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Os Dois Nascimentos Do Homem Escritos Sobre Terapia e Educação Na Era Da Técnica

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Monica Borges
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~ VIAVERTA. sUMARIO SENTAGAO 7 LIBERDADE 13 fTICA E MORAL 31 A PROEISSAO DO PROFESSOR 47 |, CORPOREIDADE 75 ; EXISTENCIA E PERDA 93 SACRIFICIO DO SONHO = 105 A TERAPIA E A ERA DA TECNICA 123 3 DASEINSANALYSE E CLINICA 141 9, TONALIDADES AFETIVAS NA TERAPIA 161 Pelo que, entao, tem de decidir-se o ser-ai? Pela efetiva recriagdo para si mesmo do saber auténtico sobre em que consiste 0 que é propriamente possibilitador de seu pro- prio. E 0 que significa isto? Que para 0 ser-ai enquanto tal sempre precisa ser uma vez mais iminente 0 instante, no qual ele é trazido para diante de si mesmo enquanto © propriamente obrigatério. Diante de si mesmo — nao como um rigido ideal e um modelo originario firme- mente fixado, mas diante de si mesmo como o que ar- ranca para si uma vez mais justamente a possibilidade propria e precisa se assumir em tal possibilidade” (Martin Heidegger, Os conceitos fundamentais da me- tafisica: Mundo, finitude, soliddo, p. 195.) Aqueles que se dedicam a leitura de um pensador, passam ses, anos, décadas se dedicando a reconstrugao critica e a pro Jematizacgao de contextos tedricos no ambito da exposigao e d. compreensao das ideias desse pensador. Todo esse esforgo acal ivariavelmente trazendo consigo um adensamento, um apro ndamento, uma complexificacao do que esté em jogo na vida sma de seu pensamento. Tudo isso desempenha um idamental no discurso académico sobre os fildsofos da tradi ), assim como na proliferagéo dos debates eruditos sobre suas obras. Paradoxalmente, contudo, quanto mais se intensifies a lei ‘a “técnica” do pensador, mais distante ele se mostra das questées propri mente ditas da vida dos homens em geral s lo: ‘anto ma i mines sae Bie le se mostra da materialidade constitutiva do aqui muitas vezes um fenédmeno semelhante aquele que Nietzsche expressou certa vez, por meio das palavras ee cas de seu Zaratustra, como o fendmeno ae, Ke ue eee ° Mtoe nao faz mais nada para o leitor. a 10 de leitores e até mesmo o espirito estard fedendo”. espirito estagnado, apodrecido, vampirizado. E claro que Ni t- zsche aqui a um leitor bastante especifico: ao oe ae 5 tualizad dec icado antes de tudo ao controle formal do texto, a 2 Pin: ee paeacbce al ao! que busca incessantemente ; passado, esmiugando e esquadrinhando as obr: oe ee a a idade de uma inteligibilidade total ou nee al. ‘0 isso faz parte da dinamica do mundo université ic tende a permanecer fechado no interior dos limites d ae Romper com tais limites, porém, por nea ie oe ee ieee foe a principio, é ieee a as pelenbe a possibilidade de devolver a linguagem do pensamenti © seu vico, o seu frescor, a sua vitalidade. Nao por meio d a recaida em um Ambito de pura arbitrariedade ea en do desenvolvimento de uma forma de exy as Dect S ne eo ae antes por meio de um sacehenns phere parceicentay forma inessencial e, por isso mesmo, em ulti alae , em ultima eo que o que realmente importa possa eee ente en seu carater fundamental. Exata- ‘a, por sua vez, € a principal qualidade dos escritos d Jodo Augusto Pompéia e Bilé Tatit Sapienza contidos ne pee volume. Mas qual o cardter propriamente dito de tais a céusticas e paradig da leiture Quais os si ‘ios ituai: § seus esteios conceituais mais importantes? Com o qu nos yemos af confrontados? oy E preciso salientar 2 i ; : eciso salientar antes de mais nada a presenca do pensa- lento de M is im, Ss 0 de Martin Heidegger como um fio condutor muitas vezes \ Jado, muitas vezes expresso, que atravessa de qualquer modo itemente o livro como um todo. A figura de Heidegger se A base de todos os contextos argumentativos mais eficont la em tltima instancia que lhes fornece, em verda- Hiversos ¢ ¢ el Je, desde 0 inicio, a sua forga expositiva propria. E isto porquanto diversos escritos contidos no livro nao repetem simplesmen- sreensoes e interpretagdes heideggerianas em particular, contrario, desdobram essas compreensoes & interpreta- em meio a campos investigativos diversos daqueles com os quals o préprio Heidegger lidou em sua obra. Seguindo a pro- tentativa de Medard Boss, empreendida a partir da década 50, de levar a termo uma transformacao nos pressupostos € ios estruturadores da psicologia em didlogo direto com a io heideggeriana de ser-ai, algo que acabou redundando no rgimento da Daseinsanalyse, ha em Os dois nascimentos do ho- anspor 0 discurso filos6fico de de fendmenos dnticos +m uma tentativa incessante de tr Heidegger para o ambito de considerasao 10 a educacao dos filhos, a relacéo entre liberdade e limite, a sibilidade de uma agao ética, assim como 0 lugar e os desafios rapia na era da técnica. Nesse caso, no entanto, 0 que esta em xo nao € empreender uma fundamentagao da Daseir alyse, mas sim sondar as repercussdes da Dasei sanalyse sobre proble- s concretos do existir humano. No que concerne a sondagem essas repercussdes, o que ha aqui de mais importante éaacima sncionada apropriagao da nocao de ser-ai (Dasein). No cerne do pensamento heideggeriano encontra-se a compreensao fundamental de que 0 ser do homem é marcado stamente por uma indeterminagao originaria total, por uma séncia completa de propriedades essenciais previamente da- Caso queiramos considerar 0 ser homem a partir da pergun- ta “o que’, somos obrigados a responder a essa pergunta com um onoro e retumbante; “nada!” Em sintonia com a compreensao erliana do homem como um ente marcado pela dinamica pela relacao de atos de consciéncia (pensar, me hu intencional, ou seja, 9 » Imaginar etc.) com a génese imanente dos campos de hjetos correlatos (pensado, lembrado, imaginado etc.), Heide- gger reduz o ser do homem ao par fenomenolégico existéncia (como movimento origindrio de ser para fora) e mundo (como campo de manifestacao dos entes em geral e como horizonte ermenéutico de estruturagéo de nossos comportamentos em geral). Com isto, o ser do homem Passa a ser expresso por meio da nogao de ser-ai, exatamente Porque o homem sé conquista © seu ser a partir do ai, do mundo que é 0 dele. Dizer isso, por outro lado, é 0 mesmo que afirmar as possibilidades especificas do ser-ai como possibilidades especificas de seu mundo. Tome- mos um exemplo corriqueiro. Nossas salas de aula vém ha mais ou engs cinco anos sendo tomadas por pequenos aparelhos de Sravacao que permitem aos alunos registrarem as aulas de seu nteresse, os famosos MP3. A possibilidade de uso de algo desse género depende necessariamente de varias coisas: da efetividade de algo assim como aula, ensino, professor, da presenga de luga- res. como a universidade, 0 colégio, o instituto avangado de for- magao, o centro cultural, da capacidade da idéia de formagao, de aprimoramento ou de cultura geral funcionarem como mobiliza- dores estruturais dos esforcos de muitas pessoas invariavelmente to diversas entre si. Tudo isso nem sempre foi possivel. Nao Fecisamos nos confrontar com a diversidade historica da prepa- ago dos jovens para a vida em cidades como Atenas e Esparta \ Grécia Antiga para que percebamos isso. Hoje mesmo, ainda eriéncias existenciais que prescindem completamente de a essa paleta de possibilidades. Ao mesmo tempo, porém, se IMOS Nossas acdes em meio a tais contextos mais amplos, » 8 porque o nosso mundo permite que o facamos, por- {He © nosso mundo o permite, porque essa possibilidade é sua 1, Como 0 préprio Heidegger o formula no pardgrafo 31 fenipo, “o ser-ai é existindo o seu af”, ou seja, ele é exis- ‘arialmente as possibilidades que 0 seu mundo traz consigo. 4 sedlugio do ser-af a dindmica intencional que 0 coloca em sin- tenia com o mundo, contudo, tem ainda uma outra consequ- ‘firia especifica, consequéncia essa que ressoa no proprio titulo Como o ser-ai s6 se determina a partir de seu mundo, je no possui nenhuma propriedade essencial previamen- Ja e como ele se vé inicialmente absorvido no mundo ) sedimentado que € 0 seu, ele tende a principio a se desarti- mesmo, a se afastar de sua negatividade constitutiva e r como uma coisa entre coisas. Seu primeiro nascimen- ortanto, acaba produzindo mais um afastamento de si do jue uma conquista plena de suas possibilidades mais proprias. J sse nascimento, porém, nao é 0 fim de seu caminho existencial, e 0 ser-ai humano nao nasce como uma coisa que vai so- da live ean te de por frendo em seguida os efeitos mecanicos de um mundo a priori ‘Ao contrario, o nascimento do ser-ai humano é antes uma abrupta em um espaco semanticamente estruturado, no dac ele mesmo precisa conquistar paulatinamente a sua histéria. »xisténcia é, em suma, uma tarefa que nunca se resolve de ou- forma senao por meio do préprio existir. Ao primeiro nas- rento se liga inexoravelmente o segundo, o decisivo: o nasci- nto de si, para si como histéria. Mas nao é apenas em sua ligagéo com o pensamento de idegger que os escritos aqui presentes se revelam em seu vi- 1 mais primordial. Ha ao mesmo tempo por toda parte um jogo rico com os mitos fundacionais do Ocidente, um apro- yeitamento do tesouro significativo dos termos mais simples © mais decisivos, uma remissio a figuras centrais da filosofi tradicional tanto quanto do pensamento contemporaneo, uma bertura constante para se deixar levar pelo fio condutor dos fenémenos, pela estrela guia das coisas mesmas, as tinicas re- almente capazes de nos conduzir por entre os labirintos mais scuros da alma humana. LIBERDADE Liberdade é uma palavra que circula com muita frequéncia em nossa fala cotidiana. Falamos do direito a liberdade, alias, pre- visto na Declaracao dos Direitos Humanos; falamos de governos » nao respeitam a liberdade, de pais que dao muita liberdade aos filhos, da liberdade de expressao, do medo da liberdade, da liberdade de escolha, da liberdade que se conquista, da liberdade que é importante nao perder, da liberdade que precisa ser bem usada, e muito mais. Mas exatamente de que estamos falando com essa palavra? Seria a liberdade alguma coisa que nos dao ou que nos tiram? Alguma coisa que precisa ser economizada e bem dosada? Certamente sabemos o que ¢ liberdade quando somos npedidos de realizar algo, ou de ser de uma de: eira; ou quando somos obrigados a fazer o que nao queremos. ai, entao, rapidamente concluimos que ter liberdade é poder zer 0 que desejamos, dizer o que pensamos, ir aonde quere- mos, recusar 0 que nao queremos. Certamente, ter esses direitos nplica liberdade. Mas com isso nao esgotamos 0 que ha para ser compreendido no conceito de liberdade. A partir do século 18 em diante, o conceito de liberdade assOul A OCupar uma posi¢ao central tanto do ponto de vista po- eo, com relagao a liberdade dos povos, como do ponto de vista da necessidade de respeito pelos direitos individuais. ssa é uma quest&o que pode ser abordada a partir de di- ntes referéncias. Um ponto de vista muito importante é o de ah Arendt em seu livro Entre o passado e o futuro, cuja lei- nos parece fundamental. Na reflexao que faremos aqui, seguiremos uma direcdo muito particular em direcéo a compreensao desse conceito. Trataremos de compreender a liberdade a partir do referencial da Daseinsanalyse. O interesse que esse assunto desperta, ou seja, o apelo que o tema da liberdade exerce sobre nés, torna-se tanto mais forte quanto mais mergulhamos na época da técnica. Mas esse apelo se torna maior porque estamos cada vez mais livres ou porque estamos cada vez menos livres? E 0 que é ser mais livre ou menos 2} tee A es livre? A medida que o conceito de liberdade ganha mais impor- tancia, sua compreensio fica mais dificil, mais obscura. A concepcao de liberdade assume uma forma genérica, pa- rece que todo mundo sabe o que ela é. Mas quando fener dizer exatamente 0 que ela é, ficamos perplexos com a dificulda- de que é descrever o que é isso que chamamos de liberdade. Pa- rece que acontece algo parecido com o que acontecia com Santo Agostinho, que se referia a sua dificuldade para dizer o que era npo. Ele dizia, em seu livro As Confissées: “Quando falamos de tempo, sem duvida compreendemos 0 que dizemos; 0 mesmo cerd se ouvirmos alguém falar do tempo. Que 6, pois, 0 po? Se ninguém mo pergunta, eu o sei; mas se me pergun- , € quero explicar, ndo sei mais nada”! Embora, como todo », ele soubesse o que era o tempo, na hora de defini-lo era como se nado o soubesse, tudo ficava muito dificil. ) AGOSTINHO, As Confissdes. Sao Paulo: Editora d Nao pretendo aqui dar uma definicdo de liberdade, mas Hiiero me aproximar desse conceito na tentativa de clarear a sua “omipreensio. Farei, num primeiro momento, uma caracteriza- Ao do que ¢ liberdade ou do que éser livre, tanto sob 0 ponto de co como sob 0 ponto de vista ontolégico. Num segundo ento, falarei do que significa para o Dasein 0 apropriar-se ser livre. Comegando a pensar onticamente a respeito do que ¢ liber lade, vem-nos esta pergunta: 0 que é liberdade? Precisamos antes saber de que liberdade estamos falando. E da liberdade dos even- oa? [! da liberdade dos deuses? Ou é da liberdade dos homens? Pois, a partir do século 19, a liberdade, que era compreendida itao como algo proprio exclusivamente ao ambito humano, a-se também uma caracteristica observavel dos eventos. As- na fisica, fala-se em liberdade como caos, desordem, acaso, acia de uma determinacao causal detectavel ou observavel 1 os recursos disponiveis num determinado momento da his- toria da ciéncia, E, quanto a liberdade dos deuses, 0 que seria 0? Aqui nao se trata de uma referéncia religiosa, mas sim de a certa nogao de liberdade totalmente idealizada que temos vivido: a liberdade de fazer tudo 0 que se quer. Desse ponto de vista, liberdade e poder significam a mesma coisa. Temos, entao, dois extremos: de um lado, a liberdade dos eventos, que significa cas; de outro lado, a liberdade dos deuses, que significa poder. Mas a nossa questo éa liberdade dos homens, e essa é dife- rente. E, ao pensar na liberdade dos homens, a primeira coisa que re ocorre é que liberdade nao existe, é ilusdo; ela é muito mais m desejo dos homens que uma realidade. E essa ideia se apre- nta porque a liberdade tem sido totalmente posta em questéo desde o século 19. Darwin aponta o homem como resultado de m processo evolutivo mais ou menos a0 acaso. Marx denuncia que a liberdade de escolha é orientada e dirigida pela dinami 15 tle contlito de classes; o homem é comandado por forgas muito malores que ele, sem se dar conta disso. Freud diz que, embora 0 homem pense que esta agindo livremente, ele é levado a agir sob lo de pulsdes do inconsciente que determinam sua ex- icia e sua conduta. Nietzsche também questiona a autono- ‘a da consciéncia dos homens. Portanto, a nogio de liberdade \ consciéncia vem sendo praticamente destruida. O século 20 aprimorou ainda mais a destruico. A histéria antropologia, e ai temos Lévi-Strauss, mostram 0 quanto o comportamento do homem é determinado historicamente. As neurociéncias também contribuem para o descrédito da liberda- de, e os estudos da genética apontam na mesma direcdo. Assim, por exemplo, li uma noticia que anunciava a descoberta do gene responsavel pelo trago que leva alguém a ser revoluciondrio ou conservador, ou seja, o predominio do determinismo. Ha anos, vi em um pequeno artigo de jornal a informagio de que o estu- prador, na verdade, pratica seu ato porque é impelido a dissemi- Os seus genes da maneira mais eficiente possivel, Esse artigo me deixou profundamente irritado, porque o estupro nao é um 0 bioldgico, é um fato humano, e nao existe referéncia possivel de aproximacao entre a realidade do estupro vivido pelos huma- Nos e€ os conceitos biolégicos de disseminacao de genes. Enfim, parece que os conhecimentos adquiridos no mundo atual nos dizem que a liberdade é iluséria. Mas ha outros pontos de vista a serem considerados. A tra- dig&o mitico-religiosa, de certa forma, introduz e sustenta 0 con- ceito de liberdade. O que é a liberdade dos homens na Pperspecti- mitico-religiosa? Penso que nao é a liberdade de fazer alguma coisa, mas a de dizer “nao” E a rebeldia. Addo e Eva dizem “nao” regra de nado comer o fruto da arvore do conhecimento 1e do mal. Edipo, quando sai do oraculo de Delfos e tem 10 desvendado pela pitonisa, diz “nao” diante do que nte dele como um destino tao terrivel. Parece, que a liberdade dos homens é a liberdade de oposigao, de 16 1. Mas essa liberdade também se mostra de outra ma ; de de usufruir da liberdade dos deuse: Ai temosa figura de Prometeu, que rouba 0 fogo dos deuses para i rnidade, a si-lo aos homens, dando a eles mais poder. Na mode as pois vai dando em momentos su- le dominagao dos homens sobre io dos recursos que ee rebela elra, como uma vonta' lecnologia faz algo parecido, vos um aumento do poder d 4 natureza e sobre os outros homens, por me} e i ae tae disponibilizam. A tecnologia desenvolvi tales nsacao de uma liberdade andloga aa varias técnicas maximo da para os homens a se 4 dos deuses. : a) - ambém podemos pensar a liberdade considerando ao wolvida nesse tema € smo tempo o porqué da dificuldade envolvida nesse ci Ds: de Hannah Arendt em En- o como referéncia o pensamento de Hannal Arer 4 ; ive o passado eo futuro. A pensadora nos diz: “Em sua forma mais ida c 2 adigao en- a dificuldade pode ser resumida como a contradicao os morais, que nos dizem e a nossa experiéncia es, ng 10ssa consciéncia e nossos princip! e somos livres e, portanto, responsavels, ¢ 2 nen xterno, na qual nos orientamos em co) ¢ ana no mundo e: : vias tid alidade. Em todas as questoes midade com o principio de caus: praticas, e em especial nas politicas, como uma verdade evidente por si mesma, ae posigdo axiomatica que as leis sao estabelecidas nas cc des humanas, que decisdes sao tomadas q oe O homem nao é completamente determinado. Nossa c' as as mostra que, em nosso jeito hu: le de escolha. Essa ideia saria para a temos a liberdade hu e é sobre essa su- ue juizos sao feitos: com os outros € com as COIs ano de ser, atuamos com certa liberdad e a ave s é neces! de liberdade pode nao ser demonstrav el, mas é nece geral e das ciéncias politicas. 2 cdo da éticaem gee bido a liberdade como Fildsofos e tedlogos tém conce oe 0 livre-arbitrio. Segundo esse ponto de V possuidor de uma vontade | a, o ho exercicio d ve mem € considerado como es eo fut ARENDI, Hannah, Entre 0 pasado Perspectiva, 1979, p. 188. per iss6, CoM UM ser dotado da possibilidade d decidir, independentemente de condicionam ee Pines entos ou de uma Ao ee ae Sartre diz que o ato livre sé é e a é oe! Weed Isso quer dizer que a ausén- fe ae ‘a0 no estabelecimento de uma decisaio a signiica necessariamente que essa decisao tem d. »surda, Porque, se houver alguma razio em que a es Th . baseie, se houver uma razio Para a decisao, ela ja ji is m livre, ela é determinada pela razao que yan a : oth : ae pelo exercicio da absoluta liberdade do livre-ai bit aes ee rbitrio daquele Mas deixemos um pouco de lado essas consideracé até agora sobre 2 liberdade e Passemos a pensar, nur a A toldgico, o que € o ser livre do homem. eens es a por um momento nossos conhecimentos a res; eit zt oe enquanto objeto da antropologia, da biologia. 4 : i area da psicologia, € pensemos nele como Dasein, ae Ha carter peculiar Consiste em, diferentemente a ee mae >S, Ser exatamente aquele cuja existéncia é ck-sist cme teralmente significa ser-para-fora. O Dasein ek-si ae ie cado pelo ser dos entes em geral, ele é a abertur ie = nae a manifestacao dos entes. Como ek-sistente, nee ion. mundo como o horizonte a partir do qual ada : a ae a do qual ele perfaz o poder-ser que ele é, junto oe i a aa ros. Seu modo de ser é ser-no-mundo e Caen eae que ele é, ele se caracteriza por estar sempre Eee ‘ a. livre do Dasein que vamos tratar aqui. oe A liberdade se identifica com 0 modo de ser di i ydo de ser do homem. A liberdade é um dad st ae ; nj sel oe € a forma de ser do Dasein ae aN ser livre anifesta em trés dimensées; 0 ser aba - mes : ser fundado nas possibilidades, 0 ser an O ser livre do Dasein é ser aberto em possibi dades. Porque 4 {ala ¢ propria do homem, porque ele é capaz de ter alinguagem, pode configurar nao sé 0 que mas também 0 que pode ser, » possivel. E isso que pode ser éo ainda nao, 0 nao mais e tam- jem aquilo que € apenas virtualmente possivel. Seu ser livre é ser fundado nas possibilidades. Nao 6 0 Da- sein é aberto nas possibilidades, mas ele também se enraiza ne Jas, Isso porque todo o sentido da ago humana se da a partir do © ou da finalidade que a acao pretende alcangar, a partir visa, algo que esté no fim e, portanto, nao exis- Igo que é uma possibilidade. Assim, go a que se inda, ainda nao é real, a serve de fundamento ou base para a agao humana é, de inicio, uma possibilidade. Podemos dizer que, para o Dasein, 0 fim & 0 comeco. O sentido ¢ dado pelo possivel e nao pelo real. © proposito, pro-pésito, ¢ 0 fundamento do agir, é a base, é 0 chao do Dasein. Ser livre, para 0 Dasein, € também ser langado em possi- idades, porque o possivel ultrapassa 0 real. Ultrapassando o al, o Dasein nao pode se limitar ao real. Pretender restringir-se apenas ao real e fugir do ambito do possivel significa aproximar- ue se de uma condigao patoldgica. Dasein é, ento, aberto, fundado e langado nas a liberdade do Dasein é 0 habitar no po- o poder-ser, possibilida- des. O que caracteriza der-ser. Mas, quando queremos saber 0 que é isso, nossa surpreendente consta- © possivel em que habita o Dasein, éhabitar o sem taco é que o possivel é nada, ¢ 0 vazio. Ser livre ivre é estar lancado na possibilidade da angustia. a liberdade nao é uma escolha, ela é dada, o maior de todos fundo. Ser | Para o Dasein, um dom, e, por ser o dom maior, seu prego é _ “Qs deuses vendem quando dio”—,, diz 0 verso de Fernando Pessoa. E nao ha como recusar esse prego. Ser livre nao é uma é 3 PESSOA, Fernando. Obra pottica. Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1969, p.71. 19 peas do homem. Diante desse dom, ele tem duas possibilida- tles Ot se submete ao ter de ser livre, sendo condenado a ser livre Femio nos diz Sartre, visto que tal condi¢ao lhe é imposta, ou entfio abre-se para esse dom, acolhe-o e apropria-se dele. Bem, mas 0 que significa apropriar-se do dom de ser livre? Pensemos. O que quer dizer apropriar-se de alguma coisa? Quando algo que é dado nao é acolhido, a doagio nao acontece. Para que a doa¢ao ocorra, para que algo seja um dom que possa se efetivar, aquilo que é dado precisa ser acolhido. No caso da liberdade, o Dasein nao pode recusar a doacgio do ser livre, mas pode nao a acolher. E 0 dom nao acolhido é uma condenacao. Quando Dasein acolhe o dom, este passa a ser mesmo uma doa- Gao, algo que faz parte da sua vida, do seu jeito de ser, como uma doagao de fato, que se efetiva o mais plenamente possfvel. Aco- ro dom é apropriar-se dele, é recebé-lo com propriedade, Ao falarmos do apropriar-se do dom da liberdade, a palavra propriedade esta implicita no que dizemos. Por isso, detenhamo- nos um pouco mais no que significa a palavra propriedade. Essa palavra, dependendo da frase em que esta, pode ter conotagdes diversas. Por exemplo: Ser incolor é uma propriedade da agua. sse terreno € propriedade do meu tio. O aluno respondeu a pergunta com propriedade. Nessas frases, ora a palavra significa tica, ora posse, ora adequagao. » quanto a apropriagio do dom da liberdade, ai a palavra propriedade esta implicita nesses trés significados. Para o Dasein, ‘opriar-se do seu ser livre é estar de acordo com sua caracte- \ essencial, que é ser aberto, fundado e lancado em possi- les de ser. O apropriar-se do dom de ser livre comporta 0 significado de propriedade como posse, porque tomar posse de um dom quer dizer empunhar esse dom, e empunhar 1 de ser livre é efetivar o modo de existir do Dasein, que é eh-sistiv, que é ser-no-mundo cuidando da tarefa de vir a ser si mo. E, no que diz respeito ao significado e es ypriagao do seu ser livre revela-se como 0 er. a see esponder ao chamado, ao apelo ate acolher es om Acolher, porém, nao significa ser passivo, mas an oe m movimento de responder a algo que anelay ayyen : 1 de ser livre nado é apenas uma ¢ racterisicts pate algo que o Dasein precisa empunhar, mas é, principa B ‘uma vocacao, um chamado. Ser livre é um chamado see nee ,a partir do Dasein. Ser Dasein é estar aberto nu a dade que o convoca para ser si iDeSInO: aoa ese ne ser livre, portanto, € corresponder a vocagao de si nao é uma coisa simples. Ser livre implica escolha e decisao. A palavra Eas entemente mal compreendida. Talvez ela seja ainda Wee obscura do que a palavra liberdade e costae ee ce. ms fundida com 0 poder de determinar. Entretanto, ee a possibilidade de escolher nao é simplesmente isso. Pode: é ter de escolher. : Se alguém nao pode escolher, atts sae ee ne pode escolher, é obrigado a escolher. tle pos s z bc escolher, mas isso jé é uma escolha. Nao ha como ae y nesse caso. E precisar escolher pode ser terrivel. Lee Boe de uma situacdo em que isso ficou muito claro oe pee muito amorosos estavam com 0 aes a el nea felizes em proporcionar a ele a liberaa s i eae a eo aele que Sea oe oral Nesse momento, comega a tortura da cuanea andando SS es para ca, olhando tudo, até que enfim diz: “Quero a a oo vito com ele até o caixa para pagar, mas, nesse perc ro aa Ss tos outros brinquedos! Todos eles chamam a -_s ee ssessem psiu, psiu... O menino diz par orn ‘a oe quero aquele. E o pai responde: “Vocé precisa es¢ , 21 cee que ja esté na sua mao e leva aquele que vocé viu E eee sa : gone pois o que havia sido escolhido eine, ae : pai ee e deixa que ele leve os Mice ta slosidoisy ha também aquele outro chaman- F ee fal lando mais alto. Agora o menino resolve: “Espera ieee all que eu quero.” E a mae, j meio impaciente, diz: Mae “ oe Ea area comega a entrar na tortura Mateo ee : a terceiro brinquedo também €é tao legal! ree eae 8 ue choradeira € os pais ficam bravos. ee el ue a cabins tenha levado varios brin- ae i ra casa. Se tiver sido assim, ao chegar em casa, deve ter = ot i escolher com qual brinquedo comegar a eee justo col ocr elcmanea nessa situa¢do? Interessante : que) os adultos fazem isso com as criancas com | intengao, carinhosamente. ad : eee a primeira referéncia para pensarmos Sie eee ae : ee nao esta livre para renunciar nao ee re yee nessa een contraditoria ie s igado a escolher, porque escolher ae ea poderte uma limitagao. Se a pessoa nao poder sal ye eateontundaajorosnastnportte : s ada. ‘lalvez o mais importante ep he a eels se isto: o fundamento as poder ce | posse, & a rentincia, E que, em primeiro lugar, Bot er escolher significa estar livre para renunciar. Escolh : coisa € abrir mao de uma série de outras. be ee oe ae lugar, ser livre iss portanto, poder escolher ies ap esmente nao estar obrigado a nada. Nao s6 somos ° sedge come tambem a obrigagao nao termina ai. ; asein é estar livre para comprometer-se. E com- netendo-se com o escolhido que ele exerce o seu ser livre. Mas t S02 i: -) pessoa pode dizer: “Nao quero me comprometer com uma escolha para nao perder a minha liberdade.” Se perguntar- mos a ela de que liberdade se trata, ela dird que se trata da liber- dade de poder escolher. Entao, se ela nao escolhe para nao perder 4 liberdade de escolher, porque, depois que escolhe, perde essa dade, podemos ver que, querendo preservar a liberdade, ela ) age com liberdade, ela nao efetiva sua liberdade. Ela nao es- orta como h colhe para nao precisar se comprometer. Ela se comp quem supde que a liberdade seja algo consistente em si mesmo, uma coisa da qual se tem a posse, que pode ser guardada, como o ayarento guarda dinheiro. E a liberdade nao pode ser guardada. i verdade, o ser livre do Dasein s6 se consuma quando se con- ome. £ destruindo a liberdade, a cada vez, a cada escolha, que exercemos 0 ser livre. Ser livre “de” qualquer deter ninagao ara o Dasein, ser livre “para” a determinagao, pensamos a palavra determinagao &p ser livre para npromisso. Geralmente, 10 a agio de varidveis sobre 0 individuo. Mas determinagao significar também a forga da pessoa, quando dizemos, por plo, “fulano é muito determinado”. Nesse caso, queremos dizer que se trata de alguém que sabe 0 que quer, que escolhe e e prometido com as coisas. Nao estar obrigado a nada signi- 1 poder dispor-se a assumir obrigagées com algo, com aquilo : se escolhe. O compromisso nao € 0 oposto ao ser livre, é a lizagdo. A necessidade de rentincia € 0 compromisso com pensar como € complicado deixar nas maos colher e decidir sozinha em jpunhar o seu a escolha nos fazem dle uma crianga 0 peso de ter de es certas situagdes, ou seja, esperar que ela possa em) ser livre coma responsabilidade que isso exige. Por isso, 0 adulto deve ser o depositario da liberdade dela, educando-a de tal modo gradativamente ela tenha oportunidades de compreender 0 sua liberdade implica. Um terceiro ponto a ser lembrado a respeito do ser livre: Para o Dasein, ser livre significa servir como ocasido para que 0s entes se manifestem em sua verdade. Sendo aberto nas possibili- dades, o Dasein é aberto também naquilo tudo que esta para além do real, para o que transcende o real, isto é, sua abertura diz res- peito ao que ainda nao é mas pode ser, ao que ja foi e nado é mais € ao que seria possivel apenas virtualmente. Aberto nas possibi- lidades, ele escapa dos limites do real, mas esse escapar do real 0 conyoca para voltar ao real, cuidando da realizacao do possivel. Para tornar mais clara essa ideia, valho-me das palavras de meu saudoso amigo Paulo Barros, quando ainda éramos estudan- tes de psicologia. Ele tinha duas imagens para falar de liberdade. A primeira é a da crianga que esté descobrindo um piano. Ela chega, abre o piano, comeca a mexer nele: aperta as teclas aleato- riamente, as brancas, as pretas, pode pisar nos pedais, interessa- se por tudo. Paulo dizia que, para ele, essa era uma das imagens mais significativas da liberdade: a curiosidade, o encantamento, o nao ter nenhuma regra, esse explorar todas as possibilidades do piano. Nao ha divida de que descobrir, acolher a novidade e poder explord-la sem referéncias prévias, simplesmente olhando, mexendo, associando tecla e som, tudo isso é uma experiéncia de liberdade. Mas essa liberdade se desgasta rapidamente. Em pou- cos minutos, o brilho daquele encantamento maravilhoso da ex- ploragao e da descoberta se apaga, e a crianca vira as costas para 0 piano e vai fazer outra coisa, vai procurar outra novidade. A outra imagem a que o Paulo se referia, essa, sim, represen- ta a perfeita liberdade. E a liberdade que esté na intimidade e na familiaridade com que um pianista se relaciona com 0 piano. Ao ouvi-lo e vé-lo tocar, temos a sensaco de que ele esta absoluta- mente livre nesse momento, de que transita na relagdo com o pia- no sem que haja nenhuma resisténcia do piano; é como se hou- yesse uma entrega do piano as maos do pianista e uma entrega do pianista ao piano, uma profunda cumplicidade entre os dois. Rubem Alves, em sua crénica Jardins, fala de seu sonho de Antar um jardim num terreno baldio que havia ao lado de sua sa, Mas aquela terra nao era sua. Diz ele: “De meu, eu s6 tinha m, antes de © sonho. Sei que é nos sonhos que 0s jal lins existe untes ds {irem do lado de fora. Um jardim é um sonho que virou re (...) “Mas um dia 0 inesperado aconteceu, O terreno fi- alidlac e een9 ou meu. O meu sonho fez amor com a terra € 0 Jardim eases () jardim surgiu da fecundacao da terra pelo seu sonho, a * ae ga da terra ao seu sonho e aos seus cuidados. Nessa cump} toe lad i fjasceu o jardim. Parafraseando essa ideta spodemay ‘s a focando o piano numa liberdade feita de intimidade ede ara a ridade, parece que, naquele momento, © pianista ee amor com 10 ¢, nesse amor, ele fecunda o piano, € a musica nasce. ‘i © ser livre desse pianista é diferente do ser livre e crianga que brinca no piano. Nao ques euange Sele mien att masa peculiaridade da liberdade do pianista const ste en 4 bf liberdade que liberta também 0 piano, isto €, deixa-o eS p a) nte aquilo que ele é, um piano; deixa que ele se desvel eem # lidades, Ao tocar com aquela familiaridade, ele possibilita entido de aletheia, de desvelamento ma musica que, saindo a musica que Oss ea verdade do piano, no s' originario, se apresente. E mais, ha també: i de seu encobrimento, se manifesta. E ainda mais, bee rge daquele encontro intimo entre o pianista e 0 pia Bo Y ber : © ouvinte, ou seja, deixa aquele que ouve ser plenamente em sua condigdo de ouvinte que se entrega a fe vela em seu ser aberto ao belo, o belo que pode aparecer ne incrivel que pare¢a, nao cessa ai essa lbertagéo queio in do pianista engendra, porque, quanto mais familien ein ie ; a relagao entre ele e o piano, mais familiaridade, ipura Y - cumplicidade serao dadas. A familiaridade nao se consome, eH O ser livre desse pianista liberta 0 seu proprio ser livre, de tal modo que se torna cada vez mais intima a comespalls déncia com tudo o que com ele se liberta. E, nesse libertar que berta a si proprio, o tempo se alonga, num alongamento que musica. O ouvinte se des E, por se multiplica. | ALVES, Rubem, Jardins,in 0 Retorno eterno, Campinas: Papirus Editora, 2010, p. 67. far do tempo temporalidade. E diferente daquele tempo curto em que todas as coisas precisam ser decididas de imediato. Dife- yentemente do ser livre da crianga, que rapidamente se esgota, 0 ser » do pianista se amplifica numa perspectiva em que a ee liberdade liberta para a liberdade: dele, do piano, da musica, dos ouvintes e da possibilidade de ser livre. a O ser livre do Dasein faz com que ele ultrapasse 0 real para nar ao real, e isso quer dizer que ele é convocado para rea- ar, para tornar real aquilo que era uma possibilidade. Em sua erdade, Dasein deixa vir a luz 0 que ainda estava no encobri- mento, ele liberta os entes para que se manifestem em seu ser, ele é clareira do ser dos entes. Para o Dasein, libertar 0 ente einen proprio ser significa permitir que ele se manifeste, significa criar, ecriar é libertar 0 possivel do encobrimento do nada. O Postel sempre 14, encoberto pelo nada. Criar é trazer ao real, € re- ar, deixar aparecer na luz aquilo que até entdo permanecia oculto no encobrimento. O modo de ser livre do Dasein consiste em dispor-se a servir como oportunidade de desvelamento do possivel, em deixar-se usar como Aambito da verdade dos entes. E hd ainda uma quarta referéncia para falarmos do ser livre e da escolha: poder escolher é antes de tudo e principalmente poder obedecer. Isso pode parecer chocante, porque obedecer & ger livre so vistos como incompativeis. Dizemos geralmente que é livre quem nao precisa obedecer. Mas a palavra obedecer, em sua etimologia latina, carrega também um outro ignite) Ela provém de ob-audire, e ob € um prefixo que significa estar dixposto em diregao a, € audire significa escutar. Entao, ob-audi- fe 6a possibilidade de estar disposto a escutar: obedecer é estar disposto a dar ouvidos a alguma coisa. Assim, como diz Nancy Mangabeira Unger, em O Encantamento do humano, “a palavra obedié pode deixar de ser vivida no sentido repressivo da moral, da culpa e da punicgao para resgatarmos seu sentido mais prencial?® E nesse sentido que dizemos que poder ser livre é poder obedecer, ¢ poder ouvir. Mas trata-se de ouvir © qué? Em seu ser livre, Dasein € S0- liitado a dar ouvidos a que? Ele é solicitado a dar ouvidos a tres pelos que o convocam o tempo todo. O primeiro é 0 apelo de ei mesmo, é ser capaz de ouvir aquilo que lhe diz respeito. Ouvir » dizer € poder ser fiel a si mesmo. E isso nao é facil. Nao me y aqui a fidelidade no sentido de exclusividade. O ser fiel a que me refiro tem algo em comum com a raiz fé, que significa poder confiar. Quando falamos em confiar em si mesmo, jamentavelmente, as pessoas pensam em alguém cheio de si, € no & disso que se tratas mesmo porque alguém cheio de si é al- guém cheio de nada. Poder confiar em si, como forma de ouvir © que lhe diz respeito, é poder corresponder & sua propria esséncia, existir, Dasein ek-siste, jeto 6, ele ja € sempre nO mundo, que ele libera como o horizonte em que os entes vérn 20 que ée mundo seu encontro e em que ele pode ser 0 poder-ser qu aser. Existir é vir-a-ser- Confiar em si é poder confiar r-a-ser, que caracteriza @ sua esséncia. B se abrir e ele é,em que ele pode vir no proprio vil na perspectiva daquele tempo que se alonga, que nao éo tempo do imediato, mas € © tempo do historico. Compreender-se 20 tempo longo € poder confiar no caminho, naquilo que se estende para além do agora. Ouvit a si mesmo é poder se livrar do ofus- o do imediato e estar aberto a confianca no caminho. cament mo que o Dasein precisa obedecer, E nao € apenas a si mes precisa dar ouvidos. Ele também precisa ouvir 0 apelo do mundo. Ouvindo a si mesmo; de certa forma 0 Dasein alonga 0 tempo € deixa transbordar para além do imediato em diregao ao futu- Esse tempo alongado se apresenta como algo ro e ao passado. precisa ouvir essa ressonancia do tempo que ressoa, & 0 Dasein jJongo. Quando falamos em tempo longo, podemos ser levados a 3 UNGER, Nancy Mangabeira © Encantamento do hur espiritualidade. Sao Paulo: Editora Loyola, 1991, p. 58. jano - ecologia & 27 pensar num longo que seria uma estreita sucessao de momentos, representada por uma linha, tal como acontece com o tempo cro- noldgico. Mas o tempo longo a que me refiro aqui é aquele longo que é também largo. B 0 largo da ressonancia que se da junto com 0 alongamento do tempo. FE como se transformassemos a linha do tempo num plano, num tempo aberto, que podemos chamar de kairés, 0 tempo que é oportunidade, o tempo que é ocasiao, é © tempo para... para estudar, para descansar, para trabalhar, para amar, para se divertir, para se esforgar, para plantar, para colher. E o tempo que inscreve o Dasein no precisar responder 4 convoca- cao do mundo que se oferece como ocasiao, como oportunidade. Ouvir 0 apelo do mundo é reconhecer a oportunidade. Quanto a isso, lembro-me de um episédio da minha infancia. Certa vez, no sitio em que morava, meu av6 perguntou ao seu Dito, caipira que cuidava da nossa horta, qual era o seu segredo para conseguir aquelas verduras maravilhosas. Ele respondeu tranquilamente. “Nao tem segredo nao, doutor. E que eu sé planto o que a terra gosta.’ Seu Dito tinha essa sabedoria. Quando plantamos 0 que a terra gosta, aquilo vai adiante, fica bonito. Reconhecer a oportu- nidade é plantar o que a terra gosta. Saber ouvir 0 mundo, saber obedecer, é poder reconhecer a oportunidade, E, finalmente, ouvindo a si mesmo, ouvindo o mundo, o Dasein tem a possibilidade fundamental de ouvir o apelo dos outros, 0s outros que sio também Dasein. Aquele que é capaz de ouvir 08 outros torna-se capaz de ser porta-voz. Expressao ser o porta-yoz. O porta-voz é aquele que tem o poder noder dizer é poder dizer bem. E poder bem dizer os 9s, ¢ bendizer os outros, Bendizer os outros é compreender o peculiar modo de ser livre com os outros. Quando era adolescen- te, ouvia dizer o seg a liberdade vai até onde come- gaa liberdade do outro,’ Nesse caso, 0 limite da minha liberdade faz fronteira com a liberdade dos outros. Mas quando comecei a estudar Medard Boss, compreendi que o que limita a minha liberdade nao é a liberdade do outro, e sim o meu ser mortal, a 28 ha finitude. Se eu estiver com 0 outro, a nossa liberdade sera lito maior que a minha. Quando a minha liberdade enon 4 liberdade do outro, a minha se expande no compartilhar as ssas liberdades. Nossa liberdade € mais amplae mais profunda e aquela que posso ter SoZ aho, Ouvir a liberdade dos outros « bendizé-la é poder apropriar-se do modo de ser livre com os ros homens, é poder compartilhar uma liberdade maior. Retomando o percurso que fizemos, podemos resumir nos- sa reflexdo dizendo que a liberdade nao estdé num querer viver a perspectiva da tempo alidade, nem na 0 que n compromissos, sem a vealizacao de desejos insacidveis de poder e dominagao, tem levado o homem a se sentir cada vez mais sozinho, temeroso e desamparado. Para o Dasein, o apropriar-se de seu dom de s sig aquilo a que ele € conyocado, ou seja, signt- uu modo de ser: servir. Servir livre sig, nifica corresponder fica efetivar o que é peculiar ao se a? Servir para deixar que os entes do mundo se mani- fe as coisas se mostrem em sua verdade; 1 0 fio que retine os aconteci- para qu festem em seu ser, qu servir para criar; servir para tecel i q mentos fazendo deles histéria. isso ele realiza quando faz suse escolhas. E poder escolher € poder ser livre para renunciar e 2 omprometer. at ae de seu ser livre é também poder EL livre para obedecer a si mesmo, numa fidelidade ao seu caminho que se desdobra no tempo; para comprometer-se com © mundo, na correspondéncia as oportunidades; para comprometer-se com os outros, no compartilhar o ser livre dos homens. ETICA E MORAL Entre pessoas que se preocupam com questées humanas, ca e moral foram sempre temas presentes por sua importancia. Mas especialmente em nossa época, a chamada época da técnica, 1 que os homens chegaram a atingir um dominio tao gran- de sobre a natureza, essas quest6es se tornaram particularmente significativas. Agora, quando é possivel controlar praticamente tudo, esses temas ocupam um lugar especial porque ¢ mente esse dominio mostra para o homem o poder que os homens tém de fabricar, de manipular quase tudo. Entao, além das ameaga, que, desde a sua origem no planeta, podem caus: »A08 ho mens, hoje os homens temem a ameaga que vem dos proprios homens; eles tém medo do que os homens sao capazes de faze Nunca esse medo se mostrou como tao anos. O proprio homem esta no centro das ameagas. Sentimos que a seguranga int a da sociedade tor- nam-se um problema grave. E, para garantir a seguranca, 0 que surge como alternativa sio as medidas coercitivas, controlado- 31 4s, por meio das quais os homens tém seus comportamentos vigiados, monitorados. Inaugurou-se, assim, a armadilha da Seguranga versus liberdade, desde 0 comego do século 21, pois ‘s medidas tomadas em beneficio da seguranga frequentemente ignificam uma restri¢do da liberdade das pessoas. Queremos a seguranga, queremos nos ver livres de violéncias, queremos res- peito. E a liberdade? Queremos liberdade também. Encontramo- nos num beco sem saida. Se seguranga e liberdade nao puderem se encontrar num mesmo foco, ou seja, se a questdo for ou segu- ranga ou liberdade, entao temos pela frente um problema muito sério. Por isso, os temas relativos a essas palavras ética e moral nos chamam para que sejam pensados. Etica e moral so assuntos muito amplos, Aqui, entretanto, quero me limitar a considerd-los tendo como foco a Daseinsa- nalyse terapéutica. A tradi¢ao da psicoterapia, desde Freud, pro- pe uma suspensao do julgamento moral. Julgamentos morais nao cabem numa sessao de terapia, pois esse é 0 espaco em que © paciente pode se expor sem restri¢des, pode estar livre para fa- lar de suas experiéncias sejam quais forem. O setting terapéutico deve ser moralmente neutro. Dizemos que ali existe uma neutra- lidade a respeito da moral. Mas, efetivamente, como a Daseinsanalyse compreende essa neutralidade? Neutralidade moral é neutralidade ética? E, mesmo que 0 julgamento moral seja suspenso na sessao, como 0 terapeuta compreende, como ele lida com os conflitos morais e éticos vivi- dos pelo paciente? Ele vai lidar com esses dilemas trazidos pelo paciente impondo a ele uma neutralidade diante dessas quest6es morais que ele vive em sua vida? Assim, a proposicao da neutra- lidade do ambiente terapéutico deixa em aberto a questao que diz speito ao fato de que a vida do paciente comporta também con- cretamente dilemas morais. Como o terapeuta se aproxima disso? Para chegarmos mais perto dessas questdes, vamos pensar © que entendemos por moral, por ética e como esses dois concei- tos se apresentam na Daseinsanalyse. 42 Moral vem de uma palavra latina, mores, que significa cos fumes. A palavra diz inicialmente respeito ao modo como os cos~ tumes efetivamente se objetificam na tradicao. O foco da moral © 4 conduta, 0 comportamento, e isso possui uma relacao direta uma caracteristica dos romanos, o seu pragmatismo, a sua ocupag&o com as quest6es marcadas por pontos de vista bem cretos. Nao é 4 toa que, enquanto os gregos fizeram filosofia, omanos desenvolveram o direito. Moral é 0 conjunto de regras, leis ou principios que limi- tam a liberdade dos homens, possibilitando a ordem social. Esses princfpios nao sio fundamentados, ele tém cardter axiomitico e slo mantidos pela tradi¢ao. Um exemplo na antiguidade é 0 cé- digo de Hamurabi, rei da Babilénia, que constitui a mais antiga colecao de leis, sendo uma referéncia do certo e do errado no ‘0 antropoldgico. Ja o cédigo de Moisés amplia esse alcance, dd um salto para o divino, pois traz para os hebreus 0 Decalogo em nome de Deus. Sao leis fundadas na revelacao divina, que limitam a liberdade dos homens aproximando-os do bem e afas- tando-os do mal. Nesse caso, além do certo e do errado, do que é ou nao é permitido, essas leis dizem respeito ao bem e ao mal. Quero enfatizar aqui a radical necessidade humana de um parémetro moral. Ao longo da historia, as civilizagoes mantém sempre em suas tradi¢ées o que é considerado certo, bom e o que é errado, 0 que deve ser evitado e mesmo proibido. Do ponto de vista social, ja aparece em Platao, em seu didlogo Profdgoras, a necessidade de haver regras morais que organizem o§ compor tamentos dos homens, para que eles nao se destruam. Nesse ¢ dlogo, encontramos, no que diz respeito aos homens; “ .,. busea vam, pois, a maneira de reunir-se e de fundar suas cidades para defender-se. Mas, uma vez reunidos, feriam-se mutuamente, por carecerem da arte da politica, de forma que comegavam nova mente a dispersar-se e a morrer. Entéo Zeus, preocupado ao ver que nossa espécie estava ameagada de desaparecer, mandou que Hermes trouxesse aos homens o pudor e a justi¢a, para que nas 33 cidades houvesse harmonia e lagos criadores de amizade. Her- mes, pois, perguntou a Zeus de que maneira devia distribuir aos humanos 0 pudor e a justica (...) ‘Entre todos — disse Zeus —, que cada um tenha a sua parte nessas virtudes; jd que, se somen- te alguns as possuissem, as cidades nao poderiam subsistir””! Ja mais proximo de nds, Freud, em O Mal-estar na civilizagéo, mos- tra o papel da repressio como fundamento para a organizacdo em sociedade. Limites sempre foram considerados necessdrios. Mas em geral, tendemos a pensar em limite s6 em seu carater restritivo. Poucas vezes nos damos conta de seu carter protetor. O limite protege da confusao, porque limite é 0 que da identidade para algo. Ele é 0 que permite a diferenga, a partir de identificacées distintas para coisas distintas. E 0 que permite a ordem. Os gregos tinham esse modo de ser do limite claramente em vista, quando diziam que, a partir da insercao de limites, 0 caos se transforma em cosmos, a desordem passa a ser ordem. Também do ponto de vista cognitivo, destaca-se a importancia de limites: situacées que sao bem configuradas, figuras cujos limites sao nitidos sio percebidas melhor, nites tem uma fungao protetora para os seres huma nos e especialmente para o desenvolvimento das criancas. Eles protegem especialmente de duas maneiras, Uma delas é a prote- sao diante da imprevisibilidade do futuro, em particular diante da imprevisibilidade das acées humanas. Criangas que vivem a experiéncia de limites conseguem sentir que vivem num mundo em que ha a referéncia da justica. Onde ha clareza com relacao ao que é considerado certo ou errado, a crianga pode antecipar as consequéncias do que ela faz e se inscrever nesse mundo de uma forma segura. Quando ela conhece os limites, ela pode se movi- mentar melhor em seu mundo, sabe que o bem é recompensado ATAO, Protagoras. Em: Obras completas, Madrid: Aguilar S.A., 1986, © © mal punido, e esse € um comego para a possibilidade de pen sar a respeito dessas questdes que sdo tao complicadas tanto a tir do Angulo psicolégico, quanto do filosdfico e religioso. Ha tendéncia atualmente para se pensar que por limites para criangas pode prejudicd-las, que elas precisariam de flexibili- de, Mas a crianga gosta de coisas bem definidas, que tem uma constancia, e reclama mesmo quando algo muda a toda hora. Nesse sentido, ela gosta de rigidez. Temos um exemplo disso ao tarmos uma historia para ela. Ela quer que a histéria seja to- 8 as vezes repetidas do mesmo jeito. Se um dia alteramos a storia, ela diz: “Nao é assim, a palavra ndo é essa, era outra a lavra que a fada falou nessa hora, vocé esta contando errado” a quer ouvir a historia rigorosamente do mesmo jeito. A falta de limites constantes desorganiza a vida da crian¢ Outra maneira pela qual os limites sao protetores consis- te no fato de eles nos protegerem da impoténcia. Essa ideia é contraria aquela que realca a impoténcia que sentimos ao nos depararmos com limites. E que, ao encontré-los, vemos q nao podemos tudo, mas nos damos conta também do nosso poder: o mundo pée um limite para se defender de uma agio nossa que possa ser contraria aos seus interesses, ‘Tendemos a enfatizar que a crianga precisa de limites para a sua protesio. Por exemplo, ela deve ser limitada em seu acesso a objetos cot tantes, a lugares que envolvam perigo de queda; nao deve sair sozinha nem se aproximar de pessoas estranhas. Quando fala- mos para a crianca que ela nao pode fazer algo, parece que sem- pre © que esta em jogo é uma situacao de perigo para ela. Um exemplo disso é uma situagao vivida em minha casa, na minha infancia, quando minha mae chegou da maternidade com um bebé recém-nascido. Todos os dez irmaos estavam reunidos para conhecé-lo, e um dos pequenos, enquanto todos estavam distraidos, foi até ele no berco e, com curiosidade, colocou sua mao no rosto do bebé. Os que estavam perto do bergo e viram disseram para ele: “Pare de por a mio nele, nao pod te dessa proibigao, ele perguntou: “Por qué? Ele morde?” Mas 8 limites existem também para proteger o mundo de nos. Era © recém-nascido quem precisava ser protegido. A nossa acio pode ser destrutiva para o mundo. E isso nos da uma medida do nosso poder, da nossa poténcia. Nesse sentido, podemos di- zer que os limites nos protegem do sentimento de impoténcia; nés nos damos conta aqui de que nossos atos repercutem ao nosso redor. E é importante que a crianga aprenda isso. E bom para ela saber que nao deve brincar perto daquele vaso de que a mamie gosta tanto, pois, se ela encostar nele, ele pode cair e quebrar; nao deve estragar as flores do jardim; nao deve mal- tratar o gatinho; nao deve sair batendo nas outras criangas. Ela nao pode fazer certas coisas porque, se o fizer, outras pessoas ficam tristes, sofrem, as coisas ficam destruidas pela a¢io dela. Saber disso contribui para que ela se sinta como alguém que tem importancia, ou seja, o que ela faz importa sempre; ela ga- nha uma sensa¢ao de poder, como se sentisse que o mundo tem medo dela. Interessante é que o saber desse poder é dado exatamente pela restri¢do que lhe é imposta. Os limites existem para todos nds. O mundo mesmo nos transmite as regras de convivéncia, 0 que cabe e o que nao cabe fazer, tendo em vista o bem-estar das pessoas, a seguranca de que sentimos tanta falta, a ordem social, a protecaéo do plane- ta. Enfim, o mundo pée-nos em contato com valores morais. A referéncia moral funda e sustenta a seguranga das criangas ea dos seres humanos em geral. A seguranga nao nasce do controle, ela nasce antes na confianga na lei moral. Quando essa sensacao de confianga na lei pode ser compartilhada, nés nos sentimos seguros num mundo razoavelmente ordenado, previsivel, onde podemos atuar levando em conta uma dialética de poténcia e impoténcia peculiar a condi¢géo humana. As leis e as regras baseiam-se no principio de igualdade en- tre os homens e, sendo assim, sao impessoais, genéricas e sem exto, Por isso, torna-se necessario que haja uma instituigéo 36 ou figura de poder, por exemplo, pai, juiz, sacerdote, para fazer a insercado das regras em cada contexto. Pensemos agora na ética. Essa palavra vem do grego ethos, » significa originariamente o lugar onde se habita. Foi tradu- no latim por habitat. No pensamento de Heidegger, ethos, » onde provém ética, nao é 0 mero espago fisico, mas sim a morada, 0 abrigo, o lugar onde vivo, onde habito, no sentido de © lugar onde estou “em casa’. E o lugar da liberdade. A palavra liberdade esta sendo tomada naquele sentido como quando dize- mos — sinta-se em casa, 4 vontade, protegido; tenha a liberdade de movimentar-se tranquilamente. Liberdade aqui nao quer di- ver poténcia, mas sim familiaridade, intimidade. Sendo o ethos orada, 0 foco da ética nao é a conduta, e sim 0 significado do e pode ser, em liberdade, o poder compartilhar a morada com outros homens. O foco da ética é a relacgao do homem com os outros homens, com as coisas. Ela instaura essa forma de liber- dade constituida pela intimidade. E como é esse local, a morada? Como se cria esse espago de intimidade? Para a compreensao desse espago que constitui a mora da, quero trazer uma proposic¢aéo que ja pertencia aos gregos. E a seguinte: Os animais nascem uma vez. Os homens nascem duas vezes. O segundo nascimento do homem é o surgimento do propriamente humano, a sua esséncia, a sua humanitas, que é ser livre. Isso ja era claro para os gregos do século 6 a.C., com a fun- dacao dessa coisa nova, a polis, a cidade. O homem livre é 0 ci- dadao, cujo ethos é a polis; ai se acha a sua morada, é ai onde ele habita. O ethos € 0 jeito peculiar de estar com os outros na constituigdo da polis. Essa criagao grega representa uma virada no pensamento ocidental, pois a pdlis tem as suas leis, e nessas leis esta implicita uma recusa do homem a ser simplesmente ser: 47 vo das leis da natureza ou dos deuses. O homem se autorizaa ser legislador; nado so sé os deuses que fazem as leis. Os homens fazem as leis dos homens. As leis dos homens vao constituir 0 ethos dos homens, a cidade dos homens. Mas essas leis nao po- dem ultrapassar as leis dos deuses, pois essas nao pedem a opi- nido dos homens, essas se impéem. Assim, dentro do campo ja imitado pelas leis divinas, os homens introduzem uma nova lei que implica aumentar mais as restrigGes. Introduzem, por exem- plo, 0 tabu do incesto. E como se o homem dissesse: “Eu, como qualquer outro animal, posso me relacionar sexualmente com qualquer parceiro. Mas como homem, nao me relaciono sexual- mente com meus irmaos, meus filhos, meus pais.” Ele nao trans- gride uma lei da natureza, mas cria um limite a mais, introduz uma modula¢ao: posso nao fazer coisas que a natureza permite fazer. Ele afirma sua liberdade impondo-se essa restrigao. Nisso, ele habita o ethos dos homens. No primeiro nascimento, 0 homem habita a morada dos pais. No segundo, ele habita o ethos dos homens, nao apenas a morada natural. Mas como é esse habitar 0 etos dos homens? E apenas curvar-se diante das leis que os homens inventam? Neste ponto, gosto de trazer o exemplo de uma figura exem- plar, Edipo. Gosto especialmente dessa historia porque Edipo é 0 herdi que encarna a contradi¢ao prépria dos homens: 0 poder, pelo limite; a liberdade, pela restrigdo. Nele, tudo é contradigao. Diferentemente dos outros herdis, que sio semideuses, Edipo é completamente humano. Numa cultura como a grega, que valo- riza a perfeicao fisica, ele nao é bonito, é aleijado, como indica © seu nome, que significa pés inchados. Heréis so sempre, pelo menos no fim da historia, bem-sucedidos, mas, quanto a isso, Edipo é o fracasso total. Ele é errante pelos caminhos e, quando derrota a Esfinge, 0 que parecia ser uma vitoria se transforma desgraga de se casar com Jocasta. Heréis sio recompensados, 48, mas Edipo é castigado por Creonte e por si mesmo, Os herdis mam as tradigées, mas Edipo é transgressor, e nio pede desculpas. Talvez o significado do seu nome permita-nos pens je como alguém com pés inchados por ser 0 que erra pelos caminhos, o andarilho, o mendigo. Por que entao tomo Edipo no exemplo de homem livre? Que tipo de herdi ele é? O ordculo ja havia previsto que Edipo estava destinado a seu pai e a se casar com sua mie. Ele n4o escolheu isso, is, fez 0 possivel para escapar desse destino. Depois de tudo, ao constatar o que havia feito, tendo todos os argumentos para » desculpar, ele assume como sua uma culpa absurda. Ele podia ibuir o acontecido aos designios dos deuses. Mas ele nao se desculpa. Seu movimento é justamente o contrario, ele se agarra 41 essa culpa. Edipo se apropria da culpa. Mas por que ele faz isso? Seria por teimosia? E que, desculpando-se, isso equivaleria 4 se ver como fantoche nas maos dos deuses, do destino ou das circunstancias. Assumindo a culpa, é como se ele dissesse que, idependentemente da origem dos fatos, 0 que esta em curso a histéria dele. E a historia dele é dele. E como se ele gritasse que os fatos estéo nas maos dos deuses, mas aos homens cabe a possibilidade de fazer a histéria, de costurar os fatos numa estru- (ura Unica de sentido, isso que inaugura a condi¢ao dos homens. Os homens sao histdrias. Os homens sao histérias constituidas pela articulacao dos fa tos que eles nao determinam, mas que, ao se articularem, fazem a historia que é a de cada um. Cada homem pode dizer: “Esses siio os fatos que me foram destinados, mas esta histéria sou eu; e esta é a minha falta: ser uma hist6ria que ainda nao acabou, que esta em curso. O homem livre nao apenas é, o homem livre ek-si esta vindo a ser a hist6ria que ele esta sendo. Quando o homem é livre, essa histéria que ele esta sendo ainda nao acabou, es curso. O estar em curso de sua historia éa sua liberdade, A liberda de dos homens nao é onipoténcia, como a dos deu consiate antes no fato de eles serem historias que permanecem sempre EM 40 que estao sendo escritas pelas vivéncias, a medida que eles se apropriam dos fatos que acontecem em suas vidas. No final da tragédia Edipo Rei, 0 coro, que na tragédia grega tinha a fungao de dar a moral da histéria, de orientar 0 espectador, diz: Concidadaos de Tebas, patria nossa, olhai bem: Fidipo, decifrador de intrincados enigmas, entre os homens o de maior poder — ai esta! Quem, no pais, nao lhe invejava a sorte? E agora, vede em que mar de tormento ele se afunda! Por esta razio, enquanto uma pessoa nao deixar esta vida sem conhecer a dor, nao se pode dizer que foi feliz’. Ou seja, até que a vida termine, nao se pode dizer que um homem foi feliz ou infeliz, como nao se pode dizer que foi nada, pois, para quem uma histéria se encontra sempre em aberto, como Edipo, enquanto essa histéria nao acabar, em um dia — e um dia € 0 espago de tempo em que se desenrola a tragédia grega — tudo pode acontecer. Tudo pode acontecer na vida desses ho- mens cuja liberdade é ser histéria. Sera que 0 mito reconhece Edipo como herdi? Na descri- G40 da morte de Edipo, aparece uma condi¢ao curiosa. Edipo nao morre como qualquer mortal. Depois de ter se afastado de Antigona, que o acompanhava, ele desce aos infernos. Empunha a sua morte e sai do mundo dos homens se movimentando por si mesmo, com suas pernas, cego, aleijado, miserdvel, expulso da cidade. Esse descer aos infernos com suas préprias pernas signi- fica um apropriar-se da sua morte. Nao é a morte que cai sobre SOFOCLES. Edipo rei, Sao Paulo: Abril Cultural, 1976, p. 91 40 m acontecimento; ele nao é vitimado, ele faz a sua z dela um processo. Morre no sentido mais pleno do e er. E poder morrer dessa forma ¢ a homenagem que +> detses prestam a um mortal. Sé Hércules e Edipo sao destina- W554 poder fazer isso, com 0 respeito dos deuses. fidipo afirma o espaco humano no qual os deuses nao po- Jem interferir, o espaco em que o homem livre pode fazer da sua istéria uma histéria propriamente sua. Depois de termos trazido Edipo como exemplo do homem livve, do homem que se apropria dos acontecimentos de sua vida favendo deles a sua histéria, que afirma sua liberdade aceitando 4 restri¢do, que afirma seu poder aceitando a culpa, podemos a falar sobre a ética. A ética diz respeito, como dissemos, ao segundo nascimento omem, do homem livre. Pois todos nascemos homens, mas ornamos humanos. A condicdo humana nao é uma proprie- ide, nao é uma qualidade. E uma obra permanentemente cria- sustentada e produzida. E uma histéria feita pela apropriagéo dos acontecimentos da vida de cada um. Ser humano nao é uma licdo dada e pronta. Nascemos homens e cotidianamente nos zemos humanos, ou nao. E porque é assim, os homens podem > tornar desumanos. Sartre diz, num prefacio de um livro sobre tortura, que s6 os homens podem ser desumanos. Quando o homem se aliena da sua historia, da historia que sendo, naquele sentido em que Hannah Arendt se refere ao lar da banalidade do mal, ele perde a condi¢ao de humanida- de que o caracteriza como aquele a quem compete ser dia a dia tecelao de sua histéria, cuidando de sua morada humana. Ao cuidar do seu ethos como quem tem a liberdade da intimidade com a sua morada, ao cuidar assim da morada que o faz humano, ele vai se tornando seu ethos, ele se torna ético. O homem livre se histéria sendo o ethos, a morada dos acontecimentos da sua vealidade, Para o homem, liberdade e construg4o do ethos sao \uma coisa so, Disso decorre que: S6 ¢ livre propriamente, no sentido da pdlis, o homem que é ético, $6 é ético o homem que se disp6e para a liberdade. O homem se faz humano na ética. Btica 6a obra humana que constitui a humanidade dos ho- mens. Da mesma forma que cada homem cotidianamente se faz humano, também a morada dos homens, a polis, precisa ser sus- tentada pela ética para ser o lugar onde os homens podem ser histéria e fazer historia. Etica é a apropriacdo da moral no sentido da autenticagao da liberdade que ¢ restrigado e do poder que € culpa. Restri¢ao, porque o ser livre do homem inclui limites e porque suas esco- lhas implicam rentincias. Culpa porque, sendo uma historia em aberto, o homem esté sempre em falta diante de seu poder-ser, de sua necessidade de corresponder a sua esséncia, que consiste no cuidado de si mesmo, dos outros e do mundo. Dissemos antes que a moral diz respeito ao conjunto de princfpios e regras que norteiam o comportamento dos homens, estabelecendo restrigdes da liberdade individual com vistas 4 harmonia do convivio social. Essas regras, ao serem estabeleci- das, devem poder ter uma universalidade, ou seja, devem servir para todos. Isso corresponde a tradi¢ao judaico-crista e também ao pensamento de Kant quanto a esse tema. Subjacente ao es- tabelecimento das leis morais esta presente a questao da justi- ¢a, ¢ isso implica que deveres sejam assumidos e direitos sejam respeitados, Por isso, frequentemente, a violagao daquelas leis morais consideradas fundamentais numa sociedade podem ser objeto de sangdes. Mas quando pensamos na palavra ética, vemos que ela su- pde algo mais do que a moral. Como dissemos antes, a palavra #{ica liga-se ao poder habitar 0 ethos, 0 espago ou a morada onde hhomem livre, 0 cidadao, compartilha a sua liberdade com os sutros homens, liberdade que nao significa exercicio de poder, mas sim familiaridade com o pér em pratica o cuidado, exata- mente isso que caracteriza o homem livre. contramos no livro de Yves de La Taille, Vergonha, a jerida moral, um relato que ilustra bem o que dizemos aqui. Fle cita um estudo de Carol Gilligan, pesquisadora americana, fo qual essa mostra como a ética pede que mais coisas, além ireitos e deveres formalmente considerados, sejam levadas em conta. Gilligan, em seu estudo, faz uso de algo proposto pelo psi- jogo americano Kohlberg. Trata-se de um famoso dilema que costuma ser dado para ser resolvido pelos sujeitos de pesquisas dentro do campo da psicologia moral. Eo “dilema de Heinz’, 1 que estao implicitas questoes de direitos e deveres: direito a vida, direito & propriedade; dever de roubar um remédio, dever de facilitar ou de dar um remédio, O dilema ¢ 0 seguinte: um. homem sem recursos deve ou nao roubar um remédio para sal- var sua esposa da morte, se esse remédio salvador ¢ propriedade de um farmacéutico que se recusa a qualquer negociagao em relago ao prego? Gilligan propés esse dilema a dois sujeitos de onze anos, um menino, Jake, e uma menina, Amy. Os dois deram respostas muito diferentes a pergunta. O menino diz que é absolutamente légico que Heinz deve roubar o remédio, pois a vida humana yale mais do que o dinheiro. Jake encaminha sua resposta de uma forma racional, partindo de um principio que poderia ser reconhecido por qualquer pessoa. Para Amy, a situagao apresen- tada é um verdadeiro dilema, é um desafio. Ela é menos catego- rica do que Jake. Ela hesita e diz: “ele nao deve roubar o remédio, mas também sua mulher nao deve morrer” (...) “Se ele roubasse o remédio, ele poderia salvar sua esposa, mas, Se fizesse isso, po- deria ir para a cadeia, e, entao, sua mulher poderia ficar mais 43 doente de novo, e ele nao poderia obter mais remédio, e isso nao podia ser bom. Por isso, eles deviam realmente conversar sobre © assunto e achar algum outro meio de conseguir dinheiro.”* A menina concentra-se em aspectos particulares e concretos das relagdes humanas envolvidas no caso. Gilligan, embora reconhega alguma ingenuidade em Amy, da importancia 4 sua capacidade de nao equacionar o problema como uma questao de légica e de ver nele um fato humano, em que estao envolvidas relagées entre pessoas concretas. Amy nao vé af uma questo de justica somente, ela vé um drama pessoal — o que sera da vida da esposa de Heinz se ele for preso? Ela recorre a outras possiveis saidas. Esse dilema costuma ser visto pelos pesquisadores como uma questéo moral a ser pensada a partir do ponto de vista da necessidade de justica. Mas Carol Gilligan trouxe um outro olhar sobre 0 assunto e chamou a atengao para a questo ética existente na situacao, chamando-a de ética do cuidado. Nos podemos ver na resposta da menina algo fundamen- tal: o tempo. Na ética da justica, o tempo nao aparece. Mas, na ética do cuidado, o tempo aparece como muito importan- te, pois os atos humanos tém desdobramentos no tempo. As quest6es dos homens nao se resolvem levando em conta s6 0 momento, porque os homens sao histérias. O homem se alonga no tempo histérico, Quando nos aproximamos da ética do cuidado, vemos que os dilemas humanos pedem mais do que o imediatismo de solugées baseadas apenas em valores e juizos morais rigidos. O dilema precisa ser superado com 0 cuidado que o considera como algo que esta se dando no presente, mas que faz parte de uma histéria que esta aberta para o futuro e que, por isso, vai necessitar ser integrado nessa historia. E, nos conflitos entre DELA TAILLE, Yves. Vergonha, a ferida moral. Petropolis: Editora Vozes 2002, p. 22. homens, é importante buscar acordos, buscar a mediacao de outros homens. Os homens, que se tornam humanos dia a , que habitam a pélis, que tém no ethos a sua morada, nao devem se alienar dos outros homens, eles precisam contar uns m os outros. Ea ética na terapia? JA nas primeiras entrevistas, no momento do contrato, é © para o paciente que o que ele expressa ali nao é objeto de gamento moral. Nesse sentido, aquele ¢ um espaco de neu- dade moral. Mas, em beneficio da seguranga do paciente e do terapeuta, um limite existe. E um unico limite. E esse limite € exatamente aquilo mesmo que constitui o recurso fundamental do nosso trabalho: a linguagem. Na sessao, tudo poder ser dito, pode ser expresso de alguma maneira, mas nada além da lingua- gem. Nesse caso, limite e recurso séo a mesma coisa. No trato com as questées trazidas pelo paciente, frequente- mente aparecem temas ligados a dilemas morais. Nao € papel do terapeuta julgar moralmente os atos do paciente, nem tampouco dar ligdes. Mas faz parte de seu trabalho olhar com ele para a questao que esta sendo vivida, pois ter de se haver com esse as- sunto faz parte da vida humana. © trabalho da terapia envolve 0 cuidado compartilhado entre terapeuta e paciente, tendo em vista o desenvolvimento do homem livre, o segundo nascimento do homem, pelo qual os homens se fazem propriamente humanos, pelo qual eles se tornam capazes de se apropriar das restrigées morais dentro da vivéncia da liberdade ética. Esse trabalho envolve a dedicagao 4 tarefa de tecermos com aquele paciente a ética que permite que os acontecimentos que se dao na sua vida sejam acolhidos como algo que deve se integrar na sua histéria que esta sendo vivida, sem alienacio, mas com 0 comprometimento de quem sabe que aquela histéria é a sua, diz respeito a ele. Como terapeutas, precisamos nos lembrar de que as questées humanas nao podem se restringir ética da justiga, embora a j 45

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