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(Livro) Roquette-Pinto - Ensaios Brasilianos

Este documento apresenta a biografia do naturalista alemão Fritz Müller, um dos pioneiros da colonização alemã no sul do Brasil no século XIX. Detalha sua origem familiar na Alemanha, sua educação inicial e o início de seu interesse pela história natural ainda jovem. Também menciona sua mudança para o Brasil e o importante papel que desempenhou no estudo da fauna e flora brasileiras.
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Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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(Livro) Roquette-Pinto - Ensaios Brasilianos

Este documento apresenta a biografia do naturalista alemão Fritz Müller, um dos pioneiros da colonização alemã no sul do Brasil no século XIX. Detalha sua origem familiar na Alemanha, sua educação inicial e o início de seu interesse pela história natural ainda jovem. Também menciona sua mudança para o Brasil e o importante papel que desempenhou no estudo da fauna e flora brasileiras.
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BRASILIANA

s.• Série da
BIBLIOfECA PEDAGOGICA BRASILEIRA
Sob a direç;J,o ú Fernando de /Íilevedo

*
Volumes pw,licados:
ENSAIOS
l - B4TIIITA PllRllIRA : n . u r u do Ln- 164 - J3JIBlfAllDTNO .Jori DJI 80tll!A: D1-
p6rio e outroe enaaJoe - 2.• edição. don4rio da Tnrra e da Gente do BrR•ll
6 - BATISTA PlanllIRA : Vultoe e epla6- - 4.• edi2!to da " Onom'8tioa Geral da
dloe do Braall - 2.• edição, Geoa:raíia• Braailoir11,".
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peeti•a.. 8ºª Nacional.
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43 - A. BA.Doa LDu. : Alberto Torree e
&Pa obra.
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tumea do Bra.all - Traduolio, preí,oio e
notas de Gaatão Penalva. Fw.tl!!INo RoDRlGVllll VALO :
57 - EI~
70 - AroNSO M IN09 Dll MIi.LO FllAJfoo : menta. do Folclore Mualcal Br..Uelro.
Conceito de Ci-.flhação Brulleira. 103 - SotrBA CAIUmIBO : Mlt.. Alricaào.
82 - e. Dll Mmx.o-Lm1T10 : 0 Brull Vlato no Brull - Ediollo .ilw,trada.
Pcloe l n g l -.
105 - A . C . TA.V.A.BIIS BMT01: A PlrmD•
eia - 2.• edição. CARTAS
116 - AGllNOB At701lll'1'0 1>11 MIRANDA :
E.tudo. Piauie- - Edição ilu.otrada. 12 - WANDIIRLIIT PINHo: Cartae do lm•
perador Pedro II ao Barão de Cotesfpe
llSO - RoT NABH : A Conquiata do Brull - Ed. ilustrada.
- Tradução de Moaoir N. Vaaooooeloe -
EdioAo ilw,trada. 88 - Rm BARllOU. : Moddade e EdlJo
151 - A. C. TAVABU BASTOS: 0. Malea (Cartae inéditaa. Prefaoiadaa e anotadaa
do Preaente e aa Eeperancu do Futuro por Américo .Jacobina Laoombe) - 2.•
- (Estudos Braaileiros) - PreflLoio e notas Ediolo - E ~. ilu.otrad.a.
de Caaeiano Tavaree Butoe. til - CoNDB 1>' Eu : Via11em MUitar ao
190 - E . R0QtlllTTID-PINTo : Enaafoa Br~ Rio Grande do Sul (Pref,oio e 19 cartas
.Wanoa - Edição ilustrada. do Principe d'Orléan.o, comentadas por Max
Fleuiea) - Edição ilu.otrada.
FILOLOGIA 109 - 0JIOBGBII RABDllBS : D. Pedro ll •>'
25 - M.Lmo MAUOQtlJV: ll Uapa do o Conde de Goblneau (CorreapoodAnola
Nordeate. Inédita).
!l6 - RlilNATO MllNl>OlfCA : A infildnda 142 - F'RANOIIIOO VzNlNOlO Fn.Bo : Eudi-
ú'ricana no portu.gu~ do Brull - Ed. dea da Cunha e aeua Amfsoa - Edição '
lu.otrada. ilustrada.
NOTA : Oe numeroe referem-ee aoe volumee por ordem oronol6gioa de publl·
cação. Ao leitor que o aolioitar eer, enviado o catalogo completo das obraa
da "Braailiana", em que figuram eetudoe braaileiroe aobre ou troe asauntoe.

*
Ediçõu da
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
RUA DOS GUSMÕES, 639 - SÃO PAULO
Sé~ 5.• BRASILIANA Vol. 190
BIBLIOTECA PEDAGOGICA BRASILEIRA

E. ROQUETTE-PINTO

ENSAIOS
BRASILIANOS
EDIÇÃO ILUSTRADA

COMPANHIA EDITORA NACIONAL


SÃO PA ULO · - RIO - Rl!.CIPI!. - PORTO-ALl!.ORI!.
Do MESMO AUTOR:

Nesta série:
ENSAIOS DE ANTROPOLOGIA
BRASILIANA Vol. 22
RONDONIA . . . . . . . . . , . . Vol. 39

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Edições da
COMPANHIA EDITORA NACIONAL
SÃO PAULO
Aos professores
HELOISA ALBERTO TORRES
e
FRANCISCO VENANCIO FILHO
..
PRIMEIRA PARTE

GLORIA SEM RUMOR


CAPITULO I

T ODAS as raças foram attrahidas pela nossa ter ..


ra graciosa e linda. Ella não mentiu a nenhuma
das que lhe ouviram a voz cheia de promessas ; e
por isso ahi estão, vivas e fortes, cooperando no seu
progresso.
Assim, no seculo XIX, os borbotões do forte sangue
da Germania principiaram a correr nas veias deste po..
vo, animando os creadores de novos centros de vida
na patria moça. Em 1819 desabrocha, na Serra dos
Orgãos, a belleza de Friburgo ; em 24, a pujança do
nucleo Riograndense do Sul ; em 45, à graça de Petro..
polis; em 49, começam os primeiros signaes da futura
grandeza de J oinville. Em 50 surge, esperança aben.. .
çoada de Hermann Blumenau, nos primeiros paus a
pique das casinholas do ltajahy, a cidade magnifica
onde hoje o patriotismo dos filhos de Santa Cathari..
na - guiados pelo alto espirito de Adolpho e Victor
Konder - levanta ao grande colono o monumento que
elle ainda mais mereceu como sabio naturalista perdi..
damente apaixonado pelas maravilhas dos · bosques e ·
dos mares do Brasil. ·
Muitos dos pioneiros foram abandonados na sel..
· va, como aquelles cujos netos eu mesmo encontrei,
em 1906, nas quebradas de S. Pedro, a Oeste da Lagoa
de ltapéva, gente alourada e rosea, de pupillas côr
do céu e torsos airosos, que evocava uma pagina das

( UNIVE"SIDAOE 00 e,o.s1L _._ )


BIBLIOTECA __
12 E. BQquette Pinto
sagas quando o poema narra a luta corajosa do heroe
Dietrich no seio da floresta.
Embora os responsaveis do abandono tenham pro-
curado fazer, em todo tempo, do seu crime, uma culpa
dos abandonados - os her6es aqui domaram a mata,
ergueram villas e cidades, trabalharam cantando, como
ninguem mais trabalha nesta núnha terra tão queri,
da. . . Os her6es venceram l

•••
Fritz Miiller era alto, louro, de cabellos annella,
dos e longos. Parecia..se muito, segundo a tradição,
com o conselheiro Trommsdorff, seu avô, notavel chi,
núco.
Na aldeia de Windischholzhausen, perto de Er, .
furt, na Thuringia, nasceu Johann Friedrich Theodor
Miiller, em 31 de Março de 1822. Seu pai, sacerdote
protestante, não podia viver folgadamente, tanto mais
quanto eram numerosos os filhos do casal ; Charlotte
(1823), Augusto (1825), Rosine (1827), Hermano (1829),
Luise (1832), Ludwing Theodor (1835).
Augusto veio com Fr. MUiier para o Brasil e foi
seu companheiro inseparavel. Hermano, tambem no ..
tavel naturalista, falleceu em 1883 como Oberlehrer
em Lippstadt.
A correspondencia dos dois irmãos sabios consti,
tue um verdadeiro repositorio de preciosas notas. Ro,
sine - a meiga Rõschen das carinhosas cartas de
Fritz Müller - foi a sua confidente, a irmã querida
com quem repartiu seus mais intimos soffrimentos e
suas alegrias. Morreu em 1903.
A mãe de Fritz Müller era filha de Johann Bar..
tholomãus Trommsdorff; foi por esse lado que a sua
herança mais se accentuou, embora elle tenha escrip ..
Ensaios Brasilianos 18

to ; "Dle Freude an der Iebenden Natur haben wir


Brüder von unserm Vater ererbt". (1).
Alfréd M,õller, que tambem descendia de Trom.-
msdorff, deixa perceber que a influencia materna não
foi extranha á sua ardente dedicação á natureza. Seja
como fôr, está provado que não podia ser melhor o
fundamento eugenico do grande naturalista. O mesmo
disse E. Krause fazendo a biographia de Hermann
Müller em 1884.
Em 1828 muda-se a familia do pastor para Mühl. .
berg, na Thuringia. Na Paschoa de 1835, aos 13 annos,
Fritz Müller deixa a casa dos paes e segue para a do ve. .
lho Trommsdorff, em Erfurt - a "Botica do Cysne"
- (Schwanenapotheke) - onde viveu durante o tem. .
po em que frequentou o Gymnasio da cidade, escola
que não lhe deixou agradaveis recordações visto que a
sua enorme affectividade era, constantemente, arre-
piada pelos modos rispidos dos mestres, nenhum dos
quaes lhe recordava a gentileza do Rektor de Mühl-
berg, Tanzer. Não posso, dizia elle em 1870, lembrar
sem amargura os bellos annos perdidos no Gymnasio.
A sua tendencia para o estudo dos idiomas estran. .
geiros desde cedo se manifestou. Hoje nos maravi-
lhamos da correcção com que elle escrevia o inglez,
o francez e a nossa lingua brasiliana. Por isso dizia
em 1881 : "So wãre ich wahrscheinlich Linguist statt
Naturforscher geworden". (2).
Em Naumburg, onde morava seu tio Wilhelm Mõl.-
ler, passou a viver Fritz Müller desde 1840. A botica
de Herr Bennecken foi, então, a sua melhor escola. Ahi
parece ter tido o jovem aprendiz os primeiros impulsos
aventureiros que, afinal, o dominaram. Chegou mesmo
a indagar de um agente hamburguez, com quem se en. .
controu, sobre a possibilidade de installar uma phar-
macia em Cape Town.
14 E. Roquette Pinto
A miragem dos tropicos já naquelle tempo o des,
lumbrava. O seu amigo Biltz não podia, porém, aban,
donar o estabelecimento materno ; a viagem gorou.
Fritz Müller resolveu fazer,se · professor e, em 1841,
matriculou-se na Universidade de Berlin, onde se de,
dicou especialmente á mathematica e á historia natu,
ral. Foram ali seus mestres : Lichtenstein, (zoologia),
Kunth, (botanica) Johannes Müller (Anatomia). Por
esse tempo seguia elle tambem os cursos de Greifswald
onde encontrou acolhida paternal no professor Horn,
schuch, grande bryologo de quem nunca mais se esque,
ceu.
Em Berlin, tomou,se discípulo querido do grande
J ohannes Müller para quem o seu ·raro talento de de,
senhista desde logo foi uma revelação. O primeiro mi,
croscopio que possuiu foi presente do seu mestre. "De,
senhei para elle, diz Fritz Müller, algumas clépsines"
(sanguesugas).
- Tem um microscopio? perguntou,me.
-Não.
- Leve este e examine os ovos recentemente pos,
tos".
O mestre queria saber si nos ovos das clépsines
existe o movimento descoberto nos das planarias.
No "Archiv für Naturgeschichte" publicava nes,
sa época Fritz MUiler o seu primeiro trabalho scienti,
fico; "Ueber Hirudo tessulata und margina ta".
O espírito profundamente philosophico dominan,
te em toda a sua obra acha,se expresso em uma carta
de 1844, dirigida ao seu irmão Hermano :
"Mehr Genuss ais ein ganzes zoologisches Mu,
seum gewahrt die genaue Untersuchung eines ein,
zigen Tieres I" (3).
A 14 de Dezembro de 1844 obtinha o gráu de Dou,
tor em Philosophia com a these :
Ensaios Brasilianos 15

"Ueber die Blutegel der Umgebúng Berlins". Paz


na epigraphe dessa monographia um pensamento que
havia mais tarde de resumir a sua vida :
"Caeterum, nullius in verba jurans, aliorum in.-
venta consarcinare haud institui ; quae ipse quaesivi,
reperi, repetitis vicibus diversoque tempore observavi
- propano", palavras de O. F. Müller, de Copenha,,
gue, que em 1863 repetiu no "Für Darwin". (4).
· Das "proposições" que sustentou na sua these, uma
ê sobremodo interessante :
"O estudo das linguas ê menos apto a formar a:
mente dos jovens do que a mathematica e a historia
natural".
N6s brasilianos, que consagramos nos programmas
gymnasiaes um ou dois annos ás sciencias naturaes e
cinco ou mais ao portuguez, estamos longe daquelle
admiravel conselho de um sabia que, si não tivesse sido ·
naturalista, dizia, teria sido philologo.
Em 1845 voltou a Erfurt como professor do Gym..
nasio, onde ensinou algebra e historia natural. Coube,
, lhe dar, alli, as primeiras lições de biologia. Ao dizer
do seu meticuloso biographo, nessa época andou o amor
pela primeira vez esvoaçando ao redor do jovem natu..
ralista.
Começaram, porém, as attribulações moraes de
Fritz Müller, cujas crenças religiosas se tinham des.-
vanecido a medida que a sciencia mais e mais o empol..
gava. Elle assim o diz.
Para um professor de gymnasio official, naquelles
tempos, era escandaloso considerar a Biblia livro pura.-
mente humano.
Pouco a pouco a situação foi-se tomando insus..
tentavel. Em uma carta a Rõschen, elle escrevia,: :
"Wahrheit und Tugend sind nicht denkbar ohne
Freiheit". (5).
16 E. Roquette Pinto
Depois accrescentava como lhe tinha sido penoSo
ver partir do coração todas as velhas crenças da moei..
dade. Mas, dizia, assim deve ser : "Sklave will Ufld
kann ich nicht sein I". (6).
Pensou, então, em viajar como medico de bordo,
cedendo ao intimo desejo de conhecer as terras tropi..
caes. Foi quando brotou da sua penna um lindo, e.
mocionante e verdadeiro verso, puro e simples cotilQ
os que balbucia o coração : "J a, es ist gar leicht t:ll
sagen Lebewohl I Doch, ach, so schwer zu tragen :
Lebewohl I" (7).
As cartas de Fritz Müller, durante a sua permanen-
cia em Greifswald, documentam profunda revolta con-
tra a oppressão religiosa que sentia ao redor de si, tan-
to mais quanto no meio universitario, em que passou &
viver, as ideias dominantes eram bem differentes das
que seu. velho pae, sacerdote christão, e sua irmã, lhe
recordavam sempre. Os seus autores predilectos eram
Karl Marx, Bruno e Edgar Bauer, Feuerbach. Duas
sociedades fundaram-se na Universidade : uma contra
os duellos, habituaes nas escolas allemães (Mensur) e
outra - "Wechse!steuerverein" - de aspecto per-
feitamente communista.
De ambas foi socio e mais tarde, director.
Quasi no fim da vida, em 1893, escrevia elle a um
amigo - (Oehlschlager) - relembrando Greifswald e
dizendo claramente que as Iuctas e as discussões polí-
ticas, religiosas ou sociaes daquelles bons tempos, ti-
nham tido a maior importancia no desenvolvimento do
seu espirito.
Ha, porém, em todo esse período da existencia de
Fritz Müller alguma coisa que não se pode deixar de
mencionar. São os traços fortes do seu caracter indo.-
mavel, da sua sinceridade desataviada, brutal, organi.-.
ca, incontrastavel.
Ensaios Brasilianos 17
"Ich hasse, escrevia elle em 1846 a seu irmão Au..
gust, ich hasse alie jene rücksichtsvolle Halbheit, die
ein anderes Bekenntnis auf den Lippen, ein anderes
im Herzen tragt". (8).
Tinha, porém, um coração profundamente affe..
ctivo. "Muitas lagrimas me tem custado esse meu or..
gulho". . . são palavras de 1846.
· Seja como fôr, a honestidade absoluta, em religião
como em sciencia foi sempre a sua fé; "lch will nur,
wo ich sprechen muss, wahr sprechen". (9)
Por isso mesmo, ninguem mais do que elle amou a
liberdade. Ha phrases, em suas cartas intimas, que mais
parecem legendas historicas, dessas que os povos cos..
tumam tomar por lemma, para suggestionar os filhos :
"Wie der Korper frei atmet, so soll der Geist frei den..
ken 1... " (10).
A crise moral tomou..se, dest'arte, cada vez mais
profunda, na familia do pastor, cujo filho se distancia..
va sempre dos princípios tradicionaes da casa. Até
mesmo o doce conforto das cartas de Roschen começou
a faltar a Fritz Müller. Ao terminar o seu curso medi..
co, outro precalço lhe surgiu á frente, nos dizeres do
juramento christão a que se via obrigado : "sicut Deus
me adjuvet et sacrosanctum ejus evangelium". Pediu,
então, ao Ministro que lhe concedesse tomar o grau pro..
ferindo o juramento dos judeus. Isso lhe foi negado.
Tudo, diz Alfred Moller, leva-nos a considerar
muito natural a presença de Fritz Müller no Partido
Democratico, por occasião da Revolução de 1848. De
1849 a 1852 empregou-se como preceptor dos filhos de
um distincto agricultor de Roslofshagen, perto de Grim..
men, na Nova Pommerania, Herr Lamprecht.
Em 1848 tinha encontrado a mulher que foi digna
companheira de sua existencia, Karoline Tollner, de
quem houve em 1849 a sua primeira filha, Louise. A
virtuosa senhora falleceu em 1894, aos 68 annos.
18 E. Roquette Pinto
Em Erfurt tinha Fritz Müller conhecido o Dr.
Hermano Blumenau, botanico e pharmaceutico, espi,
rito ponderado e tradicionalista, homem de larga vi,
são e grande actividade que, em 1850, fundou, nas mar,
gens do rio ltajahy, a colonia destinada a prosperar
na gloria desta região.
O moço, que vivia então pensando em partir para
longe, não só para fugir ao mau estar que a sua descren,
ça provocava na familia, senão tambem para dar lar.-
gas a antigos sonhos aventureiros, leu um opusculo de
Blumenau a respeito da colonia. Depois de hesitar, en.-
tre o Chile e o Brasi;, decidiu,se de accordo com os con,.
selhos do antigo companheiro.
Em 1852, já depois do nascimento da sua segunda
filha, Anna, elle e o seu irmão August embarcaram, a
17 de Maio, em Hamburg, a bordo do "Florentin", _
ao mando do Capitão Lofgrén, de partida para São
Francisco, no Sul do Brasil, porto que alcançaram na
tarde de 17 de Julho.
A 21 de Agosto de 1852 chegavam os viajantes ás
margens do arroio "Velha", onde foram recebidos pelo
fundador da Colonia. ·
Estabeleceram-se os irmãos MUiier nas margens do
arroio Garcia, a uma hora da sua foz no Itajahy.
Em carta de 31 de Outubro de 1852, a seus paes,
dizia August, tratando da sua feitoria : "Es sind die
ersten Grundstücke der Kolonie Blumenau, die bis
hetzt aus 12 Familien besteht" (U).
A liberdade com que sonhava Fritz MUiier foi as,
sim alcançada, nas clareiras das mattas que o seu pro,
prio terçado derrubava. A 16 de Janeiro de 1853 elle
escrevia, á querida Rõschen, dizendo,se feliz na sua
nova "Heimat". Até mesmo os mosquitos pernilongos
(langbeinige MUcken) não eram peores do que os da
Allemanha (. . . ganz ãhnliche den deutschen). Naquel,
_le tempo comprava,se, aqui, um sacco de batatas por
,· .

Ensaios Brasilianos 19
2 mil réis ; um, de feijão por 8 a 10 mil réis ; um de
farinha custava 11 patacas, uma libra de carne valia
6 vintens.
Logo nos primeiros mezes os dois irmãos conhece.-
mm os indios, que, durante tanto tempo, luctaram nes..-
tes arredores, os Bugres ou Coroados, que o naturalista
descreveu como sendo "hübscher ais viele Brasilianer
und weit schõner ais die Neger" (12).
· A grande alegria de Fritz Müller, naquelle meio
perigoso e desconfortavel, provinha afinal do senti..-
mento, quasi feroz, da sua independencia individual :
" . . . das dankst du fast alles deiner eigenen Arbeit ;
mit eigener Hand hast du den Hausplatz von Biiumen
gesiiubert ... " (13).
Algumas vezes foi obrigado a tratar de doentes,
medico para quem a medicina não tinha nenhum en..;
canto.
Entre os casos da sua existencia, então rodeada de
imprevistos, cita elle o accidente que soffreu quando
uma palmeira, as cahir decepada, attingui..-o na c.1be..-
ça, prostrando..-o ensanguentado.
Da língua portugueza não se cogitava na joven
colonia. Não tinha razão de ser. Elle achava o idioma
facil, uma especie de "ein Latein, dem man die Kno..-
chen zerschlagen hat". (14).
Tres vezes por anno - Paschoa, Pentecostes e Na.-
tal - matava..-se uma vaca em Blumenau. O azeite
de peixe alumiava os lares. Por sorte, Fritz Müller
encontrou na floresta a arvore do Araribá, cujos ramos
ardiam com boa luz, facilitando os bordados e costu..-
ras da mulher.
As mãos do sabio manejavam, com firmeza, o ma..
chado e a enxada.
. Por isso, em 1855 o Dr. Blumenau poude escrever
a Hermann Trommsdorff dizendo que a força de von..-
tade e a energia dos irmãos Müller eram notaveis, bem
20 E. Roquette Pinto
desejaria encontral,as em todos os seus companheiros.
Quanto ás questões religiosas o caso era outro, "beson.-
ders mit der Richtung des Doktors" . .. (15).
Blumenau era representante do espírito ordeiro,
pacato e seguro, que serve de esteio ás sociedades ;
MUiler encarnava aspirações libertarias do futuro. Com.-
prehende,se a restricção.
No rancho travado de cipós, sem mesas, sem ca.-
deiras, sem camas, sem pão, sem carne fresca e sem ba.-
tatas, sem vinho ou cerveja, na humilde choça, - "das
Feuer brennt auf dem Herde Tag und Nacht" (16)
- como si os pioneiros magníficos desejassem, na con,
· servação incansavel da chamma na lareira, projectar o
ardor da sua fé constructora atravez das gerações, que
souberam recolher e augmentar, no brilho desta cidade,
a pequena labareda accendida pelo animo dos avós .

• ••
Viveu Fritz Müller 34 annos em ltajahy, 11 em
Desterro : basta isso, diz Alfred MUiier, para ver como
andou errado E. Haeckel propondo que se o designasse
em sciencia sob o nome de Fritz Muller - Desterro,
distinguindo.-o de outros tantos Müller notaveis na bi,
bliographia allemã.
Por volta de 1850 havia em Desterro um colJegio
de jesuítas, fechado em 52, quando a febre amarelfa
assolou a provinda, matando sete dos padres. Em 1856
fundou a Assembléa Provincial o Lyceo, sendo Fritz
MUiier convidado para Ieccionar mathematica. Abriu.-
se o collegio em 57 ; e como se recusasse a servir de Di,
rector, para ter tempo de vaguear, estudando a fauna
das lindas praias da ilha, foi dirigir o estabelecimento a
seu compatriota Becker, jurista, por elle indicado.
' .
Ensaios Brasilianos 21

João José Coutinho era presidente da Provinda.


O elogio que faz da sua personalidade o severo Fritz
Müller é um titulo de gloria para o nome desse admi.-
nistrador, cujos serviços o naturalista aponta minu.-
ciosamente. Dirigia tudo com o amor e o interesse do
chefe de uma grande familia, provendo ás necessidades
materiaes e culturaes do seu povo, economizando .. lhe
a fortuna e os bens. E ainda achava tempo para ouvir,
uma ou outra lição, no instituto de ensino que era um
dos seus desvelos.
Nenhum mestre foi mais querido dos seus alumnos
do que Fritz Müller ; não se apartava da natureza, e
nada prende mais as jovens intelligencias do que a pro.-
pria vida. Em sciencias naturaes, quem não mostra
- não ensina.
Quando se recorda a biographia de Fr. Müller, ha
uma circumstancia que é preciso lembrar, porque ella
explica, se não justifica, alguns factos que lhe entriste.-
ceram o fim da vida. Assim, eUe nunca permittiu que
as suas filhas frequentassem a escola elementar da Ca.-
pital da Provinda, instituto, na verdade, bem modesto.
Da Allemanha vinham todos os livros de que os
pequenos precisavam. Para eUes Fritz Müller compoz
algumas ingenuas poesias : O vagalume, a paca, as for.-
migas, etc. Na esperança de contribuir para o mais fa..
cil ensino da arithmetica, imaginou um systema de fi..
guras, formadas por pequenos cubos, reproduzidos na
exhaustiva obra de Alfred Moller.
Quatro annos depois da inauguração do Lyceu a
gangorra ministerial, que fazia o encanto dos mexeri.-
cos politiqueiros dos nossos avós, desandou para os con.-
servadores. Subiram os liberaes e o grande governador
João José Coutinho foi afastado do posto que tanto
nobilitára.
Seu successor não agradou a Fritz Müller. Em 1861
dizia elle : Com que boa vontade iria eu dependurar no
22 E. Roquette Pinto
cabide as minhas funcções de mestre para pegar de no,
vo no cabo do machado l "Am Itajahy lebe ich unter
Deutschen". (17).
Em 1864 o governo liberal entregou novamente o
collegio aos jesuitas, declarando..se "avulsa' a cathe.-
dra de Fritz Müller. A floresta amiga o esperava. Seu
irmão Hermann e seu amigo Haeckel tentaram..no para
regressar á Allemanha; era tarde I Quem póde livrar.-
se do encanto desta nossa terra, uma vez que nelle se
prende~?
O grande momento, na existencia do sabio, foi
aquelle tempo em que viveu no Desterro. Ali nasceu a
obra scientifica de maior nomeada entre os seus admi.-
raveis trabalhos.
Voltando para Blumenau, onde desempenhou mo,
desto cargo publico provincial de 1867 a 1876, retoman,
do embora o machado, elle inaugurou uma serie de
observações e estudos que assombraram, pelo numero
dos factos novos registrados e pelo espírito critico ali
presente. ·
São dessa época (1871) certos conceitos de Fritz
MUiier que precisam ser citados, para que não se leve
á conta de gratuita mal querença muito do que lhe fi,.
zeram mais tarde, ainda que seja penoso recordar ai,
guma~ das suas palavras :
"Der Süden des Landes, Rio Grande, Sta. Catha;.
rina und Paraná, kõnnten ein vorwiegend deutsches
Land werden, wenn die deutsche Regierung nicht,
anstatt die Auswanderung hierher zu fürdem, ihr alie
mõglichen Hindernisse in den Weg Iegte. Leider lasst
sich die Sache in der Presse nicht erortem ; wir kõn.-
nen nat;ürlich nicht offen sagen, welche Aussicht eine
zahlreiche deutsche Einwanderung hatte, in Südbra.-
silien zur herrschenden Macht zu werden und das ver.-
kommene romanische Element eints ganz aus demsel.-
ben zu verdrangen. Dass eints, freilich nicht .zu unse--
Ensaios Brasilianos 23
ren Lebzeiten, im aussertropischen Brasilien die ger.-
manische Rasse herrschen wird, darüber habe ich nicht
den geringsten Zweifd ; wollte Deutschland, so kõnnt.-
en es die Deuschen sein ; leider ist wahrscheinlicher,
dass es Englãnder oder Yankees sein werden". (18).
O vaticinio não se cumprirá I Deve ser perdoado a
Fritz Müller porque . vivendo ás voltas com os seus
crustaceos e as suas orchideas - andou sempre longe
do povo que já tinha, naquella época, desdobrado aos
olhos do Mundo o mappa das Bandeiras, e começava
a traçar a epopéa da borracha nos charcos da Ama.-
zonia . . .
Desde moço, porém, elle não sabia calar o pensa.-
menta. Isso que ahi está, nessa carta. . . era, segura ..
mente, linguagem corrente dos seus labios. Não é de
admirar que alguns desaffectos, creados pela sua fran ..
queza, transmittissem aquellas opiniões aos dirigentes
da Republica, que em 1889 encontrou Fritz Müller
funccionario do Museu Nacional, nomeado em Outu.-
bro de 1876. ·
No posto de naturalista viajante permaneceu até 5
de Junho de 1891, data em que pediu demissão do seu
cargo - "por não poder mudar a sua residencia para o ·
Rio de Janeiro" (19).
Não ha fabula que não se tenha inventado a propo.-
sito desse lamentavel acontecimento. De uns ouvi que
Fritz Müller foi demittido a "bem do serviço publico" ;
de outros, que, uma vez demittido, soffreu grandes pri.-
vações e passou a andar descalço, qual misero mendigo .. .
E tantas coisas mais.
A verdade é que as attitudes religiosas e até mesmo
administrativas, clamando com desassombro (mit schar--
fen Worten) contra o que lhe parecia irregular; a sua
intransigente obsessão do Deutschtum, que não podia
ser perdoada ; a sua inquebrantavel independencia
moral ; o seu gosto pela ampla liberdade, e mesmo os
24 E. Roquette Pinto
seus prlncipios philosophicos - que o levaram a aben..
çoar o cabo do machado - tudo isso, explica o inciden..
te. Fritz Müller perdeu o emprego em 1891. No en..
tanto, encontraise no livro admiravel de A. MõJJer,
um seu optimo retrato de 1886, da época mais prospera
e feliz da sua vida - quando os scientistas de toda a
Terra fixavam os olhos na humildade da sua casa de
Blumenau, no tempo precisamente em que tinha o seu
lugar no Museu . . . Em 1886 Fritz Müller andava em
camisa, bolsa de couro a tiracollo, pés descalços, a mão
direita apoiada num cajado, o chapéo desabado posto
ao alto da cabeça. Era o seu uniforme de sabio e ope.-
rario - as duas coisas que sempre quiz ser na vida. Eis
ahi como se desfaz a lenda.
Digamos hoje a verdade, tal e qual eUe queria . .•
Não foram condescendentes com o sabio os nossos
governantes. Por tudo quanto eJie representava de
grandeza moral e intellectual, deviam ser toleradas as
suas ideias nacionalistas e as suas criticas impiedosas.
Umas e outras não fizeram nenhum mal ao paiz. Na
AJJemanha, e no Brasil, eJJe soffreu as consequencias
do seu indomavel temperamento.
Cercado pela veneração dos sabios do Mundo, de.-
pois das attribulações passadas durante a guerra civil
de 1893, recebeu Fritz Müller a 14 de Dezembro de
1894, em commemoração do seu doutorado na Univer.-
sidade de Berlin, uma honrosa mensagem do Collegio
dos Professores. ·
A 21 de Maio de 1897 morria, em Blumenau, o na-
turaHsta que Darwin chamou: "Príncipe dos Obser-
vadores", e nós consideramos genial dignificador da
Especie Humana.

• ••
. ' ,. ,

Ensaios Brasilia,nos 25

Pela sua originalidade e alcance philosophico, pela


repercussão que teve, a obra de Fritz Müller é um dos
maiores monwnentos scientificos creados na America
do Sul.
Seu nome não é citado correntemente - como o
de Martius e o de Saint.-Hilaire ou o de Bates - por
dois motivos. Fritz Müller espalhou os thesouros, re.-
colhidos na livre natureza, - por innumeras revistas
scientificas e publicações technicas, nada populares ;
e, depois, a maior parte das suas observações pertence
ao que ha de mais especializado em materia de biologia.
Só um pequeno livro publicou, opusculo de algu.-
mas dezenas de paginas datado de "Desterro 7 de Se.-
tembro de 1863" - é o "Für Darwin", livrinho de fa..
ma universal.
"Für Darwin", porque?
O autor informa : depois de ter lido a "Origem das
especies", pareceu.-lhe que o melhor meio de apreciar
a theoria de Darwin seria appllcal.-a a um certo grupo ·
animal e verificar si ella seria capaz de explicar, de mo.-
do acceitavel, a descendencia dos typos.
A classe dos crustaceos foi a escolhida por diffe.-
rentes motivos.
Mas, tentando distribuir as formas de modo a or..
ganizar uma provavel arvore genealogica do grupo,
Fritz Müller cedo reconheceu que havia muitas falhas
no que se sabia então quanto ao desenvolvimento em.-
bryogenetico desses animaes.
A primeira indicação decisiva encontrada em fa ..
vor da theoria de Darwin foi, no dizer do autor, a des.-
coberta da forma larval chamada Nauplius nos crusta.-
ceos superiores (malac6stracos). Porque, raciocina elle,
si os crustaceos são derivados de uma só forma ances.-
tral, todos devem ter passado pela mesma forma embryo--
naria.
26 E. Roquette Pinto
O encontro do Nauplius do camarão ...:__ eis o pri.-
meiro facto Jür Darwin. Talvez não seja inutil lembrar
que _a larva inicial dos crustaceos superiores era, até
então, a forma Zoéa. Nauplius era tido como larva dos
crustaceos inferiores (entomóstracos). Hoje sabemos
que, nos malac6stracos, a forma Naupliu~, em geral,
se passa dentro das membranas do ovo ; por isso, até
Fritz Müller, davam.-na como inexistente.
i O segundo facto articulado "pro--Darwin" foi oh.-
tido da comparação dos appendices em crustaceos ma.-
chos e femeas de certos generos. São mais desenvolvi--
dos nos machos, os quaes, além disso, possuem orgãos
olfactivos muito maiores. No genero Tanais, os machos,
antes da puberdade, assemelham--se ás femeas ; logo
depois metamorphoseiam--se e, d'ahi por diante, diz
Fritz Müller, parecem viver sómente para amar. In.-
teressante, porem, é que então se processa nelles uma
differenciação : em uns, desenvolvem.-se enormes patas
prehensoras e augmenta. .se o numero de filamentos 01 ...
factivos ; em outros, conservam. .se pequenas as patas,
mas os filamentos olfactivos crescem de numero extra.-
ordinariamente. Tanais são facilmente observavefs
num vaso de vidro. Apezar de ter examinado muitas
centenas de individqos Fr. Müller não encontrou nun . .
ca dimorphismo igual nas femeas, nem tão pouco for.-
mas intermediarias masculinas.
"Para os da velha escola, diz elle, a occurrencia de
duas forrrias masculinas seria uma simples curiosida.-
de". Um capricho da creação: machos de mais olfacto
e machos de maiores patas prehensoras (pinças)".
A selecção darwiniana, aos olhos de Fr. Müller ex.-
plica, porém, claramente o caso. Iniciada a variação
dos machos, ficaram em presença, pelo desappareci.-
mento dos outros menos aptos, os dois grupos : olfac.-
tivos e prehensores. Entre elles segue a lucta, que, ac.-
tualmente, parece estar caminhando para a victoria
Ensaios Brasilianos 27

dos prehensores, visto que o naturalista contou cerca


de cem delles para um olfactivo.
\Tambem na respiração aerea de crustaceos que nor.-
malmente respiram dentro d'agua, outros factos apon.-
tou o autor de "Für Darwin", favoraveis á doutrina.
Comparando a estructura do coração nos amphi.-
podes e nos isopodes, elle observou que o orgão tem
forma constante nos amphipodes, e grandemente va.-
riavel nos isopodes, ordens muito proximas. O pheno.-
meno seria facilmente explicado por meio de algumas
palavras gregas, diz o mestre. Como, desgraçadamen.-
te, esqueceu o grego. . . procurou outra explicação, na
natureza.
Conclue que o coração dos amphipodes deve ser a
forma primitiva.
Mas não é possivel, evidentemente, acompanhar
todo o celebre livrinho.
Não desejo, porem, passar adiante, sem recordar
as mais conhecidas das suas paginas, aquellas em que
F. Müller estabeleceu o principio que Haeckel chamou
lei biogenetica Jun.darnental : a ontogénese repete a phy.-
logénese. De facto, esse principio é muito anterior a
Fritz Müller. Elle mesmo cita seu mestre J. Müller
em 1844, e expressões de Agassiz (1856), em que a ideia
se encontra latente, embora tenham sido, ambos, ad.-
versarios formaes do Darwinismo. Por outro lado os
francezes attribuem sempre a mesma lei a Serres, pro.-
fessor do Museum de Paris em 1839.
Ninguem como Fritz MUiler poz em f6co a referida
lei, com tanta energia e tão ricos documentos. No seu
livro, ella se encontra de diversas maneiras, sendo a
seguinte a mais clara :
"No curto período de poucas semanas ou mezes,
as formas cambiantes do embryão ou das larvas farão
passar diante de nós, uma figura mais ou menos com.-
pleta, mais ou menos exacta, das transformações sof.-
28 E. Roquette Pinto
fridas pela ~ecie no correr dos tempos, até attingir
ao seu estado actual".
Um eminente mestre, que tivemos o prazer de ou.-
vir pessoalmente, ha tempos, o Prof. Cauilery, no pre.-
facio escripto para o Tratado de Embryologia Com.-
parada dos Invertebrados, de C. Dawydoff, escreveu
que o mais importante da obra de Haeckel é o commen.-
tario, por elle feito, do opusculo Für Darwin, de Fritz
MUiier. Não é preciso mais, para que se possa avaliar
o wlto do naturalista de Blumenau. Houve, então,
no mundo dos biologos, um enthusiasmo louco pelas
conclusões de Fritz Mü1ler, pedras basicas do transfor.-
mismo. De 1870 a 1900, "uma orgia phylogenetica",
na phrase de Caultery. Em 1900, com o surto da gene.-
tica e a critica ponderada, as coisas começaram a mu.-
dar. Actualmente não é possivel affirmar que já nin.-
guem acredita na lei biogenetica. Mas a verdade é que
foi reduzida a significação bem mais modesta. Um
serviço, porem, e1la prestou, ou antes Fritz Müller
prestou, por seu intermedio á sciencia : foi o estimulo
colossal, que a esperança de verificar a sua exactidão,
levou a todos os biologistas. Durante aquelle tempo,
em que foi tida por dogma, p6de dizer.-se que to~a a
embryologia de vertebrados e invertebrados passou ao ·
dominio do conhecimento objectivo. Essa, é uma das
glorias que pertencem ao grande pioneiro das mattas
do Itajahy.
A relação dos trabalhos scientificos de Fritz Mül.-
ler, publicados de 1844 até 1899 (dois annos depois do
seu fallecimento), abrange 248 memorias ou monogra.-
phias. Faltam noticias de mais 11 originaes, até hoje
perdidos. Tudo mais está reunido na obra monumen.-
tal de Alfred Mõller. Não são muitas as especies novas
descriptas por Fritz Mü1ler. A avalanche de observa.-
ções, contidas, nos seus trabalhos, é quasi toda de veri.-
ficações biologicas de natureza philosophica, anato.-
Ensaios Brasilianos 29

mica, physiologica ou ecologica. A taxinomia não o ten.-


. tou jamais.
Foram os invertebrados, principalmente, o obje.-
cto mais constante dos seus estudos; nas plantas, foi
a biologia floral o que mais o preoccupou. Não é ra,
zoavel repetir, aqui, o nome de todas as publicações
scientificas da Allemanha, da Inglaterra ou da França,
em que appareceram as suas notas. Elias estão ao al.-
cance de qualquer estudioso, nos volumes editados por
Alfred Mõller. Convem, todavia, fazer uma excepção.
E' a que se refere aos "Archivos do Museu Nacional"
unica publicação que durante longos annos o mundo
scientifico recebeu do Brasil, echo solitario da cultura
mental da Sul America no concerto dos sabios.
Fritz Müller ali publicou, desde 1877, algumas das
suas mais notaveis descobertas. E si mais não nos deu,
foi porque a falta de recursos necessarios ás carissimas
impressões scientificas, sempre difficultou a regulari,
dade da publicação. Um dos trabalhos de Fritz Mül,
ler só appareceu quasi dez annos depois de entregue.
Felizmente a Republica tem pensado um pouco mais
neste assumpto. Embora com o orçamento ainda mui,
to menor do que o necessario, para attender a tudo
quanto lhe incumbe, vae hoje o Museu publicando,
regularmente e dignamente illustrados, os seus Ar.-
chivos, Boletins e outros opusculos.
O primeiro trabalho de Fritz Müller, enviado de
Santa Catharina para a Europa, foi a nota sobre as
planarias terrestres, publicada em 1856.
Successivamente, foram, d'ahi por deante, appa.-
recendo documentos de uma actividade assombrosa,
memorias e monographias sobre os Annelideos e as Me.-
dusas, uma das quaes elle denominou "Tamoya" ; so,
bre os Polypeiros, sobre uma larva de brachiopode, so.-
bre o systema nervoso colonial da Serialaria coutinhii,
bryozoario dedicado ao Dr. João José Coutinho, Pre.-
30 E. Roquette Pinto
sidente da Provinda, homem a quem devia, escreveu
Fritz Müller, a possibilidade de realizar seus trabalhos
scientificos. Depois outras mais sobre o esperma de
um mollusco (Janthina), sobre uma nova esponja de
aciculos estrellados, que elle chamou Darwinella aurea,
sobre as plantas escandentes. No desenvolvimento phy. .
logenetico de taes plantas, julgou Fritz Müller que os
estagias successivos foram 5, sendo o primeiro o das
que se supportam a si mesmo e o ultimo o das providas
de gavinhas persistentes. A estructura do lenho nos cau . .
les voluveis, as mutações, naquelle tempo não assim
denominadas, nas begonias e nas orchideas, o polymor. .
phismo das pontederias, os ninhos dos cupins, as abe...
lhas brasileiras desprovidas de ferrão - formam assum . .
pto de outras tantas paginas maravilhosas de minucia
e espirita philosophico. Uma abelha, descreveu elle, de
habitos mui curiosos. A exemplo do que fazem certas
.formigas, a Tataira ou abelha de Jogo (Trigona sp.) -
serve. .se de uma larva de Membracis como "Vacca lei . .
teira", aproveitando. .se de certa secreção adocicada que
o bichinho produz.
Tambem não quero deixar no esquecimento algu ...
mas notas de Fritz Müller sobre os Sambaquis de S.
Catharina, por elle classificados em tres typos :
1 - Sambaquis formados por conchas de diver...
sas especies existentes no mar proximo (Venus, Car,..
dium, Lucina, Ostrea, Purpura, Tritonium, Trochus).
2 - Sambaquis quasi exclusivamente formados de
berbigão mui commum nas aguas salobras das lagoas.
3 - Sambaquis quasi exclusivamente formados de
Corbula sp. mollusco jamais por elle encontrado vivo.
Todos os praieiros que interrogou, grandes conhecedo...
res da região, affirmaram que estes Corbula não exis,..
tem actualmente, vivos em nossa costa. Destes sam. .
baquis de Corbula retirou Fritz Müller fragmentos de
'
Ensaios Brasilianos 81

cranios humanos, de parede ossea muito fina. Nos


cranios dos outros sambaquis, os ossos são tanto, ou
mais espessos que os nossos proprios.
Ando muito enganado, ou então, de futuro, as sin.-
gelas notas de Fritz Müller servirão immensamente
para a resolução do problema dos Sambaquis.
Seus notaveis trabalhos sobre mimetismo começa.-
raro com a nota "Einige Worte ueber Leptalis", publi-
cada em 1876 ; mas foram, mais tarde, abundante-
mente documentados. Actualmente, a influencia da
lucta pela existencia na formação de novas especies,
não tem mais o prestigio antigo . . .
De sorte que todas as velhas explicações do mi-
metismo, propostas nos "tempos heroicos" do trans-
formismo, perderam quasi o seu valor. O espírito fi-
nalista, que sempre foi a grande sombra do evolucio-
nismo, acabou prejudicando o systema. Elle não mor-
reu, de certo. Hoje, mais do que nunca, o tradicionalis-
mo creador não encontra adeptos sinceros entre os eman-
cipados. Mas a verdade é que já ninguem mais accei-
ta, sem maior exame, explicações teleologicas.
Sejam de Darwin, de Wallace, de Bates ou de
Fritz Müller, as theorias do mimetismo já não são mais
o que dantes foram.
_ Este não é o lugar proprio para tratar minuciosa.- .
mente do caso. Mas sempre quero dizer um intimo
pensamento a respeito.
· E' que quasi nada sabemos, ainda hoje, das acções
bio-chimicas formadoras, hormonicas, na maior parte
dos seres vivos, mormente nos Invertebrados, que são
precisamente, os . seres em que mais facilmente se veri-
fica a homocromia e o mimetismo. Que orgão, ou que
grupo cellular representa, no crescimento das borbo-
letas, o papel do thymus ou da thyreoide?
E ' cedo portanto para architectar explicações.
82 E. Roquette Pinto
Seja como fõr, coube a Fritz Müller descobrir um
novo typo de mimetismo, que hoje tem o seu nome.
Müllershe Mimicry ou mimetismo circular. E' o caso
em que as duas especies em jogo, a que imita e a imita,
da . . . pagam-se na mesma moeda : imitam,se mu,
tuamente (Ringmimicry).
No primeiro trabalho publicado nos Archivos do
Museu Nacional, em 1877, sobre a significação biolo,
gica das flores versicolores, Fritz Müller começa fazen,
do notar a pouca importancia que os botanicos do tem,
po {·. . . e os de hoje?) dão á coloração das corolas.
O trabalho confirma nas flores brasileiras de Lan,
tana, as antigas observações de Delpino (de Genova),
apontando as relações das cõres do periantho com cer,
tos insectos.
As maculas sexuaes das azas das borboletas, os or,
g~os odoríferos desses insectos, estudos sobre a grumi,
cha (Phryganideo), sobre as casas dos Trichopteros, so,
bre a semelhança dos fructos com as flores, sobre as for,
migas das lmbaúbas (Azteca), sobre o paraheliotropismo
de certas plantas do Brasil, sobre a caprificação, sobre
a phyllotaxia . . . constituem acervo extraordinario, como
nenhum outro naturalista, dos que trabalharam no Bra,
sil, conseguiu reunir em material original.
Ha, porém, mais e talvez melhor.
E' a fauna das Bromeliaceas - uma das interes,
santissimas descobertas de Fritz Müller.
Nos vasos esverdeados que as folhas das bromelias
compõem, junta,se agua sufficiente para manter a
vida e permittir a evolução de muitas formas. Sabe,se,
agora, que são optimos viveiros de mosquitos. Nes,
ses pequenos aquarios, suspensos entre os ramos das
grandes arvores, Fritz Müller descobriu, em 1878, ani,
maes que ninguem seria capaz de imaginar ali tivessem
fixado domicilio. Entre elles uma pequena rã, ~uja
Ensaios Brasilianos ·: , ·
33

· photographia mandou a Darwin em 1879, femea que


carregava no dorso os ovos em via de desenvolvimento.
Em todo caso, insectos ou rãs comprehende,se, se..
jam encontraclos naquellas alturas. Mas . . . um crus..
taceo de typo fossil? Pois foi essa a grande, a enorme
surpreza que teve o mestre. Deixemos que elle mesmo
conte a historia desse maravilhoso encontro, tal como
se acha nos Archivos do Museu Nacional :
"Já nos tempos geologicos mais remotos, de que
nos ficaram restos fosseis, os Cytherideos - (crustaceos)
- achavam,se representados por numerosas especies,
e desde então elles se têm mostrado frequentes até
hoje. As especies fosseis viviam todas no mar, sendo
que ainda hoje estes pequenos crustaceos encontram,se
em todos os mares.
· Na agua doce, povoada pela familia alliada dos
Cyprideos, elles são excessivamente raros ; ainda não
s6be a meia duzia o numero de especies observadas nos
Estados Unidos, na Inglaterra e na Scandinavia. A
essas pouquíssimas especies da agua doce vou juntar
mais uma, que ha pouco achei naquelles tanquezinhos,
que nas arvores dó matto virgem formam,se entre as
folhas das Bromeliaceas parasitas. Ella ali vive em
abundancia e quasi que não ha Bromelia sem a sua co,
lonia de Cytherideos; é provavel que, com as Brome..
lias, ella se extenda por todo o Brasil.
Alem de ser notavel por· esse domicilio singular,
que ella habita e por ser a primeira especie de agua do..
ce achada na America do Sul, a especie das Bromelias
é interessante tambem pela sua forma insolita. As
conchinhas bivalvas das numerosas especies não só da
familia dos Cytherideos, como de toda ordem dos Crus..
taceos Ostracodes costumam ser comprimidas lateral.-
mente, tendo o feitio de um mexilhão ou de um feijão
preto ; na especie das Bromelias, pelo contrario, a con.-
chinha assemelha,se a um grão de café, sendo a largura
34 E. Roquette Pinto
muito maior do que a altura, a face dorsal convexa,
a ventral plana e percorrida por um sulco longitudinal.
Por este feitio da conchinha a especie se afasta de todos
os Ostracodes da actualidade atê agora descriptos e só
entre as especies fosseis mais antigas ha uma especie
muito semelhante. E'1:,.a Elpe .-pinguis, descoberta por
Barrande nas camadas silurianas da Bohemia ; desta com
effeito, a especie das Bromelias parece ser uma copia fiel
em escala cinco vezes menor.
Foi por esste motivo que lhe dei o nome de Elpidium
Bromeliarum". Depois de descrever o animal com as
minucias e a segurança que eram dons individuaes,
Fritz MUiler continua : "O Elpidium ê quasi o unico
entre os numerosos visitantes e habitantes das Bro.-
melias, que nellas nasce e morre. Muitos animaes vão
visitar as Bromelias, seja para se agasalharem, seja
para se nutrirem das substancias organicas, que entre
as suas folhas se accumulam, seja emfim para ali depo.-
sitarem os seus ovos. Esses visitantes passageiros são
variadíssimos ; ha entre elles Vermes Turbellarios
(Geoplana), Crustaceos Isópodes (Philoscia), Arachni.-
deos, Myriapodes, muitos Insectos, Batrachios (pere.-
rêcas) e atê cobras. .
Outras especies vivem lá como larvas, sahindo de.-
pois de concluida a sua metamorphose, como sejam as
pererêcas e varios insectos orthopteros (Agrionideos),
Neuropteros, Trichopteros, Coleopteros (Paomideos) e
Dipteros (Culicideos, Tipulideos, Syrphideos e outros).
Nem para aquelles visitantes nem para estas lar.-
vas ha difficuldade alguma em explicar a sua estadia
nas Bromelias. Com o Elpidium o caso ê differente.
Não podendo esses pequenos Ostracodes migrar de uma
Bromelia e muito menos ainda de uma arvore a outra,
como ê que não obstante isso podem elles estabelecer
novas colonias?
·.,

Ensaios Brasilianos 35
Elles não poderão fazer as viagens necessarias si.-
não adherindo ao corpo de qualquer visitante das Bro.-
melias.
Apezar de assim parecer abandonada ao acaso a
sua transmigração, ella se faz com a mesma regulari.-
dade com que o palieµ das flores é transportado de uma
planta a outra pelos insectos pronubos, como prova o
facto de quasi não haver Bromelia sem a sua colonia ·
de Elpidium".
Transcrevi, muito de proposito, estas linhas de
Fritz Müller. Ellas revelam um mundo... Evocam
as grandes transformações soffridas pela Terra, no va.-
zio immenso das idades ; levam a gente ao seio da na.-
tureza fervilhante da vida occulta nos pequenos tan.-
ques, suspensos nos galhos da mattaria. Suscitam o
pensamento profundo que envolve a origem das coi.-
sas ; são paginas que fazem pensar. . . E, no entanto,
para isso, o mestre não quiz outra eloquencia, que não
fosse a da singela narração do que encontrou na floresta.
1 ·:
Nem uma s6 imagem accessoria elle. poz naquelle
relato, tão simples. O grande campeador da verdade
não precisou de mais ; soube ver e narrou o que viu.
Ainda hoje, aquella simplicidade commove; assim as
forças da natureza agitam a alma dos homens sinceros.
Finalmente, em um tomo de 663 paginas, reuniu
Alfred Mõller as cartas de Fritz Müller. E' um deli.-
cioso volume. Sem ellas, a obra do naturalista ficaria,
muitas vezes, incompleta. Porque elle, em muitas, poz
minucias, apontamentos, que completaram algumas das
suas memorias. As mais notaveis foram trocadas com
Darwin, Weismann, Agassiz, Haeckel e Hermano Müller.
Toda a existencia de Fritz Müller estâ documenta.-
da naquella correspondencia. Ficamos sabendo taro.-
bem a historia do rincão em que morava. Assim nos
informamos de que, no anno de 1866, as jacutingas fo ..
raro numerosíssimas; em Itajahy, mataram-se 50.000... ;
36 E. Roquette Pinto
que o discipulo mais intelligente de Fritz Müller (20)
- era um negrinho, tão bom alumno "como os melho--
res lá do clima frio" - dizia elle ; que muitas plantas
têm movimentos heliotropicos ; que em 1865, elle e
Darwin trocaram os proprios retratos, entre expan,
sões de mutua e profunda estima ; que Darwin con,
siderou as opiniões de Agassiz "as of any value ;" que
o autor de Origem das Especies não cessava de pedir a
Fritz Müller para guardar todas as suas notas, afim de
fazer um "wonderful book" ; que Fritz Müller teve a
pachorra incrível de acompanhar, minuto a minuto, a
fabricação dos alveolos das abelhas Trigona e Melipo,
na, marcando, nos desenhos, a ordem em que os esca...
ninhos iam surgindo do trabalho das insignes ceroplas...
tas ; que elle se queixou, amargamente, do Governo
da Republica, quando este acceitou o seu pedido de de,
missão ; que resolveu applicar exclusivamente, em tra,
balhos scientificos, a somma de 360 Marcos recebida
de Haeckel em 1895 ; que do proprio Museu Nacio--
nal, em grave crise naquelle tempo, elle se lembrava
com tristeza .. .
Que importa?
Só existe, de facto, um julgamento seguro, firme,
calmo e valioso, depurado pelas ondas frias do tempo -
é o juízo das gerações. Nós aqui estamos, esquecidos
das asperzzas de muitas das suas opiniões, para honrar
o seu grande nome, venerar a sua vida transbordante
de belleza.
De tudo o que elle foi, e mesmo de tudo quanto
soffreu - nada se perderá nesta nossa terra do Brasil,
onde a descrença dos que tem a alma envelhecida não
ha de envenenar, jamais, o coração dos que têm fé.
Fritz Müller pertenceu á linhagem da gente forte,
que trouxe privilegias de optima herança. Formou
entre os primeiros desbravadores. Foi, por isso, apezar
Fritz MOllars Wohnort
und flkursfonsgeblel
1: 1000000

e
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o
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Excursões naturalisticas de Fritz Miiller.


(Apud A. Mõller)
38 E. Roquette Pinto
de "puro allernão", dos que n6s temos prazer em venerar
pelos seculos af6ra. Façam.-se bras'lianos todos aquelles
que sentirem o coração tocado pelo rhythmo das nossas
cachoeiras ; mas não consideramos indispensavel o feliz
acontecimento para que os outros honestos e dedicados ao
progresso da nossa patria, mereçam a nossa estima sem
restricções.
No dia em que for mister escolher uma figura para
representar o colono, em tudo quanto essa palavra con.-
tem de fé; de ardoroso interesse pela terra, de coragem
e de firmeza - não é preciso buscar outro typo, entre
tantos que existem no Brasil - engrandecidos pelo tra--
balho e engrandecendo a nação ; ahi o temos nesse
homem raro, que conhecia o segredo de manusear as
frageis borboletas com os dedos callosos, que o macha.-
do e o enxadão jamais conseguiram inutilizar para as
delicadezas do microscopio. Sua vida é um constante
exemplo de honestidade para comsigo mesmo, de mei--
guice e ternura, para com os seus, de trabalho sem des.-
canço para a cultura do espirito humano. Ha, na suá
historia, ao mesmo tempo simples e grandiosa, numero--
sos lances, que um dia serão traçados em um livro en~
cantador, para delicia da gente pequenina, sedenta de
aventuras, e sempre disposta a admirar os grandes.
A gloria de Fritz Müller acha.-se para sempre liga..
da á historia da natureza deste paiz e cérca de brilho
immortal a raça dos que vieram pelejar aqui a batl;llha
da riqueza honesta. ·
Elle · serviu ao Brasil, terra natal da maior parte
das suas filhas e engrandeceu a sciencia, com a modes.-
tia e o desinteresse de uma abnegação de illuminado.
Tudo quanto fez vive, luz perenne das verdades que
o tempo não desarticula . .
Ensaios Brasilianos 39

NOTAS

(1) "Herdamos do nosso pai o gosto pela natureza viva".


(2) "Si não fosse naturalista, seria linguista" .
(3) "0 estudo meticuloso de um s6 animal dá mais gos-
to, do que ver todo um museu zoologlco".
(f) "Aliás, o que exponho, sem jurar nas palavras de nin-
guem, e sem compilar as descobertas de outrem, é o que eu mes-
mo investiguei, achei e observei por diversas vezes e em diverso
tempo" .
(S) "Sem liberdade, não ha verdade nem virtude".
(6) "Escravo não quero ser, nem posso I"
(7) "Sim. E ' tão facil dizer o Adeus I Mas é tão difflctl
supportal-o I"
(8) "Odeio a dubiedade que tem nos Jabios uma crença e
outra no coração". ·
(9) "Sempre que tiver de falar, hei de dizer a verdade". '
(10) "0 pensamento deve ser livre como a respiração".
(11) "São os primeiros lotes da Colonia Blumenau, que
conta 12 familias".
(12) "Mais bellos do que muitos brasileiros e ainda multo
mais do que os negros".
(13) "Quasi tudo Isso, tu o deves ao teu proprio trabalho ;
com as proprias mãos, arrancaste ã matta o chão da tua casa".
(14) "Um latim de ossos quebrados".
(IS) " . . . especlalmente com a orientação do Doutor ... "
(16) "A fogueira ardia no chão, dia e noite". ·'

(17) "Nas margens do ltajay vivo entre allemães".


(18) "0 sul do paiz (Rio Grande do Sul, Santa Catharlna
e Paraná) - poderia tomar-se territorfo preponderantemente alle-
mão, si o governo allemão, envez de promover a imigração para
aqui, não lhe oppuzesse estorvos de toda classe. Infelizmente não
é assumpto que se possa discutir na imprensa. De certo não pode-
mos dizer com franqueza que alcance teria uma numerosa imigra-
ção allemã, para que, no sul do Brasil, ella se tornasse o poder do-
minante e afastasse um dia, de todo, o elemento latino decaden-
40 E. Roquette Pinto
te. Não tenho a menor duvida de que, mais tarde, ainda que não
em nossos dias, no Brasil extra-tropical a raça germanica ha de do-
minar. Quizesse a Allemanha, poderiam ser os allemães, infeliz-
mente é mais provavel sejam os inglezes ou os yankees". (Carta
de Fritz Muller a seu irmão Hermano - 26 de Julho de 1871 -
A. Müller, 3.0 vol. pags. 93).
(19) "Havendo o Snr. Ministro e Secretario de Estado dos
Negocios da Instrucção Publica, Correios e Telegraphos resolvi-
do que não tenham mais residencia f6ra dessa Capital os Natu-
ralistas Viajantes do Museu Nacional, como me communicaes por
officio hontem recebido, devo desde hoje considerar-me demittido
por não poder mudar a minha residencia para o Rio de Janeiro.
- Saude e Fraternidade - Blumenau, 5 de Junho de 1891 - Ao
Snr. Conselheiro Dr. Ladisláu Netto - Orno. Director Geral do
Museu Nacional do Rio de Janeiro. - (a) Frederico Müller".
(20) "Entre os meus discipulos deste anno o melhor, de
muito, é um preto de puro sangue africano ; comprehende facil,
mente e tem tal ancia de aprender qual aqui nunca encontrei e
que é raro mesmo no vosso clima fresco. Este preto representa
para mim mais um reforço da minha velha opinião contrária ao
ponto de vista dominante que vê no negro um ramo por toda par,
te inferior e incapaz de desenvolvimento racional por suas proprias
forças ; quando em apolo disto se allega que no seu habitaculo
não attingiu nenhum grau elevado de civilização e por isso se deve
de ter como incapaz della, esquece-se que ha dois mil annos pode,
' riam Gregos e Romanos ter dito o mesmo dos nossos antepassados.
Si Burmeister não encontrou nenhum interesse mais elevado no
seu trato com os negros, tambem elle não teria sido mais feliz com
os jornaleiros da Pommerania e do Mecklemburgo. Conheço, en,
tre pretos, uma quantidade de physionomias nobres e expressivas
como difficilmente se encontraria entre caucasianos vivendo em
situação social igualmente deprimida, e si essa situação em geral
condiciona uma grande imperfeição moral observei, comtudo, com
frequencia, bastantes vestígios indiscutíveis de um sentimento
profundo e delicado. Deve-se levar em conta a geral reluctancia
que tem o africano de nascimento em tratar com os brancos á res•
peito de sua patria. A' perguntas a ella referentes sempre obtive
respostas evasivas. Que elles se esqueçam sua patria rapidamen,,
te e se sintam melhor aqui, como affírrna Burmeister, não parece
ser caso geral ; ha coisa de um par de annos em Bahia, um grupo
que se libertára com as suas proprias economias, voltou para a Afri•
Ensaios Brasilianos 41

ca e eu mesmo vi uma vez a alegria de uma velha negra taciturna


á simples vista de um fructo de palmeira Africana, que um amigo
lhe trouxera. Sabido é que os filhos de brancos e mulatos ás mais
das vezes se caracterisam por suas aptidões intellectuaes emquanto
que as suas frequentes falhas moraes em geral se explicam pela sua
situação social". (Carta de Fritz MUJler ao Prof. Hermann MUI,
ler, em Lippstad - Desterro, 30 de Maio de 1860) ....:.... Obras Com,
pletas - 2.0 vol. pag. 19, lena - 1921.
O discipulo negro de Fritz MGller era Cruz e Souza, segundo
informação de Victor Konder. No entanto o poeta Cruz e Souza
nasceu no [)esteiro em 1863, conforme observa Emani Lopes.
CAPITULO li

T EM um encanto singular a vida scientifica de


Frei Leandro. Elle não ganhou renome por ar.-
rojadas explorações que tanto lustre deram a certos
botanicos do tempo. Não foi viajante cheio de requin.-
tes, como Alexandre Rodrigues Ferreira que, a cada
passo das suas extensas e perigosas caminhadas, reve,
lava as preoccupações philosophicas que o levaram a
estudar meticulosamente a choreographia dos índios,
como elemen~o sociologico de alta valia. Tambem não
foi autor de grandes e imponentes volumes, em que a
vida das plantas estivesse delineada, com as minucias
que della sabia tirar Silva Manso ou Arruda Camara.
Frei Leandro foi o sabio amigo das arvores. Seu nome,
nós não o devemos buscar nas bibliothecas ; seria inu,
til. Nos grandes parques, que são a maravilha da mi,
nha cidade ; nos troncos enrugados do Passeio Publi.-
CQ; nas frondes das jaqu~iras do Jardim Botanico ~
algo ha de existir, ainda hoje, do grande carmelita, se,
ja apenas a lembrança ou a saudade. Se as arvores re.-
cordam? Quem sabe? Bõse, um biologo hindú, o af.-
firma, e outros o confirmam que as arvores têm cora,
ção, como já o tinha advinhado o sentido apuradissimo
dos poetas. E, talvez, nervos tambem. Quem ousaria
dizer que as do Passeio Publico já esqueceram o seu
grande amigo? Elle assim viveu encantado no meio
das plantas. Numa terra em que cada homem tem des.-
. truido, pelo menos, um alqueire de floresta, em que
cada patrício tem, por systema, ou só por alegria, quei,
mado os bosques sem piedade, Frei Leandro deu o exem.-
Ensaios Brasilianos 43

plo magnifico, que ás crianças devia ser apontado: Vi.-


veu plantando.
A sua obra de botanico apenas suscita u,ma recor-
dação. Como trabalho de sciencia, o que deile ficou é
inegavelmente muito pouco. Esse mesmo, conforme o
seu illustre biographo ha tanto tempo indicou, falho e
até, ás vezes, errado. O que sustenta o seu grande nome,
o que explica e justifica a sua glorificação, foi o seu ine.-
xhaurivel carinho, pela vida das arvores, o seu admira.-
vel talento de mestre, professor popular de botanica,
sem igual neste paiz.
Estas são as faces mais impressionantes da sua exis.-
tencia, que mereceu um valioso estudo de outro nota.-
vel mestre que eu tive a ventura de conhecer no tempo
da minha adolescencia - José de Saldanha da Gama,
figura de relevo no Instituto Historico, onde, em 1870,
recordou com rara autoridade a biographia e os traba-
lhos de Frei Leandro. No entanto Saldanha da Gama ·
tratou mais do que, na vida do Carmelita, menos im-
pressão me faz. E não demorou bastante no que ella
tem de proprio e commovente ; o seu desvelo pelas nos-
sas boas amigas de sempre.
Barbosa Rodrigues, que muito depois o exaltou de
maneira particular, mais se interessou por esse lado da
sua bella e simples existencia.

• ••
O sabio carmelita era de Pernambuco, nascido, no
Recife, em dia que ninguem até hoje conseguiu preci-
sar do anno de 1778. Era filho de Jorge Ferreira da Sil-
va e de Thereza de Jesus. Na simplicidade santa do no-
me de sua mãe, bem se advinha o ambiente religioso
em que se educou, preparando os seus futuros dias con-
ventuaes. Sempre foi de má saúde. Descreveram-no,
' ,,
44 E. Roquette Pinto
os que o conheceram, como sendo alto, muito magro,
cabellos negros e pelle trigueira, olhos pequenos e bri.-
lhantes. Aos vinte annos, 5 de Maio de 1798, recebeu
Frei Leandro do Sacramento em Pernambuco, o habito
dos carmelitas. Terminados os seus estudos canonicos,
seguiu o frade para Coimbra, com a permissão de fre..
quentar a Universidade.
Que lhe podia dar o Brasil, ao espirito curioso de
saber, além do que já tinha no seu convento aprendido?
Em Coimbra, segundo uma nota que se encontra no pri.-
meiro volume da "Flora Brasiliense" - foi alumno de
Felix da Silva Avellar Brotero, o que tem a sua estatua
no Jardim Botanico da Universidade, autor da Phyto.-
graphia Lusitaneae, ousado simplificador do systema
natural de Linneu, mestre de larga fama, e por signal
tio do jurista J osê Maria de Avellar Brotero, lente da
faculdade de S. Paulo, de quem meu avô João Roquet.-
te Carneiro de Mendonça, algumas facecias nos conta.-
va do tempo em que ali fôra seu alumno, por volta de
1860, companheiro de Rangel Pestana quando redi.-
giam o jornaleco republicano - "Timbira".
Em 1806 Frei Leandro defendia these e concluia o
curso de philosophia, no qual, como em todas as uni.-
versidades dignas do nome, tinham e têm relevo as
sciencias naturaes.
Voltando á patria não veiu logo ao Rio de Janeiro,
como parece affirmar Saldanha da Gama. Porque,
em 1808, achamos o seu nome subscrevendo a memoria
sobre as nitreiras naturaes ou artijiciaes, trabalho es..
cripto no dizer de Sacramento Blake por incumbencia
da Junta do Governo de Pernambuco e enviada ao mi..
nistro D. Rodrigo de Souza Coutinho, a 22 de Abril
de 1808, talvez o primeiro documento scientifico rece..
bido na Côrte do Rio, onde D. João chegára a 7 de
Março.
Ensaios Brasilianos 45

E' certo, porem, que pouco depois · Frei Leandro


tomou conta da sua cathedra na Academia Medico.-
Cirurgica, na qualidade de lente de botanic~, onde o
encontramos, á vista dos documentos conseguidos por
Saldanha da Gama, desde 1815. Documentos precio.-
sos, unicos que se salvaram no incendio da Faculdade
de Medicin~, no tempo em que funccionou no morro
do Castello.
O curso official de botanica e agricultura dirigido
pelo padre,mestre, começava em Março e os exames
eram realizados em Dezembro, como se vê dos papeis
transcriptos por Saldanha da Gama.
Um delles menciona os discípulos do sabio carmelita.
"No dia treze de Março do anno de mil oitocentos
e quinze deu principio a aula de agricultura e botanica,
sendo lente Frei Leandro do Sacramento, e alumnos os
que vão abaixo mencionados, e para constar passei este
termo da minha letra e signal. Rio de .Janeiro, 13 de
Mai:ço de 1815. - Fr. Leandro do Sacramento".
Eram alumnos ordinarios : Flavio Joaquim Alves,
Josê Joaquim da Silva, Luiz Pereira da Rosa, Emílio
Manoel Moreira, Domingos Ribeiro G. Peixoto, Anto,
. nio Ildefonso Gomes. Eram voluntarias, ouvintes, como
se diz em nosso tempo : Estevam Alves de Magalhães,
Antonio Americo de Azevedo, Josê Bernardino de Sen.-
na, J osê Maria do Carmo, D. Francisco de Almeida e o
Visconde de Barbacena.
O outro, dos seis documentos assignados por Frei
Leandro, e encontrados por Saldanha da Gama, ê uma
acta de exames :
"No dia tres de Dezembro do anno de mil oitocen,
tos e quinze, tiraram ponto Antonio Ildefonso Gomes
para os seus exames do dia seguinte, e sahiu,lhes por
sorte - Plantação d' arvores floresteiras, sua conserva.-
ção, c6rte de madeiras, influencia dos bosques, tanto
46 E~ Roquette Pinto
na economia animal como na vegetal : em agricultura.
Em botanica : classes triandria, tetrandria, e gynari.-
dria. De que passei este termo para em todo o tempo
constar da minha letra em que me assignei. Frei Leandro
do Sacramento, lente".
O ponto era vastíssimo; em compensação foi sor.-
teado de vespera. . . e a prova começou ás oito horas
da manhã. Na linguagem dos botanicos de hoje esta.-
riam o.brigados os rapazes a tratar das gramíneas, cy..
peraceas, iridaceas, dipsaceas, cruciferas e orchidaceas.
Os dois alumnos eram, porem, estudantes de pôl.-
pa ; e foram ambos approvados, diz.-nos o frade, com
distincção, ou na língua da epoca : Nemine discrepante•
O nome do Visconde de Barbacena, citado na lis.-
ta dos alumnos voluntarios de Frei Leandro, confirma
a tradicção segundo a qual o prestigio das lições do fra.-
de - era retumbante. E tambem justifica o juizo que
os contemporaneos fizeram do Marq\Jez Felisberto CaJ ..
deira Brant Pontes, militar amigo das sciencias, intro.-
ductor da vaccina jeneriana no Brasil. Porque é bem
de ver que só a conselho do Marechal deve ter ido seu
filho - o Visconde de Barbacena, acompanhar as li.-
ções de botanica. O Visconde nasceu ~a Bahia, em 1802.
Teria assim, em 1815 treze annos, bem pouca edade
para um curso de agricultura e botanica do quilate da.-
quelle, cujo programma, em parte, se advinha pela ex.-
tensão do ponto de exame acima referido. E por ser
tão jovem, era ouvinte. No emtanto, ao que li algures,
só recebeu de facto o titulo de Visconde em 1830, por
graça de Pedro I.
Eu o conheci já centenario, em 1905, cara raspada,
de collarinho muito alto, sempre de preto, aprumando
a sua velhice nos bondes em que a sua presença era no.-
tada. Não havia, no Rio, ha uns vinte e cinco annós
quem não conhecesse o Visconde centenario que apos.-
Ensaios Brasilianos 47
tava com o nosso amigo Dr. Catta Preta quem sabia
envelhecer com mais donaire e mais linha.
Alem do curso da Academia..-Medico Cirurgica,
Frei Leandro mantinha a sua aula popular de botanica,
no Passeio Publico. Ali, ao que parece, era o seu audi..-
torio constituído pelo que de melhor havia entre os in..-
tellectuaes da côrte.
Naquelle tufo de verdura, que ê uma alegria e um
pequeno parque de historia simples, que inspirou a
Macedo uma lenda de poesia commovente, nasceu o
ensino das sciencias naturaes em nossa terra. A glori..- 01

ficação de Frei Leandro deve ser ligada a essa epheme..-


ride brilhantíssima, cujo alcance ~ cultura dos nossos
tempos bem avalia, porque o povo já não considera os
seus guerreiros como sendo os unicos cidadãos de bene..-
merencia historica, comprehende que não são menores
as glorias da sciencia e da arte.
O carmelita teve um companheiro na iniciativa ; foi
um franciscano eminente, o primeiro director do Museu
Nacional, Frei José da Costa Azevedo. Frei Leandro
do Sacramento, na Academia Medico Cirurgica e no
Passeio Publico; Frei Josê da Costa Azevedo na Aca..-
demia Militar e no Museu Nacional ; o carmelita en..-
sinando, principalmente, botanica ; o franciscano, mi.-
neralogia - foram os dois grandes mestres da feliz mis.-
são. Antes de Frei Leandro do Sacramento e de Frei
Josê da Costa Azevedo, escreveu Saldanha da Gama,
nenhum brasileiro alcançou a gloria de assumir a posi..-
ção de professor de botanica na cidade do Rio de Ja.-
neiro. Nem o proprio Frei Velloso, que deixou traba.-
lhos como naturalista, sem duvida muito maiores.
Frei Leandro, alem do mais, era mestre de raras
prendas. lllustrava todas as suas lições com o material
que o Passeio Publico lhe offerecia e tinha uma natural
eloquencia simples e persuasiva, empolgante e colo.-
rida. Um dos seus ouvintes, certa vez, achou.-se de tal
48 E. Roquette Pinto
1i ·
modo transportado, ao seguir a lição do carmelita, que
o mestre mesmo se surprehendeu com o arrebatamento
que o seu discipulo manifestava. Esse alumno volunta,
rio era Balthazar da Silva Lisboa, doutor em direito,
jurista e historiador dos Annaes do Rio de Janeiro que,
discipulo de Frei Leandro, deixou diversas memorias,
algumas notaveis de sylvicultura e botanica. O Dr.
Joaquim José da Silva - foi outro discipulo famoso de
Frei Leandro. ·
As aulas do frade desdobravam.,se muitas vezes,
á sombra das grandes arvores do parque. Em geral,
funccionavam em um pavilhão que o padre Luiz Gon..
çalves dos Santos - (Padre Pereréca) - descreveu
como sendo "muito elegante" e junto ao Largo da Lapa
construido de proposito para o curso de botanica, logo
depois que Frei Leandro foi investido na direcção do
Passeio, pelo Governo de D. João VI.
Esse edificio deve ter sido demolido em 1841 por
occasião das reformas do Passeio Publico, que todos
sabem foi construcção benemerita do Vice..Rei Luiz de
Vasconcellos, no local da infecta Lagôa do Boqueirão
da Ajuda ou Lagôa Grande, aterrada com o morro das
Mangueiras, outeiro altos da Avenida Mem de Sá,
junto a Santa Thereza (Morro do Desterro).
"Quem quizesse - escreveu o meu sempre lembra,
do e querido amigo Vieira Fazenda - quem quizesse
antigamente sahir do coração da cidade em busca dos ·
sitios do Cattete, Carioca e Botafogo, teria de caminhar
pela actual rua Chile e buscar a estrada que da Ajuda
- (a Cinelandia de 1929) ia para o Desterro, hoje Eva,
risto da Veiga. Ali, estreito trilho constituído pelo lado
par da hoje rua Visconde Maranguape, ia desembocar á
praia, por onde se chegava até a Gloria. Esse trajecto era
forçado, pois que seria impossível atravessar a Lagôa
Grande ou do Boqueirão, no logar occupado muito de.-
pois pelo Passeio Publico".
Ensaios Brasilianos 49

O lindo parque surgiu de preoccupações de hygiene


publica ao tempo em que o Vice.-Rei Vasconcellos e
Souza adoeceu da epidemia reinante, que o povo bapti,
sou "Lamparina", corrompendo o nome da cantora
Zamperini, que por volta de 1770, em Lisboa, era co,
queluche de damas e senhoras ; tudo então era a "Zam,
perini" : vestidos, penteados, adereços.
A epidemia, como a seducção da cantora, não pou,
pava ningucm. Donde n6s outros, victimas da Hes.-
panhola, concluimos que devia ser uma especie do mal ·,
que os medicas chamam I njluenza - uma vez que,
por consolo, sempre dão nomes âs doenças.
O benemerito Vice,Rei, criador do primeiro museu
de historia natural no Brasil --:- a Casa dos Passaros ;
- constructor do caes dos Mineiros - e tantas outras
obras uteis entregou a planície conquistada pelo aterro
da Lagôa Grande do Boqueirão da Ajuda ao mestre
Valentim da Fonseca e Silva, architecto e entalhador
esculptor dos de mais fina sensibilidade que o Brasil
tem possuido. Ajudaram.-no Francisco dos Santos Xa.-
vier. - O Xavier das Conchas, artista que então com,
pqnha com os restos dos molluscos, ornatos de toda a
especie e Francisco Xavier Cardoso Caldeira - o Xa..
vier dos Passaros - naturalista amador, encarregado
de zelar pelo museu do Vice,Rei, o mesmo artista que
entreteceu de papos de tucanos o manto imperial, para
o que Josê Bonifacio, em um documento que existe no
Archivo do Museu Nacional, mandou em 1821 fossem
entregues todos os tucanos menos dois, escolhendo,se
os que tivessem o papo bem amarello. Diz Vieira Fa.-
zenda que no terraço do Passeio Publico construiram,se
dois pavilhões : o do Apollo - decorações do Xavier
das Conchas e o Mourisco, entregue á habilidade de
Xavier dos Passaros. Os pavilhões não duraram muito.
Parece que em 1847 e depois em 1862, outros ali se edi,
ficaram, substituidos pelos actuaes que uma inspiração
50 E. Roquette Pinto
levará, sem duvida, o Sr. Prefeito a mandar arrazar
dentro em breve, para alegria dos cariocas, que não se
resignam a ver o Passeio Publico suffocado pelos monstros
em má hora destinados a desfigurar a ramaria solemne e
acolhedora (•).
O carinho dos cariocas pelo Passeio Publico nunca
desmereceu. Basta ver a rica literatura que a sua his,
toria fez repontar na penna de Mello Moraes, Macedo,
Vieira Fazenda. Os naturalistas brasilianos têm mais
esse motivo para bem querer ao lindo e pequeno Par,
que : ali nasceu, nas lições de Frei Leandro do Sacra,
mento o ensino publico da historia natural. Hoje, que
celebramos o Mestre - O Museu Nacional convida
o Instituto Historico para, juntos, erguerem, um sin,
gelo monumento commemorativo da ephemeride, seja
uma inscripção recordando que a sciencia merece tudo,
m6r~ente neste paiz que só por meio della poderá ven,
cer ás difficuldades do seu progresso. Lembraremos,
então aos nossos patrícios que o tempo de progredir
sem ella, - já passou. Hoje, muito mais do que no pas,
sado, os povos fortes - são os povos que sabem. .
A aula do Passeio Publico tão notavel na côrte,
fez com que Frei Leandro fosse chamado ao Jardim
Botanico. "No mez de Março de 1824, diz elle, na sua
Memoria Economica sobre a Plantação, Cultura e Pre,
paração do Chá - em que tomei conta da direcção do
Jardim Botanico da Lagôa Rodrigo de Freitas ... ".
Não nos faltam, felizmente, nota~ ·e tradições a
respeito da vida de Frei Leandro no Jardim da Lagôa
de Socopenapan - s~m nenhum motivo chamada Ro,
drigo de Freitas, nome de um capitalista ~lienigena,
que em Portugal viveu os ultimos annos e lá morreu
sem deixar no Brasil o menor traço progressista.
Barbosa Rodrigues condensou, em algumas obras,
o que ha de notavel sobre a actividade do frade canneU,
(•) Demolido . . . (1938)
Ensaios Brasilianos 51

ta naquelle horto. Não tenho nada mais a fazer do que


resumir e commentar o que elle, autorizadamente, so.-
bre isso nos deixou escripto.
Frei Lean_dro dirigiu o Jardim Botanico durante
cinco annos. Recebeu um parque de diversões ; deixou
um horto scientifico, que cada dia, desde então vê au.- .
gmentar a sua belleza e o seu prestigio.
A lagôa, em cuja margem se construiu o jardim,
era chamada pelos Tamoyos, Socopenapan - o cami.-
nho das garças (soc6). (Th. Sampaio) ou como quer
Barbosa Rodrigues Sapopen.-ipau - Lagôa das raízes
chatas. Penso, como Theodoro Sampaio : e muito de.-
sejaria ver nos mappas da minha cidade, restaurado o·
nome tupi ou mesmo traduzido: Lagôa das Garças,
nome evocativo, por todos os motivos preferivel ao
inexpressivo patronymico do felizardo capitalista, que
adquiriu em 1660 de Alberto Fagundes Varella, o en.-
genho de canna ali fundado em 1596 por Diogo de Amo.-
rim Soares, em terras pertencentes á Camara Muni.-
cipal.
Em 1808, já era fallecido Rodrigo de Freitas. A
13 de Maio desse anno o Príncipe Regente festejou o seu
dia natalício criando uma fabrica de polvora, a mesma
que ora funcciona junto á Raiz da Serra da Estrella e
foi então installada no engenho da Lagôa de Soc6pena.-
pan, desapropriado por cerca de 42 contos de rêis. Foi
nomeado inspector de artilharia o Brigadeiro Naplon.
Nada de mais, era uma fabrica de polvora. Mas a ad..
ministração geral foi entregue . . . a um philosopho, o
Marquez de Maricá. Mezes depois, a 11 de Outubro,
era criado, annexo á fabrica d.e polvora, um Real Hor.-
to para cultura de especiarias da India. · ·
Deu.-se por esse tempo, um facto cheio de conse.-
quencias para o desenvolvimento do Horto.
O chefe de divisão Luiz de Abreu Vieira e Silva,
naufrago da fragata Princeza do Brasil, em mares de
52, E. Roquette Pinto
Gôa, tentando ganhar o cabo da Boa Esperança, cahiu
prisioneiro dos francezes que o mandaram para a ilha
de França.
Fugindo da ilha, em companhia de outros patri,
cios, Abreu trouxe uma collecção de mudas que offe,
receu ao soberano e foram plantadas no Real Horto,
de onde se espalharam por todo o Brasil: o abacateiro
(persea sp.), o sagú (cycas sp.) a fructa pão (artocarpus
sp.) o cajá - (spondias sp.) e a Palmeira Real (Oreo,
doxa sp).
Luiz de Abreu tinha a paixão da agricultura. E'
sua iniciativa a plantação do chá no Rio de Janeiro,
obtendo que de Macáu lhe mandasse algumas sementes
o seu amigo Raphael Bottado- de Almeida, que as re,
metteu a bordo do brigue Vulcano, ao mando do capi,
tão Tenente Joaquim Epiphanio de Vasconcellos, se,
gundo as notas publicadas por Barbosa Rodrigues.
Tão viçosas cresceram as plantas do chá que D.
João, em 1814, resolveu promover a vinda de uma co,
lonia de chins, dona dos segredos de bem preparar as
folhas.
Saint' Hilaire que, alem do que nos deixou como na,
turalista, traçou paginas valiosíssimas como historia,
dor do Brasil-Reino e cujo nome hei de citar aqui mui,
tas vezes, encontrou em 1818, perto de Araruama, no
Estado do Rio, remanescentes da colonia chineza.
Frei Leandro, ao tomar conta do Jardim Botanico
em 1824, s6 encontrou o "china mestre do chá". A cul,
tura tinha decahido. Dos tres massiços plantados, só
um estava em boas condições. Reergueu o cultivo da
planta valiosa e aprendeu por si o que era preciso para
beneficiar as folhas visto que "o china de facto não era
capaz de publicar as idêas que sabia executar na pra,
tica ... ". '
Saldanha da Gama criticou profundamente a "Me,
moria sobre o chá".
: ,: .

Ensaios Brasilianos 59

Logo no começo Frei Leandro errou de certo elas,


sificando a planta - Thea viridis na familia das Eu,
phorbiaceas, de Jussieu. No emtanto, não sei se a cul.-
pa cabe mais ao carmelita do que aos botanicos porque
elles, já naquelle tempo promoviam intermina contra.-
dansa na collocação das especies. Certo é, como diz
Saldanha da Gama, que o primeiro a se espantar da
collocação da especie entre as euphorbiaceas seria, hoje,
o proprio Frei Leandro, vendo que o chá é actualmente
uma theacea ou uma gordoniea tribu da familia das
termstremiaceas, na "Flora Brasiliense".
Outra falha, apontada na monographia de Frei
Leandro, foi o nome latino que na taxonomia scienti,
fica devia caber á especie que descreveu.
Aqui, porem, não me parece tenha sido muito jus.-
to Saldanha da Gama. O frade escreveu a sua memoria
por ordem do Governo, para divulgar entre agricultores
os cuidados e os conselhos relativos ao plantio e ao
preparo do chá. O folheto destinava--se a acompanhar
as sementes enviadas ás provindas. Cha, portanto,
parece--me bastante. Tanto mais quanto, ao contrario
do que seria para desejar, o nome vulgar, está provado,
conserva muitas vezes, mais fixidez do que o scientifi.-
co, que os sabias relegam a cada momento para as in.-
terminaveis synonimias de que estão recheadas as Jlo.-
ras e as faunas. O bicho do pé, em 1758, era Pulex
penetrans de Linneu; em 1815, passou a ser Ryncho.-
prion de Oken ; mas em 1843 mudou de nome outra
vez : foi Dermatobius de Guerin. E o mosquito rajado
que no tempo de Oswaldo Cruz era Stegomia é hoje
chamado Aedes? A poaia (ipecacuanha) em menos de
cem annos mudou de nome umas quato vezes : Ce.-
phaelis (Richard), Callicoca (Brotero) ; Psychotria (Vel.-
loso) ; Uragoga (Baillon).
Saldanha da Gama não se esqueceu de apontar
nenhum dos senões da monographia : recorda que Frei
54 E. Boquette Pinto
Leandro errou acreditando que a planta s6 se cultiva
por sementes, quando o enxerto dos ramos, no tronco
das camelias, ê pratica usual no Oriente, que o frade se
esqueceu de mencionar as plantas aromaticas (magno,
lia, Vulan Oleo flagrans), camelia sazangua que os chi,
nezes ajuntam ao chá para tomal,o delicioso e per,
fumado.
E quem sabe si não ê por deficiencia tão simples,
que o chá do Brasil, apezar de tão bem iniciada a sua
industria, nunca poude vencer definitivamente. No en,
tanto, ha quem prosiga na velha iniciativa. Ha uns
dois annos eu mesmo tive opportunidade de receber a
delicada offerta de um pouco de chá cultivado e vendi,
do em Ouro,Preto - O chd do Thesoureiro. Quando
Frei Leandro chegou á direcção do Jardim Botanico,
criado annexo ao Museu a 11 de Maio de 1819, D. João
já estava ha muito em Portugal. Mas o carinho do Prin,
cipe Regente e do Rei pelo Jardim torna obrigatorio
recordal,o quando se trata de evocar o scenario da
dedicada actividade do carmelita.
Vieira Fazenda traçou, em uma das suas interes,
santes chronicas da "A Noticia", hoje felizmente reu,
nidas na Revista do Instituto, o caminho que D. João
seguia para ir da cidade ao Jardim. Pela praia de Bo,
tafogo ao longo da antiga bahia de Francisco Velho,
chegava ao caminho do Pasmão (rua da Passagem) e
ganhava a rua Berquó (rua General Polydoro). D' ahi
seguia,se atê o caminho de S. Clemente, na aba da mon,
tanha, que conduzia á Lagôa. Vinha, outróra a Lagôa
atê bem proximo dos morros
Nesse ~recho, reza a chronica, existia, dominando
com a sombra o caminho antigo, um enorme pedrouço,
que parecia a cada momento dever esmagar os transeun,
tes. D. João ali, deixava a sêge e passava a sua precfo,
sa pessoa para uma canôa, transpondo assim o trecho
Ensaios Brasilianos 55

que julgava perigoso. Do outro lado, retomava o car~


ro que o conduzia ao horto.
Ahi, em 1809, o principe plantou a palmeira real,
trazida pelo chefe de divisão AJ.,reu, da ilha de França,
conforme foi dito. S6 muito depois da morte de Frei
Leandro, fructificou pela primeira vez a palmeira real,
quando governava Pedro I e dirigia o jardim Serpa
Brandão, aulico cioso daquella preciosidade, que, para
impedir a disseminação da especie pelos jardins pu.-
blicos, mandava recolher e queimar, cuidadosamente,
todos os fructos.
No emtanto a palmeira real espalhou.-se. Os escra..
vos do jardim sabiam furtará noite, em tempo habil,
as sementes que vendiam a 100 réis cada exemplar.
Esta nossa palmeira real ou palmeira imperial não é
todavia, a palmeira real dos botanicos (Oreodoxa regia).
E', conforme mostrou Barbosa Rodrigues a Oreodoxa
oleracea, de Martius, ou Areca okracea de Linneu. Aliás,
são especies muito proximas. A oleracea é mais alta,
delgada e regular; a regia é um tanto ventricosa ou
levemente barriguda.
Sobre um comoro construido por Frei Leandro com
a terra que se retirou do lugar em que hoje existe o
lago por elle iniciado, Barbosa Rodrigues ergueu o mo~
numento do carmelita. Os restos do sabio, quando
elle morreu, a 1 de Julho de 1829, foram levados ao
convento do Carmo. Fui visital.-os ha poucos dias.
Mas, no convento s6 existe de Frei Leandro a memo.-
ria. Uma pedra lisa sobre o ossuario dos Carmelitas.
Não é po~sivel saber quem ali rE;JX>USa. Dormem todos
na quietude de um grande somno anonymo.
As obras de Frei Leandro do Sacramento, no que
se conhece, são as seguintes :
56 E. Roquette Pinto
1 - These - Coimbra 1805.
2 - Memoria sobre as nitreiras naturaes ou arti-
ficiaes deste paiz.
Escripta por incumbencia da Junta do Governo de
Pernambuco em 1808 e mandada ao ministro D. Rodri-
go de Souza Coutinho a 22 de Abril de 1808.
3 - Aguas mineraes de Araxá, no Brasil ~ Carta
ao Conde da Barca in "Correio Brasiliense", tomo 19,
1817 pag. 524.
4 - Instrucções para os viajantes e empregados
nas colonias, sobre a maneira de colher, conservar e re-
metter objectos de historia natural, augmentadas de
algumas reflexões sobre a historia natural do Brasil e
estabelecimento do Museu e Jardim Botanico em a
Côrte do Rio, 1819.
S - Memoria economica sobre a plantação do chá,
Rio. 1825.
6 - Memorias sobre as balanophoraceas. (perdida).
7 - Compendio de botanica (inedito, perdido).
Numerosas monographias enviadas a publicações
européas.
Em taes memorias Frei Leandro descreveu as
plantas que lhe pareciam novas para a sciencia. Não
é possível reprimir um movimento de dolorosa emoção
recordando, nesta hora, que por insufficiencia do meio
patrio a grande vida de trabalho scientifico do mestre
foi iniquamente sacrificada. Basta lembrar que dos
nove generos novos, por elle descriptos e nomeados,
oito cahiram em synonimia. Frei Leandro, no Brasil,
no começo do século, era um desamparado. Sciencia,
e da melhor, elle a possuía, mas instrumentos de tra-
balho? Livros? Como poder o sabia controlar as des-
cobertas que realizava?
Ensaios Brasilianos 57

Como Anchieta, por falta do necessario, elle pare,


eia ~screver na areia os segredos das plantas da sua
terra que o olhar amestrado encontrava.
• Veiu muito cedo, numa terra ainda semi,barbara,
o discipulo de Brotero. Por isso perdeu a maior parte
do que conseguiu colher.
O seu primeiro genero Funifera - ainda subsiste
na familia das Thymeleaceas. O typo é a embira branca,
Funifera utilis, de Leandro, do Rio de Janeiro.
Já o segundo, Augusta, onde elle descreveu a Au,
gusta Chrysanta as lindas flores rubras do "brinco de
macaco" - foi posto na synonimia do genero Stijtia,
de Mikan.
Spixia - foi outro genero creado por Frei Lean,
dro, nas Euphorbiaceas. Martius o aceitou e consagrou
a especie typo ao carmelita, sob o nome Spixia Lean.-
dri, Mart.
O genero, porem, mais tarde, cahiu. E' hoje o ge,
nero Pera, de Mutis. Foi tambem genero de Frei Lean,
dro o Gymnarrea, ainda nas Euphorbiaceas. Passou a
secção do genero Actinostemon de Martius, onde Sal,
danha da Gama descreveu a "canella de veado", da
Parahyba do Sul (Actinostemon lanceolatum, Sadl.).
Tambem o genero Langsdorffia, de Leandro, nas
Rutaceas, foi depois incluído no Xanthotoxilum, de
Saint' Hilaire.
Uma das mais pungentes decepções do sabio car,
melita deve ter sido o que lhe aconteceu a proposito
das balano,phoraceas, parasitas das raizes das grandes
arvores das mattas, umas comestíveis (ombrophyto do
Perú), outras tinctoriaes ou .medicinaes (Cynomorium
coccineum) e ainda outras caracterizadas pelo cheiro
repellente que exahlam (Sarcophytum).
Uma especie nova do Brasil, achou Frei Leandro,
que a denominou Lathreophila. Era planta já des,
58 E. Roquette Pinto
cripta nas Memorias do Museu de Historia Nacional,
de Paris, no genero Helosis de Richard.
Nem mesmo aquellas Memorias, em uma terra em
que s6 se lia o que era de origem franceza, tinha o sa.-
bio ao seu alcance 1
Os generos Raddisia e M(trtia de Frei Leandro t~..
veram o mesmo fim. No entanto, todos os botanicos
do Mundo applaudiram todas as homenagens que na
I talia; o celebre Raddi lhe prestou, fundando, em sua
honra, o genero Leandra - homenagem merecida pela
existencia de trabalho honesto do grande naturalita
- o sabio desamparado.
Era, alem de tudo, uma especie de reparação de
muitas ingratidões que dos seus collegas de alem mar
havia soffrido.
Saint' Hilaire, homem justo, nosso amigo, mas que
não sabia dizer as coisas senão com linguagem clara e
franca, falia assim de Frei Leandro : "J'avais le plaisir
de m' entretenir souvent de mes études favorites avec
mon ami Ie Pére Leandro do Sacramento ...
Le P. Leandro do Sacramento, professeur de bo.-
tanique, directeur du jardin des plantes du Rio de J a ..
neiro, cultivait avec succês la science qu' il était char..
gé d' enseigner et possedait encore des connaissances
en chimie et zoologie. On lui doit I' analyse das eaux
minérales d',Araxá, des observations botaniques impri..
mées dans le recueil des Memoires de l' Académie de
Munich et un mémoire sur les Archimmedées ou Bala..
nophorées qui, je l' espere, sera bientôt publié. C' était
un homme de moeurs douces, d' un commerce facile,
plein de candeur et d' amabilité. II accueillait Ies étran..
gers a,vec bienveillance, et, il faut le dire, I' on ne fut
pas toujours reconnaissant envers lui. Pour justifier
Ies reproches qu' ils font quelquefois aux habitants
de l'Europe, les brésiliens pourraient citer la maniere
dont fut traité le P. Leandro. II avait fait part de ses
Ensaios Brasilianos 59
collections á nos navigateurs ; 11 avait envoyé des plan..
tes seches au Museum de Paris ; expedié pour le gou..
vernement françai~ ~ix caisses de plantes -vivantes á
la colonie de Cayenne, et ce fut en vain qu_e, pendant
longtemps, le consul de Francé á Rio de Janeiro, et
moí, nous sollicitames une simple lettre de remerciment
de deux de nos administrations".
"Comme si l'on eut voulu faire disparaitre jusqu' au
souvenir de cet homme recommandable, on a détruit
un genre qu'il avait formé dans I' un de ses mémoires ;
pour expliquer cette suppression on a dit, il est vrai, que
le genre existait dejá en manuscript, mais nous ne de..
vions jamais perdre de vue cette régie si sage établie
par M. de Candolle dans son admirable T/Jéorie éle..
mentaire, savoir que pour I' antêriorité, il ne faut point
tenir compte des travaux inedits".
Que valem as injustiças e a inveja interesseiras?
A voz de Saint'Hilaire - do meigo Saint' Hilaire,
nós a recolhemos hoje, no centenario da morte do gran..
de compatriota, e ella se amplia no éco dos corações,
revivendo a santa existencia, na admiração e no carinho
da posteridade, que p6de ser demorada mas não falha
nunca.
Tambem outro, grande naturalista do tempo, o
Barão W. L. von Eschwege, deixou..nos boas lembran..
ças de Frei Leandro. No seu Pluto Brasiliense, (Ber..
lin, 1833) descreve as fontes mineraes (bebedores) que
em 1816 visitou nos sertões de Araxá, perto da Serra
dos Agudos e da Fazenda do Salitre.
Narra Eschwege ter evaporado, em um caldeirão,
cincoenta libras de agua do Salitre, recolhendo acima
de meia libra de saes, que foram enviadas ao "seu amf..
go" - o frade Leandro do Sacramento. O relatorio da
analyse, feito por Frei Leandro e transcripto por Es.-
60 E. Roquette Pinto
chwege é um modelo do protocolo scientifico, para os
conhecimentos da época e os recursos existentes na ·
Côrte.
Acredito que os estudiosos acharão certo interesse
em saber como se fazia analyse de uma agua, no Rio
de Janeiro, em 1815. As notas do Frade, que Eschwege
traduziu para o allenão, dizem em resumo que achou
na Agua do Salitre (nitrato de potassio) alcali vegetal
nítrico (carbonato de potassio) alcali vegetal carbonico
e um alcali vegetal sulfurico (sulfureto de potassio). ·

• ••
Ha no Jardim Botanico uma grande arvore triste
que as outras devem invejar : a jaqueira de Frei Leandro.
Ali o sabio frade, já nos deliquios que as hemoptises
provocavam, animava os escravos do jardim ao tra.-
balho:
"Como formigas, minha gente l Como formigas ... "
dizia elle na sua voz sempre mansa. Hymno ao trabalho,
entoado de maneira tão simples e tão suggestiva, que
os moços devem conhecer. Não ha para os instantes de
inercia moral, para os momentos trist~, outro remedio
melhor que o trabalho. Tudo, ás vezes, nessa hora, são
trévas e desalento. Mas quando a confiança parece
fugir e o animo se desconjunta, basta que a gente mer.-
gulhe depressa numa tarefa qualquer, em que haja um
laivo de idealismo, para que o vigor moral se retempere
e de novo reponte, na alma do que se esf~rça. Na som.-
bra da grande arvore, ha um seculo, surgia assim o sin.-
gelo conselho inestimavel.
A existencia de Frei Leandro foi a tragedia usual
na vida dos naturalistas : o desamparo, a hostilidade, a
indifferença ou a ingratidão. O escameo dos que jul..
gam a sciencia uma especie de vadiação felizarda e go.-
zadora, quando não descabellada maluquice.
Ensaios Brasilianos 61
Mas, felizmente, tem sobrevivido a lembrança e a
tradição daquelles mestres, ainda quando. muito da sua
obra se haja perdido. Cem annos faz que o nosso pri..
meiro professor de historia natural desappareceu.
Num seculo, que é tempo bem curto na vida dos po..
vos, nós conseguimos algo realizar, no caminho da cúl,
tura scientifica. Os sabios que vêm de ultra,mar, e
todos os ·mezes os recebemos, já não desdenham dos
successores de Frei Leandro, nem os ineditos europeus
prevalecem correntemente contra os estudos feitos no
paiz. O que se tem publicado, nestes quarenta annos
de vida republicana, é já uma imponente literatura
scientifica. O mappa do Brasil já quasi não tem os ela..
ros antigos pelo esforço dos proprios brasileiros. Odeio
o optimismo dos rhetoricos ; mas no balanço imparcial
das realizações da minha gente busco forças para ca..
minhar.
Mas, vivemos aqui, é certo, ainda muito sós, os
que trabalham na sciencia. Faltam,nos ainda biblio..
thecas e outros meios de estudo que são hoje quasi
prohibidos aos povos que têm pouco dinheiro. A pu..
blicação dos resultados da actividade dos pesquiza..
dores é ainda morosa e falha, no Brasil. Hoje não se
admitte a falta de documentos graphicos em sciencias
naturaes. E elles precisam ser fieis e por isso são caros.
Não temos suffü::iente independencia no trabalho, por..
que as leis fiscaes governam os creditos concedidos ás
casas de pesquiza technica, como se fossem institui,
ções puramente administrativas e todos sabem, no em,
tanto, que a indagação e as observações scientificas não
podem ter hora certa, nem logar fixo. . . mas vamos,
mesmo assim, seguindo com sinceridade o conselho im, .
mortal do carmelita. E, ainda que a luminosa tradi,
ção se esvanecesse, ainda quando não restasse mais
éco daquelle desprendimento dos nossos velhos mestres
- ahi presente estará sempre o renovado prestigio da
62 E. Roquette Pinto
terra, para arrastar outros tantos, em qualquer condi,
ção e em todos os tempos.
Vejo uma lição de belleza immortal na vida humiJ..
de de Frei Leandro.
É o drama perenne dos que a Natureza attrahe,
prende, encanta, deslumbra - para depois abater e
esmagar, como se ella quizesse que os seus amigos ti,
vessem, no Brasil, a sorte das arvores que morrem sem
ninguem saber, desfeitas no meio;silencio tumultuaria
dos capoeirões, nutrindo outras que repontam sempre,
no triste pó das que se foram.
CAPITULO Ili

N INGUEM, no Brasil, até hoje, pensou com mais


clareza e mais profundamente, sobre os nossos
grandes problemas, do que Alberto Torres. E ninguem
soube, como elle, explicar a nação a si m~ma. Suas
paginas são diaphanas e coloridas. A phrase é sempre
forte, porque é constantemente sincera. Seus ornatos
são ideias.
Uma orientação pessoal, nova e segura, domina o
espirito sociologico que elle applicou ao estudo do Bra..
sil. Para Alberto Torres o grande problema nosso era
unicamente a organisação. O grande sociologo sabia que
a raça não pôde servir de base á naçifo. A nacionalida..
de é obra de construcção social. As sociedades sem es..
pirito nacional, são como os hoteis ou as estradas de
ferro "onde se encontram e cruzam,se, em movimento
febril, milhares de individuos, camadas e gerações, sem
nenhuma consciencia do interesse commum. Taes so..
ciedades, accrescenta Alberto Torres, não deixam, em
pós si, senão riquezas mortas e monumentos mais mor,
tos ainda; obras frias de uma historia que não anima
o espírito de um ideal".
Todas as constituições brasileiras carecem de base
propria. "Vivemos de ensaios e reformas" exclama. A
devastação cyclopica das mattas, a delapidação incon..
sciente de reservas naturaes, preparou, no passado, as
vicissitudes do presente, synthetisada na falta de uma
economia.
64 E. Roquette Pinto
'
Os periodos de Alberto Torres ·são, nessa altura,
formidaveis : "A nacionalidade ê a vida de um povo,
feita . pelo calor e pela energia de um espirito, sobre a
saúde de uma economia. "Nós temos de fundar a eco..
nomia da nossa Patria, fazendo revelar o espirito das
suas raças, sobre a natureza tropical".
E' difficil encontrar quem defina melhor o concef..
to nacionalista de um paiz. E' inutil procurar na lite..
ratura brasileira pensamento mais claro e profundo a
respeito do que nos está faltando. Os individuos, as
classes, os grupos conseguem enriquecer ; nem por isso
a nação enriquece, por falta do elemento essencial aci--
ma apontado.
"O nosso problema não é um problema de morali.-
dade pessoal : os abusos apontados em nossa vida pu..
blica, nada valem quasi, por muitos e grandes que se.-
jam, em face das perdas colossaes que soffremos com
a nossa inadvertida política, ou, melhor, com a nossa
inteira falta de politica".
Ha pois, no Brasil, pelo conceito de Alberto Torres,
só uma falha essencial e essa ê a defficiencia collectiva,
mas não ligada á raça ou mesmo ás caracteristicas mo.-
raes do povo.
A raça viril que desbravou o paiz, diz o Mestre,
achou--se num conflicto entre as ideas decadentes que
ia recebendo dos seus maiores e os impulsos de uma ter.-
ra e de uma gente que tendiam ao progresso. Partiu
talvez d' ahi o grande mal ; foi essa a causa da desor.-
ganisação.
"O influxo, escreveu elle, que animou a vida men..
tal do Brasil nasceu da calmaria das instituições, das
leis e dos costumes de Portugal em declinio com inter..
mittencias de rajadas revolucionarias, de aragens ro.-
manticas e de bafejas scepticos" . ...
E o grande pensador accentuou nessa passagem as
feições do nosso conflicto moral: "Ao convite do tra--
Ensaios Brasilianos 65
balho que a natureza nos dirigia e ao brado de anima-
ção e de coragem, que ella clamava, nós respondemos,
instal1ando, no grandioso e no intermino da nossa su..
perficie a civilisação em miniatura das instituições por,
tuguezas e a voluptuosidade preguiçosa, ou a rebeldia
exaltada, das letras francezas em estado de ebulição
de reforma e de duvida. Comprehende..se, assim, que
os Nietzsche, os Vacher de Lapouge e os Gobineau
fossem pontifices entre nós".
Em vão procura..se em nossa bibliographia con..
ceitos mais exactos e mais Luminosos sobre as normas do
progresso brasileiro. E' como si Alberto Torres subis..
se a uma altura excelsa e de lá gritasse ás gerações :
A patria reclama que se olhe para ella I Antes de nada
mais contemplem a terra e mergulhem na sua natureza
para tomar conta do que lhes deve pertencer 1
O povo brasileiro não é de facto dono da sua terra.
Senhoream..na muitos brasileiros e alguns es~rangeiros ;
o povo, não.
Este só poderá vir a ter o seu quinhão, quando hou,
ver, aqui, organisação dos valores. Essa depende dos
estadistas, mas repousará nas forças vivas das nossas
raças.
Alberto Torres, pela sua vida e pelos seus escrip..
tos, dá..nos a impressão singular de ter sido até agora
o unico sociologo efficiente porque fallou certo e claro,
que a cultura scientifica produziu no Brasil : um ho-
mem que se aposentou de todos os postos sociaes occupa..
dos para estudar a sua gente, ·verificando, objectiva,
mente, o que ella vale e o que p6de dar e encontrando
1 formulas superiores para indicar..lhe o caminho que leva
á formação de uma nacionalidade definida e forte.
CAPITULO IV

H A justamente trinta annos.. . ·


Alvaro Ozorio de Almeida - que foi, desde o co-
meço, um leader do nosso curso de medicina, fez o pre-
conicio das aulas de Morize, na Polytechnica e como
em Santa Luzia as lições de physica eram só theori,
cas, e raras experiencias chegavam ao fim decentemente
uns tantos condiscípulos do Alvaro rumaram para o
amphitheatro do Largo de S. Francisco acompanhar o
curso de Morize. Eramos uma meia duzia de morti-
colas, perdidos entre os anexins, nome que, naquella
escola, davam aos calouros, os veteranos : Ozorio, Car, ·
los Guinle, Mauricio Gudin, Oscar Pinto de Carvalho,
Tito Barbosa de Araujo.
Muito alto, magro, olhar vivo e meigo : Morize.
Palavra facil, muita clareza, frequentes laivos de hu-
morismo delicado, pronuncia francamente paulista. De-
dicação e enthusiasmo. O gesto, as figuras eschematicas,
os calculos no quadro negro, as demonstrações prati,
cas, numerosas e limpas, novidades da sciencia em que
os compendios ainda não falavam, excitando a curiosi,
dade dos rapazes e subjugando a attenção de todos .. .
Era assim aquelle mestre, bom e sábio, que attrahia para
o seu curso alumnos de outra escola.
Henrique Morize nasceu em Beaune (Cote d' Or)
__ França a 31 de Dezembro de 1861.
Chegou ao Brasil aos quatorze annos, acompa-
nhando sua tia Mme. Henry, que foi mais tarde pro,
prietaria de uma grande, e conhecida casa commercial
do Rio de Janeiro.
Ensaios Brasilianos 67

Pobre, era preciso que Morize ·trabalhasse. E, em


S. Paulo, o seu primeiro emprego foi um posto humilde
no balcão da Livraria Garraux: A companhia dos li,
vros deve ter influido para animar a ancia de saber que
foi um dos mais indisfarçaveis caracteristicos da sua
personalidade. Fez naquella cidade seus estudos se,
cundarios e matriculou,se na Polytechnica do Rio,
principiando, por esse tempo, a trabalhar no Observa,
torio Astronomico, dirigido por Luiz Cruls.
Em 1889 collaborou no excellente volume Le Bré,
sil, escrevendo a monographia classica sobre o clima des,
te paiz, trabalho que ampliou no Diccionario editado
pelo Instituto Historico em 1922.

"' • .
Proclamada a Republica, o Governo Provisorio,
todos sabem, resolveu dar os primeiros passos para a
transferencia da Capital. Trata,se de uma velha idéa
levantada em 1808 por Hyppolito da Costa, no Correio
Braziliense : "O Rio de Janeiro não possue, escrevia
elle, nenhuma das qualidades que se requerem na ci,
dade que se destina a ser a Capital do lmperio do Bra,
sil ; e se os Cortezãos que para ali foram de Lisboa
tivessem assaz patriotismo e agradecimento pelo paiz
que os acolheu, n~ tempos de seus trabalhos, fariam
um generoso sacrificio das commodidades e tal qual
lux~ que podiam gozar no Rio de Janeiro, e se iriam
estabelecer em . um paiz do interior, central e immedia,
to ás cabeceiras dos grandes rios, edificariam ali uma
nova cidade, começariam por abrir estradas, que se
dirigissem a todos os portos do mar ... "
J osê Bonifacio, Porto Seguro e outros adoptaram o
ponto de vista de Hyppolito da Costa. Mas foi a Repu,
blica que deu o primeiro impulso pratico, nessa mate,
ria, fazendo delimitar o Districto Federal pela Commis,
68 E. Roquette Pinto
são Exploradora do Planalto Central do Brasil, em 1892,
sob a direcção de Cruls. Os seus astronomos, alêm do
Chefe, eram Oliveira Lacaille e Henrique Morize. A
lista dos companheiros de Cruls ê brilhantíssima : Eu,
genio Hussak, Ernesto Ule, Alipio Gama, Tasso Fra.-
goso . ..
A Henrique Morize, alem dos trabalhos geodesicos
da Turma S E, coube o serviço photographico da Ex,
pedição •
. Poucas vezes no Brasil tem se conseguido uma do-
cumentação iconographica tão linda qual a collecção
de photographias de Morize no grande volume da Com.-
missão do Planalto.

•••
Ao entrar para o corpo docente da sua velha escola,
Morize encontrou a physica experimental apenas en.-
saiando o surto. . . E' sabido que desde o começo do
seculo XIX a pratica desta sciencia, e da chimica, ti.-
nha sido iniciada, no Rio, por Frei Leandro. Em De.-
zembro de 1824 sob a direcção do Dr. João da Silveira
Caldeira, fundava.-se no Museu Nacional, um labora.-
torio chimico e physico.
Frei Custodio Alves Serrão, em 1828 "lente cathe.-
dratico de chimica e physica" da Escola Militar e Di.-
rector do Museu, depois de Caldeira, luctou quanto
poude pelo progresso do ensino de taes disciplinas. Mas
a verdade ê que o desastre historico da inauguração do
telegrapho, episodio que não vale a pena recordar,
mostrou que a physica, no ensino superior, antes de
Morize, no Rio de Janeiro, era divulgada apenas em
discursos, talvez eloquentes e conselheiraes, . . Por isso
eu mesmo escrevi algures que elle foi o fundador da
physica experimental neste paiz.
Ensaios Brasilianos 69
Mal surgia a novidade nos laboratorios europeus,
e aos seus alumnos elle a apresentava, repetindo no Rio
o recente milagre da sciencia. Assim foi quando Rõnt,
gen descobriu os raios X, assim foi quando Becquerel
encontrou a radio,actividade e os Curie acharam o
Radium.
*
* *
Successor de Luiz Cruls na direcção do Observa,
torio, Morize foi digno da grande herança e desde en,
tão seu nome passou ao mundo sábio, cercado de justo
prestigio.
Ali não descansou emquanto não removeu o Ins,
tituto, então alojado em velha casa conventual do mor,
ro do Castello, para edifício proprio, construido na sua
administração.
Trabalhos de physica do Globo e de Climatologia
interessaram grandemente o sabio mestre.
A elle devemos os primeiros ensaios, baseados em
methodos modernos, para a previsão do tempo neste
paiz.
Membro da Conferencia Internacional da Hora,
obteve Henrique Morize que pelo telegrapho sem fio
coubesse ao Observatorio do Rio de Janeiro transmittir
o tempo, no Atlantico Sul.
O nome do mestre acha,se ligado a uma das mais
brilhantes observações até hoje promovidas para a ve,
rifícação da theoria da Relatividade. Einstein, quando
foi recebido na Academia Brasileira de Sciencias, não
se esqueceu de uma referencia ao episodio. Coube a
Morize preparar em Sobral (Ceará) o posto de onde
alguns sabios, elle inclusive, acompanharam o celebre
eclipse solar de 29 de Maio de 1919, que forneceu dados
dos mais importantes na comprovação das ideias de
Einstein.
70 E. Roquette Pinto
Não é preciso ser astronomo, nem grande, nem
pequeno, nem mestre de physica, para tomar conheci..
mento do que se passou em Sobral ...
Na theoria de Newton a luz ê formada de corpus..
culos emittidos pela fonte luminosa. Na theoria de
Maxwell, ao contrario, a luz não ê formada de parti..
cuias materiaes : ê resultante das vibrações do ether,
tal como o calor ou a electricidade, questão de frequ en ..
eia das oscilações. Para Einstein, a luz deve ter massa
e portanto peso. A massa da luz corresponde á materia
que ella contem; o peso da luz representa a acção da gra..
vidade sobre tal massa.
Na theoria da gravitação formulada por Einstein,
o raio luminoso de uma estrella, ao passar perto do sol,
deveria ser attrahido, inflectindo..se na sua direcção, o
, que alias a theoria de Newton tambem indicava. Mas,
de accordo com Newton, o raio luminoso deveria in ..
flectir .. se de 0,75 (segundos de distancia angular) ; de ·
. accordo com Einstein, a inflecção seria de 1,75.
Quem tinha razão? Newton ou Einstein ?

•••
' O eclipse de Sobral (Ceará) ma responder.
A discussão das idéas de Einstein estava apaixo ..
nando o mundo.
O resultado da observação era, como se vê, de im..
portancia capital, vida ou morte da Relatividade . . . .
A Sociedade Astronomica da Grã..Bretanha come ..
çou a preparar a British Eclipse Expedition antes dá guer..
ra. Emquanto a Europa, entre explosões de odio se
ensanguentava, os astronomos inglezes proseguiam os
preparativos da grande prova. A 29 de Maio de 1919
uma das commissões achava..se sob direcção do Dr.
Ensaios Brasilianos 71 . ,.

Eddington. na ilha do Príncipe, na costa occidental da


Africa ; outra, sob as ordens do Dr. Crommelin, era
hospede do Brasil, em Sobral, onde Morize tudo havia
preparado para a efficiencia dos trabalhos.
Foram tomadas umas tantas photographias do céo,
durante o eclipse ; e, dois mezes depois, outras chapas
da mesma região celeste, foram obtidas. Já então o
sol andava longe daquelles lugares sideraes, e não po.-
dia mais influir na direcção dos raios das estrellas con,
siderad~. '
Na reunião da Royal Society, a 6 de Novembro
de 1919 foram publicados os resultados : o desvio foi
de 1,98, nos documentos de Sobral ; nos da ilha do
Principe, 1,62. A média dos desvios foi 1,80.
"Einstein havia annunciado 1,75 ; Newton teria
dito 0,75. Os scientistas ortodoxos teriam predito O"
(Harrow).
Crommelin e Einstein, assim como todos os sabios .1
que trataram com Morize, ficaram seus amigos, vene.-
rando o seu saber e as suas qualidades pessoaes .

•••
Em 1916 fundava ...se, no salão nobre da Escola
Polytechnica, a Academia Brasileira de Sciencias. Mo.-
rize era dos mais velhos entre os scientistas presentes.
Parecia o mais moço, tão grande era o seu desejo de ver
os estudiosos, nos diversos campos, entrar em contacto
mais directo, rompendo o ql\e elle chamava "os compar.-
.timentos estanques" que no Brasil difficultam o pro.-
gresso da cultura.
Finalmente, em 1923, um dos seus discipulos mais
humildes e mais dedicados procurava.-o para pedir.-lhe
que tomasse a dianteira num grande movimento civi!i. .
zador, que seria a pratica da radiotelephonia educa,
72 E. Roquette Pinto
dora. Mal terminada a exposição do plano idealizado,
e o velho mestre, no seu gabinete de S. J anuario, er--
guia--se commovido, abraçando o seu discípulo. Desde
aquelle instante, foi o guia magnifico de uma campa--
nha civica, ora triumphante, culminada na fundação
· da Radio Sociedade (PR A 2).
Agir junto ao Governo, para obter que velhas leis
prohibitivas da pratica do T. S. F. fossem revogadas,
influir por todos os meios, com o seu prestigio scienti--
fico e social para que o grande sonho se realizasse -
um outro exemplo de desinteresse pessoal e grande amor
ao Brasil que Henrique Morize offereceu a este paiz.
Os eruditos hão de encontrar sempre o seu nome
nos trabalhos que elle deixou. O povo humilde da mi--
nha terra não esquecerá jamais o que elle fez pela sua
educação.
Nós, seus companheiros, havemos de ter ao nosso
lado, o resto da vida, a infinita saudade dos seus con--
selhos e da sua estima. '
CAPITULO V

N ESTAS linhas despretenciosas e sinceras quero


recordar o homem idealista que um dia me auxi,
liou numa linda campanha espiritual. Amadeu Amaral
era bem aquelle semeador abençoado no seu lindo verso.
Era alma aberta ao progresso e á luz. Um dia, em
1922, fui levado a estudar um pouco de radio,electrici,
dade, tratando de certas pesquizas physiologicas que
não vêm a pelo recordar. O meio mais simples de obter
no laboratorio uma pequena fonte de ondas continuas
era construir um elementar heterodyno, cousa facil
que, na êpoca, era difficil porque as valvulas de tres ele,
ctrodios constituiam raridade no Rio de Janeiro. Pro.-
curei no Observatorio o meu velho e querido mestre
Dr. Motfae e delle recebi as lições de que precisava.
Entrei, assim, na T. S. F . de laboratorio. Coincidiu
com estes estudos a inauguração das estações radio,
telephonicas do Corcovado (S PC) e Praia Vermelha
(S P E). Corcovado irradiava diariamente. Cada vez
que tomava os phones vinha,me ao pensamento o
que o Brasil poderia ganhar com aquelle meio formi,
davel de expansão cultural. Levei as idéas que me oc,
correram á Academia de Sciencias. Verificámos que um
regulamento anacronico, carrança, retrogrado, infeliz,
prohibia a pratica da T. S. F. pelos cidadãos. A poli,
eia apprehendia as miseraveis "Galenas" que eram de.-
nunciadas.
A Academia de Sciencias mandou, então, ao mi,
nistro Francisco Sá uma representação que poz a ques,
tão nos seus devidos termos e tão eloquente foi, que
74 E. Boquette Pinto
abriu, atravêz da tal lei "colonial", o surto da radio-
phonia.
Nesse tempo, já em 1923, Amadeu Amaral tomava
conta da direcção da "Gazeta de Noticias".
A propaganda exhaustiva que vinhamos realizan-
do, Morize e nós todos da Academia de Sciencias, en-
controu no admiravel jornalista um apoio inestimavel.
Foi a seu convite que escrevi o artigo de 14 de abril, nas
vesperas da fundação da Radio Sociedade do Rio de
Janeiro. .
Em junho, Amadeu quiz ver de perto como se re-
cebem facilmente as irradiações de uma estação proxi-
ma. Proporcionei-lhe essa observação, servindo-me da
mais elementar apparelhagem.
No "Estado de S. Paulo" elle narrou assim o epi-
sodio : "Quando vi a antena plantada a um canto do
Jardim - uma simples vara de bambú com uns fios li-
geiramente installados - e sobretudo quando pene-
trei no quarto das operações e .pude examinar os toscos
objectos que completavam o dispositivo, não pude dei-
xar de sorrir por dentro. Não era possível que aquella
carangueijola, feita com bambú, alguns metros de fio .
de cobre, uma bobina de papelão e um phone de appa-
relho commum, désse resultado sério. Quem sabe, se
aquillo que pregavam ouvir por intermedio desse ap-
parelho, não seriam quaesquer vibrações ordinarias,
confusamente conduzidas pelos taes fios expostos 1
Dentro em pouco, porem, collocando o phone ao
ouvido, pude escutar versos declamados na Praia Ver-
melha e entremeiados de musica, tudo tão perceptível
como se os sons se originassem a dois passos. Aquella
carangueijola ridícula funccionava maravilhosamente ... "
O resto do lindo artigo do poeta é um hymno á
T. S. F. educadora da nação, tal qual nós a queriamos ...
e, hélas I ainda a queremos. ·
Ensatios Bra,silianos 75

Assim termina a correspondenda de Amadeu Ama,


ral para o "Estado de S. Paulo" :
"A propaganda não é tão commoda como poderá
afigurar,se. Ha que combater a classica indifferença
nacional; e, o que é peor, ha que luctar contra apropria
curteza de vista dos poderes publicos que, para começar,
prohibiram aos particulares a installação de postes ra,
diophonicos".
O descuidado leitor que hoje ouve em Copacabana
o som de "Big,Ben" de Londres ou as operas do Colon
de Buenos Aires, não imagina sequer o que custou a tal
propaganda contra a ''lei colonial". Felizmente os
documentos da campanha estão todos publicados.
Nella, Amadeu Amaral teve o seu posto.
Foi, ainda uma vez, o poeta que abençoava o gesto
de quem planta.

·~
.
CAPITULO VI

D ESAPPARECERAM, juntos, Moscoso, Labouriau


e Amoroso Costa.
Tobias Moscoso era, antes de mais nada, um es,
theta.
A linha indisfarçavel da sua pessoa e da sua phra,
se, denunciava de longe o artista, exhuberante mas de,
licadissimo.
Mesmo nas conferencias technicas os seus dotes
literarios repontavam sempre. A esse artista ' do estylo
a vida entregou alguns problemas aridos de estatística
e demographia. O seu talento de rara agudeza permit,
tiu,lhe, nesse terreno, prestar serviços valiosos.
Não foi elle o iniciador da biometrica no Brasil.
Eu mesmo sei de um modesto laboratorio em que ella
se praticava desde 1912. Mas ao professor da Polyte,
chnica deve,se a formação de um nucleo de discípulos
que certamente não deixarão morrer o energico movi,
mento inicial. Por outro lado, Moscoso, pregou sempre
a boa doutrina respeito ao problema demographico.
Elle confirmou que o Brasil, dentro de um seculo, con,
tará população maior talvez do que a necessaria, só
pelo jogo do crescimento natural de sua gente. A mor,
te não permittiu que concluísse o trabalho que tinha
em andamento sobre a theoria do acaso. Mas o seu
bello espirito e o seu labor de mestre, fundador de um
curso, hão de ser recordados sempre no paiz que elle
serviq com amor e desprendimento.
Labouriau morreu presidente da Radio Sociedade,
filha da Academia de Sciencias. Naquella casa gerada
Ensaios Brasilianos 77
pelo idealismo constructor, quem estaria melhor do
que o moço republicano, fremente de patriotismo con.-
sciente e sempre ansioso por servir aos melhores e mais
puros ideaes de sua gente ?
Onde houvesse necessidade de uma voz clamando
"mais verdade e mais justiça" - elle encontrava o seu
posto. Foi tão forte o sentimento humano naquelle co.-
ração cheio de enthusiasmo e de carinhos que a Sciencia
não conseguiu obter tudo quanto elle lhe poderia ter
dado, mau grado a pouca idade em que desappareceu.
Ainda assim a campanha que promoveu pela si.-
derurgia nacional, elle a baseou scientificamente, dei,
xando,nos o seu tratado e as notas magnificas das suas
excursões á região do ferro.
Pouco antes de morrer, Labouriau enfumou,se dias
e noites no laboratorio e trouxe de lá novas conquistas
sobre o comportamento de certas ligas metallicas.
Labouriau - era a grande alma enferma do sof,
frimento alheio. O - ardor social, nobre e vigoroso, a
paixão com que sentia a miseria dos pequeninos, o des,
conforto que lhe causavam todos os quadros de injus,
tiça, a revolta que nelle provocavam o desleal e o desho,
nesto, a iniquidade e a vileza, deram,lhe toques subli.-
mes de luz na personalidade seductora.
Manoel Amoroso Costa, foi dos primeiros compa.-
nheiros na fundação da Academia Brasileira de Scien.-
cias, quando ao redor de Morize nós todos nos grupá,
mos.
Ainda hontem eu folheava alguns papeis portado.-
res da sua letra brusca e original. Cartas de Petropo.-
Iis (Duas Pontes) - em que elle enviava notas para as
sessões a que não podia comparecer, quando secretario.
Era uma individualidade das mais bem definidas
que tenho podido encontrar. Conhecia o segredo da
elegancia que não se faz notada. Seus olhos viviam aber.-
tos para toda a natureza e elle nada recusava do que
78 E. Roquette Pinto
ella lhe offerecia de interessante. A' prim~ira vista,
parecia passar indifferente aos espectaculos do mundo
que não fossem themas dos seus estudos predilectos.
Que illusão I Um instante de palestra, desde que elle
q uizesse dar ao interlocutor a confiança de seu raro
abandono, mostrava o subtil humanista, ao mesmo tem,
po que profundo pensador, para quem o Universo não
tinha vozes inuteis.
Do seu mestre, que foi Otto de Alencar, elle tra--
çou um perfil de linhas sóbrias e verdadeiras, onde a
modestia sincera e a capacidade de admirar - traço
dos mais altos espíritos - reponta, a cada passo.
Vulgarizando a theoria da relatividade em 1922,
elle denunciou claramente uma das suas mais fortes
tendencias. "A sciencia, escreveu, é um systema de
symbolos que não póde attingir a essencia das cousas".
O encanto, no mathematico retrahido, de quem,
no entanto conhecemos phrases de espírito agudíssimo,
provinha daquella condição que não permittia jámais elle
se distanciasse da natureza e da sociedade. Em resumo,
acredito que nelle a sensibilidade esthetica, tinha uma
grande, uma formidavel amplitude.
Para bem apreciar a figura intellectual, recatada e
complexa de Amoroso Costa é util comparar alguns pa,
ragraphos do seu ultimo livro, volume que apenas com,
sigo soletrar, mas onde mesmo pessoas de medíocre
preparo encontram leitura seductora.
Assim, no começo elle mostra como o mathematico,
guiado "por vagas analogias, pelo senso esthetico, des.-
cobre um mundo de idéas no qual se revelam uma or--
dem e uma hannonia surprehendentes". A poesia não
deve desamparar o geometra para que este consiga no,
vas conquistas espirituaes.
Em um dqs ultimas capítulos ensina ao leitor como
surgiram as geometrias não,euclidianas concepções que,
diz Amoroso Costa, Gauss possuía desde antes de 1816.,
Ensaios Brasilianos 79

mas que não publicou pelo respeito humano que tinha


pela critica dos beocios - na sua propria expressão, em
carta de 1829.
Passa depois a considerar os postulados fundamen...
taes das tres geometrias, o que, para os ignorantes
curiosos do meu feitio é altamente interessante.
Na geometria de Euclides "por um ponto qualquer
passa uma, e só uma, parallela e uma recta dada". Nes...
sa geometria, a somma dos angulos de um triangulo
é igual a dois rectos.
Na geometria de Lobatchewski "por um ponto
qualquer passam duas, e só duas, parallelas a uma recta
dada. Os angulos do triangulo valem menos que dois
rectos. A differença chama,se deficiencia do tríangulo.
Na geometria de Rieman "por um ponto qualquer,
não passa nenhuma parallela a uma recta dada. Todas
as rectas que passam por aquelle ponto cortam a recta
considerada. A somma dos angulos de um triangulo é
superior a dois rectos. A differença chama,se excesso
do triangulo.
Considerados como construcções logicas, os tres
systemas são legítimos, escreveu Amoroso Costa; Por
que?
Elle mesmo vae dizer com a sinceridade habitual.
A geometria euclidiana formou.-se nos attritos di...
rectos do homem com a natureza, desenvolveu--se com
a experiencia. "Póde parecer que a geomettia eucli...
diana seja a unica adequada aos resultados das medidas
physicas e nesse caso as outras geometrias não passa...
riam de puras abstrações destituídas de interesse pra...
tico". Ora, nenhuma medida por mais requintada que
venha a ser a nossa technica experimental, permittirá
jamais demonstrar a realidade dos postulados eucli.-
dianos".
A medida dos angulos de um triangulo plano, diz
Amoroso Costa, só excepcionalmente dá o valor eucli...
80 E. Roquette Pinto
diano : · dois rectos. "Na verdade os triangulos da ex.-
periencia se apresentam ora como riemanianos, ora
como lobatchewskianos, com excesso ou deficiencia,
sempre muito pequenos, mas muito differentes do zero.
A escolha da solução intermediaria, que é a da geome.-
tria euclidiana, obedece, por assim dizer, a um criterio
de média".
E conclue : "Compete ao physico e não ao geome.-
tra escolher o typo de geometria que melhor convenha
á representação dos phenomenos naturaes, mesmo quan-- ·
do tenha de recorrer a ·uma concepção pouco conforme
ao senso commum. Mas o geometra é livre de seguir
as suas construcções abstractas, respeitando apenas as
leis da razão". ·
Depois de ler o que elle escreveu, a grande familia
plebéa a que pertenço, gente que apenas consegue en.-
tender as mais rudimentares construcções da ,velha geo.-
metria de Euclides - e isso mesmo sabe Deus como 1
- já não considera mais absurdo que outros consigam
acompanhar as abstracções dos modernos. Eu não sei
nada dos caracteres hebraicos ; mas não tenho o direi.-
. to de prestar homenagem á minha insufficiencia, re.-
solvendo affirmar · que o hebraico é uma ociosa fanta.-
sia ...
Para Amoroso Costa a criação artistica e a scien.-
tifica approximam.-se, quando separam "na infinidade
de combinações possiveis, aquellas que são realmente
fecundas, porque só essas são realmente bellas".
Penso que elle viu justo e certo. Sinto que ellas ca.-
minham para o infinito seguindo parallelas que embora
muito proximas se destinam uma, á belleza e outra, á
verdade. . . Mas, parallelas euclidianas ...
"Rien n' est beau que le vrai . .. " O mestre.-escoia _
da poesia franceza queria dizer que só é bello o que é
sincero.
Ensaios Brasilianos . 81

Se a arte tivesse de ser sempre e perfeitamente ver..


dadeira e não apenas sincera e honesta, teriamos a cada
hora os desatinos da sciencia artistica e os arrebiques
da arte scientifica, horrores equivalentes.
Mas não acredito que a fecundidade de que nos
fala o mestre seja o substracto commum.
A· arte e a sciencia, bem como a religião e até mes.-
mo a technica, onde se entrelaçam é no abalo emocio..
nal, sublime arrancada que leva os homens a tentar a
conquista da perfeição indefinivel e inattingivel, como
o valor daquelle symbolo grego, inicial do nome de Pro,
metheu, eterno anseio, que encontramos no inicio das ,
theorias da sciencia, ou no embryão das obras de arte
e dos monumentos religiosos de todas as crenças. No
entanto não está mais em nossa época confundir, no
mesmo termo, as differenças do sentido esthetico, con,
dicionadas pelos temperamentos.
Em sciencia o caso é differente.
Ha, de facto, uma grande belleza manifesta, quan..
do a biologia prova que a curva de uma existencia (na,
scimento, crescimento, declínio e morte), seja a de um
homem, seja a de uma abelha, ê semelhante á trajecto,
ria de uma bala, como se cada ser fosse um projectil
que a natureza atirasse, num momento dado, para o
turbilhão da vida universal. Mas essa belleza philoso.-
phica, póde deixar indifferente um sensibillissimo cria..
dor de belleza artística.
Sciencia tem de ser sempre pensamento.
A arte puramente intellectual - é uma monstruo.-
sidade.
Ella é eminentemente sentimental nos seus pri,
meiros movimentos. Nem é por outra razão que os po.-
vos primitivos dominam os segredos de muitas artes e
pouquíssimos problemas da sciencia conseguem resol-
ver.
82 E. Roquette Pinto
Concordo, porem, sem restricções em que os dons
artisticos, a sensibilidade, a imaginação, mesmo a fan,
tasia, sejam, condições quasi irnprescindiveis ao labor
scientifico. Um scientista que não fôr um pouco poeta,
como queria Amoroso Costa, nunca dará o architecto.
Ha de passar a existencia corno simples artífice, pedrei,
ro humilde e automato, a levantar pedestaes para a
gloria dos outros . . . Seja corno fôr aquella pagina de
Amoroso Costa ê urna profissão de fê.
A independencia espiritual, a liberdade de alma que
elle definiu e que tarnbern tanto prezavam os seus dois
outros companheiros de infortunio, denunciam sensi,
bilidade superior, condicionando o surto, rumo da infi,
nita perfeição, transe do artista e do sabio que é, ao
mesmo tempo, gloria e rnartyrio.
O destino renovou na quéda do sinistro avião de
3 de dezembro, corno no caso de Curie, o syrnbolisrno con,
tido no gesto do soldado de Marcellus.
Na trajectoria da especie, o acaso suscita aquelles
desastres para que as gerações possam encontrar sempre
um prograrnrna inacabado.
Ha urna belleza irnrnanente na obra incompleta.
Avalanches de sonhos incontidos revestem,na de pres,
tigio.
Elos de uma cadeia que ninguem sabe exactarnente
de onde veiu, nem póde, com segurança, affirrnar para
onde vae, os homens contam pela capacidade indivi,
dual de transrnittir, augrnentando,a, a vibração que re,
ceberarn. A omnisciencia, a omnipotencia, a immorta,
!idade seriam tristes e infecundas corno a tréva absoluta.
Só a morte consegue dar o relevo definitivo ás
figuras ; ella accentua os vincos do rosto e anima em
sublime paradoxo, os traços espirituaes dos que se fo,
rarn.
CAPITULO Vll

U M telegramma de Berlim annuncia a morte de


Karl von den Steinen.
A noticia não parece despertar, nos circtdos intel.-
lectuaes do paiz, a emoção que eu esperava. Os aconte-
cimentos, por si, pouco valem ; o que lhes amplia a
significação é a resonancia pessoal em quem os observa.
Karl von den Steinen foi muito mais que o viajante
explorador do valle do Xingú. Foi um grande mestre
da ethnographia e, particularmente, um reformador dos
methodos empregados no estudo dos indios sul.-ameri-
canos.
Não ha exagero nenhum em dizer que desde o velho
Martius, o estudo dos nossos aborigenes não havia feito
progressos realmente scientificos. A ethnographia per-
tence um pouco a todo mundo, como a medicina e a
loucura, de sorte que a não serem alguns dados geogra-
phicos e outros referentes á technica, quasi tudo era
motivo de literatura impressionista, contos maravilho,
sos ou mentiras. O que havia de melhor ainda eram as
velhas chronicas dos seculos passados. Em 1884, Karl
von den Steinen, medico transfuga da clinica naval, e
como tantos outros, apaixonado pela documentação so,
ciologica, que constitue o maior encanto da pesquisa
ethnologica, poz as vistas nos índios do Brasil.
Que motivos o levaram a procurar as nossas regiões?
Elle mesmo os apontou : a primeira geração do seculo
XIX, disse, enthusiasmou-se pelas viagens á Amazo-
nia; a segunda dedicou-se ao Polo Norte ; a seguinte
devassou a Africa Central. S6 a America do Sul espe-
84 E. Roquette Pinto_
rava que se reatassem, no seu ambiente, as pesquisas
da sciencia. A Sul America principiou a ser "moda",
accrescentou voo den Steinen. E nós outros poderia,
mos dizer agora que o Xingú, principalmente - passou
a ser moda para os sabios allemães ...
A primeira viagem de Karl von den Steinen deu.-
nos o admiravel volume "Durch Central.-Brazilien (Atra,
vez do Brasil Central), publicado em Leipzig (1886),
livro dedicado a Pedro II. Foi realizada a excursão em
1884, sendo companheiros do sabio o Dr. Otto Clauss,
astronomo e Wilhelm von den Steinen, desenhista.
De Cuyabá ganharam os expedicionarios a região
dos Bakairi do rio Novo e depois o Paranatinga e o Ba,
tovy, entrando no Xingú que foi descido até ao Ama,
zonas ; mais ou menos o que fez em 1913 o comman,
dante Gusmão Fontoura, a serviço do Ministerio da
Agricultura.
Na Sociedade de Geographia do Rio pocurou al.-
guem, creio que foi Pimenta Bueno, em 88, contestar a
von den Steinen a prioridade da exploração do Xingú.
Valia,se, para isso, de um antigo mappa publicado, se
bem me recordo, em 1802, por Caetano Pinto de Miran,
da Montenegro, carta em que as principaes curvas do
rio estavam esboçadas. A verdade, porém, é que acon,
teceu, no caso do Xingú, o mesmo que na historia da
maioria dos encontros geographicos eni nossa terra. O
caboclo descobre mas não sabe escrever os documentos
do que encontrou. . . E' como se não tivesse descober,
to. E'cos remotos das suas investigações attingem, ás
vezes, os eruditos, quando muito. O que fez Karl von
den Steinen foi mais do que uma simples viagem e mais
do que interessantes descobertas. Com os elementos
ali conseguidos elle refundiu completamente as bases
da nossa ethnographia indígena.
·A surpresa do mundo, em 1884, quando teve no,
tida de que ainda havia, na America do Sul, homens
Ensaios Brasilianos 85
na "idade da pedra", homens, escreveu von den Steinen,
nas condições em que foram encontrados os índios, pelos
descobridores da America, tal surpresa, só em 1907
se renovou, quando Rondon arrancou para a serra do
Norte e desencantou outros primitivos, ainda no mesmo
estado.
Karl von den Steinen considerava como resultado
mais importante das suas pesquisas, a verificação da
diversidade linguística dos índios do Xingú, segregados
no "hinterland".
Consequencia de tudo isso, que o momento não
me permitte desenvolver, foi uma nova classificação dos
aborígenes e depois, uma tentativa curiosíssima feita
no sentido de traçar as possiveis migrações dos nossos
grupos ethnicos primitivos.
Hoje a obra de von den Steinen, mórmente nesta
ultima parte, soffreu, como era natural, grandes modi.-
ficações. No meio seculo deoorrido, muito se tem tra.-
balhado e ê justo reconhecer que os brasilianos levaram
tambem o seu concurso á grande escola.
A segunda viagem de Karl von den Steinen foi reali.- '
zada em 1887--1888. O lindo volume que contem os seus
resultados ê de 1894 : "Unter den Naturvõlkern Zentral.-
Brasiliens (Entre os naturaes do Brasil Central). Fo,
ram, então, seus companheiros Paul Ehrenreich e Vogel.
Dois capítulos desta obra, um sobre os Borôros
e outro sobre os Pareci, estão publicados na Revista
do Instituto, o primeiro traduzido por Basílio de Maga.-
lhães e o segundo por Carlos Loureiro. Alem de innu.-
meros artigos, em differentes revistas, Karl von den
Steinen deixou um volume sobre a lingua e as lendas
dos Bakairi (Bakairi Spraché - Leipzig, 1892), e outra
obra monumental sobre os primitivos das ilhas Mar.-
quezas: ''Vie Marquezaner und Ihre Kunst", estudo
magistral sobre a origem e o desenvolvimento da tatua.-
86 E. Roquetie Pinto
gem, que elle verificou estar, entre aquelles primitivos,
ligada á religião.
Capistrano de Abreu, teve sempre o cuidado de
chamar a attenção dos estudiosos brasilianos para os
trabalhos de Karl von den Steinen ; João Ribeiro, na
sua Historia do Brasil, livro que considero um dos gran,
des volumes em que se asyla a nossa cultura, resumiu
admiravelmente as theorias do sabio ethnologo. Em
1895, na "Revista Brasileira", dirigida por J osê Veris,
simo, Capistrano assim se refere aos trabalhos de von
den Steinen ; "Ao mesmo tempo que apparecia o livro
do dr. Steinen sobre a lingua, estava aqui um Bacery
trazido do Paranatinga pelo dr. Oscar Miranda, quando
realizou sua tão tormentosa viagem rio abaixo atê o
Amazonas. Com o mesmo indio pôde quem escreveu
estas linhas estudar o livro do sabia allemão vocabulo
por vocabulo, e não acha palavras bastantes para ex,
primir a admiração que lhe causou o exacto da trans,
cripção phonetica, a agudeza com que foi apurado tudo
quanto nos materlaes colhidos havia de aproveitavel.
Se, em um paiz que blasona de essencialmente agricola,
fosse permittida a comparação, poder.-se--ia dizer que
o seu engenho, como uma das moendas gigantescas hoje
em uso, esgotou todo o caldo de canna, deixando apenas
o bagaço".
Capistrano não sabia elogiar; dizia sempre a ver.-
, dade.
Tal foi o amigo e mestre que perdemos hontem.
A guerra levou Karl von den Steinen a grandes
aperturas.
Com os olhos rasos de agua elle viu partir da bi-
bliotheca os volumes da sua inestimavel collecção ame.-
ricana. Em 1924, na Suecia, tive a fortuna de conhece~
Ensaios Brasilianos 87

pessoalmente .o sabio. Já em avançada idade, que não


parecia ter, era homem de alta distinção, irradiante
sympathia, espirito vivo e amavel. Falou do Brasil
de maneira commovente. Bem se via que, em sua alma,
paisagens dominadoras, tinham, ali tambem, deixado
,:
quadros que o tempo não conseguia desmaiar.
CAPITULO VIII

E STA - dizia,me ha poucos dias a nossa illustre


collega dra. Emilie Snethlage ao partir para o
Amazonas - será a minha ultima viagem . ..
....

E foi mesmo, para grande tristeza de todos os na,


turalistas do mundo, particularmente para n6s outros
brasilianos, que de perto vimos a sua dedicação ás nos,
sas cousas.
Snethlage consagrára a existencia ao estudo da
Ornis brasiliense. E dizia, cheia de contentamento,
que noventa e cinco por cento das aves do Brasil ella
as tinha podido surprehender, vivas e activas, nos cam,
pos e nas mattas.
Quando se sabe que a fauna do Brasil é notavel
pela sua riqueza omithologica, avalia,se facilmente a
perda que soffremos com a morte de tal naturalista.
Tinha Emilie Snethlage cerca de sessenta annos e
ha uns vinte e cinco percorria o Brasil em todos os ru...
mos. Nascida em Kratz (Westphalia), estudou princi,
paimente em Berlim, onde se doutorou em sciencias
naturaes.
Do seu mestre, o celebre Weissmann, guardou a
mais funda lembrança. Em 1907, logo depois de chega,
da ao Pará, onde entrára no corpo scientifico do Museu
Goeldi, começamos a encontrar noticia das suas excur,
sões. O Tapajóz, o Tocantins, o Purús, deram,lhe no,
tas valiosas. Como trabalho de exploração duas gran,
des viagens, entre outras muitas, realizou a nossa que,
rida, modesta, sabia e amavel collega - duas viagens
que não devem ser esquecidas.
Ensaios Brasilianos 89

A primeira foi a travessia da região entre o Xingú


e o Tapajóz, em 1909, quando ainda se achava no Mu,
seu do Pará. ·
A segunda foi em 1928, quando cedendo a suas ins,
tancias, o Museu Nacional deu,lhe o encargo de per,
correr grande parte da ilha do Bananal - a ilha cheia
de mysterio. Em ambas estas explorações, mórmente
na ultima, ao lado do que obteve em zoologia, avultam
as notas ethnographicas.
As numerosas memorias e os relatorios scientificos
de Emilie Snethlage acham,se esparsos em muitos pu,
blicações do Brasil, da Allemanha e dos Estados Unidos.
Nada, porem, a interessava mais neste momento do que
a grande Monographia das Aves do Brasil, cuja publi,
cação tínhamos assentado seria começada no anno pro,
ximo. A sua ultima viagem ao Amazonas foi motivada
por algumas duvidas a respeito dos habitos de certas
especies que ella desejava definitivamente esclarecer.
Snethlage tinha uma modestia meiga, tão attra,
hente que ninguem a encontrava sem que a estimasse
logo. Espírito vivo e sensível, adorava a musica. Re,
cordo,me ainda de ouvir as expressões do seu enthusias,
mo narrando o encanto que lhe proporcionou o "Qua,
dro allemão" de cantores que ha poucos annos encar,
naram, no Municipal, os heróes e as heroínas de Wa,
gner. Dos brasilianos humildes do interior, dos "seus"
índios, dos seus canoeiros ou tropeiros ella falava sem,
pre commovidamente. Cortou o Brasil em todos os
rumos e nunca encontrou quem lhe quizesse fazer o
menor mal. E era mulher que conservou os seus lindos
cabellos longos até ha pouco, explicando que a moda dos
cabellos curtos seria de facto muito commoda para uma
naturalista, mas que as senhoras, no interior, poderiam,
no começo do uso, estranhar . . . Os cabellos longos
garantiam,lhe o respeito das famili~s, em muitos lugares.
,.
90 E: Roquette Pinto
A morte de Emilie Snethlage ha de ser profunda,
mente sentida, não s6 nos circulos intellectuaes do r~
to do mundo e do Brasil, na Academia Brasileira- de
Sciencias, de que ella fazia parte, como está sendo no
Museu Nacional, onde ella tinha um amigo respeitoso
em cada collega.
O seu desapparecimento será tambem uma triste,
za para os nossos humildes compatriotas, perdidos na
terra immensa, que a grande enamorada das aves pai,
milhou cheia de enthusiasmo, derramando sympathias
emquanto servia a sciencia.
CAPITULO IX

O livro de Manoel Bomfim surgiu no momento pro--


prio, quando o paiz inteiro começa a pensar na
raça e procura verificar se são verdadeiras as doutri.-
nas dos derrotistas que calumniam os seus patricios
atrasados.
E' uma grande voz contra a bacharelice ousada,
que se intromette na biologia humana, com o mesmo
desplante das mulheres velhas, que receitam mézinhas
para qualquer enfermo.
Livro são. Erudito e despretencioso. Forte. Claro.
Preciso. E, ao mesmo tempo, cheio de communicativa
emoção. E' para mim, o melhor dos livros de M. Bom.-
fim; um dos mais notaveis trabalhos do pensamento,
publicados neste paiz, nos ultimos tempos.
A obra continua, de maneira logica, outro volume
do autor - "A America Latina" - em que elle respon.-
deu aos sociologos ingenuos que julgam todos os po.-
vos deste continente, "povos inferiores, condemnados
á agitação facciosa de um barbarismo esteril e desin.-
teressante para o resto do mundo".
No volume actual estuda o caso particular da for.-
mação brasileira, desmontando o preconceito pueril e
o commodismo dos que attribuem todos os nossos males
á raça, ao cruzamento, á mestiçagem ...
Tomava.-se necessario, diz o autor, considerar esse
tratamento quasi infamante, para mostrar, justamen.-
te, que elle só é adoptado, e assim repetido, porque dis.-
sertadores faceis nos julgam sem nos conhecer.
92 · E. Roquette Pinto
O autor quer ver desvendados todos os defeitos reaes
deste povo, objectivados, analysados, nas origens e nas
circumstancias que favoreceram a sua eclosão. Mostra,
porem, sem nenhum sentimentalismo e sem pieguices,
que são males curaveis, transitorios.
Não é possível admittir que este povo tenha resul.-
tado de uma somma algebrica de taes e quaes expres,
sões ethnicas. Insurge-se o autor contra a supposta
mistura. Houve, muito mais do que isso, e que a bacha-
relice não sabe que é differente : - combinação.
Muitos caracteres dos elementos que entraram no
phenomeno, perderam o significado ; outros novos ap.-
pareceram, como é de regra nas reacções.
Depois da notavel introducção, Manoel Bomfim
passa a estudar as origens ibericas, o gentio, o negro.
São capitulos alentados, de erudição sedimentada.
Não direi que, ao longo de tantas paginas, aqui e
ali, as opiniões do autor coincidam rigorosamente com
as doutrinas que me são mais caras. E' certo, porem,
que tudo, nesse livro, é honesto e sincero.
Onde culmina - "O Brasil na America" - para
mim, é no quinto capitulo, consagrado ao estudo do
cruzamento, na formação da população brasileira. Não
acceito integralmente as opiniões do autor a respeito
. da "herança mixta,, na especie humana. Os meus es,
tudos e as minhas observações, colhidas durante muitos
annos, levam-me a confirmar o que Fischer verificou
no cruzamento hollandezes X hottentotes (Rheoboter)
e Davenport encontrou na Jamaica : a herança mende.-
liana é real. Nos mulatos, quando a prole é grande,
ella se ostenta claramente. Mas, a não ser essa pe.-
quena divergencia, considero magistral o estudo que,
dos cruzamentos na especie humana, realizou M. Bom,
fim no seu bello trabalho.
Habituado ao trato directo da sciencia, professor
de Historia Natural dos mais idoneos, fundador dos es.-
Ensaios Brasilianos 93
tudos de psychologia experimental neste paiz, Bomfim
apresenta o nosso problema da raça em termos nítidos :
"A Nação Brasileira é um producto de mistura,
num grau tal, por tantos seculos, que da nossa visão de
progresso e grandeza social deve ser afastado todo o
anhelo e toda a preoccupação de pureza, negativa e
dissolvente. Se ha absoluta inferioridade nas raças ;
se o cruzamento ainda accentua taes inferioridades ;
então resignemo~nos a ceder a terra a outros, onde
possa haver pureza de sangue, porque no Brasil que
ahi existe, no Brasil tradicional, effectivo e real, desde
os seus primeiros anos até hoje, o povo - a realidade
mesmo da nação, é mistura, jã agora indestrinçavel,
mistura que poderá realisar um novo typo ethnogra..
phico, um producto estavel, mas que jamais será um
typo branco de relativa pureza - um typo aryano, no
dizer pretencioso dos que se aprazem em arremedar a
sciencia".
Ainda quando os melhores autores dissessem o
contrario, n6s temos deante dos olhos a "sciencia que
está na vida" e vale muito mais do que "a sciencia que
está nos livros". O Brasil não é uma expressão senti,
mental. A conquista é a occupação do territorio não
é um soneto . . . o Brasil é um facto.
O que o povo mestiço fez em um seculo, depois que
se livrou da exploração gananciosa que o garroteou du,
rante trezentos annos, não é uma allegoria, nem uma
flôr de rhetorica ...
Não ha peor derrotismo do que o embuçado nos
disfarces da anthropologia literaria, que encontra na
tolice do "sangue aryano" _:,;. a salvação do paiz. E' .
perigoso. E' mau. Porque simplifica de modo grossei,
ro uma série de questões difficilimas e, por isso, acaba
seduzindo muita gente. Lei do menor esforço ...
O livro de Manoel Bomfim - "O Brasil na Ame,
rica" - veiu no bom momento, abrir os olhos dos es.-
94 E. Roquette Pinto
tudiosos contra os imprudentes e levianos que, sem me-
dir o damno que fazem, porque a sciencia, que os serve,
para tanto não basta, tentam criar no Brasil uma "ques~
tão de raças", explorando preconceitos que mal vege~
tam na população, augmentando ainda mais o que o
grande espírito de Alberto Torres con iderou o maior
mal deste paiz : falta de organização nacional.
CAPITULO X

e ADA vez que algum dos meus amigos ergue a voz


para lastimar as desgraças do Brasil - paiz que
continua, como no tempo do rei, "á beira de um abys,
mo" - eu, que sinto profundamente tudo quanto acon,
tece á minha terra, agito,me desassocegado, á procura
de alguma cousa que me sirva de apoio ao espírito op,
timista incorrigível. Quasi sempre tenho sido feliz.
Porque raras vezes deixei de encontrar, entre documen,
tos publicados, o que todo o meu ser reclamava como
elemento essencial de um conforto, de um consolo ou
de uma nova esperança.
Isolo,me algumas horas na leitura e na meditação
de tudo quanto este povo vae realizando na sciencia,
na arte e na industria. E as sombrias perspectivas que
os quadros da vida politica por ventura possam sugge,
rir, sem demora desmaiam, como as sombras que re,
vestem fórmas aterradoras aos olhos das crianças dei,
xam de impressionar os pequenos, desde que se lhes cha,
n:ie a attenção para outros lados. Infantil? Devo, as,
sim, ao almirante Ferreira da Silva um dos taes subli,
mes derivativos ; a leitura do seu Relatorio sobre -a
demarcação da fronteira Brasil,Perú.
O livro sahiu da Imprensa Nacional este anno de
1929. Mas foi concluído a 31 de Maio de 1928. E' obra
massuda, como todos os relatorios, mas tão cheia de
Vida, referta de episodios, tão documentada por gra,
Phicos, mappas, photographias, que agente a lê de uma
assentada ; aprendendo sempre alguma cousa mais do
nosso territorio, da energia do seu povo humilde, da
96 E. Roquette Pinto
capacidade dos seus homens cultos, entre os quaes o
illustre almirante tem digno lugar.
A historia da ' demarcação daquelles limites é das
mais interessantes. Conta alguns nomes realmente
notaveis ou mesmo gloriosos.
O resumo er.ecioso do prof. Fernando Gabaglia
menciona, desde -1841, as tentativas realizadas no as,
sumpto. Em 1861 e 64 foi nosso representante o barão
de Ladario, então capitão-tenente José da Costa Aze,
vedo. Na exploração do Jaquirana, em 1866, dois au,
xiliares da Commissão Mixta, Soares Pinto, brasileiro
e Paz Soldan, peruano, foram flechados pelos índios.
Em 1871, o barão de Teffé foi o chefe por parte do
Brasil. O geographo Paz Soldan que, mais feliz do que
Soares Pinto, escapara da setas de 66, morria, então,
de febre no Içá. Em 1905, já depois do tratado de Pe..
tropolis, apparecem na emp1eza dois nomes de brilho :
Euclydes da Cunha e Bellarmino de Mendonça. De
1913 é a organização da Commissão Mixta em que,
por parte do Brasil, figurou como chefe o almirante
Ferreira da Silva. Mas, até aqui, eu citei apenas os
grandes nomes dos chefes. No entanto, entre os auxi,
liares de 1913 encontro Antonio Pyrineus de Souza,
meu· companheiro da "Rondonia" e qu~ hoje comman,
da a Escola de Sargentos de Infantaria, centro de cul,
tura de que se pôde orgulhar o Exercito Nacional.
Cerca de quinze annos de trabalho acerrimo resu,
me o livro de Ferre;ra da Silva. Evidentemente o as,
pecto que interessa á geographia physica é, ali, o maior.
Houve mesmo, por parte do commissario brasileiro, um
justificavel luxo de minucias, tendentes â maior preci,
são possivel em todas as determinações. A radiotele,
graphia brilhou - como sempre - nos serviços pres,
tados a determinações de longitude. Em 1902 Luis
Cruls tentara utilizar-se do telegrapho sub-fluvial para
obter a longitude de Manáos. A linha, porém, era pre,'
Ensaios Brasilianos 97

caria. Ferreira da Silva, no ·entanto, ecebia em "Sen.-


na Madureira", convenientemente, os radio.-signaes de
Manaos, transmittidos com 75 kw. Em Manaos, re.-
cebia mal os signaes do Acre, enviados por uma esta.-
ção de ondas amortecidas, de 9 kw. Isso era, porem,
em 1913. Não estavam, então, ao alcane de qualquer,
as ondas continuas, as ondas curtas, as valvulas ther.-
mionicas, que permittem actualmente a um collegial
de S. Paulo conversar com o Japão, ou a um curioso
do Tunel Velho "falar" com a Inglaterra, usando uns
15 watts ...
As coordenadas da nascente principal do Jaquira.-
na foram definitivamente fixadas.
Depois de historiar esse problema, fazendo inteira
justiça aos predecessores, que não dispunham de ins.-
trumentos de trabalho comparaveis aos seus, conclue
o Almirante : "Penso ter resolvido o caso duvidoso de
latitude da nascente principal do rio Jaquirana ou Alto.-
Javary, o qual esteve durante 25 annos no domínio
da interrogação".
A fronteira demarcada conta 1.565 kilometros,,
83m,31, sendo 572 kil. 774m,11 por agua e 992 kil.
309m,28 por terra. A linha ficou assignalada por 86
marcos. Os levantamentos auxiliares comprehenderam
1.589 k., Jllm,11. A Commissão Ferreira da Silva
fez entrar no mappa do Brasil, total 3.183 kil., 227m.,
sem falar nos trechos tambem levantados em outros
pontos da região, e desenhados em mappa especial.
Seria vantajoso divulgar a construcção de um abrigo
de madeira, imaginado pelo geographo brasiliano, para
proteger o seu theodolito astronomico, abrigo "aconse.-
lhavel em todas as commissões que venham a utilizar.-
se de instrumentos semelhantes e nas mesmas condições".
Aos botanicos interessa particularmente uma nota
do Relatorio. E' o caso, que a derrubada feita por Luis
Cruls, em certo ponto das margens do Jaquirana, der...
98 E. Roquette .Pinto
rubada que pela sua extensão o sabio astronomo pen.-
sava sempre se poderia reconhecer, ao cabo de alguns
annos nenhum signal tinha deixado : "Passados eram
annos, escreve o Almirante, e nenhum vestigio foi en.-
contrado da referida derrubada, naquelle lugar, onde
existem arvores tão grandes como as demais da densa
floresta. ·. .
Dos indios da região, alguns ?ºs 9uaes _d~v~ram
os seus mortos, mas não comem Jamais os 1mm1gos,
nada soffreu, de sério, a commissão. Tambem _F erreira
da Silva e os seus dignos companheiros não pensam,
por principi~, como aquelle general norte,americano
para quem "lndio bom, é indio morto".
O perigo maio,r, nas explorações do nosso hinter--
land, em certas regiões, é a doença. Felizmente a pre.-
videncia do chefe encontrou nos drs. Gouveia Freire,
João Braulino de Carvalho e Manuel Mauricio Sobri.-
nho, os assistentes dedicados que as circumstancias re.-
clamavam. Em annexo ao Relatorio, encontram-se
notas interessantes sobre a ethnographia regional, de.-
vidas aos cuidados de João Braulino e Manuel Mauricio.
Ao dr. João Braulino, especialmente, deve a his.-
toria natural ter sido representada no meio dos enge.-
nheiros, preoccupados com trabalhos de alta respon.-
sabilidade. O proprio chefe da Commissão, ás vezes,
transcreve apontamentos valiosos, como o referente a
certa arma dos Cachinauás destinada á propulsão das
flechas, typo original de balestrina.
Não quero concluir esta breve noticia sem trans.-
crever algumas linhas do Relatorio magnifico do Almi.-
rante Ferreira da Silva. E' corda que faço vibrar sem.-
pre que posso e agora me agrada muito ver tambem
pulsada pelo eminente geographo.
"Serviços de alta relevancia, diz elle, podiam ser
drestados ao paiz, se ás commissões demarcadoras das
nossas fronteiras se incorporassem geologos e outros
Ensaios Brasilianos 99

especialistas dos varios ramos de Historia Natural,


destacados dos nossos institutos officiaes, que assim
aproveitariam optimas opportunidades para a reali.-
zação de impo.rtantes estudos, em regiões desconheci.-
das, com pequena despeza e grande proveito scientifico".
Basta correr os olhos nas publicações de historia
natural, feitas directamente pela Commissão Rondon,
ou com o seu apoio, para ver quão justas e certas são
essas palavras. Infelizmente não se trata somente de
destacar um scientista para seguir uma dessas commis.-
sões. E' preciso apparelhal,o. Aqui é que pega o carro . ..
Pela parte que nos tóca, desejo fornecer uma simples
informação. Os institutos norte,americanos costumam
calcular o orçamento de uma exploração scientifica, na
Africa ou na America do Sul, avaliando em 3.000 dol,
lares, por mez e por pessoa, as despezas a realisar.
Um botanico, nessa base, viajando na Amazonia,
annexo a uma commissão de limites, deveria ter á sua
disposição para trabalho de tres mezes, 9.000 dollares,
· sejam 75 contos.
Os naturalistas do Brasil dispõem mais ou menos,
da raiz cu bica de taes recursos. . . E nem sempre.
CAPITULO XI

A gloria lyrica de Claudio Manoel da Costa vae de..


pressa amortecendo, como crepusculo de baixa
latitude. Hontem, relendo o poeta e ouvindo o que dei..
le disse de maneira tão profunda Alberto de Oliveira,
em uma das suas melhores lições de literatura, que foi
a sua palestra na Academia, veiu.. me ao pensamento o
ambiente intellectual dos nossos maiores. Rhetorico,
sem nenhuma naturalidade, o velho poeta de Villa Ri..
ca dá.. me a impressão de um erudito que fazia versos
porque era preciso conquistar os patricios .. ,.
Na conferencia realizada no Instituto Historico,
o Sr. Afranio de Mello Franco lembrou que o chama ..
ram "Metastasio brasileiro" . Não conheço compa..
ração mais infeliz. Metastasio, que era Antonio Dome.-
nico Bonaventura Trapassi - foi para J. J. Rousseau
"I' unique poete du coeur" ...
Schlegel o chamou : "Racine de Italia" ; Voltai..
re dizia delle que era um Comeille sem declamação.
Onde em Claudio Manoel da Costa, o vigor poeti..
co? A sensibilidade profunda e natural?
"Então eu me ajuntava com Glauceste
E á sombra d' alto cedro, na campina,
Eu versos te compunha e elle os compunha
A' sua cara Eulina".
Vê..se logo que elle não conheceu jamais nenhum
Glauceste, nem nunca achou tal cedro, nos pincaros de
Ouro Preto. Mas, era moda. . Acabou,se.
Ensaios Brasilianos 101

Mesmo o soneto que Alberto de Oliveira recitou


na Academia, como sendo uma das joias do patrimonio
de Claudio : "Nize I Nize I Onde estás? - é de uma
superficial sensibilidade que nos deixa absolutamente
indifferentes ás dores do poeta. Ouvindo,o, tem,se von,
tade de dizer : " Qual I Isso é verso !"
Sylvio Romero nota, muito bem, que o ~oeta des,
crevia mal a natureza ; acha "habilidade" nas suas
linhas consagradas ao mundo do pensamento e da sen,
sibilidade ; era um "melancolico". E' certo. Mas de
uma tristeza convencional, embora não lhe faltassem,
na vida amorosa, razões e motivos para ser sincero.
Na "Inconfidencia", a insufficiencia de Claudio
Manoel da Costa é ainda mais accentuada. O menos
que se diz, nos panegyricos, é que o "seu depoimento
foi infeliz". Infelicíssimo. Delator dos companheiros,
pusillanime, preoccupado em salvar a pelle, talvez o
mais serio accusador do Tiradentes.
No entanto, parece ter sido o primeiro dos victi,
mados ; não resta mais nenhuma duvida á luz dos
documentos hoje conhecidos quanto ao seu assassina,
to na prisão. Foi, pois, um martyr, embora medroso e
sem lustre.
Se, porem, as suas poesias não lhe poderiam dar,
em bôa justiça, um lugar definitivo entre os melhores ;
se a sua conducta cívica não lhe engrandeceu, em nada,
a estatura, Claudio Manoel da Costa foi, incontesta,
velmente, um intellectual de grande relevo naquelles
tempos. Isso deve bastar para o fazer lembrado, mesmo
porque, os dias em que vivemos vêm cada vez mais
confirmado as expressões de Sylvio Romero: "Um
povo que nada produz, na ordem das idéas, é um povo
esteril e inutil para a humanidade. Na ordem das idéas
as mais importantes são as scientificas ... "
Affonso Celso, tambem na Academia, quinta,feira
passada recordou a erudição de Claudio Manoel da Cos--

s iõ7c E 00 BRASIL
( ~N IV-ERIIBLIOTECA >
102 E. Roquette P into
ta, lembrando, entre outros factos, a sua divulgação
das obras de Adam Smith, o economista do tempo, e
os conhecimentos scientificos que o "poeta" revelou
possuir.
Rezam as noticias biographicas que, em 1758.
Claudio Manoel da Costa levantou a carta topogra...
phica de Villa Rica, recebendo, então, um premio que,
por esse trabalho, lhe conferiu a Camara do lugar. Fran.-
camente, se a "carta" está certa e eu creio que sim, á
vista do premio, Claudio deveria ser evocado de busso.-
la e prancheta, antes que de cíthara em punho. M6r,
mente se nos recordarmos dos accidentes topographi.-
cos da região levantada ...
Não chegarei ao ponto de propôr o cancellamento
da gloria poetica de Claudio Manoel da Costa, nem
tão pouco a sua exclusão da lista dos martyres do pa.-
triotismo. Mas, penso que todos os seus sonetos de cir,
cumstancia que hoje ninguem mais lê - não valem,
positivamente, como serviço prestado á cultura do seu
povo, a carta topographica de Villa Rica, em 1758.
Qualquer doutor de Coimbra faria versos daquella
classe... ·
Por que razão, esse homem erudito, dono de bôa
'sciencia e de tão anemica sensibilidade artística, foi
sempre glorificado justamente como poeta? Porque
nunca se lembrou alguem de publicar a "Carta Topo.-
graphica de Villa Rica"l:-!:1
documento sem duvida,
hoje, muito ~·mais precioso do que todos os seus versos
alambicados? E',"'.q ue a rhetorica sempre foi estygma
forte da vida intellectual dos nossos avós.
CAPITULO XII

Se fosse preciso definir as tendencias da medicina


moderna, eu diria, duas palavras : racional e social.
Guerra surda ou declarada, ao preconceito etiologico ou
therapeutico ; solicitação constante ás sciencias, revolta
incoercível contra a autoridade profissional indemonstra..
vel. De outro lado individualização cada vez mais apu--
rada do phenomeno pathologico e <:xtensão cada vez
maior, do aspecto social de todos os casos.
Ninguem ousará negar o que tem existido de chao--
tico, anarchico, e mesmo confuso naquella evolução ;
mas tambem ninguem deixará de reconhecer que a in--
quietação moderna impediu a estagnação da arte logo
após ás conquistas retumbantes da microscopia, da
chimica biologica, da historia natural applicada. Porque
foi o desassocego dos mestres que se não contentavam
com a diagnose anatomica e com a etiologia, o que levou
a medicina ao espaço novo, amplo e fecundo, definido
por De Giovanni como ambiente condicional indispensa--
vel, na consideração do facto clinico.
O mestre italiano observa quanto ê ainda forte o
preconceito que attribue toda doença a causas externas.
Faz valer o individuo. E não andaremos longe da ver-- .
dade, por nossa vez achando, que, no individuo, na maio--
ria dos casos o medico apenas encontra, estuda e procura
curar um symptoma particular de um grande mal do
povo ...
Felizmente começam a reconhecer que nos individuos
doentes assistem ao epilogo dos males. E então, buscam
prevenir a desgraça certos de que isso ê possível pela
educação e pela eugenia.
104 E. Roquette Pinto
Miguel Couto foi um pioneiro completo da arte
renovada.
Os mestres no seu tempo de estudante poucas in..
dicações pediam ás sciencias que hoje tão largamente
assistem á clinica. Ao lado dos famosos profissionaes
titulares do lmperio, que se contentavam em "ver a
língua" e "tomar o pulso" entre duas pitadas de rapé,
socorridos pelo grande lenço d'Alcobaça, já Torres
Homem pesquizava albuminuria, nas febres do Rio de
Janeiro; outros commentavam o emprego do thermo.-
metro e Nuno de Andrade chegava á innominavel ousadia
de aconselhar injecções hypodermicas.
Miguel Couto apparece en.t re os pregoeiros do pro.-
gresso, cuidando de levar á clinica a contribuição scien.-
tifica mais apurada que os tempos iam permittindo.
A minha geraçãn pôde ver o esforço que tiveram de
fazer os pioneiros. Quando ahi por volta de 1900, appa.-
receu a peste bubonica em Santos, partiram do Rio em
trem especial dois medicos illustres - Chapot,Prevost e
Affonso Ramos - encarregados de realizar o diagnostico
bacteriologico do mal. Chapot Prevost, notavel professor
de histolc,gia e parteiro ; Ramos, laryngologista de boa
clinica, tinha por acaso o curso do Instituto Pasteur de
Paris. Era o que havia de mais autorizado. Miguel Couto
na sua cathedra, rompeu a marcha dos valores novos.
Apenas Henrique Morize e Otto de Alencar na Escola
Polytechnica haviam ensaiado para fins didacticos os
Raios X e logo Miguel Couto conseguira inaugurar,
brecha formidavel nas melhores tradições da "verdadeira
clinica" um modesto laboratorio de roentgen,diagnostico
no serviço da sua enfermaria. Ali vimos, alumos curiosos
de 1903, a primeira ampolla; e foi alli tambem que pela
primeira vez, num recanto escuro, brilhou aos nossos
olhos uma substancia radioactiva, muito antes de se ter
começado a applicação corrente da curietherapía. Foi
tambem iniciativa de Miguel Couto a installação de um
Ensaios Brasilianos 105
galvanometro de corda._.numa casinhola adrede construi.-
da no pateo ajardinado da Santa Casa - primeiro electro.-
cardiographo da Faculdade de Medicina. Eis ahi em
, poucas palavras, que são apenas ementario de factos,
como elle serviu ao ideal da medicina do tempo, em tudo
quanto se relaciona com a sua constituição scientifica.
Racional e Social, disse eu. Social foi igualmente a sua
carreira, como poucas, neste paiz. Nos ultimos annos
Miguel Couto vivia - elle que era apropria serenidade-
vibrando de civismo, empolgado por dois problemas que
são, ao mesmo tempo, questões de sciencia e da mais
elevada arte política : a educação do povo e a protecção
da raça. Melhor que outro qualquer elle compréhendeu
o problema educativo no Brasil ; ê principalmente uma
questão de recursos. A chave mestra do seu projecto era
armar o poder publico com dinheiro bastante para realizar
a conquista. Que se consagrasse em cada orçamente algo
de menos miseravel, para custear a campanha do ensino.
Continúo, ainda aqui, a formar entre os seus discipulos.
E quero repetir mais uma vez : o problema da educação
popular no Brasil, não ê questão pedagogica ; ê caso
financeiro ou economico. Fóra dahi : congressos, con.-
ferencias, discursos ..•
E por amor á raça, Miguel Couto fundou o Con.-
gresso Brasileiro de Eugenia cujo exito memoravel não
preciso recordar.
E' certo que no caso immigração não pensavamos
inteiramente do mesmo modo. Num de seus ultimos e
luminosos discursos o Mestre deu.-me a immensa alegria
de acceitar algumas opiniões, de que, ha annos, dissentia.
Concordou commigo que não ha lei biologica nenhuma
que desaconselhe os cruzamentos. E si alguem aqui com
autoridade bastante de novo a formulasse, nos todos a
demonstrarlamos com o exemplo tangível dos nossos
mestiços, que conquistaram a terra inhospita e della
tomaram conta. Mas appellava para razões de ordem
106 E. Roquette Pinto
extra biologioa ; e, nesse terreno, eu atê hoje não disse
nada .. . A respeito do povoamento do Brasil, i'enso que
os brasilianos precisam ser educados e não substituidos.
E a respeito da immigração creio que, em nosso interesse
pro prio, o individuo immigrado importa muito mais que
a sua raça. Individuo são, de boa herança, educado e
instruido, senhor de um officio - não póde deixar de
ser bemvindo. O Brasil não precisa de braços; mas pre-
cisa de gente que lhe traga ensino e cultura para que elle
saiba, afinal, aproveitar os maravilhosos braços que tem.
A existencia de Miguel Couto, foi, para a nossa
riqueza moral e espiritual, um thesouro de acções bellas,
boas e fortes. A Academia Brasileira de Sciencias manda ...
me glorificar sua excelsa memoria. Sou nesta hora, o
mais feliz dos seus discípulos.
CAPITULO XIII

UANDO, ha mais de trinta annos, no Museu Na...


Q cional, comecei os meus estudos brasilianos, a fi.,.
gura de Hartt, extremamente sympathica entre os
naturalistas estrangeiros dedicados á nossa terra, prendeu
a minha attenção. O cuidado com que realizou as suas
observações, a honestidade scientifica, a clareza da ex--
posição, a visão ampla dos problemas, a emoção dis--
creta que resal~a de muitas das suas paginas consagra. .
das a esta nacionalidade, a natureza de alguns trabalhos
seus versando assumptos da minha predilecção - tudo
concorreu para que a personalidade de Charles Frede. .
ric Hartt fosse ancorada na minha estima.
Quando a So.ciedade Brasil--Estados Unidos pos,
suir a sua galeria de notaveis, o retrato do sabio norte--
àmericano deverá figura entre os primeiros, mas offe. .
recido pelos socios brasilianos . ...
Nos meios scientificos do Brasil seu nome e seus
trabalhos são constantemente recordados. Não ha geo...
logo ou ethnologo deste paiz que delles prescinda. No
Muse~ Nacional, de que elle foi professor chefe de sec. .
ção, uma sala · tem o seu nome. Mas o grande publico
naturalmente não póde estar sempre ao par do que ha,
jam feito ou vão fazendo os que trabalham nos recan...
tos scientificos. Desse ponto de vista, a Arte ampara
melhor os seus cultores. A arte serve,se das multi,
dões ; as multidões ·servem--se da sciencia. . . e por
isso muitas vezes ignoram os scientistas de cujo labor
tiram proveito. E guardam facilmente o nome dos ar..
tistas.
108 E. Roquette Pinto
Longe de mim pretender nestas paginas apressa..
das traçar a biographia de Hartt, e compor um ensaio
critico sobre a sua grande obra ; o meu proposito ê
apenas evocar um nobre vulto que serviu ao Brasil e
á Sciencia, honrando a patria norte..-americana. E, tam..
bem, nesta homenagem, pago uma divida contrahida
commigo mesmo, na minha mocidade•

•• •
Charles Frederic Hartt nasceu na Cidade de Fre-
dericton, New Brunswick, Canadá. Quando? Encon-
tro em uma noticia biographica a data de 1840 para o
seu nascimento. Mas, em 1878, segundo um documento
official, morreu com 39 annos ; logo, deve ter nascido
em 1839. E estamos assim celebrando, de facto, o seu
centenario.
Seu pae dirigia um Instituto de Ensino na Ameri-
ca ingleza, e o joven Hartt concluiu os seus estudos no
Collegio da Acadia, Nova Escossia, em Wolfville.
- Ainda estudante~ realizava pesquisas no terreno. O
Professor Dawson descreveu alguns insectos fosseis,
dos mais antigos descobertos pelo moço naturalista.
Em 1862, encontramos Hartt trabalhando no Museu
de anatomia comparada de Cambridge, sob a direcção
de Luiz Agassiz. Cambridge, Mass, U. S. A., séde da
Harvard, a mais antiga Universidade do paiz, residen-
cia de Longfellow prolonga, na America, como todos
sabem, a fama daquelle nome inglez de identico presti--
gio cultural. Agassiz, em diversos pontos de seus estu-
dos referentes ao Brasil, não foi, positivamente, bem
succedido. Mas era indiscutivelmente grande natura-
lista, mestrê de autoridade. Antes de ir da Suissa, sua
terra de nascimento, para os Estados Unidos, ainda es..
tudante teve a honra de receber de Martius, para des--
Ensaios Brasilianos 109

crevel,a, a collecção de peixes obtida por Spix, na via,


gem memoravel de 1817,1820.
Tenho criticado severamente algumas paginas de
Agassiz, consagradas aos mestiços do Brasil : desejo
aproveitar esta occasião para prestar..Ihe a homenagem
a que, por muitos outros títulos, tem direito. Foi gran,.,
de amigo da nossa terra ; e entre outras coisas que lhe
devemos, acha,se a viagem de C. F. Hartt, seu assis.. ,
tente no Museu de Cambridge, de quem elle fez geologo
da expedição de 1865..66, custeada por Nathaniel Tha,
yer e excepcionalmente auxiliada pelo imperador Pe.. .
dro II.
Não exaggero dizendo que, de 65 atê o fim da vida,
o Brasil constitiu o principal objecto dos estudos de
Hartt. Como geologo da expedição Thayer, Hartt es...-
tudou a geographia physica e a geologia da costa do
Brasil, entre Rio e Bahia, acompanhado por Edward
Copeland, de Boston, naturalista voluntario de quem
fez grandes elogios. Voltou aos Estados Unidos com
Agassiz, mas não se demorou muito. Na primeira via..
gem, o Brasil o tinha impressionado de tal forma que,
no anno seguinte, 1867, resolveu passar as ferias estu,.,
dando particularmente e>s recifes coralinos dos Abró,
lhos. Recursos pecuniarios para esta segunda explora..
ção foram facilitados por John Lockwood, de Brooklin;
a New York Association for the Advancement of Scien,.,
ce and Art ; o Cooper lnstitute ; Miss Chadeayne
e outros benemerit~.
Na vida de Hartt essa excursão foi decisiva.
A hospitalidade com que, por, toda a parte, me re,.,
ceberam no Brasil - escreveu elle - a assistencia que
me offereceram - "have made me love the land of the
sabiá"
Accrescentava que o seu desejo profundo era ser..
vir ao Brasil.
110 E. Roquette Pinto
Ao regressar da segunda viagem, publicou Hartt
o seu grande volume "Geology and Physical Geography
of Brasil", Boston, 1870, onde compendiou igualmente
os resultados da sua actividade na expedição Agassiz.
Já então, era professor de Geologia da Cornell
University. Nesse Instituto, fundou um laboratorio
photographico. Em lthaca, N. Y. fundou a Sociedade
de Historia Natural. O Museu Nacional do Rio de Ja.-
neiro era bem modesto, não tinha ainda passado pela
notavel reorganização do Ministro Thomaz Coelho,
fôra em 65 soberanamente despresado por Agassiz. Mas
em 70 merecia a attenção de Hartt.
Encontro, nos documentos do archivo do Museu,
este aviso : "Ministerio da Agricultura, etc., 10 de Ja.- _
neiro de 1870. - Tendo Ch. Frederic Hartt, professor
da Comell University, de New York, e autor de uma
obra ainda não publicada sobre a geologia e geographia
physica das provindas marítimas do Brasil, pedido uma
collecção illustrativa dos nossos productos para o Mu.-
seu daquella cidade, convém que V. S. informe se póde
ser attendido o desejo manifestado pelo referido pro.-
fessor, ou até que ponto póde elle ser attendido. Deus
guarde a V. S. Paulino José Soares de Souza - Ao Sr.
Director do Museu Nacional".
Ein Outubro do mesmo anno, achava.-se Hartt no
Amazonas, dirigindo a Morgan- Expedition (1870.-1871).
No verão de 74, obteve 5 annos de licença na Comell
University, e veiu de novo ao Brasil dirigir a Commis.-
são Geologica do lmperio.
Devo a Euzebio de Oliveira, meu illustre amigo e
collega na Academia de Sciencias, cópia do seguinte
documento em que o proprio Hartt narra a fundação
dos serviços que passou a dirigir em 75 :
"Em 1874, tive a honra de receber de S. Ex. o Con.-
selheiro José Fernandes da Costa Pereira um pedido
official de fazer uma proposta relativa á exploração sys.-
Ensaios Brasilianos 111

tematica de Geologia do I mperio. e foi ao Rio de Janei,


ro, no fim do anno, submettido logo ao Governo Impe,
ria] um plano para esse fim. Não havendo verba suf..
ficiente, S. Ex. o Ministro propoz que eu começasse em
uma escala mais modesta do que a da minha propos,
ta. E no dia 1.0 de Maio de 1875 fui nomeado chefe
da Commissão, sendo nomeado ajudante o Engenheiro
Dr. Elias S. Pacheco Jordão, geologos auxiliares os Srs.
Orville A Derby e Richard Rathbun, e praticante o
Sr. Dr. Francisco José de Freitas. Tendo o governo me
dado o direito de contractar um photographo, escolhi
o Sr. Marc Ferrez, da Côrte".
Marc Ferrez - que era mestre na sua arte, deixou
o nome aqui ligado a essa e outras iniciativas scientifi..
cas. Foi no fim da vida um habil conselheiro dos amado,
res de photographia, pouco numerosos no começo do
seculo. Menino de calças curtas, muitas vezes procurei
a sua loja, na rua S. José, defronte da Galeria Cruzeiro,
para comprar material e principalmente o "papel sen,
sível", que elle mesmo preparava em grandes folhas.
Orville Ada)bert Derby, illustre discípulo de Hartt,
foi seu continuador. Numerosos trabalhos dos mais
interessantes e notaveis, deixados por C. F. Hartt, fo ..
ram carinhosamente concatenados, revistos e publica,
dos por Derby.
.Derby, que eu conheci pessoalmente, nasceu em
1851, em Kelloggsville, N. Y. Era um erudito, mor,
mente em geologia e historia do Brasil. Intelligente,
espirituoso, sàrcastico, um tanto desleixado, lembrava,
me um pouco o meu grande mestre e amigo, Capistra,
no de Abreu, com quem elle mesmo andava muitas ve,
zes ás turras, a proposito de velhos documentos. Com
f~u~lle aspecto rebarbativo e grognon, adorava as pi.-
d .e:1as, os bons mots... De um collega pouco assiduo,
1z1a elle : "F . . . . . . é um professor exemplar ; chega
a 1 e 30, e sae a 1 hora. . . l · .
112 E. Roquette Pinto
Depois das criticas acerbas de Agassiz, o Governo
Imperial tratou de reorganizar o Museu Nacional, que
foi, apesar de tudo, o berço de quasi todas as sciencias
neste paiz. O Decreto de 9 de fevereiro de 1876 p6de
servir de marco essencial na historia da velha casa. La,
, dislau Netto conseguia dar ao Instituto fundamental um
solido arcacouço technico especializado. Nesse tempo,
figuraram no quadro dos naturalistas do Museu Nacio,
nal, ao lado de illustres brasileiros, Ladislau Netto,
Nicolau Moreira, J. J. Pizarro, Baptista de Lacerda,
Ferreira Penna, dois estrangeiros de fama internado,
nal: o grande Fritz Müller e C. F. Hartt. Mais tarde,
Orville Derby tambem ·foi .occupar a cadeira de Hartt.
Nomeado para o Museu a 2 de março de 76, Hartt,
que jâ se achava doente, ao que parece de grave palu..
dismo contrahido nas excursões, deixou o posto no fim
do anno, enviando ao Director o seguinte officio :
"Illmo. sr. - Como os trabalhos da Com,
missão Geologica precisam de todo o meu tem,
po, e presentemente occupam,me inteiramen,
te, estou determinado de pedir immediatamen,
te a minha demissão de logar de director da
Terceira Secção do Museu Nacional, Deus guar,
de v. s. illmo. sr. dr. Ladislau Netto, digno
director do Museu Nacional. - Rio de Janeiro,
Dez. 21 de 1876".

Quando entrei para o quadro dos professores do


Museu, trinta annos depois delle, encontrei nas col,
lecções numero imponente de especimens provenientes
da sua actividade ; e ainda achei, na lembrança do
habil preparador Eduardo Teixeira de Siqueira, meu
muito querido amigo, as melhores recordações do sa,
bio norte.. americano, homem de enorme nobreza moral,
affavel e bom. Entre os velhos papeis do Museu, en..
Ensaios Brasilianos 113

contro esta nota simples e significativa : na reunião dos


professores, em 8 de julho de 76, Baptista de Lacerda
insiste pela acquisição de um apparelho de projecções.
Hartt, modestamente, á vista das difficuldades orça,
mentarias, offerece o seu, que declara : "com alguns
reparos, poderá funccionar".
Pouco mais de um anno depois de deixar o Museu,
Hartt fallecia. Conhecendo, mesmo de longe a sua
sympathica personalidade, todos comprehendem o sen,
tido desta noticia que foi publicada no "Jornal do Com.-
mercio" de 20 de março de 1878 : "Os professores e
demais empregados do_ Museu Nacional, como mani,
festação de pesar pela morte do professor Hartt, mem,
bro correspondente e antigo professor do mesmo Museu,
resolveram deitar luto por oito dias".
Hartt foi enterrado em São Francisco Xavier, qua,
dro protestante, a 18 de março de 1878. Falleceu na
casa n. 41 da rua Princeza Isabel, Rio de Janeiro. O
attestado medico reza que o victimou uma apoplexia.
Um jornal do tempo, - "Gazeta de Noticias" - .diz
que o naturalista morreu de febre pernidosa. A tradição
corrente nos meios scientificos sempre attribuiu sua
morte á febre amarella.
A 3 de maio de 1883 foram os seus ossos exhumados
e transladados para os Estados Unidos. O "Novo Mun,
do", periodico de Josê Carlos Rodrigues, no qual Hartt
sempre collaborou, tratando do seu desapparecimento,
em abril e maio de 1878, informa que a viuva do pro,
fessor e dois filhos menores residiam em Bufalo, N. Y.
Accentuava a noticia os dotes artísticos de Hartt, que
era bom musico e excellente desenhista.
Se, como disse e provou, o seu grande desejo era
servir a terra do sabiá, cumpriu atê morrer esse des.-
tino. A terra do Brasil recebeu os seus despojos como
os de um filho querido.
114 E. RQquette Pinto
Os estudiosos brasilianos, no centenario do seu
nascimento, guardam o seu nome e cantam a sua gloria .

*• *
Os trabalhos de Hartt podem ser grupados em cin..
co titulos : 1) Geographicos ; 2) Geologicos ; 3) Eth..
nographicos; 4) Archeologicos; 5) Linguisticos.
As monographias geologicas especializadas de C.
F. Hartt, que figuram na bibliographia da Geologia,
Mineralogia e Paleontologia do Brasil, organizada por
Alpheu Diniz Gonçalves, Boletim n. 27 do Serviço
Geologico e Mineralogico, Rio, 1928, não têm, para
este rapido ensaio, o sentido que offerece o grande vo..
lume publicado em 1870. O autor cumpre, no corpo do
livro, a promessa do prefacio : trata de destruir "false
impressions so current about Brazil and to make the
resources of the Em pire better known in America".
Depois de taes expressões o leitor não se admira ·
de achar nos interessantes capítulos as notas de scien..
eia pura, geographia, geologia, botanica, zoologia, Pª"
leontologia, tudo de mistura com descripções, obser..
vações, commentarios de natureza historica, economica,
social e atê mesmo. . . commercial. Pragmatico, o
nosso amigo Hartt, que teve como collega, na expedi..
ção Thayer, o celebre William James, fundador do
"Pragmaticism".
Começa tratando do Rio e. da sua bahia. Lembra,
a proposito, que os primeiros colonos francezes deram
ao Pão de Assucar o nome de Pot de beurre. Quem co..
nhece as theorias de Agassiz a respeito da vastíssima
glaciação recente de quasi todo o territorio brasileiro,
quem se recorda de que a sra. Elisabeth Agassiz, sua es,
posa e .chronista da expedição de 65, mais de uma vez
se refere .á "caçada dos geleiros ... " que o mestre en..
; .

Ensaios Brasilianos 115

contrava, logo de sahida, em todos os Jogares por onde


andava, não póde deíxar de sentir aguda curiosidade
pelas notas de Hartt a respeito do drijt, das morainas,
das rochas encarneiradas, dos blocos erraticos, dos ro-
chedos estriados, signaes de glaciação que o chefe da
Thayer Expedition andou descobr_indo a cada passo.
Hartt está longe dos geologos modernos, como Bran,
ner, que affirma - "No Brasil, não houve época glacial";
tamberil não está de accordo com o velho Schuch Ca,
panema, para quem os blocos soltos são devidos " á
decomposição dos penedos" - (1866). Hartt pensa
que muitos dos suppostos blocos erraticos do seu mes,
tre Agassiz, são de facto resultado da decomposição
in,situ ; mas deixa bem claro, no seu livro, qu~ o phe,
nomeno glacial, por estas bandas, foi real: "I should
infer that Dr. Capanema is a disbeliever in the glacial
origin of the SUJ:face deposits claimed by Professor
Agassis and myselj to be drift, and that he rather con,
siders them to be the result of decomposition alone".
No capitulo em que trata do Espírito Santo, fig4ra um
admiravel bloco, proximo ao Pão de Assucar, de Victo,
ria, e accrescenta : Em nenhum logar vi melhor exem,
pio do bloco de decomposição - (Boulders oj decompo,
sition). Da colonia allemã de Santa Leopoldina, Rio
Santa María e Ribeirão da Farinha, fundada em 1857.
Hartt fornece preciosas informações para n6s outros,
que vivemos preoccupados com os problemas anthro,
pologicos do Brsil. Primeiro, elle transcreve a narra,
tiva de von Tschudi, dando conta de uma visita á fra,
cassada colonia. Depois, accrescenta estas linhas _:
"There is a strong prejudice against Germans in this
part of the country. They are repr~ented as idle and
given to drinking, and I am very sorry to say that it
is fully confirmed by my acquaintance with those co,
lonists I met in Victoria. Elsewhere the Germans make
good colonists". Quem conhece de,visu, como eu, as
116 E. Roquette Pinto
maravilhosas colonias allemãs do Sul do Brasil, sabe
que Santa Leopoldina, no Espirito Santo, como São
Bernardo, em S. Paulo acabaram na desmoralização e
na penuria, por causa da pobreza das terras, da falta
de communicações e principalmente por causa das do.-
enças. Quando as condições do meio são precarias, fa,.
lham todas as raças. Os males da raça, disse e repito,
são males da fome e da miseria. Com essas duas tristes
companheiras . . . falham os allemães, os brasilianos e
outros quaesquer mais pintados.
No Rio Doce, Hartt visitou uma colonia de norte.-
americanos, cerca de 400 pessoas, provenientes dos Es,,
tados do Sul da grande republica.
Do Espirito Santo entrou para Minas Geraes pelo
Mucury. Foi atacado pelo paludismo. . Não morreu,
segundo affirma, pelos cuidados de uma senhora Gazzi.-
. nelli - "who took a mother' s care of me . .. " diz elle.
Os nomes de plantas, animaes e os toponimicos geo.-
graphicos são excepcionalmente bem reproduzidos na
obra de Hartt. E' de um cuidado absoluto. Tudo cer.-
to. No entanto, ás vezes se acham nomes curiosos.
Assim Aguada Nova, elle escreve Agua da Nova . . .
Descendo o Jequitinhonha, alcançou o naturalista
o littoral, onde estudou os recifes de coral dos Abrolhos,
temiveis inimigos dos antigos marujos, um dos quaes,
hollandez, escrevia em 1624 : "Captain and crew took
the Sacrament before passing them 1"
Erá a região da pesca da baleia. Hartt descreve com
toda minucia a vida dos baleeiros. Caravellas era o
quartel general da grande pesca. Se o animal era gran.-
de, o arpoador recebia 120$. Hartt annota que o mil
réis "has an approximative value of about fifty cents
American currency" ; o que, lido em 1938, dá vontade
de rir ou chorar . . .
Hartt estudou minuciosamente os recifes dos Abro.-
lhos. Os seus exhaustivos trabalhos são apenas citados,
.
Ensaios Brasilianos 117

um tanto displicentemente pelo professor Branner.


Aliás não foi sómente ahi que o grande mestre de Stan,
ford bem pouca attenção parece ter dado á obra de
Hartt. No seu tratado encontro este nome citado, de
passagem, umas quatro vezes ; o desenho do recife da
Lixa, em frente a Caravellas, publicado na obra de
Branner, é do lapis de Hartt.
Na Bahia, entre outras coisas, demora,se Hartt
sobre o que lhe t:Jarec.eu "barro impregnado de betume,
capaz de fomec.er gaz de illuminação e kerozene. E'
a conhecida turfa de Marahú.
No capitulo consagrado á bacia do S. Francisco
o mais interessante é o resumo das pesquisas de Lund,
directamente feito sobre as publicações dinamarquezas
de Renhardt. Mas a proposito da canalização do gran,
de rio, Hartt affirma corajosamente que a maior dif,
ficuldaqe não provem de "Paulo Affonso", nor "Sa,
bradinho". nor "Pirapora", but politics and the jealou,
sies of those who have had anything to do with the mat,
ter". Ao menos, esse amigo não tinha papas na lingua ...
Na viagem pelo interior da Bahia, elle acompanha
o relato de Spix e Martius. Recorda que, nas vizinhan,
ças de Cachoeira, achou,se no seculo 18, massa volu,
mosa de cobre nativo, enviado a Lisboa e exposta no
Museu do Principe com a seguinte inscripção; "Maria
1 et Petro III imperantibus cuprum nativum minaerae
ferri mixtum ponderis libr. MDCXVI, in Bahiensi.
Praefectura prope oppidum Cachoeira detectum et
in Principis Museo P. MDCCLXXII".
Do interior do Estado, Hartt transcreve notas de
Spix e Martius, Burton, J. A. Allen.
Nos outros capítulos segue resumindo o que se
sabia na época sobre as formações geologicas respecti,
vas, das provindas do Norte. Chega--se então á Ama,
zonia. Ahi a leitura cresce de interesse, porque Hartt,
embora conhecendo a verdadeira paixão com que o seu
118 E. Boquette Pinto
mestre, Agassiz, via geleiros por toda parte, inclusive
um enorme, descendo dos Andes e formando o valle
amazonico, vê,se obrigado a confessar ·a sua discordan . .
eia. Mas, assim, quiz dar uma grande prova de estima
a Agassiz, e accrescentou que, apesar das discordancias
impostas pelos factos, continuava convencido da ver . .
dade da theoria de Agassiz a respeito da existencia de
geleiros "under the tropics" - a theory which I hold
as firmly as he'.
O livro de Hartt traz um appendix, dedicado aos
indios Botucudos - (Aymorés) - do Espirito Santo.
Transcreve e compara informações de naturalistas que
o precederam, Neuwied, von Tschudi e accrescenta
muita coisa. Elle tinha grande gosto pelos estudos lin. .
guisticos, e dos Botucudos - Naknanuk recolheu voca;
bulario ainda inedito. De uma grammatica Tupy, com,
posta durante os ocios amazonicos, deu,me noticias o
meu illustre collega Rodolpho Garcia, Director da Bi.-
bliotheca Nacional ; os Annaes da Bibliotheca Nacio.-
nal Vol. 51 dentro em breve darão a conhecer esse tra.-
balho de Hartt, que, com a sua autoridade Rodolpho
Garcia considera notavel. Numerosos mythos amazo.-
nicos recolhidos por C. F. Hartt foram publicados nos
Archivos do Museu Nâcional. " No Amazonas, escreveu
o geologo, quem não se interessar por algum outro ramo
da sciencia, perderá muito tempo ; porque, distancia.-
das, como são ali as localidades geologicas, elle terá,
muitas vezes, de viajar dias consecutivos, sem poder
fazer uma observação de importancia. Em 1870, achei.-
me no grande rio, revendo o trabalho do professor Agas.-
siz, e occupado em procurar provas para confirmar ou
refutar a sua hypothese da origem glacial do valle do
Amazonas. Em contacto intimo com a população in.-
digena do paiz, interessei.-me pela língua, ou Tupy
moderno, como falam em Ereré, Santarém e no rio Ta.-
paj 6s, e empreguei as horas de ocio em aprendel.-a,
Ensados Brasilianos 119
fazendo certo progresso na acquisição de material para
esclarecer a sua estructura" .

•••
Euzebfo Paulo de Oliveira, discípulo de Orville
Derby, e, portanto, representante primacial da escola
de Hartt, resumiu, em 1929, em erudita conferencia da
série da A. B. E., o estado actual do conhecimento
geologico da Amazonia. Corrigindo embora alguns
pontos da historia geologica do grande valle, tal qual
foi esboçada por C. F. Hartt, completando ou retocando
á vista de numerosos trabalhos recentes, o que esboçou,
em 1871, o grande mestre, Euzebio de Oliveira, mais
uma vez, reconhece no fundador da Commissão Geolo,
gica o verdadeiro creador dos estudos systematizados da
geologia brasilica. Nem era outra a opinião de Gor,
ceix, expressa em 1889.
Não teria cabimento algum repetir aqui a lição de
Euzebio de Oliveira sobre a formação do valle Amazo,
nico, a começar pelas "terras nucleares" archeanas :
Brasilia, ao Sul ; Guyanis, ao Norte, ilhas macissas ba,
Usando o enorme canal primitivo. Mas não me parece
f6ra de proposito propor aos geologos do Brasil conser,
vem, para o geosynclinal amazonico, onde se fez a se,
dimentação nos tempos geologicos - (siluriano, devo,
niano, carbonifero e cretaceo) - o nome que, de passa,
gem, lhe deu o eminente director do Serviço Geologi,
co : Canal de Hartt .
•••
Entre as notas ethnologicas de ordem geral deixa-
das por C. F. Hartt, uma existe que, sendo absolutamen,
te verdadeira, nem por isso despertou o interesse que
merecia. Porque todo mundo - eu tambem . . . - ape,
120 E. Boquette Pinto
sar do que elle demonstrou, nem por isso deixamos de
persistir nas denominações erradas, que o uso consagrou :
Tupy e Tupan.
Os índios do littoral do Brasil, divididos em nume-
rosas tribus, falando a mesma lingua, mais ou menos,
nunca se chamaram Tupys. Os primitivos chronistas
mencionam Tupinambás - (Tuppin.-lmbás), Tupini.-
quins - Tuppinikins). . . Os tupiniquins applicavam
aos vizinhos e inimigos tupynambás - o nome Tawaijár ...
Tupys - como designação geral das nações da costa,
parentes e inimigas - começou a ser· empregado pelos
chronistas mais recentes - (Simão de Vasconcellos . .. )
No Amazonas, nenhum índio de "língua geral" ê cha.-
mado tupy ; são todos tapuias. Hartt transcreve a
phrase : Ixê tapuy' a xafl.eê tapuya fl.eê a - Sou tapuyo
e falo a lingua do tapuyo (tapuyá neêa). E tupy? Nin.-
guem. Só na fala dos civilizados . ..
O padre Tastevin, em 1910, tratou exhaustivamente
desse caso. · A razão está com Hartt. Mas como nin.-
guem sabe qual haja sido o nome commum ás tribus
da "lingua geral" - nasceu, cresceu e firmou.-se o Tupy.
O caso de Tupan ê igualmente curioso ; afinal, para de.-
nominar o Ser Supremo - Deus dos Christãos - por
influencia dos missionarios, adoptaram os indios o no..
me do trovão, mas, como pondera Lery, os Tupynambás
observaram, a principio, que um deus que assusta a gen.-
te, vale bem pouco ...
A proposito, Hartt lembra as palavras do Padre
Nobrega - "Esta gentilidade nenhuma coisa adoram,
nem conhecem Deus ; sómente aos trovões chamam
Tupane, que ê como quem diz coisa divina, e assim nós
não temos vocabulo mais conveniente para trazer ao
conhecimento de Deus que chamar,lhe Pae Tupane".
Penso que Hartt tem razão quando Jaz derivar
tupan do verbo roncar. Ao estalar o trovão, gritam ain.-
Ensaios Brasilianos 121

da hoje no Amazonas certos tapuios ; Tea,Pa..c:fn,Ron.-


cou 1
O naturalista accrescenta : - . "uma vez que os
missionarios escolheram Tupán para significar a divin,
dade christã, . . o mytho cresceu e é realmente curioso
ver como desenvolveu-se nos livros sobre o Brasil. Os
autores foram citando uns dos outros, philosophando,
combinando e generalizando, até que o mytho de Tu,
pan é agora um mytho dos livros, não dos indios".
A opinião de Hartt foi amplamente confirmada
na exegese de Metraux, em 1928. A mythologia tu,
pynambá admittia possivelmente um Deus, ou Deuses,
creadores, guias, senhores. Monan, por exemplo, tinha
sido, na informação de Thevet, o creador do céu e da
terra, dos animaes ; Tupan, nunca. . . Tupan, conclue
Metraux, "c' est une sorte de génie ou démon qui n'était
I' object d' aucun culte et auquel aucune priere n'était
adressée Sur ce dernier point toutes nos sources coo,
cordent".
Fica,se a imaginar a surpreza e o grau de confusão
mental dos pobres índios, ouvindo os meigos padres
entoar todos os louvores ao " demonio roncador", que,
para elles, até então, só tinha servido de importuno
espalha,brazas ...
.
• •
Os Archivos do Museu Nacional começaram em
1876. Hartt fez parte da redacção e no primeiro volume
publica duas memorias. Uma descreve alguns machados
de pedra da collecção do Museu ; a outra, apresenta
ao mundo scientifico a ceramica dos admiraveis artis,
tas da ilha de Marajó.
Cabe,lhe a honra de iniciar os estudos do surpre,
hendente material que, em 1866, Agassiz, apezar de vi,
sitar a ilha, não levou em consideração. Será que já
122 E. Boquette Pinto
então ninguem ainda houvesse descoberto as jazidas
do lago Arary? Pouco provavel. O proprio Hartt diz
que, em 1870. por occasião da sua primeira viagem ao
Amazonas, Domingos Soares Ferreira Penna, naturalis,
ta do Museu Nacional e d01> maiores que o Brasil tem
conhecido. . . ou desconh~cido, como quizerem. . . cha,
mara sua attenção para a pequena ilha do Pacoval, no
lago Arary, da ilha de Maraj6, onde constava existir
grande quantidade de louça fabricada pelos antigos
indios.
Desde então, Hartt nunca mais abandonou a eth,
· nologia do Brasil. Os estudos que realizou sobre mate, ·
rial recolhido sob sua direcção por Bamard, Derby,
Beckley, Penna, foram publicados nos Archivos do Mu-
seu Nacional, reunidos e revistos por Derby, commen,
tados por Ladislau Netto, que foi o grande esteio das
nossas investigações de tal especie. A maravilhosa cera-
mica de Maraj6 nunca mais foi desprezada. E, nos ul-
timos dez annos, tem encontrado um espirito de escol,
superiormente apparelhado para estudai-a, na profes,
sora Heloisa Alberto Torres, que o Museu Nacional
enviou a Marajó, em 1930, e a quem hoje devemos a
melhor monographia sobre a materia, traçada com erudi,
ção, alto senso critico, e onde surgem interpretações
originaes e seguras, verdadeiras descobertas no domínio
da ethnologia brasiliana.

• ••
Quaes são as principaes jazidas archeologicas da
Amazonia? Atê que ponto ê possível, no estado presen,
te dos nossos conhecimentos, interpretar-lhes a signi,
ficação? São estas as questões que hei de considerar
neste breve ensaio, para terminar.
Restos deixados por tribus de um mesmo grupo
ethnico, ou por diversos grupos independentes apon--
Ensaios Brasilianos 123

tavam,se : 1 - Jazidas de Maraj6, comprehendendo


depositas lacustres em montes artificiaes - (Pacoval,
lago Arari), e depositos ribeirinhos, (Camutins) ; 2-
Jazidas speleologicas de Maracá; 3) · BluJI-dwellers
de Hartt, Jazidas dos Altos, de Santarem, que Orville
Derby achava melhor denominar restos do povo da
terra preta, porque material semelhante ao de Santarém
encontra.-se nas margens dó Tapajoz, do Trombetas e
outros rios, "mas sempre em manchas de terra pre
ta" coberta de matta ; 4) Jazidas da costa do Parú ;
5) Jázidas dos sambaquis, fluviaes e maritimos. Essa
era a systematização de Derby, seguindo os estudos de
Hartt e as investigações proprias. A divisão é acceita.-
vel e corresponde, mais ou menos, aos característicos do
material fornecido pelas jazidas. As pesquizas re,centes
de Curt Nimuendajú deram um accentuado impulso no
que se sabia a respeito da ceramica de Santarem. Ni,
muendajú conseguiu peças inteiras que permittiram
identificar numerosos fragmentos até então mal defi,
nidos.
No Trombetas, um companheiro de Rondon, o sr.
Barbosa de Faria, obteve material ceramico igualmente
valioso para o estabelecimento de certas relações dos
antigos habitantes da foz do Amazonas. Ha uns dez
annos um joven e erudito naturalista do Museu Nacio.-
nal, o profes or Raymundo Lopes, teve a felicidade de
desvendar uma importante jazida palethnologica, com
accentuados traços amazonicos, nas destruídas palaffitas
do lago Cajari, no Maranhão. A "arte do Cajari" lembra,
por vezes, Marajó ; basta ver os ídolos de pedra encon... 1

trados pelo Prof. Raymundo Lopes. Mas apresenta,


realmente, muitas características individuaes : ausen,
eia de figura humana, na ceramica, modelagem de fo ..
lhas . . . Em Marajó, a cara humana foi dos mais tor,
turados elementos ornamentaes, e as plantas, nunca
aproveitadas na decoração.
124 E. Roquette Pinto
O estudo da ornamentação delirante da louça de
Maraj6 levou Hartt a formular uma interessante theoria
da origem da arte. A musica, dizia elle, depende de ef,
feitos physicos produzidos sobre o apparelho auditivo,
o ornato esthetico não se póde explicar senão sobre a
base da estructura do olho. Os ornatos mais antigos são
feitos de linhas rectas, não derivam da natureza. A li,
nha recta é a que exige, na sua percepção, o menor tra,
balho dos musculos motores do globo occular. Percor,
rer com os olhos uma linha recta, dizia Hartt, ê como
passar a mão sobre uma superfície perfeitamente poli,
da. Nada ahi faz tropeçar, numa aspereza ou num des,
vio, o sentido interessado. Linhas parallelas, nem mui,
to proximas nem muito afastadas, na sua theoria, podem
ser comparadas aos accordes musicaes, em que ha sons
diversos impressionando simultaneamente o ouvido. Das
formas iniciaes que apparecem de accordo com a physio,
logia dos globos oculares, na sua movimentação, surgem
as demais, sempre de accordo com verdadeira "selec,
ção esthetica", na qual as formas que eu chamarei "dis,
sonantes" desapparecem, em proveito das que, na phra,
se de Hartt, "dão mais pra~er á vista".
A theoria de Hartt não parece estar de accordo
com tudo quanto hoje se sabe da arte dos primitivos.
Até porque, segundo os estudos de Max Schmidt, que
esmiuçou exhaustivamente a technica dos trançados e
dos tecidos sul-americanos, especialmente do Brasil e
do Perú, ha muitas formas geometricas, do mais bello
effeito esthetico- gregas e sygmoides admiraveis - que
resultam apenas de imposições do material empregado
na confecção da peça onde o ornato apparece ...
Nas regiões em que predominam as palmeiras da
folha de typo pennado, a arte indígena ê pobre de mo,
tivas ornamentaes (Guatós, Bororos ... ). A folha
flabeliforme "permitte numero avultadissimo de va,
riações na padronagem . fornecida pelos trançados".
,.
Ensaios Brasilianos 125
A grande região dos maravilhosos tran_çados primitivos
é a das Guyanas com .º v~lle amazomco.
Assim não é demais dizer que foram as palmeiras
que ensinaram aos artistas amerindios, insensivelmen,
te o mysterio das "gregas" · · ·
' A applicação da theoria de Max Schmidt á era,
mica de Maraj6, feita pel~ Profes~ora H. Alberto Tor,
res, veiu explicar de maneira admiravel numerosos tra,
ços da arte soberba da foz do Amazonas. E pl!rmittiu
tambem, desde logo induzir uma conclusão importan,
te : devem ter vindo pelas mattas do grande rio, apro,
veitando durante seculos, os seus recursos na arte dos
trançado~, os ceramistas magnific_os. ~~ outro ponto
que tambem representa observaçao ongmal da profes,
sora do Museu Nacional, diz respeito ao que chama
"horror ao vazio" : a decoração não parece ter sido fei,
ta para valorizar a peça ; tem,se a impressão de que a
peça foi feita ... para supporte do ornato. Tudo é co,
berto de motivos, desenhados, gravados ou mesmo mo,
delados.
Quánto ao sentido das manifestações artisticas en,
contradas nas velhas jazidas do norte do Brasil, ainda
é muito cedo para conclusões anthropogeographicas;
tudo parece indicar que se trata de relíquias de povos
descidos do septentrião, pelo mar ou pelos rios . . . Mas,
de facto, nada sabemos.
Um dia, eu mesmo, que detesto em sciencia, mas
só em sciencia ... a fantasia - puz,me a imaginar uma
leva de homens influenciados pela cultura do Mexico
e da America Central, chegando ao valle do Amazonas
e ahi dividida em dois ramos : um subindo o grande rio
alcançando os altiplanos dos Andes, tendo como gui~
o genio político, uma especie de Cezar pre,colombiano
conquistador e capaz de organizar. Esse grupo de~
mais tarde um Imperio . . . O outro, descendo o grande
rio até encontrar terra estavel, bôa para a vida facil,
126 E. Roquette Pinto
ahi se lhe deparou material plastico de primeira ordem.
Seu guia · não foi como o do primeiro, um conquistador
militar ; foi o genio artistico. Esse grupo legou á pos--
teridade o museu de Maraj6. Mas não tinha capaci..
dade de defesa. Desappareceu. Assim morrem os ar..
tistas nas mãos dos barbaras. O primeiro grupo teria
repetido na America, mal comparando, o destino de
Roma conquistadora e civilizadora de barbaras, alma
do genio organizador das sociedades ; o segundo grupo
teria repetido aqui o milagre dos gregos, buscando em
tudo a belleza, a linha suprema das harmonias defini..
das e morrendo, como devia morrer, suffocado pelo
ambiente de aguas e florestas primitivas e grosseiras,
cercado de gente incapaz de sentir o que elle andava
realizando de esplendido, ali, onde a lucta dos seres
que querem viver. não permitte, por muito tempo, os
momentos de abandono e ocio, para o sonho bom que
recebe e embala e acalenta e nutre o pensamento ar..
tistico.
' J

SEGUNDA PARTE

INSPIRAÇÕES DA TERRA
CAPITULO XIV

A GITANDO questões de sciencia, literatura, his,


. toria ou arte, tem a Commissão Organizadora da
Exposição, promovido, na Escola Nacional de Bellas
Artes, ha alguns annos, palestras de fundo cultural,
abrangendo os mais variados assumptos. Nas poucas
vezes que os meus trabalhos me permittiram compa,
recer ao salão de conferencias da Escola de Bellas Ar..
tes, verifiquei a presença de auditoria excellente. Falar,
portanto, naquelle requintado ambiente espiritual, é
honra e prazer. - Infelizmente não me foi possível,
este anno, levar ali alguns pobres commentarios ou sug,
gestões, attendendo ao convite desvanecedor dos il,
lustres artistas. Não desejo, porem, furtar,me a colla,
borar, com estes infimos recursos, na obra de alta edu,
cação artística que emprehenderam. E' por isso que vou
deixar, nestas linhas, . o reswno do que desejaria ter po,
dido dizei:.
Ha cerca de trinta annos surgiu "Os Sertões" fr..
rompendo na literatura nacional com a luz insolita dos
seus clarões magníficos. Seja qual fõr o juízo que alguem
possa formar a respeito do livro, o que ninguem ousará
~ontestar é o espírito profundamente brasiliano nas
suas paginas esparso. Ali, todos concordam, ha, em cada
trecho, quadros fortes, desde o eschema até aos grandes
paineis. Euclydes da Cunha foi colorista vibrante e
excepcional.
Os que pensam como eu, consideram "Os Sertões"
o livro maior da nossa producção, no sentido de que
nelle se retratam as qualidades e as faltas da terra e da
130 E. ;Iloquette Pinto
gente. Pois bem. Ha trinta annos, esse livro monu,
mento espera os artistas patricios que o leiam, o medi.-
tem, se impregnem das inspirações da terra ali aeolhi.-
das e componham na téla, algumas scenas que o autor
descreveu com tanta alma e tanta verdade.
O sertanejo, cégo transitorio, que vae, tacteando
pelo terreiro do casebre, empunhando um fogacho, afu..
gentar a onça, cujo rugido amedrontou os filhos esqua,
lidos, forneceria aos artistas que procuram assumptos
brasileiros uma téla commovedora. ·1
O "centaUJ"o bronco" "escanchado no rastro do no,
vilho esquivo" e o "gaúcho victorioso e forte" não de.-
rara até agora algumas estatuetas que viessem substi.-
tuir os productos em serie da pactoilha de Paris ou de
Roma, nas vitrinas onde se expõem esculpturas que os
homens importantes costumam receber nos .dias de
annos. Qu~ formidavel painel espera a tradução picto,
rica do "estouro da boiada" 1
Depois : "Volvem os vaqueiros ao pouso e ali, nas
rêdes bambeantes, relatando as peripecias da vaqueja..
da" . . . E o "desafio"? Outros tantos quadros que AI,
meida Junior teria, sem duvida, realizado, visto que são
quasi irmãos de "Caipiras negaceando" ou "Amolancfo
o machado".
O "preludio da secca" - na hora em que as caatfn..
gas pintam "mosqueadas de tufos pardos", depois das
"chuvas de caju" é outra composição que espera os do.-
nos do pincel, aprumado um sertanejo no momento em
que faz a prova das seis pedrinhas de sal. E eu imagino
um rapaz destorcido, de rosto acabrunhado pela verifi..
cação de que a terceira pedra de sal não se deliu, jun.- ~

tamente a que corresponde ao mez em que iria encontrar '


;
a noiva 1
E os quadros da vida religiosa? O oratorio? A
procissão? A criança morta?
Ensaios Brasilianos 131

Almeida Junior, criador do "Judas" que "Conse-


lheiro" não seria capaz de animar? Cabellos crescidos
até aos hombros, harpa inculta e longa, face escaveira..
da ; olhos fulgurantes ; monstruoso dentro de seu ha..
bito azul de brim americano; abordoado ao classico
bastão, em que se apoia, o passo tardo dos peregrinos ...
Quasi todas as paginas de "Os Sertões", são assim,
estuantes de vida, suggerindo quadros, traduzindo ins-
pirações da ter_ra, á espera dos nossos artistas.
Quando algum delles me procura e pede notas ou
documentos para uma téla "bem brasileira" onde
deseja evocar lendas indigenas ou motivos selvagens ...
eu me lembro das télas esquecidas das paginas de "Os
Sertões".
CAPITULO XV

A literatura, muito mais do que as artes plasticas e


do que a musica, segue sempre a formação da na..
cionalidade. Depende muito de condições subjectivas,
raramente satisfaz apenas os sentidos, exige collaboração,
embora muitos acreditem, ingenuamente, que obras
literarias significativas possam brotar em cerebros in,
sulados.
Um povo não perde os seus mais fortes determinan,
tes se recebe, acceita e pratica a pintura e a musica de
outra origem. Mas difficilmente adoptarâ literatura
extranha, sem perda de alguns dos seus valores. Não
quero dizer que se desnacionalize porque leia poetas e
romancistas de outras terras ; mas ninguem negarâ
que os versos de Petrarcha fazem mais ·pela "italiani.-
dade" do que os quadros de Leonardo. E' que a lite.-
ratura vae onde as outras não chegam; não pâra, nun,
ca, na peripheria, emquanto que as côres, muitas ve,
zes, morrem nos olhos, e os sons nos ouvidos. Por essa
razão, ella define as nações.
No Brasil não ê difficil reconhecer que assim foi,
A nacionalidade e a literatura formaram um "syste,
ma" interessantiss.imo, que ha cerca de trezentos annos
se desenvolve. Mas a seu lado, sem trabalho, todos en,
contram um outro movimento, de origem peninsular,
que ainda hoje vae levando illustres escriptores.
Não me parece que a corrente dos que pertencem
a este movimento, tenha tido por maximo conselheiro,
apenas o padre Vieira, que Sylvio Romero chamou
"um grande desnorteador literario dos brasileiros".
Ensaios Brasilianos 188
Tambem Camões andou influindo, naquelle sentido ;
basta ler qualquer dos nossos velhos poemas, ainda que
sem falar no de Bento Teixeira Pinto, .
Em todo caso, embora servido por muitos rimado,
res mediocres e. escriptores de modestos recursos, o
impulso nacional ganhou alento. Sem escolas, sem bi,
bliothecas, sem imprensa - custa crer no que este povo
realizou por si mesmo. O que a nossa gente conseguiu,
no ·dominio espiritual, documentado na eclosão litera,
ria, nada ficou devendo ao que fez na ·sublime arran,
cada material em direcção aos igapós e aos chapadões.
O Brasil caminhou sempre rompendo difficuldades.
Ainda existem, talvez, alguns velhos dos tempos
em que um brasiliano, alistado na tropa, não podia pas,
sar de tenente.
Na ordem social, quando muito, chegou a ser dou,
tor ou frade.
Quando surgiu Euclydes da Cunha, nossa litera,
tura podia enumerar grandes nomes pertencentes ao
"systema" de que falei ha pouco. Sem ir álem do ui,
timo seculo, nem falar dos contemporaneos, é sufficien"'
te recordar Gonçalves Dias, Castro Alves, Alencar,
Taunay . , . A verdade, porem, é que ella não tinha re,
cebido, até então, outro alimento que não fosse o mais
apurado classicismo, mau grado precarios disfarces ro,
manticos ou revolucionarios.
Era, em essencia, brasileira ; mas denunciava, a
cada passo, a influencia européa, puramente Iiteraria,
quasi diria rhetorica. A sciencia quasi não existia para
os "homens de letras", ou, ás vezes, existia demais .. ..
Em geral, algumas gotas de mel grego, tragos de
vinho do Latium e, principalmente, muitas flores rece,
bidas da França. Cantava, de certo, a vida dos indios ;
lastimava a sorte dos negros; narrava a existencia e
pintava ademanes dos typos do povo. Mas ninguem
184 E. Boquette Pinto
tratava de vêr, pela sciencia, a terra e o homem que della
ê, a um tempo, senhor e escravo.
Euclydes da Cunha, antes de escrever - "Os Ser.-
tões" - tinha passado a existencia á margem da lite.-
ratura, fazendo vida de engenheiro, ou viajando. Se.-
nhor de cultura scientifica segura, possuindo pendor na.-
tural para a philosophia, dono de optimas e variadas
reminiscencias literarias, realizou, sem querer, o grande
livro nacional, longe de qualquer deliberada preoccupa..
ção artistica.
Jamais imaginou que os artigos enviados, por en ..
cargo, ao "Estado de S. Paulo", dariam o imponente
volume.
As grandes obras de todas as literaturas nascem es.-
pontaneas, como a prosa de Mr. J ourdain ...
Para os sertões o artista seguiu ao lado do histo.-
riador, matizando os episodios pela emoção pessoal.
E se o chronista não fosse homem habituado ás scien.-
cias naturaes, daquella "diligencia policial" não brota.-
ria nunca o maior livro do Brasil.
O sertanejo pagou com a vida o seu atraso ; o litto.-
ral não pôde comprehender o phenomeno social que
Euclydes da Cunha poz em fóco, de um modo fulguran ..
te. S,ô lhe faltou, ao grande criador, encontrar na me.-
chanf(?l o termo que a sua linda imagem suggere': a
dephaiagem social. "Canudos" e o "Contestado" -
muito differentes do caso dos Muckers do Rio Gran ..
de - foram traducção do mesmo phenomeno, em re ..
giões extremas do paiz. Casos de grande significado,
provaram a unidade espiritual da população e documen..
taram a dephazagem historica do interior com o littoral.
Tudo nos "Sertões", ê grandioso ; nem tudo, po..
rem, ê certo. J a tive occasião de mostrar quanto me pa ..
recem precarias tres affirmativas de Euclydes da Cu ..
nha : sobre a questão do cruzamento,. a fatalidade da .
:Ensaios Brasilian09 196
lucta das raças, o autochtonismo .do homem america..
no. Para não repetir, basta recordar que elle, tendo fei ..
to um processo monumental ao cruzamento, conclue
que a mistura de raças é um mal. Depois, accentúa
que, em Canudos, o cruzamento tinha attingido ao
maximo. E, adiante, mostra que os mestiços, ao in..
vés de degenerados e pusilanimes trapos humanos des..
prezivei~, que a theoria prophetizava, eram gente que
se podia comparar aos her6es de Homero (Troya Serta..
neja,.. . ) ; eram "titans" ; eram, "antes de tudo, for..
tes" ; eram dedicados, sobrios, resistentes ; eram ho..
nestos ao ponto de entregar toda descendencia de uma
novilha desgarrada no seu campo, ao cabo de muitos
annos, ao dono verdadeiro de quem fugira a rez . ..
Assim, como fez Euclydes da Cunha, consinto, sem
protesto, que falem mal dos nossos mestiços. Mas ... ,
como elle fez ; exponham a "theoria" predilecta, con..
traria ao cruzamento, e depois narrem, . honestamente,
o que a "pratica" tiver demonstrado .. .
Com "Os Sertões" viu..se, pela primeira vez, no
Brasil, o "espírito scientifico" concorrendo para a edi..
ficação de um gande monumento literario.
Não digo que tenha sido o primeiro livro literario
com preoccupações scientificas ; isto seria inexacto . . .
e a literatura resultante teria sido; certamente, deplo.-
ravel. O que desejo affirmar é que Euclydes da Cunha
mostrou como se p6de tomar base logica scientifica, para
supremas construcções literarias. O que ha de nota..
vel, nos "Sertões", desse ponto de vista, não é a miou..
eia technica, ás vezes até inacceitavel ; é o "espírito
scientifico", que trava todo o edifício.
Houve tempo em que se acreditava que a "verda..
de" repelia a "belleza." ou, pelo menos, della não pre..
cisava. Euclydes da Cunha provou que elegancia e vi..
gor de phrase, imagens rutilantes, sombras e colorido,
que são do manejo corrente dos bons escriptores, nada
186 E. Roquette Pinto
perdem quando o autor conhece bem as relações que li,
gam os phenomenos descriptos - o que, por si só, ca..
racteriza o "espirito scientifico".
Um escriptor desse porte não poderia ter surgido,
aqui, senão depois de 70, ou mesmo de 89 ; só poderia
apparecer depois da crystalização de certos elementos
da nossa vida social.
As bellezas do grande livro, e até os seus defeitos,
nasceram de factores que condicionaram a vida mental
das ultimas gerações do imperio.
Foi o livro manifestação natural ; surgiu, livremen,
te a seu tempo, como a arvore que brota de uma se,
mente humilde, quando o s6lo consente, sem hora fixa
nem destino, no meio da matta, sem outros cuidados
alem dos que lhe dão os raios do sol, a agua e o ar.
Muitos leitores têm,se detido diante do encanto
do "estylo" de Euclydes da Cunha. Não é por ahi,
seguramente, que eu mais o admiro. E', de certo "es,
tylo" pessoal, que recorda, como disse Araripe, algo
das nossas cachoeiras, impetuosas, cheias de força e,
ao mesmo tempo, envoltas em delicadas irizações, gra..
ciosamente disfarçadas na gaze fina do nevoeiro que o
vento esgarça. ·
Percebe,se, naquelle estylo, a influencia da raça
sonhadora, tocada do romantismo, que tanto tem pe,
sado ás nossas gerações activas ...
No entanto, penetrando profundamente na obra
de Euclydes da Cunha, vê,se que, ali, a forma vale mui,
to menos do que o conceito.
"Os Sertões" - é o grande livro do Brasil porque
elle soube, ali, indicar á élite dos seus compatriotas, com
a verdade de uma formula imponente, as feições mais
caracteristicas do paiz. E' certo, porem, que outro qual,
quer, no lugar de Euclydes da Cunha, não teria sido es,
cutado, mesmo quando houvesse ~sto na obra igual
Ensaios Brasilianos 137

espirito scientifico. Para ser ouvido, ê preciso falar de


certo modo . . . Foi o que aconteceu em "Os Sertões",
escripto para a alma ardente de um povo inquieto,
Oahi o encantamento. Era novo - porque não era
classico ; mas agradava porque as verdades scientifi-
cas ali estavam apresentadas com desejado brilho ro-
mantico. Syntonia. Um exemplo 7 A descripção do
sertanejo victima da hemeralopia, doença da cegueira
noctuma transitoria - a "dysopia tenebrarum" dos
antigos. Vem a secca. Fogem as seriemas em busca
de ou~ras chapadas; as jandaias procuram as costas
do mar ; os morcegos, aos bandos, atacam as rezes es-
qualidas. Protegidos pelos pedrouços, ao calor cons-
tante, evoluem em melhores condições os ovos das cas-
caveis que proliferam á solta. A' noite, vem a onça
esfaimada rondar o casebre. Então o sertanejo, tro-
pego, sabe ao terreiro, empunhando um tição que deve
afugentar a fêra :
"Nem sempre, porem - fala Euclydes da Cunha,
- póde aventurar--se á façanha arriscada. Uma moles-
tia extravagante completa a sua desdita - a hemera-
lopia. Esta falsa cegueira é paradoxalmente feita pe-
las reacções da l1,1z ; nasce dos dias claros e quentes,
dos firmamentos fulgurantes, do vivo ondular dos ares
em fogo sobre a terra núa. E' uma plethora do olhar.
Mal o sol se esconde no poente, a victima nada mais
vê. Está cega. A noite afoga--a de subito, antes de en.-
volver a terra. E na manhã seguinte a vista extincta lhe
revive, accendendo--se no primeiro lampejo do levante,
para se apagar, de novo, á tarde, com intermittencia
dolorosa".
Hoje sabemos que a "plethora do olhar" é uma
questão de privações alimentares, porque essa hemeralo-
pia symptomatica parece uma avitaminose. E', pois,
romantico. Mas é romantismo essencialmente patrio.
Isso é fundamental.
198 E. lloquette Pinto
A "introducção do espirita scientifico" na litera..
tura historica, o "colorido romantica" que elle deu,
talvez sem querer, a todas as suas grandes paginas, syn..
thonizando.-as com o meio intellectual, a "identificação
do escriptor com a natureza", cujos accidentes elle es ..
tava perfeitamente bem preparado par entender, são
parametros da grande figura. '
Percorro toda a nossa historia literaria e penso que
"Os Sertões" serão, no futuro, para o Brasil, o grande
livro nacional; o que "D. Quixote" é para Hespanha ou
"Os Luziadas" para Portugal ; o livro em que a raça
encontra a floração das suas qualidades, o espinheiral
dos seus defeitos, tudo o que, em summa, ê sombra ou
luz na vida dos povos. ·
CAPITULO XVI

T ENDO, l)a muitos annos, a obra de Menard, que


L . todos conhecem, livro em que o autor evoca a
existencia quotidiana dos antigos, senti profundamente
o instavel, o apressado, o incerto, o movediço da nossa
vida brasiliana. Quatro seculos I Que vale isso? Que
seriam os homens do Brasil, no tempo das Cruzadas?
Os proprios índios actuaes dão ao ethnologo a impres--
são de viajantes que acabam de chegar.
Como estamos longe do autochtonismo que enthu,
siasmou J ulio de Moura, um dos meus illustres ante,
cessores no Museu Nacional 1
Como viviam, moravam, comiam e vestiam os
nossos avoengos? Que foi a nossa "Idade Media"?
Nas velhas fazendas, que conheci, pude ver ainda mon.-
jólos, moinhos de pedra lióz, espivitadeiras para can,
deias, palmatorias para velas . . . ou para bôlos, catres,
arcas de madeira entalhada ; e - tristissimos docu.-
mentos 1- troncos, algemas e bacalhaus.
No Rio Grande do Sul, perto de Cidreira, na casa
modesta e bôa de Thomaz Antonio, deram,me em 1906,
xarque e farinha servidos por colher de prata massiça,
dos tempos da Colonia. E', mais ou menos, tudo. As,
sim, o livro admiravel, que Alcantara Machado acaba
de publicar, veiu encher de alegria os apaixonados das
velhas tradições. E' obra de reconstituição historica,
obra de erudito dono de apurado gosto. Um Vieira
Fazenda, paulistano, differente, comtudo, daquelle meu
velho mestre, porque sabe dizer as cousas de maneira
muito mais pessoal. Fazenda não era escriptor. Nota,
140 E. Boquette Pinto
va com graça o que desejava divulgar ; mas sempre
ficou longe da elegancia tersa e discreta que encontro
em Alcantara Machado. Por outro lado não teve ja-
mais preoccupações sociologicas. Dizia o que o estudo
dos velhos papeis lhe tinha ensinado como quem se
contentava em separar o material, sem pensar em cons-
truir.
O autor da "Vida e Morte do Bandeirante" não se
detem apenas no respigar os episodios. Cada qual lhe
serve, á medid~ do preciso, para inducções de ordem
geral que, muitas vezes, explica, á luz do que fomos,
o que somos hoje e havemos de ser amanhã.
Nos testamentos, achou o autor a grande fonte de
informaç_ões. "Os inventarios coloniaes, diz Alcantara
Machado, em nada se assemelham aos da actualidade.
Estes serão de prestimo diminuto para os investigado-
res futuros. Faz--se pela rama a descripção dos bens.
Ha muita cousa que não figura no monte, porque a in-
clusão repugna á sensibilidade contemporanea. São
poucos os testamentos. Nelles não se descobre uma nes-
, ga sequer do coração do testador. Limitam--se á distri-
buição dos haveres. · Têm a aridez e a frieza de um ba-
lanço".
Nos velhos papeis, onde os avós traçavam as ulti-
mas vontades, ha muito mais. Ha retalhos de vida,
confissões abertas, revelações, queixas, conselhos. Os
bens são, muitas vezes, miseraveis utilidades gastas e
poid.as. Nos dois primeiros seculos a pobreza dos ricos
ê impressionante. De quatrocentos inventarios do se-
culo XVI, apenas vinte revelam menor indigencia. Os
valores, na epoca, mediam.-se por criterio muito diver-
so do que se usa hoje ; um colchao velho era avaliado
em mil e duzentos ; uma casa da villa apreçava.-se em
cinco mil réis .
A aristocracia rural do Brasil, que em 1910, Pierre
Denis caracterizou de tão clara maneira, teve suas ori-
Ensaios Brasilianos 141

gens, vemos agora pelo livro de Alcantara Machado,


nos mais antigos costumes coloniaes.
O mobiliario - escasso aviamento 1 - a baixela,
a roupa, a educação, a familia, as doenças e os remedios,
a religião dos bandeirantes, são themas de outros tan.-
tos interessantissimos capítulos da grande obra do
professor paulista.
O que · nos conta, ás vezes, é commovente ; "De
livrarias, nem sombra . . . O proprio sentimento de pa.-
pel de escripta é mesquinho. Em urn pedacinho de
quinze por doze centímetros estão o testamento de
Paulo Bueno e os despachos que mandaram cumpril.-o".
Em Dezembro de 1616, no sertão de Paraupava,
o escrivão do arraial, á falta de outro papel, traçou
o testamento de Pero de Araujo em um farrapo onde,
nas costas, fora copiado o trecho dos "Luziadas" em
que o Adamastor está prestes a surgir das ondas tene.-
brosas. Não havia, na terra, um só exemplar do livro
de Camões. As estrophes soberbas caminhavam pelos
refolhos da terra nova, na alma dos conquistadores.
Talvez, por isso elles vencessem . ..
O lindo volume de Alcantara Machado termina
em paginas de sobria elegancia sobre o sertão que at.-
trahia a alma dos moços, como o desconhecido sem u..
mites, como o grande mar ignoto arrastara os avoengos.
CAPITULO XVII

D ISCIPULO de dois grandes mestres - Paul Ri,


vet (de Paris) e Erland Nordenskjõld (de Gote,
borg) - o sr. E. Metraux acaba de ser investido na di,
recção do Museu de Tucuman (Argentina), á vista de
excellentes credenciaes. E' um apaixonado pela ethno--
graphia sul-americana, particularmente pela do Bra,
sil e já tem publicado alguns volumes sobre os nossos
indios. A sua monographia, de que desejo dar noticia
nestas linhas, versa a respeito das Migrações Historicas
dos Tupy,Guarany.
Para Metraux o que distinguiu aquella gente, des,
se ponto de vista, é que a perseguição européa não lhes
tolheu, em grande parte, o impulso caminheiro. Algu,
mas tribus Caraiba e a grande massa das tribus Tupy...
Guarany representam as unicas sul-americanas que te,
nham buscado fugir aos brancos por meio de exodos
colossaes. Em regra os índios quedaram-se nas regiões
onde foram encontrados, ou dellas pouco a pouco se
retiraram, para morrer mais socegados.
Os Tupy da costa brasilica, nos meiados do seculo
XVI, realizavam a caminhada para o Amazonas. Não
tinham ainda conseguido pleno domínio sobre os an,
teriores habitantes do · litoral.
Assim, a linha da conquista era interrompida pelos
Goyan~ de S. Vicente, pelos Goitacá do Espirito Santo -
e, ao norte, pelos Teremembé do Maranhão, que o autor,
com boas razões, exclue do grupo Tupy. Prova de que
era recente a sua grande migração costeira é a homoge,
neidade da cultura dos Tupys orieritaes.
Ensaios Brasilianos 143

Entre as migrações hfstoricas mais antigas, lembra


Métraux a dos Tamoio, narrada por Knivet e tão bent
estudada por Theodoro Sampaio - realizada na direc-
ção do Oeste, seguindo o Tietê. Acha verosímil a hy,
pothese de Theodoro Samapio . .. mas acredita muito
pouco em Knivet. A' Bahia chegaram os Tupys em va,
gas successivas, sendo a primeira a dos Tupinambds
(Gabriel Soares) que devem ter sido os mesmos Ta..
bajdra (de Simão de Vasconcellos). Por esse tempo de,
sceram do sertão bahianq os TupinamM em busca da
costa. Um grupo delles ~e destacou para a margem es,
querda d~ São Francisco ; foram os Amoipira.
Na costa da Bahia entraram os TupinamMs em
lucta uns com os outros, coisa de que os colonizadores
souberam tirar partido.
Tres migrações dos Tupys para o Maranhão, fo,
ram effectuadas muito depois de 1500. No tempo de
Gabriel Soiires, a co~ta, do Amazonas ao Parnahyba,
era habitada por gente de língua travada (Tapuya).
Claude D'Abbeville, em 1612, conheceu, no Mara,
nhão, alguns índios testemunhas da primeira migração.
Metraux açredita que os Tupys ali chegaram entre
1560 e 1580.
O padre Claude fornece indicações interessantes a
respeito. Narra que os immigrantes vinham de lindas
paragens, que descreviam como sendo cobertas de fio,
restas. Caieté - seria o nome dessa encantada região,
situada no tropico. Para fugir aos brancos tinham en,
trado no sertão, ganhando o norte pelo interior da ter,
ra. Tal qual aconteceu na Bahia, tambem no Maranhão,
fragmentou.-se o grupo Tupinambd. Não é facil iden, ·i
tificar "os tupys que naquella época viviam debaixo do
tropico". Métraux recorda os Guarany do Paraguay,
os Tamoios e os Tupiniquins de S. Vicente. Tendo sido
conquistada a Bahia de Guanabára, pelos Portuguêses,
em 1567, admittindo a chegada dos índios ao Maranhão,
144 E. "Roquette Pinto
por volta de 1580, ter,se,ia cerca de uma duzia de an,
nos para o exodo. A massa dos viajantes deve ter sido
consideravel, visto que, em 1612, a ilha de S. Luiz do
Maranhão contava cerca de 12.000 habitantes; ê mui,
ta gente. . . para tal viagem. Q paiz de Caieté teria sido
antes a região dos índios Caetê, entre o Paranahyba e
o S. Francisco.
O tropico do padre andava errado.
Em 1605, chegava ao Maranhão a segunda colum,
na Tupy, verdadeira invasão guerreira, commandada
por um portuguez typo romantico, bem pintado nos
livros da epoca. Identificado com os costumes e uso
dos índios, senhor das minucias da lingua delles, ganhou
o aventureiro uma ascendencia excepcional sobre os
selvagens. Dava,se por filho de Deus, dono das forças
do Universo, capaz de todos os prodígios. A' vista dos
indios não comia, nem bebia, recusando o que lhe offe,
reciam . . . como convem a um ser de tal origem. Reunira,
nesse embuste, uns dez mil indios ; atirou . . se á conquista.
Ajudados por alguns francezes, que logo trataram
de desmoralizar aquelle grande feiticeiro, os Potiguara,
da Serra de Ibiapaba, conseguiram reagir. O aventu,
reiro morreu em combate e os seus Tupys volveram a
Pernambuco.
Ao lado da primeira migração defensiva e da se. .
gunda conquistadora, foi a terceira entrada dos Tupys
no Maranhão como verdadeira migração religiosa.
O grande movei da mystica translação foi a espe . .
rança de encontrar, um bello dia, a terra sem males
- onde os frutos continuamente amadurecem e por
si mesmos enchem os samburás ; onde a caça nunca
falta e vem, sósinha, offerecer as carnes ao caçador.
Curt Nimuendajú, dedicado e competente ethnologo,
hoje fixado na Amazonia, colheu entre os indios Tem. .
bé dos nossos dias o mytho de uma terra milagrosa que
faz pensar no sonho do meigo poeta :
Ensaios Brasilianos 145

"De beaux fruits sans écorce muriraient ; ..


Le travail ne serait plus qu' un jeu.
Car nous n' agirions plus que pour sentir nos forces .. . "
A lenda dos Tembé diz assim:
Maira - criador do Mundo - vive em 1ka.i uira,
terra situada ao occidente do Pindaré e do Gurupi,
a um mez de viagem da ultima aldeia dos Tembé. A
casa de Maira é grande e rodeada de flôres. Ali as plan--
tas uteis crescem expontaneas ; ninguem as cultiva e
ninguem precisa trabalhar para colher o que produzem.
As aves nidificam no sólo : ninguem precisa trepar ás
arvores para furtar os ovos. As abelhas enxarcam de ·
mel o chão em que abrem colmeias. Os companheiros
de Maira, deixam,se viver docemente. , . Seu trabalho
- é dansar e cantar. Na terra de Ikaiuéra ninguem
morre ; só se chora de alegria . . . A gente só envelhece
para poder sentir as glorias do rejuvenescimento, que
vem coroar a idade avançada daquelles homens felizes.
Todos avaliam quantos anseios tiveram sempre os
Tembé para alcançar a Terra sem males.
Em vão I Os mais velhos affirmam que outr'ora
- tempos perdidos no abysmo das idades - alguns
- . conseguiram chegar ao lugar das delicias em que mora
o criador do Mundo.
Os mais moços, a estas horas, acredito, já estão
começando a verificar que a gente só chega um pouco
mais perto do reino de Maira a custa de muito traba..
lho - e envelhecendo de uma vez, na certa ...

** * .
Entre as mais recentes migrações citam--se as que
foram historiadas no sul, por Curt Nimuendajú. Tra--
ta--se do exodo, na direcção do Oceano, das tribus Tany..
guá, Oguauiva e Apapocúva, vindas das fronteiras do
146 E. Roquette Pinto
Brasil com o Paraguay. Os primeiros chegaram recen.-
temente á serra dos Itatins; os segundos a Curitiba;
os ultimos ao I vinheima.
A monographia de A. Métraux consagra numero.-
sas paginas a outros muitos movimentos migratorios
dos Tupys. Entre elles não é possível esquecer o que
mereceu interessante estudo de Erland Nordenskjõld,
proeza referida por Gandavo.
E' o caso que, ali por 1539, algumas centenas de
indios da costa ·- os autores falam em 12 e 14.000,
mas quando me falam em milheiros de índios, vou logo
extrahindo a raiz quadrada - commandados pelo che.-
fe Uira,assú (a grande ave Harpya, gavião de pennacho),
tendo ao seu lado dois espertos portuguezes, um dos
quaes se chamava Matheus, partiram das margens do
Atlantico na direcção do occidente, em busca de "ter.-
ras novas onde ac~arão immortalidade" na phrase de
Gandavo.
Depois de grandes luctas com os indios do interior,
ganhou a gente de Uira,assú o Amazonas e por elle se,
guiu até o Perú, onde em 1549, reza a chronica de J i.-
menez de la Espada, chegaram · trezentos indios do
Brasil á Chachapoyas, provinda de Motilones. Fei.-
tos ali prisioneiros. Uira,assú e mais cinco foram leva.-
dos a Lima e apresentados ao vice,rei.
No caminho haviam morrido Matheus e o seu com..
patriota. A viagem durou, segundo Gandavo, tres a
quatro annos ; para outros chronistas, durou dez.
Serviu ao · que parece, esta maravilhosa expedição
dos brasilianos, para incitamento dos Hespanhóes do
Perú, que desde 1550 principiaram a tentar a descida
do Amazonas.
Em 1560, Pedro de Orsúa na "Jornada de Omagua ·
y Dorado" - tomou por guia alguns dos fieis compa.-
nheiros do glorioso Uira.-assú, o "bandeirante desconhe.-
cido'\
CAPITULO xvm

A literatura de que podem dispor os estudiosos, a


respeito do imperio incaico é consideravel. Mas
o interesse dos autores não se esgota. Dois livros recen,
tes, ambos, notaveis, acabam de entrar na immensa
lista, um publicado em 1928 e outro em 1929. Este é
obra de um grande amigo do Brasil, americanista dos
de maior autoridade, o professor Max Schmidt, que
depois de algumas importantes viagens de exploração
ethnographica no interior de Matto,Grosso, por conta
do Museu de Berlim, voltou á sua cathedra na Univer,
sidade para cumprir o tempo necessario á jubilação.
E logo que a sua carreira de mestre foi encerrada,
- procurou de novo o Brasil. O illustre mestre reside
hoje .. em Cuyabá.
O livro de Max Schmidt - "Kunst und Kultur
von Perú" pertence a uma série consagrada á historia
da arte editada por " Der Propylen..Verlag", de Berlim.
E' obra monumental, pelo rigor scientifico com que o
mestre soube apresentar o que se apurou, em relação
á terra do Inka, e pela riqueza excepcional dos docu.-
mentos graphicos reunidos no volume. Na introdução,
Max Schmidt mantem o seu conhecido ponto de vista.
e despreza ou combate tudo quanto é hypothese gra.-
tuita. Do Perú pre,incaico o mais que se pode dizer é
que foi theatro de varias elaborações culturaes succes,
sivas e não sómente contemporaneas. Considera pura
fantasia e affirmativa, como facto provado, de velhas
migrações asiaticas e até mesmo de migrações centrame.-
ricanas responsaveis pelo espectaculo da cultura peruana.
148 E. Roquette Pinto
Periodos "Protonasca,. e "Protochimu", são tal.-
vez "schõnklingenden Namen" - que é como quem diz:
titulos sonoros. O autor não se esquece de mostrar a im..
portancia que pode vir a ter o encontro, relativamente
recente, de indios primitivos, pescadores, os "Uru" ,
localizados no "desaguadero" que liga o Titicaca ao
Aullagos, gente que fala idioma do grupo aruak (a lin..
gua P1.1:kina) - familia em que acreditam alguns tam-
J,em estar o dialecto dos marajoáras.
• Devo dizer que as relações entre a America Central
e o Perú não me parecem tão accidentaes como o autor
admitte. Elle mesmo fornece optimo argumento a res--
peito do assumpto.
Depois de haver mostrado que, em todo o conti-
nente americano, s6 o velho Perú tratou da domesti-
cação de animaes, de maneira significativa para a eco-
nomia social, conseguindo mesmo "transformar" o
guanaco e~ lhama e a vicunha em alpaca, Max Schmidt
estuda o caso dos canideos.
As pesquizas de Nehring provaram que o cão dos
peruanos não teve origem na Sul-America; foi prova--
velmente forma derivada do lobo norte-americano (Lu ..
pus occidentalis).
A raça primitiva ("canis Ignae pecuarius"), teria
fornecido, entre outros, os typos de cão rasteiro (lnka..
dachshund), e de bulldog - (lnkabulldog).
As numerosas mumias de animaes, encontradas no
·Perú, fornecem, como se vê, notaveis documentos ;
No seu · livro, Max Schmidt inclue photographias de
araras, papagaios, macacos, tatús, cães, lhamas, mumi-
ficados.
Um excellente resumo do que se sabe actualmente
da terra do lnka : cultura material, organização social,
arte e religião serve de texto explicativo ao verdadeiro
atlas archeologico e artistico que é ·essa grande obra.
Ensaios Brasilianos 149
Na collecção de gravuras, a ceramica tem predo--
minancia accentuada, como seria de esperar.
O material é precioso por varios motivos. Todos
sabem que os peruanos plasmaram, n~ seus vasos, toda
a vida nacional. Até mesmo as doenças estão documen,
tadas na ceramica. Mas é precisamente porque os chr~
nistas copiaram servilmente a natureza que falta á sua
art:e certo cunho de emoção superior, certo laivo de
fantasia e devaneio que a gente encontra na arte mara,
joara. Marajó tem muito menos technica ; o seu barro
é até mal cosido. Mas a ousadia da inspiração nos mo,
tivos omamentaes não encontra parelha nas copias
fieis, ás vezes infantis, que formam o grosso da ceramica
dos Andes.
O outro volume realtivo á terra do Inka faz parte
de uma notavel collecção de monographias editadas
pelo Instituto de Ethnologia da Universidade de Paris,
dirigido pelo nosso eminente amigo Lévi,Brilhl : "L' Em,
pire Socialiste des Inka" por Louis Baudin, professor
em Dijon.
Era, de facto, o Perú socialista? O autor admitte,
como um postulado, que a racionalização eia sociedade,
a annulação do individuo, a tendencia á igualdade e a
suppressão da propriedade privada são os caracteristi,
cos fundamentaes do socialismo. E depois de uma pro,
funda analyse da vida peruana, conclue que houve atli,
a superposição do socialismo do Estado ao collectivis,
mo agrario.
O regionalismo collectivista é anterior á conquista
inkaica ; sobre elle, o socialismo dos imperadores se,
mi,divinos compoz alguns aspectos sociaes variaveis
segundo as regiões. Por isso, acredita Baudin, muitos
foram levados a contestar a indiscutível unidade do
imperio. E ' que o Inka respeitava, o mais possível, os
costumes dos povos conquistados.
1(50 E. Roquette Pinto
A maravilha social, que o Perú prehistorico repre ...
senta, ganha relevo particular quando se considera o
isolamento em que se desenvolveu. Todos os grandes
estados do mundo antigo ajudaram...se mutuamente,
no caminho da .cultura, mesmo quando s,e attritavam.
Comprehende,se muito bem, diz o autor, a surpre...
sa dos hespanhoes ao descobrir alli cidades, templos,
palados, estradas, depositos publicos atulhados de ri...
quezas, um povo, em summa, admiravelmente bem di. .
rígido e que, no entanto, desconhecia a roda, o ferro o
vidro e a maior parte dos utensílios usados na Europa.
No momento da conquista, a terra do Inka acabava de .
attingir ao fastígio do seu desenvolvimento.
E, no entanto, a sua historia é ·muito menos antiga
que a do Egypto ou a da Assyria. Si o Perú nos dá
igual impressão de antiguidade, pensa Baudin, é que
"afastamento, no espaço, equivale ao recuo, no tempo".
O livro de Baudin ê admiravelmente bem documen . .
tado. No capitulo inicial, elle refere as fontes de infor,.
mações de que hoje dispomos. E classifica os autores
em;
a) os que viram o imperio inka : Francisco de
J erez, de Sevilha, Secretario de Pizarro ; Juan de Sá...
manos, Cristobal de Molina, Juan de Betanzos, esposo
de uma irmã de Atahualpa, senhor do idioma quichua ;
Pedro Sanchez de la Hoz, chronista official da conquista.
E cita a celebre carta do proprio Pizarro ; ·
b) os que chegaram ao Perú logo após a destrui...
ção do imperio ;
e) os que na Europa, recolheram as noticias das
proezas hespanholas nos Andes : o Bispo Las Casas,
Francisco Lopes de Gomara, Oviedo, Herrera, etc. ;
d) os que recolheram, no Perú, as velhas tradi...
ções dos descendentes dos Inkas: Garcilaso de la ve. .
ga, Pedro Sarmiento de Gamboa, etc. ;
Ensaios Brasilianos 151

e) os historiadores do seculo XVII;


J) os do seculo XVIII ;
g) os do seculo XIX ;
h) os modernos;
i) os historiadores de Quito.
Com esse formidavel cabedal, Baudin esmiuça a
terra do Inka, de um modo realmente notavel. Fo.-
lheàndo o trabalho desse professor de uma Faculdade de
Direito, que sabe discutir como um naturalista as ri.-
quezas naturaes e as condições geographicas do pais
que analysa, a gente se lembra, sem querer, dos que
perguntam ingenuamente, para que precisa de historia
natural um alumno de sciencias sociaes?
Considerando, com minucias, a hostilidade do meio
em que floresceu o imperio Inka, Baudin conclue :
Tout y était inférieur, excepté l'homme.
Qual a origem daquelles homens excepcionaes que
conseguiram o milagre de tão alta organização social
naquelle meio pauperrimo e hostil?
Baudin acceita a theoria, hoje em voga, da origem
asiatico.-polynesia e australiana para os amerindios.
Mas ao Perú teriam chegado depois de haver demorado
no valle amazonico.
Tudo levaria, assim, a crer que foi do Brasil a gente
povoadora dos Andes. Vindos do norte, pelo caminho
das Antilhas, uns teriam descido o Amazonas e perpe.-
tuado, em Marajó, a força espiritual da sua arte ; ou..
tros teriam subido o grande rio e, mediante a discipli.-
na que os Inkas conseguiram implantar no seu conjun.-
cto, e pela necessidade de luctar constantemente com
a terra ingrata, foram retemperados nos seus melhores
attributos e deram o imperio surprehendente.
Em Maraj6 ... . a terra era outra e faltou a dynastia
organizadora. Faltou o In.ka. A origem dos grandes
152 E~ Roquette Pinto
chefes passa, dest'arte, a ser o problema essencial. O
enigma se desloca. E a respeito de origem dos Inkas
tudo é ainda hoje lenda. De Manko;Kapak, o primei;
ro Inka, personagem perfeitamente logico a Huayna
Kapak, o ultimo soberano, pae de Huascar e de Atahual;
pa, irmão inimigos, cujas luctas facilitaram a obra de
Pizarro, governaram o Imperio doze chefes. Na epoca
da conquista, o imperio tinha dois seculos de vida or;
ganizada. Estendia;se, então, do rio Ancasmayo, o
segundo ao norte do Equador, ao rio Maule, 35 graus
ao sul. A terra do Inka possuía, segundo algumas es;
timativas, seis milhões de kilometros quadrados, cer;
ca de doze milhões de habitantes . . .
Baudin entende que é um erro acreditar, com os
marxistas, que os factores economicos tudo explicam.
No entanto, depois de analysar magistralmente os fun;
damentos economicos do imperio inka, conclue que a
lucta da população pela conquista do alimento foi um
dos elementos determinantes da politica peruana.
O alicerce social do imperio foi, porem, muito di;
verso de igualdade, foi a estratificação. A sociedade
inka era extraordinariamente hierarchizada. A igual;
dáde, si existia, era dentro de uma mesma classe. Uma
igualdade militar : todos os soldados são iguaes.
No fundo, o estado era mesmo theocratico: o ln;
ka, filho do sol, era quasi adorado como deus. Velas;
co, c;:itado pelo autor, escreveu que o Inka construiu
o throno sobre a alma dos seus subditos e não sobre o
seu sangue. Encontro ahi algo que me recorda o pres--
tigio espiritual do Mikado. A base religiosa do imperio
resulta ao mesmo tempo de tudo isso.
A sabedoria dos chefes deu;lhes conselhos de t0;
lerancia sem os quaes não teria sido possível a construcção
admiravel : os deuses locaes adorados pelas tribus
conquistadas eram solemnemente enviados ao santua;


Ensaios Brasilianos 153

rio de Cuzco, o templo do Sol. Cada indio, lá no seu


rincão, sabia que o seu fetiche era posto no mesmo a) ...
tar deante do qual o Inka se prostrava. Espertos .Jn...
kas 1
O maior elogio do imperio, escreve Baudin, acha. .se
contido no testamento de um dos soldados de Pizarro :
"aqui não ha nenhum ladrão, nenhum vadio, nenhuma
adt,iltera" ...
O Phara6 do Egypto erguia monumentos grandiosos,
chicoteando os vassalos, e, ao ganhar as guerras, es...
cravisava os vencidos ; o Inka levantava monumen . .
tos equivalentes, mas era obedecido como pai e presta. .
va homenagens ás crenças espirituaes das tribus conquis...
tadas.
Abaixo do Inka, os funccionarios (governadores,
generaes) garantia da organização civil e os represen . .
tantes da religião e da sciencia (Amautas) encarnavam
o estado. A communa agraria vivia, embora quasi livre,
dentro daquelles quadros. Em todo o caso, o principio
das castas era a regra. Poucos indivíduos conseguiam
sahir da ínfima condição e attingir postos superiores
aos da sua classe.
A communa agraria nascia do clan patriarchal.
Era primitivamente totemica: puma, condor, serpen...
tes, etc. Ao clan (aylú) correspondia a propriedade do
solo : um verdadeiro collectivismo Ja,miliar, no inicio.
Havia tambem propriedades do Estado e propriedades
particulares : casa etc.
Q trabalho material ou intellectuat era obrigato...
rio. S6 os enfermos, os velhos e os incapazes eram isen...
tos da contribuição. Até as crianças, a partir dos cinco
annos, deviam realizar algum serviço. Mesmo os ce. .
gos tinham a obrigação habitual : debulhar milho.
Uma das maximas preferidas pelos lnJ<as dizia que
era preciso trazer o povo sempre occupado. O trabalho
. /

154 E. Roquette Pinto


não era apenas um meio de augmentar as subsistencias,
era um fim altamente educativo e moralizador. Hoje
na Europa, diz Baudin, a tendencia dos legisladores é
procurar augmentar os ocios das massas populares. Os
lnkas, ao contrario, inventavam serviços e emprezas
para que ninguem estivesse vadio. Assim o systema in. .
ka, era diz o autor com certa graça, wna économie non ...
euclydienne.
Nem se imagine, porem, que havia tyrania nisso
tudo. Ao contrario. Sabias disposições regulavam a
actividade dos obreiros : dias de descanço, festas, ban. .
quetes . . . officiaes.
Certas industrias prejudiciaes á saúde foram in...
terdictas : mineração do mercurio, pesca de perolas,
etc. O serviço agrícola era equiparado ao serviço mili . .
tar. De 25 a 50 annos todos os homens validos eram obri. .
gados a qualquer dos dois.
Quando, após a conquista, o governo hespanhol
resolveu imitar o que faziam os Inkas e determinou que
os índios fossem obrigados a trabalhar, os resultados
não corresponderam ás louvaveis intenções. Faltou a
condição imponderavel mas decisiva : o vice...rei não
era Filho do Sol.
E' bem possível que o maior instrumento do gover. .
no do I nka tenha sido a estrada.
Antes do seculo XIX nenhuma nação, nem mesmo
o imperio Romano, conheceu estradas como as perua . .
nas en longueur et solidité.
Eram felizes os peruanos governados pelo Inka?
Parece. A disciplina militar e a disciplina economica
- as duas pautas da vida - haviam promovido o de . .
sapparecimento do individuo. Trabalhavam cantan. .
do, deviam ser felizes, mas a custa do aniquilamen. .
to da propria personalidade. . No fim de contas cons . .
Ensaios Brasilianos 155

tituiam o que Baudin chama une ménagerie d'hommes


heureux.
O Estado conseguiu destruir dois grandes males :
a pobreza e a ociosidade. Mas obteve esta victoria a
custa de dois sacrifícios enormes : a destrução, na ai,
ma popular, da iniciativa e da previdencia. Nem foi
por outra razão que os cento e poucos hespanhóes de
Pizarro desarticularam facilmente o surprehendente sys,
terria social da terra do lnka.

1 '
CAPITULO XIX

O S homens da minha geração ainda conseguiram ou,


vir os écos dos antigos doutores coimbrãos para
quem tudo estava no "saber falar".
Ha uns trinta annos, em todo o Brasil, o "moço
que fala muito bem" - conseguia tudo, inclusive pos,
tos da maior responsabilidade scientifica. Não se in,
dagava mais nada.
O essencial não era saber as coisas, mas falar bem
das coisas que os francezes sabiam . . .
Recordo,me de que, na occasião do primeiro surto
da peste bubonica, importada de Lisboa para Santos,
o Governo procurou durante muitos dias quem pudesse
fazer, autorizadamente, um diagnostko bacteriologico.
Felizmente havia, no Rio, Eduardo Chapot Prevost e
Affonso Ramos que era discípulo do Instituto Pasteur.
Nesses trinta annos, a cultura technica tomou impulso
realmente notavel. Não devemos confrontar apenas o
que temos, com o que precisamos ter ; é necessario
lembrar o que não tínhamos ...
Penso que o nosso ensino experimental, no que diz •
respeito ás necessidades praticas, do ponto de vista uti,
litario, acha,se iniciado de maneira promissora.
Onde, porem, tocamos á indigencia - é no que
respeita aos centros experimentaes de sciencia pura,
laboratorios de pesquiza ou ensino, sem mira de lucro
immediato.
Ahi ha quasi tudo a fazer.
A começar pelos institutos de ensino secundario,
J
os quaes, na minha humilde opinião, deveriam ser coo, •
r
Ensaios Brasilianos 157
siderados o melhor de qualquer programma educati.-
vo. Não será possivel ao Brasil ter a cultura necessa..
ria sem gymnasios, mesmo quando fosse passivei sem
elles ter universidades. Não foi a t6a que as materias
gymnasiaes mereceram designação de "humanidades".
Pois bem. Quantos gymnasios no Brasil possuem
um simples microscopia? uma lanterna de projecções?
Isso, quanto ao ensino technico secundaria. Quanto
aos - centros de pesquiza experimental, verdadeiros la.-
boratorios da Sciencia, não podemos deixar de reco.-
nhecer que nos ultimos vinte annos elles se affirmaram
de modo seguro. Basta correr as publicações scientifi..
cas que o Brasil hoje espalha pelo mundo e comparar
com o que espalhava em 1889 . . .
De sortç que, em resumo, a maior falha do nosso
ensino technico é verificada na indigencia dos nossos ·
gymnasios, quanto á laboratorios e gabinetes. Penso
que "em sciencias naturaes - quem não mostra não
ensina".
Creio que os nossos la.boratorios de pesquiza pre.-
cisam mais de pessoal do que de material. Cada vez
está sendo mais difficil recrutar pessoal capaz. A in--
dustria e o commercio - o ouro - faz aqui, como em
toda a parte, terrível concurrencia ao saber desinte--
ressado. Que futuro, no sentido pequeno do termo, es,
pera um rapaz que se faz botanico ou ethnologo? As.-
• tronomo? ·
A maior falha nos laboratorios officiaes, para que a
nação tire todo o proveito do dinheiro que gasta, pro.-
vem do emperrado mecanismo fiscal. Coll) as mesmas
verbas modestas que têm, os nossos institutos poderiam
fazer o dobro do que realizam, não fossem as compli,
cações. Si o governo entregasse a cada ministerio as
verbas das suas repartições, dinheiro que só poderia
ser gasto mediante approvação de um determinado con,
selho economico de cada instituto - teríamos um gran,
158 E. Roquette Pinto
de passo no sentido do desenvolvimento da sciencia
experimental. Já disse e agora repito. "A sciencia hoje
custa mais caro do que as joias". Os livros e as revistas
são tanto mais importantes que certos apparelhos.
Qualquer volume dos mais simples, vale hoje 3 a 8 dol-
lars (60 a 160 mil réis). De sorte que nada justifica a
existencia de um riquíssimo laboratorio sem bibliothe-
ca de igual tomo. Direi mais, prefiro um modesto la-
boratorio provido de bons livros. Quem tem pratica
dos trabalhos de pesquiza de laboratorio sabe que a maior
parte dos problemas technicos são resolvidos por meio
de apparelhos construidos na occasião pelo proprio ex-
perimentador.
Apparelhos custosissimos, que a gente vê descri p-
tos nos catalogas - (todos os technicos sabem disso)
- são muitas vezes material para "inglez ver".
Ao lado dos livros e dos instrumentos essenciaes, não
é possível deixar de falar da urgencia da publicação dos
trabalhos feitos. Não é por vaidade, nem para dar no.-
me aos trabalhadores. E' para documentar as pesqui-
zas e impedir que ·se percam, como aconteceu no passado,
com os de Frei Leandro, Alexandre Rodrigues Fer-
reira e tantos mais.
Em conclusão : estamos na hora de formar pesqui.-
zadores. Isso é vital para o Brasil e depende principal.-
mente do ensino technico gymnasial. De accordo com
estas idéas foi creado o Serviço de Assistencia ao Ensi.-
no da Historia Natural do Museu Nacional e assim
desenvolveram.-se as suas publicações.
CAPITULO XX

,EU já sabia, por ouvir dizer, que o imperador man,


tinha correspondencia com alguns vultos dos mais
eminentes na sciencia, nas letras, nas artes, da Europa
e da America. Ha cerca de um anno, lendo o volume que
sobre o conde Arthur de Gobineau escreveu Maurice
Lange, professor da Universidade de Strasbourg, fal,
lecido em 1923, encontrei referencias a um certo nu,
mero de cartas dirigidas por Pedro II ao seu velho ami,
go, ex,ministro de França, no Rio.
"Oitenta cartas de d. Pedro, escreveu Lange, con..
servadas na Bibliotheca de Strasbourg, attestam a per--
sistencia desta amizade ... "
Seguro dessa informação, tratei de obter cópia
das cartas do imperador. Se ha correspondencia inte,
ressante, para um anthropologo brasileiro, ê precisa..
mente essa, trocada pelo chefe da grande nação mesti,
ça com o autor do "Essai sur l'inegalitê des races humai,
nes" ...
Até agora não consegui saber onde se encontram
os originaes do conde. Talvez, no Castello de Eu. Os
de Pedro II foram ter á Bibilotheca de Strasbourg,
de envolta com os papeis de Gobineau, em 1903, quan,
do o archivo do escriptor passou a pertencer áquelle
instituto, por doação da Gobineau,vereinigung". Esta
Sociedade, então presidida pelo sr. Schemann, grande
panegyrista de Gobineau, fundara..se em 1894 e recebe..
ra o archivo do seu illustre eponymo, em 1901, das mãos
da senhora de la Tour, legataria do conde.
160 E. Roquette Pinto
Muitos dos papeis do archivo Gobineau passaram
a ser documentos de publicação interdicta, desde 1921.
A maioria, porem, póde ser consultada e copiada.
Aproveitando a viagem do meu querido amigo e
collega professor Alberto Betim Paes Leme, que este
anno honrou o bom nome do Brasil, no curso realizado
na Sorbonne, por conta do Instituto Franco Brasileiro,
obtive por seu' intermedio cópia das cartas do impera-
dor Pedro II ao conde de Gobineau, existentes em Stras.-
bourg. ·
Nenhuma dellas é documento sensacional. Muitas,
são até ingenuas. A maioria, porem, apresenta, de fa ..
cto, interesse para a elucidação de pequenos casos, ou
mesmo para accentuar certos traços da conducta im.-
perial, definindo ás vezes, numa phrase, superiormente,
o intellectual prisioneiro da política, o "rei á força",
que governou durante quasi meio seculo ...
As cartas de d. Pedro vão de 18'70 a 1882. Ha oito ·
sem data, escriptas em differentes lugares, umas da lta.-
lia, outras do Egypto, ou do Rio. Em geral, o imperador
iniciava simplesmente : "Gobineau" ; ás vezes, "Mr.
le Comte". Em nenhuma dellas o tom carinhoso e
meigo deixa de predominar; "Adieu !" Comptez tou.-
jours sur l' amitié de votre tout affectionnê - D. Pe.-
dro d' Alcantara".
Minucias da vida intima, preoccupações ou alegrias,
leituras e trabalhos t udo repercutia na correspon.-
dencia. · ·
A 18 dé junho de 1872 d. Pedro, já de regresso
ao Rio, manifestava a intenção de escrever um livro
sobre a sua viagem, mas confessava temer as ameaças
do "scripta manent". Criticava a esculptura "Wal..
kyria", de Gobineau: "J'y remarque, comme ailleurs,
que vous avez un faible pour les grosses levres qui,
du reste indiquent peu de delicatesse d'esprit".
Ensaios Brasilianos 161
A proposito não será f6ra de occasião lembrar que
o pregoeiro do aryanismo diplomata e esculptor, achava
que o typo feminino resultante do cruzamento branco
com negro - é particularmente bem prendado quanto á
belleza physica.

•• •
·Para avaliar a intensidade e a natureza dos sen,
timentos que o Brasil e os brasileiros inspiravam ao con,
de de Gobineau, é preciso, antes, recordar o que elle
dizia da Grecia, paiz onde servia quando o removeram
para o Rio, no começo . de 1869 :
"A Greciá ê divina ; infelizmente ha gregos ... "
Nas cartas do diplomata, citadas ou transcriptas
no bello volume de Ma~ce Lange, os estadistas helle,
nos viviam esbanjando os dinheiros publicos, falsifi,
cando as leis. Pois, escrevendo á sua esposa, quatro
mezes depois de chegar ao Rio, Gobineau dizia "ser
preciso ter estado no Brasil para comprehender o valor
da Grecia e. . . dos gregos". O resto é uma ladainha
interminavel de conceitos depri~entes, offensivos, bru,
taes, que eu nem quero transcrever. Em resumo: o
Brasil s6 poderá ser uma nação, quando tiverem desap,
parecido os brasileiros. Mais ou menos o que hoje ou,
sam repetir os zangões da falsa Eugenia, para os quaes
o problema nacional não é "melhorar e augmentar o
que temos de bom, em materia de gente, e sim promo, .
ver a sua substituição". Não era s6 o povo. A nature,
za, aqui, irritava profundamente o amigo de d. Pedro.
O nevoeiro do Rio. . . era como o de Londres. No seu
"Amadis" (1876), Maurice Lange encontrou quatro ver,
sos abominaveis, que lhe pareceram conter uma allu,
são ao clima do Rio :
162 E. }.loquette Pinto
Je trouve a ce pays un climat détestable ;
Je n'en garderai pas un Jort bon souvenir
L'air est souvent brumeux et lefroid redoutable;
Ou ne m'y verra pas de longte.mps revenir.
"Froid redoutable l"
Tendo vivido aqui cerca de um anno, a 10 de mar,
ço de 1870, nas vesperas de partir, apesar de haver
feito as melhores relações com o imperador, que o re- ·
cebia em S. Christovam todos os domingos, escrevia a
um amigo : Seja o que fôr, vale mais do que semelhan-
te degredo l
Quero crer que, apesár da intimidade das suas re,
lações, d. Pedro nem de longe suspeitou dos sentimen,
tos de Gobineau para com a sua terra e o seu povo. E
só assim posso admittir um facto que, de outro modo,
seria inacreditavel : a inclusão do antipathico diplo-
mata entre os grandes dignatarios da Ordem da Rosa.
"O imperador do Brasil sentiu,se muito feliz em
agradar a d. Pedro de Alcantara, nomeando,vos grão
cruz da Rosa, e aqui vos remetto o diploma e a com-
menda' '. (Carta de d. Pedro - Rio, 24 de julho de 1872).
A Ordem da Rosa, criação de Pedro 1, estava en-
tre o que de mais valioso distribuía o lmperio, no ca,
pitulo das vêneras.
De 1872 ê outra carta (5 de setembro) em que d.
Pedro faz uma interessante allusão ao movimento fe,
minista que, todos sabem, teve origem nos paizes sep,
tentrionaes da Europa.
Penso não errar datando o inicio da agitação, que
- me parece ter sido propagada na península Scandina-
v~ . pelas novellas de Almquist, escrlptor vigoroso, mas
des~gual e bohemio. A liberdade por que anceiam as
mulh.eres teve o seu codigo no "Det gor an", romance
que cli, na tradução ingleza, com o titulo "Sara Vid-
heck'1. . Livro ousado, para o tempo, em que a heroina
Ensaios Brasilianos 163
só acceita o amor de um companheiro de viagem com a
condição de manter a sua independencia economica, a
principiar pelo pagamento da nota do primeiro almoço
do casal.
Não sei o que lhe escreveu Gobineau a respeito das
senhoras da Suecia, onde então residia; d. Pedro res
pondeu assim :
. "Comprehendo que a demora na conversão dos
povos escandinavos ao christianismo deve influir ain.-
da sobre a sua moral ; mas é preciso esperar que a civi.-
lização reintegre a mulher na sua verdadeira funcção de
mãe de familia". Depois tratava de assumptos do Brasil.
Queixava,se, como sempre, dos "aborrecimentos da sua
posição". As cartas de Gobineau eram um "consolo" :
"Nada de grande importancia a communicar,vos;
sabeis que vida levo e a política é para mim, apenas, o
penoso cumprimento de um dever. Sinto,o demasia,
damente no dia de hoje, em que se completam 33 annos
que carrego a minha cruz. (Carta de d. Pedro - Rio, ·
23 de julho de 1873).
E' um trecho commovente. O velho imperador,
nascido e criado para a arte e para as letras, espectador
displicente da gangorra Iibera)...conservadora, obrigado
a tomar parte directa - que remedio 1 - nos aconte.-
cimentos que a evolução do seu povo ia suscitando 1
O throno. era mesmo uma cruz . . . Os verdadeiros ami..
gos de d. Pedro II deviam ter feito a Republica em 1873
- se não antes - libertando o "rei á força". E como
não póde haver optimismo constructor na alma de
quem carrega uma cruz, o Brasil não perderia nada com
a redempção do eminente captivo.
Muitas das cartas de Strasburgo repetem os mesmos
queixumes:
"Não esqueço os que me amam e os. que amo e se
não lhes escrevo tanto quanto desejo não soffro por
164 E. Roquette Pinto
isso menos do que elles. Na verdade, cansa,me a obriga..
ção de estar ao par da politica e da administração . . . "
Em mais de um documento d. Pedro se refere ás
theorias raciaes de Gobineau, oppondo algumas res-
tricções ás desabaladas fantasias do conde : "V6s of..
fendestes .horrivelmente meu philhellenismo. Sinto que
a falta de tempo não me permitta reivindicar minha af..
feição pelos gregos, cujos defeitos, entret.anto, reconhe-
ço". (10 de setembro de 1873).
A ultima das cartas de 1873 faz .referencias saudo-
sas a uma viagem que juntos, haviam realizado - d.
Pedro e o conde - a Juiz de F6ra.
A primeira de 74 menciona um arco, enviado, em
tempo, pelo imperador a Merimée, por intermedio de
Gobineau.
"Pays de sauvages 1" - devia ter dito baixinho o
criador de Carmen, recebendo o presente . ..
Para a historia da "Questão Religiosa" encontro
a carta de 4 de abril de 74, documento em que Pedro
II jl!lgava, sem rebuços, a attitude da Igreja.
"Vós vos lembraes da nossa conversa a bordo do
"Magicienne", a respeito do concilio do Vaticano? O
Brasil resente,se tambem daquelle desdobramento in,
tempestivo de uma força mal applicada.
Em relação com os francs,maçons, que no Brasil
jamais se preoccuparam com doutrinas religiosas, no
mínimo os bispos esquecem a Constituição e as leis
do seu paiz.
O governo nada mais faz do que manter a indepen,
dencia do poder temporal, fóra do que não é puramen,
te espiritual. Acredito, comtudo, que a energia e a mo,
deração do gqverno vencerão a resistencia, obtendo que
a Côrte de Roma attenda aos verdadeiros interesses
do Catholicismo".
EtMaios Brasilianos 165
Não deixa de ser interessante verificar que, na in,
timidade, o imperador julgava estar defendendo os in--
teresses da Igreja . . . contra o Papa.
Da França, ainda ensanguentada, fala d. Pedro
na mesma carta : ·
Tqdo quanto dizia respeito a este paiz sempre o
interessou fortemente, e lastimava que tanta riqueza
intellectual e material não fosse aproveitada de ac,
cordo com melhor criterio. Voltavam,se os francezes,
de novo, para as festas do lmperio, afim de animar o
commercio de luxo parisiense.
A Suecia, ao contrario, era, então, "sabia e feliz" .

•••
Na mesma carta vê,se d. Pedro interessadissimo
no que Musset chamou "imbroglios" e "galanteries",
d~ejoso de saber por miudo os amores de Merimée
pela desconhecida a quem escreveu tanto : "Quanto
teria dado, no fim de contas, a essa rapariga, a sua es.-
peculação sobre a fama do autor de Colomba? Narre,
me tudo isso minuciosamente, sem esquecer a evocação
do retrato da desconhecida. E a Academia France.-
za? Felizmente Theophile Cautier morreu a tempo".
Em 1874 o imperador manifestava o seu enthu,
siasmo pelo romance Les Pkiades, que o conde estava
escrevendo. Pedia tambem que mandasse notas sobre
a sua Renascença; defendia de Quatrefages contra in.-
vectivas de Gobineau, condemnava de modo absoluto
o darwinismo. E, no meio de phrases muito affectuo.-
sas, Pedro II se lastimava de não poder mais ler e es,
tudar como outr'ora. "O somno me persegue" - es.-
crevia o imperador a 17 de novembro de 1874. Apesar
disso, já sentindo a decadencia inelutavel, no começo
de 75, o velho monarcha tomava lições d(sanskrito
166 E. Boquette Pinto
com um philologo allemão residente no Rio, o dr.
Henning.
"Les Pleiades" - que tanta admiração provocava
no eminente amigo de Gobineau, é um romance con,
fuso, embora de estylo brilhante, como em geral são as
suas paginas, romance cheio de idéas da mais orgulho,
sa aristocracia racial. Wilfrid Nore, inglez, e Conrad
Lange, allemão - encarnam, como figuras da narra ti,
va, o que ha de melhor na humanidade : pertencem á
raça dos deuses. . . São pleiades. A sua independencia
espiritual, o temperamento vivaz, a ousadia, a genero,
sidade - são privilegias cto sangue.
O francez Laudon, latino inferior como os demais,
outro personagem do romance, assustado com as theo,
rias dos seus dois interlocutores ouve, ainda por cima, o
resto: na Europa ha uns tres mil cerebros dignos: o
mais é a m~sa que se póde dividir em tres categorias :
a dos imbeçis, a dos ridículos e a dos brutos. A humani,
qade inteira, para Gobineau, segundo uma sua linda
iinagem, era comparavel ao céo profundo e immenso,
onde só mer.ecem attenção os seres brilhantes e magni,
ficos que se reunem nas constellações. Affeição, res,
pe.ito, curiosidade, ternura eram só para as grande$ for,
ças e as grandes luzes ...
D. Pedro, para o conde, era personalidade sideral,
daquelle molde. Pagava na mesma moeda. Lendo -
Les Pleiades - parecia,lhe estar ouvindo o proprio Go,
bineaµ, durante os "inesqueciveis domingos" de Boa
Vista. ·
Gobineau, ao que diz a critica autorizada ctese".'
nhou~e em um dos personagens de Les Pleiades, indivi,
duo de quem assim fala : E' difficil dizer se elle tinha
recebido, ou não da natureza, espírito recto e justi,
ceiro ; em todo caso era dotado de singular poder de
~bstinação e conseguia ageitar sua personalidade moral
de accordo com os seus projectos : bastante instruído,
Ensaios Brasilianos 167
por constante leitura, principalmente de historia, á
força de examinar as series elos factos humano~, tinha,
se enojado dos que nelles tomam parte. Uma vez apai,
xonado por algo que lhe parecesse admiravel - seguia
o seu destino, sem considerar as consequencias.
O catfiolicismo impotente, a França degene,;ada -
eram themas correntes na palestra da pessoa em que se
disfarçou o diplomata, Titan indignado - conforme o
qualificativo que para si mesmo escolheu.
O ministro de França em Stockholm punha, na
bocca do sosia palavras atrozes de "desprezo e odio
pela porção da Europa em que nascera" 1
E' bem possivel que o suicidio viesse concluir a
obra do Titan indignado, logo depois de Les Pleiades,
se mme. de la Tour não tivesse attendido aos sentimen,
tos do diplomata que, já velho, e apaixonado, pedia-
lhe que o ajudasse a morrer.
Na mocidade, o seu ideal fõra a vida dos conquis,
tadores de alma viril : agora, na velhice aquecida pelo
carinho de mme. de la Tour, eram os aventureiros e os
artistas do renascimento italiano, gente cheia da ousa.-
dia que marca a raça forte. Cezar Borgia, Savonarola,
Julio II - são os seus granqes homens. Principalmen,
te Miguel Angelo, mostrando que a escalada do cêo
não é possível senão aos que são capazes de veemencia.
Todos aquelles typos tinham de commum a energia mo,
ral, attributo do sangue nobre, factor essencial na eclo,
são do grande movimento que o conde chamava flor
de ouro - desabrochada urna s6 vez na historia hu,
mana.
"Renaissance" foi titulo escolhido mais tarde. A
grande obra devia chamar..se ''Fleur d' Or". Pedro II
que andava sempre ao corrente dás ardentes locubra,
ções do seu at1'igo, em uma das ca_r t~ de 75, menciona
o livro; "Fleur d' Or" já me interessa vivamente'' -
. 168 E. Roquette Pinto
escrevia então o imperador. Com a morte de Carlos
XV que tinha sido para elle, na Suecia, o que Pedro
II fôra no Brasil, Gobineau, depois de haver brilhado
nos salões do reino, foi pouco a pouco afastado da cõr..
te de Oscar II. espírito pouco dado ás fantasias Intel,
lectuaes tão do agrado do conde. O representante das
pleiades começou a achar a sociedade de Stockholm
muito differente do que era no tempo· do velho rei. O
mal provinha, na sua opinião, da grande influencia
latina pouco a pouco ali diffundida. Para o ministro
de França, a Suecia tomara.-se insupportavel por ha..
ver importaçl_o . . . a c;ultura franceza l
Por esse tempo as suas rendas já não lhe permit,
tiam o fausto a que se ha)>ituara, corno verd~deiro
filho de rei, que não podia deixar de ser pela nobreza do
sangue.
A sua disponibilidade, resolvida a pretexto de re..
juvenescer o quadro diplomatico - deve ter concor,
rido para maior angu~tia dos seus reCUJ:"SOS pecuniarios.
Não é possivel disfa~ar a admiração que mere..
ceu a republica franceza mantendo no seu posto até
1876, com alto espírito de tolerancia, o funccionario
que foi, por convicção philosophica, o maior derrotista
nos dias negros de 70.
Maurice Lange parec;e ter,se enganado suppondo
que Gobineau só em 1876 viu Roma, de volta da viagem
que fez á Russia, em companhia do imperador. Por,
que em carta do Rio, (1. 0 de novembro de 1875). Pe..
dro II diz,lhe "que vous devez être heureux á Roma ... "
Nessa carta encontrei uma primeira referencia á
Mima - estatua de marmore, bastante interessante,
que se acha no salão nobre do palacio de São Christô-
varn, na Quinta da Bôa Vista - (Sala do throno) -
obra d' a,rte c_µjo autor ha mais de 25 annos eu vinha
porfiando por descobrir.
Ensaios Brasilianos 169
Todos os artistas, críticos de arte, intellectuaes,
historiadores, inclusive o barão Homem de Mello, fo,
ram incapazes de identificar o esculptor da Mima,
cujas iniciaes A. G., entrelaçadas se encontram no pe.-
destal. As cartas de d. Pedro, copiadas em Strasburg,
trouxeram a chave do enigma.
Gobineau era tambem esculptor e costumava en..
viar a Pedro II esboços ou mesmo pequenas maquettes
de obras projectadas. Mima foi encommenda que lhe
deu o imperial amigo, desejoso de minorar as suas aper.-
turas financeiras e ter sempre em S. Christovam uma
lembrança do homem a quem escrevia de Washington
(2 de junho de 1876) : "Je ne vous oublie jamaj.s ".
A carta de 21 de março de 1877, datada de Vien.-
na diz:
"Felizmente posso responder immediatamente á
vossa carta de 19 que recebo neste momento. Pelo que
sabia a respeito da vossa disponibilidade, devia, por
delicadeza, evitar qualquer palavra de consolo que não
correspondesse a um desejo que vos cabia provocar.
Muito grato pelo appello que fazeis á minha amizade
nunca desmentida, e, talvez, queixosa, com razão, da
demora que tivestes em dar esse passo,' como se fosse
necessario, para tanto, encon1;rar.-me em Berlim.
Para que tudo seja feito como desejo, direi ao Ma..
cedo que vos escreva a respeito de uma esculptura que
ha muito vos encommendei e pela qual elle vos entre.-
gará 15.000 francos". .,
A 1.0 de outubro de 1879. Pedro II recebia em S.
Christovam a Mima de Gobineau. O conde, honesta.-
mente, honrou a encommenda. E, lá com os seus bo,
tões, deve ter pensado qu~, afinal, quando os de san.-
gue nobre estão apertados. . . é sempre util que os
outros existam.
170 E. Roquette Pinto

•*•
"Mima" - é jovem, cheia de vida e expressão.
Tem nas mãos algumas espheras de marfim com as
quaes exerci~ o seu mistêr çle come4iante muda. AJ ...
gumas pesso_as, mesmo entre· as que têm assistiqo ás
pantomimas, têm-me perguntado o significado do seu
nome. E' simples ; qualquer diccionario informa :
comediante que representa por gestos, como naquellas
exhibições. Pedro II encarregou um artista notavel,
que não menciona mas que deve ter sido Chaves Pi . .
nheiro, de collo.car a estatua na posição que lhe pare..
cesse mais conveniente. Em diversas cartas refere a
Gobineau o prazer que tinha em vel. . a no seu palacio.
O que resta, da correspondencia de Pedro II que
tenho, por copia, em mãos, são talvez as cartas mais in. .
teressantes do ponto de vista historico e politiço. As ...
sim na de 15 de junho de 1877 dizia o imperad.or que os
brasilianos "são dotados de qualidades que tomam fa . .
cil o governo para quem procura cumprir ~om os seus
deveres". Em outras fala dos miasmas da politica que
o torturavam. ·
Na de 15 de março de 1877 manifesta o seu conten.-
tamento com as noticias que Gobineau lhe mandara do
"joven Bemardelli';. Nesse tempo Rodolpho Bernardelli
estava na Italia e, provavelmente, Gobineau teve noticia
da nomeada que ali ia conquistando o futuro mestre.
As seccas do Norte em 78 preoccupavam Pedro
II ; e tambem as eleições : "Hoje o meu espirito está
absorvido pelo que poderá acontecer nas eleições geraes
que se iniciam. Não preciso dizer quão antipathico ás
bellas :artes, ás letras e á sciencia é o assumpto" (5 de
agosto de 1878). ·
No Brasil o imperador não achava uma só pessoa
com quem pudesse trocar idéas. "Meu recurso, escre.-
Ensaios Brasilianos 171

via elle, são os livros. Queixo--me da falta de vida es..


piritual". Era um exilado .. .
Do mesmo anno é a carta de 8 de setembro, annun..
dando uma viagem a S. Paulo "província muito mais
activa do que as outras". De passagem quero notar que
a immigração européa, naquella época, não entrava em
linha dfa! conta .. ,
Considero das mais importantes a carta de 10 de
janeiro de 1879, na qual o imperador dizia textual--
mente: "A reforma eleitoral agita um pouco os espi--
ritos, mas como os dois partidos consideram,na neces--
saria, é preciso que ella se faça. Eu, co~tudo, não te..
nho confiança senão na educação do povo".
Devo confessar lisamente que a leitura desse tre..
cho, em uma carta escripta com o abandono que uma
grande estima condiccionava, elevou sobremodo Pedro
II aos meus olhos. E' lapidar - como se dizia na epo.-
ca. Infelizmente não conheço nenhum · acto do impe..
rador demonstrando o desejo de promover a educação
dos escravos, que em 1879, em grande parte, prepara--
vam as gerações subsequentes ...
Os que levam a recordar a maravilha que lhes pa--
recem ter sido os dois partidos dos tempos do Imperio,
encontram na carta de 18 de agosto de 1879 uma in,
formação preciosa, nada desprezivel para os pessimis,
tas do nosso tempo : "a persistencia não é facil de ser
obtida, porque os partidos são muito mal organizados . . . "
Os motins provocados, apparentemente, pelo cha,
mado imposto do vintem, ao findar de 1879 agitação que,
no fundo, era resultado catalytico de idéas abolicionis--
tas e republicanas - repercutiram na carta de d. Pe,
dro a Gobineau, datada de 3 de janeiro de 1880.
Reportando--se ás noticias que, sem duvida, chega,
ram á Europa, escrevia o imperad_o r :
"Aquillo me afflige profundamen(e. E' a primeira
vez que i~so acontece no Rio desde 1840. Ha quasi
172 E. Boquette Pinto
40 annos que eu aqui presido ao governo sem que se
tenha tido necessidade de atirar no povo".
Apesar de repetir phrases de carinhoso conforto,
falando no seu constante optimismo, para animar Go.-
bineau que já attingia o fim da vida, Pedro II, ás ve..
zes, trahe,se ao correr da penna ; vê,se que a desillu..
são, a fadiga, a doença tomaram,lhe conta do cerebro
incontestavelmente pujante. Nos fins de 1880 elle es.-
crevia do Rio : "Não vos falo da soc_iedade actual,
pois que é melhor resignar..se. O que eu vos teria a
dizer della, não faria senão augmentar o vosso pessi,
mismo. Cada qual que trabalhe para melhoral..a como
puder!"
Em 1882, morria, na Italia, Arthur de Gobineau.
O pregoeiro das virtudes da raça branca e loura tinha
cabellos e olhos castanhos . . . Mas sempre achou meios
de provar sua ascendencia nordica .

•• *
Diversas conclusões pódem ser documentadas nas
cartas de Strasburg.
Vê,se, primeiro, que o conde de Gobineau foi o
espirito mais interessante que Pedro II encontrou na
vida. Foi o que mais o seduziu e encantou ; o que elle
mais desejou ter a seu lado desde que o conheceu ; o
amigo por excellencia ("je ne vous oublie jamais ... )
Observa,se tambem que d. Pedro considerava o
throno quasi uma desgraça. ·
Rara é a carta em que elle não deplora a sua si,
tuação de chefe de Estado, preso aos enervantes mis..
teres da administração ou da política.
"Criança sem infancia, velho sem lar, seu destino
tragico o não tornou amargo" - escreveu Tristão da
Cunha falando de Pedro II. As cartas a Gobineau çle.-
Ensad.os Brasilianos 173

monstram esse lado sympathico da personalidade mo--


ral do imperador.
As duas condições - o desapego ao throno e a
resignação - nascidas talvez em um fundamento phi..
losophico bem sedimentado, facilitaram, acredito, o
surto da idéa nova. As cartas de Strasburg mostram
que a pessoa do imperador era de molde a apressar..Jhe
o advento invés de o entravar. Essa justiça é devida
ao velho rnonarcha pelos republicanos sinceros e justos.

~,
CAPITULO XXI

A OS representantes do Centro Tobias Barreto, que


fi Afranio Peixoto me apresentara como alumnos
seus muito distinctos, eu disse que discipulos de tal
mestre deviam ser attendidos. Vejo agora, que alem
de estudiosos, pelos requintes de agasalho que me fa-
zem, são amaveis e generosos moços, depositarios fieis
das melhores lembranças da sua gente. Tanto melhor
para mim, que ha tantos annos vivo longe do bulido
gostoso das tertúlias, prisioneiro feliz dos meus livros,
dos meus apparelhos, da minha officina. Prisioneiro
feliz, pelo que o trabalho me proporciona de calma e
esquecimento ; pelo que a naturez;a me offerece de re-
novada emoção nas coisas mais simples da vida. Pri-
sioneiro angustiado, muitas vezes .. ·.
J' ai voulu tout aimer et je suis malheureux,
Car j' ai de mes tourrnents multiplié les causes . ..
D' innombrables liens, jr€les et douloureux,
Dans l' Univers entier, vont de mon dme aux choses . ..
Ma vie est suspendue a ces jragiles n~ds
Et je suis le captif des mille €tres que j' aime . ..
Au moindre ébranlement qu' un souffle cause en eux,
Je sens un peu de moí s' arracher de moi-m€me ...

Se vos confesso, meus amigos, a afinação da minha


· mediocridade nesses versos do excelso poeta ê somente
para vos dar uma idêa da gratidão que me avassala.
Outro tanto, quem sabe? não dirão os vossos convf..
Ensaios Brasilianos 175
dados . . . Uma conferencia de tom scientifico, ante..
de um optimo concerto só poderá ser acceitavel se res..
peitar a definição de um dos meus amigos : conferen..
eia é uma reunião de pessoas educadas em que uma
fala em voz alta enquanto as outras conversam bai-
xinho. . . Sem nenhum laivo de ironia, penso que assim
deve ser. No futuro o orador dirá primeiro, visto que
algum tem de começar ; mas a palestra será geral.
R esponsabilidade dividida. E o asusmpto, como esse
de que vos falarei em poucos minutos receberá luz muito
mais intensa. Pretendo vos entreter apontando rapi-
damente algumas questões biologicas que têm grande
repercu~ão na sociologia.
Na sociologia classica, bem entendido. Na que
define leis naturaes exactas, se não precisas, nos grupos
humanos; na que reconhece, em todo grupo factos
geraes e objectivos : capital, familia, linguagem, reli-
gião; na sociologia, enfim, de que sorriem actualmente
alguns philosophos mais ou menos cubistas ...
Tobias Barreto dizia sem rebuços que não acre-
ditava nella ; e adiantava · uma argumentação prolixa
e sempre interessante, defendendo a sua negativa ati..
tude. Mas quando se relê o grande mestre percebe..se,
entre as boutades do seu estylo, que elle não admittia
a sciencia social porque tinha o espírito perfeitamente
occupado pelo naturalismo haeckeliano. A influencia
do professor de lena sôbre os homens mais cultos do
fim da Monarquia e do começo da Republia foi extra-
ordinaria. Na sala de trabalho de Alberto Torres ha-
via um retrato delle. ·Igual influencia, ou maior, naquel.-
les tempos - só a de Comte, como todos sabem.
Ora, a verdade é que a sociologia hoje não precisa
mais luctar para convencer aos estudiosos da sua exis.-
tencia . .. o que era um dos melhores_ argumentos de
17Q E. lloquette Pinto
Tobias Barreto. Só a sociologia, dizia por outras pala.-
vras, peleja para mostrar que existe ; sciencia de ver..
dade não precisa disso. Ella tambem não. As desgra . .
ças do mundo moderno, afinal, não resultam em ultima
analyse senão do desprezo dos estadiastas pelas suas
leis eternas e imutaveis. Estão todos navegando por
palpite, entumecido o peito de orgulho. Têm a dispo..
sição um corpo de doutrina claro e seguro, que ensina
a prever, evidentemente sem prazo fixo ; mas preferem
agir como chimicos que se deleitassem, nos dias de
hoje, procurando a verdade nas receitas alchimistas de
Alberto o Grande ou Raimundo Lúlio.
A biologia moderna apparece ao sociólogo, no tu ..
multo da hora, de maneiras antagonicas. De um lado
offerece aos estadistas verificações novas, valiosas, im. .
pera tivas, decisivas para melhorar o meio cosmico e a per. .
feiçoar a sociedade polindo melhor os indivíduos. De
outro lado concorre sem querer ou voluntariamente,
para augmentar a confusão e a desgraça, apregoando
como verdades theorias mentirosas ou inverificaveis,
postas interesseiramente ao serviço da ambição poli..
tica. Analysando um livro admiravel de J ennings,
professor da Johns Hopkins University, The Biologi. .
cal Basis oj Humain Nature - disse um critico que
revolução igual á que se processou na psychologia pelo
conceito do inconsciente, fez . .se na physica pela experi. .
mentação sobre os atomos e na biologia humana - base
essencial da sociologia - pelo estudo racional dos ge,
nes, portadores da hereditariedade, sem a qual não po. .
de haver sociedade duravel.
O meio de ha muito já não é mais tido como o so,
berano senhor dos organismos ; a herança tirou,lhe gran,
de parte do prestigio. Mas existem prenuncios muito
seguros de uma reação mesologica possante ; o meio
vae sendo desarticulado e em muitos dos seus elementos
já se descobriram influencias fundamentaes. Ha uns
Ensaios Brasilianos 177
tres ou quatro mezes uma grande empresa electrica dos
Estados Unidos tirava patente para um processo de
obter lyrios de certa variedade em que o pólen não
mancha a brancura das pêtalas leitosas, evitada a dei,
scencia das anteras, pelo tratamento dos bulbos com
doses definidas de raios X. E o caracter artificialmente
adquirido se transmitte pela herança. Consegue,se hoje
experimentalmente duplicar os chromosomos de certas
especies e nellas provocar o gigantismo (Blakeslee).
Um pouco mais de calcio no sangue e ficam os ho,
mens optimistas e calmos. Pequenos cães - que as
mulheres ricas muitas vezes tratam melhor do que as
mães pobres conseguem tratar os fi~hotes, dóceis e man,
sos animaisinhos de cama e mesa - viram feras aggres..
sivas se lhes tiram as paratiroides, glandulas minusculas
do pescoço, reguladoras do metabolismo daquelle metal
da mansuetude e da alegria.
Keith, notavel biologo de Londres, chama ás su,
pra,renaes "as glandulas da guerra". Já houve mesmo
quem propusesse, para obter a paz na Europa - pro,
blema de alta politica e altissima sociologia - a inter,
venção cirurgica systerriatica, para diminuir os impul,
sos bêlicos daquellas gentes pugnazes.
Nos Anales del Instituto de Biolcgia, do México,
estudou Roberto Llamas a alimentação dos antigos
mexicanos, compondo interessante monographia de,
monstrando que a conquista dos Hespanhoes foi larga..
mente facilitada pelas condições de carencia em que
viviam os autoctones.
O milho, base do seu regime alimentar, carece de
um acido aminado essencial - o triptófano, indispen,
savel, ao que se acredita, á synthese do hormonio da
tiroide, a glandula da intelligencia na phrase de Luciani.
Ha muitos annos, quando ainda não eram conhe,
cidas as vitaminas, nem a influencia de certos amino
acidos sobre o comportamento individual, um illustre
178 E. Roquette Pinto
medico de S. Paulo, Luiz Pereira Barreto clamava que
o nosso homem do campo vive, em geral, no regime de ·
que elle chamava Deficit de Azoto. No Senado Argen-
tino o senador Palácios recordou, ha pouco, os estudos
de Escudero sobre a insufficiencia dos conscritos. No
Brasil o problema é o mesmo. Por isso repito sempre
que o que se attribue ao çruzamento, aqui, ê quasi tudo
derivado da miseria ou da doença.
Não são coisas da raça ; são coisas da política . ..
ou da sociologia, como quizerem.
Para a sociologia todas essas questões directamente
ligadas aos caracteres somaticos são talvez menos in-
teressantes, embora fundamentaes para o bem estar
nacional, do que as que se relacionam com as caracte-
risticas mentaes. Jennings em um dos seus capitulas
pergunta se a cons~ituição genética terá nelles influencia.
Se a personalidade psychica deriva de acções bio-
chimicas, hormoni91s ou de tal tipo, não é possivel res ..
ponder pela negativa. Os elementos portadores da heran-
ça biológica serão fatalmente alcançados. No entanto, ha
evidente exagero nos apaixonados do Behaviorism, de
Watson - para quem o comportamento resolve tudo.
Entreguem-me doze rapazes sadios e farei delles
verdadeiros typos profissionaes, um medico, um advo-
gado um commerciante, um padre... diz Watson, se-
jam quaes . forem as suas ha,bilidades naturaes, as suas
vocações, as suas raças. Talvez seja dizer muito. O
meu sempre admirado Carlyle escreveu que contra a
estupidez até mesmo os Deuses luctam em vão.
Isso, porem, não é mais verdade irremediavel;
alguns miligrammas de certos extractos organicos po-
dem fazer de um cretino um homem são. O célebre
"estalo" do Padre Vieira póde bem corresponder, actual-
mente, a uma pílula. . ·
A proposito d~ constituição genética dos indivi-
duos e sua importancia social, desejo em poucas pala..
Ensaios Brasilianos 179

vras, para não alongar esta palestra, chamar a vossa


attenção sobre o que se costuma apontar como ideal
eugenico para a especie humana. A pergunta é conhe,
cida : se os methodos de seleção e cruzamentos têm
conseguido melhorar as especies vegetaes e animaes,
por que razão não poderão melhorar os typos humanos?
Se fosse possível manejar esta nossa pobre humanidade,
sempre tão rebelde, como fazemos com as moscas do
vinagre ou com as laranjas . . . seria facil.
Mas o que me impressiona não é a difficuldade em
applicar os processos conhecidos. O que mais me in,
teressa é perguntar, por minha vez, se a humanidade
lucrará muito soffrendo alterações semelhantes áquellas
impressas nas plantas e ·nos animaes de que ella se ser,
ve ...
As modificações obtidas foram sempre antropo, , •'
centricas.
Não sei bem se as laranjas da Bahia lucraram, per,
<lendo as sementes. As espécies parasitas que vivem
atormentando o homem não tirariam partido de mui,
tas das modificações que por ventura fossem realizadas?
Penso que ha muito, ha quasi tudo a modificar na Es,
pécie, para o grande progresso que ella ainda espera.
Ha mais de vinte annos escrevi que o homem tinha
transformado o Mundo,' mas se tinha esquecido de ·
transformar,se a si mesmo. Esse é o grande problema
dos tempos futuros.
Elle já principiou a interessar. O ultimo livro de
Alexis Carrel versa o mesmo ponto. O que o sabio de,
nominou "o homem desconhecido" é principalmente
"o homem transviado". A redenção em grande parte
está ao seu alcance. As molas do systema guardam
ainda muitas incógnitas ; mas falta principalmente o
desejo de pôr em pratica o que já é conhecido. Para
me servir da phrase do philosopho : estão faltando as
vontades, que devem completar as leis ... .. '
180 E. Boquette Pinto
E' preciso não esconder, porem, que se a biologia
consegue apresentar certas soluções seguras para alguns
problemas sociaes, nem sempre, nos planos mais eleva,
dos as soluções pódem ser puramente biológicas. Quan,
tas vezes o genio é epileptico ou tuberculoso? Teria
sido um bem para a humanidade ver,se privada de Cho,
pio, para não ter mais um tisico espalhando a doença
na Terra?
O racismo nivelador póde extinguir os piores, mas
acabará seguramente com os superiores.
Tudo standard, de almas e corpos, como os para,
fusos das machinas modernas. Uma chave dá conta
delles todos. Nenhum recalcitrante ou inquieto. Pa,
nurgo governa, manda ou reina . . . que é tudo a mesma
coisa.
E' claro que os cruzamentos não podem convir a
esse triste ideal eugenico. Segundo a imagem que me
agrada, porque dá boa conta do phenomeno, o cruza,
mento representa no grupo humano o elemento peri-
turbador por excellencia ; como a pedra que bate no
lençol calmo da agua morta do lago e desperta as ondas.
Rompe a monotonia e a indifferença, combate a estagna,
ção da ipuera. E se no ondular da massa humana, que
o cruzamento põe em jogo, surgem typos inferiores pelo
encontro natural dos genes maus, nas cumiadas das
ondas e nos declives oppostos apparecem, seguramen,
te, indivíduos dotados do melhor capital biologico. Taes
foram, no Brasil, Machado de Assis, Tobias Barreto,
Gonçalves Dias e Juliano Moreira.
Durante seculos o preconceito campeou nas theorias
relativas aos resultados dos cruzamentos na especie hu,
mana. De uns trinta annos para cá o advento da an,
tropologia como sciencia natural autonoma, liberta das
roupagens metaphysicas e rhetoricas, veio dar outra di,
recção ao problema. Onde apenas o sentimento mais ou
menos apaixonado imperava, onde as opiniões eram dog..
Ensaios Brasilianos 181
mas, começaram a apparecer verificações e medidas,
curvas e estatisticas. Todos nós conhecemos o que Fi...
scher publicou sobre os mestiços do sul da Afríca, os
Rheobooter; Rodenwaldt sobre os de Kisar, nas In. .
dias Hollandezas ; Davenport e Herskovits sobre os da
Norte...America; Germano Correia sobre os da Africa
Portugueza, e tantos outros. Algumas dessas obras são
monumentos de observação e pesquisa. Os nossos mo...
destos mas honestos estudos, no Brasil, confirmaram
algumas dellas e tiveram a boa sorte de serem confir. .
mados por outros. O cruzamento não é factor de dege...
neração. Tomem os sociologos nota dessa contribuição
da biologia. Se até hoje ella nada mais houvesse feito
para os alicerces da sua sciencia - bastaria o deslindar
desse caso fundamental.
Sim. Fundamental. Porque se os estadistas se con...
vencerem de que os males de um paiz qualquer nascem
dfrectamente de constantes biologicas insophismaveis,
existentes na população - não ha nada a esperar da
sua actividade para melhorar o que já sabem que se
não p6de endireitar.
Foi mais ou menos o que aconteceu no fim da mo... ·
narchia e no principio da republica, quando leis mons...
truosas de imigração, considerando radicalmente in...
capaz o desamparado homem do povo nascido nos cam. .
pos do Brasil, mandavam buscar gente de fora, a peso
de ouro, entregavam-lhe terras, davam-lhe ferramentas,
assistencia medica, sementes, casa, amimando,a como
se fosse enviada do Céu para fazer prosperar as terras
que os brasilianos desamparados ou perseguidos não
podiam, não sabiam ou não queriam cultivar. O de...
ereto n. 6.455, de 19 de abril de 1907, foi alem : aos
imigrantes europeus facilitava tudo aquillo que já se
mencionou ; o auxilio pela collocação de cada familia
de colonos nacionaes podia attingir, no maximo, 500$000,
pagos em prestações. Mas não era permittido vender
182 E. lloquette Pinto
um lote a colono brasileiro senão depois de localizadas
90 familias européas. Diz o art 45 do colossal decreto :
"Em nucleos destinados a extrangeiros apenas se po,
derá vender a nacionaes um numero de lotes inferior a
10% dos que aquelles occuparem ... "
Era preciso impedir a todo transe que o brasileiro
estragasse a boa raça importada.
Ao lado daquelles magros 500 mil rêis por estabele,
cimento de familia nacional, recebiam as empresas particu,
lares que negociavam no ramo : 20$000 por casa cons,
truida para europeus ; mais 100$000 por familia loca,
lizada depois de 6 mezes ; mais 200$000 por familia
européa localizada . depois de um anno ; 5:000$000
por grupo de 50 lotes ruraes occupados por familias de
immigrantes estrangeiros . . . Não quero alongar estas
tristezas. São coisas do passado. Só as relembro aqui,
moços d9 Brasil, que vos dedicaes ao estudo das scien,
das sociaes, porque servem como luminosa demonstra,
ção dos males que errôneas doutrinas biologicas podem
fazer ás melhores inte11ções dos sociologos.
Longe de mim pensar um instante em combater a
lmmigração. Celebrei pessoalmente a gloria das colonias
allemãs de Santa,Catharina, quando fui a Blumenau
inaugurar a linda estatua de Frítz MUiler, sabio de re,
nome universal, que ali chegou para derrubar com o
machado nas mãos a matta e construir a cabana do seu
lar ; tenho cada dia, no meu coração de bom brasi,
liano, um voto ardente pela I talia, senhora da belleza
e da luz, desejando vel,a sempre correndo na estrada
sem sangue do ,direito, da sciencia e da arte; guardo
para cada ser humano que, nascid~ noutras terras, es.-
colheu a minha para nela dormir o ultimo somno -
um pensamento amigo e fraterno. ·
Mas penso que o problema do nosso trabalho está,
antes de mais nada, no aproveitamento dos braços que
Ensaios Brasilianos 183

temos. E agora, que vou encerrando a minha humilde


carreira scientifica, imagino ás vezes, como quem so..
nha uma recompensa, que os meus trinta annos de bio..
logia talvez mais tarde possam servir de algum modo
aos moços como vós, destinados um bello dia a tomar
conta da minha terra. E repito mentalmente o pensa.-
mento profundo de Tobias Barreto : se os antepassa.-
dos são os nossos maiores, sejam os descendentes - os
nossos melhores . ..
CAPITULO XXII

A estylização não ê um phenomeno artistico que,


como todos os outros, tem uma base psychologi,
ca. Penso que ê mais um phenomeno psychologico que
se aproveita dos processos da arte para manifestar,se.
O que nella existe de propriamente artistico só se re,
vela nos ultimas graus da sua intensidade; ao começar,
mal se arrima ao que a arte lhe offerece. Como as ondas
encameiradas do mar que o vento açoita, ella surge
imperiosa nos seus contornos e no seu tamanho, mal
delimitada, cha6tica na timidez das estrêias . . . Depois
affirma,se, e então a arte apropria,se inteiramente della
e ê quando adquire caracter accentuado dê phenomenp
esthetico. Não fosse assim, não haveria, na Escola de
Bellas Artes, lugar para que um modesto anthropolgo
viesse conversar a respeito do thema. Mas a antropo,
logia não ê hoje mais a esclusiva apaixonada das cavei,
ras e, sem renunciar ao minudente estudo das feições
morphologicas da espêcie, vae, cada vez mais em nossos
dias, consagrando,se ás pesquisas superiores e difficeis
da physiologia e principalmente da psychologia dos
grupos humanos. E' mesmo interessante notar que,
tendo chegado muito depois, ella hoje contribue, de
uma maneira formal, para o esclarecimento de muitos
assumptos que outr6ra, sem o seu concurso, eram ques,
tões insoluveis. Se a philosophia, a religião e a arte
são phenomenos objectivamente documentados por ar,
gumentos tangiveis recolhidos, comparados e classifi,
cados pela "historia natural da especie humana", basta
lembrar que as doutrinas em moda consideram certas
I
. _-'i-• '
·'
Ensati,os Brasilianos 185
doenças mentais : paranoia, psychose obcessiva, histe.-
ria, como sendo a deformação de taes phenomenos que
só apparecem na alma collectiva ; deformações de uma
philosophia, de uma religião ou de urna arte. Os factos
do totemismo e os do tabú, que tanto elucidam os phe.-
nomenos da ambivalência dos instinctos affectivos, dão
direito de ingresso á anthropologia no confuso e ao mes.-
mo tempo fascinante territorio da psychologia artistica.
Será, se quizerem, ao mesmo tempo um previlegio
e um precalço da nossa éra, o que a sciencia vae realizando
na desarticulação gradual mas segura de tantos con-
ceitos com os quaes a humanidade foi crescendo. Mas
ninguem contesta essa verdade. Nem mesmo os im-
penitentes retoricos que procuram fugir ás tenazes
do racionalismo scientifico enovelando-se nas fórmulas
modernas com que a metaphysica os favorece . . .
A' medida que a psychologia éthnica se torna mais
precisa, uma porção de ideaes, que pareciam livres
construcções, pensamentos individuaes, vão sendo at,
tingidos. Diante da moderna psycho-physiologia, a
personalidade do artista já não é sempre indecifravel,
o seu temperamento é muitas vezes elucidado com se-
gurança, os impulsos affectivos que o guiaram são tra-
duzidos em fórmulas accessiveis, a alma é lida nos seus
quadros, porque nelles o inconsciente transparece. Nem
por isso perde a arte o prestigio antigo e eterno. Conti.-
núa a ser o supremo encanto da vida. Nem por conhe.-
cer melhor as minucias das flores, deixam os naturalis.-
tas de encontrar o espectaculo da belleza.

•••
O estylo depende de muitas condições geraes, cos-
mologicas e humanas em um processo psychico parti,
cular; a estylização, que é esse processo particular,
186 E. Roquette Pinto
nasce de condições ambientes mais restrictas, depende
mais de feições actuaes.
O estylo é a traducção esthetica integral da alma ,
do povo ; a estylização é um ge<;to artistic0.
Todos os grupos humanos são capazes de estyliza,
ção ; nem todos conseguiram criar um estylo. Faltou
aos qqe não attingiram esse nivel a transmissão here,
ditária dos conceitos psychologicos .que só com o germen
da raça, preservado de contactos deturpadores, tran--
sitam pelas gerações. E foi assim que surgiu e cresceu
um estylo puríssimo desdobrando,se na magnifica ce,
ramica de Maraj6, obra de arte de imperecível belleza,
que insulados primitivos imaginaram e construiram nas
regiões cortadas pelo Equador. Que os que ainda jul.-
gam a civilização flor de climas temperados, lancem um
golpe de vista naquellas maravilhas (Fig. n. 16).

• ••
Muitos acreditam que a arte surgiu com a estyliza..
ção das formas naturaes. Eu não penso inteiramente
assim. Costumo dividir as manifestações graphicas dos
povos primitivos em quatro grandes grupos :
1- Desenho eschematico
2- Desenho estyiizado
3- Desenho naturalista
4 - Desenho symbolico.
No desenho eschematico encontro as primitivas ma..
nifestações da arte popular. Não depende de nenhum
individuo mais bem dotado. E' uma tantativa de ges..
ticulação; ainda imprecisa mas claramente intencional.
Não se busca no desenho eschematico a belleza; pro--
cura,se a verdade pratica. Acha..se a belleza, porque é
companheira da verdade. . . A sciencia tem nisso, tal.-
vez, o seu maior encanto .. .
Ensaios Brasilianos 187
O desenho eschematico é sempre particular, repre..
senta antes as relações das partes que compõem o ob..
jecto. A forma por si só, nelle, é secundaria. Consa..
gra'.'se especialmente aos motivos estaticos. Nos primi..
tivos como na criança, é o primeiro signal da 2reoccupa..
ção expressiva por methodos graphicos ; e como não
abandona a verdade natural, é muitas vezes o que os
ethnologos allemães chamaram desenho radiographico,
no qual as partes invisiveis do objecto são representadas
como se, ao desenhar, o autor as tivesse realmente dian..
te dos olhos. Não registra sempre só o que vê, e sim o
que sabe que existe, embora occulto. Não é possível,
por todos os motivos, deixar de incluil..o entre as mani..
festações iniciaes da arte, mesmo porque o desenhista
deixa ali a marca da sua personalidade, dando..Jhe at..
tributos que tira do seu repositório psychico.
Quando, no seio da população primitiva, surgem
alguns indivíduos anormaes para o meio, typos que a
psychologia moderna enquadra entre os chamados ei,
déticos, o desenho eschematico attinge á estilização.
· Jaensch denominou eidéticos ou visuaes, "aos indivi,
duos que possuem a faculdade de formar imagens opti..
cas concretas". São pessoas que, depois de haver con..
templado o objecto, são capazes de revel..o subjectiva,
mente. Podem os eidéticos, egundo as experiencias fei ..
tas por J aensch, projectar mentalmente as imagens, em
tela virgem, respeitando as dimensões do original. A
memoria visual, por-si só, não basta para explicar o phe,
nomeno. Os eidéticos são capazes de sonhar acordados.
O sonho artístico, como se vê, tem muito de eidético e
portanto de anormal. Veremos adiante a importancia
da noção, quando tentarmos estabelecer os principaes
typos de estylização.
Em rigor, é ás vezes impossível distinguir o desenho
cschematico do desenho estylizado. Faz..se, não raro,
insensivelmente, a transição entre os dois, como nas
188 E. Roquette Pinto
faixas do arco.-fris a successão das cõres. Em regra, o
estylizado representa seja o especifico, seja o geral, seja
o dynamico. Direi mesmo, para melhor precisar o meu
pensamento, que o estylizado ê um eschema da especie
ao passo que o desenho denominado estylizado do in.-
dividuo ê, afinal de cont~s, um eschema. Além disso,
s6 o desenho estilizado e o naturalista podem represen.-
taro movimento em toda a sua pureza dynamica. Nas
esculpturas prehist6ricas, nos desenhos das cavernas, nas
figuras dos povos selvagens, como nas grandes obras
de arte do mundo culto, sempre que se descobre um mo.-
vimento - expresso ou implicito, como queria Rodin
- existe a estylização. Elia se manifesta principalmen.-
te nas linhas que marcam as attitudes. A attitude es.-
tyliza o movimento. (Figura 18).
Vê--se, por tudo isso, que não basta reduzir ao es..
sencial um ser para realizar a sua estylização. O pro--
cesso ê mais complexo. A personalidade do autor in.-
flue diretamente para que a figura não degenere em--
simples eschema. Nem ê por outro motivo que muitos
fazem eschemas, pensando que realizam definitivas es--
tilizações. . . .
•* •
o desenho naturalista ê sempre mais ou menos com..
plexo. S6 a photographia ê capaz de reproduzir apro,xi..
madamente a natureza. Vinte artistas traçam na têla
a praia de Copacabana; resultam vinte quadros di--
versos, ainda que os autores sejam discípulos do mesmo
mestre, tenham a mesma edade e trabalhem em condi--
ções identicas. Mas ainda assim, não ê difficil observar
que, em alguns, a estylização reponta espontaneamente.
Têm estylo e estylizam muitos attributos dos seus qua..
dros. Outros, embora tendo estylo proprio, não dei--
xam perceber estylização nos objectos que fixam na
têla.
Ensaios Brasilianos 189
O gesto artistico do povo está vivo em "Caipiras"
de Almeida Junior. Já é um esboço forte de estylo na,
clonai.
•• •
O artista transforma o desenho eschematico pnm1,
tivo em desenho estylizado dos albores da cultura huma,
na. O sacerdote, por influxo da religião que interpreta,
fai apparecer o desenho symbolico. Arte e religião, no
sentido social, andam sempre de mãos dadas, seja no
fetichismo, seja no monoteismo ou mesmo nas phases
superiores da crença scientifica. Mas o desenho symbo,
lico, que no Egypto parece ter tido o mais exhuberante
desenvolvimento conhecido, já se affasta muito da na,
tureza, em grande numero de casos, e em taes circums,
tancias perde contacto com a estylização.

•• •
Definido o lugar do desenho estylizado entre os ty,
pos da expressão graphica, convém passar agora a exa,
minar outro ponto altamente interessante. Vimos a ·
funcção do· espiritõ artístico na criação da estylização.
Mas esse espirito, por sua vez tem, entre os primitivos
como nas crianças, o surto condicionado por um pheno,
meno geral da psychologia humana, estritamente Ji..
gado aos inicios da religião, que é o toternismo. Seja
qual for a theoria que se adopte para explicar o tote,
mismo, e ellas são numerosas, é ponto incontroverso
que elle pode ser definido como fetichismo especifico.
O fetiche, então, não é um dado ser; é a especie a
que este pertence. Essa base fundamental do totemismo
completa-se, para alguns, com a exogamia imprescindivel.
Tenho como provavel que foi o totemismo dos pri,
meiros artistas que os levou, n~ maior parte das vezes,
190 · E. Roquette Pinto
a estylizar nas cavernas da França, da Hespanha, etc.,
as maravilhosas figuras animaes alli descobertas. O
totem é sempre uma especie animal ou vegetal, um phe.-
nomeno natural. Quasi sempre é um animal, que se
considera sagrado e ao qual se presta culto filial. Em
compensação, o totem prestigia o povo. Em certas oc--
casiões é sacrificado, com determinado ritual, que foi
chamado banquete totémico. Nem sempre, porem, terá
sido possivel ao homem primitivo,encontrar na hora
desejada, o seu totem. Outras vezes, terá sido obri.-
gado a render--lhe homenagens especiaes, quando o
typo animal n·ecessario não se encontrava ao alcance.
Deve ter tido, nessas condições, a necessidade de creal-o
para fins religiosos. Sabemos hoje que, entre os primi.-
tivos, a idéia confunde--se com o sêr e que a figura de
um objecto não é apenas a sua representação ; é um dos
modos de ser de sua individualidade. De sorte que, na
ausencia do totem, a figura estylizada do animal suppre
a grande falta. Os melhores desenhos das espeluncas
européas foram quasi sempre gravados nas . partes mais
escuras e quasi inaccessiveis. Tratou--se de collocar o
totem, assim criado, em condições de recato e protec-
ção. Não discuto se a arte dos primitivos nasceu ape.-
nas da applicação inconsciente da energia psychomo.-
tora exhuberante, sobras da actividade venatoria ou
guerreira (surplus energy) ; se nasceu da curiosidade,
consequencia natural das funcções intellectuaes (induc-
ção, deducção e expressão) ; se foi desde logo arte pela
arte, no anceios irreprimivel de melhorar o ambiente. O
que não me parece acceitavel é ligal-a á magia pura e
simples. Magia e animismo são termos infelizes de que
os ethnologos modernos vão usando e abusando. Ani-
mismo não significa grande coisa. São animistas todos
os que não chegaram a um conceito do universo regido
por leis geraes e immutaveis. Magia, por outro lado,
é sobretudo um conjuncto de praticas rituaes; não é,
Ensaios Brasilianos 191

penso, crença por si mesma. E' processo pratico de fa,


zer v~ler os poderes superiores, em que o individuo acre,
dita. De sorte que, dos tres elementos fundamentaes
de todas as religiões : dogma, regime e culto, ella não
cabe senão no ultimo e não parece sufficientemente
efficaz na génese da arte. Suas grandes patrias classi,
cas foram a India, o Egypto e o mundo greco,romano,
de onde ella se espalhou pela christandade medieval ;
·são ainda hoje seus recessos as regiões em que domina
o polytheumo africano. Entre plimitivos fetichistas to,
temicos seria a pratica da magia um rito sem dogmas.

•••
Será possível estabelecer mais de um typo de es,
tylização quanto á genese psychologica .de cada qual?
Não sei até que ponto tenho conseguido resolver esse
problema interessante. Seja como fôr, o exame da
questão leva,me a propor uns tantos typos provisórios.
A estylização intencional é a que se manifesta nos
casos até agora referidos. Foi sufficientemente caracte-
rizada na primeira parte desta palestra.
A estylização inconsciente resulta do phenomeno da
ambivalencia dos impulsos affectivos, que, conforme o
conceito de Bleuler, é caracterizada por dois pendores
contrarios, smpre existentes em cada caso affectivo :
tendencia e prohibição (dynamogenia e inhibição).
Para os psychoanalistas1 se a prohibição é conscien,
te, a tendencia prohibida que, no individuo perdura
insatisfeita, ê inteiramente inconsciente. E assim per,
manece, até que, sob qualquer symbolico disfarce, res,
surge em momento dado. Como no sonho, os desejos
recalcados tomam, na obra de arte, as formas que a
consciencia tolera. E a estylização inconsciente dos sym,
bolos oníricos pode, sem que o artista o perceba, repon,
192 E. Boquette Pinto
tar no quadro em posições insolitas. E' o q4e acontece
no quadro de Leonardo da Vinci que mereceu minucioso
estudo de alguns discipulos de Freud. Um delles Os,
kar Pfister - encontrou na tela de Leonardo em que
se vêm Santa Anna, a Virgem e o Menino Jesus, incon,
scientemente estylizado nas dobras do manto que envolve
uma das figuras , o perfil de um abutre, ave perseguido,
ra do artista desde a mais tenra edade; imagem que
o grande mestre, ao que dizem os psycho,analistas, tra,
zia no seu subconsciente como symbolo de idêas ero,
ticas recalcadas.
A estylização, nos productos da actividade humana,
pode talvez ser considerada, pondo de parte o seu as,
pecto psychologico, como caso particular de um phe,
nomeno natural muito mais geral. Seja o homem sim,
ples paciente, collocado no posto de modesto observador
ou mesmo actor inconsciente do espectaculo natural,
muitas vezes surge a estylização espontanea, pela qual
certos quadros naturaes se repetem e se simplificam.
Não me parece razoavel excluir deste estudo a menção
daquelles casos em que a própria natureza estylizou for,
mas ou attitudes. Nos seres inferiores, plantas ou ani,
maes, diatomáceas, coraes, estrellas do mar, existe o
phenomeno bem accentuado. Os irmãos gemeos repre,
sentam,· igualmente, verdadeira manifestação do mesmo
typo. Em taes indivíduos, a forma especifica, domina a
forma individua,l, o que constitue um dos caracteristi,
cos da estylização. ·
Não ê bem isso, porem, que desejo salientar como
estylização espontanea desde que se trata de estudo mais
directamente ligado a manifestações technicas. Desejo
apontar phenomeno muito mais complexo e interessan-
te. Recordo,me haver lido numa das pagina mais pers,
picazes de Taine o parallelo que estabelece, em phrases
limpidas, como agua que desce da montanha, entre o do-
mínio da linha nas regiões de clima secco e a victoria da
Ensaios Brasilianos 193

mancha nos recantos brumosos ou humidos. "Em ver.-


dade, diz o mestre, uma cidade do sul, uma paysagem da
Provence ou da Tosca• é apenas um simples desenho.
Com papel, Jusain e côres débeis de lapis, pode,se re.-
presental,as inteiramente. Na Hollanda, ao contrario,
a terra ê verde e manchas vivas em quantidade rompem
a uniformidade do prado universal".
Assim, a propria natureza offerece aos olhos gru.-
pos de formas simplificadas; as cidades da terra secca
estilizam-•se por si mesmas. Ao artista, com a sua per.-
sonalidade, cabe apenas registrar o phenomeno.
Outras vezes, como na figura de um atirador da
Rondonia, a estylização da attitude é ainda mais fla ..
grante. Não ê um indio que atira a flecha por elevação ;
não ê aquelle indio ; o sol gravou na chapa photogra.-
phica o archeiro que ali está estilizado, no recorte dos
seus gestos, no busto empinado, nos membros inferiores
que se armam na posição mais favoravel, na saliencia
dos musculos retesados pelo esforço, no arrojo forte e
agil ao mesmo tempo, com que elle retira o braço quan.-
do solta a corda do arco que mandou ao céu a flecha da
sua escolha, serva obediente dos seus desejos. (Figura
n.0 19).
•• •
Um notavel professor de Marburg, E. Kretschmer, ·
formulou algumas leis que lhe parecem condicionar os
processos de expressão, verbaes ou graphicos dos povos
primitivos. Acredita elle que as artes plasticas são sem,
pre dominadas, nos prodromos da cultura, pela aggluti.-
nação das imagens. No Egypto, na India, na Grêcia no
Mêxico, a arte mostrou grande predilecção pelos seres
compositos : esphynges, centáuros, sereias, etc. Os
proprios anjos do catholicismo são figuras dessa categoria
. (homens e aves).
194 E. Roquette Pinto
A observação é até certo ponto verdadeira. Mas a
localização chronologica do phenomeno não é feliz.
Não é feliz porque ninguem tem' hoje o direito de con..
siderar primitivos indús, egypcios, gregos, maias, etc.
A agglutinação das imagens é mais recente, em com..
paração com os verdadeiros primitivos prehistóricos ou
com os selvagens actuaes. Acredito que ella tenha origem
antes nos restos do feticµismo infantil, latente nas camadas
profundas da alma de todos os adultos e se reaffirme quan..
do encontra meio favoravel, tal qual aconteceu entre
· aquelles povos. Por outro lado, s6 a estylização pode
permittir as figuras compósitas e condensadas. Para
Kretschmer são exemplos destas ultimas as representa..
ções geométricas de figuras zoológicas ; assim os indios
do Xingú representam abelhas sob a forma de losangos,
morcegos sob a forma de triangulos, etc. No meu con ..
ceito, porem, isso já não é mais estylizaçifo. Encontra..
mo--nos diante de verdadeiros symbolos, que são sempre
mais ou menos convencionaes. (Figura n. 17). 0

Bem mais interessante é o que diz o mesmo profes .. ·


sor quanto ás leis da estyliz~ao e quanto á interpreta..
ção da arte expressionista. A estylização na synthese de
Kretschmer deriva de um conjuncto de tendencias psy.-
chologicas :
a) Tendencia para dar relevo ao essencial;
b) Tendencia á simplificação da forma;
e) Tendencia á repetição (symetria bi--lateral ou
repetição morphologica).
Na esty lização, diz elle, o autor dos desenhos trans,
forma o material que lhe fornece o ambiente, de modo
que o resultado é um compromisso entre a imagem ex..
terior e as tendencias proprias do individuo que as re.-
produz.
Ensaios Brasilianos 195
.i•• Íi,,d-f~, . i
Isso é verdade, mas Kretschmer, ao que penso, não
distingue o desenho eschematico do desenho estylizado e
muitas vezes nem mesmo o symbolico. Assim elle repro--
duz, de trabalho~ ethnographicos realizados no Br~il
por Max Schmidt e Karl von den Steinen, desenhos sym..
bolicos de homens, aves, peixes, abelhas, morcegos, como
se fossem estylizações. ·
Tanto nas cavernas da Europa como no material
indigena actual do Brasil, é commum encontrarem-se
desenhos de animaes em que foram representados or..
gãos int.emos normalmente invisiveis : coração, ossos,
etc. Esse desenho radiographico de que já falei nunca
se encontra estylizado. E' proprio dos esc_hemas. Cons"'
titue o chamado realismo intel/ectual de Luquet e faz
parte daquillo que Max Verworn chamou arte ideoplas"'
tica em contraposição com a physioplastica,
Kretschmer pai:-ece ter toda razão quando mos"'
tra que o relevo ao essencial constitue manifestação da
catatimia, que é a transformação dos conteúdos psychi"'
cos por influencia de factores affectivos. De facto, o
que nos parece essencial em qualquer objecto é justa.-
mente o que mais desperta os nossos sentimentos. E
é por isso, diz elle, que, seja qual for o desenvolvimento
da arte, a estylização permanece eternamente a sua mais
pronunciada caracteristica.
Onde, porem, Kretschmer parece..me ter sido de
uma grande felicidade é na correlação que estabelece
entre as t~ndencias rithmicas da nossa vida psychomotora
e a estylização repetida dos motivos omamentaes. O
Prof. de Marbug não conhecia o interessante trabalho
de Carlos Frederico Hartt, publicado nos Archivos do
Museu Nacional em 1885, sobre a origem e evolução da
ornamentação. E' notavel comç se ajustam, até certo
ponto, os dois pesquisadors. Hartt é muito menos psy.-
chologo. Sua theoria é de naturalista ; elle mesmo a
chamou "uma especie de darwinismo". "A evolução
196 E. Roquette Pinto
da arte decorativa ê devida, escrevia Hartt, em pri.-
meiro logar á tentativa continua de dar mais prazer á
vista e em segundo togar pela sobrevivencia. do ma.is bello,
ou, em outras palavras, do ma.is proprio, Um ornato
adaptado aos olhos, é realmente bello e conserva,se ;
ao passo que as formas mal feitas e mal adaptadas mor,
rem". Vê,se que o conceito de Hartt é realmente demais
objectivo. Um orna.to adapta.do aos olhos para elle, é
uma figura que não dá demasiado trabalho aos mus,
culos motores dos globos occulares .. .
Em todo o piso, o sentimento de prazer que elle
accentúa no individuo que contempla taes ornatos,
aproxima,se da catatirnia.
Não posso, porem, acceitar a opinião de Kretschmer
quando dá ao eschema.tico lugar mais elevado em rela.-
ção ao estyli~a.do. Para elle a estylização é o phenomno
primario. Em vista do que venho expondo, isso não
me parece admissivel.
Karl von den Steinen julga que o desenho communi,
cativo foi o inicial. Os methodos de trabalho e a natu,
reza do material fizeram surgir a estylização, segundo
a opinião desse illustre mestre. Não é possível negar
taes influencias. As figuras quasi inconscientes que o
lapis ocioso traça na folha de papel ou as esculpturas em
miolo de pão, que dedos distrahidos amassam, nos mo.-
mentos post-pra.ndium, bastam para o demonstrar. . . A
admiravel arte dos negros africanos, tão bem documen.-
tada em um livro notavel de Hardy, deixa ainda mais
clara a importancia do material como elemento favora.-
vel ao surto da estylização.
Haddon tentou estabelecer um methodo de filia.-
ção historica para o estudo da arte primitiva e julga
que a cópia servil da natureza foi o inicio.
Comparando os desenhos infantis com os dos pri.-
mitivos, julga Max Verwon que as nossas crianças
Ensaios Brasilianos 197
começam pela arte ideoplastica enquanto que os primi..
vos principiam pela physioplastica.
Koch-Gruenberg estudou com particular attenção
o s~rto da arte selvagem no Brasil. Para elle tambem
o desenho é primeiro communtcativo e só mais tarde es..
thético. Os attributos ou minucias das figuras são tra..
tados como partes independentes, de onde resulta a
fallencia das proporções. A importancia que tem o
'individuo ou objecto desenhado faz com que augmen..
tem ou diminuam o tamanho da reproducção. O che..
fe da expedição era muito mais baixo do que o seu au..
xiliar ; no desenho, os índios fizeram o chefe em ponto
muito maior, porque era elle quem mandava .. .
Os vegetaes poucas vezes apparecem. Os animaes
superiores são preferidos porque despertam, pelas suas
funcções de relação, os sentimentos do artista. O cha..
mado desenho descriptivo é uma tendencia marcada para
o symbolismo, mediante simples eschematização.
Barnes e Levinstein caracterizaram, no desenho in..
fantil, as chamadas figuras historicas, que tambem se
encontram entre os primitivos ; scenas em que ha um
projecto de realização.
Ao nosso illustre ámigo, Professor Max Schmidt,
coube demonstrar que certos motivos omamentaes, que
entre os indios têm nome de plantas e animaes, sugge-
rindo assim a possivel estilização de taes seres, não .•.
passam de reproducções de ornatos derivados de typos
especiaes de trançados ou tecidos. E' uma observação
importante que nos deve levar a honesta prudencia, na
interpretação da arte indígena.
De todos os povos civilizados foi o japonez aquelle
em que a estylização attingiu requinte singular. E' no..
tavel que os artistas japonezes procedem de modo op..
posto ao que vimos entre os indios : as figuras princi..
paes, nobres, sacerd.otes, são sempre esteriotipadas.
Não ha duas caras differentes. As figuras de classe in,
198 E. Iloquette Pinto
ferior e o resto dos attributos da composição mostram,
juntamente com o dynamismo das attitudes, a inexgo,
tavel fantasia dos artistas japo_nezes.

•• •
Ha alguns annos, era de regra assimilar os desenhos
dos loucos e das crianças aos dos primitivos. Marcel
Reja, em 1907, Hamy, em 1908, identificando a arte
dos primitivos com a das crianças, caracterizam, no
entanto, a dos selvagens pelo espirito de synthese que
falta na outra. Tambem as figuras das tatuagens dos
criminosos são em geral ideographicas e descriptivas,
conforme Lombroso observou em 1894, estudando os
palimpsestos das prisões.
Actualmente a arte dos loucos não póde ser mais
considerada de maneira tão simples. A razão é que na
arte dos sãos póde haver muito da arte dos dementes ;
e na destes dão-se, ás vezes, phenomenos que explicam
a evolução psychologica dos primeiros.
O artista é sonhador. Na denominação de Jaensch,
é sempre mais ou menos eidético. Ora o phenomeno que
consiste na faculdade de formar imagens opticas con,
cretas é frequente na infancia e nos primitivos. A ida,
de e a civilização parecem tomai-o cada vez mais fugaz.
Menos em certos artistas que são, dest' arte, typos es,
pedalmente aptos á estylização.
Por outro lado, certas auto,pesquizas de intoxica,
ção experimental pelo peyotl vieram mostrar que é pos.-
sivel provocar artificialmente a formação de imagens
concretas em pessoas não eidéticas. Seria o peyotl a
planta da estylização.
O peyotl é uma planta mexicana muito bem estu-
da entre outros por W. E. Safford, botanico do Depar-
tamento de Agricultura dos Estados Unidos da Ameri.-
' ca do Norte, autor que, a esse respeito, tem publicado
Ensaios Brasilianos 199
valiosas noticias em differentes volumes dos Smithso,
ni~n Reports.
Supuzeram os hespanhoes conquistadores que o
peyotl fosse um cogumelo, opinião justificavel pelo as,
pecto da substancia que viam _utilizar. Chamavam-no
os mexicanos "teonanacatl" ou "carne de Deus". Para
os hespanhoes era a "raiz do diabo". Sabemos hoje,
com segurança, que se trata de pequenas cactáceas sem
~spinhos, pertencentes a dive(sas especies : Lophophora
Williamsi ·e Anhalonium lefl)inii. Crescem espontanea,
mente no sul do Texas e ao norte do México. Foram
tribus Chichimecas do norte as descobridoras da sua
acção estimulante e narcótica. E' provavel que os his,
toriadores, que conheceram a substancia, no vale do
México, nunca tivessem tido occasião de ver a planta
viva que a fornecia. Durante três séculos ficou sem pre,
cisa identificação o vegetal maravilhoso. Era tido como
fungo . . . e ninguem achava cogumelos tóxicos daquel,
la natureza na região em que cresce o peytol. Sua raiz
parece uma cenoura. Mas no estado em que era usado
tomava,se difficil reconhecel,a. Desde 1888 até hoje,
Lewin, de Berlim, e depois Heffter, Prentiss, Morgan,
Mayer.-Gross e outros estudaram o peyotl ; foram ex,
trahidos alcalóides que hoje se renominam lophopho,
rina, anhaloina e mescalina.
Já nas antigas chronicas diz,se que a droga confe,
re, a quem della usa, a faculdade de prever o futuro e
• recompor os quadros do passado, alem de outras mara,
vilhas. . . .
Actualmente o seu nome teonanacalt é desusado.
Dão--lhe differentes tribus as designações de xicori,
kamaba, etc.
Resumindo os effeitos do peyotl, que para este es,
tudo nos · interessam, basta citar alguns pheno,
, menos particulares. O individuo · que prova a raiz
do diabo sente notavel ·exaltação da sensibilidade ;
200 E. Roquette _Pinto
tudo se accentúa para elle. O mundo parece.-lhe mer..
gulhado na luz, cheio de cores vivas. Os menores de..
talhes dos objectos tornam.-se salientes. As physiono,
mias das pessoas apparecem estylizadas, com as feições
marcadas como o rosto dos actores que, no palco, accen,
tuam os traços. E tudo isso se passa, quando a into,
xicação não é demasiada, conservando o paciente em
estado de vigilia. Ha mais, porem, As noções de tempo
e de espaço, se olbiteram. O paciente vê os movimentos
dos outros ou muito lentos, solemnes, hieráticos ; ou
muito vivos, rapidos e violentos.
Para terminar este rapido bosquejo, uma outra
nota a respeito do peyotl : a manifestação de sensações
associadas intensas. O individuo intoxicado, ouvindo
certos sons, vê certas côres .. .
Tudo isso poderá servir para que se comprehenda
melhor o mechanismo natural do processo psychlogico
da esytlização.
Ha, porem, alguma coisa que tambem é muito in,
teressante e se acha relacionada com as questões que
aqui examinamos. E' que o peyotl leva, afinal, os seus
consumidores aos phenomenos do estado psycopatha que
os alienistas denominam eschizofrenia. Não nos impor,
tam as minucias dessa doença nem tão pouco os diffe,
rentes conceitos que della fazem as escolas medicas.
lnterressa.-nos, apenas, saber que o pensamento eschizo,
phrenico revive, de mistura com elementos intellectuaes
os mais evoluídos, os mais intensos valores graphicos
da humanidade primitiva (Kretschmer). Assim a con,
densação, o deslocamento, a catatimia, a ambivalencia,
dos estados primitivos, repontam vigorosos nos eschi,
zophrenicos, que vivem ao nosso lado, cheios de pensa,
mentos actuaes, proprios da epoca. O doente cae num
verdadeiro estado atavico da espécie. Como nos feti,
chistas dos tempos da magia, seus pensamentos são reali,
dades. Nasce, então, no cerebro enfermo, uma concep.-
Ensaios Brasilianos 201
ção magica da natureza. As imagens compósitas de
condensaçao agglutinativá aparecem, como as figuras
híbridas da arte antiga. Conta,se o caso de uma rapa,
riga que tendo tido dois namorados ; depois de doente
via o primeiro . . . falando com a voz do segundo.
Kretschmer recorda de que modo todos aquelles
phenomenos primitivos, acima lembrados, encontram,se
nas representações da arte modrena, como se encontra,
ram no inicio dos grandes movimentos esthéticos.
O proprio nome g6thico, attribuido ao grande estylo
como o insolente revoltado contra as disposições classi,
cas, mostra, no qualificativo barbáro, o menosprezo
com que foi julgado. Foi o g6thico então, com as suas
chimeras, dragões, diabos e tantos outros attributos es,
candalosos, o futurismo daquelles tempos ...
Ha, no estudo de Kretschmer, uma phrase bella:
"O que determina a profundidade da acção esthetica são
os obscuros e poderosos conglomerados de ímagens e
estrados affectivos que, desprovidos de qualquer forma
definitiva, nem por isso deixam de existir por detraz
do que se encontra directamente representado".
Comparam os psychologos a consciencia, ou os
estados de consciencia ao campo visual em que ha re--
gião central e peripheria.
Para design~ o que a escola de Freud chamou in,
consciente psychico, Schilder criou mais um nome : es,
phera. As imagens concretas, eidéticas, que já conhe,
cemos, formam o substracto do sonho e da criação ar,
tlstica. Depende dos materiaes accumulados na zona
da esp~era, a intensidade emocional provocada pela
arte. Por isso, accresenta Kretschmer, por outras pa,
lavras, o canto popular ingenuo, ás vezes, não tem 16,
gica ; mas consegue vibrações intensíssimas nos que o
escutam, porque, nelle, existe a riqueza inconsciente da
alma collectiva. A sua esphera ê ampla. Palavras e idéas
202 E. Roquette Pinto
bellas, diz ainda o psychologo, são como folhas seccas
quando não acompanhadas daquelle cortejo subcon.-
sciente. Só a aglutinação catatimica é fecunda, quando
• os materiaes psychicos não tomaram forma definida.
A arte só nasce no claro.-escuro das regiões da esphera.
Todas essas considerações que, apesar da sua ine.-
gável metaphysica, correspondem aos factos subtis da
vida affctiva, não nos permittem abandonar summa,
riamente as manifestações estranhas da arte moderna.
Ninguem espere de mim a proposta da criação na Es.-
cola de Belas Artes, de uma cadeira especial para o de.-
senvolvimento do expressionismo. . . Mas consentirão
que, habituado a ser honesto para comigo mesmo, eu a
todos procure mostrar que essa arte dos civilizados re.-
quintados veiu trazer um contingente apreciavel ao
conhecimento dos processos artísticos do homem primi,
tivo.
No quadro expressionista, abandona.-se o primeiro
plano, significativo e bem ordenado. O centro visível
da consciencia vem ser occupado pelas formações da
esphera, catatimicas e assintaxicas. Do excesso de es.-
tylização nasce o cubismo. A tendencia a geometrizar
objectos reais, ou a exprimir sentimentos e idêas por
meio de linhas ou manchas que não correspondem a na.-
da de concreto, approximam o expressionismo das for ..
mas archaicas que nos deixaram os povos civilizados do
passado, das formas decorativas do inicio da arte gó.-
tica, das criações dos primitivos e das crianças. O pa.-
rentesco deriva, como vimos, das tendencias aggluti.-
nativas, catatimicas e assintaxicas das imagens ; mas
repousa principalmente sobre a estylização massiça.
No fundo, tanto os philosophos formalistas, como
os artistas desse typo, pertencentes ao chamado tem.-
peramento eschiwtimico - que fornece os estylistas pu.-
ros, os tragicos, os sarcasticos, os naturalistas tende11,
ciosos e os expressionistas brutaes (Kraetschmer)
Ensa-ios Brasilianos 203

todos elles dissimulam a variedade do mundo real em


construcções intellectuaes angulosas que resumem o re,
sultado das suas abstracçóes.

•• •
Sejam quaes forem as tristezas do momento nacio,
nal, um facto por si só basta para que os irreductiveis
·crentes optimistas, como eu sou, considerem o futuro
da nossa terra natal : as gerações que surgem pensam
cada vez mais no Brasil. .
Feliz como o operario que não poderá habitar no
palacio que ajudou a levantar, misturando o seu suor
as aguas das argamassas, mas qtie se alegra erri ver no
céu os tons da cumieira, sinto uma profunda emoção
quando rememoro as primeiras phases do movimento
que bem pode ser datado da hora em que Euclydes da
Cunha revelou a alma do Brasil aos seus patrícios, es,
tylizando as feições especificas do nosso systema nacio-
nal. A victoria definitiva ha de ser conseguida no dia
em que, embora inteiramente conquistados pelos ideaes
da fraternidade humana, como já estamos, podermos
representar os attributos da nossa vida em estyfü:ações
que serão os gestos artisticos do nosso pvo.
Nessa peleja não se hão de contar apenas os que
nasceram no Brasil. A natureza aqui fornece mais car,
tas de cidadania do que os respeitaveis decretos da au,
toridade publica. . . E são documentos sempre auten,
ticos e impereciveis.
E' vão procurar deliberadamente o estylo nacional
para nelle, depois, representar os materiaes do ambien,
te. O estylo é uma abstracção, como a luz, a electrici,
dade e o calor. Nenhum delles existe objectivamente,
independente dos corpos. Do exame dos corpos quen,
tes, luminosos ou eletrizados, deixando á parte os seus
outros caracteres, e s6 considerando um daquelles de . .,
. ,

204 E. Roquette Pinto


cada vez, por uma operação psychologica, surge a theo,
ria da luz, do calor ou da electricidade que imaginamos,
para explical,os, sejam corpúsculos ou vibrações (A.
Comte).
E' assim o estylo. Depois que o povo conseguir,
por gradual, lento, mas seguro processo criar a estyliza..
ção dos seus companheiros de habitat organizados ou
inertes, hão de surgir os estylos que traduzirão, na
arte, as attitudes da natureza, conforme aconteceu com
os sup~emos ceramistas de Marajó. Só ha um meio de
apressar ou dirigir, até certo ponto, a desejada eclosão :
voltarem,se os mais bem dotados para a natureza e se,
rem, como queria Ibsen que todos fossem, sinceros para
comsigo mesmos.
•• •
O estudo do processo psychologico da estylização
é incontestavelmente cheio de attractivos e de difficul,
dades. A metaphysica anda ás soltas . . . Apesar da
resistencia que lhe oppõem os que se habituaram ao pen,
sarnento positivo e determinista, está o ambiente mo,
demo cheio della ; todos se intoxicam ...
Em todo caso, apesar do impreciso das explicações,
a psychologia moderna, ao que vimos, vae acompanhan,
do de perto a elaboração artística.
E, se ella não convence, entretem, no entanto, os
philosophos, coisa difficil em mundo tão velho.
TERCEIRA PARTE

NA ACADEMIA:

Discurso de recepçao de Ajjonso Taunay


Discurso de recepção de Miguel Ozorio

.,.,
"'
I

Sr. Affonso de Taunay :

T RADUZ uma injustiça que fazeis a vos mesmo, o


impulso que vos leva á possibilidade de integrar a
Academia uma funcção de zero ao infinito. O posto em que
ora vos achaes de direito era vosso, porque estas cadei.-
ras não nos pertencem, para os regalos da affeição ou
do interesse. Dando-vos as bôas vindas, em nome da
Academia, confesso a minha surpreza de não vos haver
encontrado entre os meus illustres eleitores, já figuran.-
do, naquelle tempo, ao lado dos que servem aqui a cul.-
tura do paiz.
Não vos atormente, pois, o receio de que o voto
de 7 de Novembro haja tentado innovar a poltrona que
a modestia demasiada vos sugeriu. Sendo a tradição
lembrança acumulada na alma collectiva, não me pare.-
ce a velhice indispensavel ao seu condicionamento,
embora lhe dê, é certo, mais peso e maior prestigio.
A correspondencia de Machado de Assis com Joaquim
Nabuco, publicada recentemente em nossa Revista, de.-
fine um caminho que antes afasta a Academia dos ou.-
teiros innocentes do tempo de D. João V, jogos floraes
sem consequencias. "Você sabe, escrevia Nabuco a
Machado, a 6 de Dezembro de 1901, você sabe que eu
penso dever a Academia ter uma esphera mais lata do
que a literatura exclusivamente !iteraria". . . E a 8
de Outubro de 1904: "A min_ha theoria já lhe disse, de.-
vemos fazer entrar para a Academia as superioridades
do paiz". Machado respondia concordando. No vosso
caso, Snr. Affonso de Taunay, foi o que fizemos . ..
208 E. Roquette Pinto
Quando considero o vulto e a importancia da vossa
obra magnifica, bem comprehendo que houvesseis tar,
dado. O peso da bagagm, como no verso de Musset,
demorava o passo do caminheiro firme, vaqueano de
todos os chãos percorridos em labor inegualavel, Mas
o que impressiona sobre~maneira, na vossa personalida,
de, é o traço de humanismo que reponta sempre na
phrase despretenciosa e erudita.
Diplomado pela Escola Polytechnica do Rio, pro,
fessor da de S. Paulo, levastes para os trabalhos histo,
ricos, dominantes no vosso thesouro, o espirito educado
na sciencia experimental, que ensina a julgar, com im,
parcialidade, homens e acontecimentos.
No exame do que o vosso olhar descobre e analysa
ha muito do engenheiro avaíiando resistencia de mate,
riaes.. . Os vossos juízos críticos, tantas vezes restau,
rando reputações de antigos vultos, como no caso de
D. Francisco de Souza, revelam o profundo conhecedor
da balança, arma dos chimicos e symbolo dos magis,
trados. Na direcção do Museu Paulista pudestes appli,
car de maneira feliz as condições pessoaes acima apon,
tadas. Devendo ser os museus a miniatura da patria. -
na terra e nos seres vivos - cumulastes as preoccupa,
ções cívicas daquelle posto eminente, em que tambem es,
taes no vosso lugar. Comprehendestes muito bem que
o do lpiranga, é, antes de mais, um Museu Paulista.
Pedir a cada um dos Estados um Museu sem a preoc,
cupação regionalista - é absurdo. Mas, com essa res,
tricção, é apontar uma grande obra realizavel e urgente,
quando muitos aspectos da nossa terra vão sumindo.
E ainda que seja um grande bem substituir o carro de
bois, sobrevivencia hindustanica, pelo automovel ou
pelo avião, o jequitibá pelo eucalyptus, ha grandes lu,
cros espirituaes na conservação de amostras dos seres
que, compondo o ambiente em que surgia a nação, fi ..
zeram a riqueza dos avós.
Ensaios Brasilianos 209

Velando pelo progresso continuo das vossas collec,


ções zoologicas, mantendo com brilho a Revista do Mu.-
seu Paulista, pensastes· em tudo. Ao lado do palacio do
lpiranga, fizestes erguer veneraveis engenhócas, des.-
conjuntadas e gemedoras, que no interior, durante se.-
culos, transformavam os productos da terra em utili, ·
dades mais geraes: E apoiado pelo espirito superior de
Alarico Silveira fundastes os Annaes do vosso grande e
·prestigioso instituto.
Nas canceiras e responsabilidades da administra.-
ção jamais se esgota a vossa actividade, que annual,
mente nos entrega artigos, monographias e volumes
mais de uma vez laureados pela Academia.
Tão grande é a vossa bibliographia I No e~tl:!nto
a lista dos vossso trabalhos, não traz referencia ás mu,
sicas que tendes composto, improvisações no teclado
de que sois senhor e amigo.
E' que um dos segredos da vossa obra fecqnda está
na constante applicação. Pois não é certo que r~aHzaes
todas as manhãs o vosso momento musical, dedilhando
Schumann, Chopin, Sylvio Dinarte ou Flavio Elysio
- tendo na estante, diante dos olhos, no lugar da pau,
ta, um jornal diario a cuja leitura procedeis, emquanto
a melodia se desprende das vossas mãos fidalgas?
. Meio excellente de ler os diarios, amainando, ao
compasso da musica, os arrepios que poderia provocar
o noticiario. Quem não f6r capaz de reconhecer, no te.-
dado, os bemóes e os sustenidos, ainda assim poderá
seguir o vosso methodo, visto que hoje a boa musica é
uma questão de mecanica ...
Como romancista compuzestes a Chronica do tem~
po dos Philipes, que li, até até o fim, na segunda edição,
chrismado Leonor de Avila - já sem demasias, vivo,
interessante, cheio de paginas soberbas.
Nelle figuraes luctas de portuguezes e batávos, am,
biente de uma leve intriga de amor, e mostraes que o
210 E. Roquette Pinto
episodio fundamental, na conquista holandeza, não foi
economico. Antes religioso. Um traço da Reforma,
gizado no ultra,mar.
No dominio da lexicologia brasiliana vossa contri,
buição tem sido, sem nenhum exagero, formidavel. .
Em 1924 publicastes o Vocabulario de Omissões - col,
lectanea de palavras correntes no Brazil, e em Portu,
gal não registradas no mais conhecido dos modernos
diccionarios. Era o volume desdobramento de trabalhos
anteriores, visto que desde 1909 havieis começado a
tarefa vultuosa e util que em 1914 tomou corpo no
Lexico de lacunas, completado em 1927 com a Colleda...
nea de Falhas.
-Para n6s outros brasilianos, Sr. Affonso de Tau,
nay, a vossa actividade, nesse capitulo lexicologico, teve
duplo valor. Primeiro porque, graças aos vossos estudos
e observações, fizestes entrar no r61 official dos voca.-
bulos, milhares de termos que o nosso povo, na sua in.-
contrastavel soberania, creou ou alterou. E, depois,
pela coragem, attenciosa mas energica e decidida, com
que respondestes á descabida pretensão de quem "não
podia admittir sugestões brasileiras em materia de vo.-
. cabulario portuguez. "A invasão ultramarina doía
aos nervos peninsulares". Vossa argumentação foi ir,
respondível : A linguagem de trinta milhões de brasi.-
leiros ha de forçosamente contar maior oppulencia ver...
bal do que a de seis milhões de portuguezes, tanto mais
quanto fortes contingentes, vindos da ltalia, da Hespa . .
nha, da Allemanha, dos proprios indígenas e dos afri.-
canos, entraram a desfigurar o classico idioma.
Ensinaes que os inglezes dispeõm de 500.000 voca.-
bulos : 300.000 têm ás suas ordens os allemães, e quasi
outro tanto os francezes. Os portuguezes dispõem de
uns 140.000. . . E, são palavras vossas, "das quantas
linguas civilizadas ê a portugueza das mais pobres,
quanto ás technologias ninguem o ignora. No entanto
Ensaios Brasilianos 211

,. relutam em acceitar os milheiros de termos que lhes of.-


1 ferecemos".
Como recusar italianismos ou germanismos da Jin..
gua falada no Brazil?
Segundo a vossa estimativa ha mais de cem mil pa.-
lavras brasilianas á espera de registo nos grandes lexicos.
Mas na admiravel monographia não só consignaes
<_>s termos brasilicos refugados pelos diccionarios portu.-
guezes. Traçaes um esboço curiosissimo da distribuição
geographica de certos vocabulos, ensinando,nos que
para elles ha fronteiras definidas, como é, por exemplo
o rio S. Francisco.
O Brasil inteiro está comvosco. Não póde ser bom
livro para nós outros o diccionario que não consigna vo.-
cabulos que a nossa vida de familia exige a cada hora.
Quanto á terminologia scientifica, provastes que
os diccionarios são simplesmente inqualificaveis, omis.-
sos ou, o que é peor, errados.
· A lingua não é um fim ; é simplesmente um meio.
Veste a ideia. E' certo que muitos preferem a luva á
mão: nós ambos, Snr. Affonso de Taunay, preferimos
que se tire a luva e se nos entreguem os dedos.
Digna de toda veneração é a philologia que conhe.-
ce as coisas correspondentes aos nomes; essa, porem, em
geral mostra.-se muito modesta nas suas imposições e
ousadias; e não comette erros vultuosos como os que
nos apontastes, em 1926, no opusculo dos Reparos.
Quem póde ler, sem sorrir, o caso da abelha meli-
pona que os cuyabanos chamam guaxupé, e o dicciona.-
rio define como sendo uma especie de penteado ? ...
Iguaes á inqualificavel leviandade, consignastes in.-
numeras. Então, o carrapato é um crustaceo I Mammi.-
feros, como o bôto, passam a peixes. . . A intransigen.-
cia com que nos querem ditar o vocabulario pessoas
que só conhecem um terço, talvez, das palavras corren.-
tes no Brasil, porque o resto é .constituído por expres-
212 E. Roquette Pinto
sões nascidas na t,erra americana, reponta igualmente
no caso da ortographia.
Si todos concordam em que a unica razão de ser
da escripta ê a representação dos sons da língua, tal qual
se fala, o vocabulario não deve ser prejudicado pela sua
traducção graphica. F6ra disso "C' est com me si l' ori
croyait que, pou,r connaitre quelqu'un, il vaut mieux re..
garder sa photographie que son visage" na phras_e cortante
de Ferdinand de Saussure.
Si a lição do grande mestre de Gen~ve exprime a
verdade, quando a pronuncia é differente não ha razão
nenhuma para que a escripta seja a mesma. Felizmente
estamos caminhando para a estenographia universal e
para o phonogramma. No futuro darão golpes no espaço
os partidarios das letras simples ou dobradas, os pala-
dinos do s.
A maquina de escrever matou os aràbescos preten..
ciosos e torturantes da calligraphia; a orthographia ha
de ser desmontada pelo phonogramma. Nos milagres da
valvula thermo;ionica e da cellula photo;electrica, hoje,
arquivam;se os sons, em uma longa fita, a medida que
os vocabulos são pronunciados. Quem não desejaria
os versos do nosso Alberto de Oliveira, vivos na sua ex-
pressão, em vez de mumificados na mortalha de um
livro impresso?
A typographia, assistindo ao desdobrar do pro-
gresso, que tudo vem transformando ao redor della
mas respeitando-a, no que possue de essencial, ha de
ser mero auxiliar. Certos livros, em futuro que me agra..
da imaginar bem proximo, serão pequenos films enrola..
dos. Volumes manuseados pelos nossos descendentes
hão de ser parecidos com os papiros dos antepassados ;
mas em vez de guardar a imagem graphica dos roman..
ces ou dos versos, conservarão as composições estuàn..
tes, na propria voz dos poetas,
Ensaios Brasilianos 213

Apaixonado estudioso da fala do vosso povo, per,


tenceis á corrente que nos parece em condições de en,
grandecer este paiz. Continuaes, hoje, no mesmo ca,
minho que vos levou outrora a guardar, como relíquia,
um pedaço da corda em que desceu ao escuro da se,
pultura o corpo de Floriano Peixoto, gesto ardente
da mocidade, cheio de symbolismo e de piedade civica.
Não é pois de surprehender que a vossa obra capi,
tal tenha sido a Historia das Bandeiras, "historia da
conquista do Brasil pelos brasileiros .. . " na vossa lin,
da phrase.
Entre os discipulos queridos do nosso inolvidavel
Capistrano de Abreu, ao lado de Basilio de Magalhães,
Calogeras, Washington Luiz, Alfredo Ellis, Alcantara
Mac;hado, Paulo Prado, Studart, Borges de Barros e
outros notaveis conhecedores do formidavel episodio
bandeirante, tendes, Sr. Affonso de Taunay, autori,
dade singular.
Nos seis alentados volumes publicados cuidastes
principalmente de compendiar o que se apurou, até
agora, de rigorosamente exacto, quanto á grande epo,
péa da raça.
A vossa exigencia, o vosso apurado senso ·critico,
a vossa imparcialidade deram á obra decisiva um tom
de segurança raramente igualado, embora, ao que nos
avisaes, a synthese geral da historia das Bandeiras não
deva ser tentada por emquanto. " Episodio culminan,
te dos annaes brasileiros", escreves~es, pois a elle deve o
paiz dois terços do seu terrítorio actual, foi no entanto
o bandeirismo até quasi os dias modernos tratado com
grande descaso."
Com grande descaso 1
Todos os nomes que ha pouco recordei, até mesmo
o do mestre maior, pertencem a publicistas de hoje.
No Instituto Historico, a que damos o melhor da nossa
214 E. Roquette Pinto
veneração, o "episodio culminante" atê 1889, quasi
não teve écho. ~ •'.i
Na lista das questões propostas aos velhos estu~
diosos, havia de tudo. . . menos theses a respeito das
bandeiras.
Costumo dizer, Snr. Affonso de Taunay, que da
comparação dos factos antigos com os recentes, tiro for ..
ça para sustentar o meu incorrigivel mas consciente e
equilibrado optimismo. Consenti, pois, repita comvosco,
nesta altura, · que a historia das bandeiras - o maior
feito da vida nacional - é uma pagina escripta pelas
gerações republicanas. O proprio Varnhagen, é vossa a
observação, não lhe concedeu lugar a altura do seu re.-
levo.
. Com quanta saudade nos lembramos de Capistra.-
no de Abreu, o decisivo iniciador da pagina soberba,
apenas esboçada por Southey 1
Como não recordar, neste momento, que a figura
culminante de Antonio Raposo foi · uma resurreição do
nosso tempo devida aos estudos de Washington Luis?
E Antonio Rapozo - na vossa opinião - foi o maior
dos bandeirantes, porque ampliou o nosso territorio.
Si a Historia das Bandeiras é copiosa consolidação
dos documentos existentes, por outro lado acha,se re.-
ferta de dados descobertos pelas vossas pesquizas in.-
fatigavis ; e, em pontos sem conta, corrige innumeros
erros, até os menos importantes, como os que transvia.-
raro José de Alencar, em "Minas de Prata".
Mau gosto, imperdoavel numa hora destas, seria
o meu, si me propuzesse ennumerar todos os meritos
. daquella vossa obra monumental. A Historia Geral das
Ba'Yl:deiras perpetuando o vosso nome, deu,vos a imor..
talidade, unica, suprema, desinteressada recompensa
digna de um trabalhador da vossa estirpe.
Não desejo esconder, porem, meu nobre amigo, que
me afasto do vosso ponto de vista ha pouco recordado.
Ensaios Brasilianos 215

Muito mais do que o "recuo do meridiano" - o que me


mteressa, no formidavel episodio, mixto de grandeza
e humildade, tecido sanguinolento de glorias e opro--
bios, não ê o territorio - ê a raça. Mais de uma vez
tenho perguntado a mim mesmo, perplexo ao ver es--
criptores brasilianos de talento e cultura repetir balo,.
fas necedades a respeito dos irremediaveis desastres
sociaes que seriam os povos mestiços, tenho perguntado
a mim mesmo : como ê possível crer mais nos livros
falsos do que na propria natureza?
'. Sejam quaes forem as tristezas que o espectaculo
da vida nacional, em qualquer tempo, haja de suscitar
em nossa alma, o Brasil ê uma realidade ; desmente as
· theorias ...
Para S. Paulo, escrevestes, não immigrou nenhuma
grande figura da nobreza de Portugal e de Hespanha.
E ainda mesmo que muitas immigrassem . .. e fossem lou,.
ras, digo eu.
A combatividade e a mobilidade - que consideraes os
dois característicos mais salientes do animo sertanista,
são essencialmente ameríndias. Tambem não são lou.-
ros os "hercules ., quasi .. modos'\ que occuparam a
Amazonia, renovando aos nossos olhos, em outros ter,
mos, porque os tempos são outros, a epopeia dos pau.-
listas. Nem dolicho,.louros são os que varam as canoas no
Cuminá, vivos nas paginas de Gastão Cruls, pelejando
a lucta infernal que o film documenta. Não ha rhe,
tórica que destrúa a verdade ; nem livro que desminta
a vida.
Não sei, Snr. Affonso de Taunay, si fostes sempre
bem inspirado consagrando no primeiro volume da vossa
Historia, um capitulo ao que chamastes aryanisação
progressiva dos paulistas porquanto a anthropologia
ensina que o sangue aryano ê uma utopia.
216 E. Roquette Pinto
Em todo caso affirmaes muito bem : "é com eJe...
mentos quasi unanimemente euramericanos que effec...
tua sua obra a "raça de gigantes" de Saint,Hilaire".
Relendo,vos, deparou,se,me um episodio quasi des,
presado na historia das bandeiras, caso apparentemente
irrelevante mas que, no entretanto, tem, a meus olhos,
grande importancia porque traz ã tona, um factor es,
P.iritual d~ primeira ordem, por si só capaz de explicar
muitos aspectos do grande movimento mameluco.
E' o caso que em Agosto de 1671 chegava a Bahia
grande numero de paulistas, ao mando de Estevão Ri,
beiro Bayão Parente e Braz Rodrigues de Arzão, gente
solicitada pela Cama.ra do Salvador para combater
os Aymoré de Paraguassú. "A conquista, diz J aboatão,
só teria o melhor effeito se fosse executada por paulis,
tas, gente que se criava neste exerci cio . .. "
Assim foi. Terminadas as campanhas victoriosas,
das expedições ficaram na Bahia uns tantos paulistas
que se puzeram a assolar o districto de Porto Seguro.
A D. Pedro II escrevia a respeito o governador ge,
ral, Antonio Luiz Gonçalves da Camara Coutinho, em
1692, narrando as providencias tomadas contra "uns
quarenta paulistas que a villa de Porto Seguro, havia
tres annos se haviam levantado de maneira que a go,
vernavam como sua, mandando matar a quem queriam,
confiscando bens, fazendo outros insultos inauditos".
Com todo o segredo, adiantava o governador, fizera
embarcar em uma sumaca cincoenta soldados, dois
ajudantes e dois sargentos, á ordem do Dezembargador
Dyonisio de Avila Vareiro.
O Dezembargador facilmente liquidou o caso : "pren,
deu a todos dentro da matta, com admiração dos que
conheciam os paulistas embrenhados". Uma testemunha
accrescenta ; "pareceu cousa milagrosa este successo".
Na sua simplicidade, o episodio destaca o impon,
deravel elemento espiritual da resistencia dos bandeiran,
Ensaios Brasilianos 217

tes, a disciplina, emquanto organizados sob o mando


do Cabo da tropa. Bastou que ella affrouxasse, para
que os valentes de Bayão e Braz Rodrigues, no reducto
que havia tres annos dominavam, fossem aprisionados,
sem demora, ainda mesmo embrenhados nas mattas
que conheciam como ninguem, e onde os soldados rei..
nóes mal caminhavam.
Aliás, Snr. Affonso de Taunay, frisaes muito bem a
·existencia dessa disciplina, que para mim foi, talvez, a
maior força dos paulistas, Os testamentos bandeirantes
e tantos outros dados, consignados no livro admiravel
de Alcantara Machado, depoem no mesmo sentido.
E de onde provinha o regimem, factor tão decisi..
vo? E' s.ó recordar que as bandeiras surgiram no arraial
fundado pelos mais disciplinados de todos os religiosos.
No influxo jesuita dos primeiros tempos julgo encontrar
com toda isenção de animo, a maior parte dos elementos
espirituaes que fortaleceram, em normas severas, o
animo dos bandeirantes e a decisão dos sertanistas. Mais
tarde, os jesuítas soffriam dos seus discipulos ... E' da
vida 1
Nas "redoeções" do Sul a influencia dos Padres
foi alem do necessario ao condicionamento das conquis..
tas. Dominadora. Chegou mesmo a transformar os
caçadores guaranys em agricultores submissos. Por
outro lado, alli, o meio espiritual indigena foi desde
logo profundamente alterado. O cathecismo suffocou,
de inicio, as crenças antigas, desmoralizando velhas
lendas e incentivos. Finalmente entre aquelles guara..
nys faltou o aventureiro ibero ou mameluco, elemento
de mestiçagem e de inquietação, que os padres faziam
todo o possível para afastar da "republica".
Eu não comprehendo que se procure explicação para
o estupendo movimento nas doutrinas velhuscas da
anthropologia literaria. Cartesiano que me confesso,
encontro, no entanto, factores psychologicos, muito
218 E. Roquette Pinto
mais decisivos do que aquelles motivos mecanicos e
problematicos.
Os homens que para S. Paulo vieram de Portugal,
portadores ou não de cromozomas nordicos, pertenciam
ao mesmo grupo dos que foram para a India, para a
China e para a Africa. Por que razão o animo conquis.-
tador de taes suppostos nettos dynamizados de ardegos
Vikings, não creou bandeiras semelhantes ás de Antonio
RaposQ, em Guinê ou em Macáu? E, ainda mais. Eu
não acredito que tenha sido apenas a ambição da ri.-
queza o movei daquelles homens.
Em muitos, senão em todos, influiu o ambiente ame.-
rindio creador e propagador de lendas capazes de animar
o desejo de varar o desconhecido em busca da terra sem
males. E S. Paulo, naquelle tempo, a propria lingua
corrente era a dos índios. Delles recebiam os jovens,
nas historias do berço ou nas da puericia, a infiltração
da curiosidade, vicio ou virtude que fez cair Eva no
Paraíso e salva, hoje, a humanidade nos laboratorios
da sciencia.
O bandeirismo, como varação de territorio e preação
de indios ê anterior á chegada dos colonizadores. Pra.-
tica habitual dos Tupy. Com elles aprenderam os Ibê.-
ros ; e, mais bem dotados de recursos e de cultura, de.-
senvolveram a lição . ..
Da propria Piratininga, a respeito dos índios, mui.-
to antes das bandeiras, escrevia Anchieta; "muchas
vezes van a la guerra y auiendo andado mas de cien
leguas si captiuan tres o quatro se tomam con ellos ... "
Das formidaveis caminhadas indígenas ha estudos
modernos interessantissimos e documentados. Para o
Maranhão sabemos que partjram do Sul grandes ban.-
deiras tupy muito depois de 1500. Claude d' Abbeville,
em 1612, conheceu indios que haviam testemunhado a
chegada da primeira migração, no fim do seculo XVI.
Ensaios Brasilianos 219
Mais duas arrancadas semelhantes foram · verificadas
depois.
A primeira foi defensiva ; foi conquistapora, a se..
gunda. A terceira foi antes religiosa!
O grande movel desta ultima, escrevi eu mesmo al-
gures, foi a esperança de encontrar, um bello dia, a
terra sem males - onde os frutos continuamente ama.-
durecem e por si mesmo enchem os samburás, onde a
caça nunca falta e vem, s6zinha, offerecer as carnes ao
caçador. Entre os Tembé dos nossos dias, ainda existe
o mytho do paiz maravilhoso. Maira- creador do Mun.-
do - vive em Jkauéra, terra situada ao occidente do
Pindaré e do Gurupi, a um mez de viagem da ultima al.-
deia dos Tembê. A casa de Maira ê grande e crecada
de flores. Ao redor, as plantas uteis crescem exponta-
neas; ninguem as cultiva e ninguem trabalha para
colher o que produzem. As aves nidificam no s6lo ;
ninguem precisa trepar ás arvores para furtar os ovos.
As abelhas enxarcam de mel o chão em que abrem col..
meias. Os companheiros de Maira deixam-se viver do.-
cernente . .. o seu trabalho ê dançar e cantar. Na terra
de lk,auéra ninguem morre ; só se chora de alegria. Ali,
a gente envelhece para poder sentir as glorias do re-
juvenescimento, que vem coroar sempre a idade avan-
çada daquelles homens felizes . ..
Eis ahi, mais ou menos, o que as índias contavam
aos rapazes de Piratininga, infiltrando,lhes no pensa...
mento o germen da curiosidade, que achou optimo ter. .
reno no substracto sonhador da alma ibérica. Porque,
essa lenda não ê recente. Prova...o o epizodio, qusi in. .
crivei, narrado por Gandavo, no qual, ahi por volta
de 15.39, algumas centenas de tupys da Costa, ao mando
de Uira. .uassú - (a Harpya), tendo ao lado dois portu...
guezes que morreram no caminho, partiram na direção
do Nordeste, em busca de terras novas onde acharão
imortalidade diz o chronista. Uira. .aussú e alguns
220 E. Roquette Pinto
companheiros subiram o Amazonas e chegaram ao Pe.-
rú, onde foram aprisionados pelo Vice,Rei, em 1549,
segundo a chronica de J imenez de la Espada. Compre,
hendeis agora porque, Snr. Affonso de Taunay, vejo
nesse glorioso Gavião de Penacho, - o bandeirante des--
conhecido, que está faltando á vossa galeria do I piran,
ga ; e no ambiente creado pelos tupys de Piratininga,
encontro o condicionamento primordial e originaria
das bandeiras, ambiente que pôde agir mais decisivo,
graças ao isolamento -do nucleo de povoadores, separa.- ·
dos da costa pela muralha da serra, e entregues á direc.-
ção dos Ignacianos, disciplinadores sem rival.
O mesmo imponderavel elemento espiritual, até
certo ponto comparavel ao impulso que desencadeiou
as bandeiras mysticas da idade média, na Europa, re.-
presenta para mim mais do que o indio, mais do que o
ouro e mais do que as pedras, a causa occulta e sub,con.-
sciente do assombroso movimento.
Paulo Prado, á luz de um notavel documento que
fez copiar no Arquivo da Marinha de Lisbôa, carta de
Fernão Dias, dirigida a Bernardo Vieira Ravasco, es.-
cripta numa sexta.-fira, 20 de Julho de 1674, vespera
da partida para a viagem de Minas - affirma, com toda
a justiça : "O velho paulista não era o sonhador de ri.-
quezas fabulosas, o "caçador de esmeraldas" que a
lenda creou : vemol,o frio organizador de uma empre.-
za difficil, a que o animavam a lealdade e a devoção ao
seu rei". Eu tambem penso assim.
Não era o baixo apetite que impelia o ancião, ri.-
quissimo e prestigioso, no seu "lento caminhar". So.-
nhava com as pedras verdes - por cumprir a ordem do
soberano, que era encontral.-as naquellas rechans.
E tanto o rei conhecia a dedicação de Fernão Dias
Paes Leme que, em data de 12 de Novembro de 1678,
embora sabendo o sertanista embrenhado a centenas
de leguas de S. Paulo, escreveu,lhe do proprio punho,
Ensaios Brasilianos 221

pedindo que fosse auxiliar D. Manoel Lobo a fundar a


Colonia do Sacramento, no Rio da Prata I Caçador
de esmeraldas? Ou escravo magnifico da sua lealdade?
Soberano cumpridor do seu dever?
Por outro lado, lendo o que se diz dos paulistas
daquelle tempo, gente de turbulencia sem igual, fero-
zes e intrataveis, mal se comprehende como podiam os
grandes cabos das tropas realizar os prodigios conheci.-
'dos.
Luiz Cezar de Menezes, Governador do Rio de
Janeiro, mandava dizer a D. Pedro II (1691)- "Os mo.-
radores de São Paulo vivem como quasi á lei da nato.-
reza e não guardam mais ordens que aquella que con,
vem a sua conveniencia . ... " Era voz geral 1
Pelo sabido a respeito de algumas bandeiras, e par,
ticularmente pelo caso do enforcamento de José Paes,
ordenado por Fernão Dias, no Sumidouro, como castigo
de grave felonia, jã se poderia suspeitar que os sangui.-
narios her6es paulistas não podiam viver assim á lei
da natureza . ..
A publicação das Actas e do Registro Geral da Ca...
mara de S, Paulo, das Sesmarias, Inventarias e Testa,
mentos, cerca de 80 grandes volumes, hoje entregues aos
estudiosos graças a Washington Luiz, veiu esclarecer
muitos pontos da vida dos bandeirantes. Os vossos li.-
vros entre os quaes não quero esquecer a notavel His.-
toria da Cidade de S. Paulo, os de Ellis, o de Alcantara
Machado,os de Paulo Prado - bastam como informan.-
tes de quem queira fazer juizo, acerca do meio social
em que se criavam os her6es sangrentos e cupidos.
Não ha mais que citar uns tres ou quatro episodios,
como o de 1623 quando a Camara resolveu a deportação
dos Omens de roim boqua que defjamavam os homens
honrados. A 10 de Janeiro de 1632 obrigava os vadios
que não tinham officio a tomarem amo ou despejarem a
terra. No mesmo anno, D. Benta Dias era obrigada
222 E. Roquette Pínto
a mandar collocar uma porta na sua casa de morada,
que ella desejava aberta a tout venant. . . Certo Cus,
todio de Souza Tavares em 1539, curandeiro de larga
freguezia, era obrigado a deixar a clinica, por não ter
carta de esaminação.
Tudo isso são provas de policiamento social, in,
compatíveis com a fama geral dos paulistas. Ha, po,
rern, um documento que fala por si mesmo, visto que
nelle se requinta uma preoccupação que já vae desap,
parecendo nas cidades modernas : a 10 de Janeiro de
1632, Sebastião de Paiva levou á Camara o écho de ai,
guns murmurios publicos. Diziam que havendo, no meio
da igreja, um banco, delle tomavam conta, durante as
cerimonias, Suas Mercês os officiaes, "com grande pre,
juizo e escandalo do povo por si tratarem mal as molhe,
res" - obrigadas a se sentar no chão.
Que fizeram os membros do Governo Municipal
daquella villa, povoada por demonios? Não podendo
attender a todas as senhoras. . . mandaram retirar o
banco, privando.-se de tal conforto, em gesto de cava,
lheiro.
Sanguinarios, sim ; mas honrados e organizados.
E, na guerra . . . como na guerra.
Uma republica de salteadores não seria capaz de
construir a obra duravel da nossa formação territorial.
Encontro ainda uma confirmação do que penso u
respeito da influencia moral já citada, na transcripção
que fazeis das seguintes linhas, em que Pedro Taques,
retratando o criminoso, explica o celebre crime de AI,
berto Pires :
"nelle não lavrou o buril da discripção de seus paes
com a policia em que criaram seus filhos, civilisando,os
com a doutrina das escolas dos pateos dos jesuítas do
Collegio de S. Paulo".
O impulso do seculo XVU foi decisivo.
Ensaios Brasilianos 223

Vejo, em admiravel continuidade historica, o dra,


ma do descobrimento até hoje proseguido: a sementei,
ra das povoações ganhando sempre, cada vez mais, os
recessos distantes ; os trilhos e os caminhos cada vez
mais emaranhados, enlaçando novas regiões.
Caçadores de petroleo exploram hoje a geologia e
levMtam o curso dos rios ; sertanistas, que têm o im,
peto e a resistencia de Antonio Raposo desafiam a
matta e as cachoeiras para descer as peças que num so,
nho luminoso querem prot_eger e civilisar.
Nos momentos tristes de duvida, costumo retem,
perar a minha alma desdobrando lado a lado os mappas
seculares do Brasil. Tenho então diante dos olhos ver~
dadeiros cortes anthropogeographicos no tempo e no
espaço. E como quem se compraz em comparar as pho,
tographias da criatura amada, nas differentes idades
por que ella passou, acompanhando o surto das linhas
que transformam o rosto impessoal da criança no vulto
gentil da mulher que vive e faz viver, ou morrer, leio
nessas figuras a ascensão que os indifferentes não des,
cobrem.
Pelo que ahi fica, Snr. Affonso de Taunay, podeis
ver que, si não estou sempre de perfeito accordo com,
vosco, sou sempre um vosso humilde leitor maravilha,·
do pelo carinho e pela consciencia, com que tomais par,
te no grande e nobre movimento intellectual que é,
na Republica, a historia dos brasileiros que conquistaram
o Brasil.
• ••
A existencia de Luiz Murat - cuja figura evocastes
ha pouco nos seus versos inflammados, foi uma rajada
de enthusiasmo e de paixão ; a vossa tem sido uma doce
harmonia, cheia do altruísmo resumido no verso de
Lucano: ·
224 E. Boquette Pinto
Non sibi, sed toti genitum se credere mundo.
Não vos acreditaes nascido senão para o que é.. util
aos vossos semelhantes.
Na decoração do palacio do lpiranga, onde des--
dobrastes os requintes da vossa alma, entre paineis e
estatuas magnificas, ha lindos motivos humildes e com.-
moventes : amphoras cheias dagua dos grnndes rios que
arrastaram os heroes para o desconhecido, no caminho
da conquista integral do nosso berço.
A patria ê como a agua dos rios - sempre nova e
sempre a mesma.
Assim tambem tem sido a vossa digna actividade.
Ha, por tudo isso, uma grande figura antiga que
revive nesta hora e neste recinto . . .
Seja abençoado pelo seu povo, Snt. · Affonso de
Taunay, todo aquelle que augmenta, pelo esforço hones,
to, a gloria dos antepassados.
li .

Senhor MiiUel Os6rio,


Como si fôra um prêmio, deu,me a Academia Brasi.-
leira o honroso encargo de receber o successor de Medeiros
e Albuquerque.
Este lugar onde estou, pelas tradições e pela grandeza
dos que por aqui transitaram, é sempre luminoso ; tem
brilho bastante para que ninguem repare agora naquele
que está falando. Uma alegria cheia de saudade - o ser
chamado a celebrar convosco a lembrança imperecível
de um grande amigo, que foi dos mais claros e burilados
espíritos do pafs. Contentamento e ufania tambem ...
por serdes vós quem sois : um companheiro muito mais
moço, admirado e querido.
Um poeta, ainda que dos maiores, não me pareceria
muito á vontade na herança de Medeiros. De certo os
seus versos são lindos, mas a poesia, naquele eterno
apai;xonado das pessoas e das coisas belas, sempre foi
atitude transitória. A arte de exprimir os pensamentos
sob metrificada forma parecia,Jhe exausta ; a e,ctinção
da métrica, longe de empobrecer as letras, quebradas as
simetrias, virá permitir que as idéas sejam transmitidas
mais amplamente. E' o que êle prégava: "O essencial
é que o pensamento se exprima bem." - • ,
Um poeta acrescentaria . . . e da maneira mais bela
posslvel. Mas o talento de realizar era tão grande na.-
quele homem I6gico l Apesar de tudo deixou versos dêste
porte: '
226 E. Roquette Pinto
Meu coração de tanto palpitar,
dá mostras de sentir.-se fatigado.
Dentro dtle se agita o meu passado.
como um plangente, um soluçante mar.
Ora sacode as ondas de vagar
num lamento mon6tono e magoado.
ora dêle se eleva um alto brado
de tristeza, de angústia, de pesar.
Mas o grito maior que dêle parte
sobrepujando as outras agonias,
da Morte diante da terrível lei.
ê que sinto que vou abandonar-te
quando tu mais de mim precisarias,·
filho do filho meu que tanto amei.

Medeiros escreveu contos vigorosos, romances in,


teressantes e admiráveis livros de viagens. Em roman,
cista não encontraria o seu paradigma na complexa per,
sonalidade do vosso eminente antecessor.
Mas si um homem de ciência de molde antigo,
poeirento, hirsuto, rabona escura e olhar paranoico
sobranceiro á turba ignara, não poderia evocar a imagem
luminosa do nosso amigo, já o sábio moderno e ágil,
claro como sois v6s, vivendo a existencia árdua e feliz
dos laboratorios, sem esquecer que em nossos dias o in,
divíduo isolado da massa humana ê f6ssil sem valor, êsse
poderia bem lembrar Medeiros que foi, para mim, prin,
cipalmente, um cientista transviado, espírito pesquisador
antes de tudo, que a vida não permitiu seguisse o caminho
da inclinação natural.
Medeiros e Albuquerque nasceu no Recife aos 4
de Setembro de 1867. Fez seus estudos no Brasil e
em Portugal, paizes em que a cultura scientifica mal
começava a ser levada em conta. No tempo de mo,
Ensaios Brasilianos 227

ço, os rapazes faziam exame de rhetorica ; e de muito


longe ouviam falar da historia natural. Ruy Barbosa
quasi escandalizava traduzindo as "Lições" de Calkins
em que há boas noções de zoologia elementar. Pura
formação coimbrã, !iteraria e classica. Medeiros, po,
rem, era dono de um instrumento cerebral de agilidade
incomparavel, conforme a feliz definição de Agrippino
Grieco. Formulas vasias o enfastiavam. Para elle o
melhor estylo é o que tem mais pensamento no menor
numero de palavras. A concisão e a clareza cartesiana
do que escrevia deixam manifesto o pendor que o leva,
ria a ser, de facto, um apaixonado estudioso da sciencia.
Dilettante? Sim porque a sua terra não lhe poude
offerecer ambiente mais propicio. Se mais resignado e
talvez mais calmo, evidentemente poderia ter feito, no
terreno da pesquiza, tanto quanto outros. Houve,
porem, dominante, um factor de inquietação que o le,
vou ao jornalismo, no seu conceito - "a mais perfeita
e a mais completa das bellas artes;. . . arte da vida mo,
derna. "
Houve tambem epicurismo intellectual, muito da,
quella deliciosa vadiação do espírito - encanto da
existencia e desespero dos pessimistas. Qual de n6s
dois, Senhor Miguel Osorio, terá autoridade bastante
para erguer a primeira pedra? A bibliotheca de Medei,
ros, pela variedade dos assumptos, era uma livraria.
Ao lado das grandes composições de todas as literatu,
ras, tratados de biologia e sobretudo de psychologia ~..
perimental, livros de magia, de anecdotas, de a_rte e de
esoterismo, de religião e de eugenia. Medeiros vivia
caçando curiosidades.
Certa vez, na sua casa hospitaleira tirou da ga,
veta uma caixa quadrangular,";'.Íendo numa das faces
diversos mostradores sobrepostos. Algumas pequenas
maçanetas giravam, cada qual commandando um dos
mostradores. Era uma nova machina de compor his..
228 E. Roquette Pinto
torias literarias. contos ou romances, que elle mandara
vir dos Estados Unidos. Nos mostradores, de cima a
baixo, appareciam pelo rodar das maçanetas, nomes,
titulas profissionaes, verbos indicando os acontecimen•
tos da novella desejada, lagares em que as scenas po,
<leriam se passar, crimes ou desastres para os persona,
gens, intervenções da justiça ou da religião . . . Sugges,
tões para arranjos e combinações de pessoas, officios,
acontecimentos. Coisas da America do Norte. Medei,
ros conheceu a engenhoca no fim da vida quando toda
a sua admiravel obra na literatura, na sciencia e no jor,
nalismo estava realizada. Com a sua diabolica e sem,
pre alerta curiosidade, talvez tivesse algum dia queri,
do experimentar as virtudes da caixinha. O que nos
legou, na herança oppulenta, foi suggerido pela vida,
que sabia analysar e reconstruir, olhos penetrantes e
cerebro privilegiado.
Ainda a respeito da sua inclinação para a pequisa
scientifica recordo,me de um episodio. Certo dia, ao
terminar uma das nossas reuniões, pergunta,me elle
porque não poderiam os homens aproveitar, na alimen,
tação, a herva que nasce at6a . . . Discutimos as pon,
derosas razões que me levavam a responder pela nega.-
tiva quanto ás vantagens da idêa. Mas a instancias
suas, para que a experiencia pudesses ser realizada mais
facilmente pelo individuo escolhido para ensaiar o re,
gime, obtive que um dos meus collegas do Museu re..
duzisse a pó, algumas folhas. E o material foi en~regue
ao insaciavel investigador. Logo depois adoecia e de.-
sistia do ensa io.
A anda incoercível de poder directamente desven ..
dar os segredos do mundo, o delirio de indagar, que vem
atravez dos seculos condicionando o progresso, a furia
de saber era para mim, o traço definidor daquelle gran,
de espírito.
Ensaios Brasilianos 229

Mais que outro qualquer podeis dizer, com auto--


ridade, se Medeiros não foi o sabio transviado nos laby-
rinthos da politica, do jornalismo, da literatura. ; ·
A sua refinada sociabilidade, a extrema sympathia,
não consentiriam que Medeiros vivesse aprendendo para ·
o seu egoísmo e prazer pessoal exclusivamente. Tim,
brava em repartir com os companheiros o que ia colhen,
do. Os seus amigos sabem da alegria com que mostrava
· as novidades que descobria na immensa bibliographia
constantemente manuseada. No seu ex-libris, entre
outros attributos profanos. ha um diabo lendo. Pois
o Príncipe Vermelho não deve ter aprendido muito na
interessantissima bibliotheca de Medeiros, porque os
livros estavam sempre nas mãos do pr-oprietario e se-.
nhor, que não lhes dava treguas nem d escanço.
A graça natural, o bom gosto, a erudição de boa
escolha, davam ás conferencias de Medeiros um encan,
to superior. Talvez sejam ellas o melhor da sua pro,
ducção, mesmo do ponto de vista social, porque, ali, foi
agente dos mais efficazes na divulgação da sciencia, da
arte e das letras.
Trabalhou por elevar o nivel intellectual da sua
gente. Eu não conheço nenhum serviço que mais obri,
gue a gratidão da posteridade. Deve ser posto ao lado
de João Ribeiro, mesmo ao vosso lado Sr. Miguel Oso, :
rio, visto que na vossa bibliographia não ha somente
relato de novas descobertas, pesquizas originaes, mas
tambem muito do que de melhor em materia de ensino
publico se ha feito por aqui. Dos seus trabalhos, os que
Medeiros mais presava eram os de psychologia theorica
e applicada. Não é a occasião propria para discutir se
elle tinha razão. Com segurança e sem desmedido elo,
gio póde dizer-se que realmente conseguiu sósinho gal-
gar as culminancias das sciencias difficeis da sua prefe..
renda. De passagem quero citar o que fez para diffun ...
dir as doutrinas de James, a psychanalyse e tantas ou,
230 E. Roquette Pinto
tras. Não deixarei no esquecimento os seus estudos
de hypnotismo, que Miguel Couto prefaciou e o seu
admiravel pequenino volume dos Tests, alem dos ar-
artigos que autorizadas publicações especializadas aco-
lheram com apreço.
A respeito da sua vida de administrador ouvimos
ha pouco Mauricio de Medeiros. Quantas medidas
interessantes e uteis elle poz em pratica ou aconselhou 1
No Districto Federal, o primeiro Laboratorio de Psycho--
logia · Experimental foi sua criação.
A 9 de Junho de 1934 desapparecia Medeiros e
Albuquerque deixando uma obra magnifica e sincera
saudade. Nestas salas a sua voz encantou multidões,
accendeu debates. Nunca, mesmo nas mais fortes dis-
cussões, tratando de assomptos ou pessoas que o apai-
xonavam, deixou de ser o polido e attencioso adversa-
rio, companheiro bem humorado e prestante. A Medei-
ros e Albu,querque e a Affonso Celso, nosso querido pre-
sidente pela doença de nós afastado, devemos um es-
pectaculo de rara belleza. De Pedro II, que para Af..
fonso Celso é sempre "o Magnanimo", na constante e
veneranda admiração, Medeiros · mais de uma vez disse
francamente o que pensava. Sempre Affonso Celso re-
trucava no protesto de todos esperado e ouvido com
respeito. Entre os dois homens tão sinceros jamais hou-
ve uma phrase ou um gesto asperos ou maus, no tratar
da pessoa do monarcha ou de outros casos que tambem
os separavam. Por estes tempos de intolerancia e de
força, quando por toda parte tentam reviv'er praticas
em que o pensamento é mais torturado, ás vezes, do que
o corpo, deixae-me dizer que a scena era digna do encon-
tro das dua,s almas differentes e amigas fazendo da Aca-
demia um logar de grande bem estar espiritual. Nem
vos posso inc~icar o que mais crescia na minha estima
pelo exemplo que davam de tolerancia e respeito do pen-
samento alheio.
Ensaios Brasilianos 231

Sois tambem um artista, Sr. Miguel Osorio. Con,


seguistes facilmente exprimir, no estylo nervoso as an,
gustias de algumas almas sem abrigo, que bem aconche,
gadas protegeis nos macios refolhos de aguda sensibi,
!idade. Confessaes que não sabeis ao certo se o vosso
bello volume encerra um romance. Pouco importa. A
vida, em si mesma, ainda é a melhor das urdidoras.
No livro ha gente tão viva, que os criticos até imagi,
naram seres do vosso conhecimento objectivo.
Gente que ama e soffre. . . Deve ser mesmo um
romance. Os romancistas pensam que inventam : mas
quando o livro é dos que ficam, a historia foi um logro
que a natureza passou no escriptor. Estava dormindo
nos complexos, diria Medeiros, nas dobras profundas
da personalidade.
Não devem ter muita razão os críticos de que nos
falastes. O homem de sciencia - é lição dos vossos tra.-
balhos - a não ser os que se encarquilham na esterili.-
Jade das taxinomias exclu.sivas e pedantes, não póde ca,
minhar sem o estimulo de um sonho de verdade e de
belleza, que a imaginação aquece. A verificação - é
outra coisa. Tendes sido o exef11plo da vossa geração,
architecto de edifícios biologicos complexos e uteis,
alguns bellos e poeticos. ·
Quem conheceu o solar do vosso pai - casa de
requintes espirituaes - o ambiente em que vos creas,
tes, numa fraterna e preciosa agitação de idéas nobres
e boas, não póde ter surpresa alguma vendo o vosso
nome de professor dos mais seguidos, luzir tão beni no
Uruguay ou em Paris, falando aos alumnos da Praia
Vermelha ou aos colleg~s da Sorbonne. Surpresa ha,
verá, muito justa, ao percorrer tudo que tendes reali,
zado na physiologia experimental, no meio ainda mo,
desto dos nossos recursos nacionaes. Fostes innovador
dos mais firmes e brilhantes.
232 E. Jloquette Pinto
E não achareis fóra de proposito eu, que a todos
vos conheço e quero, amigo de muitos annos, recorde
agora o nome de Alvaro Osorio, nosso mestre insigne e
modesto, que não esqueceríamos jamais, no momento
do vosso merecido triumpho. O caracter dos vossos
trabalhos de physiologia experimental é definido pelo
arrojo das concepções, segurança da technica, quasi
sempre criada por meios proprios, a tenacidade com que
perseguis a verdade que se esconde e negaceia, quando
no determinismo das indagações aproveitaes recursos
precisos, inclusive os do symbolismo mathematico. Será
impertinencia dizer que os leitores, em alguns casos,
desejariam linguagem mais biologica e menos algebri.-
ca como Johannsen queria o estudo dos phenomenos
da yida : com mathematica e não como mathematica ...
No entanto a razão está do vosso lado. Lê--se no admira.-
vel Bayliss que, no fim de contas, os factos vitaes são
sempre, em essencia, mudanças, variações infinitesi--
maes e portanto é tempo dos biologos se prepararem no
no calculo indispensavel as theorias de sua sciencia.
Ainda ahi, no Brasil, estaes entre os pioneiros.
Mais de cento e cincoenta memorias, notas ou mo,
nographias, versando assumptos originaes, opulentam
a vossa bibliographia scientifica. Seria evidentemente
impossível esmiuçar uma por uma as notaveis pesquiza~ ~
hei de apontar, entre tantas, duas ou tres, onde o voss'-
talento de sabio e philosopho mais se revela e confirma.
Toda a physiologia tem merecido vossa attenção : os
reflexos, a respiração, a excitabilidade dos nervos e dos
musculos, as funcções nervosas da pelle, a circulação, a
thermogenese ...
Dos vossos estudos sobre o vestuario nos climas
quentes, não direi nada. Não desejo affligir os moralis.-
tas sizudos que a moda feminina, de tão pouco panno,
irrita e desconsola. Não lhes direi uma palavra das vos.-
sas conclusões.
Ensaios Brasilianos 233

Mas o valor de toda a vossa producção foi reco.-


nhecido aqui e na Europa ; a Faculdade de Paris vos
conferiu o Premio Sicard e a Academia Brasileira de
Sciencias, o Premio Einstein.
Por isso deve ter repercutido vantajosamente para
o nome do Brasil, no Instituto Internacional de Coope..
ração Intellectual, a escolha do vosso nome para a pre.-
sidencia do Comité Nacional, cargo que por attender á
confiança de Aloysio de Castro exerci durante algum
tempo e vos entreguei como quem dá o seu a seu dono.
A descoberta de algumas leis que regulam a res,
piração foi, talvez, dos primeiros trabalhos vossos de
éco internacional. Mas de todas as contribuições, uma
existe de valor singular, seja do ponto de vista pura.-
mente physiologico, seja do ponto de vista philosophico.
E' o conjunto dos estudos sobre a pelle. Depois
de tudo exposto, remataes : "Descobrimos que a abla,
ção total da pelle, na rã, produz modificaçõs profundas
do comportamento do animal".
A velha intuição que levou Chamfort á sua cele,
bre, grosseira e pittoresca expressão, seculos mais tarde
veio encontrar nas vossas mãos uma elucidação sem
duvidas nem exaggeros. O bom senso do povo por onde,
no conceito do philosopho, surge a sabedoria, já des.-
confiava. Sómente na rã 7
Deve ser mais geral o phenomeno. A pelle influe,
de facto, tambem no comportamento da miseravel vida ,
humana. Tanto que os antigos - vejo isso num meu
alfarrabio, livro dos "Adagias, Proverbias, Rifãos e
Anexins da Lingua Portugueza" - os antigos juravam
pela pelle. . . No batracio pudestes facilmente execu,
tar aquella tetrica operação do arrancamento, mas a
idéa, senhor Miguel Osorio, a idéa dessa technica, que
feroz imaginação não exigiu 1
E como ê interessante tudo quanto, a respeito, nos
ensinaes: "Emquanto permanecem alguns pedaços de
234 E. Roquette Pinto
pelle o animal p6de apresentar modificações do tonus
muscular e da coordenação dos movimentos, mas não
se apresenta no estado de profunda apathia que ca.-
racteriza a ablação total".
Depois de mostrar que o estado de torpor não de.-
riva do choque, nem de qualquer substancia segregada,
accentuaes que "a apathia das rãs é devida á ausencia
de excitações do Illundo exterior. Os sentidos da visão
e da audição sendo muito rudimentares na rã, o animal
recebe pela pelle as excitações necessarias para manter
o systema nervoso em estado de excitabilidade normal,
para conservar o que se p6de chamar o tonus do systema
nervoso".
Assim COillO a corda do violino s6 se toma capaz de
'vibrar, nas notas desejadas, depois de estar sufficiente,
mente distendida, no tonus, que para os mll$icos é a
afinação, o systema nervoso precisa tambem de certo
grau de t~s~o fundamental especifica. Na VQSsa des,
coberta a pelle e os outros orgãos dos sentidos afina,n
o systema n~rvoso para que elle possa viJ,rar nas reac-
ções que a vida impõe.
Será pois, verdade que os poetas presintam de
longe, o que a sciencia ha de verificar?
Tu n'as jamáis eté dans tes jours les plus rares,
Qu' u,n banal instrument sous mon archet vainqueur.
Et cÕmme un air qui sonne au bois creux des guitarres,
J• ai fait chanter mon réve au vide de ton . coeur ...
Numa pagina de Balzac as ~ulheres são como o
violino de que um virtuose tira melodias sublimes.
Que p6de dar um stradivarius nas mãos de um gor_illa?
Escrevi ha pouco e agora quero repetir, depois de
reler os vossos trabalhos : a pelle é uma das maravi,
lhas da historia natural.
Ensaios Brasilianos 235

Cabe.-vos, como se vê, louvor especial, ao caracte,


rizar a estupenda tunica protectora e sensivel recep..
tora especifica dos appellos do mundo, condicionando
os impulsos de onde surgem sentimentos e acções, fon ..
tes de que brotam as raças.
Pensam muitos que o determinismo scientifico mor.-
reu de uma vez porque os physicos não podem dizer
qual será o atomo que ha de explodir num momento da.-
. do, quando afinal, hão de ter todos a mesma sorte. Mas
que vale um millimetro na medida da distancia que vae
da Terra ao Sol? Trabalhos como os vossos feitos com
precisão e honestidade são, de facto, um conforto para
os que esperam tudo da sciencia - na ordem moral,
na ordem intellectual e na ordem pratica.
Ha mais de meio seculo vem os sabios trabalhando ,..
para explicar os interessantes phenomenos da excita.-
ção electrica dos nervos. Por multiplas razões o proble.-
ma apresenta difficuldades transcendentes. Depois de
nove annos de pesquizas e calculos, mil vezes renovados,
corrigidos e accrescidos, conseguistes formular uma theo.-
ria geral da excitação, vosso trabalho capital que por
isso mesmo tem de apparecer hoje aqui, ainda que numa
breve menção. Mal de mim que não conseguirei, dar,
nem de leve, a medida do que nelle existe de profundo
e bello 1 Resolvestes abordar o problema tentando
uma theoria puramente mathematica, sem nenhuma
hypothese physiCQ;chimica. A base da vossa edifica..
ção? Admittir que sob a acção do estimulo surgem nos
tecidos excitaveis, dois phenomenos oppostos: um pro.-
porcional á !ntensidade da çorrente, outro proporcio- ,
nal á perturbação produzida e ao tempo decorrido des.- ,
de o inicio. Vossa theoria explica a rheobase, fundamento
da chronaxia, de tão largo emprego na pratica dos me.-
dicos ; e dá conta do facto surprehendente, conhecido
desde os tempos de Du Boís,Reymond, de não agir
sobre o nervo a corrente continua sinão no fechamento
236 E. Roquette Pinto
e na abertura do circuito, parecendo o cordão nervoso
indifferente durante o resto do tempo. Tambem quan . .
do se varia bruscamente a intensidade da corrente con. .
tinua o nervo responde, no momento da variação. E s6
nesse momento. Pois os vossos estudos vieram igualmen. .
te explicar o facto. Assim appareceu a noção da "chro. .
nobase" de Miguel Osorio, característica racional da
excitabilidade, relação entre a rheobase e a chronaxia,
multiplicada por um factor.
Passastes depois para o estudo directo da excita. .
ção, buscando a interpretação physico. . chimica.
Ainda aqui fostes feliz, como quem luta bem arma . .
do e ê digno da victoria porque tem razão e não desa. .
nima nunca.
Pouco importa saber o que o futuro fará desses
fructos soberbos da vossa extraordinaria capacidade.
São trabalhos que hão de ficar nos registros da sciencia,
entre o que de mais elevado houver produzido a nossa
America do Sul para o thesouro espiritual da Humani. .
dade.
Medir a fadiga, sempre foi coisa muito difficil.
Principalmente avaliar a fadiga dos outros, quando
trabalham para nós . ..
O processo que imaginastes é simples e elegante.
O índice da fadiga é a relação da força maxima desen . .
volvida pelo musculo, aval~ada no dynamometro, para
a potencia maxima verificada no ergógrapho.
Os erros que levam aos desastres, se não vem da
doença, nascem, na maioria das vezes, da fadiga. D.
Miguel de Unamuno tem toda razão; a fadiga é o mal
do mundo. Depois de tanto tempo em que os povos vi . .
veram agitados no turbilhão das conquistas de toda
ordem, precisam dormir como as crianças travessas que
se renovam nos somnos de pedra. O mundo será velho ;
o homem é muito moço. Ha povos que mal conhecem o
fogo e ainda ignoram o mais rudimentar conforto. Os
Ensaios Brasilianos 237

mais civilizados ha somente uns trinta annos que con.-


seguiram voar. S6 agora se ouvem os homens de conti.-
nente a continente.
Nos arroubos da juventude a Especle ainda não
poude escutar · a voz prophetica de alguns filhos mais
sabios. Ainda crê na violencia: e chama sempre justa
a causa do seu interesse. ·
A humanidade não está decrepita ; está cansada.
·· Caminha com o passo incerto dos bohemios transnoita.-
dos, pisando muitas vezes, sem sentir, as melhores e
mais delicadas flores da cultura. Está cansada das ma-
ravilhas que andou fazendo n(?s dois ultimos seculos.
Exhausta de soffrer e gozar.
De fartos documentos resalta, pois, com vigor a
vossa personalidade de sabio ; do artista apparece,
em outras tantas paginas, a alma delicada. Lastimo
sinceramente todos os que ainda não tiveram occasião
de ouvir as vossas apaixonads interpretações de Bee.-
thoven ou Chopin. E as phrases emocionantes e tumul.-
tuarias do Tristan, que tanto vivem no vosso teclado.
Nascido na cidade do Rio de Janeiro fizestes os ,·
estudos secundarios no Collegio Kopke - nome que
recorda um dos meus mais estimados amigos compa.-
nheiro numa grande obra de educação popular ; no Rio
terminastes os estudos superiores. Fizestes o vosso nome
sem ter sahido do Brasil. Fostes á Europa pela primei.-
ra vez, não como aprendiz ; mas como professor que
aqui mesmo teve a virtude de se aperfeiçoar e impor.
Dos maiores livros de ensino publicados no Bra.-
dois figuram na vossa bibliographia : Homens e Coisas
da Sciencia e A Vulgarização do Saber. E' difficil dizer
qual o melhor. Tudo nelles concorre para o brilho com
que são tratados themas variados e empolgantes.
Historia, biologia, arte, philosophia. . . palpitam
em ambos. Muitas vezes o escriptor parece em verda-
de trahir a f~ção psychologica do autor, que nem sem,
·. ,
238 E. Roquette Pinto
pre se compraz em formulas definidas, que seriam de
esperar num pesquizador de tal envergadura. Chega
a citar um trecho de Renan quando faz a apologia dos
e~tados obscuros anteriores á reflexão, estados que o
mais claro dos escriptores de todos os tempos achava
particularmente fecundos para a criação. Mas seja
tratando de A Sciencia e a LingQa Portugueza. As
Mulheres e a Sciencia, de A Arte de Esquecer, do Pro.-
blema da Dor, do Sonho e a Acção, ou escrevendo bio.-
graphias e artigos historicos - Pasteur, Pedro II e o
Instituto de Physiologia, Ewald. Miguel Pereira, So.-
phia Kovalewsky - contribuístes pra a literatura na..
cional com muitas paginas definitivas.
Quero dizer ao romancista das "Almas sem Abrigo:
nunca foi mais amavel e~criptor do que nos dois volumes
de ensaios, o estylo jamais t~ve tanta louçania. Abrin.-
do ao acaso : "Em arte, como e,m tudo, o passado não
pode ser desprezado, nem affastado . , . Mas pode ser
esquecido, envolvido nos vêos nunca inteiramente opa.-
cos do sabio esquecimento, do esquecimento educado,
que annula as exhuberancias nocivas mas não asphyxia
as sementes vivas e ferteis. Estas renascem em formas
novas e mais ricas, quando encontram as condições
adequadas para o seu desenvolvimento, reunidas na
alma nova das personalidades, raras mas sempre exis..
tentes, que sabem ver e sentir". Quanta subtileza nes.-
ta pagina I Que descoberta de extrema finura psycholo.-
gica, o sabio e educado esquecimento que por desgraça
não está ao alcance de todos 1
Sois das almas novas que sabem ver e sentir, almas
preciosas até para os povos de cultura profunda e se..
dimentada. Entre gente que se debate nos lances mo.-
raes e praticos da propria formação definitiva, agitadas
assim as moleculas quando se orientam para o polye..
dro nuçlear dos corpos crystallinos, são pontos de apoio
da sociedade. Da penetrante visão ha de a sciencia re.-
Ensaios Brasilianos 239

colher constantemente coisas bellas como as que mal


pude levemente recordar, da sensibilidade apurada as
letras hão de receber o carinho que tantas composições
recommendam. Depois de tudo isso, trazeis para a Aca~
demia, como queria Medeiros, o simples encanto do
trato pessoal, a elegancia discreta das attitudes.
Não vos preoccupe mais a indaga~ão dos nossos
intuitos no caso da escolha feliz.
Quasi estou em affirmar que nem mesmo foi causa
- "o romance que existe em toda obra de sciencia".
Para os altos valores espirituaes ha sempre aqui um
Jogar. Mas os romances guardam o antigo prestigio. A
humanidade é muito moça.
Aqui, Sr. Miguel Osorio, onde hoje vos recebemos
com tanta alegria, muitas vezes ha de vir ao vosso pensa~
mento a lembrança daquella nave illuminada, que na
lenda medieval singrava o mar, varando o nevoeiro e
a tormenta, rumo incerto quando faltava a Tramontana,
tudo soffrendo sem queixa, dominada pela visão da figura
sem par de formosura e meiguice, que de longe attrahia
toda a christandade. Depois vereis, de certo, que quasi
tudo hoje é differente ...
Mas bem de pressa concluireis commigo que o mesmo
sonho de luz e de harmonia continua. Os da nave antiga
nem mesmo tinham "a agulha que dita o Norte" ; s6
a poesia os animava. N6s somos muito mais felizes ;
alem da Arte, a Sciencia nos ampara. Elles esperavam
tudo da conquista ; n6s tudo esperamos do trabalho.
Mas a esperança é a mesma ...
I ndice
o

PRIMEll\A PARTE
GLORIA SEM RUMOR
CAPITULO 1
PAG .
Os allemães no Brasil - O monumento de Fritz Mill-
ler em Blemenau (20 de Maio de 1929) - A vida de Fritz
Müller na Allemanha - Em Blumenau - l tajahy - Des-
t erro - Volta a Blumenau - N aturalista viajante do Mu,
seu Nacional do Rio - " Principe dos Observadores" Für
Darwin - Nauplius do Camarão - A lei biogenetica
fundamental - Estudo critico dos trabalhos do sabio -
A gloria sem rumor do grande naturalista. (Blumenau -
20 de Maio de 1929). . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

CAPITULO li
O ensino popular da Botanica no Passeio Publico do
Rio de J aneiro - Frei Leandro do Sacramento - Sua for-
mação em Coimbra - Professor da Academia Medico Cirur-
gica do Rio de Janeiro - Frei Leandro no Jardim Botanico
- Estudo critico dos trabalhos de Frei Leandro - ([nstituto
Historico e Geographico Brasileiro - (1 de Julho de 1929). 42

CAPITULO m
O Brasil explicado a si mesmo na obra de Alberto Tor-
res - Os racistas. . . - A conquista e a ocupação da Terra
- O conceito nacionalista na Obra de Alberto Torres. . 63

CAPITULO IV
A physica no Brasil no começo do Seculo XX -
Henrique Morize - A Capital do Brasil no Planalto Cen-
tral - Morize e o Observatorio - A Fundação da Acade-
mia Brasileira de Sciencias em 1916 - Morize e a Radio-
difusão no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . . : . 66
242 E. Roquette Pinto
CAPITULO V
PAC .
Os primeiros passos da radiodifusão no Brasil - A con,
tribuição de Amadeu Amaral - a Propaganda 73

CAPITULO Vl

Tres grandes mestres do Brasil : Tobias Mosc~Fer,


qinando Labouriau e Mahoel de Amoroso Costa - A ftm,
dação dos estudos de biometrica no Brasil - Os problemas
da siderurgia nacional . . • • . . . . . . . . • . . . . 76

CAPITULO VII

O estudo systematico das populações indigenas do Bra-


sil - A escola allemã - Karl von den Steinen - Capls-
trano de Abreu e João R,ibeiro . . . . . . . . . . . . . 83

CAPITtl'LQ Vlll

Snethlage - Alma de mulher e de sabia - Directora do


Museu Goeldi, no Pará - Naturalista do Museu Nacional
do Rio - A mQJlographia das Aves do Brasil - Na academia
Brasileira de Sciencias - N01S pantanaes do RJo Madeira . . . 88

CAPITULO IX

O Brasil na America - Formação da população brasi,


liana - A obra de Manoel Bbmfim - Justiça para os Mes--
tiços. .. • . . . . . . . . • • • • • . . . . . . 91

CAPITULO X

Quinze ann,os de trabalho nas fronteiras do Peru - O


livro de Ferreira da Silva - As demarcações - as doenças
- os indios. . . • • . . . . . • • . • . • . • • . 9.5

CAPITULO XI

A Carta Topographica de Villa Rica - Claudlo Manoel


da Costa - Poeta? - Heroe da lnconfldenda? ou Topo-
grapho? . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100
Ensaios Brasilianos 248

CAPITULO XII
PAG.
As tendendas da Medicina Moderna - Racional e So..
dai - Miguel Couto, pioneiro. - O Congresso Brasileiro
de Eugenia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

CAPITULO Xlll

A Sclenda e a Arte - C. P. Hartt - A expedição


Thayer - Hartt e Agassiz - A Comissão Geologica - Or,
ville Derby - Hartt (28 de Junpo de 1938.) . . . . . . . 107

SEGUNDA PARTE

INSPIRAÇÕES DA TERRA
CAPITULO XIV

Os quadros fartes de "Os Sertões" - Os paJneis de


Euclydes da Cunha - A c_egueira do sertanejo - O cen,
tauro bronco - O estou,ro da boiada - O desafio - O pre,
ludio da secca - Os quadroe da vida religiosa - A creança
· morta - As telas esquecid~. . . . . . . . • • . . . . . . 129

CAPITULO XV

Literatura e nacionalidade - Sciencia e Literatura -


Estudo critico de "Os Sertões" - A Verdade e a Belleza. 132

CAPITULO XVI

Os anachronismos da cultura Brasiliana "Vida e


morte do bandeirante" • • . . . . . . , 139

CAPITULO XVll

O Bandelrante desconhecido - As mlgra\;ões indígenas


- A terra sem males - Uira-Assú • . . . . . . . . . . 142

CAPlTUl.O XVIII

A Terra do Inca - O Perú Socialista . 147


244 E. ]l_oquette Pinto

CAPl1ULO XIX
PAC,
Dizer e fazer . . . -A Scienda pura no Brasil - A in-
vestigação scientífica. • . . . . . . . . . • . • 156

CAPITULO XX

Pedro II e Gobineau - As cartas de Strasburgo - Go-


bineau esculptor - A Mima do Palacio da Boa Vista -
Gobineau no Rio de Janeiro - Rei a f~rça . . . . . . 1S9

CAPITULO XXI

Fundamentos biologicos da Sociologia - Estudo cri,


tico das theorias de Tobias Barreto - O meio e a herança
na formação das raças - O racismo . . . - Os erros do po..
voamente oficial no Brasil . . . . . . . . . . . . . . . 114

.. . .. . . . .
CAPITULO XXII
· Estylisação • . . . . .. . 184

TERCEI~A PARTE

NA ACADEMIA BRASILEIRA
I - Affonso de Taunay. ' . . 4' 207
II - Miguel Osorio . . . . 22S
fig. 1
Monumento de Fritz Muller, em Blumenau
Santa Catarina (A . Preiholfer, escupt.).
Fig. 2
Fritz Müller 1~77.
Fig. 3
Colonia lle Fritz 11\uller, em Blumenau, Santa Catarina - 1891.
Fig. 4
Blurnenau em 1867.
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Fig. 5
Fig. 6
Fritz Míiiie-r 1886.
(Apud A. Moiier).
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Cabeça do macho de Tan~is sp. (x 90) forma commum
4 - Região buccal do mesmo.
5 - Caoeça do macho (x 25) forma rara.
6 - Filamentos olfativos do mesmo (x 90).
(flir Darwin).
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:3 Elpídium bro meliarum
14 Emax,lla
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15bvo
rosterior .:;;;- un; macho - 23Barr.
tlademandíbula
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16 24'' pernas
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26
' E/pe plngu,s,
Fig. 11
PROF C F HARTT
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J1111111111 IIIIII IT

TrançRdo :ig. 12
inclios da e A J'R l ha dos
ma,onla.

1:f[I:JJI1I
lil5l ICij]___
Fig. 14
Evoluçã o d
segundo aHg, egA,
artt.

Cera I Fig. 13
m ca de
Marnch de bMaraJó.
arro.

fig . i:,
Cera mica dde MArajó.
Tanga
e barro.
fig. 16
Vaso gro•ada. Maro;ó.

Fig. 17
Morcegos pendurados.
()e~enho do~ índios Aueto do Xingú,
segundo vou de Steinen

Fig. li,
Onça saltando &obre uma ema.
Desenho dos indios Pareeis.
RONDONtA. - Rxc. Roque/te-Pinto.
--

l'ig. 19
/ndio Namhik11ara f/rc/1(mdn por elevaçao.
Foto Roquetle-Plnto.

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