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O CINEMA COMO ESPELHO.
O ROSTO E O CLOSE-UP
Vemos relances de um projetor de filmes pequeno funcionando, seguidos,
numa rapida sequéncia montada, de uma tira de imagens composta de filmes mudos
antigos, mios de criangas, um cordeiro sendo abatido, pregos sendo cravados em
maos, um escorpiaio, arvores na neve suja, os cadaveres de duas pessoas idosas, uma
crianga na cama, a mesma crianga tentando tocar a imagem grande e borrada de
um rosto de mulher com os olhos alternadamente abertos e fechados. Ao deixar:
visiveis o projetor e a tira de filme, a sequéncia de abertura de Quando duas mulheres
‘pecam (Ingmar Bergman, Suécia, 1966) chama nossa atencao para o fato de estarmos
-prestes a ver um filme: uma tecnologia e um artefato que nao devem ser confundidos
com a realidade, Além disso, 0 close-up do rosto da mulher projetado sobre uma »
superficie translicida e tocado hesitantemente pelo menino retrata-uma relagio
arquetipica representada pelo cinema: a de servir de espelho..O foco deste capitulo
serio as muitas maneiras de teorizar sobre esse momento em que nos deparamos
com uma imagem como se estivéssemos diante de nosso proprio eu refletido.
Quando duas mulheres pecam, filme no qual 0 motivo do espelho é utilizado
20 extremo, gira em torno de uma atriz emocionalmente frégil, Elisabeth Vogler
(Liv Ullmann), que se vé, depois de um colapso nervoso no palco, sob os cuidados
da enfermeira Alma (Bibi Anderson). A aproximagio que se segue € a consequente
proximidade entre as duas mulheres provocam néo sé intimidade, mas também
tensdes e conflito, retratados como uma confusio temporitia de identidades ~ em tal
Grau que mesmo o espectador, as vezes, jd nfo consegue diferencié-las. A certa altura,
tum rosto composto é gerado pela combinagio de metade do rosto de cada uma das
atrizes olhando num espelho - ou &0 rosto que olha para nés?! Quando alguém estuda
—_
Gilles Deleuze (1986, p. 103) cita a pinda de Ingmar Bergman de que essa confusio de identidades fot
algo com que as préprias atrizes tiveram de lutar: “Nés deixamos o filme na mesa de montagem e,entio,
«Liv disse:'Voct viu como a Bibi é fea?’ ao que Bibi respondeu: Nao sou eu. feia € voce."
Teoria do cinema 71
Digitalizado com CamScanner“a
a filmografia de Bergman, dé-se conta de que virios filmes tém titulos que anung,
a centralidade de espelhos e rostos na obra dele: O rosto (Suécia, 1958), Através de =
espelho (Suécia, 1961), Face a face (Suécia, 1976), O rosto de Karin (Suécia, 1984):
quais so exatamente as implicagdes do espectador que olha nos olhos de um. T0Sto forg
36 1 pela
uestio,
do comum? Isso deve ser interpretado pela fenomenologia, pela psicanilis
neurociéncia? Abordagens oriundas dessas trés disciplinas foram aplicadas 4
Figura 1. Quando duas mulheres pecam: o espelhamento como contronto com o rosto human.
1970, a teoria do cinema, sobo'signo dt
1.0 potencial reflexivo docinem®.”
Aautorreferéncia de tipos diferentes se tornou parte integrante do arsenal estilistico de
'as vanguardas europeias, ela mesma refletida, Por seu turno, pela teoria do cinem*
A imersio na ficcio, de repente, pareceu se tornar impossivel, Como discutido nos do
, acesso em 23/5/2014.
78 Papirus Editora
aedely 4
Digitalizado com CamScannerfrequentemente associado ao pecado de vanitas
guardam um significado duplo, ex
romances fantasticos de E.T.A. Hot
ou Oscar Wilde, que, por sua vez,
(vaidade). Os espelhos sempre
pressando uma personalidade dupla, como nos
ffmann, Edgar Allan Poe, Robert Louis Stevenson
tanto inspiraram 0 cinema expressionista alemao
€ 0 género do terror em Hollywood. Essas leituras externas/internas do espelho sao
importantes da perspectiva histérico-cultural: elas constituer
m a base da distincio
entre a estética clissica e a romintica,
assim modificando a oposicao de Platao em
versoes alternativas da vocagio artistica. Em O espelho e a lampada, M.H. Abrams
(1953) contrasta duas metéforas complementares da mente: uma equipara a mente
aum refletor de objetos externos (no classicismo), a outra, a um projetor radiante
que muda a aparéncia do objeto que percebe (no romantismo). A primeira é baseada
num conceito de representagio; ja a segunda prioriza a ideia de imaginacao - um
contraste que frequentemente reaparece na teoria do cinema também, especialmente
quando opde narrativa e realismo no cinema convencional a imaginacao ¢
iluminacao no “cinema puro” de vanguarda ou no cinema postico.
Ograu a que pode chegar a complexidade intrinseca da ideia de representagio
(como reflexao que espelha), mesmo sem ser justaposta a imaginacao, é amplamente
demonstrado na pintura, em particular desde a discussio de Michel Foucault (2002,
Pp.17-19) sobre As meninas (1656) de Diego Velézquez, uma pintura merecidamente
famosa da familia real espanhola, na qual complexas relagdes de espelho e eixos de
visio desestabilizam a posigao fixa do espectador, que se torna mutavel e instavel,
retirando de nds a prépria base da “representagio”. De modo parecido, em Um bar
no Folies Bergéres (1882) de Edouard Manet, desenrola-se uma rede complexa de
telacdes visuais, eixos de visio e sinais espaciais em raz4o do uso de um espelho
enorme atrds da mulher no bar, o que complica tanto a estrutura interna da pintura
quando nossa prépria posicao em relacao a cena retratada,
Como esperamos mostrar, muitas dessas questées filos6ficas e estéticas
sao relevantes também para a teoria do cinema, mesmo que suas terminologias
(¢ “solugdes”) partam de uma problematica diferente ou se apropriem menos da
filosofia classica ou pés-estruturalista e mais da hermenéutica literdria, do marxismo
€ da psicanilise,
Podem-se distinguir heuristicamente trés paradigmas que pertencem ao
campo semantico do espelho ¢ de suas conotagdes metaforicas. Primeiro, existe a
ideia dominante ~ e um tropo comum na maior parte do cinema clissico ~ que ve
© olhar para dentro do espelho como uma janela para o inconsciente, referindo-se
4 um excedente ou excesso de Ego, que 0 espelho é capaz de revelat. Segundo, a
metéfora do espelho no cinema aponta para um duplo reflexivo do que esti sendo
visto ou mostrado: tais momentos tendem a significar, na teoria do cinema, um
efeito de distanciamento ¢ estranhamento, em vez de revelar um significado mais
Profundo. Isso mostra como o cinema moderno conhece sua propria historia como.
Teoria do
ema 79,
Digitalizado com CamScannermeio de aparéncias e enganagées, cujo “jlusionismo” tem de ser frustrado, bloqueado
ou fragmentado por imagens especulares e reflexdes multiplas. O espelho coma
duplo reflexivo-refletivo, que interrompe uma narrativa ¢- como em Quando duas
mulheres pecam, de Bergman ~ nos manda de volta a nossa situagio de espectadores
de um artefato, é tipico do cinema de autor e das vanguardas da década de 1969,
Finalmente, 0 espelho no cinema também pode se referir ao espelho do Outro,
conforme os antropélogos 0 identificaram, como um componente de identidade
humana, agéncia e comunicagao intersubjetiva. Nesse aspecto, o cinema talvez
desempenhe um papel importante na evolucdo cognitiva do ser humano quando
se trata das origens da empatia, da simpatia e da interacdo afetiva com os outros,
aludindo a uma conexio entre o debate em torno de espelho, rosto e close-up nos
estudos de cinema e nas discussdes cientificas dos chamados neurénios espelho, um
fendmeno recentemente descoberto em macacos por (neuro)bidlogos evolucionistas
e muito debatido entre tedricos do comportamento.
A ideia do cinem;
do cinema de meados Pete S¢ tornou um paradigma central da tot!
possiveis As vezes se soles & meados dos anos 1980, Duas articulaso®
em enem s
um ado, as eorias de Sighs fren eee Poder sr faclmente separ P™
‘cud sobre o inconsciente inspiraram Jean-L0"®
80 Papirus Editora
Digitalizado com CamScannerBaudry a desenvolver sua ideia de “aparato cinematografico” e dispositif modelada
segundo a psique humana; por outro, Christian Metz tomou emprestado 0 conceito
de Jacques Lacan do inconsciente como linguagem para falar do “significante
imaginario’, que alinha o cinema com varias ideias importantes da linguistica
estrutural. Baudry vé a relacio entre tecnologia cinematografica e psique; ja Metz
argumenta que a imagem cinematogréfica refigura uma auséncia como Presenca
€, assim, “significa” por meio de um processo dinamico de substituicao, pelo qual 0
espectador é “capturado” por uma presenga imaginada ou projetada, semelhante ao
exemple de Freud do jogo do fort-da, no qual a crianga pequena que joga objetos para
longe esta fazendo experiéncias com a auséncia (e 0 retorno) dos pais, bem como se
familiariza com a forma mais rudimentar de narrativa. Metz complementou depois
essa teoria do cinema narrative como uma cadeia de substituicdes (“metaforas”) e
deslocamentos (“metonimias”) com outra ideia lacaniana: a do “estadio do espelho”
como momento crucial na formagao da subjetividade humana, que, por sua vez,
funde-se com algumas das especulagdes de Baudry."* Embora os detalhes desse
estadio do espelho sejam tratados a seguir, e mais uma vez - especialmente em sua
implicacao na questao de género no cinema ~ examinados no préximo capitulo
sobre “olho e olhar’, deve-se observar, neste ponto, que essas abordagens de base
psicanalitica compartilham a ideia de que, no cinema, corpo e mente “regridem”
para uma fase anterior do desenvolvimento psicofisiolégico. No ambiente escuro do
auditério do cinema a apreensio da realidade se afrouxa, facilitando também, por
meio da projecao externa, dptica, tipos diferentes de projecdes internas, psiquicas,
€ ocasionando uma fusio da “tela onirica” interior com a tela real do cinema. Dai
a comparacao de certas figuras e tropos de estilo com os mecanismos identificados
por Freud como “trabalho onjrico’, j4 mencionados no capitulo anterior em conexao
com as andlises detalhadas de Thierry Kuntzel - “o trabalho do filme” ~ sobre as
sequéncias de abertura.
Como um dos sucessores - e antagonistas criticos - mais importantes
de André Bazin (discutido no Capitulo 1), Christian Metz (1931-1993) requer
comentarios adicionais. Pode-se dizer que Metz foi a figura de proa dos estudos de
cinema durante os anos 1970. Ele lecionou na Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales, em Paris, durante a maior parte de sua carreira, La, reuniu em torno de si
um ntimero crescente de académicos mais jovens, da Franga e de outros paises. Em.
cursos (de verao) ministrados em inglés e em tradugdes de sua obra prontamente
realizadas, Metz também conseguiu atrair um grande piblico anglo-americano,
9 escola tedrca sofrew um ataque intenso, especialmente dos eiticos neoformalistas ¢cognitvists,
Para mais informagdes, ver Carroll (1988b) ¢ a antologia de Bordwell e Carroll (1996). Uma discussion
‘mais neura, mas ainda critica, pode ser encontrada em Allen (1995). Uma apresentagdo invariavelmente
five de um ponto de vista interno pode ser encontrada em Mayne (1995).
‘Teoria do cinema 81
Digitalizado com CamScannerdos." Em f
que ajudou a disseminar suas ideias na Inglaterra e nos Estados Unidos." Em ji
gerais, o pensamento de Metz pode ser dividido em duas Eee uma primeira
estruturalista, durante a qual ele tentou sistematicamente estabel a as semelha,
eas diferencas entre cinema (como “linguagem”) € ei jumana desert,
conforime a linguistica estrutural (ou saussuriana).!” Em outras Palavras, Met
adotou literalmente uma das metéforas recorrentes da teoria do cinema desde a5
teorias e priticas da montagem por diretores soviéticos durante os anos 1920: em que
sentido se pode falar de uma “linguagem do filme” e, por extensao, de que maneirg
se pode dizer que uma sucessio aparentemente arbitraria de imagens transmite um
significado preciso (isto é, verbalizavel e sintaticamente correto)? Metz concluiu que
‘© cinema era uma linguagem apenas num sentido restrito (“uma linguagem sem
lingua’) e comegou a formular 0 problema de modo mais geral, com a intencio de
“compreender como os filmes so compreendidos” (Metz 1974a, p. 145). E essaa
questo que, por fim, o leva a abandonar parcialmente qualquer analogia estritamente
Linguistica e a buscar uma teoria do espectador de inflexaio mais psicanalitica como
geradora e construtora de significado.
Essa ideia deu inicio a uma segunda fase em sua obra, que culminou na
publicacao de Le signifiant imaginaire: Psychanalyse et cinéma, uma coletanea de
ensaios escritos entre 1973 e 1975.'* Nela, Metz argumentou contra as analogias
comuns entre cinema e sonho, claborando, em vez disso, as semelhangas estruturais
entre cinema e espelho. Ele apontou a riqueza aperceptiva de ambos os tipos de
percepcdo visual (abundancia de detalhes, semelhanga entre o mundo representado
e 0 mundo real), bem como a irrealidade da imagem (s6 luz e formas projetadas
numa superficie plana), mas também se valeu do estédio do espelho de Lacan. A
publicacdo, entao, desloca a atengao do filme como texto, linguagem e narragao part
0 filme como suporte imaginério de uma percepcao fragmentada do sujeito que ve
e do cinema como “maquina mental” (aparato), que permite que o espectador st
perceba “presente para si mesmo” e vivencie como completa e una uma sucessio de
sequéncias e planos aparentemente desconectados. Todavia, para Metz (1986, p-45)
também existem algumas distingSes cruciais entre imagem especular e image!
cinematografica:
14, Para introdugées concisas ao pensamento eas ideias de Met, —
primeira fase do pensamento de Metz, ¢ Robert T. Eberwein (p
15, Essa fase se enquadrara, no geral,em nossa primeira o
4s duas principais obras de Metz nese pe ‘
1968 ¢ 1972, duas partes ~ edigio em ing
1974b), Em ambas as obras, Metz discord.
uusou a metéfora da linguagem,
16, _Pode-sedistinguis ainda, uma tercira fase na ob
4 oto de criar uma enunciagio conforme Rolan
ver Andrew (1976, pp. 212-240)
wein (iu Lehman 1997, pp. 189-206).
1 ntologia do cinema como moldura ejanela js
iodo tratam do paradigma do filme como linguaget™ Oe
és Metz 1974a, temp. 2000; e Metz 1971 ~ edigio em it
'a do modo extremamente solto como seu professor Je itey
is
a de Metz, na qual ele enfoca a enunciagio fin
id Barthes a entendia (Metz 1991).
82 Papirus Editora
4
Digitalizado com CamScannerMas o filme é também diferente do espelho natural num aspecto importante:
embora tudo possa se refletir bem tanto num quanto noutro, hé uma coisa que
nunca encontrard reflexo no filme, que é o corpo do espectador. De determinado
Ponto de vista, enti, o espetho repentinamente fica opaco.
Essa passagem marca um momento fundamental nessa fase da teoria do
cinema: a identificagio do espectador que assiste a um filme é sempre uma construcao
que preenche um lugar opaco ou uma falha perceptiva. O olhar para dentro do espelho
da tela ja nao se parece ~ como era 0 caso com Balazs - com 0 reconhecimento de um
serhumano através de outro. Em vez disso, 0 ‘que acontece é um ato de reconhecimento
falso ou desconhecimento, como se alguém reconhecesse 0 outro como ele préprio ou,
ao contrario, percebesse (erroneamente) a si mesmo em e como outro.
Essencial para essa “identificacdo por meio do desconhecimento” como
constitutiva do cinema é a teorizacao de Jacques Lacan (1977) sobre 0 estadio do
espelho (stade du miroir), uma ideia complexa e contestada, mas crucial, em razio
de seu papel central na teoria do cinema de toda uma geracao. O estadio do espelho
descreve uma fase do desenvolvimento infantil entre seis e 18 meses. Nessa idade,
a crianca ainda nao consegue controlar a coordenacio motora e os movimentos
corporais a ponto de funcionar como um ser auténomo, mas consegue reconhecer a
Propria imagem no espelho. Esse reconhecimento repentino, encenado por mimica
© apercep¢ao situacional que envolvem a presen¢a materna, entretanto, nao se esgota
no puro efeito perceptivo, como no caso dos primatas; ele marca, sim, de acordo com
Lacan, a entrada do ser humano nascente na ordem simbélica, isto é, em estruturas
sociais como leis, proibigdes e regras de comportamento adequado, bem como na
linguagem. Por um lado, a crianga se percebe de fora como completa e independente,
assim se objetificando e alienando no ato de se tornar “imagem” para si mesma.
Porém, se “a crianga se identifica consigo mesma como um objeto”, como destaca
Metz (1986, p. 45), ela também projeta agéncia mais do que capacidades fisicas nessa
imagem, assim se identificando com sua imagem como um eu idealizado, originando,
de acordo com Lacan, tanto um “eu ideal” (autoprojecao idealizada) quanto um
“ideal do eu” (projegao ideal de outro sobre o eu), cuja dindmica contraditéria forma
a base de todas as identificagdes, autoimagens e objetos de amor subsequentes:
A assungo jubilatoria de sua imagem especular por esse ser ainda mergulhado na
impoténcia motora e na dependéncia da amamentagao, que € o filhote do homem,
nesse estigio de infans, parecer-nos-4, pois, manifestar, numa situagio exemplar,
matriz simbélica em que o Eu se precipita numa forma primordial, antes de se
objetivar na dialética da identificagdo com 0 outro e antes que a linguagem Ihe
testitua, no universal, sua fungao de sujeito, (Lacan 1977)
Teoria do cinema 83
Digitalizado com CamScanner7"
Subjacente a toda relagao afetiva conforme esse modelo estaria algum tog
desconhecimento projetivo ou autoengano narcisico, sugerindo, por exemplo, queg
desejo nao est apenas baseado numa falta (percebida) dentro do eu, ele também, 7
sempre mediado pelo desejo (imaginado) de outra pessoa.
Os tedricos do cinema, como Metz e Baudry, reconheceram nesse modely
aparentemente confuso e improvitvel do desenvolvimento humano um conceit,
poderoso que unificou muitos de seus esforgos parciais ou contraditérios nq
explicagio do fascinio que o cinema exerce sobre os espectadores. Nao sé 0 espelho
(bidimensional) proporciona 4 imagem plana emoldurada da tela uma analogig
melhor do que a da janela, ao inscrever 0 espectador como alguém ativo de algum
modo, como também a teoria de Lacan acomodou a ideia do cinema que convida j
“regressiio” eao relaxamento do autocontrole, Por semelhanga com o pensamento de
Freud sobre as fases subsequentes e complementares do desenvolvimento humano
(oral, anal, edipica), Lacan propés que as questdes pertencentes as fases anteriores
nunca eram totalmente tratadas ou resolvidas; consequentemente, elas continuavam
presentes em todos os momentos como tracos ou camadas residuais, de modo quea
possibilidade de regressio é sempre certa,
Contudo, igualmente cruciais para a adogio do paradigma do “cinema como
espelho” foram a geometria espacial peculiar da idealizacao (eu/outro) e a estrutura
temporal da expectativa, inerentes 4 fase do espelho lacaniana. Elas parecem explicar
0s prazeres iterativos, compulsivos e extremamente narcisicos associados ao cinema
narrativo, independentemente de 0 estilo e o género serem “realidade” ou “fantasia
A identificagao no cinema, entao, seria contingente do estabelecimento com a
imagem em movimento nao de uma relacao de aparéncia versus realidade, ou ficgio
versus verdade, mas uma relagio imaginéria interna ao espectador, semelhante
Aquela subjacente ao advento da autoconsciéncia na crianca, muito embora esst
semelhanga permaneca escondida e “ji nfo deva ser apresentada ao espectadot
formalmente na tela prateada como no espelho de sua infancia” (Metz 1986, p.46)-
Met especifica essa relagdo imaginaria tragando uma distingio entt
identificagao priméria e secundaria: esta ultima
peptone a & a que geralmente temos e™
mente quando falamos de “identificagio” com personagem de um filmes ji ®
primeira € a identificagao (inconsciente) com o olhar (ausente) da camera. ES
identificagao primaria é mais fundamental e mais escondida do que a identificags?
com os personagens ~ fundamental, porque, em primeiro lugar, possibilita a fies?
a narragdo de imagens sucessivas; porque, no Pi alt classico, 0 olhat
da cdmera estd incorporado em nosso olhar, dando-nos a ilusto cle dominio vit
quando, de ato, estamos sendo conduzidos e dominados pela ctoneei,
Em suma, 0 espectador se id
. r se identifica consiga mes
percepgio (como despertar, como, eam mene como um ato pro
alerta): como un a condigo de possibilidade do
84 Papirus Editora
Digitalizado com CamScannerobjeto percebido, portanto, também como u
° ima espécie de sujeito transcendental,
anterior a qualquer Hé. (Metz. 1986, p. 49)
’ A identificagio Primaria, em outras palavras, éum construto tedrico destinado
a explicar varias caracteristicas do cinema: ela lev:
Be ™ em conta por que normalmente
nao notamos (conscientemente) que as im:
i < agens que vemos foram gravadas por uma
cimera - especificamente para nds; ela sugere por que as imagens ~ mesmo quando
nio marcadas como planos de “ponto de vista” - podem provocar uma sensagio
‘ou um impacto “subjetivo” forte; ¢ ela introduz, por meio do conceito filoséfico
de “sujeito transcendental’, o problema de como algo pode ser tanto “imaginério”
quanto “fundamental’, além de ser também causa ¢ efeito.
Com essa fase do espelho cinematografica teoricamente sofisticada ¢ também
metaforicamente elegante, uma das questdes mais espinhosas ¢ insoltiveis na teoria do
cinema poderia ser novamente abordada: a questo do realismo, que, especialmenteem
sua formulacdo baziniana, irritou até mesmo muitos de seus seguidores, ja que parecia
privilegiar apenas uma forma de cinema, o neorrealismo, excluindo tanto o cinema
hollywoodiano quanto o abstrato ou vanguardista. Foi Jean-Louis Baudry quem
elaborou por completo as consequéncias dessa mudanga de foco de janela para espelho
a0 se sair bem na explicago de por que o “realismo” (como uma estética) é um estilo e,
portanto, um construto, e por queaté o “ilusionismo” (como praticado por Hollywood)
pode ter um “efeito de realidade” to poderoso. Isso ocorre porque todos os “efeitos de
tealidade” sio, sobretudo, “efeitos de sujeito’, isto é, eles exigem a construgio de um
sujeito (“transcendental”) antes que uma representagio seja percebida como “realista’
ou reconhecivel pelo espectador como algo que diz respeito (ou que se dirige) a ele. A
imensa influéncia de Baudry no desenvolvimento da teoria do cinema (baseada, como
realmente se baseou, em apenas dois artigos) se deveu a uma combinagio astuta de
trés tipos de conhecimento: uma nova explicagdo tecnol6gica do cinema; as teorias
psicanaliticas de Freud e Lacan (conforme elaboradas por Metz); e uma compreensio
filosoficamente mais embasada das questdes relevantes, que combinam a teoria
idealista de percepgio e realidade de Platio com o ceticismo epistemoldgico de Kant
sobre a possibilidade do conhecimento objetivo.
Em vez de comegar com a ideia de cinema como representacio da realidade
‘ou como meio de contar historias, Baudry usou a genealogia tecnoldgica do cinema
de uma perspectiva renascentista, a camera obscura, ¢ a dptica cartesiana para
uma critica ideolégica de seus efeitos subjetivos, argumentando que a organizagio
espacial peculiar dos diferentes elementos do cinema, como alinhamento de projetor,
espectador e tela, constituia 0 que ele chamava de “um aparato cinematogeatico
bisico” que, em sie por si, jé embasava e circunscrevia os efeitos que poderia exercer
sobre o espectador. Ela confirmava que esse aparato imitava no nivel fisico aquilo
que 0 individualismo burgués tentou no nivel ideolégico e a perspectiva monocular
Teoria do cinema 85
Digitalizado com CamScannera “centralizagao’, bem como a “imobilizacao” oy 5
lécus de consciéncia € coeréncia, dando 4
impressio de dominio quando este era mero efeito dos ee maquinarios _
épticos, ideol6gicos, narrativos, especulares ~ estabelecidos pelo quadro munca
burgués-capitalista. A sensagao do eu, produzida pelo cinema, era, entao, ilusériae
real, Incapaz de assumir o controle das forcas que manipulam ou guiam a percepcio,
© espectador, contudo, vivencia esses poderosos (€ frequentemente Prazerosos)
efeitos de sujeito no enderegamento € na interpelagao dos quais uma Sensacio
exacerbada de presenga é 0 resultado, fazendo do “cinema dispositif” uma sintese
perfeita de filosofia idealista ocidental e explicagdes freudianas da psique (Baudry,
in Rosen 1986, p. 313).
JA discutimos como a configuracao psicanalitica destaca a funcao especular
do cinema. A dimensio filoséfica segue o exemplo da parabola da caverna, de Platio:
tentando explicar por que a percepgio de objetos reais nfio consegue compreender
esses objetos em sua esséncia, Plato compara os seres humanos a prisioneiros numa
caverna, acorrentados de tal forma que sé conseguem olhar numa direcio. Uma
fogueira arde atrés deles e, entre o fogo e os prisioneiros, hd um caminho ao longo do
qual pessoas podem se deslocar. Essas pessoas, que esto fora do campo de visio dos
prisioneiros, carregam objetos que langam sombras sobre a parede que esta diante
dos prisioneiros. Embora estes ultimos nao tenham razao para acreditar que estejam
percebendo outra coisa que nao objetos “reais”, os arranjos espaciais deixam claro, para
qualquer um que esteja “fora” ou que “transcenda” essas condigées limitantes, que 0
que esta sendo visto é uma realidade secundaria, nao importando quao real e imediato
seja o efeito ou impacto sobre o espectador. Na visio de Baudry, a alegoria de Platéo
corresponde, com assombrosa clarividéncia, a situagao dos espectadores no cinema:
realizou no nivel perceptivo:
“captura” de um sé individuo como
E, portanto, sua paralisia motora, a impossibilidade de sair de onde esto, que torna
impossivel, no caso deles, verificar a realidade, assim embelezando sua apreensio
errénea efazendo com que tomem o representativo pelo real - ou, antes, imagem
do representativo e sua projecio na tela pelo que a parede da caverna diante deles
representa e da qual nio podem desviar (os olhos). Eles esto colados, amarrados,
acorrentados & superficie de projegio ~ uma relagio, um prolongamento entre ela
e eles que ¢ interdependente de sua inabilidade de se libertar dela, Essa superficie
a iltima coisa que eles veem antes de adormecer. (Ibid, p.303) °
et No cinema, 0 arranjo especifico de projecio, tela e puiblico, junto com 0 eftit®
de ‘entralizagao” da perspectiva dptica e as estratégias de focalizagao da narragé?
aes garantem o fascinio do espectador ou conspiram para isso, mas també™
Bara sua Uansposicfo a um estado de transe no qua ica dificil distinguir 0 “I fore
qui dentro’ Assim, a teoria do dispositivo — como ficou conhecido no mun?
86 Papirus Editora
4
Digitalizado com CamScanneranglo-saxio esse amdlgama de critica técnica,
historia da arte - parecia, do outro lado da m,
multidimensional com um conjunto interli
entre cinema, filme,
psicanalitica, filoséfica, ideol6gica e de
etifora do espelho, oferecer um modelo
igado de conceitos para mapear a relacdo
08 sentidos ea consciéncia do espectador, o corpo eo inconsciente:
Retorno na diregio de um narcisismo relativo,
€ ainda mais na diregio de um
modo de se relacionar com a realidade,
que poderia ser definido como envolvente
¢ em que a separagio entre o proprio corpo e 0 mundo exterior nao esta bem
definida, Seguindo essa linha de raciocinio, talvez se possa,
entdo, compreender
as razbes da intensidade da ligagio do sujeito com as imagens e 0 processo de
‘dentificagao criado pelo cinema. Um retorno a um narcisismo primitivo pela
Tegressio da libido (..), a auséncia de delimitagao do corpo: a transfusio do
interior para o exterior... (Ibid., p. 313)
Por mais engenhosa que tenha sido a teoria do dispositive na época,
quando sua prépria dificuldade a tornou realmente persuasiva para uma nova elite
académica, ela nao deixou de ter criticos. Primeiro, uma série de objeces veio do
campo emergente dos estudos feministas de cinema, em que a cegueira da teoria do
dispositivo para as questoes de género ea abordagem “fetichista” da tecnologia foram
questionadas, especialmente em dois artigos de Constance Penley, que sustentava
que, muito embora a teoria do dispositivo parecesse validar os filmes nao narrativos,
experimentais ou “materialistas” como desconstrucées progressistas e criticas do
idealismo inerente a esse dispositivo, a vanguarda do cinema ainda estava presa a
seu préprio imagindrio, construindo uma espécie de “maquina celibataria” (Marcel
Duchamp) do controle masculino frustrado: em outras palavras, mais brinquedos
de menino (Penley 1977 e 1985). Desse ponto de vista privilegiado, a teoria do
dispositive simplesmente acrescenta outra camada de (auto)engano aos esforgos
quase tragicos da teoria dos anos 1970 para se libertar do préprio aprisionamento
pelo encanto da imagem em movimento, tanto em seus efeitos de realidade quanto.
em seus efeitos de sujeito.
Segundo, a teoria do dispositivo nao sé dependia do (controverso) estadio
do espelho postulado por Lacan e de uma leitura radical, anti-ideolégica da
Perspectiva central renascentista - da qual se diz que descende a visio monocular
do cinema -, mas também oferecia uma versio convencional e monolitica demais
da historia do cinema, Embora a genealogia do cinema que deriva da perspectiva
monocular tenha sido questionada pelo historiador da arte Jonathan Crary (1992),"”
—_____
Crary adota uma perspectivafoucaultiana para complicara genealogia da visio “ptica” edo voyeurismo,
apontando para a histéria de uma teoria da percepgao mais corporifcada e lembrando seus letores da
Popularidade da estereoscopia. Tanto a teoria da percepglo quanto aestereoscopia substituem qualquer
Aescendléncia direta do cinema em relagio & perspectiva central e camera obscure,
Teoria do cinema 87
Digitalizado com CamScanneros historiadores do primeiro cinema e do pré-cinema também eee Sobre
aideia de que os primeiros espectadores da imagem em movimento estivessem,
mesmo metaforicamente, “acorrentados” a seus assentos. Em vez disso, as Poltronas
escalonadas do auditério, como as conhecemos nas salas de cinema classicas,
resultaram de um processo intrigantemente demorado de ‘isciplinamento” do
publico, transformando-o de coletividade barulhenta e frequentemente incontrolave|
em espectador individualizado, silenciado e cativado (ver também Elsaesser 2000);
uma figura que, paradoxalmente, comecou, uma vez. mais, a abrir caminho para
espectadores mais méveis diante de todos os tipos de tela, mais ou menos na época
em que Baudry formulou sua famosa teoria, o que da a ela, em sua severidade
pureza, um teor quase retrospectivo (se nao nostalgico).
Embora, no capitulo final, voltemos a proliferacao e a mobilizacao das telas
desde a virada digital, vale a pena enfatizar o impacto dos primeiros estudos de
cinema e da chamada histéria “revisionista” do cinema sobre a teoria do cinema de
inspira¢o psicanalitica. Condensando um debate de dez anos sobre a natureza do
primeiro cinema numa formula tinica, facilmente compreensivel, Tom Gunning
propés um “cinema de atracdes” como caracteristico do modo inicial de exibigao e
comunicacao do cinema. A frase de efeito sugestiva e eficaz enfraqueceu ainda mais
0 poder da teoria do dispositivo, j4 que sugeria que, em toda a historia do cinema,
existiu um modelo alternativo para retratar a relagao entre tela, espectador e imagem
em movimento: o das “atra¢des” frouxamente conectadas, semiautonomas, que
apelam diretamente ao espectador num gesto de manifesta performatividade, em
ver de qualquer efeito de realidade embrulhado em efeito de sujeito ou devido a uma
recusa ao voyeurismo (Gunning, in Elsaesser 1990, pp. 56-62).
A separagao (ideolégica) no primeiro cinema é um pouco diferente. Por um
lado, o primeiro cinema exibe, de fato, uma tendéncia de ansiedade latente quanto’
integridade do corpo humano e demonstra medo de sua fragmentagao pela técnica
demontagem. £ bem conhecida ahist6ria da resisténcia ao ae Di W. Griffith
€ seu camera Billy Bitzer encontraram de inicio, quando dividien quadro em
vistas parciais. Linda Williams (1981), de uma perspectiva cone fetoeno 3
cronofotografia e a Badweard Muybridge i
ara loc: ini i
corpo (nu, com género) em movimente, r ant esse fascinio a les
apresenta o desmembramento como i
a Mo situacdo terri rae 0
‘atracdo’." Eles elegem mui rivel e comica, em suma, com
oe Bim muitos filmes de Méliés, como Dislocan pa
tanga, 1901) © O terrivel executor tuy sn ra ocation mysiér
co (Franca, 1904), bem como filmes 4"
18. Ver Fisher (1979) e 0 documentérig gor ito
e rentério de Nod 1
pictures (Reino Unido, 1975), * Hash Pua TV, Comin Please, or how we:
88 Papirus Editora
Digitalizado com CamScannerpretendem mostrar acidentes espetaculares, Por exemplo, How it feels to be run over
e Explosion of a motor car (ambos de Cecil M. Hepworth, Reino Unido, 1900). Burch
argumentou que esses filmes eram tentativas de. assimilar a desintegra¢ao progressiva
da integridade do corpo, trazida para a cultura pela invengao do cinema (bem como
pelos regimes modernos de trabalho mecanizado e pelos métodos de produgao em
linha de montagem). © cinema burlesco, principalmente aquele levado & perfeicao
em Hollywood, continuou essa investigacio de meados dos anos 1910 até o fim dos
anos 1920. Os primeiros filmes de Charlie Chaplin, Buster Keaton, Harold Lloyd e
Harry Langdon perguntam, como um de seus subtextos sociais, como superar os
efeitos drasticos dos emblemas e sintomas da modernidade (carros motorizados,
arranha-céus, trabalho fabril, multidées e cidades) sobre 0 corpo ea mente (Paulus
e King 2010).
O tamanho varidvel da imagem no cinema ea questéo geral de escalae detalhe,
J discutidas anteriormente a propésito do close-up e do rosto humano, sublinham
a importancia da proximidade ou da distancia da camera em relagdo a aco e do
espectador em relacio a tela. Foi a essas ansiedades concernentes ao corpo ea esses
deslocamentos perceptivos que 0 cinema “classico” respondeu e reagiu no final dos
anos 1910 com um processo de “recentralizagio” e “recalibragéo” em torno da figura
humana como norma das relagdes espaciais de escala e proporcio, Aquilo que, na
teoria do dispositivo, figura como “causa” e origem, ou seja, 0 cinema classico, pode
agora ser visto mais adequadamente como efeito e contra-ataque, num processo
que se alterna e oscila desde entao. Seguindo essa linha de pensamento, faz sentido
que uma das poucas tentativas europeias de quebrar a hegemonia da narragao
hollywoodiana classica de histérias nos anos 1920, especificamente 0 cinema
expressionista alemao, recorreu a perspectivas distorcidas e angulos excéntricos e
também realizou uma variedade grande de reviravoltas nos motivos do duplo, do
espelho e da sombra perdida’ - tirados da literatura romantica do século XIX e
08 quais foi conferida uma urgéncia renovada pela fungao especular mecanizada e
quase automatica do cinema.
Se alguém concorda com Gunning que o primeiro cinema demonstra uma
orientacao autorreflexiva na direcao da exibicio performatica, vai querer associar um,
significado diferente ao uso alternadamente estranho e divertido dos close-ups ou as
mudangas de escala e perspectiva. Em vez de procurar como podem se (re)integrar &
agio circundante, eles devem ser lidos como reviravoltas performticas, como “planos
de insercio”, e nao como close-ups num processo gradual de proximidade intensificada,
19, Basta pensar em filmes como Der andere (Max Mack, Alemanha, 1913), Der Student von Prag (Stellan
Rye e Paul Wegener, Alemanha, 1913), 0 gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene, Alemanka, 1920),
golem (Cart Boese e Paul Wegener, Alemanha, 1920), Nosferatu (FW. Murnau, Alemanha, 1922) ¢
Figura de cera (Leo Birinsky ¢ Paul Leni, Alemanha, 1924).
Teoria do cinema 89
Digitalizado com CamScannerUm bom exemplo & o filme Os dculos de leitura da vows (George Albert Smith, Reing
Unido, 1900), cujos close-ups podem ser interpretados como planos motivados por
uma moldura narrativa eoerente, apesar de rudimentar (um menino encontra a lente
de aumento da avd sobre a mesa e a aponta sucessivamente para varios objetos), oy
simplesmente como uma desculpa narrativa para uma série alternada de tomadas
em primeira plano de cenas prosaicas ou perturbadoras: imagens familiares (canto,
gatinho) ¢ nio familiares (close-up de um mecanismo de relégio, do olhar severo da
av) guandam certa ambivaléncia ~ 0 espectador mio consegue ter certeza de que
atitade adotar em relagio a esse novo imediatismo repentino dos objetos do mundo,
paradoxalmente se sentindo distanciado e destocado pela proximidade e pela escala
incomum deles (ver o Capitulo 1). O efeito perturbador & até mais forte em The big
swallow (James Williamson, Reino Unido, 1901), sobre um homem que protesta
por estar sendo filmado. Em vez de evitar a cimera invasiva, ele se aproxima mais e
mais dela - ¢ de nds - até que, com a boca bem aberta, engole a camera junto com o
cinegrafista, estalando 0s libios de prazer. O cémico nesse filme é sua impossibilidade
assustadora: no momento critico, a boca gigantesca que enche a tela transgride 0
“espaco em frente’, normalmente invisivel, e deve ter perturbado o ponto de vista do
espectador da época de maneira tio dramatica quanto a boca que sai do aparelho de
televisio em Videodrome: A sindrome do video (David Cronenberg, Canada/Estados
Unidos, 1983).
Figura 4. The big swallow & proximidade como deslocamento
90 Papirus Editor
y|
Digitalizado com CamScannerJA que o close-up no cinema combina a atengio ao detalhe a que estamos
acostumados nas miniaturas e maquetes com a monumentalidade que conhecemos
dos memoriais ¢ estétuas piiblicas, sempre ht uma tensio, para néo falar da
contradigio, entre o desejo de chegar ainda mais perto e 0 oposto, afastar-se, a fim de
manter uma perspectiva adequada, Um monumento geralmente tem suas proprias
coordenadas espaciais - uma praga vazia, a vista de uma avenida, 0 topo de um
morro -, que permitem que nos aproximemos dele num ritmo que se ajusta a seu
tamanho. No cinema, onde nao podemos
close-up & sempre, por alguma r
mover 0 corpo para ajustar a escala, um
Ao fundamental, transgressor da escala humana:
a0 mesmo tempo, grande demais ¢ préximo demais, um fato geralmente superado
pela motivacio narrativa, mas que, no caso de certos diretores - entre eles, sobretudo,
Alfred Hitchcock ¢ Fritz Lang -, continua sendo uma alternativa para uma critica
radical da ontologia realista do cinema (Elsaesser 2003)2”
Quanto a perturbar a sensagao de distancia segura que o espectador tem, The
big swallow também guarda uma semelhanga impressionante com a sequéncia de
abertura de O desprezo (Jean-Luc Godard, Franga, 1963), na qual testemunhamos a
filmagem da propria obra a que estamos assistindo, Na cena de abertura, uma camera
~atrs da qual se pode reconhecer o cinegrafista do filme, Raoul Coutard - se desloca
lenta, mas continuamente, de um ponto distante até nosso ponto de observagio,
filmando a continuista Francesca, que, junto com a camera, anda na noss
Conforme Francesca e a cimera se aproximam do ponto do qual vemos a cena, a
camera diegética (a camera que nés vemos) faz. uma panorimica e 0 espectador se
vé olhando para dentro do enorme abismo da lente com para-sol. Com O desprezo,
chegamos - depois de um breve desvio pelo plano de insergao, pelo close-up e pelo
enderecamento direto do primeiro cinema - ao segundo aspecto do paradigma do
espelho: a autorreflexividade modernista. Caracteristico das vanguardas dos anos
1960 e 1970, da Nouvelle Vague francesa ao novo cinema alemio, O desprezo centrou
aatengao na fungao do duplo reflexivo. Junto com obras representativas de Bergman,
Fellini e Antonioni, o filme de Godard se distancia de si mesmo e se aproxima de nés,
enquanto se observa no processo da prépria filmagem.
Se alguém fizer um levantamento de algumas das obras candnicas desses
diretores no cinema de arte europeu dos anos 1960, obterd um denominador comum,
da reviravolta modernista no cinema. Lembre-se de que nossos dois primeiros
Paradigmas ~ 0 passo que cruza um limiar (a porta) ou o olhar através de uma divisio
transparente (a janela) — estavam, essencialmente, decretando ou especificando as
regras basicas de um contrato entre espectador e filme. Porém, conforme o cinema
comega a perder piiblico para a televisio e fica inseguro quanto ao tipo de espectador
com 0 qual pode contar, seus realizadores voltam o olhar para si mesmos ou ~ através
—___
20. Para questbes de escala e dimensdes, ver Doane (2003)
Teoria do cinema 91
Digitalizado com CamScannerda devolugao do olhar e do espelhamento do rosto - tentam decifrar 0 olhar do. outro,
Portanto, nao surpreende que muitos desses filmes tentem chegar a um acordo como
processo criativo em si: os protagonistas de quatro filmes importantes do Periodo sig
todos artistas ativos. Em O desprezo, Michel Piccoli interpreta o roteirista Paul Javal,
em Quando duas mulheres pecam, de Bergman, discutido no inicio deste capitulo,
Liv Ullmann encarna a atriz Elizabeth Vogler; em Blow-up, depois daquele bejo, de
Antonioni (Reino Unido/Itélia, 1966), David Hemmings ¢ 0 fotégrafo Thomas; ¢,
finalmente, Marcello Mastroianni, em , de Federico Fellini (Itdlia, 1963), assume 0
papel do diretor de cinema Guido Anselmi. Todos 0s quatro personagens enfrentam
uma crise de criatividade que gira em torno de suas relagdes com seus meios de
expresso artistica e com o mundo: Javal teme ter se vendido ao capital, Vogler fica
muda no palco, Thomas (que nao tem sobrenome no filme) acredita que
cena de um assassinato em uma de suas fotografias ¢ Anselmi é incapaz de terminar seu
filme. Visto que esses filmes tematizam 0 ato criativo e suas condigdes de possibilidade,
eles refletem ou envolvem o proceso de sua propria criago.
Figura 5. Blow-up, depois daquele beijo: Thomas representa sua crise criativa.
Por um lado, isso pode ser visto como um duplo e, portanto, um
enriquecimento do mundo que representa, mas, a0 mesmo tempo, requer també™
tum isolamento hermético que desestabilize o papel que o espectador esta destinal®
@ assumir,incerto quanto ao lado do espelho em que se colocar num dado momem!©-
Na verdade, nao € s6 0 processo criativo que se torna problemitico; 0 sets
identidade dos personagens vacila, frequentemente assinalado pelo limite ent®
realidade ¢ fantasia, que se torna indistnto, Em todos esses exemplos, as revirav0l™S
reflexivas do cinema se aproximam de um ato de apagamento de si, no sentido &
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d
Digitalizado com CamScannerqueas varias construcdes em abismo se parecem com olhares para dentro do espelho,
sugerindo que 0 cinema de arte europeu modernista duvida das condigées e também
das justificagdes de sua prdpria existéncia, Nesses filmes, esse autoquestionamento &
tematizado como uma crise que afeta uma telacao préxima e intima: “desprezo” pelo
outro num casal, na guerra dos sexos (O desprezo); 0s efeitos de ricochete ou péndulo
na sobreidentificagao miitua de dois Personagens que jé nao podem ser separados
(Quando as mulheres pecam); um questionamento radical da confianga que se tem
na propria percepgio (Blow-up, depois daquele beijo); ou uma crise de identidade
criativa, conforme as exigéncias do mundo externo e os proprios deménios internos
conspiram para enfraquecer todas as energias e fazer com que a tinica reacao possivel
seja 0 cinismo ou o reftigio no passado (8 %4).
O desenvolvimento em diregao ao cinema reflexivo derivou de varias fontes.
Inicialmente, 0 neorrealismo italiano estimulara um acesso direto & realidade
por meio do filme (ver 0 Capitulo 1), mas jé estava claro, desde o temps mort, ou
“tempo morto” — os trechos de inacao aparentemente sem enredo nos primeiros
filmes de Michelangelo Antonioni, como Crimes da alma (Itélia, 1950), que depois
se tornariam elemento de referéncia em seu estilo -, ou desde os protagonistas que
vagam sem rumo em Romance na Itdlia (Roberto Rossellini, Itélia/Franca, 1954), que
essa representagao da realidade (intima e psicolégica dos personagens) fragmentaria
e desintegraria a narrativa de construgao classica, impulsionada por objetivos
claros e determinados. Segundo, nos anos 1960, a teoria da comunicagio e a pratica
teatral de Bertolt Brecht se tornaram uma forga cultural importante. Uma das metas
fundamentais de Brecht era tornar 0 espectador ativo como juiz critico, desconfiando
de um realismo que tomasse a aparéncia fenoménica ou a motivacio psicolégica
como medida de verdade. Terceiro, a reflexividade critica no cinema era — até o final
dos anos 1960 - também nutrida por um movimento geral em direc a ago politica
por meio da estética revolucionaria, frequentemente entendida como um modo de
desconstruir 0 realismo fenoménico, o que fez com que aquilo que era resultado
de relagoes de poder histéricas especificas de opressio ou injustic¢a parecesse uma
“segunda natureza”, As varias lutas pela liberagdo (feminina, gay e lésbica, negra,
P6s-colonial, do terceiro mundo etc.) avidamente adotaram esse modelo estético de
questionar, subverter e desconstruir a narrativa clissica.”*
A estética reflexiva modernista também reivindicou para si outra das teorias
de Brecht, a do “distanciamento”, que queria romper 0 contrato mutuamente
conivente do “faz de conta” entre o espectador e a pega teatral. No cinema, como
vimos, esses efeitos de duplo e espelhamento e 0 jogo de distancia e proximidade,
21. Para exemplos dessa discussio, ver ‘Teshome (1982) ¢ Pines ¢ Willemen (1989). Para mais sobre a
apropriago feminista dessa perspectiva, ver 0 Capitulo 4. Para mais sobre a reviravolta pés-colonialista
’ha teoria do cinema, ver 0 Capitulo 5.
Teoria do cinema 93
Digitalizado com CamScannerno entanto, eram comuns desde o inicio, fosse com intengio critica e desconstrutiva
‘ou como reviravolta de enredo, piada ou outra maneira de envolver 0s espectadores
nas tomadas ¢ tomadas duplas da autoexposigao performativa. Porém, nos anos
1960, uma nova urgéncia ou incerteza se ligou a esse tipo de reflexividade: ja nio
bastava simplesmente contar uma historia; uma narrativa tinha de assegurar sew
direito de ser, recontando seu proprio surgimento junto com a historia (¢, as vezes,
ar da histéria) que provocara o ato da narragio em primeiro lugar. Como
linguagem de um cinema de crise, essa estética modernista, contudo, mostrou-se
sctremamente inventiva na transposigio habil do duplo € do espelhamento - como
itagdo, adiamento, subterfiigio ou autoavaliagao critica ~ para formas narrativo-
pictoricas distintas, fosse por meio da narrativa em abismo (um filme dentro de um
filme), do enquadramento pictorico que destacava a construgdo da mise-en-scéne,
cou de uma parifrase acentuada de tradicionais clichés de enredo, padroes de género
e citagdes-pastiche. O espectador j4 nao entra num filme através da ficgio da janela
transparente nem cruzando limiares claramente marcados, um depois do outro,
Quer se pense no filme como metifora visual do espelho, movendo-se para frente
enquianto mantém um olho fixo no proprio reflexo traseiro, quer se prefira a imagem
mais deleuziana da “dobra” - que indica “o lado de dentro do lado de fora’, no qual
6 duplo se dobra sobre si mesmo, de tal modo que o anverso nto pode ser separado
do verso (Deleuze 1988, pp. 96-97 e Deleuze 2006) -, esta claro que, durante os anos
1960, os termos alterados da relagao entre espectador e filme falaram a ansiedadesea
novas possibilidades tao vivamente quanto falou o momento igualmente “complexo”
de quando o cinema foi “inventado” pela primeira vez. Retrospectivamente, 2
extrema reflexividade do cinema nos anos 1960 marca tanto o climax criativo quanto
‘a cangio do cisne do cinema europeu de autor. Entre os diretores mais favordveis 20
legado de Hollywood, como R.W, Fassbinder ou Todd Haynes, 0 motivo do espelho
(emprestado de Douglas Sirk) assume a fungio mais diretamente critica de export @
hipocrisia ou duplicidade social.
Como pés-modernismo dosanos 1980, entretanto, a crenga nas | possibilidades
criticas da reflexividade retrocederam muito. As formas subsequentes de ironia ¢
parédia jé ndo alimentam um impeto discordante, mas se ae emblema de uma
postura resignada ¢, portanto, basicamente afirmativa. Todavia, nao se deve duvidat
essencialmente da possibilidade critica da reflexividade: melhor distinguir ent™¢
formas diferentes de autorreferéncia, a fim de ae nai meri seus
usos e contextos. Um filme como Cisne negro (Darren A. a Beads U dos
2010) demonstra com competéncia como esses ar; 4 ont
podem ser sabiamente combinados num suspens Laat a
companhia de balé compettva de Nova York mate cIne ee ene ps
espelhos ¢ a constante (auto)vigilincia que essa Ta TES
Nina (Natalie Portman) é levada aos limites de 5 eeu cas
ua psique por varios personagens 44°
is e estruturais
94 Papirus Editora
; 4
Digitalizado com CamScanneratuam como duplos imaginarios - a amiga ¢ rival Lily (Mila Kunis), a ex-diva Beth
(Winona Ryder) e a mae opressora (Barbara Hershey), que abandonou a prépria
carreira no interesse da filha. Sob pressio de todos os lados, somos jogados dentro
do mundo de Nina, no qual ¢ cada vez mais dificil distinguir entre a percepgao dela
ea realidade que a circunda, Aqui, 0 espelho do autoconhecimento ¢ 0 espelho da
vanitas se desmantelam um no outro, 4 medida que um mundo que se assemelha a
uuma sala de espelhos encena o drama interior do autorreconhecimento paradoxal.
No cinema “clissico’, geralmente somos poupados (ou destituidos) do
sentimento de que estamos caindo num abismo ou nos desintegrando no vazio
da automultiplicagao, das reflexdes interminaveis. Contudo, é exatamente esse
sentimento de ficar sem chao que torna o espelho um lugar privilegiado de incerteza
ontolégica, gragas ao fato de que o espelho absorve essa falta de chao da imagem
cinematogréfica e a transforma numa reflexao dupla, Alice no pais das maravilhas
(1865), de Lewis Carroll, nao foi o primeiro texto a explorar as qualidades magicas
do espelho, que pode até virar 0 mundo (e sua ordem) de cabega para baixo e tird-lo
dos trilhos. Entretanto, no cinema - e ha poucos filmes sem um plano especular que
chame nossa atengdo para um momento crucial da trama ou do desenvolvimento
do protagonista -, a fungao do espelho oscila entre ontoldgica e psicolégica:
frequentemente, aponta para a instabilidade psiquica do heréi ou da heroina.” Muitas
sequéncias famosas de filmes enfocam certos momentos narrativos essenciais como
um olhar no espelho: em M, o vampiro de Dusseldorf (Fritz Lang, Alemanha, 1931),
© assassino de criancas Beckert (Peter Lorre) faz caretas diante do espelho, como se
zombasse do perfil psicoldgico feito pela policia; em Orfeu (Jean Cocteau, Franca,
1950), um espelho permite que o Orfeu enlutado retorne ao reino dos mortos; ¢
em O eclipse (Michelangelo Antonioni, Italia/Franga, 1962), Vittoria (Monica Vitti)
nao consegue e nao quer se olhar no espelho. Da mesma forma, em Repulsa ao sexo
(Roman Polanski, Reino Unido, 1965), Carol (Catherine Deneuve) tem sua primeira
alucinagao diante do espelho. Talvez, nesse aspecto, a cena de espelho mais famosa
de todas seja a sequéncia de Taxi driver (Martin Scorsese, Estados Unidos, 1976), na
qual Travis Bickle (Robert De Niro) se dirige a si mesmo como 0 outro antagénico
("Voce esta falando comigo!?”), abrindo novas dimensées de anormalidade no
transtorno de personalidade do herdi. Nao por acaso, essa cena foi adaptada numa
instalagao de arte por Douglas Gordon (“Through a looking glass’, 1999), que vira
© espaco intradiegético do avesso a0 duplicé-lo no espaco da galeria e envolver o
spectador, assim multiplicando e complicando ainda mais o enderecamento direto
Que Travis usa quando fala com o espelho.
Em numerosos melodramas, filmes de mulheres ¢ filmes noirs ~ de Suspense
Phillips Smalley e Lois Weber, Estados Unidos, 1913) a Enganar e perdoar (Cecil
>
22. Sobre planos especulares no primero cinema russo,ver‘Isivian (20003),
Teoria do cinema 95
Digitalizado com CamScannerde Dama fantasma (Robert Siodmak, Estadog
7 i 15), 7
B, DeMille Estados Unidos, 1915) ‘Welles, Estados Unidos, 1947), de
Unidos, 1944) a A dama de Shanghai (Orson Me earass)e Ones
Tudo o que o céu permite (Douglas Sirk, Estados Uni 6 a ena a
alma (Rainer Werner Fassbinder, Alemanha, 1974), de am a y esconl ecida
(Max Ophiils, Estados Unidos, 1948) a Mal do século (Tod syns cing Unidos
Estados Unidos, 1995), de Delirio de loucura (Nicholas Rays Estados Unidos, 1956) a
Cidade dos sonhos (David Lynch, Estados Unidos, 2001) ~» 0 plano especular marca
um momento de ruptura e duplicacdo que simultaneamente torna 0 espectador
consciente da fragilidade da ilusdo cinematogrifica e 0 mergulha ainda mais fundo
na (geralmente, dupla) personalidade do protagonista. Podemos contrastar esses
exemplos “psicopatolégicos” com 0 uso ontolégico - e também comico - do espelho
na rotina do espelho de O diabo a quatro (Leo McCarey, Estados Unidos, 1933),
dos Irmaos Marx, que jé havia sido prefigurada por Charlie Chaplin em Carlitos no
armazém (Estados Unidos, 1916) e por Max Linder em Sete anos de azar (Estados
Unidos, 1921). Ela é reencenada de modo estranho por Arnold Schwarzenegger em
O vingador do futuro (Paul Verhoeven, Estados Unidos, 1990), bem como alterada
para 0 registro da audicao ~ no lugar da visio - em A estrada perdida (David Lynch,
Estados Unidos, 1997), com o convite do Homem Misterioso (Robert Blake) a Fred
Madison (Bill Pullman), numa festa, para que “ligue para ele” no telefone da casa do
proprio Fred.
Espelho e rosto, percepcao, consciéncia e aco podem ser reunidos ainda
de outra forma ~ ¢ esse é 0 aspecto final do paradigma do espelho para o qual
queremos nos voltar. Ele nos tira dos estudos de cinema tradicionais e leva para a
4rea do cognitivismo e da neurociéncia. O estudo da mente no sé fez progressos
notaveis em seus respectivos campos como também, cada vez mais, tem inspirado 0s
académicos que trabalham nas humanidades, em particular nos estudos de cinema.
chien sh noob el on os an 1300
se tratar de nada menos a . eee eas alguns i
que uma revolucéo neurocientifica.”> Esses neurdnios,
cuja presenga esté comecando a ser de!
reseng monstrada també: manos,
poderiam ajudar a explicar uma série de fendm ee
continuam enigmaticos (por exemplo,
de imitacao, a possibilidade de empati
enos psicolégicos que, até hojé
© aprendizado humano pelo comportamet
z Para com 0s outros).”* Os neurdnios espelh?
: r0 :
determinados movimentos e ages com erage OeseTvamOS 05 Outros realize
96 Papirus Editora
Digitalizado com CamScannerpode ser medida quando nés mesmos realizamos a operaco (por exemplo, quando
esticamos 0 braco para pegar alguma coisa) e quando nés observamos esse mesmo
movimento sendo realizado por outra pessoa. Os neurénios espelho, portanto,
parecem extinguir, superar ou fundir a diferenca entre ativo e passivo, entre dentro e
fora, entre o eu eo outro. Alguns cientistas levantam a hipotese da existéncia de um
sistema inteiro de neurdnios espelho, cujo funcionamentoe orquestragio precisos no
cérebro humano, porém, ainda estao Por ser esclarecidos. Do ponto de vista desses
neurénios espelho, parece nao haver diferenca entre ver e fazer —
claro, o potencial que esse novo campo de Pesquisa oferece a teoria do cinema
neurdnios espelho controlam ni
ai se encontra, é
. Os
(0 86 a imitagio motora, a chave do aprendizado
humano, como também a empatia ea compaixao em relagao a outros seres humanos.
Portanto, deveria ser Sbvio por que uma teoria cientificamente verificavel sobre
compaixio e empatia pode ter consequéncias de grande alcance para a teoria do
cinema ~ comegando de onde a teoria do dispositivo parou, ou a partir do momento
em que foi considerada um fracasso, em raza
comprovadas (‘Tan 2013, pp. 337-367)
0 de demasiadas suposiges nio
Figura 6. M, o vampiro de Dusseldorf. 0 assassino de criangas se reconhece como alguém
Marcado pelo lado de fora.
Teoria do cinema a7
Digitalizado com CamScannerPara 0 corpo do espectador, essa teoria implica uma conexao total entre o;
sentidos e 0 processamento da informacio pelo cérebro: a correlacao Corpo-cérebro,
© controle sensério-motor, o ver o fazer (quando considerados da perspectiva da
atividade cerebral) se tornam a mesma coisa. A literatura sobre 0 assunto ainda nig ¢
extensa (tum primeiro exemplo se dedica a Quando duas mulheres pecam, de Bergman,
o filme com que abrimos este capitulo),* mas esta crescendo; contudo, ainda temos de
ver que tipo de teoria geral do cinema e da experiéncia cinematografica essas novas
teorias apresentarao acerca do espelho ¢ do rosto. Talvez a antiga polaridade entre
as teorias fenomenolégico-realista e discursivo-construtivista possa ser superada e
substituida por outra, mais abrangente. Do contrario, a teoria do cinema poderia
continuar a refletir os paradigmas dominantes nas humanidades, atualmente muito
preocupados com 0 status incerto do corpo em ambientes midiatizados e tecnoldgicos,
donde o interesse nos sentidos e na experiéncia mediada, em diferentes modos de
armazenagem (meméria, trauma, arquivo) € no contato (pele e toque, afeto), bem
‘como na transposicio de metéforas dominantes nas ciéncias da vida, tal como a do
computador como modelo para o cérebro.
A titulo de resumo e conclusio, talvez ajude sondar 0 campo semantico
do espelho uma vez mais, agora enfocando paradoxos, antinomias e contradigées
ocultos, a fim de torné-los produtivos. O primeiro é 0 paradoxo de exteriorizagio
e interiorizagdo. A passagem do primeiro cinema para 0 cinema classico pode
ser descrita como uma transformagao do status do espaco da tela e do espaco
do auditério - de recepgio coletiva em “espaco fisico” (complementada por
acompanhamento musical, palestras, interaco performatica) para o espectador
absorto individualmente em espaco imaginario (aquele da diegese do filme
“centralizando” o espectador). O close-up conclui e sela essa mudanga de um espago
real para um espaco virtual, trocando alguns ganhos (espaco diegético coerente,
imersio do espectador no universo narrativo, tempo linear) por algumas perdas
(espago fisico, recepgao coletiva, tempo ciclico, enderecamento direto). Noss?
Soe ear ee
ansformay la numa tensio intrinseca: 0 close-1
monumentalidade intima ou uma intimidade monumental?
up exibe um?
Se recordarmos as duas primeiras modalidades de cinema discutidas 10S
Capitulos 1 € 2, outro paradoxo do espelho surge do fato de que janels e maldt
Porta e tela, assim que perdem a transparéncia e a permesbilidade, tornam-S©
essa superficie refletora: o espelho é, entio, Por assim dizer, si : 1 sme ite a forms
da crise ou a manifestagio-limite dos outros dois paradignes, Sea respecti”®
transformagéo, como sugerido, tem a ver com a natureaa cna, Tas Scoot”
entre filme ¢ espectador. Em outro nivel, mais filosdfico c oe pends .
25. Ver. por exemplo, Rugg (2007), Brown (2012) e Heimann ef al. (2014),
98 Papirus Edito:
A
Digitalizado com CamScannertransparéncia na imagem é intensifica
i ida ¢ resolvida pelo surgimento do rosto:
porque alguém nos devolve o olhar, jé na
(0 olhamos através de um meio transparente.
Olhamos para o rosto na tela ¢, Junto com ele, para o nosso proprio olhar, agora
com forca transitiva. Ao mesmo tempo, o espectador do filme esta acostumado a
se identificar com o olhar dos outros e acostumado a se fundir com 0 olhar da tela,
a fim de evitar 0 olhar ditigido para 0 eu, Dentro desse conjunto, o close-up oscila
entre uma autorreflexividade aumentada, na qual a posigao do préprio espectador é
acentuada, ¢ uma identificagéo aumentada, na qual ele se rende a outro personagem,
O rosto, assim, torna-se um objeto representativo bastante instavel, assinalando até
9 colapso da representacao em perspectiva, se quisermos colocar isso em termos
pictéricos, representativos e nos termos da histéria da arte. O close-up pareceria,
simultaneamente, reafirmar ¢ questionar a calibragéo basica do cinema classico em
torno do corpo humano e da “camera no nivel do olho”
Orosto considerado como uma imagem-afeicao eo close-up engendram outro
paradoxo, 0 paradoxo de motilidade e inexpressividade, Muito embora pudéssemos
dizer, com Balizs, que o cinema redescobre o rosto como meio expressivo, ele o faz
reduzindo drasticamente a motilidade ea mobilidade. Hoje, ao assistir a filmes antigos,
muitos espectadores se divertem com 0 estilo teatral de atuagao e das Tepresentagées
espalhafatosas das emogées: os olhos arregalados de terror, o cenho franzido ou o
rosto inteiro enrugado numa careta. A preferéncia contemporanea pelo minimalismo
na atua¢ao é comprovada, por exemplo, no fato de que, hoje, Buster Keaton, que tinha
© apelido de “grande rosto imperturbavel’ é frequentemente mais valorizado que
Charlie Chaplin como intérprete. Os atores masculinos so considerados excelentes
quando tém olhos grandes e rostos em grande medida inexpressivos: Henry Fonda,
Paul Newman, Clint Eastwood jovem. Em Era uma vez no oeste (Estados Unidos/
Itélia, 1968), Sergio Leone destaca a “paisagem desértica” do rosto classico através
de alternancias de planos panoramicos (Vale dos Monumentos) e close-ups (0 rosto
de Fonda). Os menores, quase imperceptiveis, movimentos expressivos do rosto em
close-up sio os que mais nos afetam como espectadores.
© paradoxo da presenca pura e do signo decodificavel traz mais uma vez para
0 primeiro plano as tensGes entre as teorias mimético-realista e simbélico-semistica,
que constituem duas tradicdes importantes na teoria do cinema. Essa tensio se
torna palpavel no “plano de reacio” de um rosto como o recurso padronizado de
desfecho de um capitulo de novela: por um lado, a expressividade exagerada produz
um excesso emocional com a intengao de gerar afetos fortes o bastante para durar
até 0 episddio seguinte, que apresentard o “contracampo” que ficou guardado. Por
Outro lado, essa imagem carregada afetivamente € nao so inteiramente convencional
Nesse género em particular como também investida de importancia narrativa por sua
integracdo numa histéria, uma importancia que requer uma forma direcionada para
© signo de compreender, em vez de “apreender’, a narrativa, como 0 close-up fez em
Dreyer ou como o plano de insergao faz no “cinema de atragoes”.
Teoria do cinema 99
Digitalizado com CamScannerFigura 7. O diabo a quatro: o espelho como falta de fundamento ontoligico.
Finalmente, 0 paradoxo de escala ¢ tamanho indica, mais uma vez, como
© espago ea relagio entre espectador e tela sio decisivos para o cinema. Como ji
observamos na dinamica entre monumento e detalhe, o close-up oscila entre sentit-
se intimamente conectado ao tamanho e perturbado por ele. O clo: ip de um Fost
estd préximo demais e é grande demais, assim, produz uma espécie de vazio, porque
a proximidade do close-up (conforme o termo jé indica) néo permite recuo. Nese
sentido, 0 espectador é engolido pelo espaco (como em The big swallow e na aberturt
de O desprezo), tanto que perde toda sensagio de proporgio e nao consegue gtthat
ou manter distancia. O proximo capitulo detalhara os mecanismos que o cinen™
Dees pardons epee tabi qu ie
GO caracteristico do cinema.
esperar, essa ancoragem tera um preco,
, como eta de
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