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Schussler - Fiorenza - P. 9-64

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Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional ELISABETH SCHÜSSLER FIORENZA

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Fiorenza, Elisabeth Schüssler, 1938-


As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica / Elisabeth
Schüssler Fiorenza; I tradução João Rezende Costa I .— São Paulo: Edições Paulinas,
1992. — (Biblioteca de estudos bíblicos)

Bibliografia.
ISBN 85-05-01107-4

1. Mulheres — História 2. Mulheres na Bíblia 3. Mulheres no Cristianismo —


História — Igreja primitiva I. Título, n. Série.

CDD-270.1

90-0608
-220.83054
-305.42
AS ORIGENS CRISTÃS
A PARTIR DA MULHER
índices para catálogo sistemático:
Uma nova hermenêutica
1. Mulheres: História: Sociologia 305.42
2. Mulheres na Bíblia 220.83054
3. Mulheres na Igreja cristã primitiva: História 270.1

BIBLIOTECA DE ESTUDOS BÍBLICOS

• Bíblia: A T — Introdução aos escritos e aos métodos de estudo, H. W. Wolff


• Os partidos religiosos hebraicos na época neotestamentária, K. Schubert
• Segundo as Escrituras: Estrutura fundamental do N T , C. H. Dott
• Aprenda a ler o Evangelho, X. Chalendar
• Jesus e as estruturas de seu tempo, E. Morin
• O anúncio do AT, A. Deissler
• Chave para a Bíblia, W. J. Harrington
• Bíblia, palavra de Deus — Curso de introdução à Sagrada Escritura, V. Mannucci
• Os fundamentos bíblicos da missão, D. Senior e C. Stuhlmueller
• Tratado sobre os judeus, F. Mussner
• Israel em oração, C. Sante
• Paulo, a Lei e o povo judeu, E. P. Sanders
• As origens cristãs a partir da mulher — Uma nova hermenêutica, E. S. Fiorenza EDIÇÕES PAULINAS
problemas exegético-hermenêuticos difíceis, relativos à reconstrução
feminista das origens cristãs primitivas, ajudou-me muito para
INTRODUÇÃO
desenvolver minha pesquisa e cristalizar o meu pensamento.
Finalmente, quero agradecer aos homens que “nutriram” este
EM BUSCA DA HERANÇA
livro. A cuidadosa leitura do manuscrito feita por Justus George DAS MULHERES
Lawler ajudou-me na lida do longo processo de redação. Frank Oveis
orientou o manuscrito durante suas várias fases de edição e produção
com muito cuidado. Robert Craft e Frederick Holper conferiram as
notas e as provas gráficas. O sr. Holper não só chamou minha atenção
para os meus germanismos nas diversas versões do manuscrito, mas Três discípulos têm papéis destacados na narrativa da paixão no
também, como meu professor assistente nos dois últimos anos, apoiou evangelho de Marcos: dois dos doze, Judas que traiu Jesus e Pedro que
enormemente o meu trabalho com entusiasmo intelectual pelas o renega, e a mulher anónima que unge Jesus. As histórias de Judas
questões teológico-hermenêuticas levantadas pelo enfoque histórico e Pedro estão gravadas na mente dos cristãos, ao passo que a história
e feminista. Em último lugar, em menção e não em importância, não da mulher está virtualmente esquecida. Apesar do dito de Jesus: “Em
tenho palavras para agradecer a Francis Schiissler Fiorenza sua verdade eu vos digo que, onde quer que venha a ser proclamado o
amizade e seu apoio crítico. evangelho, em todo o mundo, também o que ela fez será contado em
Em todo o processo de preparação desta obra Christina Schiissler sua memória” (Mc 14,9), a ação simbólica profética da mulher não veio
Fiorenza recomendou-me “que a trabalhasse bastante”, para que a se tomar parte do conhecimento evangélico dos cristãos. Até o seu
tivéssemos mais tempo para conversar e brincar. Espero que em nome ficou perdido para nós. Onde quer que o evangelho seja procla­
algum momento de sua vida futura ela possa perceber que este livro mado e a eucaristia celebrada, é outra a história que se conta: a
é parte de nossa conversa permanente e de nossa imaginação criativa. história do apóstolo que traiu Jesus. Recorda-se o nome do traidor,
mas se esquece o nome da discípula fiel porque era mulher.
12 de novembro de 1982 A história da unção é contada nos quatro evangelhos1, mas fica
Aniversário de Elizabeth Cady Stanton claro que, ao se recontar redacionalmente o episódio, busca-se torná-
lo mais digerível para o auditório patriarcal greco-romano. O quarto
evangelho identifica a mulher como Maria de Betânia que, como
amiga fiel de Jesus, demonstra-lhe o seu amor ungindo-o, mas Lucas
desvia o foco da narrativa da mulher como discípula para a mulher
como pecadora. Disputa-se se Lucas usou o texto de Marcos ou
transmite uma tradição diferente. Mas esta disputa exegética não
importa tanto, uma vez que estamos acostumados a ler a história de
Marcos à luz de Lucas. Neste processo, a mulher converte-se numa
grande pecadora que é perdoada por Jesus.
Apesar das diferenças, os quatro evangelhos refletem o mesmo
episódio básico: uma mulher unge Jesus. O incidente provoca obje-
ções, a que Jesus responde aprovando a ação da mulher. Se a história
original tivesse sido apenas uma história de unção dos pés de um
hóspede, seria bem pouco provável que um gesto tão comum viesse a

1. Para discussão mais ampla da bibliografia exegética, ver Holst, Robert, “The Anointing of
Jesus: Another Application of the Form Criticai Method”, in: JBL 95 (1976) 435-46.

8 9
ser recordado e recontado como a proclamação do evangelho. É, cultura dizem-nos — por palavras, fatos e, pior ainda, pelo silêncio —
portanto, muito mais provável que na história original a mulher que somos insignificantes. Mas nossa herança é nossa força”.4
tenha ungido a cabeça de Jesus. Uma vez que o profeta no Antigo As indagações deste livro têm dois objetivos: buscam reconstruir
Testamento ungiu a cabeça do rei judeu, a unção da cabeça de Jesus a história cristã primitiva como história de mulheres, no sentido de
deve ter sido entendida imediatamente como o reconhecimento não apenas restituir as histórias de mulheres à história cristã primi­
profético de Jesus, o Ungido, o Messias, o Cristo. Em consonância com tiva, mas também para requerer que se entenda essa história como
a tradição, foi uma mulher que assim nomeou Jesus por sua ação história de mulheres e varões. Faço-o não só como historiadora
simbólica profética. Tratava-se de uma história politicamente pe­ feminista, mas também como teóloga feminista. A Bíblia não é mera
rigosa.2 coleção histórica de escritos, mas é também Escritura Sagrada,
O episódio situa-se no Evangelho de Marcos, entre a afirmação de evangelho, para os cristãos de hoje. Como tal, inspira não apenas a
que os líderes do povo queriam prender Jesus e o anúncio de que Jesus teologia, mas também o comprometimento de muitas mulheres de
seria traído por Judas, em troca de dinheiro. Assim Marcos despolitiza hoje. Todavia, enquanto as histórias e a história das mulheres dos
a história da paixão de Jesus: primeiro, desviando a culpa de sua primórdios do cristianismo primitivo não forem concebidas teologica­
morte dos romanos para a instituição judaica; e, segundo, definindo mente como parte integrante da proclamação do evangelho, continu­
teologicamente a messianidade de Jesus como sendo um messianismo arão a serem opressivos para as mulheres os textos bíblicos e as
de sofrimento e morte. Ao passo que os líderes varões e discípulos não tradições formuladas e codificadas por varões.
compreendem esse messianismo sofredor de Jesus, recusam-no e por Esta reconstrução da história cristã primitiva como história de
fim abandonam Jesus; as discípulas mulheres, que seguiram Jesus mulheres e da teologia bíblico-histórica como teologia feminista,
desde a Galiléia até Jerusalém, surgem de repente como as verdadei­ pressupõe análise crítica histórica e teológica e também o desenvol­
ras discípulas na narrativa da paixão. Elas são as verdadeiras vimento de uma hermenêutica histórico-bíblica feminista. Uma vez
seguidoras (akolouthein) de Jesus; que compreenderam que o seu que minha especialidade é a exegesse do Novo Testamento, limitarei
ministério não era governo e glória régia, mas diakonia, “serviço” (Mc minhas indagações aos primórdios do cristianismo sem incluir toda a
15,41). Surgem, assim, as mulheres como as verdadeiras ministras e história bíblica. Mas, metodicamente, será necessário ir além dos
testemunhas cristãs. A mulher anônima, que nomeia Jesus como limites do cânon do Novo Testamento, uma vez que se trata de produto
Messias numa ação simbólica profética no Evangelho de Marcos, da igreja patrística, a saber, de documento teológico dos “vencedores
constitui o paradigma do verdadeiro discípulo. Ao passo que Pedro históricos”. Desistir deste empreendimento, porque o estudo crítico
confessara, sem o compreender verdadeiramente, dizendo: “tu és o histórico e a hermenêutica são “de varões” e não feministas, signifi­
Ungido”; a mulher, ao invés, ao ungir Jesus, reconhece claramente caria um desserviço intelectual às mulheres. Uma vez que reforça os
que a messianidade de Jesus significa sofrimento e morte. papéis estereotipados de varão e mulher, tal assunção não é capaz de
A teologia cristã feminista e a interpretação bíblica estão no nomear as assunções particularmente opressivas e os componentes
processo de redescobrimento de que o evangelho cristão não pode ser androcêntricos de semelhantes estudos.
proclamado se não se recordarem as discípulas mulheres e o que elas
A reconstrução da história cristã primitiva em perspectiva femi­
fizeram. Estão no processo de requerer que se entenda a ceia em
nista suscita difíceis problemas hermenêuticos, textuais e históricos.
Betânia como herança cristã das mulheres, no sentido de corrigir os
Uma vez que o feminismo desenvolveu diversas perspectivas e diver­
símbolos e ritos de uma Última Ceia, toda de varões, que constitui
sos modelos teóricos, essa reconstrução deve também incluir um
traição do verdadeiro discipulado e ministério cristãos.3Ou, usando
arcabouço heurístico feminista que permita perceber a opressão e
palavras da artista Judy Chicago: “Todas as instituições de nossa
também a atuação histórica de mulheres no cristianismo primitivo.
2. Cf. Elliott, J .K ., The Anointing of Jesus, in: Exp Tim 85 (1974) 105-107.
3. Cf. também Platt, Elizabeth E., The Ministry of Mary of Bethany, in: Theology Today 34 4. Chicago, Judy, The Dinner Party: A Symbol of Our Heritage, Anchor Books, Doubleday,
(1977) 29-39. Nova York, 1979,246.

10 11
1. Uma intuição metodológica fundamental da crítica histórica da deveria impedir de utilizar também conceitos heurísticos feministas
Bíblia foi a percepção de que o Sitz im Leben ou a situação vital de um no sentido de reconstruir uma história cristã primitiva em que as
texto é tão importante para sua compreensão como sua real formula­ mulheres não fiquem ocultas e invisíveis. Enquanto um modelo
ção. Os textos bíblicos não são revelações verbalmente inspiradas androcêntrico não pode fazer justiça aos textos que mencionam
nem princípios doutrinais. São formulações históricas surgidas no positivamente a liderança de mulheres nos primórdios do cristianis­
contexto de determinada comunidade religiosa. Se bem que essa mo, um modelo feminista pode integrá-los positivamente.
intuição hoje seja desafiada pelo formalismo literário e também pelo Os estudiosos da Bíblia não percebem, porém, a questão como
biblicismo textual, continua, não obstante, sendo básica para toda problema histórico sério, de grande importância para a reconstrução
reconstrução histórica. Pesquisas do mundo social de Israel e do da história e teologia do cristianismo primitivo. Enquanto “assunto de
cristianismo primitivo estão em processo de desenvolver modelos mulher”, é da menor importância e é marginal para o empreendimen­
heurísticos que compreendam mais plenamente o contexto sócio- to acadêmico. Visto como “problema da mulher”, o assunto cabe a
histórico dos textos bíblicos. livros e simpósios sobre “mulher”, mas não ao programa de conferên­
De modo semelhante, a teoria feminista insiste em que todos os cias exegéticas ou às páginas de um Festschrift exegético. Geral­
textos são produtos de cultura e história patriarcal androcêntrica. Por mente, qualquer que se identifique com a “causa feminista” é ideolo­
isso o movimento feminista gerou uma profusão de estudos acadêmicos gicamente suspeito e profissionalmente desacreditado. E como ob­
em todas as áreas de indagação e pesquisa científica.6Historiadores, servava uma de minhas colegas sobre uma professora, que escrevera
filósofos e antropólogos enfatizam que a corrente teoria e pesquisa um artigo moderado sobre as mulheres no Antigo Testamento: “E
acadêmicas são deficientes porque deixam de considerar as vidas e uma vergonha, ela pode ter arruinado sua carreira acadêmica”.
contribuições das mulheres e constroem uma humanidade e uma A assunção tácita, que subjaz a tais reservas expressas ou
história humana enquanto “de varões”. O estudo feminista em todas inexpressas, é que os estudiosos que não refletem ou articulam suas
as áreas busca, pois, construir modelos e conceitos heurísticos que nos fidelidades políticas são “objetivos”, livres de tendências, apartidários
permitam perceber que a realidade humana se acha insuficientemente e científicos. No entanto, qualquer pessoa ainda que pouco familiari­
articulada em textos e pesquisas andro-cêntricos. zada com problemas levantados pela sociologia do conhecimento ou
pela teoria crítica terá dificuldade em afirmar esta objetividade
As indagações deste livro começam, pois, com a esperança de
acadêmica em assuntos científicos. Em brilhante análise da escravi­
distanciar-se da apologética difundida que caracteriza a maior parte
dão na antiguidade, o eminente estudioso Moses Finley indagou os
das abordagens das mulheres na Bíblia, para uma reconstrução
caminhos pelos quais os interesses ideológicos é societários correntes
histórico-crítica da história de mulheres e das contribuições de
lograram afetar profundamente a historiografia da escravidão anti­
mulheres nos primórdios cristãos primitivos. Supus, ademais, que as
novas questões levantadas pelo estudo feminista poderão enriquecer ga. Ele resume duas indagações:
nossa compreensão da história cristã primitiva. A tentativa de “escrever No entanto, outras considerações ideológicas contemporâneas atuam
para restituir as mulheres à sua participação na história cristã neste campo aparentemente remoto de estudo histórico — atuam no
primitiva” não apenas restituir a história cristã primitiva às mulhe­ sentido que subjazem e até mesmo orientam o que muitas vezes parece
res, mas também levar a uma percepção mais rica e mais adequada apresentação meramente “fatual”, “objetiva” ... Creio que um relato
completo e aberto de como o interesse moderno pela escravidão antiga tem
dos primórdios do cristianismo. Se os estudiosos empregam análises
se manifestado constitui pré-requisito necessário para a análise da subs­
filosóficas, sociológicas e psicológicas para construir novos modelos tância mesma da própria instituição em si, e foi por isso que comecei por
interpretativos da evolução do cristianismo primitivo, nada nos esse tema.6

5. Signs: Journal o f Women in Culture and Society, fundado em 1975, tem recensões regulares
dos estudos em várias áreas. De igual importância são os Women’s Studies International Quarterly
e Feminist Studies. Ver também Spender, Dale, org., Men’s Studies Modified: The Impact of 6. Finley, Moses /., Ancient Slavery and Modem Ideology, Viking Press, Nova York, 1980,
Feminism on the Academic Disciplines, Pergamon Press, Oxford/ Nova York, 1981. pp. 9s.

12 13
Uma vez que o conhecimento histórico é inferencial (Collingwood), em resposta às minhas conferências e publicações ensinaram-me
os historiadores têm de construir um quadro referencial dentro do como exprimir problemas com maior clareza e como ter em mente os
qual possam discutir a documentação histórica disponível. Esse obstáculos estruturais para uma historiografia ou teologia feminis­
quadro referencial está sempre determinado pelas suas perspectivas tas. Essas trocas de experiências também me estimularam a indagar,
e pelos seus valores filosóficos. Historiadores que pretendem regis­ com mais profundidade, o modo de formular uma “hermenêutica
trar nada mais do que puros fatos, ao recusarem reconhecer suas feminista”. A primeira parte deste livro — que poderia à primeira
próprias pressuposições e perspectivas teóricas, logram apenas es­ vista parecer a muitas mulheres estranha e por demais acadêmica —
conder de si mesmos as ideologias sobre as quais se baseia sua histo­ deve sua concepção mais a questões feministas que a questões
riografia. Toda historiografia é visão seletiva do passado. A interpre­ teóricas acadêmicas.
tação histórica está definida por questões e horizontes de realidade Quando tento indagar a história das mulheres que se tomaram
contemporâneos, assim como também por interesses e estruturas de cristãs nos primórdios do cristianismo, essa tentativa não deveria ser
dominação contemporâneos. A “objetividade” histórica só se pode mal interpretada como se buscasse salvar a Bíblia das críticas
obter refletindo criticamente e nomeando os pressupostos teóricos e feministas que lhe são feitas. Simplesmente quero levantar a questão:
as fidelidades políticas de quem escreve. como se podem reconstruir as origens primitivas cristãs de sorte que
O interesse por legitimação e também por abrir possibilidades sejam interpretadas como “assuntos de mulheres”? Em outros ter­
futuras é o motivo principal na interpretação bíblica. Como James mos, será que a primitiva história cristã é a “nossa própria” história
Robison afirma: ou herança? Será que as mulheres foram tanto quanto os homens as
iniciadoras de movimento cristão?
O estudo do Novo Testamento, como atividade intelectual, é nma ciência Enquanto os teólogos na faculdade recusam-se a discutir publica­
moderna que reflete e molda a compreensão moderna da realidade, mente as suas fidelidades políticas, tendências preconcebidas e fun­
qualidade de que participa em comum com as humanidades em geral... ção, muitas feministas pós-bíblicas estão preparadas para renunciar
Todo estudioso ou cientista que lida com assunto referente ao passado o faz às suas raízes históricas e sua solidariedade com as mulheres na
de acordo com a sua compreensão atual da realidade, e o resultado de sua religião bíblica. Reconhecendo que a linguagem ocidental androcêntrica
pesquisa flui, por sua vez, para o corrente corpo de conhecimento, de que
e a religião patriarcal “apagaram” as mulheres da história, fazendo
a contínua modificação de nossa compreensão emerge.7
delas “não seres”, essas feministas argumentaram que a religião
Se este for o caso, e creio que o seja, deve-se perguntar se a bíblica (e a teologia) é sexista no seu cerne. Não pode ser recuperada
relutância dos estudiosos, em investigar este tópico, poderia ser para mulheres, uma vez que ignora as experiências das mulheres,
sustentada por recusa consciente ou inconsciente a modificar nossa fala da divindade em termos masculinos, legitima posições de sub­
apreensão androcêntrica da realidade e da religião antes que por missão e impotência das mulheres, e promove a dominação e a
legítima preocupação com a integridade da ciência bíblico-histórica. violência dos varões contra as mulheres. Em conseqüência, as femi­
A frase de Simone de Beauvoir a propósito do estudo sobre mulheres nistas precisariam ultrapassar as fronteiras da religião bíblica e
em geral aplica-se aos estudos das mulheres na Bíblia: “Se a ‘questão rejeitar a autoridade patriarcal da revelação bíblica. Interpretações
da mulher’ parece trivial é porque a arrogância masculina fez dela revisionistas da Bíblia são, na melhor das hipóteses, legitimação do
uma ‘briga’ e, enquanto se briga, não mais se raciocina bem”.8 sexismo prevalecente da religião bíblica — portanto, cooptação das
2. Se foi difícil remover os receios intelectuais de minhas colegas mulheres e do movimento feminista. Apráxis feminista enraíza-se na
na faculdade, achei bem mais difícil defender meus interesses bíblicos experiência religiosa de mulheres contemporâneas, mas não deriva
das objeções feministas. Questões e receios expressos pelas mulheres sua inspiração do passado cristão.
No entanto, essa posição feminista pós-bíblica corre o risco de se
l.Robinson, James M. e Koester, Helmut, Trajectories through Early Christianity, Fortress, tomar a-histórica e apolítica. Com grande rapidez, concede que as
Filadélfia, 1971, pp. Is. mulheres não têm história autêntica dentro da religião bíblica e, com
8. Ver a introdução de Beauvoir, Simone, The Second Sex, Knopf, Nova York, 1953, pp. 18ss.

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grande facilidade, renuncia à herança bíblica feminista das mulheres. Assim, reclamar a história cristã primitiva como passado próprio
Essa posição não pode fazer justiça às experiências positivas de de mulheres e insistir em que a história de mulheres é parte inte­
mulheres contemporâneas no seio da religião bíblica. Deve ou negli­ grante da historiografia cristã primitiva, isto implica na busca de
genciar a influência da religião bíblica nas mulheres de hoje ou raízes, de solidariedade com nossas primeiras irmãs, e, enfim, da
declarar a adesão das mulheres à religião bíblica como “falsa consci­ memória de seus sofrimentos, suas lutas e suas forças como mulheres.
ência”. Na medida em que a religião bíblica continua a ter influência Se a história em geral e a história cristã primitiva em particular
ainda hoje, uma transformação feminista cultural e social do ocidente são um dos caminhos que a cultura e a religião androcênticas usaram
deve levar em conta a história bíblica e o impacto histórico da tradição para definir as mulheres, então ela precisa se tomar um objeto
bíblica. Nós, mulheres ocidentais, não logramos descartar completa­ importante para a análise feminista. Semelhante análise da história
mente e esquecer nossa história cristã pessoal, cultural ou religiosa. e da Bíblia deve revelar criticamente a história patriarcal no que ela
Ou a transformamos em novo futuro libertador, ou continuamos, quer é em si e, ao mesmo tempo, reconstruir a história das mulheres no
queiramos quer não, reconhecer sua força, sujeitas à sua tirania. cristianismo primitivo como desafio ao patriarcado histórico-religioso.
Feministas não podem admitir esta posição a-histórica e anti- Por conseguinte, uma reconstrução feminista da história cristã primi­
histórica, porque é precisamente o poder dè opressão que priva as tiva tem não apenas objetivo teórico, mas também objetivo prático:
pessoas de sua história. Isto é percebido tanto pelos teólogos negros visa tanto à crítica cultural-religiosa quanto à reconstrução da his­
como pelos latino-americanos. No seu livro Raízes, Alex Haley traça a tória de mulheres como história de mulheres dentro do cristianismo.
história de seu povo desde os tempos de sua escravidão. Ele o faz com Busca não só minar a legitimação das estruturas religiosas patriar­
a esperança de “que esta história do nosso povo possa aliviar o nosso cais, mas também potenciar as mulheres em sua luta contra as
legado do fato de que as histórias são escritas preponderantemente estruturas opressoras. Em outros termos, uma reconstrução feminis­
pelos vencedores”.9De modo semelhante, afirma Gustavo Gutiérrez: ta das origens cristãs primitivas busca recuperar a herança cristã das
A história humana foi escrita por mão branca, por mão de varão, a partir
mulheres, porque, segundo palavras de Judy Chicago, “nossa herança
da classe dominante. A perspectiva do derrotado na história é diferente. é nosso poder”.
Fizeram-se tentativas de varrer de suas mentes as memórias de suas No entanto, essa recuperação da história de mulheres no cristia­
lutas. Isso é privá-los de uma fonte de energia, da vontade histórica de nismo primitivo deve não só restituir as mulheres à história, mas
rebelião.10
também restituir a história das origens cristãs às mulheres. Ela
Entre as feministas, a artista Judy Chicago enfatizou a importân­ reinvindica o passado cristão como passado próprio de mulheres, e
cia da herança das mulheres como fonte de sua própria força. Ela criou não apenas como um passado de varões do qual as mulheres partici­
Dinner Party como história simbólica do passado das mulheres param apenas à margem e no qual não eram ativas absolutamente.
“ajuntando” da escassa informação recolhida dos canais cultural- As fontes do Novo Testamento fornecem indicadores suficientes para
religiosos. Ela observa: essa história das origens cristãs primitivas, uma vez que dizem que
mulheres são seguidoras de Jesus e membros líderes das comunida­
É triste que a maioria das 1038 mulheres incluídas no Dinner Party não des cristãs primitivas. Ademais, nos séculos 2 e 3, o cristianismo
nos são familiares, suas vidas e obras são desconhecidas da maioria de nós. ainda tinha que se defender da acusação de que era uma religião de
Para fazer as pessoas se sentirem destituídas de valor, a sociedade lhes mulheres e de pessoas incultas. A tarefa impüca, pois, não só na
rouba o orgulho: foi o que ocorreu com as mulheres. Todas as instituições
redescoberta de novas fontes, mas também na releitura das fontes
de nossa cultura nos dizem — por palavras e atos, e, pior ainda, pelo
silêncio — que somos insignificantes. Mas nossa herança é nosso poder.11
disponíveis em chave diferente. O objetivo é um aumento de “imagi­
nação histórica”.
9. Haley, Alex, Roots: The Saga of An American Family, Doubleday, Nova York, 1976,pp.687s. 3. O debate entre a teoria feminista “comprometida” e o
10. Gutiérrez, Gustavo, Where Hunger is, God is Not, in: The Witness (abr71.976), p.6.
11. Chicago, Judy, The Dinner Party, pp. 241-251. androcêntrico estudo acadêmico “neutro” está a indicar um desvio nos

16 17
paradigmas de interpretação.12Enquanto o estudo acadêmico tradi­ logicamente, mas está enraizada em mudança das relações socio-
cional identificou humanidade com masculinidade e entendeu as patriarcais. Semelhante conversão intelectual gera uma alteração de
mulheres como mera categoria periférica na interpretação “humana” comprometimento que permite à comunidade de estudiosos ver os
da realidade, o novo campo de pesquisas das mulheres não somente “dados” antigos dentro de perspectivas completamente novas. O
tenta fazer da atuação das mulheres uma categoria-chave inter- debate entre estudo androcêntrico e estudo feminista faz mais que
pretativa, mas também busca converter estudos e conhecimentos indicar as limitações intelectuais dos estudiosos envolvidos na argu­
androcêntricos em estudos e conhecimentos verdadeiramente hu­ mentação. Mostra, com efeito, uma competição entre paradigmas
manos, ou seja, abarcando todas as pessoas, homens e mulheres, rivais que podem existir, um ao lado do outro na fase de transição, mas
classes altas e baixas, aristocracia e “pessoas comuns”, diferentes que em últimos termos, se excluem reciprocamente.
culturas e raças, os poderosos e os fracos. Segundo Kuhn, semelhante transição só se pode realizar quando
O conceito de Thomas Kuhn sobre paradigmas científicos e o paradigma emergente produzir suas próprias estruturas
modelos interpretativos heurísticos13pode ajudar-nos a compreender institucionais e sistemas de sustentação. Enquanto o paradigma
este desvio na interpretação e estabelecer um paradigma novo, androcêntrico de estudo está enraizado nas instituições patriarcais
feminista que tenha como objetivo científico uma reconstrução “hu­ da faculdade, o paradigma criou suá própria base institucional nas
mana” abrangente da história cristã primitiva. Segundo Kuhn, um instituições alternativas dos centros de mulheres, institutos acadê­
paradigma representa uma tradição coerente de pesquisa criada e micos e programas de estudos. Entretanto, as dependências patriar­
sustentada por uma comunidade científica. O paradigma define o tipo cais e as instituições hierárquicas da faculdade garantem a perpetuação
de problemas a ser pesquisado, as interpretações a serem dadas e os estrutural do paradigma científico androcêntrico. O assunto não é
sistemas interpretativos a serem construídos. Assim, um paradigma apenas problema de reconstrução feminista da história e de uma
científico determina todos os aspectos da pesquisa científica: obser­ renomeação do mundo, mas também uma alteração fundamental,
vações, teorias e modelos interpretativos, tradições e exemplares da quer do estudo, quer da faculdade. As pesquisas feministas são,
pesquisa, e também as suposições teórico-filosóficas sobre a natureza portanto, primordialmente de responsabilidade do movimento de
do mundo e sua cosmovisão global. Todos os dados e todas as mulheres em prol da alteração da sociedade e da igreja, mais do que
observações registradas estão carregadas de teoria, não existem da faculdade. Ou nas palavras de Michelle Russel:
dados e fontes que não possam ser interpretados simplesmente. E
também não existem critérios e modelos de pesquisa que não sejam A questão é esta: Como poderão vocês recusarem-se a impedir que a
dependentes do paradigma científico em que se desenvolveram. faculdade separe os mortos dos vivos, se depois vocês mesmos declararem
fidelidade à vida? Como professores, pesquisadores e estudantes, como
A mudança de uma interpretação androcêntrica do mundo, para podem vocês tomar o seu conhecimento útil aos outros como instrumentos
uma interpretação feminista, implica tuna mudança revolucionária de sua própria libertação? Não se trata de convite a ativismo despro­
de paradigma científico, uma mudança com ramificações de profun­ positado, mas antes de um estudo comprometido.14
das conseqüências, não somente para a interpretação do mundo, mas
também para sua alteração. Uma vez que os paradigmas determinam Muito embora uma reconstrução feminista da história primitiva
a maneira como os estudiosos vêem o mundo e como concebem cristã das mulheres, seja do interesse de todas as mulheres que foram
problemas teóricos, a mudança de um paradigma androcêntrico para afetadas pela influência da religião bíblica nas sociedades ocidentais,
um paradigma feminista, implicam transformação da imaginação deve todavia apoiar de modo especial as mulheres cristãs do presente
científica. Requer uma conversão intelectual que não se pode deduzir e do passado. Na minha opinião, os estudos bíblicos feministas e os
estudos bíblicos históricos compartilham da perspectiva hermenêutica
12. Para uma discussão sobre esta mudança, cf. Janeway, Elizabeth, Who is Sylvia? On the
Loas of Sexual Paradigms, in: Signs 5 (1980) 573-589. comum do comprometimento com a comunidade cristã e com suas
13. Ver Kuhn, Thomas, The Structure of Scientific Revolutions, University of Chicago Press,
Chicago, 1962; Barbour, Ian G., Myth Models, and Paradigms, Harper & Row, Nova York, 1974. 14. Russel, Michelle, An Open Letter to the Academy, in: Quest 3 (1977) 771s.

18 19
tradições. Se bem que a análise histórico-crítica da Bíblia se tenha A fim de manter distância, teoricamente, da apologética bíblica
desenvolvido sobre e contra uma compreensão doutrinal da Escritura difundida que tem dominado as pesquisas sobre mulheres na Bíblia,
e tenha desafiado o controle clerical da teologia, tem, entretanto, como é preciso indagarmos as raízes e ramificações dessa apologética. A
pressuposto hermenêutico, um comprometimento teológico na medida primeira seção indagará, pois, o ímpeto e as implicações que a
que opera teoricamente dentro dos limites do cânon e também discussão gerada pela Bíblia da Mulher acarretou para a pesquisa
institucionalmente dentro das escolas cristãs de teologia. A Bíblia não sobre mulheres na Bíblia. Esta seção levanta também o problema
é mero documento do passado, mas funciona como Escritura em teórico, do mover-se, de textos bíblicos androcêntricos para seus
comunidades religiosas dos dias de hoje. Por isso, como pesquisas de contextos sócio-históricos e tenta traçar o caminho para a passagem
mulheres, as pesquisas exegético-bíblicas já estão, por definição, de uma reconstrução histórico-feminista. Discute, pois, os modelos
“comprometidas”. Na medida em que as pesquisas bíblicas são pes­ teóricos desenvolvidos para a reconstrução do cristianismo primitivo
quisas canônicas estão condicionadas por elas e referidas a seuSite im e analisa suas implicações para o papel das mulheres nos primórdios
Leben no passado e no presente cristãos. Como pesquisas feministas, do cristianismo primitivo, visando ao desenvolvimento de um modelo
as interpretações histórico-críticas da Bíblia não podem abstrair-se teórico feminista para essa reconstrução. Somente depois destas
dos pressupostos, comprometimentos, crenças, ou das estruturas indagações hermenêuticas extensas na primeria seção do livro é que
culturais e institucionais que influenciam as questões que levantam será possível, num segundo passo, traçar o desenvolvimento das
e os modelos que escolhem para interpretar os seus dados. As origens cristãs primitivas, como a luta de libertação de mulheres
pesquisas bíblico-históricas, como as pesquisas históricas em geral, cristãs dentro da sociedade patriarcal do mundo greco-romano.
são uma visão seletiva do passado, cujos fins e significado estão Ao passo que o lado reconstrutivo deste livro repousa bastante
limitados não só pelas fontes e materiais disponíveis, mas também num método histórico-crítico tradicional de análise, aguçado por uma
pelos interesses e perspectivas do presente. “hermenêutica de suspeita”, foi muito mais difícil encontrar enfoque
De modo semelhante, a teologia feminista, como uma teologia adequado para as indagações hermenêuticas e metodológicas da
crítica da libertação15, desenvolveu-se sobre e contra o androcentrismo primeira seção. A fim de esclarecer as difíceis questões implicadas,
simbólico e a dominação patriarcal dentro da religião bíblica, buscan­ optei pelo modo do diálogo, da discussão e da posterior elaboração de
do, ao mesmo tempo, recuperar a herança bíblica de mulheres para interpretações alternativas teológico-bíblicas e histórico-feministas.
favorecer e confirmar as mulheres na luta pela libertação. Análises Ao abordar diferentes enfoques e modelos, não estava muito interes­
históricas feministas compartilham, pois, quer do impulso de pesqui­ sada em resumir ou delinear posições e campos intelectuais opostos.
sas bíblico-históricas quer de um comprometimento explícito com um Preferi buscar materiais de construção e balizas para construir um
grupo contemporâneo de pessoas, mulheres que sofrem religiosa e modelo heurístico feminista. Semelhante indagação teórico-crítica
culturalmente o impacto das tradições da Bíblia. Análise histórico- revelou-se necessária no sentido de evitar, fabricar o passado, forçan-
crítica e um compromisso claramente especificado servem de base do-o a entrar em molde feminista atemporal, ou escrever outra coleção
comum entre o estudo bíblico acadêmico e uma teologia crítica dos assim chamados dados e fatos sobre as “Mulheres na Bíblia”. O
feminista da libertação. As indagações deste livro começam, pois, com que Paula Blanchard diz ao concluir a biografia de Margaret Fuller
a esperança de que esta base comum possa gerar uma perspectiva e poderia também se dizer a propósito das indagações desta primeira
um método hermenêuticos para reconstruir a história cristã primiti­ seção do livro.
va, de sorte que supere o abismo entre estudos histórico-críticos e a
igreja contemporânea de mulheres. O que ela realizou só se pode avaliar em termos das desvantagens que en­
frentou para consegui-lo... Mas ao escavar um nicho para si mesma no enor­
15. Ver meus artigos: Feminist Theology as a Critical Theology of Liberation, Theological
me muro de resistência que encontrou, deixou uma pista para os outros.16
Studies 36(1.975) 605-626; Towards a Liberating and Liberated Theology, in: Concilium 15
(1979) 22-32; To Comfort or to Challenge: Theological Reflections, in: Dwyer, M., org., New Woman;
New Woman, New Church, New Priestly Ministry, Rochester, N. Y.: Women’s Ordination 16. Blanchard, Paula, Margareth Fuller: From Transcendentalism to Revolution, Dell, Nova
Conference, 1980, pp. 43-60. York, 1979, p. 342.

20 21
Amigos que leram o manuscrito salientaram que as indagações
hermenêuticas teóricas da primeria seção do livro poderiam desani­
mar os leitores não afeitos a estas discussões. Sugeriram, pois, que se
colocasse a primeira parte no fim do livro e se começasse pelas
pesquisas histórico-exegéticas. Se bem que essa modificação editorial
pudesse parecer razoável à primeira vista, convidaria os leitores para
nadar antes de haverem aprendido a examinar as correntezas, as
ressacas e os abrolhos da torrente androcêntrica. Sugeriria aos
leitores, que se perderem nas complexidades teórico-críticas de uma
hermenêutica feminista, lerem a indagação histórica construtiva da
segunda e da terceira partes; e, depois, se quiserem, voltem a exami­
PARTEI
nar a primeira parte para conferir se, inconscientemente, não forçaram
o texto a se enquadrar nos próprios moldes preconcebidos, teológicos
ou androcêntricos, de percepção. VER
A análise e a consciência feministas emergentes capacitam as
pessoas a enxergarem o mundo e a vida humana, e também a Bíblia NOMEAR
e a tradição, sob luz diferente e com “óculos” diferentes. Objetivam um
novo comprometimento feminista e novo modo de vida, processo RECONSTRUIR
tradicionalmente chamado de conversão. As discussões da primeira
parte do livro procuram fornecer novas lentes que capacitem as
pessoas a lerem as fontes bíblicas sob nova luz feminista, a fim de que
se disponham a entrar na luta pela libertação das mulheres, inspirada
na visão feminista do discipulado de iguais.

22
1
PARA UMA HERMENÊUTICA
CRÍTICA FEMINISTA

Discutir a relação entre interpretação bíblico-histórica e recons­


trução feminista da história de mulheres nos tempos bíblicos equivale
a entrar em campo intelectual e emocionalmente minado. Temos que
traçar e pôr a descoberto as contradições e tensões entre exegese
histórica e as máximas teológico-sistemáticas, as reações e emoções
suscitadas pelo prospecto de exegese “histórico-crítica” da Bíblia, a
relação entre trabalho acadêmico e forças e situações sociopolíticas,
entre a assim chamada investigação científica neutra quanto a
valores e estudo “advocatório”. Tentar desembaraçar esta situação
teórica complexa, inconsciente e emocional a um só tempo, requer
necessariamente simplificações e tipificações de um conjunto comple­
xo e muito difícil de problemas teóricos.
Levantar este conjunto complexo de questões históricas, teóricas
e teológicas desde perspectiva teológica feminista1significa expor-se
a dois perigos intelectuais. Enquanto mulheres em grupo comparti­
lham uma experiência comum e enquanto feministas estão compro­
metidas com a luta em prol da libertação das mulheres, a percepção
e a interpretação individual da experiência da opressão das mulheres,
bem como a formulação concreta dos valores e objetivos para a
libertação delas, variam consideravelmente. Quando um paradigma
determina, como matriz disciplinar, os modelos teóricos aceitáveis, as
analogias permissíveis, os conceitos heurísticos que atribuem peso e
prioridade à concordância sobre crenças e também organizam infor-

1. Para recensões das diversas abordagens e perspectivas na teologia feminista, cf. Driver, Anne
Barstow, Review Essay: Religion, in: Signs 2 (1976)434-442; Christ, Carol P., The New Feminist
Theology: A Review of the Literature, in: Religious Studies Review 3(1977) 203-212; id., Women’s
Studies in Religion, in: Bulletin of the Council on the Study of Religion 10 (1979) 3-5; e
especialmente as introduções in: Christ, Carol P., e Plaskow, Judith, eds., Womanspirit Rising:
A Feminist Reader in Religion, Harper & Row, São Francisco, 1979, esp. pp. 1-17. Ver também
Halkes, Catharina J.M., Gott hat nicht nur starke Sõhne: Grundziige einer feministiscen
Theologie, Mohn, Giitersloh, 1980; e relato mais detalhado, esp. de teologia feminista americana,
in: Gõssmann, Elisabeth, Die streitbaren Schwestern: Was will die feministische Theologie?,
Herder, Friburgo, 1981.

25
mações diversas, “fatos” e “dados” num arcabouço interpretativo não é antiquária, mas comprometida com as mulheres contemporâ­
coerente, então é claro que é importante indagar os modelos teóricos neas e com a sua luta pela libertação. É necessário, portanto, rever os
e os conceitos heurísticos propostos pelos estudos feministas. Esses vários modelos teóricos desenvolvidos por estudos bíblico-históricos.3
modelos não são descrições factuais, nem pinturas literais, mas O primeiro modelo, que chamarei de abordagem doutrinal, en­
construções teóricas imaginativas que nos ajudam a compreender o tende a Bíblia em termos de revelação divina e autoridade canônica.
mundo e a realidade. Sua principal função é a correlação de um Contudo, concebe a revelação e autoridade bíblica em termos dogmá­
conjunto de observações e a seleção simbólica e acentuação de de­ ticos a-históricos. Em suas formas mais regulares, insiste na inspi­
terminados aspectos da realidade. Esses modelos interpretativos são ração verbal e na inerrância literal-histórica da Bíblia. O texto bíblico
artifícios heurísticos para interpretar a realidade histórica humana não é simplesmente uma expressão histórica da revelação, mas a
e cristã. Fornecem um arcabouço dentro do qual pode ser integrada revelação mesma. Não só comunica a palavra de Deus mas é a Palavra
uma variedade de aproximações. Semelhantes conceitos heurísticos de Deus. Como tal, funciona como norma normans non normata ou
desenvolvidos dentro do paradigma feminista são, por exemplo, como primeiro princípio. Seu modo de proceder é fornecer por meio de
mulher, feminilidade, androcentrismo, ou patriarcado. Todas estas textos de provas a autoridade ou racionalização teológica última para
categorias analíticas não são claramente diferenciadas e muitas uma posiçãojá tomada. Afórmula geral ié: AEscritura diz, portanto...
vezes são usadas intercambiavelmente. Todavia é necessário indagar A Bíblia ensina, portanto... Como Escritura, a Bíblia funciona como
sua utilidade heurística para reconstruir a história de mulheres no um oráculo absoluto que revela verdades atemporais e respostas
cristianismo primitivo. Se, porém, tal reconstituição tem como obje­ definitivas para as questões e os problemas de todos os tempos.
tivo não só restituir as mulheres à história e a história às mulheres,
O segundo modelo, o da exegese histórica positivista, desenvolveu-
mas também transformar e repensar a história cristã primitiva, é
se em confronto com as reivindicações dogmáticas da Escritura e a
também necessário indagar sua interação com aproximações teóricas
autoridade doutrinal da igreja. Seu ataque à autoridade reveladora
histórico-bíblicas antes de se poder formular um modelo heurístico
da Escritura associa-se à compreensão da exegese e da historiografia
interpretativo.
que é positivista, factual, objetiva e livre de valores. Modelada pela
compreensão racionalista das ciências naturais, a interpretação his­
tórica positivista busca conseguir uma leitura meramente objetiva
Modelo de interpretação bíblica
dos textos e uma apresentação científica dos “fatos” históricos. Segun­
do James Barr, o fundamentalismo bíblico combina este modelo com
A formulação de uma hermenêutica histórica feminista2deve não
o primeiro modelo, identificando verdade teológica e revelação com
só traçar a mudança cultural geral de um paradigma androcêntrico
facticidade histórica.4
para um paradigma feminista de construção e mudança da realidade,
Se bem que o estudo histórico-crítico tenha se distanciado desta
mas também discutir os modelos teóricos da hermenêutica bíblica e
compreensão factual-objetivista de textos bíblicos, continua aderindo
suas implicações para o paradigma cultural feminista. Já que a
ao dogma do valor neutro, separado de interpretação. Muitas vezes
Bíblia, enquanto Escritura Sagrada, não é só um livro histórico, mas
evita articular as implicações e a importância de sua pesquisa, porque
também reivindica significado e autoridade para os cristãos de hoje,
não quer ser acusado de forçar os textos bíblicos e os “dados”, a
o estudo teológico desenvolveu diferentes enfoques e modelos teóricos
entrarem num molde ideológico preestabelecido. Se bem que essa
para fazer justiça a esta tensão teórica entre as reinvindicações
imparcialidade de estudos seja historicamente compreensível, é con­
teológicas e históricas da Bíblia. A mesma tensão teórica está dada
também na reconstrução histórica feminista na medida em que ela tudo teoricamente impossível.
3. Para discussão e documentação mais extensa, cf. meu artigo: For the Sake of our
2. Para discussão mais completa, cf. meu artigo: Toward a Feminist Biblical Hermeneutics: Salvation... Biblical Interpretation as Theological Task, in: Durken, Daniel, org., Sin, Salvation,
Biblical Interpretation and Liberation Theology, in: Mahan, BrianeRichesin, L. Dale, orgs., The
and the Spirit, Liturgical Press, Collegeville, 1979, pp. 21-39.
Challenge of Liberation Theology: A first World Response, Orbis Books, Maryknoll, 91-112.
4. Barr, James, Fundamentalism, Westminster, Filadélfia, 1978, p. 49.

26 27
aígnifinndn apenas tem de ser decifrado hermeneuticamente tomando-se
Esta última intuição foi desenvolvida pelo terceiro modelo, o da
presente e atual.7
interpretação hermenêutico-dialógica.5Este modelo leva a sério os
métodos históricos desenvolvidos pelo segundo modelo, refletindo ao
O quarto e último modelo de interpretação bíblica é o da teologia
mesmo tempo sobre a interação entre texto e comunidade, ou texto e
da libertação. As várias formas de teologia da libertação desafiaram
intérprete. As indagações metodológicas de crítica da forma e redação
as assim cham adas objetividade e neutralidade de valor da teologia
têm demonstrado o quanto escritos bíblicos são respostas teológicas
acadêmica. A intuição básica de todas as teologias da libertação,
a situações pastorais práticas, ao passo que discussões hermenêuticas
incluindo a teologia feminista, é o reconhecimento que toda teologia,
precisaram o envolvimento do estudioso na interpretação de textos.
quer queira quer não, é por definição sempre comprometida em favor
Entretanto, as pesquisas de crítica formal e redacional foram criticadas
ou contra os oprimidos.8Num mundo de exploração e de opressão não
por conceberem a situação das comunidades cristãs primitivas enca­
é possível neutralidade intelectual. Se este é o caso, então a teologia
rando-as demasiadamente em termos de uma luta confessional. Por
não pode falar de existência humana em geral ou da teologia bíblica
isso, as pesquisas do mundo social da Bíblia insiste em que não basta
em particular, sem identificar criticamente aqueles cuja existência é
reconstruir o cenário eclesial. A comunidade e a vida cristãs sempre
significada e de cujo Deus falam os símbolos e textos bíblicos.
estão entrelaçadas com contextos culturais, políticos e sociais.
Ora, toma-se necessário investigar o comprometimento do estudo
A discussão hermenêutica refere-se ao estabelecimento do signi­ acadêmico histórico e teológico. Depois de se libertar das imposições
ficado de textos bíblicos.6Embora o intérprete aborde um texto histó­ da autoridade eclesiástica, corre o risco de se tomar presa fácil de
rico com experiências e questões contemporâneas específicas, o estu­ instituições acadêmicas que justificam o status quo das estruturas de
dioso deve tentar ficar o mais possível livre de compreensão precon­ poder político dominantes. Tende mais a servir aos interesses da
cebida dos textos, ainda que seja impossível separar-se completamen­ classe dominante na sociedade e na igreja do que a preservar sua
te de toda compreensão prévia. O que deveria determinar a inter­ fidelidade ao povo de Deus, especialmente os pobres, as mulheres e os
pretação de textos bíblicos é o tema do texto, ou o texto como tal, e não homens explorados de todas as nações e raças. Em vez de buscar sua
idéias preconcebidas ou uma situação que se pressupõe. própria integridade teológica, amiúde o estudo teológico bíblico serve
Agora fica claro que neste terceiro modelo a interpretação dialógica inadvertidamente aos interesses políticos da faculdade, que não só faz
é o fator determinante. Uma vez que a crítica das formas e da redação dos varões os sujeitos normativos do estudo, mas também serve
precisam o quanto as comunidades e os escritores cristãos estiveram teoricamente à legitimação de estruturas sociais de opressão.
em constante diálogo e debate sobre sua “tradição viva” e os proble­
mas de suas comunidades, o círculo hermenêutico mantém o empenho
dialógico no ato contemporâneo de interpretação. Por isso, esse A Bíblia da Mulher
modelo hermenêutico pode ser combinado com o empreendimento
teológico neo-ortodoxo. Ou como Schillebeeckx indica: Ninguém que esteja levemente ciente da história da interpreta­
ção feminista da Bíblia, pode negar que a discussão acadêmica so­
O ponto de partida natural é o pressuposto de que o que passou para a
tradição, e em especial para a tradição cristã, é sempre significativo, e este
bre as “mulheres na Bíblia” possa abstrair-se de seu cenário apolo-
gético-político e de sua função de legitimação. Quer a Bíblia seja
5. Ver esp. Barr, James, The Bible as Document of Believing Communities, in: Betz, Hans
Dieter, org., The Bible as a Document of the Universiiy, Scholars Press, Chico, Calif., 1981, pp. 7. Schillebeeckx, Edward, The Understanding of Faith, Seabury, Nova York, 1974, p. 130.
25-47. 8. Ver esp. Herzog, Frederik, Liberation Hermeneutics as Ideology Critique, in: Interpretation
6. Para uma excelente recensão e discussão, cf. Thistelton, Anthony C., The Two Horizons: 27 (1974) 387-403; Segundo, Juan Luis, The Liberation of Theology, Orbis Books, Maryknoll, N.
NewTestament Hermeneutics and Philosophical Descriptíon with Special Reference to Heidegger, Y. 1976; Bonino, José Miguez, Doing Theology in a Revolutionary Situation, Fortress, Filadélfia,
Bultmann, Gadamer and Wittgenstein, Berdmans, Grand Rapids, 1980; Achtemeier, Paul J., 1975; Cormiee, Lee, The Hermeneutical Privilege ot the Oppressed: liberation Theologies,
The Inspiration of Scripture: Problems and Proposals, Westminster, Filadélfia, 1980; e a Biblical Faith, and Marxist Sociology of Knowlge, in: Proceedings of the Catholic Theological
recensão por Fiorenza, Francis Schüssler, in: CBQ 43 (1981) 635-637. Society of America 32 (1878) 155-181.

28 29
usada no julgamento de Anne Hutchinson (1637), quer na declaração Beecher Hooker. A razão dada foi que Jeová “jamais teve parte ativa
do Vaticano contra a ordenação de mulheres (1977),9sua função é a no movimento sufragista”.12Por sua experiência de que Iahweh não
mesma, a saber, a legitimação do patriarcado social e eclesiástico e do estava do lado dos oprimidos, ela percebeu a grande influência
“lugar divinamente ordenado” que as mulheres nele ocupam. Desde política da Bíblia. Propôs-se, então, a fazer uma revisão da Bíblia que
o início do movimento de mulheres e ainda hoje, a Bíblia desempe­ coligasse e interpretasse (com a ajuda de “crítica do mais alto nível”)
nhou papel-chave no tema contra a emancipação de mulheres. Quan­ todas as afirmações referentes às mulheres na Bíblia. Reconheceu,
do o clero Congregacionalista de Massachusetts argumentou que o contudo, que não foi muito feliz ao solicitar a ajuda de mulheres
Novo Testamento define os deveres e o espaço das mulheres, Sarah estudiosas, porque elas
Moore Grimké respondeu que a distinção entre virtudes masculinas
e femininas constitui uma das “‘tradições de varões’ anticristãs”.10Em tinham medo de que sua alta reputação e conquistas nos estudos viessem
1854, na Convenção dos Direitos das Mulheres na Filadélfia, o a ficar comprometidas por participarem de empreendimento que poderia
Reverendo H. Grew afirmou “que era nitidamente vontade de Deus por algum tempo demonstrar ser muito impopular. Por isso, não podemos
buscar ajuda desta classe.13
que o varão devia ser superior em poder e autoridade a mulheres”. Em
resposta, a sra. Cutler, de Illinois, “habilidosamente voltou todos os
O projeto da Bíblia da Mulher comprovou-se, com efeito, muito
textos que ele citara contra o reverendo cavalheiro, para grande
impopular por suas implicações políticas. Não só algumas sufragistas
diversão do auditório”.11Contudo, o tema não ficou resolvido no século
argumentaram que o projeto era desnecessário ou politicamente
passado.
imprudente, mas também a Associação Americana de Sufrágio da
O debate em torno da Bíblia da Mulher, que se publicou em 1895 Mulher rejeitou-o formalmente como erro político. No segundo volu­
e 1898, pode servir para ilustrar, quer as condições políticas quer as me, publicado em 1898, Cady Stanton resume essa oposição: “Amigos
implicações hermenêuticas de interpretação bíblica feminista e o e inimigos censuraram o título”. Rebate, então, com habilidade
impacto crítico radical da teologia feminista para a tarefa mordaz, à acusação de um clérigo de que a Bíblia da Mulher era “a
interpretativa. Em sua introdução kBíblia da Mulher, Elizabeth Cady obra de mulheres e do demônio”:
Stanton, a iniciadora do projeto, sublinhou duas intuições críticas
para uma hermenêutica teológica feminista: (1) A Bíblia não é um É um grave erro. Sua Majestade Satânica não haveria de querer juntar-
livro “neutro”, mas arma política contra a luta de mulheres pela se à Comissão de Revisão que é constituída somente de mulheres. De mais
libertação. (2) Isto é assim, porque a Bíblia traz a marca de varões que a mais, esteve tão ocupado nestes últimos anos, participando de sínodos,
nunca viram nem conversaram com Deus. assembléias e conferências gerais, para evitar o reconhecimento das
representantes das mulheres, que não teve tempo para estudar as línguas
1. Elizabeth Cady Stanton concebia a interpretação bíblica como e a “crítica do mais alto nível”.14
ato político. O episódio seguinte caracteriza sua convicção pessoal do
impacto negativo da religião cristã na situação das mulheres. Recu­ Ataques fundamentalistas, polêmicas feministas e apologética
sou-se a participar de um encontro de oração de sufragistas que bíblica contin u am a caracterizar muitas discussões sobre mulheres
começou com o cântico do hino “guia-nos, ó grande Jeová”, de Isabella
12. Ver Welter, Bárbara, Something Remains to Dare: Introduction to the Women’s Bible, in:
9. Ver esp. Swidler, Leonard e Swidler, Arlene, orgs., Women Priests: A Catholic Commentary Stanton, Elizabeth Cady, org., The Original Feminist Attack on the Bible: The Woman’s Bible
on the Vatican Declaration, Paulist Press, Nova York, 1977;Stuhlmueller, Carroll, org., Women (facsimile ed. Nova York, editora Amo, 1974), p. XXII.
13. Standon, Cady, The Woman’s Bible, 1.9. Cf. Huber, Elaine C., They weren’t Prepared to
and Priesthood: Future Directions, Liturgical Press, Collegeville, Minn., 1978; Dwyer, Maureen,
Hear: A Closer Look at the Woman’s Bible, in: Andover Newton Quarterly 16 (1976) 271-276.
org., New Woman, New Church, New Priestly Ministry, Women’s Ordination Conference,
14. Stanton, Cady, The Woman’sBible, 2.7s. Para o contexto cultural-religioso, cf. Smylie, James,
Rochester,N.Y., 1980. Para a discussão ecumênica, cf. Purvey, Constance F., Ordination ofWomen
The Woman’s Bible and the Spiritual Crisis, in: Soundings 59 (1976) 305-328, e as contribuições
in Ecumenical Perspective (Faith and Order Paper), World Council of Churches, Genebra, 1980. de Anne McGrew Bennett, Linda K pritchard, Mary K Wakeman, Barbara Yoshioka, Clare
10. Kraditor, Aileen S., org., Up from the Pedestal: Landmark Writings in the American Denton, Ebba Johnson, e Gayle Kimball para o simpósio sobre “The Woman’s Bible: Reviews and
Women’s Struggle for Equality, Quadrangle Books, Chicago, 1968, pp. 51.55. Perspectives, in: Women and Religion: 1973 Proceedings, American Academy of Religion,
11. Ib., pp. 108s. Tallahassee, 1973, pp. 39-78.

30 31
na Bíblia. Contudo, essa disputa polêmica em tomo do tema não o que, ao insistir no véu e no silêncio (se é que ICor 14,34-35 são original­
mente de Paulo), estivesse protegendo não só casamento (patriarcal), mas
desqualifica, mas está a indicar quão grande é o impacto que a Bíblia
também aquelas mulheres espirituosas, a que a celebração da própria
ainda exerce na luta de mulheres por libertação. Ao passo que as
liberdade poderia ter-lhes custado bem caro.17
feministas pós-bíblicas argumentam, por exemplo, que as injunções
paulinas são sinal de que a teologia e a fé cristãs já eram sexistas em Outros intérpretes tentam defender Paulo “culpando as vítimas”,
estágio muito primitivo, e que a interpretação feminista revisionista ao enfatizarem que os excessos pneumáticos de mulheres e escravos
está, pois, fadada ao insucesso, apologetas cristãos respondem defen­ provocaram as injunções de subordinação. Estes não restabelecem a
dendo Paulo como “liberacionista”: Os escritos de Paulo, bem com­ ordem social patriarcal dentro da igreja, mas insistem na ordem da
preendidos e interpretados, defenderiam a igualdade e a dignidade criação.
das mulheres. Não a mensagem paulina mas sua deturpação patriar­
cal ou feminista é que pregaria a subjugação das mulheres. O auge da Parte do desafio que este material representa para o intérprete modemo
controvérsia pode-se resumir em títulos como: “Paulo apóstolo: é examinar se a manutenção da diferenciação sexual opõe-se do fato à
chauvinista ou liberacionista?” Outros argumentam que a exigência ênfase sobre a igualdade como viemos a pensar sob a pressão de movimen­
da subordinação das mulheres deveria ser entendida como exigência tos correntes de libertação.18
de “subordinação revolucionária”. Tal subordinação é uma forma
Os teólogos estabelecem previamente o papel inferior das mulhe­
cristã específica que determina todas as relações cristãs. Por isso, os
res com referência à sua natureza inferior. Diante da crítica feminista,
cristãos deveriam defender a verdade revelada de tal subordinação
estudiosos contemporâneos tentam salvar as afirmações paulinas
em face da heresia moderna do igualitarismo, de sorte que as mulhe­
com a ajuda do argumento “igual mas diferente”, que é entendido
res possam viver no século vinte e um sua subordinação revelada.15A
como a expressão da antropologia “ortodoxa”. Paulo, assim se argu­
fim de preservar os textos bíblicos das críticas feministas, os estudiosos
menta, corrigiu a “ilusão” entusiasta das mulheres profetisas de
não hesitam sequer inferiorizar as mulheres:
Corinto que podem ter aderido à “androgenia gnóstica”.
Outra defesa acadêmica de Paulo minimiza sutilmente a questão
Os defensores da libertação das mulheres certamente não foram ao Novo
Testamento, armados com seus instrumentos de estudiosos, para avaliar
“feminista” como “a-histórica” e, em decorrência, inadequada.
as palavras do apóstolo; preferiram aceitar o retrato de Paulo pintado pela
De fato não é minha intenção submeter Paulo a julgamento diante de um
igreja popular do establishment, nos seus dois trajes, o liberal e o conser­
júri de estudiosos do NT, para discutir se ele é 30%, 75% ou 100%
vador.16
feminista. Ademais, estes são critérios que surgiram de nossa situação
atual. Tentar simplesmente julgar Paulo por semelhantes padrões pare­
Boa parte da discussão gira em torno das injunções de subordina­ ce-me anacrônico e perda de tempo.19
ção na literatura paulina. Para defender Paulo, exegetas dizem que
o apóstolo teve que formular as injunções de subordinação para Para desculpar Paulo, esta defesa não quer levantar a questão
proteger as mulheres das conseqüências de suas próprias ações e histórica para saber se o argumento de Paulo dirigia-se a mulheres
corrigir sua má conduta: cristãs que não aceitavam a ordem e a teologia patriarcais de seu
tempo. De mais a mais, a asserção implica que o feminismo, como luta
Por que São Paulo estaria tão interessado em se referir a mulheres sem pela libertação das mulheres do patriarcado, seja invenção muito
véu falando nas assembléias? Obvimente por que elas estavam perturban­
do ou escandalizando alguns dos outros membros... É bem possível, então, 17. Kress, Robert, Whither Womankind? The Humanity ofWomen, Abbey Press, St. Meinrad
— Ind., 1975, pp. 92s.
15. Cf. Yoder, John Howard, The Politics of Jesus: Vicit Agnus Noster, Eerdmans, Grand 18. Jewetí, Robert, The Sexual Liberation of the Apostol Paul, in: JAAR Supplements 47/1
Rapids, 1972, p. 176 n. 2, rejeitando Stendahl, Krister, The Bible and the Role ofWomen: A Case (1979) 55-87:68.
Study in Hermeneutics, Fortress Press, Filadélfia, 1966. 19. Pagels, Elaine, Paul and Women: A Response to Recent Discurssion, in: JAAR 42 (1974)
16. Scroggs, Robin, Paul and the Eschatological Woman, in: JAAR 40 (1972) 283-303:283. 538-549:547.

32 33
cações políticas. Todavia, as razões políticas que Cady Stanton deu
moderna, não levando em conta as descobertas feitas por pesquisado­
para uma interpretação feminista corretiva da Bíblia são ainda
res da antiguidade sobre a relativa emancipação das mulheres no
mundo greco-romano. válidas hoje, como a grande influência da “maioria moral”.22Cady
Stanton frisou três argumentos pelos quais uma interpretação femi­
Mesmo Frank e Evelyn Stagg sentem necessidade de tomar o
nista e científica da Bíblia é politicamente necessária.
partido de Paulo ao censurarem implicitamente o movimento femi­
nista por sua crítica do casamento patriarcal: 1. Ao longo da história e sobretudo hoje, a Bíblia é usada para
manter as mulheres na sujeição e impedir sua emancipação.
Provavelmente o maior perigo hoje em nosso despertar com relação à II. Não somente os varões mas sobretudo as mulheres são os
liberdade e aos direitos da mulher está precisamente onde Paulo o
crentes maia fiéis na Bíblia como a palavra de Deus. Não somente
encontrou: a ameaça à moral e às estruturas. A liberdade é mais facilmente
para os varões mas também para as mulheres, a Bíblia tem uma
reclamada e proclamada do que exercida responsavelmente... Hoje com
uma parcial recuperação desta perspectiva sobre a mulher, fica evidente autoridade numinosa.
sua ameaça às estruturas, em particular à família.20 III. Nenhuma reforma é possível numa área da sociedade, se ela
não for promovida também em outras áreas. Não se pode reformar a
Essa amostragem da “defesa de Paulo” na exegese moderna indica lei e outras instituições culturais sem reformar também a religião
não apenas o caráter androcêntrico da interpretação acadêmica da bíblica que reivindica a Bíblia como Escritura Sagrada. Uma vez que
Escritura, mas também sua função patriarcal. Para manter a autori­ “todas as reformas são interpendentes”, uma interpretação critica
dade dos textos paulinos que sustentam a subordinação de mulheres, feminista é um esforço político necessário, embora possa não ser
os exegetas se acham preparados para justificar Paulo a qualquer oportuno. Se as feministas pensam que podem negligenciar a revisão
custo. da Bíblia, porque existem problemas políticos mais urgentes, não
Essa apologética acadêmica despreza, porém, o fato de que a reconhecem então o impacto político da Escritura nas igrejas e na
tarefa do historiador não consiste na justificação teológica de Paulo, sociedade, e também na vida das mulheres.
mas na redescoberta da vida e prática das comunidades cristãs
2. A edição da Bíblia da Mulher de Cady Stanton foi alvo de opo­
primitivas. Ao reconstruírem o passado cristão, os estudiosos não
sição não só porque era politicamente inoportuna, mas também por
podem mais continuar ignorando as implicações políticas de seus
causa de sua perspectiva hermenêutica radical, que desdobrou e
modelos e explanações teóricos. Introduzir “diferenciação sexual”
recolocou o argumento apologético principal de outras sufragistas, de
como categoria interpretativa requer conhecimento da crítica femi­
que a verdadeira mensagem da Bíblia estava obstruída pelas tradu­
nista desta categoria.21 De outra forma, os estudiosos não serão
ções e interpretações de varões. Sarah Moore Grimké “manifestara o
capazes de convencer feministas de que seu interesse pelo passado
seu protesto contra as falsas traduções de algumas passagens pelos
cristão e histórico-cntico e não está a serviço da apologética teológica.
VARÕES que fizeram este trabalho, e contra as interpretações
As feministas tendem, por sua vez, a fugir da disputa sobre
corrompidas dos VARÕES que empreenderam tecer comentários a
mulheres na Bíblia, quer por falta de interesse acadêmico, quer por
respeito. Estou inclinada a pensar que, quando formos admitidas à
profunda alienação da religião bíblica. Suspeitam do feminismo de
honra de estudar grego e hebraico, produziremos algumas leituras
uma interpretação revisionista bíblica e não reconhecem suas impli-
diversas da Bíblia, um pouco diferentes das que temos agora”.23E a
20. Stagg, Evelyn e Frank, Woman in the World of Jesus, Westminster, Filadélfia, 1978, pp. sra. Cutler declarou: “Chegou o tempo da mulher ler e interpretar a
256s. * Escritura por si mesma”, ao passo que Lucrécia Mott argumentou:
21. Ver esp. Rosaldo, Michelle Zimbalist, The Use and Abuses of Anthropology: Reflections
on Feminism and Cross Cultural Understandings, in: Sings 5 (1980) 389-417; Boxer, Marilyn J., 22. Ver especialmente Spretnak, Charlene, The Christian Right’s “Holy War* against Feminism,
For and About Women: The Theory and Practice of Women's Studies in the United States, in: in: Id., The Politics ofWomen’s Spirituality, Anchor Books, Doubleday, Nova York, 1892, pp. 470-
Signs 7 (1982) 696-700; Barrett, Michèle, Wome’ns Oppression Today: Problems in Marxist
Feminist Analysis, Verso Editions, Londres, 1980, pp. 42-151; Shapiro, Judith, Antropology and 496.
the Study of Gender, in: Soundings 64 (1981) 446-465. 23. Kraditor, Up from the Pedestal, p. 54.

35
34
“Passamos tanto tempo alfinetando nossa fé nas mangas de outros, fóhnlaJque ela não é absolutamente responsável pelas leis do universo. Os
que temos que começar a examinar estas coisas diariamente por nós estudiosos e cientistas cristãos não dirão isso a ela, pois vêem que ela é a
mesmas, para ver se são assim; e, comparando texto com texto, chave para a situação. Tiremos a serpente, a árvore frutífera e a mulher
deveremos descobrir que se deve pôr neles uma construção bem do cenário, e não mais teremos queda, não mais um juiz temível, não mais
diferente”.24Frances Willard prosegue essa linha de raciocínio, ao inferno, não mais punição eterna, e, por conseguinte, não mais necessida­
de de um Salvador. Assim ruem os fundamentos de toda teologia cristã.
argumentar, contra a hermenêutica radical da Bíblia da Mulher, que
Eis a razão por que, em todas as pesquisas bíblicas e na crítica do mais alto
não é a mensagem bíblica, mas apenas sua interpretação contempo­
nível, os autores nunca tocam na posição das mulheres.27
rânea androcêntrica que prega a subjugação de mulheres:

Penso que os varões leram no livro suas próprias teorias egoístas, que os Mas, apesar de sua crítica radical, Cady Stanton sustenta que
teólogos no passado não reconheceram suficientemente a qualidade pro­ alguns dos princípios religiosos e éticos da Bíblia são válidos ainda
gressiva de sua revelação, nem lograram discernir adequadamente entre hoje. Por exemplo, o mandamento do amor e a regra de ouro são
seus relatos históricos e seus princípios de ética e religião.25 ensinamentos deste tipo. Por isso, ela conclui que a Bíblia não pode ser
aceita ou rejeitada como um todo, já que seus ensinamentos e lições
Cady Stanton concordaria que as interpretações acadêmicas da diferem grandemente entre si. Não se exige nem rejeição total nem
Bíblia são masculinamente inspiradas e precisam ser “despatriar- aceitação total da Bíblia. Ao invés, toda passagem bíblica sobre as
calizadas”. Mas sua intuição crítica era exatamente que a Bíblia não mulheres deve-se cuidadosamente analisar e avaliar por causa de
é apenas entendida equivocamente ou mal-interpretada, mas que ela suas implicações androcêntricas.
pode ser usada na luta política contra o voto das mulheres porque é
Como conclusão: Diante dos opositores bíblicos do movimento de
patriarcal e androcêntrica. Sobre e contra a compreensão doutrinal
mulheres no século passado, Elizabeth Cady Stanton defendeu uma
da inspiração verbal da Bíblia como palavra direta de Deus, ela insiste
investigação de todas as passagens bíblicas sobre mulheres em
que a Bíblia foi escrita por varões e reflete os interesses masculinos
termos de crítica exegética do “mais alto nível”. Os seus resultados e
dos seus autores. “O único ponto em que discordo de todo o ensinamento métodos correpondem, assim, ao estágio das pesquisas bíblico-histó-
eclesiástico está em que não acredito que nenhum varão tenha visto
ricas do seu tempo. Em sua autobiografia, Cady Stanton explica que
ou conversado com Deus”.26Enquanto as igrejas reinvindicam que as iniciou o projeto porque tinha ouvido tantas “opiniões conflitantes
idéias degradantes sobre mulheres e as injunções patriarcais para
sobre a Bíblia, algumas dizendo que ela ensinava a emancipação da
sua submissão emanam de Deus, ela sustenta que todos estes textos mulher, e outras, sua sujeição”. Uma vez que ela queria saber quais
degradantes emanaram das cabeças de varões. Tratando a Bíblia eram os ensinamentos “reais” da Bíblia, a Bíblia da Mulher assumiu
como obra humana e não como fetiche, e negando inspiração divina às a forma de um comentário científico sobre as passagens bíblicas que
asserções bíblicas negativas sobre as mulheres, retém que o seu grupo ffllflm da mulher. Esta abordagem exegético-tópica dominou e ainda
demonstrou mais reverência a Deus do que o clero ou a igreja. Os domina a pesquisa acadêmica e a discussão popular de a “mulher na
estudiosos não extraem as implicações da interpretação histórico- Bíblia”.28 Esta discussão permaneceu claramente dentro dos
científica para a compreensão dos ensinamentos bíblicos sobre mu­ parâmetros estabelecidos pelos dois primeiros modelos interpretativos,
lheres por causa de seus interesses teológicos em sustentar interpre­
o modelo doutrinal e o modelo factual histórico, embora o ímpeto e a
tações patriarcais da fé cristã:
força da discussão reflitam as dimensões políticas do modelo da
A Bíblia da Mulher chega à leitora comum como verdadeira bênção. Ela libertação.
lhe diz que o bom Deus não escreveu o Livro; que a cena do jardim é nma
27. Kraditor, Up to the Pedestal, p. 119.
28. Para essa abordagem tópica, ver Swidler, Leonard, Biblical Affirmations of Woman,
24. Ib„ p. 109.
Westmister, Filadélfia, 1979; Schelkle, Karl Hermann, Der Geist und die Braut: Frauen in der
25. Stanton, Cady, The Woman’s Bible, 2.200. Bibel, Patmos, Düsseldorf, 1977; Gerstenberger, Erhard S. e Schrage, Wolfgang, Frau und Mann
26.76., 1.12.
(Biblische Konfrontationen 1013), Kollhammer, Sttugart, 1980.

36 37
Mas o principal resultado da discussão é a intuição de Cady (cf. os “princípios da religião” mencionados por Willard) e textual-
Stanton de que o texto bíblico é androcêntrico e que varões puseram históricos. Alguns teólogos distinguem entre essência da revelação e
o seu selo na revelação bíblica. A Bíblia não é apenas interpretada a acidente histórico, tradição constante e tradições mutáveis. Quando
partir de uma perspectiva masculina, como algumas feministas semelhante cânon dentro do cânon vem a ser formulado em termos da
argumentam. Mais que isso, ela é feita por varões porque escrita por aproximação hermenêutico-textual, os estudiosos justapõem Jesus e
varões e é a expressão de cultura patriarcal. Cady Stanton e suas co- Paulo, teologia paulina e catolicismo primitivo, o Jesus histórico e o
autoras confirmam a máxima geral do estudo histórico-crítico, que Cristo querigmático, o Jesus da história e as tradições mais antigas
afirma que a revelação divina está articulada em linguagem humana sobre Jesus, o pensamento hebraico e o grego, mensagem cristã e
historicamente limitada e culturalmente condicionada. Mas a inter­ influência greco-romana.
pretação feminista particulariza e relativiza a Bíblia ainda mais ao Uma vez que para boa parte da teologia protestante — que
especificar que a linguagem bíblica é linguagem masculina e que as desenvolveu a discussão neo-ortodoxa do cânon dentro do cânon — o
condições e perspectivas culturais da Bíblia são as do patriarcado. Ao coração da mensagem cristã é o evangelho paulino, muito das discus­
fazê-lo, recorre ao terceiro modelo de interpretação bíblica que insiste sões do ensinamento do Novo Testamento sobre mulheres focaliza a
na interação entre texto e situação. Este' modelo contextual- interpretação de textos paulinos, em particular as passagens paulinas
hermenêutico não só estabeleceu o cânon da Escritura como o modelo sobre subordinação que apresentam problema especial. Grande parte
de raiz pluriforme das comunidades cristãs, mas também demons­ da discussão acadêmica concentra-se nestas passagens, para manter
trou que a Bíblia contém com freqüência respostas contraditórias e a relevância teológica de Paulo para os dias de hoje. Instrumentos
que, portanto, nem todas as afirmações bíblicas pedem igual autori­ histórico-críticos largamente aceitos para resolver o problema são
dade e reinvidicação de verdade. Para discernir semelhante verdade, explanações baseadas em crítica das tradições, crítica das fontes e
esse modelo interpretativo precisa, porém, recorrer ao modelo crítica textual. Desta forma, as passagens sobre subordinação em
doutrinal, apelando para a autoridade de ensino da igreja ou para o Colossences, Efésios, 1 Pedro e nas Pastorais podem se classificar
“cânon” dentro do cânon. como afirmações dêutero-paulinas, e ICor 11,2-16 e 14,33-36 podem
se considerar como interpolações pós-paulinas. Enquanto acréscimos
textuais secundários, representam a teologia do catolicismo primitivo
O modelo neo-ortodoxo de interpretação feminista
e não refletem a teologia genuína de Paulo.
A compreensão histórico-crítica do cânon, como uma coleção de Uma vez que a teologia da libertação busca colocar a Bíblia para
escritos e expressões culturais muito diferentes e às vezes contradi­ servir ao lado dos oprimidos, corre o risco de se alinhar com demasiada
tórios, não frisou apenas o contexto e as condições da revelação, mas pressa aos métodos e interesses do modo doutrinal neo-ortodoxo, e, ao
tamhém suscitou a necessidade de formular critérios para a avaliação fazê-lo, deixar de indagar suficientemente sobre a função da Bíblia na
e apropriação teológica dos diversos ensinamentos e tradições bíbli­ opressão dos pobres e das mulheres. Esta hermenêutica neo-ortodoxa
cos.29Uma vez que a fé e a tradição cristãs estão sempre entretecidas pode-se descrever com Peter Berger como uma tentativa “de absorver
com os seus contextos culturais, políticos e sociais e com sua lingua­ todo o impacto da perspectiva relativizante, mas pondo um ‘ponto de
gem, não basta simplesmente interpretar e entender o texto bíblico. Arquimedes’ numa esfera imune à relativização”.30
Também é preciso definir teologicamente o que constitui a verdadeira Assim, o livro de Letty Russel sobre teologia da libertação em
palavra de Deus e o cerne da mensagem cristã. perspectiva feminista ilustra este alinhamento com a teologia neo-
A busca teológica do “cânon dentro do cânon” tentou formular o ortodoxa para desenvolver uma hermenêutica teológica feminista.
critério para apropriar-se da Bíblia em termos filosófico-dogmáticos Ela retém que o conflito entre feminismo e religião bíblica nasce de

29. Ver a recensão da discussão em Charlot, John, NewTestament Disunity: Its Signifi™»™. 30. Berger, Peter L., The Sacred Canopy: Elements of a Sociological Theory of Religion,
for Christianity Today, Dutton, Nova York, 1970. Doubleday, Garden City — N. Y, 1967, p. 183.

38 39
compreensão equivocada da religião bíblica. Com a ação salvífica de tome o mero portador de seu conteúdo ou essência transhistórico
Deus no mundo como o seu ponto de partida, ela distingue entre teológico?
Tradição, tradição e tradições. Ainda de maior alcance para uma histórica feminista de liberta­
ção é a distinção entre passado utilizável e não-utilizável. Russel
Tradição não é um bloco de conteúdo para ser cuidadosamente guardado reconhece que os oprimidos ou não, têm um passado ou são invisíveis
por hierarquias autorizadas, mas uma ação dinâmica do amor de Deus, nos relatos dos vencedores históricos. Contudo, o que é bastante
que se deve passar a outros de todos os sexos e raças.31 significativo, Russel não distingue entre um passado de vitimação e
violência de uma parte e experiências de libertação de outra. Não
A Tradição refere-se ao processo global de transmitir, ao passo precisa fazê-lo, porque ela considera apenas a “servidão” das pessoas
que o tradição refere-se a Cristo como o conteúdo desse processo. As
“em relação a si mesmas e a sua situação histórica”, sem discutir se
tradições são, por sua vez os fatos e padrões que constituem a história a tradição cristã, poderia ter legitimado e perpetuado esta servidão.
da igreja. Uma vez que a mensagem bíblica se endereçou a uma Por isso, ao discutir a “ameaça à tradição” da teologia feminista, ela
sociedade patriarcal, a forma da promessa bíblica varia quanto à
pode afirmar:
situação e é relativa à sua cultura patriarcal. O conjunto de imagens
patriarcais e a linguagem androcêntrica são a forma mas não o A teologia da libertação é uma ameaça a estas tradições, porque precisam
conteúdo da mensagem bíblica. Uma vez que o conteúdo da tradição ser dganfiadaB quando perpetuam um passado que não é utilizável para
é Cristo, a teologia feminista deve deixar claro “que a obra de Cristo um grupo particular de cristãos.34
não foi primeiramente a obra de seu ser como varão, mas a obra do seu
ser como homem novo”.32 Bastante curioso, se bem que a análise de Russel seja proposta
Assim, a distinção entre forma e conteúdo, essência teológica e como análise liberacionista, ela não considera as estruturas políticas
variável histórica, linguagem e ação divina, permite desenvolver nmg do passado e do presente, que perpetuam a violência contra as
hermenêutica bíblica feminista que possa reconhecer a linguagem mulheres. Por isso, ela não pode indagar a função da Bíblia na
patriarcal da Bíblia sem conceder seu conteúdo patriarcal. Contudo, opressão histórica de mulheres ocidentais. De mais a mais, os agentes
só pode fazê-lo declarando uma afirmação teológica (a atividade históricos de sua narração do passado não são mulheres, mas Deus
redentora e libertadora de Deus em Jesus Cristo) como a essência da dando Cristo a todos os povos. Um princípio teológico absoluto
revelação bíblica, e relegando os textos bíblicos concretos à forma converteu-se em chave hermenêutica para interpretar a Bíblia.
historicamente relativa. Por exemplo, as afirmações paulinas de De modo semelhante, em recente debate com o movimento de
subordinação são, segundo Russel, variáveis da situação e, por conse­ espiritualidade de mulheres, Rosemary Radford Ruether juntou-se a
guinte, escrito e não Escritura, porque Paulo ainda “reconhecia que Letty Russel na busca de um passado “utilizável”. Se a entendo bem,
a Tradição foi entregue em mãos quer de varões quer de mulheres”.33 parece que ela passa do seu modelo interpretativo, anteriormente
O problema metodológico na verdade permanece. Como alguém pode dominante do dualismo cultural-eclesial-sexual a uma hermenêutica
distinguir escrito e Escrito, se o elemento formal é o texto histórico da cultura. Se bem que Ruether não desenvolva plenamente essa
culturalmente condicionado, enquanto “ponto de Arquimedes” postu­ hermenêutica bíblica, é possível esboçar os elementos principais de
lado é umprincípio teológico abstrato e símbolo transhistórico expresso sua proposta interpretativa. Infelizmente, ela desenvolve essa pro­
em linguagem historicamente contingente e, por isso, variável? Em posta sobre e contra as interpretações separatistas de Wicca. Essa
outros termos, será que se pode distinguir conteúdo e lingu a g ^ polêmica obscurece as questões hermenêuticas feministas em jogo.
forma e essência de sorte que a forma historicamente contingente se Desnecessariamente, ela apóia uma leitura equivocada de sua pró­
pria hermenêutica cultural, como se fosse mais uma apologética
31.Russel, Letty, Human Liberation in a Feminist Perspective, Westminster, Filadélfia, 1974, sofisticada da tradição cristã.
p. 79.
32.í6.,p. 138.
33. Ib., pp. 87ss. 34. Ib., p. 78.

40 41
Ao sugerir uma metodologia para a crítica feminista da cultura, tos androcêntricos opressivos destas tradições. Porque ela não anali­
Ruether indica dois pressupostos. De um lado, reconhece que toda sa a tradição profética clássica como fenômeno histórico, mas a usa
cultura herdada é de tendência masculina e sexista. De outro, retém antes como um padrão interpretativo crítico abstrato, não considera
que todas as obras significativas de cultura não apenas legitimaram sua polêmica patriarcal e sua repressão do culto da Deusa. Ao invés,
o sexismo, mas tamhém fizeram algo mais. “Elas procuraram res­ ela simplesmente postula que, como tradição sociocrítica, as tradições
ponder aos temores de morte, de marginalização e de opressão, e às dos profetas podem-se usar no interesse do feminismo. Que este seja
esperanças de vida, reconciliação e libertação da humanidade”.35 o caso, não questionamos, mas não se nos diz como e com que método
Embora elas tenham articulado esta resposta em termos masculinos, a teologia feminista pode transformar esta tradição androcêntrica
as mulheres podem descobrir esse elemento crítico na cultura mas­ sociocrítica em tradição feminista libertadora e usá-la para os seus
culina e transformá-lo de sorte que ele diga “coisas quejamais se disse próprios objetivos.
antes”. O que faz uma tradição sociocrítica ser feminista? Podemos
Partindo deste princípio mais geral de crítica cultural, Ruether simplesmente afirmar que tradições sociocríticas são tradições femi­
identifica as tradições profético-messiânicas da Bíblia com semelhan­ nistas? Crítica feminista da tradição profética israelita tem apontado
tes tradições críticas e libertadoras. Reivindica que a Bíblia foi escrita para sua desvalorização e supressão de culto à Deusa entre as
desde a perspectiva do povo e não para legitimar poder mundano. O mulheres israelitas (cf. Jr 44,15-19), bem como para sua transferência
Deus bíblico toma a defesa dos oprimidos, e a linguagem de Deus na do padrão do casamento patriarcal para o relacionamento de aliança
Bíblia tende a “desestabilizar” a ordem social existente. Se bem que entre Iahweh e Israel, em que não só se vê Israel como a virgem e a
no apocalipticismo essa crítica profético-social com sua visão da esposa dependente, mas também como a prostituta infiel.38Objeções
salvação “perca gradativamente sua base em esperança social e por pós-bíblicas feministas contra a tradição profética — que ela elimina
completo termine voltando-se para o outro mundo”,36 essa tradição o símbolo divino feminino e perpetua a subordinação patriarcal das
crítica profética também se encontra no Novo Testamento. Mas mulheres — devem ser abordadas criticamente desde uma perspecti­
Ruether se vê forçada a conceder que essa tradição crítica profética, va histórica antes que teólogas feministas possam reclamar as tradi­
não se aplicou explicitamente à questão das mulheres na história de ções proféticas como “libertadoras” para as mulheres. Uma
Israel, nem no cristianismo. Contudo, ela argumenta que as mulheres hermenêutica bíblica feminista deve levar a sério os elementos
de hoje a podem aplicar para a questão feminista. “Em suma, não histórico-patriarcais das tradições proféticas a fim de liberar os seus
certas asserções particulares sobre libertação das mulheres, mas impulsos sociocríticos libertadores para a luta em prol das mulheres.
antes o padrão crítico do pensamento profético é que constitui a Deve retificá-los em e mediante análise crítica feminista, em vez de
tradição utilizável para o feminismo na Bíblia”.37 levá-los a nível de princípio ou critério interpretativo abstrato. A
A esta altura as implicações da proposta hermenêutica de Ruether teologia feminista não pode, em todo caso, admitir sem questionar que
tomam-se manifestas. Não só ela traça um quadro antes idealizado o “a mais” revelador das tradições proféticas sociocríticas seja sim­
das tradições bíblicas e proféticas, mas também negligencia elemen­ plesmente tradição libertadora feminista. Para delinear os impulsos
emancipatórios dessa tradição faz-se mister indagar os seus compo­
35. Ruether, Rosemary, A Beligion for Women: Sources and Strategies, in: Christíanity and
Crisis 39 (1979) 307-311:309. Ver também Id., Goddesses and Witches: Liberation and nentes opressores.
Countercultural Feminism, in: Christian Century 97 (1980) 842-847.
36. Ruether, A Religion for Women, o. 309.
De mais a mais, uma hermenêutica bíblica feminista não se
37.76., p. 310. Ver também sua afirmação em: The Feminist Critique in Religious Studies, in: deveria desenvolver sobre e contra objeções feministas pós-bíblicas à
Soundings 64 (1981) 388-402:400, de que “as liberacionistas deviam usar a tradição profética
como norma para criticar o sexismo da tradição religiosa. O sexismo bíblico não é negado, mas 38. Ver Stone, Merlin, When God was a Woman, Dial Press, Nova York, 1976, pp. 173-179;
perde sua autoridade. Ele deve ser denunciado como uma falha de se medir pela plena visão da Segai, J. B., The Jewish Attitude Toward Women, in: Journal for Jewish Studies 30 (1979) 121-
libertação humana das mensagens profética e evangélica” (enfatizei). Para um relato mais 137: esp. 127-131; Fiorema, E. Schüssler, Interpreting Patriarchal Traditions, in: Russel, Letty,
plenamente desenvolvido deste princípio, ver seu artigo: Feminism and Patriarchall Religion: org., The Liberating Word: A Guide to Nonsexist Interpretation of the Bible, Westminster,
Principies of Ideological Critique of the Bible, in: JSOT 22 (1982) 54-66. Filadélfia, 1976, pp. 39-61:46s.

42 43
Bíblia, mas deveria aprender delas para chegar a compreensão mais Se bem que Phyllis Trible focalize o texto bíblico e rejeite qualquer
plena dos impulsos bíblicos libertadores para a luta das mulheres tentativa de separar metodologicamente texto e tradição, forma e
contra o sexismo bíblico patriarcal. Em brilhante ensaio sob o título conteúdo, todavia compartilha com Russel e Ruether de uma compre­
“Por que as mulheres precisam da Deusa?”, Carol Christ fez trabalho ensão do processo hermenêutico que se enraíza em teologia neo-
detalhado sobre a Deusa como o símbolo do poder, da Uberdade e ortodoxa. Enquanto Russel e Ruether focalizam a tradição, Phyllis
independência das mulheres. Trible insiste na estrutura do texto bíblico. Enquanto Russel e Ruether
usam a metáfora do “passado utilizável” e, em conseqüência, enfatizam
O significado mais simples e mais básico do símbolo da Deusa é o a tradição bíblica, Tribe personifica o texto. Repete-se sua metáfora-
reconhecimento da legitimidade do poder feminino como poder beneficiente chave no começo e na conclusão de sua obra: “A Bíblia é uma peregrina
e independente. Um a mulher que reflete a afirmação dramática de caminhando pela história para unir passado e presente”.41 Mas,
Ntosake Shange: “Eu encontrei Deus em mim mesma e o amo intensamen­ opondo-se a Russel, Trible defende uma hermenêutica feminista explí­
te”, diz: “O poder feminino é forte e criativo”. Ela está dizendo que o cita: “Movendo-se através de culturas e séculos, a Bíblia imbuiu-se,
princípio divino, o poder que salva e sustenta está nela própria, de sorte
então, de uma perspectiva feminista, e, correspondentemente, uma
que ela não mais olhará para os varões ou figuras masculinas como
salvadores.39
perspectiva feminista iluminou a Bíblia”.42Ao passo que, segundo a
proposta hermenêutica de Letty Russel, Deus age por Cristo através de
todos os séculos, e esta missão salvífica está dentro da forma variável
Concordando com Ruether que a busca de poder, independência de tradições, para Trible a voz de Deus é ultimamente idêntica com o
e liberdade das mulheres não se pode formular apenas e primeira­ texto bíblico. Para encontrar a intenção de Deus, o exegeta bíblico deve
mente em termos de poder individualista-pessoal e biológico, mas tem “ouvir” e interpretar o texto o mais cuidadosamente possível. Por isso,
que ser sociopolítico, também concordo com Carol Christ que no ela escolhe como seu método interpretativo a crítica retórica que se
âmago da busca espiritual feminista está a busca de poder, liberdade concentra no movimento do texto mais que em fatores históricos
e independência das mulheres. Será que é possível ler a Bíblia de extrínsecos. Assim o exegeta se toma um companheiro do texto em sua
forma que ela se tome uma fonte histórica e um símbolo teológico para peregrinação através dos séculos. Semelhante compreensão de inter­
semelhante poder, independência e liberdade? Respondendo a esta pretação como uma “participação no movimento do texto”43permite a
pergunta, não podemos, na minha opinião, recorrer a um “ponto de ele captar o significado teológico do texto, porque “análise adequada da
Arquimedes”, seja Tradição com T maiúsculo seja “tradições proféti- forma produz articulação adequada de sentido”.44
co-messiânicas” como a chave reveladora e hermenêutica para mar­ Se bem que em seu artigo “Despatriarcalizando em tradições
car os correspondentes textos e tradições opressores da Bíblia. Em bíblicas”, seu débito com a distinção neo-ortodoxa entre fé bíblica e
última análise, a redução da Bíblia à tradição profético-messiânica religião bíblica lhe sirva de princípio hermenêutico explícito, o seu
por um lado e a concominante redução desta tradição a uma chave livro mesmo é muito mais cauteloso. Seu artigo conclui: “De várias
crítica, abstratamente deshistorizada, por outro lado, está a indicar formas eles (os textos e temas discutidos) demonstram um princípio
que a proposta hermenêutica de Ruether é mais neo-ortodoxa do que de despatriarcalização agindo na Bíblia. A despatriarcalização não é
ela o percebe. Ela serve mais para salvar a religião bíblica perante uma operação que o exegeta perfaz no texto. Ela é uma hermenêutica
suas críticas feministas, do que para desenvolver uma hermenêutica operando dentro da própria Escritura. Nós a expomos; não a impo­
histórica feminista, que pudesse incorporar a busca espiritual femi­ mos”.45A conclusão do seu livro reafirma esta posição hermenêutica.
nista de Wicca ao poder para as mulheres.40
41. Trible, Philis, God and the Rethoric of Sexuality, Fortress, Filadélfia, 1978, p.l.
39. Christ, Carol P., Why Women Need the Goddess: Fhenomenical, Psychological, and 42.76., p. 202.
Political Reflections, in: Christ e Plaskow, Womanspirit Rising, pp. 273-287:277. 43.76., p. 4.
40. Para princípio metodológico semelhante, verHeyward, Carter-Ruether, Rosemary— Daly, 44.76., p. 8
Mary, Theologians Speaking and Sparking, Building and Burning, in: Christíanity and Criais 39 45. Trible, Phillis, Depatriarchalization in Biblical Interpretation, in: JAAR 41 (1973) 30-
(1979) 66-72:71. 49:49.

44 45
masculinos reforçam uma imagem masculina de Deus, uma imagem
Entretanto, ao destacar que a própria Bíblia proclama “que a fé
qüe obscurece e até elimina metáforas femininas para a divindade .
perdeu suas imagens e motivos femininos” e ao sintetizar seus
resultados, ela é forçada a admitir: Neste ponto, sua combinação de uma hermenêutica feminina como
“crítica cultural à luz da misoginia” com uma hermenêutica neo-
De mais a mais, ela desvelou tradições esquecidas para fazer ver ortodoxa que “compreende explicação, compreensão e aplicação do
contrapontos dentro de um documento patriarcal. Não eliminou, porém, o passado para o presente” cai por terra.
caráter predominantemente masculino da escritura; semelhante tarefa
teria sido a um só tempo impossível e desonesta (grifei).46 M as ainda não sei como resolver o dilema posto pelo gênero gramatical
para a divindade nas Escrituras mesmas, pois a tradução deve responder
Tnble reconhece o feminismo como fio condutor entre o texto e o à precisão gramatical e à validade interpretativa a um só tempo.49
mundo, o texto e seu contexto histórico. Ela define explicitamente o
feminismo não como “um foco estreito sobre mulheres”, mas antes Esta última concessão está a indicar que uma hermenêutica
como uma “crítica da cultura à luz da misoginia”.47Contudo, ela não feminista deve incorporar não só uma crítica cultural mas também
entra em semelhante crítica feminista do cunho e caráter misoginista teológica. Também sugere que um método que separe a linguagem e
da Escritura como documento da cultura patriarcal, porque o seu o texto da Bíblia de suas condições socioculturais patriarcais não pode
método lhe permite abstrair o texto de seu contexto histórico cultural. fornecer um modelo para a reconstrução da história das mulheres
Se “background histórico, dados arqueológicos, história da composi­ como membros da religião bíblica. De mais a mais, uma teologia
ção, intenção do autor, cenário sociológico ou motivação teológica” são bíblica que não confronte seriamente “o cunho patriarcal” da Bíblia e
extrínsecos à interpretação e somente um “suplemento” à compreen­ sua legitimização político-religiosa da opressão patriarcal das mulhe­
são textual do intérprete bíblico, então a análise feminista como res corre o risco de usar uma perspectiva feminista para reabilitar a
crítica cultural não pode realmente informar sua obra. Cultura autoridade da Bíblia, em vez de reabilitar a história bíblica e a
patriarcal e religião patriarcal não precisam ser aduzidas porque são herança teológica das mulheres.
extrínsecas ao significado do texto bíblico para os dias de hoje. Por
isso, Trible nunca levanta a questão se as imagens e tradições
femininas sobre mulheres são realmente “contrapontos” ou se são O modelo feminista da sociologia do conhecimento
somente resquícios da repressão patriarcal da Deusa e dos poderes
Ao passo que o modelo feminista neo-ortodoxo tenta isolar a
religiosos das mulheres. Visto que ela focaliza o texto e suas inter­
Tradição libertadora dos textos patriarcal-androcêntricos da Bíblia,
pretações, também não levanta as implicações políticas da interpre­
tação bíblica. destilar a essência querigmática feminista de suas expressões
aildrocêntricas culturalmente condicionadas, e separar tradições
Com certeza, para semelhante interpretação bíblica, elaborada
proféticas sociocríticas das tradições bíblicas patriarcalmente opres­
em termos da nova crítica literária, linguagem androcêntrica deve ser
sivas, o modelo feminista “androcêntrico”60busca, com a ajuda da
enorme problema e obstáculo.48Sem embargo, Trible esquiva-se deste
sociologia do conhecimento,51ir da leitura de textos androcêntricos à
problema e trata dele somente em nota de rodapé. Se bem que o seu
construção de um centro de vida que gere novos textos culturais,
método se baseie na máxima de que “forma e conteúdo são inseparáveis”
e que o texto é uma unidade orgânica”, retém todavia que o gênero 49. Trible, God and the Rethoric, p. 23, n. 5.
gramatical dos pronomes masculinos para Deus não decide “nem 50. Embora Mary Daly retenha que esse modelo é ginocêntrico, nâo se deve deixar de ver o fato
sexualidade nem teologia”; ao mesmo tempo, ela concede que “pronomes de que ele não tem força de romper com o modelo patriarcal androcêntrico, que situa as mulheres
às margens e limites, mas não lhes permite reclamar o centro da cultura e religião patriarcais.
51. Berger, PeterL. eLuckmann, Thomas, The Social Contruction ofReality: ATreatise in the
46. Trible, God and the Rethoric, p. 203.
Soçiology ofKnowledge, Doubleday— N. Y „ Anchor Books, 1966; Sherman, JúliaA. eBeck, Evelyn
47. Ib., p. 7.
Torton, The Prism of Sex: Essay in the Soçiology ofKnowledge, University ofWisconsin Press,
48. Ver também Smith, Polly Ashton, Contrasta in Language Theory and Feminist Inter-
pretation, in: USQR 35 (1979/1980) 89-98: esp. 91-94. Madison, 1977.

46 47
tradições e mitologias. Segundo o modelo teórico androcêntrico, este Em A Igreja e o segundo sexo, Daly efetua um movimento
Lebenszentrum (centro de vida) dos textos e tradições bíblicas são os hermenêutico semelhante ao efetuado pela hermenêutica feminista
varões. Se todos os textos e as construções da realidade são neo-católica. Por exemplo, depois de tentar várias explanações e
androcêntricos, então não é possível a tradição feminista textual ou justificações das injunções paulinas à subordinação das mulheres, ela
cultural. Ao invés, torna-se necessário criar um novo centro de vida conclui sua argumentação:
feminista que vai gerar novas construções da realidade e novas visões
da vida. Não é surpreendente que Paulo não tenha visto as implicações plenas
desta transcendência. Existe uma tensão não-resolvida entre a mensagem
Ainda que Mary Daly não seja perita em Bíblia e história, sua obra cristã personalista e as restrições e compromissos impostos pela situação
deve analisar-se aqui, pois representa a combinação mais consistente histórica... Os que foram beneficiados pelas intuições de uma época
da crítica feminista do modelo androcêntrico (que ela rotula de posterior, têm a tarefa de distinguir elementos que são de origem socio­
falocêntrico) com uma análise de sociologia do conhecimento. Se bem lógica, dos elementos personalistas promotores de vida, que pertencem
que ela use patriarcado como seu conceito-chave analítico, o seu essencialmente à mensagem cristã.63
interesse pelo ser autêntico” está a indicar que ela opera dentro dos
limites do modelo androcêntrico existencialista formulado por Simo- Em sua introdução pós-cristã, Daly rejeita este movimento
ne de Beauvoir.52Embora Daly rejeite toda tentativa de usar método interpretativo para distinguir entre a essência da mensagem bíblica
e categorias analíticos feministas sem compartilhar também da e os acidentes da expressão sociocultural, entre o cerne da verdade
perspectiva feminista, ela se aproxima de Trible em sua compreensão cristã e “as idéias que surgem de condicionamento social”. Em
da linguagem, apesar de insistir que se deve considerar a matriz conversa imaginária, Daly argumenta com Daly:
patriarcal de toda linguagem. Em últimos termos, esta compreensão
“Professora Daly”, diria eu, “você não percebe que onde os mitos estão
de que a linguagem androcêntrica como meio de interpretação pa­ implicados o meio é a mensagem? Você não vê que os esforços dos estudi­
triarcal é a mensagem que pode levá-la à rejeição não só de todos os osos bíblicos para reinterpretar textos, ainda que possam estar corretos
textos androcêntricos bíblicos, mas de todos os textos androcêntricos dentro de determinada perspectiva restrita, não podem mudar o caráter
culturais. Uma análise sistêmica dos documentos patriarcais da opressivamente patriarcal da tradição bíblica? De mais a mais, essa
religião bíblica só pode produzir uma reconstrução da projeção bíblica precisão histórica ‘moderna’ sobre detalhes associou-se muitas vezes ao
da realidade como androcêntrica e patriarcal. zelo apologético que deixa de ver a função da religião patriarcal de
legitimar o patriarcado”.64
Em sua introdução pós-cristã à nova edição do seu livro A Igreja
e o segundo sexo, ela afirma categoricamente: O meio é a mensagem. Essa esserção está a indicar sua dívida teórica com uma aborda­
Neste livro adotou o modelo do androcentrismo de Simone de Beauvoir gem de sociologia do conhecimento, na medida que ela entende a
para construir uma teologia católica feminista revisionista. Em sua função da religião como legitimação da ordem patriarcal, ou seja,
introdução pós-cristã à nova edição, ela combina este modelo teórico como “manutenção do mundo”. Essa manutenção do status quo para
do androcentrismo com uma análise da sociologia do conhecimento. É legitimação religiosa “interpreta a ordem do universo” e “relaciona a
o “salto para a liberdade” feminista existencial que constitui o seu desordem, que é a antítese de todos os nomoi socialmente construídos,
novo centro de vida teórico. Por isso, ela não pode mais reconhecer a com aquele tremendo abismo de caos que é o mais antigo antagonista
história da Mary Daly revisionista, como parte de sua própria auto- do sagrado”.55 Em semelhante abordagem metodológica, a lingua-
identidade mas a relega à pré-história.
53 Daly Mary, The Church andthe Second Sex: With a New Feminist Poschristian Introduction
52. Para uma discussão feminista da obra de Simone de Beauvoir, ver: Felstinger, Mary by the Author, Harper & Row, N. Y. - Colophon Books, 1975, p. 84. Cf. também sua afirmação:
Lowenthal, Seeing the Second Sex Through the Second Wave; Doeuff, Michele Le, Simone de “A igualdade de dignidade e direitos de todos os seres como pessoas é a essência da mensagem
Beauvoir and Existencialism; Dijkstra, Sandra, Simone de Beauvoir and Betty Friedan- The cristã” (p. 83; grifei).
Política ofOmission; eíVncfcs, Ja-Ann P., Female Erotism inThe Second Sex,— todos em: Feminist 54. Ib., pp. 21s.
Studies 6 (1980) 247-313. 55. Berger, Sacred Canopy, p. 39.

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gem, como interpretação e legitimação, é o conceito-chave na construção Mas uma leitura cuidadosa do livro sugere a conclusão oposta. A
social da realidade. A manutenção da ordem patriarcal existente pela história de Daly da opressão das mulheres no patriarcado é concebida
religião, assim como também a nova construção do mundo pelo em termos de linguagem e estudo androcêntrico, porque na história
feminismo, acontece em e mediante a linguagem e interpretação.
as mulheres foram desprezadas, despojadas, exploradas, torturadas
Essa abordagem metodológica permite a Daly reafirmar mais
e mortas, mas não “apagadas”. É a linguagem androcêntrica e o
plenamente a intuição de Cady Stanton de que a Bíblia é produto de
modelo da sociologia do conhecimento que apagam a história das
varões e da sociedade patriarcal. O sistema de linguagem de
atrocidades patriarcais como história das mulheres em que as mulhe­
androcêntrica e falocêntrica da tradição cristã não é acidental à
religião bíblica, mas serve para manter a sagrada ordem patriarcal. res sofreram, colaboraram e lutaram pela libertação.
Como estranhas oprimidas num mundo patriarcal, mulheres
Uma análise sistêmica feminista, como a produzida por Neusner,
confirmam esta contenda.56Por sua vez furtou-se às mulheres o “poder feministas somos chamadas a “nomear — ou seja, criar nosso
de nomear”. “A coragem de ser lógicas — a coragem de nomear — próprio mundo”. Uma vez que a linguagem e o nomear são tão centrais
exigiria que admitíssemos que os varões são os originadores, os para a abordagem feminista de Daly, semelhante recriação do mundo
controladores e os legitimadores do patriarcado”.57Por isso, interpre­ ocorre antes de tudo dentro da consciência e linguagem dos indivíduos,
tação feminista de textos e tradições cristãos não pode usar um método dentro do Self:
de “correlação”, mas requer, ao invés, um “método de libertação”.
O reino da cura está dentro do Self, dentro dos Selves vistos pelo Self e
Semelhante método de libertação implica, segundo Daly, não
vendo o Self. O remédio não é voltar atrás mas tornar-se num ambiente de
apenas uma castração” da linguagem dos símbolos patriarcais, mas cura, o Self, e tornar-se o ambiente de cura.60
também uma “investida por novos campos semânticos”.58O seu livro
Gyn/Ecology está menos interessado com a análise crítica de símbo­ Para Daly, a consciência feminista implica em tal “salto quali­
los teológicos patriarcais do que com a demonstração de como a tativo”, que a Daly da introdução pós-cristã pode caracterizar a autora
linguagem e estudos androcêntricos “apagaram” as mulheres desde a de A Igreja e o segundo sexo como alguém “que não foi astronauta
consciência. Mediante análise semântica, etimológica e estrutural, antes que fosse possível tornar-se um”. Contudo, deve-se frisar que
ela não apenas busca “inventar” uma nova linguagem para mulheres nos dez anos que se passaram entre as duas edições do livro, não se
em “Tempo/Espaço feminista”, mas também revelar o assassinato e realizou nenhum destes saltos qualitativos na transformação socio-
genocídio da Deusa como o “apagamento sistemático de mulheres”. política da sociedade patriarcal. Semelhante salto qualitativo só
Ela discute diversas atrocidades, tais como o sati indu, mutilação
ocorreu na consciência de alguns indivíduos.
genital africana, caça européia às bruxas, ginecologia americana, a Sua abordagem hermenêutico-metodológica permite, pois, a Daly
compressão chinesa dos pés como restabelecimentos sado-rituais do
indagar a construção feminista do mundo na linguagem e na cons­
assassinato da Deusa. A linguagem falocêntrica é a manifestação
desses sado-rituais: ciência de indivíduos, mas não focaliza estruturas concretas de
opressão sociopolítica. Sua análise “estruturalista do sado-ritual e
O fato de o estudo patriarcal ser extensão e continuação do Sado-Ritual de sua violência enfatiza estruturas universais de opressão patriarcal
manifesta-se muitas vezes, inadvertidamente e sem saber, por sua lingua­ mas deshistoriza a opressão mesma, porque sua análise não pode
gem. Esta linguagem trai, ou melhor, exibe leal e fielmente o fato de que conceituar a opressão concreta e histórica de mulheres em diferentes
as “autoridades” são apologistas de atrocidades.69 sociedades, culturas e religiões. Tal método hermenêutico não oferece,
56. Neste livro.
de mais a mais, lugar a mulheres que vivem nos limites da cultura e
57. Daly, Mary, gyn/Ecology: The Metaethics of Radical Feminism, in: Beacon Press, Boston, religião patriarcais, e cuja consciência e atuação histórica feminista
1978, p. 28. * é somente parcial e, freqüentemente, misturada, confiisa, inarticulada.
58. Daly, Mary, Beyond God the Father: Toward a Philosophy of Women’s Liberation Beacon A abordagem androcêntrica da sociologia do conhecimento não per-
Press, Boston, 1973, pp. 8s.
59. Daly, Gyn/Ecology, p. 112.
60. Ib., p. 338.

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51
mite, teoricamente, solidariedade emancipatória com mulheres cujos Diz-se isto a respeito do espaço patriarcal. Mas essa asserção im­
Selves se acham prejudicados pelo patriarcado e cuja “viagem para a plica que mulheres que pertencem ao “território do não-ser” e não fize­
liberdade” foi, e continua sendo, uma viagem dentro dos limites e ram o salto qualitativo, são por isso excluídas da sororidade definida
mecanismos opressores da cultura e religião patriarcais. como espaço sagrado. Assim a assunção de “espaço sagrado feminista”
A esta altura fica claro que o modelo heurístico do androcentiismo sobre e contra “espaço secular” definido como o “território do não-ser”
não nos permite restituir a história às mulheres ou reconceitualizar gera nma dicotomia entre mulheres que se encontram neste espaço
história como história humana. Enquanto o androcentrismo mantém sagrado e as que não. Esta compreensão de sororidade — não como a
que mulheres são o “Outro”, a “fiação” e a viagem de Maiy Daly nos nniãn das oprimidas, mas a reunião das ideologicamente “puras”, a
levam ao “Outro Mundo”, ao “Outro Lado” que não podemos conhecer rede tias Borralheiras e Amazonas, das “eleitas” “santas” — tem
“até chegarmos lá”.61Ela denuncia, pois, o estudo patriarcal como a conseqüências de grande alcance para a interpretação que Daly faz da
“imagem de um espelho convexo da hagiografia criativa” porque ele história, e também para a mudança política, eclesial e social feminista.
apenas pesquisa e recobre a história das mulheres. Mas ela afirma.* Uma vez que as mulheres são não-seres na cultura patriarcal e
apagadas na consciência e linguagem desta cultura, somente as
Nos limites das universidades masculinamente centralizadas, contudo, mulheres que mudaram para o novo tempo/espaço féminista, partici­
há um florescimento de pensamento centrado na mulher. Método pam na história e no fazer a história. Estas “mulheres constituem um
ginocêntrico requer não só o assassinato de métodos mignginiat.pn (exorcis­ lugar ontológico da história... neste processo mesmo as mulheres são
mo intelectual e afetivo), mas também ênfase, que tenho nhnmfldn de as portadoras da história”.64Somente as que têm a “coragem de ser”
celebração lúdica.62
e fazer o salto existencial são sujeitos históricos. Ao passo que esta
Daly aceita então a construção teórica androcêntrica do mundo, compreensão teórica é capaz de construir um mundo feminista de vida
mas a coloca de cabeça para baixo fazendo da periferia o centro de vida nas margens da cultura patriarcal, ele não é capaz de restituir a
de uma construção feminista do mundo. Esta transferência pode-se história às mulheres, pois que ele entende história patriarcal como o
fazer em linguagem, ritual e teoria, mas está socialmente localizada “território de não-ser” e não como arena da luta de mulheres. Por isso,
nos “limites das universidades masculinamente centradas” e de todas Daly exclui metodicamente a história de mulheres do seio do cristia­
as outras instituições sociopolítico-culturais. nismo p rim itivo, e também rejeita uma reconstrução dos primórdios
Enquanto Beyond God the Father propunha um grupo social, ou cristãos primitivos em perspectiva feminista.
seja, a “sororidade como anti-igreja”, como o gerador e centro de vida
da construção feminista da realidade, a experiência histórica de Daly Uma hermenêutica crítica feminista da libertação
da maca e colonização psíquico-intelectual de mulheres agora a leva a
cuidadosareformulação da “sororidade”.A sororidade toma-se “espaço Tentei esboçar os maiores avanços na hermenêutica bíblica
sagrado”, a união dos “Selves” que “escaparam”, a amizade de mulheres feminista gerados pela Bíblia da Mulher. Eu o fiz não no sentido de
centradas no Self” opondo-se ao patriarcado. A aliança cósmica depreciar as realizações da hermenêutica feminista, mas de testar
até que ponto nos permitirão reclamar a Bíblia e a história cristã
é onde o ser é descoberto em confronto com o nada... Os que descobrem a primitiva como inícios e poder de mulheres.66 Se bem que a
aliança encontram-se em novo espaço. Não se invade, então, o velho
território: ninguém se incomoda em invadir o não-ser.63 64. Ib., p. 35.
65. Maijorie Procter-Smith assinalou que algumas feministas poderiam considerar minha
61. Ib., p. 1. modalidade de discussão crítica como “masculina”. Deveria estar claro agora que não creio que
62. Ib., p. 23. Sarah Bentíey (Method in the Work of Mary Daly/ Seminar Paper, UTS Nova haja “machas” ou “fêmeas” de pesquisa nem métodos “masculinos” ou “femininos”.
York, 1975) assinalou corretamente que o que Daly “está esposando é que as mulheres vivam Contudo, para prevenir semelhante compreensão equivocada, gostana de insistir de novo que não
separadas de cultura patriarcal de toda forma possível, e especialmente em nossas mentes” estou interessada na desvalorização, mas, sim, em maior desenvolvimento da hermenêutica
(grifei). feminista. A teologia feminista precisa de esdarecimento e de discussão críticos para chegar mais
63. Daly, Beyond God the Father, p. 169. plenamente ao que lhe é próprio.

52 53
hermeneutica histórica feminista da Bíblia da Mulher tenha esta­ até que a história bíblica possa ser restituída às mulheres. Para fazê-
belecido o caráter androcêntrico de textos e interpretações bíblicas, lo, temos que ver se a intuição de Cady Stanton — que não apenas
não focalizou todavia a história de mulheres como participantes da interpretações bíblicas, mas também os próprios textos bíblicos eram
história, sociedade e religião nem liberou os impulsos libertadores androcêntricos — pode servir para recuperar uma herança feminista
das tradições bíblicas. bíblica.
As questões interpretativas geradas pela Bíblia da Mulher con­ A Bíblia da Mulher não só provocou apologética feminista sobre
tinuam a determinar os parâmetros da hermenêutica bíblica feminista autoridade da Bíblia, mas também demonstrou que interpretação
e também as indagações histórico-exegéticas sobre a “mulher na bíblica na sociedade ocidental é tarefa histórico-política que não pode
Bíblia . Enquanto que o debate sobre a Bíblia da Mulher se esquentou ser negligenciada pelas feministas. O argumento de Ruether, que
por controvérsias e ataques ao movimento de mulheres no século seria romantismo feminista não reapropriar-se e transformar a
passado, a discussão primordialmente se concentra em tomo da cultura patriarcal e os textos androcêntricos, é importante. Embora
autoridade reveladora da Bíblia para hoje. Onde os opositores da permaneça a questão: Como e em que bases é possível essa rea-
igualdade das mulheres argumentam que a Bíblia exige a subordinação propriação e o que faz essa reapropriação ser feminista? Uma vez que
delas, os defensores da Bíblia afirmam que semelhante leitura da o feminismo como uma filosofia e um movimento de libertação tem
Bíblia é compreensão equivocada. Enquanto Cady Stanton aponta o vários objetivos, estratégias e abordagens, a resposta a este proble­
caráter androcêntrico da Bíblia para provar que os seus textos ma, argumentaria eu, não poderia ser por definição exclusiva, mas
misoginistas não são a palavra de Deus mas de varões, as feministas deve ser inclusivo-construtiva.
pós-cristãs radicalizam sua posição e rejeitam não só a Bíblia mas Feministas pós-bíblicas como Mary Daly, forçam a conseqüência
também as mulheres que permanecem membros da religião bíblica hermenêutica do modelo interpretativo androcêntrico, insistindo que
patriarcal. Russel, Ruether e Tnbre argumentam, por sua vez, com o texto bíblico androcêntrico é a mensagem e não só o seu continente.
Cady Stanton, que a Bíblia não é totalmente androcêntrica mas Por isso, não admitem uma distinção neo-ortodoxa entre texto
também contém alguns princípios éticos absolutos e tradições femi­ androcêntrico e revelação feminista, ou entre tradições patriarcais e
nistas libertadoras. Para faze-lo, adotam um modelo neo-ortodoxo Tradição libertadora. Embora permanecendo dentro dos perímetros
feminista que corre o risco de reduzir a ambigüidade da luta histórica do modelo hermenêutico androcêntrico, precisam também achar um
a essências teológicas e princípios intemporais, abstratos. ponto de Arquimedes no mar da relatividade histórica de interpreta­
Muito embora Cady Stanton tenha formulado o caráter político e ções e visões para poderem reclamar um absoluto feminista. Ao passo
a necessidade de uma interpretação feminista bíblica, o debate em que em Beyond God the Father este ponto de Arquimedes e chave
seguida não se centrou nas mulheres como criadoras e participantes hermenêutica era sororidade como anti-igreja, em Gyn/Ecology não
da história, mas na autoridade da revelação bíblica. Os estudos é mais “a união de mulheres oprimidas lutando pela libertação”, mas
subseqüentes de “a mulher na Bíblia” estavam primordialmente a reunião dos “Selves” feministas que “escaparam” do patriarcado. Se
interessados em indagar os ensinamentos bíblicos patriarcais sobre bem que a união de Daly das “eleitas e santas seja antes uma visão
feminidade e a espera da mulher e em defender ou reclamar a desincorporada e deshistoricizada que nos lembra a esperança católica
autoridade revelatória da Bíblia em favor ou contra a causa feminista. neoplatônica da comunhão dos santos como comunhão de almas
Uma consideração do debate sobre a ordenação de mulheres poderia desincorporadas. Esta visão deverá rejeitar não apenas textos e
substanciar amplamente esta observação. Assim fica claro que o religião bíblicos, mas também abandonar todas as outras expressões
debate feminista gerado pela Bíblia da Mulher centra-se em questões de cultura e história patriarcal como androcêntricas e totalmente
da rejeição/legitimação teológica da Bíblia em vez de reconstrução opressivas das mulheres.
histórica feminista. Parece-me metodologicamente necessário, pois, Contudo, abandonar nossa herança bíblica, apenas reforça a cons­
deixar de lado a questão da legitimização teológica, até que as trução androcêntrica da realidade da cultura ocidental, segundo a
mulheres possam entrar em foco como agentes e vítimas históricas e qual a existência e a história dos varões são o paradigma da existência

54 55
e da história humana. A lingüística androcêntrica e as estruturas semelhante empreendimento hermenêutico feminino de reconstruir
científicas do Ocidente definem as mulheres como secundárias aos o mundo histórico dos primórdios cristãos.67
varões e, em decorrência disso, como insignificantes na criação de Semelhante reconstituição do mundo requer uma hermenêutica
cultura, história e religião humanas. Nesta visão androcêntrica do feminista que compartilhe dos métodos e impulsos críticos dos estu­
mundo, as mulheres são histórica e culturalmente marginais. Como dos históricos, por um lado, e dos objetivos teológicos das teologias de
ovo oprimido, não têm uma história escrita; elas permanecem invisíveis libertação, por outro. Não só desafia construções androcêntricas da
nas construções da realidade dos que estão no poder. Contudo, não se realidade na linguagem, mas também tenta ir de textos androcêntricos
pode deixar de ver que a marginalidade e invisibilidade de mulheres a contextos histórico-patriarcais. Enquanto o androcentrismo carac­
na história bíblica é produzida por textos androcêntricos e recons­ teriza um a postura mental, o patriarcado representa um sistema
truções lingüísticas da história à medida que textos androcêntricos sociocultural em que poucos homens têm poder sobre outros homens,
tendem a apagar as mulheres como participantes ativos na história. mulheres, crianças, escravos e povos colonizados. A teologia feminis­
Sem levar em conta como textos androcêntricos podem apagar as ta como uma teologia crítica de libertação busca, por isso, desenvolver
mulheres da historiografia, eles não provam a ausência real das não só um a hermenêutica bíblico-textual, mas também uma herme­
mulheres do centro da história patriarcal e revelação bíblica. nêutica bíblico-histórica de libertação. Desafia fundamentalmente os
Por isso, as feministas não podem permitir que se lhes desapropri­ estudos bíblicos como interpretações textuais “objetivas” e recons­
em textos bíblicos e história patriarcal como textos de revelação e truções históricas que se pretendem de valor neutro.68
como história que lhes são próprios. Não podem permitir A intuição histórico-teológica que o Novo Testamento não é
somente fonte de verdade revelada, mas também meios para subor­
lançar a bordo todas as pretensões ao produto e ao relato de tantos séculos
dinação patriarcal e dominação exige novo paradigma para a
de vida coletiva. N a medida que aqueles varões falaram, fizeram-no com
hermenêutica e a teologia bíblicas. O paradigma deve não só depor
base no acesso privilegiado à história e ao comando, e não com base em
mérito interno pessoal ou sexual. Sua representação social e suas institui­
sua pretensão objetivista de desinteresse, mas também o seu modelo
ções sociais fazem parte, porém, do nosso passado coletivo. Os senhores da de interpretação doutrinal neo-ortodoxo que distingue essência de
criação não existem independentemente dos que eles oprimem.66 acidentes. Todos os textos cristãos primitivos estão formulados em
linguagem androcêntrica e condicionados por seu meio ambiente e
Textos androcêntricos e construções lingüísticas da realidade não histórias patriarcais. Revelação e verdades bíblicas dão-se somente
se devem tomar erroneamente como documento fidedigno de história, nos textos e modelos interpretativos que transcendem criticamente os
cultura e religião humanas. O texto pode ser a mensagem, mas a seus quadros patriarcais e permitem uma visão de mulheres cristãs
mensagem não é coincidente com realidade e história humanas. Por como sujeitos e atores históricos e teológicos.
isso, uma hermenêutica crítica feminista deve ir dos textos Mas esta visão das origens cristãs não se pode formular abstra­
androcêntricos aos seus contextos sócio-históricos. Não só tem que indo a essência da revelação de suas formações acidentais patriarcais
reclamar a comunidade contemporânea de mulheres, que lutam pela e expressões culturais, pois semelhante essência universal abstrata
libertação como o seu logus de revelação, mas também deve reclamar não permite uma compreensão crítica das raízes e mecanismos
suas irmãs antepassadas como vítimas e sujeitos participantes na particulares da opressão e luta das mulheres por libertação na
cultura patriarcal. Deve fazê-lo não criando um centro de vida
ginocêntrico nas margens da cultura e história androcêntricas, mas 67. McDaniel, Judith, Reconstituting the World: The Poetry and Vision of Adrienne Rich,
Spinsters Ink., Argyle-N. Y., 1978; Diehl, Joanne Feit, Cartographies of Silence: Rich’s Common
reclamando semelhante história humana e bíblica androcêntrica Language and the Woman Poet, in: Feminist Studies 6 (1980) 530-546.
como história própria das mulheres. Não foi a filósofa ou teóloga 68. Payer, Mary E., Is Traditional Scholarship Value Free? Toward a Critical Theory, in: The
feminista mas foi a poetisa feminista que nos deu uma imagem para Scholar and the Feminist: A Conference Sponsored by The Barnard College Women’s Center, The
Women’s Center-Bamard College, Nova York, 1977, pp. 25-48; Schöpfer, Hans, Die
Methodendifferenzierung durch ‘hermeneutische Meditation’ im gesellschaftstheologischen
66. Fox-Genovese, E., Por Feminist Interpretation, in: USQR 35 (1979/1980) 5-14:9. Engagement, in: Freiburger Zeitschrift flir Philosophie und Theologie 26 (1979) 54-95.

56 57
cultura e religião patriarcais. Também essa visão não se pode obter mente ou lutam em cultura e história patriarcais,70então a recons­
apenas analisando as passagens bíblicas sobre mulheres, porque trução das origens cristãs primitivas em pespectiva feminista não é
esta análise tópica tomaria as dinâmicas androcêntricas e as cons­ só tarefa histórica, mas também feminista. Não se pode derivar
truções da realidade de textos patriarcais pelo valor de fachada. Uma sentido teológico, nem do excesso revelatório de textos androcêntricos,
revisão feminista das origens cristãs e da história bíblica, deve ser nem de uma verdadeira consciência feminista, mâs só se pode encon­
realizada em e mediante uma análise crítica de textos e fontes trar em e mediante textos e história patriarcais androcêntricos. Por
patriarcal-androcêntricos, reconhecendo como princípio metodológico isso se toma necessário indagar todas as dimensões históricas de
que ser humano e ser cristão é um processo essencialmente social, textos bíblicos androcêntricos, assim como também da história e
histórico e cultured. Por isso, ser uma mulher cristã edifica-se sobre teologia primitivas cristãs.
as concretas estruturas e processos sociais e históricos da opres­ Em vez de abandonar a memória dos sofrimentos e esperanças de
são das mulheres e também de sua luta pela libertação e transcen­ nossas irmãs antepassadas do nosso comumpassado cristão patriarcal,
dência. as feministas cristãs reclamam seus sofrimentos e suas lutas em e
Uma reconstrução crítica da opressão histórica das mulheres mediante o poder subversivo da “recordação do passado”. Se a
dentro da religião e comunidade bíblicas, assim como também uma escravização e colonização dos povos tomam-se totais quando se
análise de suas justificações teológicas e conceituais deve, pois, estar destrói sua história, porque se faz impossível a solidariedade com a fé
baseada numa visão bíblica feminista alternativa da interação histó- e o sofrimento dos mortos, a hermenêutica bíblica feminista tem a
rico-cultural-religiosa entre mulheres e varões dentro de uma comu­ tarefa de se tornar uma “memória perigosa”, que reclama o sofrimento
nidade e história cristãs. Essa reconstrução histórica e revisão teo­ e compromisso religioso dos mortos. Semelhante “memória subversi­
lógica69, é inspirada não somente por objetivos teóricos acadêmicos, va” não só mantém vivos os sofrimentos e as esperanças de mulheres
mas também por interesses práticos na libertação de mulheres das cristãs no passado, mas também permite uma solidariedade univer­
estruturas e doutrinas bíblico-patriarcais internalizadas. Interessa- sal de sororidade com todas as mulheres do passado, presente e
lhe não apenas analisar a opressão histórica das mulheres na religião futuro, que seguem a mesma visão.
bíblica, mas também mudar a realidade social das igrejas cristãs onde Não se vai de encontro ao desafio contínuo das vítimas da religião
a opressão religiosa e a erradicação das mulheres assumem suas patriarcal, pela negação de sua autocompreensão e visão religiosa
formas históricas patriarcais específicas. Em última análise, seme­ como autodecepção equivocada ou ideológica, mas somente em e
lhante projeto visa não somente à libertação das mulheres, mas mediante uma solidariedade e lembrança comprometidas de suas
também à emancipação da comunidade cristã de estruturas patriar­ esperanças e de seus desesperos. Ou nas palavras de J. B. Metz:
cais e posturas mentais androcêntricas, de sorte que o evangelho
possa voltar a ser “força de salvação” de homens e mulheres. Tal A fé cristã se declara como a memória passionis, mortis et ressurrectionis
revisão da comunidade cristã e dos sistemas de crenças não é apenas Jesu Christi. No centro desta fé está uma específica memória passionis
uma tarefa religiosa, mas também uma importante tarefa politico- sobre que se funda a promessa de futura liberdade para todos... /Essa fé/
cultural, uma vez que a religião bíblica patriarcal, ainda contribui não é apenas salto total na existência escatológica do “novo humano”, mas
para a opressão e exploração de todas as mulheres em nossa socie­ também uma reflexão sobre os sofrimentos humanos concretos, que é o
dade. Seria por isso romantismo feminista relegar a religião bíblica e ponto onde se pode começar a proclamação da nova maneira de vida
essencialmente humana anunciada na ressurreição de Jesus... Neste
o seu poder de influência à esfera do “não-ser”.
sentido, a memória cristã insiste que a história do sofrimento humano não
Se a identidade feminista não se baseia na experiência de sexo
biológico e de diferenças essenciais de gênero, mas na experiência 70. Para uma abordagem semelhante, vcv Harrison, Beverly Wildung, The Power of Anger in
histórica comum de mulheres enquanto colaboram inconsciente­ the Workof Love: Christian Ethics forWomenand Other Strangers, in: USQR36 (1981)41-67:
44ss.; cf. também Ramachandran, Padma, Report of the Internacional Worlshop on Feminist
69. Cf. Wolf, Janet, The Social Production of Art, St. Martin’s Press, Nova York, 1981, esp. Ideology and Structures in the First Half of the Decade for Women, 24-30 June 1979, Asian and
capitulo 5: “Interpretation as Re-creation”. Pacific Center for Women and Development, Bangkok, 16 pp.

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só é parte da pré-história da liberdade, mas também permanece um Uma hermenêutica teológica feminista que tem por cânon a
aspecto interno da história da Uberdade.71 libertação das mulheres de textos, estruturas, instituições e valores
patriarcais, retém-se que a Bíblia não deve continuar sendo instru­
Essa lembrança do sofrimento das mulheres e de sua história de mento para a opressão patriarcal de mulheres— que somente aquelas
opressão patriarcal, precisa ser mantida viva como um momento tradições e textos que rompem criticamente com a cultura patriarcal
interno na história cristã feminista e na teologia bíblica. Contudo, e suas “estruturas de plausibilidade” têm a autoridade teológica de
essa memória feminista do sofrimento de Jesus Cristo e das vítimas revelação. A “atitude de defesa” das teologias de libertação, não pode
inocentes da opressão patriarcal, deve ser cuidadosa em não adscrever adscrever autoridade revelatória a qualquer texto ou tradição bíblicos
este sofrimento e colonização de mulheres à vontade positiva de Deus, de cunho opressivo e destrutivo. E também não deve ter qualquer
o patriarca celeste, e em não pretender revelação divina e assistência pretensão nesta linha em qualquer ponto de sua história. Essa
do Espírito Santo como a justificação teológica desse sofrimento. Na medida crítica deve-se aplicar a todos os textos bíblicos, aos seus
medida que textos bíblicos androcêntricos prestam-se para perpetuar contextos históricos e interpretações teológicas, e não só aos textos
e legitimar essa opressão patriarcal e olvido, silêncio e erradicação da sobre mulheres.
memória do sofrimento das mulheres, eles precisam ser desmi- Esta medida crítica dever-se-ia aplicár também à sua subseqüente
tologizados como codificações androcêntricas de poder e ideologia história de interpretação, com o fim de determinar o quanto e porque
patriarcais, que não podem pretender ser a palavra revelada de Deus. estas tradições e interpretações contribuíram para a deformação
Sugeriria, pois, que o cânon revelatório para avaliação teológica patriarcal da fé e comunidade cristãs, assim como também para a
de tradições bíblicas androcêntricas e de suas subseqüentes interpre­ opressão de mulheres e todas as outras pessoas dominadas. Na
tações, não se pode derivar da própria Bíblia, mas só se pode formular mesma linha, semelhante hermenêutica crítica feminista deve testar
em e mediante a luta das mulheres pela libertação de toda opressão se e o quanto algumas tradições bíblicas contêm elementos
patriarcal. Ele não pode ser universal, mas deve ser específico, pois emancipatórios, que transcenderam criticamente os seus contextos
que é extrapolado de uma experiência particular de opressão e culturais patriarcais e contribuíram para a libertação de pessoas,
libertação. A “atitude de defesa dos oprimidos” deve-se corroborar no especialmente mulheres, embora estes textos e estas tradições te­
momento da avaliação crítica feminista de textos e tradições bíblicos nham estado firmemente inseridos numa cultura patriarcal e sido
e de suas pretensões de autoridade. A experiência, pessoal e politi­ pregados por uma igreja patriarcal. Estes textos do Novo Testamento
camente manifesta, de opressão e libertação deve tomar-se o critério não deveriam, contudo, ser entendidos como idéias ounormas teológicas
de adequação de interpretação bíblica e avaliação de pretensões de abstratas e intemporais, mas deveriam ser entendidos como resposta
autoridade bíblica. de fé a concretas situações históricas.
Uma compreensão hermenêutica feminista que não vise sim­ A teologia feminista desafia, pois, o estudo teológico bíblico a
plesmente continuação atualizadora de tradição bíblica ou de uma desenvolver um paradigma para a revelação bíblica que não entenda
tradição determinada bíblica, mas visa uma avaliação crítica dela, o Novo Testamento como um arquétipo mas como um protótipo. O
deve desvelar e rejeitar os elementos dentro de todas as tradições e arquétipo e o protótipo denotam ambos os modelos originais. Contu­
textos bíblicos que perpetuam, em nome de Deus, violência, alienação do, um arquétipo é uma forma ideal que estabelece um padrão
e subordinação patriarcal, e erradicam mulheres de consciência atemporal imutável, ao passo que um protótipo não é um padrão ou
histórico-teológica. Ao mesmo tempo, essa hermenêutica crítica fe­ princípio temporalmente vinculante. Um protótipo acha-se, pois,
minista, deve recuperar todos os elementos dentro de textos e tradi­ criticamente aberto para uma possibilidade de sua própria trans­
ções bíblicas, que articulam as experiências e visões libertadoras do formação. “Pensar em termos de protótipo historiciza o mito”.72Uma
povo de Deus. compreensão hermenêutica da Escritura como protótipo não só dá

71. Metz, Johann Baptist, Faith in History and Society: Toward a Practical Fundamental 72. Plessis, Rachel Blau Du, The Critique of Consriousness and Myth in Levertov, Rich and
Theology, trans. David Smith, Crossroad, Nova York, 1980, pp. lll s . Rukeyser, in: Feminist Studies 3 (1975) 199-221:219.

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espaço como também requer a transformação de seus próprios mode­ e comunidade cristãs, ele pode apontar a prática real das igrejas que
los de fé e comunidade cristã. Exige, pois, uma indagação crítica das definem explícita ou implicitamente a autoridade bíblica e o cânon de
dinâmicas histórico-socioteológicas operativas na formulação e relação com referência aos seus próprios centros, reconhecidos ou não
canonização do Novo Testamento como Escritura, assim como tam­ reconhecidos, de poder eclesial. Ao passo que a Igreja católica romana
bém como uma integração de história e teologia bíblicas. tem feito explicitamente semelhante procedimento hermenêutico,
Semelhante compreensão da Escritura não como um arquétipo outras igrejas cristãs o seguem implícita e praticamente.
mítico, mas como um protótipo histórico fornece à comunidade cristã De modo semelhante, as teologias de libertação insistem que
um senso da continuidade de sua história e também de sua identidade revelação e autoridade bíblicas encontram-se nas vidas dos pobres e
teológica. Na medida que não define a Bíblia como um padrão fixo oprimidos, cuja causa adotou Deus como seu advogado e libertador.
mítico, é capaz de reconhecer positivamente o processo dinâmico de Uma hermenêutica crítica de libertação compartilha a atitude de
adatação, desafio ou renovação bíblicos das estruturas socioeclesiais defesa das teologias de libertação, mas, ao mesmo tempo, elabora não
e conceituais sob as condições mutantes das situações sócio-históricas só a opressão das mulheres, mas também o poder das mulheres como
da igreja. Em e mediante “transformação estrutural” (Jean Piaget), a o locus de revelação. Como o modelo-raiz da vida e comunidade
Bíblia e a comunidade bíblica são capazes de responder a novas cristãs, a Bíblia reflete a força de mulheres bíblicas e também de sua
necessidades sociais e intuições teológicas, assim como também vitimização. Por isso, a Bíblia é fonte para o poder religioso das
permitir e extrapolar novas estruturas socioeclesiais, ao preservar a mulheres e também para sua opressão religiosa através da história do
visão bíblica libertadora gerando novas formações estruturais que cristianismo até ao presente. Uma teologia feminista cristã de liber­
façam parte desta visão. Como o modelo-raiz da comunidade de fé tação deve parar com suas tentativas de resgatar a Bíblia de suas
cristã, a Bíblia funciona como uma formação eficaz dentro das igrejas críticas feministas e afirmar que a fonte de nosso poder é também a
cristãs e como uma formação residual dentro da cultura ocidental.73 fonte de nossa opressão.
Mulheres que vivem dentro da trajetória cultural e eclesial da Bíblia, Uma hermenêutica crítica de libertação deve, pois, analisar
não são inteiramente livres para negligenciar o seu mundo de visão cuidadosamente a patriarcalização teológica e estrutural do Novo
e ignorar suas formações estruturais. “A liberdade de uma pessoa Testamento e das igrejas “patrísticas” sem passar com demasiada
consiste, porém, em saber da direção ao longo da qual ela esta pressa à apologética bíblica ou a um desinteresse histórico. Deve
nascendo, avaliando movimentos alternativos e dando depois passos tornar-se cônscia das inter-relações entre patriarcado eclesial-cultu-
relevantes no sentido de redirecionar o próprio percurso a melhores ral e textos e tradições teológicos. Pode ilustrar como uma teologia
resultados”.74 misoginista é sempre gerada pela igreja patriarcal para relegar
Essa compreensão da Bíblia como protótipo não pode identificar mulheres a posição marginal e deslocá-las como sujeitos eclesiais e
revelação bíblica com o texto androcêntrico, mas retém que essa teológicos. Essa hermenêutica busca, portanto, desenvolver um mé­
revelação se funda na vida e no mistério de Jesus, assim como todo crítico de análise que permita às mulheres ir para além de textos
também na comunidade de discipulado de iguais convocada por ele. bíblicos androcêntricos a seus contextos sócio-históricos. Ao mesmo
Textos bíblicos e suas subseqüentes interpretações estão formulados tempo, essa hermenêutica deve procurar modelos teóricos de re­
em interação com suas culturas e estruturas socioeclesiais patriar­ construção histórica, que coloquem as mulheres não só na periferia
cais. Expressam, pois, esta experiência de revelação em linguagem mas no centro da vida e da teologia cristãs. Na medida em que textos
androcêntrica e codificações patriarcais. Na medida que o modelo bíblicos androcêntricos não só refletem seu entorno cultural patriar­
aqui proposto localiza a revelação não em textos mas na experiência cal, mas também continuam a permitir um olhar para os movimentos
cristãos primitivos, como um discipulado de iguais, a realidade do
73. Para essa conceitualidade, cf. Williams, Raymond, Marxism and Literature, Oxford compromisso e liderança de mulheres nestes movimentos precede as
University Press, Oxford, 1977, pp. 109-127.199-205.
74. Robinson, James M. e Koester Helmut, Trajectories through Earl Christinity, Fortress, injunções androcêntricas pelo papel e comportamento das mulheres.
Filadélfia, 1971, pp. 4s. Mulheres, que pertenciam a um grupo submerso na antiguidade,

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puderam desenvolver liderança no movimento cristão emergente, 2
que, como um discipulado de iguais, estava em tensão e conflito com
o ethos patriarcal do mundo greco-romano. PARA UM MÉTODO
Uma hermenêutica crítica feminista da Bíblia deve desenvolver
modelos interpretativos teóricos, que logrem integrar as tradições e CRÍTICO FEMINISTA
os textos assim chamados contraculturais, heréticos e igualitários,
em sua reconstrução compreensiva da teologia e história escriturístieas.
Se bem que o cânon preserve somente restos do ethos cristão primitivo
não-patriarcal, estes restos ainda nos permitem reconhecer que o
processo de patriarcalização não é inerente à revelação e comunidade Se o locus da revelação não é o texto androcêntrico, mas a vida e
cristãs, mas progrediu devagar e com dificuldade. Por isso, uma a atividade de Jesus e o movimento de mulheres e varões suscitados
hermenêutica bíblica feminista pode reclamar a teologia e a história por ele, devemos desenvolver métodos histórico-críticos para a leitura
cristãs primitivas, como teologia e história própria de mulheres. feminista dos textos bíblicos. Se o silêncio sobre a experiência e
Mulheres tinham o poder e a autoridade do evangelho. Elas foram contribuição históricas e teológicas de mulheres no movimento cris­
pessoas centrais e líderes no movimento cristão primitivo. tão primitivo é gerado por textos históricos e redações teológicas,
Mulheres como igreja têm uma história e tradição contínuas que devemos encontrar caminhos para romper com o silêncio do texto e
pode reclamar Jesus e a práxis da Igreja mais antiga como o seu derivar significado de uma historiografia e teologia androcêntricas.
modelo-raiz ou protótipo, modelo-raiz e protótipo que se acha aberto Ao invés de entender o texto como adequada reflexão da realidade
à transformação feminista. Uma teologia cristã feminista tem, segun­ sobre o que fala, devemos buscar chaves e alusões que indiquem a
do opino, como tarefa primária manter viva a “memória passionis” de realidade sobre o que os textos calam. Ao invés de considerar textos
mulheres cristãs, assim como também de reclamar a herança teológi- androcêntricos como “dados” informativos e “relatos” precisos, devemos
co-religiosa de mulheres. Contudo, esta herança teológica é mal ler os seus “silêncios”1como documentação e indicação daquela rea­
representada quando é entendida unicamente como a história de lidade sobre o que não falam. Ao invés de rejeitar o argumento
opressão. Deve também ser reconstruída como história de libertação do silêncio como argumento histórico válido, devemos aprender a ler
e agência de poder religioso. Não se deve permitir que a história e os silêncios dos textos antropocêntricos, de tal sorte que possam
teologia da opressão das mulheres perpetuada por textos bíblicos fornecer “chaves” para a realidade igualitária do movimento cristão
patriarcais e por um patriarcado clerical, cancele a história e teologia primitivo.
da luta, yida e liderança das mulheres cristãs que falaram e agiram Textos androcêntricos são partes de abrangente quebra-cabeça e
na força do Espírito. desenho que devem ser colocados juntos em interpretação crítica
criativa. E, pois, crucial que desafiemos as plantas do desenho
androcêntrico, assumindo, ao invés, um critério feminista para o
mosaico histórico, um critério que nos permita colocar mulheres e
também varões no centro da história cristã primitiva. Esse método
crítico feminista pode-se comparar com o trabalho de um detetive, na
medida em que este trabalho não se apóia em “fatos” históricos nem
inventa suas provas, mas procede de uma reconstrução imaginativa

1. Ver Olsen, Tillie, Silences, Dell, Nova York, 1979 e sua dedicação: “Para nosso povo
silenciado, século após século consumindo seus seres no trabalho duro e cotidianamente essencial
de manter a vida humana. Sua arte, que silenciosas fizeram — como suas outras contribuições
—, é anônima, não teve respeito, reconhecimento; perdida”.

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