inhame (o inhame branco e o inhame taioba). É pena que não
Por outro lado, porque a cucura aparece ligada a Poronominare, numa conhecemos o mito referente aos .Jurupuri , recolhido por B10CCA (C/. a
versão publicada por PEREIRA, Nunes ("Estórias de Poromina Minare." ln : relação em Y anoama. p. 459).
Op. cit. v. 1, p . 232-50), num episódio em que toma parte também ó De qualquer modo, isto mostra como em toda cultura existe o que em
J upará. Poromina Minare, hospedado gentilmente pelo. J aburu, e, apesar das genética se chamaria uma "pré-adaptação" para a recepção de certos temas ...
recomendações deste, tem relações com a velha mãe do seu anfitrião, sendo Quanto ao Jupará, IHERING (Dicionário dos Animais do Brasil. p. 447)
por isso castigado pela picada de um carrapato venenosíssimo. Como muitos já observou a semelhança do nome ("Jupará", "Jupurá" ou "Jurupará")
heróis que teimam em ter relações sexuais com entidades socialmente pró- com o de Jurupari. Segundo Ihering, é o "macaco da meia-noite", parente
ximas demais ou por demais distantes (relações incestuosas ou, no outro próximo do "mão-pelada", carnívoro da família Procyanídeos, Potos flavus.
extremo, relações com animais, em que facilmente se pode ver também A cor é amarelada. com uma faixa escura ao longo do espinhaço, e a
pessoas de tribos estranhas, a exogamia exagerada, portanto), o castigo descrição de Ihering corresponde perfeitamente às belas fotografias publi-
de Pinóquio o atinge num lugar mais condizente com o crime praticado. cadas no 25. 0 fa scículo da série "Os Animais" da Bloch Ed.
A conselho da velha, Poromina Minare faz um cestinho com as folhas da Num mito dos Urubu-Kaapor (HUXLEY. Affable Savages. p. 227) os
cucura e suspende parte do membro a um dos galhos· da árvore, ficando Jurupará (Kink jaus) aparecem como companheiros do "Aé" (espírito cani-
AS LENDAS ARUÁK - O ''FILHO DA FRUTA" 303
302 CAP. XII - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA"

A figura da mãe, em· muitas lendas. aruák, mas particular-


presentantes de um gênero de vida cuja transformação é simboli-
mente na mitologia tariâna, aparece, contudo, com um véu de
zada por seu sacrifício na fogueira: o gênero de vida de caçadores-
divindade que falta à Méneri-Ya do mito barasana. Percebe-se
-coletores nômades.
que a luta de Warimi é toda ela, se podemos falar assim, uma
bal que se assemelharia a um grande macaco-aranha) . Estes animais são tentativa de "salvação" da mãe, até que ele consegue, finalmente,
apenas o outro aspecto das onças do mundo subterrâneo, para onde é levado separar a "anta" (seu aspecto negativo) da "fruta" (cuja ascensão
o herói do mito, "Turiwar". Já explicamos, em outra parte deste trabalho, para o céu, apesar da patada desajeitada que lhe dá Warimi para
cremos que de forma correta, o porquê da equivalência "onça-macaco" isso, é simbolizada na colocação da caveira - aliás um fruto
(os macacos sendo a caça principal em muitas áreas, é de se esperar que
o "senhor dos macacos" surja como "ser terrível" exigindo uma compensação). também, pois é descrita como cabaça ou maracá - no aléo
O macaco de hábitos noturnos possivelmente se presta mais a essa carac- duma touceira de bananas) .
terização de "senhor da caça". A "Seucy" ou "Amam" surge como deusa, mulher-estrela a
Nunes Pereira reuniu uma série de observações importantes (inclusive que se nega a divindade, não há dúvida alguma.
as de Humboldt) sobre o Jupará, em Moronguetá, 1.0 v., p. 357-60. Seu
alimento preferido é justamente a pupunlta. A luta de Warimi e a de Jurupari são, de certa forma, mo-
Quanto ao "Aé" do mito kaapor, Huxley não sugere qualquer identi- mentos diferentes de um mesmo processo: o de excluir a mulher
ficação com o bicho preguiça. Este, contudo, aparece na versão baré do sacrüício.
(AMORIM. "Lendas em Nheêngatú e em Portuguez." RIHGB. p. 142 et seqs.) Um episódio mítico que não aparece na "leggenda" de Stra-
do mito de Poronominare, como único animal que foi capaz de enganar o delli, mas que é muito importante para a compreensão da religião
herói. É o "Ahy" e tem no mito uma conotação feminina. A preguiça é
justamente o oposto do animal perigoso. Indefeso, passivo (conforme des- de Jurupari, é o da competição entre Inapirikuri e Amaru pela
crição detalhada de MAGALHÃES, A. Couto de. em Ensaios sob~e a F_auna posse dos instrumentos sagrados, e que faz parte da versão reco-
Brasileira. p. 220 - Arctopithecus tridactylus) , vence Poronommare JUSta- lhida por Saake entre os Baníwa (Aus der Vberlieferung der Ba-
mente porque este (tal qual o Koné wó Taulipáng de KocH-GRÜNBERG. "Mitos niwa. p. 86 et seqs. ) :
e Lendas dos índios Taulipáng e Arekuna." RMP. p. 151, que acaba mor-
rendo porque desprezou um simples besouro do estrume) não o teme. Amaru se faz representar por 30 moças, 16 que tentam subir
A embaúba ou mapati (Pourouma cecropiafolia Mart) é a árvore em 30 palmeiras, mas falham, perden~o para os 30 moços que,
preferida do "Ahy". a um sinal de Inapirikuri, sobem rapidamente até a ponta das
De sua madeira se fazem umas flautas, tocadas na "dança da embaúba" palmeiras, assegurando assim para os homens o direito aos ins-
nos dabucuris. Esta dança se destaca das outras porque nelas toma parte trumentos sagrados.
uma dançarina solista, a yohogó, segundo a descrição de SILVA, Pe. A. Brüzzi
A. da (A Civilização Indígena do Uaupés. p. 345), representada pela mulher Já vimos em capítulo anterior o significado essencial que tem
do tuxáua local. Também Saake se refere a este papel especial que uma entre todos os povos a ascensão a uma árvore, simbolizando em
das mulheres tem na dança da embaúba, acrescentando que lhe é permitido todos os casos a auto-imolação. 17 Parece assim claro que o epi-
(e tão só a ela) tomar caapi ("Uma Narração Mítica dos Baniwa." RA. sódio fundamenta a exclusão da mulher do setor religioso, uma
p. 35). Esta solista entra no meio do círculo de dançantes e, sem tomar
respiração durante este bailado, emite um grito longo e agudo. O que
ainda outra função da embaúba: a sua cinza complementa a coca. (l:. um
representa ela? A "Ahy" (alter ego, de aspecto mais gentil, mas efeito ativante da salivação, conforme KocH-GRÜNBERG. Zwei Jahre. . . Band II,
mais sinistro, de Amau e do próprio herói) que acaba enviando Porono- p. Í90). E lembremos finalmente que no Uaupés, as "lanças chocalhos"
minare ao mundo subterrâneo, proipetendo fazer uma flauta do braço dele rituais (as mesmas que aparecem na "História de Luna", de uma delas tendo
para vangloriar-se de ser dona de tudo (afinal, um outro arranjo, apenas, se servido o jaguar Hikaniké para esmagar os dedos dos pés de Méneri-Ya)
do motivo da usurpação dos instrumentos sagrados ... ) ? Mas, se ela repre- são feitas de embaúba.
senta "Ahy", o grito longo e agudo não parece corresponder ao "ligeiro 16 A coleta é muitas vezes feita em bandos; mas aqui não há dúvida de
.
silvo ' que mais é um suspiro de alívio ou de dor" (MAGALHÃES, A. Couto
Ensaios sobre a Fauna Brasileira. p. 220) de que a preguiça e capaz.
,
de. que o número não foi escolhido ao acaso e sim por ser múltiplo de 3.
Esperamos ter conseguido mostrar atrás que o número três representa no
Representa o grito talvez o canto da Inhambú (V. nota 74, p. 319-20). De pensamento mítico o caminho da luta interiorizada: a tríade (formada por
qualquer form a, trata-se da presença da mulher na área do sagrado, presença Mení, Hikaniké e Warimi na mitologia barasana) caracteriza também a mito-
que não lhe é permitida a não ser no tempo mítico (isto é, fora do te~po), logia aruák, embora tomando uma forma ligeiramente diversa.
e cremos que é esta a explicação para a exigência dela não tomar respiração 11 Mesmo em se tratando dos mitos tipo dénicheur d'oiseaux: a iniciação é
(pois, caso contrário, não viveria muito). Parece assim que ela representa sempre concebida como uma morte seguida de ressurreição.
um papel que, contudo, não pode viver. Dentro desse contexto mesmo, há
304 CAP. XII - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" AS LENDAS ARUÁK - O ''FILhv DA FRUTA" 305

forma, contudo, de a dispensar do sacrifício 18 também, sacrifício Aliás, a pupunha é planta cultivada, mesmo entre os nô-
este que o homem, de ora em diante, tomará "cavalheresca e mades Yanonami. 21 E talvez cultivada há muito tempo. De qual-
heroicamente" sobre seus ombros. (Este aspecto nunca pode ser quer modo, el~ é considerada tão importante para este grupo
esquecido: sem ele não existiria religião.) que, em um mito relatado por H. Valero, ela é a única planta
Ao mesmo tempo, acreditamos poder ver neste episódio o mencionada como tendo sobrevivido ao dilúvio universal, graças
símbolo do triunfo de um gênero de vida mais sedentário sobre ao fato de suas sementes terem boiado sobre as águas e assim
outro nômade. se espalhado depois sobre a terra. 22 Ela cresce formando verda-
Isto quer dizer que com a sedentarização existe uma ten- deiros bosques. É verdade que, entre os "Yanoama" de H. Va-
dência de se demarcar e acentuar a divisão de trabalho por sexo, lero, são as mulheres que vão aos pupunhais, 23 e em grande
que, como já ficou sugerido em páginas anteriores, num bando número de passagens elas sobem às palmeiras para colher frutos
nômade, pouco d~nso, não pode ser muito rígida. 19 (patauá, buriti, etc.).
A coleta é geralmente uma atividade feminina, inclusive a Embora H. Valero não mencione o uso da "pinça-escada" 24
coleta de frutos de palmeiras e outras árvores. 20 os Yanonami, contudo, usam para a escalada da pupunheira ( c~jo
Particularmente com referência à pupunha, é verdade, parece tronco é cheio de espinhos) essa espécie de "tesoura" de madeira
que nesta área do noroeste brasileirq não foi necessário esperar (descrita por H. Becher entre os Surara e Pakidai e cuja foto-
grafia Biocca publica também em Y anoama). E é sempre o
uma sedentarização para que surgisse uma tendência do homem
substituir a mulher na subida em árvores ou, ao menos, uma homem que sobe à pupunheira, com o auxílio desse apetrecho.
participação do homem na catança. Contudo, só mesmo quando o grupo se torna suficientemente
numeroso e mais estável aparecem condições para uma maior coesão
18 Para o qual, aliás, é juJgada fraca e incompetente, o que se . evidencia entre os homens, que possibilite a estes uma definição frente à
pelo resultado da competição. . mulher.
19 Pela própria baixa densidade desses grupos, a colaboração homem-mulher Não que ao nível de bando quem mandasse fosse a mulher.
nas mesmas atividades torna-se por vezes imprescindível. Já DURKHEIM (La
División dei Trabajo Social. Cap. II, p. 299 et seqs.) chama a atenção Além do bando ser comumente patrilinear, já dissemos atrás que
para a relação, boje bem conhecida, entre o progresso da divisão do trabalho não acreditamos que tivesse existido um verdadeiro matriarcado
e o aumento de densidade das sociedades. Mas a própria especialização por na América do Sul. Temos a impressão de que Descamps 211 tem
sexo já é uma divisão do trabalho. Claro que a menor ou maior rigidez razão quando afirma, mesmo, que só a predominância do atelier
dessa divisão de trabalho não depende tão-só da densidade, ~orno se pode
deduzir facilmente de observações como as de M. Mead sobre os Arapesh,
feminino não redunda num predomínio da mulher. A presença
por exemplo. MEAD, M. Sexo e Temperamento. constante do homem pode até determinar, nestes casos, um status
20 FERRARI, A. T. "Atividades Extrativas dos Povos Primitivos e Pré-letrados." de escrava para a mulher, e só a ausência periódica, relativamente
Separata da. Revista da Universidade Católica de São Paulo. "Enquanto grande, dos homens (como ocorre em algumas tribos australia-
entre os Borôro são as mulheres que trepam com grande agilidade nas pal-
meiras, sendo na maioria dos grupos a catança uma atividade exclusivamente nas, 2 6 é que favorece o aparecimento de um regime matriarca).
feminina, há contudo muitos povos em que ela é praticada indistintamente
21 BroccA. Yanoama. p. 281: "Nous plantâmes aussi des paJmiers à pou-
pelos dois sexos, como por exemplo entre os Canela, Pilaga e A weikona.
Entre estes últimos, assim com.o entre os Kaingang, são os homens que pougnes ... "
sobem nas araucárias. 2 2 I d., ibid. p. 191.
Que a monopolização de uma atividade comum aos dois sexos, por 23 /d., ibid. p. 191-280.
24 Trata-se de duas pinças de madeira que funcionam como degraus móveis.
um apenas, não é um processo mecânico, destituído de significação, já se
vê pela própria representação no mito. Além disso, em outras mitologias :B possível que o grupo com que viveu H. Valero só plantasse uma variedade
se expressa o mesmo tema: assim, por exemplo, um mito kaiapó, 'A pri- de pupunheira sem espinhos (variedade Miris Barb. Rodr., segundo LE
meira jabota' (BANNER. 'Mitos dos índios Kaiapó.' RA. p. 45-46) procura CoINTE. Amazônia Brasileira Ili: árvores e plantas úteis. p. 354). Valero
fundamentar justamente o processo inverso: 'Hoje não são os homens que chega a dar a descrição do processo pelo qual se obteria essa variedade!
sobem nas bacabeiras'. Entre os Krahó (também jê), ainda em 1947, a (Op. cit. p. 281).
2 5 DESCAMPS, Paul. État social des peuples sauvages. p. 2ó'.
coleta é trabalho das mulheres e são também estas últimas que sobem nas
26 E como ocorreu aliás com a sociedade paulista, conhecidamente, na fase
palmeiras para colher os cachos maduros". ScHULTZ, H. "Lendas dos lndios
Krahó." RMP. p. 52. do bandeirismo.
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Tais condições não parecem ter existido de forma acentuada na Nesta área dos pupunhais da América do Sul, este processo
América do Sul. O que não impede que, ao nível de bando, aqui já estava em andamento, sempre que colheitas abundantes e regu-
e acolá, a mãe do chefe local tivesse, 27 como já vimos, uma auto- lares 31 possibilitaram um aumento considerável de densidade de-
ridade maior sobre o filho; ou alguma das esposas, uma autoridade mográfica e uma conseqüente maior fixação do grupo. a2
maior sobre o marido. Contudo, o controle da situação doméstica Talvez se possa encarar como primeiro sintoma mitos do
decorre mais diretamente da personalidade do líder; se este quiser tipo do d~ Bisíu, tal qual ele se apresenta entre os Desâna, sa a que
continuar a ser o chefe do bando, terá que conseguir este controle nos referimos anteriormente. Como vimos, Bisíu aparece nele
e normalmente não hesitará também em usar da violência, de com uma forte acentuação do seu caráter maléfico (de bruxo). a•
quando em quando, para impor respeito às suas esposas. Bater na O passo seguinte S!í encontra-se na idealização pelos homens
mulher (não demais, nem de menos, como chega a ·estabelecer um do ato de matar Bisíu, "salvando" as mulheres do seu domínio:
pitoresco mito kamayurá) 28 faz mesmo parte, em muitas socie-
dades nômades ou não, do ideal de comportamento masculino. 2 n ~11 P~TINO ("~1 . Cachipay o Pijibay ... " América lndíge,na. 1.ª parte, p. 190)
Apesar de em muitas hordas a mulher realmente arcar quase reunm urna sene de dAado~, demonstrando que há duas colheitas de pupunha
por ano, para a Colomb1a (Vale do Cauca), costa equatoriana (prov. de
que sozinha com o sustento da família, justamente pelo fato do Esmeraldas), vale do Magdalena e para ambos os flancos da Cordilheira
chefe não ser muito mais do que o chefe de uma família ainda re- Orienta.!. Uma no começo do ano (para algumas regiões, janeiro, para outras
lativamente pouco numerosa, ela se sujeita na maioria dos casos março ), a outra, no 2.0 semestre (setembro-outubro) . O autor chega à
"automaticamente" à autoridade do marido, da mãe do marido ou conclusão (p . 191) de que, na faixa equatoriana, há duas colheitas coin~
cidindo com os equinócios (março e setembro).
da primeira esposa, mais ainda quando existe o costume de se 3 2 f: claro que a pupunha não é a única árvore que propicia estas transfor-
conseguir esposas crianças ainda. 30 mações. "O que o conde Stradelli observara no Rio Negro nos fins do
Esta situação se modifica, contudo, quando há um aumento século XlX, Mario Melo encontrou no sertão pernambucano de 1928. Ainda ·
razoável da densidade com o processo de sedentarização. A ten- ardem os velhos numes pré-coloniais no ouricurú dos Fulniôs. Ausências
de_ n;~lheres em certas festas, instrumentos-tabús, necessidade de iniciação,
dência que surge geralmente é justamente a uma institucionaliza- m1steno para os brancos e profanos." CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia
ção do mecanismo de controle do mulherio. dos Mitos Brasileiros. p. 90.
Pode se manifestar, entre outras formas, justamente por um 33 V. neste trabalho, à p. 290 et seqs.
4
3 Como fa lamos atrás, de certa forma gratuitamente, pois o fato de Bisíu
repúdio ao desempenho feminino de ritos já desenvolvidos ou esta-
tornar a mulher uma grande produtora beneficia o grupo, de modo que o
belecidos pela mulher como coletora e cultivadora incipiente, com sacrifício d a mulher deveria ter também uma conotação valorizada. Se assim
a monopolização total da esfera religiosa pelo homem. não é, a úni ca explicação é justamente a de que o homem pretende manter
a mulh er fora da área do sagrado, como aventam·os atrás.
21 Como por exemplo a mãe de Fousiwe, segundo o rel ato de H. Valero, a ~:;;Corre sponde ao mito tukano que Schaden reproduz (segundo Biocca) em
que já nos referimos ... A Mitologia H eróica de Tribos Indígenas do Brasil. p. 153: O Ua'kti dos
28 VILLAS BOAS, o. e c. Xingu, os lndios, seus Mitos. p. 129-37. . . "No Tukano do T iqu ié é identificado como espírito malvado, que violava as
meio do caminho, o Sol e a Lua começaram a espancar as mulheres. O mulheres, as qu ais fi cavam em estado de impureza, doentes. Os homens
ciúme estava demais. Voltaram e devolveram o remédio para Ierêp. Aí o resolvem capturá-lo numa armadilha, matam-no e enterram seu corpo horrí-
ciúme abrandou um pouco, mas na aldeia bateram novamente nas mulheres. vel, cheio de buracos, em que o vento assobia. (Creio que essa é bem uma
E elas disseram: A ssim é que a gente gosta. Está bom agora" (p. 133) . imagem que se poderia fazer de uma flauta de ossos em condição pré-
2 9 Um mito guarayu (recolhido por Cardus) que Koch-Grünberg publicou -cultura l ... )
em alemão (lndianermiirch en aus Südamerika. p. 103 e 282) pretende expli- Apesa r de faltar o episódio típico da cremação, o episódio do nasci-
car por que os índios ainda hoje batem em suas mulheres, apresentando o mento, não das pa lmeiras de frutos comestíveis, mas das palmeiras de que
respeitável exemplo de Abaangui, o ancestral que bate na mulher, a ponto de são feitos os instrumentos sagrados, encontra o seu encaixe neste mito.
ela fugir. Koch-Grünberg comenta que, ao que parece, o feito é motivo de Hiatos deste tipo ocorrem freqüentemente na difusão dos mitos. f: o que
certo orgulho. explica també m que determinado mito de um povo que já de há muito
ao Aliás, em caso de maus-tratos, nem sempre existe para a mulher a opção passou por vários gêneros de vida e fases diversas como povo sedentário
da fuga par::\ seu próprio bando, já que os bandos são gera lmente patri- (estamos pensando nas criações sucessivas do Popol-Wuh ), simboliza para
l0cais. Como já dissemos, contudo. nem mesmo a mutrilocalidade consegue ele a passagem da segunda para a terceira criação, ou da terceira para a
~ó por si estabelecer um veràadei ro matriarcado (a inda mesmo qua ndo a. quarta. e pode representar, ao mesmo tempo, para outro povo, a passagem
sociedade é tambén1 matrili near ) . Ja fase nômade para a sedentária, como é o caso aqu i.
308 CAP. XII - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" 309
"Antes de nacer nosotros - los hombres - las mujeres vivian sas do ofídio (além de outros pequenos mamíferos que costumam
con el propio Diablo. Este era un hombre que mandaba a todas subir às árvores para comer frutos) . 39
a subir a la palma seje y a bajar pepas, y no sabían trabajar duro.
Por eso se calent6 el Diablo. El les mandó comer tierra y carb6n, De qualquer modo, percebe-se pelo mito puinave que a ser·
con lo cual se pusieron todas muy /lacas. Los hombres perma· pente (terrestre) 40 aí aparece com as funções de encarnar o pró-
necian escondidos por medo al Diablo . .. " 86 prio "ser terrível". Assim é que o homem toma o lugar da mu-
lher na "ascensão sacrificial", ao mesmo tempo, é evidente, que
O relato (dos Puinave do Rio lnirida) 37 continua com o epi- procura se colocar num estado ritual, que lhe permita dramatizar
sódio do Diabo sendo atirado traiçoeiramente a uma fogueira pe- o auto-sacrifício (e não executá-lo efetivamente). 41
]os homens que dançam em seu redor.
E é com flagelações que o homem pretende se colocar neste
"De las cenizas nació la macanilla, 38 el seje, el moriche (Mauri· estado ritual. 42 Isto mostra, a nosso ver, a ligação da flagelação
tia flexuosa), las palmas espinosas las cuales no se pueden comer ao culto da árvore. Mas como e por quê? :e possível que se possa
en las fiestas . .. " ver nos próprios açoites uma imagem da cobra que se arremessa
"Y todo se cambió, nosotros podemos subir ya a las palmas, sobre a vítima para picá-la. Como no rito gorotiré a morte efetiva
podemos traer pepas y nos damos látigos para que no nos pique da mulher é substituída por sua violação ("cohabitar es matar",
la culebra y para que las mujeres vean que sabemos más." no dizer do infarmante desâna) pelos espíritos personificados nos
Não sabemos se a incidência de serpentes é grande no territó- companheiros de grupo ou clã, para os Puinave a morte no alto
rio puinave. As serpentes devem ter, desde os tempos de Adão, da palmeira é substituída por picadas simbólicas da cobra. 48 Tra-
certa preferência por árvores frutíferas, pela atração que os frutos ta-se evidentemente apenas de uma tentativa de explicação. 44
representam para as pequenas aves, que são freqüentemente pre-
$lOPor um mito desâna (REICHEL-DoLMATOFF. Desâna. . . mito n. 0 6, p.
36 Percebe-se bem o simbolismo da subida às árvores. O castigo dos meninos 200) se tem a impressão de que os bosques de palmeiras são especialmente
que vêem Jurupari, antes dos ritos iniciatórios, efetivamente, é, também no freqüentados pelas cobras: "Havia un gran lago, sumuri-tará, en Ias cabc-
Uaupés, passarem a ter o vício de comer terra, vício que nesta área é ceras dei Macu-paraná. Samuri es crecer, fermentar, espumar e tará es
considerado perigoso (como capaz de ocasionar a morte em breve tempo). un lugar con agua y palmas pero pocos arboles. En este lugar háy mucha
STAHL ("Die Geophagie." ZE.) informa, contudo, que, realmente, o costume culebra". PATINO ("El Cachipay o Pijibai ... " América Indígena. p. 196)
é considerado perigoso entre os Kobéwa. Os Tariâna ( endófagos), no en- refere-se a uma crença dos índios de Darien, segundo a qual, no outro
tanto, comem barro. mundo, só se comeria pupunha, e os espinhos da pupunheira se transfor-
Como o texto ajunta também carvão à dieta mortífera, ficamos a nos mariam em cobras, impedindo o acesso · aos frutos a todos os indivíduos
cinzas). Voltando ao caso dos Desâna, dissemos atrás que, o que não nos
=
perguntar se este mito não indicaria uma reação contra a endofagia (carvão mortos por picada ofídica.
Há, portanto, aí uma associação também entre espinho e cobra.
inclina a imaginar que alguns clãs dessa tribo tenham sido outrora Puinave, 40 Lembramos aqui que é da serpente aquática (a canoa-serpente), que
é que os Puinave não são endófagos e a mitologia desâna indica claramente falamos em capítulo anterior, como conceito novo e ainda um pouco estra-
a endofagia dos clãs "Makú" em questão. Por outro lado, o "Diablo"
puinave correspon~e plenamente ao Bisíu desâna. Rozo esclarece, aliás, que nho, pouco sacralizado entre os Desâna e Tukano do Uaupés.
41 Aliás, parece que todos os ritos purificatórios visam, de certa forma, trans-
ª. f:sta comemorativa do mito, a que ele assistiu (em 1937, durante a expe- formar este poste sagrado do sacrifício num "pau-de-sebo" (difícil de subir,
d1çao Walde-Waldegg), tem o nome de "Bihuinóe", em língua cuinari.
Não só o termo "Bisíu" é conhecido de outras tribos do Uaupés, mas garantindo a volta).
42 "y nos damos látigos para que no nos pique la culebra".
como é identificado corno uma das manifestações de Jurupari, conforme
43 REJNACH, Salomon (Cultes, mythes et réligions. 1.º v., p. 173) diz-nos
se vê pela informação de CouoREAU (La France equinoxiale. p. 195) de
que "Bichiú" seria um espírito governador da maloca para onde vão as que há uma tradição de ser a flagelação um substituto para o sacrifício
almas das mulheres que viram o macacaraua. Este conceito deve correspon- humano.
44 Uma das maneiras de pôr à prova essa associação da flagelação à árvore
der a representações de Tariâna de Yauaretê, pois, como já o observou
ScHADEN (Op. cit. p. 154), os Tukano do Rio Tiquié não conhecem o frutífera e à serpente seria verificar a sua ausência nos ritos pubertários,
"macacaraua". entre os grupos sul-americanos que não têm economia baseada em árvores
3 7 Rozo, José Maria. "La Fiesta del Diablo entre los Puiííave:·
frutíferas e (ou) onde as cobras arbóreas não representam perigo. Não
38 Palmeira semelhante à cana-brava, a nlanacá.
temos elementos para essa verificação, mas na descrição que Cooper (''The
Ona." Handbook o/ Sourh American lndians.) faz dos ritos iniciatórios
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Em matéria de torturas, a mente humana, infelizmente, parece ter Como o açoite mais primitivo é certamente um ramo de pal-
sido sempre particularmente fértil. Se em uma área se dá preferência meira 47 ou um galho fino, pode-se supor também que a flagelação
aos ritos da tocandira (como entre os Mawé) e em outras (como corresponde a uma espécie de identificação ritual do homem c.om
no Uaupés e regiões vizinhas) 4 :) predomina a flagelação, certa- a árvore em si, pois os frutos são muitas vezes também derrubados
mente existe uma razão que pouco tem a ver, tecnicamente, com batendo-se e sacudindo-se a própria árvore. Esta idéia parece con-
a preparação física para a guerra ou os trabalhos em geral. 46 firmada por um mito a que alude Zerries 48 e que Thevet registrou
entre os Tupinambás:
"Klóketen" e "Ciéxaus" (Yahgan) não há referência expressa à flagelação. Numa época de grande fome, Maire Monan ter-se-ia transfor-
(E estas cerimônias têm certas analogias com as do Uaupés, inclusive na mado ele próprio em uma criança que foi batida por outras crian-
fundamentação mítica). ças, provocando assim uma chuva de todos os frutos.
45 WAVRIN (Moeurs et coutumes des indiens sauvages.) assinala o rito da
flagelação entre os Guaínia do Atabapo; Puinabui (Puinave) do lado do Zerries parece inclinado a ver na flagelação um rito de fe-
Orenoco (p. 281), Guabibo (durante uma festa em que se mata uma anta, cundidade. 49 Aliás, acreditamos que no Velho Mundo se trate efeti-
para trabalharem mais depressa, serem mais ágeis, mais corajosos), e entre vamente de uma associação de idéias com a técnica de bater o
os Guayavero, durante a festa da puberdade (p. 570): GIMPERA (Las Razas grão; ligada, portanto, ao simbolismo dos antigos cultivadores de
Humanas. p. 132) entre os Arawák da Guiana Inglesa, durante a dança do
Macuari; MARCOY (Voyage à travers l'Amérique du Sud. p. 398) entre os cereais (trigo, arroz) . Mas aqui na América, a agricultura à base
Mura (durante a festa de admissão de novos guerreiros, na maturação dos da mandioca e do milho (que é debulhado, não batido) evidente-
frutos do assaí). ZERRIES (Les religions am~rindiennes. p. 405) confirma os mente não poderia desenvolver o mesmo simbolismo. Parece, pois,
dados de Humboldt para o curso superior do Orenoco, nos ritos em home-
nagem a Cachimana (a que se refere também ScHADEN. A Mitologia Heróica
muito mais lógico associar a flagelação na América à arboricul-
de Tribos Indígenas do Brasil. p. 155), acrescentando ter presenciado, entre tura. ;;o
os Yanonami (os Wai:ca do Orenoco superior) , em 1955, um rito de fecun- Falamos atrás da substituição do sacrifício original por outros
didade com flagelação entre os homens. CATHREIN. (Die Einheit . .. p. 190) , ritos. Mas é importante lembrarmos que, à medida que o
baseando-se em Prescott e Acosta, indica a flagelação com ramas espinhen-
tas, nos "mosteiros" do Peru incaico, para expiação de determinados pecados. homem aprende novas técnicas 51 e coloca um pouco de si nos
Finalmente, entre os Piaroa, temos uma espécie de transição entre o açoite
e a tocandira, pois, segundo FELICITAS (Danças do Brasil. p. 95), o mas- maniere la plus cruelle. Ceux·ci enduraient en général leur peine sans

carado "Abóxoko" traz, batendo-o no solo, um bastão em forma de ser- murmure". O costume é referido também por STEWARD ("The Circum-
pente, e a iniciação dos jovens se faz usando um bastão coberto de formigas -Caribean Tribes". ln: Handbook of South American lndians. p. 405). Isto
tocandira. mostra que, uma vez surgido o rito, seu significado e função evidentemente se
46 Claro que sempre pode haver (e em grande número dos casos há mesmo) podem transformar em várias direções diferentes.
uma intenção de pôr à prova a capacidade da resistência física à dor, em 47 CASPAR (Tupari. p. 113) viu os meninos dos Tupari sendo açoitados coin
qualquer tipo de cerimônia iniciatóra. Wavrin, que assistiu a ritos de flage- um ramo de palmeira.
lação particularmente violentos entre os Puinave ( Op. cit. p. 254) viu os 48 ZERRIES. Les religions amérindiennes. p. 409.
homens todo cobertos de cicatrizes e diz que nenhum Puinave se recusa 49 ld., ibid. Assim ele interpreta, e cremos que com razão, um rito dos
ao desafio ~a flagelação mútua. Trata-se de uma demonstração de sua Mura em que todos os adolescentes são fustigados por um velho, logo após
capacidade de suportar estoicamente os sofrimentos físicos que o· índio faz se ter posto fogo no mato, nos trabalhos de roçado.
questão de dar ao visitante, o qual, como era de se esperar, não é obrigado 50 Claro, sempre pode haver convergência para uma simbolização de outras
a submeter-se à flagelação. Essa não obrigatoriedade é, contudo, no fundo, técnicas. Na pesca com timbó, fustiga-se o feixe do timbó, como é sabido,
um quase insulto ao visitante, como se os donos da festa duvidassem de mas não parece existir nenhum rito de flagelação ligado a essa técnica e,
sua capacidade de suportar dores iguais, e a acentuação das tensões entre aliás, não haveria mesmo muita razão para que o homem se quisesse
as aldeias deve provocar uma participação dos visitantes nos ritos. PEREIRA, identificar com o timbó.
Nunes (Os lndios Maués) observou que, entre estes indígenas, as provas 5I Já dissemos que a tendência é de o homem aprender técnicas novas, domi-
da tocandira tinham antigamente a finalidade (entre outras) de impressionar nando-as de forma dessacralizada, pois assim, de certo modo, elas o ajudam
seus vizinhos Mundurucu, mais numerosos e muito temidos. na sua luta interna (e externa, pelas trocas) contra o "ser terrível". Aliás,
BROCHER ("La substitution." ln: Le mythe du héros et la mentalit~ a humanidade tem feito isso de forma cada vez mais acentuada, particular-·
primitive.) informa, sem indicar as fontes: "Quand un bande d'lndiens Ca- mente após a revolução industrial. As atividades do homem se tornam
raibes de l'Orenoque partait sur le chemin de la guerre, ceux qui restaient cada vez mais dessacralizadas; nega..:se cada vez mais a existência do "ser
dans le village cakulaient aussi exactement que possible le moment ou terrível" e conseqüentemente a necessidade de qualquer sacrifício para resta-
débuteraient Jes hostilités. Jls fouettaient alors deux jeunes garçons de ln belecer um equilíbrio que se crê poder ser sempre, automaticamente, resta-
312 CAP. XIl - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" 313

trabalhos que executa, 52 pode agir como Warimi, que deixa na Patino 54 transcreve uma descrição de um viajante do início
rede do jaguar o banco que o substitui no sacrifício, pois é devorado )
do século XIX, sobre a importância da pupunha (lembremos que
pela fera. a mesma é planta cultivada) na Bolívia:
E esta nos parece a idéia fundamental no sacrifício das pri-
mícias. . . Não são os alimentos em si que são ofertados, é o "La primera y principal fruta es el tembe o fruta de la chonta,
trabalho, o esforço do homem, que é ofertado em seu lugar. Evi- y el tembe se llama en Mozetenes 'Buey' . . . cada palma hecha
dentemente não se pode dar o que não se possui, e cremos que diez o doce racimos y dentro de este coco que tiene perfecta
na mentalidade do pré-agricultor não existe de fato uma boa razão figura de una calabera, y dentro de este coco hai una semilla
para que se julgue a humanidade como dona original dos frutos branca como un copo de nieve con la misma figura y es mui
silvestres; daí os sacrifícios sangrentos tenderem a ser· substituídos, dolce, esta fruta la comen los indios, ... y hacen chicha de ella
à medida que o homem se realiza nos mais variados campos e que hecha un aceite ·mui gostoso. Se mantienen con ella los
pode conseqüentemente ofertar, em troca dos bens recebidos, o meses de Febrero, Marzo, Abril y Mayo, tiene esta palma una
copa mui hermosa a la vista, semejante ai Totai (Acrocomia totai
fruto de seu trabalho e outros tipos de criações, até mesmo, o
Mart.) de Santa Cruz. Ver esta palma cargada de racimos ama-
canto, a dança, a escultura. 53 rillos bajo 'su hermosisima copa causa mucho gusto a la vista y
Quer isto dizer que se pode negociar com o "ser terrível", da parece convida a los hombres y animales a recrearse con su deli-
mesma forma que se trocam produtos com os grupos locais convi- cioso nectar que lo es na realidad, en este tiempo engordan con
dados a algum dabucuri? É evidente que sim. ellos hasta los peces de los rios porque hay muchas cbontas en
Quando analisamos o mito de Warimi, o aspecto carnívoro, sus orillas y se derraman en ellos. Lo mas admirable es que
antropófago, do "ser terrível", na sua caracterização de jaguar, siendo esta palma tan espinosa qué no tiene donde asentar un
parece não permitir esse raciocínio, à primeira vista. Mas, como alfiler suban los ratones su punta. . . En una palabra les sirve
então se explica a presença da panela com mandioca na casa de de comida, vevida y hierro. Y con toda propiedad se puede llamar
Hikaniké, como se explica que este devore um objeto esculpido Madre de los Yuracares, la siembran, tenda mucho en nacer pero
em madeira, pensando tratar-se de Warimi? nacida da a los 4 anos ... Acaso esta seria la fruta vedada que
Lembremos que a Onça é apenas uma representação sincre- nos volvió a todos calaberas ... "
tizada de todos os animais que o homem caça, que o homem pre.:.
judica. A onça é o "senhor-dos-animais", que pode aparecer, Cremos que este texto não necessita de comentários. Não é,
I
como já vimos, no mesmo aspecto aterrador, caracterizado como portanto, de se admirar a importância dos dabucuris, das festas
macaco ou como ó mais inofensivo dos animais. das frutas, no noroeste amazônico. 55 Compreende-se assim, tam-
Como uma boa parte dos animais que o homem caça nem é bém, que à medida que o grupo amplia suas relações com os
carnívora, nem pode haver dúvida de que os produtos cultivados grupos vizinhos, os dabucuris feitos especialmente para o "senhor-
pelo homem, as plantas que se multiplicam pelo esforço do· homem, -dos-animais" continuam na área do sagrado, enquanto que os que
o alimento que ele faz aparecer, entram na troca com o "ser
terrível". se fazem exclusivamente para convidar os grupos vizinhos se tor-
nam profanos, ainda que neles haja tensões suficientes para que
belecido pela ciência do futuro. De vez em quando, o "ser terrível" volta, anfitriões e convidados representem, com maior ou menor agres-
contudo, na poluição do ar, na radioatividade incontrolada, na mutação sividade, cada qual frente ao outro, o "ser terrível" que poderiam
inesperada provocada por este ou aquele remédio .. .
IS2 Daí a importância fundamental do trabalho criador.
ISS Assim se poderá concluir também que, quando os ritos purificat6rios
M PATINO. "El Cachipay o Pijibay ... " América Indígena. 1.ª parte, p. 185-
centralizam por demais as atenções de um grupo (como é o caso, já visto, -86, transcrevendo José Maria Boso Lima (1821) .
dos Desâna), muito provavelmente suas condições de realização (lembremos 55 E em outras áreas da pupunha ou onde as árvores frutíferas desempe-
a decadência das artes em geral no Uaupés) são péssimas. Temos a impres- nharam papel tão importante quanto a pupunha.
são de que quanto aos Desâna isto já ficou claro pelo que escrevemos no :e verdade que em muitos dabucuris as frutas são silvestres. Mas é o
capítulo dedicado a eles. homem que as transforma em vinho ...
314 CAP. XII - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" 315

ser, caso as trocas (de mulheres e presentes) não consigam manter A que tribos se deve atribuir a endofagia ritual no U aupés?
o equilíbrio. 56 \ ')
Já falamos atrás das dúvidas que temos quanto aos Tukano. A
Assim é que, depois do rito gorotiré (que já é uma substitui- endofagia desâna (hoje limitada a certos ossos do Kumu, conforme
ção do sacrifício primevo, ainda do estrato dos caçadores arcai- já visto) parece proceder, a julgar pelos mitos, de um grupo makú
cos), 57 o cultivo da pupunha ofereceu ao homem da América pré- absorvido. Das tribos referidas hoje como endófagas por Pe. Alcio-
-colombiana (pois que ela é cultivada desde tempos muito remo- nílio, 61 os Somena são marginais ao Uaupés (Rio Japurá), e os
tos), realmente um substitutivo para a mulher relegada à condição Wanâna, que estão há mais tempo na região, se são efetivamente
de "mulher dos bichos". tukano, 62 enterravam outrora em cemitério. 63 Nos mitos que
Voltemos ao mito puinave e, uma última vez, à questão da conhecemos dos Kobéwa, não há nada que pudesse indicar um
endofagia. Seria possível que o mito do velho diabo queimado antigo costume de endofagia (embora isto não exclua a possibili-
pelos homens, 58 para que as mulheres não comessem mais terra dade de ainda se deparar com mitos desse tipo). Apesar de a infor-
e carvão, fundamentasse também um abandono da endofagia? É mação de Wallace sobre o canibalismo kobéwa 64 ter sido criticada
uma pergunta que ficará sem resposta, como outras mais neste como falsa por Brüzzi, ficamos em dúvida se ele (Wallace) tomou
trabalho. Parece, contudo, que a sedentarização da vida propicia por exofagia um costume de endofagia, 65 ou se os Kobéwa real-
condições que tornam o abandono da endofagia relativamente fá- mente eram canibais como o poderia sugerir um texto mítico tu-
cil. O ponto central da endofagia yanonami parece ser justamente kano publicado por Fulop. c;c
a necessidade de sepultar o morto bem no seio de seu próprio Para Zerries, não foram as tribos karibe e aruák os principais
grupo, pois a alma só se libertaria deste mundo para o descanso difusores do costume. 67 .Quanto aos Karibe, parece correto. Quan-
eterno após a ingestão de toda a cinza por seus parentes. Esta to aos Aruák, contudo, Zerries não levou em conta que os ante-
necessidade corresponde bem ao nomadismo: não existe um solo passados deles poderiam tê-la praticado. 68 É verdade que as tri-
sagrado, pois o tempo de permanência do grupo no mesmo lugar bos proto-aruák não a praticam 69 mas não haveria a possibilidade
é curto. A única forma de dar segurança ao morto é através deste de a dispersão dos proto-aruák se ter dado numa época em que a
rito, sem dúvida o mais humano e o mais comovente dos ritos endofagia ainda não era praticada na América Central, numa épo-
funerários que a humanidade já conheceu. Pode-se compreender ca em que apenas uma agricultura de caráter mais primitivo, 70 e
que, com o processo da sedentarização, rrn o solo da maloca se
pois parece que não existe qualquer rito purificatório para quem lidou
torna um lugar igualmente seguro, e uma das necessidades princi- com o morto.
pais 60 de praticar a endofagia vai desaparecendo. 61 SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. A Civilização Indígena do Uaupés. p. 374
et seqs.
56 S a tensão, a hostilidade )atente entre as fratrias Kobéwa que notou 62 Curiosamente, Giacone os indica como tendo vindo do Orenoco, como já
GoJdman. . . -referimos atrás.
57 Pois é evidente que os sacrifícios humanos realmente procedem deste 63 Brüzzi parece inclinado a considerar este costume influência dos civili-
estrato. zados (SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. Op. cit. p. 373); a julgar pelos mitos,
5 8 Segundo Goldman, entre os Kobéwa, parece que se trata de um ato ainda. parece antigo.
"não inteiramente consumado", pois à p. 257 (The Cubeo . .. ) lemos; com 64 WALLACE. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. p. 637.
referências ao ogre "Kómi": "às vezes o povo o pega e o queima vivo. 65 Que ele identifica, contudo, corretamente entre os Tariâna e Tuk.ano.
Morrem todos os que chegam perto de suas cinzas, mas os feiticeiros as 66 FULOP. "Aspectos de la Cultura Tukana - Mitologia". RCA . p. 341-VI.
aproveitam". Curioso que são os Kobéwa os indígenas do Uaupés hoje mais Em ?'lamiriwi, a maloca Kobéwa, Deus deixa um casal de seres que procedem
referidos como praticantes da endofagia. para com os home'ns, como Boraró e Boraró Numió.
59 No Uaupés, muitas das grandes malocas ao longo dos rios foram encon- 67 ld., ibid. p. 151.
tradas no mesmo lugar, por expedições feitas com muitos anos de intervalo, 68 O mapa de ZERRJES ("El Endocanibalismo en la América del Sur." RMP.
e há também várias referências à construção de alguma maloca nova, mas p. 167) não assinala grupos pré-colombianos da América Central de que
ao lado da velha ou a pouca distância dessa. se sabe terem praticado a endofagia.
60 Pois est~ é, sem dúvida, uma das :necessidades principais a que responde 69 ZERRIES. Op. cit. p. 151 (Montaõa, Kampa, Macbeguenga).
a endofagia, e não o medo do morto. Ao menos isto se confirma, tanto 10 ScHMIDT. ("Anotaciones sobre las Plantas de Cultivo y los Métodos de la
para os Y anonami (entre os quais o morto de quem se poderia ter medo Agricultura de los Indígenas Sudamericanos." RMP. p. 240-51) aponta
simplesmente não é absorvido pelo grupo), quanto para as tribos uaupesinas: para o fato de que uma agricultura de mounds (como os aterrados que
AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" 317
316 CAP. XII - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA"

Nunes Pereira publicou três mitos quase paralelos 1s deste


não a agricultura de floresta, era praticada? Parece certa a inter- herói do ú aupés: "Estória de Poácare", "Estórias de Poromina
pretação de Zerries de que a endofagia de grupos circuncaribes, Minare" e "Estória do Aturá".
restrita à ingestão das cinzas do corpo do chefe morto, ou só do
xamã morto ou só dos nobres, representa uma fase mais moderna; Reproduzimos o primeiro:
mas por que procurar a origem do costume diretamente do noroeste
amazônico, onde ele caracteriza particularmente sociedades seg- "Estória de Poácare"
mentárias como a dos Yanonami? Parece mais lógico que se pro- 1
cure relacioná-lo aos costumes de uma sociedade realmente estra-
tificada, já de há muito, como a que se formou na América Central "Poácare, um dia, foi fazer um dabacuri para uma famflia.
pré-colombiana. Chamou todos os bichos que encontrou e mais o Bacaco, a
Tibira, a lnhambu, à Onça, o Mucura, o Macaco.
Já se tem chamado a atenção para o fato de que os autores E, no dia da festa, lá encontrou todos os seus convidados.
da cerâmica de Santarém e de Oriximiná foram muito provavel- Beberam e dançaram muito.
mente endófagos. Não teriam eles algo a ver com a endofagia de No meio daquela gente a moça mais bonita era a lnhambu.
certas tribos vizinhas? Poácare se pôs a namorar a lnhambu, filha do Jacruaru.
No Uaupés, das tribos aruák, só os Tariâna e os Warekêna 71 E, dançando, a convidou para dormir com ele depois do
dabacuri. •
são referidos como endófagos; os segundos, contudo (s~gundo
O Mucura Grande, porém, ouviu tudo.
Galvão, que usa a grafia "Warikéna"), hoje reduzidos a um sib
À meia-noite Poácare levou a moça lnhambu.
apenas (os "Wiramiri", já quase extintos também), estão na mesma O Mucura, que já estava bêbado, foi atrás.
situação dos Kobéwa. A julgar pelos mitos, pesa sobre eles a Poácare e a lnhambu deitaram-se na rede.
acusação de terem .sido exocanibais. 72 Quanto aos Tariâna, tem-se O Mucura veio e se pôs debaixo da rede.
a impressão de que foram eles que reavivaram o costume no Uau- Poácare disse a lnhambu que, de manhã, ela fosse pelo ca-
pés, pois deles é o mito de Jurupari instituindo o rito. Trouxeram minho onde visse uma pena de arara, pois esse sinal estava indi-
. o costume consigo ao entrarem no Uaupés? Lembraram-se de ritos cando a casa dele .
outrora praticados pelos antepassados, ao entrarem em contato com O caminho, que tinha um olho-de-cana como sinal., estava
os Desâna? E é no fato de que outrora ambas as tribos pratica- indicando a casa do M ucura.
vam a endofagia que se fundamenta a curiosa alegação de que as O Mucura Grande ouviu essa conversa.
duas tribos sãó parentes? Fugindo dali o Mucura foi esconder-se, por detrás de um
pau, junto ao caminho. E viu quando Poácare espetava uma
No começo deste capítulo, dissemos que Poronominare é um pena de arara no caminho que ia para a casa dele.
equivalente de Warimi. Sabemos agora que devemos esperar vê-lo O Mucura, quando Poácare se afastou, tirou a pena de arara
lutar com outras armas que as. do herói barasana. e a pôs à entrada do caminho que levava à sua casa.
A lnhambu, de manhã, veio e encontrou a pena de arara
estudou entre os Guat6 do Rio Paraguai) forma um estrato primitivo em no caminho da casa do Mucura Grande. E foi por esse caminho
várias regiões da América, inclusive no lago Titicaca (tipo de agricultura até encontrar uma casa.
praticada pelos U ru, a mesma das chinampas dos lagos mexicanos) . Entrando, a lnhambu viu uma rede, e, como estava cansada,
Estas observações adquirem uma importância maior ainda, se Zerries
tiver razão quando diz: "Although not mentioned by Steward, the Uru may deitou-se, mas levantou-se logo, porque a rede fedia muito.
be the missing link between these primitive proto-Arawakan and Panoan A l nhambu disse a si mesma que aquela rede não era de
groups and the Andean population''. ZERRIES. "Some Aspects of Waica Poácare.
Culture.,, Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas. p. 77.
71 SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. "Warekena." Op. cit. p. 374-75. (Rio lçana 73PEREIRA, Nunes. Moronguetá. . . v. 1. p. 225-56. Segundo o autor (p.
e Xié). 212), as lendas lhe foram contadas principalmente por índios baré, que lhe
72 AMORIM. "Lendas em Nhêengatú e em Portuguez." RIHGB. p. 189 - asseguraram que elas são conhecidas de todas as tribos do Uaupés.
("Origem d_os Tárias") "Os Uerekénas comiam gente por lá" ...
, ·,
318 CAP. XII - AS LENDAS ARUAK O "FILHO DA FRUTA" AS LENDAS ARUAK - O "FILHO DA FRUTA" 319

E, então, a mãe do Mucura Grande apareceu e foi logo Poácare estava abraçado com a lnhambu e, para se ver livre
perguntando à moça 1nhambu se ela era a namorada do se~1 do M ucura, convidou o seu rival para ir tirar com ele cachos
filho. de patauá.
A lnhambu, para não zangar a velha, disse que sim. E, porque Poácare era um grande pajé, fez aparecer, no
A Mucura velha foi buscar uma cuia de caxiri e deu à moça, meio do caminho, uma grande árvore de patauá.
com muito agrado. Subiu pelo tronco da árvore-patauá e disse ao Mucura que
De repente chegou o Mucura Grande. tocasse buzina, chamando todos os bichos que eram seus amigos.
A Mucura velha disse à moça que fosse à roça tirar man- Enquanto o Mucura estava tocando a buzina, chamando os
dioca e ralar a que estava no porto, dentro de um casco velho. bichos, Poácare foi jogando do alto da árvore cachos de patauá,
que era para os bichos que não podem trepar.
Q M ucura disse:
- Eu também vou. Chegaram os bichos. E muitos deles foram logo tirar cachos
de patauá. ·
Foram os dois. Os Macacos, os Quatis, os Quatipurus subiram até os ca-
Mas, no meio do caminho, o Mucura se pôs a a_braçar a chos mais altos.
moça e ali mesmo quis unir o seu corpo ao dela. E, de combinação com Poácare, ali deixaram apenas um
A moça o repeliu. cacho.
O Mucura então foi tirar a folha de bananeira sororoca. Os bichos, quando desceram, disseram ao Mucura:
Como se esquecera do terçado o Mucura mordeu os talos - Agora, vai buscar o cacho que deixamos para ti.
das folhas e ficou com a boca cheia de sangue. O Mucura trepou ligeiro, mas, quando ia descendo, como
(E por isso que, quando se tiram folhas de sororoca, as mãos o cacho pesava muito, caiu da árvore.
da gente ficam vermelhas como sangue.) O cacho pesado de patauá caiu em cima dele e o matou.
Enquanto o Mucura estava tirando folhas de sororoca a moça Nesse momento o saco dele foi cair em casa da Mucura
1nhambu fugiu. velha.
No meio do caminho encontrou o Socó e pediu-lhe: E a velha disse:
- Esconde-me! Esconde-1ne! - Ah! Meu filho!
O Socó engoliu a moça para a defender do Mucura. A velha pensava que, tendo visto um chuvisco , com o dia
Depois que o Socó engoliu a moça, ali mesmo engoliu muitos claro que fazia, aquilo era sinal de casamento.
peixinhos para a esconder melhor e, depois, vomitar bastante. (Por isso, até hoje, quando cai um chuvisco, nos dias de
Quando estava engolindo os peixinhos, apareceu o M ucura, sol, a gente pensa que é casamento de Mucura.)
que vinha correndo atrás da lnhambu. Mas, os companheiros do Mucura, encontrando-lhe o cadá-
ver, fizeram um coração de cera vermelha e o pregaram no
Ali, encontrando o Socó, perguntou-lhe se não havia visto a seu peito.
lnhambu . O Socó respondeu: Aí o Mucura ressuscitou.
- Não vi. Os seus companheiros o aconselharam a não beber nada
Então o Mucura disse: quente, para que o seu coração de cera não derretesse.
- Vomita para eu ver o que estás comendo. E voltaram todos para casa." (Op. cit. p. 225-28)
O Socó vómitou os peixinhos que engolira por último.
A moça 1nhambu estava encolhidinha no bucho do Socó. Nesta seqüência, a primeira observação que se pode fazer é
O Socó, depois de vomitar, disse ao Mucura: que Poácare, sob a aparência humana (mas alter ego de Mucura
- Você estragou a minha comida. e, portanto, ocupando o lugar da onça dos mitos dos gêmeos ... )
O Mucura voltou para casa muito zangado, murmurando confere à sua parceira uma caracterização animal: ela é a Inham-
contra a moça e contra o Socó. bu, 74 um dos símbolos, tal qual a tartaruga, da vida nômade ou,
A moça lnhambu foi, então, à casa de Poácare, para lhe
contar o que havia acontecido. 74 Ave da família dos tinamídeos. "São aves que vivemno chão, alimen-
Mal chegara, logo apareceu o Mucura. tando-se de frutos e sementes; voam pouco." A estas palavras de von
320 CAP. XII - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" AS LENDAS ARUÃK - O "FILHO DA FRUTA" 321

melhor ainda, da vida "pré-cultural". Como na "Estória do Atu- o mundo exterior (do "senhor-dos-animais"), como também a
rá", ela é filha do Jacruaru, 75 um equivalente de "Mení" (do partir de protagonistas concebidos como animais a se defrontarem
mito barasana) como se verá na terceira seqüência da "Estória de com o mundo dos homens. Isto se deve, como já dissemos, ao
Poácare". fato de que o índio sabe muito bem que há algo de humano nos
Note-se a analogia entre algumas versões do mito dos gê- animais e que o problema cruéial de toda a luta é que ele precisa
meos 76 e o relato da Inhambu à procura de Poácare: as marcas combater o "ser terrível" que, de fato, encontra-se dentro dele
no caminho que, trocadas por Mucura, não deixam opção, a ambi- desde o momento mesmo em que dele passou ·a depender ...
güidade da moça que se diz namorada do sedutor, para não ofender
li
a mãe deste ...
A passagem do Socó escondendo Inhambu no bucho nos mos- "Tempos depois fizeram um dabacuri e convidaram todo~
tra a correspondência do mito com o de "Autxepirire", não fal- os seus parentes e amigos:
tando, na "Estória do Aturá", nem mesmo o episódio do jacaré Deu uma chuvarada muito grande, mas alguns dos seus pa-
como Caronte, desta vez tendo como protagonista uma Macaca e rentes e amigos não puderam vir.
seu filho, que, no mito, integram o bando de macacos que mata- O Mucura, entretanio, apareceu, com surpresa para todos
ram (qual onças antropófagas) a filha do J acruaru. 7 1 Isto con- os que conseguiram vir ao dabacuri que seus amigos haviam
preparado.
firma .. a•"vitalidade" do processo mítico: como já observamos com
·um deles, porét:n, lhe deu uma cuia de mingau quente.
referência aos mitos warrau, o problema do equilíbrio com o mun-
E o Mucura, esquecido do que já lhe havia acontecido, bebeu
do exterior pode ser mostrado, indiferentemente, a partir de prota-
o mingau quente.
gonistas concebidos como humanos, tendo que se defrontar com E morreu.
A mãe do M ucura, sabendo que o filho morrera, chamou o
Ihering, divulgadas também por Nunes Pereira (p. 340), pouca coisa acres- Gavião e o encarregou de vingar a morte de seu filho, dando-lhe
centa a descrição do nhambú-guassú de MAGALHÃES, A. Couto de (Ensaios
sobre a Fauna Brasileira. p. 117-18): "O piado agudo, distinto, modulado pagamento adiantado.
em escala cromática descendente e terminado por fino e ligeiro trinado ... E chamou, também, macacos, para matarem a mulher de
Toda a mata emudece para escutar melhor o canto de cristal desse tina- Poácare.
mídeo". · Todos esses bichos arranjaram instrumentos de Jurupari, que
75 Jacruaru - grande lacertídeo. O lagarto simboliza, mais freqüentemente descobriram ocultos entre pedras, na vizinhança das cachoeiras.
que o jacaré (relativamente pouco representado, como já vimos, na mito- E convidaram todos os demais bichos que tinham esiãifo
logia brasileira), o sogro primevo. Como réptil, um equivalente da serpente, no dabacuri dos amigos do Mucura.
a qual enfrenta (mesmo sendo venenosa), passando ainda (MAGALHÃES, E Poácare também foi convidado.
A. Couto de. Op. cit. p. 44-46) grande parte da vida hibernando, mudando
de pele, ele é, talvez por isso mesmo, mais do que a serpente, uma das Mas Poácqre, não tendo onde deixar a mulher, ficou m~ito
encarnações preferidas do pajé. Uma das espécies de lagarto (Plica-Plica L.) preocupado.
é para os Desâna a personificação do próprio Waí-maxse (REICHEL-DOLMA- Por fim, mais calmo, resolveu meter a mulher na sua sara-
TOFF. Desâna ... p. 76), outra espécie, Urocentron Werneri (Id., ibid.) batana.
simboliza o Kumu. Esta última representação faz pensar que também no E assim fez.
Peru antigo, na civilização Moche, encontramos freqüentemente, segundo Poácare só andava com a 'muiher dentro da sarabatana,
KUTSCHER. ("Sacrifices et prieres dans l'ancienne civilisation de Moche carregando-a com a cabeça para o alto, para que ela não visse
(Pérou du Nord)." Anais do XXXI Congresso Internacional de America- os instrumentos de Jurupari.
nistas. p. 766) a representação de um demon-lézard (sacerdote ou divindade). Poácare foi caminhando, tranqüilo, pelo mato adentro.
Cremos que a maior identificação dos nossos indígenas com a serpente Andando assim, distraído, o Macaco Uacari lhe soprou a
terrestre (e não com a aquática), com o lagarto (e não com o jacaré) sarabatana.
tem a mesma explicação já aventada atrás: os mitos refletem ainda uma
vida de nômades das florestas, que há pouco tempo se estabeleceram nos rios. A lnhambu saiu de dentro da sarabatana e foi cair mesmo
76 Compare-se também com o mito de Warimi ("História de Luna"). entre os tocadores dos instrumentos de Jurupari.
77 PEREIRA, Nunes. Op. cit. v. l, p. 255 .
Esses, aos gritos, a mataram e esquartejaram.

322 CAP. xn - AS LENDAS ARUÁK - o "FILHO DA FRUTA" AS L E NDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" 323

E viram que a lnhambu estava prenha. estivesse Poácare, só mesmo o Macaco Uacari, encarnando-se em
Mas veio a Aranha Tapir, da beira d'água, e, sem que os Poácare, para soprar-lhe a arma com tanta facilidade! A seta
matadores vissem, roubou a criança. envenenada com curare equivale à mulher estraçalhada pelos bi-
Depois, correndo, foi entregar a criança ao Pau que, na beira chos : o direito de caçar tem seu preço.
do rio, ora mergulha, ora aparece. (Como um membro viril em Este é também o texto em que melhor se percebe que o cas-
ereção, explicou o narrador.) tigo de Jurupari é o mesmo da heroína de Autxepirire. Aliás, em
O Pau tomou conta da criança. mais de um texto mítico percebe-se que é este o castigo que espera
E passou a dar-lhe, todos os dias, muita comida e muito
a mulher que invade a área do sagrado, que agora lhe é vedada.
banho.
Quando a criança já estava bem crescida o Pau foi entregá-la Uma diferença sutil, mas importante, é que a atitude de provoca-
à Raia. ção ritual, que se espera da menina pura a ser sacrificada, não
E a Raia o criou até vê-lo rapaz. mais existe, após a aceitação da religião de Jurupari, pois nega-se
Todos os dias a Raia ia tirar camarão de um poço, na cabe- à mulher o direito de transformar-se em divindade-dema. (Não
ceira de um rio. há mulher sobre a face da terra tão perfeita quanto o Sol o exi-
O Camarão era a pimenta da Raia. ge . . . ) Mas o "ser terrível" não se toma menos perigoso por isso:
O menino foi-se acostumando a comer aquela pimenta. a mulher, imprudente, desobediente, rebelde, ou mesmo simples-
E, quando a velha ia para a roça, ele comia todo o camarão mente a infeliz que a fatalidade fez ver os instrumentos sagrados
que a velha apanhava. (sem culpa maior do que a do carregador da Arca da Aliança, do
A velha brigava com o filho da lnhambu e o menino lhe Velho Testamento), é fulminada por Jurupari. ·
dizia que aquilo não era pimenta e sim camarão, porque a Mãe
dele, a lnhambu, assim lhe ensinara. O início da história do filho da Inhambu, salvo pela Aranha
A Raia disse ao menino: Tapir, 78 aparece em outros textos míticos do Uaupés, com outras
- Então vai procurar a pimenta que a tua mãe comia. nuances, com outros personagens, como por exemplo na "Lenda
O m enino foi e encontrou, numa capoeira, um grande pé dos 1ndios Tarianos sobre a Cutia", publicada por A. Giacone: 79
de pimenta. é o relato de como um índio não deve ser educado, como não se
Fez um ganchinho que é hoje a cobra chamada Sacaib6ia tornará um ser humano ideal. Assim, em vez de mamar como
- e com ele apanhou as pimentas que quis. todo nenê, em vez de ser entregue ao seio materno, é entregue
Em seguida voltou para casa e cozinhou aquelas pimentas pela Aranha Tapir a um personagem que simboliza exatamente o
sem que a velha visse. oposto : o que ele deveria fazer apenas depois de mais crescido
Quando a velha voltou da roça o menino lhe entregou uma (comer muito, tomar muito banho, 8 0 ter conhecimento do sexo),
panela com aquelas pimentas, dizendo que era quinhapira.
E a Raia se pôs a comer as pimentas. ele o faz como bebê.
As pimentas ardiam tanto que a velha chorava e espirrava.
78 P EREIRA,Nunes. Op. cit. p. 345, diz que não conhece descrição científica
(Por isso a Raia ficou de nariz chato. ) dessa "aranha-anta". Cremos que se trata apenas da fórmula oposta à
Todos os dias, porém, mandava o menino buscar' pimentas." "aranha-onça" que persegue Warimi; esta, feminina, salva o herói.
(Op. cit. p. 228-30) . 79GIACONE. Os Tucanos . .. p. 113-14 :
"Capirículi (o Deus dos Tarianos) tinha um filho que era muito
A ressurreição de Mucura, conseguida na seqüência anterior, bonito e destemido. Deus o deixou ir passear pelo mundo para ver os
homens e conhecê-los bem, porque assim, quando fosse rei, saberia gover-
frustra-se logo no início dess~ segundo trecho da história, o que ná-los bem. Entre a gente tariâ.na de Iauareté, havia uma velha feiticeira
não impede que seus equivalentes, os macacos, devorem a Inham- (como pajé); el a gostou muito do filho de Capirículi e, por. isso, o pediu
bu, como o fazem as onças com Méneri-Y a~ a Deus, mas Capirículi não quis dá-lo. Então, a velha deu um feitiço ao
Repare-se que Poácare representa o caçador de macacos. (A menino, tornando-o invisível, e depois o levou. O filho de Capirículi servia
a velha em tudo: trabalhava, caçava, ia buscar água, acendia o fogo, prepa-
sarabatana é usada na caça a aves e a macacos.) Não há dúvida rava o beijú; assim, a velha podia fazer suas bruxarias entre as outras pessoas.
de que a Inhambu é escondida justamente dentro da sarabatana so f: na puberdade que, no Uaupés, os meninos passam a leva'ntar muito
para ser soprada sobre os macacos. E, por mais distraído que cedo, para o banho matinal. V. GoLDMAN. The Cubeo . . . p. 33. Quanto
324 CAP. XII - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO . DA FRUTA" 325

"Quando a criança já estava bem crescida o Pau foi entregá- Um dia o menino saiu para o mato e o velho, que era
-lo à Raia" (esta, um símbolo feminino, em muitos mitos simbo- pajé, virou Jacruaru novo e correu logo pelos matos.
lizando a placenta), 81 que não lhe dá verdadeiramente comida o rrenino, vendo aquele Jacruaru, o flechou na cabeça,
mas o Jacruaru quebrou a flecha e fugiu.
que o homem come. O episódio termina com a reação do herói
À tarde veio o velho e mandou o menino tirar um espinho
contra a mãe adotiva (alter ego da mãe, de fato) : obriga esta a que tinha na cabeça.
comer pimentas ardidas. 82 O menino, quando tirou o espinho, reconheceu a ponta
da flecha que ele atirara no Jacruaru. E disse:
Ili - Esta é a ponta da minha flecha.
"O avô do menino era o /acruaru e tomava conta da pi- O velho assim conheceu que o menino era seu neto."
(Op. cit. p. 230-J·i )
menteira.
Mas, como era muito velho, estava sempre cochilando.
O menino aproveitava o sono do velho e furtava as pi.:. Nesta última seqüência é que se menciona pela primeira vez
mentas. o nome do menino, como é natural, pois só agora, educado pelo
O velho, vendo que as pimentas estavam desaparecendo, um avô, é que. ele realmente nasce como ser humano. Educado pela
dia foi espiar quem era o ladrão das suas pimentas. Raia, tal qual o filho de Capirículi da lenda tariâna o foi pela
E viu que a Sacaib6ia se transformava num ganchinho ·e velha pajé, não era bem humano: era outra coisa qualquer; por
esse ganchinho era movido por um menino oculto entre os exemplo Makú . . . 83
galhos altos de uma árvore vizinha de sua pimenteira. Aqui vemos novamente, e de forma mais acentuada que entre
O Jacruaru pegou a cobra com um pau e a jogou longe os Desâna (que também têm escravos makú), como a vida nômade
da pimenteira.
Daí a pouco ouviu choro de criança próximo e uma voz é reputada verdadeiramente como pré-cultural e como no repúdio
lhe dizer: ao pré-cultural que aparece nos mitos sempre se pode ver também
- Meu avô, por que está sovinando as pimentas de minha um repúdio às tribos vizinhas, consideradas mais "bárbaras".
1nãe? No bando nômade, o filho não recebe uma educação decente,
E o velho respondeu: dentro das concepções dos Tariâna.
- Eu não tenho neto. Quando minha filha morreu não O nome "Cuamatá" ou "Cumatá" é, segundo Stradelli, citado
deixou nenhum filho. É mentira. Eu não tenho neto. por Nunes Pereira, 84 "uma casta larga de peneiras", o que nos dá
O menino se pôs a chorar mais farte ainda.
O velho foi buscar a criança. certeza também que o título do terceiro mito mencionado ("Estó-
A criança era o Cumatá. ria de Aturá") se refere igualmente ao nome do herói. O Filho da
O Jacruaru a levou para casa, entregando-a à mulher, di- Fruta, que carrega a fruta num cesto, num balaio que ele mesmo
zendo-lhe ter encontrado a criança que ali estava e se dizia confecciona (pois a cestaria é um trabalho masculino), identifica-
seu neto. -se realmente com a sua criação. Como Warimi, o menino se
A velha foi criando o menino, com muito mimo, até que torna homem quando aprende a fazer cestas.
ele começou a fazer flechas. A "Estória de Poácare" termina com o reconhecimento de
O velho Jacruaru também fazia flechas e deu algumas ao "Cuamatá" por seu avô, o Jacruaru. Trata-se de um episódio que
menino, dizendo-lhe:
- Quero ver se és mesmo filho de minha filha. 88 Na lenda tariâna citada (publicada por Giacone), já se vê que por efeito
da educação errada que recebeu da velha feiticeira (evidentemente, a própria
a comer muito, acreditamos que se trate de uma oposição a "só mamar". mãe, que aparece com a caracterização de um verdadeiro Bisíu feminino ... ) ,
&pera-se que os rapazes também não sejam "comilões". o filho de Capirículi é repreendido por seu pai, por ter ajudado a uma
81 REICHBL-DOLMATOFF. Desâna. . . p. 77: a raia é a placenta do primeiro linda mulher makú a carregar o aturá: "Por que carregaste o aturá da
parto da Filha do Aracu. (Sua picada produz dores como as do parto e Makú? Não sabes que os Makús são nossos escravos? Tu, te fizeste Makú;
vômitos em que saem pequenas ra~as.) por isso, vou castigar-te". (GlACONE. Op. cit. p. 113). Como se pode ver,
82 O que mostra a importância enorme que tem na dieta do índio amazônico há várias formas de Adão comer a maçã ...
a quinhapira . .. 84 PEREIRA, Nunes. Moronguetá . .. p. 348.
326 CAP. Xll - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" 327

lembra a passagem em que Warimi espeta seu avô Mení, com a finalmente salvo por um Jaburu, que o leva para casa. Do (A se-
conseqüente transformação deste em caranguejo. Aqui, no en- guir, temos a história já comentada de Porornina Minare com a
tanto, trata-se de uma prova de que o herói é verdadeiramente mãe de seu anfitrião.)
neto do Jacruaru. Uma prova curiosa . . . quer isto dizer que, se A primeira seqüência da vingança de Poromina Minare, ante-
Cuamatá não o fosse, não conseguiria acertar no animal em que rior ao seu confinamento, tem características curiosas. ~ uma
se encarna seu avô, não conseguiria caçá-lo? Que se trata de uma história, percebe-se, de certa forma paralela à de Warimi com as
prova de que ele é um caçador não resta dúvida, mas por que o serpentes, pois dos seres castigados alguns são crianças mortas
animal caçado teria que ser justamente o avô? Uma das interpre- pelo herói, outros ele transforma em serpentes e raias (e trans-
tações que se poderia aventar é que o homem é efetivamente um forma não só seres antropossociais, como também os utensílios
dos raros animais capazes de caçar e devorar aos da própria espé- de que se servem). 91 Mas que tipo de seres são?
cie; por outro lado, o episódio parece indicar que é só pela mão Lembremo-nos que os do mito opayé-xavânte 92 se definem
de sua própria descendência que um ser primevo, como o J acruaru como homens que são transformados em animais; e que os do
mítico, é vulnerável. Mas é também pela mão do menino que ele mito kayuá 9 8 são definidos como animais (mas antropossociais),
é curado (exatamente da mesma forma como a avó de Warimi o é). transformados em animais de verdade pelos gêmeos míticos Sol
A "Estória de Poácare" termina aí; mas o mito de Porono- e Lua, na realidade pelo mesmo motivo pelo qual Poromina Mina-
minare da versão Nunes Pereira, como já vimos, prossegue com as re inicia suas aventuras: para vingar o pai. 94
aventuras do herói que sai pelo mundo para vingar a morte de Mas a situação do Poromina Minare é mais complexa: ele
seus pais. 8 6 vinga o pai, cuja natureza animal é realçada neste mito, 95 e ving~
Na realidade, elas representam duas seqüências, 8 6 separadas a mãe, que o mito coloca do lado do "humano". Como ele se
por um relato 87 que, como já vimos páginas atrás, se parece arranja para vingar os dois? E contra quem?
muito com a última seqüência (a do confinamento de Warimi na
árvore, seguida da história do encontro com a avó) da história oo Acreditamos que esta passagem, como as similares (isto é, o tema do
barasana, pois Poromina Minare fica preso no alto de uma sor- herói sendo tirado de seu confinamento por um bando de aves), tem não
veira, por artes do Ju-pará (que aparece como chefe de um bando só uma conotação estacionai, como também astral.
Um mito dos palikúr (Aruák do Amapá), publicado por FERNANDES,
de macacos, 88 desatando a pinguela que Poromina Minare fizera, E. ("Contribuição ao Estudo do Grupo Aruák." Acta Aniericana. p. 212)
para passar de outra árvore à sorveira. 89 Da mesma forma que par ece confirmar essa idéia. Nele, o Sol procura quem possa levar o herói,
com Warimi, o primeiro bando de aves que passa (aqui jaburus) do mundo subterrâneo, de volta para a terra. O Martim-Pescador diz que
não é suficientemente forte para levá-lo; o ''Sete-estrelo" também não, porque
não presta atenção aos pedidos de socorro do herói, mas este é viajar com muita chuva e vento poderia fazer mal ao moço. O Sol então
apela para a constelação do Cruzeiro (Kussupfai) e esta transporta o
85 Na história de Poácare, não se menciona a matança do pai, mas nesta jovem com muito cuidado, deixando,-o em seu país. .
"Os inimigos de Poácare pularam n'água do poço e ali mesmo o esquar- Segundo KocH-GR.ÜNBERG ("Mitos e Lendas dos índios Taulipáng e
tejaram. Depois fizeram o mesmo com Poácare". Id., ibid. p. 237. Arekuná." RMP. p. 28) o Cruzeiro do Sul é, para os Taulipáng e Arekuná,
86 A primeira da p. 240 a 241; a segunda da p. 245 a 250 (item Ill). um enorme Mutum (Pauí-Podole).
87 Item II, da p. 242 a 245. 9l "O tipi ti transformou-se numa enorme sucuriju. . . A peneira . . . Se
8 8 Como o chefe dos macacos (que tinha forma humana, mas era da raça transformou também noutra raia." PEREIRA, Nunes. Moronguetá .. . p. 241.
dos jaguares) da história de Cimidyue. V. LÉVI-STitAuss. L'origine . . . p. 92 Recolhido por RIBEIRO, Darcy. V. p. 181.
92 et seqs. 93 Publicado por ScHADEN. V. p. 223, nota 142.
89 A sorva é outra árvore frutífera importantíssima da região. Deve tratar-se 94 Um dos animais, o gavião, diz textualmente: "fomos nós que matamos
da Sorva-Grande (Couma Macrocarpa Barb. Rodr., Apocináceas) ou cumã- o seu pai" (ScHADEN. "Fragmentos da Mitologia Kayuá." RMP. p. 113).
-uaçu ( LE COINTE. Amazônia Brasileira Ili: árvores e plantas úteis. p. 438). Outros, como o jacaré, a onça, o nhandu, de certa forma se tornam cúmplices
··o látex coagulado constitui um breu de primeira qualidade para a calafe- do gavião, pois ofendem o Sol, por ele não ter pai.
tagem de embarcações. Fruto da grossura de um limão, comestível; o suco nil Ele é "Mucura Poácare" em oposição a seu alter ego ou aspecto sinistro
é pegajoso, mas a polpa é doce e agradável. O látex é muito abundante, "Mucura Grande". Poromina é caracterizada como ''uma moça muito
branco, potável e doce ; bebe-se principalmente misturado com água e fervido, bonita". Na "Est6ria de Poácare", o aspecto humano deste (em oposição
com café ou em mingau com farinha de bananas ou de mandioca. a Mucura), acentua, ao contrário, o aspecto animal da "Inhambu".
328 CAP; XII - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" 329

Não existe realmente uma definição do mito de Poromina E só quando Poromina Minare, bem castigado de ter-se com-
Minare quanto aos matadores de Poromina. "Alguns puseram-se portado como "ser terrível" com a mãe do J aburu, 1 º2 resolve
·a tocar os instrumentos de J urupari que traziam. E outros dança- emendar-se da "endofagia" 103 ("Dali mesmo correu para casa e
vam." Poderíamos tentar então colocá-los do lado "humano". nunca mais se deitou com a velha." ... ) , que ele realmente está em
Com esta manobra, percebe-se bem, teríamos que reconhecer condições de matar os "reis dos animais que existiam nestas ter-
também como humanos os macacos que aparecem na "Estória de ras . . . " Não todos, porém. A anta, a cutia, o tucano, 1 º4 o mu-
Poácare" como .tocando os instrumentos de Jurupari; 9 6 mais ainda tum e o cuandu.
que nesta versão é tão-somente a morte da "Jnhambu" 9 7 que é Do Arapari, um tamanduazinho, teve pena ... 1 º5 com os
, mencionada. dois filhinhos dos Teiúcima (calangos 1 º6 ) repete o crime do "ser
Concebendo os matadores de Poromina como humanos, fica terrível" e os mata e, pior ainda, não resiste à tentação de violar
realmente mais fácil entender-se por que o herói se vinga matando a velha "Inhambu:-Juruti", cujo marido estava caçando. 101
as crianças de seres aparentemente humanos, que encontra: é o A seqüência se duplica, portanto.
próprio "ser terrível" buscando sua presa; e assim os homens que Como o J aburu teve pena dele, Poromina Minare tem pena
disputaram Poromina de Mucura Poácare (negando-a para o sacri- do Arapari-Tamanduá 108 e "volta-se contra si mesmo" se lembrar-
fício ao "senhor-dos-animais", encarnado em Mucura Poácare?) mos que ele é apenas outra manifestação de "Aturá-Cuamatá" e,
são castigados. Assim, como se vê, ele está vingando também a
morte do pai, sob forma animal, pois os humanos mataram o parilegende bei den Baniw~ des Rio Issana." (p. 273) de Saake, Inapirikuri
Mucura Poácare. 98 Mas não é só isso: a transformação em ser- joga no rio a placenta de Amaru (após o nascimento de Jurupari) e o sobre-
pente é, sabidamente, o castigo que aguarda Jurupari se ele ceder parto se transforma em raia. A mesma transfarmação, como já vimos, sofre
à tentação e, no seu aspecto casto, puro, tiver relações com uma a placenta do primeiro parto da Filha do Aracu desâna (RE1cHEL-DOLMATOFF.
mulher. 99 Então o mito pode ser "lido" também como se o pró- Desâna. . . p. 77). Em "placenta vazia" (ou raia) se transforma também
a Cutia velha que cria Poromina Minare, no mito de que estamos tratando;
prio Jurupari tivesse violado Poromina, e o relato passa a ter uma e é uma raia ou "placenta vazia" a mãe adotiva do filho de Poácare e
função análoga à dos relatos em que se conta como Jurupari é Inhambu, qµe o "anti-educa" como já vimos. Compreende-se, pois, o simbo-
castigado por ter devorado curumins. 100 Poromina Minare cas- lismo da raia no Uaupés.
tiga, portanto, seres humanos, matando-lhes os filhos, como Juru- 102 V. página 300 deste trabalho, _nota 15.
103 "Endofagia", no sentido da personagem representar a mãe de Poromina
pari, como o "ser terrível"; e castiga (na realidade o próprio cri-
me que está cometendo, portanto, a si mesmo) ao "ser terrível", Minare, mas que tem ao mesmo tempo um sentido de violação e desrespeito
(ou sacrifício, como se queira) da mulher do clã ou da tribo com que se
ou a Jurupari, personificado nos pais das crianças, transformando passa a ter relações de exogamia, como está claro.
os homens (em tese) em serpentes e as mulheres (as "mães", 104 Não é curioso que num mito de procedência Aruák figure a matança
poder-se-ia dizer), em raias (ou placentas vazias) . 1 01 de um animal homônimo do grupo Tukano?
105 Tal qual Jurupari teve pena de Ualri .. . Aliás, o tamanduazinho engana
96 E é claro que se tem que levar em conta também este aspecto, pois já Poromina Minare (fingindo chorar, para este ficar com pena), da mesma
vimos que esta ambigüidade é justamente o que confere vitalidade e drama- forma que a fraqueza de Ualri é uma traição a Jurupari, na "leggenda"
ticidade ao mito . . . de Stradelli. ·
97 Portanto um ser caracterizado como animal. 106 Calangos como o J acruaru. Os lacertídeos, como já vimos, têm impor-
98 Como se fosse uma caça qualquer ... tância mítica grande no Uaupés.
99 "On n'a pas oublié . Jurupari, qu'on invite de _teI!!J'S à autre a venir se 101 Ele se compor ta, portanto, tal qual o Mucura Grande em relação .a
diverti.r un peu. Mais il répond, par la bouche des pagets, qu'il ne le peut, seu pai, tomando-lhe ou querendo tomar-lhe Poromina; ou como muitos
que s'il avait des relations avec une f emme. . . 'il serait changé en serpent, amantes-cobras de uma série bem conhecida de mitos, tanto do Uaupés
' ou, disent d'autres, il en naitrait un serpent" (CouoREAq. La France equi- como de outras áreas.
noxiale). 108 Se Poromina Minare pode ser considerado um equivalente do filho de
100 Jurupari-Ualri dá "leggenda", o Jurupari da lenda baniwa recolhida por Seucy, lembremos que uma lenda publicada por GIÁCONE ("Lenda sobre
Saake, Jurupari da versão baré de "PoronGminare" publicada por AMORIM as Estrelas Três Marias." Os Tucanos . .. p. 117) dá como intercambiáveis .
("l.-endas em Nheêngatú e em Portuguez.,, RIHGB-. p. 131) ... o filho de Seucy ("Ceuci-Raíra") e o filho de AraUlpari ("Ararapari-Raíra"),
101 A raia é o símbolo da placenta em vários mitos da região. Na "Die Juru- pois ela conta justamente a troca (o rapto mútuo) das duas crianças.
330 CAP. XII - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" 331

portanto, neto do calango "Jacruaru" e filho do Inhambu 109 ou Poromina Minare pretende aproveitar os dentes da caveira, em
da lnhambu. Como f:dipo, mata o ou os pais, encarnados nos que, por i~so, bate com um pedaço de pau.
dois curumins dos uTeiúcima" ( calangos lisos) e tem relações
com a mãe, representada pela velha "Inhambu-J uruti". 11 o "Mal. bateu no osso da queixada do bicho ele ressuscitou. E
Como termina a "estória de Poromina Minare"? falou:
Vimos que da primeira vez que o herói tem um problema - Tu fizeste o favor de acordar-me, pois há muito estava dor-
mindo. i1s
grave, em decorrência da violação de uma velha, ele se dirige à
árvore da cucura e o Jupará lhe reduz o membro ao tamanho E perguntou a Poromina Minare que pagamento queria re-
ceber." 11 4
normal. Mas o Jupará é apenas um outro aspecto de Poromina
Minare: ambos são filhos da fruta. . . 111 Quem sabe se, por isso,
o remédio não teve efeito duradouro ou, em outras palavras, a B de um espírito das águas, portanto, que Poromina Minare
lição foi esquecida. obtém socorro. 115 Após a sua cura, parece que desta vez real-
Desta vez não é um carrapatinho venenoso, mas sim uma mente há uma mudança de Poronominare em relação às aves e às
formiga-de-fogo, 11 2 escondida no sexo da velha, o agente do cas- serpentes, cremos que justamente porque ele se aproximou do rio
tigo. E é para o rio, e não para a árvore, que o herói se dirige. e se tornou pescador, embora isto apenas seja sugerido de leve
Ele encontra aí uma caveira de boto, e a cena que se segue lembra no mito:
muito á história bem conhecida do caçador com o Curupira, pois
"Depois disso Poromina Minare continuou a sua viagem. E foi
lOD Na "Estória do Aturá", efetivamente, a filha do Jacruaru é uma moça encontrar o Mutum cantando.
bonita <!ue se casa com o Inhambu-homem. (GIACONE. Op. cit. p. 250). Voltando o rosto para cima, 11 6 viu, assombrado, que era um
Além disso, CASCUDO, Luís da Câmara. (Geografia dos Mitos Brasileiros.
Nota 26, p. 94) informa que os Makús, embora sejam os mais atrasados monte de sucurijus na forquilha de uma árvore. E aquelas
na escala da civilização, têm também o seu Jurupari, denominado Inhambú. cobras arremedavam o Mutum.
Parece perfeitamente de acordo com o gênero de vida dos Makú, os caça- Poromina Minare flechou as cobras e as matou, deixando-as
dores de aves donos da Sarabatana: o "ser terrível" deles teria mesmo que
ser uma ave indefesa . . . Sobre o inhambu, veja também LÉv1-STRAUSS. Le
·- .\
apodrecer ali mesmo.
Muitos dias depois foi ver se já haviam apodrecido de verdade.
cru et /e cuir. p. 210.
E viu que no meio dessas cobras podres, havia tapurus de
110 Queremos lembrar aqui mais uma vez que com esta comparação não
se pode entender que aceitamos uma interpretação na linha psicanalítica todas as cores: brancos, vermelhos, pretos, azuis.
tradicional. e importante ter em mente que o foco central do drama mítico E Poromina Minare voltou para casa.
não são as "relações internas" entre pai, mãe e filho (embora elas participem No outro dia, foi, de novo, ver como estava aqueles tapurus.
do drama e se debatam nele ... ) , mas sim as tensões entre o grupo e o
mundo exterior (isto é, as forças que podem ser identificadas como mundo
exterior, sobrenatural, natureza, inimigo . . . ) . 1 1sParece que as palavras, sublinhadas por nós, têm um sentido mais pro-
fundo. Se lembrarmos que os Aruák são invasores relativamente recentes
111 Em suas notas sobre o Jupará, PEREIR..\, Nunes (Moronguetá ... 1.º v.
na região, poder-se-ia perguntar há quanto tempo a caveira de boto estaria
p. 358) traduz algumas observações do naturalista Mogniham: "O comporta- dormindo? Seria desde que Tohil, Awilis e Hakawic abandonaram suas
mento sexual dos adultos inclui sinais olfativos e táteis, em adição a modos jangadas na praia e se internaram na floresta?
não ritualísticos e a poucos sinais auditivos". Acrescenta ainda: "M. Mogniham
114 PEREIRA, Nunes. Op. cit. v. 1, p. 249.
confirma muitas das observações que Humboldt registrou, com relação aos
seus hábitos e alimentação, patentes e bem expressivas nas aventuras amoro- 115 O método usado pelo boto realmente é um pouco diferente do usado pelo
sas de Poromina Minare ou Poronominare com a velha mãe dos J aburus, Jupará e dá o que pensar: "o boto lhe bateu na bunda com um ramo de
narradas na II Parte desta obra". O Jupará é, portanto, realmente, o aspecto pinó-pinó. Então, com a dor que sentiu, o membro voltou ao que era
animal de Poromina Minare. dantes".
ll6 Desta vez ele, portanto, não sobe à árvore (como Warimi, transformado
1 1 2 A formiga (particularmente a Tocandira, se lembrarmos dos ritos dos
Pukuyéne, em que a esteirinha do "Maraká" tem o formato de um taman- em ave) , nem coloca nela uma parte de seu corpo, como no relato da
duá ... ) parece estar em oposição ao tamanduazinho a quem Poromina aventura com a mãe do Jaburu : ele se separa da árvore, opõe-se ao que
Minare poupou a vida .. . nela vive.
332 CAP. XII - AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA"
AS LENDAS ARUÁK - O "FILHO DA FRUTA" 333

E viu que já estavam grandes e iam virando gente. Começou a não se lhe reconhece um sentido mais profundo, não se poderia
dar-lhes trabalho. Porque naquele tempo não havia gente. Só ; ver o aspecto humano dessa serpente-emplumada, sujeitando-se,
ele . .. ,, i11 pela primeira vez, ao castigo que ele, Poromina Minare, inflige à
Anta, 119 sendo violado pela primeira vez por um espírito que
Então esta é finalmente a gente de verdade . . . e ela nasce lhe é estranho ou superior, que estava dormincjo há muito tempo
não dos vermes da fruta, a fazer concorrência às aves e às ser- e que foi ressuscitado sem querer?
pentes, subindo às árvores. Acreditamos que não seria errado inter- De qualquer maneira, importante é salientar que é do Filho
pretar o episódio como se Poromina Minare só pudesse dar origem da Fruta, transformado em pescador e por isso mesmo capaz de
a homens de verdade, após ter tido "coragem" de ver no Mutum sacrificar-se como Filho da Fruta, que nascem os "verdadeiros
. o "ser terrível" em forma de serpente, caçando a ambos, mas não homens", os que possuem as flautas Jurupari e lhe professam a
para sustentar-se deles, ·não como caça, pois da caça e das frutas religião ...
~ claro que isto não quer dizer que a fruta deixou de ter im-.
já não depende para sua sobrevivência ...
portância. Mas ela, que era o pão-nosso de cada dia, em tomo
Falta na "Estória de Poromina Minare", como se vê, a passa- de que girava a vida "ordinária", "profana", do grupo, é agora
gem do sacrifício de Jurupari, tal qual ele aparece inserido na um produto particularmente canalizado para as festas, um produto
versão do mesmo mito, publicado por Amorim. ritualizado, um produto consumido nos momentos mais importan-
Mas não é significativo que os verdadeiros homens só nascem tes, mais sagrados, da vida tribal . . .
finalmente das carnes apodrecidas de um mutum, feito de cobras, Se Poromina Minare mata o Mutum-Sucurijú empoleirado na
que canta (em vez de tocar flauta), mas que é, sem dúvida, uma forquilha ·da árvore, libera ao mesmo. temp~, dos seus próprios
serpente-emplumada, tal qual Quetzalcoatl? E, no episódio de ataques, essa 'fruta ...
Poromina Minare com o boto, 118 pitoresco só na medida em que Mulher e fruta, liberadas do sacrifício (da endofagia, digamos
assim ... ) , serão trocadas nos dabucuris com os clãs e as tribos
117 PEREIRA, Nunes. Op. cit. p. 249-50. vizinhas: com a sedentarização inaugura-se também, no Uaupés, a
118 Há um mito muito original, publicado por AMORIM ("Lendas em exogamia tribal. Mas, enquanto que a mulher é colocada do lado
Nheêngatú e em Portuguez." RIHGB. p. 391 - "Casa de Tupana") que do profano, a fruta passa a ser um símbolo do sagrado, tabu para
mostra que para Deus não há partes mais ou menos nobres no corpo
humano. Nele se conta que um moço bonito, vindo não se sabe de onde o não-iniciado, como se vê pela referência ao uacu e à pupunha
casa-se com Tibiari. Os amantes contudo, a assediam, e o marido flech~ como "fruto proibido", nas lendas aruák.
Tibiari. O amante de Tibiari, dizendo que não quer matá-lo, mas só casti-
gá-lo, "frecha~o no assento com tajá de uaucauan . .. " Ele se coça, o sangue ~
escorre, por isso to~na-se um grande pescador (a ferida atrai os peixes).
Onde quer que vá, as moças gostam dele. . . n mulherengo, contudo, e,
~e~do .~ pesca desm.edida, a "1:Ilãe-dos-peixes" o engole. Ora, este moço
e 1dentlf1cado com nmguém mais nem menos que Jurupari, pois: "Como
aquele moço, marido de Tibiari, era Tupana, viu logo que faltava no céu
a Sombra do Filho de Seucy. n o próprio Deus (Tupana-pai, presume-se)
que. flec~a a 'mãe-dos-peixes' que morre. No mesmo instante, Tupana
abnu-a, tirou de dentro a Sombra do Filho de Seucy, atirou-a para o ceo
para ahi já ficar a Estrella do Pescador . .. " ld., ibid. p. 391-96.
.Isto parece confir~ar que, num nível econômico primitivo (passagem
da vida de caçadores nomades para pescadores, como é o caso dos Desâna),
em que as trocas com o mundo exterior ainda são mínimas e concebidas
quase só em termos de favores sexuais (o "coabitar" substituindo o "matar"),
o homem que quer substituir a mulher no sacrifício ao "senhor-dos-animais"
pode ser facilmente (mas não necessariamente) levado a representar o papei 119 PEREIRA, Nunes. Op. cit. v. 1, p. 245-46. Poromina Minare provê a
da "falsa noiva". Talvez isto nos ajude a compreender o problema do anta de um ânus; ela contudo morre na operação. Lembremos que Warimi
sacerdote efeminado que Roger Bastide distingue,. com razão, do berdache. também provoca a morte de uma anta . . . Parece que em ambas as his-
V. BASTIDE, Roger. Sociologia do Folclore Brasileiro. p. 61-65. tórias trata-se de um símbolo feminino.
A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI 335

através da análise que fizemos atrás, lidando com um material


mítico, afinal tão ou mais recente que a "leggenda", embora mais
indígena, pois recolhido por estudiosos, de indivíduos possivel-
mente mais índios do que Massimiliano. 4
CAPÍTULO XIII Mas, se foi "recriado", não o foi tão-somente por Massimilia-
no. Certamente a crença num Jurupari "menos índio" se formou
A ''LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI na área de maior contato com o missionário ou com o elemento
branco em geral, assim como a crença em um N anderíkey "menos
índio" se formou na religião guarani estudada por Egon Schaden.
Depois desta longa peregrinação, chegamos finalmente à "leg- Contudo, não poderia ser "criado", mas apenas "recriado",
genda dei Jurupary" de Stradelli, sentindo que temos elementos a partir de um modelo já suficientemente próximo do "Jurupari
suficientes para iniciar 1 uma interpretação dessa lenda, apontada de Stradelli".
por alguns como fantasiosa. 2 Como o processo de sedentarização e da regulamentação da
O "Jurupari" de Stradelli é realmente tão estóico, tão pró- exogamia tribal parece, com toda probabilidade, ter-se iniciado já
ximo do herói da tragédia grega, 3 que a primeira pergunta que antes do contato com o civilizado e independentemente da coloni-
ocorre é se este "Jurupari" realmente existiu, com estas caracterís- zação (particularmente no Uaupés, que constitui um reduto bas-
ticas, na mentalidade indígena. tante resguardado nos primeiros séculos após a descoberta ... ) ,
Não .parece ele antes um ser remodelado inconscientemente não só acreditamos que ·a evolução do conceito em direção ao do
por um descendente de índios já impregnado de ideais cristãos de Jurupari estóico que se iniciou antes da vinda dos missionários,
castidade, que deveriam transparecer das atitudes e sermões dos como também que o conceito tem suas raízes em velhas crenças
missionários? centro-americanas, ressuscitadas tal qual o boto o foi por Poromina
Afinal, apenas uma das providências imediatas do sacerdote Minare ao sentir ele a necessidade de impor a si mesmo, de uma
ao estabelecer uma missão, a tentativa de modificar o tipo de vez por todas, a castidade em relação à mulher do seu próprio clã.
habitação (de maloca para habitação de família nuclear), se não
representava propriamente uma segregação entre os dois sexos, Quanto à informação do índio desâna de Reichel-Dolmatoff
não deixava de ter um sentido análogo, pois sem dúvida o que sobre a natureza de Jurupari, mesmo que o conceito seja comum
chocava o padre era o que para este nada mais era do que uma a outras tribos tukano do Uaupés, isto não quer dizer que Juru-
promiscuidade despudorada de homens e mulheres nuas sob o pari não seja identificado com heróis tribais (masculinos) na mito-
mesmo teto, sugerindo-lhe o pecado a cada momento: Adão e logia uaupesina. Yúpuri Baúro é um legislador e promulgador das
Eva, Santo Antônio e a tentação ... leis de Jurupari, 5 tanto quanto o herói da "leggenda"; e não foi
a interferência dos missionários que personificou a Issi ou a Kówai.
O Jurupari de Stradelli "existiu" ou foi ele "recriado" à se-
melhança do padre que tanto o combat~u? Se não podemos realmente reconhecer Jurupari no personagem
Não é fácil responder. . . Não há como testar a "cronologia" louva-deus desâna, que fez as flautas, pois os próprios Desâna
das características de um personagem mítico neste caso a não ser aparentemente não reconhecem, 6 isto não quer dizer que em ou-

1 Era nossa intenção proceder a uma análise detalhada ·dessa lenda. Outros 4 Massimiliano José Roberto, descendente, por parte de pai, de Manaos, por
aspectos da mitologia que nos pareceram dignos de estudo, no entanto, impu- parte de mãe de Tariâna do U aupés. Dele Stradelli recebeu o manuscrito
seram-se a ponto de assumir o trabalho uma extensão que, caso fosse da "leggenda". Como Biocca observa na introdução da ree?i~ão d~ 1964
acrescida com a interpretação completa, da lenda, tornar-se-ia, a nosso ver, que aqui utilizamos, "a autenticidade da narr.ação de Stradelb e co!1f1rmada
excessiva. , pelo interessante trabalho de Barbosa Rodrigues, que reproduz fielmente,
2 Inclusive por REICHEL-DOLMATOFF (Desâna. . . p. 226; "A versão mais também nos pormenores" (Yanoama. p. 8).
is FULOP. "Aspectos de la Cultura Tukana - Mitologia; Cosmogonia." RCA.
poética e menos acertada é a de Stradelli ... ") .
6 Contudo, o mito afirma que, ao presenciar o incesto, o louva-deus se
s Mas, Warimi e Poromina Minare não estão menos próximos dessa imagem
do herói da tragédia gréga, desde que se compreenda o seu drama ... transformou em um personagem ...
336 CAP. Xlll - A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI 337

tras tribos não tenha havido uma evolução para a personificação muda com ele em certo sentido, ainda que este narrador se esforce
do princípio da exogamia e da condenação do incesto. E é justa- (e. é o que parece ter feito Massimiliano) por preservar-lhe toda
mente um espírito do tipo Waí-maxse, acrescido das características a originalidade. A própria preocupação de se fazer entender já
de divindade-dema (herói "solarizado" desde que assimilado ao age como fator modificador: afinal, é preciso traduzir algo inte-
ancestral tribal ou representado como alter ego sacrificado pelo ligível, significativo, dentro da cultura e do estilo de vida tribal,
herói tribal), que desempenha este papel. em algo que possa ser entendido pelo civilizado; e, como Massimi-
Assim como Reichel-Dolmatoff vê no Waí-maxse ·1..ma evo- liano já é, na realidade, um "civilizado", ele faz esta tradução.
lução do boráro mais primitivo, "esvaziando" este último de maior · sem mesmo se aperceber. É por isso que lhe dá uma seqüência
significação, assim Jurupari aparece como legislador e divindade- histórica e assim transforma o mito em uma epopéia, que ainda
-dema, "esvaziando" aos poucos outras representações, que fogem mantém, contudo, através das narrações de Jurupari a seus asse-
como duendes para o fundo da mata. clas, muito da duplicação de episódios que notamos na "História
Se compararmos a "leggenda" de Stradelli com o mito reco- de Luna" barasana ou na "Estória de Poromina Minare", e de
lhido por Coudreau 7 mais ou menos na mesma época, vemos que, episódios-sínteses, por vezes também duplicados, como um jogo
embora a · terminologia da história de. Coudreau 8 reflita o contato de espelhos em que a imagem se inverte e re-inverte de forma
dos índios com os missionários e uma catequização superficial, ela quase infinita ...
parece menos modificada que a lenda de Stradelli. Quanto à forma, É por isso, também, que o princípio maléfico (ou anti-social,
isto é compreensível, a lenda teria que ser mesmo mais fluente, aos olhos do civilizado, mais do que aos olhos do índio) e o bené-
mais ordenada, digamos assim, para o "nosso consumo", pois fico (social) aparecem catalizados em personagens diferentes (Ual-
Massimiliano entregou-a pronta a Stradelli, sob forma de um ma- ri e J urupari) , quando, e Massimiliano deveria sabê-lo muito bem,
nuscrito. Evidentemente não estamos lidando com material reco- na realidade se trata do mesmo personagem. Mas isto não quer
lhido na fonte, da boca de um índio, no seu próprio idioma, como dizer, de maneira alguma, que Ualri seja um personagem "inven-
o que nos apresenta, por exemplo, Laborde em seu livro sobre tado" por Massimiliano. . . Massimiliano não tem culpa se o ho-
os Barasana. 9 mem da civilização ocidental pensa poder ver, em· toda a tenta-
Podemos dizer por isso que o material foi adulterado por tiva de separar o bem do mal no pensamento mítico primitivo,
Massimiliano? É verdade que Massimiliano deve ter tido a preo- uma influência do cristianismo, esquecido, dentro de seu egocen-
cupação de remir de certa forma a Jurupari das acusações que na trismo, de que as dúvidas são tão velhas quanto a humanidade e
época faziam os missionários - contra a entidade, identificando-a que ele próprio, quase dois mil anos depois de Cristo, jamais
com o próprio diabo cristão, principalmente após o incidente com conseguiu realmente separar Deus do Diabo ...
o ntacacaráua. Mas não se pode dizer que o mito foi adulterado. Contudo, talvez uma das atitudes mais "suspeitas~' do Juru-
Se foi modificado num ou noutro ponto (e cremos poder provar pari de Stradelli é a pregação da monogamia.
que na realidade não o foi) , isto se deve à própria ·dinâmica e Na lenda de J urupari recolhida por Saake entre os Baniwa
vitalidade do mito: se a mentàlidade do !1arrador muda, o mito nã? há qualquer recomendação a ela. E isto é tanto mais notável,
pois que na referida lenda se especificam com bastante clareza \as
7 CoUDREAU. La France Equinoxiale. p. 184 et seqs.
s "Ce fut alors qu'eut lieu son lmmaculée-Conception. . . Alors eut lieu la principais proibições. Só num mito de origem dos clãs Baniwa 1 º
Passion de Jurupary ... . le paxiuba de l'ascensión ... le fils de la vierge" ... é ~ue Inapirikuri fala em monogamia. Mas é preciso lembrar que
ld., ibid. p. 185-86. . o informante está em presença de um missionário.
9 LÉVI-STRAuss (L'origine des manieres de table. p. 145) encara com muita
reserva o material recolhido por Stradelli, justamente por ter sido recolhido
em "língtia geral", como acontece também com o material recolhido por
10
"ln~piri~~i ~agte auch, der Mann sollte sich mit einer Fraubegnügen.
Barbosa Rodrigues e Amorim. . . Contudo, teríamos que imputar provavel- ~ur d1e H~upthnge dürften in alten Zeiten zwei Frauen haben". (lnapirikuri
mente os mesmos "defeitos" que oferece a "leggenda del Jurupary", em disse tambem que o homem deverá se contentar com uma só mulher. So-
maior ou menor grau, a todos os mitos recolhidos através de intérpretes. mente os chefes podiam, em tempos antigos, ter duas mulheres.) SAAKE.
o que equivale a dizer, a uma grande maioria dos mitos recolhidos. Aus der Oberlieferung der Baniwa.
338 CAP. XIII - A ' 'LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI A "LEGGBNDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI 339

Embora a monogamia seja mais comum no Uaupés, 11 o Não se pode negar, contudo, que já havia uma tendência
casamento com duas irmãs parece ser absolutamente sancionado neste pensamento que propiciava uma aceitação da nova atitude
pela cultura. Aliás, o sororato é uma instituição com uma distri- moral, sem grande resistência.
buição bem ampla na região, desde as Guianas, entre karibe e Em primeiro lugar há a exigência, feita ao homem ideal, de
aruák. uma certa impavidez diante da mulher (exatamente no mesmo
Entre as leis atribuídas a Jurupari de que nos dá notícia sentido que Huxley registrou entre os Urubu-Kaapor, o ser ha-
O. Frederico Costa (que visitou a região anos depois de Stradelli, tan . .. ) , que leva a uma tendência a idealizar a restrição ou eco-
em 1908, e de cuja "carta pastoral" só pudemos ler o trecho nomia das relações sexuais. Em segundo lugar, a vantagem de
reproduzido tanto por Egon Schaden 12 como por Câmara Cas- ter duas esposas, a julgar pelas observações de Goldman entre os
cudo, 13 ) não se menciona nenhuma obrigatoriedade quanto à mo- Kobéwa, também tem o seu preço: as duas estão longe de manter
nogamia. · O que se menciona é que "o tuixáua poderá ter tantas relações de solidariedade. As duas famílias, em espaços c9ntíguos
mulheres quantas puder sustentar", e que "a mulher estéril do dentro da mesma maloca, são causa frequente de distúrbios e
tuixáua será abandonada e desprezada". O sentido é de privi- representam mesmo um perigo para a unidade do grupo. Goldm~
légio. 14 aponta a linha de fissão correndo geralmente entre irmãos agná-
Numa curiosa inversão, a "leggenda" apresenta a poliginia ticos (ressaltando, ao mesmo tempo, a solidariedade maior de
somente como um dever sagrado imposto ao tuxáua, para que a irmãos uterinas e a grande coesão do grupo mãe-filhos.) 1 6
linhagem não desapareça na falta de prole da primeira esposa. Além disso, o ideal de castidade surge, como vimos, com a
Parece que a situação é aqui apresentada como se as uvas, verdes própria formação de uma sociedade secreta masculina que se espe-
demais para as raposas comuns, teriam que ser engolidas, assim
cializa, por assim dizer, em "dominar a fera". Percebe-se perfeita-
mesmo, como um sagrado dever, por aqueles que conseguissem
mente que os mitos recolhidos por Amorim sobre moços castos e
alcançá-las.
andróginos 17 acentuam antes o caráter sagrado do personagem,
Pensamos que isto, sem dúvida, se deve, em parte, a uma
do que condenam o fato dele se furtar ao casamento .. .
consciência da condenação da poligamia por parte dos civilizados
A imagem do sacerdote que se flagela, que se penitencia, não
e a uma lenta reorientação moral, neste sentido, do índio que já
precisou do exemplo cristão; cremos que lá no fundo da memória
sofreu a influência dos missionários e da cultura cabocla em um
tribal, da tribo aruák dos Tariâna, a imagem apagada de Quet-
grau considerável. Sem dúvida, uma verdadeira condenação da
zalcoatl reavivou-se no Uaupés.
poligamia não tem propriamente lugar no pensamento indígena
Acreditamos que, após o que ficou dito atrás, não é preciso
anterior ao contato. O material recolhido por Fulop o prova, para
repetir que não pensamos em influências recentes demais da Amé-
o caso dos Tukano, de forma muito clara. 1 s
rica Central, justamente porque certas representações da religião
11 CouDREAU. Op. cit. p. 176: "geralmente o índio do Uaupés é monogâmico". e pensamento centro-americanos já se formaram ali há muito
12 ScHADEN. A Mitologia Heróica de Tribos Indígenas do Brasil. Nota 5, tempo, desde o período formativo, e poderiam perfeitamente ter-se
p. 150. preservado 1 8 entre populações que emigraram.
13 CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do Folclore Brasilero. p. 505-08. 1

u Chefes e guerreiros proeminentes geralmente têm mais de uma mulher


o que tem sido encarado como um privilégio, uma concessão, devido à su~ va .ª tener una mujer, y esa mujer solo tendrá un hijo o dos hijos, y la
maior contribuição ao grupo. muJer de su hermano no tendrá hijos, y así es como se acabará los Tukano".
1 5 Mesmo para os Tukano, onde a tendência monogâmica parece realmente 16 GoLDMAN. The Cubeo . . . p. 115-16.
17 Como a lenda da "Origem da Piripirióca", Gente Manau (AMOllIM.
muito recente, não parece que é a aceitação do cristianismo em si que
levou a ela. Ao menos não é esta a idéia que dá um melancólico texto "Lendas em Nheêngatú e em Portuguez." RIHGB. p. 105); ou "A Moça
publicado por FuLoP ("Aspectos de la Cultura Tukana - Cosmogonia." Retrato da Lua" (wanâna) - (Op. cit. p. 237) e outras.
18 Como, aliás, também em populações centro-americanas, como justamente
RCA. p. 132) : .. . . . .
"Mientras que ell~s" (brasileiros e colombianos) "están peleando, usted os .~ora e Huichol, "deux tribus modernes de l'ouest du Méxique dont la
no peleará, pues su tnbu se acabará antes de la guerra y del fin del mundo. rehg1on est proche de celle des Azteques." KRICKEBERG. Les religions amé-
Después que lleguen Siópuri Uejké y Ereya a su tierra, usted solamente rindiennes. p. 47.
340 CAP. Xlll - A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI
A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI 341
Lembremos da "lenda dos Ometanimpe" (os transformados) (seja ele Rumi-Kumu ou Jurupari), estamos diante de uma luta
dos índios Tirió, publicada por Frikel, a que aludimos at~ás. mais interiorizada que a das técnicas xamanísticas karibe; uma
Ela sozinha, apesar de seu incrível "encaixe" em um texto mítico luta que, apesar da tentativa de Buopé (ou quem sabe até estimu-
do Popol-Wuh: não significa muita coisa. Contudo, junte-se-lhe ~s lada por ela, porque a continuação da guerra não encontrou campo
alinhamentos de pedra, sempre presentes junto aos restos da cera- propício nas tribos já exogâmicas do Uaupés) de transformar a
mica Aruã, com as suas representações do urubu, associados aos propagação da fé em uma "guerra florida", 22 quem sabe se sob
mitos de "Kasána-podole" e outros análogos, e um quadro com- influência dos ideais guerreiros em parte disseminados no Ama-
por-se-á aos poucos, transformando vagas semelhanças e analogias zonas pelos Tupinambá, tende a. levar a Quetzalcoatl e ao simbo-
·em suposições bem fundamentadas. Se lembrarmos que um~ das lismo da tríade ainda presente na mitologia aruák.
características mais importantes do urubu, para a compreensao de Dissemos atrás que a mitologia tariâna confere à mãe de
seu simbolismo, é, não tanto a sua predileção pela carniça, mas a Jurupari um véu de divindade que falta às outras.
sua capacidade de planar, de voar em círculos; se lembrarmos que De fato, ainda que a Amaro baniwa 23 seja "tia" de Inapiri-
nas lendas da origem das Plêiades, crianças transformadas em aves, kuri e, ao lado de Dzuri e Meriri, um dos três primeiros seres
da.:içando em círculos, alçam vôo para o céu ainda sem estrelas, (todos criação direta de lnapirikuri), ainda que tenha um paren-
entender-se-á porque os candidatos a xamã da Guiana Holandesa tesco com Amana, 24 ela não deixa de ter em comum com as re-
sobem por · uma espécie de escada giratória; 19 e se poderá me~mo presentações tukano da mãe-virgem a ausência de sexo, que lembra
aventar sem medo de uma .suposição afoita, que a escada gua-
por demais a "mulher de madeira".
tória d~s Guianas e o "volador" da América Central tiveram certa-
mente origem num mesmo fundo comum de representaçõ~s. Seucy 25 já existe nó céu antes de existir na terra e a fecun-
Se lembrarmos do mito dos gêmeos que vingam a mãe, com- dação pelo sumo do fruto não aparece nas versões tukano.
preendem.os porque os alunos de xamã entre os Kari~e d~ Guiana Enquanto o tema da mulher sem abertura que é completada
Britânica 20 durante os treinos em que, em transe devido as danças pela ação de um pássaro 2 6 ou de um peixe 27 é familiar à mito-
' , . logia de várias tribos indígenas do Brasil e das Guianas, integrado
e ao sumo de tabaco entram em contato com os esp1ntos-onças,
'
sentem-se eles próprios transformados em onças, passando a rugu
. inclusive à história dos gêmeos míticos, o motivo da concepção
e andar de quatro, e atravessam um fogo que lhes barra a rota àtravés de um fruto proibido surge de forma estranhamente isolado:
para as águas, onde procurarão a proteção de espíritos aquáticos. A que representações se liga?
Compreendemos porque .na realidade o fogo e o vapor lhes é
personagem feminina (a "mãe das onças") que é queimada; mas desde
interdito e temos certeza de que a tentativa corresponde a uma que houver a convergência água que aleija, transformada em braseiro (o
identificação antes com Hikaniké 21 do que com Quetzalcoatl. símbolo "água-queimada"), estamos em presenÇa da figura de Quetzalcoatl,
E dentro do mesmo raciocínio se perceberá que, quando o qualquer que seja seu nome. ·
22 Percebe-se claramente, pelas lendas (V. AMORIM e STRADELLI) do Uaupés,
transe não visa a pos'sibilitar esta ascensão de certa forma mecâ- os Tariâna tentaram inaugurar uma "guerra florida".
nica, exteriorizada, mas visa, como no Uaupés, a trazer para dentro 23 SAAKE. Die Juruparilegende bei den Baniwa des Rio lssana. p. 272.
da maloca, surgindo no meio dos dançarinos, o espírito das flautas 24 Z ERRIES. Pré-Colombian American Religions. p. 245-46. Mitologia dos
Caliõa (Karibe) - Afuana é mãe-virgem, deusa da água, sem umbigo
(nunca nasceu) , uma bela mulher, cujo corpo termina em serpente. Exerce
19 MÉTRAUX. (Religions et magies indiennes d'Amérique du Sud . . p. 8~)
seu poder a partir das Plêiades.
baseado em Andrês Bonn, Friedrich. O espírito que recebe o noviço dtz: 2
5 Deixamos de lado a correspondência entre Seucy e o mel, pois sobre esta
"Viens novice tu monteras au ciel par l'échelle du Grand-Pere vautour . .. " questão e sobre a importância do mel como vomitivo, no Uaupés, Uvi-
20 MÉ~ux (Íbid. p. 86 et seqs.) baseado em observações de J. Gillin entre
os Baraina da Guiana Britânica. -Strauss já chamou a atenção em "La nuit étoilé" (Du miel aux cendres.
p. 225 et seqs) . .
21 Lembremos que no mito barasana ("História de . Luna" ) , assim .como 26
aliás em outras· versões do mito dos gêmeos, os dois elementos pengosos Como no mito warrau de Nahakoboni, trata-se aqui da ave "Bunia"
l'oiseau-puant. V. LÉVI-STRAuss. Op. cit. p. 182-84.
aos jaguares são justam~nte o fogo e a água. (A dependência da agricultura 27
Como acontece no mito baniwa referido e na versão Tukano da origem
de r~ e da pesca? é possível ... ) Em muitas versões notamos que na de Jurupari (RODRIGUES, Barbosa. "Poranduba Amazonense". Annaes da ,
água o "ser terrível" ainda escapa (embora aleijado), enquanto é uma Biblioteca N acional do Rio de Janeiro. p. 101). Peixe traíra.
342 CAP. XIII - A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI 343

Curiosamente, como é. o caso da "Lenda de Ometanimpe", -espírito" 30 e que entre os Apinayé existe um mito segundo o qual
o Popol-Wuh parece fornecer, aqui também, o começo da história a cabeça cortada de um deus se converte em fruto do cabaceiro.
que está faltando: Vimos que a mesma associação se encontra na "História de Luna"
barasana, cotn relação à cabeça de Méneri-Ya, que Warimi lança
Os dois irmãos Hun ahpu e Wuqub hun ahpu jogam bola sobre sobre uma moita de bananeira. Mas é bem possível que o texto

as cabeças dos senhores do mundo inferior (Sibalba). Quatro de Patino, 31 sobre a importância da pupunha na Bolívia (entre os
mensageiros-corujas dos Sibalbenses convidam-nos a se medir Mosetene), nos f omeça a chave para uma verdadeira compreen-
com os seus senhores. Os dois irmãos aceitam o desafio. Des- são não só do texto mítico do Popol-Wuh como do tema do :'fruto
pedem-se da mãe e avó que choram•
e, precedidos pelos mensa- proibido" em geral:
geiros, tomam o caminho para Sibalba, um caminho difícil, cheio
de obstáculos. Chegam a uma encruzilhada de 4 caminhos (ver-
.
" ... cada palma hecha diez o doce racimos y dentro de este
melho, preto, branco, amarelo) e seguem o caminho negro. Ante coco que tiene perfecta figura de una calabera, y dentro de este
os tronos dos reis de Sibalba, saúdam por engano uma boneca e coco hai una semilla bianca como un copo de nieve con la misma
um homem de madeira e são por isso ironizados. Oferece-se-lhes .
f 1gura ... "
um assento incandescente e são novamente debochados porque se
queimam. São levados a uma casa escura onde devem fumar, mas
sem gastar, os cigarros que se lhes oferece. Como fracassam na A idéia de que frutos de palmeiras são cabeças transformadas
prova, são sacrificados e seus corpos enterrados em Pukbal éah deve ter surgido de uma forma generalizada numa humanidade
(cidade das cinzas). A cabeça cortada de Hun ahpu é colocada pré-agrícola. Heyerdahl ,32 refere um mito da~ Ilhas Sociedade em
sobre os galhos de uma árvore, no começo de um caminho, e ela que o sacrifício de um homem, "transfarmando-se" em árvore (a
aí pende como um fruto. Proíbe-se a aproximação da árvore, mas árvore da fruta-pão), salva sua mulher e os filhos de morrerem de
Skik, a filha virgem de Kucuma kik, um dos senhores de Sibalba, fome, num período de tanta carência que o povo tinha qu~ se
não resiste à curiosidade. A cabeça sobre a árvore lhe explica que alimentar de barro vermelho. Quando o alimento se torna conhe-
as coisas redondas que se vê sob os galhos nada mais são do que cido de outras pessoas, a mulher, interpelada sobre a natureza do
caveiras. Da saliva que cai na 1não da moça, ela engravida e
quando o pai o percebe, após seis meses, ordena aos mensageiros- fruto, responde: "lt is uru. (Head, or bredfruit). "Heyerdahl ex-
-corujas que a sacrifiquem, mostrando-lhe numa taça o coração plica que "The sarne term -uru- is applied to several types of nuts
dela, como prova. Os mensageiros, munidos da taça e da faca and fruits in northwestern South America. Cook ( 1910-12. p.
de obsidiana, levam a moça mas, compadecidos de seus rogos, a 287) says with Velasco from the northern Andes: There are more
deixam escapar para o mundo terrestre, enquanto levam ao rei um than fifty differents species of palms, all with the (native) generic
falso coração feito da resina vermelha da árvore que deixaram name chonta. . . The fruit, in the language of Peru is called ruru
pingar na taça. Hun kame joga-o no fogo e da fumaça que ele
produz todos ficam ·meio inconscientes, o que os mensageiros apro- and in that of Quito lulum, with means egg; accordingly the fruit of
• any palm is called chontaruro". ~11.i
veitam para fugir de Sibalba, seguindo o mesmo caminho que a
Skik havia tomado. Segue-se a descrição do encontro de Skik com Chontaruro ou chontaduro é uma das designações que recebe
a sua sogra que a sujeita a provas antes de reconhecê-la; e do a pupunha, como já vimos em outra parte.
nascimento dos gémeos . ..
30
A concepção do maracá como "cabeça-espírito" entre os Tupinambá já
28
Deste resumo, baseado em Schultz, pouco difere o relato foi observada e relatada por Hans Staden: "Logo que estão todos reunidos,
de Girard 29 sobre a origem do maracá. Girard lembra a observa- toma o adivinho o maracá de cada um deles e incensa-o com uma herva
ção de Zerries, de que a cabaça é associada à ·idéia de "cabeça- . que chamam pitim. Segura então a matraca bem junto à boca, chocalha-a e
diz-lhe: - Né cora, fala agora e faze-te ouvir, se aí estás". STADEN, H.
Duas Viagens ao Brasil. p. 174.
28 ScHULTZ, W. "Die zwei Brüder." ln: Einleitung un das Popol-Wulz. p. 31 V. p. 313.
52-54. 32
HEYERDAHL. American Indians in the Pacific. p. 477.
29 GIRARD. "Mito Guatemalteco de Origem de la Sonaja." Anais do XXXI 33 Id., ibid. Nota 1.
Congresso Internacional de Americanistas.
. .
344 CAP. XIII - A "LEGGENDA DE.L JURUPARY" DE STRADELLI A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI 345
• V

Seuc'y é, portanto, uma correspondente da Skik .ou Ixquic (na não faltou oportunidade aos filhos de Skik de vingarem o pai Ahpú
grafia de Girard) , e a justaposição dos dois mitos nos mostra mais na figura de algum feroz inimigo. 37
uma dessas curiosas inversões que já tivemos oportunidade de co- , Na verdade, Jurupari nasce tão "ser terrível" quanto o Mení-
mentar, no capítulo sobre o mito de Kasána-podole. · , -Hikaniké barasana, porque, como Warimi, ele é "dois em um"
Quem são os dois irmãos que vão à Sibalba e que são enga- As tribos Aruák, no entanto, agricultores e ceramistas por exce-
nados por uma boneca de madeira? Quem a· esculpiu? Claro, fo- lência, abrindo-se em relações com as tribos vizinhas pela exo-
ram os Carne de ~ibalba. Mas Carne, como observa Girard, 34 gamia e troca de produtos nos dabucuris, puderam ir além do ·sacri-
"conserva sua função de herói solar entre grupos indígenas da região fício do mutum-serpente (da "Estória de Poromina Minare"), ou
selvática tropical, cuja cultura corresponde à que o Popol-Wuh do Pescador, marido de Tibiari, 38 queimando o "pai", (o passado),
descreve como típica do 2. 0 ciclo da história maya-quiché"". na figura do filho. e importante que nas lendas aruák seja o
Portanto, uma figura mítica que no Popol-Wuh já é bisavô e próprio deus criador (lnapirikuri) que ordene o sacrifício de Juru-
tetravô (se podemos falar assim) , entre os nossos índígenas pode pari, alter ego de Poronominare (como. transparece claramente na
''ter conservado sua juventude" até a época atual ... como o Uáxti versão publicada por Amorim): 3 9
dos Tukano do Tiquié, pronto a se identificar com o Jurupari-Issi
"Pica-pau fez banco, depois mandou acender fogo em cima de
da lenda tariâna que, como filho de ~kik-Seucy deveria corres- Jurupary. Em toda a noite (levaram um dia inteiro para puxar
ponder no Popol-Wuh a neto de Came-Kuatungue, 35 o escultor da Jurupary para a terra) Jurupary ardeu. De man}J..ã Poronominare
"mulher de madeira", que os irmãos Ahpú reverenciaram como senta no banco 40 e remexe as cinzas. Aí houve um estrondo, a
rainha ... ou devoraram? Pois o alter ego desses irmãos, que são a terra tremeu. Do meio dá cinza de Jurupary nasceu uma coisa
também chamados os "Sete em um" 36 (um símbolo que nos lem- que foi bater no céo. Poronominare cahyu com o estrondo, de-
bra as Plêiades, as sete crianças sacrificadas ou transformadas em pois levantou-se, acendeu seu tabaco voou atráz. . . Quando elle
periquitos ... ) é Hurakán, o unijambista (Orion) ou Hikaniké, chegou no meio das nuvens· ahi encontrou ·um acutipuru 41 já que-
;
para nos, a onça maneta ... rendo cahir. Pegou nele, desceu ·com elle para o Rio Aiari . ..
Esta é a razão também por que a nossa Seucy não teve gê- . .
37 FRIKEL ("Classificação Lingüístico-etnológica das Tribos Indígenas do Pará
meos. Gêmeos que vingam a mãe ou o pai como já vimos corres- Setentrional e Zonas Adjacentes." RA. p. 135) nos informa que ouviu
pondem a mentalidades de culturas com outras c~ndições econô- dizer que muitas vezes certas tribos indígenas se transformam em "onças"
mico-sociais. O Jurupari-Issi não tem pai para vingar; a história e nestas condições atacam aldeias e homens. Acha ele que esta "transfor-
original deve ter-se perdido da memória dos descendentes aruák mação" tem base em antigos costumes de guerra. Aqui, ele pergunta se
seriam costumes karibe: "Até onde terá chegado a fama das sociedades
,que emigraram para a América do Sul: para o gênero de vida que militares Toltecas dos guerreiros-jaguares e guerreiros-águias?" Tive a opor-
aqui adotaram, ela não tinha mais sentido. Afinal, vindo yara a tunidade de ver essa indumentária de guerreiros-onças (naquela ocasião
América do Sul, eles estavam de certa forma descendo a Sibalba usada como adorno de dança entre os Kachúyana). Em suas lendas de
e certamente, durante os primeiros choques com as tribos Karibe, guerra, descrevem-se esses guerreiros-onças, bem como a sua maneira de
ir ao encontro dos inimigos munidos de "borduna mágica" e de charuto
índio. ·
34 "Mito Guatemalteco de Origem de la·Sonaja." Anais do XXXI Congresso 38 V. nota 118, p. 332.
Internacional de Americanistas. p. 51 et seqs.: "Carne é deus solar da segunda 39 AMORIM. "Lendas em N~eêngatú e em Portuguez." RIHGB. p. 131
era do Popol-Wuh; é o segundo regente". Girard chama a atenção para a et seqs.
correspondência com: "Carne" (sol, herói civilizador Bakairi), "Carne" 40 Ele só poderi.a ter sentado nesse banco antes de ele pegar ·fogo ...
(Sol-Aruák), etc. 41O acutipuru (serelepe). É o Sciurus aestuans, também chamado caxin-
35 I_<u,atungue corresponde ao Mavutsinim Kamayurá. (V. o mito dos ~êmeos guelê (V. MAGALHÃES, A. Couto de. Ensaios sobre a Fauna Brasileira. p.
Kmkuro, em VILLAS BOAS, O. e C. Xingu, os .lndios, seus Mitos. p. 69. 260). É um dos símbolos de Jurupari, cremos que devido, principalmente,
36 Segundo Girard (Op. cit.), Hikaniké e seus irmãos, com quem Méneri-Ya à sua agilidade em subir em árvores. lHERING (Dicionário dos Animais. do
deveria· dançar? Aqui também se nota a inversão: enquanto "Carne" corres- Brasil. p. 722-24) acrescenta ainda que "ele é o mais dorminhoco de todos
ponde a heróis civilizadores, entidades definidas como "Deus bom", "Deus os quadrúpedes da fauna amazónica". Existe de fato uma cantiga de ninar
criador'', uma série de nomes derivados de "Hurakan" tem conotação sinistra na Amazónia, em que as mães invocam Acutipuru para emprestar o seu
entre tribos do Brasil e das Guianas. V. GIRARD. Op. cit. sono ao filhinho.
346 CAP. XIII - A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI 347

(aí acutipuru virou gente - Ficou um moço bonito). . . Quando tribo, 46 o que lembra, por sua vez, que na área vizinha da Bacia
a lua nova chegou Poronominare ensinou-lhe os segredos de Juru- do Potumaio para cada maloca existem também dois grandes tam-
pary, pintou na pedra a figura dos instrumentos . .. " 42 bores (igua_lmente "macho" e "fêmea"), 47 e que também a trom-
beta, o "Botuto" ou "Guaricana", 48 em muitas tribos aparece aos
Como é. Inapirikuri que ensina a· Poronominare a única ma- pares. 49 Nas tribos Aruák há sempre muitas flautas e, mesmo
neira de matar Jurupari ("só de fogo morre Jurupari" ... ) , perce-
be-se que aí temos uma tríade masculina: lnapirikuri (o deus 46 Entre os demais grupos tukano, parece que originalmente também se
criador e princípio bom), Jurupari (seu aspecto mau ou sinistro: tratava de um par de trombetas, possivelmente, como já o observou BÕDIGER
é preciso. adormecer Inapirikuri para que ele revele as fraquezas (Die Religion der Tukano im nordwestlichen Amazonas. p. 95-96), ligadas
de Jurupari ... ) e Poronominare (o herói tribal, o índio, seguidor a ritos fúnebres, entre os Kobéwa representando . o casal ancestral Xudjíko
e Xudjikü. KocH-GRÜNBE.RG (Zwei Jahre. . • Band II, p. 150) descreve
da religião de Jurupari, seu prosélito. . . e que corresponde a duas grandes trombetas usadas num dabucuri de luto, em que os homens
Warimi). não se açoitavam: são os "Umãnahokõ" ou libélulas, a que os mitos parecem
atribuir uma função de Caronte ( co:nforme mito tukuna de Cimidyue).
Também na lenda publicada por Saake, é Inapirikuri, auxilia- Entre os Tuyuka, Koca-GRÜNBER.G (ibid. Band 1, p. 315-16) observou que
do por Meriri e Dzuri, 43 que sacrifica J urupari. Curiosamente, as trombetas (pamó = tatu) são na realidade concebidas como se fossem
Inapirikuri faz de mulungo (madeira leve) 44 três bonecas, de pé, todas aves (mini), o que lembra o texto tukano acima. Entre os Desâna
como se fossem vivas, e em torno delas Jurupari dança. (Outra as flautas grandes de Jurupari são duas: a masculina, com som sustenido
que incita, enquanto que o som produzicto pela flauta feminina se designa
vez, as bonecas da madeira, a dança que, de prelúdio para a cena como uma vibração ameaçante. Uma incitando, outra rechaçando (REICHEL-
em que Hikaniké devora Méneri-Ya, passa a ser prelúdio ao sacri- ·DOLMATOFF. Desâna ... p .' 85-87). Informa ainda o autor que as mulheres,
fício de Jurupari ... ) . ao ouvir o som da flauta masculina, gritam bi-bi-bi com desprezo, mas
imitando o riso da Filha do Sol.
Um mês depois, lnapirikuri vai ao céu para ver onde está Como já observou Lévi-Strauss, o tema do pássaro preso na caixa (que
Jurupari (que lá está branco e brilhante, na sua forma astral). parece ser o contra-tema da noite presa num coco de tucum, mais genera-
É só depois de contar que Jnapirikuri também quis morrer e foi lizado na Amazônia) deve estar relacionado ao tema do sol aprisionado
dentro de uma caixa, como no mito yabarana (karibe) referido em
·morrer em uma cruz em região distante, que o relato prossegue L'origine. . . p. 131. Parece ser um tema .de distribuição mais norte-sul
contando o nascimento da palmeira de que se fazem os instru- (andino). Reaparece como tema de castigo ao velho Tatrapai, no mito
mentos sagrados. araucano a que já nos referimos atrás. Parece estar relacionado com o
movimento aparente do sol, o ponto mais meridional atingido no solstício,
Estes instrumentos sagrados nos textos míticos de Fulop -1 5 a que davam particular atenção os cultos incaicos.
são descritos como sendo um par (macho e fêmea) para cada 47 WAVRIN (Moeurs et coutumes des indiens sauvages. p. 372-73) dá a
descrição desses "Tunduhi" ("Tunduli'', entre os Jivaro, segundo SIMSON.
42 AMORIM. "Gente Baré-Poronominare." Op. cit. p. 134-35. "Notes on the Jivaros and Canelos lndians." JAI. p. 386). "Les tribus
43 Meriri e Dzuri, representando os dois princípios da arte de curar, respec-
natives du bassin du Putumaio, les Huitoto, Boro, Ocayna, Andoque ... "
ti vamente soprar e chupar, neutralizam-se de certa forma, quando não se cada maloca possui dois grandes tambores ("Manguaré", sempre "macho"
e "fêmea"). WAVRIN. Op. cit. p. 373.
trata de curar. A sucção lembra Huitzilopochtli chupa1;1do o sangue de suas 4 8 V. também ZERRIES. Les religions amérindiennes. p. 407-09.
vítimas; o sopro, o ato de criação pelo alento. Aqui, contudo, ambos, 4 9 As trombetas de casca de árvore aos pares parecem realmente mais
conduzem Jurupari ao sacrifício.
primitivas que as flautas que sempre encontramos na área aruák. Na festa
44 Mulungú, Erytrina Corallodendron L., conforme LE CoINTE. Amazónia
da pupunha dos Okaina, 4 grandes trombetas são tocadas de noite na mata,
Brasileira Ili: árvores e plantas úteis. p. 316-17. vindo depois para a casa do dono da festa, que representa o "pai da
41í "Estos dos Yuruparises eran un macho y una hembra. Y ellos eran como Gui1ielma". As mulheres e crianças não podem vê-las (BÕDIGER. Die Religion
hermanos. Y el Yuruparí macho se llamaba Deté y el Yuruparí hembra der Tukano . . . p. 64, citando Girard).
se llamaba Miriápura Numió" (FULOP. "Aspectos de la Cultura Tukana WAVRIN (Op. cit. p. 273) escreve: "Les indiens du Rio Negro ainsi
·- Mitologia." RCA. p. 356). Yepá Huáke havia deixado dois Juruparis a que les Puinahui, les iapoco, les Guahibo souvent et les Piaroa, ont encore
cada tribo: Tukano, Desâna, Yuruti, Siriano, etc., com a recomendação un long tube en bambu, dans leque! iis soufflent le yapururo, qui produit
de que não os mostrassem a mulheres e crianças. Além disso, se os descreve un son creux étrange et mistérieux. Cet instrument est plutot sacré et ne
como "pajaritos guardados en jaulas y los pajaristas eran bien enplumados". peut être vu des femmes qui par la sentent peser sur elles de s~ntiment
ld., ibid. p. 355. de leur infériorité". Descreve a seguir mais detalhadamente os instrumentos
A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI 349
348 . CAP. XIIl - A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI

que tocadas aos pares, não têm uma conotação de sexos opostos, pois Barbosa Rodrigues dá seu nome como composto de T oré 53
o que está aliás de acordo com a religião de Jurupari, tal qual ela
e kana == T orekaná == trocano. 54 Koch-Grünberg 65 diz que
a construção do trocano entre os Witoto é a mesma que no Caiary
se implantou no Uaupés: como já dissemos atrás, o esforço é
orientado para uma exclusão da mulher do culto; como "un miei (Uaupés), só que aos pares. A razão dele não existir aos pares
destiné à être vomi . . . " 50 no Uaupés deve-se certamente ao fato de que aí ele representa,
Na realidade, mesmo entre os Tukano, o simbolismo do par segundo Reichel-Dolmatoff, 56 a Canoa-Serpente. Os Desâna lhe
de trombetas não é exatamente o mesmo. Para os Tukano pro- dão origem aquática. 57
priamente ditos, os dois "juruparises", embora de sexo diferente, Pe. Alcionílio Brü.zzi A. da Silva 58 repara que, embora _s~
são dois personagens castos, apresentados com as palavras: chame de "marido" e "mulher" ao par de flautas Jurupari (miri-
"Y ellos eran como hermanos." Entre os Desâna, ao contrário, -mini) , elas representam· animais diferentes. Entre os Aruák ~a­
eles representam, pode-se dizer, o casal mítico incestuoso e, ainda rece que, como já dissemos atrás, elas não representam propna-
que o som da flauta seja descrito como "rechaçante", o riso das mente uma oposição de sexos como entre os Tukano. Entre os
mulheres lembra a atitude de consentimento e certo caráter per- N ambikuara, 59 as flautas sagradas levam mesmo um pequeno
verso da Filha do Sol, que a aproxima da "donzela venenosa", apêndice, como símbolo da masculinidade dos instrumentos, uma ,
. de ·que fala Cãillois. 51 vez que entre eles também elas representam o herói sacrificado. 60
Quanto aos "Trocanos" (tambores), 52 tem-se a impressão Dos ossos de Ualri-Jurupari, afinal, só poderiam mesmo nascer
de que, entre os grupos que os usam aos pares, eles são ~m subs- instrumentos masculinos.
titutivo do par de trombetas (quem sabe até delas evoluindo?), O que representa então a oposição dos pares?
dos Piaroa: "Les instruments des Piaroa consistent en une flúte emettant l'Hl"Toré", ou "Boré", é uma trombeta grossa, aberta dos dois extremos e
divers sons, la flúte-de-pan, les hochets ou maracas, et en une urne en tapada internamente com cerol. Possui um som lúgubre, cavernoso.
terre cuite avec deux ouvcrtures laterales dans le bas, par lesquelles peuvent 54 RODRIGUES, Barbosa. "Complemento da Poranduba Amazonense." Anais
atre introduit deux gros tubes en canne creuse". Este último instrumento da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. p. 39.
parece corresponder à ocarina de cerâmica que Reichel cita entre os Desâna 115 KocH-GRÜNBERG. Zwei Jahre. . . Band li, p. 302-03.
(Desâna. . . p. 87), hoje, contudo, praticamente desaparecida. Estes japu- 56 REICHEL-DOLMATOFF. Desâna ... p. 23, 85-87: É considerado réplica de
rutus, que no Uaüpés são feitos justamente de paxiuba (V. SAAKE. "Uma Pamuri-Gaxsíru e decorado com os motivos da canoa-serpente.
Narração Mítica dos Baniwa." RA. p. 37 e SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. 57 Id., ibid. Em parte, essa "origem aquática" do tambor talvez esteja ligada
A Civilização Indígena do Uaupés. p. 302 et seqs.), são pois de bambu ao fato de, segundo 'Reichel, ele ser guardado na água. Talvez nos tenha
entre os Piaroa, o que lembra as trombetas de bambu dos Warrau, tocadas escapado este detalhe, mas não vimos referência igual em outros autores.
na festa sagrada de Náhanámu (WILBER.T. "Los Instrumentos Musicales de Em todo caso, Capistrano de Abreu a~sinala a ~esma c~ença entre os
los Warrau GuaraQ, Guarauno." Antropologia 1). As flautas de paxiuba Bakairi ( Karibe) : "uma lagoa, onde assistem o avo do peixe-cachorro, o
que têm o nome de Yapurutu não são tabu para as mulheres entre os Baniwa. avô da piranha ... o avô do tambor". ABREU, Capistrano de. "Os Bacaeris."
São usadas nas festas ligadas a Kari, o herói cultural doador da mandioca, ln: Ensaios e Estudos: crítica e história. p. 271.
que ensinou a fazer a primeira roça. SAAK.E. "Die Juruparilegende ... " XXXII 58 SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. A Civilização Indígena do Uaupés. p. 306-07.
Congresso Internacional 4_e Americanistas. p. 277. O autor relaciona o nome de oito instrumentos, tocados aos pares.
A descrição de Wavrin sobre os Piaroa refere-se a uma cabana tão A lista lhe foi fornecida pelo tuxáua do Tiquié. As "mulheres" do n.0 6
pequena que os quatro músicos mal cabem nela, o· que nos faz pensar (mere-i'si, um macaquinho) e do n. 0 3 (dê-to-esquilo) estão indi~adas
outra vez na· armação erguida pelos Monoxó. simplesmente como sendo makú. Um deve ser o "Baaro" (ave de rapma),
Mais primitivas ainda são certamente as flautas feitas em ossos, como o outro o "Mahã" (arara).
as que os Motilon usam em suas cerimônias fúnebres e que dizem ser de 50 AYTAI. "As Flautas Rituais dos Nambikuara." RA. p. 69-75. .
ossos humanos. "Ces flutes sont toujours employées par 2; une dite mâle, 60 É um menino sacrificado, lembrando o "Milómaki" dos Yahuna (V. mito
au son grave, l'aútre dite femelle ... " (WAVR.IN. M oeurs et coutumes des reproduzido por ScHADEN. "A Mitologia Heróica de Tribos Indígenas do
indiens sauvages.) V. também ZmuuEs. Les religions amérindiennes. p. 407-09. Brasil." nota 18, p. 158). O nome do herói Nambikuara não pode ser pr~­
õO LÉVI-STRAUSS. Du miei aux cendres. p. 245. nunciado. Seu corpo desmembrado (e não queimado, como o de ~ilómak1)
Gl V. notas 101 e 102, p. 360, R.EICHEL-DoLMATOFF (Desâna ... p. 130) diz transforma-se em plantas úteis. Ele só fica nas flautas •. presum1velm~nte
que entre os Pira-Tapuya, os homens que tocam as flautas se "afogam" (come- feitas de seus ossos. Aytai supõe que representem a fertilidade masculma,
teram o pecado, como o Sol com sua filha ... ) . . sem interferência feminina.
G2 V. DRUMOND, C. "Notas sobre os Trocanos." Boletim 58 (USP).

350 CAP. XIII - A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI 351

A relação de Brüzzi 61 não é completa, mas o terceiro par "Questo e l'istrumento capo, ha la mia .altezza e si chiama
de flautas é formado por "Doé" (o peixe traíra) e "sua mulher" ualri, di cui tutti conoscete la storia.
o "Pextoá" (maçarico, ave aquática). Ao menos aí notamos que "Questo che ha la lunghezza dei/e mie gambe si chiama yas-
mecerené (jaguar, in tariana), perche e l'unico animale che asso-
essa oposição certamente tem o mesmo significado da operação migli all'uomo nel valore e alia donna negli inganni.
de transformação em "verdadeiros" animais, que empreendem os "Questo, della larghezza dei mio petto si chiama bêbêbo (ana-
gêmeos míticos, com os animais que mataram seu pai ou sua tra muta, in cabéna) la cui origine fu la curiosità.
mãe. 62 Daqui por diante a ave aquática se alimentará de peixe, "Questo, lungo come il mio braceio, si chiama tintabri (euri-
não mais de gente como o "Mayuruberu" dos Ipuriná. 63 · O pri- pigia, in uaupés). Questo uccello nacque da una donna che era
meiro par é formado pelo "Kixtyó doxká" (feixe de crótalos) e molto bella, ma che, per quanto fosse bella, si dipingeva con
pelo "Arütõ" (um pequeno tucano). Repare-se que em ambos urucú per vedere se eccedeva cosi le altre in bellezza, e percio il
os pares é o animal representado como "mulher" que se alimenta tuxáua dei cuiuby (pelopis), la muto in euripigia.
do seu par. 64 A mulher, que no mito Krahó de Autxepirire apa- "Questo della lunghezza della mia coscia, si chiama mocino
(grillo, in arapazo), rappresenta l'ombra di un uomo-donna, che
rece ainda muito mais como vítima, apesar da provocação ritual non volendo amar nessuno visse sempre nascosto, cantando solo
transformá-la numa "menina má", aparece na religião de J urupari la notte e fu dalla stessa madre della notte mutato in grillo.
eomo a "devoradora", o perigo de que o homem deve se defender. "Questo, lungo due braceia, si chiama arandi (ara, in pyra
A lista apresentada na "leggenda" de Stradelli é mais com- tapuya), rappresenta una donna bella, ma senza attrativa, ne gusto
pleta. 65 O músico domina o instrumento que toca ("a fera do- per gli uomini, per cui fu mutata in ara dai padre degli iauty.
mada", a que se referiu Monteiro), e .é o próprio Jurupari que "Questo, che ha due piedi di lunghezza, chiamasi dasmae
dá a cada instrumetno a voz que deverá ter, 66 o que quer dizer (tortora, in aroaquy) e rap presenta il cuore di una fanciulla che
durante la sua corta esistenza si alimentava solamente di frutta
que os respectivos animais não mais falarão como homens, o que silvestri e che fu mutata in tortora, dopo morta, dai sup stesso
corresponde à ação do Sol, no mito kayuá referido, a tirar as padre che era paié.
plantas cultivadas dos animais que transforma assim em "verda- "Questo, largo come tre delle mie mani, si chiama piron
deiros animais": 67 (aquila, nel dialetto dei Jurupixuna), rappresenta il paié, perche fu
questo uccello che gli diede la pietra in cui egli imparo a veder
61 SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. Op. cit. p. 306-07. tutte. le , cose attraverso della sua immaginazione col tabacco e il
62 V. "A Origem dos Animais" (SCHADEN. "Fragmentos da Mitologia cara1uru.
Kayuá." RMP.), já citado atrás. "Questo, della lunghezza del mio stinco, si chiama dianari e
63 O chefe das cegonhas. "Quem não quisesse trabalhar era devorado por già tutti conoscono la sua storia (uccello nero, in uynamby tapuya).
Mayuruberu. Todo dia este recebia um homem para comer." EHRENREICH.
"Contribuições para a Etnologia do Brasil." RMP. p. 129. "Questo, che va dai mio ginocchio alia testa, si chiama tity
64 i;; o maçarico que come o peixe; o tucano que come as sementes. . (paca, in baníua), rappresenta il ladro, ed e l'immagine di una
65 STRADELLI. "La Leggenda dei Jurupary" e Outras Lendas Amazônicas. vecchia che vi1'eva soltando dell'altrui e che fu mulata in paca dallo
p. 41. acuty-purú (scóiattolo, in nehengatú).
66 Na fala de Jurupary : "Ed ora che conoscete il nome di tutti gli strumenti,
"Questo, che e lungo due mani, si chiama ilapay: quest'altro
passo a dare a ciascuno la voce che deve avere". STRADELLI. Op. cit. p. 42.
67 ScHADEN. "Fragmentos da Mitologia Kayuá." RMP. p. 112-15. V. tam- de/la lunghezza della mia spina dorsale chiamasi mingo (tarchyra,
bém: "A Origem e a Posse do Fogo na Mitologia Guarani." Anais do XXXI in cueuanna); d' ambi sapete l' origine.
Congresso Internacional de Americanistas. Parece que da mesma forma "Questo, che va dai mio ginocchio ai mento, chiamasi peri-
se poderia interpretar os mitos de "troca" de vozes: "Como a anta perdeu, pinacuári (tenten in uaupés, piccolo uccello cantore, tutto nero
outrora, a supremacia sobre os outros animais", em GIACONE (Os Tucanos
e Outras Tribus do Rio Uaupés. p. 106-07) e o texto correspondente em dalla testa e le spalline gialle), rappresenta un bel giovane desi-
FULoP ("Aspectos de la Cultura Tukana - Cosmogonia". RCA. p. 129-31),
em que a anta rebelada contra Yepá Huáke, e que tinha um apito tão Guariba, o macaco-urrador) , ficando com um apito muito mais fraco:
poderoso que "Cuando Wejké 8onó el pito, la tierra se abrió y la naturaleza "· .. Y el pito sonaba como el pito de la policia de Bogotá. Entonces Wejké
se hizo pedazos"; ela acaba perdendo-o para o macaco (certamente o se puso a llorar" .. .
352 CAP. XIIl - A "LEGGENDA DEL .TURUPARY" DE STRADELLI
A "LEGGENDA DEL .TURUPARY" DE STRADELLI 353
derato da tutte le donne, ma che non si. diede a nessuna, cosicche
irritate lo gettarono nella cascata dopo avergli fatta una incan- 1.º) Ualri - o tamanduá: · · · · · 2.0 ) Jaguar - violento, en-
tagione. · fraco, ·confiante demais, ganador como a mulher.
"Questo che misura la metá dei mio corpo si chiama bué deixa-se enganar pela Valoroso como o ho-
(ayuti, in cobéua) rap presenta que/la vecchia paurosa che aspect- mulher. Como pajé (fei- mem, mas não é o ho-
tando ad ogni momento che il cielo rovinasse sulla terra, non ticeiro) ,· representa a mein. (é o inimigo). 1a
pianto mai un'unica semente, vivendo di cio che gli altri pianta- força escondida sob a
vano, e fu per cio cambiata in ayuti dalla scimmia della notte. aparente fraqueza. 1 2
"E quest'ultimo, che mi va dalle spalle alfombelico, si chiama
canaroarro (saúba, in manáu), rappresenta quel vecchio che avendo
3.º) bêbêbo (Anatra muta · · · · · 4. 0 ) Euripigia ou tintabri:
ou Diatamani6n) ;__ na mulher, não contente
visto in sogno la /ame, mangiando la te"ª' lavorava giorno e
notte ammonticchiando provvigioni dentro casa per aver da man- "leggenda", Diatamo- com a própria beleza.
giare .quando la /ame venisse; fu ·mutato in formica dalla tatú nión é um tuxáua que Preocupada demais con-
(pangol.ino)' perche fosse mangiato. 68 dá tudo a Pinon, sem sigo mesma. Voltada
pedir nàda em troca. 7 4 para dentro, portan-
Os instrumentos podem tocar sozinhos 69 como os ossos de Segundo as palavras de to. 16
Ualri; 70 terão que "falar", contudo, com a voz que Jurupari lhes Jurupari, representa a
deu. Não há dúvida de que o instrumento representa algum com- curiosidade. 75 Voltado
portamento não aprovado, perigoso. Se atentarmos nos dois últi- por demais para . fora,
portanto .
. mos instrumentos descritos, bue ( cutia) e canaroarro ( saúva),
veremos que se trata de dois extremos opostos de comportamento 5.0 ) Homem-mulher - ho-· · · · · , 6.0 ) Mulher que não é mu-
(quanto à previdência) ambos condenados pela comunidade tribal mem que não é homem, lher, que não gosta de
como ·anti-sociais. 71 que não quer amar nin- ho.~e!Il, representada
Como os instrumentos são tocados aos pares, embóra não guém (representado pe- pela arara.
haja indicação de correspondência, no texto, é bem possível que lo grilo)
a enumeração esteja ordenada, o primeiro formando par com o 7.0 ) Dasmae (tartaruga) - · · · · · 8. 0 ) Piron (águia) - repre-
segundo, o terceiro com o quarto, e assim pc)r diante. Neste caso, a menina que só comia senta a transformação
repr~sentando cada instrumento pareado uma conduta extrema e frutas silvestres. Repre- extrema dà natureza pe-
oposta, condenada pela sociedade, pode-se traçar uma linha média senta a não-transforma- la· magia. Parece indi-
de conduta, passando no meio da fila de dançarinos, como se ção da natureza. A tar- car que este extremo
Jurupari, aproximando os extremos, os obrigasse a uma "mistura" taruga alimenta-se só de também ·é perigoso e
para obter um termo médio. · frutos, raíies, como os pre~sa ser controlado.

68 STRADELL~. Op. cit. p. 41-42.


72 Jl Jurupari que toca este instrumento, que tem também a altura dele, ~
69 ld., ibid. p. 43. qu"e não deixa dúvida quanto à identidade de Jurupari com Ualri. O índio
7
~ ~arec:e 9ue o protótipo da~ flautas é o instrumento feito de ossos, pois cre serem todos os grande·s tamanduás do sexo feminino.
73 Tem o comorimento da perna de Jurupari, o . que lembra .o tema da
vanas entidades (como U aln, como o U axti dos · Tukano do Tiquié) são
referidas como tendo o corpo esburacado, o vento fazendo um som horrível perna amputada e Hikaniké. A oposição Onça-Tamanduá já foi discutida
ao passar pelos orifícios dos ossos. É muito provável que o primeiro instru- por LÉVI-STRAuss (Du miel aux cendres. p. 110 et seqs.). Os Tukuna vêem
mento d~ sopro tenha nascido dos .ossos de um inimigo morto, no afã de mesmo, em duas nebulosas negrás dentro da Via-Láctea, ladeando Escorpião,
se aperfe1çoar o canto da vitória e humilhar mais ainda o inimigo devorado. o .Tamand~á defrontando-se com a Onça (Op. cit. fig. 10, p. 112, segundo
7.1 A condenação da imprevidência, da não-colaboração, foi muito bem sen- N1muendaJú).
74 Snul>ELLI. "La Leggenda dei Jurupary" e Outras Lendas Amazônicas.
tida por F. Caspar, entre os "Tupari" (título do livro, também). A con- p. 39.
d~nação da não-repfirtição dos bens aparece universalmente em inúmeros 715 É uma ave aquática. A curiosidade é um
mitos. dos ''defeitos da mulher".
76 Ave que não conseguimos identificar. · '
354 CAP. XIII - A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADE LLI 355

coletores nômades, ou Opõe-se à tartaruga pe- 13.0 ) Buê (cutia) - repre- . . ... 14.º) Saúva - previdência
melhor, como certos los hábitos carnívoros. senta a imprevidência demasiada. Não-repar-
animais mais indefesos. total. Depende dos bens tição dos bens.
Além disso. a tartaruga dos outros.
é comida por excelência.
Dinari - a moça de que ..... 10.0 ) Tity ( paca) - a velha Os dois instrumentos, "Ylapay" e "Mingo", são enumerados
que depende só dos ou- juntos. Na realidade aqui temos, também entre os Aruák, um
J urupari conta a histó-
tros de sua própria so- vestígio do par sexuado mais antigo. É que o mito se refere a
ria. 77 Deixa sua aldeia,
ciedade. É um peso uma das flautas Jurupari que Amaru escondeu e que os homens
casa-se com um jaca-
para a comunidade. Re- não recuperam ao castigarem as mulheres que haviam usurpado
mim, tem dele dois fi-
presenta o ladrão. os instrumentos sagrados. 81 Assim "Ylapay", "Mingo" e "Ten-
lhos, Pinon e Meens-
ten" correspondem aos três uari citados por Saake. 8:.!
puin. Não depende mais
' do seu povo para nada, Vemos assim que nos dabucuris, como no carnaval já desti-
não aceita as limitações tuído de qualquer sacralidade, estão representadas as tendências
que a sociedade lhe anti-sociais. Mas elas não são deixadas às soltas como no nosso
impõe. carnaval (se bem que a própria representação já é, no fundo,
Tenten ou Cauré - um controle do elemento perigoso), mas dominadas pelos toca-
Ylapay (jacamin) - na ..... 12.0 ) dores, não só pela música que estes obrigam os instrumentos a
"leggenda", apaixona-se Belo jovem, desejado
por todas as mulheres, criar, como pela simetria dos passos, pela ordem dos dançarinos
sem reservas, sem des- que se movimentam aos pares. 8 3
confiança e à primeira mas que não se dá a
vista por uma estran- nenhuma. 80 No mito de Jurupari de Stradelli existe uma certa contradição
geira ( Dinari). É um com respeito à imagem do velho.
animal dotado de instin- Por um lado, parece que os Tariâna, tornando-se um povo
to maternal muito gran- guerreiro e reformador, na época de sua invasão no Uaupés, pas-
de, adotando mesmo fi- saram a valorizar menos o velho (representante das tradições,
lhotes de outras aves. 78 respeitável pela sabedoria alcançada através dos anos) e mais o
É citado juntamente guerreiro, o indivíduo mais jovem, no apogeu do vigor físico. As
com o "Mingo" (tar- pr~prias sociedades secretas, com suas cerimônias de flagelação
chyra). 79 ( nao usad.as no Tiquié, na área mais tipicamente tukano), pare-
11 Raconti di Jurupary. Dinari e .gli Jacamy. Pinon e Seucy. STRADELLI. cem reflettr a valorização do elemento jovem.
Op. cit. p. 30 a 40.
78 IHEIUNG. Dicionário dos Animais do Brasil. p. 414 - Jacamin (gênero guarda aos ninhos de andorinhões (para caçá-los; atitude oposta à do jacamin.
Psophia) é o pássaro trompeteiro. Diz o autor que parece ser verdadeira a portanto). ·
81 S~AKE. "Die Juruparilegende bei den Baniwa ... " XXXII Congresso Inter-
afirmação de que esta ave procura tirar a galinha que estiver no choco
para ela mesma tomar conta da ninhada. MAGALHÃES, A. Couto de. (Ensaios 11ac1onal de A mericanistas. p. 276. O "uari" retido por Amaru (a única
sobre a Fauna Brasileira. p. 69) diz que a sua carne é imprestável. ALVIANo, mulher poupada) deve corresponder ao ''Tarchyra". . . Se o animal for
Frei Fidelis de. ("Notas Etnográficas sobre os Ticunal do Alto Solimões." realmente o gambá, este aparece freqüentemente como símbolo da mulher
RIHGB.) diz que o jacamin sente uma necessidade muito grande de afeto, (V. L éVI-STRAuss sobre a "sarigue") .
afeiçoa-se a cães e outros animais domésticos, a ponto de seguir o amigo por ;~ SAAKE. Op. cit. P:· 274. Na relação de Saake são 21 flautas.
toda parte. Recebe os hóspedes com alegria. Reconhece as pessoas de Jo-nge. O .!ato de cada instrumento receber um nome em um dialeto diferente
PATEllNOSTRO (Viagem ao Tocantins. p. 71) diz mesmo que a ave é ven- (Ta!!ª "ª• Arapáso, Baniwa, etc.) parece ter um significado especial. 05
A

tríloqua. Ta.na~a t_:m mesf!lo a aut.o denominação de "Yaui" (jaguar) . e, possível que
79 Poderia tratar-se do gambá? ~ .1nd1caçao atra~~s dos dialetos encubra alguma representação menos lison-
so IHEIUNO. Dicionário dos Animais do Brasil. p. 786-87. O Cauré monta Je1ra que os Tanana fazem das outras tribos.
A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI 357
356 CAP. XIIl - A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI

panha de Buopé, ao mesmo tempo que pregam e impõem às outras


Enquanto nos mitos tukano e desâna já vistos atrás, 84 é tribos os "costumes novos" (alguns, é bem verdade, parecem
sempre o irmão mais novo que transgride as restrições e tem um antigos na região, mas talvez sem a rigidez que depois se impõe),
comportamento condenável, na "leggenda" é Ualri, um velho pajé, opõem uma ideologia de valorização da classe etária jovem à valo-
já impotente, que cede à tentação de Diadue e atraiçoa Jurupari. 85 rização de uma ·classe de idade mais avançada que se percebe na
E o pecado que comete com Diadue é de certa forma comparável mitologia tukano. 90 .
com a defloração das moças no U aupés, costume que parece de Com referência à mulher, contudo, a "leggenda" insiste em
procedência tukano. :E: justamente um velho pajé, . já destituído que estas devem respeito aos velhos da tribo. 91 Trata-se de certa
de vigor físico, que procede, manualmente, a este ntual. 86 forma da necessidade de impor respeito, não tanto às mulheres
Quanto ao velho pajé, no início do relato da "leggenda" do próprio grupo, mas às mulheres que nele entram por casa-
engravida magicamente todas as mulheres que se banham no lago mento. ·
de Muypa, 87 revela-se a seguir que seu aspecto idoso era apenas
um disfarce. 8 8 Os companheiros de Jurupari, Caminda e Date ':En efecto, lo que sobretodo da fuerzas a la tradición es el ca-
rácter de las personas que la transmiten e inculcan, quiero decir
são jovens, "muito belo" o último. E o filho de Dinari (Pinon) los ancianos. ( ... ) Es lo que sucede cuando el hombre continúa
é descrito como incrivelmente forte. 89 viviendo en el medio en ·que se ha educado, pues permanece
Parece, pois, que os Tariâna tiveram um papel importante no entonces en relación con las personas que lo han sometido a su
processo de homogeneização cultural do U aupés, embora este, acción. El sentimiento que por ellas tiene subsiste y, por consi-
pela exogamia dos Tukano (os propriamente ditos e outros) e guinte, produce los mismos efectos, es decir, contiene los deseos
dos próprios Baniwa, pareça ter-se iniciado já bem antes da cam· de inovación.
Pero se produce lo contrario cuando el hombre, al salir de la.
84 Textos de Fulop e de Reichel-Dolmatoff. adolescencia, se transplanta a um medlo nuevo . .. " 92
85 Revelando às mulheres os segredos de Jurupari. Estas observações de Durkheim podem ,ser aplicadas, é claro,
86 V. SILVA, Pe. A. Brüzzi A. da. A Civilização Indígena do Uaupés. p. 439-41;
GoLDMAN. The Cubeo . . . p. 179:
também à mulher. Esta, quando se casa, vai morar na maloca do
87 V. Snw>ELLI. "La Leggenda del Ju.rupary" e Outras Lendas Amazônicas. marido, onde nunca deixa de ser, na verdade, uma estranha. ~
p . 15-16. . ~laro que, ainda que possa sentir certo respeito pelas pessoas de
88 "Era Ia polvere con cui il paié, che non era vecch10 come pareva, aveva
idade que aí encontra, este respeito ·terá q'1e ser ~enor do que o
nascosto la sua giovinezza." , . . . . . .
89 "E il figlio di Dinari prese un masso dell altezza d1 tre uomm1 1n p1ed1 que tinha pelos que aprendeu a respeitar na sua família de origem.
e lo scaraventõ sul villaggio, e la pietra ando a cadere quasi in cima della casa Na "leggenda" parece que se pretende. reforçar justamente
delle zitelle, con un fracasso tale che la Terra ne tremo tutta." STRADBLU. · esta sujeição das mulheres, não tanto aó marido ·(embora tam-
Op. cit. p. 34. bém o faça: veja-se o episódio de Caminda e Curán), 98 mas
e. muito curiosa a analogia que tem este texto com uma passagem do
Popol-Wuh, a que se refere ScHULTZ, W. (Einleitung in dll!. Popol-Wuh. p. particulftrmente aos velhos.
47-48): "Sipakna, filho de Cimalmat e de Kabraqan, é sohc1tado, enquanto Enquanto que os homens são integrados politicamente através
se banha na água e procura caranguejos, por 400 jovens para q~e leve dos ritos de iniciação, e o seu sentimento de solidariedade e de
para eles o tronco de árvore que estes derrubaram, para confecc1onar o
·poste central da casa que erguerão, Assustados, contudo, com a força de 90 A importância do pajé e, acima do pajé, do Kumu, já indica essa valo-
Sipakna, tentam matá-lo. Ele escapa da morte e, D() terceiro dia, enquanto rização. .
os jovens estão festejando, embriagados, a inauguração de ~ua casa, ele 91 De que elas debocham em algumas passagens e a que procuram seduzir
a arranca do solo e a joga sobre os .moradores, matando a todos". em outras. Na realidade, segundo GIACONB (Os Tucanos ... p. 25-27), a
No texto publicado por Stradelli, os Bianacas ( C! povo de que é origi- situação dos velhos não é nad~ invejável no Uaupés. Mas é verdade que
nária Dinari) obedecem a Pinon, assustados e maravilhados com sua força, também se tem encontrado velhôs tuxáuas, já doentes, ainda muito respei-
e ele passa a reformar os seus costumes. Estes, segundo o mito, observaram tados pela tribo e cercados de carinho (NIMUBNDA.JÚ. "Reconhecimento dos
uma separação total dos s~xos, existindo uma casa em que as mulheres Rios lçana, Ayari e Uaupés." ISAP. p. 139, sobre o velho Mandu).
viviam reclusas. Poder-se-ia perguntar se esse tema da casa s6 de mulheres 92 DUllHEIM. La División dei Trabajo Social. p. 345-46.
não se prenderia ao conhecimento, embora nebuloso, por parte- de outros 98 STIW>BLLI. "La Leggenda dei Jurupary" e Outras Lendas Amazónicas.
povos, da instituição inca do convento de mulheres (a casa das acllacuna. V. p. 46-48: "Caminda sposa Curán, figlia di Arianda".
MUllOOCK. Nuestros. Contemporáneos Primitivos. p. 337).
358 CAP. XIII - A "LEGGENDA DEL JURUPARY'' DE STRADELLI A "LEOOENDA DEL J'URUPARY" DE STR.ADELLI 359

respeito aos mais velhos decorrem das próprias expectativas do zienti e curiose e ciarliere, queste sono peggio e piu periCÚlose,
status de guerreiro, as mulheres apresentam, ao contrário, ten· perche conoscono parte dei nostro segreto. Pochi resistono ad
dências centrífugas: seus interesses estão voltados mais para seus esse~ perche le loro parole hanno la dolcezza· dei miele delle api, i
respectivos maridos e filhos do que para o "pátio da aldeia". loro occhi hànno l'attrazione dei serpente ... " 97
A sujeição ao marido parece ocorrer com relativa facilidade, As expedições guerreiras no mito muitas vezes se deformam~
pelo casamento precoce 9 ! e de acordo com a capacidade do são as mulheres que saem voluntariamente no . alcance de seus
marido como bom provedor de caça e pescado. 95 amados. 98 Ao menos ,é assim que a história tende a ser contada
A sujeição à autoridade tribal, expressa pelo conselho dos pelos sogros e cunhados da tribo vencedora, isto é, pelo grupo
homens mais velhos, é que parece estar sempre perigando. As vencido (V. "Pitiápo: Lenda Uanana"), 99 transformando-se a mu-
próprias funções sócio-econômicas da mulher. a excluem do setor lher '(raptada mais provavelmente) em heroína. Mas não é este
político, como a religião de J urupari a exclui do setor religioso. o perigo maior: é a própria unidade tribal que a .mulher estran-
Com exceção das pescarias, que às vezes são coletivas, ~ somente geira, arrastada para a maloca, põe em perigo. O segredo que não
nas festas, nos rituais, revivências dos mitos, que a mulher mais pode ser revelado é na verdade o símbolo dessa unidade tribal e
sente, mas apenas como expectadora (assim mesmo não dos ritos mesmo, dentro da tribo, da unidade de cada clã.
mais sagrados), sua integração na comunidade masculina. O ideal Com a exogamia, é realmente um enfraquecimento. dessa
masculino é absorvido, poderíamos dizer, "visualmente" pelas unidade que se poderia esperar. Tomando mulheres de tribos
mulheres, na figura do ágil guerreiro belamente ornado. Mas os vizinhas, não poderia facilmente ocorrer que sogros e cunhados
velhos se apagam nas sombras. Para o mundo masculino eles tivessem uma influência maior do que a desejável, caso o homem
ainda representam muito: a experiência acumulada, as façanhas cedesse demais à esposa? Que o clã ou a tribo aparentada ultra-
de guerreiro do passado, a transmissão da sabedoria tribal. O mito passasse o papel de aliada (desejável) para o de protetora auto-
parece indicar que as mulheres não sentem esta importância do ritária?
mesmo modo e que os velhos tendem a ser desprezados. Isto,
mesmo antes do contato com o branco. À medida que a ação O segredo de Jurupari 'reforça realmente a solidariedade entre
desintegradora da civilização aumenta (através do trabalho dos os homens, em geral, equilibrando uma possível absorção por tri-
missionários e do contato com a população cabocla) é claro que bos vizinhas, ap mesmo tempo que o mito todo, com os seus
mais aumenta, para a preservação da cultura tribal, a necessidade ensinamentos e promessas de castigos, exclui a mulher do mundo
de frisar a autoridade dos mais velhos. No esforço para salvar dos homens e a "integra" por meio de ameaças e medo.
o que sobrou ainda das tradições tribais, por sua vez, aumenta a A mulher não pode, não deve mais ser a vítima do jaguar,
solidariedade interna e, como o observou Caspar entre os Tupari, pela religião de Jurupari. Ela não tem direito ao auto-sacrifício,
começa a aparecer uma tendência contrária: uma certa "emanci- não tem direito ao sacerdócio. Ser sacerdotisa de Bisíu é ser bruxa,
pação" da mulher indígena. n 6 como as mulheres medievais acusadas de se entregarem .ao· diabo
Por que as mulheres são apresentadas por Jurupari como tão nas noites de Sabbath. 100
perigosas aos homens? "Se le donne della nostra terra sono impa- A vítima do "ser terrível" agora não é mais culpada só ritual-
u:i Veja-se o caso relatado por KocH-GRÜNBERG (Zwei la/ire .. . Band I, p. mente. Deixa · de ser "bode expiatório''. Se teimar, é má; de
18). O autor se espanta diante da rapidez com que uma moça se conformou
com o casamento contra sua vontade, bem ·como. com a sua absoluta identifica· 97 STRADELLI. Op. cit. p. 29.
ção com o marido (se assim se pode dizer) pouco tempo após o casamento. 98 "Jurupary raconta la fine delle. doruie Tenuiana." Jd., ibid. p. 60-61.
U5 Por outro lado, GOLDMAN ( T he Cubeo. . . p. 143) relata os freqüentes 99 Jd., ibid.p. 67.
distúrbios e mesmo traições, por parte de recém-casados, que parecem ser 100 Sobre o Sabbath das bruxas ("Hexensabbath") na Europa e sobre cren-
reações hostis da moça diante do grupo que a considera sempre uma estranha. ças congêneres por parte de povos primitivos (em feiticeiras e associações.
(No início, ela fi~a sujeita à autoridade da sogra, ajudando-a nos servições, de feiticeiras), Peuckert publicou uma série de observações muito interes-
sem ter um atelier próprio.) santes em Geheim Kulte. Por exemplo, para Peuckert, o mito de Rapunzel
V6 CASPAR. Tupari. p. 162-63. "Emancipação" que redunda, aliás, na maioria ainda é lembrança da choça pubertária (p. 258). Sobre a feiticeira, "Die
das vezes, em sua exploração por .parte do civilizado. Hexe" (p. 117 et seqs.). Sobre o Sabbath das bruxas (p. 259).
360 CAP. XIII - . A "LEGGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI A "LEGGENDA DEL JURUPARY,, DE STRADELLI 361

vítima se transforma em agressora. É a pucelle vénimeuse a que dito em outra parte do trabalho, este só se deixa apanhar ( eni sua
se refere Caillois no seu estudo sobre o simbolismo do louva- forma de peixe ou serpente) por uma rede de cabelos femininos
. -deús. 101 Devorá-la em sentido figurado é ser devorado por ela, ou no matapi, que corresponde, como já vimos, em sua ·forma e
pois ela mata seu amante. 102 no nome, ao "tipiti" manuseado pela mulher.
No Uaupés, .este processo de transformação está apenas esbo- É assim que nasce Yara . . . já nos tempos da colonização,
çado, no caso Desâna, no riso inconseqüente da Filha do Sol. quando a sociedade se torna cada vez mais patriarcal. ·
Ainda é ela que (morrendo devido a seU; ato) é ressuscitada pelo E assim também nos aproximamos bastante das representa-
pai. Bastaria, contudo, este riso tomar-se mais cínico do que é, ções do mito do paraíso do Velho Testamento, a serpente tentando
e o pai morrer de paixão, para que a Filha do Sol tivesse a sua a mulher, a mulher tentàndo o holllem. 1 º6
peau d'âne, esfolando o Sol como Tezcatlipoca o faz com Xipe- Vimos assim, no decorrer do trabalho, uma série de facetas
-Totec ... da mulher no mito: a m('.nina krahó inábil, bobinha, que o · grupo
Ou; de forma menos trágica, a teríamos (de "mulher de ma- deixa para trás como vítima de Autxepirire, transforma-se na mu-
deira") transformada em boneca de alcatrão, que torna o nosso lher Tukuna Djaé, que se vinga do marido cruel. A mãe de Wa-
"Macaco Simão" 103 vítima em vez de agressor. · rimi, vítima transformada finalmente em fruto, transforma-se na
Assim, a mulher é o veneno e o contra-veneno. 1 º4 Em várias mãe "perigosa" de Jurupari, como o fruto indefeso jogado sobre
ver~ões do mito de Jurupari ou seus congêneres, 105 como já foi a moita de bananeiras se transforma em fruto agressivo e fecunda-
dor na "leggenda" de Stradelli ...
101 CAILLOIS. "La mante religieuse." Le mythe et l'homme. p. 39. Entre Mãe perigosa porque antieduca o filho, como a velha tariâna
as obServações que mais interessam para a compreensão do simbolismo
do louva-deus (inseto ligado às flautas Jurupari, na mitologia Desâna), ,J
pajé da "Lenda dos lndios Tarianos sobre a Cutia", .1 º7 publicada
destacamos mais as seguintes: a) o louva-deus imita o gesto de esconder
o rosto (pr<;>ibição de olhar para as flautas sagradas), gesto também retra- gatú e em Portuguez." RIHGB. p. 112-13; RODRIGUES, Barbosa. "Poranduba
tado, como o notou· Nimuendajú ("Os Tapajós." RA.) nas cariátides da Amazonense!' Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. p. 89 - a
cerâmica de Santarém; b) o louva-deus tem algo de humano na articulação lenda de Tinkuan, a piraíba encantada que come crianças.
tla cabeça: "Les autres (bestioles) ne peuvent que voir, celles-ci peuvent 106 f: só neste ponto que não concordamos oom JENSEN (Mythes et cultes
regarder" (CAILL01s. Op. cit. p. 55); c) além da já referida voracidade do · chez les peuPfes primitives. p. 121), pois ele acha que não se pode fazer
inseto, "le felin des insectes" (ld., ibid. p. 58) é dec.apitado e devorado pela : um paralelo com o Antigo Testamento, pelo fato de os primitivos não verem
fêmea durante o acasalamento (p. 61). o estado anterior à "queda" como paradisíaco. De fato, é só quando, com
102 Caillois reproduz um mito esquimó, recolhido em 1884 por Holm, na o desenvolvimento de uma ideologia salvacionista e com o protelamento do
Groenlâhdia oriental, sobre uma "Giftmãdchen" ou "pucelle vénimeuse", "sacrifício" post-mortem (como já falamos em outra parte e como aliás
tão bela que o amante desfalece vária8 vezes ao ir a seu encontro, sendo se apresenta o paraíso nas· concepções Yanonami, que certamente não sofre'.'
finalmente literalmente co~umido ao abraçar a sua amada (Op. cit. p. 72- ram influências cristãs, apesar disso), que o estado inicial (anterior à queda)
-74). Ao tema se ligam, além do motivo .da "vagina dentada", também os se apresenta como "paradisíaco" (sempre também levando em conta o que
mitos de mulheres-vampiros (les "Empuses''). "Dans l'Inde védique, le a cultura considera como prazeres eternos ... ) .
thême est plus proprement magique: la vierge vénimeuse est une poupée Mas não consideramos, como Jensen, o mito do paraíso do Antigo
animée par un sorcier" (p. 76), o que nos faz pensar no modo como a Testamento como inautêntico, porque já se encontra "transformado"; "La
história da mulher de madeira aparece no texto do Popol-Wuh. transformation des mythes primordiaux en histoires de paradis est donc
108..Pensamos que não há necessariamente influência africana nesse conto d'abord un processus historique culturel qui leur fait perdre leur sens originei
mfantil. NC>Sso índio também conhecia o· visgo como armadilha de pássaro ... par acceri.tuation des traits fabuleux" (p~ 124').
10• Diadue é ela própria o antídoto para as picadas de cobras e toda sorte Não cremos que .se po~sa encontrar hoje em dia nem ao menos um
de animais venenosos que surgem das cinzas de Ualri (STRADELLI. "La mito que já não tenha sido transformado pelo ·processo histórico, como aliás
Leggenda dei Jurupary" e Outras Lendas Amazónicas. p. 26). A mesma estamos tentando mostrar neste trabalho. Ou todos os mitos são autêntjcos
idéia encontramos entre os Mawé (PEREIRA, Nunes. Os lndios Maués. p. ou nenhum o é... e
163). f: possível que haja alguma explicação lógica para uma crença tão 101 Já mostramos atrás como essa má educação é identificada, de certa
generalizada~ Lemos uma vez que, na falta de um soro anti-ofídico, um forma, com o tipo de vida makú. Há um detalhe que nos parece importante
missionário ou viajante (cujo ·nome não nos ocorre no momento) passou neste sentido. Vimos que em vários mitos o "ser terrível" ou seus equivalentes
a correr o mais que pôde, para excitar ao ~áximo a exsudação e o ritmo são definidos pela sua voracidade (como o Nahakoboni · warrau que é um
cardíaco, conseguindo sobreviver. . velho comilão, como as crianças glutonas transformada8 em periquitos ou
105 V., por exemplo, "Origem de Piripirioca." AMORIM. 'tLendas em Nheên- ainda a "femme folle de miei", que, associada à "pucelle vénimeuse", agora
362 CAP. XIII - A "LEOGENDA DEL JURUPARY" DE STRADELLI A "LEGGENDA DEL JURUPARY
0
DE STRADELLI 363

por Giácone. Mulher perigosa, porque Jurupari, tomado casto Parece ser precisamente o mito das Amazonas. 110
pelo sacerdócio, vê nela a "pucelle vénimeuse" que o transformará Poder-se-ia perguntar, talvez, se a "revolta dos anjos" não
em serpente ... teve origem exatamente num arcaico "mito das Amazonas" ... u1
Assim, a religião de Jurupari acaba fazendo da mulher uma e se a maloca de Bisíu, ou melhÓr, "Bichiú," 112 não sena o arqué-
nova manifestação do "ser terrível" para os homens: eles a domi- tipo mesmo do inferno cristão ...
nam porque se dominam a si mesmos. E é neste sentido que a
instituição da sociedade dos homens, como os ritos e os mitos que
a fundamentam, são, como Egon Schaden já. escrevia em 1959, 108
um instrumento de dominação da mulher, 109 conservada "estran-
geira", sem a existência de ritos de integração no clã de seu marido,
para que a própria autonomia local se preservasse, como o notou
GoJdman entre os Kobéwa.
Isto quer dizer, por outro lado, que, à medida que se
processam essas transfarmações a que aludimos particularmtnte
nos capítulos XI e XII, a sociedade sofre a sua primeira estratifi-
cação interna em "classes" masculina (e dominante) e feminina
(expulsa, como vimos, da área do sagrado) .
E qual o mito d~ "instituição" dessa expulsão?
aparece mais claramente com a sua característica de "ser terrível"). Ora,
sabemos que, ao nível de bando, de coletores nômades, os períodos de
escassez, em que o grupo se sustenta com uma dieta que um sedentário 110 Não é somente na Grécia Antiga e na América do Sul que existe o
provavelmente já não suportaria, determinam como conseqüência uma ver- mito das Amazonas. Ao menos, não é só na Amazônia que ocorre a tradição
dadeira atitude orgiástica quando se obtém uma caça mais abundante. LÉ.VI- de que os instrumentos sagrados já estiveram em mãos das mulheres:
-STRAuss (Trisies tropiques. p. 280, da tradução alemã) nos fala dessa fome "It is a general Aranda belief that the small bull-roarer ("namatuna")
entre os Nambikuara, e RUGENDAS (Viaje Pintoresco... p. 52) escreve now used for winning the love of the alknarintja women was originally owned
sobre os Botocudos: " .. . soportan perfectamente el hambre y la sed, y by the alknarintja women them selves". RoHEIM. The Eternal Ones o/ the
resitem a las mayores fatigas. Mas si su resistencia es grande en caso de , Dreams: a psychoanalytic interpretation of Australian myth and ritual. p. 175.
necessidad, su voracidad igualmente no conoce límites: con excepción de los Além disso, certos ritos (geralmente chamados "de fecundidade") exi-
más duros, comem cuantos animales abaten". gem das mulheres um comportamento que implica numa verdadeira teatrali-
Percebe-se assim que também aí temos uma convergência de idéias: zação das amazonas e que lembram os ritos orgiásticos ligados ao culto de
a voracidade é condenada, não só no sentido figurado, como também no Artémis na Grécia Antiga (GERNET. Anthropologie de la Grece Antique.
sentido concreto, como atitude incivilizada. p. 65); PEUCKERT ( Geheim Kulte. p. 243 et seqs.) fala de certos · cultos
108 ScHADEN. A Mitologia Heróica de Tribos Indígenas do Brasil. p. 157. secretos femininos da Alemanha, que chegaram até o século XIX; GLUCK·
109 Na prática, a mulher goza de grande autonomia no Uaupés, como já o MANN. ("Order and Rebellion in Tribal Africa." p. 113) refere-se ao rito
havia notado COUDREAU (La France equinoxiale. t. II, p. 174) e Pe. Nomkubulwana (Zulu) que requer das mulheres e m~as um comportamento
Alcionilio informa (A Civilização Indígena do Uaupés. Nota 100, p. 465) obsceno. Durante o rito, fazem os serviços dos homens, cantam canções
que não faz muito houve uma tuxáua ("Cari" de Piracuara, filha de tuxáua proibidas e os homens as temem; finalmente PRZLUSKI (La grande deésse.
e que nunca se casou) no Rio Papuri. Trata-se, contudo, de tribo tukano, p. 91-92) lembra que Ishtar é reprovada e recusada por Gilgamesh, uma
já na Colúmbia. (Provavelmente não se o admitiria na área de influência atitude que estabelece uma aproximação entre este herói e o Jurupari d·a
tariâna.) Entre os Aruák das Guianas (com matrilocalidade, exceto para "leggend a " ...
111 Lúcifer ("que traz a luz") não parece um nome muito impróprio para
os filhos de chefes, sendo patrilineares), a influência da mulher é muito
grande. :e. compreensível que, tomando-se invasores (na época de Buopé) uma "rainha das amazonas".
e exógamos de tribo, os Tariâna tenham procurado reagir a uma influência 112 Grafia de COUDREAU. V . La France equinoxiale. p. 195: As mulheres
feminina. (Sobre os Aruák, V. FERNANDES, E. "Contribuição ao Estudo do que viram um macacaráua ficam, apó5 a morte, em uma espécie de "inferno
Grupo Aruák." Acta Americana.) suportável", a meio caminho do "céu" de Jurupari: é a cabana de "Bichiú" ...
CONCLUSÕES 365

-anormais-gêmeas, certamente encaradas como predestinadas ao


sacrifício, por parte de nossas populações nômades . .. ) . A ino-
cência da criança parece propiciá-la a um rito de impregnaçã~ ri-
tual de impurezas, representando ela, além disso, um elemento
CONCLUSÕES ainda não produtivo, de que o grupo não depende para sua subsis-
tência. (O sacrifício, ao contrário, de adultos, nessas condições,
poderia representar uma atitude verdadeiramente suicida·. )
5) No rito sacrificial consumado com a imolação de uma pes-
soa, a pessoa desaparecendo efetivamente do convívio dos seus,
1) Pelo que sabemos, através da História das religiões e a única forma dela não desaparecer inteiramente (pois a sua niili-
através das representações de primitivos históricos, uma idéia que ficação seria, por assim dizer, a anulação do próprio sacrifício) é
parece presente em todas as culturas é a da re~iprocidade das rel~­ a sua volta periódica, como corpo astral.
ções entre o grupo ·humano e o mundo extenor: mundo dos ani-
mais, das plantas, mundo dos mortos, mundo sobr~n~t~ral em 6) Não foi necessário o advento da agricultura para que o
geral, incluindo o mundo dos inimigos, mundos esses tn1c1alm~nte homem compreendesse a importância das estações, com suas asso-
todos confundidos em um só, como bem se sente ao ler mitos ciações astronômicas. (Os Nambikuara, por exemplo, não praticam
como o da "Viagem. de aventuras" krahó. (ScHULTZ. "Lendas a agricultura e têm um verdadeiro calendário baseado nas estações
dos lndios Krahó." RMP. p. 123) . de amadurecimento dos frutos que coletam·... ) A sucessão de
estações frias e quentes, estações secas e chuvosas, o amadureci-
2) A necessidade de manter um equilíbrio nas relações entre mento dos frutos silvestres, já haviam condicionado, muito antes
o grupo e este mundo exterior parece estar à base de todas ~s do homem aparecer .na superfície terrestre, o ciclo de reprodução,
representações mágico-religiosas; e os ritos decorrentes são a pn- de acasalamento ou de hibernação dos animais, de nidificação e
meira tentativa de estabelecer uma certa proteção para o grupo, migração das aves, dos hábitos de certos animais andarem sozi-
através de sacrifícios humanos que funcionam como verdadeiros nhos ou em manadas (como vimos, por exemplo, ·em relação aos
"bodes expiatórios" das dívidas do restante do grupo para com porcos selvagen~. V. p. 237 nota 63 ) , etc. Não é difícil perceber-
os "senhores" ou forças do mundo exterior. Daí decorre por -se assim por que certas constelações têm, entre povos muito
vezes uma incrível semelhança de representações entre as caracte- diversos, conotações fundamentadas em mitos semelhantes.
rísticas de mitos e ritos de povos muito distanciados entre si no
tempo e .no espaço. 7) Cremos que não se. erraria muito ao aventar a possibili-
dade . dos sete anões da Branca de Neve representarem a última
3) Esses sacrifícios devem ter existido desde o paleolítico, transformação dos . sete meninos gulosos e barulhentos (sem dú-
embora, certamente, nas regiões ou em períodos em que a morta- vida sacrificados) que, na América, se transformam nos Periquitos
lidade natural (provocada pelos inimigos ou pelas feras) tenha ou nas Plêiades (V. p. 184); ou que a únic.a onça que escapou,.
sido anormalmente grande, é possível que não houvesse uma insti- embora sem uma das patas, nos nossos mitos dos heróis gêmeos
tuição do sacrifício (e ele fosse mais esporádico) . Assim mesmo (e em que facilmente se pode reconhecer um dos Ahpu - sete
pode ser que, justamente nestas condições, riuma ·o u noutra cultura, em um - do Popol-Wuh) deve .corresponder ao único irmão-cisne
se tenha tido a idéia de instituir um sacrifício com todos os re- que não conseguiu escapar "inteiro" (ficou com uma asa de cisne
quintes e suntuosidades, exatamente para "distrair" a ~tenção para em vez de braço) na história de Andersen em que a boa irmã
este "bode expiatório", dos senhores do mundo extenor, que as- tece, para salvar os irmãos transformados, camisas de u~igas do
sim deixariam o resto do grupo viver em paz. cemitério. (Sem que se admita para este conto folclónco. uma
4) As pessoas sacrificadas parecem ter sido de preferência origem em . antiqüíssimos ritos sacrificiais, dificilmente se entenderá
crianças (lembremos das urnas diaguitas, do sacrifício do primo- suas características particularmente macabras.) paí também a in-
gênito em culturas andinas tanto quanto no Velho Testamento, crível semelhança entre passagens como as da Skik escapando de
do infanticídio ritual, particularmente de crianças excepcionais- sér morta, mediante a apresentação de uma víscera falsa, e a his-
366 CONCLUSÕES CONCLUSÕES 367

tória da Branca de Neve, e de ambas com o mito de Proserpine especialmente feroz, que passa a canalizar as funções de "senhor-
(o fruto proibido ou envenenado) . Ou a semelhança entre a · -de-todos-os-animais". :E: possível que esta centralização (que não
" mulher de madeira" do Alto Xingu, sendo devorada por uma se nota, por exemplo, nos mitos e ritos yanonâmi) corresponda à
falsa mãe ou falsa sogra (a mãe das onças), e "Chapeuzinho própria passagem da sociedade do nível de bando para o de tribo.
Vermelho", sendo devorada por uma falsa avó (o lobo). A expli- Na América Central e do Sul, esta evolução ocorreu num período
cação psicanalítica, tentada por E. Fromm (A Linguagem Esque- bem remoto e deu origem a uma religião que deu um destaque
cida. p. 169-73), dificilmente explicará por que mitos deste tipo especial à figura do felino, caracterizando toda a área desde a da
constituem justamente o núcleo, o cerne das religiões primitivas. civilização Olmeca, "descendo" ao longo dos Andes, até a área
de Tiahuanaco.
8) Uma das primeiras, senão a primeira forma de substitui-
ção da morte efetiva com imolação da vítima, corresponde igual-
10) A evolução deste culto para uma verdadeira religião
mente à primeira forma de "troca", estabelecida com tribos inimi- com a solarização do jaguar, efetivamente só a permitiu a sedenta-
gas, pois à matança inexorável dos homens freqüentemente corres- rização da população, a estratificação conseqüente, só possível com
o estabelecimento e desenvolvimento da agricultura, e que faz apa-
ponde uma violação coletiva da mulher, a quem por vezes se deixa
a vida, reduzindo-a à condição de prostituta do grupo. Esta substi- recer também uma classe sacerdotal (o complexo sacerdote-tem-
tuição de morte pelo coito é o primeiro e bárbaro passo para uma plo-ídolo) . A intensificação desse processo de evolução justamente
futura exogamia. Esta mulher, a "mulher dos bichos" se torna a partir da América Central deve-se possivelmente tanto quanto ·às
assim a divindade-dema por excelência, o que implica numa im- condições climáticas ou à existência de determinadas espécies ve-
portância muito grande da mulher na religião, nesta fase . As re- geta}~' ou ainda a aportes de novas vagas de migrações vindas pelo
presentações mentais dos Desâna correspondem, em linhas gerais, Pacifico (a que Meggers, conforme Sanders e Marino Pré-His-
a este estágio de evolução do rito, embora ele já tenha sido substi- tória do Novo ~undo. p. 64, parece admitir, por exe~plo, para
tuído, como vimos, em parte, por outro tipo de negociações do a cultura ceramista de caçadores-coletores de Valdívia, entre 3200
pajé com "Waí-maxse". Assim mesmo, ainda persiste no Uaupés, ª. 1000 a.C.), também à própria configuração geográfica da Amé-
durante os dabucuris, o rito primitivo sob a forma de incesto das nca Central, formando um verdadeiro funil, para o qual foram
mulheres com homens do próprio clã, que certamente representam automaticamente empurradas as sucessivas vagas humanas que to-
nesta hora (imbuídos do espírito do jaguar) o próprio "ser terrí- maram o sentido geral norte-sul, à medida que foram sendo obri-
vel". Sem falar na boneca feita de ingá e colocada em cima do gadas a deslocar-se, pela chegada de novos contingentes que cru-
monte dessas frutas feita pelos Kobéwa num dabucuri de fruta e zavam o estreito de Behring. Forçosamente, o contato maior entre
que Koch-Grünberg viu sendo desmanchada nos ritos (Zwei Jah- populações diferentes decorrente desse verdadeiro "congestiona-
re ·. . . B~nd 1, ~· 8'}). À luz do sim?olismo desâna compreende-se, mento de trânsito" no istmo deve ter apressado transformações
pois, a 1mportanc1a enorme que tiveram certos ritos do Velho que, em outras áreas só em épocas post-colombianas, hoje em
Mundo, como o coito ritual com animais que caracterirou parti- dia ainda estão ocorrendo ou estão por ocorrer ...
cularmente a religião assírio-babilônica. (Afinal, Nemrod foi o (Outros problemas do " como" e "por que" da pré-história
grande caçador da Antigüidade. . . justifica-se, portanto, que os americana foram examinados por Sanders e ~·arino. Op. cit.
favores recebidos dos "senhores-dos-animais" fossem retribuídos p. 163 et seqs.)
pelo grupo humano, mediante favores sexuais. . . " matar es co- 11 ) Dessas culturas mesa-americanas e andinas mais adian-
habitar" diz o Desâna .. . ) tadas, as primeiras irradiações coincidem possivelmente, em alguns
9) Dos vários "senhores-de-animais'' (ainda presentes nos lugares mais afastados da América do Sul, com o próprio povoa-
ritos e nomes das flautas sagradas do Uaupés) de que depende o mento; em outros lugares, passaram a modificar as populações
ho~e~, se~pre há um mais importante, que é, por vezes, o da muito primitivas de caçadores nômades que entraram na América
espeete. mais caçada ou da qual o grupo mais depende ou, ainda. do Sul, com as primeiras vagas humanas que atravessaram b istmo.
o que mais sai prejudicado com a concorrência humana. As aten- Migrações e influências da área andina para leste nunca deixaram
ções podem, no entanto, também ser centralizadas em um animal de existir e são certamente responsáveis por representações religio-
368 CONCLUSÕES CONCLUSÕE S 369

sas como .as dos Desâna (solarização do jaguar, solarização da jê ( de que vimos exemplos na mitologia dos Krahó), "defende-
"mulher dos bichos") . . . ram-se" das representações míticas aruák, desenvolvendo um intenso
xamanismo. As técnicas xamanísticas das Guianas parecem impli-
12) A uma J>enetração possivelmente mais lenta, mais pau- car numa tentativa de identificação do xamã com o próprio "ser
latina, na Bacia Amazônica, dessas influências andinas, parece terrível" ( transformação em onça ), procurando se esquivar dos
corresponder uma penetração, a partir de culturas pré-incaicas do perigos (que coincidem, em linhas gerais com os que os heróis de
Tiahuanaco, através da Bolívia, particularmente, de ritos e mitos "Viagem de Aventuras" krahó enfrentam e com os que enfrenta
centralizados no dos heróis gêmeos filhos da onça. Muito prova- no.s mitos aruák o próprio "ser terrível", Ahpu, no mundo subter-
velmente devem ser procuradas aí certas semelhanças surpreen- râneo); além de sua transformação em xamã-"ser terrível" possi-
dentes entre as representações míticas dos Tupi (que parecem ter bilitar-lhe combater, de igual para igual, o próprio "ser terrível"
sido os "difusores" do mito dos gêmeos) e representações certa- personificado em outro xamã. Essa luta assume uma forma mecâ-
mente comuns ao período formativo centro-americano, que se es- nica e exteriorizada (se podemos falar assim). Os perigos de
pelham nos primeiros períodos da criação no Popol-Wuh, além sucu mbir nesta luta não são contudo excluídos. . . A solução
de certas semelhanças curiosas entre as crenças e ritos tupinambá do problema entre outros grupos, politicamente mais ao nível de
e os dos astecas. bando do que de tribo, e que vivem em maior isolamento e de
13) O modo como o mito dos gêmeos foi integrado pelas fo rma mais pacífica em relação às tribos vizinhas (ainda que mais
populações indígenas brasileiras mostra que uma solarização da por medo do que por outra razão) pode passar a girar em torno
onça não foi comum às tribos brasileiras. A integração depende do problen1a de quem terá que ser sacrificado ao "ser terrível'',
das condições econômico-sociais, da organização política dos gru- e implica por vezes numa verdadeira interiorização do problenia,
pos que recebem o mito. As vezes, a figura de "Tezcatlipoca" devendo estar à base dos fenômenos ditos "totêmicos", como já
(lembremos o mito de Viti-Vití, p. 93) parece realmente ter sido o havia sugerido R adcliffe- Brown (citado por E. Schaden, A Mito-
identificada com a cultura estrangeira que estendeu sua área de logia H eróica . .. p. 75): "O totemismo não é outra coisa senão
influência ou chegou a penetrar através de algum contingente parte do problema mais a1nplo da relação entre o homem e a
populacional diretamente no Brasil, e foi assim rechaçada. Vemos natureza no rito e no mi to".
também que no Alto Xingu nega-se em algumas versões (como, 16) De qualquer fo rma, as invasões aruák e particularmente
por exemplo, na versão kuikuro publicada pelos irmãos Villas a tariâna trazem para a América do Sul representações que se
Boas. Xingu, os lndios, seus Mitos. p. 69), um parentesco real originaram ta nto na América Central como no Noroeste da Amé-
dos ancestrais com a onça; e em outras (como dissemos no capí- rica do Sul, e em que se sobressai uma divindade fem ini na (certa-
tulo VI, p. 93 et seq$.), esta parece ser identificada antes com a mente resultante dos sacrifícios humanos) , Amana ou Seucy.
representação da população nômade ou do estágio de cultura nô- 17) Esta divindade feminina passa a ser neutralizada e, po-
made, de que o mito parece simbolizar o fim. de-se dizer, expulsa do panteon dos deuses, pela religião de Juru-
14) Algumas das populações aruák, ·cuja pátria de origem pari. Isto corresponde a uma necessidade de homogeneização da
costuma ser apontada como sendo a Venezuela (V. SANDERS e cultura com as outras tribos para possibilitar a paz inter-tribal
MARINO. Op. cit. p. 146) , tendo posteriormente emigrado para as necessária ao novo género de vida sedentário que se instala; ao
Antilhas, refluindo daí para a América do Sul, devem ter partici- mesmo tempo, a mulher, sendo identificada como inimigo n. 0 J
pado, antes de sua emigração, das representações míticas que re- generalizado pela sociedade dos homens, permite (através da ma-
fletem os relatos das primeiras Criações do niundo, no Popol~Wuh; nutenção como eternas estrangeiras das que entram no gru po pelo
caso contrário, dificilmente se poderia explicar a difusão de temas casamento.) uma defesa da autonomia local. Ao mesmo tempo ,
míticos como o da lenda de "Ometanimpe, os transformados", de as trocas com o ''ser terrível" passam a se subdividir, se podemo!:>
que falamos atrás. dizer assün, en1 setor profano, nos dabucuris que visam particular-
15) As tribos Karibe, antropófagas e guerreiras, com repre- ·rr1ente trocas de mulheres e de produtos com as tribos ou clãs
sentações míticas possivelmente não muito diversas das populações exógamos vizinhos; e setor sagrado. os dabucuris de J uru pari.
370 CONCLUSÕES CONCLUSÕES 371

propriamente ditos ; e em certos grupos como o dos Kobéwa, en1 o~ Toltecas ~aviam começado por transformar as antigas concep-
que já se havia desenvolvido um culto aos antepassados, essas çoes, e o mito de Quetzalcoatl lhes é anterior ainda.
trocas incluem, nos ritos funerários, as complexas cerimônias do Mas, qual foi essa transformação? Se nos lembrarmos das
óyne, descritas por Goldman. ( The Cubeo. . . p. 219 et seqs. ) figuras do lado direito e do lado esquerdo de Cristo crucificado,
É curioso como essas formas diferentes de integração do talvez a compreendamos mais facilmente. Porque, antes e depois
mito dos gémeos parecem ecos distantes de uma luta que se tra- de Cristo, antes e depois de Quetzalcoatl, o "mau ladrão" mata
vou entre Quetzalcoatl e Tezcatlipoca, nos relatos do Popol-Wuh, 1 o "bom ladrão" e vice-versa, em nome de uma coisa ou de outra.
luta que representa, como o sugerem Sanders e Marino, também O auto-sacrifício une no centro Tezcatlipoca e Quetzalcoatl, mas
a luta entre uma cultura pacífica (voltada sobre si mesma) e outra ao mesmo tempo seu desdobramento nos gêmeos faz surgir Huitzi-
guerreira que se forma na expansão tolteca: lopochtli (o Sol que exige sangue, renovação do sacrifício; o sa-
cerdote que sacrifica) e Xipe-Totec ("Nuestro Seiíor el desolla-
"Durante o Formativo Final) a fronteira noroeste da Meso-Amé- do"). Em outras palavras, é a "história dos gémeos" exteriori-
rica foi ocupada por agricultores sedentários e a população atingiu zand? o conflito interno, sob o signo do movimento, trazendo
um nível suficiente para permitir aventuras rnilitares do tipo assi- consigo, contudo, por um lado, a guerra florida e os rituais antro-
nalado no final do Clássico. A luta épica entre os nativos e os pofágic?s e, por outro, um contato maior com outros grupos e a
invasores foi imortalizada em mitos Astecas ulteriores como exogam1a.
uma luta entre duas religiões, uma liderada pelo rei-sacerdote Mas, neste caso, a interiorização do conflito pode, de certa
Q uetzalcoatl e a outra pelo chefe-guerreiro Tezcatlipoca, os quais
forma, ser a~roximada do processo de isolamento, da endogamia
se con verteram ambos em deuses no panteão A steca" . ~
e da endofagia (se não da própria endofagia de cinzas, ao menos
de uma espécie de endofagia simbólica em geral).
Quetzalcoatl perde essa luta, vira bandido e herege, o louco
H á um detalhe muito curioso no mito de Quetzalcoatl. Em
que sonha com a síntese antes da hora; uma hora que sempre
foge da humanidade presente para o espaço sideral ; os lados do sua peregrinação para Tlapallan, acompanha-o um cortejo de anões
e corcundas. ~ Sabemos bem que o isolamento e a endogamia
triângulo constituindo forçosamente duas paralelas que se encon-
prolongada têm por efeito muitas vezes a preservação de muta-
tram no infinito ... ções e a acentuação de determinados genes recessivos; em popula-
Aliás, a luta interiorizada de Quetzalcoatl, que termina com ções de maior mobilidade, que permutam mais intensamente genes
a auto-imolação, só poderia ter sido representada inicialmente por com outras populações, a incidência de deformações é menor. :É
um triângulo e não por uma cruz: Quetzalcoatl, imolando seu evidente que essas deformações deviam ter tido, ao tempo em que
aspecto sinistro Tezcatlipoca dentro de si mesmo, só pode deter- se formou o mito de Quetzalcoatl, uma significação que hoje nos
minar a convergência de .dois extremos, formadora de um triângulo, escapa. Para o povo de Colima, por exemplo, certamente tinham
simbolizada antes na barba de Quetzalcoatl (que tanto intrigou uma significação toda especial, porque é freqüente a representação
Heyerdahl) e não na cruz. de anões 4 corcundas, na cerâmica desta área cultural do oeste
E, como foi uma tríade de ancestrais a que deixou Tula, mexicano. 5 Não é de todo impossível que se visse neles uma ré-
carregando seus deuses e finalmente internando-se nas florestas, plica de Huehueteotl, o velho deus, curvado sob o peso do mundo
isto não poderia indicar que os mais fiéis seguidores da religião às suas costas. Assim o vemos representado num jarro-retrato do
antiga não se conformaram com a nova ideologia contida no sím- 3 l d., ibid. p. 29 ... ("Seine Diener, welche Bucklige und Zwerge waren" ... ) .
bolo do 4 e da cruz? Se assim foi, isto confirma apenas que já 4 Achamos que podemos identificar as representações como sendo de anões
P?rque, comparadas com as de outros personagens, têm corpo despropor-
l K u NIKE (Azrekische M iirc/1e11. p. i6-26) traduziu para o alemão alguns cionalmente grande em relação aos braços bem curtos e pernas além de
textos de Sahagli n em que s~ cont a a luta do feiticeiro Titlacauan contra curtas, numa das figuras, desproporcionalmente grossas (nanismo acondro-
Quetzalcoatl. "Titl acauan" é apenas um outro nome de Tezcatlipoca (Op . plásico, no caso ) .
cit. p. 57 ). oi WINNING and STENDAHL. Pre Columbían Art of Mexico and Central Ame-
2 Jd., ibid. p. 106. ríca. p. 96-97.
372 CONCLUSÕES CONCLUSÕES 373

período clássico de Vera-Cruz, tendo o artista representado a identificar como heresia? O desejo de uma totalização precoce,
parte mais bojuda do vaso justamente como uma corcunda do
corpo de Huehueteotl. 6 Os próprios deuses do calendário Maia
,, antes que transcorresse o tempo suficiente para uma convergência
de toda a humanidade para o ponto ômega? Não reconheceram
não eram representados curvados sob o peso do grande fardo eles a vinda do quinto Sol, 13 e queriam que o "verdadeiro" Sol
que levavam, às costas, i para a eternidade? voltasse pelo oriente, após sua imolação na pira funerária, sem
O que tem isso a ver com a América do Sul? Talvez nada. perceber que o "verdadeiro Sol" nunca poderia voltar de qualquer
É possível que seja simples coincidência, puro acaso. . . ainda um dos pontos cardeais, mas tão-somente do centro, ocupado
assim, é bem curioso que a única população pigméia e pigmóide 'I indevidamente, na época dos Astecas, por Huitzilopochtli?
da América do Sul (justamente os Maraká e os Motilón, estes j
;
De qualquer forma, como Warimi, devem ter padecido na
últimos usando barba como em muitas representações a usa Quet- solução de um problema, solução apresentada pelo mito asteca
zalcoatl s) se encontre numa região 9 que, se seguirmos as indica- como negativa, até certo ponto (com o desaparecimento dos an-
ções do texto mítico de Sahagún a que nos referimos, tem certa cestrais de uma raça presa nas árvores, transformados em pedras,
probabilidade de estar no caminho percorrido por Quetzalcoatl, inaugurando, contudo, uma nova era) ; e pelo mito tirió, como
após sua saída de Tula. (É apenas um detalhe curioso que nos um impasse só solucionado pelo aparecimento das artes mágico-
ocorreu. 1 º) -religiosas. . . como no mito de Warimi.
Por outro lado, se são hereges por não compreenderem o
signo do movimento os três ancestrais, Tohil, Awilis e Hakawic,
que saíram de Tula, porque estavam cansados de esperar ali pelo
Sol, atravessaram o mar e, após muitas privações, chegaram à Partindo do problema da reciprocidade, do equilíbrio a ser
serra de três cumes, 11 onde se detiveram e continuaram a esperar restabelecido, do sacrifício primevo, analisamos uma série de ati-
pelo Sol, 1 2 sendo finalmente transformados em pedras, que ~stra­ tudes diferentes, face à sua solução. Umas refletindo o relativo
isolamento do grupo, levando a uma endofagia (em sentido con-
nhas oposições se escondem atrás disso? Eram os pacíficos auto-
creto e simbólico), mas que pode tomar mil formas, entre grupos
res dos alinhamentos de pedra da fase Aruã (sem dúvida os mes-
nômades de coletores e entre grupos mais sedentários, agricultores
mos Ometanimpe do mito recolhido por Frikel) uma seita que se formando comunidades numerosas e pacíficas. Outras, refletindo
preservou fiel a Quetzalcoatl em sua concepção mais sagrada e uma atitude de agressão e hostilidade com os grupos vizinhos, le-
mais humana, de deus em luta consigo mesmo? Neste caso, o que vando a um exocanibalismo, estas por demais conhecidas da c1v1-
significa a impaciência deles pela volta do Sol, que o mito parece lização ocidental, para que se precise exemplificar. 14
6 Id., ibid. p. 179. Qual delas é mais trágica?
7 O modo de carregar vasos de água e fardos às costas, geralmente afixados
por uma tira, passando pela testa, é comum na América do Sul, entre os is O quinto Sol é Huitzilopochtli, a personificação asteca de Quetzalcoatl,
indígenas em geral. a solarização do "ser terrível", em seu aspecto mais sanguinário. Esta
8 V. R.IVET, P. As Origens do Homem Americano. p. 97. Fotografias de concepção já deveria ser familiar aos Toltecas (naturalmente sob outro
Bolinder (Pranchas XIII a XV). nome), pois estes também foram conquistadores.
9 Serra de Perijá (Colômbia). O mito menciona uma longa peregrinação 14 E rião só em sentido figurado. . . Ao mesmo tempo que o europeu do
através de deserto e altas montanhas muito frias ... século XVI se horrorizava com a antropofagia do índio americano, cenas
10 F, apenas um detalhe curioso que nos ocorreu e pode nada ter a ver com muito mais dantescas que a morte ritual entre os Tupinambá poderia for-
populações colombianas. Quem sabe, contudo, se o mito de Quetzalcoatl necer desenrolavam-se na "civilizada" França das guerras de religião. É
não sofreu alguma influência das concepções do povo de Colima? Jean de Lery que o lembra: "Sou francez e peza-me dizei-o: mas que vimos
1 1 Não será por acaso este monte com três cumes ("Der Berg scheint dreí em França durante a sanguinosa tragédia iniciada a 24 de agosto de 1572?
Wipfel zu haben ... " SCHULTZ, W. Einleitung in das Popol-Wuh. p. 43) , A gordura das victimas trucidadas em Lião de modo muito mais bárbaro
relacionado com a mística do triângulo ou da trindade? que o usado pelos índios, não foi publicamente leiloada e adjudicada ao .
1 2 A última fase do mito azteca corresponde perfeitamente à "lenda de maior lançador? O figa do e o coração de muitas victimas não foram comidos .
Ometanimpe, os transformados'', como já mostramos em outra parte do por furiosos assassinos de que os infernos se· horrorizam?" LERY. História
trabalho. de uma Viagem à Terra do Brasil. p. 167.
374 CONCLUSÕES

A do Asteca, que sacrifica seu alter ego na pessoa do escravo


e se acredita remido porque, vestindo a pele da vítima, se julga
transformado em Xipe-Totec?
A do missionário que se julga dono da verdade absoluta por-
que se acha redimido por Cristo, mas vê no seu gêmeo pagão BIBLIOGRAFIA
seu alter ego que será sacrificado, se ele não tentar "salvá-lo",
numa atitude que não difere da dos apologistas da "civilização" Abreviaturas de periódicos citados
e do "progresso" que o homem branco julga representar, e que
julga ser a única salvação para o indígena (esquecendo-se que
para isso, de certa forma, ele terá que trocar de pele)? BMPEG - Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi - Belém-
~ará ·
Talvez mais dolorosa ainda seja a nossa civilização que subs-
tituiu o velho deus pela técnica, personificada em um bombeiro JAI - The Journal of the Royal Anthropological Institute of
a apagar as chamas que um monge budista ata às vestes em pro- Great Britain and Ireland
testo contra a guerra. JSAP - Journal de la Société des Americanistes de Paris
Em face disso ficam mais realçadas a humanidade e humildade RA - Revista de Antropologia - São Paulo
de Warimi, o homem amargo. Sabe que não resolverá tão cedo RCA - Revista Colombiana de Antropologia - Bogotá
seu conflito com Meni-Hikaniké. . . Passa a lutar na própria ter..: RIEB - Revista do Instituto de Estudos Brasileiros - São Paulo
ra, como homem que é (e não deus) . É verdade, que se torna RIHGB - Revista do Instituto Histórico, Geográfico e Eth. do
pajé, mas talvez não faça mal um pouco de magia ... desde que Brasil - Rio de Janeiro
moderada. Neste caso, não apresentará o desespero de certas RMP - Revista do Museu Paulista - São Paulo
seitas que vemos ressurgir 15 e que voltam a resolver seus proble- ZE - Zeitschrift für Ethnologie - Berlin
mas diretamente com o "ser terrível", da mesma forma como fa-
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11. Sintaxe Transformacional do Modo Verbal
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12. Byron Do Brasil: Traduções
Onédia Célia de Carvalho Barboza
13. Nivels de Sianificação DO Romance
Y ara Frateschi Vieira
· 14.,, Epilepsia e Personalidade
Lúcia Maria Salvia Coelho
15. Crônlca do Cinema Paulistano
Maria Rita Eliezer Galvão
16. Psicologia e Profissão em São Paulo
Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai Sylvia Leser de Mello
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17. Teoria, Retórica, Ideologia 33. Cassacos e Corumbas
João Paulo Monteiro Maria Teresa Sales de Melo Suarez
18. O Espírito e a Letra 34. A Integração do Negro na Sociedade de Classe
Rubens Rodrigues Torres Filho Florestan Fernandes
19. Preconceito de Cor e a Mulata na Literatura Brasileira 35. Trabalho Domesticado
Teófilo de Queiroz Júnior Eva Alterman Blay
20. Lima Barreto e o Espaço Romanesco 36. Os Estados Subjetivos
Osman Lins Amo Engelmann
21. Rousseau: Da Teoria à Prática 37. Mitológica Roslana
Luís Roberto Salinas Fortes Walnice Nogueira Galvão
22. A Tradição Sempre Nova 38. A Sociedade Angolana através da Literatura
Roberto de Oliveira Brandão Fernando Augusto A. Mourão
23. Messianismo e Conflito Social 39. Consciência Operária no Brasil
Maurício Vinhas de Queiroz Celso Frederico
24. Desemprego e Subemprego no Brasil 40. As Raízes Ideológicas das Teorias Sociais
Helga Hoffmann Liana Salvia Trindade
25. Marx & Marx 41. Dependência, Cultura e literatura
Luís Alfredo Galvão José Hildebrando Dacanal
26. O Intervalo Semântico 42. A Marca do Leviatã
Carlos Vogt Renato J anine Ribeiro
27. Tradição e Mudança 43. Drummond: Uma Poética do RJsco
Henrique Rattner Iumna Maria Simon
28. ISEB: Fábrica de ldeolo&ias 44. FGTS: Ideologia e Repressão
Caio Navarro de Toledo Vera Lúcia B. Ferrante
29. O Escravismo Colonial 45. Texto, Critica, Escritura
Jacob Gorender Leyla Perrone-Moisés
30. Ideologia da Cultura Brasileira 46. Benjamin & Adorno: Confrontos
Carlos Guilherme Mota Flávio René Kothe
31. João Francisco LJsboa 47. O Narrador Ensimesmado
Maria de Lourdes Monaco J anotti Maria Lúcia Dai Farra
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Zenir Campos Reis Wendel Santos
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Celso Lafer

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Thales de Azevedo

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Rubem A. Alves

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Sonia A. Siqueira

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Lili Katsuco Kawamura

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· Lia Freitas G. Fukui
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Leon Kossovitch
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Michel Lahud i!
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