Milton Santos e as cidades: referências selecionadas
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Autor: Ricardo de Sampaio Dagnino
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Campus Litoral Norte
Tramandaí, outubro de 2022.
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Resumo:
Este é um levantamento dos trabalhos que julgo mais interessantes do geógrafo Milton Santos (1926-2001) sobre
o tema das cidades, processos de urbanização e a vida nas cidades. Este material destina-se a jovens estudantes
e população em geral que busquem referências teóricas para embasar pesquisas nos temas relativos à cidade,
cidadania, participação e ocupação e produção do espaço. Foi organizado didática e esquematicamente em 5
partes: Urbanização Brasileira; Espaço do Cidadão; Espaço dividido; Tempo nas cidades - Homens lentos e O
trabalho do geógrafo no terceiro mundo. Para maiores informações
visite: https://professor.ufrgs.br/dagnino/book/milton-santos-
cidades/ e https://professor.ufrgs.br/dagnino/documents. Impressão: https://professor.ufrgs.br/dagnino/book/export/html/5054
Sumário
1. A urbanização brasileira (https://professor.ufrgs.br/dagnino/book/milton-santos-cidades/urbanizacao-
brasil)
2. Espaço do Cidadão (https://professor.ufrgs.br/dagnino/book/milton-santos-cidades/espaco-do-
cidadao)
3. O espaço dividido (https://professor.ufrgs.br/dagnino/book/milton-santos-cidades/espaco-dividido)
4. Tempo nas cidades - Homens lentos (https://professor.ufrgs.br/dagnino/book/milton-santos-
cidades/tempo-nas-cidades)
5. Tipologia de cidades nos países subdesenvolvidos (https://professor.ufrgs.br/dagnino/book/milton-
santos-cidades/tipologia-cidades)
A urbanização brasileira
O estudo da questão urbana permeia grande parte dos esforços de Milton Santos. Uma visão mais
completa sobre estes esforços pode ser encontrada em "A análise urbana na obra de Milton Santos",
artigo de Maria Encarnação Beltrão Spósito publicado em 1999 no Caderno Prudentino de Geografia.
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No resumo, Spósito (1999) menciona: "Esse texto tem como objetivo apresentar um painel de parte da
obra de Milton Santos. Sua extensão não nos permitiria uma análise de todo seu conjunto, pois para
diferentes especializações do conhecimento no interior da Geografia esse autor apresentou
contribuições significativas, além daquelas mais profundas de natureza teórico-metodológica, e outras
cujo caráter amplo e inovador permite um diálogo profícuo entre esse intelectual e outros que
constroem seu pensamento a partir de outras matrizes disciplinares."
Vejamos agora alguns trechos do próprio Milton Santos que permitem sentir a grandeza dessa
contribuição.
Na obra "A urbanização brasileira" (SANTOS, 1993a) há o capítulo "A organização interna das cidades:
a cidade caótica" (SANTOS, 1993b). Ali, o autor vai tratar da forma como elas funcionam por dentro e
sobretudo como vive a maioria de sua população:
"Com diferença de grau e de intensidade, todas as cidades brasileiras exibem
problemáticas parecidas. O seu tamanho, tipo de atividade, região em que se inserem etc.
São elementos de diferenciação, mas em todos elas problemas como os do emprego, da
habitação, dos transportes, do lazer, da água, dos esgotos, da educação e saúde, são
genéricos e revelam enormes carências. Quanto maior a cidade, mais visíveis se tornam
essas mazelas. Mas essas chagas estão em toda parte. Isso era menos verdade na
primeira metade deste século, mas a urbanização corporativa, isto é, empreendida sob o
comando dos interesses das grandes firmas, constitui um receptáculo das conseqüências
de uma expansão capitalista devorante dos recursos públicos, uma vez que estes são
orientados para os investimentos econômicos, em detrimento dos gastos sociais."
(SANTOS, 1993b, p. 95)
Em seguida podemos aprofundar os mecanismos que operam a produção do espaço nas cidades, no
capítulo "A urbanização e a cidade corporativas" (SANTOS, 1993c, p. 111):
"Desse modo, o processo de urbanização corporativa se impõe à vida urbana como um
todo, mas como processo contraditório opondo parcelas da cidade, frações da população,
formas concretas de produção, modos de vida, comportamentos. Há oposição e
complementaridade, mas os aspectos corporativos da vida urbana tendem a prevalecer
sobre as formas precedentes das relações externas e internas da cidade, mesmo quando
essas formas prévias, chamadas tradicionais, de realização econômica e social,
interessam a população mais numerosa e a áreas mais vastas. A lógica dominante,
entretanto, é, agora, a da urbanização corporativa e a da cidade corporativa."
Referências
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1993a. Disponível
em: https://professor.ufrgs.br/dagnino/files/santos_milton_a_urbanizacao_brasileira_1993.pdf
SANTOS, Milton. A organização interna das cidades: a cidade caótica. In: SANTOS, Milton. A
urbanização brasileira. São Paulo: HUCITEC, 1993b. (p. 95-97). Disponível
em: https://professor.ufrgs.br/dagnino/files/santos_milton_a_urbanizacao_brasileira_1993.pdf
SANTOS, Milton. A urbanização e a cidade corporativas. In: SANTOS, Milton. A urbanização brasileira.
São Paulo: HUCITEC, 1993c. (p. 99-115). Disponível
em: https://professor.ufrgs.br/dagnino/files/santos_milton_a_urbanizacao_brasileira_1993.pdf
SPÓSITO, Maria Encarnação Beltrão. A análise urbana na obra de Milton Santos. Caderno Prudentino
de Geografia, v. 1, n. 21, 1999. ISSN: 2176-5774.
https://revista.fct.unesp.br/index.php/cpg/article/view/7262
Espaço do cidadão
O livro "O espaço do cidadão" (SANTOS, 2007; SILVA et al., 2011a) é uma referência muito importante.
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Na rede mundial de computadores (www) existem duas versões da obra: a primeira versão é a que foi
publicada como livro pela Editora da Universidade de São Paulo (SANTOS, 2007) e a outra versão é
uma compilação organizada por Elisiane da Silva, Gervásio Neves e Liana Martins e publicada pela
Fundação Ulysses Guimarães (SILVA et al., 2011a).
Sugiro uma atenção especial para a Introdução (SANTOS, 2011b, p. 80-81) na qual ele menciona que a
cultura e o território são os dois componentes essenciais sobre o qual o modelo cívico se forma.
Conforme Milton Santos (2011b, p. 80-81):
"O modelo cívico forma-se, entre outros, de dois componentes essenciais: a cultura e o
território. O componente cívico supõe a definição prévia de uma civilização, isto é a
civilização que se quer, o modo de vida que se deseja para todos, uma visão comum do
mundo e da sociedade, do indivíduo enquanto ser social e das suas regras de convivência.
Para ficarmos apenas com um exemplo, a atribuição do chamado salário-mínimo, isto é, da
quantidade mínima de dinheiro capaz de assegurar uma vida decente para cada qual e sua
família, não pode ser estabelecida em função dos simples mandamentos da “economia”,
mas da cultura. Quando aceitamos que sejam pagos salários de fome a uma boa parte da
população, é certo que estamos longe de possuir uma verdadeira cultura. O componente
territorial supõe, de um lado, uma instrumentação do território capaz de atribuir a todos os
habitantes aqueles bens e serviços indispensáveis, não importa onde esteja a pessoa; e de
outro lado, uma adequada gestão do território, pela qual a distribuição geral dos bens e
serviços públicos seja assegurada." (SANTOS, 2011b, p. 80-81)
No capítulo "Há cidadãos neste país?" (SANTOS, 2011c, p. 82-83) ele fala sobre cidadania, direitos e
as formas para garanti-los, incluída a luta simbolizada no "direito de reclamar e ser ouvido":
"A cidadania, sem dúvida, se aprende. É assim que ela se torna um estado de espírito,
enraizado na cultura. É, talvez, nesse sentido, que se costuma dizer que a liberdade não é
uma dádiva, mas uma conquista, uma conquista a manter. Ameaçada por um cotidiano
implacável, não basta à cidadania ser um estado de espírito ou uma declaração de
intenções. Ela tem o seu corpo e os seus limites como uma situação social, jurídica e
política. Para ser mantida pelas gerações sucessivas, para ter eficácia e ser fonte de
direitos, ela deve se inscrever na própria letra das leis, mediante dispositivos institucionais
que assegurem a fruição das prerrogativas pactuadas e, sempre que haja recusa, o direito
de reclamar e ser ouvido." (SANTOS, 2011c, p. 82-83)
No capítulo "O cidadão mutilado" (SANTOS, 2011d, p. 94) são apresentadas as diferentes formas de
vida não cidadãs:
"É extensa a tipologia das formas de vida não cidadãs, desde a retirada, direta ou indireta,
dos direitos civis à maioria da população, às fórmulas eleitorais engendradas para enviesar
a manifestação da vontade popular, ao abandono de cada um à sua própria sorte."
(SANTOS, 2011d, p. 94)
Mais para o final do livro, o capítulo "O espaço sem cidadãos” (SANTOS, 2011e, p. 119) enfoca
questões como: o direito de morar, e sua distinção com o direito de ser proprietário; os pobres e a
cidade corporativa; o direito ao entorno, exemplificado na forma de um ambiente saudável e ar puro,
entre outros.
Neste capítulo fica evidente a relação entre a condição de vida dos mais pobres da cidade e o poder
político (SANTOS, 2011e, p. 126):
"O resultado de todos esses agravos é um espaço empobrecido e que também se
empobrece: material, social, política, cultural e moralmente. Diante de tantos abusos, o
cidadão se torna impotente, a começar pelas distorções da representação política. A quem
pode um candidato a cidadão recorrer para pedir que faça valer o seu direito ao entorno,
propondo um novo corpo de leis, decretos e regulamentos, ou velando pelo cumprimento
da legislação já existente mas desobedecida? A própria existência vivida mostra a cada
qual que o espaço em que vivemos é, na realidade, um espaço sem cidadãos.” (SANTOS,
2011e, p. 126)
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Feitas essas leituras sobre espaço e cidadania, é hora de avançar na abordagem da cidade.
Referências
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2007. https://professor.ufrgs.br/dagnino/files/santos_milton_espaco_do_cidadao_2007.pdf
SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. In: SILVA, Elisiane; NEVES, Gervásio; MARTINS, Liana. Milton
Santos: O espaço da cidadania e outras reflexões. Porto Alegre: Fundação Ulysses Guimarães,
2011a. Disponível
em: https://professor.ufrgs.br/dagnino/files/santos_milton_espaco_da_cidadania_2011.pdf
SANTOS, Milton. Introdução. In: SILVA, Elisiane; NEVES, Gervásio; MARTINS, Liana. Milton Santos: O
espaço da cidadania e outras reflexões. Porto Alegre: Fundação Ulysses Guimarães, 2011b. (p. 78-81).
Disponível em: https://professor.ufrgs.br/dagnino/files/santos_milton_espaco_da_cidadania_2011.pdf
SANTOS, Milton. Há cidadãos neste país? In: SILVA, Elisiane; NEVES, Gervásio; MARTINS, Liana.
Milton Santos: O espaço da cidadania e outras reflexões. Porto Alegre: Fundação Ulysses Guimarães,
2011c. (p. 82-94) Disponível
em: https://professor.ufrgs.br/dagnino/files/santos_milton_espaco_da_cidadania_2011.pdf
SANTOS, Milton. O espaço sem cidadãos. In: SILVA, Elisiane; NEVES, Gervásio; MARTINS, Liana.
Milton Santos: O espaço da cidadania e outras reflexões. Porto Alegre: Fundação Ulysses Guimarães,
2011e. (p. 119-126). Disponível
em: https://professor.ufrgs.br/dagnino/files/santos_milton_espaco_da_cidadania_2011.pdf
SANTOS, Milton. O cidadão mutilado. In: SILVA, Elisiane; NEVES, Gervásio; MARTINS, Liana. Milton
Santos: O espaço da cidadania e outras reflexões. Porto Alegre: Fundação Ulysses Guimarães, 2011d.
(p. 94-108) Disponível
em: https://professor.ufrgs.br/dagnino/files/santos_milton_espaco_da_cidadania_2011.pdf
O espaço dividido
Nos anos 1970, o geógrafo Milton Santos passou a refletir intensamente sobre os rumos da economia espacial
nos países periféricos, chamados de terceiro mundo, e começou a esboçar a ideia de um sistema urbano dividido
em dois subsistemas: os circuitos da economia urbana.
Milton Santos explica que começou a falar em circuito moderno e circuito tradicional (SANTOS, 1970) mas em
seguida começou a tratar de circuito superior e inferior (SANTOS, 1971), conforme se lê em Santos (1977, p. 38):
Este novo tema de estudo é útil não só para a compreensão do funcionamento da cidade como uma
máquina de subsistência, mas também para a explicação, sob uma nova ótica, do
relacionamento externo que a cidade desenvolve, quer com sua região de influência, quer com
outras cidades.
O tema dos dois sistemas de fluxo da economia urbana aparece então como um verdadeiro e novo
paradigma da Geografia Urbana e do planejamento em países subdesenvolvidos.
Geertz (1963) falou de “firm centred economy” (economia centralizada estável) e em “ bazaar
economy” (economia de bazar). Para considerar-se a variedade de situações nas cidades do
Terceiro Mundo, preferiria chamar estes dois sistemas de fluxo do sistema urbano de “upper
system” e "lower system” (sistema superior e sistema inferior) (SANTOS, 1971). Num trabalho
anterior (SANTOS, 1970), falei de um sistema moderno e de um sistema tradicional. Abandonei esta
terminologia por várias razões. Primeiramente porque estas duas expressões já estão
sobrecarregadas de significados: de fato, as discussões que se desencadeiam aqui e ali com o
propósito de distinguir o que é chamado de moderno e de tradicional ainda estão longe de uma
conclusão. Conservar estas designações seria preservar uma fonte de ambiguidades. Além disso,
nem sempre é possível datar exatamente as atividades do sistema superior, desde que elas não são
definidas por sua idade, como as atividades similares em países desenvolvidos, mas antes por seu
modo de organização e de comportamento. Parece difícil chamar o sistema inferior de tradicional,
não só por ser um produto da modernização, mas por estar envolvido num processo permanente de
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transformação e adaptação (HAGEN, 1962) e também por manter-se, de certo modo, em todas as
cidades, direta ou indiretamente, nos chamados setores modernos da economia.
Aqui está em jogo novamente um fenômeno comportamental. E, portanto, preferível adotar outra
expressão, que não é totalmente perfeita mas permite ao menos chamar a atenção para
um problema que me parece importante: o da dependência do sistema inferior em relação ao
sistema superior.
Os elementos que compõe do dois sistemas de fluxo são o circuito inferior e circuito superior (SANTOS, 1977, p.
38-39):
Simplificando, pode-se afirmar que o fluxo do sistema superior está composto de negócios
bancários, comércio de exportação e indústria de exportação, indústria urbana moderna, comércio
moderno, serviços modernos, comércio atacadista e transporte. O sistema inferior está
essencialmente constituído por formas de fabricação de “capital não intensivo” , por serviços não
modernos, geralmente abastecidos pelo nível de venda a varejo e pelo comércio em pequena escala
e não-moderno (figura 1) .
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Figura 1 - Os dois sistemas superior e inferior da economia urbana
Fonte: Santos (1977)
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Milton Santos estava desenvolvendo em 1970 uma crítica ao modelo proposto por Amstrong e McGee (1968, p.
358) que em muito se assemelha ao modelo dos dois circuitos, como se pode ver na figura a seguir:
Figura 2 - The economic setting of the third world primate city
Fonte: Armstrong e McGee (1968)
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Em 1973, enquanto Milton Santos estava em Paris, França, e publicou o texto em inglês que fazia uma crítica à
teoria dos lugares centrais: "Central place theory revisited: The two urban fields in the third world spatial
urbanization". Posteriormente, este texto seminal foi publicado no Brasil pela primeira vez pela editora Hucitec em
1979 no livro Economia Espacial e republicado diversas vezes, sendo que a versão aqui apresentada foi publicada
em 2014.
Santos (2014, p. 133):
Em suma, a influência do circuito inferior está circunscrita aos limites urbanos da
metrópole. Por outro lado, nas cidades locais ela ultrapassa amplamente os limites da
aglomeração. Como nas cidades regionais, a influência do circuito inferior é idêntica à área
de influência da aglomeração, onde ele encontra a competição da cidade local.
Santos (2014, p. 133-134):
O que acabamos de explicar põe em questão o papel da teoria do lugar central, tal como é
presentemente conhecida, para os países subdesenvolvidos. De qualquer forma, as noções
de limiar e de âmbito devem ser examinadas devido à existência do circuito inferior. Podemos
nos indagar se estas noções, formuladas por Christaller (1933) e reintroduzidas por Berry e
Garrison (1958), podem ou não ser aplicadas a países subdesenvolvidos.
Santos (2014, p. 134):
J. H. Johnson (1966, p. 99), P. Wheatley (1969, p. 6), B. Marchand (1970), E. A. Johnson
(1970) e Miller Jr. (1971, p. 321), entre outros, expressam sérias dúvidas acerca da
aplicabilidade da teoria do lugar central ao Terceiro Mundo. Será possível identificar um
único limiar quando se sabe que a economia urbana é composta de dois subsistemas
estreitamente associados a dois setores da população? O conceito de limiar parece tanto
mais nebuloso quando se sabe que, por um lado, os dois subsistemas são conectados
pelas classes médias, isto é, por aquela parte da população capaz de consumo frequente
ou ocasional em ambos os circuitos e, por outro lado, que os dois circuitos econômicos
interagem.
Assim, temos de entender o hexágono de Christaller de uma forma diferente, ou seja, de
acordo com o princípio de comercialização, tal como a vemos em países
subdesenvolvidos, considerando ao mesmo tempo, a existência, na economia urbana, de
dois circuitos. O que aqui escrevemos acerca das duas áreas de influência da cidade
demonstra ao menos a necessidade de se formular a teoria do lugar central de uma
maneira diferente.
Em português, provavelmente a primeira publicação foi em 1977 no Boletim Paulista de Geografia, citada no início
deste item: "Desenvolvimento econômico e urbanização em países subdesenvolvidos: os dois sistemas de fluxo
da economia urbana e suas implicações espaciais".
Em 1979 é publicada no Brasil a obra na qual Milton Santos desenvolve e amplia a ideia dos dois circuitos da
economia urbana: "O Espaço Dividido - Os Dois Circuitos da Economia Urbana dos Países Subdesenvolvidos"
(SANTOS, 1979).
Como é muito comum na vida e obra de Milton Santos, este livro foi originalmente escrito e publicado em francês.
O livro levou o título "L'espace partagé : les deux circuits de l'économie urbaine des pays sous-développés"
(SANTOS, 1975).
No mesmo ano que foi publicado no Brasil, em 1979, foi traduzido e publicado em inglês: The Shared Space: The
Two Circuits of the Urban Economy in Underdeveloped Countries (SANTOS, 1979).
As características dos dois circuitos (superior e inferior) da economia urbana estão expressas de forma sintética a
seguir:
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Quadro 1 - Características dos dois circuitos da Economia Urbana em países subdesenvolvidos
Fonte: Milton Santos (2014).
Como uma crítica tanto ao trabalho de Armstrong e McGee (1968) sobre o desenvolvimento das
cidades, quanto de Christaller (1933) resgatado por Berry e Garrison (1958) sobre os lugares centrais,
o que Milton Santos queria mostrar é que as cidades nos países subdesenvolvidos eram diferentes do
que se imaginava.
Para Santos (1977, p. 53):
As metrópoles regionais históricas da periferia se desenvolvem em diferentes momentos,
mas não possuem força para manter entre si conexões bilaterais. Tudo, ou quase tudo, no
campo económico sofre a influência da metrópole económica nacional.
Devido à concentração de atividades e de recursos em uma dada cidade, a última é o
centro' vital da vida nacional, independente do nível de industrialização, de modernização e
de urbanização do país e da própria cidade. Essa aglomeração, assim privilegiada,
desempenha o papel de uma emissora principal de decisões, de ordens e de inovações
num sentido económico, social e cultural, e frequentemente também no sentido político.
Dois dentre os possíveis resultados de tal polarização são comuns a todos os países do
Terceiro Mundo . O primeiro é o desenvolvimento de uma rede urbana tipo pirâmide. Mas,
de outro lado, enquanto as cidades de um dado nível podem realizar polarização
secundária em relação a aglomerações de nível inferior, não existem praticamente
conexões entre cidades de um mesmo nível através do território regional nacional; todas
têm auxílio das cidades de nível superior para assegurar os produtos ou serviços que elas
não estão em condições de produzir.
Como o país avança em direção à sua industrialização ou ao aperfeiçoamento de seu
sistema de comunicação interno, um verdadeiro fenômeno de “curto-circuito” ocorre .
Algumas aglomerações de nível inferior não necessitam mais transpor as cidades que
estão num nível imediatamente superior, mas recorrem diretamente às cidades mais
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importantes (figura 3). Evidentemente, custos de transporte, o tempo requisitado e o
modelo de distribuição espacial do equipamento público e social têm uma importante
relação com a escolha do consumidor. De qualquer forma, deve-se agora mencionar a
evolução; hierárquica da cidade na rede urbana enquanto se levar em consideração estas
novas realidades.
Figura 2 - Cidades dentro de uma rede: modelo clássico e a situação real (aproximada).
Fonte: Santos (1977)
Esta obra contém um referencial teórico que esteve presente em dois momentos muito importantes da
minha formação -- contribuiu na construção do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em
Geografia sobre os catadores de materiais recicláveis (DAGNINO, 2004) e foi a base conceitual de um
importante projeto de pesquisa que participei sobre urbanização na Amazônia (CARDOSO;
MONTEIRO, 2012).
Ainda a respeito da teoria dos circuitos de Milton Santos (1979), Roberto Lobato Corrêa (1989, p. 129-
130) diz que este foi responsável por uma sistematização bastante sólida sobre o tema das redes
urbanas: "Sem dúvida que a proposição de Santos (1979) sobre os dois circuitos da economia urbana
constitui a principal contribuição dos geógrafos brasileiros ao tema em questão." (CORRÊA, 1989, p.
129-130).
O trabalho segue sendo uma importante referência até os dias atuais. Um indicador disso é que foi
recentemente relançado em inglês pela editora Routledge, como se pode ver em:
https://www.amazon.com.br/Shared-Space-Circuits-Underdeveloped-Countries/dp/113810258X.
Referências
ARMSTRONG, W. R.; MCGEE, T. G. Revolutionary change and the Third World city: A theory of urban
involution. Civilisations, Vol. 18, No. 3 (1968), pp. 353-378. Disponível
em: https://www.jstor.org/stable/41231140
BERRY, B. T.; GARRISON, W. The Functional Bases of the Central Place Hierarchy. Economic
Geography , Apr., 1958, Vol. 34, No. 2 (Apr., 1958), pp. 145-154, Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/142299
CARDOSO, A.; MONTEIRO, A. (Coord.) 1º Relatório de acompanhamento do projeto: URBISAmazônia
- Qual a Natureza do Urbano na Amazônia Contemporânea?. Instituto Tecnológico Vale -
Desenvolvimento Sustentável/Fundação de Ciência, Aplicações e Tecnologia Espaciais, Projeto nº:
3.611.000.00/11. São José dos Campos, 2012. Disponível: <http://www.dpi.inpe.br/urbisAmazonia/>
https://www.professor.ufrgs.br/dagnino/book/export/html/5054 31/05/2024, 15 47
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:
CORRÊA, Roberto. Hinterlândias, hierarquias e redes: uma avaliação da produção geográfica
brasileira. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro: IBGE, v. 51, nº 3, p. 113 – 137. Jul/Set 1989.
Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/rbg_1989_v51_n3.pdf>
CHRISTALLER, Walther. Die zentralen Orte in Siiddeutschland, Jena, 1933, translated by C. Baskin at
the Bureau of Population and Urban Research, University of Virginia, 1954.
DAGNINO, Ricardo. Um olhar geográfico sobre a questão dos materiais recicláveis em Porto Alegre:
sistemas de fluxos e a (in)formalidade, da coleta à comercialização. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em Geografia). Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre, UFRGS, 2004. <http://hdl.handle.net/10183/21408>
GEERTZ, C. Peddlers and princes. Social change and economic modenization in two indonesian towns.
Chicago: Chicago University Press, 1963.
HAGEN, E. E. On the Theory of Social Change. Hòmewood III, The Dorsey Press, 1962.
JOHNSON, E. A. The Organization of Space in Developing Countries. Cambridge, Harvard University
Press, 1970.
JOHNSON, James H. Urban Geography: An Introductory Analysis. Londres, Press, 1966.
MARCHAND, Bernard. Cours à l'Université de Paris 1. 1970.
MILLER JR., V. P. Towards a Typology of Urban-rural Relationships. The Professional Geographer, vol.
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SANTOS, Milton. Uma revisão da teoria dos lugares centrais. (p. 125-136). In: SANTOS, Milton.
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https://www.professor.ufrgs.br/dagnino/book/export/html/5054 31/05/2024, 15 47
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+ SANTOS, Milton. Os tempos nas cidades. Ciência e Cultura, vol. 54, no.2, São Paulo, Out./Dez,
2002. http://bit.ly/Santos_tempo_cidades - http://cienciaecultura.bvs.br/pdf/cic/v54n2/14803.pdf
+ RIBEIRO, Ana Clara Torres. Homens Lentos, Opacidades e Rugosidades. Redobra, n. 9, ano 3, 2012. Disponível
em: http://www.redobra.ufba.br/wp-content/uploads/2012/04/redobra9_Homens-Lentos-Opacidades-e-
Rugosidades.pdf
Tipologia de cidades nos países subdesenvolvidos
No livro "O trabalho do geógrafo no terceiro mundo" há um importante capítulo cujo título já propõe uma
questão de pesquisa: "'A cidade' ou 'as cidades'?" (SANTOS, 1978). É aqui que o geógrafo Milton
Santos vai realizar o que ele chama de "esforço de classificação" para caracterizar quatro tipos de
aglomerações urbanas existentes nos países subdesenvolvidos: cidades embrionárias, cidades
regionais, metrópoles incompletas e metrópoles completas (SANTOS, 1978, p. 74).
A justificativa para este esforço de classificação é que existem diferentes sentidos que são dados para
o termo cidade (SANTOS, 1978, p. 67):
"Por isso, o exame de trabalhos dedicados aos problemas gerais da cidade em países
subdesenvolvidos corre frequentemente o risco de confundir seus utilizadores. A palavra
'cidade' é amiúde empregada para significar realidades assaz diferentes; mesmo os
qualificativos mais ou menos abandonados que acompanham essa expressão são também
excessivamente numerosos para que possamos reconhecer sob um mesmo vocábulo as
mesmas realidades". (SANTOS, 1978, p. 67)
Outro trabalho de destaque neste tema é o livro publicado originalmente em francês em 1971 e que foi
traduzido posteriormente para o português, chamado "A Urbanização Desigual: A especificidade do
fenômeno urbano em países subdesenvolvidos" (SANTOS, 2010). Este livro traz o capítulo "As cidades
e o espaço nos dois mundos: evolução diferencial e diversidade no século XX".
O livro "Manual de Geografia Urbana" (SANTOS, 2008), que também foi publicado originalmente em
francês, contém dois capítulos que merecem destaque: "Cidades predatórias ou impulsoras?" e
"Morfologia do tecido urbano".
Referências
SANTOS, Milton. "A cidade" ou "as cidades"? In: SANTOS, Milton. O trabalho do geógrafo no terceiro
mundo. São Paulo: HUCITEC, 1978b. (p. 67-78)
SANTOS, Milton. As cidades e o espaço nos dois mundos: evolução diferencial e diversidade no século
XX. In: SANTOS, Milton. A Urbanização Desigual: A especificidade do fenômeno urbano em países
subdesenvolvidos. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010. (p. 109-140).
SANTOS, Milton. Manual de Geografia Urbana. São Paulo, EdUSP, 2008.
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