Neste livro, Finley reconstitui o
passado "pré-literário" da
civilização grega por meio do
exame das mais recentes
descobertas arqueológicas e da
reavaliação crítica dos dados
arqueológicos anteriores. Investiga
a gênese e o desenvolvimento de
uma cultura e de instituições de
caráter tipicamente grego: a queda
do Estado palaciano ''micênico'' e
o surgimento da polis em Atenas e
Esparta, a domesticação do herói
homérico e o nascimento daquele
conceito tão impreciso: o "povo".
Demonstra como os gregos
trataram o problema da stasis - o
conflito social - e finaliza a obra
com um estudo do agon, a disputa,
um símbolo da tensão entre
indivíduo e sociedade, um
elemento desde então sempre
presente na cultura ocidental.
GréciaPrimitiva:
IdadedoBronzee
IdadeArcaica
( '01.1•:ÇÁO O HOMEM E A HISTÓRIA
"'ª"dr/, F. - O Espaço e a História no Mediterrineo
llr1111tltl,f'. - Os Homens e a Herança no Mediterrâneo
IJ"hy, G. - A Europa na Idade MHla
W11/Jf,I'. - Outono da Idade MHla ou Primaverados Tempos Modernos?
h•rro M. - A História Vigiada
Nnlry, M. I - Uso e Abuso da História
Nnl~y. M. /. - Economia e Sociedade na Grécia Anüga
Hra"del, F. - Gramlitica das Civilizações
IJ"by, G. - A Sociedade Cavaleiresca
l)uby, G. - Sio Bernardo e a Arte Cisterciense
J.e Goff, J. - A História Nova
l)uby, G. - Senhores e Camponeses
lJalarun, J. - Amor e Celibato na Igreja Medieval
Flnley, M. I. - Grécia Primitiva: Idade do Bronze e Idade Arcaica
Prdximos lançamentos
l·"/11/ey,M. /. - Aspectos da Antigüidade
Orimal, P. - O Amor em Roma
/)uumard, A. - Os Burgueses e a Burguesia na França
GréciaPrimitiva:
IdadedoBronzee
IdadeArcaica
M.I.Finley
Martins Fontes
'/'/lulu original: EARL Y GREECE: THE BRONZE ANO ARCHAIC AGES
e '01,yrl(lhl (~ The Masters and Fellows of Darwin College in the University
of cambridge 1970, 1981
Copyrlaht © Livraria Martins Fontes Editora, para esta tradução
I ~ edlçdo brasileira:setembro de 1990
Tradução: Wilson R. Vaccari
Revisão da tradução:Silvana Vieira
Revisdo tipogrdfica:Flora Maria de C. Fernandes
Elaine M. dos Santos
Produção grdfica: Geraldo Alves
Composição: Ademilde L. da Silva
Oswaldo Voivodic
Arte-final: Moacir K. Matsusaki
Capa - Projeto: Alexandre Martins Fontes
Realização.'Cláudia Scatamacchia
Arte-final·Moacir K. Matsusaki
Ilustração:Lapita e Centauro(interior de
um kylix ático - e. 490-480 a.C.)
Todos os direitos parao Brasil reservadosà
LIVRARIA MARTINSFONTES EDITORA LfflA.
RuaConselheiro Ramalho, 330/340 - Tel.: 239-3677
01325 - SAo Paulo - SP - Brasil
Índice
Tabela cronológica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . VIII
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XI
Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XIII
Parte I - A Idade do Bronze
1. Introdução .................................................. 3
2. O "advento dos gregos" .................. .............. 13
3. As ilhas. As Cíclades e Chipre .............. ........... 23
4. As ilhas. Creta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33
5. A civilização micênica ...... ..................... ......... 51
6. O fim da Idade do Bronze . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
Parte II - A Idade Arcaica
7. A Idade das Trevas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
8. A sociedade e a política arcaicas ...................... 99
9. Esparta ...... ................... ...................... ........ 119
10. Atenas ... . .......................... .......... ................ 129
11. A cultura da Grécia arcaica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
Bibliogrq/la . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . l 55
Figuras
1. Palácio de Cnosso ..................................... 37
2. Escritas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39
3. Estela Tumular do Círculo B, Micenas . . . . . . . . . . 53
4. Estilos cerâmicos ...................................... 70-71
Mapas
1. O mundo egeu na Idade do Bronze . . . . . . . . . . . . . . 5
2. A Grécia na Idade do Bronze ....... :.............. 14
3. Creta antiga . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34
4. Dialetos gregos por volta de 400 a.e. ........... 83
S. O mundo grego arcaico .............................. 85
6. Grécia arcaica e a costa da Ásia Menor ........ 96
Ilustrações
1. Modelo de embarcação em chumbo, Naxos pé da
página .................................................... 24
li. Terracota, Siros ........................................ 24
Ili. "Ídolo" cicládico, Amorgos ....................... 27
IV. Sinetes em pedra cretense .. . .. . . . . . . . . . . . . . . .. .. . . . . 38
V. Disco em ouro pertencente ao túmulo-poço, Mi-
cenas ...................................................... 54
VI. Interior do túmulo-lho/os, Micenas .............. 57
VII, Cobra de argila, Micenas ......................... .. 63
VIli, Tr(pode e caldeirão de bronze, Olímpia . . . . . . . . . 91
1.
Para
Robert Cook
e
Geoffrey Kirk
TABELA CRONOLÓGICA
Nota: Todas as datas são a.e. e, salvo algumas das tinais, são aproximadas.
Grécia Creta C{clades n-óia Chipre
40000 ocupação humana
definitiva
Neolltico
{: Nea Nicomedéia Cnosso
Saliago
Quiroquitia
3000 Heládico 1 Minoano 1 Cicládico 1 Cipriota
Antigo II Antigo II Antigo II Antigo
Ili III Ili-V
2000 VI
Heládico Minoano Cicládico Cipriota
Médio Médio Médio Médio
1600/
Idade do Bronze ~ lSSO Heládico 1 Minoano 1 Cicládico VI Cipriota
Tardio Tardio Tardio Tardio
1500 li
1450 II
1400 IIIA IIIA
1300 me IIIB
VIIA
1200 me me VIIB
1100
1
:
Cerimica protogeométrica Fundação de Salamina
Idade das Trevas
Cerâmica geométrica
Alfabeto fenício
,
776 Instituição dos Jogos
Olímpicos
750 Início da "colonização"
ocidental
650 Início da "colonização"
em tomo do mar Negro
630 Ciloo tenta golpe em Atenas
621 Codificação de Drácon
Idade Arcaica
~
594 Arcootado de Sólon
5451
510 Tirania dos Pisistrátidas
520/
490 Cleômenes I, rei de Esparta
508 Clístenes reforma a
constituição de Atenas
490/
479 Guerras Pérsicas
Agradecimentos
O autor e os editores agradecem às seguintes editoras pela
permissão para citar materiais protegidos por direitos autorais:
Clarendon Press, Oxford (C. M. Bowra: Pindar); Cambridge
University Press (G. S. Kirk e J. E. Raven: The PresocraticPhi-
losophers); William Heinemann Ltd e Harvard University Press
(edição da Loeb Classical Library de Os trabalhos e os dias,
de Hesíodo, traduzida por H. G. Evelyn-White).
A Figura 1 foi reproduzida de The Palace of Minos, de
Sir Arthur Evans, com a permissão dos curadores do patrimô-
nio desse arqueólogo: a Figura 3 de Geras Keramopoulou, de
Marinatos, com permissão da Myrtides, Atenas; as Figuras 4a
e 4b de A Companion to Homer, de Wace e Stubbings, com
permissão da Macmillan. A Figura 2 baseia-se nas tabelas de
The Decipherment of Linear B, de J. Chadwick, Cambridge
University Press, e de The Local Scripts of Archaic Greece, de
L. H. Jeffrey, Clarendon Press, Oxford. A Figura 4d foi re-
produzida com a permissão do Museu Ágora, Atenas. A Figu-
ra 4c baseia-se em Furtwangler-Losche e a 4e em Wide.
As ilustrações I e III foram reproduzidas por cortesia do
Ashmolean Museum, Oxford; II, por cortesia do Museu Na-
cional de Atenas; IV e VI, por cortesia da Hirmer Verlag, Mu-
nique; VII, por cortesia de Lord William Taylour; V e VIII,
por cortesia do Instituto Alemão, Atenas.
Prefácio
Qualquer pessoa que procure fazer um relato sinóptico do
mundo grego antigo nos períodos do Bronze e Arcaico - cu-
jas evidências, em sua maioria, são arqueológicas -, sabe que
terá de reexaminar os dados no espaço de alguns anos, tais o
ritmo e a sofisticação cada vez maior do trabalho arqueológi-
co nessa área. Esta é minha terceira tentativa: a primeira foi
em dois capítulos que escrevi para a Fischer Weltegeschichte,
volumes 3 (1966) e 4 (1967), publicados em alemão; a segunda
foi a edição original deste livro (1970). Uma revisão considerá-
vel mostrou-se novamente necessária, sobretudo na parte so-
bre a Idade do Bronze.
Na medida em que existe uma distinção entre história e
arqueologia, este livro é uma história da Grécia antiga (não di-
go ''narrativa'' porque esta é impossível). O presente trabalho
não é, de forma alguma, uma pesquisa arqueológica: não há
catálogos de sítios e achados, nem discussões sobre complexi-
dades de desenhos e estilos cerâmicos. Preocupei-me exclusi-
vamente com a história de uma civilização (ou das culturas que
a compõem) em um período de aproximadamente 5 mil anos,
procurando indicar a natureza e os limites das evidências fun-
damentais e estar aberto para o que não sabemos e para as di-
vergências entre os especialistas. Por outro lado, em nenhum
XI V UR/:C'/~1 PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
momenlo deixei de colocar explicitamente meus próprios pon-
1m de vista e dúvidas, e algumas das revisões que fiz refletem
tnnto um reexame quanto o impacto de novas descobertas. Em
suma, este livro é um relato pessoal, não um repositório das
idéias predominantes sobre o assunto. A seleção bibliográfica
lnslesa, com ênfase em publicações recentes, sugere ao leitor
interessado onde encontrar estudos pormenorizados e publica-
ções alternativas.
Não há praticamente um só aspecto da história grega an-
tiga que não esteja hoje passando por um reexame. Como não
poderia deixar de ser, as questões cronológicas são em maior
número, mesmo porque inúmeras outras coisas dependem de
mudanças nas datações, principalmente a inter-relação entre re-
giões e culturas distintas numa área que chegou a abranger uma
grande faixa, de Marselha ao mar Negro. Datações revisadas
pelo carbono-14, por exemplo, puseram fim a teses outrora am-
plamente difundidas acerca de influências micênicas na Euro-
pa ocidental e na Bretanha. Tampouco é possível continuar
defendendo o ponto de vista (nunca muito sustentável) de que
a civilização rninoana de Creta chegou ao fim devido aos efei-
tos destrutivos da gigantesca erupção vulcânica na ilha de San-
torini (antiga Tera). Um novo estudo de documentos hititas
aparentemente afastou a idéia, antes sustentada com determi-
nação, de uma identificação entre os reis mencionados nesses
textos e Micenas. Cronologia à parte, o novo e mais interes-
sante desdobramento é a crescente atenção com que os arqueó-
logos encaram as tendências populacionais e os padrões de
povoação, que igualmente têm implicações em outras questões.
Estas são constituídas por algumas das reconsideraçõesimpostas
ao historiador por descobertas e investigações da última déca-
da, suficientes para justificar urna nova edição deste livro.
Calorosos agradecimentos a Paul Halstead, do King's Col-
lege, Cambridge, por ter-me auxiliado com o enorme volume
de publicações arqueológicas recentes; também aos amigos que
leram e opinaram sobre o manuscrito da primeira edição: A.
Andrews, R. M. Cook, M. C. Greenstock e G. S. Kirk; e à
rnlnha esposa, pela ajuda constante.
M. I. F.
Junho de 1980
Parte I
A IDADE DO BRONZE
1
Introdução
No estudo da história antiga do homem, o que se observa
mais clara e prontamente é o progresso tecnológico. É por isso
que, por tanto tempo, se convencionou dividir a história anti-
ga em períodos amplos, com base em materiais duros empre-
gados na fabricação de instrumentos cortantes e armas - pedra,
cobre, bronze, ferro, na ordem. À medida que progredia o co-
nhecimento do passado, os longos períodos foram subdividi-
dos de maneiras diferentes. Quando se percebeu, por exemplo,
que, no devido tempo, a técnica de apontar as arestas de pe-
derneiras e outras pedras mudou, naturalmente, da lascagem
para a raspagem, dividiu-se a Idade da Pedra em Antiga (Pa-
leolítico) e Nova (Neolítico). Em breve, fez-se necessário falar
em Paleolítico Inferior, Médio e Superior (ou Adiantado); em
um período Mesolítico, intermediário; em Bronze Antigo e Re-
cente, e assim por diante; e também separar cada idade segun-
do a região ou civilização.
Assim, criou-se um sistema rápido de referências, que, ape-
sar de mostrar-se cada vez mais inadequado, chegando mesmo
a induzir a erros, continua em uso. O cobre, por exemplo, já
era empregado na Grécia neolítica talvez mil anos antes da da-
ta convencional para o inicio da Idade do Bronze; os metais
só começaram a ser usados normalmente para ferramentas e
4 (iH/:'C/A l'HIM/1/VA: IDAD/o DO HHONZF. E IDADE ARCAICA
armas mil anos depois de 3.000 a.e. Além disso, madeira, os-
so, argila modelável, peles e tecidos eram materiais igualmente
importantes, embora não fossem duráveis o bastante para so-
breviver até nossos dias; o uso desses materiais perdurou pela
linha evolucionária da pedra-bronze-ferro e, no sistema con-
vencional, devem ser ignorados. Ademais, mudanças profun-
das na economia, na estrutura social e no poder político
ocorreram dentro das idades tradicionais; por exemplo, é unâ-
nime hoje que a divisão fundamental entre o Paleolítico e o
Neolítico foi determinada pela introdução da agricultura, não
por uma mudança no modo de manipular a pederneira. Final-
mente, o progresso tecnológico e social transcorreu em escalas
de tempo bem diferentes entre regiões distintas da Europa e
da Ásia ocidental, para não mencionarmos os demais conti-
nentes.
Depois de tudo isso (e ainda há mais adiante}, o fato é que
algumas dessas convenções são necessárias quando se tenta re-
gistrar os milhares de anos da pré-história. Até o ponto em que
uma civilização qualquer não havia ainda descoberto a arte da
escrita para registrar suas atividades, crenças e história, o es-
tudioso moderno dispõe apenas de evidências arqueológicas,
vestígios materiais. Não tem agrupamentos lingüísticos ou na-
cionais, nem dinastias reais ou formas de governo, nem revo-
luções ou guerras para usar como rótulos. Da mesma forma,
não seria de muita utilidade dividir o período entre 40.000 e
4.000 a.e. em séculos. Na Mesopotâmia (Iraque moderno) e
no Egito, a pré-história chegou ao fim somente por volta de
3.000 a.e.; na Ásia Menor e Síria, por volta de 2.000 a.e.; na
Grécia, por volta de 1.000 a.e.; e, em regiões mais a oeste, mais
tarde ainda. Para ser .exato, essas são as datas, em números
redondos, em que a pré-história converte-se gradualmente em
história. O emprego (e a sobrevivência) da escrita foi, por um
longo tempo, tão restrito que as evidências arqueológicas con-
tinuam essenciais, via de regra predominantes.
Na Grécia, a Idade do Bronze começou por volta de 3.000
a.e., ou logo depois. Até recentemente, o consenso geral era
de que a arte da metalurgia chegara à Grécia oriunda do extre-
mo oriente. Hoje, porém, admite-se que a metalurgia da Eu-
ropa central é suficientemente antiga para constituir uma
alternativa ao ponto de difusão original. Alguns pré-historia-
o
....
100
160
-
200
320
300
480
400
640
S00Mls
ÂSIA MENOR
(ANATÓLIA)
E Ft-Ugarit IR.JS Sh.Jmra)
~ctl 1 ~nkomi ISa/ammaJ SÍRIA
'C1c10 ~ •Kadesh
f <'PDELOS
• ""' ~
~-.,~NAXOS
~~<><"'.,.,;j,MOR,
0~~ .ASTIP,
MELOS ~ tiANAFI
na Idade do Bronze
6 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRO.'VZE t.' IDADE ARCAICA
dores, por sua vez, preferem a hipótese de uma invenção inde-
pendente nos limites do mundo egeli, que, em minha opinião,
não é convincente.
Se as migrações para a Grécia tiveram ou não alguma par-
ticipação nisso, é incerto e bastante polêmico - o pêndulo os-
cila desde uma certeza excessiva na migração como explicação
para a inovação cultural até a rejeição total. Evidentemente,
as migrações não são necessáriaspara explicar o advento dos
metais, mas é possível que tenham acontecido - o mar Egeu
foi navegado por homens e idéias mesmo nos mais remotos tem-
pos do Neolítico (e talvez muito antes). Pelo menos alguns dos
cereais cultivados e dos animais domesticados que marcam o
início do Neolítico sem dúvida foram importados do Oriente,
provavelmente da Ásia Menor. Não podemos determinar a ma-
neira como viajaram, mas na mesma época, o mais tardar por
volta de 6.000, a obsidiana, vidro vulcânico negro, foi empre-
gada na confecção de ferramentas, desde o sul da Macedônia
até Creta, vinda em sua totalidade da ilha de Meios (como com-
provaram as análises espectroscópicas dos achados). Na pró-
pria ilha, entretanto, não se encontrou nenhum vestígio de uma
população local tão antiga. Assim, parece-nos que, no início
do Neolítico, os habitantes do continente sentiam-se suficien-
temente à vontade no mar para fazer viagens regulares a Me-
los a fim de extraírem a obsidiana. Nesse caso, é possível que
também as primeiras plantas e animais domesticados tenham
chegado pelo Egeu, e não por terra, com ou sem uma migra-
ção propriamente dita.
Em suma, a península grega não era uma unidade isola-
da; aliás, só recentemente passou a ser uma unidade (e mesmo
hoje não há unanimidade quanto às fronteiras da "Grécia").
Tanto em sua pré-história quanto em sua história, a Grécia fa-
zia parte de um complexo egeano maior, abrangendo o conti-
nente grego, as ilhas (inclusiveCreta e Chipre) e a costa ocidental
da Ásia Menor. Em termos gerais, toda a região partilhava de
clima, solo e recursos náturais semelhantes, e portanto de um
modo de vida material semelhante. Por sua localização, o mun-
do egeu servia também como ponte entre o Egito e o Oriente
Próximo, de um lado, e a Europa central e a oriental, de outro.
Hoje, remonta-se a ocupação humana da Grécia a pelo
menos 40 mil anos atrás, no Paleolítico Médio. Um crânio do
INTRODUÇÃO 7
tipo NeanderthaJ foi descoberto na Calcídica, no oeste da Ma-
cedônia, e concentrações de sítios paJeolíticos foram encontra-
dos no leste da Macedônia, Epiro, Careira (Corfu moderna),
planície tessaJiana, Beócia e noroeste de Olímpia em Elis. Um
único sítio, entretanto, em Epiro, abaixo de Joanina, apresen-
ta evidência de povoação contínua na Idade Neolítica e do Bron-
ze. Aí, a cerâmica neolítica revela mais afinidad~s com achados
da Itália do que de outros sítios gregos, tais como Nea Nico-
medéia na Macedônia (embora se trate, reconhecidamente, de
uma impressão subjetiva). Quase todas essas descobertas fo-
ram feitas a partir do final da década de 1950, de maneira que
seria temerário, hoje em dia, fazer generaJizaçõessobre a quan-
tidade dos rêmanescentes paJeolíticos gregos ou discutir origens
e conexões. Nenhum remanescente paJeolítico foi encontrado·
em Nea Nicomedéia, por exemp]o, onde, por volta de 6.000,
houve uma povoação que cultivava trigo, cevada, lentilha e er-
vilha, criava carneiros, porcos, cabras e gado e manufaturava
cestos e quatro estilos diferentes de cerâmica. Nea Nicomedéia
aparentemente teve início com uma gama inteira de artes no-
vas, enquanto que algumas das primeiras povoações neolíticas,
tais como Sesklo na Tessália e Cnosso em Creta, tiveram uma
breve fase pré-cerâmica. Cada escavação nova fornece mais va-
riações e quebra-cabeças, demonstrando mais uma vez que a
variação dentro do complexo geral grego (sem mencionar o egeu)
é parte essencial de sua pré-história, embora nos faltem expli-
cações, visto que nossas informações dependem totaJmente de
objetos materiais.
Os primeiros sítios neolíticos conhecidos onde se manufa-
turava a cerâmica e se praticava a agricultura eram tão espa-
lhados, que nos sentimos tentados a postular que, na Grécia,
essas inovações fundamentais estavam vinculadas a uma mi-
gração (ou a migrações). Essas primeiras povoações eram pe-
quenas, com não mais que centenas de habitantes, se tanto -
Cnosso aparentemente teve início com um número bem menor
de habitantes, numa área de menos de meio hectare, e suas ca-
sas de um cômodo só eram dispersas pela região, ao contrário
dos vilarejos concentrados do Oriente Próximo. Os três mil anos
seguintes testemunharam um crescimento considerável da po-
pulação, o que é demonstrado pela expansão das habitações
para áreas novas e pela maior densidade populacional em ou-
8 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
tros sítios. O crescimento e o desenvolvimento deram-se de vá-
rias formas: na proliferação da variedade de alimentos, no
aprimoramento e na posterior especialização de ferramentas e
armas, cerâmica e decoração, transporte e arquitetura. Se são
válidas as inferências extraídas de outras comunidades agríco-
las primitivas, melhor conhecidas, havia também alguma divi-
são do trabalho (impossível em sociedades que praticavam a
caça e a coleta) e rudimentos de uma estratificação social. E
ocorreram mudanças irreversíveis no meio físico, algumas das
quais mostraram-se desfavoráveis, ocasionadas por desmata-
mentos de florestas, por cultivas e pastagens constantes.
A chamada Idade do Bronze Antigo, como já vimos, não
se caracterizou por uma aplicação prática substancial do co-
nhecimento da metalurgia, existente de longa data. Os objetos
de metal continuaram a ser raros no Egeu; em algumas regiões,
como Creta, poucos foram encontrados, e a maioria deles, fos-
sem de cobre, bronze, chumbo ou prata, ou eram armas e pe-
ças decorativas, ou objetos talvez ligados à religião. Ferramentas
de metal, em número igualmente pequeno, eram empregadas
apenas pelo artesão, e não pelo lavrador. Em resumo, o me-
tal, inicialmente, era um luxo no mundo egeu, e continuou as-
sim por tempo considerável - é de se presumir que fosse
disponível apenas para uma classe social mais rica, que surgira
durante o Período Neolítico precedente. Pedra, argila refratá-
ria, osso e madeira continuaram a ser os materiais duros (e ya-
le lembrar que nunca foram totalmente abandonados), até que,
finalmente, ao término do terceiro milênio, o emprego do me-
tal teve um crescimento abrupto por todo o Egeu, não apenas
em quantidade, mas também em termos de escala de uso na
produção.
O advento da verdadeira era dos metais trouxe problemas
radicalmente novos. Uma sociedade que depende de metais,
mesmo que parcialmente, tem de encontrar em sua estrutura
social um lugar para os especialistas, numa proporção inédita,
e deve preocupar-se, ativa e continuamente, com a obtenção
dessas matérias-primas escassas. O mundo egeu é pobre em me-
tais. Para as pequenas necessidades dos primeiros metalúrgi-
cos egeus, pequenos depósitos locais dispersos talvez bastassem
- pesquisas modernas levaram à descoberta de alguns desses
depósitos, mas não em todos os distritos onde se encontraram
INTRODUÇÃO 9
artefatos de metal. Com o crescimento da demanda, tornou-se
necessário importar zinco e cobre (e, futuramente, ferro). As
maiores fontes de zinco são hoje um mistério (apesar das afir-
mações confiantes de alguns estudiosos) 1, ao passo que oco-
bre e o ferro eram disponíveis em regiões amplamente dispersas
da Europa e da Ásia. O transporte desses metais por longas
distâncias era uma característica da sociedade antiga, e pode-
se explicar a importância de certos povoados por sua localiza-
ção numa rota de metal. Assim, surgiu a atraente sugestão de
que é possível atribuir a prosperidade inicial de Tróia, onde já
se praticava a metalurgia na primeira fase, à sua posição como
cabeça-de-ponte para o transporte de metal entre o baixo Da-
núbio, o mundo egeu e a Ásia Menor.
O rápido desenvolvimento das indústrias metalúrgicas lo-
cais pode ser demonstrado por muitos sítios egeus, às vezes por
depósitos de escória e outros vestígios diretos de oficinas au-
tênticas, mais freqüentemente por variações no estilo e na téc-
nica dos produtos acabados. O amplo comércio intra-egeu é
igualmente comprovado pela arqueologia, em nítido contraste
com os séculos anteriores. Os vilarejos e aldeias de épocas ain-
da mais remotas têm hoje um aspecto "urbano" mais consis-
tente, às vezes com muralhas de pedra, situadas de preferência
em colinas ou outeiros próximos do mar ou de lagos. Mas este
é o único indício de que a riqueza e a especialização maiores,
ao lado das diversas demandas de metal feitas pelo comércio
exterior, tenham influenciado de maneira significativa a orga-
nização e a estrutura de classes da sociedade. Da mesma for-
ma, não há sequer um indício das relações políticas entre as
comunidades.
É tentador procurar preencher as lacunas de nosso conhe-
cimento com base nos desdobramentos mais ou menos contem-
porâneos no Egito ou na Mesopotâmia - mas devemos resistir
firmemente a essa tentação. Basta apenas uma olhada nos re-
gistros arqueológicos para ver com que rapidez as civilizações
do Oriente Próximo superaram totalmente as do mundo egeu
em escala e complexidade, no que se refere tanto a comunida-
des isoladas (e às coisas que elas fabricavam) quanto, logo de-
1. Ver R. Maddin et ai., "Tin in the Ancient Near East: Old Ques-
tions and New Finds", Expedition, 19 (1977), 35-47.
IO liRf:CIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
pois, à expansão de poder a partir dessas comunidades. Nem
mesmo Tróia chega a ser uma exceção - o mundo egeu só apre-
senta algo realmente grandioso nos grandes palácios cretenses
posteriores a 2.000 a.C. 2 E, acima de tudo, não existe nenhu-
ma forma de escrita. Quando a escrita finalmente surgiu na Gré-
cia e em Creta, teve urna difusão lenta e incompleta (sem nunca
ler chegado a Tróia, por exemplo), e seu emprego foi tão limi-
tado que é mais apropriado falar em pré-história do que em
história grega, mesmo no que concerne aos séculos em que as
escritas Linear A e Linear B (abordadas nos Capítulos 4 e 5)
foram usadas para registros palacianos.
A ausência da escrita é uma limitação bastante séria para
a sociedade em si. Para o historiador moderno, constitui um
obstáculo. Os "acontecimentos" de toda a pré-história egéia
podem ser contados nos dedos; são conhecidos apenas a partir
de mitos e tradições bem mais recentes e, como veremos, apre-
sentam inúmeros problemas, para dizer o mínimo. A arqueo-
logia revela cataclismos, mas não as circunstâncias em que
ocorreram, nem seus participantes, embora se possam extrair
amplas inferências, de considerável probabilidade, de alguns
poucos exemplos significativos. Carecemos igualmente de in-
formações sobre personalidades individuais, por causa não só
da natureza dos raros textos escritos como também da falta no-
tável de representações monumentais - não existem obeliscos
com belas inscrições, nem estátuas individualizadas, nem pin-
turas em paredes, seja em palácios ou em tumbas, que de algu-
ma maneira se comparem aos dos ubíquos governantes,
guerreiros, escribas, sacerdotes e deuses do Oriente Próximo.
Os governantes de Cnosso, Micenas e Tróia não cuidaram de
deixar memoriais de si mesmos. Qualquer um é livre para acre-
ditar que o rei Minos de Cnosso, Agamenon de Micenas e Pría-
mo de Tróia foram personagens históricas, não figuras míticas;
2. Para ajudar no estabelecimento da escala, Stuart Piggott, Ancient
E11rope(Edinburgh University Press; Chicago, Aldine Press, 1965), p. 122,
fe1 os seguintes cálculos, bastante interessantes: Tróia li caberia dentro do
cfrculo de fortificação da primeira fase de Stonehenge; o palácio de Mália,
l'lll l'rc111, do Minoano Médio, tem quase o mesmo tamanho da vil/a roma-
1111rm Woodche~ter, Oxfordshire; o palácio de Pilos é quase tão grande,
1·1111\1cu,quanlo o povoado de Glastonbury, Somerset, na Idade do Ferro.
INTRODUÇÀO 11
ninguém nunca encontrou indícios concretos, da existência de-
les, nem mesmo um nome numa laje ou num sinete.
Um subproduto dessas negativas todas é a grande frustra-
ção e incerteza quanto à cronologia. Não há um único objeto
datado do mundo egeu (e são pouquíssimos) que não seja im-
portado. Todas as datas são arqueológicas. Estabelece-se uma
cronologia relativa a partir, primeiramente, da evolução esti-
lística da cerâmica e dos estratos ou camadas nas ruínas de ca-
da sítio isoladamente. Assim, os pivôs, as datas "absolutas",
são fixados por sincronizações, possíveis graças aos objetos im-
portados e exportados, com algumas poucas datas conhecidas
do Egito ou da Síria. Finalmente, o período de tempo entre
dois "pivôs" quaisquer é dividido de acordo com a quantida-
de de objetos recuperados e com a extensão da mudança esti-
lística. Um outro meio de verificação são os desenvolvimentos
arquitetônicos.
O ponto vulnerável mais sério é a impossibilidade de fixar
com o mínimo de precisão o ritmo da mudança, quer nos esti-
los e técnicas de cerâmica e outros objetos, quer na estratifica-
ção. Deve-se sempre considerar uma margem de erro, mesmo
nos novos testes científicos como o carbono-14, e, embora uma
margem de cem anos possa parecer insignificante quando lida-
mos com um milênio ou mais, isso representa três gerações hu-
manas inteiras 3. Portanto, um erro de tal magnitude pode
criar idéias falsas a respeito de crescimento, mudança ou mi-
gração, e os riscos multiplicam-sesempre que se comparam duas
ou mais culturas. Em conseqüência, quando produzem datas
tão precisas quanto 1440 ou 1270 a.e., os arqueólogos estão
excedendo os limites do razoável e imprimindo um falso bri-
lho de certeza a seus cálculos.
Uma vez compreendidos os limites, datas aproximadas são
úteis, até mesmo indispensáveis. A parte sobre a Idade do Bron-
ze da tabela cronológica que abre este livro traz uma sincroni-
zação entre Grécia, Creta, Chipre e Tróia. O objetivo não é
3. Atualmente, as datas aproximadas obtidas pelo carbono-14 reque-
rem ajustes complexos, sobre os quais não há consenso geral; ver C. Ren-
frew, Before Civilization: The Radiocarbon Revolution and Prehistoric
Europe (Londres: Jonathan Cape, 1973). Para o período e tema deste li-
vro, a contribuição da datação pelo carbono-14 ainda é ínfima, e, a fim
de evitar maiores erros, preferi não empregá-la.
1~ tiH/'.'C'!A l'HIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
outro senão apresentar um esquema que muitos arqueólogos
aceitariam como razoável no estado atual de nosso conhecimen-
to. Por conta de uma convenção inócua, os períodos na Gré-
cin são denominados He/ádico, em Creta, Minoano, nas ilhas
centrais do Egeu, Cic/ádico. Por uma outra convenção, há uma
divisão adicional em tríades duplas: Antigo, Médio e Tardio,
cada um subdividido em I, II e III. Isso talvez crie um padrão
esteticamente agradável, apesar da desigualdade de ritmo en-
tre o Heládico, o Minoano e o Cicládico, e, por vezes, pode-se
detectar um princípio, meio e fim razoavelmente nítidos. Por
outro lado, o sistema triádico não se justifica em muitos sítios,
te11dolevado a métodos bastante forçados na tentativa de en-
caixar evidências cada vez mais numerosas e inadequadas nu-
ma moldura criada nos primórdios da arqueologia egéia. Quanto
a sítios tomados isoladamente, o melhor procedimento é aquele
adotado pelos escavadores de Tróia e outros lugares, ou seja,
enumerar as fases uma a uma, começando com I e prosseguin-
do de acordo com o necessário. Para áreas maiores, é recomen-
dável um esquema mais geral; as tríades convencionais foram
mantidas neste livro a título de referência, já que por ora não
dispomos de alternativas.
f
2
O ''advento dos gregos''
O ponto fraco da divisão convencional, demasiado simé-
trica, da Idade do Bronze em tríades e subtríades fica evidente
quando se reconhece que a lacuna mais ampla e abrupta no
registro arqueológico ocorre entre o Heládico Antigo II e III,
e não no início do Heládico Antigo I ou na transição do Helá-
dico Antigo para o Médio, geralmente situada nos primórdios
do segundo milênio a.e. Quase ao final do terceiro milêni9 (se-
gundo atestam achados cerâmicos), verificam-se pesadas des-
truições em vários dos maiores sítios da Ática e da Argólida
- Lema, Tirinta, Asina, Zygouries, provavelmente Corinto -
e, aparentemente, também nas Cíclades. Ainda não se deter-
minou com precisão em que grau a devastação atingiu a Gré-
cia. Não foi geral, mas dificilmente pode-se chamar de coin-
cidência o fato de que incêndios e destruição ocorreram por
todo o Egeu, por volta do último século do terceiro milê-
nio, em Tróia II, mais ao sul, em Beycesultan, próximo às ca-
beceiras do rio Meandro, e em muitos outros sítios, inclusive
na Palestina.
O termo "lacuna" deve ser entendido em sua acepção mais
marcante. Os registros arqueológicosestão repletosde mudanças
de todos os tipos, mas raramente apresentam algo tão grande
e abrupto, tão amplamente difundido quanto o que ocorreu
na época em pauta. Na Grécia, algo comparável só tornaria
Nt1a•
Nicomt1déia
MACEDÔNIA
..
Joanina
TESSÁLIA
41
Mls
o 50
o 80
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160
2- A Grécia na Idade do Bronze
O "ADVENTO DOS GREGOS" 15
a acontecer no final da Idade do Bronze, mil anos depois. Po-
voações ricas e poderosas para aqueles tempos, com uma lon-
ga história de estabilidade e continuidade, literalmente des-
moronaram, e o que veio a seguir foi, sem dúvida alguma,
de natureza e escala diferentes. A arqueologia em geral não pode
dar nomes a povos, nem conteúdo a uma tragédia, mas nessa
combinação específica de tragédias é legítimo perguntar se elas
não testemunham a chegada simultânea, a um dos lados do mar
Egeu, de migrantes que falavam uma forma primitiva de gre-
go e, do lado oriental, de poyos que falavam outras línguas
indo-européias, inter-relacionadas - hitita, luviano, palaico.
A relutância para colocar a pergunta de maneira tão dire-
ta é compreensível. A tendência para equiparar a língua à raça
tem atrapalhado o estudo da pré-história e da história desde
a descoberta de que as línguas da Europa, Ásia e África do
Norte podem ser classificadas em "famílias", de acordo, em
primeiro lugar, com as semelhanças estruturais (que geralmen-
te só são compreendidas a partir de uma análise especializa-
da). A numerosa família indo-européia inclui as línguas antigas
da Índia (sânscrito) e da Pérsia, o armênio, os idiomas esla-
vos, as diversas línguas bálticas (lituano, por exemplo), grego
e albanês, as línguas itálicas, entre as quais o latim e suas des-
cendentes modernas, o grupo céltico (do qual o gaélico e o ga-
lês conservaram uma certa vitalidade até hoje), as línguas
germânicas e várias línguas mortas, faladas outrora nos Bal-
cãs (iliriano) ou na Ásia Menor (tais como o hitita e o frigia-
no). Estudiosos sérios abandonaram agora a concepção
romântica (para não dizer coisa pior) de uma "raça indo-
curopéia, dotada de temperamento, maneiras e instituições ca-
racterísticos, avançando em todas as direções e substituindo as
culturas em seu caminho pela cultura que trazia de alguma hi-
potética terra natal. Nem a Grécia, nem a Ásia Menor apre-
sentam evidências que justifiquem algo semelhante. As
instituições e a cultura do grande império hitita, que controlou
a Ásia Menor na segunda metade do segundo milênio e esten-
deu sua influência para mais além - sobre o que temos mui-
tos documentos, redigidos na escrita cuneiforme que os hititas
adotaram da Babilônia-, foram conseqüência de progressos
ocorridos na Anatólia (Ásia Menor), não algo já existente e que
foi trazido para a região, de uma vez só, por uma única migra-
lt1 0Ré'CJA PRIMITJV.4: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
i;lo conquistadora. É provável que o mesmo se aplique ao "ad-
vento dos gregos", que não deixaram nenhum documento
c11critoanterior às tábulas em Linear B.
Quando se diz isso, porém, resta um duro cerne de reali-
dade que deve ser levado em conta. Tempos depois, bem antes
do final do segundo milênio a.e., grande parte da Europa e
extensas regiões da Ásia ocidental e central passaram a falar
uma ou outra língua indo-européia. Tais línguas não eram na-
tivas por toda essa vasta área desde tempos imemoriais, e há
fortes motivos para se acreditar que tiveram rivais em seus pró-
prios territórios ao longo de toda a Idade do Bronze (e, con-
forme é possível demonstrar, em algumas regiões também em
tempos históricos). Assim, só se pode concluir a existência de
algum movimento de povos; o mapa lingüístico final é resulta-
do não de um movimento, mas de vários, em diversos perío-
dos, a partir de diversos centros e em diversas direções. Uma
língua nova, ao contrário de uma tecnologia nova, nunca foi
adotada por um povo sem uma imigração, uma infusão física
de um elemento novo na população.
Nenhuma outra coisa explica, por exemplo, a íntima afi-
nidade, na família indo-européia, entre o sânscrito e o lituano.
Um desses movimentos parece estar refletido nas grandes des-
truições na Grécia, em Tróia e mais além, na Anatólia, no fi-
nal do terceiro milênio a.e. Atualmente, não temos como provar
essa hipótese. As evidências arqueológicas em geral não forne-
cem qualquer esclarecimento sobre a história das línguas ou mes-
mo sobre as migrações, que são conhecidas por outras fontes
e por inferências lingüísticas. Assim, os hunos nunca foram ni-
tidamente identificados na arqueologia da Europa central, mas
sabemos com certeza que fizeram uma incursão devastadora
por esse continente. Nossas dificuldades crescem mais ainda com
o comportamento imprevisível da língua depois de uma con-
quista. Os normandos não conseguiram impor o francês nor-
mando na Inglaterra, embora sua conquista e domínio tenham
sido totais, ao passo que o magiar (húngaro), da família ural
-altaica, sobreviveu até hoje como uma ilha lingüística rodeada
por idiomas indo-europeus com os quais não têm relação al-
guma (alemão, romeno e várias línguas eslavas).
Portanto, é preciso definir com maior precisão quais as
implicações do suposto aparecimento, no Egeu, de indivíduos
O "ADVENTO DOS GREGOS" 17
de falas indo-européiac; antes de 2.000 a.C. Para começar, to-
das as implicações raciais devem ser firmemente descartadas
- é absurdo imaginar que esses indivíduos já fossem "gregos"
que tivessem alguma misteriosa afinidade com os governantes
da Micenas de 700 ou 800 anos depois, para não mencionar
Safo, Péricles ou Platão. Tampouco se deve pensar que, quando
chegaram, falavam uma língua que pudesse ser facilmente iden-
tificada como grego. É mais provável que o grego que conhe-
cemos tenha-se desenvolvido na própria Grécia, influenciando
o idioma dos recém-chegados. O grego surgiu, no mais tardar,
no período micênico (conforme demonstram as tábulas em Li-
near B); nessa época, segundo indicam mudanças e variações
verificadas na língua, dois, ou possivelmente três, dialetos gre-
gos intimamente relacionados difundiram-se pela região. As-
sim, o padrão dialetal clássico inteiramente articulado - jônico,
eólico e dórico, com suas variantes e subcategorias, tais como
o ático - deve ser atribuído ao período posterior à derrocada
do mundo micênico, ou seja, depois de 1200 a.e. (Mapa 4).
Grande parte da complexa história do idioma grego pode
ser explicada como uma evolução puramente lingüística. Por-
tanto, é desnecessário postular ondas sucessivas de imigrantes
de língua grega para a Grécia, cada qual com seu dialeto pró-
prio, que via de regra era amplamente aceito. Essa afirmação
não afasta a possibilidade de ter havido migrações posteriores,
oriundos do outro lado do Egeu por exemplo, depois do ter-
ceiro milênio - mas estas não tiveram significado para a his-
tória da língua. Aqui nos defrontamos com o ponto mais crucial
da interpretação dos dados arqueológicos. Muitos sítios não
deixam dúvidas de que durante o segundo milênio a Grécia re-
cebeu continuamente novas características e influências cultu-
rais importantes. Mas por que meios: mercadores e artesãos
ambulantes ou migração e conquista? Estas últimas constituem
a explicação mais fácil - demasiadamente fácil. Cabe aqui con-
siderar mais detalhadamente duas inovações verificadas no He-
ládico Médio.
A primeira é a chamada louça mínica, um estilo caracte-
rístico de cerâmica com uma textura "saponácea". Difundiu-
se de maneira notável pela Grécia, pelas ilhas e regiões da Ana-
tólia ocidental a partir do início do segundo milênio, ou seja,
do Heládico Médio I, e muitos estudiosos consideram-na uma
18 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
característica importante de uma cultura nova trazida por mi-
grantes, alguns dos quais foram identificados com "os gregos".
Entretanto, atualmente foi encontrado, em Lema e outros lu-
gares, um tipo de cerâmica modelada na roda, durante o He-
ládico Antigo III, que de modo algum pode ser diferenciada
da mínica, exceto pelo fato de ser uma variedade mais antiga
e primitiva. Portanto, não há necessidade de vincular a grande
popularidade da louça mínica durante o Heládico Médio a uma
migração. No conjunto, todas as evidências arqueológicas le-
vam a uma data anterior, ao final do Heládico Antigo III.
A segunda inovação é uma prática funerária, bastante di-
fundida, surgida no começo do Heládico Médio. Trata-se de
túmulos rasos em forma de caixa (as chamadas cistas), abertos
no solo, às vezes revestidos de pedra e salpicados de seixos, ca-
da um contendo um único corpo e fechado por uma laje. Em
princípio, eram geralmente tão pequenos que os corpos eram
depositados na posição fetal; além disso, não abrigavam ne-
nhum objeto funerário. Com o tempo, tornaram-se maiores e
mais ricos. A única novidade dessas práticas - já difundidas
nas Cíclades séculos antes - era o hábito de colocar as cistas
de crianças e, ocasionalmente, as de' adultos no interior da ca-
sa, sob o piso ou atrás das paredes - o que sugere uma nova
atitude. Mas será que isso implicaria uma migração? Nesse ca-
so, a população recém-chegada teria obrigatoriamente de ser
em número muito maior e de estabelecer um domínio total pa-
ra impor um novo padrão funerário com tamanha rapidez, e
é de estranhar que os cemitérios situados fora da vila tenham
continuado a ser predominantemente para adultos. O fato é
que durante toda a Idade do Bronze, e também nos tempos his-
tóricos, a região egéia apresentou uma diversificação espanto-
sa de práticas funerárias, variando de acordo com o lugar e
o tempo e, via de regra, coexistindo por longos períodos na
mesma comunidade. Os cadáveres eram sepultados individual-
mente e em grupos familiares, em tipos diferentes de recipien-
tes; às vezes, eram exumados depois de decompostos, e os ossos
voltavam a ser enterrados; às vezes, cremavam-se os cadáve-
res. Na maior parte dos casos não sabemos que idéias orienta-
vam a mudança nas práticas, mas uma coisa é certa: a maioria
dessas mudanças ocorreu sem o concurso de uma migração.
Assim, não há nenhum motivo particular para se acreditar que
O "ADVENTO DOS GREGOS" 19
o sepultamento entre paredes, por si só, tenha implicado uma
migração.
O Egeu sempre constituiu um caminho para idéias, técni-
cas e instituições, tanto no início do segundo milênio como em
outras épocas. É curioso o hábito de nunca se reconhecer qual-
quer originalidade no povo que está sendo estudado, de sem-
pre se concebê-lo como plagiador de inovações alheias. Seja
como for, originalidade não significa criar a partir do nada,
e mesmo quando decorre de uma idéia emprestada de outrem,
nem por isso é menos valiosa e significativa. Se, como parece,
a Argólida foi o centro da destruição infligida por invasores
no final do terceiro milênio, a implicação adicional é que foi
a partir dessa região que, finalmente, cresceu e difundiu-se a
cultura do Heládico Antigo III e do Heládico Médio, dos quais,
por sua vez, originou-se a civilização do Heládico Tardio (ou
micênica). Isso é bem diferente do quadro romântico segundo
o qual toda, ou quase toda, a Grécia foi conquistada numa única
e grande investida. O "advento dos gregos", em outras pala-
vras, representou a chegada de um elemento novo que,
combinando-se com seus predecessores, criou lentamente uma
civilização nova, expandindo-a como e até onde foi possível.
A destruição de povoações estabelecidas, tais como Ler-
na, não significou que seus habitantes foram mortos ou que
houve uma destruição semelhante no interior. Alguns lugares
foram abandonados por períodos maiores ou menores, outros
não. Além diss9, na Grécia, a Idade do Bronze não se limitou
a alguns centros de poder como a Lema do Heládico Antigo
II ou a Micenas do Heládico Tardio. Como o número de sítios
escavados é ainda uma fração diminuta do todo, e como os
arqueólogos naturalmente dispendem o tempo e os recursos es-
cassos de que dispõem em sítios que prometem ser mais frutí-
feros, o resultado é uma ilusão de grandeza. Porém, a
moderação nos é restituída quando lemos um catálogo, publi-
cado recentemente, de lugares ao sudoeste do Peloponeso que,
conforme sabemos hoje, foram habitados. Nesse pequeno es-
paço, delimitado pelo rio Alfeu, o monte Taígeto, o golfo Mes-
sênico e o mar Jônio, o número de sítios do Heládico Tardio
pode chegar a duzentos, do Heládico Médio a cem - segundo
evidênciasatuais, que são certamente incompletas. A maior par-
te deles não passava de simples aldeias, e muitos foram defini-
20 GRE'CIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
tivamente abandonados ao fim da Idade do Bronze'. Essas
cifras refletem tanto a "colonização interior" da Grécia a par-
tir de vários centros, quanto um crescimento regular nos nú-
meros da população absoluta. Diante de tal crescimento, é
impossível separar os recém-chegados dos predecessores, assim
como suas respectivas contribuições para a cultura, ou melhor,
para o complexo cultural que começara a se desenvolver. Em
suma, todos, de uma maneira ou outra, deram sua contribui-
ção, inclusive os povos de Creta, das Cidades e da Anatólia,
que não viviam na península grega.
Infelizmente, muito pouco se pode dizer a respeito da no-
va cultura até a súbita explosão de poder e opulência demons-
trada pelos túmulos de Micenas e iniciada antes de 1600 a.e.
Por 500 ou 600 anos, desde o princípio do Heládico Antigo
III até o Heládico Médio, os vestígios materiais são de tama-
nha pobreza, que nos surpreendemos com a grandiosidade da
era que os sucedeu. As aldeiac;(pois, hoje em dia, nem Lema
pode ser considerada mais que isso) são uniformes quanto ao
aspecto geral: situam-se geralmente em morros ou outeiros, não
são fortificadas, sua distribuição é um tanto irregular e desor-
denada, não têm palácios, nem outras edificações realmente
grandes. As ferramentas e armas de metal são patéticas; as úl-
timas, além disso, são de ótima qualidade e preciosas demais
para serem enterradas nas sepulturas. Embora achados cerâ-
micos sugiram algum contato entre a Argólida e as ilhas oci-
dentais de Ítaca e Leucas, talvez até mesmo com as ilhas Lípari
ao norte da Sicília, a impressão geral é a de uma uniformidade
monótona e de isolamento durante o período Heládico Médio.
A destoar, apenas o aparecimento, quase desde o início, de ob-
jetos e influências cretenses: ocasionalmente, encontra-se uma
xícara ou vaso cretense numa sepultura do continente, e, em
Atenas e outros lugares, louças de cerâmica começam a adqui-
rir formas minoanas.
É difícil dizer exatamente o que significam essas conexões
cretenses. Não há nenhum motivo para se acreditar em algum
tipo de ascendência de Creta sobre a Grécia durante o século
XVlll ou XVII. Não há nada nos parcos vestígios materiais
1. W. A. McDonald e R. Hopc Simpson em American Journal of Ar-
chaeology, 73 (1969), pp. 123-77.
O "ADVENTO DOS GREGOS" 21
que revelem os progressos na organização social e nas idéias
que, como é razoável supor, estão na base da civilização micê-
nica subseqüente. Nada além do crescimento das povoações e
do aumento implícito da população, já indicados, sugere a ocor-
rência de algo significativo, por mais lento que tenha sido.
3
As ilhas
AS CÍCLADES E CHIPRE
O Mediterrâneo oriental, ao contrário do ocidental, é sal-
picado de ilhas. Com exceção de Rodes e Chipre, poucas vezes
essas ilhas desempenharam um papel independente nos tempos
históricos - se por nenhuma outra razão, por causa do seu
tamanho reduzido e recursos limitados. Anteriormente, porém,
quando a população era pequena em todos os lugares, quando
a tecnologia e a organização social eram menos avançadas, hou-
ve períodos em que algumas das ilhas (ou grupos de ilhas) esti-
veram à frente de desenvolvimentos importantes na civilização.
Creta viria a se destacar, embora com um relativo atraso no
primeiro estágio da metalurgia.
É para as Cíclades que nos devemos voltar primeiramen-
te. Esse agrupamento de ilhotas, estendendo-se na direção su-
deste desde Ceos e Andros, próximo às extremidades sulistas
da Ática e da Eubéia, respectivamente, até Tera (Santorini mo-
derna), Anafi e Astipaléia, constitui a ponte central que cruza
o mar Egeu, entre a Grécia e a Ásia. De tamanho variando desde
Naxos (270 km 2) até simples rochedos que despontam do mar,
têm um aspecto ameaçador, embora seja só na aparência. Suas
1:ostas,em geral inóspitas para navios modernos, são pontilhadas
24 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
I - Modelo de embarcação em chumbo, 42 cm de comprimento, Naxos, pro-
vavelmente anterior a 2500 a.C.
li - "Frigideira" em terracota,
30 cm de altura, mostrando embar-
cação cicládica, de Siros.
de baías adequadas para vasos da Idade do Bronze (tanto os
pacíficos quanto os corsários). Muitas ilhas tinham terra ará-
vel - a agricultura, a pesca e a criação de carneiros, cabras
e porcos, mais do que as atividades marítimas, foram o sus-
tento da maioria dos habitantes. Por outro lado, foi a navega-
ção, juntamente com os trabalhos em pedra e metal, que
conferiu importância às Cidades no presente contexto. Como
não poderia deixar de ser, a maior parte das primeiras repre-
sentações de navios egeus foram encontradas aí - pequenos
modelos em chumbo, originários de Naxos (Ilustração /), da-
tados possivelmente de antes de 2500 a.e., e gravações em ob-
jetos de terracota chatos e circulares (que os arqueólogos não
resistiram a denominar "frigideiras"), provenientes de Siros
(Ilustração li), de uma data ligeiramente posterior. As embar-
'
.·IS 11.HAS. AS CICLADES E C/-1/PRF 25
cações têm proas íngremes, cerca de doze remos de cada lado
e são destituídas de velas.
Os modelos naxianos permaneceram ignorados por apro-
ximadamente trinta anos após sua descoberta', o que basta pa-
ra demonstrar a negligência com que a arqueologia encarou as
Cíclades até então. Afora uma agitação na virada deste sécu-
lo, a escavação sistemática só teve início no final da década de
1950. Portanto, todas as conclusões e afirmações gerais devem
ser consideradas como preliminares e provisórias. Até recente-
mente, por exemplo, não havia qualquer evidência de uma fa-
se neolítica. Hoje, temos algumas de Ceos, além de alguns
achados mais antigos da minúscula Saliagos, próxima a Anti-
paros, que remontam talvez a 4000 a.C. Essa cultura do final
do Neolítico aparentemente não tem relação com a de Creta
ou a do Egeu oriental, embora se assemelhe a achados das vi-
zinhas Ática, Eubéia e Corinto. Seja qual for a explicação que
se dê às afinidades, parece que os migrantes que atravessaram
o mar desviaram das Cíclades durante dois mil anos (já nota-
mos o mesmo com respeito à exploração da obsidiana de Me-
ios), que os primeiros povoamentos eram poucos e isolados e
que, depois de 3000 a.e., houve um florescimento repentino
na Idade Antiga do Bronze. Não surpreendem âsmfluências
visíveis da Grécia e da Ásia Menor, mas a cultura do Cicládico
Antigo do Bronze adquiriu características próprias que não po-
dem ser negadas. Seria mais correto falar de culturas cicládi-
cas; na esfera material, que é a única que conhecemos, as
diferenças tomam-se maiores à medida que se acumula o vo-
lume de evidências, mostrando o desenvolvimento de especia-
lidades locais em Siros, Amorgos, Naxos e, talvez, em outros
lugares. A chamada cultura Keros-Siros, contemporânea do He-
ládico Antigo II e do Minoano Antigo II, nos séculos que tive-
ram início por volta de 2500, marca o apogeu. Técnicas
metalúrgicas influenciaram as de Creta e Grécia, chegando até
Epiro; pode ter havido exportação de metais (pelo menos de
prata e de chumbo, relativamente abundantes nas Cíclades);
artigos manufaturados em argila e mármore foram amplamente
1. Ver a esse respeito, C. Renfrew, "Cycladic Metallurgy and the Ae-
gean Early Bronze Age", American Journal oj Archaeology, 71 (1967), pp.
1-20.
26 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
difundidos. No entanto, não houve praticamente quaisquer po-
voações grandes ou concentrações densas de pessoas. Até mesmo
Filacopi, em Meios, a maior comunidade do Cicládico Antigo
do Bronze de que se tem notícia, permaneceu sem fortificação.
Os mais notáveis de todos os produtos cicládicos são os
"ídolos" de mármore, na maioria femininos, encontrados em
grandes quantidades em sepulturas, não apenas nas próprias
ilhas como também no continente da Grécia e da Ásia Menor.
De tamanho variando desde alguns centímetros a, em um ou
dois casos, um metro e meio, essas estatuetas, geralmente bas-
tante toscas, são achatadas, com cabeças alongadas e ovais. Os
aspectos sexuais são atenuados, às vezes virtualmente inexis-
tentes, e a impressão geral é a de um abstracionismo geométri-
co quase avant garde (Ilustração Ili). Como destinavam-se
basicamente a acompanhar os mortos nos túmulos, refletem
uma certa tendência ou concepção religiosa, que foi partilha-
da além dos limites das Cidades. É inútil fingir que podemos
compreender as idéias, assim como ainda não podemos enten-
der um achado cicládico posterior, também religioso. Em Ceos,
na Idade Média do Bronze, existiu uma edificação que se asse-
melhava a um templo, numa época em que tais estruturas não
eram conhecidas em nenhum outro lugar do mundo egeu.
Encontraram-se nas ruínas centenas de fragmentos de estátuas
femininas em tamanho natural, ocas, manufaturadas em argi-
la, restos de pelo menos 19 figuras individuais e, possivelmen-
te, mais do que 24. Se eram deusas, não tiveram, pelo que
sabemos, predecessoras no Egeu e, pelos quase mil anos seguin-
tes, poucas foram suas sucessoras, se é que houve alguma.
Na Idade Média do Bronze as Cíclades perderam sua im-
portância. Não há sinais de perturbações maiores - pelo con-
trário, os remanescentes revelam uma existência contínua por
todo o período pré-histórico, assim como pelo histórico. Ago-
ra, porém, a pequenez das ilhas reduz seu significado, que se
faz notar apenas ocasionalmente, por causa de alguma vanta-
gem natural, ou em relação a algum poder maior e mais am-
plo. Assim, o mármore de Naxos e Paros conservou sua
importância por muitos séculos. Tera, embora tenha sofrido
uma grande catástrofe vulcânica no início do Heládico Tardio,
tornou-se, no período Arcaico, um centro cuja importância foi
responsável pela primeira povoação grega em Cirene (Líbia).
,IS ILHAS. AS CÍCLADES E CHIPRE 27
Ili - "Ídolo" cicládico, 32 cm de
altura, encontado em Amorgos.
Naxos e Meios estavam destinadas a ocupar um lugar especial
no relato do historiador Tucídides sobre o Império Ateniense
do século V; mais tarde ainda, Meios nos deu a mais conheci-
da de todas as esculturas gregas, a "Vênus de Milos", hoje no
Louvre. Assim, em todos os aspectos significativos, a história
das Cíclades fez parte integral da história da Grécia, sobres-
saindo por um momento fugaz no início da Idade do Bronze.
Ao contrário das Cidades, Chipre integrou-se na esfera
grega apenas periodicamente e, mesmo assim, nunca de ma-
neira total. Com seus 5600 km2 , era a maior ilha do Mediter-
râneo oriental (um pouco maior do que Creta) e, por sua
28 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
localização, ligava-se mais à Anatólia - e sobretudo à Síria
- do que à Grécia. O caminho mais curto para a Ásia Menor
tem menos de 80 km, para a Síria, cerca de 120, ao passo que
Rodes, o centro grego mais a leste, não é mais próxima (400
km) do que Alexandria, no Egito. Bons ancoradouros, apro-
priados para navios antigos, inclusivepara modernos vasos oceâ-
nicos (exceto Famagusta), eram mais numerosos nas costas leste
e sul, voltadas para o Levante. Assim, o destino de Chipre foi
traçado por dois fatores, ambos além do controle dos próprios
cipriotas. O primeiro foi a situação política e comercial no Me-
diterrâneo oriental corno um todo. O comércio ativo entre a
Grécia e o Levante geralmente beneficiava Chipre, por ser urna
parada no caminho, mas as guerras pelo domínio da Síria ou
os conflitos pela supremacia naval (como os travados entre Ve-
neza e os turcos no século XVI d.C.) tiveram conseqüências
destrutivas. O segundo fator foi a quantidade da demanda ex-
terna pelo minério de cobre da ilha, a chave do crescimento
e da prosperidade cipriotas durante a Idade do Bronze. Não
se deve esquecer, contudo, que, afora a cordilheira estreita ao
norte e as extensas montanhas a oeste e sudoeste, Chipre pos-
sui uma vastidão de terras aráveis e também boas comunica-
ções internas, urna raridade no Egeu. Por milhares de anos a
agricultura constituiu a base da vida cipriota; as importantes
cidades costeiras só passaram a existir quando a exportação do
cobre ganhou proporções significativas.
A história primitiva dos movimentos populacionais é obs-
cura, não só pelas razões costumeiras, mas também por urna
instabilidade inexplicada no padrão de povoação. Muitos sí-
tios eram abandonados e logo depois reocupados; os habitan-
tes seguintes via de regra preferiam assentar-se em algum lugar
das proximidades. Ao que parece, a fase neolítica pré-cerâmica
mais antiga, logo após 6000 a.e., foi muito mal representada
e teve existênciacurta, como um hiato no quinto milênio. Houve
então uma segunda fase neolítica, com mais de urna centena
de sítios hoje· identificados 2 • É ainda difícil datar com preci-
são o início da Idade do Bronze no terceiro milênio a.e. Po-
rém, inovações posteriores nesse milênio, tais corno novas
2. Ver N. P. Stanley Price, "Khirokitia and the lnitial Settlement of
Cyprus", Levant, 9 (1977). pp. 66-89.
AS ILHAS. AS CiCLADES E CHIPRE 29
formas em cerâmica e práticas funerárias, além da arte da me-
talurgia num país escassamente povoado, podem indicar uma
migração - oriunda provavelmente da Ásia Menor, através da
baía de Morfu. a noroeste - como reflexo dos problemas na
Anatólia, mencionados no início do Capítulo 2.
Os últimos séculos do terceiro milênio testemunharam um
crescimento lento porém contínuo, demonstrado pelo aumen-
to no número e tamanho dos povoamentos. Estes, em sua maio-
ria, situavam-se no interior, em regiões agrícolas com bons
suprimentos de água, mas o cobre nativo estava sendo extraí-
do desde o começo, e pelo menos uma cidade-porto, posterior-
mente conhecida como Citium (Larnaka moderna), foi
estabelecida de imediato na costa sul para servir à exportação
(inferência baseada em alguns achados egípcios nas ruínas). De-
pois de 2000, o comércio em direção ao oeste apresentou pro-
gressos, não com a Grécia, mas com a ilha de Creta; essa ilha,
pressionada por sua necessidade cada vez maior de cobre, co-
meçava então a olhar mais longe, para além das Cíclades. O
comércio com o Levante também cresceu - textos cuneifor-
mes, vindos de Mari, no rio Eufrates, fazem referência a im-
portações de cobre e bronze da Alasiia (normalmente tida como
Chipre) no século XVIII. Chipre entrava agora em seu perío-
do de grandiosidade, que perdurou até 1200a.e. O interior per-
dia importância à medida que verdadeiros centros urbanos, de
manufatura e comércio, cresciam por toda a costa sul e leste.
As sepulturas dão mostras abundantes de riqueza e luxo - e
também de armas, das quais os cipriotas podiam agora dispor
dessa maneira. A orientação para o leste é inequívoca e pros-
segue até por volta de 1400, quando a cerâmica da Grécia mi-
cênica começou a invadir a ilha. Um único cálculo poderá
indicar a extensão desse novo fenômeno, que durou dois sécu-
los. No importante sítio cipriota da Idade do Bronze, próximo
ao vilarejo de Enkomi, situado a cerca de 5 km para dentro
da baía de Salamina na costa leste, foram encontrados gran-
des e caros recipientes para mistura e jarros do tipo micênico
Ili A, numa quantidade comparável à do resto de todo o mundo
egeu, inclusive a própria Grécia.
A importância econômica de Chipre, nessa época, está cla-
ramente fora de questão. Infelizmente, tentativas de fazer um
relato ao menos razoável da atividade econômica, como, por
30 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
exemplo, da extensão da exportação do cobre, mostraram-se,
até hoje, pouco mais do que suposições. Lingotes de cobre, por
exemplo, são encontrados ou descritos em todos os lugares, na
Grécia, no Egito, até mesmo na Sardenha, e é provável que
em grande parte tenham vindo de Chipre, mas não temos cer-
teza. A carga de uma embarcação de 30 pés que afundou nas
proximidades do cabo Gelidonia, na costa sudoeste da Anató-
lia - navegando rumo ao oeste por volta de 1200 a.e., possi-
velmente comandada por um capitão sírio -, continha pelo
menos uma tonelada de cobre, bronze e zinco, uma certa quan-
tidade de ferramentas e outros objetos, na maioria, transporta-
dos como sucata de metal, e mercadorias perecíveis,impossíveis
de identificar, acondicionadas em cântaros 3 • O arqueólogo que
escavou o naufrágio estava seguro de que o cobre e a sucata
haviam partido de Chipre, mas uma análise metalúrgica pos-
terior suscitou sérias dúvidas sobre essa conclusão, embora não
tenha indicado nenhuma procedência alternativa.
Os progressos econômicos afetaram a estrutura de poder
em Chipre (e foram, por sua vez, afetados por ela), de um mo-
do que pode ser comparável ao da Grécia, mas que não teria
sido possível nas pequenas ilhas das Cíclades. As numerosas
armas depositadas nos túmulos, além dos povoamentos forti-
ficados e das colinas-fortes do interior, são indicadores cuja
interpretação política reside, sobretudo, na identificação da de-
nominação geográfica Alasiia. A questão decisiva é se havia
ou não um controle centralizado sobre essa rica ilha, e, em ca-
so afirmativo, quem o detinha, cipriotas ou asiáticos. O nome
Alasiia aparece em documentos egípcios, hititas, do norte da
Síria e de outras regiões do Oriente Próximo, por todo o se-
gundo milênio, e não se pode mais duvidar da identificação com
Chipre, ou pelo menos com a parte da ilha controlada pelos
governantes de Enkomi. O "rei de Alasiia" era uma figura de
vulto, que podia fazer frente aos monarcas do Oriente Próxi-
mo, mais importantes e conhecidos - dirigia-se ao faraó egíp-
cio como "meu irmão". O rei de Ugarit (hoje Ras Shamra),
no norte da Síria, chamava-o de "meu pai". Ele era um estar-
3. Para um relato completo da descoberta e suas implicações, ver G.
F. Bass et ai., Cape Gelidoniya, a Bronze Age Shipwreck (Transactions o/
the American Philosophical Society, vol. 57, parte 8, 1967).
.•IS ILHAS. AS CÍCLADES E CHIPRE 31
vo, às vezes mais do que isso, para os governantes do Império
Hitita, que conseguiram controlá-lo durante algum tempo, mas
não muito, e contra os quais ele tinha condições de lutar numa
guerra naval. "Meu irmão" não passava de cortesia diplomá-
tica, é claro, e não tem cabimento imaginar que, mesmo mini-
mamente, a Alasiia tenha-se equiparado ao Império Hitita ou
ao Egito. Porém, foi um poder.
Depois de 1100, o nome Alasiia desaparece. Parece que,
posteriormente, os assírios passaram a chamar a ilha de lad-
nana, até que, for fim, ''Chipre'' acabou substituindo todos
os outros nomes, embora não possamos datar, nem identificar
sua origem. Nas línguas modernas da Europa, Chipre signifi-
ca também cobre (Kupfer, cuivre), mas não em grego, o que
complica ainda mais a questão. Na verdade, nada se sabe so-
bre as línguas faladas na ilha durante o Neolítico e a Idade do
Bronze. Não há indício algum de que Chipre tenha sido pene-
trada pelas migrações que levaram as línguas indo-européias
para a Ásia Menor e para a Grécia por volta de 2000 a.e. (Se
há algo que indique uma migração proveniente da Anatólia no
final do terceiro milênio, só pode ter sido de pessoas fugindo
dos antepassados dos hititas.) Nem Alasiia, nem Iadnana e, pelo
que podemos concluir, nem mesmo Chipre são nomes indo-
europeus. A única escrita foi encontrada em Enkomi e na Sí-
ria (Ras Shamra) e consiste em várias centenas de grafitos e
algumas tábulas, sendo os mais antigos datados de cerca de
1500, com base na arqueologia. Como os caracteres revelam
uma afinidade evidente com o tipo Linear A, a escrita foi ro-
tulada de cíprio-minoana. Entretanto, hoje parece provável que
tenha ocorrido a mistura de três escritas distintas e que as lín-
guas de duas delas sejam da Ásia ocidental. O fluxo de cerâ-
micas micênicas entre 1400 e 1200 não foi acompanhado de
outras características culturais de Micenas, sendo, portanto, im-
provável que, juntamente com a cerâmica, tenha havido uma
afluência de pessoas vindas da Grécia.
Com o tempo, porém, o idioma grego passaria a ser fala-
do e escrito por grande parte dos cipriotas, e a forma que as-
sumiu no período clássico constitui o indício necessário para
se datar sua introdução. O dialeto está intimamente ligado ao
da Arcádia, a região mais mediterrânea do Peloponeso, e a es-
crita, além de ser silábica (quando todos os outros dialetos gre-
32 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
gos haviam adotado o alfabeto -fonético4), ainda conservou
sete sinais da Linear B e de outras que eram modificações da
escrita extinta. Assim, a língua e a escrita gregas foram estabe-
lecidas em Chipre antes do desaparecimento definitivo da civi-
lização micênica e antes de o Peloponeso ter assumido um
dialeto da Grécia ocidental. No Capítulo 6, veremos que isso
ocorreu por volta de 1200, pouco antes de a Chipre da Idade
do Bronze ter sido devastada pelos chamados "Povos do Mar"
- como grande parte da Síria e da Ásia Menor.
4. Numa escrita silábica, a maioria dos signos representam sílabas (uma
consoante e uma vogal juntas), tal como nos signos cipriotas clássicos re-
produzidos na Figura 2. Um alfabeto fonético, por sua vez, tal qual o in-
glês, constitui-se em grande parte de signos, cada um deles representando
um som vocálico ou consonantal.
4
As ilhas
CRETA
Creta, a outra grande ilha (5120 km2) do Mediterrâneo
oriental, desenvolveu-se de modo bem diferente. Em tempos
modernos, houve grandes áreas inóspitas e pouco produtivas,
devido, pelo menos em parte, à falta de cuidado do homem.
Para quem vem pelo sul, a paisagem é acidentada e espetacu-
lar, com as montanhas descendo até o mar. As Montanhas Bran-
cas a oeste são quase inacessíveis. Na Antigüidade, porém, as
regiões central e oriental de Creta eram famosas por seus pra-
dos e planaltos pastoris, suas oliveiras e videiras, carvalhos e
ciprestes, pelas praias protegidas dos litorais norte e leste. Ao
contrário de Chipre, contudo, Creta era pobre em recursos mi-
nerais e não tinha urna localização tão privilegiada para o trá-
fego marítimo que ia e vinha da Ásia Menor, Síria e Egito.
Por mais de 3 mil anos, Creta não apresentou nenhum si-
nal do que viria a acontecer na Idade do Bronze. As mais anti-
gas habitações neolíticas, em Cnosso, remontam a cerca de 6000
a.e., mas muito pouco se conhece sobre os três milênios se-
guintes. Ao menos o final do Neolítico apresenta uma caracte-
rística digna de nota: a ocupação das cavernas situadas nas
montanhas que pontilham a ilha, onde se encontraram rema-
34 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
O 50 100Ml1
-----..------
º 80 IIIOKm1
t 3 - Creta antiga
•
nescentes de atividade humana. A impressão geral é de que a
Creta neolítica viveu em grande isolamento. Em Cnosso e Fes-
to, encontrou-se obsidiana de Meios em níveis neolíticos, mas
nenhum remanescente de metal anterior ao terceiro milênio e
muito pouco datado de antes de 2500 ou 2300. Nessa época,
a população crescera consideravelmente em número e riqueza,
tendo feito muitos progressos tecnológicos. As povoações mais
importantes situavam-se na extremidade leste da ilha (a não ser
que tenhamos sido enganados pelo estado atual da arqueolo-
gia cretense), mas, com o tempo, ocorreu uma mudança para
o centro; além disso, havia aldeias em todos os lugares, até mes-
mo na inóspita região oeste.
Estamos muito longe de compreender claramente a evo-
lução da Idade da Pedra para a do Bronze. Em Cnosso, Sir
Arthur Evans não constatou nenhuma interrupção, visualizando
o Minoano Antigo (que, segundo se pensa hoje, abrangeu o
terceiro milênio) como um longo período de transição. Mais
recentemente, alguns arqueólogos questionaram a opinião de-
le, depois de examinarem o registro arqueológico de outros sí-
tios, bastante diferente. Evans, o primeiro a descobrir o palácio
de Cnosso em 1899, onde trabalhou com grande habilidade e
energia até morrer em 1941,tendeu a imprimir uma marca cnos-
siana à ilha toda - fato nada surpreendente. A divisão em pe-
AS ILHAS. CRETA 35
ríodos feita por ele oculta muitas coisas - Creta, assim como
a Grécia, não tinha nessa época uma cultura uniforme ou mo-
nolítica. Mas Evans aparentemente estava certo ao conceber
o Minoano Antigo como um crescimento evolucionáro suces-
sivo, não como uma interrupção da cultura do final do Neolí-
tico. Em muitos sítios, a linha divisória entre os Minoanos
Antigos I e II, por volta de 2500 a.e., é bem mais perceptível,
conforme evidenciam os vasos de pedra, as ricas jóias e as ada-
gas de cobre do período posterior. As variações regionais são
igualmente notáveis. Por exemplo, dos cerca de quinhentos ob-
jetos de bronze e de cobre do Minoano Antigo II catalogados
até hoje, aproximadamente dois terços são do sul da ilha, ao
passo que os artefatos anteriores de prata e de chumbo, em
quantidade bem menor, foram quase todos encontrados no nor-
te e no nordeste. Num sítio descoberto em 1962,situado na costa
sul, próximo à vila moderna de Mirtos, os escavadores encon-
traram um grande número de cerâmicas, algumas das quais
apresentam vínculos com depósitos contemporâneos localiza-
dos em outros pontos de Creta, enquanto outras não. O mais
interessante é que eles desenterraram cerca de uma centena de
fusos e pesos de tear feitos em argila e em pedra, quase ne-
nhum metal e algumas centenas de lâminas de obsidiana de Me-
ios. A ocupação do sítio ocorreu inteiramente no Minoano
Antigo II e chegou ao fim devido a uma conflagração 1.
A descoberta de um povoamento do Minoano Antigo es-
condido na costa sul, de cuja existência não se suspeitava, sus-
citou amplas especulações; assim, a primeira sugestão feita pelo
escavador foi a de um "centro têxtil" (que hoje ele abando-
nou). Entretanto, pode-se observar, com segurança que todas
as evidências mais recentes contribuem para confirmar algu-
mas das afirmações feitas aqui anteriormente sobre o desen-
volvimento social em geral. A predominância de ferramentas
de pedra e de argila muito depois da introdução da metalurgia
é constatada pela ausência de ferramentas agrícolas de metal
e pelo número desproporcional de adagas entre os artefatos de
metal (talvez metade do total) - o que se vinculou ao desen-
volvimento de uma estrutura social mais ramificada, da espe-
cialização do trabalho e daquilo que podemos chamar de um
1. P. Warren, Myrtos (Londres 1972).
36 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
componente urbano. É possível que também entre as comuni-
dades tenha havido uma tendência à especialização. As raízes
desses importantes desdobramentos encontram-se no Neolíti-
co Tardio, na própria Creta, embora atualmente sejam invisí-
veis para nós. Portanto, embora Creta tenha saído de seu longo
isolamento para entrar no complexo da Idade do Bronze egéia,
recebendo influências da Grécia e da Macedônia, das Cíclades,
da Ásia Menor principalmente, da Síria e até mesmo do Egito
(provavelmente de maneira indireta), sua história, segundo nos
informa o estudo de seus remanescentes materiaís, não é uma
história de imitação mecânica, nem de imigrações extensas, mas
a história de uma sociedade que absorveu elementos novos num
desenvolvimento próprio, interno e coerente.
Os sinais de originalidade inventiva são numerosos e ine-
quívocos. Vasos e outros objetos pequenos eram continuamente
remodelados e redesenhados, não apenas copiados, mesmo
quando a influência externa é mais óbvia. As técnicas meta-
lúrgicas básicas provavelmente foram aprendidas das Cíclades,
inclusive o uso do arsênico que, devido à falta de zinco, era
empregado como liga de endurecimento para o cobre. Mas as
adagas de cobre, os artefatos de metal mais proeminentes do
Minoano Antigo, eram caracteristicamente cretenses, e esse é
apenas um exemplo. No transcurso do Minoano Antigo, sur-
giu, embrionariamente, o único estilo cretense de arquitetura,
com sua estrutura aglutinativa, semelhante a uma célula, que
nos séculos posteriores culminaria no palácio de Cnosso, cu-
jos pátios cobriam cerca de 20 mil metros de terreno (Figura
1). Há ainda um fato negativo que também merece ser ressal-
tado: as conhecidas estatuetas humanas do Neolítico deixaram
de ser fabricadas, e com elas desapareceram, por um tempo
considerável - até o Minoano Médio-, a representação da
forma humana nas artes em geral.
Por volta do té_rminodo Minoano Antigo, a tecnologia
cretense (assimcomo a de todos os outros povos do Egeu e do
Oriente Próximo) já atingira o máximo possível de progresso
na Idade do Bronze. O período seguinte, o Minoano Médio,
a idade áurea de Creta, entre 2000 e 1600ou 1550, caracterizou-
se por um enorme avanço em outras esferas, no poder políti-
co, na riqueza e na arte. Foram os séculos em que se concluiu
a ·'revolução urbana" de Gordon Childe; quando os comple-
AS ILHAS. CRETA 37
~~~ •
---.::__ ..
7\·
o
,
.___.__~__.__......__,i SOM,
.__ _ _._ _ __. ____ _.15on:
Fig. 1 - Palácio de Cnosso
xos palacianos foram construídos e decorados com afrescos sur-
preendentes; quando as artes menores (vasos, jóias e sinetes de
pedra) atingiram o apogeu, com um estilo e uma vivacidade,
uma leveza e uma delicadeza de movimento que são imediata-
mente reconhecidas como minoanas (Ilustração IV); quando
a sociedade - ou pelo menos sua classe mais alta - revelou,
por meio de suas artes visuais, ter uma psicologia e um estilo
de vida bem diferentes de quaisquer outros de sua época (e,
nesse aspecto, de qualquer outro período da Antigüidade).
38 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADf; DO BRONZE E IDADE AHC.4IC.4
IV - Sincles do Minoano Tardio, em pedra semipreciosa; à esquerda (im-
pressão) de Preso, 2 cm de diãrnetro; à direi/a das proximidades de Cnosso,
3 cm de diâmetro.
Talvez a mais notável manifestação da originalidade cre-
tense ocorresse no campo da escrita. Quando se pensa cm quão
poucos sistemas de escrita foram inventados em todos os luga-
res e em todas as épocas da história mundial, a contribuição
cretense, dentro de um período relativamente curto, parece es-
tar além da compreensão. Primeiro surgiu um tipo de escrita
pictográfica modificada, que Evans, numa analogia com a es-
crita egípcia, rotulou de "hieroglífica". Então, nos primeiros
séculos do Minoano Médio, apareceu uma escrita mais sofisti-
cada, que Evans denominou de "Linear A", na qual a maio-
ria dos sinais representava sílabas. A Linear A foi amplamente
difundida pela ilha, sendo que o maior número de textos des-
cobertos até hoje foram encontrados em Hágia Tríada e Cato
Zacro. Com o passar do tempo, a Linear A foi substituída em
Cnosso pela Linear B, uma ramificação mais complicada da
Linear A2. Embora a Linear B, ao contrário da Linear A, tam-
2. Foram encontrados, em Meios, Tera, Ceos e Naxos, alguns vasos,
lamparinas de argila e outros objetos exibindo de um a três sinais da Linear
A. Mesmo assim, é prematuro extrair qualquer inferência sobre a "alfabe-
tização" cicládica de um testemunho tão frágil. Não é injusto ressaltar que
os arqueólogos nem sempre conseguiram distinguir simples riscos de carac-
teres da Linear A.
ESCRITAS CRETENSES ALFABETOS ANTIGOS
SILABÁRIO
Hieró- Linear Linear CIPRIOTA Nomes gregos Norte- Ático
CLÁSSICO
glifos A 8 paraasletrasSemíticoAntigo
(Sons)
l=1 a ~ a
*? Alfa ~ A
* t f
çtz ~
ca
ta t
Beta
Gama \
9 B
/\
:f: Delta 4 à
~ pa
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T Eta 1:::1 8
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Fig. 2 - Escritas (nenhuma está completa)
40 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
bém fosse empregada na Grécia continental, até agora os úni-
cos exemplos de Creta foram encontrados em Cnosso e, bem
recentemente, em Cânia 3 • Continuamos sem saber se estamos
diante de um acidente arqueológico ou de um fenômeno da his-
tória cretense. Se for confirmada uma atraente suposição, fei-
ta recentemente, de que as 25 ânforas de estribo com caracteres
da Linear B, encontradas em Tebas, foram manufaturadas em
Cânia, a balança da probabilidade penderá para a explicação
do acidente. A questão é importante, pois está ligada a outras,
tais como a extensão e a natureza da suserania de Cnosso
em Creta e o papel exato desempenhado pela escrita na so-
cidade4 .
Afora os sinais gravados ou riscados em cerâmica, sinetes
de pedra, mesas de libação e objetos diversos, a única ref erên-
cia importante que temos da escrita cretense provém de peque-
nas tábulas de argila, em forma de folha, que não chegam a
4 mil, muitas das quais são meros fragmentos. Materiais pere-
cíveis, como cera e papiro, certamente também foram usados,
mas nenhum vestígio deles se conservou. As próprias tábulas
em argila sobreviveram por acidente. Não eram cozidas antes
de serem usadas e, tão logo perdiam a utilidade, eram descar-
tadas; foram os incêndios que se seguiram à destruição dos pa-
lácios que preservaram as tábulas porventura em uso no
momento - todas elas datam daquele ano. Portanto, pode-
mos fazer aqui uma analogia com um corte transversal de uma
célula no microscópio: não há profundidade, nerv qualquer in-
dício de desenvolvimento ou mudança, nem vestígios do ele-
mento tempo. Os textos, em si, são curtos e bastante limitados,
consistindc;>em um tipo ou outro de lista, ou em registros enig-
máticos de relações de propriedade, distribuições de ração e coi-
sas semelhantes. Mesmo que todas as tábulas pudessem ser lidas
e traduzidas com total segurança - o que não seria possível
3. Quanto a Cânia, ver E. Hallager em Opuscula Atheniensia, 2 (1975)
pp. 53-86.
4. Deve-se levar em conta ainda uma outra escrita, encontrada num
pequeno disco de Festo, aparentemente relacionada, mas não idêntica, à
escrita que consta num machado duplo encontrado em Arcalocori, na Cre-•
ta central, numa laje de calcário de Mália e em outros fragmentos. Até agora,
esses achados isolados geraram uma enorme quantidade de comentários,
mas nenhuma solução aceitável.
.IS ILHAS. CRETA 41
-, documentos como o seguinte, de Cnosso, logo se esgota-
riam como fontes de informação significativa: "Em Lasunto
(?): Duas enfermeiras, uma menina, um menino" ou "Amni-
so: uma ânfora de mel para Eilêithiia. Uma ânfora de mel pa-
ra todos os deuses. Uma ânfora de mel. .. "
Sabe-se hoje que a língua das tábulas em Linear B, a últi-
ma das escritas, era o grego (há mais coisas a esse respeito a
seguir). Até o momento, porém, todos os esforços para deci-
frar tanto a Linear A quanto a escrita hieroglífica, mais antiga
ainda, fracassaram. Em parte, porque os textos disponíveis são
poucos - os textos em Linear B de Cnosso superam em nú-
mero as tábulas em Linear A de toda Creta, em cerca de dez
para um-, mas principalmente porque a língua da escrita hie-
roglífica com certeza não é o grego nem, provavelmente, ne-
nhum dos idiomas conhecidos. A hipótese de que seja uma
língua semítica tem pouco fundamento. A sugestão mais plau-
sível de que seja luviano, inferida de nomes geográficos como
Cnosso e Tilisso, não levou sequer a uma decifração parcial.
Tudo o que podemos dizer, portanto, é que a língua da escrita
Linear A pertencia ao povo que criou a idade áurea minoana,
e que a escrita foi inventada originalmente para essa língua,
sendo transferida depois para o grego, ao qual não se adequa-
va muito bem. Desconhecemos até mesmo nomes geográficos
importantes. Se, por um lado, Cnosso, Gortina e Festo con-
servaram sua existência, embora insignificante, por toda a his-
tória da Grécia antiga, bem como seus nomes, outros centros
foram destruídos e totalmente abandonados na Idade do Bron-
ze. Hágia Tríada e Cato Zacro, por exemplo, receberam rótu-
los de identificação a partir de marcos contemporâneos - seus
nomes são ainda desconhecidos.
As tábulas, em suma, forneceram importantes informa-
ções suplementares, algumas das quais novas (especialmenteso-
bre a história da língua grega}, mas nossa fonte básica ainda
são os remanescentes materiais. A mais valiosa contribuição
das tábulas talvez tenha sido no sentido de fortalecer as impli-
cações de poder inerentes à arqueologia. De fato, pode-se ar-
gumentar que as necessidadesde uma adnúnistração centralizada
constituíram um estímulo bem maior para o desenvolvimento
da escrita, tanto entre os sumérios (cuneiforme} como em Cre-
ta, do que as necessidades intelectuais ou espirituais. Entre o
42 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
Neolítico Tardio e o Minoano Médio houve um rápido cresci-
mento dos recursos humanos e naturais e uma concentração,
social e geográfica, da capacidade de empregá-los. Caso con-
trário, os grandes complexos palacianos sequer poderiam ter
sido construídos, nem funcionado. Apenas recentemente foram
descobertas, em algumas tábulas, duas palavras que parecem
indicar a troca de mercadorias. Por outro lado, são numero-
sos os inventários, as listas de ração e de pessoal. Deduz-se que
a sociedade era governada pelo palácio central, que adminis-
trava cada detalhe da economia interna, distribuindo pessoas
e bens, desde matérias-primas a produtos acabados, sem o uso
de dinheiro ou de um mecanismo de mercado. Até certo pon-
to, essa suposição é confirmada pelo fato de que as inúmeras
tábulas de Cnosso que catalogavam ovelhas e lã, registram um
censo anual de rebanhos e tosas e dos pastores responsáveis -
deve-se lembrar que todas as tábulas datam do ano da destrui-
ção do sítio. O número total de animais era de aproximada-
mente 100mil, e, até onde a identificação dos nomes geográficos
é possível, esses animais eram criados por toda a Creta cen-
tral. Assim, parece que o palácio de Cnosso detinha um certo
monopólio das ovelhas e da lã nessa região da ilha.
A lã poderia então ajudar a responder a um antigo enig-
ma: como os cretenses pagavam (ou de que maneira obtinham)
o cobre, o ouro, o marfim e outras coisas que importavam?
Hoje, a lã responde pelo menos a uma parte da pergunta. E
é verdade que os cretenses (chamados Keftiu) representados nos
afrescos egípcios carregavam às vezes panos dobrados. Mas tam-
bém portavam ouro, prata, marfim e outras coisas que não são
produtos de Creta, de modo que essa pequena evidência con-
creta de que a lã era uma mercadoria importante fica um tanto
enfraquecida. Com relação a esse aspecto, as tábulas são frus-
trantes e, surpreenden1cmente, omissas. Nada informam sobre
o mundo exterior - no que diz respeito a elas, esse mundo bem
poderia não ter existido. A arqueologia, por si só - nunca é
demais repetir-, raramente pode desvendar o mecanismo das
relações exteriores, nem mesmo quando desenterra grandes
quantidades de bens estrangeiros ou inspirados no estrangeiro.
Uma outra abordagem sugerida por eruditos modernos en-
fatiza o império e o tributo, a chamada talassocracia (domínio
dos mares) minoana, sobre a qual encontram-se referências nos
11SILHAS. CRETA 43
escritores gregos clássicos. Tanto a riqueza e o poder de Cnos-
so quanto a navegação minoana são inquestionáveis. Aparen-
temente, existiram povoamentos "minoanos" em algumas ilhas
próximas, sobretudo em Citera, ao norte, que chegou ao auge
no Minoano Tardio I, pouco antes do abandono do sítio (sem
qualquer vestígio de destruição). Entretanto, o passo seguinte
que levou a um império, na acepção comum da palavra, marí-
timo de grande extensão não é simples, nem evidente por si mes-
mo, e pode-se argumentar que toda essa noção tem uma
fundamentação frágil demais. A primeira referência gregaà ta-
lassocracia é feita por Heródoto e Tucídides na segunda meta-
de do século V a.e., mas por ser muito remota, não pode ser
levada a sério sem evidências corroborativas. As diversas len-
das gregas sobre a Creta pré-histórica apresentam ênfases di-
ferentes, a maioria de caráter puramente religioso. A exceção
notável é a história de Teseu e o minotauro, que merece consi-
deração especial.
A história é a seguinte. O rei Minos era casado com Pasí-
fae, filha do Sol, que tomara-se de uma paixão anormal por
um touro saído do mar. Ela pediu ajuda a Dédalo, o artesão
de ascendência divina, que inventou um dispositivo por meio
do qual ela podia ter relações sexuais com o animal. Então,
Pasífae deu à luz um monstro, metade homem, metade touro,
chamado minotauro. A uma ordem do rei, Dédalo construiu
um labirinto para alojar o monstro, e todo ano os atenienses,
vassalos de Minos, eram obrigados a entregar sete jovens e se-
te donzelas para alimentar o minotauro. Certo ano, Teseu, o
jovem filho do rei ateniense, convenceu o pai a incluí-lo na con-
signação anual de vítimas. Quando chegou a Creta, Teseu ga-
nhou o amor de Ariadne, filha de Minos, e com a ajuda dela
matou o minotauro. Em seguida, o casal fugiu para a ilha de
Naxos, onde Teseu abandonou Ariadne, que foi encontrada pelo
deus Dioniso, com quem acabou se casando.
Argumenta-se que esse conto reflete, de forma mítica, a
sujeição dos atenienses ao domínio cretense - e, mais tarde,
sua emancipação - durante a idade do Bronze. Mas as obje-
ções a essa interpretação são sérias. Embora monstros metade
homem, metade animal sejam comuns, sobretudo nos sinetes
de pedra minoanos, encontraram-se apenas um ou dois "mi-
notauros" de aparência inofensiva. O touro, por outro lado,
44 GRt'CIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
é amplamente documentado como elemento importante da re-
ligião minoana: como animal sacrificial, ou nas conhecidas ce-
nas de "saltar o touro", que mais provavelmente representam
uma forma de ritual do que um mero esporte, ou nas peque-
nas estatuetas de bronze encontradas em algumas das cavernas
que foram centros de culto. Portanto, uma explicação possível
para a lenda do minotauro é a de que se trata de um conto in-
ventado para explicar alguma cerimônia, talvez uma iniciação,
ligada ao culto de Dioniso, cujo significado original fora es-
quecido havia longo tempo 5 . Uma outra explicação, a de que
é um relato dissimulado do destronamento de um rei estran-
geiro, peca pelo excesso de imaginação. A história conhece mui-
tos exemplos de contos tradicionais em que um povo relata de
que maneira, um dia, ganhou a independência, e o relato nun-
ca é tão dissimulado a ponto de ocultar a idéia fundamental
que se quis revelar. Talvez seja relevante o fato de que, no Mi-
noano Médio, Atenas tenha-se relacionado mais com alguns
centros do continente do que com a ilha de Creta - influên-
cias artísticas à parte.
Um outro enigma é o fato de os palácios cretenses serem
abertos, complexos "civis" sem fortificação, ém vez de cidâ-
delas propriamente ditas. O contraste com fortalezas do conti-
nente, tais como Micenas e Tirinta, surpreende qualquer
visitante. A talassocracia minoana não pode ser a explicação,
por mais que seja proposta. Ameaças do ultramar nunca fo-
ram uma causa decisiva para a fortificação - não explicam
Micenas ou Tirinta mais do que explicam um castelo medie-
val. Será que nunca houve perigo de conflito entre os palácios?
Será que não havia necessidade de coerção e proteção policial
em casa? Em todos os lugares de Creta o tom predominante
é a pacificidade. As cavernas, que ao longo de toda a história
de Creta serviram de refúgio em tempos de agitação, não fo-
5. Essa proposição encontra respaldo nos argumentos persuasivos de
Paul Faure, Fonctions des cavernescrétoises(Travaux et mémoires da Eco-
le française d'Athenes XIV, 1964), pp. 166-73, de que o labirinto deve ser
identificado não com o palácio de Cnosso, mas com uma caverna. Sugere
que a caverna de Skotino, alguns quilômetros a leste de Cnosso, onde as
evidências de culto remontam ao início do Minoano Médio e prosseguem
pelo Arcaico grego. Uma continuidade religiosa de duração tão longa é ates-
tada somente em três ou quatro cavernas cretenses.
AS ILHAS. CRETA 45
ram habitadas durante a era dos palácios. Armamentos, ame-
ses e carros de guerra estão registrados nas tábulas em Linear
B de Cnosso, mas são notavelmente raros em monumentos fi-
gurativos de qualquer natureza ou tamanho. São raros inclusi-
ve nas sepulturas - só é lícito falar em sepulturas de guerreiros
depois da ocupação da ilha por povos de língua grega vindos
do continente.
Esse fenômeno, seja qual for sua explicação, serve para
ressaltar a singularidade de Creta. A sociedade centrada em pa-
lácios e seus registros obsessivamente detalhados lembram Uga-
rit, no norte da Síria, ou Mari, no Eufrates. Mas, como já se
disse, a psicologia e os valores da elite eram radicalmente dife-
rentes em muitos aspectos, qualquer que tenha sido o caso da
massa da população, da qual nada sabemos. Embora não exista
sequer uma linha de escrita -, nem de Creta, nem da docu-
mentação bem mais abundante das ilhas vizinhas, próximas ou
distantes - que nos informe claramente sobre o pensamento
da Creta da Idade do Bronze, suas idéias acerca de qualquer
assunto, é possível extrair algumas inferências, dos remanes-
centes materiais, a respeito das diferenças entre Creta e as de-
mais sociedade!l'centralizadas da mesma época.
Os governantes babilônicos, egípcios e hititas infestaram
suas terras de evidências monumentais do seu poder e do po-
der de seus deuses. Os governantes cretenses não fizeram nada
semelhante, nem nos palácios, nem nos túmulos. Não há nada
de majestoso ou central nuala-do-tfOfl-O--OeCnosso, seja em
relação ao tamanho ou à decoração das paredes (ornadas com
animais míticos e desenhos florais, mas sem um único retra-
to). O trono sequer distingue-se pela realeza. Não existe uma
única imagem que retrate um evento histórico ou revele uma
atividade administrativa ou judicial, ou qualquer outra mani-
festação do poder político em ação.
Quanto aos deuses e deusas, são extremamente difíceis de
descobrir. Ao que parece, foram razoavelmente numerosos, mas
não eram abrigados em templos, razão por que não havia es-
tátuas de culto, características das civilizações contemporâneas
do Oriente Próximo e das civilizaçõesgregas posteriores. Fazia-
se a adoração em pequenos santuários domésticos, em lugares
sagrados ao ar livre e em cerca de 25 das cavernas situadas em
várias partes da ilha (de modo geral, não eram as cavernas mais
46 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZt: E IDADE ARCAICA
espetaculares, nem eram usadas todas ao mesmo tempo). Nas
cerimônias, enfatizava-se uma epifania, a aparição temporária
de uma divindade em resposta a uma oração, a um sacrifício
ou - o que é mais característica e legitimamente cretense -
a uma dança ritualística. Em muitas das cenas, é mais impor-
tante o êxtase dos adoradores que o deus personificado; com
efeito, às vezes somente o ato da prelibação é retratado, sem
a epifania real. O local da epifania era uma árvore sagrada,
um pilar, ocasionalmente uma fachada arquitetônica. Consi-
derando essa ênfase nos adoradores, no lado humano da rela-
ção, era natural que, exceto por alguns afrescos e um ou outro
sarcófago, essas cenas tenham sido gravadas em anéis, sinetes
de pedra e pequenos objetos de cerâmica. As evidências reli-
giosas consistem também, em grande parte, em objetos
simbólicos como o machado duplo e os ''chifres de consa-
gração" 6 , cuja interpretação continua sendo polêmica; no
equipamento usado em libações e sacrifícios; nas cinzas e
nos ossos de vítimas sacrificiais, touros, ovelhas, porcos, cães
e outros animais, encontrados principalmente nas cavernas';
em objetos dedicados aos deuses, incluindo cerâmica, espadas
e escudos, uma variedade de artigos femininos, estatuetas ani-
mais e figurinos humanos, que voltaram a ser usados na Creta
do Minoano Médio, depois de um longo hiato. Via de regra
é impossível distinguir as figuras humanas das divinas, a não
ser pelos critérios mais subjetivos. Mesmo que algumas delas
sejam caracterizadas com precisão - como é o caso da cha-
mada deusa cobra -, são inovações posteriores, provavelmente
influenciadas pelo Oriente. Ainda assim, a escala reduzida tra-
dicional foi rigorosamente preservada.
Essa falta de monumentalidade corresponde adequadamen-
te à ausência de manifestações externas de guerra, às qualida-
des específicas e ao tom das obras de arte cretenses. Mesmo
os grandes afrescos não são realmente monumentais (fora de
Cnosso, são incomuns e quase inteiramente destituídos de fi-
6. Vale notar que, ao que parece, não havia símbolos solares ou astrais.
7. Encontrou-se numa sepultura de Arcanes, cerca de dez quilôme-
tros de Cnosso, o esqueleto completo de um touro, datado pelos escavado-
res de aproximadamente 1400 a.C.; ver 1/lustrated london News de 26 de
março de 1%6, pp. 32-3. É o primeiro exemplo de um sacrifício de touro
numa sepultura.
,,15 IUIAS. CRtTA 47
guras humanas). Têm uma leveza e mobilidade originais e ra-
ras, senão únicas, em qualquer lugar da Idade do Bronze,
qualidades criadas com uma habilidade técnica extraordinária,
em vasos, jóias e pequenos objetos de bronze (sobretudo os
bronzes de Tilisso). Porém, pela forte estilização dos temas e
pelo tratamento dado a detalhes como a vestimenta e a postu-
ra, tendem a uma convencionalidade monótona, uma precio-
sidade e graciosidade inadequadas a seu tamanho. A vida é feita
de brincadeiras e rituais, e revela-se pouca paixão humana, ale-
gria pessoal ou sofrimento. Parecem dizer, sem profundidade,
que a vida tem uma natureza tilintante. Assim, as artes meno-
res são a maior conquista cretense, depois do conforto burguês
de bons sistemas de esgoto e saneamento, de iluminação e ven-
tilação nos palácios.
A impressão, reconhecidamente especulativa, é de que já
no início do Minoano Médio a sociedade cretense estabeleceu-
se coino instituição e ideologia, que encontrou um equilíbrio
que, em séculos, nunca foi seriamente ameaçado, que era se-
gura em todos os sentidos, talvez até mesmo passivamente se-
gura. Daí em diante, pode-se verificar um aprimoramento ainda
maior das artes manuais, o crescimento populacional, amplia-
ções adicionais dos palácios - embora, em grande parte, es-
ses progressos tenham seguido uma linha horizontal, por assim
dizer. Eis por que é possível retratar esse mundo sem qualquer
referência a todas as mudanças do Minoano Médio para o Tar-
dio. Embora essa lacuna em particular seja arqueologicamen-
te válida, principalmente na cerâmica, o estilo de vida parece
ter-se alterado bem pouco. Muitas partes de Creta foram se-
riamente prejudicadas por um terremoto durante o Minoano
Médio III, mas à catástrofe seguiu-se não apenas uma recons-
trução imediata, como também um desenvolvimentomaior, com
a criação de novos povoados e de contatos bem mais estreitos
com o continente grego - nada que indique, porém, inova-
ções sociais e psicológicas significativas.
Então, tempos depois, homens vindos do continente gre-
go assumiram, não se sabe como, o poder em Cnosso e, por
meio dele, também o controle de grande parte da Creta cen-
tral. A prova definitiva disso é o fato de o idioma das tábulas
cm Linear B de Cnosso ser o grego (e indistinguível do grego
<las tábulas continentais). Infelizmente, como já se disse, to-
48 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
das as tábulas datam do momento da destruição, de modo que
não apresentam nenhum indício da data da penetração grega.
Tudo indica, porém, que tenha ocorrido no início do estágio
cnossiano, Minoano Tardio II (cerca de um século depois do
início do Heládico Tardio no continente), quando, entre ou-
tras coisas, houve uma mudança qualitativa nos túmulos, b!)-
seada em modelos do continente e incluindo, pela primeira v~z
em Creta, autênticas sepulturas de guerreiros. Aproximadamente
na mesma época, centros como Festo e Mália deixaram de ser
"residências reais", e o grande palácio de Cato Zacro, no ex-
tremo leste da ilha, o quarto em tamanho de Creta, foi total-
mente abandonado após uma catástrofe natural (sendo
redescoberto apenas em 1961)8 • Aparentemente os novos go-
vernantes de Cnosso adquiriram uma espécie de suserania so-
bre uma parte considerável da ilha, sem que eles próprios
tenham-se deslocado em grande número para outros centros
- o que explicaria por que o Minoano Tardio II não pode ser
encontrado como um estágio "independente" fora de Cnosso.
No Minoano Tardio li, Cnosso atingiu o ápice de seu po-
der. Desde Evans, passou-se a datar o final desse período em
aproximadamente 1400a.e. (ou, segundo o porito de vista atual,
cerca de três décadas depois). Trata-se, portanto, de uma era
relativamente curta, que terminou em catástrofe. Um terremoto
talvez tenha sido uma das causas, mas não explica tudo, pois
dessa vez, ao contrário de ocasiões anteriores, não houve recu-
peração. A vida em Creta prosseguiu, mas a era do poder e
dos palácios encerrara-se definitivamente. Daí em diante, o con-
tinente ocuparia o centro do palco. A uma calamidade natu-
ral, da qual não se tem certeza, pode ter-se seguido a expulsão
dos suseranos gregos de Creta por algum tipo de levante popu-
lar, que também escorraçou o que sobrara do poder nativo,
já seriamente enfraquecido pelos invasores gregos um século
antes. Mas tudo não passa de especulação, para a qual não há
8. Esforços persistentes têm sido feitos no sentido de atribuir os fenô-
menos cretenses a cinzas levadas pelo vento e a vagalhões provocados por
uma gigantesca erupção vulcânica em Santorini. A ligação causal é inde-
fensâvel, sobretudo - mas não unicamente - porque a erupção em Sato-
rini aconteceu meio século antes (1500 a.C.); ver o breve relato de M.
Popham in Antiquity 53 (1979), pp. 57-60. O abandono permanente de Ca-
to Zacro deve ter tido uma causa social ou política.
AS ILHAS. CRETA 49
fundamentação segura. Além disso, é preciso dizer que essa es-
peculação seria solapada caso se confirmassem sugestões recen-
tes de que a queda de Cnosso deveria remontar a 1200ou mesmo
1150, coincidindo com o final da civilização da Idade do Bronze
no continente. Mas as evidências, aceitas pela maior parte dos
especialistas, endossam a datação tradicional 9 •
9. Ver M. R. Popham, The Des1ruc1iono.f lhe Palace ai Knossos(Gõ-
tchorg: Paul Astrõm, 1970).
5
A civilização micênica
Numa data que recai no grande período cretense dos ·pa-
lácios, ou seja, quase ao final do Minoano Médio UI, por vol-
ta de 1600 a.C., ocorreu algo no continente grego que alterou
radicalmente o rumo dos acontecimentos nessa região e, de mo-
do geral, da história do Egeu. O que aconteceu exatamente con-
tinua um mistério, assunto de especulações infindáveis e
controvérsias, mas as conseqüências visíveissão suficientemente
claras. De súbito, Micenas tornou-se um centro de riqueza e
poder, uma civilização guerreira inigualável na região. Logo
depois surgiram outros centros importantes no centro e no sul
da Grécia, irradiando influências para as ilhas do Egeu e as
costas da Ásia Menor e da Síria, a leste, e para a Sicília e o
sul da Itália, a oeste. Os cerca de quatrocentos anos seguintes,
tanto no continente como em muitas das ilhas, apresentam tal
uniformidade no registro arqueológico que, por uma conven-
ção infeliz, o rótulo "micênica" passou a ser aplicado a toda
a civilização (embora nunca tenha sido usado na Antigüida-
de). Não há nenhum problema nisso, desde que o rótulo seja
mantido em sentido abstrato, comparável a "islâmico", mas
deve-se evitar o perigo de, com ele, sugerir-se uma autoridade
política centralizada, uma sociedade territorialmente extensa
controlada por Micenas, assim como o Império Assírio, por
52 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADF. ARCAICA
exemplo, foi controlado por Assur. Como veremos adiante, essa
implicação política não se justifica.
O prelúdio extraordinário dessa civilizaçãosó é plenamente
atestado em Micenas. Equivale a não mais que dois círculos
tumulares. O mais antigo, cuja data principal é 1600 a.e., foi
escavado por arqueólogos gregos no fim de 1951 e hoje é co-
nhecido por Círculo B. O outro, talvez de um século depois
(Círculo A), foi encontrado por Heinrich Schliemann em 1876
(seis anos após ele ter descoberto Tróia), passando a constituir
a ruptura fundamental no estudo moderno da Idade do Bron-
ze grega. Ambos os círculos faziam parte de um grande cemi-
tério, provavelmente fora da povoação propriamente dita. Três
características são dignas de notas: primeira, os círculos foram
marcados deliberadamente e projetados para serem importan-
tes; segunda, os objetos funerários eram numerosos, luxuosos
e, em parte, bélicos; terceira, a idéia de deixar lembrança do
poder e da autoridade foi concentrada totalmente nesses túmu-
los, pois não se encontrou nenhum vestígio da povoação, do
que se pode concluir que não havia nem muros, nem fortifica-
ções, nem palácios feitos de pedra. Os sepultamentos propria.:
mente ditos eram distribuídos irregularmente no interior dos
círculos, em túmulos comuns, cistas ou profundos poços fu-
nerários - o Círculo B com cerca de 24, no Círculo A, apenas
seis (estes últimos, todos do tipo poço).
OsJ~nterros em si não divergiam radicalmente das práti-
cas mais antigas, nem tampouco o fato de que os ossos e os
objetos funerários de sepultamentos anteriores eram, sem ce-
rimônia alguma, empurrados de lado a fim de abrir espaço pa-
ra outros cadáveres. Mas todo o resto foi inovado. Distin-
guiam-se as sepulturas colocando-se sobre elas lajes de pe-
dra verticais (Figura 3), muitas delas gravadas com decora-
ções figurativas ou animais, ou cenas militares e de caça (mas
nunca com um nome ou um retrato, ou alguma ligação ime-
diata com uma personalidade qualquer, o que está estritamen-
te de acordo com o tradicional anonimato do poder na Idade
do Bronze). É provável que o círculo tivesse um significado sa-
grado, que se conservou por longo tempo. Após 1300 a.e., no
grande projeto de construção da cidadela, o Círculo A foi abran-
gido por um muro circular de 900 metros, continuando a ser
um terreno "santificado", demarcado por um primoroso anel
____ _j
Fig. 3 - Estela Tumular do Círculo B, Micenas
54 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRO:VZE E IDADE ARCAICA
V - Disco fino em ouro, 5 cm de diâ-
metro, túmulo do Círculo A, Micenas.
duplo de lajes de calcário. Quaisquer que tenham sido os co-
nhecimentos ou as crenças dos construtores do período a res-
peito do círculo tumular, o ímpeto despertado por suas crenças
foi poderoso, pois nessa época a superfície original já se en-
contrava bastante soterrada, e eles teriam se poupado a um gran-
de trabalho se a tivessem ignorado.
Seriam necessárias muitas páginas para se fazer um relato
adequado do conteúdo dos túmulos mais ricos, os de número
III, IV e V do Círculo A. O catálogo de Karo, que trata exclu-
sivamente do túmulo III, relaciona 183 itens numerados, e es-
sa cifra é baixa, pois muitos dos "itens" incluem mais de um
objeto; de um deles, por exemplo, constam "64 pequenos dis-
cos circulares do ouro [gravados1com borboletas" 1 (Ilustra-
ção V). Fazia-se uso de todos os materiais tradicionais de luxo,
sobretudo o ouro, empregado em tamanha quantidade e com
tal arte, que só encontram paralelo entre os achados funerá-
rios citas, no sul da Rússia, e os túmulos reais macedônicos,
em Vergina, de mais de mil anos depois. Além de folhas e fili-
granas em ouro, extremamente delicadas e até mesmo femini-
nas, que enfeitavam ornamentos de todos os tipos, havia
inúmeras espadas e outros equipamentos de guerreiros. O que
falta é algo semelhante aos "ídolos" cicládicos, algo que não
1. G. Karo, Die Schachtgriiber von Mykenai (2 vols., Munique,
1930-3), 1, p. 43.
A Cff/LIZAÇÃO MICÊNICA 55
seja patentemente utilitário, num sentido mundano (armas,
utensílios e ornamentos). Tanto nos materiais empregados quan-
to nas habilidades e estilos artísticos, encontram-se remi-
niscências e empréstimos feitos às civilizações estrangeiras.
Fundamentalmente, porém, o todo é original em esmero e es-
tilo, uma criação nova dos governantes de Micenas e seus ar-
tesãos.
Quem quer que tenham sido os J-iomense as mulheres se-
pultados nesses túmulos especialmente preparados, estavam no
topo da estrutura de poder da comunidade, que era diferente
de qualquer outra que a Grécia já conhecera. É tentador vin-
cular o surgimento desses túmulos ao do carro de guerra e da
espada longa, embora os primeiros túmulos do Círculo B pa-
reçam um pouco antigos para isso. De qualquer modo, os car-
ros figuram em destaque nas lajes dos túmulos posteriores, assim
como nos inventários em Linear B de Cnosso e Pilos, mais re-
centes ainda. O carro de guerra foi importado - ou melhor,
a idéia, não os veículos em si -, mas não se pode argumentar
daí que o próprio povo que se beneficiou dessa nova arma mi-
litar tenha migrado. Tampouco serve como argumento o ouro
abundante, que pode representar a paga por serviços mercená-
rios - no Egito, por exemplo, segundo a opinião de alguns
estudiosos-, o fruto de incursões bem-sucedidas, ou do co-
mércio, ou todos os três combinados. Devemos confessar que,
por ora, desconhecemos as causas do aumento repentino de po-
der e da posse de tesouros.
Os túmulos e seus conteúdos revelam um crescimento con-
tínuo das habilidades técnicas e artísticas e da concentração de
poder, que ocorreu também, de modo semelhante, em muitas
partes da Grécia central e do Peloponeso, durante o Heládico
Tardio I e li (subdivisões que, de qualquer modo, são difíceis
de distinguir). Fora de Micenas, porém (e, com o tempo, em
Micenas também), o símbolo visível era um tipo diferente de
câmara funerária, o magnífico tholos - ou túmulo-colméia.
Tratava-se de câmaras circulares cavadas em encostas de coli-
na, cujo acesso se fazia por uma rampa especial(dromos), sendo
cobertas por uma estrutura de pedra, semelhante a um domo,
construída cuidadosamente, em círculos decrescentes, e termi-
nando com um capitel de pedra por sobre a elevação natural
da colina. A estrutura toda era vedada e coberta com terra,
56 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
deixando um monte imponente à vista. Pode-se ter uma idéia
da escala dessas câmaras pelas dimensõesda maior delas, e tam-
bém uma das últimas, denominada popularmente, mas inade-
quadamente de "Tesouro de Atreu", em Micenas (Ilustração
VI): 14,5metros de diâmetro, 13metros de altura (medidas in-
ternas), um dromos de 35 metros de comprimento e um lintel
sobre a porta de entrada pesando cerca de 100 toneladas.
Nada nos prepara para esses túmulos. Não há qualquer
antecedente arquitetônico, nem na Grécia ou em qualquer ou-
tro lugar. Se existe alguma dúvida de que os túmulos-lho/os
indicam não apenas poder, mas sobretudo numa posição ex-
cepcional na hierarquia, uma realeza de fato, a dúvida é afas-
tada pela presença, também, de muitos túmulos-câmaras
contendo ricos objetos funerários, os lugares de repouso de fa-
mílias que ocupavam uma alta posição na escala hierárquica,
mas não o topo. A expansão e a localização das novas dinas-
tias no centro e no sul da Grécia podem ser traçadas num ma-
pa seguindo-se a construção dos túmulos-lho/os, a maior parte
dos quais foi erigida no século XV (Heládico Tardio II). A pa-
lavra "dinástico" é justificada pela evidência de sucessivos se-
pultamentos o longo de várias gerações (inclusive nos túmu-
los-câmaras), cada qual exigindo um esfon,:o considerável
para que a câmara fosse reaberta e novami:1fn:fechada. Cabe
acrescentar ainda que não há meios de saber se as dinastias fo-
ram ou não mantidas dentro das respectivas famílias - não
é possível identificar os usurpadores em suas sepulturas.
O período dos túmulos-tholos corresponde também à era
em que a atividade do continente torna-se nitidamente visível
no estrangeiro, conforme indicam inúmeros achados cerâmi-
cos, a princípio sobretudo no Oeste (Sicília e sul da Itália) e,
ao final do Heládico Tardio II, também em outra direção, em
Rodes, Chipre, Mileto, Ásia Menor e outros lugares - ativi-
dade que cresceu na última fase da Idade do Bronze, no Helá-
dico Tardio III A e B. É nesse ponto que as limitações das
tábulas em Linear B são particularmente exasperadoras.
Encontrou-se um número considerável delas em Pilos (e algu-
mas em Micenas, Tirinta e Tebas), e, até hoje, em nenhum ou-
tro lugar do continente. Em linguagem e conteúdo, são
comparáveis às de Cnosso e, como estas, não revelam qualquer
dimensão de tempo, pois também datam de um momento de
1 ('/l'll!Li1Ç-1() .•\f/C/C:'VIC4 57
VI - Interior do maior túmulo-tho/os, popularmente conhecido
como Tesouro de Atreu, Micenas.
dcstruiçào e conflagração. Se a data normalmente aceita (logo
depois de 1400) para a queda de Cnosso está correta, então os
indivíduos de idioma grego tomaram o controle dessa região
nn auge do período dos túmulos-tholos. Não sabemos, contu-
58 GRl:.'CIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARC,1/C'A
do, de que lugar da Grécia eles vieram. É uma pressuposição
infundada sugerir que eram da própria Micenas. Tampouco sa-
bemos quando e em que parte do continente a escrita surgiu
pela primeira vez, na forma da Linear B. Para piorar ainda
mais as coisas, a cerâmica "micênica" anterior ao período III
C, produzida em larga escala, geralmente era tão uniforme em
estilo e técnica, que fica difícil, e muitas vezes impossível, iden-
tificar os lugares de fabricação2 • Assim, quando um autor mo-
derno menciona uma "cerâmica micênica" encontrada, por
exemplo, nas ilhas Lípari, refere-se à cerâmica de algum outro
lugar do mundo micênico - que no final passou a incluir re-
giões como Rodes e Chipre-, e não necessariamente à cerâ-
mica do continente grego, quanto mais da própria Micenas. (De
fato, em geral tratava-se de uma "imitação" local.)
Portanto, a questão das relações entre os centros do con-
tinente e os sítios que contêm o maior número de achados ce-
râmicos é bastante problemática. Pode-se ter certeza quanto
à existência de um comércio intenso (e que, ao final do tercei-
ro milênio, o continente começava a competir com a ilha de
Creta). Alguns materiais, tais como o âmbar e o marfim, não
poderiam ter chegado à Grécia por nenhum outro meio, nem
tampouco, com toda a probabilidade, a maior parte do ouro,
zinco e cobre. Objetos e motivos avulsos de Micenas chegaram
à Europa central por volta de 1500a.e., e a presença deles de-
ve ser explicada pela necessidade micênica de metal. Na Gré-
cia, o âmbar foi muito utilizado desde os túmulos-poços até
o final da idade micênica, mas, na Creta minoana e na Grécia
pós-micênica, era raro e provinha, em grande parte, do
Báltico3.
Mas quem eram os mercadores e em que condições ope-
ravam? As tábulas em Linear B do continente são tão omissas
sobre essas questões quanto as de Cnosso. Muito provavelmente,
a concentração de cerâmica micênica em Scoglio dei Tonno,
na região de Tarento, no sul da Itália, indica a presença de um
2. Análises científicas das argilas talvez venham a possibilitar distin-
ções, mas esse estudo encontra-se ainda no inicio.
3. Isso foi determinado por espectrofotometria de absorção infraver-
melha; ver a série de artigos de C. W. Beck e outros in Greek, Roman and
By1.antille Studies, o mais recente no vol. 13 (1972), pp. 359-85.
A CIVILIZAÇÃO MICÍNICA 59
posto comercial "micênico" ligado ao movimento de merca-
dorias vindas da Europa central e ocidental. Não é fácil, po-
rém, encontrar critérios satisfatórios para avaliar o ponto de
vista de alguns autores, segundo os quais Rodes e Mileto eram
colônias micênicas. É verdade que os remanescentes materiais
desses dois lugares (ao contrário dos de Chipre) parecem "mi-
cênicos", mas, seja como for, isso nada prova acerca de seus
vínculos polüicos com o continente. Se não tivéssemos mais ne-
nhuma informação sobre a Rodes e a Mileto clássicas do ano
de 400 a.e., o mesmo raciocínio poderia nos levar a considerá-
las colônias - e, certamente, estaríamos errados. A decifra-
ção da Linear B lançou nova luz sobre as relações entre o con-
tinente e Cnosso; no entanto, nem mesmo hoje temos certeza
se a tomada de Cnosso por indivíduos de língua grega foi se-
guida por uma submissão real a um poder do continente. Nem
sempre comércio, migração, conquista e colonialismo intera-
gem de maneira organizada.
Nem mesmo no próprio continente as relações políticas são
claras.· Já foi mencionado o fato singular de que os túmulos-
tholos são mais antigos do que a arquitetura doméstica em lar-
ga escala, ou seja, que os reis e os nobres dispenderam suas
riquezas e expressaram seu poder, arquitetonicamente, por meio
das câmaras funerárias, antes de se dedicarem a palácios e ca-
sas. Os escavadores de Pilos descobriram provas de uma gran-
de povoação na cidade baixa, mais antiga do que a construção
do enorme palácio, mas não têm condições de recuar muito lon-
ge na história - e, de modo geral, esse é o quadro de toda
a Grécia. Sabemos que a população crescera de maneira consi-
derável e agrupara-se em vilarejos, geralmente situados nas en-
costas que se projetavam acima dos campos agrícolas. (Já foram
localizados quase quinhentos povoados micênicos no continen-
te.) Sabemos também que a sociedade tornara-se hierarquica-
mente estratificada, liderada por uma classe de guerreiros
comandada por chefes ou reis. Então, após 1400 (e, na maio-
ria dos lugares, somente por volta de 1300), ocorreu a dramá-\
tica mudança, da concentração em imponentes câmaras
funerárias para a construção de várias fortalezas-palácios. Lu-
gares como Tirinta e Micenas, a leste do Peloponeso, a Acró-
pole em Atenas, Tebas e Glá na Beócia, agora assemelhavam-se
mais a cidades-fortalezas medievais do que aos complexos cre-
60 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
tenses, abertos e aglutinativos. Havia ainda um crescimento ce-
lular, mas o núcleo era um tipo de habitação chamado megaron,
que consistia num átrio frontal ou vestíbulo sustentado por co-
lunas, uma sala principal comprida e, via de regra, uma des-
pensa nos fundos.
Essa ênfase na fortificação e na belicosidade não pode ter
sido uma mera questão de gosto. Algo na situação social exi-
giu isso, da mesma maneira que, presumivelmente não foi ne-
cessária - pelo menos não em tal escala - em Creta. As tábuJas
em Linear B do continente registram as mesmas atividades e
os mesmos tipos de inventário que as de Cnosso, o mesmo pa-
drão de controle e administração do palácio sobre a comuni-
dade e a região circunvizinha (que não se estendia muito além).
Entretanto, as tábulas não apresentam indícios sobre o fator
belicosidade, para o qual devemos tentar extrair implicações
a partir da distribuição e do destino das próprias fortalezas.
A questão-chave pode ser colocada da seguinte maneira, mais
simples: por que na Argólida e na região ao redor de Corinto
as fortalezas eram relativamente abundantes, ao passo que na
Messênia, situada a oeste, Pilos era pouco fortificada e, a um
dia de caminhada daí, rumo ao norte, havia grandes túmulos-
tholos e um topo de colina altamente fortificado em Peristé-
ria, cujo nome antigo é desconhecido? Argos tinha uma po-
voação de tamanho considerável durante o Heládico Médio,
que continuou a existir depois do Heládico Tardio II, mas não
se encontrou aí nenhum palácio, nem fortificação, nem um úni-
co túmulo-tholo, nem armas nas sepulturas. Aparentemente,
Argos era dominada por Micenas, localizada 10 quilômetros
ao norte, ou por Tirinta, ligeiramente mais próxima, ao sul e
não possuía uma aristocracia guerreira própria. Por outro la-
do, é difícil imaginar que Micenas e Tirinta estivessemem igual-
dade de condições, dividindo entre si a planície de Argiva (ou
que Tebas e Glá fossem potências iguais na Beócia). Nas gera-
ções que se seguiram aos primeiros túmulos-tholos, incursões
e guerras constantes presumivelmente elevaram algumas dinas-
tias bem-sucedidas à condição de superpotências e de susera-
nias, destruindo, em alguns casos, os chefes mais fracos ou
derrotados e, em outros, permitindo que sobrevivessem em al-
gum tipo de submissão. Em vários lugares, como, por exem-
plo, Micenas, Tirinta e Tebas, há sinais de grande destruição
A CIVILIZAÇÃO MICÉNICA 61
e incêndios nesse período, seguidos por mudanças nas edifica-
ções e fortificações - o que sugere prejuízos de guerra. Além
disso, houve ainda uniões dinásticas, que, como sempre, com-
plicaram a sucessão ao trono e as relações interestados ..
O quadro resultante dessa análise das tábulas e da arqueo-
logia mostra uma divisão da Grécia micênica em vários peque-
nos estados burocráticos, com uma aristocracia guerreira, um
artesanato de alto nível, um intenso comércio exterior de pro-
dutos necessários (metais) e artigos de luxo e, na melhor das
hipóteses, uma condição permanente de neutralidade armada
nas relações de um com o outro e talvez, ocasionalmente, com
os estados submissos. Nada indica uma supremacia por parte
de Micenas. Tal noção baseia-se inteiramente nos poemas ho-
méric:;os,em que Agamêmnon é comandante-em-chefe de um
exército de coalização durante uma expedição contra Tróia (e
nos quais, vale notar, zomba-se facilmente da autoridade de-
le). Mas, segundo as evidências contemporâneas, qualquer que
tenha sido a autoridade do governante de Micenas sobre a Ar-
gólida, Pilos não ficou a dever-lhe nada, nem Tebas, nem
Iolcos4 .
Afora algumas cenas de batalha, a arte palaciana de Mi-
cenas não reflete, de nenhum modo direto, a sociedade guer-
reira. Essa arte é, de fato, espantosamente derivativa (exceto
a cerâmica), com a mesma predileção pela decoração abstrata
e floral, os mesmos processionários monótonos, a mesma con-
vencionalidade e o mesmo caráter estático dos seus protótipos
cretenses. A impessoalidade também é a mesma. É raro, por
exemplo, o retrato de um "estrangeiro", distinguível em tr.a--
ços, vestimenta, cabelo ou barba. Tampouco a monumentali-
dade da arquitetura foi transferida para a pintura ou para a
escultura, fato mais surpreendente ainda quando lembramos
que, por volta do século XIII, estabelecera-se um contato es-
treito tanto com a Anatólia quanto com o Egito. Não há uma
única peça que se compare, em escala, com as estátuas em ta-
manho natural feitas em Ceos no Heládico Médio (menciona-
das no Capítulo 3).
4. O problema do valor dos poemas homéricos como evidência da ci-
vilização micênica será discutido brevemente no Capítulo 6 e, em maiores de-
talhes, no Capítulo 7.
62 GRÉCIA f'RIM/TffA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
Embora as tábulas em Linear B tragam inúmeros nomes
de deuses e deusas, além de listas que parecem relacionar o pes-
soal a serviço deles ou as oferendas a eles, a religião micênica,
do ponto de vista da arqueologia, revela menos indícios ainda
do que a minoana. Há altares e representações de divindades
e rituais em jóias e sinetes de pedra - em sua maioria de ori-
gem cretense e desprovidos de qualquer característica que os
identifique como micênicos -, mas, até o verão de 1968, não
se encontrou nenhum santuário ou aposento especial que pu-
desse ser identificado como destinado a rituais nos complexos
palacianos. Naquele verão e no seguinte, escavou-se uma edi-
ficação em Micenas, datada das décadas anteriores à destrui-
çã0 do sítio, consistindo em uma sala grande com plataformas,
associadas a objetos, dispostas de tal modo que parecem indi-
car uma atividade de culto. Havia também uma pequena "des-
pensa" fechada (com cerca de 2 m2), contendo, entre outras
coisas, cerca de dezesseisfiguras ocas de argila, todas nuas, qua-
tro masculinas, cinco femininas, uma provavelmente feminina
e duas hermafroditas, de no máximo 60 cm de altura, com bra-
ços curtos erguidos ou esticados (mas sem pernas), seios ima-
ginários, cabelos e traços faciais acrescentados posteriormente,
da mesma forma que as alças e gárgulas dos vasos. A sala con-
tinha ainda seis cobras em argila, enroladas, modeladas ao es-
tilo realista. Estas últimas são objetos extraordinários (Ilustração
VII), mas as estatuetas são extremamente "primitivas" e feias,
com exceção de uma pequena, que está vestida e pintada 5 .
Em todos os aspectos significativos, esse achado, até ago-
ra, é único. Cobras associadas a figuras humanas são comuns,
mas essas são as primeiras a serem retratadas de modo inde-
pendente, em todo o Egeu durante a Idade do Bronze. As es-
tátuas são diferentes de quaisquer outras na aparência geral
(embora se tenham sugerido semelhanças de técnica de manu-
fatura e de postura entre elas e um conjunto de figuras creten-
ses). Além disso, nenhuma outra "despensa" desse tipo foi
encontrada. Todos esses dados servem como alerta de que as
afirmações mais gerais a respeito da cultura micênica são ex-
perimentais quanto à natureza do caso. Existe uma certa relu-
5. Ver Lord William Taylour in Antiq11ity, 43 (1969), pp. 91-7; 44 (1970)
270-80.
A CIVILIZAÇÃO MICÊNICA 63
VII - Cobra de argila, 20 cm de
diâmetro, Micenas, provavelmente
de 1300 a.e.
tância em registrar o fato de que, até hoje, somente em Elêusis,
Ceos, Delos e, possivelmente, Meios descobriram-se, com ra-
zoável certeza, vestígios de outros "templos" da era micênica;
ou em observar que talvez não tenha sido por acaso que ne-
nhum desses lugares se tornou um centro de poder secular.
.
6
O fim da Idade do Bronze
Nos arquivos hititas remanescentes há cerca de vinte tex-
tos do terceiro quartel do segundo milênio que se referem ao
"reinado" de Achchiaua. Ao que parece, foi um reino mais
ou menos independente, localizado na orla ocidental do terri-
tório hitita, que acabou constituindo uma fonte de problemas,
sobretudo quando o Império Hitita começou a enfraquecer. Des-
de que esses documentos foram decifrados, mais de uma gera-
ção atrás, tem-se procurado equiparar o povo de Achchiaua
aos aqueus - nos poemas homéricos, o mais comum dos no-
mes atribuídos aos gregos durante a Guerra de Tróia e, por-
tanto, provavelmente, o nome (ou um nome) pelo qual
conheciam a si mesmos no período que passamos a denominar
de idade micênica. Os argumentos são técnicos, complicados
e inconclusivos, mas a equiparação tem se tornado cada vez
mais indefensável em face da análise lingüística, das contínuas
descobertas arqueológicas e do reexame da cronologia real hi-
tita, aceita no passado 1• Quando muito, o que nos sobra de
mais significativo é a possibilidade de que alguns "gregos mi-
1. Ver G. Steiner em Saeculum, 15 (1964), pp. 365-92; J. D. Muhly
em Historia 23 (1974), 129-45: A. Kammenhuber em Orienta/ia, 39 (1970),
278-301.
66 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
cênicos" da costa da Ásia Menor ou das ilhas próximas tenham
participado da pirataria e das lutas habituais nos limites da es-
fera de influência hitita.
O Império Hitita foi dissolvido por volta de 1200ou 1190.
Embora não haja nenhuma evidência textual direta que nos per-
mita identificar o povo que realizou esse feito, o mais provável
é que o fim do império tenha tido alguma relação com as inú-
meras incursões ao Egeu oriental feitas por uma coalizão livre
de povos; a leitura desatenta de fontes egípcias, onde há duas
referências a esses povos, fez com que fossem denominados,
erroneamente, de "Povos do Mar". A primeira referência diz
respeito a um ataque ao delta do Nilo pelos líbios e seus mer-
cenários - "nortistas vindos de todas as terras" -, no reina-
do do faraó Merneptá por volta de 1220; segundo os egípcios,
os atacantes foram rechaçados, sofrendo baixas que, entre mor-
tos e prisioneiros, chegaram às dezenas de milhares. Entre os
mercenários encontravam-se os acàuash (ou ecuesh2), que, em
razão do nome, alguns estudiosos se inclinaram a identificar
com os aqueus, embora o texto saliente que eles eram circunci-
dados - prática estranha aos gregos dos tempos históricos e
não confirmada na Grécia da Idade do Bronze.
A segunda referência é bem mais séria. No início do sécu-
lo XII (talvez já em 1191), Ramsés III deteve uma grande in-
vasão dos "Povos do Mar", que, vindos da Síria, invadiam
o Egito por terra e por mar. "Terra alguma poderia resistir dian-
te das armas deles, desde Hati, Code, Carchemish, Arzaua, até
Alasia. " 3 Os relatos faraônicos, triunfais, são muito pouco
confiáveis, mas temos todos os motivos para aceitar o essen-
cial desse relato jactancioso, ou seja, que os egípcios rechaça-
ram um misto de migração e invasão tribal semelhante aos
movimentos germânicos feitos posteriormente pelo interior do
Império Romano, varrendo um extenso território antes de se-
rem derrotados ou neutralizados. Dessa vez não se faz menção
aos acauash, e, devido às complicações já observadas quanto
2. Uma das dificuldades para identificar nomes em textos hieroglífi-
cos egípcios é que apenas as consoantes são assinaladas, as vogais não.
3. Traduzido para o inglês por J. A. Wilson em Ancient Near Eastern
Texts relating to the O/d Testament, ed. J. B. Pritchard (2. ed., Princeton
Universlty Press, 1955), p. 262.
O flM DA ILMDF.' no BRON7E 67
a nomes estrangeiros escritos em hieróglifos, o único consenso
entre os especialistas acerca da identificação dos diversos po-
vos refere-se aos pc!esetas, ou filisteus, que, após a derrota,
instalaram-se na costa palestina, dando à região o nome que
ela conserva até hoje.
Desde praticamente o início da povoação, já existiam, nos
sítios filisteus, grandes quantidades de cerâmica do Micênico
III C, manufaturada no local, embora nenhuma do III B. A
importância disso é que a mudança do UI B para o III C cons-
titui, em todos os lugares - no continente grego, nas ilhas e
também em Tróia-, a linha que marca o fim da última gran-
de fase da Idade do Bronze. Esse término foi mais abrupto que
a ruptura da maioria das civilizações passadas. Da Tessália ao
norte, à Lacônia e Messênia ao sul, pelo menos uma dúzia de
fortalezas e complexos palacianos foram destruídos, inclusive
Iolcos, Crisa (próxima a Delfos), Glá, Pilos, Micenas e uma,
na região de Esparta, que se encontra sob as ruínas dos tem-
pos clássicos. Outros povoados fortificados, e até mesmo ce-
mitérios, foram abandonados. Arqueologicamente, toda essa
devastação deve datar do mesmo período, cerca de 1200, e é
difícil imaginar que não houve relação alguma com a ativida-
de dos "Povos do Mar" e dos destruidores do Império Hitita.
Seria uma coincidência extraordinária, ainda mais quando se
leva em conta o fato de que houve turbulências em regiões tão
remotas quanto a Mesopotâmia, a leste, e também as ilhas Li-
pari e Sicília, a oeste, na Itália, e talvez até mesmo na França
e no norte do mar Báltico. Há indícios de um movimento enor-
me de povos, e os estudiosos, baseando-se na arqueologia e em
inferências extraídas da difusão posterior das línguas indo-
européias, estão cada vez mais convictos de que os distúrbios
tiveram origem na região cárpato-danubiana da Europru- O
"movimento" não foi nem organizado, nem planejado con-
forme uma coalizão de fato. Pelo contrário, aparentemente teve
um ritmo irregular, avançando em direções e momentos dif c-
rentes, como no caso do Egito, que sofreu ataques primeiro
a partir do oeste e, mais tarde, cerca de uma geração depois,
do nordeste. As inter-relações entre os migrantes eram pouco
estáveis, e havia incerteza quanto aos objetivos finais. Tudo
isso é análogo aos movimentos germânicos posteriores, inclu-
sive o fato de que os intercâmbios culturais e comerciais, pelo
68 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
menos com a Grécia, foram mantidos durante séculos antes do
início das incursões.
Quanto aos povos da Grécia, o ataque contra eles partiu
da região mais próxima ao norte, qualquer que tenha sido sua
origem. Provavelmente, foi nesse contexto que se iniciou a cons-
trução de uma grande muralha através do istmo de Corinto,
da qual ainda se conservam vestígios no extremo sudeste. Se
foi esse o caso, a muralha de nada adiantou. Os invasores ob-
tiveram êxito na penetração e destruíram as fortalezas do Pe-
loponeso, aniquilando assim a organização política e o padrão
de povoação que tinham como finalidade proteger4. Antes de
examinar as conseqüências, porém, é preciso considerar uma
outra complicação, o caso de Tróia, no extremo noroeste da
Ásia Menor.
A cidadela de Tróia, situada numa elevação a alguns qui-
lômetros do mar Egeu e dos Dardanelos, divisando e dominando
uma planície fértil, não passou, ao que se saiba, por uma fase
neolítica. Ocupada pela primeira vez no início da Idade do Bron-
ze, por volta de 3000 a.e., foi desde o princípio uma fortale-
za. Durante o longo período antigo da Idade do Bronze, até
o início do segundo milênio, a arqueologia revela uma conti-
nuidade notável na cultura troiana. Não que todos os séculos
tenham sido pacíficos - ocorreram catástrofes periódicas e daí
a divisão em cinco estágios nitidamente demarcados, mas pa-
rece que a cada interrupção seguiu-se imediatamente uma re-
construção, sem quaisquer indícios visíveisde um elemento novo
na população. Tróia II foi o mais rico dos cinco, apresentan-
do trabalhos extraordinários em ouro (o primeiro "tesouro"
encontrado por Schliemann)já muitos séculos antes dos túmulos
de Micenas. Os estágios seguintes foram mais pobres, para não
dizer medíocres, mas aparentemente a continuidade não foi in-
terrompida. Arqueologicamente, a cultura primitiva de Tróia
está ligada a achados contemporâneos nas ilhas do norte do
Egeu, nas Cíclades, na Trácia, na Macedônia e, curiosamente,
nas distantes ilhas Lípari, a oeste - mas não aos hititas ou à
síria (embora outras escavaçõesno noroeste da Ásia Menor pos-
sam ainda originar paralelos mais estreitos com Tróia). Como
4. A visão, outrora corrente, de que foram os dórios os invasores que
destruíram o mundo micênico não tem respaldo algum.
O 1-"'/MDA IDADE DO BRONZE 69
não se encontrou um único fragmento de escrita em Tróia, não
existe nenhum outro indício, nem qualquer referência clara ao
local em registros contemporâneos de outros lugares.
Então, nos p_rimórdios do segundo milên.io, surgiu Tróia
VI, uma nova civilização que nasceu repentinamente, da mes-
ma forma que algumas inovações importantes em outros pon-
tos do Egeu. Foi a fase mais poderosa de Tróia, culminando
num período de tecnologia avançada, com complexas muralhas-
fortificações - desprovida, no entanto, de tesouros ou de tra-
balhos esteticamente interessantes em qualquer outra área. As
ruínas contêm ossos de cavalo, e, ao que tudo indica, foi o ca-
valo que conferiu aos novos ocupantes uma vantagem consi-
derável, talvez mesmo decisiva, sobre seus antecessores. As
quantidades de louça mínica e, posteriormente, de cerâmica mi-
cénica III A importada revelam estreitas ligações com a Gré-
cia. Depois de 500 anos aproximadamente, Tróia VI foi
destruída por uma catástrofe tão grande, que a causa mais pro-
vável é um terremoto e não a ação humana. A reocupação ime-
diata, Tróia VIia, não apresenta nenhuma mudança cultural
- assim como após Tróia li, exibe uma escala e um padrão
bastante reduzidos em todos os aspectos. É essa cidade dimi-
r1uída que coincide com o último grande período da Grécia,
o Micénico III B, iniciada por volta de 1300. A data de sua
queda, portanto, está vinculada a todos os problemas do final
do mundo micénico que estamos considerando aqui.
Tróia VIia foi destruída pelo homem, conforme atesta a
arqueologia. A data só pode ser determinada por meio dos acha-
dos cerâmicos e, especificamente, pelo fato de que Vila pos-
suía apenas cerâmica do Micénico III B, ao passo que o III C
surgiu no curto período Vllb (infelizmente, porém, os acha-
dos são insuficientes para responder em que época do Vllb o
novo estilo apareceu pela primeira vez5). As outras coisas sen-
do iguais, seria possível concluir, pelo menos provisoriamente,
que a queda de Tróia Vila deveu-se a um cataclismo geral ocor-
rido por volta de 1200 em todo o Egeu. Mas as outras coisas
não são iguais, por causa da tradição grega da Guerra de Tróia,
5. Infelizmente, tampouco é possível determinar, com o mínimo de
precisão, o surgimento em Tróia Vllb da "lçiuça com relevos", um tipo
tlc cerâmica que aparentemente teve origem. na Europa central.
70 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO HROlVZE E IDADE ARCAICA
a - Micênico Ili B (!O cm de altura,
da Ática)
b - Micênico Ili B (15 rn1 de altura.
encontrado no final de Tróia VI)
e - Micênico Ili C (10 cm de altura,
de Atenas)
d - Protogcométrico ( 15 cm de altu-
ra. de Atenas)
Fig. 4 - Estilos Cerâmicos
de uma grande coalizão vinda do continente que invadiu e sa-
4ueou Tróia. Se essa tradição guarda algum resquício históri-
co, a Guerra de Tróia só poderia ter acontecido, do lado grego,
no período III B; portanto, como uma guerra contra Tróia Vlla.p
Que as ruínas sejam pobres demais para a grande cidade de'
Príamo descrita por Homero, não é uma objeção séria; dcve-
.~ccreditar bastante exagero à tradição oral. A data, entretan-
<J FIM D/1 IDA DE DO 8/W,\Zt_· 71
e - Geomé1rico (77 cm de altura, de
Tera)
to, é crucial. Obviamente, cm 1200 uma invasão micênica or-
ganizada de Tróia seria impossível, pois, a essa altura, as
próprias potências gregas eram vítimas de ataques ou já ha-
viam sido destruídas. Fazendo a guerra recuar uma geração,
essa dificuldade seria contornada, mas isso criaria complica-
ções no momento de relacionar as datas dos achados em Tróia
com as dos achados dos principais sítios gregos. Assim, a pro-
72 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
posta de uma pequena minoria de estudiosos é abandonar a
tradição grega como essencialmente mítica e retirar Tróia da
posição singular que ocupa na história do final da Idade do
Bronze grega, ou até mesmo de qualquer posição significativa
nessa história.
Seja qual for a verdade sobre a queda de Tróia, não há
controvérsia alguma quanto à magnitude da catástrofe na Gré-
cia. Entretanto, falar do fim ou da destruição de uma civiliza-
ção apenas de passagem significa envolver-seem ambigüidades,
a menos que se analise o conceito, especificando-se seus aspec-
tos. Em primeiro lugar, a destruição significou a derrubada de
palácios e de complexos-fortalezas. Com eles, podemos presu-
mir, caiu a estrutura social piramidal específica que os havia
originado. Assim, o túmulo-tho/os desapareceu, com algumas
exceções um tanto misteriosas e em lugares remotos como a
Tessália e talvez a Messênia. O túmulo-cista voltou a predomi-
nar, como provavelmente aconteceu entre as classes inferiores
durante o período micênico. A arte da escrita também desapa-
receu, o que deixa de parecer estranho quando se compreende
que, segundo as evidências de que dispomos, a única função
da escrita no mundo micênico era atender às necessidades ad-
ministrativas do palácio. Com o desaparecimento deste último,
foram-se a necessidade e a arte. E o palácio desapareceu de mo-
do tão cabal, que nunca mais ressurgiu na história subseqüen-
te da Grécia antiga. Lugares como Micenas, Tirinta e Iolcos
ainda eram habitados no período III C, após 1200, mas os pa-
lácios não foram reconstruídos, e não se encontrou nenhuma
tábula em Linear B desse período, nem em Micenas, nem em
qualquer outro lugar.
Uma mudança tão fundamental, iniciada por uma popu-
lação invasora, necessariamente alterou o padrão geral de po-
voação. Além de um declínio global da população no final do
III B, bastante acentuado em algumas regiões, houve também
mudanças e movimentos que duraram um longo tempo. Al-
guns dos maiores centros, como, por exemplo, Pilos e Olá, fo-
ram totalmente abandonados. Outros, como Atenas e Tebas,
continuaram sendo ocupados numa escala um tanto reduzida.
Outras regiões passaram a concentrar populações maiores do
que antes - como foi o caso no leste da Ática, na costa da
Eubéia mais próxima do continente, em Asina na costa de Ar-
O NM DA IDADE DO BRONZE 73
giva, na região da Aquéia no golfo de Corinto (da qual Patras
é o centro moderno), na ilha de Ccfalônia no mar Jônio. Não
há dúvida de que essa irregularidade no padrão resultou, em
parte, de outros conflitos e expulsões que provavelmente se se-
guiram ao primeiro choque, evidenciados por danos ocorridos
ainda mais tarde, por volta de 1150, em Micenas e Tirinta. Há
razões para crer que comunidades menores e subordinadas -
Argos, por exemplo - recebiam tratamento diferente por parte
dos principais centros de poder.
Nesses tempos tão difíceis e confusos, seria de esperar que
alguns elementos da população micênica também participas-
sem dos saques e das migrações. Se os acauash, integrantes dos
"Povos do Mar" durante o reinado de Memeptá, eram real-
mente os aqueus, essa prova seria suficiente. Chipre, porém,
fornece uma evidência um pouco mais segura, se bem que ain-
da controversa. Dissemos no final do Capítulo 3 que, embora
as importações de cerâmica rnicênica nos séculos anteriores a
1200 não tenham sido acompanhadas por uma migração real
da Grécia para a ilha, o quadro arqueológico apresenta uma
mudança acentuada por volta dessa data, implicando um aflu-
xo de imigrantes. As paredes de alvenaria de Enkomi talvez se-
jam a novidade mais notável, mas há também uma melhora
nítida no artesanato, tanto em metal quanto em marfim, além
da escrita misteriosa (já mencionada). Infelizmente, não se con-
servou nenhuma escrita cipriota desse século, ou dos seguin-
tes, mas a explicação mais plausível para a presença, na Chipre
clássica, de um dialeto arcádico e de uma escrita relacionada
à Linear B é a de que foram levados para a ilha por gregos
micênicos por volta de 1200. O ponto de divergência, portan-
to, reside no fato de que, num número de anos consideravel-
mente pequeno após o surgimento das novas características
culturais, a ilha foi devastada, com conseqüências imediatas
para o padrão de povoação e o nível de riqueza e artesanato,
comparáveis às que já verificamos na Grécia6 • Deparamos
aqui com um novo ''se''. Se a equiparação entre Alasiia e Chi-
pre for correta, não há dúvida de que essa destruição foi obra
6. Grande parte dessa controvérsia provavelmente cessaria se os prin-
cipais achados arqueológicos pudessem ser datados, com bastante precisão,
por volta do ano-pivô de 1200.
74 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRON7.E E IDADE ARCAICA
dos "Povos do Mar" em seu caminho para o Egito, conforme
atesta claramente o relato de Ramsés. Nesse caso, seria tenta-
dor imaginar uma primeira onda, de grandes proporções, de
refugiados gregos, cujo impacto se observa no novo quadro ar-
queológico, à qual se seguiram, talvez duas décadas depois, os
destruidores ''Povos do Mar''. Mas ainda continuaria sem res-
posta a dificílima questão de como os refugiados poderiam ter
provocado tamanho impacto em tempo tão curto.
Na própria Grécia, uma conseqüência da nova situação
foi que as comunidades isoladas, cada uma a seu modo,
voltaram-se para si mesmas. Quanto aos aspectos estilísticos
e técnicos, a cerâmica III C foi um produto direto da III B,
mas, ao contrário desta, subdividiu-se rapidamente em estilos
locais de pronunciada variedade - em decorrência, provavel-
mente, tanto da retirada do controle econômico das mãos dos
palácios, em suas esferas de poder anteriores, quanto de uma
redução considerável na comunicação e no comércio inter-
regionais. Cerâmica à parte, as evidências arqueológicas dos
dois ou três séculos seguintes são bastante escassas e nada re-
veladoras. Esse caráter negativo, porém, permite certas infe-
rências. A população decresceu e ficou mais pobre (refiro-me
a um empobrecimento das classes superiores e não dos agri-
cultores e artesãos comuns). São incontestáveis a inferioridade
artística e técnica dos achados, a ausência de tesouros e,so-
bretudo, de construções grandes, sejam palacianas, militares
ou religiosas. A sociedade micênica fora decapitada, e os so-
breviventes, juntando-se ao novo elemento invasor7, construí-
7. É impossível provar a hipótese de que alguns invasores permanece-
ram na Grécia. Uma característica desse tipo de invasão e migração combi-
nadas é que ela só deixa registros arqueológicos quando se instala
permanentemente em algum lugar. Alguns especialistas procuraram provas
no fato de que a prática do sepultamento, na Grécia da Idade do Bronze,
foi substituída em muitas regiões pela cremação. Não há dúvida de que se-
ria bastante satisfatório se pudesse se estabelecer uma ligação com os "cam-
pos de urnas", cemitérios onde eram depositadas as urnas com os restos
dos corpos cremados, cuja primeira aparição verifica-se no século XIII, na
Europa central, dirundindo-se a partir daí por grandes áreas do continente,
inclusive a Itália. Entretanto, a mudança na Grécia aconteceu lentamente
depois de 1200, completando-se apenas por volta de 1050. Além disso, con-
forme indicamos no Capítulo 2, as mudanças profundas nos métodos de
O FIM DA IDADE DO BRONZE 75
ram um outro tipo de sociedade. É exatamente esse processo
que a arqueologia, por si só, não consegue esclarecer. Que se
tratava de uma sociedade inteiramente nova, porém, fica de-
monstrado mais tarde, quando a escrita retornou à Grécia
permitindo-nos conhecer alguma coisa sobre a economia e a
organização social e política.
Não se deve permitir que a concentração inevitável em re-
manescentes materiais e na tecnologia ofusque a dimensão da-
quela interrupção. Logicamente, as pessoas continuaram a
plantar, criar animais e manufaturar cerâmica e ferramentas,
empregando basicamente as mesmas técnicas de antes (mas lo-
go passando a usar, cada vez mais, o novo metal, o ferro, dis-
ponível agora pela primeira vez). Também conservaram o culto
aos seus deuses, assim como a prática dos rituais necessários,
e nessa esfera de atividade, provavelmente, houve tanta conti-
nuidade quanto mudança. Mas a sociedade estava agora orga-
llizada de uma outra forma, tomara um caminho de desen-
volvimento muito diferente e criara novos valores. A Idade
do Bronze chegara ao fim .
.irrumação dos corpos ocorreram, como se sabe, sem o es1ímulo de um
demento novo na população.
PARTE II
A IDADE ARCAICA
7
A Idade das Trevas
A menos que a própria vida seja destruída numa região,
sempre há algum tipo de continuidade. Nesse sentido, a histó-
ria grega foi uma continuação de sua pré-história da Idade do
Bronze. Conferir importância exagerada a esse truísmo, porém,
significa enfatizar o aspecto errado e ignorar até que ponto a
nova sociedade seria fundamentalmente nova. Por não terem
tradição alguma de uma interrupção, os gregos dos tempos his-
tóricos não concebiam uma outra civilização no milênio ante-
rior ao seu, embora soubessem, de modo vago e impreciso, que
em outros tempos se falara línguas diferentes na Grécia e nas
ilhas. A "idade heróica" dos gregos, com a qual eles se fami-
liarizaram pelos poemas de Homero e a partir de muitas fon-
tes lendárias (como a história de Édipo), foi meramente um
estágio primitivo na história grega. Eis por que se atribuiu a
Teseu a destruição do minotauro e a unificação da Ática, am-
bos feitos lendários, mas o primeiro mais apropriado para a
Idade do Bronze e o segundo para a Idade das Trevas, um mun-
do completamente diferente. A arqueologia moderna descobriu
um mundo pré-histórico jamais sonhado pelos gregos da era
histórica.
A arqueologia traz para o primeiro plano o colapso e o
declínio ocorridos por volta de 1200 a.e., seguidos pela po-
80 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
breza e por uma baixa qualidade artística e tecnológica. O que
revela com bem menos clareza, e, em certos aspectos essenciais,
absolutamente nada, é o progresso dos séculos posteriores a
1200, não só em termos materiais, com o surgimento do ferro
como o novo e mais avançado tipo de metal, como também
social, política e culturalmente. O futuro dos gregos não está
nos estados burocráticos, centrados nos palácios, mas no no-
vo tipo de sociedade que se formou a partir das comunidades
empobrecidas que sobreviveram à grande catástrofe. Só pode-
mos acompanhar os primeiros estágios desse processo de cres-
cimento seguindo os indícios dispersos do registro arqueológico
e das tradições posteriores, e em nada nos ajuda o fato de que
não há uma única referência aos gregos nos documentos escri-
tos na mesma época na Síria, na Mesopotâmia e no Egito. As-
sim, no sentido de que somos nós que tateamos no escuro, e
somente por causa desse sentido, é legítimo adotar a conven-
ção que denomina de "idade das trevas" o longo período da
história grega entre 1200 e 800. E assim, como também acon-
tece com as outras "idades" de que estamos tratando, devem-
se registrar subdivisões, a primeira por volta de 1050, a segun-
da no decorrer do século IX.
As variações regionais dificultam uma apresentação sucinta
do quadro arqueológico da Idade das Trevas. Na verdade, há
uma névoa uniforme por todo lugar (salvo um ou outro acha-
do notável). A representação pictórica de figuras humanas e
animais foi abandonada; não há nenhuma escala grandiosa, nem
qualquer edificação em pedra; os pequenos objetos tampouco
exibem delicadeza, assim como já não se manufaturam jóias.
Artigos de luxo, todas as importações de artigos supérfluos,
virtualmente desaparecem - a ausência do âmbar já foi regis-
trada, e os preciosos ornamentos em ouro indicam apenas um
roubo de sepultura ou a descoberta acidental de um tesouro
micênico. Não há praticamente nada entre os remanescentes
que revele associações religiosas ao alcance de nossa compreen-
são, salvo, naturalmente, o próprio fato de que os mortos eram
enterrados com alguns poucos objetos de utilidade. Pouquíssi-
mas coisas sugerem guerras ou guerreiros. Por um século ou
século e meio, todas as coisas apresentam um aspecto de tra-
balho micênico "adulterado". A cerâmica, em particular, con-
serva o mesmo estilo e a mesma técnica, embora a louça do
A IDADE DAS TREVAS 81
Micênico III C e, posteriormente, "submicênica", tenha so-
frido alterações suficientes para distinguir-se dos produtos do
III B, inclusive apresentando variações de um lugar para outro.
É no decorrer do século XI que inovações genuínas signi-
ficativas aparecem pela primeira vez no registro arqueológico.
Há a cerâmica "protogeométrica" (Figura 4), reconhecida mais
facilmente pelos círculos delineados a compasso e semicírculos
pintados com pincel múltiplo. Para os especialistas, essa cerâ-
mica é "descendente" da micênica, mas a diferença de estilo
é suficiente para exigir uma nova classificação (ao contrário da
"submicênica"). Novas ferramentas, armas e pequenos obje-
tos (tais como longos alfinetes de metal no lugar de botões, in-
dicando uma mudança no vestuário do homem e da mulher)
passam gradualmente a ser manufaturados em ferro, que subs-
titui o bronze. Com relação às ferramentas de corte e armas,
a mudança é abrupta e completa, conforme demonstra esta ta-
bela simples de achados da Grécia continental (excluindo a Ma-
cedônia) do período 1050-9001:
Bronze Ferro
Espadas 1 20+
Pontas de lança 8 30+
Adagas 2 8
Facas o 15+
Lâminas de machado o 4
Muitas regiões apresentam mudanças não só na estrutura
dos túmulos como também nas práticas funerárias. Digna de
nota é a substituição da inumação pela cremação, iniciada por
volta de 1050 em Atenas, onde há provas numerosas e
contínuas 2 • Todas essas mudanças já haviam sido prefigura-
das anteriormente, de uma forma ou de outra, e seria incorre-
to sugerir que por volta de 1050 houve uma transformação sú-
bita e uniforme por todo o mundo Egeu. Todavia, quando se
1. Extraída de A. M. Snodgrass, "Barbarian Europe and Early Iron
Age Greece'', Proceedings of the Prehistoric Society, 31 ( 1965),pp. 229-40,
na p. 231.
2. Bebês e crianças pequenas continuaram a ser enterrados como de
costume, em vez de cremados.
82 GRÉCIA PRIMITIVA: JVADE DO HRO!VZE E IDADE .4RCAICA
consideram os vários tipos de evidênciacomo um todo, distingue-
se claramente uma mudança significativa nessa época 3 .
Então, aproximadamente no final do mesmo século, surge
uma outra característica nova, cujo significado é bem mais ób-
vio: o estabelecimento, por migrantes da península grega, de
pequenas comunidades ao longo da costa da Ásia Menor e nas
ilhas próximas. Com o tempo, toda a orla ocidental da Ásia
Menor tornou-se grega, e o Egeu converteu-se pela primeira
vez numa via marítima grega, por assim dizer. As povoações
a leste eram agrupadas, segundo o dialeto, em três faixas do
norte para o sul: eólico, jônico e dórico, nessa ordem (Mapa
4). Mas isso envolveu trezentos anos de uma história compli-
cada que, em grande parte, está perdida para nós - anos de
disputas e lutas entre as povoações e de relações ambíguas com
os habitantes mais antigos. Podemos suspeitar que havia pou-
cas mulheres entre os migrantes, pelo menos no início. Em Mi-
leto, escreve Heródoto (1 146), os mais nobres colonos vindos
de Atenas não trouxeram nenhuma mulher, "mas tomaram
mulheres cárias, cujos parentes mataram. Por causa da ma-
tança, as mulheres estipularam uma lei para si mesmas, que
juraram acatar e que transmitiram para suas filhas, de nunca
jantar com seus maridos ou chamá-los pelo nome". Não está
claro como Heródoto tomou conhecimento dessa história ou
o que ele estava tentando explicar, mas em sua própria época
o casamento com cários era uma prática comum em Halicar-
nasso, sua terra natal. Sabemos também (o que o historiador
não sabia), graças a investigaçõesarqueológicas recentes e ainda
preliminares, que houve muitas migrações separadas em pe-
quenos grupos; que essas povoações eram novas e não conti-
nuações ou reforços de antigas comunidades micênicas ou da
Idade do Bronze na Ásia Menor (mesmo quando houve um
regresso a lugares ocupados anteriormente, tal como Mileto
ou Rodes); que a primeira onda deixou a Grécia logo depois
do desenvolvimento da cerâmica protogeométrica. De fato,
foi a descoberta de grande quantidade de fragmentos proto-
geométricos em cerca de meia dúzia de sítios que permitiu aos
3. É importante notar que todas essas datas são arqueológicas, como
expliquei no Capítulo 1. A cerâmica protogeométrica é fundamental no es-
tabelecimento da cronologia.
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TESSÁLICO
4- Dialetos gregos e. de 400 a. C.
84 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
arqueólogos datarem os movimentos e vincularem alguns dos
sítios ocidentais com regiões específicas da Grécia4 • As pri-
meiras povoações foram eólicas e jônicas, as dóricas vieram
pouco depois (provavelmente não antes de 900).
Não se sabe exatamente por que um determinado grupo
escolheu atravessar o Egeu naquele momento, mas não é pre-
ciso adivinhar por que rumaram para esse destino. A costa
da Ásia Menor é constituída por uma série de promontórios
dotados de defesas naturais, por trás dos quais encontram-se
férteis vales fluviais e planícies, e nos séculos XI, X e IX não
havia poderes estabelecidos, nem populações grandes que im-
pedissem novos colonizadores de se fixarem. O sítio de Es-
mirna Antiga - assim chamado para distinguir-se da cidade
de Esmirna (Izmir moderna), formada posteriormente nas pro-
ximidades - constitui um quadro do que essas primeiras co-
munidades viriam a ser: pequenas, medíocres, confinadas e
amontoadas atrás de suas muralhas fortificadas. Ao fim da
Idade das Trevas, quando, presumivelmente, já crescera subs-
tancialmente em tamanho, Esmirna Antiga contava com no
máximo quinhentas casas pequenas, tanto no lado interno
quanto no lado externo das muralhas, representando uma po-
pulação de uns 2 mil habitantes.
No que diz respeito à maioria das populações nativas do
oeste da Ásia Menor, essa também foi uma "idade das tre-
vas", e há poucos dados para se fundamentar uma opinião
segura sobre as relações entre elas e os gregos recém-chegados.
Sugeriu-se que os gregos teriam subjugado os povos que vi-
viam nas proximidades, utilizando-os como mão-de-obra de-
pendente. Esse palpite é plausível - por certo, foi exatamente
isso que os migrantes gregos fizeram em tempos históricos na
Ásia Menor, nas praias do mar Negro, e no Ocidente - mas
apenas isso. Não podemos sequer dar nomes aos nativos. É
provável que os misteriosos cários vivessem aí, mas os lídios
4. A inesperada e recente descoberta (ver lllustrated London News
de 6 de abril de 1968) de fragmentos micênicos do III C, submicênicos e
protogeométricos em Sardes, que mais tarde seria a capital do interior da
Lídia, suscita novas perguntas. É mais provável que se trate de uma ligação
com o movimento de refugiados de cerca de 1200, como em Chipre e Tar-
so, seguido de relações comerciais, do que de um outro caso de migração
grega do tipo que estamos considerando.
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5- O mundo arcaico grego
86 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONLt: E IDADt.' ARCAICA
talvez ainda não. Até agora só se sabe da presença dos frí-
gios, que nesse período antigo encontravam-se longe demais
para serem chamados de vizinhos. Chegaram à Ásia Menor
pelo estreito de Dardanelos, numa época provavelmente pró-
xima à das primeiras migrações gregas, mas concentraram-se
mais para o interior. Por volta do século VIII a.e., Górdio,
o principal centro da Frígia, situado a mais de 300 km da cos-
ta do Egeu, era grande, rico e poderoso, e sua cultura, par-
cialmente herdada dos hititas, era mais avançada do que a dos
gregos, em termos materiais e tecnológicos. Para os gregos,
a Frígia era o reino de Midas, cujo toque transformava tudo
em ouro. Górdio foi destruída nos princípios do século VII
pelos cimérios, que, partindo numa incursão devastadora das
estepes russas, depois do Cáucaso, puseram fim à idade áu-
rea frígia. Sempre que mencionam os frígios, os textos clássi-
cos gregos referem-se a eles como uma grande fonte de
escravos, empregados, por exemplo, nas minas de prata ate-
nienses.
A partir do século VIII, no máximo, as importações e in-
fluências artísticas frígias são evidentes tanto na Ásia Menor
grega quanto na própria Grécia, e havia também relações es-
treitas com as civilizações localizadas mais para leste. Os ar-
queólogos descobriram vestígios que aparentam pertencer à
"estrada real" hitita que atravessava a Anatólia e que, poste-
riormente, passou a ser controlada pelos frígios. Porém, não
foi esta a rota principal da influência do Oriente sobre o mundo
grego da Idade das Trevas, e sim a rota marítima, com ori-
gem na Síria e tendo Chipre como uma das grandes interme-
diárias. O contato entre a Grécia e o Oriente Próximo nunca
chegou a ser totalmente rompido; e nem poderia ter sido, pois,
no mínimo, havia a imperiosa necessidade grega de importar
metal - cobre, zinco e depois, num ritmo cada vez maior,
ferro-, nessa época vindo em grande parte, senão todo, do
Oriente.
Embora os "Povos do Mar" tivessem devastado Chipre,
é praticamente certo que a mineração do cobre nunca cessou,
e por volta do século XI a ilha destacou-se também pela me-
talurgia do ferro, cujas influências são visíveis nas armas do
continente grego. É significativo que os principais centros ci-
priotas tenham se expandido pelas costas leste e sul, mais pró-
.4 IDADE D,1S TREVAS 87
ximas da síria. Enkomi foi substituída pela vizinha Salamina,
cuja fundação, por volta de 1100, talvez se deva aos gregos,
e no século X os fenícios fizeram de Cício seu centro na ilha.
Nos séculos seguintes, todos os impérios do Oriente Próximo,
cada um a seu tempo, conquistariam Chipre - primeiro os
assírios, depois os egípcios e, por fim, os persas -, embora
nunca conseguissem manter o domínio. O resultado foi uma
civilização híbrida que é difícil de classificar. Embora o grego
fosse o idioma da maioria da população, uma língua pré-grega,
não identificada, continuou existindo, assim como o fenício
(o documento cipriota mais antigo nessa língua, uma tábula
profana, é datado de 900, aproximadamente). A arte tornou-
se mais levantina do que grega, como ilustram os recém-
descobertos "túmulos reais" de Salamina, dos séculos VIII
e VIP. A essa altura, a monarquia já desaparecera do mun-
do grego, mas sobreviveu em Chipre enquanto a ilha manteve
uma certa autonomia.
Provavelmente foi a estreita ligação com o Oriente (e, tal-
vez, o domínio exercido por ele), que capacitou Chipre a su-
perar os gregos anatólios durante a Idade das Trevas.
Escavações realizadas pouco antes da última guerra revelaram
um porto antigo em AI Mina, no delta do rio Orontes, norte
da Síria (local hoje pertencente à Turquia), um dos mais im-
portantes postos de ligação do continente asiático. A cerâmi-
ca cipriota e local encontrada em AI Mina remonta ao século
IX, possivelmente a antes ainda. A cerâmica grega surge por
volta de 800, tornando-se cada vez mais abundante, e subsis-
te após a conquista da região pelos assírios, no final do sécu-
lo VIII. A louça grega mais antiga partia não da Ásia Menor,
mas da Eubéia e das Cidades - mais tarde também de Co-
rinto e outras regiões. Nenhuma das evidências indica o que
era comercializado em troca, mas não há dúvida de que o me-
tal constituía, como sempre, a maior preocupação grega. A
presença de tanta cerâmica grega sugere uma participação di-
reta dos gregos - embora se deva ressaltar que se tratava ape-
nas de um posto comercial, não uma povoação permanente
de migrantes, como na Ásia Menor -, mas vale lembrar que
5. V. Karageorghis, Salamis in Cyprus, Homeric, Hellenistic and Ro-
man (Londre~: Thames & Hudson, 1969), cap. 3.
88 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRON7F F IDADE ARCAICA
nos poemas homéricos o comércio ultramarino foi virtualmente
monopolizado pelos "fenícios" e que, para Homero, assim
como para Heródoto no século V, "Fenícia" abrangia toda
a região entre a fronteira ciliciana-síria e o Egito.
Como não se encontrou nenhuma escrita em AI Mina, seu
nome antigo é desconhecido. É bem possível que tenha sido
o sítio de Posideion, segundo Heródoto (III 91) a cidade que,
na época dele, constituía a fronteira norte de uma das provín-
cias persas (ou satrapias). Sobre o passado de Posideion, o
historiador limita-se apenas a relatar que fora fundada por um
dos heróis lendários gregos, Anfíloco. E, no geral, quando os
gregos do Oriente finalmente começaram a escrever a própria
história - o que só aconteceu no século V a.e. -, o período
mais antigo foi representado por pouca mais do que relatos
de fundações centrados em indivíduos e relatos de incidentes
isolados, no mais das vezes conflitos. Não existe nenhuma nar-
rativa anterior ao século VI, e os historiadores não tiveram
interesse algum em fazer uma exposição fundamentada da his-
tória social ou institucional. O quadro que nos legaram é uma
interpretação esquemática e sentimental, voltada para o pas-
sado, dos valores e pretensões de uma era posterior, uma "carta
mítica" para o presente. O próprio Heródoto ficou embara-
çado. Ao sugerir (III 122) que Polícrates de Samos fora o pri-
meiro grego a buscar um império marítimo, explicou que estava
"deixando de lado Minas" e outros como ele, que Polícrates
fora o primeiro "no que se chama de tempo dos homens" -
vale dizer, o primeiro dos tempos históricos, em contraposi-
ção aos tempos míticos.
Nosso único meio de verificação, a arqueologia, não tem
condições de lidar com relatos sobre fundadores individuais
ou incidentes específicos. Não obstante, a arqueologia rejei-
tou como falso um elemento fundamental das tradições sobre
a antiga colonização jônica, que se imagina ter sido levada a
cabo numa única ação, organizada e iniciada em Atenas -
onde muitos refugiados dos dórios haviam se agrupado, in-
clusive homens de Pilos subordinados ao rei Neleu. Atenas de
fato teve participação em algumas das povoações jônicas, mas
não há fundamentação quanto ao resto. Os historiadores gre-
gos que documentaram esse relato mais de 500 anos depois
não faziam idéia da grande ruptura por volta de 1200 a.e.,
A IDADE DAS TREVAS 89
nem da Idade do Bronze e, portanto, nem do lapso de tempo
bastante considerável que foi a Idade das Trevas. Não sabiam,
nem tinham como saber, da existência de uma lacuna de tal-
vez 150 anos entre a destruição de Pilos (que não foi obra dos
"dórios") e os primeiros movimentos de um lado a outro do
Egeu, tempo demais para um bando de refugiados pilianos
aguardar em Atenas - uma situação que, seja como for, é
improvável por si só. Além disso, a expedição única de colo-
nização é totalmente fictícia, ao passo que o papel predomi-
nante de Atenas no desenvolvimento e na difusão da cerâmica
protogeométrica, que é um fato, foi esquecido por completo
(e é de se duvidar que os gregos das épocas posteriores tenham
ao menos reconhecido essa cerâmica como sua).
É inútil procurar os detalhes das tradições gregas mais re-
centes sobre a Idade das Trevas na Ásia Menor - tampouco
existe qualquer possibilidade em relação à própria Grécia, onde
as tradições até 800 ou 750 a.e. são do mesmo tipo e nature-
za. Em vez disso, devemos nos voltar para a mais antiga do-
cumentação escrita de que dispomos, a Ilíada e a Odisséia de
Homero, dois poemas épicos que consistem, respectivamen-
te, em cerca de 16 mil e 12 mil versos. O que podemos deduzir
deles como fontes de informação histórica? Creio que não há
nenhuma outra questão a respeito dos gregos antigos que pro-
voque maior controvérsia e menor concordância, e a única coi-
sa possível aqui é afirmar a posição adotada neste livro 6 •
Os dois poemas foram compostos na Jônia, a Ilíada tal-
vez em meados do século VIII, a Odisséia pouco depois, por
dois poetas diferentes trabalhando na mesma tradição. Cons-
tituíram o ponto alto de uma longa experiência em poesia oral,
praticada por bardos profissionais que faziam extensas viagens
pelo mundo grego. Durante gerações, esses bardos amealha-
ram muitos incidentes e tradições locais, centrados em inúme-
ros temas heróicos importantes, empregando uma linguagem
poética altamente estilizada, formal e artificial, tendo por base
o dialeto jônico, embora incluíssem também o eólico e outros.
Sem dúvida, houve bardos no mundo micênico também, mas
6. Neste capítulo, nossa preocupação é com a sociedade dos poemas,
não com a narrativa da Guerra de Tróia e suas conseqüências, já discutida
no capítulo anterior .
•
90 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
a tradição que atuou como pano de fundo para os poemas ho-
méricos foi essencialmente a da Idade das Trevas (e sua exis-
tência fornece um parâmetro importante para que se possa
julgar o período com base apenas em seu empobrecimento ma-
terial). Foi uma tradição que se voltou deliberadamente para
uma idade heróica perdida, e há aspectos de seu próprio mun-
do que os poetas conseguiram excluir. A Ilíada e a Odisséia
revelam um conhecimento considerável, embora longe de ser
perfeito, da localização dos maiores centros micênicos; não há
um único indício de que agora a Ásia Menor achava-se densa-
mente povoada por gregos; não há nenhum dórico; de fato,
dentro do mundo grego, não há distinção alguma, nem de dia-
letos, nem de instituições, que não sejam as diferenças de po-
der. E há ainda os grandes palácios dos heróis, repletos de
"tesouros" (Keimelion). Quando finalmente deixou-se conven-
cer a aplacar a cólera de Aquiles, Agamêmnon ofereceu (além
de sete cidades e uma filha como esposa, acompanhada de um
grande dote) cavalos de corrida, mulheres cativas, "sete tripo-
des nunca usados no fogo, dez talentos de ouro e vinte caldei-
rões brilhantes" e um navio carregado de bronze e ouro dos
espólios antecipados de Tróia (Ilíada IX, 121-56). A Idade das
Trevas não possuía um tesouro como esse. Nessa época, até
mesmo os guerreiros tinham direito apenas a uma espada ou
uma ponta de lança após a morte, raramente ambas; com efei-
to, com o passar do tempo, todos os tipos de armas tornaram-
se cada vez mais raros nas sepulturas.
Até aqui, seria cabível imaginar que os bardos transmiti-
ram, de geração a geração até o século VIII, um quadro reco-
nhecível do mundo micênico tardio. Entretanto, uma análise
mais acurada revela que, em estrutura e detalhes, os palácios
deles não são palácios micênicos (nem quaisquer outros conhe-
cidos), que não se pode atestar a compreensão deles acerca de
como usar o carro de combate na guerra, que o sistema social
dos poemas difere qualitativamente do sistema das tá bulas em
Linear B (e, especialmente, da economia palaciana registrada
nas tábulas), que a própria terminologia da administração e da
estrutura social foi radicalmente alterada. Mesmo os relatos
"realistas" dos tesouros denunciam, no mínimo, um notável
anacronismo. Os dotes, os cavalos de corrida e as mulheres ca-
tivas da oferta compensatória de Agamêrnnon são atemporais,
.-1 IDADE DAS TRETAS 91
ou pelo menos impossíveis de datar, mas não os "trípodes"
de bronze e os "caldeirões brilhantes". Embora existissem no
mundo micênico, esses objetos eram raridades, ao passo que
na Idade das Trevas tornaram-se tesouros extraordinários, pa-
ra serem ofertados principalmente aos deuses, sobretudo ao final
do período, quando a //fada e a Odisséia foram compostas. Al-
guns exemplares completos e muitos fragmentos foram encoi1-
trados em Olímpia (Ilustração VI /l) e Delfos, um número menor
em Delos, Creta e Ítaca, e exemplares isolados em outros lugares.
VIII - Tripode e caldeirão tle bronze, 61 cm de altura,
século IX a.C., encontrado em Olímpia.
92 GREC/A PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADt.· ARCAICA
As práticas religiosastambém passaram por mudanças sig-
nificativas. O mundo micênico sepultava seus mortos; os poe-
mas homéricos cremavam-nos, sem exceção. Novamente,
cumpre observar uma diferença dentro da própria Idade das
Trevas. Por volta de 1050, a cremação dos adultos tornara-se
universal na maior parte do mundo grego (com a curiosa ex-
ceção da Argólida), mas 200 ou 250 anos depois, a inumação
voltou ao continente, enquanto que a cremação prosseguiu em
Creta, nas Cíclades, Rodes e Jônia. Nesse ponto, a Ilíada e
a Odisséia continuam firmemente ancoradas nos primórdios
da Idade das Trevas, embora a parafernália e os ritos de luto
possam ser ilustrados por sepulturas do final da Idade das Tre-
vas e por cenas retratadas na cerâmica "geométrica" poste-
rior a 800, aproximadamente. Foi o período em que as figuras
humanas e de animais voltaram à arte grega pela primeira vez
desde a idade micênica, um revivescimento que não chegou
tão longe quanto o retorno anterior à representação do divi-
no. Não há cenas de epifanias, de danças ritualísticas, nem
de iniciação; são pouquíssimas as figuras, tanto na escultura
quanto na decoração de cerâmicas, que podemos imaginar co-
mo deuses, mesmo num amplo sentido de interpretação. Essa
ausência, nas artes plásticas, do espírito antropomórfico que
domina os poemas homéricos é surpreendente (sobretudo em
comparação com os inúmeros Zeus, Apolo e Afrodite ideali-
zados da arte grega posterior).
Em suma, os poemas homéricos conservam algumas ''coi-
sas" micênicas - lugares, armamentos e armas, carros de com-
bate -, mas pouco das instituições ou da cultura micênicas.
A ruptura fora acentuada demais. Enquanto a civilização
pré-1200 recuava para o passado, os bardos não podiam evi-
tar a "modernização" do comportamento e do cenário social
de seus heróis. No todo, há uma coerência interna na manei-
ra como as instituições sociais emergem de um estudo da lha-
da e da Odisséia, a despeito dos anacronismos em ambas as
extremidades da escala de tempo. Segundo certas opiniões, esse
quadro corresponde, no geral, à Idade das Trevas e, no todo,
à primeira metade desse período, pintado à maneira de um
poeta e não de um historiador ou de um cronista, nem sem-
pre preciso ou acurado, com certeza exagerado em escala, mas
nem por isso um quadro puramente imaginário.
.4 IDADE DAS TRFVAS 93
O mundo de Agamêmnon, Aquiles e Ulisses era feito de
reis e nobres insignificantes, que possuíam a melhor terra e
grandes rebanhos e tinham uma existência senhorial, na qual
incursões bélicas e guerras locais eram freqüentes. A casa e
a família do nobre (oikos) constituíam o centro da atividade
e do poder. A extensão do poder dependia da riqueza, do va-
lor pessoal, dos vínculos por casamento e alianças e dos ser-
vos. Não há nenhum papel atribuído a tribos ou a outros
grandes grupos ligados por l?arentesco. Nos vinte anos em que
Ulisses esteve afastado de Itaca, os nobres portaram-se ver-
gonhosamente em relação à família e às posses dele; seu filho
Telêmaco não tinha um grupo de parentes a quem recorrer,
e a comunidade tampouco estava totalmente integrada, ade-
quadamente organizada e aparelhada para impor sanções. Em
princípio, as reivindicaçõesde Telêmaco como herdeiro de Ulis-
ses eram reconhecidas, mas faltava-lhe o poder para que fos-
sem cumpridas. O assassinato de Agamêmnon por sua esposa
Clitemnestra e pelo amante desta, Egisto, impôs a seu filho
Orestes o dever de vingá-lo, mas quanto ao resto a vida em
Micenas continuava a mesma, exceto pelo fato de que Egisto
passou a governar no lugar de Agamêmnon. O rei com poder
era juiz, legislador e comandante, e havia cerimônias, rituais,
convenções e um código de honra que os nobres reconheciam
e pelos quais viviam - entre eles, a comensalidade, a troca
de presentes, os sacrifícios aos deuses e os ritos funerários apro-
priados. Não existia, contudo, um organismo burocrático, nem
um sistema legal formalizado ou uma máquina constitucio-
nal. O equilíbrio de poder era delicado; a tensão entre o rei
e os nobres era crônica, as lutas pelo poder, freqüentes.
É certo que Telêmaco convocou uma reunião de assem-
bléia de ftaca para apresentar sua queixa contra os nobres "de-
mandantes". A assembléia ouviu ambas as partes mas não
tomou providência alguma, conforme acontece nos dois poe-
mas. Em geral, o silêncio popular é a dificuldade mais desa-
fiadora que os poemas apresentam ao historiador. A presença
do povo é constante, até mesmo nas batalhas, mas como uma
massa indefinida cuja condição é incerta. Alguns populares,
sobretudo as mulheres cativas, são denominados escravos, mas
aparentemente não se encontravam em pior situação do que
os demais. Alguns especialistas - videntes, bardos, artesãos
•
94 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADt.· DO BRONZE E IDADF .4RC..IIC-I
em metal ou madeira, médicos - desfrutavam de uma condi-
ção melhor. Já existem a navegação e uma preocupação vital
com o comércio, mais exatamente com a importação de co-
bre, ferro, ouro e prata, roupas finas e outros artigos de lu-
xo. Até mesmo os chefes tinham permissão para participar de
expedições com esse propósito, mas ao que parece o comér-
cio geralmente era ocupação de estrangeiros, sobretudo fení-
cios. Ser chamado de mercador era um grave insulto para
Ulisses; homens de sua classe trocavam bens em cerimônias
ou os obtinham por meio de saques. Em parte, toda essa im-
precisão quanto às pessoas comuns pode ser atribuída à deli-
berada concentração dos poetas nos feitos heróicos dos heróis.
Uma outra explicação talvez seja a ausência, na realidade, de
categorias sociais mais bem definidas, como nas sociedades
posteriores, particularmente de categorias inconfundíveis co-
mo "liberdade" e "servidão". A linha divisória fundamental
entre nobres e não-nobres é bastante clara. Acima e abaixo
dela as distinções parecem vagas - e talvez tenham sido
realmente.
Seria ilusório acreditar que se poderia tirar daí a base pa-
ra uma história da Idade das Trevas. É lícito apenas supor que,
após a eliminação dos governantes do mundo micênico, e por-
tanto de toda a estrutura de poder que eles encabeçavam, a
sociedade teve de reorganizar-se com novos arranjos e valo-
res, adequados à nova situação material e social - na qual
os migrantes provavelmente constituíram um fator a ser leva-
do em conta. Se a destruição do mundo micênico envolveu
também revoltas sociais internas - o que é provável mas não
comprovável-, isso deve ter igualmente influenciado a for-
ma dos novos arranjos. O que aconteceu nos séculos imedia-
tamente posteriores pode não ter sido igual em todos os lugares,
apesar da imagem homérica de uniformidade. Na Ásia Me-
nor, desde o início (assim como em todas as subseqüentes mi-
grações gregas para outras regiões), as povoações consistiam
em pequenas unidades territoriais em torno de um núcleo ur-
bano. A julgar pela arqueologia, unidades semelhantes existi-
ram em algumas ilhas egéias, desenvolvendo-se gradualmente
também no continente grego. Os poetas supunham que elas
fossem a regra, mas mesmo em sua época, e em vários sécu-
los seguintes, regiões inteiras da Grécia - tais como a Tessá-
A IDADE DAS TREVAS 95
lia e a Etólia - não tinham centros urbanos e eram sociedades
pastorais e agrárias organizadas livremente. Aparentemente
uniforme, entretanto, era a estrutura de classe sugerida pelos
poemas, com uma classe superior aristocrática e um rei ou chefe
que era pouco mais do que "o primeiro entre os pares". Essa
importância maior (ou menor) era uma questão pessoal eva-
riava conforme o caso; além disso, segundo outros indícios
de que dispomos, à época da criação da Ilíada e da Odisséia
os "pares" haviam prescindido do rei em quase todos os lu-
gares e substituído a monarquia pela aristocracia. De uma for-
ma um tanto nebulosa, as pessoas comuns também existiam
como uma corporação (pouco importando quem possa ter feito
parte do "povo", do demos), mas não como uma força polí-
tica em qualquer sentido constitucional.
Curiosamente, embora os poetas tivessem consciência de
um vínculo comum que unia todos os gregos, o vínculo da lin-
guagem, da religião e do modo de vida (mas nunca, em tem-
po algum, um vínculo político ou uma relutância comum em
guerrear entre si), nem a Ilíada, nem a Odisséia referem-se a
eles pelo nome que é deles pelo menos desde o século VIII até
hoje. São os helenos e seu mundo é a Hélade - "seu mun-
do", não "seu país", porque nunca foram politicamente uni-
dos, e a Hélade na Antigüidade, assim como o Cristianismo
na Idade Média e o Islã hoje em dia, era uma abstração. Nos
poemas homéricos, os gregos possuem três nomes diferentes,
aqueus, argivos e danaãs, dos quais os dois primeiros con-
servaram-se como nomes de localidades específicas da Gré-
cia (Mapa 6), ao passo que o terceiro caiu em desuso. É prati-
camente certo, porém, que Hélade e heleno já fossem correntes
no século VIII, assim como, provavelmente, as inevitáveis ge-
nealogias que foram inventadas para explicar as divisões his-
tóricas de acordo com o dialeto, a "raça" ou a organização
política: Heleno, filho de Deucalião, teve três filhos chama-
dos Doro, Xuto (pai de Íon) e Éolo, e assim por diante. No
século VIII, também, já existiam instituições pan-helênicas em
forma embrionária, merecendo destaque alguns oráculos e os
Jogos Olímpicos.
Finalmente, no século VIII, os gregos retomaram a es-
crita, na forma do alfabeto emprestado aos fenícios e modifi-
cado. Quanto a esse fato, a tradição grega acertou (embora
96 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
o
1)
a
6 - Grécia arcaica e a costa da Ásia Menor
não fizessem idéia da data). Temos condições de determinar
como fonte a escrita norte-semítica, mais especificamente a
escrita cursiva usada em atividades comerciais, em vez dos ca-
racteres monumentais de Biblos, por exemplo. Al Mina pode
ter sido o ponto de contato e difusão, embora seja apenas um
palpite, e os primeiros a empregarem a escrita talvez tenham
sido os povos da Eubéia, de Creta e de Rodes, de maneira mais
ou menos independente uns dos outros; daí a arte espalhou-
se, por uma rede complicada de rotas, para todas as comuni-
dades gregas. Falta-nos compreender melhor as razões ime-
diatas pelas quais o alfabeto foi adotado naquela época
(provavelmente antes de 750) e por que se difundiu tão rapi-
.4 IDADE DAS TRt.'VAS 97
damente. Um longo tempo transcorreria até que os gregos uti-
lizassem a nova habilidade para fins mais importantes, em
crônicas ou textos religiosos (dois dos principais usos da es-
crita no Oriente Próximo antigo). A princípio, os gregos apa-
rentemente dedicaram-se à poesia e ao que podemos chamar
de propósitos mnemônicos e de classificação, ou seja, de um
lado, aliviar o fardo da memória, relacionando fatos que me-
reciam a atenção e a lembrança do público, tais como os ven-
cedores olímpicos; de outro lado, inscrever nomes em cerâmica,
lápides e coisas semelhantes.
Os poemas homéricos, em suma, remontam à Idade das
Trevas e mesmo a uma época um pouco mais anterior, mas
foram compostos no início de uma nova era. Por conta da
convenção, o período seguinte (800-500 a.e., em números re-
dondos) é conhecido como "arcaico", termo tomado da his-
tória da arte, mais rigorosamente, da escultura (assim como
o termo "clássico" no que diz respeito à idade subseqüente).
É da Grécia arcaica que este livro tratará daqui em diante.
8
A sociedade e a política arcaicas
Dois fenômenos que marcam a Idade Arcaica são o surgi-
mento e o lento desenvolvimento da estrutura comunitária ca-
racteristicamentegrega, a polis (que, por convenção e de maneira
um tanto inadequada, foi traduzida para "cidade-Estado"), e
a vasta difusão da Hélade no transcurso de aproximadamente
duzentos anos, desde o extremo sudeste do mar Negro até quase
o oceano Atlântico.
Já salientamos que na Idade das Trevas a comunidade ti-
nha uma existência indistinta enquanto organismo político. De
que forma adquiriu substância é um processo a cuja origem
não temos condição de remontar, mas no centro de tudo está
a criação de instituiçõesque submeteram mesmo os homens mais
poderosos a órgãos formais e normas de autoridade. Essa ta-
refa não foi simples - a tensão entre os órgãos da comunida-
de e a ânsia pelo poder por parte de indivíduos ambiciosos
continuou sendo um fator de perturbação na sociedade grega,
tanto no período arcaico quanto no clássico. Uma das medi-
das foi o fim da monarquia 1, medida que, curiosamente, pas-
1. Um remanescente de Esparta será considerado no Capítulo 9. Deve-
se notar também que a palavra basileus, "rei", continuou sendo usada por
funcionários como os magistrados encarregados de assuntos religiosos em
/\tenas, sem nenhuma implicação de status real.
100 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
sou despercebida nas lendas e tradições gregas. A esse respeito,
o contraste com a história primitiva romana não poderia ser
maior. Com o passar do tempo, os romanos criaram uma nar-
rativa bastante ampla e detalhada de cada um dos reinados de
seus reis, culminando na expulsão do último deles, Tarqüínio,
o Soberbo, em 5092 • A abolição da monarquia foi a história
de urna revolta contra o domínio etrusco, o que explica em parte
o fascínio e a persistência do tema nas lendas romanas. Aos
gregos faltou semelhante estímulo. E o silêncio deles quanto
a esse aspecto de seu passado sugere que, no final das contas,
apesar dos Agamêmnon e Ajax dos poemas homéricos, seus
verdadeiros governantes da Idade das Trevas eram chefes in-
significantesdentro de uma estrutura de "numerosos reis", cujo
desaparecimento de cena nada teve de dramático e memorá-
vel. Sem eles, os nobres foram compelidos a formalizar os ór-
gãos consultivos, anteriormente informais, que vemos em ação
nos poemas homéricos. Foi assim que surgiram os conselhos
e cargos públicos (que denominamos "magistraturas", tomando
a palavra emprestada ao latim), com prerrogativas e responsa-
bilidades mais ou menos definidas e uma máquina para sele-
ção e rodízio, restritos ao grupo fechado da aristocracia
proprietária de terras.
Essas comunidades eram pequenas e independentes (sal-
vo quando dominadas pela força). Seguindo o padrão residen-
cial mediterrâneo, possuíam um centro "urbano", que por
longo tempo não passou de um vilarejo, onde geralmente resi-
diam as pessoas mais ricas. A praça da cidade, um espaço aber-
to, era reservada; mais tarde, seria flanqueada por edificações
cívicas e religiosas - o templo temou-se uma característica co-
mum a partir de 800 a.e., aproximadamente-, mas o acesso
fácil foi preservado, para que o povo pudesse ser reunido quan-
do necessário. A praça era a.ágora, na acepção original da pa-
lavra um "local de reunião", muito antes de ter sido invadida
por lojas e bancas, de modo que a tradução habitual de "mer-
cado" para o termo ágora raramente é correta e às vezes total-
mente errada. Via de regra havia também uma acrópole (se o
2. Ver por exemplo, os dois primeiros livros da história de Lívio (dis-
ponível no volume da Penguin sobre Lívio, intitulado The Early History
o/ Rome).
A SOCIEDADE E A POLÍTICA ARCAICAS 101
terreno fosse adequado), um ponto elevado para servir de ci-
dadela para a defesa. Basicamente, a cidade e o campo eram
concebidos como uma unidade e não - como seria comum em
cidades medievais - como dois elementos antagônicos. Isso
foi incorporado à língua, que equiparava a comunidade ao povo
e não a um lugar. Um grego antigo podia expressar a idéia de
Atenas como uma comunidade ou como uma unidade política
dizendo apenas "os atenienses". A palavra "Atenas" era pouco
empregada em outro sentido que não o geográfico - viajava-se
para Atenas mas guerreava-se contra os atenienses. Sem dúvida,
o ritmo de desenvolvimento entre essas distantes comunidades
autônomas foi bastante desigual, e houve variações consideráveis
no produto final. A comunidade dos séculos VIII e VII levaria
um longo tempo para tomar-se a polis clássica. No entanto,
o embrião já existia no início do perído ~rcaico.
_A fragmentação que caracterizou a Hélade é explicada em
parte pela geografia. Grandes porções do terreno da Grécia pro-
priamente dita é um tabuleiro de xadrez, com montanhas
alternando-se com pequenas planíciesou vales, tendendo a isolar
cada reduto de habitação. Na Ásia Menor, a região costeira,
apresentando quase a mesma estrutura, estimulou um padrão
de povoação semelhante. As ilhas egéias, igualmente monta-
nhosas, eram em geral bastante pequenas. Mas a geografia não
é uma explicação suficiente, sobretudo quanto aos desenvolvi-
mentos iregos posteriores. Não explica, por exemplo, por que
toda a Atica era politicamente unida enquanto que sua vizinha
Beócia, pouco maior, abrangia doze cidades-Estados indepen-
dentes que, em conjunto, conseguiram resistir às tentativas de
domínio de Tebas, a maior; nem por que uma ilha minúscula
como Amorgos teve três poleis separadas ao longo de toda a
era clássica; nem, acima de tudo, por que os gregos transplan-
taram a comunidade pequena para a Sicília e o sul da Itália,
onde tanto a geografia quanto a autopreservação favoreciam
a adoção de territórios bem mais amplos dentro de estruturas
políticas simples. Está claro que havia algo bem maior ell\jo-
go, uma convicção de que a polis era a única estrutura apro-
priada para a vida civilizada, convicção que Aristóteles (Política
l253a7-9) resumiu, nos dias finais da independência grega, ao
definir o homem como um zoon politikon, um ser destinado
por natureza a viver numa polis.
102 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE F. IDADE ARCAICA
A comunicação por terra entre um reduto e outro era len-
ta e cheia de obstáculos, às vezes quase impossível em face da
resistência. Como no interior praticamente não existiam vias
navegáveis, o mar tornou-se, sempre que possível, o caminho
habitual dos gregos, mesmo para distâncias relativamente cur-
tas. Na Antigüidade, os gregos converteram-se no povo do mar
par excellence, muito embora sua atitude em relação ao mar
fosse notavelmente ambígua: o mar era habitado por aquelas
amáveis ninfas, as Nereidas, mas governado por Posídon, a
quem os homens temiam e serviam, mas não amavam. Entre-
tanto, quando se viram forçados a empreender um movimen-
to contínuo de expansão, a partir de meados do século VIII,
os gregos partiram para o mar, tomando o rumo oeste e nor-
deste. No final da Idade Arcaica, a Hélade ocupava uma re-
gião enorme - do litoral norte, oeste e sul do mar Negro,
passando pelo oeste da Ásia Menor e a Grécia propriamente
dita (inclusive as ilhas do Egeu), até grande parte da Sicília e
o sul da Itália, prosseguindo em direção oeste, ao longo de am-
bos os litorais do Mediterrâneo, até Cirene na Líbia e Marse-
lha, além de algumas localidades da costa da Espanha. Aonde
quer que chegassem, estabeleciam-se na beira do mar, não no
interior.
O mar não era a única característica ambiental comum des-
sas vastas regiões. Ecologicamente, partilhavam (com algumas
exceções) de um clima e uma vegetação que popularmente de-
nominamos "mediterrâneos", o que permitia, e até mesmo es-
timulava, uma existência ao ar livre que ainda hoje é familiar.
Os verões são quentes e ensolarados, os invernos são tolerá-
veis e geralmente não há neve nas praias e planícies; azeitonas
e uvas crescem livremente, as flores são abundantes, as planí-
cies produzem cereais e legumes, o mar é rico em peixe, e as
encostas fornecem pastos adequados, pelo menos para os ani-
mais menores. Como a exuberância não é a regra, a agricultu-
ra e a pastagem necessitam de atenção constante; em con-
trapartida, as necessidades de moradia e sobretudo de ca-
lor podem ser atendidas por meios razoavelmente primitivos.
Somente a escassez de metais e madeira apropriados, por exem-
plo, para a construção de navios constitui uma dificuldade sé-
ria - só podem ser encontrados em poucas localidades, às vezes
bastante remotas. Água potável também chega a ser um pro-
11 SOCIEDADE E A POL[T/CA ARCAICAS 103
blema, daí a ênfase, tanto nas lendas quanto na realidade, nas
nascentes e fontes.
Esquematicamente, pode-se conceber o movimento de "co-
lonização" grega como duas longas ondas (sem contar a po-
voação mais primitiva da Ásia Menor). O movimento ocidental
teve início por volta de 750 a.e. e prosseguiu livremente até
meados do século seguinte, acompanhado de uma onda secun-
dária que durou cerca de mais um século, quando o processo
foi concluído. A migração rumo ao nordeste começou antes
de 700 com povoações na região da Trácia, em ilhas próximas
como Tasos e na Tróade, na Ásia Menor, seguida, a partir de
650, por outro movimento que alcançou a região do Helesponto
e ambos os litorais do mar Negro, detendo-se somente no final
do século VI, na foz do rio Don, na costa norte, e em Trape-
zos (atual Trebizond), no extremo sudeste. Os relatos antigos
desses movimentos não ajudam muito. Um exemplo razoavel-
mente sério, a reconhecida história da fundação de Siracusa,
na Sicília, na forma como foi repetida pelo geógrafo Estrabão
(VI, 2,4), diz o seguinte:
Arguias, zarpando de Corinto, fundou Siracusa aproximada-
mente na mesma época em que Naxos e Mégara [também na
Sicília] foram estabelecidas. Dizem que quando Miscelo e Ar-
guias foram para Delfos consultar o oráculo, o deus perguntou-
lhes se preferiam riqueza ou saúde. Tendo Arguias escolhido a
riqueza e Miscelo a saúde, ao primeiro o oráculo incumbiu de
fundar Siracusa, e ao segundo de fundar Crotona [no sul da Itá-
lia)... A caminho da Sicília, Arguias deixou uma parte da expe-
dição para colonizar a ilha hoje chamada de Corcira [Corfu
moderna] ... Expulsaram os Liburni que a ocupavam e estabele-
ceram uma povoação. Prosseguindo sua viagem, Arguias en-
controu alguns dórios... que se haviam separado dos
colonizadores de Mégara; levou-os consigo e juntos fundaram
Siracusa.
Essas tonalidades míticas e a ênfase em alguns indivíduos
e suas querelas, e não em aspectos sociais mais amplos, são ca-
racterísticas da maior parte das tradições. Mesmo assim, tais
relatos são mais "históricos" do que aqueles sobre o fluxo pa-
ra a Ásia Menor no início da Idade das Trevas, ainda mais va-
gos e confusos. Enquanto as migrações anteriores provavehnente
104 GRt:CIA PRIMITIVA: lDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
não passaram de movimentos ocasionais e incertos, dessa vez
tratava-se de um deslocamento organizado da população, em-
bora ainda em número reduzido - emigração em grupo siste-
maticamente preparada pelas "cidades-mães".
Apoikia, o termo grego comum para povoações novas no
estrangeiro, conota "emigração" sem implicar o sentido de de-
pendência subentendido na palavra "colônia", utilizada por
nós. Via de regra, cada apoikia era, desde o início e intencio-
nalmente, uma comunidade independente, conservando vínculos
sentimentais e muitas vezes religiosos com a "cidade-mãe", mas
sem estar econômica ou politicamente subordinada a ela. Com
efeito, essa independência serviu para manter relações amisto-
sas com a cidade de origem, pois não havia as irritações e os
conflitos suscitados normalmente sob condições coloniais. Cabe
acrescentar ainda que a designação "cidade-mãe" era muitas
vezes empregada de modo um tanto arbitrário; no antigo mundo
grego, muitas das novas fundações eram estabelecidas por gru-
pos de colonos vindos de lugares diferentes.
Segundo o diagrama cronológico normalmente aceito, ba-
seado na arqueologia e nos esforços dos antiquários gregos, a
colônia mais antiga foi Cumas, perto de Nápoles, estabelecida
pouco antes de 750 a.e. (mais precisamente, a ilha hoje co-
nhecida como Ísquia, a partir da qual Cumas foi fundada),
estendendo-se desde Cálcis e Erétria, as duas principais cida-
des da Eubéia (ativa ao mesmo tempo em AI Mina, no Levan-
te). Cálcis era também a cidade-mãe de Zancle (mais tarde
Messina) na Sicília, de Régio, no lado italiano dos estreitos,
e de Naxos, Leontini e Cátana (Katane em grego), no leste da
Sicília, todas tradicionalmente fundadas por volta de 730. A
elas juntaram-se, em Zancle, outros eubeus, em Régio, exila-
dos messênios, e em Leontini, megários. Siracusa foi fundada
na mesma época por coríntios e "outros dórios", não especifi-
cados; Síbaris, no sul da Itália, por volta de 720, por homens
da Aquéia juntamente com alguns poucos de Trezena, no Pe-
loponeso; Gela, no sul da Sicília, em 688, por cretenses e ró-
dios. A partir de então, as fundações foram complicadas por
causa das migrações "internas", pois algumas colônias
tomaram-se cidades-mães, enquanto continuavam a chegar emi-
grantes do Oriente. Assim, Hímera foi estabelecida por volta
de 650 a partir de Zancle, com um contingente de exilados de
.-1 SOí'IF.DADF. F. ,1 POLÍTICA ARCAICAS 105
Siracusa; Selinunte, entre 650 e 630, a partir de Mégara Hi-
bléia, no leste da Sicília; Cirene, por volta de 630, a partir da
ilha egéia de Tera; Massélia (Marselha), por volta de 600, por
foceus da Ásia Menor; Acragas (Agrigento moderna), em 580,
a partir de Gela, junto com migrantes vindos diretamente de
Rodes, a terra natal desses últimos.
A lista não está completa, e nenhuma das datas tradicio-
nais é precisa. As informações servem apenas para indicar a
cronologia do movimento, que em linhas gerais foi comprova-
do pela arqueologia, para salientar o modo como as povoa-
ções ativeram-se ao mar, e para revelar o número, a diversidade
e a expansão geográfica das comunidades gregas envolvidas.
Não é necessário apresentar o catálogo das fundações do nor-
te do Egeu e do mar Negro, das quais as evidências literárias
e arqueológicas são bem mais escassas. A povoação da costa
da trácia, no mar Egeu, começou no final do século VIII, ten-
do as cidades da Eubéia novamente à frente, conforme demons-
tra o nome do promontório Calcídice (de Cálcis). Em breve
outras ilhas egéias entraram em cena - Paros, Rodes e, so-
bretudo, Quios. Então, quando o movimento ultrapassou a cos-
ta egéia e atingiu as praias do mar Negro, Mileto tornou-se a
principal cidade-mãe (seguida de Mégara). Se todas as ref erên-
cias à atividade de Mileto fossem tomadas ao pé da letra, a ci-
dade em si teria ficado completamente despovoada - o que
constitui mais uma prova do papel limitado das ''cidades-mães''.
Todas as terras para as quais os gregos migraram, tanto
as do Leste quanto as do Oeste, eram habitadas por povos va-
riados, em diferentes estágios de desenvolvimento, com dife-
rentes interesses nos recém-chegados e diferentes capacidades
de resistência. Os etruscos da Itália central eram suficientemente
poderosos para deter a expansão grega num limite definido a
partir da baía de Nápoles, e avançados o bastante para adotar
dos gregos o alfabeto, os elementos religiosos e grande parte
da arte. Os sícelos, porém, como os trácios ou os citas nas re-
giões do norte do Egeu e do mar Negro, eram menos avança-
dos do ponto de vista técnico e social. Alguns deles aparente-
mente foram reduzidos a mão-de-obra semi-escrava, embora as
evidências sejam poucas e confusas. Outros foram impelidos
para o interior, onde mantiveram um relacionamento difícil e
L'omplicado com os gregos durante os séculos seguintes.
106 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
Um estudo da lista de cidades-mães (e daquelas que apa-
rentemente não participaram da colonização) mostra que ha-
via pouca correlação entre o tipo de comunidade e a cidade
colonizadora. Não há nada na lista que justifique o ponto de
vista, antes amplamente sustentado, de que a atividade coloni-
zadora era inspirada principalmente por interesses comerciais.
A ênfase aí é importante. Não pretendo negar o aspecto co-
mercial como um todo, nem, em particular, a necessidade de
metais, várias vezes apontada. A ilha de isquia, a primeira po-
voação ocidental, possuía alguma quantidade de ferro e, seja
como for, era uma entrada para as regiões da Itália central
ricas em minérios. Logo depois ocorreram fundações em am-
bos os lados dos estreitos de Messina, obviamente para con-
trolar o estreito caminho para a costa oeste italiana. Os primeiros
colonos pareciam saber para onde se dirigiam, e as informa-
ções só poderiam ter vindo dos comerciantes que já haviam es-
tado na região. Essa afirmação, porém, é insuficiente para
explicar o movimento de dispersão, que durou séculos. A Sicí-
lia, por exemplo, não possuía metais, e poucas coisas poderiam
atrair mercadores gregos, salvo em especulações ocasionais;
pode-se dizer o mesmo das regiões interiores do mar Negro.
É praticamente impossível encontrar evidências arqueológicas
de atividade grega anterior aos primeiros colonos. Por fim, a
questão central é a da motivação dos homens que realmente
migraram, deixando suas casas na Grécia, nas ilhas ou na Ásia
Menor, para estabelecerem-sepermanentemente em regiões des-
conhecidas, às vezes hostis, desde o início independentes das
cidades-mães. Não eram como os mercadores, que não aban-
donavam suas terras, e por isso os interesses deles diferiam bas-
tante. Os mercadores tampouco constituíam um elemento
significativo entre os migrantes que se juntaram aos primeiros
colonos, ou nas colônias secundárias tais como Hímera e Acra-
gas, que com o tempo se desligaram das mais antigas.
A distinção torna-se mais nítida em face do pequeno nú-
mero de postos comerciais legítimos estabelecidos no decorrer
do tempo, tais como os lugares chamados de Empória (que em
grego significa literalmente "feitoria" ou "centro comercial"),
na Espanha (hoje Ampúrias) e na foz do rio Don; ou a interes-
santíssima povoação em Naucrátide, no delta do Nilo, onde
os faraós reuniam os representantes de alguns estados gregos,
A SOCIEDADE E A POLÍTICA ARCAICAS 107
sobretudo na Ásia Menor, que conduziam o comércio com o
Egito. Também é reveladora a fundação relativamente tardia
desses postos - a Empória espanhola foi estabelecida por Mas-
sélia, que por sua vez só foi fundada em 600; Naucrátide pode
ser datada de um pouco antes de Massélia, ao passo que a Em-
pória russa é muito posterior. A questão decisiva, entretanto,
é que no início essas localidades não eram po/eis gregas pro-
priamente, mas, da mesma forma que AI Mina antes delas, pon-
tos de contato entre o mundo grego e o não-grego, ao passo
que todas as outras povoações novas - que chegam às deze-
nas e, posteriormente, às centenas - sempre foram comuni-
dades gregas, em todos os aspectos. Isso significa, acima de
tudo, que eram povoações basicamente agrícolas, fundadas por
homens que saíam em busca de terras. Instalavam-se perto do
mar e preferiam os bons ancoradouros, embora essa fosse uma
preocupação secundária. Assim, apesar do grande número de
comunidades gregas no sul da Itália, não havia nenhuma no
melhor atracadouro de costa oriental, o sítio romano de Brun-
dísio (Brindisi moderna). E daí também o fato de os aristocra-
tas de Siracusa, que se tornou a maior das novas comunidades
do Ocidente, terem sido denominados gamoroi, em tradução
literal, "os que dividiram a terra".
Em suma, a característica comum a todas as cidades-mães
foi uma condição de crise grave, capaz de provocar a mobili-
zação dos recursos necessários para uma aventura tão difícil
quanto um transplante ultramarino - navios, arneses e armas,
provavelmente ferramentas, sementes e suprimentos - e ain-
da de criar a psicologia adequada. Por trás dos relatos tradi-
cionais de rixas, querelas e assassinatos pessoais que os gregos
futuros associaram a algumas das fundações individuais,
encontra-se um conflito social mais profundo e amplo. Não se
deve exagerar o espírito de aventura viking na Grécia arcaica.
Um trecho de Heródoto (IV 153), curto de causar aflição,
a respeito da fundação de Cirene a partir de Tera, fornece-nos
algum indício, juntamente com uma inscrição de Cirene do iní-
cio do século IV que, ao que tudo indica, é o texto do pacto
dos primeiros colonos3• Heródoto diz o seguinte: "Os habitan-
3. O texto e uma tradução da inscrição (S11pp/ement11mepigraphic11m
waecum IX 3) encontram-se em A. J. Graham, Colony and Mother City
108 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZI:: E IDADE ARCAICA
tes de Tera decidiram enviar um irmão entre os irmãos de cada
um dos sete distritos da ilha, a ser escolhido por sorteio, e que
Batos deveria ser o líder e o rei deles. Nesses termos, despa-
charam dois navios de cinqüenta remos.'' A inscrição acres-
centa que a penalidade pela recusa em viajar era a morte e o
confisco das propriedades, e que também se aceitavam volun-
tários. Os números, portanto, eram pequenos - duzentos no
máximo - e não incluíam mulheres, o que nos lembra a su-
gestão já feita acerca do primeiro movimento para a Ásia Me-
nor, de que os migrantes primitivos desposavam as nativas dos
lugares onde se estabeleciam. E a viagem era obrigatória, em-
bora pareça que as famílias apenas com filhos homens rece-
biam dispensa. Por que tamanha pressão? Não somos in-
formados. Para Heródoto e para as pessoas que mais tarde
inscreveram o "pacto" na própria Cirene, o relato diz respeito
a ordens dadas por Apolo em Delfos e a uma sanção à dinas-
tia Batíada, que tomara o poder em Cirene. Isso nos leva de
volta para as explicações míticas características da maioria dos
relatos de fundações. Mas resta-nos o núcleo fatual, e embora
não conheçamos exatamente a situação é inquestionável que,
em meados do século VII a.C., Tera apresentava um relativo
excesso de população e, portanto, conflitos sociais potenciais,
senão reais. Tampouco podemos duvidar de que em todos os
lugares onde a colonização ativa era encorajada, e é provável
que muitas vezes tenha sido forçada, o caso fosse o mesmo.
O conflito social estava arraigado na natureza da socieda-
de aristocrática e na maneira como ela se desenvolveu ao lon-
go da Idade das Trevas. A arqueologia revela que a riqueza
e as habilidades técnicas cresceram lentamente e também que,
no final do período, houve um considerável aumento popula-
cional. Isso atualmente está sendo documentado pela primeira
vez, à medida que os arqueólogos gregos começam a preocupar-
se com questões como a demografia e os padrões de povoa-
ção. Porém, existem alguns enigmas. Em Argos e sobretudo
em Atenas parece ter ocorrido uma explosão populacional no
in Ancient Greece (Manchester Univcrsity Press; New York, Barnes and
Noble, 1964), pp. 224-6. A colônia em questão não era a cidade de Cirene
em si, mas uma povoação ligeiramente anterior numa ilha próxima.
A SOCIEDADE E A POLÍTICA ARCAICAS 109
exato momento em que o processo de colonização teve início4 ;
mesmo assim, nem Argos nem Atenas participaram dele. Em
contrapartida, Corinto, uma das principais colonizadoras, ainda
não passava de um grande vilarejo ligado a outros vilarejos e
grupos de casas. Se acabou se tomando superpovoada, "não
foi no sentido de que havia excesso de casas na terra disponí-
vel, mas sim devido ao sistema de posse da terra" 5•
Com a eliminação dos reis, dos quais restou apenas o no-
me, a aristocracia aparentemente cerrou fileiras, controlando
a maior parte da terra (especialmente a melhor) e criando ins-
trumentos políticos para monopolizar o poder. A ênfase em
genealogias nas tradições posteriores, com cada "família" no-
bre reivindicando um antepassado divino ou "heróico", não
deixa dúvidas quanto à tendência para uma aristocracia de "san-
gue" exclusiva. Sua riqueza garantiu-lhe por muito tempo o
monopólio militar. O metal era escasso e caro, sobretudo o ferro
para espadas e pontas de lança. Em meados do século VIII ocor-
reram inovações nos elmos, arneses e armas, parcialmente ins-
piradas na Europa central e no Oriente. Passados cerca de cem
anos, a panóplia completa passou a ser usada regularmente,
do elmo às grevas, equipamento inacessível para quem não dis-
pusesse de meios. A riqueza era também essencial para a cria-
ção de cavalos, agora importante por causa do surgimento da
cavalaria, uma arma militar peculiarmente aristocrática ao longo
da história. O lugar da cavalaria na Grécia arcaica é obscuro,
e alguns historiadores tendem a considerá-lo necessariamente
insignificante no terreno grego. Não se pode negar, porém, que
cavalos e cavaleiros desfrutam de grande destaque na cerâmi-
ca pintada do período; que autores gregos como Aristóteles de-
ram grande importância à cavalaria; que foram os migrantes
gregos que levaram a cavalaria para a Itália; ou que a aristo-
cracia governante da Eubéia era denominada Hippobotai, "ali-
mentadores de cavalos", numa época tão remota quanto a de
Heródoto (V 77). No mínimo, devemos reconhecer o valor da
4. Ver R. Hagg, Die Griiber der Argolis (Uppsala Univ. 1974), parte
li, cap. I. A. M. Snodgrass, Archaeology and the Rise of the Greek State
(Cambridge Inaugural Lecture 1977).
5. C. Roebuck, "Some Aspects of Urbanization in Corinth". Hespe-
ria, 41 (1972), pp. 96-127.
110 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
cavalaria em incursões militares e como um meio de propor-
cionar mobilidade a guerreiros pesadamente armados que ru-
mam para um campo de batalha.
A aristocracia também fez uso de sua riqueza para esta-
belecer vínculos de patronagem e dever com os plebeus. Deve-
mos admitir que não temos senão uma idéia vaga da condição
social da massa de lavradores, artesãos e marinheiros. Afora
classes como a dos hilotas espartanos (discutidos no capítulo
9), ainda não se sabe se, e em que medida, o grosso da mão-
de-obra nos campos e pastos e nas propriedades dos nobres era
livre ou semi-servil; ou se, de fato, tais conceitos ainda podem
ser aplicados em algum sentido importante. Havia escravos de
fato, mulheres cativas e uns poucos homens, mas o emprego
generalizado de servos, de seres humanos que eram proprieda-
des na estrita acepção da palavra, foi um fenômeno dos perío-
dos clássico e pós-clássico, e portanto não nos ocuparemos dele
neste livro. Isso não significa, entretanto, que as classes infe-
riores fossem "livres", no sentido que atribuímos a esse termo
ou num sentido que um ateniense do século V teria compreen-
dido. Embora certamente tivessem direitos pessoais e de pro-
priedade protegidos pelos costumes, e embora ocasionalmente
possam ter sido convocados para uma assembléia (como nos
poemas homéricos), é mais do que provável que estivessempre-
sos também em outros aspectos - como, por exemplo, na obri-
gação de contribuir com uma parte do que produziam ou de
prestar uma certa quantidade de serviços não pagos, possivel-
mente até mesmo numa restrição ao direito de se mudarem li-
vremente de seus lotes de terra ou ofícios. Talvez seja o mesmo
tipo de condição social que a tradição romana, também por
volta de sua era mais antiga, deixava implícito quando usava
o termo "clientes" (que não devemos confundir com o desgas-
tado sentido da palavra nos períodos posteriores).
Devemos levar em conta ainda fazendeiros aristocratas
"desclassificados" e uma classe média de fazendeiros relativa-
mente prósperos, mas não-aristocratas, além de um pequeno
número de mercadores, embarcadores e artesãos. Sua origem
e história podem ser obscuras, mas eles estão presentes nos tre-
chos da poesia lírica iniciada por volta de 650 a.e. e foram o
fator principal da mais importante inovação militar de toda a
história da Grécia, mais ou menos na mesma época. Depois
A SOCIEDADE E A POLÍTICA ARCAICAS 111
que a panóplia já fora suficientemente aprimorada, não se pas-
saram mais do que algumas décadas para que um comandante
- possivelmente o quase lendário Fídon de Argos - visse a
possibilidade de organizar soldados de infantaria fortemente
armados, chamados hoplitas, numa formação compacta de fi-
leiras cerradas. As vantagens desse tipo de organização sobre
a dos guerreiros aristocráticos, bem mais espalhada, eram tão
grandes que, no final do século VII, a falange tornara-se a for-
mação normal no mundo grego. Ademais, as vantagens foram
acentuadas pelo expediente simples de ampliar o recrutamen-
to, com profundas conseqüências sociais. As armas e o arnês
do hoplita, que geralmente cada soldado· era obrigado a ad-
quirir com seus próprios recursos, eram caros. A inovação, por-
tanto, não significou uma democratização do exército (entre
os gregos, isso só ocorreu, de uma certa maneira, em estados
como Atenas, que no período clássico empregaram suas arma-
das, tripuladas em grande parte pelas classes mais pobres, co-
mo a principal arma militar). A falange, porém, pela primeira
vez propiciou aos plebeus de mais recursos uma função militar
importante. É tentador estabelecer uma relação entre o desa-
parecimento das armas dos túmulos e esse desdobramento, visto
que as armas não mais significavam uma condição social ex-
clusiva. Num nível menos simbólico, um lugar na falange po-
dia finalmente levar o guerreiro a requerer uma participação
no poder político.
Assim, todas as classes estavam envolvidas num conflito
social, ou stasis (a palavra genérica grega), em diversas combi-
nações e alianças. No seio da própria aristocracia, a competi-
ção pela honra e pelo poder era normal; a criação de instituições
formais de administração política apenas modificou as condi-
ções da disputa. Basta mencionar a persistente tradição da ca-
sa Alcmeônida, em Atenas, que freqüentemente rompia fileiras
e assumia uma linha política independente, ou o monopólio de
poder conquistado pelos Baquíadas em Corinto. E havia ain-
da os mais ricos entre os de fora, que exigiam uma participa-
ção nos privilégios, exigência que obviamente tornou-se mais
insistente e eficaz à medida que foram adquirindo peso militar
na falange hoplita. Por fim, havia os pobres, a massa dos tra-
balhadores da lavoura, cuja posição parece ter piorado com
o aumento geral da riqueza e da prosperidade. Uma popula-
112 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
ção em crescimento constituía por si só um perigo, se não uma
calamidade - o solo de grande parte da Grécia e das ilhas egéias
simplesmentenão podia suportar uma população grande. O poe-
ta Hesíodo, do século VII, além de preconizar o casamento tar-
dio (aos trinta anos), acrescenta o seguinte (Os trabalhos e os
dias, 376-8, 695-7): "Deve haver apenas um filho, para susten-
tar a casa de seu pai, pois assim a riqueza do lar será maior;
mas, se deixar um segundo filho, você deverá morrer velho. " 6
Além disso, um padrão de vida mais elevado entre as classes su-
periores produzirá uma pressão maior sobre as classes inferio-
res, pela necessidadede uma mão-de-obra mais ampla e diversifi-
cada, ou por causa da expansão de suas propriedades inclusive
para terras mais pobres e marginais. Finalmente, conforme
escreveu Aristóteles em sua Constituição de Atenas (II 1-2),
"houve luta civil entre os nobres e o povo durante muito tempo"
porque "os pobres, juntamente com suas esposas e filhos, eram
escravizados aos ricos" e "não tinham direitos políticos".
Essa afirmação lapidar, fazendo um uso impreciso da pa-
lavra "escravizados", é demasiado simplista e esquemática. E
também não temos condições de dizer até que ponto a stasis
se tomara universal. Entretanto, a tradição de reivindicações
generalizadas por redistribuição das terras e cancelamento das
dívidas não foi ficção7 • Tampouco é falsa a ênfase sobre o
monopólio aristocrático na administração da justiça (e das fun-
ções sacerdotais). Hesíodo é suficientemente explícito a respei-
to dos "juízes devoradores de presentes" da época dele (Os
trabalhos e os dias, 263-4). Para as classes inferiores, ao con-
trário das mais altas, as reivindicações econômicas e os apelos
à justiça tinham prioridade sobre exigências de direitos políti-
cos. A busca da justiça explica uma outra faceta da tradição
na forma como a recebemos, a saber, o papel do legislador ilus-
trado. A lei nas mãos de uma aristocracia tradicional e fecha-
da, autoperpetuadora e discreta, num mundo que mal começara
a aprender a escrever, era uma arma poderosa e cada vez mais
intolerável. Clamava-se que só poderia haver justiça quando
a lei se tomasse do conhecimento público e sua administração
6. Traduzido por H. G. Evclyn-White in Loeb Classical Library (Cam-
bridge, Mass., Harvard University Press; Londres, Heinemann).
7. Ver o relato de Sólon no Capítulo 10.
A SOCIEDADE E A POLÍTICA ARCAICAS 113
fosse aberta e eqüitativa. Inevitavelmente, os homens incum-
bidos dessa tarefa em face da insistência das reivindicações -
tais como Sólon em Atenas, Carondas de Cátana e Zaleuco de
Locros no Ocidente - foram tanto reformadores quanto le-
gisladores. Por não disporem de precedentes, inventaram livre-
mente, numa espécie de originalidade compulsória que carac-
terizou cada aspecto da vida e da cultura da Grécia arcaica.
Não há exagero nessa afirmação. A estrutura política, cons-
tituída de magistrados, conselhos e, posteriormente, assembléias
populares, era uma invenção livre. Pode ser que alguns mitos
e práticas de culto tenham sido tomados do Oriente; de qual-
quer modo, houve originalidade tanto na combinação quanto,
de maneira plena, nas formulações literárias - desde cedo com
a Teogonia de Hesíodo -, assim como na própria idéia de que
um poeta, carecendo de uma vocação sacerdotal, tinha o di-
reito de sistematizar os mitos que versavam sobre os deuses.
Até mesmo a falange foi uma criação nova, não importa qual
tenha sido a origem estrangeira de partes da panóplia hoplita.
Dois pontos acerca desses legisladores arcaicos necessitam
de menção especial. Um é a autoconfiança deles. Todos con-
cordavam que a justiça provinha dos deuses, mas raramente
recorriam a uma missão ou orientação divinas. Apelos ao orá-
culo de Delfos talvez tenham ajudado a ratificar o trabalho deles
com uma espécie de benção divina, assim como ocasionalmen-
te se faziam consultas semelhantes para aprovar uma proposta
de colonização. Mas a seqüência era quase sempre a mesma:
primeiro formulavam-se as providências;depois consultava-se
Delfos. Essa ambivalência continuou sendo característica da co-
munidade grega durante séculos. A atividade religiosa era fre-
qüente e ubíqua; idades posteriores chegaram mesmo a inventar
oráculos délficos para compensar a insuficiência, no passado,
das possibilidades de consultar Apolo; o poder e a interferên-
cia divinos nas vidas dos homens e das comunidades eram acei-
tos como parte da natureza das coisas. Ainda assim, na mesma
época, a comunidade encontrou em si mesma a inspiração e
a justificativa para suas ações, em termos humanos.
O segundo ponto é a aceitação, por parte dos legislado-
res, da desigualdade humana. Nesse estágio, não se equipara-
va a justiça ao igualitarismo ou à democracia. Sólon escreveu:
"Dei às pessoas comuns os privilégios suficientes." Quanto aos
114 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADI:.' ARCAICA
que detinham o poder, ele continuou: "Providenciei para que
não sofram nenhuma injustiça. Protegi ambas as partes com
um escudo forte, não permitindo que nenhuma delas triunfas-
sem injustamente." (Citado por Aristóteles, Constituição de
Atenas, XII 1.) Até mesmo em Sólon é anacrônico ver uma
personalidade democrática. As pessoas comuns, o demos 8, en-
quanto força política autêntica, talvez tenham ficado pouco
abaixo da superfície pelo início do século VI; a soberania po-
pular ainda não estava em questão.
As palavras de Sólon servem para nos lembrar de que os
desdobramentos econômicos, jurídicos e políticos na Grécia ar-
caica ocorreram no decurso de um longo período de lutas, con-
fusas, desiguais, intermitentes, porém bastante violentas em
momentos críticos. A princípio, a oportunidade de enviar um
setor da população para novas fundações serviu como uma vál-
vula de segurança. Entretanto, decorrido certo tempo - e a
metade do século VII parece ter sido o ponto decisivo em mui-
tas áreas-, as soluções externas se esgotaram. A stasis explo-
diu abruptamente, indivíduos facciosos e ambiciosos apro-
veitaram a oportunidade em benefício próprio, e surgiu a
instituição especificamente grega da tirania. Não sabemos se
os tiranos arcaicos chegaram a denominar-se dessa forma, mas,
seja como for, o rótulo passou a ser aplicado genericamente
a uma classe de homens que conquistaram o poder autocrático
em suas respectivas cidades-Estados. Com o tempo, como não
poderia deixar de ser, o rótulo adquiriu também um significa-
do pejorativo. Assim, os gregos, remontando ao período da
tirania, coloriram sua história para adequá-la à sua nova con-
denação moral, embora nunca tenham ocultado por completo
o fato de que os tiranos, individualmente, diferiam bastante
entre si, e que alguns chegaram inclusive a governar bem e com
benevolência.
É impossívelcompreender a tirania grega sem primeiro ten-
tar afastar da mente a conotação de despotismo que passou a
ser associada à palavra desde que os gregos clássicos forjaram
essa relação estreita. Isso ficará bem claro, no capítulo 10,
quando nos dedicarmos aos Pisistrátidas de Atenas. Não que
8. Há uma ambigüidade no demos grego; seu significado, dependen-
do do contexto, pode ser "o povo como um todo" ou "as pessoas comuns".
A SOC/EDADt.· E A POlÍTICA ARCAICAS 115
os descendentes dos primeiros autocratas, no esforço de man-
terem o domínio dinástico, não tenham em geral se tornado
déspotas brutais, provocando o próprio banimento - em ter-
mos de gerações, todas as tiranias arcaicas duraram pouco tem-
po -, mas o surgimento das tiranias individuais e seu papel
arraigou-se na situação social como um todo, não simplesmente
na qualidade moral de certos indivíduos.
Tendo iniciado provavelmente depois de meados do sécu-
lo VII, a tirania difundiu-se para muitas comunidades da Gré-
cia continental e, mais tarde, para as ilhas egéias, a Ásia Menor
e as comunidades ocidentais. Nossa principal fonte de infor-
mação é Heródoto, que não pretende ter uma cronologia exa-
ta, e os esforços nesse sentido por parte de antiquários e
historiadores gregos não são confiáveis, de modo que na maioria
dos casos é mais seguro não precisar datas. O mais antigo e,
de certa maneira, o mais ambíguo dos tiranos foi Fídon de Ar-
gos, descrito por Aristóteles (Política 1310b2 6-8) como um rei
que governa como um tirano, sugerindo que Fídon era um au-
tocrata autêntico, ao contrário dos reis hereditários antes dele;
a introdução da falange talvez tenha sido sua maneira de con-
solidar o poder sobre os demais nobres. Uma geração depois,
aproximadamente, outros tiranos típicos surgiram em Corin-
to, Sídon e Mégara, para citar os mais conhecidos. Essa lista,
assim como os casos do século VI de Atenas, Naxos, Sarnas
ou Mileto, indica uma correlação forte (embora imperfeita) entre
a tirania, por um lado, e um desenvolvimento econômico e po-
lítico mais avançado, sobretudo o urbanismo, por outro. Em
conseqüência, as regiões mais atrasadas, tais como a Acarnâ-
nia, a Etólia ou a Tessália, raramente são levadas em conta.
O·fator comum era a inabilidade das aristocracias heredi-
tárias em conter ou resolver os conflitos crescentes, fossem em
suas própr:ias fileiras, fossem entre os plebeus maisricos, a po-
pulação urbana cada vez maior ou o campesinato oprimido e
empobrecido pelas dívidas. Um outro fator, este ocasional, eram
os conflitos com outros estados, como o de Argos contra Es-
parta ou Atenas contra Mégara. Não é por acaso que nas re-
giões "coloniais" a tirania surgiu cerca de cem anos depois,
passando a envolver-se freqüentemente com os problemas
criados por estados vizinhos poderosos, a Lídia ou a Pérsia
a leste, Cartago e oeste. Polícrates de Samos beneficiou-se
116 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
enormemente com a necessidade de organizar a resistência con-
tra a Pérsia numa escala sem precedentes e com sua habilidade
para conseguir isso. Outros, pelo contrário, basearam suas ti-
ranias menos espetaculares no apoio persa.
Portanto, a tirania tinha um lado militar, mas não se de-
via permitir que as escoltas e tropas, nativas ou mercenárias,
encobrissem sua grande popularidade. Em todas as cidades havia
elementos que queriam um tirano, na esperança de que, por
meio de ameaças e da força, ele alcançasse os objetivos sociais
e políticos que eram incapazes de alcançar de outra maneira.
Por volta de 630 a.e., um homem chamado Cílon tentou um
golpe fracassado em Atenas. Passada uma geração, houve uma
reivindicação popular para que Sólon se tornasse tirano, nos
moldes das tiranias vizinhas de Mégara e Corinto. Sólon
recusou-se - renúncia rara e notável - e tentou efetuar a re-
forma por outros meios. O fato significativo, nesse caso, é que
houve uma reivindicação séria. Em muitos lugares, a tirania
realizou, à custa da aristocracia tradicional, exatamente o que
lhe fora pedido. Minha intenção não é sugerir que os tiranos
viam a si mesmos como os mensageiros de um misterioso des-
tino histórico ou como os precursores da democracia ou de al-
go semelhante. Queriam poder e êxito e, se fossem inteligentes
e disciplinados, alcançavam o que pretendiam fazendo suas co-
munidades progredirem. Por uma ou duas gerações, puseram
fim à stasis paralisante; envolveram-se em alianças, mediante
casamentos dinásticos ou outros expedientes, com outros esta-
dos gregos, passando a constituir uma força pela paz onde es-
ta era possível (algumas vezes não era); estimularam a inde-
pendência do campesinato e talvez tenham promovido o co-
mércio e a manufatura (embora isso esteja bem pouco claro
nas evidências disponíveis); fortaleceram o senso de comuni-
dade por meio de obras públicas e festivais magníficos, centra-
dos em grande parte em cultos importantes. Acima de tudo,
quebraram o hábito do antiquado governo aristocrático. Opa-
radoxo é que, pairando acima da lei e da constituição, os tira-
nos terminaram por fortalecer a polis e suas instituições,
ajudando.a elevar o demos, o povo como um todo, a um nível
de autoconsciência política que acabou levando, em alguns es-
tados, ao governo pelo demos, a democracia.
O grande ponto fraco da tirania era, naturalmente, que
.-1 SOCIEDADE E A POLÍTICA ARCAICAS 117
suas operações e seu caráter dependiam fortemente das quali-
dades pessoais do tirano. Um outro era seu poder de sedução.
O tirano não era o único homem capaz e ambicioso de seu es-
tado, mas os demais não tinham como satisfazer suas preten-
sões de modo proporcional; além disso, a única forma que a
rivalidade política podia assumir era a conspiração e o assassi-
nato. Assim, via de regra, a tirania levava, estruturalmente, na
segunda ou, no máximo, na terceira geração, ao despotismo,
à guerra civil, à abdicação ou ao destronamento. O que veio
a seguir diferiu de comunidade para comunidade. Os séculos
de desenvolvimento desigual no mundo grego deixaram uma
herança permanente e bastante variada. Dois estados emergi-
ram como os mais importantes, ambos excepcionais a seu mo-
do: Esparta, que evitou completamente a tirania, e Atenas, que
se tornaria o paradigma da democracia grega e também a mais
importante potência imperial da Grécia.
9
Esparta
Característica notável de Esparta era a relação peculiar en-
tre polis e território - a polis de Esparta consistia, ao menos
idealmente, numa única classede "iguais" ou "pares" (homoio1)
que residiam no centro e dominavam uma população relativa-
mente vasta. Esparta localizava-se à margem direita do rio Eu-
rotas, numa planície acidentada de aproximadamente 1120
km2 , o coração da região da Lacônia. Depois de ter conquis-
tado a Messênia, seu território passou a totalizar 5100 km2 ,
mais de três vezes maior que a Ática. Devido à natureza do
terreno grego, essa cifra não é muito significativa. O crucial
é que a Messênia e, numa medida menor, a Lacônia, eram mais
férteis do que a maioria das regiões gregas, de modo que os
habitantes podiam sustentar-se sem importações, salvo talvez
quando havia alguma luta intensa e prolongada. A Lacônia pos-
suía também minas de ferro, extremamente raras na Grécia,
embora devamos admitir que não sabemos a partir de quando
começaram a ser exploradas. O maior ponto fraco era o aces-
so difícil ao mar, o que, estritamente falando, também se apli-
ca à própria Esparta - o porto utilizável mais próximo era
Giteion, 43 km ao sul, usado para navios mercantes e como
uma pequena base naval.
120 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
Os espartanos propriamente ditos não constituíam um gru-
po muito numeroso. O maior contingente militar que eles ar-
regimentaram de suas próprias fileiras foi na batalha contra
os persas em Platéia, em 479 a.e. - 5 mil hoplitas. A seu lado
e servindo em seu exército naquela ocasião encontravam-se 5
mil periecos, homens do restante da Lacônia (e talvez alguns
da Messênia), que viviam livremente em suas próprias peque-
nas comunidades (tais como Giteion) mas diferiam do padrão
normal grego por carecerem, de modo geral, de autonomia na
esfera militar e em assuntos estrangeiros. Quanto a esses as-
pectos, eram subordinados a Esparta, obrigados a aceitar a po-
lítica espartana e, quando convocados, combater no exército
espartano e sob a autoridade de Esparta. Embora fossem sub-
jugados e não pudessem ser considerados como aliados autên-
ticos, tal qual os coríntios, os periecos eram, ao mesmo tempo,
cidadãos de suas próprias comunidades, dóricos no dialeto que
falavam e, assim como os próprios espartanos, com direito a
ser chamados de lacedemônios, nome herdado do antepassa-
do Lacedemônio, filho de Zeus e Taígete (ninfa do monte Taí-
geto, nas proximidades). Portanto, distinguiam-se nitidamente
dos hilotas, que formavam o restante da população subjugada
e eram mais numerosos.
A origem do sistema hilota tem sido tema de especulações
infindáveis e pouco convincentes desde a Antigüidade. Havia
paralelos em outros lugares do mundo grego, em Creta, na Tes-
sália e nas regiões colonizadas a leste e a oeste, mas acerca de-
les se conhece ainda menos de modo que não ajudam a resolver
o mistério hilota. Ao longo da maior parte da Antigüidade,
quando se escravizava uma cidade ou região, o costume era ven-
der os habitantes e dispersá-los. Na Lacônia, porém, os espar-
tanos adotaram a perigosa alternativa de manter toda a
população submissa em sua própria cidade, nos limites de seu
território nativo, e posteriormente (talvez no século VIII) fize-
ram o mesmo quando conquistaram a Messênia.
Por serem privados de liberdade individual, os hilotas eram
escravos, mas diferiam em muitos aspectos dos verdadeiros es-
cravos, que eram servos, propriedade pessoal de seus senho-
res. Como vassalos do estado espartano, os hilotas eram
designados a indivíduos, sem liberdade de ir e vir ou de man-
dar na própria vida, mas detendo certos direitos, que geralmente
ESPARTA 121
eram respeitados. Sua obrigação básica era lavrar a terra e cuidar
dos pastos dos espartanos a quem serviam, além de ceder me-
tade do que produziam. Mantinham seus próprios relaciona-
mentos familiares e, na grande maioria, constituíam grupos
coesos ("comunidades" seria um termo exagerado). Portan-
to, eram autoperpetuadores - nunca ouvimos falar de Espar-
ta ter importado hilotas do estrangeiro, e esse fato por si só
diferencia-os claramente dos escravos de outros lugares.
Quaisquer que tenham sido as origens do sistema - co-
mo, por exemplo, traçou-se na Lacônia uma primeira distin-
ção entre duas condições de submissão tão diferentes, periecos
e hilotas, ou de que maneira os hilotas passaram a ser mono-
polizados pelos espartanos sem ser igualmente cedidos para os
periecos, que por sua vez tinham liberdade para obter e pos-
suir escravos caso o desejassem-, suas conseqüências nos tem-
pos históricos são bastante claras. Conforme veremos adiante,
os hilotas, proporcionalmente bem mais numerosos do que os
escravos de qualquer outro estado grego, inclusive Atenas, fo-
ram fundamentais para o estabelecimento do sistema esparta-
no e para as políticas adotadas por Esparta no estrangeiro.
Nossa ignorância a respeito da Esparta da Idade das Tre-
vas vai mais além - nada sabemos acerca de seu desenvolvi-
mento institucional primitivo, sobre o qual a arqueologia é ainda
menos útil que de costume. Assim, a única coisa prudente a
fazer é voltar imediatamente para o período arcaico, a partir
do início do século VII, abandonando todos os esforços para
extrair algo coerente das espalhafatosas ficções que permeiam
as tradições posteriores, inclusive aquelas que com o tempo fo-
ram relacionadas ao lendário legislador Licurgo. Não que as ·
evidênciassobre a Esparta do século VII sejam abundantes, mas
aqui temos ao menos uma âncora firme; algumas delas são con-
temporâneas e podem ser submetidas aos controles normais da
análise histórica. Podemos, por exemplo, ler os fragmentos do
poeta lírico Alcmano, os quais de imediato sugerem que na épo-
ca dele Esparta ainda seguia a tendência predominante do de-
senvolvimento cultural grego, o que mais tarde deixou de
ocorrer. Outros sinais apontam na mesma direção, tais como
os achados arqueológicos ou a tradição plausível sobre o papel
dominante de Esparta no desenvolvimento da música grega
(quer acreditemos ou não que foi um lídio chamado Terpan-
122 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
dro, o inventor da lira, que migrou para Esparta e fundou ali
a tradição musical). Podemos ler os fragmentos do poeta Tir-
teu, revelando que a Esparta do século VII também seguiu a
tendência predominante no que diz respeito à stasis crônica (o
que também deixou de acontecer mais tarde), envolvendo lu-
tas pela distribuição da terra, reivindicações políticas por par-
te dos plebeus (tendo no novo exército hoplita um fator
importante) e conflitos com outros estados do Peloponeso, so-
bretudo com Argos e Tégea, a principal cidade da Arcádia.
Há até mesmo uma história curiosa sobre uma colônia en-
viada por Esparta para Taras (Taranto moderna), no sul da
Itália, por volta de 700 a.e. Na verdade, existem duas versões,
cada uma com suas variações, que foram acirradamente dis-
cutidas na Antigüidade. Segundo uma delas (Estrabão VI 3,
2), os esparciatas que não haviam participado da conquista da
Messênia, que levou muitos anos, foram escravizadospelos guer-
reiros que voltaram, ao passo que as "crianças nascidas du-
rante a guerra foram chamadas partênias [da palavra parthenos,
que significa tanto "virgem" quanto "mulher solteira"] e pri-
vadas dos direitos civis. Os partênias, sendo numerosos, recu-
saram-se a aceitar sua sorte e conspiraram contra o demos".
Descoberta a trama, o oráculo de Delfos aconselhou que fos-
sem embarcados para Taras, onde se juntaram aos bárbaros
e cretenses que já estavam instalados no local. Na segunda ver-
são, também registrada por Estrabão (VI 3, 3), as mulheres es-
partanas, após dez anos de guerra, enviaram uma delegação
para o exército, protestando contra a conseqüência inevitável
do despovoamento. Os melhores rapazes foram mandados pa-
ra casa a fim de procriar, mas quando o exército todo final-
mente voltou, não "aceitou os partênias como os demais,
tratando-os como ilegítimos. Então, eles conspiraram com al-
guns dos hilotas e revoltaram-se"; a trama foi denunciada por
hilotas, e o resultado final foi também a fundação de Taras.
Com exceção de Taras - e a participação espartana em
sua povoação é certa, a despeito das duas versões conflitantes
-, Esparta nunca se .envolveu no movimento de colonização
arcaico. A razão encontra-se em seu território extenso, sobre-
tudo depois da conquista da Messênia, e esse fator, aliado ao
sistema de periecos e hilotas, constituiu uma lacuna fundamental
no "típico" padrão grego de desenvolvimento. No fim, Esparta
ESPARTA 123
não teve outra alternativa senão tomar um caminho distinto
do de qualquer outro estado. O momento crítico veio na cha-
mada Segunda Guerra Messênica, datada provavelmente do ter-
ceiro quartel do século VII, que, segundo a tradição, durou
dezesseteanos. A Messênia revoltou-se, e os espartanos viram-se
bastante pressionados a sufocar o levante, devido principalmente
- pelo que se pode inferir de Tirteu - ao descontentamento,
à desordem e à rebelião iminente em suas próprias fileiras.
Durante essa luta, Tirteu clamou por eunomia, "obediência
às leis", que, aos olhos de alguns gregos, se tomaria a maior
virtude espartana dos tempos históricos. (Vale notar que em
todas suas exortações ao patriotismo e à eunomia, Tirteu ja-
mais mencionou o legislador Licurgo.) E, tão logo os messê-
nios foram novamente subjugados, os espartanos puseram-se
a buscar uma solução comum para seus dois problemas mais
urgentes, a eliminação da stasis em seu próprio estado e a ma-
nutenção de um domínio seguro sobre os bilotas, que eram bem
mais numerosos que os homens livres. Não podemos reconsti-
tuir com precisão as etapas pelas quais finalmente se alcançou
a solução - um compromisso entre diversos grupos e exigên-
cias conflitantes que, nos séculos seguintes, sofrem ainda vá-
rias modificações. Não há unanimidade entre os estudiosos, por
exemplo, quanto à data ou ao significado exato de um docu-
mento importante, a chamada Grande Retra, preservada por
Plutarco ( Vida de Licurgo VI) numa linguagem subvertida den-
tro de um contexto confuso. Seja qual for a interpretação, es-
se texto breve, que distribui o poder de tomar decisões entre
os reis, o conselho de anciãos e a assembléia de todos os pares,
assinala a primeira vez, na história da Grécia, em que a assem-
bléia popular adquiriu poderes formais, embora limitados -
o que aconteceu provavelmente antes da Segunda Guerra Mes-
sênica. (A Retra não faz referência aos éforos, que já existiam
em Esparta e que mais tarde, em meados do século VI,
tornaram-se o poder executivo mais importante do governo es-
partano.) Assim, esse único texto basta para ilustrar a medida
de nossa ignorância e o grau de desenvolvimento das institui-
ções espartanas que se devem levar em conta.
Segundo Heródoto (1 65), a eunomia foi alcançada no rei-
nado dos monarcas Leonte e Agásicles, ou seja, no início do
século VI. "Antes disso", escreve ele, "eram os que tinham
124 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE F IDADI:.' ARCAICA
o pior governo de quase todos os gregos, tanto nas relações
internas quanto nas relações com estrangeiros, dos quais esta-
vam isolados." Se essa afirmação tem algum fundamento, sig-
nifica que as duas gerações posteriores à Segunda Guerra
Messênica viram a construção da estrutura da sociedade histó-
rica espartana, bastante complexa. Os homens esparciatas, os
pares, constituíam agora uma instituição militar em tempo in-
tegral. Suas vidas, em princípio, eram totalmente moldadas pelo
estado e totalmente dedicadas a ele. Mesmo o poder de decidir
se um bebê do sexo masculino deveria ou não sobreviver foi
tirado dos pais e delegado a funcionários públicos. Esse expe-
diente, como tantos outros, servia para minimizar, tanto sim-
bolicamente quanto na prática, os vínculos de parentesco,
reduzindo assim uma das maiores fontes de lealdades confli-
tantes. Aos sete anos um garoto era entregue ao estado para
receber sua educação, centrada no valor físico, nas habilida-
des militares e nas virtudes da obediência. Na infância e na ado-
lescência, passava por uma série de grupos íntimos classificados
por idade; já adulto, relacionava-se sobretudo com seu regimento
militar e seu rancho. Diversos rituais, em estágios determinados
no crescimento de um homem, fortaleciam o sistema.
A concentração na finalidade única da vida do esparciata
era reforçada por seu desencargo de quaisquer preocupações ou
atividades econômicas. Tal responsabilidade cabia aos hilotas
e periecos, que, de maneiras diferentes, produziam o alimento
e o arnês e se incumbiam do comércio necessário. Os hilotas, é
claro, trabalhavam sob coerção absoluta, mas os periecos des-
frutavam de uma posição monopolista, livres da competição dos
próprios espartanos e dos estrangeiros. Aos esparciatas era ve-
dado inclusiveo uso de moeda cunhada, e aos estrangeiros negava-
se qualquer acesso à economia, salvo pela mediação dos perie-
cos ou do estado - o que talvez ajude a explicar por que os pe-
riecos demonstravam tão pouca insatisfação, apesar de sua falta
de autonomia e sua contribuição militar obrigatória. E explica
também o fracasso de Esparta em se converter numa comunida-
de urbana. "Se Esparta fosse abandonada", escreveu Tucídi-
des (1 10, 2), "e só restassem os santuários e os alicerces das
edificações, as gerações futuras nunca acreditariam que seu po-
der condizia com sua reputação ... pois eles vivem em vilarejos,
de acordo com o antigo modelo grego."
ESPARTA 125
Também a partir da infância os esparciatas eram encoraja-
dos a competir entre si, não em termos intelectuais ou com o fim
de obter vantagens econômicas, mas sim em resistência e valor
físicos. Em certo sentido, os prêmios eram antes honoríficos do
que materiais, embora incluíssem posições de autoridade e lide-
rança. Já aos dezoito anos, podia-se ser recompensado com a
admissão no corpo de jovens de elite, o híppeís, cujas funções,
entre outras, era servir de escolta real e executar missões gover-
namentais secretas. Mais tarde, havia a oportunidade de obter
comandos no exército e, por fim, cargos no governo.
No topo da estrutura governamental estavam os dois reis
hereditários, uma instituição anômala que não é fácil de definir
(e a coexistência de duas casas reais desafia qualquer explicação).
Comandavam os exércitos no campo, mas, na cidade, não só
careciam do poder de autoridade real como ainda estavam su-
jeitos à supervisão dos éf oros. Em contrapartida, mantinham
algumas funções sacerdotais tradicionais; recebiam, por direi-
to, diversas gratificações; quando morriam, eram pranteados de
maneira tão exagerada, que Heródoto (VI 58) referiu-se aos ri-
tos funerários reais como "semelhantes aos dos bárbaros da
Ásia", por achá-los extremamente estranhos. Eram membros
ex officío da gerousía, um conselho de trinta anciãos - homens
acima dos sessenta anos, com cargos eletivos vitalícios. Ao que
parece, os reis não presidiam a gerousía, nem tinham quaisquer
prerrogativas, em suas deliberações, além das de qualquer ou-
tro membro. Tampouco presidiam sessões da assembléia, a qual,
embora aparentemente não pudesse iniciar ações ou mesmo re-
tificar proposições, detinha o voto final em questões políticas
básicas. Havia ainda os cinco éforos, eleitos dentre todos os ci-
dadãos e com direito a somente um ano de mandato, durante
o qual tinham amplos poderes em jurisdição criminal e adminis-
tração geral.
A própria existência das duas casas reais constitui um indí-
cio de que o ideal de uma comunidade de pares na realidade era
incompleto. Embora os reis fossem tolhidos pela constituição,
sua aura encorajava e ajudava os mais capazes e ambiciosos dentre
eles a estender sua autoridade de tal maneira que, às vezes, colo-
cava em perigo o equilíbrio de poder da sociedade. Heródoto
mostra-se quase obcecado por histórias a respeito da suscetibili-
dade de reis espartanos à corrupção. Quando Aristágoras, tira-
126 GRt'C!A PRIMITIVA: IDADF. DO BRONZE E IDADt.· ARCAICA
no de Mileto, buscando apoio espartano para a revolta jônia
contra a Pérsia, elevou sua oferta para Cleômenes I de dez para
cinqüenta talentos, o rei foi salvo da tentação apenas porque Gor-
go, sua filha de oito ou nove anos, exclamou: "Pai, o estrangei-
ro o arruinará se o senhor não se retirar." (V 51) Alguns é foros
também se deixavam inebriar pela grande autoridade conferida
a eles, usufruindo plenamente dela ao longo do ano de função
pública. Segundo Aristóteles (Polftica 1270b7-15), geralmente
acontecia "de esse cargo ser obtido por homens bastante pobres,
cuja falta de recursos levava-os a se venderem"; no entanto, seu
poder era tamanho que até mesmo os reis "viam-se compelidos
a cortejá-los".
Tudo isso pode ser exagero (talvez Aristóteles refira-se a Es-
parta em seu declínio no século IV), mas, seja como for, demons-
tra que a austeridade espartana nunca foi tão completa na
realidade quanto no papel. Além disso, os pares não eram iguais
em riqueza. Alguns dispunham de meios até mesmo para inscre-
ver equipes nas competições olímpicas de biga, a demonstração
suprema de riqueza entre os aristocratas gregos. Registros rema-
nescentes enumeram os nomes de nove vencedores espartanos
(com doze vitórias no total), entre 550 e 400 a.C., dos quais um
era rei, Demarato; um outro, Arcesilau, duas vezes vencedor,
foi imitado por seu filho vinte anos depois. Será que homens tão
ricos nunca usavam a própria riqueza para defender seus inte-
resses pessoais em eleições ou os interesses de seus filhos em to-
dos os outros aspectos? Isso seria difícil de imaginar, assim como
é difícil avaliar as implicações de uma sessão da assembléia es-
partana - que não era heterogênea como a de Atenas-, for-
mada por um corpo militar altamente disciplinado, para quem
a obediência fora a principal virtude durante toda a vida. Pode-
riam eles ter ouvido os debates com espírito aberto, ignorando
o posto dos oradores na hierarquia militar ou suas façanhas in-
dividuais no campo de batalha?
As respostas a essas perguntas só podem ser especulativas,
pois as fontes autorizadas antigas não se preocuparam com elas.
Nos registros históricos de que dispomos, ao menos no que tan-
ge ao século VI, os conflitos internos só aparecem nos relatos
sobre alguns poucos indivíduos que tiveram uma carreira mag-
nífica - portanto, quase que inteiramente no contexto de as-
suntos externos. Fazendo uma pausa, Heródoto (V 39-40) conta
ESPARTA 127
que foram os éforos, e depois os anciãos, que pressionaram o
rei Anaxandridas, que não tinha filhos, a desposar uma outra
mulher a fim de preservar sua linhagem real, ameaçando-o com
uma ação, não especificada, por parte de todos os espartanos,
caso ele persistisse em sua obstinada recusa. Mas conflitos em
torno de questões mais amplas, ou do controle dos negócios e
dos mecanismos de decisão política, só vieram à luz quando o
rei Cleômenes I, que governou entre 520 e 490 aproximadamen-
te, utilizou seus êxitos militares e manobras diplomáticas para
dirigir a política espartana para aventuras agressivas e perigosas
no estrangeiro.
Autores antigos reconheceram que a chave para a política
externa espartana foi a presença dos hilotas. Para mantê-los sob
controle, Esparta tinha não apenas que preservar a paz no Pelo-
poneso - pois um estado inimigo poderia instigá-los, se não pro-
positalmente, ao menos pelo fato de absorver grande parte das
energias e do efetivo militares espartanos-, como ainda de to-
mar precauções antes de enviar um exército para fora do Pelo-
poneso. A política espartana nem sempre foi defensiva e
não-expansionista, mas a derrota frente a Tégea e a incapacida-
de de conquistar Argos parecem finalmente ter dado início à no-
va política, em meados do século VI. Guerras e conquistas foram
substituídas por alianças defensivas e pactos de não-agressão,
embora naturalmente se tenha empregado a força, quando ne-
cessário, para impor alianças e também para preservá-las de de-
fecções. No final do século, virtualmente todo o Peloponeso fora
abrangido pela rede, menos a poderosa Argos e a Aquéia, de-
masiado remota e insignificante. Além disso, a fim de fortalecer
as alianças, Esparta apoiou facções amigas em estados aliados,
geralmente oligarquias, quando então adquiriu a imerecida fa-
ma de ser, por princípio, inimiga jurada de tiranos. Com efeito,
o comportamento espartano em relação a tiranos era oportunis-
ta, tendo por critério interesses próprios e não a moral e os prin-
cípios. Esparta nunca se mobilizou contra as tiranias de Corinto
ou Mégara, por exemplo, embora tenha interferido de modo de-
cisivo para provocar a expulsão de Hípias de Atenas em 5101•
A aventura ateniense é relatada em nossas fontes como parte
1. Para o lado ateniense desse episódio, ver as últimas páginas do ca-
pítulo seguinte.
128 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
da história de Cleômenes I, colocando em destaque o próprio
rei. Talvez ele tenha sido o maior defensor ou mesmo o inicia-
dor da política, mas não há dúvida de que marchou sobre Ate-
nas em caráter oficial e com sanção oficial. Então, ocorreram
complicações quando as duas facções de Atenas engajaram-se
numa guerra civil pela sucessão da tirania. Cleômenes retornou
para apoiar uma delas, liderada por Iságoras, contra a de Clís-
tenes. Derrotado, deixou Atenas e voltou mais uma vez com um
exército engrossado por tropas aliadas. Ao saberem por que ha-
viam sido recrutadas, essas tropas se rebelaram, sob a liderança
de Corinto, dizendo que a intervenção nos assuntos internos ate-
nienses era injusta e que, de qualquer maneira, isso não era pro-
blema deles. O outro rei espartano, Demarato, apoiou-os, e a
aventura toda acabou num fiasco para Cleômenes, com impor-
tantes conseqüências.
A partir de então, os aliados passaram a ser consultados,
em reuniões mais ou menos formais convocadas para essa fi-
nalidade, sempre que seu apoio militar era necessário, ou pelo
menos quando se considerava uma operação conjunta em gran-
de escala. Uma rede livre de alianças entre Esparta, por um
lado, e cada um de seus aliados isoladamente, pelo outro,
assemelhava-se agora a uma autêntica liga. Historiadores mo-
dernos chamam-na de Liga do Peloponeso, embora os gregos
tenham sempre se unido aos "espartanos e seus aliados" e em-
bora, em diversas épocas, seus membros tenham incluído esta-
dos fora do Peloponeso, tais como Mégara, Egina e Atenas.
Em certo sentido, a denominação moderna vai longe demais:
a "liga" nunca teve uma máquina administrativa, ou sequer
um erário, e sua coesão e eficácia variavam de década para dé-
cada e de questão para questão. Todavia, era real o bastante
para proporcionar a Esparta o efetivo adicional que ela neces-
sitava - bem como a paz interna - para tornar-se a maior
força militar da Grécia e a líder reconhecida dos gregos contra
os invasores persas.
10
Atenas
Em termos geográficos, a região da Ática, com cerca de
1600 km2 , é tipicamente grega, menos fértil do que as melho-
res, tais como a Messênia, mas com várias planícies boas e ex-
tensas. Duas características requerem menção especial. A costa
litorânea da Ática, no sul e no leste, era bastante considerável,
adequada para o abicadouro de embarcações, e no sudeste, em
Láureo, havia um grande suprimento de prata, aberto já na
Idade do Bronze e explorado na Idade Arcaica, a partir do sé-
culo IX. Nada havia no terreno, entretanto, que incentivasse
a precoce e excepcional unificação política da região. O argu-
mento étnico tampouco é uma explicação suficiente - afinal,
a vizinha Beócia continuou politicamente fragmentada.
Atenas era a maior cidade-Estado grega em território, de-
pois de Esparta, e, ao contrário desta, acabou se tornando um
estado unificado, sem vassalos internos, periecos ou hilotas. Da
mesma forma, todos os homens livres da Ática eram atenien-
ses, quer vivessemna cidade principal, quer em Maratona, Elêu-
sis ou qualquer outro lugar da zona rural. As acentuadas
desigualdades de classe não se baseavam em distinções regio-
nais ou étnicas, ocorrendo nos diversos demos ou distritos do
estado; os escravos provinham de fora. Sem dúvida, o tama-
nho do estado significava que "vilas" grandes como Marato-
130 GRÊC/A PRIMITIVA: IDADE DO BRON7.E E IDADE ARCAICA
na tinham vida própria, semi-independente, com seus próprios
funcionários, ágoras, templos e cultos. Esse regionalismo, tal
como alguns especialistas modernos referem-se a ele, não deve
ser exagerado; é necessário principalmente diferenciá-lo da si-
tuação da Beócia, mais típica, com suas doze cidades-Estados
independentes e freqüentemente envolvidas em disputas. Os pró-
prios atenienses tinham consciência de que constituíam uma ex-
ceção a esse respeito e, de modo característico, atribuíam a
unificação da Ática - ou, na definição deles, synoikismos -
a uma única figura heróica, o rei Teseu, que já conhecemos.
Que se trata de uma explicação mítica (provavelmente do sé-
culo VI) está implícito no relato vago e anacrônico de Tucídi-
des (II 15-16) sobre o synoikismos. Se tirarmos Teseu, uma
espécie de Héracles contemporâneo, não resta uma única evi-
dência de que a Ática chegou a ser outra coisa senão uma uni-
dade (embora devamos levar em conta possíveis disputas por
um distrito fronteiriço como Elêusis), com um desenvolvimen-
to político nas Idades do Bronze e das Trevas - monarquia
micênica, ruptura, chefia na Idade das Trevas e finalmente do-
mínio aristocrático - que acompanhou as formas já descritas
para outros estados gregos, afora a anormalidade de tamanho,
para a qual não dispomos de uma explicação melhor do que
a mítica 1•
Atenas também não participou do movimento de coloni-
zação. Embora atenienses possam ter migrado individualmen-
te, a cidade enquanto tal, ao contrário de Esparta, não tem
sequer uma Taras para seu crédito. Talvez seu grande territó-
rio tenha propiciado um escoadouro que outros estados tive-
ram de procurar no estrangeiro. Além do mais, seu recorde
contínuo de produção de cerâmica, a.partir da protogeométri-
ca mais antiga, indica um desenvolvimento industrial acima da
média, que talvez tenha funcionado como uma segunda válvu-
la de segurança contra o declínio rural e a superpopulação. Com
o tempo, porém, Atenas não pôde escapar à stasis universal
da Grécia arcaica, com as mesmas conseqüências, os mesmos
1. Essa redução do synoikismos de Teseu a um mito completo não
é o ponto de vista geralmente aceito por historiadores. Baseia-se nas inves-
tigações de J. Sarkady, publicadas em alemão na Actaclassica da Universi-
dade de Debrecen, vol. 2 (1966), pp. 9-27; vol. 3 (1967), pp. 23-34.
ATENAS 131
agrupamentos sociais conflitantes, a mesma necessidade de um
tirano. O monopólio econômico e político das famílias eupá-
tridas (nome dado à aristocracia ateniense, que significa "bem-
gerado") viu-se ameaçado, tanto do interior do círculo fecha-
do quanto pelas classes inferiores, na segunda metade do sécu-
lo VII, quando a crise surgiu aparentemente de um modo um
tanto súbito.
O primeiro episódio registrado foi uma tentativa fracas-
sada, por volta de 630, de estabelecer a tirania, por parte de
um nobre chamado Cílon. Relatos atenienses posteriores suge-
rem que Cílon teve apoio sobretudo externo, particularmente
de seu sogro Teágenes, tirano de Mégara; que os atenienses re-
sistiram en masse;e que a casa eupátrida dos Alcmeônidas atraiu
uma maldição para si mesma ao violar um salvo-conduto e mas-
sacrar os seguidores de Cílon. A distorção parece razoavelmente
óbvia. Tiranos de todas as partes desfrutavam de um conside-
rável apoio interno; mesmo os atenienses não tiveram outra al-
ternativa senão admitir, uma geração depois, a reivindicação
popular para que Sólon assumisse o papel de tirano. Por ou-
tro lado, não há nada de improvável no vínculo familiar entre
Cílon e Teágenes: esses casamentos eram essenciais para as re-
lações intercidades, e poucas famílias aristocráticas relutavam
em aceitar um tirano como genro ou sogro. Quanto ao massa-
cre após a rendição de Cílon, talvez tenha existido por alguns
anos uma vingança assassina, o que explicaria a figura obscu-
ra de Drácon. Supõe-se que ele tenha codificado a lei em 621
- "um código escrito com sangue, não com tinta", nas pala-
vras de uma hostil tradição posterior (Plutarco, Sólon XVII
2), uma tradição notavelmente destituída de dados concretos.
O que Drácon provavelmente fez foi escrever em detalhes a lei
concernente a assassinatos. Parte dessa lei ainda vigorava no
final do século V a.e., e o pouco que sabemos dela trata prin-
cipalmente de maneiras para pôr um firri à tradicional luta san-
grenta entre famílias. Isso pode ter sido o resultado da matança
pós-ciloniana. Que Drácon tenha codificado todas as leis, po-
rém, certamente não passa de ficção. Esse foi o trabalho de
Sólon na geração seguinte.
Com Sólon temos pela primeira vez um conjunto de do-
cumentação genuína, ainda que pequeno. Ele próprio foi um
escritor razoavelmente prolífico, abordando temas éticos e po-
132 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
líticos. Como todos os escritores dessa época em que o domí-
nio da escrita era mínimo, Sólon expressou-se não em prosa,
mas em poemas que se conservaram por séculos. Ainda dispo-
mos de algumas citações extensas. Ademais, o texto original
de seu código de leis, inscrito em tábulas de madeira, foi pre-
servado por muitos anos, embora a confusão nas fontes tenha
provocado divergências entre os estudiosos modernos, no que
diz respeito aos detalhes e até mesmo ao período de tempo em
que elas continuaram acessíveis.
Sólon era um eupátrida que em 594 foi nomeado arconte,
o mais alto cargo do estado, com poderes plenipotenciários para
acabar com a stasis por meio de uma reforma total das leis e
do sistema político. Tanto a escolha de Sólon quanto a forma
em que ela se deu são significativas. Em vez de tomar o poder,
Sólon foi indicado para assumi-lo, o que prova que na própria
aristocracia havia um número considerável de membros dispos-
tos a aceitar concessões maiores para a estrepitosa oposição,
constituída em grande parte de camponeses em regime de ser-
vidão e clientelismo (conforme se explicou no capítulo 8). A
única esperança para um compromisso bem-sucedido estava nas
mãos de um aristocrata que se declarara a favor dos pobres.
Sólon, assim nos informam seus primeiros poemas, atribuíra
o ônus da guerra civil à avidez e desumanidade dos ricos. E,
ao que parece, fez isso num pronunciamento público, na ágora.
Iníquos são os corações dos governantes do povo, que um dia pa-
decerão de muitos sofrimentos por seu enorme orgulho (hybris);
pois não sabem conter seus excessos... Enriquecem com ações
injustas, e roubam para si a torto e a direito, sem respeitar a
propriedade sagrada ou a pública ...
(citado por Demóstenes XIX 255)
Os pobres recompensaram-no pedindo-lhe que se tornas-
se tirano, Sólon recusou-se, mas aceitou o arcontado especial,
pondo-se por um complicado caminho entre as exigências ex-
tremas do campesinato e a linha dura da nobreza.
Seu primeiro ato, a chamada seisachtheia, ou "livrar-se
de fardos", referiu-se à questão fundamental da servidão do
camponês. Dívidas foram canceladas; os inúmeros atenienses
presos involuntariamente à condição de meeiros (hektemoro,)
ATENAS 133
ou convertidos em servos em virtude das dívidas foram liber-
tados; outros, vendidos no estrangeiro como escravos, foram
trazidos de volta. Promulgou-se então uma lei proibindo para
sempre a prática de hipotecar as pessoas de homens e mulhe-
res livres como seguro pelas dívidas. Sólon recusou-se, porém,
a tomar a mais revolucionária de todas as providências, o con-
fisco de grandes propriedades para distribuí-las entre os cam-
poneses mais pobres e os sem-terra. Mas Aristóteles (Cons-
tituição de Atenas IX 1) não se equivocou ao apontar a
seisachtheia como a principal de todas as medidas tomadas por
Sólon a favor das pessoas comuns. O camponês livre seria a
base da sociedade ateniense ao longo de toda a história de Ate-
nas como polis independente. A condição dos camponeses ainda
apresentaria sérios pontos fracos, mas a partir de então esta-
vam protegidos das formas tradicionais de exploração pessoal,
proteção que Sólon fortaleceu ainda mais com reformas na ad-
ministração da justiça e com sua codificação da lei, ato que
introduziu clareza, certeza e conhecimento público da lei na co-
munidade.
No aspecto constitucional o equilíbrio necessário era mais
complexo, pois nessa esfera havia conflitos no seio das pró-
prias classes superiores. A investida mais decisiva de Sólon foi
a criação de uma hierarquia formal de posição social, cujo único
critério era a riqueza. De acordo então com esse critério, dividiu-
se o corpo de cidadãos em quatro classes - é essencial ressal-
tar que a riqueza era avaliada não em termos de dinheiro, mas
pela produção agrícola. Os cargos mais altos, com duração de
um ano, restringiam-se à primeira classe, homens cujas terras
produziam quinhenta4lmedidas de secos ou líquidos2 • Um des-
ses cargos, o arcontado - ocupado então por Sólon -, cons-
tituía a porta de entrada para o Conselho do Areópago, o
organismo tradicional de pares vitalícios com um poder de su-
pervisão geral e indeterminado sobre o estado (semelhante ao
senado romano). As duas classes seguintes eram elegíveis para
2. A medida para secos era o medimnos (cerca de 54 litros), para lí-
quidos, o metretes (pouco menos de 39 litros). A atribuição arbitrária de
valores iguais para as duas medidas, assim como a indistinção entre uma
e outra colheitas, ou entre vinho e óleo, demonstram como a economia e!l-
tava longe de um sistema mercantil e monetário de avaliação.
134 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE AR(AICA
os cargos menores e, presumivelmente, para o novo conselho
dos 400 criado por Sólon. A classe restante dos thetes, dos que
não produziam duzentas medidas anuais, limitava-se à as-
sembléia.
O funcionamento exato da assembléia ou do conselho dos
400 nas esferas legislativa e política é tema de muitas especula-
ções. As fontes não nos informam nada além de uma caracte-
rística nova muito importante: o direito, concedido à assembléia,
de jurisdição de apelação sobre os magistrados em algumas
ações judiciais. Mas a concepção em que se basearam as refor-
mas e o impacto geral produzido por elas estão claros. Os ple-
beus mais ricos tornaram-se elegíveis para os cargos mais altos
e para o Areópago, rompendo assim com o monopólio dos eu-
pátridas, sem contudo retirar-lhes o poder e a influência - visto
que estes sem dúvida ainda constituíam a maior parte dos gran-
des proprietários de terra. As classes médias, inclusive os sol-
dados hoplitas que possuíam terra suficiente, recebiam pela
primeira vez uma oportunidade de participar do governo. Mes-
mo os pobres, tanto urbanos quanto rurais, foram reconheci-
dos como parte ativa do demos como um todo, apesar de
manterem-se numa posição rigorosamente restrita. Assim, as
grandes lacunas na estrutura da polis rudimentar, que a haviam
impedido de funcionar como uma comunidade viável, foram
reduzidas, embora ainda continuassem abertas.
Então, Sólon ausentou-se de Atenas por um longo perío-
do, temendo ser pressionado pelos extremistas descontentes a
levar avante suas mudanças ou a tornar-se tirano. Os distúr-
bios entre as facções prosseguiram. Em duas ocasiões foi im-
possível escolher um arconte. Após 580 a.e., já não tivemos
mais notícia desse tipo de problema, presumivelmente porque
grande parte das classes mais abastadas, tanto eupátridas quanto
plebéias, passaram a aceitar formalmente a nova máquina cons-
titucional. Entretanto, a máquina constitucional por si só não
podia proporcionar a paz interna. Impossível abolir a stasis com
um golpe de pena. O status pessoal do camponês fora assegu-
rado por Sólon, mas não sua posição econômica. E, aparente-
mente, a cidade tampouco podia fornecer um meio de vida para
os sem-terra e para aqueles que não tinham como subsistir na
zona rural. Exigências e contra-exigências eram brinquedo nas
mãos dos aristocratas mais ambiciosos, que podiam aliciar ser-
ATENAS 135
vidores e seguidores nas contínuas manobras por honra, poder
e riqueza. Finalmente, um homem ergueu-se acima de todos
eles e conseguiu o que Sólon tentara evitar. Pisístrato, um aris-
tocrata influente cuja árvore genealógica, segundo ele, remon-
tava a Nestor, de Homero, e que conquistara renome numa
guerra contra Mégara, fez sua primeira tentativa, de acordo
com a tradição, em 561. Foi expulso algum tempo depois; vol-
tou a tentar, expulso novamente, até que, em 545, finalmente
obteve êxito. Governou até morrer, em 527, e foi sucedido pelo
filho Hípias, cuja tirania terminou apenas em 510, mesmo assim
graças a um exército invasor espartano (capítulo 9).
Não há nenhuma evidência literária contemporânea a res-
peito dos Pisistrátidas. O primeiro relato que temos sobre eles
é de Heródoto, escrito em meados do século seguinte, quando
todo grego que fosse justo condenava automaticamente a tira-
nia e todos os tiranos, considerando-os um mal absoluto. É ex-
tremamente revelador, portanto, que Heródoto e outros autores
sérios posteriores tenham concordado que Pisístrato fora uma
exceção, um "bom tirano", na medida em que a frase não con-
tradissesse a si mesma. "Ele governou a cidade com modera-
ção, mais como cidadão do que como tirano." (Aristóteles,
Constituiçãode Atenas XVI 2) Concordavam também que um
dos segredos do êxito de Pisístrato e de seu filho consistiu em
que nenhum deles alterou a constituição de Sólon, providen-
ciando apenas para que o arconte eleito anualmente fosse sempre
um membro da família ou um partidário. Não devemos tomar
isso por ingenuidade, embora não haja dúvida de que a afir-
mação é correta enquanto fato puro e simples. A primeira ten-
tativa ou tentativas de Pisístrato para tomar o poder (não se
pode afirmar que a tradição esteja certa quanto aos dois fra-
cassos) aparentemente foram feitas com todo o apoio que ele
conseguiu angariar na Ática. Mas na terceira vez, munido de
fundos que obteve com as minas de prata do monte Pangeu,
na Trácia, empregou uma força mercenária, uma parte da qual
manteve como escolta em sua cidadela na Acrópole. Seus opo-
sitores irreconciliáveis foram mortos ou exilados. Assim pro-
tegido, Pisístrato tinha condições de permitir que a máquina
da assembléia, conselho, magistrados e tribunais, inclusive o
Conselho do Areópago, continuasse em funcionamento. Em
contrapartida, ninguém podia obrigá-lo a governar "constitu-
136 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
cionalmente". Que ele o tenha feito por opção dá-nos uma idéia
de sua inteligência política, além de fornecer uma explicação
para o lugar que ocupou na evolução do estado ateniense.
Não é fácil definir com precisão o relacionamento entre
os Pisistrátidas e as demais famílias aristocráticas de Atenas
durante os 35 anos em que estiveram no poder. Tradições pos-
teriores sobre a inimizade eterna de famílias como a Alcmeô-
nida podem ser relevadas como tentativas post f actum de
eliminar dos registros familiares suas relações amistosas com
a tirania passada. Os Alcmeônidas chegaram a fazer uma ten-
tativa malograda para destronar Hípias em 513, mas antes dis-
so um deles, Clístenes, ocupara o arcontado sob o governo de
Hípias, e antes ainda sua irmã casara-se com Pisístrato. As re-
lações entre os Pisistrátidas e a família Milcíada eram igual-
mente ambíguas e instáveis. Esta última era ligada por
casamento aos Cipsélidas, tiranos de Corinto, ao passo que a
mãe de Clístenes era filha do tirano de Sídon, conforme a prá-
tica que já notamos com respeito a Cílon no século VII. Outra
esposa de Pisístrato era uma aristocrata argiva que anterior-
mente fora casada com um tirano da Ambrácia, membro do
clã Cipsélida. Registram-se outras relações dos Pisistrátidas na
Eubéia, Trácia e Macedônia, na Tessália e com Ligdamis, ti-
rano de Naxos. A generalização de Aristóteles (Constituição
de Atenas XVI 9) de que Pisístrato ganhou o apoio da maioria
da nobreza e do povo pode ser estendida, no que diz respeito
à nobreza, a relações no estrangeiro.
Por mais que os aristocratas gregos da época possam ter
preferido que a oligarquia governasse com um homem de suas
fileiras, raramente fizeram dessa preferência uma questão de
princípios. Disputas entre um tirano e um indivíduo ou famí-
lia aristocráticos decorriam de considerações de honra ou sta-
tus pessoais. Mesmo o assassinato do irmão mais novo de
Hípias, Hiparco, em 514, que levou a tirania a tornar-se mais
despótica, foi motivado por ciúme num caso amoroso entre pe-
derastas. Subseqüentemente, os atenienses converteram os dois
assassinos, Harmódio e Aristogíton, em heróis nacionais, mas
isso reflete a opinião pública na época em que um julgamento
retrospectivo da tirania a considerara escandalosa.
Entretanto, a aristocracia ateniense sofreu uma derrota per-
manente sob o governo dos Pisistrátidas. Não se podiam anu-
ATENAS 137
lar os 35 anos de vigência da constituição de Sólon, mesmo com
o tirano como supervisor constante, ainda mais que aquele tam-
bém fora um período de paz e prosperidade cada vez maior.
Embora ainda detivessem os cargos mais importantes e estives-
sem engajadas em relações externas, as famílias dominantes tam-
bém eram subjugadas no processo, compelidas e tendo cada
vez mais que se acostumarem a uma estrutura constitucional
que restringira as atividades faccionárias de antes. Quando os
espartanos exilaram Hípias em 510, uma ala da aristocracia,
liderada por lságoras, procurou regressar aos bons velhos tem-
pos. Foram derrotados numa guerra civil de dois anos, após
a qual Clístenes reelaborou a constituição e assentou a base es-
trutural da democracia ateniense. Nessa tarefa ele certamente
recebeu grande ajuda de um espírito "nacional" para o qual
os tiranos haviam contribuído de maneira ativa e concreta.
Construíram um grande templo para Atená na Acrópole (des-
truído pelos persas em 480 e posteriormente substituído pelo
Partenon) e iniciaram um outro para Zeus Olímpico; incenti-
varam e embelezaram os principais cultos, introduzindo reci-
taçges de Homero no festival pan-atenaico que celebrava o
nascimento de Atená, e a competição anual de coros trágicos
na Grande Dionísia; patrocinaram as artes em geral e convida-
ram poetas e músicos do estrangeiro para a corte de Atenas.
Não se pode ignorar o impacto desses fatores culturais,
mesmo que seja impossível aquilatá-lo (e em nada o diminui
reconhecer que o interesse dos tiranos visava tanto, se não mais,
a própria glória quanto fomentar uma autoconsciência nacio-
nal). Parte desse impacto ocorreu na economia. Atenas era ainda
uma comunidade predominantemente agrícola, e o teste· fun-
damental da estabilidade econômica encontrava-se na zona ru-
ral. A única coisa que sabemos a respeito da atividade dos
Pisistrátidas no campo refere-se ao apoio que deram a agricul-
tores necessitados em forma de empréstimos sob condições aces-
síveis, mas todas as evidências do século seguinte demonstram
que a tirania foi um período em que a classe dos pequenos e
médios proprietários de fazendas fortaleceu-se de modo firme
e permanente. Isso teria sido mais difícil, quase impossível, se
o setor urbano da economia não tivesse crescido de maneira
considerável, proporcionando uma saída para camponeses sem
terra e marginais, entre outros.
138 GRl:.'CIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAIC.·1
A grande atenção dada a edificações e festivais públicos
constituiu um fator de crescimento na economia da cidade. Um
outro fator foi o notável incremento da fina cerâmica pintada
ateniense, que em meados do século VI obteve rapidamente o
monopólio total entre as exportações de cerâmica grega para
outras cidades da Grécia, para as colônias ocidentais e para os
etruscos. A cunhagem ateniense é uma outra evidência: embo-
ra não se saiba exatamente quando Atenas começou a cunhar
a prata, a mudança decisiva para as famosas "corujas", a única
moeda grega genuinamente internacional, ocorreu ou no rei-
nado de Pisístrato, ou no de seu filho. Finalmente, mais e mais
gregos de outras cidades começaram a migrar para Atenas, à
medida que se abriam novas perspectivas para o comércio e a
manufatura e à medida que a cidade se convertia num centro
cultural pan-helênico.
Os atenienses das gerações seguintes olharam para Sólon
como o homem que os colocara no caminho da democracia,
ao passo que Pisístrato e Hípias foram um interlúdio incômo-
do e não muito respeitável. Todavia, juízos morais e conside-
rações de intenção ou previsão à parte, o papel histórico dos
tiranos parece ter sido igualmente importante no percurso dos
atenienses.
11
A cultura da Grécia arcaica
A despeito de sua grande dispersão geográfica e fragmen-
tação política, os gregos conservavam uma consciência arrai-
gada de pertencer a uma única cultura - ''ser da mesma estirpe
e da mesma língua, com santuários comuns dos deuses e rituais,
com costumes semelhantes", segundo Heródoto (VIII 144). Es-
tavam certos - e esse fenômeno é notável, dados a ausência
de um poder político ou eclesiástico central, o caráter predo-
minantemente oral de sua cultura, mesmo após o período ar-
caico, e a inventividade com que uma ou outra comunidade
resolvia sucessivos problemas na política e na cultura. Talvez
nada seja tão revelador quanto a rapidez com que se difundia
uma nova idéia. O alfabeto fenício é um dos primeiros exem-
plos; outros são a máquina de governo conselho-magistrados-
assembléia, o templo "dórico" e a moeda cunhada. Aparente-
mente, não importava se uma "invenção" era grega desde
o início ou se fora emprestada do exterior. Se demonstrava
ser funcional dentro da sociedade grega em geral e compatível
com as condições locais, seu valor era rapidamente reconheci-
do na prática em todo o mundo grego.
Um elemento de ligação era o mito. Os gregos tinham um
grande sortimento de histórias míticas. Havia um mito por trás
de cada rito ou centro de culto, atrás de fundações de novas
140 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
cidades e de muitas coisas da natureza - o movimento do sol,
as estrelas, os rios e as nascentes, os terremotos e pragas. O
mito desempenhava algumas funções: explicava, ensinava e pres-
crevia. Proporcionou aos gregos arcaicos o sentido e o conhe-
cimento do seu passado, vale dizer, de sua história; sancionou
cultos, festivais, crenças, o poder de famílias nobres individuais
(com suas genealogias divinas), e assim por diante, incluindo
uma série de práticas e idéias. Mas o mito não controlava to-
das as coisas. Conforme verificamos ao discutir os legislado-
res no Capítulo 8, houve também uma forte autoconfiança
humana por trás da evolução das instituições e idéias, uma dis-
posição para mudar e inovar sem a intervenção direta do po-
der ou da manifestação divinos. Cada vez mais, os gregos
defrontavam-se com explicações e justificativas míticas e não-
míticas independentes, às vezes irreconciliáveis, coexistindo pa-
cificamente. Acreditavam que os mitos eram verdadeiros, em-
bora não houvesse um sacerdócio santificado, nem qualquer
outra autoridade preordenada com a prerrogativa de criar no-
vos mitos ou abonar mitos antigos. A partir do século VI a.e.,
ocasionalmente erguia-se uma voz indagadora ou cética; mas
eram poucas, pois a maioria das pessoas não estudava os mi-
tos, apenas os recontava ou cumpria os ritos apropriados -
e isso era suficiente.
O processo de criação de mitos continuou. Assim, à me-
dida que os gregos espalhavam-se a leste e oeste, Apolo, De-
méter, Héracles e os demais deuses e semideuses tinham de
acompanhá-los, e dessa forma os mitos se estenderam e se adap-
taram. Os gregos da Sicília contestaram a pretensão de que fo-
ra em Elêusis que Deméter, deusa da fertilidade da terra, dera
pela primeira vez ao homem a dádiva do trigo. Héracles, de-
pois de ter atravessado a nado os estreitos de Messina, fez uma
longa viagem pela Sicília e chegou até Érix, a noroeste, sancio-
nando assim as reivindicações gregas a essa parte da ilha. De-
pois foi a vez de Afrodite, cujo culto chegou até Cartago e Roma
a partir de Érix. Na Grécia antiga os mitos também tiveram
de sustentar as inconstantes relações e alianças políticas, as idéias
e coesão "étnica" (como no caso dos jônios), ou as pretensões
conflitantes de determinados santuários a um status mais ele-
vado que o dos outros. O mais longo dos "Hinos Homéricos"
versa sobre Apolo, em duas partes distintas e incoerentes, se
A CULTURA DA GRÉCIA ARCAICA 141
não francamente contraditórias, uma vinculando o deus a Del-
fos, a outra, a Delos, os dois centros mais importantes de Apolo.
Podemos dar inúmeros exemplos como esse, conforme demons-
tra qualquer compêndio sobre mitologia grega. O resultado foi
uma desordem considerável, para a qual contribuiu ainda um
outro aspecto da religião grega. Embora todos os gregos reco-
nhecessem e glorificassem todo o panteão, seria impossível que
um indivíduo ou uma comunidade praticasse todos os ritos para
todos os deuses. Cada cidade tinha sua divindade padroeira e
suas afinidades especiais com outros deuses e deusas em parti-
cular, que assim eram celebrados mais do que o próprio Zeus,
o líder incontestado do panteão, embora ninguém negasse sua
supremacia. Aqui mais uma vez houve a manifestação ocasio-
nal de ceticismo, e novamente o povo como um todo não viu
dificuldade alguma.
A religião grega do período arcaico foi essencialmente um
desdobramento dos fundamentos já evidentes nos poemas ho-
méricos. Por meio de diversas ações formalizadas, os homens
procuravalll. estabelecer as relações mais favoráveis possíveis
com os poderes sobrenaturais, ou seja, tentavam descobrir a
vontade dos deuses e aplacá-los e satisfazê-los. Para isso eram
necessários especialistas, como vaticinadores, adivinhos e viden-
tes, mas as demais atividades eram executadas por pessoas co-
muns, fosse privadamente, em suas casas ou por meio de
associações particulares, fosse publicamente, através de fun-
cionários do estado. Havia muitos funcionários chamados hie-
reis, termo que traduzimos por "sacerdotes", apesar de
geralmente serem leigos desempenhando uma função pública
qualquer, exatamente como todos os outros funcionários, ci-
vis e militares. Enquanto existiram, os reis cumpriram os ritos
do estado; depois foram substituídos por membros da aristo-
cracia (e, posteriormente, por magistrados escolhidos de for-
ma democrática). As normas, baixadas sem a intervenção de
uma casta santificada, amparavam-se apenas na tradição e no
mito. Segundo Heródoto (li 53), foram Homero e Hesíodo "os
primeiros a determinar para os gregos a genealogia dos deu-
ses, a conceder aos deuses seus títulos, a dividir entre eles suas
honras e funções e a definir suas imagens". Isso talvez não se-
ja literalmente exato, mas indica a verdade essencial de que,
se havia entre os gregos alguém com competência nesses assun-
142 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADt: DO BRONZE E IDADE ARCAICA
tos, em grande parte eram os poetas, que não podem ser equi-
parados, por nenhum critério aceitável, a profetas ou sacerdotes
- embora alegassem (e mesmo acreditassem) "receber inspi-
ração das musas". A inspiração poética não é revelação pro-
fética.
As atividades de honra e súplica aos deuses incluíam a co-
mensalidade (partilhar alimento e bebida com eles), os cantos,
danças e procissões, quando a pessoa deixava-se possuir (me-
nadismo e outras formas de comportamento "orgiástico"), e
jogos representando feitos de bravura (pois a excelência física
era uma dádiva dos deuses tanto quanto qualquer outra coi-
sa). A religião, em suma, não era isolada num compartimento
separado, misturando-se com todos os aspectos do comporta-
mento pessoal e social. O que se excluía era uma teologia ou
exercício espiritual, até mesmo das "religiões dos mistérios",
como o culto a Deméter em Elêusis. Essas religiões envolviam
sacerdócios hereditários e um tipo de comunhão pessoal, mas
mesmo assim a atividade limitava-se a palavras, ritos e espetá-
culos formalizados.
O mais universal de todos os ritos era o sacrifício, tanto
vegetal quanto animal - é difícil pensar em alguma ação sig-
nificativa que não fosse precedida de um sacrifício -, sendo
o altar, portanto, a peça básica, que podia ser simulada pela
lareira da casa. Encontraram-se altares em toda parte, asso-
ciados a edificações públicas, locais de assembléia e templos
seculares, nos portões das cidades, em lugares sagrados no cam-
po. Um "santuário" geralmente consistia apenas num altar em
torno do qual se demarcava um pedaço de "chão sagrado".
Então, no século VIII, com a elevação do nível material no fi-
nal da Idade das Trevas, surgiu o templo. Embora comum no
Oriente Próximo por 2 mil anos, o templo foi tão raro e insig-
nificante na Grécia da Idade do Bronze, que talvez seja mais
apropriado falarmos dele como uma inovação. A função do
templo não era servir como casa de culto - pelo menos não
normalmente - mas ser a casa do deus, onde se guardava a
estátua dele juntamente com o tesouro que acumulara pelas of e-
rendas de mortais agradecidos. Os templos mais antigos - que
só conhecemos a partir de alguns modelos em terracota - eram
feitos de madeira e alvenaria ou tijolos secos ao sol, estreitas
edificações de um só aposento, com um pórtico simples numa
A CULTURA DA GRÉCIA ARCAICA 143
das extremidades, emoldurado por duas colunas que sustentam
o telhado. Os primeiros templos em pedra foram construídos
por volta de 600 a.e., e com eles ocorreu o grande salto para
as amplas estruturas que sempre caracterizaram a antiga arqui-
tetura grega, a sala (ou salas) oblonga, coberta por um telha-
do inclinado e rodeada de fileiras de colunas, com os espaços
entre os capitéis e o telhado decorados com relevos esculpidos.
Os mais antigos remanescentes de templos dóricos foram en-
contrados em locais tão distantes quanto Argos, Olímpia, Del-
fos, Corcira (Corfu) e Sicília - nenhum deles posterior a 550
a.e.
Ao longo do período arcaico, alguns centros religiosos ad-
quiriram status pan-helênico por terem algo de extraordinário
a oferecer. Um grupo consistia em santuários onde se podiam
consultar oráculos particularmente eficientes. A capacidade de
predizer o futuro era uma habilidade bastante especializada e
valiosa. Adivinhos que "liam" o vôo das aves, interpretado-
res de soohos, videntes, geralmente eram pessoas privadas, ca-
pazes de convencer os clientes da veracidade e legitimidade de
seus poderes. Entretanto, nada nessa área podia rivalizar com
a voz direta de um deus, sobretudo Apolo, que tinha santuá-
rios especiais para essa finalidade em vários lugares da Héla-
de, sendo Delfos, incontestavelmente, o mais importante. Com
exceção desse aspecto, Delfos era apenas mais uma das peque-
nas comunidades gregas, cuja vida religiosa era administrada
normalmente. Não sabemos quando o santuário de Apolo
tornou-se oracular, nem tampouco conhecemos claramente os
procedimentos de consulta. Em dias específicos, consulentes que
haviam cumprido os sacrifícios e ritos de purificação exigidos
(e pago uma taxa considerável) tinham permissão para se diri-
girem ao deus, ou por conta própria ou como intermediários
de suas comunidades. Apolo respondia através de uma médium
chamada Pítia ou Pitonisa, cujas palavras eram transcritas em
versos geralmente ambíguos pelo chefe dos sacerdotes, um fun-
cionário leigo, cabendo ao consulente interpretá-las da melhor
maneira possível. Havia assim um elemento místico em Del-
fos, que o distinguia dos rituais habituais, embora não daque-
les de outros santuários-oráeulos, cada um deles com seus
próprios métodos de operação. O mais desconcertante é uma
mulher como porta-voz do deus, uma prática incomum entre
144 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
os oráculos, cuja singularidade realça-se mais ainda pelo fato
de que não se permitia a entrada de nenhuma outra mulher no
templo.
O triunfo de Delfos fica claro não apenas pelos muitos orá-
culos mencionados ou citados por autores gregos e pelo vasto
complexo de "casas do tesouro", templos e estatuária que surgiu
na área sagrada, mas também por que a atividade em Delfos
foi remontada a uma época em que o santuário certamente ti-
nha uma importância apenas local. Vimos no Capítulo 8 que
várias tradições acerca das consultas a Delfos na fundação das
primeiras colônias foram provavelmente invenções posteriores.
A elevação de Delfos à condição de oráculo pan-helênico mais
importante deu-se no século VII e não no VIII. Embora os gre-
gos ocasionalmente percorressem grandes distâncias para con-
sultar Apolo em Didima, perto de Mileto, e em Claros, na Ásia
Menor, ou Zeus em Dodona, no Epiro, e em Siwa, na Líbia
- para mencionar alguns dos principais oráculos-, nenhum
outro centro rivalizou com Delfos.
Delfos, assim como os templos de Neméia e lstmia, pró-
ximas a Corinto, também organizava jogos que ganharam sta-
tus pan-helênico. Nessa esfera, porém, nada podia equiparar-se
aos jogos quadrienais em honra a Zeus, em Olímpia. A data
tradicional da instituição desses jogos é 776 a.e., que pode mui-
to bem ser exata, dando-nos assim a primeira data determina-
da da história grega. Aqui também as evidências sugerem que,
a princípio, os jogos olímpicos atraíram sobretudo os gregos
do Peloponeso, e só mais tarde ganharam ímpeto e desperta-
ram o interesse de participantes e espectadores de toda a Héla-
de. Com o tempo, os programas dos jogos tornaram-se bastante
elaborados, incluindo competições de poesia, música e dança,
além de recitações e discursos públicos, embora a atração prin-
cipal (que em Olímpia era a única) fosse sempre o atlet~smo,
a corrida de bigas, o pugilismo e a luta corporal.
Foi nas atividades de culto, e também na poesia, arquite-
tura, escultura e atletismo associados a elas, que os gregos, po-
liticamente fragmentados e constantemente em guerras, che-
garam mais perto de uma unidade efetiva. Sua religião, entre-
tanto, não exerceu nenhuma grande influência na unidade
polüica ou mesmo a favor da paz na Hélade. Geralmente
consultava-se Apolo em Delfos antes de uma guerra, e não há
A CULTURA DA GRÉCIA ARCAICA 145
registro de que ele alguma vez tenha recomendado a paz como
boa em si mesma, embora às vezes desaconselhasse algum tipo
de investida arriscada. Os festivais eram períodos de trégua li-
mitada, mas sua contribuição a longo prazo para a paz, ou mes-
mo para a boa vontade entre as comunidades, não parece ter
sido notável.
As origens da prática de apresentar competições atléticas
em ocasiões religiosas importantes perderam-se na Idade das
Trevas. O minucioso relato dos jogos organizados por Aquiles
para o funeral de Pátroclo, no tomo XXIII da Ilíada, é nossa
mais antiga evidência literária e já revela algo da complicada
psicologiaenvolvida. A palavra grega que traduzimos por ''com-
petição" é agon, e seu leque de significados incluía não apenas
uma competição atlética ou poética, mas também um litígio ju-
dicial, uma batalha, uma crise ou uma ansiedade profunda (daí
o termo "agonia"). Assim, no presente contexto, é melhor não
traduzir agon. Agon era a expressão eminente, ritualizada, não-
militar de um si,tema de valores em que a honra constituía a
maior virtude, pelo qual se lutava mesmo à custa da vida, no
qual a perda da honra, a vergonha, era a tragédia mais intole-
rável que podia acontecer a um homem. Culturas baseadas na
honra e na vergonha existiram (e ainda existem) em outras so-
ciedades - por exemplo, entre os beduínos ou nas regiões bal-
cânica e mediterrânea-, e os mesmos valores e atitudes talvez
possam ser encontrados em todas as sociedades. O que sobres-
sai entre os gregos antigos é a intensidade com que buscavam
esses valores nos festivais religiosos. A maior formulação lite-
rária, e também a última a conservar tanto tradicionalismo ar-
caico, encontra-se nos poemas de Píndaro, morto aproxima-
damente em 438 a.e. Numa época em que Atenas vivia o auge
de sua cultura democrática, Píndaro ainda celebrava os vito-
riosos dos jogos, não apenas cantando seus louvores mas
também regozijando-se brutalmente com os derrotados e sua
desonra aniquiladora:
E já pela quarta vez desceste com seres abaixo de ti,
- Eram más tuas intenções para com eles -
Para os quais a festa de Pítio não deu
Um feliz regresso ao lar feito o teu.
Eles, quando encontram suas mães,
146 GRt:CJA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
Não os acolhem risadas cordiais, alegrias comoventes.
Nos becos, longe de seus inimigos,
Estão humilhados; a tragédia os transtornou.
(Pítio VIII 81-7) 1
Muitos dos valores de Píndaro eram os da aristocracia ar-
caica, com a qual a agon estava intimamente associada. De to-
das as vitórias, a maior honra era a que se obtinha na corrida
de bigas, esporte que, por ser o mais caro, os tiranos almeja-
vam de maneira especial. Píndaro e outros especialistas em odes
epinícias - nome dado aos poemas em louvor aos vitoriosos
- puseram sua arte à disposição de tiranos com a mesma na-
turalidade com que a ofereceram a outros aristocratas. Essa
foi uma das formas pelas quais demonstraram seu repúdio aos
novos valores sociais e políticos em surgimento no final da Idade
Arcaica. Uma outra foi sua imersão total no mito. Porém, se
compararmos essas odes ao relato contido na Ilíada sobre os
jogos funerários para Pátroclo, poderemos perceber um dado
novo e importante. Homero celebra heróis individuais, ao passo
que nas odes os vitoriosos dividem a honra que conquistaram
não apenas com seus antepassados e parentes, mas também com
suas comurudades. Em resumo, emergem na agon arcaica o diá-
logo e, em última análise, a tensão entre indivíduo e comuni-
dade, que desde então passou a fazer parte da sociedade
ocidental.
Dada a natureza de nossas evidências, nada sabemos a res-
peito da atitude das pessoas comuns em face dos valores ainda
expressos por Píndaro, embora não haja dúvida de que os jo-
gos atraíam como espectadores todos os setores da população.
A oposição ao ethos aristocrático, entretanto, era inevitável,
existindo, por um lado, entre os moralistas que começavam a
avançar para além da síndrome honra-vergonha e, por outro,
entre aqueles que estavam empenhados na longa luta para que-
brar o monopólio aristocrático da riqueza e do poder. Não bas-
tava dominar o tipo homérico de herói; cumpria também abater
o espírito da agon ou mesmo destruí-lo de uma vez, como fa-
tor negativo ou mesmo desagregador no seio da comunidade.
1. Traduzido por C. M. Bowra, Pindar (Oxford, Clarendon Press;
Nova York, Oxford University Press, 1964), p. 183.
..1 CVL TVRA DA GRÉCIA ARCAICA 147
Vemos isso claramente nos poemas de Sólon, embora ele res-
peitasse os direitos das classes dominantes. Vale acrescentar ain-
da que mesmo a guerra tornara-se um assunto da comunidade
e, com o surgimento da falange hoplita, já não podia mais ser
conduzida segundo o espírito da agon.
A tensão entre o indivíduo e o poder público está nitida-
mente expressa já em Os trabalhos e os dias, de Hesíodo. Em-
bora conserve a linguagem e a métrica da tradição épica, além
de fortes elementos míticos, Os trabalhos e os dias são um poe-
ma "privado", escrito na primeira pessoa. Constituem tam-
bém um dos lamentos mais sombrios jamais escritos, eivados
de horror pela "idade do ferro" de pobreza e injustiça em que
os homens passaram a viver, de amargor contra os "juízes de-
voradores de presentes", contra os perigos da preguiça e da
luxúria e contra a ameaça sempre presente da pobreza, atitude
ainda níais notável quando se percebe que o "eu" do poema
é ao mesmo tempo um bardo, ao menos semiprofissionalmen-
te, e um fazendeiro rico o suficiente para possuir escravos e
aspirar a adquirir ainda mais terras com o fruto de sua labuta.
Assim, dois elementos fundamentalmente novos foram in-
troduzidos na poesia grega, predominando até o fim do perío-
do arcaico, embora nem sempre em conjunto como em Os
trabalhos e os dias. Um foi o elemento pessoal, o poeta falan-
do em seu próprio nome. Embora possa ser equivocado inferir
automaticamente que assim ele estava sendo sempre autobio-
gráfico, e não apenas empregando a convenção aceita de que
se deve escrever poesia na primeira pessoa, os poemas revelam
"quais pontos de vista ele desejou adotar, que emoções prefe-
riu expressar e que temas preferiu desenvolver" 2 .
Os temas em geral incluíam a crítica social e política, ca-
sos como o do espartano Tirteu, Sólon, Alceu de Lesbos ou
Teógnis de Mégara - esse é o segundo elemento novo. A crí-
tica jamais se limitava a um único aspecto. Na coleção de ver-
sos elegíacos atribuídos a Teógnis, por exemplo, podemos
encontrar pontos de vista e implicações bem diferentes, acerca
da aristocracia, daqueles que vimos em Sólon:
2. K. J. Dover in Entretiens sur l'antiquité dassique, vol. 10, Archi/o-
que (Vandoeuvres-Geneve, Fondation Hardt, 1963), p. 212.
148 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
Em carneiros, asnos e cavalos, Cimo, procuramos animais
de raça ... mas um nobre não se importa em desposar a filha ruim
de um pai ruim se este oferece grande fortuna, assim como uma
mulher não rejeita compartilhar a cama de um homem ruim,
desde que rico, pois prefere antes ser rica do que boa ... A raça
é mestiçada pelos ricos.
(versos 183-91)
A escravidão nunca ergue a cabeça, mas está sempre cabis-
baixa e de pescoço inclinado. O filho de uma escrava tem a na-
tureza dos livres, tanto quanto a rosa ou o jacinto que crescem
numa albarrã.
(versos 535-8)
A diversidade de idéias e pontos de vista reflete, ao mes-
mo tempo, o novo "individualismo" e a complexidade cada
vez maior da situação social, bem como seus conflitos. Marca
também o surgimento de conceitos morais e políticos rudimen-
tares. Poetas e filósofos começaram, desse modo assistemáti-
co, a examinar e discutir a natureza da justiça, da riqueza, da
desigualdade humana, dos direitos e deveres morais. À sua pró-
pria maneira, olhavam abstratamente para os problemas que
seus compatriotas gregos enfrentavam no difícil mundo das lutas
pelo poder, da reforma legislativa, da stasis e da tirania e, por
fim, da democracia.
A nova poesia teve de romper não apenas com a perspec-
tiva heróica mas também com o estilo heróico ou épico (que
os poetas conheciam muito bem e que continuaram a repetir
livremente). Criaram-se novas métricas e os poemas tomaram-se
bem mais curtos 3• Geralmente os poemas também eram pes-
soais, no sentido estrito de que abandonaram o quadro social
mais amplo e concentraram-se no amor, nas delícias do vinho,
na amizade e no divertimento. Esses desdobramentos são visí-
veis já no primeiro poeta do novo estilo, do qual várias obras
se conservaram (embora a maior parte delas em fragmentos),
Arquíloco de Paros, cuja obra madura podemos datar com bas-
tante precisão em 650 ou 640 a.e. A diversidade de suas for-
mas métricas indica que ele possuía uma longa experiência em
3. Mesmo assim, Os trabalhos e os dias continham mais de oitocentos
versos, ao menos no texto que chegou até nós, e a Teogonia, metade disso.
A CULTURA DA GRÉCIA ARCAICA 149
canções populares, que coexistiam com a tradição épica. Em
todo o mundo esse tipo de poesia em geral é vinculado a uma
ocasião, seja uma festa orgíaca, uma dança na vila na época
da colheita ou um grande festival público, e normalmente tam-
bém está ligada a canções. (A própria palavra "lírico" indica
que os poemas eram cantados ou entoados com acompanha-
mento na lira.) A ocasião ajudava a definir não apenas o estilo
e o tema, mas também as convenções apropriadas a tipos es-
pecíficos de poesia. Nada disso está muito claro nos fragmen-
tos de Arquíloco, embora não possa haver dúvidas quanto aos
liristas que faziam o acompanhamento, cuja seriedade variava
desde as canções báquicas de Anacreonte até as grandes odes
corais de Píndaro e seus predecessores.
Os escritores de odes corais, em particular, viajavam por
toda a Grécia à procura de patronos, mas muitos dos outros
poetas também se locomoviam bastante. A poesia arcaica, por-
tanto, foi verdadeiramente pan-helênica, e vale notar que os
próprios poetas eram originários tanto do continente grego e
das ilhas egéias, como da Ásia Menor e dos centros mais re-
centes do Ocidente. Quando nos voltamos para um desdobra-
mento intelectual bem diferente, o surgimento da filosofia por
, volta de 600 a.e., parece-nos que a Velha Grécia não teve par-
ticipação alguma na primeira fase. O início foi na Jônia, par-
ticularmente em Mileto, e então, na última metade do século
VI, criou-se um segundo centro na Sicília e no sul da Itália,
aparentemente inspirado por refugiados políticos. Xenófanes
fugiu de Cólofon para a Sicília em meados do século, Pitágo-
ras, pouco depois, de Samos para Crotona, onde parece ter fun-
dado uma escola autêntica, que era ao mesmo tempo uma seita
mística secreta.
Não se pode evitar a palavra "parece" ao discutir esses
primeiros ''físicos'', assim chamados pelos gregos em virtude
da palavra physis (natureza), pois as tradições que nos chega-
ram a respeito deles são fragmentárias, confusas e em grande
parte pouco confiáveis. Entretanto, seja qual for a verdade
quanto aos detalhes, é incontestável a revolução de pensamen-
to que eles iniciaram, resumida na conhecida frase: do mito
ao logos, ou razão. Por longo tempo a revolução se deu mais
no modo de pensar do que nas respostas dadas, que eram es-
peculativas e, em geral, à luz do conhecimento posterior, ingê-
150 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
nuas demais. Com efeito, perguntas como "o que era no
princípio?" não eram novas, mas as respostas até então ha-
viam sido míticas, específicas e concretas, explicando os fenô-
menos humano e natural com enumerações de eventos e atos
sobrenaturais específicos, enigmáticos em si mesmos. "O mito
era uma narrativa, não a solução de um problema ... O proble-
ma achava-se resolvido sem ter sido colocado. " 4 Assim, a re-
volução jônia consistiu simplesmentena colocação de problemas
e na proposição de respostas gerais, racionais, "impessoais".
Como puderam as espécies humanas sobreviver no prin-
cípio, considerando-se o longo período em que a criança hu-
mana é indefesa? Eis um problema genuíno, colocado por
Anaximandro de Mileto no início do século VI. Segundo um
autor posterior, "Diz ele que no princípio o homem nasceu de
criaturas de um outro tipo; porque outras criaturas logo setor-
nam auto-suficientes, enquanto o homem necessita de cuida-
dos prolongados. Por essa razão, ele não teria sobrevivido se
esta fosse sua forma original." Um outro autor acrescenta de-
talhes: "Anaximandro de Mileto pensava que da água aqueci-
da e da terra havia surgido o peixe, ou criaturas muito
semelhantes ao peixe; dentro dessas criaturas crescia o homem,
na forma de embrião, até a puberdade; então, as criaturas se-
melhantes a peixes finalmente explodiam e os homens e as mu-
lheres que já eram capazes de alimentar-se saíam. " 5 Por mais
ingênua que seja, essa especulação está bem distante do relato
mítico de Hesíodo (Os trabalhos e os dias, 60-82) sobre a cria-
ção da mulher:
E ele [Zeus] ordenou ao célebre Hefesto que se apressasse
e misturasse terra e água e, nessa mistura, colocasse a voz e a
força da espécie humana, e moldasse uma meiga e bela forma
de donzela, de rosto semelhante ao das deusas imortais; e a Atená
que a ensinasse a bordar e a tecer os diversos tecidos; e a pre-
ciosa Afrodite que lhe vertesse encanto sobre a cabeça e os cruéis
- desejos e preocupações que enchem o limbo. E incumbiu Her-
4. J .-P. Vernant, Mythe et pensée chez les grecs (Paris, Maspero, 1965),
p. 291.
5. Traduzido in G. S. Kirk e J. E. Raven, The Presocratic Phi/oso-
phers. A Criticai History with a Selection of Texts (Cambridge e Nova York,
Cambridge University Press, 1962), p. 141.
A CULTURA DA GRÉCIA ARCAICA ISI
mes, o matador de Argos, de dotá-la de uma mentecínicao uma
natureza traiçoeira ... E chamou de Pandora a essamulher,
por-
que cada um dos habitantes do Olimpo deu um dom, umapra-
ga para os homens que comem o pão. 6
Essa é uma explicaçãomítica da existênciado mal, um pro-
blema que Hesíodo na verdade nunca colocou como tal. Are-
volução dos físicos jônios, ao admitirem a existência de
regularidades na natureza - e portanto a possibilidade de ex-
plicações generalizadas, sujeitas à descoberta racional e à ar-
gumentação e discussão racionais, nas quais eles se envolveram
com desembaraço -, foi assim um pré-requisitonecessáriotanto
para a filosofia quanto para a ciência (enquanto distintas do
conhecimento meramente empírico da metalurgia e da nave-
gação, por exemplo, das quais a essa altura os gregos já pos-
suíam um cabedal considerável). Aí reside a importância deles,
mais do que nas teorias específicas que lhes são atribuídas. E
por trás dessas teorias, como um estímulo imediato à nova abor-
dagem, encontrava-se a prática das discussões racionais, isen-
tas de interferências sobrenaturais e contra as suposições da
tradição aristocrática, até então incontestáveis, que crescia no
seio da polis emergente nas esferas social e política.
Os jônios mais antigos parecem ter concentrado grande
parte dos seus esforços no cosmos e na natureza do ser em ge-
ral. Xenófanes, entretanto, foi mais um moralista, até mesmo
um teólogo; alguns de seus famosos aforismos eram radicais
e cáusticos: "Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo
o que é vergonha e reprovação entre os homens, roubar e co-
meter adultério e enganarem-se uns aos outros." (Kirk e Ra-
ven, p. 168)E os pitagóricos voltaram sua atenção para a alma,
elaborando uma doutrina da transmigração e reencarnação. A
doutrina mística deles - embora hoje tudo isso seja irreme-
diavelmente obscuro - levou-os de alguma forma à complica-
da política das cidades gregas do sul da Itália, que se tornaram
centros de facção e revolução. Daí em diante a filosofia grega
manifestaria uma intensa preocupação com a vida concreta da
comunidade, envolvendo-se com a política e o comportamcn-
6. Traduzido por H. G. Evelyn-White in the Loeb Classical l .lhrnry
(Cambridge, Mass., Harvard University Press; Londres, Helncmunn).
152 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
to social e ético - o pensamento volta-se aqui especialmente
para Sócrates e Platão, para Aristóteles ou os estóicos poste-
riores.
Finalmente, também a história das artes visuais é um con-
traponto dos temas abordados neste capítulo. A despeito das
numerosas variações regionais e locais, as artes foram pan-
helênicas, conforme demonstram não apenas a facilidade com
que escultores e arquitetos viajavam - bem como suas idéias
-, mas também o impacto geral. Nesse aspecto, um grego do
século VII ou VI achava-se num ambiente relativamente fami-
liar, aonde quer que fosse. A arte, assim como a poesia, era
direta ou indiretamente funcional; seus princípios vinculavam-
se estreitamente a seus propósitos. Inseria-se no dia-a-dia, em
vez de ser reservada para momentos de lazer ou para o prazer
de colecionadores e estetas abastados. Habitava os templos e
outras edificações públicas, não os museus. Nas casas, encon-
travam-se belos vasos, espelhos e jóias, não objets d'art. Mes-
mo na mais privada das artes é raro encontrar entre os inúmeros
vasos, cântaros e xícaras um objeto excêntrico, não-funcional.
No século VI, oleiros, pintores e escultores iniciaram a prá-
tica de assinar algumas de suas obras, um passo revolucioná-
rio na história da arte, proclamando o reconhecimento do artista
como indivíduo (exatamente como o poeta lírico). Mas o artis-
ta não se tornou um individualista descomedido, buscando in-
cansavelmente a novidade. Em qualquer período ou lugar
específicos, trabalhava dentro dos princípios reconhecidos (e
seus clientes não exigiam outra coisa), opondo sua marca indi-
vidual naquilo que produzia dentro desse sistema. Naturalmente,
na história ininterrupta da fina cerâmica pintada, que remon-
ta ao início da Idade das Trevas, houve grandes mudanças, não
apenas na técnica mas também no estilo e no gosto. Talvez a
mais notável de todas tenha sido a conquista do mercado de
grande parte do mundo grego, do oeste principalmente, pela
louça ateniense, em meados do século VI. A existência de prin-
cípios e normas não levou à repetição mecânica, nem à esteri-
lidade. Olhando a história da arte da cerâmica como um todo,
vemos uma efetiva interação entre o artista enquanto indiví-
duo e o artista enquanto servidor ou porta-voz de sua sociedade.
Pelo que sabemos, as outras artes visuais têm uma histó-
ria bem mais curta. Praticamente toda a pintura desse período
A CULTURA DA GRÉCIA ARCAICA 153
se perdeu, com exceção da pintura em cerâmica, e só conhece-
mos detalhadamente a arquitetura e a escultura da 6poca em
que a pedra, o bronze e a terracota passaram a ser empre1ad01
no lugar da madeira perecível e do tijolo seco ao sol, ou seja,
a partir do século VII a.e. Assim, o que mais nos surpreende
é a intensidade com que essas artes foram dominadas por con-
textos e propósitos religiosos. A arquitetura e a escultura are"
gas eram artes públicas, na estrita acepção da palavra. A Or&:la
arcaica (e a clássica) foi um mundo sem palácios, nem man-
sões privadas. Além disso, dentre as edificações públicas, os
maiores esforços e gastos eram dispendidos em templos. Estes
geralmente eram decorados com métopas, frontões triangula-
res e frisos, todos esculpidos, e abrigavam as estátuas dos deu-
ses aos quais eram dedicados. Fora do templo, também, a
ligação entre a escultura e a religião era mais comum do que
pode parecer à primeira vista. As estátuas dos que venciam nos
grandes jogos entram nessa categoria - assim como as odes
corais, essas estátuas eram uma forma de ação de graças of e-
recida pela comunidade (ou pelo tirano) que os atletas repre-
sentavam. Também como as odes, as estátuas não diziam
realmente respeito aos atletas enquanto indivíduos; não eram
retratos, mas tipos ideais, empregados indiscriminadamentepara
homens e deuses. As conhecidas estátuas arcaicas em pedra ou
bronze de jovens nus masculinos (kouro1), iniciadas por volta
de 650 a.e. e das quais se conhecem hoje mais de duzentas,
são rotuladas ora de "Apolo" ora de" Jovem" por estudiosos
modernos. Mas a distinção entre deus e homem só é legítima
quando há evidências externas, se a estátua é funerária, por
exemplo, ou se a base conserva o texto inscrito. Na estátua em
si, não há qualquer indício.
Essa escultura, assim como o templo, simbolizavao triunfo
da comunidade, uma demonstração de sua força e autocons-
ciência cada vez maiores. Os governantes micênicos erigiram
grandes palácios e túmulos para si mesmos. Foi só na época
da tirania que ressurgiram na Grécia indivíduos com poder e
recursos suficientes para imitá-los - embora nem mesmo os
tiranos tivessem o costume de construir palácios ou túmulos
esplêndidos para sua glória pessoal. Pisístrato pode ter mora-
do por algum tempo na acrópole, mas seu "monumento" ai
foi o templo de Atená Pártenos, não um palácio. Esse templo,
154 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
assim como sua Casa-Fonte - uma estrutura complexa, pro-
vavelmente no extremo sudoeste da ágora, que era um dos ele-
mentos mais importantes do sistema de abastecimento de água
da cidade - revelam até onde a comunidade grega avançara
como força viva, de modo que até mesmo um tirano submetia-se
a ela. Os heróis de Homero sobreviveram nos relatos de suas
façanhas. Os novos "heróis" imortalizaram-se em edificações
públicas.
Em toda essa história cultural, muitas foram as fontes e
influências do Oriente Próximo sobre o mito, a matemática,
a construção de templos e escultura, a decoração em cerâmi-
ca. Se aqui eu nada disse a esse respeito, foi com a intenção
de obter o equilíbrio correto, e não de negar essas influências.
Os gregos absorveram imediatamente tudo o que tomaram em-
prestado e o converteram em algo original, que envolvia mais
do que a simples técnica (a metalurgia, por exemplo). Toma-
ram emprestado o alfabeto fenício, mas não houve nenhum Ho-
mero fenício. A idéia da estátua humana desprovida de base
talvez tenha vindo do Egito (embora essa visão comum tenha
sido contestada)7, mas foram os gregos, não os egípcios, que
a desenvolveram, do kouroi arcaico e do korai feminino à gran-
de estatuária clássica. No processo, inventaram não apenas o
nu como forma artística mas, num sentido muito importante,
"inventaram a própria arte". "Foram os gregos que nos ensi-
naram a perguntar: 'Como ele fica de pé?' ou 'Por que ele fica
de pé assim?"' 8 Não é obrigatório associar essas perguntas -
as quais, até onde sabemos, nenhum escultor grego antigo fez
a si mesmo - aos tipos de perguntas que os físicos também
estavam fazendo. A autoconfiança humana que permitiu e es-
timulou tais indagações, tanto na política como na arte e na
filosofia, encontra-se na raiz do mirac/e grec.
7. R. M. Cook, "Origins of Greek Sculpture", Journal o/ Hellenic
Studies, 87 (1967), pp. 24-32.
8. E. H. Gombrich, Art and 11/usion(ed. rev., Londres, Phaidon; Prin-
ceton University Press, 1962), pp. 114, 120. [Arte e ilusão, Martins Fontes,
1986.)
Bibliografia
Nota introdutória: Não repetimos aqui os livros e artigos menciona-
dos nas notas de rodapé. Não foram incluídos relatórios completos
de escavações; demos preferência aos sumários mais gerais, quando
possível aos mais recentes, que geralmente contêm boas bibliografias.
Como introdução geral ao estudo de sociedades antigas, ver Gor-
don Childe, Man Makes Himself(4. ed. Londres, Watts, 1965; Nova
York, New American Library, 1952), tornou-se um clássico.
Os volumes relevantes (1 e 11)da Cambridge Ancient History fo-
ram completamente reescritos e publicados em duas partes cada um
(3. ed., 1970-75).Alguns capítulos isolados são citados abaixo numa
referência abreviada: CAH seguida do volume e número do capítulo.
A Idade do Bronze
O melhor relato sinóptico hoje é J. M. Coles e A. F. Harding,
The Bronze Age in Europe (Londres, Methuen, 1979);da Grécia (ex-
cluindo Creta), Emily Vermeule, Greece in lhe Bronze Age (Univer-
sity of Chicago Press, 1964).A melhor obra ilustrada é F. Matz, Crefe
and Early Greece (Londres, Methuen, 1962), embora devamos fazer
menção especial às fotografias de Max Hirmer em S. Marinatos e M.
Hirmer, Crete and Mycenae (Londres, Thames & Hudson; Nova
York, Abrams, 1960).
156 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
Com respeito à questão complexa e fundamental dos recursos
de metal, ver J. D. Muhly, "Copper and Tin. The Distribution of
Mineral Resources and the Nature of the Metais Trade in The Bron-
ze Age", Transactions of the Connecticut Academy of Arts and Scien-
ces, 43 (1973), pp. 155-535, com suplemento no vol. 46 (1976), pp.
77-136. A. Snodgrass, Early Greek Armour and Weapons (Edinburgh
University Press; Chicago, Aldine Publishing Co., 1964), estende sua
investigação detalhada até a Idade das Trevas. B. Rutkowkski, Cult
Places in the Aegean World (Academia Polonesa de Ciências, 1972),
substitui todos os relatos anteriores e é notável pela seriedade. Para
um estudo sutil e complexo da arte, que, apesar do título, se estende
até a Grécia e a Creta da Idade do Bronze, ver H. A. Groenewegen-
Frankfort, Arrest and Movement. An Essay on Space and Time in
the Representational Art of the Ancient Near East (Londres, Faber;
Nova York, Humanities Press, 1951), condensado em forma simpli-
ficada in The Ancient World, escrito em colaboração com B. Ash-
mole, vol. I da série em brochura, The Library of Art History (Mentor
Books, 1967).
Sobre as análises arqueológica e lingüística com base nas quais
se tentou situar e explicar o "advento dos gregos", ver os seguintes
capítulos da CAH: l 26(a), 27; II 39(a); também John Chadwick, The
Decipherment of Linear B (Cambridge University Press, 1968). O.
Gumey, The Hittites (Penguin, reimpresso em 1976),é relevante quan-
to a esse e a outros temas da história grega.
Sobre as Cíclades, ver C. Renfrew, The Emergence of Civiliza-
tion: The Cyclades and the Aegean in the Third Millenium B. C. (Lon-
dres, Methuen, 1972), e "The Development and Chronology of the
Early Cycladic Figures", American Joumal of Archaeology, 73 (1969),
pp. 1-32; Papers in Cycladic Prehistory, ed. J. L. Davis e J. F. Cherry
(Instituto de Arqueologia, Universidade da Califórnia, Los Angeles,
Monografia XIV, 1979). Sobre Chipre, ver os capítulos da CAH de
H. W. Catling: p 9(c), 26(b); II 4(c), 22(b).
Sinclair Hood, The Minoans (Londres, Thames & Hudson; No-
va York, Praeger, 1974), e R. W. Hutchinson, Prehistoric Crete (Pen-
guin, 1962), trazem boas pesquisas gerais, J. D. S. Pendlebury, The
Archaeology o/Crete (Londres, Methuen, 1939; Nova Yor:k,brochura
da Norton, 1965) continua importante, apesar de antiquado. J. W.
Graham, The Palaces of Crete (Princeton University Press, 1962), é
a obra básica. Um breve relato da "redescoberta de Creta" encontra-se
em M. 1. Finley, Aspects of Antiquity (2. ed., Penguin, 1977), cap.
I. Sobre temas especiais: J. D. Evans, ''Neolithic Knossos: the Growth
of a Settlement", Proceedings of the Prehistoric Society, 37 (1971)
II, pp. 95-117; J. T. Killen, "The Wool lndustry ofCrete in the Late
Bronze Age", Annua/ of the British School at Athens, 59 (1964), pp.
BIBLIOGRAFIA 157
1-15;M. R. Popham, The Destruction of the Palace at Knossos (Lund,
1970).
J. T. Hooker, Mycenaean Greece (Londres e Boston, Routledge
e Kegan Paul, 1976), oferece a melhor introdução.
A Idade Arcaica
A. M. Snodgrass, The Dark Age of Greece (Edinburgh Univer-
sity Press, 1971), substitui todos os livros anteriores sobre o assunto.
A melhor "narrativa" continua sendo C. G. Starr, The Origins of
Greek Civilization, 1100-650 B. C. (Nova York, Knopf, 1961; Lon-
dres, Jonathan Cape, 1962).Para uma história detalhada após a Idade
das Trevas, ver A. R. Bum, The Lyric Age of Greece (Londres, Ar-
nold; Nova York, St. Martin's e Funk & Wagnalls, 1960). Um relato
vívido, embora desigual, do período que vai do final da Idade das
Trevas ao término das Guerras Pérsicas, com extensas citações da li-
teratura e das inscrições gregas, é feito por O. Murray, Early Greece
(Fontana Paperbacks, 1980).
O relato mais equilibrado sobre Homero e o "problema homé-
rico" é G. S. Kirk, The Songs of Homn (Cambridge University Press,
1962), também publicado numa versão reduzida em brochura como
Homer and the Epic (1965). Para uma tentativa de reconstruir aso-
ciedade da Idade das Trevas a partir dos poemas, ver M. 1. Finley,
The World of Odysseus (ed. rev., Nova York, Viking Press; Lon-
dres, Chatto & Windus, 1978), com um apêndice sobre Schliemann
e Tróia. Ver ainda Finley, Economy and Society in Ancient Greece,
ed. B. D. Shaw e R. P. Saller (Londres, Chatto & Windus; Nova York,
Viking Press, 1981), cap. 12-14, para um exame das diferenças radi-
cais nas instituições econômicas e sociais entre os mundos micênico
e "homérico". O relato introdutório básico da arqueologia de Tróia
é C. W. Blegen, Troy and the Trojans (Londres, Thames & Hudson;
Nova York, Praeger, 1963). A situação atual do debate sobre a his-
toricidade do relato tradicional é focalizado atentamente por M. 1.
Finley, "The Trojan War", com réplicas de J. L. Caskey, G. S. Kirk
e D. L. Page, Journa/ of Hellenic Studies, 84 (1964), pp. 1-20, ver
também Finley, Aspects of Antiquity, já mencionado.
Sobre "colonização", ver John Boardman, The Greeks Over-
seas (2. ed., Penguin, 1973); T. J. Dunbabin, The Western Greeks
(Oxford University Press, 1948), embora muitas vezes desatualizado
arqueologicamente; M. 1. Finley, Ancient Sicily (ed. rev., Londres,
Chatto & Windus, 1979), cap. 1-3; J. M. Cook, "Greek Settlement
in the Eastern Aegean and Asia Minor", CAHII 38; R. D. Barnett,
"Phrygia and the People of Anatolia in the lron Age", CAH II 30;
158 GRÉCIA PRIMITIVA: IDADE DO BRONZE E IDADE ARCAICA
M. M. Austin, Greece and Egypt in the Archaic Age (Proceedings
of the Cambridge Philological Society, Supl. n? 2, 1970).
A. Andrewes, The Greek Tyrants (Londres, Hutchinson; Nova
York, Harper & Row, brochura, 1956), continua sendo a introdução
básica em inglês. Sobre a Esparta e a Atenas arcaicas, ver P. Cart-
ledge, Sparta and Lakonia. A Regional History 1300-362B. C. (Lon-
dres e Boston, Routledge & Kegan Paul, 1979), partes 1-II; V. Eh-
renberg, From Solon to Socrates (2.ed., Londres, Methuen, 1973).
Sobre vários aspectos da cultura arcaica, os títulos seguintes
explicam-se por si mesmos: P. A. L. Greenhalgh, Early Greek War-
fare (Cambridge University Press, 1973); G. S. Kirk, The Nature of
Greek Myths (Penguin, 1974); H. W. Parke e D. E. Wormell, The
Delphic Oracle (2 vols., Oxford, Blackwell; Nova York, Humanities
Press, 1956);W. K. C. Guthrie, A History of Greek Philvsophy. vol.
I (Cambridge University Press, 1962); G. E. R. Lloyd, Early Greek
Science: Thales to Aristotle (Londres, Chatto & Windus; Nova York,
Norton, 1970),cap. 1-3, e Magic, Reason and Experience (Cambridge
University Press, 1979); A. W. H. Adkins, Merit and Responsabi-
lity. A Study in Greek Values (Oxford University Press, 1962), cap.
1-8; L. H. Jeffery, The Local Scripts of Archaic Greece (Oxford Uni-
versity Press, 1961); C. M. Bowra, Greek Lyric Poetry from Alcman
to Simonides (2. ed., Oxford University Press, 1961); M. Robertson,
A History of Greek Art (2 vols., Cambridge University Press, 1975),
cap. 1-3; R. M. Cook, Greek Painted Pottery (2. ed., Londres, Me-
thuen; Nova York, Barnes & Noble, 1972); J. N. Coldstream, Greek
Geometric Pottery (Londres, Methuen; Nova York, Bames & No-
ble, 1968); A. M. Snodgrass, "Poet and Painter in Eighth-Century
Greece", Proceedings of lhe Cambridge Philological Society, n. s.
25 (1979), pp. 118-30.Talvez metade dos ensaios em Bruno Snell, The
Diséovery of the Mind, traduzido por T. G. Rosenmeyer (Oxford,
Blackwell; Nova York, Harper & Row, 1953), ocupem-se das idéias
e da literatura arcaicas.
Uma nota sobre as fontes: além dos dois poemas homéricos, en-
contrados em várias edições e traduções, e a poesia de Hesíodo, ver-
tida esplendidamente para a prosa por H. G. Evelyn-White na edição
da Loeb Classica/Library, as fontes escritas contemporâneas limitam-
se a fragmentos dos poetas e filósofos. Os primeiros estão reunidos
em cinco volumes da Loeb, intitulados Lyra Graeca e Elegy and lam-
bus, editados por J. M. Edmonds, mas o leitor deve saber que o edi-
tor reconstruiu e verteu os fragmentos de maneira livre. Há uma
excelente seleção de fragmentos filosóficos, na forma original e tra-
duzidos, discutidos a fundo, in G. S. Kirk e J. E. Raven, The Preso-
cratic Philosophers (Cambridge University Press, 1962).
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