UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO” (UNESP)
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS, DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – câmpus
de Assis
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA (LICENCIATURA)
Disciplina: História Medieval II
Professor Responsável: Leandro Alves Teodoro
ALUNO: Thiago Pereira Camargo Comelli
BROWN, Peter. Os Novos Participantes, Maomé e a Evolução do Islamismo. p. 201-216. In:
Parte II – Legados Divergente. In O fim do mundo clássico. De Marco Aurélio a Maomé.
Editorial Verbo, Lisboa. 1972.
Peter Brown nasceu em Dublin, Irlanda, em 1935, de uma família protestante
irlandesa-escocesa. Entre 1953 e 1956, Brown recebeu uma bolsa para estudar história
moderna no New College em Oxford. A maior parte de seu diploma é dedicado à história da
Inglaterra em sua totalidade e ao início da Idade Média européia, 919-1127, mas em seu último
ano de escola ele se concentrou especificamente na idade de Agostinho e foi particularmente
influenciado pelas obras de Henri. Irénée Marrou e André Piganiol . Ele também foi influenciado
por outros historiadores, incluindo Arnaldo Momigliano, a quem chamou de mentor. Foi
professor de história em Oxford até 1975, em Londres entre 1975e 1978, em Berkeley entre 1978
e 1986, depois em Princeton. Ele também é professor visitante em várias universidades europeias,
incluindo o College de France e a Universidade de Roma "La Sapienza". Professor emérito de
universidades, ele é membro da British Academy , da Royal Academy of Ireland, da American
Academy of Arts and Sciences , da Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences,
da Medieval Academy of America e da Society. Também é membro associado da Academia dos
Lynceans e da Academia de Ciências e Artes de Barcelona. Entre suas principais obras, se
destacam: A vida de Santo Agostinho (1971); Genesis of Late Antiquity, (1983); A adoração dos
santos. Seu desenvolvimento e função no cristianismo latino (1984); Sociedade e o sagrado na
Antiguidade (1985); La Société Romaine (1991): A toga e a mitra. The World of Late Antiquity
(1985).
Na obra, o autor se pretende a uma análise entre as mudanças e continuidades culturais e
sociorreligiosas no fim do Mundo antigo (200-700 d.C.), relacionando a evolução social e
econômica ao desenvolvimento religioso do tempo (BROWN, 1972, p.9). Neste recorte
historiográfico proposto, Peter Brown tratará especialmente do Mediterrâneo Oriental, esboçando
das modificações da vida pública do Império (200-400 d.C.) até o Império Islâmico e suas
dinâmicas (610-632 d.C.)
Quanto ao recorte do fichamento (último capítulo da obra) o autor inicia tratando da
formação da Umma (povo de Deus) e sua expansão da cidade de Meca até toda a região da
Península Arábica, motivados pelas convicções religiosas de Maomé e seu Alcorão. Não é
surpresa que a religião muçulmana seja considerada como a “última e mais rápida crise da
história religiosa da Antiguidade Tardia” (BROWN, p. 201).
Dentro do cenário cultural do Oriente Próximo, mas especificamente à região de Hejaz, a
súbita expansão islâmica tampouco surpreende, visto que os habitantes de Meca e Medina
estavam distantes do contraponto das tribos beduínas. De modo que temos um núcleo civil
favorecido por uma agricultura sedentarizada e um comércio composto por estabelecimentos de
judeus, sírios, persas, anatólios, dentro outros intercâmbios das regiões do Levante Mediterrâneo
(e Ocidente, numa escala menor). Segundo Brown (p.201-202), esses estabelecimentos
colocavam árabes em relação a vida religiosa de Jerusalém e Nísbis, de modo que as ideias e
motivos orientadores são comuns com a dos cristãos e judeus inseridos no Crescente Fértil
(BROWN, p.203).
De modo que a Maomé opera uma libertação dos costumes tribais, com uma religiosidade
e mensagem que é um verdadeiro protesto ao modo de vida beduíno. Ocorre uma extroversão do
ideal tribal árabe (rigoroso aos costumes e honra aos antepassados, rápida na vingança e nas
promessas) juntamente com a mensagem muçulmana, que pregava uma existência onde a
presença do Julgamento Final de Alá era uma constante, eterna lembrança da efemeridade dos
afetos mundanos. Na mesma toada, os nouveaux riches das dinastias comerciantes do Hejaz
encontram identificação e benefícios com essa nova religiosidade, que ao reduzir subjetivamente
os adeptos frente ao espectro maior de Alá e o Julgamento, os aglutinaria no ideal mais
homogêneo de um “novo povo”, a Umma.
Simbólica nesse contexto de apaziguamento social é a figura de Maomé, “líder religioso e
árbitro cuja magnificência de estilo de vida excedia a ética rude do deserto” (BROWN, p.204).
Rodeado de dedicados guerreiros e crentes, ascende ao poder na Arábia, aliando tribos beduínas e
deixando como herança imediata (632 d. C) a pacificação da Península. Aqui, pode ser percebida
uma reconfiguração entre as tensões, que passa dos beduínos entre si (agora nominalmente
muçulmanos) para a Umma contra os infiéis. No entanto, a pax islamica só se concretizaria com a
conquista do Império Bizantino e do Império Persa.
Neste contexto de dominação, papel importante possuem os califas e os generais
muçulmanos, radicais na arte da guerra (que consistia tanto no uso cavalaria pesada, como na
rápida mobilidade, tradição beduína) como na negociação. Segundo o autor, “cidades importantes
como Damasco e Alexandria caem rapidamente pelas generosas condições de tolerância e
proteção em troca de um tributo fixo” (BROWN, p. 205). Criando um verdadeiro vácuo político
com suas conquistas, no qual apenas Bizâncio permanece administrativamente intacta, somente
no tempo das cruzadas um exército cristão voltará a pisar nas costas orientais.
Em sua forma de governo, podemos notar duas linhas ideológica paralelas: Uma
indiscutível supremacia guerreira (herança beduína da aristocracia árabe convertida) que move
a máquina guerreira islã, e a religiosidade dos devotos muçulmanos, importante por sua
capacidade de coalização identitária. Ainda que os costumes da aristocracia guerreira islamizada
fossem combatidos pela mensagem maometana, “evitava que os conquistadores perdessem sua
individualidade no meio da massa de populações conquistadas, mantendo-os inconfundivelmente
senhores de si, superiores” (BROWN, p.208).
Não obstante, a riqueza no estilo de vida dos conquistadores árabes era de saltar aos olhos
dos vencidos. Com sua requintada e sonora literatura poética, filosofias e teologias maometanas,
seu arcabouço cultural é estudado e apreciado por outros povos, fator que levaria a constituição
de uma cultura “moçarábica” na Península Ibérica (especialmente ao sul da Espanha).
Governando da orla do deserto, os povos árabes modificam significantemente a geografia do
Próximo Oriente, especialmente Damasco e Antioquia.
Segundo Brown, a supremacia árabe não significava que os territórios fossem
“conquistados” no sentido estrito da palavra. Em troca de defesa militar e autonomia
administrativa, pagavam tributos. Territórios como Egito, Síria e Pérsia forneciam produtos aos
muçulmanos, de modo que para o autor, “à medida que a tempestade do exército árabe some do
horizonte, às populações do Próximo Oriente sossegam e começam a gozar do sol”. (BROWN,
p.209). De modo que se termina o transporte de cereais do Egito para Constantinopla, a
Mesopotâmia passa pelo excelente governo do antigo professor Al-Hajjaj, e grandes monumentos
são levantados em Jerusalém e Damasco, “com afrescos sírios representando o suprassumo da
graça helenística, tais como o palácio de M’Shatta” (BROWN, p. 209-210).
É significativo o contraste entre as tradições formadas nos fins do Oriente Próximo entre
os vários núcleos citadinos do Mediterrâneo em 800 d. C. Enquanto a herança clássica é reduzida
em Bizâncio (limitada às cerimônias majestáticas e procissões imperiais), na Corte Carolíngia
(imitações razoáveis de instituições romanas por clérigos anglo-saxões que nunca haviam
conhecido o governo romano), notamos exuberantemente vivas as formas clássicas no Império
Árabe. Neste contexto, as tradições grega e romanas da costa do mediterrâneo interagiam em
larga escala com as do Império Sassânida da Mesopotâmia Oriental e do Planalto Iraniano de
Corassã (BROWN, p.210).
Portanto, não é de se estranhar que dentro de um século os pilares da civilização islâmica
passassem a ser sustentados por muçulmanos não árabes, que atingem posições como
administradores, juristas, teólogos e professores. Num sistema que oferecia igualdade a todos
conversos ao islã, campo aberto era oferecido para quem fosse talentoso o bastante a galgar
posições políticas, árabe ou não. Comete erro contumaz aquele que se propõe uma análise do
medievo buscando homogeneidades étnicas generalizantes e identidades nacionais, muito à gosto
da verve nacionalista do séc. XVIII e XIX.
Ainda que fugindo do recorte geográfico e temporal trabalhado por Brown, e lidando
com núcleos populacionais e integrações distintas, são ilustrativos os comentários de Geary sobre
as noções identitárias no medievo:
As identidades que os povos bárbaros ofereciam aos membros de seus “povos” eram
baseados em vagas tradições familiares, reinterpretadas e transformadas de acordo
com o contexto em que se encontravam. Os governantes mais aclamados afirmavam
descender de antigas famílias nobres ou reais, embora muitas vezes essas afirmações
não fossem legítimas [...] em cada um desses povos, reis bem-sucedidos projetavam o
passado imaginado da família em questão no povo como um todo, produzindo uma
percepção de comum de sua origem que deveria ser compartilhada por toda a elite
militar, suprimindo reivindicações alternativas pelo direito à autoridade (GEARY, 2005,
p.130).
De modo que similar ao problema ocorrido no Império Romano do séc. III, os
muçulmanos não árabes alargam a cultura da classe governamental do Império Árabe, resultando
numa cultura grega e latina que era alimentada e é alimentava pelo estilo de vida árabe. Para o
autor “cem anos de civilização voltam a se fazer ouvir, após o hiato de domínio beduíno, com a
subida ao poder de muçulmanos não árabes” (BROWN, p. 212).
No Final do século VII e início do VIII, as fronteiras entre a cristandade e Império Árabe
se endurecem, graças aos confrontos contra Bizâncio. Já no século VI, com o Concilio
Ecumênico de Constantinopla, Antioquia Jerusalém e Alexandria deixam de ser consideradas
parte do mundo cristão bizantino. Entretanto, no século VII, são cunhadas as primeiras moedas
árabes e o árabe substitui a língua grega na chancelaria de Damasco, o que oferece o contraponto
de um Mediterrâneo Oriental cada vez mais islâmico.
Fator importante a ser destacado são as derrotas contra o império Bizantino, que
desestabilizam os califas omíadas de Damasco, rachadura que possibilita que a dinastia Abássida
se alce ao poder, com a revolta no Irã e fundação de Baghdad em 762 d. C. Para o autor, “um
mundo que nunca perdera seu contato com as tradições antigas dá o maior brilho à última
transformação mulçumano-arábica” (BROWN, p. 214)
Com um domínio de firme estabilidade no Oriente, bem como um Império Sassânida
(persa pré-islâmico) que procurou identificar o religioso com o social, as tempestades
governamentais do Império Árabe não foram fortes o bastante para desestabilizar os dekkens de
Cósroas I Anoshirwan, verdadeira espinha dorsal para o Império muçulmano. No século VIII,
com a conquista Abássida e o reinado de Hárune Arraxide, novamente os “persas (agora perfeitos
árabes) veriam o apogeu de seu Império, sobrepondo às leis beduínas que um dia desafiaram a
majestade dos Cósroas”. (BROWN, p. 214).
Dentre as dinâmicas culturais da corte, Brown chama atenção ao fato de que o persistente
contato com o helenismo do clero de fala siríaca da Mesopotâmia ofereceu à corte de Arraxide a
filosofia grega, com traduções de Platão, Aristóteles e Galeno. Na figura do califa, observa-se
toda uma busca pelo cerimonial da corte sassânida, em detrimento aos modos beduínos
pré-muçulmanos, representativas de uma Mesopotâmia que reconquista a posição gloriosa dos
tempos de Alexandre III (o grande). Segundo Brown (p. 215), “era a ressureição das cidades
redondas da Assíria e da Ásia Central”. Bagdá que o diga, não deixando nada a dever às grandes
cidades do Império Romano.
Finalmente, e não menos importante, o comércio se oferece às mãos persas, com novas e
atraentes possibilidades. Praças do mercado de Lohang e Cantão são simbólicas do ressurgimento
da tentação da Ásia distante e suas riquezas, fator que possibilita também um intercâmbio
cultural, como no caso de prisioneiros chineses de guerra que dão notícia da indústria de papel à
Baghdad, em 751 d. C. Quanto a fundação da cidade de Bagdá propriamente dita, somada ao
estabelecimento do califado abássida, para o autor, consistem em fatores de “salvação” da
Europa:
Não foi o fogo grego da esquadra bizantina, em Constantinopla, em 717, nem a
cavalaria franca de Carlos Martel, em Tours, em 732, que paralisou a máquina de
guerra dos Árabes. Foi a fundação de Bagdá, os lentos ideais paralisadores de uma
dispendiosa e vasta administração imperial substituem a terrível mobilidade dos
exércitos beduínos (BROWN, 1972, p.216).
Dos combates sangrentos da guerra santa, sucede uma meticulosa diplomacia, baseada no
antigo protocolo persa. De modo que não é de se espantar o gesto de Hárune Arraxide ao
presentear Carlos Magno, em 800 d. C, antes deste ser coroado imperador, com um grande
relógio e um elefante domesticado, chamado Abul Abás. Aqui, podemos traçar uma linha até
Cósroas I Anoshirwan, que nas grandes ocasiões distribuía animais, tecidos e belos presentes aos
seus súditos.
A partir do momento em que passamos a perceber os elementos cultos da cristandade
recebendo a cultura do Mediterrâneo Oriental, bem como a língua poética do deserto, somos
confrontados com um elemento similar aos primeiros intercâmbios entre o Crescente Fértil e o
Mediterrâneo e a Península Itálica na Antiguidade. Muito consoante à definição de Antiguidade
Tardia de Peter Brown, para Guarinello:
Não há uma data fixa, ou um período bem determinado, para falarmos de fim da
História Antiga. Em certo sentido, difícil de determinar, o processo de integração de
ampliou. Mesmo que certas áreas tenham diminuído a intensidade dos fluxos
mediterrânicos de bens, como as Gálias e Hispânia, outras se mantiveram ativas e
floresceram, como o levante e Constantinopla. [...] Não é possível entender o
desenvolvimento posterior da Europa, dos países islâmicos e da Eurásia como um todo,
sem levar em conta o que fora construído [...] em termos de invenções, ou de esforços
humanos concretizados em saber, tecnologia e obras concretas, mas também na rede
adensada de relações que a chamada Antiguidade legou às gerações posteriores
(GUARINELLO, 2013, p. 171).
O autor finaliza o capítulo e a obra ressaltando que o rumo fundamental para a
quinta-essência do poderio do Império Islâmico, mais que a Maomé e o islamismo e os
adaptáveis conquistadores do séc. VII, se deveu “ao renascimento completo das tradições
orientais persas, nos séculos VIII e IX”. (BROWN, p.216)
Referências
BROWN, Peter. Os Novos Participantes, Maomé e a Evolução do Islamismo. In: Parte
II – Legados Divergente. In O fim do mundo clássico. De Marco Aurélio a Maomé. Editorial
Verbo, Lisboa. 1972.
GEARY, Patrick J. O Mito das Nações: a invenção do nacionalismo. Ed. Conrad, São
Paulo, 2002.
GUARINELLO, Norberto Luiz. História antiga. Ed. Contexto, São Paulo, 2013.