Entrevista de Jacques Lacan ao jornal L’Express
Traduzido por Matheus Cornely, via L’express
Entrevista conduzida por Madeleine Chapsal e publicada no jornal
L’express de 31 de maio de 1957, n° 310. A entrevista posteriormente
compôs o livro “Envoyez la petite musique”, de Madeleine Chapsal,
publicado pela editora Grasset em 1984. A tradução foi feita em fidelidade
à entrevista publicada em jornal.
AS CHAVES PARA A PSICANÁLISE
L’express – O psicanalista é muito intimidante. Você tem a sensação de
que ele poderia manipulá-lo à vontade e de que sabe mais do que você
sobre suas próprias motivações.
Dr. Lacan – Não exagere. E então você acredita que esse efeito é particular
da psicanálise? Um economista, para muitos, é tão misterioso quanto um
analista. Em nossa época, é o caráter do especialista que intimida. Quanto à
psicologia, mesmo quando vista enquanto ciência, todos acreditavam estar
por dentro. Agora, eis que com a psicanálise você tem a sensação de perder
esse privilégio. O analista seria capaz de ver algo mais secreto no que
parece mais claro para você. Veja, você está nu, descoberto, sob um olhar
perito e sem saber exatamente o que você está mostrando.
L’express – Há uma espécie de terrorismo aqui. Você se sente
violentamente arrancado de si mesmo…
Dr. Lacan – A psicanálise, na ordem do homem, realmente tem todas as
características de subversão e escândalo que o descentramento copernicano
do mundo teve na ordem cósmica: a terra, morada do homem, não é mais o
centro do universo.
Pois bem! A psicanálise lhe diz que você não é mais o centro de si mesmo,
pois há Outro sujeito dentro de você, o inconsciente. Aquele chamado
irracionalismo que foi atribuído a Freud! Ora, é exatamente o contrário:
Freud não só começou a racionalizar o que até então resistia à
racionalização, mas também mostrou uma razão de raciocínio na ação
como tal, quero dizer, raciocinando e funcionando como lógica, sem que o
sujeito saiba, e isso no mesmo campo classicamente reservado para o
irracional, para a irracionalidade [à l’irraison], digamos o campo da paixão.
É isso que não foi perdoado. Certamente teria sido mais fácil admitir a
introdução da ideia de forças sexuais que se apoderam abruptamente do
sujeito, sem prévio aviso e fora de qualquer lógica; mas que a sexualidade é
o lugar da palavra, que a neurose é uma doença que fala, isso é algo
extravagante; e alguns discípulos até preferem falar sobre qualquer outra
coisa. O analista não deve ser visto como um “engenheiro de almas”, ele
não é um médico (physicien), não procede estabelecendo relações de causa-
efeito: a sua ciência é uma leitura, uma leitura do sentido. Sem dúvida é por
isso que, sem saber bem o que se esconde atrás das portas de seu escritório,
tende a ser tomado por um feiticeiro, e talvez um pouco maior que os
outros.
L’express – E quem descobriu esses segredos terríveis que cheiram a
enxofre?
Dr. Lacan – Ainda é necessário especificar de que ordem são esses
segredos. Estes não são os segredos da natureza que as ciências físicas ou
biológicas descobriram. Se a psicanálise lança luz sobre os fatos da
sexualidade, não é apontando para eles em sua realidade ou na experiência
biológica.
L’express – Mas Freud descobriu, como alguém descobre um
continente desconhecido, um novo domínio da psique, que chamamos
de inconsciente, ou não? Freud é Cristóvão Colombo!
Dr. Lacan – Saber que existe toda uma parte das funções psíquicas que não
está ao alcance da consciência… Não se esperou Freud para isso! Se você
insiste em uma comparação, Freud seria Champollion! A experiência
freudiana não está no nível da organização dos instintos ou das forças
vitais. Ela apenas os encontra praticando, por assim dizer, em uma segunda
potência.
Freud não trata dos efeitos instintivos em seu poder primário. O que é
analisável o é na medida em que já está articulado no que constitui a
singularidade da história do sujeito. Se nele o sujeito consegue se
reconhecer, é na medida em que a psicanálise permite a “transferência”
dessa articulação.
Em outras palavras, quando o sujeito “recalca”, isso não significa que ele
se recusa a tomar consciência de algo que seria um instinto – digamos, por
exemplo, um instinto sexual que gostaria de se manifestar de forma
homossexual – não, o sujeito não reprime a sua homossexualidade, ele
reprime a palavra onde essa homossexualidade desempenha um papel de
significante.
Veja, não é algo vago, confuso, que está sendo reprimido; não é uma
espécie de necessidade, de tendência, que teria que ser articulada (e que
não seria articulada por ser reprimida), é um discurso já articulado, já
formulado em uma linguagem. Tudo está aqui. Onde “aquilo” foi
recalcado, “aquilo” fala.
L’express – Você diz que o sujeito reprime um discurso articulado em
uma linguagem. No entanto, não é o que se sente quando se depara
com uma pessoa com dificuldades psicológicas, um tímido, por
exemplo, ou um obsessivo. Seu comportamento parece, acima de tudo,
absurdo, incoerente; e, se for adivinhado que de fato pode significar
algo, isso seria algo impreciso, instável [s’ânnone], muito abaixo do
nível da linguagem.
Dr. Lacan – Os sintomas, esses que você crê reconhecer, só lhe parecem
irracionais porque você os considera isoladamente e deseja interpretá-los
diretamente.
Veja os hieróglifos egípcios: enquanto procurávamos o significado direto
de abutres, galinhas, figuras em pé, sentadas ou acenando, a escrita
permanecia indecifrável. O pequeno signo do “abutre” não significa nada
isoladamente. Ele encontra seu valor significante apenas quando
considerado como parte de todo o sistema ao qual pertence. Pois bem! Os
fenômenos com os quais estamos lidando na análise são dessa ordem, são
de ordem linguageira.
O psicanalista não é um explorador de continentes desconhecidos ou de
águas profundas, ele é um linguista: ele aprende a decifrar a escrita que está
ali, diante de seus olhos, oferecida ao olhar de todos. Mas ela permanece
indecifrável até que conheçamos a lei, a chave.
L’express – Você diz que essa escrita está “disponível para todos
verem”. No entanto, se Freud disse algo novo, é que no domínio
psíquico estamos doentes porque escondemos, escondemos uma parte
de nós mesmos, que “recalcamos”. No entanto, os hieróglifos não
foram reprimidos, eles foram inscritos em pedra. Portanto, pode sua
comparação não ser total?
Dr. Lacan – Ao contrário, deve ser tomado ao pé da letra: o que, na análise
do psiquismo, deve ser decifrado está ali o tempo todo, presente desde o
início. Você fala de recalque esquecendo uma coisa, que é que, para Freud
e como ele o formulou, o recalque era indissociável de um fenômeno
denominado “o retorno do recalcado”. Algo continua a funcionar, algo
continua a falar no lugar em que foi recalcado. Graças a isso nós podemos
localizar o lugar do recalque e da enfermidade e dizer: “ali está.”
Essa noção é difícil de entender porque quando falamos de “recalque”,
imediatamente imaginamos uma pressão – uma pressão na bexiga, por
exemplo – isto é, uma massa vaga e indefinível, pressionando com todo o
seu peso contra uma porta que ‘nos recusamos a abrir.”
Na psicanálise, o recalque não é o recalque de uma coisa, é o recalque de
uma verdade.
O que acontece quando você deseja recalcar uma verdade? Toda a história
da tirania está aí para lhe dar a resposta: ela se expressa em outro lugar, em
outro registro, em linguagem criptografada e clandestina.
Pois bem! É exatamente isso o que acontece com a consciência: a verdade,
recalcada, vai persistir, mas transposta para outra linguagem, a linguagem
neurótica.
Só que não podemos mais dizer naquele ponto qual sujeito está falando,
mas que “isso” fala, que “aquilo” continua a falar; e o que acontece é
decifrável inteiramente da maneira que você é decifrável, isto é, não sem
dificuldade. É uma caligrafia perdida.
A verdade não foi aniquilada, não caiu no abismo. Ainda está lá, dada,
presente, mas transformada em inconsciente. O sujeito que reprimiu a
verdade não é mais o senhor, não está no centro de seu discurso; as coisas
continuam a funcionar sozinhas e o discurso continua a se articular, mas
“fora do sujeito”. E esse lugar, esse “fora do sujeito”, é exatamente o que
chamamos de inconsciente.
Você pode ver que o que perdemos não é a verdade, mas a chave para a
nova linguagem em que ela agora se expressa. É aí que intervém o
psicanalista.
L’express – Não seria essa uma interpretação pessoal? Não parece a de
Freud.
Dr. Lacan – Leia A Interpretação dos Sonhos, A psicopatologia da vida
cotidiana e O chiste e sua relação com o inconsciente. Tudo o que você
precisa fazer é abrir esses livros em qualquer página para encontrar
claramente o que estou falando.
O termo “censura”, por exemplo. Por que Freud o escolheu imediatamente,
ao mesmo nível da interpretação dos sonhos, para designar o corpo
refreador, a força que recalca? Censura nós sabemos bem o que é, é
Anastasie, é uma restrição que se exerce com uma tesoura. E em quê? Não
em qualquer coisa que se passe no ar, mas no que está impresso, em um
discurso, um discurso expresso em uma linguagem.
Sim, o método linguístico está presente em todas as páginas de Freud, a
todo momento ele se entrega concretamente às referências, analogias,
conexões linguísticas…
E então, no final das contas, na psicanálise, você nunca pede outra coisa ao
paciente que não essa coisa: falar. Se a psicanálise existe, se tem efeitos, é
apenas na ordem da declaração e da fala [parole]!
No entanto, para Freud, como para mim, a linguagem humana não surge
para os seres humanos como a água jorra de uma fonte. Veja o aprendizado
diário da criança com sua experiência: se ela coloca o dedo no fogão, ela se
queima. A partir daquele momento em que encontra o quente e o frio, o
perigo, afirma-se que tudo o que lhe resta fazer é deduzir, reconstruir toda a
civilização.
Isso é absurdo. Partindo do fato de que a criança se queimou, ela agora se
vê diante de algo muito mais importante do que a descoberta do calor e do
frio. Na verdade, deixe-a se queimar e sempre haverá alguém para lhe dar
um sermão. É muito mais cansativo para a criança entrar nesse discurso
sobrecarregante do que se acostumar a evitar o fogão.
Em outras palavras, o homem que nasceu para a existência tem que lidar
primeiro com a linguagem. Isso é um dado. Ele está até mesmo preso nisso
antes de nascer. Ele não tem estado civil? Sim, a criança que vai nascer já
está, da cabeça aos pés, presa nesta rede de linguagem que a acolhe e ao
mesmo tempo a aprisiona.
L’express – O que torna difícil aceitar a relação entre sintomas
neuróticos e uma linguagem perfeitamente articulada é o fato de que
não vemos a quem ela se dirige. Ela não se dirige a ninguém, pois o
doente, em particular, o próprio doente, não a compreende, e é
necessário um especialista para decifrá-la! Talvez os hieróglifos
tenham se tornado incompreensíveis, mas, na época em que foram
usados, foram feitos para comunicar certas coisas a certas pessoas.
Então, de que se trata essa linguagem neurótica?
Ora, o que é essa linguagem neurótica se não apenas uma linguagem
morta, apenas uma linguagem privada, visto que a si mesma é
ininteligível? Uma linguagem é algo que você usa. E esta, pelo
contrário, é um estorvo. O obsessivo, por exemplo. Ele gostaria de se
livrar de sua obsessão, de romper seu ciclo.
Dr. Lacan – Esses são precisamente os paradoxos que são o objeto da
descoberta. Se essa linguagem, porém, não fosse dirigida a um Outro, não
poderia ser compreendida graças a um Outro na psicanálise. O resto é
reconhecer o que ela é, e para isso é preciso situá-la em um caso. Isso exige
um longo desenvolvimento ou se torna uma bagunça que você não
consegue entender. No entanto, é aí que pode aparecer com clareza aquilo
de que estou falando: a forma como o discurso recalcado do inconsciente se
traduz no registro do sintoma. E você verá até que ponto isso é preciso.
Você falou sobre o obsessivo. Veja esta observação de Freud que está entre
seus cinco principais casos de psicanálise, intitulado O homem dos ratos. O
homem dos ratos foi um grande obsessivo. Um homem jovem, de formação
universitária, que vai encontrar Freud em Viena, para lhe dizer que ele
sofre de obsessões: às vezes são preocupações muito agudas com as
pessoas que lhe são queridas, às vezes o desejo de atos impulsivos, como
cortar sua garganta, ou então proibições são formadas nele com relação a
coisas insignificantes.
L’Express – E em termos de sexualidade?
Dr. Lacan – Este é um erro de termo! Obsessão não significa
automaticamente obsessão sexual, nem mesmo obsessão por isto ou aquilo
em particular. Ser obsessivo significa estar preso a um mecanismo, em um
ciclo cada vez mais exigente e interminável.
Se ele tem que realizar um ato, cumprir um dever, uma angústia especial
trava o obsessivo: “consigo fazer isso?” Em seguida, uma vez que a coisa é
feita, ele experimenta uma necessidade torturante de ir verificar, mas não se
atreve por medo de enlouquecer, porque ao mesmo tempo ele sabe muito
bem que fez… Isso o coloca em ciclos cada vez maiores de verificação,
precaução, justificação. Preso como está em um turbilhão interior, o estado
de apaziguamento, de satisfação, tornou-se impossível para ele.
Mesmo o grande obsessivo não é, entretanto, delirante. Não há convicção
no obsessivo. Há apenas esse tipo de necessidade, completamente ambígua,
que o deixa tão infeliz, tão dolorido, tão desamparado, por ter que ceder a
uma insistência que vem de si mesmo e que ele não pode explicar para si
mesmo.
A neurose obsessiva é generalizada e pode passar despercebida se não nos
atentamos especialmente aos pequenos sinais que sempre a traduzem. Esses
pacientes até mantêm sua posição social muito bem, enquanto tem suas
vidas prejudicadas, devastadas pelo sofrimento e pelo desenvolvimento de
suas neuroses.
Conheci pessoas que tinham funções importantes, e não apenas honorárias,
gerenciais, pessoas que tinham responsabilidades tão amplas e extensas
quanto você pode imaginar, e que as exerciam amplamente, mas que eram,
de manhã à noite, vítimas de suas obsessões.
Assim estava o homem dos ratos: perturbado, preso ao ressurgimento de
sintomas que o levaram a consultar Freud nos arredores de Viena, onde ele
participou de importantes manobras como oficial da reserva. Para Freud,
ele pediu conselhos sobre uma história de dormir em pé acerca de um
reembolso que devia à agência de correios pelo envio de um par de óculos.
Uma história que não consegue contar sem se atropelar.
Se o seguirmos, literalmente, em suas dúvidas, encontraremos um cenário
criado pelo seu sintoma, um cenário que diz respeito a quatro pessoas, os
próprios acontecimentos que conduziram ao casamento do qual o sujeito é
fruto, traço a traço, transposto em um vasto conjunto de maneirismos, sem
que o sujeito suspeite de nada.
L’Express – quais histórias?
Dr. Lacan – Uma dívida fraudulenta de seu pai, um militar crescido. O pai
perdeu seu posto militar devido a ter cometido um crime. Havia um
empréstimo que lhe permitiu pagar sua dívida, e o aspecto pouco claro da
restituição do dinheiro emprestado para seu amigo. E finalmente um amor
traído devido a um casamento que lhe deu status.
Ao longo de sua infância, o homem dos ratos ouviu essas histórias – a
primeira como uma brincadeira e a segunda de modo velado. O que chama
a atenção é que não se trata de um evento particular, mesmo traumático,
que traria de volta o recalcado. Trata-se da dramática constelação que
presidiu seu nascimento – a pré-história, por assim dizer, do seu indivíduo,
descendente de um passado lendário. Essa pré-história reaparece por meio
de sintomas que a transmitem de forma irreconhecível, vinculando-a a um
mito representado cuja figura o sujeito reproduz sem saber.
Por estar lá transposta como uma língua ou escrita, talvez em outra língua,
com outros signos; ela é reescrita lá sem que suas relações sejam
modificadas; como uma figura na geometria se transforma de uma esfera
em um plano, o que não significa necessariamente que qualquer figura
possa se transformar em qualquer outra figura. Um instrumento
terrivelmente eficaz.
L’Express – E quando essa história vier à tona?
Dr. Lacan – Ouça bem: eu não disse que a cura da neurose se realiza só de
saber disso. Você pode imaginar que, na observação do homem dos ratos,
há algo a mais que não posso desenvolver aqui. Se bastasse que houvesse
uma pré-história na origem de uma consciência, todos seriam neuróticos.
Tem a ver com a forma como o sujeito toma as coisas, as admite ou as
recalca. E por que algumas pessoas recalcam certas coisas?
Por fim, dê-se ao trabalho de ler o homem dos ratos com esta chave que o
penetra por completo: a transposição para outra linguagem figurativa e
completamente despercebida pelo sujeito, de algo que só pode ser
compreendido em termos de discurso.
L’Express – A verdade recalcada pode se articular como você diz,
como um discurso devastador. Porém, quando uma pessoa doente vai
até você, não é alguém que procura sua verdade. Ele é alguém que
sente uma dor terrível e deseja alívio. Se bem me lembro da história do
Homem dos Ratos, também havia uma fantasia com um rato…
Dr. Lacan – Em outras palavras, “enquanto você está lidando com a
verdade, há um homem aí que está sofrendo.” Em qualquer caso, antes de
usar um instrumento, é importante saber o que é, como é fabricado! A
psicanálise é um instrumento terrivelmente eficiente e, por ser cada vez
mais um instrumento de prestígio, corremos o risco de utilizá-la com uma
finalidade para a qual não foi feita e, assim, podemos degradá-la.
Portanto, temos que começar do básico: o que é essa técnica, a que se
aplica, de que ordem são seus efeitos, efeitos que ela desencadeia por sua
aplicação pura e simples? Pois bem! Os fenômenos envolvidos na análise, e
no nível dos instintos, são efeitos de um registro linguístico: o
reconhecimento falado de grandes elementos da história do sujeito, uma
história que foi recortada, interrompida, que ficou de fundo no discurso.
Quanto aos efeitos que devem ser definidos como pertencentes à análise, os
efeitos analíticos – como dizemos efeitos mecânicos ou efeitos elétricos –
são efeitos da ordem desse retorno do discurso recalcado.
E posso lhe dizer que a partir do momento em que você coloca o assunto
em um divã, mesmo tendo explicado a regra analítica da forma mais
superficial, o assunto já é trazido para a dimensão da busca pela verdade.
Sim, pelo simples fato de ter que falar, como se deve na frente de um
Outro, do silêncio de um Outro – um silêncio que não é de aprovação ou
desaprovação, mas de atenção – ele toma isso como uma expectativa, uma
expectativa pela verdade. E também se sente impelido a fazê-lo pelo
preconceito de que falávamos antes: acreditar que o outro, o perito, o
analista, sabe de si o que você não sabe, a presença da verdade se fortalece
por meio disso, está aí em um estado implícito.
O paciente sofre, mas percebe que o caminho para finalmente se virar e
superar, para aliviar seu sofrimento, está na ordem da verdade: saber mais e
saber melhor.
L’Express – Então o homem seria um ser de linguagem? Essa seria a
nova representação do homem que devemos a Freud? O homem é
qualquer um que fala?
Dr. Lacan – A linguagem é a essência do homem? Não é uma questão que
não me interessa, nem odeio que as pessoas que se interessam pelo que
digo se interessem por isso noutro local, mas é de outra ordem e, como
digo às vezes, é a sala ao lado.
Não me pergunto “quem fala”, procuro colocar as perguntas de uma forma
diferente, de uma forma mais formulada. Pergunto-me: “de onde isso
fala?”. Em outras palavras, se tentei elaborar algo, não é uma metafísica,
mas uma teoria da intersubjetividade. Desde Freud, o centro do homem não
está mais onde pensávamos que estava, senão em Outro cenário. Devemos
prosseguir a partir disso.
L’Express – Se é falar que é importante, buscar a verdade falando e
confessando, a análise não substitui de certa forma a confissão?
Dr. Lacan – Não estou autorizado a falar de assuntos religiosos, mas me
permito dizer que a confissão é um sacramento que não se destina a
satisfazer qualquer necessidade de confiança… A resposta, mesmo que
consoladora, encorajadora, ou mesmo a diretiva do padre, não pretende
constituir a eficácia da absolvição.
L’Express – Do ponto de vista do dogma, você está provavelmente
certo. No entanto, a confissão é relacionada, pelo menos por um tempo
que não cobre toda a era cristã, ao que é chamado de direção
espiritual. Isso não estaria relacionado ao campo da psicanálise? Ou
seja, fazer alguém confessar suas ações e intenções, de modo a guiar
um espírito que procura sua verdade?
Dr. Lacan – A direção espiritual tem sido, inclusive pelos próprios
religiosos, julgada de formas diversas, até mesmo sendo possível ver nela,
em certos casos, a origem de diversas práticas abusivas. Em outras
palavras, cabe aos religiosos saber como eles próprios a situam e que
alcance lhe dão.
Mas me parece que nenhuma direção espiritual seria alarmada por uma
técnica que visa a revelação da verdade. Tenho visto religiosos dignos
desse nome tomarem partido em assuntos muito espinhosos que envolvem
o que é chamado de honra das famílias, e sempre os vi decidir que manter a
verdade em segredo é por si só um ato de consequências devastadoras.
E todos os diretores espirituais lhe dirão que a ruína de suas existências são
pessoas obsessivas e excessivamente escrupulosas. Não sabem literalmente
o que fazer com eles. Quanto mais eles tentam acalmá-los, pior. Quanto
mais eles tentam explicar e dar-lhes razões, mais as pessoas retornam com
perguntas absurdas…
No entanto, a verdade analítica não é algo tão secreto, nem tão misterioso
que a percepção do que é não possa surgir espontaneamente em pessoas
treinadas para a direção espiritual.
Conheci religiosos que perceberam que uma penitente que vinha se banhar
de obsessões de impureza precisava ser subitamente considerada por outra
perspectiva. “Estava sendo justa com seus filhos e com sua empregada?”
Por meio desse lembrete brutal, eles obtiveram efeitos completamente
surpreendentes.
Em minha opinião, os diretores espirituais não podem encontrar o que
criticar na psicanálise. E além, podem tirar dela lições que serão úteis…
L’Express – Talvez, mas a psicanálise é bem vista? Em círculos
religiosos não a veriam mais como uma ciência do diabo?
Dr. Lacan – Eu acredito que os tempos mudaram. Depois que Freud
inventou a psicanálise, ela, sem dúvidas, foi considerada por muito tempo
uma ciência escandalosa e subversiva. Não se tratava de saber se
acreditavam ou não nela. Opunham-se violentamente a psicanálise pelo
pretexto de que o psicanalisado se libertaria, se entregaria a todos os seus
desejos, se entregaria a tudo, não importando o quê.
Hoje, admitida ou não como ciência, a psicanálise passou a fazer parte de
nossos costumes e as posições se inverteram: é quando alguém não se
comporta normalmente, quando age de maneira considerada “escandalosa”
que falam em mandá-lo para o psicanalista!
Tudo isso não está na ordem do que é chamado pelo termo excessivamente
técnico de “resistência à psicanálise”, mas na ordem da “objeção massiva”.
O medo de perder a originalidade, de se tornar senso comum, não é menos
frequente. É preciso dizer que nos últimos tempos uma doutrina dessa
natureza foi produzida sobre essa noção de “adaptação”, noção que
primeiro engendra confusão e, em seguida, se torna inquietante.
Já foi escrito que o propósito da análise é adaptar o sujeito, não
completamente ao meio externo, digamos, à sua vida ou às suas verdadeiras
necessidades; isso significa claramente que a sanção de uma análise seria
que se tornasse um pai perfeito, um marido modelo, um cidadão ideal, em
suma, que alguém é alguém “tão tolerante” que não discute mais nada.
O que é completamente falso, tão falso quanto o primeiro preconceito que
via na psicanálise um meio de se libertar de todo constrangimento.
L’Express – Você já pensou que o que as pessoas mais temem, o que as
faz se oporem à psicanálise antes mesmo de saberem se acreditam ou
não nela como ciência, é a ideia de que correm o risco de serem
despojadas de uma parte de si mesmas, modificadas?
Dr. Lacan – Essa preocupação é bastante legítima. Dizer que não haveria,
depois de uma análise, uma mudança de personalidade seria muito
engraçado! Seria difícil argumentar que podemos obter resultados por meio
da análise e que, ao mesmo tempo, não podemos obtê-los, ou seja, que a
personalidade sempre permanecerá intacta. Apenas a noção de
personalidade merece ser esclarecida, mesmo reinterpretada.
L’Express – Em última análise, a diferença entre a psicanálise e as
várias técnicas psicológicas é que a primeira não se contenta apenas em
orientar, em intervir mais ou menos cegamente, mas em curar…
Dr. Lacan – O que é curável está curado. Não vamos curar o daltonismo e a
idiotice, embora, em última análise, se possa dizer que o daltonismo e a
idiotice têm a ver com o “psíquico”. Você conhece a fórmula de Freud,
“onde isso era, (ali) devo advir” [là où ça a été je dois être]? O sujeito deve
ser capaz de se restabelecer em seu lugar, aquele lugar onde ele não estava
mais, substituído por essa palavra dessubjetivada que chamamos de id.
L’Express – Na perspectiva freudiana, devemos pensar em tratar uma
série de pessoas que não se consideram doentes? Em outras palavras,
seria de interesse psicanalisar todos?
Dr. Lacan – Possuir um inconsciente não é privilégio dos neuróticos.
Existem pessoas que claramente não estão sobrecarregadas com um peso
excessivo de sofrimento parasitário, que não estão muito sobrecarregadas
com a presença de Outro sujeito [autre sujet] dentro de si mesmas, que se
acomodaram muito bem com esse Outro sujeito – e por isso não perderiam
qualquer coisa ao conhecê-lo.
Porque, enfim, ser psicanalisado não se trata de outra coisa senão de
conhecer a própria história.
L’Express – Isso também vale para os criadores?
Dr. Lacan – É uma questão interessante saber se lhes interessa ir
rapidamente no que precisamente lhes interessa ou se devem cobrir com
um certo véu aquela palavra que os ataca de fora (é a mesma coisa que vem
a bloquear o sujeito na neurose e na inspiração criativa).
Haverá interesse em ir muito rapidamente pelo caminho da análise em
direção à verdade da história do sujeito, ou em abrir mão, como Goethe, de
um trabalho que é apenas uma imensa psicanálise? Pois em Goethe isso é
manifesto: toda a sua obra é a revelação da palavra do Outro sujeito. Ele foi
ainda mais além do que outros gênios.
Ele teria escrito a mesma obra se tivesse sido psicanalisado? Na minha
opinião, a obra certamente teria sido diferente, mas não creio que teria sido
perdida.
L’Express – E para todos os homens que não são criadores, mas que
têm grandes responsabilidades, relações de poder, você acha que
devemos instituir a psicanálise obrigatória?
Dr. Lacan – Com efeito, não se pode duvidar por um momento que se um
homem se tornou Presidente do Conselho, é sem dúvida porque foi
psicanalisado em idade normal, isto é, cedo… Apesar de que a juventude às
vezes se estende demais. Deveria ter sido analisado um Presidente do
Conselho, e o mesmo se poderia dizer de qualquer pessoa em posição de
responsabilidade.
L’Express – Alerta! Como alguém poderia se opor ao Sr. Guy Mollet
se ele tivesse sido analisado? Se ele pudesse alegar que é imune quando
seus oponentes não?
Dr. Lacan – Não tomarei partido se o Sr. Guy Mollet faria ou não a política
que faz se fosse analisado! Não me façam dizer que penso que a análise
universal está na origem da resolução de todas as antinomias, que se
analisássemos todos os seres humanos não haveriam mais guerras, não
haveria mais luta de classes. Digo formalmente o contrário. Tudo o que
podemos pensar é que os dramas seriam menos confusos.
Veja, o erro é o que eu disse antes: querer usar um instrumento antes de
saber como ele é feito. Agora, nas atividades que estão sendo vividas
atualmente no mundo sob o termo “psicanálise”, há uma tendência
crescente de encobrir, ignorar, mascarar a primeira ordem cuja centelha
Freud foi o primeiro a acender. O esforço da grande massa da escola
psicanalítica tem sido o que chamo de tentativa de redução: colocar no
bolso o que era mais irritante, mais subversivo na teoria de Freud. Ano a
ano vemos essa degradação tornar-se mais visível, às vezes culminando,
como nos Estados Unidos, em formulações que estão em contradição direta
com a inspiração freudiana.
Não é porque a psicanálise permanece contestada que o analista deve tentar
tornar sua observação mais aceitável, repintando-a com cores variadas, com
analogias mais ou menos legitimamente emprestadas de campos científicos
vizinhos
L’Express – É muito desmoralizante o que você nos diz, pelos possíveis
analisandos…
Dr. Lacan – Se te inquieta o que digo, melhor. Do ponto de vista do
público, o que considero mais desejável é fazer soar um grito de alarme, e
que tenha, no campo científico, um significado muito preciso: que seja um
apelo, requisito primordial para a formação do analista.
L’Express – Já não é um treino muito longo e sério?
Dr. Lacan – Na educação psicanalítica tal como se constitui hoje – os
estudos da medicina e depois a psicanálise, a chamada análise didática,
realizada por um analista qualificado – falta algo essencial, sem o qual
nego que se possa ser um psicanalista verdadeiramente formado: a
aprendizagem de disciplinas linguísticas e históricas, a história das
religiões, etc. Para definir o que pensa sobre essa formação, Freud revive
esse antigo termo que gosto de usar: universitas litterarum.
Os estudos médicos são obviamente insuficientes para ouvir o que diz o
analisando, ou seja, por exemplo, para distinguir em sua fala o alcance dos
símbolos, a presença dos mitos, ou simplesmente para apreender o
significado do que ele diz, conforme se apreende ou não o significado de
um texto.
No mínimo, por enquanto, um estudo sério dos textos da doutrina freudiana
é possibilitado pelo porto seguro que é dado pelo professor Jean Delay, do
corpo docente da Clínica de Doenças Mentais e Encefalite.
L’Express – Nas mãos de pessoas insuficientemente competentes, você
acha que a psicanálise tal como foi inventada por Freud corre o risco
de se perder?
Dr. Lacan – Atualmente, a psicanálise certamente está se transformando em
uma mitologia cada vez mais confusa. Podemos citar alguns sinais disso –
o apagamento do complexo de Édipo, a ênfase nos mecanismos pré-
edipianos, na frustração, a substituição do termo ansiedade por medo. Isso
não significa que o freudismo, o primeiro vislumbre freudiano, não
continue a caminhar por toda parte. Vemos manifestações absolutamente
claras disso em todos os tipos de ciências humanas.
Estou pensando em particular no que meu amigo Claude Lévi-Strauss me
disse recentemente sobre a homenagem finalmente prestada pelos
etnógrafos ao complexo de Édipo, que o percebem como uma profunda
criação mítica de nossa época.
É algo muito surpreendente, bastante surpreendente que Sigmund Freud,
um homem sozinho, tenha conseguido identificar um certo número de
efeitos nunca antes isolados e introduzi-los em uma rede coordenada,
inventando assim uma ciência e o campo da aplicação desta ciência.
Mas em relação a essa grande obra de Freud, que atravessa o século como
um golpe de fogo, nossa obra fica para trás. Eu digo isso com toda a minha
convicção. E não iremos adiante até que tenhamos pessoas bem treinadas o
suficiente para fazer tudo o que uma tarefa científica ou técnica requer:
após um golpe de gênio, um exército de trabalhadores para colher seus
resultados.