0 notas0% acharam este documento útil (0 voto) 369 visualizações88 páginasMigrantes Matei Visniec
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NESSA MERDA
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: ‘HiniTihl sh atige brasileira @ 2017 € Realizagées
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“Hinvizagtiog Editora
onengao de texto
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Nonla Almeida de SA
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‘v Desi Grafico | Mauricia Nisi Gongalves
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‘vervados totios os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodugao
Nl, pi onica acanic
‘Li edig20 por qualquer meio ou forma, seja ela eletrnica ou mecanica,
“Tocopia, gravagaa ou qualquer outre melo de reprodugéo, sem permisséo
“Xbressa do editor
Catalogacéio-na-Fonle
jal dos Eclitores de Livros, RJ
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Vanes, Matai, 1956-
Vag tlaantes ou tom gente damais nessa merda de barco ou o slo das ¢ teas 8
"i ING! Visniee ; tradugo Luciana Loprete, - 1. ed, ~ So Pauto € Realizagies, 2017.
Hop. 21 em. (Biblioteca teatral)
Haut Migraaaants
ISN 978-85. 6033~-306-0
, } lente - Historia e critica, 2, Teatro (Literatura), |, Loprete, Luciano. Il. Titulo,
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cari cp; 792.0981
CDU: 792(81)
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ii ouaieagon * Cllora, Livraria ¢ Distribuidora Lida.
1 EHH Pinte, 498. So Paulo SP + 04016-002
(Ponlal 48021 04010 970 Telefax: (5511) 5572 5363
SHioulooornalizacoes, com br - waaw.erealizacoes.com. br
HOWTO: Mpconcg pela Paym Gréfiea e Editora em julho de 2017. Os tipos sia da
‘lL Helvética Neue, O papel do micly é alta atvura 90 g, e a da capa
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Cercas e Muros
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Prefacio | 7
comp bie eo, =
Nota sobre o autor | 17
Roteiros | 19
: As Personagens | 25
‘ MIGRAAAANTES | 27
Cenas de Reserva | 141z
PHREFACIO
No calor da hora: (i)migrantes e o futuro adiado
A DISTOPIA GLOBAL
Migraaaantes é uma pega urgente - marcada pela
atualidade incontorndvel do tema. Na apresentagdo
do texto, Matéi Visniec esclarece o sentido da urgéncia
com a agudeza habitual de suas reflexdes:
Essas centenas de milhdes de pessoas lembram.
ao Ocidente que seu modelo econémice, politi-
co e cultural se globaliza mal. E um modelo que
funciona somente num perimetro restrito de ter-
ra habitavel, enquanto o resto do planeta assiste
ao “banquete dos privilegiados” na televisdo...
E seguramente uma injustiga pela qual os inspi-
radores desse modelo, os ocidentais, devem hoje
pagar a conta.!
Paradoxalmente, o lado sombrio da globalizagio veio
a luz do dia no fluxo incessante de corpos que, des-
territorializados, vagam de fronteira em fronteira em
‘Ver, neste livro, p. 20.hisca de condigécs minimas de sobrevivéncia. A res-
poste di quase totalidade dos Estados europeus tem
sido confinar esses corpos, indesejdveis ¢ impertinen-
tes pela sua mera presenga, em auténticos campos de
fargados de acampamentes “huma-
nitarios”. Isso para nao mencionar que, do outro lado
do Atlantico, o magnata tornado presidente promete
construir um gigantesco muro, a fim de manter (i),
concentragio, di
migrantes mexicanos (hispano-americanos, em geral)
longe dos Estados Unidos. Na Europa, mais parcimo-
nlosos, governantes improvisam cercas improvaveis,
tecidas com arames farpados de triste meméria.
A ironia do procedimento é téo perversa que deve ser
assinalada.
Nao importa 0 nome que se dé ao fendmeno histéri-
co — globalization ou mondialisation ~, tampouco a
cronologia de sua ocorréneia — se principiou com as
Grandes Navegagées no final do século XV ou mais
propriamente com o neocolonialismo oitocentista. Em
todo caso, o elemento decisivo refere-se A circulacao,
em escala planetaria, de mercadorias, dados, tecno-
logias de informagao, unidades monetarias, moedas,
corpos e, claro, doengas.
(Nao se esquega: virus também viajam.)
lizada numa me-
tonimia fiducidria, o euro, tem como fundamento in-
A utopia da Unido Europeia, mater
contornavel a ideia do trnsito livre e permanente no
interior desse circuito simbdlico chamado civilizagdo
ocidental. Conter corpos com a brutalidade da indi-
ferenga vitimdria, que termina por reduzir seres hu-
manos 4 condig&o de matéria descartével, condena o
projeto a um melancolico desfecho.
colegio dramaturgia | 8 | matéi visniec
A gravidade da situagdo contemporanea foi anunciada
pela reflexiio de Aimé Cesaire:
Uma civilizagdo que se mostra incapaz de resolver
os problemas que o seu funcionamento suscita é
uma civilizagdo decadente,
Uma civilizagdo que escolhe fechar os olhos aos
seus problemas mais cruciais é uma civilizagdo
enferma.
Uma civilizagao que trapaceia com seus principios
é uma civilizagdo moribunda.
[..]
A Europa é indefensével.*
O Discours sur le colonialisme foi langado em 1950
no auge da luta pela descolonizagaéo, No cenario dis-
tépico do século XXL, Matéi Visniec radicaliza ao
maximo a intuigdo do poeta-pensador da Mattinica:
hoje, o que n&o se pode mais defender, mais que um
continente determinado, ou uma poténcia isolada, é
© sistema-mundo,’ ele mesmo, tal como se configurou
ao longo do processo de padronizagio planetaria, cujo
auge coincide com seu colapso.
{No fundo, poderia ser diferente?)
Comédia demasiadamente humana, a globalizagao ex-
cluiu o Paraiso, a nado ser para os happy few (sempre
em, menor numero), tornando o Purgatério a nica
parada dessa longa jornada noite adentro. Daf a ambi-
guidade cruel do Coiote de (i)migrantes:
* Aimé Césaire, Discurso sobre o Colonialism. Lisboa, Livraria $4
da Costa Editora, 1978, p. 13 {grifo do autor).
‘Immanuel Wallerstein, World-Systems Analysis: An Introduction.
Durham, North Carolina, Duke University Press, 2004.
éi visniec
migraaaantes 19 | mO COLOTI
cés estarao pisando as terras da Europa. Vocés vio
Escutem, meus irmaos... Amanha vo-
ver como sao seus sonhos.
Canaa as aves: vel travessia de de-
s, apés a imprev
sertos liquidos, chegar aos portos europeus significa
permanecer ancorado no tempo vazio de um espaco
cerceado por todos os lados.
{Ilha seca que desmente John Donne.)
O programa de contengdo de movimentos nado é inédi-
to. Uma exposi¢ao recente no Musée du Quai Branly,
LAfrique des Routes, reconstruiu com primor a miri-
ade de rotas e de deslocamentos que atravessaram o
continente africano desde a emergéncia do homo sa-
piens; alids, espécie némade por exceléncia que migrou
para todo o planeta em ondas sucessivas.
Leiamos o catdlogo:
Durante milhdes de anos, ¢ até a colonizagdo, que
tinba como um de seus objetivos estabilizar esses
movimentos, os povos africanos circularam.
[1
Testemunham essa circulagio a dispersaio dos
idiomas ¢ 08 sincretismos culturais ¢ religiosos
revelados pela disseminagao dos objetos.>
* Ver, neste livro, p. 39.
Gaélle Beaujean & Catherine Coquery-Vidrovitch,
“Afrique de Routes, Pourquoi?” In: L’Afrigne des Routes.
Histoire de la Circulation des Hommes, des Richesses et des
Idées & travers le Continent Africain, Catherine Coquery-
-Vidrovitch (org.), Paris, Musée du Quai Branly/Actes Sud,
2017, p. 9 (grifos dos autores),
colegio dramaturgia | 10 | matéi visniec
O Ocidente |
se globaliza mal — Visniec razao.
Mais: O Ocidente [.
meiros passos da globalizagao.
se globaliza mal desde os pri-
O autor vai além dessa constatagdo necessaria, pro-
jetando o dilema presente no curso da histéria con-
temporanea:
A coloniza
Gao, a descolonizagio, a democracia,
a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra
Mundial, 0 comunismo, o nazismo, o liberalismo,
© ultraliberalismo, a financeirizagdo da economia,
a globalizagio, a revolugao informatica, a espeta-
cular fio da
zacdo da informagao, a facebookiza
comunicagao, a googlelizacao do saber, a micro-
softizagao do ser humano...®
Reificagio soberana, que cinge a promessa de rede,
solidaria 4 nogao de roteiros, A paradoxal fixidez do
universo das redes sociais. O salto é arriscado, mas a
experiéncia de pensamento que propicia é poderosa.
Passo a passo.
MUNDO DE PONTA-CABEGA?
No malabarismo das cenas que estruturam esta pega,
que podem ter sua ordem alterada, dependendo da vi-
sao dos encenadores, ¢ ainda cenas suprimidas ou acres-
centadas (o autor imaginou seis cenas, por assim dizer,
“Ver
5 neste livro, p. 165.
migraaaantes | 11 1 matdi visulncde reserva), Visniec transforma 0 cinismo dos governos
curopeus numa forma literaria de grande impacto.
Isto é, neste texto, as promessas de uma globalizagdo
“feliz” sao sistematicamente apresentadas pelo avesso, c
isso por meio de situagées que contrastam a desumani-
dade do tratamento dispensado aos (i)migrantes com a
suavizagio artificiosa da linguagem que a eles se refere.
O titulo da pega, alias, alude & estratégia que evoca a
novilingua da distopia de George Orwell.
Acompanhemos um didlogo que bem poderia ocorrer
nos solenes salées politicos onde séo tomadas decisées
de vida e morte.
Literalmente.
© ASSESSOR: Que o senhor esta arriscando mui-
to pelo menos em trés ou quatro pontos.
© PRESIDENTE: Quais?
© ASSESSOR: Nao sei se o senhor reparou, mas
a midia munca usa o termo “imigrante”. Nem
“clandestino”.
O PRESIDENTE: Entao, eles usam que termo?
O ASSESSOR: Eles usam o termo “migrante”.”
Sublinhe-se a forga corrosiva desse didlogo socrati-
co pelo avesso, pois, em lugar de gerar a vercdade na
boca do outro, aqui se trata de converter a maiéutica
numa técnica de equivocos deliberados. O Assessor de
Visniec é personagem de carne e osso na tragédia nossa
de cada dia, encenada no palco da politica reduzida A
Ver, neste livro, p. 50.
cologsio dramaturgia | 12 | matéi visniec
maquiagem de marqueteiros, preocupados unicamente
com © resultado de eleigées.
O ASSESSOR: Pari
némica, é preciso esquec
‘a ser coerente Com sua visdo eco-
as palavras “imigrante
¢ “clandestino”, “Imigrante” é alguém que vem de
fora, atravessa uma fronteira e se instala num terri-
tério onde é preciso respeitar os costum
as regras
e as leis locais. Fm suma, ele deixa um territério
chamado “a casa dele” e se instala num outro lugar
onde ele nao esta na “casa dele”, certo?
O PRESIDENTE: Sim,
© ASSESSOR: Ja o “migrante” estd na casa dele
em qualquer lugar, no planeta inteiro. Num mun-
do globalizado, migra-se, desloca-se, todo mundo
tem o direito de ir aonde quiser ¢ quando quiser...
E assim, o migrante fica sem a obrigagao de res-
peitar o que quer que seja, porque ele se considera
um cidadao do mundo. E é isso que a globalizagio
pretende, Nés globalizamos a economia, libera-
mic
sa circulagao de ideias, capital, mercadorias e
servicos; por que, entdo, nao reconhecer também
o direito das pessoas de se deslocar livremente?*
Vale dizer, muda-se 0 vocabuldrio para que as relagdes
sociais permanegam como sempre foram. E exatamen-
tea ilha de Lampedusa tornou-se 0 simbolo melancéli-
co do fracasso da politica europeia para os refugiados.
Confrontados com esse dado conereto, o que fazer?
Ora, denominar migrantes os até ento imigrantes €
clandestinos! Assim, semanticamente, tornam-se sujei-
tos livres para ressignificar suas vidas por meio de um
"Ver, neste livro, p. 51.
migraaaantes 1 13 | matdi vistriinsito sem sinal fechado - ¢ todos correndo (as vezes
nadando) para pegar sev lugar no futuro. Porém, ao
incsmo tempo, fixemios os Mesmos migrantes em cam-
ados, pois a circelacdo intediata de tal nimero
de refugiados certamente provocaria engarrafamentos
pos ce
incontrolaveis. Nao é verdade que as cidades mais de-
senvolvidas adotaram o sistema de rodizio de auto-
méveis para “otimizar” (palavra-chave!) o trafico (de
carros, nao seja malicioso!) e diminuir a poluigio? Por
que nao adotar critério vizinho para os clandestinos,
isto é, migrantes?
Dizia que o salto é arriscado, mas a experiéncia de
pensamento que propicia é poderosa,
Enraizados a contragosto, como se fossem plantas que
falam,° surpreendentes sofistas com recursos linguisti-
cos limitados, os migranies tém acesso aos mais mo-
dernos meios de comunicagao: iPhones ¢ iPads 4 mio,
sabem que o paraiso é bem bacana — basta driblar a
teia de arame farpado.
Nessa ilha de maravilhas tecnoldgicas, que dizer do
sofisticado aparelho, de design delicado, cuja fungdo
é detectar a presenca de refugiados pelo controle dos
batimentos cardiacos?
‘Trés atraentes vendedoras apresentam a novidade,
num jogral cuja melodia deve ser encantadora:
‘Assim Aristteles buscou decretar o desterro dos sofistas do ter-
ritorio do pensamento: “|... um tel homme, en tant qu’il est tel, est
I
Decision du sens. Le livre Game de la Métaphysigue dAristote,
Wemblée pareil @ une plance”. Barbara Cassin & Michel Narey, ba
tilroduction, texte, traduction et commentaire. Paris, Librairie Phi-
losophique J. Vein, p. 125.
login deamaturgia 1 14 f ma
AS TRES JUNTAS: Quanto ao prego do nosso pro:
duto, podemos garantir que é perfeitamente acessivel;
¢ vocé pode pagar em duas ou trés vezes, sem juros.!”
Afinal, se a globalizagao é 0 modus operandi do mer-
cado sem freios, por que ndo comercializar produtos
que identificam os corpos que se movem sem fungio
mercadolégica?
Tudo se aclara: a circulagao nao é a finalidade da glo-
balizagao, mas apenas © meio mais eficiente de acumu-
lagdo, que permanecera imobilizada em poucas maos.
Nesse horizonte, sempre mais estreito, se desenvolve
um dos momentos mais intensos da peca. De novo,
trés jovens buscam seduzir possiveis compradores
para uma alternativa tanto pragmdtica quanto, diga-
mos, “estética” para a contengade dos migrantes:
ROTA 2: A Europa é isso?
Projegdo: cercas monstruosas na fronteira servo-
-htingara.
GAROTA 3: Sao esses os nossos valores estéticos?
GAROTA 1: E essa a imagem que estamos mos-
trando ao mundo?
As trés juntas: Que vergonha para nossos dirigen-
tes! E que vergonha para todos nést
GAROTA 2: Onde esta nossa criatividade?
GAROTA 1: Onde esta nosso gosto pela insoléncia?
GAROTA 3: Mas nao seja por isso!
GAROTA L: Nossa empresa Aco e Ternura...
GAROTA 2: ...oferece um produto novo e total-
mente revolucionirio.
© Ver, neste livro, p. 37.
imigraaaantes | 15 1 matél vismioeAS VRS JUNTAS: ...um arame farpado mais
humano,!!
Uma cerca viva, pois.
I, quem sabe?, num tempo nao muito distante, o siste-
ma chegaria 4 perfeico: uma cerca humana, milhares
de migrantes, lado a lado, impedindo que outros mi-
thares de migrantes atravessem fronteiras; pois, ao fim
¢ ao cabo, “o futuro deles j4 esté condenado”.'?
Mas nao o presente — talvez.
Ha ainda wm gesto que, estrada menos trilhada, pode
fazer toda a diferenga: ler este texto; encenar esta pega.
(Expor-se a experiéncia de pensamento Matéi Visniec.)
Joae Cezar de Castro Rocha
"Ven, ueste livro, p. 56.
" Von, neste livro, p. 101.
pologho damaturgia | 16 | matéi visniee
Exilado politico, expulso da Roménia durante o regime
comunista de Ceausescu, Matéi Visniec é jornalista da
Radio France Internationale (RFI) desde 1990. Autor pro-
lifico de teatro, ja esteve em cartaz emcerca de trinta paises,
dos quais Italia (Piccolo Teatro di Milano}, Gra-Bretanha
(Young Vic Theatre, de Londres), Polonia (Teatro Stary, da
Cracé6via), Turquia (Teatro Nacional de Istambul), Suécia
{Teatro Real de Estocolmo), Alemanha (Teatro Maxi-
mo Gérki, de Berlim), Israel (Teatro Karov, de Tel Aviv),
‘stados Unidos (Open First Company, de Hollywood),
Canada (Théatre Prospero, de Montreal), Japdo (Teatro
Kaze, de Téquio)... Tornou-se um dos autores mais ence-
nados no Festival de Avignon OFF desde 1992, com mais
de quarenta criagdes. Em Paris, suas pecas foram monta-
das no Teatro do Rond-Point, Studio do Champs-Elysées,
Théatre de PEst Parisien, Ciné 13 Théatre, Théatre In-
ternational de Langue Frangaise, Théatre du Guichet
Montparnasse, Théatre de POpprimé...
Nascido no norte da Roménia em 29 de janeiro de
1956 sob o regime comunista de Ceausescu, logo des-
cobre um espago de liberdade na literatura, Nutre-
-se de Kafka, Dostoiévski, Camus, Beckett, Ionesco,
Lautréamont.,, Aprecia os surrealistas, os dadaistas, as
narrativas fantdsticas, o teatro do absurdo e do grotes-
co, a poesia onirica e até mesmo o teatro realis
an
glo-saxfio; em suma, tudo menos o realismo socialista.Mais tarde, residente em Bucareste para estudar filoso-
fia, torna-se ativo na geragdo dos anos 1980, que nessa
década causou alvorogo na paisagem poética e literd-
ria da Roménia, Ele acredita na resisténcia cultural e
na capacidade da literatura de demolir o totalitarismo.
E que sobretudo o teatro ¢ a poesia podem denunciar a
manipulagio das pessoas pelas “grandes ideias”.
Antes de 1987, cle se afirma, na Roménia, com sua poe-
sia depurada, lticida, acida. A partir de 1977 ele deixa a
Roménia, chega a Franca e pede asilo politico. Redige, na
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, uma tese
sobre a resisténcia cultural nos paises do Leste Europeu,
na época comunista, ¢ comega a escrever também pecas
de teatro em francés. Entre 1988 e 198%, trabalha na
BBC, ¢ a partir de 1990 na Radio France Internationale.
Depois de um primeiro sucesso no festival Journées
des Auteurs, organizado pelo Théatre des Célestins
de Lyon, em 1991, com sua pega Les Chevaux a la
Fenétre [Os Cavalos na Janela|, Matéi Visnicc foi des-
coberto por varias companhias, e suas pecas foram
montadas em Paris, Lyon, Avignon, Marselha, Toulou-
se, La Rochelle, Grenoble, Nancy, Nice...
Atualmente, Matéi Visniec conta com numerogas monta-
gens na Pranga. Cerca de trinta pecas suas escritas em fran-
cés foram cditadas (Lansman, Actes Sud-Papiers, Oeil
du Prince, L'Harmattan, Espace d’an Instant, Crater).
Na Roménia, depois da queda de comunismo, Matéi
Visniec se tornou o dramaturgo vivo mais encenado,
O Teatro Nacional de Bucareste montou suas pegas
A Maquina Tchekbou e A Histéria do Comunismo
Contada aos Doentes Mentais. Tem também trés ro-
mances editados no pais.
colegao dramaturgia | 18 1 matéi visniec
Eles vém do Paquistao, Afeganistao, Somalia, Eritreia,
Siria, Iraque, Libia, Mali, Marrocos, Haiti e de muitos
outros lugares onde a vida j4 nao é compativel com a
ideia de futuro. Eles sio milhdes. Quantos milhdes?
Nao se sabe. Chamados de “migrantes”, tem uma s6
coisa em mente: a vontade de chegar 4 Europa.
“Refugiados: a Europa se desintegra”, “Refugiados: a
morte clinica da Europa”, Foi com manchetes como es-
sas que 0 jornal Le Monde, bem como toda a imprensa
europeia, analisou no fim do més de fevereiro de 2016
o fenémeno do fluxo migratério. Grande mudanga de
atitude se pensarmos que em setembro de 2015, depois
da morte por afogamento no Mar Egeu de um menino
sitio de origem curda de cinco anos chamado Aylan,
toda a imprensa saudava a generosidade com que a
Alemanha — principalmente Angela Merkel - abria os
bragos para acolher 1 milhao de refugiados...
Em apenas cinco meses a Europa entrou em panico.
, entende-
Os responsdveis politicos, e a opiniao ptiblica,
ram que no planeta ha cerca de 80 milhGes de pessoas
que vivem em regides em guerra e tém o direito, em
principio, de pedir protegao internacional e, logo, asilo
politico na Europa. As fronteiras comegaram a se fechar,
o simbolo do arame farpado ressurgiu das entranhas de
pesadelo da histéria. A Europa nao sabe 0 que acontececom cli, no sabe o que deve fazer, ¢ a tentagao é grande
de renegar seus valores (livre circulagao, direitos huma-
nos, sociedade aberta, ete.) a fim de deter os milhdes de
candidatos ao exilio que estéo a caminho.
lergunta: sera que o teatro pode se tornar um espaga
de debate sobre esses temas?
dim, éa minha resposta, e é por isso que abri este can-
teiro, isto ¢, a escrita de uma peca sobre os migrantes.
Como jornalista da Radio France Internationale, fico
simplesmente “mergulhado” em informagées € repor-
tagens que envolyem os migrantes, Eu préprio desco-
bri, depois de minhas viagens 4 Grécia, Itélia, Hungria
ou Gra-Bretanha, algumas “realidades”, Minha inten-
ao é usar esse “material” para tentar entender as mo-
tivagées profundas de uma grande mutagio humana,
cultural e geopolitica,
Hstou conyencido de que nao se trata tanto de um “fe-
némeno migratério de uma amplidio sem precedentes”,
mas de um tipo de “revolucao do compartilhamento”.
desse
movimento (motivado tambéin pelo instinto de sobre-
vivéncia). Essas centenas de milhées de pessoas lem-
Uma gigantesca revolta passiva se esconde atr:
bram ao Ocidente que seu modelo econdmico, politico
e cultural se globaliza mal. E um modelo que funciona
somente num perimetro restrito de terra habitavel, en-
quanto o resto do planeta assiste ao “banquete dos pri-
vilegiados” na televisao... E seguramente uma injustiga
pela qual os inspiradores desse modelo, os ocidentais,
devem hoje pagar a conta. A revolugao a qual se assiste
Cada “reportagem de acesso A felicidade no mundo”.
Mus 0 teatro néo adota nem a linguagem politica nem
«da sociologia ou a da pedagogia para avangar em seu
rologdn dramaturgia | 20 | matéi visniee
trabalho de compreensao, para estimular a reflexdo ev
eventualmente despertar consciéncias.
Em minha pega, composta por meio de médulos, pro-
iradas
ponho cenas curtas e situagdes dramaticas (ins
em fatos reais) nas quais tento sugerir o grande dilema
moral no qual se encontra a Europa. Mas, sobretudo,
tenho vontade de captar nessa pega o lado emocional
e humano que se desenvolve diante de nossos olhos,
digno do antigo teatro grego, em que o homem se con-
fronta com a for¢a implacavel do destino.
Exemplos de noticias que se tornam “material” para
minha pega:
Em Munique, a prefeitura decidiu explicar as re-
gras de convivéncia na piscina ptblica com dese-
nhos: “Nao se empurram as pessoas para dentro
da agua”; “O respeito é devido igualmente a todas
as mulheres, seja qual for sua vestimenta, maid,
duas-pecas ou biquini”.
Mas os “guias de boa conduta”, que deveriam aju-
dar os refugiados, deixam entender que 0 fosso, as
vezes, ¢ muito grande entre as duas culturas: “Sor
rir ndo é considerado tentativa de paquera”; “Uri-
nar em publico é infragéo”; Usar roupas curtas
como minissaia é normal”. “Nao é educado ob-
servar essas pessoas com insisténcia”, lé-se em um
deles, o Refugee Guide. (Le Figaro, 26/1/2016.)
Num artigo publicado no Libération (11/2/2016),
© escritor dinamarqués Carsten Jensen analisa com
amargor a sorte reservada aos refugiados que chegam
a seu pais. © artigo tem por titulo “Nos, dinamarque-
ses, somos realmente assim?”. Aqui esta um trecho:
migraaaantes | 21 | matéi visn“Neste pais tio cheio de prédios vazios e institui-
coves abandonadas, séo os acampamentos que os
esperam, Uma escolha deliberada das autoridades
que, com as tendas, enviam uma mensagem im-
portante aos refugiados esgotados. Vocés viajaram
pelo deserto e atravessaram o Mediterraneo, ar-
riscando-se a afundar com as embarcagées fazen-
do agua, mas vocés ndo chegaram a lugar algum:
andaram em circulo, ¢ acabaram no mesmo lugar
em que comegaram, nes mesmos acampamentos
de que fugiam, Essas tendas sao seu destino. Seu
futuro é a fuga. E
do condenados a emigrar per-
petuamente, de uma tenda a outra, Entenderam?”.
Em 23 de janeiro de 2016, cerca de 2 mil pe
OAs Se
manifestaram em Calais para expressar solidariedade
aos migrantes e exigir “condig
s de acolhida dignas”.
Nos cartazes lia-se: “Boas-vindas aos refugiados”;
“Calais, Lesbos, Lampedusa, nossas fronteir
Ip. «
Ss ma-
tam!”; “Abram as fronteiras, deixem que entrem”.
Os migrantes repetiam: “Na selva, na selva”.
Em janeiro de 2016, cerca de 4 mil migrantes
vindos majoritariamente da Africa oriental, do
Oriente Médio ¢ do Afeganistao viviam na “Selva
de Calais”, considerada a maior favela da Franga,
na esperanga de chegar 4 Inglaterra, tida por eles
como um eldorado. (Reportagem de Zoé Leroy
para a Agéncia France-Presse.)
De
aragées de Jacques Gounon, presidente do Euro-
tinel, no jornal Le Monde, difundidas pela Agéncia
Reurers (21/1/2016):
“Globalmente, fluxo daqueles que tentam passar
cessou, |...] Nos caminhées nao se encontram mais
velousiy drinsalirgia | 22 | matéi visniee
que dez a trinta por noite. Eles perceberam que seus
esforgos estao fadados ao fracasso. [...] Os que ser-
ram as grades sdo presos pelos guardas. Os que se
.] Al
guns motoristas avisam os guardas da sua presenga.
escondem nos caminhdes sao encontrados.
ao encontrados também por obra dos detectores de
batimentos cardiacos ou de CO,. Em todos os casos
eles sao levados para a Selva de Calais. [...] Erigimos
grades pelos quarenta quilémetros da periferia do
«| Isso repre-
tunel e inundamos alguns terrenos,
senta varias dezenas de milhdes de curos correspon-
dentes as obras, financiados pela Gra-Bretanha”.
A cruz de Lampedusa: um crucifixe de 3,6 metros de
altura e 2,75 metros de largura representa Jesus cruci-
ficado sobre remos ligacos por cordas, simbolo dos bar-
cos de migrantes. £ obra do artista cubano Alexis Leiva
Machado, que assina Kcho, feita com madeira de barcos
de migrantes cubanos, abengoada pelo papa em 2014
por ocasido de sua visita a Havana. Essa eruz simboliza
o destino trdgico dos ndufragos que deixaram a ilha de
Cuba para os Estados Unidos, O presidente cubano Rati
Castro a ofereceu ao papa, que por sua vez a ofereceu a
ilha de Lampedusa. Ela foi transportada até Roma no
inicio de janciro de 2016 para o Jubileu da Misericérdia.
Em fevereiro de 2016, as autoridades australianas pro-
curavam uma familia que pudesse acolher cinco 6rfaos
sitios depois do falecimento de seu pai, combatente do
grupo Estado Islamico, e de sua mae, nascida em Sydney.
“Para 0 governo australiano, trata-se de um di-
lema: se ele deve assisténcia aos filhos de seus
dadios no exterior, ele teme, ao mesmo tempo, 0
retorno de menores que ja tiveram muito conta-
to com a ideologia jihadista mais radical — sem
migraaaantes 1 23 | matdi visnlecfalar da dificuldade para ajudé-los em uma zona
de guerra. Khaled Sharrouf, o pai das criangas,
também australiano, havia postado no Twitter,
em 2014, uma foto na qual seu filho de sete anos,
usando capacete de beisebol, exibia a cabeca de
um soldado sirio decapitado em Raga, cidade da
Siria.” (11/2/2016, Agéncia France-Presse.)
“Inicio de novembro de 2015, sete pessoas, den-
tre as quais um jovem marinheiro-pescador fran-
cés, suspeitas de organizar perto de Dunquerque
travessias ilegais de migrantes para a Inglaterra a
bordo de uma balsa de borracha, foram coloca-
das sob vigilancia e presas. A bordo de um barco
que ostentaya a bandeira belga e com capacida-
de maxima de 20 pessoas aproximadamente, um
marinheiro-pescador francés que fazia vaivém pelo
Canal da Mancha cobrava até 12 mil euros por
pessoa, segundo a jurisdigio inter-regional especia-
lizada de Lille.” (6/2/2016, Agéncia France-Presse.)
Entre 2014 e 2015, a Suécia, que conta com mais de 20%
de residentes de origem estrangeira, recebeu 250 mil mi-
grantes, mais que qualquer outro pais da Unido Europeia
por habitante, Mas © assassinato de uma educadora de
22 anos, apunhalada por um jovem migrante de 15 anos
em janeiro de 2016, comoveu o pais. A andlise do histo-
riador Lars Tragardh para a Agéncia France-Presse:
“Obcecada pela imagem que se da da Suécia como
grande poténcia moral. no cenario internacional,
a esquerda esqueceu a narrativa nacional e, de
repente, deixa um espago aberto para os Demo-
cratas da Suécia, grupo de extrema direita com
representagao no Parlamento”,
Matéi Visniec
colegdo dramaturgia | 24 | matéf visniec
Papéis intercambidveis
Namero minimo de atores: duas mulheres ¢
trés homens.
OS COIOTES
OS MIGRANTES
ELIHU
A MULHER
0 HOMEM
AS APRESENTADORAS DO SALAO DE NOVAS TECNOLOGIAS
ANTI-IMIGRAGAO
O HOMEM DA MALETA
O PRESIDENTE
0 ASSESSOR DO POLITICAMENTE CORRETO
AS GAROTAS DO SALAO DAS CERCAS E MUROS
ALI
FEHED
0 AGENTE FUNERARIO
AVELHA
0 TRADUTOR
A CANTORA E DANGARINA COM VEU
Q HOMEM SORRIDENTE
AYOUB
A CAFETINA
AS PROSTITUTAS (AS GAROTAS)
+ 08 personagens de seis cenas de reserva (a ser composts)0 Coiote se dirige aas espectadores,
0 COIOTE: Mostrem os celulares... (Se 0 priblico en-
trar no jogo, mostrara os celulares, ou iPads, iPho-
nes.) Pronto... Vocés se lembraram de recarregar
os aparelhos
mente,
? Bom... Agora, tenham bem isso em
Fsses trequinhos ai sio suas verdadeiras
boias salva-vidas. Sao os seus anjos da guarda. Sio
suas bussolas ¢ chaves de entrada na Europa. Digi-
tem um novo numero no celular, Coloquem como
primeiro nimero da lista, antes de todos os outros
Antes do ntimero da sua mulher, da mae, do pai,
dos irm4os, primos, amigos, vizinhos... O ntimero
que eu vou dar pra vocés sera, amanha, 0 bem mais
precioso. Nem o numero de Deus, se ele tivesse ce-
lular, poderia ser util pra voe
mas este aqui, sim. Ent&o, digitem... zero... zero...
trés... nove... dois... sete...
nove... Mais um nove... ¢ outro nove... Agora re-
$s amanha de manha,
nove.,, zero... dois
pitam... (Ox os espectadores repetem, ou o diretor
prepara uma gravagado com a voz de uma centena
de pessoas que repetem em coro o nimero.) Entao,
esse numero é o qué?
UM MIGRANTE: E o nimero de emergéncia da guarda
costeira da Europa.
migraaaantes | 27 | matéi visnieeOCOIOTE: Ah! Vocé nao é tao tonto assim. E quase isso.
56 que a Europa nao tem ntimero de emergéncia, Esse
€ o numero de emergéncia da Iha de Lampedusa. Por-
que amanha de manba vocés estarao em Lampedusa.
FE eu you deixa-los a dois quilémetros da praia... En-
tendido? E vocés vao chamar a guarda costeira para
leva-los para terra firme... E vocés vio comegar uma
nova vida. Ficou claro?
TODOS OS MIGRANTES: Sim, chefe,
0 COIOTE: Entao, vocés tém que proteger esses celula-
res. Agora podem desligar para economizar a bateria.
Ponham os celulares no saco plastico que eu dei pra
vocés pra que fiquem secos. OK? Esta noite, tudo o
que vocés tém a fazer é ficar tranquilos ¢ proteger o
celular. Ele é mais precioso que as pupilas dos olhos. Se
esta noite o diabo aparecer e perguntar “o que vocé’vai
me dar pra eu te deixar viver, vocé vai me dar 0 qué?
Teu olho ou o celular?”, 0 que vocés vaio responder?
Hein, se o diabo vier tentat vocés, o que vao dizer?
ELIHU: Vamos dar um olho.
0 COIOTE: Isso... Voce é um rapaz inteligente... De onde
vocé vem?
ELIHU: Da Eritreia.
O COIOTE: E como se chama?
ELIHU: Elihu.
colegio dramaturgia | 28 1 matéi visnies
Aldeia perdida em algum lugar dos Balcas. Ouve-se 0
ruido de um caminhao que para. 0 Homem entra, tira 0
boné e a capa, lava as maos, senta-se 4 mesa. A Mulher
Ihe serve a comida.
Siléncio. 0 Homem mastiga em siléncio.
A MULHER: Tudo bem?
(Pausa,. O Homem se serve de aguardente.)
0 HOMEM: Tudo bem.
(Paztsa.)
A MULHER: Passaram algumas pessoas aqui em frente.
O HOMEM: Quando?
A MULHER: Ao meio-dia.
(Pausa, O Homem come. A Mutlber o serve novamente.)
0 HOMEM: Quantos eram?
A MULHER: Muntos.
migrazaantes | 28 | matéi vis0 HOMEM: Quantos?
A MULHER: Dezenas.
(Pausa.)
O HOMEM: Tinha mulheres também?
A MULHER: Tinha. Alguin
OHOMEM: Bom...
Pausa.
A MULHER: Tinha também alguns negros...
OHOMEM: O que vocé quer dizer?
A MULHER: Que tinha também alguns negros.
O HOMEM: A fricanos?
A MULHER: FE.
0 HOMEM: Bah...
(Pausa.}
A MULHER: Eu ainda no tinha visto nenhum negro.
Nunca. (Pausa.) Pelo menos n&o aqui, entre nds. Voce
ja tinha visto?
0 HOMEM: Nao. Nao muitos.
A MULHER: Nao, ou nado muitos?
O HOMEM: O que vocé quer dizer?
cologdo dramatergia | 30 | matéi visniec
A MULHER: Nada... (Pawsa.) Aonde vocé acha que eles
esto indo?
GO HOMEM: Pra fronteira.
A MULHER: Pra Sérvia?
0 HOMEM: F:.
sso é bom. (Pausa.) Queria saber... (Pausa.)
O HOMEM: O qué?
A MULHER; Queria saber por que Deus fez os negros,
(Pausa.)
0 HOMEM: Bah... Ele sabe o que faz.
A MULHER: Sim, mas... na sua opiniao?
O HOMEM: Na minha opiniao o qué?
A MULHER: Na sua opinido, mesmo assim, por que
Deus fez os negros?
0 HOMEM: Bah... porque... € normal. Existe o dia,
existe também a noite. O verdo, e também o inverno.
Na vida se rie se chora. FE pela diversidade.
A MULHER: Como voce é tonto, Igor!
0 HOMEM: Bah. Entao pergunta pra ele direto.
A MULHER: Pra quem?
migraaaantes | 31 | matéi visniec0 HOMEM: Pra Deus.
A MULHER; Pra mim, acho que ele quis dizer alguma
com isso.,, pra nds,
colegao dramaturgia | 32 | matéi visniec
Trés apresentadoras com traje sexy, no Salado das Novas
Tecnologias Anti-imigracdo,
APRESENTADORA 1: Senhoras e senhores, bom dia.
Sejam bem-vindos ao Salao das Novas Tecnologias
Anti-imigracao!
APRESENTADORA 2: Hoje vamos apresenta
detector de batimentos cardiacos.
a vocés 0
APRESENTADORA 3: © detector de batimentos cardiacos
€ sem duivida mil vezes mais eficaz que o detector de
temperatura humana. Porque as vezes o detector de
temperatura confunde a temperatura humana com a
temperatura animal, e até com a temperatura emitida
por alguns produtos de fermentagao.
APRESENTADORA 1: Ja © detector de batimentos cardfa-
cos € regulado apenas na frequéncia biolégica huma-
na e¢ indica sem falha a presenga de algum clandestino
num raio de dez metros.
APRESENTADORA 2: © detector de batimentos cardiacos
é ultraleve, facilmente manejavel, reca rregavel e dobra-
vel. Quanto ao desigi, vejam vocés mesmos... E muito
parecido com um taco de golfe e, logo que o seguramos,
migraaaantes | 33 4 matéi visniesvemos que é agradavel sensorialmente pela nobreza do
material: cerimica, ago inoxiddvel e mogno,
APRESENTADORA 3: No departamento das performan-
ces... Basta dar uma volta completa em seu caminhao
para vocé se assegurar em apenas trés minutos.de
que nao ha nenhum passageiro clandestino a bor-
do. Qualquer intruso no seu pordo, sétaéo, garagem,
quintal ou até no seu apartamento é desmascarado
em menos de doi
APRESENTADORA 2: Mas cuidado para nao direcionar 0
detector para si mesmo, porque entao sdo os seus pré-
prios batimentos cardiacos que vio aparecer no mos-
trador... Entao, nao sejam desajeitados nem tolos...
AS TRES JUNTAS: Ha, ha, ha...
APRESENTADORA 1: Nao chame a policia ou a guarda
costeira por ter direcionado mal o detector, que aca-
bou detectando a si mesmo...
AS TRES JUNTAS: Ha, ha, ha
APRESENTADORA 1: O detector de batimentos cardiacos
€ dotado de memoria extremamente potente e de uma
sensibilidade comparavel a dos sismégrafos.
APRESENTADORA 2: Se dentro do seu caminhao houver,
por exemplo, cinco migrantes, vocé verd no mostrador
cinco graficos, cada um representande a atividade elé-
trica de um coragdo.
APRESENTADORA 3: Se vocé tiver dez ou vinte clandesti-
nos no caminhao, o detector indica um tipo de avalan-
che sismica e o computador incorporado mostra com
colnghe dramaturgia 1 34 | matéi visniec
uma margem de erro minima os algarismos correspon-
dentes ao nimero de coracdes detectados.
APRESENTADORA 1: Vamos fazer uma experiéncia. (Ela
direciona o detector para o piiblico. Quve-se uma es-
bécie de concerto de batimentos cardéacos.) Pronto.
O contador indica que yocés sio0 82 pessoas acom-
panhando esta demonstracdo... Pedimos licenca para
contar todos vecés um por um...
AS TRES JUNTAS: Um, dois, trés... Bingo!
APRESENTADGRA 1: Vocés sio realmente 82 na sala.
Obrigada, obrigada de coragao por se interessarem
por nosso novo produto.
APRESENTADORA 2: Vocés podem utilizar o detector
também em modo de “escuta”, e para isso ele dispde
de fones de ouvido.
APRESENTADORA 3: Para mostrar a vocés até que ponto
vai o desempenho deste aparelho, vamos distribuir a
todos fones ligados a este tinico detector que ja testa-
mos em outras condigées.
(Primeira demonstracgado sonora.)
APRESENTADORA 1: Estas sao as batidas do corac&o de
uma familia afega, doze pessoas ao todo, descobertas
num caminhdo em Calais.
(Segunda demonstragdo sonora.)
APRESENTADORA 2:
um grupo de sessenta clandestinos provenientes do
Paquistio, do Sr
stas sdo as batidas do coracio de
-Lanka e da Somali
gue chegaram
migraaaantes 1 35 | matéi visnicea tronteira htingara no mesmo dia em que as autori-
dades de Budapeste decidiram instalar arame farpado
para impedir qualquer novo acesso ao seu territério...
Vocés percebem a profundidade da gravac4o?... Parece
até um coro de gritos agudos, feridos mesmo...
(Te:
ira demonstragdo sonora.)
APRESENTADORA 3: Este é 0 mais delicado. Vocés nunca
vio adivinhar o que é... Sao as batidas do coragdio de
uma crianga de quatro anos na hora em que o pai a faz
passar por um buraco feito na cerca de arame farpado,
na fronteira da Macedénia com a Sérvia... Observem a
preciso absoluta do sinal: poderfamos confundir com
uma bolinha de metal repercutindo nos ladrilhos...
(Quarta demonstragdo sonora.)
APRESENTADORA 1: F'stas sao as batidas do coragdo de
um malinés que ficou detido por scis meses em Saraje-
yo no momento em que soube que seria expulso, Es-
pantoso, nao? Parece um tambor de guerra.
(Quinta demonstragdo sonora.)
APRESENTADORA 2: Aqui parece um yerdadeiro tsu-
nami... So quase cem coragoes sirios e iraquianos,
O barco deles acaba de entrar em terra firme na ilha de
Lesbos... Parecem fogos de artificio, nao é?
(Sexta demonstracdo sonora.)
APRESENTADORA 3: Esta ¢ bem menos espetacular. Sao as
batidas do coragao de alguém da Eritreia afogando-se em
Calais, a dez. metros do cai:
anado até uma embarcacao. Nao foi possfvel fazer nada
depois de ter tentado chegar
sologéio dramaturgia | 36 1 matéi visniec
por ele, o mar estava muito agitado, mesmo assim foram
S6 de ou-
registrados seus tltimos batimentos cardiacos
vir da para perccber que ele nao sabia nadar...
AS TRES JUNTAS: Quanto ao preco do nosso produto,
podemos garantir que é perfeitamente acessivel; e voce
pode pagar em duas ou trés vezes, sem juros.
(Mtisica. Som de bateria ou de tam-tam.)
migraaaantes 1 37 | matéi visniec0 Coiote que se dirige ao ptblico.
0 COIOTE: Escutem, meus irmaos... Amanha vocés esta-
rao pisando as terras da Europa. Vocés vao ver como
sao seus sonhos... Mas enquanto isso, é preciso se
manter calmo... Somos cem pessoas neste barco.
tdo, esta noite, é preciso se comportar como se fés-
semos um s6 homem. Ninguém vai poder ficar de pé.
Entenderam? (Pausa.) Sim ou nao?
TODOS OS MIGRANTES: Sim...
(O Cotote pega uma melancia e a corta ao meio com
um s6 golpe de facdo.)
0 COIOTE: Porque se vocés entrarem em panico haverd
risco de virar o barco e afundar, Porque se vocés co-
megarem a se agitar inutilmente, corremos o risco de
balangar a qualquer momento, ¢ ai fodeu, Podemos ser
um bom jantar para os peixes. Entéo, pelo menos esta
noite, yocés nao vo se mexer... Nao vai demorar,,, Vai
ser s6 quinze horas, o mar esta calmo ea previsdo é de
tempo bom... Entéo, durante quinze horas, nao fagam
nada. Pedem rezar, mas sem que eu cuca o minimo
murmdrio. Podem vomitar também, e pra isso usem 0
segundo saco pldstico que cu distribui. Vamos ver, me
migraaaantes | 39 | maléi visnieemostrem © saco plastico... (Todos os migrantes ntos-
tain o saco de vomitar.) Aqueles que nunca viajaram
por mar levantem a mao! (O Coiote conta as mdos
levantadas.) Bom, nao tem problema... Talvez vocés
aprendam a nadar amanha. Deyeriam ter feito isso an-
tes, mas € sempre assim. Vocés no ser4o os primeiros
a aprender a nadar no prdprio dia em que é preciso
salvar a vida nadando... Isso se chama bobeira, mas é
sempre assim. Ficaram 4 toa durante meses nessa praia
de Tripoli esperando embarcar rumo a Europa, e nao
aprenderam a nadar...'Tudo bem... Estado com seus co-
letes salva-vidas?
TODOS OS MIGRANTES: Sim...
OCOIOTE: Agora, ja queimaram a carteira de identida-
de ¢ outros documentos? (Parsa.) Quem nao queimou
pode rasgar tudo agc
bem? (Chuva de papel rasgado sobre o patco e sobre os
espectadores.) Pronto, agora vocés sao todos iguai:
Vocés nao tém mais identidade... S40 todos refugiados
de guerr
combates. E isso que vocés vao dizer quando pedirem
¢ jogar na agua... Entenderam
- Vocés sao vitimas da guerra que fogem dos
a identidade de vocés.., Esta claro? Nao digam que es-
tavam na merda em seu pais e que seus filhos morriam
de fome. Esse no é motivo para pedir asilo politico; se
disserem isso vao manda-los de volta imediatamente
pra casa, ou seja, pra merda, Digam que é por causa da
guerra que estdo indo pra Europa, entendido?
TODOS OS MIGRANTES: Sim, chefe.
0 COIOTE: Bom, agora vamos partir. Eu vou deixar
vocés mijar e cagar mais uma vez. Depois, vao ter
que segurar. A noite vai ser longa e cu nao quero que
sujem meu barco... Vocés esto vendo que ele esta
colegio dramaturgia | 40 | matél visniec
tinindo de novo... Nao quero ter que limpar xixi e
coc6é de ninguém quando voltar. E vejam que vocés
tém sorte de estar comigo. Nunca perdi ninguém...
Nao sou como os outros coiotes... Eu creio em Deus,
eu mesmo tenho quatro filhos pra sustentar e fago
isso pra ajudar meus irmaos em dificuldade... Fago
isso porque o mundo é fodido, e quero oferecer uma
oportunidade a quem nasceu na parte mais fodida
deste mundo fodido... Entdo, vamos?
TODOS OS MIGRANTES: Sim, chefe!
O COIOTE: E agora, vamos calar a boca. $6 vamos ouvir
o mar eo vento. Rezem pra que as ondas sejam calmas
a noite. Isso pode ajudar...
migraaaantes | 41 | matéi visniec0 Homem da Maleta e Elihu.
O HOMEM DA MALETA: Como vocé se chama?
ELIHU: Elihu.
O HOMEM DA MALETA: Pega essa cadeira, Elihu. Pode
sentar. Quantos anos vocé tem?
ELIHU: Dezoito anos.
OQ HOMEM DA MALETA: Vocé acredita em Deus, Elihu?
ELIHU: Acredito.
O HOMEM DA MALETA: Muito bem. Vocé é um bom ra-
paz. Esta com sede?
ELIHU: Estou
QO HOMEM DA MALETA: Vocé gosta de Coca-Cola?
ELIHU: Gosto.
O HOMEM DA MALETA: Entao pega esta. Vocé tem celu-
lar, Elihu?
migraaaantes | 43 | matéi visniecELIHU: Tenho.
0 HOMEM DA MALETA: Depois vocé me Passa o numero.
ELIHU: Passo.
0 HOMEM DA MALETA: Sabe, Elihu, eu nao tenho muito
tempo...
ELIHU: E
O HOMEM DA MALETA: F que muita gente quer falar
comigo.
ELIHU: Eu sei.
0 HOMEM DA MALETA: FE, esta vendo. Meu tempo é
contado,
ELIHU: F:.
O HOMEM DA MALETA: Vocé sabe contar, Elihu?
ELIHU: Sei,
0 HOMEM DA MALETA: Entio me diga, por que Deus fez
o homem com duas pernas?
ELIHU: Nao sei.
0 HOMEM DA MALETA: Ele poderia nos ter feito com uma
perna, uma mao, uma orelha, um olho... Nao é?
ELIHU: E que... é... sim,
0 HOMEM DA MALETA: Mas na sua bondade Deus disse:
“Nao. Vou dar a Elihu duas pernas, duas mos, dois
colagao dramaturgia | 44 | matéi visnies
olhos, duas orelhas, dois pulmées, dois rins... Para que
ele fique com um de reserva”. Entende?
ELIHU: Entendo.
O HOMEM DA MALETA: Deus quis nos dar uma chance.
ELIHU: Sim.
0 HOMEM DA MALETA: Vocé ja viu pessoas que vivem.
com uma perna sé?
ELIHU: Ja.
0 HOMEM DA MALETA: Ja viu pessoas que vivem com um
olho sé?
ELIHU: Nao sei... ja...
0 HOMEM DA MALETA: Ja viu gente que vive com um
rim s6?
ELIHU: Nao sei.
0 HOMEM DA MALETA: Vocé nao sabe porque isso nin-
guém vé. Mas é como quando se tem uma perna so,
Pode-se viver a vida toda com uma perna sé, ou
com um rim sé. Foi Deus que quis assim. Mas com
0 coragio, nao. Ele disse: “Nao serd possivel dar
dois coragées aos homens”. Com o figado também:
“Nao, com o figado também no vai funcionar”.
Mas com os rins, ele pensou: “Vou dar dois para o
Elihu para que ele possa ter um capital”. Vocé sabe
o que € um capital?
ELIHU: Nao.
migraaaantes | 45 | matdl visnlec0 HOMEM DA MALETA: E uma grande quantidade de di-
nheire, E quem tem um capital pode se langar na vida.
Pode ter sucesso. E vocé,
nao quer?
‘lihu? Vocé quer prosperar,
ELIHU: Quero.
O HOMEM DA MALETA: Vocé quer ir pra onde?
ELIHU: Pra Inglaterra.
O HOMEM DA MALETA: Mas vocé nao sabe nadar, nao
é Elihu?
ELIHU: Nao.
0 HOMEM DA MALETA: E vocé sabe o que acontece a ne-
§ros como nés que nao sabem nadar e nao tém capital,
Entende 0 que eu quero dizer?
ELIHU: Nao.
0 HOMEM DA MALETA: Entao vou capitular tudo. Olhe
esta foto, Elihu. Vocé reconhece esta cidade?
ELIHU: Nao.
0 HOMEM DA MALETA: Esta cidade se chama Birmin-
gham, ¢ fica na Inglaterra.
ELIHU: Ah!
0 HOMEM DA MALETA: E veja isto. O que vocé vé aqui?
FE uma farmacia?
ELIHU:
O HOMEM DA MALETA: Nao... E um banheiro ptblico.
colagio dramaturgia | 46 1 mati visniee
ios
ELIHU: Ah!
0 HOMEM DA MALETA: Vocé sabe o que é um banheiro
ptblico?
ELIHU: Sei.
O HOMEM DA MALETA: FE um lugar limpo onde as pessoas
civilizadas vao mijar. Olhe isto... Esta vendo?
ELIHU: Estou.
0 HOMEM DA MALETA: E essa mulher, ai... Sabe o que ela
estd fazendo?
ELIHU: Nao.
0 HOMEM DA MALETA: Ela é caixa, recebe o dinheiro,
Elihu. Nesses banheiros publicos tem que pagar pra
urinar. E essa mulher que esta af, e que é muito velha,
vai se aposentar... Dentro de um més. E vocé poderia
ficar no lugar dela, Elihu. E pra chegar até Birmin-
gham, vocé poderia também pegar um avido. E pra
pegar 0 aviao, vocé sabe, ai vocé nao precisaria saber
nadar. Olha sé: em vez de ir embora com seus irmaos
até a Macedénia e depois pra Sérvia e até nao sei
mais onde, eu poderia pdr vocé num avido. Se vocé
quiser. Vocé quer?
ELIHU: Quero.
0 HOMEM DA MALETA: E vocé me paga tudo isso depois
que estiver 14. Porque vocé esta rico, Elihu. Voce tem
um capital,
ELIHU: Que capital?
migraaaantes | 47 | matéi visniec0 HOMEM DA MALETA: © capital, a fortuna que Deus
te deu,
ELIHU: Que fortuna?
O HOMEM DA MALETA: Estou falando dos seus rirts,
Elihu. Vocé tem dois, nado é? Entao, o segundo rim é 0
seu capital. Entende, agora?
ELIHU: Entendo,
O HOMEM DA MALETA: Vocé esta com sede, ainda?
ELIHU: Estou.
0 HOMEM DA MALETA: Olha, toma mais uma Coca...
(Mtisica africana.)
valegio dramaturgia | 48 | matéi visniec
in naan
O Presidente, 0 Assessor.
O PRESIDENTE (ensaiando um discurso diante do Asses-
sor): Nao podemos receber toda a miséria do mundo.
Fora de cogitacéo. Nunca dissemos que podiamos re-
ceber todo mundo. Nosso pais nado pode acolher mais
imigrantes. E preciso instalar um perimetro de intransi-
géncia na Europa. E preciso sistematicamente separar
os refugiados de guerra dos refugiados econémicos, €
mandar estes uiltimos de volta para o pais de origem.
Fizemos uma lista de paises seguros, ¢ vamos recorrer
a todos os meios para repatriar os imigrantes clandes-
tinos que nao tenham condicao de conseguir o status
de refugiado.
Vamos negociar com nosso aliado turco para que a
triagem seja feita logo no territério deles. Vamos ter
também que encontrar meios para lutar mais eficien-
temente contra as grandes organizagdes criminosas
do por tras desse trafico de seres humanos. Os
que es'
chefes dessas redes mafiosas esto em Istambul, em
‘Tripoli, até em Beirute, é preciso dizer, $40 nossos
inimigos do mesmo modo que os jihadistas do Daesh.
Fra o que eu tinha a dizer, Chamo isso de discur-
so verdadeiro e urgente. Nao € com um discurso
migraaaantes | 49 | matéi visniecpoliticamente correto que vamos conseguir agir. E pre-
ciso chamar as coisas pelo nome.
(O Presidente toma um gole de dgua e espera a reagdo
do Assessor, que ficou tomando notas.)
0 ASSESSOR: Bom... Veja, senhor presidente... Para
chamar as coisas pelo nome, como o senhor diz, nado
€ porque o senhor deseja se livrar do seu velho lado
politicamente correto que o senhor deve se tornar po-
liticamente incorreto.
0 PRESIDENTE: © que vocé quer dizer?
0 ASSESSOR: Que o senhor esta arriseando muito pelo
menos em trés ou quatro pontos.
O PRESIDENTE: Quais?
0 ASSESSOR: Nao sei se o senhor reparou, mas a midia
nunca usa o termo “imigrante”. Nem “clandestino”.
O PRESIDENTE: Encao cles usam que termo?
O ASSESSOR: Eles usam o termo “migrante”,
O PRESIDENTE:
* por qué?
0 ASSESSOR: Para nao estigmatizar.
O PRESIDENTE: Para nao estigmatizar quem?
0 ASSESSOR: Bah, justamente para nao estigmatizar os
imigrantes e os clandestinos.
O PRESIDENTE: Nao entendo.
colegio dramaturgia | 50 | matéi visniec
sot
0 ASSESSOR: Pense bem... Estamos em plena globaliza-
cdo... E essa globalizacdo fomos nés que a quisemos.
O senhor quis, a sua maioria quis, nosso pais quis.
E num mundo globalizado, somos todos “migrantes”,
e ndo “imigrantes”. Esté me acompanhando?
O PRESIDENTE: Nao...
0 ASSESSOR: Para ser coerente com sua visio econé-
mica, € preciso esquecer as palavras “imigrante” ¢
“clandestino”. “Imigrante” é alguém que vem de fora,
atravessa uma fronteira e se instala num territério
onde é preciso respeitar os costumes, as regras c as leis
locais. Em suma, ele deixa um territério chamado “a
casa dele” ¢ se instala num outro lugar onde ele no
esta na “casa dele”, certo?
0 PRESIDENTE: Sim.
0 ASSESSO
quer lugar, no planeta inteiro. Num mundo globaliza-
4 o “migrante” esta na casa dele em quai-
do, migra-se, desloca-se, todo mundo tem o direito de ir
aonde quiser e quando quiser... E assim, o migrante fica
sem a obrigagdo de respeitar o que quer que seja, por-
que ele se considera um cidadao do mundo. E é isso que
a globalizagao pretende. Nés globalizamos a economia,
liberamos a circulagde de ideias, capital, mercadorias
€ services; por que, ent&o, nao reconhecer também o
direito das pessoas de se deslocar livremente?
0 PRESIDENTE: Bah... porque...
O ASSESSOR: Quero apenas mostrar essa contradicao.
Mas o senhor faz 0 que o senhor quiser.
O PRESIDENTE: Bah, justamente...
migraaaantes | 51 | matéi visniec0 ASSESSOR: Entdo, para nao correr riscos, recomendo
que o senhor use a palavra “migrante”.
O PRESIDENTE: Porque é politicamente correto..,
0 ASSESSOR: Porque € politicamente correto. Entao é
isso que eu proponho Para as quatro primeiras fra-
ses... Percebe?
O PRESIDENTE: Sim...
O ASSESSOR: “Nao podemos receber toda a mil
mundo.” Nao. Eu Proponho substituir por: “Somos
tia do
sensiveis a toda a miséria do mundo,..”,
O PRESIDENTE: Concordo,
O ASSESSOR: A palavra “excluido” eu substituiria por
um simples “sim”,
O PRESIDENTE: Concordo.
0 ASSESSOR: Para “nunca dissemos que podiamos te-
ceber todo mundo”, eu Proponho a frase “Nés sempre
¥amos manter nossas portas abertas, mas conforme
nossas possibilidades”,
O PRESIDENTE: Mas é meio vago...
O ASSESSOR: Mas é irrepreensiyel,
O PRESIDENTE: f. verdade.
0 ASSESSOR: “Nosso pais nao pode receber mais imj-
grantes.” Em vez disso, proponho “Vamos sempre aco-
Ther migrantes, mas de forma controlada”,
Golecdo dramaturgia | 52 1 matéi visniec
wegen
0 PRESIDENTE: Porra!
0 ASSESSOR: Que foi?
O PRESIDENTE: Vocé é bom nisso, mesmo!
Q ASSESSOR: Obrigado, senhor presidente.
O PRESIDENTE: Vocé deveria fazer politica.
0 ASSESSOR: Mas ¢ justamente isso que eu faco, senhor
presidente.
O PRESIDENTE: Ah ét
migraaaantes | 53 | matéi visniecTrés garotas de traje sexy estao pulando corda,
GAROTA 1: Ola!
GAROTA 2: Sejam bem-vindos a esta primeira edigdo...
As trés garotas juntas — ...do Saldo das Cercas e Muros!
GAROTA 1: Oferecemos uma vasta linha de modelos de
cerca de arame farpado antimigrantes, confidveis ¢ de
menor custo.
GAROTA 2: Como vocés jd sabem, a época da abertura
angelical das fronteiras j4 passou.
GAROTA 3: Agora é hora de reinstalar cercas e muros
em todos os lugares.
GAROTA 1: Observem esse horror na fronteira greco-
-macedénia...
(Projecao: duas linhas de cerca de arame farpado com
uma passagem entre as duas, onde veicutos militares
fazem patrutha.}
GAROTA 2; A Europa é isso?
migraaaantes | 55 | matéi visniec( Projega H
; cercas monstruosds na fronteira Sservo-
~hingara.)
GAROTA 3: Sao esses os nossos valores estéticos?
GAROTA 1: E essa a im
ao mundo?
agem que estamos mostrando
As trés juntas: Que vergonha para nossos dirige, tes!
E que vergonha Para todos nés! _
GAROTA 2: Onde est nossa criatividade?
GAROTA f: Onde est4 nosso gosto pela insoléncia?
GAROTA 3: Mas nao seja por isso!
GAROTA 4: Nossa empresa Ago e Ternura...
GAROTA 2: Sec
2: sOferece um produto novo e totalmente
revoluciondrio,..
As trés juntas: ...um arame farpado mais humano.
(Projeciio.)
GAROTA 1: Com design!
GAROTA 2: Um farpado sorridente!
GAROTA 1: Colorido, verde
» alegre e com grande ;
OTF ande ape!
ecolégico. ° ‘pe
GAROTA 3: Uma vex instalado, p
arece uma linda parede
vegetal. Parede
Colegio dramaturgia 56 | matéi visniec
(As garotas deixam as cordas com que pulavam e so-
bem na maquina de instalar arame farpado. O diretor
pode sugerir todo tipo de gestos lascivos como os das
“recepcionistas” dos salées de autombével.)
GAROTA 1: E vejam também o acessério que acompa-
nha... A maquina de instalar cercas de arame mais ra-
pida do mundo.
GAROTA 2: Vejam esse protétipo, que graga... Parece um
hipopétamo gigante...
GAROTA 3: Velocidade de deslocamento, instalagao ¢
acabamento: 22 quilémetros por hora.
GAROTA 1: O hipopdtamo passa e deixa para tras uma
cerca quadrupla de arame farpado de qua metros
praticamente intransponivel, e além de tudo de uma
beleza admiravel...
GAROTA 2: Esteticamente é tudo o que se pode ima-
ginar de mais alegre, de mais simpatico, de mais
atraente, Vista de longe, pode-se dizer que é uma
verdadeira renda vegetal, uma sebe de arbustos bem
podada e tratada. $6 quando se chega a um metro de
distancia é que se descobre que é uma estrutura feita
de arame farpado.
GAROTA 3: Sugerimos que observem com cuidado esse
aspecto de obra de arte do trabalho. Esse tipo de cer-
ca nao tem nada de mau, nada de ameagador, nada
de ideolégico... Pode-se considera-la mais como uma
obra de arte ambiental, um tipo de instalagio ao ar
livre, digna de artistas como Christian Boltanski ou
Anish Kapoor. Tem também © aspecto de arte mo-
numental nessa maneira de implantar uma cerca de
migraaaantes | 57 1 matéi visniocarame. Ela embeleza a Paisagem, integra-se ao meio
ambiente. E se acrescentamos algumas hélices edlicas
chega-se quase A perfeicao...
GAROTA 4: Ela convida até a fazer um Piquenique ao
lado dessa folhagem cuja cor muda discretamente a
cada dois ou trés quilémetros...
GAROTA 2: © verde-absinto se torna verde-abacate, que
se torna verde-maca, que se torna verde-limao, que se
torna verde-pistache, que se torna verde-pinheiro...
(As garotas imitam a cena do quadro O Almogo na
Relva, de Edouard Manet.)
GAROTA 3; Venham, venham conosco a esse simpatico
almogo na relva...
sologto dramaturgia 1 58 | matéi visnieg
IRM cnn
ee
0 Coiote e seus auniliares, Ali e Fehed.
Os dois estéo contando os espectadores na sala.
ai?
O COIOTE:
ALI: Contei 113.
FEHED: Cento e catorze.
OCOIOTE: Impossivel! Contem de novo. (Os auxiliares,
equipados cont facio, contant mais uma vez os espec-
tadores. Passamt pelas fileiras, tentam nao pular nin-
guém, etc.) E entao?
ALI: De novo 113.
FEHED: De novo 114,
0 COIOTE: Vocé me contou também?
FEHED: Contei.
0 COIOTE: Mas n4o era pra me contar.
FEHED: Bom, entao sao 113.
migraaaantes | 59 | matéi visniec(O Coiote avanca e, dominador, para diante dos
espectadores.)
0 CONOTE: Bom, entenderam,,, Ha clandestinos aqui
com a gente. (Pausa. O Coiote brinca com @ facdo,
lustra-o, etc.) Escutem bem. Estou $6 fazendo o meu
trabalho. Nao tenho nada contra ninguém, nao odeio
ninguém, acredito em Deus. Mas nao gosto que tirem
uma com a minha cara. (Pausa. Ele passa entre os es-
pectadores.} Estou sendo claro? (Siéncio.) Fehed...
FEHED: Sim.
0 COIOTE: Vocé acha que eu estou sendo claro?
FEHED:
sta, chefe.
O CONOTE: Ali.
ALI: Sim,
0 GOIOTE: Vocé acha que todos estado me entendendo?
ALI: Sim, chefe,
0 CONTE: Entao, tem treze pessoas que nao deveriam
estar aqui. Esto entendendo? Treze pessoas que entra-
tam no meio do grupo sem Pagar... Falei claro? (Silén-
cio.) Por que ninguém diz nada? Fehed? Ali?
ALI: Eles tém medo, chefe,
FEHED: El
es estado vendo que erraram feio, chefe.
0 COIOTE: Diga a eles que quem pagou nao precisa ter
medo. (Ali repete a frase em drabe, e Febed em outra
volegio dramatargia | 60. | matéi visnieg
lingua, tigrinia, por exemplo, fatada na Eritreia. Para
Ali:) — Falou pra eles?
ALI: Sim, chefe.
O COIOTE: Vocé falou também?
FEHED: Sim, chefe.
OCOIOTE: Quem pagou levanta a mao! (Ele observa a
sala.) Conte, Ali. Conte, Fehed. Quantos levantaram
ama
(Ali e Febed contam mais uma vez os espectadores.
ALI:
-ento e treze.
FEHED: Cento e treze.
ia ec 2 . 2
(O Coiote pega uma melancia e corta em duas com um
s6 golpe de facao.}
0 COIOTE: Nada bom, isso. Nao é normal. Escutem bem:
assim vamos correr 0 risco de afundar, Estao entenden-
do? Nao pode ter mais que cem pessoas neste barco.
Tao sacando, seus tarados? ‘Tem gente demais nesta
merda de barco, ¢ vamos todos morrer por ca usa de tre-
ze bostas de babacas que se enflaram aqui escondidos.
Fehed, Ali, digam que todos eles vao morrer. (ali repete
a frase em dvabe, Fabed no dialeto da Eritreia.) Eentao?
ALI: E ento nada, chefe. Nao sei o que fazer.
FEHED: Est3o todos com medo e rezando.
O COIOTE: Rezando...
migraaaantes | 61 | matéi visniecALI:
sim, chefe,
0 COIOTE: Que todos os que subiram escondidos fi-
quem de pé!
(Pausa. Ninguém se m
FEHED: Todos os que subiram aqui escondidos fi-
quem de pé!
ALI: Jat
(Pausa. Ninguém se mexe. Ali repete a frase em drabe,
e Febed no dialeto ligrinia da Evitreia.)
0 COIOTE: Escutem aqui, Rezar nao adianta nada...
Deus pode fazer um monte de coisas, menos fazer 0
motor rodar. Nao podemos continuar a
sim porque,
justamente, a gente nao da partida e o motor acaba
afogando. Deus nao é mecénico, entendem? Deus nao
€ mecanico nem tanque de gasolina. Ea nossa gasolina
vai acabar antes da hora Porque o barco est4 muito
pesado. Entio, treze pessoas devem sair deste barco,
E nao é Porque vocés nao pagaram. E mesmo se qui-
Setem pagar agora, j4 é tarde demais, Agora o seu di-
nheiro nao vale nada. Mesmo se vocé estiver com os
bolsos cheios e quiser Pagar trés ou quatro vezes mais,
nao posse aceitar. O barco esta pesado demais. Ponto
final. Portanto, quem nao pagou que encha o seu cole-
te salva-vidas agora e pule no mar, (Pausa. Ali e Febed
Hazem treze coletes salva-vidas ¢ passam entre os es-
pectadores.) Fehed, fala pra esses idiotas que subiram
escondidos que eles cometeram um grande pecado...
Deus nao vai perdoar isso. Neste barco tem familias,
criangas, gente que trabalhou a vida inteira Pra ir pra
Europa. Nao é justo colocar essas vidas em perigo.
Colegio dramaturgia 162-1 matéi
sn
Desde que eu comecei a trabalhar nis80, nunca per
ninguém, nenhum homem, nenhuma crianga. u _
sou como os outros coiotes... Sou alguém ae eee :
a palavra dada. E eu avisei todo mundo des e ° ini
cio: os clandestinos vao se ver com o mar. Diz isso pra
eles Fehed. (Febd diz algo, mas é muito mais ree on
drabe ou em outra lingua dificil de identificar.) Fe ee
sera que vocé sabe pra quem tem que dar um colete
salva-vidas?
FEHED: Acho que sim, chefe.
0 COIOTE: Bom, entao comeca a distribuir esses colete
5 iveis de tre o-
(Bruscatente, ouvem-se choros terriveis de treze b
mens e mulberes. Febed passa entre os espectadores e
distribui alguns coletes.)
‘arem de chorar... Merda..,
AU
FEHED: Parem de chorar, ndo adianta nada, vocés vie
. to > 7 cho-
deixar o homem ainda mais irritado... Parem de c
rar, t6 falando.
ALI: Tinham que ter chorado antes...
e colete e vista... assim nfo... a cabega
irma . é?
primeiro... Isso, meu irmao, entendeu, né?
0 COIOTE: Desculpem, amigos... Com esses coletes, vo-
Vocés vo ter todo
cés podem aguentar até 24 horas.
Pronto. Pulem ou vou ter que
esse tempo pra rezar.
empurrar todos voc
3!
migraaaantes | 63 | matéi visniecC22
‘Gemitério recentemente criado numa ilha grega.
Uma velha, o Agente Funerario, 0 Tradutor.
AVelha perambula entre os tumulos e tenta ler as
inscrigdes sobre as placas.
O FUNERARIO: © que ela esta procurando exatamente?
OTRADUTOR: Ela procura o filho, a nora eos dois netos. (A
Velba faz uma pergunta em drabe para o Tradutor.) Fla
esta perguntando se foi voct que enterrou essas pessoas.
0 FUNERARIO: Fui eu.
O TRADUTOR: E todos morreram afogados?
O FUNERARIO; Sim.
O TRADUTOR: Vocé reparou numa familia de quatro
pessoas?
O FUNERARIO: Bom... o mar faz como quer... Talvez eles
tenham morrido todos juntos, no mesmo dia, ou na
mesma noite, mas o mar devolve os corpos fora de or-
dem... (O Tradutor troca algumas frases em drabe com
a Velba.) O mar é assim... Primeiro ele engole as pes-
soas... E alguns corpos descem primeiro até o fundo,
migraaaantes 165 | matéi visnieccomo se fossem mais pesados que os outros, Ninguém
sabe por qué. Deve ter alguma alquimia nisso... Ou
talvez sejam as leis da
' sica... Enfim, eu ndo sei nada,
Tudo © que sei é que as vezes alguns voltam pra su-
perficie um ou dois meses depois... Nem digo em que
estado eles voltam... Mas no conte tudo isso pra ela...
O TRADUTOR: Nao. Nio estou contando.
O FUNERARIO: Quando um corpo fica no mar durante
dias e dias, ele fica escorregadio como sabio... E quan-
do se tenta puxar, a pele sai toda em tiras... £ hortivel
de ver. E tudo isso recai sobre mim, Sou a tinica fune-
raria desta ilha.
(Conversa em drabe entre o Tradutor ea Vetha.)
© TRADUTOR: Ela quer saber se vocé sabe como se en-
terram os muculmanos...
0 FUNERARIO: Bah, nao sei muita coisa. Quando enter-
ro alguém nem sei se é um mugulmano ou um cristio.
De qualquer modo, eles nunca estao com os documen-
tos de identidad
Como 0 filho dela se chamaya?
(O Tradutor perguatta para a Velha.)
O TRADUTOR: Ele se chamava Mehdi.
0 FUNERARIO: Nao me lembra ninguém.., Desculpe...
Se eu pudesse ajudar... De onde ela vein essa avozinha?
O TRADUTOR: Ela vem da Turquia, mas é siria.
O FUNERARIO: Se vocé soubesse ¢Omo me corta 0 cora-
¢ao quando fago esse trabalho... Logo que meu celular
colegao dramaturgia | 66 | matéi visniec
(aca, jal Sei que em algum lugar da ilha foi encontrado
um cadaver. Entdéo pego minha velha camionete e vou
pra esse lugar... No comego, enterravamos os afogados
0 lado do nosso cemitério... Mas depois abriram este
iqui.., Um dia nao tera mais lugar para enterrar os
estrangeiros. Nossa ilha é tao pequena...
(A Velba fala com o Tradutor.)
0 TRADUTOR: Ela pergunta se vocé sabe que é preciso
orientar os timulos em diregdo a Meca,
0 FUNERARIO: Sabe que © meu maior problema é encon-
tra os sacos plasticos... Nunca tenho o suficiente para
todos os cadayeres, e as vezes tenho que teutilizar al-
puns... A Unido Europeia nao faz nada pelos mortes.
Os vivos ficam aqui dois ou trés dias ¢ depois vao pra
Atenas, Austria, Alemanha... Mas nés, nesta ilha, ficamos
aqui com es mortos, Eu acho que seria bom dividir um
pouco essa carga... Cada um deveria assumir uma cota
de afogados, Nao é justo que metade dos afogados no
Mediterraneo sejam enterrados aqui... Mas nao diz essas
coisas pra ela. EF uma pena que eu ndo possa ajuda-l,
Sabe, acho que ai, embaixo da terra, os mortos ficam na
posigdo que as religiGes deles exigem.., com a cabega pra
Meca, pra Jerusalém ou pra Roma... Pra mim eles se ar-
rumam sozinhos. Que idade tinham os netos dela?
(Didlogo entre 0 Tradutor e a Velba.)
0 TRADUTOR: O menino tinha quatro anos, e a me-
nina oito.
O FUNERARIO: Puxa. Dificil dizer... Enterrei umas cinquen-
ta criangas aqui. Uma vez, teve treze criangas mortas
salva-vidas, mas
num dia sé. Estavam todas com colete
migtaaaantes | 6¥ | maldi visnieccram falsos, improvisados pelos coiotes desonestos...
Posso até mostrar esses coletes, tem uma montanha de-
les, todos iguais... Mas venha comigo, melhor ev mostrar
1890 aqui... {O Funendpig abre as portas de um armdrio
de madeira onde, em udrias prateleiras, estiio guardadas
centenas de bringuedos,) Se por acaso ela teconhecer al-
guma cois¢
Os bring uedlos, as vezes, chegam até a praia
antes dos corpos. E essa a minha colecdo de bonecas e
bichos de pehicia... (Como que hipnotizada, a Velba se
aproxima dos bringuedos.) Deixe ela olhar com calma...
(O Tradutor tira do bolso um maco de cigarras, oferece
um cigarro ao Funeririo, Os dois comecam a furnar.}
O TRADUTOR: Dia bonito hoje... E quase nao tem vento,.,
O FUNERARIO: F. isso é Faro na nossa ilha... Em dias
assim eu tem me Preocupo... As travessias g30 tran-
quilas. Nos dias de mar Srosso é que tem problemas,
Os coiotes fazem Promogao quando o tempo esta
ruim, e ai tem mais mortos..,
(Patsa.)
© TRADUTOR: FE esses numeros e letras nas placas?
O que sao?
O FUNERARIO: 5 o cédigo de DNA de cada afogado...
Como ninguém nunea estd com os documentos, € feita
uma coleta de DNA que fica marcada no tumulo. As-
sim, se um dia as fam ilias vierem Procurar seus mor-
tos, tém alguma chance de encontra-los... Pode dizer
isso pra ela...
(A Velba voita apertando um bichinbo de pelicia con-
tra o peito.)
colegéo dramaturgia | 68 | matdéi visniec
0 Homem da Maleta, Elihu.
O HOMEM DA MALETA: Como vai, Elihu?
ELIHU: Tudo bem,
O HOMEM DA MALETA: Ta gostando da Europa?
ELIHU: Bah, t6.
0 HOMEM DA MALETA: Me disseram que vocé teve medo
we eg
no aviao, é verdade?
ELIHU: F.
O HOMEM DA MALETA: Mas vocé ja é um rapaz cresci-
tno avido?
do... Por que vocé comegou a chorar no aviao?
ELIHU: Bah, porque sim...
0 HOMEM DA MALETA: Vocé quase estragou tudo,
garoto..,
ELIHU: Desculpe, chefe...
0 HOMEM DA MALETA: Vocé fala um pouco de inglés?
mnigraaaantes | 69 | matéi visnieeELIHU: Falo,
0 HOMEM DA MALETA: Como se diz “eu tive sorte”?
ELIHU: “7 was lucky”.
0 HOMEM DA MALETA: Retoza! ‘Ti
fala inglés. M Beleza! Ti vendo? Agora voce
ELIHU: Yes.
0 HOMEM DA MALETA: . como se diz “eu estou feliz”?
EWHU: “I am happy”.
.omeM DA MALETA: Isso! 'Tenho otgulho de vocé,
thu... $6 que vocé nao esta feliz de verdade, nao 6? ,
ELIHU: Bah, sei 1d,
oroMeN DA MALETA: Nao, Vocé nao esta feliz porque
dinheies andes da sua familia... Vooé i4 mandou 0
ELIKU: |.
O HOMEM DA MALETA: Quanto?
ELIHU: Trezentas libras..,
0 HOMEM DA MALETA; Trezentas libras? $6 isso? Foi
tudo que vocé péde economizar em seig meses?
eM , E pouco, Elihu... E muito pou-
ve “ssim voce nunca vai poder trazer sua irma seus
a,
Colegdo dramaturgia | 70 1 matéi visnies
inmiios, nem sua mae... Mesmo trabalhando dia e noi-
iv, Elihu, vocé nao vai conseguir pagar a travessia de-
low... quero dizer, uma travessia sem riscos... Este pais
iio é na verdade um paraiso para os meninos negros
como vocé... Vocé trampa, trampa, trampa, mas nao
iv pagam quase nada... Vocé fez amizade aqui, Elihu?
ELIHU: Fiz...
0 HOMEM DA MALETA: Na mesquita?
ELIHU: Foi.
0 HOMEM DA MALETA: Bom, toma cuidado, menino...
Aqui primeiro é dos iguais a vocé que é preciso des-
confiar.. Mas vai ser melhor se vocé trouxer teus
irmdos. Juntos vocés vae poder se ajudar uns aos ou-
tros... Vocés vao conseguir... E vocé pode fazer isso,
Ulihu... Vocé pode ter todos eles aqui com vocé em trés
$6 depende de vocé...
ou quatro mese:
ELIHU: Mas como?
O HOMEM DA MALETA: Vocé quer que eu explique como
fazer?
ELIHU: Sim, chefe.
0 HOMEM DA MALETA: Bem, é de novo Deus que vai te
ajudar... Deus e mais ninguém... Porque Deus é grande
¢ em sua bondade ele ja ajudou vocé uma vez... E se
vocé for esperto, ele vai ajudar de novo... Mas vocé
quer mesmo que ele ajude de novo?
ELIHU: Quero...
O HOMEM DA MALETA: Tem certeza, Elihu?
migraaaantes | 71 1 matéi visnieeELIHU: Tenho, tenho.
0 HOMEM DA MALETA: E quer que eu expli
ique como?
ELIHU: Quero, chefe...
O HOMEM DA MALETA: Levante os bracos, Elihu... € diga
pra mim, quantos bragos vocé tem?
ELIHU: Dois...
0 HOMEM DA MALETA:
Mexa suas Ppernas, Elihu... ou
melhor, pule,
» pule como se estivesse jogando basque-
te,,, Quantas pernas vocé tem?
ELIHU: Duas...
0 HOMEM DA MALETA: Bem, esta vendo... Deus te deu
duas maos, duas pernas, duas orelhas, dois olhos...
ELIHU: Pra que eu tivesse sempre um de reserva...
O HOMEM DA MALETA: Sim, Para que vocé tivesse uma reser-
va... ¢ um capital... porque neste m undo, tudo se compra e
tudo se paga... Eu nao sei por que Deus quis que fosse as-
sim, o mundo, mas ele assim... Nao se pode fazer nada...
Mas felizmente quando de algum jeito a gente tem um...
ELIHU: ...um capital...
0 HOMEM DA MALETA: Feche o olho esquerdo. Elihu...
Vocé ainda esté me vendo, mesmo assim?
ELIHU: Estou.
0 HOMEM DA MALETA: Fique com 0 olho esquerdo fe-
chado e tente teclar 0 meu numero no celular... Vou
Colegio tramaturgia | 72 | matéi visniee
iitar pra voce... 00.49... 677.46 889... 8765... (Toe?
Jiur do HM.) Perfeito... Entao, Elihu, vocé percebe
une se pode viver muito bem com um olho sé!
ELIHU: Percebi.
0 HOMEM DA MALETA: E. entao?
ELIHU: ...ndo sei.
0 HOMEM DA MALETA: Pense, Elihu... Pense nos seus
indos, nas suas irm4s... Pense em sua mae tam| em
Kin cada um dos teus olhos existe, aqui, bem na super
licie, uma pequena camada de gelatina... é wal a
te, mole... isso se chama cornea... e vale 20 mi “e :
cada uma, viu? Entende? Foi Deus que quis que “se
mos assim... ticos... Foi Deus que disse Vou ee as
c6rneas pro Elihu, assim ele vai ter um capital”.
ELIHU: E...
OHOMEM DA MALETA: “Assim ele vai poder trazer os trés
x = 4 xa Sond indo
irmaos e a irma, e também a mae dele...” Esta ouvine
a de De neu rapaz? E ele que lando...
a VOZ eus, IT rapaz ele que esta fal
ELIHU: F...
0 HOMEM DA MALETA: Mas... 0 que vocé esta fazendo?
Seu tonto. Esta chorando?
ae C eus dois
ELIHU; Estou. Eu gosto de chorar.. com meus di
olhos...
O HOMEM DA MALETA: Chora, Elihu, chora... Quer uma
Coca-Cola?
(Miasica ocidental.)
migraaaantes | 73 | matéi visnieca
oo
Aldeia perdida nos Balcas. Ruido de um caminhao que
estaciona. 0 Homem entra, tira o boné e a capa, lava as
maos, senta-se a mesa. A Mulher Ihe serve a comida.
AMULHER: Tudo bem? (Pausa.) E entao?
O HOMEM: Entao o qué?
A MULHER: Vocé viu o grupo?
0 HOMEM: Vi...
A MULHER: Eles nao param de passar...
O HOMEM: EF.
A MULHER: Que vamos fazer?
O HOMEM: Nao sei.
A MULHER: Vocé nunca sabe nada...
{Pausa. O Homem enche um copo.)
0 HOMEM: Bom. Eu trabalho. O que vocé quer que
eu diga?
migraaaantes 175 | matdl visnloeA MULHER: Parece que 0s sérvios fecharam a fronteira
OHOMEM: , pa rece...
A MULHER: Isso 6 bom?
OHOMEM: Nao sei,
A MULHER: Voce nao sabe, mas
pra nés, 4gota Isso vai sobrar
0 HOMEM: Isso o qué?
(Pausa. Aleuém bate é porta.)
A MULHER: Esté vendo?
O HOMEM: Vendo o qué?
AMULHER: J esta comegando,
O HOMEM: Vai atender a porta...
A MULHER: Mas eu nao sei se é bom atender.,..
OHOMEM: Mas é
M: Mas é 4 Nossa porta, podemos a brir, nao?
A MULHER: Nao sei n
Justamente porque
pode nao abrir.
ao se é bom abrir a porta, agora
a é 341 -
Porta € nossa, a gente também
(Pausa,)
0 HOMEM: Nao tenha medo,
estamos na s$a ca
Abre logo, merdat nossa casa,
‘A Mutber vai abyi
(A Muther vaj abrir. Na frente da porta: o Migrante.)
Golegdo dramaturgia | 76 1 matéi visnice
O MIGRANTE: Heélof
A MULHER (para O Homern): Tai. Bem que eu disse...
© HOMEM: Bem que vocé disse o qué?
A MULHER: Agora, o que é que a gente faz com ele?
0 HOMEM: P6, sei 14... Mas ele te cumprimentou, cum-
primenta ele também, pelo menos.
A MULHER: Ele nado me cumprimentou. Eu nao sei o que
cle me disse.
O HOMEM: Ele te cumpriimentou. O que ele disse signifi-
ca isso. Cumprimenta ele também.
A MULHER: O14!
(O Migrante sorri. Ele tem tum celular na mdo eo mos-
tra para a Mulber e para o Homem.)
0 MIGRANTE: Please...
A MULHER: Bom, e 0 que a gente faz, agora? Digo pra
ele comer com a gente?
O HOMEM: Bah, nao sei. Pergunta o que ele quer...
A MULHER: O que vocé quer? Quer agua?
O MIGRANTE {0strando de novo o celular): Please...
A MULHER: Ta com fome? Quer comer?
O MIGRANTE: Please...
migraaaantes | 77 1 matéi visniecA MULHER (para o Homem): Ele nao sabe 0 que ele
quer... Pronto. E agora, o que é que a gente faz?
OHOMEM: Traz uma cadeira pra elet
(A Mulber empurra uma cadeira, ao lado da porta.)
A MULHER: Olha. Senta.
O Migrante (implorando, tira do bolso um carregador
¢ mosira para a Mulher e para o Homem) ~ Please...
(O Homem se levanta, pega o celular do Migrante,
desliga um abajur e liga o carregador no lugar.)
A MULHER: F: isso que ele quer?
OHOMEM: E. Eu acho...
A MULHER: Mas...
OHOMEM (para o Migrante): Senta.
O MIGRANTE: Thank you. Thank you,
A MULHER: Bom, ¢ agora?
0 HOMEM: Agora a gente espera.
A MULHER
isso que ele quer, tem certeza?
O HOMEM: Nao sei. Mas da um copo de leite quente pra
ele, em todo caso,
solegio dramaturgia | 78 | matéi visniec
i
0 Coiote, Ali, Fehed, migrantes.
O COIOTE: Ali!
ALL Oi,
Q COIOTE: Diz pra esses idiotas que estio se agitando ai
no pordao pra se acalmarem...
ALI: Sim, chefe, mas...
. . ‘toa!
O COIOTE: Nao quero mais ouvir esses gritos!
ALI: Sim, mas... E que estamos afundando.
amos afundando porque eles
0 COIOTE: E:
do bagunga.
ALI (para o pessoal do porto): Hei, vocés ai, ta tudo
bem, parem com esse circo! (Para 0 Coiote) — Eles estao
com medo, chefe. Eles estao com agua até os joelhos...
0 CONTE: Entao diz pra cles que é por isso que a agua
i e eles se mexem demais.
esté entrando no pordao, porque eles se mexem dema
ALI: Chefe, eles esto muito assustades... Estao dizen-
do que vao se afogar como ratos.
migraaaantes | 79 | matdi visniec(Pausa. O Coiote Pensa.)
FEHED: Estamos muito pesados, chefe... Nao vamos
consegui:
(Pausa. O Coiote pensa.)
ALI: Tem gente demais, chefe. Que vamos fazer?
(Pausa, O Coiote pensa,)
FEHED: Eu acho que vamos ter que nos livrar de algu-
mas pessoas...
(Pausa,..)
ALI Pelo menos trés ou quatro...
FEHED: Qu até mesmo cinco...
(Pausa.)
ALI: Diga o que temos que fazer, chefe...
FEHED: © pessoal do porao, de qualquer modo, nao
Pagou quase nada...
ALI Podemos Pegar uns quatro, dar pra eles as boias
salva-vidas e joga-los no mar.
OCOIOTE: Quem sao ag pessoas do porao?
ALI: Sao cristaos do Sudao,
O COIOTE: Pegue dois cristaos e dois muculmanos.
ALI E FEHED; O qué?!
1 a aa
Colegio dramaturgia | 80 1 matéi visniec
i 2 z as tem
0 COIOTE: Vamos nos livrar de quatro pessoas, mas ter
«ue ser dois e dois,
ALI: Como assim, dois ¢ dois?
0 COIOTE: Dois cristios e dois mugulmanos,
ALI: Fu nado posso fazer isso, chefe!
FEHED: TA brincando, chefe...
OGOIOTE: Vao fazer isso, sim, ¢ ja!
ALI: Nao, chefe, Nao posse abandonar os meus.
OCONOTE: Escute aqui, Ali...
Go € ce chefe. Nés semos oitenta e
FEHED: Isso nao é certo, chefe. Nds so
trés, e eles so apenas dezessete.
0 CONOTE: E dai?
FEHED: Como e dai? Onde esta a democracia?
ALI: Sim... Nés somos mais numerosos, nds é que de-
vemos fazer a lei.
O COIOTE: Ali... Vocé sabe para onde estamos indo?
ALI: Sim.
0 COIOTE: Pra onde?
ALI: Estamos indo pra Italia.
0 COIOTE: F a Italia, pra vocé, é 0 que como pats?
migraaaantes | 81 1 mateél visnian