Poemas selecionados para a atividade de Oralidade
Fernando Pessoa Mário de Sá-Carneiro
O recreio
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma, Na minh’Alma há um balouço
Cada tua badalada Que está sempre a balouçar –
Soa dentro da minha alma. Balouço à beira dum poço,
Bem difícil de montar...
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida, – E um menino de bibe
Que já a primeira pancada Sobre ele sempre a brincar...
Tem o som de repetida.
Se a corda se parte um dia
Por mais que me tanjas perto, (E já vai estando esgarçada),
Quando passo, sempre errante, Era uma vez a folia:
És para mim como um sonho, Morre a criança afogada...
Soas-me na alma distante.
– Cá por mim não mudo a corda
A cada pancada tua, Seria grande estopada...
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado, Se o indez morre, deixá-lo...
Sinto a saudade mais perto. Mais vale morrer de bibe
In Obra Poética Que de casaca... Deixá-lo
Balouçar-se enquanto vive...
– Mudar a corda era fácil...
Tal ideia nunca tive...
In Indícios de Oiro
Irene Lisboa Sophia de Mello Breyner Andresen
Monotonia Camões e a tença
Começar, recomeçar, interminamente repetir um Irás ao Paço. Irás pedir que a tença
monótono romance, o romance da minha vida. Seja paga na data combinada
Com palavras iguais, inalteráveis, semelhantes, in- Este país te mata lentamente
sistir sobre o cansaço e a pobreza disto de viver... País que tu chamaste e não responde
Andar como os dementes pelos cantos a repisar País que tu nomeias e não nasce
o que já ninguém quer ouvir.
Levar o meu desprecioso tempo à deriva. Em tua perdição se conjuraram
Queixar-me, castigar e lamentar sem qualquer Calúnias desamor inveja ardente
esperança, por desfastio. E sempre os inimigos sobejaram
Pôr a nu uma miséria comum e conhecida, chã- A quem ousou seu ser inteiramente
mente, serenamente, indiferente à beleza dos temas
e das conclusões. E aqueles que invocaste não te viram
Monotonamente, monotonamente. Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Monotonia. Arte, vida... Tinha apagado os olhos no seu rosto
Não serei ainda eu que te erigirei o merecido
altar. Irás ao Paço irás pacientemente
Que te manejarei hábil e serena. Pois não te pedem canto mas paciência
Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente.
Sino de poucos tons, impressionante. Este país que te mata lentamente.
Mas se te descobri não te vou renegar. In Obra Poética
Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,
a pobreza e a constância.
Monotonia, torna-me desinteressada.
In Um Dia e outro Dia… Outono Havias de Vir Latente,
Triste
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José Gomes Ferreira Ruy Belo
(De pé, humilhado diante do quadro preto.) Os estivadores
Errei as contas no quadro, Só eles suam mas só eles sabem
preguiça de giz negro o preço de estar vivo sobre a terra
– e é tão bom parecer estúpido! Só nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra
Minado pelo sonho
– liberdade secreta, Outros rirão e outros sonharão
rosto de espelho opaco. podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
Assim também a noite na vida que em seus gestos principia
que eu via através das janelas fechadas
– sozinho na cama quente de solidão. Onde outrora houve o deus e houve a ninfa
eles são a moderna divindade
E tantas, tantas somas de estrelas erradas. e o que antes era pura linfa
In Poeta Militante III é o que sobra agora da cidade
Vede como alheios a tudo o resto
compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto
o muro oposto pela gravidade
Ode marítima é que chamo à ode
escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza é certo muito pode
mas um homem de pé pode bem mais
In Obra Poética
António Nobre Ruy Belo
Fala ao coração Algumas proposições com crianças
Meu Coração, não batas, pára! A criança está completamente imersa na infância
Meu Coração vai-te deitar! a criança não sabe que há-de fazer da infância
A nossa dor, bem sei, é amara, a criança coincide com a infância
A nossa dor, bem sei, éamara: a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono
Meu Coração, vamos sonhar… deixa cair a cabeça e voga na infância
Ao Mundo vim, mas enganado. a criança mergulha na infância como no mar
Sinto-me farto de viver: a infância é o elemento da criança como a água
Vi o que ele era, estou maçado, é o elemento próprio do peixe
Vi o que ele era, estou maçado. a criança não sabe que pertence à terra
Não batas mais! vamos morrer... a sabedoria da criança é não saber que morre
Bati à porta da Ventura a criança morre na adolescência
Ninguém ma abriu, bati em vão: Se foste criança diz-me a cor do teu país
Vamos a ver se a sepultura, Eu te digo que o meu era da cor do bibe
Vamos a ver se a sepultura e tinha o tamanho de um pau de giz
Nos faz o mesmo, Coração! Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez
Adeus, Planeta! adeus, ó Lama! Ainda hoje trago os cheiros no nariz
Que a ambos nós vais digerir. Senhor que a minha vida seja permitir a infância
Meu Coração, a Velha chama, embora nunca mais eu saiba como ela se diz
Meu Coração, a Velha chama: In Obra Poética
Basta, por Deus! vamos dormir...
In Só
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Luís Vaz de Camões António Nobre
Menino e moço
Aquela triste e leda madrugada,
cheia toda de mágoa e de piedade, Tombou da haste a flor da minha infância alada,
enquanto houver no mundo saüdade Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:
quero que seja sempre celebrada. Voou aos altos Céus a pomba enamorada
Que dantes estendia as asas sobre mim.
Ela só, quando amena e marchetada Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,
saía, dando ao mundo claridade, E que era sempre dia, e nunca tinha fim
viu apartar-se d’ũa outra vontade, Essa visão de luar que vivia encantada,
que nunca poderá ver-se apartada. Num castelo de prata embutido a marfim!
Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância,
Ela só viu as lágrimas em fio, Que me enchiam de Lua o coração, outrora,
que d’uns e d’outros olhos derivadas Partiram e no Céu evolam-se, a distância! 55
s’acrescentaram em grande e largo rio.
Debalde clamo e choro, erguendo aos Céus meus ais:
Ela viu as palavras magoadas Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora,
que puderam tornar o fogo frio, Elas, porém, Senhor! elas não voltam mais...
e dar descanso às almas condenadas. In Só
In Lírica
Luís Vaz de Camões Luís Vaz de Camões
Erros meus, má fortuna, amor ardente O céu, a terra, o vento sossegado...
em minha perdição se conjuraram; As ondas, que se estendem pela areia...
os erros e a fortuna sobejaram, Os peixes, que no mar o sono enfreia...
que para mim bastava o amor somente. O nocturno silêncio repousado...
Tudo passei; mas tenho tão presente
a grande dor das cousas que passaram, O pescador Aónio, que, deitado
que as magoadas iras me ensinaram onde co vento a água se meneia,
a não querer já nunca ser contente. chorando, o nome amado em vão nomeia,
que não pode ser mais que nomeado:
Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa [a] que a Fortuna castigasse – Ondas (dezia), antes que Amor me mate,
as minhas mal fundadas esperanças. torna-me a minha Ninfa, que tão cedo
me fizestes à morte estar sujeita.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse que fartasse Ninguém lhe fala; o mar de longe bate,
este meu duro génio de vinganças! move-se brandamente o arvoredo;
In Lírica leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.
In Lírica
Luís Vaz de Camões Nicolau Tolentino de Almeida
Quando de minhas mágoas a comprida Chaves na mão, melena desgrenhada,
maginação os olhos me adormece, batendo o pé na casa, a Mãe ordena
em sonhos aquel’alma me aparece que o furtado colchão, fofo e de pena,
que para mim foi sonho nesta vida. a filha o ponha ali, ou a criada.
Lá nũasoïdade, onde estendida A filha, moça esbelta e aparaltada
a vista pelo campo desfalece, Lhe diz co’a doce voz que o ar serena:
corropar’ela; e ela então parece – Sumiu-se-lhe um colchão, é forte pena!
que mais de mim se alonga, compelida. Olhe não fique a casa arruinada…
Brado: – Não me fujais, sombra benina! – Tu respondes assim? Tu zombas disto?
Ela (os olhos em mim cum brando pejo, Tu cuidas que, por teu pai embarcado,
como quem diz que já não pode ser), já a mãe não tem mãos? E dizendo isto,
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torna a fugir-me; e eu, gritando: – Dina... Arremete-lhe à cara e ao penteado;
antes que diga mene, acordo, e vejo Eis senão quando – caso nunca visto! –
que nem um breve engano posso ter. Sai-lhe o colchão de dentro do toucado.
In Lírica In Obras Completas
Nuno Júdice Antero de Quental
Escola Na mão de Deus
O que significa o rio, Na mão de Deus, na sua mão direita,
a pedra, os lábios da terra Descansou afinal meu coração.
que murmuram, de manhã, Do palácio encantado da Ilusão
o acordar da respiração? Desci a passo e passo a escada estreita.
O que significa a medida Como as flores mortais, com que se enfeita
das margens, a cor que A ignorância infantil, despojo vão,
desaparece das folhas no Depus do Ideal e da Paixão
lodo de um charco? A forma transitória e imperfeita.
O dourado dos ramos na Como criança, em lôbrega jornada,
estação seca, as gotas Que a mãe leva no colo agasalhada
de água na ponta dos E atravessa, sorrindo vagamente,
cabelos, os muros de hera?
Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
A linha envolve os objectos Dorme na mão de Deus eternamente!
com a nitidez abstracta In Sonetos
dos dedos; traça o sentido
que a memória não guardou;
e um fio de versos e verbos
canta, no fundo do pátio,
no coro de arbustos que
o vento confunde com crianças.
A chave das coisas está
no equívoco da idade, na
sombria abóbada dos meses,
no rosto cego das nuvens.
In Meditação sobre Ruínas
Bocage Quer no horror igualar-me a Natureza;
Porém cansa-se em vão, que no meu peito
O céu, de opacas sombras abafado, Há mais escuridade, há mais tristeza.
Tornando mais medonha a noite feia; In Rimas
Mugindo sobre as rochas, que salteia,
O mar, em crespos montes levantado;
Desfeito em furacões o vento irado;
Pelos ares zunindo a solta areia;
O pássaro nocturno, que vozeia
No agoireiro cipreste além pousado,
Formam quadro terrível, mas aceito,
Mas grato aos olhos meus, grato à fereza
Do ciúme e saudade, a que ando afeito.
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