ENSAIO DOS AVANÇOS NA ÁREA DE ACESSIBILIDADE E
EDUCAÇÃO DOS SURDOS: REFLEXÕES
Cleusa Camargo de Oliveira 1
João Gabriel de Araujo Oliveira 2
RESUMO
O objetivo deste trabalho é apresentar os avanços ocorridos no ambito legislativo pelos surdos,
onde a acessibilidade e língua própria passam a ser uma garantia de seus direitos, especialmente
no que se refere à educação, da infantil até a superior. O trabalho apresenta um percurso histórico
que foi traçado e percorrido pela comunidade, e indicando alguns aspectos que ainda devem ser
corrigidos, apresentando mecanismos de respaldo legal da constituição e decretos-lei que lhes
garantem o direito de igualdade e acesso à informação, como afirma o artigo 5º caput da
Constituição Federal. Aqui são apresentadas as vitórias no meio linguístico e educacional dos
surdos, com ênfase na lei 10436, de 24 de abril de 2002 que garante a eles o direito da língua de
sinais, e no decreto 5626, de 22 de dezembro de 2005, conduzindo o debate sobre os mecanismos
educacionais a serem adotados para a acessibilidade e também com respeito à avaliação da
proficiência dos tradutores e intérpretes da língua.
Palavras-chave: Libras. Acessibilidade. Educação.
INTRODUÇÃO
O panorama histórico da Língua de Sinais, no Brasil e no mundo, passou por
várias transformações nas últimas décadas, assim como podemos perceber sobre a
estruturação da sigmanulogia, por Nóbrega (2016). Mudanças significativas em relação
ao fato de que, por quase um século, nenhuma importância foi dada a essas línguas, além
de serem subestimadas pelas escolas de surdos e vistas como empecilho ao aprendizado
da língua oral para alunos surdos. No entanto, a partir de meados da década de 1950, os
estudos da língua de sinais americana por Stokoe, traçam novos horizontes para as línguas
de sinais, que consequentemente retomam seus espaços na educação de surdos.
Contudo, a revalorização das línguas de sinais não se deve apenas aos estudos
linguísticos. Novas perspectivas educacionais para alunos surdos, a partir da década de
1970, contribuíram para acelerar o processo de valorização e reconhecimento das línguas
de sinais. Santos e Monteiro (2019) apresentam a evolução do sistema adotado desde a
1
Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista-SP, Professora do Departamento de Educação
da Universidade Estadual de Londrina-PR, [email protected];
2
Doutorando em Economia pela Universidade de Brasília-DF, [email protected];
oralização, para a comunicação total e o bilinguismo. Estes direitos são firmados pela Lei
13.005, de 25 de junho de 2014, com vigência de 10 anos, onde no artigo 2º inciso III diz
“superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção de cidadania e na
erradicação de todas as formas de discriminação” e na Meta 1 item 1.11 “[...] assegurando
a educação bilíngue para crianças surdas e a transversalidade da educação especial nessa
etapa da educação básica”.
Contudo, a educação bilíngue, ainda não é reconhecida pela legislação brasileira.
A Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que institui a LDB (Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional), firmando a BNCC (Base Nacional Comum Curricular), não
considera um eixo bilíngue, estando alocados na “Educação Especial”, para que possam
ser tomadas decisões metodológicas, de grade curricular e econômicas para esta
comunidade com relação à educação. Além disso, os surdos não garantiram seu direito ao
transporte escolar público, assegurado pela PNATE (Programam Nacional de Apoio ao
Transporte Escolar), que é firmado pela Lei 10.880, de 9 de junho de 2004, a qual garante
apenas aos cidadãos rurais e deficiência por mobilidade, não abrangendo a mobilidade
sociolinguística.
No atual momento em que a comunidade Surda comemora os 18 anos desde a
implementação da Lei 10.436, em 24 de abril de 2002, que permitiu que a Língua de
Sinais adentrasse os espaços educacionais como nenhum outro momento da história. No
Brasil, o acesso à Língua Brasileira de Sinais-Libras por alunos surdos está previsto na
legislação vigente. Diante desse quadro, o presente trabalho visa mostrar os avanços e
conquistas ao longo desses 15 anos, suscitando reflexões e discussões acerca das políticas
educacionais para surdos, com ênfase no decreto 5.626/05.
Para discorrer sobre essa política especificamente, faz-se necessário compreender
melhor o conceito de políticas públicas. Peters (1986) define como a soma das atividades
dos governos, que agem diretamente ou através de delegação, e que influenciam a vida
dos cidadãos. Em relação à função da política, Schmitter (1979, p.38) afirma que é a “de
resolver conflitos entre indivíduos e grupos, sem que este conflito destrua um dos partidos
em conflito, portanto, política é a resolução pacífica de conflitos”.
De acordo com Viana (1996), a política passa por algumas fases, que vão da
“agenda” à “implementação”. A agenda é entendida por Viana como o espaço onde se
pautam os problemas que chamam a atenção do governo e dos cidadãos; a fase de
formulação das políticas é o momento da elaboração de alternativas e escolha de uma
delas com vistas à resolução do problema; a implementação é definida como a fase em
que se implantam intenções para obter impactos e consequências, e a última fase se refere
à avaliação de políticas.
O presente artigo divide-se em quatro sessões. A primeira sendo esta introdução;
a segunda apresenta o desenvolvimento político-educacional para surdos; a terceira as
contribuições para o enquadramento de docentes na área da surdez; e por fim as
considerações finais.
A EDUCAÇÃO DE SURDOS NA AGENDA POLITÍCO-EDUCACIONAL
As lutas e movimentos sociais dos surdos pelos direitos humanos em âmbito
nacional e internacional passaram a ganhar forças a partir da década de 90, com as
pesquisas de diversos autores sobre a educação de surdos. Todas essas lutas passaram a
ser debatidas e defendidas por atores da comunidade surda, como os militantes surdos,
pesquisadores e linguístas, pessoas envolvidas com os problemas políticos educacionais
e linguísticos, no que se refere à educação de surdos.
A Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos (Feneis) é uma
entidade filiada à Federação Mundial dos Surdos, conta com uma rede de seis
Administrações Regionais e, face à importância, suas atividades foram reconhecidas
como de utilidade pública federal, estadual e municipal. Seu papel é produzir e disseminar
o conhecimento nos diversos campos do saber, contribuindo para a qualidade de vida dos
surdos, bem como assegurar a cidadania para a comunidade surda, de forma humanista,
crítica e reflexiva, preparando profissionais competentes e atualizados para o mundo do
trabalho, dando suporte à integração social. Sua visão é ser referência de instituição que
promova a defesa de políticas em educação, cultura, saúde, assistência social, prestação
de serviços para a comunidade surda, consolidando e ampliando a fomentação da Língua
Brasileira de Sinais – Libras. (Feneis, 2017)
A Feneis teve um papel fundamental nessa luta, que começaria no ano de 1993,
conforme relato do seu então presidente Antônio de Campos Abreu, na elaboração de
uma agenda; que na definição de Kingdon (1995, p.222) [...] “é a lista de temas ou
problemas que são alvo em dado momento de séria atenção, tanto da parte das autoridades
governamentais como de pessoas de fora do governo, mas estreitamente associadas às
autoridades.” Nessa agenda foram construindo o projeto que continha as propostas
almejadas pela comunidade surda, baseando-se nas leis de todos os estados brasileiros,
que objetivassem a criação de uma lei federal que garantisse seus direitos. Os atores
envolvidos nessa agenda e na sua formulação foram surdos nativos da Libras, pessoas
com perda auditiva, professores de Libras, pesquisadores, familiares de surdos,
instituições, organizações governamentais e não-governamentais, profissionais da área,
entre outras. Desse modo, o processo de formulação ocorreu em consonância com o
descrito por Dias e Matos (2012):
O processo de formulação de políticas públicas pode ser entendido como uma
sucessão de negociação entre atores políticos (ou jogadores, no jargão da teoria
dos jogos) que interagem em arenas formais (como o Legislativo ou o
ministério) e informais (‘a rua’, onde os movimentos sociais e outros atores
mobilizam-se). (DIAS; MATOS, 2012, p.60)
Tal projeto seria encaminhado à ex-senadora Benedita da Silva, que assumiu sua
autoria. O referido projeto permaneceu por alguns anos em tramitação no Senado para
análise de seu teor. Porém, o projeto retornou para ser reformulado e o mesmo contou
com a colaboração da CORDE para um aprofundamento dos detalhes que o compunham.
A ex-senadora Benedita anunciou, durante um evento voltado para pessoas com
deficiências no Rio de Janeiro, com a presença de representantes surdos da América
Latina, que o projeto de lei estava em tramitação no Senado Federal como PLS 131/96 -
Projeto de Lei do Senado.
Esse projeto permaneceu na agenda do Senado que, para um aprofundamento do
assunto, convocou várias reuniões para discutir as propostas com representantes surdos,
pesquisadores que tinham conhecimento da importância da Língua de Sinais, professores
e reitores de universidades, cujo objetivo era deixar claro o propósito dessa lei federal,
pois ainda de acordo com Kingdon (1995), “os modelos de políticas publicas, no final das
contas, são determinados não apenas por decisões finais como os votos no Legislativo,
ou iniciativas e vetos dos presidentes, mas também pelo fato de que algumas questões e
propostas são lançadas e outras nunca são levadas a sério.”
Portanto, reforços no sentido de debater temas como: que língua é essa, qual sua
finalidade, se língua ou linguagem, entre outras questões relevantes que pudessem ser
consideradas para a política de implementação, foram levados em conta, e entre outras
coisas, exigiu a coleta de assinaturas de pessoas surdas de todos os estados brasileiros.
Ainda após a aprovação do projeto de lei na Câmara dos deputados, este foi
encaminhado também ao Senado. Nesse ínterim foi proposta uma análise mais detalhada
do projeto. Para tanto, foi sugerida a realização de um Seminário sobre a Língua de Sinais,
intitulado: ”Libras, o idioma que se vê”, no ano de 2001, com vários líderes surdos
usuários da Libras em parceria com o MEC, para finalizar os ajustes do projeto, que
segundo Parente, Rus Perez e Mattos (2011, p. 21), “é o momento em que a política entra
em ação, ou seja, no momento em que os programas e projetos são implantados. ” Enfim,
no ano 2002, precisamente no mês de abril, finalmente o projeto foi levado a plenário,
como vemos na reportagem do jornal “Senado aprova projeto que reconhece a língua de
sinais”:
O Senado reconheceu ontem a Língua Brasileira de Sinais como meio legal de
comunicação e expressão, entendendo que esse sistema lingüístico de natureza
visual-motora é capaz de transmitir idéias e fatos, como o praticam as
comunidades de pessoas surdas. O projeto, saudado por inúmeros
representantes de entidades de deficientes auditivos que se encontravam na
galeria do Plenário, vai agora a sanção presidencial. De autoria da ex-senadora
Benedita da Silva, o projeto estabelece que o poder público e as empresas
concessionárias de serviços públicos devem garantir formas
institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais
como meio de comunicação objetiva. Foi também decidido que o sistema
educacional deve garantir a inclusão do ensino da Língua Brasileira de Sinais,
como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais, nos cursos de
formação de Educação Especial, Fonoaudiologia e Magistério. Relator da
matéria na Comissão de Educação, o senador Geraldo Cândido (PT-RJ) disse
que a iniciativa democratiza o conhecimento para o grupo social de surdos e
mudos, que totaliza quase 3 milhões de brasileiros. EXEMPLO O senador
Pedro Simon (PMDBRS) louvou a língua dos surdos falando do extraordinário
exemplo do que pode o povo brasileiro. O senador Eduardo Suplicy (PT-SP)
parabenizou a ex-senadora Benedita da Silva pela iniciativa. Líder do governo,
o senador Artur da Távola (PSDB-RJ) aplaudiu o fato de o Senado estar
oficializando a língua de sinais, que tem muito da criação brasileira, além de
uma forma extremamente expressiva. Os senadores Ademir Andrade (PSB-
PA) e Casildo Maldaner (PMDB-SC) também se regozijaram com a
aprovação. Na ocasião, a senadora Heloísa Helena (PT-AL) pediu que o
Senado possa ter suas sessões plenárias transmitidas para todo o país também
na língua dos surdos. O presidente da Casa, Ramez Tebet, anunciou que já
existe projeto em andamento para que a idéia se torne realidade. Ele
acrescentou que a Mesa se congratulava com os surdos ali presentes. (Fonte
Jornal do Senado, A N O VIII N º 1.469 BRASÍLIA, QUINTA-FEIRA, 4 DE
ABRIL DE 2002), manchete do jornal: “Senado aprova projeto que reconhece
a íngua de sinais”
O Projeto de Lei Federal 10.436/02, após ser aprovado com unanimidade no
Senado, foi encaminhado como lei para ser sancionada pelo então presidente Fernando
Henrique Cardoso que a sancionou como Lei Federal 10.436, no dia 24 de abril de 2002,
que reconhece a Libras como língua oficial do país. Essa foi uma das maiores
reivindicações e certamente a maior das conquistas da comunidade surda. No Brasil a
língua de sinais, denomina-se Língua Brasileira de Sinais-Libras, que dispõe:
Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas
concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o
uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de
comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do
Brasil. (BRASIL, 2002, p.1)
A referida lei estabelece que o poder público e as empresas concessionárias de
serviços públicos devem garantir formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da
Língua Brasileira de Sinais como meio de comunicação objetiva. Como também foi
decidido que o sistema educacional deve garantir a inclusão do ensino da Língua
Brasileira de Sinais como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais nos
cursos de formação de Educação Especial, Fonoaudiologia e Magistério. Concluindo que
essa conquista, depois de muitos anos, resultou na democratização do conhecimento para
o grupo social de surdos, que totaliza em território nacional quase três milhões. Assim a
implementação da referida lei só pode se dar efetivamente após sua regulamentação por
meio do decreto 5626/05, sobre o qual se discorrerá a seguir.
O DECRETO Nº 5.626/2005 E SUA CONTRIBUIÇÃO NA VALORIZAÇÃO DO
PROFESSOR SURDO
Após a aprovação da Lei Federal 10.436/02, a comunidade surda iniciou outra
luta, dessa vez para a aprovação de um decreto que fortalecesse a lei da Libras. Em
reuniões com lideranças políticas foi elaborada nova proposta para essa finalidade, e
juntamente com o MEC que convocou as universidades para colaborarem na elaboração
dessa proposta. Mesmo com muitas divergências e reclamações, que questionavam a
importância da implementação da disciplina de Libras nos cursos de formação do ensino
superior, o projeto foi encaminhado para a Casa Civil e, após muita expectativa, foi
aprovado pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva.
O Decreto 5626, de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei 10.436/02,
prevê a inclusão da Libras como disciplina curricular nos cursos de formação de
professores, tendo em vista o contexto educacional inclusivo, o qual tende a promover a
inclusão de alunos surdos em classes comuns do ensino regular. Desse modo o capítulo
II, do referido Decreto especifica quais os cursos que devem incluir a disciplina em seu
currículo, da seguinte forma:
Art. 3oA Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos
cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível
médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino,
públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1oTodos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o
curso normal de nível médio, o curso normal superior, o curso de Pedagogia e
o curso de Educação Especial são considerados cursos de formação de
professores e profissionais da educação para o exercício do magistério.
§ 2oA Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais
cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um ano da
publicação deste Decreto.
O Decreto 5626/05 também prevê a formação do profissional que irá ministrar
a disciplina de Libras desde a educação infantil até o Ensino Superior.
Destacamos a seguir o artigo 4º, do capítulo III, o qual estabelece que:
A formação de docentes para o ensino de Libras nas séries finais do ensino
fundamental, no ensino médio e na educação superior deve ser realizada em
nível superior, em curso de graduação de licenciatura plena em Letras: Libras
ou em Letras: Libras/Língua Portuguesa como segunda língua.
(BRASIL,2005)
A partir do Decreto, as Instituições de Ensino Superior no Brasil buscam atender
ao dispositivo legal, contratando temporária ou permanentemente professores de Libras
que tenham a formação exigida para ministrarem a disciplina. Contudo, não há um piso
salarial determinado por lei federal para estes servidores, o que pode não se tornar tão
atrativo quanto em outras disciplinas.
Entretanto, a mensão da palavra “prioridade” na lei exclui o tratamento de
exclusividade da detenção dos direitos da língua, onde, por meio de justificativas legais
pautados neste “furo”, passam a prejudicar os surdos, podendo, inclusive, passar a
depender da avaliação de títulos dos candidatos e assim, podendo convocar ouvintes para
ministrar as aulas, mesmo que surdos estejam concorrendo. Como expressão “documento
elaborado pela comunidade surda a partir do pré-congresso ao V Congresso Latino-
americano de Educação Bilíngüe para Surdos, realizado em Porto Alegre/RS, no salão de
atos da reitoria da UFRGS nos dias 20 a 24 de abril de 1999”, intitulado “A educação que
nós surdos queremos” que exige “Garantir que a profissão do Instrutor de Línguas de
Sinais seja exclusiva dos surdos” (FENEIS,1999), o Decreto 5626/05 expressa a vontade
da comunidade surda, no que diz respeito à prioridade aos professores surdos para
ministrarem a disciplina de Libras, visto que o Capítulo III exprime repetidamente que
“as pessoas surdas terão prioridade nos cursos de formação previstos no caput” (BRASIL,
2005).
Nessa perspectiva, realiza um trabalho acerca da formação, profissionalização e
valorização do professor surdo, tomando com base o Decreto 5626/05 e resgata as
discussões e questionamentos sobre a dicotomia Instrutor e Professor de Libras.
Considera o papel do “Instrutor de Libras”, que atua como professor, mas leva essa
denominação por não possuir formação superior, deixando-o em posição de inferioridade
frente aos outros professores que atuam com esse profissional.
Gesser (2006) analisa o processo de ensino-aprendizagem de Libras, focando as
interações entre professor surdo e alunos ouvintes, apontando alguns conflitos que se
apresentam durante o contexto das aulas. O trabalho dessa autora traz grandes
contribuições ao processo de ensino de Libras como segunda língua para ouvintes, visto
que aponta as dificuldades do professor e dos alunos, devido aos fatores linguístico-
culturais, podendo servir de reflexão sobre a prática pedagógica, no que se refere ao
ensino de Libras e sobre as posturas dos alunos ouvintes frente o professor surdo. Moreira,
de Araujo Oliveira e Ferragina (2019), tratam da mesma discussão, apresentando que a
modalidade mais adequada aos alunos surdos deve se à pedagogia surda, e que o processo
de acessibilidade deve ser devidamente avaliado, para que não haja prejuizo no
aprendizado do aluno com surdez.
Quanto ao processo de inclusão e implementação da disciplina de Libras nos
cursos de formação de professores, algumas pesquisas já vêm sendo realizadas na área,
como a pesquisa de Vitaliano, Dall'Acqua e Brochado (2010), que objetivou a
caracterização da disciplina de Libras nos cursos de Pedagogia dos estados do Paraná e
São Paulo; o trabalho de Martins (2008), que consistiu em uma análise das vantagens e
desvantagens da Libras como disciplina curricular no ensino superior, sendo que uma das
vantagens apontadas foi a inserção de professores surdos na universidade, além das
desmistificações acerca da Libras pelos graduandos por meio dos conhecimentos
proporcionados pela disciplina. Entre as desvantagens, a autora citou a “comercialização
da Libras como instrumento com fins políticos centralizadores” e “a possível e sutil
paralisação das resistências surdas pela ilusão de ‘trabalho cumprido” (p.202); e o
trabalho de Tavares e Carvalho (2010), que traz uma análise do Decreto 5626/05,
apontando algumas contradições em relação a outros dispositivos legais, principalmente
no que se refere ao profissional que irá ministrar a disciplina de Libras. Essas autoras
analisam também os editais de processos seletivos para contratação desse profissional,
bem como o perfil exigido pelas universidades pesquisadas.
As pesquisas mais recentes, como as citadas anteriormente têm focado o ensino
da Libras nas licenciaturas ou em outros cursos de graduação, que têm como finalidade
preparar o profissional para lidar com as especificidades dos alunos surdos. Porém, outro
aspecto deve ser considerado: o ensino de Libras em nível de pós-graduação. O Decreto
5626/05 traz a seguinte determinação:
Art. 7º Nos próximos dez anos, a partir da publicação deste Decreto, caso não
haja docente com título de pós-graduação ou de graduação em Libras para o
ensino dessa disciplina em cursos de educação superior, ela poderá ser
ministrada por profissionais que apresentem pelo menos um dos seguintes
perfis:
I - professor de Libras, usuário dessa língua com curso de pós-graduação ou
com formação superior e certificado de proficiência em Libras, obtido por
meio de exame promovido pelo Ministério da Educação;
II - instrutor de Libras, usuário dessa língua com formação de nível médio e
com certificado obtido por meio de exame de proficiência em Libras,
promovido pelo Ministério da Educação;
III - professor ouvinte bilíngüe: Libras - Língua Portuguesa, com pós-
graduação ou formação superior e com certificado obtido por meio de exame
de proficiência em Libras, promovido pelo Ministério da Educação.
(BRASIL, 2005)
O inciso primeiro do artigo 7 se refere ao exame de proficiência para certificação
de professores de Libras. Contudo não tendo ocorrido todos os exames do PROLIBRAS
previstos, a FENEIS e o Centro de Capacitação de Profissionais da Educação e de
Atendimento às Pessoas com Surdez (CAS), tem aplicado os mesmos para garantir a
qualidade e profissiência de surdos e ouvintes quanto à língua de sinais. Nestes 18 anos
da lei, o que se observa é um grande contingente de professores de Libras com essa
certificação acrescida de alguma licenciatura. No entanto, após o prazo estabelecido no
decreto 5626/05, tem havido um crescimento de Instituições de Ensino Superior que
ofertam o curso de Licenciatura em Letras-Libras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo teve como objetivo analisar a trajetória histórica das conquistas
legais da comunidade surda, afim de contemplar seu impacto no processo da educação de
surdos no Brasil, suas peculiaridades e transformações ao longo dos anos. Constatamos
que a educação de surdos vem sofrendo constantes transformações no que se refere à
oficialização da lei federal e a regulamentação do decreto.
Uma vez que os surdos estejam legalmente amparados, vários pontos positivos
podem ser destacados, como a aceitação da Libras nos espaços escolares, como
necessidade de uma educação bilíngue, a contratação de tradutor/intérprete para alunos
inscritos na rede de ensino regular. Entretanto, como pode-se ver, não há na BNCC uma
estrutura própria que adeque o ensino aos surdos e este deve ser discutido, afim de visar
melhora na educação dos mesmos. A liberdade de se expressarem em sua própria língua,
concretização de ideias, sonhos e projetos, sem falar na possibilidade de difundir a cultura
surda. A inserção da Libras nos cursos de formação no ensino superior abriu portas para
a contratação de professores surdos, a maioria formada no curso de Letras-Libras.
Contudo, alguns fatos apontam que ainda há um longo caminho a percorrer para
que a contribuição do decreto favoreça a todos os surdos em escala nacional. Podemos
destacar, entre alguns empecilhos, a implementação do ensino bilíngue em muitos
lugares, os desafios referentes à falta de um sistema de escrita para a Libras e à falta de
programas governamentais de apoio às instituições sociais que dão suporte à vida do
aluno na escola e fora dela, a escolha dos critérios de avaliações na elaboração dos exames
nacionais como Enem, concursos públicos e de exames de cursos de Pós-Graduação como
mestrado e doutorado.
Ainda assim os surdos têm muito a comemorar, pois o reconhecimento da Libras
gerou um enorme aparato que os beneficia em muitas situações, que antes sequer podiam
imaginar, dando continuidade à luta por seus direitos e efetivando seus deveres perante a
sociedade. O simples ato de se comunicar torna-se um jogo interessante. Se respeitadas
as diferenças, a língua de sinais é rica e proporciona, a quem a domina, um mergulho na
cultura surda, bem diferente da dos ouvintes, e possui graus de informação que o saber
formal tem potencial para expandir.
Pode-se constatar com essas reflexões que uma das grandes conquistas que o
decreto 5626/05 trouxe foi a presença de surdos atores da educação de surdos, ou seja, os
primeiros surdos com formação para atender e decidir a educação dos próprios surdos.
Contudo, não havendo sido assegurado aos tradutores e intérpretes da língua um piso
salárial em lei, o que pode causar desvantagem na profissão e evasão da mesma. Não se
pretende encerrar essa análise, mas propiciar mais debates acerca do assunto, focalizando
a formação dos professores de Libras, pois o que está em questão são a qualidade da
formação, a trajetória do profissional e sua identificação com a língua de sinais e cultura
surda, que o leva a se enredar por esse caminho.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Projeto de Lei nº 131, de 1996. Senado Federal, Brasília, DF, 1996.
BRASIL. Decreto-lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Diário oficial [da]
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 de dez. 1996
BRASIL. Decreto-lei nº 10436, de 24 de abril de 2002. Diário oficial [da] República
Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 20 de abr. 2002.
BRASIL. Decreto-lei nº 10880, de 9 de junho de 2004. Diário oficial [da] República
Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 9 de jun. 2004.
BRASIL. Decreto-lei nº 5626, de 22 de dezembro de 2005. Diário oficial [da]
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 22 de dez. 2005.
BRASIL, Decreto-lei nº 13005 de 25 de junho de 2014. Diário oficial [da] República
Federativa do Brasil. Poder Executivo, Brasília, DF, 25 de jun. 2014.
BRASIL. INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS
ANISIO TEIXEIRA. Relatório do 2º Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano
Nacional de Educação – 2018. Brasília, DF: INEP, 2018.
BRASIL [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil:
promulgada em 5 de outubro de 1988.
DIAS, R.; MATOS, F. Políticas Públicas , Princípios, Propósitos e Processos. São
Paulo: Ed. Atlas. 2012.
FENEIS. A educação que nós surdos queremos. Documento elaborado pela
comunidade surda a partir do pré-congresso ao V Congresso Latino Americano de
Educação Bilingue para Surdos. Porto Alegre: s/d, 1999. Disponível em:
<http://www.feneis.org.br/arquivos/A%20EDUCAÇÃO%20QUE%20NÓS%20SURD
OS%20QUEREMOS.doc> . Acesso em: 13 jul.2010.
FEDERAÇÃO NACIONAL DE EDUCAÇÃO E INTEGRAÇÃO DE SURDOS.
Somos a feneis. Disponível em:<http://feneis.org.br/sobre/>. Acesso em: 17 de ago.
2017.
Gesser, A. (2006). “Um olho no professor surdo e outro na caneta”: Ouvintes
aprendendo a Língua Brasileira de Sinais. (Tese de Doutorado), Campinas: Unicamp.
KINGDON, J. W. (1995). Agendas, Alternatives, and Public Policies. 2nd Edition.
Harper Collins College Publishers. IN: SARAVIA, E.; FERRAREZI, E. (2007).
PolíticasPúblicas – Coletânea. Volume 1.
MARTINS, V. R. de O. Análise das vantagens e desvantagens da Libras como
disciplina curricular no ensino superior. Cadernos do CEOM. v. 21, n. 28, p. 191-206,
2008.
MOREIRA, F. O.; de ARAUJO OLIVEIRA, J. G.; FERRAGINA, M. L. Comparativo
Teórico Acerca da Metodologia Aplicada em Salas de Aula com Alunos Surdos:
Professor Surdo versus Professor Ouvinte. Anais... I Congresso Internacional de
Educação. nov. 2019.
NÓBREGA, V. R. R. da. Sigmanulogia: uma transformação da teoria linguística dal
íngua de sinais. Leitura. v. 1, n. 57, 2016.
PARENTE, C. da M. D.; RUS PEREZ, J. R.; MATTOS, M. J. V. M. de. Avaliação,
Monitoramento e Controle Social: contribuição à pesquisa e à política educacional. In:
PARENTE, Cláudia da Mota Darós; PARENTE, Juliano Mota (Org.). Avaliação,
Política e Gestão da Educação. São Cristóvão, SE: 2011. p. 15-31.
PETERS, B. G. American Public Policy. Chatham: Chatham House, 1986.
SANTOS, Deize Vieira dos; MONTEIRO, Myrna Salerno. Breve Histórico dos Estudos
sobre a Língua de sinais no Brasil do Final dos Anos 70 até o Início da Segunda Década
dos Anos 2000. In SOUZA, Regina Maria de. (Ed.). História da Emergência do
Campo das Pesquisas em Educação Bilíngue de/para Surdos e dos Estudos
Linguísticos da Libras no Brasil. p. 105-144, Curitiba: Editora CRV, 2019.
SCHMITTER, P. Still the Century of Corporatism? In SCHMITTER, P. e
LEHBRUCH, G. (Ed.) Trends Towards Corporatist Intermediation. Nova Iorque:
Editora Sage, 1979.
TAVARES, I. M. S; CARVALHO, T. S. S. de. Inclusão escolar e a formação de
professores para o ensino de Libras (língua brasileira de sinais): do texto oficial ao
contexto. In V ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM ALAGOAS, 5º.,
2010, Maceió. Anais... V EPEAL. 2010.
VIANA, A. L.Abordagens metodológicas em políticas públicas. Revista de
Administração Pública, v. 30, n. 2, p. 5-43, 1996.
VITALIANO, C. R. ; DALL’ ACQUA, M. J. C. ; BROCHADO, S. M. D. A disciplina
Língua Brasileira de Sinais nos currículos dos cursos de Pedagogia. Boletim Técnico
do SENAC. v. 39, n. 2, p. 106-121, 2013.