100%(1)100% acharam este documento útil (1 voto) 3K visualizações355 páginasCardoso, Rafael - Modernidade em Preto e Branco
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Revisto
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Indice remissivo
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(Chmara Baten do Livro, s, Brasil)
Cardoso, Rafe
‘Moderidade em pretoebranco: Arte elimager,ragaeiden-
tidade no Bras, 1890-1945 / Rafael Cardoso, — 1¥ ed. — Sto
Palo :Companhin das Letras, 2022,
san 97865-5921-2705,
1. Are bras 2.Arteeidentidade rail 3. Arteesociedade
= Hist ~Século 19 4 Art esociedade ~ Histéra ~ Séeulo 30
§. Modernism (Arte) - Brasil Thu
28660. c00-701.050981
‘Indice para etdogo stemitico:
1. Brasil Ante esociedade 703.1098
‘Blte Marques da Siva— Bible ~cno-8/9380
{2022}
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Nota 4 edigdo brasileira
Introdugdo: Modernidades ambiguas e modernismos
alternativos
1. Coragio das trevas no seio da metropole moderna:
Favelas, raca e barbarie
2. Uma festa pag para a modernida
Arte, boemia ¢ Carnaval .....+.. >
3. A impressio da vida moderna:
Uma nova arte para o novo século .
4. O selvagem cosmopolita:
Modernismo, primitivismo e a descida antropofigica. .... 197
5. A face da terra: 0 Estado Novo
ea busca pelo tipo brasileiro
283
291
Agradecimentos... . 351
Créditos das imagens . 353
Sridlice FéinisshO%:t0522in0% sSeniea'exas od pent th aabansernts 355Tel est le Brésil, d'une grandeur ineffable oit la civilisation et la sauva-
gerie ne contrastent pas mais se mélent, se conjuguent, s'épousent
d'une facon active et troublante. On reste le souffle coupé d'admiration
et, souvent, de terreur ou de passion,
[Assim é 0 Brasil, de uma grandeza inefavel em que a civilizagao ea
selvageria nao entram em contraste, mas antes se mesclam, se con-
jugam, se casam, de maneira ativa e perturbadora. E de deixar a res-
piragao cortada de admiracao e, muitas vezes, de terror ou paixio.}
Blaise Cendrars, “Morte subite”Nota a edigao brasileira
‘A primeira versio deste livro foi publicada em inglés, pela Cam-
bridge University Press, em 2021. Entretanto, o que o leitor tem
agora em mdos nio se trata apenas de uma traducio. FE impossivel
traduzir a propria escrita sem também se reescrever. Ciente desse
fato, nao fiz nenhum esforco para me ater ao texto original. Ao con-
trario, reescrevi destemidamente, acrescentando alguns trechos, su-
primindo outros, corrigindo formulagées e atualizando as referén-
cias. O resultado é que este livro esta mais para uma segunda edi¢o,
revista e ampliada, do que para uma traducio fiel do original. Quem
tiver a paciéncia de cotejar os dois volumes verd que a edigao brasi-
leira é em tudo superior — a comegar pelo acréscimo de imagens,
cuja quantidade aumentou em 80%.
‘Ao piblico leitor, devo uma explicagao sobre as opgies de gra-
fia feitas neste livro, Para facilitar a leitura das citagdes histéricas,
atualizou-se de modo geral sua ortografia. Porém, decidiu-se manter
a grafia original dos titulos de periédicos (por exemplo, O Paiz, em
vez de O Pais). Com relacao aos nomes, sempre que possivel, optou-
ct-se por respeitar a grafia usada em vida pelas pessoas (por exemplo,
Ruy Barbosa, em ver de Rui). Nos casos em que a pessoa sobreviveu,
as reformas ortogréficas ¢ adotou a nova grafia, empregou-se a tilti-
ma (por exemplo, Luis Carlos Prestes, em vez de Luiz). A leitura
muito atenta vai revelar alguns poucos desvios desse Princfpio nor-
teador, mas sao instancias em que ha margem para discussio, As
biografias nao costumam ser tao regradas quanto as gramiticas,
12Introducaéo
Modernidades ambiguas
e modernismos alternativos
Sao Paulo tem a virtude de descobrir o mel do pau em ninko de coruja.
De quando em quando, ele nos manda umas novidades velhas de qua-
renta anos. Agora, por intermédio do meu simpético amigo Sérgio
Buarque de Holanda, quer nos impingir como descoberta dele, Sito
Paulo, o tal de “Futurismo”.
Lima Barreto, 1922"
Ao receber um exemplar da Klaxon, a revista literaria produzi-
da pelos modernistas de Sao Paulo por volta de 1922, Lima Barreto
deixou registrado 0 famoso protesto da epigrafe. A curiosa formu-
lagao “mel do pau em ninho de coruj
riedade beirando 0 delirio. Como cr
flor da retérica disfargada de coloquialismo mais esconde do que
sugere um grau de contra-
ao pedantismo alheio, essa
revela. E fingida, com toda certeza, a irreveréncia com que o autor
dispensa os jovens intelectuais provincianos. Apés acus4-los, no pri-
meiro pardgrafo, de impingir novidades de quarenta anos antes, 0
artigo reduz essa acusa¢io pela metade, afirmando em seguida que
todo mundo conhece ha mais de vinte anos “as cabotinagens de ‘II
Marinetti””, Posto que F. T. Marinetti publicara seu “Manifesto do
futurismo” em 1909, mesmo essa cifra menor sugere que a dentincia
de Lima era hiperbélica, ou entao que ele era péssimo em matema-
tica, Seu ressentimento contra os paulistas por pretenderem inaugu-
rar o modernismo no Brasil é tao evidente, até mesmo para ele, que
acaba se desculpando com seus leitores pelo “que hé de azedume
neste artiguete”.?
33Lima Barreto tinha bons motivos para se sentir amargurado.
Ele viria a falecer quatro meses mais tarde, em novembro de 1922,
aos 41 anos de idade, depois de ser internado duas vezes no hospicio
por problemas decorrentes do alcoolismo crénico, ter se frustrado
duas vezes em sua ambi¢ao de se eleger para a Academia Brasileira
de Letras (aBL), e sem ter encontrado quem lhe editasse os ultimos
escritos, dos quais muitos sé viriam a ser publicados em edigdes
pdstumas. Escritor afrodescendente, de talento reconhecido mas de
extra¢ao social modesta, teve diversas portas fechadas a carreira de-
vido a sua critica dcida e a seu posicionamento politico radical. Con-
forme observou Berthold Zilly, ele ocupava uma posigao ambigua:
era suficientemente iniciado para querer integrar o establishment
literdrio, porém intruso demais para saber fazer as devidas conces-
s6es2 Quase um século apés sua morte, Lima Barreto é reverenciado
como um dos grandes nomes da literatura brasileira, e sua moder-
nidade é reconhecida como tendo antecedido aquela dos jovens at-
rivistas de Sao Paulo.* A época, contudo, a estrela destes ultimos
estava em ascenso e a de Lima Barreto, em queda — e ambos os
lados tinham consciéncia de seus respectivos destinos.
Ao longo da segunda metade do século xx, e mesmo mais
recentemente, em certas esferas, resistiu-se a classificar a obra de
Lima Barreto como moderna. Qualificd-la de modernista, entao, era
impensivel. Ao contrario, ela vivia enjaulada na gaiola do pré-
-modernismo, lado a lado com uma miscelanea de outros escritores
ativos nas primeiras décadas do século xx, O melhor a fazer era des-
cartar, de safda, essa categoria desprovida de sentido histérico e car-
regada de sobredeterminagao historicista. Em suma, ninguém se
propée a ser pré-coisa alguma no momento em que cria uma obra
(ano ser, claro, que a aco seja realizada de maneira profética, a la
Sao Jodo Batista, ou com a intengao de revigorar uma tradigao per-
dida, como no pré-rafaelismo). Situar Lima Barreto como precursor
dos jovens autores que se reuniram em torno da Klaxon, rechacados
14por ele com tanta impaciéncia, equivale a dizer que o trabalho deles
representa a realizacao plena de qualidades artisticas ou estilisticas
que ele nao foi capaz de atingir. Seria dificil, nos dias de hoje, encon-
trar um critico literdrio disposto a defender essa opiniao.
MODERNISMOS ALTERNATIVOS
Nos estudos de literatura brasileira, a nogao de pré-modernismo
vem sendo desmontada desde o final da década de 1980. As obras de
Lima Barreto, Benjamim Costallat e Jodo do Rio, entre outros, passa-
ram por revisdes criticas nas décadas de 1990 e 2000, e sua reputagao
foi devidamente reerguida.’ Mesmo assim, o mau cheiro continua a
emanar do pantano epistemoldgico no qual estavam afundadas. Se
forem respeitadas nogées rigidas de periodizacao, de que modo de-
vem ser categorizadas as inflexdes modernistas de obras produzidas
antes da década de 1920, tanto em termos de técnica como de estilo?
A reabilitacao seletiva de autores notaveis nao bastou para resgatar
outros da terra de ninguém que separou “modernistas” e “tradicio-
nalistas” nas disputas culturais de meados do século xx. No campo.
das artes visuais, entdo, quase nao houve avango. As poucas tentati-
vas de lidar com o que Paulo Herkenhoff batizou de “o moderno
antes do modernismo oficial” em quase nada alteraram o balango
historiografico. Um bom numero de artistas que a critica modernis-
ta relegou ao ultimo suspiro do “academismo” — Eliseu Visconti,
Belmiro de Almeida e Arthur Timotheo da Costa, entre outros —
continua a ocupar mais ou menos a mesma posicao em que Gilda de
Mello e Souza os deixou, ainda nos anos 1970, quando chamou a
atengo para a injustica dessa designaca
As tentativas de reabilitar artistas individuais como precursores
esbarra num obstaculo conceitual. Se o modernismo é uma ruptura
radical com o passado, conforme alegaram seus proponentes, entaoqualquer esforco aquém dessa ruptura deve permanecer do outro
lado da divisa, independente de haver ou nao viés modernizador.
Noves fora seu fino apelo retdrico, a formulacao “modernidade an-
tes do modernismo” nao chega a deslocar a premissa fundamental
de progresso teleolégico em diregao a uma verdade formal. Essa pre-
missa é que precisa ser combatida, posto que nao existe evolugao na
historia da arte. Por mais que artistas sejam influenciados por outros
ou impactados pelo legado hist6rico — o que ocorre, sem diivida —,
isso nao implica progresso. A presenca da citagao e da cépia tam-
pouco significa que algumas obras sejam apenas derivadas enquan-
to outras sao inteiramente originais. Conforme ensinou Partha
Mitter, a influéncia nao opera de modo unidirecional, mas antes
acarreta um processo de trocas miituas, emulagdo e mudangas de
paradigma?
E preciso problematizar, além do mais, a periodizacao simples
de estilos artisticos por meio da eleicao de algumas poucas obras-
-chave. Termos como “continuidade” e “ruptura”, “canone” e “re-
voluga0”, “classico” e “moderno” existem em relagao dialética, su-
jeitos 4 andlise hermenéutica continua.’ Como qualquer outro
constructo histérico, as categorias estilisticas devem ser questionadas
a todo instante e reavaliadas 4 luz das fontes documentais. Dai re-
sulta a impossibilidade de pensar o significado do termo “arte mo-
derna” segundo critérios autorreferentes impostos pelo proprio mo-
dernismo. Qualquer avaliagao histérica rigorosa deve recusar 0
pressuposto, muitas vezes oculto, de que o teor de modernidade de
uma obra possa ser determinado unicamente por suas caracteristicas
formais ou por principios estéticos professados por seus autores.”
O presente livro nao é lugar para uma discussao abrangente
do modernismo: o que foi, quando foi, se deve ser abragado ou dei-
xado para trés. A meta aqui é contribuir, com mais um estudo de
caso, para o esforco coletivo de investigar a moderniza¢ao cultural
como fenémeno histérico disperso e diverso. Variagées no que se
16entende por “arte moderna” nao sao exclusividade do caso brasi-
leiro, A yontade impensada de atribuir uma unidade estavel e in-
tegral a esse conceito atropela discrepancias de forma e estilo, assim
come as de contexto politico e cultural. Quanto mais se comparam
as diferentes experiéncias nacionais e regionais, menos conyincen-
te se torna o argumento a favor de um entendimento nico sobre
0 que é modernismo.”
Ante as variadas manifestacdes da arte moderna em escala glo-
bal, faz sentido falar em “multiplicidade de modernismos”, no plural,
conforme propés Perry Anderson, hé mais de trés décadas. Nao é
mais possivel acatar critérios seletivos que pretendem justificar qual-
quer sentido excludente do termo, os quais quase sempre se fundam
1a “ideologizacao explicita” — em maior ou menor grau, conforme
avisou Raymond Williams." As evidéncias em nivel mundial apon-
tam paraa existéncia de uma série de modernismos alternativos, que
se entrecruzam e se sobrepdem a partir da década de 1890, se nao
antes, para constitu{rem juntos um campo ampliado de trocas mo-
dernistas. Cada uma das diversas partes no comunga necessaria-
mente de todas as qualidades formais, pressupostos tedricos ou es-
truturas sociolégicas que caracterizam o restante; e toda tentativa de
reduzir a pluralidade de exemplos a uma narrativa tinica resulta
necessariamente em simplismo.'?
O sentido maior do modernismo no Brasil sé pode ser com-
preendido ao considerar outras correntes de modernizagao cultural
em paralelo aquela geralmente reconhecida. O termo costuma ser
aplicado no contexto brasileiro de modo estreito e bastante peculiar,
revelando os pressupostos que o embasam. Os nomes do nosso ci-
none derivam quase exclusivamente das esferas elitistas de literatu-
ra, arquitetura, arte e musica eruditas, enquanto os modernismos
alternativos que brotaram da cultura popular e de massa sio esque-
cidos ou ignorados.
17O MITO DE 1922
Arelevancia maior da modernizagio artistica no Brasil costuma
ser ofuscada pelo predominio de uma narrativa mitica da “arte mo-
derna”. Pergunte a qualquer brasileiro razoavelmente bem-informa-
do quando teve inicio o modernismo no Brasil e a resposta faré men-
doa 1922. A referéncia, claro, é a Semana de Arte Moderna, evento
ocorrido em Sao Paulo em fevereiro desse ano, abarcando apresen-
tagdes musicais, palestras, récitas de poesia, além de uma exposi¢ao
com uma centena de obras de arte. Patrocinada por figuras eminen-
tes da burguesia paulista — sob a lideranga decisiva do autor, mece-
nas e cafeicultor Paulo Prado — e realizada no Theatro Municipal
de Sao Paulo, a Semana juntou um elenco que inclui alguns dos
nomes mais ilustres da cultura brasileira no século xx: os escritores
Oswald de Andrade e Mario de Andrade; os artistas plasticos Anita
Malfatti, Di Cavalcanti e Victor Brecheret; 0 compositor Heitor
Villa-Lobos, entre muitos outros. O evento também gerou um mito
fundador que continua a proliferar em vasta bibliografia, em grande
parte celebratéria.'*
Mesmo consagrada por estudiosos e preservada por instituigdes
fundadas em sua meméria, a importancia da Semana reside princi-
palmente em seu status como lenda."* A época em que 0 evento ocor-
reu, seu impacto ficou limitado a um publico de elite em Sao Paulo,
cidade que era ainda provinciana apesar de sua grande prosperidade.
Durante as décadas de 1920 e 1930, as agdes transcorridas no palco
do Theatro Municipal tiveram repercussao pequena em ambito na-
cional. No Rio de Janeiro, entio capital e centro cultural do pais, um
dos poucos érgios da grande imprensa a dar maior atengao 4 Sema-
na foi justamente a revista Carefa, para a qual Lima Barreto escrevia.
Careta estava a par do grupo paulista mesmo antes do evento.
Em fins de 1921, foi publicado em suas paginas um artigo que pro-
curava distanciar Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Menotti
18del Picchia e Guilherme de Almeida, entre outros, do rétulo “futu-
rista” sob o qual eram categorizados, e aproximé-los do termo “mo-
dernista”."® Poucos meses aps a realizagao da Semana, outro artigo,
intitulado “O mortério do futurismo” e atribuido a sucursal de Sao
Paulo, concluiu que a Semana havia sido um fracasso e fustigou os
participantes por sua pretensao.'* No ano seguinte, a revista voltou
4 tona, atacando violentamente os “futuristas” e promovendo uma
defesa de valores tradicionais na arte.’” Seus editores tiveram 0 cui-
dado, contudo, de publicar dois poemas de Mario de Andrade na
mesma pagina, sob o titulo “Futurismo brasileiro em poemas”, dan-
do aos leitores a oportunidade de julgarem por si.
A posigao reacionaria da revista Careta era pouco representati-
va da grande imprensa. Em sua maior parte, os jornais da capital pre-
feriram ignorar as estripulias em Sao Paulo ou as trataram como
brincadeira inofensiva. Na contramao da crenga, hoje generalizada,
de que a Semana teria escandalizado a burguesa sociedade brasilei-
ra — mito propagado estrategicamente, entre os anos 1940 e 1960,
pelos remanescentes do modernismo paulista e seus herdeiros —, a
verdade é que o meio cultural no Rio de Janeiro tinha mais o que
fazer.'* O ano de 1922 foi de grande importincia simbélica para o
Brasil, com 0 calendario dominado pelas comemoragées do Cente-
nario da Independéncia e recheado de acontecimentos politicos por-
tentosos, incluindo a fundagdo do Partido Comunista do Brasil, a
inauguragio da associagio catélica Centro Dom Vital e a malfadada
Revolta dos 18 do Forte, no més de julho. Se tudo isso nao bastasse
para matizar a importancia da Semana, vale ressaltar a existéncia de
outras correntes modernizadoras, subestimadas pela historiografia,
principalmente no que diz respeito aos campos das artes visuais e da
historia da arte. Desenrolou-se, nas décadas de 1920 e 1930, um aca-
lorado debate sobre o que se entendia por “arte moderna” e sua apli-
cabilidade ao contexto brasileiro.'? O movimento em torno da Sema-
agna era um entre outros a concorrer pela lideranca, Até 1928, além do
mais, o grupo original se cindira em trés correntes divergentes.
O anseio de ser percebido como moderno data de muito antes
da década de 1920. Como adjetivos, moderno e moderna comecam
a pipocar com alguma frequéncia no discurso literdrio brasileiro a
partir das tiltimas décadas do século xrx. O emprego jornalistico da
palavra tornou-se corriqueiro nas primeiras décadas do século xx,
geralmente com 0 intuito de qualificar algum processo ou atividade
como novidade tecnolégica: cinema, aeroplanos, automéveis, eletri-
cidade, arranha-céus. O desejo de ser percebido como moderno ja
era tao difundido na década de 1910 que inspirou o nome ea emba-
lagem de uma marca de cigarros chamada Modernos.” F divertido
imaginar que eles pudessem ser fumados pelos personagens do con-
to “Modern Girls”, escrito por Joao do Rio em 1911 (0 titulo original
em inglés, idioma visto como up-to-date por uma elite que ainda
tinha o francés como norma da elegncia). Em outra obra do mesmo
autor e da mesma época, o romance A profissao de Jacques Pedreira,
as poltronas do Automével Clube sao descritas como sendo “de um
modernismo que nem ao Mapple pedia auxilio”! A modernidade
imaginada por Joao do Rio — repleta de jazz-bands e modern girls —
86 se tornaria corriqueira no Brasil apds a Primeira Guerra Mundial,
mas é digna de nota sua existéncia no inicio da década de 1910, mes-
mo que um tanto fantasiosa.
O simples emprego do termo “moderno” nao consti
s6 um modernismo artistico, fendmeno que tampouco pode ser re-
duzido a referéncias 4 modernidade tecnolégica ou a mudangas de
habitos sociais. Empolgar-se com modismos e novidades, ou mesmo
condené-los, é distinto de contemplar essas experiéncias como fruto
de uma condigao histérica. 6 outro passo maior ainda desenvolver
um programa estético a partir da consciéncia da modernidade. To-
davia, tais gradagées entre modernizacao, modernidade e modernis-
mo ja estavam presentes no Brasil durante as décadas de 1900 e 1910.
i por si
20A historiografia do modernismo ha muito reconhece episédios em
que manifestacées plenas de arte moderna — no sentido restrito as
vanguardas histéricas — foram apresentadas ao publico brasileiro
antes de 1922.
O exemplo mais notorio sao as exposi¢des de Lasar Segall, em
Sao Paulo e Campinas, em 1913. Vindo de Dresden, na Alemanha —
onde viveu o fervilhamento modernista entre o final do grupo Die
Briicke e o surgimento da Dresdner Sezession (Gruppe 1919), da
qual participou —, Segall expés no Brasil pelo menos alguns traba-
Ihos que hoje seriam clasificados como expressionistas. Foi recebi-
do com aplausos mornos e alguma perplexidade da parte de criticos
provincianos que ndo conseguiram entender como um pintor de
evidente habilidade podia cometer “erros” tao primérios.” O caso
de Segall nem é o mais antigo exemplo das relacées brasileiras com
o secessionismo alemio. Essas influén:
s chegaram ao Rio de Janei-
ro com uma década de antecedéncia por intermédio de Helios See-
linger e José Fiuza Guimaraes, conforme sera visto no capitulo 2.
O impacto do movimento art nouveau, discutido no capitulo 3,
é outra faceta gravemente subestimada da modernizagao artistica no
Brasil. Entre 1900 e 1914, a mania da “nova arte” varreu o meio
cultural do Rio de Janeiro em todos os niveis, de cinemas a salas de
concerto, de amtincios publicitarios a salées de belas-artes. Em 1903,
0 eminente critico de arte Gonzaga Duque esmiugou 0 conceito de
arte moderna e o relacionou ao novo estilo. Seus escritos do pe-
riodo — assim como os de contemporaneos como Camerino Rocha,
José Verissimo e Nestor Victor — fazem referéncia reiterada ao que
julgavam ser tendéncias modernas. Talvez ainda mais significativo,
eles contrapunham explicitamente o que entendiam por “moderno”
& produgio do passado dita “académica”. Esses criticos estavam
atentos aos debates na Europa e correram para se alinhar as novas
correntes estéticas e politicas que admiravam. Para eles, o “moder-
no” era uma decorréncia das descobertas cientificas e filoséficas do
2anovo século, fato inexoravel da existéncia que exigia novas respostas
eatitudes renovadas, Nao resta diivida de que o compromisso deles
com a modernizagao artistica era proposital e consciente.
A recorréncia de termos como “arte moderna” e “modernismo”
no discurso brasileiro da virada do século x1x para 0 xx sé soa es-
tranha a quem presume que uma inovagao conceitual desse porte
nao poderia ocorrer fora do ambito das linguas francesa, inglesa ou
alema. Apesar dos desafios conceituais e metodoldgicos trazidos pe-
los estudos pés-coloniais ao longo das tiltimas décadas, ainda pre-
valece infelizmente a tendéncia a subvalorizar a precocidade do
“modernismo” no contexto latino-americano, em especial nos escri-
tos do poeta nicaraguense Rubén Dario, que cunhou o termo ainda
na década de 1880.” A obra de Dario foi discutida no meio literario
brasileiro, e o autor chegou a visitar 0 Rio de Janeiro em 1906. O
escritor brasileiro que Ihe deu maior aten¢ao, chegando a editar um
pequeno volume sobre seu trabalho, foi Elysio de Carvalho, poeta e
esteta, militante ateista e anarquista, tradutor de Oscar Wilde, pro-
pagandista de Friedrich Nietzsche e Max Stirner.
Alguns anos mais tarde, Elysio de Carvalho daria uma guinada
ideolégica em dire¢ao ao conservadorismo catélico e viria a se tornar
criminologista policial. Uma estranha combinacao, para dizer 0 mi-
nimo; porém, ele estd longe de ser o tinico intelectual brasileiro a
ostentar a coexisténcia de tendéncias modernistas e antimodernistas
em sua biografia. Os capitulos 2 ¢ 3 tratam detidamente das comple-
xas relagées profissionais e pessoais que propiciaram essa convivén-
cia (e até mesmo certa conivéncia) entre posigdes radicalmente di-
vergentes no Rio de Janeiro de principios do século xx. Basta afirmar,
por ora, que o tamanho diminuto dos meios artisticos na América
Latina, assim como sua insularidade, contribuiu historicamente pa-
ra aticar os sentimentos de alienaciio e desassossego tao determinan-
tes para fomentar desejos de modernidade.
Monica Pimenta Velloso foi possivelmente a primeira autora a
22formular claramente a ideia de que o modernismo ja existia no Rio
de Janeiro muito antes da Semana de 1922. Seu livro Modernismo no
Rio de Janeiro (1996), pleiteia o reconhecimento de uma moderni-
dade artistica que girava em torno da sociabilidade de cafés, redaoes
¢ saldes literarios, manifestagées caracteristicas de uma paisagem
urbana em transformacio nos anos 1900 € 1910, protagonizada por
jornalistas, ilustradores e humoristas.” A hipdtese defendida pela
autora permanece irrefutada e vem ganhando félego pelo acréscimo
de dados valiosos que vieram a tona ao longo das ultimas décadas.
O modernismo carioca identificado por Monica Pimenta Vello-
so é assumidamente cosmopolita e menos primitivista do que seu
equivalente paulista. O fato é revelador. Do ponto de vista parisien-
se, essa outra modernidade brasileira era familiar demais e, portanto,
ndo comportava a carga de exotismo que seduzia os modernizadores
europeus. A gerac4o mais nova de modernistas em Sao Paulo — em
especial, o grupo em torno da Revista de Antropofagia, entre 1928 e
1929 — vestiu o figurino do selvagem, o que a tornou mais interes-
sante aos europeus. Figuras ricas e bem-nascidas como Oswald de
Andrade e Tarsila do Amaral sabiam se posicionar como modernas
segundo padrées parisienses, portanto, conseguiram cativar forma-
dores de opiniao do lado de la. Ao voltar para o Brasil, ostentavam
a qualidade percebida de terem feito sucesso em Paris.
A comparacao entre tendéncias e grupos modernizadores no
Rio e em Sao Paulo pode ser titil, mas ndo deve ser superestimada.
Eles nunca foram inteiramente distintos. Joao do Rio, sujeito tio
carioca que incorporou a cidade até no pseudénimo, recorria a Sio
Paulo sempre que possivel, nio somente em busca de dinheiro como
também de perspectivas sobre outros modos de ser brasileiro2* Di
Cavalcanti, outro “perfeito carioca” (conforme se intitulou em sua
autobiografia), foi um dos principais artifices da Semana de Arte
Moderna. Quando Oswald de Andrade lancou seu “Manifesto da
Poesia Pau-Brasil”, optou por publicd-lo nas paginas do Correio da
23Manha, um dos principais didrios da capital, em vez de enterré-lo
em alguma revista literaria de pouca circula¢géo. Quando Tarsila do
Amaral resolveu montar sua primeira exposico individual no Bra-
sil, em 1929, escolheu o Palace Hotel, na avenida Rio Branco, entio
centro nervoso do Distrito Federal.
‘As tensbes conjugadas no caso brasileiro pela contraposicio Rio
de Janeiro versus Sao Paulo so compardveis aquelas entre criollismo
e vanguardia que Beatriz Sarlo identificou como forga motriz da
modernizagao na Buenos Aires dos anos 1920 e 1930.” A histéria do
modernismo brasileiro entre as décadas de 1920 e 1960 pode ser
compreendida mais como um vaivém no eixo Rio-Sao Paulo — su-
bordinando 0 resto do pais a sua rivalidade — do que como o triun-
fo de uma cidade sobre a outra. Mesmo assim, as inflexdes regionais
da narrativa da Semana de 1922 nao devem ser ignoradas. Seu pre-
dominio esta relacionado ao declinio do Rio e a ascensio de Sao
Paulo, especialmente apés a transferéncia da capital para Brasilia em
1960. Outro aspecto relevante é 0 conflito entre geragées. Os inte-
grantes do modernismo carioca identificado por Pimenta Velloso
eram, em média, quinze anos mais velhos do que os modernistas
paulistas, Por fim, havia disparidades marcantes entre os dois mo-
vimentos em termos de composigio racial e de classe social.
A consagracao do modernismo paulista se deu em torno de
uma retérica de supremacia que situa Sao Paulo como entidade cul-
tural 4 parte, superior ao restante do Brasil, conforme demonstrou
Barbara Weinstein." Embora esse antagonismo tenha se escancara-
do sé a partir de 1932 — com a chamada Revolugao Constituciona-
lista —, sua existéncia data da década de 1890, quando vozes emi-
nentes comecaram a afirmar a regiio como alternativa em termos
racializados. A coloracao racista dos ideais de modernidade promo-
vidos em Sao Paulo ajuda a explicar por que foram relegados a se-
gundo plano modernismos alternativos em outras regides do pais,
inclusive no Rio de Janeiro.
24O desafio de compreender a modernidade de modo plural esta
relacionado a dificuldade de incutir um senso unificado de naciona-
lidade a um pais que sempre sofreu press6es centripetas. Os moder-
nismos de Minas Gerais, Para, Pernambuco e Rio Grande do Sul,
entre outros que existiram, tiveram sua importancia apagada ou
rebaixada a fim de ressaltar a lideranga paulista. A dialética entre
regionalismos e nacionalismos é um problema conceitual imenso,
muito além do escopo deste livro. Contudo, vale questionar como
agentes modernizadores tao dispares quanto Mario de Andrade,
Monteiro Lobato, Oswald de Andrade ou Plinio Salgado se propu-
seram a repensar, ou mesmo refundar, a cultura brasileira em sua
totalidade, sem nunca se darem conta da presungo inerente a ideia
de pensar 0 Brasil a partir de Sao Paulo.
Com a nogdo de uma “modernidade em preto e branco”, enceta-se
um didlogo com “a cor da modernidade”, titulo do livro de Barbara
Weinstein. O “preto e branco” se refere nao somente a disparidades
raciais como também a tensdes entre a cultura de elite e uma inci-
piente cultura de massa que encontrou expressio em midias como
fotografia e artes graficas (outrora designadas em fontes de lingua
inglesa como black and white art). No contexto brasileiro, a interse-
Go entre exclusdes segundo critérios racistas e classistas torna qua-
se impossivel pensé-los de modo isolado. O presente estudo nao tem
a menor intengio de separd-los. Em principios do século xx, anda-
ram juntas, com frequéncia, tentativas de afirmar identidades negras
e de classe operdria como parte do esforco para desafiar o poder das
velhas oligarquias. Os discursos histéricos que consagraram 0 mo-
dernismo paulista 4s vezes enfatizam apenas uma ou outra questo,
de modo seletivo, a fim de assegurar sua prépria ascendéncia. Assim,
camuflam 0 quanto o movimento em torno da Semana de Arte Mo-
derna resultou de uma situagio de privilégio e dominagio patriarcal.
25MODERNISMO E PRIMITIVISMO
Para entender o que estava em jogo nos debates sobre moder-
nismo, é preciso compreender o quanto era escorregadia, antes da
década de 1930, a nogao de identidade brasileira. Depois da abolicao
do escravagismo em 1888, tornou-se premente a questio de como
incorporar a parcela antes escravizada da populacdo 4 comunidade
imaginada da nacdo, da qual ficara excluida durante séculos, Ha
muito, atribui-se aos modernistas paulistas 0 crédito por terem en-
contrado uma resposta. Segundo uma versao ainda repetida, porém
capciosa, os principais agentes da Semana, assim como seus segui-
dores, recuperaram a negritude do silenciamento cultural imposto
pelas elites afrancesadas do século x1x.” Essa tese se sustenta em trés
premissas falsas, desmentidas facilmente por exemplos, segundo as
quais: 1) sujeitos negros nao eram representados na arte e na litera-
tura brasileiras antes de 1922; 2) 0 modernismo paulista propagou
um discurso consciente e unificado a propdsito de questées raciais;
3) as representagées de negritude produzidas pelo movimento mo-
dernista sao afirmativas de identidades afro-brasileiras.”
A visio de que o modernismo paulista combateu a hegemonia
colonialista é um constructo histérico fantasioso. Os apelos do mo-
vimento ao indigena e ao autéctone sao questionaveis — na melhor
das hipéteses — e nao podem ser aceitos de modo acritico. Indepen-
dente das intengées de cada artista, o procedimento de configurar o
subalterno por meio da folclorizagao e/ou da parédia teve o efeito
de perpetuar esterestipos. Em tiltima anélise, logrou excluir da mo-
dernidade, & qual aspiravam os agentes que conduziram esse proces-
s0, 0s objetos de suas incursées etnograficas. O exemplo mais céle-
bre, um entre muitos, é a famosa cena da macumba na casa de Tia
Ciata, no romance Macunafma (1928), de Mario de Andrade.” O
deboche com que o autor retrata uma conjuntura fulcral para a iden-
tidade cultural afro-brasileira nao contrasta bem com a seriedade
26atribuida ao mesmo tema, quase em paralelo, por um comentarista
estrangeiro como o poeta Benjamin Péret.® A falta de ceriménia
com que diversos integrates do grupo da Semana se apropriaram
de herangas africanas e indigenas trai um senso de prerrogativa nao
muito distante do modo como as autoridades coloniais europeias
encaravam os “nativos” sob sua “protecao”.
Os apelos ao primitivismo da parte de autores como Mario de
Andrade e Oswald de Andrade, ou de artistas plasticos como Tarsi-
la do Amaral e Lasar Segall, precisam ser reavaliados, caso a caso, em
termos do significado que tiveram para a época. As tentativas de
atribuir voz a populagées subalternizadas seriam manifestagdes de
modernidade cultural? Ou, ao contrario, devem ser relegadas ao rol
das ideias fora do lugar, segundo o sentido consagrado por Roberto
Schwarz?# Ou ainda, e de modo mais problematico, sera que sua
verdadcira relevancia se situa entre esses dois polos? Esther Gabara
preco
ou 0 conceito de errancia para enfatizar a importancia de
seguir as trajetérias e rupturas que cercam as ideias fora do lugar.*
Daf a necessidade de destrinchar a natureza errante — no sentido
mais profundo, onde o vagar territorial encontra as divagagées epis-
temoldgicas — do tépos “primitivismo”, tao crucial para o moder-
nismo brasileiro.
O medo ¢ 0 fascinio gerados pelo suposto primitivo exerceram
o papel essencial de contrastar com 0 moderno. Dado esse fato,
salta aos olhos a centralidade de tematicas como Carnaval e favelas,
que nao costumam constar de narrativas convencionais sobre mo-
dernizagio artistica no Brasil. E preciso examinar 0 pano de fundo
de arcaismo ante o qual se desenrolaram as agées dos atores moder-
nistas. Caso contrario, seus gestos performaticos ficam reduzidos a
monélogos em um palco vazio.* Florencia Garramuiio propés 0
conceito aparentemente paradoxal de “modernidades primitivas”
para explicar como 0 exotismo e 0 autoexotismo se entrelagam na
América Latina, gerando um equilibrio instavel em que a vanguarda
27€ 0 autéctone se reforcam mutuamente.” Essa observacao é crucial
para sustentar a tese de que o moderno e 0 arcaico no sao opostos
na cultura brasileira, mas antes se entrecruzam, se mesclam, se ca-
sam, de modo ativo e perturbador, conforme expresso pelo poeta
Blaise Cendrars na citagiio que serve de epigrafe a este volume.
Ao contrario do que reza o senso comum, favelas e Carnaval
nao estao deslocados numa discusséo sobre modernizacao artistica.
Antes, é preciso partir do questionamento oposto: por que a histo-
riografia do modernismo evitou tocar nesses temas, durante todo
esse tempo? Ser possivel dissociar obras de arte, assim como seus
criadores, do contexto politico e social em que foram produzidas?
Até que ponto a modernizacao artistica operou no Brasil como um
projeto de emancipagio, e até que ponto serviu as velhas forcas de
opressao? Tais perguntas apontam para uma disjuncao fundamental
no contexto latino-americano, identificada por Néstor Garcfa Can-
clini como o paradoxo de “um modernismo exuberante no interior
de uma modernizacao falha”, gerando uma situac4o em que arte e
arquitetura modernas sao “vistas como uma mascara, um simulacro
da elite e da maquina estatal”, incongruentes e pouco representativas
das camadas profundas da existéncia coletiva.”
No mais das vezes, a recep¢ao arte-histérica do modernismo
brasileiro contentou-se em tapar um cadaver ensanguentado com
uma folha de parreira, Essa figura dramatica nao é empregada aqui
com sentido unicamente retérico, mas também para se referir a ca-
daveres de verdade. Sob a ditadura do Estado Novo, celebragées mo-
dernistas do folclore e do povo serviram, com demasiada frequéncia,
para encobrir a supressio real de diferencas regionais e da autode-
terminagao popular. O exemplo da brutalizagéo do cangaceiro Lam-
pido — ele e seu bando foram cacados e massacrados por tropas do
Exército, tendo o corpo profanado, e a imagem das cabecas decapi-
tadas circulou publicamente como aviso — corrobora a determina-
28a0 do governo Vargas de impor uma identidade nacional unificada,
conforme serd analisado no capitulo 5.
O papel desempenhado por artistas em apoio a esse regime é
assunto ausente, em grande medida, da historiografia da arte moder-
na. Os préprios modernistas, no entanto, tinham plena consciéncia
do dilema. Em sua notéria palestra de 1942, “O movimento moder-
nista”, Mario de Andrade deixou registrado um mea-culpa clarissi-
mo ¢ piiblico: “Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Mo-
derna nao devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos
servir de licio”. O poeta explicou, com didatismo, que seu pecado
fora se entregar ao individualismo eA colabora¢4o com o poder, em
vez de contribuir para o “amilhoramento politico-social do ho-
mem”.*° Os seguidores e admiradores de Mario vém fazendo 0 pos-
sivel, desde entao, para contemporizar essa fala.
O que significa ser moderno? Grande parte do que é reconhe-
cido como modernista no Brasil, em termos estéticos, bate de frente
com os fundamentos sociais e politicos do conceito de modernidade
na histéria ocidental.“! Ideais como bem-estar coletivo, igualdade
entre povos, luta de classes e revolucao, intrinsecos ao contexto das
vanguardas europeias, as vezes explicitados em seus manifestos, es-
to quase ausentes do modernismo paulista da década de 1920. Ao
contrario, até 1930, as filiagdes politicas dos principais agentes do
grupo da Semana eram conservadoras, ligadas intimamente as oli-
garquias que dominavam o Partido Republicano Paulista e seu rival,
0 Partido Democratico. Com a mudanga de ares politicos, varios
deles abracaram posi¢ées de esquerda. Entre outros, Di Cavalcanti,
Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral se aproximaram do Partido
Comunista do Brasil (pcs) ou se filiaram a ele, porém pagaram o
prego por esse engajamento. As correntes modernistas que prospe-
raram sob 0 Estado Novo foram as que souberam se desviar da difi-
cil tarefa de fazer oposi¢ao politica.
Durante a primeira era Vargas, as afirmagées de dissenso —
29incluidas af as de diferengas étnicas e raciais — foram subordinadas
a um nacionalismo populista que preconizava uma identidade bra-
sileira unificada, acima de tudo.” Benjamin Péret, apds sua depor-
tacao do Brasil, em 1931 — discutida em maior detalhe no capitulo
4 —, preferiu silenciar a respeito dos esforcos de seus antigos com-
panheiros modernistas. Seu ensaio “Black and White in Brazil”, pu-
blicado no volume Negro: Anthology (1934), organizado por Nancy
Cunard, nao faz nenhuma mencdo & Antropofagia, movimento com
9 qual colaborou, tampouco a outras correntes artisticas. Em vez
disso, 0 autor dirige duras criticas 4 persisténcia da desigualdade
racial no Brasil e prega a necessidade de “um programa decidida-
mente comunista”.®
Para quem olhasse de fora, especialmente um observador euro-
peu, as contradicées do modernismo brasileiro eram desconcertan-
tes, Blaise Cendrars, que cumpriu papel decisivo ao despertar 0 in-
teresse dos modernistas paulistas pela suposta esséncia primitiva
existente em seu proprio pais (0 Brasil), chegou mais tarde 4 conclu-
sao de que tudo nao passara de um conchavo literdrio de pouco re-
sultado duradouro. “Do modo que foi praticado, todo esse moder-
nismo nada mais era do que um vasto mal-entendido”, escreveu em
1955. Pudera! Comparado ao verdadeiro drama e a selvageria da
expansao do Brasil para 0 oeste, 0 “blefe do modernismo”, conforme
© apelidou, mal rompia a superficie para sondar as profundezas cul-
turais do pais.“
Poucos episédios sao mais reveladores das contradigGes do gru-
po da Semana do que a viagem empreendida em companhia de Cen-
drars, em abril de 1924, pelas cidades coloniais de Minas Gerais, com
o intento declarado de “descobrir o Brasil”.** Para o poeta sui¢o, que
visitava o pais pela primeira vez, a frase até fazia sentido. Para os
demais membros da chamada caravana modernista — io de An-
drade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, René Thiollier, Olivia
Guedes Penteado, Goffredo da Silva Telles —, um passeio ao estado
30vizinho de Minas, viajando em conforto e recebidos por autoridades
locais, de modo algum constituia um encontro com uma entidade
cultural remota e misteriosa. Com exce¢do de Mario, todos eram.
membros da alta burguesia do grande estado cafeicultor, um dos
lugares mais ricos do mundo na década de 1920. Que eles concebes-
sem essa Viagem como uma ocasiio para descobrir o Brasil profun-
do apenas confirma como viviam apartados da realidade comum e
revela a falta de nogdo dessa empreitada quase colonialist. O mais
assustador é que esse episédio continue a ser relatado, sem ironia,
como um momento de “descoberta”. Ainda perduram, pelo visto, as
estruturas sociais e de pensamento que permitem as elites brasileiras
viverem afastadas da cultura majoritaria em seu proprio pais.
ARTE MODERNA E CULTURA DE MASSA
A modernizacio artistica deve ser entendida, no contexto bra-
sileiro, como um campo disputado por diversos discursos e agentes
que se plasmaram mutuamente ao longo do meio século anterior a
Segunda Guerra Mundial. Por volta de 1945, quando o Estado Novo
chegou ao fim, surgiu uma nova geracao de criticos e estudiosos — a
maioria jovem demais para ter participado diretamente dos aconte-
cimentos de 1922 —, um grupo que reconfigurou os nomes, as datas
€ os fatos para compor a narrativa hoje consagrada como o mito da
Semana. A “tradi¢o modernista” fundada por eles, seguindo a ex-
pressao de Heloisa Pontes, foi moldada por relacées pessoais desses
estudiosos com os sujeitos estudados, assim como pela comunidade
académica qual pertenciam e pelo esforco ideolégico para se dis-
tanciarem do regime varguista, entio de saida, e também de sua
oposicio comunista — temporariamente unidos no queremismo.**
Em conjunto, esses fatores os levaram a superestimar a centralidade
tanto da literatura quanto da cidade de Sao Paulo para compreender
31o modernismo no Brasil. Ha outras maneiras de abordar a questo.
Conforme observou Silviano Santiago, cada tentativa de “desbravar
a selva da produgao artistica desde 1922” conduz a “sempre cami-
nhar por uma tnica das suas possiveis veredas”, ignorando outras.”
‘Trés décadas depois dessa avaliagao, 0 acimulo de caminhos per-
corridos permite mapear 0 territério com maior precisio.
Ao examinar as fontes primarias com um minimo de isengao,
salta aos olhos 0 grau de experimentacao e inovagao formal ocorri-
das em areas antes pouco valorizadas da cultura visual e material,
como o design grafico, em contraposi¢éo ao dominio fortemente
patrulhado das ditas belas-artes.’* As revistas de grande circulagao
produziram expressées vibrantes de modernismo artistico no exato
momento em que a maioria dos pintores ¢ escultores se entregava
auma produgao bastante acanhada, conforme sera visto no capitu-
lo 3. Esses impressos atingiam um grande publico e impactavam
atitudes e comportamentos para além do ambito restrito das eli-
tes — fato que os torna mais interessantes em termos histéricos, nao
menos. Essa constatagdo suscita uma pergunta preocupante: por
que razdo a historiografia, de modo geral, tem se interessado tao
pouco por tais objetos?
Ao longo das décadas, os estudos do modernismo brasileiro
privilegiaram de forma tio marcada formas eruditas de expresso
que se condicionaram a excluir todas as outras. Um exemplo emble-
matico mais ou menos recente é uma pesquisa sobre o modernismo
nas revistas brasileiras dos anos 1920 que se volta assumidamente a
periddicos literarios de “parca popularidade e curtissima duragao” €
que exclui, sem maior justificativa, o que chama de “revistas cultu-
ais”, como Késmos, Fon-Fon!, O Malho e Para Todos, mesmo 0
autor admitindo que estas atingiram um publico amplo e influen-
ciaram importantes agentes modernistas.” De modo inexplicavel, a
popularidade dos objetos culturais é menosprezada como um aspec-
to que diminui sua importancia.
32Esse tipo de erudicdo excludente nao é novidade no culto ao
modernismo de 1922. A mesma recusa a enxergar 0 que esta na
cara perpassa as apreciagbes que Mario de Andrade fez da cultura
popular, estudada por ele sob as rubricas de folclore e etnomusico-
logia, mas quase sem considerar suas ramificages em relagao a
cultura urbana emergente. O autor compilou vasta coleta documen-
tal a respeito de tradicées musicais, histéria oral e lendas rurais,
algumas das quais utilizou para compor © romance Macunafma.
Seus escritos na imprensa comprovam que ele estava ciente também
das novidades no género musical do samba, entdo em plena efer-
vescéncia e transformacao. No entanto, conforme demonstrou José
Miguel Wisnik hé muitos anos, Mario nao foi capaz de tecer uma
relacao entre esses fendmenos e, por conseguinte, reconhecer 0
samba, o Carnaval e outras formas urbanas como expressdes cultu-
rais da identidade brasileira.”
Ao reproduzir a dicotomia entre alta e baixa culturas (high/
low), tao definidora para o modernismo em outros contextos cultu-
rais, Mario de Andrade nao soube reconhecer a cultura popular ur-
bana como digna de ser considerada arte. De modo anélogo, em seu
ensaio sobre a representaco de Lampiao na literatura de cordel,
publicado sob pseudénimo em 1932, 0 autor revelou-se conhecedor
desse género popular, mas nao fez nenhum movimento para situar
‘© sujeito de sua discussio como agente cultural.*! Para o grande cri-
tico modernista, figuras como Lampido, Sinhé e J. Carlos eram ob-
jetos a serem estudados e/ou ignorados estrategicamente, porém
jamais pares a serem tratados de igual para igual. Essa incapacidade
de reconhecer a relevancia da cultura majoritéria reflete o esnobismo
intelectual que, fora honrosas excecdes, ha muito caracteriza certa
elite cultural brasileira.
A apreensio, por Mario de Andrade, do rural e do étnico como
objetos legitimos para o estudo folclérico tem sua origem em nogées
rominticas de pureza perdida. Ela implica uma atitude primitivista,
33no sentido europeu de apropriar-se da cultura presumidamente atra-
sada do outro subalternizado com o propésito de afirmar as energias
transgressoras do eu modernista.* Ao contrastar as posiges de Ma-
rio com aquelas do movimento antropofagico, observa-se melhor os
usos divergentes do primitivismo no contexto brasileiro. Os antro-
pofagistas se ocuparam explicitamente do primitivismo e teceram
criticas as praticas europeias, assunto tratado em maior profundida-
de no capitulo 4. Com seu desprezo por toda espécie de pedantismo
intelectual, o movimento nao hesitou em denunciar 0 pernosticismo
de Mario e seus escritos folcloristas. A Revista de Antropofagia che-
gou ainda a alardear, em tom irdnico, que Lampiao seria integrante
do movimento. 2
Apesar das bravatas e da antipatia ao esnobismo, contudo, os
antropofagistas tampouco souberam reconhecer a modernidade da
cultura urbana que os cercava. Em artigo de outubro de 1928 para a
Revista de Antropofagia, Anténio de Alcantara Machado cita de pas-
sagem um desenho de J. Carlos, retratando a dupla Mutt & Jeff, das
histérias em quadrinhos americanas.* Embora estivessem claramen-
te cientes da existéncia do ilustrador, em nenhum momento os in-
tegrantes do movimento foram capazes de apreciar seu valor artis-
tico, muito menos suas qualidades modernas. O virtuosismo grafico
de J. Carlos, a explosio do samba e do Carnaval modernos e a saga
te num centro urbano do Brasil entre os anos 1920 e 1930 podia
ignorar. Porém, tendo em conta o siléncio do movimento moder-
nista, € como se fossem irrelevantes para os debates artisticos.
A cultura de massa pode ser interpretada como “o outro repri-
mido do modernismo”, conforme Andreas Huyssen a batizou na
década de 1980. 0 esforco empreendido por alguns criticos moder-
nistas para rebaixar sua importancia ¢ igualmente evidente na Eu-
ropa e nos Estados Unidos. Tomados pela ansiedade em relacao &
tecnologia, & industrializagdo e 4s mudangas de atitude, os moder-
34nistas “incorporaram avidamente temas e formas da cultura popu-
lar”, segundo Huyssen, como meio de resistir aos imperativos de
uma cultura de massa que temiam.* No contexto brasileiro, a cisio
entre cultura erudita e cultura popular subsistiu no interior do mo-
dernismo e, possivelmente, operou de modo ainda mais determinan-
te. Com sua desigualdade econémica gigantesca e fortes disparidades
de classe social, a sociedade brasileira costuma revalidar, de modo
quase impensado, 0 gosto da minoria privilegiada. Os modernistas
brasileiros nao sentiram necessidade de combater a cultura de mas-
sa porque podiam simplesmente se dar ao luxo de ignora-la.
Diferente de Paris ou Nova York, onde a cultura de massa apa-
gou formas tradicionais de cultura popular e substituiu estruturas
pré-industriais por modismos passageiros, o Rio de Janeiro é uma
cidade onde o velho e 0 novo, 0 rural ¢ 0 urbano, 0 sagrado e 0 pro-
fano desenvolveram maneiras tinicas e peculiares de coexistir. A geo-
grafia social da cidade, em plena transformacao durante 0 inicio do
século xx, condicionou o surgimento das favelas como modelo de
moradia urbana ea evolucdo concomitante de uma dinamica cultu-
ral em que as diversas esferas — separadas por classe, raga, religiao,
educagao ¢ renda, assim como por acesso a servios ptiblicos e cida-
dania — moldaram-se mutuamente para gerar a identidade carioca
moderna. Samba e Carnaval sao as formas culturais especificas
nascidas do contato entre as elites cariocas, vidas por uma fantasia
de Europa, e a pujante populagao constituida por imigrantes, mi-
grantes e descendentes de pessoas escravizadas — estes ultimos livres
pela primeira vez para celebrar seus ritos e ritmos de matriz africana.
A cultura urbana formada por esse encontro deitava raizes profun-
das nas tradigdes populares, mas nao era avessa, de modo algum, a
novas midias e 4 novidade tecnolégica.*
A falta de interesse do movimento modernista pela cultura de
massa poderia ser relevada pelo argumento plausivel de que, no
Brasil das décadas de 1920 e 1930, esse fendmeno nao havia atingi-
35doo mesmo grau de preponderancia que em outras sociedades mais
desenvolvidas economicamente, nas quais a mercantilizagio e a
espetacularizacao cultural ja estavam avancadas, No ensaio pionei-
ro “Cultura e sociedade”, Renato Ortiz propds que a designacio
cultura popular de massa sé seria aplicavel ao Brasil a partir da dé-
cada de 1940, em especial por conta da ascensio do radio como
meio de comunicacao.” Diversas pesquisas realizadas nas trés dé-
cadas desde a publicacao do ensaio de Ortiz impdem uma revisio
de suas conclusdes.
Em primeiro lugar, nao resta divida de que a presenga cres-
cente do cinema — sobretudo de filmes norte-americanos produ-
zidos em Hollywood — impactou de modo significativo a cultura
visual do publico brasileiro e influenciou diretamente as formas
estabelecidas de produco cultural. O sucesso estrondoso do ro-
mance Mademoiselle Cinema (1923), de Benjamim Costallat — que
chegou a trés ediges em um ano, gerou uma adaptacdo para 0 ci-
nema e um segundo romance na sequéncia, e firmou 0 autor como
uma forca no mercado editorial — é a prova metonimica do poder
da combinagio entre cinema, sexo e modernidade para atingir um
publico maior do que o reduzido circulo de consumidores de lite-
ratura erudita.* A misica gravada é a segunda arena em que se
pode vislumbrar um novo puiblico de massa. As carreiras de sensa-
bes musicais como Sinhé, discutido no capitulo 4, ou os Oito Ba-
tutas, cuja turné parisiense em 1922 se tornou objeto de escrutinio
histérico em nivel internacional nos tiltimos anos, confirmam que
a cultura popular urbana ja era fendmeno de alcance e porte consi-
deraveis na década de 1920.
A terceira arena sao os periddicos ilustrados de grande circula-
do ea publicidade comercial, midias de interesse fundamental para
o presente livro. A importancia cultural dessas fontes continua a ser
subestimada, apesar das contribui¢des de Nicolau Sevcenko para
pensar como novos meios de comunica¢io moldaram o imaginario
36coletivo.® De modo geral, e sempre com honrosas exce¢Ges, as ava-
liagdes histéricas do perfodo atribuem maior peso aos discursos eru-
ditos do que aos populares. As revistas ilustradas propagaram um
entendimento do modernismo, como estilo ¢ entretenimento, que
se difundiu a partir da década de 1910, em especial para as camadas
médias urbanas nas quais conviveram os principais agentes moder-
nistas, Nesse sentido, o capitulo 3 oferece indicios para apoiar a tese
de que, na cultura visual brasileira, a produgao de ponta ocorreu
fora do Ambito da arte erudita.
No momento da cagada a Lampiao, entre 1930 e 1938, e do furor
mididtico em torno dela, a cultura de massa havia gerado na socie-
dade brasileira uma consciéncia de sua prépria modernidade. Dada
a preponderancia do cinema, da miisica gravada e das revistas ilus-
tradas, e sua relacdo inequivoca com condigées urbanas e mudancas
tecnoldgicas, fica a pergunta: por que as discussées sobre modernis-
mo no Brasil giram quase unicamente em torno da produgao cultu-
ral erudita? Comparadas 4 fina manipulagao que Lampiao exerceu
sobre a imprensa por meio de midias como fotografia ¢ cinema, as
estratégias de Oswald de Andrade para promover a Antropofagia
mais parecem travessuras de um colegial peralta. Comparadas ao
poder retumbante de um desfile de Carnaval, as ideias de Mério de
Andrade sobre musica ecoam os corredores vazios da torre de mar-
fim. Comparadas ao arrojo grifico de K. Lixto ou J. Carlos, obras de
arte produzidas com 0 intuito declarado de serem revolucionarias
parecem hoje insipidas, No entanto, estudiosos e jornalistas conti-
nuam a propagar um canone modernista bem menos do que assom-
broso, até pelos padres modestos de quem o consagrou.
Um tiltimo ponto precisa ser enfatizado antes de encerrar este
texto introdutério. O paradigma vigente do modernismo artistico
no Brasil continua a relegar artistas afrodescendentes As margens.
Em qualquer outro contexto cultural, o pioneirismo de um artista
grafico como K. Lixto o habilitaria a ser considerado um dos grandes
37nomes de sua época. No Brasil, cle é quase esquecido. Isso se deve
somente em parte a questées raciais. Seu contemporaneo e colega J.
Carlos, igualmente talentoso, também foi excluido da historiografia
sobre arte moderna no Brasil, embora fosse nao sé branco como
abertamente racista. A dificuldade passa mais pela cisio intelectual
entre belas-artes e artes graficas, entre “alto” e “baixo”, discutida
anteriormente.
Jao caso de Arthur Timotheo da Costa, pintor formado na tra-
dio erudita, nos obriga a encarar a questo. Ele faleceu um més
antes de Lima Barreto, em outubro de 1922, pouco antes de comple-
tar quarenta anos, quando também estava internado no hospicio.
Festarrecedora a coincidéncia da trajetéria desses dois artistas afro-
descendentes de talento, ambos condenados a um fim tragico. As
relevantes contribuicées de Timotheo a pihtura brasileira entre 1906
eo ano de sua morte permaneceram relativamente apagadas até a
inauguraco do Museu Afro Brasil, em Sao Paulo, em 2004. Embora
‘Arthur Timotheo seja hoje reconhecido como um grande artista
afro-brasileiro e um pioneiro na autorrepresentacao da negritude,
sua obra ainda nao foi devidamente reconciliada com a narrativa
mais ampla da modernizacao artistica no Brasil. Ao contrdrio, ele
continua a ser visto como uma anomalia, um outsider ou forasteiro
em sua propria cultura.
Um ponto cego ainda permite as interpretagées tradicionais da
arte moderna ignorarem modernismos alternativos e suas hist6rias.
Ele se situa na dificuldade que a sociedade brasileira tem de exami-
nar asi mesma de modo critico. Em especial, existe pouca disposi-
ao para analisar a fundo as desigualdades de raga ¢ classe que si0
o legado da escravidéo em nossa histéria. No Brasil, a modernidade
costuma ser confundida com o desejo de parecer moderno. As ve-
zes, de modo proposital. Politicas voltadas para a modernizacao
resultam num verniz de progresso, mas recuam de forma sistema-
tica diante da tarefa de promover mudangas reais. f menos traba-
38Thoso passar mais uma demao de tinta sobre uma parede rachada
do que reconstrui-la.
Resta, contudo, a esperanga de que essa condigao possa vir a ser
transformada por uma consciéncia maior das deficiéncias estruturais
que aembasam e a perpetuam. O arcaismo inerente a modernidade
brasileira nao deriva de nenhuma condigao ou destino tragado por
natureza, mas antes de constructos sociais passiveis de ser descons-
truidos por meio da andlise historica e da educagao politica. A opres-
sio continua a existir; 0 subalternizado continua a resistir; € 0 pas-
sado sempre da um jeito de voltar a assombrar o presente. Este livro
se dedica a explorar algumas alternativas ao paradigma vigente ea
nar por que ficaram esquecidas por tanto tempo.
que:
391. Coracao das trevas no seio
da metrépole moderna:
Favelas, raga e barbarie
Olhei com tristeza as casas do Mangue, as da “cidade nova” nas ruas
transversas; as do morro da Favela eu apenas entrevia... Pensei de mim
para mim: porque ndo se acabava com “aquilo”? Seria necessério aque-
Ie repoussoir para afirmar a beleza dos bairros chamados chics?
Lima Barreto, 1921"
Entre 1890 e 1930, o surgimento das favelas nos morros do Rio
de Janeiro aticou discursos que promoviam uma correspondéncia
entre negritude, barbarie e atraso. Veiculado pela literatura e pela
arte, bem como pela imprensa, 0 tépos retérico da “favela como
lugar de perigo” brotou de anguistias e temores provocados pelas
répidas mudangas demogréficas que abalavam a entio capital do
Brasil. Essas mudangas nao podem ser dissociadas, por sua vez, das
transformacées politicas que se seguiram a abolicdo da escravatura
€ Proclamacao da Republica. Os debates sobre reforma urbana ea
necessidade de modernizar e embelezar a cidade, encapsulados no
mote “o Rio civiliza-se”, mascaram um legado imenso de desigual-
dade social e discriminagao racial.’
Dr. Matamorros, o narrador do conto de Lima Barreto citado
na epigrafe, olha horrorizado para a primeira favela da cidade e nao
consegue pensar em palavra mais adequada para designé-la do que
aquilo, e ainda com o destaque das aspas. A fim de descrever a vista
que se descortina ante seu olhar alarmado, ele recorre 4 metafora do
41repoussoir, termo usado em artes plasticas para designar uma figura
representada no plano préximo de um quadro com 0 intuito de re-
forcar a ilusdo de profundidade. Ou seja, se o Rio fosse uma pintura,
a fungao da favela seria a de servir como contraponto feio & beleza
do restante da composicao, enaltecendo os bairros elegantes por
contraste. O ficticio dr. Matamorros nao era 0 tinico a enxergar a
parte pobre da cidade como local de miséria e horror, prestavel uni-
camente para ser arrasado a fim de abrir caminho para um Brasil
novo e moderno: O presente capitulo examinard como as primeiras
representagées de favelas em textos, pinturas, fotografias e ilustra-
goes conformaram uma alteridade subalternizada contra a qual as
aspiragdes modernizantes das elites puderam se plasmar.
A natureza perversa desse proceso, condicionado por deman-
das conflitantes e tensdes ocultas, gerou uma situagao de tamanha
complexidade que, na década de 1920, o surgimento das favelas aca-
bou levando a culpa por nada mais nada menos do que o declinio da
arte. Um comentarista anénimo no semandrio Fon-Fon! indignou-se
porque os jornalistas davam mais peso, supostamente, a uma alian-
ca nefasta entre modernidade e negritude do que a valores tradicio-
nais na arte e na literatura:
A arte é coisa secundaria para o jornalista atual e quem o lé. Entio, a
literatura essa nada Ihe merece. Para que dar noticias de um livro, se
as facanhas horrendas de um negro beigudo da Favela atraem mais,
muitissimo mais, a atengao de um piblico moderno estragado pelos
jazzs, pelas buzinas de automéveis e pelo futurismo?*
Essa acusacao bizarra precisa ser destrinchada. O que levou 0
ressabiado autor a juntar assim automéveis, jazz, futurismo e fave-
Jas? Para responder a essa pergunta, seré necessdrio recuar algumas
décadas e examinar 0 contexto cultural e social, econdmico e politi-
co que moldou a evolugao histérica do Rio de Janeiro.
42‘Ao longo da segunda metade do século x1x, o predominio de
teorias raciais pseudocientificas na Europa e nos Estados Unidos
exerceu poderosa influéncia no Brasil.’ As origens africanas e ame-
rindias da populacdo eram amplamente entendidas como inferiores
como impedimento para realizar 0 ideal de civilizagao seguindo
padrdes europeus. Antes dos escritos pioneiros de Manoel Bomfim,
nos primeiros anos do século xx, a mistura racial era vista quase
exclusivamente como fonte de degeneracao — ¢ até mesmo como
maldicao hereditaria.* Nesse cenario de racismo revalidado pelo saber
cientifico, o surgimento das favelas foi percebido como mais um obs-
tdculo a civilizagao. Sua presenca constitufa um cora¢ao das trevas —
no sentido consagrado pela novela de Joseph Conrad, de 1899 — im-
plantado no seio da metrépole moderna.
No breve interim entre 1890 e 1930, as favelas do Rio passaram
a demarcar e simbolizar uma porgdo da cidade que depois veio a ser
batizada de Pequena Africa. Tudo indica que esse apelido foi cunha-
do por Heitor dos Prazeres, um dos principais representantes do
novo estilo de samba que ganhou popularidade nos anos 1910 e
1920, e no ha duvida de que o empregou com sentido positive’
Como trincheira de resisténcia, Pequena Africa é uma designagao
poderosa, e 0 apelido ainda encontra eco nos esforcos de quem luta
para afirmar cidadania e direitos para todos, independente de cor
ou credo. Em termos analiticos, porém, o termo precisa ser posto
em questao.
A nogao de um enclave de africanidade na cidade do Rio de
Janeiro sugere uma segregacao de territérios e tradigdes que vai de
encontro a concep¢oes geralmente difundidas do Brasil como “ca-
dinho” e/ou “caleidoscépio” de culturas.’ Postular a existéncia de
uma pequena Africa suscita forcosamente a pergunta: qual a natu-
reza do territério maior ao seu redor? Seria ela contraposta a um
Brasil grande, ambos enxertados numa imensa América? Nesse caso,
0 que faz dessa América brasileira uma entidade cultural distinta da
43Africa, da Europa, da Asia e do Oriente Médio, de onde vieram os
ancestrais de grande parte de seus habitantes atuais? A subdivisio
da cidade em porgées africana e nao africana reproduz o binarismo
que permitiu a Europa se imaginar, um dia, como entidade a parte
do restante do mundo, superior em termos raciais. Além do mais,
apesar de sua utilidade estratégica como divisa e emblema de resis-
téncia, o termo “Pequena Africa” corre o risco de apequenar a di-
mensio das herancas africanas. A identidade brasileira nunca pode
ser pensada em separado das contribuicées afro-brasileiras que in-
tegram sua formacao de modo tio visceral.
© RIO DE JANEIRO NA VIRADA PARA O SECULO XX
A década de 1890 foi um momento conturbado no Brasil. Apés
quase meio século de relativa estabilidade sob a monarquia parla-
mentarista de d. Pedro 11, um golpe militar em 15 de novembro de
1889 decretou a Republica e pds em andamento uma série de acon-
tecimentos que logo adquiriu proporcées catastréficas. O desregu-
lamento de mercados financeiros e politicas monetarias, em especial
sob a conducdo de Ruy Barbosa como ministro da Fazenda, levou a
um ciclo de especulacao febril, emissées monetarias sem lastro, in-
vestimentos duibios e inflagao desenfreada que entrou para a historia
econdmica sob o apelido de Encilhamento, uma das primeiras crises
financeiras de proporso global. Quando a bolha estourou em no-
vembro de 1890 — em fungao da quase quebra do Barings Bank, em
Londres, e do panico que se seguiu —, a economia brasileira afundou
numa crise da qual levaria mais de uma década para se recuperar?
O colapso financeiro agravou uma situaco politica cadtica.
Com menos de dois anos de existéncia do novo regime republicano,
um movimento de autogolpe conduziu o generalissimo Deodoro da
Fonseca a tentar fechar o Congresso e a concentrar ainda mais poder
44no Executivo. Um contragolpe liderado por comandantes navais
rebeldes forcou o primeiro presidente a pedir demissao e alcou ao
cargo de mandatario chefe da nacao o vice-presidente, marechal Flo-
riano Peixoto, em novembro de 1891. O governo de Floriano enfren-
tou oposi¢ao politica quase implacavel, bem como uma segunda
rebeliao naval, ainda maior, em 1893 ¢ 1894 — a Revolta da Armada,
na qual os revoltosos bombardearam esporadicamente o Rio de Ja-
neiro durante cinco meses. Para completar o caos, estourou uma
guerra civil no Rio Grande do Sul, a Revolugio Federalista, que du-
rou de 1893 a 1895, deixando milhares de mortos e um rombo nos
minguados cofres piblicos. Floriano contra-atacou com todo 0 po-
derio bélico a sua disposicao, esmagou as rebelides, prendeu ¢ exilou
oposicionistas, e levou a cabo um conjunto de ages que lhe valeram
0 apelido de Marechal de Ferro. Quando, em novembro de 1894,
entregou o poder ao sucessor, Prudente de Moraes, 0 primeiro pre-
sidente civil da histéria brasileira, parecia que a tempestade enfim
arrefecia.!° Porém, a segunda metade da década foi apenas um pou-
co menos turbulenta. As tentativas de resolver a crise financeira, por
meio de uma renegociagao da divida com a casa bancéria londrina
Rothschild, resultou em nova rodada de faléncias e inadimpléncias
apés 1898."
Enquanto isso, no sertéo baiano, um lider messianico chamado
Anténio Conselheiro iniciou sua pregacio contra a Repiiblica e atraiu
tantos seguidores que, em 1896, a comunidade fundada no local cha-
mado Canudos tinha cerca de 25 mil habitantes. Em 1896 e 1897,
duas expedigdes enviadas pelo governo da Bahia para dispersar os
chamados “fanaticos” foram repelidas pelos conselheiristas, cons-
trangendo o governo federal a assumir a incumbéncia. Uma tropa do
Exército comandada pelo coronel Anténio Moreira César, notério
pela supressao brutal dos revoltosos federalistas no Sul do pais, se-
guiu para a Bahia, Quando essa expedigao foi igualmente derrotada
€ 0 coronel Moreira César, ferido de morte, a pequena rebelidio mo-
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