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A Originalidade e A Origem Do Estádio Do Espelho em Lacan PDF

Este artigo resume o estudo inicial de Lacan sobre a psicose paranoica, no qual ele rompeu com os estudos psiquiátricos tradicionais sobre o tema. Lacan introduziu a noção de personalidade para entender os sintomas paranoicos. Ele também distinguiu a ordem genética da ordem gnoseológica no homem, mostrando a originalidade de sua abordagem. O artigo também discute a introdução do esquema do estádio do espelho por Lacan, que foi fundamental para seu desenvolvimento teórico inicial.
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A Originalidade e A Origem Do Estádio Do Espelho em Lacan PDF

Este artigo resume o estudo inicial de Lacan sobre a psicose paranoica, no qual ele rompeu com os estudos psiquiátricos tradicionais sobre o tema. Lacan introduziu a noção de personalidade para entender os sintomas paranoicos. Ele também distinguiu a ordem genética da ordem gnoseológica no homem, mostrando a originalidade de sua abordagem. O artigo também discute a introdução do esquema do estádio do espelho por Lacan, que foi fundamental para seu desenvolvimento teórico inicial.
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Artigo

465
Resumo
Este artigo traz um estudo da obra
A ORIGINALIDADE E A
inicial de Lacan, na qual se rompe
com o estudo das psicoses pela psi-
ORIGEM DO ESTÁDIO
quiatria tradicional, e nos interessa
no ponto em que tal ruptura nos
DO ESPELHO EM LACAN
mostra a originalidade dos caminhos
iniciais de Lacan com o esquema do
estádio do espelho. Inicialmente, a
teorização lacaniana desenvolve-se
agregando o campo da personalidade
aos estudos da psicose, definindo os Diógenes Domingos Faustino
fenômenos paranoicos em suas rela- Jussara Falek
ções de compreensão. Essa perspecti-
va só se torna possível na medida em
que Lacan opera um avanço teórico,
DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i3p465-481
ao fazer uma distinção entre a ordem
genética e a gnosiológica no homem.
Descritores: psicanálise; Lacan;
estádio do espelho; paranoia.

N osso estudo sobre o esquema do estádio do espelho em


Lacan começa por sua obra inicial – a tese de doutorado em medi-
cina “Da psicose paranoica e suas relações com a personalidade”,
publicada em 1932 – na qual podemos notar uma ruptura no que
concerne naquele momento ao estudo das psicoses pela psiquiatria
tradicional, e interessa-nos no ponto em que tal ruptura mostra a
originalidade dos caminhos iniciais que Lacan empreendeu no seu
ensino acerca da técnica e teoria psicanalíticas.
O título de sua tese já figura a originalidade e a ruptura da obra
lacaniana. Ambos qualitativos aqui se mesclam, na medida em que a
originalidade de Lacan dá-se ao passo da ruptura com as conceituações
de toda uma psiquiatria acerca dos fenômenos na paranoia em sua base
mais fundamental, uma vez que introduz no estudo desse campo as
relações de compreensão pertinentes aos fenômenos da personalidade.
■ Psicólogo. Mestrando em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo (IPUSP), São Paulo, SP, Brasil.
■ ■ Psicanalista. Membro da École Lacaniènne de Psychanalyse e docente do Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP), São Paulo, SP, Brasil.

465
Em sua extensa revisão bibliográfica, Lacan (1987) aponta-nos que
o campo da alienação mental era dividido em dois grandes grupos: o
da demência precoce e o da psicose. Nos estudos sobre a demência,
apontava-se uma forte correlação desta enfermidade com fatores
orgânicos, o que fundamentava uma noção de paralelismo entre as ma-
nifestações psíquicas, as quais seriam causadas por lesões ou alterações
orgânicas respectivas. Tratando-se da psicose, em contraste com esse
primeiro grupo, não se ressaltava essa correlação orgânica direta nas
manifestações sintomáticas; assim, os estudos desses casos tratavam de
distúrbios tidos como psicogênicos, dada a razão que:

na ausência de qualquer déficit detectável pelas provas de capacidade (de me-


mória, de motricidade, de percepção, de orientação e de discurso), e na ausência de
qualquer lesão orgânica apenas provável, existem distúrbios mentais que relaciona-
dos, segundo as doutrinas, à “afetividade”, ao “juízo”, à “conduta”, são todos eles
distúrbios específicos da síntese psíquica. (Lacan, 1987, p. 2)

Essa concepção da psicose acarreta um grande problema na medida


em que não se sabe sobre a dinâmica que assume a síntese psíquica nestes
casos, problema que vai se estender à nosografia da paranoia. Lacan, em
seu texto “Structure des psychoses paranoïaques” (1931), nos diz que:

A concepção da paranoia que herdou ao mesmo tempo das velhas monomanias


e dos fundamentos somáticos à noção de degeneração agrupou nela estados psicopá�-
ticos decerto muito diversos. Ela tem, entretanto, a vantagem de evocar um terreno,
base não psicogênica de todos estes estados. Mas o progresso da clínica, Kraepelin,
os italianos, Sérieux et Capgras, isolaram-na sucessivamente dos estados paranoides
ligados à demência precoce, das psicoses alucinatórias crônicas, enfim, dessas formas
mais ou menos transitórias de delírios que constituem a paranoia aguda e que deviam
entrar em quadros variados desde os acessos delirantes polimorfos até os estados
pré-demenciais passando pela confusão mental. (tradução nossa)

Assim, no que se refere à paranoia, dentro do grande campo da


alienação mental, pode-se dizer que esta se constitui sofrendo as con-
sequências desses dois grandes grupos iniciais. E os mesmos estudos
que permitiram sua maior delimitação conceitual não solucionaram o
problema inicial que recaiu sobre todo o campo da psicose, a saber, o
enigma da sua característica síntese psíquica.
A tese lacaniana de 1932 presta-se a lançar luzes no que de enigmáti-
co, de irracional e de desrazão continha o estudo acerca dos fenômenos
paranoicos. Segundo Lacan, essa obscuridade devia-se à ausência de
uma teorização que pudesse dizer sobre a síntese psíquica nesses casos.

466 Estilos clin., São Paulo, v. 19, n. 3, set./dez. 2014, 465-481.


E, para ele, essa síntese será senão, estudo psicanalítico naquilo mesmo
em sua tese, a própria personalidade. em que este tem encontrado barreiras
Dessa forma, constitui-se uma ao seu avanço (1987). Por conseguin-
teoria que reconhece nos sintomas te, uma das primeiras incursões de
mórbidos da paranoia, por mais anô- Lacan como propriamente teórico da
malos que pareçam, a manifestação de psicanálise pode ser vista como conse-
uma tendência concreta1 que pode ser, quência das problemáticas apontadas
em certa medida, inteligível e definida nos estudos da psicose.
em relações de compreensão humana.
Essa perspectiva que dá um novo
status aos fenômenos da paranoia só A introdução do esquema
torna-se possível na medida em que do estádio do espelho
Lacan opera um avanço teórico, ao fa-
zer uma distinção entre aquilo que, no
homem, seria da ordem de sua própria O esquema do estádio do espelho
gênese, enquanto humano, em refe- que Lacan apresentou quatro anos
rência àquilo que seria, nesse mesmo após a sua tese, em julho de 1936, no
homem, de uma ordem gnoseológica, congresso psicanalítico de Marienbad,
ou seja, da ordem do conhecimento é tido como o primeiro pivô de sua
humano. Assim, para ele, toda a con- intervenção na teoria psicanalítica, e
fusão gerada pela doutrina psiquiátrica podemos ver aí, além do narcisismo,
era consequência de situar o problema as elaborações iniciais de Lacan no
da paranoia como genético, enquanto, que concerne à questão problemática
na verdade, seria um problema da do eu na teoria analítica freudiana.
ordem do conhecimento humano, Considerando a produção escrita,
como o do eu enquanto sujeito do a primeira referência ao estádio do es-
conhecimento. Pode-se dizer que é pelho consta em um texto produzido
nesse ponto que reside a originalidade por Lacan para a Encyclopédie française,
de sua tese e a genialidade de Lacan intitulado “Os complexos familiares
em abordar a psicose paranoica. na formação do indivíduo”, em 1938.
Essa nova perspectiva nos estu- É sobre ela que nos debruçaremos ini-
dos da paranoia, em contradição ex- cialmente. A relevância do estudo que
pressa com os estudos de seu mestre Lacan apresenta, nesse seu texto, reve-
Clérambault, faz Lacan aproximar-se la-se como uma reiteração do caráter
da doutrina psicanalítica, sendo que essencial do seu posicionamento na
em sua tese temos uma das primeiras pesquisa em psicanálise, considerando
exposições acerca dessa aproximação o objeto estudado – no referido texto,
com Freud. Como o próprio Lacan a família - em seu condicionamento
diz, a sua pesquisa sobre as psico- por fatores culturais, reconhecendo
ses objetiva dar prosseguimento ao que o essencial à ordem humana é a

467
subversão da fixidez instintiva, à qual,
nos animais, adere-se.
A exceção humana deve ser ex-
plicada por sua expressiva impotência
biológica nos primeiros anos de vida
em relação aos demais animais, de
tal forma que, segundo Lacan, não
se deve hesitar em considerar que a
criança na primeira idade encontrar-
se-ia em um estado de prematuração
biológica fatal se não ficasse sob
cuidados de um outro (Lacan, 2003).
A contraposição ao instinto,
como um suporte orgânico regulador
das funções vitais, será, segundo esse
texto de Lacan, dada pela função que
os complexos exercem que, diante da
expressiva insuficiência maturacional
no homem, substituem a insuficiên-
cia congênita dessas funções pela
regulação, através da imago, de uma
função social. No entanto, perceba-
mos que:

Ao opor o complexo ao instinto,


não negamos ao complexo todo e
qualquer fundamento biológico, e, ao
defini-lo por certas relações ideais, nós
o ligamos a sua base material. Essa base
é a função que ele assegura no grupo
social, e esse fundamento biológico
pode ser visto na dependência vital do
indivíduo em relação ao grupo. (Lacan,
2003, p. 40)

Mas, de qualquer forma, Lacan


foge do preconceito biologista uma
vez que o complexo, próprio ao
psiquismo humano, não responde
às funções vitais, mas à insuficiência
congênita destas funções através
do apelo ao outro. Esse é o recurso

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teórico por meio do qual vemos Lacan desenvolver seu percurso
inicial como teórico da psicanálise.
Como não poderia ser diferente, nesse texto vemos a elaboração
teórica do Eu seguir nessa mesma linha de conceituação, a qual leva
em consideração os complexos como organizadores do desenvol-
vimento psíquico humano e, especificamente, deste em sua relação
social, ou seja, em sua relação com o outro. Para tanto, é o “complexo
de intrusão” que servirá de base para a função da identificação na
constituição do eu.
Esse complexo de intrusão pode ser comprovado na observação
experimental de crianças e nas investigações no campo da psicanálise,
principalmente, referentes à situação de rivalidade entre irmãos; mas,
de um modo geral, ocorre entre as crianças em certa idade intervalar.
A novidade dos estudos que Lacan apresenta em seu texto está
na descoberta de que a relação de rivalidade estabelecida entre os
infantes manifestava, na verdade, uma identificação mental com o
outro, o semelhante. Esse fenômeno da identificação mental ocorre
nas crianças entre 6 meses e 2 anos de idade, sendo deixadas sozinhas
e à espontaneidade lúdica. Entre as reações observadas, reconhece-se
objetivamente essa relação definida pela rivalidade:

comporta com efeito entre os sujeitos uma certa adaptação das posturas e
dos gestos, qual seja, uma conformidade em sua alternância e uma convergência
em sua sucessão, que os ordenam como provocações e respostas e permitem
afirmar, sem prejulgar a consciência dos sujeitos, que eles discernem a situação
como tendo uma saída dupla, como uma alternativa. (Lacan, 2003, p. 43)

Tais observações indicam que na medida em que há uma ade-


quação do comportamento de uma criança com a outra, podemos
admitir que há o reconhecimento do outro como rival, o que revela
o reconhecimento do outro como objeto. Contudo, para que este
efeito seja observado tem-se que respeitar uma diferença etária es-
pecífica entre as crianças; caso contrário, as reações serão distintas
e aparecerão atitudes como exibição, sedução e despotismo etc., ou
seja, em vez de uma relação conflitiva entre dois, como no primeiro
enquadramento, ter-se-á “um conflito entre duas atitudes opostas e
complementares, e essa participação bipolar é constitutiva da própria
situação” (Lacan, 2003, p. 44). Mas o que essa última configuração
confirma de mais paradoxal é que, de fato, cada parceiro confunde a
parte do outro com a sua própria e identifica-se com ele; assim, não
se sabe quem estaria exercendo o papel do sedutor e o do seduzido,

469
chegando, muitas vezes, a manifestar comportamentos discordantes
entre si. O mais significativo, nesse caso, em relação à primeira si-
tuação, centra-se no fato de que cada uma das crianças pode viver a
sua situação sozinha, sem a necessidade de uma participação efetiva
do outro.
Com isso, Lacan conclui que “nesse estágio, a identificação,
específica das condutas sociais, baseia-se num sentimento do ou-
tro, que só pode ser desconhecido sem uma concepção correta de
seu valor inteiramente imaginário” (Lacan, 2003, p.44). Percebemos
isso na medida em que para ocorrer uma “real” interação entre as
crianças, como na primeira situação, é condição necessária uma se-
melhança maturacional significativa entre os sujeitos considerados.
Evidenciando que só assim ocorre essa identificação mental com
o rival na medida em que “a imago do outro parece estar ligada à
estrutura do corpo próprio, e, mais especialmente, de suas funções
de relação, por certa similitude objetiva” (Lacan, 2003, p. 44). Essa
conclusão nos dá o simulacro do que Lacan vai desenvolver em sua
teoria do estádio do espelho que, neste caso, irá tratar da imagem
do corpo próprio.
É em meio a essas elaborações sobre o estágio de desenvolvimento
da criança que a concepção do estádio do espelho se aplica. Lacan
esclarece-nos que

A identificação afetiva é uma função psíquica cuja originalidade a psicanálise


estabeleceu, especialmente no complexo de Édipo…. Mas o emprego desse
termo, na etapa que estamos estudando, é mal definido na doutrina; foi isso
que tentamos suprir com uma teoria da identificação cujo momento genético
designamos pela denominação de estádio do espelho. (Lacan, 2003, p. 46)

Mais especificamente, esse estádio irá corresponder ao declínio


do desmame, por volta do fim dos 6 meses, no qual a criança sofre
do mal-estar psíquico correspondente ao atraso de sua maturação
fisiológica, que, para Lacan, é a base do desmame no homem.

Ora, o reconhecimento pelo sujeito da sua imagem no espelho é um


fenômeno que, para a análise desse estágio, é duplamente significativo: o
fenômeno aparece depois de seis meses e o seu estudo, nesse momento, re�-
vela demonstrativamente as tendências que então constituem a realidade do
sujeito; a imagem especular, justamente em razão destas afinidades, fornece
um bom símbolo desta realidade: de seu valor afetivo, tão ilusório quanto
a imagem, e de sua estrutura, que, como ela, é reflexo da forma humana.
(Lacan, 2003, p. 47)

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No entanto, no ser humano, o fascínio pela imagem especular
corresponde a um determinado período que predominaria por volta
do fim do primeiro ano; neste período, a inteligência instrumental
humana equivale-se à do chimpanzé, o que justificaria a semelhança
do comportamento lúdico para com a própria imagem vista entre
as duas espécies, se restringirmos o humano a essa faixa etária.
Assim, a partir desse momento, vemos outra forma de relação
do homem com a própria imagem, fenômeno que teve seu início
desde os 6 meses de vida e agora assume outras características,
como bem descreve-nos Lacan:

característica de uma intuição iluminante, ou seja, contra o fundo de


uma inibição atenta, súbita revelação do comportamento adaptado (aqui,
um gesto de referência a uma parte do corpo), seguida pelo esbanjamento
jubilatório de energia que assinala objetivamente o triunfo, numa dupla
reação que deixa entrever o sentimento de compreensão, em sua forma
inefável. (Lacan, 2003, p.47)

Esse novo momento da relação do bebê com a sua própria


imagem seria resultado do investimento libidinal que adentraria
nesse estádio e que, para Lacan, teria sua fonte nas condições em
que o filhote humano encontra-se submetido após o seu nasci-
mento. Assim,

Essas condições [libidinais] são apenas as tensões psíquicas provenientes


dos meses de prematuração, e que parecem traduzir uma dupla ruptura vital:
a ruptura da adaptação imediata ao meio, que define o mundo animal por
sua conaturalidade, e a ruptura da unidade de funcionamento do ser vivo,
que, no animal, submete a percepção à pulsão. (Lacan, 2003, p. 47)

Em outras palavras, esse investimento libidinal na imagem


que apresenta um ideal de unidade para o sujeito ocorre devido ao
nascimento do bebê humano em condições ainda insuficientes para
a sua sobrevivência, em termos de falta de coordenação, tanto das
pulsões quanto das funções orgânicas. Veremos assim, nesse novo
momento, um estádio afetivo e mentalmente constituído a partir
de uma percepção do corpo próprio como fragmentado, mas que
se percebe em movimentos diferentes:

por um lado, o interesse psíquico encontra-se deslocado para as tendências


que visam a uma recolagem do corpo próprio; por outro lado, a realidade,
inicialmente submetida a um despedaçamento perceptivo cujo caos atinge
até suas categorias - por exemplo, “espaços” tão díspares quanto as sucessivas

471
posições estáticas da criança -, ordena-se descritas de despotismo, sedução e exibi-
refletindo as formas do corpo, que for- ção, dá forma às pulsões sadomasoquista e
necem como que o modelo de todos os escopofílica (desejo de ver e de ser visto),
objetos. (Lacan, 2003, p.48) que são essencialmente destruidoras do
outro. (Lacan, 2003, p. 49)
Como podemos perceber, o mun-
do narcísico próprio dessa fase não Não restam dúvidas com rela-
se explica apenas pelo investimento ção às contribuições desse texto de
libidinal no próprio corpo, como Lacan para esclarecimentos sobre
também se refere à estrutura mental, e a sua incursão inicial no campo da
Lacan o frisa no sentido mais próprio psicanálise, e a mais importante que
do mito de Narciso: “quer esse sen- temos, nesta produção, segue na
tido indique a morte – a insuficiência referência que faz à concepção do
vital de que proveio esse mundo –, Eu (Ich) na teoria de Freud e à elabo-
quer a reflexão especular - a imago do ração inicial que tece sobre ela. Para
duplo que lhe é central –, quer, ainda, o psicanalista francês, a concepção
a ilusão da imagem - este mundo, freudiana do Eu, ao designá-la como
como veremos, não contém o outro” um “sistema de relações psíquicas
(Lacan, 1939, p. 48). segundo o qual o sujeito subordina
O que fica claro com esse estudo a realidade à percepção consciente”
sobre esse estádio no homem é que (Lacan, 2003, p.77), é insuficiente,
a busca humana por uma unidade principalmente ao se contrastar com
mental encontra seu respaldo in- as experiências clínicas da psicanálise
tuitivamente na imagem especular, que denunciam a importância nesse
reconhecida como ideal da imago sistema das projeções do Ideal do Eu
do duplo. O duplo que se constitui que, “desde as imagens de grandeza…
com a imagem especular vem dizer até as fantasias que polarizam o desejo
sobre a tendência externa própria à sexual e a ilusão de vontade de poder,
formação do eu. Lacan designa essa manifesta nas formas imaginárias do
intromissão da imagem como uma eu uma condição não menos estru-
intrusão narcísica, uma vez que antes tural da realidade humana” (Lacan,
da afirmação de uma identidade, é 2003, p. 78).
necessário que o eu aliene-se nessa Vemos essa concepção freudiana,
imagem que o forma nesse momento à qual Lacan tece sua crítica, espe��-
original. E Lacan ressalva ainda que cialmente no texto “O Eu e o Id”, de
as marcas dessa intrusão primordial 1923. Ao longo desse texto, Freud
permanecerão. busca desenvolver sua investigação
a partir das relações que o eu esta-
o eu guardará dessa origem a es- beleceria com as percepções, sejam
trutura ambígua do espetáculo, que, elas externas (mundo externo ao
evidenciada nas situações anteriormente
indivíduo) ou, em termos dinâmicos,

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oriundas do sistema Ics (mundo interno), de tal modo que o
indivíduo, nas palavras de Freud, seria concebido como:

um Id psíquico, irreconhecido e inconsciente, em cuja superfície se


acha o Eu, desenvolvido com base no sistema Pcp, seu núcleo. Se bus-
carmos uma representação gráfica, podemos acrescentar que o Eu não
envolve inteiramente o Id, mas apenas à medida que o sistema Pcp forma
a sua superfície [do Eu], mais ou menos como o “disco germinal” se acha
sobre o ovo. O Eu não é nitidamente separado do Id; conflui com este na
direção inferior. (Freud, 2011, p.31)

Como percebe-se, nesse percurso, ao esclarecer as relações


entre as percepções externa e interna com o sistema perceptivo-
consciente, Freud concebe o sistema perceptual como sendo o
núcleo do eu. Mas, este eu, como salientamos primeiramente no
que concerne a esse texto, de acordo com Freud, não se restringe
à consciência, ou seja, ao sistema perceptual-consciente; haveria
também nessa instancia uma parte ‘inferior’ que se fundiria com
o Id. Em outras palavras, o reprimido também constituiria o Eu,
mas destacar-se-ia dele pelas resistências da repressão egoica.
Assim, segundo Freud:

o Eu é aquela parte do Id modificada pela influência direta do mundo


externo, sob mediação do Pcp-Cs, como que um prosseguimento da dife-
renciação da superfície. Ele também se esforça em fazer valer a influência
do mundo externo sobre o Id e os seus propósitos, empenha-se em colocar
o princípio da realidade no lugar do princípio do prazer, que vigora ir-
restritamente no Id. A percepção tem, para o Eu, o papel que no Id cabe
ao instinto. O Eu representa o que se pode chamar de circunspecção, em
oposição ao Id, que contém as paixões. (Freud, 2011, p.31)

Mas, mesmo para Freud, essa definição do Eu como uma


instância psíquica representante do mundo externo não satisfaz
conceitualmente as exigências da experiência clínica na psicaná-
lise. Nesse momento, ele remonta à existência de uma ‘gradação’
superior ao Eu, que ele chama de “Ideal de Eu” e “Supereu”,
definidos como uma parte do Eu que seria menos vinculada à
consciência. Esse passo é dado por Freud a partir dos estudos
sobre a dinâmica entre o Eu e as catexias de objeto, conside-
rando os casos em que ocorre um processo de introjeção do
objeto no Eu, na medida em que a catexia objetal foi substituída
por uma identificação egoica. Segundo Freud, “tal substituição
participa enormemente na configuração do Eu e contribui de

473
modo essencial para formar o que se denomina seu caráter” (2011, p. 35). As
descobertas das experiências clínicas com os casos de melancolia dão conta
desse fenômeno, na medida em que se observa nesses quadros que na perda de
um objeto sexual ocorreria uma alteração egoica que, para Freud, só poderia ser
descrita por uma instalação do objeto na instância do Eu. Esse mecanismo de
introjeção do objeto perdido poderia facilitar o abandono desse objeto investido
com as catexias do Id, de tal modo que Freud lança uma hipótese:

Talvez essa identificação seja absolutamente a condição sob a qual o Eu abandona seus
objetos. De todo modo, o processo é muito frequente, sobretudo nas primeiras fases do
desenvolvimento, e pode possibilitar a concepção de que o caráter do Eu é um precipitado
dos investimentos objetais abandonados, de que contém a história dessas escolhas de objeto.
(2011, p. 36)

Outra implicação que pode ser tirada desse processo de introjeção do objeto
é que o Eu, ao assumir as características do objeto introjetado, toma-se como
objeto de amor do Id: uma forma compensatória da perda sofrida por este último.
A origem do Ideal de Eu e Supereu adviriam dos efeitos das primeiras
identificações ocorridas na mais primitiva infância que, segundo Freud, serão
gerais e duradouras. Nesse momento, poderíamos ser levados a pensar que
se trataria do mesmo mecanismo de identificação decorrente da perda de um
objeto, mas, como se observa no texto freudiano, trata-se de algo diferente na
origem, especificamente, do Ideal do Eu:

por trás dele [do Ideal do Eu] se esconde a primeira e mais significativa identificação do
indivíduo, aquela com o pai da pré-história pessoal. Esta não parece ser, à primeira vista,
resultado ou consequência de um investimento objetal; é uma identificação direta, imediata,
mais antiga do que qualquer investimento objetal. Mas as escolhas de objeto pertencentes
ao primeiro período sexual e relativas a pai e mãe parecem resultar normalmente em tal
identificação, e assim reforçar a identificação primária. (Freud, 2011, p.39)

Na teorização acerca do estádio do espelho, Lacan tirará consequências


disso que estaria em uma ordem originária na constituição do Eu anterior à
identificação característica do desfecho do complexo edípico. Mas, em conti-
nuação com a elaboração freudiana, não teremos notícias maiores sobre esse
momento originário que jazeria por trás do Ideal do Eu, portanto, avançaremos
nesse ponto com as teorizações lacanianas.
Segundo Lacan, essas observações à delimitação conceitual do Eu na teoria
psicanalítica mostram que:

Se as instâncias psíquicas que escapam ao Eu aparecem primeiramente como efeito do


recalque da sexualidade na infância, sua formação se revela, na experiência, cada vez mais pró-
xima, quanto ao tempo e à estrutura, da situação de separação que a análise da angústia faz com

474 Estilos clin., São Paulo, v. 19, n. 3, set./dez. 2014, 465-481.


que se reconheça como primordial, e que
é a do nascimento. (Lacan, 2003, p. 78)

Dessa forma, a concepção acerca


do estádio do espelho ganha todo o
seu valor teórico para dizer sobre a
constituição do Eu na psicanálise,
uma vez que vemos, nesse momento
original, a raiz do drama humano.
Como Lacan demonstra-nos à luz da
trama edípica:

Ela [a concepção do estádio do es-


pelho] estende o suposto trauma dessa
situação [edípica] a todo um estágio de
despedaçamento funcional, determinado
pelo inacabamento especial do sistema
nervoso; ela reconhece, desde esse estágio,
a intencionalização dessa situação em
duas manifestações psíquicas do sujeito:
a assunção do dilaceramento original no
jogo que consiste em rejeitar o objeto, e
a afirmação da unidade do corpo próprio
na identificação com a imagem especular.
(Lacan, 2003, p.78)

“O estádio do espelho como


formador da função do Eu [je]” é um
dos primeiros textos em que Lacan
expõe de forma aberta sua teoria
da constituição do Eu e confirma a
distinção do je em relação ao moi, os
quais concentravam na obra freudiana
em um único termo a instância do
Eu (Ich). Trata-se, nesse texto, de um
aspecto inicial e, ao mesmo tempo,
uma primeira marca de originalidade
nos estudos de Lacan no campo da
psicanálise. Este psicanalista já tinha
dado nota disso em sua tese que, ao
circunscrever o problema da paranoia
à ordem gnosiológica, tece a distinção,

475
no campo dos fenômenos psíquicos, entre aquilo que seria referente ao
Eu, enquanto sujeito do conhecimento humano, e o que se referiria à
gênese própria do Eu. Assim, teremos esse seu texto acerca do estádio do
espelho como uma elaboração para dar conta de como o Eu (je), sujeito do
conhecimento, advém e sua relação com o Eu (moi), instância imaginária e
originária desse próprio je.
Essa cisão terminológica do Eu não está presente, como dissemos, em
Freud propriamente, tampouco nos primeiros textos de Lacan, incluindo
sua tese, apesar de nesta já estar contida explicitamente uma elaboração
teórica acerca do Eu que apontava para uma clivagem futura, uma vez que
conceitualmente já se mostrava problemático concentrar em um único
termo noções distintas e já delimitadas teoricamente. Ainda assim, coube
a Lacan não só operar essa distinção terminológica, mas também elaborar
teoricamente essa intersecção, o que ele o faz ao introduzir o esquema do
estádio do espelho, o qual, não por acaso, destaca a imagem na constituição
da função do je.
Não podemos deixar de observar que o Eu (je), na experiência de análise,
mostra-se contrário à proposição filosófica do cogito, de tal modo que não
poderemos conceber que esse Eu alcance, tal como a proposição funda�-
mental cartesiana, o sujeito pensante a respeito de sua própria natureza.
Lacan segue outra via, e o caminho apontado pela experiência clínica da
psicanálise explicita essa divergência. O estádio do espelho não só mostra
a alienação à imagem especular como ponto de partida para a constituição
do je, mas também diz sobre o seu destino alienante.
Lacan, em seu texto de 1948, “A agressividade em psicanálise”, explora
essa precisão terminológica na noção do Eu com mais evidência na medida
em que questiona a concepção defendida por Freud de identificar o Ich
ao núcleo do sistema percepção-consciência, a partir da qual se difunde
no campo da psicanálise a noção de um Eu centrado nos parâmetros das
ciências naturais e físicas. No entanto, as observações clínicas freudianas
continuam sendo a base para os passos iniciais de Lacan, de tal modo que,
como este último salienta, a instância do Eu a ser considerada será a reco-
nhecida por Freud sob o aspecto da Verneinung. Assim, Lacan recoloca no
centro da questão do Eu a sua essência fenomenológica muito difundida
pelas observações clínicas de Freud nas “reações de oposição, ostentação,
denegação e mentira, que são os modos característicos da instância do eu
[moi] no diálogo” (1998a, p.111).
Lacan nos diz:

Em suma, designamos no [moi] o núcleo dado à consciência, mas opaco à reflexão,


marcado por todas as ambiguidades que, da complacência à má-fé, estruturam no

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sujeito humano a vivência passional; esse na dialética da identificação com o outro
[je] que, por confessar seu artificialismo e antes que a linguagem lhe restitua, no
à crítica existencial, opõe sua irredutível universo, sua função de sujeito. (Lacan,
inércia de pretensões e desconhecimento 1998b, p.97)
à problemática concreta da realização do
sujeito. (1998a, p.112) Essa Gestalt situa a instância do
eu (je) em uma linha que, segundo
Neste trecho, podemos melhor Lacan, se daria no nível da ficção, uma
nos situar em relação à delimitação pré-história do sujeito antes mesmo
desses dois termos e nos referen- do processo dialético no qual este se
ciarmos, ainda que lateralmente, à constitui. Essa forma (Gestalt) original
questão do sujeito (do inconsciente). será “para sempre irredutível para o
O moi, como frisa Lacan, revela-se indivíduo isolado – ou melhor, que só
nas paixões da vida que, como são se unirá assintoticamente ao devir do
para todos, não se dizem muito bem sujeito, qualquer que seja o sucesso
em palavras ou resistem ao cogito hu- das sínteses dialéticas pelas quais ele
mano. Fica evidente que esse je (que, tenha que resolver, na condição de eu
na língua francesa, presta-se apenas (je), sua discordância de sua própria
a ser pronome pessoal – sujeito da realidade” (Lacan, 1998b, p. 98).
frase) exerceria sua função de sujei- Para Lacan, a assunção dessa
to gramatical, mas na ignorância da imagem no sujeito deve ser tida como
efetivação do sujeito. É dessa função uma identificação, no sentido próprio
do je que trata Lacan, um ano depois, dado ao termo pela psicanálise, ou
em sua comunicação no Congresso seja, aquela que implica em uma trans-
Internacional de Psicanálise, em formação no sujeito. A experiência
Zurique, “O estádio do espelho como com os efeitos da imagem do corpo
formador da função do eu [je] tal próprio nas crianças não difere em
como nos é revelado na experiência nada disso; na verdade, mostra-se
psicanalítica”. mais reveladora dos efeitos de uma
No estádio do espelho, Lacan identificação como fonte do desenvol-
aponta o que não só a experiência clí- vimento infantil. Trata-se aqui de uma
nica, mas também o vivencial de cada identificação à imagem e não de uma
um que tem contato com crianças já imitação dela. Assim, essa Gestalt an-
pôde atestar, a saber, o fascínio que tecipa uma conformação de unidade
a imagem de si mesmo exerce nos que no sujeito encontra-se ainda em
primeiros anos da criança. Para Lacan: estado de potência, em termos não
A assunção jubilatória de sua imagem
só de sua maturação fisiológica, mas
especular parecer-nos-á, pois, manifestar, também de ordem pulsional.
numa situação exemplar, a matriz simbó- Dessa forma, evidencia-se que o
lica em que o eu [je] se precipita numa desenvolvimento do bebê humano
forma primordial, antes de se objetivar

477
vai decorrer em uma antecipação imaginária externa ao indivíduo
que é “mais constituinte do que constituída, mas em que, acima de
tudo, ela lhe aparece num relevo de estatura que a congela e numa
simetria que a inverte, em oposição à turbulência de movimentos
com que ele experimenta animá-la” (Lacan, 1998b, p. 98). Com a
introdução do esquema do estádio do espelho, Lacan nos apresenta
a apercepção espacial no homem, anterior à dialética que o consti-
tuirá como sujeito, explicitando o efeito do nascimento prematuro
no bebê, no qual a imago vem estabelecer uma função deixada em
aberto pela deiscência do organismo humano nos primeiros anos
de vida. Para Lacan:

O estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da


insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no
engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem
despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de
ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante,
que mascarará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental.
(1998b, p. 100).

Convém observar que esse estádio, apesar do termo propriamen-


te atestar que se trata de um momento do desenvolvimento humano,
também se presta como uma analogia à formação do eu (je), e Lacan
a faz com suas próprias palavras:

A formação do eu [je] simboliza-se oniricamente por um campo fortifica-


do, ou mesmo um estádio, que distribui da arena interna até sua muralha, até
seu cinturão de escombros e pântanos, dois campos de luta opostos em que o
sujeito se enrosca na busca do altivo e longínquo castelo interior, cuja forma (às
vezes justaposta no mesmo cenário) simboliza o isso de maneira surpreendente.
(Lacan, 1998b, p. 101)

Não só as formações oníricas, mas também a sintomatologia das


neuroses evidenciam com clareza a concepção do sujeito na experiên-
cia por excelência de linguagem da psicanálise. Mas, segundo Lacan
(1998b), elas o revelam no impensável de um sujeito absoluto, de
tal forma que, através desse esquema, pode-se instituir uma ordem
objetiva das gêneses das defesas do Eu.
Assim, os sintomas histéricos como paralisia, anestesia, inibição,
escotomização, entre outros, que dizem de uma desintegração de
uma função somaticamente localizada devem ser entendidos como
a forma psíquica característica do estágio do corpo despedaçado.

478 Estilos clin., São Paulo, v. 19, n. 3, set./dez. 2014, 465-481.


Os fenômenos psíquicos da histe- pelo desejo do outro, constituir seus
ria estariam entre os mais arcaicos, objetos numa equivalência abstrata pela
concorrência de outrem, e que faz do Eu
considerando-se a constituição do eu
[je] esse aparelho para o qual qualquer
(je), daí sua manifestação remontar impulso dos instintos será um perigo,
ao despedaçamento primordial no ainda que corresponda a uma maturação
homem. Já os sintomas obsessivos natural – passando desde então a própria
(escrupulosidade, obsessão ruminan- normalização dessa maturação a depen-
te, cerimoniais, impulsos obsessivos der, no homem, de uma intermediação
cultural, tal como se vê, no que tange ao
etc.) centrar-se-iam numa dissociação
objeto sexual, no complexo de Édipo.”
das condutas organizadoras do Eu, (1949/1998, p.102)
ou seja, remontariam geneticamente
a um momento posterior à histeria.
A origem da neurose obsessiva es-
taria entre as primeiras atividades de Considerações finais
identificação do Eu. Dessa forma, ao
referir-se às neuroses de transferência,
veremos que a origem está na atipia Assim, nesse primeiro momento
do Édipo, mas a forma do sintoma de seu ensino, com sua formulação
diz respeito a um momento anterior acerca da constituição do Eu através
a este e originário dele. da alienação a imagem do outro no
Entretanto, o mais revelador do espelho (o espelho aqui considerado
estudo sobre a constituição do eu como uma metáfora para o que se
(je), com a introdução do esquema do constituirá posteriormente como
estádio do espelho, é que a paranoia, o grande Outro), Lacan teoriza, da
no sentido genético, estaria numa fase forma como já se observara em sua
posterior aos quadros neuróticos. Ela, Tese, que a problemática da paranoia
como Lacan aponta, teria sua origem manifestar-se-ia na gênese do Eu e
no momento de passagem do eu precisamente deste, enquanto je (su-
(je) – do especular para o social. Isso jeito do conhecimento) que não se
quer dizer que, na paranoia, não há a safaria da alienação à imagem especu-
resolutividade do período do estádio lar, implicando o fracasso dialético, de
do espelho que inauguraria o pro- tal forma que são nesses termos que
cesso dialético, o qual, por sua vez, podemos colocar os primeiros passos
constituiria a relação desse Eu (je) às de Lacan no que concerne à questão
situações sociais. da paranoia no campo da psicanálise e,
A conclusão desse estádio, segun- sobretudo, a originalidade do estádio
do Lacan, do espelho, significativamente ligado
a essa sua teorização inicial.
É esse momento que faz todo o saber
humano bascular para a mediatização
Ao discorrer sobre a originalidade
de Lacan no campo da psicanálise

479
deparamos com um passo fundamental que não só restitui à pa-
ranoia sua expressão em termos subjetivos – ao circunscrever a
problemática da paranoia ao Eu (je) – mas que também possibilita
um aporte teórico-clínico inicial importante, do qual a inserção da
paranoia como possibilidade clínica no campo da psicanálise é de-
vedora. Assim, é em vista desse rigor conceitual acerca do Eu (je e
moi) que novos estudos podem avançar no campo das investigações
acerca da paranoia.

Abstract
THE ORIGINALITY AND THE ORIGIN OF THE MIRROR STAGE IN
LACAN
This paper presents a study of the early works of Lacan, in which he breaks with the study of
psychosis by traditional psychiatry, which interests us at the point where such a rupture shows the
originality of the initial paths of Lacan. Initially, the Lacanian theory is developed by adding the
field of personality studies to psychosis, defining the paranoid phenomena in their understanding
of relationships. This perspective becomes possible only insofar as Lacan operates a theoretical
advance, in making a distinction between the genesis and gnoseological orders in men.
Index terms: psychoanalysis; Lacan; the mirror stage; paranoia.

Resumen
LA ORIGINALIDAD Y EL ORIGEN DEL ESTADIO DEL ESPEJO DE
LACAN
En este artículo se presenta un estudio de la obra lacaniana inicial, que rompe con el estudio de la
psicosis por la psiquiatría tradicional, y que nos interesa en el punto donde esta ruptura muestra
la originalidad de los caminhos iniciales con el esquema estadio del espejo de Lacan. Inicialmente,
la teoría lacaniana se desarrolla con la agregación del campo de la personalidade en los estudios
de la psicoses, definiendo así los fenómenos paranoicos en sus relaciones de entendimiento. Esta
perspectiva sólo es posible en la medida que Lacan opera un avance teórico, haciendo una distinción
entre la orden de la génesis y la orden gnoseológica en el hombre.
Palabras clave: psicoanálisis; Lacan; el estadio del espejo; paranoia.

REFERÊNCIAS

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ecole-lacanienne.net/documents/1931-07-07.doc.
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M. A. C. Jorge, P. M. Silveira, trad.). Rio de Janeiro: Forense-Universitária.
Lacan, J. (2003). Os complexos familiares na formação do indivíduo. In J. Lacan,
Outros Escritos (pp.29-90). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

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Lacan, J. (2007). O seminário, livro 23: o sinthoma (S. Laia, trad.; A. Telles, rev.). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed.
Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise (R. Vera, L. Magalhães, trad.; M.
A. C. Jorge, superv.).Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.

NOTA

1. Em sua tese, Lacan usa essa expressão para se referir ao paralelismo nos sintomas mentais que,
para ele, só possuem valor positivo na medida em que estão ligados a uma tendência concreta, isto
é, “a determinado comportamento da unidade viva em face de um objeto dado” (1932, p. 346).

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05466-000 – São Paulo – SP – Brasil.

Recebido em setembro/ 2013.


Aceito em de maio/ 2014.

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