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Lesbianidades em Vídeos No YouTube

1. O documento discute as violências contra mulheres lésbicas nos vídeos do YouTube, apontando a predominância de corpos brancos, jovens, magros e femininos. 2. Analisa como a homonormatividade e a norma de gênero homogeneizam as representações lésbicas visíveis, invisibilizando experiências dissidentes. 3. Discutem como as masculinidades em mulheres, quase ausentes nos vídeos, são vistas como desvio da norma e passíveis de punição.

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Lesbianidades em Vídeos No YouTube

1. O documento discute as violências contra mulheres lésbicas nos vídeos do YouTube, apontando a predominância de corpos brancos, jovens, magros e femininos. 2. Analisa como a homonormatividade e a norma de gênero homogeneizam as representações lésbicas visíveis, invisibilizando experiências dissidentes. 3. Discutem como as masculinidades em mulheres, quase ausentes nos vídeos, são vistas como desvio da norma e passíveis de punição.

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Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação

XXX Encontro Anual da Compós, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP, 27 a 30 de julho de 2021

LESBIANIDADES EM VÍDEOS NO YOUTUBE:


homonormatividade e violências1
LESBIANITIES IN YOUTUBE VIDEOS: homonormativity and
violences
Joana Ziller2
Dayane do Carmo Barretos3

Resumo: partimos da análise de vídeos do YouTube relacionados às lesbianidades para apresentar


uma discussão sobre violências que se dirigem a mulheres lésbicas. Com base em uma noção
ampliada de violência, que além da violência física abarca também as simbólicas, tais como a
invisibilização e a fetichização, propomos uma reflexão acerca das normatividades nesses
processos. Acionando estudos sobre normatividade, homonormatividade e produção das
diferenças, apontamos para a homogeneização dos corpos visíveis nos 863 vídeos obtidos em duas
coletas, utilizando as tags lésbicas e sapatão. As análises trazem à tona a presença predominante
de mulheres brancas, jovens, magras e que performam feminilidade, em uma atuação conjunta do
fenômeno algorítmico rich-get-richer e da norma de gênero. Por fim, discutimos como as
masculinidades em mulheres, quase invisíveis em nossas coletas, explicitam o desvio da norma - o
que faz delas, na coleta, passíveis de punição pela agressão física.

Palavras-Chave: youtube. lésbicas. masculinidades. homonormatividade. violências.

Abstract: we started from the analysis of YouTube videos related to lesbians to present a discussion
about violence that targets lesbian women. Based on an expanded notion of violence, which in
addition to physical violence also encompasses as symbolic, such as invisibility and fetishization,
we propose a reflection on the normativities in these processes. Triggering studies on normativity,
homonormativity and the production of differences, we point to the homogenization of the bodies
in the 863 videos searched in two colects using the tags lésbicas and sapatão. The analyzes reveal
the predominant presence of white, young, thin women who perform femininity, in a joint
performance of the rich-get-rich algorithm and the gender norm. Finally, we discuss how
masculinities in women, which are almost invisible in our databases, explain the deviation from the
norm - which makes them subject to punishment for physical aggression.
Keywords: youtube. lesbians. masculinities. homonormativity. violences

1. Introdução
Brancas, jovens, magras, sem deficiência e performando feminilidade. Assim são as
mulheres lésbicas que predominantemente se dão a ver no YouTube, um resultado tanto do

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Comunicação, Gêneros e Sexualidades do XXX Encontro Anual da
Compós, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo - SP, 27 a 30 de julho de 2021
2
Doutora, Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG e pesquisadora permanente do
PPGCOM/UFMG, coordenadora do Grupo de Estudos em Lesbianidades (GEL) do NucCon/UFMG,
[email protected]
3
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFMG, membro do Grupo de Estudos
em Lesbianidades (GEL) do NucCon/UFMG, [email protected].

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princípio algorítmico rich-get-richer, vigente em boa parte das plataformas de mídias sociais,
quanto da ação da normatividade - que inclui a homonormatividade.
A violência que constitui a norma (mesmo que a norma não seja sempre sentida como
violenta) compõe esses vídeos de maneiras diversas. Além de uma conformação dos corpos e
performances, também se manifesta na invisibilização das lesbianidades, que estão presentes
em uma quantidade proporcionalmente pequena de vídeos disponíveis no YouTube e, quando
aparecem, ganham versões higienizadas; na objetificação dos corpos lésbicos que se mostram
mais próximos aos padrões normativos; em agressões verbais e até físicas, que atingem mais
intensamente os corpos cujas diferenças da norma se dão a ver.
Tal violência, assim, se funda na visibilidade do desvio da norma. Por isso, a discussão
aqui apresentada se dá em diálogo com a ideia de que as violências que nos atingem são
calcadas na percepção de diferença, que permite as subalternizações cotidianas. E, portanto, a
maneira como se constituem as diferenças fundamenta tais violências.
Mas as diferenças não existem por si. Como afirma Wittig (1978), não há nada de
ontológico na diferença. Pelo contrário, elas compõem um mecanismo de subalternização que
se configura a partir do estabelecimento de um tipo específico de homem europeu (macho,
heterossexual, cis, branco, rico, sem deficiência) como hierarquicamente superior. A partir de
tal determinação, cabe aos demais corpos se conformarem interseccionalmente, usando o jogo
de docilidade e resistência à norma como constituidor de experiências e, em casos extremos,
mesmo da possibilidade de sobrevivência.
A homonormatividade dialoga com essa lógica. Parte constituinte da
heteronormatividade, sua ação sobre corpos que experienciam sexualidades desviantes os
impulsiona na direção da norma, para a adequação, a supressão de marcas visíveis das
lesbianidades - ou, ao menos, para que tais marcadores sejam vistos apenas em ambiências
privadas.
Nesse contexto, a docilidade dos corpos lésbicos e mesmo sua fetichização salta aos
olhos no conjunto de vídeos analisados. Ao dar a ver predominantemente corpos que, mesmo
constituídos4 pelas lesbianidades, apagam suas marcas visíveis, se homogeneizam e se
adequam aos padrões da norma de gênero, os vídeos das coletas lésbicas e sapatão reafirmam
apenas um modo da lesbianidade como viável, como única forma possível de experiência em

4
Nos referimos ao caráter constituidor da sexualidade, não como elemento único, mas como um componente que,
como destacamos aqui, precisa ser visto interseccionalmente.

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uma partilha do sensível (RANCIÈRE, 2009). Assim, os corpos butch e as demais presenças
das masculinidades em mulheres, que dão a ver as possibilidades de rompimentos normativos,
são ainda mais invisibilizados e, quando aparecem, mais fortemente agredidos.
A discussão aqui apresentada tem como base a análise de 863 vídeos coletados em 2018
no YouTube sob as tags lésbicas e sapatão utilizando a ferramenta YouTube Datatools, como
discutiremos mais adiante.

2. O lugar das diferenças


Para compreender as dinâmicas das violências a que mulheres lésbicas são submetidas,
é necessário ampliar o que entendemos por violência e, principalmente, descortinar as lógicas
que a constituem. Com isso, entendemos que a diferenciação superficial entre violência física
– como gestos violentos que se destinam à materialidade corporal - e simbólica – entendida
como todas as outras violências - não abarca a complexa rede que atua sobre as sexualidades
dissidentes. Para entender as violências que atuam sobre as lesbianidades é necessário dar um
passo atrás, em busca da configuração dessas violências. Para tanto, é preciso investigar como
se dão os processos de subalternização a partir da diferença.
Ao falar em diferença devemos superar uma percepção ontológica e avançar em uma
perspectiva relacional. É na relação entre sujeitos que emerge a possibilidade de eleger
determinados aspectos enquanto parâmetros para definição do que é diferente - como afirma
Wittig (1978), não há nada de ontológico na diferença. Para isso, é preciso determinar a
normalidade, o neutro, o hegemônico. Segundo os Estudos Decoloniais, o poder se estrutura
em relações de dominação e exploração calcados na constituição de um imaginário que se
baseia na diferença para subalternizar. Aqui o parâmetro da neutralidade é sempre o europeu,
o que foi determinante para definir quais saberes, corpos, experiências seriam legitimadas e
quais seriam marginalizadas.
A chamada colonialidade do poder (QUIJANO, 2005), não se encerra com o fim da
colonização, mas permanece até hoje, estruturando relações políticas e econômicas, permeando
e constituindo imaginários. Lugones (2008) parte das considerações de Quijano e avança
adicionando o gênero à reflexão sobre colonialidade. Segundo a autora, “o dimorfismo
biológico, a dicotomia homem/mulher, a heterossexualidade e o patriarcado estão inscritos com

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maiúsculas e hegemonicamente no significado mesmo do gênero” (LUGONES, 2008, p. 78)5.


Sendo assim, a própria base dicotômica que instaura a diferenciação subalternizada entre o Eu
e o Outro serve como lógica central para valoração de corpos e experiências, como se eles
fossem inseridos em uma escala de normalidade à anormalidade, do desejável ao indesejável.
Nas palavras de Lugones (2014, p. 935) “a lógica categorial dicotômica e hierárquica é central
para o pensamento capitalista e colonial moderno sobre raça, gênero e sexualidade” (2014, p.
935).
Nossa breve incursão pelo pensamento decolonial nos auxilia a entender as formas
como a diferença ocupa um lugar central na normatividade. Algo que, de certo modo, já estava
sendo gestado no que se refere ao gênero6 no pensamento de Simone de Beauvoir em 1949,
quando a autora escreveu O segundo sexo. Ao indicar que a mulher seria o Outro do homem
em uma relação assimétrica e sem reciprocidade, ou seja, enquanto a mulher é o Outro do
homem, o homem não é o Outro da mulher, Beauvoir (2016) apoia-se no pressuposto de que a
diferença não é um dado revestido de neutralidade. É exatamente essa diferença sem
reciprocidade que impõe à mulher uma objetificação. Na impossibilidade de ter sua história
nomeada com seus próprios termos, o que, segundo bell hooks (1989) é fundamental para se
ocupar o lugar de sujeito, as mulheres têm suas experiências definidas por outros, tornando-se,
portanto, objetos.
Radicalizando o pensamento de Beauvoir, Butler propõe que o corpo do homem é “como
instrumento incorpóreo de uma liberdade ostensivamente radical” (BUTLER, 2017b, p. 35), já
o da mulher encerra em si limitações de ordens diversas. Outra autora que parte das percepções
de Beauvoir para pensar a constituição do gênero na experiência do sujeito é Haraway (2004),
ao afirmar que “qualquer sujeito inteiramente coerente é uma fantasia, e a identidade pessoal e
coletiva é precária e constantemente socialmente reconstituída” (2004, p. 245). Essa
restituição, portanto, não ocorre em uma esfera individual, ela é historicamente situada, para
usar um termo caro à filósofa existencialista, além de forjada na relação com os sujeitos em
sociedade que, conforme sabemos, reproduz lógicas subalternizantes.
O que chamamos simplificadamente de relações entre sujeitos em sociedade é, na
verdade, uma dinâmica complexa, da qual fazem parte disputas de poder e também resistências.

5
"Tanto el dimorfismo biológico, el heterosexualismo, como el patriarcado son característicos de lo que llamo
el lado claro/visible de la organización colonial/moderna del género." (LUGONES, 2008, p. 78)
6
Vale salientar que na obra a autora não usa o termo gênero, porém as suas discussões são apontadas como
fundamentais para a compreensão do gênero como uma construção social, superando um determinismo biológico.

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Partindo de uma concepção foucaultiana, entendemos o poder e, consequentemente, a


normatização, como aquilo que interpenetra o cotidiano, se tornando parte da nossa vida, desde
os pequenos hábitos até as grandes estruturas de coerção. Nesse sentido, é importante localizar
as mídias e as produções midiáticas e culturais como dimensões que exercem um papel na
organização e reprodução de discursos que dialogam com o padrão hegemônico e, por
consequência, com as hierarquizações e os corpos e experiências subalternizados. E a ideia de
dialogar aqui é central, já que não há uma imposição de determinados discursos por meio do
poder, mas um jogo disciplinar ao qual se apresentam docilidades e resistências. Da mesma
forma que apontamos invisibilidades e violências nos vídeos do YouTube que abordam as
lesbianidades, também é possível encontrar contraproduções, que adotam um viés crítico, de
reafirmação e orgulho sobre ser lésbica. O que nos interessa é exatamente destacar essa
complexidade.
A partir de uma base foucaultiana, De Lauretis (1994) propõe a sua discussão sobre as
tecnologias de gênero. Em suas palavras “a construção do gênero é tanto o produto quanto o
processo de sua representação” (DE LAURETIS, 1994, p. 212). Nesse sentido, a autora destaca
a importância das representações sobre o gênero na cultura, elas seriam fundamentais para a
conformação do gênero em determinado contexto histórico e social. Com isso, aferimos que o
poder tem a ver com o monopólio – não com exclusividade – discursivo, por isso prevalecem
discursos calcados na heterossexualidade, na objetificação da mulher e na potência masculina.
De Lauretis (1994) apresenta quatro proposições sobre o gênero: o gênero é uma
representação; sua representação é sua construção; sua construção se efetua até hoje; sua
construção também se realiza pela sua desconstrução. Assim, por serem historicamente
situadas, as representações simbólicas do gênero contribuem para a sua constituição, há
rupturas e continuidades, atravessados por moralidades, hierarquias e inscritos culturalmente
por meio do simbólico, das expressões do gênero pela cultura e pelas mídias.
Nesse ponto torna-se importante avançar e inserir a dissidência sexual no debate.
Quando buscamos nos estudos decoloniais as lógicas dicotômicas que foram impostas através
da colonialidade para a instituição de diferenças forjadas na subalternização, e também quando
avançamos no diagnóstico de Beauvoir acerca da falta de reciprocidade na relação de outridade
entre homem e mulher, compreendemos que a produção da diferença responde a determinados
projetos de poder. Um projeto normativo que se baseia em assimetrias de gênero, raça, classe
e também de sexualidade. Autoras como Wittig (1978), Rich (2019) e Rubin (2011) apontam

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a forma de constituição da heterossexualidade como o ponto central da opressão às mulheres:


o caráter compulsório da heterossexualidade seria o que garante o acesso masculino às
mulheres.
A invisibilização da possibilidade de exercer uma sexualidade que não seja heterossexual
é uma faceta desse sistema. Assim, entendemos que a invisibilidade não é apenas um
mecanismo das violências contra mulheres lésbicas, mas uma forma específica de nos violentar
simbolicamente por meio do apagamento e da deslegitimação das nossas experiências. Se não
somos visíveis, não nos instauramos como experiência viável, não compomos a partilha do
sensível (RANCIÈRE, 2009).

3. A normatividade que nos habita


A normatividade pode ser compreendida como um mecanismo do poder e, assim como
ele, opera pela penetrabilidade nas nossas vidas cotidianas. Seguindo as proposições de
Foucault, enquanto no regime disciplinar todo corpo é um corpo que é necessário corrigir,
normatizar, com o biopoder o corpo já não ocupa os espaços da disciplina, mas está habitado
por eles (PRECIADO, 2018). Temos, assim, que mais do que penetrar em nossas vidas, nossos
corpos são penetrados pelos mecanismos do poder.
Por mais que a dimensão punitiva do poder salte aos olhos, é o seu potencial produtivo
que nos permite entender como, mesmo submetidos ao poder disciplinar, as sexualidades
dissidentes seguem existindo. Isso ocorre porque o dispositivo da sexualidade é “bem diferente
da lei: mesmo que se apoie localmente em procedimentos de interdição, ele assegura através
de uma rede de mecanismos entrecruzados, a proliferação de prazeres específicos e a
multiplicação de sexualidades disparatadas” (FOUCAULT, 1993, p. 48). Assim, a produção
da dissidência é, também, um reafirmador da própria norma, já que ao sofrer as sanções
normativas, o corpo desviante representa ao mesmo tempo a resistência à norma e as
implicações de resistir.
Nessa mesma linha, é possível compreender que, ao determinar os limites da
normalidade sexual, também se diz o que está de fora dela. Segundo Mendonça (2018), as
operações da heteronormatividade são operações do poder, responsáveis por dar ou negar
acesso aos governos de si e do outro - o que percebemos facilmente ao observar as punições
que os sujeitos que rompem com a heteronormatividade sofrem, conforme já apontado.
Ainda sobre esse aspecto, Preciado afirma que:

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A forma mais eficaz de resistência à produção disciplinar da sexualidade em nossas


sociedades não é a luta contra a proibição (como aquela proposta pelos movimentos
de liberação sexual dos anos setenta), e sim a contraprodutividade, a produção de
formas de prazer-saber alternativas à sexualidade moderna (PRECIADO, 2014, p. 22)
No esteio dessas inquietações, o autor desenvolve a ideia de sexopolítica (PRECIADO,
2011): a partir da reflexão foucaultiana de biopolítica, ela seria então uma forma dominante da
ação biopolítica. “Com ela, o sexo (os órgãos chamados ‘sexuais’, as práticas sexuais e também
os códigos de masculinidade e de feminilidade, as identidades sexuais normais e desviantes)
entra no cálculo do poder” (PRECIADO, 2011, p. 11). Dessa forma, discursos sobre o sexo e
as tecnologias que buscam normalizar as sexualidades são entendidos enquanto agentes de
controle da vida. O autor propõe uma leitura cruzada entre Wittig e Foucault, entendendo que
ela possibilitaria uma definição de heterossexualidade como uma tecnologia biopolítica que
tem como objetivo produzir corpos heterossexuais. Novamente, o caráter consultório da
heterossexualidade como sistema surge como uma chave para o controle dos sujeitos, sejam
eles desviantes da norma ou não.
Mais recentemente, Preciado (2018) adota o termo regime farmacopornográfico para
discutir as articulações entre as novas tecnologias do corpo – farmacológicas - e a sua
representação midiática – pornográfica. Segundo ele, o regime farmacopornográfico inicia sua
expansão em meados do século XX, intensificado pelas técnicas digitais e redes de
comunicação.
Após a Segunda Guerra Mundial, o contexto somatopolítico da produção
tecnopolítica do corpo parece dominado por uma série de novas tecnologias do corpo
(biotecnologia, cirurgia, endocrinologia, engenharia genética, etc) e da representação
(fotografia, cinema, televisão, internet, videogame etc.) que se infiltram e penetram
como nunca a vida cotidiana. Trata-se de tecnologias biomoleculares digitais e de
transmissão de informação em alta velocidade. Esta é a era das tecnologias suaves,
ligeiras, viscosas e gelatinosas que podem ser injetadas, inaladas – “incorporadas”.
(PRECIADO, 2018, p. 84-85)
Ao articular a reflexão sobre a normatividade com a nossa discussão sobre violência, é
necessário romper com a concepção de que a normatividade seria violenta em si, ou seja, que
a norma seja essencialmente opressora, simplesmente uma ferramenta estática utilizada para
oprimir violentamente. Só superando essa percepção reducionista será possível avançar a
investigação a fim de compreender as violências operacionalizadas pela normatividade, assim
como as resistências. Segundo Butler (2017, p. 236) “podemos perfeitamente ser formados no
interior de uma matriz de poder, mas isso não quer dizer que precisemos, devotada ou
automaticamente, reconstituir essa matriz ao longo do curso das nossas vidas”. Assim, é
exatamente por estarmos submetidos ao risco de sofrer violências que é possível lutar contra

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elas, entender como elas operam. E é esse esforço que empreendemos aqui ao apontar formas
diversas de violência sofridas por mulheres lésbicas e como elas estão presentes em produções
que abordam as lesbianidades no YouTube.

4. Homonormatividade
Partindo do pressuposto de que a norma não é violenta em si mesma e que, além disso,
há um jogo constante de docilidade e resistência, o que impede uma total previsibilidade acerca
dos modos como respondemos à normatividade que nos forma, é possível avançar na reflexão,
problematizando a compreensão sobre as formas como a norma opera nas sexualidades
desviantes. A complexidade da normatividade, assim como sua alta penetrabilidade, fazem
com que as suas dinâmicas alcancem até mesmo as experiências dissidentes. Com isso não
queremos dizer que sujeitos considerados dissidentes de acordo com os parâmetros
estabelecidos pela normatividade sejam privilegiados por essas mesmas normas, mas que há
uma certa cooptação, que tem como intuito beneficiar aqueles que, mesmo rompendo com
determinadas normativas, contribuem para a manutenção de outras, como o neoliberalismo e a
norma de gênero. Esse argumento é encontrado nas discussões sobre homonormatividade, que
refletem sobre as lógicas normativas no contexto das homossexualidades.
Duggan (2002) e Druker (2017) empreendem essa reflexão a partir de pontos de partida
bem semelhantes, ambos abordam o contexto estadunidense e o neoliberalismo. Duggan (2002)
aponta como características da homonormatividade a despolitização, o consumo e o
confinamento na vida privada. Nessa linha, Duggan (2002) indica que uma vez minimamente
assegurada às pessoas homossexuais a possibilidade de se casar e constituir família, vemos
uma desmobilização política, confinam-se as expressões da homossexualidade ao contexto
privado e o consumo é estimulado. Desse modo, ainda que a sexualidade permaneça na
dissidência, as demais esferas da vida cotidiana estão de acordo com os parâmetros da
normatividade, principalmente no que se refere à lógica neoliberal - esse estar de acordo se
mostra bastante visível nos vídeos do YouTube que analisamos.
Druker (2017) adiciona a heteronormatividade à reflexão, afirmando que a
homonormatividade se constitui não apenas como uma faceta da heteronormatividade, mas
como aquilo que a sustenta. A autodefinição como minoria estável e a crescente conformidade
de gênero são citadas pelo autor como aspectos homonormativos. Essa homogeneização das
experiências - e também dos corpos - homossexuais contribuem para instituir padrões mesmo

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no âmbito da dissidência sexual, há portanto comportamentos e expressões padronizadas e


calcadas no consumo. Já no que diz respeito à conformidade de gênero, estamos falando de um
aumento da estigmatização das pessoas trans enquanto ocorre um fortalecimento da norma de
gênero calcada, obviamente, na cisgeneridade.
Sobre esse último aspecto, a violência que acomete lésbicas que não performam
feminilidade mostra-se emblemática. Ao atravessar a linha tênue da norma de gênero, ainda
que não se identifique como pessoas trans, lésbicas butch passam a sofrer as sanções
normativas de ordens diversas e cotidianas, desde a estigmatização no trabalho e outros
ambientes cruciais para a nossa vida em sociedade, até a violência física e simbólica que vemos
em alguns vídeos da coleta.
Em contrapartida, em vários dos vídeos em que aparecem lésbicas que performam
feminilidade há uma fetichização, uma objetificação desses corpos, que parecem performar em
função de um olhar masculino. Mais à frente traremos exemplos de vídeos que apareceram em
nossa coleta e exemplificam essas questões. Antes disso, uma descrição mais detalhada da
análise se faz necessária, a fim de demonstrar o caminho analítico que percorremos e que nos
permitiu tecer considerações acerca das normatividades e violências que se destacam nos
vídeos da coleta.

5. Operadores de coleta e apontamentos para análise


Para entender quem são as mulheres lésbicas que se dão a ver no YouTube, aliamos
métodos digitais e análises quantitativa e qualitativa. Um primeiro esforço nesse sentido foi
feito a partir de uma coleta com o termo lésbicas por meio da ferramenta YouTube DataTools.
Para nossa surpresa, a ferramenta, configurada para gerar uma lista dos 500 vídeos mais vistos
com o termo buscado, retornou apenas 363 resultados - explicitando que não havia mais do que
esses vídeos com o termo7 lésbicas publicados em todo YouTube em setembro de 2018. Frente
à invisibilidade das lesbianidades inscrita em tal resultado, optamos por uma segunda coleta,
com a palavra-chave sapatão. A ideia era comparar os dois datasets resultantes - a escolha de
sapatão como termo agregador do conteúdo a ser analisado tem como base o uso ambíguo que
se faz dele, empregado tanto em contextos de discriminação, quanto, politicamente, para

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A ferramenta leva em conta o uso do termo no título, descrição e nas tags usadas ao publicar os vídeos, mas
não em seu conteúdo.

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reafirmar as identidades lésbicas. A coleta com sapatão foi feita em outubro de 2018 e teve
como retorno uma planilha com os 500 vídeos.
Para entender quem são as mulheres lésbicas que se dão a ver nas coletas,
empreendemos uma análise qualitativa dos 863 vídeos8. Assistimos a cada um e elaboramos
categorias autoemergentes baseadas em questões como: os vídeos são protagonizados por
mulheres lésbicas falando de si e de suas experiências ou por outras pessoas se referindo a nós?
São outros produtos culturais e midiáticos, como músicas e trechos de filmes, recortados e
apropriados? Quando se tratam de mulheres que se identificam como lésbicas, quem são –
brancas, negras, indígenas ou amarelas? Magras ou gordas? Jovens ou o que convencionamos
chamar de adultas+ - mulheres que aparentam ter mais de 30 anos?

5.1. Quem fala sobre quem somos


O primeiro dado relevante com o qual nos deparamos, e que dialoga diretamente com
nossa discussão sobre violências, é que a invisibilidade, parte da heteronorma de que tratamos
anteriormente, marca até mesmo os vídeos em que são usados os termos lésbicas ou sapatão
nos títulos, descrição ou tags. Em nossas coletas, apenas 22% dos vídeos com o termo lésbicas
e 33% com sapatão têm como protagonistas mulheres identificadas como tal. Na maior parte
dos vídeos, outras pessoas falam de nós (18% da coleta lésbicas e 26% da coleta sapatão) ou
as publicações são recortes de produtos culturais e midiáticos: músicas, filmes, séries (37% e
24%).
Nos vídeos que protagonizamos, a regra é que ganhem visibilidade mulheres jovens (93%
dos vídeos em que aparecemos na coleta lésbicas; 78% em sapatão), brancas (71% e 59%),
magras (86% e 68%), sem deficiência (100% em ambas). Ou seja, ainda que haja diferenças
entre as duas coletas, relacionadas a uma maior politização dos vídeos de sapatão, na maior
parte dos vídeos em que aparecem mulheres identificadas por si ou por terceiros a partir das
lesbianidades, reitera-se o padrão normativo da juventude, magreza e branquitude em corpos
sem deficiência.
Outro dado importante é do que tratam os vídeos. Analisando o conjunto coletado,
temos três categorias: vídeos que tratam de expectativas sobre as lesbianidades, muitas vezes

8
A análise e classificação dos vídeos foi feita por bolsistas e voluntárias que então frequentava o Grupo de Estudos
sobre Lesbianidades (GEL), composto, além das autoras deste artigo, por Flora Villas Carvalho, Gab Lamounier,
Isadora Fachardo, Leíner Hoki, Lídia De Paula Ferreira Teixeira e Marina Morena, a quem agradecemos pelo
trabalho.

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reafirmando clichês comportamentais9, mas em que também entram discussões sobre a


lesbianidade em si, com um cunho mais político - especialmente nos vídeos da coleta sapatão,
em que representam metade do total de vídeos (18% em lésbicas, 50% em sapatão); vídeos
que retratam o que se convencionou chamar de orgulho, invertendo a lógica discriminatória e
apresentando as lesbianidades como possibilidades de experiências viáveis e satisfatórias (49%
em lésbicas, 26% em sapatão); e vídeos violentos, em que agressões verbais, discriminações
e mesmo agressões físicas dividem espaço com vídeos que classificamos como de fetiche, em
que há uma espécie de male gaze (33% e 24%).

6. Relação norma e algoritmo


Brancas, jovens, magras, sem deficiência: as lesbianidades que se dão a ver no YouTube
dialogam fortemente com a heteronorma (e, como já dissemos, com a homonormatividade que
a compõe). A mesma invisibilidade que age amplamente sobre as lesbianidades no jogo de luz
e sombra que constitui o que Foucault (2014) identifica como dispositivo da sexualidade, atua
sobre as lesbianidades publicadas no YouTube, escondendo ou apagando marcadores corporais
das homossexualidades nas mulheres que protagonizam os vídeos.
Tanto na coleta lésbicas quanto na sapatão, a maioria dos corpos visíveis não traz em
si marcadores das sexualidades dissidentes que os constituem - ou sua exposição se restringe a
ambiências privadas, não está à mostra nos vídeos. A dualidade femme/butch, que Rubin (2011)
descreve como categorias importantes na historicidade das experiências lésbicas, é apagada e
em seu lugar se inscreve a homogeneização dos corpos e das performances.
Similares em sua docilidade frente à norma de gênero, tais corpos circulam na plataforma
como possibilidade preponderante de vivência lésbica. Constituem um sensível partilhado
(RANCIÈRE, 2009) no qual a dissidência na sexualidade praticamente não atinge as
visualidades do corpo, apontando para o que afirma Foucault (2014) em relação à positividade
produtiva do dispositivo: a repressão seria secundária frente à produção; a norma produz, não
apenas proíbe.
Tal homogeneização normativa dos corpos visíveis atua sobre a percepção das
possibilidades viáveis de experiência das lesbianidades, produzindo aquilo mesmo que
performa, como destaca De Lauretis (1994). Ou, como afirma Preciado (2018), "O corpo pós-

9
Alguns exemplos são vídeos que falam de clichês como o uso de camisa xadrez e anel de coquinho e a ideia de
que lésbicas se casam rapidamente ao se envolverem.

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moderno se torna coletivamente desejável graças à sua gestão farmacológica e sua promoção
audiovisual" (2018, p. 56).
Em uma plataforma como o YouTube, a positividade da norma tem ainda sua força
reafirmada pela própria lógica quantitativa de busca por audiência que constitui os algoritmos
mediadores. Tal fenômeno dialoga tanto com o princípio rich-get-richer, quanto com a
proposição foucaultiana de que não há uma dualidade a partir da qual se exerça o poder, uma
divisão entre dominadores e dominados.
O favorecimento a conteúdos mais populares, conhecido como rich-get-richer, implica
que quanto mais um conteúdo circula, mais tem sua circulação ampliada pela curadoria
algorítmica10. Nesse contexto, tendem a ganhar em circulação conteúdos mais palatáveis, que
não tragam desconforto. Somado à normatividade de gênero, tal princípio constituidor dos
algoritmos mediadores aponta para o fortalecimento de padrões amplamente aceitos. Ou seja,
vídeos que mostram corpos e performances dóceis à norma de gênero tendem a circular mais.
Ao mesmo tempo, tal circulação ampliada reforça a percepção de corpos e performances
normativas como experiências comuns, possíveis, corretas, apontando para o monopólio
discursivo de que trata De Lauretis (1994)
A lógica algorítmica também ilustra a discussão de De Lauretis (1994) em relação à
afirmação de que o monopólio discursivo não é uma exclusividade. Em uma plataforma em
que qualquer pessoa com acesso à Internet tem a virtual possibilidade de publicar um vídeo, é
de se esperar que haja conteúdos menos dóceis às normas de gênero, em que a resistência se
dê a ver de forma mais intensa. Tais vídeos seguem disponíveis - a delicadeza das estratégias
normativas está em não interditá-los, mas promover a ampliação da circulação dos outros em
detrimento desses. Os mecanismos de predição algorítmica (GILLESPIE, 2018) contribuem
para que sua circulação seja mantida de maneira limitada, indicando-os apenas a quem já
acessou conteúdos similares.
Um bom exemplo é o canal Sapatão Amiga11 - e, vale registrar, nos vídeos da coleta
sapatão é possível observar uma maior presença de discursos politicamente mais potentes,
principalmente naqueles em que aparecem mulheres que de alguma forma não se enquadram
ao padrão, ou seja, mulheres negras ou que não performam feminilidade, como é o caso de Ana

10
Há um rol de pesquisas voltadas a discutir impactos e alternativas à lógica rich-get-richer, como em Cho,
Roy, & Adams (2005) e Ciampaglia, Nematzadeh, Menczer & Flammini (2018).
11
Ver: https://www.youtube.com/channel/UCM9ZfAhjedr1_GDrlr5s3Yg

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Claudino, do Sapatão Amiga, que aparece 15 vezes na coleta. Ana Claudino é uma jovem negra
e gorda, que traz para os seus vídeos convidadas para tratar de temas de caráter mais político,
como racismo, gordofobia, visibilidade lésbica, entre outos. Seu canal conta com 5.600
inscritos e a maioria dos vídeos tem menos de 500 visualizações, salvo exceções de produções
que viralizaram e apresentam uma performance melhor nesse quesito. Para um breve exercício
de comparação, o canal da Pavares12, uma jovem branca, magra, de cabelos longos, que aparece
nos vídeos de nossa coleta sempre maquiada e aborda as lesbianidades brincando com os
clichês lésbicos, possui 93.600 inscritos e mantém uma média estável de mais de mil
visualizações em seu conteúdo, sendo que determinados vídeos, como o Como a sapatão de
cada signo sofre,13 têm mais de 200 mil visualizações.
O exemplo do Sapatão Amiga nos ajuda a compreender como a resistência e a
politização também estão ligados à experiência das sanções normativas a que estão submetidos
os sujeitos dissidentes. Quanto mais colecionamos desvios dos parâmetros normativos de
privilégio, seja de sexualidade, gênero, raça, idade, origem, classe social, entre outras, mais
difícil é obter benefícios que derivam de um pertencimento a regimes normativos, como é o
caso da homonormatividade. Aqui novamente é possível acionar a reflexão sobre a construção
e instrumentalização da diferença, assim como o seu papel nos regimes normativos e
disciplinares, agora em uma associação com a questão algorítmica e o princípio rich-get-richer.
Assim, em um contexto ampliado de invisibilidade das lesbianidades, a predominância
de corpos e performances normativos entre os vídeos em que nos damos a ver reforçam a
hierarquia entre corpos dóceis e resistentes à norma. Ainda menos visíveis do que as lésbicas
normativas, aquelas que não se encaixam no padrão corporal ou comportamental normativo se
tornam exceção dentro de um contexto já subalternizado. A lógica algorítmica e a reafirmação
homonormativa entre as dissidências contribuem para que as lesbianidades não normativas
sejam ainda menos vistas como identidades e experiências comuns e possíveis.

6.1. Outras violências


Outros tipos de violências, que convivem com a invisibilização das lesbianidades como
um todo e das não normativas em especial, são agressões verbais, físicas, hierarquizações e os
vídeos que entendemos compor a categoria fetiche.

12
Ver: https://www.youtube.com/channel/UCZhLcWujcbFvq6ISuJEXzzw
13
Ver: https://www.youtube.com/watch?v=bxjuSLu9BCc

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O tipo mais explícito de vídeo violento em nossas coletas no YouTube são os que
exibem agressões físicas. Há um pequeno percentual deles, inclusive porque os termos de uso
do YouTube vedam esse tipo de publicação. Nos quatro vídeos que contêm violência física em
nossa coleta (três em sapatão14, um em lésbicas15), salta aos olhos o caráter punitivo
constituinte da norma de gênero. No único que é parte da coleta lésbicas, um pastor agride duas
mulheres negras durante um culto para expulsar os maus espíritos de seu corpo. Em dois dos
que compõem a coleta sapatão, os vídeos são a filmagem de brigas entre mulheres - um deles
é trecho do Programa do Ratinho; no terceiro, o vídeo de um assalto é seguido por imagens de
uma mulher sendo acusada de tê-lo praticado, imobilizada e agredida - vale dizer que ela já
apresenta, no vídeo, marcas deixadas por agressões físicas.
Mas não é necessário assistir aos vídeos para que o caráter repressor salte aos olhos. No
vídeo da coleta lésbicas, "TB Joshua dirige a palavra à 'parceiras lésbicas' na igreja!!!", o termo
que se refere ao casal é colocado entre aspas, como se fosse uma concessão linguística chamar
as duas de parceiras, como se elas não atingissem o necessário para tanto. Nos três vídeos da
coleta sapatão, "Briga de 'sapatão', no 190 Urgente", "pancadaria sapatão" e "Sapatão Faz o
terror, vários assaltos com crueldade, atirou em três pessoas e é presa por populares, assalta e
é pega por populares", a violência está explícita já nos títulos. O mais curioso desses três
últimos é que a hierarquização está colocada na nomenclatura dos vídeos, em que o termo
sapatão é usado como qualificador - não se vêem por aí vídeos com o título briga hétero, por
exemplo; pancadaria hétero; ou hétero faz o terror, vários assaltos…
Outro elemento importante é que todos os vídeos têm uma quantidade significativa de
acessos, entre 10 mil e 186 mil no momento em que este texto está sendo escrito. A violência
funciona, para quem vê os vídeos, como um lembrete de que o desvio à norma é passível de
punição; como um alívio aos que se impõe como "vigilantes do gênero" (RUBIN, 2011). Nesse
sentido, tais vídeos cumprem o papel das dissidências visíveis destacado por Foucault de
explicitar as implicações da resistência à norma, de registrar e exibir as sanções normativas.

14
Os vídeos são: 1) "Briga de "sapatão", no 190 Urgente" - https://www.youtube.com/watch?v=0IseN44VB-w ;
2) "Sapatão Faz o terror, vários assaltos com crueldade, atirou em três pessoas e é presa por populares, assalta e é
pega por populares" - https://www.youtube.com/watch?v=w_w25hr5940; "pancadaria sapatão" -
https://www.youtube.com/watch?v=dgOL5WQ1nGY
15
O vídeo é "TB Joshua dirige a palavra à 'parceiras lésbicas' na igreja!!!" -
https://www.youtube.com/watch?v=B_XDyXW5Ueg

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É importante, ainda, destacar a constituição corporal das mulheres envolvidas nesses


vídeos. No único da coleta lésbicas, as duas mulheres envolvidas são negras, em um conjunto
formado massivamente pela branquitude. Em dois dos três vídeos da coleta sapatão, as
mulheres performam uma masculinidade marcada, visível (o terceiro vídeo é pouco nítido, não
é possível distinguir bem características corporais).
Discutiremos adiante a questão das masculinidades em mulheres. Mas desde já
registramos que o fato de que a violência física presente em nossas coletas se dê em relação a
corpos negros ou que performam masculinidade nos parece o outro lado da predominância, nos
vídeos do YouTube analisados, de corpos que, mesmo desviantes da norma em sua
sexualidade, se aproximam dela corporalmente, são mais fortemente marcados pela docilidade
do que pela resistência em relação à norma de gênero.
Entretanto, ser dócil não afasta completamente as violências. Na coleta lésbicas - e
apenas nela - um outro tipo de vídeo nos pareceu violento, instituindo a categoria fetiche (26%
dos vídeos de lésbicas). Nela, se encontram os vídeos constituídos por mulheres que, ainda que
estejam em uma prática óbvia das lesbianidades, seguem performando um “em função”.
Nesses vídeos, mulheres que em geral se encaixam no padrão heteronormativo se
beijam e trocam carícias que denotam a aproximação do sexo. Em alguns deles, olham para a
câmera, como se estivessem à espera de um terceiro, numa espécie de male gaze. Dos 43 vídeos
de nossas coletas que só estão disponíveis a maiores de idade, 40 estão na categoria fetiche.
Eles também são metade dos dez vídeos mais vistos em nossas coletas.
A sutileza da violência contida nesses vídeos está no fato de que as mulheres que os
protagonizam não são agredidas física ou verbalmente, mas têm seus corpos objetificados e
devolvidos à lógica do "em função". A resistência do desvio à norma, de que trataremos a
seguir, é subjugada por uma nova adequação: os beijos entre mulheres servem à excitação
heteronormativa, são permitidos (e, pela quantidade de visualizações, mesmo estimulados) se
envolverem mulheres brancas, jovens, magras, que performam feminilidade.
É certo que tais vídeos também podem ser vistos por outras mulheres lésbicas - e de
fato o são, um olhar para os comentários faz visível esse público. Mas os títulos evidenciam a
normatividade, como em "Lésbicas perfeitas"16, "Estudantes Lésbicas Se Pegando Beijo de

16
O vídeo foi retirado do ar alguns meses após a coleta.

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Língua Lésbico"17 ou "Lésbicas - O que sua filha faz com a amiguinha, quando você sai de
casa"18. Esse terceiro vídeo, publicado no canal de Rick Carlos e que atualmente tem 1,3
milhões de visualizações, traz o comentário "Muitas saudades da Letícia, jamais me esquecerei
dessa loucurinha haha XD. Incrível como esse vídeo ainda faz sucesso kkkkkkk tinhamos 15
anos. E esse nem é o vídeo original, essa pessoa aí pegou nosso vídeo e postou no canal dele
kkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkkk", da usuária Ally Marks-2.
O vídeo em questão foi o primeiro a ser publicado no canal de Rick Carlos19, que tem
apenas outros três, todos eles mostrando acidentes de Fórmula Indy. Esse conjunto, somado ao
comentário acima, fortalece a ideia de que o vídeo foi postado para atrair visualizações para o
canal, dentro da lógica algorítmica rich-get-richer. A estratégia que envolve a publicação
aponta para o fetiche ao propor a trilha heteronormativa em que as carícias do casal lésbico
atraem público para um canal que oferece vídeos de acidentes de carro.
Comparando a categoria fetiche com os vídeos de violência física, nossas coletas trazem
à tona a relação entre os graus de negociação com a norma e os diferentes tipos de violência.
A maioria dos vídeos nos mostra que, enquanto as mulheres brancas, magras, jovens e que
performam feminilidade sofrem objetificação, às masculinizadas e negras cabe a invisibilidade
e mesmo a agressão física. Não estamos, com tal comparação, diminuindo a gravidade da
objetificação dos corpos das mulheres, mas evidenciando a diversidade das sanções normativas
que incidem sobre os corpos à medida que se afastam da norma.

7. Diferenças e dissidências
Como já dissemos, a análise dos vídeos de nossas coletas ajuda a entender como a
junção da lógica algorítmica com a homonormatividade e a padronização dos corpos contribui
para que certas formas de experimentar e se identificar com as lesbianidades sejam menos
visíveis - e, inclusive por isso, mais fortemente marcadas como desviantes. Não por acaso, as
violências que incidem sobre as lesbianidades se dão em diferentes formas.
A partir de tal ideia, cabe ainda apontar para a constituição de tal violência e como ela
se relaciona, de forma mais intensa ou menos intensa, com as variabilidades do dar a ver das
lesbianidades. Se retomarmos a discussão de Beauvoir (2016) da mulher como "o outro" do

17
https://www.youtube.com/watch?v=zbAyuHR8B10
18
https://www.youtube.com/watch?v=PoSk7FtM92E
19
https://www.youtube.com/user/Encarnator/

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homem, da outridade presente na ideia de mulher, aliada ao debate da diferença como base
justificadora das violências, temos então, de saída, uma diferença importante: mulheres, em
qualquer ponto do espectro das heterossexualidades às lesbianidades20, não são homens. Ao
sermos socialmente vistas como não-homens, estamos colocadas em oposição à ideia do
humano universal - macho, adulto, heterossexual, cis, branco, europeu, rico, sem deficiência.
A categoria mulher, cunhada como um "em função", depende do que se entende como
homem para se constituir. Mas o em função se estende para além da definição da categoria:
tanto Rich (2019), com a discussão de heterossexualidade compulsória, quanto Wittig (1978),
quando trata da heterossexualidade como sistema, destacam que a mulher está socialmente
constituída como um ser à disposição do homem. E, nesse quesito, as lesbianidades rompem
ao menos parcialmente com o que se espera da mulher. Instituem, assim, uma outra diferença.
Nesse sentido, Preciado (2018) destaca a lógica de continuidade entre sexo, sexualidade
e reprodução como uma epistemologia binária do regime sexopolítico do século XIX. Ou seja,
espera-se da mulher que seja heterossexual e sempre disposta à reprodução. As lesbianidades
romperiam essa cadeia epistemológica já em seu primeiro elo, instituindo que uma mulher não
precisa necessariamente ser heterossexual.
A conclusão lógica de tal rompimento é que, se uma mulher não é heterossexual, não
está fadada à reprodução - que se torna uma escolha. Ao romper com a linha sexo-sexualidade-
reprodução, as lesbianidades profanam um dos alicerces da categoria mulher: a maternidade.
A reprodução é papel central das mulheres no dispositivo de sexualidade. Em diferentes
momentos históricos, a reprodução se relaciona, por exemplo, à manutenção dos estados-nação
e da força de trabalho21, que demandam que contingentes significativos de pessoas sigam
nascendo. Portanto, há aqui uma questão ética que diz respeito, inclusive, ao prazer das
mulheres no sexo, que se configura como secundário, inferior às necessidades sociais: o
dispositivo da sexualidade pressupõe uma mulher heterossexual, fértil e disposta a reproduzir,
um compromisso ético que deveria predominar, em detrimento da satisfação que isso possa
trazer a ela.

20
Tomamos as lesbianidades de forma ampliada, como identidade, mas também como experiência, englobando
da femme à butch. Assim, no espectro a que nos referimos, não há espaço para binariedade identitária - e, assim,
entendemos que as bissexualidades ou outras formas possíveis de identidade e experiência também estão
incluídas.
21
Para Foucault (2014), os dispositivos se formam para resolver a uma urgência em determinado momento
histórico, se reconfigurando e permanecendo em ação mesmo quando tais urgências deixam de existir.

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Mas vale registrar que, como vimos nos vídeos aqui analisados, a ruptura na
epistemologia binária do regime sexopolítico originária do século XIX (PRECIADO, 2018) se
dá em diferentes graus. Se dialoga com a discussão de Wittig (1978) de que lésbicas não são
mulheres e, por isso, seriam a única negação possível à heterossexualidade como regime, tal
rompimento também pode se dar de maneira mais dócil, como mostram os vídeos que
entendemos como parte da categoria fetiche.
Mas, a partir da análise dos vídeos coletados, nos parece que há uma profanação ainda
mais grave do que a da mulher que interrompe a linha epistemológica sexo-sexualidade-
reprodução: a das masculinidades femininas. Não por acaso, as lesbianidades que se dão a ver
nos vídeos de nossas coletas se constituem docilmente, há um apagamento das masculinidades
como constituidoras dos corpos das mulheres.
Halberstam (1998) defende que não há nada de natural ou de ontológico nas
masculinidades como sendo de homens e feminilidades como de mulheres. A própria ideia
contemporânea de masculinidade teria sido negociada apenas na passagem do século XIX para
o XX – até então, o que entendemos por masculinidade não era nem mesmo visto como próprio
dos homens ou alheio às mulheres.
Mas a masculinidade entre mulheres segue ainda mais invisibilizada do que as
lesbianidades tomadas de modo amplo, como apontam nossas coletas. Não por acaso. Se
retomarmos a ideia do humano universal como homem-branco-cis-heterossexual-rico-sem
deficiência, uma mulher que incorpora masculinidades profana uma das bases sobre a qual essa
noção de humano se constitui.
Ao dar a ver sua masculinidade, as mulheres masculinas, que podem ou não se
identificar como lésbicas, marcam em seu próprio corpo: a negação a uma pressuposta
disponibilidade ao homem; o questionamento da maternidade como papel ético da mulher; e a
possibilidade de disputa sobre o que se entende por masculinidade.
Nossa coleta mostra que o ato de dar a ver tais rompimentos é passível, além da posição
de subalternidade que se dirige amplamente às lesbianidades, inclusive de punição física. As
masculinidades em mulheres, muito pouco visíveis entre os vídeos de maior circulação no
YouTube, trazem à tona as marcas de rompimentos e diferenças que a maioria dos vídeos de
nossas coletas escondem. Expulsam do espaço privado homonormativo as explicitações das
vivências desviantes da norma. Nesses corpos, o jogo da passabilidade que a epistemologia do
armário (SEDGWICK, 2007) permite e demanda se torna menos viável.

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8. Considerações finais
Um esforço de investigação que se proponha a examinar as complexidades e
multiplicidades das lesbianidades deve, necessariamente, se atentar às singularidades que se
interpenetram e configuram um estar no mundo bem diverso. Conforme nos diz Audre Lorde,
em uma fala recuperada por Haraway:
Ser mulheres juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser garotas gays juntas não
era suficiente. Éramos diferentes. Ser negras juntas não era suficiente. Éramos
diferentes. Ser mulheres negras juntas não era suficiente. Éramos diferentes. Ser
negras sapatonas juntas não era suficiente. Éramos diferentes... Levou algum tempo
para percebermos que nosso lugar era a própria casa da diferença e não a segurança
de alguma diferença em particular. (LORDE, 1982, p. 226 apud HARAWAY, 2004,
p. 227).

A ideia de habitar a casa da diferença nos permite lidar com as singularidades das
opressões sofridas sem, no entanto, hierarquizá-las. Uma vez que a hierarquização que usa o
homem-branco-cis-heterossexual-rico-sem deficiência como parâmetro já nos subalterniza,
devemos buscar escapar a qualquer custo da tentação de homogeneizar experiências, corpos e
sujeitas em função da criação de uma comunidade que grita a uma só voz e demanda as mesmas
coisas. Ao habitarmos a casa da diferença, compartilhamos algumas questões e desconhecemos
outras, e é exatamente dessa multiplicidade que deriva a riqueza do nosso encontro.
Contudo, o que vemos na maioria dos vídeos de nossas coletas é exatamente uma
homogeneização das experiências das lesbianidades, por meio de uma reprodução de ideais
homonormativos de conformidade de gênero, padrão de comportamento e até mesmo dos
corpos. A lógica algorítmica potencializa esse movimento, fazendo com que os vídeos mais
assistidos e os canais com mais inscritos sejam exatamente os que apresentam uma maior
docilidade com relação aos regimes normativos. Desse modo, as características que
observamos nos vídeos, em sua nítida articulação com as experiências cotidianas das
lesbianidades, evidenciam que nossos corpos são habitados pela disciplina e pela norma,
conforme já apontava Preciado (2018). Tais produções, quando postas em circulação, reiteram
formas normativas de ser lésbica, reafirmam lógicas subalternizadoras e se constituem
enquanto um arsenal homonormativo que não apenas dociliza, mas também agride.
Os argumentos e análises que apresentamos aqui evidenciam a multiplicidade das
dinâmicas normativas a que estamos submetidas cotidianamente e que, por vezes, se revelam
violentas. Assim, é possível notar que a homonormatividade e a heterossexualidade
compulsória operam de forma articulada, de modo que, mesmo aquelas que estão em

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conformidade com a norma de gênero, se expressam dentro dos padrões homonormativos,


estão sujeitas a uma violência fetichista. Como se, mesmo ao escaparem do acesso masculino
a seus corpos, afinal o que o garante é a heterossexualidade, permanecem disponíveis ao olhar
fetichizante. A fetichização e a invisibilização são adicionadas aos discursos de ódio e às
violências físicas, constituindo o arsenal diverso de expressões das violências que miram as
lesbianidades.

Referências
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