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CAMILO - Daniel Veiga

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Camilo PAST ea A aLeL Personagens Camilo Charlotte O Notario D. Anténia Roiz de Sousa O Fantasma do Camilo-Pai Rubrica 1. Camilo deve ser representado por um homem trans, pelo menos até o ano de 2059. 2. Charlotte deve ser representada por uma mulher trans ou travesti, pelo menos até o ano de 2059. 3. De alguma forma, os nomes das cenas devem chegar ao publico. 4. O Fantasma do Camilo-Pai deve ser representado por um objeto inanimado. 1— Meu corpo é uma jaula (Estamos diante de um comprido ¢ altissimo muro numa noite contraditéria: da espessa névoa, desenham-se contomos de festivos baldes, 05 mais coloridos. O muro, desgastado desde o principio, {rd ruir ainda mais, aos poucos, ao longo do tempo. Surge Camilo trazendo uma lanterna que guia seus passos.) A VOZ (ORACULAR) DE CHARLOTTE ~ Vocé é um homem deste tempo! Um homem que as vezes olha apavorado praquela massa enorme andando com uma cadéncia musical no rush da estagao de trem. Vocé vé as cabecas se moverem suavemente como péndulos. Péndulos. Suaves. Nao como os dos reldgios. So mais como zumbis andando sem sentido, apenas levados por algum instinto primitivo. Zumbis de cadéncia musical. Vocé gosta de historias de zumbis como seu pai gostava de mtisica. Nao tem nada que se possa fazer, no entanto tem tanto pra ser feito, tanto. Passar. Andar sem ser notado. Nao ser confundido, nao ser violentado. Cumprimentar com um aperto forte de mao. Abracar com dois pequenos tapas nas costas. Serd isso? Mas vocé nao quer isso pra vocé, é de se esperar. Vocé nao quer isso, mas as palavras sempre voltam violentas, sempre te espancam, te chicoteiam, te marcam, te obrigando a se jogar no mar sem rumo. NAO FAGA ISSO! Eles nem sabem 0 teu nome, como podem negar a tua existéncia? Eles nao sabem o tamanho dos teus sapatos ou qual o alimento que te agrada 0 paladar, como podem querer que acredite que vocé 6 um erro? Eles nao sabem o nome do teu primeiro amigo ou a soma das tuas angtistias, como podem dizer que vocé 6 uma mentira? Tudo isso esta em vocé, tanto quanto 0 homem que vocé é e que, talvez, teu pai nunca tenha sido. CAMILO — Que horas sio? CHARLOTTE (Se revela da sombra segurando também uma lanterma.) — Voce té muito angustiado. CAMILO — Que horas sao? CHARLOTTE - Ja passa das duas. (Siléncio.) CAMILO - Era pra ele ter chegado. CHARLOTTE - Ele vem. (Siléncio.) CAMILO - Eu nao sei bem o que dizer, sabe? CHARLOTTE -— Vocé vai saber! & teu pai. CAMILO - E se ele nao me reconhecer mais? CHARLOTTE - Ele nao tem como ter te esquecido. CAMILO - Jé faz muito tempo. Eu mudei tanto. CHARLOTTE - Seus olhos ndo mudaram. Um pai que ama o filho nao tem como esquecer os olhos dele. CAMILO - Sei la! Nao é como se ele tivesse se mudado pra outra cidade. CHARLOTTE -— Isso é sé um detalhe, menino. Ou entao eles nao deixariam ninguém voltar. Ia ficar cada um do seu lado e vocés sé poderiam se ver quando fosse a tua vez de ir pra 14. Ou nem isso... Vai saber! CAMILO — Que loucura isso! Quem diri CHARLOTTE — Que isso fosse possivel? CAMILO - E tudo tao esquisito. CHARLOTTE — O universo tem mesmo um jeito estranho de fazer a gente olhar pra algumas coisas. CAMILO - E essa neblina toda?! CHARLOTTE ~ A lua decidiu ficar escondida justo hoje. CAMILO — Quem teve a ideia de encher isso aqui de balao? CHARLOTTE — Tem quem acredite que esse é um momento pra comemorar. CAMILO - Vocé nao acha isso? CHARLOTTE - Eu acho que é mais um momento pra recuperagao. (:m alert.) Escutou isso?! CAMILO - Nao. CHARLOTTE -— Impossivel. CAMILO — Nadinha. Nenhum ruido. CHARLOTTE (se aproxima do muro.) — Quem ta af? CAMILO - Eu teria ouvido. CHARLOTTE - Escuta! De novo. CAMILO -— Vocé ta brincando comigo? CHARLOTTE - Eu ia fazer isso por qué? Numa hora dessas?! Sera que é ele? CAMILO — Nao tem ninguém aqui. CHARLOTTE - E da pra ver alguma coisa com toda essa neblina? CAMILO - E se tiver vindo do outro lado do muro? (Os dois se encaram e encostam juntos a orelha no muro. Siléncio tenso. Um repentino rangido ensurdecedor. Rolam alguns poucos escombros.) 2— Mil quinhentos e noventa e nove (Uma sala de interrogatério num prédio do Santo Oficio portugués. Apenas Antonia e o Notério. Ela foi presa ha pouco e se prepara para o primeiro encontro com o Inquisidor. Ele est nalgum canto concentrado em seus livros. Uma pena na mao completamente suja de tinta preta. Os pés descalcos também estdo completamente sujos da tinta. Até o final, enquanto ele andar, vai deixar seus passos ‘manchados por onde passat. Estarao um tempo em siléncio. Bla tensa. Ele trabalhando.) O NOTARIO (4965s observa por um tempo incdmodo.) — Aquilo que nao dizemos nos Custa tanto. Custa tanto 0 que nao é dito, Calado 14 no fundo. Mesmo amenor palavra é um monstro. (Mais um momento de incémodeo siléncio.) O NOTARIO - Mas também, em que ocasiao dizer? Digo, quando vale a pena deixar de calar? Dar lugar a palavra? A fala mesmo, sabe? (Mais um momento de incémodo siléncio.) O NOTARIO — Faz quanto tempo que a senhora esta aqui? Dois dias? Trés? Espera, deixe-me ver. (Consulta os livros.) Dona Ant6nia Roiz de Sousa. fa senhora, pois nao? Isso. E a senhora sim. Hum... Hum... E a senhora ainda nem chegou aos 30, pelo que vejo aqui. Que coisa! E temos a mesma idade, veja sé. A mesma idade. Ora se isso nao é engracado! (Mais um momento de incémoddo siléncio.) O NOTARIO — Me desculpe. Nao quis usar essa palavra, Engragada nao é bem a ocasiao. (Ela apenas o encara, séria.) O NOTARIO - Esté certa. A senhora esta certissima. Na verdade, eu nem deveria estar me dirigindo a vocé. Se me pegam, Deus sabe como podem me punir. E a senhora bem deve imaginar 0 quanto eles sao bons nis. Perdao! Nao foi isso que eu quis dizer! Eu nao quis que a senhora... Eu nao... Que amolagao! A senhora nao precisa que um idiota como eu a atormente ainda mais. Pois bem, vou me calar até que o Inquisidor esteja aqui. (Ele se senta. Mexe nos livros, faz algumas anotagdes, mas esta inquieto.) O NOTARIO (volta a observé-la por um tempo.) — “Aquilo que nao dizemos nos custa tanto.” £ um bom pensamento este. A senhora vé essa janela atrds de si? Hoje somos obrigados a manté-la fechada, mas, Dona Antonia, eu te garanto que quando ela esta aberta e a lua invade esse salao, um milagre acontece. Nao ha outro lugar no mundo como este em que estamos. Esta janela é 0 ponto certeiro por onde Deus deixa entrar sua luz. ANTONIA - O que vocé quer de mim? O NOTARIO - Isso. Era dirigida a mim. 0 0 que queria da senhora. A sua voz. A sua voz ANTONIA - Pra que isso? O NOTARIO — Pra que isso? Boa pergunta, Dona Anténia. Eu sinceramente no sei como responder. ANTONIA - Se o Inquisidor me pegar falando com vocé... O NOTARIO - Est certo, muito certo. Eu receberia alguma punicao horrivel, mas certamente a senhora sairia mais prejudicada e nao quero seu mal. ANTONIA - Vocé nao quer meu mal. O NOTARIO — Nao, senhora, nao quero. Sei que aos seus olhos o meu oficio nao fala muito a meu favor, mas me acredite, s6 cumpro minhas obrigagdes, Nao sinto 0 menor prazer nisso. ANTONIA - Esté certo, entio. O NOTARIO - Esta certo, ento. Com licenga. (Ele volta aos livios. Ant6nia volta a esperar) O NOTARIO - Que falta de sorte a sua! Hum hum. Sair das asas da madre igreja e ser pega tao longe. Vai-se tanto dinheiro com essa histéria de Visitagao. Juntam-se os padres, arma-se a viagem, meses cruzando o mar com toda sorte de intempéries e tanto para qué? (Baixo.) Eu entendo que se queira manter a pureza da nossa fé em todos os cantos, mas va lA, causar tanto transtorno por conta de meia duzia de almas que deixaram nossa terra ha tanto tempo?! Acho que, em proporgao, 0 custo nao seria tao alto se meus superiores s6 ficassem por aqui e deixassem duas ou trés almas se perde... Bem, é melhor eu nao continuar. ANTONIA - Por que vocé se arrisca? Tem algum propésito nisso? Nessas coisas perigosas que voce diz? O NOTARIO ~ S6 é perigoso se me ouvirem dizer. Ou se vocé falar. Mas niio acredito que a senhora vai querer fazer algum favor a eles depois de tudo que lhe fizeram. Ou vai? ANTONIA ~ Que horas vao me interrogar? Nao posso esperar na minha cela? O NOTARIO — A senhora logo vai conhecer as regras deste lugar. ANTONIA - Que inferno! (Anténia parece se arrepender no momento em que termina de falar.) O NOTARIO (Comeca a siz) — Mas é isso mesmo 0 que venho tentando dizer! Isso aqui é 0 inferno. ANTONIA - Quem é vocé? O NOTARIO - Eu sou 0 notério, oras. ANTONIA — Deve ter enlouquecido 0 pobre. O NOTARIO — Nao! Isso nao. Eu nunca estive mais sao em toda minha vida miserdvel. A sua situagdo é assim tao horrivel que a senhora vé insanidade em questionamentos perfeitamente légicos e plausiveis? E tudo porque sou quem sou? £; apenas o meu oficio, oras. Além disso, eu nunca toquei num tinico fio de cabelo de qualquer prisioneiro aqui. ANTONIA - Pode nao ter tocado, mas é cimplice de todas essas atrocidades. Sentado confortavelmente, tomando nota de cada solugo em meio a uma confissao forgada, escrevendo com sua tinta lodosa cada gemido que se solta aqui dentro. Me fala, como vocé descreve nossa afligdo? Vocé narra com riqueza de detalhes ou usa figuras de linguagem e exclamacoes? (Siléncio.) O NOTARIO (atisteitissimo.) — A senhora sabe mesmo o que é uma figura de linguagem, nao 6? Eu bem supus que soubesse! Eu conheco os motivos que a trouxeram ao carcere. Agora, eu pergunto, como a esposa de um. colono iletrado que vive no fim do mundo sabe tanto das letras? ANTONIA - Eu nao devo ser interrogada pelo inquisidor? O NOTARIO — Apenas uma resposta, Dona Anténia e prometo que te deixo em paz. Me diga: a senhora é uma mulher triste? 3-— A dama de vermelho (Camilo e Charlotte continuam com ouvidos colados ao muro. Passa-se um breve momento de completo siléncio.) CHARLOTTE (Ainda colada ao muro.) — Vocé ja viu a chuva que vem se aproximando? CAMILO - Ja. CHARLOTTE — Quando a tempestade vem chegando num dia quente quando 0 céu fica mais bonito. CAMILO - Os dias contraditorios sdo os mais bonitos. CHARLOTTE — Quando 0 ar ta muito frio, mas o sol ta brilhando no céu azul. CAMILO — Ou quando té muito calor e chove forte. CHARLOTTE - Isso. O problema da chuva é que ela esconde o seu cheiro. CAMILO — Vocé gosta do meu cheiro? CHARLOTTE — Tenho gostado mais a cada dia. CAMILO - E 0 remédio. CHARLOTTE — Nao fala assim. Quando vocé fala isso faz parecer que vocé é doente. (Uma digressio: Ambos assumem uma postura narrativa, embora ainda se encarem de vez em quando.) CHARLOTTE — Vem a substancia e 0 cheiro dele muda. Eu me lembro da pecadora que usou um unguento pra lavar os pés de Cristo. Como 0 éleo que ela usou, a substdncia também o purifica. E todo o liquido que sai dele ganha esse perfume forte que eu gosto. £ como um balsamo que mostra mais um pouco de quem ele 6, embora ele saiba que nao precise tomar nada pra provar quem ele 6, Ele nao precisa, mas eu sei que faz bem a ele sentir no olfato e na textura essa pele nova. CAMILO ~ Meu cheiro... Serd que ela ainda pensa no cheiro daquele desgracado? CHARLOTTE - 0 que sera que ele pensa quando me encara desse jeito? Serd que ele pensa nos homens que passaram por mim? CAMILO - O ultimo. CHARLOTTE — Eu lembro de cada um deles. Nenhum como ele. CAMILO - 0 infeliz te machucou. CHARLOTTE - Vocé foi correndo me ajudar. Vocé tava num encontro. CAMILO - Eu tava num encontro. Era uma bobagem. CHARLOTTE — Vocé ¢ tio bonito. CAMILO - Eu chego no apartamento dela. Aquele cheiro forte de cigarro misturado com alguma bebida barata e forte. Provavelmente mais de uma. Ela gosta de misturar, principalmente quando ta nervosa. CHARLOTTE - Os olhos principalmente, apesar do nevoeiro... CAMILO — A luz ta desligada. Alguma coisa no chao. CHARLOTTE - 0 que eu mais gosto é como ele ri pra mim. Ele nao ri desse jeito pra mais ninguém. Ou ri e eu nao sei? CAMILO - 0 abajur. Tem vidro pelo chao. Tem cacos espalhados por toda asala. CHARLOTTE - Ele entra em casa sem bater. Ele nao precisa anunciar a chegada. Nao ele. A lampada do abajur td estilhagada pelo chao junto com a garrafa de uisque. Eu detesto uisque. Principalmente um que tenha vindo do infeliz que me deixou neste estado. CAMILO - Ela pode ver coisas que ninguém mais consegue. CHARLOTTE - Ele me chama no meio da penumbra. A luz. que vem da rua é fraca, mal alcanca a janela da sala. Sorte a minha. CAMILO — Eu sei que ela ta na sala. Ela nao responde, mas faz. um barulho qualquer. Ela precisa que eu saiba que ela ta 14, mas ela nao quer falar e eu sei por qué. CHARLOTTE- Eu tava morta de vergonha. CAMILO — Ela sabe que pode me contar tudo, Eu sempre deixo 0 que t6 fazendo e corro até ela quando ela precisa. Que merda! Isso nao é bom. CHARLOTTE -— Eu queria ser mais forte. Queria poder resolver as coisas sozinha. Mas anda tao dificil ultimamente. Eu s6 tenho ele com quem contar. CAMILO - Charlotte? CHARLOTTE - Eu quase digo onde eu t6. CAMILO — Por que essa escuridao? CHARLOTTE - 0 abajur caiu. Acho que ele quebrou. CAMILO - Eu peco pra ela acender a luz da sala, entao. CHARLOTTE — Nao. Deixa assim. CAMILO - Aconteceu de novo. CHARLOTTE — Eu nao quero que ele veja as manchas roxas nem o sangue no meu nariz. Eu tenho vergonha. E tudo tao dramatico. CAMILO - Eu digo que ela ta me assustando. Cadé vocé? CHARLOTTE — Aqui atras do sofa. CAMILO — O que vocé ta fazendo ai? Que porra é essa?! Quem fez isso com vocé? CHARLOTTE - Eu nao respondo. £ mais facil assim. CAMILO - Ela comega a chorar. CHARLOTTE - Eu odeio chorar! CAMILO — Nao tem muito o que fazer. Peco pra ela se acalmar e vou la dentro pegar um curativo. A noite vai ser longa. CHARLOTTE - Eu e meu dedo podre pra homem. Por que eu nao posso...? Ta ser tio mais facil. (Volta o rangido ensurdecedor e os dois se colocam alertas.) 4—Mile seiscentos (Na sala de tortura, Ant6nia esté suspensa pelos bracos, abertos como os de Cristo na cruz. Algo que m pesos nos pés uniclos forcam seu corpo para baixo. Esta desacordada. Um dispositivo que ‘vemos soa como um metrdnomo, entrecortado de tempo em tempo por um bip eletrénico.) O NOTARIO — Dona Ant6nia. Dona Anténia! Eles ja sairam e nao voltam tao cedo. Tem alguma coisa que possa fazer pela senhora? .... Dona ‘Antonia, por favor, fale comigo. A senhora quer agua? ... Eu ndo queria vé-la neste estado, mas nao sei como ajudar. A senhora tem alguma sugestao? ... Quem sabe se a senhora, talvez, colaborar com as informacdes de que precisam? Eu sei. Eu sei que pode parecer um estratagema para fazé-la confessar, mas eu juro que meu desejo de ajudar €sincero. Dona Anténia? ... Sabe, estar neste lugar me é complicadissimo, mas o que posso fazer? Tem caminhos sem volta, caminhos com uma porta s6 de ida. Nao hé melancolia ou arrependimento que nos faga voltar atras. O que eu posso fazer com isso? Quando nao se tem como voltar e também nao se tem como seguir adiante? Eu sei que me arrisco falando assim, mas veja que ironia: a senhora é a tinica que me entende e que, talvez, me possa ajudar. Veja a minha situagao, a unica pessoa que me pode salvar é uma mulher desacordada presa a um aparelho de aflicdo! Mas é porque aqui (aponta a propria cabeca), aqui € um reino ao qual estes homens nao tém acesso. Nem todo poder e dinheiro que eles confiscam podem tocar 0 que ha nestes dominios. A senhora vé? Consegue compreender de onde vem a nossa forca? E alguma coisa, pois nao? Sim, eu acho que sim. Sinceramente... Dona Antdnia, se lembra de nosso primeiro encontro? A senhora nunca me respondeu aquela pergunta: a senhora é uma mulher triste? 5 — Mais do que consigo dizer (Finalmente Camilo ¢ Charlote se afastam co muro.) CAMILO — Que horas sao? CHARLOTTE -— Ainda nao deu trés. CAMILO - Ele nao vem. CHARLOTTE — Para com isso. CAMILO - Ele nao vem. CHARLOTTE - 0 que vocé preparou pra ceia? CAMILO - $6 0 que ele gostava, claro. CHARLOTTE -— Eu sei, menino, é 0 que todos fazem. Mas 0 que exatamente vocé fez? CAMILO - Eu nao consigo lembrar de muita coisa. Minha mae cozinhava pra gente. Eu tentei lembrar o que ela fazia pra ele, mas nao consigo até agora. CHARLOTTE — Tudo bem, faz muito tempo. CAMILO - Eu nao consigo lembrar da voz dele. Eu perdi, sabe? Aqui no ouvido. A voz. O compasso da fala. O jeito de gesticular. Talvez, se nao fossem as fotos, teria esquecido o rosto dele também. Por que ele viria, Charlotte? Por que ele voltaria pra um filho que nao se lembra dele? Por que ele voltaria pra um filho que nunca teve? CHARLOTTE — Quem disse que ele nunca teve um filho?! Quando vocé era crianga e ele brincava com vocé no quintal, os dois sem camisa, nao era com 0 filho dele que ele brincava? Quando vocé chegou em casa com o cabelo cortado pela primeira vez e ele achou bonito, nao era o filho que ele tava elogiando? E quando vocé comprou aquelas botas maiores que 0 seu pé, lembra disso? O que foi que ele disse mesmo? CAMILO — Que s6 nao era pra eu usar por dentro da calca, igual militar, porque ia ficar esquisito. CHARLOTTE - Olha ai, Camilo! Camilo. Vocé tem 0 nome dele. E 0 nome do seu avd. Isso nao € coincidéncia. Eu acho que ele te via antes mesmo de vocé se ver. Sempre foi vocé, menino. (Um novo rangido de portio pesado e enferrujado se abrindo.) CAMILO - Pai? (AntGnia e Notétio no mesmo lugar.) O NOTARIO — A senhora nunca me respondeu aquela pergunta. A senhora éuma mulher triste? (Devagar ela levanta a cabeca e o encara.) 6 — Enquanto minha guitarra lamenta docemente (Uma sombra projetada no muro logo toma forma concreta: 6 Camilo-Pai, que também traz. uma lanterna a frente, mas a lumindria é diferente, nao parece ser deste mundo.) CAMILO - Pai? (© fantasma esté petrificado diante de Camilo, lumindria a frente, como que 4 espera de algo.) CAMILO - Sou eu. CAMILO-PAI CAMILO - Sou eu. Seu filho. CAMILO-PAI CAMILO — Vem comigo, pai. CAMILO-PAI (Camilo olha pra Charlotte.) CHARLOTTE — Desculpa, mas eu nao consigo ajudar. Vocé sabe que ele s6 consegue ver vocé, CAMILO — Vem comigo. Pra ceia que eu preparei pra vocé, La eu explico tudo. (A sombra de Ant6nia e do Notatio invade o espaco em que esto Camilo e o pai. O Notario segura uum livro e a partir daqui narraré o fantasma do Camilo-Pai.) O NOTARIO - 0 fantasma pergunta onde esté Camila. CAMILO -— Vocé nao me reconhece, pai? O NOTARIO - 0 fantasma pergunta onde est Camila. CAMILO - Olha pra mim. (Camilo se aproxima da lanterna do pai.) O NOTARIO — 0 fantasma diz que o reconhece de algum lugar. CAMILO - Sou eu. O NOTARIO - 0 fantasma pergunta onde esté Camila. CAMILO - Eu t6 no lugar dela. O NOTARIO - Eu nao posso ir com vocé, rapaz, diz o fantasma. CAMILO - Como ass... Por que nao? CAMILO-PAI -... CAMILO — Por que vocé nao pode vir comigo? O NOTARIO - Ele deve seguir com a sua filha, ele diz. buscaria por uma noite. ela que 0 CAMILO — Vocé pode vir comigo. O NOTARIO - Ele diz que nao tem um filho, ¢ eles sabem disso. Vao achar que esto sendo enganados. Que ele quer fugir. (Camilo tenta controlar o desespero. Comeca a cantar ~ ou tentar ~ WHILE MY GUITAR GENTLY WEEPS. Ant6nia canta algumas notas com ele.) O NOTARIO — 0 fantasma parece reconhecer o rapaz e, em tom assustado, pergunta o que ele fez. CAMILO - Eu me limpei, pai. O NOTARIO —- Um corpo mutilado. CAMILO — Nao. Isso nao. Nao foi uma mutilagao. Eu jamais faria isso. Eu deixei de ser cabega flutuante pra ganhar um corpo que me pertence. O NOTARIO - Camila? CAMILO - Camilo, pai. E Camilo. Agora vem, por favor. O NOTARIO — Eu nao posso, diz o fantasma. CAMILO - Por que nao? O NOTARIO — Eu devo sair daqui com a minha filha, diz o fantasma. CAMILO — Isso nao tem cabimento! Quem ¢ essa gente que proibe que vocé esteja comigo?! Nao importa o que mudou, vocé ainda é meu pai. O NOTARIO — Quanto tempo passou desde que eu vim pra ca? Pergunta o fantasma. CAMILO — Quase vinte anos. O NOTARIO — Quase vinte anos. O tempo passa diferente 14 dentro. Parece que foi ontem. CAMILO - Pra mim nao faz diferenga. O NOTARIO -~ F muito tempo. Quem é vocé? Pergunta de novo o fantasma. CAMILO - Achei que vocé ia ficar feliz de me ver. O NOTARIO - £ estranho. Ele precisa voltar. CAMILO — Nao! Nao me deixa aqui sozinho. O NOTARIO - Ele precisa falar com eles. CAMILO - Vocé volta? O NOTARIO ~ Para nao pensarem que eu estou os enganando, diz, enquanto some na neblina. CAMILO - Vocé volta? 7 — Através do universo (Anténia ainda esta suspensa, © Notétio sumiu nas sombras.) ANTONIA (ainda suspensa.) — Alguma coisa, em algum momento, deu muito errado. Eu nao acho que nés vamos conseguir descobrir um dia nem- quando-nem-onde-nem-como isso aconteceu. Era uma vez uma Forga que corria desordenada e livre pelo mundo, e todos nés tinhamos um pouco dela dentro de nds. Mas dai, alguns, nao sei nem-quando-nem-onde-nem- como decidiram dividir essa Forca em duas, como se houvesse apenas a possibilidade de duas grandes poténcias, dois grandes polos. Mas ainda assim, apesar disso, as Forcas nos habitavam. A todos nés. Sem distincao. De maneira geral, chamar de “duas” era s6 um jeito de chamar. E elas néo se importavam com essa pequeneza que vinha da limitagdo humana. Talvez até rissem disso. Mas dai, nao sei bem nem-quando-nem-onde- nem-como elas comecaram a se antagonizar. Ou nés fizemos isso com elas. Foi quando a gente comegou a entender que uma Forga tinha mais forga sobre a outra. Nos entendemos que ela era mais forte e que tinha mais direitos numa época em que nem se sonhava em falar sobre direitos e sobre antagonistas. E o mundo foi perdendo equilibrio porque essa Forca foi ganhando o corpo dos homens. Nao da humanidade. Dos HOMENS. Dos HOMENS DAQUELE TEMPO. E eles entendiam que Ihes era permitido fazer 0 que quisessem com quem ni fosse dos seus, ignorando que a outra Forga, aquela que foi subjugada também anda com eles. Mas eles a negam porque sao estupidos e a acham fraca. Agora, como pode ser fraca uma Forca que da luz ao mundo? Uma Forca que é a criadora de tudo que existe no universo? Mas esses homens a negam 0 mais que podem e tém vergonha de admiti-la. E ficam violentos e estupram a terra e assassinam a terra, ignorando que sao parte dela e que ela também os habita. E eles a negaram tanto e durante tanto tempo que eu jd nao acredito que haja uma cura. Foi-se o tempo da regeneracio. Talvez agora seja o tempo para o levante. E tempo pra que a grande Bruxa, aquela que sempre andou com as velhas e as meninas sem ser negada — porque as vezes até as velhas e as meninas correm 0 risco de nega-la — é tempo de que ela venha a luz e reestabelega o balango. queria estar menos cansada pra ver isso. Talvez fosse isso que eu diria Aquele homem de maos e pés sujos que insistia em me incomodar enquanto eu estava encarcerada, mas ele podia se irritar com minha resposta e me machucar ainda mais, porque um dia alguma feiticeira me contou que a violéncia é 0 tiltimo recurso de um homem que se sente impotente. 8 — Por que se preocupar? (Camilo espera. Charlotte se aproxima,) CHARLOTTE - Vambora, menino. CAMILO - Vocé lembra do iltimo homem que ficou contigo? CHARLOTTE - Como eu ia esquecer? CAMILO - 0 que vocé viu nele? Antes de ele fazer aquilo com vocé? CHARLOTTE — Que pergunta dificil. CAMILO — Nao deve ser dificil entender o que te atraiu nele. CHARLOTTE - E sobre isso? CAMILO — Se nao quiser, nao responde. CHARLOTTE — Nao. Tudo bem. f que nao é uma coisa que ta no campo das ideas. £ mais como uma energia que me puxa. Eu vou indo vou indo vou indo e quando vejo, ja fui. E arrisco, mesmo sabendo das chances de dar errado. Porque eu ainda acredito que um dia possa ser diferente, Eu sou dessas. CAMILO ~ Esses homens... O meu pai... CHARLOTTE — 0 que tem eles? CAMILO -... CHARLOTTE - 0 qué? CAMILO - Vocé acredita em vidas passadas? CHARLOTTE — Nao. Mas eu no acreditar nao significa que eu estou certa. CAMILO - E se vocé estiver errada? CHARLOTTE - 0 que vocé quer saber exatamente? CAMILO — Eu quero saber 0 que teria acontecido se eu tivesse nascido diferente. Se eu seria como 0 meu pai ou como o cara que te machucou. CHARLOTTE - Talvez. Mas por que se preocupar com 0 que nao foi e nem vai ser? Pelo menos niio nessa vida. CAMILO — Eu nao queria que 0 meu cheiro tivesse mudado. CHARLOTTE - Um pequeno prego a pagar. CAMILO — Eu nao quero me tornar um deles. CHARLOTTE — Entao nao se torne. CAMILO - Parece facil, mas 6 que 0 pesadelo... CHARLOTTE — Que pesadelo? CAMILO — Tem um pesadelo recorrente que me persegue e me faz mal. (Uma digressio: Eles assumem uma postura artificialmente animada. Charlotte pega um violdo — melhor se for um ukulele — e comeca a tocar animada.) CAMILO (Dangando sorridente, sempre artificial.) - Eu sou um grande ditador. Sou um homem que aprisiona pessoas para interrogé-las, assedid-las, torturd- las e depois entregé-las pra justica executd-las porque eu nao posso, em hip6tese alguma, ter sangue nas MINHAS maos. E tinha essa mulher entre os prisioneiros. Ela me encantou assim, de primeira, porque ela era diferente. Tinha um ar inteligente, olhos agucados. Jeito de quem sabe mais do que € permitido saber. Eu gosto de gente assim. Eu agi diferente com ela. Ofereci uma cadeira de verdade. Em vez de choque elétrico, café. Em vez de socos, agticar. Eu nao conseguia ver as reacdes dela, s6 os olhos, que a esta altura, estavam assustados e curiosos. Eu queria cavucar a cabecinha dela, abrir com um martelinho pra descobrir 0 que ela tava pensando, mas se fizesse isso eu corria 0 risco de perder aqueles pensamentos pra sempre, ¢ isso eu no podia deixar acontecer. Ela, muito firme, no abria a boca, nao soltava um A. Meus encantos de general nada puderam contra ela. E 0 tempo foi passando e eu fui me cansando. E ainda mais a sensagao da irritacao. Sim, porque aquele siléncio foi me deixando com édio mesmo, muito ddio, tanto 6dio que eu troquei a cadeira dela. (Pausa na misica ¢ na danca.) E nada dela falar, Troco 0 café e o adogante pelo servigo de praxe da casa. Eu sou o ditador, mas fago questao de fazer o servico eu mesmo. Entdo eu comeco a socar. (Retomam a miisica e a danga.) Socar socar socar socar socar socar socar socar socar socar socaR socAR soCAR sOCAR SOCAR! E ela apagou. E eu joguei agua gelada na cabega dela. E recomecei. E dei choques também. Choques e mais choques nas pontas dos dedos e nas pontas das orelhas e nos mamilos e até na vagina. E eu apaguei muitos cigarros no corpo dela, todos os que eu conseguia fumar. Mal apagava um e ja acendia outro. E acendia e acendia e acendia e acendia e acendia e acendia... E quando ela tava apagada e desfigurada eu dei um beijo carinhoso e agradeci. Agradeci porque, se ela tivesse contado o que sabia, eu poderia ter me decepcionado e a magia teria acabado. (Acaba a mtisica. Um momento de siléncio.) CAMILO (Angustiado.) Por que eu nao sonhei que era a moca, Charlotte? 9— Mil dois mil trés mil e... (© Notério esté diante da sombra gigante dos inquisidores.) O NOTARIO ~ Eu sei que os senhores me convocaram por conta das acusacées de que tenho conversado com uma das prisioneiras. Mas eu garanto, vossa reverendissima, que nao passa de uma caliinia, uma difamacio. (A luz revela Anténia, maltrapitha e cansada.) ANTONIA - Mentiroso! Qual o teu interesse em mim? Todas aquelas perguntas sem sentido, me atormentando quando cruzava 0 meu caminho, disposto a tirar 0 pouco da paz que eu encontrava na solidao do meu carcere. Tanto para qué? Por uma curiosidade abjeta de saber meus pensamentos? Nao bastava violar-me o corpo. Era preciso atormentar minha paz? Qual forca move teus intentos? O que, em mim, nao é aceitavel para vocé, a ponto de te fazer arriscar a reputacao, 0 emprego, a propria vida? (€ interrompida pelo mesmo rangido alto, Mais escombros. Da direcio do ruido volta também o tique tagque do metrénomo.) (Camilo, no seu canto, também é afetado pelo barulho.) (0 rangido e o tique-taque se misturam, aumentam de ritmo e volume até uma explosdo sonora que Ihes fete os ouvidos e é silenciada repentinamente. ‘Uma chuva forte comega e o muro ganha uma fenda nascida de uma enorme rachadura, iluminado por strana luz.) (Camilo some na fenda.) O NOTARIO (Apioxima-se de Antonia.) — O que, em vocé, no ¢ aceitavel a mim, a senhora pergunta. Nao se trata disso, Dona Antonia. £ mais sobre como a senhora soube confrontar 0 seu tempo. ANTONIA - 0 tempo... 0 senhor jd parou para pensar na natureza do Tempo? Que, talvez, aquilo que chamemos de ontem e de amanha seja um delirio, um devaneio que nos desvie das coisas que importam? Se eu Ihe disser que num tempo adiante, muito distante, numa era de maquinas avangadas e ferramentas maravilhosas, havera quem trate 0 conhecimento como inimigo e prefira a ignordncia, vocé vai acreditar? Outro dia vocé me pediu ajuda para entender o que poderia fazer estando preso num limiar onde nao se tinha como voltar nem seguir adiante, mas onde vocé também nao podia ficar parado. E se nao se pode seguir, voltar ou parar, para onde se vai? O NOTARIO - Foi uma pergunta para alguém que eu sabia nao estar preparada para responder, como eu nao estou, mas ao menos, é preciso saber fazer a pergunta. ANTONIA - £ preciso saber fazer a pergunta! Vocé é naturalmente curioso e disposto a correr atrés de uma ideia. Quando algo o incomoda profundamente, quando alguma coisa te impede de respirar s6 de pensar nela e Ihe dizem para que esqueca porque isso é passado, vocé nao Ihes da ouvidos, mas isso nao lhe da o direito de estar onde vocé esta. O NOTARIO — Eu sei que a afligi, embora nao tenha sido minha intencao. FE minha fung3o importund-la quanto mais afundada na lama a senhora esteja e, agora, vocé estd morrendo, Anténia. O perturbador é que, em algum lugar, eu e vocé também somos devaneio, ¢ iluséo ou nao, eu nao acho justo que s6 agora nés possamos comegar a compreender 0 que & tudo isso. ANTONIA — Quem sabe, talvez, em algum outro momento, vocé volte a tempo de entender o que precisa e possa olhar melhor para os seus erros? O NOTARIO — Uma nova chance como um propésito divino? ANTONIA — Nao estou falando disso, até porque, se hé um deus, ele 6 0 Tempo, 0 unico onipresente, onisciente e onipotente, e o Tempo nao tem tempo a perder com um plano césmico ou com 0 destino dos homens. Mas eu também acredito que, de alguma forma, eu e vocé fagamos parte de uma corrente e que, iluso ou nao, somos elo, um anel muito pequeno, mas indispensavel. Escuta. Vocé esta ouvindo? O NOTARIO - Estado me chamando do outro lado. Eu preciso ir. (O Notario some na fenda.) 10 — Chuva e lagrimas (Camilo surge, um pouco perdido, do mesmo lugar por onde o Notario sumiu, Traz uma bacia com ( ge, uM p gua e panos limpos.) ANTONIA - Quem é vocé? CAMILO - Eu t6 procurando um homem, o meu pai. ANTONIA - O que é isso? CAMILO - Me entregaram quando eu vinha pra ca. ANTONIA - Vocé é estranho. CAMILO — Eu escutei uma coisa. Vocé consegue ouvir? ANTONIA - A Bruxa? CAMILO — £ como vocé chama essa voz? ANTONIA - Vocé consegue escuté-la? Como pode? CAMILO - Antes eu nao conseguia. Agora escuto 0 tempo todo, ANTONIA - Vocé ¢ diferente dos outros homens que eu conhego. (Anténia cai, fraca. Camilo vai amparé-la.) CAMILO (Fscutando alguém que nao vemos.) — Ela quer que vocé fale. ANTONIA - Isso nao te assusta? CAMILO - Fala do que foi. Pra poder ir adiante. ANTONIA — Nos nos conhecemos? CAMILO - Me conta da noite em que vocé nasceu. (Camilo passa a limpé-la, como um banho que se d num acamado. Também ira trocar seus trapos por uma roupa limpa que encontrara logo.) ANTONIA (Com algum esforco.) — Eu nasci numa noite sem lua. Minha mae falava de como a noite estava calma quando me teve. Por causa disso, ela jurava que eu teria uma vida tranquila como a noite do meu nascimento. Eu acreditava nela, porque minha infancia também foi assim, sossegada. Eu era quieta, diferente dos meus irmaos e irmas. Quando nao ajudava em casa, eu gostava de brincar sozinha embaixo da arvore que tinha no quintal. Eu fui preparada para ser uma boa esposa e uma boa mie e tudo parecia bem até que virei moga e aquela paz comegou a ir embora. Nada a minha volta mudou, nada além de eu ter crescido. Essa queimagaéo me acompanhava dia e noite, apertava no peito e na cabeca. Aprendi a ler e a escrever sozinha, sem que minha familia soubesse. Conseguia os livros com um velho, um vizinho. Ele me dava a tinica coisa capaz de fazer voltar 0 sossego: palavras, pontuagdes, acentuagoes, lacunas, oragdes inteiras dancando diante dos meus olhos, contando-me o mundo inalcancdvel. Mas nestes dias isso é proibido para alguém como nés. £. esse 0 meu crime e 0 motivo do meu carcere. Eu estou muito cansada. Nao sei mais quanto tempo eu aguento. CAMILO (Tomando para si a propria vor aos poucos.) — A violéncia 6 0 tiltimo recurso de um homem que se sente impotente, moca. E ela é tudo que se pode ter contra nds. Nada mais! Existem muitas de nds espalhadas por ai, por isso, onde houver édio levemos resisténcia. Onde houver ofensa levemos o suor da luta. Onde houver discérdia levemos a escuta, porque se nés ouvirmos pode ser que um caminho se abra, mas se nao se abrir, que haja atengao para nao deixarmos que nos anulem. Onde houver dtivida levemos afeto. Onde houver desespero levemos a esperanca. Onde houver tristeza levemos 0 peito aberto. Mas se houver trevas levemos as armas, porque nao vamos perdoar aqueles que nos querem exterminar deste mundo nem morrer pra que eles vivam. Nao é morrendo que se vive. E resistindo. ANTONIA - Quem é vocé? CAMILO - Meu nome é Camilo. Vem, bota a cabega no meu colo. Dorme um pouco. Talvez, por enquanto, a gente consiga um pouco da paz da sua infancia. 11 — Detalhes (© muro rui mais um pouco. A chuva. Charlotte, ainda em tom professoral.) CHARLOTTE - Segundo a Wikipédia, 0 figado, do latim ficatu, 6 a maior glandula e 0 segundo maior 6rgao do corpo humano. Funciona tanto como glandula ex6crina quanto glandula enddcrina, seja 14 0 que isso signifique e localiza-se no hipocdndrio direito, epigdstrio e mais algum bla-bla-bla fisiolégico que s6 quem € da area médica entende. Seu peso aproximado é cerca de 1,3 a 1,5 quilogramas no homem adulto e um pouco menos na mulher. Mas, afinal, qual o tamanho do figado de um homem num corpo de fémea? O que é um corpo de fémea? E um corpo de macho? Estamos limitados a tao pouco? O quanto esse corpo suporta de horménios, injetaveis ou via oral até que se possa alcangar algum prazer nele? Quanta testosterona sintética um figado aguenta antes de explodir? Sera que ele explode mesmo? Sera que ele muda nosso comportamento? Sera que nos deixa menos sensiveis? Mais praticos? Mais agressivos? Com mais energia? Com mais tesiio? Mais propensos a impaciéncia? Mais propensos a ganhar massa magra? Com mais fome? ... Camilo e aavemente, Camilo (Charlotte vai terminando o texto enquanto some na fenda. Ela logo surge onde e Ant6nia. Ela toma o lugar de Camilo e repousa a cabeca de Anténia em seu colo, faz um gesto de agradecimento, cumplicidade e volta pela fenda.) 12 —A casa do sol nascente (Camilo se depara com 0 Notitio, olhando-o com curiosidade.) O NOTARIO - Hey. Escuta, rapaz. Nao adianta esperar. Ele no vem mais. CAMILO — Quem é vocé? Como vocé sabe que ele néo vem? O NOTARIO — Teu avé se chamava Camilo também, nao &? CAMILO - Sim. O NOTARIO - Teu tataravé também, acredita? Pois sim. Era Camilo. Um homem do seu tempo: um pouco bruto, mas trabalhador. Dai 0 filho dele se chamou Anténio. E 0 filho do Anténio, seu av, voltou a ser Camilo. Assim como 0 seu pai. E agora vocé. Uma geracao de homens do seu tempo: brutos, mas trabalhadores. Quer dizer, tem vocé... CAMILO — 0 que vocé quer? O NOTARIO ~ Vocé nao nasceu bem “Camilo”. Mas vocé sabe dessas coisas melhor do que eu, Eu sou sé uma sombra de um outro lugar. Nao entendo algumas modernices. CAMILO — Eu quero saber do meu pai. O NOTARIO — Teu pai morreu ha mais de vinte anos, rapaz. Vocé sabe bem disso. Larga 0 caixaio desse defunto. CAMILO ~ A noite do banquete existe pra isso. Pra gente se encontrar e resolver as pendéncias. O NOTARIO — Quais pendéncias? CAMILO — As ébvias. Aquilo que ta na sua cara. O NOTARIO — Vocé acha que isso é uma pendéncia? Ou é mais como um pedido de permissao? CAMILO - £ claro que nao. O NOTARIO — Vocé lembra da tiltima vez em que esteve com teu pai? CAMILO - Claro. Foi um pouco antes dele morrer. O NOTARIO — Vocé conseguiu se despedir? CAMILO - Talvez. O NOTARIO - Talvez? CAMILO - Eu falei com ele. Ele tava desacordado, mas. O NOTARIO - Mas. CAMILO — Eu senti que ele apertou minha mao. Acho que me escutou. Mas isso pode ser uma meméria falsa, um desejo de que isso seja verdade. O NOTARIO — Ninguém precisa de uma noite de banquete com os mortos, rapaz. O lugar dos mortos e 0 dos vivos nao devia se misturar nunca. Pelo nosso bem e pelo bem deles. O apego é 0 verdadeiro inferno. Escuta, eu nao sei bem que homem é vocé. Com certeza, de onde eu venho, vocé acabaria na fogueira como algum tipo de desvio da natureza. CAMILO ~ Isso nao ¢ tao estranho de ouvir hoje em dia, acredite. O NOTARIO - Mas a mim nao importa mais. Eu cai aqui incumbido de te dar esse recado. CAMILO - Por quem? ... De onde vocé veio? ... Vocé é um deles? O NOTARIO — Eu sou s6 0 que se chama “um homem do meu tempo”, como teu pai, teu av6, teu tataravé. Meu oficio é o da escrita. Mas sou um funcionario, portanto as palavras que escrevo nao me pertencem. O que registro 6 o medo, registro angiistias, dores, a propria morte as vezes. Mas nao sou um deles. Ainda. Eu venho do que se chama “um tempo mais simples”, um tempo em que se reconhecia um homem a distancia, Um tempo em que as coisas pareciam estar no devido lugar. (Camilo 1 irdnico.) Veja bem, eu nao disse que ESTAVAM no devido lugar, mas PARECIAM estar. Essa sensacio falsa nao era questionada e deixava tudo mais tranquilo. Ao menos para os homens de bem. Veja bem, rapaz, eu nunca tive nada contra algumas diferencas, até gosto um pouco delas porque deixam as coisas mais... excitantes, digamos assim, mas do lugar de onde venho admitir isso 6 o fim de tudo, por isso, apesar de estarmos conversando, nao irei muito adiante. CAMILO - E 0 que acontece agora? O NOTARIO — Nao sei 0 que acontece agora. (Um momento de siléncio. © Notario parece impaciente.) O NOTARIO - Eu tenho uma tltima pergunta para vocé. Me diga, vocé é feliz? CAMILO - Se eu sou feliz? O NOTARIO — Ou realizado. Ou satisfeito, afortunado. Bem-aventurado, alegre, auspicioso. CAMILO — Vocé acredita nesse negécio de felicidade? O NOTARIO ~ Se eu acredito? Se eu estou perguntando... CAMILO - E tristeza? Infelicidade. Melancolia. Desgosto, afligao, sofrimento, miséria... O NOTARIO — Eu sempre acredito na miséria. E com ela que eu trabalho. CAMILO — Por isso vocé fugiu dele? O NOTARIO - Do meu trabalho? Eu nao fugi. Eu te disse: eu cai deste lado e fui incumbido de falar com vocé. Estou cumprindo meu oficio e, com isso, pretendo ser levado de volta ao lugar ao qual pertengo 0 quanto antes. CAMILO — Vocé é um tipo de escrivao pelo que entendi. O que vocé descreve? O NOTARIO - £ um trabalho confidencial. CAMILO - Confidencial e, no entanto, vocé ja falou sobre ele. © NOTARIO — Uma pincelada para causar alguma impressiio. Nao posso ir para além disso. CAMILO — Vocé trabalha pra algum tipo de ditadura? O NOTARIO — Nao estou familiarizado com 0 termo. CAMILO - Seu patrao é algum tipo de tirano? O NOTARIO - Patrées. Eu no sirvo a um tinico senhor. Mas o mestre de todos nds esta acima de toda tirania e injustiga. CAMILO - E como vocé pode registrar tanta dor e angustia, até mesmo a morte, servindo a um mestre tao bom? O NOTARIO — Eu nao disse que ele era bom. Vocé nao é um desses tipos iludidos que ndo entendem como as coisas funcionam! Nossa existéncia é atroz, um tumulto selvagem de desejos incontrolaveis, terrivelmente violento. O medo deles é nao saber lidar com 0 que acontecerd quando a noite invadir o dia e o dia invadir a noite. Quando o inverno for quente e 0 verdio gelado. Ha quem acredite que os homens precisam ser retos, que 6 preciso ter o braco firme, do contrario, tudo explode. CAMILO — Vocé nunca parou pra pensar se isso faz, sentido? Essa postura diante do mundo? O NOTARIO - Eu sé anoto. Mas eles nao! Eles dirao que um homem de verdade nao tem tempo para isso, que é preciso seguir, imperturbavel e sem desvios. Por isso, segue teu caminho, rapaz, e deixa os mortos no lugar. (Volta o rangido.) O NOTARIO - Bem, é preciso voltar. Foi uma conversa bem interessante. Passar bem. (O Notario some na névoa. Aos poucos ela de dissipa e 0 espago ganha novas cores, mais vivas.) 13 — Os idos de outros séculos (© Notério ressurge ao lado de Antdnia, revigorada, limpa e com o vestido que Camilo Ihe vestiu. Eles se encaram por um tempo.) O NOTARIO — Gostaria que a senhora soubesse que Ihe tenho profundo apreco. ANTONIA - Gostaria que o senhor soubesse que lhe tenho profundo asco. Sobretudo aquilo que o senhor representa. O NOTARIO - & justo. ANTONIA - Afinal, aquilo que nao dizemos nos custa tanto. Custa tanto 0 que no ¢ dito. O NOTARIO - Entio, decidiu falar comigo finalmente? ANTONIA - Eu nio estou falando com o senhor. O NOTARIO ~ Ab, nao? ANTONIA -~ Absolutamente. Nesta manha, minha sentenga foi lida num auto de fé e fui entregue a justica secular para a execucio de minha pena. O senhor estava ld. Fui queimada numa fogueira de quase trés metros ao lado de outras trinta e oito mulheres. O NOTARIO — Pois sim, uma pena. Uma grande perda. ANTONIA -~ Nao precisa ficar assim. Nés bem sabemos que, apesar de tua crenca, nao é nenhum peso para o senhor compactuar com o exterminio dessas mulheres. O NOTARIO - Gostaria que fosse. ANTONIA - Talvez, quem sabe, em outra vida. O NOTARIO - Seria possivel? Voltar diferente? ANTONIA ~ Nao quero Ihe dar muita esperanca. Isso me deixaria muito irritada. O NOTARIO - Esta certo. ANTONIA - Tem alguma coisa naquilo que vocé me falou, na qual eu também acredito. Agora, sobre aquela pergunta que sempre me fazia, vocé deveria ter direcionado melhor sua angiistia. O NOTARIO - Nao era uma angistia. (AntOnia responde com um sorriso de escérmio.) O NOTARIO — Digamos que vocé esteja certa. A quem deveria, entio, ter direcionado a pergunta? ANTONIA (Ri muito.) — Oras! Nao lhe parece dbvio, senhor notario? (Ela some atras do muro.) 14 — The air that I breath (Camilo esta juntando os bales festivos espalhados pelo espaco. Junta-os todos e os solta, Charlotte surge pela rachadura no muro.) CHARLOTTE — Vocé nao foi embora! CAMILO - Sem vocé? Jamais! CHARLOTTE — Vocé s6 tava ME esperando? CAMILO — Vocé e ninguém mais. Como ela esta? CHARLOTTE — Descansando. CAMILO - Bom, entao acho que foi tudo como devia ser. CHARLOTTE - Entao nds estamos indo? CAMILO - Estamos. CHARLOTTE - £ se ELE voltar? CAMILO - Se ele voltar, ele ndo vai mais me achar aqui. S6 isso. CHARLOTTE - E pra onde a gente vai? CAMILO — A gente vai pra algum lugar onde dé pra dancar. CHARLOTTE - Aqui é um bom lugar é bom pra dangar. CAMILO - Sem misica? CHARLOTTE - “E aqueles que foram vistos dancando foram julgados insanos por aqueles que nao podiam escutar a miisica.” (Digressao final|: Toca THE AIR THAT I BREATH, dos Hollies. Enquanto Camilo danga sozinho, Charlotte iré traduzir a miisica frase a frase, como as tradugdes de rédio dos anos 1990. A tradugdo sera s6 até a PRIMEIRA METADE do refido, depois os dois iro dancar juntos. Nao precisa ser uma danca comum. Os movimentos podem ter uma partitura que revele mais destes, corpos transitérios e que conseguem achar a beleza de suas patticularidades. £ uma danca leve, quase como se fosse possivel uma libertacao.) If L could make a wish Se eu pudesse fazer um pedido, I think I'd pass ‘Acho que deixaria passar: Can‘ think of anything I need Nao consigo pensar em nada que eu precis No cigarettes, no sleep, no light, no sound Nem cigarros, nem sono, nem luz, nem som, Nothing to eat, no books to read Nada para comer, nem livros para ler... Making love with you Fazer amor com vocé Has left me peaceful, warm, and tired Me deixa tranquilo, aquecido e cansado. What more could I ask O que mais eu poderia pedir? There’s nothing left to be desired Nao sobrou nada para ser desejado... Peace came upon me and it leaves me weak A paz me encontrou e ela me deixa fraco. So sleep, silent angel, go to sleep Entao durma, anjo silencioso, va dormir... Sometimes, all I need is the air that I breathe As vezes, tudo que eu preciso é do ar que eu respiro And to love you E amar vocé All I need is the air that I breathe Tudo que preciso ¢ 0 ar que respiro, Yes to love you E amar vocé (...) (A misica continua.) Camilo e Charlote dangam até que a miisica acabe.

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