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Dossier Anti-Édipo - Capitalismo e Esquizofrenia - Versão Digital

Entrevistas com Gilles Deleuze e Félix Guattari Debate entre Gilles Deleuze e Michel Foucault Textos de J. F. Lyotard, Furtos e Roussilon, e Donzelot Correspondência entre Michel Cressolle e Gilles Deleuze. Anti-Édipo, capitalismo e esquizofrenia, Esquizoanálise, Filosofia, Psicanálise, Lacan, Lacanismo, Psicologia, Sociologia, Máquinas Desejantes, Máquinas Desejantes

Enviado por

José Bacelar
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© Attribution Non-Commercial (BY-NC)
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Dossier Anti-Édipo - Capitalismo e Esquizofrenia - Versão Digital

Entrevistas com Gilles Deleuze e Félix Guattari Debate entre Gilles Deleuze e Michel Foucault Textos de J. F. Lyotard, Furtos e Roussilon, e Donzelot Correspondência entre Michel Cressolle e Gilles Deleuze. Anti-Édipo, capitalismo e esquizofrenia, Esquizoanálise, Filosofia, Psicanálise, Lacan, Lacanismo, Psicologia, Sociologia, Máquinas Desejantes, Máquinas Desejantes

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dossier anti-édipo

capitalismo e esquizofrenia

deleuze-uuanari-toucault-lvotard
tortos-roussilon-donzelot-cressolle
CAPITALISMO
E ESQUIZOFRENIA
,

dossier Anti-Edipo

• Entrevistas com G. Deleuze e F. Guattari


• Debate entre G. Deleuze e M. Foucault
• Textos de J". F. Lyotard, Furtos e Roussilon,
e Donzelot.
• Correspondência entre M. Cressolle
e G. Deleuze.

Digitalizado e restaurado pelo Capitão Xiexie {Zekitch�, em Brasília, setembro de 2020.

assírio & a/vim


cadernos peninsulares I nova série I ensaio 20
Todos os direitos reservados para a língua portuguesa,
desta edição
por Assirio & Alvim - Sociedade Editorial e Distribuidora, Lda.
Rua Passos Manuel. 67-b- Lisboa 1
(1976)

TrtulUf/Jo : Jos6 Afonso Furtado

Organi•afifo , pr,fá�io : Manuel Maria Carrilho

C•P" : Dorindo de carvalho


CAPITALISMO E ESQUIZOFRENIA

(Dossier sobre o Anti-Édipo)


INDIC E

Pãa.
PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

OS INTELECTUAIS E O PODER: Debate com Michel


Foucault e Gilles Deleuze . . • . . . . 13

«0 ANTI-aDIPO» DE EXPLORAÇÃO, J. Furtos e

R. Roussillon 29

ENTREVISTA 1, com Deleuze e Guattari

CAPITAL ISMO ENERGÚM ENO Jean . .. François Lyotard 83

SOBRE CAPITALISMO E ESQlJIZOFERNIA, ENTRE·


VISTA 2, com Gilles Deleuze e Félix Guattari • • 135

UMA ANTJ..SOCidLOGIA, Jacques Donzelot • . 153

ENTREVISTA 3, com GiJles Deleuze e Félix Guattari . . 185

CORRESPOND:êNCIA DELEUZE/CRESSOLE . . 209


PREFÁCIO

A leitura é a produção de inten­


sidades novas diferentes. É um
momento da metamorfose ge­
ral . . . o autor desaparece no que
escreve e o escrito desaparece
nos seus leitores.

J. F. Lyotard

Se não foi em Maio de 68 que tudo começou


foi pelo menos então que tudo irrompeu. A precedê-lo,
toda uma série de rupturas silenciosas mas decisivas
de investimentos (e desinvestimentos) quase invi­
síveis para quem do político se habituou a presenciar
apenas a cena de representação e a esquecer, recal­
cando-o, o poderoso jogo das pulsões de que a cena
política mais não é do que a superfície de repressão
e de compromisso.
Poderoso, afirmativo, Maio de 68 foi a mani-
festação de todas as pulsões libidinais em cuja vio­
lenta repressão o poder sempre se constitui. Como
se viu. E o que permite compreender tanto o sinistro
«apoio» de Fidel a De Gaulle, como o contenta­
mento do P. C. quando ao combate total se substituiu
o dispositivo eleitoral. Movimento que abalou o
aparelho do poder em todos os seus níveis, que per-
8

correu todo o corpo social, fazendo estremecer a fa­


mllia, a universidade, os liceus, os partidos duma ponta
à outra, Maio de 68 foi rapidamente objecto de vd­
rias explicações que, com evidentes variantes entre
um Aron e um Morin, um Mendel, um Domenach
ou um Prévost, têm a preocupação comum de apresen­
tar uma teoria reducionista e confortante, procu­
rando impor aos factos as teorias que eles tinham
precisamente rejeitado, destruído. E talvez a teoria
não tenha, geralmente, outra função . . . .

«Le philosophe n' est qu'une sorte d'occasion


et de chance pour que I' impulsion en arrive enfin
à prendre la paro/e». (Nietzsche).
Uma excepção aparece então, gtandiosa - o
Anti-Édipo, primeiro volume de Capitalismo e Esqui­
zofrenia, escrito por . um filósofo, Gilles Deleuze,
e um psicanalista, Félix Guattari.
Não se trata apenas de uma incisiva análise
do Édipo psicanalítico, das suas condições de ins­
tauração e de reprodução mas, o que é muito mais
importante, duma nova análise da loucura, duma
nova «teoria» do desejo, dum novo traçado da histó­
ria.
Com uma sensibilidade que tem muito de ins­
piração nietzscheana, mas que se abre ao poder dos
fluxos de que fala Henry Miller, às intensas vibra­
ções de D. H. Lawrence, às silenciosas interrogações
de Becket, ao delírio de Reich, à loucura de Artaud,
Deleuze-Guattari preferem sentir a interrogar os
factos. Sentir o percurso dos fluxos, a sua força,
as suas blocagens. O que se passou, como apa­
receu essa enorme e súbita massa de líbido li-
9

bertada que estoira com todas as repressões e


percorre o campo social duma ponta à outra? E
como foi possível a paralisação de todo este
movimento, quando, porquê? Maio de 68, assim
como a Frente Popular e o Nazismo, têm que ser
entendidos doutro modo. E a explicação que tudo
subordina à determinação infra-estrutura/ econó­
mica e ao seu jogo de reflexos é manifestamente
insuficiente, para não dizer caricata. Como diz
F. Guattari num recente e estimulante debate com
F. Fourquet (*), «enquanto se não compreender que
o nazismo é um derivado do movimento revolucio­
nário, não se compreenderá nada. O que é que ani­
mava as massas alemãs? Era uma líbido revolucio­
nária que se cristalizou numa máquina medonha - e
o stalinismo é, de certo modo, a mesma coisa.
Evidentemente.» Trata-se, como De/euze-Guattari já
o disseram várias vezes, de ouvir o grito de Reich:
porque desejaram as massas o fascismo? Ou
de prestar atenção a Spinoza, que perguntava:
porque lutam o s homens pela sua escravidão, pela
sua submissão?
A explicação pela infra-estrutura cai por si.
Os homens não agem conforme os seus interesses
mas, e frequentemente, contra eles. E o que
os leva a isso senão o seu próprio desejo, com que
investem o campo social e que tanto pode ser liber­
tador como opressor, «esquizofrénico como para­
nóico»?
Afirmação materialista do desejo e dos seus
· poderes. Uma posição materialista não é uma afir­
mação da consciência, nem recorre à ideologia e às
ilusões para explicar as atitudes dos homens. É uma

(•) Genea/ogie du capital. n.0 13/14 da revista «Recherches>>.


afirmação do inconsciente, não do inconsciente
familiar e absorvente que Freud procurou instituir�
mas dum inconsciente produtor que investe não as
figuras familiares mas todo o campo social. A admitir
uma infra-estrutura, é dela que o desejo faz parte.
E a economia para continuar a ser política tem de
ser, e fundamentalmente, libidinal.

São estes e outros pontos que são discutidos


neste dossier, onde se procuram reunir alguns tex­
tos que de outro modo seriam dificilmente acessíveis
ao leitor português, e onde se agrupam: o debate
entre Deleuze e Foucault., em que se esboça uma
nova concepção da prática, uma nova concepção
·

do político e se interroga o desejo, o poder�· um


texto de Lyotard., uma nova derivação agora a
partir do Anti-Édipo, a melhor, mais produtiva e
exaltante análise teórica que se fez sobre este
livro; um ensaio explicativo de Furtos e Rous­
sillon, onde se pode ver como a explicação acaba
sempre por ser redutora e medíocre quando enfrenta
uma força como a do Anti-Édipo�· um estudo de
Donzelot, que tem por mérito fazer uma análise
comparada das posições de Deleuze-Guattari, de
Baudrillard e de R. Castel, autor do importante
livro O Psicanalismo ; três entrevistas com Deleuze
e Guattari, que desenvolvem e esclarecem dum modo
estimulante as suas posições�· e a correspondência
entre M. Cressole e G. Deleuze, onde este fala das
suas relações com a filosofia, com a história da
filosofia, dos seus múltiplos percursos - Hume, Berg­
son, Spinoza, Proust, Nietzsche -, que precedem o
seu encontro com Guattari. O monadismo e o pensa­
mento, a loucura e a clandestinidade.
*

Ligação ao exterior: permitir a max1ma irrup­


ção deste no discurso. Ou, doutro modo: tentar
fazer passar no discurso os fluxos mais descodificados
e insuportáveis para a cultura. Subverter radical­
mente os discursos instituídos, sejam eles marxista
ou freudiano, desbloquear as forças que estes discur­
sos têm reprimido no mundo da representação e da
interpretação. Forças que se se articulam com o
económico, têm uma outra articulação, fundamental,
com o desejo. E é esta articulação - apenas esbo­
çada mas já tão decisiva - do desejo com o econó­
mico, o político, o histórico, o social (os dispositivos
libidinais, como quer Lyotard), que abre uma impie­
dosa ferida no compulsivo pensamento freudo-mar­
xista, seja ele o da escola de Francfort, o das ridí­
culas sínteses à L. Seve ou à Fougeyrollas, ou ainda
o da linha telqueliana. Ferida que se alarga e define
uma nova relação com a vida e a sua força, opondo
à dimensão transcendente da eficácia a dimensão
imanente da produtividade múltipla: fluxos de liber­
tação, duma nova alegria, do combate pontual.

12 de Fevereiro de 74

MANUEL MARIA CARRILHO


OS INTELEcrUAIS E O PODER

DEBATE
MICHEL .FOUCAULT
GILLES DELEUZE

MICHEL FOUCAULT : Um maofsta dizia-me:


«Compreendo perfeitamente porque é que Sartre
está connosco, porque é que ele faz política e em
que sentido a faz; a ti, percebo-te mais ou menos,
sempre puseste o problema do encerramento. Mas
Deleuze, verdadeiramente, não o compreendo».
Esta dúvida espantou-me prodigiosamente, por­
que a mim isso parece-me muito claro.
GILLES DELEUZE : Talvez seja porque esta­
mos a viver de uma maneira nova as relações
teoria-prática. Tanto se concebia a prática como
uma aplicação da teoria, como uma consequên­
cia, como, pelo contrário, devendo inspirar a
teoria, como sendo ela própria criadora para uma
forma de teoria futura. De qualquer modo, conce­
biam-se as suas relações sob a forma de um pro­
cesso de totalização, num sentido ou no outro.
Talvez, para nós, a questão se ponha de outra
maneira. As relações teoria-prática são muito mais
parciais e fragmentárias. Por um lado, uma teoria
é sempre local, relativa a um pequeno domínio, e
14

pode ter a sua aplicação num outro domínio, mais


ou menos distante. A relação de aplicação não é
nunca de semelhança. Por outro lado, desde que
a teoria se fixa no seu próprio discurso, vai dar a
obstáculos, paredes, choques, que tornam neces­
sário que ela seja secundada por um outro tipo de
discurso (é este outro tipo que faz eventualmente
passar a um domínio diferente). A prática é um
conjunto de transições («relais» ) de um ponto teórico
para outro, e a teoria uma transição de uma prática
para outra. Nenhuma teoria se pode desenvolver
sem encontrar uma espécie de parede, e é preciso
a prática para atravessar a parede. Por exemplo,
você começou por analisar teoricamente um meio
de encerramento como o asilo psiquiátrico no
século XIX na sociedade capitalista. Depois desco­
briu que era absolutamente indispensável que as
pessoas que estão encerradas começassem a falar
por sua própria conta� que o apoiassem (ou então,
pelo contrário, era já você que já era um apoio para
eles), e essas pessoas encontram-se nas prisões,
estão nas prisões. Quando organizou o grupo Infor­
mação-prisões foi nessa base : instaurar as condi­
ções em que os próprios prisioneiros poderiam falar.
Seria totalmente falso afirmar, como parecia dizer
o maoísta, que você passava à prática aplicando as
suas teorias. Não se tratava nem de aplicação, nem
de projecto de reforma, nem de inquérito no sentido
tradicional. Tratava-se de outra coisa : um sistema
de transição num conjunto, numa multiplicidade
de peças e fragmentos simultâneamente teóricos e
práticos. Para nós o intelectual teórico deixou de ser
um sujeito, uma consciência representante ou repre­
sentativa. Aqueles que agem e que lutam deixaram
de ser representados, mesmo por um partido, um
sindicato, que se arrogariam, por sua vez, o direito
15

de serem a sua consciência. Quem fala e quem age?


É sempre uma multiplicidade, mesmo na pessoa
que fala ou que age. Somos todos grupúsculos. Já
não há representação, há apenas acção, acção de
teoria, acção de prática em relações de transição
ou de rede.
M. F. : Parece-me que �a politização de um
intelectual se fazia tradicionalmente a partir de
duas coisas : a sua posição de intelectual na socie­
dade burguesa, no sistema da produção capitalista,
na ideologia que ela produz ou impõe (ser explo­
rado, reduzido à miséria, rejeitado, «maldito»,
acusado de subversão, de imoralidade, etc.) ; o seu
próprio discurso como revelador de uma certa
verdade, enquanto descobria relações políticas onde
as não percebia. Essas duas formas de politização
não eram estranhas uma à outra, mas não coinci­
diam forçosamente. Havia o tipo do «maldito» e o
tipo do «socialista». Essas duas politizações confun­
diram-se facilmente em certos momentos de reac­
ção violenta da parte do poder, após 48, após a
Comuna, após 1940 : o intelectual era rejeitado,
perseguido no próprio momento em que as «coisas»
apareciam na sua «verdade», no momento em que
não era preciso dizer que o rei ia nu. O intelectual
dizia a verdade aos qua ainda a não viam e em
nome daqueles que a não podiam dizer: consciência
e eloquência.
Ora o que os intelectuais descobriram desde
as recentes manifestações, foi que as massas não
têm necessidade deles para saberem, elas sabem
perfeitamente, claramente, muito melhor do que
eles ; e dizem-no muito bem. Mas existe um sistema
de poder que barra, interdita, invalida esse discurso
e esse saber. Poder que não está apenas nas instân­
cias superiores da censura mas que mergulha muito
16

profunda e subtilmente em toda a rede da sociedade.


Eles próprios, intelectuais, fazem parte desse sis­
tema de poder, a ideia de que são os agentes da
«consciência» e do discurso faz parte desse sistema.
O papel do intelectual não é colocar-se «Um pouco
adiante ou um pouco ao lado» para dizer a verdade
muda de todos ; é antes lutar contra as formas de
poder onde ele é simultâneamente objecto e instru­
mento : na ordem do «saber», da «verdade», da
«consciência», do «discurso».
É nisto que a teoria não exprime, não traduz,
não aplica uma prática, ela é uma prática. Mas
local e regional, como vócê o afirma : não totali­
zadora. Luta contra o poder, luta para o fazer
aparecer e desmantelar onde ele é mais invisível
e mais insidioso. Luta não por uma «tomada de
consciência» (há muito tempo que a consciência
como saber é adquirida pelas massas, e que a cons­
ciência como sujeito é tomada, ocupada pela bur­
guesia), mas pela sapa e pela tomada do poder,
ao lado, com todos os que lutam por ela, e não
retirado para os esclarecer. Uma teoria é o sistema
regional desta luta.
G. D. : É isso, uma teoria é exactamente
como uma caixa de ferramentas. Não tem nada a
ver com o significante . . É preciso que sirva, é
.

preciso que funcione. E não para si própria. Se


não há pessoas para se servirem dela, a começar
pelo próprio teórico que então deixa de ser teórico,
é que não vale nada ou que não chegou o momento.
Não se regressa a uma eoria, fazem-se outras, há
outras a fazer. É curioso que seja um autor que
passa por um puro intelectual, Proust, quem o
tenha afirmado tão claramente : tratem o meu livro
como uns óculos dirigidos para o exterior, e se não
vos servirem, arranjem outros, encontrem o vosso
17

próprio aparelho que é forçosamente um aparelho


de combate. A teoria não se totaliza, multiplica-se
e multiplica. É o poder que por natureza opera
totalizações, e você diz exactamente : a teoria por
natureza é contra o poder. Desde que uma teoria
se fixe neste ou naquele ponto, choca com a impos;.
sibilidade de ter a menor consequência prática,
sem que se faça uma explosão, se for necessário,
num ponto totalmente diferente. É por esta razão
que a noção de reforma é tão estúpida e hipócrita.
O u a reforma é elaborada por pessoas que se pre­
tendem representativas e que fazem profissão de
falar pelos outros, em nome dos outros, e é um
arranjo do governo, uma distribuição do poder que
é dobrada por uma repressão crescente. Ou então
é uma reforma reclamada, exigida por aqueles a
quem diz respeito, e deixa de ser uma reforma,
é uma acção revolucionária que, do fundo do seu
carácter parcial é determinada a pôr em causa a
totalidade do poder e da sua hierarquia. Isto é
evidente nas prisões: a mais minúscula,. a mais
modesta reivindicação dos prisioneiros bastou para
derrubar a pseudo-reforma Pleven. Se as crianças
conseguissem fazer ouvir os seus protestos numa
escola infantil, ou mesmo apenas as suas questões,
isso bastaria para provocar uma explosão no
conjunto do sistema do ensino. Na verdade, este
sistema em que vivemos não pode suportar nada:
daí a sua fragilidade radical em cada ponto e, ao
mesmo tempo, a sua força de repressão globaL
A meu ver, você foi o primeiro a ensinar-nos algo
de fundamental, simultâneamente nos seus livros
e no domínio prático: a indignidade de falar pelos
outros. Quero dizer: desprezava-se a representação,
dizia-se que tinha acabado, mas não se tiravam as
consequências desta conversão «teórica» -.- ou seja,
18

que a teoria exigia que as pessoas a quem diz res­


peito falassem enfim práticamente por sua conta.
M. F. : E quando os prisioneiros se puseram
a falar, tinham uma teoria própria da prisão, da
penalidade, da justiça. Esta espécie de discurso
contra o poder, este contra-discurso apresentado
pelos prisioneiros ou pelos chamados delinquentes,
é o que interessa, e não uma teoria sobre a delin­
quência. Este problema da prisão é um problema
local e marginal, porque não passam mais de
100.000 pessoas por ano pelas prisões; actual­
mente em França há, ao todo, talvez 300 ou 400.000
pessoas que passaram pela prisão. Ora este pro­
blema marginal desperta as pessoas. Fiquei sur­
preendido ao ver que este problema podia interessar
tantas pessoas que não estavam predestinadas a
ouvir este discurso de detidos, e como, finalmente,
o entendiam. Como explicá-lo? Não será por, de
um modo geral, o sistema penal ser a forma em
que o poder como poder mais manifestamente se
mostra ? P ôr alguém na prisão, guardá-lo na prisão,
privá-lo de alimento, de aquecimento, impedi-lo
de sair, de fazer amor ... etc., é a mais delirante
manifestação de poder que se possa imaginar.
Outro dia falava com uma mulher que esteve presa
e que me dizia : «quando penso que a mim, que
tenho 40 anos, me castigaram um dia na prisão
pondo-me a pão seco». O que impressiona nesta
história é não só a possibilidade do exercício do
do poder, mas também o cinismo com que se exerce
como poder, sob a forma mais arcaica, mais pueril,
mais infantil. Reduzir alguém a pão e água, enfim,
ensinam-nos isso quando somos garotos. A prisão
é o único lugar em que o poder se pode manifestar
no estado nu, nas suas dimensões mais excessivas,
e justificar-se como poder moral. «Eu tenho razão
19

em punir, pois vocês sabem que é indecente roubar,


matar . . . ». É isso que é fascinante nas prisões, por
uma vez o poder não se esconde, não se mascara,
mostra-se como tirania levada aos seus mais íntimos
detalhes, cinicamente, e ao mesmo tempo está
puro, está inteiramente «justificado» porque se
. pode formular inteiramente no interior de uma
moral que enquadra o seu exercício : a sua tirania
bruta aparece assim como dominação serena do
Bem sobre o Mal, da ordem sobre a desordem.
G. D.: Simultâneamente, o inverso é igual­
mente verdadeiro. Não são apenas os prisioneiros
que são tratados como crianças, mas também as
crianças como prisioneiros. As crianças sofrem uma
infantilização que não é a sua. Neste sentido é
verdade que as escolas são um pouco prisões, que
as fábricas são mesmo prisões. Basta ver a entrada
na Renault. Ou noutro lugar : três bónus para fazer
chichi durante o dia de trabalho. Você encontrou
um texto de Jeremie Bentham do século XVIII,
que propõe precisamente uma reforma das prisões :
em nome desta alta reforma, ele estabelece um sis­
tema circular em que, simultâneamente, a prisão
renovada serve de modelo, e em que insensivelmente
se passa da escola para a manufactura, da manu­
factura para a prisão e inversamente. É isto a
essência do reformismo, da representação refor­
mada. Pelo contrário, quando as pessoas se põem
a falar e a agir em seu nome, não opõem uma
representação mesmo que invertida a uma outra,
não opõem uma outra representatividade à falsa
representatividade do poder. Por exemplo, lembro­
-me que você dizia que não há justiça popular contra
a justiça, isso passa-se a um outro nível.
M. F. : Penso que, sob o ódio que o povo tem
à justiça, aos juízes, aos tribunais, às prisões, é
20

preciso não ver apenas a ideia de uma outra justiça


melhor e mais justa, mas em primeiro lugar e antes
de tudo a percepção de um ponto singular em que
o poder se exerce à custa do povo. A luta anti­
�judicial é uma luta contra o poder, e não creio
que seja uma luta contra as injustiças, contra as
injustiças da justiça, e por um melhor funciona­
. mento da instituição judiciária. É ainda assim
impressionante que, cada vez que houve motins,
revoltas e sedições, o aparelho judicial tenha sido
o objectivo, ao mesmo tempo e ao mesmo título
que o aparelho fiscal, o exército e as outras formas
do poder. A minha hipótese, mas é apenas uma
hipótese, é que os tribunais populares, por exemplo
no momento da Revolução, foram uma maneira
da pequena burguesia aliada às massas recuperar,
tomar a agarrar o movimento de luta contra a
justiça. E para o tomar a agarrar, prop ôs-se esse
sistema do tribunal que se refere a uma justiça que
poderia ser justa, a um juiz que poderia dar uma
sentença justa. A própria forma do tribunal pertence
a uma ideologia da justiça que é a da burguesia.

G. D. : Se considerarmos a actual situação,


o poder tem forçosamente uma visão total ou
global. Quero dizer que todas as formas actuais de
repressão, que são múltiplas, são facilmente tota­
lizáveis do ponto de vista do poder : a repressão
racista contra os imigrados, a repressão nas fábri­
cas, a repressão no ensino, a repressão contra os
jovens em geral. É preciso procurarmos a unidade
de todas essas formas não como uma reacção a
Maio de 68 apenas, mas muito mais como uma
preparação e uma organização concertadas do
nosso futuro próximo. O capitalismo francês tem
muita necessidade de uma «reserva móvel>> de
desemprego, e abandona a máscara liberal e pater-
21

nal do pleno emprego. É deste ponto de vista que


elas encontram a sua unidade : a limitação da
imigração, uma vez dito que se confiavam aos emi­
grados os trabalhos mais duros e ingratos - a
repressão nas fábricas, visto que se trata de tornar
a dar ao francês o «gosto» por um trabalho cada
vez mais duro - a luta contra os jovens e a repres­
são no ensino, visto que a repressão policial é
tanto mais viva quanto menor é a necessidade de
jovens no mercado de trabalho. Todas as espécies
de categorias profissionais vão ser convidadas a
exercerem funções policiais cada vez mais precisas:
professores, psiquiatras, educadores de todos os
géneros, etc. Trata-se de qualquer coisa que você
já anuncia há muito tempo, e que se pensava não
poder produzir-se : o reforço de todas as estruturas
de encerramento. Então, face a esta política global
do poder, dão-se respostas locais, contrafogos,
defesas activas e por vezes preventivas. Não temos
de totalizar o que só se totaliza do lado do poder,
e que só poderíamos totalizar do nosso lado restau­
rando formas representativas de centralismo e
hierarquia. Em compensação, o que temos de fazer
é chegar a instaurar ligações laterais, todo um sis­
tema de redes, de bases populares. E é isso que
é difícil. Em todo o caso, para nós a realidade não
passa de modo nenhum pela política no sentido
tradicional de competição e distribuição de poder,
de instâncias ditas representativas à maneira do
P. C. ou da C. G. T A realidade é o que se passa
..

efectivamente hoje em dia numa fábrica, numa esco­


la, numa caserna, numa prisão, num comissariado.
Assim como a acção comporta um tipo de infor­
mação de uma natureza totalmente diferente das
informações de jornais (como o tipo de informação
da Agence de Presse Libération).
M. F. : Esta dificuldade, o nosso embaraço
em encontrar as formas de luta adequadas, não
provirá de ignorarmos ainda o que é o poder ?
Afinal de contas foi preciso esperar pelo século XIX
para saber o que era a exploração, mas talvez nem
sempre se saiba o que é o poder. E Marx e Freud
talvez não sejam suficientes para nos ajudar a conhe­
cer essa coisa tão enigmática, simultâneamente
visível e invisível, presente e escondida, investida
por todo o lado, a que se chama o poder. A teoria
do Estado, a análise tradicional dos aparelhos de
Estado não esgotam ,sem dúvida, o campo de exer­
cício e de funcionamento do poder. É actualmente
o grande desconhecido : quem exerce o poder?
e onde o exerce ? Actualmente, sabemos mais ou
menos quem explora, para onde vai o lucro, entre
as mãos de quem passa e onde se reinveste, en-
quanto que o poder . . . Sabemos que não são os
governantes que detêm o poder. Mas a noção de
«classe dirigente» não é nem muito clara nem muito
elaborada. «Dominar», «dirigir», «governar», «gru­
po no poder», «aparelho de Estado», etc. , eis todo
um jogo de noções que devem ser analisadas. Do
mesmo modo, seria necessário saber até onde se
exerce o poder, através de que passagens e até de
que instâncias, frequentemente ínfimas, de hierar­
quia, de controle, de vigilância, de interdições, de
obrigações. Onde há poder, o poder exerce-se.
Ninguém é propriamente o seu titular ; e, no entanto,
ele exerce-se sempre numa certa direcção, com uns
de um lado e os outros de outro ; ao certo não se
sabe quem o tem ; mas sabe-se quem o não te)D.
Se a leitura dos seus livros (desde o Nietzsche até
ao que pressinto de Capitalismo e esquizofrenia)
foi para mim tão essencial, é por me parecerem avan-
23

çar muito na postçao deste problema : sob este


velho tema do sentido, significado, significante,
etc. , finalmente a questão do poder, da desigual­
dade dos poderes, das suas lutas. Cada luta desen­
volve-se em torno dum foco particular de poder
(um desses inumeráveis focos que podem ser um
pequeno chefe, um porteiro dos H. L. M. (*), um
director de prisão, um juiz, um responsável sindical,
um chefe de redacção de um jornal). E se designar

os focos, denunciá-los, falar deles publicamente, é


uma luta, não é por ninguém ter ainda consciência
disso, mas porque tomar a palavra sobre este
assunto, forçar a rede da informação institucional,
nomear, dizer quem fez, o quê, designar o objectivo,
é uma primei�a acção de voltar do avesso o poder,
é um primeiro passo para outras lutas contra o
poder. Se discursos como, por exemplo, os dos ·

detidos ou dos médicos de prisão são lutas, é porque


confiscam ao menos por um instante o poder de
falar da prisão, ocupado actualmente apenas pela
administração e pelos seus cúmplices reformadores.
O discurso de luta não se opõe ao inconsciente :
opõe-se ao segredo. Isso parece ter muito menos
importância. E se tivesse muito mais ? Há toda uma
série de equívocos a respeito do «escondido», do
«recalcado», do «não dito», que permitem «psica­
nalisar» a baixo preço o que deve ser o objecto
de uma luta. O segredo é talvez mais difícil de
levantar do que o inconsciente. Os dois temas que
ainda ontem se encontravam frequentemente «a es­
crita é o recalcado» e «a escrita é de pleno direito
subversiva» parecem-me trair um certo número de
operações que devem ser severamente denunciadas.

(*) H. L. M., são os blocos habitacionais que existem em


França para os trabalhadores menos abastados e para imigrantes.
24

G. D.: Quanto a esse problema que você pôs:


vê-se quem explora, quem lucra, quem governa,
mas o poder é ainda algo de mais difuso - levan­
taria a seguinte hipótese: mesmo e sobretudo o
marxismo determinou o problema em termos de
interesse (o poder é detido por uma classe domi­
nante definida pelos seus interesses). De repente
chocamos com a questão : como é que acontece
que pessoas que aí não têm assim tanto interesse
sigam, abracem estreitamente o poder, em que
mendigam uma parcela? É talvez porque, em termos
de investimentos, tanto económicos como incons­
cientes, o interesse não é a última palavra, há
investimentos de desejo que explicam que se possa,
em caso de necessidade, desejar, não contra o inte­
resse próprio, visto que o interesse segue e encontra­
-se sempre onde o desejo o coloca, mas desejar de uma
maneira mais profunda e difusa do que esse inte­
resse. É preciso aceitarmos ouvir o grito de Reich:
não, as massas não foram enganadas, elas desejaram
o fascismo num determinado momento! Há inves­
timentos de desejo que modelam o poder e o difun­
dem, e que fazem com que o poder se encontre
tanto ao nível do chui como do primeiro ministro,
e com que não haja absolutamente nenhuma dife­
rença de natureza entre o poder que um pequeno
chui exerce e o poder que um ministro. exerce. É
a natureza dos investimentos de desejo sobre um
corpo social que explica porque é que os partidos
ou sindicatos, que teriam ou deveriam ter inves­
timentos revolucionários em nome dos interesses
de classe, possam ter investimentos reformistas ou
perfeitamente reaccionários ao nível do desejo.
M. F. : Como você diz, as relações entre desejo,
poder e interesse são mais complexas do que habi-
25

tualmente se julga, e não são forçosamente os que


exercem o poder que têm interesse em o exercer,
os que têm interesse em o exercer não o exercem,
e o desej o do poder joga entre o poder e o interesse
um jogo que é ainda singular. Acontece que as mas­
sas, na altura do fascismo, desejam que alguns
exerçam o poder, alguns esses que, contudo, se
não confundem com eles, visto que o poder se irá
exercer sobre elas e à sua custa, até à sua morte,
até ao seu sacrifício, até ao seu massacre, e no
entanto desejam esse poder, desejam que esse poder
seja exercido. Esse jogo do desejo, do poder e do
interesse é ainda pouco conhecido. Foi necessário
muito tempo para se saber o que era a exploração.
E o desejo, foi e é ainda uma coisa muito difícil.
É possível que agora, com as lutas que se conduzem
e com essas teorias locais, regionais, descontínuas
que estão prestes a elaborar-se nessas lutas e que
fazem absolutamente corpo com elas, se esteja no
início de uma descoberta da maneira como o poder
se exerce.
G. D. : Então volto à questão : o movimento
revolucionário actual apresenta múltiplos focos,
o que não constitui fraqueza nem insuficiência,
visto que uma totalização pertence mais ao poder
e à reacção. Por exemplo o Vietname, é uma
formidável resposta local. Mas como conceber as
redes, as ligações, transversais entre esses pontos
activos descontínuos, de um país para um outro
ou no interior de um mesmo país ?
M. F. : Essa descontinuidade geográfica de
que fala significa talvez isto: a partir do momento
em que se luta contra a exploração, é o proleta­
riado que não só conduz a luta, como também
define os objectivos, os métodos, os lugares e os
26

instrumentos de luta; aliar-se com o proletariado


é acompanhéj.-lo nas suas posiçõe�, na sua ideologia,
é retomar os motivos do seu combate. É fundir-se.
Mas como é contra o poder que se luta, então
todos aqueles sobre quem o poder se exerce como
abuso, todos aqueles que o reconhecem como
intolerável, podem conduzir a luta onde se encon­
tram e a partir da sua actividade (ou passividade)
própria. Ao conduzirem esta luta que é a sua, de
que conhecem perfeitamente o objectivo e de que
podem determinar o método, entram no processo
revolucionário. Evidentemente que como aliado
do proletariado, visto que se o poder se exerce
como se exerce, é para manter a exploração capi­
talista. Eles servem realmente a causa da revolução
proletária ao lutarem precisamente onde a opressão
se exerce sobre eles. As mulheres, os prisioneiros,
os �oldados do contingente, os doentes nos hospi­
tais, os homossexuais, iniciaram neste momento
uma luta específica contra a forma particular de
poder, de imposição, de controle que sobre eles se

exerce. Lutas como essas fazem actualmente parte


do movimento revolucionário, com a condição de
serem radicais, sem compromisso nem reformismo,
sem tentativas para arranjar o mesmo poder com,
no máximo, uma mudança de titular. E estes movi­
mentos estão ligados ao próprio movimento revo­
lucionário do proletariado, na medida em que tem
de combater todos os controles e imposições que
reconduzem sempre ao mesmo poder.
Isto quer dizer que a generalidade da luta
não se faz por certo na forma dessa totalização de
que você falava há pouco, essa totalização teórica,
na forma da «verdade». O que faz a generalidade
da luta é o próprio sistema do poder, todas as for­
mas de exercício e aplicação do poder.
G. D.: E o facto de não se poder tocar em
qualquer ponto de apli cação sem que se esteja con­
frontado com esse conjunto difuso que desde logo
se é forçosamente levado a querer fazer saltar, a
partir da mais reivindicação. Qualquer
pequena
defesa ou ataque revolucionários parciais alcança
d este modo a luta operária.

4 de Março de 1972

Debate extraído da revista


«1 'Are», n. o 49
«0 ANTI-ÉDIPO»
TENTATIVA DE EXPLORAÇÃO

POR J. FURTOS E R. ROUSSILLON

É muito difícil apresentar O Anti-Édipo porque


é um texto louco, que possui a fascinação da lou­
cura, que põe as questões que a loucura nos põe,
a dos outros, mas também a nossa e a do nosso
mundo. É difícil falar dele sem cair na exterioridade
pura e racional que corre o risco de destruir a
especificidade da tentativa; também não podemos
pôr-nos a escrever em lugar dos autores. De facto,
o livro progride voltando-se constantemente para
si próprio, retomando num outro contexto o que
acabava de enunciar, deixando «trabalhar» livre­
mente os conceitos, e em todos os sentidos, pro­
duzindo efeitos de sentido inesperados mas já sem­
pre previsíveis.
A obra parece situar-se no ponto de encontro
de diferentes questões. Em primeiro lugar a da
articulação da psicanálise com o marXismo, da sua
contribuição mútua, e do lugar que a economia aí
deve ocupar.
F. Guattari (e a sua obra recentemente publi­
cada é disso testemunho (1 ), é simultâneamente

(1 )F.Guattari: Psychanalyse et transversalité (Maspéro).


30

médico psicanalista e marxista militante; a sua


importância na formação do texto não deve ser
menosprezada, e numerosos conceitos chaves ou
teses apresentadas em O Anti-Édipo esclarecem-se
através do confronto com os seus artigos. A lou­
cura, o desejo e a revolução formam a trama da
sua reflexão antecedente. O caminho que conduziu
Deleuze a O Anti-Édipo parece mais complexo. Ele
é filósofo e como tal atravessa com brio o campo
actual da filosofia para se centrar _mais precisamente
na problemática do sentido e da produção lite­
rária. Foi esta problemática que levou Deleuze a
levantar os problemas do não-sentido e do desejo,
·a partir dos quais estava aberto o caminho para o
estudo da loucura.
Maio de 68 e a decepção que se lhe seguiu
reúne os dois autores. E foi, como eles escrevem (2),
«a acumulação das nossas incertezas e mesmo duma
_certa desilusão perante o aspecto que os aconte­
cimentos de Maio de 68 tinham assumido». Foi
também para eles o momento de pôr a questão
do desejo na revolução, que se juntava à do simples
desejo e à da loucura. O facto da psicanálise não
conseguir dar conta da psicose impunha uma muta­
ção t�órica. É sempre assim que as revoluções teóricas
se produzem: um facto excluído vem pôr em causa
o dogma estabelecido e derruba-o. Daí a refor­
mulação do campo conceptual da psicanálise que
vamos agora examinar.

(2) L4 Quinzaine littéraire. n.0 143, Junho de 1972.


(OU O NÍVEL MOLECULAR)
I. A .PRODUÇÃO DESEJANTE

A tese inaugural de Deleuze e Guattari é a de


que o desejo é revolucionário e investe imediata­
mente o mundo social e a produção. E isto porque
«as pulsões parciais» são máquinas, e não m;;.tafo­
ricamente. São máquinas que produzem reaL
«Isto funciona por toda a patte: umas vezes sem
parar, outras descontinuamente. Isto respira, isto
aquece, isto come. Isto caga, isto fode. Mas que
asneira ter dito o isto.» O escoramento da tese vai
efectuar-se pelo reajustamento da tcêoria das pulsões
parciais, precedido por uma descrição do mundo
do esquizofrénico («o passeio do esquizofrénico»),
sempre ligado à produção social.

1) As máquinas desejantes

-Essas máquinas des'ejantes, é assim que lhes


chamam, caracterizam-se pela indistinção entre o
objecto produzido e a produção. «As peças dessas
máquinas são também o combustível das máqui­
nas.» A lei de funcionamento das máquinas dese­
jantes é pois o desarranjo («détraquement»).
-Depois essas máquinas desejantes estão
sempre acopuladas umas às outras, cortam-se entre
si: assim, o seio e o fluxo de leite cortado pela
boca. «Qualquer máquina é corte de fluxos em rela­
ção àquela com que está conectada, e é fluxo ou
produção de fluxos em relação à que está conec­
tada com ela». Isto define a síntese conectiva «e
assim sucessivamente ».. .

,_ Cada máquina interpreta o mundo segundo


a energia que dela flui, assim como «o olho inter­
preta tudo em tetmos de ver» .
32

- As máquinas desejantes comportam uma


espécie de código que se encontra «maquinado,
armazenado nela>>, quando estão conectadas com
a supetfície de registo do corpo pleno sem órgão.
Esses códigos formam um «quadriculado de dis­
junções», destinado a informar as duas questõ�s
funcionais. «Que fluxo cortar? onde cortar? como
e de que modo cortar? Que lugar dar a outros pro­
dutores ou anti-produtores (o lugar do irmão mais
novo)? Será ou não preciso asfixiar com o que se
come, devorar o ar, cagar pela boca_?» Cada máqui­
na possui o seu próprio código. Mas esse código é
mais um calão do que uma linguagem. Os signos
que o constituem não são em si mesmos signifi­
cantes, remetem para alfabetos diferentes cujas
letras desfilam umas ao lado das outras. Numa
cadeia que mistura os fonemas, os morfemas
aparecem subitamente- os bigodes do papá, um
chui, um sapato, etc. O desejo é o princípio imanente
dessas máquinas, e não produz por metáfora, mas
realmente.
- O conjunto das máquinas desejantes forma
aquilo a que os autores chamam a produção pri­
mária ou produção de produção, cuja energia é a
líbido.

2) O corpo pleno sem órgão (C.P.S.O.)

Mas essa organização das máquinas desejantes


não satisfaz integralmente as aspirações do corpo.
Este tem vontade de se repousat, «sonha com uma
superfície plana», inorganizada, onde tudo poderia
por fim deslizar. É o corpo pleno sem órgão, puro
desejo de imobilidade- instinto de morte. As
máquinas dest.jantes funcionam ainda demasiado
bem, não estão suficientemente desarranjadas. É
por isso que o corpo pleno sem órgão é produzido,
é resultado do. próprio desarranjo das máquinat!.
desejantes levado ao seu extremo.
Ele é produzido como anti-produção: «motor
imóvel.» Desconectado (descodificado) das máqui­
nas desejantes estaria morto; em relação com elas
ton1a-se superfície de registo permitindo a sua
codificação. Um bom analogon destes códigos
seria o código genético que exclui a noção de men­
sagem das t�orias da comunicação. O corpo S"em
órgão tem repulsa p·�las máquinas desejant,�s que
perce. be como aparelhos de perseguição, máquinas
paranóicas. Elas vêm perturbá-lo no seu desejo dé
sono. Esta repulsa constitui o «recalcamento origi­
nário». Ao mesmo tempo, as máquinas desejantes
são atraídas pelo corpo pleno sem órgão (máquina
miraculante). Entre a atracção e a repulsa a oposição
persiste; é necessário um terceiro termo (máquina
��libatária) para assegurar o retorno do recalcado
o que introduz a terceiro instância do sistem!l:
a produção de consumo.

3) O consumo e o sujeito

A produção de registo, proveniente e separada


da produção de produção, vai ela própria segregar
a produção de consumo, cuja energia, resultante na
libido, via o numen, será a voluptas. Os autores
alargam-se pouco sobre a produção de consumo.
Qualquer coisa da ordem do sujeito vai surgir do
consumo, como resto sucumbido da extração dos
fluxos: sujeito produzido ao lado da máquina e
que consome os estados por que passa, cuja expres­
são seria: «eu sinto» (quantidades intensivas). É uma
formulação muito próxima da teoria do afecto
34

desenvolvida por A. Green (3): o pnme1ro tempo


é sempre vivido.
Estabelecido deste modo o· sistema conceptual,
a questão do Édipo transforma-se em: «0 registo
das máquinas desejantes sobre o corpo pleno sem
órgio passará pelos termos edipianos ?» Ou o con­
sumo das quantidades intensivas será totalmente
estranho ao t·.4iângulo Papá-Mamã-Eu?
A resposta a esta questão é dominada pela
teoria dos obj ... ctos parciais, analisado dum modo
compl\_;tamtnt.:! diferente por Deleuze, em 1968
e 1969., nas suas duas obras Différence et répétition
e Logique du sens. Segue aí de modo mais ou menos
fiel a concepção de Mélanie Klein, que é preciso
recordar. Originalmente, a criança <;le mama expe­
rimenta a posição esquizo-paranóide: o seio da
mãe é clivado em bom e mau obJ�cto consoante
a sua ausência ejou presença; ele é sucessivamente
devorado e vomitado (introj.!ctado e projectado)
num sistema em que a boca e o seio são um e outro,
um no out-�·o, fragmentados e perseguidores. Em
relação a ess � objecto ainda indiferenciado do ego,
a problemática coloca-se do s�guinte modo: mãe
ferida, mãe a compensar (in Logique du sens, «de
l'oralité», «de la sexualité»).
O. objecto parcial, ainda não exorcizado d a
·sua tara original, «falta à sua identidade», perdido
num corpo fragmentado «virtual», «faltando-lhe
qualquer coisa em si mesmo, sendo sempre uma me­
tade de si próprio, estab�lecendo a outra metade
como diferença ausente» (4). «Os objectos parciais
só produzem virtual, estão engatados a qualquer

(3) A. Green: L'affect (P.U.F., 1970).


(4) Différence et répétition (p. 133 sq.).
35

coisa que possui objectos reais que vêm do exte­


rior». O desejo é pois constituído por esse exterior
que e le não tem, ou seja, pela falta («manque»).
Constatamos, e videntemente, uma inversão
radical em O Anti-Édipo. O real é directamente
produzido pelas máquinas desejantes a que nada
falta. Essa qualquer coisa a que os objectos parciais
se vêm engatar tomou-se o C.P.S.O., mas tão
virtual é um como o outro, os primeiros, «peças
trabalhadore s», . vêm registar-se sobre o segundo,
«motor imóvel».
Na concepção actual, compreende-se que os
objectos parciais - máquinas desejante s - já não
sejam obrigados a abandonar a posição esquizo­
-paranóide para entrar na posição depressiva que ,
classicamente, se lhe segue, e que O Anii-Édipo
recusa. No seio da posição depressiva, a mãe e a
criança diferenciam-se . A mãe já não e stá clivada
(boa ou má), mas completa, e completamente au­
sente ou completamente pre sente; é o nascimento
do objecto completo, mas perdido, que cria o desejo
de o recobrir completamente, o desejo da falta que
abre para o fantasma: satisfação alucinatória do
desejo. A criança já não está frag�p.entada mas
subsume os seus objectos parciais · sob o pénis,
significante unitário.
Na fase fálica e dipiana, a estruturação da
personalidade prossegue com «uma clivagem nítida
dos dois pais, e m que a mãe toma o aspecto dum
corpo ferido a compensar e o pai o dum objecto
bom a confortar» (5) ; ao fazer isso, o Édipo é um
«herói pacificador».

(S) Logique du sens (p. 234 sq.).


Esta recordação da concepção deleuziana,
agora abandonada, pareceu-nos útil porque evi­
dencia a centragem da problemática do desejo
exclusivamente sobre a fase esquizo-paranóide,
com transformação radical dos objectos virtuais
em máquina desejante, completa em si mesma,
a que nada falta, produzindo real.
Seguem-se três críticas, largamente desenvol­
vidas na obra:
- crítica radical do desejo-falta, . com o seu
corolário, a castração, resultado duma «operação»
no inconsciente pelas forças de anti-produção
social ;
- crítica da representação, que apenas pode­
mos assinalar: por não ser produção, o desejo vai
restringir-se à representação psíquica, aos fantas­
mas ; «substituiu-se o inconsciente como fábrica
por um teatro antigo» ;
- crítica radical do complexo de Édipo, que
já aparece como não-estruturante em Logique du
sens (simples herói pacificador), e que se vai tornar
a peça mestra da «fantástica repressão das máquinas
desejantes».
O ponto que reúne a refutação de tudo o que
segue a posição esquizo-paranóide (na perspectiva
genética da psicanálise) vai ser relacionado já não
com uma estruturação progressiva do egó (6),
mas com uma repressão do socius sobre as máqui­
nas desejantes, variável em função das condições
históricas. É o que vamos agora considerar.

(6) Na concepção clássica, o ego diferencia-se progressi­


vamente do «não-ego», introduzindo a distinção definitiva :
interior/exterior do corpo (aparecimento do narcisismo secun­
dário). Diz-se habitualmente que o psicótico, de que o esqui­
zofrénico é uma das formas clínicas, tem uma perturbação fun­
damental do ego (ego «fragmentado», etc.).
II. A PRODUÇÃO SOCIAL
ÉDIPO NA CULTURA
ÉDIPO NA HISTÓRIA UNIVERSAL

1 ) As máquinas sociais; situação do conceito

É necessário situar a definição da máquina


no pensamento dos autores (7).
A máquina define-se como um sistema de corte
de fluxo. O fluxo define-se, por sua vez, como o
processo, a produção não qualitativa (fluxo de
fala ou de merda, assim como fluxo de automóvel).
Deste ponto de vista há apenas uma produção,
e não se distinguem como essencialmente diferentes
as máquinas desejantes, as máquinas sociais, as
máquinas técnicas. Veremos na terceira parte deste
trabalho como apreender a definição das máquinas
em O Anti-Édipo em relação à classificação habitual.
Assim, as máquinas técnicas são equivalentes
às máquinas desejantes, excepto por não haver no
seu nível, identidade do produzir e do produzido,
por se usarem sem se desarranjarem, e, facto essen­
cial, por não segregarem, como as máquinas dese­
jantes a sua própria instância de anti-produção
(C.P.S.O.), que está ligada às condições extrínsecas
do processo.
A máquina social (ou socius) pode, quanto a
si, relacionar-se, dum ponto de vista fenomeno­
lógico, com o C.P.S. O., que tanto pode ser o corpo
da terra como o corpo do déspota ou o corpo do
capital, em função das condições históricas.
Se o C.P.S.O. é o lugar do recalcamento
originário pela repulsa das máquinas desejantes
(máquinas paranóicas), o socius é o lugar da repres-

(7) Cf. entrevista já citada, em La Quinzaine littéraire.


38

são identificada com o recalcamento secundário ou


propriamente dito ; este não é o privilégio da família
eterna e transcendente, mas resulta das formas
históricas do socius.

2) Psicanálise cultural e familiarismo,


o Édipo na cultura

Chamamos psicanálise cultural ao uso da


teoria psicanalítica como chave, como abertura ao
sentido dos fenómenos da cultura, ao mesmo título
que o marxismo, a semiologia, etc.
São desenvolvidas e criticadas três teses :
- Primeira tese : Na família, toda a produção
desejante (as máquinas des�jantes) é registada em
função de papá-mamã. Nada pode, nesta matéria,
substituir a descrição e os saborosos · comentários
dos autores sobre um fragm�nto de análise do Dick,
criança psicanalizada por Mélanie Klein. «Quando
lhe mostrei os brinquedos que tinha preparado», .
escreve Mélanie Klein, «ele olhou-os sem o menor
interesse. Peguei num comboio grande que coloquei
ao lado doutro mais pequeno e designei-os com o
nome de comboio-papá e de comboio-Dick. Ele
agarrou no comboio a que eu tinha chamado Dick,
fê-lo andar até à janela e disse : «Estação». Eu
expliquei-lhe que «a estação é a mamã ; Dick entt a
na mamã». Ele largou o comboio, correu a p ôr­
-se entre a porta interior e a porta exterior da
sala, fechando-se e dizendo «escuro», e saiu logo
a correr. Repetiu várias vezes esta manobra. Eu
expliquei-lhe que «faz escuro na mamã, Dick está
no escuro da mamã». Quando a sua análise pro­
grediu, Dick descobriu também que o lavatório
simbolizava o corpo materno e manifestou um medo
extraordinário de se molhar com água.» .
39

Os autores comentam assim : «Diz que é o


:É dipo, senão levas uma estalada.>> O psicanalista
já nem sequer pergunta : «0 que é isso, as tuas
máquinas descjantes ?», mas grita : «Responde papá­
-mamã quando eu te falo.»
No entanto, não se pode negar a importânci�
dos pais no desenvolvimento da criança, mas como
indutores e não como elementos estruturant� s.
Trata-se ainda de stimulus mas «a resposta vem sem­
pre doutr o lado ; se aí houver linguagem, está do
lado da resposta e não do do stimulus». O discurso
da criança é «relacionado com os pais (no senti do
de exprimir) mas não se relaciona com eles no
sentido duma relação natural com eles». «0 incons­
ciente é órfão.» Se o É dipo for efectivamente uma
invariante familiar, tratar-se-á de abrir o dt.bate
no exterior da família.
- Segunda tese : A família constitui o micro­
cosmo do macrocosmo social, onde se encontra
p or todo o lado papá-mamã.
a) O meu coronel, o meu patrão, o meu pro­
fessor, são substitutos do meu pai, o que justifica
o seu papel como um prolongamento natural da
matriz familiar, o que justifica, em última análise,
toda a repressão. O movimento inverso : o meu
pai, é como o meu coronel interiorizado na minha
família, seria mais subversivo ; neste segundo sen­
tido, o É dipo nasce no desejo do pai, «É dipo é em
primeiro lugar uma ideia de paranóico adulto,
antes de ser um sentimento infantil de nevrótico»,
o que significa : «os investimentos sociais são pri­
meiros em relação aos investiment os familiares».
b) O microcosmo será fachada e matricial
como pretendem os psicanalistas, ou papá-mamã e
o ego estarão «em conflito e em contacto directo
com os elementos da situação histórica e política,
com o soldado, o chui , o invasor. . . que a todo o
momento imp edem que as triangulaç ões se façam
e que o conjunto da situação se rebata sobre o
complexo familiar e se interi orize nele» ? Vejamos
um exemplo : um indivíduo põe-se a delirar os
nomes dos gran d es homens da história. São então
possíveis duas interpretações: ou se trata duma
exclusão do significante pai, de qualquer modo
dum buraco no Édipo, abordagem tradicional,
ou trata-se duma viagem no C.P.S.O . . Neste caso,
o conteúdo histórico-político não seria um conteúdo
manifesto mas um fio de Ariana que a ordem
imposta (famil iar) mascara .
«A famíl i a não engen dra os seus cortes ; as
famílias estão cortadas por cortes que não são
familiares : a . Comuna . . . Maio de 68 . . . » Pen samos
evidentemente na análise caricatura! de L'univers
con testationnaire (B), que assimila e reduz os aconte­
cimentos de Maio de 68 a um Édi po mal resolvido !
Em suma, a psicanálise cultural criticada pelos
autores é caracterizada pelo uso intensivo do Édipo
como chave, mas no sentido de ferrolho, de sepa­
ração do desej o e da pr odução s ocial .

- Não esquecemos a ter ceira tese : A psica­


nálise afirma que como o interdito do incesto é
universal, o desejo do incesto o é também. Esta
perspectiva universalista, conte stada pelos autores,
será aprofundada no objectivo da hist ória universal
que vamos agora estudar.

(8) André Stéphane : L" univers contestationnaire (Payto)


3) A história universal

A) Estabelecimento do sistema de leituras


duma sociedade : princípio de codificação-descodi­
ficação.
Já observámos a codificação ao nível das má­
quinas desejantes. Do mesmo modo� as máquinas
técnicas estão codificadas sobre o socius mas com
uma condição : só o qualitativo pode ser registado e
não quantidades abstractas como o equivalente
monetário ; um código nunca é pois econômico�
mas o econômico deve ser rigorosamente codificado.
A descodificação é o processo inverso, perda
do controle dos fluxos pelo socius cuja obsessão
é a entropia. O limite absoluto da descodificação
é o processo esquizofrénico e o seu esconjuro é o
trabalho permanente do socius. Observemos a
este nível que a ausência formal de super-ego não
é ausência de lei ; de facto, a codificação social
confunde-se com ela, nova lei a-edipiana : «A cultura
é a marcação» (9). «A inscrição sobre o socius é o
agente dum recalcamento secundário ou propria­
mente dito».
Os autores chamam territorialização ao inves­
timento dum corpo . pleno vivo pelas máquinas
desejantes e pelas máquinas técnicas ; se o corpo
pleno for um corpo morto, como o capital, fala­
remos de desterritorialização.
Excluiremos do nosso trabalho, por falta de
lugar, o segundo princípio de leitura da história : a
conjuração do Urstaat (Estado fundamental, ori­
ginal}, o que não quer dizer que subestimemos a

(9) Conferência de Ulme, citada em L'arc. n.0 49.


42

i mportânci a desse considerável elemento de aná­


lise (lO) .
B) Vej amo s agora as categorias históricas a
qu e estles conceito s se ap licam :
a) A sociedade selvagem. - Nesta s oci edade ,
as máquinas são os homen s , co dificad os , registados
sobre o socius de inscrição : corpo da terra, única
máquin a · territorial verdadeira. Nada vai escapar
à codificação .. «Fluxo de mulheres e de cri anças ,
fluxo de reb anhos e de sementes, fluxo de esperma
e de mênstruo». Não há «privatização » dos órgãos.
«A família primitiva, l on ge de ser microcosmo, é
uma praxis, uma e straté gia de aliança e de filiação
estreitamente codificadas».
É preciso aliás não confundir, por um lado,
a aliança (pai +mãe) que cri a a dívida, e o s�u
corolário, a troca económica, secundária à inscri çã o ,
e, por o utr o lado, a filiação, administrativa e hierár­
q uica, lateral e extensa.
O código está directamente memorizado no
corpo : «tatuar, excisar, cortar, escarificar, mutilar,
cercar, iniciar, é a escrita da cru eldade» .
Repitamo-lo : não há nada que escape ao
código, nem o prestígio do chefe, nem a riqueza
dos comerciant�s (en-castados) ; isto constitui o
fenómeno da mais-valia de código.
b) A sociedade bárbara. - Passa-se do r egime
selvagem ao regime i mp eri al bárbaro quando o
regi me de filiação extênsa é sub sti tu íd o, sobre­
codificado por um r egime de filiação directa. O
se u tipo é o Novo Testamento : fi liaçã o directa com
Deus em conexão directa com o povo ; o novo socius
de inscrição é o «corpo do déspota>> preci samente

(1°) Ver sobre este assunto o capítulo «territorialidade»


do artigo de J. Donzelot.
43

aquele . que diz : «Eu sou o caminho, a verdade e a


vida » A geração de Abraão, lsaac e Jacob é ultra­
.

pa ssada Os fluxos codificados do antigo regime


.

encontram-se sobrecodificados pela unidade trans­


cendente, o novo socius para quem as comunidades
camponesas (territorialidade residu al) vão dora­
vante trabalhar.
A obsessão da descodificação é esconjurada
p el a sobrecodificação despótica que se apropria
de todas as mais-valias de código, que impõe a
todos os seus sujeitos a lei do si gnificante d e sp ó ­
tico através da sua fala, num grafismo em que a
arbitrariedade do signo remete sempre para a
que stão exegética : «0 que é que o déspota quis
·

dizer ?» ; nascimento do «o que é qu e isso quer


dizer?» ; morte do «como é que isso funciona ?»
O sistema da crueldade é sobrecodificado p el o do
terror : a lei do déspota.
Como p oderi a um suj ei to sobreviver sem o
objecto total , tão afastado dele : <?. corpo do dés­
pota. A idade bárbara é uma introdução à falta,
à castração do obj ecto completo s =parado : «A
idade bárbara segrega sujeitos depressivos>).
Uma questão p ertinent e : porque é que a China
imperi al do século XIII não segregou o seu próprio
capitalismo ? A re sp osta encontra-se no E stado ,
que fech ava as minas quando as reservas de metal
eram consideradas suficientes. É que o dinheiro
não engendrava o dinheiro, o comércio estava
directamente ligado, so brecodificado pelo Estado.
c) O capitalismo (a civilização) surge de facto
quando os fluxos abstractos. do comércio e do
dinheiro entram num sistema de descodificação
generalizada, formando o novo corpo pleno, o do
capital. Toda a mais-valia se torAa incodificável:
mais-valia de fluxo e não de código.
44

O homem e as suas máquinas desejantes são


colocados ao lado das máquinas técnicas. O evi­
tamento da descodificação absoluta que, no seu
limite extremo seria a esquizofrenia, é aqui escon­
jurado por dois mecanismos :
·

1) A axiomática das quantidades abstractas,


segregada pelo corpo do capital, controlada pelo
Estado subjugado, <<regulador dos fluxos descodi­
:fi.cados» ;
2) A re-territorialização factícia, residual, que
culmina na família : o pai é o déspota residual, a
mãe é a territorialidade residual, e o eu está no meio,
castrado.
O microcosmo familiar, e o seu funcionamento
residual factício («a célula da sociedàde») permite
esquecer que o corpo do capital está separado das
máquinas desejantes, anti-produção que funciona
por sua própria conta. O cinismo substitui a lei da
crueldade e do terror. Reino da privatização dos
órgãos, substracto do respeito factício pela pessoa,
da igualdade factícia entre os homens, que ocultam
o funcionamento da classe burguesa. É preciso
compreender o ego dos psicanalistas como o sujeito
privatizado, isto é, privado de conexões directas
entre as suas máquinas desejantes e o socius.
C) É agora possível retomar a que stão : serão
universais o interdito do incesto e o Édipo ? Qual
é o seu lugar na história? Já não a questão do uso
aplicado (psicanálise cultural), mas a do logro,
porque a essência do Édipo é esconder : é esta a
tese de Deleuze e Guattari que vamos desenvolver
de modo diacrónico.
a) Nas sociedades selvagens. - A demonstra­
çã o tem origem no mito Dogon do Yourougou,
penetrando na porção de placenta que . acaba de
roubar. A união com a placenta «enquanto subs-
45

tância comum à mãe e ao filho, parte comum dos


seus corpos, faz com que estes corpos não sejam
uma causa e um efeito, mas ambos pr odutos deri­
vados dessa mesma substância em relação à qual
o filho é gémeo da mãe».
Antes de avanç armos na análise deste mito ,
é nec e ss ári o situá-lo em relação ao weismanismo,
ele próprio mítico. Weismann ( 1 1) , autor alemão do
fim do século pa ssado «estabeleceu a distinção
numa substância viva entre uma parte mortal e
uma parte imortal, em que a primeira é repre sen­
tada pelo corpo, no sentido estrito do termo, pelo
sôma, única parte sujeita à morte natural, enquanto
que as cél ulas germinais seriam virtualmente imor­
tais, cap aze s , em certas condições favoráveis, de
se desenvolverem para formar um novo indiví­
duo . . . » ( 1 2)
Quando os autores falarem, como iremos ver,
em «fluxo germinai intensivo», pos tul am a assimi­
lação do germen ao corpo pleno da terra e ao
C.P.S.O . . O fluxo ge rminai intensivo, proveniente
do germen assim d efini do , vai fluir no sentido da
diferenciação . somática, em função do có digo (gené­
tico) Jlaturalmente inscrito sobre o C.P.S.O . . Esta
diferenciação é re g i da pelo princípio de neguen­
tropia, e dá orig em às pessoas molares (cf. infra).
Ê i g ualmente um modo de fo rmular a teoria d o
ev ol uci o ni smo .
Mas é possível «viajar» no sentido inverso,
isto é, do s ôma para o germen, des-diferenciação

(1 1) Über die Dauer des Lebens (1 882), Über Leben und Tod

(1 2) Resumo da teoria por Freud in du principe de


(1 892), Das Kleinplasma, etc.

plaisir» (Essais de psychana/yse. p. 57).


<<Au-delà
46

regida pelo principio de entropia, que re-descobre


as máquinas desejantes ao seu nível molecular (ver
infra). Um psicanalista diria talvez que se trata
dum desejo de retomo ao seio materno. É , de qual­
quer modo, neste sentido de des-diferenciação que
os autores irão falar de «desej o do fluxo germinai».
Retomemos agora a análise do mito dogon,
donde podemos tirar três conclusões :
1) o desejo de incesto é o da irmã e da mãe
enquanto irmã gémea.
2) em qualquer caso, a essência do desejo é a
união, a re-união «com o fluxo germinai int�nsivo».
Este desejo é inaceitável porque a sua realização
implicaria uma descodificação generalizadà, receio
extremo do socius. Ele tem pois de ser interdito ;
3) o interdito do incesto incide sobre pessoas
nominais (irmã, mãe) através de um mecanismo de
deslocamento : é preferível desejar a minha mãe e a
minha irmã do que uma viagem no fluxo germinai
intensivo. O interdito de união com as pessoas
diferenciadas é criado pelo próprio movimento do
interdito.
É pois falso afirmar : o interdito (universal)
do incesto com a mãe prova o desejo de possuir
a mãe. «A mãe é interdita para ser desejada, no
lugar de outra coisa.»
Em suma :
- o representante recalcado do desejo é o
fluxo germinai intensivo ;
- a representação recalcante é a aliança
(papá + mamã) ;
- o representado deslocado (retomo do recal­
cado) é o próprio interdito do incesto.
O Édipo, centrado no interdito, não se enquista
na família primitiva : praxis viva aberta ·para o
socius. O Édipo primitivo é um «neg-Édipo» no
47

sentido de «neg-entropia». O É dipo é o ltmite


deslocado da angústia de descodificação absoluta :
a esquizofrenia.
b) Nas sociedades bárbaras :
- o representante recalcado do desejo perma­
nece o mesmo ;
- o representante deslocado (retorno do recal­
cado) torna-se a transgressão do incesto pelo dés­
pota (faraó) : nenhum órgão, nenhuma vagina, deve
escapar à_ sobrecodificação do déspota ;
- a representação recalcante já não é a aliança,
. mas o próprio interdito do incesto, que sobreco­
difica a aliança (instância económica).
c) Na civilização capitalista:
- o representante recalcado não muda ;
- a representação recalcante é o microcosmo
da família privatizada (ruptura consagrada com o
novo socius, descodificação em relação ao corpo do
capital) ;
- a formação do microcosmo institucionaliza
a «pulsão incestuosa» na triangulação edipiana,
simples representado deslocado (retorno do recal­
cado). O É dipo como complexo acaba de nascer,
mas é um logro.
Em resumo, o É dipo é de facto universal, mas
como representado deslocado que permite evitar ·

os :fluxos descodificados do desejo, obsessão do


socius.
Compreendemos então que a esquizo-análise,
enquanto processo de descodificação, de esquizo­
frenização tenha como objectivo dar resposta ao
desejo de viagem sobre o corpo da terra, sobre o
C.P. S.O., subindo contra a corrente (da lei do
socius) o fluxo germinai intensivo («libertar a histó­
ria»). Para fazer isso, deve encontrar as máquinas
48

desejantes a partir da maquinaria biológica e social.


É o objecto da última parte do nosso trabalho.
Mas é necessário lembrar antes que :
- o nível molecular é o das micro-máquinas :
máquinas desejantes («micro-física do inconscien­
te») ;
- o nível molar é o dos grandes conjuntos :
organismos biológicos (indivíduos), organismos so­
ciais, assim como em química a organização molar
é constituída pela reunião das moléculas («as má­
quinas desejantes constituem-nos num organismo»).

111. A ESQUIZO-ANÁLISE

Trata-se pois, para os autores, de retomar


o material destacado pelas análises precedentes,
para tentar promover um método de análise apresen­
tado numa sequência lógica. A primeira o bjecção
a que devem responder é a da identidade de natu­
reza das máquinas desejantes e das máquinas
sociais, ou seja, levantar a questão do vitalismo e do
mecanismo e da sua possível superação pelo funcio-
·

nalismo.

1) A oposição vitalismolfuncionalismofmecanismo.

A objecção é pois a seguinte : «Uma formação


biológica, uma formação social não se formam da
�esma maneira como funcionam». É uma aparên­
cia, respondem os autores, é manter-se somente
ao nível molar. Ao nível molecular, «o uso, o fun­
cionamento ,a produção constituem uma e a mesma
coisa». É preciso pois ultrapassar o nível molar
para redescobrir um outro funcionalismo.
l 49

Ao nível molecular, a opostçao vitalismo­


-mecanicismo é superada. «0 zangão faz parte
do sistema reprodutor do trevo vermelho» e, do
mesmo modo, nós fazemos parte do sistema repro­
dutor das máquinas.
«Em suma, a verdadeira diferença não é entre
a máquina e o ser vivo, entre o vitalismo e o meca­
nicismo, mas entre dois estados da máquina que
são também dois estados do ser vivo». Mas, repi­
tamo-lo, esta identidade de natureza só aparece
ao nível molecular ; «a esse nível, funcionamento
e formação ainda estão confundidos, como na
molécula», e é por isso que as pulsões parciais
são máquinas, e as máquinas sociais máquinas de
máquinas compreendendo as máquinas desejantes.
A disjunção entre máquinas molares (máquinas
de máquinas) e as máquinas moleculares é inclu­
siva.
Esta identidade de natureza não exclui dife­
renças de regime, . e mesmo «quando os regimes
são os mais próximos, a identidade de natureza
é, pelo contrário, mínima». «Qualquer investi­
mento é social, incide sobre um campo social
histórico.»
Situemos aqui a concepção maquínica dos
autores em função da classificação usual das máqui­
nas : ao nível molecular, as máquinas desejantes
são máquinas «cibernéticas microscópicas» ; ao
nível molar, as máquinas sociais e os organismos
biológicos são máquinas termodinâmicas submeti­
das à perda de energia.
Esta procura do nível molecular por detrás
do nível molar, esta procura de máquinas dese­
jantes no nível molar é o que constitui a esquizo­
-análise. «Trata-se de descobrir quais são as máqui­
nas desejantes dum indivíduo ; de que modo fun-
cionam, com que sínteses, com que entusiasmo,
com que falhas constitutivas, com que fluxos,
com que encadeamentos, com que devir em cada
caso.»
Nunca nos deteremos pois no É dipo que não
é mais do que uma formação molar (desejo de
pessoas molares), mas prosseguiremos até às má­
quinas desejantes, até aos investimentos sociais
das máquinas desejantes. Neste sentido, a esquizo­
-análise reencontra o funcionamento das curas
primitivas. «Mas para diagnosticar, para escon­
jurar os . efeitos do incisivo (13), o adivinho e o mé­
dico fazem uma análise social do Território e da
sua vizinhança, das chefaturas e das sub-chefa­
turas ( . . . ) Põem constantemente a descoberto o
desejo nas suas relações com as unidades polí­
ticas e económicas».

2) As tarefas da esquizo-análise.

Visto que todo o investimento é molar e social,


é preciso distinguir os investimentos pré-cons­
cientes de classe conformes aos interesses, e os
investimentos libidinais inconscientes conformes
ao desejo. Por exemplo, um militante sindicalista
pode ter investimentos pré-conscientes revolucio­
nários e investimentos inconscientes fascistas/para­
nóicos. A tarefa da esquizo-análise seria recon­
ciliar as duas formas de investimentos. A psicaná­
lise clássica desmascara efectivamente essas mesmas
contradições, mas em referência à mitologia edi­
piana. Neste sentido, ela própria cai sob a influência
da esquizo-análise : um desejo pré-consciente de

(13) Trata-se dum dente dum caçador ancestral, numa cura


primitiva relatada por V. Turner.
51

descodificar (analisar) e um desejo inconsciente de


rebater o molecular sobre o molar.
Põe-se uma questão : deverá a esquizo-análise
conduzir à esquizofrenia?
Lembremos em primeiro lugar que «o ego
capitalista», privatizado, é uma reterritorialização
factícia induzida pela necessidade de propriedade
privada. Ele é como que estranho ao funcionamento
das máquinas desejantes. São possíveis três soluções :·
1 ) O ego «nevrotiza»-se, «edipianiza»-se, ou
seja, aceita situar-se de maneira molar em relação
a papá-mamã. O único processo de produção colec­
tiva será a procriação. A psicanálise servirá para
a ajudar em caso de necessidade.
2) O processo de esquizofrenização (a esqui­
zofrenia) consistiria, pelo contrário, em reencontrar
o funcionamento das máquinas desejantes ; o ego
só pode explodir quando se reencontrar «a produção
primária universal como realidade essencial (iden­
tidade) do homem e da natureza». «Qualquer coisa
da ordem do sujeito» poderá então advir (cf. supra :
o consumo e o sujeito).
É esta verdade que Deleuze e Guattari procu­
ravam na loucura.
3) O esquizofrénico nosográfico será o que
tomar o processo pelo fim, no que é ajudado pelas
instituições de tratamento. A viagem (delírio) con­
tinuará até ao infinito, ou então, até constituir o
«famoso estado terminal», o autismo, em que o
esquizofrénico se limita ao C.P. S. O. , o seu único
refúgio, desterritorialização extrema:
*

O que reter da nossa leitura do Anti-Édipo ?


- Em primeiro lugar, esta distinção entre
processo esquizofrénico como viagem (descodi-
52

:ficação) e processo esquizofrénico como entidade


nosográfica (processo tomado como fim).
- Em seguida, a denúncia do mito do micro­
cosmo familiar como reterritorialização factícia
que oculta as contradições do capitalismo. Crítica
decisiva da psicanálise cultural e das suas funções
políticas : rebater no microcosmo familiar toda a
produção desejante e tomá-la em seguida como
referência da organização social.
- Aliás, porque é que a psicanálise não haveria
de aceitar ser interpelada pela esquizo-análise ?
Não teria, também ela, investimentos inconscientes
contrários aos seus objectivos confessos ? Neste
sentido, os autores aparecem frequentemente como
mais freudianos do que o próprio Freud : analisam
o que está para além do É dipo, recuam o limite.
- No que diz respeito às novas perspectivas
da história universal, gostaríamos de as aprofundar
em bases eruditas. Mas não esquecemos que as
intenções explícitas da obra são a introdução a uma
psiquiatria materialista em que a produção dese­
jante e a produção social não estariam já compar­
timentadas. Esta intenção fica por concretizar.
Tudo isto faz de O Anti-Édipo uma obra incon­
trolável que a investigação actual não pode, segundo
nos parece, ignorar.
Mas isto não nos impede de articular certas
críticas.
A argumentação sobre o É dipo pode fazer
pensar «no argumento do caldeirão» (14) e parecer
contraditória. Afirmam-nos inicialmente :
- o Édipo não existe, nem sequer é preciso
p ôr o problema ;

(14) S. Freud : L'interprétation des rêves (p. 1 1 1).


53

- aliás ele só existe como adjacente ;


- e depois não incide sobre a mãe mas sobre
a irmã ;
- de qualquer modo o desejo da mãe não é
mais do que o representante deslocado do fluxo
germinai . . .
Por quererem provar muito, os autores che­
gam por vezes a contradizer-se, pelo menos ao
nível formal, o que faz perder impacto à sua
crítica.
Além disso, gostaríamos de admitir que é
preciso reencontrar o nível molecular através do
nível molar, mas sem, por isso, desvalorizar esse
mesmo nível, cujo ocultamento constatamos ; não
o esqueçamos, o nível molar funciona segundo o
princípio da termodinâmica (perda de energia,
necessidade de restauração). Constatamos que esse
ocultamento é acompanhado na obra por uma
exegese do problema da castração. Gostaríamos
de ver aprofundada essa relação ocultamento
molar-negação da castração. O esforço mais intenso
dos autores não será, de facto, tentar construir um
sistema conceptual de que a fase depressiva fosse
excluída ? O livro é também uma tentativa para
responder à questão : «Como viver sem a fase
depressiva, como contorná-la ?»
Não estamos plenamente convencidos com a
resposta dos autores e perguntamos : «Em que é
que se torna então a fase depressiva clinicamente
observada ?» E desejamos que um futuro livro
traga uma resposta às questões que ficam postas.

Texto publicado na revista «l}Esprit>>, Dez-72


ENTREVISTA 1

DELEUZE E GUATTARI EXPLICAM-SE . . .

Desde a publicação de O Anti-Édipo que


tínhamos decidido, em vez de recensear a obra do
modo habitual, organizar um debate em que os
autores estariam em confronto com alguns espe­
cialistas das disciplinas postas em causa : filosofia,
psicanálise e psiquiatria, etnologia, sociologia, etc.
Esse debate desenrolou-se em 1 7 de Abril último
durante três horas, e dele saíram sessenta páginas
dactilografadas cuja reprodução integral era impos­
sível. Com o acordo e a colaboração dos parti­
cipantes, as páginas que publicamos representam
o resumo fiel das suas intervenções.

La Quinzaine

Maurice Nadeau. - Com certeza que Deleuze


e Guattari desejam que esta discussão comece com

perguntas. Vamos no entanto pedir-lhes que, por


um lado, exponham rapidamente a tese do seu
livro, e seguidamente que nos digam de que modo
se efectuou a sUa. colaboração.
Félix Guattari. - Esta co labo ração não é o
resultado dum simples encontro entre dois indi-
56

víduos. Para além do concurso das circunstâncias,


foi também todo um contexto político que aí nos
conduziu. Tratou-se, na origem, menos de p ôr
em comum um saber que o acumular das nossas
incertezas, e mesmo de uma certa confusão perante
o aspecto que os acontecimentos tinham assumido
após Maio de 68.
Fazemos parte de uma geração cuja consciência
política nasceu no entusiasmo e ingenuidade da
Libertação, com a sua mitologia esconjuratória do
fascismo. E as questões deixadas em suspenso por
essa outra revolução abortada que foi Maio de 68
desenvolveram-se para nós segundo um contra­
ponto tanto mais perturbador quanto nos inquie­
tamos, como tantos outros, com os amanhãs que
nos preparam e que bem poderiam cantar os hinos
de um fascismo de nova trituração que nos fará
lamentar o dos bons velhos tempos.
O nosso ponto de partida foi considerar que
na altura desses períodos cruciais qualquer coisa
da ordem do desejo se manifestou à escala do con­
junto da sociedade, e depois foi reprimido, tanto
pelas forças do poder como pelos partidos e sindi­
catos ditos operários e, até um certo ponto, pelas
próprias organizações esquerdistas.
E sem dúvida que seria preciso remontar
ainda mais atrás ! A história das revoluções traídas,
a história da traição do desejo das massas, está
em condições de se identificar à história do movi­
mento operário. Por culpa de quem ? De Béria, de
Staline, de Khrutchev ! Não era o bom programa,
a boa organização, a boa aliança. Não se tinha
relido suficientemente Marx no texto . . . Isto é indu­
bitável ! Mas a evidência bruta permanece : a revo­
lução era possível, a revolução socialista estava ao
alcance da mão, existe verdadeiramente, não é um
S7

mito tornado inconsistente pelas transformações


das sociedades industriais.
Em certas condições as massas exprimem a sua
vontade revolucionária, os seus desejos varrem
todos os obstáculos, abrem horizontes inauditos,
mas os últimos a compreenderem-no são as orga­
nizações e os homens que se supõe representá-las.
Os dirigentes traiem ! É evidente ! Mas porque é que
os dirigidos continuam a escutá-los ? Não será
consequência de uma cumplicidade inconsciente, de
uma interiorização da repressão, operando em
níveis sucessivos, do Poder aos burocratas, dos
burocratas aos militantes e dos militantes às pró­
prias massas ? Vimo-lo bem após Maio de 68.
Felizmente, a recuperação e os boatos falsos
pouparam algumas dezenas de milhar de pessoas
- talvez mais - que estão agora vacinadas contra
os delitos das burocracias de qualquer categoria,
e que concordam em ripostar tanto às imundícies
repressivas do Poder e do patronato como às suas
manobras de conciliação, de participação, de
integração, que se apoiam na cumplicidade das
organizações operárias tradicionais.
É preciso reconhecer que as actuais tentativas
de renovar as formas de luta popular só com
dificuldade se soltam do aborrecimento e dum
escutismo revolucionário, de que o mínimo que se
pode dizer é que se não preocupa demasiado com
a libertação sistemática do desejo ! «0 desejo, sem­
pre o desejo, não sabem dizer mais nada !» Isto
acaba por irritar as pessoas sérias, os militantes
responsáveis ! É claro que não vamos recomendar
que se leve a sério o desejo. Tratar-se-ia mesmo mais
de minar o espírito sério, a começar pelo domínio
das questões teóricas. Uma teoria do desejo na
história não se deveria apresentar como algo de
58

muito serto. E, deste ponto de vista, talvez O


Anti-Édipo seja ainda um livro demasiado sério,
demasiado intimidante. O trabalho teórico deveria
deixar de ser ocupação de especialistas. O desejo
de uma teoria e os seus enunciados deveriam inserir­
-se na direcção dos acontecimentos e na enuncia­
ção colectiva das massas. Para o conseguir, será
preciso que se forje uma outra raça de intelectuais,
uma outra raça de analistas, uma outra raça de mili­
tantes, em que os diferentes géneros se combina­
riam e fundamentariam uns aos outros.
Partimos da ideia de que não se devia considerar
o desejo como uma superestrutura subjectiva mais
ou menos no eclipse. O desejo não cessa de trabalhar
a história, mesmo nos seus piores períodos. As
massas alemãs acabaram por desejar o nazismo.
Depois de Wilhelm Reich não é possível deixar
de enfrentar esta verdade. Em certas condições,
o desejo das massas pode voltar-se contra os seus
próprios interesses. Quais são essas condições ?
É esse todo o problema.
Para lhe dar resposta, pareceu-nos que não
nos podíamos contentar em prender um vagão
freudiano ao comboio do marxismo-leninismo. É
preciso, em primeiro lugar, desfazermo-nos de uma
hierarquia estereotipada entre uma infra-estrutura
opaca e superestruturas sociais e ideológicas conce­
bidas de tal modo que recalcam as questões do sexo
e da enunciação para o lado da representação, o
mais afastado possível da produção. As relações
de produção e as relações de reprodução participam
no mesmo par das forças produtivas e das estru­
turas anti-produtivas. Trata-se de fazer passar o
desej o para o lado da infra-estrutura, para o lado
da produção, enquanto se fará passar a família,
o eu e a pessoa para o lado da anti-produção. É o
59

único meio de se evitar que o sexual fique definiti­


vamente separado do económico.
Existe, segundo pensamos, uma produção dese­
jante que, anteriormente a toda a actualização na
divisão familiar dos sexos e das pessoas e na divi­
são social do trabalho, investe as diversas formas
de produção de fruição e as estruturas estabelecidas
para as reprimir. Sob diferentes regimes, é a mesma
e�ergia desejante que encontramos na face revo­
lucionária da história, com a classe operária, a ciên­
cia e as artes, e que reencontramos na face das rela­
ções de exploração e do poder de Estado, enquanto
ambas pressupõem uma participação inconsciente
dos oprimidos.
Se é certo que a revolução .social é inseparável
· de uma revolução do desejo, então a questão des­
loca-se : em que condições poderá a vanguarda
revolucionária . libertar-se da sua cumplicidade in­
consciente com as estruturas repressivas e frustrar
as manipulações pelo poder, do desejo das massas,
de tal modo que chegam a «combater pela sua ser­
vidão como se da sua salvação se tratasse ?» Se
a família e as ideologias familiaristas exercem, como
pensamos, uma função nodal neste assunto, então
como apreciar a função da psicanálise que, tendo
sido a primeira a abrir estas questões, foi igual­
mente a primeira a torná-las a fechar ao promover
um mito moderno da repressão familiarista com o
Édipo e a castração ?
Para avançar nesta direcção, parece-nos neces­
sário abandonar uma abordagem do inconsciente
através da nevrose e da família, para adoptar o
das máquinas desejantes, mais específico do processo
esquizofrénico - e que pouco tem a ver com o
ouco de asilo.
60

A partir daí, impõe-se uma luta militante


contra as explicações redutoras e contra as técnicas
de sugestão adaptadoras com base na triangulação
edipiana. Renunciar à captação compulsiva de um
objecto completo, simbólico de todos os despo­
tismos. Deixar-se deslizar para o lado das multi­
plicidades sociais. Cessar de estabelecer uma oposi­
ção entre o homem e a máquina cuja relação, pelo
contrário, é constitutiva do próprio desejo. Promo­
ver uma outra lógica, uma lógica do desejo real,
estabelecendo o primado da história sobre a estru­
tura ; uma outra análise, liberta do simbolismo e da
interpretação ; e um outro militantismo, fornecendo
os meios da sua própria libertação dos fantasmas
da ordem dominante.

SUPERAR A DUALIDADE TRADICIONAL

Gilles Deleuze. - Quanto à técnica deste livro,


escrever a dois não constituiu problema particular,
mas teve uma função precisa de que progressiva­
mente nos apercebemos. Uma coisa muito cho­
cante nos livros de psiquiatria ou mesmo de psica­
nálise, é a dualidade que os atravessa, entre o que
um suposto doente diz e o que aquele que o trata
diz sobre o doente. Entre o «caso» e o comentário
ou a análise do caso. Logos contra pathos : supõe-se
que o doente diz qualquer coisa e que aquele que
o trata diz o que isso quer dizer na ordem do sin­
toma ou do sentido. Isto permite todos os esmaga­
mentos do que o doente diz, toda uma selecção
hipócrita.
Nós não pretendemos fazer um livro de louco,
mas fazer um livro em que já não se sabia, em que
já não havia lugar para se saber quem falava preci­
samente, o que trata, o tratado, um doente não
tratado, um doente presente, passado ou futuro.
É por isso mesmo que nos servimos tanto dos escri­
tores, dos poetas : é preciso ser-se muito esperto
para dizer se falam como doentes ou como mé­
dicos - doentes ou médicos da civilização. Ora,
bizarramente, se tentámos superar esta dualidade
tradicional foi precisamente porque escrevíamos
a dois. Nenhum de nós era o louco ou o psiquiatra ,
era preciso sermos dois para desencadear um pro­
cesso que não se reduzisse nem ao psiquiatra nem
ao seu louco, nem ao louco e ao seu psiquiatra.
O processo é aquilo a que chamamos o fluxo.
Ora, ainda aí, o fluxo é uma noção de que preci­
sávamos como noção qualquer não qualificada.
Isso pode ser um fluxo de palavras, de ideias, de
merda, de dinheiro, pode ser um mecanismo finan­
ceiro ou uma máquina esquizofrénica : isso supera
todas as dualidades. Sonhávamos este livro como
um livro-fluxo.
Maurice Nadeau. - Desde o vosso primeiro
capítulo há, precisamente, essa noção de «máquina
desejante» que fica obscura para o profano e que
gostaríamos de ver definida. Tanto mais que ela
tem resposta para tudo, chega para tudo . . .
Gilles Deleuze. - Sim, nós damos à máquina
uma grande extensão : em relação com os fluxos.
Definimos a máquina como qualquer sistema de
cortes de fluxo. Assim, tanto falamos de máquina
técnica, no sentido usual da palavra, como de má­
quina social, ou de máquina desejante. É que, para
nós, _ máquina não se opõe de modo nenhum nem
ao homem nem à natureza (é preciso realmente boa
vontade para nos objectar que as formas e as
relações de produção não são máquinas). Por
outro lado, máquina não se reduz ao mecanismo.
O mecanismo designa certos procedimentos de
62

certas máquinas técnicas ; ou então uma certa


organização de um organismo. Mas o maquinismo
é uma coisa completamente diferente : é, mais
uma vez, qualquer sistema de corte de fluxo que
supera simultâneamente o mecanismo da técnica
e a organização do organismo, quer seja na natu­

reza, na sociedade ou no homem.


Por exemplo, máquina desejante é um sistema
não-orgânico do corpo, e é neste sentido que fala­
mos de máquina molecular ou de micro-máquinas.
Mais precisamente, em relação à psicanálise : nós
acusamos a psicanálise de duas coisas, de não
compreender o que é o delírio, porque não com­
preende que o delírio é o investimento dum campo
social tomado em toda a sua extensão, e de não
compreender o que é o desejo, porque não vê que
o inconsciente é uma fábrica e não uma cena de
teatro.
O que é que resta se a psicanálise não com­
preende nem o delírio nem o desej o ? Estas duas
acusações constituem apenas uma : o que nos inte­
ressa é a presença das máquinas de desejo, micro­
-máquinas moleculares, nas grandes máquinas so­
ciais molares. De que modo agem e funcionam
umas nas outras.
Raphael Pividal. - Se tivessem de definir o
vosso livro em relação ao desejo, eu pergunto :
como é que este livro responde ao desejo ? A que
desej o ? Desejo de quem ?
Gilles Deleuze. - Não é enquanto livro que
ele poderia responder ao desejo, é antes em função
daquilo que o rodeia. Um livro, em si mesmo,
não tem valor. Sempre os fluxos : há muitas pessoas
que trabalham em sentidos vizinhos, em outros
domínios. E depois, há as gerações mais novas :
com eles é duvidoso que se fixe um certo tipo de
63

discurso, tanto epistemológico como psicanalítico


ou ideológico, de que todos começam a estar fartos.
Nós dizemos : aproveitem-se do Édipo e da
castração, não durarão muito tempo. Até agora
tem-se deixado a psicanálise tranquila : atacava-se
a psiquiatria, o hospital psiquiátrico, mas a psica­
nálise parecia intocável, não comprometida. Ten­
tamos mostrar que a psicanálise é pior do que o
hospital, precisamente porque funciona em todos
os poros da sociedade capitalista e não em locais
especiais de encerramento. E que é profundamente
reaccionária na sua prática e na sua teoria e não
só na sua ideologia. E que preenche funções precisas.
Félix diz que o nosso livro se dirige a pessoas
que têm agora entre 7 e 1 5 anos. Em ideal, porque
de facto é ainda muito difícil, muito cultivado e
opera demasiados compromissos. Não o soubemos
fazer suficientemente directo, claro. No entanto,
faço notar que o primeiro capítulo, que passa por
difícil a muitos leitores favoráveis, não supõe qual­
quer conhecimento prévio. Em todo o caso, se um
livro responde a um desejo, é na medida em que
há já muita gente que está farta dum certo tipo
de discurso corrente, é pois na medida em que
participa num reagrupamento de trabalho, nas
ressonâncias entre trabalhos ou desejos. Em suma,
um livro só pode responder a um desejo politica­
mente, no exterior do livro. Por exemplo, uma
associação dos frequentadores habituais da psica­
nálise em cólera, não estaria mal para começar.

UMA IRRUPÇÃO MATERIALISTA

François Châtelet. - O que me parece impor­


tante é a irrupção dum texto como este entre os
livros de filosofia (porque ·este livro é pensado
64

co mo l ivro de filo sofia) . Ora O Anti-Édipo rompe


com tudo. Em p rim�it o lugar duma maneira exte­
rior, pela própri a «forma» do t·�xto : há «p al avr ões »
p ron unciad os desde a s":"gunda linha, como p or
provocação . J ulga- se, a o pri ncípi o, que isso não
vai durar mui to t �mp o, e afinal dura. Trata-se
sempre disso : de «máquinas acopuladas» e as «má­
qui n a s acopulad as» são singularmente obscenas ou
e scatoló g� ca s .
Além disso, press��nti essa i rrupç ão como mate­
rialista. Há mu i to tempo que i sso não n o s acon­
teci a . É preciso dizer que a metod ol o gi a começa
a chatear-nos. Com o imperi alismo da metodologia
que br a- se todo o trabalho de investigaçã o e de
apro fundamen to . Eu caí nesse capri cho e falo com
conhecimento de causa. Em resumo, S::! fal o de
irrupção mat�rialista é por p·ensar em L ucréc io .
Não s�i se isto vos agrada . Demais ou de menos.
Gilles Deleuze. - Se isso é verdad·�, é per­
feito. I sso s eria maravilhoso. Em todo o caso n ã o
há no nosso l ivro nenhum probl�ma metodoló­
gico. Também não há nenhum problema de inter­
pretação : porque o inconsciente não quer dizer
nada, porque as máquinas não querem dizer n ada ,
contentam-se em funcionarem , em produzirem e
em se d e sarranj arem , porque apenas procuramos
de que modo qualquer coisa funciona n o real .
Também não há ne nhum problema ep i ste ­
mológico : não nos interessa nada u m retorno a
Freud ou a Marx ; se nos diss erem que compreen­
demos mal Freud, não o iremos di scutir, diremos
que tanto pior, há tantas coisas para fazer . É curio s o
como a epistemologia sempre escondeu uma ins­
tauração de p od er, uma e spécie de tecnocratismo
universitário ou i deológico. Nós, por n osso lado,
65

não acreditamos em nenhuma especificidade da


escrita ou mesmo do pensamento.
Roger Dadoun. - Até agora a discussão desen­
volveu-se - para empregar uma dicotomia que é
fundamental na vossa interpretação - a um nível
«molar», ou seja, ao nível dos grandes conjuntos
conceptuais. Não conseguimos transpor o passo
que nos conduziria ao nível «molecular», isto é,
às micro-análises, graças às quais se poderia verda­
deiramente conceber o modo como «maquinaram»
o vosso trabalho. Isso seria particularmente pre­
cioso para a análise - já a esquizo-análise ? - das
peças políticas do texto. Gostaríamos, nomeada­
mente, de saber como o fascismo e Maio de 68,
«nota» dominante do livro, intervieram não «molar­
mente», o que seria demasiado banal, mas «mole­
cularmente», na fabricação do texto.

A QUESTÃO DO «OBJECTO PARCIAL»

Serge Leclaire . - Tenho justamente a impres­


são de que o livro está de tal maneira maquinado
que qualquer intervenção «a um nível molecular»
será digerida pela máquina do livro.
J ulgo que a vossa intenção, aq ui confessada,
«de um livro em que toda a dualidade possível
fosse suprimida>> é uma intenção que foi atingida,
para além mesmo das vossas esperanças. Isso coloca
os vossos interlocutores numa situação que só lhes
deixa, por muito _ pouco clarividentes que sejam,
a perspectiva de serem absorvidos, digeridos, atados
de pés e mãos, em suma, anulados como tais pelo
admirável funcionamento da dita máquina.
Assim, há uma dimensão que me levanta
problemas e sobre a qual de boa vontade vos
inter.rogaria : qual é a função dum livro-coisa como
e�te, p oi s que de início parece ser perfeitamente
totalizante, absorvente, de natureza a integrar, a
absorver todas as questões que se p o deriam tentar
abrir ? Em primeiro lugar, parece-me, de colocar
o interlocutor entalado, só pelo facto de falar e
p ôr uma questão.
Façamos j á a experiência, se o quiserem, e
vamos ver o que é que acontece.
Uma das peças essenciais da máquina dese­
jante é, se bem vos compreendi, «o o bJ.!cto parcial»
que, para quem ainda não conseguiu libertar-se
completamente do uniforme psicanalftico , evoca
um conceito psicanalítico; o conceito kleiniano de
objecto parcial . Mesmo que se pretenda, como
você s o fazem com um certo humor, «troçar dos
conceitos».
Há n esta utilização do objecto parcial, como
peça essencial da máquina des-ejant�, algo que me
parece muito impot tante ; vocês também t�ntam,
apesar de tudo, «defini-lo» ; vocês dizem : o object o
parcial só se pode definir positivamente. É isso que
me espanta. Em prime iro lugar, em que é que a
qualificação positiva difere ess�ncialment.! da impu­
tação negativa que denunciam?
Sobretudo : a menor experiência psicanalítica
mostra que o objecto parcial só pode s�r definido
«diferentemente» e «em relação ao significante».
Aqui a vossa «coisa» só p o de, é caso para o
dizer, «falhar» o s.eu objecto (espera, é a falta banida
que re aparece !) : seja que escrita for, como um
livro , dá-se para um texto sem significante, que diria
o verdadeiro sobre o verdadeiro, colando-se a um
suposto real, muito ingenuamente. Como se isso
fosse possível sem distància nem mediação. Cuida­
dosamente expurgado (em intenção) de toda a
dualidade. Pois seja. Uma coisa desta e spécie pode
67

ter a sua função ; julgá-to-emos pelo uso. Mas no


que se refere ao desejo de que pretende, melhor
do que a psicanálise, trazer à sociedade a boa
nova, só pode, torno a dizê-lo, falhar o seu objecto.
Penso que a vossa máquina desejante que só
deveria funcionar ao desarranj ar-se, ou seja, com
as suas avarias, com as suas falhas de motor, é
tornada completamente inofensiva por vocês pró­
prios, em virtude do objecto «positivado», da ausên­
cia de toda a dualidade e de toda a «falta>>, vai
trabalhar como . . . um relógio suíço.

LIQIDDAR O TOTALITARISMO D O SIGNIFICANTE

Félix Guattari. - Não creio que se deva


situar o objecto parcial positiva ou negativamente,
mas antes como participante de multiplicidades
não totalizáveis. É sempre de modo ilusório que se
inscreve em referência a um objecto compl...,to como
o corpo próprio ou mesmo como o corpo frag­
mentado. Ao abrir a série dos objectos parciais,
para além do seio e das fezes, à voz e ao olhar,
Jacques Lacan marcou a sua recusa em fechá-los
e rebatê-los sobre o corpo. A voz e o olhar escapam
ao corpo, por exemplo, colocando-se cada vez mais
na adjacência das máquinas do audio--visual.
Deixo aqui de lado a questão de sab�r quanto
a função fática, segundo Lacan, na medida em
que sobrecodifica cada um dos objectos parciais,
não lhes restitui uma cex ta identidade e, ao lhes
distribuir uma falta, não apela para uma outra
forma de totalização, desta vez numa ordem sim·
bólica. Seja como for, parece-me que Lacan se
aplicou a libertar o objecto de desejo de todas as
referências totalizantes que o podiam ameaçar :
desde o estado do espelho, a líbido escapava à
68

«hipótese substancialista», e a identificação sim-.


bólica partia de uma referência exclusiva ao orga­
nismo ; articulada com a função da fala e com o ·
campo da linguagem, a pulsão quebrava o quadro
dos tópicos fechados sobre si mesmos ; enquanto
que a t .!oria do objecto «a» contém talvez em germe
a liquidação do totalitarismo do significante.
Ao tornar-se objecto «a», o objecto parcial
destotalizou-se, desterritorializou-se, estabeleceu de­
finitivamente as suas distâncias com uma corpo­
reidade individuada ; está em condições de cair
para o lado das multiplicidades reais e de se abrir
aos maquinismos moleculares de qualquer natureza
que trabalham a histól ia.
Gilles Deleuze. - É de facto curioso que
Leclaire diga que a nossa máquina funciona dema­
siado bem, que é capaz de digerir tudo. Porque
foi isso mesmo o que objectámos à psicanálise,
e é curioso que um psicanalista nos censure isso
por sua vez. Digo isto porque temos com Leclaire
uma relação particular : há um texto seu sobre «a
realidade do desejo» que, antes de nós, vai no sen­
tido de um inconsciente-máquina e que descobre
elementos últimos do inconsciente que j á não são
nem figurativos nem estruturais.
Parece que o nosso acordo não é total, visto que
Leclaire nos censura por não compreendermos o
que é o objecto parcial. Diz que defini-lo positiva
o u negativamente não tem importância porque, de
qualquer modo ele é outra coisa, ele é «diferente».
Mas não é tanto a categoria de objecto, mesmo
parcial, que nos interessa. Não é certo que o desej o
tenha alguma coisa a ver com objectos, mesmo
parciais. Nós falamos de máquinas, de fluxos, de
extracções, de destacamentos, de resíduos. Faze­
mos uma crítica do objecto parcial. E não há dúvida.
69

que Leclaire tem razão em dizer que não tem


assim tanta importância definir o objecto parcial
positiva ou negativamente. Mas só tem razão teori­
camente. Porque se considerar mos o funcionamento,
se perguntarmos o que a psicanálise faz do objecto
parcial, como é que o faz funcionar, então já não é
indiferente saber se ele entra numa função positiva
ou negativa.
A psicanálise serve-se ou não do obj ecto par­
cial para assentar as suas ideias de falta, de ausência
ou de significante da ausência e para fundar as suas
operações d·� castração ? É a psicanálise que, mesmo
quando invoca as noções de diferença ou de dife­
rente, se serve do o bj ecto parcial de um modo
negativo para soldar o desej o a uma falta. O que
censuramos à psicanálise : o elaborar uma concep­
ção piedosa, com a falta e a castração, uma espécie
de teologia negativa que comporta un1 apelo à
resignação infinita (a Lei, o impossível, etc.). É
contra isso que propomos uma concepção positiva
do desej o, como desej o que produz, e não desejo
que falta. Os psicanalistas são ainda piedosos.

LECLAIRE : «PARA QUE É QUE SERVE A VOSSA "COISA'?»

Serge Leclaire. - Não recuso a vossa ct ítica,


assim como, aliás, lhe não reconheço a p ertinência.
Sublinho simplesmente que parece fundar-se na
hipótese dum real um pouco . . . totalitário : sem signi­
ficante, sem defei t0, sem clivagem ou castração.
Em última análise, pergunta-se o que vem fazer
a «verdadeira diferença» que aparece na vossa
escrita. É conveniente. dizem vocês, situá-la não
entre . . . vej amos . . .
Gilles Deleuze. - . . . entre o imaginário e o
simbólico . . .
Serge Le claire . - . . . entre o re al, p or um lado,
que apresentam como o solo, a subjacência, e
qualq uer coisa como superestruturas que seriam
o imaginári o e o simbólico. Ora eu penso que a
questão da «verdadeira d iferenç a» é, de facto, a
questã o que está posta no problema do obj �cto.
Há pouco, Félix, ao referir-se aos ensinamentos de
Lacan, (foste tu que remet2ste para isso), situava
o objecto «a» em relação ao «ego», à pessoa, etc . .
Félix Guattari. - . . . à pessoa e à família . . .
Serge Leclaire. - Ora, o conceito de objecto
«a» em Lacan, faz parte de um quaternário que
c ompre end e o significant�, pelo m �nos d upl o
(S l e S2), e o suj eit o (S b arrad o). A verdadeira
diferença, a retomar esta expressão, deve ser situada
entre o significante, por um lado, e o o bject o «a»
por outro.
Eu aceito que nunca convenha, por razões
piedosas ou ímpias, não sei, empregar o termo
significante. Seja como for, não vej o como pod 3m
recusar aí qualquer dualidad.e e promover o objecto
«a» como auto-suficiente, como um l ugar -tenente
dum Deus ímpio. Não creio que possam sustentar
uma tese, um projecto, uma acção, uma «coisa»,
sem introduzirem em algum lado uma dualidade
e tudo o que acarreta.

Félix Guattari. - Não estou de modo algum


certo que o conceito de obj ecto «a>> em Lacan
seja mais do que um ponto de fuga, do que um
escape, pre cisamente ao carácter d esp ótico das
cadeias significantes.
Serge Leclaire. - O que a mim me interes sa
verdadeiramente e que tento articular dum modo
evidentemente diferente do vosso, é s aber de que

modo se · desenvolve o desej o na máquina social.


Penso que se não pode fazer a economia de uma
71

focagem precisa da função do objecto. Será então


necessário precisar as suas relações com os outros
elementos em j ogo na máquina, elementos propria­
mente «significantes» (simbólicos e imaginários,
se preferirem). Essas relações não existem num só
sentido, isto é, os elementos «significantes» têm
efeitos de retorno sobre o objecto.
Se se quiser compreender qualquer coisa do
que se passa, da ordem do ·desejo, na máquina
·social, temos de passar por esse desfile que constitui,
neste momento, o objecto. Não basta afirmar que
tudo é desej o, é preciso dizer como é que isso se
passa. Para terminar, acrescentarei uma pergunta :
para que é que serve a vossa «coisa» ?
Que relação pode haver entre a fascinação por
uma máquina sem falha e a animação verdadeira
de um projecto revolucionário? É a questão que
·Vos ponho, ao nível da acção.
Roger Dadoun. - A vossa «máquina» - ou
a vossa «coisa» - de qualquer modo trabalha. Tra­
balha muito bem, por exemplo, em literatura,
para uma captação do fluxo ou da circulação «es­
quizo» no · Héliogabale de Artaud ; trabalha para
avançar mais no jogo bipolar - esquizoidefpara­
nóide num autor como Romain Rolland ; trabalha
para uma psicanálise do sonho - para o sonho de
Freud chamado «rinjection faite à Irma» que é
teatro no sentido quase técnico do termo, com en­
cenação, grande plano, etc., é cinema. Seria também
preciso ver como é que isso trabalha no lado da
criança . . .
Henri Torrubia. - Como trabalho num ser­
viço psiquiátrico, queria sobretudo acentuar um
dos pontos nodais das vossas teses sobre a esquizo­
-análise. Vocês afirmam. com argumentos para mim
muito esclarecedores, a primazia do investimento
72

social e a essência produtiva e revolucionária do


desejo. Isto levanta problemas teóricos, ideoló­
gicos e práticos tais, que é preciso esperarem uma
verdadeira conspiração.
Sabe-se, de qualquer maneira, que empreender
uma psicologia analítica num estabelecimento psi­
quiátrico, sem a possibilidade de «cada um» repor
constantemente em questão a própria rede institu­
cional é, ou tempo perdido ou, no melhor dos
casos, não ir muito longe. Na conjuntura actual
não se pode nunca aliás ir muito longe. Como isto
é assim, quando surge um conflito essencial em
qualquer lado, quando qualquer coisa se desarranja,
e que é precisamente índice que qualquer coisa
da ordem da produção desejante pode aparecer
e que, bem entendido, põe em questão o campo
social e as suas instituições, vemos imediatamente
nascer reacções de pânico e organizarem-se resis­
tências. Essas resistências assumem formas diversas :
reuniões de síntese, de coordenação, aj ustamentos,
etc., e, mais subtilmente, a interpretação psicana­
lítica clássica com o seu habitual efeito de esmaga­
mento do desejo tal como vocês o concebem.
Raphael Pividal. - Serge Leclaire, você fez
várias intervenções. Elas estão um pouco deslo­
cadas em relação ao que Guattari disse. Porqu_�-º
livro apresenta de um modo fundamental a prática
da análise, a vossa profiss�o num certo sentido,
e você tomou o problema de uma maneira parcial.
Você apenas o reteve para o afogar na sua lingua­
gem, que é a das teorias que desenvolveu e em que
privilegia o fetichismo, ou seja, precisamente o
parcial. Refugia-se nesse género de linguagem para
levar Deleuze e Guattari a detalhes. De tudo o
que no Anti-Édipo diz respeito ao nascimento do
Estado, à esquizofrenia, ao papel do Estado. você
73

não diz nada. Da vossa prática de todos os dias


não diz nada. Do verdadeiro problema da psica�
nálise, o do doente, você não diz nada. Evidente­
mente que não é de você, Serge Leclaire, que se
faz o processo, mas é nesse ponto que é preciso
responder : sobre as relações da psicanálise com
o Estado, com o capitalismo, com a História, com
a esquizofrenia.

A FUNÇÃO DA PULSÃO NUMA FORMAÇÃO SOCIAL

Serge Leclaire. - Estou de acordo quanto ao


ponto de vista que propõe. Se insisto no ponto
preciso do objecto, é para p ôr em evidência através
de um exemplo o tipo de funcionamento da coisa
produzida.
Dito isto, não recuso inteiramente a crítica
·

de Deleuze e Guattari no que respeita ao enruga­


mento, ao esmagamento da descoberta psicana­
lítica, o facto de nada ou quase nada ter dito relati­
vamente às relações da prática analítica ou do
esquizofrénico com o campo político ou com o
campo socüil. Não basta manifestar a intenção de
o fazer, é preciso conseguir fazê-lo pertinentemente.

Os nossos dois autores tentaram-no, e é a sua


tentativa que aqui discutimos.
Disse simplesmente e recordo-o que a abor­
dagem correcta do problema me parece passar
p or um desfile extremamente preciso : o lugar do
objecto, a função da pulsão numa formação social.
Só uma observação a propósito do «isso tra­
balha», que é avançado como argumento em favor
da pertinência da máquina. ou do livro em questão.
Evidentemente que isso trabalha ! E ia dizer que
para mim também, num certo sentido, i sso trabalha.
Podemos constatar que qualquer prática teorica-
74

mente investida tem hipóteses, num primeiro tempo,


de trabalhar. Isso não constitui em si um critério.
Roger Dadoun. - O problema principal que
o vosso livro coloca é, sem dúvida, este : como é
que isso vai trabalhar politicamente, visto que tam­
bém o político é admitido por vocês como «maqui­
nação» principal. Trata-se de ver a amplidão e a
minúcia com que se debruçaram sobre o «socius»,
e nomeadamente dos seus aspectos etnográficos,
antropológicos.
Pierre Clastres. - Deleuze e Guattari, o pri­
meiro filósofo, o segundo psicanalista, reflectem em
conjunto sobre o capitalismo. Para pensarem o
capitalismo passam pela esquizofrenia, em que vêem
o efeito e o limite da nossa sociedade. E para pen­
sarem a esquizofrenia passam pela psicanálise
edipiana, mas como Átila : após a sua passagem
pouca coisa fica. Entre os dois; entre a descrição
do familiarismo (o triângulo edipiano) e o projecto
da esquizo-análise, há o maior capítulo de O Anti­
-Édipo, o terceiro, «Selvagens Bárbaros, Civiliza­
dos». Trata-se aí, . essencialmente, das sociedades
que são o objecto habitual de estudo dos etnó­
logos. Que faz aí a etnologia?
Assegura ao empreendimento de Deleuze e
Guattari a sua coerência, que é grande, fornecendo
para a sua demonstração pontos de apoio extra­
-ocidentais (tomada em consideração das socie­
dades primitivas e dos impérios bárbaros). $e os
autores se limitassem a dizer : no capitalismo, as
coisas funcionam assim, e nos outros tipos de
sociedades as coisas funcionam de outro modo,
não se abandonaria o terreno do comparatismo
mais vulgar. Nada disso acontece, porque mostram
«como é que isso funciona de outro modo». O
Anti-Édipo é também uma teoria geral da socie-
75"

dade e das sociedades. Por outras palavras, Deleuze


e Guattari escrevem a propósito dos Selvagens e
dos Bárbaros o que até agora os etnólogos não
tinham escrito.
É verdade (não se escrevia, mas sabia-se apesar
de tudo) que o mundo dos Selvagens é o lugar da
codificação dos fluxos : não há nada que escape ao
controle das sociedades primitivas, e quando se
produz uma derrapagem - isso acontece - a so­

ciedade descobre sempre o meio da blocagem.


Também é verdade que as formações imperiais
impõem uma sobrecodificação dos elementos sel­
vagens integrados no Império, mas sem destruírem
forçosamente a codificação dos· fluxos que persiste
ao nível local de cada elemento. O exemplo do
Império inca ilustra perfeitamente o ponto de
vista de Deleuze e Guattari. Dizem coisas muito
belas sobre o sistema da crueldade como escrita
sobre o corpo nos Selvagens, sobre a escrita como
modo do sistema do terror nos Bárbaros. Parece-me
que os etnólogos se deveriam sentir em O Anti­
-Édipo como em sua casa. Isto não quer dizer que
se aceite tudo à primeira vista. Vai haver, como se
pode prever, reticências (pelo menos) perante uma
teoria que postula o primado da genealogia da
dívida, que assim substitui o estruturalismo da
troca. Podemos também perguntar-nos se a ideia
de terra não esmaga um pouco a ideia de território.
Mas tudo isto significa que Deleuze e Guattari
não desprezam os etnólogos : põem-lhes verdadeiras
questões, questões que obrigam a reflectir.
Retorno a uma interpretação evolucionista
da história? Retorno a Marx, para além de Morgan?
De modo nenhum. O marxismo progredia mais ou
menos em relação aos Bárbaros (modo de produção
asiático) mas não soube nunca o que fazer com os
76

Selvagens. Porquê? Porque se� na perspectiva mar­


xista, a passagem da barbárie (despotismo oriental
ou feudalismo) · para a civilização (capitalismo) é
pensável, em contrapartida nada permite pensar
a passagem da selvajaria para a barbárie. Não há
nada nas máquinas territoriais (as sociedades pri­
mitivas) de que se possa dizer que isso prefigura
o que virá a seguir : nem casta, nem classe, nem
exploração, nem sequer trabalho (se o trabalho
é por essência alienado). Então de onde é que
aparece a História, a luta de classes, a desterrito­
rialização, etc. ?
Deleuze e Guattari respondem a esta questão
porque sabem o que fazer com _ os Selvagens. E a
sua resposta é, a meu ver, a descoberta mais vigo­
rosa, mais rigorosa de O Anti-Édipo : trata-se d�
teoria do «Urstaat», o montro frio, o pesadelo,
o Estado, que é o mesmo por todo o lado e «que
sempre existiu». Sim, o Estado existe nas sociedades
primitivas, mesmo no mais minúsculo bando de
caçadores-nómadas. Existe mas é incessantemente
esconjurado, impedido de se realizar. Uma sociedade
primitiva é uma sociedade que consagra todos os
seus esforços a impedir o seu chefe de se tornar
um chefe (e isso pode ir até ao assassínio). s�. (l
história é a história da luta de classes (nas socie­
__ _

dades em que há classes, evidentemente) então


pode-se dizer que a história das sociedades sem
classes é a história da sua luta contra o Estado
latente, é a história do seu esforço para codificar
o fluxo do poder.
É evidente que O Anti-Édipo não nos diz
porque é que a máquina primitiva, aqui ou ali,
não conseguiu codificar o fluxo do poder, essa
· morte que não pára de crescer do interior. Não há,
de facto, a menor razão para que o Estado se realiz�
77

no seio do Socius primitivo, não há a menor razão


para que a tribo deixe o seu chefe representar o
papel de chefe (é possível demonstrá-lo com a aj uda
de exemplos etnográficos). Então de onde surge,
imediatamente completo, o «Urstaat» ? Vem neces­
sariamente do exterior, e podemos esperar que o
seguimento de O Anti-Édipo n os diga mais a esse
respeito.
Codificação, sobrecodificação, descodificação
e fluxo : estas categorias determinam a teoria da
sociedade, enquanto que a ideia de «Urstaat»,
esconjurado ou triunfante, determina a teoria da
História. Encontramos aqui um pensamento radi­
calmente novo, uma reflexão revolucionát ia.

A IMPORTÂNCIA PRÁTICA DE «0 ANTI-ÉDIPO»

Pierre Rose. - Para mim, o que prova a


importância prática do livro de Deleuze e Guattar i
,

é a sua recusa da virtude do comentário. É um


livro que faz a guerra. Trata-se aqui da situação
das classes trabalhadoras e do Poder. O desvio é
realizado pela crítica da instituição analítica, mas
a questão não se rebate aí.
«0 inconsciente é a política» dizia Lacan em
67. A análise apresentava por aí a sua pretensão
à universalidade. É quando a análise se aproxima
da política que de um modo mais franco legitima
a opressão. É uma sot te de prestidigitação em que
a subversão do Sujeito suposto saber se torna
submisso perante uma nova trindade transcendental
da Lei, do Significante, da Castração : «A Morte
é a vida do Espírito, para que é que serve revol­
tarem-se ?» A questão do poder ficava apagada pela
ironia conservadora do hegelianismo de direita que
mina a questão do inconsciente, de K ojeve a Lacan.
78

Esta herança, ao menos, era coerente. Acaba•


-se também com a tradição, mais sórdida, da teoria
das ideologias, que obcecava a teoria marxista
desde a 1 1 . a lnternacional, ou sej a, desde que o
pensamento-Jules Gueste esmagou o p ensamento­
-Fourier.
O que os marxistas não conseguiam quebrar,
era a teoria do reflexo, ou aquilo que dela tinham
feito. No entanto a metáfora leninista do «pequeno
parafuso» na «grande máquina» é luminosa : a
destruição do Poder nos espíritos é uma transfor­
mação que se produz em todas as peças da máquina
social.
O modo como o conceito maoísta de «revo­
lução ideológica» rompe com a oposição mecani­
cista entre a ideologia e o político-económico des­
trói a redução do desejo ao «político» (Parlamento
e luta de partidos) e da política ao discurso .(do
chefe) para restaurar a realidade da guerra múlti­
p la em múltiplas frent�s. Este método é o único
que se aproxima da crítica do Estado em O A n ti­
-Édipo. Está excluída a hipótese de um trabalho
crítico que se reinicia com O Anti-Édipo se torna1
uma operação universitária, actividade lucrativa
dos dervixes giratórios do Ser e do Tempo. Recu­
pera o seu efeito, conquistado contra os instru­
mentos do Poder, no real, irá ajudar em todos os
assaltos contra a polícia, contra a justiça, contra
o exército, contra o poder de Estado na fábt ica
e no exterior..

MÁQUINAS DE DESEJO E MÁQUINAS SOCIAIS

Gilles Deleuze. - O que Pividal disse há


pouco, o que Pierre acaba de dizer, parece-me perfei­
tamente justo O essencial para nós, é o problema
..
79

da relação entre as máquinas do desejo e as máqui­


nas sociais, a sua diferença de regime, a sua ima­
nência umas às outras. Ou seja : como é q ue o desejo
inconsciente é investimento social , econó m.i co e
político. Como é q ue a sexualidade ou aqu ilo a que
Leclaire talvez chamasse escolha de objectos sexuais,
não faz mais do que exprimir esses investimentos,
que são realmente investimentos de fluxos . Como
é que os nossos amores são d�rivados da História
universal e não d erivados de papá-mamã. Através
de uma mulher ou de um homem amados é todo
um campo que é investido, e que pode sê-lo de dife­
rentes maneiras. Assim, nós tentamos mostrar
como é q ue os fluxos correm em diferent.:s campos
sociais, sobre o que é qu e correm, com o que é que
são investi d os , codificação, sobrecodificação, des­
c odificação .

Poder-se-á dizer que a ps i can ális.e não che­


gou sequer a analisar esse domínio, por exemplo
com as suas ridículas explicações do fascismo,
quando faz derivar tudo de image ns de pai ou de
mãe ou de significante s fan1iliaristas e piedosos
como o nome do Pai ? Serge Leclaire diz q ue ,
embora o nosso sistema trabalhe, i sso não constitui
uma prova, porque qualquer coi sa trabalha. É
verdade. Nós também dizemos : Édipo e a castração
trabalham muito bem. Mas trata-se de sab�r quai s
são os efeitos de funcionamento, e a custo de que é
que isso funci ona ? Que a psicanálise acalma, con­
forta, nos ensina as resignações com que podemos
viver, é certo. Mas afirmamos que usurpou a sua
reputação de promover ou mesmo de participar
numa efectiva libertação. Ela esmagou os fenó­
menos de desej o sobre uma cena familiar, esmagou
toda a dimensão política e económica da líbido
num código conformista. Desde que o «doente»
80

se ponha a falar político, a delirar político, é pre­


ciso ver o que a psicanálise faz disso. Veja-se o que
Freud fez com Schreber.
Quanto à etnografia, Pierre Clastres disse
tudo, em qualquer caso o melhor para nós. O que
tentamos é p ôr a líbido em relação com um «exte­
rior». O fluxo de mulheres nos primitivos está em
relação com os fluxos de rebanhos, com fluxos de
flechas. Repentinamente um grupo nomadiza-se.
Repentinamente os guerreiros chegam à aldeia,
veja-se a Muralha da China. Quais são os fluxos
de uma sociedade, quais são os fluxos capazes de
a subverter, e qual é o lugar do desejo em tudo
isto ? Há sempre qualquer coisa que chega à líbido,
e que lhe chega do fundo do horizonte, não do
interior. Será que a etnologia, assim como a psica­
nálise, não deveria estar em relação com esse exte­
rior ?
Maurice Nadeau. - Deveríamos talvez aca­
bar aqui se quisermos aproveitar para la Quin­
zaine uma conversa que excede já os limites da
publicação num só número do jornal. Agradeço
a Gilles Deleuze e a Félix Guattari os esclareci­
mentos que nos forneceram a propósito de uma
obra chamada a revolucionar indubitavelmente
grande número de disciplinas e que me parece
ainda mais importante pela tentativa muito par­
ticular pela qual os seus autores abordam questões
que nos preocupam a todos. Agradeço igualmente
a François Châtelet por ter organizado e presidido
a este debate e, evidentemente, a todos os especia­
listas que nele quiseram participar.
Para além de Gilles Deleuze, Félix Guattari,
François Châtelet e Roger Dadoun que os nossos
leitores conhecem bem por os terem lido muitas
81

vezes em la Quinzaine, participaram neste debate :


Raphael Pividal, escritor e assistente de sociologia
em Paris V, Henri Torrubia, médico psiquiatra,
Pierre Clastres, etnólogo (de quem igualmente
temos publicado artigos), Pierre Rose, estudante
em Paris IV, Serge Leclaire, psicanalista, autor
nomeadamente de Psychanalyser e a quem Pierre
Pachet fez uma entrevista a propósito do seu
último livro (ver la Quinzaine, n. o 1 32). Os nossos
leitores recordam-se de ter lido as primeiras páginas
de O Anti-Édipo no nosso n.0 1 40 e o artigo de
Roger Dadoun sobre a mesma obra no nosso
último número.

1 6-30 de Junho de 1972


Entrevista publicada na revista «la Quinzaine littéraire»,
CAPITALISMO ENERGúMENO

POR J. F. LYOTARD

A crítica não é o tempo de pensar.


Pensem à frente do tempo
(John Cage a Daniel Charles)

Bellmer coloca um espelho na perpendicular


de u:p1a fotografia de um nu feminino. E passeia-o,
observando que pela fenda abstracta da linha de
contacto saiem flores de carne irreconhecíveis,
ou que estas são reabsorvidas quando o espelho
viaja em sentido inverso. Fim da representação ?
ou então representação na sua versão moderna, em
que o que «interessa» já não é o corpo pleno, agora
denunciado como má bela-harmonia, como falsa
bela-totalidade, má e falsa porque doravante impra­
ticáveis (ou de facto sempre impraticáveis, a não
ser no breve fantasma colectivo do romantismo em
consequência da cesura da modernidade, em Hol­
derlin e J.-P. Richter e Hegel, e ainda Marx), - mas
o corpo não-organismo, desmembrado, esmagado
por si próprio, redobrado, atado, rebatido por
charcos e farrapos, fragmentos colados, não-con­
junto de objectos parciais cosidos no prodígio
cacofónico ? Fim da representação, se é que repre-
84

sentar é apresentar na sua ausência qualquer coisa-

mas ainda representação, se representar for mesmo


assim apresentar, apresentar o inapresentável, repre­
sentar no sentido de fazer «representações» a
alguém, admoestações, re-mostrar. Porque o que
se censura é a desordem. Sentido envelhecido ?
Aqui está : haverá uma ruptura da moder­
nidade ? Será verdade que depois de Cézanne já
não temos senão trapos ? Sim, certamente. Mas a
questão não está aí. O que é possível é que antes
de Cézanne, seguramente no barroco, no que
«contorna», o claro escuro, as sombras aflorando
e recortando os corpos numa espécie de trabalho
de mau talho, em que as carnes já não estão sepa­
radas consoante o seu fio, mas em contra-fio,
como em La Tour e decerto já no Caravage (o que
este sistema de valores quer dizer, observamo-lo
bem quando a câme:r:a video-color se apropria
dele e imprime na película, em vez do «espectáculo»
que o Living Theater representava pela última vez
em Zurique, a liquidez evasiva de cores diluindo
o humano no inumano, no quimismo do cromá­
tico : «verdade» do barroco, ele é informe), logo já
no barroco e talvez mesmo já no resumo perspec­
tivista (o Cristo morto de Mantegna não será Alice
quando encolhe de tal maneira que o seu queixo
acaba por tocar nos seus pés ?) e no sadismo angu­
loso da construção legítima de Brunelleschi, caixa­
-macho para mulheres cortadas em pedaços, da
fita de ferro em que Dürer ajusta a sua cara para se
manter quieto perante a mulher estendida por
detrás da cancela segura por uma rede de fios, na
impossível perspicácia de Piero, que nos dá longes
tão desenhados, tão meticulosamente lineares como
os seus primeiros planos, - poderia acontecer que
em todo este dispositivo representativo, quer
85

«primitivo», quer clássico, quer ainda barroco, o


importante não seja o uniforme, a síntese, a bela
totalidade, a coisa perdida ou restituída, a reali­
zação do Eros unificador, mas a distorsão, o esquar­
tejamento, a diferença e a exterioridade em qual­
quer forma. O informe e o desfigurado.
E então, nesta hipótese, os modernos que
multiplicam as modalidades e as inscrições com os
seus teatros com cenas múltiplas ou transformáveis
(o teatro total de Piscator e de Gropius), com a
infinita diversidade das inscrições pictóricas que
eles continuam a classificar de «pintura», com a
explosão da música em intensidades sonoras que
derivam no elemento silêncio-ruídos, com os livros
anti-livros ou não-livros, os livros de viagens - não
será que continuam a representação-desfiguração ?,
não acontecerá que, julgando acabar com ela, a
desloquem e não a reconheçam, abrindo a caixa,
fazend9 o espaço cénico espalhar-se à volta do
espectador, por cima, por baixo, desfazendo, é
certo, a relação axial estrita da fita, da rampa, da
cancela e mesmo da divisão sala/cena, mas recuando
o vidro-espelho, colocando-o aquém do antigo ? E
então é um espelho deformante, amolgado, com
zonas cegas, risos e ondulações que produzem
distorsões, anamorfoses selvagens, aleatórias, como
em determinadas lentes da câmera underground e,

evidentemente, já em Demoiselles d'Avignon, o


que não impede que entre estas e um determinado
nu de Bourguereau, o afastamento talvez não seja
maior do que, como o mostra Gombrich, entre
vidro plano e vidro disforme, sendo o cubismo
efectivamente um academismo desfeito, mas perma­
necendo ambos representação.
Eis um pensamento deprimido, eis um pensa­
mento piedoso, nülista : vocês nunca têm a própria
86

coisa, mas apenas a sua representação, e mesmo


quando julgam desalojá-la na sua fragmentação
de origem, só têm a sua representação, a coisa
fragmentada diferida. É o pensamento que continua
a representação como complemento da piedade,
como produção da exterioridade no interior. Mas
se não fosse esse o problema? Se fosse o limite
exterior/interior que, com a inscrição moderna,
se achasse desqualificado, transposto ? Se fosse
preciso tomar a sério não a apresentação de novo,
mas apenas a produção ; não o apagamento (repre­
sentativo), mas a inscrição ; não a re-petição, mas
a diferença enquanto irreparável ; não a signifi­
cação, mas a energética ; não a mediação por cons­
trução de cena, mas a imediatez de produzir em
qualquer sítio ; não a localização, mas a desloca­
lização perpétua ? O tempo acaba por não se con­
tentar com observar a captura e o apagamento
dos fluxos libidinais numa ordem cuja represen­
tação e as suas separações juntivas-disjuntivas é,
seria a última palavra, porque esta captura e este
apagamento são o capitalismo, mas chega o tempo
de servirem e de encorajarem a sua divagação erran­
te sobre todas as superfícies e fendas imediatas
cruas, de corpo, de história, de terra, de linguagem . . .
Atitude que já nem seria revolucionária no sentido
do derrubamento, viragem (e da especialização
nessas operações teatrais), e assim ainda distri­
buição da energia segundo o edifício e o artifício
da sua representação, mas volucionária no sentido
da Wille, no sentido de querer qualquer coisa que
se possa.
Escrever, segundo esta atitude, é esquecer.
Em primeiro lugar o equecimento da conveniência
formal, do bom estilo. Já não os canais, os parques,
os arvoredos, os lagos à francesa da escrita rare-
87

feita destes tempos, nem sequer as graciosidades


epigonais hexagonais e dum gosto muito seguro ;
nem as niil conotações apagadas. Quando o olho
de Deleuze e Guattari pisca, é tão grande como uma
represa. O seu livro é um deslocamento de águas
volumosas, umas vezes lançadas em torrente,
outras estacionárias, trabalhando por baixo, mas
avançando sempre quer com as vagas ou com as
correntes, quer contra-correntes. O que está em
causa não é uma significação, mas uma energé­
tica. O livro não traz nada, leva muito, transporta
tudo. É um pantógrafo que apanha a energia eléc­
trica nos fios de alta tensão e permite transformá-la
em rotação de rodas nos carris, para o passageiro
em paisagens, em sonhos, em músicas, em obras
por sua vez transformadas, destruídas, arrastadas.
O próprio pantógrafo desloca-se muito depressa.
Não é um livro de filosofia, isto é, de religião. Nem
sequer a religião das pessoas que já não acreditam
em nada, a religião da escrita. A escrita é antes
tratada como uma maquinaria : que absorva ener­
gia e a transforme em potencial metamórfico no
leitor.
Em seguida, o esquecimento da crítica. O
Anti-Édipo, apesar do seu título, não é um livro
crítico. É antes um livro positivo, posicional, como
o Anti-Cristo, uma posição energética inscrita em
discurso, em que a negação do adversário não se
faz por Aufhebung, mas por esquecimento. Tal
como o ateísmo é a religião continuada. sob a
sua forma negativa, e é mesmo a forma moderna
da religião, a única sob a qual a modernidade pode
continuar a ser religiosa, também a crítica se torna
o objecto do seu objecto, se instala no campo do
outro, aceita as dimensões, as direcções, o espaço
do outro no próprio momento em que os contesta.
88

Encontrarão no livro de Deleuze e Guattari um


desprezo ostensivo pela categoria de transgressão
(e assim, implicitamente, por todo Bataille) : é que
ou se sai imediatamente, sem se perder tempo a
criticar, apenas porque se está colocado fora da
região do adversário, ou então critica-se, deixa-se
um pé de dentro e outro de fora, positividade do
negativo, mas de facto negação desse positivo. É
esta não-potência crítica que encontramos em Feuer­
bach ou em Adorno. Marx afirmava em 1 844 que
o socialismo não necessita do ateísmo, porque
a questão do ateísmo é posicionalmente a mesma
da da religião, permanece crítica. O que é impor­
tante na questão não é a sua negatividade, é a sua
posição (a posição do problema). Do ateísmo (que
Marx via como comunismo utópico) ao socialismo,
não há uma fronteira transposta, não há trans­
crescença, não há crítica ; há um deslocamento,
o desejo nomadizou-se num outro espaço, começou
a funcionar um outro dispositivo, que trabalha
de outro modo, e se trabalha, não é por se ter
feito a crítica da outra velha máquina. Pela mesma
razão, e em igualdade de circunstâncias, as linhas
que se seguem não serão críticas.
Contrariamente a todas as previsões ou pre­
cisamente porque o título deslumbrante é um efeito
de ilusão, o que este livro mais profundamente
subverte é aquilo que não critica, o marxismo.
Isto não implica que, simetricamente, não subverta
a psicanálise, que ataca. Pelo contrário, sob a
diferença de funcionamento dos regimes desta má­
quina que o livro é, consoante opera com Freud
ou com Marx, permanece uma evidente identidade
de posição. O que é silenciosamente enterrado de
Marx não é menos grave nem menos importante
do que aquilo que em Freud é submetido ao incên-
89

dio crepitante do contra-fogo, do anti-Édipo. Por


um lado, a máquina-livro desliga-se do dispositivo
psicanalítico e expõe-no, obriga-o a expor-se, tal
como o homem o tinha feito em relação ao gravador
rebatendo e projectando toda a energia libidinal,
que se supunha esgotar na relação transferencial,
contra a figura paranóica do Arqui-Estado, que
subtende, segundo Deleuze e Guattari, esse dispo­
sitivo da prática psicanalítica ; por outro lado,
inversamente, o livro absorve os fluxos teóricos e
práticos do marxismo, cortando-os aqui e ali,
abolindo sem uma só palavra partes inteiras do
dispositivo marxista. E, no entanto, os dois Velhos
sofrem de facto do mesmo mal : tudo aquilo através
do qual a economia libidinal comunica neles com
a economia política, é que é verdadeiramente
força de transformação e portanto partida em
potência ; aquilo, pelo contrário, através de que o
libidinal esconde o político em Freud, ou o político
o libidinal em Marx, é preciso, acima de tudo,
sair disso e dançar. Assim, tudo o que é política
inconsciente na psicanálise, vai encontrar-se profun­
damente subvertido, e é esse o eixo visível do livro,
sendo o anti- Édipo o anti-Estado, é a ruptura com
a figura despótica inconscientemente presente na

psicanálise. Mas deve encontrar-se igualmente des­


bloqueado tudo o que é líbido inconsciente no
marxismo, líbido encarcerada nos dispositivos reli­
giosos da política dialéctica ou do catastrofismo
económico, líbido recalcada nas análises inter­
rompidas do fetichismo da mercadoria ou da natu­
ralidade do trabalho.
Acontece que o livro é anti-Édipo e não anti­
-Partido (embora se suponha que o Partido é na
superfície de inscrição socio-política o análogo do
Édipo na superfície corporal). Não será conferir
90

demasiada importância à psicanálise nos mecanis­


mos repressivos que regulam a circulação do Kapi­
tal ? Não será demasiado estrondosa esta virulência
crítica ? Não será justamente graças a ela que a
esquerda intelectual vai tornar o livro um gadget,
uma mercadoria quaternária e neutralizá-lo ? A
sua verdadeira virulência não será o seu silêncio ?
Ligando este pequeno trabalho ao grande trabalho
do livro justamente no ponto em que este se cala,
desejamos fazer partir por aí alguns fluxos permu­
táveis pelos comerciantes e/ou políticos. Reafir­
mamos deste modo aquilo que o livro afirma� Mos­
tramos que este é um dos produtos mais intensos
da nova figura libidinal que «se fixa» no interior
do capitalismo.

Não tem qualquer importância que o que nós fazemos


acabe por ser melódico.
(Chr. Wolff a Stockhausen)

O marxismo afirma : há uma fronteira, um


limite, passado o qual a organização dos fluxos
que se chama capital (relações de produção capita­
listas) se desfaz, o grupo de correspondências entre
moeda e mercadoria, entre capitais e força de tra­
balho, e ainda outros parâmetros, se desregula.
E é o próprio crescimento das capacidades de pro­
dução no capitalismo mais moderno que, ao encon­
trar este limite, vai fazer vacilar o dispositivo da
produção e da circulação, e que não poderá evitar
deixar passar, deixar avançar ainda mais fluxos
de energia e deixar o seu sistema de «regulação»
desligar-se no capital, ou seja, nas relações de
produção.
91

Toda a política marxista é construída sobre


isso, procura nesta fronteira, neste limite, nesta
cadeia, um elo, uma determinada pedra que parece
estar mais perto de ceder, o elo mais fraco - ou
julgado mais pertinente para arrastar com ele toda
a construção, elo mais forte. Toda esta política
é uma política do limite e da negatividade. Há,
reclama ela, uma exterioridade fora do alcance
do capital ; ao mesmo tempo que ele estende as
leis do valor a novos objectos, ou melhor, que remo­
dela todos os velhos objectos, outrora «codifi­
cados» segundo as regras minuciosas da produção
dos «ofícios», segundo os rituais das religiões,
segundo os hábitos das antigas culturas «selvagens»,
para os descodificar e para os tornar «object<?s»
modernos, livres de qualquer outra determinação
que não a da permutabilidade, ao mesmo tempo
a_proxima-se de um limite que não pode transpor.
O que é este limite ? A desproporcionalidade
dos fluxos de crédito e dos fl uxos de produção ?
a das quantidades de mercadoria e das quanti­
dades de moeda de pagamento ? a do capital inves­
tido e a da sua suposta taxa de lucro ? o desequi­
líbrio entre a capacidade de produção instalada e a
produção ? a desproporcionalidade entre o capital
fixo e os salários ou capital variável ? a da mais­
-valia criada pela exploração da força de trabalho
e da sua realização ou reconversão em produção ?
Ou então o limite será a diminuição da taxa de
lucro ? Ou a germinação da crítica revolucionária
nas fileiras de um proletariado crescente ? Ou
será, pelo contrário, preciso constatar, amarga mas
simetricamente, isto é, permanecendo no mesmo
campo teórico e prático, que o incitamento a in­
vestir, desencorajado por esta diminuição da taxa
de lucro, é compensado pelas intervenções do
92

Estado ; que os trabalhadores, de facto sempre


mais numerosos, estão no entanto cada vez menos
abertos à perspectiva duma desordem revolucio­
nária (a ponto dos partidos comunistas se terem
visto obrigados a excluir praticamente uma tal
perspectiva do seu programa, e a apresentarem-se
como bons gerentes de um sistema quase idêntico
em que apenas haveria menos proprietários de
capitais e maior número de altos funcionários) ?
Estas hesitações não são especulativas, são
práticas e políticas. Procedem de um século de
movimento comunista, de um extenso meio século
de revolução socialista. Quase como se, por volta
de 1 860 nos interrogássemos sobre a dinâmica da
revolução francesa, sobre as contradições da socie­
dade do Antigo Regime, sobre a direcção imprimida
por Robespierre ao curso revolucionário. sobre
a função histórica de Bonaparte, e, finalmente,
sobre · a diferença fundamental entre a sociedade
francesa sob os últimos reis e a sociedade francesa
sob o último imperador, apercebendo-nos de que
ela se não situa onde a ideologia burguesa das
Luzes a coloca, mas ao lado, na revolução indus­
trial. O mesmo se passa, guardadas as devidas
distâncias, no Estado «socialista» russo. O seu
afastamento da sociedade burguesa não está onde
o seu discurso o localiza, no poder dos Sovietes,
ou seja, numa maior proximidade, muito grande,
dos trabalhadores com as decisões a tomar sobre
a economia e a sociedade, logo numa ductibilidade
mais flexível dos fluxos de produção, de palavras,
de pensamentos, de coisas - mas, pelo contrário,
numa organização tão rígida como a do czarismo,
tão «racional» (isto é, irracional), secundária · (no
sentido freudiano), dessas correntes através de um
aparelho estatal sociófago que absorve a sociedade
93

civil, económica e intelectual, que se infiltra nela


por todos os seus canais de circulação e faz aí
correr o betão da suspeita burocrática. Assim já
não flutuante e ainda menos representativo ; pelo
contrário, igualmente centralizado, totalizador e
paranóico. E talvez mais centralizado. Também
aqui as coisas se passam noutro lado : a revolução
socialista engendra uma espécie de novo Estado
despótico em que o desprezo policial-paternalista
pelas massas e pela líbido procura acompanhar
a eficácia técnica e a iniciativa («americanas») do
capitalismo e não o consegue. A Lenine, afirmando
que o socialismo era o poder aos Sovietes mais a
electrificação, Cronstadt respondia : é o poder do
partido mais as. execuções. O capitalismo não é
de modo algum o regime da liberdade, está também
construído sobre o princípio do rebatimento dos
fluxos de produção sobre o socius, o Kapital é esse
rebatimento ; só que ele se deve apenas fazer sob
as espécies do lucro, e não sob as de qualquer van­
tagem em potência sagrada (numen) , nisso a que
Deleuze e Guattari chamam mais-valia de código,
poder de prestígio, que supõe a adesão dos corações.
O capitalismo não oferece nada em que se creia,
o cinismo é a sua moralidade. O Partido, pelo
contrário, figura despótica, requer um rebatimento
territorializado, codificado, hierarquizado no sen­
tido religioso do termo. A Rússia, a terra russa,
o povo, o seu folclore, as suas danças, os seus
hábitos e os seus trajos, o babá e o paizinho, tudo
o que provém das comunidades eslavas «selvagens»
encontra-se sustentado, conservado e relacionado
co� a figura do secretário geral, com o déspota
que se apropria de todas as produções .
. Se nos interrogamos pois sobre o que efectiva­
mente arruína a sociedade burguesa é evidente que
94

não poderemos encontrar resposta na revolução


socialista, nem no marxismo. Não só a «dialéc­
tica» histórica desmentiu a dialéctica especulativa,
como temos também de admitir que esta não é
dialéctica nenhuma. Figuras, vastos dispositivos,
disputam as energias ; a maneira de as captar,
de as transformar, de as espalhar, é sempre diferente
consoante se trate da figura capitalista ou da
figura despótica. Elas podem conciliar-se, e pro­
duzem então, não contradições, não uma história
em via de totalização conduzindo a outras figuras,
mas efeitos de compromisso à superfície social,
monstros inesperados : o operário stakhanovista,
o chefe de empresa proletário, o marechal vermelho,
a bomba nuclear de esquerda, o polícia sindica­
lizado, o campo de trabalho comunista, o realismo
socialista. Em registos simultâneos de dispositivos
económicos libidinais como aqueles, é seguramente
a figura despótica que domina. Mas mesmo que
fossem outros, não vemos de qualquer modo por­
quê e como é que esta maquinaria seria um resul­
tado dialéctico, e ainda menos porquê e como é
que a figura libidinal do capitalismo deveria ou
poderia «conduzir a» um dispositivo deste género,
pelo seu «desenvolvimento orgânico intrínseco».
De facto, não conduz a isso, apenas conduz a si
própria : não há nenhuma «transcrescença» a espe­
rar, não há nenhum limite no seu campo que não
transponha. Por um lado, o capitalismo passa por
cima de todas as limitações pré-capitalistas, por
outro, arrasta e desloca consigo o seu próprio
limite na sua viagem. Confusão da «esquerda»,
esquerdista e não-esquerdista.
É esta a região donde partem Deleuze e Guat­
tari : e se esta ideia de limite intransponível, econ6-
mico, social, «moral», político, técnico, ou o que se
95

quiser, fosse uma ideia vazia? Se em vez de uma


parede a atravessar, a transgredir, fosse a parede
do capitalismo que em si mesma transitasse inces­
santemente sempre mais longe no interior de si
próprio (havia já uma configuração deste género
na velha ideia do aprofundamento do mercado
«interior») ? Não que ele se suprimisse assim por
simples extensão ; nem sequer que a questão da
sua queda se achasse assim antiquada e que fosse
necessário colocar-se ao lado dos revisionistas e
reformistas que esperam tudo do desenvolvimento,
do crescimento e de um pouco mais de «democra­
cia», ou melhor, que já só esperam mais 3 % e
melhor distribuídos. Mas neste sentido de não
haver exterioridade, a não ser a do Kapital, que
seria a Natureza, o Socialismo, a Festa, ou não
sei quê - mas que no interior do próprio sistema
as regiões de contacto e de guerra não param de
se multiplicar entre o que é fluidez e quase indi­
ferença, desenvolvidas pelo próprio capital, e o
que é «axiomática», repressão, bloqueamento de
fluxos, «reterritorializações», rebatimentos da ener­
gia sobre um pretenso corpo que seria a sua origem,
enquanto ele não é senão o seu beneficiário, sob
qualquer pseudónimo, Nação, Civilização, Liber­
dade, Futuro, Nova Sociedade, sob uma única
identidade : Kapital.
Não há dialéctica no sentido em que um ou
vários desses conflitos deveriam um dia originar
a abertura da parede, em que a energia descobriria

um dia que tinha «transposto o muro», dispersa,


fluida, para o outro lado ; há antes uma espécie
de transbordamento da força no interior do mesmo
sistema que a libertou das regras de marcação
selvagens, bárbaras ; qualquer objecto pode entrar
no Kapital desde que se possa trocar ; o que se
96

pode trocar, metamorfosear-se de dinheiro em


máquina, de mercadoria em mercadoria, de força
de trabalho em trabalho, de trabalho em salário,
de salário em força de trabalho, tudo isto a partir
do momento em que é permutável (segundo a lei
do valor) é objecto para o Kapital : E asssim não há
mais do que uma enorme desordem em que os
objectos aparecem e desaparecem sem cessar,
dorsos de golfinhos à superfície do mar, em que
a sua objectividade cede à sua obsolescência, em
que o importante tende a já não ser o objecto,
concreção herdada dos códigos, mas o movimento
metamórfico, a fluidez. Não o golfinho, mas o
rasto que se inscreve à superfície, a marca enérgica.
É nesta liquidez, nestas águas nem frias nem quen­
tes, que vão talvez fluir as relações de produção
capitalistas, isto é, a regra simples da igualdade dos
valores permutáveis e todo o grupo de «axiomas»
que o Kapital fabrica sempre para tornar esta regra
obrigatória, novamente respeitável, enquanto que
a transforma .incessantemente em irrisão.
Por exemplo, Sherman mostra que se se nacio­
nalizassem as mil maiores empresas dos E. U .A.,
far-se-iam saltar simultâneamente as goelas que a
lei do valor impõe à circulação ; poder-se-ia reduzir
o tempo de trabalho a algumas horas por dia,
instituir a gratuitidade completa de todos os bens
de consumo, suprimir a publicidade e parte das
actividades terciárias. Com os números na mão, a
coisa demonstra-se possível no actual estado da eco­
nomia dos E. U .A Pode-se imaginar que a coisa se
. .

faça se, por exemplo, o incitamento ao investimento


dos proprietários dos capitais não parar de decres­
cer e se o seu interesse os levar a preferirem os
rendimentos burocráticos, que não deixariam de
ter na sociedade de Sherman, aos lucros incertos,
97

da economia de mercado : seria talvez o comunismo


no sentido do Manifesto de 48, não seria o socia­
lismo com que actualmente se sonha. Seria o capi­
talismo moderno, a burocracia despótica, a buro­
cracia de abundância, ou seja. o aparelho que
regula já não a pobreza ou a raridade, mas a abun­
dância, a burocracia já não da necessidade mas da
libido.
Limite sempre recusado, «limite relativo».
O corpo sem órgão, o socius, não tem limite ; rebate
tudo sobre si próprio, relaciona consigo, capta
e dirige os inumeráveis fluxos que os dispositivos
«económicos» libidinais-políticos ligam uns aos
outros numa metamorfose sem fim, numa repe­
tição sempre diferente. Este rebatimento, esta
absorção de energia sobre um socius que atrai e
destrói as produções, é o capitalismo. Sem limite
que separe o interior do exterior, do bordo em que
o sistema se precipita e se arruína. Mas, na pró­
pria superfície, uma fuga desvairada, uma viagem
aleatória da líbido, uma errância que se marca
no «qualquer coisa» do Kapital e que faz desta
formação , quando a comparamos com a barbárie
e com a selvajaria, com as formações codificadas,
a mais esquizofrénica, a menos dialéctica. Observe­
-se a maneira como os chefes de empresa ameri­
canos tornearam imediatamente o obstáculo que
os economistas do M.I .T. (*) opunham à procura do
crescimento. Estes diziam : com a produção cresce
exponencialmente a poluição. Logo, paremos o
crescimento, limitemos os investimentos produ­
tivos, regulemos a máquina para o zero-growth.
Reaparecimento da categoria do limite, da catás-

(*) Massachusetts Institut of Technology.


98

trofe. Resposta dos capitalistas e empresários :


incorporemos antes os custos de despoluição nos
custos de produção ; isto vai elevar consideravel­
mente o preço de venda, o mercado vai por conse­
guinte diminuir, e a produção regular-se-á a si
própria para estas menores capacidades de consumo.
Ninguém sabe se desta maneira, por incorporação
nos preços, a poluição se irá neutrálizar ; mas
é certo que o capitalismo não tomará, porque não
pode tomar, uma decisão de regulação a zero de
crescimento da máquina produtiva. Irá tornear o
obstáculo através de um «axioma» suplementar
(a imputação das despesas de despoluição nos
preços de custo, ou então o fisco).

Capitalismo energúmeno

Muito profunda e muito pouco profunda sub­


versão do marxismo, nunca dita . . . Esta figura do
Kapital, a da circulação dos fluxos, é a que impõe
a predominância do ponto de vista da circulação
sobre o da produção, entenda-se : no sentido, da
economia política. (Porque no sentido de Deleuze
e Guattari a produção é ligação e corte de fluxos,
corrente de leite tirada do seio e cortada pelos
lábios, energias extraídas e convertidas, fluxos
de electrões convertidos em rotação de fresadora,
jactos de esperma colhidos pela matriz.) Não dei­
xará de haver quem atribua as culpas a essa pre­
dominância do ponto de vista da circulação. Quando
Deleuze e Guattari escrevem que é preciso pensar
o capitalismo mais sob a categoria da banca do
que sob a de produção, haverá quem grite que é
a ideologia keynesiana, a representação técnico­
-burocrática que os intelectuais afastados da prática
têm do sistema, e que abandonando o ponto de vista
99

da produção, é ao trabalho e ao trabalhador, à sua


luta e à sua classe, que se voltam as costas. Nem
uma só palavra, de facto, sobre a teoria do valor­
-trabalho ; uma palavra apenas, mas enigmática,
duma hipótese sobre a mais-valia maquínica. Para
dizer a verdade, o grande curso do livro arrasta
alguns cadáveres importantes : proletariado, luta
de classes, mais-valia humana. Difunde a imagem
de um capitalismo descodificado cheio de circulações
actuais e de circulações potenciai s ainda mais
intensas. em que é preciso todo um jogo de represas
(de «reterritorializações») para o domar e manter
no seu leito, toda uma bateria de repressões, na
primeira fila das quais se encontra o Estado funda­
mental, o arqui-Estado, e o seu Édipo.
O capitalismo como metamorfose, sem código
extrinseco, tendo em si o seu único limite, limite
relativo, repelido (que é a lei do valor), eis aqui
efectivamente uma «económica» que se encontra
já na Ideologia Alemã e ainda nos manuscritos
de 57-58 (Grundrisse ; Introdução à crítica da
economia política) , e no próprio Capital. E que esta
económica tenha a ver com a líbido, podemos
encontrar traço s disso nas Notas de leitura de 43
num extremo da obra, e no outt o no capítulo de
Das Kapital sobre o fetichismo, como o mostra
Baudrillard. Também a universalidade crítica, essa
hipótese que com a indiferença, com o efeito do
princípio de equivalência, ou seja, da descodificação,
vem emergir na prática opet ária ou capitalista do
capitalismo o espaço vazio em que irá ser possív el
a construção das grandes categorias do trabalho
e do valor, e que se poderão aplicar retro-activa­
mente sobre dispositivos (as formas «pré-capita­
listas») em que essas modalidades estavam reco­
bertas por códigos, p or marcaçõe s e por represen-
1 00

tações que não permitiam uma economia política


generalizada, isto é, que mantinham a economia
política e a economia libidinal exteriores uma à
outra, estando esta última canalizada em religião,
costumes, rituais de inscrição, crueldades e terrores.
Com o capitalismo tudo isto toma perequacioná­
vel, as modalidades de produção e de inscrição
simplificam-se na lei do valor, e assim tudo serve
para produzir-inscrever a partir do momento em
que a energia de inscrição-produção depositada
em vestígio, em qualquer objecto, é reconvertível
em energia, em obj ecto, em marca. Retrato de um
capital quase esquizofrénico. Por vezes chamado
perverso, mas é então uma perversão normal, a
· perversão de uma Iíbido maquinando os seus
fluxos sobre um corpo sem órgãos em que se pode
agarrar a tudo e a nada, tal como os fluxos de
energia material e económica podem, sob forma de
produção, isto é, de conversão, investir-se sobre
qualquer das regiões da superfície do corpo social.
do socius plano e indiferente. Investimentos viajan­
tes, que fazem desaparecer nos seus périplos todos
os territórios limitados e marcados por códigos
- não só do lado dos objectos (os interditos de pro­
dução e de circulação explodem uns após os outros),
mas do lado dos «sujeitos» individuais ou sociais
que já só aparecem nesse trânsito como concreções,
elas próprias permutáveis; anónimas, cuja ilusão
de existência só pode ser mantida à custa de gastos
especiais de energia.
Pouco falta, em suma, para que o capitalisn1o
seja já essa viagem de intensidades, esse ovo com
um meio variável cuja superfície é percorrida e
incessantemente provida, aqui e além, de pequenas
máquinas, de pequenos órgãos, de pequenas pró­
teses, se é que não é já a substância spinozista
1 01

adornada com os seus atributos ou vazio democri­


tiano onde dançam os átomos, para que nós não
tenhamos já a alegria de sermos sábi os em Deus­
-a-Natureza-o-Retomo. Será marxista este spino­
zismo, este atomismo ? Pouco importa, não se trata
de produzir uma ortodoxia mas antes de revelar
uma inspiração simultâneamente presente e recal­
cada em Marx. É este o tema atomista : no capita­
lismo, os indivíduos constituem-se como entidades
des-socializadas, desterritorializadas, desnaturadas,
«livres» {Ideologia Alemã) , e ao mesmo tempo
encontram-se regidas pelo acaso, por um deus indi­
ferente aos seus assuntos, por um deus epicurista
e desviante, por uma não-regra, a não-regra do
clinamen, a flutuação fora do destino da sua territo­
rialidade e da sua familiaridade. Na sua Doktor­
dissertation, Marx, muito antes de ser marxista,
afirmava : a doutrina de Epicuro respeitante aos
deuses «suprime o terror religioso e a superstição,
não dá aos deuses nem alegria nem favores, mas
atribui-nos a mesma relação que mantemos com
os peixes de Hycarnia, de quem não esperamos nem
penas nem proveitos» (tradução francesa de J. Pon­
nier, p. 245-246 ; M .E.W., EB I, p. 283). E se os
deuses se afastam do mundo, se declinam qualquer
responsabilidade quanto aos homens é, diz Marx,
pela mesma «razão» que o átomo se afasta, segundo
o princípio de clinamen, da recta que a sua queda

traça no vazio. Porque por esta recta ele está ligado


a um sistema, está submetido aos fati fo edera , como
diz L ucrécio, aos laços do «está di to» ; o clinamen,
pelo contrário, é, «no cerne do átomo, o algo que
p ode lutar e resistir», afirma Marx (ibid., 243'28 1),
e scapa à heteronomia e portanto à negatividade
que a «lei do outro» implica. O mesmo se passa
com o princípio de repulsa dos átomos : «A sua
1 02

negação de qualquer relação com o outro deve


ser realizada efectivamente, estabelecida positi­
vamente (verwirklicht, positiv gesetzt) » e portanto
não pode ser mais do que o momento de repulsa
através do qual cada átomo se relaciona apenas
consigo próprio. Á tomos desviantes e repelentes,
deuses afastados e indiferentes ; indivíduos «decli­
nando» no estado «livre» n o espaço vazio do capi..;.
tal ; fluxos cortados s�m finalidade nem causalidade ;
fluxos órfãos «fugindo» dos fati foedera -do pseudo­
-corpo orgânico ou social : o que sust:!nta tudo
isto é a mesma figura, a da esquizofreni a efou da
materialidade. E se, para o Marx de 57, marxi sta,
o capitalismo é o índice duma universalidade apli­
cável a todas as grandes máquinas socio-econó­
micas, incluindo ele próprio, não há dúvida que isso
seja pelo vazio, pela indiferença em que mergulha
todos os seres, pela declinibilidade (qualquer,
aleatória) do indivíduo quanto ao trabalho, do
objecto quanto ao dinheiro, do Kapital quanto ao
produto.
Outt o tema recalcado, o da dissolução das
ilusões subjectivas-objectivas do produzir e do
consumir : toda a produção é consumo das maté­
I ias, instl umentos e energias utilizadas para pro­
duzir, e todo o consumo é produção de uma forma
nova, metamorfose do consumido num produto
diferente. «Esta identidade na produção e no con­
sumo equivale», diz Marx, «à proposição de Spi­
noza : Determina tio est negatio.» (Introdução de 5 7,
tr. fr. p 1 55). Eis um uso materialista (de modo
algum dialéctico) da negação, o seu uso positivo ;
esta determinatio é o átomo e é o corte do fluxo.
Veja-se ainda, desta vez em Das Kapital ( l , 7 ; MEW,
23, p. 229 ; Ed. soe. I, p. 2 1 3), o capítulo sobre
a taxa da mais-valia e aí encontraremos este texto
1 03

perfeitamente deleuze-guattariano : «A partir do


momento em que se examine a criação de valor e
a modificação do valor por e em si mesmas, os meios
de produção, esses representantes materiais d o
capital constante, apenas fornecem a matéria
( Stoff) onde a força fluida criadora de valo r (die
flussige wertbildende Kraft) se vem fixar. A natureza
d2sta maté ri a ( Stoff) é p or isso indiferente (glei­
chgultig) , quer se trate de algodão o u de ferro.
É também indiferente o val or desta matéria.» E o
vel ho Marx acrescenta em nota : « É evid�nte, diz
Lucrécio, que nil posse creari de nihilo, que nada
se pode cri ar a p ar ti r do nada. «Criação de valor»
é transformação (conversão, transposição, Umsatz)
d a força de trabalho em trabalho. Por seu lado,
a força de trabalho é, antes de tudo, maté-ria na tural
( Naturstoff) transp osta , convertida (umgesetzt)
em organismo human o. » Num ensaio profunda­
mente marcado pela filosofia de Francfort, isto é,
pela dialéctica ne gativ a, Alfred Schmidt ao analisar
a relação do trabalho com a natureza em Marx, dá,
apesar das suas intenções, vár ias provas de que os
Verwandlugen, os Umsatze, que são toda a economia
política, sio caracterizados por Marx tanto c omo
metamorfoses de uma energia neutra colocada
aquém de qualquer clivagem niilista, como rela­
ções do suj eito trabalhador e do obj.�cto trabal had o
ou do valor de uso e d o valor de tro ca, ou s �ja,
de dois seres em relação dialéctica. Não há dúvida
que há em Marx, na p rofundidade do s ..;u movi­
mento, esta i nspir açã o energética, uma economia
que, recalcada sob o di sposi tivo dialéctico, é muito
mais do que política, que não é nunca abertamente
libidinal, mas que se deixa abordar libidinalmente
pela análise dos processos primários, porque o
cli namen , o orfanato, e a indiferença são a prima-
104

ridade. E o desej o de saber de Marx ! O seu segredo


não residirá na fruição spinozista, lucreciniana,
que ele sente em dissolver todos os discursos da
economia política burguesa ligando-os na fiuidifi­
cação generalizada engendrada pelo Kapital, e em
produzir ele próprio um objecto t�órico capaz de
corresponder a esta liquefacção, embora exibindo a
a sua lei oculta, a lei do valor ?

Na figura do Kapital proposta por Deleuze


e Guattari percebe-se bem o que fascina Marx :
a perversão capitalista, a subversão dos códigos,
a religião, pudor, profissão, educação, cozinha, fala,
o nivelamento de todas as diferenças «fundidas»
em benefício da única diferença : valer para-, ser
permutável por-. Diferença indiferente. Mors imnzor­
talis, dizia ele.
Deleuze e Guattari fizeram renascer esta fasci­
nação, emanciparam-na da má consciência, ajudam­
-nos a desalojá-la mesmo na política actual. Má
consciência no próprio Marx, cada vez pior nos
marxistas. E assim, em proporção, piedade desti­
nada a esconder e a expiar esta apetência da tique­
facção capitalista : esta piedade, a dialéctica, é a
base, acima da positiva perversão do capital, de
um dispositivo de negatividade, de contradição e de
nevrose que permitirá detectar e denunciar o esque­
cimento do credor (o proletariado) e o esquecimento
da dívida (a mais-valia) , numa liberdade declarada
factícia e culpada, numa positividade suposta de
fachada. Assim o marxismo vai ser essa empresa
de reparação e de repreensão, em que se vai mostrar
e re-mostrar o sj stema como um devedor sem
lealdade e construir toda a energética política sobre
o projecto de reparação de um erro, não de um erro
particular, dizia Marx em 43, mas um er1o em-si ,
esse erro vivo que o proletariado é, o erro da aliena-
105

ção. Dispositivo pouco estranho, vindo do cris­


tianismo, ma� que tomará as dimensões paranóicas
que se conhecem com Staline e Trotsky, e que irá
cair na rotina das crenças murchas com o «comu­
nismo» de hoje.
É de�te dispositivo de negatividade e de cul­
pabilização que O Anti-Édipo vai livrar o marxismo.
Cendrars dizia que «os artistas são, acima de tudo,
homens que lutam para se tornarem inumanos».
O silêncio do livro sobre a luta de classes, a epopeia
do tfabalhador e a função do seu partido, tais
como atulham a linguagem dos políticos, fazem
pensar que para os autores os verdadeiros polí­
ticos são, de facto, actualmente homens que lutam
para se tornarem inumanos. Não há nenhuma
dívida a localizar. O mutismo sobre a mais-valia
é do mesmo calibre : não procurem o credor, é
trabalho escusado, seria sempre necessário fazer
existir o sujeito desse crédito, encarnar o prole­
tariado na superfície do socius, isto é, representá­
-lo no compartimento representativo na cena polí­
tica, e isto é em germe a reaparição do Arqui­
-Estado, é Lenine e Staline, pode ser um Sujeito
sem nome, o Partido, um Vazio, o Significante - e
nunca é mais do que is8o, pois um crédito é sempre
o nome de uma falta. Abandonem pois a má polí­
tica, a política da má consciência e os seus ajui­
zados cortejos de bandeirolas que são as pesadas
procissões de uma piedade simulada, o capitalismo
nunca morrer á de má consciência, não expirará
por causa de uma falta, por não restituir ao explo­
rado o que lhe deve ; se desaparecer é por excesso,
porque a sua energética desloca incessantemente os
seus limites, a «restituição» vem a mais, e não como
a paixão paranóica de fazer j ustiça, e a cada um
segundo o que lhe é devido, como se se soubesse,
106

como se não fosse evidente que actualmente o


«salário» de um operário de qualquer um dos dez
países mais ricos contém, ao lado do valor vendido
da sua força de trabalho, uma parte redestribuída
de mais-valia ! Naville não é o único a pensá-lo ;
à sua maneira, economistas como Ota Sik e Z.
Tanko, supondo que há uma dupla função do salá­
rio, valor permutável da força de trabalho (que é
propriedade privada) mas também compensação
redestribuída pelo Estado do valor de uso do tra­
balho social, concedem o essencial. Isto não quer
dizer que se está j á no socialismo, ou que este é
doravante inevitável ( !) ; mas que a lei que regula
a troca talvez não seja o princípio da quantidade
igual de trabalho abstracto contido nas mercado­
rias permutáveis ; que há portanto um princípio de
equivalência, mas que não está baseado numa
exterioridade profunda, que o valor da força de
trabalho e o valor de uma hora de trabalho social
médio (abstracto) não são determináveis em relação
às condições de uma sobrevivência natural, duma
natureza das necessidades elementares ; que, pelo
contrário, são o objecto de conflitos incessantes na
superfície social, que não há assim profundidade
ou origem, que os sindicatos, as cli ques burocrá­
ticas, os grupos de pressão se opõem e compõem
sem cessar para fixarem uma repartição do produto
nacional bruto a qual é em si flutuante e sem refe­
rência de origem. O mesmo processo, em suma,
para o valor de trabalho e para o valor-ouro, em
que a convertibilidade, mesmo que sej a de prin­
cípio, deve ser também abandonada e substituída
pelo j ogo de uma negociação incessante, ou seja,
desterritorializada e arrastada nas torrentes de
palavras e de coisas permutáveis.
1 107
Nem estruturas, mes1no infra-,
nem troca, mesmo simbólica.

Quais são esses interditos que o capitalismo


opõe ao incessante percurso dos fluxos ? «Reter­
ritorializações» necessárias para manter o sistema
no seu lugar, dizem Deleuze e Guattari. Essas loca­
lizações circunscritas na superfície do socius, que
desconjuntam regiões inteiras colocando-as ao
abrigo dos esquizofluxos, são neo-arcaísmos, diz­
-se ; encontramos aí reservas de Indios, fascismo,
moeda de pagamento, burocracias, pertencentes ao
terceiro mundo, propriedade privada - e, segu­
ramente, o É dipo e o Urstaat.
Que leviandade, segundo parece, colocar sob
a mesma função a reserva pueblo e o capital­
-moeda, Staline e Hitler, Hitler e a propriedade
privada ! O que é que eles fazem das super e das
infra-estruturas? Pois bem, nem uma só palavra
sobre esse assunto, evidentemente. Há apenas má­
quinas desejantes, o corpo sem órgão, as suas
relações tempestuosas já na ordem molecular, rela­
ção entre o ânus fazendo merda, ou a boca fazendo
palavra, o olho dando a sua olhadela, e uma super­
fície, a do suposto corpo, onde têm que assentar,
increver-se e compor-se - e depois, na ordem do
(suposto) grande corpo social, do socius, de novo
na ordem molar, a disjunção violenta entre repe­
tição cega, maquínica, da produção-inscrição dos
pequenos órgãos, dos segmentos sociais, por um
lado, e, por outro, o rebatimento e o açambarca­
mento dessas produções segmentárias sobre a
superfície do socius, devido, em particular, ao
Arqui-Estado. Nenhumas estruturas no sentido
linguístico ou semiótico ; dispositivos de transfor­
mação de energia. E entre esse s dispositivos, não
108

há nenhuma razão para privilegiar (sob o nome de


infra-estruturas) o que regula a produção e a circu­
lação dos bens, o dispositivo dito «económico».
Porque não há menos econontia, energética, no
dispositivo que vai regular as linhagens e as alianças
e distribuir assim os fluxos de intensidade em con­
creções de funções, de pessoas e de bens à super­
fície do socius, e produzir finalmente aquilo a que
se chama a organização de uma sociedade selva­
gem (na realidade organismo nunca unificado,
sempre estendido entre os mil pólos dos pequenos
órgãos múltiplos, dos objectos parciais, dos seg­
mentos libidinais, e o pólo de unificação pelo vazio
criado no alto, no cume, na cabeça e dentro da
cabeça, pelo significante) - não há menos econo­
mia nas regras de parentesco, nem sequer há menos
economia na distribuição da libido na superfície
do corpo sem órgão, no enganchamento dos peque­
nos órgãos para desejar, para transformar a energia
e para fruir, do que na economia e na distribuição
do capital, nem sequer há menos dispositivo pro­
dutor e inscritor num sítio do que noutro. E,
inversamente, o dispositivo edipiano não é menos
económico-político que o do Kapital, e, finalmente,
não é menos eco-libidinal e desviante do que o
processo primário que capta. Não se trata pois
de discernir nestes dispositivos os que seriam subor­
dinantes e os que seriam subordinados : há subor­
dinação recíproca. Mas, seguindo a hipótese infra/
/super, seria preciso pressupor a totalidade orgânica
do social, pressupor e requerer o todo social, pro­
jectar as estruturas numa macro-estrutura, começar
pelo todo, supor o todo dado, pelo menos captável
e analisável. Enquanto que a dificuldade está em

que o todo não é dado, a sociedade não é uma tota­


lidade unificada, mas deslocamentos e metamor-
1 09

foses de energia que não cessam de decompor e


recompor sub-conjuntos, e de estender estes con­
juntos tanto do lado do funcionamento perverso­
-esquizo dos órgãos e objectos parcias, como do
lado do funcionamento paranóico-neurótico do
grande significante ausente. Se falarem de superes­
trutura e de infra-estrutura, então ordenam dispo­
sitivos segundo o alto e o baixo, e estão já colocados
no ponto de vista do significante, no ponto de vista
da totalidade, e ele não vos largará: quando qui­
serem fazer uma política revolucionária, imaginar
um devir subversivo, se não tocarem neste edifício,
terão na melhor das hipóteses uma dialéctica, e
no melhor desta, «após» o momento negativo,
«após» a revolução, isto é, já antes (sob a forma de
um partido por exemplo, ou de uma necessidade de
eficácia, ou de organização, ou do medo de faltar),
reproduzir-se-ão a mesma disposição hierarquizada,
o mesmo trabalhador-militante em baixo e o mesmo
chefe-patrão em cima, a mesma confiscação dos
fluxos e produções parciais pelo interesse geral
que não é mais do que o interesse do déspota.
O que nos permite afirmar isto, e mais uma vez
não se trata de uma fantasia, é o próprio capitalismo.
É o capitalismo que, destruindo com as suas torren­
tes de dinheiro e trabalho as regiões mais inter­
ditas, a arte, a ciência, as profissões e as festas, as
políticas e os desportos, as imagens e as palavras·,
o ar, a água, a neve e o sol, as revoluções bolche­
viques, castristas, maoístas, é o capitalismo que
percorrendo essas regiões faz aparecer como figuras
libidinais os dispositivos codificados que· regiam
anteriormente a economia, no mesmo instante em
que as faz cair em desuso. Torna assim evidente
que as oposições infra/superestruturas, ou estru­
tura económicajestruturas ideológicas ou relações
110

de produção/relações sociais são pares de conceitos


incapazes de nos fazerem saber o que se passa
nas sociedades selvagens, feudais, orientais, e na
própria sociedade capitalista. Porque são ou muito
ou muito pouco : muito, porque é evidente que nas
primeiras as relações de parentesco, quer de ritual
quer de prática, determinam decisivamente a pro­
dução e a circulação dos bens, ou s�ja, a figura
da «economia» e porque não as podemos reduzir
a uma função ideológica de logro ; muito pouco,
porque na segunda a economia é muito mais do
que a economia política, muito mais do que uma
produção e uma troca de bens, visto que é também
produção e troca de força de trabalho, de imagens,
de palavras, de saber e de poder, de viagem e de sexo.
Se a economia política é um discurso que dá
como fundamento aos fenómenos de produção e
de circulação uma ancoragem numa natureza (a
Natureza dos fisiocratas, o interesse e a necessidade
do homo economicus, a capacidade criadora da força
do trabalhado... ), aquele não é nunca aplicável
tal e qual aparece : passado o limiar da sobre­
vivência, que é dado por hipótese, as sociedades
arcaicas não são menos arbitrárias do que o capi­
talismo, este não entra mais do que elas na cate­
goria do interesse e da necessidade ou do trabalho.
Não há nunca uma ordem económica (de inte­
resse, da necessidade ou do trabalho) primeira,
seguida de efeitos ideológicos, culturais, jurídicos,
religiosos, familiares, etc. Há sempre dispositivo
de captura e de escoamento da energia libidinal ;
mas na sociedade arcaica ou oriental é preciso que
a energia e as suas concreções em «objectos» (os
parceiros sexuais, as crianças, os utensílios e as
armas, os alimentos) sejam marcados por um sinal,
por uma incisão, por uma abstracção que é preci-
111

samente a das artes arcaicas, porque não tem a fun­


ção de «replesentar», no sentido do Quattr ocento,
mas de p ôr em código o que é libidinalmente inves­
tido ou investível, de autorizar o que pode circular
e dar lugar à fruição ; sendo pois esses códigos
operadores de selecção, selectores, retardadores­
-aceleradores, barragens e canais, válvulas mitrais
que regulam as entradas e as saídas de energia
sob todas as suas formas (palavras, danças, crian­
ças, comidas . . . ) em relação ao socius, ao grande
corpo social inexistente, postulado ; enquanto que
no capitalismo essas codificações de funcionamento,
esses regulamentos particulares na sua abstracção
concreta, certa inscrição em certa superfície da
pele para assinalar a idade núbil, determinada
distorsão do pescoço, da orelha ou da mucosa
da narina ou a fabricação de determinado chapéu
de entranhas de porco ou de aves (Leiris em Gon­
dar) para marcar uma função em certo ritual reli­
gioso ou mágico, certa tatuagem para o direito
de transportar as armas, certo ornamento no r osto
do chefe, certas palavras, quer cantos quer batu­
ques, inscritos no cenário ritual do sacrifício,
do luto, da excisão - o capitalismo destrói tudo
isso, transpõe e dissipa esses dispositivos, descul­
turaliza esses povos, des-historiza as suas inscri­
ções, repete-as em qualquer sítio onde se possam
vender, e não conhece nenhum código em que a
líbido esteja marcada, mas apenas o valor de troca :
vocês podem produzir tudo, consumir tudo, trocar
tudo, trabalhar e inscrever tudo e de qualquer
maneira, se isso passar, flui, metamorfoseia-se.
O único axioma intocável incide na condição da
metamorfose e da passagem : o valor de troca. Axio­
ma e não código : a energia e os seus objectos j á
não estão marcados por um signo, já não há pro�
1 12

priamente signos, visto que já não há código, já


não há retomo à origem, a uma «prática», a uma
referência, a uma suposta natureza ou surrealidade
ou realidade, extra-dispositivo ou grande Outro -
já só há apenas uma pequena etiqueta de preço,
índice da p·ermutabilidade : não é nada, é enorme,
é outra coisa.
Ora isto não define somente uma economia
política, isto determina uma economia libidinal
totalmente singular. Podemos abordá-la, como
Baudrillard, a partir da categoria da ambivalência
e da castração e dizer : o capitalismo é o fetichismo,
não só em sentido geral, no sentido feuerbachiano ­
-hegeliano, ou dado por Marx, mas no sentido
estrito que a palavra toma na nosologia das perver­
sõe� ; é o fetichismo porque a castração e a cli­
vagem do des�j o estão aí completamente ocultas.
A relação com o objecto no Kapital é a relação
perversa : a diferença dos sexos é aí abolida, não
como sexismo (ainda que mesmo aí os cab�l�i­
reiros e as revistas de modas unissexo e o Womenlib
e o Gay movement acelerem a des-sexização), mas
como desej o que em si implica o seu interdito,
como pulsão barrada. A equivalência vem colocar­
-se frente à ambivalência, oblitera-a : a permuta­
bilidade generalizada faz omitir que há, na ordem
do desejo, algo de impermutável sob pena de morte
(e a fruição como incluindo sempre em si essa
morte arriscada). E Baudrillard opõe à monótona
troca moderna uma economia do dom, de potlatch
em que a irreversibilidade, o desastre da despesa
extrema, a ruína económica e social, o aniquila­
lamento por perda de prestígio, a morte física, o
não-fruir para sempre portanto uma simbólica
libidinal, estão efectivamente implicados.
1 13

Estas «conclusões» são convergentes com as


de Deleuze e Guattari. Mas é a divergência que é
preciso reter, porque faz sentir o que está em j ogo
no Anti-Édipo . A belíssima descrição da crueldade
selvagem avança completamente no sentido do
que Baudrillard quer manifestar sob o nome de
troca simbólica. Assim como a fluidez e a fuga
naqueles e a equivalência neste. Mas o lugar de
onde se fala não é o mesmo em ambos os casos.
O desej o, em Baudrillard, freudiano estrito, é pen­
sado em termos de sujeito. Barrado, mas ainda
sujeito : como o corpo fragmentado é sempre em
primeiro lugar corpo, relacionando em seguida
consigo próprio a fragmentação como sua proprie­
dade, a barra relaciona-se também com o desej o
como um atributo com a sua substância. Nos
dois casos, é preciso colocar no outt o extremo do
processo um «autoi» da barr a, um nada, um sig­
nificante zero, o grande Outro, que será assim o
verdadeiro produtor da barra. Deste modo a pro­
dução desejante será assinalada como significante
niilista. Quando Deleuze e Guattari partem das
máquinas desejantes e se pr eocupam em fazer
apenas uso das mais elementares categorias da
disj unção e da conjunção, da conexão e da exclu­
são, ou sej a, da ligação e do corte, com recursivi­
dade possível (produção de produção), quando
falam de um corpo sem órgão ou de um socius
como de uma superfície de rebatimento, superfície
em que se vêm aplicar as produções (isto é, os

fluxos-cortes) para aí ficarem inscritas como se


o corpo fosse o grande produtor, o grande sujeito,
o grande significante, como se ele fosse a fonte e a
unidade primeira, enquanto que não é senão um
princípio de capoteamento - ousarei dizê-lo : de
alienação? - , em qualquer caso, de morte no sen-
1 14

tido freudiano, a função do seu discurso não é


metaforizar de outra maneira o significante zero,
mas produzir as categorias econón1icas rebeldes
que faltam, à excepção de Lucrécio, Spinoza e
Nietzsche, ao pensamento do desej o, rebeldes ao
rebatimento deste pensamento (qu e não é ainda
mais do que desejo, desej o do desej o) sobre uma
ordem significante , rebeldes a um rebatimento
psíquico ou psicanalítico que é um caso particular
do rebatimento da produção d e s ejante sobre o
corpo sem órgão.
Se c ontinuarmos pois a pen�ar o capitalismo
e a selvajaria em termos de falta, de castração,
e me smo de ambivalência e de irreversibilidade,
dizendo que o p rimeiro os oculta enquanto o
segundo os inscreve nos seus códigos, completamos
a ocultação da produção desejante, não inquie­
tamos em quase nada o pensamento m.�tafísico,
rematamos de facto o pensamento niilista : o sujeito,
dir-se-á, nunca se exibe «em carne e osso», está
fragmentado, bart ado, diferido, pres �nt�fausente,
etc. , mas o importante é que s � continua a colocar
a líbido sob a categoria do si gnificant e e a ignorá­
-la no seu não-sentido e na sua força esqu,ecida.
Ora, muito longe de termos de curar o sujeito
reduzindo-o quer à ilusão d� uma personagem
sacio-familiar bem assente (psicanálise tl4adici o nal),
quer à d�silus1o de um suj �ito tragicament� barrado
a s i próprio (psicanálise lacaniana), é preciso
curarmo-nos do sujeito, liquidando-o no anonimato,
no orfanato, na inocência e na pluralidade alea­
tória das pequ�nas máquinas que «o» des�j o é.
Não se d�ve pois opor o capitalismo e a sel­
vajaria como o que esconde e o q ue exibe a ca stra­
ção, ou seja, como o que é falso e o que é verda ...
deiro, não devemos ter s ob re o capitalismo o ponto
1 15

de vista da nostalgia da selvajaria e da verdade.


que é o da naturalidade e da representação, não
há um bom estado (selvagem, simbólico) da líbido,
não há uma boa modalidade de rebatimento sobre
o soei us, a da crueldade (D�leuze e Guattari não
dizem, justamente, uma só palavra sobre o teatro
de· Artaud). Do mesmo modo, é preciso não con�
fundir o conteúdo do socialismo com a restituição
das marcas libidinais sobre o corpo social entregue
à sua fragmentação cruel. É preciso evacuar todo
o modo nostálgico de falar e de ver : ele desaparece
pelo orifício que Deleuze e Guattari fazem no
discurso ocidental. A maquinaria territorial da
selvajaria ou mesmo a grande máquina despótica
da barbárie (como por vezes Nietzsche o sonha)
não são um bom lugar para observar a maquinaria
capitalista. Após Marx, Deleuze e Guattari afir­
mam o inverso, que . é o capitalismo que é o bom
lugar para observar tudo. Se se olhar o capitalismo
com a castração no olhar, julgar-se-á observá-lo
do Oriente despótico e da África selvagem,
mas continua-se de facto o niilismo da religião
ocidental, é ainda a má consciência e a piedade
pela Natureza, quer pela Exterioridade quer pela
Transcendência, que inspira essa posição nesse
lugar, enquanto que o capitalismo, que é muito
mais positivo do que o ateísmo, que é a indicação,
na superfície do socius, de uma liquidez profunda
dos fluxos económicos, é por isso mesmo o que re­
troactivamente nos fará ver os códigos pré-capita­
listas e captar o que em si mesmo, relacionado
apenas consigo próprio, index sui, bloqueia e cana­
liza esta liquidez na lei do valor. A lei do valor,
único axioma deste sistema pleno de indiferença
e de equivalências ( G/eichgu/tigkeit, não cessa de
repetir Marx, j ovem e velho) é também o único
1 16

limite, limite intransponível se se quiser, sempre


deslocável e deslocado, que impede o capitalismo
de partir no dilúvio aleatório das energéticas mole-
culares.
Assim, por sob a congruência de Critique de
I' économie politique du signe com O Anti-Édipo,
há uma discordância, e o que nela se joga é a ques­
tão do niilismo e é a «política». Não basta criticar
Marx, por ele manter com a necessidade e o uso
(e com a própria força de trabalho, Baudrillard !)
uma exterioridade, uma referência, uma natura­
lidade encarregada de fixar os signos económicos.
Não basta cumular de sarcasmos a psicanálise
«americana» por querer curar o sujeito dotando-o
de uma unidade ilusória. Não se trata de fazer
o capitalismo confessar que sob os sorrisos das

raparigas e as superfícies perversas do metal, do


polyester, das peles e dos spots, e devido a eles,
ele desconhece a ambivalência e a barra do sujeito
libidinal. A força do capitalismo está, pelo contrá­
rio, em começar a obrigar a função dessa ambi­
valência a deslascar-se, em tornar evidente que ela
não é o facto da economia libidinal enquanto
máquina pequena ou grande, mas o facto da sobre­
posição a esta economia de um dispositivo sên­
sico e niilista, o do Édipo-castração. A revolução
não é o retorno ao grande castrador e aos pequenos
castrados, visão definitivamente reaccionária, mas
a sua dissolução numa economia sem fim nem lei.

O dispositivo Édipo

A questão que se põe a Deleuze e Guattari


é, evidentemente, a da origem ou da finalidade
ou da condição de possibilidade, etc. , desta
ordem «secundária», desta ordem que contém o
1 17

nada, que separa, que ordena e subordina, que


aterroriza, que causaliza, que é a lei (do valor e da
troca). Mas antes disso, porquê o Édipo ? Porquê o
Arqui-Estado num dispositivo como o capitalismo
cujo «efeito de sentido» correspondente é, Deleuze
e Guattari repetem-no, o cinismo ? Nada de menos
cínico do que o Édipo, nada de mais culpado.
Porquê e como esta circulação de fi uxos regulados
pela lei única do valor de troca teria necessidade, em
suplemento, como brinde de repressão, da figura
do Édipo, ou seja, para Deleuze e Guattari, da
do Estado ? Não concordam eles que não é neni
do despotismo nem do capitalismo que pode pro­
ceder a má consciência, pois o primeiro engendra
o terror e o segundo o cinismo. O que é que engen­
dra então esta má consciência ? Questão a dois
níveis : 1 . o para que é que pode servir a edipiani­
zação quando se está num sistema de troca genera­
lizada? ; 2.0 será o Édipo uma figura do Urstaat?
O primeiro nível engrena directamente na política
do capital e na política anticapitalista ; o segundo
nível numa teoria da história no próprio dispositivo
psicanalítico. Primeiro nível : se o capitalismo não
tem necessidade de nenhum código, se o seu único
axioma é a lei do valor, ou seja, a permutabilidade
das partes de fluxo em quanta iguais, porquê o
Édipo ? Não será a figura do pai, do grande signifi­
�ante despótico, apenas um arcaísmo, não um neo­
-arcaísmo, no seio da figura da troca ? A figura
edipiana na hipótese Deleuze-Guattari é a do despo­
tismo oriental, já voltaremos a isso : quer dizer que
o Estado capitalista é o mesmo que o dos reinos
da China, dos Grandes Reis e dos Faraós ? É certo
que há em ambos a predominância da burocracia
como aparelho de canalização dos fluxos econó-
1 18

micos libidinais. Deleuze e Guattari apoiam-se


muito em Wittfogel, apoiam-se demasiado. Não
porque Wittfogel seja frequentemente muito impru­
dente como historiador, o que é um outro problema ;
mas porque todo o seu livro é inspirado por uma
confusão política entre o sistema de dominação
pré-capitalista a que Marx chamava modo de pro­
dução asiático e o regime que Staline imp ôs à
Rússia e aos seus satélites durante vinte anos.
Ora, a ausência de propriedade privada, a absorção
de toda a iniciativa económica e social pelo apare­
lho burocrático e pela suspensão de toda a activi­
dade, de todo o escoamento energético de qual­
quer . ordem, pela figura do déspota, traços comuns
às duas sociedades, não permitem evidentemente
identificá-las.
A diferença decisiva está justamente em que
Staline e Mao são post-capitalistas, que o seu
regime está de facto em competição com o capi­
talismo mundial, que só pode sobreviver aceitando
o desafio da industrialização, sem o que o imperia­
lismo não deixará de infiltrar os fluxos de dinheiro,
de produtos, de pensamento tecnológico e cínico,
mas também revolucionário e crítico, na sociedade
burocrática e de a fazer abrir fendas por todo o
lado. É o que se passa constantemente no declive
europeu. Fendas que vão para a direita e fendas
que vão para a esquerda, esforços dos quadros
económicos e técnicos em direcção da liberalização,
ou seja, da incorporação pelo menos económica
e ideológica no mercado capitalista mundial ; esfor­
ç os de jovens na direcção da auto-gestão e do comu­
nismo dos Conselhos. Tudo isto provoca uma vida
burocrática muito agitada, muito diferente da do
império Chang, e uma burocracia inquieta : tem
1 19

na pele a agitação do Kapital e não a paz imóvel do


sagrado. Burocracia ameaçada pela mobilidade e
pela dissipação do capitalismo moderno ; incluindo
a das figuras políticas : procurem por todo o mundo,
agora que os grandes paranóicos da II. a guerra
mundial desapareceram (excepto Mao), se há ainda
um só dirigente que seja verdadeiramente uma
figura paternal.
Vamos ainda mais longe : porque é que o capi­
talismo deveria preservar a própria instituição
familiar, obrigar a líbido da criança a fixar-se nela?
O Manifesto comunista dizia que «a grande indústria
destrói cada vez mais todos os laços de família dos
proletários». Talvez fosse numa perspectiva misera­
bilista que se não tivesse chegado a verificar ? Mas
a fortiori, se esta desligação se fizer mesmo no exte­
rior da miséria material, o que é o caso. O que é
actualmente a vida em família de uma criança,
com o pai e a mãe que trabalham? Creche, escola,
estudos, as jukeboxes, o cinema : por todo o lado
crianças da sua idade e adultos que não são os seu�
pais, que entram em conflito com eles e entre
si, que dizem e que fazem outras coisas. Os heróis
encontram-se no cinema ou na televisão, nas bandas
desenhadas, e não em redor da mesa familiar. Inves­
timento mais directo que nunca das figuras histó­
ricas. As figuras dos pais, professores primários,
professores, padres, também sofrem a erosão dos
fluxos capitalistas. Não que, a supor a psi­
canálise edipianização, ela seja facto do capita­
lismo, vai contra a corrente da lei do valor. Um
pai assalariado é um pai permutável, um filho
órfão. É preciso apoiar Deleuze e Guattari contra
si próprios : o capitalismo é de facto um orfanato,
um celibato, submetido à regra do equivaler. O
que o suporta não é a figura do grande castrador,
1 20

é a figura da igualdade : igualdade no sentido de


comutatividade dos homens num cargo e dos cargos
quanto a um homem, dos homens e das mulheres,
dos objectos, dos lugares, dos órgãos. Sociedade
constituída numa estrutura de grupo : um conjunto
(qualquer quantum de energia : homem, mulher,
coisa, palavra, cor, som, faz parte dele), uma regra
de associatividade ab, uma regra de comutatividade
ab =ba e um termo neutro ae = a. Está aqui todo o
segredo da sua «repressão». (E está aqui, digamo-lo
de passagem, todo o segredo da conivência do
Kapital com a fissura do saber, que é o verdadeiro
dispositivo que rege a economia Iibidinal no capi­
talismo.) Observe-se antes a maneira como a família
é tratada no relatório do M.I. T., e na carta de
Mansholt e em toda a corrente zero-growth, e
digam-me se· o Kapital se preocupa com a insti­
tuição.
Dir-me-ão : isso não impede que a repressão
não cesse de se agravar nas sociedades modernas
e que a lei única do valor não dispense boas e
eficazes forças da ordem. É preciso responder :
a repressão não cessa de se exteriorizar cada vez
mais, porque está menos nas cabeças e mais nas
ruas. O cinismo não cessa de progredir e por con­
seguinte os efectivos de polícia e milícia. Há tanto
mais chuis quanto menos pais, profes, chefes, pro­
fessores de moral houver - entenda-se : reconhe­
cidos, «interiorizados». Freud enganou-se comple­
tamente em Ma/aise dans la civilisation ao prever
que a extensão da civilização, no sentido burguês
da civilização material e no sentido S.D.N. (*) da

(•) Socidade das Nações (N.E.)


12 1

«paz perpétua», que para ele equivalia à reabsorção


das expressões externas da agressividade, deveria
ser acompanhada por um agravamento das suas
expressões internas, isto é, por uma culpabilização
e por uma angústia crescentes. Nas regiões em que
reina esta paz civilizada, ou seja, no centro do
capitalismo, nada disso se passa, e tanto melhor.
O Grande Significante e o Grande Castrador são
arrastados nas águas rápidas e poluídas da repro­
dução do capital, da grande Metamorfose. Um
homem moderno não crê em nada, nem mesmo
na sua responsabilidade-culpabilidade. A repressão
abate-se não como um castigo, mas como uma
chamada à axiomática : a lei do valor, troca por
troca. Pode ser a associação dos pais de alunos que
o exerce sobre as crianças, o sindicato sobre os
operários, a revista feminina sobre o «sexo fraco»,
o escritor sobre o discurso, o conservador de museu
sobre a pintura - eles não agem de modo nenhum
como encarnações terrificantes ou cruéis de um
Poder transcendente, embora os haja, toda a sua
operatividade se reduz a manterem a regra mais
elementar, a última palavra do Kapital : troca
«equitativa», equivalência. Eles não fazem medo,
fazem mal. Exemplo simples e gritante : aquele
que ensina pode ensinar o que bem lhe parecer,
inclusivamente o que aqui se escreve ; mas a ordem
absoluta é seleccionar no fim do ano, para não
desvalorizar o seu ensino. Portanto não : ensino de
valor, depois selecção dos alunos segundo esse
valor ; mas : selecção dos alunos, mesmo que seja
inteiramente arbitrária (o que já ninguém pode
ignorar), e por este facto valorização do ensino.
É a lei da troca que determina o valor dos termos,
neste caso o ensino por um lado ; por outro, a
1 22

«qualificação» dos ensinados. Portanto fim da


ideologia da «cultura» : já não se pretende pro­
duzir um objecto reputado válido por si ou pelo
seu «uso» ; mas o valor define-se pela permutabili­
dade : esse diploma que se vai dar ao aluno poderá
ser por sua vez trocado na vida (por dinheiro) ?
É a única questão. Esta questão� que é sempre a
mesma, não é a da castração, a do Édipo.
Passa-se o mesmo com a pintura. Não se per­
gunta ao pintor o que é o seu objecto pictural,
não se procura prendê-lo a uma rede de signifi­
cação ; a única inquietação é saber onde é que ele
está, se se mantém ou se pode manter no lugar
pictural (galeria, exposição), porque apenas desta
posição adquire um valor «pictural», visto que
somente se estiver nesse lugar irá poder sair por
troca pelo seu preço = por venda (e, eventualmente,
ser depois revendido pelo_ amador para ser colo­
cado no museu). O que faz o seu valor é a sua
permutabilidade, portanto a sua situação no lugar
pictural que é o mercado da pintura. Fora disto,
é absolutamente impossível determinar um valor
intrínseco do objecto pintura moderno. Veja-se
a exposição Pompidou.
Seria fácil mostrar que a investigação cien­
tífica funciona segundo a mesma axiomática de
base ; variando apenas por algumas exigências
complementares, como por exemplo a operativi­
dade dos enunciados produzidos, que bastam para
determinar os limites do campo de aplicação e a
«natureza» do objecto.
Em nenhum lado se vê uma conexão com o
Grande Significante, mas apenas a lei da troca
imanente entre termos cujo único valor deriva da
sua relação. É essa a própria definição de uma
1 23

estrutura, que é o produto por excelência do dispo­


sitivo do Kapital e do cientismo, o objecto libidinal
eminentemente capitalista. O desvio que segmenta
o objecto à estrutura em termos discretos - desvio
que, é preciso sublinhá-lo, exclui qualquer sign ifi­
cação e que num sentido estrito deveria mesmo
excluir o uso do termo «significante» tal como nos
vem de um Saussure ainda muito incerto sobre
· esse assunto (quase tão incerto como Marx sobre
o lugar a conceder ao valor de uso) - este desvio
não deve ser confundido nem mesmo articulado
com aquilo que Lacan supõe sob o nome de reti­
rada do significante, para produzir efeitos de sentido
( = significados) ao nível dos termos em questão.
A diferença em Saussure não é o «a» em Lacan.
Por que é que Deleuze e Guattari menosprezam
aqui uma transposição que é essencial na proble­
mática de Lacan ? Em Saussure o significado é o
escondido, o significante é o dado. Em Lacan o
escondido é o significante e o significado é o dado
(como representação, ilusão, a e a'). Esta transpo­
sição é . decisiva : a figura do desejo em Lacan
retoma as mesmas palavras que em Saussure, mas
distribui-as inversamente ; para Saussure o signifi­
cante e o significado estão relacionados com o
sujeito falante que é o locutor ; para Lacan também,
mas o locutor não é um interlocutor no sentido dos
linguistas, um alocutor no sentido de Benveniste.
Ele fala, mas não como eu falo, não no local em
que eu falo, não na mesma cena, mas numa outra
cena. Ora, quando Lacan estabelece esta hipótese
do inconsciente-linguagem, o importante não é
que ela se enrede na problemática «científica» do
discurso, mesmo se ele próprio acentua este efeito ;
na realidade não é mais do que um écran «ideoló-
1 24

gico». O que é preciso assinalar é que traz para a


superfície a figura profunda que está latente em
todo o dispositivo da psicanálise, em todo o dispo­
sitivo do desejo da psicanálise, a figura judaica do
paradoxal Iahvé : Tu silencioso ou silêncio na segun­
da pessoa, ou seja, locutor potencial que nunca
será efectivo para Mim Moisés-Israel, significante
escondido ; mas também (sobre a outra cena, o
Sinai, por exemplo), Tu falante único, inclusiva­
mente através da minha boca, portanto ainda assim
significante, e Eu locutor somente manifesto, silên­
cio latente, significado.
Passamos assim ao segundo nível : o Édipo
não é uma figura do Urstaat, uma figura despó­
tica. Aqui, como na culpabilização (e as duas
instituições avançam a par), Deleuze e Guattari
permanecem muito perto e muito longe de Freud.
Muito perto, porque no Moise Freud punha a
hipótese de que o judaísmo tinha por origem o
«despotismo» oriental monoteísta de Akhenaton
e que assim a figura do Pai que o judaísmo, o

próprio Freud e toda a psicanálise veiculam, é


a figura do déspota castrador e incestuoso. Mas,
ao mesmo tempo, muito longe, porque o que para
Freud fazia a diferença entre o judaísmo e a reli­
gião egípcia ou também a católica, num certo
sentido qualquer religião, o que portanto desfazia
ou estava em potência desfeito ou defecção do
religioso, no judaísmo, era a exclusão do desejo
da morte do Pai e o seu acting-out. a passagem
a acto no assassínio efectivo (suposto por Freud
a custo de uma enorme imaginação romanesca !)
por Israel de um primeiro Moisés (ele mesmo su­
posto). Isto quer dizer que no judaísmo o Édipo
permanece inconfessado, inconfessável, escondido,
125

e é assim que para Freud nasce a culpabilidade


e a má consciência, diferentemente do que se passa
nas religiões de reconciliação.
Não se trata de seguir Freud na sua constru­
ção, no seu romance de família ou de povo. Tra­
ta-se de ver que o que ele procura é, em conformi­
dade com o seu próprio dispositivo libidinal,
segundo as suas palavras, produzir a singularidade
da figura judaica (e psicanalítica) do desejo. E, como
Nietzsche, vai captá-la na má consciência, no pe­
cado. Não está aqui em causa o que vale a origem
que Freud exibe. O que vale seguramente é o
princípio segundo o qual o Édipo e a castração
e simultâneamente o transfert na relação analí­
tica, só são operatórios num dispositivo energético
cujos traços são formados pela mais antiga fé
hebraica : captação de toda a energia libidinal
na ordem da linguagem (eliminação dos ídolos) ;
nesta linguagem o privilégio absoluto é concedido
à relação Eu/Tu (eliminação do mito) ; e nesta
relação, paradoxo (no sentido kierkegaardiano) que
faz com que seja sempre o Tu que fala e nunca o Eu.
Este dispositivo é o do divã, em que o paciente
é Israel, o analista Moisés e o inconsciente Iahvé :
o grande Outro. Este grande Outro não é o grande
Faraó incestuoso, o Urvater, o Urdéspota. Houve
um êxodo, os Judeus romperam com o despo­
tismo, atravessaram o mar e o deserto, mata­
ram o Pai (esse crime que Freud procurava recons­
tituir era simplesmente o êxodo), e é por isso que
a interiorização como pecado, como solidão, como
neurose, e toda a corrente reformada, luteriana,
freudiana, vão ser possíveis, vão ser uma possi­
bilidade fundamental do Ocidente.
126 1
Não pedimos nada um ao outro, não nos quei­
xamos um ao outro, mas vamos, com o coração
aberto, através de portas abertas, em direcção u1n
ao outro.
(Zaratustra falando com a sua solidão)

Ora, a figura do Kapital não está mais arti­


culada com a da judeidade (do Édipo) do que com
o despotismo ou do que com a da selvageria sim­
bólica, não concede privilégio ao discurso como
lugar de inscrição da líbido, suprime todos os pri­
vilégios de lugares : daí a sua mobilidade ; o seu
princípio assenta na modalidade de inscrição, o
seu dispositivo obedece a um só princípio de liga­
ção energética que é a lei do valor, a equivalência,
o princípio segundo o qual qualquer «troca» é
sempre possível em princípio, toda a ligação ou
metamorfose de uma forma da Naturstoff numa
outra é sempre reconvertível na ligação inversa.
Mas, haverá quem diga, e a mais-valia ? Não será
precisamente um desmentido do dispositivo, pois
não quer dizer que de si à força que se supõe
valer (o seu equivalente em mercadoria, o seu
salário) a relação não seja convertível, e que a sua
igualdade é fictícia ? Certamente, é o que Marx
mostra para a força de trabalho e o salário. Isso
talvez seja verdade para qualquer força captada
nas malhas económicas capitalistas, incluindo as
máquinas. O dispositivo funciona ignorando a
desigualdade da força, reabsovendo o seu poten­
cial de acontecimento, de instauração, de mutação.
Em virtude do princípio que rege a ligação energé­
tica, o sistema capitalista privilegia a repetição
sem diferença profunda, a duplicação, a comu­
tação ou a replicação, a reversibilidade. A meta­
morfose está contida nos prudentes limites da
1 27

metáfora. A mais-valia, o próprio lucro são jd


denominações e práticas de reabsorção (ou de
exploração, se se quiser) ; implicam a comensu­
rabilidade do recebido e do dado, do «valor adi­
cional» obtido após o processo de produção e do
valor avançado na produção. Esta suposta comen­
surabilidade é o que permite transformar a segunda
na primeira, reinvestir a mais-valia, é a regra ou
administração do sistema capitalista. Nesta regra
de comutabilidade imanente reside para o capi­
talismo o segredo do rebatimento das produções
desejantes sobre o corpo sem órgão : este reba­
timento é o reinvestimento sob a lei do valor.
Nele consiste a própria repressão do sistema, e
não precisa de outra, ou as outras (ou chuis, etc.)
são apenas lemas ou recíprocos do teorema fun­
damental da replicação. É o que querem dizer
Deleuze e Guattari quando sublinham o carácter
fictício da comensurabilidade da moeda de crédito
e da moeda de pagamento.
O potencial da força não está em produzir
mais, mas em produzir outra coisa e em produ­
zir de outro modo. No organismo, a força é potên­
cia de desorganizar, stresses emocionais, pruridos,
polimorfia perversa, doenças chamadas psicosso­
máticas, perda da relação com o espaço no desen­
volvimento esquizo, tão cara a Deleuze e Guattari,
gato que sorri e sorriso sem gato, sempre trabalho,
mas como trabalho do sonho. A força difunde-se
através da trama orgânica, energia perfurante.
Ora, é esta virtualidade de uma alteridade que está
prestes a multiplicar-se no seio do «organismo»
capitalista e do dispositivo do valor, que está
prestes a criticar sem nele tocar, prestes a esque­
cer a lei da troca, de a tornear e fazer dela uma ilu­
são antiquada e grosseira, um dispositivo desafec-
128

tado. Quem poderá calcular o tempo que o novo


dispositivo vai levar a destruir com os seus órgãos
desconhecidos, transparentes, a superfície dos nossos
corpos e a do corpo social, libertá-los da azáfama
dos interesses e da preocupação em economizar,
em gastar e em contar ? É uma outra figura que
se ergue, a líbido retira-se do dispositivo capita­
lista, o desejo dispõe-se de outra maneira, segundo
uma outra figura, informe, ramificado em mil
proposições e tentativas através do mundo, bas­
tardo, disfarçado com os farrapos disto e daquilo,
com as palavras de Marx e com as palavras de
Jesus ou Maomé, e com as palavras dé Nietzsche
e Mao, com as práticas comunitárias e com as
práticas de refreamento nas oficinas, de boicote,
de squattering, de rapto e de resgate, e com as
práticas de happening e de músicas desmusica­
lizadas e com as práticas de sit-in e de sit-out,
e da «viagem» e dos light-shows, e com as práticas
de desencerramento dos pederastas e das lésbicas
e dos «loucos» e dos delinquentes, e com as práticas
de gratuitidade unilateralmente decididas. . . Que
pode o capitalismo contra esta desafecção que cresce
no seu interior (sob a forma, entre outras, de
<<jovens» desafectados), contra esta coisa que é
o novo dispositivo libidinal, e de que o Anti-Édipo
é a enorme produção-inscrição na linguagem ?
A força só se produz canalizada, parcialmente
investida. Se a esquizofrenia é chamada o limite
absoluto, é porque efectuada seria a força não
distribuída em dispositivo libidinal, pura flexão
fluida. O capitalismo aproxima-nos deste limite
esquizofrénico, pela multiplicação dos princípios
metamórficos, pela anulação dos códigos que regu­
lam os fluxos. Ao aproximar-nos deste limite,
coloca-nos já do outro lado. Compreende-se assim
1 29

a pouca importância que Deleuze e Guattari podem


atribuir ao tema batailliano da transgressão : qual­
quer limite está constitutivamente transgredido, não
há nada a transgredir num limite, o importan�e
não é o outro lado da fronteira, visto que só há
fronteira quando ambos os lados estão já estabe­
lecidos, compostos no mesmo mundo. O incesto,
por exemplo, não é mais do que um regato pouco
profundo : a mãe é componível ( pensável) como
=

amante através de palavras ; na fruição ela já não


é mãe, já não é nada, reina a noite dos cem mil
órgãos disjuntos e objectos parciais. Assim, ou
há limite, mas que se reduz a uma oposição muito
humana, e o desejo está ausente nos dois lados ;
ou então o desejo destrói efectivamente o campo
do limite, e a sua acção não é transgredir o limite,
mas pulverizar o próprio campo na superfície
libidinal. Se o capitalismo tem tais afinidades com
a esquizofrenia, deduz-se que a sua destruição
não pode proceder de uma desterritorialização
(por exemplo, da simples supressão da propriedade
privada . . . ), ele sobrevive-lhe por definição : ele
é _ essa desterritorialização. Destruir só pode pro­
vir duma liquidação ainda mais líquida, dum
clinamen ainda maior e de uma recta de queda
ainda menor, de mais dança e de menos piedade.
O que nos é preciso : que as variações de intensi­
dade se tornem mais imprevisíveis, mais fortes ;
que na «vida social» os altos e baixos da produção
desejante possam inscrever-se sem objectivo, sem
justificação, sem origem como nos tempos fortes da
vida «afectiva» ou «criadora» ; que cessem o ressen­
timento e a má consciência (sempre iguais a si pró­
prios, sempre deprimidos) das identidades de funções
engendradas pelo serviço das máquinas paranói­
cas, p�la tecnologia e pelas burocracias do Kapital.
1 30

O que é que se passa então com a pulsão de


morte? Deleuze e Guattari combatem energica­
mente a hipótese freudiana da culpabilidade e
do ódio voltado contra nós próprios, tal como ela
subentende o diagnóstico de Malaise dans la civi­
lisation: um �nstinto de morte que não teria modelo
nem experiência, produto teórico do pessimismo .
de Freud destinado a manter, a qualquer preço,
a posição dualista neurótica. Mas se a pulsão de
morte é aquilo através do qual as máquinas só fun­
cionam desarranjadas, e através do qual o seu regime
não se pode manter harmoniosamente, se ela é
o que perturba a produção desejante, quer por
o corpo sem órgão atrair e monopolizar esta pro­
dução, quer por a repelir e a recalcar, se tem por
modelo um regime maquínico desregulado, um
desregime, se se apresenta na experiência corres­
pondente à inarticulação, à perda de qualquer
articulus, à superfície sem variação de intensidade,
à catatonia, ao «ah ! não ter nascido !», então
ela não só é admissível, mas é também componente
necessária do desejo. Não uma outra pulsão, uma
outra energia, mas, na economia libidinal, um
«princípio» inacessível de desmesura, de excesso,
_de desregulamento ; não uma segunda maquinaria,
mas uma máquina cujo índice de regime tem capa­
cidade de se deslocar para o infinito positivo e
de a fazer embalar e explodir, ou para o zero e
de a fazer deter. É esta plasticidade ou viscosidade
que traça em todos os lados e em nenhum a dife­
rença entre a economia política e a economia libi­
dinal, e que particularmente faz com que certa
grande figura (certo grande dispositivo) selvagem,
por exemplo, possa ser desinvestida, com que as
canalizações e filtros caiam em desuso, e com que
131

a líbido se distribua de outro modo numa outra


figura, e é portanto esta viscosidade que é todo
o potencial revolucionário.
Retorno ao teatro representativo. Veja-se o
admirável capítulo sobre o problema do Édipo,
onde se encontram reunidas ou indicadas todas
as congruências que percorrem . o livro, e marca­
das a proximidade e a diferença em relação a
Freud : é necessário que um princípio de segmen­
tação, de quantificação, de articulação, venha
recortar no corpo pleno, no ovo da terra em
que não há afastamento extensivo, mas apenas
variações intensivas (herança kantiana ?), na histe­
ria contínua da filiação e das mulheres, articu/i
discerníveis, pessoas, funções, nomes, e que o
mesmo princípio os distribua e organize através
de procedimentos de extensão que vão determi­
nar as regras da aliança. O princípio que circuns­
creve o lugar e a modalidade da inscrição da pro­
dução desejante, ou seja, o socius, não é, como
se vê, um princípio produtor, · no fundo nem é um
princípio, visto que é destrutor : não é o Signi­
ficante, o castrador fundador, exibe-se não no furor
bestial do Urvater mas no colectivo paranóico
da comunidade homossexual dos homens ; ao ins­
tituir as cadeias de aliança, institui a representação,
a apresentação, na cena-superfície do corpo sem
órgão, de dramas a propósito de funções familiares
que estão lá para - e vão fazer écran a - viagens
libidinais de intensidade anónimas e órfãs. Assim
é dada a possibilidade do Édipo, a possibilidade
do mito do Urvater. É por isso que se irá dizer
que o Édipo não é originário, mas sim um efeito
de representação, que procede de as funções
familiares que resultam da articulação e distri­
buição recalcante na organização social serem pro-
1 32

jectadas no aquém deste recalcamento, onde, na


realidade, não há mais do que intensidades via­
jantes no corpo pleno, na esquizofrenia energética.
Portanto representado do desejo deslocado. Hipó­
tese que provavelmente está menos afastada de
Freud do que Deleuze e Guattari supõem (Freud
distingue muito bem a tópica da económica, o
representante da pulsão ). Mas pouco importa.
Acontece que sob os nomes de distribuição, para­
nóia, discemibilidade, quantificação, é preciso um
princípio de exclusão que vem recortar na econó­
mica contínua das intensidades libidinais um inte­
rior de e um exterior de, ou seja, uma dualidade ;
e que esta é toda a mola do dispositivo teatral,
que vai representar no interior (a cena, a família,
o socius) o que mantém recalcado no exterior
(o económico, a errância, o corpo pleno). Este
princípio de exclusão é o recalcamento originário,
todos os procedimentos de absorção, de rebati­
menta da produção desejante sobre o corpo ou
sobre o socius, todos os procedimentos de rejei­
ção das máquinas moleculares e dos objectos
parciais para fora do socius ou do corpo que se
ordena a esse recalcamento, a esse afastamento.
Eis o grande problema dos nossos tempos : como
entender este desvio sem recurso ao dualismo ?
Como pode haver processos secundários de arti­
culação cobrindo os processos primários, extraí­
dos deles, representando-os? Concedido que o
Édipo não seja originário, é necessário, dirão,
um lugar de teatralização, uma barreira recai­
cante de investimentos, limitando a errância das
intensidades, filtrando-as e compondo-as em cena,
seja ela social ou «poíquica». Cena desde logo
irreal, fantasmada, ilusória, afastada para semp r e
da coisa.
1 33

E, vtrao dizer-nos os e �pe rt alhõe s, toda a


vossa economia libidinal ou política é represen­
tação como o resto, teatro em que vocês encenam
o exterior, sob o nome de líbido e de máquina,
ainda assim metafísica do sentido, em que o signi­
ficado será a energia e os seus deslocamentos,
mas em que vocês falam, Deleuze e Gua ttat i ,
onde estão pois no interior do volume sala/cena,
onde a vossa quer ida e santa exterioridade está,
apesar de tudo, no interior das vossas palavras !
Metáfora suplemen tar a atribuir ao teatro total
do Ocidente, pequenos dramas no drama, no
máximo mudança de cenografia ; mas não meta­
morfose . . .
Eis um pensamento deprimido, eis um pensa­
mento piedoso, niilista. É niilista e piedoso porque
é um pensamento. Um pensamento é aquilo e m que
a po�ição energética se esquece representando-se.

A teatralidade é tudo o que o pensamento pode


denunciar no pensamento, -pode criticar. Um pen­
samento poderá sempre criticar um pensamento,
poderá sempre exibir a teatralidade de um pensa­
nzento, repetir o desvio. Mas no entanto passa-se
qualquer coisa, porque os pensadores não podem
criticar enquanto es s a qualquer coisa não tiver
entrado no p en samento teatralizável. O que se
passa é um deslocamento. A s si m ao lado da Europa
medieval apareceu um outro dispositivo, renas­
centista-clássico. O que é importante não é o
di scurs o sobre a metafísica que é o discurso da
metafísica. A metafísica é a potência do discurso
e m potência em qualquer discurso. O que interessa
é que ele muda de cena, de dramaturgia, de lugar,
de modalidade de inscrição, de filtro, portanto
de posição libidinal. Os pensadores pensam a
teatralidade metafísica, no entanto a posição do
1 34

desejo desloca-se, o desejo trabalha, começam a


trabalhar novas máquinas, as velhas deixam de
rodar ou rodam um momento no vazio ou embalam
e aquecem. Este transporte da força não pertence
ao pensamento nem à metafísica. O livro de Deleuze
e Guattari representa no discurso esse transporte.
Se só entendermos a sua re-presentação, perdemos :
teremos razão no interior desta figura, segundo os
critérios deste dispositivo. Mas seren1os esqueci­
dos, como é esquecido tudo o que não é esqueci­
mento, tudo o que está colocado no interior do
teatro, do museu, da escola. No dispositivo libi­
dinal que avança, não é ter razão, isto é, colocar-se
no museu, que é importante, mas sim poder rir
e dançar.
Bellmer descreve uma «expressão elementar»,
a crispação da mão sobre si própria durante uma
violenta dor de dentes : «Esta mão crispada é um
foco artificial de excitação, um «dente» virtual
que desvia, atraindo-a, a corrente de sangue e a
corrente nervosa do foco real da dor, a fim de
depreciar a sua existência.» Má finalidade invo­
cada, colada à descrição : porque não «a fim de
enaltecer a sua existência» ? ou «sem objectivo»,
por simples superabundância e escoamento de
força ? E se isto é assim, para quê a oposição do
real e do artificial ? Para quê erguer uma parede
entre o dente e a mão, encerrar a mão na teatra-­
lidade (e o dente na naturalidade) ? Os dedos
cravados na palma da mão não são a representação
do dente ; os dedos e o dente conjuntamente não
são significações, metáforas ; são o mesmo despen­
dendo-se diversamente, reversivelmente. O que
Bellmer acaba por dizer.

Texto publicado na revista «Critique», n. o 306 (Nov-72)


ENTREVISTA 2

SOBRE CAPITALISMO
E E S Q U I ZO F R E N I A

Pergunta - Um de vocês é psicanalista, o


outro é filósofo ; o vosso livro põe em causa quer
a psicanálise quer a filosofia e inroduz outra
coisa : a esquizo-análise. Qual é então o ponto
comum deste livro ? Como é que este empreendi­
mento foi pensado e que transformações originou
para um e outro ?
Gilles Deleuze - Seria preciso falar no condi­
cional, como as meninas : ter-nos-íamos encontrado,
ter-se-ia passado isto . . . Há dois anos e meio encon­
trei Félix. Ele tinha a impressão que eu estava
adiantado em relação a ele, esperava qualquer
coisa. É que eu não tinha nem as responsabili­
-dades dun1 psicanalista, nem as culpabilidades
ou os condicionamentos dum psicanalizado. Eu não
tinha, em absoluto, um lugar, isso tornava-me
ágil, e permitia-me melhor achar cómico até que
ponto era miserável a psicanálise. Mas eu só tra­
balhava nos conceitos e ainda timidamente. Félix
falou-me daquilo a que chamava j á as máquinas
desejantes, toda uma concepção teórica e prática
do inconsciente-máquina, do inconsciente esqui­
zofrénico. Tive então a impressão de que era ele
1 36

quem estava adiantado. Mas, como o seu incons­


ciente-máquina, ele falava ainda em termos de
estrutura, de significante, de phallus, etc. Era
forçoso, visto dever tanto a Lacan (eu também).
Mas eu pensava que isto ida ainda melhor se encon­
trássemos os conceitos adequados, em vez de nos
servirmos de noções que nem sequer são as de
Lacan criador, mas as de uma ortodoxia que se
organizou em seu redor. É Lacan quem diz : não
me ajudam. Í amos ajudá-lo esquizofrenicamente.
E, é certo, devemos tanto mais a Lacan quanto
renunciámos a no;ões como estrutura, simbólico
ou significante, que são muito más, e qu� Lacan
sempre soube voltar para lhes mostrar o avesso.
Félix e eu, decidimos pois trabalhar em con­
junto. Inicialmente fizemo-lo através de cartas.
E depois, de tempos a t�mpos, por reuniões em que
um escutava o outro. Divertimo-nos e aborrece­
mo-nos muito. Havia s�mpre um de nós que falava
demasiado. Acontecia frequentemente que um pro­
punha uma noção que nada dizia ao outro, e de
que este só se chegava a servir passados vários
meses, num outro contexto. E depois lemos muito ,
não livros inteiros, mas só partes. Por vezes desco­
bríamos coisas compl�tamente idiotas, que nos
confirmavam a culpa do Édipo e a grande miséria
da psicanálise. Outras vezes coisas que nos pare­
ciam admiráveis e que des�jávamos explorar. E escre ­
víamos muito. Félix trata a escrita como um fluxo
esq uizo que arrasta todas as espécies de coisas .
A mim interessa-me que uma página fuja por todos
os extremos, e que no entanto est�j a fechada sobre
si mesma como um ovo. E também que haja reten ­
ções, ressonâncias, precipitações e muitas larvas
num livro. Então escrevíamos verdad�iramente a
1 37

dois, por esse lado não tínhamos problemas . Fize­


mos versões sucessivas.
Félix Guattari - Eu tinha demasiados «lu­
gares» p or minha conta, tinha pelo menos quatro.
Vinha da Voie Communiste, e depois da oposiç ão
de esquerda ; antes do Maio de 68, estava muito agi­
tado, escrevia um pouco, por e xemplo , as Neuf
theses de 1' Opposition de gauche. A seguir tinha
participado na clínica de La Borde em Cour-Che­
verny, desde que Jean Oul y a constituiu em 1 953,
no prolongamento da experiência Tosquelles : ten­
tavam definir prática e teoricamente as bases
da psicoterapia institucional (por meu lado, en­
saiava noções como as de «transversalidade» ou
«fantasma de grupo»). E fui também formado
por Lacan, desde o princípio dos seminários.
Finalmente tinha uma espécie de lugar ou de dis­
curso esquizo, sempre estive apaixonado pelos
esquizos, sempre fui atraído por eles. É preciso
viver com eles para compre ender . Ao menos os
problemas dos esquizos são verdadeiros problemas,
não problemas de nevróticos. A minha primeira
psicoterapia foi feita com um e squizo, com a
aj uda dum gravador.
Ora esses quatro lugares, esses quatro dis­
cursos, não eram apenas lugares e discursos, mas
também modos de vida, forçosamente dilacera­
dos. Maio de 68 foi , para Gilles e para rrum, como
para tantos outros, uma sacudidela : não nos conhe­
cíamos, mas este livro, actualmente, é apesar de
tudo uma continuação de Maio. Eu tinha neces­
sidade não de unificar mas de colar um pouco
esses quatro modos em que vivia. Tinha referências
como, por exemplo, a necessidade de interpretar
a nevrose a partir da esquizofrenia. Mas não possuía
a lógica necessária a essa colagem. Tinha e scrito ,
1 38

nas Recherches um texto, «D'un Signe à rAutre»,


muito marcado por Lacan, mas em que não havia
já significante. Estava, no entanto, ainda preso
a uma espécie de dialéctica. O que esperava do
trabalho com Gilles eram coisas como estas : o
corpo sem órgãos, as multiplicidades, a possibi­
lidade de uma lógica das multiplicidades com cola­
gens sobre o corpo sem órgãos. No nosso livro,
as operações lógicas são também operações físicas.
E o que procurámos em comum foi um discurso
simultaneamente político e psiquiátrico, mas sem
reduzir uma das dimensões à outra.
Pergunta - Vocês opõem constantemente um
inconsciente esquizo-analítico, feito de máquinas
desejantes, ao inconsciente psicanalítico a que
fazem toda a espécie de críticas. Medem tudo em
relação à esquizofrenia. Mas podet ão verdadei­
ramente dizer que Freud ignorava o domínio das
máquinas ou, pelo menos, dos aparelhos ? E que
não compreendeu o domínio da psicose ?
F. G. - É complicado. Sob certos aspectos,
Freud sabia perfeitamente que o seu verdadeiro
material clínico, a sua base clínica, lhe vinha da
psicose, do lado de Bleuler e J ung. E isso não
cessará : tudo o que irá aparecer de novo na psica­
nálise, de Mélanie Klein a Lacan, virá da psicose.
Por outro lado o caso Tausk : Freud receava talvez
uma confrontação dos conceitos ànalíticos com
a psicose. No comentário de Schreber encontramos
todas as ambiguidades possíveis. Em relação aos
esquizos tem-se a impressão que Freud não gosta
realmente deles, diz sobre eles coisas horrorosas,
perfeitamente desagradáveis . . . Mas quando você
diz que Freud não ignora as máquinas do desejo,
é verdade. É mesmo a descoberta da psicanálise,
o desej o, as maquinarias do dest-jo. Isso não pára
1 39

de zunir, de ranger, de produzir, numa psicanálise.


E os psicanalistas não páram de p ôr máquinas
a trabalhar, ou de as re-p ôr a trabalhar sobre fundo
esquizofrénico. Mas talvez façam ou desencadeiem
coisas de que não têm uma consciência clara.
Talvez que a sua prática implique operações esbo­
çadas que não aparecem claramente na teoria.
Não há dúvida que a psicanálise instalou a confusão
no conjunto da medicina mental, exerceu o papel
d.e uma máquina infernal. Pouco importa que desde
o princípio tenha tido compromissos, isso insta­
lava a confusão, impunha novas articulações,
revelava o des.-�jo. Você própria invoca os apare­
lhos psíquicos tais como Freud os analisa : há aí
todo um aspecto maquinaria, produção de desej o,
unidades de produção. E há outro aspecto, uma
perwnificação desses aparelhos (o Superego, o
Ego, o Id), uma encenação de teatro que substitui
as verdadeiras forças produtivas do inconsciente
por simples valores representativos. Então as máq ui­
nas de desejo são cada vez mais máquinas de
teatro : o superego, a pulsão de morte como «deus
ex machina». Tendem cada vez mais a funcionar
por detrás da parede, nos bastidores. Ou então
máquinas de ilusão, de efeitos. Toda a produção
desejante é esmagada. O que nós dizemos é ao
mesmo tempo : Freud descobre o desejo como
líbido, desejo que produz ; e nunca deixou de realie­
nar a líbido na representação familiar (Édipo).
A psicanálise tem a mesma história do que a econo­
mia política tal como Marx a vê : Adam Smith
e Ricardo descobrem a essência da riqueza como
trabalho que produz e não cessaram de a realie­
nar na representação da propriedade. É o rebati­
mento do desejo sobre uma cena familiar que faz
com que a psicanálise desconheça a psicose, só
1 40

s e reconheça n a nevrose, e d ê d a própria nevrose


uma interpretação que desfigura as forças do
inconsciente.
Pergunta - O que é que querem dizer quando
falam duma «viragem idealista» com Édipo, na
psicanálise, e quando tentam opor um novo mate­
rialismo ao idealismo em psiquiatria? Como é
que se faz a articulação entre materialismo e idea­
lismo no domínio psicanalítico ?
G� D . - O que atacamos não é uma ideolo­
gia que seria a da psicanálise. É a própria psica­
nálise na sua prática e na sua teoria. E deste ponto
de vista não há contradição em afirmar que é qual­
quer coisa de formidável e que desde o princípio
que funciona mal. A viragem idealista está lá desde
o início. Não é contraditóri o : flores magníficas,
e contudo estão podres desde o início. Chamamos
idealismo da psicanálise a todo um sistema de
rebatimentos, de reduções na te�ria e na prática
analíticas : redução da produção desejante a um
sistema de r epresentações ditas inconscientes, e
a formas de causação, de expressão ou de com­
preensão correspondentes ; redução das fábricas
do inconsciente a uma cena de teatro, Édipo,
Hamlet ; redução dos investimentos sociais da
líbido a investimentos familiares, rebatimentos
do desej o sobre coordenadas familiares, ainda
Édipo. Não queremos dizer que a psicanálise
inventa o Édipo. Ela responde à procura, as pessoas
chegam com o seu Édipo. A psicanálise não faz mais
do que elevar o Édipo ao quadrado,
-
Édipo de trans­
É
fert, Édipo do dipo, sobre o divã como pequena
terra lamacenta. Mas, familiar ou analítico, o
Édipo é fundamentalmente um aparelho de repres­
são das máquinas desejantes, e não uma formação
do próprio inconsciente. Não queremos dizer que
1'41

o Édipo, ou o seu equivale nte, vatie com as formas


sociais consideradas. Ant·�s acredi tar íamos, com
os estruturalistas, que é uma invariante. Mas é
a invariante dum d esvio das forças do inconsciente.
É por isso que atacamos o Édipo, não em nome
de sociedades que o não comportariam, mas no
daqu�la que o comporta eminentemente, a nossa,
a capitalista. Atacamo-lo, não em nome de ideais
pretensamente sup e rior es à sexualidade, mas em
nome da própria sexualidade que se não reduz ao
«sórdido s egredi nho familiar». E não fazemos
qualquer diferença entre as variações imagin ári as
do Édipo e uma invariante estrutural, vi sto que
é sempre o mesmo impasse nas duas extremidades,
o mesmo esmagamento das máquinas des�jantes.
Aquilo a que a psicanáli se chama resolução ou
dissolução do Édipo, é perfeitamente cómico, é
pre cisamente a operação da dívida i nfinita, a
análise interminável, o contágio do Édipo, a sua
transmissão do pai aos filhos. É demente, as asnei ­
ras que se disseram em nome do É dipo, e, em
primeiro I ugar, sobre a cri ança.
Uma psiquiatria materialista é a que introduz
á produçã o no des ejo, e, inversamente, o desej o
n a pro dução . O delírio não ass�nta n o pai nem
sequer no nome do pai, mas nos nome s da Histó­
ri a. Ele é como que a imanência das máquinas
d es ejantes nas grandes máquinas sociais. É o
nvestimento do campo social histórico p_.las má­
quinas des cj antes . O que a psican álise compreendeu
da p sic ose, foi a linha «paranóia» que leva ao
Édipo, à castração, etc., todos esses aparelhos
repressivos inje ctados no inconsciente. Mas o fundo
esquizoft énico do delírio, a linha « esq uizofreni a»
que traça um desenho não familiar, escapa-lhe
completamente . Foucault dizia que a psicanálise
142

permaneceu surda às vozes da desrazão. De facto�


ela neurotiza tudo ; e através dessa neurotização
contribui não só para produzir o neurótico de
cura interminável, mas também para reproduzir
o psicótico como aquele que resiste à edipianização .
Mas falha completamente uma abordagem directa
da esquizofrenia. Não falha menos a natureza
inconsciente da sexualidade : por i deali smo, por
idealismo familiar e teatral.
Pergunta - O vosso livro tem um aspecto
psiquiátrico e psicanalítico, mas também um aspecto
político, económico. Como concebem a unidade
desses dois aspectos? Retomarão, dum certo modo,
a tentativa de Reich? Falam de investimentos fas­
cistas, tanto ao nível do desej o como do campo
social. Há aí q ual quer coisa que diz respeito simul­
tâneamente à política e à psicanálise. Mas perce­
be-se mal o que tentam opor aos investimentos
fascistas. O que é que constitui um obstáculo para
o fascismo ? A questão não é pois apenas relativa
à unidade deste livro, mas também às consequências
práticas : e são elas maciçamente importantes,
porque se nada pode impedir os «investimentos
fascistas», se nenhuma força o s pode conter, se
apenas se pode constatar a sua existência, o que
é que significa a vossa reflexão política, e qual é
a vossa intervenção no real ?
F.. G.- Sim, como muitos outros, anuncia­
mos o desenvolvimento dum fascismo generali­
zado. Não se viu ainda nada, não há nenhuma
razão para que o fascismo se não desenvolva.
Ou melhor : se não aparecer uma máquina revo­
lucionária capaz de se encarregar do desej o e dos
fenómenos do desejo, então o desej o permanecerá
manipulado pelas forças de opressão, de repressão,
e ameaçará, mesmo do interior, as máquinas
1 43

revolucionárias. O que nós distinguimos são duas


espécies de investimentos do campo social, os
investimentos pré-conscientes de interesse e os ·

investimentos inconscientes de desejo. Os investi­


mentos de interesse podem ser realmente revolu­
cionários e no entanto deixarem subsistir investi­
mentos inconscientes de desej o que não são revo­
lucionários ou que são mesmo fascistas. Num certo
sentido, o que propomos como esquizo-análise
teria como ponto de aplicação ideal grupos, e
grupos militantes : porque é aí que mais imediata­
mente se dispõe dum material extra-familiar, e
que aparece o exercício por vezes contraditório
dos investimentos. A esquizo-análise é uma análise
militante, libidinal-económica, libidinal-política.
Quando opomos os dois tipos de investimentos
sociais, não opomos o desejo como fenómeno
romântico de luxo aos interesses que seriam exclu­
sivamente económicos e políticos. Pensamos, pelo
contrário, que os interesses se encontram e se
dispõem onde o desejo predetermina o seu I ugar.
Do mesmo modo, não há revolução conforme aos
interesses das classes oprimidas se o próprio desejo
não tiver tomado uma posição revolucionária,
que empenha as próprias formações do inconsciente.
Porque o desejo faz parte, de qualquer maneira,
da infra-estrutura (não acreditamos de maneira
nenhuma em conceitos como o de ideologia, que
não dá bem conta dos pr oblemas : não há ideolo­
gias). O que ameaça eternamente os aparelhos revo­
lucionários, é elaborarem uma concepção puri­
tana dos interesses, que são sempre realizados
apenas em proveito de uma fracção da classe opri­
mida, de tal modo que essa fracção reforça uma
casta e uma hierarquia perfeitamente opressivas.
Quanto mais se sobe numa hierarquia, mesmo
1 44

pseudo-revolucionária, menos possível s e torna


a expressão do des·ejo (em compensação, ela
aparece nas organizações de base, por mais
deformada que seja). A esse fascismo do poder,
opomos as linhas de fuga activas e positivas,
porque essas linhas conduzem ao desejo, às
máquinas do desejo e à organização dum campo
social de desejo : não o fugirmos nós próprios
ou «pessoaln1ente», mas fazer fugir como se rebenta
um cano ou um abcesso. Fazer passar fluxos,
sob os códigos sociais que os querem canalizar,
barrar. Não há nenhuma posição de desej o contra
a opressão, por mais local ou minúscula que seja

essa posição, que não ponha em causa, de quando


em vez, o conjunto do sistema capitalista, e que
não contribua para o fazer fugir. O que nós denun­
ciamos, são todos os temas da oposição homem­
-máquina, o homem alienado pela máquina . . . etc.
Desde o movimento de Maio, o poder, apoiado
pelas pseudo-organizações de esquerda, tentou fazer
crer que se tratava de j ovens demasjado mimados
que lutavam contra a sociedade de consumo, en­
quanto que os verdadeiros oper ários sabiam b�m
onde estavam os seus verdadeiros interesses . . . etc.
Nunca se lutou contra a sociedade de consumo,
essa noção imbecil. Dizemos, pelo contrário, que
nunca houve consumo bastante, que nunca houve
artifício suficiente : nunca os interesses passarão
do lado da revolução se as linhas de desej o não
atingirem o ponto em que o desej o e a máquina
são uma e a mesma coisa, desej o e artifício, ao ponto
de se voltarem, por exemplo, contra os chamados
dados naturais da sociedade capitalista. Ora esse
ponto é simultâneamente o mais fácil de atingir,
porque pertence ao mais minúsculo desejo, mas
1 45

também o mais difícil, porque implica todos o s


investimentos d o inconsciente.
G. D. - Neste sentido o problema da unidade
deste livro não se põe. Há dois aspectos : o primeiro,
é uma crítica do Édipo e da psicanálise ; o segundo;
é um estudo do capitalismo e das suas relações
com a esquizofrenia. Ora o primeiro aspecto está
intimamente dependente do segundo. Atacamos a
psicanálise nos seguintes pontos que tanto dizem
respeito à sua prática como à sua teoria : o seu
culto do Édipo, a sua redução da líbido a investi­
mentos familiares, mesmo sob as formas des­
viadas e generalizadas do ·estruturalismo ou do
simbolismo. Afirmamos que a líbido procede a
investimentos inconscientes distintos dos inves­
timentos pré-conscientes de interesse, mas que não
incidem menos do que os investimentos de interesse
no campo social. Mais uma vez o delírio : pergun­
taram-nos se alguma vez tínhamos visto um esqui­
zofrénico, é a nossa vez de perguntarmos aos psicà­
nalistas se alguma vez ouviram um delírio. Deli­
ra-se sobre os Chineses, sobre os Alemães, Joana
d'Are e o Grão Mongol, sobre os Arianos e os
Judeus, sobre o dinheiro, o poder e a produção,
mas nunca sobre papá-mamã. Ou antes, o famoso
romance familiar depende intimamente dos inves­
timentos sociais inconscientes que aparecem no
delírio, e não o inverso. 'I'ent�mos mostrar em que
sentido é que isto é já verdade para a criança.
Propomos uma esquizo-análise que se opõe à psi­
canálise. Basta tomarmos os dois pontos em que
a psicanálise tropeça : ela não consegue atingir
as máquinas desejantes de qualquer pessoa, porque
se mantém nas figuras ou estruturas edipianas ;
não atinge os investimentos sociais da líbido,
porque se mantém nos investimentos familiares.
146

Vemo-lo bem na psicanálise exemplar in vitro do


presidente Schreber. O que nos interessa é o que
não interessa à psicanálise : o que é que são as
tuas máquinas desejantes? o que é a tua maneira
de delirar o campo social? A unidade do nosso
livt o reside no facto das insuficiências da psicanálise
nos parecerem ligadas à sua profunda dependência
da sociedade capitalista, assim como ao seu des­
conhecimento do fundo esquizofrénico. A psica­
nálise é como o capitalismo : tem por limite a
esquizofrenia, mas não cessa de repelir o limite
e de o tentar esconjurar.
Pergunta - O vosso livro está cheio de refe­
rências, de textos utilizados alegremente, no seu
próprio sentido ou em sentido contrário ; mas
de qualquer maneira é um livt o que tem por base
uma «cultura» precisa. Dito isto, vocês atribuem
muita importância à etnologia, e pouca à linguís­
tica ; muita · importância a certos romancistas in­
gleses e americanos, mas nenhuma às teorias con­
temporâneas da escrita. Por que, em particular,
esse ataque contra a noção de significante, e quais
são as razões pelas quais vocês recusam o seu
sistema?
F. G.- O significante não nos serve para
·
nada. Não somos os únicos, nem os primeiros.
Veja-se Foucault:, ou o recente livro de Lyotard.
Se somos obscuros na nossa crítica do significante,
é porque se trata de uma entidade difusa que rebate
tudo sobre uma máquina de escrita desusada.
A oposição exclusiva e obrigatória entre signi­
ficante e significado é assediada pelo imperialismo
do Significante tal como emerge com a máquina
de escrita. Então tudo se refere de direito à letra.
- É a própria lei da so brecodificação despótica.
·

A nossa hipótese é a seguinte : seria o signo do


147

grande Déspota (a idade da escrita), que, ao reti­


rar-se, deixaria uma praia decomponível em ele­
mentos mínimos e em relações reguladas entre
esses elementos. Esta hipótese pelo menos dá conta
do carácter tirânico, terrorista, castrador do signi­
ficante. É um enorme arcaísmo, que remete para
os grandes impérios. Nem sequer temos a certeza
de que o significante funcione para a linguagem.
Foi por essa razão que nos virámos para Hjelmslev :
há já muito tempo que ele fez uma espécie de teori a
spinozista da linguagem, em que os fluxos, de con­
teúdo e de expressão, prescindem de significante. A
linguagem como sistema de fluxos contínuos de con­
teúdo e de expressão, recortado por agenciamentos
maquínicos de figuras discretas ou descontínuas.
O que nós não desenvolvemos no livro foi uma
concepção dos agentes colectivos de enunciação
que pretenderia ultrapassar o corte entre sujeito
de enunciação e sujeito do enunciado. Somos
puramente funcionalistas : o que nos interessa é
o modo como qualquer coisa trabalha, funciona,
qual é a máquina. Ora o significante pertence ainda
ao domínio da pergunta «o que é que i sso quer
dizer?», é essa mesma pergunta enquanto barrada.
Mas para nós nem o inconsciente nem a linguagem
querem dizer nada. O que explica o falhanço do
funcionalismo é a tentativa de o instaurar em domí­
nios que não lhe pertencem, em grandes conjuntos
estruturados que, a partir daí, não podem for­
mar-se, serem formados do mesmo modo como
funcionam. Em contrapartida, o funcionalismo é
rei no mundo das micro-multiplicidades., das micro­
-máquinas, das máquinas desejantes, das formações
moleculares. A este nível as máquinas não são
qualificadas de nenhum modo, uma máquina lin­
guística por exemplo, há .elementos linguísticos em
148

qualquer máquina, com outros elementos. O incons­


ciente é um micro-inconsciente, é molecular, a
esquizo-análise é uma micro-análise. A única ques­
tão é como é que isso funciona, com intensi­
dades, fluxos, processos, obj ectos parciais, tudo
coisas que não querem dizer nada.
G. D. - Pensamos a mesma coisa a respeito
do nosso livro. Trata-se de saber se ele funciona,
e como, e para quem. Ele próprio é uma máquina.
Não se trata de o reler, será necessário fazer outra
coisa. É um livro que fizemos com alegria. Não
nos dirigimos aos que acham que a psicanálise
vai bem e tem uma visão justa do inconscien �e.
Dirigimo-nos aos que acham que é monótono,
e triste, um ronrom, o Édipo, a castração, a pulsão
de morte . . . etc. Dirigimo-nos aos inconscientes
que protestam. Procuramos aliados. Precisamos de
aliados. E temos a impressão que esses aliados já
existem, não esperaram por nós, de que há muitas
_
pessoas que estãQ fartas, que pensam, sentem_ e
trabalham em direcções análogas : não questão de
moda, mas de um «ar do tempo» mais profundo,
em que se fazem investigações convergentes em
domínios muito diversos. Por exemplo em etno­
logia. Em psiquiatria. Ou então o que Foucault
faz : não temos o m�smo método, mas temos a
impressão de que nos encontramos com ele em
todas as _ espécies de pontos, que nos parecem
essenciais, caminhos que foi ele o primeiro a
traçar. Na verdade lemos muito. Mas um pouco
ao acaso. O nosso problema não é certamente
um retomo . a Freud nem um retorno a Marx. Não
é uma teoria da leitura. O que procuramos num
livro é o modo como ele faz passar qualquer coisa
que escapa aos códigos : fluxos, linhas de fuga
activas revolucionárias, linhas de descodificação
149

absoluta que se opõem à cultura. Mesmo para os


livros, há estruturas edipianas, códigos e ligações
edipianas tanto mais dissimuladas quanto são
abstractas, não figurativas. O que encontramos nos
grandes romancistas ingleses ou americanos é esse
dom que os franceses só raramente possuem, as
intensidades, os fluxos, os livros-máquinas, os
livros-usos, os esquizo-livros. Nós temos Artaud
e uma metade de Beckett. Talvez censurem o nosso
livro por ser demasiado literário, mas estamos
certos de que essa censura virá de professores de
letras. Será culpa nossa que La\\'rence, Miller,
Kerouac, Burroughs, Artaud ou Beckett saibam
mais sobre a esquizofrenia do que os psiquiatras
e os psicanalistas?
Pergunta - Não se arriscarão a uma censura
mais grave ? A esquizo-análise que vocês propõem,
é na realidade uma desanálise. Talvez vos digam que
valorizam a esquizofrenia de uma maneira român­
tica e irresponsável. E até mesmo que têm tendên­
cia a confundir o revolucionário e o esquizo. Qual
seria a vossa atitude em relação a essas eventuais
críticas?
- Sim, uma escola de equizofrenia não estaria
mal. Libertar os fluxos, ir sempre mais longe no
artifício : o esquizo é alguém descodificadá, dester­
ritorializado. Dito isto, não somos responsáveis
p elos contra-sensos. Há sempre pessoas para faze­
rem expressamente os contra-sensos (vejam-se os
ataques contra Laing e a anti-psiquiatria). Recen­
temente no Observateur apareceu um artigo em
que o psiquiatra-autor dizia : eu sou muito corajoso,
denuncio as modernas correntes da psiquiatria e
da anti-psiquiatria. Nada disso. Ele escolhia pre­
cisamente o momento em que a reacção polltica
se reforça contra qualquer tentativa de mudar o
1 50

que quer que seja no hospital psiquiátrico e na


indústria dos medicamentos. Há sempre uma polí�
tica por detrás dos contra-sensos. Nós pomos um
problema bem simples, semelhante ao de Burroughs
a respeito da droga : poder-se-á captar o poder
das drogas sem se drogar, sem se produzir como
um farrapo drogado ? Passa-se a mesma coisa
com a esquizofrenia. Distinguimos a esquizofre­
nia como processo e a produção do esquizo como
entidade clínica boa para o hospital : os dois estão
em razão inversa. O esquizo de hospital, é alguém
que tentou qualquer coisa e que falhou, que se
arruinou. Não dizemos que o revolucionário é
esquizo. Dizemos que há um processo esquizo,
de descodificação e de desterritorialização, que só
a actividade revolucionária impede de se transfor­
mar em produção de esquizofrenia. Pomos um
problema respeitante por um lado à estreita rela­
ção entre o capitalismo e a psicanálise, e à relação
entre os movimentos revolucionários e a esquizo­
-análise por outro. Paranóia capitalista e esquizo­
frenia revolucionária, podemos falar assim porque
não partimos dum sentido psiquiátrico destas pala­
vras, mas, pelo contrário, das suas determinações
sociais e políticas, donde procede exclusivamente
a sua aplicação psiquiátrica em certas condições.
A esquizo-análise tem um só objectivo, que a
máquina revolucionária, a máquina artística, a
máquina analítica se tornem peças e rodas umas
das outras. Ainda mais uma vez, se considerarmos
o delírio, parece-nos que tem dois pólos, um pólo
paranóico fascista e um pólo esquizo-revolucio­
nário. Oscila sempre entre esses dois pólos. É isso
que nos interessa : a esquize revolucionária por
oposição ao significante despótico. Em todo o caso,
não vale a pena protestar adiantadamente contra
1 51

os contra-sensos, não é possível prevê-los nem


lutar contra eles, uma vez que estão feitos. Vale
mais fazer outra coisa, trabalhar com os que . vão
no mesmo sentido. Quanto a ser responsável ou
irresponsável, não conhecemos essas noções, são
noções de polícia ou de psiquiatra de tribunal.

2 de �arço de 1 972

e publicada na revista «1'Are»� n. o 49


Entrevista conduzida p or C. Backes-Clément
UMA ANTI-SOCIOLOGIA

POR JACQUES DONZELOT

Como é que, um dia, um homem terá sido


J�vado a estender-se num divã para contar a sua
vida? É de certa maneira a questão que Michel
Foucault punha em Histoire de la folie. Para lhe
dar resposta descreveu uma seq uência de três
séculos de história durante os quais se tramou
a divisão entre loucura e normalidade. Resultado :
a psicanálise situa-se no ponto último das dispo­
sições do internamento sem renunciar às suas
implicações fundamentais : «Freud libertou o doente
dessa existência asilar em que os seus libertadores
o tinham alienado, mas não os libertou do que
havia de essencial nesta existência . . . Criou a situa­
ção psicanalítica em que, através de um curto­
-circuito genial, a alienação se torna desalienação ;
mas o médico enquanto figura alienante permanece
a chave da psicanálise.»
Era possível uma pessoa contar-se. Seja. Mas
o que é que se poderia fazer ouvir nessas condi­
ções ? Esta impertinência que era apontada nas
últimas páginas do livro devia provocar a alegria
suficiente a Gilles Deleuze e a Félix Guattari para
que fizessem uma obra capaz de conter uma demo-
1 54

lição generalizada da psicanálise, uma nova teoria


do desejo e, de caminho, um esboço da evolução
da humanidade das origens até aos nossos dias.
Falou-se diferentemente destes três aspectos do
livro ; falou-se do primeiro superabundantemente
devido ao seu carácter panfletário ; o segundo,
essa teoria do desejo maquínico, foi doutamente
discutido para se saber se era a negação de toda
a poesia ou se era apenas isso, poesia : por fim,
ignorou-se o terceiro, e é pena, porque é aí que se
desenvolve, à escala do conjunto das ciências
humanas, uma tentativa de subversão da mesma
ordem da que Laing e Cooper tinham levado a
efeito apenas no terreno da psiquiatria, a destruição
da psicanálise não aparece já como um fim em-si,
mas como a condição primeira duma subversão
dum alcance completamente diferente e de que
a forma e o tom do livro dão já uma ideia.

Um discurso sem complexo

Disse-se deste livro que era difícil. Ora, não


há palavra mais infeliz para designar este ímpeto
de desmistificação e de simplificação que atravessa,
sem diminuir, a acumulação tão desmesurada como
asténica que constitui o campo intelectual con­
temporâneo.
O Anti-Édipo vem pontuar histórias diferentes
da que Foucault descreveu. Há a série consti­
tuída pela psicoterapia institucional de que a
obra se pretende o desenvolvimento teórico, há
também a «tradição» freudo-marxista e a linha
anti-hegeliana cujas bases foram lançadas por
Nietzsche. Este livro é pois o produto duma con­
junção entre diferentes séries, conjunção que faz
a sua singularidade e que explicaria o tipo de acolhi-
1 55

mento que recebeu : sucesso espectacular e reac­


ções incómodas, poujadistas, numa só palavra.
É que, impossível de situar num género, põe em
desordem as teorias de cada disciplina sem que
os seus defensores o possam citar perante o tri­
bunal das suas regras, tanto ele lhes foge por todos
os lados. Não se trata propriamente dum livro
de filosofia ; embora Deleuze e Guattari a tenham,
ela pode resumir-se na fórmula : tudo está em tudo
e reciprocamente. Também não resulta duma dis­
ciplina científica, assim como �ão inventa nenhuma.
O seu princípio de existência observa-se sobretudo
numa actividade de lascagem dos saberes insti­
tuídos, de destruição integral das proposições em
circulação. Prodigiosos esforços para pensar de
outro modo.
Ao tratar-se da forma do livro teremos de
reconhecer que é desconcertante. Já não estávamos
habituados a livros em que a ausência de lugar de
ancoragem disciplinar dá à escrita as formas da
voz. Deplora-se a ausência de progressão linear,
dessa paciência acumuladora que gratifica habi­
tualmente a leitura. É que Deleuze e Guattari
só podem ser lidos da mesma maneira que se
escuta alguém que fala : tudo está dito desde as
primeiras palavras, tudo está ainda por dizer.
Não há nenhuma razão para que isso se detenha,
para além da fadiga. E é certo que por vezes assis­
timos a uma espécie de sufocação : esses blocos
erráticos de saberes não perfeitamente digeridos
que se coagulam no fluxo da obra ; e essas inces­
santes repetições que vêm retomar os primeiros
postulados para, em cada desvio, mostrarem ainda
a sua pertinência. Que dizer, a não ser que é o
inevitável preço da aventura. Ê também descon­
certante esse rebaixamento da paisagem intelec-
1 56

tual através de uma erudição toda azimutes, auto­


rizada por uma «indispensável incompetência» para
fazer um uso negligente dos mais sábios autores,
captando a sua felicidade onde eles a encontram
e saltando alegremente por cima dos vernizes que
confortam os edifícios intelectuais e garantem a
sua eminência. Já não se trata de estar «na verdade»
desta disciplina ou daquele autor prestigioso, mas
de afirmar qualquer coisa que se sustente por si só.
Fala amassada pois, na escrita ; mais do que
produção teórica regulada ; desencorajando o estudo,
como se o efeito pretendido não fosse tanto a con­
templação dum saber como a comunicação duma
certeza jubilatória : a história da humanidade é
a história dum longo erro que começa com o
Estado e que prossegue com a psicanálise, via
capitalismo e sistema familiar. Mais um discurso
planetário, dir-se-á, mas desta vez sem essas cris­
pações «humanistas» que são a nostalgia e a pro­
fecia, sem nada de oratório, nem imprecações
nem invocações. Para ler este livro e, mais ainda,
para o amar, é de facto necessário partilhar com
os autores um certo aborrecimento pela tragédia,
suspeitar que não é mais do que uma forma de
esconjuro da vida, uma maneira de desrealizar a
história através da evocação da origem e do encan­
tamento do seu fim, de a amarrar na repetição do
mito e na compulsão do fantasma. É preciso estar
farto dessas adjurações para dar um sentido à vida
porque se está obcecado pela morte, farto das
tentações positivistas de delimitação maníaca do
patológico porque se tem medo da loucura como
de qualquer diferença. Senão, irritar-nos-emos por
só aí encontrarmos a obscuridade de certezas peno�
samente adquiridas, ajustes de contas para inicia­
dos e terrorismo mundano.
1 1 57

A psicanálise às avessas

O empreendimento só se poderia fazer contra


a psicanálise : a sua posição soberana no campo
intelectual, a sua aptidão para descodificar os
saberes embora inscrevendo-os na sua própria
dependência feudal, tudo a tomava o alvo obriga­
tório duma tentativa séria de agitação. Ora, como
é que se podia fazer uma crítica de esquerda da
psicanálise, legitimada no seu próprio princípio
pela relação de desopressão que mantém com o
reprimido, com o recalcado, poderosamente abri­
gada por uma tecnicidade que barra o acesso a
qualquer crítica? Os mais audaciosos projectos
arranhavam o edifício, arrumavam-no ou anexa­
vam-no com muitas reverências e precauções.
Esse aferrolhamento teórico e político é sus­
tentado, damo-nos agora conta, por duas afirma- ,
ções principais que têm permitido recalcar a crí­
tica. Primeira afirmação : o desej o é reaccionário
por essência, não está voltado para o presente e
ainda menos para o futuro, mas procura uma reac­
tivação do passado. Devido a isso, o empreendi­
mento psicanalítico passava, senão por revolucio­
nário, pelo menos por honrosamente progressista
visto estar associado a um projecto de maturação
do desejo. Segunda afirmação : o desejo é uma
denegação do real, porque todo o desejo é desejo
de imagens, ainda pior, de imagens de imagens.
Mantém-nos assim num deslocamento perpétuo
em relação ao real. Só a análise podia ter compe­
tência. e pretensão a desmascarar esse «real impos­
sível» por detrás do teatro do imaginário.
O sentimento crescente nestes últimos anos
de que algo não ia bem no campo da psicanálise
tropeçava sempre nesta argumentação. A partir
1 58

de que é que Deleuze e Guattari chegaram a essa


atitude extremamente coerente de que é preciso
derrubar sem mais delongas aquilo que se não
pode nem contornar nem assimilar ? A partir
do desejo desrealizante ? mas ele é o próprio real.
Porquê ver outra coisa para além duma diferença
de regime entre a actividade desejante e a activi­
dade social, técnica, artística ou política ? A partir
do desejo reaccionário ? Mas ele é revolucionário
por essência. Veja-se Fourier. Esta verdadeira
reversão da psicanálise é efectuada, podemos dizê-lo,
graças a três operações :
1 . Uma generalização do inconsciente. - Des­
triangularizado, relativizado, torna-se o continuum
·
da existência, o seu princípio, e não já uma ins­
tância entre outras. Ó rfão, autoproduzido, anar­
quista e ateu, cíclico, envolvendo a e�periência
·

da morte na sua experiência, o inconsciente faz


do devir aquilo que não cessa e não deixa de acon­
tecer. Não conhece assim nada da origem e do fim,
não exprime nada e não é sequer uma linguagem.
Não é o receptáculo secreto dum sentido que seria
preciso decifrar, mas o estado de coexistensividade
do homem e da natureza.
�- Uma materialização do desejo. - O desej o
j á não é desejo de qualquer coisa ; tensão para um
objecto que falta e de que se sente sempre a falta
para que o desejo, a transcendência e as crenças
vivam ; não é produzido por uma incompletude,
mas é, precisamente, produção por associação
entre máquinas que produzem fluxos e outras
que os cortam : o sol e os olhos, o ar e a boca ,
o sexo e tudo o que se quiser. O desejo, reassente
nos seus pés, consiste num formigar de conexões
entre máquinas-energias e máquinas-órgãos, que
podem, aliás, ser umas e outras simultâneamente.
1 59

O processo não pressupõe pois nem lei, nem hierar­


quia, nem transgressão. A novidade da análise
não está, evidentemente, na extensão da sexuali­
dade a todas as superfícies de contacto - aqui já
Freud tinha assinado o ponto -, mas na des-subs­
tancialização e desmistificação simultâneas da sexua­
lidade, que já não tem nem substância precisa
nem sentido. �ão há nenhum mito, arquétipo ou
estrutura que se possa relacionar com as pulsões,
e reciprocamente, num vai-vem que cauciona quer
a sexualidade como força subterrânea quer a força
dos mitos. A explosão desta soldadura entre mito
e sexualidade liberta o desejo como actividade de
superfície, retirando-lhe esse carácter de tragédia
em conserva que o tornava um verdadeiro nojo.
3. Uma funcionalização das instâncias de atrac­
ção e de repulsão. - A morte não é o objecto do
desejo, mas uma forma do desejo, «peça de máquina
desejante que deve ser julgada, avaliada, no fun­
cionamento da máquina e no sistema das suas
conversões energéticas, e não como princípio abs­
tracto». Assim como há a vida que deseja a título
de corpo sem órgãos, estado de imobilidade cata­
tónica do corpo que faz calar os órgãos, que os
repudia. Somente, em vez de assistirmos a um dua­
lismo de pulsões, a um dilema que, a cada instante,
sanciona a civilização, as instâncias repressivas
como as únicas capazes de se oporem ao instinto
de morte, dispomos duma possibilidade de com­
preender as relações vida-morte, atracção-repulsa,
nos termos duma conjugação positiva. Já não um
dualismo antagonista que se superaria dialecti­
camente numa neutralização pelo filtro edipiano,
mas uma multiplicidade funcional em que a repulsa
entre o corpo sem órgãos e os órgãos condiciona a
atracção que é o próprio funcionamento. Se a re-
1 60

pulsa é indispensável é que, sem ela, cria-se um


organismo fixo, uma entidade fechada, finalizada,
que barra o livre trabalho do agenciamento mole­
cular das máquinas desejantes, que só podem fun­
cionar com falhas de motor, com desarranjos, re­
tornos ao grau zero, por uma espécie de entropia,
para serem de novo reactivadas, ciclo em que o
modelo da morte se converte (o corpo sem órgãos :
a morte do interior) em experiência da morte (a
que vem do exterior).
Nesta perspectiva ontogenética, o corpo sem
órgãos figura o terceiro termo da série produtiva :
1) fluxo ; 2) corte ; 3) paragem. É em relação a
este terceiro termo, o da anti.:.produção, que se
definem as variações possíveis do desejo. O estado
paranóico corresponde a uma situação de per_se­
guição do cocpo sem órgãos pelas máquinas de�e­
jantes : repúdio do desejo. O estado esquizofrénico,
pelo contrário, é o encantamento do corpo sem
órgãos que se engata miraculosamente a todas as
forças produtivas e órgãos de produção.
Estas diferenciações só podem ser plenamente
compreendidas na perspectiva filogenética, que ali­
nha os diferentes estados da história. A este nível,
a produção genérica funciona segundo o mesmo
esquema, sendo a anti-produção representada suces­
sivamente pela terra, pelo déspota e pelo capital.
Há, no entanto, uma diferença capital entre o corpo
sem órgãos e as formas gerais de anti-produção :
é que o primeiro é o resultado interno da produção
desejante sobre a qual exerce um recalcamento pri­
mário funcional, enquanto que as segundas são
a sua condição extrínseca e exercem u111a _repres­
são arbitrária.
A evolução realiza-se assim numa libertação
cada vez maior dos fluxos (equizofrenização), ten-
161

dência que as instâncias de anti-produção exas­


peram, mesmo ao tentarem contê-los, rebatê-los
sobre si próprias, agregá-los (paranóia). O processo
histórico tende assim, quer para fazer da terra
um equivalente do corpo sem órgãos, quer para
massificar e fixar toda a produção desejante en1
meta-organismos, pseudo-mundos, face oculta da
terra.
Todas essas operações, todas essas novas «evi­
dências» proferidas no livro implicam uma refu­
tação sem apelo da psicanálise, ou trata-se apenas
duma contribuição, um pouco vigorosa, é certo,
mas no entanto digerível por ela ? Para tomar uma
decisão, é necessário ver como é que a psicanálise;
antes de aí chegar, teve de sofrer as modificações
consecutivas a duas confrontações decisivas : com
a realidade dó hospital psiquiátrico por um lado,
e por outro com o pensamento nietzschiano.
A primeira foi efectuada sob o nome de psico­
terapia institucional. A prática analítica vai aí
tropeçar no que tinha podido sempre iludir no seu
exercício «liberal» : no tratamento das psicoses,
de que encarregava hipocritamente os psiquiatras.
Guattari experimentou desde l956, com a sua pri­
meira psicoterapia em hospital, o carácter refrac­
tário dos psicóticos à análise, a impossibilidade
de fazer entrar o delírio psicótico nos esquemas
de interpretação freudiana. Observamos na narra­
tiva que foi publicada, uma estranha oscilação
entre os pouco discretos incitamentos que faz
ao seu paciente para que recite «papá, mamã,
a minha doença e eu» e uma atenção nascente
a um discurso que é levado a falar de uma coisa
completamente diferente ; de Kafka, dos judeus
ou da imobilidade integral. Ao mesmo tempo,
a injecção dum discurso psicanalítico, versão laca-
162

niana, numa instituição de guarda provocou uma


espécie de colectivização dos conceitos analíticos :
os transferts tornavam-se institucionais e os fan­
tasmas colectivos. Esta tomada em consideração
do desejo ao nível colectivo preencheu nos anos
sessenta uma função política : La Borde tornou-se
para os enfadados dos stalinismos de qualquer
género um refúgio, o lugar duma crítica da prá­
tica militante e da teoria social ; isto causava ainda
Lacan, mas era já doutra coisa que se tratava.
A confrontação com o pensamento nietzs­
chiano é o encontro Deleuze-Guattari, o apelo
mútuo de uma teoria integralmente amoral da
história e de uma teoria do desejo deslastrada de
qualquer ancoragem no patológico, o estabele­
cimento duma correspondência entre a avaliação
dos comportamentos com o único critério da sua
potência e uma percepção do desejo que apenas
reclamaria a sua própria suficiência. Era a ocasião
para uma decantação de tudo o que tinha surgido
de novo no quadro da psicoterapia institucional :
do psicótico retira-se o ensino dum funcionamento
·
maqu inico do desejo, dum investimento de todo
o campo social pelo desejo, como o seu delírio
testemunha ; da prática de grupo destaca-se a
ideia de que os conjuntos criadores, as verdadeiras
singularidades, são as micro-multiplicidades dese­
jantes, os grupos-sujeitos e não as pessoas o u
instituições. A análise política vem coincidir total­
mente com a análise dos investimentos de desejo ;
o que era crítica externa da teoria e da prática
políticas tornou-se parte integrante desta, visto
que já não se pode distinguir uma lógica social
(meta-individual) duma lógica do desejo (intra­
-individual), um princípio de realidade e um prin­
cípio de prazer.
1 63

No total, uma teoria que se constrói apenas


a partir de tudo o que a psicanálise ocultava ou
menosprezava : a psicose e os investimentos sociais
do desejo ; não para os fazer entrar à força no
edifício analítico, mas para os fazer saltar e abrir
a análise do desejo a todo o campo social.

O fim do freudo-marxismo

Mas, dir-se-á, este apagamento da distinção


rígida entre princípio de realidade e princípio de
prazer não é já um velho sonho, o de todas as
tentativas de síntese entre Freud e Marx ? E depois,
ao liquidar assim a barreira entre a teoria do incons­
ciente e a teoria social não se chegará às mesmas
aberrações que antes se censuravam à psicanálise :
um imperialismo da teoria do inconsciente que
subjuga todas as outras dimensões ? Porquê, no
fim de contas, preferir a antropologia de Deleuze
e Guattari às que se procuram na direcção duma
ortodoxia lacaniana ?
Tentar precisar a posição de O Anti-Édipo
em relação a todas estas questões é tanto mais
necessário quanto a sua aparição é quase contem­
porânea da de duas obras igualmente importantes
que assumem em relação a essas questões posições
sensivelmente diferentes. A primeira, aparecida
pouco antes de O Anti-Édipo, é La critique de /'éco­
nornie politique du signe, de Jean Baudrillard,
crítica da crítica de Marx, em que o ponto de vista
político é pelo menos tão radical como o de Deleuze
e Guattari, mas que se apoia numa teoria do incons­
ciente muito próxima da de Lacan. A segunda,
intitulada Le psychanalysrne, de Robert Castel,
aparecerá em Fevereiro próximo. É uma denúncia
absoluta de todas as ilusões que a psicanálise
1 64

mantém sobre o seu alcance político, tanto n a prá­


tica dos ·seus agentes como nas tentativas de síntese
com teorias sociais.
«Não nos parece que tenha ainda sido anali­
sado o papel e os efeitos deste modelo de contrato
em que a psicanálise se inseriu (o contrato psica- ·

nalítico como caso particular da relação contra­


tual médico-liberal)», escreve Deleuze no seu pre­
fácio à recolha de artigos de Guattari. Pode-se
dizer que, com o livro de Castel, isso fica feito.
O contrato analítico é o meio de «p ôr fora de
jogo os determinismos políticos e sociais ao nível
da instauração da análise, do seu desenvolvimento
(relação dual), dos seus materiais (as formações
do inconsciente), dos seus conceitos (as categorias
do discurso analítico)». Convenção arbitrária para
abrir um certo acesso ao inconsciente que está
inteiramente suspenso duma tomada de partido
sobre a realidade ; tomada de partido que defende
nesses processos de neutralização o que na existên­
cia nunca é neutro. A psicanálise, através dessa
neutralização prévia, torna-se de facto neutrali­
zante daquilo que expulsa pelo contrato mas per­
petua subtilmente pela sua própria prática : o papel
do dinheiro, as estruturas de desigualdade, a refe..­
rência à família, a preponderância concedida a�
símbolo masculino, etc. . . Daqui deriva a impossi­
bilidade de acreditar que a psicanálise tenha qual­
quer conteúdo subversivo, pois esta estruturação
da sua prática e da sua teoria fornece, pelo contrá­
rio, a chave dum imperialismo normalizador que
se manifesta nas novas capacidªdes de intervenção
que oferece ao dispositivo da medicina mental.
O movimento natural da psicanálise na sua crítica
formal e exterior da psiquiatria, levou a que esta
se prolongasse sobretudo no exterior do hospital ,
1 65

precisamente com o seu próprio concurso, a meta­


morfosear-se e a multiplicar-se mais do que a
transformar-se verdadeiramente (ao contrário da
estratégia adoptada por pessoas como Guattari
que, como se viu, conduziram uma crítica prática
da psicanálise introduzindo-a à força no hospital ;
mas aqui abandonamos o raciocínio de Castel
que não pensa muito bem da psicoterapia insti­
tucional).
Neste sentido duma medicalização crescente
dos problemas sociais pela própria psicanálise,
Castel considera o conjunto das tentativas freudo­
-marxistas como o meio de encontrar para os
falhanços revolucionários uma explicação e uma
solução médicas. Mesmo que condenem alto e
bom som a extensão prática da psicanálise «abur­
guesada» ou revisionista, participam no mesmo
processo, que consiste em querer «curar a vida»
julgando «transformá-la».
Podemos estar perfeitamente de acordo com
esta crítica que não separa a prática analítica das
suas utilizações reaccionárias ou ilusoriamente revo­
lucionárias e não poupa, assim, nem uma nem
outra, à excepção de algumas poucas coisas. As coi­
sas em questão são as seguintes : porquê chamar
psicanalismo ao que se denuncia como uma dimen­
são intrínseca da psicanálise ? Há neste «ismo»
a indicação duma reserva na crítica, toda uma
distinção feita provavelmente contra vontade mas
no entanto explícita, entre as utilizações sociais
e as utilizações individuais da psicanálise : conce­
de-se à psicanálise uma competência absoluta para
falar da relação que «cada um mantém com o seu
desejo e com a sua morte», sob condição de já
ninguém pensar em «procurar na psicanálise um
modelo duma qualquer prática política». Este .res-
1 66

peito mantido, este apelo ao cada um em sua casa,


não irão conduzir a lançar sobre qualquer proble­
mática do desejo a mesma suspeita que é lançada
sobre a psicanálise, em benefício do princípio da
crítica moral, aqui chamada socio-política?
De qualquer maneira, a descrição feita por
Castel permite agora ultrapassar cinquenta anos
de ligação entre marxismo e psicanálise, e explicar
o seu actual ponto de explosão em que se situam
quer Baudrillard quer Deleuze e Guattari. Isto
começa com uma rivalidade : os Soviéticos têm
Pavlov, os Americanos terão Freud ; aliás Staline
prefere, adora os estímulos. O único comunista
que era psicanalista, Wilhelm Reich, só p ôde ser
ambas as coisas até 1 932 (no que respeita ao P.C.)
e 1 934 (no que respeita a psicanálise, o que apesar
de tudo foi uma proeza). São os sociais-democratas,
neste caso os alemães da escola de Frankfurt
donde saiu Marcuse, que confrontam Marx e Freud.
O que Reich e Marcuse fizeram foi um certo número
de arranjos do marxismo e da psicanálise, postu­
lando a sua compatibilidade fundamental. Brico­
lage engenhoso, mas feito às cegas ; uma espécie
de forcing intelectual, menosprezando o que irá
em seguida aparecer como a questão de base :
a heterogeneidade das condições de produção da
teoria marxista e da teoria freudiana. Com Althusser
e Lacan acabaram-se os bricolages e as amálgamas ;
eles instauraram as regras puras e duras da epis­
temologia, ou seja, o reino dos truísmos e das
tautologias : o marxismo é Marx ; o freudismo é
Freud ; a ciência é a ciência. Não se julgou, no
entanto, impossível articular duas ordens de saber
se se lhes guardasse o devido respeito. Houve quem
consagrasse páginas duma rara inteligência e duma
total futilidade a demonstrar que o sub-conti-
167

nente freudiano podia, mantendo a sua dignidade,


ter lugar no grande continente marxista-Ieninista.
Durante o primeiro período, o esforço tinha
de algum modo incidido sobre produtos acabados,
sobre uma realidade recortada, filtrada, tratada
através de diferentes métodos cognitivos. No se­
gundo, houve o estabelecimento duma relação
de simples vizinhança dos métodos, devido a uma
igual prática de suspeita. O primeiro era fértil,
mas, se o podemos dizer, artificial ; o segundo não
iniciava nenhum processo de desnaturização, mas
a custo da esterilidade. Isto permite talvez com­
preender que já só era possível avançar praticando
uma abolição dissimulada ou declarada de um dos
termos do problema. O que um simples arromba­
mento mútuo e, com mais razão ainda, a vizinhaça
metodológica não tinham conseguido estabelecer
foi procurado da maneira mais simples : ajustando
as suas contas quer com a psicanálise quer com
o marxismo. Diremos então que o empreendimento
de Deleuze e Guattari é um hiper-marxismo,
enquanto que o de Baudrillard é um hiper-freu­
dismo. O que se pode estabelecer ao considerar
o lugar que ocupa respectivamente em Deleuze
e Guattari o conceito de produção e em Baudrillard
o conceito de troca.
Para Deleuze e Guattari, como o desejo é
produção, toda a produção é confrontável com
a produção desejante ; relacionação que se obstina
em proscrever o aparelho psiquiátrico e psicana­
lítico, referindo o desejo não à produção mas à
lei, referindo-o não ao espaço político e social
mas ao enclave irrisório da família. O desejo . alcança
assim lugar no conjunto marxista das forças pro­
dutivas. Ele só é refreado, regulado, por aquilo
que regula qualquer produção.
1 68

Para Baudrillard o conceito de troca é o


foco a partir do qual efectua uma desconstru­
ção absoluta do marxismo e vem ancorar a sua
teoria no freudismo de versão lacaniana. O pri­
meiro tempo é pois uma crítica do marxismo a
partir da recusa da distinção entre valor de uso
e valor de troca. O valor de uso repousa numa
antropologia idealista que propaga a ideia duma
natureza, das necessidades naturais, a ideia duma
utilidade que escapa à determinação histórica.
Ora as necessidades são regidas por um código,
um sistema cuja lógica é tão abstracta como a
que regula a equivalência do valor de troca. A mesma
abstracção, logo o mesmo fetichismo da merca­
dotia no quadro do valor de uso e no do valor de
troca.
Segunda etapa : a esta supremacia da lógica
da equivalência corre�ponde a do significante,
sendo o significado as necessidades, o valor de uso.
Bipolaridade hierarquizada em que a proemi­
nência absoluta é concedida ao valor de troca e
ao significante. E como a barra que separa o signi•
ficante e/ o significado é a da castração, e como
o inconsciente está estruturado como uma lingua­
gem, chega-se assim aonde se pretendia. Baudrillard
é para nós esse homem paradoxal que opera uma
das melhores críticas de Marx extirpando todas
as ingenuidades naturalistas, e que não pode ver
uma mulher semi-nua sem pensar que o limite
da roupa figura a barra da castração.
Para Baudrillard, o inconsciente moderno,
refundido pela equivalência, é o j oguete dos sis­
temas, o escravo dos signos. O capitalismo é esse
progressivo arrombamento do inconsciente que leva
a substituir a verdadeira lógica do desejo, a sua
ambivalência radical, pelo princípio da equiva-
1 69

lência em que só há pseudo-trocas, pela mani­


pulação dos signos da fruição em vez da própria
fruição. Já só se trocam simulacros, já não se frui,
consomem-se signos.
Esta análise tem tudo o que é preciso para
ser sedutora, excepto o facto de conduzir a separar
o desejo de toda a economia social ; logo, a insti­
tuir um sistema fechado que a morte só pode
alcançar do exterior. Passa-se o tempo a verificar
a lei da equivalência, a desmistificar-lhe todas as
avançadas e a esperar que o desej o queira fazer a
sua irrupção. A gravidade é maior, porque se
pode perguntar : como é que este sistema se mantém?
produto dum arrombamento, supõe algo com que
sustentar a sua artifi.cialidade, protecções que pos­
sam conter a ambivalência do desejo. É precisa­
mente para isso que há chuis, professores, exér­
citos, segundo nos dizem. Mas como é que isso
trabalha? como é que isso é eficaz? só pela pura
demonstração de força ? à exterioridade do desejo
corresponde a exterioridade da repressão. Há pois,
por um lado, um sistema cambial cuja inscrição
no inconsciente implica uma capacidade de recu­
peração generalizada de qualquer tentativa exce­
dente, e por outro, apesar disso, mas completa­
mente estranha a esta lógica, uma repressão.
Percebe-se a dificuldade : Baudrillard diz : 1) só
há troca ; 2) é no entanto necessária uma repressão
objectiva ; 3) e sta repressão não se apoia em ne­
nhuma das actividades do psiquismo, é o arame
farpado dum conjunto fechado.
A força do livro de Deleuze e Guattari está
precisamente em investigar os processos que ligam
a repressão à auto-repressão. A ausência de dis­
tinção de natureza entre produção social e produ­
ção desejante permite-lhes inscrever a lógica do
1 70

desej o no cerne do sistema capitalista, de ver aí


uma força cuj o desenvolvimento é simultâneo do
·

do conjunto das produções, imbricado nelas e


ameaçando igualmente as relações sociais em que
esta produção genérica está contida. Percebe-se
o raciocínio : tudo se passa como se Deleuze e
Guattari se tivessem dito : está muito bem, o mar­
xismo, esta maneira de colocar a matéria onde
se via o espírito ou qualquer substância bizarra.
Mas porque diabo é que Marx se deteve em tão
bom caminho ? o desej o merecia o mesmo trata­
mento que os outros fenómenos. Não é de espantar,
com uma tal omissão, que se disponha dum método
que permita compreender apenas metade das coisas,
com altos e baixos e com voltas de manivela tão
deploráveis. Sejamos mais marxistas do que Marx ;
vamos até ao fim ; vamos fazer também um estudo
materialista do desej o e alojá-lo desse modo na
base do sistema social. E se o marxismo morrer
disso, é - porque bem o merece.
A fraqueza do capitalismo está pois, para
Deleuze e Guattari, no que ele implica, ou seja,
um desenvolvimento inelutável da produção dese­
jante, e não no que exclui, como pensa Baudrillard,
isto é, a troca simbólica primitiva. Para aqueles,
a transformação deriva da própria lógica do desen­
volvimento, enquanto que para Baudrillard _ ela
está de algum modo subordinada ao retorno do
recalcado. A repressão resulta, para Baudrillard,
da separação absoluta entre o desejo verdadeiro
e a vida social, da conversão de um no outro por
uma ilusão a que Freud chamava sublimação e
que Baudrillard descreve como a substituição da
lógica da equivalência (nível da mercadoria capi­
talista) pela da ambivalência (lógica do desejo e
da troca simbólica). Para Deleuze e Guattari a
171

repressão é inseparável da auto-repressão própria


da lógica do capitalismo, que só pode existir liber­
tando a produção genérica, mas contendo-a em
limites tais que não permitam que isso se . esgueire
por todos os lados. Ela não é pois uma condição
exterior do capitalismo mas a sua contradição
interna. A questão fundamental que O Anti-Édipo
coloca é pois a seguinte : se o capitalismo é tanto
mais poderoso quanto mais pt odução libertar, e
por conseguinte mais desejo, como é. que consegue
resistir? tendo em consideração que não basta
dizer que o consegue através da repressão, mas
que é necessário explicar como é que esta é possí­
vel, quais as relações que existem entre a sua
eficácia e o desejo.
O que tentámos precisar através da evocação
comparada das três o bras, de Castel, de Baudrillard
e de Deleuze e Guattari, foi uma espécie de gra­
dação na acuidade da questão que assenta no
problema do poder nas suas relações com o desej o,
uma escalada pt agressiva para o que há talvez
de mais incómodo em pensar. Castel descreve o
psicanalismo como um complexo prático-teórico ,
que tem por função mascarar os verdadeiros pro­
blemas, que são, marxismo oblige, a produção da
sua vida material pelo homem. A sua crítica do
poder é feita em termos de verdadeiro e de falso,
de bem e de mal ; é o que se chama humanismo.
Baudrillard desenvolve uma crítica do capitalismo
considerado como um sistema de ilusões artifi:­
cialmente mantido por uma repressão que não
serve de nada criticar moral ou cientificamente,
pois que ela encontra em si própria o seu prin­
cípio. Ê o paradoxo do niilismo : vive-se de tal
modo na ilusão de que não é possível libertarmo­
-nos da nossa submissão ao poder que nos é exterior,
1 72

única realidade objectiva. Para Deleuze e Guattari,


o problema não está em criticar nem em nomear
o poder, mas em ver os laços efectivos que mantém
com aquilo que é a sua negação : o desejo.
Em segundo lugar, podemos constatar de que
modo, nesta gradação, ou se se· preferir, neste leque,
a · atenção concedida ao problema da doença por
um lado, e a referência, senão a reverência, em
relação aos saberes estabelecidos por outro lado,
diminuem à medida que nos aproximamos duma
problemática que relaciona o des:--jo com o poder.
Poder-se-ia; em todo o caso, deduzir daí que aquilo
a que se chama o realismo, é a tomada em con­
sideração das instituições e das pessoas de posição
tanto em nome do seu saber como no das misérias
deste mundo. Isto deveria ser suficiente para cha­
mar a atenção para O Anti-Édipo, porque há cada
vez maior número de p�ssoas a quem as ciências
clínicas ou as ciências humanas j á não dizem nada
que lhes interesse, que as faça avançar. É por
demais flagrante que não fazem mais do que con­
gestionarem-se, tendo atingido um limite de satu­
ração que invalida os seus postulados, que põe
a descoberto as suas limitações políticas. Estamo­
-nos nas tintas para o facto de com estes saberes
tão depressa nos fabricarem optim.ismo, como
pessimismo ; o que se deseja são novas análises,
novos meios.

Uma anti-sociologia

Ora, podemos encontrar em O Anti-Édipo o


meio de escapar a pelo menos três das maiores difi­
culdades da análise social :
1) A alternativa entre descrições funcionalistas
que não fazem mais do que racionalizar «de um
173

modo diferido» e muito mal as instituições sociais,


e a análise estrutural que denunéia, sob os usos
confessados, mecanismos de funcionamento que
os contradizem. Se esta última tem com maior
frequência uma orientação revolucionária, é a
custo duma . visão unilateral dos sistemas que não
fornece a inteligência das forças que trabalham
as ditas instituições.
2) O jogo de distinções entre infra e superes­
trutura, entre lutas de classes e lutas marginais.
A análise marxista clássica consiste em destacar
através da ganga do concreto, o ouro puro da
luta de classes. Só que, como a luta de classes em
estado puro se torna raríssima, para não . dizer
ine�istente, forçoso é juntar-lhe, a título de parâ­
metros mais ou menos perturbadores, uma dimen­
são religiosa, linguística ou étnica. À força de
secundarizar tudo o que não releva da pura lógica
marxista, de apenas analisar a natureza das lutas,
esqueceu-se que têm também um lugar e uma
direcção e que esses três elementos são inseparáveis.
Todo o conjunto social é inicialmente uma certa
forma de investimento da terra, um certo modo
de a habitar.
3) O véu mais ou menos púdico lançado sobre
o problema do Estado. Tor na-se cada vez mais
impossível ver nele a simples secreção instrumen­
tal duma vontade partidária ou colectiva, quando
se constata por todo o lado a sua aptidão para
subordinar os movimentos revolucionários, a sua
atracção cada vez maior pelas tentações regressivas.
Para escapar a todas estas dificuldades é neces­
sário mudar de questionação. Não perguntar já :
o que é a sociedade ? Questão abstracta, que só
serve para abrir concurso para o conceito mais
geral. Para lhe substituir a interrogação interpe-
1 74

lat:iva : como é que nós vivemos em sociedade ?


Questão concreta que arrasta outras : onde vive­
mos ? como é que habitamos a terra? como
vivemos o Estado? De modo que os processos
sociais já não apelam tanto para uma explicação
nos termos da sua lógica interna, mas em função
dos investimentos com que afectam as duas super­
fícies que os limitam : a terra e · o Estado. O social
já não é um todo autónomo mas um campo de
variações entre uma instância de agregação e
uma superfície de errância.
1 . Molar, molecular, gregaridade. - Na sua
tentativa de recusa da alternativa função-estrutura,
Deleuze e Guattari apoiam-se explicitamente na
corrente da psico-sociologia crítica que se desenvol­
veu em França a seguir à guerra da Argélia e de
que Sattre havia demonstrado a fecundidade para
análise histórica em La critique de la raison dia/ec­
tique.
Podemos ver mais do que uma correspondência
entre o «grupo em fusão» e as formações mole­
culares de Deleuze e Guattari, micro-multiplici­
dades desejantes que constituem o pólo activo
dos conjuntos sociais. E também entre os conjuntos
molares e as reuniões seriais. Mas, primeira dife­
rença : para Deleuze e G uattari, não há existência
separada do molar e do molecular. Ora Sartre
descrevia essas formas como estados sucessivos
da vida dum grupo. Deleuze e Guattari interes­
sam-se por definir a sua coexistência, em assinalar
qual a linha que subordina a outra .. Toda a tarefa
da esquizo-análise é proceder precisamente a esse
trabalho de detecção :
1) Descobrir no cerne das máquinas molares
a presença das máquinas desejantes e as variações
de afinidade entre ambas.. Há portanto, uma pri-
175

meira tarefa mecânica que estuda as incompati­


bilidades de funcionamento, as imobilizações, con­
frontando máquinas desej antes e máquinas molares.
2) Distinguir os investimentos pré-conscientes
de interesse. Os conjuntos molares não são pura
inércia, mas são constituídos por _ investimentos
sociais. A pertença · a uma classe social remete
.

para o papel na pro dução ou anti-produção. Há pois


um investimento de interesse que incide sobre o
regime das sínteses sociais segunqo o lugar que
se ocupa no dispositivo. Mas este é distinto do
investimento libidinal, que tanto pode conduZir
ao desejo dum no'\l o corpo social como ao daqu�le
que existe. Distinção importante, visto que os dois
tipos de investimento se podem opor, alimentando
as contradições quer na classe dominante quer nas
camadas dominadas.
Há uma segunda vantagem em reportar o
estudo dos grupos à produção des·ejante, que é
evitar termos de fundamentar a historicidade na
especulação duma falta original. O caráct..!r cíclico
da descrição da vida dos grupos em Sartre implicava
uma espécie de mecânica compulsiva : arranca­
mentos sucessivos à inércia, em virtude duma
.dinâmica da raridade colocada no limiar da história,
sempre seguidos de recaídas fatais no «prático­
-inerte» até ao reino da abundância. De maneira
que ele só podia descrever os conjuntos sociais
como conj untos inertes, como praxis petrificadas
percorridas p or ondulações espasmódicas. Deleuze
e Guattari escapam a esta infatigável dialéctica

conferindo a cada pólo, molar e molecular, uma


atracção própria : o pólo esquizofrénico (mole­
cular) corresponde ao desejo produtivo, o pólo
paranóico à disposição da falta. Dum lado, o
.desejo tomado na ordem real da sua produção,
176

comportando-se pois como fenómeno molecular


desprovido de fins e de intenções ; do outro, o
desejo prisioneiro de grande s « objectivi dades tota­
lizantes , significante s , que fixam as organizaçõe s,
as faltas e os fins».
As grandes formações sociais são qualificadas
como gregárias porque reúnem os seus elementos
esmagando, por uma pressão sel ectiva, todas as
singularidades , todas as multiplicidade s, produ­
zindo assim uma unidade estrutural . E esta uni­
dade recebe a sua eficácia ao operar uma s ol da-
. dura do de sej o à falta, atribuindo-lhe no se u dis­
positivo um fim, obj ectivos , necessidades, inte n­
ções ; e a falta não é original, mas constituída
pelo di sp o si tivo que capta e regista as p roduções .
Como a sociedade capitalista tem por caracterís­
tica levar sempre ao mais alto ponto a libertação
dos fluxos, embora mantendo-os nos li mite s que
permitem a sua inscrição, sendo assim uma tendên­
cia encoraj ada para a esquizofrenização, para a
libertação absoluta dos fluxos, para a sua fuga
sem fim ; mas também -tenc;lência exacerbada para
o reatamento, para a s uj eiçã o à e strutura que con­
fere um l ugar e um limite às produç õe s .
Função e estrutura não têm que se op ôr como
métodos de análise, pois não são mais do que dois
regime s diferentes duma mesma produção, mas
diferença que é agora levada a um ponto de explo­
são. E o que está em jogo nesta l uta é a forma de
investimento de que a terra p ode s er afe ctada .
2. A territorialidade. - Esta noção é, para
nós, a mais rica e a mais nova da obra, mas embora
se compreenda que sá conta de imensas coisas,
que permite saltar as distinções entre o infra e o
superestrutural, entre o margin al e o essencial,
1 77

é preciso reconhecer que é mal e muito raramente


explicitada.
Numa primeira aproximação podemos tentar
defini-la em referência ao código. Codificação e
terri1lorialização são duas modalidades complemen­
tares de pregagem das produções. A codificação
ajusta-as ao socius, ao dispositivo central, enquanto
que a territorialização as arruma sobre o corp o
da terra. Se considerarmos as sociedades selvagens,
a diferença entre as duas é ínfima, pois a sup�rfície
de registo e o lugar de codificação são a própria
terra. A terra é então «essa grande estase ine�­
gendrada, o elemento superior de produção que
condiciona a utilização e a apropriação comum
do solo». É sobre ela que se enreda o laço do d �sejo
e da sua própria repressão. É o lugar, o obj �cto
e o fecho natural da produção, a forma imanente
do investimento primeiro do des·�j o que incide
sobre o corpo pleno da terra, modulada então
apenas por diferenças de intensidade. Quer dizer
que a instauração dum princípio de repartição
geográfica é já uma pt imeira etapa da d .!sterrito­
rialização, pois institui uma terra dividida, cor­
tada, substituída des� vez como princípio de uni­
ficação por uma in&tância transcendente, a uni­
dade de Estado, o novo corpo pleno. Vemos que
codificação e territorialidade evoluem na razão
inversa uma da outi a. Quando a codificação se
desenvolve tornando-se sobrecodificação, a terri­
torialidade diminui, ganha em artificialidade. O de­
sejo já não atinge directamente a terra, já não a
habita, mas alucina-a através de novos corpos
plenos : Deus, Moisés, grandes e pequenos chefes,
conduzam-nos em direcção à terra prometida !
Este movimento de desterritorialização é levado
pela lógica do capitalismo a um nível tal que já
1·78

só pode produzir procedendo simultâneamente a


reterritorializações que constroem febrilmente a
recordação de todas as antigas ; até esse ponto
de saturação que faz do capitalismo, segundo á
fórmula de Nietzsche, «a pintura matizada de
tudo aquilo em que se acreditou». A actividade
de codificação, levada ao seu extremo limite,
torna� se axiomática, regulação dos fluxos que o s
rege sem nunca o s fixar, imobilizar. Já não há
territorialidade propriamente dita, mas um estado
de suspensão dos fluxos que deve torná-los perma­
nentemente disponíveis, daí esse incessante vai-vem
de desterritorializações e de reterritorializações.
Só da libertação total dos fluxos se pode esperar
a recriação duma nova terra� Novos pontos de
encontro, mas desta vez sem cordão umbilical,
tão flexível e funcional como o corpo sem órgãos
para o esquizo ; terra miraculada, capaz de supor­
tar a proliferação das produções, superfície encan­
tada onde os fluxos poderão deslizar sem fim.
Isto não é mais do que literatura, porque
toda esta descrição é suportada por uma crítica
da representação que vem fundamentar a análise
da territorialidade. Delimitar um território, bali­
zar-lhe os limites, recensear-lhe as riquezas, atri­
buir-lhe um Centro, equivale a representá-lo, a
deixar a superfície da terra para entrar na esfera
da representação. O território é tan1bém o mapa,
o quadro. A renúncia da terra ao seu privilégio
primeiro e o aparecimento de pseudo-mundos, os
do território e do déspota, os que contam o mito
e a tragédia, são inseparáveis ; aparição duma outra
face da terra, pobre como um teatro.
Há assim as grandes representações objecti­
vas que transportam o desej o no simbólico da
representação embora referindo-o a condições mate-
1 79

nats : um espaço preciso, o corpo do déspota.


A que se sucedem as representações subjectivas,
verdadeiras conversões das primeiras, que, ao des­
locarem mitos e tragédias do espaço social para a
subjectividade, _ os transformam em sonhos e fan­
tasmas, operação que aumenta a sua gravidez
alojando-as na interioridade. O mundo fechado da
representação dá lugar às figuras duma líbido
universal. Representação subjectiva do desejo na
família privatizada e do trabalho na propriedade
privada. Já só há papá-mamã, dinheiro e merda.
Não há portanto dois níveis distintos, o do subjec­
tivo e o do objectivo, o do ideológico e o do real,
mas um mesmo e único fenómeno de criação dum
universo perverso e nevrótico.
Seríamos tentados a dar total razão a Deleuze
e Guattari se não faltasse, lastimavelmente, uma
análise dos efeitos desse movimento de desterri­
torialização sobre o próprio corpo da terra. Como,
porque meios, é ele conduzido, se não for por um
igual processo de deterioração desta? Se a economia
capitalista é efectivamente uma economia de guerra,
que só pode proceder por uma colonização sempre
crescente do espaço terrestre, é preciso ver que
implica uma administração do terror prospectivo
que modifica radicalmente esse espaço. Para fazer
reinar o medo, é necessár io criar um espaço do medo,
tornar deste modo a terra inabitável. A aparição do
habitat! era uma defesa, primeira forma de resis­
tência à colonização. A sua actual destruição
deixa-lhe apenas a função de refúgio, de esconde­
rijo. Ora, não é somente através de «fluxos de
pulhice» que o Estado produz este medo do espaço,
mas tomando-o realmente, biologicamente inabi­
tável. Há como que um resto de realidade que
escapa à crítica da representação. Sej a, dirão tal-
1 80

vez Deleuze e Guattari, pois bem , se se não puder


recriar uma nova terra, então os fluxos libertos
conduzir-nos-ão para uma outra. Enquanto o espe­
ramos, não é do lado esquizo que se encontra o
apocalipse, mas nas mãos do Estado.. e se fosse
necessário, a análise que fazem poder-nos-ia con­
vencer a este respeito. (*)
3. As origens da família, da paranóia e do
Estado. - Há em O Anti-Édipo com que inverter
totalmente as proposições de Engels no seu livro
sobre As origens da fanJília, da · propriedade privada
e do Estado. Recordemos que ele estabelecia o
Estado e a família numa relação dedutível da modi­
ficação das relações de produção, cujo eixo essen­
ci al era o aparecimento da propriedade privada.
O Estado tinha três características : o seu nascimento
era lógico, era determinado antes de ser determi­
nante, havia tantas formas de Estado como modos
de produção. A família, integrada nas relações
de produção na era original, individualizava-se
progressivamente, mas permanecia runda estrei­
tamente subordinada e alienada pela propriedade
privada, que era portanto, o principal «analisador»
das duas outras instituições. Ao que Deleuze e
Guattari respondem :
1) O nascimento do Estado não é lógico mas
perfeitamente contingente ; é pt ovocado pelos fun­
dadores de Estado, «os que chegam como o destino,
sem causa, sem razão, sem respeito, sem pretexto».
Donde vêm? Do deserto, isto é, do limite exterior
à trama descontínua das filiações e alianças que

(*) Esta observação inspira-se no artigo de Paul Virilio :


«L'État suicidaire» (Cause commune. n.0 3) cuja confrontação
..

com este aspecto de O Anti-Édipo pode originar mil reflexões


e muita perplexidade.
181

arrumavam entre si e sobre o corpo pleno da terra,


as populações selvagens. O que é que trazem?
O princípio duma consolação vet tical para o dés­
pota, novo ponto de engate das alianças e das filia­
ções que ele prolonga ao fazê-las convergir na sua
filiação directa com Deus. O déspota substitui
então a terra como motor imóvel , o seu Deus,
a D eu sa terra.
2) O Estado é determinante antes de ser
determinado. A máquina despótica instala uma
sobrecodificação às primeiras reuniões, determi­
nando um conjunto unificado. A máquina terri­
torial estava articul�da, por um jogo de acções e
reacções, em torno da dívida. Ajustava as filiações
em si mesmas e entre si, produtores e não-produto­
res segundo uma relação de credor a devedor
que marcava no próprio corpo de cada órgão o
lugar, a função e o uso de que era devedor. A sobre­
codificação, ao instaurar a lei como unidade supe­
rior, substitui este esquema activo pela passividade
do terror, o signo abstracto pela marcação concreta.
A lei é latência, ameaça omnipresente de tudo o
que lhe pode escapar. Já não gera um sistema de
retribuição e de reequilíbrio, mas permite ao Estado
tudo chamar a si através da capitalização da dívida,
que ele torna infinita, eterna. O Estado é o que
já lá está, aquele a quem se deve tudo.
A desterritor.ialização do solo (por privati­
zação) da riqueza (por abstracção monetária), a
descodificação dos fluxos (fluxos monetários, comer­
ciais, fluxos de mão-de-obra) ; tornada assim pos­
sível a ocasional conjunção da produção e do
capital, tudo isto implica um deslocamento da
posição do Estado que, de determinante, passa a
determinado. O seu papel já não é de direcção mas
de regulação, de vigilância, de controle dos proces-
1 82

sos de desterritorialização e de reterritorialização


dos fluxos para que estes se possam engatar ao
capital, mas nunca escapar-lhe. J á não codifica
nada, mas deve, pelo contrário, manter os fluxos
a um certo nível de descodificação. Nem muito nem
muito pouco.
3) Há um só Estado. Poder-se-ia deduzir desta
arte do justo meio que o Estado é a l sabedoria
das nações, enquanto ele é a sua loucura negra.
«Nascidas da descodificação e da desterritoriali­
zação, sobre as ruínas da máquina despótica,
as sociedades modernas estão presas entre o Urstaat
que quereriam ressuscitar como unidade sobreco­
dificante e reterritorializante, e os fluxos soltos
que as arrastam para um limiar absoluto»� Se esta
nostalgia do Urstaat tem tanta força, é, como Reich
já tinha apresentado a ideia, por ser desejado.
Mas como é que se pode desejar o Estado ? como
é que o desej o pode desejar a sua própria repres­
são? É na análise do devir da família que iremos
encontrar a resposta.
Na máquina social primi�va, a família não
está isolada por nenhuma barreira do resto do
campo social e político. Produtores e não produ-
- ·-

tores estão imediatamente marcados, inscritos sobre


o socius, segundo a categoria da sua família e a
-
sua categoria na família. É o que diz Engels, e tem
por certo razão quando faz do aparecimento da
propriedade privada a causa principal da privati­
zação da família ; mas embora veja perfeitamente
a causa do processo não compreende o seu alcance.
O que está inscrito no socius capitalista j á
não são produtores, mas forças e meios d e produ­
ção como quantidades abstractas. Donde deriva
um abandono da família, segregação que a torna
o lugar duma igualdade abstracta. Ela torna-se
. , 1 83

então um microcosmo enganador daquilo de que


está separada, superfície da aplicação do campo
social que, rebatendo-se sobre ela, transforma as
pessoas sociais em pessoas privadas e inversamente.
O menor teatro possível, a menor colónia do capi­
talismo, ela faz passar todo o campo social nas
imagens da vida privada. «No conjunto de partida
há o patrão, o chefe, o cura, o chui, o preceptor,
o soldado, o trabalhador, todas as máquinas e
territorialidades, todas as imagens sociais da nossa
sociedade, mas no conjunto de chegada já só há,
em último limite, papá, mamã e eu.» A família
exprime somente o que já não domina, e esta simu­
lação do campo social permite a este tirar o desejo
da armadilha dos seus primeiros investimentos, de
dele tirar todo o benefício da culpabilização que
recebe. Papá, mamã, o meu desejo e eu, por todo
o lado e para sempre.
Esta opet ação encerra a aventura do desej o,
a . sua migração desde . a situação primeira em que
era simples expansão, «implex germinai» correndo
sobre o corpo da terra, ignorando o incesto, pois
as filiaçõe s puras· não supunham nomes ou funções
discerníveis, mas simples diferenças de intensidade.
O É dipo nasce quando a sociedade ganha em exten­
são o que perde em intensidade. O interdito atinge
ent�o nominalmente o incesto, mas o que reprime
é o desenfreamento dos fluxos livres sobre o corpo
da tert a. O É dipo já não é o objecto do desejo
mas a sua representação recalcante. Envergonha-se
o desejo ao dar-lhe como objecto precisamente
aquilo que está interdito. O que tu desejas é o que
é vergonhoso. Primeiro engano donde todos os
outros derivam. O Estado despótico encarna sim- .
bolicamente o Édipo pelo incesto ritual do soberano,
deslocamento que o transporta para as alturas,
1 84

aumentando a sua importância, fixando ainda


melhor sobre ele o desejo, visto que é o acto que
determina a soberania e lhe interdita o acesso.
Na última etapa, ele instala-se na vida familiar,
tornando-se o representante do des-ej o, o objecto
imaginário e já não simbólico do seu recalcamento.
O inacessível já não está no exterior mas no pró­
prio cerne do ser. Aí, o medo e a vergonha gelam
o desejo, «livre de perigo».
Entre a família e o Estado há um laço. cons­
titutivo que os faz chamarem-se mutuamente. Por
detrás de papá-mamã, o Estado. O Estado que
prepara a família, o Estado que é o seu horizonte.
E tudo isto por um ardil que leva a tomar o inter­
dito pelo obj ecto do desejo. A história não começou
na cabeça das crianças que desejam o lugar do
pai, mas no medo deste, que diz : «0 que tu desejas
é a minha morte. » O É dipo é uma ideia de para­
nóico, e por ele a família é, mais do que alienada,
alienante.

Texto publicado na revista «L.Esprit» de Dez-72


ENTREVISTA 3

GILLES DELEUZE E FÉ LIX GUATTARI


À REVISTA «ACTUEL»

Poder-se-á reduzir o nazismo, a guerra do


Vietname, o capitalismo, a exploração, a alienação,
a revolução, à distribuição dos interesses em pre­
sença e ao choque das ideologias ? E se a revolução
aparece como a libertação duma formidável pul­
são, sem qualquer comparação com as simples
reivindicações da classe oprimida, como explicar
então que antes ou noutro lado os homens tenham
podido combater pela sua servidão com tanta
obstinação como pela sua felicidade ? No fundo
dos mecanismos sociais e das exposições lógicas,
Gilles Deleuze e Félix Guattari designam um enorme
fluxo inconsciente e irracional, a repartição e a
repressão do desejo como um extraordinário delírio
individual e colectivo.
Singular encontro, consolidado pelo movi­
mento de Maio, entre Gilles Deleuze - filósofo
que até aí consagrou a sua obra a Hume, Nietzsche,
Proust, Sacher- Masoch, Kant ou Spinoza - e
Félix Guattari - animador duma inovadora clí­
nica psiquiátrica e militante da primeira hora nas
1 86

primeiras manifestações do esquerdismo, desde os


anos cinquenta, em que conheceu o trotskismo
para encontrar em seguida a oposição de esquerda
ao PCF, e, por fim, o movimento do 22 de Março.
Da sua colaboração nasceu um livro, O Anti­
-Édipo, capitalismo e esquizofrenia, a que se deve
o primeiro grande debate teórico do após-Maio
em França.
Na tradição de Reich, O Anti-Édipo precipita
a psicanálise no cerne da realidade política e social.
Agride frontalmente a psiquiatria oficial nas suas
cegas repetições conservadoras - papá, mamã, Édi­
po, castração - como na sua função mais ou
menos confessa de readaptar o indivíduo ao sistema
repressivo. A loucura, tal como o desejo, não se
separa da história, da sociedade e das suas impo­
sições : como é possível dissertar sobre o pai se
se ignoram as noções de Estado e de poder, na
sua genealogia e no seu peso sobre o indivíduo ?
À semelhança da anti-psiquiatria inglesa - Laing
e Cooper - Deleuze e Guattari regressam à aná.­
lise da esquizofrenia, que para eles é a doença
distintiva do capitalismo, ele próprio definido como
uma primeira fuga. Mas, mais ainda do que Laing
e Cooper, colocam a origem do delírio mais no
campo social do que no da família : o metro, o urba­
nismo, o trabalho, a opressão, o imperialismo,
alimentam a esquizofrenia, nisso reveladora do
sistema, seu caso limite e no entanto inassimilável.
O Anti-Édipo propõe uma reinterpretação radi­
cal do conjunto dos processos sociais : tarefa «vio­
lenta e brutal» que, paralelamente à de Michel
Foucault, deve descobrir e secar as fontes do sis­
tema e dos homens que produz, mas também a
dos grupos institucionais da política e da revolução
1 87

fixados nos seus estereótipos, nos seus fantasmas


e nas suas estruturas embrionárias de sujeição.
Libertação do desejo e desejo de revolução, o · livro
atinge por isso as tentativas mais empíricas de
um novo esquerdismo que se aventura agora no..
exterior das vias balizadas do marxismo-leninismo�
Não se trata nem de organizar nem de prever, mas
· de afastar dos lugares de explosão todo o material
social que poderia, num segundo tempo, reco­
bri-las. «0 movimento do 22 de Março permanece
a este respeito exemplar, escreve Gilles Deleuze
no prefácio de um livro de Guattari (1) ; porque,
embora tenha sido uma máquina de guerra insufi­
ciente, pelo menos funcionou admiravelmente como
grupo analítico e desejante, cujo discurso não inci�
dia somente sobre o modo duma associação ver­
dadeiramente livre, mas que se pode constituir
em analisador duma massa considerável de estu­
dantes e de jovens trabalhadores, sem pretensões
re vanguarda ou de hegemonia, simples suporte
que permitia o transfert e o abandono das inibi­
ções.» Mas à escala duma revolução, da duração
e do poder?

Actuel - Quando vocês descrevem o capita­


lismo, dizem : «Não há a menor operaçã o , o menor
mecanismo industrial ou financeiro que não mani�
festem a demência da máquina capitalista e o carác­
ter patológico da sua racionalidade (de modo
algum falsa racionalidade, mas verdadeira racio­
nalidade desse patológico, dessa demência, porque
a máquina funciona, não tenham dúvidas). Ela

não corre o risco de enlouquecer, já é louca de

(1) Félix Guattari, Psychanalyse et Transversalité, ed. Maspero.


188

u m extremo a o outro desde o princtpto, e é daí


que deriva a sua racionalidade.» Quer isto dizer
que após esta sociedade «anormal», ou no seu
exterior, possa existir uma sociedade «normal>> ?
Gilles Deleuze - Nós não empregamos os ter­
mos «normal», «anormal». Todas as sociedades
são simultâneamente racionais e irracionais. São
forçosamente racionais pelos seus mecanismos,
rodas, sistemas de ligação, e mesmo pelo lugar
que re�ervam ao irracional. Contudo, tudo isto
pressupõe códigos ou axiomas que não são pro­
duto do acaso, mas que também não possuem
uma racionalidade intrínseca. É como na teologia :
tudo é perfeitamente racional se se postular o
pecado, a imaculada concepção, a encamaçi�.
A razão é sempre uma região talhada no irraciomL
Não ao abrigo do irracional, mas uma regiio
atravessada pelo irracional, e . definida apenas por
um certo tipo de relações entre factores irracio­
nais. No fundo de toda a razão, o delírio, a deriva..
Tudo é racional no capitalismo, excepto o capital
ou o capitalismo. Um mecanismo da bolsa, é
perfeitamente racional, podemos compreendê-lo,
apreendê-lo, os capitalistas sabem servir-se de�,
e no entanto é completamente delirante, é demente.
É neste sentido que dizemos : o racional é sempre
a racionalidade dum irracional. Há algo que nunm
foi suficientemente notado no Capital de Marx:
até que ponto está fascinado pelos mecanismos
capitalistas, precisamente por ser simultâneamen1e
demente e trabalhar muito bem .. . Então o . que �
que é racional numa sociedade ? É - estando <Js
interesses definidos no quadro desta sociedade -
a maneira como as pessoas os perseguem, perse­
guem . a sua realização. Mas, por baixo, há desejos ,
investimentos de desejos que se não confundem
189

com os investimentos de interesse, e de que os


interesses dependem na sua determinação e mesmo
na sua distribuição : todo um enorme fluxo, todas
as espécies de fluxos libidinais-inconscientes que
constituem o delírio desta sociedade. A verdadeira
história do desejo. Um capitalista ou um tecnocrata
actuais não . desejam da mesma m�neira que uni
mercador de escravos ou que um funcionário do
antigo império chinês. Que as pessoas numa socie­
dade desejem a repressão para os outros e para
si mesmos, que haja sempre pessoas que queiram
lixar outras e que tenham a possibilidade de o
fazer, o «direito>> de o fazer, é isso que mani­
festa o problema duma união profunda entre o
desejo libidinal e o campo social. Um amor «desin­
teressado» pela máquina opressiva : Nietzsche disse
coisas belas sobre este permanente triunfo dos
escravo, sobre a maneira como os azedados, os
deprimidos, os débeis nos impõem o seu modo
de vida.
Actuel - Justamente, nisso tudo, o que é
que é próprio do capitalismo ?
Gilles Deleuze. - Será que no capitalismo o
delírio e o interesse, ou então o desejo e a razão,
se distribuem duma maneira totalmente nova, par­
ticularmente «anormal» ? Creio que sim. O dinheiro,
o capital-dinheiro, é um ponto de demência tal
que só teria em psiquiatria um equivalente : aquilo
a que se chama o estado terminal. É muito compli­
cado, mas só uma observação de detalhe. Nas
outras sociedades há exploração, também há escân­
dalos e segredos, mas isso faz parte do «código»,
existem mesmo códigos explicitamente secretos.
No capitalismo, é muito diferente : não há nada
secreto, pelo menos em princípio e segundo o
código (é por isso que o capitalismo é «democrá-
190

tico» e se reclama da «publicidade», mesmo no


sentido jurídico). E contudo nada é confessdvel.
É a própria legalidade que não é confessável. Por
oposição às outras sociedades é ao mesmo tempo
o regime do público e do inconfessável. É próprio
do regime do dinheiro um delírio muito particu­
lar. Veja-se aquilo a que actualmente se chamam
escândalos : os jornais falam muito deles, toda
a gente faz questão de se defender ou de atacar,
mas é em vão que se procura o que têm de ilegal,
tendo em conta o regime capitalista. A folha de
impostos de Chaban, as operações imobiliárias, os
grupos de pressão e em geral os mecanismos econó­
micos e financeiros do capitàl, tudo é em geral
legal, excepto as pequenas imperfeições ; mais ainda,
tudo é público, só que nada é confessável. Se a
esquerda fosse «racional» contentar-se-ia em fazer
a vulgarização dos mecanismos económicos e finan­
ceiros. Sem necessidade de publicar o privado,
contentar-se-ia em fazer confessar o que é público.
Encontrar-nos-íamos numa demêncja sem . qualquer
equivalente nos hospitais. Em vez disso, falam-nos
«de ideologia». Mas a ideologia não tem qualquer
importância : o que conta não é a ideologia, nem
sequer a oposição ou distinção «económico-ideo­
lógico», é a organização de poder. Porque a orga­
nização de poder é a maneira como o desejo está
já no económico, como a líbido investe o econó­
mico, assedia o económico e alimenta as formas
políticas de repressão.
Actuel. - A ideologia é uma aparência ilusó­
ria?
Gilles Deleuze. - De modo nenhum. Dizer
que «a ideologia é uma aparência ilusória», é ainda
a tese tradicional. Põe-se a infra-estrutura de um
lado, o económico, o sério, e depois do outro lado
19 1

põe-se a supra-estrutura, de que a ideologia faz


parte, e rejeitam-se os fenómenos de desejo para a
ideologia. É uma boa maneira de não ver como o
desejo trabalha a infra-estrutura, como a investe,
como faz parte dela, como a esse título organiza
o poder, como o sistema repressivo se organiza.
Nós não dizemos : a ideologia é uma aparência
ilusória (ou um conceito que designa certas ilusões).
Nós dizemos : não há ideologia, é um conceito
ilusório. É por isso que tanto agrada ao PC, ao
marxismo ortodoxo. O marxismo deu tanta impor­
tância ao tema das ideologias para melhor esconder
o que se passava na URSS : a nova organização dq
poder repressivo. Não há ideologia, não há senão
organizações de poder, uma vez dito que a orga­
nização de poder é a unidade do desejo e da infra­
-estrutra económica. Observem-se dois exemplos.
O ensino : em Maio de 68, os esquerdistas perderam
imenso tempo por pretenderem que os professores
fizessem a sua auto-crítica como agentes da ideo­
logia burguesa. É estúpido e deleita as pulsões
masoquistas dos professores. A luta contra os con­
cursos foi abandonada em proveito da querela
ou da grande confissão pública anti.:..ideológica.
Durante esse tempo, os profes reorganizaram sem
dificuldade o seu poder. O problema do ensino
não é um problema ideológico, mas um problema
de organização de poder : é a especificidade do poder
docente que aparece como uma ideologia, mas é
uma pura ilusão. O poder na primária, isso quer
dizer qualquer coisa, exerce-se sobre todas as
crianças. Segundo exemplo : o cristianismo. A
Igreja fica muito contente quando a tratam como
u ma ideologia. Ela pode discutir, isso alimenta
o ecumenismo. Mas o cristianismo nunca foi uma
ideologia, é uma organização de poder muito
192

original, muito específica, que apresentou formas


muito diversas desde o império romano e .da Idade
Média, e que soube inventar a ideia dum poder
internacional. É importante dum modo diferente
da ideologia.
Félix Guattari. - Passa-se a mesma coisa
nas estruturas políticas tradicionais. Encontramos
sempre o velho estrat�gema : grande debate ideo­
lógico em assembleia geral e as questões de organi­
zação reservadas às comissões especializadas. Estas
aparecem como secundárias, determinadas pelas
opções políticas. Enquanto que, pelo contrário,
os problemas reais são os da organização, nunca
explicitados ou organizados, mas em seguida pro­
jectados em termos ideológicos. Surgem aí as ver­
dadeiras clivagens : um tratamento do desejo e do
poder, investimentos, Édipos de grupo, «superegos»
de grupo, fenómenos de perversão . . . etc. Em seguida
constroem-se as oposições políticas : o indivíduo
segue esta opção contra aquela, porque no plano
da organização e do poder, ele já escolheu e odiou
o seu adversário.
Actuel.- A vossa análise é convincente para
o caso da União Soviética ou do capitalismo. Mas
nos detalhes ? Se todas as oposições ideológicas
mascaram por auto-definição conflitos de desejo,
como analisariam, por exemplo, as divergências
de três grupúsculos trotskystas ? De que conflito
de desejo se poderá aqui tratar? Apesar das que­
relas políticas, cada grupo parece preencher a
mesma função em relação aos seus militantes :
uma hierarquia tranquilizante, a reconstrução dum
pequeno meio social, uma explicação definitiva
do mundo . . . Não vejo a diferença.
Félix Guattari. - Sendo qualquer semelhança
com os grupos existentes apenas fortuita, podemos
.
1 93

imaginar que um dos grupos se define em primeiro


lugar por uma fidelidade às posições condensadas
da esquerda comunizante aquando da criação da
Terceira Internacional. É toda uma axiomática,
inclusivamente a um nível fonológico - a maneira
de articular certas palavras, o gesto que as acom­
panha - e depois as estruturas de organização, a
concepção das relações a manter com os aliados,
os centristas, os adversários . . . Isto pode correspon­
der a uma certa figura de edipianização, um uni­
verso intangível e tranquilizador como o do obce.­
cado que perde todos os seus meios se um só objecto
familiar fo.t mudado de lugar. Através dessa iden­
tificação com figuras e imagens procura-se atingir
um tipo de eficácia que foi a do stalinismo - pre­
cisamente na vizinhança da ideologia.: Aliás con­
serva-se o quadro geral do método, mas procura­
-se adaptá-lo : «É preciso notar bem camaradas,
que , se o inimigo permanece o mesmo, as condi­
ções mudaram.» Tem-se então um grupúsculo mais
aberto. É um compromisso : a primeira imagem,
embora mantida, foi barrada, � injectaram-se
outras noções. Multiplicam-se as . reuniões e os
estágios, mas também as intervenções exteriores.
Na verdade, desejante há, como . diz Zazie, uma
certa maneira de lixar os alunos, e noutros uma
certa maneira de lixar os militantes.
Quanto ao fundo dos problemas, todos esses
grupos dizem em geral a mesma . coisa. Mas estão
radicalmente opostos por um estilo: a definição
do leader, da propaganda, uma concepção da
disciplina, da fidelidade, da modéstia, do ascetismo
do militante. Como é possível dar conta dessas
polaridades sem investigar a economia de desejo
da máquina . .- social ? Dos anarquistas aos maoístas,
o leque é muito grande, tanto político como analí-
1 94

tico. Sem contar, fora da reduzida franja dos gru-:­


púsculos, com a massa de pessoas que não sabem
muito bem como se determinar entre o impulso
esquerdista, a atracção da acção sindical, a revolta,
a expectativa ou o desinteresse. . . Seria preciso
descrever o papel dessas máquinas de esmagar o
desejo que os grupúsculos são, esse trabalho de
mó e de crivo. É um dilema : ser destruído pelo
sistema social ou integrar-se no quadro pré-esta­
belecido dessas igrejinhas. Nesse sentido, Maio
de 1 968 foi uma revelação surpreendente. A capa­
cidade desejante atingiu uma tal aceleração que fez
explodir os grupúsculos. Estes restauraram-se em
seguida e participaram no restabelecimento da or­
dem com as outras forças repressivas, CGT,PC,
CRS (*) ou Edgar Faure. Não digo isto para brincar
aos provocadores. Certamente que os militantes
se bateram corajosamente contra a polícia. Mas se
deixarmos a esfera da luta de interesse para consi­
derar a função do desejo, é preciso reconhecer que
o enquadramento de certos grupúsculos abordava
a juventude num espírito de repressão : conter o
desejo liberto para o canalizar.
Actuel. - O que é um desejo liberto ? Percebo
perfeitamente como é que isso se pode traduzir
ao nível dum indivíduo ou dum pequeno grupo :
uma criação artística, ou partir as montras, quei­
mar tudo, ou ainda, duma maneira mais simples,
uma farra ou o amolecimento numa preguiça
vegetal. Mas depois? O que é que poderia ser um
desejo colectivamente liberto à escala dum grupo
social ? Têm exemplos precisos ? E o que é que -isso
significa em relação ao «conjunto da sociedade»,

(*) Polícia de choque francesa.


1 95

se é que não recusam esse termo, como Michel


Foucault?
Félix Guattari. - Tomámos como referência
o desejo num dos seus estados mais críticos, mais

agudos : o do esquizofrénico. E o esquizo que pode


produzir qualquer coisa, aquém ou além do esquizo
internado, matraqueado pela química e pela repres­
são social. Parece-nos que alguns esquizofrénicos
exprimem dir�ctamente uma decifração livre do
desejo. Mas como conceber uma forma colectiva
de economia desejante ? Decerto que localmente
nunca. Custa-me muito imaginar uma pequena
comunidade liberta que se manteria no meio dos
fluxos da sociedade repressiva, como a adição de
indivíduos progressivamente libertos. Embora, em
compensação, o desejo constitua a própria textura
da sociedade no seu conjunto, inclusive nos seus
mecanismos de reprodução, um movimento de
·

libertação pode «cristalizar» no conjunto da socie...


dade. Em Maio de 1 968, a partir de faíscas e cho­
ques locais, a perturbação transmitiu-se brutal­
mente ao conjunto da sociedade. Inclusivament�
a grupos que não tinham nem muito nem pouco
a ver com o movimento revolucionário, médicos,
advogados ou merceeiros. No entanto, foi o inte­
resse que venceu, mas depois de um mês de fogueira.
Caminhamos para explosões desse tipo, ainda mais
profundas.
Actuel. - Teria já havido na história uma
libertação vigorosa e duradoura do desejo, para
além de breves períodos de festas, de massacres,
de guerras ou de jornadas revolucionárias ? Ou
acreditam então num fim da História : após milé­
nios de alienação, a evolução social inverter-se-ia
instantâneamente numa revolução que seria a
última e que libertaria para sempre o desej o ?
196 1
Félix Guattari. - Nem numa coisa nem nou­
tra. Nem fim da história definitivo nem excesso
provisório. Todas as civilizações, todos os períodos
conheceram fins da história, não é forçosamente
probatório nem libertador. Quanto aos excessos,
aos momentos de festa, também não são tranquili­
zadores. Há militantes revolucionários preocu­
pados em se sentirem responsáveis, que dizem :
sim, excessos «no primeiro estádio da revolução»,
mas há um segundo estádio, a organização ,o
funcionamento, as coisas sérias . . . Ora não há
desejo liberto em simples momentos de festa. Veja..;.
-se a discussão de Victor com Foucault, no número
de Temps modernes sobre os maoístas {2). Victor
consente nos excessos, mas no «primeiro estádio».
Quanto ao resto, quanto ao sério, Victor reclama-se
dum novo aparelho de Estado, de novas normas,
duma justiça popular com tribunal, duma instância
exterior às massas, dum terceiro apto a resolver
as contradições das massas. Encontramos sempre
o velho esquema : o destaque duma pseudo van­
guarda apta a operar as sínteses, a formar um par­
tido como um embrião de aparelho de Estado ;
extracção duma classe operária bem ensinada, bem
educada ; e o resto é um resíduo, lumpen-prole­
tariado de que é sempre preciso desconfiar (sempre
a velha condenação do desejo). Mas mesmo estas
distinções, são uma maneira de aprisionar o desejo
em benefício duma casta burocrática. Foucault
reage denunciando o terceiro, dizendo que, se
houver justiça popular, não passa por um tribunal.
Mostra bem como a distinção «vanguarda/prole-

(2) Cf. Les Temps modernes, «Nouveau Fascisme, Nouvelle

Cf. igualmente em port. Sobre justiça popular, ed. A


Démc>cratie», n .o 3 1 0 bis.

Regra do Jogo .
197

tariado/plebe não-proletarizada» é em primeiro


lugar uma distinção que a burguesia introduz nas
roassas, e de que se serve para esmagar os fenóme­
nos de desejo, para marginalizar o desejo. A questão
toda está no aparelho de Estado. Seria bizarro
contar com um partido ou com um aparelho de
Estado para libertar os desejos. Reclamar uma
justiça melhor, é o mesmo que reclamar bons
juízes, bons chuis, bons patrões, uma França mais
limpa, etc. rAqui dizem-nos : como querem unificar
as lutas pontuais sem um partido ? Como fazer
trabalhar a máquina sem um aparelho de Estado ?
Que a revolução tenha necessidade duma máquina
de guerra é evidente, mas isso não é um aparelho
de Estado. Que tenha também necessidade de uma
instância de análise, análise dos desejos de massas,
está certo, mas isso não é um aparelho exterior de
síntese. Desejo liberto quer dizer que o desejo sai
do impasse do fantasma individual privado : não
se trata de o adaptar, de o socializar, de o disci­
plinar, mas de o ligar de tal maneira que o seu pro­
cesso não seja interrompido num corpo social,
e que produza enunciações colectivas. O que inte­
ressa, não é uma unificação autoritária, mas antes
uma espécie de enxameação até ao infinito : os
desejos nas escolas, nas fábricas, nos quartéis,
nas creches, nas prisões, etc. Não se trata de o
colocar por cima, de o totalizar, mas de o ligar
num mesmo plano de báscula. Enquanto se perma­
necer numa alternativa entre o espontaneísmo
impotente da anarquia e a codificação burocrática
e hierárquica duma organização de partido, não há
libertação de desejo.
Actuel. - Poder-se-á considerar que, nos seus
princípios, o capitalismo tenha conseguido assumir
os desejos sociais ?
198

Gilles Deleuze. - Certamente, o capitalismo


foi e continua a ser uma formidável máquina dese­
jante. Os fluxos de moeda, de meios de produção,
de mão de obra, de novos mercados, tudo isto é
desejo que corre. Basta considerar a soma de con­
tingências que estão na origem do capitalismo,
para ver até que ponto foi cruzamento de desejos,
e que a sua infra-estrutura, a sua própria economia,
foram inseparáveis de fenómenos de desejos. E o
fascismo também, é preciso dizer que «assumiu
os desejos sociais», inclusivamente os desejos de
repressão e de morte. As pessoas amotinaram-se
por Hitler, pela bela máquina fascista. Mas se a
vossa pergunta quer dizer : será que o capitalismo
nos seus primórdios foi revolucionário, será que
a revolução industrial coincidiu sempre com uma
revolução social ? - Não, não me parece. O capi­
talismo, desde o seu nascimento, esteve ligado a uma
repressão selvagem, teve imediatamente a sua orga­
nização de poder e o seu aparelho de Estado.
Que o capitalismo tenha implicado a dissolução
dos códigos e dos poderes sociais precedentes é
certo. Mas tinha já estabelecido nas fendas dos
regimes precedentes os rodados do seu poder,
inclusivamente do seu poder de Estado. É sempre
"
assim : as coisas não são tão progressivas ; antes
mesmo que uma formação social se estabeleça, os
seus instrumentos de éxploração e repressão já
lá estão, rodando ainda no vazio, mas prontos a
trabalhar em pleno. Os primeiros capitalistas são
como aves de rapina que esperam. Esperam o seu
encontro com o trabalhador, que lhes chega pelas
fugas do sistema precedente. É mesmo todo o sen­
tido daquilo a que se chama acumulação primitiva.
Actuel. - Penso pelo contrário que a bur­
guesia ascendente imaginou e preparou a sua revo-
l99

lução ao longo de todo o século das Luzes. Do


seu ponto de vista foi uma classe «revolucionária
até ao fim» visto que derrubou o Antigo Regime
e que ascendeu ao poder. Quaisquer que sejam o s
movimentos paralelos do campesinato e das popu­
lações suburbanas, a revolução bur·guesa foi uma
revolução feita pela burguesia - os dois termos
não se distinguem - e julgá-la em nome de utopias
socialistas dos séculos XIX ou XX leva a intro­
duzir por anacronismo uma categoria que não
existia.
Gilles Deleuze.
- O que você diz é ainda o
esquema dum certo marxismo. Num momento da
História, a burguesia seria revolucionária, e teria
sido mesmo necessária, seria necessário passar por
.um estádio do capitalismo, por um estádio da
revolução burguesa. Isso é stalinista mas não é
verdade. Quando uma formação social se esgota
e começa a fugir por todos os extremos, descodi­
ficam-se todas as espécies de coisas, começam a
fluir todas as espécies de fluxos não c ontroladqs,
por exemplo, a fuga dos camponeses na Europa
feudal, os fenómenos de «des-territorialização».
A burguesia impõe um novo código, económico e
político ; pode então pensar-se que ela foi revolu­
cionária. Nada disso. Daniel Guérin disse coisas
profundas sobre a revolução de 1 789. A burguesia
nunca se enganou quanto ao seu verdadeiro ini­
migo. O seu verdadeiro inimigo não era o sistema
precedente, mas aquilo que escapava ao controle do
sistema precedente, e que ela tinha por objectivo
dominar por sua vez. Ela própria devia o seu poder
à ruína do antigo sistema ; mas só podia exercer
esse poder na medida em que tomasse como ini­
migos todos os revolucionários do antigo sistema.
A burguesia nunca foi revolucionária. A revolução,
200

mandou-a fazer. Ela manipulou, canalizou, repri­


miu, uma enorme pulsão do desej o popular. As
pessoas foram deixar-se matar em Valmy.
Actuel. - E também em Verdun.
Félix Guattari. - Exactamente. E é isso mesmo
o que nos interessa. Donde vêm esses impulsos,
essas vagas, esses entusiasmos que não se explicam
por uma racionalidade social e que são desviados,
capturados pelo poder no próprio momento em
que nascem ? Não é possível dar conta duma situa­
ção revolucionária através da simples análise dos
interesses em presença. Em 1 903, o partido social­
-democrata russo debate as alianças, a organização
do proletariado, o papel da vanguarda. Brusca­
mente, quando pretende preparar a revolução,
é empurrado pelos acontecimentos de 1 905 e tem
de lançar-se num comboio em movimento. É que
houve cristalização do desej o à escala social sobre
a base de situações ainda incompreensíveis. O
mesmo se passa em 1 9 1 7. E também aí os políticos
tiveram que apanhar . o comboio em movimento,
e acabaram por o alcançar. Mas nenhuma tendên­
cia revolucionária soube assumir a necessidade de
uma organização soviética que tivesse permitido
às massas encarregarem-se realmente dos seus inte­
resses e do seu desejo. Puseram-se em circulação
máquinas, chamadas organizações políticas, que
funcionam segundo o modelo elaborado por Dimi­
trov no VII. o congresso da Internacional - alter­
nância de frentes populares e de retracções sec­
tárias - e que chegam sempre ao mesmo resul­
tado repressivo. Viu-se isso em 1 936, em 1945,
em 1 968. Em virtude da sua própria axiomática,
essas máquinas de massa recusam-se a liber tar a
energia revolucionária. É, pela calada, uma política
201

comparável à do presidente da República ou à


dos padres, mas de bandeira vermelha na mão.
E pensamos que isso corresponde a uma certa
posição face ao desejo, a um modo profundo de
encarar o eu, a pessoa, a família. Donde um dilema
muito simples : ou se chega a um novo tipo de e stru­
turas que conduzam finalmente à fusão do desejo
colectivo e da organização revolucionária ; ou se
continua no impulso presente e, de repressões em
repressões, caminharemos para um fascismo ao
pé do qual Hitler e Mussolini parecerão uma brin­
cadeira.
Actuel. - Mas qual é então a natureza desse
desejo profundo, fundamental, que se percebe ser
constitutivo do homem e do homem social, e que
se deixa constantemente trair ? Porque é que ele
se vai sempre investir nas máquinas antinómicas
da máquina dominante ,e contudo semelhantes ?
Quererá isso dizer que o desej o está condenado à
explosão pura e sem futuro ou à traição perpétua?
Insisto : poderá haver um belo dia na história uma
expressão colectiva e duradoura do des·ejo liberto,
e como ?
Gilles Deleuze. - Se o soubéssemos, não o
diríamos, fa-lo-íamos. Mesmo assim Félix acaba
de falar disso : a organização revolucionária deve
ser a de uma máquina de guerra e não a dum apa­
relho de Estado, a de um analisador de desejo e
não a de uma síntese exterior. Em qualquer sistema
social houve sempre linhas de fuga ; e também
endurecimentos para impedir essas fugas, ou então
(o que não é a mesma coisa) aparelhos ainda em­
brionários que as integram, que as desviam, as
detêm, num novo sistema em preparação. Seria
preciso analisar as Cruzadas sob este ponto de
vista. Mas no que respeita a tudo isto, o capi-
202

talismo tem um carácter muito particular : as suas


linhas de fuga não são apenas dificuldades que lhe
sobrevêm, são condições do seu exercício. Ele
constitui-se sobre uma descodificação generalizada
de todos os fluxos, fluxos de riqueza, fluxos de
trabalho, fluxos de linguagem, fluxos de arte, etc.
Não refez um código, constitui uma e spécie de
contabilidade, de axiomática de fluxos descodi­
ficados, na base da sua economia. Liga os pontos
de fuga e distribui antecipadamente. Alarga sem­
pre os seus próprios limites, e tem sempre de cal­
matar as novas fugas em novos limites. Não resol­
veu nenhum dos seus problemas fundamentais,
não consegue sequer prever o aumento anual da
massa monetária dum país. Não cessa de trans­
por os seus limites que tornam a aparecer mais
longe. Coloca-se em situações assombrosas em
relação à sua própria produção, à sua vida social,
demografia, periferia (o terceiro mundo), às suas
regiões interiores, etc. Há fugas por todo o lado,
que renascem sempre dos limites deslocados do
capitalismo. E sem dúvida que a fuga revolucionária
(a fuga activa, aquela de que fala Jackson quando
diz : não paro de fugir, mas ao fugir procuro uma
arma . . . ) não é de modo algum a mesma coisa que
outros géneros de fuga, a fuga esquizo, a fuga
tóxica. Mas trata-se de facto do problema das
marginalidades : fazer com que todas as linhas de
fuga se liguem sobre _ um plano revolucionário.
No capitalismo há pois um carácter novo assu­
mido pelas linhas de fuga, e também potenciali­
dades revolucionárias dum tipo novo. Como vê,
há esperança.
Actuel. - Vocês falavam há pouco das Cru­
zadas : é para vocês uma das primeiras manifesta­
ções ocidentais duma esquizofrenia colectiva . . .
203

Félix Guattari. - Foi efectivamente um ex­


traordinário movimento esquizofrénico . Brusca­
camente, num pet íodo já cismático e perturbado,
milhares e milhares de pessoas fartaram-se da
vida que levavam, apareceram pregadores impro­
visados, os tipos partiam às aldeias inteiras. Foi
só depois que o papado transtornado tentou dar
um obj ectivo ao movimento esforçando-se por o
dirigir para a Terra Santa. Dupla vantagem : desem­
baraçar-se dos bandos errantes e reforçar as bases
cristãs do Próximo-Oriente ameaçadas pelos Turcos.
Isto nem sempre foi conseguido : a cruzada dos
Venezianos dirigiu-se para Constantinopla, a cru­
zada das crianças voltou-se para o Sul de França,
e depressa deixou de comover. Houve cidades
inteiras tomadas e queimadas por essas crianças
«cruzadas» que os exércitos regulares acabaram por
exterminar ; foram mortos, vendidos como escra­
vos . . .
Actuel. - Será possível estabelecer um para­
lelo com os movimentos contemporâneos : as corou­
. nidades e o caminho para fugir à fábrica e ao escri­
tório? E haverá um papa para os enganar ? Jesus
revolution ?
Félix Guattari. - Não é inconcebível uma
recuperação pelo cristianismo. É até certo ponto
uma realidade nos Estados Unidos, mas muito
�enos na Europa ou na França. Mas há já em
vista uma nova fase latente sob a forma de tendência
naturista, a ideia de que seria possível retirar-se
da produção e reconstruir uma pequena sociedade
à parte, como se não se estivesse marcado e fechado
pelo sistema do capitalismo.
Actuel. - Que papel atribuem todavia à Igreja
num país como o nosso ? A Igreja esteve no centro
do poder na sociedade ocidental até ao século XVIII,
204

foi o vínculo e a estrutura da máquina social até


à emergência do Estado-nação. Actualmente, pri­
vada pela tecnocracia dessa função essencial,
aparece também arrastada à deriva, sem ponto de
ancoragem e dividida. Podemos perguntar se a
Igreja, trabalhada pelas correntes do progressismo
católico, não se tornará menos confessional do que
certas organizações políticas.
Félix Guattari. - E o ecumenismo ? Não será
uma recaída ? A Igreja nunca foi mais forte. Não
há nenhuma razão para opor a Igreja e a tecno­
cracia ; há uma tecnocracia de Igreja. Historica­
mente o cristianismo e o positivismo sempre se deram
bem . O desenvolvimento das ciências positivas
tem um motor cristão. Não se pode dizer que o
psiquiatra substitui o cura. Também não se pode
dizer que o chui substitui o cura. Há sempre neces­
sidade de toda a gente na repressão. O que enve­
lheceu no cristianismo foi a sua ideologia, não a
sua organização de poder.
Actuel. - Atingimos justamente um outro as­
pecto do vosso livro : a crítica da psiquiatria. Poder­
-se-á dizer que a França está quadriculada pela
psiquiatria de sector - e até onde se es1!enderá essa
infiuência?
Félix Guattari. - A estrutura dos hospitais psi­
quiátricos é essencialmente estatal e os psiquiatras
são funcionários. O Estado contentou-se durante
muito tempo com uma política de coacção e nada
fez durante um bom século. Foi preciso esperar a
Libertação para que transparecesse uma inquie­
tação : a primeira revolução psiquiátrica, a aber­
tura dos hospitais, os livres serviços, a psicoterapia
institucional. Tudo isto conduziu a essa grande
utopia da política de sector, que consistia em limi­
tar o número de internamentos e em enviar equipas
205

de psiquiatras para o seio da população como


missionários para a selva. Por ausência de crédito
e de vontade a reforma atolou-se : alguns serviços
modelos para as visitas oficiais, e aqui e além hospi­
tais nas regiões mais sub-desenvolvidas. Caminha­
mos para uma crise considerável, da estatura da
crise universitária, um desastre a todos os níveis,
equipamento, formação do pessoal, terapêuticas, etc.
O quadriculado institucional da criança está
pelo contrário, muito melhor assumido. Nesta
matéria escapou ao quadro estatal e ao seu finan­
ciamento, para regressar a associações de todas
as espécies, salvaguarda da criança ou associação
de pais . . . Os estabelecimentos proliferam, subven­
cionados pela Segurança Social. A criança é imedia­
tamente colocada sob a responsabilidade de uma
rede de psicólogos, fixada desde os três anos, seguida
pela vida fora. É preciso esperarmos soluções deste
tipo para a psiquiatria dos adultos. Perante o actual
impasse, o Estado irá tentar desnacionalizar as
suas instituições em benefício de instituições regidas
pela lei de 1 90 1 e, evidentemente, manipuladas
pelos poderes políticos e pelos agrupamentos fami­
liares reaccionários. Caminhamos de facto para
um quadriculado psiquiátrico da França se a actual
crise não libertar as suas potencialidades revolu­
cionárias. Espalha-se por todo o lado a ideologia
mais conservadora, uma transposição vulgar dos
conceitos do edipismo. Nos estabelecimentos para
crianças, chama-se ao director «titi», à enfermeira
«mamã». Cheguei mesmo a ouvir distinções do
género : os grupos de j ogo dependem dum princí­
pio maternal, as salas de trabalho dum princípio
paternal. A psiquiatria de sector tem um ar pro­
gressista porque abre o hospital. Mas se isso consistir
em quadricular o bairro, depressa lamentaremos
206

os antigos asilos fechados. É como a psicanáli se :


funciona ao ar livre, mas é ainda pior, muito mais
perigosa como força repressiva.
Gilles Deleuze. - Eis um caso. Uma mulher
chega para uma consulta. Explica que toma tran­
quilizantes. Pede um copo de água. Depois fala :
«Compreende, tenho uma certa cultura, estudei,
gosto muito de. ler e no entanto : neste momento
passo o meu tempo a chorar. Já não posso suportar
o metro . . . E choro mal leio qualquer coisa . . . Vejo
a televisão, vejo as imagens do Vi e� am e : já . não
posso suportar . . . » O médico não responde grande
. coisa. A mulher prossegue : «Fiz a Resistência . . .
um pouco : fui caixa para as cartas.» O médico
pede uma explicação. «Sim, não compreende,
doutor ? Chegava a um café e perguntava por exem­
plo : há qualquer coisa para René ? Davam-me uma
carta para transmitir . . . » O médico ouve «René»,
desperta : «Porque é que disse René ?» É a primeira
vez que se in1Jeressa por uma questão. Até aqui ela
tinha falado do metro, de Hiroshima, do Vietname ,
do efeito que tudo isso lhe provocava no seu corpo,
o seu desej o de chorar. Mas o médico pergunta
apenas : «Olha, olha, René . . . o que é que René
evoca?» René, alguém que re-nasceu? (*) o renas­
cimento ? A Resistência não significa nada para o
médico, mas renascimento entra no esquema uni­
versal, o arquétipo : «Você quer renascer.» O médico
aí encontra-se : finalmente o seu circuito. E força-a
a falar do seu pai e da sua mãe.
É um aspecto essencial do nosso livro, e é
muito concreto. Os psiquiatras e os psicanalistas
nunca prestaram atenção a um delírio. Basta ouvir

(*) Nota do tradutor : «René>> - <<re-né)) - re-nascido.


207

alguém que delira : são ()S Russos que o atormen­


tam, os Chineses, j á não tenho saliva, alguém que no
metro me enrabou, há micróbios e espermatozóides
que se movem por todo o lado. É culpa de Franco,
dos Judeus, dos Maos : todo um delírio do campo
social. Porque é que isso não há-de dizer respeito
à sexualidade de um sujeito, às relações que ele
tem com a ideia de Chinês, de Branco, de Negro?
Com a civilização, com as Cruzadas, com o metro ?
Psiquiatras e psicanalistas, na defensiva, não querem
saber disso, de tal modo são indefensáveis. Esma­
gam o conteúdo do inconsciente em enunciados
de base pré-fabricados : «Você fala-me dos Chi­
neses, mas o seu pai ? - Não, não é Chinês. - Então
você tem um amante chinês?» Está ao nível da
tarefa repressiva do juiz de Angela Davis que
assegurava : «0 seu comportamento só se explica
por ela estar apaixonada.» E se pelo contrário a
líbido de Angela Davis fosse uma líbido social,
revolucionária ? · E se ela estivesse apaixonada por
ser revolucionária ?
É isto que queremos dizer aos psiquiatras
e aos . psicanalistas : vocês não sabem o que é um
delírio, vocês não perceberam nada. Se o nosso
livro tiver um sentido, é por chegar no momento
em que muitas pessoas sentem que a máquina psica­
nalítica já se não move, em que uma geração começa
a estar farta dos esquemas que servem para tudo
- É dipo e castração, imaginário e simbólico - ,
que apagam sistematicamente o conteúdo social,
político e cultural de toda a perturbação psíquica.
Actuel. - Vocês associam a esquizofrenia ao
capitalismo, é mesmo esse o fundamento do vosso
livro. Haverá casos de esquizofrenia noutras socie­
dades ?
208

Félix Guattari. - A esquizofrenia é indis­


sociável do sistema capitalista, ele próprio conce­
bido como uma primeira fuga : uma doença exclu­
siva. Nas outras sociedades, a fuga e a marginalidade
assumem outros aspectos. O indivíduo a-social das
chamadas sociedades primitivas não se faz encerrar.
A prisão e o asilo são noções recentes. Ele é expulso,
exila-se para o limite da aldeia e aí morre, a menos
que se vá integrar numa aldeia vizinha. Cada sis­
tema tem, aliás, a sua doença particular : o histé­
rico das chamadas sociedades primitivas, as manias
depressivas-paranóicas no Grande Impér i o . . . A
economia capitalista procede por descodificação e
desterritorialização : tem os seus doentes extremos,
isto é, os esquizofrénicos, que em último limite se
descodificam e desterritorializam, mas tem também
as suas consequências extremas, os revolucionários.

Entrevista publicada na revista «Actueh>


e publicada posteriormente no volume
«C'est demain la veille». ed. du Seuil
CORRESPOND:ENCIA DELUZE/CRESSOLE

CARTA DE MICHEL CRESSOLE


A GILLES DELEUZE

Uma das minhas velhas «trips» (ou como tu


dizes, uma das minhas máquinas desejantes), a do
j ovem da província que brilha nos salões parisienses
dos literatos célebres. Deleuze, último príncipe dos
poetas, não agarrou as minhas mãos e não as levou
à fronte. Deleuze, última duquesa de Guermantes,
ou o oráculo que eu ia, qual É dipo, interrogar e
ouvir responder, «escreve-me então uma carta».
Rilke, insinuando ao j ovem poeta num manhoso
post-scriptum : «Diz-me, diz-me o que pensas de
mim, de facto, não sei nada de certo, diz-me como
fazes, anda, critica-me, troça de mim.»
Porque tu és um espertalhão, não sei mesmo
se não serás um vigarista. A considerar, como tu
o pedes, o teu caso, a tua posição parecem irrepreen­
síveis. Tudo parece ir bem para ti. Querias sempre
reconhecer o estado dos teus próprios limites, das
localizações onde ainda estás entalado, e o modo de
emprego, senão o uso, da tua própria crítica. Querias
mostrar sempre o ponto em que estás, com o teu
corpo, perante a loucura, a droga, o álcool ou o
olho do cu. É certo, não é possível censurar-te,
210

quando te apresentas apenas como genealogista


ou funcionalista, como Artaud o fazia a Carrol, a
excessiva decência ou a hipocrisia da tua demência
ou da fecalidade.
Quando observas como é que isto vai para os
maricas, e quando lhes contas tudo o que vês, isso
ag.rada-lhes muito, acham que assim está bem, os
maricas, mas quando se voltam, ingénuos como
crianças, para saberem onde está o que disse i�so,
para verem mesmo se ele «está aí» bem, d�scobrem
um senhor correcto e simpático, que dá amens
a tudo, que não lhes proíbe nada, que quer mesmo
defendê-los, mas com o seu corpo «proíbido»,
protestando contra o seu sofrimento em o ser sem­
pre, como se protesta a boa fé. Então não te admires
de ouvir por vezes segredar nas tuas costas que a
tua escuta benevolente não difere muito da do ana­
lista que pigarreia nas costas do paciente deitado.
Tu não és um sacana, não és Warhol esgotando
no seu super-circo Barnum, os corpos martirizados
dos travestis, dos maricas e dos drogados de outl o
modo sublimes. A tua inquietação parece sincera,
já dizias na Logique du Sens, «na verdade como é
que se pode ficar à superfície sem se residir nas
margens ?», e acabavas então com este parêntesis :
«(quantas lições temos ainda a receber do estoi­
cismo)».
A funcionar como uma problemática quase
fatal, esta inquietação fechar-te-á sempre nesse
pequeno parêntesis-masmorra, com a irrisória espera
de lições a receber, quer seja do estoicismo, do MLF,
dos esquizos ou dos maricas.
E depois quando exclamas : «na verdade . . . »,
pareces-me um pouco Jesus Cristo atormentado.
Passeias-te, pões sempre os pés onde deves, mas
nunca faltas às conveniências. Nunca devor ar,
21 1

engolir. É s aquele que pr ovava na refeição do Rei


os seus pratos, para descobrir, com risco da pró­
pria vida, o veneno ; dos nossos risos e cantos tu
absorves o significado-veneno, a significação, a
dimensão histórica,. todos os contextos,. libertando­
-nos disso para que possamos voar mais ligeira­
mente e alimentas-te disso, no fundo da tua mas­
morra, caverna · voluntária, rabiscando na super­
fície das paredes com as tuas unhas tão compridas
as matavilhosas sagas dos outros. Ainda e sempre a
representação, o pensamento da separação e · a
divisão do trabalho.
Eis-te agot a como super-assistente social,. . soli­
citado,. submetido a pedidos tão diversos como
imperiosos, de comunicações para quaisquer espé­
cies de salvamento, de assinaturas para petições,
de análises para os neo-pacientes de neo-psicaná­
lises, de dinheiro,. de amor e de saber. E são os mes­
mos pedinchões : os que dizem não o oiçam, é um
falsário, não é um verdadeiro louco, olhem, ele
tem uma bela mulher, belos filhos, e a sua filha
tem mesmo um carrinho com uma boneca que
triangula nos corredores do apartamento burguês
com sete assoalhadas do seu papá.
Aquele que diz : «Talvez um dia o século seja
deleuziano», devolvendo-te as tuas flore s : os que
dizem ah ei-lo, é ele o grande louco, o grande
Feiticeiro, chiu, ele vai falar, não fumem na sua
presença, vocês vão matá-lo, perseguindo-o nos
corredores da Faculdade de Vincennes.
Eis -te finalmente, sufocando em salas fuma­
rentas onde não devias estar, celebrando a morte
da Filosofia após teres reescrito a sua história,
fazendo-a viver hoje, recusando a posição de pro­
fessor mas condenado a ensinar, mesmo que seja
o «inensinável», retomando os arreios do carro
21 2

fúnebre da velha política que toda a gente tinha


abandonado, com as suas coroas putrefactas de
má consciência e de divisões estratégicas (como na
altura do «famoso» caso Grand-montagne), con­
denado pela tua posição a andares sempre a reboque
do que se passa, a chegares sempre tarde demais,
t'es p/us dans /e coup papa como diz a canção (*).
Então queixas-te que te perseguem, e negas
esse estatuto que te torna o grande Procurado e o
grande Demagogo. Tu estás bloqueado, entalado.
Os teus perseguidores já se inquietam ou se alegram,
é conforme, com o teu persistente silêncio depois
de O Anti-Édipo : parece mesmo que em Vincennes
já não dizes nada.
A última coisa que publicaste, na Temps
modernes, é verdadeiramente enfadonha. É uma
espécie de aplicação seca e rígida das análises de
O Anti-Édipo, reduzidas a um sistema totalizador,
a uma espécie de paródia, de à maneira de.
Já não serei por muito tempo um perseguidor
anónimo, a minha procura está baseada num uso
particular de O Anti-Édipo. Usei-o sempre como um
brinquedo fantástico, é um livro e são risos, as
noites quentes de Marraquexe, um baton, estoiros
de motos reluzentes, as palavras «violetas impe­
riosas», um travesti assustador de belo, da ficção­
-científica com os sábios loucos Deleuze e Guattari.
Com este livro, ter sempre a mesma relação
que com o filme (não é sempre o mesmo, chamava-se
dessa vez «L'homme sans visage») onde fui depois
de ter ido a tua casa. porque, por um feliz acaso,
fica mesmo ao lado. Do balcão superior, um pouco
deslocado em relação à sala, o filme só pode ser

(*) Sheila (Jil et Jan).


213

visto · de esguelha, e talvez por isso os espectadores


são os actores de uma imensa sucção e encaixe ,
pedaços de filme percebidos entre pernas que estre­
mecem, pequenas partes do diálogo amoroso con­
fundidas com os arquejos do prazer, as personagen s
de «L'homme sans visage», arrancadas à sua pobre
aventura Made in Hollywood de que todos per­
delam o fio, são acariciadas com a coxa do vizinho
sem rosto, o écran está adiante ou atrás, como
todos estão à frente e atrás de todos, nada e nin­
guém no seu lugar. Quando tiver acabado, como em
O Anti-Édipo, ninguém poderá contar a história,
toda a gente dirá que era verdadeiramente bom.
O Anti-Édipo e depois '! Há aí uma viragem
que eu próprio marco, esperando-te aí, por acaso,
humor, apetite de dinheiro ou de ascensão social,
fazendo o estudo da obra do filósofo Gilles Deleuze.
Deleuze morreu, viva Deleuze ?
Tu, rainha das formigas, enlanguescida, impo­
nente mas impotente, Rainha, mas entalada no
teu buraco com o teu corpo enorme e mole, que
era perfurado por toda a colónia ; tu abandonarias
os atributos do teu poder aos teus perseguidores­
-sectários. Eles seriam capazes de te p eressuscitar.
Se não estiveres bem disfarçado, reconhecer-te-ão
quando te evadires do teu cárcere e gritarão : «Então
o segundo tomo de O Anti-Édipo, isso avança ?» .
Em que é que a esquizo-análise é diferente da
paranóia-crítica? O que é que vai ser a esquizo­
-análise ? Uma nova escola de neo-psicanálise ? ou
então : «Onde é que nos podemos inscrever para
os famosos grupos esquizo-analíticos ?» Será neces­
sário responder-lhes qualquer coisa.
Mitológico, em vez de continuares a protestar
a tua inocência, não negues o teu estatuto, utiliza-o
214

de uma maneira lúdica, toma-te a vedeta de outros


fans, muda de circuito.
E se os esquizos, por sua vez, se tornassem os
teus empresários? O teu casaco negro de operário
é já o equivalente do vestido cor-de-rosa com o
corpete plissado da Marylin Monroe, e as tuas
unhas compridas, os óculos escuros da Garbo.
Deleuze-Minelli, vais ver entre os estilistas, entre
as gentes do show-business, entre os publicitários
ou mesmo entre as pessoas vulgares, como é que
a coisa · vai para o Anti-Édipo e para ti, então pode­
rias, super-star, trocar a tua fotografia autografada
pela dos milhares de outros, perseguidores e per­
seguidos, maricas. loucos, Sartre, situacionistas,
drogados, neo-nazis e vendedores de pequenas
torres Eiffel musicais de plástico.

Paris, Fevereiro de 1 973

Michel Cressole
1 215
RESPOSTA D E GILLES DELEUZE
A MICHEL CRESSOLE

Caro Michel, tu és encantador, inteligente,


mal-intencionado, inclinado mesmo para a maldade.
Só mais um esforço . . . pois no fim de contas a carta
que me envias, que tão depressa invoca aquilo
que se diz, como o que tu próprio pensas, a as
duas coisas misturadas, é uma espécie de jubilação
sobre e minha suposta infelicidade. Por um lado,
dizes-me que eu estou entalado, entalado de todas
as maneiras, na vida, no ensino, na política, que me
tomei uma vedeta de merda, que isto não vai durar
muito e que eu não conseguirei escapar. Por outro
lado, dizes-me que sempre andei a reboque, que
vos chupo o sangue e provo os vossos venenos,
a vocês, os verdadeiros experimentadores ou os
heróis, mas que continuo à margem olhando-vos
e tirando proveito de vocês. Quanto a mim, não
sinto nada disso. Os esquizos, verdadeiros ou fal­
sos, chateiam-me tanto que me converto alegre­
mente à paranóia. Viva a paranóia. O que é que
tu me queres injectar com a tua carta, senão um
pouco de ressentimento (estás entalado, estás
entalado, «confessa» . . . ) e um pouco de má cons­
ciência (não tens vergonha, andas a reboque . . . ) ;
senão tinhas mais nada para me dizer, não valia
a pena. Vingas-te por teres feito um livro sobre
mim. A tua carta está cheia duma comiseração
fingida e de um real apetite de vingança.
Em primeiro lugar, lembro-te que apesar de
tudo não fui eu que desejei esse livro. Tu dás as
tuas razões para o teres querido fazer : «Por humor,
acaso, apetite de dinheiro ou de ascensão social.»
Não vejo bem como é que vais satisfazer todas
216

essas coisas assim. Mais uma vez o problema é


teu, e disse-te desde o princípio que o teu livro não
me dizia respeito, que me estava nas tintas para ele,
que o não leria ou que o leria mais tarde como se
te dissesse respeito, a ti. Tu vieste ver-me para me
pedir não sei quê de inédito. E apenas para te
agradar. propus-te uma troca de cartas : era mais
fácil e menos fatigante do que uma conversa de
gravador. Com a condição dessas cartas serem
publicadas bem distintas do teu livro, como uma
espécie de apêndice. Tu aproveitas-te disso para
deformares um pouco o nosso acordo e para me
censurares por me ter portado contigo como uma
velha Guermantes dizendo «havemos de lhe escre­
ver», ou como Rilke recusando os seus conselhos
a um jovem poeta. Paciência !
É certo que a benevolência não é o vosso forte.
Quando eu jâ não souber admirar pessoas ou
coisas (não muitas) sentir-me-ei como que morto,
mortificado. Mas vocês, dir-se-ia que já nasceram
azedos, a vossa arte é a da piscadela de olho, «a
mim não me enganam. . . faço um livro sobre ti,
mas vou mostrar-te como é ». De todas as inter­
. . .

pretações possíveis vocês escolhem geralmente a


mais mal-intencionada ou a mais suja. Primeiro
exemplo : gosto de Foucault e admiro-o. Escrevi
um artigo sobre ele. E ele um sobre mim, onde
aparece a frase que tu citas : «Talvez um dia o
século seja deleuziano.» O teu comentário : eles
mimoseiam-se com flores. Parece que não te passa
pela cabeça que a minha admiração por Foucault
seja real ; nem que a pequena frase de Foucault
seja uma frase cómica destinada a fazer rir os que
gostam de nós, e a enfurecer os outros. Um texto
que tu conheces explica essa malevolência inata a
todos o s herdeiros do esquerdismo : «Se estiver
217

inchado, tente pronunciar diante de uma assem­


bleia esquerdista a palavra fraternidade ou bene­
volência. Eles entregam-se ao exercício extrema­
mente laborioso da animosidade sob todos os seus
· travestis, da agressividade e do ridículo aplicados
a qualquer propósito e a qualquer pessoa, presente
ou ausente, amiga ou inimiga. Não se pensa em
· compreender o outro, mas em o vi gi ar » (1) A tua
.

carta é uma grande vigilância. Lembro-me dum tipo


da .FHAR (*) que declarava numa assembleia : se
. não estivéssemos aqui para sermos a vossa má
consciência . . . . Bizarro . ideal um pouco chui ser-se
a má consciência de alguém. E tu também, dir­
�se-ia que o fazeres um livro sobre (ou contra)
. mim deve no teu espírito dar�te um poder sobre
mim. Nada disso. Pela minha parte tanto me abor­
rece a . possibilidade de ter má consciência como a
de ser a má consciência dos outros.
.

Segundo exemplo : as minhas unhas que são


compridas e não estão aparadas. No fim da tua
carta dizes que o me u casaco de operário (não é
verdade, é um casaco de camponês) equivale ao
corpete plissado da Marilyn Monroe e as minhas
unhas aos óculos escuros da Greta Garbo. E enches­
�me de conselhos irónicos e mal-intencionados.
Como voltas várias vezes às minhas unhas, vou-te
explicar. Pode sempre dizer-se que a minha mãe
mas cortava, e que está ligado a É dipo e à castração
(interpretação grotesca, mas psicanalítica). Tam­
· bém se pode dizer, observando as extremidades dos
meus dedos, que ·me faltam as impressões digitais
vulgarmente protectoras, de tal modo que tocar

(1) Recherches. Número de. Março de 1 973. «Grande Encyclo­


..

(*) Frente homossexual de acção revolucionária.


pédie des homosexualités».
218

com a s pontas dos dedos num objecto e sobretudo


num tecido, me provoca uma dor nervosa que exige
a protecção de unhas compridas (interpretação
teratológica e seleccionista). Pode dizer-se - ainda,
e é verdade, que o meu sonho não é ser invisível
mas imperceptível, e que compenso esse sonho
pela posse de unhas que posso meter no bolso, de
tal modo que nada me parece mais chocante do
que alguém que olha para elas (interpretação psico­
- sociológica). Finalmente pode dizer-se : «Não de­
ves comer as tuas unhas porque elas te pertencem ;
se gostas de unhas come as dos outros, se quiseres
e se pudereS>> (interpretação política, Darien).
Mas tu escolhes a pior interpretação : ele quer singu­
larizar-se, fazer de Greta Garbo. De qualquer
maneira é curioso que de todos os meus amigos,
nunca nenhum notou as minhas unhas, todos as
achavam perfeitamente naturais, plantadas lá por
acaso como pelo vento que traz grãos e que não
faz ninguém falar.
Chego agora à tua primeira crítica, em que
dizes e redizes em todos os tons : tu estás bloqueado,
tu estás entalado, confessa. Procurador geral.
Não confesso nada. Visto que se trata por tua
culpa de um livro sobre mim, quero explicar como
é que vejo aquilo que escrevi. Eu pertenço a uma
geração, uma das últimas gerações que foi mais
ou menos assassinada com a história da filosofia.
A história da filosofia exerce em filosofia uma
função repressiva evidente, é o É dipo propria­
mente filosófico : «Tu não vais atrever-te a falar
em teu nome enquanto não tiveres lido isto e aquilo,
e isto sobre aquilo, e aquilo sobre isto.» Na minha
geração muitos não conseguiram safar-se, outros
sim, inventando os seus próprios métodos e novas
regras, um novo tom. Quanto a mim, «fiz» durante
219

muito tempo história da filosofia, li livr os sobre


este ou aquele autor. Mas compensava;..m e de vá­
rias maneiras : em primeiro lugar, gostando dos
autores que se opunham à tradição racionalista
de ssa história (e entre Lucrécio, Hume, Spino�a,
Nietzsche, há para mim um vínculo secreto consti­
tuído pela crítica do negativo, pela cultura da ale­
gria, pelo ódio à interioridade, pela exterioridade
das forças e das relações, pela denúncia do poder . . . ,
·
etc.) . O que eu mais detestava era o hegelianismo
e a dialéctica. O meu livr o sobre K ant é diferente,

gosto bastante dele, fi-lo como um livro sobre um


inimigo do qu al tento mostrar como é que funciona,
quais são os seus mecanismos - tribunal da Razão,
uso comedido das faculdades, submissão tanto mais
hipócrita quanto nos conferem o título de legislado­
res. Mas sobretudo, a minha maneira de me safar
nessa época era, p enso eu, conceber a história da filo­
sofia como uma espécie de enrabanço ou, o que vai
dar ao mesmo, de imaculada concepção. Eu imagi­
nava que chegava às costas de um autor e lhe fazia
um filho, que seria o s e u e que todavia seria mons­
truoso. Era muito importante que fosse seu, porque
era necessário que o autor dissesse efectivamente tudo
o que eu lhe fazia dize1 . Mas também era necessário
que a criança fosse monstruosa, porque era preciso
passar por 1 odas as espéci es de descentramentos,
deslizes, quebras, emissões secretas que me deram
tnuito prazer. O meu livro sobre Bergson é para
mim exemplar dentco desse géne1 o. E hoje há
pessoas que se fartam de rir censurando-me por
ter chegado a escrever sobre Bergson. É que não
sabem nada de hi�tória. Não sabem tudo o . que
Bergson, de início, conseguiu concentrai de raiva
na universidade francesa, e como é que serviu de
reunião a todas as espécies de loucos e de margi-
'220

nais, ,mundanos ou .rião mundanos. E contra a sua


vontade ou não pouco · importa.
..

Foi Nietzsche, que eu li tarde, que me tirou


de tudo isso. Pois é impossível submetê-lo a um
tratamento semelhante. Crianças nas costas · é ele
que as faz. Dá.;.nos , um gosto perverso (que Marx
e Freud nunca deram a ninguém, antes pelo con­
trário) : o gosto de cada um dizer coisas simples
em seu próprio nome, de falar por afectos, intensi­
dades, experiências, experimentações. Dizer qual­
quer coi sa em seu próprio nome é muito curioso ;
pois não é n.o momento em que nos tomamos por
um eu, por uma pessoa ou um sujeito, que falamos
em nosso _próprio nome. Pelo contrário, um indi­
víduo adquire um verdadeiro nome próprio no fim
do mais severo exercício de despersonalização,
quando se abre às multiplicidades que o atravessam
de lado a lado, às intensidades que o percorrem.
O nome como apreensão instantânea de uma tal
multiplicidade intensiva é o oposto da desperso­
nalização operada pela história da filosofia, uma
despersonalização de amor e não de submissão.
Falamos do fundo do que não sabemos, do fundo
do nosso próprio subdesenvolvimento. Tornám o ­

�nos um conjunto de singularidades soltas, nomes,


_pronomes, unhas, coisas, animais, _ pequenos acon­
tecimentos : o contrário de uma vedeta. Comecei
pois a fazer dois livros neste sentido vago : D iffé­
rence et Répétition, e Logique du sens. Não tenho
..

. ilusões : estão . ainda cheios de um aparelho . univer­


sitário, são. pesados, mas há qualquer coisa que tento
sacudir, fazer mover em mim, tratar. a escrita como
- um fluxo, não como um � c ó digo E há páginas de
.

que gosto muito em Différence et Répétition, as


páginas sobre a fadiga e a contemplação por exem-
·
221

pio, porque são vivido vivo apesar das aparências.


Isso não ia longe, mas já começava.
E depois houve o meu encontro com Félix
Guattari, a maneira como nos entendemos, comple­
támos, despersonalizámos um no outro, singula­
rizámos um pelo outro, em resumo nos amámos.
Isso deu o Anti-Édipo, e é um novo progresso..
Pergunto-me se uma das razões formais da hosti­
lidade que por vezes aparece contra este livro, não
é justamente o ele ter sido feito a dois, porque as
pessoas gostam das zangas e das queixas. Então
tentam distinguir o indiscernível ou fixar aquilo
que pertence a cada um de nós. Mas visto que cada
um é, como toda a gente, já vários, isso dá muita
gente. E não há dúvida de que não podemos dizer
que o Anti-Édipo está livre de todo o aparelho de
saber : é ainda bastante universitário, bastante
ajuízado, e não é a pop'filosofia e a pop'análise
sonhadas. Mas espanta-me isto : aqueles que acham
sobretudo que este livro é difícil são os que têm
mais cultura, nomeadamente cultura psicanalí­
tica. Esses dizem : o que é isso, o corpo sem órgãos,
o que é que quer dizer máquinas desejantes? Pelo
contrário, os que sabem pouco, os que não estão
apodrecidos pela psicanálise, têm menos problemas
e deixam passar sem preocupações o qúe não com­
preendem. Foi por isso que dissémos que este livro,
pelo menos de direito, se dirigia a tipos entre 1 5 e
20 anos. É que há duas maneiras de ler um livro :
ou o consideramos como uma caixa que remete
para um interior, e então vamos procurar os seus
significados, e depois, se formos ainda mais per­
versos ou corrompidos, partimos em busca do
significante. E o livro seguinte tratamo-lo como uma
caixa contida na precedente que a contém por sua
vez. E comenta-se. interpreta-se, pedem-se expli-
222

cações, escreve-se o livro do livro, até ao infinito.


Ou então a outra maneira : considera-se o livro
como uma pequena máquina a-significante ; o
único problema é «será que isso funciona e como é
que funciona?» Como é que issÇ) funciona para
vocês ? Se não funciona, se nada se passa, peguem
noutro livro. Esta outra leitura é uma leitura em
intensidade : qualquer coisa passa-se ou não se
passa. Não há nada para explicar, para compreen­
der, para interpretar. É do tipo ligação eléctrica.
Corpo sem órgãos, conheço pessoas sem cultura
que compreenderam imediatamente, graças aos
seus «hábitos», graças à sua maneira de arran­
jarem um. Esta outra maneira de ler opõe-se à
precedente, porque relaciona imediatamente um
livro com o Exterior. Um livro é um pequeno
maquinismo numa maquinaria exterior muito mais
complexa. Escrever é um fluxo entre outros, e que
entra em relações de corrente, de contra-corrente,
de remoínhos com outros fluxos, fluxos de merda,
de esperma, de fala, de acção, de erotismo, de
dinheiro, de política, etc. Como Bloom, escrever
na areia com uma mão, masturbando-se com a
outra - dois fluxos com que relação? Nós, o nosso
exterior, foi uma certa massa de pessoas (sobre­
tudo j ovens) que se estão nas tintas para a psica­
nálise. Eles estão «entalados», para falar como tu,
pois continuam mais ou menos a fazer-se analisar,
pensam já contra a psicanálise, mas pensam contra
ela em termos psicanalíticos. (Por exemplo, assunto
de risota íntima, como é que os rapazes da FHAR,
as raparigas do MLF, e outros ainda, se podem
fazer analisar ? Isso não os incomoda? Crêem
nisso? O que é que eles podem fazer em cima do
divã ?) Foi a existência desta corrente que tornou
possível o Anti-Édipo. E se os psicanalistas, desde
223

os mais estúpidos até aos mais inteligentes, têm


geralmente uma reacção hostil a esse livro, mais
defensiva do que agressiva, não é evidentemente
apenas por causa do seu conteúdo, mas propor­
cionalmente a essa corrente que vai crescer, em
que as pessoas cada vez se estão mais nas tintas
para ouvirem dizer «papá, mamã, É dipo, castração ,
regressão», e para verem propor da sexualidade
em geral e da sua em particular uma imagem . pro-­
priamente débil. Como se costuma dizer, os psica­
nalistas têm de tomar em consideração as «massas»,
pequenas massas. Recebemos belas cartas neste
sentido, provenientes do lumpen-proletariado da
psicanálise, muito mais belas do que os artigos
de críticas.
Esta maneira de ler em intensidade, em _rela­
ção com o exterior, fluxo contra fluxo, máquina
com máquinas, experimentações, acontecimentos
para cada um que nada têm a ver com . o livro,
fragmentação do livro, funcionamento com outra&
coisas, qualquer coisa . . . etc., é uma maneira apai­
xonada. Ora tu leste-o exactamente assim. E a
passagem da tua carta que me parece bela, bastante
bela mesmo, é aquela em que tu dizes como é que
o leste, como é que o usaste para os teus fins. Mas
infelizmente porque é que voltas tão depressa às
censuras - não te vais safar, esperamo-vos no
segundo tomo, vamos reconhecer-vos logo· ? Não,
. . .

não é verdade, nós cá temos a nossa ideia. Vamos


continuar porque gostamos de trabalhar j untos.
Mas não será uma continuação. Com a ajuda do
exterior, será qualquer coisa de tão diferente na
linguagem e no pensamento que as pessoas que nos
«esperam» serão obrigadas a dizer : tornaram-se
completamente loucos, ou então são sacanas, ou
então foram incapazes de continuar. Desiludir é
224 1
um prazer. Não que nós queiramos parecer loucos,
mas havemos de o ser à nossa maneira e na devida
altura, não é preciso apressarem-nos. Sabemos que
o Anti-Édipo, primeiro tomo, ainda está cheio de
compromissos, demasiado cheio de coisas ainda
eruditas e que se parecem com conceitos. Pois
bem, vamos mudar, mudámos já, tudo vai bem
para nós. Alguns pensam que vamos continuar
com o mesmo impulso, havia mesmo quem pen­
sasse que íamos formar um quinto grupo psicana­
lítico. Miséria. Sonhamos com outras coisas, mais
clandestinas e mais alegres. Não estabeleceremos
mais compromissos, porque temos menos neces­
sidade de o fazer. E encontraremos sempre os
aliados que nós desejamos ou que nos des:;jam a
nós.
Pensas pois que eu estou entalado. Não é
verdade : nem Félix nem eu nos tornámos os sub­
-chefes de uma sub-escola. E se alguém utiliza o
Anti-Édipo, estamo-nos nas tintas, visto que j á o
ultrapassámos. Tu vês-me entalado politicamente,
reduzido a assinar manifestos e petições, «super­
-assistente social» : não é verdade e, entre todas as
homenagens a prestar a Foucault, há a de ter por
si só e pela primeira vez quebrado as máquinas de
recuperação, e de ter tirado o intelectual da sua
situação política clássica de intelectual. Vocês,
vocês ainda estão na provocação, na publicação,
nos questionários, nas confissões públicas («con­
fessa, confessa . . . ») . Eu sinto chegar, pelo contrário,
a idade próxima de uma clandestinidade semi­
-voluntária e semi-obrigatória, que será o mais
j ovem desejo, incluindo o político. Tu pretendes
que eu estou entalado profissionalmente porque
falei dois anos em Vincennes, e porque diz-se
dizes tu, já lá não faço nada. Pensas que, enquanto
225

falei, estava na contradição, «recusando a posição


do professor, mas condenado a ensinar, retomando
o arnês quando toda a gente o tinha deixado cair» :
não sou sensível às contradições, não sou bela
alma que vive o trágico da sua condição ; falei
porque o desejava muito, fui apoiado, injuriado,
interrompido, por militantes, falsos-loucos, verda­
deiros-loucos, imbecis, tipos muito inteligentes,
havia uma certa pândega viva em Vincennes. Isto
durou dois anos, foi suficiente, é preciso mudar.
Então, agora que eu já não falo nas mesmas con�
dições, tu dizes ou contas que se diz que já não
faço nada, e que estou impotente, grande rainha
impotente. Nâo é menos falso : escondo-me, con­
tinuo a fazer as minhas coisas com o menos gente
possível, e tu, em vez de me ajudares a não me tornar
uma vedeta, apareces a pedir-me contas, a apre­
sentar-me a escolha entre a impotência e a contra­
dição. Por fim vês-me entalado pessoalmente,
familiarmente. Aqui não voas muito alto, pareces
Kostas Axelos. Explicas que tenho uma mulher,
e uma filha que brinca com bonecas, e que trian­
gula pelos cantos. E isso faz-te rir por causa do
Anti-Édipo. Também podias dizer que tenho um
filho quase na idade de se fazer psicanalisar. Se
pensas que são as bonecas que produzem o Édipo
ou o casamento por si só, é estranho. O Édipo não
é uma boneca, é uma secreção interna, uma glân­
dula, e nunca lutámos contra as secreções edipianas
sem lutarmos contra nós me&mos, sem experi­
mentarmos contra nós mesmos, sem nos termos
tornado capazes de amar e de desejar (em vez
da vontade choramingas de sermos amados que
nos conduz a todos ao psicanalista). Amores
não-edipianos, não são coisas insignificantes. E
tu devias saber que não basta ser-se celibatário,
226

sem crianças, maricas, membro de grupos, para


se evitar o Édipo, pois há o Édipo de grupo, homos­
sexuais edipianos. MLF edipianizado . . . etc. Como
testemunha um texto, «les Arabes et Nous» (2),
e que é ainda mais edipiano do que a minha filha.
Portanto não tenho nada a «confessar». O
sucesso relativo do Anti-Édipo não nos compro­
mete, nem a Félix nem a mim ; não nos diz respeito,
de uma certa maneira, visto que já estamos ocupa­
dos com outros projectos. Passo agora à tua outra
crítica, mais dura e mais penosa, que consiste
em dizeres que eu, por meu lado, andei sempre a
reboque, poupando os meus esforços, aproveitando
as experimentações dos outros, maricas, drogados,
alcoólicos, masoquistas, loucos. . . etc., provando
vagamente as suas delícias e os seus venenos sem
nunca arriscar nada. Voltas contra mim um texto
que escrevi, onde pergunto como é que alguém
pode deixar de se tornar um conferencista profis­
sional sobre Artaud, um amador mundano de
Fitzgerald. Mas o que é que tu sabes de mim,
uma vez dito que acredito no segredo, isto é, no
poder do falso, em vez de acreditar nas narrativas
que dão testemunho de uma deplorável crença
na exactidão e na verdade ? Embora eu não me des­
loque, não viaje, tenho como toda a gente as minhas
viagens no mesmo lugar que só posso medir pelas
minhas emoções, e exprimir da maneira mais
oblíqua e mais desviada naquilo que escrevo. E
as minhas relações com os maricas, com os alcoóli­
cos ou com os drogados, o que é que elas vêm
fazer aqui, se obtenho em mim efeitos análogos
aos deles por outros meios ? O que interessa não

(2) Recherches. Id. .


227

é saber se tir o p roveito do que quer que seja� mas


se e xi stem pessoas que fazem esta ou aquela coisa,
no seu canto� eu no meu, e se há encontros possíveis,
acasos� casos fortuitos� e não alinhamentos, con­
centrações� todas essas merdas em que se supõe
que cada um deve ser a má consciência e o corrector
do outro. Eu não vos devo nada, tal como vocês
não me devem nada a mim. Não há nenhuma
razão para que eu vá aos vosso s ghettos, visto que
tenho os meus. O problema nunca consistiu na
natureza deste ou daquele grupo exclusivo, mas
em relações transversais onde os efei tos p roduzidos
por esta ou aquela coisa (homossexualidade� droga�
etc.) podem sempre ser produzidos por outros meios.
Contra aqueles que pensam «eu sou isto, eu sou
aquilo», e que pensam assim de uma maneira
ainda psicanalítica (referênci a à sua i nfância ou
ao seu destino) , é nece ssári o pensar em termos
incertos, improváve is : eu nã o sei o que sou, tantas
investigações ou exp eriências necessárias, não-narcí­
sicas, não-edipiana s - não há nenhum maricas
que possa dizer com absoluta certeza «eu . sou
maricas». O problema não é o de estar isto ou aquil o
no homem, mas antes o de um devir inumano, '
de um devir universal animal : não o tomarmo-nos
por um animal, mas desfazer a organização humana
do corpo, atrave ssarmos esta ou aquela zona de
intensidade do corpo, descobrindo cada um as
zonas que são as suas, e os grupos, as populações,
as espécies que os habitam. Com que di rei to é
que eu não falaria de medicina sem se r médico
se falo dela como um cão? Porque é que não hei-de
falar da droga sem ser drogado, se fal o dela como
um passarinho ? E p orque é que não hei-de inventar
um discurso sobre qualquer coisa, ai nda que esse
discurso seja completamente irreal e artificial, sem
228

que me perguntem com que direito o faço ? A droga


faz delirar por vezes, porque é que eu não hei-de
delirar sobre a droga ? Para que é que vocês precisam
dessa vossa «realidade» ? Insípido realismo, o
vosso. E porque é que me lês tu então ? O argumento
da experiência reservada é um mau argumento
reaccionário. A frase do Anti-Édipo que eu prefiro
é : não, nós nunca vimos esquizofrénicos.
Finalmente o que é que há na tua carta? Nada
de ti próprio, a não ser a tal passagem bela. Visão
de conjunto de rumores, diz-se, que tu apresentas
com agilidade como se viessem dos outros ou de
ti mesmo. E pode ser que a tenhas querido assim,
uma espécie de pastiche dos boatos, num vaso
fechado. É uma carta mundana, bastante snob.
Pedes-me um «inédito», e depois escreves-me
maldades. A minha carta, por causa da tua, tem
um ar de justificação. Isto não vai bem. Tu não
és Árabe, és um chacal. Fazes tudo para que me
transforme naquilo que me criticas por eu me ter
transformado, pequena vedeta, vedeta, vedeta. Eu
não te peço nada, mas gosto muito de ti - para
acabar com os boatos.
G. D.

A correspondência entre M. Cressole e G. Deleuze


foi extraída do livro «Deleuze» de M. Cressole,.
publicado pelas Éditions Universitaires
volumes publicados

TEXTOS DE CIÊNCIAS SOCIAIS

1 - PARA UMA CRÍTICA DA EPISTEMOLOGIA


Dominique Lecout
2 - PARA UM CONHECI MENTO DA PSICANÁLISE
Georges Philippe Brabant
3 - LITERATURA E SIGNIFICAÇÃO, Tzevtan Todorov
4 - A PSIQUIATRIA DEVE SER FEITA,
DESFEITA POR TODOS, Roger Gentes
5 - FALE COM N Ú MEROS, Hans Zeisel
6 - POLÍTICA MONETÁRIA, Suzanne Brunhoff
7 - PARA UM CONHECIMENTO DA SOCIOLOGIA
G. Lapassade - R. Lourau
8 - O HOMEM E A SUA PSICOSE, Gisela Pankov

CADERNOS PENINSULARES

Série literatura

1 - SALA HIP ÓSTILA, José · Alberto Marques


2 - É ASSIM QUE SE FAZ A HISTÓRIA
Eduardo Guerra Carneiro
3 - CICLO QUEDA LIVRE, E. M. Melo e Castro
4 - O PAÍ S POSS ÍVEL, Ruy Belo .
5 - KATAFARAUM É UMA NAÇÃO , José Martins Garcia
6 - AS INUMERÁVEIS ÁGUAS, Nuno Judice
7 - JARDINS DE GUERRA, Casimiro de Brito

9 - NOVAS VIS Õ ES DO PASSADO


8 - OS NOMES, Gastão Gus

Fiama Hasse Pais Brandão

Série ensaio

1 - SEXUALIDADE E REPRESSÃ O, Carlos Castilla dei Pino


2 - LINGUAGEM E CRIAÇÃO, José Martins Garcia
3 - O QUE DEVE SABER-SE SOBRE A SEXUALIDADE
diversos
1 - SABE/MASOCH, Gilles Deleuze
4 - O PROBLEMA COLONIAL, J. Pedro Capitão
5 - LUTA CONTÍNUA
6 - NAS ORIGENS DO COMUNISMO · FRANCÊS
7 Annie Kriegel
- ANTOLOGIA SOBRE O MATERIALISMO
8 DIALÉ CTICO, Marx, Engels, Lenine, Mao Tsé-Tung

9
- SOBRE A ESTRATÉ GIA GLOBAL DA REVOLUÇÃO
BRASILEIRA� José Crispim
- O DESENVOLVIMENTO DO CAPITALIS M O
10 EM PORTUGAL, Ramiro da Costa
1 1 - PORTUGAL E A CATALUNHA, Felix Cucurull
1 2 - A Ill INTERNACIONAL E O FASCIS MO, Dimitrov
1 3 - OS COMUNISTAS DOS CONSELHOS E A 1111 NTER-

1 4 - O QUE É A CONSCIÊNCIA DE CLASSE, Wilhelm Reich


NACIONAL, diversos

1 5 - REVOLUÇÃO E CONTRA-REVOLUÇÃO
NA ALEMANHA# Karl Marx
Série Resposta
1 - A CHINA E AS RAÍZES DA SINOFOBIA
OCIDENTAL
2 - CARTA AO GENERAL FRANCO, Arrabal

COLECÇÃO FORÇAS DO TEMPO


1 - O 1 8 DE JANEIRO DE 1 934, L. H . Afonso M ant a
.

2 - OS SINDICATOS E A REVOLUÇÃO, Lo sovski


COLEÇÃO TEMAS INTERNACIONAIS
- A G UERRILHA D O CHE, Régis Débray

2 - OS ÁRABES HOJE, Mahmoud Hussein


3 - C H INA PAÍS CAPITALISTA OU SOCIALISTA, colect ivo
,
.

4 - O HEROICO POVO DA COREIRA, c olecti vo

COLECÇÃO DOCUMENTA POÉTICA


1 - ADOLFO CASAIS MONTEIRO
2 - ANTOLOGIA DA POESIA CONCRETA
EM PORTUGAL
3 - CANCIONEIRO DE AMIGO
COLECÇÃO :MINIMA
1 - HISTÓ RIA SECRETA DE UMA NOVELA
Mário Vargas Llosa
2 - PORTUGAL SEM SALAZAR, Mário Mesquita

4 - A CORRUPÇÃO DO PODER, Frank Browning


3 - A REVOLTA DO GRELO, Vasco Pulido Valent e

5 - AS TRÊS FONTES DO MARXI SM O , Karl Kautsky


6 - ASPECTOS FUNDAMENTAIS DA ECONOMIA
CHINESA, Cheng Shi
7 - CARTAS DA PRISÃO, Rosa Luxemburgo

COLECÇÃO DICIONÁRIOS POPULARES


1 - DICIONÁRIO POPULAR DE POLÍTICA
José Maria Caloma
2 - DICIONÁRIO POPULAR DE ECONOMIA, Abirov

COLECÇÃO ARTE E PRODUÇÃO


1 - P SI CO LOGIA DO VESTIR
Alberoni, Dorfles, Eco, Livolsi, Lomazzi, Sigurtá

FORA DE COLECÇÃO
- O POETA FAZ-SE AOS DEZ ANOS
Maria Alberta Menéres
- M ÁGOAS TERRITORIAIS, José Jorge Letria
- REVIVER LENINE José Estaline
- VAN YA, ESCALA EM ORONGO, A. M ota , Nelson Dias
- A QUEDA DO FASCISMO, António Ferreira
- KOLANVILLE, J. L. Duarte
- RELATÓ RIO CONTRA A NORMALIDADE, F. H. A. R.

À AUTOGESTÃO
- LENINE E A RELEGIÃ O, Colectivo
- DA GREVE SELVAGEM
GENERALIZADA, Rageb
- 100 000 RELÓGIOS SEM PATRÃO (PROCESSO UP)
Colectivo
- A CRIANÇA CRIADORA, Georgette Gabey,
Catherine Viment
- MANUAL DO G UE RRILHEI RO URBANO, Marighella
Este livro foi composto
e impresso para
Assirio & Alvim
Sociedade Editorial
e Distribuidora, Lda.
na ELO-Publicidade e Artes Gráficas. Lda. - Mafra
Outubro de 1976
Edição 082/CPE/20

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