UNIVERSIDADE ESTADUAL DO PARANÁ
CAMPUS DE UNIAO DA VITÓRIA
PROGRAMA DE MESTRADO PROFISSIONAL EM FILOSOFIA
CAMILE MARGARIDA ZANELLA
O CINEMA COMO PROVOCAÇÃO POLÍTICA EM TEMPOS DE PÓS-VERDADE
UNIÃO DA VITÓRIA
2019
CAMILE MARGARIDA ZANELLA
O CINEMA COMO PROVOCAÇÃO POLÍTICA EM TEMPOS DE PÓS-VERDADE
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Mestrado Profissional em Filosofia
(PROF-FILO) núcleo da Universidade Estadual do
Paraná como requisito parcial à obtenção do título
de Mestre em Filosofia.
Orientadora: Profª Drª Renata Tavares Noyama.
UNIÃO DA VITÓRIA
2019
Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária
Responsável: Vânia Jacó da Silva, CRB 1544-9
Zanella, Camile Margarida
Z28c O cinema como provocação política em tempos de pós-verdade / Camile
Margarida Zanella.– União da Vitória: Unespar, 2019.
x, 111 f.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual do Paraná, Campus de União
da Vitória, Programa de Pós-Graduação em Filosofia – PROF- FILO.
Orientadora: Profa. Dra. Renata Tavares Noyama;
Banca examinadora: Profa. Dra Ângela Farah, Prof. Dr. Samon Noyama.
Bibliografia
1. Filosofia. 2. Ensino. 3. Cinema. 4. Filmes. 5. Pós-Verdade. I. Título. II. ,
Programa de Pós-Graduação Filosofia – PROF-FILO.
CDD 20. Ed. 107
DEDICO
Às minhas razões de ser:
Rosilda Margarida e Gesivaldo Zanella.
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, professora Renata Ribeiro Tavares Noyama, pela
confiança, pelo incentivo e pela enorme paciência em todo esse tortuoso caminho de
mestrado. Aos professores Samon Noyama e Angela Farah pelas valiosas
observações na banca de qualificação. A todos os professores do Programa de
Mestrado em Filosofia, que contribuíram no processo de lapidação desse trabalho.
Aos meus pais, Rosilda e Gesivaldo, que são o motivo de tudo que faço, pelo
apoio, pelo afeto e por compreenderem minha necessidade de estar ausente em
alguns momentos. Obrigada por me fazerem forte pra segurar as pontas e conseguir
terminar essa pesquisa. Aos meus irmãos: Aline, Gabi, Jessica e João Pedro, por
terem sempre uma palavra de apoio nos momentos em que precisei, e contribuírem
imensamente para minha formação enquanto ser humano.
Aos amigos/as de perto e de longe. Em especial às minhas grandes amigas e
irmãs que a vida me presenteou Daniele Rosinski e Jéssica Maria de Almeida, que
me apoiam em tudo, desde sempre. Ao meu parceiro de mestrado e graduação
Cassio Fernando Bachmann, colega que me acompanha e apoia desde os primeiros
passos no estudo da Filosofia.
Ao meu amor, Deleon Oliveira Santos por não largar minha mão e por não me
permitir desistir.
Aos alunos e alunas da turma do 2º ano de Formação de Docentes (2017) do
Colégio Estadual Barão do Cerro Azul de Cruz Machado, por se disporem a
participar dessa aventura e serem parte essencial na construção dessa pesquisa.
A todas as pessoas que fazem parte da equipe do Colégio Estadual Barão do
Cerro Azul, que permitiram que a parte prática ocorresse com tranquilidade e
qualidade.
―A maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto
com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é
viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é
viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.‖
Fernando Pessoa/Bernardo Soares; Livro do Desassossego.
RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo apresentar a ligação entre Filosofia e
Cinema, bem como explanar a possibilidade do uso de filmes como meio para o
estudo da Filosofia Política no Ensino Médio. Primeiramente busca-se uma
investigação sobre as novas maneiras de relacionamento, para compreender em
que medida a tecnologia é mediadora das relações do sujeito com o mundo, o
conhecimento, e com o outro. Apresenta uma análise filosófica do uso retórico das
emoções realizado pelas mídias para a mobilização das massas. Problematiza num
segundo momento a influência dos novos modos de relacionar-se no cenário político
brasileiro, expondo de que modo o estudo da Filosofia Política na escola foi afetado
pelas bruscas mudanças ocasionadas pela chamada ―era da informação‖. Elucida a
importância do conceito de pós- verdade e seus efeitos para o Ensino de Filosofia
Política. Situa a pesquisa no campo educacional por meio da análise da
possibilidade do uso do filme como recurso metodológico dentro das aulas de
Filosofia, não somente com caráter ilustrativo de conceitos, mas sim como principal
causador da abertura para o pensar filosófico, para a formação de um sujeito
autônomo, crítico e capacitado para contribuir no meio em que vive.
Palavras Chave: Cinema, Filosofia, Ensino, Filmes, Pós-verdade.
ABSTRACT
This research aims to present the link between Philosophy and Cinema, as well as to
explain the possibility of using films as a means for the study of Political Philosophy
in High School. First, it seeks to investigate the new ways of relationship, to
understand the extent to which technology mediates the relations of the subject with
the world, knowledge, and with the other. It presents a philosophical analysis of the
rhetorical use of emotions carried out by the media for the mobilization of the
masses. In a second moment, it discusses the influence of the new ways of relating
in the Brazilian political scenario, exposing how the study of Political Philosophy at
school was affected by the abrupt changes caused by the so-called "information
age". It elucidates the importance of the concept of post-truth and its effects on the
Teaching of Political Philosophy. It situates the research in the educational field
through the analysis of the possibility of using the film as a methodological resource
within the Philosophy classes, not only with illustrative character of concepts, but also
as the main cause of the opening for philosophical thinking, for the formation of an
autonomous, critical and capable subject to contribute in the environment in which he
lives.
Keywords: Cinema, Philosophy, Teaching, Films, Post-Truth.
0
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: Reportagem postada em 2016 pela Revista Isto é. ................................... 38
Figura 2: Índice de faixa etária .................................................................................. 56
Figura 3: Índice de acesso à internet ........................................................................ 57
Figura 4: Índice de localidade (rural ou urbana) ........................................................ 57
Figura 5: Índice de interesses no uso da Internet...................................................... 58
Figura 6: Índice de interesse em assuntos políticos. ................................................. 58
Figura 7: Índice de meios utilizados para obter informações sobre o cenário político.
.................................................................................................................................. 59
Figura 8: Índice de influência externa no posicionamento político. ........................... 59
Figura 9: Índice de meios que influenciam convicções políticas. .............................. 59
Figura 10: Eleições presidenciais 2019. (Fonte: G1) ................................................. 63
0
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................... 12
2. A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO E SUAS NOVAS VERSÕES ..................... 17
2.1. Primeiras reflexões....................................................................................... 17
2.2. Em tempos de pós-verdade ......................................................................... 18
2.3. A conversão das massas em enxames ........................................................ 31
2.4. A transparência ............................................................................................ 39
3. AS MÍDIAS E O SUJEITO PÓS-MODERNO ..................................................... 46
3.1. Uma sociedade imagética e a construção de uma concepção negativa da
política ................................................................................................................... 68
4. O CINEMA COMO FORMA DE RESISTIR ........................................................ 74
4.1. A disposição filosófica como ultrapassamento da apatia ............................. 74
4.2. Desconstrução ............................................................................................. 79
4.2.1. A experiência ......................................................................................... 79
4.2.2. Primeira abordagem .............................................................................. 81
4.2.3. Primeiras atividades .............................................................................. 83
4.2.4. O tempo ................................................................................................. 86
4.3. O contato com os filmes ............................................................................... 88
5. EXERCÍCIO DE CRIATIVIDADE ....................................................................... 95
6. CONCLUSÃO .................................................................................................... 97
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 101
ANEXOS ................................................................................................................. 104
Anexo I................................................................................................................. 104
Anexo II................................................................................................................ 106
12
1. INTRODUÇÃO
Neste trabalho pretendemos aliar a Filosofia ao cinema. O objetivo é que
através das obras do cinema consigamos afetar os estudantes de modo a causar a
disposição para o pensamento filosófico, devido ao delicado momento político de
nosso país nos propusemos a discutir a política através das obras escolhidas.
As produções sobre o ensino de Filosofia e seu papel no Currículo, quase
sempre são inauguradas com uma defesa sobre a importância da disciplina na grade
escolar e na formação de nossos jovens. Há pouco tempo, durante as aulas do Prof–
Filo, acreditávamos que não era mais tão patente que a Filosofia continuasse a
defender sua permanência e importância nos currículos, não por desacreditarmos o
valor e o papel dessa discussão ou pelo esgotamento das questões que se referem
a isso e nem por defendermos alguma ideia diferente dessa. Porém, nosso olhar
mirava longe, na esperança de que tantos anos e estudos dedicados a reafirmar a
importância do pensamento filosófico na formação do sujeito teriam criado um
fundamento para a presença da Filosofia na academia e nas escolas.
Os trabalhos e pessoas que se dedicam a essa fundamentação o fizeram com
maestria tamanha, que nós, professores de Filosofia, acreditávamos estar em solo
firme. A importância de firmar os pés se dá na medida em que a solidez nos faz
almejar o próximo passo. Durante todos os estudos no Prof-Filo estivemos
ensaiando esse próximo passo.
Neste trabalho pretendemos construir uma reflexão sobre a potência do filme
como meio para alcançar o desejo pelo conhecimento filosófico. A questão que
permeia nossa reflexão é: Qual seria a força que origina o desejo por filosofar? Há
na história da Filosofia as mais diversas respostas a essa questão, e obviamente
não há um consenso sobre qual seria esse princípio.
Aqui, pretendemos defender o afeto como causador da disposição ao pensar.
Nossa ação visa balançar a lógica que compreende o ensinar como um processo
mecanizado e puramente racional, e compreender de que modo podemos fazer fluir
a experiência estética nas aulas de Filosofia. Não aspiramos prescrever uma receita
para o desenvolvimento do pensar filosófico, mas nos propomos a apontar algumas
questões e caminhos para o desenvolvimento desse pensar. Construímos a
13
reflexão com base nos aspectos que compõem o sujeito e a sociedade atual.
Tais mudanças chegam à escola na medida em que esse sujeito
contemporâneo é o que está em nossas salas de aula. Nos perguntamos então: Até
que ponto a escola deve adequar-se a esse ritmo? Essa questão que parece num
primeiro momento simples, nos põe a caminhar por uma linha tênue.
Em que medida a adequação ao ritmo do desempenho será capaz de
proporcionar uma formação de qualidade ao sujeito. Ressaltamos que a lógica da
escola supervaloriza índices, e deixa em segundo plano a qualidade da formação. A
valorização dos números não é uma característica que pertence somente à
realidade dessa escola, há toda uma pressão hierárquica que impõe o índice como
problema central e como o principal objetivo da escola.
Durante os dias de estudos e planejamentos ofertados pela Secretaria de
Estado da Educação (2019), a proposta refletiu exatamente essa concepção de
escola, a tarefa era: estabelecer uma meta de Índice de Desenvolvimento Básico da
Educação (IDEB). Os professores deveriam reunir-se em grupos e estabelecer uma
meta a ser batida. A discussão passou longe de considerar a formação humana, a
qualidade das condições de trabalho, a estrutura disponível para a escola e para o
trabalho docente.
Byung Chul-Han, filósofo que fundamenta a primeira parte deste trabalho,
afirma: ―A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma
sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais ―sujeitos
da obediência‖, mas sujeitos de desempenho.‖ (HAN, 2015, p. 23).
O estabelecimento de metas nada mais é do que um modo de submeter o
aluno e o professor à essa lógica do desempenho, fazendo-os compreender que
precisam alcançar certos fins pré-determinados. Isso ocorre porque a escola não
tem clareza sobre o seu papel na sociedade, e limita-se a ser produtora de índices.
Por que a busca por índice é um discurso tão eficiente? Acreditamos ser
necessária para refletir essa questão a análise do sujeito e da sociedade em que
esse está inserido, pois houve uma transformação dos parâmetros sociais,
passamos da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho, no caso da
escola, o desempenho é medido em forma de índice.
Não podemos insistir na escola como o único espaço de conhecimento da
sociedade atual, a tarefa de conhecer se dá em diversos espaços, mas acreditamos
que o papel da escola é o de criar e potencializar o pensamento.
14
A escolha do filme é uma tentativa de promover uma valorização do sujeito e
do conhecimento. Valorização do sujeito na medida em que nossa proposta parte do
olhar do estudante para a construção de conhecimento e não visa gerar índices,
mas uma sensibilização do olhar diante dos problemas abordados nos filmes.
Quando, anteriormente, colocamos a questão do desejo, estamos nos
referindo a um sentimento que pertence ao sujeito, logo, sentimos a necessidade de
olhar para esse sujeito e nos perguntamos: O que o sujeito contemporâneo deseja?
De pronto afirmamos que as mudanças geradas pela ascensão da tecnologia, o
amplo acesso à informação, a agilidade com que as coisas ocorrem, ocasionaram
uma metamorfose nos desejos do sujeito e no seu modo de vida. A abordagem feita
sobre os efeitos da tecnologia no sujeito da sociedade contemporânea não pretende
demonizar o modo de vida da atualidade, mas fazer uma leitura reflexiva sobre as
consequências (boas e ruins) no comportamento humano que são causadas pela
ascensão delas.
É importante frisarmos que outros tempos também tiveram suas questões e
reflexões. Desde sempre o homem desenvolve técnicas e tecnologias para ser, isso
em um mundo que afeta seu modo de se relacionar com o outro. Citado por Han,
Kafka diz que a carta é um ―meio de comunicação inumano‖ (apud HAN, 2018, p.
94), que só é capaz de alimentar fantasmas. A conclusão de Kafka, ao acompanhar
o surgimento de outras tecnológicas da comunicação, como o correio, o telefone e o
telégrafo, é a seguinte: ―Os fantasmas não morrerão de fome, mas nós
afundaremos,‖ (apud HAN, 2018, p.95), ou seja, a distância oportunizada pela
tecnologia cria cada vez mais fantasmas e afasta o indivíduo do real.
Partindo da análise realizada sobre o indivíduo solitário, analisaremos o modo
como esse sujeito se comporta quando inserido em um grupo. A valorização do
público e a desvalorização do privado é um dos fatores que tornam necessária a
reflexão sobre como se dão as ações coletivas.
Analisaremos as semelhanças e as diferenças no comportamento do
indivíduo quando inserido em um grupo, considerando os aspectos que causaram a
conversão dos movimentos de massa em enxames. Os chamados enxames digitais
são característicos desse tempo, são organizações de pessoas geradas a partir de
ondas de indignação.
A internet tem uma ampla capacidade de reprodução de notícias e
informações capazes de gerar essas ondas e formar os enxames. A característica
15
que diferencia o enxame da massa é a ação, enquanto a massa é entendida como
um conjunto de pessoas que se move em torno de um objetivo comum, o enxame é
somente um aglomerado de pessoas que não tem um objetivo comum e por isso é
incapaz de agir no mundo. Os enxames são organizações de vida curta, com a
mesma rapidez que se organizam, se desfazem.
No segundo capítulo discorremos sobre a importância, a emergência e a
necessidade da discussão sobre Filosofia Política na escola. Levaremos em
consideração diversos fatos da atualidade que refletem a intolerância e a
insatisfação dos cidadãos com a política do país. Discorremos sobre as origens da
dificuldade desse debate, atribuindo boa parte delas a influência do crescimento de
movimentos como o ―Escola sem partido‖, que afirma ser defensor de uma educação
neutra e sem ideologia. Daremos destaque também à influência dos discursos do
atual presidente, que convergem com a linha de pensamento adotada pelo
movimento ―Escola sem partido‖.
Ponderaremos sobre a influência e poder da mídia na disseminação de
notícias falsas, é importante desde já ressaltar que não compreendemos a mídia
como um bloco homogêneo. Assim como qualquer outro segmento da sociedade, a
mídia é formada por grupos heterogêneos, e diversificados que possuem diferentes
posicionamentos políticos e morais. Apontamos a adoção perigosa dos métodos
publicitários pelos políticos, o uso eficaz do desejo, pela manipulação política das
emoções e a transparência política como um dos efeitos negativos desse tipo de
abordagem.
Não foi em vão que o conceito de pós verdade foi eleito a palavra do ano em
2016. Pretendemos identificar em que medida as circunstâncias em que os fatos
objetivamente ocorreram são menos influentes na formação da opinião pública do
que apelos à emoção e à crença pessoal. A medida que avançamos na análise,
compreendemos que toda manipulação dos desejos e a manipulação política das
emoções é utilizada de dois modos: o primeiro com o objetivo de inflamar o cidadão,
causando as já citadas ondas de indignação e o segundo causar no sujeito um certo
repúdio à política, construir o desgosto a ponto de anestesiá-lo. A consequência
direta desse fato é o chamado voto de protesto.
O trabalho com os filmes pretende a superação da apatia e uma valorização
da experiência estética. Para tanto trabalhamos com dois filmes que discutem o
16
tema política: ―A onda‖1 e ―Olga‖2, com o objetivo de causar a disposição à discussão
filosófica da política. Utilizamos também o conceito de razão logopática de Julio
Cabrera para defender a possibilidade da superação do império da razão na escola
e defender a potência do afeto para causar a disposição para o pensar.
1
http://www.cca.eca.usp.br/educomcinema_onda
2
http://projetoahistoriavaiaocinema.blogspot.com/2012/03/ficha-tecnica-olga.html
17
2. A SOCIEDADE DO ESPETÁCULO E SUAS NOVAS VERSÕES
2.1. Primeiras reflexões
“O verdadeiro é o que ele pode; o falso, o que ele quer”
Madame de Duras
Neste capítulo abordaremos alguns aspectos que caracterizam a construção
de conhecimento, a concepção de sujeito em tempos de pós-verdade e o modo
como se dá a relação do sujeito com o mundo que o cerca.
Temos acompanhado uma mudança no modo como o sujeito se relaciona
com o conhecimento e com o real. Não podemos falar mais de um espaço definido e
delimitado quando o assunto é conhecimento e relações humanas. Há uma
crescente ascensão das relações através das redes e um enfraquecimentos entre os
laços humanos corpo a corpo. Assim, é necessária uma análise da realidade,
pensando no modo como se dá a relação entre homem e homem, e entre homem,
tecnologia3 e conhecimento. Salientamos que não temos a pretensão de endeusar
ou demonizar o modo de vida do sujeito contemporâneo, nem instituir a necessidade
de um retorno ao passado, pretendemos uma observação do modo de vida do
sujeito da atualidade, pois esse modo de viver afeta diretamente a escola, o ensino e
a filosofia.
Essas mudanças nas relações do sujeito com o real, o conhecimento e com o
outro, se dá, em partes, ao avanço e ao acesso crescente às ferramentas
tecnológicas, pois, assim como outros avanços ao longo da história, a ascensão das
mídias digitais causa mudanças que ainda estão sendo avaliadas, pois ―transforma
decisivamente nosso comportamento, nossa percepção, nossa sensação, nosso
pensamento, nossa vida em conjunto‖ (HAN, 2018, p. 10).
Pensando nesses aspectos, algumas questões se mostram importantes na
3
―A tecnologia não é uma entidade independente de uma estrutura social que poderia definir-se como
algo autônomo. Contudo, várias vezes ao longo da história ela toma uma certa centralidade. É essa
centralidade que a coloca como o mote das discussões. E é o caso da sociedade atual. As novas
tecnologias vem atravessando todos os processos sociais, seja de forma produtiva ou de maneira
destrutiva. Portanto, já há uma certa consistência capaz de gerar modificações na realidade
cotidiana.‖ (REYES, 2005, p. 59)
18
nossa reflexão: de que forma o novo modo de ligação entre homem, tecnologia e
mídia interfere na relação do sujeito com o real? Como o cenário político e o estudo
da filosofia política nas escolas públicas brasileiras podem ser afetados pelas
mudanças na relação entre sujeito e realidade? A escola permanece sendo o
espaço privilegiado do conhecimento? Que caminhos precisamos buscar para
chegar ao conhecimento? Na era denominada como ―da informação‖, como
distinguir o que é o conhecimento e o que é mera informação?
Aqui, não temos a pretensão de chegar às respostas exatas para todas as
perguntas acima, mas buscamos, assim como já fizeram em outros tempos,
contribuir para a construção de uma análise das questões supracitadas. Julgamos
importante levantar todas essas indagações, pois elas nos assolam e afetam
diretamente, justamente por estarmos passando por transformações que têm
consequências em todos os âmbitos da existência humana.
2.2. Em tempos de pós-verdade
O desenvolvimento tecnológico há muito vem estremecendo as raízes do
homem e causando rachaduras no modo como o sujeito se relaciona. Não se trata
de olhar para as ferramentas tecnológicas como se elas fossem o grande mal do
século. Segundo Bauman, ―seria tolo e irresponsável culpar as engenhocas
eletrônicas pelo lento mas constante recuo da proximidade contínua, pessoal, direta,
face a face, multifacetada e multiuso‖ (2004, p. 39). O uso de tais ferramentas
contribui para o declínio dos laços humanos e possibilita a existência de relações
menos compromissadas e, como consequência disso, causa mudanças em
conceitos que davam solidez à realidade e às relações humanas, como exemplo,
notamos ―a valorização do ciberespaço4 em detrimento do espaço territorial‖
(REYES, 2005, p. 33), o palco em que acontecem as ações e os discursos está
deixando de ser o mundo real.
4
O autor define o conceito de ciberespaço ―como um espaço diferenciado do espaço físico, concreto,
territorializado da cidade.‖ (REYES, 2005, p.33) É importante ressaltar que apesar do ciberespaço ser
diferenciado do espaço físico, ele ―está associado a materialidade da realidade da vida cotidiana, ou
seja, não ocorre em espaço paralelo, mas, ao contrário, surge imbricado com ela.‖ (REYES, 2005, p.
58)
19
Estamos em relação ao outro da mesma maneira que ele está para nós.
Partilhamos juntos a mesma experiência de tempo e de espaço. [...] É no
encontro face a face que temos a apreensão do outro [...]. Todos os
sentidos estão aí disponíveis à percepção do outro. (REYES, 2005, p. 21)
Essa experiência do face a face está perdendo espaço e isso seria
consequência da eficácia e da facilidade propiciada pelas conexões mediadas pelas
redes. Desse modo, é evidente que ―as tecnointerações vão estabelecer um novo
formato da dimensão pública [...]‖ (REYES, 2005, p.45) e, consequentemente, da
relação entre os sujeitos. Essa forma de contato, além de caracterizar um novo
formato de interação social, também alteram a relação e a compreensão do sujeito
sobre o ambiente público e o privado. Os sujeitos atuais apreciam mais a
possibilidade de conectar-se ao outro por meio das redes:
A palavra ―rede‖ sugere momentos nos quais ―se está em contato‖
intercalados por períodos de movimentação a esmo. Nela, as conexões são
estabelecidas e cortadas por escolha. A hipótese de um relacionamento
―indesejável, mas impossível de romper‖ é o que torna ―relacionar-se a coisa
mais traiçoeira que se possa imaginar‖. Mas uma ―conexão indesejável‖ é
um paradoxo. As conexões podem ser rompidas, e o são, muito antes que
se comece a detestá-las (BAUMAN, 2004, p. 12).
A escolha por relacionar-se com o outro expõe o sujeito há muitos riscos, e o
indivíduo inserido nessa modernidade líquida e personalizável não tem a capacidade
de suportar a incerteza, a dúvida, a negatividade. A liquidez da modernidade causa
no sujeito uma constante sensação de insegurança.
Para Bauman, ―a solidão por trás da porta fechada de um quarto com um
telefone celular à mão pode parecer uma condição menos arriscada‖ (2004, p.40), já
o encontro físico e a proximidade proporcionada pelos laços humanos, são
assustadores e arrebatadores, já que o desconectar-se não depende somente de
um toque na tela.
A tarefa de saber algo e de se relacionar com o outro em um mundo em que
tudo é fugidio e que te escapa pelos dedos torna-se complicada, assim as conexões
virtuais tornam-se formas mais consolidadas e seriam:
rochas em meio a areias movediças. Com elas você pode contar — e, já
que confia na sua solidariedade, pode parar de se preocupar com o aspecto
lamacento e traiçoeiramente escorregadio do terreno onde está pisando
quando uma chamada ou mensagem é enviada ou recebida (BAUMAN,
2004, p.37).
20
A certeza da disponibilidade é o que a conexão e as redes sociais
proporcionam ao sujeito, sempre haverá conexão, sempre haverá alguém online,
dessa forma, no mundo conectado, a solidão não alcança o sujeito.
Como consequência dessa liquidez, o relacionar-se face a face
perde espaço e as conexões através das redes avançam, pois
possibilitam ao sujeito uma sensação de segurança e propiciam uma
fuga constante do estar só.
Bauman reconhece que ainda:
É uma questão em aberto saber qual lado da moeda mais contribuiu para
fazer da rede eletrônica e de seus implementos de entrada e saída um meio
de troca tão popular e avidamente usado nas interações humanas. Será a
nova facilidade de conectar-se? Ou a de cortar a conexão? Não faltam
ocasiões em que esta última parece mais urgente e importante que a
primeira (BAUMAN, 2004, p.38).
Como dissemos, as oportunidades de rompimento, ou seja, de se
desconectar do outro com facilidade, torna a rede eletrônica mais atrativa, pois, além
de promover o fácil início da conexão, facilita o fim dela. As interações são menos
complexas e profundas que os relacionamentos humanos, desse modo, os ―[...]
contatos exigem menos tempo e esforço para serem estabelecidos, e rompidos‖
(BAUMAN, 2004, p. 39).
A liquidez dos laços humanos torna o marco divisório entre esfera púbica e
privada de difícil visualização, fato que dificulta a compreensão dos limites que
deveriam existir entre essas duas instâncias. A dimensão pública é supervalorizada
e a intimidade torna-se quase impossível perante tamanha exposição. ―Por causa da
eficiência e da comodidade da comunicação digital, evitamos crescentemente o
contato direto com pessoas reais, e mesmo o contato real como um todo.‖ (HAN,
2018, p. 44).
A intimidade, o privado, a necessidade de estar só, parecem ter
acompanhado a história da humanidade desde sua mais tenra existência. Segundo
a historiadora Paula Sibilia, o surgimento dos quartos privados data de meados dos
séculos XVIII e XIX, quando os sujeitos sentiram necessidade de estarem a sós
consigo mesmo, e passaram a valorizar o espaço privado como o lugar do cuidado
de si. Atualmente, os ambientes virtuais modificam a ideia de estar só:
Estando com o seu celular, você nunca está fora ou longe. Encontra-se
21
sempre dentro — mas jamais trancado em um lugar. Encasulado numa teia
de chamadas e mensagens, você está invulnerável. As pessoas a seu redor
não podem rejeitá-lo e, mesmo que tentassem, nada do que realmente
importa iria mudar‖ (BAUMAN, 2004, p. 37).
O estar só torna-se quase impossível, quem nasceu na era da informação
dificilmente experimentará a solidão. A intimidade e a solidão, que até pouco tempo
eram vistas como necessárias e positivas, dentro desse espectro, tornam-se motivos
de preocupação. É possível observar que: ―A supressão da personalidade
acompanha fatalmente as condições da existência submetida às normas
espetaculares‖ (DEBORD, 1997, p.191).
Como consequência disso, o estar só ganhou um status de negatividade e
estranheza, pois descumpre as regras que a sociedade espetacular determina: o
sujeito que pretende receber um mínimo respeito deve submeter-se ao espetáculo.
Esse novo modelo de interação é analisado pelo filósofo coreano, Byung-Chul
Han, principalmente em seus livros A sociedade do cansaço (2015), A sociedade da
transparência (2017) e No enxame (2018).
Em Sociedade do cansaço, Han faz uma reflexão sobre o sujeito pós-
moderno e os motivos pelos quais os indivíduos que pertencem a esse tempo estão
adoecendo, principalmente acometidos por doenças neuronais. O autor atribui a
origem dessas patologias à substituição da alteridade pelo igual, da intimidade pelo
excesso de exposição e do mistério pela pornografia.
No mesmo livro, o autor realiza uma análise das enfermidades pertencentes a
cada época. A era chamada por Han de neuronal é a que define o início do século
XXI. Afirma que passamos de uma era bacteriológica para uma era neuronal,
ou seja, não somos acometidos por vírus que nos adoecem, mas sim lidamos agora
com doenças neuronais, tais como depressão, transtorno de déficit de atenção,
hiperatividade, Síndrome de Burnout, as quais não são causadas por bactérias, e
sim pelo que Han denomina como ―excesso de positividade‖.
O excesso de positividade se caracteriza ―pelo desaparecimento da alteridade
e da estranheza” (HAN, 2015, p. 10), ocorre aqui uma padronização, não só no
parecer, mas também no ser. Acontece uma transformação no modo como o sujeito
se relaciona com o conhecimento, com a política, com a sociedade. Esse excesso é
consequência de uma sociedade da transparência, ―que elimina de si toda e
qualquer negatividade‖ (HAN, 2017, p. 09), pois: ―O vento digital da comunicação e
da informação penetra tudo e torna tudo transparente‖ (HAN, 2017, p. 103).
22
O mundo digital aliena o sujeito, pois proporciona uma falsa impressão de
transparência em relação ao outro e ao mundo, essa relação totalmente iluminada,
transparente é ―uma relação morta, à qual falta toda e qualquer atração, toda e
qualquer vivacidade‖ (HAN, 2017, p.16).
Nesse mundo transparente, o interesse pelo outro ocorre não pelo outro em si
mesmo, mas apenas no modo como reage à exposição do eu.
O outro não possui uma identidade clara e não fala de um lugar definido, o
que já altera o modo como os indivíduos se relacionam. A possibilidade de não ser
identificado, o fato de não existir uma relação hierárquica explícita entre os usuários
das redes sociais, são alguns dos causadores de uma sensação de conforto e de
ausência de responsabilidade sobre aquilo que é exposto. Logo, o mundo digital se
apresenta como algo paradoxal, na medida em que apesar da vigilância constante
consegue proporcionar ao usuário uma sensação de liberdade. Essa é uma
importante distinção entre a sociedade disciplinar e a sociedade do desempenho,
sendo que ―a sociedade disciplinar é uma sociedade da negatividade. É determinada
pela negatividade da proibição. O verbo modal negativo que a domina é o não-ter-o-
direito‖, já a atual sociedade do desempenho não possui esse caráter de
negatividade, ―no lugar da proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e
motivação‖ (HAN, 2015, p.24). Isso torna o sujeito do desempenho mais disposto a
produção que o sujeito de obediência.
O sujeito da sociedade do cansaço está inserido em uma realidade
transparente que violenta o indivíduo, segundo o filósofo: ―A coerção por
transparência nivela o próprio ser humano a um elemento funcional de um sistema.‖
(HAN, 2017, p.12-13). Nesse momento, o autor propõe a ampliação do olhar, de
modo que façamos a leitura da sociedade em que o sujeito está inserido.
É importante compreender que todas essas novas características dos sujeitos
são consequência de um sistema, e ele é como uma peça de uma máquina, que tem
como objetivo final gerar lucros fazendo um uso perspicaz da positividade, do
desempenho, da auto exploração, e da transparência, pois ―hoje em dia, explora-se
a si mesmo, mesmo que se pense se encontrar em liberdade. O sujeito produtivo de
hoje é ofensor e vitima simultaneamente.‖ (HAN, 2018, p.33). A ausência de tempo é
uma consequência direta da auto exploração, o indivíduo que se submete a esse
processo, não tem tempo para refletir sobre a veracidade das informações do mundo
que o cerca.
23
A transparência oferece ondas gigantescas e ―barulhentas‖ de informação, a
cobrança por rendimento dissipa a oportunidade de refletir sobre as informações
trazidas por tal onda, buscando a verdade sobre os fatos. ―Há uma enchente de
informações, mas (também) um estancamento espiritual. A causa (disso) é uma
crise da comunicação. Os novos meios de comunicação são dignos de admiração,
mas eles causam um barulho infernal‖ (HAN, 2018, p.42). Esse barulho destrói o
silêncio necessário para a superação da transparência, não possibilita que se inicie
a busca por verdade.
Os conceitos de transparência e verdade, para Han, ―não são idênticos. A
verdade é uma negatividade na medida em que se põe e impõe, declarando tudo o
mais como falso.‖ (HAN, 2017, p.24), já a transparência só incentiva a exposição
constante. O conceito de transparência está atrelado a um excesso de informações.
A ausência de verdade e o excesso de informações geram um vazio: ―A massa de
informações não gera a verdade, e quanto mais se liberam informações tanto mais
intransparente torna-se o mundo.‖ (HAN, 2017, p. 96). Como define Patrick
Charaudeau, em seu livro Discurso das mídias:
A informação é essencialmente uma questão de linguagem, e a linguagem
não é transparente ao mundo, ela apresenta sua própria opacidade através
da qual se constrói uma visão, um sentido particular do mundo
(CHARAUDEAU, 2015, p. 19).
A consequência dessa permanente inundação de informações e da exposição
excessiva faz com que a sociedade torne-se pornográfica: ―A sociedade
pornográfica é a sociedade do espetáculo‖ (HAN, 2017, p.67), onde ―tudo está
voltado para fora, desvelado, despido, desnudo, exposto.‖ (HAN, 2017, p. 32)
A ideologia do ―mostrar a qualquer preço‖, do ―tornar visível o invisível e do
selecionar o que é o mais surpreendente [...] faz com que se construa [...] uma visão
adequada aos objetivos das mídias, mas bem afastada de um reflexo fiel.‖
(CHARAUDEAU, 2015, p. 20). Como no mito da caverna de Platão, a mídia produz
um teatro de sombras e cada sujeito constrói sua representação do real.
Assim como Platão sugere em sua Republica, a sociedade transparente
também expulsa o poeta, que produz as ilusões cênicas, as formas aparentes, os
sinais rituais e cerimoniais, o tempo do poeta e o tempo do desempenho são muito
diferentes, enquanto o poeta valoriza o jogo da sedução, o sujeito da transparência
expõe-se. A ausência de um véu que obscureça a visão, do mistério, do suspense,
24
da demora, dissipa a curiosidade, ―[...] a espontaneidade — capacidade de fazer
acontecer — e a liberdade, [...]‖ (HAN, 2017, p.13), extingue o prazer da busca, do
descobrir, do desvelar, do não compreender, da dúvida.
Sócrates é um sujeito que reconhecia a importância da filosofia como um
modo de vida, a tal ponto que morreu por ela. Personagem recorrente nos diálogos
platônicos, Sócrates distingue-se dos outros indivíduos por ter uma relação frutífera
com a negatividade: ele admite não saber nada, e reconhece esse não saber, como
um privilégio, pois não sabendo de nada, sua busca por saber nunca cessaria e
poderia buscar conhecimento sobre tudo. Como afirma Kohan:
A filosofia tem uma marca etimológica, em sua origem histórica, por todos
conhecida: desejar ou amar (filos) o saber (sophía). Quer dizer, o filósofo
busca algo que não tem (à diferença do sofista, que supunha possuir o
saber). Desde Sócrates, ensinar filosofia é ensinar uma ausência (ou talvez,
uma impossibilidade) (KOHAN, 2008, p. 28).
Apresenta-se, então, a relação com a ausência com a impossibilidade de
outra perspectiva, a insegurança aqui não causa um acovardamento, mas encoraja
o indivíduo. O reconhecimento do não saber algo excita o sujeito na busca por
conhecimento, e não causa uma falsa relação com o saber.
Tendo ciência de sua ignorância, Sócrates nunca encerrou sua busca, a vida
para ele nunca tornou-se pornográfica, já que o ―pornográfico é raso, não é
interrompido por nada.‖ (HAN, 2017, p. 60). O método socrático causa interrupções
na medida em que questiona, em que duvida, em que tenta ir além do que já foi dito,
do que já está exposto. No método socrático, o velado é o motor da busca por
conhecer. Para que o movimento em direção a esse desvelamento seja possível, é
imprescindível a presença e a disposição do outro. Muitas vezes temos o outro
somente em presença física, seu corpo está ali, mas sua atenção não. Torna-se
muito mais cômodo dar atenção para uma realidade que se dá de forma
pornográfica, do que para um mundo que exige esforço para ser desvelado.
A sociedade da transparência não admite intervalos, que são necessidades
pertencentes à natureza humana. O mistério, o incerto e o desconhecido são as
causas do movimento de busca por conhecimento, porém são cada vez mais
oprimidos.
Uma chamada não foi respondida? Uma mensagem não foi retornada?
Também não há motivo para preocupação. Existem muitos outros números
de telefones na lista, aparentemente não há limite para o volume de
mensagens que você pode, com a ajuda de algumas teclas diminutas,
comprimir naquele pequeno objeto que se encaixa tão bem em sua mão.
25
Pense nisto (quer dizer, se houver tempo para pensar): é absolutamente
improvável chegar ao fim de seu catálogo portátil ou digitar todas as
mensagens possíveis. Há sempre mais conexões para serem usadas — e
assim não tem grande importância quantas delas se tenham mostrado
frágeis e passíveis de ruptura. O ritmo e a velocidade do uso e do desgaste
tampouco importam. Cada conexão pode ter vida curta, mas seu excesso é
indestrutível. Em meio à eternidade dessa rede imperecível, você pode se
sentir seguro diante da fragilidade irreparável de cada conexão singular e
transitória (BAUMAN, 2004, p.37).
Mesmo sendo o intervalo uma necessidade humana, o sujeito adequa-se ao
ritmo do desempenho, para se encaixar, para sobreviver e para se sentir seguro.
Com isso, tudo se torna transitório e efêmero. Substituímos a qualidade das relações
pela quantidade, não é necessário se preocupar se uma conexão se desfez, pois há
milhões de outras possibilidades disponíveis, os relacionamentos humanos se
assemelham cada vez mais a relação entre sujeito e objeto na sociedade de
consumo, o outro se tornou tão descartável quanto um objeto substituível.
Para exemplificar a pobreza de complexidade, Han utiliza-se do Smartphone,
que para ele
é um aparato digital que trabalha com um modo de input- output [...] Ele
abafa toda forma de negatividade. Desse modo se desaprende a pensar de
um modo complexo. [...] O curtir sem lacunas produz um espaço da
positividade. [...] O smartphone, como o digital em geral, enfraquece a
capacidade de lidar com o negativo (HAN, 2018, p. 45).
A obscenidade5 e a positividade dos tempos atuais causam estagnação e
tédio, e o excesso de exposição ―leva a alienação do próprio corpo, coisificado e
transformado em objeto expositivo, que deve ser otimizado‖ (HAN, 2017, p. 33).
Dessa forma, o cuidado de si passa a ser para o outro, pois, na medida em que se
busca essa otimização para a exposição, é necessário corresponder a padrões e
regras que não são definidas pelo sujeito, mas impostas de fora. A sociedade do
espetáculo manipula através da positividade, o que dá ao processo de alienação do
sujeito tamanha sutileza, que o mesmo nem percebe estar sendo manobrado.
Assim, o corpo torna-se ―uma boneca vestida sem alma, a ser adornado, enfeitado,
equipado com símbolos e significados‖. (HAN, 2017, p. 100).
A história de Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, reflete essa questão,
trata de ―um homem cuja aparência física não era das mais charmosas‖ (SIBILIA,
2008, p. 58), mas que, através de sua escrita muito bela consegue conquistar o
5
Obscena é a transparência que nada encobre, nada esconde, colocando tudo à vista. (HAN, 2017,
p.64).
26
coração de sua jovem amada.
O coração da moça, porém, palpitava por um fantasma, pois ela acreditava
que o remente da carta era outro: um jovem belo um pouco insosso. É
possível imaginar, nos meandros do ciberespaço, múltiplas versões
contemporâneas de Cyranos, [...] digitando ardentes epístolas na tela
(SIBILIA, 2008, p.58).
Aquele que não se submete a essa hiperexposição é colocado sob suspeita,
―o espetáculo se apresenta com uma enorme positividade, indiscutível e inacessível.
Não diz nada além de o que aparece é bom, o que é bom aparece‖ (DEBORD, 1997,
p. 17). Quem não possui uma conta no Facebook6, por exemplo, é visto como
estranho e com desconfiança, como se a rede social fosse um reflexo hiper-real
daquilo que a vida é. O que ocorre é a inversão de valor de verdade entre o que é
aparência e realidade. Nesse caso, ―o espetáculo é a afirmação da aparência e a
afirmação de toda vida humana — isto é, social — como simples aparência‖
(DEBORD, 1997, p.1 6).
A representação do sujeito, em sua página pessoal nas redes sociais, passa a
ter mais validade que o sujeito em si. Platão no Livro X de sua República, busca
realizar uma distinção entre aparência e realidade. O filósofo pretende provar a
ausência de existência real nas obras feitas por pintores e poetas, para isso, afirma
que esses só criariam imagens fantasmas. Para dar início a sua argumentação, o
filósofo utiliza-se do espelho, narrativa esta capaz de nos conduzir a problemática
das redes sociais posta acima:
Sócrates — [...] se quiseres pegar num espelho e andar com ele por todos
os lados. Farás imediatamente o Sol e os astros do céu, a Terra, tu mesmo
e os outros seres vivos, e os móveis e as plantas e tudo aquilo de que
falávamos há instantes.
Glauco — Sim, mas serão aparências, e não objetos reais. (PLATÃO, 1997,
p. 234)
A inversão do real acentua a valorização da aparência em detrimento daquilo
que é real. Segundo Benjamin, falta às cópias a aura: ―o que é propriamente uma
aura? Um estranho tecido fino de espaço e tempo: aparição única de uma distância,
por mais próxima que esteja.‖ (BENJAMIN, 2014, p. 29).
6
A rede social Facebook é destacada aqui, pois, segundo dados do IBGE citados na reportagem
publicada pela Agência Brasil, possui o maior número de usuários ativos no Brasil. Disponível em:
<http://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2018-07/facebook-chega-127-milhoes-de-usuarios-
no-brasil>.
27
A derrocada atual da aura tem seus fundamentos em duas situações: ―o
crescimento cada vez maior das massas e [...] a crescente intensidade de seus
movimentos.‖ (BENJAMIN, 2014, p. 29). Glauco, no diálogo com Sócrates, de pronto
identifica que aos reflexos criados pelo espelho faltam realidade. Nós da sociedade
contemporânea desvalorizamos a existência real e nos apegamos a mera aparência,
pois:
Trazer para mais próximo de si as coisas é igualmente um desejo
apaixonado das massas de hoje, [...] diariamente, torna-se cada vez mais
irresistível a necessidade de possuir o objeto na mais extrema proximidade,
pela imagem, ou melhor, pela cópia, pela reprodução. (BENJAMIN, 2014, p.
29).
A autenticidade ou o que Benjamin define como o aqui e agora das coisas do
mundo não nos interessam mais, temos uma nova forma de perceber o mundo,
preferimos observá-lo a partir do espelho. Se esse reflexo for substituído pelo
Facebook na afirmação de Sócrates, talvez os sujeitos inseridos no mundo
tecnológico, não tenham a mesma facilidade de Glauco ao identificar a falta de
existência real como o problema. Assim, os sujeitos insistem que as representações
na vida online são suficientes em realidade e verdade.
Na atualidade a representação acaba tem mais valor do que a coisa em si. ―A
fase atual, [...] leva a um deslizamento generalizado do ter para o parecer [...]‖
(DEBORD, 1997, p.18). Han compara o smartphone ao espelho afirmando que ―O
smartphone funciona como um espelho digital [...] Ele abre um espaço narcísico na
qual eu me tranco.‖ (2018, p. 45).
A extinção da negatividade contribui diretamente com o capital, pois
intensifica e facilita a criação e captação de dados que permitem identificar as
preferências do sujeito e também separá-los em grandes grupos, os catalogando por
suas similitudes: ―Essa mineração de dados não é nova nem surpreendente. O
Facebook acompanha, armazena e traça o perfil dos gostos e preferências de seus
usuários para melhorar sua publicidade dirigida‖ (KORYBKO, 2018, p. 56). A rede
social, assim como outros aplicativos, consegue captar esses dados sem que o
usuário da rede tenha plena consciência do quanto está exposto e sendo vigiado, o
mérito desse tipo de método está na descrição de sua vigilância, que ocorre de
forma tão indireta que o indivíduo não percebe estar sendo observado, como
comenta Han: ―o Google e redes sociais, que se apresentam como espaços de
liberdade, estão adotando cada vez mais formas panópticas. Hoje a supervisão não
28
se dá como se admite usualmente, como agressão à liberdade‖ (2017, p.115).
Essa sensação de não estar sendo vigiado é consequência de uma forma
comum de observação e conta com a colaboração passiva das próprias pessoas
vigiadas.
Para Han,
o presidiário do panóptico digital é ao mesmo tempo o agressor e a vítima
[...] é aperspectivo na medida em que não é mais vigiado por um centro [...]
ele surge agora totalmente desprovido de qualquer ótica perspectivística, e
isso é que constitui seu fator de eficiência. A permeabilidade transparente
aperspectivística é muito mais eficiente do que a supervisão
perspectivística, visto que é possível ser iluminado e tornado transparente a
partir de todos os lugares, por cada um (HAN, 2017, p. 106).
Além do privilégio na obtenção de dados e a criação de uma massa
homogênea de consumidores, ―a rede se transforma em esfera intima ou zona de
conforto‖ (HAN, 2017, p. 81), e tira do sujeito a capacidade de lidar com pessoas,
com ideias divergentes que podem causar uma perturbação nas verdades já
reconhecidas como tal. Logo, a vida pública teria uma função construtiva de adaptar
o ser humano a correr riscos, a colocar suas verdades em jogo, a defender suas
ideias. Porém, nesse novo espaço de atuação é possível editar a realidade, já que ―a
proximidade digital presenteia o participante com aqueles setores do mundo que lhe
agradam. Com isso, ela derruba o caráter público, a consciência pública; [...]
privatizando o mundo.‖ (HAN, 2017, p.81). O que gera uma impossibilidade do
sujeito na lida com aquilo que não lhe traz prazer e que não confirma sua
perspectiva sobre o real.
As mídias sociais e sites de busca constroem um espaço de proximidade
absoluto onde se elimina o fora. Ali encontra-se apenas o si mesmo e os
que são iguais; já não há mais negatividade, que possibilitaria alguma
modificação (HAN, 2017, p. 81).
Os sujeitos pertencentes à sociedade positiva evitam a negatividade, pois a
positividade aproxima, une, de forma rápida e eficiente. ―O veredicto da sociedade
positiva é este: Me agrada‖. (HAN, 2017, p.24), e este veredicto é tomado em
questão de segundos, com um click na tela e, muitas vezes, não há nessa atitude
nenhum tipo de reflexão, de pensamento.
Na sociedade positiva ocorre uma autoexposição, selfies, check-ins, vídeos,
lives, textos e fotos são postados diariamente pelos próprios usuários de redes
sociais. ―Os usuários do Facebook criam voluntariamente seu próprio perfil
29
psicológico através de informações que publicam voluntariamente, das curtidas que
produzem e dos amigos e grupos online aos quais se associam.‖ (KORYBKO, 2018,
p. 56).
O sujeito se coloca ―nu‖, não por uma imposição que tenha origem fora dele,
mas por uma necessidade gerada por ele mesmo. A especificidade do panóptico
digital é, sobretudo, o fato de que seus frequentadores colaboram ativamente e de
forma pessoal em sua edificação e manutenção, expondo-se ao mercado panóptico.
(HAN, 2017, p. 108). O valor das coisas se reduz ao quanto elas aparecem, logo,
nessa perspectiva, deve-se fazer de tudo o que for necessário para chamar a
atenção, para poder ser, existir. Como consequência disso,
[...] os adoecimentos neuronais do século XXI seguem, por seu turno, sua
dialética, não a dialética da negatividade, mas da positividade. São estados
patológicos devidos a um exagero de positividade. A violência provém não
apenas da negatividade, mas também do igual. (HAN, 2015, p.14-15).
Quando o diferente é eliminado, a elaboração de ideias por meio do impacto
causado por aquilo que causa estranheza se extingue. O consumo, o trabalho, a
extinção da alteridade e o adoecimento são todos assuntos abordados por Han para
evidenciar os problemas pertencentes do que ele nomeia como sociedade do
desempenho.
Nessa sociedade, o homem exerce um tipo de autoexploração, isto é, o
sujeito não precisa de mais ninguém para explorá-lo, ele mesmo toma para si a
função de se explorar, que é mais efetivo que a exploração do outro, já que esta
está estritamente ligada ao sentimento de liberdade. Para Han, ―o sujeito do
desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o
desempenho. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa
autoexploração‖ (HAN, 2015, p. 30).
Como consequência desse processo de auto exploração, o sujeito tem muitas
tarefas e metas a cumprir. Desde muito cedo sendo cobrados e disciplinados a ―ser
alguém‖, cujos padrões de ―sucesso‖ já são pré-determinados pela sociedade, disso
advém uma cultura do fora, na qual o tempo para pensar é cada vez mais escasso,
já que o ―ser alguém‖ no capitalismo está fortemente atrelado a ter bens, ou seja,
você é se você tem ou aparenta ter. ―A primeira fase da dominação da economia
sobre a vida social acarretou, no modo de definir toda realização humana, uma
30
evidente degradação do ser para o ter.‖ (DEBORD, 1997, p.17).
Estamos nos afastando de nossa racionalidade, perdendo a capacidade de
ter ―uma atenção profunda, contemplativa‖ (HAN, 2015, p. 33) e tornando-nos
animais multitarefa.
A multitarefa não é uma capacidade para a qual só seria capaz o homem na
sociedade trabalhista e de informação pós-moderna. Trata-se antes de um
retrocesso. A multitarefa está amplamente disseminada entre os animais em
estado selvagem. Trata-se de uma técnica de atenção, indispensável para
sobreviver na vida selvagem (HAN, 2015, p. 31-32).
Nessa sociedade em que o autor caracteriza os sujeitos como multitarefas, a
filosofia tende a se ausentar, pois não há tempo para dedicar-se profundamente a
nada e quando há tempo não há vontade contemplativa, pois ainda se sobrepõe a
ela o ímpeto de acompanhar a velocidade que o mundo tecnológico dita e, sem
pensar sobre esse mundo, nos atiramos de costas ao real, já que estamos sempre
com pressa e sem tempo.
O tempo criativo do ócio é transformado em ―neg-ócio‖, como consequência
disso, nos prendemos a informações rasas e rápidas, como uma forma desesperada
de agarrarmos a realidade e, ao mesmo tempo, dar conta de sermos ―bem-
sucedidos‖ o mais rápido possível.
O cansaço nos deixa incapazes de realizar qualquer coisa, o tempo na
sociedade contemporânea é escasso. A disposição para pensar, para dialogar, para
debater, para olhar para o outro e para si mesmo é pouca e, por vezes, até
inexistente, pois:
Quanto mais atenção humana e esforço de aprendizado forem absorvidos
pela variedade virtual de proximidade, menos tempo se dedicará à
aquisição e ao exercício das habilidades que o outro tipo de proximidade,
não-virtual, exige. Essas habilidades caem em desuso — são esquecidas,
nem chegam a ser aprendidas, são evitadas ou a elas se recorre, se isso
chega a acontecer, com relutância. Seu desenvolvimento, se requerido,
pode apresentar um desafio incômodo, talvez até insuperável (BAUMAN,
2004, p. 40).
A disposição para o ócio produtivo é uma das fontes de criação da filosofia,
pois ele proporcionaria o tempo necessário para as reflexões sobre o mundo.
Atualmente falta-nos tempo vago. O excesso de informações possibilitado pelas
novas tecnologias da informação e comunicação fez desaparecer o tempo ocioso,
tempo este em que o sujeito observaria o mundo onde vive, fomentando sua
curiosidade e sua disposição para pensar os problemas que sua realidade
31
apresenta.
A ausência do intervalo vazio impede o pensar, impede o reconhecimento das
diferenças; os problemas referentes à sua existência já não são mais interessantes.
Sem o confronto causado pela alteridade, o sujeito age, fica estagnado, pois
só nos movemos para resolver algo quando aquilo nos afeta profundamente. Nesse
mundo virtual personalizável, não precisamos enfrentar conflitos e resolver
problemas, já que quase sempre é possível ―ignorar‖, ―bloquear‖, ―deixar de seguir‖
tudo e todos que afetem ou modifiquem a realidade.
Diferentemente dos ―relacionamentos reais‖ é fácil entrar e sair dos
―relacionamentos virtuais‖. Em comparação com a ―coisa autêntica‖,
pesada, lenta e confusa, eles parecem inteligentes e limpos, fáceis de usar,
compreender e manusear. Entrevistado a respeito da crescente
popularidade do namoro pela Internet, em detrimento dos bares para
solteiros e das seções especializadas dos jornais e revistas, um jovem de
28 anos da Universidade de Bath apontou uma vantagem decisiva da
relação eletrônica: ―Sempre se pode apertar a tecla de deletar‖ (BAUMAN,
2004, p. 08).
Pensando nesses aspectos, vemos que as redes tornaram-se o espaço de
segurança. O sujeito inseguro perante o mundo real encontra refúgio no virtual,
como se os aparelhos tecnológicos fossem o bunker pessoal, onde ele pode ser
quem quiser. Os usuários aproveitam da internet como um meio para proteger-se da
complexidade e dos problemas provenientes das relações humanas e do convívio
em sociedade. Essa espécie de fuga oportunizada pelas tecnologias, nas mídias
sociais e outros aplicativos, não foi tão presente em nenhum outro tempo. Trata-se
de uma característica de nossa época, que traz novos ares, novos questionamentos,
novos obstáculos e oportunidades aos debates políticos, à educação, à filosofia e à
nossa democracia.
2.3. A conversão das massas em enxames
No dicionário Aurélio, o termo massa aparece com diversos significados, entre
os apresentados, pode-se destacar o seguinte: ―Número considerável de pessoas
que mantem estre si coesão de caráter social, cultural, etc.‖ (2010, p. 492). Toda
massa, precisa de um norte comum para gerar alguma alteração na realidade, desse
modo: ―Um aglomerado contingente de pessoas não forma uma massa. É
32
primeiramente uma alma ou um espírito que os funde em uma massa fechada e
homogênea.‖ (HAN, 2018, p. 27).
Walter Benjamin, em seu ensaio sobre a reprodutibilidade técnica da obra de
arte, afirma que o cinema tem potencialidade para emancipar as massas, mas
também pode servir para interesses nefastos, como serviu ao fascismo, por
exemplo.
Benjamin analisa a ascensão da capacidade de reprodução em massa com
observações que são pertinentes até a atualidade. O autor acredita que como
consequência dessa capacidade de reprodução, a arte perde seu valor cultual e
ocorre a ―decadência da aura‖, que é definida como um ―estranho tecido fino de
espaço e tempo [...] A proximidade proporcionada causa a extinção desse tecido
fino, que seria o mantenedor do valor cultual da obra de arte.‖ (BENJAMIN, 2014, p.
27).
Com o processo de desenvolvimento da técnica em reprodução já não é mais
imprescindível uma especialização do olhar do espectador. Para analisar um pintura
de modo a compreender quais os fatos que coincidem em seu valor, o sujeito
precisa possuir um olhar técnico, especializado. O contato com o filme precisa de
um olhar atento, mas o sujeito pode ser carregado pelas imagens em movimento. As
imagens reproduzidas em massa geram uma mudança no modo como os indivíduos
percebem e pensam o mundo, e Benjamin destaca o potencial dessa maneira de
perceber o mundo mediado pela tecnologia.
Apesar do aniquilamento da aura e do valor cultual, Benjamin tem um olhar
positivo sobre a capacidade de emancipação política da arte que pode ser
proporcionada pelo cinema. Ele destaca que para que seja possível a emancipação
através do cinema, é preciso que este também seja emancipado, que ele não reitere
a lógica de poder já instituída. Benjamin não se pergunta mais pela autenticidade da
obra, pois ―revolve-se toda a função social da arte. No lugar de se fundar no ritual,
ela passa a se fundar em uma outra práxis: na política.‖ (BENJAMIN, 2014, p. 35).
Le Bon em Psicologia das multidões e Benjamin em A obra de arte na época
de sua reprodutibilidade técnica reconhecem dois fatores que contribuíram
fortemente para as transformações ocorridas na modernidade: a desvalorização dos
ritos e a derrocada das crenças religiosas, políticas e sociais e a revolução realizada
nas técnicas de produção e reprodução propiciadas pela Revolução Industrial. Essas
mudanças abalaram algumas bases do pensamento da época, o valor atribuído às
33
obras de arte por sua exclusividade, por exemplo, já não existe mais, tornou-se
efêmero, graças à capacidade de reprodução em massa.
Na medida em que multiplica a reprodução, coloca no lugar de sua
ocorrência única sua ocorrência em massa. E, na medida em que permite à
reprodução ir ao encontro daquele que a recebe em sua respectiva
situação, atualiza o que é reproduzido. Esses dois processos conduzem a
um violento abalo do que foi transmitido – um abalo da tradição, que
consiste no reverso da atual crise e renovação da humanidade (BENJAMIN,
2014, p. 23).
A contemplação passiva daquilo que a natureza tem de espontâneo deixa de
existir e a busca pela dominação dos recursos naturais ganha espaço, a partir daí
não se deixa mais quase nada à mercê do ação do tempo, o homem cria o que
antes só a natureza era capaz de modificar. A reprodução técnica dá às massas
certa sensação de poder e pertencimento, pois antes a exclusividade as mantinha
marginalizadas e sem acesso aos recursos que quem detinha o poder econômico
possuía. Nas palavras de Le Bon:
Sobre as ruínas de tantas ideias, outrora consideradas verdadeiras e já
mortas hoje, sobre os destroços de tantos poderes sucessivamente
derrubados, este poder das multidões é o único que se ergue e parece
destinado a absorver rapidamente os outros. No momento em que as
nossas antigas crenças vacilam e desaparecem, em que os velhos pilares
das sociedades desabam, a ação das multidões é a única força que não
está ameaçada e cujo prestígio vai sempre aumentando. A época em que
estamos a entrar será, na verdade, a era das multidões‖ (LE BON, 1895, p.
5).
A unidade é caraterística imprescindível no comportamento das massas.
Acreditava-se que por meio da união os sujeitos que compunham essas massas
seriam capazes de se emancipar, além disso, os indivíduos organizados em grandes
grupos tendem a ser mais resistentes do que indivíduos isolados. Tais massas não
viveriam sob dominação, pois elas teriam uma potência transformadora que o
indivíduo solitário não possuiria. Em meio às ruínas, as massas permanecem em pé.
O comportamento do sujeito singular tem influência direta na alteração de
comportamento das massas, é impossível dissociá-los por inteiro.
Atualmente, esse bloco conciso de pessoas organizadas em prol de um ideal,
chamado de massas ou multidões, sofreu o impacto das mudanças geradas pelo
uso das tecnologias. Estas, que formaram resistências em lutas duríssimas durante
a história da humanidade e se mantiveram firmes em meio às ruínas causadas pelas
34
transformações modernas, foram fragilizadas, perdendo sua capacidade de
mobilização, cujo impacto tenha repercussão na realidade. Elas não deixaram de
existir, mas perderam força. Falta hoje o que Le Bon chama de alma coletiva:
O fato mais singular, numa massa psicológica, é o seguinte: quaisquer que
sejam os indivíduos que a compõem, sejam semelhantes ou
dessemelhantes o seu tipo de vida, suas ocupações, seu caráter ou sua
inteligência, o simples fato de se terem transformado em massa os torna
possuidores de uma espécie de alma coletiva. Esta alma os faz sentir,
pensar e agir de uma forma bem diferente da que cada um sentiria,
pensaria e agiria isoladamente. Certas ideias, certos sentimentos aparecem
ou se transformam em atos apenas nos indivíduos em massa (LE BON,
1895, p.12).
As multidões são organismos formados por impulsos inconscientes, ou seja, a
força que as move não é a capacidade intelectual dos membros que a compõe, mas
sim suas emoções e crenças. A capacidade do sujeito de abrir mão de sua
individualidade, adquirindo características que, segundo Le Bom, pertencem às
organizações coletivas, é indispensável para que a multidão cause algum efeito no
meio em que vive. Han afirma que o sujeito que pertence à massa ―não têm mais
nenhum perfil próprio.‖ (2018, p. 27). Esse sujeito deixa de lado suas características
particulares e adere aos caracteres pertencentes àquela massa da qual faz parte.
Le Bon define três caracteres especiais para as massas: o primeiro é a
sensação de invencibilidade e anonimato proporcionada pela multidão, caracteres
que extinguem a noção de responsabilidade. O segundo é o contágio mental, que ―é
um fenômeno fácil de observar [...]. Numa multidão, todos os sentimentos, todos os
atos são contagiosos e são-no a ponto de o indivíduo sacrificar facilmente o seu
interesse pessoal ao interesse coletivo.‖ (LE BON, 1895, p. 14).
Para o autor, ―Uma terceira causa, e de longe a mais importante, é o poder de
sugestão [...]‖ (1895, p.14), para explicar o que seria esse poder de sugestão Le Bon
compara-o com a hipnose, pela qual o hipnotizador tem total controle sob o indivíduo
hipnotizado. Esta última instância é capaz de criar um sentimento de rebanho,
faltando a esses enxames a capacidade de pensar:
Embora o futuro do mundo não dependa do pensamento, mas do poder das
pessoas que agem, o pensamento não seria irrelevante para o futuro das
pessoas, pois, [...] o pensamento seria a mais ativa das atividades,
superando todas as outras atividades quanto à pura atuação.‖ (HAN, 2015,
p.48)
A ação das massas não tem um fundamento racional, o pensamento não tem
35
o papel de protagonismo que deveria, não há o que se esperar de uma ação
impensada. O sujeito que participa de uma multidão não tem plena consciência de
suas atitudes, age por instinto, nessa perspectiva a conduta das massas aproxima-
se do modo de proceder de um animal, assim não há garantia que as ações terão
um resultado positivo.
O desaparecimento da personalidade consciente, o predomínio da
personalidade inconsciente, a orientação num mesmo sentido, por meio da
sugestão e do contágio, dos sentimentos e das ideias, a tendência para
transformar imediatamente em atos as ideias sugeridas, são, portanto, os
principais caracteres do indivíduo em multidão. Deixa de ser ele próprio
para se tornar um autômato sem vontade própria (LE BON, 1895, p.15).
As vontades particulares e as ações voltam-se somente para o objetivo
coletivo, os indivíduos colocam-se a agir por incentivo emocional, deixando de lado
seu eu racional. O sujeito inserido num grande grupo e incentivado por um líder
carismático inflama-se. Na organização em massa existe ―uma alma, unida por uma
ideologia, e ela marcha em uma direção.‖ (HAN, 2018, p. 30). As importantes
afirmações sobre como se forma e como se comportam as multidões, ajudam-nos a
compreender como se davam esses movimentos num tempo em que as redes não
tinham um papel tão importante na formação de movimentos em massa.
Atualmente as mídias digitais e as redes sociais são o principal meio de
organização de movimentos em massa. As redes facilitaram e deram voz a quem
antes não era ouvido e por este motivo não podemos afirmar que as mídias sejam
totalmente prejudiciais às organizações de grupos. Ela une os iguais de forma muito
eficiente e essa união é o que coloca em risco a alteridade. Outro ponto abordado
por Han e Le Bon é o anonimato proporcionado pelas redes, que causa a corrosão
do respeito pelo outro e a extinção da alteridade citada acima, causa uma
dificuldade na convivência com aquele que não é igual. Quando a rede proporciona
ao sujeito o anonimato as consequências podem ser sombrias, como aponta Han,
O respeito está ligado aos nomes. Anonimidade e respeito se excluem
mutuamente. A comunicação anônima que é fornecida pela mídia digital
desconstrói enormemente o respeito. Ela é responsável pela cultura de
indiscrição e de falta de respeito [que está] em disseminação (HAN, 2018, p.
14).
O anonimato proporcionado pelas redes pode gerar um comportamento
indesejado no indivíduo, junto com o anonimato vem a sensação de liberdade. Os
36
sujeito encobertos por seus IPs7, não têm responsabilidade por aquilo que
compartilham.
Na séria intitulada ―Eu e o universo‖8, em seu primeiro episódio chamado
―Mídias sociais‖ é apresentado um teste em relação ao poder do anonimato, que
ocorre da seguinte forma: são postas 8 pessoas separadas em dois grupos, o
objetivo delas ali é analisar, atribuir uma nota e fazer comentários sobre um vídeo de
uma cantora chamada ―Melody‖. A diferença na orientação sobre a análise está no
fato de o grupo um ser informado que terão de ler seus comentários para a cantora,
enquanto o outro ficará anônimo. A artista canta propositalmente mal e a diferença
entre os comentários dos membros dos dois grupos é gritante. As pessoas cujos
comentários seriam mostrados à cantora foram respeitosos em suas falas, já os
participantes informados que ficariam no anonimato teceram falas cruéis sobre a
artista. O resultado do experimento é reflexo do que vemos hoje nas redes sociais:
sujeitos escondidos pelas telas destilando ódio e dando opiniões impensadas sobre
qualquer assunto.
Le Bon aponta o anonimato e a ação coletiva como fatores que encorajam e
causam uma sensação de liberdade. A potencialização desses dois aspectos,
gerada pela ascensão da tecnologia, transforma as massas em enxames, então:
―Surgem apenas certos ajuntamentos e agrupamentos de diversos indivíduos
isolados singularmente, de egos que perseguem um interesse comum ou que se
agrupam em torno de uma marca.‖ (HAN, 2017, p.113-114)
Em 1928, Edward Bernays em sua obra intitulada Propaganda, também
identifica o comportamento diferenciado do sujeito quando este está inserido em um
grupo, porém o autor vai além e questiona: ―[...] se entendêssemos o mecanismo e
os motivos da mente grupal, não seria possível controlar e reger as massas de
acordo com nossa própria vontade sem que elas percebessem?‖ (apud KORYBKO,
2018, p.46).
Os estudos voltados para as reações das massas primeiramente tinham como
objetivo vender produtos, atualmente as pesquisas e os meios silenciosos de
manipulação têm como objetivo final a ―venda‖ de ideias para manutenção e
obtenção de poder. Korybko cita Bernays novamente, quando este em seu ensaio
7
IP significa "Internet Protocol" e é um número que identifica um dispositivo em uma rede (um
computador, impressora, roteador, etc.).
8
Disponível em: <https://www.netflix.com/watch/80215230?trackId=200257859>
37
intitulado A fabricação de consenso afirma que é possível gerir as massas, e que as
facilidades geradas pelas tecnologias no campo da comunicação otimizam essa
logística.
O meio para alcançar essa gestão das multidões também é apontado por
Bernays. Segundo ele, é preciso uma abordagem indireta para que as massas sejam
guiadas sem notar. ―Ele instrui que ‗fábricas de consenso‘ interessadas deem início a
uma pesquisa minuciosa de seus alvos muito antes do início de sua campanha [...]
Isso ajudará a entender a melhor maneira de se aproximar do público.‖ (apud
KORYBKO, 2018, p. 47). Sob a perspectiva da propaganda com o objetivo de
vender, a ideia do autor parece indefesa, porém quando a possibilidade de
manipulação das vontades das massas é pensada sob o viés da manipulação de
interesses políticos, chegamos a um ponto crítico do uso das tecnologias da
comunicação, pois dessa forma é possível ―dar início a uma agitação civil em larga
escala.‖ (KORYBKO, 2018, p. 58).
As redes sociais e os enxames digitais facilitam a instauração desse tipo de
situação, pois o sujeito que pertence ao enxame é diferente do sujeito que participa
de uma massa. Primeiramente o sujeito do enxame é incapaz de anular-se em prol
de uma causa coletiva. Graças ao império do ―eu‖, não transforma-se facilmente
ideias em atos, o sujeito da multidão que seria capaz de deixar de lado o ―eu‖ para
seguir o ―nós‖, praticamente deixou de existir e deu lugar a um sujeito narcisista: ―A
narcisificação da percepção leva o olhar, o outro ao desaparecimento‖ (HAN, 2018,
p. 49).
O tipo de relacionamento priorizado hoje (online) é pobre de olhar, não existe
mais o ―rosto que me olha, me aborda ou me balança.‖ (HAN, 2018, p. 46). Os
celulares treinaram ―os olhos a olhar sem ver.‖ (BAUMAN, 2004, p. 58). O olho que
nada enxerga não é afetado pelo mundo que o cerca, o olhar que assiste ao
espetáculo é vazio. A lacuna deixada pela extinção do outro vai sendo ocupada
―pela imagem, [...] espetacularizada.‖ (SODRÉ, 2016, p. 159).
O enxame forma-se com facilidade, mas com a mesma facilidade se desfaz.
Han destaca a volatilidade dos exames digitais, essa inconstância afasta
bruscamente os enxames das massas, pois como fora afirmado acima a unidade e a
constância das multidões resultam em modificações, em movimentos, sem esse
norte firme o enxame se perde. ―O novo ser humano passa os dedos [...], em vez de
agir.‖ (HAN, 2018, p. 62).
38
A inconstância impede o desenvolvimento da vontade. ―Falta aos enxames
digitais [...] poder. [...] Falta aos enxames digitais [...] decisão. Eles não marcham.
Eles se dissolvem, [...] por causa dessa efemeridade, eles não desenvolvem
nenhuma energia.‖ (HAN, 2018, p. 31). Os enxames atacam ―[...] pessoas
individuais, embaraçando-as ou escandalizando-as‖ (HAN, 2018, p. 31). Citaremos a
seguir um exemplo de mulheres brasileiras que sofreram com ataques do que
denominamos aqui enxames digitais.
Primeiramente é importante destacar que não é um mero acaso que uma
mulher tenha sido atacada, mas sim que isso reflete a cultura machista que ainda é
forte em nosso país. A ex- presidenta Dilma Rousseff foi atacada por diversas vezes
por enxames digitais. Imagens da ex-presidenta foram retiradas do contexto real, e
publicadas para atacá-la pessoalmente. Um exemplo disso é o que fez a revista Isto
é em 2016, em sua Edição n° 2417, quando publicou a foto de Dilma durante um
jogo do Brasil na Copa, em sua capa com a legenda ―As explosões nervosas de uma
presidente‖9
Figura 1: Reportagem postada em 2016 pela Revista Isto é.
9
Disponível em:
<https://istoe.com.br/edicao/894_AS+EXPLOSOES+NERVOSAS+DA+PRESIDENTE/>
39
A capa gerou mobilizações online sobre o descontrole de Dilma e
questionamentos sobre a sanidade mental da presidenta. No período em que a
imagem e a matéria foram publicadas estava acontecendo um grande movimento
pró-impeachment. A matéria refere-se a Dilma como uma pessoa mentalmente
incapaz e afirma: ―Segundo relatos, a mandatária está irascível, fora de si e mais
agressiva do que nunca.‖. Quem iria desejar que a maior autoridade de seu país
fosse incapacitada mentalmente? A revista, por meio da manipulação de imagem,
vendeu essa ideia, incentivando as massas a apoiarem a saída de Dilma da
presidência, fato que se efetivou em 31 de agosto do ano seguinte. Como afirmado
acima, por diversos estudiosos da manipulação dos comportamentos em massa, é
com sutileza que se orienta as massas.
A capa da revista pode parecer inofensiva à primeira vista, mas podemos nos
perguntar: Por que tirar a foto de seu contexto real e apresentá-la como uma reação
desequilibrada da presidenta? Por que afirmar que Dilma havia perdido o equilíbrio
emocional para gerir o país? Por que essa capa saiu durante o processo de
impeachment? Por que nunca vimos os ataques raivosos de Dilma? E se Dilma
estivesse com raiva das informações pessoalmente ofensivas publicadas sobre ela
durante aquele período, qual seria o problema nisso?
No atual império da imagem, uma foto publicada fora de seu contexto e uma
legenda como a colocada pela revista Isto é é capaz de causar muitos danos. Ao
contrário do que afirma a revista, no dia de seu depoimento Dilma apresentou-se
calma e com suas faculdades mentais em plena saúde, durante suas 13 horas de
depoimento, em nenhum momento mostrou-se como descrito pela revista. A
demonstração de clareza e tranquilidade durante seu depoimento argumenta contra
todos os fatos expostos pela revista, não seria possível para a Dilma descrita na
revista fingir sanidade durante 13 horas.
2.4. A transparência
O que leva o homem a filosofar? O que causa o desejo pelo saber filosófico?
É possível que o homem contemporâneo tenha disposição para a filosofia? Em meio
à tanta informação há espaço para a filosofia? As questões sempre são o princípio
da busca do homem e em certas vezes podem também ser o fim. Partiremos aqui
40
dessas questões que há muito vem sendo pensadas, apesar dos diversos caminhos
apontados pelos pensadores e estudiosos da filosofia, como muitas outras do campo
filosófico, esses questionamentos não tem uma resposta definitivamente correta. As
mudanças de modo de vida afetam o modo como o homem se relaciona com o
conhecimento, o que leva a necessidade de que essas perguntas, assim como
tantas outras, sejam constantemente refeitas e repensadas a partir dos limites,
problemas, evoluções dos sujeitos e da sociedade em que nos encontramos.
Sobre a primeira pergunta ―O que leva o homem a filosofar?‖, afirmamos nos
pontos anteriores a necessidade de certa disposição para o pensar, desse modo
pretendemos aqui pensar esse filosofar dentro da disciplina de Filosofia, pois o
sujeito do desempenho está na escola, e a escola está também inserida nessa
sociedade definida por Han como sociedade de transparência e do cansaço. O
sujeito do desempenho tem clareza de que não pode perder tempo, logo transforma
sua vida numa busca incessante por rendimento, isso afeta alunos e professores. O
mais importante nesse caso não é o conhecimento adquirido, ou a formação
humana, mas a nota do ENEM, a aprovação no vestibular.
O interesse do Governo Estadual também não se afasta dessa lógica do
desempenho, o que interessa são os índices apresentados pelas escolas. Cada vez
é mais cobrado das escolas que estabeleçam metas para aumentar o Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Como consequência dessa visão que
visa somente converter o aprendizado em dados, números e porcentagens, a
Filosofia é tomada como uma disciplina de menor valor. Professores, alunos,
pedagogos, diretores se veem aprisionados por esse sistema que cobra rendimento,
desempenho, mesmo que para alcançar esse ―sucesso‖ seja necessário render-se a
sociedade transparente, reprodutora.
Quando falamos da disciplina Filosofia, salta aos olhos a necessidade de
justificar constantemente a utilidade do pensar filosófico na formação do sujeito. A
disciplina precisa a todo o momento afirmar a importância de sua permanência na
grade escolar, o que deixa claro que o modo de vida do sujeito contemporâneo
desconfia de tudo aquilo que não é imediata e objetivamente útil. Para esclarecer o
que significa essa utilidade, podemos utilizar o discurso do atual Ministro da
Educação o economista, Abraham Weintraub, quando afirma que:
A função do governo é respeitar o dinheiro do pagador de imposto. Então, o
41
que a gente tem que ensinar para as crianças e para os jovens? Primeiro,
habilidades: poder ler, escrever e fazer conta. A segunda coisa mais
importante: um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a
10
família dela, que melhore a sociedade em volta dela.
A utilidade defendida pelo atual Ministro da Educação vai contra toda a
proposta contida nas Leis de Diretrizes e Bases da Educação. Formar um sujeito
que saiba ler e contar não é suficiente para que tenhamos indivíduos críticos e
capazes de transformar a sociedade ao seu redor. O objetivo do Ministro é formar
mão de obra, e preferencialmente um trabalhador alienado e disciplinado, que
compreenda a necessidade de render e cooperar para o acúmulo de riqueza dos
donos de empresa, assim ocorre a diminuição da ação do Estado no que tem
relação com às políticas sociais e a maximização deste, no que diz respeito aos
interesses do capital. É importante notar que o Ministro acima citado é economista e
seu olhar para a educação é unicamente o de quem pretende poupar gastos.
Como podemos observar, a realidade na qual estamos inseridos está
sofrendo mudanças extremas, logo, não só alteraram-se os modos de busca e
acesso à informação, mas também o discurso sobre o papel da educação. A
disciplina de Filosofia que a pouco precisava se questionar sobre o que gera a
disposição para o pensar, vê-se diante de um discurso que elimina da formação do
sujeito a necessidade de desenvolver sua capacidade de pensamento. Logo, o olhar
para essa disposição precisa adequar-se as perspectivas apresentadas por esse
tempo sombrio.
A atitude questionadora, incentivada pela filosofia, incomoda os sujeitos que
desejam ter como povo pessoas que saibam ler, escrever e obedecer. Quando a
Filosofia, como disciplina escolar, pretende fomentar a postura crítica e
questionadora, é esperado que sofra ataques como os que vem sendo observados
recentemente. Podemos afirmar que se a Filosofia está ameaçada é porque ela
incomoda, faz barulho. Acreditamos que:
O filosofar aparece como um mandato que dita uma maneira de viver. [...]
Trata-se de um estilo de vida que não aceita condições, [...] Nesse modo de
vida, filosofar consiste em examinar, submeter a exame, a si mesmo e aos
outros (KOHAN, 2011, p. 70).
10
Disponível em: <https://horadopovo.org.br/bolsonaro-confirma-corte-de-verba-para-ensino-de-
filosofia-e-sociologia/>
42
O sujeito da sociedade contemporânea, inserido na lógica dessa sociedade
do consumo, da alienação e da exploração, ainda é o homem que tem capacidade
racional, que pensa, que pode e deve submeter tudo ao exame e a dúvida. Podemos
afirmar que estamos em vantagem em relação à técnica, mas em desvantagem com
relação ao desenvolvimento do pensar, do duvidar, pois ―o caráter filosófico não se
adquire mediante a apropriação dos tecnicismos do pensamento, mas com o próprio
ser no mundo‖ (CABRERA, 2013, p. 21).
A transparência desenraiza a capacidade de exame. Quando o objetivo da
formação é reafirmar as crenças da sociedade do consumo, formando um fantoche
dócil, propor o estudo da filosofia nas escolas realmente pode parecer contraditório.
Pensar para que ensinamos é uma missão pesarosa para os educadores inseridos
nesse sistema de rendimento. O professor é um profissional refém da
autoexploração e das péssimas condições de trabalho a que é submetido, o que tem
como consequência o adoecimento11 dos professores.
Como manter ou causar a disposição para o filosofar com tantos obstáculos?
Como citado acima acreditamos que o trabalho que vem sendo feito pelos
professores de Filosofia estão surtindo algum efeito, pois está causando incômodos
em quem pretende a manutenção do poder.
Quando falamos aqui de disposição podemos nos perguntar: para que o
jovem de hoje tem disposição? Notadamente a primeira resposta seria para fazer
uso das ferramentas da era tecnológica, logo ficam por horas no computador, se
distraem facilmente com o celular, ficam por horas jogando videogame. Se
buscamos nesse jovem a disposição e notamos que ele se dispõe quando o assunto
é tecnologia não seria simples inserir essa tecnologia na escola? Se a resposta for
sim, podemos nos questionar: de que forma? Em que momentos? Como isso
mudaria a busca e a construção de conhecimento? Compreende-se a necessidade
de adequação do ambiente escolar aos novos modos de ser do homem no mundo,
mas todas essas mudanças precisam ser pensadas profundamente para que
11
Uma pesquisa online realizada pela Associação Nova Escola com mais de cinco mil educadores,
entre os meses de junho e julho de 2018, reuniu mais informações sobre o problema e identificou que
66% das professoras e professores já precisaram se afastar do trabalho por questões de saúde. O
levantamento também mostrou que 87% dos participantes acreditam que o seu problema é
ocasionado ou intensificado pelo trabalho. Entre os problemas que aparecem com maior frequência
estão a ansiedade, que afeta 68% dos educadores; estresse e dores de cabeça (63%); insônia (39%);
dores nos membros (38%) e alergias (38%). Além disso, 28% deles afirmaram que sofrem ou já
sofreram de depressão. (Disponível em: <https://appsindicato.org.br/66-dos-professores-ja-
precisaram-se-afastar-por-problemas-de-saude/>)
43
culminem no fortalecimento da escola como espaço do conhecimento.
A tecnologia democratizou o acesso à informação e o espaço do
conhecimento, assim como transformou a relação entre os indivíduos, com o mundo
e até consigo mesmo. A relação com o espaço escolar também foi impactada por
tais mudanças, a escola não é mais o único espaço de conhecimento, ao contrário
disso tornou-se um dos espaços menos interessantes aos olhos da juventude.
A escola, como espaço de conhecimento, é afetada pelo excesso de
transparência, todas as mudanças ocorridas na sociedade refletem e geram
consequências positivas e/ou negativas no ambiente escolar. O avanço da
tecnologia causa a ascensão de um modo de vida transparente. O desafio da escola
atualmente não está atrelado somente a adequar-se ao desenvolvimento das
tecnologias, mas a superação do olhar transparente. O primeiro efeito colateral da
transparência que afeta diretamente a escola é a destruição do desejo, sem o desejo
não há abertura para o saber. Sem o desejo é possível ensinar a história da filosofia,
ensinar o significado de conceitos, mas sem o desejo, é impossível filosofar.
Se pensarmos o filosofar a partir de uma leitura de mundo, de uma
capacidade do sujeito de identificar questões que causem incômodo, o filosofar
ocorreria a partir do momento em que esse indivíduo fosse capaz de apropriar-se
das questões e as recolocasse, dando existência aos questionamentos filosóficos. O
que precede ao readequamento da perspectiva do questionamento filosófico é a
compreensão do que é pensar filosoficamente o mundo. O fato de um estudante
questionar tudo o que é posto, por exemplo, não dá a ele o título de filósofo. O
desenvolvimento da capacidade de identificar um problema, questioná-lo e a partir
dele produzir uma reflexão seria característico ao filosofar. O sujeito narcísico da
sociedade contemporânea precisa tirar os olhos de si mesmo, para que seja
possível o desenvolvimento dessa disposição.
No decorrer do trabalho afirmamos e reafirmaremos que a capacidade de
moção do discurso baseado na emoção é bastante efetiva, ―desde a Antiguidade
grega, sabem os grandes oradores que a mais poderosa eloquência é aquela que se
vale da paixão‖ (SODRÉ, 2016, p. 44). Logo, seria um erro marginalizar o papel das
emoções no desenvolvimento da disposição.
Pode-se com isso afirmar a existência de uma inteligência baseada não
apenas na racionalidade cognitiva, mas também naquilo que se dá a
44
conhecer como afetos e que constituiria um elo essencial entre corpo e
consciência (SODRÉ, 2016, p. 31).
A busca por desempenho e rendimentos não deixa espaço para o
desenvolvimento do elo entre corpo e consciência ―a alma é posta a trabalhar, e o
corpo, a máquina são seu suporte‖ (SODRÉ, 2016, p. 56). O corpo continua à
margem, apesar de compreender não existir no mundo real um ―eu‖ absolutamente
racional. O corpo sofre uma violência dentro desse espaço que o desconsidera,
como ser emocional e preza pela racionalidade, oprimindo as paixões, ―[...] falar da
vida com paixão é falar, filosoficamente, da vida como uma dinâmica em que se
morre continuamente para deixar surgir o inesperado, ou o novo da existência.‖
(SODRÉ, 2016, p. 31). O olhar para o mundo só não basta, para ser no mundo, é
preciso ser capaz de sentir o mundo. A apatia, causada pela sociedade
pornográfica, não gera movimento.
A máxima kantiana: não se ensina filosofia, ensina-se a filosofar, concebe
uma compreensão da filosofia como atividade criativa, argumentativa e crítica. (apud
GONZÁLEZ; STIGOL, 2009, p. 84). Compreendemos que o filosofar costuma causar
certo incômodo ou até mesmo desconforto no sujeito que se dispõe, sendo que o
sujeito se aproxima da filosofia. ―Pensar, indagar e indagar-se não são coisas que o
humano faça por opção, mas algo ao qual ele é impulsionado pelo simples fato de
ser.‖ (CABRERA, 2013, p. 22). O impulso para indagar é gerado pelo existir, pelo
ser, mas esse ser precisa ser no mundo, e como fora exposto no início do presente
capítulo, as redes sociais proporcionam hoje um tipo de fuga, em certa medida o
sujeito não é mais obrigado a ser no mundo.
Pode-se dizer que o indivíduo que se dispõe no mundo é ousado, se arrisca,
é aquele que possui paixão, que supera a apatia, e que é capaz de um olhar
empático para o real, o que o leva a apropriar-se dos problemas e desafios
apresentados a sua volta. A filosofia pede que sujeito afaste-se da apatia e se deixe
afetar, ―O filósofo não será apenas o humano desamparado e incompleto, mas
aquele humano que ousa lançar-se sobre seu desamparo e incompletude com
paixão reflexiva, com menos medo da loucura que da mediania.‖ (CABRERA, 2013,
p.21).
A neutralidade ou a ausência de paixão dificilmente vai culminar na origem da
45
disposição para a filosofia. A incompletude que faz com que o sujeito sinta esse
desamparo é causada quando a filosofia abala os valores que sustentam a nossa
sociedade, porém para que esse perder-se aconteça é necessário apropriar-se do
problema de forma a ―vive-lo, senti-lo na pele, dramatizá-lo‖ (CABRERA, 2006 p.16).
Os problemas filosóficos pedem certa disposição ao pensar e para alcançar
esse dispor é necessário que o indivíduo sinta-se afetado de algum modo, que seja
retirado de sua zona de conforto. O início da construção do conhecimento filosófico
se dá pelo caminho negativo, ou seja, por meio da desconstrução de dogmas que
sem justificativas racionais são tomados como verdades inquestionáveis concepções
que são extremamente generalizadoras.
A alteridade como base para a experiência filosófica está se extinguindo.
Graças à tecnologia o sujeito tem contato com aquilo que deseja, com o conteúdo
que lhe dá prazer, que reflete o seu modo de ser e de pensar o mundo. As redes
sociais, aplicativos e sites, são programados para fornecer informações relacionadas
somente sobre assuntos que sejam afins às pesquisas realizadas pelo usuário, o
que diminui a possibilidade de contato com o diferente, devemos então,
[...] interrogar o comportamento de um homem que viva dentro de uma
postura fundamentalmente pré-crítica, a fim de sabermos, em um primeiro
momento, o sentido deste comportamento, e em um segundo momento, o
que o leva a passar do plano da dogmaticidade ao de uma atitude crítica.‖
(BORNHEIM, p. 55, 2003)
Interessa-nos investigar e compreender esse movimento do dogma à
criticidade. A dificuldade em efetivar o processo de produção filosófica começa pelo
fato de existir uma crescente indisposição para o pensar, não só filosoficamente,
mas para o pensar em geral. Os problemas do mundo atual, o desejo de conhecer
que é natural ao sujeito há algum tempo parece ser acometido por um tipo de
anestesiamento: ―a positivação geral da sociedade hoje absorve todo e qualquer
estado de exceção‖ (HAN, 2015, p. 55), a ausência do negativo não possibilita aos
sujeitos a disposição necessária para buscar conhecer.
46
3. AS MÍDIAS E O SUJEITO PÓS-MODERNO
O cenário político atual de nosso país, em que os princípios democráticos
estão cada vez mais ameaçados, afeta diretamente o trabalho em sala de aula. Ao
abordar temáticas como a Filosofia Política, surgem alguns entraves que podem
prejudicar e desperdiçar o tempo que deveria ser dedicado a discutir e pensar
filosoficamente a política. Hoje, muitos profissionais da educação trabalham
receosos e amedrontados, pois acompanham a veiculação de notícias de retaliações
feitas a professores, com acusações pautadas muitas vezes em interpretações
subjetivas e falaciosas sobre o intuito do docente ao abordar alguns temas. A
palavra que pode-se destacar das denúncias é: doutrinação.
Os profissionais da educação dos diversos níveis de ensino são submetidos a
retórica do bode expiatório12, isso ocorre quando forjam ―a invenção de alguém a
quem se atribuam as culpas latentes e manifestas no grupo social‖ (SODRÉ, 2016,
p. 75).
Temos atualmente um presidente que chegou ao poder com promessas de
combate à pedagogia de Paulo Freire e à ditadura esquerdista que, segundo ele,
está instaurada dentro das escolas e universidades brasileiras e é a causa de
diversos problemas sociais existentes em nosso país. Essas afirmações não estão
pautadas em nenhum dado ou pesquisa realizada pelos que as defendem. São
informações que tem como objetivo criar ―afetos negativos‖, numa tentativa de
constituir os educadores como inimigos, como parte causadora dos males que
assolam nosso país. Na medida em que a imagem do educador é atrelada à origem
de algumas mazelas sociais, ele fica instituído como um inimigo que precisa ser
eliminado ou ao menos impedido, interpelado.
As retaliações têm incentivos de vários sujeitos que participam da política em
nosso país. Temos consciência inclusive da existência de ferramentas de denúncia
disponíveis em sites para que os estudantes postem vídeos denunciando as
―doutrinações‖ feitas por seus educadores em sala de aula, e é importante ressaltar
12
Muniz Sodré cita exemplos de uso da retórica do bode expiatório, os quais: ―Nos Estados Unidos, a
extrema direita elege como alvo cidadãos não brancos, em especial negros e hispânicos. Na Europa,
árabes e turcos são bastante visados. No Brasil do início dos anos 1990, um demagogo conseguiu
chegar à presidência da república vestido na pele ――emocionalista‖‖ de um herói jovem e sem
compromissos com a classe política, autoinvestido da missão de combater um bode expiatório: uma
suposta casta de funcionários públicos privilegiados, os ―marajás‖‖ (SODRÉ, 2016, p.75).
47
que não há um critério, nem uma necessidade de contextualizar a fala do educador,
o que deixa o conteúdo da fala a mercê de qualquer interpretação.
Esse mecanismo de censura baseia-se na ideia de que ―tudo acontece como
se houvesse, entre uma fonte de informação [...] e um receptor da informação, uma
instância de transmissão [...]‖, ou ainda como um ―modelo perfeitamente
homogêneo, objetivo, que elimina todo efeito perverso da intersubjetividade
constitutiva das trocas humanas‖ (CHARAUDEAU, 2015, p.35). Concebe a
comunicação como um ato controlado, em que a informação emitida não sofre
nenhum tipo de interferência até que chegue ao receptor, supondo que o alvo da
mensagem esteja fadado à passividade. Neste modo de conceber a comunicação
desconsidera-se que:
A informação é pura enunciação. Ela constrói saber, e como todo saber,
depende ao mesmo tempo do campo de conhecimentos que o circunscreve,
da situação de enunciação na qual se insere e do dispositivo no qual é
posta em funcionamento. (CHARAUDEAU, 2015, p. 36)
Hoje, o campo de conhecimentos é imenso e não propicia uma construção de
saberes e informações unilaterais, como ocorria com o rádio e a TV, por exemplo.
As informações ecoam e ganham proporção rapidamente, as mídias, como as
citadas, também buscam adequar seus conteúdos a essas novas formas de
consumir informação, a relação com o receptor é muito mais dinâmica. O recebedor
de informações passou a ser também um disseminador de informações, com um
único toque na tela é possível compartilhar informações prontas, com o celular em
mãos é possível produzir vídeos e textos, postar em diversos grupos e páginas, e
em instantes a informação terá um alcance grandioso.
Mídias como blogs, Twitter ou Facebook desmediatizam (entmeditisieren) a
comunicação. A sociedade de opinião e de informação de hoje se apoia
nessa comunicação desmediatizada. Todos produzem e enviam
informação. A desmediatização da comunicação faz com que jornalistas,
esses antigos representantes elitistas, esses ―fazedores de opinião‖ e
mesmo sacerdotes da opinião, pareçam completamente superficiais e
anacrônicos. A mídia digital dissolve toda classe sacerdotal. A
desmediatização generalizada encerra a época da representação (HAN,
2018, p. 37).
Qual seria então o lugar da filosofia nesse mundo de informações? Pelo
excesso de acesso, e a carência de dúvidas há uma ―imposição possibilitada pela
força da persuasão publicitária [...] e pela falta de condições de análise filosófica à
48
qual as pessoas são condenadas. Pois, não lhes é permitido que possam aprender a
filosofar‖ (LORIERI, 2010, p. 48).
É importante ressaltar que a filosofia, por si só, gera na juventude um
incômodo, pois os jovens questionam o porquê ou para que estudar tal área. O
perguntar é uma característica pertencente à natureza da filosofia e que não se
perdeu nela como disciplina na grade escolar. Na condução da disciplina os
educadores dedicam-se em causar a dúvida, o incômodo, a incerteza nos
estudantes, para que seja possível a construção do pensamento filosófico.
Pensando nas limitações que, mesmo pelas sombras, permeiam o trabalho do
professor, as inquietações são muitas. Os sujeitos que estão em formação, hoje, nas
escolas nasceram na chamada era da informação e da tecnologia, desde muito cedo
são inseridos no mundo digital, que é repleto de informações e que permite um
acesso quase ilimitado a elas.
Como discutido no capítulo anterior, esse fato causa um impacto no
comportamento e no relacionamento dos sujeitos com o aprendizado. Como
consequência da forte influência e da constante interação com as mídias sociais, em
sala aparecem perguntas que refletem o posicionamento dos meios de comunicação
em relação a diversas temáticas como a educação, política, saúde, violência. O que
a mídia digital possibilita hoje é uma comunicação simétrica, ou seja: ―[...] aqueles
que tomam parte na comunicação não consomem simplesmente a informação
passivamente, mas sim a geram eles mesmos ativamente.‖ (HAN, 2018, p.16).
Dessa forma, não basta para o sujeito contemporâneo ―consumir informações
passivamente, mas sim [...] produzi-las e comunicá-las ativamente [...]. Somos
simultaneamente consumidores e produtores.‖ (HAN, 2018, p. 36).
Mesmo sendo o receptor um produtor de informações e tendo ele a
possibilidade de divulgar suas ideias, ainda temos uma preponderância no alcance
do discurso produzido pelas grandes empresas midiáticas. Há uma diversidade de
tipos de discursos que são utilizados pelos meios de difusão de informação.
Gostaríamos de nos ater aqui a dois deles: o informativo e o propagandista. O que
esses dois tipos de discursos têm em comum? ―O fato de estarem particularmente
voltados para o seu alvo. O propagandista, para seduzir ou persuadir o alvo, o
informativo, para transmitir-lhe saber‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 60).
49
No discurso propagandista, o status de verdade é da ordem do que há de
ser, da promessa [...] No discurso informativo, o status de verdade é da
ordem do que já foi [...] Num discurso propagandista, não há nada a provar:
o modelo proposto é o do desejo. Num discurso de informação, é preciso,
ao contrário, provar a veracidade dos fatos transmitidos: o modelo proposto
é o da credibilidade (CHARAUDEAU, 2015, p. 61).
Apesar das distinções teóricas em relação aos dois formatos de discurso,
podemos observar que, na prática os discursos propagandista e informativos, se
misturam. A ―indústria cultural atingiu a política por meio da publicidade, deturpando
a política em imagens estereotipadas e manipuláveis.‖ (TIBURI, 2017, p.47). Como
consequência dessa ―publicização‖ da política, da transparência excessiva, do
privilégio do marketing em detrimento da informação, a política como poder
estratégico desaparece, pois:
a política [...] carece de um poder de informação, a saber de uma soberania
sobre a produção e distribuição de informação. Por isso ela não pode
abdicar daqueles espaços fechados nos quais informações são
conscientemente retidas (HAN, 2018, p. 39).
As táticas de convencimento do discurso propagandista, que opera por meio
do desejo e da manipulação das emoções, são muito mais eficazes, pois geram
reações imediatas, o que normalmente não ocorre com o discurso informativo.
Essas táticas inflamam a sociedade por apelarem para a emoção. Podemos citar
aqui como exemplo do uso político da emoção, as técnicas de discurso de Hitler
que:
configuram-se primeiramente, como estéticas, na medida em que, como
toda exaltação fanática, legitimam pela dimensão sensível as suas
convicções políticas e religiosas. [...] são em grande parte velhos artifícios
políticos de discurso, recorrentes no passado, principalmente no âmbito do
uso racionalista do afeto pela retórica (SODRÉ, 2016, p.74).
Não podemos afirmar que esse método é capaz de arrebatar a todos os
sujeitos da mesma forma, que todos sofrem influências de forma homogênea, mas o
que sabemos é que todos são de algum modo acometidos, porém é difícil mensurar
com exatidão em que medida as ações dos sujeitos são movidas por interferência da
mídia. Mesmo com toda a tentativa de ter um alvo bem definido para informar, sabe-
se que o público consumidor de informações é diverso, portanto:
50
a informação midiática fica prejudicada porque os efeitos visados,
correspondentes às intenções da fonte de informação, não coincidem
necessariamente com os efeitos produzidos no alvo, pois este reconstrói
implícitos a partir de sua própria experiência social, de seus conhecimentos
e crenças (CHARAUDEAU, 2015, p. 59).
Mesmo sendo difícil definir com exatidão um público-alvo,
[...] há pesquisas que tentam definir perfis de leitores, ouvintes e
telespectadores, [...] cada organismo de informação faz escolhas quanto ao
alvo em função de opiniões políticas, de classes sociais, de faixas etárias,
[...] mas não deixam de ser hipóteses a respeito do público que é
heterogêneo e instável (CHARAUDEAU, 2015, p. 79).
Trabalhando com esta diversidade de consumidores, as instâncias midiáticas,
definem duas categorias de ―destinatário-alvo‖. O primeiro é definido como alvo
intelectivo, que ―é considerado capaz de avaliar seu interesse com relação aquilo
que lhe é proposto, [...] é um alvo ao qual se atribui a capacidade de pensar.‖
(CHARAUDEAU, 2015, p. 80). O segundo é o alvo afetivo que ―se acredita não
avaliar nada de maneira racional, mas sim de modo inconsciente através de reações
de ordem emocional.‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 81). A manipulação das emoções
como modo de manobrar as vontades e estimular reações nas massas não é uma
característica que compete unicamente ao nosso período:
A diferença com o passado é que, agora, [...] a mídia não se define como
mero instrumento de registro de uma realidade, e sim como dispositivo de
produção de certo tipo de realidade, espetacularizada, isto é,
primordialmente produzida para a excitação e o gozo dos sentidos‖
(SODRÉ, 2016, p. 79).
Podemos afirmar que a interferência das mídias é mais latente, pois
―persuadir, emocionar, abrir os canais lacrimais do interlocutor por meio do apelo
desabrido à banalidade são recursos centrais da retórica propagandística,
aperfeiçoada pela publicidade e pelo marketing de hoje.‖ (SODRÉ, 2016, p. 79).
Como sequela, torna-se inevitável que ocorra uma descaracterização do que
deveria ser o exercício político, reduzir a estratégia política à pornografização, faz
com que ―a política se torne [...] inevitavelmente de pouco fôlego, de curto prazo, e
se dilua em enrolação‖ (HAN, 2018, p.3 9), além disso, o acesso às informações
divulgadas pelas mídias foram facilitados, a profundez do apelo a emoção é
tamanha que o sujeito afetado, por muitas vezes, não é capaz de avaliar
racionalmente a influência desse meio na construção de suas crenças.
51
Na propaganda nazista, os agentes condicionais simples eram as
demonstrações de poder militar. Complexa era a vasta gama de recursos
simbólicos aplicados nas manifestações (bandeiras, estandartes,
emblemas, uniformes, cânticos, saudações, frenesi corporal, etc.) e nos
meios de comunicação (rádio, teatro, cinema, jornais). Todos esses
recursos obedeciam a sintaxe do espetáculo, isto é, da encenação
suscetível de cativar ou distrair um público determinado. E esse é um tipo
de jogo cujo material básico é a emoção (SODRÉ, 2016, p.77).
A incapacitação causada pelo forte apelo emotivo é estudada por Naomi Klein
em A doutrina do choque, obra em que retrata o chamado ―capitalismo de desastre‖,
caracterizado por necessitar para sua sobrevivência da ―produção do choque – seja
econômico, seja político, seja subjetivo‖ (TIBURI, 2017, p.129).
Um exemplo do uso do choque é a proposta da Reforma da Previdência feita
pelo governo do atual presidente Jair Bolsonaro. A todo momento nos jornais das
grandes emissoras os membros da equipe econômica do governo Bolsonaro,
principalmente representados pela figura do Ministro Paulo Guedes, aparecem
dando declarações assustadoras sobre a importância da aprovação dessa reforma,
e afirmando que caso ela não seja aprovada as consequências serão trágicas. Antes
o
indivíduo suportava o sofrimento terrestre graças às esperanças de um
paraíso. [...] as esperanças religiosas foram progressivamente substituídas
por esperanças sociais, que consistem basicamente em narrativas coletivas
sobre recompensas futuras capaz de tornar suportáveis os sacrifícios
presentes (SODRÉ, 2016, p.158).
Logo, fica claro que as manifestações relacionadas a esse tema apelam a
esse recurso da recompensa e também às emoções, aqui mais especificamente
fazem o uso do medo, pois: ―A instilação coletiva do medo (tida por Hobbes como a
emoção fundamental) faz parte de estratégias contemporâneas de controle de
comportamentos que baseiam seus recursos retóricos na semiose da velha
propaganda política13.‖ (SODRÉ, 2016, p. 75). O objetivo do uso do choque é que
ele possa ―ser aplicado em casos individuais ou coletivos quando se trata de
―quebrar resistências‖ e ―promover rupturas violentas‖ (TIBURI, 2017, p.130).
Caminhamos aqui por terreno fértil em reflexões, e acreditamos que esses
são apontamentos necessários levando em consideração as características que
definem o sujeito da pós-modernidade, o reflexo das influências sofridas fora do
espaço escolar que fazem ecoar nas vozes de nossos jovens estudantes perguntas
13
―São claros exemplos disso os filmes de catástrofe norte-americanos‖ (SODRÉ, 2016, p.75)
52
e afirmações que são estimuladas pelo amplo acesso às mídias, ou seja, o
perguntar, a inquietação, ocorre sem que haja uma verdadeira excitação do sujeito.
O que ocorre são ondas de indignação, caracterizadas por serem ―incontroláveis,
incalculáveis, inconstantes, efêmeras e amorfas. Elas se inflam repentinamente e se
desfazem de maneira igualmente rápida.‖ (HAN, 2018, p. 21). Essas ondas de
indignação não são capazes de gerar a movimentação necessária para causar uma
disposição para o pensar. A fluidez, que é característica desse tipo de
comportamento, não fornece fundamentos para o desenvolvimento crítico do sujeito,
o que percebe-se é a desagregação das lutas sociais.
Podemos atribuir boa parte dessa influência sofrida às mídias. Não devemos
responsabilizar os meios de comunicação e aos profissionais da área pelos
problemas enfrentados atualmente na relação entre os sujeitos, o conhecimento, a
verdade e a realidade que o cerca. Conforme a ideia de sujeito apresentada no início
(Capítulo I) podemos afirmar que quando os sujeitos abrem um jornal, ligam a TV,
acessam e compartilham informações nas redes sociais, eles estão ―aceitando
ocupar o lugar de espectador-voyeur‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 253). Obviamente,
cada meio de produção de informações escolhe a perspectiva a ser apresentada
sobre o acontecimento, por isso:
É preciso ter em mente que as mídias informam deformando, mas é preciso
também destacar, para evitar fazer do jornalista um bode expiatório, que
essa deformação não é necessariamente proposital. Mais uma vez é a
máquina de informar que está em causa, por ser ao mesmo tempo
poderosa e frágil, agente manipulador e paciente manipulado
(CHARAUDEAU, 2015, p. 253).
A atuação manipuladora da mídia também é limitada, é preciso se policiar
para não rotular as mídias como as grandes vilãs, ou como se fazia há algum tempo
como o ―ópio do povo‖. Precisamos compreender a mídia como uma instância que é,
sim, capaz de exercer grande influência sobre o sujeito, mas ter consciência também
de que a própria mídia pode ser manipulada. Essa manipulação ocorre de duas
maneiras: por pressão externa e por pressão interna.
A pressão externa é causada por três fatores, sendo eles: a atualidade, o
poder político e a concorrência. Vamos nos ater por um momento ao segundo dos
três, o político, que ―é também parte interessada na construção da agenda midiática,
e, de maneira geral, no jogo de manipulação‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 257).
Não é mais espantosa a ideia de que as declarações dadas por políticos aos
53
jornalistas e a outros profissionais pecam quando o assunto é a verdade. Os
políticos também fazem uso das mídias para obtenção e manutenção do poder.
Podemos nos perguntar: Se os veículos de informação apresentam o acontecimento
por sua perspectiva (como foi afirmado acima) como os políticos podem fazer uso
desses meios para benefício próprio? Charaudeau esclarece-nos que ―as mídias se
acham presas [...], pois mesmo que pesquisem para confirmar a veracidade do que
dizem ou para denunciar as mentiras, são obrigadas a divulgar as declarações dos
políticos, logo, a dar livre curso a seus efeitos.‖ (2015, p.258). Logo, por mais que
pretendam a neutralidade as instancias midiáticas e seus profissionais, estão
submetidos a algumas pressões que impedem, pois, não é ―o próprio jornalista que é
manipulador, pois ele mesmo está preso numa máquina manipuladora. A instância
midiática é vítima de seu sistema de representação‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 260).
A mídia, de certa forma, e dentro de suas limitações, contribui positivamente
para o funcionamento da nossa sociedade. Ao pensarmos a mídia ―como um
organismo especializado que tem a vocação de responder a uma demanda social
por dever de democracia.‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 58), extinguimos a capacidade
de manobra que ela têm sobre as massas, por mais que as informações, algumas
vezes não pretendam a esse fim, e que a manipulação ocorra de forma sutil, não se
pode dizer que não ocorre em nenhuma medida, pois a neutralidade dissimulada, a
defesa de que o único critério utilizado para a escolha do que é veiculado é o da
verdade, evita o surgimento de qualquer tipo de desconfiança sobre o objetivo do
meio de comunicação ao publicar qualquer notícia ou informação, cria-se uma
relação de crença. Charaudeau afirma que:
Não há ―grau zero‖ da informação. As únicas informações que se
aproximam do grau zero, entendido como ausência de todo implícito e de
todo valor de crença, [...] são aquelas que se encontram em páginas de
anúncios de jornais (2015, p. 59).
As notícias são disseminadas como se não existisse nenhum tipo de lógica
simbólica14, ―que faz com que todo organismo de informação tenha por vocação
participar da construção da opinião pública.‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 21). Além
14
Patrick Charaudeau define a lógica simbólica como a ―maneira pela qual os indivíduos regulam as
trocas sociais, constroem as representações dos valores que subjazem a suas práticas, criando e
manipulando signos e, [...] produzindo sentido. (CHARAUDEAU, 2015, p.16) Segundo o autor, a
lógica simbólica governa a lógica econômica (que faz viver uma empresa) e a lógica tecnológica (que
estende a qualidade e a quantidade de sua difusão).
54
disso, as redes de comunicação são empresas que estão inseridas em uma lógica
comercial que ―a obriga a recorrer a sedução, o que nem sempre atende à exigência
de credibilidade [...] que lhe cabe na função de ―serviço ao cidadão‖ [...]‖
(CHARAUDEAU, 2015, p. 59), essa aparente neutralidade e a recorrente afirmação
de informar sem se posicionar, torna a análise do discurso midiático uma tarefa
difícil:
As mídias constituem uma instância que não promulga nenhuma regra de
comportamento, nenhuma norma, nenhuma sansão. Mais que isso, as
mídias e a figura do jornalista não têm nenhuma intenção de orientação
nem de imposição, declarando-se, ao contrário, instância de denúncia do
poder (CHARAUDEAU, 2015, p. 18).
Por crer na pretensão das mídias em construir uma lógica simbólica, e por
reconhecê-la como uma instância de poder, é que estudos devem ser dedicados à
ela, pois a construção de significados que dão sentido ao real interferem diretamente
no ―mundo político, que precisa delas para sua própria ―visibilidade social‖ e as
utiliza com desenvoltura (e mesmo com certa dose de perversidade) para gerir o
espaço público [...]‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 15-16), o véu da imparcialidade que
protege o discurso, turva a visão do sujeito.
Os educandos não apresentam nenhum tipo de receio em reproduzir em sala
discursos que são fomentados de forma muito mais explícita fora do espaço escolar,
pois se sentem de diversos modos autorizados a fazê-lo. A afirmação e reprodução
de discursos de ódio (racistas, homofóbicos, fascistas, machistas, entre outros)
parece ter sua origem relacionada a sujeitos que possuem popularidade (políticos,
youtubers, artistas e outros indivíduos públicos) e que publicam diariamente em
redes sociais discursos com informações pautadas em suas crenças.
As provas da verdade, ou, melhor dizendo, da veracidade de uma
informação são, [...] da ordem do imaginário, isto é baseadas nas
representações de um grupo social [...] Os meios discursivos utilizados para
entrar nesse imaginário incluem o procedimento de designação, que diz ―O
que é verdadeiro eu mostro a vocês (CHARAUDEAU, 2015, p. 55).
Esses sujeitos acima citados desempenham um papel de notoriedade na
sociedade, ―o que lhe confere certa autoridade e faz com que, quando ele informa, o
que diz pode ser considerado digno de fé.‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 52). Os
próprios estudantes citam alguns desses indivíduos como suas referências,
inspirações quando questionados pelo motivo de estarem defendendo tais discursos
55
e ideias. A agilidade com a qual é possível publicar e compartilhar as informações
―torna uma descarga de afetos instantânea possível.‖ (HAN, 2018, p.15).
Esses personagens virtuais se estabelecem como ídolos e não são admitidos
questionamentos sobre as ideias difundidas por eles. Constata-se que:
O espetáculo é a reconstrução material da ilusão religiosa. A técnica
espetacular não dissipou as nuvens religiosas em que os homens haviam
colocado suas potencialidades, desligadas deles: ela apenas os ligou a uma
base terrestre (DEBORD, 1997, p.19).
A crença foi redirecionada e os sujeitos tratam celebridades da internet, por
exemplo, como deuses, como possuidores de toda a verdade. O que ocorre aqui é o
que Charaudeau define como efeito de verdade, este: ―[...] Surge da subjetividade do
sujeito em sua relação com o mundo, [...] que baseia-se na convicção, e participa de
um movimento que se prende a um saber de opinião, [...]‖, quando na verdade
deveriam apoiar-se no valor de verdade que se fundamenta em evidências, e ―se
realiza através de uma construção explicativa elaborada com ajuda de uma
instrumentação cientifica [...]‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 49).
No momento em que transferimos essa ausência de evidências para o debate
político, as dificuldades de promover um espaço de discussão pacífica e
democrática se acentuam, de modo que pretendemos aqui concentrar nossa
atenção primeiramente na análise de mais uma possível origem desse ódio e dessa
intolerância com a diversidade. Com o objetivo de identificar a origem dos discursos
reproduzidos em sala de aula, recorremos, em um primeiro momento à pesquisa
realizada por Marco Aurélio Monteiro intitulada Mídia e política: teoria e percepção
dos jovens universitários que pretende:
analisar o papel que a universidade pública brasileira desempenha para a
consolidação de uma cultura política democrática, tendo como foco o
comportamento dos universitários frente à passagem pela universidade,
bem como suas percepções diante da democracia e da mídia (MONTEIRO,
2009, p. 2).
Visando identificar em que medida a formação cidadã proporcionada pela
escola influencia os jovens em relação as suas concepções políticas, tomamos por
norte a análise feita por Monteiro e transferimos o foco para estudantes do ensino
médio do colégio no qual o projeto foi aplicado, para que possamos compreender o
modo como eles se relacionam com a grande mídia e com a manipulação das
imagens em relação aos assuntos políticos. Essa pesquisa proporcionará também a
56
possibilidade de colocarmos interrogações sobre algumas afirmações feitas por
políticos profissionais sobre a formação oferecida pelas escolas públicas.
Antes da aplicação da pesquisa fora esclarecido aos estudantes que era
opcional respondê-la e que os dados coletados naquele momento contribuíam para
este trabalho. Os sujeitos que responderam à pesquisa são estudantes do Ensino
Médio, do Colégio Estadual Barão do Cerro Azul, que fica no município de Cruz
Machado, interior do Paraná. Para caracterizar de forma mais precisa o público
atendido pela escola no Ensino Médio foi aplicado um questionário online 15.
Como pode-se observar nos resultados apontados pelos gráficos abaixo, os
estudantes têm idades entre 14 e 22 anos. A maioria dos que responderam à
pesquisa residem na área urbana do município, característica que deve-se ao fato
de a escola estar localizada na área central do município, ainda assim há um grande
número de alunos que residem no interior do município e frequentam a escola na
área central.
Apresentamos a seguir os gráficos obtidos a partir do resultado do
questionário:
Figura 2: Índice de faixa etária
15
Disponível em: <https://docs.google.com/forms/d/121UVcZgWtQrvmcnyyTL3GDaD3WVwseW-
4jTKal9Jvk4/edit#responses>
57
Figura 3: Índice de acesso à internet
Figura 4: Índice de localidade (rural ou urbana)
58
Figura 5: Índice de interesses no uso da Internet.
Cresce aos olhos o fato de que 90,4 (%) das localidades já possuírem acesso
à internet, em um município pequeno e com uma grande área de extensão rural. O
fato da grande maioria possuir acesso à rede de internet, deveria contribuir de forma
mais significativa para a formação dos jovens, porém quando observamos os dados
do gráfico em que os jovens definem as finalidades para as quais mais utilizam a
internet vemos que 80,8% apontaram as Redes Sociais como principal finalidade de
uso da rede, ou seja, ―a ampliação técnica da tradicional esfera pública pelo advento
da mídia ou de todas as tecnologias da informação não implica necessariamente o
alargamento da ação política.‖ (SODRÉ, 2016, p.158).
Levando em consideração a discussão proposta pelo trabalho ser relacionada
à Filosofia Política, os estudantes responderam também as seguintes questões:
Figura 6: Índice de interesse em assuntos políticos.
59
Figura 7: Índice de meios utilizados para obter informações sobre o
cenário político.
Figura 8: Índice de influência externa no posicionamento político.
Figura 9: Índice de meios que influenciam convicções políticas.
60
Como se pode observar claramente no gráfico acima, os estudantes apontam
como principal fonte de influência de seus posicionamentos políticos os meios de
comunicação. Nota-se também, que boa parte dos estudantes não sabem afirmar se
são ou não influenciados, talvez este seja um dado recorrente do discurso de
neutralidade das mídias, por meio desse discurso, elas são capazes de causar
influências na visão de mundo dos indivíduos, de formas tão sutis que a tomada de
consciência torna-se difícil.
A escola aparece com 3,8 (%) de influência, o que nos fornece os subsídios
para que nesse momento afirmemos, no âmbito da escola em que a pesquisa fora
realizada, que as acusações do projeto intitulado ―Escola sem partido‖ não partem
da realidade da escola, logo, o descolamento do real não se dá somente na relação
dos jovens com a política, mas dos políticos com a realidade dos jovens e das
escolas também. Não podemos, nem devemos tomar esses dados como base de
argumentação para questionar o projeto em nível nacional, para tanto seria
necessária uma pesquisa com uma abrangência muito superior a realizada aqui.
Porém, podemos estabelecer os dados computados pela pesquisa como base para
defender tanto a intenção do projeto aplicado na escola por meio do Programa de
Mestrado Profissional, como também para rebater as acusações sofridas pelos
educadores, quando taxados de doutrinadores.
O resultado desta pesquisa leva-nos a questionar a justificativa que embasa o
projeto ―Escola sem partido‖, e acreditar que objetivo da reforma seja diminuir o
acesso dos estudantes a uma educação que forme cidadãos críticos. Dessa forma,
mais uma vez podemos identificar o uso da doutrina de choque apresentada por
Naomi Klein, pois as acusações sobre discursos de doutrinação, ideologias de
gênero, politicagem entre outros, são úteis para que a população aceite o projeto
como necessário, que compreendam a indispensabilidade da reforma por meio de
informações falaciosas que são disseminadas por meios de comunicação, e sujeitos
mal intencionados (doutrina do choque).
Não bastasse o prejuízo para a educação dos indivíduos, o estímulo a esses
ataques afeta e precariza tanto o trabalho, quanto a saúde psicológica dos
professores e professoras que lecionam nas redes estaduais, federais e municipais
de ensino. Os sujeitos, que apoiam o projeto ―Escola sem partido‖, não se dispõem
para debater os temas tratados nas reformas propostas, tornando impossível a
desconstrução da ideia de mau uso do tempo e do poder dos professores sob os
61
alunos, se é que atualmente os professores tenham algum poder sob seus alunos.
Sob o olhar dos que defendem essas ideias os estudantes são tábulas rasas,
caixas vazias, seres sem vida, sem capacidade de pensar. Por trás dessa tentativa
de tornar a escola um espaço neutro, ou de formar para o mercado de trabalho, são
banidas disciplinas, conteúdos e temas que são de suma importância para a
formação de um cidadão com postura crítica, capaz de transformar a realidade em
que está inserido.
Além disso, a reforma proposta descumpre vários aspectos previstos na Lei
de Diretrizes e Bases, que estabelece os fundamentos da educação nacional, como
por exemplo, o que fica estabelecido no Artigo 35: ―ensino médio, etapa final da
educação básica, [...] terá como finalidades:
- a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no
ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;
- a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para
continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade
a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;III - o
aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação
ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento
crítico;IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos
processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de
cada disciplina
I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no
ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;II - a
preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para
continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade
a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;III - o
aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação
ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento
crítico;IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos
processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de
cada disciplina. (PARANÁ, 2008).
A implementação do projeto ―Escola sem Partido‖ descumpre totalmente o
terceiro item apresentado como finalidade da formação na etapa do Ensino Médio,
além de ferir todos os outros, pois busca única e exclusivamente uma formação
técnica, com o objetivo de inserir no mercado de trabalho sujeitos obedientes e
acríticos. Pretendemos explanar neste trabalho as afirmações e convicções com as
quais nos deparamos dentro de sala de aula, que em muito se assemelham com a
abordagem da mídia sobre os assuntos políticos, e que as divergências são sempre
bem-vindas em espaços de debate sobre a política.
62
Desde 2015 de maneira mais aberta e severa, enfrentamos a presença de um
posicionamento radicalmente intolerante, a postura de abertura ao debate deu lugar
a um comportamento combativo, que visa eliminar toda alteridade, quem pensa
diferente deve ser aniquilado, humilhado, odiado e ridicularizado, esse
comportamento reflete a crítica feita por Han ao excesso de positividade, pois
quando não existe o contato com a negatividade o sujeito torna-se intolerante a
qualquer negatividade.
Outro fator que influencia na inibição do interesse pelo debate com relação a
política é a constante exibição de casos de corrupção, desvios, roubos, veiculados
pela mídia, o modo como os fatos são apresentados, posicionam a corrupção como
uma consequência da liberdade proporcionada pela democracia. A
espetacularização da política tem efeitos nocivos como:
a falta de participação dos cidadãos na vida coletiva, o abstencionismo ou a
indiferença eleitoral crescentes, e a despolitização tendencial do Estado. [...]
As mídias entram no espaço vazio da soberania popular e da desvinculação
entre o corpo político e o corpo homem na rua. As tecnologias da
comunicação ampliam o espaço público, mas apenas de modo técnico ou
retórico (SODRÉ, 2016, p. 161).
A evidência dada aos casos de corrupção levou os brasileiros a
desacreditarem sua ainda tão jovem democracia, tornando comuns afirmações do
tipo ―roubar está no sangue do povo brasileiro‖, ―todo político brasileiro é corrupto‖, e
assim por diante. A população que odeia e não discute a política tirou de suas mãos
a responsabilidade sobre ela, deixando o espaço antes ocupado por elas vazio, e
como consequência da instauração desse desligamento entre o homem e a política,
observamos um crescente movimento favorável à instauração da ditadura e de
medidas violentas como solução para problemas sociais.
A mais atual consequência desse comportamento que confirma o desencanto
do povo com a democracia e com a política é a eleição do presidente Jair Bolsonaro
do Partido Social Liberal (PSL), que já em 1999 quando era deputado, deixava
evidente seu pouco-caso com a democracia quando afirmou em uma entrevista que:
―daria o golpe no mesmo dia‖ em que assumisse a Presidência, fechando o
Congresso Nacional – e eliminando, portanto, a função de contrapeso
exercida pelo Poder Legislativo); 2) ―através do voto você não vai mudar
nada nesse país‖; 3) o país só mudará ―no dia em que partir para uma
guerra civil‖, ―fazendo o trabalho que o regime militar não fez‖, ―matando uns
30 mil, começando pelo FHC.
63
É importante afirmar que o descontentamento com a política foi o que levou
Bolsonaro ao poder, já que como nos mostram os dados no gráfico abaixo a
porcentagem de votos recebidos e a soma dos votos, nulos, brancos e abstenções
são absurdamente próximas:
Figura 10: Eleições presidenciais 2019. (Fonte: G1)
O desligamento do real, a falta de mobilização, a transição de um
comportamento de massa para um comportamento de enxame que é caracterizado
pela falta de decisão, pela dissolução rápida de suas ondas de indignação, que ―não
desenvolvem nenhuma energia política‖ (HAN, 2018, p. 31-32), este comportamento
do sujeito contemporâneo está atrelado a eleição do atual presidente de forma muito
mais latente do que o desejo pela volta da ditadura ao país. A crença de que para
assaltar os cofres públicos basta ser brasileiro faz com que discursos
antidemocráticos ganhem corpo, pois a compreensão difundida sobre a ditadura,
como podemos notar nas afirmações dadas por Jair Bolsonaro em entrevista 16, é de
que seria um governo no qual todas as injustiças e crimes serão punidos com
16
https://exame.abril.com.br/brasil/justica-proibe-governo-bolsonaro-de-comemorar-
golpe-de-64/> Acesso em: 30/ 03/ 2019.
64
torturas, prisões e mortes, e que com isso teríamos um país sem corrupção, mais
uma vez temos a crença na capacidade educativa do medo. É trágico que um país
que já passou parte de sua história sob um regime ditatorial tenha eleito um
presidente que a defenda com tanta convicção.
Marcia Tiburi, professora de filosofia e escritora, produziu um livro intitulado
Ridículo político, dedicado ―à relação entre política e estética‖. Na introdução do
livro, a autora afirma que a estética está relacionada ―não apenas ao reino do
aparecer, nem somente ao que, [...] definimos como aparência, mas ao imenso
campo dos afetos, [...]‖ (TIBURI, 2017, p. 12). Em consonância com a afirmação de
Tiburi, Sodré também apresenta essa conexão entre esses dois grandes campos de
estudo da filosofia afirmando que a ligadura entre política e estética não é uma
novidade, pois, na Grécia antiga, por exemplo, ―tornar-se visível no espaço comum –
o que é um apelo à intervenção dos sentidos – estava na base da atividade política‖
(SODRÉ, 2016, p. 126).
Nesse caso o ―estético‖ [...] não estava no aproveitamento das práticas
deliberada e exclusivamente voltadas para impressionar as faculdades
sensoriais, e sim na divisão por meio do sensível entre os incluídos e os
excluídos no comum da cidadania (SODRÉ, 2016, p.126).
O uso racional das emoções, relacionado a sociedade espetacular em que o
aparecer é banalizado e super valorizado, ―tudo pode ser espetacularmente
transformado em imagem. [...] A prevalência da imagem e do espetáculo no universo
da política significa, na verdade, a desmobilização do espaço público tradicional‖
(SODRÉ, 2016, p.159-160). O ódio expressado pelos estudantes em relação à
política seria vinculado à forma como são afetados pela política, pois:
[...] podemos falar em um mal-estar que faz muita gente se expressar
dizendo que tem ―nojo‖ da política. [...] O nojo é impalatável, um verdadeiro
desgosto e, ao mesmo tempo uma espécie de anestesia. O nojo nos
cancela. [...] Se lembrarmos que nojo também significa luto, chegamos perto
do nosso problema maior: continuar amando aquilo que perdemos e, na
ilusão de que a repulsa garantirá um sofrimento menor diante da perda,
acabamos por odiar. (TIBURI, 2017, p. 12).
O senso comum faz questão de reafirmar seu ódio e desgosto em relação à
política e as suas práticas. Tiburi afirma acima o potencial anestésico do desgosto,
nós chegamos a um ponto em que existem partidos, políticos, emissoras, revistas,
jornais, que encontraram nesse ódio anestésico uma forma de manipular as
65
pessoas, fazem questão de alimentar esse sentimento, pois o ódio pode ser uma
arma muito poderosa, se canalizado na direção certa. ―Comunicar, informar, tudo é
escolha. Não somente escolha de conteúdos a transmitir, não somente escolha das
formas adequadas [...] mas escolha de efeitos de sentido para influenciar o outro,
isto é, no fim das contas, escolha de estratégias discursivas.‖ (CHARAUDEAU,
2015, p. 41). Os efeitos que as estratégias discursivas serão capazes de gerar são
variáveis, pois dependerão de alguns aspectos que correspondem à subjetividade
do sujeito receptor da informação, o que podemos e devemos fazer em relação a
algumas notícias e informações veiculadas é nos perguntar ―sobre os efeitos
interpretativos produzidos‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 47), ou seja, quando a
informação transmitida não tem como finalidade somente descrever, contar ou
explicar o acontecimento. E ao invés,
de inclinar-se para saberes de conhecimento (―o presidente da comissão
entrega o relatório ao primeiro-ministro‖), põem em cena saberes de crença
que apelam para a reação avaliativa do leitor (―o presidente da comissão
entrega uma bomba ao primeiro-ministro‖) Assim, como se vê, são as
palavras que apontam para as representações. (CHARAUDEAU, 2015, p.
48).
Os critérios dos conteúdos midiáticos estão longe de ser somente a qualidade
e a veracidade/objetividade da informação, é importante destacar que ―os interesses
representam para a notícia um termômetro indispensável‖ (MEDINA, 1988, p. 20).
Quando as estratégias discursivas, e os malabarismos possibilitados pela linguagem
são aplicados a notícias e informações relacionadas à política também há um certo
jogo de interesses (maior do que o interesse em garantir a audiência), envolvendo
as informações.
As novas tecnologias acabam por massificar as notícias que deveriam servir
para colocar em evidência as discussões dos temas públicos. Como as
notícias passam a possuir valor econômico, é preciso fazer com que elas
sejam agradáveis ou chamem a atenção do espectador, pois o que está em
voga para os meios de comunicação de massa é a audiência, o que
significa que o debate público muitas vezes é enquadrado segundo a
percepção dos meios de comunicação, rotulando discursos políticos para
conseguir audiência. Assim, há uma perda substantiva do conteúdo e dos
valores da política (MONTEIRO, p. 3).
Logo, o complexo sistema político e a tão jovem democracia viram-se
resumidos por grande da parte da mídia a duas polaridades: esquerda e direita,
termos utilizados de forma irresponsável, pois não apresentaram a consistência e
66
profundidade que pertence a cada uma dessas correntes de pensamento político. A
partir desses dois termos e da divisão causada por eles, foram fomentados cada vez
mais o ódio e a repulsa entre os dois posicionamentos. Chegamos a um ponto
importante de nosso estudo, pois encontramos aqui a necessidade de olhar com
atenção para esse ódio que paralisa, que nas mãos das grandes empresas
midiáticas é capaz de provocar mudanças no pensamento político e como
consequência no cenário político vigente.
O estudo feito pelo jornalista Jammal Makhoul nos mostrará como a revista
Veja se apropriou desse ódio e o canalizou em um alvo por meio de suas capas
nada neutras. O jornalista em sua tese de mestrado em Ciência Política intitulada ―A
cobertura da revista Veja no primeiro mandato do presidente Lula‖ realizou uma
pesquisa sobre a revista.
É importante frisar que a revista Veja é uma das mais consumidas17 no Brasil,
logo podemos afirmar que o conteúdo veiculado por ela pode causar um grande
impacto e difundir facilmente suas ideias. Em entrevista ao Escrevinhador, Jammal
explica como surgiu a ideia e a necessidade de produzir este estudo:
[...] De 2005 para cá, a revista se perdeu completamente em reportagens
baseadas em ilações e xingamentos, que ignoraram as regras mais básicas
do jornalismo e rasgaram todos os códigos de ética da profissão. Virou um
verdadeiro pasquim, com matérias que se revelaram fantasiosas e
recheadas de ataques e manipulações da informação. Isso não quer dizer
que o PT e o governo Lula sejam os bonzinhos da história e nem as vítimas
da grande imprensa. Pelo contrário, houve erros gravíssimos na
administração federal, que precisavam ser apurados e divulgados pela
mídia. [...] (MAKHOUl, 2010).
Em sua pesquisa, o jornalista Makhoul constata que o governo Lula aparece
mal em metade das capas de 2005. É importante recordar que 2005 é ano em que
se inicia o escândalo do mensalão. Vejamos um dos dados coletados pelo jornalista:
―Das 52 edições, Lula e o PT aparecem de forma negativa em 24 capas, sendo 18
delas classificadas pela própria Veja no tema escândalo.‖ (MAKHOUl, 2010). Em
todas as capas estudadas pelo jornalista são feitas afirmações de cunho ofensivo à
figura do presidente da época, que o atacam como pessoa, nota-se também que os
17
Segundo dados da própria revista, ―são 862 mil exemplares em circulação toda semana, sendo a
maior entre as semanais de informação do Brasil e a segunda maior no mundo, alcançando toda
semana mais de 6 milhões de leitores no impresso e no digital‖. Informações disponíveis
em: <http://publiabril.abril.com.br/marcas/veja>
67
textos publicados pela revista são permeados por um tipo de ódio a pessoa Luís
Inácio Lula da Silva e não estritamente aos problemas de seu governo.
Nas eleições do ano de 2014, a política brasileira passou a ser assunto
discutido em toda e qualquer situação. A batalha entre PT e PSDB era o foco e
causou, então, uma tomada relâmpago de consciência, em que grande parte da
população assumiu um posicionamento em relação ao cenário político da época,
dando à política uma característica antes pertencente ao futebol: a rivalidade entre
torcidas opostas.
Parte da criação dessa rivalidade tem seu fundamento na capacidade de
dramatização dos acontecimentos por parte das mídias. Essa dramatização é
aplicada na abordagem de diversos acontecimentos como exemplo, os ―políticos,
tratados ora como uma luta de boxe entre representantes de partidos opostos, ora
como num palco no qual os atores se insultam [...]‖ (CHARAUDEAU, 2015, p. 254).
Uma vez selecionados os acontecimentos, as mídias os relatam de acordo
com um roteiro dramatizante, que consiste, [...] em (1) mostrar a desordem
social com suas vítimas e seus perseguidores; (2) apelar para a reparação
do mal, interpelando os responsáveis por este mundo; (3) anunciar a
intervenção de um salvador, herói singular ou coletivo com o qual cada um
pode identificar-se (CHARAUDEAU, 2015, p. 254).
Nesse contexto, pode-se afirmar que o papel da mídia têm seus prós e
contras. A facilidade com que os cidadãos tem acesso às informações e a enorme
possibilidade de manifestação de seus pontos de vista, podem ser tomadas como
benesses proporcionadas pelo amplo acesso as mídias. A democratização dos
meios de produção de informação é grande e já produz efeitos profundos no modo
como se pensa e se faz política atualmente18, Muniz Sodré cita como evidência da
influência da tecnologia na política as:
eleições municipais no Brasil em 2004, assim resumido pela imprensa: ―A
campanha foi cara, uma das mais caras de todos os tempos. O debate, nem
sempre elevado, o marketing regeu a cena. [...] a candidata à reeleição para
a prefeitura de São Paulo (Martha Suplicy) atribuiu sua derrota a ―fatores
políticos. Midiáticos e sociais‖, inscrevendo, possivelmente pela primeira
vez, o adjetivo relativo a mídia ao lado de fatores tradicionalmente afins à
democracia representativa (SODRÉ, 2016, p. 163).
É importante ressaltar que uma tomada de consciência e a discussão em
18
―Isso não quer dizer, entretanto, que a televisão e o marketing decidam sozinhos um processo
eleitoral. Geralmente, a função do marketing é converter em votos a imagem pública do político
profissional, o que se faz a partir de índices de aprovação/ rejeição fornecidos por pesquisas de
opinião.‖ (SODRÉ, 2016, p. 164)
68
relação à realidade política de um país é de suma importância para seu
desenvolvimento, porém deve-se observar que o trabalho realizado pelas equipes de
marketing dos políticos profissionais afeta o sujeito de forma descabidamente
emocional, mas pelo uso indevido das mídias, devemos temer as consequências
que essa consciência inconsistente poderá acarretar.
A política torna-se, assim, uma outra coisa. O discurso político continua tão
retórico quanto antes, quer dizer, tão sedutor e possivelmente tão falaz quanto no
passado. Mas se antes ele fazia o jogo da verdade, isto é, cobria uma suposta
verdade histórica com os véus da linguagem, agora não há realmente nenhuma
aposta na vinculação ontológica entre as palavras e as coisas.
A falta de conexão com a realidade das informações veiculadas por alguns
meios de comunicação está contribuindo para a extinção da verdade. Estamos
vivendo uma época em que tudo é relativo a um ponto de vista, ao modo de ver e
interpretar o mundo e os fatos, a verdade não é mais tão valiosa de modo que cada
sujeito carrega consigo suas verdades particulares.
3.1. Uma sociedade imagética e a construção de uma concepção negativa da
política
Os sujeitos contemporâneos reproduzem discursos sobre os mais diversos
assuntos motivados por uma mídia hegemônica, que ainda está sob a posse de uma
minoria. O convívio com as mídias acontece desde que nascemos, pois ao nascer já
estamos inseridos em uma realidade com hábitos, costumes estabelecidos, a TV há
muito tempo tem um papel de destaque nas casas das famílias brasileiras, então
assistimos TV, acessamos à internet, criamos perfis em redes sociais, e esse
comportamento é tido quase que como parte constituinte da nossa natureza. Não
víamos a mídia ou as emissoras como instituições de poder.
Não tínhamos consciência de que existe um jogo de interesses e de poder em
relação à reprodução e produção de conteúdo em massa. Os veículos de
informação (jornais, TV, rádio, sites, entre outros) têm um objetivo e, de certo modo,
possuem uma ideia de onde pretendem chegar com a veiculação de algumas
notícias. Para isso, utilizam táticas sobre o tipo de efeito que pretendem causar a
esse ou aquele público, com esta ou aquela informação, usando de forma racional a
69
faculdade emotiva dos sujeitos que acompanham suas programações. A reprodução
incessante de ideias aliada ao uso racional do afeto pode convencer com mais
facilidade. Como um bom exemplo disso temos:
As táticas de discurso hitleristas configuram-se, primeiramente, como
estéticas na medida em que, como toda exaltação fanática, legitimam pela
dimensão sensível as suas convicções políticas e religiosas. [...] Serve para
convencer, no sentido racionalista do termo, e para agradar ou bajular, o
que dá bem o alcance de seu aspecto afetivo ou irracional (SODRÉ, 2016,
p. 74-75).
O uso das emoções como forma de mobilização dos afetos não é uma criação
atual. Talvez o que tenha de mais preocupante no recente uso da mídia é a
reprodução e proliferação de notícias com muita agilidade e facilidade. Notícias
essas que por muitas vezes são falsas. A agilidade e a facilidade em compartilhar
informações torna a vigilância sobre essas informações falsas muito difícil. Os
sujeitos que têm acesso à informação por meio da internet ainda não têm como
hábito a verificação daquilo que compartilham, preocupam-se pouco em verificar se
a informação compartilhada corresponde à realidade.
A bipolarização na política brasileira proporcionou aos cidadãos, um
comportamento quase que paranoico sobre a manipulação realizada pelas mídias,
de modo que os meios de comunicação são em vezes taxados de direita, outras de
esquerda, tudo depende do teor da notícia que veiculam. Os sujeitos da sociedade
pós-moderna não se emanciparam, mas sim trocaram de guru.
Os indivíduos buscam no real o espelhamento de si, e como consequência
disso carregamos ―para o espaço público todas as nossas necessidades que são da
ordem do privado. Transformamos o espaço público num receptáculo dos nossos
desejos internos.‖ (REYES, 2005, p. 23). Desse modo, a busca por informações é
guiada por interesses pré-determinados, ou seja, o sujeito possui um olhar para o
real interessado em reafirmar suas crenças e convicções particulares.
A escolha passa a ser o ―carro-chefe‖ dessa nova cultura. Estamos frente a
um universo de informação cada vez mais fragmentado e diversificado,
totalmente disponível ao meu desejo. Escolho aquilo que me é caro, aquilo
que faz parte do meu desejo (REYES, 2005, p. 31).
A internet torna-se, então, o lugar onde se pode dar forma ao mundo,
deixando somente aquilo que me é aprazível, e está em consonância com a minha
70
verdade. O mundo real, ou o que está próximo, presente, o divergente não é mais
interessante, pelo contrário, causa incômodo, pois não pode ser formatado para
atender aos desejos particulares. Neste deste cenário é que surgem as chamadas
―pós- verdades‖.
No ano de 2016 ―pós-verdade‖ foi eleita a palavra do ano pelo Dicionário
Oxford que a definiu como ―um adjetivo definido [...] relacionado a ou denotando
circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião
pública do que apelos à emoção e à crença pessoal‖19. Nesse contexto, o raciocínio
lógico e análise racional dos fatos e discursos dão lugar a discursos que apelam
para a sensibilidade para alcançar seus interesses. O discurso ausente de
argumentos racionais e lógicos, afeta os sujeitos mais facilmente, pois não se faz
necessário atribuir ao mesmo nenhuma comprovação.
A estruturação do saber depende da maneira como se orienta o olhar do
homem: voltado para o mundo, o olhar tende a construir categorias de
conhecimento; mas, voltado para si mesmo, o olhar tende a construir
categorias de crença (CHARAUDEUAU, 2015, p. 43).
As notícias falsas, que apelam para as crenças e emoções para se
estabelecerem como verdades, sempre existiram, o que temos de novo é a agilidade
com que essas informações se espalham.
O uso das redes sociais e demais tecnologias elevou a pós-verdade a um
outro patamar. Segundo Silvio Genesini, um dos fatos que levou o conceito de pós-
verdade a palavra do ano foi a eleição de Donald Trump para presidente dos
Estados Unidos, pois ―a epidemia de notícias falsas fez com que os eleitores e a
opinião pública tomassem decisões equivocadas, baseadas na emoção e em
crenças pessoais, ao invés de fatos objetivos‖ (GENESINI, 2018, p. 47). Genesini
afirma ainda que não se pode atribuir diretamente a vitória de Trump às notícias
falsas, é necessário uma análise mais profunda sobre o poder das chamadas ―pós-
verdades‖ e sobre a influência exercida por ela nas decisões dos sujeitos 20. Como
19
Dicionário Oxford. Disponível em < https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-
year-2016 > Acesso em 17 de set de 2018.
20
Em reportagem veiculada pelo portal G1 no dia 31/10/2017, o conselheiro geral do Facebook Colin
Stretch afirmou: ―Agentes estrangeiros, escondidos por trás de contas falsas, abusaram da nossa
plataforma e de outros serviços de internet para tentar semear divisão e discórdia, e para tentar minar
o nosso processo eleitoral.‖ (G1 Portal de notícias, disponível em <
https://g1.globo.com/mundo/noticia/facebook-twitter-e-google-veem-influencia-da-russia-em-eleicoes-
nos-eua.ghtml > acesso em 18 de agosto de 2018.
71
afirma Sodré: ―Isso não quer dizer, entretanto, que a televisão e as massas decidam
sozinhos um processo eleitoral. (SODRÉ, 2016, p. 164).
Comprovada a interferência da Rússia nas eleições estadunidenses por meio
de perfis falsos criados nas redes sociais para impulsionar conteúdos mentirosos, o
que salta aos olhos são os dados sobre o alcance da campanha: ―somando os posts
gratuitos, foram impactados pela campanha 146 milhões de pessoas. Quase metade
da população americana‖ (GENESINI, 2018, p. 49). Em posse desses dados e com
a certeza de que a última eleição dos Estados Unidos sofreu uma grande influência
de notícias, nem sempre verdadeiras, veiculadas pelo Facebook, o idealizador da
rede social se comprometeu a contratar várias pessoas que seriam responsáveis por
filtrar postagens mentirosas, que incitem o ódio, a violência e o preconceito.
O excesso de postagens com conteúdo sensacionalista e mentiroso, fez com
que o aplicativo tomasse algumas precauções em relação aos conteúdos veiculados
nas páginas do Facebook: foram retiradas páginas que segundo a triagem feita
possuíam conteúdos ofensivos ou eram perfis falsos criados para reproduzir notícias
falsas.
Essas páginas e perfis faziam parte de uma rede coordenada que se
ocultava com o uso de contas falsas no Facebook, e escondia das pessoas
a natureza e a origem de seu conteúdo com o propósito de gerar divisão e
espalhar desinformação(BORGES, 2018).
Depois que Donald Trump foi eleito com possível influência de notícias falsas,
o idealizador do Facebook, Mark Zuckerberg, compreendeu que era necessário
haver um controle sobre o conteúdo que é compartilhado nas redes. Até aquele
momento, Zuckerberg afirmava que o Facebook não se responsabilizava pelo
conteúdo postado por seus usuários, e o trabalho de filtragem de conteúdo não era
uma prioridade da empresa.
Para que o processo de filtragem ocorresse a assessoria de imprensa da rede
social divulgou os critérios utilizados pela empresa para excluir as páginas. Segundo
o site da revista Época ―o Facebook tirou do ar 196 páginas e 87 perfis que violavam
as políticas de autenticidade da empresa‖21.Vivemos a época da chamada pós-
verdade, na qual:
21
https://epoca.globo.com/facebook-derruba-paginas-perfis-pessoais-ligados-ao-mbl-22917647>
Acesso em: 08/09/2018
72
A verdade em si não importa tanto, mas sim a mera satisfação de
representação de uma realidade que é por reiteradas vezes ratificada pelas
mídias digitais. [...] Pós verdade é a relação ou denotação de circunstâncias
em que os fatos objetivos são menos relevantes na formação da opinião do
que a invocação da emoção e da crença pessoal (CAJÚ, 2017, p. 2).
Observamos, por diversas vezes, discursos inflamados e cheios de emoção.
Mesmo o sujeito que não possui plena consciência do que é ser de direita, por
exemplo, autodeclara-se direitista e fomenta dentro de si um ódio por quem se diz
de esquerda. Saber conviver com o posicionamentos diferentes torna-se a cada dia
um desafio maior, pois como afirma Reyes:
amamos unicamente o que está distante sem ser conscientes de que
odiamos nosso próximo, porque está presente, [...] porque me incomoda,
porque me solicita, [...] à diferença do que está distante – do que posso me
safar [...] (REYES, 2005, p. 31).
Esse ódio fundado na presença do diferente, reproduz compreensões
errôneas ou até inverídicas sobre os posicionamentos divergentes na política.
Odiamos o próximo, única e exclusivamente, por representar a alteridade do mundo.
Como consequência da série de protestos e ataques feitos ao governo no ano de
2013, notamos que a presença constante e massiva desse tipo de comportamento
intolerante em sala de aula se aprofundou no ano de 2015, ano em que se iniciou o
processo de impeachment, que foi acompanhado por todos, com o mesmo interesse
com que se acompanha uma novela. Cada dia um novo capítulo regado de
acusações, ofensas, discursos machistas e preconceituosos, ter uma mulher como
presidenta pela primeira vez foi um grande avanço em relação a presença da mulher
na política, mas serviu também para reafirmar e expor a sociedade misógina a qual
pertencemos.
A então presidenta Dilma Roussef, durante esse processo foi atacada com os
mais diversos tipos de xingamentos e discursos de ódio, que a ofendiam como
mulher, e não como política. Discursos machistas continuam ecoando, desde a sala
dos professores até as salas de aula, sem nenhum tipo de constrangimento. Há uma
aceitação à proposta de punir profissionais da educação, alegando que os mesmos
abusam de sua liberdade de ensinar, não ensinam aos alunos sobre seus direitos,
ofendem suas crenças e convicções morais, e usam o tempo em sala de aula para
―fazer a cabeça‖ dos estudantes, expondo questões de natureza político partidárias.
Nota-se por essas afirmações que o conhecimento sobre a prática docente é
73
praticamente nulo, uma vez que o trabalho do docente pretende formar o sujeito com
capacidade crítica suficiente para fazer escolhas, e não subordiná-lo a ideias. Nota-
se com clareza que há aqui um problema conceitual que consiste na dificuldade em
discernir o que é Filosofia Política22 e o que é Politicagem23.
Todas essas acusações estão elencadas no projeto24 citado acima, com as
devidas punições ao docente que ousar descumpri-las. Isso nos leva a concluir,
então, que a falta de compreensão sobre o que é o estudo da política não é um
problema exclusivo do público adolescente, o discurso que alguns jovens
reproduzem é legitimado por um governo que não compreende qual o papel da
educação e da Filosofia, e que age de maneira ambígua, pois nos documentos
norteadores do ensino afirma que os professores devem ―preparar o estudante para
uma ação política consciente e efetiva‖ (PARANÁ, 2008, p. 58).
A preocupação dos governos com o que a juventude está aprendendo não é à
toa, mas acontece porque eles compreendem que por meio da educação é possível
desconstruir a lógica de uma sociedade machista, misógina, homofóbica e racista.
Os projetos apresentados pelo governo nos últimos anos deixam clara essa
tentativa de desmobilizar e criminalizar os movimentos sociais que têm como
objetivo a garantia e a obtenção de direitos. A educação e o currículo escolar são
também um espaço de disputa de poder. A formação do sujeito pode emponderá-lo
ou mantê-lo subordinado aos objetivos de uma classe dominante.
22
―A Filosofia Política busca compreender os mecanismos que estruturam e legitimam os diversos
sistemas políticos, discute relações de poder e concebe novas potencialidades para a vida em
sociedade.‖ (DIRETRIZES, 2008, p .58).
23
po·li·ti·ca·gem (política + -agem) substantivo feminino 1. [Depreciativo] Modo de fazer política que
visa garantir interesses particulares. = POLITICALHA, POLITIQUICE
2. [Depreciativo] Conjunto de políticos que se comportam desse modo.
24
Projeto de Lei n.º 867, de 2015.
74
4. O CINEMA COMO FORMA DE RESISTIR
4.1. A disposição filosófica como ultrapassamento da apatia
A supremacia da razão há muito tempo oprime o que tem origem nos afetos.
Desde os gregos a razão tem protagonismo quando se trata da construção de
conhecimento, e os afetos são encarados como o campo da desmedida, da mera
aparência. O mito da caverna de Platão, por exemplo, descreve sujeitos que estão
aprisionados as suas sensações, de modo que para alcançar o supremo bem,
precisam desvencilhar-se delas e buscar o desenvolvimento racional. Na concepção
platônica, a sensibilidade só é capaz de levar o sujeito ao conhecimento aparente
das coisas do mundo, enquanto a razão é capaz de contemplar as verdadeiras
ideias. A hierarquização proposta por Platão inaugura essa concepção que
permanece forte até hoje.
Essa estrutura hierárquica entre razão e afeto desenvolvida pelo filósofo
Platão, entre razão e afeto pode causar no sujeito um enrijecimento de sua
capacidade afetiva, ou seja, pode torná-lo incapaz de ser afetado.
A valorização do caráter racional proposta por Platão, ganha novas
roupagens nos tempos atuais, o excesso de proximidade, torna o olhar do indivíduo
indiferente com o mundo e com os outros. Não é o ―amor ao próximo, mas sim o
narcisismo que domina a comunicação digital.‖ (HAN, 2018, p. 86). A proximidade
digital tem pouca ou nenhuma relação com a alteridade, ela é narcísica na medida
em que permite uma adoração do ―eu‖, com selfies, a página do Facebok, Instagram
que é dedicada ao eu, as pessoas seguem se expondo constantemente, o culto do
―eu‖ é uma característica patente em nossa época. A mecanização das relações
humanas por meio do desenvolvimento tecnológico contribui para a concepção
racionalista que pretende sempre ―estar no controle‖.
No transe de sua quantificação cientifica e tecnológica, o mundo moderno
começa a suspeitar mais fortemente dos afetos ou paixões, como instâncias
de confusão ou de uma desmedida socialmente indesejável (SODRÉ, 2016,
p. 32).
O sujeito das redes sociais pode diminuir a possibilidade de ser afetado pelo
real, mas não pode controlar inteiramente o modo como será afetado, os limites
75
dessa capacidade ainda são desconhecidos. O contato por meio do virtual não
impede o afeto, mas limita, pois apesar de não ser possível escolher ser afetado ou
não, a virtualidade das relações permite ao sujeito algumas possibilidades de
escolha sobre os conteúdos que chegarão até ele.
O afeto por muitas vezes pode ser compreendido como a execução de um ato
impensado, uma ação por impulso, o que aproximaria o agir do homem ao do
animal, essa afirmação somente ―[...] intensifica as dificuldades de se inscrever a
dimensão afetiva na razão e no pensamento. (SODRÉ, 2016, p. 30). Esse tipo de
afecção ocorre por contágio ―que não dá verdadeiramente nada a ler ou pensar‖
(HAN, 2918, p. 99).
O compartilhamento de informações nos aplicativos de comunicação, são por
muitas vezes, ações impensadas. O indivíduo opera como um ser autômato
programado para receber e compartilhar informações, sem uma análise previa
daquilo que está enviando. Esse afeto é limitado na medida em que não promove o
pensar, ousamos afirmar que é mais correto para esses casos utilizar o termo
contágio, pois acreditamos que quando o sujeito é afetado por algo, sua ação no
mundo vai além do escorregar de dedos em uma tela. O contágio é uma
característica pertencente à sociedade transparente, a informação contagiosa, se
comporta como um vírus ―se espalha rapidamente na internet como uma epidemia
ou pandemia‖ (HAN, 2018, p. 99) e, por muitas vezes, causam danos à sociedade. A
informação e o digital pretendem desnudar o mundo.
Como já visto nos Capítulos I e II, a sociedade transparente é positiva, e
pretende a extinção de toda negatividade. Como afetar o sujeito da positividade?
Como causar disposição para busca se parece que não há o que buscar? Se tudo
está desvelado, o que resta a nós? Seremos meros espectadores daquilo que já fora
desvelado? A transparência é o fator que encerra toda a busca, nós estamos
inseridos nessa sociedade que está se tornando transparente, positiva, em que não
há espanto, choque. As imagens, por exemplo, estão sendo diminuídas a uma
função única, o entretenimento. A busca por transparência é o que gera a epidemia,
é o que anestesia o sujeito, o tsunami de informações, arrasta o sujeito. O sujeito
exposto à nudez do real não é capaz de esboçar nenhuma reação, o ―excesso de
informação faz com que o pensamento definhe.‖ (HAN, 2018, p.105).
O cansaço combinado à quantidade de informações recebidas diariamente
pode gerar uma ausência de critério, e ―prejudica, evidentemente, a capacidade de
76
reduzir as coisas ao essencial.‖ (HAN, 2018, p. 105). Frente a frenética
capacidade da rede, o pensar perde espaço e importância. O que não falta hoje é
acesso a conteúdo informativo, porém, a exposição do mundo ―não leva
necessariamente a melhores decisões. Justamente devido à crescente massa de
informação a faculdade do juízo definha hoje. (HAN, 2018, p.106).
Quando tratamos de disposição para o pensar, a quantidade de materiais
disponíveis na rede não é exatamente um benefício. O que fará desse amplo
acumulado de informações bom ou ruim é a capacidade do sujeito de pensá-lo
filosoficamente, se o comportamento frente a tudo isso é de reprodutor passivo de
informações nada será agregado ao indivíduo, se por outro lado o sujeito souber
como selecionar as informações que agregam à sua formação e visão de mundo,
pode-se ver um lado positivo nessa exposição.
Se acreditássemos que o modo de vida transparente já tornou o sujeito
incapaz de ser afetado, de pensar filosoficamente e que não existe um caminho,
uma possibilidade diferente não estaríamos fazendo filosofia, e o trabalho com a
disciplina de Filosofia na escola perderia totalmente o sentido. Compreendemos que
o pensar filosófico precisa do velado e que ainda é possível fazer filosofia na
sociedade da transparência e do cansaço, por isso aqui apresentamos uma das
tantas tentativas de dar ânimo à filosofia em meio a tantos obstáculos. A positividade
da sociedade transparente afeta a construção do pensamento filosófico, mas não a
aniquila.
O excesso de transparência gera apatia, a constante exposição dificulta a
tarefa de causar admiração, espanto. Então perguntamos: De onde a Filosofia
partirá? A apatia não é um sentimento fértil, para nenhuma área do conhecimento,
ela é capaz de minar o interesse do sujeito em diversos campos do conhecimento,
por esse motivo não temos obstáculos somente com relação ao conhecimento
filosófico, a escola como espaço de construção de conhecimento também sofre as
consequências da inércia dos estudantes.
Acreditamos que os afetos podem ser muito mais potentes na superação da
apatia do que a razão,
77
o poder ativo e passivo das afecções ou dos afetos, além de preceder a
discursividade da representação, é capaz de negar a sua centralidade
racionalista, seu alegado poder único. Um exemplo talvez pequeno, mas
certamente significativo, mostra-se no teatro, quando a qualidade de
expressão no corpo do ator transcende a qualidade do texto, fazendo às
vezes com que um roteiro medíocre ganhe dimensões notáveis no palco
(SODRÉ, 2016, p. 23-24).
Os afetos são capazes de tomar o sujeito de uma forma que é ao mesmo
tempo, suave e brusca. Suave na medida que o faz sem que o sujeito sinta-se
invadido, mas que não fique incomodado a ponto de reagir negativamente ao
estímulo, e brusca, visto que é capaz de causar um rompimento do comportamento
apático diante do real e provocar a superação da ausência de movimento.
Pode-se com isso afirmar a existência de uma inteligência baseada não
apenas na racionalidade cognitiva, mas também naquilo que se dá a
conhecer como afetos e que constituiria um elo essencial entre corpo e
consciência (SODRÈ, 2016, p. 31).
O afeto é sentido no corpo, e não pressupõe um exercício puramente
racional. Quando o corpo é afetado a razão não tem escolha de, por exemplo, não
pensar, aquela sensação, o primeiro alcance dos afetos coloca o sujeito como ser
passivo, posto que esse não escolhe racionalmente ser afetado, ―o filme é um golpe
(às vezes um golpe baixo) não um aviso sóbrio ou uma mensagem civilizada.‖
(CABRERA, 2006, p. 38). Podemos compreender os afetos como: ―[...] um conjunto
de estados e tendências dentro da função psíquica denominada afetividade, mais
especificamente uma mudança de estado e tendência para um objetivo provocado
por causa externa.‖ (SODRÉ, 2016, p. 28)
O que pretendemos é fazer do filme a causa externa da disposição, afetar o
sujeito por meio do uso dessas obras, com a finalidade de causar a disposição para
a filosofia. Promover ―[...] um estado de choque ou perturbação da consciência.‖
(SODRÉ, 2016, p. 28). A tarefa de tirar o corpo do repouso, talvez seja a mais
complexa, o mover-se para o sujeito da sociedade do cansaço pode ser uma tarefa
dolorosa. Se o filme for capaz de causar num primeiro momento um estado de
emoção, em que ocorra [...] um movimento [...] desde um ponto zero ou um ponto
originário até outro, [...] (SODRÉ, 2016, p. 29), poderemos iniciar a tarefa do pensar
a obra a partir desse movimento. A demonstração de emoções, como: a raiva, o riso,
a indignação, apontam o início do movimento.
A razão logopática é um conceito apresentado por Julio Cabrera em seu livro
78
intitulado O cinema pensa: uma introdução à filosofia através de filmes. Nessa obra
o filósofo pretende apresentar o filme como uma potência causadora do pensar
filosófico, e propõe a superação do uso da imagem como mera ilustração de
conceitos já postos. Para Cabrera, as imagens têm tanto ou mais competência para
fomentar a reflexão sobre o real quanto a palavra escrita.
O cinema é tomado pelo viés de ―uma caracterização conveniente [...] para
propósitos filosóficos, isto é a intenção de considerar filmes como formas de
pensamento.‖ (CABRERA, 2006, p. 19). Compartilhamos da definição de Cabrera na
medida em que não buscamos aqui aprofundar-nos na busca por uma definição do
que é o cinema como parte da história da humanidade. Pretendemos compreender
como essas obras podem contribuir para o desenvolvimento do pensamento
filosófico na disciplina de Filosofia.
A razão logopática consiste na junção equilibrada entre razão e afetos, não
haveria hierarquização entre as duas faculdades do juízo, mas sim uma justa
medida, de forma que elas pudessem contribuir dentro de suas possibilidades para o
conhecer, ―a razão filosófica tradicional (a racionalidade das ideias) não é tão ―fria‖
como pretende ser, não está despojada de emoções, nem entregue ao puramente
objetivo‖ (CABRERA, 2006, p. 47). Essa abordagem pretende uma compreensão ao
mesmo tempo afetiva e racional. ―Saber algo, do ponto de vista logopático, não
consiste somente em ter informações, mas também estar aberto a certo tipo de
experiência e em [...] deixar-se afetar‖ (CABRERA, 2006, p.31).
A experiência filosófica, por meio do filme, precisa de preparo. Como já
apresentamos neste trabalho, os alunos não esperam do filme nada mais que
entretenimento, acreditamos que ―se olharmos bem, é totalmente impossível
encontrar um filme que somente ―divirta‖, que não diga absolutamente nada sobre o
mundo e o ser humano‖ (CABRERA, 2006, p. 46). A proposta de que o filme seja a
mola propulsora para o pensar precisa ser bastante defendida na medida em que é
necessário que o aluno se disponha a ler o filme filosoficamente.
79
4.2. Desconstrução
4.2.1. A experiência
No espaço escolar, diariamente surgem reflexões e questionamentos quanto
ao trabalho docente e sobre de que forma seria possível otimizar as discussões com
os estudantes, superando a apatia e causando a disposição para a filosofia.
O problema da indisposição não é específico da disciplina de Filosofia, a
escola como um todo busca meios para conscientizar o jovem da importância de sua
importância. Cobra-se do docente a necessidade de fazer um trabalho de
convencimento com relação à importância de sua disciplina, e, além disso, há uma
adequação do método de ensino ao ritmo acelerado da juventude. Temos de
convencê-los a gostar da disciplina, para tanto, é necessário que as disciplinas
sejam atrativas, prazerosas.
Não pretendemos defender que as escolas ou as aulas precisam permanecer
com seus métodos tradicionais e não atender as demandas da juventude atual, nem
concebemos o aprender como uma prática naturalmente desprazerosa, mas não
podemos fazer dessa busca por prazer nosso principal objetivo. O professor já é
refém de índices, notas, rendimento, conteúdos, e pode tornar-se também refém de
uma cultura escolar do prazer.
A disposição em superar os desafios tem origem em diferentes aspectos,
como, por exemplo, as adversidades da era tecnológica, a possibilidade de aliar a
tecnologia à construção de conhecimento. A escola já está em processo de
adequação ao mundo tecnológico, na medida do possível estão investindo em
recursos para que as salas tornem-se mais interativas e dinâmicas. É difícil nesse
momento afirmar que a escola está perto de adentrar o mundo da tecnologia, a
tecnologia que chega hoje às escolas para o aluno já é ultrapassada. Mesmo não
fazendo parte das últimas tendências em tecnologia os recursos dispostos pela
escola facilitam e possibilitam a diversidade de métodos de ensino. É impossível que
a escola acompanhe o ritmo das inovações tecnológicas as quais os alunos têm
acesso. As inovações levam os docentes a uma revisão constante de sua prática
docente, como é o caso do trabalho aqui proposto de um método para o ensino de
filosofia. O desenvolvimento dessa ideia vem acompanhado de incertezas e medos,
80
mas também de disposição para experimentar o novo.
Como visto anteriormente, não propomos aqui o cinema como uma inovação
tecnológica do ensino, até porque seria um erro pensar que o filme usado em sala
seria um meio inovador de ensino. Pretendemos promover um exercício da
percepção estética através da ―[...] ―arte de perceber‖, uma poética da percepção,
portanto um modo de conhecimento do sensível em sentido amplo – a faculdade de
sentir do sujeito humano, [...] isto é, perceber por meio dos sentidos.‖ (SODRÉ,
2016, p. 86).
A parte prática a que nos propomos pretende aliar filosofia e cinema, e
propiciar uma experiência diferente em relação ao ensinar e ao aprender, nos
dispomos ―a ler o filme filosoficamente, isto é, tratá-lo como um objeto conceitual,
como um conceito visual e em movimento.‖ (CABRERA, 2006, p. 45). A consciência
de que o uso dos filmes já acontece nas escolas brasileiras e nas diversas
disciplinas nos auxiliou na criação da dissertação, pois os relatos de sucesso com o
uso de filmes são recorrentes.
Pretende-se nesta empreitada que o filme seja o meio pelo qual a disposição
seja gerada no discente. O fio condutor de nossa jornada será o conceito de
disposição, pois os problemas filosóficos só serão descobertos e pensados
adequadamente quando o sujeito estiver disposto a realizar tal tarefa, logo
compreendemos que causar a disposição é imprescindível para a filosofia.
O causar, nesse caso, implica um resgate do sentir em um espaço em que o
ele fica à margem do processo educativo que valoriza parte da natureza humana, ou
seja, a capacidade de raciocinar. Esquecemos que os seres humanos não são
dotados somente de razão, e cada vez que a emoção25 tenta desabrochar o
processo disciplinar cumpre seu papel e a oprime. O sentir é descartado quando
pensamos em construção de conhecimento. Afetar os estudantes é um de nossos
objetivos e para alcançá-los usaremos os filmes, pois como afirma Julio Cabrera ―O
emocional não desaloja o racional: redefine-o‖ (2006, p. 18).
O filme pretende ser o início do movimento, do ser afetado ao sentir- se
disposto e aberto para a filosofia. Ser afetado significa reconhecer e se apropriar da
problemática filosófica apresentada de modo a estar disposto a discuti-la. A
disposição ocasionará então a abertura para o debate, a construção de novos
25
Emotus significa abalado, sacudido, posto em movimento. (SODRÉ, 2016, p. 29).
81
conhecimentos, e proporcionará ao educando a oportunidade de rever velhos
conceitos e pré-conceitos.
Devido a dificuldades em relação ao tema, focamos especificamente em
filmes que abordem discussões sobre a política, pois reconhecemos que com a atual
conjuntura da política em nosso país causar disposição para discuti-la é tarefa
necessária e indispensável. A dificuldade, hoje, no debate sobre a política está
atrelada ao excesso de informações, há um enorme acesso, mas há uma limitação
na capacidade de interpretação e leitura de mundo. A sobrecarga de informação é
algo característico da sociedade contemporânea. Nas palavras de Silva e Correia, ―é
importante ressaltar que numa sociedade repleta de informações que nascem e
partem de todos os lados é comum a alienação por parte da juventude,
despreparada para conviver com os desafios desse tempo‖ (SILVA; CORREA, 2014,
p. 26).
A sobrecarga de informação é algo característico da sociedade
contemporânea. Ao contrário das gerações anteriores que reclamam desse
fenômeno, os nativos digitais, ao disporem de uma vasta quantidade de
recursos multimídia, têm grande possibilidade de aprender como selecionar
qual informação da internet tem relevância ou responde a suas
necessidades.
O problema agora não é quantidade, mas a qualidade das informações. Há
muita informação, porém não há critério para lidar com elas. Os jovens que estão
nas salas de aula já nasceram na chamada era da informação, falta a eles
desconfiança. Se os mais velhos se incomodam com o fenômeno da internet, os
mais novos têm nela uma confiança exagerada, precisamos buscar um ponto de
equilíbrio entre esses dois extremos. A dúvida e a desconfiança, na atualidade
podem ser definidas como mecanismos de defesa.
4.2.2. Primeira abordagem
No primeiro semestre do ano de 2017, aconteceu a primeira conversa sobre o
projeto. Apresentamos a eles o Prof-Filo como programa de mestrado, destacando a
importância da abertura desse programa de mestrado em tempos ainda nem tanto
sombrios. Essa conversa inicial foi acompanhada por muitas curiosidades por parte
da turma na qual a pesquisa seria aplicada, curiosidade típica de quando se tem
82
novidades na escola, qualquer proposta que fuja a forma tradicional de ensino causa
uma euforia. Na medida do possível foram sanadas as questões e preocupações
que surgiram naquele momento. Esse início de aplicação era novo para todos nós,
ainda era necessário tatear o caminho, então, compartilhávamos algumas angústias
e preocupações.
Uma das maiores preocupações naquele momento era a avaliação, questões
como: como vamos ser avaliados? Vai existir um trabalho sobre o filme ou nós
devemos anotar enquanto assistimos? Notamos já na primeira conversa a
preocupação com os resultados, não os de aprendizagem, mas, sim, com a nota, o
que já expõe que a preocupação com o desempenho é maior do que com a
construção de conhecimento, já que compreendemos que a nota não é capaz de
refletir se, de fato, houve aprendizado. Pairava pelo ambiente ao mesmo tempo uma
nuvem de empolgação e uma de preocupação, por um lado estavam empolgados
por trabalhar com filmes e por outro preocupados, se esse método seria eficiente e
renderia as notas necessárias para a aprovação.
O interesse da turma pelo projeto nesse primeiro momento não pode ser
tomado como um resultado efetivo, apesar de inspirar e possibilitar ao projeto uma
primeira aproximação com os discentes que serão parte crucial na construção do
mesmo. Acreditamos nesse momento que a empolgação primária da turma tinha
suas raízes fundadas em ideias que, de certo modo, reproduzem e evidenciam o
papel que os filmes possuem dentro da escola, papeis esses que não correspondem
às pretensões e à dinâmica do projeto, a disposição, o sentir, o deixar-se afetar não
faziam parte naquele momento da ideia do contato com o filme.
Há uma visão distorcida sobre o uso de filmes em aula, essa concepção que
compreende o filme como um método para ―matar tempo‖ não é nova, já está
arraigada na cultura escolar. Como reflexo dessa distorção temos escolas que
proíbem a exibição de qualquer material em vídeo que tome mais do que 15 minutos
do tempo de aula. Compreendemos que o uso dos filmes requer preparo e um olhar
atencioso a escolha da obra e o modo de apresentá-la ao aluno, mas não
conseguimos encontrar argumentos suficientes para pautar tal restrição, proibir
certas atividades é um caminho mais prático para quem não pretende discutir
metodologias, ou não tem sensibilidade para compreender o uso de algumas delas.
A limitação do olhar em relação ao filme não é uma característica que pertence
exclusivamente a juventude, a falta de um olhar sensível às obras é a origem de
83
proibições desse gênero.
4.2.3. Primeiras atividades
Já no segundo semestre de 2017, foi realizada a primeira atividade do projeto.
Nessa primeira atividade apresentamos aos estudantes a seguinte questão: Como
foram suas experiências com os filmes durante a vida escolar? A única orientação
dada nesse momento foi em relação ao fato de ser importante que a resposta fosse
gravada em vídeo e também que preferencialmente fosse feita em grupo. O
conteúdo e o modo de criação deveriam ser autorais.
Os grupos foram orientados a produzir um roteiro em forma de texto para
organizar o conteúdo que seria apresentado no vídeo. Em seguida à produção de
texto confeccionada com base na questão citada acima, foram produzidos vídeos
em que os alunos apresentavam o conteúdo de suas produções. Ao assistir os
vídeos, a empolgação, que num primeiro momento, foi interpretada como a possível
visão negativa e marginalizada em relação ao uso de filmes, precisou passar por
uma reavaliação. Surpreendentemente, os estudantes apresentaram uma visão
muito positiva sobre o uso de filmes, reconhecendo-o como um importante recurso
didático.
Como afirma uma aluna em seu texto:
Quando assistimos um filme temos uma forma diferente de aprendizado, o
que passa primeiro em nosso pensamento é que vai ser um filme legal, que
vai ter pipoca e refrigerante, mas nem sempre é assim, muitas vezes são
filmes chatos, mas existe um porém o filme é rico em conhecimento e
conteúdos pertinentes e é aqui que devemos prestar mais atenção.
Pode-se notar de forma clara em seu comentário o reconhecimento do
potencial do filme para a construção de conhecimento, nota-se também que no início
a estudante reconhece que a empolgação está ligada mais à diversão do que ao
conhecimento, logo nota-se a importância de uma conversa que busque a
conscientização sobre o trabalho que será realizado com o filme.
Outro aspecto importante a ser notado é que durante as apresentações, os
alunos citaram lembranças de trabalhos feitos por outros professores, a partir de
filmes, e destacaram o fato de mesmo depois de passados vários anos, ainda
recordarem dos filmes e das questões trabalhadas. A partir do conteúdo dos vídeos
84
nota-se que as experiências dos alunos em relação ao trabalho com filmes eram
positivas. A visão negativa sobre a potência dos filmes tem origem em outros
setores da escola. Os apontamentos negativos que esperávamos do trabalho com
os alunos surgiram em outros momentos, e em nenhum deles os alunos
protagonizaram falas sobre a incapacidade dos filmes.
Por muitas vezes pautamos nossas metodologias e ações em sala no que
professores, pedagogos, diretores afirmam que seja um método digno de ser
utilizado, que renderá a aprendizagem adequada do conteúdo. Há na prática
docente uma hierarquização das metodologias de ensino, e correspondendo a lógica
da primazia da razão, os métodos que fundamentam-se na sensibilidade são
tomados como menos eficazes, menos produtivos. Os caminhos que escapam ao
tradicional são postos à margem nesse universo de possibilidades. Mesmo ficando
na margem o filme é um recurso didático que está presente na escola. A tomada de
espaço por esse tipo de recurso ocorre de forma progressiva e desafiadora.
As metodologias são as mais diversas e não podemos negar que em algum
momento cada uma das diferentes abordagens do ensinar foi eficiente de algum
modo. Referimo-nos aqui às metodologias tradicionais como textos, conteúdo no
quadro, questões, provas, slides, etc, no entanto, não pretendemos propor uma nova
ordem na hierarquização, na qual a sensibilidade seja privilegiada, mas, sim,
evidenciar a necessidade de um olhar equitativo sobre os diferentes modos de
ensino-aprendizagem.
Se tivéssemos nessa primeira etapa uma concepção sobre os filmes que
fosse limitada a compreendê-lo como diversão, precisaríamos realizar alguns
momentos de conversa para promover uma tentativa de desconstrução dessa visão.
Como o resultado desse primeiro diagnóstico foi positivo, pudemos passar à
exibição dos filmes. No momento anterior a apresentação dos filmes, optamos por
não pedir aos estudantes que observassem esse ou aquele problema na obra, a
única observação que já havia sido feita no início do ano e do semestre é de que a
temática daquele período de estudo era a Filosofia Política, até porque esse foi um
dos principais critérios de escolha dos títulos trabalhados. Não pretendíamos utilizar
os filmes ―para simplesmente ‗ilustrar‘‖ teses filosóficas anteriores às imagens que
as apresentavam.‖ (CABRERA, 2006, p. 09), acreditamos no potencial das imagens
de irem além da representação. Quando o filme é utilizado após o trabalho com os
conceitos, também é possível e mais certo que se alcance um resultado positivo,
85
pois apresenta-se o mesmo conceito já trabalhado por meio de uma linguagem
diferente, logo não há o que compreender, a compreensão já está dada.
Deixamos que eles conduzissem a análise da obra de maneira autônoma,
para que pudessem trazer inquietações originariamente deles, pois acreditamos na
capacidade da obra cinematográfica de causar por si a disposição necessária para o
desenvolvimento do filosofar. Nesse exercício, não estamos depositando nossa
crença somente na capacidade da obra, mas também na competência dos
estudantes em realizarem tal tarefa de forma autônoma.
Desenvolver a autonomia de pensamento também é uma de nossas
pretensões com o projeto, e não poderia deixar de ser, pois se temos o sentir-se
afetado como princípio não podemos nesse momento guiar o sujeito, o sentir
acontece de uma forma diferente com cada indivíduo.
Costumamos dizer ao nossos alunos que, para se apropriar de um
problema filosófico, não é suficiente entende-lo: também é preciso vivê-lo,
senti-lo na pele, dramatizá-lo, sofrê-lo, padecê-lo, sentir-se ameaçado por
ele, sentir que nossas bases habituais de sustentação são afetadas
radicalmente. Se não for assim, mesmo quando ―entendemos‖ plenamente
o enunciado objetivo do problema, não teremos nos apropriado dele e não
teremos realmente entendido. Há um elemento experiencial (não ―empírico‖)
na apropriação de um problema filosófico que nos torna sensíveis a muitos
desses problemas e insensíveis a outros (isto é, cada um de nós não se
sente igualmente predisposto, ―experiencialmente‖, a todos os problemas
filosóficos [...]) (CABRERA, 2006, p.17).
A não racionalização do uso do filme nos traz a esse ponto, que em um
primeiro momento é escuro e sombrio, pois aqui é onde podemos perder o caminho,
por não existir uma fórmula que padroniza a forma de apropriação das questões da
filosofia. Não orientar o estudante a identificar uma ideia específica é um risco, pois,
na mesma medida em que ele pode surpreender ao observar criticamente as
temáticas do filme, pode não ser capaz de identificar questões, e isso só será
descoberto depois de passada toda a obra.
O principal objetivo da atividade descrita anteriormente foi realizar um
diagnóstico com relação ao ponto de vista discente sobre o uso de filmes na escola
para observar se os estudantes se apropriaram do discurso negativo sobre o uso de
filmes. Além disso, desde a primeira conversa deixamos claro a eles o protagonismo
da turma no projeto, logo, não poderíamos dar início as atividades sem antes ouvi-
los. Iniciar o projeto deixando-os falar já mostrou-se um aspecto diferente dentro do
espaço da escola, onde o silêncio quase sempre impera. Amenizada a preocupação
86
com a visão negativa do uso de filmes, enfrentaremos a partir daqui outros desafios.
4.2.4. O tempo
Desde a primeira apresentação do projeto um problema que acompanha a
história da filosofia e da humanidade vem sendo recorrente: ―o tempo‖. Esse que foi
e é um problema de complexidade cada vez mais profunda também aqui nos
persegue. O tempo nas aulas é sistematicamente definido e as aulas da disciplina
de Filosofia. Estão inseridas nesse sistema, que dificilmente poderá ser alterado de
forma a solucionar magicamente a batalha contra o tempo.
A dificuldade em pensar como resolveria tal problema apresentou-se desde
os primeiros momentos de escrita, pois o tempo para a disciplina de Filosofia é
pequeno dentro da grade (duas aulas semanais), e os filmes as ocupariam por
completo. O tempo foi passando e o problema em relação a ele parecia ser
insolúvel. Para amenizar a falta de tempo, decidimos solicitar a direção que
geminasse as aulas com a turma em que o projeto seria aplicado, pedido que foi
atendido sem dificuldades e que diminuía o problema com o tempo, mas não o
anulava.
Esgotadas as possibilidades de ganhar tempo dentro da escola resolvemos
virar nossas atenções para outro tempo que não o da escola, o tempo que os
estudantes têm fora do espaço escolar. É importante notar que uma grande parcela
dos alunos trabalham durante o dia, o que mais uma vez nos afeta em relação ao
tempo. Conscientes dessas limitações viramos nossos olhares para o tempo além
dos muros da escola e decidimos nos perguntar com que eles utilizam este tempo?
Em pesquisa realizada pelo projeto Conectados26 fora constatado que os estudantes
gastam boa parte seu tempo diário com redes sociais, jogos, internet. Esse dado nos
pareceu bastante preocupante pelo excesso de tempo gasto com essas atividades.
Até surge mais uma questão: Será que as redes sociais não estão de posse do
tempo que precisamos para que o projeto funcione? Se partimos de uma resposta
afirmativa, como contribuir para que uma parte desse tempo seja utilizado em
26
―Trata-se da ampliação do projeto Conectados (2016) - iniciativa da Secretaria de Estado da
Educação cujo objetivo foi favorecer e ampliar a discussão e o uso de tecnologias educacionais junto
à comunidade escolar‖ Acesso em: <
http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1731>
87
benefício de nosso trabalho? Pensando nisso, resolvemos situar no campo
pedagógico algumas ferramentas tecnológicas utilizadas por nossos estudantes,
como o WhatsApp e o Facebook.
Cogitamos o uso do WhatsApp por ser uma ferramenta de comunicação
instantânea e de fácil acesso, porém, observando o modo como é utilizado o grupo
pertencente a sala e outros grupos utilizados nesse aplicativo, pudemos notar que
as informações se perdem facilmente, pois dissolvem-se em meio a postagens que
não pertencem ao conteúdo pertinente ao grupo e que é difícil de se obter um
controle de conteúdo. Passamos então ao Facebook, esse aplicativo possui uma
ferramenta que permite criar grupos restritos e, além disso, nos propicia um melhor
controle de conteúdo. Esse último aplicativo faz parte do tempo gasto fora da escola,
como entretenimento e diversão.
Em conversa com a turma, foram questionados sobre a possibilidade de
acesso à página, obtivemos uma resposta positiva, ou seja, todos conseguiriam
acessar o conteúdo da página quando necessário. Por se tratar de uma escola que
recebe muitos alunos do interior do município alguns desses discentes questionaram
com que frequência a página deveria ser acessada, pois eles só acessariam a
internet no próprio colégio, e se dispuseram a fazê-lo.
Aliar uma ferramenta muito utilizada pelos jovens, com a qual eles já estão
familiarizados e que ocupa parte do seu tempo fora do espaço escolar, pareceu ser
um meio para diminuir o problema do tempo, ou melhor, da falta dele. Desse modo,
apresentamos aos alunos a página do projeto no Facebook. Explicamos a eles de
forma mais detalhada o motivo pelo qual a página fora criada e também
quais conteúdos seriam postados nela, além de enfatizar a importância de
que eles acompanhassem os conteúdos postados na página.
A página foi utilizada para postar informações sobre o filme antes do mesmo
ser exibido, com o objetivo de aguçar a curiosidade em relação à obra, foram
postadas informações que eram relevantes sobre a obra, como a época em que foi
criada, se tratava-se de uma história real ou totalmente fictícia, os nomes dos
personagens.
Durante a exibição, a página foi a memória da turma. Em outros momentos
com filmes na escola, os alunos afirmavam ter esquecido o enredo do filme de uma
semana para a outra, logo durante esse período foram postadas questões de
reflexão sobre as cenas que já haviam sido assistidas, como forma de conservar os
88
problemas apresentados no filme. Após a exibição do filme, o debate se estendeu
por mais de uma semana, logo a página mais uma vez fomentou e refrescou nossa
mente sobre as discussões feitas em sala. Além disso, foram postados
questionários, atividades e avisos relacionadas ao projeto na página.
O resultado do uso do Facebook não foi 100% efetivo, pois alguns alunos não
participavam das discussões na página, apesar de visualizá-las. Durante toda a
aplicação os estudantes que não participavam eram questionados sobre o motivo
pelo qual não estavam interagindo na página, os motivos eram diversos, alguns
afirmavam ter vergonha de expor suas opiniões no grupo, alguns diziam não ter tido
tempo para interagir na página, entre outros.
Com a admissão do uso dessa ferramenta com finalidade pedagógica, já
podíamos prever o risco de não obtermos um aproveitamento de cem por cento. Na
escola ainda predominam as ações em troca de nota, se a proposta do Facebook
fosse pesar no resultado (média), a participação era maior, caso contrário, alguns
deixavam de participar, o que demonstra um descaso com o conhecimento e uma
valorização da nota.
Compreendemos que esse comportamento corresponde às cobranças da
escola, porém é uma característica alarmante na medida em que o conhecimento
perde seu protagonismo e a nota ganha o papel principal. Mesmo com algumas
falhas, esse mecanismo contribuiu de forma significativa para nossa atividade, foram
realizadas algumas intervenções e diálogos por meio da página. Não solucionou,
mas amenizou o problema do pouco tempo disposto para as aulas de Filosofia.
4.3. O contato27 com os filmes
Nesse momento de debate o docente deve contribuir com colocações no
sentido de mediar28 a discussão, mas sua principal ocupação é a de observar e
27
Nesse caso ―[...] contato não se reduz à ideia de mera conexão, devendo ser entendido como uma
configuração perceptiva e afetiva que recobre uma nova forma de conhecimento, em que as
capacidades de codificar e descodificar predominam sobre os puros e simples conteúdos.‖ (SODRÉ,
2006, p.20)
28
―Mediação é o ato originário de qualquer cognição, porque implica o trânsito ou a ―comunicação‖ da
propriedade de um elemento para outro, por meio de um terceiro termo. Esse terceiro termo é
precisamente, [...] um meio de articular dois elementos diversos, por exemplo, um objeto e uma ideia
interpretante. [...] é portanto, um meio (médium) de comunicação por tornar possível a partilha de uma
experiência.‖ (SODRÉ, 2006, p.91)
89
tomar nota sobre as colocações feitas pelos estudantes. O fato de não guiar, mas
somente mediar, faz o debate manter-se dentro da proposta de criar um espaço para
a autonomia de pensamento. Havia diversas possibilidades de debate sobre o filme,
a discussão poderia ter se voltado somente ao nazismo, ao amor, à ditatura, porém
naquele momento os estudantes foram afetados de uma forma mais evidente pelo
problema do papel da mulher nas discussões e espaços políticos. Os temas citados
acima também surgiram durante os diálogos, mas não foram os protagonistas.
Olga – Ficha técnica
Título: Olga
Ano de produção: 2004
Dirigido por: Jayme Monjardim
Estreia: 20 de Agosto de 2004
Duração:141 minutos
Roteiro e Produção: Rita Buzzar
Iniciada a exibição do primeiro filme ―Olga‖, que foi escolhido por atender de
forma fantástica a temática prevista nas Diretrizes para o período de estudos, e
também por retratar a luta política de Olga Benário, que como mulher não atende
aos padrões de comportamento feminino exigido em sua época. Olga Benário luta
contra um regime político no qual ela não acredita, mas luta também para afirmar o
papel da mulher como militante na política. Além disso, o filme apresenta o regime
nazista alemão. Ela é judia e depois de ser presa é deportada para a Alemanha
nazista, mesmo estando grávida. A filha da militante nasce na prisão e é
determinado que a bebê só ficará com a mãe enquanto houver necessidade de que
seja amamentada no peito, assim que Anita deixa o seio da mãe, é retirada dela e
entregue a sua vó, mãe de Prestes, amante e companheiro de lutas de Olga
Benário.
Olga Benário é militante alemã do Partido Comunista e durante sua militância
se apaixona pelo brasileiro Luis Carlos Prestes, os dois se juntam na missão de
derrubar o governo Getúlio Vargas. Esta obra brasileira, além de ser rica em
conhecimento em relação a política devido a luta de Olga Benário e de Luis Prestes,
e ao contexto político apresentado na obra, prende-nos por sua personagem
90
principal ser uma mulher com tanto envolvimento na militância, forte e destemida,
pois o costumeiro é vermos homens assumindo esses papéis. A representatividade
das mulheres na política é pequena até os dias de hoje. Outro aspecto que prende a
atenção é o sofrimento de Olga, pois no princípio do filme Olga se mostra uma
mulher dura e inabalável, porém com o desenrolar de seu relacionamento com
Prestes, Olga Benário descobre-se frágil, não em sua militância política, mas por sua
paixão por Prestes.
O filme foi exibido durante 4 aulas, pois é uma obra longa. Logo que o filme
chegou ao fim, iniciamos o debate, o que chamou muito a atenção dos alunos e por
consequência foi uma ideia recorrente na discussão, foi a independência e força da
personagem principal da trama, para a época em que viveu e inclusive para os
nossos tempos causa certa estranheza ver uma mulher tão engajada e com
tamanha força política, quando ainda é instituído culturalmente uma padronização do
comportamento e do que é ser mulher. Os alunos evidenciaram e reconheceram a
importância de se ter um comportamento combativo em relação a alguns problemas
políticos que se apresentam e reconheceram que, por muitas vezes, somos
extremamente negligentes em relação as nossas escolhas e concepções usando
como desculpa a neutralidade, ou o ditado popular, ―política não se discute‖.
Para iniciar o debate, os alunos expuseram as questões que conseguiram
identificar no filme. Questões como a representatividade da mulher foram bastante
recorrentes no debate com os estudantes, foi possível notar uma disposição à
reflexão filosófica da política, relacionando os fatos do contexto político do município
em que vivem, com os apresentados no filme. Um exemplo disso foi o
reconhecimento de que na câmara de vereadores da cidade não há nenhuma
vereadora mulher. Foram pensadas as consequências de não haver mulheres
ocupando esses papeis, se essa característica muda algo na realidade do município.
Surgiram também discussões sobre o fato da primeira presidenta mulher do nosso
país ter sofrido um impeachment, e o modo como ela foi tratada durante o processo.
Observando o sofrimento de Olga Benário, foi possível um olhar humanizado para
todo o processo ao qual foi submetida a ex-presidenta, analisando quais os aspectos
realmente políticos tratados durante o processo e quais tinham caráter machista e
misógino.
As torturas sofridas por Olga Benário e por seus companheiros de militância,
o abuso de poder, a violência física, a violência psicológica, a força dela frente a
91
todas as provações que passou, a retirada de sua filha ainda bebê, a mulher e a
política. Todos esses tópicos apareceram e permearam as discussões sobre a
personagem do filme, os alunos foram tomados pela força da luta da mulher.
A história foi capaz de causar movimento, na medida em que foi possível, a
partir dela pensar, os acontecimentos políticos que levaram Olga Benário a passar
por tudo aquilo. A obra foi capaz de agitar os alunos, causando um princípio de
movimento, apesar de toda a lógica transparente da sociedade atual ainda é
possível o resgate da sensibilidade do olhar. Por sentirem-se afetados pela história
de Olga Benário, os estudantes identificaram questões e se dispuseram a discuti-las.
Algumas delas são: apesar da mudança no período histórico as mulheres
ainda lutam como Olga Benário, por suas vidas, pelo seu direito a uma vida digna,
pelo seu direito de representação na política brasileira, pelo direito de serem ou não
mães, esposas.
Um fator limitante da discussão é o fato de que os alunos não possuíam uma
contextualização do ponto de vista da história sobre o que foi o regime nazista, quais
as consequências desse regime para a história da humanidade, entre outros
aspectos importantes. Não por ter sido negligenciado a eles esse ponto da história
mas sim por ser um conteúdo que pertence ao 3° ano do Ensino Médio, desse modo
foi necessário que durante o debate fossem feitos apontamentos com relação a esse
contexto, pois o filme de Olga Benário se passa durante esse período.
É interessante observar que, se o indivíduo não possui uma formação com
relação a história sobre o regime nazista ao ter contato com obras obra ―Olga‖ e ―A
onda‖, os estudantes pressupõe que a obra cinematográfica exagerou de maneira
absurda os abusos de poder ocorridos no período. A contextualização histórica teve
um papel importante também na fundamentação da discussão. O fato de os filmes
serem inspirados em pessoas reais também têm um peso importante, no modo
como o sujeito é afetado pela narrativa.
Sobre o segundo filme ―A onda‖, os apontamentos que mais apareceram
dessa vez nos textos foram sobre a cena final do filme, na qual o professor Wenger
reúne todos os membros da onda para finalizar o movimento. Durante o debate os
alunos citaram com certa frequência a cena em que uma aluna é excluída e
ignorada por conta da cor de sua camiseta. A cena da exclusão da aluna moveu os
estudantes para a discussão de temas extremamente delicados e pertinentes como
o racismo, homofobia, a intolerância política. Baseados no modo como a
92
personagem sentiu-se durante o filme eles se perguntaram: A personagem do filme
não se encaixou no padrão por conta de sua camisa, uma camisa é passível de
troca. E uma pessoa que é excluída ou tratada como menor por sua cor da pele,
gênero, posicionamento político? Da mesma forma que ocorreu no diálogo sobre o
filme Olga a neutralidade e a apatia apareceram como problemas. Em ―A onda‖,
essas duas características destacaram-se, os alunos apontaram a negligência do
professor e dos participantes do movimento, como consequência dessa
neutralidade, da crença de que tudo está sob controle.
Ficha técnica “A onda”
Título Original:Die Welle
Ano de produção 2008
Duração:107 minutos
Estreia:13 de março de 2008
Direção:Dennis Gansel
Já o filme “A onda” foi exibido durantes três aulas. Foi feito o
acompanhamento via Facebook. Depois da exibição e análise do trabalho feito com
“Olga”, mostrou-se a necessidade de realizar as seguintes adequações, a criação da
página no Facebook para acompanhamento do filme e algumas propostas de
atividades e também a realização de um trabalho escrito. O trabalho com “Olga” foi
feito todo oralmente. Não acredito que isso tenha interferido na qualidade das
discussões feitas, mas o registro escrito nos auxiliará na avaliação dos resultados do
projeto. Assim como a página do Facebook que foi alimentada com informações
sobre essa obra, como se trata de um filme com vários personagens adolescentes
foi solicitado aos alunos que ―adotassem‖ um personagem para que durante o filme
observassem qual seria o comportamento e as convicções do personagem
escolhido.
“A onda” se passa em uma escola, e o filme se divide em mostrar a rotina
escolar dos jovens, seu relacionamento com a família, e seu círculo de amizades.
Por retratar uma escola e a vida de adolescentes a identificação com alguns
problemas aconteceu rapidamente. A primeira delas foi com a resistência ao estudo
do tema, a reação dos estudantes mostrou que eles nesse momento enxergaram-se
93
nos personagens quando não aceitam passivamente o conteúdo proposto pelo
professor.
O filme se passa em uma escola alemã, onde os alunos terão uma semana
chamada de ―semana de projetos‖. Os professores, então, propõem um tema para
ser estudado durante aquela semana. O tema escolhido pelo professor Rainer
Wenger é autocracia. Quando Wenger apresenta o tema, os alunos questionam a
utilidade do estudo, pois afirmam que é impossível uma autocracia se instalar
novamente na Alemanha, consideram que o povo aprendeu com a experiência
terrível que teve durante o regime nazista de Hitler.
Com o objetivo de superar essa resistência ao tema, Wenger propõe um
método representativo para compreensão do que é um governo autocrático, ou seja,
durante uma semana a sala funcionará em um sistema autocrático, no qual o grande
líder é o professor. Wenger não imaginava quando começou o projeto as proporções
violentas que a representação tomaria. Os alunos que participavam do projeto que
fora nomeado de ―A onda‖ começaram a ver os membros de seu grupo como
superiores aos sujeitos que a ele não pertenciam. A primeira característica que os
distinguiu dos demais foi a determinação do uso de uma camiseta branca, depois
disso veio um comprimento, a posse de espaços da escola onde só circulavam
pessoas que participavam do grupo. Em consequência disso começaram a ocorrer
casos de violência, logo quem discordasse do que ―A onda‖ afirmava era excluído ou
até mesmo punido fisicamente.
Uma das atividades propostas por meio da página foi a ―Adoção de
personagem‖, em que cada um dos alunos escolheu um dos personagens do filme.
O objetivo da ação era traçar o perfil do personagem, estabelecer conexões entre o
personagem e o aluno, e, além disso, identificar os aspectos que aproximam e os
que se distanciam da realidade dos estudantes. Essa atividade foi proposta na
página antes do início da exibição do filme, e realizada em sala de aula logo após
terminarmos de assistir ao filme.
Em relação à atividade proposta anteriormente, destacam-se as respostas da
última questão, em que os alunos foram perguntados sobre qual seria a cena
favorita deles no filme e porque a escolheram. A disposição para pensar o filme se
apresentou nas respostas, os estudantes em análise de suas cenas favoritas do
filme, revelaram justificativas que já iam de encontro com os temas de discussão da
filosofia política. As justificativas apresentadas por eles para a escolha das cenas já
94
evidenciou que o filme como um todo foi aproveitado de modo que a ideia e os
problemas que a obra pretendeu trabalhar, apareceram já nos primeiros escritos
sobre o filme.
As alunas descreveram a cena em que Wenger reúne os estudantes para
finalizar a onda e afirmaram que ―Essa cena nos ajuda a refletir sobre o momento
político que nos encontramos atualmente, onde as pessoas não pensam nas suas
atitudes, simplesmente fazem aquilo que seus superiores mandam.‖ Já as alunas
descreveram a cena em que o professor exclui a aluna Karo por não estar com o
uniforme do movimento, a seguinte reflexão foi feita ―Nos dias de hoje a hierarquia
de identidades acontece muito, se você não é igual aos outros, você é excluído pela
sociedade.‖ E citam dois exemplos de exclusão: ―Um exemplo é que a sociedade é
muito preconceituosa em questão de gênero sexual e não aceita os homossexuais.
Outro exemplo: a mulher é menosprezada pela sociedade até em questão de
salários mais baixos, por não poder andar sozinha na rua, entre outros.‖
O debate sobre o filme ―A onda‖ foi longo, pois havia muitas questões a serem
discutidas, que foram apresentadas, e questões que foram retomadas das
discussões sobre ―Olga‖. A análise feita pelos alunos e pelo professor Wenger no
filme veio de encontro com o momento político vivido em nosso país, onde a
discussão sobre a possibilidade da instauração de uma ditadura assombra nossos
dias.
Nos perguntamos, então, o que leva a um povo que goza de sua liberdade de
expressão em de um país democrático clamar por ditadura, e em consequência
disso por cerceamento de liberdade. Para descobrir o que leva a esse anseio, foi
observado o contexto político de nosso país, passávamos por uma crise econômica,
tínhamos um índice altíssimo de violência, desemprego, um grande número de
notícias sobre corrupção o que gerou um sentimento de insatisfação com a política.
Para que este modelo neoliberal se estabeleça, é necessário que haja um
processo de criminalização dos movimentos sociais que lutam pelos direitos das
minorias, entendemos que o projeto ―Escola sem partido‖ tem como pretensão a
manutenção de privilégios de uma elite que quer manter um país patriarcal,
machista, conservador e escravocrata.
95
5. EXERCÍCIO DE CRIATIVIDADE
Nas cenas de teatro abaixo que são de autoria da turma em que os debates
foram realizados, identificam-se vários dos problemas que são fomentados única e
exclusivamente para garantir a manutenção do poder, para uma elite que sempre
teve seu espaço bem delimitado, é incômodo dividir a sala de aula com um negro,
disputar as vagas de vestibular com negros, respeitar a alteridade presente no
mundo é um desafio para uma elite que desde sempre vem impondo seu padrão de
normatividade.
A confecção das cenas de teatro foi um dos momentos marcantes do projeto, foi um
exercício crítico e criativo ao mesmo tempo, que apresentou um aproveitamento
excelente dos temas que foram centrais durante os debates. Os discentes se
apropriaram dos problemas de tal forma, que identificar no meio deles os problemas
discutidos nos filmes foi um processo natural. Além da confecção das cenas de
teatro, elas foram gravadas, o que marcou muito durante as gravações foi a reação
de um aluno ao ser reproduzida uma cena de racismo. Ao final da interpretação o
aluno chorou, por sentir ali, naquele instante, que um problema que é diariamente
seu fora discutido e pensado pelos colegas dentro da escola.
CENA 1: RACISMO
A professora inicia a aula e logo em seguida é interrompida por um aluno que
pede a palavra e a mesma atende ao seu pedido, logo ele diz:
— Professora, roubaram meu celular.
Em seguida, uma outra aluna faz uma sugestão:
— Professora que tal olharmos nas câmeras para descobrir quem pegou o
celular?
A professora responde:
— Nem precisamos, pois todos nós já sabemos quem foi.
Nesse momento todos se viram e olham para o aluno negro. No instante
seguinte, o aluno que afirmou ter tido o celular roubado recorda-se que seu celular
foi colocado para carregar, e a professora dá continuidade a aula. O aluno ofendido
pela falsa acusação sai da sala.
96
CENA 2: HOMOFOBIA
Cenário: Quadra da escola - Jogo de futebol Lucas com a bola Kelvin vem
tomar a bola Lucas cai
Kelvin diz
— Joga igual homem, viado!
CENA 3: HOMOFOBIA
Descrição da cena: Dois estudantes se dirigindo para a aula de educação
física e conversando.
Guilherme:
— Vou escolher o viadinho do Lucas para o meu time.
Jussara:
— Ué, por quê?
CENA 4: CONDIÇÕES NECESSÁRIAS PARA A INSTAURAÇÃO DE UM REGIME
AUTOCRÁTICO
Foram impressas as condições identificadas pelos estudantes como
necessárias para que um regime autocrático se instaurasse. No vídeo, um dos
alunos aparece com a faixa que pertence ao presidente e sobe alguns degraus de
uma escada. Nestes degraus encontram-se coladas as folhas com as condições
como se cada uma delas ao se efetivar impulsionasse o sujeito para o poder,
quando chega ao fim da escada é realizado o comprimento que era feito quando
Hitler falava em público. O vídeo foi editado e foi inserida a fala de Hitler aos jovens
para caracterizar e evidenciar o problema levantado pelas discussões feitas em sala.
97
6. CONCLUSÃO
O primeiro efeito benéfico notado com o uso do filme foi a abertura dos
estudantes ao diálogo. A resistência e o desgosto com o tema política é um
obstáculo sempre presente, porém quando começamos as atividades e debates com
o filme notou-se que os discentes tornaram-se muito mais acessíveis. Além disso, o
fato de o filme afetá-los proporcionou a oportunidade de olhar para sua realidade de
forma crítica, pois as cenas apresentaram situações que estão muito presentes na
sociedade.
O trabalho com o tema política sofre grande impacto de fora, ou seja, os
estudantes trazem todas as informações, convicções, crenças, conhecimentos,
preconceitos, de sua realidade para dentro da escola e, muitas vezes, as influências
sofridas de fora não são compartilhadas em sala.
A primeira experiência de conversa sobre o filme já trouxe os alunos e alunas
para perto, ou seja, eles se dispuseram para a conversa e para o ouvir. O trabalho
realizado a partir dos afetos traz para a discussão um caráter mais humano, dessa
forma os temas abordados foram discutidos com a distância e a proximidade
necessárias. A distância é imprescindível para que mesmo que sentindo-se afetado
pelo problema, o estudante seja capaz de pensá-lo. A proximidade garante um
debate com certo grau de empatia, como afirma Han, o nome, a identificação, é a
base do respeito e na medida em que me aproximo do personagem da obra o
problema filosófico ganha uma identidade, um rosto, uma história.
Temas que são extremamente delicados, como a homofobia e o racismo,
aparecem na discussão de forma muito mais apurada, pois, inspirados pela obra, os
estudantes foram capazes de identificar em sua realidade situações que precisam
ser debatidas e que são negligenciadas no debate, justamente pela ausência de
abertura citada no início. Quando propus a discussão da Filosofia Política não ouvi a
98
afirmação ―política não se discute‖, frase que é recorrente quando é feita a
introdução ao tema.
O filme é uma maneira de abordar os problemas que fazem parte do cotidiano
e das vivências dos sujeitos, e o fato de os temas e problemas estarem sendo
representados por personagens faz com que o estudante, num primeiro momento,
não se sinta exposto e afetado de forma tão direta que se fechará em si mesmo e
não participará das discussões seguintes, pois o afeto que pretendemos aqui é o
afeto produtivo, ou seja, aquele que gera reflexões filosóficas.
Pudemos notar também que houve uma maior identificação com a discussão
apresentada no segundo filme. Atribuímos a maior participação e dedicação no
segundo filme por diversos fatores: ao fato do filme ser mais curto, fato que
possibilitou que fosse assistido em três aulas, como as aulas eram geminadas foi
possível iniciar o debate no mesmo dia da exibição do filme. O fato de retratar a
realidade de adolescentes no ambiente escolar o que gerou uma identificação muito
grande com o filme.
No segundo filme, também foram feitas algumas adequações com relação a
forma de levantar as questões para debate, foi inserida como parte do processo a
adoção de um personagem. Ainda no segundo filme, foi realizada uma constante
publicação de informações na página do Facebook. Ao contrário do primeiro filme
em que toda a discussão foi feita oralmente, no segundo foi solicitada uma produção
escrita. Como já afirmamos anteriormente, este trabalho tinha como objetivo testar
as potências e limites das obras cinematográficas como causadoras da disposição
para o pensar, e como todo método foram necessárias adequações durante o
processo que melhoraram a recepção do filme.
Os filmes foram o meio pelo qual causamos nos estudantes a disposição de
pensar criticamente, os alunos foram afetados de forma que esse afeto causou a
identificação necessária para que a problemática da obra se tornasse uma
problemática sua, ocorre aqui o processo de admiração onde ―encontramos um
comportamento de abertura [...] do homem diante da realidade. [...] um despertar em
face de uma realidade que deverá ser pensada‖ (BORNHEIM, 2003, p. 25).
Para que superemos essa mediocridade e possamos caminhar em direção a
uma construção de conhecimento, precisamos ter claro que o filme não pretende ser
um facilitador do conhecimento, mas, sim causar o que Cabrera chama de impacto
99
emocional29, que junto com
[...] a demonstrabilidade não distraem, mas conscientizam, não desviam a
atenção mas, pelo contrário, nos afundam numa realidade penosa ou
problemática, como as palavras escritas talvez não consigam fazer
(CABRERA, 2006, p. 47).
Cabrera admite que os elementos lógicos concernentes ao conhecimento
também são importantes, até mesmo ―Para fazer filosofia com o filme, precisamos
interagir com seus elementos lógicos, entender que há uma ideia ou um conceito a
ser transmitido pela imagem em movimento.‖ (2006, p. 22). O olhar do sujeito sobre
a imagem é que fará dela filosófica, pois é o indivíduo como ser disposto ao
conhecer que vai identificar os problemas filosóficos. O pensar filosófico se
apresenta de variadas formas, o que cabe a nós é reconhecê-lo em meio a um
universo de informações que temos diante de nossos olhos.
O que distingue o filosofo daquele que não o é, é o fato de o filósofo ser
capaz de reconhecer a Filosofia em qualquer lugar onde ela se apresente.
O não filosofo, ao contrário, a encontrará apenas nos lugares esperados,
naqueles em que foi recrutada e concentrada (CABRERA, 2013, p 170).
O comportamento atribuído por Cabrera pode ser identificado nos estudantes
em boa parte do tempo dedicado aos diálogos. Obviamente que não foram todos
afetados da mesma forma pelas obras, a participação de alguns foi mais expressiva
que a de outros, mas todos participaram e se envolveram nas atividades. Mesmo
com todas as dificuldades e as limitações do trabalho, acreditamos que com o filme
é possível causar essa disposição para o pensar.
Outro aspecto que merece destaque é o desenvolvimento de uma produção
autônoma. Inseridos na lógica tradicional de ensino, em que a cópia, a reprodução,
são habituais, o exercício de autonomia proporcionado pelo trabalho foi muito
importante e surpreendente. Muitas vezes optamos por direcionar ao máximo a
visão do aluno sobre determinados assuntos por receio de que ele sozinho não seja
capaz de fazê-lo. A busca incessante por rendimento não deixa espaço para o risco,
fato que leva muitos educadores a caírem na falsa convicção de que os alunos não
têm capacidade de caminhar sozinhos.
29
―Não se deve confundir ―impacto emocional‖ com ―efeito dramático‖. Um filme pode não ser
―dramático‖ nem buscar determinados ―efeitos‖ e, apesar disto, tem um impacto emocional, um
componente pático.‖ (Cabrera, p. 22, 2006)
100
É pela reflexão e pelo conhecimento que o homem pode sonhar e chegar
aos caminhos de sua libertação, estando apto para a intervenção de sua
história e realidade, com o objetivo de garantir respeito e dignidade. Por
este e outros motivos que o conhecimento deve ser competente, criativo,
crítico e criterioso, demonstrando-se um conhecimento alinhavado dentro de
uma reflexão filosófica (GODOY; WONSOVICZ, 2010, p. 40).
A autonomia precisa de liberdade e foi por esse caminho que nos propomos a
caminhar. Como vimos no trabalho do primeiro para o segundo filme, existem muitos
erros, tropeços e dificuldades, mas os estudantes e os professores estavam
caminhando e tropeçando juntos. É considerável a evolução na discussão dos
filmes, em um trabalho aplicado durante meio semestre. Acreditamos que mostrar ao
estudante que ele é um sujeito capaz de pensar de forma autônoma é uma tarefa
necessária, e que deve pertencer a todo educador. Se pretendemos atender a
necessidade de formação de um sujeito crítico, precisamos libertá-lo primeiramente
do ensino que o enxerga como incapaz.
101
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104
ANEXOS
Anexo I
Questionário
Pesquisa Prof - Filo - Mestrado Profissional em Filosofia – UNESPAR
Esta pesquisa está sendo realizada para auxiliar na
produção de dados que contribuam para o projeto aplicado no ano
de 2017, em Cruz Machado, no Colégio Estadual Barão do Cerro
Azul. Esses dados serão utilizados como base para uma parte
importante da construção de conhecimento na dissertação
intitulada "O cinema como provocação política em tempos de pós-
verdade" realizada pela professora mestranda Camile M. Zanella.
*Obrigatório
Sua residência fica localizada em Área Urbana ou Área Rural? *
Marcar apenas uma:
Área Urbana Área Rural Outro:
Qual sua faixa etária? *
Marcar apenas uma.
Entre 14 e 16
Entre 16 e 18 Outro:
Em sua localidade há acesso à internet? *
Marcar apenas uma.
SIM NÃO
105
Para qual finalidade você mais utiliza a internet? *
Marcar apenas uma.
Informações e notícias
Redes Sociais ( WhatsApp, Instagram, Facebook, etc) Fazer pesquisas
escolares
Outro:
Com que frequência você acompanha os acontecimentos relacionados a
política do país?*
Marcar apenas uma.
Sempre Quase sempre
Raramente Nunca Outro
106
Anexo II
Atividades desenvolvidas em sala