Inter/multi/transdisciplinaridades em Estudos
Linguísticos, Literários e Formação de
Professores: inovações, reflexões e práxis
CARLOS ALBERTO TURATI
HELTON MARQUES
PAULO GERSON RODRIGUES STEFANELLO
[Orgs.]
_________________
Livro organizado a partir das conferências e trabalhos apre-
sentados no I Encontro Brasileiro sobre Internacionalização e
Inovação em Estudos Linguísticos, Literários e Formação de
Professores de Línguas, realizado entre 18 e 22 de outubro de
2021 pelo Curso de Letras da Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul, U.U. Cassilândia-MS.
_________________
ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
CAPÍTULO VINTE
TRADUÇÃO E QUADRINHOS NA AULA DE
LÍNGUA INGLESA NO ENSINO MÉDIO
________________
TRANSLATION AND COMICS IN HIGH SCHOOL ESL CLASSES
_____________
André Luiz Moura e Santos
Michele Eduarda Brasil de Sá
INTRODUÇÃO
Pensar a língua inglesa como “língua franca” e não como “estrangeira”
não é apenas uma questão de nomenclatura; revela uma postura teórica. To-
mando a língua como estrangeira, tratamo-la como do outro, pertencente aos
países anglófonos. Na condição de franca, compreendemos a língua de forma
desterritorializada, globalizada e intercultural. Esse deslocamento de visão é
importante, se se considerar que a língua inglesa é mais falada no mundo como
segunda língua do que como primeira, e que seus falantes (não-nativos) estão
espalhados por todos os continentes48 .
Essa perspectiva influencia o estudo e o aprendizado da língua inglesa
como segunda língua. No Brasil, a Base Nacional Comum Curricular (doravante
BNCC) já versa sobre os “usos cada vez mais híbridos e miscigenados do inglês,
característicos da sociedade contemporânea” (2017, p. 484). Não se deseja
mais o ensino voltado para o falar nativo, buscando precisão, domínio, padroni-
zação e apontamento de erros. Antes, aceita-se a singularidade e a variedade,
valorizando repertórios e a criatividade/invenção (BRASIL, 2017, p. 485). Assim,
os estudantes são motivados a explorarem as multiplicidades de uso da língua
inglesa, o que os aproxima de práticas culturais do mundo globalizado. Confor-
me a BNCC (2017, p. 485),
48
Segundo dados do site Ethnologue, 67% dos falantes da língua ingle-
sa são não-nativos que estão espalhados por 146 países diferentes.
295
ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
as aprendizagens em inglês permitirão aos estudantes usar essa língua
para aprofundar a compreensão sobre o mundo em que vivem, explorar
novas perspectivas de pesquisa e obtenção de informações, expor ideias
e valores, argumentar, lidar com conflitos de opinião e com crítica, entre
outras ações.
No Mato Grosso do Sul, talvez por costume ou por desconhecimento te-
órico, o componente curricular ainda se chama “Língua estrangeira moderna”49
. Apesar disso, cabe ao professor de Inglês estar atento a essa mudança de
perspectiva, orientando suas aulas segundo a visão intercultural da língua e
focalizando processos de construção de repertório linguístico dos estudantes,
como quer a BNCC. Não se deve perder de vista ainda a grande variação que
existe entre as próprias comunidades anglófonas, que levou David Crystal a es-
crever sobre os New Englishes e a dialetalização da língua inglesa em seu livro
English as a global language.
Visando contribuir com práticas de ensino da língua inglesa no ensino
médio, esta pesquisa verifica as abordagens teóricas atuais (e relevantes) a
respeito de quadrinhos e de tradução, examinando a aplicabilidade de ambos,
em conjunto, no contexto escolar. Essa proposta vai ao encontro do texto da
BNCC, nos pontos já referidos de expansão de repertório e de multiplicidade de
uso, mas também de reflexão sobre a língua e sobre as relações entre língua e
linguagens não-verbais.
O levantamento de referências bibliográficas mostrou que tanto os Estu-
dos de Tradução quanto as pesquisas teóricas sobre os quadrinhos têm expe-
rimentado um incremento no Brasil nos últimos anos. Entretanto, não encon-
tramos trabalhos acadêmicos que contemplassem a abordagem que propomos
aqui, qual seja, a tradução de histórias em quadrinhos voltada a práticas de
ensino da língua inglesa.
A pesquisa foi planejada com base em três etapas pré-definidas. Inicial-
mente, nosso esforço se concentrou no estudo de teorias de tradução e da na-
tureza linguística dos quadrinhos enquanto hipergênero; em seguida, discuti-
remos os principais desafios de ensino de língua inglesa no recorte escolhido
(ensino médio); ao cabo desse processo, convergiremos o conhecimento pro-
duzido de modo a pensar estratégias para o uso da tradução de quadrinhos nas
aulas de língua inglesa.
Até o presente momento, realizamos a primeira etapa da pesquisa, o apro-
49
Assim foi chamado no edital nº 01/2018, que visou a abertu-
ra de concurso para contratação de professores para atuarem nas esco-
las da rede estadual, publicado no Diário Oficial nº 9.756, em 4 de outubro de 2018.
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ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
fundamento dos estudos teóricos relacionados aos temas. Apresentaremos, a
seguir, os resultados dessa etapa, indicando os pontos mais relevantes do es-
tudo. Com Ramos e Santos (2020), observamos como os quadrinhos aparecem
no texto da BNCC; com Ramos (2015), vimos a importância da inserção dos
quadrinhos na formação dos professores; com Liberatti (2016), refletimos sobre
meios de ensinar tradução de quadrinhos; e com Zanettin (2018), conhecemos a
história da tradução de quadrinhos e os elementos linguísticos envolvidos, que
vão além da tradução da palavra escrita.
METODOLOGIA
O histórico da presença dos quadrinhos na sociedade e, mais especifica-
mente, na educação, revela um processo de desmistificação. Antes, acredita-
va-se que “histórias com imagens afastariam as crianças da ‘boa leitura’ e que
os quadrinhos tornariam a juventude com ‘preguiça mental’” (RAMOS, 2015, p.
434). O artigo “A leitura de ‘gibis’ leva ao crime!” (imagem abaixo), assinado por
Plinio Cabral e veiculado pelo jornal gaúcho Panfleto, na década de 1950, revela
a crença de que os quadrinhos poderiam desviar a mentalidade da juventude,
fornecendo exemplos de crimes hediondos, que as crianças (“meninos quadri-
lheiros”) passariam a imitar. Além disso, a escritora brasileira Cecília Meireles
também se colocou contra a leitura de histórias em quadrinhos na infância, ar-
gumentando que a presença das imagens dispensaria o exercício de imagina-
ção do leitor (apud RAMOS, 2015, p. 435).
Imagem 1: Recorte do Jornal "Panflêto"
Fonte: Hemeroteca da Biblioteca Nacional.
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ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
Sendo assim, até certo momento, vigorou a centralidade do texto escrito,
e a leitura de histórias em quadrinhos ficou marginalizada. A partir da década
de 1970, os quadrinhos começaram a aparecer em documentos de políticas de
educação, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) e a BNCC (RAMOS; SANTOS, 2020, p. 892). Como
resultado, as histórias em quadrinhos, sobretudo as tirinhas, aparecem com fre-
quência nos livros didáticos, em vestibulares e no Enem. Segundo Ramos e San-
tos, “não se tratava mais de uma produção indevida ou marginal, mas, sim, de
uma leitura válida, inclusive por conter imagens” (2020, p. 892).
Para que o ingresso dos quadrinhos no universo educacional brasileiro
ocorresse, passando de leitura clandestina à permitida, algumas propostas teó-
ricas precisaram ganhar terreno entre os profissionais da educação. É o caso da
teoria de gêneros textuais de Bakhtin, com a qual foi possível ampliar o conceito
de texto e incluir outras modalidades discursivas. Segundo Ramos (2015, p. 436-
438), “produções com diferentes signos, tanto de ordem verbal quanto visual,
passaram a compor o material lido pelo aluno e a ele distribuído no circuito esco-
lar. Mesmo o conceito de letramento precisou ser rapidamente ampliado”.
Observando as maneiras como as histórias em quadrinhos aparecem no
texto da BNCC, Ramos e Santos (2020, p. 897) notam que elas são abordadas
por esse documento de duas formas: 1. Como prática de leitura, valorizando a
construção de sentidos, as relações entre palavras e imagens e a interpretação
de recursos gráficos; e 2. Como produção textual, motivando o planejamento e
a produção de narrativas visuais.
Para os autores, essas “são premissas que permitem ao docente pensar
em formas plurais de uso junto aos alunos” (2020, p. 897), mas fazem uma crí-
tica: segundo eles, “a interpretação feita no documento evidencia uma falta de
familiaridade sobre os quadrinhos” (2020, p. 893).
De fato, na BNCC, os quadrinhos (nos seus diversos formatos: tirinha, tira,
charge, cartum, etc), aparecem como integrantes de um escopo maior, o literá-
rio, que serve de guarda-chuva para um rol de gêneros textuais diferentes entre
si, apenas unidos pela leitura. Isso é, para Ramos e Santos, uma “imprecisão”.
Para eles, as histórias em quadrinhos são um hipergênero, que, como explicam
(2020, p. 902),
abrigaria todas as suas diferentes formas de produção, cada uma delas
autônoma e distinta uma da outra. O que justificaria o agrupamento maior
seriam os aspectos comuns, como a tendência ao uso de narrativas e a uti-
298
ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
lização de uma linguagem própria aos quadrinhos (como os balões, as ono-
matopeias, os quadros que compõem as histórias).
Vimos até aqui que os quadrinhos aparecem nos documentos relaciona-
dos à educação brasileira, nos livros didáticos e nos exames/vestibulares (em-
bora críticas possam ser feitas, como também vimos). Por causa disso, Ramos
(2015, p. 438) aponta para “a necessidade de inserção dos quadrinhos no plane-
jamento educacional dos cursos de formação de professores”.
Segundo Ramos, apesar de os quadrinhos serem textos multimodais que
compõem o circuito de produções a serem trabalhadas na escola, não há contra-
partida, isto é, “não se discutem formas de como transpor tais conteúdos para a
realidade de sala de aula” (2015, p. 437). Ramos aponta para a necessidade de
“maior detalhamento e mesmo melhor compreensão do ponto de vista teórico”
e de “levar o professor a pensar de forma crítica essa forma de produção” (2015,
p. 433), os quadrinhos.
É neste ponto que entra a proposta de Liberatti (2016), que objetiva criar
um material didático para a formação de tradutores de histórias em quadrinhos.
Diferentemente de Ramos (2015) e Ramos e Santos (2020), Liberatti (2016) traz
o elemento da tradução. Isso não é um problema, pois a tradução implica, neces-
sariamente, leitura aprofundada e reflexão sobre as linguagens envolvidas.
A proposta de Liberatti, apesar de não se voltar para o contexto escolar
(ocupa-se da formação de tradutores profissionais), contribui com a conscien-
tização das especificidades de linguagem dos quadrinhos, apontando os princi-
pais desafios da tradução desse gênero textual.
Para esboçar uma definição de histórias em quadrinhos, o que é uma
tarefa difícil para um gênero tão híbrido, Liberatti apresenta a definição que ela
acredita ser a mais inclusiva. Trata-se de uma arte narrativa visual que produz
sentido através de imagens que estão em relação sequencial e que coexistem
umas com as outras no espaço, com ou sem texto (MILLER apud LIBERATTI,
2016, p. 185). Além disso, Liberatti volta à noção de hipergênero, como defendi-
da por Ramos, e que já apresentamos aqui.
Sobre os desafios da tarefa de tradução de quadrinhos, que, como dis-
semos, relaciona-se à própria natureza visual do gênero, Liberatti (2016, p. 186-
187) aponta alguns pontos importantes.
1. A relação entre texto, imagens e cores às vezes acarretará em situações
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ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
impossíveis de serem traduzidas. Nesses casos, a intervenção ou retoque
na arte pode ser uma saída, mas isso demanda tempo e dinheiro. Além
disso, “fãs normalmente não veem com bons olhos essas modificações
estéticas”;
2. Marcas culturais podem aparecer tanto no texto verbal quanto no não-
-verbal. Cabe ao tradutor saber identificá-las, pois podem criar uma bar-
reira na comunicação. Uma saída pode ser a inserção de nota de rodapé
explicativa;
3. Onomatopeias “podem ser específicas à língua/cultura e de difícil cor-
respondência na língua do texto alvo”;
4. Casos em que há jogos de palavras que “só atingem sua função se
ligados às imagens” também trazem situações complexas de serem tra-
duzidas, como demonstra a tirinha abaixo, do personagem Peanuts, em
que há uma confusão promovida pela polissemia do termo perfect pitch
na língua inglesa;
Imagem 2: Polissemia em Peanuts com a expressão perfect pitch
Fonte: http://peanuts.wikia.com/wiki/October_1952_comic_strips
5. O espaço e o equilíbrio estético da página interferem na tarefa da tradu-
ção, pois se busca manter a mesma extensão do texto base, “para que o
tamanho do balão não necessite de retoques” (2016, p. 188). É importante
ser direto e sintético, pois o espaço é limitado;
6. As marcas de oralidade ganham relevância, pois o tradutor precisa en-
contrar um equilíbrio entre a “reprodução de um texto escrito que repre-
sente a fala do personagem” (2016, p. 189, grifos da autora). É preciso
conhecer idiossincrasias da fala de personagens e saber diferenciar re-
gistros formais e informais, idioletos, socioletos, refletindo qual a opção
equivalente na língua alvo.
300
ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
Os apontamentos de Liberatti nos fazem pensar em possíveis ganhos
pedagógicos proporcionados pelo estudo da tradução de quadrinhos. Leva os
alunos a refletirem sobre as relações entre texto e imagem, para que possam ler
e produzir textos multimodais com mais eficiência. Coloca-os em contato com
a diversidade cultural e linguística presentes nos quadrinhos. Permite-lhes, tam-
bém, explorar semelhanças e diferenças entre as línguas portuguesa e inglesa,
articulando essas informações linguísticas a aspectos culturais e sociais.
Já as contribuições de Zanettin (2018) ajudam a localizar as histórias
em quadrinhos entre outras formas gráficas de narrativa. Ele explica que os
quadrinhos se desenvolveram gradualmente a partir do letramento visual e da
incorporação de elementos gráficos preexistentes (2018, p. 445). Todavia, como
formato específico, as histórias em quadrinhos têm uma série de caracterís-
ticas semióticas que as distingue de outras formas gráficas de narrativa. Os
quadrinhos possuem uma gramática própria: a presença de balões de diálogo e
também “a combinação de imagens e palavras dentro de painéis e uma série de
emanatas”50 (ZANETTIN, 2018, p. 445), que são toda sorte de símbolos que ex-
primem de forma eficiente movimentos e emoções que não existem na vida real.
Alguns exemplos são as nuvens de poeira para representar velocidade de movi-
mento e as linhas em volta da cabeça de um personagem para indicar surpresa.
Os códigos visuais que caracterizam as histórias em quadrinhos come-
çaram a aparecer, segundo Zanettin (2018, p. 447), no século XIX, em narrativas
gráficas em que o formato quadrinhos ainda não estava estabelecido. É o caso
das histórias Max und Moritz (1865), de Wilhelm Busch, que já utilizavam linhas
de ação e onomatopeias, “começando assim a desenvolver um código visual
único”51 (ZANETTIN, 2018, p. 447). É o caso também de Ally Sloper (1884), de
Charles H. Ross e Marie Duval, primeiro personagem a ter uma revista seria-
lizada, alcançando a marca de 1,5 milhão de cópias semanais em circulação,
em 1893. Foram as primeiras histórias a utilizar os balões de diálogo como os
entendemos hoje.
A narrativa The Yellow Kid (1896), de Richard F. Outcalt, é considerada a
primeira história em quadrinhos propriamente dita (ZANETTIN, 2018, p. 447).
Nela, já se reuniam alguns códigos visuais do formato e também se exploravam
as recentes possibilidades tecnológicas de impressão offset colorida, que co-
50
Tradução nossa. No original: The combina-
tion of images and words within panels and an array of emanata.
51
Tradução nossa. No original: Thus beginning to develop a visual code unique to graphic narrative.
301
ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
meçou a ser utilizada em 1892 (ZANETTIN, 2018, p. 448), como mostra a tirinha
abaixo.
Imagem 3: The Yellow Kid em impressão offset colorida
Fonte: https://cartoons.osu.edu/digital_albums/yellowkid/HoganAlley_Enlar-
ge/D_1632.jpg
Conforme Zanettin, no início do século XX, quadrinistas estadunidenses
codificaram mais sistematicamente as convenções da arte sequencial, explo-
rando e expandindo mais e mais os limites do gênero (2018, p. 448). Isso levou
ao surgimento de narrativas longas e dramáticas, desenhadas com traços na-
turalistas. Surgiram quadrinhos de aventura, crime, romance, ficção científica e
super-heróis. As publicações de Superman (1938), de Joe Shuster e Jerry Sie-
gel, e de Batman (1939), de Bob Kane, marcaram o início da Era de Ouro dos
Quadrinhos estadunidenses (ZANETTIN, 2018, p. 448).
Para que esses códigos visuais que estavam surgindo em diferentes par-
tes do mundo convergissem, formando uma convenção comum e assim es-
tabelecendo os quadrinhos enquanto hipergênero, foi preciso que publicações
como as supracitadas fossem traduzidas e distribuídas consistentemente,
302
ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
“criando uma cultura compartilhada de narrativas gráficas populares”52 (ZA-
NETTIN, 2018, p. 447).
Zanettin esclarece que a tradução permitiu que narrativas visuais fossem
levadas a outros países, e esse tráfego cultural intenso ajudou a estabelecer
uma tradição de formas e símbolos.
Os quadrinhos, como um tipo de narrativa gráfica, apoiam-se num conjunto
específico de convenções e símbolos que são o resultado de uma história e
evolução específicas ao longo do tempo e, em grande medida, do intercâm-
bio cultural por meio da tradução53 (2018, p. 445).
Um exemplo que Zanettin menciona é a influência que, a princípio, o
Ocidente exerceu na produção japonesa de mangás. Ele conta que, em 1947,
a publicação do mangá Shin Takarajima revolucionou as convenções dos qua-
drinhos japoneses, impondo novos traços e estilo narrativo inspirados por
técnicas de desenhos estadunidenses. Agora que a indústria dos mangás ja-
poneses é quatro vezes maior que a segunda maior, a dos Estados Unidos (ZA-
NETTIN, 2018, p. 452), começa a influenciar as indústrias do mundo todo, que
têm assimilado as convenções visuais e o estilo de traço japoneses. Segundo
Zanettin, “o mangá remodelou as tradições locais, impondo cada vez mais suas
convenções visuais e narrativas, à medida que novas gerações de autores em
todo o mundo absorveram o estilo japonês”54 (2018, p. 453).
Após apresentar o gradual desenvolvimento das histórias em quadrinhos,
como vimos, Zanettin propõe quatro áreas de interesse para o estudo e a pesqui-
sa de tradução de quadrinhos (2018, p. 454-456). São elas:
1. O estudo das estratégias, processos e práticas de tradução, observando
como quadrinhos são traduzidos de acordo com a cultura e as conven-
ções de códigos visuais e verbais de países diferentes;
2. O estudo da história da tradução de quadrinhos, que permite levantar
questões de ideologia e censura, por exemplo;
3. O estudo comparativo entre textos originais e traduzidos, o que permite
52
Tradução nossa. No original: Creating a largely shared culture of popular graphic narrative.
53
Tradução nossa. No original: Comics as a type of graphic narrative rely on a speci-
fic set of conventions and symbols which is the result of a specific history and evo-
lution over time and, to a large extent, cultural exchange through translation.
54
Tradução nossa. No original: Manga has also reshaped local traditions by in-
creasingly imposing their visual and narrative conventions, as new genera-
tions of authors all over the world have absorbed the Japanese 'style' of comics.
303
ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
entender como identidades políticas e sociais são construídas, comunica-
das e negociadas em narrativas gráficas; e
4. O estudo das traduções intersemióticas e adaptações entre quadrinhos
e outras formas de mídia e de arte, como romances, filmes, jogos eletrô-
nicos, etc. Nesse escopo, é possível realizar pesquisas interdisciplinares
entre estudos da tradução, teorias da comunicação e estudos de mídia, e
investigar fenômenos como hibridização e narrativa transmídia.
As sugestões de Zanettin são relevantes porque nos indicam caminhos de
como a tradução de quadrinhos pode ser estudada. Ao apontar os diversos as-
pectos linguísticos e culturais envolvidos, Zanettin amplia o horizonte de possi-
bilidades de estudo. Não se trata apenas de tradução interlingual do texto escrito
dentro dos balões de diálogo, mas de reflexão sobre a arte gráfica, os códigos
visuais do hipergênero, a gramática da narrativa visual, as decisões editoriais,
a tradução do humor, as adaptações para outras mídias, questões históricas,
culturais, etc.
Esse conjunto de aspectos podem ser transformados em atividades sim-
ples ou projetos longos pelo professor de língua inglesa e levados à sala de aula.
É um modo de repensar os conteúdos e práticas do ensino de língua inglesa no
ensino médio, buscando, como quer a BNCC, expandir repertórios linguísticos,
multissemióticos e culturais dos alunos. A partir daí, é possível ainda explorar
a transdisciplinaridade, proporcionando aos alunos discussões que abarquem
também questões éticas e filosóficas, conhecimento histórico, habilidades de
comunicação artística, entre outras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta foi a primeira etapa da pesquisa, realizada no âmbito da iniciação
científica. Como esperado, as leituras selecionadas para o aprofundamento a
respeito de tradução e histórias em quadrinhos nos possibilitaram desenvolver
conhecimento teórico e, a partir dele, mirar a escola, o ensino médio, a aula de
língua inglesa.
Observamos que a BNCC já fornece suporte necessário para que as his-
tórias em quadrinhos, enquanto material multissemiótico, sejam utilizadas pelo
professor em sala de aula, deixando-o livre para propor atividades de leitura e
produção de textos desse hipergênero. De fato, a BNCC deseja a “participação
304
ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
mais plena dos jovens nas diferentes práticas socioculturais que envolvem o uso
das linguagens” (2017, p. 481).
O fato de “linguagens” ter sido grafada no plural pelo referido documento
é relevante, pois engloba as diversas modalidades de linguagem, inclusive as
não-verbais. Está claro que o letramento visual é imprescindível na sociedade
contemporânea. Esse fato reverbera nas orientações formuladas pela BNCC.
Apesar de não termos encontrado referências à tradução de quadrinhos
no corpo do documento, procuramos, nesta fase da pesquisa, mostrar que a
tradução possibilita aos alunos refletirem sobre as línguas envolvidas – e isso
também é um desejo da BNCC. Segundo o que está escrito ali, os alunos pre-
cisam desenvolver “maior consciência e reflexão críticas das funções e usos
do inglês na sociedade contemporânea” (2017, p. 485). As histórias em qua-
drinhos, a nosso ver, são material abundante e variado para se trabalhar não
apenas criticamente a língua inglesa, mas o seu locus de produção: a socieda-
de contemporânea. Neste ponto, cumpre destacar que é extremamente válido
utilizar quadrinhos em língua inglesa de diferentes comunidades anglófonas,
não restritas a Estados Unidos e Reino Unido, de forma que os alunos tenham
a oportunidade de usufruir da experiência de olhar o inglês como multicultural
- ampliando a noção de "língua global", que soa, por vezes, descritiva de um
sistema monolítico e impositivo.
Vimos também que a tradução de histórias em quadrinhos suscita ques-
tões de ordem cultural e que podem ser tematizadas no âmbito da aula de inglês.
Ao tratar dos desafios da tradução, não raro relacionados às especificidades de
linguagem do gênero, Liberatti (2016) argumenta que marcas culturais, que apa-
recem tanto no texto verbal quanto no visual, precisam ser identificadas pelo
tradutor e resolvidas no texto de chegada. Esse exercício, levado à sala de aula,
pode evidenciar diferenças linguísticas e culturais entre as línguas inglesa e por-
tuguesa. As atividades podem envolver, por exemplo, o estudo de onomatopeias,
a observação de marcas de oralidade na fala de personagens, a localização de
desafios de tradução ocasionados por jogos de palavras, etc. É uma possibilida-
de de se ensinar vocabulário de forma dinâmica e contextualizada, que viabili-
zam um aprendizado significativo e, por isso, duradouro.
E Zanettin (2018), ao tratar do desenvolvimento das convenções gráficas
dos quadrinhos, processo em que a tradução e circulação de narrativas visuais
participam ativamente, enxerga relações entre práticas de tradução e culturas
locais. Levadas à sala de aula, a comparação entre textos original e traduzido
305
ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
pode revelar, por exemplo, estratégias de abrandamento para incluir o público in-
fantojuvenil entre os leitores da obra, modificações ideologicamente motivadas,
etc. Direcionado dessa maneira, o estudo das traduções de histórias em quadri-
nhos pode levar os alunos para fora do texto, fazendo-os reconhecer questões
culturais, históricas e políticas que exercem influência nas escolhas de tradução
e adaptação de textos.
Por isso, a crítica de Ramos (2015), qual seja, a de que os professores de
língua não são levados a pensar criticamente a respeito de gêneros visuais nos
seus processos de formação, configurando uma lacuna, é tão relevante. Os pro-
fessores precisam conhecer a gramática de outras modalidades de linguagem
além da língua. Os quadrinhos, como vimos, têm sua gramática própria. Sem co-
nhecê-la, os professores correm o risco de subutilizar esse hipergênero em suas
atividades de aula, deixando de explorar suas características com os alunos.
O levantamento de referências, realizado nesta etapa da pesquisa, deixou
claro que a nossa abordagem, o uso da tradução de quadrinhos em situações
de ensino, é pouco explorada. Encontramos alguns trabalhos acadêmicos que
abordam a tradução de quadrinhos e outros que tratam dos quadrinhos na edu-
cação, mas nunca em conjunto, como estamos propondo. Por isso, esperamos
contribuir com o conhecimento de um tema pouco explorado.
Também esperamos contribuir com reflexões sobre a prática docente. Na
próxima etapa, observaremos os principais desafios que professores encontram
no ensino da língua inglesa no ensino médio. Em seguida, convergindo os resul-
tados alcançados nas etapas anteriores, elaboraremos estratégias de uso da
tradução de quadrinhos nas aulas de língua inglesa.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília,
2017.
CABRAL, Plinio. A leitura de “gibis” leva ao crime!. In: Jornal Panfleto. Hemero-
teca da Biblioteca Nacional. Data desconhecida (início da década de 50). p. 99.
Disponível em <http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_manuscri-
tos/mss1593806/mss1593806.pdf >. Acesso em: 21 Out 2021.
CRYSTAL, David. English as a global language. New York: Cambridge University
Press, 2003.
LIBERATTI, Elisângela. Uma proposta didática para traduzir as histórias em
306
ESTUDOS LINGUÍSTICOS E ENSINO DE LÍNGUAS E LITERATURA
quadrinhos. Tradterm, São Paulo, v. 27, p. 181-200, set, 2016.
RAMOS, Paulo Eduardo; SANTOS, Barbara Cristina Aparecida dos. Imprecisões
sobre os quadrinhos na Base Nacional Comum Curricular. Revista Intersaberes,
v. 15, nº 36, p. 891-912, set/dez, 2020.
RAMOS, Paulo. Histórias em quadrinhos na formação de professores: uma dis-
cussão necessária. Literacia, Media e Cidadania, Braga, p. 432-443, nov, 2015.
ZANETTIN, Federico. Translating Comics and Graphic Novels. In: HARDING,
Sue-Ann; CORTÉS, Ovidi Carbondell. The Routledge Handbook of Translation
and Culture. 1st edition. London: Routledge, 2018. p. 445-460.
307