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Condiçoes Da Alienação A Linguagem

Este artigo analisa as aproximações e distinções entre autismos e psicoses em crianças, particularmente no que diz respeito à alienação - operação constitutiva do sujeito - em cada um deles. Os autores discutem como diferentes psicanalistas teorizam sobre essas psicopatologias a partir da noção lacaniana de alienação.

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Condiçoes Da Alienação A Linguagem

Este artigo analisa as aproximações e distinções entre autismos e psicoses em crianças, particularmente no que diz respeito à alienação - operação constitutiva do sujeito - em cada um deles. Os autores discutem como diferentes psicanalistas teorizam sobre essas psicopatologias a partir da noção lacaniana de alienação.

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Aproximações e distinções entre os

autismos e as psicoses em crianças:


condições da alienação à linguagem

Vanessa Gama Pozzato


Angela Maria Resende Vorcaro

Resumo

Este artigo se propõe a melhor compreender essa diversidade clínica por vezes
nomeada como psicose e noutras vezes como autismo, pontuando algumas
aproximações e distinções existentes entre os dois quadros. Para isso, nos
valeremos da noção lacaniana de alienação, que se refere a uma operação
constitutiva do sujeito, e veremos como diversos psicanalistas teorizam sobre
essas psicopatologias a partir desse referencial. Concluiremos reafirmando a
importância de distinguir os autismos das psicoses para a direção do tratamento.

Palavras-chave: Psicanálise; psicoses; autismos; alienação; tratamento.

Na tentativa de melhor compreender essa diversidade clínica por vezes


nomeada como psicose e noutras vezes como autismo, pontuamos algumas
aproximações e distinções existentes entre os dois quadros, particularmente
em relação à maneira como se dá a alienação – operação constitutiva do
sujeito – em cada um deles, partindo dos trabalhos de diversos psicanalistas
relativos ao tema que têm como orientação a teoria lacaniana.
As denominações de psicoses e de autismos em crianças, na psicanálise,
têm como via prévia um longo caminho percorrido pela psiquiatria clássica,
seja na tentativa de abarcar em um mesmo quadro de retardo mental todas

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Aproximações e distinções entre os autismos e as psicoses em crianças: condições da alienação à linguagem

as condições subjetivas em crianças, seja estabelecendo correspondência


unívoca com os quadros de adultos, ou seja, tentando cernir especificidades
de quadros psicopatológicos na infância a partir da influência da psicanálise
(Bercherie, 2001). A trajetória traçada pela determinação diagnóstica
orientou as primeiras diferenciações até culminar com a descrição feita por
Kanner (1943/1997) a respeito da síndrome do autismo, num texto intitulado
“Distúrbios autísticos de contato afetivo”, que diferenciaria os autismos da
esquizofrenia infantil.
Lacan nos deixou algumas menções feitas sobre a psicose e o autismo,
ao construir sua hipótese sobre a linguagem como condição do inconsciente,
considerando a clínica de seus alunos (Dolto, Manonni e Lefort) e de seus
contemporâneos (Winnicott e Klein). Entre elas citamos o texto “Os complexos
familiares” (Lacan, 1938/2003), no qual o autor aponta que a ausência do pai
implica num grupo familiar desfalcado, que se torna favorável à eclosão das
psicoses. A análise do caso Roberto, descrito por Rosine Lefort no Seminário
1 (Lacan, 1953-54/1986), por meio do qual Lacan aborda a questão do
diagnóstico da esquizofrenia na criança. A discussão do caso Dick, analisado
por Melanie Klein, na qual Lacan (1953-54/1986) critica a analista por ter
negligenciado o significante ao tratar do simbolismo, pois considera que a
função do simbólico no sujeito não se reduz à significação, mas está organizada
a partir dos significantes. Questiona, ainda, o diagnóstico de esquizofrenia
feito por Klein a respeito de Dick, limitando-se a nomeá-lo como o estado de
um ego não constituído. No Seminário 2, Lacan (1954-55/1985) problematiza
a psicose infantil a partir dos problemas levantados pelo estabelecimento de
um diagnóstico, dizendo da indefinição a respeito da psicose na criança e,
ainda, da importância de distingui-la da psicose do adulto. Em seu Seminário
10, Lacan (1962-63/2005) aborda a psicose infantil, dizendo que “A mãe do
esquizofrênico articula sobre o que seu filho era para ela no momento em
que estava em seu ventre – nada além de um corpo, inversamente cômodo
ou incômodo, a subjetivação do a como puro real” (p. 133). No Seminário 11
(Lacan, 1964/1998), o autor explicita que a solidificação da primeira dupla
de significantes implicará em especificidades para a condição subjetiva, em

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Vanessa Gama Pozzato, Angela Maria Resende Vorcaro

que “temos o modelo de toda uma série de casos, ainda que, em cada um,
o sujeito não ocupe o mesmo lugar” (p. 225). Lacan faz ainda referência a
um trabalho de Maud Mannoni, destinado a retirar o psicótico do lugar
do débil. Em 1969, no texto “Nota sobre a criança”, Lacan (2003) diz que a
família exerce importante influência na constituição subjetiva da criança, na
medida em que a relaciona com um desejo que não seja anônimo. Articula
o sintoma da criança ao que há de sintomático na estrutura familiar, nos
casos em que ele representa a verdade do casal familiar. Numa conferência
intitulada “O sintoma”, Lacan (1975/1998) faz uma aproximação entre o
autista e o esquizofrênico quando denomina a criança de esquizofrênico ou
autista. Essa vizinhança entre as duas patologias também foi mencionada
na série enumerada pelo autor e destacada por um de seus interlocutores
nesse debate: o autista, o obsessivo, o psicossomático e a mulher. Entre as
pontuações de Lacan a respeito da psicose, destacamos o Seminário 3, em
que o autor retoma o caso analisado por Freud (1911/1988) a partir do livro
escrito pelo próprio “doente dos nervos”, Schreber (1895).
Embora não tenha estabelecido uma clínica com crianças, as orientações
de Lacan fomentaram as elaborações de alguns clínicos, dentre os quais
aqueles de que trataremos aqui, como Maleval (2012), Jerusalinsky (2012),
Azevedo (2009), Laurent (2012), Soler (2007) e Vorcaro (2003).
Hoje em dia persistem diferenças significativas nas concepções e práticas
de autores lacanianos em relação às aproximações e às distinções existentes
nos quadros de autismos e de psicoses em crianças, que nem sempre chegam
a ser explicitadas. Tendo em vista um interesse crescente em compreender
essas diferenças, pretendemos neste trabalho dar início a um debate das ideias
desses autores com vistas a situar seus pontos de divergência e convergência.
Consideramos que o eixo teórico capaz de esclarecer tais pontos é relativo
às modalizações da operação de alienação nos autismos e nas psicoses,
operação geralmente considerada como ponto de aglutinação das vacilações
paralisantes que conduzem a esses quadros.
Em primeiro lugar, abordaremos a relação estabelecida entre o autista
e o psicótico com o Outro, por meio do qual um sujeito se constitui. Vale

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alienação e separação
Aproximações e distinções entre os autismos e as psicoses em crianças: condições da alienação à linguagem

lembrar que o Outro é a referência ao lugar no qual se constitui o Eu que fala


com o ouvinte. Sendo o lugar a que todos se endereçam, está situado além
da relação de correspondência estabelecida com o semelhante (Lacan, 1955-
56/2002), mesmo que este possa representá-lo, como é o caso da experiência
da criança com a primeira configuração do Outro, ou seja, o chamado Outro
materno. A partir desse encontro é que o sujeito se constituirá. O movimento
das operações de alienação e separação, verificadas na cadeia significante,
permitirão o advento do sujeito na linguagem.
Podemos localizar a condição psicopatológica da criança na maneira como
ela se aliena e se separa do Outro. Dessa perspectiva, psicoses e autismos se
aproximam ao evidenciarem que houve embaraços na operação de alienação,
que são, no entanto, de ordens diferentes em cada uma dessas patologias,
implicando numa distinção entre elas.
Os termos alienação e separação passam a ser utilizados por Lacan para
se referir às operações constituintes do sujeito a partir do Seminário 11
(1964/1998), que passam, então, a ser utilizados para se referir às operações
constituintes do sujeito, fruto de uma elaboração iniciada no Seminário 6
(Lacan, 1958-59/2013). O autor formaliza a ideia da constituição do sujeito
utilizando a teoria dos conjuntos e suas operações de união e intersecção,
bem como se valendo do termo latino vel (e/ou). Proposto por Lacan para
explicar a alienação, o vel1, que, na lógica simbólica, comporta modalidades
distintas de conexão, é, nessa operação, compreendido no sentido da
reunião: o sujeito ainda não constituído aparece primeiro com o sentido do
Outro, reunido ao Outro e, nessa reunião, o ser (não-senso) fica eclipsado
pelo sentido do Outro (cf. Lacan, 1964/1998, p. 200). Na alienação, o sujeito
nasce subordinado ao efeito do significante devido à ação retroativa da cadeia
falada pelo Outro materno na produção do seu sentido.
Entretanto, toda a relação constitutiva entre o sujeito e o Outro

1 A operação de alienação situa a divisão do sujeito em sua causa. Como vimos, sua estrutura é a de um
vel, derivado de uma reunião do sujeito com o Outro que, entretanto, deixará necessariamente uma parte
encoberta. Ressalta-se que a reunião não consiste numa adição. A reunião do conjunto A= x,y,z com o B = y,z,w,
por exemplo, não resulta em 6 elementos, mas em 4 elementos que constituem o conjunto C = x, y, z, w. Afinal,
os elementos em comum não são duplamente contados. Trata-se de uma escolha que se coloca em termos de
“não... sem”, não o um sem o outro, que tem como consequência nem um nem o outro.

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está marcada por hiâncias, faltas, cortes na linguagem que podem ser
compreendidos por meio da dimensão do inconsciente. Lacan (1964/1998b)
explicita sua concepção da conjunção entre o sujeito e o Outro, localizando o
inconsciente nesses cortes (suspensões, hesitações, repetições, etc.) da cadeia
significante, contrapostos à intencionalidade do falante, capazes de produzir
significados a posteriori. A partir da alienação, esses cortes comandarão a
orientação do sujeito rumo à operação de separação.
Lacan (1964/1998) aponta para o aspecto circular, sem reciprocidade e
dissimétrico na relação entre o sujeito e o Outro: “do sujeito chamado ao
Outro, ao sujeito pelo que ele viu a si mesmo aparecer no campo do Outro, do
Outro que lá retorna” (p. 196). O sujeito será sempre um efeito do significante.
Ao produzir-se no campo do Outro, o significante permite advir o sujeito de
sua significação, que só funciona como significante reduzindo o sujeito ao
próprio significante. A constituição do sujeito se dá, portanto, no campo do
Outro, pois ela depende do significante. A linguagem aguarda o sujeito, que
será inscrito no Outro. Não se trata, nessa alienação, de um sujeito como
consciência de si. Segundo Lacan (1964/1998b):
Não é o fato de essa operação se iniciar no Outro que a faz qualificar de alienação.
Que o Outro seja, para o sujeito, o lugar de sua causa significante, só faz explicar,
aqui, a razão porque nenhum sujeito pode ser causa de si mesmo (p. 855).

O ser ingressa na cadeia de significantes identificado pelo Outro, localizado


no significante que o representa. Assim, referido ao significante que lhe
é conferido pelo Outro, por isso mesmo, no mesmo golpe, algo de seu ser
é elidido, apagado, perdido. No momento em que seu ser é eclipsado, ele
se petrifica, ou seja, está alienado ao Outro. Instaura-se, então, a primeira
operação da constituição do sujeito.
A alienação condena o sujeito a só aparecer numa dimensão em que, se
ele aparece de um lado como sentido, produzido pelo significante, de outro
ele aparece como afânise (Lacan, 1964/1998). Nessa lógica, a escolha é a de
saber qual parte será guardada, pois a outra desaparecerá. Essa reunião se dá
de tal maneira, diz Lacan (1964/1998), que a alienação só impõe uma escolha
entre seus termos ao eliminar um deles, que sempre será o mesmo. O autor

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ilustra essa disjunção com o pedido de “a bolsa ou a vida” ou “a liberdade


ou a morte”. Nesse exemplo, trata-se de saber se a pessoa quer conservar
a vida ou recusar a morte e, na outra questão, se quer conservar a vida ou
a liberdade. De toda forma, a escolha será sempre decepcionante. Ou seja,
o sujeito ficará sempre desfalcado, pois terá a vida sem a bolsa e, por ter
recusado a morte, terá uma vida sem liberdade. O vel da reunião funciona
dialeticamente, pois, ao considerarmos um prazo mais longo, o sujeito terá
que abandonar a vida depois da bolsa e, no final, terá apenas a liberdade de
morrer (Lacan, 1964/1998b). Vejamos:
nosso sujeito é colocado no vel de um sentido a ser recebido ou da petrificação.
Mas, se ele preserva o sentido, é esse campo (do sentido) que será mordido pelo
não-sentido que se produz por sua mudança em significante. E é justamente do
campo do Outro que provém esse não-sentido, apesar de produzido como eclipse
do sujeito (p. 855-856).

O ser do sujeito está posto sob o sentido do Outro. Se escolher o ser, o sujeito
desaparece, cai no não-senso. Se escolher o sentido, o sentido só subsiste cortado
dessa parte do não-senso, essa que constitui o inconsciente. O sentido que emerge
no campo do Outro é, em uma de suas partes, eclipsado pelo desaparecimento
do ser, induzido pela função do significante (Lacan, 1964/1998).
A alienação faz com que o sujeito só possa aparecer como o sentido que
lhe é atribuído, caso contrário nada aparece, ou seja, ele fica em afânise;
enfim, ou tem o sentido atribuído pelo Outro ou nada aparece. A reunião do
sujeito com o Outro deixará sempre uma perda. Portanto, o sujeito não está
todo no Outro, há sempre um resto. Não-todo sujeito está presente no Outro,
pois sempre há um resto que está tanto no sujeito quanto no Outro.
A partir dessa primeira operação de constituição do sujeito, trataremos,
agora, das psicopatologias da criança. Tomamos Lacan (1969/2003), quando
diz que o sintoma da criança decorre diretamente da subjetividade da mãe,
sendo a criança implicada como correlata de sua fantasia:
A distância entre a identificação com o ideal do eu e o papel assumido pelo desejo
da mãe, quando não tem mediação (aquela que é normalmente assegurada pela
função do pai), deixa a criança exposta a todas as capturas fantasísticas. Ela se
torna o “objeto” da mãe e não mais tem outra função senão a de revelar a verdade
desse objeto. A criança realiza a presença do que Jacques Lacan designa como

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objeto a na fantasia. Ela satura, substituindo-se a esse objeto, a modalidade de


falta em que se especifica o desejo (da mãe), seja qual for sua estrutura especial:
neurótica, perversa ou psicótica (p. 369-370, grifos nossos).

Numa nota acrescentada em 1966 ao texto “De uma questão preliminar


a todo início de tratamento” (1958/1998), Lacan explica que é a extração do
que então denomina como objeto a que sustenta o campo da realidade. O
objeto a seria extraído na operação de separação, a segunda das operações
constituintes do sujeito, quando este localiza a falta que intersecciona a ambos
e que o articula ao Outro. Nos autismos e nas psicoses, desde a passagem pela
primeira das operações constituintes – a alienação –, essa extração se dará de
forma diferente, de acordo com alguns autores (Soler, 2007; Vorcaro, 2003;
Bastos, 2003; Maleval, 2012). Destacamos, a seguir, algumas pontuações feitas
por eles a respeito de como a alienação ocorre nas psicoses e nos autismos.
Nos autismos, conforme Vorcaro e Rahme (2011), pode não acontecer a alienação
substituição do ser pelo sentido. O ser, mesmo sendo dado pelo significante, e
separaçã
ficaria aquém da articulação significante, numa substituição que o transportaria
o no
entre significantes. Vejamos, nesse mesmo sentido, o que diz Bastos: autismo
com a perda do ser, não se ganha automaticamente o sentido, pode-se ficar a meio
caminho, hesitante entre um e o outro, vale dizer, congelado. Dito de outro modo,
o gelamento não é exterior nem anterior à alienação (Bastos, 2003, p. 146).

A criança autista entra na alienação significante para, em seguida, recusar-


se a ela, não chegando nem ao assujeitamento à linguagem nem à distinção
das faltas (do ser e do Outro), que se sobreporiam, estabelecendo a interseção
entre o campo do ser e o campo do Outro, em que se opera a separação
(Vorcaro, 2003). Dessa forma, a criança permaneceria ou um puro ser vivo,
organismo, ou pura máquina significante:
na maquinação significante em que se faz ventríloca, nada diz respeito ao
funcionamento do corpo tomado pelo significante e, em suas funções orgânicas,
nada diz respeito ao funcionamento significante. Há um funcionamento paralelo e
exclusivo do ser e do significante, demonstrado por uma exclusão ativa (Vorcaro,
2003, p. 34-35).

Para Maleval (2012), o autista não se situa aquém da alienação, pois


é afetado pela negatividade da linguagem. O psicanalista encontra uma

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evidência disso na descrição do “buraco negro”, mencionado por autistas como


Williams2, que diz: “Sempre tive o sentimento de um buraco negro entre mim
e o mundo” (p. 49). Explicitando a primeira subtração do gozo como relativa
à operação de alienação, o autor esclarece que “Tal buraco angustiante, bem
diferente de uma falta dinâmica, é produzido pela primeira subtração do gozo,
o que evidencia um traumatismo decorrente da intervenção da linguagem”
(Maleval, 2012, p. 49).
Considerando os dados clínicos que atestam que alguns autistas fazem uso
de vocalizações, nas quais frequentemente observamos pobreza do balbucio
ou mesmo sua ausência, Maleval (2012) ressalta que essa contradição dos
dados mostra que o autista ora está incluído na alienação significante, ora
não está, o que lhe permite concluir que o autista está inserido em uma
alienação parcial. Assim, na impossibilidade de se alienar completamente na
linguagem, o autista criaria várias estratégias para contorná-la. Uma delas
seria a preservação de uma voz centrífuga, situação na qual preferiria ouvir
seus próprios ruídos àqueles do Outro, o que o autor exemplifica com o
relato de um autista: “Se colocarmos a cabeça sobre o travesseiro, temos um
zumbido na orelha, e é preciso ficar deitado tranquilamente, o que é muito
bom” (Maleval, 2012, p. 66).
Lembramos daquilo que Lacan (1955-56/2002) diz sobre os ruídos dos
quais os psicóticos se queixam, a partir das frases, murmúrios e comentários,
que são os significantes que estão a falar sozinhos. Esses barulhos constantes
são a infinidade dos pequenos caminhos que indicam vagamente uma direção.
Schreber (1985) relata a experiência de ouvir um “zumbido incompreensível e
contínuo localizado num ponto da parte superior da cabeça, por onde tem a
sensação de ser puxado por um fio” (p. 16).
Nesse ponto percebemos uma coincidência entre manifestações
constatáveis nos quadros de autismos e de psicoses, mas é importante
esclarecermos como compreendemos esses ruídos em cada um deles. No
caso da psicose, Lacan (1955-56/2002) diz que os zumbidos representam

2 Donna Williams é uma autista autora do livro “Meu mundo misterioso, testemunho excepcional de uma
jovem autista” citada por Maleval (2012).

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a ausência de enganchamentos entre as significações e os significantes, e


cessarão quando a corrente contínua de significantes retomar seu caminho.
No caso do autismo, Maleval (2012) atribui os zumbidos a uma dificuldade
de a criança se colocar numa posição de enunciação3, isto é, de falante,
estabelecendo estratégias para evitar que isso aconteça.
A insensibilidade à dor física observada em alguns autistas é explicada
pelo déficit da marca do significante sobre o corpo. O autista não dispõe
de elementos da linguagem que lhe permitam interpretar a sensação de
dor, concatenando-a a uma representação. A sensação ficaria, portanto,
incompreensível, isolada, não suscitando uma reação a ela articulada. A
interjeição (representando o sentimento de dor) encarnaria o S1 sozinho
(Maleval, 2012). O S1, significante unário capturado pela criança na rede da
linguagem, surge no campo do Outro e representa o sujeito para um outro
significante, S2, ao qual se articula (Lacan, 1964/1998, p. 207). Lembramos
que Lacan (1958-59/2002) aproxima a interjeição da holófrase:
E que a Holófrase existe, não há dúvida, a holófrase tem um nome, é a interjeição.
Se quiserem, para ilustrar ao nível da demanda o que representa a função da
cadeia inferior, é “pão!”, ou “socorro”! – falo no discurso universal, não falo do
discurso da criança neste momento. Esta forma de frase existe, eu diria mesmo
que em certos casos ela toma um valor absolutamente insistente e exigente. É
disso que se trata, é a articulação da frase, é o sujeito na medida em que essa
necessidade, que sem dúvida deve passar pelos desfiladeiros do significante
enquanto necessidade, é expressa de uma maneira deformada, mas ao menos
monolítica, ao ponto que o monólito de que se trata é o próprio sujeito nesse
nível que o constitui (p. 84).

Na holófrase há uma solidificação do S1 com o S2 que impedirá que o sujeito


seja representado por outro significante, impedindo que o S2 se constitua. Não
há, portanto, a operação de separação, o que implica na inexistência da inscrição
de um intervalo entre os significantes. Assim, a ausência de reação dos autistas à
dor pode significar que, no autismo, o S1 não se conecta ao ser (Maleval, 2012).
Lacan (1975/1998) aproxima o autismo da esquizofrenia, dizendo que
3 Enunciado e enunciação são termos da linguística que permitem distinguir o dito de seu autor, demonstrando
a diferença entre o sujeito gramatical da frase emitida do sujeito que a sustenta. No Seminário 11, Lacan
(1964/1998) explicita a diferença entre enunciado e enunciação, mostrando que é na enunciação que o sujeito
advém pela linguagem, embora nela se perca. O sujeito do inconsciente, o sujeito do desejo, deve ser situado
no nível do sujeito da enunciação.

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“Trata-se de saber porque há algo no autista ou no chamado esquizofrênico


que se congela” (p. 13, grifos nossos).
Para Azevedo (2009), é justamente o S1 que se congela no autista e no
esquizofrênico. Afinal, se o significante primeiro não representa o sujeito para
outro significante, este significante simplesmente não representa. E, por isso,
nesse caso, o sujeito não comparece.
Segundo Lacan (1955-56/2002), a Bejahung (afirmação) pode faltar
em alguns casos, e a psicose é um deles. A Bejahung primordial é a noção
freudiana que funda o juízo de atribuição e está presente no inconsciente
antes do processo de verbalização (Freud, 1925/2007). Para Lacan (1955-
56/2002), a falta da Bejahung implica numa Verwerfung (rejeição), mecanismo
de defesa da psicose, que implica numa recusa da ordem simbólica e num
reaparecimento daquele conteúdo no real. Assim, Lacan faz uma relação
entre a ausência da Bejahung e a psicose.
Azevedo (2009) parte dessa associação lacaniana para reafirmar que a
problemática dos autismos parece estar circunscrita à ausência da Bejahung,
que não é feita pelos autistas e, por isso, o sujeito dividido não advém. A partir
da primeira simbolização, salienta Azevedo (2009), a criança pode se alojar no
lugar de falo para a mãe. Lembramos que essa posição, segundo Lacan (1957-
58/1999), corresponde ao primeiro tempo do Édipo: “No primeiro tempo e na
primeira etapa, portanto, trata-se disto: o sujeito se identifica especularmente
com aquilo que é objeto do desejo de sua mãe. [...] Para agradar à mãe, [...] é
necessário e suficiente ser o falo” (p. 198).
Partindo de Lacan, podemos supor uma estrutura psicótica nos casos
em que a criança não se destaca do Outro, respondendo como o que falta
ao Outro. Efetivamente, a criança pode assumir um funcionamento que a
mantém alienada, sem interrogar ou distinguir a incompletude do Outro,
no mesmo movimento em que tampona sua falta. Assumindo o lugar dessa
falta, a criança preenche o intervalo entre os significantes, funcionando como
objeto do Outro (Vorcaro, 2003).
É preciso haver um intervalo entre o objeto a e a mãe (que agencia o lugar
do Outro) para que seja constituído o sujeito barrado, não-sabido (Lacan,

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Vanessa Gama Pozzato, Angela Maria Resende Vorcaro

1962-63/2005). Esse intervalo não existiria na psicose, haja vista que a criança
coincide com o próprio objeto para a mãe, ficando colada ao mandato em que
ela é o que falta no Outro (Vorcaro, 2003, p. 36). A criança, assim, encarnaria
a falta do Outro materno.
Vimos que, na psicose, a criança adere ao mandato em que ela é o que falta
ao Outro. Portanto, podemos pensar que na psicose haveria uma afirmação
primordial (Bejahung) que não chegaria a ser estabelecida no autismo?
A esse respeito, diz Azevedo (2009), a Bejahung se refere a uma primeira
afirmação, a um “sim” ao simbólico. Na leitura lacaniana da Bejahung
freudiana, esta implica na admissão de algo no simbólico, pois é uma
afirmação que atribui uma existência: “A condição para que alguma coisa
exista para o sujeito é que haja Bejahung” (Lacan, 1958-59/2002, p. 73).
Desse ângulo, Azevedo (2009) compreende que os autistas não fazem a
Bejahung, mantendo todos os significantes no real. A verbalização de autistas
sem inversão da mensagem recebida é a constatação de que os autistas não
fazem a Bejahung das palavras.
Essa assertiva é corroborada por Soler (2007), quando afirma que os
autistas não fazem a inversão da mensagem recebida do Outro, pois não
entram na alienação significante por conta própria, sendo capturados na
alienação significante apenas no nível da fala e dos significantes do Outro.
Assim, para a autora, os psicóticos e os autistas estão inseridos na linguagem,
mas estão fora do discurso. O autista se encontra num aquém da alienação,
recusando-se a entrar nela e detendo-se na borda. Isso faz com que o autista
seja um sujeito, mas não um enunciador. Sua relação com o Outro se restringe
a poucas demandas estereotipadas e repetitivas, evitando a dialética da fala.
Ou seja, não há enunciação.
No Seminário 11, Lacan (1964/1998) retoma a diferença entre enunciado e
enunciação, dizendo que é na enunciação que o sujeito advém pela linguagem,
embora nela se perca. O sujeito do inconsciente, o sujeito do desejo, deve ser
situado no nível do sujeito da enunciação.
Nos autismos há a enunciação técnica, que permite ao autista se
comunicar a respeito de assuntos técnicos, como Grandin, uma autista que

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faz conferências sobre a sua cattle trap (máquina do abraço inventada por
ela), utilizando a língua funcional, que está interligada a uma enunciação a
respeito de assuntos técnicos, que não envolvem o sentimento do próprio
autista (cf. Maleval, 2012).
A enunciação fugaz é um dos fenômenos considerados mais estranhos na
fala dos autistas. Trata-se do surgimento de uma enunciação que irrompe em
autistas mudos, como, por exemplo, “Devolve a minha bola”, no caso de o
objeto autístico ser tomado da criança. Esse tipo de enunciação ocorre nos
momentos de contrariedade ou de urgência, em que o autista abandona
sua recusa de apelar ao Outro e de empregar a voz na fala. Nesse tipo de
enunciação, o sujeito toma a palavra em seu próprio nome (cf. Maleval, 2012).
Esses momentos raros em que o autista emprega sua voz enunciativa
mostram que ele resiste à alienação ao Outro por meio da retenção de sua
voz e, também, que no autismo não se trata de uma falha cognitiva, mas de
uma escolha do sujeito para proteger-se da angústia (cf. Maleval, 2012).
Diferentemente dos autismos em que, a despeito de a criança sofrer os
efeitos da linguagem, não se aliena completamente nela, a psicose permitiria
localizar a operação de alienação, sendo que a criança se mantém nessa
posição, sem dela se distinguir na operação de separação:
A criança seria um efeito purificado da linguagem, e, portanto, não encontraria,
no intervalo entre significantes, o ponto de corte em que pode alojar sua perda
no desejo do Outro. [...]. A criança fica colada ao mandato em que ela é o que
falta ao Outro. Encarnando essa falta, ela preenche o intervalo entre significantes,
na mesma função de qualquer significante: remete-se a outro significante. Na
solidez em que a cadeia significante primitiva é apanhada, a abertura dialética
está impedida, e o significante representa outro significante num deslizamento
infinito (Vorcaro, 2003, p. 36).

Comparando o autismo e a psicose, Azevedo (2009) sustenta que na


psicose não há uma Bejahung do Nome-do-Pai, que faria com que esse
significante fosse admitido no simbólico. No autismo, no entanto, coloca-se
uma questão anterior à foraclusão do Nome-do-Pai, que é a não inscrição, no
simbólico, de uma simples cadeia de significantes. A questão do autismo se
referiria, então, à falta da Bejahung do S1, que implicaria numa consequente
expulsão do S2 para fora do simbólico.

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Aproximando o autismo da esquizofrenia, Azevedo (2009) afirma ainda


que no autismo há uma sequência de S1 que, entretanto, não faz série. Na
esquizofrenia, também há um S1 que não intervém na cadeia significante.
Sua hipótese sobre o estatuto do sujeito no autismo é que o objeto estaria
presente o tempo todo, mas o sujeito só investiria no traço a partir da falta
do objeto. A autora articula o autismo com a questão do significante unário,
S1, que não intervém na cadeia, associando isso ao fato de o autista não
fazer a Bejahung do significante, não havendo admissão do traço unário no
simbólico. No autismo, não seria possível falar de inscrição do traço unário no
simbólico, pois as palavras têm um peso muito sério. livro
A falta da Bejahung dos significantes vindos do Outro tem como consequência do
a presença excessiva do Outro. Os significantes que não sofreram a Bejahung se autista
e sua
tornam muito potentes e invadem o sujeito, tornando as palavras verdadeiras voz
“coisas”, como diz Freud (1915b/1988) em relação à esquizofrenia: tem
Acontece que a catexia da apresentação da palavra não faz parte do ato de uma
repressão, mas representa a primeira das tentativas de recuperação ou de cura citação
que tão manifestamente dominam o quadro clínico da esquizofrenia. Essas
tentativas são dirigidas para a recuperação do objeto perdido, e pode ser que, dizend
para alcançar esse propósito, enveredem por um caminho que conduz o objeto o isso
através de sua parte verbal, vendo-se então obrigadas a se contentar com
palavras em vez de coisas (p. 208).

Se considerarmos que no autismo não há sequer a Bejahung do S1, as


palavras se tornam ainda mais pesadas do que na psicose, invadindo o sujeito
radicalmente. É por isso que, no autismo, o Outro, trama da linguagem, só
pode ser visto como um invasor.
São bastante esclarecedoras as posições de Laurent (2012) sobre o tema.
Para ele há, na psicose, um transtorno na cadeia entre dois significantes,
S1 e S2. Há uma ruptura na transmissão da mensagem entre os dois, que
é fundamental para implicar numa patologia alucinatória. No autismo,
entretanto, não há essa ruptura, mas, sim, uma repetição do Um de forma
separada do outro, não há um reenvio a um outro.
Tanto os autistas quanto os psicóticos sofrem o “peso” das palavras, que
apresentam uma conotação literal e inflexível. Podemos encontrar relatos disso

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Aproximações e distinções entre os autismos e as psicoses em crianças: condições da alienação à linguagem

no texto de Kanner (1943/1997) e, também, em Freud (1915b/1988), quando


retoma o caso clínico relatado por Victor Tausk, em que a paciente reclamava
que seus olhos não estavam direitos, que estavam tortos. Ela explicou que o
amante havia entortado os olhos dela, pois ele era um entortador de olhos
(expressão que tem o sentido figurado de enganador, em alemão).
Lacan (1955-56/2002) também situou, na psicose, uma predominância
das relações de contiguidade e um enfraquecimento da possibilidade de
o sujeito utilizar as similaridades, as equivalências e a metáfora. Isso pode
ser evidenciado pelo exemplo do efeito da frase interrompida ocorrida no
fenômeno alucinatório. A frase que se impõe é justamente aquela imbuída de
uma característica significante, em torno da qual se organiza todo o delírio.
Vale ressaltar seu testemunho de que não encontrou nenhuma metáfora ao
longo do texto de Schreber (1985).
Pelas hipóteses teóricas acima tratadas, constatamos que existem, sim,
aproximações e distinções entre os quadros de autismos e de psicoses no que
se refere à maneira como acontece a operação de alienação no Outro, ou seja,
a alienação na linguagem. Essas aproximações podem dificultar o diagnóstico
da criança, podendo, por vezes, levar o analista a uma condução equivocada
do tratamento. O conhecimento das aproximações entre os dois quadros
não é importante no sentido de englobá-los numa mesma estrutura, mas, ao
contrário, está a serviço de nos ajudar a discernir entre os dois, permitindo ao
analista encontrar a melhor via de tratamento para cada caso.
Se os autismos e as psicoses em crianças apresentam pontos diferentes de
interrupção no processo de constituição do sujeito, a intervenção do analista
também deve ser localizada e diferenciada em cada um dos quadros. Assim, é
imprescindível investigar mais detidamente os caminhos apontados por Lacan
para a constituição do sujeito, a fim de construirmos as modalidades pelas
quais o analista pode intervir nessa mesma constituição, ultrapassando os
obstáculos encontrados na psicose e no autismo.
A localização do autismo como uma estrutura independente anunciou uma
novidade em relação às estruturas propostas por Jacques Lacan de neurose,
psicose e perversão. Jerusalinsky (2012) reconhece essa distinção e propõe

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considerarmos o autismo como uma quarta estrutura caracterizada pela


função da exclusão, diferentemente dos mecanismos de defesa encontrados
nas três estruturas propostas por Lacan: recalque, forclusão e denegação.
Para o autor, a principal especificidade do autismo em relação às psicoses
infantis está na elisão do outro no aspecto visual e auditivo, causada pela
ruptura da correspondência entre corpo e objeto materno. A função materna
não possibilita que a criança tenha acesso ao imaginário, portanto o falo não
se constitui. Essa posição de Jerusalinsky fica melhor explicitada a partir do
esclarecimento de Cabas (1980):
Sabemos que o sujeito se define por uma alienação fundamental. Sabemos que
esta alienação fundamental supõe dois tempos: o acesso ao imaginário (estádio do
espelho e relação egóica), por um lado, e o acesso ao simbólico (a ordem da função
significante) por outro. Pois bem, é no primeiro tempo que pretendemos situar a
etiologia das Psicoses de Ausência. Não há falo, porque não há acesso ao imaginário,
na medida em que a função materna faz silencio a esse respeito (p. 104).

A hipótese dessa distinção representa o esforço de ultrapassar os


impasses ensinados pela teoria por meio da observação clínica, significando a
abertura de um novo parâmetro estrutural na teoria psicanalítica. Considerar
o autismo como uma estrutura independente da psicose abre uma nova
possibilidade de localização estrutural para o sujeito, o que implica numa
investigação sobre modalizações de atendimento clínico para a estrutura
que ele nos apresenta. Isso fomenta a continuidade da investigação aqui
iniciada, que deve se aprofundar, também, na concepção de estrutura em
Lacan, distinguindo os parâmetros importantes para defini-la como tal, a fim
de também nos posicionarmos sobre as modalidades de diferenciação entre
autismos e psicoses. Se tal discernimento nos permite localizar com maior
precisão o que diferencia essas posições do sujeito em relação ao Outro,
vale sublinhar que elas, entretanto, se mantêm sempre como hipóteses de
trabalho que não adquirem qualquer supremacia sobre a unicidade de cada
caso clínico. Afinal, é na interrogação do diagnóstico que, em psicanálise,
podemos tomar a especificidade de cada caso para problematizar o que há de
universal na teorização, reconhecendo, na tensão universal-singular, o saber
insabido do inconsciente.

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Vanessa Gama Pozzato, Angela Maria Resende Vorcaro

Approximations and distinctions between


autisms and infantile psychosis: conditions
to the alienation to language

Abstract
This article proposes a better understanding of the clinical diversity often
named as psychosis and, at times, as autism, punctuating some approximations
and distinctions between the two categories. In order to do so, we will make
use of the Lacanian notion of alienation, which is referred to an operation
that is constitutive of the subject. In addition, we will review the theoretical
elaborations of many psychoanalysts who deal with psychopathologies
from this standpoint. We will conclude by reasserting the importance of
distinguishing autisms and psychosis in treatment’s direction.

Keywords: Psychoanalysis; psychosis; autisms; treatment.

Approximations et distinctions entre


autismes et psychoses infantile: conditions
de l’alienation au langage

Résumé
Cet article propose une meilleure compréhension de la diversité clinique
souvent nommée comme psychose et, parfois, comme autisme, en ponctuant
certaines approximations et distinctions entre les deux catégories. Pour ce
faire, nous utiliseront la notion lacanienne d’aliénation, qui fait référence à
une opération constitutive du sujet. En outre, nous passerons en revue les
élaborations théoriques de nombreux psychanalystes qui s’occupent de ces
psychopathologies dans cette perspective. Nous conclurons en réaffirmant
l’importance de distinguer les autismes de les psychoses au cours de la
direction du traitement.

Mots clés: Psychanalyse; psychose; autisme; traitement.

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Aproximações e distinções entre os autismos e as psicoses em crianças: condições da alienação à linguagem

Aproximaciones y distinciones entre los


autismos y las psicosis en niños: condiciones
de alienación en el lenguaje

Resumen
Este artigo propone mejor entender la diversidad clínica a veces nombrada
como psicosis, otras veces como autismo, puntuando algunas aproximaciones
y distinciones existentes entre los dos cuadros. Para tanto, tomaremos la
noción lacaniana de alienación, que se refiere a una operación constitutiva
del sujeto. Revisaremos la elaboración teórica de diversos psicoanalistas
sobre las patologías con base en ese referencial. En conclusión, reafirmamos
la importancia de distinguir los autismos de las psicosis para la dirección del
tratamiento.

Palabras-clave: Psicoanálisis; psicosis; autismos; alienación; tratamiento.

Recebido/Received: 3.6.2013/6.3.2013
Aceito/Accepted: 19.10.2014/10.19.2014

Vanessa Gama Pozzato


Psicóloga clínica. Mestre em Psicologia pela Universidade
Federal de Minas Gerais; área de concentração: Estudos
Psicanalíticos.
[email protected]

Angela Maria Resende Vorcaro


Psicanalista; Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo- PUC-SP. Professora do
Departamento de Psicologia da Universidade Federal de
Minas Gerais- UFMG
[email protected]

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