CENTRO DE ESTUDOS ANGLICANOS – CEA
“Dominus Iesus” de Ratzinger não é com certeza o Senhor
Jesus,
o Filho de Deus presente na Igreja -
Considerações sobre o documento “Dominus Iesus”
Lauri José Wollmann *
1. O primeiro momento
Diante de cada novidade que surge, podemos observar diferentes
reações. O documento “Dominus Iesus” não escapou desta regra. Os meios
de comunicação, de modo especial jornais escritos, tiveram um papel
significativo na divulgação do documento.
Para muita gente foi como ser acordado com violência, no momento
exato em que se estava sonhando o sonho do ecumenismo. “Novo milênio
sem exclusões”, plebiscitos e tantas outras realidades. Tudo parecia estar
mais palpável. Até mesmo o clima criado em torno das olimpíadas contribuía
para visualizar a possibilidade de que a Unidade é possível. Mas o anúncio da
nova ordem soou como um tiro de pistola em meio a um suave concerto.
As reações iniciais foram variadas: indignações, revoltas e também de
desconforto por parte de alguns setores atingidos dentro de sua própria
casa.
É muito provável que encontremos grupos que passarão a dizer que o
documento tem outros objetivos, que tem caráter mais voltado ao interno da
Igreja Católica Romana. Outros ainda tentarão amenizar, dizendo que o
alcance do documento não é tão grande. Posso até admitir que não terá
efeitos imediatos sobre todas as comunidades. Porém, o documento atinge
brutalmente todos aqueles que se colocaram a serviço do ecumenismo. O
documento, ao enfatizar superioridade da Igreja Católica Romana, enfatiza
justamente aquilo que em nada contribui para a Unidade. Num olhar
retrospectivo, ele representa, no mínimo, a negação de todos os esforços
realizados por igrejas diferentes para alcançar sinais palpáveis e que
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celebram a Unidade, respeitando justamente o que de mais sagrado existe:
a diversidade a serviço da Unidade.
2. Uma análise do texto
Uma leitura mais atenta do documento Dominus Iesus, mesmo sem
pretender avaliar todos os aspectos, revela alguns pontos críticos que
merecem maior cuidado.
1. Chama a atenção do leitor a quantidade de citações (102 notas) de
documentos, o que em princípio não representaria um problema. Contudo,
esta farta fundamentação documentária é tendenciosa, ou seja, utiliza textos
cuidadosamente escolhidos para fundamentar as pretensões do documento.
2. A constituição dogmática Lumen Gentium (LG) do Concílio Vaticano II
representou com toda a certeza um avanço. Animou a muitos. Resgatou a
imagem da Igreja como Povo de Deus e não como “sociedade perfeita”.
Igreja que tem como elo de Unidade Jesus, o Filho de Deus, mediador entre
o Pai e o mundo. Dentro do documento “Dominus Iesus” esta mesma
“Lumen Gentium” é utilizada para garantir e legitimar principalmente que o
“papa” é o sucessor de Pedro. A LG que tinha como ponto focal Jesus Cristo
como mediador entre Deus e seu Povo, a Igreja como instrumento a serviço
do Reino, na argumentação de Ratzinger a Igreja Romana é o Reino. De
anunciadora do Reino passa a ser o Reino (cf. o cap. V no. 18). Deixa,
portanto, de ser instrumento para se tornar fim.
3. Das 102 notas que tem 19 são da Encíclica Redemptoris Missio de João
Paulo II. Este texto em sua proposta original mostrava a missão da Igreja
como instrumento a serviço da Evangelização. Na declaração Dominus Iesus
este texto é colocado como sustentação da exclusividade da missão
conferida à Igreja Romana.
4. Causa estranheza que das 102 notas, apenas uma cita um teólogo deste
século. Trata-se de Leonardo Boff. Podemos situar nesta nota duas
observações: a primeira está diretamente ligada a uma questão de
relacionamento pessoal entre Ratzinger e Boff; a segunda está em
continuidade com a primeira, ou seja, como Ratzinger ocupa cargo que
outrora eliminava pela fogueira todo aquele que ousava pensar de modo
diferente, ainda que teologicamente correto. Como hoje já não é mais
possível simplesmente eliminar os diferentes, este mesmo Ratzinger
“inventa” maneiras de eliminação. O livro “Igreja, Carisma e Poder”, que
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constitui o centro de toda a perseguição de Ratzinger a Leonardo Boff, está
em sintonia com outros teólogos, como Hans Küng, Edward Schillebeeckx e
tantos outros. Hans Küng, por exemplo, nega que “serviço de Pedro seja
sinônimo de papado” (cf. Die Kirche, p.516).
5. Gera certa perplexidade o documento quando se olha para o agir de João
Paulo II. Suas viagens são marcadas por encontros com o diferente:
muçulmanos, judeus... esforço este que tem uma síntese, ao menos teórica,
na encíclica “Ut Unum Sint”. Cabe aqui uma observação: Ratzinger cita
apenas três vezes esta encíclica.
6. O documento Dominus Iesus coloca também a seu serviço textos bíblicos,
nos moldes mais fundamentalistas possíveis. Evita o texto de Mateus 16.13-
20, texto de larga aplicação para justificar o primado de Pedro, preferindo o
texto de João 21.15-19. Mas a leitura mais equivocada é quando identifica a
Igreja com a videira, lendo João 15.1ss.
7. A materialidade do texto revela a intenção do autor. Apenas a Igreja
Católica de Roma é considerada Igreja, sempre grafada em letra maiúscula,
enquanto que as outras nem sequer são chamadas de igrejas.
Conclusões
Passado o primeiro momento, em que as reações de revolta e
indignação são perfeitamente justificáveis, é preciso reorganizar o caminho a
ser seguido. Propomos aqui algumas pistas para nortear reflexões e ações.
Não se trata de nenhuma receita em forma de palavra final incontestável.
1. Haveremos de encontrar posturas diferentes de irmãos da Igreja Católica
Romana. Alguns farão de conta que nada aconteceu e continuarão a
trabalhar pela Unidade, sem muito se importar com o documento. Com esta
postura, passarão a ser alvo de críticas e até mesmo reprimendas por parte
de seus superiores. Um segundo grupo permanecerá como que em estado
de choque e sem muita força para reagir. E um terceiro grupo,
numericamente muito maior, se sentirá muito à vontade para aplaudir o
documento e suas conseqüências. Este último grupo é particularmente forte,
pois foi “plasmado” para ser o novo tipo de clero e episcopado. Formado
para respostas “ad intra”, sem maiores preocupações para com a dimensão
social e profética da Igreja.
2. Encontraremos aqueles que tentarão dizer que o documento tem pouco
alcance, alegando que se trata apenas de um documento de um cardeal.
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Esta seria uma maneira ingênua de ler os fatos, pois o documento traz toda
força do próprio João Paulo II:
“O Sumo Pontífice João Paulo II, na audiência concedida, a 16 de
Junho de 2000, ao abaixo-assinado Cardeal Prefeito da Congregação
para a Doutrina da Fé, com ciência certa e com a sua autoridade
apostólica, ratificou e confirmou esta Declaração, decidida em Sessão
Plenária, e mandou que fosse publicada.
Dado em Roma, sede da Congregação para a Doutrina da Fé, 6 de
Agosto 2000, Festa da Transfiguração do Senhor.
Joseph Card. Ratzinger
Prefeito”
3. Ao afirmar a superioridade e exclusividade da Igreja de Roma, chamando
para si a responsabilidade da salvação, temos duas conseqüências
imediatas:
a) a volta para o tempo do “extra ecclesia nulla sallus”;
b) todos os esforços realizados em prol do ecumenismo e seus resultados
foram relativizados. Concordamos com Dom Glauco Soares de Lima, Bispo
Primaz da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, que afirmou: “Estou
convencido de que a Unidade dos cristãos, a Unidade da Humanidade, é uma
construção que está sendo feita nas bases das igrejas e não nas suas
cúpulas, por melhor que elas sejam. Assim, independente das notas,
decretos, encíclicas etc, vamos continuar a construção, que é um processo
de amor orientado pelo Espírito Santo que se manifesta em nós”. A mesmo
tempo que concordamos, alertamos para as implicações que o documento
traz. Trata-se de um documento emitido pela Congregação Para a Doutrina
da Fé e tem, ao mesmo tempo, o aval de João Paulo II. Considerando o
episcopado e o clero gerado no tempo de João Paulo II e a “fidelidade cega”
destes, as conseqüências não serão tão tênues.
4. Fica ainda uma pergunta de ordem prática: como será o relacionamento
interno do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC)? Se este é
composto de Igrejas-Irmãs em condição de Igualdade, a Igreja Católica
Romana negará a aceitação do documento Dominus Iesus ou as demais
igrejas aceitarão uma condição de inferioridade?