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Maria Rita Kehl - Minha Vida Daria Um Romanca

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I.Introdução
“Todos acabam sempre se tornando um personagem do romance que é a sua própria vida. Para isto não é
necessário fazer uma psicanálise. O que esta realiza é comparável à relação entre o conto e o romance. A
contração do tempo, que o conto possibilita, produz efeitos de estilo. A psicanálise lhe possibilitará perceber
efeitos de estilo que poderão ser úteis a você”. A frase foi dita por Lacan a um jovem candidato a análise e
reproduzida por este último em um depoimento publicado alguns anos depois da morte do psicanalista. O
sentimento do Unheimliche, do “estranhamente familiar” que frequentemente é provocado pela leitura de
algumas frases semi-enigmáticas de Lacan, nos acomete diante desta, também. Como não nos reconhecer
neste trabalho através do qual tentamos nos situar como personagens centrais de um romance, o romance de
nossas pequenas vidas que escrevemos incessantemente, dentro ou fora do espaço criado pela psicanálise – e
como não nos indagar, ao mesmo tempo, sobre o significado desta necessidade?
Como não nos deixar afetar pelas duas formas de relação entre a escrita e o tempo mencionadas rapidamente
por Lacan: de um lado a extensão, a dilatação, a insistência exaustiva na recuperação da memória e na
explicação causal dos incidentes da vida, próprias do romance e também da neurose; de outro lado a contração,
as elipses, a manutenção de um certo enigma, a modificação de estilo operada por um processo analítico, e que
produz no sujeito a possibilidade de narrar-se de outra forma, mais aparentada à elegância do conto?
O que significa dizer que nós, neuróticos comuns, organizamos mentalmente nossas histórias de vida como se
fossem romances? Antes de mais nada, que não suportamos o caos, a errância, a passagem do tempo nos
conduzindo onde não podemos prever e nos modificando de maneiras que não conseguimos controlar. Mas
significa também que pertencemos a um tipo de sociedade em que o tempo de fato modifica as pessoas, uma
sociedade que permite e até promove que o rumo tomado por uma vida se distancie tanto de sua origem que, se
não produzirmos algum fio narrativo ligando começo, meio e fim, algumas representações que nos sustentam
subjetivamente perderão completamente o sentido. A idéia de que somos “indivíduos”, por exemplo, coesos e
reconhecíveis ao longo do tempo; a idéia de que a vida que vivemos constitui uma unidade coerente e dotada de
sentido e não uma sucessão de dias transcorridos a esmo.
Estas são representações próprias de sociedades móveis, mas não exclusivamente modernas. O ensaio em que
Erich Auerbach compara lenda e narrativa histórica , situando a tradição literária ocidental do lado desta última,
analisa apenas um trecho da Odisséia e uma passagem do Velho Testamento. Em Homero, Auerbach aponta a
forma poética própria de uma sociedade pastoral, estável, em que a passagem do tempo não modifica os
agentes, em que presente e passado alternam-se nas formas de consciência e memória sem pedir nenhuma
mudança na forma de representação. O mundo homérico nos é apresentado como todo banhado por uma
mesma luz que envolve os homens, a natureza, os objetos domésticos, os artefatos de guerra, um mundo sem
sombra e sem esquecimento. Eu me pergunto, lendo “A cicatriz de Ulisses”: haveria lugar para o inconsciente, e
consequentemente para sujeitos tal como nós os concebemos hoje, na Grécia homérica?
Já numa passagem do Velho Testamento (“O sacrifício de Isaac”), o autor mostra como a forma narrativa própria
da tradição judaico-cristã, produzida no contexto de uma sociedade nômade e instável do ponto de vista da luta
pelo poder, privilegia a ação dos homens sobre a descrição da natureza e das coisas, e mostra a ação do tempo
sobre os homens a ponto de torná-los irreconhecíveis não apenas para o leitor, mas para os personagens que
lhes são próximos. Nós, ocidentais modernos, estamos muito mais próximos da narrativa histórica do que da
lenda, escreve Auerbach. A representação dos efeitos do tempo é uma necessidade para nós, modernos.
Mas quem narra a passagem do tempo, na modernidade? As transformações que ocorreram na passagem das
sociedades tradicionais, em que cada sujeito se representava como pertencendo a uma comunidade, com seu
quadro de referências simbólicas relativamente estável, e as sociedades modernas, nas quais o sujeito se
inscreve numa ordem tão complexa e abstrata que não se dá conta de suas filiações simbólicas e passa a se
considerar como um indivíduo isolado, acabaram com a figura do narrador. Este é o argumento de Walter
Benjamin no conhecido texto sobre o narrador. Nele, Benjamin escreve que a modernidade provocou a perda de
um gênero literário, a narrativa, perda que corresponde à extinção de um modo de ser subjetivo em função do
desaparecimento de alguns de seus pontos de sustentação. O narrador existe, em primeiro lugar, enquanto
existe a possibilidade e/ ou a necessidade de se transmitir e compartilhar experiências; as rápidas alterações na
“paisagem humana” do século XX tornaram a experiência praticamente impossível de se transmitir. Em segundo
lugar e em decorrência disto, o narrador é um homem que sabe aconselhar, mas seus conselhos não são como
os conselhos de um especialista; a sabedoria do narrador é plasmada na vivência coletiva, “tecida na substância
viva da existência (...a sabedoria representa...) o lado épico da verdade’”. Portanto, em terceiro lugar, o narrador
só existe como elo numa cadeia de narrativas, trazidas pela tradição oral. Se ele imprime sua marca pessoal na
narrativa (esta seria a face autoral, “individual” do narrador), a narrativa, que sempre vem de longe, de outro
tempo ou de outras terras, também marca a biografia do narrador. É de um mundo onde o tempo passa mais
devagar, onde a morte não interrompe a cadeia entre o passado e o futuro, onde cada sujeito é apenas um elo a
mais na longa corrente entre seus antepassados e seus descendentes, que surge a figura do narrador. Com o
desaparecimento deste mundo, o narrador fica obsoleto.
Quem advém em seu lugar é o romancista, representante de outra conformação subjetiva, a subjetividade
moderna. O romancista não é um elo na transmissão da experiência: é um sujeito que ocupa um lugar de
exceção, segregado dos demais. Suas preocupações não são exemplares, seu ponto de vista sobre a vida
social pretende-se singular. Quanto à relação do romance com o tempo, Benjamin recorre a Lukács, em Teoria
do romance, quando afirma que “o romance é a forma do desenraizamento transcedental; a única forma
(literária) que inclui o tempo entre seus princípios constitutivos”. “O tempo só pode ser constitutivo quando cessa
a ligação com a pátria transcedental (...) somente o romance separa o sentido e a vida e, portanto, o essencial e
o temporal; podemos quase dizer que toda a ação interna do romance não é senão a luta contra o poder do
tempo”. Se o sentido da vida (transcedental, transmitido pela tradição) se perde nas sociedades modernas, o
romancista vem tentar recuperá-lo em sua dimensão terrena, temporal. Daí a compulsão do romancista de tudo
dizer, tudo rememorar, enquanto ao narrador basta um breve fragmento, um pequeno acidente recortado do
cotidiano, para através dele transmitir algo de um saber que não é exclusivamente seu.
O sentido da vida como uma unidade coesa orienta toda a ação do romance, até se revelar no capítulo final,
geralmente com a morte de um dos personagens, ou talvez (Benjamin cita o caso da Educação sentimental, de
Flaubert) com a morte de suas ilusões juvenis. Por fim, Walter Benjamin escreve, não sem uma certa nostalgia,
que enquanto o leitor (ou ouvinte!) de uma narrativa está sempre acompanhado – não só da voz viva do
narrador, mas de toda a comunidade passada e presente a que ele pertence – o leitor do romance está só. A
leitura da história de uma vida alheia “até o fim”, nas condições de solidão e desenraizamento da vida burguesa,
é uma tentativa do leitor alimentar-se com “o calor que não encontramos em nosso próprio destino. (...) O que
seduz o leitor no romance é a esperança de aquecer sua vida gelada com a morte descrita no livro” .
O texto de Walter Benjamin é precioso por sua capacidade de articular dois gêneros literários a duas
modalidades subjetivas, produzidas por duas estruturas sociais diferentes. Seremos nós, neuróticos modernos,
herdeiros daqueles “sujeitos literários” que foram os autores de romances? Terá a tradição do romance se
enraizado de tal modo na cultura ocidental a ponto de ter produzido a formatação através da qual representamos
nossas histórias de vida e nosso lugar, arremedo de uma “identidade”, como protagonistas delas? Por enquanto,
retomemos a frase em que Lacan associa romance e neurose. O que significa isto? Não creio que esta
associação se refira apenas à insistência com que nos dedicamos a recriar a “novela familiar do neurótico”,
tentando nos reinserir na ordem simbólica a partir de um lugar que imaginamos mais privilegiado do que o que
nos foi concedido pela família de origem. A frase de Lacan me faz pensar em alguma coisa mais parecida com a
urgência com que respondemos quase diariamente ao imperativo que Michel Foucault chamou de
“discursificação da vida cotidiana” , imperativo de tudo dizer ao Outro, a algum Outro suposto capaz de colocar
ordem na fragmentação e na dispersão das identificações que compõem o frágil revestimento imaginário do eu
na modernidade.
Não pretendo discutir aqui a abordagem de Foucault, para quem a compulsão que se produziu no Ocidente,
desde pelo menos o século XVII, de colocar tudo em discurso (é importante observar que Foucault emprega o
termo “discurso” num sentido diferente do de Lacan, como produção de dizeres e saberes), alimenta a rede
capilar através da qual o poder penetra nos interstícios mais desimportantes da vida dos mais comuns dos
sujeitos. Não há dúvida de que a falação que há mais de três séculos organiza (ou pretende organizar) as
formas erráticas do dia-a-dia das pessoas, produz uma espécie de visibilidade na vida dos homens comuns que
pode ser conveniente para as micro estruturas do poder disciplinar. Mas é possível também pensar, com
Jacques Rancière por exemplo , que esta escritura individual, órfã de qualquer autoridade explícita (o que deixa
margem para supormos, como psicanalistas, a submissão inconsciente a um discurso recalcado), nasce
justamente dos lugares deixados vazios pelo poder: é onde o sujeito ocidental se desgarra de uma tradição que
fala por ele e produz algum sentido para a sua vida, que ele se vê compelido a falar/ escrever/ narrar.
Estou avançando depressa demais; vamos aos poucos. A primeira coisa que reconhecemos na frase de Lacan,
é que pensamos nossas trajetórias de vida como se fossem romances, com começo, meio e fim articulados por
alguma lógica, e algum sentido revelado no “capítulo” final. Consequentemente, pensamos a nós mesmos como
personagens dessa história. Personagens da escrita de alguém. Neste caso, quem seria o autor? Caso não
reconheçamos a parceria (obrigatória) com o Outro, e não seríamos o que somos se reconhecêssemos,
tendemos a pensar que o autor somos nós. “A vida não deve ser somente um romance, mas um romance que
nós mesmos escrevemos” escreveu, em algum de seus Fragmentos, o poeta Novalis. Um romântico não poderia
dizer outra coisa, mas é preciso também reconhecer o quanto o romantismo faz parte da herança que produziu o
sujeito moderno. Sujeito que se poderia chamar, hoje, de “sujeito do inconsciente”, tanto quanto de “sujeito
literário” – não como duas faces de uma mesma moeda, mas como duas pontas da corda esticada sobre a qual
nos equilibramos precariamente: se uma das pontas da corda que sustenta o conjunto se soltar, este pobre
sujeito despenca, cai do alto de si mesmo. O que não significa que o homem, a pessoa, não sobreviva ao
desastre; como escreveu o grande filósofo Brás Cubas: “é melhor cair das nuvens do que do terceiro andar”.
Solto da determinação inconsciente, solto de uma certa ordem narrativa, um ser humano ainda pode ser uma
“pessoa” – mas não um “sujeito”, do modo como a psicanálise o concebe hoje.
Duas perguntas se impõem, de saída. Primeira, qual a função subjetiva destas narrativas romanescas que
acompanham, formatam e/ ou estruturam nossa existência? Segunda, qual a condição metapsicológica disto que
nos parece uma superestrutura, ou seja, uma produção típica dos processos secundários, indispensável à
existência do sujeito mas que não provém diretamente da atividade inconsciente? Será, como pensava Freud ao
analisar a “novela familiar do neurótico”, uma solução de compromisso, um mecanismo de defesa através do
qual o sujeito evita saber de sua insignificância? Talvez, também; mas sendo criação de cada um, o fio narrativo
que se desenrola em direção a um desfecho desconhecido, tendo na outra ponta o anzol com que se pretende
deter o movimento de peixe na água do desejo, a fabulação que dá sentido às mais corriqueiras das vidas tem
um aspecto vital, criativo, necessário. A fabulação dá consistência imaginária ao eu, este eu que é tudo de que o
sujeito dispõe para estar com o outro e para existir no tempo, uma vez que, desde o inconsciente, não é com o
outro que se está: o sujeito do inconsciente existe no Outro e na atemporalidade.
O sentido antigo da palavra fábula, escreve Foucault, designa “aquilo que merece ser contado” . Fazer da vida
comum algo digno de fábula é uma pretensão tipicamente moderna; mas é necessário também perguntar, num
mundo que se desgarrou da certeza de pertencer a um plano divino ou mesmo a uma harmonia natural
asseguradora, que outro recurso teria o sujeito para se inserir no fluxo contínuo e errático de uma linguagem que
já não reconhece paternidade, sem ser inteiramente engolido e pulverizado por ela. A literatura é sim um artifício,
que toda comunidade letrada reconhece como artifício. Mas um artifício, (novamente Foucault) que produz
efeitos de verdade. Se a linguagem, nas sociedades modernas, é um acervo comum, arbitrário, sem Deus nem
pai que a sustentem de fora dela, o homem cava seu túnel narrativo por entre o caos dos significantes que
remetem somente uns aos outros, tentando deter-se no tempo, o que é o mesmo que dizer: tentando “ser”.
Longe de se resolver com esta afirmação, o problema jogou sua resposta para muito mais longe. Pois agora
somos obrigados a pensar: o que foi que aconteceu “conosco”, na chamada modernidade, para que o ser
despencasse de seu trono metafísico, perdesse ao mesmo tempo sua consistência e sua estabilidade terrenas e
tivesse que se recriar a cada dia, pelo trabalho de cada sujeito falante, revestido de uma pele frágil feita de
palavras – as quais, se não forem fixadas em papel, o vento leva?
Quando me refiro à expansão e à democratização da experiência literária, que teve seu apogeu no século
dezenove – literatura, aliás, é um termo que só adquiriu seu sentido atual naquele século – não estou me
restringindo à experiência das pessoas que se interessavam por ler livros, exclusivamente. A difusão de formas
ficcionais de todos os níveis, do grande romance realista ao folhetim, produz, como efeitos no campo, todo um
modo de se conceber a relação dos homens com o seu destino - uma relação particularmente carregada de
responsabilidade, na modernidade - e organiza, grosso modo, a produção de sentidos para a vida, fundamentais
em uma sociedade que recentemente deixou de ser regida por crenças em uma ordem divina que
predeterminaria o destino e o sentido da vida.
A falência, ou no mínimo o esgarçamento do poder simbólico das religiões nas sociedades modernas está
diretamente relacionada, a meu ver, com a emergência da literatura como resposta necessária para a
constituição dos sujeitos. Uma das respostas possíveis – certamente a mais poderosa – à nossa separação de
um estado (ideal) de natureza, sempre foi a produção, pela cultura, de modos de religação entre o homem e o
universo, entre os homens e o Pai perdido (Deus), e entre os homens e sua comunidade terrena. As religiões e
todas as outras formações simbólicas próprias das sociedades tradicionais, cuja função sempre foi conferir aos
sujeitos uma destinação e uma série de práticas, rituais ou não, que lhes garantissem um lugar no desejo do
Outro, são atenuantes para o desamparo. Modos de pertinência, de produção de sentidos para a vida, de
filiação, de amparo simbólico, enfim. A literatura tem um papel organizador da existência nas sociedades que se
tornam laicas. Sociedades nas quais, se Deus ainda não deixou de existir, certamente foi destituído de algumas
de suas funções, no que toca a vida comum das pessoas comuns.
A literatura a que me refiro é precisamente o romance realista, que surge na Europa a partir do final do século
XVIII, em resposta a uma certa crise nas relações dos indivíduos com a tradição que, até então, amparava suas
escolhas de vida e sua visão de mundo. Esta quebra na unicidade do discurso do Outro trouxe a necessidade de
uma certa auto-fundação das escolhas subjetivas que produziu, consequentemente, o apelo a uma rede de
interlocuções horizontais, a que chamei fraternas, de onde se pudesse enunciar algum tipo de verdade que
desse conta deste desamparo dos sujeitos modernos, desde o final da Renascença
O romance realista surge na esteira destas transformações sociais e subjetivas, como expressão, no campo da
arte, das mesmas questões apontadas pelos filósofos empiristas – Hume, Berkeley, Locke – segundo os quais
os sujeitos só dispõem de seus sentidos e de sua experiência/ reflexão como meios de acesso à verdade. Se a
relação solitária – portanto, desamparada – do sujeito com a verdade vem sendo pensada desde Descartes, que
pretendeu respondê-la através da dúvida sistemática, os filósofos empiristas avançam vários passos na direção
da dessacralização desta verdade ao propor a prevalência do particular sobre os universais e da experiência
sobre a revelação. “Tudo o que existe é particular”, como reza a conhecida frase de Berkeley.
Segundo o crítico inglês Ian Watt, tanto o romance realista quanto a filosofia empirista, apesar de suas
diferenças, são fruto de um mesmo fenômeno: “a vasta transformação da civilização ocidental, desde o
Renascimento, que substituiu a visão unificada do mundo medieval por outra, muito diferente, que nos apresenta
essencialmente um conjunto em evolução, mas sem planejamento, de indivíduos particulares vivendo
experiências particulares em épocas e lugares particulares”.
A falta de certezas universais e/ ou transcedentais exige que se afirme o indivíduo como centro de suas próprias
referências – o que coloca a necessidade de uma melhor definição do que seria uma personalidade individual.
Isto pode nos parecer estranho hoje, mas o indivíduo como unidade autônoma ainda era uma forma subjetiva
embrionária, há pouco mais de dois séculos. Nas formas narrativas anteriores ao romance, os personagens,
quando não eram figuras de destaque no contexto em que se passa a história – reis, santos ou grandes
guerreiros – eram construídos como tipos, caracterizados por sua função na estrutura dramática. Os
romancistas, impregnados das idéias postas em circulação pelas revoluções filosóficas, mas trabalhando a partir
de um outro campo, “resolvem” o problema de fixar as personalidades individuais de seus personagens pelo
recurso ao nome próprio – recurso bastante familiar aos psicanalistas, por sinal.
Se para Locke, nossa identidade só pode ser fixada pela continuidade da consciência ao longo do período de
uma vida (o que implica também a função da memória e da noção de causa-efeito para explicar nossos atos),
para o escritor (moderno) E. M. Foster, numa perspectiva semelhante à de Benjamin, um romance é o relato de
uma vida através do tempo. Estes relatos fictícios, herdeiros das autobiografias, (fenômeno típico do século
XVIII), tiveram certamente uma função importante na organização/ elaboração do campo das configurações
sociais ainda mal estabelecidas na emergência das sociedades capitalistas do século XIX. Como para nós,
psicanalistas, toda psicologia individual é tributária (quando não indissociável) de uma psicologia social , não é
difícil deduzir, da função organizadora do campo social exercida pelo romance realista, sua função determinante
na estruturação “individual” dos sujeitos modernos.
O efeito da imensa circulação dos romances que tiveram seu apogeu no século XIX, acompanhando a expansão
da economia capitalista e do modo de vida burguês, foi um efeito organizador das relações sociais num mundo
em que uma nova ordem vinha lentamente se afirmando por entre o caos das forças produtivas emergentes. O
romance oitocentista, chamado “realista” em função de sua pretensão de colocar sob o crivo da linguagem todas
as determinações e todos os interesses atuantes na sociedade burguesa, dos mais influentes aos mais
obscuros, dos mais evidentes aos mais inconvenientes, expandiu-se com um vigor e uma rapidez próprios das
formações que vêem responder a uma necessidade emergente, informulada; e com um potencial criador de
significações (propositalmente, não escrevi “de significantes”) próprio dos fenômenos de retorno do recalcado.
Pois, além de seu efeito, digamos, sociológico, o romance surgiu como elemento capaz de dar voz ao dissidente,
ao silenciado, ao sem lugar, ao informulado. Assim, as narrativas romancescas produzem, também, alguns
efeitos sobre os sujeitos em particular.
Efeitos de identificação: do leitor com o narrador, cuja voz onisciente (capaz de descrever tanto uma paisagem
quanto o estado de espírito mais íntimo de um personagem, tanto uma batalha quanto um diálogo amoroso
sussurrado entre dois protagonistas) repõe, numa cultura secular, algo semelhante a um sujeito-suposto-saber.
Identificação do leitor com alguns grandes personagens, cuja força dramática resulta de sua excentricidade, de
sua marginalidade em relação aos lugares preestabelecidos pela ordem oitocentista, do custo individual de arcar
com as vicissitudes de seu desejo. Não por acaso os grandes personagens dramáticos do romance oitocentista
foram figuras femininas, vozes dissonantes emergindo em um mundo onde se esperava que as mulheres
permanecessem em silêncio. Por fim, identificação do leitor com o trabalho do autor, a produção desse texto
que, na expressão de Lacan, não para de (não) se escrever, e através do qual (juntando duas pontas soltas do
pensamento lacaniano) tentamos nos situar como personagens do romance de nossas próprias vidas.
Além disso, o romance organiza o tempo na forma de histórias de vida, conferindo às vidas banais o sentido de
uma história – fabulação e historicidade – e mantendo a ilusão de que a existência é a construção de um
destino, muito apropriada à representação de si feita pelo self made man do período de expansão do
capitalismo. Ora, uma história de vida individual, orientada para a construção de um destino pessoal (ainda que
fracassado, como ocorre nas narrativas dos melhores romances), só faz sentido como representação imaginária
de um sujeito que pensa a si próprio como separado de seus semelhantes, responsabilizado por seus erros e
acertos e encarregado, sozinho, de traçar/ escrever o curso de sua passagem sobre a terra. Representação
necessária, ainda que insuficiente, para sustentar a outra ponta da corda sobre a qual se equilibra o sujeito
moderno, desgarrado das formações sociais que, nas sociedades pré-modernas, conferiam lugares estáveis e
destinações razoavelmente seguras a vidas que não eram pensadas como existências individuais mas como
partes de um todo, cujo sentido era compartilhado pela comunidade à qual os sujeitos pertenciam.
II. O sujeito desgarrado
Se o desamparo é parte da condição humana, as grandes formações da cultura funcionam para proporcionar,
num mundo feito de linguagem, algumas estruturas razoavelmente sólidas de apoio para estes seres por
definição desgarrados da ordem da natureza. A tradição, de certa forma, situa as pessoas na sociedade em que
vivem, explicitando o que é esperado de cada um a partir do lugar que ocupam desde o nascimento. A religião
produz sentidos para a vida e a morte, e orienta as escolhas morais; os mitos explicam por quê as coisas são
como são, e fundamentam as interdições necessárias à manutenção do laço social. Os antepassados detêm um
saber a ser transmitido de geração a geração, garantindo uma certa perpetuação do sentido da experiência
individual através dos tempos. Há uma relação de continuidade entre a memória dos mortos ancestrais, o lugar
dos adultos vivos e o de seus descendentes; nessas condições o fio do tempo talvez se desenrole mais devagar
e, sobretudo, não precise ser remendado a cada geração, ou várias vezes ao longo de uma vida. Estas são as
condições nas quais Walter Benjamin situa a figura do narrador, com sua função de transmitir uma sabedoria a
respeito do vivido construída através de muitas gerações. São condições, talvez um tanto idealizadas – uma
sociedade tão estável quanto a descrita aqui não teria jamais produzido as condições necessárias à sua própria
transformação – que compõem o quadro do que Georg Lukács chamou de paraíso das sociedades fechadas.
Paraíso, sim, mas só do ponto de vista do amparo simbólico de seus integrantes. Expulsos dele, os membros
das sociedades modernas já não conseguem se imaginar vivendo num mundo onde liberdade e autonomia não
fossem bens prezados acima de todos os outros, onde o destino não fosse percebido como uma escolha
individual, onde as novas gerações não pudessem desfazer e refazer continuamente o que foi feito pelas
gerações anteriores. Mas acima de tudo, e apesar de todas as modalidades de alienação através das quais
vivemos tentando nos submeter a um suposto saber do Outro, talvez não desejássemos viver numa cultura que
desautorizasse a experiência individual como fonte de conhecimento, em nome de uma verdade preestabelecida
pelos antepassados ou pelas autoridades capazes de interpretar os desígnios divinos.
Se as sociedades modernas preservam ainda a idéia de um Deus, o fato é que já não existem mais as
condições para que este Deus seja UM. Situemos então, um tanto arbitrariamente mas não sem algumas boas
razões, a origem disto a que chamamos os tempos modernos por volta do século XVI, quando a reforma
luterana abalou profundamente o monopólio da Igreja Católica sobre a religiosidade no Ocidente. É verdade que
Martinho Lutero não propunha outra versão de Deus, mas outra versão da fé e da administração terrena das
coisas sagradas. Foi contrário à corrupção e ao enriquecimento das altas autoridades da Igreja, contrário à
prática da venda de indulgências, aos uso do Latim nos ofícios sagrados, favorável a uma redução no número e
na importância dos sacramentos, favorável ao acesso de todos os fiéis aos textos sagrados. Mas acima de tudo,
Lutero defendeu a idéia de que cada fiel deveria prestar contas diretamente a Deus a respeito de sua devoção e
procurar sozinho o caminho de sua salvação, independente da tutela de um representante da Igreja.
Segundo o historiador Jean Delumeau , a reforma protestante e as modificações que a Igreja Católica foi
obrigada a efetuar para oferecer a seus fiéis uma resposta às inquietações que Martinho Lutero fez emergir junto
ao mundo cristão, foram o coroamento de um processo de democratização do saber da Igreja e de um
afrouxamento das hierarquias eclesiásticas que vinha se alastrando pela Europa desde o século XIV. A reforma
teve um papel tão fundamental nas transformações sofridas pela ordem medieval a partir do século XIV e na
produção de uma subjetividade precursora do que hoje reconhecemos como própria do sujeito moderno, que
Delumeau refere-se ao “Renascimento como reforma da Igreja”, articulando um e outra como dois aspectos de
um mesmo fenômeno.
A Reforma luterana não contestou a idéia do Deus dos cristãos. Lutero, como todo reformador, pregava um
“retorno às fontes”, resgate de uma fé não contaminada pelos interesses materiais dos representantes de Deus e
pelas alianças terrenas da Igreja com os Estados em formação. Mas ao abalar o poder e contestar a legitimidade
da instituição que se propunha como diretamente designada pelo filho de Deus para administrar os interesses de
seu Pai no reino deste mundo, a Reforma deixou todos os cristãos da Europa semi descobertos. Se existem
duas maneiras de se interpretar como deve agir um bom cristão, se se instituiu a possibilidade de cada devoto
decidir, consigo mesmo, sobre a pureza de sua alma, a sinceridade de sua fé, e mesmo sobre sua interpretação
pessoal dos textos sagrados, a dúvida e a escolha estão definitivamente implantadas onde até então o dogma e
a palavra de autoridade decidia todas as questões. Onde existe a escolha, a verdade já não é UMA.
Mas a emergência de um individualismo cristão produziu também, como era de se esperar, um imenso
sentimento de responsabilidade e culpabilidade pessoais que reconhecemos até hoje como característicos do
sofrimento neurótico. Os dispositivos de vendas de indulgências e outras negociações antecipadas em relação
ao Juízo Final, combatidos mais tarde por Lutero, podem ter sido eficazes no sentido de abrandar um pouco o
medo da condenação eterna, mas não aliviaram o homem ocidental do sentimento de responsabilidade por suas
escolhas e pela construção de um destino terreno e espiritual. As propostas humanistas difundidas por Erasmo,
por exemplo, segundo as quais bastava aos cristãos praticar na terra o amor ao próximo e imitar as virtudes de
Jesus, pareciam frágeis para confortar as multidões medievais – “gente mais frágil e mais violenta do que nós
(...) a quem faltava, no mais alto grau, o domínio de sí que no século seguinte seria exaltado por Descartes e
Corneille”.
Os humanistas eram, sim, representantes das grandes modificações emergentes em sua época: a de uma
devoção individualizada construída a partir de um contato pessoal com a mensagem divina. Porém, abaladas a
autoridade dos papas e demais sacerdotes, enfraquecido o poder dos sacramentos, o grande apoio que se
ofereceu aos cristãos foi o próprio texto bíblico. O Livro, ele mesmo, tornado naquele momento mais acessível
às massas recém alfabetizadas, traduzido e resumido em dezenas de línguas e versões nem sempre
autorizadas pela Igreja, foi a partir do Renascimento o suporte ao mesmo tempo compartilhado e individual de
uma fé já não tão tutelada pelas autoridades eclesiásticas. A passagem da transmissão oral à letra escrita
corresponde, assim, à passagem de uma espiritualidade (ou seja, em termos ainda medievais, de uma
subjetividade) totalmente sustentada sobre uma palavra de autoridade, a uma subjetividade feita cargo do
próprio indivíduo. A função nomeadora e estruturante do “pai” vai lentamente se desencarnando da figura dos
representantes de Deus na terra, tornando-se mais abstrata, e seus desígnios mais passíveis de interpretações
individuais, diferenciadas.
A Reforma da Igreja é apenas um dos muitos acontecimentos que abalaram as sociedades européias no período
a que chamamos Renascença, quando o individualismo contemporâneo começou a assumir seus primeiros
contornos mais nítidos. Será excessivamente didático enumerar alguns outros? Já ficou evidente que estas
transformações são indissociáveis da invenção da imprensa e da enorme circulação da palavra escrita que ela
propiciou, uma palavra, a partir de então, impossível de ser inteiramente tutelada, com um enorme potencial
transgressivo. Uma palavra impossível de se reter em bibliotecas oficiais – palavra que assume a forma de
canções populares, vulgatas de textos sagrados, panfletos políticos, diluições dos mais diversos saberes – e que
antecipa a livre circulação de idéias típica das futuras sociedades democráticas, remetendo cada sujeito, como
leitor isolado de um texto, ao contato direto e personalizado com o saber de um Outro cada vez mais abstrato.
Que cada leitor se faça encargo de sua versão particular deste saber, com todos os riscos e todo o desamparo
que esta liberdade acarreta, é decorrência imediata da relação individualizada que o veículo livro impõe, entre
leitor e texto, ou, imaginariamente, entre leitor e autor. Não sei se podemos dizer que os leitores renascentistas
escolheram esta liberdade ou se ela lhes foi imposta pelas novas condições materiais da circulação de dizeres e
saberes. É exemplar a trágica história do moleiro Menocchio que, de sua aldeia natal no interior da Itália,
começou a “pensar com a própria cabeça” e formar sua versão particular do Gênesis e da imortalidade da alma
a partir das leituras de uma miscelânia de textos que lhe caíam nas mãos – vulgatas da Bíblia, trechos do
Decameron e relatos de grandes viagens – até ser condenado à fogueira pela Inquisição. Além da imprensa,
temos o ciclo dos descobrimentos e o contato com culturas diferentes que ele propiciou, extremamente
popularizado pela grande circulação impressa de relatos de viagens, autênticos ou fantasiosos. As notícias da
existência de povos que adoravam outros deuses, obedeciam a outras normas, organizavam-se de maneiras
muito diferentes das que os europeus conheciam, tiveram o efeito de relativizar algumas convicções morais e o
sentido de algumas convenções sociais que até então pareciam expressão de uma verdade natural, indiscutível.
É verdade que representantes da Igreja e pensadores cristãos fizerem esforços consideráveis para desautorizar
a diferença revelada pelo contato com povos asiáticos, americanos e africanos, esforços concretamente
apoiados por operações de guerra contra os recém descobertos “infiéis”. Catequizar os índios ou destruir suas
civilizações, invadir terras de mouros e tirar as vidas dos inimigos da verdadeira fé, tudo foi feito para maior
glória de Deus e para preservar a segurança – já definitivamente abalada – da civilização européia quanto à
verdade dos pressupostos que a sustentavam. Some-se a isto a divulgação das descobertas da astronomia
copernicana, que trouxeram ao homem europeu notícias sobre sua insignificância no planeta e no universo.
Por fim, vale ainda mencionar a expansão do comércio, o (re)estabelecimento das trocas mediadas pela moeda
em substituição à prática do escambo que havia prevalecido durante a Idade Média, estabelecendo a separação
entre a medida do valor de uma mercadoria e a medida de sua necessidade que transformou o mercado num
sistema de trocas simbólicas, acima da materialidade e do chamado “valor de uso” dos bens postos em
circulação. Com isto democratiza-se (para fora das cortes, onde o luxo e o supérfluo já vinham se impondo como
meios de distinção e exclusão) a condição material que separa os sujeitos do estado de satisfação de
necessidades e os lança, em grande escala, na lógica da realização de desejos – uma lógica regida por
mecanismos (de formação de valor, ou, se quisermos, de instituição do brilho do objeto a na economia) obscuros
para cada indivíduo em particular, uma lógica segundo a qual as diretrizes de suas motivações são
estabelecidas a partir de um lugar abstrato, exterior ao conhecido sistema de manutenção da sobrevivência
física de cada um. A semelhança entre o resultado deste processo e a emergência de um sujeito alienado ao
desejo de um Outro cujas determinantes (diferentemente do habitante de uma sociedade regida por tradições
explícitas) ele desconhece, não deve ser tratada como mera coincidência.
III. O sujeito dividido
Começamos a entrar no terreno em que se articulam as linhas de força que produzem o sujeito desgarrado das
grandes formações sociais estáveis, e as que produzem o sujeito dividido. Neste caso, sim, penso que podemos
considerar duas faces indissociáveis da mesma moeda, e considerar humildemente a historicidade do sujeito da
psicanálise.
O sociólogo Norbert Elias, cujo pensamento guarda afinidades declaradas com a teoria freudiana (a parte mais
importante de sua obra foi escrita na década de 30) e cujas idéias teriam influenciado um filósofo do porte de
Michel Foucault, oferece dados muito interessantes para se entender a passagem de culturas em que os
homens se pensam como partes integrantes de um todo, e as culturas modernas, em que os homens se pensam
como indivíduos. Duas separações fundamentais ocorrem neste processo, escreve Elias: a separação entre
cada homem e os outros homens, vivos ou mortos, dos quais depende não apenas sua existência física mas sua
constituição subjetiva, seu saber, sua moralidade – sua socialização, enfim. E a separação, instituída pelos
processos civilizadores , entre cada homem e seu próprio corpo: seus impulsos, suas mais diversas fomes, seus
processos fisiológicos e concomitantemente suas vontades, taras, tendências – por que não escrever, seus
“desejos”? – cuja expressão deixou de ser admitida no espaço de convivência com os outros homens, e foi
apartada da cena pública, relegada ao espaço da intimidade, de uma privacidade cada vez menos compartilhada
e cada vez mais compreendida como o lugar da “verdade” do indivíduo, separada do espaço público pela
adoção de máscaras de recato, civilidade e cortesia.
O que aproxima a teoria de Elias do pensamento psicanalítico é que ele supõe, como resultado deste processo,
a emergência de um sujeito que passa a desconhecer suas determinações, sobretudo no que concerne ao
caráter coletivo, social, das forças que o atravessam. Para se acreditar independente, “individual” entre seus
semelhantes, ele tem que ignorar (recalcar?) todas as evidências de sua dependência em relação aos
semelhantes, desde a educação que lhe garantiu um lugar na sociedade até a força de tradições e saberes
implícitos no sistema de crenças e valores que ele considera constituídos a partir de seu pensamento,
isoladamente. O resultado desta operação é o desenvolvimento de uma aguda “consciência de si”, responsável,
a um só tempo, pelo desenvolvimento dos homens modernos enquanto indivíduos diferenciados uns dos outros
e pelo sofrimento que esta contínua prática de auto-observação pode acarretar. O sujeito moderno observa-se,
julga-se, pensa o tempo todo em si. A revolução do pensamento trazida pela descoberta de Copérnico permitiu
que se desenvolvesse a capacidade de uma auto observação distanciada, desdobrada, como se os homens
aprendessem a ver a pequenez de sua condição a partir do sol, em vez de considerar, ingenuamente e sem
fazer perguntas, seu próprio planeta e consequentemente a si mesmos como o centro do mundo.
Para exemplificar as consequências do esquecimento da dimensão coletiva do sujeito moderno, é surpreendente
a leitura que Norbert Elias faz do que ele considera como engodos da dúvida cartesiana, a partir desta ilusão do
sujeito que supõe pensar por si mesmo e sustentar sozinho sua existência. Para ele, Descartes só poderia
duvidar de sua existência, ainda que esta dúvida constituísse um método para reafirmar sua certeza, porque
estava tentando pensar-se como um indivíduo, isolado e independente dos outros, que precisa responder a esta
questão fora de suas referências sociais.
“A representação da consciência que está presente neste texto, e a interrogação que ela encerra, não são o puro
jogo de espírito de um filósofo isolado. São muito características da passagem de um pensamento de estrutura
fortemente religiosa às representações profanas de si mesmo e do mundo que se expandia na época de
Descartes. Esta evolução do pensamento e da ação em direção ao profano não foram de modo algum obra de
um indivíduo, nem de uma série de indivíduos. Ela está relacionada a modificações específicas das condições
de vida e das relações de poder no seio dos grupos sociais no Ocidente. As Meditações de Descartes são uma
versão individual desta démarche. Ilustram de maneira paradigmática os problemas específicos com os quais os
homens se confrontam, na reflexão sobre eles mesmos e na incerteza sobre a imagem que faziam de si mesmos
a partir do momento em que o princípio fundamental da experiência vivida, tal como era definido pela Igreja e
pela religião, foram submetidos à dúvida pública e perderam sua evidência”.
Descartes, afirma Elias, está escrevendo num período em que, desde o Renascimento, o equilíbrio entre a face
individual e a coletiva do eu foi rompido, até o quase total desaparecimento da consciência do “nós”. A origem
social, a pertinência a um grupo social, já haviam se enfraquecido como garantias da “identidade” do sujeito. Os
pensadores Humanistas, nas sociedades de corte que se afirmavam desde a Renascença em algumas regiões
da Europa, foram os primeiros indivíduos para quem as realizações pessoais e os traços de personalidade
valeram posições sociais de prestígio na administração do Estado. O potencial de individualização destes
homens foi o que lhes propiciou mobilidade social e desgarramento de suas referências de origem. O cogito teria
sido um sintoma desta perda de referências coletivas, da origem e da tradição; uma tentativa de fundar o ser na
linguagem? Veremos.
Uma abordagem da épistême cartesiana complementar à de Norbert Elias é feita por Foucault em As palavras e
as coisas. Ao analisar a perda de confiança na transparência da relação entre a linguagem e o mundo que se dá
na passagem do Renascimento para o período clássico (séculos XVII e XVIII), Foucault afirma que o homem do
século XVII não está somente órfão na linguagem, mas também tentando abrigar-se em uma linguagem que
está, ela mesma, órfã da verdade, isto é, de sua autorização numa palavra divina. “A relação entre significante e
significado se aloja agora num espaço onde nenhuma figura intermediária assegura o seu encontro – só
estabelece o laço entre a idéia de uma coisa e a idéia de outra”. Este fenômeno, escreve Foucault, tem um
alcance bem mais amplo do que o cartesianismo. A ligação entre o signo e o ser é que está abalada. “Não há,
para constituir a linguagem ou para animá-la por dentro, um ato essencial e primitivo de significação, mas tão
somente, no coração da representação, este poder que ela detém de representar a si mesma (...). Na idade
clássica, nada existe que não seja dado à representação”. O grande gesto de Descartes foi este, o de apoiar o
ser no pensamento, isto é, na representação. O sujeito existe na medida em que pensa a si mesmo; o que
equivale a dizer: existe na medida em que se insere na linguagem, dando-se à representação.
Ora, meio século antes das Meditações, outro filósofo, já herdeiro do desencantamento do mundo mas também
de uma primeira emancipação do homem fundada no pensamento humanista, já havia inaugurado o grande
exercício de constituir o ser na linguagem. Mas, à diferença de Descartes, Michel de Montaigne não funda uma
certeza metafísica baseada num suposto pensamento “puro”. É na escrita, e na escrita dirigida ao semelhante
(recurso inventado pelo filósofo depois do luto pela perda do grande amigo e interlocutor, Étiènne de La Boétie),
que Montaigne tece o fio de seu eu. Além disso, estando um pouco mais próximo (historicamente) da recente
passagem de um eu coletivo para um eu individual, de acordo com a abordagem de Elias, Montaigne não busca
uma certeza metafísica sobre o ser. Sua certeza é humanista, e ele a compartilha com seu semelhante. Se pode
tomar-se como objeto de uma escrita que ele confia que interesse a todos os outros, apesar de sua
insignificância pessoal (ou seja, embora não seja rei, sábio, santo ou guerreiro), é justamente porque se
considera um homem como qualquer outro, pois “cada homem leva consigo a forma inteira da condição
humana”. É como se Montaigne já tivesse antecipado a dúvida cartesiana, à qual responderia: “escrevo, e por
que o outro se reconhece no que lê, existo”.
Os Ensaios de Montaigne são uma magnífica afirmação não metafísica do ser. É enquanto ser finito e temporal,
enquanto ser-no-mundo, portanto tão mutável e inconstante quanto todas as coisas, que Montaigne descreve a
si mesmo. Vejamos mais alguns trechos expressivos de alguns de seus ensaios:
“Tarefa espinhosa, a de seguir um rastro tão vagabundo quanto o de nosso espírito; penetrar nas profundezas
mais opacas de suas sinuosidades internas; escolher e deter tantos pequenos sopros de suas agitações; e é um
divertimento novo e extraordinário, que nos retira das ocupações comuns do mundo (...) Faz vários anos, já, que
não tenho senão a mim mesmo como alvo de meus pensamentos, e que não relato nem estudo senão a mim; e
se estudo outra coisa, é para abrigá-la logo sob mim, ou em mim...”
“De cem membros e rostos que tem cada coisa, pego uma. Dou uma laçada, não o mais largamente, mas o mais
profundamente que sei... sem desígnio, sem promessa, não sou obrigado a cumpri-la, nem eu próprio me obrigo
a isso, sem variar quando bem entender, e entregar-me à dúvida e à incerteza, e à minha forma dominante, que
é a ignorância”...
“E mesmo que ninguém venha a ler-me, terei perdido meu tempo empregando meus lazeres em tão úteis e
agradáveis pensamentos? Fazendo o molde de meu próprio rosto, mais de uma vez precisei enfeitar-me e
ajustar-me, de modo que o modelo se afirmou e tomou forma sozinho. (...) Fez-me o meu livro, mais do que eu o
fiz; e autor e livro constituem um todo; é estudo de mim mesmo e parte integrante da minha vida; não sou
diferente do que apresenta nem ele o é de mim”...
Estes trechos são suficientes para percebermos a articulação feita por Montaigne, entre a escrita e a
experiência, uma articulação necessária, já que sem o sujeito da experiência não haveria o que escrever, e sem
a escrita a experiência não faria sentido. Montaigne constitui um sujeito do conhecimento fundado na experiência
de si mesmo, constituindo ao mesmo tempo seu objeto que é seu próprio eu. Um eu atravessado pelo interesse
por todos os assuntos do mundo, desestabilizado permanentemente pela constante mutação à sua volta – um eu
que, em vez de mônada, é uma espécie de caixa de ressonância que vibra e repercute todos os fenômenos que
o tocam. O sentido que Montaigne empresta ao termo “experiência” não é o mesmo que o utilizado por
Benjamin, que designa aquilo que é compartilhado e, portanto, reconhecido pelos membros de uma coletividade.
Montaigne pensa a experiência num sentido mais próximo do dos primeiros filósofos empiristas: a experiência é
a observação que pode enriquecer nosso conhecimento, tanto do mundo quanto dos homens – sobretudo de
nós mesmos. “O desejo de conhecimento é o mais natural” escreve, na abertura de seu famoso ensaio “Da
experiência” ,. “Experimentamos todos os meios suscetíveis de satisfazê-lo, e quando a razão não basta,
apelamos para a experiência” . Mas a experiência, para um homem do século XVI, atordoado com a diversidade
e a rapidez dos acontecimentos que abalavam continuamente suas certezas, não garante um conhecimento
seguro das coisas: “o que encontramos nas coisas mais semelhantes é a diversidade, a variedade. (...) Só por
fraqueza nos contentamos com o que os outros e nós mesmos deparamos nessa caça ao saber”. Recusando a
autoridade de sábios e antepassados como fonte de segurança, Montaigne percebe que a construção dos
saberes se dá entre os semelhantes: “nossas opiniões sustentam-se mutuamente, uma serve de degrau à outra
e assim acontece que quem sobe mais alto e adquire maior reputação não tem em verdade grande mérito, pois
não faz senão superar de um átimo o que vem abaixo”.
Desta forma, o objeto que um homem pode conhecer melhor, a partir de seu posto de observação, é ele próprio.
Para Montaige, escreve Erich Auerbach , o “conhece-te a ti mesmo” não é apenas uma lei moral, mas uma
exigência da teoria do conhecimento. Seus ensaios representam uma verdadeira revolução epistemológica, não
só porque funda o conhecimento na experiência (de si), mas também porque o filósofo parte da admissão de sua
total ignorância face a cada novo objeto que decide examinar. Coloca-se, assim fora de toda a tradição, ao
relento de qualquer doutrina diante do mundo.
Por fim, e ainda com o auxílio do pensamento de Norbert Elias, observamos em Montaigne a idéia de um eu
como verdade última do sujeito, resultante de uma separação já bastante consolidada entre o público e o
privado. Para Montaigne, o eu é a forma dominante que o sujeito encontra escutando atentamente a si mesmo,
na intimidade; uma forma que insiste e se repete, destacando-se assim de todas as outras máscaras com que
ele eventualmente tenha que se apresentar, em sua vida pública. Ou seja: entre tantas mutações, é possível
identificar um traço dominante que representa o sujeito. Em Montaigne, este traço é ignorância, como ele já nos
revelou no ensaio “Sobre Demócrito e Heráclito” ao dizer que a ignorância é a forma dominante que encontra ao
observar-se. Ignorância que produz uma incessante curiosidade, desejo de saber como constitutivo deste
sujeito/autor.
Mas esta forma não precede o sujeito, não é algo parecido com uma alma que transcende nossa passagem pela
terra. Esta forma dominante do eu é constituída pela experiência de si, no espaço dialógico estabelecido entre os
semelhantes, e plasmada pela escrita. A este respeito, escreve Georges Gusdorf: “O eu não é um dado pronto,
real ou suposto; ele é indissociável da tomada de consciência que o faz passar da potência ao ato. O sujeito que
toma a si mesmo como objeto não opera como um pescador com sua linha, que traz à superfície significações
preestabelecidas; ele intervêm como o operador que faz passar o vivido informe ao estado de forma”. Mais
adiante:
“A transferência do vivido ao escrito não é o simples décalque de um dado imediato da consciência, percebido
em sua transparência, na inocente nudez de seu ser, em um desdobramento no qual o sentido inicial se mantém
intacto. Saída de sua reserva, ordenada em forma de discurso, a intimidade passa de um modo de ser a outro; a
publicidade rompe o silêncio, põe sob o domínio público o que pertencia a apenas um. A presença do outro é
invocada assim que a voz ou o escrito introduzem uma informação no circuito da comunicação. E o próprio
sujeito encontra-se em relação a si numa situação nova, desde o momento onde o que era para ele realidade
informe, tomou forma e consistência de linguagem explícita”.
IV. O sujeito como autor
A solução encontrada por Montaigne está bem mais próxima da que constitui o que estou chamando de “sujeito
literário” do que o artifício cartesiano. Os Ensaios, com sua proposta aparentemente despretensiosa de “seguir o
rastro vagabundo” do espírito de seu autor, nos ajudam a compreender como o sujeito se constitui na escrita:
“Não fiz meu livro mais do que ele me fez” conclui Montaigne no ensaio “Do desmentido” . A escrita de si, que
ele praticamente reinaugura no Ocidente, voltou vicejar, por exemplo, entre os poetas românticos do século XVIII
na Alemanha, França e Inglaterra.
“Não foram os românticos que inventaram o ‘eu’ moderno, que desde Montaigne se encontrava em gestação”,
escreve Peter Gay; “mas deixaram uma herança importante para nosso século, como modelos de reflexão íntima
e solitária ou como respostas da sensibilidade individual ao mundo”. Soltos num mundo sem Deus, contrários ao
pensamento desencantado dos Iluministas e dos empiristas de sua época, os poetas do romantismo foram os
primeiros escritores e artistas a declarar “guerra” à burguesia e a elevar o artista, como “gênio criador”, a um
lugar próximo do daqueles que, em períodos anteriores, teriam sido agraciados com o sopro divino. No entanto,
segundo Gay, “o sublime egotista do romantismo se expandiu a um sublime egotista da burguesia (...) e “os
românticos se tornaram mestres improváveis da classe média do século XIX”. Um estudo sobre a poesia e as
propostas estéticas do romantismo setecentista se impõe a partir daqui, para fazer a passagem necessária entre
a escrita de Montaigne e a expansão da literatura realista do XIX, que ainda hoje conhecemos como literatura
moderna – o termo “literatura”, por sinal, data daquele período.
Por enquanto, limito-me a saltar para o século XIX, quando o sujeito moderno já está perfeitamente estruturado
como o sujeito dividido que a psicanálise deu a conhecer. Para Norbert Elias, a literatura do século XIX
representa a ilustração mais clara do nível elevado de consciência de si do homem ocidental. No romance
moderno, ao contrário do que acontece nas obras em prosa dos séculos anteriores, interessa ao autor narrar
não somente “o que aconteceu” mas sobretudo, sobre “a maneira como os indivíduos que estavam no centro
dos acontecimentos (os personagens) viveram aqueles acontecimentos”.
Elias destaca o duplo papel representado pelo homem moderno, em relação a si mesmo e em relação ao
mundo, enquanto sujeito do conhecimento e objeto tanto da consciência de si quanto dos outros. A literatura
oitocentista (que não deve ser confundida com as escritas de si) vem fazer uma ponte entre o sujeito que se
pensa como autônomo , isolado em relação a seus semelhantes, e as determinações coletivas que ele ignora
que afetem sua vida privada. O romance, ao mesmo tempo em que torna público aquilo que pertence à esfera
da intimidade – na forma da “psicologia” dos personagens, com seus pensamentos e motivações inconfessáveis
– invade a intimidade do leitor, apresentando-lhe a face pública, compartilhada, de uma experiência que ele
acreditava ser só sua. O “sujeito da experiência” aqui não é o eu que se revela, na primeira pessoa, como no
caso de Montaigne e dos poetas românticos; é o próprio autor, capaz de articular a subjetividade de seus
personagens à complexa trama das relações sociais de sua época. a constância do eu (uma função da memória)
num texto – escrito, falado ou pensado, mas sempre dirigido ao outro.
As obras que podemos considerar constitutivas do sujeito moderno são exatamente os expoentes do romance
realista, os mais conhecidos, incorporados ao acervo das experiências coletivas da sociedade ocidental. Os
grandes romances de autores como Balzac, Zola, Defoe, Richardson, Stendhal, Flaubert, Emilly e Charlote
Brönte, Eça de Queiroz, Jane Austen, George Eliot, Dickens, Machado de Assis, Tolstoi, Dostoiévski, e tantos
outros, que operaram durante mais de um século organizando a experiência subjetiva, “explicando” o
funcionamento da sociedade capitalista nascente, produzindo sentidos e revelando a falta de sentido da vida,
proporcionando às vezes consolo, às vezes confirmação para o desamparo dos leitores seus contemporâneos.
Mas principalmente, pela possibilidade de colocar em ação mecanismos de identificação entre leitores e
personagens (o que certamente foi responsável pela mobilização de um imenso público consumidor de literatura,
facilitado pela democratização da escolaridade das populações urbanas européias), a leitura dos romances
realistas se coloca, a meu ver, entre os principais mecanismos responsáveis pela formação dos padrões
subjetivos próprios ao individualismo moderno.
Um autor como Balzac por exemplo, fez dos intensos processos de transformação pelos quais passou a França
da primeira metade do século XIX o objeto de seus romances. Mas o romancista não é um cientista. Ainda que
ele imagine que está descrevendo objetivamente o choque entre velhas e novas configurações sociais –
lembramo-nos de que Balzac pretendia trabalhar como um cientista daquela sociedade emergente – ele está de
fato contribuindo não só para expressar as configurações ainda inominadas como também, ao nomeá-las, está
interferindo no campo da intersubjetividade. Theodor Adorno, em “Leitura de Balzac”, afirma que este autor
escreve “uma épica que não domina mais seu objeto, por isso busca exagerar, fixar com uma precisão excessiva
um mundo que está se tornando ininteligível. A necessidade de estabelecer uma rápida compreensão da vida
social, não analítica mas analógica e intuitiva, característica da modernidade, fez de Honoré de Balzac o
precursor do romance do século XX”.
A estrutura dos romances realistas permite ao leitor duas modalidades de identificação. Do ponto de vista do
narrador, que em geral representa uma voz onisciente, capaz de explicar as ações dos personagens e conferir
sentido a elas, o romance permite ao leitor manter a ilusão confortadora (na falta de uma ordem divina que faça
esta função) de que existe uma certa unidade, uma certa coerência ao longo da vida de cada um, e sobretudo
uma certa causalidade lógica para os atos e escolhas que se faz ao longo da existência. Esta voz onisciente,
que nos fala desde o lugar (já fragmentado) do Outro, não se enfraquece nem no caso dos romances escritos
em primeira pessoa, como Robinson Crusoe de Daniel Defoe, por exemplo, pois o narrador que escreve já é um
desdobramento da consciência de si mesmo, como personagem de seu próprio relato, e já “sabe” mais, ao
escrever de si, do que aquele que se põe em ação conduzindo o fio da narrativa. Penso no quanto estamos
apoiados na ilusão produzida pelo narrador onisciente, capaz de explicar os atos e as motivações de seus
personagens. Penso novamente na frase de Lacan que abriu este artigo, e de como ela abre um outro vasto
caminho para se pensar as mudanças estéticas na literatura do século XX, (o surrealismo por exemplo, ou os
monólogos interiores como em James Joyce) e as mudanças subjetivas operadas com o advento da psicanálise
e a revelação de nosso desamparo face ao inconsciente.
Além disto, os personagens literários representam para seus leitores um campo possível de identificações, para
além da identificação com o traço paterno que vai constituir a certeza subjetiva de que este sujeito “sabe” quem
ele “é”. O campo de identificações que os personagens romanescos oferecem a seus leitores, que chamarei de
“identificações horizontais”, abre para os sujeitos um enorme leque de possibilidades de afirmação de suas
pequenas diferenças em relação ao modo de ser dominante na cultura oitocentista – o personagem do grande
romance realista, como já afirmei, extrai sua força dramática de sua excentricidade, sua dificuldade em adaptar-
se, em ocupar o lugar que o Outro lhe designou. Se os românticos instituíram a poesia como espaço da
transgressão, no sentido de afirmar a diferença do eu do escritor em relação a seu tempo, e os escritores de
nosso século ocuparam este lugar como o da transgressão ao próprio código da língua , os grandes romancistas
da era vitoriana inventaram personagens desajustados, inadaptados, sofredores de sua diferença em relação a
uma sociedade que impunha, triunfalmente, o modo de vida burguês como imperativo categórico, conquista
universal que deveria abranger a humanidade toda. A identificação maciça dos leitores com os anseios e
fracassos destes personagens demonstra claramente o caráter opressivo da racionalidade inaugurada pelo
Iluminismo e transformada, ao longo de um século, na racionalidade capitalista.
O estatuto dos personagens no romance realista, modifica-se radicalmente em relação às tradições narrativas
anteriores – não são mais figuras destacadas da massa, reis, santos ou heróis, e sim pessoas comuns, que só
se destacam da massa pelo fato de possuírem uma história de vida digna de ser relatada ou, sobretudo, por
desejarem fazer de sua vida uma história digna de relato. Por isto é que se considera o Don Quixote de
Cervantes, do século XVI, o grande precursor do romance moderno.
A identificação do leitor com estes personagens sem fama e sem prestígio funciona de maneira a,
simultaneamente, em primeiro lugar legitimar a experiência e, em segundo lugar, autorizar a diferença. Se a
experiência, como vimos em Walter Benjamin, é aquela parcela do vivido que é transmissível porque é
compartilhável, sua existência pressupõe um solo comum, uma fundamentação simbólica coletiva, que garanta
uma certa uniformidade no sentido de tudo o que é vivido, mesmo por cada homem isoladamente.
Ora, quando Benjamin defende a idéia da morte da experiência, não está se referindo ao fim de nossa
capacidade de refletir sobre o vivido. Muito menos ao fim de nossa necessidade de fazer, do que é vivido
isoladamente, algo que possa ser comunicado. Mais ainda: algo que faça sentido quando comunicado, ou que
faça sentido porque pode ser comunicado. No quadro de isolamento do individualismo moderno, como fazer, do
vivido, experiência? Como comunicar o que se passa, quando o solo comum da vida social é tecido justamente
da soma de nossas diferenças? Que tipo de discurso é capaz de, ao mesmo tempo, autorizar a diferença e
legitimar a experiência?
Legitimar a experiência: se o sentido da vida não nos é dado a priori por qualquer discurso religioso ou moral; se
o lugar do sujeito na desordem e/ ou mobilidade das sociedades capitalistas recém emergentes deve ser
construído por cada um ao longo de sua vida, a experiência, como vivência de solidão e exclusão, adquire o
valor daquilo que pode conferir saber e densidade psicológica ao indivíduo. O solo comum da experiência
moderna é formado justamente por aquilo que o sujeito moderno, na perspectiva de Norbert Elias, tenta recalcar
para representar a si mesmo como indivíduo: sua imensa nostalgia da memória (fantasiosa) de uma vida
comunitária, a angústia de imaginar-se responsável por seu próprio destino, seu desgarramento, sua solidão. A
perda do sentido da vida, nas sociedades em que cada um deve inventar a própria vida, é justamente a
experiência compartilhada por todos os sujeitos modernos. É dela que tratam os romances; é o sentimento de
não pertencer a um mundo abstrato ao qual, supostamente, todos os outros pertencem, que alimenta os
personagens romanescos e possibilita a identificação dos leitores, que tentam “aquecer suas vidas geladas” na
história dessas vidas literárias.
Autorizar a diferença: o grande poder de produzir a adesão dos leitores está no fato dos personagens do
romance realista serem não apenas pessoas “comuns”, mas pessoas que, por um motivo ou por outro não se
ajustam perfeitamente, nem à velha ordem aristocrática decadente nem à nova ordem burguesa. São
perdedores, ou marginais, ou idealistas incapazes de realizar seus ideais (Fréderic Moreau, de A Educação
Sentimental de Flaubert, Julien Sorel de O Vermelho e o Negro de Stendhal) e, sobretudo, mulheres. As
mulheres são as grandes protagonistas desta “épica que não domina mais seu objeto” que é o romance realista.
As grandes figuras trágicas e também as grandes rebeldes, mobilizando um público leitor predominantemente
feminino, que além de consumir as obras tentava interferir ativamente no destino das personagens, escrevendo
aos autores (sobretudo quando o romance saía na forma de Folhetim), sugerindo soluções e desfechos,
protestando contra o rumo tomado por esta ou aquela personagem, etc.
As mulheres representam, no romance, o “polo da verdade subjetiva”, em contraposição às conveniências e
aparências que regem o jogo social. A correspondência de Balzac com suas leitoras, através de cartas ou nas
páginas de jornais, é quase tão volumosa quanto sua Comédia Humana. “O sucesso rápido de Balzac nada
deve à imprensa, mas quase tudo às mulheres”, escreveu Saint Beuve. “Introduziu-se na intimidade do sexo
frágil como confidente e consolador, como um confessor, um pouco como médico. Atribuiu-se o direito de falar
em meias palavras dos misteriosos detalhes secretos que fascinam até as mais recatadas”.
Como psicanalista, sabendo que os “misteriosos detalhes secretos” da vida psíquica só adquirem existência
quando encontram palavras com que se expressar, volto ao meu argumento inicial, que deu origem a este
ensaio e com o qual tento sustentar a idéia de uma “determinação literária do sujeito moderno”: ao escrever
sobre os anseios, desejos e sofrimentos secretos das mulheres oitocentistas, um escritor como Balzac por
exemplo estaria retratando a “verdade subjetiva” preexistente em suas leitoras, ou contribuindo para produzir
uma subjetividade feminina, esta com a qual Freud veio a se deparar meio século mais tarde? Neste caso, seria
função da psicanálise perspectivar a literatura ou, ao contrário, devemos nós, psicanalistas, nos debruçar sobre
a literatura para compreender melhor nosso objeto, o sujeito moderno?
Resta ainda uma pergunta, lançada pela frase de Lacan que abre este artigo: no que consiste a “passagem do
romance ao conto” efetuada pelo sujeito/ autor depois de um percurso de análise? Em uma operação estética,
certamente; uma operação que se torna possível quando o sujeito já não se sente mais tão compelido a explicar-
se, abandonando a pretensão neurótica de tudo saber e tudo dizer sobre si. A operação de simbolização da
castração efetuada ao longo de uma análise libera o sujeito da compulsão de tentar deter no tempo o movimento
errático da vida podendo criar, a partir de sua falta-a-ser, uma ficção mais imprecisa, cheia de elipses, que
suporte os enigmas em vez de tentar esclarecê-los todos. O reconhecimento da dívida simbólica para com o
Outro, e da dependência do sujeito em relação aos semelhantes, produz um abalo na fortaleza narcísica própria
das formações subjetivas das sociedades individualistas. O trabalho de uma análise pode ser comparado a uma
espécie de desconstrução dos sujeitos modernos, personagens dos romances de suas próprias vidas das quais
se crêem os únicos autores, inconformados com a finitude de suas trajetórias individuais, obcecados por deter
no tempo e na memória todos os detalhes de uma vida que não faz sentido.
Como consequência, a possibilidade do sujeito narrar-se sob a forma moderna do conto, ou talvez do poema,
representa a conquista de uma elegância que o pesado romance oitocentista está longe de alcançar. Elegância
resultante de uma espécie de desencanação, por parte de quem atravessou a experiência de uma psicanálise,
em relação às pretensões neuróticas típicas do individualismo. O que não significa que deste sujeito
“desconstruído” venha a emergir a figura pré-moderna do narrador cujo desaparecimento é constatado,
nostalgicamente, por Walter Benjamin. Espero, no entanto, que o paralelo romance-neurose (ou autor de
romance/ sujeito neurótico) estabelecido a partir da fala de Lacan não esgote todas as possibilidades de prazer e
compreensão que a leitura de um bom romance é capaz, ainda hoje, de nos proporcionar.

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