0% acharam este documento útil (0 voto)
35 visualizações18 páginas

Lisboa e Os Seus Estaleiros - JornadasdoMar23

O documento discute a história dos estaleiros navais ao longo do rio Tejo em Lisboa, desde os séculos XVI-XX, que foram fundamentais para o desenvolvimento da indústria naval portuguesa. Inicialmente concentrados na área do Terreiro do Paço, os estaleiros se expandiram para outras áreas ao longo do rio, abastecendo a expansão marítima portuguesa.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
35 visualizações18 páginas

Lisboa e Os Seus Estaleiros - JornadasdoMar23

O documento discute a história dos estaleiros navais ao longo do rio Tejo em Lisboa, desde os séculos XVI-XX, que foram fundamentais para o desenvolvimento da indústria naval portuguesa. Inicialmente concentrados na área do Terreiro do Paço, os estaleiros se expandiram para outras áreas ao longo do rio, abastecendo a expansão marítima portuguesa.
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 18

Lisboa e os seus estaleiros

Inês Mendes da Silva

Era Arqueologia SA

Centro de História da Universidade de Lisboa

Resumo
Ao longo dos anos a Historiografia tem elevado a Ribeira das Naus, enquanto empresa
que catapultou Portugal para o mundo e para a Modernidade, colocando o maior enfoque no
espaço onde esta se fundou, em Lisboa, na zona do Terreiro do Paço.

No entanto, o espaço assim designado, não foi senão o culminar de uma vasta cadeia
de produção que se estendia por diversos pontos ao longo do Tejo, desde Abrantes até Almada.
O fornecimento das mais variadas matérias-primas, assim como a existência de diversos
estaleiros de construção naval ao longo do rio, permitiram que esta tivesse sido umas das
indústrias mais relevantes para a economia nacional ao longo dos tempos, entre os séc. XVI e
XX.

A Arqueologia tem sido fundamental para o conhecimento de uma série de estaleiros


entre o Terreiro do Paço e Santos, que contribuíram de forma decisiva para o desenvolvimento
tecnológico e crescimento da indústria da construção e reparação naval nacional.

Abstract
Over the years, Historiography has elevated Ribeira das Naus as the enterprise that
propelled Portugal into the world and modernity, emphasizing the area where it was founded,
in Lisbon, in the Terreiro do Paço.

However, the designated space was the end of a vast production chain that extended
across various points along the Tagus River, from Abrantes to Almada. The supply of various
materials and several shipyards along the river allowed shipbuilding to be one of the most
relevant industries for the national economy throughout the centuries, from the 16th to the 20th
century.
Archaeology has been fundamental to the knowledge of a series of shipyards between
Terreiro do Paço and Santos, which contributed decisively to the technological development
and growth of Portugal’s shipbuilding and repair industry.

1. Enquadramento
A Ribeira das Naus tem sido objecto de diversas abordagens, na sua maioria,
endereçadas à que foi a primeira grande Empresa Estatal portuguesa: a expansão marítima,
enquanto projecto dirigido pela e para a Coroa, que conduziu de forma indubitável Portugal à
Modernidade.

O que, na sua fase inicial (séc. XVI), se traduziu numa operação essencialmente
centrada na zona Oeste da actual Praça do Comércio e áreas adjacentes, a partir de meados do
séc. XVII, nomeadamente, com a constituição da Companhia Geral para o Comércio do Brasil,
em 1649, (antiga Praia da Boavista), torna-se numa actividade fortemente assumida e gerida
por entidades públicas e privadas e estende-se desde a actual zona do Mercado da Ribeira até
Pedrouços.

Durante cerca de 60 anos, Portugal esteve integrado no seio do império luso-espanhol


e, nessa posição, constituiu-se como refém das regras das monarquias compósitas. Tal
significou que, em caso de conflito bélico, os obstáculos criados pelas políticas contrárias à
transferência de fundos entre Estados, também tinham a sua expressão nas zonas coloniais,
dado que obrigavam à utilização coordenada dos recursos portugueses e castelhanos
(CASILLA, 2011), nomeadamente, os navais.

Ora esta situação, com o aumento da tensão internacional contemporânea que se fazia
sentir entre as diferentes potências europeias, e com o crescente descontentamento gerado pelo
domínio filipino, iria agravar-se de forma irreversível, culminando com a Guerra da
Restauração, que inicia com a proclamação da Independência em 1640 e perdura até 1668,
altura em que é assinado o Tratado de Lisboa. Nesse âmbito, impôs-se, como medida
primordial, proteger os interesses portugueses no Brasil que se encontravam a ser tomados
pelos Holandeses, por forma a garantir os capitais necessários para suportar o conflito com o
país vizinho.
A conjuntura acima descrita resultou, para os envolvidos, num enfraquecimento
económico e em acrescidas dificuldades em assegurar as praças ultramarinas conquistadas nos
séculos anteriores, a Oriente e Ocidente, assim como as carreiras regulares que garantiriam, no
caso de Portugal, e na óptica do Padre António Vieira, grande impulsionador na criação da
Companhia Geral para o Estado do Brasil, “os cabedais necessários para sustentar a guerra
interior com Castela, que não pode deixar de durar alguns anos”. Esta garantia, de acordo com
o jesuíta, só seria exequível através da criação de Companhias que estivessem suportadas por
capitais privados, considerando que os estatais se encontravam esgotados por via da conjuntura
anteriormente mencionada.

No entanto, ao contrário das restantes Companhias coloniais europeias, cujos objectivos


passavam pela ocupação, povoamento e exploração de territórios ultramarinos (sob as
respectivas ordens régias), a portuguesa iria destacar-se por dois aspectos fundamentais: por
ser a primeira de cariz privado e pelos serviços (quase exclusivos) de escolta prestados às frotas
mercantis.

Na realidade, ultrapassadas que foram as questões de religião e fé junto da Inquisição


(trabalho muito desenvolvido pelo próprio Pe. António Vieira), foi possível avançar com a
criação, em 1649, daquela que é considerada como a primeira companhia privada europeia,
considerando, não só a origem do seu capital mas, e mais fundamental, o facto de ser
independente face aos poderes régios e religiosos. Na verdade, e contrariando a tendência das
restantes companhias europeias, nomeadamente, a Holandesa, “esta Junta, & o governo, será
independente com inhibição a todos os Tribunais, maiores & menores (…) porque como a
Companhia se forma de cabedal e substancia própria dos que a hão de governar (…) sem entrar
cousa alguma da fazenda de Vossa Majestade…”1.

É com base nestes pressupostos que é então estabelecida, na zona da Boavista e suas
imediações, a Companhia com todas as suas casas, armazéns e afins. A esse propósito:

(…) que por quanto desde o Caes da Madeira até à Boa vista, não há casas sufficientes para tão
grande machina, como he a fabrica de trinta & seis nauios de guerra, fazendas, acucares, vinhos
& mais cousas pertencentes a esta Companhia (…) E outrossi tomarão por aposentadoria todas

1
Instituição da Companhia Geral para o estado do Brazil, feita pellos Homens do commercio desta cidade e
confirmada por Alvará do Sr. Rey D. João 4º, que valesse como ley. Feito a 10 de Março de 1649. Maço 5 de
Leys a Num. 3: p. 3
as mais casas, & almazens, cubertos, & descobertos, de todo aquele destricto, do Corpo Santo,
ate Sam Paulo (…) 7 – Que por ser grande a fabrica de tão continuadas Armadas (…) que para
ellas he necessária, & o marítimo desta cidade tão embaraçado, que não ha lugar aonde se
acommodem, he Vossa Majestade seruido de lhe dar pera esse efeito os almazéns, que seruem
de infermaria aos forçados das gales, pera fabrica de pipas (…) e juntamente licença para
poderem fabricar alguns junto do mar, no lugar que mais conveniente lhe parecer desde Sam
Paulo, ate a boa vista, os quaes serão em forma que não prejudiquem a vizinhança.2

A instituição da Companhia Geral do Comércio para o Brasil foi, assim, uma nova
experiência, um contra-ataque de D. João IV à Companhia Holandesa das índias Ocidentais
entrincheirada em Pernambuco e Bahia (DIAS, 1976).

Por volta de 1662, esta Companhia é extinta, sendo criada a Junta da Companhia Geral
do Comércio, ou Junta do Comércio Geral do Brasil, que resultou da reconfiguração da anterior,
mantendo os mesmos objectivos mas, juridicamente, tornando-se de natureza estatal. Neste
sentido, o Despacho era realizado “dentro do Paço, na casa que está deputada para isso”
(Capítulo VI do Regimento da Junta do Comércio Geral – 1673). Esta Junta dispunha de amplas
instalações na cidade, que integravam estaleiros de construção e reparação naval. Este
complexo estava estrategicamente localizado na frente ocidental da Ribeira, algures entre a
Igreja de São Paulo e a velha praia de Santos, na frente sul da Rua Direita da Boavista e, a
poente, teria limite num Baluarte3, em “salgados e chãos da Câmara de Lisboa, aforados à Junta
em 1671 (CAETANO, 2014).

A estruturação da zona continuou posteriormente, sendo conhecida em finais do século


XVII como “Ribeira da Junta do Comércio”, uma área de construção e reparação naval onde
se instalaram as referidas companhias monopolistas do comércio com o Brasil, durante os
séculos XVII e XVIII (SARRAZOLA, 2014).

2
Idem, ibidem: p.5

3
Assume-se este Baluarte como sendo o Baluarte da Porta do Pó, que surge em diversas representações
iconográficas da época e que, em conjunto com o Forte de São Paulo, constituiria uma linha de defesa dos
terrenos/actividades da Junta. Para efeitos de análise comparativa da iconografia, recorreu-se ao artigo de Ana
Cristina Leite (2019) Uma vista desconhecida de Lisboa antes do Terramoto: problemáticas e possibilidades in
A imagem de Lisboa, O Tejo e as Leis Zenonianas da vista do mar. Lisboa: CML
Figura 1 – Pormenor do painel Grande Panorama de Lisboa (MNAZ1): vista da Praia da
Boavista, entre o Baluarte da Porta do Pó (amarelo, a Oeste) e o Forte de São Paulo (verde,
a Este). Ao centro (encarnado), a Junta do Comércio Geral do Brasil.

É, então, nesta fase, que esta área conhece uma ocupação com todo o tipo de
infraestruturas que se supõem como bases para uma actividade comercial, baseada numa
indústria naval cujos estaleiros ocupariam as praias fluviais de Lisboa. São hoje conhecidos
vários pontos de fundeadouro em Lisboa, que permitiam o acesso à cidade por via fluvial em
período Moderno, localizados entre a área do actual Campo das Cebolas e Belém,
nomeadamente, o ancoradouro do Restelo, Santo Amaro e o da Boa Vista ou Santa Catarina
(BETTENCOURT, 2018).
A expansão da área portuária construída de Lisboa é pois, mais evidente, sobretudo a
partir do século XVIII, nomeadamente, com a instalação da Casa da Moeda em S. Paulo (1720),
entre outras infraestruturas ao longo da antiga Praia da Boavista. Entre estas, destaque para o
Cais do Tojo da Boa Vista, reformulado em 1771 para embarque de lamas (GOMES, 2014),
bem como, a partir de 1756, o Paço da Madeira, instituição alfandegária que controlava, entre
outros produtos, a carga e descarga de madeiras. Perto do Paço da Madeira, existiria um
grande armazém, até aí ocupado com pipas de aguardente, assim como um outro de abóbada,
forrado de lajedo, que poderia conter mais de mil caixas de açúcar, ou igual volume
de tabaco, algodão, ou qualquer outro produto das Colónias Americanas, o qual pela sua
capacidade esperava-se que fosse muito útil por ocasião da chegada do Comboio do Brasil4.

Mais para oeste, já próximo de Belém, destaque-se a fundação da Cordoaria Real (séc.
XVIII) que passou a dar um relevante apoio a esta indústria que, até então, estava muito

4
CORREIO MERCANTIL (1798) – Arrendamentos. Lisboa. Disponível online em ttps://books.google.pt: p,296
dependente das importações, devido à pouca qualidade e quantidade dos cabos nacionais. À
Cordoaria, estava associada a Rampa de Escaleres (SARRRAZOLA et alli, 2015), posta a
descoberto no decurso da construção do MAAT - Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia.
Assim, entre os inícios do séc. XVI e os meados do séc. XVIII, Lisboa e a sua Ribeira, com
os seus estaleiros, cais, cordoarias, ferrarias, fundições, armazéns e alfândegas, estabelecem-se
como plataforma fundamental para o comércio nacional e internacional, ganhando destaque na
área da construção naval. Aos estaleiros da capital, acresceriam os do Algarve, Aveiro, Porto e
Sesimbra. 5

Fernão Lopes, já no séc. XV, apresentava a seguinte descrição a propósito de Lisboa6:

Havia outrossim mais em Lisboa estantes de muitas terras, não em uma só casa, mas muitas
casas de uma nação, assim como genovezes, e prazentins, e lombardos, e catalães d’Aragão, e
de Maiorca, e de Milão, que chamavam milanezes, e corcins, e biscainhos, e assim d’outras
nações a que os reis davam privilégios e liberdades, sentindo-o por seu serviço e proveito; e
estes faziam vir e enviavam do reino grandes e grossas mercadorias […]. E portanto vinham de
desvairadas partes muitos navios a ella, em guisa que com aquelles que vinham de fóra e com
que os que no reino havia jaziam muitas vezes ante a cidade quatrocentos e quinhentos navios
de carregação; e estavam á carga no rio de Sacavem e á ponta do Montijo, da parte de Riba-
Tejo, sessenta e setenta navios em cada logar, carregando de sal e de vinhos; e por a grande
espessura de muitos navios que assim jaziam ante a cidade, como dizemos, iam antes as barcas
d’Almada aportar a Santos, que é um grande espaço da cidade, não podendo marear por entre
eles.

A zona ribeirinha de Lisboa constituía-se, na realidade, como o culminar de toda uma


estrutura produtiva que se desenvolvia ao longo das margens do Tejo com ramificações para as
mais diversas partes do mundo.
Neste sentido, o extenso complexo portuário do Tejo dividir-se-ia em duas áreas:
- zona de estuário, incluindo os portos directamente em contacto com o estuário
- zona fluvial, incluindo os acessos navegáveis para montante das fozes dos afluentes,
nomeadamente, os cursos dos rios Nabão, Zézere e Sorraia (BLOT, 2003).

5“
A Ribeira de Lisboa era sem duvida o arsenal que funcionava com mais actividade “ (VITERBO, 1988)

6
LOPES, Fernão (1895), Chronica de El-Rei D. Fernando, vol. 1, Lisboa : Escriptorio, p. 8-9
Refiram-se genericamente, a este propósito, Sacavém, Montijo e Almada, locais onde se
iriam carregar o sal e o vinho, o Seixal com os seus estaleiros, o Barreiro com uma série de
infraestruturas associadas à empresa naval, nomeadamente, a indústria cerâmica da Mata da
Machada, a Fábrica Real do Biscoito (suportada pelos moinhos de maré, nomeadamente, o do
Duque, do Maricote, o d’El-Rei e o de Palhais), os Fornos de Cal e os Estaleiros Navais da
Ribeira das Naus do Coina, em Telha Velha.

Figura 2 – De Abrantes a Almada, alguns dos portos que davam apoio logístico à Ribeira
das Naus

Na margem Sul, do Rio Coina até à Ribeira das Enguias (Alcochete), e numa posição
privilegiada relativamente a outros pontos mais distantes, parece existir uma certa unidade
económica (séc. XV e XVI) que parece ter servido de apoio logístico à capital, nomeadamente,
à actividade da construção naval e às diferentes expedições que dali partiam e chegavam.
(VENTURA, 2007)

Relativamente aos diferentes pontos de articulação ao longo do Tejo, destaque-se o


fornecimento de madeira para construção das embarcações que, durante o séc. XVI beneficia
de um alargamento das áreas de exploração de madeira a espaços bastante distantes, havendo,
no entanto, uma preocupação estratégica na sua escolha fazendo coincidir a qualidade da
matéria-prima com a proximidade das principais vias de comunicação. O sobro, ainda que se
extraísse do alto Tejo (Abrantes), procurava-se sobretudo a Sul, especialmente nas margens do
rio Sado em toda a sua extensão desde as proximidades de Alcácer do Sal, de onde também
provinha grande parte da madeira de pinheiro manso para as estruturas principais dos navios,
até Setúbal, enquanto a exploração do pinheiro bravo se estendia pelas margens do Tejo, cada
vez mais a montante do antigo concelho de Ribatejo.7 (VENTURA, 2007)

Para além da madeira, a margem sul do Tejo, não sendo um espaço produtor de cereais,
tomou partido dos diversos esteiros e, conforme referido anteriormente, nestes foram
implantados uma série de moinhos de maré, desde Mutela à Aldeia Galega, onde se procedia à
moagem do trigo. Estes, por sua vez, forneciam o complexo de fornos de biscoito de Vale de
Zebro, para além do fornecimento directo de farinha e derivados a Lisboa. Em Lisboa, a este
propósito, destaque-se o moinho de maré da Ribeira de Alcântara, que funcionou entre os séc.
XIII e XVIII, atestando a relevância deste tipo de estruturas no normal funcionamento da
cidade desde os tempos mais remotos.

Aos produtos anteriormente referidos, acresce a produção de sal, ambientalmente


favorecida na margem sul do Tejo, nomeadamente, desde a foz de Sabonha e da ribeira de
Aldeia Galega até à parte ocidental do antigo concelho de Alhos Vedros. (VENTURA, 2007)

Todo este processo de circulação de matérias-primas e produtos, acaba por desencadear


um aumento de tráfego fluvial onde as “barcas dos moinhos” circulavam num vaivém
incessante, transportando o cereal, a farinha e o pão. (VENTURA, 2009): este movimento
fluvial era extensível a todos os produtos acima mencionados, sempre assegurado por
embarcações de pequeno porte, dado que eram as que conseguiam transitar com maior
facilidade entre os diversos esteiros e ao longo do rio.

Esta movimentação e estabelecimento de inúmeras unidades fabris e estaleiros ao longo


das margens do rio, acabam por decorrer no surgimento de uma série de pólos económicos que

7
Refira-se, no entanto, que as quantidades de madeira disponíveis, conduziram à procura de madeira noutras
paragens: relativamente aos toros afeiçoados encontrados armazenados no estaleiro do séc. XVIII do Boqueirão
do Duro (MACEDO et alli, 2016), de acordo com o Laboratório de Dendrocronologia da Universidade de
Coimbra, correspondem a importações do Norte da Europa. À falta de madeira, que se começa a sentir em
meados do século XV, Portugal responde com a importação de madeira do Norte da Europa (OLIVEIRA, 2020:
80-81)
se desenvolvem regionalmente na consequência do forte crescimento da empresa naval
portuguesa.

Será este conjunto de estruturas que funcionavam em simultâneo que tornaram a


Ribeira das Naus num complexo geograficamente muito superior ao que lhe designou o nome,
estendendo-se de Lisboa até à margem sul e a outros portos mais a norte, ao longo do Tejo, até
Abrantes.

2.

3. Contextos Arqueológicos
Colocando o enfoque nos estaleiros navais, ao longo da margem do Tejo,
nomeadamente, na região de Lisboa, a sua existência tem sido largamente comprovada ao
longo dos últimos anos, através da descoberta de uma série de contextos arqueológicos
preservados, nomeadamente, rampas, áreas de armazenamento de matérias-primas, zonas de
depósito de pré-formas, entre outros. Estas realidades, em consonância com as fontes
iconográficas e outras fontes documentais, atestam a forte actividade de construção, reparação
e desmantelamento de embarcações que ocorria ao longo de toda a zona ribeirinha, desde a
Ribeira das Naus até Belém, nomeadamente, entre os séc. XVII e XVIII.
Figura 3 – Vista do Palácio do Marquês de Abrantes (actual Embaixada de França) para a
antiga Praia da Boa Vista onde são visíveis diversas embarcações fundeadas e sinais de
construção naval dispersos ao longo da praia (autor desconhecido – 1ª metade do séc.XVIII)

Estes espaços de trabalho, de acordo com algumas das fontes, integrariam:

(…) madeyra, e todos os achegos, como sam pregadura, breu, estopa e quaisquer outros segundo
costume dos navios e terras, como seuo/ betume, e chumbo.O seuo pera navios de remo, e o
betume nas terras quentes contra o gusano, e chumbo pera nas navegações longas emparar a
estopa q a nam descarafete a agua […]Ancoras, remos, lemes e mastos haja nas taracenas e(m)
abasntãça porque sã cousas que se gastam/ e ham se meter cada dia de nouo […] cabrestantes,
cadernaes, rodas, carretes, e outros semelhantes.8

Ainda que se saiba pelas fontes documentais, que estas unidades começam a surgir no
início do séc. XVI, as evidências arqueológicas conhecidas até ao momento situam-se
cronologicamente, entre finais do séc. XVII e XVIII, nomeadamente, na zona da antiga praia
da Boa Vista. Destacam-se três dos diversos sítios arqueológicos identificados, pela forma clara
como evidenciam as actividades de construção e reparação naval.

8
Segundo o Padre Fernando Oliveira na sua obra “Arte da Guerra do Mar”, de 1555 (OLIVEIRA, 1969)
Praça D. Luís I

Figuras 4 e 5 - Vistas dos planos final e inicial da rampa do estaleiro da Praça D. Luís I

A estrutura identificada na Praça D. Luís I encontra paralelos em rampas de estaleiros dos


séculos XVII e XVIII, nomeadamente, em Amsterdão (Hogendijk e Oostenburg)9, o que indica que
terá tido como função principal actividades relacionadas com a construção ou reparação de navios.

Estas estruturas caracterizam-se pela utilização de várias camadas de madeira horizontais, que
regularizavam a topografia das áreas de implantação, fixas entre si a estacaria vertical. Tal como
a rampa escavada no estaleiro de Hogendijk (Amesterdão), na sua construção foram reutilizados
elementos provenientes de navios desmantelados, sobretudo nas camadas inferiores (MACEDO
et alli, 2011). Pela sua cronologia, estará relacionada com a Junta do Comércio do Brasil e com
a sua actividade de construção naval, bem definida desde a sua Instituição inicial (estava
prevista a construção de 36 embarcações que fariam “comboio” para as embarcações que
realizariam a Carreira do Brasil).

9
MOSER, Jason D. (2011) The Art and Mystery of Shipbuilding": An Archaeological Study of Shipyards,
Shipwrights and Shipbuilding in Somerset County, Maryland 1660-1900. Electronic Theses, Treatises and
Dissertations. Paper 2232. http://diginole.lib.fsu.edu/etd/223, pp. 296-106
Embarcações Boa Vista 1, 2 e 5
Durante a construção da Sede da EDP e do empreendimento adjacente, a descoberta
das embarcações Boa Vista 1, Boa Vista 2 e Boa Vista 5, analisada de forma integrada com
os restantes vestígios de carácter portuário (paliçadas, passadiços, pontões, cais, rampas) e com
outras embarcações de pequeno porte suas contemporâneas (Boa Vista 3 e 4, registadas nas
proximidades), remetem-nos de forma quase natural, para o descrito nas actividades que seriam
levadas a cabo pela supra mencionada Junta do Comércio desde a sua forma original, enquanto
Companhia Geral para o Estado do Brasil (a partir de 1649) até 1836 (altura da extinção da
Junta do Comércio), nomeadamente, no que à construção e reparação naval se refere.

Ainda que não existam ainda dados mais concretos sobre o local de construção destas
estruturas, não se pode descartar a possibilidade de corresponderem a projectos de construção
naval nacional10. Por outro lado, numa abordagem preliminar aos elementos de lastro
recolhidos em associação com o Boa Vista 5, a equipa do LARC (Laboratório de
Arqueociências da Direção Geral do Património Cultural) refere que parte dos elementos
constituintes teriam origem na zona de Cascais. Eventualmente, com o evoluir da análise destes
elementos, até se poderá vir a constatar que parte do lastro seria proveniente da própria Praia
da Boavista. O Conde de Villa Nova, em finais do séc. XVIII, relatava: “no anno de 1781 sendo
Administrador meu e da minha Caza meu Avó Manoel de Lorena vendo o grave damno que
cauzava a extraçáo do lastro que se tirava da Praya a fez embargar”11. Só os resultados finais
da análise sobre as diversas amostras recolhidas poderá indicar o seu local de origem e os
diversos pontos por onde possa ter passado.

10
Em tese defendida em Maio de 2022, Gonçalo Lopes (CHAM/FCHS/UN) defende que a Boa Vista 1 se trata,
pelas suas assinaturas arquitecturais, de uma embarcação híbrida, reunindo características mediterrânicas e
atlânticas.

11
PT-TT-MR-EXP-051-0062-00018
Figura 6 – Vista do Boa Vista 5 (ERA Arqueologia)

Por outro lado, a análise genérica dos espólios associados a estas embarcações,
nomeadamente dos vestígios oegânicos, remete quase de imediato para a Carreira do Brasil:
desde búzios de grandes dimensões, a côcos (tanto na sua forma original, como brunidos e
decorados), a sementes de cacao, todos apontam para que estes navios e as sua tripulações
tenham navegado por/para climas tropicais.

Boqueirão Do Duro
Neste local (actuais escritórios Vieira d’Almeida), os depósitos correspondentes, grosso
modo, ao século XVIII, sugerem que a praia foi ocupada por um estaleiro naval, onde se
desmantelaram embarcações, armazenaram matérias-primas em bruto12 e equipamentos

12
Algumas peças apresentam uma marca gravada na face lateral “ΔXXΔ”, à qual, até ao momento, não foi possível
atribuir um significado devido à inexistência de paralelos conhecidos. No entanto, a possibilidade de se tratar
de marcas do madeireiro, do proprietário, referência à sua funcionalidade final, ou preparação dentro de uma
náuticos (p.e. pré-formas de cavernas, pequenas embarcações, âncoras e lastro) (MACEDO et
alli, 2017).

Figura 7 – Área de armazenagem de cavernas em pré-forma (ERA Arqueologia SA)

Figura 8 – Área de desmantelamento de embarcações (ERA Arqueologia SA)

Este local, para além da sua função inicial como estaleiro naval, posteriormente, terá
passado a funcionar como entreposto comercial, servindo para troca de diferentes mercadorias
(p.e.porcelanas) e de aprestos marítimos, podendo-se aventar a possibilidade de estar
relacionado com o antigo Paço da Madeira que se localizava nas imediações (MATEUS, 2018).
Esta hipótese, fundamenta a importância da Praia da Boa Vista durante o séc. XVIII,
considerando que era um espaço que reunia diversas instituições públicas relevantes: Casa da

cadeia operatória específica, serão opções a considerar no âmbito da pesquisa em curso. (MACEDO et alli,
2016)
Moeda, Junta do Comércio e o Paço da Madeira, para além de ser nesta zona da cidade que
moravam diversos dos notáveis da sociedade ligados às mais diversas actividades económicas.

4. Considerações Finais
Entre os séc. XVI e XX, a cidade de Lisboa é palco para o nascimento e
desenvolvimento de uma estrutura complexa dedicada à construção naval e à organização e
gestão de expedições pelos diferentes mares e oceanos: a Ribeira das Naus.

Fruto de uma acção da Coroa (séc. XVI), com o evoluir político, económico e social do
país, esta indústria, a partir de meados do séc. XVII, passa a contar com o forte apoio da
iniciativa privada e o que, no início, se localizava nas imediações do centro decisor da capital,
cresce e entende-se para a zona ocidental da cidade, ocupando as praias da zona ribeirinha.

Lisboa, no entanto, seria o fim de uma cadeia produtiva que se desenvolvia ao longo
das duas margens do Tejo, desde Lisboa até Abrantes, contribuindo cada porto e cada esteiro
para um resultado comum: a construção naval e o abastecimento da cidade e das diferentes
expedições marítimas.

A criação, na zona da Boavista, da Companhia Geral para o estado do Brazil, (1649),


constitui-se como uma formalização da actividade da construção/reparação naval e de outras
actividades subsidiárias nesta zona, tornando-se num ponto de paragem obrigatório para
embarcações nacionais e estrangeiras.

Figura 9 - Vista Panorâmica de Lisboa (segmento central - Boavista), Clement Lempriere,


atribuído, c. 1709, colecção José Manuel Conceição (Gabinete Estudos Olissiponenses
Oiteiro da boa vista/ comparapeitos de pedra/ onde tem gente do mar (…) Daqui numa larga
praya/ fermosa por excellencia/ parecem muytos nauios/ que vem de partes diversas/ São varias
embarcações/ de alto bordo, & das rasteiras/ Vrcas, naos, galès, pataxos/ fetias, & carauellas./
Aqui se lanção a monte, 201,/ & de ordinário daõ crena/ fazem de nouo, & e desfazem/ as
embarcações já velhas (…) Adiante esta Sam Paulo/ onde nações estrangeiras (…) parecem dar
obediência” (Relaçam, em qve se trata, e faz, hua breue decrição dos arredores mais chegados
à Cidade de Lisboa (…) (1970) Reprodução fac-similada. Lisboa. Publicações Culturais da
Câmara Municipal de Lisboa: pp. 5-6)

Numa abordagem genérica às fontes documentais, é possível perceber que o


funcionamento de estaleiros nesta zona terá sido prática corrente até finais do séc. XVIII. 13
Neste quadro, não é de descartar que a continuidade, em termos de malha urbana, dos estreitos
e longos lotes que se desenvolvem entre a Rua de São Paulo e a actual Av. 24 de Julho,
entrecortados pelos diversos Boqueirões, se constitua como reminiscência dos antigos lotes
ocupados pelos diversos estaleiros que ali existiriam e que, a partir do séc. XIX, passam a ser
ocupados pelas diversas indústrias que ali se foram instalando, aproveitando o espaço existente
e a proximidade ao rio (siderurgias, metalurgias, vidros, cerâmicas, entre outras). São hipóteses
que só poderão vir ser confirmadas (ou não) pela análise sistemática dos documentos
contemporâneos existentes para aquela área da cidade.

É no cruzamento das fontes arqueológicas com as fontes iconográficas e documentais,


que se procuram novos dados sobre as actividades de construção/reparação naval que se terão
desenrolado em Lisboa, desde os primórdios da Ribeira das Naus até 1938, altura em que o
Arsenal da Marinha de Lisboa foi desactivado e transferido para o Alfeite, e reflectem uma
profunda articulação entre a capital e os diversos portos existentes ao longo do Tejo.
O que é uma realidade, é a aposta permanente, ao longo de três séculos, no
desenvolvimento da indústria naval e de todas as suas indústrias subsidiárias, desde Abrantes,
Vila Franca de Xira, passando por Sacavém, toda a faixa entre Alcochete, Barreiro, Seixal e
Almada e toda a zona ribeirinha de Lisboa até Belém.
A Ribeira das Naus terá sido, na verdade, o Tejo em toda a sua extensão.

13
Arquivo Histórico da Marinha: Diques , Docas e Estaleiros (s/d 1696-1910) – cx. 201 - surgem referências em
1756 à solicitação, por Manoel Vaz Cordova para estabelecer um estaleiro mos terrenos da Marinha; em 1783,
são referidos estaleiros em funcionamento na Praia da Boavista, tendo por proprietária Inês Maria Caetana.
BIBLIOGRAFIA

BETTENCOURT, J., COELHO, I. P., FONSECA, C., LOPES, G., CARVALHO, P., SILVA, T.
(2018), Entrar e sair de Lisboa na época moderna: uma perspectiva a partir da
arqueologia marítima, in Meios Vias e Trajectos, CML, CAL, SGL, Lisboa.
BLOT, Maria Luísa (2003), Os portos na origem dos centros urbanos in Trabalhos de
Arqueologia, nº28, MC/IPA, Lisboa.
CAETANO, Carlos (2008), Armazéns da Junta da Companhia Geral do Comércio in Lisboa
em Azulejo antes do Terramoto de 1755, Projecto de Investigação, PTDC/EAT-
EAT/099160/2008, Instituto de História da Arte FCSH-Universidade NOVA de Lisboa,
acedido em 15 de Dezembro de 2021, https://lisboaemazulejo.fcsh.unl.pt/.
CASALILLA, Bartolomé (2011), Os impérios ibéricos e a globalização da europa séc. XV-
XVII, Temas e Debates, Lisboa
DIAS, Manuel Nunes (1976), Companhias versus companhias na competição colonial in
Revista Portuguesa de História, tomo XVI. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra: p. 97
GOMES, A. (2014), Os caes do sítio da Boavista no século XVIII: um estudo arqueológico de
estruturas portuárias, Dissertação de Mestrado em arqueologia, FCSH, Lisboa,
policopiado: pp. 104-105
LEITE, Ana Cristina (2019) Uma vista desconhecida de Lisboa antes do Terramoto:
problemáticas e possibilidades in A imagem de Lisboa, O Tejo e as Leis Zenonianas da
vista do mar. Lisboa. CML
LOPES, Fernão (1895), Chronica de El-Rei D. Fernando, vol. 1, Lisboa : Escriptorio
MOSER, Jason D., (2011) The Art and Mystery of Shipbuilding: An Archaeological Study of
Shipyards, Shipwrights and Shipbuilding in Somerset County, Maryland 1660-1900".
Electronic Theses, Treatises and Dissertations. Paper 2232.
http://diginole.lib.fsu.edu/etd/223, pp. 296-106
OLIVEIRA, Fernando Pe. (1969) Arte da Guerra do Mar. Colecção Documentos nº1. Edição
Ministério da Marinha. Lisboa
OLIVEIRA, Liliana (2020) Políticas Régias de Logística Naval (1481-1640), CITCEM,
Edições Afrontamento, Porto.
SARRAZOLA, A., MACEDO, Marta, FREITAS, Teresa, PONCE, Mónica (2015), A rampa
dos escaleres à Real Cordoaria, Belém/Junqueira (séc. XVIII), Apontamentos 10,
NIA/ERA Arqueologia, Cruz Quebrada.
SARRAZOLA, A.; BETTENCOURT, J.; TEIXEIRA, A. (2014): Lisboa, o Tejo e a expansão
portuguesa: os mais recentes achados arqueológicos da zona ribeirinha in O Tempo
Resgatado ao Mar – Catálogo da Exposição. Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa.
VENTURA, António (2007) A “Banda D`Além” e a cidade de Lisboa durante o Antigo
Regime: uma perspectiva de História Económica Regional Comparada, tese
apresentada à Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa.
VITERBO, Sousa (1988) Trabalhos Náuticos dos Portugueses Séculos.XVI e XVII. Edição
fac-similada. Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa.
FONTES
CORREIO MERCANTIL (1798) – Arrendamentos. Lisboa. 51, disponível online em
ttps://books.google.pt
Instituição da Companhia Geral para o estado do Brazil, feita pellos Homens do commercio
desta cidade e confirmada por Alvará do Sr. Rey D. João 4º, que valesse como ley. Feito
a 10 de Março de 1649. Maço 5 de Leys a Num. 3
MACEDO, Marta et alli (2011) Relatório final dos trabalhos Arqueológicos na Praça D. Luís
I, texto policop., Era Arqueologia, Cruz Quebrada.
MACEDO, Marta et alli (2016) Relatório final dos trabalhos Arqueológicos Boqueirão do
Duro, texto policop., Era Arqueologia, Cruz Quebrada.
Relaçam, em qve se trata, e faz, hua breue decrição dos arredores mais chegados à Cidade de
Lisboa (…) (1970) Reprodução fac-similada. Lisboa. Publicações Culturais da Câmara
Municipal de Lisboa: pp. 5-6
Arquivo Histórico da Marinha. Índice 32 (s/d 1696-1910) (caixa 201) - Diques, Docas e
Estaleiros (documentação avulsa)
Torre do Tombo PT-TT-MR-EXP-051-0062-00018

Você também pode gostar