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O Vampiro Antes de Drácula - Humberto Moura Neto

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Bruno Henrique
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Sobre a obra:

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Para Elizabeth Miller,
com respeito e admiração
e
em memória de
Charles Nodier
(1780-1844),
por transformar o vampiro num superstar.
“O Vampiro aterrorizará, com seu horrível amor,
o sonho de todas as mulheres [...]
e que tremendo sucesso não lhe está reservado!”
Charles Nodier
Journal des Débats de 7 de julho de 1819,
logo após a publicação em francês de “O vampiro”,
de John William Polidori.
Sumário
Capa
Folha de rosto
Dedicatória
Epígrafe
Sumário
Apresentação
A evolução do vampiro antes de Drácula
O vampiro (1819)
JOHN WILLIAM POLIDORI
Fragmento de um relato (1816)
LORD BYRON
O retrato oval (1842)
EDGAR ALLAN POE
A família do vurdalak (1847)
ALEXEI TOLSTÓI
A dama pálida (1849)
ALEXANDRE DUMAS, pai
Manor (1884)
KARL HEINRICH ULRICHS
O Horla (primeira versão, 1886)
GUY DE MAUPASSANT
Um mistério da Campagna (1887)
ANNE CRAWFORD
O velho Éson (1891)
ARTHUR QUILLER-COUCH
O último dos vampiros (1893)
PHIL ROBINSON
Tanatopia (1893)
RUBÉN DARÍO
A verdadeira história de um vampiro (1894)
CONDE DE STENBOCK
A floração da estranha orquídea (1894)
H. G. WELLS
O convidado de Drácula (escrito entre 1890 e 1897, publicado em 1914)
BRAM STOKER
Posfácio: Drácula: a cristalização do mito
Bibliografia selecionada
Apêndice 1: O vampiro na prosa e na poesia até 1897
Apêndice 2: O vampiro nos palcos até Drácula
Agradecimentos
Apresentação

Como aficionados de histórias de vampiros, estávamos sempre


insatisfeitos com as coletâneas de contos clássicos; cada uma
que líamos deixava uma sensação de desapontamento. Por qual
motivo o organizador desta deixou de fora aquele conto crucial
para a evolução do vampiro literário? Por que este outro não
organizou as histórias em ordem cronológica? E este raio de
conto que não é tão bom assim, por que será que sempre entra
nas antologias? Tivesse a antologia sido publicada no Brasil, nos
Estados Unidos, na Espanha, na Argentina ou na França, o
desapontamento era o mesmo. O que buscávamos era uma
antologia que deixasse clara a relevância de cada conto e
explicasse por que aqueles tinham sido incluídos em detrimento
de outros; que delineasse, ainda, um contexto para cada conto, e
que permitisse vislumbrar a evolução da ficção vampírica.
Em uma dessas felizes sincronicidades, na mesma época que
começamos a trocar ideias sobre o assunto e a perceber que
ambos sentíamos falta desse “guia de campo” para a evolução
vampírico-literária, veio o convite de Silvio Alexandre para que
organizássemos uma antologia de contos de vampiro do século
19, projeto que, para nossa alegria, foi aprovado pela Editora
Aleph.
Foi assim que, em 2008, surgiu este O vampiro antes de
Drácula, que mostra um panorama do desmorto imortal como
personagem literário, desde sua estreia na prosa ficcional até a
cristalização do Conde Drácula, protótipo e musa inspiradora da
imensa hoste de vampiros que assola todos os aspectos da arte
pop desde o início do século 19.
A seleção dos contos exigiu uma longa e minuciosa pesquisa,
e abarcou todo o período compreendido entre 1819 (ano de
publicação de “O vampiro”, de Polidori) e 1897 (publicação do
Drácula, de Bram Stoker). Ao traduzir os contos, optamos por
manter o máximo possível a sintaxe e o vocabulário dos autores,
ao mesmo tempo que adaptávamos a linguagem a nosso
cotidiano. Em alguns casos, a nova tradução aqui apresentada
elimina excessos poéticos e arroubos imaginativos de algumas
traduções anteriores, que chegam ao ponto de desfigurar o estilo
original do autor. Acreditamos que todos os autores, com seus
diferentes estilos e ocasional verbosidade, são de algum modo
relevantes.
Agora, passados tantos anos, vem à luz esta nova edição,
revista e atualizada. Aos dozes contos originais foram
acrescentados mais dois, que teríamos gostado de incluir na
versão original, mas que por um motivo ou outro ficaram de fora.
Incluímos inúmeras novas notas e várias informações
interessantes que se tornaram disponíveis desde a publicação da
primeira edição.
Mais uma vez, o resultado nos deixou bem satisfeitos, e
esperamos que os leitores percorram as páginas desta antologia
crítica com o mesmo prazer e sentimento de descoberta que nos
invadiam enquanto trabalhávamos nela.
MA e HMN
São Paulo, abril de 2021, ano II da pandemia
A evolução do vampiro antes de
Drácula

O vampiro está entre nós. Ele não se esconde; pelo contrário,


mostra-se por todo canto, em filmes, livros, quadrinhos,
desenhos animados e até pelas ruas das cidades, personificado
nos jogadores de RPG. É um ser plenamente adaptado ao século
21: reconhecido, aceito e até mesmo venerado.
Não há dúvida de que, entre todos os vampiros, o mais célebre
é Drácula, personagem criado pelo escritor irlandês Bram
Stoker. E mesmo os incontáveis fãs das criaturas das trevas
parecem aceitar, sem parar para pensar muito no assunto, que
foi justamente com o romance Drácula, publicado em 1897, que o
vampiro estreou na literatura de ficção. A realidade é que, muito
pelo contrário, existia não-vida antes de Drácula.
O vampiro da ficção em prosa surgiu muito antes do livro de
Stoker, nas primeiras décadas do século 19, precedido por um
longo histórico de aparições em poemas e baladas, que vinham
desde meados do século 18. Em geral, considera-se como ponto
de partida da prosa vampírica o conto do inglês John William
Polidori, “O vampiro”, de 1819. O período transcorrido entre o
pioneiro Polidori e o advento do Drácula foi ímpar na história da
literatura vampírica. Foi quando o personagem literário se
consolidou e incorporou características tanto do folclore, quanto
da literatura precedente e do espírito da época.
Uma vez criado, o vampiro literário recusou-se
terminantemente a ser esquecido, e ao longo das décadas sua
fama e seu poder só fizeram crescer. Para entender como surgiu
o vampiro como personagem carismático da ficção em prosa,
capaz de sobreviver à passagem do tempo e chegar, mais
invencível que nunca, ao novo milênio, temos que buscar suas
origens e retraçar o caminho pelo qual se tornou foco de atenção
de escritores e leitores.1
O VAMPIRO PRÉ-LITERÁRIO

A origem do vampiro contemporâneo


Seres fantásticos tomadores de sangue existem numa infinidade
de culturas ao redor do mundo, assumindo grande variedade de
formas e de comportamento — empusas, lâmias, estriges, bruxas,
ghouls etc. O fato de partilharem o hábito alimentar não
significa, porém, que necessariamente descendam de uma
mesma criatura mitológica ancestral. Qualquer criatura que
ameace a vida humana por meio do roubo do sangue reafirma,
na verdade, o imenso poder simbólico do próprio sangue, nosso
líquido mais precioso. A interpretação do sangue como fonte da
vida e poderoso elo entre os seres humanos é universal. Nada
mais natural, portanto, que a ameaça representada pelos ladrões
de sangue também seja universal. Em muitos dos mitos de
tomadores de sangue, a criatura em si não é tão importante
quanto a ameaça que representa. De fato, os mitos dos
tomadores de sangue surgiram independentemente ao redor do
mundo, como decorrência do medo profundo e atávico que a
ideia da perda do líquido vital provoca.
A maioria das criaturas tomadoras de sangue do folclore
mundial não contribuiu para o surgimento do mito do vampiro
propriamente dito. O conceito do vampiro tem uma origem bem
definida e restrita, tanto do ponto de vista geográfico quanto
temporal.
O vampiro tal como o conhecemos surgiu, em sua forma
original, na Europa Centro-Oriental, especialmente nos Países
Eslavos. Ele consolidou sua imagem entre o final do século 17 e
meados do século 18, graças à sociedade culta da Europa
Ocidental, e a seguir ganhou o mundo.
Sua trajetória fica bem evidente quando consideramos o uso e
a história da própria palavra vampiro. Ao que tudo indica, a
palavra vampir se originou no idioma sérvio, com variantes em
outros países da região: upír (Bielorrússia, República Tcheca,
Eslováquia), upirbi ou upýr (Ucrânia), upior (Polônia), lampir
(Bósnia e Montenegro), vepir (Bulgária). Enquanto restritos à sua
área de origem, esses termos eram empregados por camponeses
e aldeões. No entanto, já em 1693, tanto a palavra vampir quanto
suas variações estavam presentes nas línguas da Europa
Ocidental por causa das notícias que chegavam da Sérvia, então
parte do Império Austro-Húngaro, referentes a verdadeiros
surtos de vampirismo.
Tais ocorrências atingiram o auge nas primeiras décadas do
século 18. Em 1725, duas mortandades foram atribuídas a
supostos vampiros sérvios: Peter Plogojowitz (em sérvio, Petar
Blagojević), na vila de Kisilova, provavelmente a atual Kisiljevo,
junto ao Danúbio e perto da fronteira com a Romênia; e Arnold
Paole (Arnont Paule, no original em alemão), na vila de ­Medvegia
ou Medveđa, às margens do rio Morava, cerca de 130
quilômetros a sul de Belgrado.2 O caso Paole ressurgiria em 1731,
com um novo surto de “vítimas de vampirismo”. A população
local, aterrorizada, exigiu a interferência do governo austríaco,
que se viu obrigado a enviar uma comissão de médicos e
militares para investigar o caso. O fato é que os médicos
acabaram confirmando a condição vampírica de vários corpos
exumados. Aparentemente, o desconhecimento acerca dos
processos de decomposição cadavérica fazia com que
características normais fossem interpretadas como sinais claros
de vampirismo.3 Os cadáveres dos supostos vampiros foram
decapitados e queimados, e suas cinzas foram lançadas no rio
Morava. O relatório apresentado pela comissão ao imperador,
em 1732, chamou a atenção da imprensa e o assunto virou
sensação por toda a Europa.
Foram os relatórios oficiais e médicos como esse que levaram
à introdução da palavra vampir no latim, no inglês, no francês e
no alemão. Médicos, filósofos e religiosos dos países europeus
ocidentais, intrigados com os relatos de vampirização, discutiam
o fenômeno como um possível fato médico. A Europa voltava-se
para o fenômeno, na tentativa de dissolver os espectros nas luzes
do Iluminismo.
A publicidade em torno dos episódios de vampirismo garantiu
não só a exportação da palavra, mas também a disseminação da
própria figura do vampiro nos círculos mais sofisticados e
eruditos do coração cultural do mundo ocidental.
Dom Augustin Calmet, padre beneditino francês, famoso
exegeta da Bíblia, publicou em 1746 uma obra que ironicamente
seria decisiva na propagação do vampiro, Dissertações sobre as
aparições de anjos, demônios e espíritos, e sobre os desmortos e
vampiros da Hungria, da Boêmia, da Morávia e da Silésia.4 A
primeira edição rapidamente se esgotou, e a segunda edição
expandida saiu em 1751, com os anjos e demônios expurgados do
título. Calmet, ao fazer um inventário dos casos de assombração
conhecidos, tomou o que chamou de “caminho intermediário”,
encarando as evidências com ceticismo, mas admitindo que
alguns casos podiam ser reais. Na prática, isso equivalia a dizer
que “no creo en vampiros, pero que los hay, los hay”, e o resultado
foi que o abade terminou dando um aval involuntário à
existência dos vampiros. Na verdade, Calmet abominava os
sacrilégios praticados contra cadáveres e queria estabelecer um
método crítico para examinar o assunto. No fim do século 18,
porém, as discussões haviam tomado tal intensidade entre a elite
europeia que a postura isenta e afirmações neutras de Calmet
adquiriram aparência de assentimento, e ele virou alvo de
críticas vindas de todos os lados. Até os outros beneditinos o
atacaram “por perder tempo dando crédito a histórias de
assombração”, e chegaram a insinuar que estava caduco.
Nada disso impediu que seu tratado se tornasse não só um
best-seller, como uma fonte importante de inspiração para a
literatura vampírica do século 19. Além disso, a obra popularizou
o termo vampiro e trouxe a público histórias que, antes, eram de
divulgação restrita.
Talvez outra repercussão do tratado de Calmet tenha sido
inspirar o botânico e zoólogo Lineu5 a batizar um morcego
asiático com o nome de Vespertilio vampyrus. Não que este fosse
um morcego tomador de sangue (trata-se de um comedor de
frutas), mas o que impressionou o estudioso foi o enorme
tamanho do animal, que é conhecido pelo nome popular de
raposa-­voadora-gigante. Foi o eminente naturalista francês
Georges-­Louis ­Leclerc, o conde de Buffon, que, em 1761, atribuiu
o nome popular de vampiro ao morcego hematófago (isto é,
tomador de sangue) Desmodus rotundus.6 Assim, por meio da
ciência, estabeleceu-se uma associação da imagem do vampiro
com o morcego, nexo que não existia nas lendas tradicionais. Por
retroalimentação, o morcego-vampiro influenciou a literatura,
aparecendo pela primeira vez em meados do século 19 e
estabelecendo-se em definitivo no cânone vampírico com
Drácula.
Em 1755, ao ser informada da exumação de uma suposta
vampira na fronteira da Silésia com a Morávia (hoje fronteira da
República Tcheca com a Polônia), a Imperatriz Maria Teresa da
Áustria encarregou seu médico pessoal, o holandês Gerard van
Swieten, de investigar a fundo a questão. Swieten foi um
precursor do Dr. van Helsing: o cientista que cuidadosa e
sistematicamente acumula e revisa evidências sobre fenômenos
ditos sobrenaturais. Contudo, enquanto o personagem de Stoker
admoestava os céticos de que “a força do vampiro reside em que
as pessoas não creem nele”, o médico da Imperatriz concluía em
seu relatório que tudo não passava de histeria propagada pela
ignorância do populacho. A partir de então, a decapitação e o
estaqueamento de cadáveres foram proibidos por lei. Além disso,
leis promulgadas em 1755 e 1756 retiraram dos párocos a
autorização para lidar com o “mundo da magia”, transferindo
esses casos para a responsabilidade do governo central.
Tais vitórias do bom senso na Europa das Luzes não foram
obstáculo para a bem-sucedida progressão do vampiro, o qual
exibe uma característica intrínseca: parece ser impossível
destruí-lo ou exorcizá-lo. Quanto mais se tenta descartá-lo como
mera bobagem, mais ele retorna, e com vigor renovado. O
resultado das medidas da Imperatriz foi reacender o debate
sobre vampiros na Alemanha, França e Itália. Uma vez instalada
na alta cultura, a criatura já não podia ser impedida em sua
expansão vitoriosa: primeiro espalhou-se pela Europa para, nos
séculos seguintes, ganhar o mundo.

Os ancestrais do vampiro
O vampiro folclórico eslavo, ancestral do vampiro
contemporâneo, não nasceu simplesmente do nada. Ele evoluiu a
partir de criaturas que o precederam, provenientes da Europa e
da Ásia.
Um ponto pode suscitar dúvidas: se há uma origem mais
remota para o vampiro eslavo, por que defini-lo como o
antepassado que originou o vampiro atual? Por que não chamar
de “vampiros” também os seres dos quais proveio? É mais fácil
responder à questão ao traçar um paralelo com a própria
evolução humana. O ponto de origem do Homo sapiens é
determinado pelo momento em que surgem as características
que hoje nos definem como espécie e nos separam dos demais
primatas. Assim, o Australopithecus (que viveu de 3,5 a 4 milhões
de anos atrás) é considerado ancestral do ser humano, mas ainda
não é humano, pois exibe, por exemplo, características cranianas
mais semelhantes às dos grandes macacos.
Da mesma forma, o vampiro passa a existir como entidade
bem definida (“espécie”) ao adquirir um conjunto único de
atributos, a partir de criaturas ancestrais que exibem algumas
características vampíricas, mas não todas. Cinco tipos diferentes
de seres sobrenaturais amalgamaram-se para resultar no
vampiro sérvio ancestral:7
os mortos-vivos, ou revenants, como os Nachzehrer alemães,
que se alimentam dos corpos de parentes já mortos;
espíritos que fazem visitas noturnas, como os íncubos e
súcubos da igreja católica romana;
seres tomadores de sangue, como as estriges (strix), bruxas
da Roma antiga;
os bruxos eslavos e balcânicos, que fazem malefícios mesmo
após a morte;
os licantropos ou lobisomens, pessoas que se transformam
em lobos e, depois de mortas, voltam para tomar sangue
alheio, como o vrykolakas grego.
Embora tenham fornecido atributos ao vampiro, tais criaturas
não desapareceram. Elas podem ainda ser reconhecidas na
mitologia europeia, que acabou influenciando outras mitologias.
Por exemplo, o folclore brasileiro incorporou, entre outros, a
bruxa e o lobisomem.

Por que surgiu o vampiro?


Quando surgiu, o vampiro não era um fantasma ou uma
assombração. Ele era real e servia a um propósito: explicar fatos
reais para os quais a ciência, ou a falta dela, não tinha uma
explicação convencional. O mito do vampiro pode ter nascido da
conjunção de dois componentes. Por um lado, a necessidade de
explicar o alastramento de certas epidemias numa época e num
lugar onde não se conheciam os mecanismos de contágio; por
outro, o desconhecimento do processo de decomposição
cadavérica.
Assim, depois de morto, o vampiro voltava para contaminar
suas vítimas, que ao morrerem se tornavam como ele num
processo verdadeiramente epidêmico. Relatórios médicos e
autoridades atestavam a exumação de corpos que estavam
intactos quando já deveriam ter apodrecido, e davam seu aval ao
diagnóstico de vampirismo. No entanto, várias características
vampíricas, senão todas, têm explicações na biologia forense:8
a terra revirada em cima do túmulo resultaria da ação de
cães famintos (ou lobos) tentando alcançar o cadáver;
vários fatores poderiam impedir ou retardar a
decomposição dos cadáveres encontrados intactos:
preservação por baixas temperaturas ou por solos ácidos,
saponificação em solos muito úmidos, morte por ingestão de
venenos que impedem a instalação e ação dos
microrganismos sobre o corpo;
a aparência roliça e saudável decorreria do inchaço do
corpo pelos gases aprisionados no início do processo de
decomposição;
o escape dos líquidos misturados com sangue explicaria a
boca ensanguentada do “vampiro” exumado;
cabelo e unhas parecem crescer no pós-morte, porque a pele
encolhe e os deixa mais expostos.
Até o modo tradicional de despachar o vampiro,
trespassando-o com uma estaca, tem base científica. A
perfuração é a forma mais rápida de reverter ao volume normal
um corpo inchado por gases. Ao ser estaqueado, o vampiro pode
gemer ou gritar, pois a pressão da estaca no peito força o gás pela
glote, que manifesta a “queixa” do morto-vivo.
O impulso de tentar explicar a qualquer custo fenômenos
inexplicáveis gerou seres fantásticos nas mais diversas
sociedades ao redor do mundo. Por exemplo, em muitas culturas
aparecem entes sobrenaturais (como o boto na Amazônia e o
trauco na ilha de Chiloé, no Chile) que atacam e engravidam
donzelas inocentes, saída bastante conveniente para minimizar
os efeitos embaraçosos de uma situação irrefutável.
O VAMPIRO LITERÁRIO: ANTES DE DRÁCULA
O vampiro pré-literário de meados do século 18 era quase um
zumbi, um ser repugnante que dificilmente seria convidado para
um jantar ou roda social: unhas compridas, barba malfeita, boca
e olho esquerdo abertos, rosto vermelho e inchado, envolto em
sua mortalha.9 Quando Bram Stoker começou a estruturar seu
romance Drácula, pouco mais de cem anos depois, a imagem do
vampiro já havia mudado de pobre campônio de aparência tosca
e hálito do além-túmulo para um aristocrata sedutor, cujos
traços repugnantes eram pouco perceptíveis à primeira vista, e
francamente aceitável em sociedade. Em sua notável ascensão
social, o vampiro percorreu um longo caminho, no decorrer do
qual pegou carona com ilustres figuras literárias dos séculos 18 e
19.

Os precursores poéticos
Foram os românticos alemães que abriram as portas e
convidaram o vampiro a entrar na literatura poética.
O poema de Heinrich August Ossenfelder, “O vampiro”,10 de
1748, é considerado o primeiro texto literário a abordar o tema.
Ossenfelder prepara o caminho para os textos que tratarão o
vampiro como “o outro”, isto é, como personificação das religiões
não cristãs. O poema é narrado pelo próprio vampiro, que
descreve para Christiane, jovem que segue os preceitos cristãos
de sua mãe, como vai penetrar no quarto dela à noite e os
prazeres que vai lhe proporcionar. Ossenfelder trouxe para a
ficção o vampiro descrito pela tradição folclórica centro-
europeia, acrescentando-lhe um aspecto sensual que o
transformou numa ameaça aos valores cristãos.
Surgido em 1773, o poema “Lenore”, de Gottfried August
Bürger, foi traduzido para outros idiomas e tornou-se bastante
conhecido. Nele, um cavaleiro volta da guerra para buscar sua
noiva e a leva numa cavalgada fantasmagórica, ao final da qual
se revela como a Morte. Apesar de não conter qualquer alusão
direta aos vampiros, o poema influenciou profundamente a
literatura vampírica. O refrão “Die Todten reiten ­schnell!”
(“Ligeiros viajam os mortos!”) se tornou célebre e foi citado,
entre outros, por Bram Stoker, tanto no começo de Drácula como
no conto “O convidado de Drácula”.
Mas uma das primeiras abordagens do vampiro na poesia
moderna veio da pena de um autor bem mais ilustre — Johann
Wolfgang von Goethe, o autor de Fausto, que em 1797 publicou “A
noiva de Corinto”. O poema, inspirado em escritos dos antigos
gregos Flégon de Trales e Filóstrato, narra a viagem de um jovem
ateniense a Corinto para conhecer a noiva prometida.
Hospedado na casa dos pais dela, recebe durante a noite a visita
de uma moça que o encanta e com quem troca votos de amor.
Depois da meia-noite, a moça revela que, tendo morrido sem
poder consumar seu noivado, é agora forçada a sair do túmulo a
cada noite para seduzir homens jovens e sugar “o sangue de seu
coração”. A culpada é sua mãe, que, convertida ao cristianismo,
fez uma promessa e obrigou a filha a renunciar ao noivado,
causando-lhe uma morte prematura. Entretanto, “nem os
cânticos dos padres”, “nem mesmo a Terra” são capazes de
abater o ardor da paixão não consumada. Goethe utilizou a
narrativa de Filóstrato, na qual a noiva é desmascarada como
uma empusa ou lâmia (que “são amorosas e desejam as delícias
do amor, mas sobretudo a carne dos humanos, que seduzem
proporcionando-lhes prazeres amorosos”11), adicionando, assim
como Ossenfelder, a temática do conflito religioso. O escritor dá
a entender que, ao trocar os vários deuses do classicismo pagão
por um único deus “invisível nos céus”, a família da moça fez um
mau negócio. Para a própria noiva, foi a morte do amor. Ao final
do poema, esta pede à mãe que queime numa pira funerária seu
corpo e o do jovem apaixonado, de forma que ambos os espíritos
possam partir para junto dos “antigos deuses”.
O poema aborda, assim, tanto a sedução da femme fatale como
o amor além da morte, que se tornariam temas favoritos dos
escritores românticos e, posteriormente, do cinema. Note-se que
a questão da sensualidade exacerbada do vampiro vinha já da
tradição folclórica, que lhe atribuía grande avidez sexual.12
Samuel Taylor Coleridge é considerado o introdutor do
vampiro na poesia britânica, com seu poema inacabado “-­
Christabel”, escrito entre 1797 e 1801.13 Numa caminhada pelo
bosque, a donzela Christabel encontra-se com a bela e misteriosa
Lady Geraldine, que pede ajuda a ela, alegando ter sido
sequestrada por malfeitores. Quando, porém, Christabel a
convida para conhecer o castelo de seu pai (e para dividir o
próprio leito!), coisas estranhas começam a acontecer, e a
misteriosa mulher dá mostras de um poder maléfico, que parece
enfeitiçar ­Christabel. Num dado momento, quando ela se reclina
na cama para olhar Lady Geraldine, esta tira a roupa, e o busto e
metade do flanco revelam algum horror que Coleridge prefere
não descrever.14 O poema contém aspectos que reapareceriam
em “Carmilla”, famoso conto vampírico publicado dali a algumas
décadas, como a alusão ao amor lésbico e o poder obscuro de
Lady Geraldine que fascina e enfeitiça a heroína. No entanto, o
termo “vampiro” jamais é mencionado. Aparentemente, nem o
próprio Coleridge tinha uma ideia clara a respeito de seu
personagem, e foi incapaz de concluir o poema. Ainda assim, ou
talvez por isso, a obra tem um clima misterioso e fantástico que a
tornou uma das favoritas do século 19, com grande influência
sobre inúmeros autores de histórias de vampiro.15
Outro precursor poético da literatura vampírica foi o inglês
Robert Southey, conhecido poeta e biógrafo, que escreveu ainda
uma história do Brasil,16 mesmo sem nunca ter estado no país.
Fã declarado das baladas sobrenaturais alemãs, em especial
“Lenore”, de Bürger, ele já demonstrara seu interesse pelo tema
dos revenants, ou mortos redivivos, no poema “The Old Woman
of Berkeley”, sobre uma bruxa velha que tenta em vão impedir
que o demônio leve seu corpo depois de morta. Dois anos depois,
publicou “Thalaba the Destroyer” (1801), poema épico em que o
herói de mesmo nome deve enfrentar um ser vampírico que
habita o corpo de Oneiza, sua falecida noiva. Apesar de a
aparição do vampiro ocorrer em apenas um episódio do longo
poema, Southey incluiu inúmeras notas explicativas baseadas
em suas pesquisas sobre vampiros.
Outros dois poetas britânicos que trataram de vampiros
foram John Herman Merivale — que em “The Dead Men of Pest”
(1807) incluiu o relato de como um demônio chamado Vampire
extermina uma aldeia após sair da tumba e sugar o sangue dos
habitantes — e John Stagg, que incluiu no volume Minstrel of the
North (1810) a balada “The Vampyre”, cujo prefácio contém uma
discussão erudita sobre vampiros. Na balada, o narrador- ­
Herman conta à esposa que seu falecido amigo Sigismund
retorna de noite para tomar seu sangue. A obra culmina, após a
morte de Herman, com uma estaca cravada no coração do
vampiro.
Bem mais conhecido é “A bela dama sem piedade” (1819), do
renomado poeta lírico John Keats, sobre uma mulher com
aparência de fada, longa cabeleira e olhos selvagens, que ronda
as colinas e seduz os caminhantes. O poeta retomaria o tema em
“A véspera de Santa Inês” e em “Lamia” (1820), poema que
iniciou logo após a publicação do conto de Polidori. Para
escrevê-lo, Keats foi buscar inspiração nas mesmas fontes
clássicas de Goethe.
Os poetas românticos alemães e ingleses estavam voltados
para a Antiguidade, e em geral ambientavam suas obras em
lugares distantes e épocas remotas, inspirando-se em escritos da
Grécia e Roma antigas ou em baladas medievais. Autores como
Southey, Merivale, Stagg e Byron procuravam atestar, por meio
de notas, prefácios e apêndices, toda a pesquisa que haviam feito
entre os autores do século 18 para criarem seus poemas.17
É interessante notar que, entre os precursores poéticos da
literatura vampírica, boa parte dos vampiros eram mulheres.
Logo, com a consolidação do tema na prosa, o estereótipo
vampírico da mulher fatal iria se transmutar no nobre parasita
do sexo masculino.

Lord Byron e a origem do vampiro em prosa


Em junho de 1816, encontravam-se reunidos às margens do lago
Genebra,18 na Suíça, o poeta britânico Lord Byron, seu
secretário e médico particular John William Polidori, o também
poeta Percy Bysshe Shelley e a futura esposa dele, Mary
Wollstonecraft Godwin, e a meia-irmã dela, Claire Clairmont.
Àquela altura, Byron já era um mito na Inglaterra. Famoso
por seus poemas satíricos, era convidado para todas as soirées e
recepções sociais da elite. A beleza, o charme e a língua afiada
faziam dele o bad boy da época, irresistível para as mulheres.
Jogava com sua imagem pública, cuidadosamente criada, e era o
poeta de si mesmo. Criou uma figura que acabou dando origem
ao herói byroniano — o rebelde que permanece à margem da
sociedade, melancólico e sedutor, romântico, misterioso e
trágico, o qual viria a ser o protótipo do herói ficcional, de sua
época até nossos dias. Shelley já ostentava alguma fama graças
ao poema “Queen Mab” e à intransigente defesa que fazia do
ateísmo e do amor livre, que lhe haviam granjeado muita
antipatia na Inglaterra.
Durante alguns dias, de 15 a 17 de junho, uma tempestade
prolongada manteve o grupo confinado na Villa Diodati, a casa
que Byron alugara. Para passar o tempo, entre outras atividades
menos inocentes, eles liam em voz alta histórias sobrenaturais.
Certa noite, após lerem relatos da coletânea alemã
Fantasmagoriana, foi proposto que cada um escrevesse a própria
história de fantasmas.
Shelley começou um conto que não chegou a terminar, e
Claire parece não ter escrito nada. Já Mary, segundo ela mesma,
deu início ao que depois transformaria no romance Frankenstein
(1818). Polidori, ainda segundo ela, começou a história de uma
mulher que, por espiar por um buraco de fechadura, teve a
cabeça transformada em caveira.19 Já Byron esboçou o início de
uma história que logo abandonaria.
Esse fragmento de Byron não ficou esquecido; mais tarde, ele
serviu de base para que Polidori escrevesse o conto “O vampiro”
(“The Vampyre”), publicado em abril de 1819 no New Monthly
Magazine. Fosse por equívoco, fosse por má-fé do editor, a
autoria do conto foi atribuída a Lord Byron. Um prefácio que não
havia sido escrito por Polidori só reforçou o erro. O sucesso do
conto foi estrondoso e imediato. Apesar dos protestos tanto do
nobre como de Polidori, a história continuou por muito tempo a
ser tratada como obra de Byron.
Assim, naquela noite na Villa Diodati, crucial para os fãs do
terror e da literatura fantástica, foram concebidos tanto
Frankenstein, considerado por muitos como marco inicial da
ficção científica, como Lord Ruthven, antecessor direto do Conde
Drácula. Curiosamente, os dois ilustres escritores presentes não
deixaram nada importante nos anais da literatura fantástica.
Quem deixou sua marca para a posteridade foram virtuais
desconhecidos, que depois seriam vistos de modo geral como
escritores de uma obra só — justamente as que vieram à luz nas
margens do lago Genebra.
É bem verdade que “O vampiro”, de Polidori, pode não ter sido
de fato a estreia do vampiro na ficção em prosa, pois em 1801
teria surgido, em alemão, o romance Der Vampyr, de Theodor
Arnold, que assim deteria tal distinção. A obra caiu no
esquecimento, porém, e sequer se sabe se de fato saiu
publicada.20 Portanto, para todos os efeitos, foi o conto de
Polidori que estabeleceu de vez o vampiro na prosa ficcional e
que, por assim dizer, apresentou-o à sociedade.
Em seu conto, Polidori reuniu os elementos isolados do
vampirismo em um texto literário coerente, afastando-se do
repugnante vampiro do folclore para recriar o monstro na forma
de um aristocrata sedutor, perverso e contemporâneo. Desse
modo, ele transformou o espectro que só aparecia à noite para
sugar o sangue dos vivos num ser complexo e crível que convivia
em sociedade e viajava a seu bel-prazer, escolhendo suas vítimas
em vários países. Além disso, o foco mudou do herói passivo
para o vilão, que começou a desencadear a ação. A justaposição
de detalhes de um realismo clínico (o vampiro sendo morto por
balas comuns, o protagonista entrando em depressão nervosa)
com eventos fantásticos terminou por acentuar o clima
sobrenatural. “O vampiro” estabeleceu de uma vez por todas o
protótipo para o vampiro da literatura, do teatro e
posteriormente do cinema. Lord Ruthven foi, para o século 19,
aquilo que o Conde Drácula seria para o século 20.
Mas Polidori fez mais do que tomar o esboço de Byron e
desenvolver a história. Há bem pouca dúvida de que, ao criar
Lord Ruthven, o autor estava dando vida a uma caricatura do ex-
patrão, por quem nutria sentimentos contraditórios.
O nome Ruthven já tinha sido usado de forma maliciosa por
Lady Caroline Lamb, em seu romance Glenarvon (1812), para um
personagem pouco lisonjeiro e claramente baseado em Byron,
com quem a autora tivera um malsucedido caso de amor. O
rosto, “de forma e contorno” belos, mas que “jamais assumia um
matiz mais vivo”, e o fascínio sobre as mulheres, as quais ele
usava e descartava a seu bel-prazer, transformaram-se em
marcas registradas do vampiro literário. Lord Ruthven exibe
uma combinação de aspectos atraentes e repulsivos que
reaparece em seus descendentes literários mais famosos, indo
desembocar diretamente no Conde Drácula.
O próprio Byron admitiu que, para criar sua persona pública,
tomara por base os vilões da famosa autora de romances góticos
Ann Radcliffe. Ao caricaturá-lo, Polidori introduziu esse
estereótipo na literatura vampírica. O romance gótico, à época
em franco declínio, adquiriu, assim, novo fôlego por meio do
vampiro.
Em seu conto, Polidori valeu-se do recurso narrativo do
viajante inglês que, abandonando as certezas e segurança das
Ilhas Britânicas, aventura-se por países exóticos onde as
superstições são reais. Tal argumento depois reapareceria, por
exemplo, no conto de Bram Stoker “O convidado de Drácula”,
com o qual finalizamos esta coletânea. Além desse artifício de
narração, muitos outros elementos estabelecidos por Polidori
tornaram-se, mais tarde, parte do cânone vampírico. Lord
Ruthven deu início à dominância de vampiros homens na
literatura, rompida por poucos autores no decorrer do século 19.

O vampiro conquista a Europa


Já no ano de sua publicação na Inglaterra, “O vampiro” cruzou
as águas correntes do Canal da Mancha e ganhou a Europa. O
conto saiu em francês como “Le Vampire”, com o subtítulo
“Conto traduzido do inglês, de Lord Byron”. Novamente o
sucesso foi imenso, tanto pelo conto em si quanto pelo suposto
autor, tão famoso e polêmico. O vampiro foi saudado pelo
escritor Charles Nodier,21 em artigo publicado no respeitável
Journal des débats, como o ser que “aterrorizará, com seu
horrível amor, os sonhos de todas as mulheres”. Nodier previu,
ainda, o sucesso da criatura nos palcos. Como se verá mais
adiante, a afirmação foi tanto uma profecia como uma bem
calculada jogada de marketing.
Em 1820, foi publicado em Paris, com autoria (quase)
anônima, Lord Ruthwen, ou Les vampires, um romance em dois
volumes que constituía uma continuação do conto de Polidori.
Nele, após ganhar outro v no nome, o vampiro torna-se um
viajante ainda mais inquieto e percorre um grande tour
sangrento pelo mundo: Veneza, Florença, Nápoles, Módena,
Tirol, Polônia, Morávia, Atenas, Varanasi e Bagdá, deixando em
seu rastro inúmeras donzelas desonradas.22 Lord Ruthwen viria a
ser o primeiro romance de mortos-vivos a fazer sucesso com o
público, dando início à meteórica carreira ascendente do
vampiro nas letras e palcos franceses. Dessa forma, Polidori não
só inspirou o primeiro best-seller vampírico, como também a
primeira fanfic (ficção escrita por fãs) de vampiros.
Quanto à autoria, a página de título informava, enigmática:
“Romance de C. B., publicado pelo autor de Jean Sbogar e de
Thérèse Aubert”. C. B. são as iniciais de Cyprien Bérard, futuro
diretor dos Teatros de Vaudeville e des Nouveautés,
desconhecido como escritor e que não parece ter publicado
outras obras de ficção (ao menos não com seu nome real).23 Por
outro lado, o autor das duas obras citadas era ninguém menos
que o próprio Charles Nodier, já então influente nos círculos
culturais franceses, que negou publicamente ter relação com o
romance vampírico.24 Como num déjà-vu, repetia-se a confusão
envolvendo um desconhecido, uma celebridade e um vampiro.
Ao bancar o padrinho involuntário do livro de C. B., Nodier sem
querer deu o primeiro passo para garantir que a própria
predição se concretizasse.
Ele iria além, muito além, nesse caminho — e por vontade
própria. Em meados de 1820, estreou no palco do Teatro Porte-
Saint-Martin o melodrama O vampiro, escrito por Nodier em
colaboração com Carmouche e Jouffroy, com música de- ­
Alexander Piccini.25 Baseado no conto de Polidori, sua ação foi
transportada para o século 16, e aos cenários originais de
Londres e Grécia foi acrescentada a Escócia, que
incidentalmente não tem em seu folclore nenhuma tradição
vampírica. Ruthwen, agora vestindo saiote, deseja desposar
Malvina, irmã de Aubrey, para tomar o casto sangue da donzela.
Ele não consegue concretizar seus pérfidos intentos e, ao final,
as vítimas de sua maldade retornam da cova e o carregam
embora, enquanto um Anjo Exterminador desce dos céus e uma
chuva de fogo cai sobre o palco.
O componente erótico-amoroso está muito mais acentuado na
peça de Nodier do que no texto original. O Ruthwen teatral é
ainda mais influenciado por Byron do que o Ruthven literário.
Não é o típico vilão do melodrama, sombrio e declaradamente
perverso do início ao fim, mas um anti-herói romântico, em
quem o sentimento pela mocinha luta contra seu próprio instinto
monstruoso.26 É interessante notar, portanto, que a ambiguidade
característica do vampiro atual (que assumiria força total na
década de 1970) já acompanhava o vampiro desde muito cedo,
desde a estreia nos palcos, apenas um ano depois de seu
nascimento como personagem literário.
O público afluiu em massa ao Teatro Porte-Saint-Martin, para
se horrorizar ante o terror e a ameaça infligidos pelo malévolo
vampiro Lord Ruthwen à virginal e tímida Malvina. É claro que o
aplauso não foi unânime, e a porção mais conservadora da
sociedade teve a reação que seria de se esperar:
“Por muito tempo causará espanto que o governo, com sua
prudência, tenha permitido a representação dessa peça
hedionda e imoral. O prólogo e o desfecho resumem a
punição dos vampiros, depois de todos os seus crimes, a
nada. Isso é contrário a todas as religiões [...] Toda a peça
representa indiretamente Deus como um ser falível ou
odioso, que abandona o mundo aos espíritos do inferno. O
resultado desse melodrama é que as damas saem
passando mal ou com a imaginação perturbada.”27

As críticas inflamadas não impediram que o vampiro


encontrasse um ambiente muito propício nos teatros do famoso
Boulevard du Temple, em Paris, que em 1823 passaria a ser
chamado informalmente de “Boulevard du Crime”, em razão dos
incontáveis raptos, assassinatos e outros crimes horríveis
encenados nos palcos. Nessa época, florescia ali o gênero do
melodrama, em contraste com o que se dava nos teatros oficiais,
cujo repertório neoclássico satisfazia o gosto do imperador
Napoleão.
Quase de imediato, a peça de Nodier foi seguida por uma
enxurrada de espetáculos semelhantes, em sua maioria cômicos.
Segundo um crítico francês da época, “nenhum teatro parisiense
ficou sem seu vampiro”.28 Ainda em 1820, houve pelo menos mais
cinco espetáculos protagonizados por vampiros. Nesse ano e nos
seguintes, foram apresentados melodramas, vaudevilles, óperas-
cômicas, um balé e houve até mesmo polichinelos29 vampiros! A
moda foi criticada pela mídia de então, da mesma forma como
viriam a ser criticados no século 20 outros sucessos de massa.
Nem Lord Byron, ainda tido como deflagrador da vampmania,
escapou; no entanto, acabou sendo beneficiado pelo imbróglio, já
que o conto “O vampiro” o fez ainda mais célebre e popular na
França. Quanto a Polidori, permaneceu imerso no anonimato.
Polidori não recebeu reconhecimento nem mesmo quando,
fechando o ciclo, a peça de Nodier foi adaptada para o inglês e
chegou aos palcos da Grã-Bretanha. Depois de conquistar Paris,
ainda no glorioso ano de 1820, Lord Ruthwen cruzou novamente
o canal da Mancha e voltou à pátria-mãe.
O vampiro teatral encontrou uma Inglaterra em transição,
que passava por mudanças profundas. Apesar da Revolução
Industrial e seus avanços tecnológicos, as guerras napoleônicas
tinham lançado o país numa grave crise econômica. Nas cidades
superpovoadas, a urbanização desregrada gerava sérios
problemas sociais, sem solução à vista. O teatro não ficara imune
à onda de mudança. As grandes cidades ofereciam campo fértil
para novas linguagens teatrais, desvinculadas da preferência da
elite, voltadas para um público mais amplo e com forte apelo
visual. À diferença dos teatros das classes superiores, onde
imperava a ópera e o traje de gala era obrigatório, as casas de
categoria inferior exibiam burlettas (óperas cômicas) e
melodramas.30
O público inglês estava, portanto, pronto para o vampiro. Dois
meses depois da estreia do vampiro nos palcos franceses, O
vampiro, ou A noiva das ilhas!, de James Robinson Planché,31
estreou no English Opera House,32 equivalente londrino do
Théâtre de la Porte Saint-Martin parisiense. Essa livre-
adaptação da peça de Charles Nodier repetiu o êxito da obra
original, sendo encenada mais tarde em Nova York, para depois
retornar à cena londrina. Do mesmo modo que a peça de Nodier,
foi seguida por uma série de imitações e paródias.
Na versão de Planché, o vampiro de novo se chama Ruthven.
A ação outra vez se passa na Escócia, mas à revelia de Planché,
que depois declarou ter tentado mudar a ambientação para a
Hungria. O dono do teatro se opôs, alegando que o público não
notaria a diferença — argumentação que ainda soa bastante
atual.
O vampiro de Planché oferecia violência, crueldade e sexo,
que caracterizavam o lado sombrio do melodrama, e isso fez com
que a ameaça da censura inglesa pairasse constantemente sobre
ele. Trazia ainda o herói dividido, numa luta interna em que sua
natureza e sua ordem moral se confrontavam. Nesse ponto,
distanciava-se tanto do folclore, essencialmente pagão, quanto
da narrativa de Polidori, na qual o vampiro não tem dilemas nem
incorre em qualquer punição. Essa versão notabilizou-se por
introduzir uma invenção técnica: o palco era provido de um
“alçapão-vampiro”, que permitia a Lord Ruthven desaparecer ao
final, para delírio da plateia. Efeitos especiais e finais
espetaculares, portanto, já existiam antes de o cinema se apossar
do vampiro.
A febre vampírica também atingiu a Alemanha. Já em 1819 o
conto de Byron apareceu traduzido para o alemão, e a partir daí
um grande número de romances, novelas e contos começou a ser
publicado. A maioria desses textos não marcou posição na
literatura vampírica e apenas recentemente foram resgatados.33
Uma notável exceção é o “A vampira”,34 conto de E. T. A.
Hoffmann, publicado em 1821, no qual a condessa Aurélia
abandona o marido de noite para alimentar-se de cadáveres no
cemitério. O conto traz uma longa introdução sobre o vampiro na
literatura, mencionando até “o vampiro de Byron”. Aurélia não é
uma morta-viva nem se alimenta de sangue, mas de qualquer
modo foi a primeira personagem feminina marcante de condição
vampírica a surgir na prosa. Ela reafirma, ainda, a relação entre
título de nobreza e vampiridade, estabelecida com Lord Ruthven
e que, mais tarde, seria reforçada por Carmilla, condessa de
Karnstein, pelo conde Drácula e vários outros.
Também em 1821 foi publicada a tradução alemã do romance
de Cyprien Bérard, e na cidade de Braunschweig estreou Der
Vampyr, oder die Todtenbraut (“O vampiro ou a noiva morta”),
peça de Heinrich Ludwig Ritter, com o subtítulo “Baseada no
conto de Lord Byron”.
Na Alemanha, o vampiro ganhou novas forças, recuperando
aspectos de terror e sanguinolência que foram sendo perdidos
nas versões teatrais francesas e inglesas. Na Inglaterra, ele tinha
sido tratado de modo “compreensivo” e, com o tempo, chegou a
evocar piedade, passando a violência para segundo plano. Os
franceses, por sua vez, preocuparam-se mais com a história de
amor, seguindo os clichês mais sentimentais e patéticos do
Romantismo. Foi durante a passagem pela Alemanha, berço do
Romantismo em sua acepção mais primitiva, que o vampiro
reencontrou sua verdadeira natureza monstruosa. Os autores
alemães demonstravam um interesse todo especial pela figura da
mulher-vampira, já sentido nos precursores poéticos do fim do
século 18, como Bürger e Goethe. Ela retorna nos contos da
década de 1820, com “Die Totenbraut” (“A noiva morta”), de
Gottfried Peter Rauschnik, com a Aurélia de Hoffman e com
“Lasst die Todten ruhen” (“Deixa os mortos em paz”, 1823), de
Ernst Raupach, cujo título é uma alusão ao célebre refrão de
“Lenore”.
Embora não chegasse a ter o êxito estrondoso que alcançou
na Inglaterra e na França, o vampiro sentiu-se à vontade em solo
alemão, pois um gosto pelo sobrenatural já havia se difundido na
Alemanha antes de sua chegada. Em 1828, foi encenada a ópera
lírica Der Vampyr, que Heinrich ­Marschner compôs no ano
anterior sob a influência do sucesso de O franco-­atirador (Der
Freischutz, 1821), ópera romântica de Carl Maria von ­Weber, que
trazia efeitos especiais e elementos macabros. O vampiro de
Marschner, mais uma vez chamado Lord Ruthven, implora que o
Mestre Vampiro lhe conceda mais um ano de vida na Terra. Este
concorda, desde que Ruthven traga três vítimas para ele. Depois
de entregar a primeira jovem, Ruthven é apunhalado
mortalmente, mas recupera-se quando Aubry (sic) o expõe ao
luar. Ele força Aubry a guardar segredo e consegue ­matar a
segunda jovem, mas é denunciado antes que possa atacar a
terceira, Malwina. Ruthven é carregado por demônios para o
inferno, e Malwina e Aubry terminam juntos. A ópera fez
sucesso em toda a Europa e chegou a ser editada pelo aclamado
Richard Wagner, que escreveu uma ária adicional, mas
Marschner acabou caindo no esquecimento.
O sombrio vampiro alemão teria sua parcela de influência
sobre os textos vampíricos produzidos em inglês. Tal influência
se fez sentir, por exemplo na peça The Vampire Bride; or, The
Tenant of the Tomb (1834), de George Blink, baseada no conto de
Raupach. Trocando a Escócia pela Turíngia, região da Alemanha,
a obra trouxe a primeira vampira do teatro. Brunhilda é
ressuscitada por seu viúvo e espalha o terror, até levar à morte a
segunda mulher dele. Ela é um monstro sedento por sangue, que
não exige condições particulares, como o casamento no estilo
Ruthven, para atacar as vítimas. Antítese da mulher-mãe, ela
ataca homens, mulheres e crianças.35
A ópera de Marschner e o drama de Blink surgiram em um
momento em que a figura do vampiro no teatro parecia ter
perdido a força inovadora. Os autores franceses e ingleses,
concentrando a atenção em elementos apenas aludidos por
Polidori, haviam traído o próprio sentido de seu conto. A
influência alemã, com um gosto renovado pelos elementos mais
sangrentos e assustadores do mito, deu novo impulso à produção
do gênero na Inglaterra e, sobretudo, na França.36 Assim, por
volta da década de 1840, o interesse pelo vampiro estava longe de
cessar.

O vampiro para as massas


Na esteira do sucesso de Polidori, Bérard, Nodier e Planché, veio
um sem-número de seguidores e imitadores e, pelos anos
seguintes, obras teatrais e literárias vampíricas pulularam pela
Europa. Produzidas por espertinhos na tentativa de tirar
proveito da moda, muitas não possuíam qualquer mérito
artístico e não contribuíram para a evolução do tema, mas
satisfaziam as necessidades do público consumidor, nem sempre
exigente. Nada muito diferente do que vemos hoje.
A expressão máxima da produção cultural de massa no século
19 apareceu na Inglaterra, sob a forma dos penny bloods, ou
penny dreadfuls, folhetins seriados publicados semanalmente e
vendidos a um preço insignificante (um penny, algo como um
centavo). Tais publicações apresentavam histórias intermináveis
e mirabolantes, carregadas de ação e violência. Surgidos na
década de 1830, a princípio os penny bloods tinham como- ­
público-alvo a classe trabalhadora, em franca expansão naquela
época pós-Revolução Industrial.37 Com o passar do tempo,- ­
voltaram-se mais e mais para o público adolescente masculino,
e, na década de 1860, eram quase todos dirigidos a rapazes.38
A epítome dos penny bloods foi o gigantesco e rocambolesco
Varney, o vampiro; ou O banquete de sangue, publicado
inicialmente em forma seriada, de 1845 a 1847, e depois como
livro (1847).39 Uma família de posses é perseguida por Sir Francis
Varney, que ora se comporta como um vampiro típico, sugando o
sangue de seus integrantes, ora como um humano normal, cujas
ações perversas são motivadas por interesses financeiros. A
certa altura, ele revela ter sido amaldiçoado com o vampirismo
por ter cometido uma traição, além de haver matado o próprio
filho. Curiosamente, é o primeiro vampiro a ser descrito como
“mal-ajambrado”. Parece abominar a condição vampírica,
debatendo-se entre dúvidas e sentimentos de culpa, mas ainda
assim atravessa os 220 capítulos, divididos em 109 edições,- ­
seduzindo e vampirizando jovenzinhas enquanto viaja pela
Europa. Por fim, incapaz de suportar a não vida eterna, de súbito
decide se matar e se atira no Vesúvio, provavelmente quando o
editor decidiu que o folhetim já tinha dado o que tinha que dar.
Recentemente, estabeleceu-se que o autor de quase todos os
capítulos de Varney foi James Malcolm Rymer, embora por muito
tempo a autoria tenha sido atribuída a Thomas Preskett Prest.
Em sua época, Rymer e Prest estavam entre os mais prolíficos
autores de penny dreadfuls, com um volume de produção
extraordinário. Trabalhavam para o mesmo editor, ­Edward
Lloyd, que publicava os textos sem indicação de autoria, o que
torna difícil estabelecer qual deles escreveu o quê.40
Varney foi um dos marcos importantes da evolução do mito.
Depois, já não eram só as classes abastadas que podiam se
horrorizar com o vampiro. Foi a primeira peça literária
vampírica que atingiu de fato o grande público, oferecendo-lhe
sexo, violência e suspense. Com todos os problemas e limitações,
esse penny blood contribuiu de forma notável para a difusão da
imagem do vampiro. Dado seu alcance, foi fundamental para
fixar estereótipos que hoje são indissociáveis de tramas
vampíricas. Algumas cenas, repetidas várias vezes ao longo da
obra, tornariam-se chavões cinematográficos mais de um século
depois, como o vilão penetrando no quarto da mocinha para
atacá-la em seu sono, ou a horda de aldeões lutando contra o
vampiro depois de descobrir sua verdadeira natureza. Elementos
como presas afiadas, perfurações no pescoço das vítimas,
poderes hipnóticos e força sobre-humana foram popularizados
pelas páginas baratas de Varney, o vampiro. Coube ao folhetim,
ainda, outra distinção: a capa de uma das edições traz a primeira
associação entre o vampiro literário e o morcego, que seria
popularizada, anos mais tarde, pelo Drácula de Stoker.41
Como não podia deixar de ser, Varney abriu caminho para
imitadores numerosos, na maioria de qualidade ainda mais
duvidosa.
Todo o sucesso e repercussão de Sir Varney não impediram
que Lord Ruthven/Ruthwen continuasse influente no mundo
vampírico, como modelo para a figura do vilão assassino e
imoral. Ressuscitado incontáveis vezes ao longo dos anos, em
obras teatrais e literárias, ele ainda voltaria à cena três décadas
depois de sua primeira morte, em grande estilo e pela pena de
um dos escritores mais populares que o mundo já conheceu.
Alexandre Dumas, pai, travou conhecimento com o vampiro
ficcional em 1823, quando, recém-chegado a Paris, foi ao teatro
pela primeira vez, para assistir justamente a uma
reapresentação de O vampiro, de Charles Nodier. O tema o
impressionou. Em 1849, ele concluiria o livro Les Mille et un
fantômes — Une journée à Fontenay-aux-Roses com uma história
épica de vampiros, que incluímos na presente antologia com o
título de “A dama pálida”. A história injetou aventura e
teatralidade na literatura de vampiros, com cenas grandiosas e
personagens de caráter marcante. Além de escrever uma
narrativa interessante por si só, Dumas contribuiu com a
mitologia do vampiro literário ao popularizar os montes
Cárpatos como cenário da ficção vampírica. Essa locação já
havia sido utilizada pelo alemão Karl Adolf von Wachsmann no
conto “Der Fremde” (“O estranho”, 1844), que parece ter caído no
esquecimento até ser publicado, em inglês, de forma anônima,
como “The Mysterious Stranger” (“O estranho misterioso”).42 Tal
ambientação voltaria a ser empregada por Jules Verne (O castelo
nos Cárpatos) e, finalmente, sacramentada por Bram Stoker em
Drácula.43
O interesse de Dumas pelo tema não parou por aí, pois ele
ainda escreveria, em parceria com seu colaborador recorrente
Auguste Maquet, uma peça teatral que batizou de Le Vampire,
talvez em homenagem à obra de Nodier. Debutando em 1851 no
“Boulevard du Crime”, a nova aparição de Lord Ruthwen
sintetizou todas as encarnações prévias desse nobre tão duro de
matar. Foi certamente a obra vampírica mais elaborada até
então, pela articulação da trama, sequência de ambientações,
riqueza de efeitos especiais e atenção a aspectos visuais e
pitorescos.44 A forma como o vampiro assassina jovens donzelas
para chegar à verdadeira vítima, um rapaz relacionado a elas, faz
lembrar o Drácula de Stoker. Apesar da semelhança com a
história original de Polidori, a peça inova ao incluir um segundo
personagem vampírico, desta vez feminino: La Goule, que
protege o mocinho, por quem se enamora. Em muitos aspectos, a
obra de Dumas já é um drama romântico, com um Ruthwen
cruel, sombrio, elegante e sedutor, sutilmente sarcástico, como
serão seus sucessores do cinema.
No ano seguinte, 1852, estreou na Inglaterra La Dame de
pique; or, The Vampire: a Phantasm Related in Three Dramas, peça
do irlandês Dion Boucicault adaptada da obra de Dumas.
Compunha-se de uma sequência de três histórias, cada uma
ocorrendo um século após a precedente. Em 1856, a peça
desembarcou nos Estados Unidos como The Phantom: a Drama in
Two Acts, uma versão pasteurizada, simplificada e com maior
carga cômica.
O vampiro teatral da década de 1850 ecoou as mudanças
sociais e éticas em curso. Sua violência e crueldade, bem como
seus poderes, aumentaram, e as vítimas com frequência
morriam. O vampiro ainda preferia jovenzinhas, mas já não
precisava desposá-las; e elas agora resistiam e lutavam por suas
vidas, deixando de ser passivas e indefesas. Ele começou a atacar
também rapazes, como na ópera de ­Boucicault. Nesse período,
também se consolidaram novos clichês, como a capa, o medo de
cruzes, a existência noturna e uma personalidade ainda mais
magnética e sedutora, aspectos que se tornariam indispensáveis
ao vampiro moderno de forma irremediável.45
O vampiro continuou nos palcos europeus até pelo menos
1877, mas já com muito menor intensidade que na fase áurea da
década de 1820.

Mulheres fatais, decadência e fin-de-siècle


Durante a década de 1870, o mito do vampiro foi fortemente
influenciado pela forma negativa como a sociedade reagia às
mudanças no comportamento da mulher, cada vez mais
independente, com opiniões e atitudes próprias. Para muitos, a
nova situação era indesejável e perigosa, e uma verdadeira
misoginia alastrou-se pela sociedade. Ao longo do século 19,
desenvolveu-se o estereótipo da belle dame sans merci, a bela
dama sem piedade, que leva o homem à obsessão, ­reduzindo-o à
impotência até destruí-lo. A vampira Clarimonde, de ­Théophile
Gautier (“A morte amorosa”, 1836), pode ser traçada como
decisiva para a consolidação da femme fatale, que teve ainda
como ícones e modelos Lilith, Salomé, Messalina, Cleópatra e a
cigana Carmen.
A “morta amorosa” Clarimonde, linda cortesã de olhos verdes
e “dentes brancos como pérolas do Oriente”, volta da morte para
atormentar o jovem e inexperiente padre Romuald, que toda
noite sonha ser um nobre veneziano entregue aos prazeres
mundanos, na companhia da amante Clarimonde. A morta o
perturba tanto que ele já não sabe se é um padre sonhando com a
devassidão ou um devasso sonhando que é padre. Apesar dos
conselhos do abade Sérapion, mais velho e mais vivido, Romuald
continua sendo atentado por Clarimonde, que tenta competir
com o Criador: “Far-te-ei mais feliz que o próprio Deus em seu
Paraíso [...] Sou a beleza, a juventude, a vida: vem a mim,
seremos o amor. Que pode Jeová oferecer-te como
compensação?”. Gautier introduz, assim, um tema que seria
muito abordado pelos escritores na segunda metade do século
19: a sexualidade animal da mulher interferindo nas aspirações
espirituais do homem; a luta entre o prazer, os apetites
mundanos e o Sonho, de um lado, e do outro a castidade, a
privação e a Realidade.46
Em 1872, surgiu “Carmilla”, de Sheridan Le Fanu, ainda hoje
um dos contos mais conhecidos da literatura vampírica e que
estabeleceu várias referências para a literatura que se seguiu. O
próprio Stoker pode tê-lo lido e usado como material de pesquisa
para Drácula, embora não tenha deixado registros escritos disso.
Seu conto “O convidado de Drácula”, por exemplo, passa-se na
Estíria e faz menção a uma condessa que lembra o personagem
de Le Fanu. Herdeira de Clarimonde, da Aurélia de Hoffmann e
das mortas-vivas da poesia Romântica, a vampira Carmilla é
bela, insidiosa e suave, e a determinação em cumprir seus vis
intentos é apresentada como um grande perigo, que deve ser
combatido a qualquer custo pela união das forças e saberes de
vários homens. Um aspecto que chama a atenção do leitor
moderno, e que já foi alvo de incontáveis análises literárias, é a
predileção de Carmilla por mulheres. Sua sexualidade é
abordada com a discrição própria da época, mas não há como
negar a atração pela narradora Laura, ou o fato de só atacar
mulheres. Apesar da tendência moderna em ver uma certa
apologia ao homoerotismo, na verdade o conto encaixa-se em um
cenário mais amplo. Tanto a sexualidade feminina agressiva
quanto a homossexualidade eram vistas pela sociedade vitoriana
como uma degeneração dos códigos morais e sociais. Essa
concepção foi associada por Le Fanu aos elementos da literatura
vampírica, dando às preferências e hábitos de sua vampira uma
conotação maléfica e indesejada, e inserindo a femme fatale num
contexto moralizante.
Essa visão, contrária ao livre-arbítrio feminino, voltaria a
aparecer, de forma mais sutil, no conto “O destino de Madame
Cabanel” (1880), da inglesa Eliza Lynn Linton. Um rico
proprietário do interior volta da metrópole casado com uma
inglesa jovem e urbana, cujo viço e beleza geram animosidade,
inveja e ciúmes entre os locais, que passam a acusá-la de ser
uma vampira. Assim, o conto reconhece o vínculo metafórico
que existe entre o mito do vampiro e a sexualidade, em especial a
feminina, bem como a reação da sociedade a ela.47
Nas últimas décadas do século 19, o vampiro, como boa
metáfora que é, ainda refletiu uma grande mudança da
concepção artística, por sua vez determinada pelas mudanças
sociais e tecnológicas que se sucediam com crescente velocidade.
A partir de meados desse século, agravara-se na sociedade
europeia um mal-estar que vinha desde o século anterior; uma
inquietude quanto à desumanização advinda do progresso da
Revolução Industrial. Um aspecto perturbador desse progresso
era a impessoalidade, a solidão e a alienação criadas pelo
crescimento sem precedente das cidades. “O homem da
multidão” (1840), de Poe, já prenunciava o desconforto trazido
por essa expansão urbana, que foi abordada de forma muito
mais explícita por Paul Féval, em seu romance satírico La Ville-
vampire (“A cidade vampira”, 1874).
Décadas antes, ainda no século 18, o desassossego com os
rumos da civilização já tinha gerado o movimento Romântico, em
que escritores e outros artistas deram as costas à cidade grande
e se voltaram para um passado idílico, pré-urbano, repleto de
lindas damas. O Romantismo, movimento ­contestatório a
princípio, acabou sendo assimilado pela cultura dominante,
“oficial”, e desvirtuou-se ao passar, ele mesmo, a ser a norma.
Nesse momento, deixou de atender aos anseios daqueles a quem
os estereótipos e dogmas sociais incomodavam. Foi então que,
insurgindo-se contra a ideia vigente de que o valor da arte
residia em seus propósitos morais, ganhou força o conceito de
“arte pela arte”.48 Para os defensores dele, o valor da arte estava
nela mesma, e qualquer justificativa moral, política ou utilitária
era desnecessária. Portanto, a arte teria o direito de transgredir
a moral. Essa noção foi o cerne do movimento literário mais
tarde conhecido como Decadentismo, que apregoava também a
valorização do artificial como libertação do ser humano e a
condição inferior de tudo o que era natural. Uma das inspirações
do Decadentismo foi a afirmação de Théophile Gautier (1835):
“Nada há de verdadeiramente belo exceto o que não tem
utilidade; tudo o que é útil é feio”.
Entre os fundadores do movimento estava Charles
Baudelaire, influenciado por Gautier a ponto de dedicar a este a
coletânea de poesias As flores do mal (1857), em que reafirmou o
lema da arte pela arte e a supremacia do artificial, enquanto
vilipendiava a mulher, “ser essencialmente natural”. No poema
“As metamorfoses do vampiro”, o poeta apavorava-se ao ver a
mulher “com boca de morango”, que acabava de “sugar-lhe a
medula dos ossos”, transmutada em um saco de pus com flancos
gosmentos, e depois nos restos de um esqueleto.
Em sintonia com o ideal da artificialidade, para Baudelaire o
poeta deveria transformar-se no dândi, recriar-se a si próprio e
elevar-se acima da natureza, sendo a arte o principal meio para
tal. Esse credo foi explicitado por Oscar Wilde ao afirmar, no
prefácio de O retrato de Dorian Gray (1891), que “toda arte é
completamente inútil” e que “o propósito da arte é revelar a arte
e ocultar o artista”. A obra, mesmo não sendo um romance
vampírico no sentido literal, aborda a questão do duplo, um
tema-chave da literatura fantástica, muito frequente nas
histórias de vampiros (Aubrey e Ruthven, Laura e Carmilla,
Harker e Drácula). Dorian Gray faz um pacto faustiano para
permanecer jovem enquanto seu retrato envelhece, e entra numa
espiral crescente de devassidão, com consequências trágicas. O
arrancar de máscaras, expondo a horrível identidade subjacente
(a metamorfose descrita de modo tão brutal por Baudelaire),
aproxima Dorian Gray do vampiro fim-de-século. O período se
apropria do vampiro para fazer dele um sintoma, para fixar as
manifestações da neurose e do mal-estar da alma que acometiam
a sociedade, que afinal parecia compreender que o verdadeiro
mal vinha de seu interior.49
No vampiro finissecular, todos os traços parecem convergir
para a ideia de degradação, como que fixando a imagem da
própria decadência. O Romantismo havia criado o vampiro com
base no herói byroniano; o fim-de-século tendeu a fazer dele um
ser híbrido, ameaçado pela animalidade, como o Conde Drácula,
com suas orelhas pontudas, pelos na palma das mãos e caninos
animalescos. Enquanto os textos românticos evitavam a
transformação em animais, a partir de “Carmilla” houve uma
ênfase na polimorfia. O vampirismo gerava um aviltamento da
humanidade.50
Ao aproximar-se o fim do século 19, o tema inspirou escritores
importantes, que buscaram abordagens diferentes para a
“absorção” de força vital, um vampirismo energético que se
afastava do vampiro clássico, como se este já tivesse se esgotado.
Apareceu também o vampiro como metáfora do processo criativo
(escrita, pintura, composição). Foi nesse contexto que surgiu “A
verdadeira história de um vampiro”, de conde Stenbock (1894),
uma paródia de “Carmilla” que traz uma relação homossexual
sublimada implícita entre um vampiro e um menino, em que a
vampirização se dá por meio da música.
Se por um lado o decadentismo moldava o vampiro à sua
imagem, por outro a crescente influência da psicologia e da
psiquiatria enquadrava o vampirismo como doença mental. O
francês Jean-Martin Charcot tornou-se o protótipo do grande
médico da época, assunto de todas as rodas sociais e
personalidade universalmente reconhecida e solicitada por
aristocratas e ricos. Charcot contribuiu para a neurologia, mas é
lembrado em especial por seus estudos sobre o hipnotismo. Ele
impressionava audiências ao usar a hipnose para produzir
sintomas de histeria em pacientes. O célebre escritor
Maupassant frequentou suas aulas no Hospital da Salpêtrière,
em Paris, e essa influência se fez notar no conto “O Horla” (1886),
em que ser vampírico e perturbação mental se confundem.51
Nos anos que antecederam Drácula, o modelo original do
vampiro fragmentou-se e deu lugar a inúmeras variantes,
nascidas da imaginação de diversos autores. A habilidade de
consumir sangue humano foi atribuída a outros seres, como a
surpreendente criatura de “O último dos vampiros” (1893), de
Phil Robinson, e a planta de “A floração da estranha orquídea”
(1895), de H. G. Wells. Em “O Horla”, de Maupassant, o vampiro
torna-se uma força invisível. É aqui também que aparece o
conceito de “esponja psíquica” (psychic sponge, depois rebatizada
como “vampiro psíquico” ou, para os mais entusiastas, “psi-
vampiro”), vampiros metafóricos que drenam a energia alheia,
como os protagonistas de “O velho Éson” (1891), de Arthur
Quiller-Couch, e “O parasita” (1894), de Arthur Conan Doyle. Já
em O castelo dos Cárpatos (1892), Júlio Verne despiu o tema de
qualquer conotação sobrenatural, com cientistas mal-
intencionados fazendo-se passar por vampiros.
Na década de 1890, o gênero parecia esgotado, e todos esses
artifícios garantiram-lhe uma sobrevida, que aparentemente
seria curta. Um grande choque de ressuscitação artificial seria
aplicado no coração morto-vivo do vampiro em 1897 com o
surgimento de Drácula.

Vampiros com vários sotaques


Enquanto na França, Inglaterra e Alemanha a ficção vampírica
ganhou corpo, diversificou-se e assumiu uma infinidade de
formas, chegando a mergulhar nas águas turvas do
decadentismo, outros países tiveram um papel até certo ponto
passivo no desenvolvimento do vampiro. Contudo, apesar da
pouca participação na evolução do morto-vivo sedutor, não
ficaram totalmente imunes a ele.
Os países da Europa Central, tão importantes como origem do
vampiro pré-literário, de modo geral não desenvolveram uma
literatura vampírica anterior a Drácula. O vampiro literário
apareceria em diversos países centro-europeus apenas no século
20, fortemente influenciado pelo folclore local, mas surgido
sobretudo por retroalimentação, no rastro da literatura mundial
pós-Drácula. Antes de Drácula, só a Rússia fez uma contribuição
relevante ao gênero, embora modesta. Vários contos de Nikolai
Gógol flertam com o tema, que aparece mais explícito no surreal
“Viy” (1835), em que um cão se transforma numa linda mulher
que suga o sangue de bebês. Ivan Turguêniev, no conto “Prizraki”
(“Fantasmas”, 1863), descreve o voo noturno do protagonista
através do tempo e do espaço com uma mulher pálida e irreal.
Sentindo-se débil, ele percebe o cheiro do sangue nos lábios dela
e desconfia que seja uma vampira, mas ela desaparece como um
fantasma.52 Influenciado pelos contos de Hoffman, o conde
Alexei C. Tolstói abordou os vampiros em “Upyr” (1841) e em “A
família do vurdalak” (1847), este último incluído em nossa
antologia. Outros autores centro-europeus foram o romeno
Vasile Alecsandri, com o poema “Strigoiul” (“O vampiro”, 1844), e
o sérvio Milovan Glišić, com o romance Posle devedeset godina
(“Noventa anos depois”, 1880), baseado no folclore.53 Na novela
De profundis (1895), do polonês Stanislaw Przybyszewski,
aparecem súcubos e íncubos, elementos afins dos vampiros.
Nos Estados Unidos, meros dois meses depois da publicação
do conto de Polidori, foi lançado O vampiro negro, uma lenda de
São Domingos, de Uriah Derick D’Arcy, mas o livro parece não
ter tido repercussão e permaneceu esquecido até tempos
recentes.54 O primeiro ficcionista estadunidense a se destacar
pelo uso de elementos vampíricos, ainda que de forma velada, foi
Edgar Allan Poe, com vários contos escritos nas décadas de 1830
e 1840. O mais vampírico deles é “O retrato oval” (1845), que
escolhemos para a presente antologia. Escritores de renome
fizeram incursões no tema, como Ambrose Bierce (“A morte de
Halpin Frayser”, 1893), Frank Stockton (“A Borrowed Mouth”,
1886) e Nathaniel Hawthorne (“A filha de Rapaccini”, 1844). O
filho deste, Julian Hawthorne, escreveu “O mistério de Ken”
(1883), um conto bem conhecido entre os leitores de vampiros.
Também conhecido é “A Kiss of Judas” (1893), de X.L.,
pseudônimo de Julian Osgood Field, que traz referências veladas
ao homoerotismo masculino. De modo geral, no século 19 as
incursões da literatura estadunidense pelo terreno vampírico
foram raras. Nada fazia prever a explosão comercial que sugaria
o vampiro ficcional à exaustão na passagem de milênio.
Na Itália, o tomador de sangue surgiu muito cedo, nas óperas
Il vampiro (Turim, 1801) e Vampiri (Nápoles, 1812), mas parece
não ter se estabelecido na literatura do século 19. A primeira
menção aparece brevemente no romance histórico La battaglia di
Benevento (1827-28) de Francesco Domenico Guerrazzi. Em 1869
surgem dois livros. Il vampiro, de Franco Mistrali, é um tardio
romance gótico, ambientado em Mônaco, em que os vampiros
formam uma associação secreta, com um tribunal para punir os
traidores.55 Esse mote reapareceria ao final do século 20 em
quadrinhos, filmes e RPGs (jogos de representação). Já Fosca,56 de
Igino Ugo Tarchetti, traz um jovem dividido pelo amor a duas
irmãs, uma bondosa e a outra malévola, lembrando o conto de
Raupach, “Deixa os mortos em paz”. Durante o século 19, a Itália
aparece muito mais como cenário exótico e selvagem para
escritores ingleses e alemães do que como local de produção de
obras vampíricas.
O vampiro não teve nenhuma expressão na literatura ibérica
do século 19. Isolados do outro lado dos Pirineus, Portugal e
Espanha tinham a crença no retorno dos mortos no dia de
Finados, e o folclore dos dois países era rico em bruxas e
lobisomens, que supriam em parte a necessidade ancestral da
ameaça chupadora de sangue. O inglês William Kingston, que
vivera no Porto quando jovem, escreveu o conto “The Vampire;
or, Pedro Pacheco and the Bruxa” (1863), que a rigor nada tem de
vampírico. Nele, um aldeão que volta de uma festa perde-se ao
seguir uma ave e acaba sofrendo um acidente e desmaiando.
Quando acorda está muito longe de casa, mas consegue voltar.
Para seus vizinhos, a ave era na verdade a esposa dele, uma
bruxa, vingando-se por ele ter ido à festa. A introdução da
história, porém, exibe uma síntese da bruxa do folclore
português, que tem por hábito alimentar-se do ­sangue de
crianças. Essa mesma criatura folclórica foi trazida ao Brasil
pelos imigrantes açorianos e sobrevive até os dias de hoje na ilha
de Santa Catarina, onde é temida pelas mulheres, por tomar o
sangue de seus filhos, e pelos homens, por provocar acidentes de
trabalho e tirá-los do caminho.57 Para Kingston, a origem da
bruxa portuguesa poderia ser moura, numa derivação da
linhagem do ghoul oriental. No entanto, é difícil não pensar na
estrige romana, feiticeira tomadora de sangue, como uma
possível ancestral das bruxas portuguesas e catarinenses.
Em língua espanhola, o vampiro pré-Drácula fez-se presente,
ainda que de forma bissexta, na literatura de vários países. O
primeiro conto com temática vampírica a ser escrito parece ter
sido “Gaspar Blondín”, do equatoriano Juan Montalvo, de 1858,
mas sua publicação se deu apenas em 1894. Por essa altura,
outros contos já haviam surgido: “La balada de los muertos” e
“El beso del espectro” (ambos de 1891), do venezuelano Luis
López Méndez, “Tristán Cataletto” (1893), do também
venezuelano Julio Calcaño, e o mais conhecido deles,
“Tanatopia” (1893), do nicaraguense Rubén Darío. Apesar da
irradiação evolutiva do vampiro de fin-de-siècle em países como
Inglaterra e França, na América hispânica ainda se observava a
influência, por um lado, do vampiro folclórico (em Montalvo e
Calcaño) e, por outro, de Edgar Allan Poe (em Darío).58
Em língua portuguesa, durante o século 19 o vampiro
apareceu apenas em breves menções. O brasileiro João Cardoso
de Menezes e Souza falou de “sanguessugas” e “morcegos
hematófagos” numa nota do romance versificado Octávio e
Branca (1849), que constitui a primeira menção a vampiros na
literatura brasileira.59 Em 1897, o português Gomes Leal trouxe à
luz a carta em verso “O estrangeiro vampiro”, uma metáfora do
neocolonialismo europeu em que uma vampira dilapida a
fortuna de um nobre decadente, sugando-lhe também o sangue.
Embora Byron tenha influenciado uma fase do Romantismo
brasileiro, caracterizado por poetas como Álvares de Azevedo,
Casimiro de Abreu e Fagundes Varela, afirma Cid Vale Ferreira
que “o vampirismo sempre se manteve à margem da história da
poesia nacional, pontuando aparições breves e incipientes”,
aparecendo como metáfora ou sob a forma de mulheres fatais.
Por exemplo, no poema “Anjos da meia-noite” (em Espumas
flutuantes, 1870), o poeta Castro Alves referiu-se a Fabíola como
“filha da noite” e “loira fidalga infiel dos infernais castelos!”. O
vampiro só viria mesmo a fincar pé em solo brasileiro por meio
do cinema, quando o século 20 já ia bastante adiantado.

Contos de vampiro, de Polidori a Stoker


Diante de tanta diversidade temporal, espacial e estilística,
definir o vampiro não é nada fácil. Criatura adaptável por
natureza (e essa é uma das chaves de seu sucesso), o vampiro
muda de acordo com a hora e o lugar, ao sabor dos humores da
sociedade, do autor e do leitor, a tal ponto que alguns
especialistas chegam a dizer que não existe o vampiro, só
vampiros. Certos contos, sempre presentes em antologias ou
mencionados em estudos sobre literatura vampírica, podem
guardar apenas uma relação superficial com o tema. Assim, a
árvore assassina em “A árvore comedora de gente” (1881), de Phil
Robinson, está mais para vegetal carnívoro que tomador de
sangue; o ser invisível em “O que foi aquilo? Um mistério” (1859),
de Fitz-James O’Brien, mais parece um fantasma; “Berenice”
(1835), de Edgar Allan Poe, é antes um estudo de obsessão do que
de vampirismo; e por aí vai.
A situação do vampirólogo não é muito diferente daquela com
que deparam os taxonomistas na biologia. O vampiro não é uma
espécie aristotélica, estática no tempo e no espaço, mas
darwiniana, sujeita à evolução, à adaptação aos vários ambientes
culturais que habita. As características que o definem e as linhas
de demarcação da espécie podem ocasionalmente ser tênues,
visíveis apenas se analisadas sob a perspectiva de sua história
evolutiva. Assim, o estudo das origens e do modo como se
desenvolveram os diversos vampiros literários permite
reconhecer linhagens diferentes dentro da espécie “vampiro”.
Fazendo um paralelo com a classificação dos seres vivos, o Lord
Ruthven de Polidori, a Carmilla de Le Fanu e o Gorcha de A.
Tolstói seriam subespécies diferentes dentro de uma mesma
espécie.
Para selecionar os contos desta antologia utilizamos uma
série de critérios bem definidos. Em primeiro lugar, queríamos
contos representativos, que tivessem sido um marco para a
produção literária subsequente ou que refletissem as
peculiaridades do momento “vamp-literário” em que foram
escritos. É o caso de “O vampiro”, de John Polidori, e “O
convidado de Drácula”, de Bram Stoker.
Em segundo lugar, buscávamos descobrir como o tema foi
abordado pelos autores cuja obra permaneceu até os dias de
hoje. Incluem-se aí, por exemplo, “O retrato oval”, de Edgar Allan
Poe; “A dama pálida”, de Alexandre Dumas, pai; a primeira
versão de “O Horla”, de Guy de Maupassant; e “Tanatopia”, do
importante poeta Rubén Darío.
Outro critério, não menos importante do ponto de vista do
leitor: os contos teriam de ser interessantes. Muitos contos
clássicos “envelheceram” e, na época da comunicação
instantânea, parecem longos e arrastados. Outros ainda hoje são
leituras instigantes, como “A família do vurdalak”, de Alexei C.
Tolstói; “A verdadeira história de um vampiro”, do conde de
Stenbock; e “A floração da estranha orquídea”, de H. G. Wells.
Buscamos, também, incluir textos ainda não traduzidos para
o português ou que não tivessem aparecido em edições recentes.
“Manor”, de Karl Heinrich Ulrichs, “O velho Éson”, de Arthur
Quiller-Couch, e “O último vampiro”, de Phil Robinson, parecem
nunca ter saído no Brasil.
Alguns contos muito relevantes foram deixados de fora por já
terem aparecido recentemente em outras edições. É o caso de “A
morte amorosa”, de Théophile Gautier (1836), e “Carmilla”, de
Sheridan Le Fanu (1872). Apesar de sua importância, preferimos
dar espaço para contos aos quais o leitor brasileiro dificilmente
tem acesso.
Por fim, mas não menos importante, pautamo-nos sempre
pelo conceito da diversidade: diversidade de visões, de estilos, de
nacionalidades (a maioria das antologias privilegia os textos de
escritores de língua inglesa) e de orientação sexual. Assim,
reunimos textos longos e curtos; vampiros humanos, alienígenas,
vegetais e reptilianos; contos escritos em inglês, francês,
espanhol e alemão; de autores consagrados e de virtuais
desconhecidos; vampiros hétero e homoeróticos; histórias de
terror, de amor e de humor.
Ao final do livro, incluímos dois apêndices que reúnem o
máximo possível de obras vampíricas anteriores ao romance de
Bram Stoker, tanto na literatura como nos palcos.
Com vocês, agora, o vampiro antes de Drácula.

1 Todas as obras vampíricas pré-Drácula mencionadas ao longo desta análise foram


incluídas em dois apêndices ao final do livro. Organizados em ordem cronológica, o
Apêndice 1 traz uma lista dos textos com vampiros, na poesia e na prosa, até 1897, e o
Apêndice 2 inclui as peças de teatro.
2 Não confundir com a atual cidade de Medveđa, situada próxima a Prístina, no
Kosovo.
3 Paul Barber (1988) analisa de forma fascinante esse assunto.
4 No original, Dissertations sur les apparitions des anges, des demons et des esprits, et
sur les revenans et vampires de Hongrie, de Boheme, de Moravie et de Silésie [sic].
5 O sueco Carl von Linné, ou Carolus Linnaeus (1707-1778), considerado o pai da
taxonomia moderna, criou um sistema, usado até hoje, em que o nome científico de um
ser vivo é formado por duas palavras (o gênero e a espécie). Na edição de 1758 de seu
Systema naturae, que marca o início dessa nomenclatura binomial na zoologia, já
aparece a espécie Vespertilio vampyrus, hoje denominada Pteropus vampyrus
(Linnaeus, 1758).
6 Além do morcego-vampiro-comum (Desmodus rotundus), existem outras duas
espécies, o morcego-vampiro-de-asas-brancas (Diaemus youngi) e o morcego-vampiro-
de-pernas-peludas (Diphylla ecaudata). Todas têm distribuição restrita às Américas, ao
sul do México, e ocorrem no Brasil.
7 Norbert Borrman, 1999, p. 14.
8 Paul Barber, 1998.
9 Paul Barber, 1988, p. 2.
10 Nas obras já traduzidas para o português, os títulos originais da ficção vampírica
pré-Drácula são fornecidos nos apêndices ao final deste volume.
11 Claude Lecouteux, 2003, p. 83.
12 Paul Barber, 1988, p. 9.
13 O poema só foi publicado em 1816, mas antes disso circulou como manuscrito
(David Miall, 2000).
14 Mesmo assim, anos depois, o poeta Shelley fugiria aterrorizado após Lord Byron
declamar o trecho.
15 Uma excelente adaptação cinematográfica é o longa-metragem Christabel (2018), do
diretor carioca Alex Levy-Heller, com Milla Fernandez como Christabel e Lorena
Castanheira no papel de Geraldine.
16 Robert Southey, 1810 e 1819. History of Brazil. Londres, Longman, Hurst, Rees and
Orme.
17 Markman Ellis, 2000, p. 181.
18 Também chamado lago Leman.
19 James Rieger (1963), porém, desconfia das afirmações de Mary sobre aquela noite, e
questiona até se esse foi mesmo o tema do conto de Polidori. Mais detalhes e
desmistificações estão nos livros de Radu Florescu (1998) e de Christopher Frayling
(1991).
20 Opitz (2016) levanta a possibilidade de que a obra tenha sido anunciada apenas em
catálogos, mas nunca publicada, da mesma forma que o anônimo Der Vampyr, de 1812.
21 Charles Nodier (1780-1844) foi um dos pais do romantismo francês e entusiasta da
literatura fantástica, com grande interesse pelos vampiros. Há ecos da condição
vampírica em seu conto “Smarra ou Les démons de la nuit”. Em Infernaliana, reúne
relatos, contos e lendas de desmortos, fantasmas, demônios e vampiros.
22 Christopher Frayling, 1991, p. 9.
23 Até hoje há quem diga que Cyprien Bérard foi um pseudônimo de Nodier, mas sua
identidade como autor do livro foi estabelecida já em 1850, por J. M. Quérard (p. 338).
24 Anônimo, 1820, p. 273.
25 A tradução para o português consta da edição comemorativa de 200 anos de O
vampiro (Polidori, 2020).
26 Federica Soprani, 1998.
27 Anônimo, 1820, pp. 271-272.
28 Barbara Sadoul, 1997, p. 6.
29 Personagem burlesca napolitana da “commedia dell’arte”, popularizada pelo teatro
de fantoches.
30 Federica Soprani, 1998.
31 A tradução ao português consta da edição comemorativa de 200 anos de “O
vampiro” (Polidori, 2020).
32 Anos depois, sob direção de Henry Irving, o English Opera House voltaria a seu
nome original, Lyceum.
33 Um exemplo é a coletânea organizada por Opitz (2016), com contos abrangendo o
período entre 1820 e 1850.
34 Conhecido em português também como “Vampirismo”, “A mulher vampiro”,
“Aurélia” e “A narrativa de Cyprian”.
35 Federica Soprani, 1998.
36 Federica Soprani, 1998.
37 David Carroll, 1995.
38 Os penny dreadfuls deixaram descendentes, como, por exemplo, os gibis e as novelas
de tevê.
39 O texto completo em inglês está disponível na internet, para quem tiver disposição e
muito tempo livre. A tradução do primeiro volume para o português foi publicada pela
editora do Sebo Clepsidra em 2021.
40 Michael Holmes, 1997.
41 Surgida na literatura, tal associação não existia no vampiro folclórico (Elizabeth
Miller, 2000, p. 34).
42 Dodd, 2016, p. 117.
43 Elizabeth Miller, 1997, p. 53.
44 Federica Soprani, 1998.
45 Federica Soprani, 1998.
46 Jean Bellemin-Noël, 1997, p. 144.
47 Linton era uma crítica ferrenha da “Nova Mulher”, o ideal feminista de
independência e realização pessoal surgido em finais do século 19. No ensaio “The Girl
of the Period” (1868), atacava com violência o feminismo. Mas a postura intolerante e
presunçosa da autora vai além, e “O destino de Madame Cabanel” é uma investida
xenófoba contra os franceses, representando os aldeões como brutos ignorantes e
supersticiosos, que invejam a pele clara e os olhos azuis de uma simples e ingênua
garota inglesa.
48 A frase l’art pour l’art parece ter surgido em 1804, usada de forma casual pelo
pensador suíço Henri-Benjamin Constant numa referência favorável às doutrinas
estéticas dos filósofos Kant e Schelling. Gautier foi pioneiro ao usá-la como mote. Poe
também defendia “o poema pelo poema”.
49 Joëlle Prungnaud, 1997, p. 48.
50 Joëlle Prungnaud, 1997, p. 45.
51 Joëlle Prungnaud, 1997, p. 47.
52 Dejan Ajdačić, 2007.
53 O romance originou um filme da TV iugoslava, Leptirića (“Borboleta”, de 1973), no
qual vampiros podem se transformar em borboleta.
54 Atualmente, é considerada a segunda ficção vampírica escrita em inglês, primeira
escrita por um estadunidense e primeira com um vampiro negro. A noveleta, ainda
pouco conhecida, saiu publicada no Brasil com o título de “O vampiro negro, uma
lenda de São Domingos”, em Polidori (2020), edição comemorativa de 200 anos de “O
vampiro”.
55 Massimo Introvigne, sem data.
56 Nenhuma relação com a ópera Fosca (1873), de Carlos Gomes, baseada no romance
La festa delle Marie (1869), de Luigi Capranica.
57 Sônia Maluf, 1993.
58 A primeira tradução de contos de Edgar Allan Poe para o castelhano, a partir de
Histoires extraordinaires (compilação publicada, em francês, por Charles Baudelaire),
ocorreu em 1858 e teve grande ressonância tanto na Espanha quanto na América
Latina, influenciando importantes escritores modernistas (Lazzarin, 2019, pp. 14-16).
59 Cid Vale Ferreira apresenta a discussão do vampiro literário no Brasil e o texto de
“Octávio e Branca” em Voivode: Estudos sobre vampiros (2002).
Contos
O vampiro
(1819)
John William Polidori

Aconteceu que, em meio às pródigas diversões de um inverno


londrino, as festas oferecidas pelas personalidades da moda
começaram a ser frequentadas por um cavalheiro que se fazia
notar muito mais por suas peculiaridades que pela posição
social. Ele contemplava a alegria à sua volta como se dela não
pudesse participar. Ao que parecia, o riso leve das beldades
apenas atraía sua atenção para que pudesse, com um único
olhar, extingui-lo e incutir medo nos corações onde somente
reinava a despreocupação. Qualquer um que tivesse essa
sensação de assombro não conseguiria explicar de onde
provinha: alguns a atribuíam aos mortiços olhos cinzentos que,
fixando-se no rosto do interlocutor, não pareciam penetrá-lo até
o âmago do coração, e sim se abater sobre a face como um raio
plúmbeo, pesando sobre a pele sem conseguir penetrá-la. As
peculiaridades do cavalheiro faziam com que fosse convidado a
frequentar todas as residências. Todo mundo desejava vê-lo.
Aqueles que, acostumados à agitação, eram agora afligidos pelo
peso do tédio, deleitavam-se por estar em companhia de uma
novidade capaz de despertar seu interesse. Apesar do tom
cadavérico da face, que jamais adquiria um matiz mais vivo —
fosse pelo rubor da modéstia, fosse pelas emoções arrebatadoras
da paixão —, ainda assim a forma e o contorno do rosto eram
belos, e muitas mulheres, caçadoras de fama, tentavam
conquistar sua atenção — ou obter ao menos alguma mostra
daquilo que considerariam atenção. Lady Mercer, que desde seu
casamento fora objeto de zombaria dos seres monstruosos que
frequentavam os salões de baile, lançou-se diante dele e só faltou
vestir-se de saltimbanco para lhe chamar a atenção. Em vão.
Quando estavam frente a frente, embora os olhos do cavalheiro
aparentassem fitar os dela, era como se não a vissem. Até mesmo
aquela mulher de ousadia irrefreável frustrou-se e desistiu da
batalha. No entanto, embora a adúltera vulgar fosse incapaz de
alterar a direção de seu olhar, ele não era de forma alguma
indiferente ao sexo feminino. Ainda assim, parecia ter tanta
cautela ao dirigir-se à esposa virtuosa ou à filha inocente que
poucos se apercebiam de que ele sequer falasse com as
mulheres. Apesar de tudo, tinha a reputação de manter
conversas cativantes. Talvez essa fama sobrepujasse a
estranheza causada pelo caráter singular, ou talvez pelo
aparente ódio ao vício despertasse alguma ternura, mas a
verdade era que ele frequentava tanto o convívio das mulheres
cujas virtudes domésticas enobrecem o próprio gênero quanto
daquelas que o maculam por seus pecados.
Por volta dessa época, chegou a Londres um jovem cavalheiro
de nome Aubrey. Era um órfão que, juntamente com a irmã,
herdara uma grande fortuna ao perder os pais, ainda na
infância. Abandonado à própria sorte por tutores, que
consideravam ter por dever apenas a administração do
patrimônio, relegando a empregados interesseiros a importante
responsabilidade de sua formação, ele cultivara mais a
imaginação que o julgamento. Guardava, assim, um exacerbado
sentimento romântico de honra e candura — sentimento que
todos os dias arruína tantos e tantos jovens tolos. Aubrey
acreditava que todos compactuavam com a virtude e que os
vícios haviam sido criados pela Providência como mero efeito de
cena, como num romance. Pensava que a miséria de um casebre
se resumia a vestimentas pobres, não menos eficientes em
agasalhar e muito mais convenientes aos olhos de um pintor,
devido às dobras irregulares e aos remendos coloridos. Pensava,
ainda, que os sonhos dos poetas eram a realidade da vida. Era
belo, sincero e rico, e, por essas razões, ao entrar nos círculos da
sociedade foi assediado por muitas mães, que competiam em
matéria de quem descreveria com menos veracidade suas
desinteressantes candidatas; quanto às filhas, suas expressões se
animavam à aproximação dele, e seus olhos brilhavam quando
ele abria os lábios, levando-o em pouco tempo a falsas ilusões
sobre o próprio talento e mérito. Acostumado como estava aos
romances, aos quais se entregava nas horas de solidão, o rapaz
surpreendeu-se ao descobrir que, salvo pelas velas de sebo e de
cera que tremeluziam, não pela presença de fantasmas, mas por
ter-se consumido o pavio, não havia qualquer fundamento real
para toda a profusão de cenas e descrições adoráveis contidas
naquelas obras, nas quais baseara seus estudos. Encontrando,
porém, algum consolo na satisfação de suas vaidades, estava
prestes a abdicar de seus sonhos, quando o extraordinário ser já
descrito cruzou seu caminho.
Ele o observou, atraído pela própria impossibilidade de
formar uma ideia sobre o caráter daquele homem que,
completamente absorto em si mesmo, não dava mostras de notar
objetos externos além do tácito reconhecimento da existência
deles, com o intuito de evitá-los. Permitindo à imaginação pintar
tudo o que satisfizesse sua propensão a ideias extravagantes,
logo transformou o objeto de sua atenção num herói de romance,
e se dispôs a observar os frutos de sua fantasia em vez da pessoa
que tinha diante de si. Foi apresentado a ele, deu-lhe atenção e
conseguiu fazer-se notar o suficiente para que sua presença
fosse sempre percebida. Aos poucos, descobriu que a situação
financeira de Lord Ruthven era algo confusa; então soube, pelos
preparativos observados à rua _______, que ele estava às
vésperas de viajar.
Desejoso de obter mais informações a respeito daquela pessoa
tão singular, que até então só lhe aguçara a curiosidade,
insinuou aos tutores que já era tempo de fazer uma grande
viagem, por muitas gerações considerada indispensável para
capacitar os jovens para um rápido progresso no mundo do vício,
colocando-os em pé de igualdade com os mais velhos e não
permitindo que parecessem ter caído do céu, sempre que fossem
feitos quaisquer comentários sobre intrigas escandalosas, que
uma pessoa habilidosa pode converter em adulação ou elogio.
Eles consentiram.
Aubrey de imediato mencionou sua intenção a Lord Ruthven,
e foi surpreendido ao receber dele uma proposta para que o
acompanhasse. Lisonjeado pela demonstração de estima vinda
de alguém que nada parecia ter em comum com o resto da
humanidade, de bom grado o jovem aceitou, e em poucos dias
ambos cruzaram o canal rumo ao continente.
Até então, Aubrey não tivera chance de estudar o caráter de
Lord Ruthven. Agora, com a oportunidade de observar mais de
perto as ações dele, descobria que esta sua análise levava a
conclusões que divergiam do que a princípio parecera ser o
motor de sua conduta. O companheiro era profuso em
generosidade; o desocupado, o malandro e o mendigo recebiam
das mãos dele mais do que o suficiente para prover as
necessidades imediatas. Mas Aubrey não deixou de notar que as
esmolas não iam para o virtuoso, levado à miséria pelos
infortúnios que vitimam até a virtude. Este era despachado com
maldisfarçado escárnio.
Entretanto, quando o libertino pedia algo, não para aliviar
suas necessidades, mas para permitir-se chafurdar na luxúria ou
mergulhar ainda mais em iniquidade, partia ricamente
recompensado. Aubrey atribuía isso, porém, à maior insistência
do devasso, que em geral prevalece sobre a timidez discreta do
indigente virtuoso. Havia um aspecto da caridade de ­Ruthven
que lhe causou ainda maior impressão: todos que a recebiam
inevitavelmente descobriam que sobre aquilo pesava uma
maldição, pois terminavam no cadafalso ou afundavam na mais
abjeta miséria. Em Bruxelas e em outras cidades por onde
passaram, Aubrey admirou-se com a ansiedade com que o
companheiro parecia frequentar os antros de devassidão mais
afamados. Aí, entregava-se por completo ao espírito das mesas
de jogo. Apostava — sempre com sucesso, exceto quando
enfrentava algum trapaceiro conhecido —, então perdia ainda
mais do que ganhava. Fazia-o com a mesma expressão inabalável
com que costumava observar as pessoas à volta. Não era o que
ocorria, entretanto, quando encontrava um novato impetuoso ou
o desafortunado pai de uma família numerosa. Nessas
circunstâncias, seu desejo parecia lei. A aparente distração era
posta de lado, e seus olhos brilhavam com maior intensidade que
os do gato que brinca com um rato moribundo. Em cada cidade,
deixava atrás de si o jovem antes afluente, agora excluído da
sociedade, amaldiçoando na solidão de um calabouço o destino
que o colocara ao alcance daquele demônio, enquanto mais de
um pai se desesperava, entre os olhares suplicantes dos filhos
famintos, sem ter um único tostão da riqueza de outrora para
comprar o alimento que os tiraria da fome. E, no entanto, ele não
obtinha dinheiro algum das mesas de jogo, pois perdia para
algum trapaceiro desonesto o último florim que acabava de
arrancar por entre os dedos desesperados do inocente. Poderia
ser o resultado de alguma habilidade no jogo, mas insuficiente
para fazer frente à perícia dos mais experientes. Aubrey com
frequência sentia ímpetos de falar sobre isso ao amigo e
suplicar-lhe que abandonasse a caridade e a diversão que
resultava na ruína de todos, que sequer lhe traziam lucro
próprio. Contudo, adiava fazê-lo, pois a cada dia tinha renovada
a esperança de que o companheiro lhe desse a oportunidade de
falar franca e abertamente. Isso, porém, jamais acontecia. Lord
Ruthven, em sua carruagem e em meio aos mais diversos e ricos
cenários naturais, era sempre o mesmo: os olhos falavam menos
que os lábios e, embora Aubrey estivesse próximo ao alvo de sua
curiosidade, não obtinha dele qualquer satisfação além da
constante ansiedade de desejar, em vão, penetrar aquele
mistério, que em sua imaginação exaltada começava a tomar um
ar sobrenatural.
Logo após chegarem a Roma, Aubrey afastou-se do
companheiro por algum tempo. Enquanto Lord Ruthven
comparecia todos os dias às reuniões matinais oferecidas por
uma condessa italiana, foi em busca dos monumentos de outra
cidade quase abandonada. Enquanto estava assim ocupado,
recebeu correspondências da Inglaterra, que abriu com grande
impaciência. A primeira, da irmã, exalava afeto puro. As outras,
dos tutores, deixaram-no estupefato. Se antes parecera-lhe haver
em seu companheiro um poder maléfico, agora as cartas quase
lhe davam razão suficiente para crê-lo. Os tutores insistiam que
se afastasse de imediato do amigo, que afirmavam ter natureza
terrivelmente violenta e ser dotado de um poder de sedução
irresistível, que tornava seus hábitos libertinos ainda mais
perigosos para a sociedade. Soubera-se que o desprezo que
nutria pela adúltera não advinha de ódio pelo caráter dela, mas
que ele exigia, para sua maior satisfação, que a vítima, cúmplice
na culpa, fosse arremessada do alto da virtude imaculada para o
nível mais baixo da infâmia e degradação. Em suma, depois da
partida dele, todas as mulheres de quem havia se aproximado
aparentemente pelas virtudes delas tinham deixado cair as
máscaras, expondo à vista pública, sem nenhum escrúpulo, toda
a deformidade de sua devassidão.
Aubrey decidiu abandoná-lo, pois até aquele momento o
caráter dele não deixara transparecer um ponto favorável que
fosse. Decidiu inventar algum pretexto plausível para deixá-lo
sozinho, pretendendo, nesse meio-tempo, observá-lo mais de
perto, sem permitir que qualquer circunstância passasse
despercebida. Juntou-se ao mesmo círculo de amizades e logo
notou que Lord Ruthven tentava aproveitar-se da inexperiência
da filha da dama cuja casa frequentavam. Na Itália, é raro
encontrar-se em público com uma mulher solteira. Ele devia,
assim, proceder em segredo. Mas Aubrey estava atento a todas
suas manobras, e logo descobriu que tinham marcado um
encontro, que com certeza resultaria na perdição da jovem
ingênua e inconsequente. Sem perda de tempo, invadiu os
aposentos de Lord Ruthven e indagou com aspereza sobre as
intenções dele quanto à dama, ao mesmo tempo que lhe
informava estar a par do encontro planejado para aquela noite.
Lord Ruthven retrucou que tinha as mesmas intenções que
qualquer outro teria em circunstâncias semelhantes.
Pressionado a responder se pretendia casar-se com ela ou não,
ele apenas riu. Aubrey retirou-se. De imediato redigiu uma nota,
informando que a partir daquele momento declinava de
acompanhar o Lord Ruthven pelo resto da viagem combinada, e
ordenou ao criado que procurasse outras acomodações.
Visitando a mãe da moça, contou-lhe tudo que sabia, não só em
relação à filha, mas também quanto ao caráter do pretendente. O
encontro amoroso foi impedido. No dia seguinte, Lord Ruthven
limitou-se a enviar seu criado para ­comunicar-lhe sua completa
concordância com a separação, mas não demonstrou suspeitar
que seus planos tinham sido frustrados pela intervenção de
Aubrey.
Deixando Roma, Aubrey foi para a Grécia e, após cruzar a
Península, logo se viu em Atenas. Fixou residência na casa de um
grego e então ocupou-se em perseguir os registros esmaecidos de
uma glória passada, impressos em ruínas que, como que
envergonhadas por narrarem os feitos de homens livres para
aqueles que não passavam de escravos, haviam se ocultado
debaixo do solo protetor ou de líquens variegados. Sob o mesmo
teto que ele, vivia um ser tão belo e delicado, que serviria como
modelo ao artista que desejasse plasmar na tela a promessa de
paraíso feita por Maomé aos fiéis; seus olhos, porém, revelavam
demasiado espírito para que alguém julgasse não ter alma.
Quando dançava na planície ou corria pelo flanco da montanha,
uma gazela não se compararia em beleza, pois quem poderia
trocar aqueles olhos, que denotavam natureza tão vivaz, pelo
olhar de lânguida luxúria do animal, que apenas ao epicurista
deleitaria? Os passos suaves de Ianthe muitas vezes
acompanhavam Aubrey em suas buscas arqueológicas. Ela com
frequência revelaria, desapercebida, toda a beleza de suas
formas, ao entreter-se na perseguição de alguma borboleta
colorida, como se flutuasse ao vento, diante do olhar ávido dele,
que se esquecia das palavras ­recém-decifradas em alguma
inscrição quase apagada ao contemplar-lhe a silhueta de sílfide.
Enquanto esvoaçava ao redor dele, suas tranças exibiam aos
raios do sol tons fugazes de brilho tão delicado que justificavam
plenamente a distração do estudioso, de cuja mente fugia o
objeto que pouco antes julgara de tão vital importância para a
correta interpretação de uma passagem em Pausânias.1 Para que,
porém, tentar descrever encantos que todos sentem, mas que
ninguém pode apreciar? Eram inocência, juventude e beleza, não
corrompidas pelos salões lotados e bailes sufocantes.
Enquanto ele traçava esboços das ruínas que desejava
relembrar no futuro, ela permanecia a seu lado e observava o
efeito mágico do lápis ao traçar os cenários de sua terra natal.
Então, passava a descrever-lhe as danças de roda ao ar livre e a
pintar-lhe, nas cores radiantes da memória juvenil, a cerimônia
de casamento à qual recordava ter assistido em criança. A
seguir, voltando-se para temas que evidentemente mais tinham
impressionado a sua imaginação, contava-lhe as histórias
sobrenaturais ouvidas de sua ama de leite. A sinceridade da
jovem e o modo como parecia acreditar naquilo que narrava
conseguiram estimular o interesse de Aubrey. Quando ela
contava a história do vampiro que vivera durante anos entre
seus amigos e entes queridos, vendo-se forçado a cada ano a
alimentar-se da vida de alguma mulher adorável para prolongar
sua existência pelos meses seguintes, ele sentia o sangue gelar
nas veias, ao mesmo tempo que tentava rir e dissuadi-la de
fantasias tão inúteis e horrendas. Mas Ianthe citava nomes de
velhos que tinham desmascarado ao menos um desses vampiros,
depois de descobrirem que vários parentes e crianças já traziam
as marcas da voracidade do monstro. ­Percebendo-o incrédulo,
ela implorou que acreditasse nela, pois sabia-se que todo aquele
que ousasse duvidar acabava tendo prova da existência deles,
sendo obrigado, à custa de pesar e sofrimento, a admitir serem
reais. Ante a descrição detalhada da aparência tradicional
daqueles seres monstruosos, o horror dele cresceu, pois
correspondia muito bem à aparência de Lord Ruthven. Ele
insistiu, entretanto, em afirmar à jovem que os receios dela eram
infundados, mesmo surpreso ao notar tantas coincidências que,
juntas, suscitavam a crença de que Lord Ruthven pudesse ter
algum poder sobrenatural.
Aubrey afeiçoou-se mais e mais a Ianthe. A inocência dela,
que contrastava tanto com as virtudes artificiais das mulheres
nas quais buscara a ilusão do romance, conquistou seu coração.
E, embora desdenhasse da ideia de que um jovem de hábitos
ingleses pudesse desposar uma moça grega inculta, ainda assim
via-se mais e mais atraído pela beleza quase mágica diante de si.
Às vezes afastava-se dela e, traçando planos de alguma pesquisa
histórica, partia determinado a não retornar até ter atingido seu
objetivo. Mas sempre descobria ser impossível concentrar a
atenção nas ruínas enquanto sua mente retinha aquela imagem
que parecia ser a única dona de seus pensamentos. Ianthe não se
dava conta do amor dele, e exibia a mesma espontaneidade
infantil do início. Sempre parecia relutante em deixá-lo, mas
apenas porque, enquanto seu guardião ocupava-se em esboçar
ou descobrir algum fragmento sobrevivente à ação destruidora
do tempo, não tinha quem a acompanhasse a seus lugares
favoritos. Ela consultara os pais sobre os vampiros e, diante de
várias pessoas, ambos confirmaram sua existência, pálidos de
pavor à simples menção da palavra. Pouco depois, Aubrey
decidiu fazer mais uma excursão, que lhe tomaria algumas
horas. Ouvindo o nome do lugar, suplicaram-lhe que não
regressasse de noite, pois teria de passar por um bosque onde
nenhum grego permaneceria após o escurecer, por motivo
algum. Segundo eles, era ali que os vampiros realizavam suas
orgias noturnas, e os males mais terríveis recairiam sobre aquele
que ousasse lhes cruzar o caminho. Aubrey fez pouco caso
dessas asserções, riu da insistência deles, mas se calou ao
perceber como estremeciam diante de sua temeridade em
burlar-se de um poder infernal superior, cuja menção bastava
para gelar-lhes o sangue.
Na manhã seguinte, Aubrey partiu sozinho para sua excursão.
Surpreendera-se ao ver a expressão melancólica do anfitrião e
consternou-se quando descobriu que seu desprezo pela crença
naqueles demônios temíveis enchera a todos com um grande
terror. Estava a ponto de partir quando Ianthe postou-se junto a
seu cavalo e suplicou, ansiosa, que ele voltasse antes do cair da
noite, pois a escuridão noturna permitia àqueles seres que
usassem seus poderes. Ele prometeu fazê-lo. Distraiu-se tanto
com suas pesquisas, porém, que não percebeu que em breve o
dia terminaria, e que no horizonte surgira uma daquelas nuvens
diminutas que, nos climas mais quentes, muito depressa se
avoluma numa massa imensa, descarregando toda sua fúria
sobre a terra. Por fim, montou o cavalo, determinado a
compensar com a velocidade aquele atraso. Mas já era tarde
demais. O crepúsculo é quase desconhecido naqueles climas do
sul, onde a noite começa assim que o sol se põe. Não havia
avançado muito quando a força da tempestade fez-se sentir; os
trovões ribombando quase sem descanso. A chuva torrencial e
pesada forçava caminho por entre o dossel das árvores,
enquanto os relâmpagos azuis pareciam cair e cintilar a seus
pés. De súbito, o cavalo disparou, em pânico, e carregou-o numa
velocidade alucinante através da floresta cerrada. Exausto, o
animal terminou por deter-se e, à luz dos relâmpagos, Aubrey
notou estar perto de uma choupana que mal sobressaía acima
dos amontoados de folhas mortas e da vegetação arbustiva que a
cercavam. Apeando, aproximou-se da construção, na esperança
de encontrar alguém que o guiasse até a cidade, ou pelo menos
de obter abrigo contra a inclemência da tempestade. Enquanto
se aproximava, os trovões silenciaram por um instante, e ele
ouviu os gritos desesperados de uma mulher que se
sobrepunham a uma longa gargalhada carregada de um escárnio
exultante, prolongando-se em um som quase contínuo.
Assustado, mas impelido pelos trovões que rugiam de novo lá no
alto, num ato repentino abriu de um só golpe a porta da cabana.
A escuridão lá dentro era completa, e ele se deixou guiar pelos
sons. Parecia que sua chegada não fora notada, pois, embora
chamasse, os sons continuavam e ninguém lhe respondia. De
repente, esbarrou em alguém, que no mesmo instante o segurou.
Então uma voz gritou: “Frustrado outra vez!”, seguindo-se uma
risada, e ele foi agarrado por mãos cuja força parecia sobre-
humana. Determinado a não ceder a própria vida por pouco,
lutou, mas em vão, pois foi erguido e atirado com força contra o
piso. O inimigo lançou-se sobre ele, ­ajoelhou-se sobre seu peito,
e já lhe rodeara a garganta com as mãos quando o brilho de
várias tochas penetrou pela janela e o interrompeu. De imediato
o atacante se ergueu, abandonou a presa e saiu correndo pela
porta, rumo à floresta. Num instante, o barulho dos galhos que
se partiam enquanto ele corria deixou de ser ouvido. A
tempestade havia amainado. Incapaz de ­mover-se, Aubrey
chamou pelos recém-chegados. Ao entrarem, a claridade das
tochas iluminou as paredes de barro e o telhado de palha
enegrecido de fuligem. A pedido de Aubrey, procuraram a
mulher cujos gritos ele ouvira, e com isso ele voltou a ficar
imerso em escuridão. Qual não foi seu horror quando, ao
retornarem as tochas, distinguiu a forma etérea de sua adorável
guia, transformada num cadáver sem vida. Fechou os olhos, na
esperança de que aquela visão tivesse sido apenas uma ilusão
criada por sua imaginação perturbada; mas, quando tornou a
abri-los, ela ainda estava lá, estendida a seu lado. Não havia cor
na face ou nos lábios, mas ela ainda assim trazia no rosto uma
quietude quase tão cativante quanto a vida que antes o animara.
Havia sangue no pescoço e no peito, e viam-se na garganta as
marcas dos dentes que haviam aberto suas veias. Os homens
apontaram para os ferimentos, exclamando horrorizados: “Um
vampiro! Um vampiro!”. Improvisaram com presteza uma maca,
e Aubrey foi colocado ao lado daquela que tão pouco tempo antes
fora motivo de tantos sonhos mágicos e luminosos, agora inerte
como a flor da vida que nela murchara. Não sabia sequer o que
estava pensando, pois sua mente estava entorpecida e parecia
fugir à reflexão, para buscar refúgio no vazio. Quase
inconsciente, sua mão empunhou uma adaga de formato
peculiar, que fora achada na cabana.
Logo juntaram-se a eles outros grupos que também estavam à
procura da jovem, cujo desaparecimento fora notado pela mãe.
Os gritos amargurados, ao se aproximarem da cidade, alertaram
os pais sobre a terrível catástrofe. Descrever seu pesar seria
impossível. Quando perceberam a causa da morte da filha,
olharam para Aubrey e apontaram o corpo. Estavam
inconsoláveis. Ambos morreram de coração partido.
Ao ser colocado na cama, Aubrey foi acometido por uma febre
violenta, acompanhada de delírios frequentes. Nesses
momentos, chamava por Lord Ruthven e por Ianthe, e, numa
associação inexplicável, parecia suplicar ao antigo companheiro
que poupasse a mulher amada. Em outros, lançava imprecações
contra ele e o amaldiçoava por tê-la matado. Quis o acaso que
Lord Ruthven chegasse a Atenas àquela altura e, por algum
motivo, ao saber do estado de Aubrey, imediatamente instalou-se
na mesma residência e passou a cuidar dele. Quando Aubrey se
recuperou do delírio, ficou horrorizado e assombrado ao ver
junto a si o homem cuja imagem agora associava à de um
vampiro. No entanto, Lord Ruthven logo o fez aceitar sua
presença, pelo uso de palavras gentis que quase indicavam
remorso pelo erro que levara à separação, e mais ainda pela
gentileza, ansiedade e cuidados que demonstrava. O nobre
parecia muito mudado, e já não era o homem apático que tanto
intrigara Aubrey. Contudo, assim que a convalescença deste se
firmou, ele aos poucos retornou a seu estado de espírito
habitual, até voltar a ser o mesmo de antes — exceto que, vez por
outra, Aubrey surpreendia-se ao encontrar o olhar dele fixo no
seu, com um sorriso de maligna euforia nos lábios. Sem saber
por que, aquele sorriso o apavorava. Ao final da recuperação do
enfermo, Lord Ruthven ocupava-se em observar as ondas
formadas pela brisa fresca, ou a lenta movimentação dos
planetas que, como nosso mundo, orbitam ao redor do sol.
Parecia, de fato, evitar os olhos de todos.
A mente de Aubrey debilitara-se com o choque, e a
plasticidade de espírito, que antes o caracterizara, parecia ter
sumido para sempre. Agora apreciava o silêncio e o isolamento
tanto quanto Lord Ruthven. Mas não conseguia encontrar nos
arredores de Atenas a solidão que tanto desejava. Se a buscava
nas ruínas que antes frequentara, a imagem de Ianthe
materializava-se a seu lado. Se a buscava nos bosques, o espectro
aparecia entre a folhagem rasteira, à procura de alguma violeta
tímida, e virando-se de repente mostrava-lhe à imaginação
delirante seu rosto pálido, a garganta ferida e um sorriso doce
nos lábios.
Ele decidiu fugir dos cenários onde cada feição criava em sua
mente associações tão amargas. Propôs a Lord Ruthven, a quem
se considerava ligado devido ao modo como o havia cuidado
durante sua enfermidade, que visitassem as regiões da Grécia
desconhecidas de ambos. Viajaram em todas as direções e
buscaram cada local que pudesse permanecer na memória, mas,
embora fossem de um lugar para outro, não pareciam prestar
atenção ao que seus olhos viam. Ouviram muitas histórias sobre
assaltantes, mas aos poucos deixaram de fazer caso deles,
julgando serem produto da imaginação de indivíduos
interessados em explorar a generosidade daqueles que eles
protegiam contra perigos imaginários. Por negligenciarem o
conselho dos habitantes locais, em certa ocasião viajavam com
apenas alguns guardas, que mais serviam de guias que de
proteção. Porém, ao entrarem por um estreito desfiladeiro, em
cujo fundo corria o leito de uma correnteza, entre grandes blocos
de rocha caídos das escarpas vizinhas, tiveram motivo para se
arrepender de sua negligência. Assim que o grupo penetrou no
passo, foi surpreendido pelo zunido de balas passando rente a
suas cabeças e pelo eco dos disparos das armas. Num instante,
os guardas os deixaram e, escondendo-se detrás de rochas,
passaram a atirar na direção dos disparos. Lord Ruthven e
Aubrey, seguindo-lhes o exemplo, refugiaram-se atrás de uma
curva do desfiladeiro. Logo, entretanto, envergonhados por
serem detidos daquela forma pelos bandidos, que com gritos
insultuosos os desafiavam a avançar, e sujeitos a morrer sem luta
caso algum assaltante os surpreendesse pelas costas, decidiram
avançar ao encontro do inimigo. Mal deixaram a proteção das
rochas quando Lord Ruthven foi derrubado por um tiro no
ombro. Aubrey correu para ajudá-lo e, sem fazer caso dos
disparos ou da própria segurança, surpreendeu-se por ver os
assaltantes à sua volta. Assim que Lord Ruthven foi ferido, os
guardas de imediato ergueram os braços e renderam-se.
Prometendo-lhes uma boa recompensa, Aubrey convenceu os
bandidos a levarem o amigo ferido para uma cabana próxima.
Depois de concordar com um resgate, deixou de incomodar-se
com a presença deles, que se limitavam agora a guardar a porta
até que o comparsa que partira com uma ordem de pagamento
voltasse com a quantia prometida. As forças de Lord Ruthven
declinaram depressa. Dois dias depois a gangrena instalou-se, e
a morte pareceu avançar a passos rápidos. Sua conduta e
aparência continuavam as mesmas; ele parecia tão indiferente à
dor quanto o fora a tudo ao seu redor. Chegando ao fim da última
tarde, porém, sua mente pareceu agitar-se, e com frequência ele
fixava o olhar em ­Aubrey, que se viu compelido a oferecer-lhe
ajuda com mais ímpeto que o costumeiro.
— Ajude-me! Você pode me salvar! Pode fazer mais que isto...
Não me refiro a minha vida, pois me importa tão pouco o fim de
minha existência quanto o de um dia. Mas você pode salvar
minha honra, a honra de seu amigo.
— Como? Diga-me como! Farei qualquer coisa — respondeu
Aubrey.
— Preciso de pouca coisa. Minha vida se esvai e não posso
explicar tudo. Mas se ocultar o que sabe a meu respeito, aos
olhos do mundo minha honra ficará livre de mácula. E se minha
morte permanecer por algum tempo desconhecida na
Inglaterra... eu... eu... Mas a vida...
— Eu nada direi.
— Jure! — gritou o moribundo, erguendo-se com violência
furiosa. — Jure pelo que sua alma mais venera, por tudo que
teme, jure não revelar por um ano e um dia2 meus crimes ou
minha morte a qualquer ser vivo, de forma alguma, a despeito do
que aconteça ou do que veja.
Os olhos dele pareciam saltar das órbitas.
— Eu juro! — disse Aubrey.
Rindo, Lord Ruthven descaiu a cabeça sobre o travesseiro e
expirou.
Aubrey retirou-se para descansar, mas não conseguiu dormir.
Todas as peculiaridades de seu relacionamento com aquele
homem vieram-lhe à mente, sem que soubesse o motivo. Ao
recordar-se do juramento, sentiu calafrios, como se tivesse o
pressentimento de que algo terrível o aguardava. Levantou-se
cedo na manhã seguinte, e estava prestes a entrar na choupana
onde deixara o morto quando foi abordado por um dos
assaltantes, que lhe informou que o corpo já não estava lá, pois
ele e seus companheiros o tinham levado para o alto de um
monte próximo, cumprindo a promessa feita ao falecido de que,
após sua morte, ele seria exposto ao ­primeiro raio frio do luar.
Atônito, Aubrey chamou alguns homens e decidiu enterrá-lo
onde o tinham deixado. Chegando ao cume, porém, não
encontrou qualquer vestígio do corpo ou das vestes, embora os
bandidos jurassem identificar a pedra exata sobre a qual o
haviam deixado. Por algum tempo sua mente perdeu-se em
conjeturas, e ele acabou regressando convencido de que haviam
enterrado o corpo para ficarem com as roupas.
Desgostoso com o país onde sofrera tantos infortúnios
terríveis, e onde tudo parecia conspirar para alimentar a
melancolia supersticiosa que se apossara dele, decidiu partir, e
logo chegou a Esmirna.3 Enquanto esperava por um barco que o
levasse a Otranto ou a Nápoles, ocupou-se arrumando os
pertences de Lord Ruthven que conservara consigo. Entre eles,
achou um estojo com várias armas de ataque, concebidas de
modo a garantir a morte da vítima. Havia várias adagas e
iatagãs.4 Manuseando-os e examinando as formas estranhas,
surpreendeu-se ao encontrar uma bainha ornamentada no
mesmo estilo da adaga que trouxera da cabana fatídica.
Estremeceu e correu a obter novas provas — encontrou a arma, e
imagine-se o horror que sentiu ao descobrir que seu formato
incomum se encaixava à bainha que tinha em mãos! Os olhos
dele não precisavam de mais nenhuma prova e pareciam presos
à adaga. Ainda assim desejava não crer, mas a forma peculiar e
os mesmos tons cambiantes, que igualavam em esplendor o cabo
e a bainha, não deixavam margem a dúvidas. E havia sinais de
sangue em ambos.
Deixou Esmirna. Em Roma, já a caminho de casa, sua
primeira preocupação foi informar-se sobre a jovem que tentara
subtrair às garras sedutoras de Lord Ruthven. Os pais dela
estavam alquebrados, financeiramente arruinados, e nada
sabiam dela desde a partida do nobre. Aubrey quase não
suportou tanto horror. Ele temia que ela também tivesse caído
vítima do destruidor de Ianthe. Tornou-se sombrio e silencioso,
interessado apenas em apressar os postilhões, como se disso
dependesse a vida de algum ente querido. Chegou a Calais,5 e
uma brisa, que parecia obedecer à sua vontade, logo o levou a
terras inglesas. Dirigiu-se depressa à mansão da família, onde
por um momento os abraços e carinhos da irmã pareceram
dissipar todas as lembranças do ocorrido. Se antes ela
conquistara o afeto dele com seu carinho infantil, agora que se
tornava mulher era ainda mais encantadora como companhia.
Miss Aubrey não tinha a graça gloriosa que conquista o olhar
e o aplauso dos frequentadores das reuniões sociais. Nada havia
daquela luminosidade fugaz que só existe no ambiente sufocante
de um salão lotado. O brilho dos olhos azuis nunca indicara uma
mente leviana. Havia neles um encanto melancólico que não
parecia advir do sofrimento, mas de algum sentimento íntimo
que sugeria uma alma cônscia de uma esfera superior. Seu
caminhar não era aquele passo inconsequente que se desvia
rumo a uma borboleta ou cor atraente, mas era sereno e
ponderado. Sozinha, nunca um sorriso de alegria iluminava seu
rosto; mas quando o irmão lhe demonstrava afeto, e junto dela
esquecia os pesares que ela sabia lhe terem roubado a
serenidade, quem trocaria seu sorriso pelo de qualquer cortesã?
Parecia que aqueles olhos, aquele rosto, tocavam a própria e
doce música interior. Aos dezoito anos, ainda não fora
apresentada à sociedade, já que seus tutores haviam julgado
mais apropriado esperar a volta do irmão, que deveria
acompanhá-la nas festas e formalidades de praxe.
Decidiu-se que a apresentação da moça às “altas rodas”
ocorreria na próxima reunião social, que aconteceria em breve.
Aubrey teria preferido recolher-se à mansão de seus ancestrais e
cultivar a melancolia que o dominava. Não encontrava interesse
na frivolidade mundana, depois de sua mente ter sido dilacerada
pelos eventos recentes, mas decidiu sacrificar o conforto pela
proteção da irmã. Chegaram à cidade com um dia de
antecedência, em preparação para a reunião que atrairia toda a
alta sociedade.
Uma multidão estava reunida. Durante algum tempo não
houvera qualquer acontecimento social, e todos aqueles que
ansiavam por banhar-se à luz dos sorrisos da realeza acorreram
ansiosos. Aubrey estava lá com a irmã. Enquanto se isolava a um
canto, ignorando todos ao redor e perdendo-se na lembrança de
que naquele exato local vira Lord Ruthven pela primeira vez,
sentiu o braço ser agarrado, enquanto uma voz que reconheceu
claramente sussurrava-lhe ao ouvido: “­Lembre-se do juramento”.
Quase lhe faltou coragem para virar-se, temendo ver um
espectro que o fulminaria, quando perto de onde estava
distinguiu a mesma figura que lhe atraíra a atenção naquele
local, na noite em que fora apresentado à sociedade. Fitou-o, até
que suas pernas se recusassem a sustentar-lhe o peso, e teve de
apoiar-se no braço de um amigo. Forçando passagem pela
multidão, lançou-se dentro da carruagem, que o levou para casa.
Percorreu o quarto com passos nervosos, com as mãos na
cabeça, como se temesse que os pensamentos lhe arrebentassem
o cérebro. Lord ­Ruthven de novo diante dele... as circunstâncias
tão terríveis e incontroláveis... a adaga... o juramento. Levantou-
se. Não podia crer que fosse possível... Os mortos voltando à
vida! Julgou que a imaginação conjurava uma imagem na qual
sua mente se fixava. Era impossível que fosse real. Assim,
decidiu voltar a frequentar a sociedade. Tentou obter
informações sobre Lord Ruthven, mas o nome congelou-se em
seus lábios, e nada descobriu. Algumas noites depois,
compareceu com a irmã à recepção oferecida por alguém de suas
relações. ­Deixou-a sob os cuidados de uma matrona, retirou-se a
um canto mais quieto e ali se deixou levar por seus pensamentos
obsessivos. Ao perceber que muitos já partiam, abandonou o
devaneio e, em outro aposento, encontrou a irmã rodeada de
gente, com quem parecia conversar, animada. Tentando
aproximar-se, pediu a alguém que lhe desse passagem, e, quando
a pessoa se virou, o rosto que viu era do homem que tanto
abominava. Atirando-se para a frente, agarrou o braço da irmã e,
com passos rápidos, puxou-a em direção à saída. Na porta, viu-
se barrado pela multidão de criados à espera dos patrões;
enquanto lutava para passar por eles, novamente ouviu a voz
sussurrar-lhe: “Lembre-se do juramento!”. Não ousou se voltar
para ver e, apressando a irmã, logo chegaram em casa.
Aubrey quase enlouqueceu. Se antes sua mente já estava
obcecada, quanto não estaria agora, quando lhe pesava nos
pensamentos a certeza de que o monstro estava vivo de novo! As
atenções da irmã eram agora ignoradas, e em vão ela pedia uma
explicação para aquela conduta tão ríspida. As poucas palavras
que ele dizia a deixavam aterrorizada. Quanto mais Aubrey
pensava, mais se acentuava seu espanto. Era assombrado pelo
juramento que fizera; deveria, então, permitir que o demônio
vagasse entre aqueles que lhe eram caros, espalhando a
destruição, sem tentar impedi-lo? Sua irmã poderia ter sido
tocada por ele. Entretanto, ainda que rompesse o juramento e
revelasse suas suspeitas, quem lhe daria crédito? Pensou em
livrar o mundo do miserável com as próprias mãos, mas até a
morte, lembrou-se, já havia sido ludibriada. Passou dias nesse
estado, trancado no quarto sem receber ninguém, comendo
apenas quando a irmã lhe suplicava, com os olhos rasos d’água,
que o fizesse pelo bem dela. Chegou a hora em que, incapaz de
suportar a quietude e a solidão, deixou a casa e vagou pelas ruas,
ansiando escapar da imagem que o assombrava. Descuidou-se da
aparência e passou a andar a esmo, fosse sob o sol do meio-dia
ou na umidade da meia-noite. Ficara irreconhecível. A princípio
voltava para casa ao entardecer, mas, com o tempo, passou a
deitar-se para descansar onde quer que a fadiga o vencesse. A
irmã, preocupada com a segurança de Aubrey, colocava pessoas
para segui-lo, que logo eram deixadas para trás por ele, que fugia
de um perseguidor mais veloz que qualquer outro — seus
pensamentos. O comportamento de Aubrey, porém, mudou de
repente. Assaltado pela ideia de que, ao ausentar-se, teria
abandonado os amigos, inadvertidos da presença do demônio
entre eles, decidiu retornar à vida social e vigiá-los de perto, de
forma que pudesse alertar, a despeito do juramento, todos
aqueles a quem Lord Ruthven se insinuasse. Mas, quando
entrava num recinto, sua aparência abatida e desconfiada
causava má impressão, e seus tremores internos eram tão
visíveis que sua irmã, por fim, viu-se compelida a lhe pedir que,
pelo bem dela, deixasse de frequentar aqueles ambientes que
tanto o abalavam. Os protestos mostraram-se ineficazes, e os
tutores decidiram intervir. Temendo que estivesse perdendo a
razão, acharam que era hora de fazer de novo valer a confiança
depositada neles pelos pais de Aubrey.
Para resguardá-lo das ofensas e sofrimentos que todos os dias
encontrava em suas andanças, e impedi-lo de expor em público
os sintomas do que julgavam ser loucura, contrataram um
médico para morar na residência e cuidar dele o tempo todo. Ele
mal parecia notar, tão obcecado estava com aquele único e
terrível tema. Sua incoerência finalmente atingiu tamanha
magnitude que foi confinado a seus aposentos. Ali ficava deitado
por dias, incapaz de levantar-se. Estava emaciado, e seus olhos
tinham adquirido um brilho vítreo. Os únicos sinais
remanescentes de afeto e memória revelavam-se quando a irmã
ia vê-lo. Nessas ocasiões, tinha às vezes um sobressalto e,
segurando-lhe as mãos, com olhares que a afligiam, implorava
que cumprisse um desejo seu.
— Não o toque! Se tem algum amor por mim, não se aproxime
dele!
No entanto, quando ela perguntava a quem se referia, sua
única resposta era “É verdade! É verdade!”, e voltava a- ­
mergulhar num estado do qual nem mesmo ela conseguia tirá-lo.
Assim se passaram vários meses, mas aos poucos, com o correr
do ano, a incoerência dele tornou-se menos frequente. O
desalento diminuiu, e os tutores notaram que várias vezes por
dia ele contava nos dedos um número definido, e então sorria.
O prazo do juramento se aproximava do fim quando, no
último dia do ano, um dos tutores entrou no quarto e comentou
com o médico como era triste que Aubrey estivesse num estado
tão terrível quando sua irmã estava para se casar no dia
seguinte. Aquilo atraiu de imediato a atenção de Aubrey, que
perguntou, ansioso, quem era o noivo. Satisfeitos com esse sinal
do retorno do intelecto, que temiam que Aubrey houvesse
perdido, disseram o nome do conde de Marsden. Julgando tratar-
se de um jovem conde que vira nas reuniões, Aubrey pareceu
feliz, surpreendendo-os ao expressar o desejo de comparecer às
bodas. Pediu para ver a irmã, o que lhe foi negado, mas em
questão de minutos ela foi visitá-lo. Ele novamente parecia estar
suscetível aos efeitos daquele sorriso adorável. Estreitou-a
contra o peito e beijou-lhe a face, molhada pelas lágrimas que
corriam diante do pensamento de que o irmão voltava a nutrir
sentimentos de afeição. Ele passou a falar com o carinho de
outrora, felicitando-a pelo casamento com alguém tão distinto e
de tantos predicados, e de repente percebeu um medalhão no
pescoço da irmã. Abrindo-o, ficou atônito ao ver o rosto do
monstro que por tanto tempo vinha afligindo sua vida. Num
paroxismo de fúria, arrancou o medalhão e esmagou-o sob os
pés. Quando ela perguntou por que destruíra a imagem de seu
futuro marido, ele a olhou, parecendo não entender. Em seguida,
segurou as mãos dela e ­encarou-a com expressão desesperada,
suplicando que jurasse nunca se casar com aquele monstro, pois
ele... Não conseguiu continuar; aquela voz parecia outra vez
reiterar que não esquecesse o juramento. Virou-se de súbito,
julgando que Lord Ruthven estivesse próximo, mas não viu
ninguém. Enquanto isso, os tutores e o médico tinham escutado
tudo, e, julgando que ele tivesse sofrido uma recaída, entraram
para separá-lo à força de miss Aubrey, pedindo a ela que saísse.
Aubrey caiu de joelhos aos pés deles e implorou que adiassem o
casamento por um único dia. Atribuindo o pedido à insanidade
que acreditavam possuí-lo, tentaram acalmá-lo e retiraram-se.
Lord Ruthven aparecera para visitá-lo no dia seguinte ao da
reunião e, como todos os outros que o fizeram, não fora recebido.
Ao tomar conhecimento da enfermidade de Aubrey, de pronto
adivinhou-lhe a causa; mas, quando soube que o consideravam
insano, mal conseguiu ocultar dos portadores da notícia sua
alegria e seu prazer. Apressou-se em ir até a casa do antigo
companheiro, tornando-se presença constante. Fingindo
profunda afeição pelo doente e muito interesse por seu destino,
aos poucos ganhou a atenção de miss Aubrey. Quem poderia
resistir ao poder dele? Sua língua tinha perigos e façanhas a
narrar. Dava a entender não sentir afeição por qualquer pessoa
no planeta, salvo aquela a quem se dirigia. Contava como, desde
que a conhecera, sua existência começara a valer a pena, ainda
que fosse apenas para ouvir a voz reconfortante da donzela. Em
suma, por dominar tão bem as artes da serpente, conquistou-lhe
o afeto, ou talvez fossem estes os desígnios do destino. Ao obter,
finalmente, o título da linhagem mais antiga de sua família, foi
nomeado para uma importante embaixada — e isso lhe deu um
pretexto para antecipar o casamento (a despeito do estado
perturbado do irmão dela), que ocorreria um dia antes de sua
partida para o continente.
Ao ser deixado só pelo médico e pelos tutores, Aubrey tentou
em vão subornar os criados. Pediu pena e papel, e escreveu uma
carta à irmã, implorando-lhe que, se acaso desse valor à própria
felicidade, à sua honra e à daqueles que já estavam no túmulo e
que outrora a haviam carregado nos braços como sua esperança
e esperança de sua linhagem, retardasse por algumas horas o
casamento, sobre o qual proferiu as mais pesadas maldições. Os
criados prometeram entregar a carta, mas levaram-na para o
médico, que achou melhor não incomodar ainda mais miss
Aubrey com o que considerava os delírios de um louco. A noite
escoou sem qualquer descanso para os moradores da casa.
Aubrey ouviu, com um horror que é mais fácil imaginar que
descrever, os sons de todos os preparativos. De manhã, o ruído
de carruagens assaltou-lhe os ouvidos, e ele ficou quase
frenético. A curiosidade dos criados finalmente venceu a
diligência, e todos se foram, deixando-o sob a guarda de uma
pobre idosa. Aproveitou a oportunidade e de um salto deixou o
quarto; num instante, achou-se no salão onde estavam todos
reunidos. Lord Ruthven foi o primeiro a percebê-lo. Aproximou-
se de imediato, agarrou-o pelo braço e tirou-o do aposento, em
um silêncio de ódio. Nas escadarias, Lord Ruthven sussurrou-lhe
ao ouvido:
— Lembre-se do juramento, e saiba que, se sua irmã não se
tornar minha noiva hoje, será desonrada. As mulheres são
fracas!
Assim dizendo, empurrou-o na direção dos criados que,
alertados pela idosa, estavam à procura do patrão. Aubrey já não
conseguia controlar-se, pois sua fúria, sem ter como extravasar-
se, rompera um vaso sanguíneo. Conduziram-no para a cama.
Nada disseram à sua irmã, que não se encontrava presente
quando ele entrou na sala, pois o médico quis poupá-la. O
casamento foi oficiado, e o casal deixou Londres.
A fraqueza de Aubrey aumentou. A efusão de sangue
produziu sintomas que indicavam que ele se encontrava a um
passo da morte. Pediu que os tutores da irmã fossem chamados
e, ao soar da meia-noite, relatou de forma clara o que o leitor
acaba de ler. Em seguida morreu.
Os tutores apressaram-se para proteger miss Aubrey, mas
chegaram tarde demais. Lord Ruthven desaparecera, e a irmã de
Aubrey havia saciado a sede de um VAMPIRO!

John William Polidori (1795-1821) foi um médico e escritor


inglês, conhecido por seu envolvimento com o movimento
Romântico. Nasceu em Londres, filho de um intelectual italiano
emigrado e uma inglesa. Aos 19 anos, em 1815, concluiu o curso
de Medicina pela Universidade de Edimburgo, apresentando
uma tese que versava sobre o sonambulismo. Foi o mais jovem
formando da instituição até aquela data.
No ano seguinte, quando ainda não era legalmente maior de
idade, passou a desempenhar a função de médico pessoal de
Lord Byron e acompanhou-o em uma viagem pela Europa. Na
Suíça, encontraram-se com Mary Wollstonecraft Godwin, o
futuro marido dela, o poeta Percy Bysshe Shelley, e Claire
Clairmont, meia-irmã de Mary e então amante de Byron.
Durante a estada na Suíça, a relação entre Polidori e Byron
rapidamente azedou. Em uma carta, Byron revelava estar
cansado do mau-humor, da futilidade e da vaidade do secretário:
“Era exatamente o tipo de pessoa a quem, se caísse do barco,
estender-se-ia uma palhinha para verificar se é certo o adágio de
que um náufrago se agarra a qualquer coisa”.6 Polidori parecia
querer equiparar-se a ele. Certo dia, perguntou a Byron o que,
além de escrever versos, o nobre poderia fazer melhor do que
ele, ao que Byron teria respondido: “Três coisas. Primeiro,
atingir o buraco da fechadura daquela porta com um tiro.
Segundo, atravessar a nado aquele rio. E terceiro, dar-te uma
boa sova”.7
Byron podia ter certa razão ao irritar-se, mas não se deve
esquecer que Polidori era muito jovem e inexperiente demais
para estar na companhia de algumas das personalidades mais
brilhantes da Europa. Tentava desesperadamente ser uma figura
romântica, mas era inábil em lidar com os outros e com a
própria vida.8
Dispensado por Byron, Polidori partiu para a Itália em
setembro de 1816 e viajou pelo país por quase um ano. Voltou à
Inglaterra e tentou se estabelecer como médico em Norwich, mas
desistiu da profissão e mudou-se para Londres, onde passou a
estudar Direito. Ao mesmo tempo, deu início a uma curta
carreira literária.
Morreu em agosto de 1821, angustiado pela depressão e por
dívidas de jogo. Apesar da forte evidência de que tivesse se
suicidado com a ingestão de ácido prússico, o relatório do legista
atestou morte por causas naturais (“pela visita de Deus”), talvez
para evitar problemas para a família.
Sua irmã Charlotte transcreveu seus diários, mas censurou as
“passagens pecaminosas” e destruiu o original. Essa versão
editada foi publicada em 1911.
Polidori não chegou a se destacar como escritor. Publicou um
romance e dois volumes de poesia. Quanto a estes últimos, seu
sobrinho Dante Gabriel Rossetti admite não serem bons,
acrescentando que a prosa do tio era muito melhor.9
Mesmo sendo um escritor de pouco talento, Polidori
conseguiu entrar para a história da literatura fantástica com sua
única obra de sucesso. Enquanto ainda estava na Suíça, foi
incentivado pela condessa de Breuss, que morava a pouca
distância da Villa Diodati, a dar continuidade ao fragmento que
Byron escrevera algumas noites antes, durante a hoje famosa
competição de contos de fantasmas envolvendo Byron, Percy,
Mary e o próprio Polidori. Em três dias nasceu o conto, no qual o
vampiro fazia sua estreia na prosa de ficção em língua inglesa.
Em vez de usar o morto-vivo bestial e repugnante do folclore,
Polidori criou um personagem claramente inspirado em Lord
Byron, que ele batizou como Lord Ruthven (pronuncia-se
“Ríven”). A escolha do nome não foi fortuita: ele já tinha sido
usado antes por Caroline Lamb, ex-amante de Lord Byron, no
romance Glenarvon (1816), para um personagem baseado nele, de
forma inequívoca e nada lisonjeira. Agora servia também para
um gesto vingativo de Polidori que, por mais infantil e óbvio que
possa ter sido, cumpriu e cumpre seu propósito até os dias de
hoje, de forma admirável.
Lord Ruthven foi o primeiro vampiro da ficção na forma que
hoje reconhecemos: um vilão aristocrático que encontra suas
vítimas entre a alta sociedade. Típico do gênero gótico, exerce
uma atração magnética sobre as pessoas, é sedutor e ao mesmo
tempo está cercado por uma aura sobrenatural e de horror. Essa
combinação de características atraentes e repulsivas aparece
também nos descendentes literários de Lord Ruthven. Polidori
transformou o vampiro mítico, unidimensional e que só sai à
noite para sugar o sangue dos vivos numa criatura plenamente
inserida no mundo humano.10
“The Vampyre” saiu publicado em abril de 1819 e foi um sucesso
imediato. Na Inglaterra, o conto teve cinco edições nesse mesmo
ano, e logo foi traduzido para o francês e para o alemão. O êxito
adveio não apenas porque o conto explorava o horror gótico,
então do agrado do público, mas também por sua autoria ter sido
atribuída a Byron. Não se sabe exatamente como isso aconteceu.
Ao que parece, Polidori foi ingênuo o suficiente a ponto de deixar
o manuscrito com a condessa de Breuss, por intermédio de quem
o conto acabou chegando às mãos do editor Henry Colburn, que
o publicou na New ­Monthly Magazine. A publicação como obra de
Byron pode ter sido apenas um equívoco do editor, ou um ato de
má-fé para tirar proveito da notoriedade do poeta.
O episódio contrariou tanto Polidori quanto Byron. Polidori
imediatamente escreveu uma carta reivindicando a autoria do
conto. Byron também se manifestou, para negar qualquer
envolvimento com o texto. No ano seguinte ele publicou o
próprio fragmento,tentando eximir-se de qualquer culpa, mas
por essa altura “O vampiro” já ganhara fama como obra sua.
É compreensível que Byron não quisesse ser associado a “O
vampiro”, inclusive pelo estilo nada inspirado de ­Polidori. As
metáforas muitas vezes triviais e a prosa rebuscada e cheia de
desvios podem cansar o leitor, mas o fato é que os fãs da
literatura vampírica têm uma dívida de gratidão para com
Polidori. Ao completar a história de Byron, mesmo que por
motivos pouco altruístas, criou o padrão que viria a definir o
vampiro na literatura e, posteriormente, em todas as mídias do
século 20.
O vampiro Lord Ruthven ganhou tremenda popularidade e
passou a ser usado por outros escritores já em 1820, quando
Cyprien Bérard publicou, na França, seu livro Lord Ruthwen ou
Les vampires, uma continuação ao conto de Polidori. A adaptação
teatral do conto, por Charles Nodier, desencadeou uma
verdadeira vampiromania no teatro francês, que se espalhou
pela Europa.
Um aspecto interessante é que, no conto original, o vilão
Ruthven não sofre nenhuma punição por seus crimes, detalhe
que deve ter sido escandaloso para os padrões da época. Talvez
por visarem a plateias mais amplas, as sequências teatrais e
literárias viram-se forçadas a dar ao nobre vilão os castigos que
o subversivo Polidori nunca lhe deu.
Em última análise, foi Lord Ruthven, idealizado por Polidori,
baseado em Lord Byron e popularizado por Nodier, quem abriu o
caminho para que, quase oitenta anos depois, o Conde Drácula
surgisse e estabelecesse de vez o vampiro na cultura popular do
mundo todo. Curiosamente, ao contrário de seus descendentes
Carmilla e Drácula, Lord Ruthven parece nunca ter chegado às
telas, embora tenha feito aparições pontuais nas histórias em
quadrinhos.
Polidori foi por muito tempo ignorado e até vilipendiado.
Demorou para que fosse reconhecido como autor do conto, e até
pelo menos a década de 1950 havia quem duvidasse de seu papel
no desenvolvimento da ficção vampírica.
Apenas em 1998 mereceu o reconhecimento de ter uma placa
comemorativa na rua onde nasceu.

1 Pausânias (ca. 115-180), viajante e geógrafo grego, escreveu Descrição da Grécia,


volumosa obra que fornece informações cruciais para estabelecer elos entre a
literatura clássica e a arqueologia. É interessante sua citação por Polidori, pois apenas
no século 20 os arqueólogos concluíram que a obra de Pausânias constituía um guia
muito confiável para as explorações. [N. T.]
2 Um ano e um dia é um período especificado em algumas matérias legais para
garantir a completude de um ano inteiro. [N. T.]
3 Antiga cidade grega, atual Izmir, situada na costa do mar Egeu. Tomada pelo Império
Otomano no século 15, hoje faz parte da Turquia. [N. T.]
4 Antiga espada turca, com lâmina curta e curva. [N. T.]
5 Cidade portuária da França, situada no ponto mais estreito do canal da Mancha, que
separa as ilhas britânicas do continente europeu. Assim, constitui a cidade francesa
mais próxima da Inglaterra. [N. T.]
6 Christopher Frayling, 1991, p. 12.
7 Jeffrey Hoeper, 2000.
8 William Patrick Day, 1991.
9 William Michael Rossetti, 1895, p. 33.
10 Raymond T. McNally, 1975, p. 62.
Fragmento
de um relato
(1816)
Lord Byron

No ano de 17__, tendo algum tempo antes deliberado sobre uma


jornada através de países não muito visitados pelos viajantes,
parti na companhia de um amigo, a quem chamarei Augustus
Darvell. Alguns anos mais velho que eu, era um homem de
considerável fortuna e de família tradicional, privilégios que
uma tremenda capacidade o impedia tanto de menosprezar
quanto de superestimar. Certas circunstâncias peculiares de sua
história particular tornaram-no objeto de minha atenção, de
interesse e até de apreço, que nem mesmo suas maneiras
reservadas ou as indicações ocasionais de uma inquietude, que
por vezes beirava a alienação mental, podiam extinguir.
Eu ainda era jovem, embora tivesse começado cedo a viver a
vida. Minha convivência com ele era recente. Tínhamos sido
educados nas mesmas escolas e na mesma universidade, mas seu
progresso escolar precedera o meu, e ele já era um profundo
iniciado no que se chama mundo, enquanto eu ainda era apenas
um aprendiz. Estando assim ocupado, ouvia muita coisa sobre
sua vida passada e presente. Embora tais relatos trouxessem
contradições, muitas e irreconciliáveis, o todo me permitia
depreender que ele não era um ser comum, mas alguém que,
mesmo que se esforçasse para não ser notado, de qualquer forma
seria notável. Posteriormente, cultivei um relacionamento e me
empenhei em ganhar sua amizade, mas esta parecia inatingível.
Parecia que, de quaisquer afeições que ele pudesse ter sentido,
umas haviam-se extinguido; outras, se concentrado. Que seus
sentimentos eram agudos tive suficientes oportunidades de
constatar, pois, embora ele os pudesse controlar, não conseguia
dissimular. No entanto, tinha o poder de dar a uma paixão a
aparência de outra, de tal forma que era difícil definir a natureza
do que se passava em seu interior; a expressão das feições podia
variar tão depressa, embora sutilmente, que era inútil traçá-la
até sua origem. Era evidente que alguma inquietação sem cura o
dominava; mas se advinha de ambição, amor, remorsos, pesar,
de um destes ou de todos, ou meramente de um temperamento
mórbido beirando a enfermidade, não fui capaz de descobrir.
Poderiam ser aventadas circunstâncias que justificariam a ação
de qualquer dessas causas; no entanto, como já afirmei, tudo era
tão contraditório que nenhuma delas poderia ser apontada com
precisão. Onde existe mistério, em geral considera-se que deva
também existir o mal. Não sei como é possível, mas nele com
certeza havia o primeiro, embora eu não pudesse avaliar a
extensão do segundo — e relutava, tanto quanto o conhecia, a
crer em sua existência. Meus avanços eram recebidos com frieza,
mas eu era jovem e não era passível de ser desencorajado com
facilidade, até que, por fim, tive êxito em alcançar, até certo
ponto, aquela interação constituída por lugares comuns e a
confiança moderada das tribulações corriqueiras e cotidianas,
criadas e cimentadas pela similitude de objetivos e pela
constância da convivência, que é chamada intimidade, ou
amizade, de acordo com as ideias de quem usa tais termos para
expressá-las.
Darvell era muito viajado, e foi a ele que recorri em busca de
informação, com vista ao planejamento de minha viagem. Era
meu desejo secreto que ele pudesse ser persuadido a
acompanhar-me. Era também uma esperança plausível, fundada
na nebulosa inquietude que observava nele, e que ganhava novas
forças ante a empolgação que ele parecia sentir com tais
assuntos e sua aparente indiferença por tudo que o cercava mais
de perto. Esse desejo primeiramente insinuei, e depois expressei.
A resposta, embora em parte fosse esperada, proporcionou-me
todo o prazer da surpresa — ele consentiu. E, depois de todos os
preparativos necessários, demos início a nossa viagem. Após
passarmos por vários países do sul da Europa, nossa atenção se
voltou para o Leste, de acordo com nosso destino original. E foi
durante o percurso através dessas regiões que ocorreu um
incidente, origem do que tenho a relatar.
A constituição de Darvell, que, a julgar por sua aparência, na
infância deveria ter sido mais robusta que o normal, havia algum
tempo vinha se deteriorando aos poucos, sem a existência de
uma doença aparente. Ele não tinha tosse ou febre, no entanto
enfraquecia mais a cada dia. Seus hábitos eram moderados, e ele
não esmorecia ou se queixava de fadiga, mas ainda assim era
evidente que aquilo o estava consumindo. Tornou-se mais e mais
silencioso e insone, e por fim mostrava-se tão alterado que
minha apreensão aumentou na proporção do que eu julgava ser
o perigo que ele corria.
Decidimos que, chegando a Esmirna, faríamos uma excursão
às ruínas de Éfeso e Sárdis.1 Tratei de dissuadi-lo da ideia, dado
seu estado de indisposição. Em vão; parecia haver uma opressão
em sua mente e uma solenidade em seus modos que não se
coadunavam com aquela ânsia em dar prosseguimento ao que eu
julgava ser um mero capricho, pouco adequado a um enfermo.
Não mais criei oposição, e dali a poucos dias partimos juntos,
acompanhados apenas de um serrugee e um único janízaro.2
Estávamos já na metade do caminho em direção às ruínas de
Éfeso, deixando para trás a região mais fértil de Esmirna, e
percorríamos aquele trecho selvagem e desabitado que cruza
pântanos e desfiladeiros e que leva até as poucas cabanas que
ainda restam ao redor das colunas partidas de Diana3 — as
paredes destelhadas da cristandade expulsa, e a mais recente e,
ainda assim total, desolação das mesquitas abandonadas —,
quando um súbito e rápido mal-estar de meu companheiro
obrigou-nos a fazer uma parada em um cemitério turco, cujas
lápides encimadas por turbantes eram a única indicação de que
a vida humana em algum momento tivesse visitado aquele local
solitário. O único caravançará4 que víramos ficara horas para
trás, nenhum vestígio de vila ou mesmo de cabana estava visível,
e aquela “cidade dos mortos”5 parecia ser o único abrigo para
meu desafortunado amigo, que estava a ponto de tornar-se o
último de seus habitantes.
Naquela situação, olhei em volta procurando um local mais
apropriado para nosso descanso. Ao contrário do aspecto usual
dos campos-santos maometanos, os ciprestes aqui eram poucos e
esparsos. A maioria das lápides estava caída, gasta pela idade.
Sobre uma das mais imponentes, e sob uma das árvores mais
esparramadas, Darvell apoiou-se, numa posição semirreclinada,
com grande dificuldade. Pediu água. Eu tinha algumas dúvidas
quanto a poder encontrá-la, mas preparei-me para sair à
procura, numa hesitação desanimada. Mas ele desejava que eu
ficasse e, voltando-se para Suleiman, o janízaro, que junto de nós
fumava com grande tranquilidade, disse:
— Suleiman, verbana su. — Isto é, “traga-nos água”.
Depois prosseguiu, descrevendo com grande minúcia o local
onde poderia ser encontrada, em um pequeno poço para
camelos, poucas centenas de jardas para a direita. O janízaro
obedeceu.
Perguntei a Darvell:
— Como você sabe isso?
Ele respondeu:
— Por nossa localização. Você deve notar que este lugar foi um
dia habitado, e não o teria sido se não houvesse fontes. E também
por já ter estado aqui antes.
— Você esteve aqui antes! Como nunca mencionou isso? O que
teria você vindo fazer neste lugar onde ninguém ficaria nem um
momento sequer além do necessário?
Para essa questão não obtive resposta. Nesse ínterim,
Suleiman retornou com a água, deixando o serrugee e os cavalos
na fonte. Saciar a sede pareceu revivê-lo por um momento, e
acalentei esperanças de que ficasse bem para prosseguir ou ao
menos retornar, implorando-lhe que tentasse. Ele ficou em
silêncio e pareceu reunir forças num esforço para falar.
Começou:
— Este é o final de minha jornada, e de minha vida. Vim aqui
para morrer, mas tenho um pedido para você, ou antes, uma
ordem, e estas devem ser minhas últimas palavras. Você me
atenderá?
— Certamente, mas ainda tenho esperanças.
— Não tenho esperanças, ou qualquer desejo senão este:
oculte minha morte a todo olhar humano.
— Espero não ser necessário. Vai se recuperar, e...
— Paz! Assim deve ser, prometa-me.
— Prometo.
— Jure, por tudo o que...
E então ele proferiu um juramento de grande solenidade.
— Não há necessidade disso. Vou atender a seu pedido, e
duvidar de mim é...
— Não há outro modo; é preciso que jure.
Fiz o juramento, o que pareceu aliviá-lo. Ele removeu do dedo
um anel de sinete, gravado com alguns caracteres arábicos, e o
estendeu para mim. Continuou:
— No nono dia do mês, ao meio-dia precisamente (o mês que
quiser, mas esse deve ser o dia), jogue este anel nas fontes
salgadas que fluem para a baía de Elêusis.6 No dia seguinte, à
mesma hora, vá às ruínas do templo de Ceres e espere por uma
hora.
— Por quê?
— Você verá.
— O nono dia do mês, você diz?
— O nono.
Quando observei que estávamos no nono dia do mês, sua
expressão se alterou, e ele fez uma pausa. Enquanto jazia ali,
mais e mais debilitado, uma cegonha, carregando uma serpente
no bico, pousou numa lápide perto de nós e, sem devorar a
presa, pareceu encarar-nos fixamente. Não sei o que me levou a
enxotá-la, mas a tentativa foi inútil. Ela voou em círculos e
voltou exatamente ao mesmo ponto. Darvell apontou para ela e
sorriu. Disse, não sei se para si mesmo ou para mim, apenas isto:
— Está bem assim.
— O que está bem? O que quer dizer?
— Não importa. Você deve me enterrar esta tarde, exatamente
onde aquela ave está agora. Já sabe o resto de minhas instruções.
Então passou a dar-me diversas orientações sobre o melhor
modo de esconder sua morte. Ao terminar, perguntou:
— Vê aquela ave?
— Certamente.
— E a serpente que se contorce em seu bico?
— Sem dúvida. Não há nada incomum nisso, é sua presa
natural. É estranho, contudo, que não a devore.
Ele sorriu de modo horrível e então disse, com a voz fraca:
— Ainda não é a hora!
Quando terminou de dizê-lo, a cegonha voou e se foi. Meus
olhos a seguiram por um momento — não mais do que tardaria
contar até dez. Senti o peso de Darvell aumentar sobre meu
ombro e, voltando-me para olhar seu rosto, percebi que estava
morto!
Fiquei chocado com a certeza repentina de que não podia ser
um equívoco. Em poucos minutos, seu rosto escureceu quase por
completo. Poderia ter atribuído a algum veneno aquela mudança
tão súbita, acaso não soubesse que ele não tivera qualquer
chance de ingeri-lo inadvertidamente. O dia terminava, o corpo
se alterava depressa, e não restava nada a não ser atender a seu
pedido. Com a ajuda do iatagã do janízaro e de meu próprio
sabre, cavamos uma cova rasa no local indicado por Darvell. A
terra cedeu com facilidade, tendo já recebido antes algum
inquilino maometano. Escavamos tão fundo quanto o tempo nos
permitiu, e, jogando a terra seca sobre o que restara daquela
pessoa singular recentemente falecida, removemos alguns tufos
de grama mais verde do solo menos ressequido ao nosso redor,
colocando-os sobre o sepulcro.
Entre o espanto e a dor, não derramei uma lágrima.
George Gordon Byron (1788-1824), poeta e grande expoente do
Romantismo inglês, nasceu em Londres, filho da escocesa
Catherine Gordon e do capitão John Byron. O garoto foi levado
pela mãe para Aberdeen, na Escócia, onde viveram na penúria.
O pai, ausente, só aparecia para pedir dinheiro, e morreu na
França, em 1791, num provável suicídio. Nascido com uma
deformidade no pé direito, George mancava e era extremamente
sensível quanto à sua condição, o que lhe afetou o caráter.
Com dez anos, herdou do tio-avô o título de Lord Byron e as
propriedades da família, no condado de Nottingham, na
Inglaterra, para onde se mudou com a mãe. Teve ainda cedo suas
primeiras paixões e desilusões amorosas. Em 1805, entrou para o
Trinity College, em Cambridge, onde ficou popular e se entregou
a uma vida desregrada que o deixou muito endividado. Em 1806,
publicou por conta própria seu primeiro volume de poemas, que
recebeu fortes críticas e acabou sendo modificado e publicado
com outro título. Ainda assim, não foi bem recebido. Em
resposta, o autor publicou uma sátira anônima e mordaz sobre
os críticos literários.
Nos anos seguintes, Byron continuou desfrutando os prazeres
mundanos de Londres, a ponto de pôr em risco sua saúde. Após
formar-se, em 1809, deixou a Inglaterra pela primeira vez, para o
Grand Tour europeu que era então costumeiro para os jovens da
nobreza. Viajou por Portugal, Espanha, Malta e Albânia, e em
seguida pela Grécia, onde teve um caso de amor com um jovem
que lhe ensinou italiano, e pela Turquia, onde atravessou a nado
o estreito de Dardanelos.
Retornou ao solo inglês em 1811, e nos dois anos seguintes
teve uma série de casos amorosos. Um deles, escandaloso, foi
com Lady Caroline Lamb, que anos depois se vingaria em seu
romance Glenarvon (1816), por meio de um personagem que era
uma caricatura maldisfarçada e francamente ofensiva de Byron,
batizado como Lord Ruthven.
Byron casou-se, em 1815, com Annabela Milbanke, que lhe
deu uma filha, Ada. O casamento foi infeliz e durou pouco. Em
1816, após a separação, ele deixou a Inglaterra acompanhado de
seu médico John William Polidori. Exilando-se na Europa
continental, Byron buscava liberdade para prosseguir seu modo
de vida, que afrontava os padrões morais da sociedade britânica.
Foi para a Suíça, onde se encontrou com o poeta Percy Bysshe
Shelley e a futura esposa dele, Mary Wollstonecraft Godwin, e a
meia-irmã desta, Claire Clairmont, com quem Byron teve um
caso e uma filha, Allegra. Daí foi para a Itália, onde teve uma
série de amantes enquanto continuava escrevendo e publicando
suas poesias. Em 1818, a venda da propriedade ancestral
resolveu seus problemas financeiros, mas não sua insatisfação.
Estava envelhecido, o cabelo longo e grisalho, e mergulhado em
promiscuidade. Entretanto, logo em seguida iniciou um caso com
uma condessa casada, envolveu-se na revolução da Itália contra
o domínio austríaco e conheceu a fundo a vida do povo italiano.
Foi um dos períodos mais produtivos e felizes de sua vida. Em
1822, quando morava em Pisa, onde também estavam os Shelley,
morreram primeiro Allegra e depois Percy, que se afogou num
naufrágio.
Foi para a Grécia em 1823, para tomar parte na luta pela
independência do país. Em abril de 1824 adoeceu após tomar
uma chuva, morrendo dez dias depois, em Mesolongi, na costa
do mar Jônico. Seu coração foi enterrado lá, e o corpo foi
embalsamado e enviado para a Inglaterra.
Lord Byron ainda hoje é tido como um dos maiores poetas
europeus. O poema “Don Juan” (1819-1824) é considerado sua
obra-prima, apesar de ter ficado inacabado. Outro trabalho
muito conhecido é A peregrinação de Childe Harold, cujos dois
primeiros cantos foram publicados em 1812, após seu retorno do
Grand Tour, e valeram-lhe o sucesso no mundo literário. Logo
depois disso, publicou Oriental Tales, “O Giaur”, O corsário e
Lara, obras também aclamadas. Assim, estabeleceu-se o
chamado “herói byroniano”, cuja origem remonta ao poeta inglês
Milton, do século 17, e permeia a obra de Byron. O herói
byroniano tem uma personalidade bem característica,
idealizada, cheia de falhas que só fazem aumentar seu fascínio. É
detentor de um talento imenso e comportamento apaixonado, e
ao mesmo tempo é um rebelde que despreza as instituições
sociais, a posição social e os títulos. Arrogante ou
excessivamente confiante, marcado por amores frustrados,
esconde um passado obscuro e sombrio. Todos esses traços
levam a um comportamento autodestrutivo. Não por acaso essa
descrição cai como uma luva no próprio poeta.
A fama de Byron deriva não só da obra que deixou, mas
também de sua vida incomum, repleta de escândalos sexuais e
atos excêntricos. Ele era o equivalente do pop star atual, e sua
personalidade cativou a Europa.
Byron tornou-se o queridinho da época, sendo convidado
para os melhores salões, agraciado com audiências com a realeza
e alvo dos suspiros das mocinhas. Lady Caroline Lamb referiu-se
a ele como “louco, perverso, e perigoso de conhecer”.7 Atraente,
charmoso e com fama de mau, foi a estrela da temporada social
de 1812 em Londres, mesma época em que a valsa entrava na
moda. Por causa do problema no pé, não dançava e mantinha-se
à parte, aparentemente cultivando um desprezo soturno pela
frivolidade que o cercava, e isso aumentou ainda mais o fascínio
e a atração sexual que exercia.8
Na verdade, o personagem público de Byron era
confessamente uma imagem fabricada, a personificação
calculada do próprio herói byroniano de sua poesia, e
cristalizava a noção de que a vida podia ser tratada como teatro.
Seu “olhar satânico” (satanic scowl) fora retirado dos vilões de
Ann Radcliffe.9 Segundo sua ex-esposa, Annabella ­Millbanke, “a
expressão byroniana era imitada por todo canto, por gente que
praticava ao espelho, na esperança de conseguir a mesma
curvatura do lábio superior, o mesmo franzir das
sobrancelhas”.10
Byron acabou por cansar-se da imagem que criara, mas já
perdera o controle sobre a própria influência na sociedade. A
máquina havia sido posta em movimento, e a sua persona seguiu
criando monstros, num processo que dura até os dias de hoje.
Embora Lord Byron não tenha sido o primeiro nem na poesia
nem na prosa vampírica, e seu “O Giaur” (1813) não tenha tido a
mesma repercussão que “O vampiro” de Polidori, ninguém foi
mais importante que ele na criação do mito do vampiro moderno
— menos por sua produção literária que pela dramatização de
sua vida. Até hoje se reconhecem nos vampiros (como Edward
Cullen, da vilipendiada franquia Crepúsculo, grande sucesso
comercial da primeira década do século 21, e Angel, herói da
série de televisão homônima, de 1999 a 2004) as características
do poeta: romântico, atraente, misterioso e trágico. Heróis com o
poder vampírico da persuasão e um magnetismo sensual, por
vezes homens de ação, mas nem por isso deixando de manter-se
nas sombras, ocultando um segredo terrível, solitários e à
margem da humanidade.11
O fascínio por ele continua atual, com Sociedades Byronianas
ao redor do mundo e constantes lançamentos de livros e artigos
a seu respeito. Byron aparece como personagem ficcional na
literatura e no cinema. O romance O vampiro (1995), de Tom
Holland, faz um amálgama de criador e criatura: nele, Byron é
transformado em vampiro durante sua primeira visita à Grécia.
O passo decisivo para consolidar a imagem de Byron como o
protótipo do vampiro atual foi dado por John William Polidori.
Valendo-se do fragmento de uma história criada por Byron na
Villa Diodati e logo em seguida abandonada, o ex-companheiro
de viagem, agora desafeto, escreveu o conto “O vampiro”, em que
moldava o perverso vilão à imagem e semelhança do poeta, de
forma explícita. Publicado em 1819, com autoria falsamente
atribuída a Byron, por engano ou má-fé, o conto foi um sucesso
total. Byron apressou-se em enviar uma carta a seu editor,
negando ser o autor e acrescentando: “Além do mais, cultivo
uma aversão pessoal aos vampiros, e a pouca familiaridade que
tenho com eles de forma alguma me induziria a divulgar seus
segredos”.12 Para demonstrar que o conto era alheio, publicou o
próprio texto como um apêndice de Mazeppa (1820). A
semelhança é incontestável. O declínio inexplicável de Darvell
parece estar associado aos ataques de um vampiro, e ele mesmo
aparenta estar se transformando em um. Não há, porém, menção
alguma aos vampiros, e não seria demais supor que Byron tenha
editado o texto antes da publicação, suprimindo qualquer
menção a eles para distanciar-se do trabalho de seu antigo
médico.
Seus esforços, no entanto, foram inúteis: “O vampiro”
continuou um sucesso, e seguiu sendo atribuído a ele. Por ironia,
foi com esse conto (Le Vampire, nouvelle traduite de l’anglais de
Lord Byron) que a obra de Byron finalmente se estabeleceu na
França. O sucesso no país foi tão grande que, mesmo depois de
esclarecida a questão da autoria, os leitores protestaram pela
supressão do conto na segunda edição das obras de Byron, e ele
voltou a ser incluído na terceira edição, com a explicação:
“Decidimos ceder à pressão de numerosos leitores,
ressuscitando ‘O vampiro’”.13
Apesar da indignação de Byron, o fato é que, direta ou
indiretamente, graças a ele o personagem do vampiro literário
nasceu e se consolidou.

1 A cidade de Éfeso chegou a ter 250 mil habitantes, constituindo um importante porto
e centro de comércio. Sárdis foi capital do reino da Lídia. Ambas são citadas na Bíblia,
e suas ruínas são destinos turísticos (especialmente com ênfase religiosa) até hoje. [N.
T.]
2 A palavra serrugee parece ter sido inventada por Byron. Janízaro é um soldado da
guarda de elite do exército turco, criada no século 14 e desfeita em 1826. [N. T.]
3 O Templo de Diana, mais corretamente chamado de Templo de Ártemis, era
considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo. [N. T.]
4 Abrigo para hospedagem das caravanas. [N. T.]
5 Tradução literal do termo“necrópole” (do grego necro, “morto”, e polis, “cidade”),
também aplicado a cemitérios. [N. T.]
6 Hoje chamada de golfo de Elefsina. Às suas margens situa-se a cidade de Elêusis ou
Eleusina, atualmente subúrbio da capital grega, Atenas, da qual dista dezoito
quilômetros. [N. T.]
7 “Mad, and bad, and dangerous to know”, citado por Lezlie Kinyon, 2003.
8 Lezlie Kinyon, 2003.
9 Christopher Frayling, 1991, p. 6.
10 Lezlie Kinyon, 2003.
11 Lezlie Kinyon, 2003.
12 Jeffrey D. Hoeper, 2000.
13 Richard Switzer, 1955, pp. 108-9.
O retrato oval
(1842)
Edgar Allan Poe

O castelo, onde meu criado se atrevera a forçar a entrada para


não permitir que eu, em minha desesperada condição de ferido,
passasse a noite a céu aberto, era uma daquelas edificações em
que o desalento e a grandeza se amalgamavam e que, em meio
aos Apeninos,1 contemplavam, carrancudos, a passagem do
tempo, não menos na realidade do que na imaginação da sra.
Radcliffe.2 Tudo fazia crer que seu abandono era temporário e
bastante recente. Instalamo-nos num dos aposentos menores e
de mobília menos suntuosa, situado numa torre isolada. Apesar
de requintadas, as decorações eram gastas e antiquadas. As
paredes estavam revestidas com tapeçarias e adornadas com
inúmeros e multiformes brasões, além de um bom número de
inspiradas pinturas modernas, em molduras de belos arabescos
dourados. Por estas pinturas, que pendiam não só das paredes
principais, mas dos vários recantos que a bizarra arquitetura do
castelo tornava necessários, senti grande interesse, talvez em
virtude de um princípio de delírio. Assim, pedi a Pedro que
fechasse as pesadas venezianas do quarto — uma vez que a noite
já caíra —, acendesse o candelabro alto junto a minha cabeceira
e escancarasse as cortinas de veludo preto e franjado do dossel
que envolvia a cama. Com tais providências eu esperava que, se
não conseguisse dormir, ao menos pudesse contentar-me em
olhar as pinturas, alternando a contemplação com o manuseio
de um pequeno livro que encontrara sobre o travesseiro, e cujo
propósito era comentá-las e descrevê-las.
Li por um longo, longo tempo, e com grande devoção
contemplei os quadros. As horas voaram ligeiras, gloriosas, até
que a sombria meia-noite chegou. A posição do candelabro me
desagradava. Estendendo a mão com dificuldade, e tentando não
perturbar o criado que dormia, ajeitei-o de forma que a luz
incidisse em cheio sobre o livro.
A ação teve, porém, um efeito inesperado. Os raios das
inúmeras velas (pois havia muitas) agora recaíam sobre um
nicho do quarto que até então estivera encoberto pela sombra de
um dos balaústres da cama. Assim, notei, sob a luz vívida, uma
imagem que antes me passara despercebida. Era o retrato de
uma mulher jovem. Passei os olhos rapidamente pela pintura e
então cerrei-os. A princípio, a razão de assim proceder não ficou
aparente nem mesmo à minha própria percepção. Mas, enquanto
minhas pálpebras permaneceram fechadas, procurei na mente
as razões para ter agido dessa forma. Fora um movimento
impulsivo, uma tentativa de ganhar tempo para a reflexão — para
assegurar-me de que a visão não me enganara —, de acalmar e
dominar minha imaginação e permitir-me um olhar mais sóbrio,
mais preciso. Um instante depois, voltei a contemplar a pintura
com atenção.
De que, agora, eu podia vê-la do modo correto não havia mais
dúvida, pois o primeiro lampejo das velas sobre o quadro
pareceu dissipar o estupor sonolento que se havia apoderado de
meus sentidos, e lançou-me sem aviso de volta à vigília.
O retrato, como já disse, era de uma mulher jovem. Mostrava
apenas a cabeça e os ombros, representados na forma que recebe
o nome técnico de vinheta, num estilo que lembrava as obras de
Sully.3 Os braços, o colo e até as pontas dos cabelos radiantes se
fundiam de modo imperceptível com as sombras indistintas, mas
profundas que compunham o fundo do quadro. A moldura oval
exibia uma ornamentação elaborada, filigranada no estilo
mourisco. Como objeto de arte, nada seria mais admirável que a
pintura em si. Mas não poderia ter sido a execução da obra, ou a
beleza imortal do rosto, o que me tocara de modo tão súbito e
veemente. Menos ainda poderia ser que minha imaginação,
arrancada do torpor, houvesse confundido o retrato com uma
pessoa viva. No ato, dei-me conta de que as particularidades da
composição, da representação e da moldura haviam dissipado de
imediato tal ideia, e teriam impossibilitado considerá-la mesmo
que por um instante. Refletindo atentamente sobre esses pontos,
permaneci por talvez uma hora, meio sentado, meio reclinado,
com o olhar fixo no retrato. Ao final, satisfeito com o real segredo
de seu efeito, recostei-me na cama. Encontrara o feitiço da
pintura numa absoluta verossimilhança de expressão, a qual de
início surpreendeu-me para então desconcertar-me, dominar-
me e, por fim, deixar-me estarrecido. Com um medo profundo e
respeitoso, reconduzi o candelabro a sua posição anterior. Agora
que a causa de minha profunda agitação estava fora de vista,
apanhei ansioso o livro que comentava as pinturas e sua história.
Buscando o número que designava o retrato oval, li estas
palavras vagas e surpreendentes:
“Era uma donzela de rara beleza, tão encantadora quanto
cheia de alegria. E amaldiçoada foi a hora em que viu, amou e
desposou o pintor. Ele, passional, estudioso, austero, tendo já na
Arte sua prometida. Ela, uma donzela de rara beleza, tão
encantadora como cheia de alegria; toda luz e sorrisos, travessa
como uma corça; amando e apreciando todas as coisas;
abominando tão somente sua rival, a Arte; temendo apenas a
paleta e os pincéis e outros instrumentos malfadados que a
privavam do semblante de seu amado. Assim, foi terrível para a
donzela ouvir o pintor expressando o desejo de retratar até
mesmo a jovem noiva. Era, porém, humilde e obediente, e por
muitas semanas sentou-se, dócil, na câmara escura da torre,
onde apenas a luz vinda do alto incidia sobre a tela pálida. Mas,
ele, o pintor, regozijava-se com seu trabalho, que prosseguia
hora após hora, dia após dia. E era um homem apaixonado,
intempestivo e calado, que se perdeu em delírios, a ponto de não
se permitir perceber que a luz tão lúgubre daquela torre solitária
drenava a saúde e o espírito da noiva, que definhava aos olhos de
todos, exceto aos dele. E, no entanto, ela sorria e continuava a
sorrir, sem protestos, por saber que o pintor (que tinha grande
renome) extraía dessa tarefa um prazer fervoroso e ardente, e
trabalhava dia e noite para retratar aquela que tanto o amava, e
que, porém, a cada dia mostrava-se mais abatida e debilitada.
Em verdade, houve quem visse o retrato e aos murmúrios
comentasse a semelhança, como um prodígio, uma prova tanto
do poder do pintor quanto de seu profundo amor por aquela que
retratava de forma tão extraordinária. Entretanto, quando o
trabalho estava quase concluído, ninguém mais era admitido na
torre, pois o pintor fora arrebatado pelo ardor de seu trabalho e
apenas raramente erguia os olhos da tela, mesmo que para fitar a
face da esposa. Ele se recusava a ver que os matizes que aplicava
na tela eram extraídos da mulher que tinha ao lado. Quando
várias semanas haviam passado, e pouco restava a fazer, salvo
uma pincelada sobre a boca e um toque sobre o olho, o espírito
da dama outra vez tremeluziu como a chama da lamparina. E a
pincelada foi aplicada e o toque colocado; e, por um momento, o
pintor permaneceu em transe diante da obra que criara. Mas, no
instante seguinte, enquanto ainda a admirava, ficou trêmulo e
empalideceu; e assombrado, e exclamando em alta voz: 'Isto é de
fato a própria Vida!', virou-se para olhar sua amada. Ela estava
morta.”

O escritor estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849) nasceu em


Boston, Massachusetts, e teve uma vida curta e turbulenta. Seus
pais morreram de tuberculose quando tinha dois anos de idade,
e ele foi adotado por um comerciante de quem incorporou o
nome Allan. Recebeu educação clássica, e em 1826 entrou para a
Universidade de Virgínia, de onde acabou expulso por participar
de jogatinas. Mais tarde foi expulso também da academia militar
de West Point, por faltar às aulas.
Passou a dedicar-se à literatura e foi para Nova York, à época
o maior centro literário dos Estados Unidos. Nos anos seguintes,
trabalhou em vários jornais, primeiro em Nova York, depois na
Filadélfia e de novo em Nova York. Também se tornou um
alcoólico, ao mesmo tempo que persistia na carreira literária.
Em 1836, casou-se com sua prima Virginia Clemm, então com
quatorze anos de idade. O casamento durou doze anos, marcados
pela precariedade econômica. A morte da esposa, em 1847, após
uma enfermidade de vários anos, afetou Poe profundamente,
fazendo com que bebesse cada vez mais.
À idade de quarenta anos, foi encontrado delirante nas ruas
de Baltimore, Maryland, e levado para um hospital, onde morreu
incapaz de contar o que lhe ocorrera. As causas da morte nunca
foram explicadas. Sua memória foi vilipendiada na biografia
escrita por seu agente literário, e os detalhes reais de sua vida
somente aos poucos foram sendo descobertos.
Poe foi um dos expoentes do movimento Romântico nos
Estados Unidos, destacando-se pela riqueza de imagens e pela
musicalidade. “O corvo” (1845) é seu poema mais conhecido.
Suas opiniões sobre teoria poética, apresentadas em A filosofia
da composição (1846), influenciaram Baudelaire (seu tradutor
para o francês), Mallarmé e Dostoiévski. Alcançou respeito como
crítico literário. Valorizou o conto, à época tido como uma arte
menor frente ao romance e à poesia épica, e seus esforços foram
fundamentais para que o gênero crescesse em importância nas
gerações seguintes.
É considerado um precursor de vários gêneros literários: “Os
crimes da rua Morgue” e “O mistério de Marie Roget” criaram as
bases das futuras histórias de detetives. Com “O relato de Arthur
Gordon Pym” influenciou a ficção científica, em especial Jules
Verne e, mais tarde, Ray Bradbury. Com a presença recorrente
de elementos como a morte, a decadência e a loucura, contos
como “A queda da casa de Usher”, “Berenice”, “A máscara da
morte vermelha” e “O gato preto” nortearam o desenvolvimento
dos contos de horror.
Poe nunca abordou o vampiro de modo explícito, embora
muitas de suas histórias tenham uma inspiração sutil, mas nítida
na essência do vampirismo.4 Um dos artifícios que usava de
modo brilhante para aumentar a tensão, sem apelar para
imagens violentas ou sanguinárias, era deixar subentendidas as
ideias usadas como base para o conto. Mesmo empregando
elementos associados ao vampiro (aparência física,
comportamento, conceitos, objetos), o fato de não os mencionar
abertamente acentua a inquietação do leitor, em razão da
incerteza quanto às causas dos fenômenos descritos. Outro
motivo para evitar a menção direta ao tema poderia ser o
desgaste sofrido pelo vampiro, graças aos excessos
rocambolescos do teatro francês na década de 1820 e à posterior
vulgarização na literatura de folhetim inglesa nas duas décadas
seguintes.
Reconhece-se a inspiração vampírica em vários contos: em
“Berenice” (1835), o narrador, a princípio debilitado, fortalece-se
à medida que sua prima debilita-se e morre, mas é ela quem por
fim assume características de vampira; em “Morella” (1835), uma
mulher drena a vontade de seu marido; já em “Ligeia” (1838), um
viúvo casa-se novamente e a segunda mulher definha e também
morre, mas o corpo dela volta à vida animado pelo espírito da
primeira; em “O homem da multidão” (1840), um homem só
consegue viver em meio a multidões, de cuja energia se alimenta.
Alguns estudiosos identificam vários elementos vampíricos até
mesmo em “A queda da casa de Usher”, uma das obras mais
famosas de Poe.5
Talvez o conto de Poe em que o tema esteja mais explícito seja
“O retrato oval”, no qual um artista transfere vampiricamente a
essência de sua esposa para o quadro que está pintando. Esse
conto foi publicado pela primeira vez em abril de 1842, na revista
Graham’s Magazine, numa versão mais longa intitulada “Life in
Death”. A versão definitiva, mais curta e rebatizada como “The
Oval Portrait”, saiu no periódico The Broadway Journal, em abril
de 1845. A principal alteração foi a supressão de um longo
prólogo, em que o narrador falava do ferimento sofrido e sua
decisão de tomar ópio para tentar diminuir a dor. Foram
cortados também pequenos trechos que insinuavam que era a
droga a causadora dos delírios descritos. As referências ao
alucinógeno pouco tinham a ver com o tema central do conto e só
diminuíam a eficiência da narrativa. Eliminando o supérfluo, Poe
aumentou a incerteza e a angústia que a leitura gera no leitor.
Ao situar a ação nos Apeninos, Poe segue uma tradição da
literatura gótica inglesa, que ambientava as histórias em
paisagens italianas, não só pela sua exuberância cênica, mas
porque, na época, as regiões mediterrâneas eram percebidas
pelos países do norte da Europa como decadentes e
obscurantistas. Decorre daí sua alusão a Ann Radcliffe, uma das
autoras mais emblemáticas do gótico literário.
A inspiração para o conto pode ter vindo de uma pintura de
Sully, amigo de Poe, que mostra uma menina segurando a
medalha que traz ao pescoço, ou talvez de um quadro em que o
italiano renascentista Tintoretto retrata sua filha morta. O
romance Os mistérios de Udolpho (1794), de Anne Radcliffe,
poderia ter sido outra fonte de inspiração.
É possível que “O retrato oval” tenha influenciado Oscar
Wilde ao escrever O retrato de Dorian Gray (1891). Anos antes de
publicar o romance, Wilde elogiou a expressão rítmica de Poe.
Na obra de Wilde, a pintura revela aos poucos a maldade de
quem está retratado.

1 Cadeia de montanhas que, com quase 1,5 mil quilômetros de extensão, atravessa a
Itália de norte a sul, da Ligúria à Calábria. [N. T.]
2 Ann Radcliffe (1764-1823), escritora inglesa, autora de romances góticos. [N. T.]
3 Thomas Sully (1783-1872), pintor estadunidense, de origem inglesa, conhecido por
sua obra como retratista. [N. T.]
4 J. O. Bailey, 1964, p. 448.
5 Num artigo minucioso, J. O. Bailey (1964) toma por base o texto de Montague
Summers e identifica sintomas de vampirização nos irmãos Usher, reconhecendo a
casa como vampírica. Sugere, ainda, que Poe tenha lido a introdução (por sinal, falsa)
do conto de Polidori.
A família do vurdalak
(1847)
Alexei Tolstói

O ano de 1815 reunira em Viena o que havia de mais distinto em


erudição europeia, os espíritos brilhantes da sociedade e as altas
autoridades diplomáticas. No entanto, o Congresso havia
terminado.1 Os emigrados monarquistas preparavam-se para
retornar em definitivo a seus castelos, os guerreiros russos para
rever seus lares abandonados e alguns poloneses descontentes
para levar a Cracóvia seu amor pela liberdade, onde o
abrigariam sob a égide da tríplice e dúbia independência
conseguida pelos príncipes de Metternich e de Hardenberg e
pelo conde de Nesselrode.2
Como no final de um baile animado, o grupo de amigos, pouco
antes tão ruidoso, viu-se reduzido a um punhado de pessoas que,
dispostas ao prazer e fascinadas pelo encanto das damas
austríacas, tardavam em fazer as malas e partir. Esse alegre
grupo, ao qual eu pertencia, reunia-se duas vezes por semana no
castelo da senhora viúva princesa de Schwarzenberg, a alguns
quilômetros da cidade, para além do pequeno burgo de Hitzing.
A gentileza da anfitriã, acentuada por sua amabilidade e fineza
de espírito, tornavam deveras agradável a estada em sua
residência.
Nossas manhãs eram consagradas aos passeios. Jantávamos
todos juntos, fosse no castelo, fosse nas redondezas, e à noite,
sentados junto a um aconchegante fogo de lareira, distraíamo-
nos conversando e contando histórias. A única proibição era
falar de política, pois já estávamos fartos do assunto. As
narrativas traziam lendas de nossos respectivos países ou nossas
próprias recordações.
Uma noite, quando cada um já contara algo, e nossos espíritos
se achavam naquele estado de tensão que a penumbra e a
quietude acentuam, o marquês de Urfé, velho emigrante que
todos apreciávamos pela alegria jovial e pelo modo saboroso
como narrava suas antigas boas venturas, aproveitou um
momento de silêncio e tomou a palavra:
— Suas histórias, senhores, sem dúvida são espantosas, mas
me parece que lhes falta um ponto essencial, a saber, a
autenticidade, pois não creio que algum dos senhores tenha visto
com os próprios olhos as coisas maravilhosas que acabam de
narrar, nem que possa afiançar a veracidade delas com sua
palavra de cavalheiro.
Fomos obrigados a concordar, e o velho continuou, alisando o
enfeite de renda ao pescoço:
— Quanto a mim, senhores, conheço apenas uma história
desse gênero, mas é ao mesmo tempo tão estranha, tão horrível e
tão verdadeira que é suficiente para encher de terror a
imaginação do mais cético. Dela fui tanto testemunha como ator,
infelizmente; e, ainda que não goste de recordá-la, ofereço-me
para contá-la, caso as damas o permitam.
O consentimento foi unânime. A bem da verdade, alguns
olhares temerosos se desviaram para os desenhos que a luz da
lua começava a formar no piso. Mas logo o pequeno grupo se
acomodou e todos se calaram para ouvir a história do marquês.
Ele tirou uma pitada de rapé, aspirou-a devagar e começou seu
relato.
Antes de mais nada, senhoras, peço-lhes perdão se, no
decorrer da narrativa, acontecer de falar mais sobre meus casos
amorosos do que conviria a um homem de minha idade. Mas a
compreensão da história exige que os mencione. Além disso, é
perdoável à velhice ter seus momentos de esquecimento, e será
de fato culpa das senhoras se, vendo-as tão belas diante de mim,
eu tiver a tentação de crer-me ainda jovem. Conto-lhes, pois, sem
mais preâmbulos, que em 1759 estava perdidamente apaixonado
pela bela duquesa de Gramont. Essa paixão, que eu acreditava
profunda e duradoura, não me dava descanso dia ou noite, e a
duquesa, como costumam fazer as belas jovens, comprazia-se em
aumentar meu tormento com sua coquetterie. Num arroubo de
enfado, solicitei e obtive um posto diplomático junto ao hospodar
da Moldávia,3 então em negociações com o gabinete de
Versalhes4 em assuntos que seriam tanto tediosos quanto inúteis
relatar.
À véspera de minha partida, fui ver a duquesa, que recebeu-
me com ar menos zombeteiro que de costume e disse, com certa
emoção na voz:
— Urfé, está cometendo uma grande loucura. Mas eu o
conheço e sei que jamais voltará atrás numa decisão. Assim,
peço uma única coisa: aceite este pequeno crucifixo como prova
de minha amizade e use-o até regressar. É uma relíquia de
família à qual damos grande valor.
Com uma galanteria talvez inapropriada para o momento,
beijei não a relíquia, mas a encantadora mão que me
presenteava, e coloquei ao redor do pescoço este crucifixo aqui,
que nunca mais tirei.
Não vou fatigá-las, senhoras, com detalhes de viagem ou
minhas observações sobre húngaros e sérvios, povos pobres e
ignorantes, mas corajosos e honestos que, subjugados como
estavam pelos turcos, não tinham esquecido sua dignidade nem
sua antiga independência. Basta dizer que, tendo aprendido um
pouco de polonês durante uma estada em Varsóvia, logo dominei
também o sérvio, pois, como certamente as senhoras sabem, os
dois idiomas não são mais do que ramos de uma mesma língua, o
eslavo, assim como o russo e o boêmio.
Sabia, portanto, o suficiente para me fazer compreender,
quando um dia cheguei a um vilarejo cujo nome pouco interessa.
Encontrei os moradores da casa onde me hospedaria num estado
de consternação que era ainda mais estranho pelo fato de ser
domingo, dia em que o povo sérvio tem por costume entregar-se
a diferentes prazeres, como a dança, o tiro de arcabuz, a luta e
outros. Atribuí a atitude de meus anfitriões a alguma infelicidade
recente, e já me retirava quando um homem de uns trinta anos,
alto e de imponente figura, aproximou-se de mim e me tomou
pela mão.
— Entre, entre, estrangeiro — disse ele. — Não se deixe abater
por nossa tristeza. Vai entendê-la quando souber a razão.
Contou-me então que seu pai, um velho chamado Gorcha, de
caráter irrequieto e intratável, um dia havia se levantado da
cama e tirado da parede o longo arcabuz turco.
— Filhos — dissera ele aos dois rapazes, Georges e Pierre —,
vou às montanhas juntar-me aos valentes que caçam esse cão
Alibek. — Era o nome de um bandido turco que, fazia algum
tempo, devastava o país. — Esperem-me por dez dias e, se não
voltar no décimo, rezem uma missa dos mortos por mim, pois
terei sido assassinado. Mas — continuara o velho Gorcha,
assumindo seu ar mais sério — se, Deus os livre, eu regressar
depois de dez dias completos, para o bem de todos, não me
deixem entrar. Nesse caso, ordeno que esqueçam que fui seu pai
e trespassem-me com uma estaca de álamo,5 diga o que eu disser
ou faça o que fizer, pois não serei mais que um maldito vurdalak
cujo propósito é sugar seu sangue.
É o caso de lhes explicar, senhoras, que os vurdalaks, ou
vampiros dos povos eslavos, não são, na opinião do país, nada
mais que corpos mortos saídos dos túmulos para sugar o sangue
dos vivos. Até aí seus hábitos são os mesmos de todos os
vampiros, mas há algo que os torna mais temíveis. Os vurdalaks,
senhoras, sugam de preferência o sangue dos parentes próximos
e dos amigos mais chegados, que uma vez mortos tornam-se
também vampiros, de forma que na Bósnia e na Hungria fala-se
de aldeias inteiras transformadas em vurdalaks. O padre
Augustin Calmet, em sua curiosa obra sobre aparições, cita casos
apavorantes. Os imperadores da Alemanha várias vezes
nomearam comissões para esclarecer casos de vampirismo.
Instituíam-se atas e exumavam-se cadáveres que, ao serem
degolados, revelavam-se repletos de sangue, e que eram
queimados em praça pública depois de ter o coração
trespassado. Magistrados que testemunharam tais execuções
afirmam ter escutado os cadáveres emitirem urros no momento
que o carrasco lhes cravava a estaca no peito. Fizeram
depoimentos formais, corroborados por seus juramentos e suas
assinaturas.
Depois deste esclarecimento, será fácil compreender,
senhoras, o efeito que as palavras do velho Gorcha produziram
em seus filhos. Os dois se atiraram aos pés dele e suplicaram que
os deixasse ir em seu lugar, mas ele respondeu dando-lhes as
costas e partiu cantando o refrão de uma velha balada. O dia de
minha chegada à aldeia era precisamente aquele em que
expiraria o prazo fixado por Gorcha, e não foi difícil entender a
inquietação de seus filhos.
Era uma família boa e honesta. Georges, o mais velho dos dois
filhos, de traços masculinos e bem-marcados, era um homem
sério e resoluto. Seu irmão Pierre, belo jovem de dezoito anos,
trazia na fisionomia mais doçura que arrojo e parecia o favorito
da irmã mais nova, de nome Sdenka, que bem passaria como
exemplo típico da beleza eslava. Fora a beleza incontestável sob
todos os pontos de vista, uma longínqua semelhança com a
duquesa de Gramont ­impressionou-me no ato. Havia, sobretudo,
um traço característico na fronte que em toda minha vida nunca
vi, a não ser nessas duas mulheres. Esse rasgo podia não agradar
à primeira vista, mas depois de visto algumas vezes tornava-se
irresistivelmente atraente.
Talvez por ser eu tão jovem, talvez por essa semelhança,
aliada a um espírito original e inocente, ter de fato um efeito
irresistível, não conversara com Sdenka por mais de dois
minutos e já sentia uma simpatia muito viva, que ameaçava se
tornar um sentimento mais terno caso prolongasse minha estada
no povoado.
Estávamos diante da casa, reunidos ao redor de uma mesa
farta de queijos e terrinas de leite. Sdenka fiava. Sua cunhada
preparava a ceia das crianças, que brincavam na areia. Pierre
tentava parecer despreocupado, assobiando enquanto limpava
um iatagã, uma longa faca turca. Georges, de cotovelos apoiados
na mesa, cabeça entre as mãos e rosto angustiado, devorava a
estrada com os olhos e nada dizia.
Quanto a mim, vencido pela tristeza geral, fitava melancólico
as nuvens que emolduravam o céu dourado do entardecer, e a
silhueta de um mosteiro meio escondida por trás de um pinheiral
sombrio.
Esse mosteiro, soube depois, em outros tempos gozara de
celebridade por conta de uma imagem milagrosa da Virgem que,
dizia a lenda, fora levada por anjos e depositada sobre um
carvalho. No começo do século passado, porém, os turcos haviam
invadido o país. Degolaram os monges e saquearam o mosteiro.
Dele só restavam as paredes e uma capela servida por uma
espécie de ermida, cujas ruínas eram visitadas por curiosos e
abrigavam os peregrinos, que, vagando de um lugar de devoção a
outro, apreciavam parar no mosteiro da Virgem do Carvalho.
Como disse, soube disso depois, uma vez que naquela noite tinha
de tudo na cabeça, menos arqueologia sérvia. Como costuma
acontecer quando soltamos as rédeas da imaginação, pensava
nos tempos passados, nos dias de minha infância, na bela França
que eu trocara por um país longínquo e selvagem. Pensava na
duquesa de Gramont e — por que não admitir? — pensava
também em algumas contemporâneas das senhoras suas avós,
cujas imagens desfilavam em meu coração seguindo a da
adorável duquesa. Logo esqueci meus anfitriões e a inquietação
deles.
De repente, Georges rompeu o silêncio.
— Mulher, a que horas o velho partiu?
— Às oito. Ouvi claramente o sino do mosteiro.
— Então está bem; ainda não deve ter passado das sete e meia.
— E calou-se, voltando a fixar os olhos no longo caminho que se
perdia na floresta.
Esqueci-me de dizer, senhoras, que, ao suspeitarem que
alguém seja vampiro, os sérvios evitam mencionar-lhe o nome ou
falar dele de modo direto, com receio de evocá-lo do túmulo.
Assim, já havia algum tempo que Georges, ao falar do pai, o
chamava de ‘o velho’.
Alguns instantes passaram-se em silêncio. De súbito, uma das
crianças perguntou a Sdenka, puxando-a pelo avental:
— Tia, quando é que o vovô volta para casa?
Um tapa de Georges foi a resposta à pergunta intempestiva. A
criança começou a chorar, e seu irmãozinho, com ar surpreso e
temeroso, disse:
— Papai, por que nos proíbe de falar no vovô?
Outro tapa o fez calar. As duas crianças agora choravam, e
toda a família se persignou. Foi quando o relógio do mosteiro
começou a bater as oito horas. Mal a primeira badalada ressoou
em nossos ouvidos, vimos um vulto humano sair do bosque e vir
em nossa direção.
— É ele! Deus seja louvado! — gritaram juntos Sdenka, Pierre
e sua cunhada.
— Deus nos proteja em Sua santa guarda! — disse Georges,
solene. — Como saber se os dez dias transcorreram de todo ou
não?
Todos olharam para ele, assustados. O vulto ainda se
aproximava. Era um velho corpulento, de bigode prateado; a
figura pálida e severa arrastava-se penosamente com ajuda de
um cajado. À medida que avançava, Georges se tornava mais
sombrio. O velho parou quando chegou até nós, e seus olhos
emaciados e afundados nas órbitas correram pela família,
parecendo nada enxergarem.
— Então — disse com voz oca —, ninguém se levanta para me
receber? Que significa este silêncio? Não veem que estou ferido?
Percebi então que o velho sangrava no flanco esquerdo.
— Ampare seu pai — disse eu a Georges —, e você, Sdenka,
traga-lhe algo revigorante, pois ele parece prestes a desmaiar!
— Meu pai — disse Georges, aproximando-se de Gorcha —,
mostre-me a ferida, entendo dessas coisas e sei como tratá-la...
Fez menção de abrir a casaca do velho, que o empurrou com
aspereza e cobriu o flanco com ambas as mãos.
— Saia, desastrado, você me machucou!
— Então o ferimento é no coração! — gritou Georges, muito
pálido. —Vamos, vamos, tire a casaca, é preciso, é preciso, eu
estou dizendo!
O velho aprumou-se, rígido.
— Cuidado — disse com voz abafada. — Se me tocar, vou
amaldiçoá-lo!
Pierre colocou-se entre Georges e o pai.
— Deixe-o, bem se vê que ele está sofrendo!
— Não o contrarie — emendou sua mulher. — Sabe que ele
nunca tolerou isso!
Nesse momento, avistamos um rebanho de ovelhas que
voltava do pasto, seguindo para a casa em meio a uma nuvem de
pó. Ainda longe, o cão pastor que o acompanhava parou ao
perceber Gorcha e, por não reconhecer o velho dono ou por
outro motivo qualquer, eriçou os pelos e começou a uivar como
se tivesse visto algo sobrenatural.
— Que tem esse cão? — perguntou o velho, com ar cada vez
mais irritado. — Que significa isso? Por acaso me tornei um
estranho em minha própria casa? Dez dias passados na
montanha transformaram-me a ponto de meus próprios cães não
me reconhecerem?
— Você ouviu? — disse Georges à mulher.
— O quê?
— Ele admite que transcorreram os dez dias!
— Não, pois ele voltou dentro do prazo estabelecido!
— Muito bem, muito bem, eu sei o que é preciso fazer.
O cão continuava a uivar.
— Quero que o matem! — gritou Gorcha. — Vocês me
ouviram?
Georges não se moveu, mas Pierre levantou-se e, com
lágrimas nos olhos, pegou o arcabuz do pai e atirou no animal,
que rolou na poeira.
— Era meu cão favorito — murmurou ele. — Não entendo por
que nosso pai quis que ele fosse morto.
— Porque ele merecia — disse Gorcha. — Vamos, sinto frio,
quero entrar!
Enquanto esta cena se passava do lado de fora, Sdenka
preparara para o velho uma tisana de aguardente fervida com
peras, mel e passas secas, mas o pai rechaçou-a, enojado.
Demonstrou igual aversão pelo prato de arroz com carneiro
oferecido por Georges, e foi sentar-se num canto da lareira,
murmurando entredentes palavras ininteligíveis.
A lenha de pinheiro ardia na lareira e a luz tremulante
animava a figura do velho, tão pálido e abatido que, não fosse a
iluminação, poderia ser tomado por um morto. Sdenka sentou-se
ao lado dele.
— Meu pai, o senhor não deseja comer nem repousar. Não
gostaria de nos contar suas aventuras nas montanhas?
Ao dizer isso, a jovem sabia que estava tocando num ponto
fraco, pois o velho adorava falar de guerras e combates. Assim,
uma espécie de sorriso apareceu nos lábios desbotados, sem
chegar aos olhos, e ele respondeu, acariciando os belos cabelos
louros dela:
— Sim, minha filha, sim, Sdenka, quero muito contar o que
aconteceu nas montanhas, mas deixarei para outra hora, pois
estou cansado. Direi, no entanto, que Alibek já não vive, e que foi
por minha mão que pereceu. Se alguém duvida — continuou,
correndo o olhar por toda a família —, eis a prova!
Ele desatou uma espécie de alforje que trazia às costas, e de
dentro tirou uma cabeça lívida e ensanguentada, à qual, porém,
a sua não ficava devendo nada em palidez. Desviamos os olhos,
horrorizados, mas Gorcha entregou a cabeça a Pierre e disse:
— Tome, pregue acima da porta, e todos os passantes saberão
que Alibek foi morto e que os caminhos estão livres dos
bandidos, a não ser pelos janízaros do sultão!
Pierre obedeceu, desgostoso.
— Agora entendo — disse ele. — O pobre cão que matei só
uivava por ter farejado carne morta!
— Sim, farejou carne morta — respondeu com ar sombrio
Georges, que tinha saído sem que ninguém percebesse e que
nesse momento retornava, trazendo um objeto que depositou
num canto e que me pareceu ser uma estaca.
— Georges — disse sua mulher, a meia-voz —, espero que não
pretenda...
— Meu irmão — acrescentou a irmã —, que está pretendendo
fazer? Mas não, não, você não faria nada, não é?
— Deixe-me — respondeu Georges. — Sei o que é necessário
fazer e não farei nada além disso.
Enquanto isso, a lua havia surgido, e a família retirou-se para
passar a noite em um cômodo da casa que apenas uma divisória
muito fina separava de meu quarto. Confesso que o que
testemunhara naquela noite havia-me impressionado a
imaginação. Minha luz tinha se apagado. A lua entrava por uma
janela baixa, junto à cama, e banhava o chão e as paredes com
um luar cristalino, quase igual ao que brilha agora, senhoras,
nesta sala onde estamos. Queria dormir e não conseguia.
Atribuía a insônia à claridade do luar. Procurei algo para usar
como cortina, mas nada achei. Então, ouvindo vozes confusas
por trás da divisória, prestei atenção.
— Deite-se, mulher — dizia Georges. — E vocês, Pierre e
Sdenka, não se preocupem; eu velarei por vocês.
— Mas, Georges — respondeu a mulher —, eu é que deveria
ficar de vigília. Você trabalhou a noite passada, deve estar
cansado. Além do mais, devo cuidar de nosso primogênito. Você
sabe que desde ontem ele não está bem!
— Fique tranquila e durma, velarei por nós dois!
— Mas, meu irmão — disse Sdenka, com sua voz mais doce —,
a vigília não me parece necessária. Nosso pai já dormiu, e veja
como está tranquilo e sossegado.
— Nenhuma das duas me entendeu — disse Georges, num tom
que não admitia réplica. — Estou ordenando que durmam e
deixem que eu as proteja.
Fez-se assim um profundo silêncio. Logo senti as pálpebras
pesarem e o sono tomou conta de mim.
Acreditei ver minha porta se abrir devagar e o velho Gorcha
aparecer na soleira. Adivinhei sua forma mais do que a vi, pois o
quarto estava muito escuro. Pareceu-me que seus olhos apagados
tentavam adivinhar meus pensamentos e seguiam o movimento
de minha respiração. Avançou um pé, depois outro. Então, com
extrema precaução, pôs-se a andar em minha direção com
passos de lobo. De um salto parou ao lado da cama. Minha
angústia era indescritível, mas uma força invisível me mantinha
imóvel. O velho se debruçou sobre mim e aproximou tanto o
rosto lívido do meu, que pensei ter sentido seu hálito cadavérico.
Então, fiz um esforço sobre-humano e despertei, banhado em
suor. Não havia ninguém no quarto, mas, ao olhar pela janela, vi
distintamente o velho Gorcha do lado de fora, o rosto colado no
vidro e os olhos apavorantes fixos em mim. Tive a força de não
gritar e a presença de espírito de continuar deitado, como se não
tivesse visto nada. Entretanto, o velho parecia querer apenas se
assegurar de que eu dormia, pois não fez qualquer tentativa de
entrar. Depois de me examinar bem, afastou-se da janela, e
escutei-o entrar no aposento ao lado. Georges caíra no sono e
roncava de fazer tremer as paredes. A criança tossiu nesse
momento, e reconheci a voz de Gorcha.
— Não está dormindo, pequeno? — disse.
— Não, vovô, e queria muito conversar com o senhor!
— Ah, queria conversar comigo. E sobre o que
conversaríamos?
— Queria que me contasse como combateu os turcos, porque
eu também lutaria contra eles de boa vontade!
— Pensei nisso, criança, e trouxe um pequeno iatagã que lhe
darei amanhã.
— Ah, vovô, me dê agora, já que estou acordado.
— Mas, pequeno, por que você não falou comigo quando era
dia?
— Porque papai me proibiu!
— Ele é prudente, seu papai. Então, gostaria de ver seu
pequeno iatagã?
— Sim, gostaria muito, mas não aqui, porque papai pode
acordar!
— Onde, então?
— Se sairmos, prometo portar-me bem e não fazer barulho!
Pensei distinguir um riso de escárnio de Gorcha e ouvi o
garoto levantar-se. Eu não acreditava em vampiros, mas o
pesadelo recente me deixara abalado. Não querendo ter de me
recriminar depois, ergui-me e golpeei a divisória. Seria
suficiente para acordar as sete pessoas adormecidas, mas nada
indicava que tivessem ouvido. Lancei-me à porta, mas estava
fechada por fora e os ferrolhos resistiram a meus esforços.
Enquanto tentava forçá-la, vi o velho passar diante da janela com
a criança nos braços.
— Acordem! Acordem! — gritei com todas as forças, e voltei a
socar a divisória. Georges foi o único que acordou.
— Onde está o velho? — perguntou ele.
— Rápido — gritei. — Ele acaba de levar seu filho!
Com um pontapé, Georges arrombou a porta, fechada por fora
como a minha, e correu na direção do bosque. Consegui por fim
despertar Pierre, sua cunhada e Sdenka. Reunimo-nos diante da
casa e, depois de alguns minutos, vimos Georges retornar com o
filho. Encontrara-o desmaiado no caminho, mas o garoto logo
voltou a si e não parecia pior que antes. Crivado de perguntas,
respondeu que o avô não lhe fizera mal algum. Tinham saído
para conversar mais à vontade, mas lá fora ele havia perdido os
sentidos, sem saber por quê. Quanto a Gorcha, tinha sumido.
Como se pode imaginar, passamos em claro o resto da noite.
No dia seguinte, soube que o Danúbio, que atravessava a
estrada principal a um quarto de légua da aldeia, começava a
arrastar grandes blocos de gelo, como sempre ocorre no fim do
outono e no início da primavera. A passagem estava interditada
por alguns dias, e eu não poderia nem pensar em partir. Além
disso, ainda que pudesse, a curiosidade ­retinha-me, junto com
outro atrativo mais forte. Quanto mais olhava Sdenka, mais me
sentia tentado a amá-la. Não sou daqueles, senhoras, que
acredita nas paixões súbitas e irresistíveis descritas nos
romances, mas penso que há casos em que o amor se desenvolve
mais depressa que o costumeiro. A beleza original de Sdenka; a
singular semelhança com a duquesa de Gramont, da qual eu
fugira em Paris para reencontrar aqui num traje pitoresco e
falando uma língua estranha e harmoniosa; o rasgo
característico no rosto pelo qual, na França, vinte vezes ter-me-
ia deixado matar — tudo isso, unido à peculiaridade da situação
e dos mistérios que me cercavam, deve ter contribuído para que
amadurecesse em mim um sentimento que, em outras
circunstâncias, seria vago e fugaz.
No decorrer do dia, ouvi Sdenka conversando com o irmão
mais novo.
— Que pensa de tudo isso? Você também suspeita de nosso
pai?
— Não ouso suspeitar dele — respondeu Pierre —, ainda mais
porque a criança disse que ele não lhe fez nenhum mal. Quanto
ao desaparecimento, você sabe que ele nunca prestou contas de
suas ausências.
— Eu sei, mas então precisamos salvá-lo, porque você conhece
Georges...
— Sim. Falar com ele será inútil, mas esconderemos a estaca e
ele não poderá buscar outra, pois deste lado das montanhas não
cresce um álamo sequer!
— Sim, vamos esconder a estaca, mas não contaremos às
crianças, pois poderiam dizer algo na frente de Georges!
— Tomaremos cuidado — disse Pierre, e se separaram.
A noite chegou sem que soubéssemos nada do velho Gorcha.
Como na véspera, eu estava em minha cama, a lua iluminando o
quarto. Quando o sono começou a turvar meus pensamentos,
senti, como por instinto, a aproximação dele. Abri os olhos e vi
seu rosto lívido colado contra o vidro.
Desta vez quis me levantar, mas foi impossível. Parecia que
meus membros estavam paralisados. Depois de me olhar por
algum tempo, o velho se afastou. Ouvi-o andar em volta da casa e
bater de leve na janela do quarto onde dormiam Georges e a
mulher. O menino se virou na cama e gemeu em seu sonho.
Passaram-se alguns momentos de silêncio, depois ouvi novas
batidas na janela. O menino gemeu de novo e então despertou.
— É o senhor, vovô? — perguntou a criança.
— Sou eu — respondeu uma voz abafada. — E trago seu
pequeno iatagã.
— Mas não posso sair, papai me proibiu!
— Não precisa sair. Só abra a janela e me dê um abraço!
O menino se levantou, e ouvi a janela abrir-se. Então,
reunindo toda minha energia, saltei da cama e apressei-me em
bater na divisória. Num minuto Georges estava de pé. Ouvi-o
xingar, sua mulher deu um grito, e logo toda a casa estava
reunida em torno do menino desfalecido. Gorcha desaparecera,
como na noite anterior. Com esforço conseguimos reviver o
menino, que estava muito fraco, respirando com dificuldade. O
pobrezinho ignorava a causa do desmaio. Sua mãe e Sdenka
atribuíram-na ao medo de ser surpreendido falando com o avô.
Eu nada disse. Quando o menino ficou mais calmo, todos se
deitaram, exceto Georges.
Ao amanhecer, ouvi-o acordar a mulher e falarem em voz
baixa. Sdenka juntou-se a eles e ouvi as duas mulheres
soluçando. O menino estava morto.
Passo em silêncio pelo desespero da família. Ninguém, porém,
atribuía a morte ao velho Gorcha. Ao menos, não abertamente.
Georges se calava, mas sua expressão sempre sombria tinha algo
de terrível.
Durante dois dias, o velho não apareceu. No terceiro, o
menino foi enterrado. Na noite seguinte, acreditei ouvir passos
em volta da casa e uma voz de velho chamando o irmãozinho do
defunto. Pareceu-me também ver o rosto de Gorcha colado a
minha janela, mas não sabia se era realidade ou efeito da
imaginação, pois naquela noite a lua estava encoberta. De todo
modo, achei ser meu dever contar a Georges. Ele perguntou à
criança, que respondeu ter de fato ouvido o chamado do avô e tê-
lo visto olhando pela janela. Com severidade, Georges instruiu o
filho a acordá-lo caso o velho aparecesse de novo.
Todas estas circunstâncias não impediram que minha ternura
por Sdenka crescesse ainda mais. Não era possível, durante o
dia, falar-lhe a sós. De noite, a ideia de uma partida iminente
feria-me o coração. O quarto de Sdenka estava separado do meu
por uma espécie de corredor que dava para a rua de um lado e
para o pátio do outro. Entrando no corredor, vi a porta de
Sdenka entreaberta.
Involuntariamente, parei. Um roçar de vestido que eu bem
conhecia fez meu coração bater forte. Depois, ouvi palavras
cantadas a meia-voz. Eram as palavras de despedida que um rei
sérvio, indo para a guerra, dirigia a sua amada.

Ó, meu jovem álamo, dizia o velho rei, parto para a guerra e


tu me esquecerás!
As árvores que crescem ao pé da montanha são esguias e
flexíveis, mas não se comparam a ti!
Os frutos da sorveira que o vento balança são vermelhos,
mas teus lábios são mais vermelhos!
E eu, eu sou como um velho carvalho já sem folhas, e
minha barba é mais branca que as espumas do Danúbio!
E tu me esquecerás, ó minha alma, e morrerei de
desgosto, porque o inimigo não ousará matar o velho rei!
E a bela respondeu: Juro permanecer fiel e não te
esquecer. Se falhar em meu juramento, que tu possas, depois
da morte, vir tomar meu sangue!
E o velho rei respondeu: Que assim seja!, e partiu para
a guerra. E logo a bela o esqueceu!

Sdenka parou, como se temesse terminar a balada. Não resisti


mais. Sua voz tão doce, tão expressiva, era a voz da duquesa de
Gramont... Sem refletir, empurrei a porta e entrei. Sdenka
acabava de tirar uma espécie de casaquinho que as mulheres de
seu país usam. Uma camisa bordada em ouro e seda vermelha,
presa na cintura pela saia quadriculada simples, compunha toda
sua roupa. As belas tranças louras estavam desfeitas, e a roupa
singela realçava seus atrativos. Ela não se irritou com minha
entrada brusca, mas pareceu confusa, corando levemente.
— Oh, por que veio? — perguntou ela. — E o que pensariam de
mim se nos surpreendessem?
— Sdenka, minha alma, fique tranquila; a nosso redor todos
dormem, e só o grilo na grama e o besouro em voo poderiam
escutar o que tenho a lhe dizer.
— Oh, meu amigo, saia, saia! Se meu irmão nos surpreender,
estou perdida!
— Sdenka, não sairei até que prometa sempre me amar, como
a bela prometeu ao rei da canção. Logo partirei, Sdenka, e quem
sabe quando nos veremos de novo? Sdenka, amo-a mais que
minha alma, mais que minha vida. Minha vida e meu sangue são
seus. Não me daria uma hora em troca disso?
— Muitas coisas podem acontecer em uma hora — disse
Sdenka, com ar pensativo, mas deixou a mão na minha. Então
continuou, com um tremor: — Não conhece meu irmão. Tenho o
pressentimento de que virá aqui.
— Acalme-se, minha Sdenka; seu irmão está cansado devido
às vigílias, adormeceu embalado pelo vento que brinca nas
árvores e o sono dele é pesado. A noite é longa, e não lhe peço
mais que uma hora! E depois, adeus, talvez para sempre!
— Não, não; para sempre, não! — disse ela com emoção, e
depois recuou, como que assustada com a própria voz.
— Oh, Sdenka! — exclamei. — Não tenho olhos a não ser para
você, não tenho ouvidos a não ser para você, não sou mais dono
de mim. Obedeço a uma força superior. Perdoe-me, Sdenka! — E,
como um louco, apertei-a contra meu peito.
— Você não é meu amigo — disse ela, desvencilhando-se, e foi
se refugiar no fundo do quarto.
Não sei o que lhe respondi, pois estava confuso com minha
audácia — não porque esta já não me houvesse valido em
circunstâncias semelhantes, mas porque, apesar de minha
paixão, não podia evitar um sentimento de respeito sincero pela
inocência de Sdenka.
No início, é verdade, eu tinha lançado algumas frases de
galanteio que não desagradavam às beldades de nossa época,
mas logo me envergonhei e deixei de fazê-lo, ao ver que a jovem
não compreendia, em sua simplicidade, o que as senhoras
adivinhavam por meias-palavras, como revelam seus sorrisos.
Lá estava eu diante dela, sem saber o que dizer, quando de
repente a vi estremecer e fitar aterrorizada a janela. Segui a
direção de seus olhos e vi distintamente a figura imóvel de
Gorcha observando-nos do lado de fora.
No mesmo momento, senti uma pesada mão cair sobre meu
ombro. Voltei-me. Era Georges.
— Que faz aqui? — perguntou-me.
Desconcertado pela brusca repreensão, apontei para o pai
dele, que olhava pela janela e que desapareceu assim que
Georges o viu.
— Ouvi o velho e vim advertir sua irmã — respondi.
Georges me olhou como se quisesse ler o fundo de minha
alma. Depois, pegou-me pelo braço, conduziu-me a meu quarto e
se foi, sem dizer uma palavra.
No dia seguinte, a família estava reunida diante da casa, em
volta de uma mesa repleta de leite e queijos.
— Onde está o menino? — perguntou Georges.
— No pátio — respondeu a mãe —, divertindo-se sozinho com
sua brincadeira preferida, que é imaginar que luta contra os
turcos.
Mal disse essas palavras quando, para nossa imensa surpresa,
vimos a figura imponente de Gorcha sair do bosque e vir devagar
em nossa direção. Ao chegar, ele se sentou à mesa, como fizera
no dia de minha chegada.
— Meu pai, seja bem-vindo — murmurou sua nora, em voz
quase inaudível.
— Seja bem-vindo, meu pai — repetiram Sdenka e Pierre, em
voz baixa.
— Meu pai — disse Georges com voz firme, mas mudando de
cor —, nós o esperávamos para fazer a prece!
O velho se voltou, franzindo as sobrancelhas.
— A prece, já! — repetiu Georges, e fez o sinal da cruz. — Ou
por São Jorge...
Sdenka e sua cunhada inclinaram-se na direção do velho e
suplicaram-lhe que fizesse a prece.
— Não, não, não — disse o velho. — Ele não tem direito de me
dar ordens e, se insistir, vou amaldiçoá-lo!
Georges levantou-se e correu para dentro da casa. Voltou em
seguida, com os olhos cheios de fúria.
— Onde está a estaca? — gritou ele. — Onde vocês esconderam
a estaca?
Sdenka e Pierre trocaram olhares.
— Cadáver! — disse Georges ao velho. — Que fez a meu
primogênito? Por que matou meu filho? Devolva-me a criança,
cadáver!
Ao falar, ficava mais e mais pálido; seus olhos, mais e mais
agitados.
O velho o fitou com olhar malévolo, sem se mover.
— A estaca, a estaca! — gritou Georges. — Que aquele que a
escondeu seja responsável pelos males que nos atingirem!
Nesse momento, ouvimos as risadas alegres do menino
sobrevivente, que chegou montado a cavalo sobre uma grande
estaca, emitindo com sua voz infantil o grito de guerra dos
sérvios ao atacar o inimigo.
Vendo a cena, o olhar de Georges flamejou. Tirou a estaca da
criança e se precipitou sobre o pai, que soltou um urro e correu
em direção ao bosque com uma velocidade tão pouco condizente
com sua idade que parecia sobrenatural.
Georges saiu em sua perseguição, e logo os perdemos de vista.
O sol se pusera quando Georges regressou, pálido como a
morte e com os cabelos em pé. Sentou-se perto do fogo e
acreditei ouvir seus dentes baterem. Ninguém ousou perguntar
nada. Chegando a hora costumeira de retirarem-se, pareceu
recobrar a energia e, chamando-me de lado, disse, de modo
muito natural:
— Meu caro hóspede, acabo de ver o rio e não há mais gelo. O
caminho está livre e nada impede a sua partida. É inútil
despedir-se de minha família — continuou ele, lançando um
olhar a Sdenka. — Todos lhe desejam, por meu intermédio, toda a
felicidade que se pode desejar neste mundo, e espero que guarde
uma boa lembrança de nós. Amanhã, ao amanhecer, encontrará
o cavalo selado e seu guia a postos para ­conduzi-lo. Adeus. De
vez em quando lembre-se de seu anfitrião e perdoe-o se sua
estada aqui não tiver sido tão livre de tribulações quanto ele
teria desejado.
O semblante sério de Georges tinha nesse momento uma
expressão quase cordial. Conduziu-me a meu quarto e me
apertou a mão uma última vez. Depois estremeceu, e seus dentes
bateram como se tremesse de frio.
Deixado só, nem sonhava em me deitar, como as senhoras
bem podem imaginar. Outras ideias me preocupavam. Já havia
amado várias vezes na vida. Já tivera acessos de ternura, de
despeito e de ciúmes, mas nunca, mesmo ao deixar a duquesa de
Gramont, havia sentido tristeza semelhante à que me destroçava
o coração naquele instante. Antes que o sol surgisse, eu vestira
meus trajes de viagem e pensei em tentar um último encontro
com Sdenka. Mas Georges me esperava no vestíbulo. Qualquer
possibilidade de voltar a vê-la foi-me negada.
Montei no cavalo e saí a galope. Prometi a mim que, voltando
de Iassi,6 passaria de novo por esta aldeia. Tal esperança, apesar
de longínqua, aos poucos afastou minhas preocupações. Já
pensava com satisfação no momento do retorno, e minha
imaginação traçava de antemão todos os detalhes, quando um
movimento brusco do cavalo quase me fez cair da sela. O animal
parou de repente, retesou-se sobre as patas dianteiras e emitiu
pelas narinas o som que avisa seus semelhantes da proximidade
do perigo. Olhei com atenção e vi, uma centena de passos à
frente, um lobo cavando a terra. O barulho que fiz o espantou, e,
metendo as esporas no flanco de meu cavalo, forcei-o a avançar.
No lugar de onde o lobo saíra, vi uma cova recente. Pareceu-me,
além disso, distinguir a ponta de uma estaca projetando-se
algumas polegadas acima da terra que o lobo acabava de revirar.
Mas não posso afirmar com certeza, porque passei bem depressa
pelo lugar.
Aqui, o marquês se calou, e aspirou uma dose de rapé.
— E então, foi tudo? — perguntaram as damas.
— Infelizmente, não! — respondeu ele. — O que ainda tenho
para lhes contar é para mim uma lembrança bem mais penosa, e
daria qualquer coisa para me livrar dela. — E seguiu com o
relato.
Os assuntos que me levaram a Iassi detiveram-me ali muito
mais tempo do que previra. Não os concluí antes de seis meses.
Que posso dizer sobre o que se passou nesse ínterim? É uma
verdade triste de admitir, mas não é menos verdade que há
poucos sentimentos duradouros cá neste mundo. O êxito de
minha negociação, o encorajamento que recebia do gabinete de
Versalhes, e a política, essa vilã que tanto nos aborreceu nestes
últimos tempos, não tardaram a enfraquecer em meu espírito a
recordação de Sdenka. Além disso, a mulher do hospodar, que
era muito bela e dominava com perfeição nosso idioma, desde
minha chegada deu-me a honra de escolher-me entre os
estrangeiros residentes em Iassi. Criado como fui nos princípios
da galanteria francesa, meu sangue gaulês se revoltaria com a
ideia de retribuir com ingratidão a amabilidade que me dedicava.
Assim, respondi com cortesia a seus convites e, para defender os
interesses e direitos da França, comecei por me identificar com
todos os do hospodar.
Chamado de volta a meu país, parti pela mesma estrada por
onde viera. Não pensava mais em Sdenka ou sua família quando,
uma noite, cavalgando pelos campos, ouvi um relógio soar oito
horas. O som não me pareceu desconhecido, e o guia informou
que vinha de um mosteiro não muito distante. Perguntei qual.
Era o da Virgem do Carvalho. Apressei o passo do cavalo e logo
batíamos à porta do mosteiro. O eremita veio atender e nos
conduziu ao alojamento dos viajantes, tão repleto de peregrinos
que perdi a vontade de pernoitar ali. Perguntei se encontraria
hospedagem na aldeia.
— Encontrará mais de uma — respondeu o eremita, com um
suspiro profundo. — Graças ao ímpio Gorcha, casas vazias não
faltam!
— Como? — perguntei. — O velho Gorcha ainda vive?
— Oh, não; ele foi enterrado, e muito bem, com uma estaca no
coração! Mas havia tomado o sangue do filho de Georges. Uma
noite, o menino apareceu à porta chorando, dizendo que sentia
frio e queria entrar. A tola da mãe não teve coragem de mandá-lo
de volta ao cemitério, ainda que ela mesma o tivesse enterrado, e
abriu a porta. Ele a atacou e sugou-a até a morte. Enterrada por
sua vez, voltou para sugar o sangue do filho mais novo, e depois
do marido, e depois do cunhado. Todos tiveram o mesmo destino.
— E Sdenka? — perguntei.
— Enlouqueceu de dor. Pobrezinha, nem fale dela!
A resposta nada animadora do eremita tirou-me a coragem de
repetir a pergunta.
— O vampirismo é contagioso — continuou ele, persignando-
se. — Muitas famílias na aldeia foram atacadas e muitas
morreram inteiras. Se quer um conselho, passe a noite no
mosteiro. Na aldeia, mesmo que não seja atacado pelos
vurdalaks, o medo que lhes causarão será suficiente para
branquear seus cabelos antes que eu faça soar os sinos matinais.
Sou apenas um religioso pobre, mas a generosidade dos viajantes
me permite acolhê-los bem. Tenho queijos deliciosos, passas
secas cuja visão lhe trará água à boca e algumas garrafas de
vinho de Tokay, que nada fica devendo ao que é servido à Sua
Santidade, o Patriarca!
Nesse momento, pareceu-me que o eremita virava taverneiro.
Supus que contara aquelas histórias para me dar a chance de
agradar a Deus e imitar a “generosidade dos viajantes que lhe
permitia acolhê-los bem”. Além disso, a palavra medo sempre
teve sobre mim o mesmo efeito de um clarim sobre um corcel de
guerra. Ficaria envergonhado se não partisse de imediato.
Tremendo, o guia pediu permissão para ficar, e concedi-a de bom
grado.
Demorei meia hora para chegar à aldeia. Estava deserta. Luz
alguma iluminava as janelas, canção alguma se ouvia. Passei em
silêncio diante das casas, reconhecendo a maioria, até chegar à
de Georges. Por recordação sentimental ou por temeridade
juvenil, decidi passar a noite lá. Apeei do cavalo e bati ao portão.
Ninguém respondeu. Empurrei a porta, que se abriu rangendo
nas dobradiças, e entrei no pátio. Amarrei o cavalo todo arreado
num galpão, onde encontrei aveia suficiente para alimentá-lo, e
avancei resoluto até a casa.
Nenhuma porta estava fechada, mas todos os aposentos
estavam vazios. O quarto de Sdenka parecia ter sido abandonado
na véspera. Ainda havia algumas roupas sobre a cama. Sobre
uma mesa, algumas joias que ganhara de mim brilharam ao luar,
entre elas um pequeno crucifixo esmaltado que eu havia
comprado ao passar por Peste.7 Não pude evitar um aperto no
coração, ainda que meu amor tivesse terminado. Envolvi o corpo
com o casaco e acomodei-me na cama. Logo o sono me dominou.
Não lembro detalhes, mas sei que em sonhos revi Sdenka, bela,
inocente e amorosa como no passado. Ao vê-la, recriminei-me
por ser egoísta e inconstante. Perguntei-me como pudera
abandonar e esquecer a pobre menina que me amava. Depois, a
imagem dela se fundiu com a da duquesa de Gramont, formando
uma única pessoa. Joguei-me aos pés de Sdenka e implorei
perdão. Todo o meu ser, toda a minha alma, confundiram-se num
inefável sentimento de melancolia e felicidade.
Assim sonhava quando um som harmonioso, como o sussurro
de uma brisa ligeira agitando um campo de trigo, trouxe-me à
beira do despertar. Pensei ouvir as espigas balançando
melodiosamente e o canto dos pássaros entremeado ao rolar de
uma cascata e ao murmúrio das árvores. Depois me pareceu que
todos esses sons confusos eram apenas o roçar de um vestido de
mulher, e fixei-me nessa ideia. Abri os olhos e vi Sdenka a meu
lado. Sob o brilho intenso da lua, distingui os menores detalhes
dos traços adoráveis que em outra época me haviam sido tão
caros, e cujo valor o sonho recente me fizera redescobrir.
Pareceu-me mais bela e mais madura. Usava as mesmas roupas
simples com que a vira da última vez, sozinha — a camisa
bordada em ouro e seda, a saia atada ao redor da cintura.
É
— Sdenka! — disse, sentando-me na cama. — É mesmo você,
Sdenka?
— Sim, sou eu — respondeu, com voz doce e triste. — Sou sua
Sdenka, que você esqueceu. Ah, por que não voltou antes? Agora
tudo está terminado; é preciso que você parta. Um momento
mais e estará perdido! Adeus, meu amigo, adeus para sempre!
— Sdenka, contaram-me as muitas desgraças que sofreu!
Venha, vamos conversar. Isso a confortará!
— Oh, meu amigo, não deve acreditar em tudo o que dizem de
nós. Mas vá embora, vá bem rápido, pois se ficar estará perdido.
— Mas Sdenka, qual o perigo que me ameaça? Não pode me
dar uma hora, apenas uma hora, para que possamos conversar?
Sdenka estremeceu, e uma estranha mudança lhe sobreveio.
— Sim, uma hora — disse ela. — Uma hora, não é? Como
quando eu cantava a balada do velho rei e você entrou neste
quarto? É o que quer dizer? Mas, não — ela se contradisse —,
parta agora, vá! Parta bem rápido, peço-lhe; fuja, fuja para o
mais longe que puder!
Uma energia selvagem animava seus traços. Não compreendi
o motivo pelo qual ela falava daquele modo, mas estava tão
bonita que resolvi ficar, apesar de tudo. Cedendo, por fim, a
meus pedidos, sentou-se junto a mim, falou dos tempos passados
e confessou, corando, que me amara desde o dia em que cheguei.
Entretanto, pouco a pouco, notei nela uma grande mudança. Sua
reserva de outros tempos dera lugar a uma estranha
desenvoltura. O olhar, antes acanhado, tinha agora certa dureza.
Percebi, surpreso, que o modo como agia estava longe da timidez
que a caracterizara antes.
Seria possível, perguntei-me, que Sdenka nunca tivesse sido a
jovem pura e inocente que antes parecera ser? Teria assumido
aquele comportamento apenas por medo do irmão? Teria eu sido
ludibriado por sua falsa virtude? Mas por que, então, insistia
para que eu partisse? Seria talvez um refinamento de
coquetterie? E eu que acreditava conhecê-la! Mas não importava!
Se Sdenka não era uma Diana como eu pensara, podia muito
bem compará-la a uma outra divindade, não menos adorável e —
louvado seja Deus! — prefiro o papel de Adonis ao de Actéon!8
Se essa frase clássica que disse a mim mesmo lhes parece fora
de moda, senhoras, por favor, recordem que o que tenho a honra
de lhes contar passou-se no ano da graça de 1758. A mitologia
estava em voga, e quero situar as coisas no devido contexto.
Houve muitas mudanças desde então, e não faz tanto tempo que
a Revolução, destruindo ao mesmo tempo as lembranças do
paganismo e a religião cristã, colocou a deusa Razão em seu
lugar. Essa deusa, senhoras, jamais foi minha padroeira quando
me encontrava na companhia das damas e, na época de que falo,
estava menos disposto do que nunca a lhe dedicar sacrifícios.
Abandonei-me sem reservas à atração que sentia por Sdenka e
fui ao encontro de suas provocações. Já tínhamos passado certo
tempo em doce intimidade quando, divertindo-me em enfeitar
Sdenka com todas as joias, quis pendurar-lhe ao pescoço a
pequena cruz esmaltada que encontrara sobre a mesa. Quando
tentei fazê-lo, Sdenka recuou, estremecendo.
— Chega de infantilidades, meu querido — disse ela. — Deixe
dessas bobagens e vamos falar de você e de seus planos!
Sua inquietação me fez pensar. Examinando-a com atenção,
notei que não mais trazia ao pescoço, como antes, a coleção de
pequenas imagens, relicários e amuletos com incenso que os
sérvios costumam usar da infância à morte e dos quais nunca se
despem.
— Sdenka, onde estão as imagens que você costumava levar no
pescoço?
— Eu as perdi — respondeu ela, com impaciência, e
rapidamente mudou de assunto.
Por algum motivo, um pressentimento se apossou de mim.
Tentei partir e Sdenka me deteve.
— Como? Você pediu uma hora e já quer partir depois de
alguns minutos! — argumentou ela.
— Sdenka, tinha razão em me pedir para partir. Creio ouvir
ruídos e temo que nos surpreendam!
— Fique tranquilo, meu querido; a nosso redor tudo dorme, e
só o grilo na grama e o besouro em voo poderiam escutar o que
tenho a dizer-lhe!
— Não, não, Sdenka, preciso ir embora!
— Pare, pare — disse Sdenka. — Amo-o mais que minha alma,
mais que minha vida; você me disse que sua vida e seu sangue
eram meus!
— Mas seu irmão, seu irmão, Sdenka, tenho o pressentimento
de que virá aqui!
— Acalme-se, minha alma; meu irmão adormeceu embalado
pelo vento que brinca nas árvores, e seu sono é pesado. A noite é
longa, e não lhe peço mais que uma hora!
Ao dizer isso, Sdenka estava tão bela que o vago terror que me
agitava começou a ceder ao desejo de ficar a seu lado. Uma
mistura de temor e de volúpia, impossível de descrever,
preenchia meu ser. À medida que eu fraquejava, Sdenka ficava
mais terna. Estava decidido a ceder e, ao mesmo tempo, prometi-
me ficar alerta; mas, como já disse, nunca fui muito sábio.
Quando Sdenka, notando minha resistência, propôs que
afastássemos o frio da noite com alguns copos de um vinho
encorpado, que disse ter ganhado do bom eremita, aceitei a
proposta com uma rapidez que a fez sorrir. O vinho produziu seu
efeito. Desde o segundo copo, a má impressão que tive com o
episódio do crucifixo e das imagens se desfez por completo.
Sdenka, em seus trajes desalinhados, com os belos cabelos em
meias-tranças e as joias iluminadas pela lua, parecia-me
irresistível. Não me contive mais e a tomei nos braços.
Então, senhoras, deu-se uma dessas misteriosas revelações
que jamais terão explicação, e nas quais a experiência me forçou
a crer, embora até então eu não estivesse inclinado a admiti-las.
A força com que tomei Sdenka nos braços fez com que uma
ponta da cruz que as senhoras viram há pouco, o presente de
despedida da duquesa de Gramont, me espetasse o peito. Senti
uma dor aguda, como um raio de luz atravessando todo o corpo.
Olhei Sdenka e vi que seu rosto, embora ainda belo, estava
contraído pela morte, que seus olhos não enxergavam e que seu
sorriso era uma convulsão de agonia estampada na face de um
cadáver. Ao mesmo tempo, senti no quarto o odor nauseabundo
que costuma emanar de sepulturas mal fechadas. A verdade
horrenda esmagou-me sob seu peso, e recordei tarde demais os
avisos do eremita. Entendi a posição precária em que me
encontrava e senti que tudo dependia de minha coragem e
sangue-frio. Dei as costas a Sdenka para ocultar o horror que
minha fisionomia devia estar expressando. Meu olhar recaiu na
janela, e vi o infame Gorcha, apoiado sobre uma estaca
ensanguentada e fitando-me com olhos de hiena. A outra janela
estava ocupada pela face pálida de Georges que, nesse momento,
exibia uma semelhança assustadora com o pai. Os dois vigiavam
meus movimentos, e eu não tinha dúvidas de que se lançariam
sobre mim caso tentasse fugir. Assim, não demonstrei tê-los
percebido e, com um esforço violento, continuei, senhoras, sim,
continuei a dedicar a Sdenka os mesmos carinhos que me
deleitavam antes da descoberta terrível. Nesse meio-tempo,
buscava com angústia um modo de escapar. Percebi que Gorcha
e Georges trocavam olhares de cumplicidade com Sdenka, já
ficando impacientes. Também ouvi lá fora uma voz de mulher e
gritos de crianças, tão pavorosos que poderiam ser tomados por
urros de gatos selvagens.
Chegou a hora de partir, disse a mim mesmo, e quanto antes
melhor!
Então, disse a Sdenka, em voz alta para ser ouvido por seus
horríveis parentes:
— Estou muito cansado, minha menina. Gostaria de deitar-me
e dormir umas horas, mas antes preciso ver se meu cavalo
comeu sua forragem. Peço-lhe que não se vá e que aguarde meu
retorno.
Beijei seus lábios frios e descorados e saí. Encontrei meu
cavalo coberto de suor e debatendo-se inquieto. Não tocara a
aveia, mas o relincho que deu ao me ver arrepiou-me, pois temi
que traísse minhas intenções. Entretanto, os vampiros
provavelmente haviam ouvido minha conversa com Sdenka e não
pensaram em dar o alarme. Assegurei-me de que o portão estava
aberto e, lançando-me sobre a sela, enfiei as esporas nos flancos
do cavalo e partimos em disparada.
Tive tempo de perceber, ao passar pela porta, que havia uma
multidão numerosa reunida em torno da casa, quase todos com
os rostos colados contra os vidros. Creio que minha saída
repentina os desorientou de início, porque por algum tempo não
ouvi, no silêncio da noite, nada além do galope rítmico de meu
cavalo. Quando acreditei que já podia felicitar-me pelo
estratagema, de repente ouvi detrás de mim um barulho que
lembrava uma tempestade ressoando nas montanhas. Mil vozes
confusas gritavam, uivavam e pareciam brigar entre si. Depois,
como que em consenso, todas se calaram, e ouvi um tropel
retumbante, como se um batalhão de soldados se aproximasse
em marcha acelerada.
Apressei meu cavalo, fustigando-lhe os flancos. Uma febre
ardente fazia pulsar minhas artérias e, enquanto me esgotava
num esforço supremo para manter a presença de espírito, ouvi
atrás de mim uma voz que gritava:
— Pare, pare, meu querido! Amo-o mais que minha alma,
amo-o mais que minha vida! Pare, pare, seu sangue me pertence!
De repente, um sopro gelado roçou minha orelha e senti
Sdenka saltar na garupa.
— Meu coração, minha alma! — dizia. — Não tenho olhos a
não ser para você, não tenho ouvidos a não ser para você, não
sou mais dona de mim. Obedeço a uma força superior. Perdoe-
me, meu querido, perdoe-me!
E, envolvendo-me com seus braços, tentava me puxar para
trás e morder minha garganta. Uma luta terrível se travou entre
nós. Por algum tempo me defendi como pude, até que, afinal,
consegui agarrá-la pela cintura com uma das mãos e pelas
tranças com a outra e, levantando-me nos estribos, atirei-a ao
chão.
Logo minhas forças me abandonaram e o delírio me dominou.
Mil imagens alucinantes perseguiam-me, com caretas terríveis.
Georges e seu irmão Pierre corriam a meu lado, tentando cortar-
me o caminho. Não conseguiram, e eu já ia comemorar quando,
voltando-me, vi o velho Gorcha que se apoiava em sua estaca
para dar saltos como os montanheses tiroleses quando
transpõem os abismos. Gorcha também ficou para trás. Então
sua nora, que puxava os filhos detrás de si, atirou-lhe um deles,
que ele recebeu na ponta da estaca. Servindo-se dela como
catapulta, lançou o menino sobre mim, com toda a sua força.
Desviei-me do projétil, mas, com o instinto de um verdadeiro
mastim, o pequeno monstro se agarrou ao pescoço de meu cavalo
e só com grande esforço consegui arrancá-lo. O outro menino foi
lançado da mesma forma, todavia caiu adiante do cavalo e foi
pisoteado. Não sei o que mais se passou, mas quando voltei a
mim já era dia claro e me vi deitado na estrada, ao lado de meu
cavalo moribundo.
Assim termina, senhoras, um namorico que deveria ter me
curado para sempre do desejo de buscar novidades. Os
contemporâneos de suas avós poderão dizer se me tornei mais
sábio depois disso.
Seja como for, ainda tremo ao pensar que, se tivesse
sucumbido aos meus inimigos, também teria sido transformado
em vampiro. Mas o Céu não permitiu que as coisas chegassem a
tanto e, longe de desejar o sangue das senhoras, nada mais peço,
velho como estou, além do privilégio de derramar meu sangue a
suas ordens!

O conde Alexei Constantinovitch Tolstói (1817-1875) foi um


diplomata, escritor e dramaturgo russo, nascido em São
Petersburgo. Descendente de uma família de nobres ucranianos,
era parente distante do afamado escritor Liev Tolstói. Passou a
maior parte da vida na corte de Moscou, onde ocupou vários
cargos. Tinha uma educação refinada, além de grande talento e
versatilidade. Na década de 1850, começou a escrever versos
satíricos, em especial sobre a burocracia governamental. Em
1861, desiludido com a corte, retirou-se da vida pública e voltou
para as terras da família, onde morreu em 1875, financeiramente
arruinado, de uma overdose de morfina.
Ao longo da vida, escreveu baladas, poesias, sátiras e contos
fantásticos. Sua principal contribuição à literatura russa foi a
trilogia de dramas históricos sobre os séculos 16 e 17: A morte de
Ivan, o Terrível (1866), Czar Féodor Ivanovich (1868) e Czar Bóris
(1870).
Na ficção fantástica, foi influenciado por Goethe, que
conheceu em pessoa e cujo poema “A noiva de Corinto” traduziu
para o russo, e pelos contos de E. T. A. Hoffmann e Prosper
Mérimée.
O conto “La Famille du vourdalak” (“Sem’ya vurdalaka”, Семья
вурдалака) foi escrito sob o pseudônimo Krasnogorsky (derivado
do nome da propriedade da família Tolstói, Krasny Rog),
provavelmente em 1839. Ele veio a público pela primeira vez em
1847, na França,9 e não foi publicado na Rússia senão anos mais
tarde. Essa demora foi motivada pela animosidade e sarcasmo
com que a imprensa de São Petersburgo recebera as primeiras
incursões de Tolstói no horror gótico. Na época em que escreveu
o conto, esse gênero era sua leitura preferida, mas não era do
gosto da elite intelectual russa. Mais ­tarde, recebeu
reconhecimento por sua habilidade em utilizar o folclore da
Rússia como base para a ficção, e foi considerado por Ivan
Turguêniev como um dos mestres do conto fantástico moderno.
Tolstói produziu ainda outro conto de vampiros: “Upyr” (1841).
A trama de “A família do vurdalak” faz lembrar todo o
processo de descoberta, pela elite cultural, do vampiro do
folclore rural centro-europeu e das “epidemias” vampíricas do
século 18. O europeu do oeste, culto e refinado, chega à aldeia
isolada e inculta, onde é alertado pelos camponeses quanto ao
perigo dos vampiros, ou vurdalaks. Inicialmente incrédulo, as
evidências acabam convencendo-o de que os mortos-vivos são
reais.
Tolstói introduziu na narrativa vários elementos folclóricos: a
volta do desmorto para sugar os parentes próximos; a
transmissão da condição vampírica às vítimas; a capacidade de
animais, como cães e cavalos, de perceber a presença do
vampiro; a estaca feita de uma madeira específica; a necessidade
de outras providências, além do estaqueamento, para matar em
definitivo o vampiro. Por outro lado, ele incluiu também aspectos
então consagrados na ficção vampírica. Um dos mais notáveis é a
questão da sedução e da sexualidade exacerbada dos vampiros,
presente já na poesia alemã do século anterior e incorporada por
Polidori. Outro aspecto é a aversão do vampiro aos símbolos
religiosos, que ganharia muito espaço, como elemento
moralizante e punitivo, a partir de Drácula, no final do século 19.
Em 1963, esse conto foi bem adaptado pelo diretor italiano
Mario Bava em um dos episódios de seu filme As três faces do
medo (I tre volti della paura, também chamado de Black Sabbath).
Num detalhe interessante, a obra traz a primeira e única
aparição do ator inglês Boris Karloff como vampiro. Outras
adaptações são A noite dos demônios (La notte dei diavioli), do
também italiano Giorgio Ferroni, que atualiza a história para a
época do filme (1972), situando-a em um país não identificado,
vizinho à Itália; e “La família Vourdalak”, episódio da série de TV
espanhola El Quinto Jinete, dirigido pelo diretor José Antonio
Páramo, em 1975, e passado na Sérvia do século 18.

1 O Congresso de Viena foi uma conferência entre as potências europeias, realizada


em 1814-1815 com o intuito de reorganizar o mapa político da Europa depois da queda
de Napoleão. As decisões foram tomadas pelos quatro grandes vencedores: Áustria,
Rússia, Grã-Bretanha e Prússia. [N. T.]
2 Estadistas que participaram do Congresso de Viena, representando seus países. O
príncipe de Metternich-Winneburg-Beilstein (1773-1859) era chanceler da Áustria, Karl
August Freiherr von Hardenberg (1750-1822) era o representante principal da Prússia
e o conde Karl Robert Nesselrode (1780-1862) era o chefe da delegação da Rússia. [N.
T.]
3 Título dos governantes da Moldávia, do século 15 até 1866. O termo, de origem eslava,
significa senhor. [N. T.]
4 Referência ao governo da França. A corte francesa estava sediada no palácio de
Versalhes, localizado na cidade de mesmo nome, hoje subúrbio de Paris. [N. T.]
5 Em várias regiões, madeiras específicas são usadas contra o vampiro (álamo,
espinheiro, sorveira, carvalho, entre outras), em geral por terem alguma conotação
religiosa. [N. T.]
6 Cidade da atual Romênia, à época capital da Moldávia. Em romeno, Iaşi. [N. T.]
7 Cidade situada na margem esquerda do rio Danúbio; uniu-se a Buda, na margem
direita, para constituir Budapeste, hoje capital da Hungria. [N. T.]
8 Na mitologia, Adonis era o favorito de Afrodite, a deusa do amor. Actéon foi
despedaçado por cães como castigo por ter visto Ártemis banhar-se nua. [N. T.]
9 Christopher Frayling, 1991, p. 253.
A dama pálida
(1849)
Alexandre Dumas, pai

1. OS MONTES CÁRPATOS

Sou polonesa nascida em Sandomir,1 ou seja, num país onde as


lendas se tornam objeto de devoção, onde cremos tanto em
nossas tradições familiares como nos Evangelhos ou talvez até
mais. Não há um de nossos castelos que não tenha seu espectro,
nenhuma de nossas cabanas que não tenha sua assombração
doméstica. Entre ricos e entre pobres, no castelo como na
cabana, tanto o princípio amigo como o princípio inimigo são
reconhecidos. Às vezes, ambos entram em atrito e combatem.
Então ouvem-se sons misteriosos nos corredores, rugidos
assustadores nas velhas torres, tremores pavorosos por trás das
muralhas, e foge-se tanto da cabana como do castelo.
Camponeses e nobres correm à igreja em busca da cruz bendita
ou de santas relíquias, únicas proteções contra os demônios que
os atormentam.
No entanto, dois outros princípios, mais terríveis e
obstinados, e ainda mais implacáveis, se fazem presentes: a
tirania e a liberdade. O ano de 1825 viu travar-se, entre a Rússia
e a Polônia, uma dessas batalhas que parecem exaurir o sangue
de um povo inteiro, como frequentemente se exaure todo o
sangue de uma família.
Meu pai e meus dois irmãos insurgiram-se contra o novo czar,
e haviam-se juntado às forças reunidas sob a bandeira da
independência polonesa, sempre abatida, sempre reerguida.
Um dia, soube que meu irmão mais moço havia sido morto.
Noutro, informaram-me que o mais velho estava ferido de morte.
Por fim, depois de ter ouvido durante um dia inteiro,
aterrorizada, o som dos canhões aproximando-se mais e mais, vi
chegar meu pai com uma centena de cavaleiros, tudo o que
restava dos três mil homens que comandara.
Veio encerrar-se em nosso castelo, com a intenção de ser
sepultado sob suas ruínas. Meu pai, que por si mesmo nada
receava, tremia por mim. De fato, restava-lhe apenas a morte,
pois tinha a certeza de que não sairia com vida das mãos do
inimigo. Quanto a mim, porém, esperavam-me a escravidão, a
desonra, a vergonha. Dentre os cem homens sobreviventes, meu
pai escolheu dez, chamou o intendente, deu-lhe todo o ouro e
joias que possuíamos e, lembrando-se de que, durante a segunda
divisão da Polônia, minha mãe, quase criança ainda, encontrara
um refúgio inviolável no mosteiro de Sahastru, em plenos
Cárpatos,2 ordenou-lhe que me conduzisse a esse mosteiro, que
certamente não seria menos hospitaleiro com a filha do que fora
com a mãe.
Apesar do grande amor que meu pai sentia por mim, as
despedidas não foram longas. Era muito provável que, no dia
seguinte, os russos já estivessem nas vizinhanças do castelo,
então não havia tempo a perder. Vesti às pressas um traje de
montaria, que costumava usar quando acompanhava meus
irmãos nas caçadas. Arrearam para mim o cavalo mais seguro de
toda a estrebaria e, depois de colocar as próprias pistolas, obra-
prima da indústria de Tula,3 na bolsa de minha sela, meu pai me
abraçou e deu a ordem de partida.
Naquela noite e no dia seguinte, cavalgamos vinte léguas,
seguindo as margens de um dos rios sem nome que deságuam no
Vístula. Essa primeira etapa acelerada colocou-nos fora do
alcance dos russos. Com os últimos raios do sol, vimos cintilar os
cumes nevados dos montes Cárpatos. Ao fim do segundo dia,
alcançamos a base deles, e na manhã do terceiro começamos a
percorrer um de seus desfiladeiros. Nossos montes Cárpatos não
se parecem com as montanhas civilizadas do ocidente deles.
Tudo o que a natureza tem de estranho e grandioso ali se
apresenta ao olhar em sua mais completa majestade. Os cumes
tempestuosos perdem-se nas nuvens, cobertos por neves eternas.
As imensas florestas de pinheiros debruçam-se sobre o espelho
polido de lagos que se assemelham a mares, lagos cujo cristal,
profundo como o azul do céu, jamais foi navegado por um bote
ou perturbado pela rede de um pescador. A voz humana ressoa
ali a cada tanto, entoando uma canção moldava respondida pelos
gritos dos animais selvagens. Canção e gritos despertarão algum
eco solitário, surpreso por um rumor qualquer que o fez
descobrir a própria existência. Por milhas viaja-se à sombra do
dossel de bosques repletos das maravilhas inesperadas que os
lugares solitários nos revelam a cada passo e que fazem nosso
espírito passar do assombro à admiração. Ali, a ameaça está por
toda parte, composta por mil perigos diferentes, mas não há
tempo de sentir medo, tão sublimes são esses perigos. Ora são as
cascatas improvisadas pela água do degelo que, saltando de
rocha em rocha, invadem de súbito o caminho estreito pelo qual
seguimos; ora são árvores que, minadas pelo tempo,
desprendem-se do solo e tombam com terrível ruído, parecido
com um tremor de terra; ora, por fim, são as tempestades cujas
nuvens nos envolvem e em meio às quais se vê o relâmpago
faiscar, afastar-se e contorcer-se como uma serpente de fogo.
E então, depois desses cumes alpestres e dessas florestas
primitivas, assim como antes existiam montanhas ­gigantes e
florestas sem limites, surgem estepes infindáveis, um verdadeiro
mar com ondas e tempestades, savanas áridas e onduladas onde
a vista se perde num horizonte sem fim. Já não é o terror que se
apodera do viajante, mas uma tristeza, uma melancolia vasta e
profunda que nada consegue distrair, pois o aspecto da região é,
até onde o olhar alcança, sempre o mesmo. Subimos e descemos
vinte vezes uma encosta sempre igual, buscando em vão algum
caminho. Vendo-nos assim tão perdidos em isolamento, no meio
de desertos, acreditamo-nos sozinhos no seio da natureza, e a
melancolia se torna desolação. De fato, o avanço parece tornar-
se uma tarefa inútil, que não levará a nenhum lugar. Não há
aldeias, castelos ou cabanas; não há sequer um vestígio de
habitação humana. Somente às vezes, como uma tristeza a mais
na paisagem já tão triste, surge um pequeno lago sem caniços ou
arbustos, adormecido no fundo de uma ravina como um outro
Mar Morto, barrando-nos o caminho com suas águas verdes, das
quais umas poucas aves aquáticas alçam voo, emitindo longos
gritos dissonantes. Depois de subir a próxima colina e descer em
outro vale, subimos a colina seguinte, e assim por diante até, por
fim, sairmos da região encrespada, que aos poucos se suaviza.
Uma vez fora dela, se rumarmos para o sul veremos a
paisagem recuperar sua grandiosidade, e surge uma cadeia de
montanhas muito altas, de formatos pitorescos e aspecto rico,
adornada de florestas e cortada por riachos. Com a sombra e a
água, a vida renasce na paisagem. Ouve-se o sino de uma
ermida. Vê-se uma caravana serpentear pelo flanco de uma
montanha. Afinal, aos últimos raios do sol distinguem-se, como
um bando de aves brancas apoiadas umas às outras, as casas de
uma aldeia, que parecem ter-se agrupado em defesa contra
algum ataque noturno — pois com a vida retorna o perigo, e já
não são, como nos primeiros montes que cruzamos, os bandos de
ursos e lobos que se devem temer, mas sim os bandos de
bandidos moldavos.
Enquanto isso, avançávamos. Dez dias de marcha
transcorreram sem incidentes. Já podíamos avistar o cume do
monte Pion, erguendo-se acima de toda essa família de gigantes.
Na vertente meridional situava-se o convento de Sahastru, meu
destino. Chegaríamos em três dias.
Estávamos em fins de julho. O dia tinha sido escaldante e, por
volta das quatro da tarde, começamos a respirar, com prazer
ímpar, o primeiro ar fresco do fim do dia. Depois de passar pelas
torres em ruínas de Niantzo, descíamos em direção a uma
planície que já se avistava entre as montanhas. Do ponto onde
estávamos, já era possível seguir com os olhos o curso do rio
Bistrita, de margens ornamentadas pelas grandes flores brancas
das campânulas. Contornávamos um precipício em cujo fundo
corria um rio que, naquele ponto, ainda não passava de um
riacho. No caminho estreito, duas montarias mal conseguiam
seguir emparelhadas. O guia nos precedia, montado de lado no
cavalo, cantando uma canção de modulações monótonas, cuja
letra eu acompanhava com interesse.
O cantor era também o poeta. Quanto à canção, apenas
aqueles homens das montanhas poderiam exprimir toda sua
tristeza selvagem e sua simplicidade sombria. Dizia:
Nos pântanos de Stavila,
Onde tanto sangue guerreiro correu,
Vê aquele cadáver?
Não é um filho da Ilíria.
É um salteador cheio de fúria
Que, traindo a doce Maria,
Exterminou, mentiu, incendiou.
Uma bala, pelo coração do bandido,
Passou como a tempestade,
Em sua garganta há um iatagã.
Mas há três dias, ó mistério,
Sob o pinheiro soturno e solitário,
Seu sangue cálido rega a terra,
Entristecendo o pálido Ovigan.
Seus olhos azuis para sempre brilharão.
Fujamos todos, infeliz daquele
Que ao cruzar o pântano perto dele passe,
É um vampiro! O lobo feroz
Do cadáver impuro se afasta,
E sobre a montanha de face nua
O fúnebre abutre para longe voa.
De repente, ouviu-se um estampido, como de uma arma de
fogo, e uma bala zuniu. A canção foi interrompida, e o guia, já
sem vida, rolou para o fundo do precipício, enquanto seu cavalo
estacava tremendo, esticando a cabeça inteligente em direção ao
abismo onde seu mestre desaparecera.
Ao mesmo tempo, um grande alarido soou, e vimos uns trinta
bandidos descerem pelas encostas da montanha. Estávamos
completamente cercados.
Os homens que me escoltavam eram velhos soldados
habituados à batalha e não se deixaram intimidar. Ainda que
colhidos de surpresa, pegaram as armas e revidaram. Eu mesma
dei o exemplo. Agarrei uma pistola e, sentindo a desvantagem de
nossa posição, gritei Avante! e esporeei meu cavalo, que avançou
rumo à planície.
Mas enfrentávamos montanheses que saltavam de uma rocha
para outra como verdadeiros demônios dos abismos, atirando
enquanto se moviam e mantendo sempre a nossos flancos as
posições conquistadas.
Além disso, nossa manobra tinha sido prevista. Num ponto
onde a montanha formava um platô e o caminho se alargava, um
jovem nos esperava diante de uma dezena de cavaleiros. Vendo-
nos, partiram a galope a nosso encontro, atacando-nos de frente,
enquanto nossos perseguidores desceram pelas encostas,
cortando a retirada e cercando-nos por todos os lados.
A situação era grave, mas desde a infância eu estava
habituada às cenas de guerra, e pude analisá-la sem perder
nenhum detalhe.
Todos os homens vestiam peles de carneiro e enormes
chapéus redondos coroados com flores naturais, como os dos
húngaros. Cada um deles estava armado com um longo fuzil
turco, que agitava após atirar, dando gritos selvagens, e na
cintura trazia um sabre curvo e um par de pistolas.
Quanto ao chefe, teria no máximo 22 anos. Tinha a tez pálida
e olhos pretos, e os cabelos caíam em cachos sobre as costas.
Vestia uma túnica moldava orlada com pele, presa à cintura por
uma faixa com listras de ouro e seda. Um sabre curvo brilhava
em sua mão, e quatro pistolas reluziam na cintura. Durante o
combate, emitia gritos roucos e inarticulados que pareciam não
pertencer a nenhuma língua humana, e que, no entanto,
exprimiam seus desejos, pois seus homens obedeciam a ele,
jogando-se de barriga no chão para evitar os tiros de nossos
soldados, levantando-se para revidar o fogo, derrubando os que
restavam de pé, abatendo os feridos e transformando o combate
numa carnificina.
Vi tombarem, um após o outro, dois terços de meus
defensores. Restavam quatro de pé, cerrando fileiras a meu
redor, sem pedir clemência por saberem que não a teriam, sem
desejarem mais que vender a vida o mais caro possível. Então, o
jovem chefe deu um grito mais expressivo que os outros,
apontando para nós com a ponta do sabre. Sem dúvida, era a
ordem para envolver-nos num círculo de fogo e ­fuzilar-nos todos
juntos, pois os longos mosquetes dos moldavos ­abaixaram-se em
um só movimento. Compreendi que nossa hora final chegara.
Elevei os olhos e as mãos aos céus, numa última prece, e esperei
a morte.
Nesse momento, vi um homem que, saltando de rocha em
rocha, parecia não descer, mas voar. Parou sobre uma pedra,
dominando toda a cena como uma estátua sobre um pedestal, e
estendeu a mão sobre o campo de batalha, dizendo apenas uma
palavra:
— Basta!
A esse comando, todos os olhos se elevaram, como que
obedecendo ao novo mestre. Um único bandido recolocou o fuzil
ao ombro e disparou.
Um de nossos homens soltou um grito. O projétil o atingira no
braço esquerdo. Ele se voltou de imediato para enfrentar o
homem que o ferira, mas, antes que seu cavalo avançasse quatro
passos, um clarão reluziu por sobre nós, e o bandido caiu no
chão, com a cabeça perfurada por uma bala.
Tantas emoções levaram-me ao limite de minhas forças, e
desmaiei.
Quando voltei a mim, estava deitada sobre a grama, com a
cabeça apoiada sobre os joelhos de um homem, de quem só via a
mão branca coberta de anéis que rodeava minha cintura. De pé
diante de mim, os braços cruzados com o sabre sobre um deles,
estava o chefe moldavo que liderara o ataque.
— Kostaki — disse aquele que me amparava, em francês, num
tom de autoridade —, ordene a seus homens que se retirem
imediatamente e deixe esta mulher sob meus cuidados.
— Irmão, irmão — respondeu o outro, que parecia mal
conseguir conter-se. — Irmão, cuidado para não abusar de minha
paciência. Deixei-lhe o castelo; portanto, deixe-me a floresta. No
castelo você é o senhor, mas aqui eu sou todo-poderoso. Aqui,
basta que eu diga uma palavra para fazê-lo obedecer a mim.
— Kostaki, sou o mais velho. Isso significa que sou o senhor
em todos os lugares, tanto na floresta como no castelo. Tenho
sangue Brankovan, assim como você, sangue real que tem por
natureza comandar, e eu comando.
— Você, Gregoriska, manda em seus criados, não em meus
soldados.
— Seus soldados são bandidos, Kostaki. Bandidos que farei
pendurar nas ameias do castelo se não me obedecerem agora
mesmo.
— Muito bem! Tente comandá-los, então!
Senti o homem retirar seu joelho e pousar minha cabeça
suavemente sobre uma pedra. Meu olhar ansioso o seguiu, e vi o
mesmo homem que, por assim dizer, havia caído do céu em meio
à batalha e que eu apenas entrevira antes de desmaiar, no
momento em que ele falara.
Era um rapaz de 24 anos, alto, com grandes olhos azuis onde
se liam uma determinação e uma firmeza peculiares. Os longos
cabelos louros, indicadores da raça eslava, caíam sobre os
ombros como os do Arcanjo Miguel, emoldurando uma face
jovem e fresca. Os lábios erguiam-se num sorriso desdenhoso,
deixando entrever uma fileira dupla de pérolas. Seu olhar era
aquele que combina a águia com o relâmpago. Estava vestido
com uma espécie de túnica de veludo preto. Um pequeno barrete
parecido ao de Rafael,4 enfeitado com uma pena de águia, cobria
sua cabeça. Vestia calças justas e botas bordadas. A cintura era
circundada por um cinto, suportando uma faca de caça. Portava
numa bandoleira uma carabina de dois tiros, cuja pontaria um
dos bandidos pudera comprovar.
Estendeu a mão, e essa mão estendida parecia comandar o
próprio irmão. Disse algo em língua moldava. Suas palavras
pareceram causar forte impressão entre os bandidos.
Em seguida, o jovem chefe respondeu na mesma língua, e
deduzi que as palavras estavam entremeadas com ameaças e
imprecações.
A esse longo e ardente discurso, porém, o mais velho dos
irmãos não respondeu. Os bandidos se inclinaram. A um gesto
seu, eles se colocaram detrás de nós.
— Muito bem! Que assim seja, Gregoriska — disse Kostaki,
voltando a falar em francês. — Esta mulher não irá para a
caverna, mas não deixará de ser minha. Acho-a bonita, eu a
conquistei e quero-a para mim.
Com essas palavras, lançou-se sobre mim e envolveu-me nos
braços.
— Esta mulher será conduzida ao castelo e levada até minha
mãe, e não a deixarei até chegarmos lá — respondeu meu
protetor.
— Meu cavalo! — gritou Kostaki em moldavo.
Dois bandidos se apressaram em obedecer, e levaram o cavalo
ao chefe. Gregoriska olhou em volta, tomou pelas rédeas um
cavalo sem dono e saltou sobre ele sem tocar os estribos.
Kostaki saltou na sela quase tão rápido quanto o irmão,
apesar de ainda me segurar nos braços, e partiu a galope.
O cavalo de Gregoriska parecia haver recebido o mesmo
impulso, e emparelhou com o de Kostaki.
Era curioso ver como os dois cavaleiros voavam lado a lado,
sombrios, silenciosos, sem se perderem de vista um só instante,
sem parecerem se ver, abandonando-se a seus cavalos, cujo
galope desesperado os levava por bosques, rochedos e
precipícios.
Minha cabeça, voltada para trás, permitia-me ver os belos
olhos de Gregoriska fixos nos meus. Kostaki percebeu, ­ergueu-
me a cabeça, e nada mais vi, a não ser seu olhar sombrio, que me
devorava. Baixei as pálpebras, mas em vão. Mesmo de olhos
fechados, continuava a ver o olhar lancinante que penetrava até
o fundo de meu peito e atravessava meu coração. Então uma
estranha alucinação apoderou-se de mim: ­pareceu-me ser a
Lenore do poema de Bürger,5 levada por cavalo e cavaleiro
fantasmas, e, ao sentir que nos detínhamos, foi com terror que
abri os olhos, pois estava convencida de que não veria a minha
volta senão cruzes partidas e túmulos abertos. O que de fato vi
era pouco mais animador: o pátio interno de um castelo moldavo
construído no século 14.
2. O CASTELO DE BRANKOVAN
Kostaki deixou-me deslizar de seus braços para o chão e quase
imediatamente saltou a meu lado; mesmo tendo sido rápido, o
movimento apenas acompanhou o de Gregoriska que, como
afirmara, no castelo era de fato o senhor.
Vendo os dois jovens que chegavam trazendo a estrangeira, os
serviçais acorreram. Embora atendessem tanto Kostaki quanto
Gregoriska, estava claro terem maior deferência e respeito mais
profundo para com este. Duas mulheres aproximaram-se.
Gregoriska deu-lhes uma ordem em moldavo e acenou-me com a
mão para que o seguisse.
O olhar que acompanhava o sinal era tão respeitoso que não
hesitei. Cinco minutos depois, encontrei-me em um aposento
que o menos exigente dos homens teria achado desnudo e
inóspito, mas que, sem dúvida, era o melhor naquele castelo.
Era um amplo cômodo quadrado, com uma espécie de divã de
sarja verde, que servia de assento durante o dia e cama durante
a noite. Havia ali cinco ou seis grandes cadeiras de carvalho, um
baú volumoso e, em um canto, um trono semelhante a uma
grande e magnífica cadeira de coro. Não havia cortinas nas
janelas ou na cama.
Chegava-se ao aposento por uma escada ao longo da qual se
abriam nichos abrigando três estátuas dos Brankovan, em
tamanho maior que natural.
De imediato minha bagagem foi levada para o quarto. As
mulheres ofereceram-me ajuda, mas, considerando a forma
como os últimos acontecimentos haviam descomposto minha
aparência, preferi manter o traje de montaria, que harmonizava
mais com meus anfitriões do que qualquer outro que tivesse. Mal
havia me recuperado um pouco, escutei baterem suavemente à
porta.
— Entre — respondi com naturalidade em francês, que, como
sabem, é para nós, poloneses, quase uma língua materna.
Gregoriska entrou.
— Ah, senhora, alegra-me que fale francês.
— Também eu, senhor, estou feliz por falar esse idioma, pois
assim pude apreciar sua generosa conduta para comigo —
respondi. — Foi nessa língua que me defendeu dos desígnios de
seu irmão, e é nela que lhe expresso meu agradecimento sincero.
— Obrigado, senhora. É natural que me preocupasse por uma
mulher em sua situação. Caçava nas montanhas quando ouvi um
tiroteio longo e continuado. Compreendi tratar-se de um ataque
armado e fui em direção ao fogo, como se diz em linguagem
militar. Cheguei a tempo, graças aos céus. Mas, se me permite
perguntar, senhora, por qual obra do acaso uma dama tão
distinta teria se aventurado por nossas montanhas?
— Sou polonesa, senhor — respondi. — Meus irmãos acabam
de morrer na guerra contra os russos. Meu pai, que deixei
prestes a defender nosso castelo contra o inimigo, a estas alturas
por certo já terá ido ao encontro de ambos. E eu, por ordens dele,
fugi do massacre e vim buscar refúgio no mosteiro de Sahastru,
onde em circunstâncias semelhantes minha mãe, quando jovem,
encontrou um porto seguro.
— A senhora é inimiga dos russos. Tanto melhor; essa posição
lhe será de grande valia no castelo, e precisamos de todas as
forças para travar o combate que se avizinha. Agora que já sei
quem é, senhora, gostaria que soubesse quem somos: o nome
Brankovan não lhe será estranho, não?
Fiz uma breve reverência.
— Minha mãe é a última princesa desse nome, a última
descendente do monarca que derrotou os Cantimir, esses
miseráveis seguidores de Pedro, o Grande.6 Ela desposou, em
primeiras núpcias, a meu pai, Serban Waivady, também
príncipe, mas de linhagem menos ilustre. Meu pai foi educado
em Viena, onde pôde apreciar as vantagens da civilização.
Resolveu fazer de mim um europeu. Partimos para a França, a
Itália, a Espanha e a Alemanha. Um filho não deveria, bem sei,
dizer o que vou lhe contar, mas para nosso bem é preciso que nos
conheça, e a senhora entenderá meus motivos. Durante as
primeiras viagens de meu pai, quando eu era muito pequeno,
minha mãe teve um envolvimento amoroso com um chefe de
partisãos. É como — explicou Gregoriska, sorrindo — são
chamados, neste país, homens como aqueles que a atacaram.
Minha mãe, eu dizia, envolvera-se com o conde Giordaki
Koproli, meio grego, meio moldavo, e escreveu a meu pai
pedindo o divórcio. Para tanto, amparava-se no fato de não
desejar, ela, uma Brankovan, continuar casada com um homem
que a cada dia se tornava mais estrangeiro no próprio país.
Infelizmente, meu pai não precisou dar seu consentimento ao
pedido, que pode lhe parecer estranho, mas que, entre nós, é
comum e natural. Meu pai acabara de morrer de um aneurisma
do qual padecera por muito tempo, e fui eu quem recebeu a
carta.
“Eu nada podia fazer a não ser desejar sinceros votos de
felicidade a minha mãe. Mandei esses votos numa carta,
anunciando que ela estava viúva. Na mesma carta, pedia-lhe
permissão para continuar viagem, o que me foi concedido.
“Era minha intenção fixar-me na França ou Alemanha, para
não ter de me defrontar com o marido de minha mãe, um homem
que me detestava e que eu não podia amar. De súbito, descobri
que o conde Giordaki Koproli acabava de ser assassinado, ao que
se dizia pelos antigos cossacos de meu pai.
“Apressei-me em voltar. Amava minha mãe, compreendia o
isolamento e a necessidade dela ter ao lado, em tal momento, as
pessoas que lhe eram caras. Ainda que jamais tivesse nutrido por
mim um amor muito terno, eu era seu filho. Regressei uma
manhã, sem ser esperado, ao castelo de nossos ancestrais.
“Encontrei aqui um jovem que a princípio tomei por
estrangeiro, para em seguida descobrir ser meu irmão. Era
Kostaki, filho do adultério e que o segundo casamento legitimou.
Kostaki, a criatura indômita que a senhora conheceu, para quem
a única lei são as paixões, que neste mundo nada tem por
sagrado, a não ser sua mãe; que me obedece como o tigre
obedece ao braço que o domou, mas com um eterno rugir,
sustentado pela tênue esperança de um dia poder devorar-me.
No interior do castelo, na morada dos Brankovan e dos Waivady,
sou ainda o senhor, mas fora deste lugar, uma vez em pleno
campo, ele volta a ser o selvagem filho dos bosques e dos montes,
desejoso de que tudo se dobre à sua vontade férrea. Como foi que
ele e seus homens cederam hoje, não sei dizer. Um velho
costume, um resquício de respeito. Contudo, não arriscaria uma
nova prova. Permaneça aqui, não saia deste quarto. Por este
pátio e pelo interior das muralhas, respondo inteiramente. Dê
um passo fora do castelo e não posso fazer nada, a não ser dar a
vida para defendê-la.
— Não poderia eu, então, seguindo os desejos de meu pai,
continuar meu caminho para o mosteiro de Sahastru?
— Faça-o, tente, ordene e eu a acompanharei. Mas eu, eu
perecerei no caminho, e a senhora... a senhora não chegará.
— O que fazer, então?
— Fique aqui, espere, aconselhe-se com o que ocorrer e tire
partido das circunstâncias. Imagine ter caído num covil de
bandidos, e que apenas sua coragem poderá tirá-la dessa
situação. Apenas o sangue-frio pode salvá-la. Minha mãe é boa e
generosa, apesar de preferir Kostaki, o fruto de seu amor. A
senhora vai conhecê-la. Ela a defenderá da paixão brutal de
Kostaki. Coloque-se sob a proteção dela. A senhora é bela; ela a
amará. Além do mais — e ele me olhou com uma expressão
indefinível —, quem poderia conhecê-la sem amá-la? Vamos
agora ao salão de jantar, onde minha mãe nos espera. Não se
mostre tímida ou desafiadora. Fale em polonês, idioma que aqui
ninguém conhece. Traduzirei suas palavras para minha mãe e,
fique tranquila, direi apenas o que precisa ser dito. Acima de
tudo, nem uma palavra sobre o que acabo de revelar-lhe. Que
ninguém desconfie de que nos entendemos. A senhora ainda
ignora a astúcia e a dissimulação do mais sincero dentre nós.
Venha.
Eu o segui. A escada era iluminada por tochas de resina
vegetal, sustentadas por mãos de ferro presas às paredes. Ficava
evidente que aquela iluminação não era habitual, e que estava ali
por minha causa.
Chegamos ao salão de jantar. Ao abrir a porta, Gregoriska
disse em moldavo uma palavra que depois aprendi significar “a
estrangeira”. Uma mulher alta avançou em nossa direção. Era a
princesa Brankovan.
Os cabelos brancos estavam trançados em volta da cabeça,
recoberta por um barretezinho de marta zibelina coroado por
um penacho, testemunha de sua nobre origem. Vestia uma
espécie de túnica de tecido de ouro, o busto salpicado de pedras
preciosas, por cima de um longo vestido à moda turca, cujo forro
combinava com o barrete. Trazia nas mãos um rosário de contas
de âmbar, que desfiava rapidamente entre os dedos.
A seu lado estava Kostaki, envergando o esplêndido e
majestoso traje magiar,7 no qual ele parecia ainda mais estranho.
Era uma túnica de veludo verde, de mangas amplas, que chegava
abaixo dos joelhos, com calças de caxemira vermelha e sapatos
de marroquim bordado a ouro. Tinha a cabeça descoberta, e os
longos cabelos pretos caíam sobre o pescoço nu, circundado
apenas por um filete estreito da camisa de seda branca.
Saudou-me sem muito jeito, e disse em moldavo algo que era
ininteligível para mim.
— Pode falar em francês, meu irmão — disse Gregoriska. — A
senhora é polonesa e entende a língua.
Kostaki disse algumas palavras num francês quase tão
incompreensível quanto o moldavo, mas a mulher interrompeu,
estendendo o braço com solenidade. Compreendi que informava
aos filhos que cabia a ela me receber.
Foi então que começou, em moldavo, um discurso de boas-
vindas cujo sentido sua fisionomia fazia entender. Mostrou-me a
mesa, indicou um lugar a seu lado e com um gesto abrangeu toda
a casa, como se dissesse que era minha. Sentou-se primeiro, com
uma dignidade benevolente, fez o sinal da cruz e começou uma
prece. A seguir cada um tomou seu lugar, como determinava a
etiqueta; o de Gregoriska ficava próximo a mim. Eu era a
visitante e, assim, cabia a Kostaki ocupar o lugar de honra, junto
à mãe.
Smeranda era como se chamava a princesa.
Gregoriska também havia mudado de roupa. Trajava uma
túnica magiar, como o irmão, mas de veludo grená, enquanto as
calças eram de caxemira azul. Uma joia magnífica pendia de seu
pescoço, o Nisham do Sultão Mamude.8
Os demais moradores do castelo comiam à mesma mesa, nos
lugares apropriados à sua condição, entre os amigos ou entre os
serviçais.
A refeição foi triste. Nem uma vez Kostaki me dirigiu a
palavra, embora seu irmão tivesse sempre a atenção de falar
comigo em francês. Quanto à mãe, oferecia-me de tudo com o ar
solene que nunca abandonava. Gregoriska dissera a verdade: ela
era uma verdadeira princesa.
Depois de comer, Gregoriska aproximou-se da mãe. Disse-lhe
em moldavo que eu precisava me retirar para descansar, depois
de semelhante dia. Smeranda concordou com um aceno de
cabeça, estendeu-me a mão, como teria feito a uma filha, e
desejou-me uma boa noite em seu castelo.
Gregoriska não se enganava. Eu desejava muito esse momento
de solidão. Agradeci à princesa, e ela me acompanhou até a
porta, onde me esperavam as duas mulheres que antes haviam
me levado até meu quarto. Eu a saudei e a seus filhos, e voltei ao
aposento de onde saíra uma hora antes.
O divã fora transformado em cama. Era a única alteração.
Agradeci às mulheres, fazendo-lhes sinal de que trocaria de
roupa sozinha. Elas se retiraram de imediato, dando mostras de
respeito que indicavam terem recebido ordens para me obedecer
em tudo.
Permaneci naquele quarto imenso, onde minha vela, quando
eu me movimentava, só iluminava o lugar por onde eu passava,
nunca o aposento inteiro. Singular jogo de luz, que estabelecia
uma luta entre o clarão da vela e os raios da lua, que entravam
pela janela sem cortinas.
No quarto havia duas portas além daquela por onde eu
entrara, e que dava para a escada. Ambas tinham enormes
ferrolhos que se fechavam do lado em que eu me encontrava,
suficientes para me reconfortar. Fui até a porta de entrada.
Como as outras, tinha seus meios de defesa. Abri a janela, que
dava para um precipício. Compreendi que Gregoriska havia
escolhido com cuidado meu aposento.
Por fim, voltando para a cama, encontrei sobre a mesa de
cabeceira um bilhete dobrado. Abri-o e li, em polonês:

Durma tranquila; nada terá a temer, desde que permaneça


dentro do castelo.
Gregoriska

Segui o conselho. Deitei-me e o cansaço venceu as


preocupações. Adormeci.
3. OS DOIS IRMÃOS
A partir daquele momento, passei a residir no castelo e, a partir
daquele momento, começou o drama que contarei.
Os dois irmãos enamoraram-se por mim, cada um com as
nuances de sua personalidade. Kostaki já no dia seguinte disse
que me amava, declarando que eu seria dele e de mais ninguém,
e que preferiria me matar a deixar que fosse de outro.
Gregoriska não disse nada, mas cercou-me de cuidados e
atenções. Todos os recursos de uma educação esmerada e todas
as recordações de uma juventude passada nas cortes mais
nobres da Europa foram usados para me agradar. E, oh!, não foi
difícil. Ao primeiro som de sua voz, ela me acariciou a alma. O
primeiro olhar de seus olhos penetrou-me até o coração.
Ao fim de três meses, Kostaki havia repetido uma centena de
vezes que me amava, e eu o odiava. Ao fim de três meses,
Gregoriska não havia dito uma só palavra de amor, e eu sentia
que, quando ele o exigisse, seria inteiramente sua.
Kostaki renunciara a suas incursões. Não mais deixava o
castelo. Por ora havia abdicado em favor de uma espécie de
lugar-tenente que, de tempos em tempos, vinha receber ordens e
depois desaparecia.
Smeranda me devotava uma amizade tão intensa que me
assustava. Era evidente que protegia Kostaki, e parecia ter mais
ciúmes de mim do que ele próprio. No entanto, como ela não
entendia polonês ou francês, e eu não entendia o moldavo, não
podia interceder com muito empenho em favor do filho. Ainda
assim, aprendera três palavras em francês, que repetia toda vez
que pousava os lábios em minha testa:
— Kostaki ama Edwige.
Um dia, uma notícia terrível veio somar-se às minhas penas: a
liberdade tinha sido concedida a meus quatro acompanhantes,
sobreviventes do combate, e eles partiram de volta para a
Polônia, com a palavra de honra de que um deles retornaria,
antes de três meses, para trazer-me notícias de meu pai. De fato,
um deles voltou certa manhã. Nosso castelo fora tomado,
incendiado e arrasado, e meu pai tinha morrido ao defendê-lo.
Eu estava, a partir de então, sozinha no mundo.
Kostaki redobrou o assédio, e Smeranda, a ternura. Mas agora
eu alegava luto por meu pai. Kostaki insistia, dizendo que,
quanto mais isolada eu estivesse, mais precisaria de apoio. Sua
mãe insistia, como e com ele, talvez até mais.
Gregoriska contara-me sobre o domínio que os moldavos têm
sobre si mesmos quando não querem demonstrar seus
sentimentos. Ele próprio era um exemplo vivo. Seria impossível
estar mais ciente de seu amor do que eu estava; mas, se me
perguntassem em que baseava essa certeza, não conseguiria
dizer. Ninguém no castelo vira sua mão tocar a minha, ou seus
olhos buscarem os meus. Apenas o ciúme permitia a Kostaki
sentir a rivalidade, como apenas meu amor me permitia sentir
seu amor. No entanto, admito, a capacidade de domínio de
Gregoriska sobre si mesmo me perturbava. Eu certamente
acreditava, mas não era o bastante. Precisava ser convencida.
Uma noite, acabava de retirar-me a meu quarto quando ouvi
baterem com leveza em uma das duas portas trancadas por
dentro. Pelo modo como batiam, percebi que era alguém amigo.
Aproximei-me e perguntei quem era.
— Gregoriska — respondeu uma voz, num timbre acerca do
qual jamais me enganaria.
— Que deseja? — perguntei, tremendo toda.
— Se confia em mim, se crê que sou um homem honrado,
conceda-me um pedido.
— E qual é?
— Apague a luz, como se fosse dormir e, dentro de meia hora,
abra-me a porta.
— Volte dentro de meia hora. — Isso foi tudo o que respondi.
Apaguei a luz e esperei. Meu coração batia forte, pois
compreendi que se tratava de algum acontecimento importante.
A meia hora transcorreu; ouvi baterem com ainda mais
suavidade que da primeira vez. Naquele ínterim, eu
desaferrolhara a porta, então precisei apenas abri-la.
Gregoriska entrou. Mesmo sem que me pedisse, fechei a porta
detrás dele e passei o ferrolho. Ele ficou um instante em silêncio
e imóvel, impondo-me silêncio com um gesto. Depois, tendo-se
assegurado de que nenhum perigo iminente nos ameaçava,
conduziu-me ao centro do grande aposento e, sentindo por meu
tremor que não poderia ficar de pé, trouxe-me uma cadeira.
Sentei-me — ou, antes, deixei-me cair sobre ela.
— Oh, meu Deus! — disse-lhe. — O que acontece? Por que
tantas precauções?
— Porque minha vida, o que não seria nada, e talvez a sua
também dependem da conversa que teremos agora.
Apertei-lhe a mão, assustada. Ele levou minha mão aos lábios,
pedindo-me perdão com o olhar por semelhante audácia. Baixei
os olhos. Dava-lhe consentimento.
— Eu a amo — disse ele, numa voz melodiosa como uma
canção. — E a senhora, me ama?
— Amo — respondi.
— Aceitaria ser minha mulher?
— Sim.
Passou a mão sobre a testa com um profundo suspiro de
felicidade.
— Então não se recusaria a seguir-me?
— Eu o seguiria para qualquer lugar!
— A senhora compreende que não poderemos ser felizes a não
ser fugindo.
— Sim! — exclamei. — Fujamos!
— Silêncio! — disse ele, com um sobressalto. — Silêncio!
— Tem razão.
E, toda trêmula, aproximei-me dele.
— Eis o que fiz — disse-me Gregoriska. — Eis o que me fez
demorar tanto em confessar-lhe meu amor. Eu desejava que,
uma vez certo de seu amor, nada pudesse se opor a nossa união.
Sou rico, Edwige, muito rico, mas à moda dos senhores
moldavos: rico em terras, rebanhos e vassalos. Pois bem! Vendi
terras, rebanhos e aldeias ao mosteiro de Hango por um milhão
de francos. Deram-me trezentos mil em pedras preciosas, cem
mil em ouro e o resto em letras de câmbio em Viena. Um milhão
lhe parece suficiente?
Apertei sua mão.
— Seu amor é o suficiente, Gregoriska, julgue por si mesmo.
— Muito bem, escute. Amanhã vou ao mosteiro de Hango
fazer os últimos arranjos com o superior. Ele tem cavalos
prontos para mim. Estarão à nossa espera a partir das nove
horas, escondidos a cem passos do castelo. Depois do jantar, a
senhora subirá como fez hoje. Como hoje, apagará a luz, e como
hoje, entrarei aqui. Mas amanhã, em vez de sair sozinho, a
senhora me acompanhará, alcançaremos a porta que dá para o
campo, pegaremos nossos cavalos, montaremos e, depois de
amanhã, de dia, teremos percorrido trinta léguas.
— Quem dera que já fosse depois de amanhã!
— Querida Edwige!
Gregoriska apertou-me contra seu coração, e nossos lábios se
encontraram.
Ele bem o havia dito: era um homem honrado a quem eu
abrira a porta de meu quarto. E compreendia perfeitamente que,
se não lhe pertencia de corpo, pertencia-lhe de alma.
A noite transcorreu sem que eu pudesse dormir um só
instante. Via-me fugindo com Gregoriska. Sentia-me levada por
ele como Kostaki me levara! Só que, desta vez, a corrida terrível,
apavorante, fúnebre, transformava-se em doce e deslumbrante
abraço, ao qual a velocidade aumentava o deleite, pois a
velocidade em si também traz deleite.
Veio o dia.
Desci.
Pareceu haver algo ainda mais sombrio do que o normal na
forma como Kostaki me saudou. Seu sorriso não era mais uma
ironia; era uma ameaça. Quanto a Smeranda, pareceu-me a
mesma de sempre.
Durante o almoço, Gregoriska mandou pedir seus cavalos.
Kostaki aparentou não dar qualquer atenção à ordem. Por volta
das onze horas, Gregoriska saudou-nos, informando que só
retornaria de noite, e pediu à mãe que não o esperasse para
jantar; depois, voltando-se para mim, pediu que aceitasse suas- ­
desculpas.
Saiu. Os olhos de seu irmão o seguiram até que deixasse o
aposento e, naquele instante, emitiram um tal brilho de ódio que
me fez tremer.
O dia se passou em meio ao transe que bem podem imaginar.
Eu não confidenciara nossos planos a ninguém, e nem mesmo
em prece teria ousado contar a Deus. Parecia-me, porém, que
todos sabiam, que cada olhar fixo em mim podia penetrar-me e
ler o fundo de meu coração. O jantar foi um suplício sombrio e
taciturno. Kostaki pouco falava e, desta vez, apenas dirigiu-se em
moldavo à mãe, e a cada palavra seu tom de voz me
sobressaltava.
Quando me levantava para voltar ao meu quarto, como de
costume, Smeranda beijou-me e, ao fazê-lo, disse a frase que nos
últimos oito dias não ouvira sair de seus lábios:
— Kostaki ama Edwige.
As palavras perseguiram-me como uma ameaça. Uma vez no
quarto, parecia que uma voz fatal murmurava ao meu ouvido:
Kostaki ama Edwige! Ora, o amor de Kostaki, Gregoriska dissera,
era a morte.
Por volta das sete horas começava a escurecer, e vi Kostaki
atravessar o pátio. Voltou-se para olhar em minha direção, mas
dei um passo atrás para que não me visse.
Estava inquieta, pois, enquanto foi possível vê-lo de minha
janela, ele se dirigia à estrebaria. Arrisquei-me a tirar os
ferrolhos de minha porta e deslizar para o quarto adjacente, de
onde podia observá-lo. De fato havia ido à estrebaria. Tirou seu
cavalo favorito e arreou-o ele mesmo, com o cuidado de quem
confere importância aos mínimos detalhes. Trajava a mesma
roupa com a qual o vira pela primeira vez. Como arma, levava
apenas o sabre.
Depois de arrear o cavalo, lançou o olhar mais uma vez para a
janela de meu quarto. Não me vendo, saltou sobre a sela, fez
abrir o mesmo portão pelo qual deveria retornar seu irmão e
afastou-se a galope, na direção do mosteiro de Hango.
Meu coração se apertou de maneira terrível. Um
pressentimento mortal dizia-me que Kostaki ia ao encontro do
irmão. Permaneci à janela enquanto pude vislumbrar o caminho,
que fazia uma curva a um quarto de légua do castelo e se perdia
na entrada de um bosque. Mas a noite ficava cada vez mais densa
a cada instante, e o caminho terminou por se apagar totalmente.
Ainda assim permaneci ali.
Por fim, minha inquietação, por seu próprio excesso,
devolveu-me as forças. Como era óbvio que as notícias de um
irmão ou de outro chegariam primeiro ao salão de baixo, desci
para lá.
Meu primeiro olhar foi para Smeranda. Vi, pela tranquilidade
de sua expressão, que não tinha qualquer apreensão. Dava as
ordens costumeiras para a refeição, e os talheres dos dois irmãos
estavam em seus lugares.
Não ousei interrogar ninguém. De mais a mais, o que
perguntaria? Ninguém no castelo, exceto Kostaki e Gregoriska,
falava as duas únicas línguas que eu conhecia.
Os menores ruídos sobressaltavam-me.
Jantava-se normalmente às nove horas. Eu havia descido às
oito e meia. Seguia com os olhos o ponteiro dos minutos, cuja
marcha era bem visível sobre a ampla face do relógio. O ponteiro
errante cobriu a distância que o separava do quarto de hora. O
quarto de hora soou. A vibração ressoou sombria e triste, e logo
o ponteiro recomeçou sua marcha silenciosa, e de novo o vi
percorrer a distância com a regularidade e lentidão de uma
ponta de compasso.
Minutos antes das nove horas, pensei ouvir o galopar de um
cavalo no pátio. Smeranda também ouviu, pois voltou a cabeça
na direção da janela, mas a noite era escura demais para que
fosse possível enxergar algo. Oh, se tivesse me olhado nesse
momento, poderia ter adivinhado o que se passava em meu
coração!
Não se ouvira o trotar de mais que um cavalo. Era simples. Eu
bem sabia que só um cavaleiro regressaria. Mas qual?
Passos soaram na antessala. Eram lentos, e pareceram pesar
em meu coração.
A porta se abriu, e vi uma sombra desenhar-se na escuridão.
A sombra deteve-se por um momento na soleira da porta. Meu
coração estava suspenso.
A sombra avançou e, à medida que entrou no círculo de luz,
voltei a respirar.
Reconheci Gregoriska.
Um instante a mais de dor, e meu coração se partiria.
Reconheci Gregoriska, mas pálido como um morto. Bastava
apenas vê-lo para saber que algo terrível ocorrera.
— É você, Kostaki? — perguntou Smeranda.
— Não, minha mãe — respondeu Gregoriska com voz abafada.
—Ah! Aí está você — disse ela. — E até quando sua mãe teria
de esperá-lo?
— Minha mãe — respondeu Gregoriska, olhando para o
carrilhão. — São só nove horas.
E, no mesmo instante, de fato, soaram as nove.
— É verdade — disse Smeranda. — Onde está seu irmão?
Não pude evitar pensar que Deus fez a Caim essa mesma
pergunta.
Gregoriska não respondeu.
— Ninguém viu Kostaki? — perguntou Smeranda.
O vatar, ou mordomo, foi se informar.
— Por volta das sete horas — disse ele —, o conde esteve na
estrebaria, selou ele mesmo seu cavalo e partiu rumo a Hango.
Nesse momento, meus olhos encontraram os de Gregoriska.
Não sei dizer se era verdade ou não, mas pareci ter visto uma
gota de sangue no meio de sua testa. Levei lentamente o dedo à
minha, indicando o local onde pensava ver a mancha. Gregoriska
compreendeu. Pegou o lenço e limpou-se.
— Bem — murmurou Smeranda —, talvez tenha encontrado
algum urso ou lobo que resolveu caçar. Eis aí por que um filho
faz uma mãe esperar. Diga, Gregoriska, onde você o deixou?
— Minha mãe — respondeu Gregoriska, com a voz
emocionada, mas firme —, meu irmão e eu não saímos juntos.
— Muito bem — disse Smeranda. — Sirvam o jantar. Que nos
sentemos à mesa e que as portas sejam fechadas. Os que ficarem
de fora dormirão ao relento.
As duas primeiras partes da ordem foram executadas ao pé da
letra. Smeranda tomou seu lugar, Gregoriska sentou-se à direita
da mãe, e eu à esquerda. Então os criados saíram para cumprir a
terceira parte e fechar as portas do castelo. Nesse momento,
ouviu-se um grande barulho no pátio e um criado muito
assustado entrou na sala, dizendo:
— Princesa, o cavalo do conde Kostaki acaba de entrar no
pátio, sozinho e coberto de sangue!
— Oh! — murmurou Smeranda, tornando-se pálida e
ameaçadora. — Foi assim que, uma noite, o cavalo do pai dele
voltou.
Lancei um olhar para Gregoriska, que de pálido passara a
lívido.
De fato, certa noite o cavalo do conde Koproli chegara ao
pátio do castelo banhado de sangue. Uma hora mais tarde, os
criados haviam encontrado o corpo coberto de ferimentos e o
trazido.
Smeranda pegou uma tocha das mãos de um criado, foi até a
porta, abriu-a e desceu ao pátio. O cavalo, muito assustado, era
controlado por três ou quatro criados, que uniam suas forças
para acalmá-lo. Ela se aproximou. Olhou o sangue que manchava
a sela e viu um ferimento na testa do animal.
— Kostaki foi morto de frente, em duelo, e por um único
inimigo — disse ela. — Busquem seu corpo, minhas crianças;
mais tarde iremos atrás do assassino.
O cavalo havia entrado pelo portão de Hango, e foi por ele que
todos os serviçais saíram. Vimos suas tochas afastando-se pelo
campo e entrando na floresta, como numa bela noite de verão
veem-se os vaga-lumes cintilando nas campinas de Nice ou de
Pisa.
Smeranda esperava de pé diante do portão, como se soubesse
que a busca não seria longa. Nem uma lágrima correu dos olhos
da mãe desolada, e ainda assim era possível sentir o desespero
retumbando no fundo de seu coração.
Gregoriska estava de pé detrás dela, e eu perto de Gregoriska.
Quando saímos da sala, por um instante ele pareceu querer
oferecer-me o braço, mas não teve coragem.
Em mais ou menos um quarto de hora, vimos reaparecer, no
fim do caminho, uma tocha, depois duas, depois todas. Mas
naquele momento, em vez de dispersas pelo campo, vinham
concentradas em torno de um ponto comum. Este ponto, via-se,
era uma liteira com um homem estendido.
O cortejo fúnebre avançava devagar. Em dez minutos chegou
ao portão. Ao verem a mãe à espera do filho morto, aqueles que o
traziam descobriram as cabeças em sinal de respeito e então
entraram silenciosos no pátio. Smeranda entrou depois deles, e
nós a seguimos. Chegamos, assim, ao grande salão, onde
depositaram o corpo.
Com um gesto majestoso, Smeranda fez com que todos se
distanciassem. Aproximou-se do cadáver, ajoelhou-se a seu lado
e afastou os cabelos dele que, como um véu, cobriam seu rosto.
Olhou-o por um bom tempo, os olhos sempre secos, e abriu o
traje moldavo, afastando a camisa manchada de sangue. O
ferimento estava do lado direito do peito. Devia ter sido feito por
uma lâmina reta de dois gumes.
Lembrei-me de ter visto naquele mesmo dia, pendendo da
ilharga de Gregoriska, a longa faca de caça que servia de
baioneta para sua carabina. Procurei a arma em sua cintura,
mas havia desaparecido.
Smeranda ordenou que trouxessem água, molhou seu lenço e
lavou o corte. Um sangue fresco e puro tingiu de vermelho as
bordas da ferida.
O espetáculo diante de meus olhos tinha ao mesmo tempo
algo de atroz e de sublime. O salão imenso enfumaçado pelas
tochas, os rostos bárbaros, os olhos brilhando de ferocidade, os
trajes estranhos, a mãe que à visão do sangue ainda fresco
calculava quanto tempo fazia que a morte lhe tomara o filho, o
grande silêncio interrompido somente pelos soluços dos
bandidos que Kostaki chefiara — tudo isso, repito, era ao mesmo
tempo atroz e sublime de ver.
Por fim, Smeranda aproximou os lábios da testa do filho,
levantou-se e jogou para trás as longas tranças de cabelos
brancos, que se haviam desfeito:
— Gregoriska! — disse ela.
Gregoriska se sobressaltou e sacudiu a cabeça, como se saísse
de um transe:
— Sim, minha mãe.
— Venha aqui, meu filho, e escute-me.
Gregoriska tremeu, mas obedeceu. À medida que se
aproximava do corpo, o sangue, mais abundante e mais
vermelho, fluía da ferida. Felizmente Smeranda não olhava mais
para o filho morto, pois, à visão do sangue acusador, não teria
precisado mais buscar o assassino.
— Gregoriska, sei muito bem que você e Kostaki não se
amavam. Bem sei que por parte de pai você é um Waiwady e ele
era um Koproli, mas por parte de mãe ambos são Brankovan. Sei
que você é um homem das cidades do ocidente e ele era um filho
das montanhas orientais, e no entanto, pelo ventre que os
carregou, vocês eram irmãos. Pois bem, Gregoriska, quero saber
se teremos de levar meu filho até seu pai sem que o juramento
seja feito. Se posso chorar tranquila, como uma mulher,
confiando em você, ou seja, um homem, para o castigo.
— Diga o nome do assassino de meu irmão, senhora, e ordene.
Juro que antes de uma hora, se assim o exigir, ele terá deixado de
viver.
— Jure, Gregoriska, jure sob pena de minha maldição. Você
me ouve, meu filho? Jure que o assassino morrerá, que você não
deixará pedra sobre pedra da casa dele. Que mãe, filhos, irmãos,
esposa ou noiva dele perecerão por sua mão. Jure e, ao jurar,
chame sobre si a cólera dos céus se acaso falhar a esse
juramento sagrado. Se falhar a esse juramento sagrado,
submeta-se à miséria, à execração de seus amigos, à maldição de
sua mãe.
Gregoriska estendeu a mão sobre o cadáver.
— Juro que o assassino morrerá.
A esse juramento estranho, cujo verdadeiro sentido talvez
apenas eu e o falecido pudéssemos compreender, vi ou acreditei
ver ocorrer um prodígio horrendo. Os olhos do cadáver se
abriram e fixaram-se em mim, mais vivos do que jamais os vira, e
senti, como se sua dupla emanação fosse palpável, um fogo
ardente penetrar meu coração.
Foi mais do que podia suportar. Desmaiei.
4. O MOSTEIRO DE HANGO
Quando despertei, estava em meu quarto, deitada na cama. Uma
das duas mulheres estava comigo. Perguntei onde estava
Smeranda; responderam-me que velava junto ao corpo do filho.
Perguntei onde estava Gregoriska; responderam-me que estava
no mosteiro de Hango. Não havia mais questão de fugir. Não
estava Kostaki morto? Não havia mais questão de casamento.
Poderia eu casar-me com o fratricida?
Três dias e três noites se passaram assim, em meio a sonhos
estranhos. Em vigília ou em sonho, eu sempre via aqueles dois
olhos vivos no rosto morto. Era uma visão horrível.
O enterro de Kostaki estava previsto para o terceiro dia.
Naquela manhã, levaram-me um traje completo de viúva,
enviado por Smeranda. Vesti-o e desci.
A casa parecia vazia. Todos estavam na capela, e para lá me
encaminhei. Smeranda, a quem fazia três dias que não via, veio a
meu encontro quando cruzei o umbral. Parecia uma estátua da
dor. Com um movimento lento, pousou os lábios gelados em
minha testa e, numa voz que parecia saída do túmulo,
pronunciou suas palavras habituais: “Kostaki ama Edwige”.
Não fazem ideia do efeito que tais palavras tiveram sobre
mim. Aquela declaração de amor feita no presente e não no
passado; aquele “ama Edwige” em lugar de “amava Edwige”; o
amor do além-túmulo que me vinha buscar em vida: tudo
produziu sobre mim um efeito devastador.
Ao mesmo tempo, um sentimento estranho me dominou,
como se eu fosse de fato a mulher daquele que morrera, e não a
noiva do que estava vivo. O ataúde atraía-me para si, a despeito
de mim, dolorosamente, como a serpente fascina e atrai a ave.
Busquei os olhos de Gregoriska.
Vi-o, pálido e de pé, apoiado numa coluna, com os olhos
voltados para o céu. Não sei dizer se me viu.
Os monges do convento de Hango cercavam o corpo, entoando
salmos do rito grego, por vezes harmoniosos, mas em geral
monótonos. Senti o desejo de também orar, mas as preces
morreram-me nos lábios. Meu espírito estava tão perturbado que
antes parecia estar assistindo a um consistório de demônios que
a uma reunião de padres.
Quando levaram o corpo desejei segui-lo, mas faltaram-me as
forças. Senti as pernas cederem e tive de me apoiar à porta.
Smeranda veio até mim e fez um sinal a Gregoriska, que
obedeceu e se aproximou, dizendo-me, em moldavo:
— Minha mãe ordena-me que repita palavra por palavra o que
vai dizer a você.
Então, Smeranda voltou a falar. E quando terminou:
— Estas são as palavras de minha mãe: “Você chora por meu
filho, Edwige. Você o amava, não é? Agradeço-lhe as lágrimas e o
amor. A partir de agora é tão minha filha como se Kostaki fosse
seu marido. A partir de agora tem uma pátria, uma mãe, uma
família. Vertamos juntas as lágrimas que devemos aos mortos,
depois tornemo-nos ambas dignas daquele que já não vive... Eu,
sua mãe; você, sua mulher! Adeus! Volte a seus aposentos.
Seguirei meu filho até sua última morada. Ao voltar, trancar-me-
ei sozinha e você não me verá de novo até que eu tenha vencido
minha dor. Fique tranquila, eu a vencerei, pois não quero que ela
me mate”.
Só pude responder a essas palavras, traduzidas por
Gregoriska, com um gemido.
Voltei a meu quarto e o cortejo afastou-se. Vi-o sumir numa
curva do caminho.
O convento de Hango distava do castelo apenas meia légua em
linha reta, mas os obstáculos do terreno forçavam o caminho a
vários desvios, e por isso a viagem demorava cerca de duas
horas.
Estávamos em novembro, e os dias eram frios e curtos. Era
noite fechada quando vi reaparecerem as tochas. Era o cortejo
fúnebre retornando. O cadáver já repousava no túmulo
ancestral. Tudo havia terminado.
Já relatei a estranha obsessão que me dominou após o evento
fatal, quando nos vestimos todos de luto e, sobretudo depois de
ter visto os olhos que a morte fechara abrirem-se e fixarem-se
em mim. Naquela noite, abatida pelas emoções do dia, estava
ainda mais triste. Escutava o relógio do castelo marcar as horas,
e entristecia-me ainda mais à medida que se aproximava a hora
provável da morte de Kostaki.
Ouvi soar quinze para as nove. Então, uma sensação estranha
apoderou-se de mim. Um estremecimento de terror percorreu
todo meu corpo e me congelou. Depois, juntou-se a esse terror
algo parecido a um sono invencível que anuviou meus sentidos,
oprimiu meu peito e velou meus olhos. Estendi os braços e,
recuando, caí na cama.
Meus sentidos, porém, não me tinham abandonado de todo, e
ouvi o que soava como passos aproximando-se da porta.
Pareceu-me que a porta se abria, e a seguir não vi nem ouvi mais
nada. Senti apenas uma dor aguda no pescoço, para depois cair
em completa letargia.
À meia-noite despertei; a lamparina ainda acesa. Quis me
levantar, mas estava tão fraca que precisei tentar duas vezes até
vencer a fraqueza. Desperta, ainda sentia a mesma dor que em
sonho sentira no pescoço. Apoiada à parede, arrastei-me até o
espelho e me olhei. Sobre a artéria de meu pescoço havia uma
marca como a de uma agulha, e pensei que talvez algum inseto
me houvesse picado durante o sono.
Estava morta de cansaço, então me deitei de novo e dormi.
No dia seguinte, despertei como de costume. Como de hábito,
quis levantar-me assim que abri os olhos, mas senti uma
fraqueza que apenas havia sentido uma vez na vida, um dia
depois de perder sangue. Aproximei-me do espelho, e minha
palidez me impressionou.
O dia transcorreu triste e sombrio. Sentia-me estranha. Onde
quer que estivesse, tinha necessidade de descansar, e qualquer
movimento era um esforço.
A noite desceu e trouxeram-me a lamparina. As mulheres,
compreendi pelos gestos, ofereciam-se para ficar comigo.
Agradeci-lhes, e saíram.
À mesma hora da noite anterior, senti os mesmos sintomas.
Quis me levantar e pedir socorro, mas nem pude chegar à porta.
Ouvi vagamente o som do relógio batendo quinze para as nove.
Os passos ressoaram e a porta se abriu, mas não vi nem ouvi
nada, e, como na véspera, caí de costas na cama. Como na
véspera, senti uma dor aguda no mesmo lugar. Como na véspera,
despertei à meia-noite, só que mais fraca e mais pálida que na
noite anterior.
No dia seguinte repetiu-se, ainda, a horrível obsessão. Havia
decidido descer para junto de Smeranda, por mais fraca que
estivesse, quando uma das criadas entrou no quarto e anunciou
o nome de Gregoriska.
Ele a seguia. Quis me levantar para recebê-lo, mas caí sentada
na cadeira. Ele soltou uma exclamação ao ver-me e quis se
lançar sobre mim, mas tive forças para detê-lo, erguendo um
braço.
— Que vem fazer aqui? — perguntei.
— Vim dizer-lhe adeus! Vim dizer-lhe que estou deixando este
mundo, que sem seu amor e sua presença tornou-se
insuportável, e retiro-me ao mosteiro de Hango.
— Minha presença foi-lhe retirada, Gregoriska, mas não meu
amor. Oh, ainda o amo, e para minha grande dor esse amor é
agora quase um crime.
— Então posso esperar que reze por mim, Edwige.
— Sim, mas não rezarei por muito tempo — acrescentei, com
um sorriso.
— O que tem, por que está tão pálida?
— Eu tenho... que Deus se apiede de mim, e que me chame a
Ele!
Gregoriska se aproximou, segurou minha mão, que não tive
forças para retirar, e encarou-me fixamente.
— Essa palidez não é natural, Edwige. O que acontece?
— Se lhe dissesse, Gregoriska, acharia que enlouqueci.
— Não, não, diga-me, Edwige, suplico-lhe. Estamos num país
que não é como os outros, numa família que não é como as
outras. Conte-me, conte-me tudo, eu lhe suplico.
Contei-lhe tudo. A estranha alucinação que se apossava de
mim à hora em que Kostaki teria morrido. O terror, o
entorpecimento, o frio glacial, a prostração que me jogava ao
leito, o ruído de passos que pensava ouvir, a porta que pensava
ver abrir, a dor aguda, a palidez e fraqueza crescentes. Imaginei
que minha narrativa pareceria a Gregoriska um princípio de
loucura, e terminei-a envergonhada. Mas percebi que, ao
contrário, ele prestara profunda atenção. Depois que me calei,
ficou um instante a refletir.
— Então, você adormece toda noite às quinze para as nove? —
perguntou ele.
— Sim, apesar de meus esforços para resistir ao sono.
— E acredita ver a porta se abrir?
— Sim, apesar de fechá-la com o ferrolho.
— E sente uma dor aguda no pescoço?
— Sim, embora mal veja nele a marca de uma ferida.
— Permite-me vê-la?
Inclinei a cabeça sobre o ombro, e ele examinou a cicatriz.
— Edwige — disse Gregoriska, depois de um instante —, confia
em mim?
— E você ainda pergunta!
— Acredita em minha palavra?
— Como nos santos Evangelhos.
— Muito bem. Edwige, por minha palavra, juro que não lhe
restam senão oito dias de vida, se não concordar em fazer, hoje
mesmo, o que vou lhe dizer...
— E se eu concordar?
— Se concordar, talvez se salve.
— Talvez?
Ele se calou.
— Aconteça o que acontecer, Gregoriska — respondi —, farei o
que mandar.
— Muito bem! Escute e, sobretudo, não se assuste. Em seu
país, como na Hungria e na Romênia, existe uma tradição.
Tive um sobressalto, porque essa tradição me veio à
lembrança.
—Ah! — disse ele. — Você sabe a que me refiro?
—Sim — respondi. — Vi, na Polônia, pessoas que sofreram
essa terrível fatalidade.
— Você se refere aos vampiros, não?
— Sim. Quando era criança vi desenterrarem, no cemitério de
uma aldeia que pertencia a meu pai, quarenta pessoas que
morreram numa quinzena, sem que a causa da morte fosse
identificada. Dezessete delas exibiam todos os sinais de
vampirismo. Não haviam sofrido decomposição e estavam
coradas, parecendo vivas. As outras tinham sido suas vítimas.
— E que fizeram para livrar a região?
— Enterraram uma estaca no coração de cada uma, e em
seguida queimaram os corpos.
— Sim, é o que em geral se faz, mas para nós não basta. Para
livrá-la do fantasma, é preciso primeiro saber quem é, e pelos
Céus, eu saberei. Sim; se necessário lutarei corpo a corpo com
ele, seja quem for.
— Ah, Gregoriska! — exclamei, assustada.
— Eu disse “seja quem for”, e o repito. Mas, para que eu saia
vitorioso nessa tarefa, você deve concordar com tudo que vou
pedir.
— Diga.
— Esteja pronta às sete horas. Desça à capela, mas sozinha. É
preciso vencer sua fraqueza, Edwige, é preciso. Lá, receberemos
as bênçãos nupciais. Aceite, minha querida, pois para defendê-la
é necessário que eu tenha, perante Deus e os homens, o direito
de cuidar de você. Voltaremos para cá, e então veremos.
— Oh, Gregoriska! — exclamei. — Se for ele, você será morto!
— Nada tema, minha querida Edwige. Apenas aceite.
— Sabe muito bem que farei tudo o que desejar, Gregoriska.
— Então, até a noite.
— Sim, faça tudo o que tenha de fazer, e eu o auxiliarei o
melhor que puder. Vá!
Ele partiu. Um quarto de hora depois, vi um cavaleiro galopar
rumo ao mosteiro. Era ele.
Mal o perdi de vista, ajoelhei-me e rezei com fervor, como não
se reza nos países sem fé de vocês, oferecendo meus
pensamentos a Deus e aos santos, em sacrifício. Não me ergui
até soarem as sete horas.
Estava enfraquecida como quem agoniza, pálida como uma
morta. Cobri a cabeça com um grande véu escuro, desci as
escadas amparando-me nas paredes e cheguei à capela sem
cruzar com ninguém.
Gregoriska estava a minha espera, junto ao padre Bazile,
superior do convento de Hango. Levava uma espada santa,
relíquia de um velho cruzado que tomara Constantinopla com
Villehardouin e Balduíno de Flandres.9
— Edwige — disse, pousando a mão sobre a espada —, com a
ajuda de Deus, é isto que quebrará o encanto que ameaça sua
vida. Aproxime-se, portanto, resoluta. Eis aqui um homem santo
que, depois de ouvir minha confissão, receberá nossos
juramentos.
A cerimônia teve início. É possível que nunca tenha havido
algo ao mesmo tempo mais simples e mais solene. Ninguém
auxiliava o sacerdote. Ele mesmo colocou sobre nossas cabeças
as coroas nupciais. Vestidos ambos de luto, demos a volta no
altar com um círio na mão. Depois, o religioso pronunciou as
palavras santas e completou:
— Vão agora, meus filhos. Que Deus lhes conceda a força e a
coragem de lutar contra o inimigo da espécie humana. Armados
com inocência e justiça, vocês derrotarão o demônio. Vão, e
benditos sejam.
Beijamos o livro santo e deixamos a capela. Então, pela
primeira vez, apoiei-me no braço de Gregoriska, e pareceu-me
que, ao tocar aquele braço valente, ao contato com aquele nobre
coração, a vida ressurgia em minhas veias. Sentia-me confiante
de vencer, porque Gregoriska estava comigo. Voltamos a meu
quarto.
— Edwige, não há tempo a perder — disse Gregoriska. — Quer
dormir, como de hábito, e que tudo se passe durante o sono? Ou
quer permanecer acordada e ver tudo?
— A seu lado, nada temo. Quero ficar desperta, quero ver
tudo.
Gregoriska tirou do peito um ramo, ainda úmido de água
benta, e o entregou a mim.
— Pegue este ramo, deite-se na cama, reze à Virgem e espere
sem temor, pois Deus está conosco. Acima de tudo, não solte o
ramo. Com ele, você pode comandar o próprio inferno. Não me
chame e não grite. Reze, tenha esperança e espere.
Deitei-me, cruzei as mãos sobre o peito e nele apoiei o ramo
bento. Gregoriska escondeu-se por trás do grande trono que
estava num canto do quarto.
Contei os minutos e, sem dúvida, Gregoriska também o fazia.
Soaram os três quartos. O ressoar das batidas ainda ecoava
quando senti o mesmo entorpecimento, o mesmo terror, o
mesmo frio glacial; mas aproximei dos lábios o ramo bento, e as
sensações dissiparam-se. Então, ouvi distintamente o barulho
daqueles passos lentos e medidos subindo a escada e vindo para
minha porta. Ela se abriu devagar, sem ruído, como se uma força
sobrenatural a empurrasse, e então...
Então vi Kostaki, pálido como quando o trouxeram morto. Os
longos cabelos pretos, espalhados pelos ombros, pingavam
sangue. Vestia o traje costumeiro, mas a camisa estava aberta e
via-se a ferida sangrenta. Tudo estava morto. A carne, a roupa, o
caminhar eram os de um cadáver. Só os olhos, aqueles olhos
terríveis, estavam vivos. E, coisa estranha, em vez de aquela
visão aumentar meu pavor, fez crescer minha coragem. Deus o
enviara, sem dúvida, para que eu julgasse minha posição e
pudesse defender-me contra o inferno.
Ao primeiro passo do fantasma em direção à cama, cravei
meus olhos, decidida, em seu olhar plúmbeo, e exibi o ramo
bento. O espectro tentou avançar, mas um poder maior que o seu
o manteve no lugar. Estacou.
— Oh! — murmurou ele. — Ela não dorme, e sabe de tudo!
Falava em moldavo e, no entanto, eu entendia como se as
palavras tivessem sido ditas numa língua conhecida.
Estávamos assim cara a cara, o espectro e eu, meus olhos
presos aos dele, quando, sem ter de virar a cabeça, vi Gregoriska
sair do esconderijo como um anjo vingador, a espada em riste.
Fez o sinal da cruz com a mão esquerda e avançou devagar, com
a arma apontada para o fantasma. Ao ver o irmão, este por sua
vez empunhou o sabre, com uma gargalhada terrível. Assim que
o sabre tocou a arma benta, porém, o braço do espectro pendeu
inerte junto ao corpo.
Kostaki deu um suspiro cheio de revolta e desespero.
— Que quer? — perguntou ao irmão.
— Em nome do Deus vivo, ordeno que me responda! — disse
Gregoriska.
— Fale — disse o fantasma, rangendo os dentes.
— Fui eu quem lhe armou uma emboscada?
— Não.
— Fui eu quem o atacou?
— Não.
— Fui eu quem o golpeou?
— Não.
— Você se atirou contra minha espada, apenas isso. Portanto,
aos olhos de Deus e dos homens, não sou culpado do crime de
fratricídio. Portanto, você não recebeu uma missão divina, mas
infernal. Portanto, você saiu do túmulo não como uma alma
santa, mas como um espectro maldito, e ao túmulo regressará.
— Sim, com ela! — gritou Kostaki, fazendo um esforço
supremo para agarrar-me.
— Sozinho! — gritou Gregoriska. — Esta mulher me pertence!
Ao dizer isso, pousou na ferida aberta do morto a ponta da
arma benta. Kostaki gritou como se uma espada incandescente o
tivesse tocado e levou a mão esquerda ao peito, dando um passo
atrás. Num movimento que parecia sincronizado ao dele,
Gregoriska avançou um passo. Então, fixando o olhar nos olhos
do morto, com a espada no peito do irmão, deu início a uma
caminhada lenta, terrível, solene. Era como a passagem de dom
Juan e o comendador.10 O espectro recuava sob a arma sagrada e
sob a vontade irresistível do defensor de Deus, que o seguia
passo a passo, sem uma palavra. Ambos estavam sem fôlego,
lívidos, enquanto o vivo empurrava o morto para trás, forçando-
o a deixar o castelo, sua morada de outrora, rumo ao túmulo, sua
nova e eterna morada.
Oh, foi horrível ver aquela cena, juro!
E, no entanto, emudecida por uma força superior, invisível e
desconhecida, sem me dar conta do que fazia, levantei-me e
segui os dois. Descemos as escadas, iluminadas apenas pelos
olhos ardentes de Kostaki. Assim percorremos a galeria e o pátio.
Cruzamos o portão com os mesmos passos medidos, o espectro
recuando, Gregoriska com o braço estendido, e eu seguindo
ambos.
Esse percurso fantástico durou cerca de uma hora. Era
preciso reconduzir o morto a seu túmulo. Mas, em vez de tomar
o caminho habitual, Kostaki e Gregoriska atravessaram em linha
reta o terreno, pouco importando os obstáculos, que pareciam
deixar de existir. Sob os pés deles, os regatos secavam, as árvores
recuavam, as pedras se afastavam. Os mesmos milagres
operavam para mim. Todo o céu me parecia toldado por um
grosso manto escuro, a lua e as estrelas haviam desaparecido, e
eu não via nada brilhando na noite a não ser os olhos
flamejantes do vampiro.
Assim chegamos a Hango, e assim cruzamos a cerca de
arbustos que servia de muro ao cemitério. Mal entrei, distingui
nas sombras o túmulo de Kostaki, lado a lado com o do pai.
Nunca os tinha visto, e no entanto pude reconhecê-los. Naquela
noite, tudo me era revelado.
À beira da cova aberta, Gregoriska parou.
— Kostaki — disse ele —, nem tudo terminou para você. Uma
voz vinda do Céu me diz que será perdoado caso se arrependa.
Promete voltar ao túmulo? Promete não voltar a sair? Por fim,
promete dedicar a Deus a devoção que dedicou ao inferno?
— Não! — respondeu Kostaki.
— Você se arrepende? — perguntou Gregoriska.
— Não!
— Pela última vez, Kostaki.
— Não!
— Muito bem! Clame a Satã por socorro, e eu clamarei a Deus.
E veremos, uma vez mais, quem sairá vencedor.
Dois gritos ressoaram ao mesmo tempo, as espadas se
cruzaram soltando fagulhas, e o combate durou um minuto que
me pareceu um século. Kostaki tombou; vi erguer-se a espada
temível, vi-a enterrar-se em seu corpo e cravá-lo à terra recém-
revirada. Um grito poderoso, que nada tinha de humano, cortou
o ar.
Corri.
Gregoriska estava de pé, mas cambaleava. Corri e o amparei
nos braços.
— Está ferido? — perguntei, ansiosa.
— Não — respondeu ele —, mas num duelo assim, querida
Edwige, não é o ferimento que mata, é a luta. Lutei com a morte,
a ela pertenço.
— Querido, querido — gritei —, afaste-se daqui e a vida talvez
retorne!
— Não, eis meu túmulo, Edwige. Mas não percamos tempo.
Pegue um pouco dessa terra impregnada com o sangue dele e
coloque-a sobre a mordida que ele lhe infligiu. É a única forma
de preservar-se, no futuro, contra esse amor terrível.
Obedeci, tremendo. Abaixei-me para pegar a terra
ensanguentada e, ao fazê-lo, vi o cadáver preso ao solo pela
espada benta que lhe atravessava o coração. Um sangue escuro e
abundante jorrava do ferimento, como se ele acabasse de morrer
naquele instante. Amassei um pouco de terra com sangue e
apliquei sobre minha ferida o cataplasma horrendo.
— Agora, minha Edwige adorada — disse Gregoriska, com voz
fraca —, escute bem minhas últimas instruções. Deixe esta região
assim que puder, pois só a distância lhe trará segurança. O padre
Bazile recebeu hoje meus últimos desejos, e vai cumpri-los.
Edwige, um beijo! O último, o único, Edwige! Morro!
Com essas palavras, Gregoriska tombou ao lado do irmão.
Em outra circunstância qualquer, no meio de um cemitério,
junto a um túmulo aberto, com dois cadáveres estendidos lado a
lado, eu teria enlouquecido. Contudo, como já disse, Deus me
dera força à altura dos acontecimentos dos quais eu não apenas
era testemunha, mas também protagonista.
No momento em que olhei ao redor, buscando socorro, vi a
porta do mosteiro abrir e os monges, conduzidos pelo padre
Bazile, avançaram dois a dois, trazendo tochas acesas e entoando
as preces fúnebres. O padre Bazile acabara de chegar ao
mosteiro. Tinha previsto o que se passaria e, à frente de toda a
irmandade, adentrava o cemitério.
Encontrou-me viva, entre dois mortos. Kostaki tinha a face
contorcida numa convulsão final. Gregoriska, ao contrário, tinha
o rosto calmo e quase sorridente.
Como recomendara Gregoriska, enterraram-no junto ao
irmão: o cristão guardando o amaldiçoado.
Smeranda, ao saber da nova desgraça e de como eu
participara dela, quis me ver. Veio ao meu encontro no mosteiro
de Hango, e ouviu de mim tudo o que ocorreu naquela noite
terrível. Contei-lhe todos os detalhes da história inacreditável.
Ela escutou como Gregoriska o fizera, sem espanto, sem pavor.
— Edwige — respondeu ela, após um momento de silêncio —,
por mais estranho que seja o que acaba de me contar, não é
senão a mais pura verdade. A linhagem dos Brankovan foi
amaldiçoada até a terceira e quarta gerações, porque um
Brankovan matou um padre. Mas a maldição chegou ao fim, pois,
mesmo que tenha se casado, você é virgem. A linhagem termina
comigo. Se meu filho lhe deixou um milhão de francos, fique com
o dinheiro. De minha parte, exceto as doações de caridade que
pretendo fazer, você terá o resto de minha fortuna. Agora, siga o
conselho de seu marido. Parta o mais rápido possível para algum
país onde Deus não permite que prodígios tão terríveis
aconteçam. Não preciso que mais ninguém chore meus filhos.
Adeus, e não se preocupe comigo. Minha sorte futura não
pertence senão a mim e a Deus.
E, beijando minha testa como de costume, deixou-me e se
recolheu ao castelo de Brankovan.
Oito dias depois, parti para a França. Como previu
Gregoriska, minhas noites deixaram de ser visitadas pelo terrível
espectro. Minha saúde se restabeleceu, e não guardei desses
eventos nada além da palidez mortal que acompanha até o
túmulo todo aquele que foi vítima do beijo de um vampiro.

O escritor francês Alexandre Dumas, pai (Dumas Davy de la


Pailleterie, 1802-1870), nasceu no vilarejo de Villers-Cotterêts,
nas vizinhanças de Paris. Neto de uma escrava nativa de São
Domingos, Antilhas, e filho de um afamado general de Napoleão,
desde criança foi um ávido leitor. Aos 20 anos mudou-se para
Paris, onde conseguiu emprego no Palácio Real. Passou a
escrever artigos para revistas e peças de teatro. Em 1824, ao
assistir à segunda montagem de O vampiro, de Charles Nodier,
Carmouche e Jouffroy, tornou-se entusiasta da figura do
vampiro. Foi a primeira peça de teatro à qual assistiu, e causou-
lhe viva impressão, como relata em suas Memórias (1852-54).11
Quis o acaso que o jovem escritor estivesse sentado ao lado do
próprio autor da peça que, incógnito, estudava a reação do
público. Como resultado desse encontro casual, algum tempo
depois Dumas tornou-se um dos protegidos de Nodier e, por
meio dele, ganhou acesso aos melhores círculos culturais
parisienses.
Obteve seu primeiro êxito em 1829, com a peça teatral Henri
III et sa cour (“Henrique IIIe sua corte”). A forma romanceada
como apresentou a história caiu no agrado do público burguês,
assegurando-lhe boa reputação como dramaturgo. Quando
passou para a atividade de romancista, provou ter habilidade
excepcional para gerenciar a nova carreira. De imediato
percebeu que podia reescrever seus textos teatrais e aproveitar a
grande demanda de histórias seriadas pelos jornais populares.
Montou um estúdio de produções, onde trabalhava com diversos
colaboradores, produzindo enorme quantidade de romances.
Não se furtava a escrever a quatro mãos, e seu parceiro mais
conhecido foi Auguste Maquet.
Casou-se em 1840, mas isso não impediu que mantivesse
inúmeros casos amorosos, que lhe deram pelo menos três filhos
extraconjugais. Um deles, reconhecido ainda em criança,
Alexandre Dumas, filho, seguiu os passos do pai e produziu
romances memoráveis, como A dama das camélias (1848), base da
ópera La Traviata,de Verdi.
Além de escritor, Dumas, pai, era um aventureiro, e tomou
parte da Revolução de 1830. Em 1851, fugiu da França por
motivos políticos e se estabeleceu na Rússia, onde viveu por dois
anos, sempre escrevendo com grande sucesso. Em 1861,
envolveu-se na luta que Giuseppe Garibaldi travou pela
unificação da Itália. Fez e perdeu várias fortunas, e morreu
pobre, em 1870, aos 68 anos.
Dumas foi um dos escritores mais prolíficos de todos os
tempos. Por sua condição de mestiço, foi alvo de racismo, o que
não impediu, porém, que alcançasse grande sucesso. Ao longo da
vida, escreveu centenas de peças, romances e diários de viagem,
bem como contos infantis e um dicionário de culinária.
Notabilizou-se especialmente pelos romances de fundo histórico,
recheados de liberdades literárias, aventuras maravilhosas e
personagens inesquecíveis, que fizeram dele um dos autores de
língua francesa mais lidos no mundo todo. Suas narrativas saíam
publicadas na forma de séries, com capítulos semanais em
periódicos populares, muitos dos quais ele mesmo ajudou a
fundar.
Produziu cerca de oitenta romances, dos quais os mais
famosos são Os três mosqueteiros (1844) e sua sequência Vinte
anos depois (1845), O conde de Monte Cristo (1844-45), A rainha
Margot (1845) e O homem da máscara de ferro (1848-50).
Mais de 25 anos depois de ver os vampiros no palco pela
primeira vez, Dumas voltou ao tema vampírico com sua própria
peça, baseada na obra de Nodier e também chamada Le Vampire.
Escrita em colaboração com A. Maquet, foi aos palcos em 1851,
no teatro Ambigu Comique.
O texto aqui apresentado, “A dama pálida”, constitui os quatro
últimos capítulos do livro Les Mille et un fantômes — Une journée
à Fontenay-aux-Roses, coletânea de histórias relacionadas com o
oculto, escrita com a colaboração de Paul Bocage e Paul Lacroix.
Essas histórias apareceram inicialmente no periódico Le
Constitutionnel, sendo publicadas como livro em 1849. Segundo o
próprio Dumas, o volume deveria ser o primeiro de uma série.
Nesta que é uma de suas poucas incursões na literatura
fantástica, Dumas conta uma visita que fez à vila de Fontenay-
aux-Roses, próxima a Paris, em 1831. Logo depois de sua chegada
ao lugar, um homem apresenta-se às autoridades e confessa em
público o assassinato da esposa. Aterrorizado, exige ser preso,
afirmando que, após ter decapitado a mulher, a cabeça separada
do corpo lhe havia falado. Dumas visita a cena do crime com o
prefeito, e constata-se que o crime de fato aconteceu. Mais tarde,
participa de um jantar em que cada convidado conta um caso
sobrenatural do qual tenha tomado parte. Essas histórias
compõem o livro, estruturado como um debate entre um médico
racionalista, que nega a existência de forças sobrenaturais, e o
prefeito e a maioria dos convidados, cujos relatos reafirmam a
existência delas.
A última história do livro foi publicada em inglês num volume
da coleção The Parlour Novelist com o título de “The Pale-Faced
Lady”. Curiosamente, uma versão mais curta, com Edwige e
Gregoriska casando-se no final, foi publicada em 1849 na revista
inglesa The New Monthly Magazine and Humorist, dentro de um
artigo anônimo que relatava casos sobrenaturais. Talvez seja a
tradução de uma versão mais antiga da história definitiva, já que
Dumas costumava reescrever e alongar seus escritos.
Dumas introduziu os montes Cárpatos como cenário da
literatura vampírica, embora implicitamente o personagem Urfé
já os tivesse cruzado em “A família do vurdalak”; o castelo dos
Brankovan não ficaria muito distante de Iassi, capital da
Moldávia e destino do personagem de Tolstói.
O texto era destinado à leitura pelo grande público, e Dumas
carregou nas tintas da religião — a espada sagrada, a força de
Deus empurrando o vampiro de volta ao túmulo, o percurso
fantástico ao final, a batalha contra a morte. A religião tem mais
destaque do que, por exemplo, no conto de Tolstói, em que tinha
um papel coadjuvante, um simples meio de detecção do vampiro.
Dumas acrescentou ao relato um movimento e uma ação
antes ausentes dos contos vampíricos, centrados basicamente no
horror evocado pela simples ideia de interagir com um vampiro.
Lançando mão dos relatos reunidos pelo padre beneditino
Augustin Calmet e divulgados por Prosper Mérimée na obra
pseudofolclórica A Guzla (1827),ele imprimiu à narrativa uma
dimensão épica até então desconhecida nas histórias de
vampiros.12 Fez a aventura prevalecer sobre o terror numa
história movimentada, com cenas que poderiam ter sido escritas
para um filme, se acaso o cinema já existisse à época. A bela
mocinha, o herói viril e o vilão sombrio envolvem-se em
perseguições, cenas românticas, encontros furtivos e duelos
emocionantes, repletos de frases de efeito e gestos teatrais. Não
há dúvida de que Dumas realmente sabia contar uma história!
Apesar de seu caráter tão cinematográfico, até onde sabemos
“A dama pálida” nunca foi adaptada para as telas.

1 Cidade ao sul de Varsóvia, às margens do rio Vístula, o mais importante da Polônia.


Sandomierz, em polonês. [N. T.]
2 Cadeia montanhosa da Europa Central, que forma um arco através da Eslováquia,
Hungria, Ucrânia e Romênia. [N. T.]
3 Primeira fábrica de armas da Rússia, chegou a ser o maior centro de fundição de
ferro no Leste europeu. [N. T.]
4 O pintor renascentista italiano Rafael (1483-1520). [N. T.]
5 No poema “Leonor” (1774), de Gottfried Bürger, a personagem-título é levada por um
espectro numa cavalgada que termina em um cemitério, onde ela descobre ser a
própria Morte quem a carregara. [N. T.]
6 Piotr Alekseievitch Románov (1672-1725), foi czar da Rússia e o primeiro imperador
do Império Russo, tendo governado de 1682 a 1725. [N. T.]
7 Os magiares são uma etnia que habita predominantemente a Hungria, mas também
outros países, em especial Romênia (na região da Transilvânia) e Eslováquia. [N. T.]
8 Referência a uma comenda conferida pelo Sultão Mamude II (1785-1839), que
governou o Império Otomano de 1808 até sua morte em 1839. Trata-se provavelmente
da Ordem da Glória (em turco, Nişan-i İftihar), a segunda mais elevada no Império
Otomano, instituída em 1831 como um reconhecimento ao mérito. [N. T.]
9 Godofredo de Villehardouin (c. 1150-c. 1212-18), cavaleiro e historiador francês, e
Balduíno, conde de Flandres (1172-1205), participaram da Quarta Cruzada, cujo
objetivo original de atacar o Islã foi abandonado em favor do saque e tomada da cidade
de Constantinopla, capital do Império Bizantino. Villehardouin escreveu Da conquista
de Constantinopla, um dos primeiros livros escritos em francês. Balduíno foi o
primeiro imperador do Império Latino de Constantinopla, em 1204-1205. [N. T.]
10 Referência à ópera Don Giovanni (1787), de Lorenzo da Ponte e Wolfgang Amadeus
Mozart, baseada no mito espanhol de dom Juan. Ao final da ópera, o libertino don
Giovanni é punido pelo fantasma do pai de uma das mulheres que seduziu, o
comendador don Pedro, assassinado por ele. [N. T.]
11 Christopher Frayling, 1991, p. 131-144.
12 Ricardo Ibarlucía & Valeria Castelló-Joubert, 2003, p. 262.
Manor
(1884)
Karl Heinrich Ulrichs

I
Bem no meio do oceano nórdico situa-se um grupo de 35 ilhas
solitárias e desoladas, equidistantes de Escócia, Islândia e
Noruega, que recebem o nome de Ilhas Féroe.1 São ilhas
desoladas, rochosas, envoltas em nuvens, onde os céus ressoam
com os gritos melancólicos das gaivotas em voo, cercadas por
ondas que se avolumam quase sempre debaixo de uma densa
neblina. As montanhas atingem alturas entre seiscentos e
novecentos metros acima do nível do mar. Há rochas escarpadas,
ravinas sombrias e densas florestas de pinheiros, milhares de
cascatas, que muitas vezes se precipitam de grandes alturas,
despencando de uma pedra a outra. Penhascos abismais tornam
praticamente inacessíveis as margens íngremes de baías e
fiordes. O mar, repleto de rochedos, que em alguns pontos o
bloqueiam por completo, lança-se em redemoinhos e correntes
violentas.2
Apenas dezessete das ilhas são habitadas. Dessas, Strömö e
Wagö3 são separadas só por um canal estreito, que um bom
nadador pode cruzar a nado. Os nomes de vários lugares
remontam a um passado distante em que não existiam igrejas
nas ilhas, e as crenças antigas ainda não haviam sido banidas.
Um exemplo é Thorshavn,4 na costa de Strömö, isto é, “a ilha da
força”.
Foi nessa época que um pescador e seu filho de quinze anos
partiram de Strömö em seu barco a remo. Formou-se uma
tempestade, e o barco deles virou, lançando o rapazinho contra a
costa rochosa de Wagö. Um jovem barqueiro, ao ver o que
acontecia, mergulhou nas ondas e nadou por entre as rochas até
alcançar o garoto que flutuava inerte. Levou-o até uma rocha,
sentou-se e o acomodou no colo, entre seus braços. O garoto
então abriu os olhos.
— Como você se chama? — perguntou o marinheiro.
— Har. Sou de Strömö.
Cruzando o canal no barco a remo, o barqueiro levou Har de
volta a Strömö, entregando-o a Lara, mãe do garoto. Ao se
despedirem, Har, agradecido, abraçou seu salvador. O corpo sem
vida de seu pai foi depois jogado à praia pelas ondas.
O nome do barqueiro era Manor. Era um órfão, quatro anos
mais velho que Har. Manor gostou do garoto, e ansiava revê-lo.
De tanto em tanto cruzava de barco o canal rumo a Strömö ou,
com a chegada do verão, vencia a nado as ondas cálidas, no fim
da tarde, depois de um dia de trabalho. Har ia até a costa, subia
em um rochedo e acenava com um lenço quando via o barquinho
de Manor aproximando-se. Passavam uma ou duas horas juntos,
remavam no mar sereno e cantavam canções de marinheiros. Ou
tiravam as roupas, mergulhavam nas ondas e nadavam até a
areia da praia mais próxima, espantando as focas que lá estavam
banhando-se ao sol. Ou penetravam nas escuras florestas de
pinheiros imponentes, cujos topos sussurrantes proclamavam a
linguagem de Thor; ou, ainda, sentavam-se em alguma pedra sob
a ramagem de uma velha faia, onde conversavam e faziam
planos. Sempre que algum baleeiro percorria o estreito com as
velas enfunadas, o desejo de ambos era estar a bordo. E
enquanto permaneciam ali, sentados naquela pedra, Manor
rodeava os ombros de Har com um braço e o chamava de “Min
Jong”, meu menino. O garoto nunca estivera mais à vontade do
que quando Manor o abraçava daquele modo. E, quando Manor
chegava tarde, ia em silêncio até o grande arbusto de lilás que
sombreava a janela de Har e batia no vidro. Har levantava e
esgueirava-se para fora da casa, indo ao encontro dele. Sentia-se
feliz na companhia de Manor.
II
Um dia, chegou um navio dinamarquês de três mastros, que
ancorou no porto de Wagö, em busca de marinheiros para uma
viagem de dois meses de caça à baleia. Manor subiu a bordo, e o
capitão de imediato aceitou o jovem esguio e ágil. Har ofereceu-
se como grumete. Ao saber, porém, Lara se lamentou:
— Você é meu único filho. O mar tomou de mim seu pai. Quer
também me abandonar?
Har ficou, e Manor se foi quando o navio levantou âncora.
Os dois meses se passaram, e o inverno retornou. Certa
manhã, Har subiu ao rochedo, olhou ao longe e, vendo o navio
aproximar-se, agitou com alegria o lenço. Era um dia
tempestuoso, porém, e as ondas estavam altas. O navio se dirigia
para a baía de Wagö, mas, incapaz de alcançar a ilha, foi
desviado de seu curso para os perigosos recifes de Strömö, e
naufragou diante dos olhos de Har. O rapaz testemunhou a luta
dos marinheiros lançados ao mar contra as ondas. Viu um dos
homens agarrar-se a uma prancha com o braço forte, mas um
instante depois o homem e a prancha foram tragados pelos
torvelinhos da arrebentação. Har conhecia aquele marinheiro.
Era Manor.
A maré alta levou muitos corpos à praia. Foram colocados
lado a lado na areia, estendidos sobre palha. Har ajudou a
examinar os corpos. Por fim o corpo de Manor também foi
trazido e disposto junto aos demais. Foi colocado diante de Har,
com os cabelos molhados, os olhos cerrados, frios, os lábios e
faces pálidos e exangues. O corpo esguio ainda era belo de ver,
mesmo na morte.
— Ah, Manor, como desejaria voltar a vê-lo! — exclamou Har,
jogando-se em prantos sobre o corpo amado, e, por um instante,
saboreou o prazer daquele abraço.
Os corpos foram transportados para o outro lado do estreito
e, no mesmo dia, foram enterrados nas dunas de areia de Wagö.
III
Naquela noite, em casa, Har permaneceu triste e calado. Lara
tentou reconfortá-lo, mas ele não queria ser consolado, e
amaldiçoou os deuses. Recolheu-se ao leito, mas não conseguiu
adormecer. Por volta da meia-noite, cochilou.
Foi então despertado por um ruído. Ergueu o olhar. O som
estava vindo do lado de fora da janela. Os ramos do arbusto de
lilás moveram-se e suas folha secas farfalharam. A janela se
abriu e por ela entrou um vulto que Har reconheceu. Apesar da
escuridão, de imediato soube quem era. O vulto ­aproximou-se
com passos lentos e deitou-se na cama a seu lado. Embora
tremesse de medo, Har não o deteve. Sentiu uma carícia nas
faces, mas a mão que o afagava era fria, oh, tão fria, tão fria!
Arrepios febris percorreram-lhe o corpo. Sua boca quente e
carnuda foi beijada por lábios gélidos. Ele sentiu as vestes
molhadas do vulto que o beijava, e cabelos úmidos roçaram sua
testa. O horror o inundou, mas havia nele uma mescla de prazer.
O vulto deu um suspiro, que lhe pareceu querer dizer: “A
saudade me trouxe até você. Não consigo encontrar paz no
túmulo!”.
Har não ousou dizer nada, e mal ousava respirar. A seguir o
vulto se levantou e suspirou, como se dissesse: “Devo agora
retornar”. Saiu pela janela e foi-se, assim como havia chegado.
— Manor esteve aqui — murmurou Har para si mesmo.
Naquela mesma noite, um pescador de Strömö percorria o
estreito em seu barco a remo. O mar cintilava.5 Fagulhas
gotejavam dos remos. Então, pouco antes da meia-noite, o
homem ouviu um barulho estranho. Viu algo se mover
rapidamente através das ondas luminosas, algo cujo formato não
conseguia distinguir e que se deslocava na direção de Strömö
com a velocidade de um grande peixe. Não era um peixe,
contudo; isso ele podia perceber apesar da escuridão.
Na noite seguinte, Manor retornou, tão gelado quanto na
primeira visita, mas agora mais intenso. Envolveu Har nos
braços frios, beijou-lhe as faces e a boca e descansou a cabeça
sobre o peito suave do garoto. Har tremia. Seu coração batia
forte com aquele abraço tão íntimo.
A cabeça de Manor repousava exatamente sobre o local onde
o coração de Har batia descompassado. Os lábios gelados
buscaram a suave protuberância do peito, que, logo acima do
coração, movia-se no ritmo da pulsação. Manor começou então a
sugar, ansioso e sedento, como um bebê no seio da mãe. Depois
de alguns instantes, porém, a intensidade arrefeceu. Ele se
levantou da cama e foi embora. Har sentia-se como se tivesse
sido sugado por algum animal.
Nessa noite, o pescador também estava atarefado no canal.
Exatamente na mesma hora de antes, ouviu de novo o barulho na
água, desta vez mais perto. À luz fraca da lua, conseguiu
distinguir que se tratava de um homem. Nadava sobre o lado
direito, como nadam às vezes os marinheiros, mas estava envolto
em uma mortalha. Parecia não notar em absoluto o pescador,
embora tivesse o rosto voltado para ele. Estava nadando de olhos
fechados. A visão perturbou-o tanto que o pescador recolheu as
redes sem sequer as ter aberto, e remou o barco de volta para a
terra.
Manor retornou nas noites seguintes. Às vezes abraçava o
jovem enquanto este se encontrava adormecido, pois vez por
outra Har era vencido pelo sono antes da vinda de Manor.
Nessas ocasiões, acordava entre os braços frios. E todas as noites
os lábios de Manor buscavam a delicada protuberância acima do
coração. À luz do dia, às vezes Har via uma gota diminuta de
sangue ainda brotando de seu mamilo esquerdo. Ele a limpava
com a camisa. Às vezes encontrava uma manchinha de sangue já
na camisa. Apenas na noite da lua cheia Manor deixou de
aparecer.
O morto com frequência é dominado por uma imensa saudade
de alguma pessoa amada que ficou para trás, e esse sentimento é
tão forte que ele abandona o túmulo durante a noite para ir até o
ente querido. Vem daí a velha crença de que, à meia-noite, Urd6
restitui a certas pessoas um breve período de vida, concedendo-
lhes então estranhos poderes do além-túmulo. Isso se dá
especialmente no caso de pessoas jovens, arrebatadas pela morte
de forma trágica quando ainda se encontram na flor da idade.
Aquele que retorna tem grande carência por sangue e calor
humanos. Assim, ele anseia pelo sangue fresco dos vivos e, como
um apaixonado, por seus abraços. Mas também demonstra
saudade intensa, e com isso muitas vezes provoca grande
angústia.
E foi o que aconteceu neste caso. Har passava o dia
atormentado, imerso em sua dor. Mas esperava a noite com
impaciência, ansiando pela sublime emoção do abraço da meia-
noite.
IV
Doze dias se passaram.
— Você está tão pálido, tão sem cor — disse Lara. — O que está
acontecendo, Har?
— Nada, mãe — respondeu ele.
— Você anda quieto demais.
Ele suspirou.
Na última casinha do vilarejo morava uma mulher velha e
sábia, que conhecia segredos de todos os tipos. Preocupada, a
mãe de Har foi vê-la. A mulher sábia lançou as varetas rúnicas.7
— Há um morto que o visita — disse ela.
— Um morto? — perguntou Lara.
— Sim, durante a noite — respondeu a mulher. — E alguém
morrerá se o visitante não for detido no momento certo, antes
que seja tarde demais.
Horrorizada, Lara voltou para casa.
— É verdade, Har, que você está sendo visitado por um morto?
— perguntou ao filho.
Ele baixou o olhar para o chão.
— Manor tem vindo aqui — murmurou ele, e lançou-se nos
braços da mãe, em prantos.
— Que os deuses tenham misericórdia de você — disse ela.
— Os deuses? — retrucou ele. — Oras! O que podem fazer por
mim agora? Quando ele se agarrou à prancha, ah, céus!, era
aquele o momento de me concederem sua graça, se tivessem essa
intenção. Mas deixaram que se afogasse, sem nenhuma
misericórdia. Como eu o amava!
Ela, então, notou as manchas de sangue na camisa dele.
Assim, foi até os anciãos do vilarejo. Eles cruzaram de barco o
canal, indo para Wagö, junto com Lara, seu filho e a velha sábia.
Disseram para os habitantes da ilha:
— As covas que vocês fizeram não estão bem fechadas. Um de
seus mortos sai todas as noites e vai até nossa ilha. Ele está
tomando o sangue deste rapaz.
A isso os habitantes de Wagö responderam:
— Sabemos uma forma de prendê-lo.
Então cortaram uma grande estaca de pinheiro, tão alta
quanto um homem e da grossura de um braço, e com um
machado a apararam de forma a ficar com quatro lados, tendo na
parte inferior uma ponta com o comprimento de um pé. A seguir
foram até as dunas onde estavam enterrados os marinheiros. Um
homem carregava a estaca, e outro levava um pesado machado.
Abriram a cova de Manor, onde ele jazia imóvel, envolto na
mortalha.
— Vejam! Ele ainda está do mesmo jeito que o colocamos —
exclamou um dos moradores de Wagö.
— Isso porque, ao voltar, ele sempre retoma a posição original
— disse a velha sábia.
— A face dele quase parece mais fresca do que antes — disse
outro habitante da ilha.
— Não é nenhuma surpresa — replicou a velha. — É por esse
motivo que Har está tão pálido.
Har pulou para dentro da cova e lançou-se sobre o corpo de
seu amado.
— Manor! Manor! — gritou o garoto, com voz assustada. —
Eles querem estaquear você, Manor, acorde! Abra os olhos! Seu
Har o está chamando!
Mas Manor não abriu os olhos. Permaneceu imóvel entre os
braços de Har, da mesma forma como o fizera doze dias antes,
estendido sobre a palha, na praia.
Har não queria soltá-lo, e foi necessário que o puxassem à
força. Apoiaram a ponta da estaca no peito de Manor. Com um
gemido, Har deu as costas à cena. Abraçou a mãe e escondeu o
rosto no ombro dela.
— Mãe! — exclamou o rapaz. — Por que fez isso comigo?
Ele ouviu o dorso plano do machado abater-se como um
martelo sobre a estaca, que gemeu. Um golpe pesado, seguido
por outro e por mais meia dúzia de golpes.
— Agora ele está preso! — exclamou um dos homens de Wagö.
— Isso deve impedir que continue saindo daí — disse outro.
Har foi carregado para longe, quase inconsciente.
— Agora ele vai deixar você em paz, meu filho amado — disse
Lara, quando já estavam de volta a sua cabana.
Ele foi triste para a cama.
— Ele não virá nunca mais — disse Har a si mesmo, cheio de
pesar.
Estava cansado e atordoado. Naquele estado de inquietação,
rolou de um lado a outro no leito. Os minutos passaram devagar
e as horas se arrastavam. A meia-noite chegou e o sono ainda
não havia cerrado suas pálpebras.
Ouça! O que foi isso? No arbusto de lilás... Mas não, era
impossível. Ainda assim! De novo, como antes, ele ouviu os
ramos do arbusto farfalharem. A janela se abriu. Manor
retornara. Har perdeu o fôlego. O corpo de Manor exibia no
peito um grande ferimento quadrado que lhe trespassava o corpo
até as costas. Ele se deitou ao lado de Har, abraçou-o e começou
a sugar, desta vez com ardor redobrado e muito maior
voracidade.
Naquela noite, porém, Lara estava desperta no aposento ao
lado e ouviu tudo, tremendo de medo. Pela manhã, bem cedo,
entrou no quarto de Har e foi até a cama.
— Meu pobre filho — disse ela. — Ele esteve aqui novamente,
não é?
— Sim, mãe. Ele esteve de novo aqui comigo — respondeu Har.
A cama estava toda manchada com o sangue morto que
escorrera do enorme ferimento.
V
Algumas horas depois, novamente um barco atravessou o
estreito rumo a Wagö. Desta vez, Har não estava a bordo.
Voltaram às dunas e abriram outra vez a cova. A estaca quadrada
ainda estava lá, mas não no peito de Manor. O morto estava
curvado ao redor da estaca, a qual impedia que ele se deitasse
com o corpo reto.
— Ele conseguiu se libertar — disse a mulher sábia. — A estaca
tem a mesma grossura do alto à base.
— Ele se contorceu e ergueu o corpo desde a parte de baixo
até em cima — comentou um morador de Wagö.
— Deve ter custado um esforço sobre-humano — disse outro.
Seguindo as instruções da mulher sábia, fizeram uma estaca
mais robusta, duas vezes mais grossa no alto do que na base,
parecendo um prego com uma cabeça. Arrancaram da cova a
estaca antiga e cravaram a nova em Manor.
— Ele está bem pregado agora — disse o homem que manejava
o machado, desferindo um último golpe contra a cabeça da
estaca.
— Pode se contorcer à vontade, mas não vai conseguir sair —
completou outro morador da ilha.
Lara voltou para casa e contou a Har o que havia acontecido.
— Agora tudo terminou — disse ele a si mesmo quando foi
para a cama.
Ficou lá deitado, sem conseguir dormir. A meia-noite chegou.
Tudo permaneceu mergulhado em silêncio. Nada agitou os
ramos do arbusto de lilás do lado de fora da janela. O pescador
não foi mais perturbado por nenhum nadador cruzando o canal
de olhos fechados.
— Agora ele vai deixar você em paz — disse Lara ao filho. —
Ele o atormentou demais.
— Mãe, ah, mãe! Ele não me atormentou! — exclamou o
garoto, consumido pela dor da saudade, pela esperança inútil. —
Mãe! Não tenho mais por que viver!
Ele havia definhado tanto que já não conseguia se levantar da
cama.
— Você está tão cansado, tão fraco, meu filho amado!
— Ele está me chamando para junto dele — sussurrou o rapaz.
Certa manhã, muito cedo, Lara estava sentada junto à cama
do filho, que ainda dormia. Um mês havia transcorrido desde o
naufrágio. Ela começou a chorar, e ele abriu os olhos.
— Mãe, eu tenho que morrer — disse ele, com voz débil.
— Oh, não, meu filho! Você é novo demais para morrer! —
protestou Lara.
— Sim, sim! Ele esteve comigo de novo. Nós conversamos. Nós
nos sentamos sobre uma pedra à sombra da velha faia na
floresta, como de costume; ele passou o braço ao redor de meus
ombros e me chamou de “Min Jong”. Ele vai voltar esta noite
para me buscar. Ele prometeu. Não consigo viver sem ele.
Lara debruçou-se sobre o filho, e suas lágrimas copiosas o
banharam.
— Meu pobre filho — lamentou-se ela, colocando a mão na
testa dele.
Quando a noite caiu, ela acendeu uma lamparina e ficou de
vigília junto ao leito do rapaz. Ele permaneceu ali prostrado,
imóvel e em silêncio, mas desperto, com o olhar perdido na
distância.
— Mãe! — exclamou ele.
— O que deseja, meu querido filho? — perguntou ela.
— Quero que me coloque na cova dele — pediu o rapaz. —
Faria isso por mim? E remova do peito dele aquela estaca
horrível.
Ela prometeu que o faria, apertando-lhe a mão, e o beijou.
— Ah, como será adorável repousar na cova com ele!
A meia-noite chegou. Subitamente transfigurado, ele ergueu
um pouco a cabeça, como que escutando algo. Com olhos
brilhantes, olhou pela janela, para os ramos do arbusto de lilás.
—Veja, mãe, ele está vindo!
Essas foram suas últimas palavras. A seguir, ele revirou os
olhos. Descaiu sobre os travesseiros e morreu.
E eles fizeram o que ele havia pedido.

Karl Heinrich Ulrichs (1825-1895) nasceu em Aurich, reino de


Hanover, que hoje integra a Alemanha. Ainda criança, percebia-
se mais feminino do que os demais garotos, e na adolescência
reconheceu sua atração por outros homens. Formou-se em
Direito e, em 1848, passou a atuar no serviço público, do qual
pediu demissão em 1854, para não sofrer sanções por sua
homossexualidade, que chegara à atenção de seus superiores.
Passou, então, a trabalhar como repórter de um importante
jornal e como secretário de políticos.
Pioneiro no movimento pelos direitos gays, foi autor da
primeira teoria científica sobre a homossexualidade (e de fato,
para alguns autores, da sexualidade como um todo8), que
começou a divulgar em 1863, publicando ao longo dos anos
seguintes uma série de estudos sobre o tema. Até então, a
homossexualidade era vista como um vício adquirido, e ele
propôs que tivesse origem inata. Argumentando pela
naturalidade da condição homossexual, ao demonstrar sua base
biológica Ulrichs buscava, sobretudo, proteger os gays de
perseguições legais, religiosas e sociais.9
Tendo assumido publicamente a luta pelos direitos dos
homossexuais, tornou-se o primeiro ativista gay de que se tem
notícia.10 Defendeu não só os direitos dos gays, mas também das
minorias étnicas e religiosas e das mulheres. Quando Hanover
foi anexado pela Prússia, em 1866, foi preso duas vezes por fazer
oposição pública ao domínio prussiano.
Pela postura combativa, Ulrichs enfrentou grande resistência
dentro do meio jurídico, na família e na sociedade. Foi preso
várias vezes, e seus escritos foram banidos de diversos estados
da Confederação Germânica. No Congresso de Juristas Alemães,
em 1867, foi vaiado ao pedir que as leis contra a
homossexualidade fossem revistas. Viu-se impedido pelo
governo de praticar a advocacia.
Em 1880, com o avanço da legislação contra os homossexuais,
e tendo a saúde debilitada, decidiu sair da Alemanha. Depois de
viajar pela Itália por vários anos, acabou se estabelecendo em
L’Aquila, na região central do país. Ali viveu até a morte, sem
nunca ter deixado de escrever, publicando suas obras por conta
própria. Foi nessa fase da vida que se dedicou à ficção e à
poesia.11
O grande legado de Ulrichs foi redescoberto na década de
1980. Tornou-se uma figura cult na Europa, e ruas de várias
cidades alemãs receberam seu nome. Todo ano seu aniversário é
comemorado na praça em Berlim batizada em sua homenagem, e
o cemitério em L’Aquila onde está enterrado é ponto de visitação.
Ulrichs publicou o conto “Manor” em 1885, na coletânea
Matrosengeschichten (“Histórias de marinheiros”). Em 1914,
houve uma nova impressão, por meio da qual décadas depois o
conto foi redescoberto, sendo incluído na edição da primavera de
1977 do periódico Schwuchtel: Eine Zeitung der Schwulenbewegung
[Schwuchtel: um jornal do movimento gay].
A narrativa combina aspectos tradicionais das histórias de
vampiro com inovações introduzidas por Ulrichs. São elementos
então já estabelecidos na ficção vampírica: o cadáver que
readquire vida ao sair de noite do túmulo para sugar o sangue
dos vivos, a palidez e a temperatura fria do corpo, a aparência
saudável do cadáver contrastando com o aspecto exaurido da
vítima, a força e o vigor físico do desmorto, o uso de estaca para
prender o cadáver no túmulo. Os detalhes peculiares ao conto
incluem a reanimação do morto pela norna Urd, a necessidade
de que a estaca tenha uma forma específica e o vampiro que suga
não o pescoço, mas o mamilo da vítima.
O maior ineditismo do conto, contudo, reside no fato de
vampiro e vítima serem ambos do sexo masculino, e com uma
ligação afetiva homossexual prévia. O retorno pós-morte de
Manor para junto de seu amado faz lembrar as noivas mortas tão
comuns na poesia e na prosa alemãs, com a devida adaptação de
Ulrichs para seu foco de interesse. Atualmente, “Manor” é
considerada a primeira história vampírica explicitamente gay.
É interessante perceber que a “vítima”, Har, só começa a
definhar depois de Manor ser estaqueado pela segunda vez
(quando aparentemente já não pode mais deixar o túmulo).
Assim, parece que a causa de sua morte não é o vampirismo em
si, mas o desejo de se juntar ao ente amado. Segundo um
estudioso da obra de Karl Heinrich Ulrichs, uma análise final do
conto não esclarece se a ligação entre homossexualidade e
vampirismo em “Manor” seria positiva ou negativa, e talvez seja
nisso que resida o fascínio da história.12
Tendo sido publicado e republicado dentro da comunidade
LGBTQIA+, o conto passou virtualmente inadvertido ao main­stream
vampírico, e permanece um tanto obscuro até os dias de hoje.
Com sua inclusão na presente antologia, esperamos tornar mais
conhecidos não só esse texto, por si só bastante interessante,
mas também a figura notável de Ulrichs e sua histórica luta pelo
direito à diversidade sexual.

1 As Ilhas Féroe, ou Faroés, constituem um arquipélago situado no Atlântico Norte,


entre a Noruega e a Islândia. São formadas, na verdade, por dezoito ilhas principais, e
pouco menos de 800 ilhas menores, ilhotas e rochedos. [N. T.]
2 A descrição das ilhas é razoavelmente fiel, exceto pelas florestas de pinheiros,
inexistentes nas Féroe. O arquipélago não tem árvores nativas e conta com pequenos
bosques de plantas introduzidas, em especial a partir do sul da América do Sul, cujo
clima é semelhante. [N. T.]
3 Nomes em alemão; na realidade, as ilhas são mais conhecidas pelos nomes feroeses
(respectivamente Streymoy e Vágar) e dinamarqueses (Strømø e Vågø). Streymoy é a
maior e mais populosa das ilhas. O canal que separa as duas ilhas varia entre 1 e 2,5
quilômetros de largura. [N. T.]
4 O nome Thorshavn (em dinamarquês) ou Torshávn (feroês) significa “porto de Thor”,
em alusão ao deus nórdico dos raios, trovões e tempestades. É a capital das Ilhas Féroe
desde 1866. [N. T.]
5 Há um fenômeno em que o mar emite uma claridade fosforescente, em decorrência
da presença de grande quantidade de organismos planctônicos bioluminescentes, isto
é, diminutos seres vivos que flutuam livres nas águas e que produzem luminosidade.
[N. T.]
6 Na mitologia nórdica, era uma das três nornas, divindades que teciam o destino dos
seres. Urd era a anciã guardiã do passado; Verdandi, a mãe, era a vigia do presente; e
Skuld, a jovem, controlava o destino. [N. T.]
7 Varinhas com runas inscritas, utilizadas em adivinhações dentro da cultura nórdica.
[N. T.]
8 Kennedy, 1997, p. 26.
9 Em seus escritos, Ulrichs não usava o termo “homossexual”, ainda inexistente no
início de sua ação ativista. Incidentalmente, acredita-se que o primeiro uso
documentado das palavras “homossexual” e “heterossexual” está na carta enviada a
Ulrichs, em maio de 1868, pelo escritor austríaco Karl Maria Kertbeny (1824-1882).
10 Simon LeVay, 1996.
11 Michael Lombardi-Nash, 2000.
12 Michael Lombardi-Nash, 2000.
O Horla
(primeira versão, 1886)
Guy de Maupassant

O doutor Marrande, o mais ilustre e eminente dos alienistas,


pedira a três de seus colegas e a quatro estudiosos das ciências
naturais que passassem uma hora em sua companhia, no
sanatório que dirigia, pois desejava que conhecessem um de seus
pacientes.
Assim que os amigos estavam reunidos, disse-lhes:
— Apresentarei a vocês o caso mais incomum e inquietante
com que já deparei. Na verdade, nada lhes direi sobre meu
paciente. Ele falará por si.
Então o doutor tocou uma campainha. Um funcionário fez
entrar um homem. Era excessivamente magro, de uma magreza
cadavérica, como são magros alguns loucos obcecados por um
pensamento, pois o pensamento doentio devora a carne do corpo
mais que a febre ou a tísica.
Tendo cumprimentado os presentes e se acomodado em uma
cadeira, o enfermo começou seu relato.
Senhores, sei por que estão aqui reunidos, e estou pronto
para contar-lhes minha história, como me foi pedido por meu
amigo, o doutor Marrande. Por muito tempo ele acreditou que eu
estivesse louco. Hoje, duvida. Em breve todos vocês saberão que
meu espírito é tão sadio e tão lúcido quanto os de vocês, para
minha infelicidade, para a sua e para a de toda a humanidade.
Mas começarei pelos fatos, pelos fatos puros e simples. Ei-los.
Tenho 42 anos. Não sou casado, e minha riqueza é suficiente
para que eu viva com algum luxo. Assim, moro em uma
propriedade às margens do Sena, em Biessard, próximo a Rouen.
Amo a caça e a pesca. Tenho, nos fundos de minha propriedade,
acima dos grandes penhascos que dominam minha casa, a
floresta de Roumare, uma das mais exuberantes da França, e à
minha frente está um dos mais belos rios do mundo.
Minha morada é ampla, pintada de branco por fora, bonita,
antiga, e situa-se em meio a um grande jardim com árvores
magníficas, que se estende até a floresta, subindo pelos
penhascos enormes que acabo de mencionar.
Minha criadagem compõe-se, melhor dizendo, compunha-se
de um cocheiro, um jardineiro, um criado de quarto, uma
cozinheira e uma arrumadeira que também fazia as vezes de
governanta. Todos estavam comigo fazia entre dez e dezesseis
anos, e, portanto, conheciam-me bem: conheciam minha casa, a
região, tudo o que compunha minha vida. Eram empregados
bons e tranquilos. Isso é relevante para o que contarei.
Acrescento que o Sena, que margeia meu jardim, é navegável
até Rouen, como sabem, e que eu via passar todos os dias
grandes embarcações, tanto a vela quanto a vapor, provenientes
de todos os cantos do mundo.
Bem, fez um ano, no outono passado, que fui de súbito
acometido por sintomas estranhos e inexplicáveis. Primeiro,
uma espécie de inquietação nervosa que me mantinha insone
noites inteiras; uma excitação tão intensa que o menor ruído me
fazia estremecer. Meu humor tornou-se ácido. Sofria de cóleras
repentinas incompreensíveis. Chamei um médico, que me
receitou brometo de potássio e duchas.
Assim, passei a tomar duchas da manhã à noite e a medicar-
me com brometo. Com efeito, logo voltei a dormir, mas era um
sono mais terrível que a insônia. Apenas me deitava, fechava os
olhos e perdia os sentidos. Sim, eu caía no nada, um nada
absoluto, uma morte do ser por inteiro, na qual era dominado de
um golpe, horrivelmente, pela sensação apavorante de um peso
esmagador sobre o peito, e de uma boca que, sobre a minha, me
sugava a vida. Oh, esses pesadelos!; não conheço nada que seja
tão apavorante.
Imaginem um homem que está sendo assassinado enquanto
dorme, e desperta com a faca na garganta; que se contorce
coberto de sangue, e que não consegue respirar, e que vai
morrer, e que não entende o que está acontecendo... Assim era!
Emagreci de forma inquietante, contínua, e pareceu-me de
repente que meu cocheiro, um homem bastante gordo, começava
também a emagrecer, como eu.
— O que você tem, Jean? — perguntei-lhe, por fim. — Está
doente?
— Creio que peguei a mesma doença que o senhor —
respondeu ele. — São as noites que me arruínam os dias.
Pensei, então, que houvesse dentro da casa alguma influência
febril em virtude da vizinhança do rio, e estava para me afastar
de lá por dois ou três meses, apesar de estarmos em plena
estação de caça, quando um pequeno fato incomum, observado
por acaso, levou-me a uma sequência de descobertas tão
inverossímeis, fantásticas e assustadoras que resolvi ficar.
Sentindo sede, certa noite, bebi meio copo de água e notei que
a jarra, pousada sobre a cômoda na frente de minha cama,
estava cheia até a rolha de cristal.
Tive, durante a noite, um desses sonhos terríveis de que lhes
falei. Acendi uma vela, tomado de uma angústia indescritível, e,
como quisesse outra vez tomar água, percebi com assombro que
a jarra estava vazia. Não podia crer em meus olhos. Ou alguém
havia entrado em meu quarto, ou eu era um sonâmbulo.
Na noite seguinte, quis tirar a prova. Assim, tranquei minha
porta a chave, para garantir que ninguém poderia entrar no
quarto. Adormeci e despertei como todas as noites. Alguém
bebera toda a água que eu tinha visto duas horas antes.
Quem havia bebido aquela água? Eu, sem dúvida; e, no
entanto, estava certo, absolutamente certo de não ter feito um
movimento sequer durante meu sono profundo e doloroso.
Então recorri a estratagemas para me convencer de que não
tinha realizado tais atos inconscientes. Uma noite coloquei, ao
lado da jarra, uma garrafa de vinho tinto, uma xícara de leite, ao
qual tenho horror, e bolos de chocolate, que adoro.
O vinho e os bolos continuavam intactos. O leite e a água
desapareceram. A partir de então, a cada noite eu trocava as
bebidas e os alimentos. Jamais os produtos sólidos ou compactos
foram tocados, e quanto aos líquidos não foram bebidos senão
leite fresco e, sobretudo, água.
No entanto, a dúvida pungente permanecia em minha alma.
Não seria eu que me levantava, sem ter consciência disso, e que
bebia mesmo aquilo que detestava, porque meus sentidos,
entorpecidos pelo sono sonambúlico, poderiam ter sido
alterados e perdido suas repugnâncias habituais, adquirindo
gostos diferentes?
Dessa forma, fiz uso de um novo ardil contra mim mesmo.
Envolvi com musselina branca todos os objetos que
infalivelmente seriam tocados e os recobri ainda com um
guardanapo de cambraia.
Depois, no momento de deitar-me, esfreguei grafite nas mãos,
nos lábios e no bigode.
Quando despertei, todos os objetos continuavam imaculados,
apesar de terem sido tocados, pois o guardanapo não estava na
mesma posição em que eu o pusera; além do mais, a água e o
leite haviam sido bebidos. Ora, a porta fechada com chave de
segurança e as janelas que por prudência trancara a cadeado
não teriam permitido a entrada de ninguém.
Foi então que me fiz uma pergunta temível: quem estava ali,
todas as noites, junto comigo?
Percebo, senhores, que lhes conto tudo isso depressa demais.
Vocês sorriem, a opinião dos senhores já está formada: “É um
louco”. Eu deveria lhes ter descrito com mais detalhes a emoção
de um homem que, trancado em casa e sabendo-se são de
espírito, percebe, através do vidro de uma jarra, que a água
desaparece enquanto ele dorme. Deveria tê-los feito- ­
compreender a tortura renovada a cada noite e a cada manhã, e
o sono invencível, e os despertares ainda mais apavorantes.
Mas prossigo.
Inesperadamente, o milagre cessou. Nada mais foi tocado
dentro de meu quarto. Havia terminado. Eu me sentia melhor,
aliás. Minha alegria retornava quando soube que um dos
vizinhos, o senhor Legite, encontrava-se exatamente no mesmo
estado em que eu estivera. Voltei a pensar em alguma influência
febril na região. Meu cocheiro me havia deixado fazia um mês,
muito adoentado.
O inverno tinha passado, a primavera começava. Certa
manhã, enquanto caminhava perto de meu canteiro de roseiras,
eu vi, distintamente, bem perto de mim, a haste de uma das rosas
mais belas partir-se como se colhida por mão invisível; depois, a
flor acompanhou a curva que seria descrita por um braço que a
levasse à boca, e ficou suspensa no ar transparente, por si só,
imóvel, assustadora, a três passos de meus olhos.
Tomado de um espanto insano, lancei-me sobre ela para
agarrá-la. Não achei nada. Havia desaparecido. Fui dominado,
então, por uma cólera imensa contra mim mesmo. Era
inadmissível que um homem lúcido e sério tivesse semelhantes
alucinações!
Mas teria sido de fato uma alucinação? Procurei pela haste.
Encontrei-a de imediato, recém-cortada, no alto do arbusto,
entre duas outras rosas que restavam no ramo; antes eram três,
e isso eu vira perfeitamente.
Voltei em seguida para casa, com a alma transtornada.
Senhores, escutem-me, eu sou calmo; não acredito no
sobrenatural, nem mesmo hoje eu acredito. No entanto, a partir
daquele momento, tive a certeza, a mesma certeza de que existe o
dia e existe a noite, de que perto de mim havia um ser invisível
que me havia assombrado, que havia partido e que retornara.
Pouco depois, tive a prova disso.
Entre meus criados, antes rebentavam todos os dias
discussões acaloradas por mil motivos que antes pareciam fúteis,
mas que dali em diante fizeram todo o sentido para mim.
Um copo, um belo copo de Veneza, quebrou-se sozinho sobre
o aparador da sala de jantar em pleno dia.
O criado de quarto acusou a cozinheira, que acusou a
arrumadeira, que acusou não sei quem.
As portas que haviam sido fechadas de noite apareciam
abertas de manhã. O leite era roubado, toda noite, dentro da
despensa. Ah!
O que era? De que natureza? Uma curiosidade crescente,
temperada com cólera e espanto, mantinha-me dia e noite num
estado de extrema agitação.
Mas a casa voltou a ficar tranquila; e eu de novo acreditava
em sonhos quando aconteceu o que contarei a seguir.
Era 20 de julho, às nove da noite. Fazia muito calor. Eu
deixara a janela escancarada, a lamparina acesa sobre a mesa
iluminando um livro de Musset aberto na Nuit de Mai.1 Eu estava
estirado em uma grande poltrona, onde adormecera.
Ora, tendo dormido cerca de quarenta minutos, abri os olhos,
sem fazer um movimento, despertado por alguma emoção
confusa e estranha. Nada vi a princípio, mas de repente pareceu-
me que uma página do livro havia virado sozinha. Nenhuma
brisa havia entrado pela janela. Fiquei surpreso e esperei.
Passados uns quatro minutos eu vi, vi, sim, eu vi, senhores, com
meus olhos, outra página erguer-se e descair sobre a precedente,
como se um dedo a folheasse. Minha cadeira parecia vazia, mas
compreendi que ele estava lá, ele! Cruzei o quarto de um salto
para pegá-lo, para tocá-lo, para agarrá-lo, se isso fosse possível...
Mas, antes que eu a alcançasse, a cadeira tombou, como se
alguém fugisse diante de mim. A lamparina também caiu e se
apagou, com o vidro ­partido. A janela, bruscamente empurrada
como se um gatuno a tivesse agarrado ao fugir, chocou-se contra
o suporte... Ah!
Joguei-me sobre a campainha e a fiz soar. Quando meu criado
de quarto apareceu, eu lhe disse:
— Derrubei e quebrei tudo. Traga-me outra luz.
Não dormi mais naquela noite. E, no entanto, eu poderia ter
sido, uma vez mais, ludibriado por uma ilusão. Ao despertar,
meus sentidos estavam perturbados. Não teria sido eu quem
derrubara a cadeira e a luz, quando me precipitei como um
louco?
Não, não havia sido eu! Eu o sabia sem duvidar um segundo.
No entanto, eu queria acreditar nisso.
Esperem. O Ser! Como poderia chamá-lo? O Invisível. Não,
não era suficiente. Eu o batizei Horla.2 Por quê? Não sei. Desde
então o Horla não me deixou mais. Dia e noite tinha a sensação,
a certeza da presença desse vizinho impalpável, e também a
certeza de que ele exauria minha vida, hora a hora, minuto a
minuto.
A impossibilidade de vê-lo me exasperava, e eu acendia todas
as luzes de meu aposento, como se pudesse, com essa claridade,
revelá-lo.
Eu o vi, afinal.
Vocês não acreditam em mim. No entanto, eu o vi. Eu estava
sentado diante de um livro qualquer, sem ler, mas espreitando,
com todos os meus sentidos aguçados ao extremo, espreitando
aquele que sentia perto de mim. Por certo ele estava lá. Mas
onde? Que fazia? Como alcançá-lo?
Diante de mim, minha cama, um velho leito de carvalho com
dossel. À direita, a chaminé. À esquerda, a porta que havia
fechado com cuidado. Detrás de mim, um grande armário com
espelho do qual todo dia fazia uso para barbear-me, vestir-me e
onde tinha o costume de olhar-me da cabeça aos pés cada vez
que passava diante dele.
Assim, eu fingia ler, para ludibriá-lo, pois ele também me
espionava. De repente, senti, tive a certeza de que ele lia por
cima de meu ombro, que estava ali, junto à minha orelha.
Levantei-me, virando-me tão rápido que quase caí. Pois bem!
Enxergava-se como em pleno dia... e não me vi em meu espelho!
Ele estava vazio, limpo, pleno de luz. Minha imagem não estava
lá, e eu estava de frente para ele. Só via o grande vidro, límpido
de cima a baixo! Olhava com olhos enlouquecidos, e não ousava
avançar, sentindo que ele se encontrava entre nós, ele, e que ele
ainda me escapava, mas que seu corpo imperceptível tinha
absorvido meu reflexo.
Como senti medo! Eis que, de repente, comecei a distinguir
minha imagem em meio a uma bruma no fundo do espelho, em
meio à bruma como que através de uma cortina de água. Parecia-
me que essa água deslizava da esquerda para a direita,
lentamente, deixando minha imagem mais nítida a cada segundo.
Foi como o fim de um eclipse. Aquilo que me ocultara não
parecia ter contornos precisos, mas uma espécie de
transparência opaca que aos poucos ia clareando.
Por fim, consegui distinguir-me completamente, da mesma
forma como o fazia ao me olhar todos os dias.
Eu o vira. O terror persistiu em mim, e até hoje me faz
estremecer.
No dia seguinte eu já estava aqui, onde implorei que me
dessem abrigo.
Agora, senhores, concluo a narrativa.
— O doutor Marrande, depois de duvidar por muito tempo,
decidiu-se a realizar, sozinho, uma viagem por minha região —
disse o enfermo. — Três vizinhos meus estão neste momento
como eu estive. Não é verdade?
O médico respondeu:
— É verdade!
— O senhor recomendou-lhes que deixassem água e leite
todas as noites em seus quartos para verificar se desapareciam.
Meus vizinhos assim o fizeram. Esses líquidos não
desapareceram, como em minha casa?
O médico respondeu com uma gravidade solene.
— Sim, desapareceram.
— Portanto, senhores, um Ser, um Ser novo, que certamente
vai se multiplicar como nós nos multiplicamos, acaba de surgir
sobre a Terra.
“Ah, vocês sorriem! Por quê? Porque esse Ser permanece
invisível. No entanto, senhores, nosso olho é um órgão de tal
forma elementar que apenas consegue distinguir aquilo que é
indispensável à nossa existência. O que é pequeno demais lhe
escapa, o que é grande demais lhe escapa, o que está longe
demais lhe escapa. Ele ignora os animais que vivem dentro de
uma gota de água. Ele ignora os habitantes, as plantas e o solo
das estrelas vizinhas; ele nem sequer vê o que é transparente.
“Coloquem diante dele um espelho perfeito, sem moldura.
Nosso olho não o distinguirá e nos lançará sobre ele, como uma
ave aprisionada numa casa, chocando-se contra as vidraças. Ele
não vê os corpos sólidos e transparentes que existem; não vê o ar
do qual nos nutrimos, não vê o vento que é a maior força da
natureza, que derruba os homens, destrói edifícios, arranca
árvores, eleva o mar em montanhas de água que esfacelam as
falésias de granito.
“Por que causaria espanto que nosso olho não visse um corpo
novo, ao qual falta a propriedade de deter os raios luminosos?
“Vocês veem a eletricidade? E, contudo, ela existe!
“Esse ser, que denominei Horla, existe também.
“O que é? Senhores, ele é aquele que a Terra aguarda depois
do homem! Aquele que veio para nos destronar, subjugar,
domesticar e, talvez, alimentar-se de nós, como fazemos com
bois e javalis.
“Ao longo dos séculos é pressentido, temido, anunciado. O
medo do invisível sempre assombrou nossos ancestrais.
“Ele chegou.
“Todas as lendas de fadas, gnomos, criaturas aladas
incorpóreas e daninhas — é a ele que elas se referem. Ele,
adivinhado pelo homem inquieto e já trêmulo.
“E tudo aquilo que os senhores mesmos fazem há tantos anos,
aquilo que denominam hipnotismo, sugestão, magnetismo — é
ele que os senhores anunciam, que os senhores profetizam.
“Digo-lhes que ele chegou. Vagueia inquieto como os
primeiros homens, ainda ignorante de sua força e sua potência,
que conhecerá em breve, muito em breve.
“E eis aqui, senhores, para terminar, um fragmento de jornal
que caiu em minhas mãos e que veio do Rio de Janeiro. Leio-
lhes: ‘Uma espécie de epidemia de loucura parece grassar já há
algum tempo na província de São Paulo. Os habitantes de
diversas vilas fugiram, abandonando terras e residências,
afirmando terem sido perseguidos e atacados por vampiros
invisíveis que se alimentavam de seu alento durante o sono, e
que não bebiam nada além de água e ocasionalmente leite!’.
“Acrescento: alguns dias antes do primeiro ataque do mal que
quase me matou, lembro-me perfeitamente de ter visto passar
um grande navio brasileiro de três mastros, com a bandeira
desfraldada. Contei-lhes que minha casa fica à beira do rio, toda
branca. Ele estava escondido nesse navio, certamente.
“Nada mais tenho a acrescentar, senhores.”
O doutor Marrande ergueu-se e murmurou:
— Eu tampouco. Não sei se este homem está louco ou se
somos nós dois que o estamos... ou se... nosso sucessor de fato
acaba de chegar.
26 de outubro de 1886

Henri-René-Albert-Guy de Maupassant (1850-1893), aclamado


escritor francês, nasceu e cresceu na Normandia, serviu na
guerra franco-prussiana entre 1870 e 1872 e depois foi para
Paris, onde estudou Direito.
Teve grande influência do escritor Gustave Flaubert (1821-
1880), de quem foi protegido e aprendiz literário. Com ele
aprendeu muito sobre estilo, como o rigor na composição, a
impessoalidade, exatidão, a relativização dos pontos de vista
narrativos e o gosto por finais abertos. Em 1878, passou a
escrever para jornais importantes, como Le Figaro e Gil Blas,
dedicando-se à ficção nas horas livres.
O conto “Bola de sebo” (1880), publicado numa antologia
organizada por Émile Zola, valeu-lhe reconhecimento por parte
do público e foi o ponto de partida para uma carreira de sucesso.
Entre suas obras de maior êxito destacam-se os contos
“Mademoiselle Fifi” (1882) e “Dois amigos” (1882), as antologias
Pensão Tellier (1881) e Contos da galinhola (1883), e os romances
Uma vida (1883), Bel-Ami (1885), Pedro e João (1888) e Forte como a
morte (1889). Produziu cerca de trezentos contos, além de seis
romances e ainda crônicas de viagens.
Nos últimos anos de vida tornou-se solitário, desenvolvendo
um medo constante da morte e mania de perseguição. Como
decorrência da sífilis contraída na juventude, começou a sofrer
de perda de memória, cegueira e alucinações. Depois de tentar o
suicídio, foi internado numa casa de repouso parisiense, onde
morreu em 1893, aos 43 anos.
Considerado um dos criadores do conto moderno, sua
importância não se limitou à literatura francesa, tendo servido
como modelo, por exemplo, para Somerset Maugham e O. Henry.
Seus contos constituíram o modelo mais tarde seguido pelo
movimento Naturalista da literatura, que se aproximava dos
problemas da sociedade para contá-los de modo isento, sem
deixar de lado a qualidade literária.
Dava grande atenção aos detalhes, num estilo conciso e
econômico sem espaço para longas caracterizações psicológicas,
privilegiando a descrição precisa, por vezes até brutal, da
realidade. Seus personagens parecem atores de uma tragédia
grega, lutando contra o destino para serem vencidos ao final. A
visão pessimista pode ter resultado dos males que sofria e da
certeza de sofrer de problemas mentais, recorrentes em sua
família.
Maupassant tinha livre trânsito tanto pela escrita realista
quanto pelo fantástico e sobrenatural, que o fascinavam e que
frequentemente aparecem como sintomas da mente perturbada
de seus personagens. Também o interesse pela recém-surgida
psiquiatria transparece em sua ficção.
O conto “Le Horla”, publicado em 1887 na coletânea de mesmo
nome, é uma das obras mais conhecidas do autor. Na forma de
diário, o narrador descreve, em datas sucessivas, o aumento
gradual de sua obsessão e a intensificação daquilo que pode ser a
atividade de um ser sobrenatural ou a manifestação de sua
loucura crescente.
Bem menos conhecida é a primeira versão do conto,
publicada com o mesmo nome no periódico Gil Blas, em outubro
de 1886, e escolhida para o presente livro. Essa primeira versão é
mais sucinta e direta, e está na forma da demonstração de um
caso clínico por um médico ante seus pares. Maupassant
encontrou a inspiração para esse cenário nas aulas dadas pelo
neurologista e pesquisador francês Jean-Martin Charcot, às
quais assistiu, fascinado, de 1885 a 1886.3
Em “O Horla”, o vampiro é visto à luz das teorias médicas da
época; L. F. Calmeil, por exemplo, em 1845 afirmou que o
vampirismo era uma “espectropatia”, um tipo de alucinação que
afetava ao mesmo tempo toda uma família ou comunidade. As
sensações descritas no conto e as ações do personagem
assemelham-se ao relato de Calmeil sobre uma de suas
pacientes, “uma monomaníaca que exibia os principais sintomas
do vampirismo”.4
Ao transpor a essência vampírica para um ser invisível,
Maupassant segue a tendência do final do século 19, de
fragmentação do modelo tradicional do vampiro, que assume
formas não humanas de acordo com a imaginação de cada autor.
Assim, H. G. Wells transformou-o em planta (“A floração da
estranha orquídea”), e Phil Robinson, num animal
extraordinário (“O último dos vampiros”).
“O Horla” marca, também, a estreia do vampiro dentro da
ficção científica, principalmente por sua fundamentação nas
teorias científicas de então. O tratamento do tema deixa de ser
folclórico e passa a refletir a racionalidade que era moda entre a
elite cultural. Além disso, na segunda versão do conto, de 1887, o
ser invisível torna-se um extraterrestre, contituindo-se o
primeiro vampiro proveniente do espaço.
Alguns estudiosos veem em “O Horla” um prenúncio da
loucura do próprio autor, mas a insanidade e a obsessão foram
temas presentes desde o início de sua obra. De qualquer modo, o
conto tem uma qualidade quase profética, pois alguns anos
depois a saúde mental de Maupassant ficou comprometida pelo
sofrimento físico e pela dor.
Para o leitor brasileiro, um detalhe muito interessante é a
introdução do Brasil no mapa das ocorrências vampíricas. A
epidemia de loucura começa na província de São Paulo e dali
embarca para a Europa num navio brasileiro. O evento faz
lembrar a cena em que, uma década depois, Drácula chega como
clandestino à Inglaterra desenvolvida e civilizada, vindo de uma
terra “mais primitiva”, Transilvânia, literalmente “o país além da
floresta”.
Uma versão cinematográfica de “O Horla” foi lançada em
1963, Diary of a Madman, (direção de Reginald Le Borg, com
Vincent Price e Nancy Kovack).

1 “Noite de maio” (1835), um longo poema em que Alfred de Musset descreve como o
poeta é visitado por sua musa, “espectro insaciável”. [N. T.]
2 Há várias hipóteses para a origem do nome: entre outras, pode vir de hors lá, isto é,
“lá fora”, ou de horsain, “estrangeiro” no dialeto da Normandia. [N. T.]
3 O conto “Carta de um louco” (“Lettre d’un fou”, 1885) pode ser considerado um
esboço anterior às duas versões de “O Horla”.
4 L.-F. Calmeil, 1845, p. 433.
Um mistério
da Campagna
(1887)
Anne Crawford

I
O relato de Martin Detaille
sobre o que se passou na Vigna Marziali
Neste instante, a voz de Marcello está me importunando, talvez
porque, depois de anos de separação, voltei a encontrar-me com
um velho conhecido, que tomou parte de sua estranha história.
Sinto o impulso de contá-la, e pedi a monsieur Sutton que me
ajudasse. À época, ele tomou nota dos acontecimentos, e está
disposto a colaborar comigo para que Marcello seja relembrado.
Num dia de primavera, Marcello apareceu em meu pequeno
estúdio cercado pelos loureiros e verdes aleias da Villa Medici.
— Venha, mon enfant.1 Deixe de lado suas tintas — disse ele, e
sem cerimônia alguma tirou a paleta de minha mão. — Tenho
uma carruagem esperando lá fora, e vamos em busca de um
refúgio.
Enquanto falava, ele ia lavando os pincéis, e isso amoleceu
meu coração, pois é algo que odeio fazer. Despiu-me da jaqueta
de veludo e tirou, de um prego na parede, meu casaco mais
apresentável. Deixei que me vestisse como a uma criança. Ele
sempre fazia o que queria, e sabia disso; e num instante
estávamos instalados na carruagem, percorrendo a Via Sistina
rumo à Porta San Giovanni, conforme suas instruções ao
cocheiro.
Conto a história como posso porque, embora meus
companheiros, que não sabem direito o que dizem, já me tenham
afirmado que falo bem o inglês, escrever é algo bem diferente.
Monsieur Sutton pediu-me que utilizasse seu idioma, pois já
esqueceu tanto do meu que não tem mais confiança para usá-lo,
mas prometeu corrigir meus erros, de forma que o que tenho
para contar não soe ridículo e faça as pessoas rirem ao ler sobre
Marcello. Argumento que quero escrever isto para meus
conterrâneos, não para os dele; mas ele me lembra que Marcello
tinha muitos amigos ingleses que ainda vivem, e que os ingleses
não se esquecem como nós. É inútil discutir com monsieur
Sutton, pois, como nós, tampouco eles cedem e, portanto,
concordei em fazer-lhe a vontade. Penso que ele tem algum
motivo que não me revela, mas não importa. Traduzirei tudo
para meu idioma, para minha própria gente. Para mim, as frases
inglesas parecem sempre andar de lado, ou olhar à volta da
esquina, ou ficar de ponta-cabeça, e têm tantas pequenas caudas
como uma pipa. Tentarei não recorrer ao meu próprio idioma,
mas ele terá de me desculpar se eu me esquecer. Pode ter certeza
de que não o faço para ofendê-lo. Agora que já me expliquei,
deixem-me prosseguir.
Ao sairmos pela Porta San Giovanni, o cocheiro conduzia o
mais devagar possível; mas Marcello nunca foi prático. Como
poderia, pergunto-lhes, tendo uma ópera na cabeça? Assim, nós
nos arrastávamos pelo caminho, e ele mantinha um olhar
sonhador diante de si. Finalmente, quando alcançamos o ponto
onde começavam os casarios e vinhedos, ele passou a olhar ao
redor.
Vocês sabem como são as coisas por lá; portões de ferro
encimados por nomes ou iniciais enferrujados e, para além
deles, caminhos retos margeados de rosas e lavanda, guiando até
alguma casinha triste, com árvores atrás e um suave descampado
estendendo-se até a Campagna,2 numa solidão suficiente para
que ninguém possa ouvir se você for assassinado ali. Paramos
em vários portões desses, e Marcello os examinou, mas nenhum
local lhe agradou. Ele parecia não duvidar de que acharia algo de
seu gosto, mas não estava sendo o caso. Descia da carruagem,
corria até o portão e retornava dizendo:
— O formato daquelas janelas perturbaria minha inspiração.
Ou:
— Aquela pintura amarela arruinaria meu dueto no segundo
ato.
Uma vez chegou a aprovar o aspecto da casa, mas no caminho
cresciam calêndulas, que ele detestava. E assim prosseguimos e
prosseguimos, até o momento em que achei que não
encontraríamos mais nada para recusar. Por fim, encontramos
um lugar que lhe pareceu adequado, embora fosse muito isolado,
e ocorreu-me que seria muito agaçant3 viver tão longe do mundo,
tendo por única companhia oliveiras melancólicas e carvalhos-
verdes — azinheiras, como vocês os chamam.
— Viverei aqui e serei famoso! — disse ele, decidido, enquanto
puxava a haste de metal que fazia soar um grande sino do lado de
dentro.
Esperamos, e ele a puxou de novo, impaciente, e bateu o pé.
— Ninguém vive aqui, mon vieux!4 Vamos, está ficando tarde e
está tão úmido, e você sabe que, para minha voz tenor, a
umidade...
Ele bateu o pé de novo e me interrompeu, irritado.
— Desde quando você tem voz tenor? Você é um idiota! Um
baixo seria mais sensato; nada pode lhe fazer mal. Você não tem
nada, e ainda se diz meu amigo! Vá embora sem mim. —Como eu
poderia fazê-lo, sendo tão longe para ir a pé? — Vá e cante
canções apaixonadas para suas inglesinhas magricelas! Elas lhe
agradecerão com uma xícara de chá horroroso, e você vai se
sentir no paraíso! Este aqui é o meu paraíso, e aqui ficarei até
que um anjo venha abri-lo para mim.
Ele estava contrariado e agindo de modo irracional, e esses
eram os momentos em que se tornava mais adorável, de forma
que esperei, e envolvi a garganta com meu lenço, e cantei uma ou
duas passagens apenas para evitar que a umidade do ar me
afetasse a voz.
— Cale-se! Fique quieto — gritou ele. — Não consigo ouvir se
vem gente.
Finalmente alguém surgiu, um vigia de aspecto rude, um
guardiano, como são chamados aqui, que nos olhou como se
fôssemos doidos. Um de nós certamente era, e não era eu.
Marcello falava um italiano bastante bom, com sotaque francês,
é verdade, mas o homem o entendeu, em especial quando ele
ergueu a bolsa. Ouvi-o enquanto proferia uma enxurrada
impetuosa de motivos persuasivos, num só fôlego. Então, passou
uma moeda de ouro para a mão calosa do guardiano, e os dois
partiram rumo à casa, enquanto o homem dava de ombros,
resignado. Marcello gritou para mim, olhando para trás:
— Volte para casa na carruagem, ou vai se atrasar para sua
detestável festa inglesa! Vou passar a noite aqui.
Ma foi!5 Aproveitei sua permissão e o deixei, pois a voz tenor é
tirânica como uma mulher ciumenta. Além do mais, eu estava
furioso. A despeito disso, dei risada. Ele tinha o temperamento
de um artista, que às vezes nos parecia absurdo, sublime ou
intensamente irritante. Mas os surtos não duravam muito, e
todos concordavam que, se fôssemos mais parecidos com ele,
nossos quadros valeriam mais. Não ­alcançara ainda o portão da
cidade quando meu ânimo serenou, e passei a recriminar-me por
largá-lo naquele lugar deserto com a bolsa cheia de dinheiro,
pois ele não era nada pobre, e o sombrio guardiano poderia ver-
se tentado a matá-lo. Nada seria mais fácil que assassiná-lo
durante o sono e enterrá-lo em algum lugar sob os olivais, ou
numa câmara de uma das catacumbas em ruínas tão comuns nas
bordas da Campagna. Com certeza existia uma centena de
lugares convenientes. Detive o cocheiro e ordenei que
retornasse, mas ele abanou a cabeça e mencionou algum
compromisso na Piazza de São Pedro às oito. O cavalo começou a
mancar, como se entendesse e fosse cúmplice de seu mestre. Que
poderia eu fazer? Disse a mim mesmo que era o destino e deixei
que me levasse de volta à Villa Medici, onde tive de pagar-lhe
uma gorda quantia por aquela expedição maluca. Ele partiu
ligeiro, sem que o cavalo mancasse, deixando-me abismado com
tão estranha tarde.
Não dormi bem à noite, embora minha canção tivesse sido
aplaudida e as inglesinhas me houvessem adulado muito. Tentei
não pensar em Marcello, e ele não me perturbou até que fui para
a cama. Mas, como disse, não consegui dormir.
Imaginei-o morto, sendo enterrado na escuridão pelo
guardiano. Vi o homem arrastando o corpo, a bela cabeça
chocando-se contra as pedras, descendo com ele por passagens
sombrias e, por fim, abandonando-o ensanguentado e coberto de
terra debaixo de um arco sombrio em um recesso, então voltando
para contar as moedas de ouro. Mas caí novamente no sono e
sonhei que Marcello estava ao portão, batendo o pé, e depois não
mais consegui dormir. Levantei-me com a chegada da aurora,
vesti-me e fui para meu estúdio no final da alameda de loureiros.
Apanhei a jaqueta de pintar e lembrei-me de como ele a tirara de
meus ombros. Peguei os pincéis que tinha lavado para mim; no
fim das contas estavam apenas meio limpos, duros de tinta e
sabão. Senti-me bem por ficar bravo com ele e resmungar uns
“sacré”, pois o fato de poder ralhar com ele me dava a certeza de
que ainda estava vivo. Então peguei o estudo de seu busto, que
fizera para o quadro de Múcio Cévola colocando a mão no fogo,6
e perdoei-o, pois quem seria capaz de contemplar aquela face
sem amá-la?
Trabalhei com o calor da amizade no pincel, e fiz o melhor
para dotar as feições com a expressão de desprezo e obstinação
que vira ao portão. Ela não poderia ser mais adequada a meu
tema! Será que a tinha visto pela última vez? Vocês vão
perguntar por que não larguei o trabalho e fui logo ver se algo
lhe acontecera, mas havia várias razões contrárias a isso. Nossa
exposição anual não demoraria, meu quadro mal estava
começado e meus colegas haviam apostado que não ficaria
pronto. Eu estava à espera do modelo para o rei dos etruscos, um
sujeito que cozinhava castanhas na Piazza Montanara e que
havia consentido em rebaixar-se e posar para mim, como se me
fizesse um grande favor. Além disso, para dizer a verdade, a
manhã havia começado a dissipar minhas fantasias. Eu tinha a
luminosidade ideal para trabalhar e não era imaginativo por
natureza. Assim, ao sentar-me diante do cavalete, disse a mim
mesmo que havia sido um tolo, e que Marcello estava
perfeitamente bem. O cheiro das tintas ajudava a ­sentir-me
prático de novo. Pensava até, a cada instante, que ele poderia
aparecer já farto de seu capricho, e cheguei a preparar e praticar
o pequeno sermão que lhe faria. Alguém bateu à porta e gritei
“Entrez!”, pensando que fosse ele. Mas não; era Pierre Magnin.
— Há um homem estranho, um camponês, procurando-o —
disse ele. — Traz seu endereço num pedaço de papel sujo, com a
caligrafia de Marcello, e uma carta dirigida a você, que não quis
me entregar. Diz que deve ver “il signor Martino”. Ele daria um
modelo excelente para um assassino! Venha, fale com ele e
mantenha-o ocupado enquanto faço um esboço de seu busto.
Segui Magnin pelo jardim até o lado de fora, pois o porteiro
não tinha deixado o homem entrar. Era o guardiano de ontem.
Ele exibiu os dentes brancos e disse: “Bom dia, signore”, como
um cristão. Aqui em Roma não parecia nem um pouco assassino,
apenas um camponês rude e curtido de sol. Viera numa carroça
grosseira, e tinha amarrado o cavalo feio a uma argola no muro.
Estendi a mão para pegar a carta e fingi dificuldade ao lê-la, pois
via Magnin com seu caderno de esboços na sombra do saguão de
entrada. A nota dizia o seguinte — ainda a tenho, e vou copiá-la.
Estava escrita a lápis, numa folha arrancada da caderneta de
bolso:

Mon vieux!
Passei uma boa noite, e o homem me aceitará aqui por todo
o tempo que eu desejar. Nada vai me acontecer, exceto que
desfrutarei de uma paz divina, e já tenho um motif famoso
na cabeça. Vá à minha pensão e pegue algumas roupas e
todos os meus manuscritos, com bastante papel pautado e
algumas garrafas de Bordeaux, e entregue tudo a meu
mensageiro. Seja rápido!
A fama prepara-se para descer sobre mim! Se quiser me
ver, não venha antes de oito dias. Não abrirei o portão se
vier antes. O guardiano é meu escravo e tem instruções de
matar qualquer intruso que, alegando ser amigo, tente
entrar sem ser convidado. E ele o fará, pois me confessou já
ter assassinado três homens.
(Claro que era uma piada. Eu conhecia Marcello.)
Quando vier, vá à poste restante e pegue minha
correspondência. Aqui está meu cartão, que o autorizará.
Não esqueça de penas e um vidro de tinta!
Seu Marcello

A única coisa a ser feita era pedir a Magnin, que terminara


seu esboço, que trancasse meu estúdio, saltar na carroça e ir
sacolejando obedecer às ordens. Fomos até a pensão, na Via del
Governo Vecchio, e lá fiz um embrulho com tudo em que
consegui pensar. A senhoria reteve-me com mil perguntas sobre
quando o signore voltaria. Ele pagara adiantado pelo quarto, de
forma que ela não precisaria ficar ansiosa sobre o aluguel.
Quando lhe contei onde ele estava, a senhoria balançou a cabeça,
e falou do ar ruim de lá, e disse “Pobre signorino!”, com tanta
melancolia que parecia que ele já havia sido enterrado, depois
olhou-nos pela janela com ar fúnebre enquanto nos afastávamos.
Fiquei irritado com ela por fazer com que me sentisse
supersticioso. Na esquina da Via del Tritone, desci e dei um
franco ao homem, por puro sentimentalismo, e gritei quando se
afastou “Lembranças ao signore!”, mas ele não me ouviu e foi
embora chacoalhando estupidamente, quando eu desejava
também ter ido junto. Marcello às vezes era nossa cruz, mas
sempre o amávamos.
Os oito dias transcorreram mais depressa do que eu esperara,
e a quinta-feira chegou, brilhante e ensolarada para minha
expedição. À uma hora, desci até a Piazza de Spagna e barganhei
com o proprietário de um cavalo bem-nutrido, relembrando o
quanto a falta de juízo do querido Marcello tinha me custado
uma semana antes, e partimos num passo rápido para a Vigna
Marziali, cujo nome já ia esquecendo de mencionar. Meu
coração batia forte, embora eu não soubesse por que sentia tanta
emoção. Chegando ao portão de ferro, o guardiano atendeu
depressa e, nem bem coloquei os pés no longo caminho florido, vi
Marcello, que vinha apressado ao meu encontro.
— Sabia que viria — disse ele, enlaçando o braço no meu, e
assim caminhamos rumo à casinha cinzenta, que tinha uma
espécie de pórtico e vários balcões, e um relógio de sol na frente.
Havia janelas gradeadas no térreo, e o lugar, para meu alívio,
parecia seguro e habitável. Ele contou que o homem não dormia
ali, e sim numa cabana pequena mais para baixo, em direção à
Campagna, e que ele, Marcello, trancava-se com segurança toda
noite, o que também me aliviou saber.
— O que você tem para comer? — perguntei.
— Ah, tenho carne de cabrito, feijão e polenta, com queijo
pecorino, e há pão preto e vinho em abundância — respondeu
ele, sorridente. — Como pode ver, não estou morrendo de fome.
— Não trabalhe demais, mon vieux. Você vale muito mais do
que sua ópera jamais valerá.
— Pareço estar trabalhando demais? — retrucou ele, voltando-
me o rosto na luz direta do exterior.
Estava um tanto ofendido com minhas palavras sobre sua
ópera, e eu havia sido tolo em dizer aquilo.
Examinei com olho crítico sua face, e ele me encarou,
desafiador.
— Não, ainda não — respondi, meio a contragosto, sem poder
afirmar que parecia.
Mas seus olhos tinham um ar inquieto, introspectivo, e havia
uma sombra quase imperceptível em volta deles. Era como se as
têmporas estivessem levemente afundadas, e uma névoa tênue
pairasse por sobre sua beleza, tornado-a estranha e distante.
Detivemo-nos diante da porta e ele a abriu, enquanto o
guardiano seguia-nos com passadas lentas e retumbantes.
— Eis meu Paraíso — disse Marcello, e entramos na casa que
era igual a todas as outras do tipo.
Um saguão com baixos-relevos de gesso e uma escadaria
adornada com fragmentos antigos levavam aos aposentos
superiores. Marcello subiu a escada correndo com leveza, e eu o
ouvi trancar uma porta lá em cima e retirar a chave antes de
juntar-se a mim no alto da escada.
— Esta é minha oficina — explicou ele, abrindo uma porta
baixa. A chave estava na fechadura e, portanto, não era a que ele
fechara. — Diga-me se não poderei compor como um anjo neste
lugar!
Eu estava tão ofuscado pela luz brilhante do sol, depois da
penumbra do saguão, que a princípio pisquei como uma coruja, e
então vi o amplo aposento, quase vazio, exceto por uma mesa,
coberta com partituras, e uma cadeira tosca.
— Você está procurando a mobília — disse ele, rindo. — Ela
está do lado de fora. Venha ver.
Ele me arrastou para uma porta de madeira carcomida e vidro
esverdeado rústico, que se abria para um balcão enferrujado. Ele
estava certo: a mobília estava do lado de fora. Uma vista
maravilhosa encheu meus olhos. Os montes Sabinos, as colinas
Albanas e a ampla Campagna, com suas torres medievais e
aquedutos em ruínas, e a vasta planície até o mar. Tudo
refulgindo, e ainda assim tranquilo, ao sol. Não admirava que ele
pudesse compor ali! O balcão rodeava a casa, e para a direita
meu olhar recaiu sobre uma aleia de azinheiras que terminava
num bosque de altos loureiros, que pareciam bem velhos.
Encostados a eles reluziam pedaços de esculturas e alguns
sarcófagos antigos, e mesmo lá do alto eu podia ouvir o fio d’água
que caía de uma máscara antiga para um duto longo e tosco. Vi o
guardiano trigueiro cavoucando entre seus repolhos e cebolas, e
ri ao pensar que o imaginara um assassino! De seu pescoço
pendia um pequeno relicário, que balançava de um lado a outro
sobre o peito queimado de sol, e ele parecia bem inocente ao
sentar-se numa coluna antiga para comer um pedaço de pão com
a cebola que acabava de desenterrar, fatiando-a com uma faca
que nem de longe lembrava um punhal. Calei-me sobre tais
pensamentos, pois Marcello teria rido deles. Juntos
observávamos o homem que agora usava as mãos para beber da
fonte murmurante, e Marcello debruçou-se sobre o parapeito e
gritou um longo “Olá!”. O guardiano ergueu os olhos devagar,
acenou com a cabeça e levantou-se calmamente da pedra onde se
abaixara para alcançar o jato de água.
— Vamos jantar — explicou Marcello. — Eu estava esperando
você.
Ouvi os passos pesados do homem nos degraus, e ele entrou,
trazendo numa cesta uma estranha refeição.
Havia queijo pecorino, feito de leite de cabra, pão preto com
uma consistência de pedra, uma grande tigela de salada
aparentemente composta de ervas-daninhas e um chouriço que
encheu a sala com o cheiro forte do alho. O homem desapareceu,
para retornar com uma travessa repleta, um cozido fumegante de
carne de cabrito desfiada com polenta e acho que também azeite.
— Está vendo? Eu lhe disse que vivia bem — disse Marcello.
Era uma refeição medonha, mas tive de comer, e fiquei
satisfeito por ao menos poder tomar um vinho tosco, com gosto
de terra e raízes. Quando terminamos, perguntei:
— E sua ópera, como está indo?
— Não diga uma palavra sobre isso! — gritou ele, apontando
para uma pilha manuscrita. —Veja o quanto compus, mas não me
fale nada. Não quero gastar em palavras as minhas ideias.
Isso não era típico de Marcello, que amava discutir o próprio
trabalho, e olhei-o atônito.
— Venha — disse ele. — Desçamos ao jardim, e você vai me
contar sobre nossos colegas. Como estão? Magnin encontrou um
modelo para sua Clitemnestra?7
Fiz a vontade dele, como sempre, e sentamo-nos num banco
de pedra atrás da casa, olhando em direção ao bosque de
loureiros e conversando sobre os quadros e estudantes. Eu
queria caminhar pela aleia de azinheiras, mas ele me impediu.
— Se teme a umidade, não vá — disse. — Aquilo é como uma
câmara mortuária. Fiquemos aqui e agradeçamos por esta
paisagem celestial.
— Então fiquemos — respondi, resignado como sempre.
Ele acendeu um charuto, oferecendo-me outro em silêncio. Se
não desejava falar, também eu poderia calar-me. De vez em
quando ele fazia alguma observação indiferente, e eu respondia
no mesmo tom.
Era como se nós, velhos amigos do peito, fôssemos agora
estranhos recém-apresentados, ou que nos tivéssemos
distanciado depois de uma longa separação. Havia algo nele que
eu não conseguia captar. Sim, os dias de isolamento tinham
interposto entre nós vários anos e uma espécie de timidez. Não
me parecia natural, naquele momento, bater nas costas dele ou
lhe dirigir velhas piadas ingênuas. Ele devia sentir igual
constrangimento, pois agíamos como dois garotos que tinham
ansiado por um folguedo e agora não sabiam como brincar.
Deixei-o às seis. Não parecia que estava me despedindo de
Marcello. Parecia que mais tarde iria encontrar-me com meu
velho companheiro em Roma, e que o que deixava ali era um
mero simulacro indistinto. Ele me acompanhou até o portão e
apertou minha mão e, por um instante, o antigo Marcello olhou
através de seus olhos. Mas não trocamos as palavras finais
enquanto eu partia.
— Quando precisar de mim, avise-me. — Foi tudo o que eu lhe
disse.
— Merci — respondeu ele.
Durante todo o caminho de volta a Roma senti um arrepio. A
mão dele estava tão fria, e eu pensava e pensava qual seria o
problema.
Naquela noite, expus minhas ansiedades a Pierre Magnin, que
balançou a cabeça e declarou que ele talvez estivesse contraindo
malária, cujo início às vezes se manifestava nas vítimas por meio
de um comportamento um tanto estranho.
— Ele não pode ficar lá! Devemos trazê-lo o mais rápido
possível! — exclamei.
— Nós dois conhecemos Marcello muito bem e sabemos que
não há nada que possa ir contra sua vontade — disse Pierre. —
Vamos deixá-lo em paz, e ele vai se cansar de seu ­capricho. Um
toque de malária não o matará e, numa noite dessas, ele vai
reaparecer entre nós, alegre como sempre.
Mas ele não o fez. Trabalhei duro e terminei meu quadro,
exceto por alguns retoques, mas Marcello ainda não havia
aparecido. Talvez fosse por minha dedicação extrema, ou por ter-
me instalado naquele lugar úmido, pois eu insistia em aplicar a
meu traço algo mais material que a emoção. Qualquer que fosse
o motivo, fiquei enfermo, mais enfermo do que já me sentira em
toda a vida. Era quase crepúsculo quando fui acometido, lembro-
me perfeitamente, embora não consiga me lembrar do que
aconteceu depois. Ou melhor, nunca soube, pois Magnin me
encontrou inconsciente, e assim permaneci por algum tempo.
Depois comecei a delirar, o tempo todo falando de Marcello. Já
contei que tudo ocorreu pouco antes do crepúsculo; mas no
momento exato em que o sol se põe as cores aparecem como
realmente são. Os artistas sabem disso, e eu estava dando os
últimos retoques aqui e ali em meu quadro, especialmente na
face de Múcio Cévola — ou, antes, Marcello.
O resto do quadro estava bastante bom, mas aquele rosto, que
deveria ser o principal, pareceu esmaecer e encolher. As feições
tornaram-se cada vez mais pálidas, e pareciam se afastar de
mim. Um estranho véu as recobriu e os olhos pareceram fechar-
se. Não me assusto com facilidade, e sei as peças que certas
técnicas de pintura podem pregar sob alguns tipos de luz. O
momento passou, e os tons acinzentados do crepúsculo se
instalaram. Recuei um passo para olhar. Nesse instante, os
lábios, que tinham ficado quase brancos, entreabriram-se e
suspiraram! Uma ilusão, sem dúvida. Provavelmente eu já estava
bastante doente e delirando, pois em minha imaginação o
suspiro fora real. Não exatamente um suspiro, mas um arfar
exausto. Suponho que foi nesse instante que desmaiei, e quando
voltei a mim estava em minha cama. A meu lado estavam Magnin
e monsieur Sutton. Uma irmã de caridade ocupava-se de frascos
de remédios e ­falava aos sussurros. Estendi as mãos, que
estavam magras e amareladas, com as unhas longas e pálidas.
Ouvi a voz de Magnin como se viesse de longe.
— Dieu Merci!8
E agora monsieur Sutton vai lhes contar o que eu não soube
senão muito tempo depois.
II
O relato de Robert Sutton
sobre o que se passou na Vigna Marziali
Tenho bastante estima por Detaille, e senti-me satisfeito por ser-
lhe útil, mas nunca compartilhei de sua admiração por Marcello
Souvestre, embora lhe reconhecesse as virtudes. Era certamente
promissor, devo admitir. Mas era um sujeito excêntrico e frívolo,
de forma alguma o tipo de pessoa que nós, ingleses, nos damos
ao trabalho de entender. É minha função escrever histórias, mas,
não tendo necessidade desse tipo de personagem, nunca lhe
dediquei particular atenção. Como disse, eu estava satisfeito por
ajudar Detaille, que é uma pessoa íntegra, e de boa vontade
deixei minhas atividades para ficar à cabeceira de sua cama.
Magnin sabia que eu era amigo dele e muito acertadamente
procurou-me ao saber quão séria era sua enfermidade, com boa
chance de arrastar-se por um longo tempo. Encontrei-o
delirando, obcecado com Marcello.
— Diga-me que motif é esse! Sei que é uma marche funèbre! —
dizia ele.
Então cantou uma melodia peculiar que, tendo eu alguma
formação musical, registrei no papel. Não se parecia com nada
que já tivesse ouvido. A irmã de caridade me lançava olhares
severos. Como poderia ela saber, porém, que para nós tudo é
motivo de interesse e que, assim, a observação passa a ser um- ­
hábito mecânico? O pobre Detaille repetiu e repetiu a melodia
peculiar, para então interromper-se. Pareceu examinar seu
quadro e gritou que as cores estavam desbotando.
— Marcello! Marcello! — gritou ele. — Você também está
desbotando! Deixe-me ir ao seu encontro!
Fraco como estava, ele não poderia deixar o leito senão com
as forças propiciadas pelo delírio.
— Não consigo! — prosseguiu ele. — Eles me amarraram!
Então, Detaille pareceu tentar roer uma corda em volta dos
pulsos, mas em seguida começou a chorar.
— Será que ninguém pode ir até você e trazer notícias suas?
Ah, se eu pudesse ao menos saber que está vivo!
Magnin me olhou. Eu sabia o que ele pensava. Ele não
abandonaria seu colega, mas eu devia ir. Não me importo em
dizer que não relutei em fazê-lo. Ficar ali, à cabeceira de
Detaille, ouvindo sua ladainha, me deixava nervoso, e o que
Magnin pedia deveria ser trabalhoso, mas de forma alguma
desinteressante para alguém de meu ofício, de modo que
concordei em ir. Eu sabia tudo sobre a estranha reclusão de
Marcello graças a Magnin e ao próprio Detaille, que dela se
lamentara sem rodeios durante uma ceia na Academia, que eu
frequentava com regularidade.
Sabia que seria inútil chamar ao portão da Vigna Marziali.
Não apenas não seria recebido, como despertaria a ira e a
suspeita de Marcello. Nem por um instante eu duvidava que
estivesse vivo, embora me parecesse plausível que estivesse meio
maluco, pois seus compatriotas perdem o equilíbrio com
facilidade. Pessoas excêntricas têm sua excentricidade agravada
no final do dia e à noite. Quando isso acontece, seus nervos
perdem a capacidade de resistir, e um homem equilibrado pode
se impor. Por isso, decidi tentar descobrir alguma coisa à noite,
imaginando ainda que seria mais fácil passar despercebido. Eu
sabia que ele gostava de vagar ao ar livre quando devia estar na
cama e não duvidava que teria ao menos um vislumbre dele, que
era tudo de que necessitava.
Minha primeira providência foi dar uma longa caminhada
para além da Porta San Giovanni, coisa que fiz de manhã bem
cedo, avançando com passos regulares até chegar a um portão de
ferro do lado direito da estrada, acima do qual estava escrito
Vigna Marziali. Sem me deter, segui em frente e alcancei um
caminho ladeado de arbustos que descia à direita, rumo à
Campagna. Coberto de cascalho, estava quase tomado por uma
vegetação luxuriante de hera e sabugueiros, e tinha as marcas
evidentes das últimas chuvas pesadas. Não havia pegadas
humanas, e assim concluí ser pouco usado. Desci cauteloso por
esse caminho, mantendo-me atento ao que estava atrás e adiante
de mim, hábito que adquirira em minhas andanças solitárias
pelos Abruzzi.9 Levava comigo um revólver de qualidade — um
velho companheiro — e não temia pessoa alguma. Começava a
sentir um interesse dramático na missão e estava determinado a
não deixar que surpresas desagradáveis a perturbassem. Desci
pela planície, seguindo o caminho muito além do que tinha
planejado, pois a cerca-viva impedia a visão. Quando cheguei lá
embaixo e olhei ao redor, a Vigna Marziali estava bem longe, à
direita. Percebi, ao primeiro olhar, que por trás da casa cinzenta
uma aleia de azinheiras terminava num bosque de loureiros. A
seguir, havia uma espécie de horta com um casebre de teto de
palha, possivelmente do caseiro. Não vi canil algum, de forma
que não havia cães de guarda. Nos fundos da plantação primitiva
havia uma extensão gramada, limitada por uma cerca de
madeira que eu poderia pular num salto. Agora já conhecia o
percurso, mas quis explorar o local um pouco mais. Foi
oportuno, pois descobri que, logo depois da cerca, havia uma
vala profunda, naquele momento cheia de água por causa das
chuvas. Era funda demais para ser atravessada a pé e larga
demais para ser transposta de um pulo. Ocorreu-me que seria
bem simples remover uma tábua da cerca e usar como ponte.
Medi com os olhos a largura e decidi que, sim, a tábua transporia
a vala. Depois disso voltei pelo mesmo caminho e, chegando,
encontrei Detaille ainda delirando.
Como ele não estava em condições de entender, pareceu-me
que seria inútil toda aquela missão visando trazer-lhe algum
conforto. Mas um momento de consciência poderia surgir, e
além do mais, eu começava a tomar gosto pela empreitada.
Assim, concordei com Magnin que devia retirar-me para comer
algo e descansar, e retornar à Vigna naquela noite. Informei a
minha senhoria que iria para o campo e retornaria no dia
seguinte. A seguir fui até Nazarri, onde me provi de sanduíches e
abasteci meu frasco de viagem com aquilo que eles chamam de
sherry, pois, embora não seja um grande apreciador de vinho,
estava preocupado com o frio da noite.
Era por volta das sete quando parti, seguindo fielmente meus
passos da manhã. Chegando ao caminho, ocorreu-me que talvez
estivesse claro demais para cruzar a vala sem ser notado. Assim,
preparei um lugar em meio à cerca-viva e ali me acomodei,
resguardado pela cortina espessa e emaranhada de hera
pendente.
Talvez estivesse fora de forma, e exausto pela caminhada
matinal, pois caí no sono. Quando acordei já era noite. As
estrelas cintilavam, uma neblina úmida me descia garganta
abaixo, e sentia-me enrijecido e gelado. Tomei um gole do sherry
e achei horrível a bebida, mas me aqueceu. Consultei o relógio,
que marcava quinze para as onze. Levantei-me, sacudi das
roupas as folhas e gravetos, e segui pelo caminho abaixo.
Chegando à cerca, sentei-me e refleti sobre o que estava fazendo.
Que esperava descobrir? O que havia para ser descoberto? Nada!
Nada além de Marcello estar vivo, e eu estava convicto de que
essa não seria descoberta alguma. Eu era um tolo que se deixara
seduzir pela teatralidade e pelo mistério de todo aquele absurdo,
a ponto de inventar um monte de precauções! Bem, ao menos eu
poderia usar tudo aquilo, descrevendo meu comportamento em
alguma futura história. Como ainda não tinha o suficiente para
um capítulo, teria de seguir em frente e obter mais material.
— Vamos lá! — disse a mim mesmo. — Você é um asno, mas
isto talvez seja instrutivo.
Sem fazer barulho, levantei a tábua superior da cerca.
Naquele ponto havia um pequeno degrau para atravessá-la, e era
fácil mover as madeiras. Ajeitei minha ponte com alguma
dificuldade e cruzei-a, cuidadoso, para dirigir-me, apressado e
em silêncio, ao bosque de loureiros.
A escuridão era profunda, e meus olhos tardaram em
habituar-se. No fim das contas, não havia muito para ser visto.
Uns bancos de pedra formando um semicírculo e pedaços de
colunas colocados de pé, com bustos antigos em cima. Um pouco
para a direita havia uma espécie de arco dando para alguns
degraus que pareciam penetrar no solo, talvez a entrada para
uma alguma catacumba. No meio do recinto exíguo havia uma
mesa de pedra, fixa com firmeza à terra. Não havia ninguém
naquele lugar: essa certeza eu tinha. Sentei-me, já acostumado
com a penumbra, e devorei alguns sanduíches com uma fome
feroz.
Tendo chegado até ali, será que nada aconteceria que me
recompensasse por todo o empenho? De repente, ocorreu-me
que seria absurdo esperar que Marcello viesse até mim e
representasse, diante de meus olhos, para minha especial
satisfação, qualquer momice maluca que estivesse preparando.
Não sei por que eu tinha achado que algo poderia acontecer
naquele bosque, a não ser pelo fato de parecer um lugar para
isso. Eu deveria ir olhar a casa e, se visse alguma luz acesa, seria
a prova de que ele estava lá. Qualquer tolo teria tido essa ideia,
mas um novelista cria o cenário de sua trama e espera que os
personagens deslizem pelos trilhos como marionetes; somente
quando minhas criações me surpreendem é que as sinto vivas.
Chegando ao fim da aleia de azinheiras, tinha a casa diante de
mim. Vi mais repolhos e cebolas depois que deixei o arvoredo, e
notei que nesse espaço aberto eu poderia ser visto com facilidade
por qualquer um que estivesse lá em cima, no balcão. Enquanto
retornava ao refúgio das azinheiras, uma janela do andar de
cima, não a do balcão, iluminou-se; mas a luz durou pouco, e
então um brilho apareceu através do vidro oval da porta no
térreo.
Mal tive tempo de correr para trás do tronco mais grosso
perto de mim quando a porta se abriu. Aproveitei o rangido para
subir como um gato pela árvore de tronco inclinado, estendendo-
me sobre um galho que se projetava.
Como esperara, Marcello saiu. Estava muito pálido e se movia
mecanicamente, como um sonâmbulo. Chocou-me ver como seu
rosto estava magro e as sombras profundas que a luz da vela
lançava nas faces afundadas e nos olhos vidrados, que pareciam
arder febrilmente, sem nada enxergar. Os lábios estavam
brancos, tão retesados que podia ver os dentes brilhando. A vela,
então, caiu-lhe da mão, e com passadas lentas, curiosamente
regulares, ele veio até a escuridão das azinheiras. Eu o observava
de cima, mas creio que se estivesse de pé a sua frente não teria
me notado. Quando se foi, desci e fui atrás dele. Tinha
descalçado os sapatos e meu avanço era absolutamente
silencioso. Além do mais, estava certo de que ele não olharia
para trás.
Ele seguiu adiante com o mesmo passo mecânico até chegar
ao bosque. Ajoelhei-me detrás de um velho sarcófago na entrada
e esperei. Que faria ele? Permaneceu lá, imóvel, sem olhar em
volta, como se a engrenagem de relógio dentro de si tivesse
parado de trabalhar. Senti que ele estava se tornando
psicologicamente interessante, afinal. De repente, abriu os
braços como fazem os soldados no campo de batalha ao serem
feridos de morte, e esperei que tombasse. Em vez disso, deu um
passo à frente.
Olhei na mesma direção e vi uma mulher que deveria ter-se
escondido por ali enquanto eu esperava defronte à casa. Ela saiu
da penumbra e se aproximou devagar. Então deitou a cabeça no
ombro dele, e os braços abertos a envolveram, de forma que o
rosto dela escondeu-se no pescoço dele.
Era isso. Tudo aquilo para espionar um caso de amor! A
ópera, o isolamento com a desculpa de trabalhar, a recusa
tirânica em receber Detaille sem um convite expresso — tudo
não passava de disfarce para uma intriga vulgar que, por motivos
apenas dele conhecidos, não poderia ter lugar na cidade. Eu
estava furioso! Se Marcello passava seu tempo zanzando naquele
buraco úmido toda a noite, não era estranho que parecesse tão
adoentado e meio louco! Eu sabia muito bem que ele não era um
santo, e por que seria? Mas nunca imaginara que fosse um tolo.
Ele tivera muitos casos românticos, mas com discrição, sem ser
inutilmente misterioso; ninguém nunca havia se intrometido, e
nem nós deveríamos tê-lo feito. Disse a mim mesmo que aquela
mistura de sangue francês e italiano tinha toda a culpa: a
inconstância e insensatez francesas, e o amor italiano pela
dissimulação. Fiz um balanço dos detalhes de minha misteriosa
expedição. Suponho que na raiz de minha ira estivesse certo
desapontamento dramático por não o encontrar assassinado, e
eu me desprezava por todo o trabalho a que me dera para este
desfecho ridículo: vê-lo com uma mulher nos braços. Eu não via
o rosto dela, e sua figura estava envolta da cabeça aos pés por
algo longo e escuro; mas podia perceber que era alta e delgada, e
um par de mãos brancas aparecia entre as dobras de sua
vestimenta. Sob meu olhar atento e indignado, o casal começou a
andar, e ainda abraçados desceram os degraus. Quer dizer que
nem mesmo a solidão do bosque de loureiros seria suficiente
para satisfazer a louca paixão de Marcello pelo segredo.
Permaneci imóvel por um instante e então fui até onde tinham
desaparecido e escutei. Apenas silêncio. Com cautela, risquei um
fósforo e olhei para baixo. Podia ver os degraus por uma curta
distância abaixo de mim, e então a escuridão parecia elevar-se e
engoli-los. Devia ser uma catacumba, como tinha imaginado, ou
talvez antigas termas romanas, que Marcello teria tornado
confortáveis o suficiente. Era bem provável que ambos agora
estivessem tendo um delicioso jantarzinho frio lá embaixo. Meu
estômago vazio me disse que eu poderia até mesmo perdoá-lo se
acaso pudesse partilhar com eles a comida. Eu estava
assustadoramente faminto, assim como furioso, e sentei-me num
dos bancos de pedra para terminar meus sanduíches.
A ideia de esperar para ver o casalzinho apaixonado retornar
à superfície nem por um instante me ocorreu. Havia descoberto
tudo, e que grande farsa era! Desejava retornar a Roma antes
que minha ira acalmasse, para contar a Magnin como fora idiota
a missão em que me mandara. E se ele quisesse discutir comigo,
tanto melhor!
No caminho para casa fui compondo frases cortantes em
francês, mas elas de repente esfriaram e se petrificaram quando
descobri que o portão da cidade estava fechado. Nem me
ocorrera pedir um passe, e Magnin deveria ter-me alertado.
Outro motivo de queixa contra ele! Saboreei meu ressentimento,
que me aqueceu enquanto eu percorria os arredores. Do lado de
fora dos portões havia casas e mesmo alguns locais para comer,
mas nenhuma luz era visível, e eu não queria chamar a atenção
batendo em uma porta no meio da noite. Assim, escondi-me
detrás de um pedaço de muro. Já estava me habituando a me
esconder. Acomodei meu casacão o melhor que pude, tomei mais
um gole de sherry e esperei. Finalmente, o portão foi aberto e me
esgueirei para dentro, tentando não parecer que havia passado
fora toda a noite, como um bandido. O guarda me olhou
desconfiado, com certeza estranhando a falta de bagagem. Se
tivesse uma mochila, poderia ter sido tomado por um turista
inglês inocentemente maluco, dando-se ao equivocado prazer de
vir caminhando desde Frascati ou Albano. Mas um sujeito de
casacão, com as mãos nos bolsos, flanando através do portão da
cidade ao romper da aurora como se voltasse de um passeio
naturalmente intrigou os oficiais, que me olharam e deram de
ombros.
Por sorte encontrei uma carruagem madrugadora na Piazza
do Laterano, pois me sentia exausto. Em breve chegava a minhas
acomodações na Via della Croce, nas quais minha senhoria me
deixou entrar, sem demora. Por fim tive o prazer de tirar as
roupas úmidas do orvalho da noite e deitar-me. A fúria esfriara
um pouco, e não receei baixar demais sua temperatura cedendo
ao desejo irresistível de dormir. Uma ou duas horas não fariam
diferença para Magnin — que ele me imaginasse ainda rondado a
Vigna Marziali! Eu precisava dormir, não importava o que ele
pensasse.
Dormi longamente, e fui despertado por minha senhoria, Sora
Nanna, parada a meu lado dizendo:
— Há um signore que quer vê-lo.
— Sou eu. Magnin — disse uma voz por trás dela. — Não
consegui esperar que viesse me ver.
Ele parecia consumido pela ansiedade e pela vigília.
— Detaille ainda delira, só que agora pior que antes —
prosseguiu ele. — Pelo amor de Deus, conte-me o que descobriu!
Por que não diz nada?
Ele me sacudiu pelo braço como se achasse que eu ainda
dormia.
— Não tem nada a dizer? Você deve ter visto algo! Você viu
Marcello?
— Ah, sim, eu o vi.
— Bem?
— Bem, ele estava muito confortável... e bem vivo. Tinha os
braços de uma mulher a seu redor.
Ouvi minha porta bater com estrépito, um “Sacré gamin!”10
feroz e depois passos descendo a escada. Senti-me perfeitamente
feliz em causar semelhante impressão. Virei-me e retomei o sono
interrompido, com um sentimento quase cordial com relação a
Magnin, que nesse momento devia estar subindo a Escadaria
Espanhola de dois em dois degraus, ­transpirando de forma
horrível. Isso não ajudaria o pobre Detaille. Ele não entenderia a
novidade. Depois de ter dormido o bastante, levantei-me,
refresquei-me com um banho e algo para comer e então saí para
ver Detaille. Não era sua culpa que eu tivesse agido como um
idiota, e tinha pena dele.
Encontrei-o delirando como no dia anterior, só que pior,
como Magnin dissera.
— Tenha cuidado, Marcello, ninguém pode salvá-lo! —
continuava ele a clamar, num tom fraco e rouco, mas com a
regularidade de um sino, com um movimento peculiar dos pés,
como se caminhasse por uma longa estrada, exausto, mas
forçando-se a avançar, depois ele parava e se entregava a um
choro infantil. — Meus pés estão feridos — murmurava ele,
choroso. — Estou tão cansado! Mas estou indo! Eles me seguem,
mas sou forte!
A seguir, vinha uma luta violenta com os perseguidores
invisíveis, durante a qual ele, de repente, começava a cantar sua
musiquinha, alternando com os gritos de alerta. A voz que
cantava era muito diferente da que falava. Ele continuava sem
parar, repetindo a ária singular batizada por ele mesmo de
Marcha fúnebre, a qual já se tornara muito desagradável para
mim. Se era verdade o que dizia, não se destinava certamente a
nenhum enterro cristão. Enquanto cantava, as lágrimas rolavam
por seu rosto, e Magnin, sentado a seu lado, secava-as com a
ternura de uma mulher. No intervalo da cantoria, ele juntava as
mãos, de forma débil, pois se mostrava muito fraco quando o
delírio não o fazia violento, e gritava de modo lastimoso.
— Marcello, nunca mais o verei! Por que nos deixou?
Por fim, quando ele parou por um instante, Magnin deixou
sua cabeceira, acenou para que a irmã tomasse o lugar e me
levou para o outro aposento, fechando a porta atrás de si.
— Agora me conte exatamente como viu Marcello — disse ele.
Assim, contei toda minha absurda experiência, deixando de
lado, porém, a irritação pessoal, pois ele parecia frágil demais,
esgotado demais para que alguém pudesse ficar bravo com ele.
Magnin me fez repetir várias vezes a descrição do rosto de
Marcello e o modo como ele saíra da casa. Isso pareceu
impressioná-lo mais do que o caso amoroso.
— Pessoas enfermas têm estranhas intuições, e continuo
achando que Marcello está muito doente e em perigo. Espere! —
disse ele, com gravidade, e, interrompendo-se, foi até a porta e
chamou “ma soeur!”11, num sussurro.
Ela ouviu e, depois de arrumar a roupa de cama, e uma vez
mais secar as lágrimas do enfermo, veio sem ruído até onde
estávamos, com o lenço úmido ainda na mão. Era uma mulher
alta e de aparência forte, com penetrantes olhos pretos e muito
segura de si. Estranhamente, adotara o nome religioso de
Claudius, em vez de algum outro mais feminino.
— Ma soeur, a que horas ele saltou da cama e o tivemos de
segurar por um bom tempo?
— Um pouco depois das onze e meia — respondeu ela, sem
hesitação.
Ele se voltou para mim.
— A que horas Marcello saiu para o jardim?
— Bem, pode ter sido às onze e meia — respondi, contrariado.
— Eu diria que três quartos de hora poderiam ter-se passado
desde que consultara meu relógio. Mas, veja bem, não poderia
jurar.
Odeio que as pessoas tentem estabelecer coincidências
misteriosas, e era bem o que ele estava fazendo.
— Tem certeza da hora, ma soeur? — perguntei, um tanto
ríspido.
Ela me olhou calmamente, com os grandes olhos pretos.
— Ouvi o relógio de Trinità de’ Monti soar a meia hora pouco
antes.
— Tenha a bondade de contar a monsieur Sutton exatamente o
que aconteceu — pediu Magnin.
— Um instante, monsieur.
Ela foi com suavidade e presteza até Detaille, ergueu-o com
seu braço vigoroso e levou-lhe um copo aos lábios, do qual ele
bebeu de forma mecânica. Depois, voltou até onde estávamos e
postou-se de modo a poder vigiá-lo pela porta aberta.
— Ele não ouve nada — explicou ela, colocando o lenço para
secar sobre uma cadeira, depois continuou: — Eram onze e meia,
e o paciente estava bastante inquieto, quer dizer, mais do que
antes. Pode ter sido quatro ou cinco minutos depois que o relógio
terminou de soar quando ele ficou quieto de repente, e depois
todo o seu corpo começou a tremer, a ponto de a cama tremer
junto.
O inglês dela era admirável, como ocorre com tantas irmãs, de
forma que não preciso traduzir, apenas transcrever as palavras
dela.
— Ele continuou tremendo, e pensei que teria um ataque, e
disse a monsieur Magnin que estivesse pronto para chamar um
médico. Então os tremores pararam, ele ficou perfeitamente
rígido, os cabelos se arrepiaram e os olhos pareceram querer
saltar fora das órbitas, embora não pudesse ver nada, o que
constatei ao passar a vela diante deles. Num salto, pulou da
cama e correu para a porta. Não imaginei que fosse tão forte.
Antes que chegasse lá, peguei-o em meus braços, pois está leve
agora, e embora se debatesse carreguei-o de volta para o leito,
como uma criança. Monsieur Magnin veio do outro quarto no
instante em que ele tentava se levantar de novo, e juntos o
seguramos até que desistisse, mas ele ainda gritou o nome de
monsieur Souvestre por muito tempo. Depois, ficou muito frio e
exausto, claro, e lhe dei um pouco de caldo de carne, embora não
fosse a hora apropriada para isso.
— Creio que é melhor que você conte tudo para a irmã —
disse-me Magnin. — É bom que a enfermeira saiba de tudo.
— Muito bem — disse-lhe —, mas pode ser que fique
escandalizada.
Ela mesma respondeu.
— Tudo o que diz respeito ao paciente nos interessa. Nada me
choca.
Com isso, sentou-se e escondeu as mãos nas longas mangas,
preparando-se para ouvir. Repeti tudo o que contara a Magnin.
Nem por um instante ela desviou de minha face os olhos
brilhantes, e escutou com tanta frieza como um médico ouvindo
o relato de um caso difícil, embora me parecesse quase um
sacrilégio descrever para uma irmã de caridade o
comportamento de um jovem apaixonado.
— Que diz disso tudo, ma soeur? — perguntou Magnin, quando
terminei.
— Não digo nada, monsieur; é suficiente que eu o saiba.
Ela tirou as mãos de dentro das mangas, pegou o lenço, que
por essa altura já estava seco, e voltou depressa para junto da
cama.
— Pergunto-me se a choquei, afinal de contas — falei a
Magnin.
— Ah, não — respondeu ele. — As soeurs veem muitas coisas, e
são tão indiferentes como um confessor, sem se permitirem
sentimentos pessoais. Já vi a soeur Claudius escutar impassível
os delírios mais abomináveis, apenas persignando-se por baixo
do hábito ao ouvir as mais horrendas blasfêmias. Era o fim do
verão quando o pobre Justin Revol morreu. Você não estava por
aqui.
Magnin pousou a mão na própria testa.
— Você mesmo não parece bem — disse-lhe eu. — Vá, tente
dormir. Eu fico.
— Muito bem — respondeu ele. — Mas não conseguirei
descansar se você não prometer que vai se lembrar de tudo o que
ele disser e repetir depois quando me levantar.
Ele se deixou cair como um saco no sofá duro e num instante
já adormecera. Eu, que estivera tão zangado com ele poucas
horas antes, coloquei uma almofada sob sua cabeça e deixei-o
confortável.
Sentado na sala ao lado, fiquei ouvindo os delírios monótonos
de Detaille enquanto soeur Claudius lia seu livro de orações. Já
escurecia quando vários dos acadêmicos entraram para visitar o
enfermo e balançaram a cabeça. Olharam ao redor, buscando
Magnin. Apontei para a outra sala, com um dedo sobre os lábios;
eles concordaram com a cabeça e saíram na ponta dos pés.
Não foi um esforço de memória repetir as palavras de Detaille
quando Magnin acordou, pois eram sempre as mesmas. Tivemos
outra irmã naquela noite, e soeur Claudius só retornaria no meio
do dia seguinte. Ofereci-me para revezar com Magnin na vigília,
pois ele estava ficando muito nervoso e exausto, e parecia
esperar que o ataque da noite anterior se repetisse. A nova irmã
era uma mulherzinha suave e de aparência delicada, que tinha
lágrimas nos olhos castanhos ao debruçar-se sobre o doente e
que se persignava de tempos em tempos, segurando o crucifixo
que pendia de sua cintura. No entanto, era tranquila e solícita,
tão pontual como soeur Claudius para administrar os remédios.
O médico veio ao cair da noite e receitou novos
medicamentos. Sem emitir sua opinião sobre o paciente, apenas
alertou que esperássemos por uma crise.
Magnin mandou vir uma ceia e comemos calados; na verdade,
sem muita fome. Ele consultava o relógio sem parar.
— Se acontecer a mesma coisa esta noite, ele vai morrer! —
disse ele, e recostou a cabeça sobre os braços.
— Pois então vai morrer por um motivo muito tolo — respondi,
com raiva, porque achava que ele ia chorar, como os franceses
costumam fazer, e queria irritá-lo para que não o fizesse, de
forma que continuei. — Ele estaria morrendo por um vaurien12
que há uma semana está agindo como um idiota nessa conduta
ridícula. Souvestre pode ficar febril o tanto quanto quiser, mas
não me peça para ir tomar conta dele.
— Não é a febre — retrucou ele, lentamente. — É um
pressentimento vago e terrível que tenho. Acho que ficar ouvindo
Detaille me deixa nervoso. Escute, soam as onze! Fiquemos
atentos!
— Se você realmente espera outro ataque, deve informar à
irmã — observei, e assim ele descreveu a ela, em poucas
palavras, o que poderia ocorrer.
— Muito bem, monsieur — respondeu a mulher, sentando-se
em silêncio junto do leito.
Magnin ficou à cabeceira, e eu ao lado dele. Não se ouvia
outro som senão a lamentação incessante de Detaille.
E agora, antes de prosseguir, devo interromper-me e pedir
que creiam em mim. Será quase impossível, bem sei, pois eu
mesmo já zombei de relatos como este, e afirmação alguma me
faria dar-lhes crédito. Mas eu, Robert Sutton, juro que tais fatos
aconteceram. Mais que isso não posso fazer. É a verdade.
Vigiávamos Detaille com atenção. Ele repousava de olhos
fechados e estivera bastante inquieto. De repente, ficou imóvel, e
então começou a tremer, exatamente como soeur Claudius havia
descrito. Era um tremor curioso, uniforme, que parecia atingir
cada fibra, e a armação de ferro da cama sacudia como se mãos
fortes a segurassem nas duas extremidades. Seguiu-se a rigidez
total, que ela também descrevera, e não exagero ao dizer que
seus cabelos curtos não só pareciam estar em pé, mas que na
verdade estavam. Uma lamparina lançava a sombra de seu perfil
contra a parede à esquerda da cama, e quando olhei para a
silhueta imóvel, que parecia pintada na parede, vi os cabelos
lentamente se levantarem, até que a linha onde se encontravam
com a testa ficasse bem diferente, abrupta, em vez de
suavemente curva. Seus olhos se arregalaram, primeiro numa
fixidez assustadora, e depois numa angústia também
assustadora, mas com certeza ele não nos via.
Esperamos, sem respirar, pelo que viria. A pequenina irmã
estava próxima a ele, com os lábios apertados e um pouco
pálidos, mas muito calma.
— Não tenha medo, ma soeur — sussurrou Magnin.
— Não, monsieur — respondeu ela, num tom profissional,
aproximando-se mais do paciente.
Segurou-lhe as mãos, rígidas como as de um cadáver, para
aquecê-las entre as suas.
Pousei minha mão sobre o coração dele, cujo batimento era
tão leve que quase acreditei ter parado. Ao aproximar a face de
seus lábios, não senti o hálito. Parecia que o rigor duraria para
sempre.
Súbito, sem transição, ele se lançou com imensa força,
literalmente de um salto, indo parar quase no centro do quarto,
espalhando-nos em todas as direções como folhas ao vento.
Num instante, eu estava sobre ele, agarrando-o com toda a
força, para evitar que chegasse à porta. Magnin fora atirado para
trás, contra a mesa, e ouvi os frascos de medicamentos se
quebrando com o impacto. Ele tinha aparado a queda com a mão
e, quando veio me ajudar, o sangue escorria de um corte no
pulso. A irmã se aproximou. Detaille a havia jogado
violentamente de joelhos e, agora, com o instinto de enfermeira,
ela tentava atirar um xale sobre o peito nu dele. Nós quatro
deveríamos formar um grupo estranho!
Quatro? Mas éramos cinco! Marcello Souvestre estava diante
de nós, à porta. Todos o vimos, pois estava lá. Tinha o rosto lívido
voltado em nossa direção, sem expressão. As mãos pendiam dos
lados, tão brancas como o rosto. Apenas os olhos, fixos em
Detaille, tinham alguma vida.
— Graças a Deus você finalmente veio! — exclamei. — Não
fique aí parado como um idiota. Pode fazer o favor de nos
ajudar?
Mas ele não se moveu. Fiquei possesso e, soltando Detaille,
pulei sobre ele para puxá-lo para a frente. Minhas mãos
estendidas chocaram-se contra a porta, e senti como se uma teia
de aranha me envolvesse. Ela pareceu cobrir-me a boca e os
olhos, cegando-me e sufocando-me, para depois tremular e
esgarçar-se e, em seguida, flutuar para longe de mim.
Marcello se fora!
Detaille soltara-se das mãos de Magnin e jazia no chão, como
se seus membros estivessem partidos. A irmã tremia
violentamente ao ajoelhar-se a seu lado para tentar erguer-lhe a
cabeça. Depois de uma troca de olhares, abaixamo-nos para
tomá-lo nos braços, e o levamos de volta para a cama, enquanto
soeur Marie recolhia em silêncio os cacos dos vidros.
— Viu aquilo, ma soeur? — ouvi o sussurro rouco de Magnin.
— Sim, monsieur — respondeu ela, com voz trêmula, agarrada
ao crucifixo. Depois disse, num tom profissional: — Permite que
cuide de seu pulso, monsieur?
Apesar do tremor das mãos dela, o curativo que fez era
irrepreensível.
Magnin foi para o quarto vizinho, e ouvi quando se jogou
pesadamente numa cadeira. Detaille parecia adormecido. Sua
respiração era regular. Os olhos fechados tinham aparência
pacífica; as mãos, pousadas de forma natural sobre a colcha. Não
se mexera desde que o acomodáramos aí. Fui em silêncio até
onde Magnin estava sentado no escuro. Sem se mexer, ele apenas
disse:
— Marcello está morto!
— Ou morto ou agonizante — respondi. — Precisamos
encontrá-lo.
— Sim — sussurrou Magnin. — Devemos ir, mas não
chegaremos a tempo.
— Vamos assim que amanhecer — disse eu, e ficamos em
silêncio de novo.
Quando, por fim, a manhã chegou, ele saiu em busca de
alguém que ficasse em seu lugar.
— Não é necessário que falemos sobre esta noite. — Foi tudo o
que disse a soeur Marie.
— Tem razão, monsieur — murmurou a irmã, e soubemos que
podíamos confiar nela.
Detaille ainda dormia. Teria sido a crise prevista pelo médico?
Talvez, mas certamente não naquela forma assustadora.
Insisti com meu companheiro que tomássemos um desjejum
antes de partir, mas não posso dizer que tenha sentido o gosto do
que passou entre meus lábios.
Alugamos uma carruagem fechada, pois não sabíamos o que
traríamos de volta, embora nenhum de nós tivesse externado os
pensamentos em voz alta. Ainda era cedo quando chegamos à
Vigna Marziali, sem ter trocado uma palavra no caminho. Fiz
soar o sino, enquanto o cocheiro nos olhava com curiosidade.
Prontamente apareceu o guardiano que Detaille já mencionou.
— Onde está o signore? — perguntei através do portão.
— Chi lo sa?13 — respondeu ele. — Está por aqui, pois não
deixou a Vigna. Devo chamá-lo?
Chamá-lo? Eu sabia que nenhuma voz mortal poderia
alcançar Marcello agora, mas tentei fantasiar que ele ainda
estivesse vivo.
— Não, deixe-nos entrar — respondi. — Queremos fazer-lhe
uma surpresa, ele vai gostar.
O homem hesitou, mas finalmente abriu o portão. Entramos,
enquanto a carruagem nos esperava do lado de fora. Fomos
direto para a casa. A porta dos fundos estava escancarada. O
vento forte que soprara de noite tinha arrancado folhas e ramos
das árvores, carregando-os para dentro do saguãode entrada,
através do umbral. Era evidente que a porta havia ficado aberta
desde que eles caíram ali. O guardiano nos deixou,
provavelmente para escapar à ira de Marcello por ter-nos
permitido entrar, e subimos as escadas sem que nos impedisse.
Magnin foi na frente, pois conhecia a casa melhor que eu, pela
descrição que Detaille fizera. Ele falara sobre o quarto de
esquina, com seu balcão, e fizemos de conta que Marcello
poderia estar ali, absorto no trabalho, mas não o chamamos em
voz alta.
Ele não estava. Os papéis espalhavam-se pela mesa como se
tivesse andado compondo, mas o tinteiro estava seco e
empoeirado, e não devia ser usado havia dias. Percorremos em
silêncio os outros quartos. Talvez ele ainda dormisse? Mas não!
Encontramos a cama intacta e, portanto, ele não poderia ter
dormido ali naquela noite. Todos os quartos estavam
destrancados, exceto um, e essa porta fechada fez nossos
corações baterem mais rápido. Marcello não poderia estar ali,
porém, pois não havia chave na porta. Vi a luz do sol brilhando
através do buraco da fechadura. Gritamos seu nome, sem
resposta. Batemos com força, e ainda nada. Assim, encostei meu
ombro contra a porta, que era velha e estava rachada em vários
lugares, e consegui arrombá-la.
Nada havia ali, exceto uma mesa de escultor, sustentando algo
coberto por um pano branco, e as ferramentas de esculpir no
chão. À visão do pano, ainda úmido, respiramos fundo. Podia
estar ali fazia algum tempo, porém não mais que vinte e quatro
horas. Não o erguemos.
— Ele poderia se irritar — disse Magnin, e concordei, pois no
mundo artístico é quase um crime desvelar uma obra pelas
costas de um escultor.
Nenhum de nós manifestou surpresa por ele modelar; uma
interdição parecia pairar sobre nossas línguas. O pano moldava-
se ao objeto, revelando a silhueta de um busto feminino, e a
deixamos oculta sob o véu.
Uma escada estreita em caracol levava para cima, por uma
abertura. Subimos para uma espécie de belvedere, que
proporcionava uma vista soberba. Era um terraço pequeno e
aberto, no teto da casa. Ao primeiro olhar, via-se não haver
ninguém ali.
Já tínhamos estado na casa toda, pequena e de construção
simples, evidentemente destinada apenas ao veraneio.
Debruçando-nos sobre a amurada, víamos o jardim lá embaixo.
Não havia ninguém, exceto o guardiano, deitado entre seus
repolhos, com os braços por trás da cabeça, meio adormecido. O
bosque de loureiros ficara em minha memória desde o princípio;
apenas tinha parecido mais natural ir antes à casa. Descemos os
degraus em silêncio e para lá dirigimos nossos passos.
Quando nos aproximamos, o guardiano veio a nosso encontro,
devagar.
— Viram o signore? — perguntou o homem, e a estúpida
placidez de seu rosto revelou-me que ao menos ele não estava
envolvido no desaparecimento.
— Não, ainda não — respondi. — Mas em algum lugar o
encontraremos, tenho certeza. Talvez tenha saído para caminhar
um pouco, e vamos esperá-lo. O que é isso aqui?
Fiz a pergunta tentando aparentar despreocupação.
Estávamos, então, ao lado do pequeno arco sobre o qual já
sabem.
— Isso? Nunca desci aí, mas disseram que é antigo. Os
senhores querem ver? Posso trazer uma lamparina.
Aceitei, e ele foi para sua cabana. Eu trazia no bolso um par
de velas, pois pretendera explorar o lugar caso não
encontrássemos Marcello. Não me saía do pensamento que,
naquela noite, ele tinha desaparecido por ali. Mas eu as mantive
escondidas, pois dariam à nossa busca um ar de premeditação
que poderia gerar curiosidade.
— Onde viu o signore pela última vez? — perguntei, quando ele
voltou com a lamparina.
— Levei-lhe o jantar ontem de noite.
— A que horas?
— Era a Ave-Maria, signore — respondeu ele. — É a hora em
que ele sempre janta.
Seria inútil fazer mais perguntas. Ele era evidentemente
pouco observador e mentiria para nos agradar.
— Deixe-me ir na frente — disse Magnin, pegando a
lamparina.
Descemos os degraus. Um ar frio pareceu encher nossos
pulmões e ao mesmo tempo sufocar-nos. Lá embaixo jazia uma
escuridão espessa. Os degraus, como podia ver à luz de minha
vela, eram modernos, assim como a abóbada sobre eles. Uma
placa fora fixada na parede. A despeito de minha agitação, parei
para lê-la, talvez porque ficasse satisfeito em adiar o que nos
estivesse esperando lá embaixo. Era o seguinte:

Questo antico sepolcro Romano scopri il Conte Marziali


nell’anno 1853, e piamente conservò.

A inscrição dizia: “O conde Marziali descobriu este antigo


sepulcro romano no ano 1853, e piamente o conservou”.
Li aquelas palavras com mais rapidez do que me custou
escrevê-las aqui, então apressei-me em seguir Magnin, cujos
passos soavam tênues abaixo de mim. Ao apressar-me, um golpe
de ar apagou minha vela. Tentei seguir em frente tateando a
parede, horrivelmente sombria e viscosa, e, de repente, um grito
distante subiu lá de baixo e deteve meu coração — um grito de
horror!
— Onde está você? — chamei, mas Magnin gritava meu nome e
não me ouviu. — Estou aqui! Estou no escuro!
Eu me apressava o mais que podia, mas havia várias curvas.
— Encontrei-o! — Ouvi mais para baixo.
— Vivo? — gritei.
Não houve resposta.
Um último trecho curto me deixou frente a frente com o
brilho da lamparina. Vinha de um portal baixo, e para além dele
estava Magnin, olhando a escuridão. Quando ergueu a luz acima
dele, soube por sua expressão que nossos medos se
confirmavam.
Sim, Marcello estava lá, estendido no chão, olhando para o
teto, morto e já rígido, como se constatava à primeira vista.
Fomos para seu lado sem dizer uma palavra. Então, ajoelhei-me
e o toquei, apenas por formalidade, e disse, como se já não o
soubesse:
— Está morto já há algumas horas.
— Desde a noite de ontem — disse Magnin, com horror na voz,
mas ainda assim com certa satisfação, como se dissesse: “Vê? Eu
estava certo”.
Marcello tinha a cabeça jogada para trás, e sua bela face não
estava contorcida. Ele aparentava ter morrido de exaustão, como
que deslizando inconscientemente da vida para a morte. Sua
camisa estava aberta, deixando visível parte do peito, de um
branco doentio. Pouco acima do coração havia uma marca.
— Passe-me a lamparina — sussurrei, debruçando-me sobre
ele.
Era um pontinho marrom-arroxeado, que devia ter mudado
de cor durante a noite.
Examinei-o com cuidado. Diria que o sangue havia sido
sugado até a superfície e que fora feita uma perfuração ou uma
pequena incisão. A leve efusão subcutânea me levou a tal
conclusão. Uma gota minúscula de sangue coagulado fechava o
ferimento quase imperceptível, que examinei com a ponta de um
dos fósforos de Magnin. Não era mais profundo que a espessura
da pele, e, portanto, não era a perfuração de um estilete, por
mais fino que fosse, ou a marca de um projétil. Ainda assim era
estranho, e nos viramos ao mesmo tempo para ver se ninguém se
escondia ali, ou se não havia uma segunda saída. Mas seria
loucura pensar que o assassino, se houvesse um, permaneceria
ao lado da vítima.
Teria Marcello feito amor com uma bela contadina,14 e seria
esta a vingança de algum amante ciumento? Mas não era uma
punhalada. Poderia uma gota de veneno no ferimento diminuto
ter feito aquele trabalho mortífero?
Nossos olhares vasculharam a escuridão ao redor, e vi que os
olhos de Magnin estavam cheios de lágrimas; sua face, tão pálida
quanto aquela que no chão se voltava para cima e cujas
pálpebras eu tentara em vão fechar. A câmara era baixa,
belamente ornamentada com baixos-relevos de gesso, à moda
daquela outra tão bem conhecida, não muito distante daqui pela
mesma estrada. Espíritos alados, grifos e arabescos, modelados
com leveza assombrosa, revestiam paredes e teto. Não havia
outra porta além daquela pela qual tínhamos entrado. No centro,
havia um sarcófago de mármore, com os temas usuais esculpidos
na superfície: de um lado, Hércules conduzindo uma figura
coberta por um véu; do outro, uma dança de ninfas e faunos. Um
espaço central tinha a seguinte inscrição, entalhada fundo na
pedra e ainda parcialmente preenchida com pigmento vermelho:
D.M.
VESPERTILIAE∙THC∙AIMA-
ΤΟΠΩΤΙΔΟC∙Q∙FLAVIUS
VIX∙IPSE∙SOSPES∙MON∙
POSVIT

— O que é isto? — sussurrou Magnin, cujo pé tocara algo.


Eram uma picareta e um longo pé-de-cabra, como os que os
camponeses usam para talhar os blocos de tufa.15 Quem poderia
tê-los trazido para cá? Deviam pertencer ao guardiano, mas ele
afirmara nunca ter descido aqui. Eu acreditava nele por saber
que os italianos têm horror à escuridão e a lugares isolados. Mas
para que Marcello os quisera? Não nos ocorria que a curiosidade
arqueológica pudesse tê-lo levado a tentar abrir o sarcófago, cuja
tampa evidentemente nunca tinha sido erguida, justificando a
expressão “conservou-o piamente”.
Quando ergui o olhar das ferramentas, meus olhos recaíram
sobre a linha de argamassa no encaixe entre a tampa e a pedra
abaixo dela. Notei que parte dela havia sido removida, talvez
com a picareta a meus pés. Testei-a com a unha e me pareceu
bastante friável. Sem uma palavra, peguei o instrumento, e
Magnin instintivamente seguiu meu movimento com a
lamparina. Não sei o que nos impeliu a fazê-lo. Eu não pensava;
tinha apenas um desejo irresistível de ver o que havia lá dentro.
Vi que parte da argamassa tinha se partido e estava em pequenos
fragmentos pelo chão, coisa que não notara antes. Não demorei
para completar o trabalho. Tirei a lamparina da mão de Magnin,
pousando-a no chão, e ela iluminou em cheio a face morta de
Marcello. À sua luz, encontrei uma fenda entre os dois blocos de
pedra, e ali enfiei a ponta do pé-de-cabra, enterrando-o mais
com um golpe da picareta. A pedra lascou e depois rachou.
Magnin tremia.
— Que vai fazer? — perguntou ele, olhando na direção em que
Marcello jazia.
— Ajude-me! — exclamei, e aplicamos toda a nossa força no
pé-de-cabra.
Sou um homem forte, e senti uma espécie de fúria cega
quando a pedra se recusou a ceder. E se a ferramenta se
partisse? Com outro golpe afundei-a mais e, usando-a como
alavanca, fizemos peso sobre ela, nossos braços estendidos até
que cada músculo estivesse sob tensão máxima. A pedra moveu-
se um pouco. Quase desmaiando, paramos para descansar.
Do teto pendiam restos enferrujados de uma corrente de ferro
que no passado devia ter sustentado um candelabro. Subindo no
sarcófago, prendi ali a lamparina.
— Agora! — disse, e de novo forçamos a tampa, que se ergueu.
Alternamos entre levantar e empurrar, até que a tampa se
desequilibrou e desabou com estardalhaço para o outro lado. O
estrondo foi tão forte que as paredes pareceram balançar. Por
um instante, fiquei totalmente surdo, enquanto pedacinhos de
gesso do teto caíram sobre nós. Depois de uma breve pausa para
nos recuperar do choque, debruçamo-nos sobre o sarcófago e
olhamos o interior.
A luz incidia em cheio e vimos... Como é possível contar?
Estendido, em meio às dobras de tecido mofado, estava o corpo
de uma mulher, perfeito como em vida, com as faces levemente
rosadas, macios lábios vermelhos e um colo de pérola viva que
parecia palpitar como que animado por algum sonho delicioso. O
material apodrecido que a envolvia fazia um contraste horrendo
com suas formas adoráveis, suaves como a manhã. Os braços
repousavam ao longo do corpo, as palmas rosadas viradas um
pouco para fora, os olhos fechados, tranquilos como os de uma
criança. O cabelo, que brilhava louro-avermelhado na luz pálida,
envolvia-lhe a cabeça em incontáveis trancinhas, por sob as
quais pequenos cachos escapavam em anéis sobre a testa. Eu
juraria que as veias azuis naquele pescoço de perfeição divina
continham sangue vivo!
Estávamos absolutamente paralisados, e Magnin, arfante,
debruçou-se por sobre a borda, pálido como a morte, muito mais
pálido do que a face vívida e quase sorridente na qual seus olhos
se fixavam. Não duvido que eu estivesse tão pálido como ele
diante daquela visão inexplicável. Enquanto eu olhava, os lábios
pareceram ficar mais vermelhos. Eles estavam mais vermelhos!
Pequenos dentes perolados apareceram entre eles. Eu não os
tinha visto antes, e então uma gota límpida de rubi escorreu para
o queixo arredondado e daí deslizou para um lado, caindo no
pescoço. Horrorizado, contemplei a morta-viva até que meus
olhos não mais suportaram a visão. Ao desviá-los, minha vista
caiu de novo sobre a inscrição, mas agora eu a podia ver — e ler
— por inteiro.
“Para Vespertília” — essa parte estava em latim, e mesmo o
nome latino da mulher sugeria algo maléfico esvoaçando ao
crepúsculo.16 Mas o pleno horror da natureza daquela coisa
ocultara-se aos olhos romanos sob o grego της αίματοπωτίδος, “a
tomadora de sangue, a mulher vampira”. E Flavius — seu amante
—, vix ipse sospes, ele próprio “mal conseguiu salvar-se” daquele
abraço mortal, então a enterrou ali e colocou um selo sobre o
sepulcro, confiando no peso da pedra e na força da argamassa
para aprisionar para sempre a bela criatura monstruosa que
amava.
— Assassina infame! — gritei. — Você matou Marcello!
Uma súbita calma vingadora me dominou.
— Dê-me a picareta — disse a Magnin.
Ainda posso me ouvir dizendo aquilo. Ele a apanhou e me
entregou, como num sonho. Parecia pouco mais útil que um
idiota, e gotas de suor brilhavam em sua testa. Peguei meu
canivete e, do longo cabo de madeira da picareta, cortei uma
estaca fina e pontiaguda. Então, sem qualquer repugnância,
entrei pelo lado do sarcófago, com os pés entre as pregas da
mortalha em decomposição de Vespertília, que esmaguei como
cinzas sob as botas.
Olhei um instante para o colo alvo, mas apenas para escolher
o ponto mais adorável, onde a rede de veias azuis resplandecia
como turquesas opacas, e num só golpe cravei a estaca
pontiaguda, enterrando-a ainda mais com a pressão de minha
bota.
Um grito terrível soou, tão penetrante e horrendo que pareceu
estourar meus tímpanos, mas ainda assim não senti medo ou
terror. Há ocasiões em que tais sentimentos não podem nos
tocar. Olhei uma vez mais a face que agora sofria uma mudança
assustadora — assustadora e final!
—Vampira imunda! — murmurei, em minha raiva acumulada.
— Já não causará mal nenhum.
E, sem olhar de novo sua face amaldiçoada, saí da tumba.
Erguemos Marcello e devagar o levamos escada acima; tarefa
difícil, pois o caminho era estreito e ele estava rígido. Notei que
os degraus eram antigos até o fim do segundo lance. Daí em
diante, a passagem mais moderna alargava-se um pouco.
Quando chegamos ao alto, o guardiano estava deitado num dos
bancos de pedra. Ele se assegurava de que não deixaríamos de
lhe pagar. Dei-lhe um par de francos.
— Como vê, encontramos o signore — falei, tentando soar com
naturalidade. — Ele está fraco; vamos carregá-lo para a
carruagem.
Eu tinha coberto o rosto de Marcello com meu lenço, mas o
homem sabia muito bem que ele estava morto. Os pés rígidos já
diziam tudo, mas os italianos não gostam de se envolver nesse
tipo de coisa. Têm um temor infantil da polícia, e o homem
apenas respondeu:
— Pobre signorino! Está bastante mal. É melhor levá-lo a
Roma.
Ele se manteve distante enquanto percorríamos a aleia de
azinheiras com nossa gélida carga e não nos acompanhou até o
portão, para não ser visto pelo cocheiro, que cochilava na boleia.
Embarcamos Marcello com dificuldade na carruagem, e o
condutor olhou-nos desconfiado. Expliquei que encontráramos
nosso amigo muito enfermo e, ao mesmo tempo, depositei uma
moeda de ouro em sua mão, pedindo que nos levasse à Via del
Governo Vecchio. Ele embolsou o dinheiro e chicoteou os cavalos
para colocá-los em marcha, enquanto segurávamos o corpo
rígido, que balançava como uma boneca quebrada a cada seixo
da estrada. Uma vez na Via del Governo Vecchio, ninguém nos
viu carregá-lo para a casa. Não havia escada em frente à porta, e
paramos tão rente a ela que conseguimos resguardar nossa carga
de todos os olhares. Depois de levá-lo para o quarto e deitá-lo na
cama, reparamos que seus olhos estavam fechados — quem sabe
em razão do movimento da carruagem, embora não parecesse
possível. A senhoria portou-se bem, da forma como eu esperava,
pois, como disse, conheço os italianos. Ela também fez de conta
que o signore estava muito doente e até fingiu oferecer-se para
chamar um médico. Quando me pareceu conveniente dizer que
estava morto, ela declarou que devia ter acontecido naquele
preciso momento, pois o vira olhar para nós e, então, fechar os
olhos de novo. Ela sempre afirmara que ele comia pouco e que
adoeceria. Sim, a fraqueza, junto com o ar ruim daquele lugar, o
havia matado; além disso, ele trabalhava demais. Depois de
construir com êxito essa ficção, com a qual concordamos de bom
grado, pois tampouco queríamos a repercussão de uma
investigação, ela saiu correndo e chamou uma comadre para vir
fazer-lhe companhia.
Assim morreu Marcello Souvestre, e assim morreu finalmente
Vespertília, a tomadora de sangue.
Não há muito mais a contar. Marcello jazia calmo e belo em
seu leito, e os estudantes vieram para vê-lo, em silêncio.
Ajoelharam-se por um instante, rezaram, persignaram-se e o
deixaram para sempre.
Corremos para a Villa Medici, onde Detaille dormia sob os
cuidados de irmã Claudius, cujo rosto forte exibia uma expressão
satisfeita. À nossa entrada, ela se ergueu em silêncio e veio a
nosso encontro na porta.
— Ele vai se recuperar — murmurou a mulher.
Ela estava certa. Ao despertar, ele nos reconheceu de
imediato.
— Graças a Deus — exclamou Magnin, soltando um suspiro
devoto.
— Estive doente, Magnin? — perguntou Detaille, débil.
— Você teve um pouco de febre — respondeu Magnin, sem
hesitar. — Mas já está bem. Monsieur Sutton está aqui para vê-lo.
— Marcello esteve aqui? — perguntou Detaille em seguida.
Magnin olhou-o fixamente.
— Não. — Foi tudo o que disse, deixando que seu rosto
contasse o resto.
— Ele está morto, então?
Magnin apenas curvou a cabeça.
— Pobre amigo — murmurou Detaille para si, então fechou os
olhos pesados e dormiu de novo.
Alguns dias depois do funeral de Marcello, fomos à fatal
Vigna Marziali para buscar seus pertences. Ao recolher com
cuidado o manuscrito de sua ópera, meu olhar recaiu sobre uma
passagem que me pareceu idêntica à que Detaille tanto repetira
em seu delírio e que eu tinha anotado.
Coisa estranha, quando lhe mostrei mais tarde, foi que
declarou lhe ser uma novidade perfeita, pois Marcello não havia
permitido que examinasse o manuscrito.
Quanto à escultura coberta na outra sala, não a descobrimos
— e a deixamos para que o tempo a esfacelasse, sem nunca ter
sido vista.

Pouco se sabe sobre Anne Crawford, baronesa de Raben (1846-


1912). Nascida em Roma e filha de um escultor estadunidense,
sua família morou por vários anos na Itália. Pintora, não teve
propriamente uma carreira literária, e talvez por isso seus
contos não tenham tido a repercussão que tiveram as histórias
de seu irmão mais novo, Francis Marion Crawford, prolífico
autor de ficção histórica e fantasia, incluindo o conto de
vampiros “Porque o sangue é a vida” (1905).
Anne Crawford faz parte do virtualmente desconhecido rol de
escritoras que se aventuraram pelo gênero vampírico no período
pré-Drácula. Além dela, a lista inclui as inglesas Elizabeth
Caroline Grey (The Skeleton Count; or, The Vampyre Mistress,
1828, talvez a primeira incursão feminina no tema), Eliza Lynn
Linton (“O destino de Madame Cabanel”, 1880), Mary Elizabeth
Braddon (“Herself”, 1894, e “A boa senhora Ducayne”, 1896),
Arabella Kenealy (“A Beautiful Vampire”, 1896) e Florence
Marryat (The Blood of the Vampire, 1897), as francesas Rachilde
(Monsieur Venus, 1884, e Madame la Mort, 1891) e Jane de la
Vaudère (“Bérénice”, “Viviane” e “Yvaine”, 1897), a irlandesa-
australiana Mary Fortune (“The White Maniac: A Doctor’s Tale”,
1867), a belga Marie Nizet (Le Capitaine vampire, 1879) e a
estadunidense Cora Linn Daniels (Sardi: a Story of Love, 1891).
O conto “A Mystery of the Campagna” foi publicado pela
primeira vez em 1887, na Inglaterra, dentro da antologia The
Witching Time: Unwin’s Christmas Annual, sob o pseudônimo
Anne von Degen.
A narrativa, muito eficiente, recria a atmosfera vitoriana e o
fascínio da elite inglesa pela cultura clássica. Sendo filha de um
artista e tendo morado na Itália, é provável que Crawford tenha
se valido da experiência própria para descrever o mundinho
frívolo formado pelos artistas ingleses e franceses na Itália, com
valores próprios, opiniões repletas de preconceitos acerca da
população local e um comportamento tão excêntrico que chega a
ser cômico, senão patético.
Ao mesmo tempo, ela segue a tradição da literatura gótica ao
usar o cenário italiano, e cria uma aura de mistério, romantismo
e melancolia, acentuada pelas menções constantes a ruínas
antigas e catacumbas, à vastidão da paisagem e à sensação de
solidão.
Um ponto muito interessante neste conto é a ausência de
qualquer aspecto folclórico que diga respeito ao ser vampírico.
Em narrativas anteriores nas quais aparece um vampiro
tradicional, como “A família do vurdalak” ou “Carmilla”, o
protagonista estrangeiro a princípio desconhece a existência do
vampiro, e ao ter contato com ele depende do conhecimento dos
moradores locais para reconhecê-lo e combatê-lo. Já os
narradores de “Um mistério da Campagna”, apesar de
estrangeiros, não só são capazes de reconhecer a natureza
vampírica de Vespertília como sabem de antemão o que fazer
para se livrarem dela. Esse detalhe indica que, na época em que
o conto foi escrito, a mitologia do vampiro estava bem
estabelecida entre o público leitor da Europa, e não eram
necessárias explicações para que o personagem fosse
compreendido. Parece claro, inclusive, que a familiaridade da
própria autora com os vampiros venha da ficção anteriormente
produzida, e não de pesquisa acadêmica de costumes
tradicionais.
1 “Minha criança”, em francês. [N. T.]
2 A Campagna, ou Campagna Romana, é uma grande planície que circunda Roma. À
época em que se passa o conto, era muito apreciada pelos artistas interessados em
paisagens. [N. T.]
3 “Chato”, “irritante”, em francês. [N. T.]
4 “Meu velho”, em francês. [N. T.]
5 “Francamente!”, em francês; a tradução literal é “Minha fé”. [N. T.]
6 Caio Múcio Cévola, personagem da Roma Antiga (século 6 a.C.), provavelmente
lendário, que, ainda jovem, colocou a mão no fogo diante do inimigo, deixando-a
queimar, para provar sua bravura. [N. T.]
7 Na mitologia grega, irmã de Helena de Troia e casada com o rei de Micenas,
Agamenon. É citada na Oresteia de Ésquilo e na Odisseia de Homero. [N. T.]
8 “Graças a Deus!”, em francês. [N. T.]
9 Região montanhosa da Itália centro-meridional. [N. T.]
10 Algo como “Que rapaz!”, em francês. [N. T.]
11 Forma de tratamento para freiras, literalmente “Minha irmã”. [N. T.]
12 “Inútil”, em francês. [N. T.]
13 “Quem sabe?”, em italiano. [N. T.]
14 “Camponesa”, em italiano. [N. T.]
15 Rocha vulcânica existente na maior parte da região de Roma. [N. T.]
16 Referência ao grupo de morcegos chamados, em inglês, vesper bats, ou “morcegos
do anoitecer”, pertencentes à família dos Vespertilionídeos. [N. T.]
O velho Éson
(1891)
Arthur Quiller-Couch

Julguem vocês o que se passou entre mim e meu hóspede, o


estranho que recebi em casa, num momento de necessidade, e
que agasalhei e alimentei.
Lembro-me bem do momento em que ele chegou, pois isso se deu
logo após cinco dias e cinco noites durante os quais o ano foi do
vigor à velhice; no intervalo entre a partida das andorinhas e a
chegada dos tordos; quando o jabuti que vive em meu jardim
arrastou-se para seu abrigo de inverno, e quando o equinócio
estava sobre nós, com um vento leste que congelou a seiva das
árvores, de modo que as folhas nem sequer exibiram a gradação
do vermelho e do amarelo, mas de repente se tornaram marrons,
quebradiças como papel velho.
Às cinco da manhã do sexto dia olhei para fora. O vento ainda
assobiava pelo céu, mas já não havia uma nuvem sequer. Bem
diante de minha janela, Sirius cintilava com uma brancura que
feria a vista. Um pouco para a direita, a constelação de Órion
estava suspensa sobre uma abertura na costa, em forma de
cunha, por onde o mar era mais adivinhado que visto. E, vagando
mais longe ainda, o olhar pousava sobre duas luzes brilhantes,
uma em cima da outra — a primeira de um vermelho feroz e
constante, a segunda de brilho amarelo intermitente; uma,
Aldebarã, e a outra, a luz no alto do farol, quinze milhas distante.
No leste, em seu último quarto e já decrépita, a lua ia a meio
caminho em sua ascensão, seguida de perto pela aurora. Foi
nessa hora que trouxeram o Estranho, perguntando-me se eu
teria a bondade de oferecer-lhe abrigo e hospitalidade.
Ninguém sabia de onde ele tinha vindo, exceto que chegara com
o vento e a noite. Falava uma língua estranha, gemendo e
emitindo um som como o chilrear das aves na chaminé. Mas
devia ter enfrentado uma viagem longa e dolorosa, pois seu peso
fez com que as pernas se vergassem, e ele não conseguiu manter-
se em pé quando o levantaram. Seria inútil, portanto, interrogá-
lo naquele momento. Assim, busquei informações com os criados
acerca do que me podiam contar, ou seja, que haviam topado
com ele minutos antes, caído de bruços em minha propriedade,
sem cajado nem alforje, sem chapéu, exausto, mal conseguindo
pedir ajuda em sua língua desconhecida. Por piedade,
recolheram-no e o trouxeram até mim.
Pela aparência, devia ter uns cem anos. Era calvo, todo
enrugado, com covas fundas onde deveria haver dentes, a carne
das faces pendendo solta e flácida. A pele exibia uma coloração
que apenas poderia resultar da exposição ao frio da noite. Mas
eram seus olhos os que melhor exprimiam a velhice. Azuis e
profundos, repletos da sabedoria da idade, quando ele me fitou
pareceram trespassar-me, olhando para além de mim, para um
passado de séculos de sofrimento e lenta obstinação do homem,
como se seu atual infortúnio fosse apenas um item insignificante
em uma longa lista. Eles me atemorizavam. Talvez transmitissem
um aviso do que eu enfrentaria nas mãos de seu dono. Por
compaixão, ordenei aos criados que o levassem até minha
esposa, com instruções para que ela lhe oferecesse comida e se
assegurasse de que ele se alimentaria.
Foi o que fiz pelo estranho. Saibam agora como ele me
retribuiu.
Ele tirou de mim a juventude, a maior parte de minha substância
e o amor de minha esposa.
A partir do momento em que provou a comida de minha casa,
deixou-se ficar sentado, sem dar qualquer mostra de querer
partir. Fosse de propósito, ou porque a idade e as adversidades o
tivessem prostrado de fato, ele demorou para voltar à vida e ao
calor, e passaram-se dias antes que demonstrasse ser capaz de
ficar em pé. Enquanto isso, gozou do melhor de nossa
hospitalidade. Minha esposa o atendia e os criados o satisfaziam
em cada pedido. Sim, pois em breve conseguiu que
compreendessem fragmentos de seu idioma, embora tardasse em
assimilar o nosso. Imagino que tenha sido de propósito, para
evitar que lhe indagassem o que fazia por estas bandas (coisa que
era um mistério) ou sugerissem que deveria partir. Eu mesmo
visitava com frequência o aposento do qual se apossara e ficava
sentado, às vezes por uma hora, olhando aqueles olhos
insondáveis, enquanto tentava entender algo do que dizia.
Quando estávamos a sós, volta e meia minha esposa e eu
especulávamos qual seria sua provável profissão. Seria um
mercador? Um velho ex-marinheiro? Latoeiro ambulante,
alfaiate, mendigo, ladrão? Nunca pudemos descobrir, e ele nunca
revelou.
Então veio o despertar. Estava, um dia, sentado na cadeira ao
lado da dele, pensando no de sempre. Ultimamente vinha me
sentindo pesado, uma dor e um cansaço nos ossos, como se o
tempo todo tivesse um peso morto sobre meus ombros e outro
comprimisse meu coração. Uma cor mais vívida nas faces do
Estranho chamou minha atenção. Curvei-me para diante,
espiando por baixo de suas pálpebras caídas. Os olhos estavam
mais brilhantes e menos profundos. A melancolia desvanecia-se
como o hálito evapora do vidro de uma janela. Estava
rejuvenescendo. Levantei-me depressa e corri pelo quarto até o
espelho.
Havia dois fios de cabelo branco sobre minha fronte. No canto
de cada olho, meia dúzia de linhas irradiavam. Eu era um velho.
Voltei-me e encarei o Estranho. Sentava-se sereno como um
ídolo indiano. Em minha imaginação, sentia o sangue jovem ser
drenado de meu coração e o via espalhar-se pelas faces dele.
Minuto a minuto contemplei o lento espetáculo — o velho- ­
tornava-se mais e mais belo. Como um botão desabrocha,
adquiria uma juventude adorável. E, aos poucos, fazia-me
fenecer.
Saí apressado do aposento e, indo para junto de minha
esposa, contei-lhe tudo.
— É um ghoul1 que estamos hospedando — disse-lhe. — Ele
está sugando meu sangue, e a criadagem parece enfeitiçada.
Ela pôs de lado o livro que lia e riu de mim. Ah, minha esposa
era linda, e seus olhos eram a luz de minha alma. Calculem, pois,
como me senti quando ela riu, tomando partido do Estranho.
Quando a deixei, foi com uma nova suspeita no coração.
Que será de mim, pensei, se depois de roubar-me a juventude,
ele prosseguir, tirando-me aquilo que me é ainda mais precioso?
No quarto, dia após dia, eu remoía aquilo, abominando as
alterações que sofria e temendo o pior. O Estranho já não tentava
disfarçar. Sua cabeça agora exibia cachos. Dentes brancos
enchiam-lhe os vazios da boca. Em suas faces, parecia haver um
buquê de rosas, refulgindo por sob a pele translúcida. Era Éson,
rejuvenescido e ingrato. E ele continuava lá, sentado, devorando
minha substância.
Ele já estava seguro de minha fraqueza e tinha certeza de que
eu não tentaria mais expulsá-lo. Então, depois de nos ter imposto
sua língua nativa, forçando a criadagem a expressar-se num
jargão horrendo, aquela mistura bastarda de dois idiomas,
consentiu em trazer-nos bruscamente de volta ao nosso,
dominando-o com uma facilidade que confirmava sua
dissimulação anterior e usando-o, daí por diante, como único
veículo para seus desejos. Sobre sua vida pregressa manteve o
silêncio, mas teve chance de confidenciar-me que pretendia
seguir uma carreira militar quando se cansasse do abrigo de meu
teto.
E eu gemia em meu quarto, pois aquilo que temera tornava-se
real. Ele demonstrava abertamente seu amor por minha mulher.
Os olhos com que a olhava e os lábios com que lhe dizia
galanteios tinham sido meus. E eu era um velho. Julguem, agora,
o que ocorreu entre mim e esse hóspede.
Uma manhã, fui até minha esposa, pois o fardo era
insuportável, e eu queria uma satisfação. Encontrei-a cuidando
das plantas no peitoril da janela. Quando se voltou, vi que os
anos não haviam roubado nada de sua beleza. E eu estava velho.
Assim, fiz-lhe acusações quanto ao Estranho, dizendo isto e
aquilo, e como tinha motivos para crer que ele a amava.
— Não há dúvida disso — respondeu ela, sorrindo.
— Por minha vida, acho que os sentimentos dele são
correspondidos! — exclamei, sem pensar.
Seu sorriso tornou-se radiante quando, olhando meu rosto,
ela respondeu:
— Por minha alma, marido, certamente são.
Deixei-a e desci para meu jardim, onde o dia esquentara e as
flores começavam a murchar. Olhei-as fixamente, e não consegui
encontrar uma solução para o problema que me ocupava o
coração. Levantei o olhar para leste, para o sol que brilhava por
sobre a cerca-viva, e vi que o Estranho se aproximava,
atravessando os canteiros e pisando nas flores sem piedade.
Vinha com um passo leve e um sorriso, e eu esperei, apoiando
todo o meu peso na bengala.
— Dê-me seu relógio — disse ele, alto, quando chegou perto.
— Por que deveria lhe dar meu relógio? — perguntei, com algo
entalado na garganta.
— Porque eu quero. Porque é de ouro. Porque você é velho
demais e não precisará dele por muito tempo mais.
— Tome-o — gritei, tirando o relógio e enfiando-o nas mãos
dele. — Pegue-o, você que já pegou tudo o que eu tinha de
melhor! Leve tudo, estrague minha vida...
Um riso suave soou lá em cima, e eu me virei. Minha esposa
nos olhava da janela, e seus olhos estavam ao mesmo tempo
úmidos e felizes.
— Desculpe — disse ela —, mas é você quem está estragando a
criança.
Sir Arthur Thomas Quiller-Couch (1863-1944) foi escritor, poeta
e crítico literário. Nasceu na Cornualha, Grã-Bretanha, e
frequentou o Trinity College, em Oxford, onde depois de formado
lecionou literatura clássica. Nessa época, escreveu vários
romances sob o pseudônimo de “Q”. Em 1887, mudou-se para
Londres, onde trabalhou como jornalista. Casou-se em 1889 e,
em 1891, regressou para a Cornualha por motivo de saúde. Ali,
atuou na política pelo Partido Liberal. Foi nomeado cavaleiro em
1910, por suas propostas de tornar o sistema educacional da
Cornualha mais liberal e voltado para o humanismo. Em 1912,
tornou-se professor de literatura inglesa na Universidade de
Cambridge, cargo que ocupou até a morte.
Escreveu poesias, romances populares e contos,
demonstrando criatividade e perícia em uma grande variedade
de estilos, entre os quais o sobrenatural, histórias de vikings,
sátiras, ficção histórica, aventuras românticas, contos de capa-e-
espada, mistério e detetives. Seu conto de fantasmas mais
conhecido, “The Roll-Call of the Reef”, foi publicado em 1895.
Entre os romances que escreveu estão Dead Man’s Rock (1887) e
Hetty Wesley (1903), com cenário em sua Cornualha nativa,
narrados com um estilo bastante particular. Em The Sleeping
Beauty and Other Fairy Tales (1910), Quiller-Couch reconta contos
de fadas tradicionais: A Bela Adormecida, Barba-Azul, Cinderela
e A Bela e a Fera. Renomado crítico literário, abriu mão da ficção
para produzir ensaios sobre literatura e educação e para
organizar antologias, às quais devotou boa parte de seu tempo. É
lembrado pelas monumentais antologias The Oxford Book of
English Verse 1250-1900, (1900, depois atualizada até 1918), The
Oxford Book of Ballads (1910) e The Oxford Book of English Prose
(1923). Deixou uma autobiografia inacabada, que foi publicada
em 1945, um ano após sua morte.
O conto “Old Aeson” foi publicado em 1891, no periódico
semanal The Speaker. No mesmo ano, foi incluído em Noughts
and Crosses: Stories, Studies and Sketches, a primeira coletânea
de contos de Q, muitos dos quais fantásticos. Apareceria, ainda,
em Shorter Stories (1944), seleção póstuma, organizada pelo
próprio Q pouco antes de sua morte, também com contos
fantásticos ou sobrenaturais.
Este texto breve, permeado de humor suave e melancólico, foi
escrito dentro do espírito de diversificação do vampiro na última
década do século 19, em que o mito se afastou do estereótipo
nobre-sombrio-assassino-de-mocinhas. “O velho Éson” traz um
vampiro psíquico, que se alimenta de energia em vez de sangue.
Pode ser lido como uma metáfora de como o filho, um ser na
verdade incompreensível e estranho, desenvolve-se enquanto
suga as forças e a juventude do pai numa interação quase
parasítica.
A relação criada por Quiller-Couch entre os personagens do
conto coincide, de forma admirável, com uma situação que anos
mais tarde mereceria grande atenção por parte da psicanálise: o
pai que se transforma num obstáculo entre o amor do filho pela
mãe e que precisa ser, de alguma forma, removido. O médico
austríaco Sigmund Freud começou a desenvolver, em 1897, o
conceito do que mais tarde viria a batizar como “complexo de
Édipo”, que aborda esta mesma relação. Assim, o conto de
Quiller-Couch antecede em alguns anos o interesse de Freud
pelo tema.
O título do conto é uma referência à mitologia grega. Éson, rei
da Tessália, teve o trono usurpado pelo irmão Pélias e, anos
depois, foi morto pela feiticeira Medeia, mulher de seu filho
Jasão, que posteriormente o trouxe de volta à vida,
rejuvenescido. Ela convenceu as filhas de Pélias que faria o
mesmo com este, recusando-se a ressuscitá-lo depois que elas o
mataram, e assim o usurpador encontrou seu fim.

1 Criatura do folclore árabe-persa que habita cemitérios e locais desabitados. É muitas


vezes confundida com o vampiro, mas, enquanto este se alimenta de presas vivas, os
ghouls preferem devorar cadáveres. [N. T.]
O último
dos vampiros
(1893)
Phil Robinson

Estão lembrados da descoberta dos ossos do “homem-lagarto”,


numa caverna da Amazônia, na década de quarenta? Talvez não
se lembrem. No entanto, à época, esse acontecimento causou
grande comoção no mundo científico e, de forma geral, caiu no
interesse dos homens e mulheres da moda. Por um ou dois dias,
a coisa mais acertada em Belgravia1 era falar de “elos de ligação”,
da “evolução do homem a partir do réptil” ou da “plausibilidade
dos mitos antigos” que relatavam centauros e sereias como
sendo criaturas reais.
O fato é que um judeu alemão, mercador de borracha,
seguindo seu caminho com o habitual cortejo de nativos através
de um seringal ao longo do rio Marañon, deparou com alguns
ossos na margem do rio onde armara acampamento. Por
curiosidade inconsequente tentou montá-los e, para sua
surpresa, descobriu ter diante de si o esqueleto de uma criatura
com pernas e pés humanos, crânio como o de um cão e imensas
asas semelhantes às de um morcego. Sendo um homem sagaz,
entreviu a possibilidade de fazer dinheiro com aquele achado.
Assim, juntou num saco todos os ossos que pôde e, no dorso de
uma lhama, transportou-os até Chachapoyas,2 e daí para a
Alemanha.
Por infelicidade, aconteceu de ter o mesmo nome de outro
judeu alemão, que tempos antes tentara ludibriar o mundo
científico com alguns rolos de papiro datados de antes do
Dilúvio, até ser desmascarado e execrado. Assim, quando
apareceu um homônimo com os ossos de um homem alado, foi
recebido sem grande entusiasmo.
No entanto, ele vendeu sua borracha por um montante
satisfatório, largou os ossos com um jovem estudante de
medicina na tradicional Universidade de Bierundwurst e
retornou para seu seringal, seus nativos e as margens do
Amazonas. Para ele foi o fim da história.
O estudante, um dia, montou os fragmentos e, por mais que
tentasse, só podia chegar a um resultado: um homem alado com
cabeça de cão.
Havia algumas costelas a mais, um ou outro pedaço de
espinha dorsal que pareciam supérfluos, mas o que mais se
esperaria da anatomia de tão extraordinária criatura? Os fatos
circularam de um estudante a outro e finalmente chegaram aos
ouvidos dos professores e, para encurtar a história, o esqueleto
do estudante foi desmontado pelas sábias cabeças do colegiado e
remontado por suas sábias mãos.
Fizessem o que fizessem, ainda assim chegavam a um único
resultado: um homem alado com a cabeça de um cão.
A coisa então ficou séria: os professores primeiro ficaram
intrigados e, depois, começaram a brigar. O resultado das
discussões foi a publicação de panfletos e de contra-ataques. E
assim o mundo todo tomou conhecimento da grande
controvérsia sobre o “homem-lagarto do Amazonas”.
Um lado declarou, claro, que semelhante criatura era
impossível, e que os ossos eram uma fraude muito engenhosa. O
outro lado revidou, desafiando os céticos a fabricarem uma
réplica e prometendo publicamente recompensas tão elevadas a
quem o fizesse que durante meses o museu foi assediado pelos
competidores. Mas ninguém conseguiu manufaturar outro
homem-lagarto. A parte humana era bem simples, desde que se
conseguisse o esqueleto de uma pessoa. Mas na dobra das asas
articulavam-se enormes garras pretas, polidas e recurvadas, e
não havia engenhosidade suficiente para imitá-las. E, então, os
“genuinistas”, como eram chamados aqueles que acreditavam no
monstro, fizeram outra provocação aos “imposturistas”,
desafiando-os publicamente a dizer a que animal pertenceriam a
cabeça ou as asas, se não era ao homem-lagarto. A resposta
nunca foi dada.
Assim, a vitória permaneceu com eles, mas não,
desafortunadamente, os ossos da discórdia. Isso porque os
imposturistas, por meio de suborno e roubo, ganharam acesso ao
precioso esqueleto e, oh, numa certa manhã, a glória do museu
tinha desaparecido. A metade humana ficou, mas cabeça e asas
se foram, e desde aquele dia ninguém voltou a vê-las.
E qual das duas facções estava certa? A bem da verdade,
nenhuma, como prova a narrativa que se segue.
Há muito tempo, contam os índios Zaporos, que habitam a
região entre o Amazonas e o Marañon, chegou a Pampas de
Sacramento um grupo de garimpeiros, homens brancos que
expulsaram os indígenas de seus garimpos para deles se
apossarem.
Eram os primeiros homens brancos que apareciam por ali, e
os índios temiam as armas deles. No fim, a traição fez o trabalho
da coragem. Fingindo serem amistosos, os nativos mandaram
suas mulheres para junto dos estrangeiros, a quem elas
ensinaram como usar a mandioca-brava para fazer tucupi, sem
ensinarem, porém, como distinguir a mandioca madura da que
ainda não estava no ponto. Os desafortunados homens brancos
fizeram tucupi com mandioca nova demais (que provoca ataques
como os da epilepsia), e, quando caíram indefesos, espalhados
pelo acampamento, os índios atacaram e mataram todos.
Todos, menos três. Estes eles deram para o Vampiro.
Mas o que era o Vampiro? Os Zaporos não sabiam. “Muito
tempo atrás,” diziam eles, “existiam muitos vampiros no Peru,
mas foram todos engolidos no ano do Grande Terremoto, quando
os Andes se ergueram, e restou só um Arinchi, que morava onde
o Amazonas se encontra com o Marañon. Ele não se alimentava
de corpos mortos, apenas dos vivos, dos quais o sangue podia
verter”.
Assim corre a lenda, e a prova de que tem algum fundamento
reside nos registros do distrito, que relatam mais de um
massacre de garimpeiros brancos no Marañon, pelos índios
cujas lavras tentaram usurpar. Mas sobre o Arinchi, o Vampiro,
não há qualquer menção oficial. Nesse ponto, porém, outras
superstições locais ajudam a interpretar o enigma do homem-
lagarto da Universidade de Bierundwurst.
Quando se fazia um sacrifício para “o Vampiro”, a vítima era
amarrada em uma canoa e levada rio abaixo até um igarapé de
margens lamacentas, que desembocava numa rocha com uma
caverna. Era ali que deixavam a canoa. Uma corrente muito
lenta fluía pelo igarapé tortuoso, e qualquer coisa atirada à água
terminava entrando na caverna. Alguns índios tinham ficado
observando as canoas flutuando devagar, uns poucos pés em
uma hora, rodando e rodando enquanto eram arrastadas, e
viram quando elas chegavam à caverna e desapareciam em seu
interior. Causava-lhes espanto, geração após geração, que a
caverna nunca se enchesse, pois o dia inteiro a corrente fluía lá
para dentro, carregando os detritos flutuantes do rio. Assim,
diziam que a caverna era a entrada do Inferno e que não tinha
fundo.
Um dia, um homem branco, um professor da mesma
Universidade de Bierundwurst e valoroso caçador de besouros,
com a graça de Deus, que vivia amistosamente com os índios,
subiu o igarapé até a entrada da caverna e soltou dentro dela
uma pequena jangada, carregada de madeira seca e nós de pau-
de-­óleo,3 aos quais tinha ateado fogo. Ele viu a jangada seguir em
frente, ardendo, por uma hora ou mais, e iluminando de ambos
os lados as paredes úmidas da caverna, até que foi apagada.
Ela não se apagou de repente, como se tivesse virado ou
descido por uma cachoeira, mas como se tivessem batido nela.
As fagulhas incandescentes foram lançadas para os lados,
pedaços ainda acesos brilharam por um bom tempo nas
saliências de rocha onde caíram, e a caverna encheu-se com o
som de um vento repentino e os ecos do ruído de grandes asas
batendo.
Um dia, finalmente, o próprio professor entrou na caverna. E
escreveu o relato que se segue.
Levei uma grande canoa e na proa instalei um braseiro,
colocando por trás dele uma bateia de estanho para servir de
refletor. Carreguei a canoa com raízes de uma árvore resinosa,
pau-de-óleo, inhames e carne-seca. Levava lanças, tendo
embebido a ponta de uma delas no veneno woorali,4 que
entorpece, mas não mata. Assim entrei na caverna. Acendi meu
fogo, e com a vara guiei a canoa com muita cautela através do
túnel que em breve se alargou. Deslizando ao longo de uma das
paredes, de repente percebi que algo se movia do lado oposto.
Virei o feixe de luz naquela direção e vi, sobre uma
plataforma rochosa, um animal com cabeça parecida à de um
grande cão cinzento e olhos grandes como os de uma vaca.
Não conseguia ver que forma tinha, mas, enquanto o
observava, aos poucos distingui duas enormes asas como as de
morcego, totalmente abertas, como se o animal estivesse erguido
na ponta dos pés, prestes a voar. De fato, estava. Assim que
constatei, com um choque, estar diante de um grande réptil-
morcego desconhecido da ciência, um espécime vivo dos extintos
lagartos voadores do Dilúvio, a coisa lançou-se no ar, e no
instante seguinte caiu sobre mim.
Agarrando-se à canoa, ela bateu as asas no fogo com tanta
fúria que a duras penas evitei que a embarcação virasse. Fui
surpreendido, e a força e velocidade de seus golpes quase me
atordoaram antes que tentasse me defender.
Por essa altura — passara-se meio minuto, se tanto —, o
braseiro quase fora esvaziado pela poderosa besta, e o vampiro
já tinha me agarrado, sem dúvida tomando-me por uma vítima
de sacrifício. No instante seguinte, trespassei seu corpo com a
lança envenenada e, num prodigioso tumulto de asas, as garras
se soltaram de minha roupa, e a coisa caiu no igarapé.
Tão depressa como pude, reacendi o fogo e vi o Arinchi, as
asas estendidas sobre a água, flutuando corrente abaixo. Eu o
segui.
Hora após hora, com o refletor iluminando em cheio a cabeça
de cachorro cinza e os olhos de vaca, desci o curso d’água
sombrio e silencioso. Comi e bebi enquanto seguia, mas não
ousei adormecer. Um dia deve ter se passado, e duas noites, e vi
o que, é claro, esperara durante todo o tempo: um brilho pálido
na forma de um olho, bem à minha frente. Então soube que
estava saindo de novo para a luz do dia.
A abertura se aproximava mais e mais, e com imensa
ansiedade meu olhar recaiu sobre meu troféu flutuante, o
Arinchi, último dos répteis alados.
Em minha imaginação já me via como o mais destacado dos
viajantes europeus, o herói de minha época. O que seriam os
cangurus de Banks5 ou o gorila de Du Chaillu,6 diante de minha
descoberta do último sobrevivente dos pterodáctilos, as criaturas
do Dilúvio, os répteis voadores anteriores a Noé e sua era de
catástrofe e lama?
Tomado por esses pensamentos, não notei que o vampiro
tinha parado e, de repente, a proa da canoa chocou-se contra ele.
Num instante, ele subiu no barco. Uma vez mais suas grandes
asas de morcego golpearam-me e espalharam as brasas e, num
esforço desesperado, a coisa tentou passar por mim e voltar para
a penumbra. Havia visto a luz do dia, e preferia lutar a ter de
encarar o sol.
Sua ferocidade era a de um cão enlouquecido, mas eu o
mantive à distância com a vara. Entrevi minha chance quando
ele se agarrou à proa, batendo as asas, e empurrei-o com tanta
força que o derrubei de novo. Ele começou a nadar (e pela
primeira vez notei seu longo pescoço), mas golpeei-lhe a cabeça
com a vara, atordoando-o, e uma vez mais ele deslizou com a
corrente, para a luz do dia.
Que alívio estar ao ar livre! Era o meio do dia, e, assim que
ultrapassamos a entrada da caverna, o rio brilhava tanto à luz do
sol que, depois de dois dias de escuridão quase total, por um
momento fiquei cego. Virei a canoa para a praia, rumo à sombra
das árvores, e, passando um laço ao redor do corpo flutuante,
reboquei-o detrás de mim.
Mais uma vez em terra firme — e na posse de um Vampiro!
Arrastei-o para fora d’água. Que aparência horrível tinha este
animal: um canguru alado com pescoço de píton. Não estava
morto. Assim, fiz uma focinheira com uma tira de couro e
amarrei suas asas com firmeza de encontro ao corpo. Deitei-me e
dormi. Quando acordei, um novo dia estava nascendo. Depois do
desjejum, arrastei meu prisioneiro para a canoa e desci o rio.
Não fazia ideia de onde estava, mas sabia que ia em direção ao
mar, rumo à Alemanha, e isso era o suficiente.
Por dois meses tenho sido levado pela corrente, descendo este
rio interminável. Sobre minhas aventuras, sobre nativos hostis,
corredeiras, jacarés e onças, nada direi. São propriedade comum
a todos os viajantes. Mas meu vampiro! Ele está vivo. E agora
uma única ambição me devora: mantê-lo com vida, permitir à
Europa contemplar, vivo e respirando, o sobrevivente dos
grandes répteis que a raça humana conheceu antes dos dias de
Noé. O elo perdido entre o réptil e a ave. Com esse propósito,
neguei-me alimento e neguei-me até mesmo o precioso
medicamento. A despeito de mim, dei a ele toda minha quinina, e
quando os miasmas se erguiam do rio à noite, cobria-o com o
cobertor e eu mesmo ficava exposto. Se a febre negra7 me
atacasse!
Três meses, e ainda neste rio odioso. Nunca terá fim? Tenho
me sentido doente, tão doente que por dois dias não pude me
alimentar. Não tinha forças para ir até a margem em busca de
comida, e temo que morrerei. Morrerei antes de voltar para casa.
***
Adoeci novamente — a febre negra! Mas ele está vivo. Peguei
um [---]8 nadando no rio, e ele o sugou até secar — galões de
sangue. Faz três dias que não o alimento. Em sua fúria faminta,
partiu a focinheira, que eu estava fraco demais para recolocar.
Um pensamento horrível me domina. Supondo que ele arrebente
a focinheira de novo, enquanto estou prostrado, doente,
delirante, e ele está faminto? Oh, que horror! Vê-lo alimentando-
se é terrível. Ele junta as garras das duas asas e envolve todo o
corpo, a cabeça oculta sob as asas. A vítima fica imóvel. Assim
que o vampiro a toca, ela parece ficar paralisada. Uma vez que as
asas se fecham sobre a presa, a imobilidade é total. Só se ouvem
os dentes triturando os ossos. Horrível! Terrível! Mas na
Alemanha serei famoso. Na Alemanha, com meu Vampiro?
Estou muito debilitado. Ele arrebentou a focinheira outra vez.
Mas era dia, quando ele fica cego. Os olhos enormes são cegos à
luz do dia. Foi uma longa luta. Esta febre negra! E o horror desse
monstro! Estou fraco demais para matá-lo, se o quisesse fazer.
Mas devo levá-lo vivo para casa. Logo, certamente, o rio
terminará. Oh, Deus, nunca chegará ao mar, aos homens
brancos, a meu lar? Mas se ele me atacar, eu o matarei. Se eu
estiver à morte, vou estrangulá-lo. Se não pudermos chegar
juntos à Alemanha, morreremos juntos. Apertarei sua garganta
com as duas mãos e cravarei meus dentes em seu pescoço
horrível, e nossos ossos descansarão juntos na margem deste rio
amaldiçoado.
Isso é praticamente tudo o que se pôde recuperar do diário do
professor. Mas é o suficiente para contar-nos sobre a tragédia
final.
Os dois esqueletos foram encontrados juntos, bem na beira do
rio. Metade de cada um, com o correr dos anos, tinha sido
carregada por enchentes sucessivas. O resto, quando encaixado,
originou o homem-réptil que, para usar uma frase de Rabelais,
“matagrabolizou9 de tudo em nada” a Universidade de
Bierundwurst.
Philip Stewart Robinson (1847-1902) foi um jornalista, escritor e
naturalista britânico, nascido na Índia. Formou-se na Inglaterra,
onde trabalhou como bibliotecário antes de retornar à Índia e
dedicar-se ao jornalismo e à docência. Voltou à Inglaterra e pelos
anos seguintes trabalhou como redator e editor, viajando pelo
mundo como correspondente de jornais. Esteve no Afeganistão,
na África, nos Estados Unidos e na Austrália. Em 1898, cobriu a
guerra hispano-americana em Cuba, e as dificuldades que
enfrentou, incluindo prisão e enfermidades, abalaram sua saúde.
Nos últimos anos, produziu apenas artigos ocasionais.
Foi um dos pioneiros da literatura anglo-indiana e das
descrições da natureza na Índia, incluindo uma obra sobre as
aves desse país. Era apreciado por sua escrita agradável e
perspicaz, e pelo modo descontraído e bem-humorado como
tratava a vida cotidiana, até mesmo os contratempos, em suas
narrativas e relatos de viagem. Sua obra In My Indian Garden
(1878) era bastante popular, e chegou a constituir obra de
referência para Rudyard Kipling, o afamado autor de O livro da
selva (1894) e Kim (1901).
O conto “The Last of the Vampires” foi publicado pela primeira
vez na revista Contemporary Review, em 1893. Cheio de humor e
de sutil ironia (por exemplo, Bierundwurst significa, em alemão,
“cerveja e salsicha”), é uma crítica inteligente e divertida às
controvérsias surgidas no mundo acadêmico, em que a defesa
obstinada de posições antagônicas e incompatíveis muitas vezes
chega ao destempero e às ofensas. Talvez Robinson tenha se
inspirado na acalorada discussão sobre a evolução do ser
humano, que em 1860 colocou em campos opostos, de um lado,
Charles Darwin e seu autointitulado buldogue, Thomas Henry
Huxley, e do outro Samuel Wilbeforce, bispo de Oxford, e o
anatomista e paleontólogo Sir Richard Owen (o criador do termo
“dinossauro”). Na época, a polêmica saiu dos círculos científicos
e ganhou as ruas através de panfletos e até uma peça bufa de
teatro.
Para o leitor brasileiro, “O último dos vampiros” tem o
especial interesse de, implicitamente, passar-se em nosso país. A
ação começa no Peru, com os fictícios índios Zaporo vivendo na
região de Iquitos, onde o rio Marañon encontra-se com o Ucayali
e passa a se chamar Amazonas (mais adiante, ele cruza a
fronteira brasileira e seu nome muda para Solimões, voltando a
Amazonas na altura de Manaus, após se encontrar com o rio
Negro). A interminável navegação posterior só pode ter
percorrido o próprio Amazonas. Todo o desespero e solidão do
anônimo cientista da universidade de Bierundwurst são uma
liberdade literária: o rio sempre foi uma rota de transporte
importante, e forçosamente o explorador teria passado por
embarcações, cidades e vilas, onde poderia obter ajuda.
O conhecimento de Robinson sobre a vida e a natureza da
Amazônia é notável, mostrando a clareza e precisão com que
escrevia sobre história natural. Talvez nunca tenha estado na
Amazônia, mas descreve com precisão o uso do curare e da
madeira da copaíba pelos nativos, assim como os conflitos por
terras e riquezas (tema ainda hoje tão atual!).
Sempre no espírito de diversificação do vampiro fin-de-siècle,
aqui ele assume a insólita forma de um pterossauro,
representante de um grupo de répteis voadores hoje extinto. Os
pterossauros não eram, como diz o professor do conto, o “elo
perdido” entre os répteis e as aves; hoje a teoria mais aceita é de
que as aves descendem dos dinossauros, enquanto os
pterossauros eram um grupo à parte, com história evolutiva
independente. Eles desapareceram há 65 milhões de anos, junto
com os dinossauros, na grande extinção do fim do Cretáceo. Já
foram descobertas mais de 130 espécies de pterossauros, das
quais cerca de trinta com ocorrência no Brasil.10
A descrição do arinchi (“cabeça de cachorro cinza e olhos de
vaca”) pode ter sido inspirada numa gravura de 1843, que mostra
um pterossauro peludo, com cara de mamífero e grandes olhos
brilhantes. Outra fonte de inspiração para o conto pode ter sido
a nota publicada no Illustrated London News, em 1856, sobre um
episódio que teria ocorrido na França. Operários que
trabalhavam em um túnel afirmaram que um ser monstruoso
emergira da cavidade; parecia um grande morcego, de pescoço
muito longo, boca cheia de dentes pontudos e quatro membros
armados com fortes garras e unidos por membranas, “que sem
dúvida serviam para manter o animal em voo”. Identificado por
“um naturalista” como um pterossauro, o jornal o chamava de
“fóssil vivo”, considerando-o “uma descoberta de grande
importância científica”. Até hoje há quem defenda que, em algum
canto remoto do mundo, os pterossauros sobrevivem (bem como
dinossauros, plesiossauros, o Pé-Grande, o Yeti etc.).
O conto de Robinson revelou-se curiosamente profético
décadas depois. Em 1953, foi demonstrado que um famoso fóssil
de hominídeo achado na Inglaterra em 1912, o Homem de
Piltdown, era uma fraude, combinando um esqueleto humano
com uma mandíbula de orangotango e dentes de chimpanzé. Até
hoje não se sabe quem foi o responsável, e entre os suspeitos
figura Sir Arthur Conan Doyle, o criador de Sherlock Holmes.
Por coincidência, também em 1912, Conan Doyle publicou seu
romance O mundo perdido (The Lost World), em que uma
expedição ao monte Roraima, mais afortunada que o
personagem de Robinson, retorna a Londres com um
pterossauro vivo.
Phil Robinson escreveu outro conto fantástico, “A árvore
comedora de gente” (1881), passado na África e estrelado por
uma árvore assassina. Como o título já diz, ela é mais
propriamente uma devoradora de animais, incluindo pessoas,
que um ser tomador de sangue.

1 Bairro residencial de classe alta, na porção sudoeste de Londres. Era o bairro da


moda, à época. [N. T.]
2 Cidade peruana, capital do departamento de Amazonas, situada a cerca de dois mil
metros de altitude. [N. T.]
3 No original, oil-wood. Também conhecido como copaíba; o óleo extraído da madeira é
usado pelos indígenas da Amazônia com várias finalidades, inclusive medicinais. [N.
T.]
4 Curare, veneno também usado pelos indígenas da Amazônia para pescar e caçar. [N.
T.]
5 Sir Joseph Banks (1743-1820), botânico e naturalista inglês que, entre 1768 e 1771,
circum-navegou o mundo, com o capitão James Cook. Foi o primeiro cientista a relatar
a existência dos cangurus. Conta-se a anedota de que, ao indagar dos nativos o nome
do animal, teve como resposta kang-ooroo, que significaria, de fato, não sei. A anedota
é falsa. Gangaru é o nome nativo de uma espécie de canguru de grande porte. Banks
esteve no Brasil, onde coletou material botânico no Rio de Janeiro e arredores. [N. T.]
6 Paul du Chaillu (1835-1903), viajante e naturalista franco-americano, primeiro
cientista a ver gorilas vivos, no Gabão, na década de 1850. Ao retornar aos Estados
Unidos, tornou-se uma celebridade. [N. T.]
7 Outro nome da leishmaniose visceral, ou calazar, doença causada por protozoários
do gênero Leishmania e transmitida pela picada do mosquito-palha (Lutzomyia spp.).
No ser humano, os sintomas mais típicos são febre e o aumento do baço e, às vezes, do
fígado. [N. T.]
8 Dessa forma no original. Robinson poderia estar se referindo a um peixe-boi, um
boto, uma anta ou até mesmo um peixe de grande porte, como o pirarucu. [N. T.]
9 Em inglês, metagrobolised. Do francês matagraboliser, verbo inventado pelo escritor
François Rabelais, em Pantagruel (1532), no sentido de remoer ou digerir um
pensamento à exaustão. [N. T.]
10 Num fato curioso, em 2009, cientistas romenos descobriram, na Transilvânia, os
ossos de uma nova espécie de pterossauro, que seria a maior já encontrada no mundo.
O animal mediria 12 metros de uma ponta a outra das asas. Inevitavelmente, o
exemplar foi apelidado de “Drácula”.
Tanatopia
(1893)
Rubén Darío

— Meu pai foi o célebre doutor John Leen, membro da Real


Sociedade de Investigações Psíquicas1 de Londres, e muito
conhecido no mundo científico por seus estudos sobre o
hipnotismo e por sua célebre Memória sobre o Old. Não faz muito
tempo que faleceu. Que Deus o tenha em sua glória.
(James Leen esvaziou no estômago grande parte de sua
cerveja e continuou:)
— Vocês riram de mim e do que chamam de minhas
preocupações e ridicularias. Eu os perdoo porque, francamente,
nem sequer suspeitam de nenhuma das coisas que não
compreende nossa filosofia no céu e na terra, como diz nosso
maravilhoso William.2
Não sabem que sofri muito, e que sofro muito, as mais
amargas torturas, por causa de suas risadas... Sim, repito-lhes:
não consigo dormir sem luz, não posso suportar a solidão de
uma casa abandonada. Estremeço ante o ruído ­misterioso que
nas horas crepusculares brota dos arvoredos em uma estrada.
Não me agrada ver voar uma coruja ou um morcego. Não visito,
em nenhuma cidade aonde chego, os cemitérios. Martirizam-me
as conversas sobre assuntos macabros e, quando as tenho, meus
olhos esperam que a luz apareça para cerrarem-se ao amor do
sono.
Tenho horror daquela que oh, Deus!, terei de nomear: a
morte. Jamais me fariam permanecer em uma casa onde
houvesse um cadáver, ainda que fosse o de meu amigo mais
amado. Vejam: esta é a palavra mais fatídica de todas as que
existem em qualquer idioma: cadáver... Vocês riram, estão rindo
de mim. Que seja. Mas permitam que lhes conte a verdade de
meu segredo. Cheguei à República Argentina, foragido, depois de
ter passado cinco anos preso, sequestrado miseravelmente pelo
doutor Leen, meu pai, o qual, se era um grande sábio, suspeito
que fosse um grande bandido. Por ordem dele fui levado ao
sanatório. Por ordem dele, pois temia talvez que algum dia me
revelasse o que ele pretendia manter oculto. Já saberão o que é,
pois já me é impossível manter o silêncio por mais tempo.
Aviso-lhes que não estou bêbado. Não fui louco. Ele ordenou
meu sequestro porque... Prestem atenção.
(Magro, louro, nervoso, agitado por um estremecimento
frequente, James Leen erguia o peito na mesa da cervejaria em
que, rodeado de amigos, nos contava tais coisas. Quem não o
conhece em Buenos Aires? Não é um excêntrico em sua vida
cotidiana. De tanto em tanto costuma ter esses estranhos
repentes. Como professor, é um dos mais estimados em um de
nossos principais colégios, e, como homem do mundo, embora
um tanto silencioso, é um dos melhores elementos jovens dos
famosos cinderellas dance3. Assim, prosseguiu nessa noite sua
estranha narrativa, que não nos atrevemos a qualificar como um
engodo, dado o caráter de nosso amigo. Deixamos ao leitor a
apreciação dos fatos.)
***
— Muito jovem perdi minha mãe e fui enviado por ordem
paterna a um colégio de Oxford. Meu pai, que nunca manifestou
carinho por mim, saía de Londres para visitar-me uma vez por
ano no estabelecimento de ensino onde eu crescia, solitário em
meu espírito, sem afetos, sem agrados.
Lá aprendi a ser triste. Fisicamente, eu era o retrato de minha
mãe, pelo que me diziam, e suponho que por isso o doutor
procurava olhar-me o menos possível. Não lhes direi mais nada
sobre isto. São ideias que me vêm. Perdoem a maneira de minha
narrativa.
Quando toquei nesse tópico, senti-me comovido por uma
força reconhecida. Tentem compreender-me. Digo, pois, que
vivia solitário em meu espírito, aprendendo tristeza naquele
colégio de muros escuros, que ainda vejo em minha imaginação
nas noites de lua... Oh, como aprendi então a ser triste! Vejo
ainda, por uma janela de meu quarto, banhados por uma pálida e
maléfica luz lunar, os álamos, os ciprestes... Por que havia
ciprestes no colégio?... E, por todo o parque, velhos Términos4
carcomidos, leprosos de tempo, onde costumavam se empoleirar
as corujas que eram criadas pelo abominável e encurvado
diretor septuagenário... Para que criava corujas o diretor? E
ouço, no momento mais silencioso da noite, o voo dos animais
noturnos e os rangidos das mesas, e numa meia-noite, juro-lhes,
uma voz: “James”. Oh, voz!
Ao completar os vinte anos, anunciaram-me um dia a visita
de meu pai. Alegrei-me, apesar de instintivamente sentir repulsa
por ele. Alegrei-me, porque necessitava naqueles momentos
desabafar com alguém, mesmo que fosse com ele.
Ele chegou mais amável que outras vezes. E, embora não me
olhasse de frente, sua voz soava grave, com certa amabilidade.
Comuniquei-lhe que desejava, finalmente, voltar a Londres, que
havia concluído meus estudos e que, se permanecesse mais
tempo naquela casa, morreria de tristeza... Ao responder, sua
voz ressoou grave, com certa amabilidade para comigo:
— Pensei precisamente em levá-lo hoje mesmo, James. O
diretor me comunicou que você não está bem de saúde, que sofre
de insônia, que está comendo pouco. O excesso de estudo é ruim,
como todos os excessos. Além do mais, queria dizer-lhe, tenho
outro motivo para levá-lo para Londres. Minha idade necessita
de amparo, e vim em busca dele. Você tem uma madrasta, a
quem quero apresentá-lo e que deseja ardentemente conhecê-lo.
Hoje mesmo, portanto, você virá comigo.
Uma madrasta! De imediato, veio-me à lembrança minha
doce, branca e loura mãezinha, que tanto me amou quando eu
era pequeno, tanto me mimou, quase abandonada por meu pai,
que passava noites e dias em seu laboratório horrível, enquanto
aquela pobre e delicada flor se consumia. Uma madrasta! Iria eu,
pois, suportar a tirania da nova esposa do doutor Leen, talvez
uma horrível blue-stoking,5 ou uma cruel sabichona, ou uma
bruxa. Perdoem as palavras. Às vezes não sei com certeza o que
digo, ou talvez saiba bem demais...
Não respondi uma palavra sequer a meu pai e, conforme o
desejo dele, tomamos o trem que nos conduziu a nossa mansão
em Londres.
Desde o momento em que chegamos, desde que penetrei pela
grande porta antiga, à qual se seguia uma escada escura que
levava ao andar principal, surpreendi-me desagradavelmente.
Não havia na casa um só dos antigos empregados.
Quatro ou cinco velhos doentios, com grandes librés frouxas e
pretas, inclinavam-se à nossa passagem, com genuflexões lentas,
mudos. Penetramos no grande salão. Estava tudo mudado. Os
móveis de antes haviam sido substituídos por outros, de gosto
seco e frio. Somente restava no fundo do salão um grande retrato
de minha mãe, obra de Dante Gabriel Rossetti,6 coberto por um
grande véu de crepe.
Meu pai me conduziu a meus aposentos, que não ficavam
distantes de seu laboratório. Deu-me boa tarde. Por uma
inexplicável cortesia, perguntei-lhe por minha madrasta.
Respondeu-me lentamente, enfatizando as sílabas com uma voz
entre carinhosa e temerosa, que então eu não entendia:
— Você a verá logo... Que vai vê-la é uma certeza... James, meu
filhinho James, adeus. Digo-lhe que vai vê-la em breve...
Anjos do Senhor, por que não me levaram com vocês? E você,
mãe, mãezinha minha, my sweet Lily,7 por que não me levou
junto quando partiu? Preferiria ter sido tragado por um abismo,
pulverizado por uma rocha, ou reduzido a cinzas pela chama de
um relâmpago.
Foi nessa mesma noite, sim. Com uma estranha fadiga de
corpo e de espírito, eu havia me jogado na cama, ainda vestido
com os trajes de viagem. Como em um sonho, recordo-me ter
ouvido entrar em meu quarto um dos velhos da criadagem,
resmungando não sei que palavras e olhando-me vagamente com
um par de olhinhos estrábicos, que me causavam o efeito de um
sonho ruim. A seguir o vi acender um candelabro com três velas
de cera. Quando despertei, por volta das nove da noite, as velas
ardiam no quarto.
Lavei-me. Troquei-me. Então ouvi passos; meu pai apareceu.
Pela primeira vez, pela primeira vez, vi seus olhos cravados nos
meus. Olhos indescritíveis, asseguro-lhes. Olhos como vocês
jamais viram nem jamais verão; eram olhos com a retina quase
rubra, como os olhos de um coelho. Olhos que os fariam
estremecer pela forma especial como olhavam.
— Vamos, meu filho, sua madrasta o espera. Está lá no salão.
Vamos.
Ali, em uma poltrona de espaldar alto, como uma cadeira de
coro, estava sentada uma mulher.
Ela...
E meu pai:
— Aproxime-se, meu pequeno James, aproxime-se!
Aproximei-me maquinalmente. A mulher me estendia a mão...
Ouvi, então, como se viesse do grande retrato, do grande retrato
envolto em crepe, aquela voz do colégio de Oxford, só que muito
triste, muito mais triste: “James!”.
Estendi a mão. O contato daquela mão gelou-me, horrorizou-
me. Senti gelo nos ossos. Aquela mão rígida, fria, fria... E a
mulher não me olhava. Balbuciei uma saudação, um
cumprimento.
E meu pai:
— Minha esposa, tem aqui seu enteado, nosso muito amado
James. Olhe-o, aqui o tem. Já é seu filho também.
E minha madrasta me olhou. Minha mandíbula cerrou.
Invadiu-me o espanto: aqueles olhos não tinham brilho algum.
Uma ideia começou, enlouquecedora, horrível, horrível, a
aparecer clara em meu cérebro. De repente, um cheiro, cheiro...
Aquele cheiro, por minha mãe! Meu Deus! Esse cheiro... Não
quero lhes dizer... porque já sabem, e lhes confesso: ainda o
discuto. E me deixa de cabelo em pé.
E então brotou daqueles lábios brancos, daquela mulher
pálida, pálida, pálida, uma voz, uma voz que parecia sair de um
cântaro gemente ou de um subterrâneo:
— James, nosso querido James, meu filhinho, aproxime-se.
Quero dar-lhe um beijo na testa, outro beijo nos olhos, outro
beijo na boca.
Não suportei mais. Gritei:
— Mãe, socorro! Anjos de Deus, socorro! Potestades celestes,
todas, socorro! Quero sair daqui já, tirem-me daqui!
Ouvi a voz de meu pai:
— Acalme-se, James! Acalme-se, meu filho! Silêncio, meu
filho.
— Não — gritei mais alto, já lutando com os velhos da
criadagem. — Sairei daqui e direi a todo mundo que o doutor
Leen é um assassino cruel. Que sua mulher é um vampiro, que
meu pai está casado com uma morta!

O nicaraguense Rubén Darío, pseudônimo de Félix Rubén


García Sarmiento (1867-1916), foi talvez o poeta mais importante
na poesia em língua espanhola do século 20. Expoente máximo
do modernismo hispânico, é chamado de “príncipe das letras
castelhanas”.
Ainda pequeno, sua mãe abandonou o marido alcoólatra e
depois o próprio Rubén, fato que o marcaria por toda a vida.
Precoce, aos treze anos publicou seus primeiros poemas e
passou a escrever artigos para jornais na cidade de León, onde
cresceu; no ano seguinte, mudou-se para Manágua, capital do
país, onde deu prosseguimento a sua atividade jornalística.
Em 1882, quando tinha 15 anos, embarcou para El Salvador,
dando início a uma série infindável de viagens internacionais
que, ao longo da vida, o levaram a vários países hispano-
americanos — de Argentina e Chile a Cuba e México —, aos
Estados Unidos e à Europa, passando in­clusive pelo Brasil. Em
todos os países onde viveu ou por onde passou, sempre se
relacionou com os poetas locais, e com isso se tornou o mais
influente poeta dentro do modernismo hispano-americano. De
fato, seu livro Azul... (1888) marcou o início desse movimento,
que floresceu em fins do século 19 e teve influência duradoura na
literatura em língua castelhana do século 20.
Ao longo dos anos publicou, ainda, outros livros importantes
de poesias, como Prosas profanas y otros poemas (1896) e Cantos
de vida y esperanza (1905). Com seus versos de estética
marcadamente europeizada, Darío introduziu na poesia de
língua castelhana expressões intensas de sensualidade
exuberante e angústia metafísica, como não eram vistas desde o
Barroco. Publicou também livros de contos, além de grande
número de artigos de jornal, crônicas e críticas literárias.
Depois de uma vida intensa de viagens, atritos políticos,
amores turbulentos e problemas de saúde advindos do álcool,
retornou à cidade de León, onde morreu. Dada a imensa fama e
popularidade que alcançou, a cerimônia fúnebre durou vários
dias e contou até com a presença do presidente da Nicarágua.
Foi sepultado em local de honra na Catedral de León, marcado
por uma escultura funerária executada por renomado escultor
nicaraguense.
O conto “Thanatopía” foi escrito em 1893, enquanto Darío se
encontrava na Argentina, e publicado postumamente na
antologia Impresiones y sensaciones (1925). “Tanatopia”,
neologismo criado pelo autor, significa “o lugar da morte” (do
grego thanatos, morte, e topos, lugar).
Nesse relato curto e tenso, um homem aparentemente insano
acusa a segunda mulher de seu pai de ser uma morta-viva.
Transparece na narrativa a forte inspiração em Edgar Allan Poe
e a grande semelhança sobretudo com “Ligeia” (1838), em termos
da temática e do tom com que a história é contada. De resto, o
interesse e admiração de Darío por Poe são amplamente
conhecidos, e a obra do estadunidense influiu de forma cabal na
série de contos macabros que teve início justamente com
“Tanatopia”.8
A mãe é evocada por James como uma “pobre e delicada flor”,
e não por acaso recebeu o nome de Lily, o lírio, branco, símbolo
do divino, da pureza e da inocência. É o ideal feminino
romântico, outra forte influência na obra de Darío. O texto traz
ainda evidentes ecos do abandono do autor pelos pais quando
criança, seja o personagem frio e distante do pai de James,
incapaz de lhe dar afeto, seja a figura tenebrosa da madrasta
morta-viva. Darío foi profundamente afetado pela ausência
materna; embora não tenha voltado a ver a mãe depois que ela o
abandonou, ficou muito abalado quando ela morreu.
A menção a Dante Gabriel Rossetti como autor do retrato de
Lily não foi gratuita. Rossetti foi um dos mais destacados artistas
pré-rafaelitas, movimento que também influenciou fortemente a
obra de Darío. Entre as inspirações de Rossetti contava-se o
poeta John Keats, cujo poema “A bela dama sem piedade” (1819)
esteve na raiz da tradição literária da femme fatale, na qual se
insere o presente conto.9
É significativo observar que o oculto, o macabro, o esotérico
sempre estiveram presentes na vida de Darío, e transparecem
em sua obra. Nos últimos anos de vida, acentuou-se sua atração
pelos mistérios do além. Não obstante, a crítica em geral preferiu
ignorar a “corrente de ocultismo” que atravessa a obra desse
escritor.10
Darío alimentava uma preocupação existencial com o sentido
da vida e uma religiosidade sincrética pouco ortodoxa,
característica do final do século 19, embora nunca tenha
abandonado o catolicismo. Voltou a atenção para o espiritismo, a
teosofia e a magia, entre outros temas esotéricos populares à
época. Se por um lado o oculto era para ele motivo de fascínio,
por outro lhe causava grande terror. Desde criança, foi-lhe
inculcado o medo ao sobrenatural por meio de histórias que
ouvia dos empregados da família e que lhe causavam pesadelos
terríveis, que prosseguiram depois de adulto. Alguns deles foram
incorporados a seus contos fantásticos.11
A inclusão do conto de Rubén Darío nesta antologia nos
pareceu de particular relevância, não só por documentar a
presença da ficção vampírica na América Latina no período pré-
Drácula, mas também por se tratar de um escritor de fama
incomensurável nos países de fala hispana, mas pouco
conhecido no Brasil.

1 A Sociedade para Investigações Psíquicas (Society for Psychical Research), fundada


em Londres em 1882, constituiu a primeira organização do mundo voltada à
investigação científica de fenômenos paranormais, entre os quais hipnotismo, casas
mal-assombradas e mediunidade. Foi responsável pela criação de vários termos
relacionados ao tema, como “telepatia”. [N. T.]
2 Referência à frase “Há mais coisas no céu e terra, Horácio, do que foram sonhadas
na sua filosofia”, dita pelo personagem Hamlet na peça A tragédia de Hamlet, príncipe
da Dinamarca, escrita entre 1599 e 1601 pelo poeta e dramaturgo inglês William
Shakespeare (1564-1616). [N. T.]
3 Em inglês no original. Bailes que terminavam à meia noite. [N. T.]
4 Nome dado a um tipo específico de estátua, com um busto no alto de um pedestal,
formato como originalmente era representado Término, o deus romano de fronteiras e
limites. [N. T.]
5 O termo blue-stoking (“meias azuis”) era aplicado, com conotações negativas, a
mulheres intelectuais e cultas. Surgido no século 18, a partir da sociedade literária
inglesa Blue Stockings Society, inicialmente referia-se tanto a homens quanto a
mulheres. [N. T.]
6 Dante Gabriel Rossetti (1828-1882), poeta e pintor inglês, foi um dos fundadores do
movimento pré-rafaelita, com grande influência nas artes durante o final do século 19
e inícios do século 20. Era sobrinho, por parte de mãe, de John Polidori, primeiro autor
de prosa vampírica da língua inglesa, tendo nascido, porém, sete anos depois da morte
do tio. [N. T.]
7 “Minha doce Lily”, em inglês. Na cultura católica, o lírio (lily) simboliza a Virgem
Maria e, por extensão, a pureza. [N. T.]
8 Ibarlucía & Castelló-Joubert, 2003, p. 429.
9 Gordillo, 2012, p. 92.
10 Ibarlucía & Castelló-Joubert, 2003, p. 430.
11 Lazzarin, 2019, p. 39.
A verdadeira história
de um vampiro
(1894)
Conde de Stenbock

Em geral, as histórias de vampiro têm como cenário a Estíria1. A


minha também. A Estíria não é, de maneira alguma, o lugar
romântico descrito por aqueles que com certeza jamais
estiveram por lá. É uma região plana, sem atrativos, celebrada
apenas por seus perus, seus galetos e a estupidez de seus
habitantes. Os vampiros costumam chegar de noite, em
carruagens puxadas por uma parelha de cavalos pretos.
Nosso vampiro chegou, de forma prosaica, no trem, e de
tarde. Pode parecer-lhes que estou brincando, ou que talvez com
a palavra “vampiro” esteja me referindo a um vampiro
financeiro. Não, falo sério. O vampiro a quem me refiro, que
devastou nosso lar e morada, era um vampiro real.
Os vampiros costumam ser descritos como sombrios, de
aparência sinistra e particularmente atraentes. Nosso vampiro
era, ao contrário, quase louro, com certeza não parecia sinistro à
primeira vista e, apesar de elegante, não poderia ser considerado
particularmente atraente.
Sim, ele arrasou nosso lar, assassinou meu irmão, que eu
adorava, e também meu querido pai. Ainda assim, devo admitir
que eu própria sucumbi à magia de seu fascínio e, a despeito de
tudo, hoje não lhe guardo nenhum rancor.
Sem dúvida, já terão visto nos jornais repetidas referências à
“baronesa e seus bichos”. Justamente para explicar como acabei
gastando a maior parte de minha inútil fortuna num abrigo para
animais abandonados é que escrevo este relato.
Sou velha agora. Tudo aconteceu quando era uma garotinha
de uns treze anos. Começarei por descrever nossa família.
Éramos poloneses, de nome Wronski. Vivíamos em um castelo na
Estíria, cujos habitantes eram, salvo a criadagem, apenas meu
pai, nossa governanta — uma belga valorosa chamada
Mademoiselle Vonnaert —, meu irmão e eu. Primeiro meu pai: já
era idoso, e tanto meu irmão quanto eu éramos frutos de sua
velhice. De minha mãe nada lembro. Ela morreu ao dar à luz
meu irmão, mais novo que eu apenas um ano, ou nem tanto.
Nosso pai era um estudioso, o tempo todo ocupado na leitura de
seus livros, em especial sobre temas obscuros e escritos em todo
tipo de idioma desconhecido. Tinha uma longa barba branca e
usava sempre um barrete de veludo escuro.
Como era bondoso conosco! Mais do que eu poderia
expressar. Mas não era eu sua favorita. Todo seu coração se
voltava para Gabriel — Gabryel, como escrevíamos em polonês.
Sempre o chamávamos pelo apelido russo, Gavril. Refiro-me,
claro, a meu irmão, que guardava grande semelhança com o
único retrato de minha mãe, um esboço ligeiro a giz que meu pai
mantinha em seu estúdio. De forma alguma eu sentia ciúmes.
Meu irmão foi e continua sendo o único amor de minha vida. É
por causa dele que hoje sustento, em Westbourne Park, um lar
para gatos e cães sem dono.
Como disse, à época eu era uma garotinha. Chamo-me
Carmela. Meu cabelo longo e emaranhado estava sempre revolto,
e nunca conseguia controlá-lo com o pente. Não era bonita. Ao
menos vendo meu retrato da época não creio que possa
descrever-me como tal. Ainda assim, quando olho para o retrato,
creio que minha expressão pode ter sido agradável para alguns:
feições irregulares, boca grande e enormes olhos rebeldes.
Eu era travessa. Não tão travessa quanto Gabriel, na opinião
de Mademoiselle Vonnaert. Ela, permita-me acrescentar, era
uma pessoa excelente, íntegra, de meia-idade, que se expressava
muito bem em francês, embora fosse belga e pudesse fazer-se
entender em alemão, o qual, pode ou não ser de seu
conhecimento, é o idioma atual da Estíria.
É
É difícil para mim descrever meu irmão Gabriel. Ele tinha
algo de estranho e sobre-humano, ou deveria dizer sobrenatural,
algo entre o animal e o divino. Talvez o conceito grego do fauno
pudesse ilustrar o que quero dizer, mas tampouco seria
suficiente. Ele tinha olhos grandes e indomáveis de gazela, e seu
cabelo, como o meu, estava perpetuamente revolto. Isso nós
tínhamos em comum. Na verdade, como mais tarde me
contaram, o fato de nossa mãe ter sido cigana explicaria muito
de nossa natureza rebelde. Eu era bastante rebelde, mas Gabriel
era muito mais. Nada o forçava a calçar sapatos e vestir meias,
exceto aos domingos, quando ele também permitia que seu
cabelo fosse penteado, mas apenas por mim. Como eu poderia
descrever a graça daquela boca adorável, modelada à perfeição
en arc d’amour?2 Sempre me vem à lembrança o texto nos
Salmos, “a graça se derramou nos teus lábios; por isso Deus te
abençoou para sempre” — lábios que pareciam exalar o próprio
sopro da vida.
E sua figura tão bela, ágil, alegre, atlética! Ele podia correr
mais depressa que um cervo e subir como um esquilo até o mais
alto galho de uma árvore. Poderia ter simbolizado a própria
vitalidade. Era raro que Mademoiselle Vonnaert conseguisse
induzi-lo a aprender suas lições, mas, quando o fazia, ele
aprendia com rapidez extraordinária. Ele tocava todo e qualquer
instrumento concebível, segurando o violino aqui, ali, em
qualquer lugar, menos o correto, e construindo instrumentos
com caniços e até varetas. Eram inúteis os esforços de
Mademoiselle Vonnaert para lhe ensinar a tocar piano. Suponho
que fosse o que se considera mimado, mas apenas num sentido
superficial do termo. Nosso pai permitia-lhe satisfazer todos os
caprichos.
Uma das peculiaridades dele, quando bem pequeno, era ter
horror a carne. Nada no mundo o convenceria a prová-la.
Também era notável o domínio que exercia sobre os animais.
Qualquer criatura parecia aproximar-se, mansa, da mão dele. As
aves pousavam-lhe no ombro. Às vezes, Mademoiselle Vonnaert
e eu o perdíamos no bosque, quando ele, sem aviso, saía
correndo. Nós o encontrávamos cantando baixinho ou
assobiando, rodeado por todo tipo de criaturas silvestres —
ouriços, raposas, coelhos, marmotas, esquilos, o que fosse. Ele
costumava trazer tais animais para casa, e insistia em mantê-los.
Esse estranho zoológico era o terror da pobre Mademoiselle
Vonnaert. Ele havia decidido instalar-se num quarto pequeno no
alto de uma torre, ao qual chegava não pelas escadas, mas por
meio de um altíssimo carvalho que alcançava a janela. Em
contradição a tudo isso, era seu costume ajudar em cada missa
de domingo, na igreja paroquial, com o cabelo muito bem
penteado, de sobrepeliz branca e batina vermelha. Ele parecia o
mais sério e comportado possível. E então sobrevinha o elemento
divino. Que expressão de êxtase enchia aqueles olhos tão
gloriosos!
Até aqui não falei do vampiro. Assim, permita-me dar início,
por fim, à minha narrativa. Um dia meu pai teve de ir à cidade
vizinha, como fazia com frequência. Dessa vez, retornou
acompanhado de um convidado. O cavalheiro, disse, havia
perdido o trem em virtude do atraso do outro trem que o
trouxera a nossa estação, que era um entroncamento. Os trens
não eram frequentes naquele nosso canto e ele, portanto, teria
de esperar ali a noite inteira. Ele tinha puxado conversa com
meu pai no trem que se atrasou, e por isso aceitou o convite para
pernoitar em nossa casa. É de seu conhecimento, claro, que
nesses lugares fora de mão somos quase patriarcais em nossa
hospitalidade.
Ele foi anunciado sob o nome de conde Vardalek — um nome
húngaro —, mas falava alemão bastante bem, sem a cadência
monótona dos húngaros, e sim com uma leve entonação eslava.
Sua voz era particularmente suave e insinuante. Logo
descobrimos que sabia falar polonês, e Mademoiselle Vonnaert
garantiu que seu francês era bom. Na verdade, ele parecia saber
todos os idiomas. Todavia, tomo a liberdade de expor minhas
primeiras impressões. Era alto, de cabelos claros ondulados,
meio longos, o que acentuava certa feminilidade de seu rosto
liso. Sua figura tinha algo de serpente, não sei bem o quê. As
feições eram refinadas, e ele tinha mãos longas, esguias e
magnéticas, nariz longo e um pouco curvo, boca graciosa e um
sorriso atraente, que contradizia a tristeza intensa de seu olhar.
Ao chegar, tinha os olhos semicerrados — como, aliás, lhe era
habitual —, e não pude me decidir quanto a sua cor. Pareciam
esgotados, fatigados. Tampouco podia imaginar sua idade.
De repente, Gabriel irrompeu no aposento; uma borboleta
amarela agarrava-se a seu cabelo. Carregava nos braços um
esquilinho. Como sempre, estava de calças curtas. O
desconhecido observou a aproximação dele. Então notei os olhos
do homem. Eram verdes, e pareceram dilatar-se, aumentar em
tamanho. Gabriel deteve-se, imóvel, com o olhar assustado de
uma ave fascinada pela serpente, mas ainda assim estendeu a
mão para o recém-chegado. Vardalek tomou sua mão e — não sei
por que atentei para esse fato trivial — pressionou-lhe o pulso
com o dedo indicador. De repente, Gabriel precipitou-se para
fora da sala e disparou escada acima, em direção a seu quarto na
torre, desta vez pelos degraus, e não pela árvore. Eu estava
aterrorizada com a opinião que o conde poderia fazer dele.
Grande foi meu alívio quando ele desceu com sua roupa
domingueira de veludo, calçado e de meias. Penteei-lhe o cabelo
e o deixei mais ou menos apresentável.
Quando o estranho desceu para jantar, sua aparência era um
tanto diferente. Parecia bem mais jovem. A pele tinha um vigor,
combinado com uma cor delicada, que raramente se encontraria
em um homem. Antes ele me parecera muito pálido.
Bem, durante o jantar estávamos todos encantados com ele,
em especial meu pai. Ele parecia conhecer em detalhe todos os
gostos particulares de meu pai quanto a passatempos. Uma hora,
ao relatar algumas de suas experiências militares, meu pai falou
sobre um garoto tamborileiro que havia sido ferido em batalha.
Os olhos do estranho arregalaram-se de novo, dilatando-se,
desta vez com uma expressão desagradável, embaciada e
mortiça, e ao mesmo tempo tomada por uma horrível agitação.
Mas foi momentâneo.
O assunto principal da conversa deles eram alguns livros
místicos que meu pai começara a estudar pouco tempo antes e
que não estava conseguindo interpretar, mas Vardalek parecia
compreendê-los por completo. À hora da sobremesa, meu pai
perguntou-lhe se tinha muita pressa em chegar a seu destino.
Caso contrário, não gostaria de ficar conosco algum tempo?
Embora nossa casa fosse afastada, ele encontraria muita coisa de
seu interesse na biblioteca.
— Não tenho pressa. Não há qualquer motivo em particular
para ir àquele lugar, e, se posso ser-lhe de serventia decifrando
tais livros, o prazer será todo meu — respondeu ele, e
acrescentou, com um sorriso amargo, muito amargo: — Sabe, sou
um homem cosmopolita, um nômade na face da terra.
Depois do jantar, meu pai perguntou-lhe se tocava piano. Ele
disse que “sim, um pouco”, e sentou-se ao instrumento. Então
tocou uma czarda húngara — selvagem, rapsódica, maravilhosa.
É o tipo de música que enlouquece os homens. Ele continuou
na mesma linha.
Gabriel estava imóvel junto ao piano, olhos muito abertos e
fixos, o corpo tremendo. Afinal fez um comentário, em voz lenta,
sobre um motivo específico — que, à falta de melhor termo,
poderia ser chamado de relâche3 da czarda, referindo-se ao
instante em que o movimento original quase-lento recomeça:
— Sim, acho que consigo tocar isso.
Depressa apanhou seu violino e um xilofone construído por
ele mesmo e, alternando ambos os instrumentos, de fato
conseguiu reproduzir o trecho muito bem.
Vardalek fitou-o e disse, com voz muito triste:
— Pobre criança! Você tem a alma da música dentro de si.
Não pude compreender por que ele parecia compadecer-se
em vez de felicitar Gabriel pela demonstração de seu talento
extraordinário.
Gabriel era tão tímido quanto os animaizinhos silvestres que
amansava. Nunca se achegara a um estranho. De fato, quando o
acaso trazia algum visitante a nossa casa, quase sempre se
escondia, e eu tinha de levar-lhe a comida até seu quarto na
torre. Imagine qual não foi minha surpresa quando, na manhã
seguinte, eu o vi passeando de mãos dadas com Vardalek pelo
jardim, falando-lhe com entusiasmo, mostrando-lhe sua coleção
de animais reunidos nos bosques, para a qual tivéramos de
construir instalações como num zoológico. Parecia estar sob o
total domínio de Vardalek. O que nos surpreendia (pois, de resto,
o estranho nos agradava, em especial por ser gentil com ele) era
que aparentava ir perdendo aos poucos sua saúde e vitalidade.
No princípio, isso não foi perceptível, exceto talvez para mim,
que notava tudo o que lhe dissesse respeito. Ele não se tornara
pálido ainda, mas havia em seus movimentos certa languidez que
com certeza não existia antes.
Meu pai tornava-se mais e mais devotado ao conde Vardalek.
Ajudava-o nos estudos e a duras penas deixava que se
ausentasse. De vez em quando Vardalek viajava — para Trieste,4
dizia ele. Sempre retornava, trazendo estranhas joias ou tecidos
orientais, com que nos presenteava.
Eu sabia que todo tipo gente passava por Trieste, incluindo
orientais. Contudo, naqueles presentes havia tal estranheza e
magnificência que me davam a certeza de não procederem de um
lugar como Trieste — que me evocava, sobretudo, a lembrança de
lojas de gravatas.
Quando Vardalek estava longe, Gabriel perguntava por ele e
falava dele sem cessar. Ao mesmo tempo, parecia recobrar a
antiga vitalidade e disposição. Vardalek sempre voltava
parecendo muito mais velho, abatido e desgastado. Gabriel
corria a seu encontro e beijava-o na boca. Ele estremecia de leve
e parecia rejuvenescer de novo.
As coisas continuaram assim por algum tempo. Meu pai não
queria nem saber de uma partida definitiva de Vardalek. Ele se
tornou um dos moradores de nossa casa. Tanto eu quanto
Mademoiselle Vonnaert não podíamos deixar de reparar como
Gabriel estava diferente, mas meu pai parecia totalmente cego.
Uma noite eu havia descido para buscar algo que esquecera
na sala de estar. Quando subia de volta, passei diante do quarto
de Vardalek. Ele estava ao piano, colocado ali especialmente
para ele, tocando um dos noturnos de Chopin, de forma muito
bela. Parei, apoiando-me à balaustrada para ouvir.
Algo branco apareceu na escada escura da torre. Naquela
região acreditávamos em fantasmas. Tomada de terror, eu me
agarrei aos balaústres. Atônita, vi que era Gabriel quem descia,
devagar, com os olhos fixos como num transe! Isso me
aterrorizou muito mais do que se fosse um espírito. Podia eu crer
em meus sentidos? Seria mesmo Gabriel?
Não conseguia me mexer. Gabriel, trajando seu longo camisão
branco de dormir, veio e abriu a porta, deixando-a aberta.
Vardalek ainda seguiu tocando, mas, enquanto o fazia, começou
a falar.
Ele disse, agora expressando-se em polonês:
— Nie umiem wyrazic jak ciechi kocham.5Meu querido, de bom
grado eu pouparia você, mas sua vida é a minha, e devo viver.
Eu, que preferiria morrer. Não irá Deus apiedar-se de mim? Oh,
oh, vida! Oh, a tortura da vida!
Então, fez soar um acorde agonizante e estranho, para depois
continuar tocando com suavidade.
— Ó Gabriel, meu amado, minha vida. Sim, vida, oh, por que
vida? Estou certo de que é tão pouco o que te peço. Por certo,
poderás ceder um pouco da abundância de tua vida a alguém que
já está morto. Não, fica! — disse ele, quase áspero então. — O que
tem que ser, será!
Gabriel permaneceu no aposento, muito quieto, com a mesma
expressão fixa e vazia. Era evidente que estava em um estado
sonambúlico. Vardalek continuou tocando.
—Ah! — exclamou ele, num tom de terrível angústia; então
prosseguiu, com suavidade: — Vai agora, Gabriel, é suficiente.
Gabriel deixou o quarto e subiu as escadas com o mesmo
passo lento, o mesmo olhar inconsciente. Vardalek feria o piano
e, embora não tocasse forte, parecia que as cordas se
quebrariam. Jamais se ouviu música tão estranha, que partisse o
coração daquela maneira.
A única coisa que sei é que, pela manhã, Mademoiselle
Vonnaert me encontrou inconsciente ao pé das escadas. Teria
sido apenas um sonho? Hoje estou certa de que não. À época
pensei que pudesse ter sido, e não contei a ninguém sobre o
episódio. Na verdade, que poderia dizer?
Bem, para encurtar a história, Gabriel, que jamais em sua
vida havia adoecido um instante sequer, caiu enfermo.
Mandamos chamar um médico em Graz, mas ele não encontrou
qualquer explicação para a estranha doença. Ele definhava aos
poucos, disse. Não há nenhuma causa orgânica. Que poderia
significar?
Meu pai finalmente se deu conta de que Gabriel estava muito
mal. Sua preocupação era impressionante. O último fio grisalho
desapareceu de sua barba, que embranqueceu toda. Chamamos
médicos de Viena. O diagnóstico foi o mesmo.
Gabriel em geral permanecia inconsciente. Quando voltava a
si, parecia só reconhecer Vardalek, que ficava o tempo todo junto
a seu leito, cuidando dele com devotada ternura.
Um dia, eu estava sozinha no quarto quando Vardalek gritou
de repente, quase em fúria.
— Chamem um padre imediatamente — repetia ele. — É quase
tarde demais!
Gabriel estendeu os braços num espasmo e rodeou o pescoço
de Vardalek. Foi o único movimento que fez em muito tempo.
Vardalek curvou-se para a frente e beijou-lhe os lábios. Desci as
escadas correndo. O padre foi chamado. Quando voltei, Vardalek
não estava lá. O padre ministrou a extrema-unção. Creio que
Gabriel já estava morto, embora na hora não acreditássemos
nisso.
Vardalek desapareceu. Quando procuramos por ele, não o
achamos em lugar algum. Não o vi nem ouvi falar dele desde
então.
Meu pai morreu pouco depois, envelhecido de repente e
alquebrado de pesar. Foi dessa forma que toda a ­propriedade da
família Wronski passou para meu controle exclusivo. Assim,
aqui estou eu, uma velha que é alvo de zombaria por manter um
asilo para animais abandonados. E as pessoas, como regra, não
acreditam em vampiros!

O conde Eric Magnus Andreas Stanislaus von Stenbock (1858-


1895), inglês de nascimento, tinha ascendência estoniana. Passou
a maior parte da vida na Inglaterra, mas parece ter morado na
Rússia quando criança.
Em 1885, herdou as terras da família na Estônia, onde se
estabeleceu pelos dois anos seguintes. Vivia em meio ao luxo e
mantinha uma coleção de cobras, lagartos, sapos e salamandras
de estimação. Nos jardins mantinha um verdadeiro zoológico,
que incluía três renas, um urso e uma raposa. Voltou à Inglaterra
em 1887 e logo travou relações com figuras importantes da vida
cultural de então, como o ilustrador Aubrey Beardsley e o poeta
irlandês W. B. Yeats. A partir de 1890, sua saúde sempre delicada
deteriorou-se muito, agravada pelo alcoolismo. Debilitado,
Stenbock ficou obcecado com a ideia da morte, o que transparece
nos últimos poemas, repletos de reminiscências agridoces de sua
vida e da espera pelo fim. Ao final, sua enfermidade era tanto
mental quanto física. Passou a manifestar mania de perseguição
e só viajava acompanhado de um cão, um macaco e um boneco
de madeira em tamanho natural. Estava convencido de que o
boneco era seu filho e chamava-o de “le Petit Comte”. Morreu aos
36 anos, no mesmo dia em que teve início o julgamento de Oscar
Wilde.
Esse dândi excêntrico, descrito em sua biografia como um
poeta da melancolia e do suicídio, ficou conhecido no ­movimento
decadentista como fundador do Clube dos Idiotas (Idiots Club),
em que os membros assumiam identidades imaginárias. Yeats
referiu-se a ele como “erudito, connoisseur, bêbado, poeta,
pervertido, o mais cativante dos homens”. Durante a curta vida,
impressionou tanto seus contemporâneos que as anedotas e
histórias sobre ele chamam muito mais atenção que os escritos
que deixou.
Além de três livros de poesia, um ensaio e uma peça de teatro,
publicou um volume de contos macabros, Studies of Death (1894),
que mereceu comentários favoráveis do conhecido autor de
horror H. P. Lovecraft.
“The True Story of a Vampire” apareceu nessa coletânea. Numa
paródia explícita a “Carmilla”, Stenbock esforça-se em
contradizer Le Fanu sempre que pode. “A verdadeira história de
um vampiro” também se passa na Estíria, mas, segundo ele, “não
é o lugar romântico descrito por aqueles que com certeza jamais
estiveram por lá”. A narradora, Carmela, é uma velha patética, e
não uma bela jovem. Seu vampiro não chega de carruagem e não
é sombrio e atraente, mas louro e sem grandes atrativos. Ao
contrário de Carmilla, não é punido por seus crimes e apenas
desaparece, supondo-se que para retomar suas atividades
assassinas em outro lugar.
No conto reconhecem-se elementos da vida do autor, fiel aos
preceitos decadentistas segundo os quais arte e vida devem
sobrepor-se. O exemplo mais claro é a relação entre o conde
Vardalek e seu jovem amado Gabriel, que espelha a trágica
paixão de Stenbock por Charles Bertram Fowler, que morreu
vítima de tuberculose, aos 16 anos. Assim, ao descrever o
vampiro e sua capacidade de destruição, é sobre si mesmo que
Stenbock escreve.
Para alguns autores, este teria sido o primeiro conto de
vampiros a abordar de maneira explícita a homossexualidade
masculina, que já teria aparecido de forma velada em “A Kiss of
Judas”, de X. L. (1893). Entretanto, isso se aplica apenas à língua
inglesa; quase uma década antes, Karl Heinrich Ulrichs já havia
publicado, em alemão, o conto “Manor” (1884), que permaneceu
esquecido durante décadas e que também incluímos neste livro.
1 Província do sudeste da Áustria, na divisa com a Hungria. Steiermark, em alemão.
[N. T.]
2 Na forma do arco do cupido, em francês no original. [N. T.]
3 “Atenuação”, em francês. [N. T.]
4 Hoje situada no extremo noroeste da Itália, à época do conto Trieste era o principal
porto do Império Austríaco. [N. T.]
5 Em polonês, mais provavelmente Nie umiem wyrazić jak cię kocham, “Não consigo
expressar o quanto eu amo você”. [N. T.]
A floração da
estranha orquídea
(1894)
H. G. Wells

O ato de adquirir orquídeas sempre traz uma certa dose de


suspense. Diante de si, você tem um pedaço ressecado de tecido
vegetal marrom e, de resto, deve confiar apenas em seu
julgamento, ou no leiloeiro, ou na boa sorte, de acordo com suas
preferências. A planta pode estar doente ou morta, ou pode ser
apenas uma compra honesta, por um preço justo. Ou, ainda,
pode ocorrer algo que já aconteceu várias vezes: lentamente,
diante dos olhos deliciados do afortunado comprador, dia após
dia revela-se alguma nova variedade, alguma riqueza inusitada,
um labelo de forma incomum ou algum colorido sutil, ou um
mimetismo inesperado.
Num delicado pendão verde florescem, juntos, orgulho, beleza
e lucro, quem sabe até a imortalidade. Pois o novo milagre da
Natureza pode requerer um novo nome específico, e o que seria
mais conveniente que o nome do descobridor? Johnsmithia!
Nomes piores já foram criados.
Foi talvez a esperança de uma feliz descoberta desse tipo que
levou Winter-Wedderburn a frequentar assiduamente os leilões.
Esperança e, talvez, também o fato de não ter mais nada a fazer
na vida que tivesse um mínimo de interesse. Era um sujeito
tímido, solitário e um tanto inútil, que ganhava apenas o
suficiente para suprir suas necessidades básicas, sem ânimo
suficiente para procurar uma atividade que oferecesse algum
desafio. Podia ter sido um colecionador de selos ou moedas, ou
tradutor de Horácio, ou encadernador de livros, ou inventor de
novas espécies de diatomáceas. Mas deu-se a casualidade que
cultivasse orquídeas e que mantivesse uma ambiciosa estufinha.
— Tenho o pressentimento de que alguma coisa vai acontecer
hoje — disse ele, durante o café da manhã.
Seu jeito de falar, assim como de mover-se e de pensar, era
lento.
— Não diga isso! — retrucou sua governanta, que era também
uma prima distante.
Para ela, “acontecer algo” era um eufemismo, com um único
significado.
— Você entendeu mal, não quero dizer nada de desagradável...
embora eu não saiba bem o que quero dizer. — Ele fez uma
pausa, depois prosseguiu: — Hoje vai estar à venda na Peters um
lote de plantas das ilhas Andamã e das Índias. Vou até lá ver.
Pode ser que compre alguma coisa boa sem saber, e talvez seja
isso.
Ele estendeu a xícara para que a prima lhe servisse um
segundo café.
— São as plantas que foram coletadas por aquele pobre rapaz
de quem você me falou no outro dia? — perguntou ela, enchendo-
lhe a xícara.
— Sim — respondeu ele, caindo em meditação ao comer uma
torrada. E então pensou em voz alta. — Nunca me acontece nada.
Queria saber por quê. Muita coisa acontece com os outros. Veja
Harvey, por exemplo. Semana passada mesmo, na segunda,
encontrou seis centavos; na quarta, todas as suas galinhas
ficaram doentes; na sexta, seu primo chegou da Austrália e, no
sábado, quebrou o tornozelo. Que turbilhão de emoções, se
comparado comigo.
— Creio que eu preferiria não ter tantas emoções — disse a
governanta. — Isso não deve fazer nenhum bem.
— Deve dar uma trabalheira. Ainda assim... Sabe, nada me
acontece, jamais. Quando era criança, nunca me acidentava.
Depois que cresci, nunca me apaixonei. Nunca casei... Fico
imaginando como deve ser quando alguma coisa acontece, algo
realmente notável. Aquele colecionador de orquídeas tinha só 36
anos quando morreu, vinte a menos que eu. E tinha se casado
duas vezes e se divorciado uma. Contraiu malária quatro vezes e
uma vez quebrou a coxa. Uma vez matou um malaio; outra foi
ferido com um dardo envenenado. E, no fim, foi morto por
sanguessugas na selva. Deve ter tido muito trabalho, mas deve
ter sido também interessante, sabe? Exceto, talvez, as
sanguessugas.
— Tenho certeza de que tudo isso não fez bem a ele —
argumentou a mulher, com convicção.
— É, pode ser que não. — E Wedderburn consultou o relógio.
— Oito e vinte e três. Vou tomar o trem das quinze para o meio-
dia, para ter tempo de sobra. Acho que usarei minha jaqueta de
alpaca, que é quente o suficiente, o chapéu de feltro cinza e
sapatos marrons. Suponho...
Olhou pela janela o céu sereno e o jardim ensolarado, e fitou
nervoso o rosto de sua prima.
— Acho melhor levar um guarda-chuva se vai a Londres —
disse ela, num tom que não admitia negativa. — Qualquer coisa
pode acontecer quando se viaja.
Quando regressou, ele estava um tanto agitado. Havia feito
uma compra. Era raro que se decidisse rápido o bastante para
comprar alguma coisa, mas dessa vez tinha conseguido.
— Há Vandas, uma Dendrobe e algumas Palaeonophis1 —
informou ele.
Examinou suas aquisições com carinho enquanto tomava a
sopa. Estavam enfileiradas diante de si, sobre a toalha de mesa
imaculada, e ele contava à prima tudo sobre as orquídeas,
enquanto consumia lentamente sua refeição. Tinha por costume
rememorar, de noite, cada visita que fazia a Londres, como um
entretenimento tanto para ela quanto para si mesmo.
— Sabia que aconteceria algo hoje. E comprei todas estas.
Algumas delas... Tenho certeza, sabe, que algumas destas vão ser
notáveis. Não sei como, mas estou tão certo disso como se
alguém me houvesse declarado que algumas vão ser notáveis.
Esta... — Apontou um rizoma encarquilhado — ... não foi
identificada. Pode ser uma nova Palaeonophis. Ou pode não ser.
Pode ser uma espécie nova, ou até mesmo um gênero novo. E foi
a última que o pobre Batten coletou.
— Não gosto da cara dela — disse a governanta. — Tem uma
forma muito feia!
— Para mim, nem parece ter forma.
— Não gosto dessas coisas pontudas que saem dela — disse a
governanta.
— Amanhã vou plantá-la num vaso.
— Parece uma aranha fingindo-se de morta — comentou ela.
Wedderburn sorriu e virou a cabeça de lado para examinar a
raiz.
— Concordo que não é nada bonita. Mas nunca se deve julgar
essas plantas pela aparência quando secas. Pode ser que ela vire
uma orquídea realmente bonita. Como vou estar ocupado
amanhã! Esta noite vou pensar no que exatamente deve ser feito
com elas, e amanhã colocarei mãos à obra.
Ele se calou, e depois voltou a falar.
— Encontraram o pobre Batten morto ou morrendo, num
manguezal pantanoso, não me lembro onde, e justamente uma
dessas orquídeas estava prensada sob seu corpo. Fazia vários
dias que sofria de alguma febre nativa, e acho que deve ter
desmaiado. Aqueles manguezais são muito insalubres. Dizem
que as sanguessugas lhe sugaram até a última gota de sangue.
Quem sabe essa aí é a própria planta cuja coleta lhe custou a
vida.
— Isso não me faz gostar dela nem mais um pouco.
— Os homens devem trabalhar ainda que as mulheres possam
chorar — disse Wedderburn, com profunda seriedade.
— Imagine morrer longe de todo o conforto, num pântano
repugnante! Imagine ser atacado pela febre e não ter nada para
tomar além de cloroquina e quinino... Se os homens fossem
deixados por conta própria, viveriam à base de cloroquina e
quinino... E sem ninguém por perto, a não ser os horríveis
nativos! Dizem que os nativos das ilhas Andamã são criaturas
desagradabilíssimas e, de qualquer forma, devem ser péssimos
em bancar os enfermeiros, pois nunca foram treinados. E tudo
isso só para que as pessoas na Inglaterra tenham orquídeas!
— Não creio que tenha sido agradável, mas certos homens
parecem gostar desse tipo de aventura — disse Wedderburn. —
De qualquer forma, os nativos da expedição foram civilizados o
suficiente para guardar a coleção até que o colega dele, um
ornitólogo, voltasse do interior. Se bem que não foram capazes
de dizer a espécie dessa orquídea e deixaram que ela murchasse.
Mas isso faz com que essas plantas sejam ainda mais
interessantes.
— Isso as torna repulsivas. Eu teria medo de que a malária
tivesse se impregnado nelas. E, imagine, um cadáver esteve em
cima dessa coisa feia! Não havia pensado nisso antes. Pronto!
Agora já não consigo mais continuar jantando!
— Se quiser eu as tiro da mesa. Vou colocá-las na cadeira
junto à janela. Posso vê-las tão bem lá quanto aqui.
Durante os dias seguintes, ele realmente esteve bastante
ocupado em sua estufinha abafada, lidando com carvão, pedaços
de teca, musgos e todos os outros mistérios de um orquidófilo.
Para ele, estava sendo um momento de maravilhosa agitação. No
fim da tarde, contava aos amigos sobre suas novas orquídeas, e
volta e meia era outra vez assaltado pela expectativa de algum
acontecimento estranho.
Várias das Vandas e o Dendrobium morreram em suas mãos,
mas a estranha orquídea começou, finalmente, a dar sinais de
vida. Ele ficou encantado. Nem bem fez essa descoberta, foi
buscar a governanta, que estava atarefada fazendo geleia, e a
trouxe para ver a novidade.
— Esse é um broto — disse ele. — Logo vai crescer um monte
de folhas ali, e estas coisinhas saindo aqui são raízes aéreas.
— Para mim parecem dedinhos brancos saindo dessa coisa
marrom — disse a governanta. — Não gosto deles.
— Por quê?
— Não sei. Parecem dedos querendo agarrar algo. Não posso
controlar meus gostos e antipatias.
— Não sei bem, mas acho que não conheço nenhuma orquídea
com raízes aéreas parecidas com estas. Pode ser apenas uma
impressão, claro. Note que elas são meio achatadas nas pontas.
— Não gosto delas — retrucou a governanta, virando as costas
com um calafrio súbito. — Sei que é bobagem minha, e lamento
muito, especialmente porque você gosta tanto dessa coisa. Mas
não consigo deixar de pensar no cadáver.
— Mas pode ser que nem tenha sido esta mesma planta. Foi só
uma suposição minha.
A governanta deu de ombros.
— De qualquer forma, não gosto dela.
Wedderburn ficou um tanto magoado com a antipatia dela
pela planta. No entanto, isso não o impedia de falar-lhe sobre as
orquídeas em geral e sobre aquela em particular, sempre que
sentia vontade.
— Há coisas tão estranhas em relação às orquídeas, há tantas
surpresas possíveis — refletiu ele um dia. — Você sabe que
Darwin estudou a fertilização delas e demonstrou que toda a
estrutura da flor de uma orquídea comum foi arquitetada para
que as mariposas levem o pólen de uma planta a ­outra?2 Bom,
parece que há várias orquídeas cujas flores não podem, de forma
alguma, ser fertilizadas por esse meio. Algumas das
Cypripedium, por exemplo. Não se conhece qualquer inseto
capaz de fertilizá-las, e algumas nunca foram encontradas com
sementes.3
— Mas então como formam novas plantas?
— Por brotamentos como estolhos e tubérculos. Essa não é a
parte difícil de explicar. O mistério é: para que servem as flores?
— respondeu ele. E acrescentou: — É bem possível que minha
orquídea tenha algo extraordinário nesse sentido. Se assim for,
vou estudá-la. Muitas vezes pensei em fazer pesquisas, como
Darwin fez, mas até agora não encontrava tempo, ou sempre
acontecia alguma coisa que me impedia. As folhas estão
começando a despontar. Eu gostaria muito que você viesse vê-
las!
Mas a governanta respondeu que a estufa era tão quente que
lhe dava dor de cabeça. Ela havia voltado a ver a planta, mas as
raízes aéreas, algumas das quais agora passavam dos trinta
centímetros, lembravam-lhe tentáculos em busca de uma presa e
invadiram seus sonhos, crescendo com incrível rapidez em sua
direção. Assim, ela decidira firmemente que não veria de novo
aquela planta, e Wedderburn teve de contentar-se em admirar
solitário suas folhas. Largas e de formato comum, tinham
colorido verde-escuro lustroso, com manchas e pintas de um
vermelho vivo perto da base. Ele não conhecia nenhuma outra
orquídea com folhas assim.
A orquídea foi colocada numa bancada baixa perto do
termômetro, e junto a ela havia um arranjo simples em que uma
torneira pingando sobre os canos de água quente enchia a estufa
de vapor. Agora era comum que ele passasse as tardes meditando
sobre a iminente floração da estranha planta.
Por fim, deu-se o grande acontecimento. Apesar da grande
Palaeonophis lowii4 ocultar o canto onde ficava sua nova favorita,
assim que entrou na estufa ele soube que o pendão tinha
florescido. Havia no ar um novo odor, um cheiro forte e muito
doce que se sobrepunha a todos os outros na estufa lotada e
abafada.
Ao perceber isso, ele correu para a estranha orquídea. E, oh,
os esguios pendões verdes ostentavam três grandes flores, das
quais emanava aquela doçura embriagante! Ele parou diante
delas, num êxtase de admiração.
As flores eram brancas, e as pétalas eram estriadas com um
laranja-vivo. No labelo robusto, que se projetava numa espiral
intrincada, um maravilhoso azul-violáceo mesclava-se ao
dourado. Imediatamente, ele viu que se tratava de um gênero
novo. E o perfume insuportável! Como aquele lugar estava
quente! As flores dançaram diante de seus olhos.
Decidiu ver se a temperatura estava correta. Deu um passo na
direção do termômetro. De pronto, tudo pareceu oscilar. Os
ladrilhos no piso ondulavam para cima e para baixo. Então as
flores brancas, as folhas verdes por trás delas e a estufa inteira
pareceram deslizar para o lado, e depois numa curva para cima.
***
Às quatro e meia sua prima preparou o chá, de acordo com o
imutável hábito de ambos. Wedderburn não apareceu, porém.
Está venerando aquela orquídea horrível, pensou ela, e esperou
dez minutos. O relógio dele deve ter parado. Melhor chamá-lo.
Foi direto para a estufa, abriu a porta e chamou o nome dele.
Não teve resposta. Percebeu que o ar estava pesado, impregnado
com um perfume intenso. Então viu algo estendido nos ladrilhos,
entre os canos de água quente.
Por um minuto, talvez, ela ficou imóvel.
Ele estava caído, com a face voltada para cima, aos pés da
estranha orquídea. As raízes aéreas tentaculares já não pendiam
livres no ar, mas estavam unidas num emaranhado de filamentos
acinzentados, bem esticadas e com as pontas firmemente presas
no queixo, no pescoço e nas mãos dele.
Ela não conseguia entender. Foi quando notou que, de um dos
filamentos que tocava triunfante o rosto dele, escorria um
diminuto filete de sangue.
Com um grito desarticulado, a mulher correu na direção do
primo e tentou puxá-lo para longe das ventosas sugadoras. Ela
partiu dois tentáculos e a seiva que verteu era vermelha.
O cheiro sufocante das flores fez com que a cabeça dela
começasse a girar. Com que força o seguravam! Ela puxou com
força os filamentos resistentes, e o primo e as inflorescências
brancas dançaram à sua volta. Sentiu que ia desmaiar, mas sabia
que não deveria. Soltando-o, apressou-se em sair pela porta mais
próxima e, depois de inspirar profundamente o ar puro por
alguns instantes, teve uma ideia brilhante. Pegou um vaso de
planta e jogou-o para estilhaçar as janelas dos fundos da estufa.
Em seguida, voltou lá para dentro. Com forças renovadas,
arrastou o corpo imóvel de Wedderburn, e a estranha orquídea
despencou no chão. A planta ainda agarrava com tenacidade sua
vítima. Num frenesi, a mulher arrastou planta e homem para o
ar livre.
Então ocorreu-lhe arrancar as raízes sugadoras uma a uma.
Num minuto, ele ficou livre, e ela o levou para longe daquele
horror.
Wedderburn estava lívido e sangrava por uma dúzia de
feridas circulares.
O faxineiro vinha pelo jardim, espantando-se diante das
vidraças quebradas, quando a viu surgir arrastando, com mãos
ensanguentadas, o corpo inanimado. Por um instante pensou o
impensável.
— Traga água! — gritou ela, e sua voz tirou-o do assombro.
Quando ele retornou com a água, numa presteza fora do
comum, encontrou-a chorando agitada, com a cabeça de
Wedderburn apoiada nos joelhos e limpando-lhe o sangue do
rosto.
— O que houve? — perguntou Wedderburn, abrindo
debilmente os olhos e tornando a fechá-los em seguida.
— Chame Annie e diga-lhe para vir aqui, e depois vá correndo
buscar o Doutor Haddon — ordenou ela ao faxineiro assim que
ele lhe passou a água, depois, ao notar a hesitação dele,
completou: — Conto-lhe tudo depois que você voltar.
Wedderburn abriu os olhos de novo. Percebendo-o intrigado
por estar naquela posição, ela explicou:
— Você desmaiou na estufa.
— E a orquídea?
— Vou cuidar dela.
Wedderburn perdera bastante sangue, mas fora isso não
sofrera grande dano. Fizeram-no tomar conhaque misturado
com caldo de carne e levaram-no para a cama no andar de cima.
A governanta, aos poucos, contou ao doutor Haddon sua incrível
história.
— Venha ao orquidário e veja por si — disse ela ao homem.
O vento frio entrava pela porta aberta e o perfume enjoativo
quase havia desaparecido. As raízes aéreas que tinham sido
arrancadas jaziam já ressequidas, espalhadas entre uma
profusão de manchas escuras nos ladrilhos. O pendão da
inflorescência havia-se partido com a queda da planta e as flores
mostravam-se murchas, amarronzadas nas bordas das pétalas. O
doutor se debruçou sobre a planta, mas percebeu uma das raízes
aéreas ainda agitando-se, e hesitou.
Na manhã seguinte, a estranha orquídea ainda estava lá, mas
escura e em decomposição. A porta batia a cada tanto, soprada
pela brisa da manhã, e toda a coleção de orquídeas de
Wedderburn estava ressequida e prostrada. Mas o próprio
Wedderburn estava radiante e tagarela no andar de cima, na
glória de sua estranha aventura.

Herbert George Wells (1866-1946) foi um escritor inglês muito


prolífico, que produziu obras em diversos gêneros de ficção e não
ficção, incluindo romances, contos, compêndios de história e
crítica social. Nasceu em uma família de classe média baixa, e
um evento ocorrido quando ele tinha 7 anos foi decisivo em sua
vida: enquanto estava de cama, depois de quebrar a perna,
começou a ler para passar o tempo. Logo se apaixonou pelos
novos mundos que a leitura abria e sentiu-se estimulado a
escrever.
Wells desdenhava as convenções sociais e religiosas, bem
como as literárias. Era um reformador social declarado,
interessando-se pelo modo de organização da sociedade, e
escreveu vários romances utópicos. Durante sua vida foi um
respeitado pensador socialista, mas com o passar do tempo
passou a ser mais lembrado como um dos pais da ficção
científica.
Sua escrita foi influenciada por Júlio Verne. Tinha grande
conhecimento de ciência, que usou em seus primeiros livros, à
época chamados de “romances científicos”. Em The World Set
Free (1914), um invento acelerava o processo de decaimento
radiativo; isso inspirou Leó Szilard, físico húngaro radicado nos
Estados Unidos, a conceber a reação nuclear em cadeia, levando
ao desenvolvimento da bomba atômica. Wells morreu de câncer
no fígado, em Londres.
Seus livros mais conhecidos de ficção científica são A máquina
do tempo (1895), A ilha do doutor Moreau (1896), O homem
invisível (1897) e A guerra dos mundos (1898). Entre sua não
ficção, a História universal (1920) é reeditada nos Estados Unidos
até hoje. No Brasil, foi reimpressa até a década de 1970.
O conto “The Strange Orchid” foi publicado em 1894, na revista
Pall Mall Budget. No ano seguinte foi incluído na coletânea The
Stolen Bacillus and Other Incidents (1895). A narrativa ágil,
espirituosa e incrivelmente moderna satiriza a vida medíocre e
sem grandes expectativas da classe média inglesa pós-Revolução
Industrial. Como pano de fundo, Wells vale-se do “orquidelírio”,
a obsessão por orquídeas que floresceu na Europa durante a era
vitoriana.5
Como nos contos de Maupassant e Robinson incluídos nesta
antologia, o ser vampírico de Wells não é humano, ideia já
presente desde a arte vampírica de “O retrato oval” (1842), de
Poe, e que ganha força no fim do século 19, com a diversificação
do gênero vampírico e a busca de novos ângulos que fugiam aos
estereótipos.
Os contos de Wells e de Robinson têm vários outros aspectos
em comum, como a descrição minuciosa de detalhes de história
natural e o humor fino e sarcástico. Além disso, mais uma vez o
ser vampiro é levado a regiões tropicais (ou trazido de lá?), no
rastro das explorações e das descobertas científicas que se
multiplicaram ao longo do século 19.
Em 1956, o escritor de ficção científica Arthur C. Clarke
escreveu “A orquídea relutante”, uma homenagem explícita ao
conto de Wells, cujo final é bem mais feliz para a orquídea.
Junto com “A árvore comedora de gente” (1881), de Phil
Robinson, “A floração da estranha orquídea” deu origem a uma
série de plantas predadoras e assassinas que, passando pelo
romance O dia das trífides (1951), de John Wyndham,culminou
com a voraz Audrey Jr. que protagonizou, na segunda metade do
século 20, A pequena loja dos horrores em dois filmes (1960 e
1986) e um musical (1982).
Curiosamente, existe na América Central e no norte dos
Andes um gênero de orquídeas chamado Dracula. Não que
tomem sangue; o nome deriva de draco (“dragão” em latim), e
significa “dragãozinho”, em referência ao formato peculiar da
flor. Numa mostra de que na ciência também há lugar para o
humor, os botânicos aproveitaram o óbvio duplo sentido e deram
a algumas espécies nomes como Dracula nosferatu, D. vampira e
D. vlad-tepes.
Wells teve vários de seus romances de ficção científica
adaptados para o cinema, desde o início do século 20. São bem
conhecidas as adaptações de A ilha do doutor Moreau, de 1933
(com o nome de A ilha das almas selvagens,direção de Erle C.
Kenton, com Charles Laughton e Bela Lugosi) e de 1996 (direção
de John Frankenheimer, com Val Kilmer e Marlon Brando), A
guerra dos mundos, de 1953 (direção de Byron Haskin, com Gene
Barry e Ann Robinson) e A máquina do tempo, de 1960 (direção
de George Pal, com Rod Taylor e Yvette Mimieux).
Graças a Wells, o rádio viveu um de seus grandes momentos,
com a transmissão de uma versão dramatizada de A guerra dos
mundos, dirigida por Orson Welles, no dia de Halloween de 1938,
pela CBS de Nova York. O programa levou pânico aos ouvintes
menos avisados e projetou Welles para a fama.

1 Vanda, Dendrobium (grafia correta) e Phalaenopsis (grafia correta) são gêneros de


orquídeas do sudeste asiático, todas amplamente cultivadas e comercializadas. [N. T.]
2 O naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882) publicou, em 1862, o livro
Fertilisation of Orchids (“Fertilização de orquídeas”), obra seminal que originou todo o
estudo da coevolução, isto é, a evolução coocorrente de espécies diferentes (na qual
alterações evolutivas de cada espécie são afetadas por alterações das demais, pela ação
da seleção natural). A obra é mais lembrada por Darwin ter previsto, após análise
anatômica de uma orquídea de Madagascar, a existência de uma espécie de mariposa
até então desconhecida, que teria uma probóscide (tromba) longuíssima. A mariposa
de fato foi descoberta, 41 anos após a publicação do livro. Deve ser a isso que
Wedderburn se refere, pois de fato Darwin demonstra que diferentes orquídeas têm
anatomia especializada para a polinização por algum tipo de inseto — e ele cita não só
mariposas, mas borboletas, abelhas, moscas e besouros, entre outros. [N. T.]
3 Essa informação sobre o gênero Cypripedium não consta do livro de Darwin, e
aparentemente não procede. As quase sessenta espécies do gênero são polinizadas por
abelhas ou por moscas. [N. T.]
4 Phalaenopsis lowii, espécie originária de Mianmar e da Tailândia, descoberta por um
missionário inglês que também era colecionador de orquídeas, e descrita pela ciência
em 1862. [N. T.]
5 Consta que o “orquidelírio” teve início quando um naturalista britânico utilizou
orquídeas como material de embalagem em um engradado enviado do Brasil para a
Inglaterra. Uma delas floresceu durante a viagem e sua beleza desencadeou a mania
que durou até os anos 1920, deixando um rastro de devastação de ambientes naturais.
O convidado
de Drácula
(escrito entre 1890 e 1897, publicado em 1914)
Bram Stoker

Enquanto nos preparávamos para dar início à viagem, o sol


brilhava intenso sobre Munique, e o ar enchia-se da alegria dos
primeiros dias do verão. Já íamos partir quando Herr Delbrück,
maître d’hôtel do Quatre Saisons, onde me hospedava, desceu
sem chapéu até a carruagem e, depois de desejar-me um passeio
agradável, dirigiu-se ao cocheiro, ainda segurando a maçaneta
da porta da carruagem.
— Lembre-se de retornar ao anoitecer. O céu parece límpido,
mas há sinais no vento norte que prenunciam uma tempestade
repentina. Estou certo, porém, de que não se atrasará — disse
ele, sorrindo —, pois você sabe que noite é esta.
— Ja, mein Herr1 — respondeu Johann, enfático; e, tocando o
chapéu, partiu veloz.
Já fora da cidade, perguntei-lhe, depois de acenar para que
parasse:
— Diga-me, Johann, que acontece esta noite?
Fazendo o sinal da cruz, ele deu uma resposta lacônica.
— Walpurgisnacht.2
Então pegou seu relógio, uma peça alemã de prata,
imponente, antiquada e grande como uma cebola, e o consultou,
franzindo as sobrancelhas e retraindo os ombros com
impaciência. Percebi que era seu modo de protestar, ainda que
de forma respeitosa, contra o atraso desnecessário, e voltei a
recostar-me, sinalizando-lhe que seguisse em frente. Partimos
sem demora, como que para compensar o tempo perdido. De
tempos em tempos, os cavalos empinavam a cabeça, farejando o
ar com desconfiança. Em tais ocasiões eu olhava ao redor,
alarmado. A estrada era bastante desolada, pois percorríamos
uma espécie de platô elevado, varrido pelo vento. Enquanto
avançávamos, vi um caminho de aparência um tanto
abandonada, descendo por um valezinho sinuoso. Era tão
convidativo que, mesmo sob o risco de ofender Johann, chamei-
o, pedindo que parasse. Quando o fez, disse-lhe que gostaria de
seguir por aquela estrada. Ele deu todo tipo de desculpas,
persignando-se seguidas vezes enquanto falava. Isso despertou
minha curiosidade, e fiz-lhe várias perguntas. As respostas eram
defensivas, e eu olhava o relógio a todo momento, em protesto.
Por fim, disse-lhe:
— Bem, Johann, quero descer por essa estrada. Não vou forçá-
lo a me acompanhar, a menos que o queira. Mas diga-me por que
não o deseja fazer. É tudo o que pergunto.
Em resposta, ele pareceu lançar-se para fora da boleia, tal a
rapidez com que tocou o chão. Estendeu as mãos para mim, em
súplica, implorando-me que não fosse. Havia suficiente inglês
mesclado a seu alemão para que eu pudesse compreender o tom
geral de seu palavrório. O tempo todo ele parecia a ponto de
dizer-me alguma coisa, cuja mera lembrança evidentemente
assustava-o, mas sempre se interrompia, persignava-se e dizia:
— Walpurgisnacht!
Tentei argumentar com ele, mas era difícil argumentar com
alguém cujo idioma eu não conhecia. Ele levava vantagem, sem
dúvida, pois, embora começasse falando um inglês muito
precário e tosco, acabava ficando nervoso e mudava para sua
língua nativa, sempre olhando o relógio. Então os cavalos
ficaram inquietos e farejaram o ar. Diante disso, ele empalideceu
e, olhando assustado, saltou para a frente, agarrou-os pelas
rédeas e puxou-os por uns vinte pés. Seguindo-o, perguntei por
que fizera aquilo. Como resposta, benzeu-se, apontou o local que
acabávamos de deixar e posicionou a carruagem na direção da
outra estrada. Indicando uma cruz, disse, primeiro em alemão e
depois em inglês:
— Ele enterrado... Ele quem matava ele mesmo.
Lembrei-me do velho costume de enterrar os suicidas em
encruzilhadas.
— Ah, entendo, um suicida. Que interessante.
Mas por nada deste mundo eu podia compreender por que os
cavalos estavam assustados. Enquanto conversávamos, ouvimos
algo entre um ganido de cão e um latido. Vinha de muito longe,
mas os cavalos ficaram muito inquietos, e só com dificuldade
Johann conseguiu acalmá-los. Ele estava pálido.
— Parece um lobo — disse ele. — Mas já não há lobos por aqui.
— Não? — questionei. — Faz muito tempo que não há lobos
assim nas cercanias da cidade?
— Muito, muito, na primavera e no verão — respondeu ele. —
Mas com a neve os lobos estavam aqui não faz tanto tempo.
Enquanto ele afagava os cavalos, na tentativa de acalmá-los,
nuvens escuras encheram os céus de repente. O sol desapareceu
e uma lufada de vento gélido passou por nós. Era apenas um
sopro, mais um alerta que um fato, pois o sol voltou a brilhar.
Johann olhou, por baixo da mão erguida, em direção ao
horizonte.
— A tempestade de neve, ele vem não demora muito — disse
ele, olhando o relógio de novo.
Puxando as rédeas com firmeza, pois os cavalos ainda
golpeavam o chão com os cascos e sacudiam as cabeças, subiu à
boleia como se já fosse hora de seguir viagem.
Sentia-me um tanto obstinado, e não embarquei de imediato
na carruagem.
— Fale-me sobre esse lugar aonde a estrada leva — pedi a ele,
apontando vale abaixo.
Outra vez ele se benzeu e murmurou uma prece antes de
responder.
— É profano.
— O que é profano?
— O vilarejo.
— Então existe um vilarejo?
— Não, não. Ninguém vive lá centenas de anos.
Minha curiosidade aumentou.
— Mas você disse que existia um vilarejo.
— Existia.
— E o que existe lá hoje?
Ele desandou numa longa história, misturando alemão e
inglês de tal forma que não consegui apreender exatamente o
que dizia, mas, grosso modo, entendi que muito tempo atrás,
havia centenas de anos, pessoas tinham morrido e sido
sepultadas ali. Ouviam-se sons vindo de dentro dos túmulos, e,
quando estes foram abertos, o que se encontrou foram homens e
mulheres corados como em vida, exibindo lábios vermelhos de
sangue. Na ânsia de salvar a vida (sim, e a alma! — e aqui ele se
persignou), aqueles que sobreviveram fugiram para outros
lugares onde os vivos viviam e os mortos estavam mortos, e não...
alguma outra coisa. Era evidente seu medo ao dizer as últimas
palavras. À medida que avançava na narrativa, mais e mais ele se
agitava. Era como se a imaginação o tivesse dominado, e ele
concluiu o relato com um perfeito paroxismo de medo — lívido,
transpirando, tremendo e olhando ao redor, como se esperasse a
manifestação de alguma presença terrível, ali em pleno sol e em
campo aberto.
Por fim, num desespero angustiado, ele gritou:
— Walpurgisnacht!
Depois indicou-me que entrasse na carruagem. Todo meu
sangue inglês rebelou-se diante do gesto, e recuei, afastando-me.
— Você tem medo, Johann — afirmei. — Vá para casa.
Retornarei sozinho. A caminhada vai me fazer bem.
A porta da carruagem estava aberta. Apanhei de cima do
assento o cajado de carvalho que sempre trago comigo em
minhas excursões de lazer e fechei a porta.
Apontei na direção de Munique.
— Vá para casa, Johann. Walpurgisnacht não causa
preocupação aos ingleses.
Os cavalos estavam agora mais indóceis que nunca, e Johann
tentava controlá-los, enquanto me implorava, transtornado, que
não fizesse algo tão tolo. Apiedei-me do pobre sujeito e, apesar
de sua profunda seriedade, não pude evitar o riso. Seu inglês se
perdera por completo. Esquecendo-se, em sua ansiedade, de que
o único modo de fazer-me entender era usando meu idioma, ele
matraqueava no alemão nativo. Estava ficando cansativo. Depois
de ordenar-lhe “Vá para casa!”, virei-me para descer pela
encruzilhada rumo ao vale.
Num gesto desesperado, Johann virou os cavalos na direção
de Munique. Apoiei-me no cajado e fiquei olhando enquanto se
afastava. Por algum tempo ele seguiu devagar pela estrada, até
que por detrás de uma colina surgiu um homem alto e magro. De
longe eu assistia a tudo. Quando o homem chegou perto dos
cavalos, estes começaram a corcovear e escoicear, e relincharam,
aterrorizados. Johann não pôde dominá-los, e eles dispararam
estrada abaixo, fugindo enlouquecidos. Observei-os até sumirem
de vista, e então meus olhos buscaram o estranho, mas também
ele havia desaparecido.
De coração leve, desci pela estrada que ladeava o vale cada
vez mais escarpado — a mesma que Johann se recusara a seguir.
Que pudesse perceber, não havia qualquer razão para a objeção,
e creio tê-la percorrido por umas duas horas, sem pensar em
tempo ou distância e certamente sem encontrar com gente ou
casas. O lugar em si era a própria desolação, mas tal fato não me
causou especial impressão até o momento em que, dobrando
uma curva da estrada, cheguei a um arvoredo ralo. Só então
notei que a aridez da região que atravessara havia me
impressionado de forma inconsciente.
Sentei-me para descansar e examinei os arredores. Percebi
que estava bem mais frio agora do que ao início da caminhada.
Um murmúrio parecia envolver-me, e a cada tanto um bramido
abafado soava, vindo de muito alto. Erguendo os olhos, notei que
enormes nuvens espessas cruzavam ligeiras o céu, de norte para
sul, a grande altura. Havia sinais de tormenta iminente nos
estratos superiores do ar. Eu sentia um pouco de frio e, supondo
que por ter me sentado após o exercício da caminhada, retomei a
jornada.
As terras que agora percorria eram muito mais pitorescas.
Não havia nada em especial que atraísse o olhar, mas o conjunto
tinha uma beleza atraente. Não atentei para a passagem do
tempo, e somente quando o avançar do crepúsculo me envolveu é
que comecei a pensar de que maneira encontraria o caminho de
volta. A claridade do dia extinguira-se. O ar estava frio, e o
movimento das nuvens lá em cima se acentuara. Ao mesmo
tempo, ouvia-se um som longínquo de correnteza, em meio ao
qual soava, de quando em quando, aquele chamado misterioso
que o cocheiro atribuíra a um lobo. Por um instante hesitei. Eu
afirmara que visitaria o povoado deserto e, portanto, segui
adiante, até chegar a uma ampla extensão de campo aberto, toda
rodeada por colinas. As encostas estavam cobertas por árvores
que se esparramavam pela planície, pontilhando com pequenos
bosques as ondulações suaves do terreno. Meus olhos
acompanharam a estrada sinuosa até o ponto em que uma curva
mais fechada passava rente ao mais denso dos bosques,
perdendo-se atrás dele.
Enquanto eu olhava, um vento frio soprou, e começou a nevar.
Pensei nas milhas e milhas de terra desolada que havia cruzado e
apressei-me em buscar refúgio no arvoredo a minha frente. O
céu escureceu mais e mais, e a neve caía mais depressa e mais
pesada, até que a meu redor todo o chão estava coberto por um
tapete branco resplandecente, cujos limites perdiam-se
indistintos em meio à bruma. O caminho ainda estava mais ou
menos visível, menos nítido nos trechos planos do que onde era
ladeado por barrancos. Daí a pouco descobri que devia ter me
desviado dele, pois, em vez de pisar a superfície sólida, meus pés
afundaram por entre capim e musgo. Então o vento soprou mais
forte, e foi aumentando em intensidade, até obrigar-me a correr
a favor dele. O ar ­tornou-se gélido e, a despeito do esforço físico,
comecei a ressentir-me do frio. A neve caía agora tão densa, e
rodopiava ao redor em redemoinhos tão velozes, que mal
conseguia manter abertos os olhos. De vez em quando, os céus
eram rasgados por vívidos relâmpagos, e no clarão podia
distinguir diante de mim um grande aglomerado de árvores, na
maioria teixos e ciprestes, debaixo de um pesado manto de neve.
Logo estava refugiado entre as árvores e ali, em relativo
silêncio, podia ouvir o rugido do vento lá em cima. A escuridão
da tempestade acabou fundindo-se ao negrume da noite. Aos
poucos a tormenta pareceu amainar e agora vinha apenas em
rajadas e sopros furiosos. Nesses instantes, o estranho som do
lobo parecia encontrar eco em muitos sons similares ao meu
redor.
Aqui e ali, através da massa escura de nuvens em movimento,
aparecia um raio de luar desgarrado, que iluminava a paisagem,
revelando que me encontrava na borda de um denso bosque de
ciprestes e teixos. Quando parou de nevar, saí de meu refúgio e
comecei a investigar com maior atenção. Ocorreu-me que talvez
houvesse, entre as inúmeras ruínas de construções antigas pelas
quais passara, alguma casa ainda de pé que, mesmo destruída,
pudesse proporcionar-me algum abrigo temporário. Enquanto
acompanhava os limites do bosque, descobri que ele era
circundado por um muro baixo, que passei a seguir. Por fim,
encontrei uma entrada. Aqui, os ciprestes formavam uma aleia,
que subia em direção a uma construção quadrada que não pude
identificar. Apenas ­consegui entrever tudo isso, pois as nuvens
inquietas encobriram a lua e tive de tatear o caminho na
escuridão. O vento devia estar mais frio, e eu tremia enquanto
caminhava; mas havia uma esperança de abrigo, e segui adiante
tateando às cegas.
Parei quando tudo se aquietou de repente. A tempestade
terminara e, talvez em solidariedade ao silêncio da Natureza,
meu coração pareceu parar de bater. Mas foi só por um
momento, porque subitamente o luar irrompeu entre as nuvens,
mostrando-me que estava em um cemitério e que o objeto
quadrado à minha frente era um grande túmulo de mármore, tão
branco como a neve que o cobria e cercava. Com o luar, veio um
sopro feroz da tempestade, que pareceu retomar seu curso com
um uivo longo e grave como o de muitos cães ou lobos. Eu estava
atônito e chocado, e senti o frio ir tomando conta de mim até que
pareceu me apertar o coração. Então, enquanto o manto do luar
ainda recaía sobre o túmulo de mármore, a tempestade deu
mostras evidentes de renovar-se. Impelido por uma espécie de
fascínio, aproximei-me do sepulcro para ver de quem era e por
que estava ali, isolado num lugar como aquele. Caminhei à sua
volta e, sobre a porta dórica, li em alemão:
CONDESSA DOLINGEN DE GRAZ
NA ESTÍRIA
PROCUROU E ENCONTROU A MORTE
1801

A tumba era uma estrutura formada por imensos blocos de


pedra, tendo no alto uma enorme lança ou estaca de ferro,
aparentemente cravada através do mármore sólido. Na parte de
trás do monumento via-se gravado, em grandes letras russas:
LIGEIROS VIAJAM OS MORTOS

Havia algo tão estranho e sinistro naquilo tudo que me


assustei, sentindo uma certa fraqueza. Pela primeira vez desejei
ter dado ouvidos aos conselhos de Johann. Então fui assaltado
por um pensamento, que surgiu em condições quase misteriosas
e com um terrível impacto. Aquela era a Noite de Valburga!
Durante a Noite de Valburga,3 de acordo com a crença de
milhões de pessoas, o demônio estaria à solta: as sepulturas se
abririam e os mortos sairiam e caminhariam — e todas as coisas
ruins da terra, do ar e da água se entregariam a festividades.
Aquele era o exato lugar que o cocheiro quisera evitar, a vila
despovoada de séculos atrás. Era ali que a suicida estava
enterrada. E era naquele lugar onde eu estava só — desprotegido,
tremendo de frio numa mortalha de neve, com uma tempestade
violenta armando-se acima de mim! Precisei de toda a minha
filosofia, toda a religião que tinham me ensinado, toda a minha
coragem para não ser tomado de pânico.
Então um verdadeiro tornado abateu-se sobre mim. O chão
tremeu como se passassem mil cavalos, e desta vez a tormenta
exibiu suas asas geladas, não de neve, mas de grandes pedras de
granizo, que golpeavam com tamanha violência que poderiam ter
sido lançadas pelos fundeiros baleáricos,4 derrubando folhas e
galhos, e contra as quais os ciprestes davam tão pouco abrigo
quanto um campo de cereais. Num primeiro momento, corri até
a árvore mais próxima, mas logo me vi obrigado a deixá-la, em
favor do único lugar que oferecia refúgio: o profundo portal
dórico do túmulo de mármore. Ali, acocorado junto à porta
maciça de bronze, consegui alguma proteção contra a violência
do granizo, que agora me atingia apenas quando ricocheteava no
chão ou nas laterais de ­mármore.
Assim que me apoiei na porta, ela se moveu ligeiramente,
abrindo-se. Mesmo o abrigo de um túmulo era bem-vindo
naquela tempestade impiedosa, e eu estava a ponto de entrar
quando o clarão de um relâmpago iluminou todo o céu. Naquele
instante, tão certo como sou um ser vivente, ao voltar os olhos
para a escuridão da tumba, vi uma bela mulher, de faces
arredondadas e lábios vermelhos, que parecia adormecida sobre
um esquife. Quando o trovão retumbou nas alturas, fui agarrado
pelo que poderia ser a mão de um gigante e arremessado de volta
à tormenta. Foi tudo tão repentino que, antes de dar-me conta do
choque, tanto mental quanto físico, estava sendo apedrejado pelo
granizo. Ao mesmo tempo, dominou-me a estranha sensação de
não estar só. Lancei um olhar para a tumba. Nessa hora, houve
outro clarão ofuscante, que pareceu atingir a lança de ferro no
alto do mausoléu e transmitir-se para a terra, arrebentando e
esfacelando o mármore numa explosão de chamas. A morta
ergueu-se por um instante desesperador, enquanto era envolvida
pelas labaredas, e seu grito desesperado de dor foi abafado pelo
estrondo do trovão. A última coisa que ouvi foi essa mistura
horrenda de sons, pois fui, de novo, colhido naquele abraço
colossal e arrastado para longe, enquanto o granizo me atingia e
o ar ao redor reverberava com os uivos dos lobos. Minha última
lembrança foi a visão de uma massa indistinta, branca e
movediça, como se todas as sepulturas a minha volta tivessem
enviado os fantasmas de seus defuntos amortalhados, que se
aproximavam de mim através do véu branco da chuva de ­granizo.
Aos poucos, fui tomado por um vago princípio de consciência,
seguido pela sensação de terrível fadiga. Por algum tempo não
me lembrei de nada, mas gradualmente meus sentidos
retornaram. Meus pés estavam imprestáveis de tanta dor, e eu
não os podia mover. Deviam estar dormentes. Atrás do pescoço
tinha uma sensação de frio, que descia pela espinha e, assim
como os pés, não sentia as orelhas, que, no entanto, doíam
muito. No peito, porém, sentia um calor que, em comparação,
parecia delicioso. Era um pesadelo, um pesadelo físico, se tal
expressão pode ser usada, pois algo pesava sobre meu peito,
dificultando a respiração.
Essa semiletargia pareceu persistir por um longo tempo, e
assim que se dissipou devo ter adormecido ou desmaiado. Então
senti uma espécie de aversão, como o primeiro estágio do enjoo
num navio, e um desejo febril de libertar-me de algo, que não
sabia o que era. Uma calma imensa me envolveu, como se o
mundo dormisse ou estivesse morto, quebrada apenas por um
ofegar grave, como de algum animal junto a mim. Senti algo
quente raspando minha garganta, e de imediato veio-me a
compreensão da terrível realidade, que enregelou meu coração e
injetou sangue através do cérebro. Algum animal de grande porte
estava sobre mim e lambia-me a garganta. Tive medo de me
mexer, pois alguma prudência instintiva compelia-me a
permanecer imóvel. Mas a fera pareceu perceber alguma
mudança, pois ergueu a cabeça. Por entre os cílios vi, acima de
mim, os dois grandes olhos flamejantes de um lobo gigantesco.
As presas brancas pontiagudas rebrilhavam na boca rubra
entreaberta, e pude sentir seu hálito selvagem e pungente.
Por mais um lapso de tempo não tenho qualquer lembrança,
até tornar-me ciente de um rosnado baixo, seguido de um
ganido, e de outros mais. Então, parecendo vir de muito longe,
ouvi um Olá! Olá!, como se muitas vozes gritassem em uníssono.
Com cautela levantei a cabeça, olhando na direção de onde vinha
o som, mas o cemitério bloqueava minha visão. O lobo
continuava ganindo de modo curioso, e um brilho vermelho
começou a dar a volta ao bosque de ciprestes, como que seguindo
o som. À medida que as vozes chegavam mais perto, o lobo gania
mais rápido e mais alto. Eu temia produzir qualquer som ou
movimento. O brilho vermelho vinha se aproximando, sobre o
alvo manto que se estendia pela escuridão que me cercava.
Subitamente, por detrás das árvores, surgiu uma tropa de
cavaleiros munidos de archotes. O lobo levantou-se de meu peito
e correu para o cemitério. Vi um dos cavaleiros — soldados, a
julgar pelos quepes e longas capas militares — posicionar a
carabina e mirar. Um de seus companheiros ergueu-lhe o braço
com um golpe, e ouvi a bala assobiar por sobre minha cabeça.
Estava claro que ele tomara meu vulto pelo do lobo. Um outro
homem avistou o animal que se esgueirava para longe, e seguiu-
se um tiro. Então a tropa se adiantou, a galope, uns em minha
direção, outros seguindo o lobo, que se enfiou por entre os
ciprestes vestidos de neve.
Enquanto se acercavam, tentei mover-me, mas não tinha
forças, embora pudesse ver e ouvir tudo o que se passava a
minha volta. Dois ou três soldados saltaram dos cavalos e se
ajoelharam junto a mim. Um deles levantou-me a cabeça e pôs a
mão sobre meu coração.
— Boas-novas, camaradas! — gritou ele. — O coração ainda
bate!
Então despejaram um trago de brandy por minha garganta, e
isso revigorou meu corpo. Consegui abrir os olhos e olhar ao
redor. Luzes e sombras moviam-se entre as árvores, e ouvi os
homens chamando-se uns aos outros. Eles se reuniram, com
exclamações assustadas, e as luzes bruxulearam à medida que os
outros precipitavam-se para fora do cemitério, como se
estivessem possuídos. Quando se aproximaram, os que haviam
permanecido comigo perguntaram, ansiosos:
— Vocês o encontraram?
A resposta soou apressada.
— Não! Não! Vamos embora, rápido, rápido! Aqui não é lugar
para ficar, muito menos nesta noite!
— Que era aquilo? — Foi a pergunta feita nos mais diversos
tons.
A resposta surgiu múltipla e sempre vaga, como se um
impulso comum os fizesse falar, ao mesmo tempo que um medo
comum os impedia de expressarem seus pensamentos.
— Aquilo... aquilo... de fato! — balbuciou um deles, de
momento abandonado pela lucidez.
— Um lobo... mas não era um lobo! — disse outro, assustado.
— É inútil caçá-lo sem uma bala consagrada — observou o
terceiro, de modo mais casual.
— Bem-feito para nós, por sairmos hoje à noite! Decerto
fizemos por merecer nossos mil marcos! — Foram as
exclamações do quarto homem.
— Havia sangue no mármore partido — disse outro, depois de
uma pausa. — E isso não pode ter sido consequência do raio. Mas
e quanto a ele, estará bem? Olhem a garganta! Viram,
camaradas, o lobo estava deitado sobre ele, mantendo quente seu
sangue.
O oficial examinou minha garganta e respondeu:
— Ele está bem, a pele não foi perfurada. Que significará tudo
isso? Nunca o teríamos encontrado se não fosse pelos ganidos do
lobo.
— Mas que fim levou o animal? — perguntou o homem que
amparava minha cabeça.
Ele parecia o menos apavorado do grupo, pois suas mãos
estavam firmes e não tremiam. Na manga trazia as divisas de
oficial subalterno.
— Ele foi embora para casa — respondeu um homem, de rosto
comprido e pálido, tremendo de terror enquanto olhava
assustado ao redor. — Há muitos túmulos aqui onde ele poderia
se refugiar. Vamos embora, camaradas, depressa. Partamos deste
lugar maldito.
O oficial ajudou-me a sentar enquanto dava uma ordem de
comando. Em seguida, vários homens colocaram-me sobre um
cavalo. Ele pulou para a sela, atrás de mim, segurou-me entre os
braços e deu ordem de avançar. Voltando as costas aos ciprestes,
cavalgamos para longe.
Minha língua ainda recusava a mover-se, e me vi forçado ao
silêncio. Devo ter adormecido, pois a próxima coisa de que me
lembro foi estar de pé, com um soldado de cada lado,
amparando-me. Era quase dia claro, e a norte uma nesga rubra
de luz do sol refletia-se, como um rastro de sangue, na vastidão
nevada. O oficial orientava seus homens a não mencionarem
nada do que ocorrera, exceto que tinham encontrado um inglês
sob a proteção de um grande cão.
— Cão! Aquilo não era um cão! — atalhou o homem que ficara
aterrorizado. — Acho que sei reconhecer um lobo quando o vejo.
— Eu disse que era um cão — respondeu o jovem oficial,
sereno.
— Cão! — reiterou o outro, irônico. Era evidente que sua
coragem se erguia junto com o sol. Apontando-me, disse: — Veja
a garganta dele. Seria esse o trabalho de um cão, mestre?
Por instinto levei a mão à garganta e, ao tocá-la, gritei de dor.
Os homens me cercaram para olhar, alguns deles desmontando
dos cavalos. E de novo soou a voz calma do jovem oficial.
— Um cão, como eu disse. Se outra coisa for dita, seremos alvo
de zombarias.
Colocaram-me, a seguir, na garupa de um soldado, e
cavalgamos pelos subúrbios de Munique. Ao cruzarmos com uma
carruagem qualquer, fui transferido para ela, que me levou rumo
ao Quatre Saisons. O oficial foi comigo e um soldado nos seguia
trazendo seu cavalo, enquanto o resto dos homens retornava ao
quartel.
Chegando ao destino, Herr Delbrück desceu os degraus a meu
encontro com tal presteza que se tornava óbvio que estivera
observando no interior do hotel. Tomando-me por ambas as
mãos, conduziu-me para dentro, muito solícito. O oficial saudou-
me e já havia se voltado quando percebi que estava se retirando,
e insisti para que viesse a meus aposentos. Já com uma taça de
vinho nas mãos, agradeci profundamente por ter-me, com seus
homens, salvado a vida. Ele apenas respondeu que estava muito
contente e que Herr Delbrück já fizera o necessário para que
todo o grupo de busca se sentisse satisfeito. Diante dessa
afirmação ambígua, o maître d’hotel sorriu, enquanto o oficial
alegava estar de serviço e retirava-se.
— Mas, Herr Delbrück — perguntei —, como e por que os
soldados saíram à minha procura?
Ele deu de ombros, como fazendo pouco do próprio feito.
— Tive a boa sorte de obter permissão, do comandante do
regimento em que servi, para pedir voluntários — respondeu ele.
— Mas como sabia que eu estava perdido?
— O cocheiro chegou aqui com os restos da carruagem, que
virou quando os cavalos dispararam.
— Mas, com certeza, o senhor não enviaria um grupo de
buscas só por causa disso.
— Ah, não! Contudo, antes mesmo que o cocheiro chegasse,
recebi um telegrama do boyar5 de quem o senhor é convidado.
Ele tirou do bolso um telegrama que me estendeu, e que dizia
o seguinte:

Bistrita.
Cuide bem de meu convidado, pois sua segurança me é
muito cara. Caso lhe aconteça algo, ou se ele desaparecer,
não meça esforços para encontrá-lo e garantir que esteja a
salvo. Ele é inglês e, portanto, aventureiro. Há perigos na
neve, nos lobos e na noite. Não demore um instante se
suspeitar que ele possa estar correndo algum perigo. Seu
zelo será recompensado por minha fortuna.
Drácula
Enquanto tinha em mãos o telegrama, o quarto pareceu girar
ao redor de mim. Se o atencioso maître d’hôtel não me
amparasse, talvez tivesse caído. Havia em tudo isso algo tão
estranho, tão sobrenatural e impossível de imaginar, que tive a
impressão de haver sido um joguete entre duas forças opostas. A
mera sugestão dessa ideia pareceu paralisar-me. Com certeza, eu
estava sob algum tipo de proteção misteriosa. De uma terra
distante veio, no momento mais necessário, a mensagem que me
salvou dos perigos de um sono eterno sob a neve e das
mandíbulas do lobo.

O irlandês Abraham “Bram” Stoker (1847-1912) foi autor de


vários livros, o mais conhecido dos quais é, sem dúvida, o
romance Drácula. Nascido perto de Dublin, terceiro de sete
irmãos numa família protestante, foi uma criança doente. Ele
mesmo afirmou que a infância pouco saudável deu-lhe a
oportunidade de pensar muito e conceber ideias que seriam
frutíferas anos depois. Ao dizer isso, talvez se referisse às
histórias e lendas ouvidas de sua mãe nos anos que permaneceu
acamado, e que lhe devem ter apresentado o mundo do
fantástico e do sobrenatural.
Recuperando-se de sua misteriosa doença, passou a ter vida
normal e chegou a destacar-se como atleta no Trinity College, de
Dublin, onde se graduou em Matemática. Foi funcionário público
em sua cidade natal e tornou-se crítico teatral. Em 1876,
escreveu uma resenha favorável ao famoso ator ­Henry Irving na
peça Hamlet, que levou à amizade entre ambos. Em 1878, casou-
se com Florence Balcombe, cuja beleza já fora cortejada por
Oscar Wilde, e o casal mudou-se para Londres. Ali, Stoker
assumiu a administração do Lyceum Theatre, de propriedade de
Irving, de quem passou a ser o secretário particular. Ele sentia
grande afeição e lealdade pelo ator, e a associação de ambos
durou até a morte deste, em 1905. Nesses anos, Stoker travou
conhecimento com figuras importantes como Lord Tennyson e
Sir Richard Burton, e, durante as turnês pelos Estados Unidos,
com Walt Whitman e Mark Twain.
Stoker morreu em Londres, em 1912, sem ter tido chance de
gozar em vida o próprio sucesso. O obituário em um jornal
londrino observava que ele seria lembrado como autor da
biografia de Henry Irving. Pelas artes do destino, Irving é mais
lembrado hoje por sua ligação com Stoker. Viúva, Florence
Stoker continuou morando em Londres até sua morte, em 1937,
aos 78 anos, e pôde testemunhar a fama póstuma do marido.
Drácula virou um best-seller depois de adaptado para o teatro e o
cinema, nas décadas de 1920 e 1930.
Os nomes Drácula e Bram Stoker tornaram-se parte da
cultura de massa. Em 1992, o filme Drácula de Bram Stoker
(direção de Francis Ford Coppola, com Gary Oldman e Anthony
Hopkins) propagou a ideia errada de que o Drácula da ficção era
baseado no Drácula histórico. A popularidade do autor e da obra
alcançou os círculos mais inesperados. Em 1995, numa
homenagem dupla embora modesta, dois zoólogos batizaram
como Draculoides bramstokeri um aracnídeo minúsculo das
cavernas de uma ilha da costa australiana.6
Bram Stoker escreveu romances, contos e ensaios. Na década
de 1870, começou a publicar contos na imprensa irlandesa. Os
primeiros livros foram de não ficção: The Necessity for Political
Honesty (1872) e The Duties of Clerks of Petty Sessions in Ireland
(1879). Enquanto trabalhava para Irving, continuou escrevendo
para suplementar sua renda, e em 1881 publicou o primeiro livro
de ficção, Under the Sunset, reunindo contos infantis. Além de
Drácula (1897), seus outros romances incluem O castelo da
serpente (1890), Os sete dedos da morte (1903), O caixão da
mulher-vampiro (1909) e O monstro branco (1911). Entre os contos,
os mais conhecidos são “A casa do juiz”, “A selvagem” e “O
enterro dos ratos”.
“O convidado de Drácula” foi publicado pela primeira vez em
1914, dois anos após a morte de Stoker, na edição de maio do
periódico The Story-Teller, com o título de “Walpurgis Night”.7
Recebeu o título com o qual se tornou conhecido alguns meses
depois, ao ser incluído na coletânea à qual deu nome, Dracula’s
Guest and Other Weird Stories, organizada e editada por sua
viúva, que prefaciou o livro da seguinte forma:

Poucos meses antes do tão lamentado falecimento de meu


marido — e creio que mesmo quando ele já sentia a
sombra da morte pairar sobre si —, ele planejou três
séries de contos para publicação, e o presente volume é
uma delas. À lista original de histórias, acrescentei um
episódio de Drácula até agora inédito. Ele foi
originalmente suprimido em virtude da extensão do livro,
e deve ser de interesse para os muitos leitores daquela
que é considerada a obra mais notável de meu marido. As
outras histórias foram publicadas anteriormente em
periódicos ingleses e estadunidense. Tivesse meu marido
vivido mais tempo, talvez considerasse necessário revisar
a obra, fruto dos primeiros anos de sua vida tão diligente.
No entanto, como o destino fez recair sobre mim sua
publicação, parece-me adequado mantê-la praticamente
da forma que ele a deixou.
Florence Bram Stoker

A afirmação de que a história seria não um conto


independente, mas um capítulo inicial suprimido do livro acabou
sendo aceita quase sem questionamentos. Entretanto, a análise
das notas de Stoker, descobertas em 1975, no Museu e Biblioteca
Rosenbach (Filadélfia, Estados Unidos), mostram que os
incidentes narrados em “O convidado de Drácula” de fato faziam
parte do plano original do romance, mas não necessariamente
na forma como estão no conto, e não no primeiro capítulo do
livro. Há evidência de grandes cortes anteriores à versão
definitiva, embora não no primeiro capítulo.
Nada indica que o conto fizesse parte do conteúdo suprimido
do romance. A forma de narração é diferente em ambos: Drácula
é contado através de registros de diários, e o conto é relatado em
primeira pessoa, por um narrador anônimo que muita gente não
hesita em identificar como Jonathan Harker. Harker, porém, é
introspectivo, passivo e fala alemão, enquanto o narrador do
conto é impulsivo, agressivo e teimoso, incapaz de se comunicar
senão em inglês. Para alguns especialistas, “O convidado...”
assemelha-se ao estilo de Stoker no início da década de 1890,
época em que produziu alguns de seus melhores contos. Assim,
Stoker pode tê-lo escrito como um conto independente, mas, ao
perceber o potencial da trama, em vez de publicá-lo preferiu
transformá-lo num romance.8
A verdade é que, a menos que novas anotações do próprio
Stoker venham a ser descobertas, toda essa discussão será
apenas conjectura, e jamais se saberá a verdadeira relação entre
“O convidado de Drácula” e o romance Drácula.
No conto, Stoker faz uma associação muito feliz entre as
desventuras de seu protagonista e a Noite de Valburga (em
alemão, Walpurgisnacht). Segundo o folclore europeu, esta noite,
de 30 de abril para 1º de maio, é originada nas comemorações
pagãs da primavera e marca a noite em que acontece uma grande
reunião ou sabá de bruxas.
Várias ideias que aparecem no texto remetem à ficção
vampírica que o antecedeu, como o poder do vampiro sobre os
lobos, a reação aterrorizada dos cavalos à presença do vampiro,
o vilarejo abandonado em consequência da ação dos mortos-
vivos e o status nobre da vampira. A frase Ligeiros viajam os
mortos é uma citação do poema “Lenore” (1773), de Gottfried
August Bürger, que teve grande influência sobre a literatura
vampírica de forma geral. Chamam a atenção os pontos em
comum com “Carmilla”, de Sheridan Le Fanu, como a menção à
Estíria e a própria condessa morta-viva.
1 “Sim, meu senhor”, em alemão. [N. T.]
2 “Noite de Valburga”, em alemão. [N. T.]
3 Santa Valburga (710-779), de origem inglesa e filha de São Ricardo, foi abadessa na
Alemanha. Autora de milagres em vida, morreu em 25 de fevereiro, dia que lhe é
consagrado no Martiriológico Romano. Seu corpo, exumado oitenta anos depois,
incorrupto e coberto por um óleo puríssimo, foi trasladado em 1º de maio. Por
associação com uma festividade pagã ocorrida na mesma data, a Noite de Valburga é
comemorada na Europa Central e do Norte na noite de 30 de abril para 1o de maio. [N.
T.]
4 Os fundeiros eram soldados que usavam fundas, armas para o arremesso de pedras.
Os nativos das ilhas Baleares, no mar Mediterrâneo, eram famosos pela perícia em sua
utilização. [N. T.]
5 Antigo título aristocrático na Rússia e na Romênia. [N. T.]
6 Levando a coisa ainda mais longe, em 2020 foram descritas várias espécies novas do
gênero Draculoides, entre elas D. belalugosii, D. carmillae, D. christopherleei, D.
immortalis, D. minae e D. nosferatu.
7 Chantal Bourgault du Coudray, 2006, p. 26.
8 Elizabeth Miller, 2000, pp. 133-134.
Posfácio

Drácula:
a cristalização do mito

O vampiro começou a assumir sua forma definitiva, que mantém


até hoje, ao ser publicado, em 1897, o romance Drácula, de Bram
Stoker. O livro conta a história do conde Drácula, um vampiro
centenário de origem húngara,1 que abandona seu lar tradicional
nos Cárpatos transilvanianos em busca de sangue novo na
Inglaterra, onde será combatido por um pequeno, mas decidido,
grupo de defensores do bem, da moral e do modo de vida
vitoriano. A narração é feita por meio de uma sequência de
registros de diários e de artigos de jornal, de onde, segundo o
próprio Stoker, “tudo o que era desnecessário foi eliminado”.2 O
tom realista e a narrativa praticamente simultânea aos fatos
aumentam o impacto e o horror dos acontecimentos
sobrenaturais.3
Nessa época, a ficção vampírica já contava com um corpus
estabelecido, um rico acervo de tradições literárias e abordagens
diferentes no qual Stoker pôde apoiar-se e buscar inspiração.
Diversos arquétipos vampíricos haviam surgido e se fixado ao
longo do século 19, com especial destaque para três: o vampiro
folclórico, o nobre satânico e a mulher fatal.4 O vampiro
folclórico apareceu, por exemplo, na obra de Gógol, de Tolstói, de
Turguêniev e em A Guzla (1827), de Prosper Mérimée, uma série
de baladas supostamente tradicionais, mas na verdade criadas
pelo próprio autor. O nobre satânico foi herdado do romance
gótico, por intermédio do Lord Ruthven de Polidori. A mulher
fatal, surgida na poesia do final do século 18, estabeleceu-se na
literatura de prosa a partir de “A morte amorosa” (1836), de
Gautier.
Drácula reúne as três vertentes: Stoker usa como ponto de
partida uma terra distante, misteriosa, onde o inglês urbano e
cético Jonathan Harker faz pouco dos camponeses e do que
considera mero folclore local, e acaba arrependendo-se por não
os levar a sério; tanto as três vampiras que vivem no castelo na
Transilvânia quanto a jovem inglesa que mais tarde será
vampirizada são genuínas mulheres fatais; por fim, o grande
vilão da história é um conde, alto e muito magro, de nariz
aquilino e bastas sobrancelhas desgrenhadas, todo vestido de
preto — o protótipo exato do vilão gótico do século 18,
transmutado no vampiro de Polidori. Numa demonstração da
habilidade de Stoker em amalgamar as diferentes tendências
preexistentes, Drácula exibe também características de criaturas
folclóricas, tanto o vampiro (palidez, lábios rubros, dentes
afiados, unhas recurvas e hálito fétido) quanto o lobisomem
(caninos projetando-se sobre o lábio inferior, unhas pontudas,
mãos largas com dedos curtos e pelos nas palmas, sobrancelhas
unidas sobre o nariz).5 Uma das fontes usadas foi O livro dos
lobisomens, do reverendo Sabine ­Baring-Gould, do qual Stoker
transcreveu literalmente algumas características.
Em Drácula, o Doutor Van Helsing, especialista em mortos-
vivos, descreve o vampiro como sendo forte como vinte homens,
mais ardiloso que os mortais, um necromante capaz de chamar a
si os mortos, brutal e demoníaco, com a habilidade de comandar
não só animais (“o rato, a coruja, o morcego, a mariposa, a
raposa e o lobo”) como tempestades, nevoeiros e o trovão. Ele
também pode alterar seu tamanho, aumentando ou encolhendo,
e tornar-se invisível. Algumas dessas qualidades acabaram
incorporando-se ao vampiro literário e cinematográfico, e outras
caíram em desuso.
Bram Stoker certamente tinha familiaridade com a literatura
vampírica já publicada e estava a par das convenções mais
frequentes, surgidas ao longo do século 19 e consagradas durante
a evolução do vampiro ficcional. Ele fez uso de um punhado
delas: o título de nobreza, a aparência soturna, a origem
estrangeira, a força sobre-humana, o poder de seduzir as
mulheres, a habilidade em infiltrar-se por frestas sob a forma de
névoa, a capacidade de transformar-se em animal, o uso da
estaca, o grito do vampiro ao ser estaqueado, a colocação de alho
na boca do vampiro recém-decapitado. A comparação de trechos
de Drácula com Varney, o vampiro, com “O estranho
misterioso”(1844, do alemão Karl Adolf von Wachsmann) e com
“Carmilla” mostra semelhanças que não podem ser casuais. Elas
não provam que Stoker tenha lido especificamente esses textos,
mas apenas que seguiu de perto os paradigmas do gênero gótico
de então.6 É ocioso especular quais autores de ficção o
influenciaram diretamente. Sabe-se, por suas notas, os livros
não ficcionais que consultou, embora ele não tenha deixado
informações sobre a ficção que leu. A descrição de sua
biblioteca, leiloada em 1913 na Sotheby’s londrina, relaciona,
entre ­outros, obras de Mary e de Percy Shelley, de Byron,
Hoffmann e Le Fanu (embora não o volume que inclui
“Carmilla”), mas não há como saber se foram adquiridas antes
ou depois de Drácula.7
Drácula não foi escrito só com base no que já existia antes.
Stoker enriqueceu o vampiro ficcional com inúmeras invenções
próprias, que acabaram se incorporando ao mito literário.
Algumas de suas inovações são: Drácula deve dormir sobre solo
nativo; o vampiro não tem reflexo no espelho nem projeta
sombra; ele é incapaz de cruzar água corrente e precisa de
convite para cruzar os umbrais de uma casa. Stoker também
parece ter sido o criador do termo em inglês undead (desmorto).
A conexão entre o vampiro e morcego já estava presente
desde Varney, na década de 1840, mas Stoker foi o primeiro a
transformar seu desmorto em “um grande morcego”,
metamorfose que depois seria encampada pelo cinema. Uma
curiosidade: em Drácula, há referências aos morcegos vampiros
sul-americanos, que podem ter sido inspirados, de forma
indireta, nos relatos de Charles Darwin, citados num artigo de
jornal que Stoker consultou. Darwin relata ter visto o morcego
vampiro no Chile, em 1835, e comenta que observou os efeitos da
mordida do animal em cavalos.8
Até Drácula, a Igreja tinha um papel acanhado na luta contra
os vampiros. Relatos e tratados como os do padre Augustin
Calmet e de Gerard van Swieten não apresentavam fórmulas ou
mecanismos religiosos de proteção contra os vampiros. Os
poetas precursores da ficção vampírica dispensavam a
intervenção eclesiástica, da mesma forma que Polidori e
Raupach. Os sacerdotes que aparecem em “A família do
vurdalak”, em Varney e em “Carmilla”, não desempenham
nenhuma ação concreta contra os vampiros, e em “A morte
amorosa”, o padre Sérapion tarda em agir. Alexandre Dumas foi
a exceção: em “A dama pálida”, ele apostou pesado na religião
como arma antivampiro, talvez com um olho na reação pública e
outro no potencial dramático do embate.
Stoker impregnou seu livro de religião para, por um lado,
investir contra a degradação dos valores morais e religiosos
personificada no Drácula, e por outro “vestir” as cenas
demasiado eróticas para seus leitores. Dada sua estreita ligação
com o teatro, Stoker pode ter tirado da ópera Fausto (1859), de
Charles Gounod, a ideia do crucifixo como potente arma
antivampiro.9 Qualquer que seja a origem da ideia, o fato é que
foi por influência de Drácula que a religião assumiu o papel de
grande inimiga do vampiro.
O romance de Stoker também popularizou o termo nosferatu,
copiado de um artigo de 1885, em que a inglesa Emily Gerard
afirmava ser esse o nome dado ao vampiro na Romênia.10 No
entanto, a palavra não existia em romeno (nem em qualquer
outra língua conhecida) e certamente resultou de uma
transcrição malfeita de alguma outra coisa que Gerard ouviu
enquanto estava na Transilvânia. De qualquer modo, a palavra
“pegou”, e hoje em dia muita gente acredita que nosferatu é um
nome tradicional e folclórico para os ­mortos-vivos.11
O espírito do fin-de-siècle permeia todo o romance. De forma
consciente ou não, Stoker introduziu na narrativa várias das
posturas sociais e morais da Inglaterra vitoriana. Assim, a visão
dos personagens quando viajam pelo leste europeu é típica do
inglês cosmopolita e progressista, que encara as regiões menos
tecnológicas com um misto de piedade e desprezo. O objetivo
máximo do vilão é atacar Londres, deixando implícito que esta
seria a conquista mais ousada que o Mal poderia empreender.
Todo o esforço dos personagens “do bem” volta-se no sentido de
fazer com que a situação, transtornada pela ação do Inesperado,
retorne ao “normal”, isto é, à rotina com a qual estavam
acostumados.
Bastante evidente é toda a questão da identidade feminina,
que à época passava por uma profunda reestruturação. A New
Woman, a “Nova Mulher” independente e capaz de tomar as
próprias decisões, fascinava e ao mesmo tempo assustava a
sociedade. Em Drácula, Mina Harker é o protótipo dessa mulher
moderna, a par das novidades tecnológicas e cheia de iniciativa.
Por outro lado, Lucy e ela constituem o lado frágil e vulnerável
das “forças do bem”, que deve ser protegido pelos homens contra
a influência demoníaca do vampiro sedutor. E o que acontece às
mulheres que sucumbem ao poder dele? As donzelas castas
tornam-se caçadoras sensuais e desinibidas, que não se
intimidam em lutar para conseguir o que desejavam.
Inadmissível para os padrões estabelecidos da sociedade!
Quando Lucy é vampirizada, o cenário montado parece uma
paródia cômica da guerra dos sexos de então: um exército
formado por cinco valorosos homens (um nobre, um corretor
imobiliário, um doutor-psiquiatra, um caubói texano e um sabe-
tudo) contra uma vampira assanhada! Todo o poderio masculino
é convocado para conter a rebeldia feminina... e só o faz a duras
penas. E, a seguir, sua atenção concentra-se em evitar que a
virtuosa Mina siga pelo mesmo caminho. Segundo um estudioso,
“as forças da normalidade contra-atacam e colocam os vampiros
de volta em seus caixões, de modo que Mina ­Harker possa voltar
a ser a jovem convencional e ­reprimida de ­sempre”.12 Na
verdade, apesar de todo o progresso que dissemina pelo livro (o
uso de fonógrafo e de taquigrafia, o praticante da recentíssima
psiquiatria, a prática da transfusão de sangue), Stoker ainda usa
a estrutura das novelas góticas de um século antes, com um
bando de heróis bem-intencionados unindo-se para resguardar a
mocinha das garras do vilão pérfido e sombrio. Drácula
colaboraria, portanto, para que os estereótipos góticos se
mantivessem vivos ao longo do século seguinte.
Sendo uma obra tão influente num tema que viria a se tornar
tremendamente popular (e lucrativo!), tanto Drácula como seu
autor são, até hoje, alvos das mais diversas especulações, que
por vezes carecem de qualquer fundamento.
Uma das mais difundidas é de que Bram Stoker teria usado
como modelo para seu personagem a figura verdadeira de Vlad
Tepes13 (“o Empalador”), também chamado de Vlad Drácula, que
no século 15 foi um voivode, ou príncipe, da Valáquia, hoje parte
da Romênia. Apesar de importante em sua época, o sanguinário
monarca Vlad caiu no esquecimento e nele permaneceu pelos
séculos seguintes. Em 1972, porém, sua lembrança foi resgatada,
e ele ficou famoso no mundo todo graças à publicação do livro
Em busca de Drácula, em que os autores Raymond T. McNally e
Radu Florescu anunciavam uma descoberta sensacional:
Drácula não era, afinal, um personagem da ficção. Ao criá-lo,
Bram Stoker baseara-se em alguém real! A ideia conquistou os
fãs do Conde, e ganhou ainda mais impulso duas décadas depois,
quando se tornou o mote central do filme Drácula de Bram Stoker
(1992), de Francis Ford Coppola. Com o êxito comercial do filme,
a teoria de que o conde e o voivode eram a mesma pessoa
adquiriu, perante o grande público que jamais lera o livro de
Stoker, o status de verdade absoluta.
Numa ironia extrema, a maior evidência contra a ideia de
McNally e Florescu foi fornecida por eles mesmos. Em meados
da década de 1970, eles descobriram as anotações feitas por
Stoker enquanto escrevia o romance.14 Uma análise dessas notas
sugere que tudo o que Stoker sabia sobre Drácula resumia-se aos
poucos parágrafos que lera em An Account of the Principalities of
Wallachia and Moldavia (1820), de William Wilkinson. A obra faz
menção ao voivode Drácula, mas não a Vlad, Vlad Tepes, Vlad
Drácula, o Empalador ou às atrocidades que cometeu. Nas
palavras de Elizabeth Miller,

[...] é significativo observar que em nenhum lugar do


romance de Stoker Drácula é chamado de “Vlad”, e que
não há nenhuma referência a suas notórias atrocidades
[...]. Por que Stoker — um escritor que incluía
meticulosamente todos os detalhes (alguns muito
insignificantes e obscuros) de suas fontes conhecidas —
ignoraria algo que podia enriquecer bastante a
caracterização de seu vilão? Ou ele sabia mais coisas e
decidiu não as usar, ou usou aquilo que conhecia.
Considerando todas as evidências que foram encontradas
até o momento, acredito na última hipótese, uma vez que
tudo o que sabemos com certeza é que Stoker viu o nome
“Drácula” no livro de Wilkinson, certamente gostou dele e
decidiu usá-lo.15

Com efeito, graças às notas, sabe-se que Stoker chamava seu


vilão de conde Wampyr até encontrar no livro de Wilkinson o
nome Drácula, com a informação de que significaria “demônio”
no idioma da Valáquia. Nas notas, ele destacou com maiúsculas
tanto “Drácula” quanto “Demônio”, aparentemente fascinado por
esse detalhe.
Stoker fez uma pesquisa minuciosa para o livro, mas não era o
estudo de um acadêmico ao escrever um tratado, e sim o de um
escritor buscando subsídios para uma obra de ficção. Ele não
estava interessado em precisão histórica, mas em escrever um
romance. Assim, não há qualquer base para supor que tenha
consultado documentos raros, que permaneceram ignorados
durante centenas de anos, apenas para obter informações que
nem incluiria no livro. Das muitas fontes de informação
desencavadas sobre o Empalador nessas últimas décadas,
incluindo os panfletos alemães do século 15 que o pintavam como
o demônio, apenas quatro estavam no Museu Britânico na época
em que Stoker escreveu o romance, e não há qualquer evidência
de que ele as tenha lido.16 Em suma, as únicas inspirações que
Stoker encontrou no Drácula verdadeiro foram o nome e o título
de voivode. O resto é especulação.
Quando escreveu o livro, Stoker trabalhava como secretário
particular de Sir Henry Irving, à época o mais famoso ator
shakespeariano da Inglaterra, e não era um escritor profissional,
embora publicasse regularmente romances e contos. É bem
provável que jamais tenha sonhado que uma obra sua viria a ter
tamanha repercussão — e que um século mais tarde ele seria
muito mais lembrado do que seu ilustre patrão.
A figura de Drácula consagrou-se e serviu como base para o
desenvolvimento da imagem atual do vampiro e do enorme
sucesso dos mortos-vivos imortais no século 20, mas o pai do
Drácula não viveu para ver o triunfo de seu personagem. Stoker
morreu em 1912, e seu vampiro apenas alcançaria a fama no final
da década de 1920. Mais uma vez isso seria decorrência do
sucesso da adaptação teatral e, numa novidade tecnológica, da
posterior transposição da peça para a tela de cinema, no filme
Dracula (1931, Universal Studios), dirigido por Tod Browning e
com Bela Lugosi no papel-título.17
Um dos fatores cruciais para o êxito de Drácula nos cinemas
foi a decisão de Stoker de construir seu romance com a estrutura
de uma peça de teatro, com poucos cenários e personagens,
progressão da ação em atos onde cada um termina com um golpe
de efeito e ênfase na ação.18 É possível que ele já pensasse, então,
numa adaptação para os palcos. De qualquer modo, a forma de
narrativa tornou Drácula eminentemente filmável (mesmo que
todos os diretores virem o romance de cabeça para baixo na hora
de adaptá-lo). O sucesso cinematográfico atingiu as massas ao
redor do mundo e permitiu que o vampiro invadisse de vez
nossas vidas por meio de todos os veículos de mídia que
surgiram e se desenvolveram nos séculos 20 e 21: música,
quadrinhos, desenhos animados, televisão, mangás e animês,
RPGs, games e, finalmente, a internet.
Desde sua origem, a figura do vampiro passou por uma trans-­
formação completa e complexa. Inicialmente, um processo
evolutivo radical levou-o de suas nebulosas origens folclóricas
até o nobre fascinante de Polidori, que conquistou a Europa.
Uma série de mudanças mais sutis, embora não menos
profundas, culminaram na figura do conde transilvaniano que,
com sua sede por “sangue novo” e modernidade, demonstrou ser
capaz de conquistar o mundo.
Hoje seria impossível tentar eliminar do seio da cultura
globalizada o morto-vivo tomador de sangue. Já não resta dúvida
de que, enfim, o vampiro atingiu a imortalidade.

1 O conde não é romeno, como muita gente crê. Quando Drácula foi escrito, a
Transilvânia era parte do império Austro-Húngaro. O próprio conde ainda afirma ter
ascendência szekler, de etnia húngara. (Elizabeth Miller, 2000, p. 137 e p. 142).
2 Bram Stoker, 1897, nota introdutória a Drácula.
3 Jenna Harris, 2001.
4 Christopher Frayling, 1991, p. 62.
5 Elizabeth Miller, 2000, pp. 46-47.
6 Elizabeth Miller, 2000, p. 47.
7 A relação de fontes consultadas está em Elizabeth Miller, 2000, pp. 21-22; os livros de
ficção são listados em Christopher Frayling, 1991, pp. 346-347.
8 Charles Darwin, 1871, capítulo 2.
9 Jacques Finné, 1999, p. 84.
10 “Transylvanian Superstitions”, reproduzido por Peter Haining, 1976, pp. 40-43.
11 Para Elizabeth Miller (2000, p. 50), “Gerard aparentemente não tinha bom ouvido
para palavras estrangeiras”. Ela usa outro termo inexistente, “Scholomance”, para
denominar uma escola onde feiticeiros teriam aulas com o próprio demônio. Stoker
também perpetuou o termo em Drácula.
12 Christopher Frayling, 2007.
13 Pronuncia-se “tsepesh”.
14 O manuscrito, chamado “Bram Stoker’s Original Foundation Notes & Data for his
Dracula”, pertence ao acervo do Museu e Biblioteca Rosenbach, da Filadélfia, Estados
Unidos. Uma versão em fac-símile, anotada, foi publicada por Robert Eighteen-Bisang
e Elizabeth Miller (Bram Stoker’s Notes for Dracula, 2013).
15 Elizabeth Miller, 1996. Tradução de Cintia B. Lacerda, autorizada pela autora.
16 Christopher Frayling, 1991, pp. 76-77.
17 Houve alguns filmes anteriores baseados em Drácula. Embora um deles, o alemão
Nosferatu (1921), de F. W. Murnau, seja hoje considerado um clássico, nenhum deles
teve grande impacto na disseminação da obra entre o grande público.
18 Francis Lacassin, 1981, pp. 3-4.
Bibliografia
selecionada

Assinalamos com asterisco (*) as obras especialmente


recomendadas.
Ajdačić, Dejan. The Vampire Motif in European and Balkan Slav
Literatures. 2007. Disponível em
http://www.rastko.rs/rastko/delo/10016. Acesso em abril de
2021.
Anônimo. Histoire des vampires et des spectres malfaisans, avec
un examen du vampirisme. Paris: Masson, 1820. [Segundo
Montague Summers, 1928, a obra seria da autoria do
ocultista francês J. A. S. Collin de Plancy.]
Bailey, J. O. What Happens in “The Fall of the House of Usher”?
American Literature, v. 35, pp. 445-466, 1964.
Barber, Paul. Vampires, Burial, and Death. New Haven: Yale,
1988.* [Este excelente tratado sobre o vampirismo folclórico
inclui uma extensa discussão sobre a decomposição
cadavérica, e não é muito adequado para estômagos mais
fracos.]
Barber, Paul. Forensic Pathology and the European Vampire (pp.
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levaram ao surgimento do livro de Mary Shelley, das fontes
usadas e de seu processo de criação.]
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para o entendimento da evolução do vampiro literário no
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fonte de textos literários, em domínio público, de inúmeros
autores.]
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reproduzir textos e documentos antigos e de difícil acesso.]
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Polidori a Lovecraft. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2003.*
[Essa é, sem dúvida, uma das melhores antologias de contos
de vampiros do século 19 já publicadas, apesar de alguns
erros factuais nos textos biográficos dos autores.]
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Maluf, Sônia. Encontros noturnos. Bruxas e bruxarias na lagoa da
Conceição. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1993.*
[Um livro fascinante, originalmente uma tese de mestrado
em Antropologia Social, defendida na Universidade Federal
de Santa Catarina. Contém relatos valiosos sobre as bruxas
tomadoras de sangue do folclore catarinense.]
Marigny, Jean. Vampires. The World of the Undead. Londres:
Thames and Hudson, 1994.* [Uma introdução muito
didática ao estudo do vampiro na cultura popular e nas
artes.]
Marigny, Jean. Drácula. Lisboa: Pergaminho, 1999.* [Uma análise
de Drácula, seus significados e sua abordagem pelo cinema.
É uma leitura fascinante.]
Marigny, Jean. Le Fantastique en Europe. Institut Européen des
Hautes Etudes Internationales. 2007. Disponível em
www.iehei.org/Identite_europeenne. Acesso em maio de
2008.
Marigny, Jean. Quand le Vampirisme se décline au féminin. Sem
data. Disponível em <http://bibliotheque.cenacle.free.fr>.
Acesso em fevereiro de 2008.
Matangrano, Bruno Anselmi. Prefácio. In: Polidori, John
William. O vampiro. Edição comemorativa de 200 anos (pp.
18-31). São Paulo: Sebo Clepsidra, Aetia, 2020.
McNally, Raymond T. A Clutch of Vampires. Nova York: Warner,
1974.
McNally, Raymond T.; Florescu, Radu. In Search of Dracula,
edição revista. Boston: Houghton Mifflin, 1994.* [A primeira
edição desse livro (1972) fez nascer o interesse pelo Drácula
original, governante da Valáquia no século 15. Apesar de ter
popularizado a ideia equivocada de que Stoker baseou-se
na figura histórica para criar seu personagem, é um livro
indispensável.]
Melton, J. Gordon. O livro dos vampiros. A enciclopédia dos
mortos-vivos. São Paulo: M. Books, 2003.* [Considerada a
bíblia dos vampirófilos, é uma fonte importante de
informações. Deve ser usado com cautela, pois contém
imprecisões. O ideal é tomá-lo como ponto de partida para
consulta a textos mais confiáveis.]
Miall, David. Christabel. 2000. Disponível em
www.ualberta.ca/~dmiall/Gothic. Acesso em abril de 2021.
Miller, Elizabeth. Foreword. In: Kalogridis, Jeanne. Lord of the
Vampires, v.1. Nova York: Dell, 1996.* [Foi esse texto, o
prefácio à trilogia de Kalogridis, que mudou nossa
concepção sobre Drácula e nos levou a questionar inúmeras
afirmações sobre a evolução do vampiro, com resultados
surpreendentes. A obra de Miller é uma fonte abalizada e
confiável de informações sobre o conde Drácula. Todos os
livros dela (abaixo) são recomendados.]
Miller, Elizabeth. Reflections on Dracula. White Rock, Canadá:
Transilvania Press, 1997.*
Miller, Elizabeth. Dracula, Sense & Nonsense. Westcliff-on-Sea:
Desert Island, 2000.* [Se tivéssemos de recomendar apenas
um livro sobre o Drácula de Bram Stoker, seria esse, em que
a autora desfaz, de forma bem-humorada, mas irrefutável,
uma série de equívocos sobre o romance, o personagem e o
autor.]
Miller, Elizabeth. Dracula. Nova York: Parkstone, 2000.*
Miller, Elizabeth. A Dracula Handbook. Bloomington: X-libris,
2005.*
Miller, Elizabeth. Bram Stoker’s Dracula. Nova York: Pegasus,
2009.*
Opitz, Christian Nikolaus. Die Totenbraut. Deutsche
Vampirgeschichten des 19. Jahrhunderts. Viena: Spiegelberg,
2016.
Penzler, Otto. The Vampire Archives. Nova York: Vintage
Crime/Black Lizard, 2009.* [Antologia volumosa, com mais
de mil páginas e uma seleção de contos bastante eclética.]
Poe, Edgar Allan. Histórias extraordinárias de Allan Poe.
Tradução e adaptação de Clarice Lispector, 15a edição. Rio
de Janeiro: Ediouro, 1998.
Poe, Edgar Allan. Collected Stories and Poems. Londres: CRW,
2006.
Polidori, John William. O vampiro. Edição comemorativa de 200
anos. Organização de Marina Sena. São Paulo: Sebo
Clepsidra, Aetia, 2020.* [Compilação exaustiva de textos
relacionados ao primeiro conto vampírico em língua
inglesa, ao contexto literário em que surgiu e obras
correlatas. Um excelente compêndio, incluindo textos raros
e inéditos no Brasil.]
Prungnaud, Joëlle. Le Vampire de la decadence (pp. 44-51) In:
Grivel, Charles (ed.). Dracula, de la mort à la vie. Paris: Les
Cahiers de l’Herne, 1997.
Pulido, José Antonio. El horror: un motivo literario en el cuento
latinoamericano y del Caribe. Contexto, Segunda Etapa, v.
8, n. 10, pp. 229-250, 2004.
Quérard, Joseph-Marie. Les Supercheries littéraires dévoilées.
Galerie des auteurs apocryphes, supposés, déguisés,
plagiaires, et des éditeurs infideles de la littérature
française, v. 3. Paris: L’Éditeur, 1850.
Rieger, James. Dr. Polidori and the Genesis of Frankenstein.
Studies in English Literature, 1500-1900, v. 3, pp. 461-472,
1963.
Ronecker, Jean-Paul. Vampiros. Lisboa: Hugin. 2000.* [Rica fonte
de informações sobre os vampiros, de leitura agradável e
fácil.]
Rossetti, William Michael. Dante Gabriel Rossetti. His Family.
Letters with a Memoir, v. 1. 1895. Disponível em
http://www.rossettiarchive.org/docs/pr5246.a43.rad.html.
Acesso em abril de 2021.
Ryan, Alan (ed.). The Penguin Book of Vampire Stories. Nova York:
Penguin, 1988.
Sadoul, Barbara. Les Cent ans de Dracula. Paris: Librio, 1997.
Shepard, Leslie (ed.). Classic Vampire Stories. Nova York: Citadel,
1995.
Skal, David J. Vampires. Encounters with the Undead. Nova York:
Black Dog & Leventhal, 2001.* [Antologia fartamente
comentada e muito bem-ilustrada.]
Soprani, Federica. La figura del vampiro nel teatro tra ‘800 e ‘900.
Università degli Studi di Parma. 1998.* [Essa tese constitui
um dos trabalhos mais elucidativos sobre a enorme
influência do teatro na evolução do vampiro ficcional do
século 19.]
Stoker, Bram. Drácula. São Paulo: Penguin-Companhia, 2014.
Summers, Montague. The Vampire, His Kith and Kin. Londres: K.
Paul Trench, Trubner, 1928.* [Uma das obras clássicas
sobre os vampiros no folclore e nas artes. Ótimo ponto de
partida, mas suas informações devem sempre ser checadas
em fontes mais confiáveis, pois as imprecisões são
numerosas. Disponível na internet, é indispensável aos
vampirófilos.]
Swensen, Andrew. Vampirism in Gogol’s Short Fiction. The Slavic
and East European Journal, v. 37, pp. 490-509, 1993.
Switzer, Richard. Lord Ruthwen and the Vampires. The French
Review, v. 29, pp. 107-112, 1955.
Vadim, Roger. Nouvelles histoires de vampires, choisies et
annotées par Ornella Volta et Valerio Riva. Paris: Robert
Laffont, 1972.* [Excelente antologia, com informações
interessantes e materiais não muito fáceis de encontrar.]
Wikipédia. Disponível em https://wikipedia.org.* [Ótimo ponto
de partida para qualquer consulta; todas suas informações
devem ser checadas em fontes mais específicas.]
Wilde, Oscar. O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Penguin-
Companhia, 2012.
Apêndice 1

O VAMPIRO NA PROSA E NA POESIA ATÉ 1897


1748 “Der Vampir”, poema do alemão Heinrich August
Ossenfelder (1725-1801), considerado o primeiro texto
literário a abordar o tema.
1773 “Lenore”, poema do alemão Gottfried August Bürger (1748-
1794). Influenciou profundamente a literatura vampírica.
1797 “Die Braut von Korinth”, poema do alemão Johann
Wolfgang von Goethe (1749-1832).
1799 “The Old Woman of Berkeley”, poema do inglês Robert
Southey (1774-1843).
1800 “Hymnen an die Nacht”, seis textos em prosa e verso, do
alemão Novalis (pseudônimo de Georg Philipp Friedrich
Freiherr, Barão von Hardenberg, 1772-1801).
1801 “Thalaba the Destroyer”, poema de Robert Southey, em que
aparece uma vampira.
Der Vampyr, romance do alemão Theodor Ferdinand
Kajetan Arnold (pseudônimo de Ignaz Ferdinand Arnold,
1774-1812).
1807 “The Dead Men of Pest”, poema do inglês John Herman
Merivale (1770-1825).
1810 “The Vampyre”, balada do inglês John Stagg (1770-1823),
com uma discussão sobre o vampirismo no prólogo.
1812 Der Vampyr oder die blutige Hochzeit mit der schönen
Kroatin: Eine sonderbare Geschichte vom böhmischen
Wiesenpater, romance de autor anônimo.
1813 “The Giaour, a Fragment of a Turkish Tale”, poema épico do
inglês Lord Byron (George Gordon Byron, 1788-1824).
1816 “Christabel”, poema do inglês Samuel Taylor Coleridge
(1722-1834). É neste ano que sai publicado, embora já
circulasse antes como manuscrito. A primeira parte foi
escrita em 1797-98, e a segunda em 1800-01. Jamais chegou
a ser concluído, mas ainda assim representou a estreia do
vampiro na poesia em inglês.
Fragmento de um relato, de Lord Byron. Publicado depois
em 1820, ao final de Mazeppa.
1819 “The Vampyre”, conto do inglês John Polidori (1795-1821),
primeira ficção vampírica em prosa da língua inglesa.
“La Belle dame sans merci”, poema do inglês John Keats
(1795-1821).
“The Black Vampire; A Legend of St. Domingo”, conto
estadunidense publicado sob o pseudônimo Uriah Derick
D’Arcy e republicado em 1845, com autoria atribuída a
Robert C. Sands.
1820 “The Eve of St. Agnes” e “Lamia”, poemas de John Keats.
Lord Ruthwen; ou Les Vampires, romance do francês
Cyprien Bérard. Continuação da história de Polidori, foi a
introdução do vampiro literário na França.
“Die Totenbraut”, conto do alemão Gottfried Peter
Rauschnik (1778-1835).
1821 1819-1821 “Vampirismus” (“Aurelia” ou “La Vampire”),
conto do alemão E. T. A. Hoffmann (1776-1822),
apresentando a primeira vampira memorável da literatura
em prosa. Incluído no último volume de Die
Serapionsbrüder.
“Smarra; ou Les Démons de la nuit”, conto do francês
Charles Nodier (1780-1844).
1822 Infernaliana, de Charles Nodier, uma coletânea de relatos
verídicos e ficcionais de vampiros.
1823 “Lasst die Todten ruhen”, conto do alemão Ernst Benjamin
Salomo Raupach (1784-1852).
1825 La Vampire; ou La Vierge de Hongrie, romance do francês
Etienne-Léonde, barão de Lamothe-Langon (1786-1864).
1826 Der Vampyr und seine Braut, romance do alemão Karl
Spindler (1796-1855).
1827 “Sur le vampirisme” (“Sobre o vampirismo”), introdução de
La Guzla; ou Choix de poésies illyriques recueillies dans la
Dalmatie, la Bosnie, La Croatie et l’Hertzegowine, de
Hyacinth Maglanovich (pseudônimo do francês Prosper
Mérimée, 1803-1870), paródia no formato de baladas.
La battaglia di Benevento, romance histórico do italiano
Francesco Domenico Guerrazzi (1804-1873). Primeira
aparição do vampiro na literatura de ficção italiana. Cita
Polidori.
1828 The Skeleton Count; or, The Vampyre Mistress, romance
seriado da inglesa Elizabeth Caroline Grey (née Duncan,
1798-1869), talvez a primeira incursão de uma escritora no
tema. Uma das raras mulheres a escrever romances de
horror baratos (penny bloods). Somente foram preservados
alguns trechos, pois nunca saiu em livro.
Der Vampyr, oder die Totenbraut, romance de Theodor
Hildebrand.
“Der Vampyr”, conto do alemão J. E. H.
1832 “Strashnaya mest” (“Uma terrível vingança”), conto do
russo de origem ucraniana Nikolai Vassílievitch Gógol
(1809-1852). Tem elementos do vampiro folclórico.
1833 “The Vampire Bride”, balada de Henry Thomas Liddell, na
coletânea The Wizard of the North: The Vampire Bride and
Other Poems.
“Der Vampyr”, conto do alemão Isidor.
1835 “Berenice” e “Morella”, contos do estadunidense Edgar
Allan Poe (1809-1849), tidos como de temática vampírica. O
primeiro saiu no Southern Literary Messenger, e sua
violência gerou protestos; uma versão “amenizada” saiu em
1840.
“Niévski Prospékt” (“Avenida Niévski”), conto de Nikolai
Gógol, com elementos do vampiro folclórico.
“Viy”, conto de Nikolai Gógol.
“Der Vampyr”, conto do alemão Franz Seraph Chris­mar.
Consta ser o primeiro texto literário a fazer uma conexão
entre o mito vampírico e o Drácula histórico.
“Der Vampyr”, conto dos alemães Hirsch e Wieser.
1836 “La Morte amoureuse”, conto do francês Théophile Gautier
(1811-1872).
1838 “Ligeia”, conto de Edgar Allan Poe, tido como de temática
vampírica.
1839 “The Fall of the House of Usher”, conto de Edgar Allan Poe,
com forte inspiração vampírica, sem abordar o tema de
modo explícito.
1840 “The Man of the Crowd”, conto de Edgar Allan Poe.
“Portre” (“O retrato”), conto de Nikolai Gógol, com
elementos de vampirismo.
1841 “Upyr”, conto do russo Alexei Constantinovich Tolstói
(1817-1875).
1843 “Spalatro, from the Notes of Fra Giacomo”, conto do
irlandês Sheridan Le Fanu (1814-1873).
1844 “The Oblong Box”, conto de Edgar Allan Poe. Tido como de
temática vampírica.
“Rappacini’s Daughter”, conto do estadunidense Nathaniel
Hawthorne (1804-1864).
“Der Fremde”, conto do alemão Karl Adolf von
Wachsmann (1787-1862). Original do conto “The Mysterious
Stranger”, publicado sem indicação de autoria em 1854.
“Strigoiul” (“O vampiro”), poema do romeno Vasile
Alecsandri (1821-1890).
1845 “The Oval Portrait”, conto de Edgar Allan Poe.
“The Vampyre”, poema do físico escocês James Clerk
Maxwell (1831-1879), mais conhecido pela teoria do
eletromagnetismo e pelo experimento com o “demônio de
Maxwell”.
“The Last of the Vampires. A Tale”, conto de Smyth Upton.
1846 Der Baron Vampyr, romance do alemão Edwin Bauer.
Leipzig. Metáfora antissemita.
“The Vroucolacas: a Tale”, conto do estadunidense James
Kirke Paulding (1778-1860).
1847 Varney the Vampire; or, The Feast of Blood, do escocês James
Malcolm Rymer (1804-1884). Penny dread­ful (folhetim),
escrito em 1845-47.
“La famille du vourdalak”, conto de Alexei C. Tolstói.
Escrito em russo em 1839 (“Sem’ya vurdalaka”) e publicado
anos depois em francês.
1848 Vampyren, romance do poeta sueco Viktor Rydberg (1828-
1895). Tem um personagem psicopata chamado Ruthven,
que acredita ser vampiro.
1849 “La Dame pâle”, do francês Alexandre Dumas (1802-1870).
Episódio do livro Les Mille et un phantomes. Une journée à
Fontenay-aux-Roses, publicado em inglês como conto, com o
título “The Pale-Faced Lady”.
“Octávio e Branca”, romance versificado do brasileiro João
Cardoso de Menezes e Souza (1827-1915), menciona
vampiros brevemente.
1851 “Helena”, poema do poeta alemão Christian Johann
Heinrich Heine (1797-1856).
1852 La Baronne trépassée, romance do francês Pierre-Alexis,
visconde de Ponson du Terrail (1829-1871).
La Vampire, roman fantaisiste, romance do francês Angelo
de Sorr (pseudônimo de Honoré Sclafer, 1822-1881).
1853 Spiritual Vampirism: The History of Etherial Softdown and
Her Friends of the ‘New Light’, do estadunidense Charles
Wilkins Webber (1819-1856). Sátira. Tida como a primeira
ficção sobre vampiros psíquicos.
1854 “The Mysterious Stranger”, conto publicado, sem autoria,
no periódico Chambers Repository of In­structive and
Amusing Tracts. Ao que tudo indica, trata-se de uma
tradução não autorizada de “Der Fremde” (1844), do alemão
Karl Adolf von Wachsmann. Traz um conde vampiro que
vive em um castelo nos Cárpatos, e aventa-se, sem grande
base factual, que possa ter servido como inspiração para
Bram Stoker.
1856 (ou 1865) “La Vampire”, noveleta do francês Paul Henri
Corentin Féval (1816-1887), publicada na coletânea Les
Drames de la mort.
1857 “Le Vampire” e “Les Métamorphoses du vampire”, poemas
do francês Charles Baudelaire (1821-1867), incluídos no
livro Les Fleurs du mal.
“Polichinelle vampire”, poema do francês Théodore de
Blanville (1823-1891). Escrito em 1846.
1858 “Gaspar Blondín”, do equatoriano Juan Montalvo (1832-
1889). Talvez o primeiro conto sul-americano com temática
vampírica a ser escrito (embora tenha sido publicado
apenas em 1894).
“The Dead Man’s Story”, conto do inglês James Hain
Friswell (1825-1878).
1859 “What Was It?”, do irlandês Fitz-James O’Brien (1822-
1862). É mais um conto de fantasmas.
1860 Le Chevalier Ténèbre, romance de Paul Henri Corentin
Féval.
1861 Le Vampire du Val-de-Grâce, romance do francês Léon
Gozlan (1803-1866).
“Schwarze Melancholie”, do austríaco Emil Mario Vacano
(1840-1892).
1863 “Prizraki” (“Fantasmas”), conto do russo Ivan Sergueivich
Turguêniev (1818-1883).
“Glamr”, conto do inglês Sabine Baring-Gould (1834-1924),
autor de O livro dos lobisomens, com base em relato
tradicional.
“The Vampire; or, Pedro Pacheco and the Bruxa”, do inglês
William Henry Giles Kingston (1814-1880). Traz um
prólogo sobre vampiros, mas o conto em si aborda a típica
bruxa de Portugal.
1864 Madame Vampire, romance do francês Jean Bruno
(pseudônimo de Jean Vaucheret, 1821-1899).
1867 “The Last Lords of Gardonal”, conto do inglês William
Gilbert (1804-1890).
“The White Maniac: A Doctor’s Tale”, conto da irlandesa-
australiana Mary Fortune (pseudônimo de Mary Helena
Wilson, 1833-1910).
1868 Les Chants de Maldoror¸ romance do conde de
Lautréamont (pseudônimo do franco-uruguaio Isidore
Lucien Ducasse, 1846-1870).
“A Vampire”, do escocês G. J. (George John) Whyte-Melville
(1821-1878). Episódio do livro Bones and I; or, The Skeleton
at Home, publicado posteriormente como conto, com o
título “Madame de St. Croix”.
1869 Il Vampiro, de Franco Mistrali (pseudônimo de Luigi
Francesco Corrado Mistrali, 1833-1880), primeiro romance
vampírico em italiano.
“Lokis, le manuscrit du Professor Wittembach”, novela de
Prosper Mérimée. Considerado por alguns como tendo
elementos vampíricos.
Fosca, romance do italiano Igino Ugo Tarchetti (1839-1869).
1870 Vikram and the Vampire; or, Tales of Hindu Devilry, lendas
indianas traduzidas e adaptadas pelo inglês Sir Richard
Burton (1821-1890).
1871 Le Docteur vampire, romance do francês Octave Mogeta
Féré (1815-1875).
“The Vampire Cat of Nabéshima”, conto do inglês Algernon
Bertram Freeman-Mitford (1837-1895), a partir de um
relato tradicional.
1872 “Carmilla”, conto do irlandês Sheridan Le Fanu. Foi
publicado na revista The Dark Blue, em três partes (dez.
1871 a mar. 1872) e incluído na antologia In a Glass Darkly
(1872). Ainda é um dos contos de vampiros mais
conhecidos.
1874 La Ville-vampire, romance-paródia de Paul Féval,
apresentando a romancista Ann Radcliffe como
personagem.
“Véra”, conto do francês Villiers de L’Isle Adam (1838-
1889). Não é uma vampira, mas uma desmorta.
1875 “Die Toten sind unersättlich”, conto do austríaco Leopold
Ritter von Sacher-Masoch (1836-1895).
1878 “Der Vampyr: Novelle aus Bulgarien”, romance do alemão
Hans Wachenhusen (1827-1898).
1879 Le Capitaine vampire, romance da belga Marie Nizet (1859-
1922). Uma denúncia dos horrores da guerra.
Ompdrailles, le Tombeau-des-Lutteurs, romance do francês
Léon Cladel (1835-1892).
1880 “The Fate of Madame Cabanel”, conto da inglesa Eliza Lynn
Linton (1822-1898).
Posle devedeset godina (Noventa anos depois), novela do
sérvio Milovan Glišić (1847-1908), com o mais famoso
vampiro literário sérvio, Sava Savanović.
1881 “The Man-Eating Tree”, conto do anglo-indiano Phil
Robinson (1847-1902).
1882 “The Vampyre”, poema do britânico Owen Meredith
(pseudônimo de Edward Robert Bulwer-Lytton, 1831-1891)
“Ein Vampir”, conto do alemão Karl May (1842-1912).
1883 “Ken’s Mystery” (ou “The Grave of Ethelind Fionguala”),
conto do estadunidense Julian Hawthorne (1846-1934).
“Klara Milich”, conto de Ivan Turguêniev.
1884 “John Barrintgon Cowles”, conto do escocês Sir Arthur
Conan Doyle (1859-1930).
“Manor”, conto do alemão Karl Heinrich Ulrichs (1825-
1895). Primeira história homossexual masculina de
vampiros.
“Margery of Quether”, noveleta de Sabine Baring-Gould.
Monsieur Vénus, roman matérialiste, da francesa Rachilde
(pseudônimo de Marguerite Vallette-Eymery, 1860-1953).
1885 Le Baron vampire, romance do francês Ernest Charles Guy
de Charnacé (1825-1909). Metáfora antissemita.
1886 “Le Horla”, conto do francês Guy de Maupassant (1850-
1893). Primeira versão.
“A Borrowed Mouth”, conto do estadunidense Frank R.
Stockton (1834-1902).
Le Vampire, romance popular do francês Michel Morphy
(1863-1928).
1887 “Le Horla”, conto de Guy de Maupassant. Segunda versão.
“A Mystery of the Campagna”, conto de Anne Crawford, sob
o pseudônimo Anne Von Degen (1846-?).
“Olalla”, conto do escocês R. L. Stevenson (1850-1894).
1888 The princess Daphne, romance do inglês Edward Heron-
Allen (1861-1943). Vampirismo psíquico.
1890 Le Possédé, romance do belga Camille Lemonnier (1844-
1913).
“Die Verbannten”, poema épico do alemão Max Haushofer
(1840-1907).
1891 The Picture of Dorian Gray, romance do irlandês Oscar
Wilde (1854-1900).
“Old Aeson”, conto do britânico Arthur Quiller-Couch
(1863-1944).
“L’Égrégore”, conto do francês Jean Lorrain (pseudônimo
de Paul Alexandre Martin Duval, 1855-1906).
Là-bas, romance do francês Joris-Karl (Charles-Marie-
Georges) Huysmans (1848-1907). Sem elementos
fantásticos, é a história de Gilles de Rais, assassino em
série francês que lutou ao lado de Joana d’Arc.
“La balada de los muertos” e “El beso del espectro”, contos
do venezuelano Luis López Méndez (1863-1891).
Sardi: A Story of Love, romance da estadunidense Cora
Linn Daniels (1852-1934).
A Creature of the Night, do inglês Fergus Hume (1859-1932).
1892 Le Château des Carpathes (O castelo dos Cárpatos), romance
do francês Jules Verne (1828-1905). Sem elemento
sobrenatural.
“Die Schöne Abigail”, novela do alemão Paul Johann
Ludwig Heyse (1830-1914).
1893 “A Kiss of Judas”, conto de X. L. (pseudônimo do
estadunidense Julian Osgood Field, 1849-1925).
“The Death of Halpin Frayser”, conto do estadunidense
Ambrose Bierce (1842-?1914).
“The Last of the Vampires”, conto de Phil Robinson.
“La Salamandre vampire”, conto do francês Léon Bloy
(1846-1917), escrito em 1870-71.
“Thanatopía”, conto do nicaraguense Rubén Darío (1867-
1916).
“Tristán Cataletto”, conto do venezuelano Julio Calcaño
(1840-1912).
“Le Verre de sang”, conto de Jean Lorrain. Sem elementos
sobrenaturais.
1894 “The Parasite”, conto de Sir Arthur Conan Doyle.
“The True Story of a Vampire”, conto do anglo-estoniano
conde de Stenbock (1860-1895).
“Herself”, conto da inglesa Mary Elizabeth Braddon (1837-
1915).
1895 “The Flowering of the Strange Orchid”, conto do inglês H. G.
Wells (1866-1946).
“De Profundis”, novela do polonês Stanislaw
Przybyszewski (1868-1927).
The Pobratim: A Slav Novel, romance do Prof. P. Jones.
Vários episódios envolvem vampiros: “St. John’s Eve”,
“Christmas Eve”, “The Vampire”, “Flight”.
1896 “Good Lady Ducayne”, conto de Mary Elizabeth Braddon.
“A Beautiful Vampire”, conto da inglesa Arabella Madonna
Kenealy (1859-1938).
La Douleur d’aimer, romance do francês Henri-Antoine
Jules Bois (1868-1943).
“The Vampire”, poema do galês Arthur Symons (1865-1945).
“The Vampire of Croglin Grange”, conto do inglês Augustus
Hare (1834-1903).
1897 Dracula, romance do irlandês Bram Stoker (1847-1912).
“Berenice”, “Viviane” e “Yvaine”, contos da francesa Jane
de La Vaudère (pseudônimo de Jeanne Scrive, 1857-1908).
The Blood of the Vampire, romance da inglesa Florence
Marryat (1837-1899).
“O estrangeiro vampiro”, do português Gomes Leal (1848-
1921), uma metáfora do neocolonialismo europeu.
“The Vampire”, poema do anglo-indiano Rudyard Kipling
(1865-1936).
1914 “Dracula’s Guest”, conto de Bram Stoker, escrito entre 1890
e 1897 e publicado postumamente.
Apêndice 2

O VAMPIRO NOS PALCOS ATÉ DRÁCULA


1801 Il vampiro, ópera do italiano A. De Gasparini. Apresentada
em Turim.
1812 Vampiri, ópera bufa italiana, de Silvestro Palma (1754-
1834), com libreto de Giuseppe Palombache. Parcialmente
baseada em Dissertazione sopra i vampiri, de Giuseppe
Davanzati, foi apresentada em Nápoles.
1820 Le Vampire, mélodrame en trois actes, avec um prologue, dos
franceses Charles Nodier, Pierre François Adolphe
Carmouche (1797-1868) e Achille François Léonor Jouffroy
d’Abbans (1785-1859), com música de Alexander Piccini.
Apresentado em Paris.
Le Vampire amoreux, vaudeville dos franceses Eugène
Scribe (1791-1861) e Mélesville (pseudônimo de Anne-
Honoré-Joseph Duveyrier, 1787-1865). Apresentado em
Paris, dois dias após a estreia de Nodier.
Les Trois vampires; ou Le Clair de lune, vaudeville dos
franceses Gabriel e Armand Brazier. Apresentado em
Paris, estreou uma semana depois da peça de Nodier.
The Vampire; or, The Bride of the Isles, melodrama do inglês
James Robinson Planché (1796-1880), adaptação livre da
obra de Nodier. Apresentado em Londres.
The Vampire, peça do inglês W. T. Moncrieff (1794-1857).
Baseada em Nodier, o vilão se chama Ruthwold.
Apresentada em Londres.
Le Vampire, comédia do francês Martinet, com letra de
Pierre de la Fosse de la Rue des Morts. Paródia a Nodier,
apresentada em Paris.
Cadet Buteux au vampire, melodrama de Marc-Antoine-
Madeleine Désaugiers (1772-1827). Paródia a Nodier,
apresentado em Paris.
Encore un vampire; ou Fanfan-la-Tulipe, farsa do francês
Emile L. B., apresentada em Paris.
Les Etrennes d’un vampire, peça cômica, apresentada em
Paris.
1821 Der Vampyr, oder die Todten-Braut, peça do alemão
Heinrich Ludwig Ritter (1790-1849), com o subtítulo
“Baseada no conto de Lord Byron”. Apresentada em
Braunschweig.
Giovanni the Vampire; or, How Shall We Get Rid of Him?,
peça burlesca de James Planché, apresentada em Londres.
The Vampire, tragédia de St. John Dorset (pseudônimo do
rev. Hugo John Belfour, inglês,1802-1827). Vampiro
metafórico. Publicada em Londres, nunca encenada.
1823 Thalaba the Destroyer, peça do inglês Edward Fitzball (1792-
1873). Baseada no poema de Robert Southey e apresentada
em Londres.
Polichinel Vampire, balé-pantomima do francês Frédéric-
Auguste Blache (1790-1853). Apresentado em Paris.
1826 Le Vampire, opereta cômica do belga Martin-Joseph
Mengal (1784-1851), apresentada em Gand, Bélgica.
1827 Il vampiro, comédia em cinco atos do italiano Angelo
Brofferio (1802-1866). Um falso desmorto aterroriza um
castelo na Westfália. Final feliz, com casamento.
Apresentada em Turim.
1828 Der Vampyr, ópera lírica dos alemães Heinrich August
Marschner (1795-1861), música, e Wilhelm August
Wohlbrück (1796-1861), libreto. Baseada em Nodier, via
Ritter, foi apresentada em Leipzig.
Der Vampyr, ópera romântica em três atos, de Peter Joseph
von Lindpaintner (1791-1856), música, e Caesar Max
Heigel, libreto. Baseada na “obra de Byron (sic)” e
apresentada em Stuttgart.
Der Vampyr, tragédia dos alemães Alexander Cosmar
(1805-1842) e H. Krause, apresentada em Berlim.
1830 Polichinel vampire, de autor desconhecido. Uma única
apresentação no Adelphi Theatre, em Londres, em março
de 1830.
Der Vampyr, adaptação dos ingleses Planché e William
Hawes (1785-1846) da ópera de Marschner e Wohlbrück.
Apresentada em Londres.
1832 The Wood Devil; or, The Vampire Wife, peça do inglês
Edward Fitzball (1792-1873), apresentada em Londres.
1834 The Vampire Bride; or, The Tenant of the Tomb, drama
romântico de George Blink (ca. 1798-1874), baseado em
Raupach. Traz a primeira vampira dos palcos, tendo sido
apresentado em Londres.
1844 Le Vampire, comédia dos franceses Eugène Deligny (1816-
1881), Paul Siraudin (1813-1883) e Ferdinand Laloue.
Apresentada em Paris.
1851 Le Vampire, peça de teatro de Alexandre Dumas e Auguste
Maquet. Apresentada em Paris.
1852 La Dame de Pique; or, The Vampire: a Phantasm Related in
Three Dramas, peça do irlandês Dion Boucicault
(pseudônimo de Dionysius Lardner Boursiquot, 1820-1890).
Apresentada em Londres.
1856 The Phantom: A Drama in Two Acts, de Dion Boucicault.
Apresentada na Filadélfia e, no ano seguinte, em Nova
York.
1857 Morgano, balé do austríaco Paul (Paolo Nikola) Taglioni
(1808-1884), com música de Peter Ludwig Hertel (1817-
1899). Apresentado em Berlim.
1858 Polichinelle vampire, balé de John Blick, M. Honoré e M.
Amédée Artus. Apresentado em Paris.
1861 Il vampiro, balé do italiano Rotta, com música de Paolo
Giorza (1832-1914). Apresentado em Milão.
1865 Douglas le vampire, drama fantástico em cinco atos, de Jules
Dornay (1829-1906). Apresentado em Paris.
Guten Abend, Herr Fischer! oder Der Vampyr, vaudeville-
burlesco em um ato de Georg Friedrich Belly (1836-1875) e
Carl Löffler. Apresentado em Berlim.
1872 A Little Bit of Moonshine in Three Rays, Called The Vampire,
burlesco do britânico Robert Reece (1838-1891).
Apresentado em Londres.
1876 Ein Vampyr, peça de Ulrich Frank, pseudônimo da escritora
alemã Ulla Wolff (1850-1924). Baseada na peça de Scribe, foi
apresentada em Breslávia (Polônia), com bastante êxito.
1887 Ruddigore; or, The Witch’s Curse!, opereta cômica em dois
atos, dos ingleses W. S. Gilbert (1836-1911) e Arthur
Sullivan (1842-1900). Londres.
Frankenstein; or, The Vampire’s Victim, ópera cômica de
Richard Henry (pseudônimo de Richard Butler e Henry
Chance Newton, 1854-1931), com música de Wilhelm Meyer
Lutz. Paródia ao romance de Mary Shelley, foi um fracasso,
por ser feminista demais. Londres.
1891 Madame La Mort, peça da francesa Rachilde. Paris.
Agradecimentos

A Silvio Alexandre, por ter dado a ideia inicial e pelo apoio


constante.
A Cintia Barcellos Lacerda, por tantas discussões e por seu
conhecimento aparentemente inesgotável sobre literatura e
vampiros.
A Elizabeth Miller, pelas ricas discussões durante as aulas do
curso The Literary Vampire, na Universidade de Toronto, por ter
disponibilizado suas publicações, tão valiosas quanto raras de
obter, e pelo absoluto rigor de sua obra admirável.
A Federica Soprani, por sua tese maravilhosa, que fez tantas
peças (trocadilho intencional) se encaixarem no lugar.
A Cid Vale Ferreira, por sua atuação incessante no estudo
teórico da literatura gótica e vampírica no Brasil e na divulgação
de preciosidades literárias.
A Sylvia Junghähnel, pela ajuda com as sutilezas do idioma
alemão.
A Carmen, pelas inúmeras contribuições para a vampiroteca
e “a pior coleção de filmes de todos os tempos”.
A Giulia Moon, Lord A., André Vianco, Fernando Straube,
Valeria Flora Hadel, José Fernando Pacheco e Mirta Rosas, pela
amizade, partilha de informações e incentivo. A Roberto de
Sousa Causo e Antonio Luiz M. C. Costa, pelos comentários à
primeira edição.
A Claudia Barcellos e Viviane Köppe Jensen, por um motivo
muito especial.
Em memória de Carlos Patati, que (quase) às margens do rio
Paquequer sentou-se na pedra e contou Drácula; de Adriano
Siqueira, o mais adorável e inspirado escritor vampírico que já
existiu; e de Alan Ryan, de cuja companhia e conhecimento não
pudemos desfrutar tanto quanto gostaríamos.
O vampiro antes de Drácula
COPIDESQUE:
Isabela Talarico

REVISÃO:
Angélica Andrade
Renato Ritto

CAPA E ILUSTRAÇÕES:
Mateus Acioli

DIAGRAMAÇÃO DE E-BOOK E REVISÃO DA VERSÃO ELETRÔNICA:


Calil Mello Serviços Editoriais

APRESENTAÇÃO, INTRODUÇÃO, POSFÁCIO E APÊNDICES


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COPYRIGHT © EDITORA ALEPH, 2024

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de acordo com ISBD

V216 O vampiro antes de Drácula [recurso eletrônico] /


organização, comentários e tradução de Martha Argel, Humberto
Moura Neto ; ilustrado por Mateus Acioli. – 2. ed. - São Paulo, SP :
Editora Aleph, 2024.
384 p. ; ePUB ; 2,3 MB.

Inclui bibliografia e apêndice.


ISBN: 978-85-7657-640-2 (Ebook)

1. Literatura. 2. Antologia. 3. Textos Clássicos. 4. Drácula. 5.


Vampiros. 6. Sobrenatural. 7. Lendas. I. Argel, Martha. II. Moura
Neto, Humberto. III. Acioli, Mateus. IV. Título.

2024-465 CDD 800


CDU 8

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1. Literatura 800
2. Literatura 8
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