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Promoção Da Saúde e Difusão de Conhecimento: Ditos e Escritos Dos Favelados Universitários

A presente obra reúne textos de estudantes e pesquisadores, moradores de favelas e periferias, que versam sobre os temas de suas respectivas apresentações nas duas primeiras edições da Jornada Científica Favelades Universitáries, que aconteceram nos anos de 2021 e 2022, respectivamente. A linha conceitual-epistemológica desta obra assenta-se na divulgação e difusão do conhecimento produzido enquanto estratégia de enfrentamento aos diversos processos de apagamento e silenciamento impostos aos con
Direitos autorais
© Attribution Non-Commercial No-Derivs (BY-NC-ND)
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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Promoção Da Saúde e Difusão de Conhecimento: Ditos e Escritos Dos Favelados Universitários

A presente obra reúne textos de estudantes e pesquisadores, moradores de favelas e periferias, que versam sobre os temas de suas respectivas apresentações nas duas primeiras edições da Jornada Científica Favelades Universitáries, que aconteceram nos anos de 2021 e 2022, respectivamente. A linha conceitual-epistemológica desta obra assenta-se na divulgação e difusão do conhecimento produzido enquanto estratégia de enfrentamento aos diversos processos de apagamento e silenciamento impostos aos con
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DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

P965

Promoção da Saúde e Difusão de Conhecimento: Ditos e


Escritos dos Favelados Universitários / Organização
André Luiz da Silva Lima... [et al.]. – São Paulo: Pimenta
Cultural, 2024.

Demais organizadores: Natã Neves do Nascimento,


Anna Beatriz de Sá Almeida, Heitor Ney Mathias da Silva.

Livro em PDF

ISBN 978-65-5939-548-4
DOI 10.31560/pimentacultural/2024.95484

1. Favelas. 2. Ensino. 3. Protagonismo. 4. Educação


popular. 5. Vivências. I. Lima, Luciane Pinho de André Luiz da
Silva (Org.). II. Título.

CDD: 613.370

Índice para catálogo sistemático:


I. Saúde
II. Educação
Simone Sales • Bibliotecária • CRB ES-000814/O
Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados.

Copyright do texto © 2024 os autores e as autoras.

Copyright da edição © 2024 Pimenta Cultural.

Esta obra é licenciada por uma Licença Creative Commons:


Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional - (CC BY-NC-ND 4.0).
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Direitos para esta edição cedidos à Pimenta Cultural.
O conteúdo publicado não representa a posição oficial da Pimenta Cultural.

Direção editorial Patricia Bieging


Raul Inácio Busarello
Editora executiva Patricia Bieging
Coordenadora editorial Landressa Rita Schiefelbein
Assistente editorial Júlia Marra Torres
Diretor de criação Raul Inácio Busarello
Assistente de arte Naiara Von Groll
Editoração eletrônica Andressa Karina Voltolini
Milena Pereira Mota
Imagens da capa brunomartinsimagens - Freepik.com
Tipografias Acumin, Gobold High, Rockwell
Revisão Landressa Rita Schiefelbein
Organizadores André Luiz da Silva Lima
Natã Neves do Nascimento
Anna Beatriz de Sá Almeida
Heitor Ney Mathias da Silva

PIMENTA CULTURAL
São Paulo • SP
+55 (11) 96766 2200
[email protected]
www.pimentacultural.com 2 0 2 4
CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO
Doutores e Doutoras

Adilson Cristiano Habowski Ary Albuquerque Cavalcanti Junior


Universidade La Salle, Brasil Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil
Adriana Flávia Neu Asterlindo Bandeira de Oliveira Júnior
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil
Adriana Regina Vettorazzi Schmitt Bárbara Amaral da Silva
Instituto Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Aguimario Pimentel Silva Bernadétte Beber
Instituto Federal de Alagoas, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Alaim Passos Bispo Bruna Carolina de Lima Siqueira dos Santos
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil Universidade do Vale do Itajaí, Brasil
Alaim Souza Neto Bruno Rafael Silva Nogueira Barbosa
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Alessandra Knoll Caio Cesar Portella Santos
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Instituto Municipal de Ensino Superior de São Manuel, Brasil
Alessandra Regina Müller Germani Carla Wanessa do Amaral Caffagni
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Aline Corso Carlos Adriano Martins
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil
Aline Wendpap Nunes de Siqueira Carlos Jordan Lapa Alves
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil
Ana Rosangela Colares Lavand Caroline Chioquetta Lorenset
Universidade Federal do Pará, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
André Gobbo Cássio Michel dos Santos Camargo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul-Faced, Brasil
Andressa Wiebusch Christiano Martino Otero Avila
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal de Pelotas, Brasil
Andreza Regina Lopes da Silva Cláudia Samuel Kessler
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Angela Maria Farah Cristiana Barcelos da Silva.
Universidade de São Paulo, Brasil Universidade do Estado de Minas Gerais, Brasil
Anísio Batista Pereira Cristiane Silva Fontes
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil
Antonio Edson Alves da Silva Daniela Susana Segre Guertzenstein
Universidade Estadual do Ceará, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Antonio Henrique Coutelo de Moraes Daniele Cristine Rodrigues
Universidade Federal de Rondonópolis, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Arthur Vianna Ferreira Dayse Centurion da Silva
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Universidade Anhanguera, Brasil
Dayse Sampaio Lopes Borges Humberto Costa
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil Universidade Federal do Paraná, Brasil
Diego Pizarro Igor Alexandre Barcelos Graciano Borges
Instituto Federal de Brasília, Brasil Universidade de Brasília, Brasil
Dorama de Miranda Carvalho Inara Antunes Vieira Willerding
Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Edson da Silva Jaziel Vasconcelos Dorneles
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Brasil Universidade de Coimbra, Portugal
Elena Maria Mallmann Jean Carlos Gonçalves
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal do Paraná, Brasil
Eleonora das Neves Simões Jocimara Rodrigues de Sousa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Eliane Silva Souza Joelson Alves Onofre
Universidade do Estado da Bahia, Brasil Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil
Elvira Rodrigues de Santana Jónata Ferreira de Moura
Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade São Francisco, Brasil
Éverly Pegoraro Jorge Eschriqui Vieira Pinto
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil
Fábio Santos de Andrade Jorge Luís de Oliveira Pinto Filho
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Fabrícia Lopes Pinheiro Juliana de Oliveira Vicentini
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Felipe Henrique Monteiro Oliveira Julierme Sebastião Morais Souza
Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Federal de Uberlândia, Brasil
Fernando Vieira da Cruz Junior César Ferreira de Castro
Universidade Estadual de Campinas, Brasil Universidade de Brasília, Brasil
Gabriella Eldereti Machado Katia Bruginski Mulik
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade de São Paulo, Brasil
Germano Ehlert Pollnow Laionel Vieira da Silva
Universidade Federal de Pelotas, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Geymeesson Brito da Silva Leonardo Pinheiro Mozdzenski
Universidade Federal de Pernambuco, Brasil Universidade Federal de Pernambuco, Brasil
Giovanna Ofretorio de Oliveira Martin Franchi Lucila Romano Tragtenberg
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil
Handherson Leyltton Costa Damasceno Lucimara Rett
Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Metodista de São Paulo, Brasil
Hebert Elias Lobo Sosa Manoel Augusto Polastreli Barbosa
Universidad de Los Andes, Venezuela Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Helciclever Barros da Silva Sales Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho
Instituto Nacional de Estudos Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, Brasil Marcio Bernardino Sirino
Helena Azevedo Paulo de Almeida Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil
Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil Marcos Pereira dos Santos
Hendy Barbosa Santos Universidad Internacional Iberoamericana del Mexico, México
Faculdade de Artes do Paraná, Brasil
Marcos Uzel Pereira da Silva Samuel André Pompeo
Universidade Federal da Bahia, Brasil Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil
Maria Aparecida da Silva Santandel Sebastião Silva Soares
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil Universidade Federal do Tocantins, Brasil
Maria Cristina Giorgi Silmar José Spinardi Franchi
Centro Federal de Educação Tecnológica Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Celso Suckow da Fonseca, Brasil Simone Alves de Carvalho
Maria Edith Maroca de Avelar Universidade de São Paulo, Brasil
Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil Simoni Urnau Bonfiglio
Marina Bezerra da Silva Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Instituto Federal do Piauí, Brasil Stela Maris Vaucher Farias
Mauricio José de Souza Neto Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Universidade Federal da Bahia, Brasil Tadeu João Ribeiro Baptista
Michele Marcelo Silva Bortolai Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Universidade de São Paulo, Brasil Taiane Aparecida Ribeiro Nepomoceno
Mônica Tavares Orsini Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Brasil
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Taíza da Silva Gama
Nara Oliveira Salles Universidade de São Paulo, Brasil
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Tania Micheline Miorando
Neli Maria Mengalli Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil Tarcísio Vanzin
Patricia Bieging Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Universidade de São Paulo, Brasil Tascieli Feltrin
Patricia Flavia Mota Universidade Federal de Santa Maria, Brasil
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Tayson Ribeiro Teles
Raul Inácio Busarello Universidade Federal do Acre, Brasil
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Thiago Barbosa Soares
Raymundo Carlos Machado Ferreira Filho Universidade Federal do Tocantins, Brasil
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil Thiago Camargo Iwamoto
Roberta Rodrigues Ponciano Universidade Estadual de Goiás, Brasil
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Thiago Medeiros Barros
Robson Teles Gomes Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
Universidade Católica de Pernambuco, Brasil Tiago Mendes de Oliveira
Rodiney Marcelo Braga dos Santos Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, Brasil
Universidade Federal de Roraima, Brasil Vanessa Elisabete Raue Rodrigues
Rodrigo Amancio de Assis Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil
Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil Vania Ribas Ulbricht
Rodrigo Sarruge Molina Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil Wellington Furtado Ramos
Rogério Rauber Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Brasil
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Brasil Wellton da Silva de Fatima
Rosane de Fatima Antunes Obregon Instituto Federal de Alagoas, Brasil
Universidade Federal do Maranhão, Brasil Yan Masetto Nicolai
Universidade Federal de São Carlos, Brasil
PARECERISTAS
E REVISORES(AS) POR PARES
Avaliadores e avaliadoras Ad-Hoc

Alessandra Figueiró Thornton Jacqueline de Castro Rimá


Universidade Luterana do Brasil, Brasil Universidade Federal da Paraíba, Brasil
Alexandre João Appio Lucimar Romeu Fernandes
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil Instituto Politécnico de Bragança, Brasil
Bianka de Abreu Severo Marcos de Souza Machado
Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Universidade Federal da Bahia, Brasil
Carlos Eduardo Damian Leite Michele de Oliveira Sampaio
Universidade de São Paulo, Brasil Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil
Catarina Prestes de Carvalho Pedro Augusto Paula do Carmo
Instituto Federal Sul-Rio-Grandense, Brasil Universidade Paulista, Brasil
Elisiene Borges Leal Samara Castro da Silva
Universidade Federal do Piauí, Brasil Universidade de Caxias do Sul, Brasil
Elizabete de Paula Pacheco Thais Karina Souza do Nascimento
Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Instituto de Ciências das Artes, Brasil
Elton Simomukay Viviane Gil da Silva Oliveira
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Universidade Federal do Amazonas, Brasil
Francisco Geová Goveia Silva Júnior Weyber Rodrigues de Souza
Universidade Potiguar, Brasil Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Brasil
Indiamaris Pereira William Roslindo Paranhos
Universidade do Vale do Itajaí, Brasil Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Parecer e revisão por pares

Os textos que compõem esta


obra foram submetidos para
avaliação do Conselho Editorial
da Pimenta Cultural, bem como
revisados por pares, sendo
indicados para a publicação.
SUMÁRIO
Apresentação.............................................................................................12

CAPÍTULO 1
Michelle Oliveira
Danielle Cerri
O encontro entre EJA e favela
na luta contra violência.......................................................................... 16

CAPÍTULO 2
Natã Neves do Nascimento
Poetry Slam e a poesia das ruas:
o protagonismo da favela na competição.............................................................. 27

CAPÍTULO 3
Karina Ribeiro Soares Reis
A importância do ensino afrocentrado
em pré-vestibulares sociais
para moradores periféricos...................................................................42

CAPÍTULO 4
Rosilandia da Cruz Eduardo
Capoeira e universidade:
acesso e formação.............................................................................................53

CAPÍTULO 5
Rosilaine Souza de Araújo da Silva
Ê! Ê! Ê! Ê! Camará! Uma análise sobre
a história e as transformações espaciais
no bairro de Senador Camará – Zona Oeste
da cidade do Rio de Janeiro..................................................................60
CAPÍTULO 6
Yanka Martins Pereira
Favelas cariocas
e a vivência do favelado:
o acesso ao ensino superior, ultrapassando muros e barreiras................................. 73

CAPÍTULO 7
Francisco Overlande Manço de Souza
Humberto Salustriano da Silva
Aryanne Paiva da Felicidade
Pedagogias críticas e insurgentes:
articulação entre educação popular, escola pública
e a “defesa” de uma dimensão ampliada de educação............................................84

CAPÍTULO 8
Rodrigo Silva Magalhães
Uma “nova” maré no ensino de história:
o local como território de (re)afirmação da cidadania,
memórias, identidades e sujeitos históricos...........................................................96

CAPÍTULO 9
Ana Carolina Lydia
Alycia Beatriz da Silva Rangel
Ana Luisa Santana Santos
Isabel Maciel dos Santos
Julia das Núpcias Moura
Júlia Oliveira de Mendonça
Voz a elas...................................................................................................116

CAPÍTULO 10
Mayana Ribeiro Montenario
Allayne Ellen Pantaleão Plácido Cílio
“De que cor eram os olhos de minha amiga?”
Afeto e permanência na universidade............................................. 127
CAPÍTULO 11
Lidiane Santos Barbosa
Pammella Casimiro de Souza
Camila Reis Tomaz
Escutas nas frestas:
sobre esforços pela conservação
de naturezas faveladas em uma pós-graduação................................................... 138

CAPÍTULO 12
Silvânia Cerqueira
Gifs de resistores.................................................................................... 155

CAPÍTULO 13
Wudson Guilherme de Oliveira
O aquilombamento
dos povos bantu no ensino de filosofia:
perspectivas no ensino de filosofia
e as suas transversalidades no “chão da escola”.................................................. 166

CAPÍTULO 14
Isadora da Silva Barbosa
Sabrina Dal Ongaro Savegnago
Espaços de desenvolvimento infantil
e a relação com a saúde mental
de crianças no Complexo da Maré:
o olhar de educadoras.......................................................................................191

CAPÍTULO 15
Julia Maria Dias Moreira Vaz
Maria Clara Miranda Mello
Ana Carolina Lydia Ferreira da Silva
Sujeitos da nossa história................................................................... 202

Sobre os autores e as autoras............................................................ 210

Índice remissivo...................................................................................... 215


APRESENTAÇÃO
André Luiz da Silva Lima
Natã Neves do Nascimento
Anna Beatriz de Sá Almeida
Heitor Ney Mathias da Silva

A presente obra constitui o resultado de uma trajetória de


cooperação entre diversos atores interessados em superar os inú-
meros processos materiais e simbólicos de apagamento do conhe-
cimento produzido na Universidade pelos moradores de favelas e
periferias urbanas. Tal processo tem como marco de origem a roda
de conversa “Universitárixs e Faveladxs: quais caminhos levam a
universidade para a favela e a favela para a universidade?”, realizada
no dia 8 de dezembro de 2018, no Museu da Maré.

Na chamada daquele evento, os temas “ações afirmativas,


direitos humanos e produção do conhecimento” tiveram desta-
que, ainda, como reflexo das atividades conduzidas pela Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) e Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) em parceria com organizações populares dos conjuntos de
favelas da Maré e Manguinhos, na Semana Nacional de Ciência e
Tecnologia (SNCT) daquele ano.

Seguindo a temática da SNCT de 2018 que apontava a


Ciência para a redução das desigualdades, os debates assumiram
o tema gerador de como induzir mecanismos sociais e políticos de
construção coletiva de caminhos e ações para o enfrentamento e a
redução das desigualdades sociais nos territórios.

As trocas e reflexões daquele evento convergiram no quão


estratégico é a presença do morador de favela e periferia no Ensino
Superior, com destaque ao hercúleo trabalho dos cursos populares

SUMÁRIO 12
que apoiam os jovens destes territórios na disputa por uma vaga na
Universidade Pública. Também foram denunciadas práticas racistas,
colonizadoras e sexistas, que culminam em diversos processos de
apagamento e silenciamento dos favelados e periféricos.

Deste movimento, nasceu o Fórum Favela Universidade


(FFU), e como espaço de superar processos de invisibilidade episte-
mológica, também, as Jornadas Científicas Favelades Universitáries,
que foram organizadas para “promover a divulgação sócio-técni-
co-científica de projetos e iniciativas produtoras de conhecimento,
conduzidos por estudantes universitários e lideranças sociais mora-
dores das favelas e periferias da Região Metropolitana do Estado do
Rio de Janeiro” (FFU, 2022).

Em novembro de 2021 ocorreu a primeira edição, em formato


exclusivamente virtual, acolhendo o tema “Quais os caminhos levam
os favelados à Universidade e a Universidade à Favela?”. Com 852
inscrições confirmadas na plataforma do Evento, vale referenciar
que por conta do caráter remoto, com transmissão das programa-
ções na plataforma YouTube, a audiência das atividades – e isso se
aplica também à segunda edição – cresce a cada dia. Em outubro de
2022, a audiência de todas as atividades virtuais da Primeira Jornada
alcançou o índice de 2.700 pessoas.

Em setembro de 2022, aconteceu a Segunda Edição da Jornadas


Científicas Favelades Universitáries, com o tema “Independências,
Descolonização e Territórios”, em formato híbrido, com 440 inscrições.
Quanto ao registro de participantes na semana do evento, aferimos
105 pessoas presentes nas atividades presenciais, e nas atividades vir-
tuais, demonstrando que a audiência superou o número de inscritos.
Meses depois, em dezembro de 2022, verificou-se que a audiência no
Youtube atingiu o número de 1.237 visualizações.

Ambas as edições tiveram apoio de financiamento advindo de


emendas parlamentares para o Projeto Tecendo Diálogos e produzindo

SUMÁRIO 13
conhecimento: juventude, favela, promoção da saúde e educação
superior, e em específico, na segunda edição, aporte de recursos pelo
projeto vencedor do Edital FAPERJ Nº 14/2021 – Programa de Apoio
à Organização de Eventos Científicos, Tecnológicos e de Inovação.

Cabe destacar que as noções de transdisciplinaridade, eco-


logia de saberes e construção compartilhada do conhecimento per-
passaram toda a construção deste evento. A proposta das Jornadas
Científicas se instituiu em congregar os pesquisadores das favelas
e periferias e não o que tem sido produzido sobre essas territoria-
lidades, e neste caso, avançar os limites das disciplinas, agregando
debates sobre temas e dimensões que possibilitariam abordagens
diversificadas. Isso fica muito claro quando observado as temáticas
da programação em geral (Conferências, Mesas Redonda, Roda de
Conversas, Minicursos, Oficinas, Simpósios Temáticos).

Sob um modo cooperativo de atuação, valores e princí-


pios foram pactuados com as organizações parceiras de modo a
delimitar o raio de ação do evento, constituindo assim, bases de
um projeto político-pedagógico de atuação: valores democráticos,
reconhecimento dos saberes populares, ciência cidadã, defesa da
universidade pública, gratuita, inclusiva e de qualidade, reconheci-
mento da potência dos moradores das favelas e periferias enquanto
produtores de conhecimento, ação inter e multidisciplinar, postura
antirracista e antissexista, promoção da saúde e abordagem ambien-
talmente responsável.

Os artigos que compõem a presente obra são de autoria


de moradores (ou ex-moradores) das favelas e periferias do Rio de
Janeiro que apresentaram, inicialmente, suas pesquisas em uma
das duas edições da Jornadas Científicas Favelades Universitáries.
Na primeira chamada, por meio de edital, a Comissão Organizadora
indicava autores que tivessem participado apenas da segunda edi-
ção, a mais recente, que fora redirecionada após pedidos de pesqui-
sadores que tinham participado apenas da primeira edição.

SUMÁRIO 14
Considerando os limites textuais (tamanho do livro) e a
necessidade de manter coerência com os princípios das Jornadas
Científicas, a Comissão Organizadora instituiu uma rede de avaliado-
res parceiros, muitos já presentes na Comissão Científica do Evento.
A seleção considerou o caráter multidisciplinar dos manuscritos e os
diferentes níveis de formação dos autores.

E por fim, esta obra se filia ao conjunto de intervenções pro-


motoras de saúde, dentro da perspectiva ampliada do processo saú-
de-doença, que reconhece as suas determinações sociais, culturais,
ambientais, econômicas e políticas, e que tem na interseccionalidade
um conceito estratégico. O acesso à educação, em todos os níveis, se
apresenta aqui como um destes determinantes, a ser compreendido
(para ação concreta) dentro de uma perspectiva que considera as
questões de raça, gênero, classe social, faixa etária e local de mora-
dia. Reconhecer, visibilizar e promover a potência epistemológica dos
moradores destes territórios, portanto, é um ato promotor de saúde.

Boa leitura.

REFERÊNCIAS
FFU. Edital II Jornada Científica Favelades Universitáries (https://www.even3.com.
br/favela_universidadeii). Rio de Janeiro: Fórum Favela Universidade, 2022.

SUMÁRIO 15
1
Michelle Oliveira
Danielle Cerri

O ENCONTRO ENTRE
EJA E FAVELA NA LUTA
CONTRA VIOLÊNCIA

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.1
Em sala de aula, tentávamos nos concentrar, mas era
impossível. A atitude dos profissionais da escola foi ime-
diatamente buscar um lugar mais seguro. Meia hora
depois: tiros, bombas e clarões. Alguns se escondiam
por de trás das pilastras, outros, deitavam no chão. Uma
estudante parecia passar mal enquanto a outra chorava
de nervoso. Uma estudante de 55 anos, que já havia per-
dido seu neto assassinado em confronto armado, dizia:
Não podemos viver assim! É preciso fazer alguma coisa!
(Depoimento de uma estudante de EJA e moradora da
favela de Manguinhos/RJ).

Muitas vezes, a descrição dos jovens e adultos, na modali-


dade de EJA, é formulada a partir das referências do sistema escolar:
alunos evadidos do ensino regular, alunos com problemas de fre-
quência etc., mas a trajetória de um sujeito da EJA não se resume a
uma identidade escolar. Estes sujeitos são pais, mães, filhos e filhas
da classe popular, trabalhadores e trabalhadoras, moradores e mora-
doras de favela ou periferia. Sua trajetória de vida é marcada pela
negação de direitos mais básicos: ao trabalho, à saúde, à moradia, à
segurança etc. Uma Educação de Jovens e Adultos Popular, de base
freiriana, se constrói a partir do reconhecimento da dimensão mate-
rial vivenciada por estes sujeitos e pelo engajamento de suas lutas.

Se por um lado, a própria concepção progressista de


Educação de Jovens e Adultos Popular pressupõe a sua contribui-
ção no processo de organização da luta dos educandos frentes
as injustiças que os mantêm na condição de oprimidos; por outro
os movimentos populares, em especial de favela, demandam uma
maior participação das escolas nas agendas de luta dos territórios
em que estão inseridas.

Diversas são as violações denunciadas pelos sujeitos da


EJA e grupos populares organizados. Em particular, destacare-
mos a violação expressa no depoimento da estudante de EJA que
introduz nosso texto.

SUMÁRIO 17
Os confrontos armados, nos territórios de favela, têm cau-
sado interrupções de aulas, adoecimento de estudantes e profissio-
nais da educação, assim como, violado o direito de ir e vir dos mora-
dores e seu acesso aos serviços públicos (ir para o trabalho, ir para
o posto de saúde, ir à escola). Infelizmente, temos vivido situações
em que, a violência tem servido de justificativa para reiterar práticas
arbitrárias de fechamento de EJAs, ao invés da construção de pro-
postas de enfrentamentos e alternativas pensadas em conjunto com
a comunidade local.

É dentro desta conjugação de contextos – defesa de um pro-


jeto político-pedagógico popular e territorializado de EJA; necessi-
dade de diálogos com os movimentos populares e o acirramento da
violência armada nas favelas – que surge o que intitulamos de O
Encontro da EJA e Favela na Luta Contra Violência. Trata-se de uma
experiência desenvolvida pela Educação de Jovens e Adultos de
articulação com diferentes atores sociais locais na formação de um
movimento contra violência.

A EJA E A LUTA CONTRA VIOLÊNCIA


Manguinhos é uma favela da zona norte do Rio de Janeiro
que, apesar da sua trajetória histórica de violação de direitos – fre-
quentes confrontos armados, moradias afetadas com as recorrentes
enchentes e remoções – este território apresenta várias iniciativas de
resistências: movimento de mulheres, movimento de agentes comu-
nitários de saúde, redes contra violência, conselhos comunitários etc.

No âmbito da educação formal, podemos destacar a


Educação de Jovens e Adultos (EJA-Manguinhos), desenvolvida
por uma instituição pública de ensino (Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio / EPSJV / FIOCRUZ) com histórico de parceria

SUMÁRIO 18
com uma organização de base local de favela (Rede CCAP1). Esta
proposta de educação surge em 2004, como demanda de mora-
dores e trabalhadores organizados, por uma educação formal que
possibilitasse a ampliação de escolaridade do território aliada a uma
perspectiva crítica, popular e territorializada. Ou seja, uma educa-
ção que fomentasse a participação popular dos estudantes e pro-
fessores, bem como a construção de conhecimentos comprometi-
dos com a garantia de direitos deste território. Falaremos, a seguir,
de uma experiência política e pedagógica desenvolvida pela EJA-
Manguinhos com coletivos de favela na luta contra a violência.

Em 2017, mediante a recorrência cotidiana de confrontos


armados que se prolongavam por semanas, impossibilitando a che-
gada de estudantes e profissionais ao espaço escolar, houve uma
reunião de professores para debater sobre a questão e construir
ações de luta. Duas ações foram propostas: (1) construção de uma
Carta de Repúdio contra a Violência Armada com participação de
estudantes, professores e coletivos de Manguinhos; e (2) assembleia
ampliada para construção de outras iniciativas. Os objetivos destas
ações eram, primeiramente, aproximar os sujeitos da EJA às lutas
do território fortalecendo a perspectiva da educação territorializada
e popular, e por seguinte, estimular a participação popular de estu-
dantes e professores concebendo-a enquanto espaço formativo e
geradora de conhecimentos emancipatórios.

Para a construção da assembleia, houve uma grande mobili-


zação, por parte dos professores, em convocar coletivos do território
para discussão e proposições de enfrentamento à violência. Cerca
de 80 pessoas participaram do encontro, entre eles: estudantes da
EJA-Manguinhos, pastoral da criança, pré-vestibulares, conselhos

1 A sigla CCAP designava-se até o final dos anos 90 como Centro de Cooperação e Atividades Po-
pulares. Rede CCAP é uma organização de base que atua no território de Manguinhos desde 1986,
atuando, inicialmente, com a comercialização de produtos orgânicos na favela na perspectiva da
segurança alimentar e ampliando, posteriormente, para trabalhos voltados para Educação, Cultura
e Direitos Humanos.

SUMÁRIO 19
comunitários, agentes culturais e instituições. Mesmo com a insegu-
rança de sair de suas casas para estar na assembleia, a forte partici-
pação comunitária revelou o quanto a questão era emergente.

Quanto à carta, houve a sugestão de, além do envio para


a secretaria de segurança pública, a mesma fosse também ende-
reçada para outras instâncias do poder público, como educação
e saúde, uma vez que a violência impactava diretamente na atua-
ção destes serviços. Duas outras propostas surgiram na assem-
bleia como: a realização de um ato temático contra a violência nas
favelas e a continuidade desta rede de articulação sob o nome
Manguinhos Contra Violência.

O ato Eu só quero ser feliz: pela paz com garantia de direitos


na favela em que eu nasci! aconteceu no dia 18 de junho de 2017.
Várias atividades preparatórias foram construídas no intuito de mobi-
lizar a população para o ato e conscientizá-la sobre seus direitos.
Algumas dessas atividades foram construídas na sala de aula pelos
estudantes da EJA-Manguinhos como as oficinas de estandartes,
cartões postais da favela e vídeos. A violência armada nos territó-
rios de favela passou a ser um tema comum nos diferentes compo-
nentes curriculares.

MARCO TEÓRICO
As bases teóricas, que estruturam a experiência apresentada,
demarcam as seguintes questões: “Qual a concepção de educação
de jovens e adultos expressa nesta prática pedagógica?”, “Qual é
o olhar da EJA-Manguinhos sobre a favela?”, “Que tipo de relação
se constrói entre o espaço formal de educação e o território em
que ela está inserida?”. A este respeito, dialogaremos com o con-
ceito de educação popular (Brandão, 2006), o conceito efeito-favela

SUMÁRIO 20
(Burgos, 2009), assim como, a relação entre educação e território
expressa por Streck (2013).

No contexto brasileiro, houve diferentes concepções de edu-


cação de jovens e adultos. Se por um lado, através de campanhas e
programas, a EJA era vista como um “remédio para curar as chagas”
do analfabetismo e reprodução da força de trabalho civilizada para
sustentar o modelo capitalista; por outro, no interior dos movimentos
sociais, surge uma perspectiva de educação comprometida com a
organização de luta popular frente às crises capitalistas. Podemos
dizer que, é nesta referência de Educação Popular de Jovens e
Adultos que a experiência da EJA-Manguinhos se inscreve, como
“uma ação educativa que contribua no processo de organização da
luta dos educandos frentes as injustiças que os mantêm na condição
de oprimidos” (Brandão, 2006, p.75).

Além disso, não podemos esquecer que, são nos territórios


dos sujeitos da EJA que as violações e processos de luta se mani-
festam – luta pela terra, pela moradia, pelo saneamento básico, luta
contra violência etc. – o que pressupõe a relação indissociável entre
educação e território. Streck (2013) nos chama atenção para a dimen-
são territorial em que a educação popular se manifesta. Segundo o
autor, a globalização e as tecnologias digitais vêm desconstruindo
certa noção de território, mas que isso não deve representar que as
pessoas vivam suspensas no ar. As relações sociais são expressas
por interesses de grupos e de classes que são tecidas dentro de rela-
ções de poder, dentro de um determinado espaço. Território, nada
mais é que, a política deste espaço (Theis 2008 apud Streck 2013).
Streck alerta que “a educação participa dessa política de espaço,
seja na manutenção dos espaços existentes ou em sua mudança”
(2013, p. 34). Essa relação emancipatória entre educação e território
é expressa no Plano de Curso da EJA-Manguinhos como “educa-
ção territorializada”:

SUMÁRIO 21
Assumir uma educação territorializada implica, portanto,
conhecer, refletir e dialogar com este território, no sentido
de perceber seus desafios e potencialidades, bem como
os “cabos de forças”, poderes socioeconômicos existentes.
Assim, torna-se necessário um posicionamento crítico no
que diz respeito a que territorialidade queremos disputar ou
reforçar neste local, isto é, a que educação queremos cons-
truir: o da perpetuação das iniquidades ou a de um territó-
rio saudável, participativo e de direitos (EPSJV, 2012, p. 6).

Em outras palavras, educação territorializada é aquela que


contempla, no seu processo formativo, as agendas de lutas do território
em que está inserida afim de que se constitua como um instrumento
político-pedagógico de intervenção/transformação deste lugar. É uma
educação da qual, estudantes e professores, integram-se às ações de
lutas, juntamente com outros movimentos locais, reconhecendo seu
potencial formador e emancipador. É uma educação transformadora,
em que os conhecimentos construídos no espaço escolar estão com-
prometidos com a qualidade de vida e de lutas desses educandos.

E quando este território se trata de um território de favela?


Sabemos que o olhar sobre a favela e o modo como a educação
formal irá interagir com ela é mediada pelas representações cons-
truídas sobre esse território. Burgos (2009) chama-nos atenção para
dois processos de segregação urbana sendo refletida na escola
durante seu processo de massificação: a primeira, pelo processo de
esvaziamento da classe média na escola pública, a partir de meados
de 1960; e segunda, pelo lugar simbólico que a escola passa a ocu-
par quando a mesma está inserida em território de favela. Ou seja,
“marcando negativamente seus alunos, professores e funcionários,
e impondo consequências de enorme significado, tanto para o tra-
balho de instrução, quanto para o de socialização” (Burgos, 2009, p.
8). Na maioria das vezes, o elo de relação entre a escola e a favela
é o estudante e seus pais, mediada pelo imaginário social da cultura
de violência e da culpabilização familiar. Neste caso o efeito-favela
(Burgos, 2009) é marcado pela desvalorização docente, bem como,
a marginalização e criminalização do território.

SUMÁRIO 22
Outras formas de apropriação da favela, como a experi-
mentada na EJA-Manguinhos, podem produzir novas visões sobre
o lugar. Uma delas é estabelecer diálogos com as potencialidades
do território, como por exemplo, com os movimentos de resistências
que ali são produzidos. O efeito-favela originalmente pensado como
a imagem negativa do espaço da favela, passa a ganhar outros sig-
nificados. Nesta perspectiva a educação territorializada favorece a
produção de novas representações sobre a favela e da reflexão do
seu papel frente a estas realidades.

Talvez uma das maiores contribuições da educação de jovens


e adultos, popular e territorializada, seja a formação para a partici-
pação. As complexidades materiais e imediatas vivenciadas pelos
sujeitos da EJA somadas a sua conscientização política impulsionam
à participação popular. “A participação e a autonomia compõem
a própria natureza do ato pedagógico” (Gadotti, 2014, p. 1). Então
podemos dizer que formar para participação só faz sentido no ato
de participar. Um dos pressupostos da Educação Popular de Jovens
e Adultos é entender o processo formativo para além da educação
formal, incorporando outros espaços educativos. Deste modo, expe-
rimentar a cultura participativa proporcionada nos espaços do movi-
mento social é altamente educativo. O Movimento Sem Terra chama-
ria isso de “pedagogia do movimento”, que incluem as reuniões de
preparação, acompanhamento e avaliação, as celebrações e a vida
cotidiana das organizações e movimentos (Caldart, 2004; Barragán;
Mendoza; Torres, 2006; Elisalde; Ampudia, 2008 apud Carrillo, 2011).

RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS


A experiência de construir uma proposta política-pedagógica
de forma coletiva e participativa entre uma Educação de Jovens e
Adultos e a comunidade local gerou alguns resultados e reflexões.

SUMÁRIO 23
Organizamos as análises em dois momentos: (1) a contribuição desta
experiência na formação dos estudantes; e (2) o fortalecimento de
uma educação popular de jovens e adultos.

Sob o discurso de guerra às drogas, as favelas do Rio de


Janeiro vêm sofrendo recorrentes confrontos armados que têm
resultado em mortes, adoecimento e fechamento de serviços públi-
cos. Somente em 2019, foram registradas 1.249 mortes ocasiona-
das pela atual política de Segurança Pública, baseada no confronto
que mata, principalmente, negros, pobres e favelados. A estudante
Ágatha Vitória, de 8 anos, que portava uma mochila escolar foi morta
com um tiro nas costas em uma kombi. Já em 2017, a EJA construía
este debate com os estudantes. A assembleia ampliada, bem como
as discussões em sala de aula, problematizavam sobre a diferença
da política de segurança pública construída na favela e no asfalto. O
que até então era entendido como habitual por alguns estudantes,
foi, aos poucos, gerando indignação e desnaturalização.

O encontro entre EJA e coletivos da favela, por meio da


assembleia, possibilitou aos estudantes um olhar ampliado sobre
seu território: o que antes se restringia às mazelas, passa-se a reco-
nhecer as histórias de luta e resistência. Do mesmo modo, há uma
ampliação da sua expectativa do espaço formal de educação. Se
antes, as motivações de retorno à escola limitavam-se a uma busca
de ampliação de escolaridade, agora se reconhecem neste espaço
como um lugar de organização de suas lutas.

No âmbito escolar, estas experiências possibilitaram a cons-


trução de ações que se aproximam da perspectiva de educação
popular. Do mesmo modo, oportunizaram aproximações entre pro-
fessores de EJA e movimentos locais.

SUMÁRIO 24
REFERÊNCIAS
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de responsabilidade pública. In: GIOVANETTI, Maria Amélia; GOMES, Nilma Lino (org.).
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educativo” Saberes pedagógicos y prácticas formativas en organizaciones populares.
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index.php/RF/article/view/10186. Acesso em: 13 oct. 2023

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educação. São Paulo: Edições Loyola, 1984.

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PAIVA, Angela Randolpho; BURGOS, Marcelo Baumann (org.). A Escola e A Favela. Rio de
Janeiro: PUC-Rio, Pallas, 2009. p. 59-131.

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do campo. Revista Trabalho Necessário, v. 2, n. 2, 14 dez. 2004.

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Emancipadora. In: STRECK, Danilo R.; ESTEBAN, Maria Teresa (org.). Educação Popular:
lugar de Construção Social Coletiva. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 15-32.

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proposta. São Paulo: Cortez, 2011.

GADOTTI, Moacir. Gestão democrática da educação com participação popular no


planejamento e na organização da educação nacional. São Paulo: Instituto Paulo
Freire, 2014.

SUMÁRIO 25
MEJÍA, Marco Raúl; AWAD, Myriam Inés. Educación popular hoy. En tiempos de
globalización. Bobotá: Ediciones Aurora, 2004.

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STRECK, Danilo R. Territórios de Resistência e Criatividade: reflexões sobre os Lugares


da Educação Popular. In: STRECK, Danilo R.; ESTEBAN, Maria Teresa (org.). Educação
Popular: lugar de Construção Social Coletiva. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 356-368.

SUMÁRIO 26
2
Natã Neves do Nascimento

POETRY SLAM
E A POESIA DAS RUAS:
O PROTAGONISMO DA FAVELA
NA COMPETIÇÃO

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.2
Criado na década de 1980 em Chicago nos Estados Unidos,
o Poetry Slam surgiu com uma proposta de união entre a poesia
falada e a performance. O idealizador desse evento poético foi Marc
Kelly Smith, um trabalhador da construção civil e poeta, que conse-
guiu transformar esse evento em um grande movimento cultural que
desde então, tem alcançado muitas pessoas. Smith, nasceu em 1949
e trabalhou por mais de uma década na construção civil. Além do
trabalho, ele também escrevia e lia poesias, versos de Walt Whitman,
Wallace Stevens e Robert Frost, autores que ele admirava.

Segundo a poeta e atriz Roberta Estrela D’Alva (2011), era


uma “tentativa de popularização da poesia falada em contraponto
aos fechados e assépticos circuitos acadêmicos”. A proposta para
Smith é que o movimento de slam, surgisse como um movimento
subversivo e com intuito de abrir espaço para poetas que não esta-
vam dentro do mercado literário. Em entrevista ao Jornal The New
York Times no ano de 2009 Smith fala sobre esse início: “No começo,
isso era realmente uma coisa de base sobre pessoas que escreviam
poesia há anos, anos e anos e não tinham audiência” (Rohter, 2009,
on-line, tradução nossa2).

A palavra slam é uma onomatopeia da língua inglesa e


indica o som de algo como se fosse uma “batida” de porta ou de
janela, essa palavra é utilizada também para se referir à vitória de um
mesmo jogador em uma sequência de torneios de baseball e tênis
por exemplo. Foi Smith quem nomeou de slam os campeonatos de
performances poéticas que organizava. As competições conhecidas
como Uptown Poetry Slam, iniciaram em um bar de jazz chamado
Green Mill em Chicago, se expandindo para as periferias da cidade.
Através da colaboração de outros artistas, Smith organizava noites
de performances poéticas, com o intuito da popularização da poesia
falada, em oposição à poesia acadêmica.

2 Do original: “At the beginning, this was really a grass-roots thing about people who were writing
poetry for years and years and years and had no audience”.

SUMÁRIO 28
A programação dessas noites consistia em um conjunto ini-
cial de microfone aberto, onde qualquer um da plateia poderia subir
ao palco e recitar, seguido de uma performance de um artista con-
vidado e, então, a competição entre os poetas. E tratando de uma
competição, o prêmio daquele que vencesse a batalha de poesias da
noite era o valor de cinco dólares ou uma barra de chocolate.

A autora Susan B. A. Somers-Willett (2009) afirma sobre


como a postura altamente subjetiva das poesias performadas no
slam ressoam a rejeição do movimento em relação a uma nova obje-
tividade crítica ou universalidade acadêmica.

A frustração dos poetas do slam sobre o monopólio acadê-


mico em leituras de poesias e os ares intelectuais destes eventos
ajudaram a aumentar o barulho da atmosfera contracultural dos
slams que persiste em muitos locais hoje (Somers-Willett, 2009,
p. 4, tradução nossa3).

No entanto, o movimento encontrou resistência por parte da


academia em reconhecer o poetry slam como parte do movimento
literário, quanto a isso a autora continua:
Nesse sentido, o verso popular é marginal, ou seja, existe
fora do dominante centro de produção, crítica e recep-
ção da poesia, que é frequentemente localizado dentro
da cultura acadêmica. Verso popular em performance
também se envolve em uma tensão maior com a cul-
tura dominante, geralmente localizada ou incorporada
pela classe média branca americana. Seus artistas são
boêmios, vagabundos, militantes ou contraculturais. Em
muitos aspectos, as tensões duplas do verso popular
com dominantes e cultura acadêmica são inseparáveis,
pois os poetas populares costumam retratá-los como o
mesmo. Em termos redutivos, mas totalmente familiares,

3 Do original: “Slam poets’ frustration over the academic monopoly on poetry readings and the atten-
ding highbrow airs of these events helped fuel a rowdy, countercultural atmosphere at slams, one
that persists at many venues today”.

SUMÁRIO 29
ambas as culturas são vistas como reinos daquele vago e
ameaçador opressor, ‘o homem’ (Somers-Willett, 2009, p.
40, tradução nossa4).

Através da força desse movimento, um novo cenário foi


aberto, propício à criação de novas performances artísticas que usam
a palavra como modo de expressão daquilo que antes era apenas
sentido. Dentre estas performances, destacamos a competição de
slam, um tipo de sarau que ocorre nos moldes de batalha de poesias.
A pesquisadora Lidiane Viana Assis (2018, p. 20), afirma ser muito
difícil definir o slam pois segundo ela: “Ora visto como uma compe-
tição de poesia falada, ora como ambiente para livre expressão poé-
tica, o slam tem-se apresentado como um espaço onde as questões
da atualidade são debatidas, com uma roupagem de entretenimento”.

POETRY SLAM NO BRASIL:


O USO DAS ARTES COMO ATIVISMO SOCIAL
O slam é uma competição de poesias faladas, que trata de
temas sociais durante a qual poetas ou slammers, são avaliados não
por um júri técnico ou específico, mas pelo próprio público. Isso faz
da audiência por vezes não apenas espectadores de poesias, mas
atores com um papel muito importante de avaliação do que foi apre-
sentado. O pesquisador Rogério Coelho apresenta a força da experi-
ência como potência para o protagonismo do público.

4 Do original: “In this sense, popular verse is marginal, that is, it exists outside the dominant center of
poetry’s production, criticism, and reception, which is often located within academic culture. Popu-
lar verse in performance also engages in a larger tension with dominant culture, one often located
in or embodied by the American white middle class. Its artists are bohemian, vagabond, militant,
or otherwise countercultural. In many respects, popular verse’s dual tensions with dominant and
academic culture are inseparable, for popular poets often portray them as one and the same. Put
in reductive but utterly familiar terms, both cultures are seen as realms of that vague and ominous
oppressor, ‘the man’”.

SUMÁRIO 30
A potência do público em ser protagonista em ato estará
condicionada apenas ao desejo de protagonizar. Ou seja,
o encontro dos saraus provoca esse desejo explicitado
pelos momentos de partilha. É a experiência de partilha
que nos leva a crer que, ao ver alguém recitando, exer-
cendo sua potência como protagonista, por meio de sua
voz poética, ela implementa mais uma etapa da conquista
dos desejos alheios, porque, em princípio, esse alguém
partilha sua voz num espaço em que todos(as) têm a
liberdade para tal (Coelho, 2017, p. 91).

Essa competição no Brasil acontece nas ruas e, na maioria


das vezes, em territórios periféricos. Sua composição é majoritaria-
mente de jovens não universitários que não carregam consigo uma
preocupação com a norma culta ou até mesmo regras gramaticais.
Sua tônica é passar sua mensagem ou “dar o papo”, afinal é o público
quem vai decidir quem será o vencedor. Essa competição faz parte de
um campeonato que tem suas divisões locais, estaduais e nacional
e que vale uma vaga para a Copa do Mundo de Poesia ou também
conhecida como Slam Mundo, que acontece anualmente em Paris.

Figura 1 - Modelo das etapas de classificação no estado do Rio de Janeiro

Fonte: autoria própria (2020).

SUMÁRIO 31
Como qualquer outro campeonato o slam possui regras, e
apesar de acontecerem diferentes competições pelo país as regras
na grande maioria deles são as mesmas e por isso, considero algumas
das práticas dessas regras ritualizadas durante as batalhas de poesia.

O apresentador ou slammaster, como também é conhecido,


exerce um papel fundamental na programação do slam. Ele deve
anunciar ao público o nome e uma pequena descrição de cada
poeta, também deverá fazer a escolha dos jurados e pedir ao final
de cada apresentação que eles falem suas notas. Esse momento
de escolha de jurados é bastante marcante, o slammaster caminha
entre o público presente e de forma interativa aborda as pessoas
perguntando se elas conhecem alguns dos poetas que vão competir,
se gostariam de fazer parte do júri daquela edição.

Os jurados são escolhidos entre os membros da plateia, essa


escolha é feita de forma aleatória pelo apresentador um pouco antes da
competição começar. A escolha aleatória dos jurados parte do princípio
de que todo indivíduo é capaz de emitir uma opinião válida sobre arte
e não seria necessária uma formação acadêmica ou técnica para isso.

Então, uma vez escolhidos, eles devem estar atentos às


apresentações e no momento solicitado informar a nota equivalente
àquela apresentação. Os juízes darão notas de 0 a 10, com a maior
nota sendo 10, para cada poema. A estes é dada uma placa que vem
numerada e ao longo da performance o jurado deve escolher a nota,
pois ao fim da apresentação e assim que solicitado devem levantar
suas notas. Eles são instruídos a usar uma casa decimal para reduzir
as possibilidades de empate entre os competidores. Cada poema
terá a nota mais alta e a mais baixa descartadas e as restantes serão
somadas, representando a nota final do poeta. Além dos jurados
também é escolhido entre o público uma pessoa para ficar respon-
sável por cronometrar as apresentações e outra para contabilizar as
notas informadas pelo júri, esses são conhecidos respectivamente
como contador e matemático.

SUMÁRIO 32
Os poemas podem ser de qualquer assunto ou tema e em
qualquer estilo. Porém, é importante que cada poeta apresente poe-
mas originais de sua autoria e as apresentações não devem ultrapas-
sar três minutos de duração. Cada participante tem direito a alguns
segundos para adaptar o microfone e o palco, o tempo começa a ser
contado a partir do momento em que o poeta se dirige ao público,
depois dos três minutos, penalidades de tempo serão aplicadas de
acordo com os segundos além dos 3 minutos de apresentação. O
anúncio das penalidades, são feitos pelo apresentador depois que os
juízes tiverem atribuído às notas da apresentação do poeta.

Não é permitido o uso de auxílios visuais ou fantasias pelo


poeta em sua apresentação, essa regra de auxílios visuais tem o
intuito de manter o foco nas palavras e na apresentação em si e não
em objetos. Além do mais, não é permitida a repetição de poemas, os
poemas precisam ser autorais e cada um deles pode ser usado uma
única vez durante as eliminatórias e uma vez na grande final.

Apesar do movimento ter sido criado por um homem branco,


no Brasil ele é ressignificado pela juventude negra e periférica que
se identificaram com a arte de unir poesia e crítica social, principal-
mente em um país onde a maioria da população é negra e casos de
racismo ou violência contra negros é cada vez maior. Em uma de
minhas idas as batalhas de slam pela cidade do Rio de Janeiro, uma
slammaster que era uma mulher negra, durante a escolha do júri que
é um momento em que normalmente o público presente fica bas-
tante eufórico em participar da competição, disse que existia uma
cota de branco para o júri e naquela ocasião deveria ser escolhida
uma mulher branca, pois segundo ela “os homens brancos já nos
silenciaram por muito tempo”.

Frequentando esses slams pude notar quão diverso é o


público que frequenta as batalhas que acontecem na cidade. De
grupo de poetas, que circulava os slams de amigos para fortalecer

SUMÁRIO 33
aquele evento e tentar garantir uma vaga para concorrer no cam-
peonato estadual, a moradores de outros bairros e da zona sul que
cruzavam a linha dois do metrô para subir a Laje no Complexo do
Alemão e apreciar poesia e turistas de diversas nacionalidades.

O Slam Laje, que acontece no Complexo do Alemão no subúr-


bio carioca, foi um dos lugares em que o público apesar de diverso a
cada edição, também possuía o seu público “fiel”. A competição que
acontecia inicialmente em cima de uma laje, atualmente possui perfil
itinerante e circula as treze favelas que compõem o Complexo do
Alemão e assim, consegue alcançar grupos de universitários, turistas
e os próprios moradores do território.

Ao compreender que cada slam realiza suas competições de


acordo com sua programação, os vencedores de cada edição com-
petem em uma final, essa data da final fica a critério do grupo res-
ponsável pelo slam, o vencedor representa seu slam e avança para o
campeonato estadual e quem vence a etapa estadual representa seu
estado na competição nacional que acontece em dezembro de cada
ano, mais conhecido como Slam BR. O vencedor do campeonato
nacional representa o Brasil no Slam Mundo.

Desde então, durante as competições em nível internacional


os poetas que vão competir ou participar enviam suas poesias pre-
viamente, e durante sua performance o texto é transmitido em sua
língua original, da maneira que o poeta está apresentando e abaixo o
texto é traduzido para a língua onde acontece a competição. A com-
petição mundial, internacionalmente conhecida como The Poetry
Slam World Cup ou Grand Slam, acontece em Paris na França anual-
mente seguindo as regras de que o poeta envie poesias autorais, de
até três minutos e a tradução das poesias será feita para o francês e
inglês sendo transmitida junto a performance do poeta.

SUMÁRIO 34
PROTAGONISMO PERIFÉRICO:
NARRATIVAS DE DOR E ESPERANÇA
Há uma necessidade no ser humano de contar seus proble-
mas, compartilhar seus anseios e ter sua voz ouvida. Embora cada
indivíduo tenha capacidade de se expressar através de sua voz, essa
voz poderá ser ouvida ou não a partir de relações sociais e de poder.
No entanto, as experiências que muitos dos poetas trazem em seus
textos na competição de slam, é de repressão, silenciamento e pre-
conceito, com destaque para as falas de poetas negros e negras,
LGBTQIAPN+5 e sobretudo de origem periférica.

A autora indiana Gayatri Spivak (2010) em seu livro Pode


o Subalterno falar?, faz um questionamento do lugar de fala desse
indivíduo subalternizado. Contudo, é preciso identificar quem seria
esse sujeito subalterno. Não seria um sujeito marginalizado qualquer,
antes são “as camadas mais baixas da sociedade, constituídas pelos
modos específicos de exclusão dos mercados, da representação
política e legal e da possibilidade de se tornarem membros plenos
no estrato social dominante” (Spivak, 2010, p. 12).

Analisando o cenário do slam, podemos perceber o acolhi-


mento e atenção às histórias e vivências que são transformadas em
poesias e trazem as narrativas próprias desses poetas. E por isso a
importância desses poetas compartilharem suas experiências, ques-
tionamentos e trajetórias, a afirmação das identidades dos jovens
poetas que frequentam os slams reforça a relevância da experiência
que esse movimento proporciona para os que falam e para os que
escutam as poesias recitadas.

5 LGBTQIAPN+ é uma sigla que abrange pessoas que são Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer/Questio-
nando, Intersexo, Assexuais/Arromânticas/Agênero, Pan/Pôli, Não-binárias e mais.

SUMÁRIO 35
Segundo o sociólogo Manuel Castells, identidade é aquilo
que é “fonte de significado e experiência de um povo” (2001, p. 22).
Nesse caso podemos considerar o slam como um lugar onde as múl-
tiplas identidades se encontram, as pessoas se reúnem para com-
partilhar suas vivências por meio de palavras, ideias e poemas. Ele
se torna um lugar de acolhimento para quem frequenta, as mulheres
podem falar, os gays, independentemente de raça, religião, gênero,
no slam a pessoa será ouvida, pois não há impedimento para aqueles
que desejam abrir seus corações e trazer suas inquietações. Apesar
de possuir tal abertura, as poesias que se destacam são as que falam
sobre as vivências dos poetas negros e periféricos na cidade.

A pesquisadora Aline Sabino reforça a necessidade de


uma luta desses corpos para se fazerem presentes, em espaços
que lhes são negados.
No entanto, há uma apropriação muito maior da perife-
ria brasileira, nível slammer e público, ao movimento do
poetry slam. Modelo próximo aos saraus, o slam con-
densa poetas marginalizados, que lutam por reconhe-
cimento e mudança social através da arte. São corpos
que procuram estar em espaços, que lhes são negados
(Sabino, 2017, p. 13).

O poeta favelado está inserido em um território repleto de


negações. Sua vida é uma completa disputa para afirmar sua exis-
tência e sua identidade. É preciso compreender como ocorre o pro-
cesso de resistência e sobrevivência por parte desses jovens dentro
de uma favela. Walter Benjamin fala sobre a experiência como fonte
para o narrador, sendo assim podemos relacioná-la com essa fonte
principal dos poetas que vão competir no slam. Como nos apresenta
os versos da poeta Sabrina Azevedo.

SUMÁRIO 36
Do lado de cá
somos a maioria,
tratados como minoria,
pela supremacia que quer nos matar

Do lado de lá
somos vitimistas,
que quer estar na mídia
e protesta por uma vida,
que de nada valia pro lado de lá

Mas se somos minoria


e aquela vida de nada valia
porque tanto te incomoda a nossa gritaria
pedindo justiça por aquela vida
que não vai voltar

É que a justiça não é justa pro lado de cá


é fácil formar opinião
sobre aquilo que você não vive
sobre a dor que você não sente
por isso as nossas opiniões são tão diferentes
porque eu tô do lado de cá
da galera que sente

E você do lado de lá,


se torna tão prepotente
abusando da dor da gente
deixando o sistema fazer sua mente
logo você que se julga tão inteligente

SUMÁRIO 37
A narrativa da poeta, apresenta a perspectiva da vítima, de
quem não pode sequer protestar pela perda de uma vida que muitas
vezes não tem valor algum para o Estado. O Estado tem seus agen-
tes treinados nas ruas, seguindo e reproduzindo práticas que não
estão marcadas em nenhum manual, práticas de violência não ins-
titucionalizadas. Podemos perceber a relação desses sujeitos com a
memória, como são muito fortes esses ensinamentos e aprendiza-
dos que se tornaram conteúdos para as suas poesias. Esses jovens
de fato vivenciam suas experiências e as compartilham dentro dos
slams. Eles se tornam os protagonistas de suas narrativas.
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a
que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas
escritas, as melhores são as que menos se distinguem
das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores
anônimos (Benjamin, 1983, p. 198).

Diferentemente do silenciamento que os sobreviventes tra-


ziam após seu retorno da guerra, os poetas fazem de suas guerras
e lutas contra a homofobia, o racismo, contra o machismo formas
de poesias, e têm colocado no papel suas inquietações. Para Gloria
Anzaldúa a escrita é uma arma de resistência.
Porque o mundo que crio na escrita compensa o que
o mundo real não me dá. No escrever coloco ordem
no mundo, coloco nele uma alça para poder segurá-lo.
Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha
fome. Escrevo para registrar o que os outros apagam
quando falo, para reescrever as histórias mal escritas
sobre mim, sobre você (Anzaldúa, 2000, p. 232).

A autora traz um forte exemplo da utilização da escrita como


arma dentro do campo da disputa pela afirmação de sua identidade.
Os poetas que se apresentam nos slams se utilizam do mesmo
recurso para fazer não apenas de suas escritas, mas de seu corpo,
um protesto vivo contra os inúmeros direitos que lhes têm sido nega-
dos por suas diferentes identidades de gênero, territoriais e raciais.

SUMÁRIO 38
No Brasil, esse perfil de poeta periférico tem se destacado
entre os poetas mais jovens, como o exemplo das poetas Sabrina
Martina e Sabrina Azevedo, moradoras do Complexo do Alemão e
da Cidade de Deus. Como visto anteriormente nos versos de Sabina
Azevedo, Sabrina Martina também compartilha relatos de sua vivên-
cia enquanto moradora de favela. Como relata no trecho abaixo:

Eu vejo uma chacina,


todos os dias eu vivo uma chacina.
Todos os dias eu vejo uma chacina
todos os dias eu vivo uma chacina.
Todos os dias. Cara gente branda.
Direitos humanos vai muito além
que uma esquerda e direita branca.
Você conhece a realidade do gueto?
Respeita meu povo preto
que não tem direito a chorar,
está acostumado a apanhar
e não pode gritar
porque no dia seguinte tem que ir
trabalhar.
O mundo tá cinza,
as pessoas, vazias,
a preocupação maior é tirar o pão de
cada dia.
A fonte secou, o almoço esfriou,
e agora tu vai se vender pra qual
senhor?
A cor do colonizador nunca mudou,
mas o discurso sim.
De novo te enganou.

SUMÁRIO 39
Podemos destacar as experiências de vida para pensar o que
é competir no slam. Esse espaço que jovens, em sua maioria de ori-
gem periférica, falam sobre seus medos, suas inseguranças e outros
temas que eles não se sentem confortáveis em falar fora dali.

Por fim, é através de gritos poéticos como “A favela está pas-


sando a mensagem, Slam Laje!!! Abra seu coração” ou “Poesia nua
e crua, Slam da Quentura” que a juventude periférica tem se reunido
para performatizar suas vivências através de narrativas nas batalhas
de slam. Ao competir esses poetas “vão à luta” em busca do título
de campeão daquela batalha e usam a poesia como forma de ques-
tionar o porquê de terem seus corpos representados como sinal de
perigo ou de algo incomum. É nesse lugar que suas vozes podem
ser ouvidas, é por meio das letras dos versos que se une a força da
performance e da entonação durante a apresentação.

Isso gera diversos tipos de reação por parte da plateia em


forma de efervescência coletiva (Durkheim, 2008) nas quais esse
público pode reagir com sons de “POW, POW, POW” indicando uma
certa euforia, mostrando que de fato a poesia é sentida e cada indi-
víduo irá reagir àquela performance de uma maneira única. Apesar
de terem conhecido um rápido crescimento e popularização por
todo o país nos últimos anos, trata-se de um novo panorama que
deve ser profundamente estudado e discutido. Há uma relevância
do tema para os debates culturais que se preocupam com o empo-
deramento de grupos subalternos, das margens de nossa sociedade
e são nas batalhas de poesia que convergem, em praça pública, as
disputas que estas populações travam cotidianamente para garantir
seu direito de existir e resistir para além de seu território periférico.

SUMÁRIO 40
REFERÊNCIAS
ASSIS, Lidiane Viana. Poetry Slam na escola: Embate de vozes entre tradição e
resistência. 2018. Dissertação (Mestrado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras.
Universidade Estadual Paulista (UNESP). São Paulo, 2018.

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COELHO, Rogério Meira. A PALAVRAÇÃO – Atos político-performáticos no coletivoz


Sarau de Periferia e Poetry Slam Clube da Luta. Dissertação (Mestrado em Artes) –
Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Belas Artes, Belo Horizonte, 2017.

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entra em cena. Synergies Brésil, n. 9, p. 119-126, 2011. Disponível em: http://gerflint.fr/
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Pereira Neto. 3 ed. São Paulo: Paulus, 2008.

ROHTER, Larry. Is Slam in Danger of Going Soft? The New York Times. 2 jun. 2009.
Entrevistado: Marc Kelly Smith. Disponível em: https://www.nytimes.com/2009/06/03/
books/03slam.html. Acesso em: 20 jan. 2023.

SABINO, Maria Aline. Performance e aprendizagem no slam da quentura em Sobral,


Ceará. 2017. 74 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Ciências Sociais) – Centro
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SOMERS-WILLETT, Susan B. A. The Cultural Politics of Slam Poetry: race, identity and
the performance of popular verse in America. Michigan: Ed. The University of Michigan
Press, 2009.
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: UFMG, 2010.

SUMÁRIO 41
3
Karina Ribeiro Soares Reis

A IMPORTÂNCIA DO ENSINO
AFROCENTRADO EM
PRÉ-VESTIBULARES SOCIAIS
PARA MORADORES PERIFÉRICOS

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.3
O presente trabalho dialoga sobre a necessidade do ensino
afrocentrado, nos pré-vestibulares sociais para moradores de peri-
feria, em sua maioria pretos e pardos. Com finalidade, para além,
do ensino classificatório em processos seletivos, preparando o edu-
cando a partir da história e cultura de seu grupo social, para que
este chegue ao ensino superior empoderado. A metodologia é apli-
cada nas aulas de geografia de forma transversal junto ao conteúdo
programático. Mediamos o estudo e discussão de leis de reparação
social, conteúdo afro-brasileiro, desenvolvimento do pensamento
crítico diante de assuntos atuais e a educação antirracista. Ao final
do curso preparatório, a maioria dos estudantes demonstrou enga-
jamento na temática, amplo preparo para ingressar na universidade,
determinação e grande aprendizado sobre a temática proposta.

Atualmente no Brasil as universidades públicas possuem


público diverso, dentre os estudantes cresce o número de negros de
classe baixa e periféricos cursistas nas diferentes áreas de ensino,
uma realidade advinda de políticas sociais aplicadas nas últimas
décadas. A Lei 12.711 de 2012 completa dez anos, com a luta dos
movimentos sociais e mudanças nas políticas públicas brasileiras a
presente legislação determina que 50% das vagas em Instituições
Federais de ensino superior sejam ocupadas por pessoas que estu-
daram em escolas públicas, e metade destas será reservada para
estudantes com renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita
(Brasil, 2012). Porém, a maioria desses indivíduos ingressam no
ensino superior sem saber ou entender das leis e direitos de seu
grupo social, muitos não estudaram sobre a história de seu povo. Para
romper com o racismo estrutural (Almeida, 2019), o presente trabalho
propõe o ensino afrocentrado em pré-vestibulares sociais, que aten-
dam em sua maioria pretos e pardos moradores de comunidades e
periferias. Objetivando que esse público ingresse nas instituições de
ensino entendendo e usufruindo das leis e direitos para a reparação
social, ocupando conscientemente o seu lugar de fala, realizando
trabalhos acadêmicos a partir de sua história, cultura e autores.

SUMÁRIO 43
Com a finalidade de diminuir o privilégio da classe dominante nas
universidades e resistir reescrevendo a história do negro na acade-
mia. Para tal, desenvolvemos na turma do ano de 2023 do pré-vesti-
bular social Norma Brito na cidade de Campos dos Goytacazes (RJ),
o projeto de ensino afrocentrado que trabalha concomitante à maté-
ria de Geografia as leis, cultura e história afro-brasileira.

O presente trabalho está dividido em quatro partes, nesta


introdução apresentamos resumidamente os principais pontos, obje-
tivos e metodologia. A segunda parte versa sobre a perspectiva do
ensino afrocentrado, na terceira seção apresentamos a metodologia
e principais abordagens durante o curso e por último as conside-
rações sobre a pesquisa. Esperamos que ao final do curso os estu-
dantes para além de ocupar uma vaga no ensino superior, estejam
imbuídos de pensamento crítico (Souza, 1989) para lutar e construir
um novo currículo que coloque a história, teorias, cultura e autores
negros como representantes do país, reduzindo a herança colonial e
escravocrata que impera em nossas redes de ensino.

A PERSPECTIVA DO ENSINO
AFROCENTRADO
O método empregado pode ser classificado como afrocen-
trado porque em todas as aulas, de maneira transversal aos conteú-
dos de Geografia, trabalhamos temas ligados à cultura, leis e história
afro-brasileira. Esse formato foi desenvolvido porque observamos que
o público do curso preparatório, que é de maioria negra e periférica,
não detém informações importantes para ingressar nas instituições
públicas brasileiras. A maioria dos indivíduos não entendem a
importância de se autodeclarar de modo coerente e utilizar a política
de cotas que é fruto da Lei 12.711/2012 (Martins; Ribeiro, 2017) por

SUMÁRIO 44
falta de informação. Muitos chegam aos pré-vestibulares e ao ensino
superior sem ter consciência de seus direitos enquanto cidadãos e
não compreendem a história de seu grupo social.

Com a finalidade da construção de uma base educativa


antirracista, a Lei 10.639/2003 é sancionada para que a história e
cultura afro-brasileira, seja obrigatoriamente integrada ao currículo
escolar do ensino básico no país (Brasil, 2003). Porém, muitas insti-
tuições escolares não cumprem a determinação supracitada. O que
corrobora para a manutenção do racismo estrutural no Brasil, que
se constitui de um processo histórico no qual a classe dominante
oprime e explora o negro periférico, para a perpetuação de seus pri-
vilégios (Almeida, 2019). Entender a realidade de seu grupo social,
para além da construção histórica eurocentrada, é fundamental para
posicionar-se contra a estigmatização social imposta ao seu grupo.
O papel do professor enquanto mediador que busca desenvolver um
ensino baseado na diversidade e cidadania em suas aulas no ensino
básico, em cursos preparatórios ou no ensino superior é de interme-
diar um conteúdo que dialoga com a história e realidade do público
atendido. Sem embargo, para desenvolvimento do pensamento crí-
tico de seus educandos.

O pensamento crítico é responsável por produzir argumentos


capazes de desmistificar posicionamentos e imposições de cunho
racista. O desenvolvimento em sala de aula de problematizações a
partir de situações históricas relacionadas a conteúdos escolares
com possibilidade de breves debates, torna-se importante não só no
ensino básico formal, mas também em cursos preparatórios sociais.
A metodologia exposta neste estudo objetiva imbuir conhecimen-
tos diversificados sobre o grupo social do público atendido, estru-
turando o educando para uma permanência qualitativa no espaço
acadêmico e posicionamento perante ao sistema vigente, com a
finalidade de uma perspectiva emancipação social (Souza, 1989).
Para além da atual metodologia predominante nos pré-vestibulares
brasileiros, focada apenas no ensino de base tecnicista que utiliza

SUMÁRIO 45
associação e memorização de questões de provas objetivas para a
classificação do estudante. O mediador carece observar uma ques-
tão muito importante e fundamental para que o discente futuramente
progrida em seus estudos, o pensar com criticidade, o “treino” e foco
do curso que carrega em sua nomenclatura o termo “social” deve
estar voltado para esta função diferenciando-se do ensino con-
vencional e de mercado.

Proporcionar cotidianamente em sala de aula um panorama


afro-brasileiro identitário ao indivíduo que ocupa as carteiras de um
curso preparatório formado principalmente por estudantes negros
periféricos é fundamental para que o grupo assuma o seu lugar de
fala dentro da sociedade e da academia. Segundo Silvio de Almeida:
A permanência do racismo exige, em primeiro lugar, a
criação e a recriação de um imaginário social em que
determinadas características biológicas ou práticas cultu-
rais sejam associadas à raça e, em segundo lugar, que a
desigualdade social seja naturalmente atribuída à identi-
dade racial dos indivíduos ou, de outro modo, que a socie-
dade se torne indiferente ao modo com que determinados
grupos raciais detêm privilégios (2019, p. 47).

Concordando com o autor, para romper com o racismo estru-


tural e lutar em prol da diminuição da desigualdade social construída
desde a colonização do Brasil, por propagação de um mito de que
existem povos inferiores determinados por características fenotípi-
cas, há necessidade de derrubarmos a estrutura educacional exis-
tente utilizando contextos históricos que não apenas destacam e
caracterizam a cultura da classe dominante.

O educador de pré-vestibular social deve mediar a descons-


trução da segregação entre negros e brancos que vigora em espaços
sociais, um destes é o ensino formal, por muito tempo se perpetuou o
mito de que “pessoas negras são menos aptas para a vida acadêmica”
(Almeida, 2019, p. 39). Um dos motivos desse equívoco está no cur-
rículo educacional que reproduz a visão reducionista do colonizador

SUMÁRIO 46
e da classe dominante perante a história de outros povos. Empoderar
o estudante negro periférico com sua cultura e descortinar a lógica
do modo de produção vigente corrobora para que este seja dono de
sua própria história e a reescreva com base na resistência de seu
povo. Torna-se necessário conceber a ideia de que um curso prepa-
ratório para o público específico deve conter conteúdo característico
para de fato ser considerado identitário e progressista.

Atuar em uma sala de aula voltada para pretos e pardos


moradores de periferias, apenas utilizando os métodos de ensino que
corroboram para a seleção e classificação do indivíduo por critério
de pontuação, reforça o velho discurso da meritocracia impregnado
nos mecanismos institucionais brasileiros. “No Brasil, a negação do
racismo e a ideologia da democracia racial sustentam-se pelo dis-
curso da meritocracia” (Almeida, 2019, p. 51). O estudante não pode
ser entendido dentro da instituição de ensino como aquele que deve
obter a pontuação suficiente para ocupar uma vaga no ensino supe-
rior, mas, percebido por cidadão com direito a inserção na academia
para produzir conhecimento a partir de sua realidade para ser capaz
de problematiza-la e atingir a emancipação coletiva. Diante dos fatos
apresentados com finalidade de legitimar o ensino afrocentrado em
pré-vestibulares sociais, apresentaremos na seção subsequente o
detalhamento da aplicação da metodologia exposta.

APLICAÇÃO DA METODOLOGIA PROPOSTA


O projeto de ensino afrocentrado é aplicado nas aulas da
disciplina de Geografia às terças-feiras no pré-vestibular Norma
Brito, que funciona na sede da Subsecretaria de Igualdade Racial e
Direitos Humanos (SIRDH), da cidade de Campos dos Goytacazes
(RJ). O órgão público é derivado da Fundação Municipal Zumbi
dos Palmares (FMZP), fundada em 12 de dezembro do ano de 1997

SUMÁRIO 47
(Ramos, 2020). O movimento negro e sua luta política local possibi-
litou não só a criação desse espaço comunitário em prol do negro,
mas sempre se manteve firme pela igualdade racial – sobretudo, com
intuito de firmar um compromisso do Estado com a população preta
e parda – prestando inúmeros serviços à população negra campista,
foi um instrumento social, educacional e político de suma importân-
cia para o desenvolvimento em caráter emancipatório multidimen-
sional de seus assistidos.

Diante do histórico da subsecretaria e perfil do estudante,


adotamos práticas diferenciadas de ensino em todo o planejamento
do componente curricular Geografia priorizando não só o conteúdo
padrão, mas a educação para o público-alvo, composta por negros
periféricos. Desde a primeira aula após a medição das correntes
geográficas, discorremos sobre a lei de cotas e sua importância,
explicando a adoção do ensino afrocentrado e percebemos nos
educandos a vontade de entender a sua história individual e cole-
tiva, exercitando o pensamento crítico, apropriando-se da cidadania
(Gandara, 2020) – um direito básico negligenciado na precariedade
educacional construída sobre a cultura do colonizador. A não discus-
são da temática racial intraescolar perpetua a falsa ideia de democra-
cia racial. Muitos estudantes perdem a oportunidade de adentrar no
Ensino Superior por cotas sociais e raciais por vergonha de se auto-
declarar. Uma problemática social que advém de um sistema escolar
galgado na cultura elitista que não dialoga sobre as lutas de classe.

Ao chegar em um curso preparatório que prioriza apenas o


método meritocrático de classificação, o aluno não é preparado para
a vida e sabemos que o capitalismo não absorve a todos, igualmente
ao sistema de ensino atual, porém existem mecanismos estatais para
a entrada e permanência nas universidades e institutos públicos
como programas de auxílio e concessão de bolsas. O não diálogo
em um pré-vestibular social e racial sobre essas questões mantém o
educando desprovido de outras maneiras de entender a sociedade
em que vive e mudar a sua realidade e de seu grupo. A lei de cotas

SUMÁRIO 48
muito criticada pela elite garante a inserção no Ensino Superior de
indivíduos de classe baixa, periféricos e negros (Martins; Ribeiro,
2017). Diante do fato supracitado é de suma importância informar o
educando sobre a legislação referida, possibilidades de permanência
institucionais, história e cultura negra para que o indivíduo entenda
que essas políticas sociais são justas e necessárias diante de toda a
desigualdade gerada no país que recai sobre o grupo.

Uma outra medida importante no planejamento das aulas de


Geografia é a valorização de autores e personalidades negras, com
intuito de fortalecer a imagem de pretos e pardos de relevância nacio-
nal, dando continuidade à lei 10.639 (Brasil, 2003) que versa sobre o
ensino da história e cultura afro-brasileira pouco aplicada na prática
da educação básica. Sempre ao final das aulas, eram expostas mini-
biografias com informações relevantes, mediando a discussão sobre
a trajetória desses indivíduos e suas contribuições sociais que leva-
vam à reflexão e pensamento crítico (Souza, 1989) de assuntos rela-
cionados à temática afrocentrada e desigualdade social. Uma autora
de grande relevância para análise geográfica e social é Carolina
Maria de Jesus, moradora da comunidade do Canindé em São Paulo,
mãe solo, catadora de recicláveis, possuindo apenas a quarta série
do ensino fundamental, mudou sua trajetória através da educação.

Seu livro Quarto de despejo lançado na década de 1960,


reflete a realidade do negro periférico atual, denuncia as desigual-
dades sociais brasileiras, desafiando o leitor a problematização e
desenvolvimento do pensamento crítico (Jesus, 2019). Entretanto,
revela a força de uma mulher preta e periférica com uma história
de luta que inspira, auxiliando no empoderamento do indivíduo e
valorização de seu povo que diante de todo o racismo estrutural
imposto no país resiste (Reis, 2022). Utilizar a referência de auto-
res negros que expressam em sua vida e escrita a potência de sua
voz é necessário em um curso que prepara outros pretos e pardos
para o Ensino Superior.

SUMÁRIO 49
Explicar sobre a formação racial nacional é outro passo
importante na construção das aulas afrocentradas, para realizar o
diálogo da temática em caráter transversal ao conteúdo da Geografia
adotamos constantemente em nossas aulas, o uso e confecção de
mapas. A cartografia é uma técnica muito importante para mediar
o ensino diferenciado e interativo. Para tal, utilizamos a técnica de
identificação e localização cartográfica, uma atividade que utiliza a
ludicidade (Luckesi, 2014) para a partir da confecção do material dis-
cutir diversas questões, inclusive políticas, sociais e ambientais. Uma
dessas aulas tratou da divisão do continente africano e da diáspora
negra que trouxe, forçadamente, como escravizados bilhões de pes-
soas para o Brasil. A diversificação racial, predominantemente for-
mada por pretos, indígenas e portugueses culminou no colorismo
racial de nosso país.

Com base na perspectiva apresentada, os estudantes ao


longo do curso obtiveram conhecimentos específicos cartográficos
de grande relevância para provas do Enem, vestibulares e cotidiano
ao mesmo tempo que aprofundamos temáticas ligadas ao ensino
afro-brasileiro. A cartografia escolar deve ser um processo constante
no aprendizado da geografia, diferente da aplicação tradicional que
se dá do conteúdo só em uma unidade formativa, realizamos a pro-
dução e identificação de mapas em toda a trajetória de formação
do aluno. Entretanto, utilizamos a realidade do educando para dis-
correr exemplos práticos, em diálogo com a educação emancipa-
dora em que o aprendizado ocorre a partir de vivências (Freire, 1996).
Através do cotidiano explicamos a formação das favelas, uma base
para se entender e discutir o atual contexto social brasileiro, expli-
citando a importância da análise geopolítica e discorrendo a partir
de noticiários atuais. Em cada planejamento mensal observamos o
desenvolvimento do estudante, avaliando as temáticas afrocentradas
introduzidas, sua relevância e ligação a conteúdo estabelecido por
parâmetros curriculares.

SUMÁRIO 50
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A perspectiva de ensino afrocentrado foi idealizada com
intuito de preparar os cursistas para além da classificação em pro-
cessos seletivos, visando a permanência desses indivíduos até o fim
do curso, evitando a evasão e buscando o fortalecimento do negro no
ambiente acadêmico. A metodologia que consiste em aderir a edu-
cação afro-brasileira de forma transversal ao conteúdo de Geografia
corroborou para uma nova concepção de ensino que considera fato-
res sociais e culturais. Constatamos que os estudantes se tornaram
mais participativos em sala de aula, desenvolvendo a criticidade e
problematização dos conteúdos mediados e assuntos cotidianos
usados transversalmente.

REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas


universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e
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planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em 04 jul. 2022.

BRASIL. Presidência da República. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei


9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em: 20 jun. 2022.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São


Paulo: Paz e Terra, 1996.

GANDARA, Lemuel da Cruz. Educação de Jovens e Adultos mediada pelas TDICs.


Instituto Federal de Goiás, 2020.

SUMÁRIO 51
LUCKESI, Cipriano. Ludicidade e formação do educador. Revista entreideias: educação,
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JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2019

MARTINS, Ana Carolina; RIBEIRO, Marcos Abrahão. Redistribuição ou reconhecimento? O ponto


de vista dos alunos do Ensino Médio Integrado do Campus Campos Centro do IFF sobre a
política de cotas da Rede Federal de Educação. (SYN) THESIS, v. 10, n. 1, p. 97-110, 2017.

RAMOS, Manuelli Batista. Racismo institucional e movimentos negros: resistências


e coexistências em Campos dos Goytacazes/RJ. 2020. Dissertação (Mestrado em
Desenvolvimento Regional, Ambiente e Políticas Públicas) – Universidade Federal
Fluminense, Instituto de Ciências da Sociedade e Desenvolvimento Regional, Campos
dos Goytacazes, 2020.

REIS, Karina Ribeiro Soares. Possíveis contribuições das obras de Carolina Maria
de Jesus na Educação de Jovens e Adultos. Revista Multidisciplinar do Vale do
Jequitinhonha-ReviVale, v. 2, n. 2, 2022.

SOUZA, Ari Herculano de. A ideologia. São Paulo: Editora do Brasil, 1989.

SUMÁRIO 52
4
Rosilandia da Cruz Eduardo

CAPOEIRA
E UNIVERSIDADE:
ACESSO E FORMAÇÃO

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.4
A partir de uma análise crítica dos avanços e transforma-
ções da capoeira numa sociedade ainda de acentuada desigual-
dade social, percebi a necessidade de dar visibilidade à capoeira,
sobre o assunto. A partir de experiências pessoais, técnicas e cultu-
rais percebi o impacto dos benefícios que a capoeira traz no senso
de empoderamento, pertencimento e fortalecimento de identidade.
Defendo que, a execução de eventos inclusivos de atividades da
capoeira e de capacitação dos seus integrantes, possibilita o acesso
desses atores às possibilidades de formação oferecidas, ou que
venham a ser, futuros graduandos, parte da comunidade universi-
tária, gerando nos mesmos, o sentimento de pertencimento e que
possam perceber o campus como uma fonte de conhecimento e
facilitador de oportunidades.

Durante a participação no I Simpósio Capoeira e Universidade,


que aconteceu na Escola de Educação Física e Desportos da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEFD – UFRJ), um evento
gratuito e aberto a toda sociedade, realizado no dia 25 de maio de
2022, idealizado pela professora Lívia Pasqua, primeira mulher a ocu-
par a cadeira de professora efetiva de capoeira na UFRJ, organizado
por alunas e alunos do LABCAPO (Laboratório Capoeira da UFRJ), e
observando todo o cenário, aspirei a realização do presente trabalho.

No evento ocorreram diferentes tipos de atividades, como


palestras, aulas, cortejo6 e muita papoeira7, conforme tabela da
programação geral, e foi possível observar a presença de um novo
cenário de alunos, onde compareceram jovens, adultos e pessoas
de idades mais avançadas. Ouviram as palestras, participaram das
vivências, dialogaram entre si, atuaram ativamente no evento.

6 Cortejo: o cortejo de capoeira acontece como um desfile de carnaval, na qual a bateria são os
berimbaus e as pessoas participam com palmas e realizando movimentos de capoeira.
7 “Papoeira” é o nome que se dá ao bate-papo da capoeira, uma roda de conversa com o nome
“capoeiristicado”.

SUMÁRIO 54
Considero necessário possibilitar a outros a diversidade cul-
tural que foi apresentada no simpósio, a fim de mostrar e reafirmar
a importância da capoeira enquanto cultura brasileira, utilizando-a
como a porta de entrada de jovens pertencentes às classes menos
favorecidas, possibilitando-lhes o acesso à universidade.

A fim de conhecimento, segue abaixo o quadro da programa-


ção do I Simpósio Capoeira e Universidade/UFRJ, 2022.

Figura 1 - Programação Geral do Simpósio Capoeira e Universidade – UFRJ 2022

Fonte: Instagram rede social Projeto de Extensão CAPOUFRJ (2022).

A partir das experiências vivenciadas no simpósio e refle-


tindo sobre a possibilidade de uma parceria entre a universidade e a
capoeira, idealizo o que pode vir a ser uma importante contribuição
para a diminuição de um problema que ocorre com os capoeiristas,
quando estes querem se inscrever nos editais de fomento à cultura,

SUMÁRIO 55
mas não conseguem devido à falta de conhecimento na área, falta
de experiência e por não terem recursos para custear um profissional
em gestão de projetos.

Lia Baron, gestora cultural, pesquisadora, responsável por


implementar processos de valorização da diversidade cultural, de
democratização e de descentralização do investimento em pro-
jetos, identifica em sua publicação na Revista Z Cultural, título A
Territorialização das Políticas Públicas de Cultura (2016), que a falta
de profissionais em gestão de projetos é um dos fatores que dificulta
que a população periférica tenha acesso às fontes de fomento, Baron
enfatiza a implementação da Rede Carioca de Pontos de Cultura e
o edital de Ações Locais, pautados pela lógica da descentralização
territorial e da democratização do acesso aos recursos públicos faci-
litando a afluência da população periférica.

Isto posto, reforço a minha observação sobre a capoeira


e o pouco ingresso de capoeiristas aos editais de fomento à cul-
tura, e que através de um respeitoso recorte, pude identificar uma
lacuna no que diz respeito à captação de recursos ligados à cultura
nessa área específica.

Em seu estudo, Baron (2016) identifica que a captação


dos recursos para a cultura era adquirida por pessoas com maior
poder aquisitivo, tendo em vista a sua formação e/ou conheci-
mento. Conforme escreve sobre os projetos aprovados: “A maioria
deles caracteriza-se por estar sediado no Centro ou na Zona Sul do
município, por possuir formalização jurídica e por dispor de pessoal
profissionalizado em gestão de projetos” (2016, p. 1). Aponta ainda
sobre a sua experiência como gestora na Secretaria Municipal de
Cultura (SMC) do município do Rio, a autora relata sobre o mapa
cultural e aborda sobre a territorialização que, consequentemente
perpassa pelo poder social, econômico e racial, e mostra que o
mapa foi desenhado de forma que não representava o que de fato
ocorria diariamente.

SUMÁRIO 56
Destarte, identifico a capoeira como cultura ainda pouco per-
cebida nesse mosaico cultural desenhado pelos órgãos competen-
tes ao distribuir as verbas destinadas à cultura.
Tais margens e bordas não se referiam apenas aos limi-
tes geográficos do município, como também aos limiares
do poder e da institucionalidade. Nestas cartas culturais
novas e moventes, tudo aquilo que antes constituía peri-
feria tendia agora a assumir outras posições, revelando
como possíveis novas centralidades culturais. Bairros
pobres, territórios populares, favelas, vielas, becos e
esquinas, [1] assim como realizadores (muitas vezes
informais) que fazem cultura cotidianamente, porém sem
suporte oficial ou infraestrutura pública, visibilizavam-se e
reivindicavam reconhecimento (Baron, 2016, p. 1).

A falta de qualificação impede que a população preta, pobre,


periférica e capoeirista tenha acesso às fontes de fomento à cultura,
e nossa proposta é abrir espaço para o início dessa transformação
social. Pressuponho que, com a parceria da universidade, podemos
diminuir essa desigualdade.

Dessa forma, percebe-se que o resgate da cultura popular


e a democratização dos meios de acesso às universidades públi-
cas se torna possível ao promover eventos ligados à capoeira e seus
saberes. Assim, lançaremos sementes aos jovens e toda a população
à margem do campus universitário, favorecendo uma melhor quali-
ficação dos detentores dessa arte, que irá prepará-los para cobrar
políticas públicas de investimento cultural e para a formação de pro-
fissionais para a captação de recursos para esse segmento.

Neste estudo, trago à margem os dados do Edital Secec


nº 01/2020, Edital Cultura Presente Nas Redes, da Secretaria do
Estado do Rio de Janeiro, onde mostra o percentual das inscrições,
separado por áreas de atuação cultural, em que apenas 5,6% de
Expressões Culturais Populares foram inscritos para concorrer às
verbas destinadas à cultura.

SUMÁRIO 57
Destaco que a Comissão Técnica de Elaboração de Editais e
Análise de Projetos Culturais do fundo estadual de cultura do Rio de
Janeiro apresentou transparência nas informações, possibilitando-
-me consultar e acrescentar mais dados à minha pesquisa destinada
à capoeira. Reforço que o problema, pelo meu olhar, está na falta
de investimento na formação dos capoeiristas para poderem pleitear
recursos daquilo que já executam no seu cotidiano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Assim sendo, presumo que a formação de um curso de
extensão que possibilite aos capoeiristas escrever e planejar seus
projetos para participar dos editais, seja o início dessa transforma-
ção. Viabilizando assim o incentivo a estudos, pesquisas, cursos e
eventos que coloquem os capoeiristas numa “briga” em igualdade
de condições com as outras culturas, facilitando assim o acesso à
universidade, gerando o interesse pela qualificação e consequente-
mente uma melhora significativa na sua qualidade de vida.

Como membro do grupo de pesquisa LABCAPO (Laboratório


Capoeira), perspectivo a criação de um curso de extensão que con-
temple os seguintes módulos I, II, III , IV, V e VI, conforme abaixo:

Módulo I – Objetivos, justificativas e metas do projeto;

Módulo II – Público-alvo, local de realização, ficha técnica


e equipe do projeto;

Módulo III – Etapas de trabalho, cronograma e contrapartidas;

Módulo IV – Acessibilidade, democratização e sustentabilidade;

Módulo V – Orçamento e prestação de contas;

Módulo VI – Conhecendo e me inscrevendo nos editais.

SUMÁRIO 58
Em sequência, formaremos a equipe de implantação desse
projeto de pesquisa, realizando o estudo piloto desse projeto com os
próprios membros do LABCAPO, para posteriormente, abrir o curso
de formação, com a perspectiva de auxiliar esse público alvo especí-
fico a alcançar seus direitos de cidadãs e cidadãos.

REFERÊNCIAS
BARON, Lia. A territorialização das políticas públicas de cultura no Rio de Janeiro. Revista
Z Cultural (UFRJ), v. XI, p. 1, 2016.

CAPOUFRJ, Projeto De Extensão. Programação Geral. Instagram, 2022. Disponível em:


https://www.instagram.com/p/Cdo4OJ4LiBo/. Acesso em: 29 maio 2022.

EDITAL SECEC Nº 01/2020, Edital Cultura Presente Nas Redes. Cultura e Economia
Criativa, 2020. Disponível em: http://cultura.rj.gov.br/cultura-presente-nas-redes/. Acesso
em: 18 maio 2022.

RIO DE JANEIRO. Secretaria do Estado, de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro.


Edital Cultura Presente nas Redes: Relatório Parcial. Disponível em: http://cultura.
rj.gov.br/wp-content/uploads/2022/02/OFICIAL-Relat%C3%B3rio-Final-Cultura-Presente-
Nas-edes.pdf. Acesso em: 29 maio 2022. p. 5.

SUMÁRIO 59
5
Rosilaine Souza de Araújo da Silva

Ê! Ê! Ê! Ê! CAMARÁ!
UMA ANÁLISE SOBRE A HISTÓRIA
E AS TRANSFORMAÇÕES ESPACIAIS
NO BAIRRO DE SENADOR CAMARÁ
– ZONA OESTE DA CIDADE
DO RIO DE JANEIRO
DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.5
Senador Camará é um bairro periférico localizado na Zona
Oeste da cidade do Rio de Janeiro, foi considerado pelo IBGE
(2010) como a maior favela em área (Complexo de favelas Fazenda
Coqueiros) da cidade do Rio de Janeiro. Em seu território ocorrem, fre-
quentemente, operações policiais violentas com o uso do Caveirão (da
terra e do ar), nestes dias, a suspensão dos direitos básicos, tais como
transportes, funcionamento de escolas e equipamentos de saúde é
frequente, mas nem sempre noticiada. Esse cenário, somado à ausên-
cia de políticas públicas e baixos indicadores sociais vem criando uma
narrativa entre os jovens de que o bairro “não tem nada”. Esse artigo
possui outro ponto de partida, a partir de um projeto realizado com
alunos/as do ensino fundamental e médio, o objetivo foi resgatar a
história e geografia do bairro, bem como suas formas de organização
comunitária, patrimônios e resistências de sobrevivência cotidiana que
se inserem dentro de um contexto de luta pelo direito à cidade.

Antes de abordar a história do bairro de Senador Camará,


criado pela prefeitura do Rio de Janeiro em 23 de julho de 1981, pre-
cisamos citar a organização espacial da Zona Oeste/Zona Rural no
período colonial/imperial, onde até o século XVII os atuais bairros
de Bangu, Santíssimo e Senador Camará faziam parte da fregue-
sia de Campo Grande.

Com o desmembramento da Freguesia de Campo Grande,


Manuel de Barcelos Domingues funda em 1673 a Fazenda Bangu
que vira destaque na área rural do Rio de Janeiro e passa a ser reco-
nhecida (ou seja, um latifúndio com grande produtividade). Assim, a
zona rural ou “sertão carioca” do Rio de Janeiro ficou conhecida pelas
seguintes regiões: Bangu, Campo Grande, Santa Cruz, Jacarepaguá
e Guaratiba (atualmente regiões administrativas).

Isso quer dizer que, mesmo com a criação da Estação de


Trem em homenagem ao senador Otacílio de Carvalho de Camará
em 1923, essa área continuava pertencendo administrativamente
a região de Bangu, e por tanto, sofrendo influência direta dos

SUMÁRIO 61
processos de organização espacial da Fazenda Bangu e posterior-
mente da Fábrica Bangu.

Ressaltamos ainda a importância da Fazenda Viegas e Fazenda


Coqueiros com atividades voltadas para a monocultura do açúcar e a
diversificação dos cultivos ao longo do tempo, dentre eles várias frutas,
café, milho, mandioca, criação de animais eram encontradas nesses
latifúndios, com uso intensivo de seres humanos escravizados.

Com o advento da república (1889) e as transformações em


curso na área urbana do Rio de Janeiro, que ao longo do século XIX
vinha se transformando em uma área de centralidade em relação
ao Brasil, a área rural ou sertão carioca inicia um processo de desa-
celeração da produção, a Fazenda Bangu, por exemplo, é vendida
para a Companhia Progresso Industrial do Brasil (Fábrica Bangu),
uma fábrica de tecidos inaugurada em 1889, que impulsiona o cresci-
mento populacional, criação de vilas operárias, a criação da Estação
de trem de Bangu (1890) e outros equipamentos urbanos, que fica-
rão concentrados ao redor da fábrica.

Por outro lado, o desmembramento e loteamento das fazen-


das Coqueiros e Viegas também contribuem para as transformações
na paisagem. Vale ressaltar que, no caso da Fazenda Viegas, a sede
da fazenda e a capela foram reconhecidas como patrimônio em 1938,
embora estejam em estado de abandono. E em 1996 a prefeitura do
Rio de Janeiro (decreto nº 14.800) cria a unidade de conservação
ambiental Parque Municipal Fazenda Viegas, mantendo assim, um
ponto de memória e de resistências no bairro, a título de exemplifi-
cação, citamos o encontro de grupos de capoeira (como a Capoeira
Senzala) e outros movimentos populares que no mês de novembro
(consciência negra) se reúnem nesse local.

Com o desmembramento destas fazendas, intensificam-se


os conflitos de permanência na terra, pois grileiros almejavam inva-
dir as terras, como verificamos no fragmento abaixo em estudo sobre
os conflitos na Fazenda Coqueiros (bairros de Santíssimo e Senador

SUMÁRIO 62
Camará) e que apontam resistências através da organização comu-
nitária através de associações de lavradores:
o representante trabalhista apresentava ‘um histórico’ da
Coqueiros: teria se originado de uma ‘sesmaria’ doada
pelo governo aos pretos forros. Na visão de Carvalho, ela
seria uma herança jacente, pois não viviam mais descen-
dentes dos pretos forros ali. Posteriormente, a propriedade
foi ‘empolgada por um dos mais vorazes e desumanos gri-
leiros que proliferam nesta terra, Hermano Barcelos’, dono
da Cia. Rural e Urbana. A União teria conseguido reincor-
porá-la em 1942, mas três anos depois, ela voltou às mãos
de Barcelos, ‘que por influências políticas e de amizade,
conseguiu anular o ato do governo’. Finalmente, parte dela
fora vendida ao IAPI (Instituto de Aposentadoria e Pensão
dos Industriários). Em setembro de 1952, o número de
lavradores ameaçados pelo IAPI tinha dobrado para 400,
segundo cálculo do Imprensa Popular, apesar da sempre
crescente ameaça de despejo. A luta desses lavradores –
que se autointitulavam ‘posseiros’ que lá trabalhavam ‘há
dezenas de anos’ – seria muito antiga, confirmando a ver-
são de Aguir Tavares: em 1927, por exemplo, eles teriam
obtido ‘uma manutenção de posse e direito de retenção
contra a Cia. Rural e Urbana do Distrito Federal’. Mas dife-
rentemente desses anos, em que a luta parecia respeitar
os limites impostos pela lei, o pretenso proprietário (IAPI)
se utilizava de métodos pouco amistosos. Os lavradores
denunciavam que ele queria que eles assinassem um
contrato de locação; diante da resistência dos ‘posseiros’,
o instituto teria recorrido à polícia e a um oficial de jus-
tiça, ‘que intimidaram os trabalhadores’. Ao que parece,
a situação permaneceu tensa durante toda a década de
50, com várias idas dos lavradores de Coqueiros ao cen-
tro da cidade. Numa delas, já em 1957, eles protestavam
contra a violência praticada pela polícia numa medição
feita pelo IAPI. Em fins de 1963, o referido órgão ainda era
objeto de denúncias; numa concentração de lavradores
na Assembleia Legislativa, o presidente da Associação
Rural de Santíssimo José Ribeiro, alegava que o instituto,
‘por incrível que pareça’, tentava ‘despejar os verdadeiros
donos’ daquelas terras (Santos, 2011, p. 2).

SUMÁRIO 63
A Citação nos remete a um problema nacional, a grilagem de
terras, ou seja, o acesso à terra através da falsificação de documentos,
transformando o processo de produção de moradia em uma relação
voltada para a lógica da produção do capital e que é mediado pela
violência através da expulsão daqueles/as que já viviam/sobreviviam
no território, no caso citado acima, pequenos agricultores e posseiros
onde a terra também significava trabalho, memória e ancestralidade.

Assim, com o declínio das atividades rurais e a fragmentação


da fazenda Viegas e Fazenda Coqueiros no final do século XIX, temos
a proliferação de chácaras e sítios, no geral, voltados principalmente
para a plantação de laranja, inclusive para a exportação. No entanto,
a falta de investimentos públicos na agricultura do “sertão carioca”
e ainda, uma praga que desolou os laranjais, somando-se a pressão
do mercado imobiliário, ora por atuação de grileiros/falsificadores de
documentos, que por vezes atuavam com violência, ora pela ação
do Estado na construção de conjuntos habitacionais nesta região,
como por exemplo o Conjunto Santa Cruz (conhecido na atualidade
como Favela do Sapo) ou o Conjunto Habitacional Miguel Gustavo
(conhecido como Favela do Rebu) temos uma transição do rural para
o urbano, que é marcada pela concentração populacional sem pla-
nejamento urbano (saneamento básico, asfalto, transportes, escolas
ou equipamentos culturais).

A Fábrica Bangu também irá lotear sua propriedade ao longo


do tempo, a título de exemplificação citamos a venda de terras da
Fábrica Bangu para Companhia Estadual de Habitação do Rio de
Janeiro – COHAB, que criará os conjuntos habitacionais de Vila
Aliança (1962) comunidade localizada em Bangu e Vila Kennedy
(1964). Nestes casos, a escala de produção do espaço também
extrapola a local, através do acordo Aliança para o progresso entre
Brasil e Estados Unidos no período da Guerra Fria, cria-se habita-
ções populares para as populações removidas de favelas de áreas
em processo de valorização imobiliária na cidade (Zona Sul e Zona
Norte do Rio de Janeiro).

SUMÁRIO 64
O BAIRRO DE SENADOR
CAMARÁ NA ATUALIDADE
A partir de 23 de julho de 1981, a prefeitura do Rio institui o
bairro de Senador Camará, com uma área total de 1.723,59ha e uma
população de 105.515 habitantes (IBGE, 2010), veja a localização do
bairro no mapa abaixo:

Mapa 1 - Localização do bairro de Senador Camará

Fonte: elaborado pela autora (2022).

O bairro de Senador Camará foi apontado no Censo de 2010


(IBGE, 2012) como a quinta maior população favelada da cidade do
Rio de Janeiro, tendo a Rocinha com 69.161 moradores, em primeiro,
seguida pelo Complexo da Maré, com 64.094, Complexo de Rio das
Pedras, com 63.484 habitantes, Complexo do Alemão com 60.584 e,
por fim, o complexo de favelas Fazenda Coqueiros no bairro citado,
com 45.415 moradores.

SUMÁRIO 65
Se levado em consideração a extensão territorial ocupada,
o complexo de favelas denominada Fazenda Coqueiros passa a ser
considerada a maior da cidade do Rio de Janeiro, alcançando uma
área total de 1.095.094 metros quadrados. No complexo de fave-
las Fazenda Coqueiros, que engloba praticamente todo o bairro de
Senador Camará, destacamos: a favela do Sapo, favela do Rebu, a
favela do Cavalo de Aço e a favela da Coreia, todas essas comunida-
des possuem presença do tráfico de drogas e a ausência do poder
público. Em períodos de operações policiais a violência é acentuada,
seja pela presença de barricadas nas ruas construídas pelos trafican-
tes, seja pelo Caveirão da terra (carro blindado) ou o Caveirão do ar
(helicóptero blindado).

O surgimento das facções criminosas (1979) no Rio de Janeiro


ocorreu no período da Ditadura Militar brasileira em que presos
políticos e presos comuns encarcerados juntos no presidio de Ilha
Grande/Angra dos Reis refletem sobre as injustiças da sociedade.
Um dos fundadores dessas facções, a saber, a Falange Vermelha
e posteriormente Comando Vermelho, foi Rogério Lemgruber, que
durante a juventude veio morar no Conjunto Santa Cruz (atual-
mente favela do Sapo) no bairro de Senador Camará onde fundou
o Comando Vermelho Rogério Lemgruber – CVRL. Durante muito
tempo o bairro de Senador Camará foi dividido por facções rivais, e
a linha do trem estabelecia os limites: de um lado da linha do trem
onde fica a Avenida Santa Cruz e do outro lado da linha do trem onde
fica a estrada do Taquaral, eram áreas rivais, a divisão lado “A” e lado
“B” se encaixava em um bairro “partido”.

Nas pesquisas realizadas não conseguimos identificar clara-


mente em que momento o bairro deixa de ter guerras entre facções
rivais, talvez com a morte de Rogério Lemgruber em 1992, dissidên-
cias ou surgimento de outras facções, como o Terceiro Comando
– TC (1980) e o Amigos dos Amigos – ADA (1994) e o Terceiro
Comando Puro – TCP (2002). Em jornais encontramos pistas que o
TCP passa a ganhar força e dominar comunidades nas regiões Oeste

SUMÁRIO 66
e Norte da cidade do Rio de Janeiro, dentre esses locais, o bairro de
Senador Camará, ou seja, complexo de favelas Fazenda Coqueiros,
principalmente nas favelas do Rebu, Cavalo de Aço, Coreia e na
vizinha Vila Aliança.

Vale ressaltar que as favelas que compõem o bairro são


marcadas pela insegurança socioterritorial, precariedade no acesso
aos equipamentos urbanos e culturais, que se alicerçam em uma
dinâmica de exclusão dominante na sociedade capitalista. Territórios
precários que revelam um acesso restrito à cidade, e por vezes, sua
negação, afinal os moradores vivem a precariedade do emprego,
ausência de qualificação suficiente, elevada taxa de desocupação e
incerteza do futuro.

Tal cenário é fundamental para a construção da narrativa


entre os jovens que o bairro “não tem nada”, afinal, é como se os
moradores/as só surgissem no mapa da cidade quando os meios de
comunicação de massas tratam das operações policiais e da insegu-
rança, no entanto, vale destacar que o bairro possui a produção de
informações através de veículos alternativos, como as redes sociais,
o “Camará Tem Voz” é um exemplo.

O BAIRRO QUE “NÃO TEM NADA”?


Em sua dissertação de mestrado (CEFET/2019) a profes-
sora Fabiana Melo Sousa sistematiza informações sobre o bairro de
Senador Camará partindo da afirmativa dos alunos/as de que “Aqui
não tem nada”, ou seja, os/as alunos/as, jovens moradores/as de
Senador Camará enxergam no bairro todas as suas ausências, no
entanto, possuem dificuldades para tratar de suas potencialidades,
das organizações e redes comunitárias, as resistências e do patrimô-
nio cultural em geral.

SUMÁRIO 67
Sendo assim, o discurso oficial, noticiado pelos meios de
comunicação de massa, sobre a violência, o marginal, o ilegal passa
a ser forte entre os sujeitos locais.

No trabalho desenvolvido buscamos outros caminhos, como


entender os movimentos populares ao longo do tempo que se
organizam nesse território e que possibilitam entender a resistên-
cias culturais e políticas, sobretudo de trabalhadores/as que lutam
pela sobrevivência cotidiana, ou seja, focamos nas potências, nas
formas de resistências.

Desta forma destacamos que o bairro possui uma grande


diversidade artística cultural e grupos que resistem as violências coti-
dianas. Os primeiros grupos que construíram lutas no território liga-
das a identidade e a sobrevivência que conseguimos mapear foram
os lavradores e posseiros que através da criação da Associação de
Lavradores da Fazenda Coqueiros resistiram a grilagem e a expulsão
de suas terras. As associações de Moradores também serão impor-
tantes em todo o bairro, a partir da década de 1970, lutando pelos
equipamentos básicos, tais como asfaltamento das ruas, transportes,
iluminação, e criação de coretos em momentos festivos, como o car-
naval. Algumas associações de moradores existem até hoje.

As heranças rurais se mantêm em vários momentos do bairro.


Logo em uma das entradas principais, a Estrada do Taquaral, encon-
tramos o “Chuchuzal” área agrícola que se mantém, mesmo com o
crescimento populacional do bairro, com mais de 130 mil habitantes.

Os grupos de capoeira, sendo o Senzala, o mais antigo que


encontramos, se organizam em projetos nas escolas públicas, uma
vez por mês fazem apresentação na feira livre na estação do trem de
Senador Camará e em novembro, realizam a culminância de suas
atividades na Fazenda Viegas.

As turmas de Bate-Bola – a partir de 2003 a prefeitura do Rio


de Janeiro decretou como Patrimônio Cultural Carioca os Grupos de

SUMÁRIO 68
Foliões Carnavalescos denominados “Clóvis” ou “Bate-bolas” – no
bairro de Senador Camará a cultura dos bate-bolas está pulsante.
Conseguimos mapear alguns grupos, os mais antigos, com mais de
trinta anos de existência, como a Turma do Coqueiro, Turma da paz,
Fidelidade, Nova geração, Turma do Sonic, Turma da luz e os mais
recentes: Explosão, Perfeição, Turma do Índio, Turma da Ferradura,
Constelação, Aloprados, Sempre Jovem e Sensacional. Vale ressal-
tar que muitas turmas criaram alas femininas, como as Herdeiras
do Coqueiro e que movimentam grafiteiros que fazem a pintura dos
muros, costureiras, ousaremos aqui em dizer que são como “minies-
colas” de samba, que movimentam a economia comunitária.

Também é importante citar que as rodas de samba do Rio


de Janeiro se tornaram Patrimônio Cultural Imaterial em 2019 e o
bairro de Senador Camará possui uma história antiga com o samba,
acreditamos que estreitamente vinculada as raízes de resistência
desse território, pequenos agricultores, luta pela permanência na
terra, remoções. Identificamos no bairro a organização de coretos e
blocos de carnaval com concursos de samba-enredo e muita folia,
sendo assim, durante a década de 70/80 do século XX conseguimos
levantar o funcionamento do Mobral do Amor, Flor do Rebu, Mamãe
não deixa do Jabuor, Unidos de Miguel Gustavo, Dragões de Camará,
Gaviões de Camará, Aprendizes dos Coqueiros. Atualmente são as
rodas de samba que se destacam, acontecendo em bares, mas tam-
bém na feira aos domingos, como a roda de samba dos Bambas.

O funk também possui raízes nas comunidades de Senador


Camará, desde o surgimento dessa manifestação cultural na década
de 80 do século XX, o bairro realizava bailes, por exemplo nas ruas
(como a rua A), nas escolas (como no Ciep Rubem Braga) e no
espaço do Mobral do Amor. DJs, equipes como o estúdio M&A, e
MCs, como MC Coioti, MC Colibri são “crias” do bairro.

O bairro apresenta várias atividades que ainda preci-


sam ser pesquisadas, como por exemplo as rodas de rap, o graffiti

SUMÁRIO 69
e os movimentos populares, como por exemplo de educação ambien-
tal, ou seus patrimônios materiais, tais como a Fazenda Viegas
e o Marco Sete.

MAPEANDO POSSIBILIDADES
ATRAVÉS DA HISTÓRIA LOCAL
Em 2018 iniciamos um projeto com os/as alunos/as com a
participação dos bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação à Docência – PIBID que mergulhava na história e geografia
do bairro onde se localiza a escola e que vive a maioria da comu-
nidade escolar. Neste momento, de forma presencial, realizamos
pesquisas, leituras, recebemos moradores na escola e realizamos
trabalhos de campo.

A partir do contexto da pandemia tivemos que nos rein-


ventar. Em nossa comunidade escolar a utilização do WhatsApp foi
nosso espaço de diálogo, nesse momento do projeto, utilizamos o
Google formulários para interagir com os alunos, as vezes de forma
objetiva, mas na maioria das vezes, com questões abertas em que
pudessem indicar suas vivências no bairro, indicar moradores anti-
gos, enviar fotos, relatos, uma teia de informações e relacionamentos
foram se construindo.

A descoberta do ex-morador Carlos Eduardo Fagundes,


conhecido como Maestro das ruas, que escreveu uma música em
homenagem ao bairro e que abriu um leque de informações sobre a
importância do samba, do carnaval e da vida comunitária, inclusive
na denúncia das desigualdades sociais e do racismo, foi um ponto
importante para a pesquisa e criação de uma rede.

SUMÁRIO 70
Durante a pesquisa questionamos a homenagem feita ao
Senador Otacilio Camará, que dá nome ao bairro e que nem per-
tencia ao território, e no geral, é desconhecido dos moradores/as.
Passamos para uma tentativa de ressignificar o local, lembramos
imediatamente das rodas de capoeira e de samba onde “Camará”
aparece como camarada, parceiro, jogador. Certamente ser mora-
dor de Camará exige muita solidariedade comunitária, muita cama-
radagem, muita coragem e criatividade, afinal, como abordamos
aqui viver na periferia da cidade, em um território precário de instru-
mentos urbanos e culturais, com o crescimento da favelização e da
violência aumenta a vulnerabilidade social. Sendo assim, estar em
Camará também significa potência e resistência!

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos ao longo dessa pesquisa a importância da
memória social coletiva do bairro, enquanto área periférica da cidade,
afinal as representações que são construídas desses grupos estão
por vezes, vinculadas à criminalização de suas ações sociais e artís-
ticas. Olhando para o passado podemos indicar a capoeira, o samba,
o funk, ou seja, atividades vinculadas às populações de matriz negra
ou favelada como pilares importantes da identidade comunitária e
que historicamente são marginalizadas. E que no bairro de “Camará”
se apresentam como formas de resistência.

Saber mais sobre a história das fazendas Viegas, Coqueiros,


a luta pela permanência da terra no “sertão carioca”, o crescimento
populacional com a criação de conjuntos habitacionais de grupos
de várias “gentes” vindas de processos de remoções e, ainda, do
êxodo rural, possibilitaram aos alunos/as/moradores/as reconhecer
que o bairro de Camará possui grande diversidade cultural e que
precisamos conhecer e valorizar, não de forma ingênua, negando as

SUMÁRIO 71
ausências e urgências, mas entendendo todos os apagamentos que
as classes populares sofreram/sofrem na história e geografia, mas
principalmente, todas as lutas travadas pelos que vieram antes. Êh
Camará… Êh, Êh, Êh Camará!

REFERÊNCIAS
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Brasileiro de 2010.
Rio de Janeiro: IBGE, 2012.

SANTOS, Leonardo Soares dos. A Cidade Está Chegando: Expansão Urbana na Zona
Rural do Rio de Janeiro (1890-1940). Revista Critica Histórica. Ano II, n. 3, Julho/2011.

SOUSA, Fabiana Melo. Aqui não tem nada? A favela como um problema filosófico a
partir de uma cartografia numa escola de Senador Camará. 2019. Dissertação (Mestrado
em Filosofia e Ensino) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia e Ensino do Centro
Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca. CEFET/RJ, 2019.

SUMÁRIO 72
6
Yanka Martins Pereira

FAVELAS CARIOCAS
E A VIVÊNCIA DO FAVELADO:
O ACESSO AO ENSINO SUPERIOR,
ULTRAPASSANDO MUROS E BARREIRAS

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.6
INTRODUÇÃO
O presente ensaio se constitui enquanto parte de reflexões
levantadas academicamente no mestrado em Serviço Social e em
especial no Laboratório de Estudos Urbanos e Socioambientais da
PUC-Rio. Objetivamos, a partir de reflexões teóricas e indagações
enquanto uma favelada universitária, propor o debate acerca da
construção da cidade do Rio de Janeiro, em especial a vivência nas
favelas cariocas e a chegada de seus moradores ao ensino supe-
rior de educação. Seu referencial teórico-metodológico considera a
intensificação das desigualdades sociais, raciais e de gênero e traz
como apontamentos finais que o movimento de acesso e perma-
nência de favelados ao ensino superior se constitui, enquanto uma
forma de resistência, capaz de romper barreiras socialmente e histo-
ricamente construídas.

Ao buscarmos referências que contribuam para a fundamen-


tação de reflexões sobre nossas vivências na favela, habitualmente
nos deparamos com análises que colocam estes territórios enquanto
locais de desordem, informalidade, violência, insalubridade, carre-
gando, ainda, uma conotação pejorativa para aqueles que residem
nestes espaços. Dessa forma, o termo “favelado” é associado a pes-
soa “mal-educada” e, até mesmo, “marginal”.

Mas afinal, o que é ser favelado? Quem é o favelado? Como


este se reconhece e se vê pertencente ao território da favela?
Objetivamos a partir desses questionamentos e de contribuições
teórico-metodológicas que consideram as diversas desigualdades
sociais, raciais, estruturais e de gênero, refletir sobre a concepção
de favela a partir daqueles que vivenciam essa realidade territorial.

SUMÁRIO 74
Um importante ponto de relevância para esta análise é
a contribuição das políticas de ações afirmativas8, que através do
sistema de cotas e programas de assistência estudantil, possibi-
litaram o acesso e a permanência de negros, pobres, favelados e
da classe trabalhadora – ainda que com limitações estruturais –
ao ensino superior.

Muitos de nós chegamos ao ensino superior sendo os primei-


ros da família a ingressar na universidade. O acesso a este espaço,
no âmbito intelectual, vem possibilitando a sistematização e discus-
são de assuntos antes invisibilizados, como o debate sobre a condi-
ção de vida em territórios favelados, a pobreza, a violência, o racismo
e até mesmo a reflexão sobre a universidade. Inclusive, ao que se
refere às instituições públicas, cuida-se observar como essas consti-
tuíram-se, ao longo dos anos, espaços elitizados. Deste modo, pode-
-se favorecer análises verticalizadas acerca da vivência favelada.

Nesse sentido, pensar a favela e a vivência na cidade pelo


olhar favelado pode se traduzir enquanto forma de resistência e
sobrevivência em uma cidade construída nos moldes capitalistas,
estruturada em raízes da desigualdade de uma sociedade de classes.
Além disso, esse movimento vem contribuindo para análises hori-
zontais e com mais proximidade do cotidiano favelado.

8 O termo Ação Afirmativa refere-se a um conjunto de políticas públicas para proteger minorias
e grupos que, em uma determinada sociedade, tenham sido discriminados no passado. A ação
afirmativa visa remover barreiras, formais e informais, que impeçam o acesso de certos grupos ao
mercado de trabalho, universidades e posições de liderança. Em termos práticos, as ações afirma-
tivas incentivam as organizações a agir positivamente a fim de favorecer pessoas de segmentos
sociais discriminados a terem oportunidade de ascender a postos de comando (Oliven, 2007, p. 30).

SUMÁRIO 75
A CONSTRUÇÃO DESIGUAL DA CIDADE DO
RIO DE JANEIRO, A VIVÊNCIA DA FAVELA
Historicamente as construções das cidades reiteram a segre-
gação social, visto que a oferta de moradias e acesso a serviços são
condicionados ao nível de renda populacional, o que reforça a divi-
são entre classes intrínseca a contradição capital/trabalho, e, tam-
bém, racial, visto que há uma evidente concentração da população
preta e parda em bairros pobres e periféricos.

Harvey (2014) analisa que há uma ligação íntima entre o


capitalismo e o processo de urbanização, visto que o capitalismo se
fundamenta na produção de mais valia. Nesse sentido, o capitalismo
necessita da urbanização para absorver o excedente da produção
que nunca para de produzir.

Consequência da formação e construção histórica brasileira,


fundante na colônia escravista, inicialmente com os povos nati-
vos e posteriormente pela escravidão de povos africanos. Nesse
panorama, observa-se que até os dias atuais há um reflexo desta
longa e cruel história, seja na herança política, cultural e econômica
do país, que refletem em desigualdades, forte concentração de
renda, poder e racismo.
Apesar de já extinta a escravidão e de o instrumento da
alforria ter perdido a função social, não havia empregos
que garantissem a sobrevivência desse segmento social
excluído, tanto política quanto economicamente, como,
por exemplo, a importação de trabalhadores brancos, o
que dificultou sobremaneira a integração do negro como
trabalhador livre no sistema reprodutivo (Sodré, 1988
apud Campos, 2010, p. 41).

A origem e expansão das favelas cariocas se desenvolvem


em decorrência de fatos espaciais, por exemplo em consequência de
processos de remoção dos cortiços, da criminalização/discriminação

SUMÁRIO 76
dos sujeitos que ali existiam (maioria negra), da crise habitacional e,
posteriormente, do evidente aumento do fluxo migratório.

A população mais pauperizada, constituída por desemprega-


dos, trabalhadores operários sem renda familiar suficiente e desas-
sistidos pelo Estado, encontrou, nesses espaços, lugar de moradia
nas cidades. Entretanto, historicamente, esta população é atingida
por políticas de remoção, além disso, cotidianamente se deparam
com dificuldades de acesso a serviços básicos, necessários para a
vivência e sobrevivência nestes territórios. Apesar dos entraves e
dificuldades, as favelas se constituem enquanto importante estraté-
gia de acesso e permanência no espaço urbano até os dias atuais.

Campos (2010, p. 63) aponta que a favela representa para a


sociedade republicana o mesmo que o quilombo representou para a
sociedade escravocrata. Um e outro, guardando as devidas propor-
ções históricas, vêm integrando as “classes perigosas” e até os dias
atuais vêm sendo identificados desta forma, inclusive pelo Estado, no
uso de sua força e aparato policial com medidas violentas e coercitivas.

Além da evidente dificuldade habitacional, o acesso a bens e


serviços essenciais (saneamento básico, energia elétrica, serviços de
transportes e de saúde) se constitui enquanto dificuldade enfrentada
por moradores suburbanos, periféricos e favelados. A não distribui-
ção equitativa dos serviços coletivos evidencia que estes são enten-
didos pelo capitalismo e absorvido pelo Estado enquanto produto do
mercado e não enquanto direito de todos – contrariando todo marco
legal referente ao direito à cidade.

Embora a focalização e minimização da intervenção do


Estado através das políticas sociais se constitua enquanto uma das
principais características das políticas ideologicamente neoliberais,
a história das favelas cariocas evidencia desde sua gênese, a insufi-
ciência na intervenção do Estado, o que corrobora para o protago-
nismo da chamada sociedade civil por meio de ações voluntárias,
solidárias e de caráter filantrópico.

SUMÁRIO 77
ULTRAPASSANDO MUROS E BARREIRAS,
A FAVELA E A UNIVERSIDADE
Conforme já mencionado, as políticas de ação afirmativa con-
tribuíram para o acesso ao ensino superior de uma população que
pouco se imaginou poder ser pertencente a esse espaço. Negros,
pobres, favelados, chegaram à universidade, muitas vezes sendo os
únicos da família a passar pela porta, como alunos.

A chegada de negros, pobres e favelados ao ensino supe-


rior, viabilizou além de uma profissão, grau de formação e todo o
conhecimento e experiência que academia é capaz de proporcio-
nar, a possibilidade de que esses possam contar a sua história, bem
como permitiu que esses sujeitos ganhassem voz para debater pau-
tas anteriormente invisibilizadas.
[...] eu sou quem descreve minha própria história, e não
quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como ato
político. [...] enquanto escrevo, eu me torno a narradora e
a escrita da minha própria realidade, a autora e a autori-
dade da minha própria história (Kilomba, 2019. p. 28).

[...] A nossa escrevivência não pode ser lida como história


de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em
seus sonos injustos (Evaristo, 2007, p. 21).

Assim como apresentam Grada Kilomba e Conceição


Evaristo, a escrevivência é mais do que contar uma história, é contar
a NOSSA história, é ato político, é resistência, incomodo daqueles
que lutam pela manutenção das estruturas coloniais e opressoras.

Destinados historicamente a ocupar na cidade os locais


com menor e mais precária rede e oferta de serviço, em relação ao
exercício de atividades laborais, favelados também são historica-
mente condicionados as atividades laborais “menos reconhecidas
socialmente”, com menores rendimentos, fragilidade de vínculos

SUMÁRIO 78
trabalhistas, mão de obra barata e especialmente destinadas ao tra-
balho braçal, babás, empregadas domésticas, caixas de supermer-
cado – profissões estas que não foram poupadas na pandemia.

Ainda que a educação seja considerada um direito previsto


constitucionalmente, no cenário brasileiro ainda é tida enquanto pri-
vilégio, em especial no nível superior, o que contribui para a manu-
tenção das classes e uma análise elitizada em especial sobre a
vivência em espaços mais pobres que eram vistos apenas enquanto
objeto de pesquisa e estudo.

De acordo com Adriano Senkevics (2022), pesquisador do


Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais Anísio Texeira
(Inep), em análise as informações colhidas nos censos educacionais
e do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), é possível observar
nos últimos 30 anos que houve a ampliação do acesso de jovens com
menor poder aquisitivo ao ensino superior, entretanto essa expansão
não exclui o cenário de desigualdade de acesso, apenas diminui.
[...] o processo de expansão, entremeado por políticas de
inclusão, resultou na redução da magnitude dessa desi-
gualdade, de tal maneira que se pode concluir que houve
uma perda relativa de posições sociais ocupadas pelo
segmento mais rico. O estudo mostra que, no passado,
as oportunidades de acesso ao ensino superior eram
usufruídas, quase exclusivamente, por essa parcela da
população. No entanto, mais recentemente, essa vanta-
gem comparativa foi reduzida pela crescente participação
dos jovens dos quintos mais pobres, que, embora ainda
em percentual diminuto, passaram a dividir o espaço da
universidade com os de origem relativamente privile-
giada (Senkevics, 2022).

Nesse cenário, reafirmamos a importância das políticas de


ação afirmativa no contexto socioeducacional brasileiro. Embora não
se configure enquanto uma política capaz de romper com a desi-
gualdade de classes, visto que essa é intrínseca ao capitalismo, elas
podem contribuir para a redução das desigualdades sociais.

SUMÁRIO 79
Com relação às políticas afirmativas, dirigidas para a dife-
rença e inclusão, a experiência é ainda relativa. Entretanto,
as políticas de ação afirmativa vêm apresentando alguns
resultados positivos, que podem contribuir para a redu-
ção das diversas formas de desigualdades sociais no
Brasil. Tendo em vista a exasperação da desigualdade
social brasileira e a necessidade premente de reversão
desse quadro, torna-se essencial a efetivação de políticas
de cunho igualitário e também das políticas de reconhe-
cimento das diferenças (Clapp, 2010, p. 151).

O acesso, a permanência e a formação para nós favelados


têm uma representação e importância maior do que um título, for-
mação ou ainda ter uma profissão socialmente mais valorizada, mas
ocupar este espaço carrega o sentimento de pertencimento, de estar
em um espaço que foi historicamente negado (por sua estrutura,
pela construção social), um lugar que os nossos pais e muitos dos
nossos não chegaram e nem se imaginaram chegar.

Ocupar este espaço é também fazer questionamentos à


saberes e estruturas acadêmicas até então inquestionáveis. Quando
nós favelados ocupamos este espaço, o ensino superior também é
obrigado a repensar suas estruturas, por exemplo a oferta de uma
grade de aulas com horário integral para jovens trabalhadores, ou
horários de aula após o horário de saída do último transporte público
etc. Nesse sentido, as políticas de ação afirmativa não devem se limi-
tar ao acesso, mas também devem se preocupar com a permanência
dos grupos em desiguais oportunidades de acesso ao ensino superior.

Ainda que a política de ação afirmativa não se constitua enquanto


uma política capaz de romper com a ordem capitalista vigente, acredi-
tando na educação crítica como potencializadora da transformação
social, podemos entendê-la enquanto caminho que pode vir a contribuir
para a luta e efetivação de uma sociedade livre de classes.

Frente ao cenário de desigualdade social em que a sociedade


capitalista se estrutura, reafirmamos a opinião de que meritocracia

SUMÁRIO 80
não existe. No cenário da cidade, na vivência de favelados, periféri-
cos, suburbanos, ocupar e permanecer neste espaço se traduz em
diversos desafios, por exemplo horas de trânsito em transporte pre-
cário para assistir aulas, rotinas de estudo após horas de trabalho,
bolsas auxílio com valor extremamente defasado frente a inflação e
alta dos produtos, o cenário pouco favorável indica que acessar e
permanecer é também resistir.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com todo o exposto, buscou-se pensar a cidade, em especial
as favelas, que desde a sua gênese são marcadas enquanto espaços
marginalizados; seja pela sociedade ou pela ação do Estado mar-
cada por intervenções pontuais no que compete a oferta de serviços
e garantia de direitos, mas com uma ação bem relevante e fortalecida
no que compete as ações repressoras, violentas e coercitivas. Nesse
percurso, pôde-se depreender as tensões que perfazem os territórios
de favela a partir da vivência do favelado, desvelando os desafios que
perfazem o acesso ao ensino superior, marcado pelas desigualda-
des de oportunidades historicamente estruturadas, sobretudo para a
população negra e periférica. Nesse enredo, afirma-se que as políti-
cas de ação afirmativa são, portanto, instrumentos importantes para
atenuar as desigualdades de acesso no campo educacional, mas
não isentam a necessidade de se fortalecer politicais de cunho igua-
litário e de reconhecimento das diferenças.

Como reflexo da estruturação desigual das cidades, a vida


na favela se constitui desde seu surgimento até os dias atuais como
forma de resistência social, por acesso, por reconhecimento, por direi-
tos. Isso porque, apesar de a precarização e focalização se constitu-
írem como características de políticas ideologicamente neoliberais,
as intervenções estatais sobre o território das favelas historicamente

SUMÁRIO 81
são pautadas em ações focalizadas e precárias, que culminam na
responsabilização da chamada sociedade civil, neste espaço, e dos
próprios moradores através de redes de solidariedade etc.

Embora historicamente moradores de favelas sejam coloca-


dos enquanto sujeitos subalternos, através de uma educação crítica
e questionadora de padrões de saber socialmente estabelecidos,
poder-se-á ocupar espaços em especial elitizados, o que se traduz
enquanto forma de resistência e possibilidade de ruptura com a
ordem societária vigente.

Ainda que a efetivação de uma nova ordem societária, livre da


exploração de classe, pareça distante e até mesmo utópica, defen-
demos a educação crítica, mediante ao acesso de forma universal
e a efetivação de políticas sociais que atendam às necessidades da
população favelada – participação popular – como estratégias capa-
zes de contribuir para a construção de novos caminhos. E se a favela
ainda não venceu, ela vai vencer, visto que fomos os primeiros, mas
não seremos os últimos.

REFERÊNCIAS
CAMPOS, Andrelino. Do Quilombo à favela: a produção do “espaço criminalizado no Rio
de Janeiro”. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2010. 208p.

CLAPP, Andréia. Políticas de Reconhecimento X Políticas de Redistribuição? Um Dilema


Contemporâneo. O Social em Questão, ano, XIII, n. 23, p. 136-153, 2010. Disponível em:
http://osocialemquestao.ser.puc-rio.br/media/v13n23a07.pdf. Acesso em: 21 abr. 2023.

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento


de minha escrita. In: ALEXANDRE, M. A. (org.). Representações performáticas
brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Maza Edições, 2007. p. 21

HARVEY, David. Cidades Rebeldes: direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Ed.
Martins Fontes, 2014.

SUMÁRIO 82
INEP. Estudo detalha expansão da educação superior no Brasil. Assessoria de
Comunicação Social do Inep, gov.br, novembro de 2022. Disponível em: https://www.
gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/estudos-educacionais/estudo-detalha-expansao-
da-educacao-superior-no-brasil Acesso: 10 de janeiro de 2023.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação – episódios de racismo. Rio de Janeiro:


Cobogó, 2019.

OLIVEN, Arabela Campos. Ações afirmativas, relações raciais e políticas de cotas nas
universidades: Uma comparação entre os Estados Unidos e Brasil. Educação, Porto
Alegre/RS, ano XXX, n. 1, v. 61, p. 29-51, jan./abr. 2007. Disponível em: http://flacso.
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SENKEVICS, Adriano. Estudo detalha expansão da educação superior no Brasil. Inep.


Estudos educacionais. [S. l], 2022. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/
assuntos/noticias/estudos-educacionais/estudo-detalha-expansao-da-educacao-
superior-no-brasil. Acesso: 11 jan. 2023.

SUMÁRIO 83
7
Francisco Overlande Manço de Souza
Humberto Salustriano da Silva
Aryanne Paiva da Felicidade

PEDAGOGIAS CRÍTICAS
E INSURGENTES:
ARTICULAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO
POPULAR, ESCOLA PÚBLICA
E A “DEFESA” DE UMA DIMENSÃO
AMPLIADA DE EDUCAÇÃO

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.7
É difícil defender, só com palavras, a
vida (Melo Neto, 2007, p. 132).

INTRODUÇÃO
Ministramos em setembro de 2022 o minicurso “Pedagogias
Críticas e Insurgentes: Articulação Entre Educação Popular e Escola
Pública, e a Defesa de uma Dimensão Ampliada de Educação” na II
Jornada Científica Favelades Universitáries que oportunizou o apro-
fundamento teórico-político com enfoque na escola pública e espa-
ços de experiências de educação popular e decolonial. As reflexões
apresentadas apontam para o horizonte da perspectiva de uma
dimensão ampliada de educação que considera a relevância das
contribuições das concepções pedagógicas críticas, independente
do espaço formativo onde são realizadas. Logo, a articulação entre
educação popular e escola pública fundamenta as reflexões propos-
tas no curso, que visava aprofundar o debate para professores, edu-
cadores populares e militantes nos mais diversos contextos educa-
cionais a partir de/com pedagogias críticas e insurgentes.

Quando falamos sobre projeto de educação, nos referimos à


disputa de projetos de sociedade no curso dos processos históricos.
Atentos para não cairmos no “lugar” de romantização da educação
como solução para todos os males da sociedade, estamos cientes
de que “se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem
ela tampouco a sociedade muda” (Freire, 2000, p. 67). A educação,
enquanto direito público subjetivo consolidado na constituição de
1988 necessita ser articulada a outros direitos como habitação, segu-
rança, lazer e que, certamente, sem os quais não é possível reduzir
as desigualdades sociais. Dito de outra forma, a educação como pro-
cesso pedagógico-educativo é uma das engrenagens de transfor-
mação da sociedade, porém depende de outras políticas públicas

SUMÁRIO 85
para a concretização de uma sociedade pautada por justiça social.
Precisamos refletir sobre o papel dado ao processo educativo que o
restringe ao de formador de “capital humano” e que contribui para a
sustentação do discurso de ascensão social “pelos estudos”. Assim,
os estudantes oriundos das classes populares, desde pequenos,
ouvem o conselho do “estuda, meu filho, para ser alguém na vida”, tal
pensamento contribui para, em alguma medida, reforçar o discurso
de meritocracia que deposita todo sucesso ou insucesso no esforço
pessoal desconsiderando a falta de condições materiais que tanto
prejudicam a vida estudantil das filhas e filhos da classe trabalha-
dora. Sem a transformação das condições estruturais da sociedade,
somente a educação não dá conta de disputar um projeto de socie-
dade pautado por justiça social.

Desse modo, há um esforço para a superação dos desafios


e obstáculos presentes no cotidiano do campo da educação, sobre-
tudo, nos espaços formativos de intencionalidade política transfor-
madora proveniente dos movimentos populares no enfrentamento
às desigualdades sociais. O golpe de 2016, defendido por determina-
dos setores da sociedade como impeachment, destituiu a presidenta
Dilma Roussef e contribuiu para o avanço do neofascismo na socie-
dade brasileira e a eleição da extrema-direita em 2018. São visíveis
para a sociedade brasileira as graves consequências produzidas pelo
governo, no período de 2019-2022, de característica (neo)fascista que
consolidou um ambiente antidemocrático através do avanço de pau-
tas conservadoras associadas a valores e práticas antidemocráticas.
Acirrando as diferenças sociais de classe, raça e sexo/gênero mani-
festadas nos discursos e práticas de ódio. Este cenário sociopolítico,
descrito acima, agravou as desigualdades já existentes, expondo
ainda mais sua face perversa e injusta para os estudantes das clas-
ses populares que acessam as escolas públicas, especificamente as
situadas nas periferias e favelas do estado do Rio de Janeiro.

A articulação entre espaços formativos, educação não for-


mal e educação formal, a partir de experiências educacionais com

SUMÁRIO 86
caráter de intencionalidade política emancipadora é imprescindí-
vel para que a concepção pedagógica da Educação Popular possa
ser uma realidade na Escola Pública, espaço de formação humana
e intelectual das classes populares. Desse modo, as experiências
da educação popular realizadas nos espaços de educação não for-
mal buscam concretizar o algo novo possível de ser realizado ou,
segundo Paulo Freire, o inédito viável de contribuir em busca de uma
educação criticizadora, democrática e cidadã, na defesa da escola
pública. Uma educação crítica, cidadã e democrática antídoto para
investidas antidemocráticas.

O COMPROMISSO ÉTICO-POLÍTICO
DA EDUCAÇÃO POPULAR
A Educação Popular é atualizada ao longo do tempo-espaço
nos enfrentamentos aos processos de dominação que retiram as
possibilidades existenciais dos diversos grupos que historicamente
foram colocados em um lugar de subalternidade. Assim, esse con-
fronto exige a reinvenção do que-fazer da EP (Educação Popular)
para melhorar a relação político-epistemológica da proposta educa-
tivo-pedagógica para que não perca de vista a realidade dos sujeitos
envolvidos, como bem disse Freire “todo aprendizado deve encon-
trar-se intimamente associado à tomada de consciência da situação
real vivida pelos educandos” (2001, p. 19).

As experiências de pedagogias Críticas-Insurgentes realizadas


em alguns espaços formativos – como é o caso dos pré-vestibulares
comunitários populares, dos museus sociais, dos movimentos sociais,
movimentos populares, dos terreiros, das igrejas, escolas, coletivos de
luta e de tantos outros espaços não formais de educação que atuam
nas periferias urbanas e favelas do Rio de Janeiro – são concepções
de pedagogias decoloniais que mobilizam ações de enfrentamento à

SUMÁRIO 87
educação bancária. A reprodução de colonialidades pedagógicas no
cotidiano de espaços formativos “acríticos-conservadores”, é a repeti-
ção de práticas da educação bancária. Segundo Souza, Rego e Silva
(2021, p. 192), “para além de uma EP que capacite tecnicamente as
camadas populares, o que se coloca em primeira linha é a insurgên-
cia dos saberes dos povos”, tal pensamento busca valorizar o acervo
sociocultural e político das experiências oriundas dos movimentos
sociais. Na Educação Popular, a criticidade é ao mesmo tempo meto-
dologia e propósito formativo, tal aspecto é reflexo da intencionalidade
política da concepção pedagógica da Educação Popular. Nesse sen-
tido, movimentos sociais e populares já vêm realizando há um bom
tempo o que hoje tem sido nomeado de educação democrática.

Assim, o que-fazer da Educação Popular de base latino-a-


mericana tem como gênese a experiência autêntica das lutas his-
tóricas desde os povos originários e atualizado pelos movimentos
sociais e populares e que criam inéditos viáveis (Freire, 1987, p. 60)
através de um projeto educacional de base crítica-insurgente que é
convergente aos interesses das classes populares. Apontamos tam-
bém para os pré-vestibulares comunitários que atuam nas favelas e
periferias urbanas do estado do Rio de Janeiro como um “lócus” de
irradiação destas experiências em Educação Popular. A educadora
popular e pesquisadora Noélia Rodrigues, no devir das experiências
pedagógicas de intencionalidades crítico-transformadora, nos ajuda
a compreender a intencionalidade da EP em sua pesquisa de douto-
rado quando afirma que a “educação popular configura-se com um
modo de fazer educação que com seus preceitos, suas qualidades,
sua ética e sua metodologia, avança e interfere diretamente nas rea-
lidades sociais dos espaços onde atua” (Rego, 2019, p. 154). Paludo,
também, contribui para ampliar a caracterização da EP:
Esta educação, orientada para a transformação da socie-
dade, exige que se parta do contexto concreto/vivido
para se chegar ao contexto teórico, o que requer a curio-
sidade epistemológica, a problematização, a rigorosidade,

SUMÁRIO 88
a criatividade, o diálogo, a vivência da práxis e o protago-
nismo dos sujeitos (Paludo, 2010, p. 141).

Dentro deste panorama, a concepção crítica da Educação


Popular é tecida nos diversos espaços formativos onde há superação
das situações-limite que são obstáculos à transformação da realidade,
das situações de opressão. A articulação dos diferentes espaços forma-
tivos deve estar na agenda das lutas sociais na perspectiva emancipa-
tória que consolida a transformação da sociedade via práticas educati-
vas contribuindo para o fortalecimento de uma dimensão ampliada de
educação. Tal pensamento, aproxima a educação formal e não formal na
defesa da articulação entre estes ambientes formativos, consolidando
assim a “interpenetração como movimento de entrecruzamento entre
as diversas modalidades de educação” (Libâneo, 2010, p. 89).

A nossa experiência, tanto na escola pública quanto nos pré-


-vestibulares comunitários nos permite defender que a Educação
Popular ao ser articulada com a realidade Pedagógica Decolonial
amplia as possibilidades de uma prática pedagógica que concre-
tiza a nossa “Vocação Ontológica do Ser Mais” (Freire, 2019, p. 86) e
evidencia um acervo de saberes-conhecimentos tecidos no enlace
entre essas duas concepções pedagógicas que constroem um sis-
tema educacional como processo de produção e criação de novas
realidades históricas sob um enfoque emancipatório (Mejia, 2018,
p. 123). A Educação Popular e a Pedagogia Decolonial podem ser
compreendidas como uma aposta político-pedagógica a ser viven-
ciada nos espaços escolares com enfoque em outras matrizes curri-
culares e que contribui na interpretação, transformação e desmonte
das estruturas que sustentam o sistema-mundo moderno/colonial.
Portanto, mediante o esforço teórico-metodológico de uma prática
pedagógica antirracista, antipatriarcado e anticapitalitsta que con-
fronta as desigualdades sociais, é possível avançar para uma dinâ-
mica de ensino-aprendizagem que parte da realidade concreta e que
considera a visão de mundo e as experiências de vida dos estudan-
tes envolvidos no processo educativo-pedagógico.

SUMÁRIO 89
A QUEM INTERESSA A CONSTRUÇÃO
DO DISCURSO DE FRACASSO
DA ESCOLA PÚBLICA?
O fortalecimento da escola pública deve ser um compro-
misso de toda a sociedade. É preciso que a escola seja compreendida
como espaço de formação humana, de legitimação da democracia e
de direitos na perspectiva de rede-comunidade, ou seja, a escola em
permanente diálogo com outras experiências educacionais produto-
ras de “aprendizagens e saberes” que estão no “entorno da escola”,
como afirma Libâne “nem a negação da escola, nem o isolamento da
escola em relação à vida social” (2010, p. 90-91).

A EP é defensora dos direitos das classes populares. É funda-


mental que os espaços de educação não formal assumam a defesa
incondicional da escola pública e seus sujeitos no horizonte de
uma educação emancipadora que contribua para o fortalecimento
da democracia. Não é possível que um estudante do ensino médio,
oriundo das classes populares, tenha que conciliar sua vida esco-
lar com outras atividades que, em alguma medida, dificultam a sua
formação. Uma parcela dos estudantes se submete a uma jornada
diária cansativa conciliando trabalho/estágio e no fim do dia ainda
frequentam um pré-vestibular. É preciso desnaturalizar o vestibular e
defender a escola pública como o espaço de democratização e uni-
versalização do ensino superior, da universidade. Sob esse prisma,
a escola pública é uma instituição fundamental para concretizar o
acesso à educação básica e ensino superior para as filhas e filhos
das classes populares, o ambiente de legitimação de direitos, da
democracia, o espaço de formação humana e intelectual para os
estudantes da educação pública.

É necessário dizer que não podemos perder de vista que os


impactos das desigualdades educacionais para a educação pública

SUMÁRIO 90
já eram perceptíveis antes da pandemia da covid-19, que as desi-
gualdades sociais e a precarização da atividade docente já impac-
tavam o cotidiano da escola pública enquanto “tecnologia da demo-
cracia”. Dentro deste panorama, a defesa de uma dimensão ampliada
de educação permite ampliar as possibilidades da articulação entre
a escola pública e a Educação Popular, que é realizada na educação
não formal, no fortalecimento de práticas educativas críticas e insur-
gentes e que promovam uma educação democrática. Que assegure
a escola pública como ambiente alinhado às demandas das clas-
ses populares e na ampliação das perspectivas de emancipação, na
reivindicação de uma escola democrática como bem vislumbrou o
educador Paulo Freire (Souza; Silva, 2021, p. 59).

Um projeto de educação democrática alinhada aos interes-


ses das classes populares contribui para uma sociedade democrá-
tica. Assim, é urgente a superação da hierarquização e antagoniza-
ção recorrentes na literatura acadêmica e no cotidiano da vida entre
estes espaços formativos de intencionalidade política transforma-
dora. Logo, a superação de tal problemática se faz necessária para
avançarmos em direção a perspectiva da dimensão ampliada de
educação, em que a articulação entre a educação formal e não for-
mal cria soluções possíveis para um ambiente de formação humana,
plural, crítica e insurgente.

Assim, “é preciso superar duas visões estreitas do sistema


educativo, uma, que o reduz à escolarização, outra que quer sacrifi-
car a escola, ou minimizá-la em favor de formas alternativas de edu-
cação” (Libâneo, 2010, p. 89), isto é, reivindicar a articulação entre
Educação Popular de base Decolonial (Rego, 2019) com a escola
pública significa dizer que a EP realizada nos espaços de educação
não formal deve assumir como compromisso prioritário a defesa da
escola pública produzindo assim o inédito viável freiriano de uma
dimensão ampliada de educação em que estes espaços formati-
vos não se contrapõem, mas se articulam na disputa de um pro-
jeto de sociedade pautado por justiça social. Assim, os princípios da

SUMÁRIO 91
Educação Popular questionam a intencionalidade política da educa-
ção acrítica, prescritiva, conteudista, bancária e tradicional visando a
concretização de uma educação crítico-transformadora e que contri-
bui com a formação de uma “nova cultura política” (Gohn, 2010, p. 93)
para as classes populares. Portanto, é no esperançar freiriano que
se concretiza a escola pública voltada para os interesses das cama-
das populares, de uma escola de fato cidadã a partir da dinâmica da
reflexão-ação, na interpretação da realidade através do pensamento
crítico, criador de uma perspectiva libertadora a partir do contexto
sociocultural dos educandos.

PAULO FREIRE:
MEDIADOR DA EDUCAÇÃO POPULAR
COM A ESCOLA PÚBLICA
A obra de Paulo Freire oferece diversas chaves de leitura,
recursos teóricos e práticos para o desafio permanente da constru-
ção de uma educação emancipadora. A Educação Popular que é rea-
lizada na educação não formal demonstra a eficácia da concepção
pedagógica de base freiriana que tem como cerne a educação como
prática de liberdade. Narrando um pouco das nossas trajetórias é
possível identificar que o ideário de Paulo Freire é uma bússola para
as nossas experiências educacionais “fora e dentro” das salas de
aula da rede pública de ensino na educação básica e enquanto edu-
cadores populares nos pré-vestibulares comunitários. A ação-refle-
xão que molda a metodologia de ensino-aprendizagem é a mesma,
independente do espaço formativo, pois carrega princípios centrais
da obra de Freire, tais como: dialogicidade, amorosidade, conscienti-
zação, o esperançar freiriano, entre outros.

SUMÁRIO 92
Libâneo (2010, p. 97) afirma que “a educação escolar que,
como veremos adiante, é uma instância de educação formal, não
pode eximir-se da interação com outras modalidades de educação
(informal e não-formal)”. A articulação entre espaços formativos não
é algo novo no campo da educação, inclusive consta no texto do
Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024, está previsto entrela-
çamento de experiências da educação não formal com a educação
formal, inclusive de experiências de educação popular e cidadã com
a escola, na perspectiva de políticas públicas:
7.28. mobilizar as famílias e setores da sociedade civil,
articulando a educação formal com experiências de edu-
cação popular e cidadã, com os propósitos de que a edu-
cação seja assumida como responsabilidade de todos
e de ampliar o controle social sobre o cumprimento das
políticas públicas educacionais (Brasil, 2014).

Neste sentido, a concepção pedagógica da Educação


Popular é uma importante ferramenta contra-hegemônica frente aos
interesses privatistas e neoliberais que avançam sobre a educação
pública. As pedagogias críticas divulgam saberes-conhecimentos
que são ferramentas pedagógicas convergentes com as especifi-
cidades locais, as singularidades práticas, políticas. Esse processo
dá sentido ao local e a seus sujeitos a compreensão da criticidade
(Freire, 2019, p. 32), desvela os mecanismos que formam os poderes
em suas diversas versões e que a “crítica é a trama básica com a qual
se tece democracia” (Mejia, 2013, p. 114).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensando o campo da educação como uma arena de dis-
puta de projeto de sociedade e entendendo os espaços formativos
como lugares de legitimação da democracia, cidadania e de uma

SUMÁRIO 93
nova cultura política, a escola pública cumpre com o papel funda-
mental de concretizar o cenário democrático. Uma escola capaz de
contemplar os estudantes das classes populares em suas especifici-
dades sociais, econômicas e culturais, convergindo com suas reali-
dades, ampliando percepções de mundo e permitindo que educan-
dos construam autonomias em um processo de reflexão-ação frente
a essa mesma realidade (Freire, 1987, p. 44).

A escola pública é, sem dúvida, insubstituível em sua função


social e política, e assim deve ser defendida como direito, espaço
de formação intelectual-humana dos filhos e das filhas das classes
populares, lugar onde se encontra a grande parcela dos jovens das
periferias urbanas e favelas do Rio de Janeiro. Por fim, tendo em vista
o que foi exposto, a articulação entre espaços formativos a partir/
com as pedagogias críticas e insurgentes realiza o inédito viável de
efetivar a perspectiva da dimensão ampliada de educação para os
estudantes da educação pública, contribuído para o seu desenvolvi-
mento intelectual, crítico e formação para a cidadania como prediz
os valores e princípios da Educação Popular.

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação -
PNE e dá outras providências. Brasília, Diário Oficial da União, 2014.

FREIRE, Paulo. A Pedagogia do Oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

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Paulo: Paz e Terra, 2019.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos.


Apresentação de Ana Maria Araújo Freire. Carta-prefácio de Balduino A. Andreola. São
Paulo: Editora UNESP, 2000.

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pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Centauro, 2001.

GOHN, Maria da Glória. Educação não formal e o educador social. Atuação no


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2010, 208 p.

MEJÍA, Marco Raúl. La Educación Popular: una construcción colectiva desde el sur y
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educação popular. São Carlos: Pedro & João Editores, 2018. 315p.

MELO NETO, João Cabral de. Morte e Vida Severina e outros poemas para vozes. Rio
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PALUDO, Conceição. Movimentos sociais e educação popular: atualidade do legado


de Paulo Freire. Leituras de Paulo Freire: contribuições para o debate pedagógico
contemporâneo. Brasília: Liber Livro Editora, 2010. p. 39-55.

REGO, Noélia Rodrigues Pereira. Práticas-investigativas-transformadoras e a educação


popular como perspectivas de trans-form-ação. 2019. Tese (Doutorado em Educação e
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Janeiro, 2019.

SOUZA, Francisco Overlande Manço de; REGO, Noélia Rodrigues Pereira; SILVA, Humberto
Salustriano da. Experiências e reflexões sobre a prática docente Anti/Contra/Decolonial
no ensino da História na escola pública e suas relações com o Museu da Maré como
uma ferramenta pedagógica da Educação Popular. Intellèctus, v. 20, n. 1, p. 185-206, 2021.

SOUZA, Francisco Overlande Manço de; SILVA, Humberto Salustriano da. Desigualdades
educacionais em tempos de pandemia: os desafios dos estudantes da escola pública e
das favelas cariocas em meio à crise sanitária global. Revista Espaço Crítico, v. 2, n. 2,
p. 52-68, 2021.

SUMÁRIO 95
8
Rodrigo Silva Magalhães

UMA “NOVA” MARÉ


NO ENSINO DE HISTÓRIA:
O LOCAL COMO TERRITÓRIO DE (RE)AFIRMAÇÃO
DA CIDADANIA, MEMÓRIAS, IDENTIDADES
E SUJEITOS HISTÓRICOS

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.8
INTRODUÇÃO
A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos,
ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o hori-
zonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais
alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para
que eu não deixe de caminhar (Galeano, 1993, p. 310).

O trabalho que venho apresentar a II Jornada Científica


Favelades Universitáries - Independências, Descolonização e
Territórios é oriundo da minha pesquisa de Doutoramento realizada
na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ-FFP), dentro do
curso de Pós-Graduação em História Social e do Território, na linha
de pesquisa Ensino de História e Historiografia9.

O trabalho tem como objetivo principal analisar o impacto que


pode provocar o ensino de história e, mais especificamente, o ensino
de história local, na construção de novos conhecimentos históricos
e, como a partir disso, podem se estabelecer novas relações com
local, novas memórias, novas identidades e um novo entendimento
do papel no mundo, por parte dos alunos do Ensino Fundamental
das Escola Municipal Escritor Millôr Fernandes, localizada na comu-
nidade Salsa e Merengue. A escola atende a um público de alunos,
voltado aos anos finais, ou seja, do 6º ao 9º ano.

A escolha dessa apresentação é uma questão emblemática,


pois quase sempre envolve questões de cunho pessoal e profissio-
nal. Essa é uma junção muito importante, pois leva-nos a pensar
naquilo que move a pesquisa, a intenção por trás dela. Na minha
pesquisa não é diferente. O próprio título já nos dá uma breve noção
do que pretendo. Assim, o trabalho emerge depois da soma de mui-
tas inquietações pessoais e profissionais. Diria até que há, entre as

9 Pesquisa de Doutorado realizada no Programa de Pós-Graduação em História Social e do Território,


na linha de pesquisa Ensino de História e Historiografia, com orientação do Profº Dr. Luis Reznik.

SUMÁRIO 97
duas, certo hibridismo ou uma complementaridade. Tais inquieta-
ções são oriundas de toda minha trajetória dentro da Universidade,
desde a graduação até os dias atuais, quando foram acentuadas
por conta da minha atividade como morador e professor de escolas
municipais da favela da Maré.

Acredito que a principal seria a de que como ao longo da his-


tória, importantes personagens e territórios são deixados à margem
das narrativas que contam a história do país. No nosso caso, como
a favela da Maré e seus moradores não conseguem se enxergar na
história e, por conseguinte, como sujeitos históricos possuidores de
direitos, memórias, identidades. Na maioria das vezes, infelizmente,
são tratados na perspectiva da ausência e diante de falas ligadas à
criminalidade e desordem. Assim, o questionamento vem do conhe-
cimento da história do local e de todas as lutas por parte dos mora-
dores para estabelecer seu chão e criar condições mínimas de exis-
tência. Por isso, o mais importante para mim nesse trabalho, será
pensar a partir do seguinte: como uma gama de sujeitos, histórias e
vivências podem permanecer ausentes dos espaços escolares?

Essa trajetória de silenciamentos, tem ligação com a visão


construída sobre as favelas ao longo da história. Desde a fundação
das primeiras favelas até os dias atuais. No passado e no presente,
percebemos a permanência de discursos baseados na presença de
subcidadãos, onde há violência, falta de higiene e ausência de res-
peito às leis. Nesse sentido, ao longo do século XX, as favelas foram
vistas como um mal que, em alguns momentos, deveria ser erradi-
cada, removida ou urbanizada como vem acontecendo nas últimas
décadas. Abaixo, fizemos questão de colocar como essas visões eram
apresentadas por diferentes atores sociais e, como importantes refe-
rências sobre o assunto, apresentam a ineficácia das ações realiza-
das nesses territórios e com seus moradores. Percebam no caso de
Amoroso (2012) e Gonçalves (2013) como apresentam visões atuais
sobre as visões ainda existentes sobre as favelas e seus moradores.

SUMÁRIO 98
Em Santo Antônio, outeiro pobre, apesar da situação em
que se encrava na cidade, as moradas são, em grande
maioria, feitas de improviso, de sobras e de farrapos,
andrajosas e tristes como os seus moradores. [...] Por
elas vivem mendigos, os autênticos, quando não se vão
instalar pelas hospedarias da rua da Misericórdia, capo-
eiras, malandros, vagabundos de toda sorte, mulheres
sem arrimo de parentes, velhos dos que já não podem
mais trabalhar, crianças, enjeitados em meio a gente
válida, porém, o que é pior, sem ajuda de trabalho, ver-
dadeiros desprezados da sorte, esquecidos de Deus
(Edmundo, 1938, p. 246-247).

Nos anos 1990, notamos a adoção mais sistemática de


uma abordagem governamental, iniciada na administra-
ção estadual de Leonel Brizola (1983-1987), que busca
uma aproximação maior com as favelas no que diz res-
peito a políticas que não mais objetivem sua erradicação,
além de uma nova abordagem policial para esses espa-
ços. Contudo, essa busca ocorreu em paralelo à caracte-
rização desses locais por setores da sociedade, a exem-
plo de jornais de grande circulação, que os viam como se
fossem de domínio exclusivo do narcotráfico, quando não
polo irradiador. Essa caracterização acabou por reforçar
fronteiras espaciais e sociais, gerando uma série de ten-
sões que afetam percepções sobre essas áreas, à medida
que compromete a relação entre favelas e espaço urbano,
tempo, valores pessoais, simbólicos e econômicos, tra-
zendo consequências para diferentes esferas do cotidiano
dos habitantes dessas áreas. Desse modo, a visibilidade
política apresentada pela problemática das favelas den-
tro da conjuntura histórica mencionada acima, bem como
o planejamento e a execução de melhorias materiais e
urbanísticas em termos das políticas públicas do período,
são embasadas pela visão desses locais como uma ame-
aça real à cidade e à sociabilidade de seus moradores
(Amoroso, 2015, p. 103).

Impede a construção de uma sociabilidade justa e cidadã:


as favelas permanecem, assim, o mal menor, até que uma
nova mudança no contexto político requestione a sua exis-
tência. Reforça-se a distância entre as favelas e o resto da

SUMÁRIO 99
cidade, apesar dos subterfúgios simbólicos para extingui-
-la. Enfim, o Favela Bairro, com os seus importantes inves-
timentos em infra-estrutura, corre o risco de se tornar uma
mera maquiagem urbanística sem a envergadura social
que poderia e deveria possuir (Gonçalves, 2013, p. 17).

Diante dessas construções de representações tão enviesa-


das e tão preconceituosas, acabam-se perdendo a beleza das lutas
realizadas pelos moradores desses territórios e como, a partir disso,
vão criando-se identidades com o local. A Maré, como qualquer
outra favela, está inserida nessas representações. No entanto, como
nesse trabalho. queremos apresentar outras perspectivas, pensamos
o território e seus moradores, a partir desses sentimentos de perten-
cimento e identidade com o local. Isso, porque a ocupação da Maré
se apresenta a partir da congregação de fatores materiais e imate-
riais, de ordem econômica, política, social e identitária.

A dimensão material está ligada a todas as tramas e dificul-


dades para a ocupação do espaço. Sejam elas relacionadas à ame-
aça de expulsão e ausência de materiais e locais adequados para a
construção das moradias. Essa dimensão nos leva a dimensão ima-
terial, intimamente ligada a sentimentos envolvidos no processo de
ocupação do território. Imaginem quantas incertezas, desilusões e o
prazer final de alcançar aquilo que sempre se sonhou.

Diante do exposto por esses autores e, concordando com


Santos (1999), o território surge quando indivíduos/grupos sociais
criam laços de reciprocidade, identificação, se tornando um, pois é ali
que se dá a reorganização de suas vidas, em um local surgido a partir
do seu labor, do seu suor, onde poderá construir novas histórias e,
quem sabe, uma vida melhor. Imagino essa trajetória como algo fun-
damental à existência dessas pessoas, principalmente os primeiros
moradores, com as suas necessidades tão latentes de chão, abrigo,
casa e comunidade. Santos, em dois textos nos indica que o

SUMÁRIO 100
Território é o lugar em que desembocam todas as ações,
todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas
as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente
se realiza a partir das manifestações da sua existência [...]
o território não é apenas o conjunto dos sistemas natu-
rais e de sistemas de coisas superpostas. O território tem
que ser entendido como o território usado, não o território
em si. O território usado é o chão mais a identidade. A
identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos
pertence. O território é o fundamento do trabalho, o lugar
da residência, das trocas materiais e espirituais e do exer-
cício da vida (Santos, 1999, p. 07).

Diante de um cenário tão rico que emerge da relação com o


local, preciso voltar à atenção em direção ao objeto desse trabalho
que é o ensino de História e, mais exatamente, o ensino de História
Local. Com a produção do território, através das múltiplas ações
empreendidas pelos moradores desde a década de 1940, quando da
fundação da primeira comunidade, o Morro do Timbau, muitas his-
tórias, memórias e identidades foram produzidas. No entanto, que
local é garantido para essas histórias dentro do ensino de História?
Embora, não tendo realizado um estudo específico sobre livros didá-
ticos, mas tendo contato com muitos deles e contato direto com a
matriz curricular de história, percebo a ausência dessas histórias em
suas linhas. Quando muito, as favelas aparecem no debate sobre as
desigualdades sociais, pelo menos isso nos cabe. Afinal, o que deve-
mos contar sobre os esses cidadãos? Ou como o comentário contido
nas redes sociais quando da inauguração do Museu da Maré:
Que lembranças terríveis são essas que as pessoas que-
rem tanto guardar na memória. Morar em palafitas, sem
rede de esgoto e inúmeras dificuldades enfrentadas. Sem
contar o que já foi dito anteriormente. Com a insegurança
predominante nas favelas, quem irá visitar esse museu?
(Isaias, 2006 apud Vieira, 2006, p. 2).

Esse comentário traz consigo essa falsa ideia de que a favela


não possui cultura, não possui história. Ao pensar a relação do nosso

SUMÁRIO 101
trabalho com o campo da educação e, mais propriamente, o ensino
de História, procuramos estabelecer as conexões necessárias, com
a possibilidade de discutir o que pensamos sobre currículo, cultura
e, por conseguinte, a escola que queremos. Nessa perspectiva, não
podemos deixar de citar e contar com o trabalho de alguns auto-
res como Apple (1989), Candau (2008), Hall (1997) e Moreira e Silva
(2008), pois mesmo apresentando características próprias, suas for-
mas de pensar nos permitem realizar conexões sobre as suas ideias.
Caminhando por essa vereda e, pensando as questões ligadas aos
currículos, os autores ressaltam a intencionalidade existente no seu
estabelecimento, que é a de formar identidades. Nesse sentido, o
currículo representa uma esfera de poder, pois pode criar signi-
ficados sociais, por conta de seu estatuto de “verdade” dentro da
sociedade. Não cabendo assim, nenhuma forma de questionamento.
Combatendo essa ideia, ou melhor, denunciando a intencionalidade
dos currículos, os autores afirmam que
O currículo é o espaço em que se concentram e se des-
dobram as lutas em torno dos diferentes significados
sobre o social e sobre o político. É por meio do currículo
que certos grupos sociais, especialmente os dominantes,
expressam sua visão de mundo, seu projeto social, sua
“verdade”. O currículo representa, assim, um conjunto de
práticas que propiciam a produção, a circulação e o con-
sumo de significados no espaço social e que contribuem,
intensamente, para a construção de identidades sociais e
culturais. O currículo é, por consequência, um dispositivo
de grande efeito no processo de construção da identi-
dade do(a) estudante (Silva, 1999b, p. 28).

Argumentarei que o currículo não existe como um fato iso-


lado. Ao invés, ele adquire formas sociais particulares que corporifi-
cam certos interesses que são eles próprios os resultados de lutas
contínuas dentro e entre os grupos dominantes e subordinados. Ele
não é o resultado de algum processo abstrato, mas é o resultado
dos conflitos, acordos e alianças de movimentos e grupos sociais
determinados (Apple, 1989). Na construção desses “conhecimentos

SUMÁRIO 102
oficiais” e, por consequência, de um modelo de sociedade, ocorre
uma tentativa de padronização cultural através dos currículos. Nessa
lógica perversa, a gradativa universalização da escolarização a todas
as classes sociais no país, principalmente nas últimas décadas, ser-
viu de base para o discurso da isenção. Esse discurso propagado
pelo Estado, dentro de sua lógica hegemônica, apresenta-nos a
ideia, de que colocando todos aqueles a quem por direito constitu-
cional, dentro da escola, diminui-se as arestas ao questionamento
do que vem sendo construído. Assim, caberia às escolas somente
o papel de reproduzir aquilo que estava acontecendo em outros
âmbitos da sociedade.

No entanto, por serem espaços de lutas por afirmação e cons-


trução de sentidos à existência, os currículos devem ser repensados
a partir das demandas sociais existentes em cada período. Assim,
podemos perceber nessa crítica e dentro do seu cenário de estudos
sobre currículo os alicerces à construção de novas instalações para
a formação curricular no país, ou pelo menos, primeiros “tijolos” dos
questionamentos emergentes no cenário sociocultural e, por con-
sequência, acadêmico. Vivemos um momento de lutas de grupos
sociais discriminados e excluídos de uma cidadania plena, que bus-
cam um lugar na história. Nesse movimento, as antigas identidades
relacionadas à ideia de Nação, são postas em prova, sendo supe-
radas pela insurgência de novas formas de representação. Candau
(2008) ao estabelecer uma articulação entre igualdade e diferença,
em uma perspectiva chamada de multiculturalismo. Segundo a
autora, o multiculturalismo possui várias vertentes já citadas acima,
aqui, por conta dos interesses específicos, de ampliação dos espa-
ços de afirmação e entrecruzamento de identidades, pensamos em
consonância com a perspectiva intercultural.

Na perspectiva intercultural pressupomos a valorização das


diferentes perspectivas de conhecimento e a possibilidade de junção
entre os conhecimentos inerentes as disciplinas e os da experiência.
Com isso, temos o intuito de levar a interculturalidade ao ambiente

SUMÁRIO 103
escolar, para que possamos fazer com que os(as) alunos(as) pas-
sem a desnaturalizar o familiar, desestabilizando crenças, que tra-
zem consigo inúmeras formas de preconceito. Vou dar um exemplo
simples, e acredito muito próximo da realidade de muitas escolas,
o da insistente estigmatização das religiões de matrizes africanas.
Quantas vezes não escutamos nos ambientes escolares “isso é
macumba professor”, “tenho medo disso, pois é coisa do mal”, entre
outras formas de significação negativa. Com certeza, essas falas
representam dentro do microcosmo escolar uma característica rati-
ficadora de todo esse texto, como o conhecimento de alguns grupos
e suas culturas foram deixados de lado da história.

Todo esse movimento vem sendo acompanhado pelo campo


de ensino de história e, mais especificamente, o ensino de história
local. Quando pensamos na produção de autores como Bittencourt
(2004), Mattos (2007), Monteiro (2007), Reznik (2004, 2005 e 2010),
Tardif, Lessard e Lahaye (1991) e Zavalla (2012). Obviamente, todos
esses mantêm ligações com outros autores do campo da História
que, se fossem citados aqui, tomariam muito tempo do leitor. O mais
importante é perceber o traço comum entre eles, o da preocupação
em estabelecer práticas de ensino diversas, capazes de se adequar
aos novos tempos. Fugindo de um modelo antigo baseado nos estu-
dos sobre a Nação, Pátria, o Estado e a Cidadania.

Por isso, precisamos como nos indica Zavalla (2012) colocar


nossa classe de história abaixo de uma lupa, na tentativa de mudar
e ampliar o olhar em direção a múltiplas direções. Só assim, sere-
mos capazes de ouvir as vozes “silenciadas” ao longo da História,
dos cidadãos que sempre existiram como “familiares distantes”, pro-
fessores em busca de identidade e reconhecimento, além do fato
da necessidade de produzirmos novos conhecimentos históricos,
a partir da sincronização dos múltiplos saberes. Nesse processo, o
conhecimento histórico escolar passaria por um processo de res-
significação, emergindo da junção entre os saberes de referência e
o cotidiano. Corroborando com essa dimensão e, visando romper

SUMÁRIO 104
com a antiga hierarquização de saberes, Bittencourt (1998) passa
a defender o conhecimento histórico escolar, como uma ideia mais
ampla, afirmando que
o conceito de conhecimento histórico escolar, que não
pode ser entendido como mera e simples transposição
didática de um conhecimento maior, proveniente da ciên-
cia de referência e que é vulgarizado e simplificado pelo
ensino [...] a história escolar não é apenas uma transposi-
ção da história acadêmica, mas constitui-se por intermé-
dio de um processo no qual interferem o saber erudito,
os valores contemporâneos, as práticas e os problemas
sociais (Bittencourt, 1998, p. 25).

Nesse cenário novo, torna-se imperativo realocar o papel do


local e dos alunos dentro da aula de história. Com isso, a aula de
história assume uma função importante. Esse novo status pode ser
explicado a partir do entendimento da frase de Furet (1975, p. 82)
“fazer História é contar uma História”. Ao contar uma história, produ-
zindo o que Mattos (2007) chama de “aula como texto”, as aulas de
história ganham uma nova perspectiva, pois partirão de inquietações
oriundas do cotidiano. Um cotidiano que nos remete às referências
constantes, sobre conceitos fundamentais do ensino de história,
como a relação dos alunos com as dimensões do tempo, com os
movimentos de rupturas e permanências.

Para Mattos (2007) essas “aulas como texto” estão sem-


pre em curso, representando um devir constante e uma passagem
dos velhos ritos e conhecimentos, o que valoriza nossos alunos, já
que aos se tornarem “leitores” em nossas aulas, poderão construir
o conhecimento histórico. Nisso reconhecerão sua existência como
sujeitos da história, constituintes não só das suas, mas da História em
sentido mais amplo. Segundo o autor
Nossos leitores são também muito diferentes entre si,
porque a escola que frequentam é muito diferente da de
seus avós e talvez da de seus pais; não podendo deixar de
se abrir para as diferenças e os diferentes, a escola já não

SUMÁRIO 105
pode pretender reproduzir uma homogeneidade, assim
como os textos das aulas de história já não se ocupam
com exclusividade da genealogia da nação, como diferen-
tes também são as indagações que nossos alunos fazem,
prenhes de outras tantas inquietações. [...] A aula de his-
tória como texto é criação individual e coletiva a um só
tempo; criação sempre em curso, que permanentemente
renova um objeto de ensino em decorrência de novas
leituras, de outras experiências vividas, da chegada de
novos alunos, dos encontros acadêmicos e das conversas
com os colegas de ofício, do surgimento de novos manu-
ais didáticos, das decisões emanadas das instâncias edu-
cacionais e das questões, dos desafios e das expectati-
vas geradas pelo movimento do mundo no qual vivemos,
em sua dimensão local ou global. [...] Ela é a condição de
passagem do velho para o novo conhecimento, por parte
dos que aprendem; de superação das explicações da vida
social, tributárias do senso comum e de aquisição de uma
consciência crítica; e da possibilidade de realização, ama-
nhã, de uma diferente leitura do mundo. Possibilidade de
uma prática que se renova a cada dia, a aula como texto
ou o texto de nossa aula propicia que cada um dos alunos
valorize as diferenças, constitua identidades, crie memó-
rias e exercite a cidadania. E, assim, torne-se capaz de
fazer sua própria história (Matos, 2007, p. 5).

A partir dessas concepções e daquilo que carregamos como


nossos “saberes de experiência”, percebemos a necessidade de
colocar o ensino de história local em pauta. Isso, porque as mudan-
ças ocorridas nos diferentes campos do ensino poderiam ser sin-
tetizadas nessa modalidade de ensino de História. Essas raízes
autobiográficas (Zavalla, 2012) dialogam com as demandas apre-
sentadas pelos(as) alunos(as). Hoje, como professor de História e
refletindo sobre a minha prática venho sendo convidado, ou melhor,
estimulado por eles(as) à “colocá-los” na História. Quantas vezes já
ouvi dentro das salas de aulas, por parte dos alunos frases como:
“Professor, por que tenho que aprender isso? Isso não tem nada a ver
comigo” ou “Professor, por que não falam sobre a Maré nos livros?” e
“Professor, o ano está terminando e o senhor não falou sobre a favela”.

SUMÁRIO 106
Esse nadar contra a maré do desinteresse, nos leva a remar ao
encontro da Maré como possibilidade de construção de um conhe-
cimento histórico, capaz de colocar esses alunos em pauta, como
coautores de suas histórias e as da própria favela.

Para isso, o trabalho com fontes sobre o local será fundamen-


tal. Como fontes documentais, utilizaremos as mais diferentes for-
mas possíveis, tentando trazer à tona, todos os vestígios produzidos
na localidade e/ou relacionados a ela. Esses materiais de memória10,
quando emergem de um contexto específico de determinado grupo
social e passam a fazer sentido a esse mesmo grupo, ganha sta-
tus de patrimônio. Essa é uma possibilidade muito interessante, pois
torna o passado como algo a ser experimentado para além da expe-
riência imediata daqueles que a constituíram. O passado não pode
ser vivido novamente, mas podemos a partir do seu reconhecimento,
criar sentido às nossas vidas na atualidade. Seguindo nessa linha de
pensamento, Reznik (2010, p. 93) nos informa que
A simples sobrevivência ao tempo não assegura por si só a
condição de transformar em patrimônio histórico um objeto,
um vestígio material, um acervo arquitetônico, uma foto-
grafia, uma música, uma comida, uma narrativa histórica.
Esses elementos só irão ganhar a condição de patrimônio
se nós construirmos sentidos contemporâneos para eles,
se incorporamos esses elementos como importantes para
nossas vidas e de nossas coletividades no tempo presente.

10 Pensando em questões metodológicas, devo dizer que a pesquisa utiliza como inspiração o Projeto
Caixa de História. O Projeto realizado pelos Professores da UERJ Helenice Aparecida Bastos Rocha,
Márcia de Almeida Gonçalves, Marcelo de Souza Magalhães, Rui Anicetto Nascimento Fernandes
e Luis Reznik. Todos fazem parte do grupo História de São Gonçalo: memória e identidade. A Caixa
da História contém um conjunto de atividades a ser utilizado com alunos de diferentes séries do
ensino fundamental. Constitui um instrumento voltado tanto para o resgate e a constituição do
patrimônio material e imaterial do Município, como para a (re)elaboração de memórias históricas
relacionadas à localidade. Apresenta propostas estruturadas em forma de atividades. Todas elas
são constituídas a partir de vestígios documentais referenciados ao patrimônio histórico, formal e
informal, da localidade. Ao figurarem como mediadores para a apreensão do patrimônio histórico
local, tais vestígios podem ser qualificados como materiais de memória; são pistas para refletir-
mos sobre as vivências passadas de indivíduos e coletividades.

SUMÁRIO 107
A partir desse trabalho, poderemos ganhar campo no prazer
de conhecer a história. Uma história pode os ajudar a entender o que
são ou gostariam que fossem (Le Goff, 1990). A partir do resgate inten-
cional desses lugares de memória (Nora, 1993), podemos combater
uma necessidade quase natural do ser humano, o de ter seu chão, sua
terra. A preservação da memória, assim, funciona como espaço de (re)
construção de sentidos e identidades, capazes de tornar aquilo que
não é, um passado presente. Por isso, devemos sistematizá-la para
ajudar no processo de formação dos sujeitos, revestindo-a de um sim-
bolismo definidor daquilo que queremos conhecer. De acordo com
Halbwachs (2006), essa é a beleza relativa à memória, pois ela passa
a existir na medida em que cria laços afetivos de indivíduos e um sen-
timento de pertencimento diante da vivência em determinado grupo.

Nesse sentido, Nora coloca nos sujeitos da ação memoria-


lista, o papel de preponderância na escolha desses lugares de onde
retiram a sua tradição, onde possam demarcar a sua posição em
relação ao passado e presente, ou seja, seu papel dentro da his-
tória. Segundo Nora (1993), esses processos de hibridez entre his-
tória e memória tornam legível aquilo que é inteligível, eliminando
o problema de não se ter memória (halbwachs, 2013), da memória
como algo não espontâneo. Desta forma, a memória passa a existir
na medida em que laços afetivos criam um sentimento de pertenci-
mento a determinado grupo. Foucault (2009), na sua Arqueologia do
Saber, nos exorta entre outras coisas, sobre a construção do conhe-
cimento e como ocorre a formação de discursos sobre o pensado e o
transmitido. Nesse sentido, o autor ainda colabora com a perspectiva
de Nora, informando que a sociedade e, por consequência cada indi-
víduo, tem a necessidade de buscar algo para além do vivido, capaz
de proporcionar um “porto seguro” diante das incertezas dos dias
atuais. Assim, Foucault aponta que
A história contínua é o correlato indispensável à função
fundadora do sujeito: a garantia de que tudo que lhe esca-
pou poderá ser devolvido; a certeza de que o tempo nada

SUMÁRIO 108
dispensará sem reconstituí-lo em uma unidade recom-
posta; a promessa de que o sujeito poderá, um dia – sob a
forma da consciência histórica –, se apropriar, novamente,
de todas essas coisas mantidas a distância pela diferença,
restaurar o seu domínio sobre elas e encontrar o que se
pode chamar sua morada (Foucault, 2009, p. 14-15).

Ao estabelecer contato com os alunos pude perceber a repe-


tição de uma característica muito peculiar aos moradores das comu-
nidades da Maré, a questão da pequena circulação pela Cidade e
grande vivência dentro do espaço da favela. A favela é para eles um
lugar de boas sensações, é “uma comunidade” (Bauman, 2003, p. 7).
No local não somos tratados como estranhos, todos se conhecem
ou, pelo menos, têm essa sensação. Todos são capazes de iden-
tificar os códigos sociais presentes ali e, por isso, são capazes de
viver de forma segura. Mesmo com os mais adultos, que precisam
sair da Maré em direção aos seus respectivos trabalhos, podemos
perceber como procuram criar redes e laços afetivos com outros
moradores e lugares de entretenimento dentro da própria Maré.
Podemos ver os bailes funk nas diversas comunidades, o forró muito
marcante na comunidade do Parque União por conta da presença
marcante de nordestinos, os inúmeros campos de futebol sejam da
Pati (Nova Holanda), da Toca (Vila do João), entre outras formas de
interação social. Bourdin (2001, p. 25) procura dentro do primeiro
capítulo de seu livro A Questão Local, dissecar essas noções de liga-
ção dos indivíduos com o local. Daí, corroborando com o apresen-
tado acima, ele afirma:
Dito em outros termos, a contigüidade territorial, a pro-
ximidade espacial, as relações de vizinhança e cotidiani-
dade estabelecem uma ética de pertencimento singular,
possibilitando uma sensação de conforto, de aconchego
e de segurança nesse pequeno mundo familiar: um terri-
tório circunscrito e limitado; pequeno, estando à vista de
seus membros; e auto-suficiente.

SUMÁRIO 109
De acordo com essa perspectiva, podemos entender que a
questão do local para os moradores e, no nosso caso, preocupados
com o ensino de história local, para os nossos alunos, é fundamental.
Assim, é necessário realizar um processo de valorização dessa his-
tória local, tornando-a o ponto de partida do processo de formação
do cidadão (Nogueira, 2001) e da relação do processo de ensino-
-aprendizagem. Nessa trajetória como professor de história local vou
procurar estabelecer algo para além da simples vivência que, pelo
simples fato de estar na existência desses alunos, não gera a com-
preensão necessária da realidade em muitos momentos. Com essa
noção, podemos tornar essa história vivida, em uma história refletida
e pensada (Monteiro, 2007). De acordo com Reznik (2010) essa deve
ser uma ação consciente da sua capacidade e, sobretudo, da sua
intencionalidade de tornar o local como agente potencializador de
entendimento sobre o lugar que ocupamos socialmente e aquilo que
produzimos a partir disso. Segundo o autor
Ao tomarmos como objeto o local – bairro, região, muni-
cípio -, esperamos que a experiência refletida sobre o ter-
ritório e a vizinhança contribuam para a reflexão dos valo-
res culturais ali presentes, abrindo novos horizontes para
a afirmação e transformação dos mesmos. Dito em outras
palavras, ao se enfatizar temas e objetos, espaços, indiví-
duos e costumes que podem ser reconhecíveis entre pes-
soas que pertencem a um determinado sistema cultural
baseado em relações de vizinhança, contiguidade territo-
rial e proximidade espacial, espera-se ampliar o potencial
da reflexão histórica (Reznik, 2010, p. 92).

Tornar o vivido em algo refletido tem se tornado cada vez


mais importante, diria até fundamental. Como já havia ressaltado no
início desse capítulo, um dos meus maiores questionamentos como
estudante de História, sempre foi à ausência dos “meus” nos mate-
riais e nas aulas de História. A partir desse processo de reformulação
ou ressignificação do ensino de história, podemos pensar no que
pretendemos fazer em nossa pesquisa, pois diante desses impor-
tantes referenciais, pude pensar no que pretendo como professor e

SUMÁRIO 110
pesquisador. Ao ter contato muito próximo, com uma realidade tão
específica quanto a Maré e, vendo algumas demandas sociais ine-
rentes àqueles alunos, decidi pesquisar o impacto e a importância
do ensino de história local.

Assim, procuro estabelecer a aproximação entre essa moda-


lidade de ensino com a formação cidadã dos alunos, seguindo as
recomendações dos documentos oficiais, mas procurando através
do respeito a diversidade e entendendo cada um como sujeito, esta-
belecer novos significados para o ser “favelado” morador da Maré,
através da aquisição do conhecimento e compreensão de alguns
conceitos históricos. É através da história local que pretendo, entre
outras coisas, desnaturalizar o real junto com meus alunos, coauto-
res de múltiplas histórias, silêncios e afetos.

Como já dito, trabalhar com a história local através de memó-


rias, nos permitirá fazer com que esses alunos se interroguem sobre
a história e, por consequência, sua própria história. Assim, não faria
sentido algum, se já chegasse com tudo pronto. A atuação dos alu-
nos deve ser estimulada, com o intuito, de transformar o aprendizado
histórico em um “laboratório”, aonde os(as) alunos(as) se tornem
também responsáveis pela construção do conhecimento a partir da
pesquisa. Desta forma, poderão elaborar suas percepções sobre a
realidade, tirar do esquecimento diferentes atores/fatos e produzir
novas histórias. Essas novas narrativas devem ser construídas a par-
tir das suas experiências como pesquisadores.

Finalizando esse trabalho e, acreditando ter apresentado de


forma satisfatória o assunto proposto, destaco e reafirmo a impor-
tância do ensino de história local a esses(as) alunos(as) das esco-
las do Campus Maré, situada na Maré, mais exatamente na comu-
nidade Nova Holanda. Penso ser, com essas aulas e essa atitude
diante do conhecimento, que poderemos (nós e os alunos) repen-
sarmos o ensino e o aprendizado da disciplina de História, estabe-
lecendo novos saberes, memórias, identidades e o reconhecimento

SUMÁRIO 111
de que suas histórias passam pelo entendimento de seu papel no
mundo, como sujeitos históricos. Nesse processo, poderemos junto
a eles(as) nos posicionar frente à uma cidadania perversa e silen-
ciadora. Colocando no lugar, uma cidadania que requer (auto)reco-
nhecimento e participação. Uma cidadania voltada à ampliação e
ao exercício de direitos, do questionamento de representações este-
reotipadas ligadas a eles(as) e ao local que vivem. Tudo isso, tendo
como partida, uma esfera especial de suas existências, a escola e
uma de suas disciplinas, a História.

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SUMÁRIO 115
9
Ana Carolina Lydia
Alycia Beatriz da Silva Rangel
Ana Luisa Santana Santos
Isabel Maciel dos Santos
Julia das Núpcias Moura
Júlia Oliveira de Mendonça

VOZ A ELAS

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.9
INTRODUÇÃO
A expressão assédio sexual abrange uma vasta gama de
comportamentos que vão desde agressões verbais até abuso sexual
e agressão sexual. O assédio sexual pode acontecer em diversos
contextos, não seguindo uma dinâmica específica. Pessoas de todos
os gêneros podem sofrer assédio sexual, mas percebemos que a fre-
quência é maior em mulheres. Assim, como mulheres estudantes do
Ensino Médio da cidade de São Gonçalo, a partir do encorajamento
da nossa professora de Geografia e de uma disciplina da Escola Firjan
SESI São Gonçalo, desenvolvemos um projeto visando a segurança
de meninas e mulheres na nossa cidade. Percebemos que muitas de
nós sofremos assédio, violência ou constrangimento sexual nas nos-
sas vidas e, com isso, desenvolvemos medo para nos deslocarmos
em nossa cidade. O projeto consiste em um aplicativo e um reló-
gio digital que, usando fontes de informação da polícia e de outras
mulheres, cria rotas seguras, redes de apoio e alertas para mulheres.

Em 2021, quando estávamos no 1o ano do Ensino Médio, a


Escola SESI São Gonçalo tinha em sua grade uma disciplina cha-
mada Jornada Pedagógica. Nela nós éramos estimuladas a observar
o que está ao nosso redor e pesquisar sobre o assunto de forma
que pudéssemos propor soluções inovadoras para problemas da
nossa comunidade. Sendo assim, paramos para pensar nos maio-
res problemas que rodeiam nossa cidade, principalmente aque-
les que afetam as mulheres, visto que somos um grupo composto
por jovens mulheres.

Nossa professora de Geografia e responsável pela disci-


plina citada acima, Ana Carolina Lydia, sempre que possível aborda
conosco as questões de gênero e nos acompanha e dá suporte para
tratarmos do assunto. Com isso, percebemos que as violências que
estão presentes na nossa vida são comuns a muitas outras meni-
nas e mulheres, e percebemos isso nas nossas colegas na escola.

SUMÁRIO 117
Logo, fomos pesquisar sobre o assunto e fazer um levantamento
dentro da nossa escola.

Observamos que os relatos de assédio no dia a dia são


numerosos, e, até mesmo nós, componentes do grupo, sofremos
com isso cotidianamente. Segundo uma pesquisa realizada pelo
Instituto Patrícia Galvão em parceria com a Locomotiva, 71% conhe-
cem alguma mulher que já sofreu assédio em espaço público e, ainda
mais impressionante, 97% dizem já ter sido vítimas de assédio em
meios de transporte (IPG/Locomotiva, 2019). Pensamos, então, em
algo que pudesse facilitar para as mulheres conseguirem socorro, e
saberem quais lugares são mais perigosos para estar, ou até mesmo
poder compartilhar o que sofreram.

Nossa ideia consiste em um aplicativo, disponível tanto para


dispositivos Android quanto IOS (até mesmo para relógios digitais).
Ele teria ligação direta com a central da polícia, que poderia ser acio-
nada de maneira discreta, além disso contaremos com um mapa de
calor que mostrasse quais lugares tiveram mais casos de assédio
registrados. A partir deste mapa, as mulheres poderiam escolher
rotas mais seguras para seu deslocamento.

Neste aplicativo, também haveria uma área para que as usu-


árias pudessem interagir umas com as outras e teriam apoio de psi-
cólogos, para ajudar com os traumas causados por esse tipo de vio-
lência. Para diminuir o custo financeiro de quem não tem condições
de possuir um relógio digital, pensamos em fabricar um próprio para
isso, que teria um custo inferior aos disponíveis no mercado atual-
mente, seria mais discreto, e teria as mesmas funções do aplicativo.

Pensamos que com esse aplicativo, os casos de assédio


poderiam diminuir, e além disso, as mulheres poderiam sentir maior
segurança ao andarem sozinhas pelas ruas ou nos transportes.

SUMÁRIO 118
AUTORES E TEORIA
Na década de 1990, Alice Barros (1998), expôs que “alguns
autores equiparam o assédio sexual ao uso medieval do jus primae
noctis”. O assédio sexual teria surgido na Idade Média por meio da jus
primae noctis (direito à primeira noite), de acordo com esta prática,
os senhores feudais poderiam escolher passar a noite de núpcias
com as mulheres que contraíssem matrimônio. Com a Revolução
Industrial, as mulheres conquistaram espaço nos processos de pro-
dução nas fábricas, porém, a sociedade dominada pelos séculos de
patriarcado contribuiu para a potencialização do assédio sexual em
ambientes de trabalho.

Já na década de 1970, surgiu a tipificação moderna de assé-


dio sexual. Catherine Mackinnon (1979) foi a primeira pessoa a falar
de assédio sexual num contexto jurídico se referindo a esta questão
como uma forma de discriminação sexual. Apesar disso, não se atri-
bui a ela a criação a expressão “assédio sexual”.
A expressão ‘Assédio Sexual/Importunação Sexual’ teve
a sua origem nos EUA. [...] McKinnon publicou em 1979
um livro sobre o assédio sexual – “Assédio Sexual de
Mulheres no Trabalho, Um Caso de Discriminação em
razão de Sexo” – em que define o conceito de assédio
sexual, entende-se por assédio sexual a imposição inde-
sejada de atos de cariz sexual em contexto de uma rela-
ção desigual (Sio, 2019, p. 10).

No Brasil, assédio sexual só foi considerado um crime em


15 de maio de 2001. A lei 10.224 acrescentou um artigo ao Código
Penal e definiu o crime de assédio sexual como o de “constranger
alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual,
prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico
ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”.

SUMÁRIO 119
O assédio pode ser sexual, moral ou qualquer outra conduta incon-
veniente e perseguição que cause constrangimento e que tenha por
objetivo abalar emocionalmente a vítima.

A primeira proposta de aplicativo com o intuito de auxiliar a


denúncia contra assédio foi o aplicativo Sai Pra Lá, criado em 2015.
Nele a vítima poderia denunciar o assédio, indicar o local onde o
crime ocorreu e o período do dia, além de selecionar qual foi o tipo
de assédio sofrido e o que foi feito. Segundo Catharina Doria (Exame,
2023), responsável pelo projeto do app, o intuito do aplicativo é
mapear o assédio e atuar na prevenção, pressionando os órgãos res-
ponsáveis pela nossa segurança e mostrar para as mulheres quais
são os locais onde mais ocorrem assédios.

DESENVOLVIMENTO DE PROJETO
A partir de um levantamento em nossa escola, feito através
de um formulário on-line, pudemos observar que os casos de violên-
cia acontecem em diversos momentos, ambientes, horários e acon-
tecem de diversas formas.

O formulário foi respondido por mais de cem mulheres e, por


meio dele, obtivemos informações positivas acerca da idealização
do nosso projeto e com isso, pensamos de que forma poderíamos
ajudar tanto nossa comunidade escolar, quanto as mulheres da
nossa cidade em geral.

SUMÁRIO 120
Gráfico 1 - Quantidade de mulheres que sofreram, ou não, algum tipo de assédio
Contagem - Você já sofreu algum tipo de
assédio?
12,30%

87,70%

Sim Não
Fonte: tabulação própria (2022).

Gráfico 2 - Idade das mulheres que responderam o formulário


Contagem de Idade

26,30%

73,70%

Maior de 18 anos Menor de 18 anos


Fonte: tabulação própria (2022).

SUMÁRIO 121
Gráfico 3 - Porcentagem de mulheres que acham útil, ou não, ter acesso a
um mapa de calor que indica locais com maior e menor índice de assédio
Contagem - Você acha que seria útil ter
acesso a um "mapa de calor" indicando
localidades com maior e menor índice de
assédio?

2,60%

97,40%

Sim Nâo
Fonte: tabulação própria (2022).

Gráfico 4 - Porcentagem de mulheres que utilizariam, ou não, o


mapa de calor para escolher a rota antes de sair de casa
Contagem - Você utilizaria o mapa de calor
para definir a sua rota antes de sair de casa?
7,90%

92,10%

Sim Não

Fonte: tabulação própria (2022).

SUMÁRIO 122
Gráfico 5 - Quantidade de mulheres que acham que seria mais fácil utilizar
o celular ou um relógio inteligente para denunciar casos de assédio
Contagem - Você acha que, durante um caso
de assédio, seria mais fácil denunciar usando
o celular ou um relógio inteligente ligado à
delegacia da mulher?

27,20%

72,80%

Celular Relógio Inteligente

Fonte: tabulação própria (2022).

Gráfico 6 - Porcentagem de mulheres que usariam, ou não, um relógio inteligente


que possui mapa de calor e a função de ligar para a Delegacia da Mulher
Contagem - Você usaria um relógio inteligente
concetado a um aplicativo contendo o mapa
de calor citado anteriormente e a função de
ligar para a delegacia da mulher pelo relógio?
4,40%

95,60%

Sim Não
Fonte: tabulação própria (2022).

SUMÁRIO 123
Nosso projeto consiste no desenvolvimento de um aplicativo
que irá contar com um botão de emergência, que pode e deve ser
usado em casos de assédio ou se você estiver em uma situação de
perigo. Um mapa de calor, para indicar as áreas com mais e menos
incidência de assédios ou casos de abuso sexual. Este aplicativo
estaria conectado ao relógio digital e mandaria informações senso-
riais para as usuárias.

Quando ela passa por um local com maior incidência, o reló-


gio emite vibrações para que saiba que está em uma área de maior
risco. E por último, o aplicativo conta com uma aba que quando acio-
nada mostra um site que indica os psicólogos mais próximos caso
precisem de acompanhamento profissional.

O aplicativo será desenvolvido de forma gratuita facilitando


o acesso já que pode ser utilizado em qualquer celular com acesso
à internet. O relógio digital social terá um custo médio de R$175,00.
Para as mulheres que já tiverem um relógio digital, o aplicativo pode
ser utilizado em qualquer aparelho.

Figura 1 - Interface do aplicativo

Fonte: desenvolvimento próprio (2022).

SUMÁRIO 124
CONCLUSÃO
Portanto, conclui-se que o objetivo no nosso aplicativo é
diminuir o número de assédios e abusos sexuais em nosso municí-
pio. O mesmo possui atalhos com a central de atendimento à mulher
para facilitar a denúncia de possíveis abusos, mapas de áreas com
mais casos de violência sexual utilizando dados oficiais, e, também,
atalho para o centro de valorização à vida para ajuda psicológica.

Também temos o objetivo de espalhar cartazes sobre o app


pelos lugares com mais casos de abuso, pois acreditamos que com
vítimas mais informadas e agressores mais intimidados, teremos
uma redução significativa desses casos. Assim, teremos uma cidade
menos insegura para que meninas e mulheres como nós possam ter
direito de circular pela cidade sem medo.

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SUMÁRIO 126
10
Mayana Ribeiro Montenario
Allayne Ellen Pantaleão Plácido Cílio

“DE QUE COR ERAM


OS OLHOS DE MINHA AMIGA?”
AFETO E PERMANÊNCIA
NA UNIVERSIDADE

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.10
INTRODUÇÃO
O ambiente universitário é uma possibilidade para poucos e
solitário para muitos. Me encontrei em alguns espelhos, reflexos das
poças d’água nas quais sorri os primeiros piques, escondida por opção
desta vez. Espelhos emoldurados por familiares e professores dos
quais os olhares e abraços me deram o ninho que eu precisava para
crescer em segurança. No meu reino, fui coroada princesa bem cedo,
o sofrimento pode parecer brincadeira de criança. Lama e simplici-
dade arrancavam gargalhadas e em cada caminhada para a escola
havia a oportunidade de vivenciar aventuras. A dor do crescimento
vai além do abdômen dolorido após piadas e alegrias compartilhadas,
quando a consciência chega e o reflexo da poça me declara mulher
preta, o peito aperta, pois, a vulnerabilidade social é explícita e grito,
apesar de silenciada: olha eu aqui. Escondida sob a estrutura que fun-
damenta a sociedade, agora a vida e a luta se confundem e o reino tor-
na-se campo minado. Desde que a realidade perdeu cores e enfrento
um esquema cinematográfico que reduz a gente em “preto e branco”
procuro me reencontrar. O voo fora do ninho é, no mínimo, assustador,
embora o que me assuste mais seja não estar apta ao voo. Exigem
excelência e leveza de minhas asas exaustas. Procuro me reencontrar
nos lugares em que frequento, embora não os pertença. Universidade,
você está pronta para me ver e ouvir? Sou o voo resiliente das asas que
sobreviveram à solidão que as expectativas e estatísticas outorgaram.

Na medida em que o feminismo em pauta se revela excludente


ao promover o preterimento ou silenciamento de mulheres negras, urge
a necessidade de notar quão violento é negligenciar a humanidade de
indivíduos negros. O reconhecimento da mulher negra enquanto pes-
soa, nem inferiorizada e nem idealizada, é a real humanização infeliz-
mente ausente na diretriz pedagógica convencional, que negligencia
especificidades dolorosas, vigentes e históricas. Nesse sentido, é fun-
damental evidenciar a conversa como elemento indispensável do pro-
cesso de ensino-aprendizagem (Hooks, 2000), além de compreender

SUMÁRIO 128
a vulnerabilidade como direito, tendo em vista a importância dos escri-
tos de memória tecidos através da experiência da sororidade.
A Sororidade parece não dar conta da nossa pretitude.
Foi a partir dessa percepção que pensei em outra direção,
num novo conceito que, apesar de muito novo, já carrega
um fardo antigo, velho conhecido das mulheres a Dor.
Mas, neste caso, especificamente, a Dor que só pode ser
sentida a depender da cor da pele. Quanto mais preta,
mais racismo, mais dor (Piedade, 2016, p. 17).

Para Evaristo (2014), a linguagem de memória constitui uma


escrita pessoal, mas que também pode adquirir caráter de coletivi-
dade visto que essa escrita é caracterizada por ser preta, feminina e
pobre, contendo função social de contar as histórias de um recorte
que é, por vezes, menosprezado nas produções acadêmicas. O ato
de rememorar é fortemente marcado pela tradição oral de origem
africana. Isso remete ao “pretoguês” de Lélia Gonzalez (2018) que
pressupunha a valorização da identidade cultural negra na linguís-
tica do Brasil. Ao versar sobre as inseguranças desencadeadas pelo
racismo é recriada uma escrevivência preta proposta neste traba-
lho (Evaristo, 2014). Isto é, as mulheres negras vivenciam fatores
de estresse multidimensionais devido à estrutura racista na qual a
sociedade foi constituída. Isso causa cotidianamente o adoecimento
psíquico de mulheres negras e um lugar de solidão ainda mais acen-
tuado particular desse grupo, não sendo “experenciado da mesma
forma em homens negros” (Crenshaw, 1991, p. 22).

Outro elemento constante na experiência universitária


de estudantes negras é a vulnerabilidade por sentirem constan-
temente o “fenômeno impostora” que causa danos para a saúde
mental (Hill, 2020) sobretudo devido às experiências de racismo
dentro do ambiente acadêmico. “O racismo relaciona-se com
poder e privilégios” (O Racismo..., 2023, on-line) se materiali-
zando institucionalmente na marginalização de indivíduos negros,
considerados ameaça à normatividade branca – na qual a posição
de poder e até a integração como pessoa pressupõe a cor branca.

SUMÁRIO 129
Assim, o feminismo enaltecido, conhecido e dominante no discurso é
o feminismo branco. Isto é, “falar sobre a mulher negra e poder é falar
sobre o ausente”, visto que a relação entre ambos inexiste (Carneiro,
2003, p. 50). Aquém da produção de conhecimento, a mulher negra
sofre os atravessamentos da realidade cruel como que imobilizada,
perecendo por falta de equidade. Nesse ínterim, é importante des-
tacar a existência da “interseccionalidade”, conceito cunhado por
Kimberlé Crenshaw que diz respeito à:
Conceituação do problema que busca capturar as con-
sequências estruturais e dinâmicas da interação entre
dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especifi-
camente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo,
a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios
criam desigualdades básicas que estruturam as posi-
ções relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras
(Crenshaw, 2002, p. 177).

Há uma estrutura tanto simbólica quanto normativa que pre-


cede a entrada da mulher negra em uma sala de aula universitária.
Corpos são visualmente lidos e narrados com base em
um conjunto simbólico de significados e associações.
Distinções corporais são comuns, e acabam por se tor-
nar essencializadas. Diferenças perceptíveis na cor da
pele, na estrutura física, na textura do cabelo, na estru-
tura das maçãs do rosto, no formato do nariz, ou a pre-
sença/ausência de uma dobra epicântica, são entendidas
como manifestações de diferenças mais profundas, per-
sonificadas pelo indivíduo racialmente identificado (Omi;
Winant, 2015, p. 111).

Portanto, as afetações do racismo são impressas em seu


corpo através de violência e micro agressões, diante da hegemonia
racista, classista e sexista, antes que ela aja ou pronuncie qualquer
vocábulo. Ainda que habitasse o mundo ideal, distante de problemá-
ticas com mobilidade urbana, má nutrição, precariedade laboral e
privações financeiras, haveria o desafio de se afirmar como perten-
cente e como ser que sente, sofre, chora e se alegra.

SUMÁRIO 130
Idealização incompatível com a realidade, uma verdadeira
exceção e não regra geral, visto que a mulher negra brasileira
compõe a margem evidenciada pela PNAD (Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios) em dados divulgados no ano de 2015
pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), nos quais
negros e pardos representavam 54% da população brasileira, con-
tudo, com participação expressiva (75%) no grupo dos 10% mais
pobres. Com efeito, são desencadeados danos tanto à autoimagem
e autoconfiança quanto ao desempenho acadêmico. Isso porque “a
estrutura racista materializa-se de forma discriminatória nas insti-
tuições” (Almeida, 2019, p. 27), inclusive educacionais. Enquanto a
promoção da dignidade humana, além de trazer equidade à mulher
negra, significa tornar possível o estabelecimento de novos modelos
pedagógicos, para benefício desta e de toda a sociedade.
Quando você não tem uma comunidade, não é ouvido,
não tem um lugar em que possa ir e sentir que realmente
pertence a ele, não têm pessoas para afirmar que você é e
ajudá-lo a expressar seus dons. Essa carência enfraquece
psique (Somé, 2003, p. 15).

Ao integrar o olhar étnico racial no processo de ensino-


-aprendizagem, o Mito da Democracia Racial é gradativamente des-
construído e o enfoque na troca de experiências e diversidade enri-
quece o discurso e a prática decolonial. Isso porque a falsa ideologia
do mito representa as relações sociais entre negros e brancos no
Brasil (Guimarães, 2001).

A compreensão da “cor dos olhos”; é construída na medida


em que o afeto partilha vivências coletivas e individuais essenciais
ao cuidado a fim de realizar a promoção da saúde e do bem-viver.
Em Olhos d’água (Evaristo, 2014), conto base para o título do pre-
sente texto, Conceição narra a aproximação através do olhar, no qual
dolorosos rios caudalosos são encontrados. As lágrimas que o inun-
dam transbordam o resgate da humanidade. A mulher negra cons-
tituiu-se subalterna ao ponto de performar para a sociedade uma

SUMÁRIO 131
equivocada onipotência na figura de guerreira e/ou lutadora. Isto é,
com subjetividades silenciadas por uma estrutura genocida e escra-
vocrata, infelizmente ausente em lugares de escuta, comunicação
não violenta e segurança às mulheres negras.
Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar,
da musa idolatrada dos poetas, de que mulheres estamos
falando? As mulheres negras fazem parte de um con-
tingente de mulheres que não são rainhas de nada, que
são retratadas como antimusas da sociedade brasileira,
porque o modelo estético de mulher é a mulher branca
(Carneiro, 2003, p. 2).

Dessa forma, as disparidades sociorraciais determinam uma


nociva marginalização responsável pela constante sensação de não
pertencimento e extinguem o afeto necessário para a permanência
de mulheres negras na Universidade. Contudo, há uma invisível e
ancestral conexão entre as histórias singulares de cada estudante
rainha do nada que chega à Universidade, fortalecida com a cons-
trução de espaços para a vulnerabilidade e esperança. É desafiador
pensar a entrada no ambiente universitário, todavia manter-se diante
da perspectiva competitiva e individualista da sociedade atual nega
as especificidades que a questão racial imprime nas relações de
poder. Quando compartilhada, a dororidade enriquece a produção
de conhecimento e reduz o adoecimento mental, físico e até possí-
veis evasões. Por isso, contradizendo as normas de escrita acadê-
mica, as escrevivências no seu sentido mais puro e cru devem ser
valorizadas, embora “escrever também seja sangrar” (Evaristo, 2016,
p. 121) é preciso expor a ferida aberta na intenção de que o racismo,
que nos despedaça e constitui elemento marcante nas nossas remi-
niscências, seja denunciado.

O texto a seguir versa sobre lembranças e recordações da


infância até a universidade:
- Tim Maia na rádio. Ouço eu amo você menina. Zona
norte do rio de Janeiro (2005);

SUMÁRIO 132
- Hoje eu vou dormir cedo. Tô cansada, Mãe. Ontem eu
sonhei que abraçava um baobá., baobás são bonitos e
gigantes tipo BK falava. Eu gosto de baobás (2021);

- Um dia quero ser gigante que nem um baobá.


Morro da Serrinha (2004);

- Garotos pretos no muro sendo revistados pela polícia,


não entendi bem, mãe. Entre aqueles garotos só tinha
de semelhança a cor e que todos estavam sem camisa.
Eu chorei, mas você disse que “arroz doce faz o choro
passar”, então, eu acreditei. Mas eu gosto mesmo é
daquela música estrela do exalta e pagode de domingo
de Madureira quando a gente sorri, Mãe;

- Tiros na favela cortam a música do Jorge Bem. Mamãe


vai demorar um pouco pra te buscar. Beijo, mamãe te ama.
Dentro de mim eu senti medo mais uma vez de ser uma
daquelas crianças de morte precoce e sorriso apagado
que passam no noticiário anunciando sua morte (2006);

- Tem dias que eu lembro de umas coisas, tenho uns


pesadelos estranhos, deve ser o cansaço, mãe (2008);

- Em casa de família desde os sete, sem nome do pai na


certidão desde os 17. A tristeza batia no dia dos pais (2017);

- Mas ainda tenho medo, mãe. Eu vi um cara espan-


car um outro cara no caminho pra casa, a semelhança
entre eles era a cor. A galera tá entorpecida com esse
lance de droga (2019);

- No campus da faculdade. Eles entorpecem nosso povo,


mãe. Parece ser uma euforia coletiva pra tentar escapar
de alguma coisa. “aqui já é o inferno”, gritou em agonia um
moço no BRT, na mão dele tinha alguma droga dessas ilí-
citas. A semelhança entre ele e eu era a cor, mãe. Lembrei
de sobrevivendo no inferno dos Racionais MCs. Sabe lá
a angústia que ele tá tentando apagar. Sabe lá a angústia
que eu tô tentando esconder. Tinha um cara preto que
nem eu no chão, geral passou por ele e ninguém parou,
inclusive eu, mãe (2022);

SUMÁRIO 133
- Eu ainda tô com sono e ainda tô com medo, mas sempre
lembro do seu sorriso hoje à noite vou dormir contando
as estrelas. Cê sabe que a escuridão não me assusta
mais, mesmo assim tem vezes que a claridade parece
me cegar. Tô descendo do ônibus daqui a pouco. Bença,
Mãe. Te amo, Mãe (2023).

A importância da figura materna ecoa e ressurge como moti-


vadora para prosseguir na realidade interrompida pelo sonho no
texto de Evaristo de 2014, sendo também retomada como elemento
propulsor de força e fonte de amor nos textos de alunas em diálogo
colaborativo. Conforme sugeriu Evaristo em 2018, o tempo às vezes
pede esquecimento, todavia a memória persiste em nos lembrar do
passado permeado por choro e, também, beleza que nos incentiva
a continuar a graduação. É fato que na trajetória de uma estudante
preta seus traumas afetam e dialogam cotidianamente com sua
experiência universitária seja no percurso árduo até chegar na facul-
dade ou em sala de aula.

Nesse sentido, vale ressaltar que


O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram con-
dições muito difíceis para que os negros nutrissem seu
crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não
impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão
e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade
de amar (hooks, 2010, p. 01).

No imaginário da sociedade racista, a mulher negra está


associada à figura da servidão. A classe média e elite estão acos-
tumados a ver mulheres negras em posições de subalternidade,
causando, assim, um desconforto quando somos as primeiras das
nossas a romper com o ciclo de pobreza. A Política Nacional de
Promoção de Saúde (2006) ressalta que o conceito ampliado de
saúde parte de um pressuposto a existência de condições outras tais
como lazer, moradia digna e locomoção de qualidade pela cidade
são fatores contribuintes para a produção de saúde no indivíduo.

SUMÁRIO 134
Todavia, a segregação socioespacial da cidade, que afastou pobres
para as áreas do subúrbio, conjuntamente a locomoção descon-
fortável e excessivamente demorada nos transportes públicos com
espaço reduzido para cada passageiro, expõe a integridade do corpo
feminino às violações. Logo, é possível pensar que a confluência
desses fatores aos conflitos urbanos, sobretudo quando se habita
a favela, colaboram para que jovens universitárias convivam com
o esgotamento físico e mental acentuado pelo atravessamento da
ferida dolorosa que é o racismo genderizado. A branquitude univer-
sitária não está genuinamente disposta a deixar que os interesses
de mulheres negras recebam destaque no currículo acadêmico. O
sentimento de solidão da mulher negra (Souza, 2008) extrapola o
âmbito de relacionamento amoroso, uma vez que a faculdade não
propicia um acolhimento às demandas emocionais singulares da
experiência de uma mulher preta periférica tornando, assim, a con-
vivência a reverberação de um contínuo isolamento social e angús-
tias. Por outro lado, a ação de tornar-se negra (Souza, 2021) pode vir
acompanhada de uma dissociação do seu verdadeiro eu a fim de
se associar aos padrões estéticos e culturais embranquecidos e, até
mesmo, numa intelectualidade eurocêntrica. O espaço acadêmico já
conhecido por seu epistemicídio (Carneiro, 2005) é capaz também
metaforicamente de assassinar a subjetividade de estudantes pretas.

A falta de políticas voltadas para evitar a evasão universitá-


ria de mulheres reflete uma profunda invisibilização das pautas de
mulheres negras e, também, uma desumanização dessas vivências
causadas pelo estereótipo de negras serem resilientes, que pode
escamotear o sofrimento psíquico. Existe um lugar de extrema fragi-
lidade emocional, devido ao lugar fértil para inseguranças gerando,
assim, questionamentos, por vezes, sobre sua própria capacidade de
ocupar o espaço. Portanto, o amor fraterno entre estudantes negras
configura uma tentativa de reconstruir os pedaços da autoestima
mutilada pelo racismo sofrido. Entender a questão racial como rele-
vante ao ensino mitiga a solidão sofrida e possibilita a existência de

SUMÁRIO 135
políticas de acesso bem-sucedidas, na medida em que a permanên-
cia é promovida em coletivo. Ambas, entrada e permanência, alinha-
das ao afeto, são o ato de resistência contra a estrutura imobilizante
do racismo no Brasil e, no interior das Universidades, do racismo
institucional (Werneck, 2016), impresso em forma de sofrimento nas
existências de mulheres negras no contexto acadêmico.

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SUMÁRIO 137
11
Lidiane Santos Barbosa
Pammella Casimiro de Souza
Camila Reis Tomaz

ESCUTAS NAS FRESTAS:


SOBRE ESFORÇOS PELA CONSERVAÇÃO
DE NATUREZAS FAVELADAS
EM UMA PÓS-GRADUAÇÃO

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.11
INTRODUÇÃO
Este trabalho se debruça nas ações do Grupo de Estudos
Saberes de Fresta (GESF) durante os anos de 2021 e 2022 a partir dos
registros de uma das coordenadoras e da primeira integrante convi-
dada a participar, a estender reflexões sobre os saberes e reconstruir
a trajetória acadêmica, que pretendem seguir a frente após a saída
da fundadora e coordenadora não-institucional do GESF.

O GESF tem seu início formal em 16 de dezembro de 2020,


com reuniões de apresentação e informes gerais. Assim, com par-
ticipantes cujos interesses de pesquisa estavam em diálogo com
a Conservação da Natureza, o GESF reuniu representatividades
em franca disputa e significação das práticas de Conservação da
Natureza. Em 14 de Março de 2022, o projeto de ensino Grupo de
Estudos Saberes de Fresta foi certificado na plataforma Lattes do
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq) pela coordenadora institucional, a Profa. Dra. Luiza Corral
Martins de Oliveira Ponciano, com a descrição a seguir:
Projeto de ensino 2020 – Atual Grupo de Estudos Saberes
de Fresta – GESF. Descrição: Inicialmente uma continui-
dade do Grupo de Estudos Pré-Mestrado e da oficina
realizada no PEC, o GESF se traduziu em práxis do que
a pesquisa teorizava: uma encruzilhada de saberes dos
GPs e fazeres da academia [...]. O Grupo é uma ação
associada com o @GeoTales e @ppgecunirio (projetos de
extensão, ensino e pesquisa, na graduação e Mestrado
em Ecoturismo e Conservação, na UNIRIO) e é vinculado
à pesquisa ‘Encruzilhadas Geopoéticas na Conservação
da Natureza: Territorialidades e Guardas-Parques em
Território Cunhambebe’ em que se busca fortalecer, faci-
litar e promover acesso e permanência na universidade,
saberes e fazeres dos Guardas-Parques, moradores de
favelas/faveladxs, comunidades tradicionais, povos ori-
ginários e demais construções do pensar e fazer margi-
nais à hegemonia [...]. A rede de pesquisas, de pessoas,

SUMÁRIO 139
de afetos e de brincadeiras que é tecida toda semana no
GESF é uma base para que todes possam falar suas pró-
prias práticas e propostas para o funcionamento de novas
pesquisas contra hegemônicas / contra coloniais dentro
da academia. O GESF é coordenado por Luiza Ponciano,
Camila Reis e Pammella Casimiro.

Como descrito, o GESF foi uma continuidade ampliada de


uma iniciativa individual, originada no mestrado em ecoturismo e
conservação de Camila Reis. Os apoios não seguiram para a fun-
dação e manutenção do grupo após sua institucionalidade, ligada à
Pro-Reitoria de Extensão e Cultura (ProExC) da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)11. Até o fim da escrita deste, 24
de janeiro de 2023, o grupo se encontrava na plataforma Lattes como
“em andamento”. Estavam envolvides quatro discentes de graduação,
três discentes de mestrado acadêmico, dois discentes de mestrado
profissional e um discente de doutorado, além de docente da UFRJ e
pesquisadores independentes:
Integrantes: Camila Reis Tomaz - Integrante / Luiza Corral
Martins de Oliveira Ponciano - Coordenador / Renato
Mendonça Barreto da Silva - Integrante / Matheus Lucas
Arcanjo - Integrante / Pammella Casimiro de Souza -
Integrante / Leonardo Ramos Cruz - Integrante / Paulo
José Simplicio de Alcantara - Integrante / Maycom Lopes
Ribeiro - Integrante / Kim Tiba Ferreira - Integrante /
Daniel Pires Mendes - Integrante / Lidiane Santos Barbosa
- Integrante / Monique Chessa Reis - Integrante / Zoziane
Bernardo Tolentino - Integrante / Marcia Cristina Perez de
Carvalho - Integrante / Thiago Delduque Bonfim da Silva -
Integrante / Brunna Ellen de Almeida Santos - Integrante.

Vinculadas à sua existência, constavam duas produções de


Ciência, Tecnologia e Arte. Em um primeiro momento apresentamos
o Grupo de Estudos Pré-Mestrado, origem do GESF e de muitas das

11 🎊
Ver mais em: Proexc Unirio no Instagram: “ Campanha Mais Extensão - Papo Reto 🥳🎥 No vídeo
de hoje da nossa série Papo Reto, a Monique Chessa, moradora de Angra dos Reis, conta sua […]”

SUMÁRIO 140
decisões de uma de suas coordenadoras. Em seguida, apresenta-
mos o contexto de criação do GESF e de manutenção por aproxi-
madamente dois anos, institucionalizado enquanto ação de exten-
são. Listamos participações em eventos e produções coletivas de
integrantes cuja confecção se deu em parcerias durante reuniões do
GESF, Grupos de Trabalho (GTs) para escritas ou a partir destes. Por
fim, consideramos pontos fortes e lacunas deste formato de busca
de fortalecimento para ingresso e permanência na pós-graduação.

LETRAMENTO RACIAL
Chega um dado momento em que o saber ler e escrever não
é o suficiente para ser reconhecido como um corpo letrado dentro da
academia. Como o jeito de falar e se comunicar que te serviu a vida
inteira passa a não ser o suficiente? Como todo um conhecimento,
que teoricamente você precisou aprimorar para estar ali, não basta?
Esvaziar-se de si mesmo é apresentado como estratégia para a manu-
tenção da ideia de que o “sonho do oprimido é se tornar o opressor”,
da falácia que somos vasos vazios esperando por ser enchidos de algo
que não preenche nem a terça parte do que podemos ser, método
proveniente de uma educação bancária e opressora (Freire, 2016).

Você começa a repreender tudo que já experienciou na vida,


seja através das músicas, vivências, contato com o chão e com os
seus, tudo passa por uma readequação e recebe o nome novo, de
preferência com origem estrangeira, para falar daquilo que a vida
já te ensinou. O corpo não-branco e periférico é um corpo letrado
e dotado de conhecimento desde o berço, você precisa ter astúcia,
sagacidade e entendimento, falar bem, se portar bem, pensar dez
vezes mais do que um corpo nascido branco. O que não revela uma
questão de mérito, mas sim de sobrevivência e ausência de escolha
por outros caminhos.

SUMÁRIO 141
O apagamento e afastamento provocados pelo racismo cien-
tífico através da escrita e um letramento racista, nos afasta do eu e do
nós. A quem a academia quer que eu comunique, a quem esse afas-
tamento beneficia? Uma contradição entendida apenas por aque-
les que assinam o pacto de uma educação que aprisiona. Podemos
falar da favela, mas não com a favela e muito menos como favela-
dos. A escrita que comunica e conecta tem poder, o falar é liberta-
dor e estremece, a consciência sobre isso é tão forte que é preciso
embranquecer todos os corpos para que esse lugar de privilégio seja
mantido por alguns.

METODOLOGIA
Para construção desta historização de ação vinculada à pes-
quisa-ação (Bartholl, 2015; 2018; Reis, 2021), foram lidas e traduzi-
das à relatos de experiência, escrevivências (Evaristo, 2017; 2021;
Casimiro, 2021; Reis, 2021) de integrantes do GESF com funções e
formatos distintos por hierarquia e mesmo tempo de participação.
A escolha de tradução das escrevivências que, para Reis (2021, p. 11)
“marcam o processo do pesquisar e as transformações que ocorre-
ram na pesquisa e na pesquisadora”, para relatos de experiência vem
do que Xavier (2019) e Reis (2021) descrevem como distinções entre
os métodos de escrita. Na intenção de proteger formas próprias e
territorializadas de oralidade, assim como buscando expor marcas
do racismo institucional (Almeida, 2018), linguístico (Munanga, 2004)
e ambiental (Bullard, 2004) sofridos mesmo de forma Recreativa
(Moreira, 2019), optamos pela revisão integrativa dos relatos de
experiência com os referenciais teóricos de racismos sofridos na
academia ou por ela.
E percebi que justamente essa Academia é que se pro-
punha a discutir a Conservação do que eu reconhecia,

SUMÁRIO 142
assim como Omar Giraldo & Ingrid Toro (2021), enquanto
complexo de afetos múltiplos, relações constantes que
saudáveis só quando coletivas e, por isso, reconhecida-
mente interligadas (Reis, 2021, p. 17).

A técnica escolhida para descrever e discutir os resultados


foi a escrevivência Acadêmica de Xavier (2019), trazendo a marca de
narradoras do vivido, protagonistas, vítimas e testemunhas pretas.

Foi elaborada uma Tabela, constando informações sobre


encontros, eventos com e sem submissão, palestras assistidas e
comentadas junto em formato remoto, porém, em tempo real, for-
mação de GTs e demais atividades coletivas externas e internas do
GESF. As Tabelas apresentam de forma detalhada os desdobra-
mentos possibilitados pelas ações presentes no quadro. O Quadro 1
apresenta um quantitativo comparativo entre o ano de 2021 e 2022,
a partir das informações, registradas e interpretadas, no Google
Classroom, espaço de compartilhamento e sistematização apelidado
de “Fresta”. Os Encontros são as rotinas compromissadas via reu-
niões no Google Meet, a partir da leitura prévia (do que era possí-
vel), neles eram realizadas rodadas de apresentação e impressões
dos diversos textos, cruzamento destes com as próprias pesquisas
em andamento e entre as pesquisas; As Oficinas, organizadas no
Quadro 3, são encontros extras, em dia e horários combinados com
antecedência, organizados por rodadas teóricas, que eram gravadas
e disponibilizadas para posterioridade, intercaladas com o esclareci-
mento de dúvidas expostas oralmente ou por mensagem no chat. No
Quadro 3, também foram contabilizados encontros que modificaram
as rotina estabelecida para os Encontros, seja pela participação de
convidades excepcionais, que por exemplo protagonizam uma expo-
sição inicial de um texto ou de parte da sua pesquisa; as Dinâmicas
e Atividades são propostas a serem realizadas, com ou sem prazo,
e postadas no mural para uma interação mútua e mais contínua
entre os integrantes; os Convites de Defesas e Qualificações de
Dissertação foram estendidos ao GESF, com o acesso ao link das

SUMÁRIO 143
salas virtuais onde se realizaram; os Comunicados Internos são os
avisos extraordinários, por isso não expostos durante os Encontros,
ou enquetes necessárias para organização estrutural (alteração de
data de algum encontro ou oficina, programação para eventos extras,
dentre outros); no Quadro 2 constam os convites para realização de
GTs internos, com e sem convidades externes de Programas de Pós-
Graduação parceiros, são enquetes para composição facultativa de
um grupo de WhatsApp específico para a participação em evento
Acadêmico. No Quadro 5 detalham-se os eventos que o GESF sub-
meteu trabalhos a partir desses Gts; os Passeios e Eventos são com-
postos por uma lista de eventos assíncronos gravados e disponibi-
lizados no YouTube ou links para a inscrição em Eventos, que forne-
cem ou não certificados, e que podem contribuir com discussões
realizadas nos Encontros. Nos Quadros 1 e 4 encontram-se rodas de
conversas e ciclo de debates organizados e/ou protagonizados por
integrantes do GESF.

Tabela 1 - Ações GESF 2021- 2022


Resumo de produções GESF
Tipo 2021 2022
Encontros 43 21
Oficinas 8 3
Dinâmicas e Atividades 2 1
Passeios e Eventos 18 6
Convites para Gts 2 1
Comunicados Internos 2 5
Convites para Defesas e Qualificações 4 3
Fonte: Fresta, a Sala de Aula Google GESF / elaborado pelas autoras (2022).

SUMÁRIO 144
Quadro 1 - I Ciclo de Debates GESF
Ciclo de Debates
Nome do evento Título do Participantes/Autores Data Local Canal
Trabalho GeoTales
I Ciclo de Debates: Natureza na/ Lidiane Santos (Debatedora), Prof. Dr. out.2022 UNIRIO- Online
Conservação da da Favela Timo Bartholl (Debatedor), Jefferson
Natureza de Bases Andrade (Mediação)
Saberes de Me. Camila Reis (Debatedora), Prof. Dr. out.2022 UNIRIO- Online
Preservação Renato Barreto da Silva (Debatedor),
Luiz Lourenço (Mediação)
Conservação e Bronzi Rocha (Debatedor), Prof. Dr. out.2022 UNIRIO- Online
Diversidade Nilton Junior (Debatedor), Prof. Dr.
Rafael Garcia (Debatedor), Lua Brainer
(Mediação)
Relações (d)e Kim Tiba (Debatedor), Pammella CANCELADO UNIRIO- Online
Pertencimento Casimiro (Debatedora), Me. Tainá
Figueroa (Mediação).
Fonte: Fresta, a Sala de Aula Google GESF / elaborado pelas autoras (2022).

Quadro 2 - GT’s GESF 2021 e 2022


GT’s para Submissões em Eventos Acadêmicos
Nome do evento Descrição na Fresta Data
GT SIMPEC Grupo de Trabalho para o Simpósio de Ecologia fev. 2021
eConservação da UNIRIO
GT Revista “Ensaios deGeografia” (UFF) Reuniões de estruturação da escrita de trabalhos out. 2021
coletivos que serão submetidos à Revista Ensaios
de Geografia da Universidade Federal Fluminense
GT - Escritas ColetivasGESF Registro de memória dos nossos GTs. ago. 2022
Fonte: Fresta, a Sala de Aula Google GESF / elaborado pelas autoras (2022).

SUMÁRIO 145
Quadro 3 - Oficinas GESF 2021 e 2022
Oficinas
Nome do evento Data Local
Elementos Textuais d’um Pré-projeto jan. 2021 online
Temas e Perguntas de Pesquisa fev. 2021 online
Metodologias Outras mar. 2021 online
Por uma Ciência Coletiva mai.2021 online
Oficina sobre Canva mai. 2021 online
Escrita Coletiva: Drive, Boas Práticas e Agências mai. 2021 online
Leitura de Editais out. 2021 online
Lattes, Orchid e Researchgate out. 2021 online
Produção Textual: Pré-Projeto out. 2021 online
Racismo Institucional, Linguístico e a Escrita Acadêmica contra-hegemônica jan., 2021 online- UNIRIO
Planners e os fazeres acadêmicos jan., 2021 online- UNIRIO
Arte como caminho político na ciência jan., 2021 online- UNIRIO
Desmistificando Exames de Qualificação fev. 2022 online- UNIRIO
Mapa Astral do Lattes ideal: Atualizando o currículo com o GESF mar. 2022 online- UNIRIO
(Projeto Consciências. Luta contra o racismo) Móbile Ancestralidade e mai. 2022 Cancelado
Continuidade: Mulheres na Ciência
(Festival do Conhecimento UFRJ) Metodologia de pesquisa para conservação jul. 2022 UFRJ - Online
da Natureza: A Urgência do antirracismo na construção epistêmica de futuros
sustentáveis
Fonte: Fresta, a Sala de Aula Google GESF / elaborado pelas autoras (2022).

SUMÁRIO 146
Quadro 4 - Rodas de Conversas GESF 2021 e 2022
Nome do evento Autores Data
Roda de Conversa com a Extensão Universitária Danilo Cerqueira; Gabriel Mação; Matheus abr. 2021
Arcanjo; Bernardo de La Vega; Rodolfo Jordano;
Camila Reis; Italo Casemiro; Sara Muranaka
Jornada Antirracista - SESC “Tecnologias: da Genilson Leite; Camila Reis out. 2021
lógica preta do cuidado ao saber colonial
distanciado”
II Roda de Conversa do GESF Mayara Souza; Pammella Casimiro; Gabriel fev. 2022
Mação; Brunna Ellen; Daniel Mendes; Lidiane
Santos; Matheus Arcanjo; Maycom Lopes; Léo
Cruz; Bronzi Rocha; Camila Reis; Luiza Ponciano
III Roda de Conversa do GESF Grazielly Xavier; Leonardo Amoedo; Taina Silva; abr. 2022
Rachel Silva; Thais Matos; Renato Mendonça;
Matheus Arcanjo; Camila Reis; Pammella
Casimiro; Luiza Ponciano
De “produtos” à divulgação científica... Criação Camila Reis; Luiza Ponciano mai. 2022
de produtos técnicos, tecnológicos e artísticos-
culturais
Fonte: Fresta, a Sala de Aula Google GESF / elaborado pelas autoras (2022).

Quadro 5 - Trabalhos escritos e apresentados GESF 2021 e 2022


Eventos e Produções Coletivas
Evento Titulo do Trabalho Data
XIV Semana de Biologia da UNIRIO Bioculturalismo Preto: o papel da biologia na valorização de jun 2021
uma ciência antirracista, por corpos outros
Festival Ecologia dos Saberes Conservação da Natureza: beats do convivío coma covid-19 set 2021
Festival Ecologia dos Saberes Pintados de sal e sol: Conservação da Natureza pelos corpos e set 2021
seus cantares à beira-mar

SUMÁRIO 147
Eventos e Produções Coletivas
Evento Titulo do Trabalho Data
Festival Ecologia dos Saberes Kûanâbará: A importância da cosmovisão geopoética dos set 2021
povos originários para repensar a Conservação da Baía
de Guanabara
Festival Ecologia dos Saberes Roda de conversa viver sem Feminina: a busca por voz das set 2021
mulheres que não se deixam calar
4º CRMS - Congresso Regional Ecomotricidades Geopoéticas: uma reflexão afetiva sobre nov 2021
Multiprofissional de Saúde psicomotricidade de crianças no espectro autista em
unidades de conservação da Costa Verde - RJ
2º SACEPI (Minicurso) Unidade de Conservação: Conceitos, usos nov 2021
e potencialidades
2º SACEPI (Minicurso) Pedagogias Contracoloniais extra-muros: nov 2021
o Racismo Ambiental na apropriação dos saberes
automediados
10º SIGABI Ecomotricidades Geopoéticas: uma experiência de inclusão nov 2021
pelo afeto para trilhas interpretativas
10º SIGABI Escrevivendo as geoéticas d’m fazer no eco rede: nov 2021
Conservação da Natureza a partir da Cidade de Deus
10º SIGABI Grupo de Estudos Saberes de Fresat: uma experiência nov 2021
antirracista e Eecruzilhadas geopoéticas pela Conservação
da Natureza
Afetiva arte um convite acessibilidade ambiental pela nov 2021
geopoética nas obras de Clarice Lispector e Lygia Clark
10º SIGABI Prevenção de incêndios florestais no Parque Estadual nov 2021
Cunhambebe: Uma educação geopoética para a Conservação
da Natureza
I Fórum internacional de estudos Fui feita pra vadiar: trajetória e perspectivas asfraodiasfóricas nov 2021
e pesquisas no universo do lazer

SUMÁRIO 148
Eventos e Produções Coletivas
Evento Titulo do Trabalho Data
2º SACEPI (Minicurso) Geopoética em territórios afetivos: pelo (re) dez 2021
encantamento do e com o mundo
2º Encontro de socioantropologia Toda Bahia chorou: corpo capoeira e a morte como cuidado jan 2022
política do corpo da Saúde da
doença e da morte: Reflexões
da pandemia
2º Encontro de socioantropologia O lugar do Luto do Homo Sportivus periférico jan 2022
política do corpo da Saúde da
doença e da morte: Reflexões da
pandemia
Revista Ecoturismo e conservação Escre(vi)vendo como metodologia: Naturezas da gente para a jan 2022
conservação dos Nossos
II CCI - Rede CT Virada Cultural na Geoconservação: Gira Cunhambebe à jan 2022
Conservação da Natureza
XII Semana Acadêmica de Capoeira, o rural eo (des)encantamento do mundo jan 2022
Geografia
Revista Ecoturismo e conservação Naturezas Coletiváveis: Práxis Pedagógica Geopo´rticas para fev 2022
a Conservação d’um Nós
VII Encontro Nacial de Ensino de Biomas e Geopoética pela prevenção a incêndios florestais: jun 2022
Ciências, da Saúde e do Ambiente um encontro encruzilhado no Parque Estadual Cunhambebe
Seminario Saber-se Negra. Tempo Teia: Vivência Criativa Feminina jul 2022
de Anunciação
IV Seminário Internacional Sobre Práticas Geopoéticas no turismo de base Comunitária: jul 2022
Democracia e Cidadania e Estado a Natureza enquanto sujeito de direito em Unidades de
De Direito Conservação Brasileira
Festival do Conhecimento UFRJ Driblando Junto: uma práxis yoga-basquete jul 2022

SUMÁRIO 149
Eventos e Produções Coletivas
Evento Titulo do Trabalho Data
IV Seminário Internacional Sobre Concessão Isenção Fiscal e a Sofisticação Do Racismo jul 2022
Democracia e Cidadania e Estado Ambiental: De Novo De Novo E De Novo
De Direito
II Jornada Cientifica Favelades Escultas nas Frestas: Sobre esforços pela |Conservação de ago 2022
Universitáres Naturezas faveladas na pós-graduação
II Congresso Norte-Nordeste de Reflexões geopoéticas para a ciência cidadã em ambientes ago 2022
Ciências Agrárias rurais
Seminário Tecnologia para Geopoética na conservação da Natureza de bases ago 2022
Edificação e Cidades Inteligente, Comunitária: valão é racismo e canal não sustenta não no rio
Saudáveis e Sustentáveis que é caminho favela tem solução
XII Semana Acadêmica de Tá na mesa: uma reflexão socioambiental sobre a partilha de jan 2023
Geografia si de um corpo-terreiro
XII Semana Acadêmica de Escrevivências d’uma lancheira colonial: Racismo Ambiental, jan 2025
Geografia é de comer?
Revista Ecoturismo e conservação Já estive aqui jan 2026
Revista Ecoturismo e conservação Georreferenciamento, geopoética e ética ambiental em cruzo jan 2027
pela prevenção de incêndios florestais no Parque Estadual
Cunhambebe
Revista Ecoturismo e conservação Palavras geopolíticas pela Conservação da Natureza: saberes jan 2028
de fresta
Fonte: @Geotales (instagram).

RESULTADOS E DISCUSSÃO
O GESF se inicia como proposta de espaço de segurança para
partilhas e facilitadores a partir destas, quanto aos impedimentos aca-
dêmicos normativos ao corpo preto, periférico, favelado e divergente.

SUMÁRIO 150
No período entre janeiro de 2021 e novembro de 2022 foram
realizados 64 Encontros, tendo em média uma hora e meia de dura-
ção cada, somando aproximadamente 96 horas de debates a partir
de leituras, eventos assistidos ou propostas de escrita e composi-
ções diversas. Os textos tiveram formatos em prosa, verso e audiovi-
sual (Reis, 2021). Integrantes e pesquisadores com temas afins con-
vidaram o GESF para suas qualificações e defesas de Mestrado, sete
participações do Grupo em conclusões de Pós-Graduações com
debates internos via grupo ou no Encontro seguinte.
Eu sou Natureza e, apesar dos ataques, resisto porque
não se é Natureza sem se ser coletivo. E esse foi o primeiro
saber, que óbvio pra mim e, aparentemente estranho à
Academia, tornei fazer. [...] Então, quando eu digo ‘eu’,
daqui pra frente, peço que me leiam nós (Reis, 2021, p. 18).

CONSIDERAÇÕES
O GESF propôs provocar o despertar consciente do corpo
não-branco, em cada fazer e estar, que é científico por excelência,
que se recria mais rápido que a forma destrutiva sob a qual opera
o racismo. São passos ancestrais, que resistem e se fortalecem, e
que continuam reverberando, provocando ações e trans-forma(a-
ções). As inquietantes resultantes do fazer colonial, que estigmatiza
os saberes locais, estigmatizam também nossas memórias, nossos
fazeres e como resultantes vivos de fazeres respeitosos, nos movi-
mentamos. Os movimentos não ordenados cronologicamente ou
delimitam um objeto pois o corpo periferizado reconhece o caos de
ser, precisar ser, querer estar, precisar ocupar diversos territórios.

Ao mesmo tempo em que produzimos academicamente


para que a hegemonia nos entenda, ou ao menos validem que exis-
tam possibilidades diversas, há um desejo de falar para os e com
os nossos, reverberando estratégias e técnicas de sobrevivência,

SUMÁRIO 151
construção de conhecimento e forma de existir, que outrora foram,
e num conservadorismo antiquado ainda se fazem ser considera-
das uma condenação. A oralidade por exemplo, que foi apontado por
Quijano (1992) como sendo uma forma de condenação, decorrente
do processo de colonização, onde o letramento ficou restrito aos
colonizadores é uma dádiva. É através da oralidade que podemos
disputar os lugares de poder na atual sociedade, distribuindo carim-
bos no passaporte do conhecimento científico. Alertando que foram
movimentos prévios e extra-acadêmicos que nos forjaram, como
lembrado pelas mais velhas Sueli Carneiro e Conceição Evaristo,
para qual retornamos e compartilhamos, e verdadeiramente mante-
mos o conhecimento vivo, utilizando-o como ferramenta de luta para
manter os nossos vivos.

Destaca-se ainda, como “Expansão GESF” resultado das


ações descritas e movimentos paralelos de integrantes, aprovação
no mestrado das autoras destes, no programa de Pós-Graduação em
Geografia (UERJ) e no Programa de Pós-graduação em Ecoturismo e
Conservação (UNIRIO), respectivamente.

AGRADECIMENTOS
Reconhecemos aqui as participações neste texto das inter-
venções de cada integrante. Saudamos a indescritível força preta pre-
sente no Núcleo de Estudos Cultura Popular e Sociedade (NECPS/
UFRJ), coordenado pelos Prof. Dr. Renato Barreto Mendonça da
Silva e Me. Genilson Leite da Silva, constantemente cuidando
de quem cuida. À recepção gentil e calorosa do Prof. Dr. Nilton
Abranches Junior e ao grupo Geocorpo (UERJ) pelos ensinamen-
tos e letramentos imprescindíveis para a continuidade de constru-
ções e manutenções plurais. As mulheres em movimento social da
Cidade de Deus e de diversas favelas que conheci a partir, através

SUMÁRIO 152
e com as práticas do Alfazendo. Ao Núcleo de Estudos Territórios
e Resistência na Globalização, ao Rogério Haesbaert, ao Timo
Bartholle aos Sacis por fortalecerem, partilharem e reconhecerem
quem e o que se ganha ao hacker, possuem valores inestimáveis.
As iniciativas de fomento do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq). Agradecemos também aos espaços
institucionais proporcionados pela Prof. Dra. Luiza Corral Martins de
Oliveira Ponciano (UNIRIO).

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BARTHOLL, Timo. Por uma Geografia em movimento: a ciência como ferramenta de


luta. Rio de Janeiro: Consequência, 2018. 168p.

BARTHOLL, Timo. Territórios de resistência e movimentos sociais de base: uma


investigação militante em favelas cariocas. 2015. 433 f. Tese (Doutorado em Geografia) –
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2015.

BULLARD, Robert. Enfrentando o racismo ambiental no século XXI. Rio de Janeiro:


Relume Dumará, 2004.

CASIMIRO, Pammella de Souza. Escre(vi)vendo a Baixada: (des)estruturação do


Racismo Ambiental no bairro de Campos Elíseos. 2021. Trabalho de Conclusão de Curso
(Bacharel em Ciências Ambientais) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2021.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 3 ed. Rio de Janeiro: Pallas, 2017.

EVARISTO, Conceição. Seminário A escrevivência de Conceição Evaristo. [S. l.: s. n.], 2021.
1 vídeo (2:07:10). Publicado pelo canal Itaú Social Disponível em: https://www.youtube.
com/watch?v=bzwGCFEkEf4. Acesso em: 15 out. 2021.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 60 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.

SUMÁRIO 153
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo,
identidade e etnia. In: Programa de educação sobre o negro na sociedade
brasileira, 2004.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. Perú indígena, v. 13, n. 29, p.


11-20, 1992.

REIS, Camila Tomaz. Encruzilhadas Geopoéticas na Conservação da Natureza:


Territorialidades e Guardas-Parques em Território Cunhambebe. 2021. 399 f. Dissertação
(Mestrado em Ecoturismo e Conservação) – Centro de Ciências Biológicas e da Saúde,
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.

XAVIER, Giovana. Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por
mulheres negras contando sua própria história! Rio de Janeiro: Malê, 2019.

SUMÁRIO 154
12
Silvânia Cerqueira

GIFS DE RESISTORES

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.12
INTRODUÇÃO
O presente texto busca apresentar o ciberespaço enquanto
via de atuação política e de letramento digital, visando entender
as mídias sociais enquanto ambiente de propagação de discursos
fazendo uso de gifs animados no intuito de despertar no imaginário
dos usuários da web outras vias de agir politicamente neste terreno
de disputas de imagens e discursos. Busco no texto expor o roteiro
adotado na oficina de criação de gifs, realizada com a mulheres con-
templadas no projeto Malungas, oficina também inscrita na II Jornada
Científica Favelades Universitáries (2022); o processo de criação con-
siste em escavar palavras buscando suas variações de sinônimos e
sentido. Para a oficina, a palavra resistência12 guiou o processo, com
suas derivações foram escritas frases em formato de gifs animados
com os sinônimos e significados desta palavra seguindo uma linha
discursiva de pensar o uso consciente dos meios e propagação de
discursos na internet, usando a linguagem que os meios de pro-
dução digital sugerem.

O HUMANO E A ASCENSÃO
DA CIBERCULTURA
O humano é o único animal que busca desenvolver tecnolo-
gias para melhorar ou se adequar aos diferentes contextos, podemos
citar as primeiras técnicas desenvolvidas desde a descoberta de um
corpo capaz de andar em posição ereta até as tecnologias de agora,
com as ampliações de linguagens e extensões corporais e espaciais,

12 Deriva da palavra resistência, plural de resistor, peça que aumenta a resistência elétrica de um
circuito. A palavra é uma tentativa de informar que os escritos das frases e gifs compõe um circuito,
o da política.

SUMÁRIO 156
das quais o mesmo faz uso. Seguindo o fluxo histórico podemos nar-
rar os diferentes estágios, o estar nômade, momento histórico no
qual o humano passou a ficar longos períodos de permanência no
ambiente consumindo os recursos naturais disponíveis até o total
esgotamento, e ao perceber a possibilidade de desenvolver instru-
mentos para garantir sua permanência, este inicia agremiações que
na contemporaneidade são tituladas sociedades. Ao passar para o
estar sedentário esse inaugura a formação de pequenas colônias, se
adequando ao espaço de maneira cômoda. Comodidade adquirida
através dos diversos instrumentos e ferramentas agrícolas, dispo-
níveis no habitat, no qual se estabelecia uma nova ordem de rela-
ções homem-conhecimento.

Ordenamentos os quais explicitam que mesmo sem suporte


físico-virtual para registros, o homem através do primeiro canal de
difusão do conhecimento, a fala (oralidade), espalhava suas crenças,
tradições e métodos, iniciado assim, um processo de transmissão
oral do conhecimento, e seguindo por diferentes décadas, subdivi-
didas historicamente em períodos, que ilustram os distintos movi-
mentos científicos para expor momentos da vivência humana que
perpassam vários períodos, por exemplo, o período mesopotâmico
(marcado pelo surgimento das técnicas agrícolas e da escrita), ou
seja, o ensaio civilizatório organizacional e fecundo das ciências, logo
após vemos helenismo (difusão e sistematização de ritos e dogmas
por meio da expansão territorial).

A popularização dos “novos” meios-canais emerge os fila-


mentos de uma suposta sociedade educada através de meios orais
e impressos. Alterando para um estado descontextualizado e de rup-
turas das fronteiras rompendo a delimitação de espaço, ação que
ainda permeia o contexto neocontemporâneo, donde percebemos
uma abertura de fronteiras acessíveis as (in)formações.

Ao observamos a ação do humano em cada subdivisão dos


períodos históricos, é possível perceber este não apenas como mero

SUMÁRIO 157
observador passivo, mas sim como agente interventor, isto porque,
ao regressar às vivências do homem paleolítico, nota-se a existência
de uma relação sujeito-espaço-ambiente, a qual propomos a ideia
de sujeito-ciberespaço-linguagem com ampliação e popularização
dos meios digitais efervescente no final dos anos 90 com a ascensão
da cibercultura, o ciberespaço tornou-se um ambiente de fronteiras
e também terreno de produção de conhecimento (Lèvy, 1999). Em
relação ao ciberespaço Gadotti (2000, p. 7) expõe que
O ciberespaço não está em lugar nenhum, pois está em
todo o lugar o tempo todo. Estar num significaria estar
determinado pelo tempo (hoje, ontem, amanhã). No cibe-
respaço, a informação está sempre e permanentemente
presente e em renovação constante. O ciberespaço rom-
peu com a idéia de tempo próprio para a aprendizagem.
Não há tempo e espaço próprios para a aprendizagem.

O qual no contemporâneo também se tornou terreno de dis-


putas e arena de poder, pois quem melhor domina os meios de pro-
dução condiciona a propagação de ideias e discursos, por isso pensar
a produção lúdica e ativista de gifs propondo o ciberespaço enquanto
ambiente de resistência no qual a nossa fala ganha sentido e se pro-
paga, porém para isso é preciso entender os caminhos de produção e
quais sentidos buscamos propagar ou pulverizar (Jenkins, 2013).

O uso da web chama atenção pela capacidade de agluti-


nar comentários e espalhar mensagens para um grande número de
jovens que usam as redes sociais enquanto espaços de sociabili-
dade e exposição de ideias, opinar é fazer política, compartilhar ou
publicar qualquer conteúdo que seja é colocar na arena dos discur-
sos signos e símbolos que fazem parte do cotidiano dos usuários, tal
produção promove a circulação de materiais informativos via digital.

É desta forma que pensamos o ciberespaço como um espaço


de muitos ativistas, de produção cultural e política no qual uma série
de práticas de uso sociais da linguagem são mobilizadas em função
de suas necessidades e mensagens, assim o uso da linguagem, na sua

SUMÁRIO 158
modalidade imagética, envolve, portanto, em práticas de letramentos,
compreendidos como “um conjunto de práticas sociais que usam a
escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em con-
textos específicos” (Kleiman, 1995, p. 19). Partimos da ideia de lingua-
gem enquanto tecnologia para propormos a criação de gifs de resisto-
res, usando os meios disponíveis enquanto estética de resistência par-
ticipando da arena de discursos e pulverizando ideias ciberativistas.

GIFS DE RESISTORES
Alterações visíveis com o advento da cibercultura fecundada
nos anos 40 através do desenvolvimento da informática e da ciber-
nética, popularizada na década de 70 com o surgimento do micro-
computador, inaugurou a formação de uma sociedade conectada
“computador para todos” (Lemos, 2002, p. 109), ação que generali-
zou a conexão nos anos 90, e resultaram na popularização dos meios
digitais, mais especificamente os canais de vídeos, nos quais são
exibidos desde tutoriais de jogos à receitas de culinária e atualmente
acessados via celular, visto que, vivemos uma sociedade de celula-
res para todos, se formos analisar a capitalização das operadoras
de aparelhos móveis no Brasil, a qual se configura de maneira per-
versa e desigual, despertando o fetiche das atualizações imediatas
de modelos de aparelhos, falácia que leva para mercado modelos
fadados a obsolescência em arquivamento e envio de dados, o tele-
fone móvel tem ganhando atribuições de computador móvel.

Assim, torna-se fundamental suscitar que a popularização


da rede telemática impulsiona não apenas o uso técnico das mídias
digitais, esta modifica a relação sujeito-conhecimento, pois através
das chamadas “redes”, meios de produção, que ampliamos e trans-
fundimos as relações humano-meio-conhecimento.

SUMÁRIO 159
As rupturas promovidas pelos novos instrumentos de produ-
ção (ativo/passivo) emergidos no contexto da Web 2.0, reconfiguram
as relações do educando com os meios e a produção científica, ou
seja, com os diferentes canais-instrumentos desde o primeiro porto
de embarque em plataformas, as redes sociais aos diferentes apli-
cativos, convergidos nas telas das mídias móveis, que permitem a
dinamização e popularização do conhecimento.

Desta forma, com base no uso das novas tecnologias foi feita
uma análise sobre a importância da difusão científica, conteúdo
exposto neste projeto explicitando o uso dos meios digitais e das
diferentes mídias na difusão do conhecimento científico, para res-
ponder às seguintes perguntas; qual a importância das mídias digi-
tais para pensar o ativismo? Como podemos usar os meios digitais
enquanto via de resistência? Foram essas perguntas que moveram
o caminho até chegarmos aos gifs (Graphics Interchange Format ou
em português formato de intercâmbio gráfico), para melhor traduzir
o que seriam os gifs, são mensagens com imagens ou textos cur-
tos animados em poucos segundos usadas geralmente pela gera-
ção nascida na web 2.0.

No processo de feitura das animações com aplicativos gra-


tuitos disponíveis para android, buscamos considerar os aplicativos
e os instrumentos virtuais dentro de um viés educomunicador13, dila-
tando informações através dos canais-instrumentos presentes no
ciberespaço. Assim dividimos a atividade da seguinte maneira:

■ Contexto histórico da guerra fria tecendo paralelo com con-


texto atual de uso da web: neste período o envio de mensa-
gens a distância inaugura uma nova rede de comunicação;
após o desenvolvimento de envios de mensagens via rede, os
estudos e desenvolvimento do que hoje conhecemos como

13 Expressão usada para referenciar o uso e a necessidade de buscar desenvolver nas escolas ações
usando como ponte a Educomunicação.

SUMÁRIO 160
rede telemática e rede de computadores, são frutos de uma
corrida armamentista e sedenta por informações rápidas
(Lemos, 2002). Partindo da sumarização do surgimento da
internet, iniciamos o processo criativo, a oficina foi inscrita na
II Jornada Científica Favelades Universitáries (2022), evento
no qual não tivemos inscritos, o que motivou sua realização
no projeto Malungas (2022);

■ Orientação de buscar por significado de palavras e formas


de pesquisar usando o Google no celular; após a pesquisa,
escavar as palavras implícitas no significado apresentando
usando dicionários físicos. Com as buscas elaboramos
um quadro de palavras;

■ Articulação dos significados encontrados com os contextos


dos participantes, expondo em quais momentos ou situações
as palavras são aplicáveis no cotidiano das comunidades
nas quais residimos;

■ Apresentação do aplicativo Gif Maker para os partici-


pantes e orientação para a criação de gifs de resistores,
pensando a palavra resistência enquanto via discursiva
para criação das frases;

■ Criação dos gifs e exposição: cada participante comparti-


lhou seu gif em grupos de WhatsApp e Instagram, o formato
dos gifs foram os mais diversos, como podemos observar
nas imagens, alguns apenas com texto e efeitos outros com
prints de trechos de vídeos.

SUMÁRIO 161
Quadro 1 - Sentidos da resistência
Significado Sinônimos Fonte
1. Ato ou efeito de resistir. Força: energia, decisão, confiança, Dicionário de português do
2. Propriedade de um corpo que ânimo, brio, força, fortaleza, moral, Google é alimentado pela Oxford
reage contra a ação de outro corpo. valor, vigor. Languages.
Persistência: constância,
determinação, firmeza, obstinação,
perseverança, persistência,
pertinácia, teimosia, tenacidade.
Oposição: objeção, antagonismo,
luta, reação, rechaço, relutância,
renitência.
Embaraço: dificuldade, bloqueio,
barreira, empecilho, estorvo,
impedimento, óbice, obstáculo.
Recusa: desaceitação, descrédito,
recusa, rejeição.
Defesa própria de quem luta
contra outros: defendimento,
defensão, defesa.
Fonte: elaborado pela autora (2022).

Figura 1 – Captura de tela de trecho do Gif

Fonte: Vania Nogueira (2022).

SUMÁRIO 162
Figura 2 - Exemplo de Gift produzido na Oficina

Fonte: Silvânia Cerqueira (2022).

Tentamos para a oficina pensar um roteiro simples, aberto a


adequações para conduzir as etapas dos encontros até chegar ao
foco principal que é pensar o ciberespaço enquanto ambiente tam-
bém de ativismo político, evocando o uso das mídias móveis para a
produção de discursos, pois a internet não é simplesmente uma tec-
nologia; é o meio de comunicação que constitui a forma organizativa
de nossas sociedades; é o equivalente ao que foi a fábrica ou grande
corporação na era industrial. A Internet é o coração de um novo para-
digma sociotécnico (Castells, 2003).
Estamos todos conectados, mas que nossas ideias, ins-
tituições e mesmo nossas próprias identidades estão em
fluxo constante, assim também as mídias úmidas ligam
os domínios artificial e natural, transformando a relação
entre a consciência e o mundo (Ascott, 1997, p. 274).

Com o avanço da cibernética, fomos obrigados a convi-


ver com “timoneiros” que navegam num universo de informações,
visto que, o avanço da microinformática ampliou as possibilidades
de informações. Habitamos um mundo composto por bits, bytes e
nanotecnologia, consequência da popularização da informática no
final dos anos 90 que alterou a antiga hierarquia um-todos para
todos-todos (Lévy, 1999), que agora se desenha para um-todos, pois
sabemos que coordena os fluxos de mensagens e dados, os três

SUMÁRIO 163
grupos detentores dos dados da população mundial de ciborgues
conectados pelas redes de aplicativos desde o financeiros aos de
relacionamentos, incitando o aniquilamento do modelo fetichista da
Indústria Cultural, e do funcionalismo das tradições teóricos socioló-
gicas, ou seja, vivemos uma assimetria, na qual a “máquina” deten-
tora de informações tem donos.

É inegável que a Web 2.014, possibilita a imbricação sensitiva


com a máquina, o que implica também uma evolução dos veículos
de difusão do conhecimento através dos diferentes meios e aplicati-
vos, que configuram a sociedade da informação tendo como base os
meios de comunicação móvel que se tornam cada vez mais populares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Adotar a linguagem das mídias para pensar caminhos de
ocupar a arena dos discursos pode ser uma via tortuosa, mas par-
ticipativa, pois é importante entendermos os meios e mesmo de
maneira desigual os ocuparmos. Omitir-se não faz sentido, o modelo
da oficina permitiu entendermos que é possível com um celular na
mão. Um letramento digital pode vir a ser uma via para revertermos o
avanço do uso ingênuo das mídias digitais e os dispositivos móveis,
a ideia de pensar os gifs de resistores é uma tentativa de explicitar
o uso ativista dos meios eletrônicos atribuindo a estes não apenas a
instrumentalização, mas um entendimento dos meios de produção e
participação política através da criação de mensagens.

14 É pertinente salientar que a cibernética de segunda ordem já se faz presente e atualmente vi-
venciamos a popularização da web 3.0 com o deslumbre dos avatares presentes na realidade
ampliada, modelo que ainda não se popularizou na classe mais baixa da população devido a
necessidade de atualização do android e alto envio de dados.

SUMÁRIO 164
REFERÊNCIAS
ASCOTT, Roy. Cultivando o hipercórtex. In: DOMINGUES, Diana (org.). A arte no século
XXI. A humanização das tecnologias. São Paulo: Editora UNESP, 1997. p. 336-334.

CASTELLS, Manuel. Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 2003.

GADOTTI, Moacir. Perspectivas atuais da educação. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 2000.

JENKINS, Henry. Mídia Espalhável: Criando Valor e Significado em uma Cultura em


Rede. Nova York: New York University Press, 2013.

KLEIMAN, A. B. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola In: KLEIMAN,


A. B. (org.). Os significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1995.

LEMOS André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto


Alegre: Sulina, 2002.

LÈVY, Pierre. Cibercultura. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 1999.

PRETTO, Nelson; PINTO, Claudio da Costa. Tecnologias e novas educações. Revista


Brasileira de Educação. v. 11, n. 31, jan/abr. 2006.

SUMÁRIO 165
13
Wudson Guilherme de Oliveira

O AQUILOMBAMENTO
DOS POVOS BANTU
NO ENSINO DE FILOSOFIA:
PERSPECTIVAS NO ENSINO DE FILOSOFIA
E AS SUAS TRANSVERSALIDADES
NO “CHÃO DA ESCOLA”

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.13
MEDITAÇÕES INTRODUTÓRIAS
[...] à possibilidade de se estabelecer, na prática educativa
uma relação entre aprender conhecimentos teoricamente
sistematizados (aprender sobre a realidade) e as ques-
tões da vida real e de sua transformação (aprender a rea-
lidade da realidade) (Brasil, 1998, p. 30).

É urgente compendiar que há exatamente 20 anos, no mês


de janeiro do ano de 2003, ocorreu a aprovação da implementação
da Lei Federal 10.639/200315, uma lei que “simbolizava, simultanea-
mente, um ponto de chegada das lutas antirracistas no Brasil e um
ponto de partida para a renovação da qualidade social da educação
brasileira” (Brasil, 2009, p. 9).

A lei transmutou o Artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases


da Educação Nacional (LDBEN), estabelecendo uma indispensa-
bilidade do ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira,
com o intuito de promover o “Registro da história não contada
dos negros brasileiros, tais como os remanescentes de quilombos,
comunidades e territórios negros urbanos e rurais” (Brasil, 2004,
p. 13) no Ensino Básico.

A Lei Federal 10.639/2003 surge com o intuito de remodelar


a precedente de número 9.394, de 20 de dezembro de 1996, deter-
minada e expandida nos artigos 26-A, 79-A e 79-B. Tendo sido uma
conquista promulgada graças às virtudes dos diversos protagonis-
mos dos Movimentos Sociais Negros no Brasil, que não se estafaram
de reivindicar, durante décadas, com suas vociferações sensibiliza-
das, para que se tornasse possível estabelecer um ensino potente
nos currículos do sistema de ensino brasileiro, que contemplassem
os estudos das Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras.

15 Em 11 de Março de 2008 a Lei 10.639/2003 foi substituída pela criação da Lei 11.645/2008 que
torna obrigatório, também, o ensino ligado à História e Cultura dos Povos Indígenas nos currículos
oficiais da educação nacional.

SUMÁRIO 167
Sobre a amabilidade do protagonismo dos Movimentos
Negros16 em relação aos processos das promoções das equidades
raciais no Brasil, Nilma Lino Gomes (2017) afirma que:
Uma coisa é certa: se não fosse a luta do Movimento
Negro nas suas mais diversas formas de expressão e de
organização [...] muito do que o Brasil sabe atualmente
sobre a questão racial e africana, não teria acontecido.
E muito do que hoje se produz sobre a temática racial e
africana, em uma perspectiva crítica e emancipatória não
teria sido construído. E nem as políticas de promoção da
igualdade racial teriam sido construídas e implementadas.
[...] A obrigatoriedade do estudo da história e da cultura
afro-brasileira e africana nas escolas públicas e particu-
lares de educação básica não teriam se transformado em
realidade, ajudando a todos nós, brasileiras e brasileiros,
de todo e qualquer grupo étnico-racial a superar a nossa
ignorância sobre o racismo e seus efeitos nefastos, como
também a reconhecer o protagonismo das negras e dos
negros, que representam 53% da população que vive e
constrói o nosso país (Gomes, 2017, p. 18).

Apesar de já terem se passado 20 anos da publicação da


Lei Federal 10.639/2003, podemos refletir que, para ela adiantar e
funcionar de forma eficaz, e ativa em nossa sociedade educacional.
E também em muitos outros espaços de educação, ainda existem
alguns inconvenientes, que vêm sendo delatados pelos professores
e pelo Movimento Negro.

Indicando as críticas sobre os embaraços que acercam a falta


de “Cursos de Formação Pedagógica”, voltados para as perspectivas

16 A respeito dos processos de mobilizações e organização do movimento negro no Brasil referidos


ao século passado e atual, podemos nos portar em referenciais como: Antônio Liberac C. S. Pires;
Amilcar Araújo Pereira (2007), Amauri Mendes Pereira (2008), Clóvis Moura (1983), Florestan
Fernandes (1978), Kabengele Munanga (1996), Marcos Antônio Cardoso (2011), Nilma Lino Gomes
(2017), Roger Bastide (1972), Sales Augusto dos Santos (2005), entre outros.

SUMÁRIO 168
das Leis Federais 10.639/2003 e 11.645/200817. Não podendo deixar
de aludir, os desprovimentos de materiais, didáticos e paradidáticos
que ainda não estão presentes nas salas de aula, pois “o racismo
imprime marcas negativas na subjetividade dos negros e também na
dos que os discriminam” (Parecer CNE/CP 3/2004), provocando a
não contribuição para os professores colaboradores.

Com relação ao protagonismo da Lei Federal 10.639/2003,


precisamos salientar que a mesma, continua não sendo valorizada,
ou mesmo reconhecida, por grande parte dos profissionais da edu-
cação e intelectuais. Posto isso, impedindo de forma desestruturante
a incorporação dos relativos conteúdos, que acercam as Histórias
e Culturas Africanas, dos Afro-brasileiros e dos Grupos Indígenas,
nos currículos da Educação Básica, para a suplantação do racismo.
Encarada neste trabalho, como uma “ideologia de superioridade racial
que tende a beneficiar as pessoas brancas” (Malomalo, 2018, p. 491).

Figura 1 - Slide sobre a importância da implementação


das Leis Federais 10.630/03 e 11.645/08

Fonte e Arte: Wudson Guilherme de Oliveira, professor e mediador na 1ª Jornada Científica Favelades.

17 Esta lei foi assinada no mês de março de 2008, é inserida a Lei Federal 11.645/08, acrescentando
as temáticas ligadas à história e cultura dos povos indígenas nos currículos oficiais no artigo 26 -
A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em todo território nacional.

SUMÁRIO 169
Desta maneira, estas façanhas tidas aqui, como ações afir-
mativas, que se tornam em um
Conjunto de políticas públicas e privadas de caráter com-
pulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vista
ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem
nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da
discriminação praticada no passado (Gomes, 2001, p. 40).

Essas ações visam ultrapassar as tentativas de repara-


ções e hipóteses de igualdades individuais, nas quais, ao que
tudo indica, não integra toda a falta de realizações, imbuídas com
as temáticas do Artigo 26-A da LDBEN, para “Cursos e Oficinas
Pedagógicas para Educadores”.

Já com relação aos princípios da contrariedade, em encontrar


os materiais publicados, precisamos levantar alguns embaraços per-
manentes, relacionados a estes argumentos. Pois, vale lembrar que,
nos últimos 20 anos da existência do Artigo 26-A da LDBEN, foram
confeccionados e elaborados uma infinidade de materiais.

Com por exemplo, livros, vídeos, revistas, blogs e muitos


outros materiais. Com o objetivo de exaltar as culturas e histórias das
áfricas, as políticas de igualdade racial18, a educação das relações
étnico-raciais, a diáspora afrodescendente, versada em sua adoção
que “se insere no âmbito das reparações reivindicadas pelos movi-
mentos negros, o termo só é aplicável aos descendentes das vítimas
diretas ou indiretas do escravismo dos séculos XVI a XIX” (Lopes,
2011, p. 57). Assim como a juventude negra, as questões quilombolas,
as africanidades, a saúde da população negra e a luta antirracista.

18 “[...] raça é uma construção política e social. É a categoria discursiva em torno da qual se organiza
um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão, ou seja, o racismo. Todavia, como
prática discursiva, o racismo possui uma lógica própria. Tenta justificar as diferenças sociais e
culturais que legitimam a exclusão racial em termos de distorções genéticas e biológicas, isto é,
na natureza” (Hall, 2003, p. 69).

SUMÁRIO 170
À vista disso, também foram germinadas novas discus-
sões acaloradas, que interrogaram e dinamizaram, conhecimentos
como: desigualdade racial, violência, preconceito, ações afirmativas,
gênero, racismo, intolerância religiosa contra os adeptos das reli-
giões afro-brasileiras, entre outras intervenções epistemológicas e
teóricas das ciências humanas, sociais, jurídicas e da saúde. Onde
também podemos incluir as produções críticas das teorias do século
XIX, que ainda são presentes no imaginário pedagógico, teórico e
social (Gomes, 2017).

Algumas outras problemáticas, também ainda estão sendo


encontradas, para o acesso aos materiais já produzidos. Como é o
caso da promoção da existência desses materiais, e por último, mais
não menos importante, a ausência de encorajamentos e interesses,
dos profissionais de educação que vinculam a implementação da
Lei Federal 10.639/03, apenas aos professores afro-brasileiros, que
podem ser representados como um “qualitativo do indivíduo brasi-
leiro de origem africana e de tudo que lhe diga respeito. Relativo,
ao mesmo tempo, a África e ao Brasil, como o indivíduo brasileiro
de ascendência africana” (Lopes, 2011, p. 56), ou mesmo apenas,
aos professores que lecionam aulas das Disciplinas de História,
Literatura, Geografia, Sociologia ou Artes.

Seguindo a linha de raciocínio, sempre em apenas três


culminâncias pedagógicas. Em especial nas seguintes datas
comemorativas anuais:

■ 19 de Abril19, data em que é comemorado o “Dia Nacional dos


grupos Indígenas”. Onde, alguns professores ainda caracteri-
zam os seus alunos, com fantasias, como por exemplo, com
um cocar folclorizado, com única pena grande na cabeça,

19 Atualmente, os grupos indígenas tentam ressignificar em “Dia da Conscientização para a Questão


Indígena”, como forma de defesa da sua cultura e dos direitos de seus povos.

SUMÁRIO 171
pintando o rosto da criança com tinta guache branca e tanga
de papel pardo com um machado cruzado;

■ 13 de Maio20, nesta data, vale destacar que durante muitos


anos, as questões que acercavam as Histórias e Culturas
dos Negros no Brasil, só eram lembradas de modo edu-
cativo ou cívico, apenas na data do dia 13 de maio, dia da
assinatura da Lei Áurea, em 1888, onde se declarou extinta a
escravidão no Brasil.

Esta data era conhecida como o “Dia da Libertação dos


Escravos”, dia que se exaltavam apenas uma “dita” benevolência
de uma princesa, sem se discutir as lutas e resistências dos grupos
negros para a sua própria libertação.

■ 20 de Novembro21, data muito ainda comemorada, como uma


mera efetivação desimpedida, por alguns professores e esco-
las, com relação às questões sobre as Histórias e Culturas
do Negro, como um método de cumprimento da Lei Federal
10.639/03 nos espaços de educação.

É de grande importância também pontuar, que todas as


negativas à anterior encontraram também, outros obstáculos pro-
piciados por uma quantidade expressiva de professores, e outros
agentes educacionais, que não aceitam trabalhar com as discussões,
que são atreladas às Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras.

Em outras vezes, estas resistências, estão atreladas pela falta


de sensibilidade dos colegas professores, que estão amparados
na repulsa em trazer para dentro da sala de aula, debates potentes

20 O Movimento Negro tem interpretado esta data como “Dia Nacional de Luta contra o Racismo”, de
modo a reeducar e construir novos diálogos pela igualdade e representatividade.
21 No Estado do Rio de Janeiro, é decretado como feriado o dia 20 de novembro, data da morte do
líder quilombola Zumbi dos Palmares, estabelecido com o “Dia da Consciência Negra” sancionada
pela Governadora Benedita da Silva pela Lei nº 4007, de novembro de 2002.

SUMÁRIO 172
sobre tais controvérsias, como por exemplo, as perspectivas ligadas
à discriminação, preconceito, racismo e branquitude.

Sovik (2004) nos apresenta que a branquitude é compreen-


dida como um sistema de valores e comportamentos que toma o
ser branco como “o modelo universal de humanidade”, o represen-
tante de todas as pessoas. Esses valores levam a uma espécie de
“cegueira social”, fazendo com que grande parte das pessoas bran-
cas não consiga enxergar a dor das pessoas que enfrentam discrimi-
nação étnico-racial.

Também precisam ter conversas sobre religiosidade, inter-


seccionalidade22, entendida como aquela que “trata especificamente
da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe
e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que
estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e
outras” (Crenshaw, 2002, p. 177).

Além das discussões sobre branquidade entre outras emer-


gências, devido ao sentimento de despreparo dos professores e pro-
fissionais educacionais, em relação ao domínio desses conteúdos,
ou mesmo, a indisposição em promover olhares (des)construídos e
(des)colonizadores, sobre os grupos africanos, indígenas e as suas
diásporas africanas no Brasil.

22 A interseccionalidade foi um termo cunhado no ano de 1989, pela teórica feminista estadunidense
Kimberlé Crenshaw (1991). Em suas primeiras reflexões escritas, a autora via a interseccionalidade
como uma “metáfora” e em seus textos posteriores, Kimberlé Crenshaw passou a apontá-los como
uma “categoria provisória”. Para saber mais, buscar em: Mapping the margins: intersectionality,
identity politics, and violence against women of color de Kimberlé Williams Crenshaw.

SUMÁRIO 173
TENSÕES CAUSADAS PELA
IMPLEMENTAÇÃO DAS LEIS
NO CHÃO DA ESCOLA
Em uma determinada instituição privada de Educação
Básica, em um município localizado na Baixada Fluminense, região
metropolitana do Rio de Janeiro, foram planejadas, preparadas e rea-
lizadas de modo desacompanhado, “Aulas/Oficinas” de modo emer-
gencial para uma turma do 1º Ano do Ensino Médio, nas aulas da
Disciplina de Filosofia.

Não achamos digno, revelar o nome da instituição de ensino,


lugar esse que ocorreram os entraves que serão apresentados.
Dessa forma, decidimos dar o nome fictício de Colégio Educacional
Luiza Mahin23 “Rainha Africana no Brasil”, para que desse modo,
fosse possível homenagear a heroína afro-brasileira, e proteger o
bom andamento da pesquisa acadêmica e a integridade do espaço
de educação que sempre propagou declarações, como uma institui-
ção de ensino “NÃO RACISTA”, embora, ocorra dentro das suas salas
de aula, inúmeras ocorrências desajustadas, atreladas às tensões do
Bullying e as “brincadeirinhas inocentes” de adolescentes.

23 Vale lembrar que Luiza Mahin, era uma mulher negra, inteligente, princesa em África, vinda da
Costa da Mina (Nagô de Nação) da etnia Mahi, daí o seu nome étnico, é muito referenciada e
idealizada pela comunidade negra e outros segmentos da sociedade brasileira associados aos
movimentos negros, e à valorização da história e cultura afro-brasileiras, sendo representada pe-
las memórias históricas como uma escrava de ganho, quituteira e quitandeira, que sempre lutou
contra a escravidão. Mulher insubordinada, foi uma revolucionária baiana, tornando-se livre por
volta de 1812. Foi grande apoiadora de variadas revoltas de escravizados. Inclusive na repressão
da gigantesca Revolta dos Malês, se tornando um símbolo de resistência negra, se configurando
em um mito para a população afrodescendente. Já no ano de 1835, ela teria fugido para o Rio de
Janeiro, onde foi presa e possivelmente deportada para o Continente Africano. Luiza Mahin é mãe
do poeta Luiz Gama “percursor do abolicionismo no Brasil”. Para saber mais, consultar em Aline
Najara da Silva Gonçalves Luiza Mahin: uma rainha africana no Brasil (2011).

SUMÁRIO 174
Neto (2011) exibe que o Bullying, é aquela soma de com-
portamentos agressivos e frequente de opressões, abusos, injúrias
e subjugação de uma pessoa ou grupos sobre outro indivíduo ou
grupos, subjugados pela força. Nesse sentido, Neto define o Bullying
como “atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem
sem motivação evidente, adotadas por um ou mais estudantes con-
tra outros (os), causando dor e angústia, e executadas dentro de
uma relação desigual de poder, tornando possível a intimidação da
vítima” (Neto, 2011, p. 21).

A partir das trocas de ideias com alguns alunos e alunas, me


foi possível ouvir os relatos das vítimas, que estavam sofrendo fre-
quentemente os atos de Bullying. Onde me senti na obrigação de
fazer uma leitura apurada dos registros.

Permitindo-me realizar uma possível observação sobre todas


as “piadinhas e brincadeirinhas” ditas como inocentes, que nunca
foram confrontadas ou mesmo tomadas postura positivas, pelos
coordenadores e administradores do Colégio Educacional Luiza
Mahin “Rainha Africana no Brasil”.

Vale apontar que neste ambiente de educação, esses inci-


dentes não estavam atrelados à violências físicas, mas em regis-
tros contendo apelidos, comparações desrespeitosas, xingamentos,
expressões, em relação à aparência física entre outras característi-
cas, tais como, por exemplo: “Deixa de ser burro, macaco(a)!”, “Seu
cabelo é uma bucha de canhão!”, “Beiço com picada de abelha!” e
“King Kong com peruca de esponja!”.

Ao fazer alguns interrogatórios aos coordenadores e professo-


res, percebi o desconhecimento de alguns, e um racismo total de outros.

Desse modo, planejei um projeto pedagógico, para ampliar


e compartilhar os conhecimentos, que fora apresentado à coorde-
nação escolar, da instituição de ensino, que recebeu e examinou o
projeto em questão.

SUMÁRIO 175
Todavia, o projeto não foi aprovado, por não se tratar de ques-
tões tão pertinentes e urgentes, pois de acordo com a coordena-
ção, o Colégio Educacional Luiza Mahin “Rainha Africana no Brasil”,
não compactuava com algo que não existe, pois racismo não existe.
Inclusive, como a escola poderia estar tendo práticas racistas, se ela
possuía em seu quadro de funcionários, dois professores negros e as
“Tias da limpeza da escola”.

Com um olhar mais humanizado, amparadas nas perspec-


tivas afrocentradas e com postura nas transversalidades24, diante
disso “entende[-se] que os conteúdos curriculares tradicionais for-
mam um eixo longitudinal do sistema educacional e, em torno des-
sas áreas de conhecimento, devem circular, ou perpassar, transver-
salmente esses temas, mais vinculados ao cotidiano da sociedade”
(Busquets, 2000, p. 13).

Desse modo chego à conclusão que o Colégio Educacional


Luiza Mahin “Rainha Africana no Brasil”, estava desenvolvendo de
modo impróprio, ações moldadas no racismo institucional e no
racismo estrutural, que extrapolam “as relações interpessoais e
ocorre à revelia das boas intenções individuais, implicando o com-
prometimento dos resultados de planos e metas de instituições,
gestões administrativas e de governo” (Araújo; Tolentino; Silva, 2018,
p. 256). Pois a escola estava apoiando, indiretamente, as cenas de
racismo praticadas pelos alunos e, algumas das vezes, eram apoia-
das e legitimadas pelos professores e coordenadores pedagógicos,
para com os seus alunos “Pretos” e “Pardos”, utilizando em pleno
século XXI, olhares amparados na meritocracia.

24 A transversalidade diz respeito à possibilidade de se estabelecer, na prática educativa, uma re-


lação entre aprender conhecimentos teoricamente sistematizados (aprender sobre a realidade).
E uma forma de sistematizar esse trabalho é inclui-lo explícita e estruturalmente na organização
curricular, garantindo sua continuidade e aprofundamento ao largo da escolaridade. Para saber
mais, buscar em Parâmetros Curriculares Nacionais: 3º e 4º Ciclos do Ensino Fundamental: introdu-
ção aos Parâmetros Curriculares Nacionais da Secretaria de Educação Fundamental (1998).

SUMÁRIO 176
Agravando, de modo intenso, as desigualdades, as injustiças
e mantendo as exclusões, fundadas em preconceitos e na manu-
tenção dos privilégios, para os grupos sempre privilegiados, for-
talecendo o imaginário de que no Brasil e em nossa escola, existe
uma harmônica relação amparada na democracia racial. Vale des-
tacar que em nossa sociedade ainda encontramos pessoas que
acreditam nesse mito.

Parafraseando Nilma Lino Gomes (2010), o mito da democra-


cia racial pode ser compreendido como uma corrente ideológica que
pretende negar a desigualdade racial entre brancos e negros no Brasil
como fruto do racismo, afirmando que existe entre estes dois grupos
raciais uma situação de igualdade de oportunidade e de tratamento.

Ao ter a certeza das questões que estavam ocorrendo, e com


o propósito de contribuir com um ensino amparado nas indagações
firmadas na resistência afroperspectivista – “O termo afroperspecti-
vista tem um sentido simples, o conjunto de pontos de vista, estra-
tégias, sistemas e modos de pensar e viver de matrizes africanas”
(Nogueira, 2012, p. 147) – e inspiradas nas questões antirracistas,
transgressoras e decolonial25, em conveniência com a promoção
do Artigo 26-A da LDBEN, surge a sapiência de criar as “Aulas/
Oficinas” pedagógicas intituladas “O aquilombamento dos povos
bantu no ensino de filosofia: perspectivas no ensino de filosofia e as
suas transversalidades”, como uma maneira de preservar e promover
a equidade racial e o aminguamento do racismo, nesta instituição
privada de educação e em outros ambientes escolares na cidade do
Rio de Janeiro e adjacências.

25 A ativista e pesquisadora Catherine Walsh (2013) foi quem delimitou a referida abordagem por
sugerir práticas insurgentes no processo de formação escolarizada, no entanto, também, em ou-
tros espaços de conhecimento. Onde se destaca a publicação Pedagogias Decoloniais: práticas
insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir, livro organizado por ela no ano de 2013.

SUMÁRIO 177
Figura 2 - Slide inicial apresentado na instituição de
ensino e na 1º Jornada Científica Favelades

Fonte e Arte: Wudson Guilherme de Oliveira, professor e mediador na 1ª Jornada Científica Favelades.

A ação pedagógica foi realizada de modo “clandestino”, com


inspirações na implementação da Lei Federal 10.639/03 e 11.645/08,
na resistência de uma Educação étnico-racial, na interdisciplinari-
dade. Sobre a interdisciplinaridade, podemos afirmar que ela “não
se ensina, não se aprende, apenas vive-se, exerce-se e por isso
exige uma nova pedagogia, a da comunicação” (Fazenda, 1994, p.
18), nessa interpretação, cabe a nós professores, articularmos no
momento certo, as teorias e as práticas, de um modo interdisciplinar,
sem se perder a inclinação da sua própria disciplina.

Possibilitando valorizar a ancestralidade negra, com vistas


na trajetória e conjuntura atual dos afro-brasileiros. Pretendendo
que todos os participantes “Negros” e os “Não Negros” envolvi-
dos na atividade se sentissem partes importantes desta ação afir-
mativa para a promoção ao respeito e a autoestima dos afrodes-
cendentes, em prol de uma Educação Étnico-Racial no combate à
amenização do racismo.

SUMÁRIO 178
AS AULAS ANTIRRACISTAS
Tendo em vista implementar a Lei Federal 10.639/03 e
11.645/08 e as suas perspectivas que acercam as Histórias e Culturas
Africanas, Indígenas e Afro-brasileiras, para que sejam incorporados
nos conteúdos curriculares do Ensino de Filosofia, para a turma do 1º
Ano do Ensino Médio da Educação Básica, foi planejado trabalhar com
os alunos utilizando perspectivas das Filosofias Africanas26, reputada
como a filosofia que “está presente em todas as discussões a respeito
do status filosófico de pensadores e pensadoras do continente afri-
cano” (Nogueira, 2014, p. 72) sempre inspirado, nas reflexões de alguns
filósofos e intelectuais africanos, afro-americanos e afro-brasileiros.

Todos com o intuito e o desafio de se debruçar em pensa-


mentos filosóficos demarcados por repertórios africanos, afrodias-
póricos, indígenas e ameríndios, de modo libertador, transgres-
sor e (des)colonizado.

A organização metodológica, foi transformadamente de


outras aulas da Disciplina de Filosofia tradicionais, predispomos aos
alunos, a repensarem sobre outros olhares possíveis, para o ensino
dos saberes das Filosofias. Não de modo ocidental e consuetudiná-
rio, na superioridade do continente europeu e nos pensadores filosó-
ficos gregos, mas pelo contrário, a partir da apresentação de deter-
minados conceitos de alguns intelectuais da contemporaneidade,
como Renato Nogueira27 (2014), Djamila Ribeiro28 (2019), Molefi Kete

26 Em relação aos filósofos que exploram reflexões das Filosofias Africanas com uma abordagem
filosófica afroperspectivista, podemos nos portar em referenciais como: Abdias do Nascimento
(2002), Cheikh Anta Diop (1967), Joseph Omoregbe (1998); Kwame A. Appiah (1997); Mogobe Ramo-
se (2011); Paul Hountondji (2010), Renato Noguera (2014), entre outros.
27 Doutor em Filosofia e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), responsável
pelo Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções (AFROSIN) e autor de vários livros.
28 Mestra em Filosofia Política pela Unifesp, colunista do jornal Folha de São Paulo e foi secretária
adjunta de Direitos Humanos e Cidadania do município de São Paulo. Coordena a coleção Femi-
nismos Plurais da Editora Pólen.

SUMÁRIO 179
Asante29 (2009), Frantz Fanon30 (2008), entre outros e outras pensa-
doras e pensadores (as) potentes.

Figura 3 - Slide sobre os “Filósofos (as) e Intelectuais afrocentrados”

Fonte e Arte: Wudson Guilherme de Oliveira, professor e mediador na 1ª Jornada Científica Favelades.

As “Aulas/Oficinas” estavam amparadas na democra-


cia, onde a partir de sorteios entre os alunos, foram surgindo os
“Grupos de Trabalho”, para a realização das pesquisas étnico-raciais
sobre os intelectuais afrocentrados destacados como, por exemplo:
Angela Davis31, Nei Lopes32, Molefi Kete Asante, Achille Mbembe33,

29 Cientista Social afro-americano e um dos criadores da filosofia do afrocentrismo, também é autor


de outros livros, de Afrocentricity: the theory of social change (1980), African culture: the rhythms
of unity (1985) entre outros.
30 Ensaísta, psicólogo e líder revolucionário na Argélia, desenvolveu reflexões políticas importantes
a respeito da descolonização. Nascido na Martinica e falecido nos Estados Unidos. Escreveu em
1954, Pele negra, máscaras brancas, um estudo sobre a psicologia dos negros antilhanos.
31 Escritora, filósofa e ativista política afro-americana.
32 Filósofo, escritor e compositor, é autor de várias obras sobre cultura e história afro-brasileira.
33 É professor de Ciência Política e História na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, refe-
rência na área dos estudos pós-coloniais e um dos pensadores contemporâneos mais políticos e
ativo, tem extensa obra publicada sobre história política africana, na qual explora os temas sobre
o poder e a violência.

SUMÁRIO 180
Amadou Hampâté Bâ34, Djamila Ribeiro, Patrice Lumumba35,
Amauri Mendes36, Frantz Fanon, bell hooks37, Lélia Gonzalez38, Sueli
Carneiro39 e Renato Nogueira.

No desdobrar-se, de todo o primeiro e segundo bimestres,


em semanas revezadas, foram proporcionados aos Alunos, os sabe-
res do Ensino de Filosofia de acordo com as exigências curriculares
do Colégio Educacional Curso Luiza Mahin “Rainha Africana no Brasil”,
e na seguinte os conteúdos afrocentrados com “Aulas/Oficinas”.

Nas apresentações dos “Grupos de Trabalho”, os alunos trou-


xeram suas pesquisas das mais diversas maneiras, dentre elas desta-
camos a apresentação do “Grupo de Trabalho” que pesquisou sobre
o pensador Amadou Hampâté Bâ.

Os alunos apresentaram aos colegas, as suas pesquisas


(des)colonizadas com figurinos e adereços inspirados nas sabedo-
rias dos Griot40 e nas Histórias e Culturas Africanas e Afro-brasileiras.

É de referir que nas “Aulas/Oficinas”, a sala de aula estava


sempre ambientada com tecidos de temáticas africanas, bonecos e
bonecas negras, instrumentos de percussão e Exposições de Livros
Africanos, Indígenas e Afro-Brasileiros.

34 Filósofo, historiador e escritor, natural da República do Mali, trabalhava para que as culturas
orais africanas fossem reconhecidas mundialmente, onde apresentou a público belos textos
sobre essas culturas.
35 Foi líder da independência congolesa e primeiro-ministro da República Democrática do Congo. Foi li-
gado aos pan-africanistas e profundamente influenciado pelas ideias nacionalistas e anticolonialistas.
36 Doutor em Ciências Sociais e professor da UFRRJ, tem vastas publicações sobre as Relações Raciais.
37 É professora, ativista e escritora. Possui publicações que propõem uma pedagogia antissexista e libertária.
38 Filósofa, antropóloga e escritora brasileira. Mestre em Comunicação Social e doutora em Antropologia.
39 Filósofa, pedagoga, advogada, escritora, militante negra e líder feminista.
40 Termo do vocabulário franco-africano, criado na época colonial para designar o narrador, cantor,
cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias
importantes das quais, em geral, está a serviço.

SUMÁRIO 181
Os livros expostos tinham temáticas que dialogavam e/ou
colocavam em pauta as questões relacionadas às filosofias africa-
nas, racismo e aos povos bantu. Tendo livros, como por exemplo:
Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano (Kilomba,
2019); Filosofia do ubuntu: valores civilizatórios das ações afirmativas
para o desenvolvimento (Malomalo, 2014); Filosofias africanas: uma
introdução (Lopes, 2020); Bantos, Malês e identidade negra (Lopes,
2021) entre outros.

A exposição tinha como objetivo possibilitar aos alunos um


maior contato com estes materiais, e contribuir assim, com a cidada-
nia para uma sociedade mais justa e igualitária.

Figura 4 - Slide com alguns dos livros bibliográficos, expostos


e lidos durante as “Aulas/Oficinas”

Fonte e Arte: Wudson Guilherme de Oliveira, professor e mediador na 1ª Jornada Científica Favelades.

Habitualmente, ao término das apresentações dos “Grupos


de Trabalho”, eram fomentadas as “Rodas de Diálogo”, com as
impressões e desafios encontrados para realizarem as pesquisas,
oportunizando trocas de olhares em relação às perspectivas das
Filosofias Africanas.

SUMÁRIO 182
Já em outros momentos, efetivamos leituras de fragmentos
de textos, assistimos vídeos e estudamos a partir de Slides afrocen-
trados, referentes às múltiplas questões que trouxeram as temáticas
para baile. Com discussões que serviram de subsídio para as trocas
de perspectivas, e muitos outros desdobramentos para a luta contra
o racismo, no “chão da escola” e fora dos seus territórios.

Durante as “Aulas/Oficinas”, também foram ofertado aos alu-


nos alguns saberes sobre as “influências dos povos bantu em nossa
sociedade”, como uma forma de (des)colonizarem, os olhares euro-
cêntricos, etnocêntricos, racistas, machistas, xenofóbicos, homofóbi-
cos, intolerantes, entre outros, com o intuito de disseminar o respeito
ao próximo independentemente da sua etnia, cultura ou gênero.

Também apresentamos aos alunos, alguns Slides sobre os


“povos bantu”, que têm diversos entendimentos entre eles, uma
grande proporção dos habitantes da terça parte meridional do conti-
nente africano, dos limites marítimos nigero-camerunianos, no oeste,
até a fronteira litorânea somálio-queniana, no Leste, a partir desta
extremidade até a proximidade de Port-Elizabeth, no Sul, se falam
línguas estreitamente semelhantes, intituladas línguas bantu.

É substancial considerar que os povos bantu, também são


vistos como um grande conjunto de povos africanos disseminados do
centro para o leste, sul e sudeste do continente. Falantes de línguas
semelhantes no Congo, em Angola, na Tanzânia, em Moçambique,
na África do Sul (Lopes, 2008,).

Verdade seja dita, o “bantu” é constatado também como


“um conjunto de povos que são encontrados historicamente em um
extenso território localizado na África Central, onde geograficamente
se originou na Nigéria e posteriormente se estendeu para outras
áreas de modo diaspórico” (Oliveira, 2021, p. 414).

SUMÁRIO 183
Figura 4 - Slide sobre a migração dos povos bantu

Fonte: The Nystrom Atlas of Word History.


Arte: Wudson Guilherme de Oliveira, professor e mediador na 1ª Jornada Científica Favelades.

Em todos esses parâmetros é possível observar que o bantu


é bem mais que um grupo étnico estabelecido. Este conjunto de lín-
guas aparentadas, que reúnem variados conjuntos de pessoas que
compartilham um mesmo tronco linguístico trivial.

Abraçando mais de quatrocentas variações plurais, vindas de


um mesmo antepassado, intitulada como protobanta “O protobanto
era falado em uma região fronteiriça no plano ecológico, dispondo,
portanto, de um meio assaz rico, conquanto pudessem dele usufruir
os seus habitantes” (Lwanga-Lunyiigo; Vansina, 2010, p 182).

Entre os séculos XVI e XIX, vale observar que milhões de cor-


pos africanos vindos dos territórios bantu, atravessaram o Atlântico
de forma forçada amontoados nos tumbeiros, sem objetos pesso-
ais e tendo como destino os portos brasileiros. Todos esses grupos

SUMÁRIO 184
foram obrigados a fazer estas migrações, além de serem subjugados
e transformados em mão-de-obra escrava especializada.

Mesmo assim, estas etnias trouxeram consigo infinitas


bagagens intelectuais e culturais, entre elas as suas estruturas lin-
guísticas (bantu) e as referências históricas, que resistiram aos
impactos e as dificuldades encontradas na sociedade colonial
escravocrata portuguesa.

No Brasil, encontramos uma grande predominância da con-


tribuição vocabular dos grupos diaspóricos falantes das línguas
bantu, notadamente o umbundo, o quimbundo e o quicongo.

Por coincidência, é desses idiomas originários do continente


africano que provavelmente eternizaram palavras de tronco linguís-
tico denominado bantu, que grande quantidade delas, conhecemos e
as utilizamos como, por exemplo: axé41, banzo42, boboca, bugiganga,
cabaça, cafuné, caçula, cachaça, cochilo, dendê43, dengue, fofoca,
fuzuê, ginga, jiló, Iemanjá, macumba, moleque, Oxalá, orixá, pururuca,
quiabo, quilombo44, quitanda45, samba, sopapo, sunga, tagarela, toco,
zangado, Zumbi e milhares de outras palavras, que influenciaram de
modo positivo, a língua portuguesa no Brasil e a cultura dos povos
bantu ainda invisibilizada em nossa sociedade.

41 “Termo de origem iorubá que, em sua acepção filosófica, significa a força que permite a realização
da vida, que assegura a existência dinâmica, que possibilita os acontecimentos e as transforma-
ções” (Lopes, 2011, p. 146).
42 “Estado psicopatológico, espécie de nostalgia com depressão profunda, quase sempre fatal, em
que caíam alguns africanos escravizados nas Américas” (Lopes, 2011, p. 181).
43 “Denominação do fruto do dendezeiro e, por extensão, do óleo extraído desse fruto, também cha-
mado azeite de dendê” (Lopes, 2011, p. 445).
44 Aldeamento de escravizados foragidos.
45 “Loja ou tabuleiro em que se vendem hortaliças, legumes, ovos etc., bem como produtos da paste-
laria caseira. Também, biscoitos, bolos e doces expostos em tabuleiro” (Lopes, 2011, p. 1.082).

SUMÁRIO 185
Figura 6 - Slide sobre algumas das palavras incorporadas Figura 6 - Slide sobre
algumas das palavras incorporadas no português brasileiro pelos Povos bantu

Fonte e Arte: Wudson Guilherme de Oliveira, professor e mediador na 1ª Jornada Científica Favelades.

Todas as “Aulas/Oficinas” transmitiram, nas ações pedagó-


gicas, experiências inovadoras para muitos dos alunos, pois desmis-
tificaram as questões racistas e estereotipadas, muitas vezes vistas
como verdades absolutas por algumas pessoas, em relação à História
e Cultura dos Africanos, dos Grupos Indígenas e dos Afro-brasileiros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desfecha-se que dialogar com as reflexões dos filósofos e
intelectuais africanos, afro-americanos e afro-brasileiros, a partir
das afroperspectivas das filosofias africanas, realizadas em “Aulas/
Oficinas” é extremamente importante para as contribuições cultu-
rais, históricas e linguísticas dos povos bantu em nossa sociedade.

Não somente para as histórias do passado, mas também para


o presente, bem como a importância de potencializar uma educação

SUMÁRIO 186
transgressora para a implementação das Leis Federais 10.6339/03
e 11.645/08, para a luta a favor de uma educação étnico-racial plural.
Pois, sem dúvida alguma, o uso dessas “Aulas/Oficinas”, dinamizou
uma potente promoção das relações raciais no “chão da escola”.

Utilizar uma educação voltada para a transdisciplinaridade e


interdisciplinaridade é propor um “chão da escola” com outros olha-
res. Uma instituição que encara as suas emergências, com relação
aos entraves gerados por qualquer desafio. Pois sabemos que nem
sempre encontramos nestes espaços de saberes, comprometimen-
tos com as questões das leis federais supracitadas.

Todas as instituições de ensino têm o dever de planejar estra-


tégias e atividades, que dialoguem com uma educação igualitária,
para assim conscientizar alunos, professores, coordenadores, equipe
da escola, pais, responsáveis e toda a comunidade escolar em prol
da oportunidade de um conhecimento (des)colonizador.

Remata-se que, somente com ações antirracistas, transgres-


soras e decoloniais cotidianas, no “chão da escola”, poderemos res-
tringir o racismo e as suas ramificações, pois a luta antirracista é uma
luta de todos e todas, independentemente da etnia, classe social,
gênero, religiosidade e partido político.

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SUMÁRIO 190
14 Isadora da Silva Barbosa
Sabrina Dal Ongaro Savegnago

ESPAÇOS DE DESENVOLVIMENTO
INFANTIL E A RELAÇÃO COM
A SAÚDE MENTAL DE CRIANÇAS
NO COMPLEXO DA MARÉ:
O OLHAR DE EDUCADORAS

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.14
INTRODUÇÃO
O tema da educação infantil é de interesse para muitos profis-
sionais, apoiados em um discurso de cuidado, em busca de políticas
públicas que correspondam adequadamente a esse público, que pode
apresentar demandas relacionadas à saúde mental que são identi-
ficadas nos espaços escolares. A saúde mental infantil conecta-se
à educação como uma das faces da complexidade deste campo,
envolvendo aspectos emocionais, comportamentais e sociais. Esses
são influenciadores e indicativos do sofrimento psíquico na infân-
cia, que quando ignorados ou ineficientemente trabalhados, causam
prejuízos ao desenvolvimento infantil. Crianças com sofrimento psí-
quico apresentam uma maior dificuldade de experimentar a escola,
o que pode afetar os âmbitos pedagógico e cognitivo, por conta de
questões socioemocionais (Vieira et al., 2014).

O Modelo Bioecológico de Bronfenbrenner, que embasou a


concepção de desenvolvimento humano deste trabalho, entende que
este processo ocorre em determinados contextos e envolve interações
entre sistemas (como a família, a escola, o bairro, os serviços públicos
disponíveis, as crenças culturais, o tempo e o espaço), que contornam
e incluem a pessoa, e dependem de fatores que interagem entre si
para propiciar um desenvolvimento saudável. Por isso, a escola é vista
com potencial para promover esse contexto interacional, pois permite
o contato direto com os sistemas envolvidos no desenvolvimento da
criança. Neste modelo não há um sistema que influenciará mais que
outro no desenvolvimento, mas há uma interdependência e influência
recíproca entre eles (Bhering; Sarkis, 2009). Justifica-se então o uso
desta teoria para pensar o desenvolvimento de crianças no território
da Maré, e como este pode interferir na saúde mental delas.

Os Espaços de Desenvolvimento Infantil (EDIs) foram criados


com o objetivo de unificar a creche e a pré-escola, atendendo crian-
ças entre 3 meses e 5 anos e 6 meses e permitindo que as crianças

SUMÁRIO 192
passem toda a primeira infância numa mesma escola. Essa integra-
ção é justificada por facilitar o “monitoramento do seu desenvolvi-
mento e crescimento ao longo desse percurso” (Rio de Janeiro, 2010,
p. 3), enquanto é oferecido um modelo pedagógico que reconhece e
valida suas potencialidades, incluindo a questão física, psicológica e
cognitiva. Os EDIs também propõem um acolhimento familiar, com a
pretensão de manter relações de pertencimento, confiança e segu-
rança, essenciais ao desenvolvimento infantil (Rio de Janeiro, 2010).

A escola tem sido identificada como um lugar estratégico


e privilegiado para a promoção e prevenção de saúde mental para
crianças e adolescentes. Os profissionais dos EDIs estão diariamente
com as crianças e podem observar seus comportamentos em diver-
sos contextos por longos períodos e assim identificar a manifesta-
ção de problemáticas relacionadas à saúde mental, dando condições
para a promoção de saúde mental de forma intersetorial (Cid et al.,
2019; Vieira et al., 2014).

A intersetorialidade é uma prática de gestão preocupada em


unir forças particulares das instituições públicas, para um desenvol-
vimento integral. Significa que através de parcerias, crianças e ado-
lescentes terão acesso ampliado às suas capacidades, habilidades
e aprendizado pela disponibilidade dos setores de serviços básicos,
educacionais e de saúde (Brasil, 2009). A articulação intersetorial é
uma das ações estratégicas da política de saúde mental e envolve a
conexão entre as ações específicas de saúde mental infantil e juvenil
nos setores da saúde, educação, assistência social e justiça/direitos
(Couto; Duarte; Delgado, 2008).

Neste sentido, o objetivo deste trabalho foi compreender


como se dá a identificação e o manejo de situações consideradas de
risco ao desenvolvimento e de sofrimento psíquico infantil, por parte
de educadoras de EDIs da Maré, tendo em vista o conhecimento
sobre a rede de saúde mental infantil e os recursos que possuem
para lidar com estas demandas.

SUMÁRIO 193
MÉTODO
A pesquisa foi realizada de forma qualitativa, através de
entrevistas semiestruturadas em quatro EDIs da Maré. Participaram
duas educadoras de cada EDI, totalizando oito participantes que se
identificam como mulheres, com idades entre 32 e 50 anos, com for-
mações que vão do magistério à pós-graduação, com carga horá-
ria entre 22h a 40h na instituição e tempo de atuação entre um e
dez anos no EDI. Das participantes, apenas uma reside na Maré,
enquanto a maioria mora na Baixada Fluminense (RJ) e faz o tra-
jeto para a Maré diariamente. Os EDIs que participaram da pesquisa
fazem parte da 4º Coordenadoria Regional de Educação e estão dis-
tribuídos entre diferentes territórios dentro do Complexo da Maré.

As entrevistas aconteceram nas dependências dos EDIs,


foram gravadas, com cerca de 1h de duração, e transcritas. Também
foram feitos registros de campo a partir das observações e conver-
sas informais realizadas nas visitas. Após a transcrição, como parte
da Análise de Conteúdo, o material foi lido e categorizado de acordo
com os temas mais frequentes que conectam os discursos. Partindo
desta categorização, foram analisados os resultados (Bardin, 2016).
As falas das participantes aparecerão no texto da seguinte forma:
EDI nº (número de 1 a 4) |G ou P (Gestora ou Professora).

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para falar de riscos ao desenvolvimento infantil e incluir
a saúde mental das crianças como parte deste desenvolvimento
é necessário compreender que riscos seriam esses, a partir da
perspectiva das educadoras, contando com um recorte territorial.
De acordo com as mesmas, além dos riscos gerados pela presença

SUMÁRIO 194
constante de grupos armados e das imprevisíveis operações poli-
ciais, há riscos implícitos, que se relacionam com o medo e a insegu-
rança constantes que deixam de ser elaborados, são naturalizados e
atingem de forma simbólica a criança, aparecendo em seu compor-
tamento (Vieira; Zornig, 2015). Nesse sentido, estas educadoras se
encontram com o suposto “amadurecimento precoce” das crianças,
gerado pelo contato com a violência diária, e neste encontro surge
a possibilidade de elaboração ou de fuga dessa realidade. Assim,
as participantes destacaram algumas maneiras como abordam tais
situações com as crianças, como por exemplo:“A gente precisa ten-
tar amenizar a situação, mas não fantasiar que não tá acontecendo
nada, porque isso também é meio que negligenciar a inteligência
dessa criança, subestimar” (EDI 2|G).

Além do contato com a violência explícita e simbólica nas


ruas, foram destacados como fatores de risco ao desenvolvimento
que podem estar presentes nas vivências das crianças: a violên-
cia intrafamiliar; a escassez de interações sociais extrafamiliares; a
exposição excessiva e precoce às telas, substituindo o afeto, a aten-
ção familiar e outras interações; a baixa frequência escolar; a falta de
acesso a uma diversidade cultural dentro e fora do território, ficando
como responsabilidade da escola promover este contato.

Na escolarização, os adultos que acompanham esse pro-


cesso funcionam como mediadores da relação com o mundo. Ainda
sobre esse processo, as escolas seguem reafirmando esse lugar, por
vezes como uma das principais formas de acesso de algumas infân-
cias a um desenvolvimento saudável, se preocupando em respeitar
as singularidades e os processos infantis, ainda que todas perten-
çam ao mesmo território (Piletti; Rossato; Rossato, 2018).

Na percepção das educadoras, as problemáticas relacio-


nadas à saúde mental podem ser manifestas através de mudanças
no comportamento infantil, que são observadas pelas mesmas nos
EDIs, como aumento da agressividade, conflitos nas interações com

SUMÁRIO 195
os pares, dificuldades na participação em atividades coletivas e iso-
lamento. Portanto, a relação entre as educadoras e as crianças nos
mostram como o olhar atento e comprometido pode perceber o que
no comportamento infantil poderia transparecer um risco e alertar
em relação a situações de sofrimento psíquico: “Quando a criança
apresenta um comportamento muito diferente do esperado para a
idade dela, tá?” (EDI 3|P), “Aqui nós temos crianças muito alegres
e aí quando você começa a perceber que a criança começa a ficar
quietinha, calada [...] percebo que essa criança precisa de uma aten-
ção maior” (EDI 4|G).

Nas falas de muitas participantes encontra-se o afeto como


via de acesso ao comportamento da criança dentro da escola.
Quando se trata da relação direta, o afeto é o símbolo daquilo que é
recíproco entre a educadora e a criança, é o que torna as interações
efetivas (Diniz; Koller, 2010). Essa troca aparece na disponibilidade
das educadoras e na abertura que a criança dá, fazendo com que
esse movimento de cuidado e observação do comportamento possa
ser levado para a família e encaminhado.

As demandas escolares são encaminhadas principalmente


pelo comportamento atípico dos alunos observado pelas educado-
ras. Parte dos desafios encontrados pela escola podem ter bases em
questões de saúde mental atreladas às particularidades do territó-
rio, às questões familiares e de vulnerabilidade social, mas a escola
nem sempre tem conhecimento disso, encaminhando o sintoma da
criança. A interlocução entre os espaços escolares e os setores de
atendimento em saúde mental é primordial para o funcionamento
geral das duas instituições. A escola, se disposta a trabalhar em con-
junto, tem potencial para lidar com demandas que são classificadas
como médicas e psicológicas, mas que poderiam ser sociais (Duarte;
Souza; Rodrigues; 2017).

Segundo as participantes, um dos desafios quando se trata


da saúde mental infantil é o encaminhamento, que em parte advém

SUMÁRIO 196
da dificuldade da família em aceitá-lo. Nos casos em que aceitam o
que é sinalizado, o desafio se torna encontrar um pediatra, como indi-
cado nas falas: “Eu sempre peço pra ir ao pediatra, mando ninguém
para psicólogo e psiquiatra”, “A gente orienta para ir a um pediatra, a
gente até oferece um relatório” (EDI 3|P).

De acordo com as educadoras, ao perceberem mudanças no


comportamento da criança, há uma tentativa de troca com a mesma,
depois um diálogo com a família e se necessário a elaboração de
um relatório, que é enviado junto com o encaminhamento escolar.
Segundo as participantes, as parcerias dos EDIs da Maré com o
setor público de saúde envolvem principalmente a Clínica da Família,
a FIOCRUZ e o Hospital da UFRJ. Quando a família não consegue
atendimento no setor público, a escola precisa fazer contato direto
com a unidade de saúde. Quando não conseguem, buscam parce-
rias dentro do território.
De uns anos para cá, com o grande atendimento no SUS,
muita gente que saiu dos planos de saúde e que foi para
o SUS, que que acontece? Inchou mais ainda o SUS, e aí a
cada dia a gente têm mais dificuldade de conseguir essa
parceria, escola e saúde (EDI1|G).

Assim, o cuidado e a proteção que deveriam partir do serviço


público por vezes ficam na mão de agentes territoriais, que buscam
possibilidades dentro da comunidade, que criam saídas de cuidado
através das redes de apoio, de projetos sociais e da cultura de cada
território (Bittencourt; Caldas, 2012). Na Maré, por exemplo, foi criado
o Guia metodológico em saúde mental, para atender necessidades
territorializadas e disponibilizar atenção e cuidado para o público
infanto-juvenil; a partir de uma ótica psicossocial, o guia apresenta
ferramentas para lidar com as marcas da pandemia na vida dos
mais jovens (Criando Rede, 2021). O material foi desenvolvido em
rede por alguns projetos sociais, incluindo o Redes da Maré, citado
por muitas educadoras.

SUMÁRIO 197
A gente conversou já com a Redes da Maré, a gente faz a
parceria para Clínica da Família, para a questão de vacina-
ção, de atendimento médico, eu já fiz uma ação social aqui
que deu muito certo esse ano [...] a gente trouxe pessoas
da própria comunidade para fazer ação social (EDI1|G).

Ainda sobre os encaminhamentos, as participantes sinalizam


que quando a criança chega ao pediatra recebe encaminhamento
para um especialista e nesse momento o encaminhamento trava,
pois entra em uma fila de espera extensa.
Eles dão o atendimento básico mas aí o que que acon-
tece, o atendimento do especialista entra no sistema, aí
quando ele vai ser atendido não tem um prazo [...] E essa
criança continua sendo atendida por nós aqui e nós não
podemos deixar no esquecimento. Então o que a gente
sente falta aqui é se tivesse um projeto que desse essa
assistência pra essa família, de forma gratuita ou com
alguma taxa pequena. [...] Porque não tem a continuidade.
Você caminha e para no posto de saúde e depois o que
acontece? (EDI 4|G).

Os projetos sociais são apontados como saída quando não são


possíveis parcerias com os convênios públicos, mas ainda assim, não
dão conta das necessidades que a realidade impõe aos EDIs. Segundo
as educadoras, seria importante ter um profissional especializado nas
escolas, capaz de auxiliar e direcionar em casos de demanda em saúde
mental. “Então, quando a gente têm uma criança que ela presenciou,
vivenciou alguma violência, o ideal seria que a gente tivesse na escola
uma pessoa que tivesse um bom conhecimento acadêmico e também
de vivência para atender essa criança” (EDI 1|G), “Se nós tivéssemos
esse trabalho, acredito que nos ajudaria muito. Com esse trabalho na
própria escola, de um profissional da psicologia, mas que fosse espe-
cífico para esse público, educação infantil” (EDI 3|P).

A presença da psicologia na educação infantil não é regra,


mas, segundo a literatura que conecta a psicologia e a educação,
seria vantajosa, como indicam as educadoras. A psicologia dentro

SUMÁRIO 198
da escola amplia as possibilidades de atuação, seja no contato
com a criança, no atendimento às famílias e na intersetorialidade
dentro do território, expandindo o trabalho em rede sem sobrepor
a importância da participação de cada sistema ligado à criança
(Vokoy; Pedroza, 2005).

Entretanto, como trazem as educadoras, os encaminhamen-


tos e o manejo ficam principalmente na responsabilidade delas,
através do que é possível fazer diante de situações de precariedade
e desarticulação dos serviços públicos. Essa construção da rede
exige que as educadoras se apoiem nos serviços, e quando estes
não estiverem disponíveis pelo Estado, são procurados no território.
O território possui uma enorme importância segundo as diretrizes
do documento Caminhos para uma política pública de saúde men-
tal infanto-juvenil, pois é o lugar psicossocial do sujeito, o afeta e é
afetado por ele. As atividades independentes do território, como os
projetos sociais e os programas e eventos criados por eles e para
eles, extrapolam os serviços clínicos e são potentes meios de inter-
venção (Brasil, 2005).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
De acordo com este trabalho, é possível inferir a importância
dos EDIs na promoção e na prevenção da saúde mental de crian-
ças da Maré. As educadoras afirmam que estão atentas à identi-
ficação de sinais de sofrimento psíquico e de riscos ao desenvol-
vimento dessas crianças e veem a escola como responsável pelo
encaminhamento de demandas e pelo suporte às famílias, ainda que
estas muitas vezes não encontrem nas políticas de saúde pública
o cuidado demandado.

SUMÁRIO 199
Ressalta-se a importância de intervenções voltadas aos edu-
cadores destes espaços, com o objetivo de capacitá-los para a iden-
tificação de demandas e o manejo de problemáticas relacionadas à
saúde mental infantil. Destaca-se ainda a necessidade de fortaleci-
mento das ações intersetoriais voltadas para a promoção de saúde
mental infantil, que envolvam os diversos atores e sistemas envolvi-
dos na atenção a este grupo social.

REFERÊNCIAS
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.

BHERING, Eliana; SARKIS, Alessandra. Modelo bioecológico do desenvolvimento


de Bronfenbrenner: implicações para as pesquisas na área da Educação Infantil.
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BITTENCOURT, Maria Ines Garcia de Freitas; CALDAS, Renata. de Oliveira Pinto. Infância,
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Janeiro, v. 64, n. 2, p. 130-142, ago. 2012.

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Editora do Ministério da Saúde, 2005.

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CID, Fernanda Barboza Cid; SQUASSONI, Elisabeth Carolina; GASPARINI, Danieli Amanda;
FERNANDES, Luiza Helena de Oliveira.Saúde mental infantil e contexto escolar: as
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COUTO, Cristina Ventura Couto; DUARTE, Cristiane S.; DELGADO, Pedro Gabriel Godinho. A
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SUMÁRIO 200
DINIZ, Eva; KOLLER, Silvia Helena. O afeto como um processo de desenvolvimento
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DUARTE, Katy Lopes; SOUZA, Eloísa Mello de; RODRIGUES, Luna. Importância e desafios
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PILETTI, Nelson; ROSSATO, Solange Marques; ROSSATO, Geovanio. Psicologia do


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RIO DE JANEIRO. Espaço de Desenvolvimento Infantil - EDI - Modelo Conceitual e


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VIEIRA, Ana Carolina Dias.; ZORNIG, Silvia Maria Abu-Jamra. Ambiente violento, infância
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VIEIRA, Marlene; ESTANISLAU, Gustavo M; BRESSAN, Rodrigo Affonseca; BORDIN, Isabel


A.Saúde Mental na Escola. In: ESTANISLAU, G. M.; BRESSAN, R. A. (org.). Saúde mental na
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VOKOY, T.; PEDROZA, R. L. S. Psicologia Escolar em educação infantil: reflexões de uma


atuação. Psicologia Escolar e Educacional, v. 9, n. 1, jun. 2005.

SUMÁRIO 201
15
Julia Maria Dias Moreira Vaz
Maria Clara Miranda Mello
Ana Carolina Lydia Ferreira da Silva

SUJEITOS
DA NOSSA HISTÓRIA

DOI: 10.31560/pimentacultural/2024.95484.15
INTRODUÇÃO
Durante o ano de 2022 aprendemos muitas coisas novas,
principalmente por estarmos voltando às aulas presenciais, depois
das medidas de isolamento por causa da covid-19, pandemia que
assolou o mundo. Também era uma nova experiência para nós pois
estaríamos inaugurando o Itinerário Formativo do Novo Ensino
Médio, com as aulas da área das Ciências Humanas (CH).

Após a Reforma do Ensino Médio, nossa escola optou por


não reduzir as disciplinas do ensino básico e deu a oportunidade
para que nós pudéssemos ter as áreas do conhecimento como itine-
rários formativos complementando nossa formação.

Ao início do ano letivo, escolhemos dois itinerários dentro


das Ciências Humanas, da Natureza, Matemática e Linguagens e
um itinerário de inovação pela perspectiva da Robótica ou de Arte
Maker. Durante o ano, somos provocados, dentro de cada área, a
desenvolver nossas pesquisas e nosso repertório.

Durante 2022, o tema escolhido pelos professores orien-


tadores da disciplina foi identidade. A escolha teve relação com a
necessidade de perceber as potencialidades da nossa cidade, nos
incluindo na construção da sua história. A identidade nos dá material
para conhecer a nossa realidade e, a partir dela, pensar em como
mudá-la e valorizá-la.

Os itinerários foram implementados de formas diversas em


todas as escolas e, por ter poucas diretrizes, deixou abertas as pos-
sibilidades de descoberta, exploração e propostas no que seria feito
e desenvolvido pelos alunos e alunas da escola.

Com tantas novidades, também surgem incertezas sobre


quais caminhos seguir e como aproveitar cada oportunidade que
aparecem e tudo que elas podem representar para cada uma de nós.

SUMÁRIO 203
O Itinerário teve como assunto norteador a identidade, tema tão
caro às CH e que, muitas vezes, é negligenciado de debates mais
profundos na escola.

Segundo Hall (2001. p. 38), “a identidade é realmente algo


formado ao longo do tempo, através de processos inconscien-
tes [...]. Ela permanece sempre incompleta, está sempre ‘em pro-
cesso’, sempre ‘sendo formada’”. O maior desafio era criar formas de
entendermos a identidade, nossa individual e nossa coletiva a par-
tir da nossa realidade.

Faria e Souza (2011, p. 36), apontam


A identidade tem caráter dinâmico e seu movimento
pressupõe uma personagem. A personagem, que, para
o autor, é a vivência pessoal de um papel previamente
padronizado pela cultura, é fundamental na construção
identitária: representa-se a identidade de alguém pela
reificação da sua atividade em uma personagem que, por
fim, acaba sendo independente da atividade. As diferen-
tes maneiras de se estruturar as personagens resultam
diferentes modos de produção identitária. Portanto, iden-
tidade é a articulação entre igualdade e diferença.

É na diferença que se estabelece a identidade e foi através


desta leitura que começamos a investigar o que ao nosso redor,
na nossa história e na história da nossa comunidade nos fazia
diferentes. Como poderíamos olhar para a nossa vida cotidiana e
encontrar personagens, sujeitos que contassem a nossa história
de forma diferente.

Como foi dito anteriormente, nós estudamos em uma escola


na cidade de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro
(Figuras 1 e 2). Nossa cidade é muito conhecida, infelizmente, pelos
casos de violência, corrupção e ausências. Isso foi um dos motivado-
res dos professores responsáveis pelo itinerário de CH, que sabendo
da história da cidade, queriam discutir sobre potencialidade, existên-
cia e como ela poderia ser contada de outra forma.

SUMÁRIO 204
Figura 1 - Mapa do Estado do Rio de Janeiro com a cidade de São Gonçalo destacada

Fonte: Wikipédia (2022).

Figura 2 - Cidade de São Gonçalo e área limítrofe demarcada

Fonte: Google maps (2022).

As atividades do itinerário eram diversas. Leitura de textos,


como o do Stuart Hall que apresentamos aqui, exibição de filmes,
discussão sobre músicas e suas contribuições culturais. Todos ele-
mentos para ampliar nossos horizontes e nos dar ferramentas para
observar o mundo sob novos olhares.

A partir disso, fomos questionadas a pensar de que manei-


ras poderíamos, através de tudo que vivemos, nos tornar também
sujeitos de uma história. Da nossa história. E qual era a diferença
daqueles personagens, autores, músicos, cantores para nós. Esse foi
o questionamento que começou a nos provocar.

Eu uma das aulas, nossa professora e orientadora Ana


Carolina Lydia, nos fez discutir sobre protagonismo na comunidade,
e, assim, começamos a falar sobre o protagonismo perto de nós,

SUMÁRIO 205
pessoas que conhecemos, que estão do nosso lado e que de alguma
forma são importantes para nossas próprias histórias.

Isso é importante, pois estudamos sempre os grandes prota-


gonistas e acabamos não vendo ou esquecemos daqueles que estão
tão perto de nós e que também são importantes para a História. É
através destas pessoas que a vida cotidiana acontece, e é a partir de
histórias e ações no cotidiano que a grande História acontece.

Logo, nos interessamos pelo assunto e foi proposto fazermos


um trabalho e apresentar protagonistas das nossas comunidades.
No primeiro momento, falamos com pessoas das nossas comuni-
dades, o que nos fez conhecer mais o lugar onde vivemos e gerou
curiosidade sobre mais assuntos envolvendo nossa própria família e
a comunidade onde vivemos.

Julia Maria, autora deste trabalho, pesquisou e descobriu sobre


o seu bisavô Manoel Emídio Dias que foi ex-combatente da Segunda
Guerra Mundial, ficou 24h a deriva e foi resgatado por um navio ame-
ricano. Acreditamos que seu nome é o que consta no livro Farol De
Santa Marta, de Cesar do Canto Machado, falando sobre as baixas e
diversos ataques que os navios sofreram na costa do Sul do Brasil.

A curiosidade de sua história é que, após passar por uma


situação limite na Guerra, acabou falecendo vítima de má atuação
de um dentista. O que chamou atenção de Julia sobre seu bisavô
foi como ele trabalhou e se esforçou para manter sua família unida
e, mesmo em tempos de muita dificuldade, ensinou filhos e netos a
trabalharem e estudarem. Isso fez surgir na família um grande espí-
rito de coletividade e ajuda mútua, herdados até a sua geração atual.

Maria falou sobre seu avô João Claudio de Miranda que


foi pedreiro da empresa Brahma e pedreiro da sua comuni-
dade, no Morro do Abacatão. Usando sua profissão, ele asfaltou
mais de 10 ruas, e ajudou na colocação de postes de iluminação.

SUMÁRIO 206
Sua atuação foi necessária já que a prefeitura nunca deu acesso aos
bairros periféricos.

Como o asfaltamento não chegava à comunidade, servi-


ços como correios, coleta de lixo, entregas, não chegavam às áreas
mais altas do morro. Com a pavimentação, alguns deles melhora-
ram e puderam acontecer na região. Assim, ele ficou conhecido
pela comunidade e faz parte da sua história. É difícil encontrar notí-
cias sobre sua importância, mas ao conversar com as pessoas do
bairro, isso fica evidente.

Isso nos fez pensar sobre a importância dessas histórias e da


oralidade para a difusão delas para outras pessoas. Existe resistência
ao tratar academicamente histórias trazidas de forma oral. Seja pela
importância que se dá à linguagem escrita, seja pela dificuldade de
ter certeza da veracidade das informações. Como afirmam Fortunato
e Ruscheinsky (2004, p. 28) “Com o intuito de demonstrar, a partir
da prática social, que os sujeitos das lutas sociais contribuem para a
produção do espaço urbano, transformando-se assim em sujeitos da
História, procedemos e optamos pelo uso da História Oral”.

A partir dos nossos estudos, conhecemos o conceito de


micro-história, história oral e biografia e pudemos nos aprofundar.
Aqui esses conceitos pareceram mais corretos à intenção da nossa
pesquisa. Ela se encontra em fase de desenvolvimento por nós, em
busca de mais fontes e detalhes para compor o todo.

Aqui Chaves Junior (2011, p. 2) comenta que “O detalhe é que


a recuperação destes sujeitos individuais pelos historiadores não
tem privilegiado apenas as magníficas personagens de uma história
pátria, antes, demonstra a intenção de tirar do limbo da memória
social indivíduos comuns e esquecidos”. Sendo assim, a biografia
trataria de resgatar essas pessoas, o que dentro da proposta deste
trabalho seria fundamental.

SUMÁRIO 207
CONCLUSÃO
O que foi importante para nós, foi buscar de que forma essas
histórias poderiam fazer parte de uma história muito maior e mais
importante: a nossa. Após as apresentações, percebemos que todas
as narrativas dos nossos colegas serviram de exemplos para nós
mesmos, nos incentivando a ser protagonistas da nossa própria his-
tória e até mesmo das nossas comunidades.

Sabendo das dificuldades que enfrentamos por sermos


moradores de uma região periférica da cidade, e que isso, de diver-
sas formas, marca nossas trajetórias, transformar histórias de pes-
soas próximas em combustível para transformar as nossas pró-
prias é imprescindível.

Se, a partir de nossas pesquisas, pudermos construir em


São Gonçalo uma nova história que traga diversas micro-histórias
dos agentes comunitários e pessoas que fazem parte das criações
dos bairros, do desenvolvimento da cidade, nós teremos cumprido o
objetivo inicial desta pesquisa.

Pensar na cidade de São Gonçalo pela falta, pelo que ela é


de negativo não é o nosso objetivo. Queremos mostrar de que forma
podemos ser protagonistas das mudanças sociais que almejamos
pra nossa comunidade, entendendo e abraçando o passado, cons-
truindo nossa identidade agora e planejando nosso futuro.

Para além disso, conseguimos desenvolver em nós e em


nossos colegas o sentimento de que os horizontes que nos apresen-
tam como pessoas da periferia não podem ser limitantes aos nossos
objetivos de vida. Que é preciso buscar olhar para além das ausên-
cias e do que é dito nos noticiários e a partir disso, sermos sujeitos
da nossa história. Agora estamos aqui, escrevendo nossa história,
sendo protagonistas do nosso futuro.

SUMÁRIO 208
REFERÊNCIAS
FARIA, Ederson de; SOUZA, Vera Lúcia Trevisan de. Sobre o conceito de identidade:
apropriações em estudos sobre formação de professores. Psicologia Escolar e
Educacional, v. 15, n. 1, p. 35-42, 2011.

FORTUNATO, Elizabeth; RUSCHEINSKY, Aloísio. A história oral na pesquisa social sobre


espaço urbano. Biblos, Rio Grande, 2004.

CHAVES JUNIOR, José Inaldo. Biografia e micro-história: diálogos possíveis para uma
história da governança no Império Português (Capitania da Parayba, c.1764-1797).
Revista Cantareira, [s. l.], 2011.

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. 6 Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: A
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.

SUMÁRIO 209
SOBRE OS AUTORES
E AS AUTORAS
Allayne Ellen Pantaleão Plácido Cílio
Cria do subúrbio carioca, 23 anos, estudante de medicina na UFRJ. Amo cantar,
borboletas, câmeras antigas e roupinhas de brechó. Lugar favorito: Madureira,
onde aprendi a importância da coletividade desde a creche Tia Maria Jongo.
E-mail: [email protected]

Alycia Beatriz da Silva Rangel


Estudante do Ensino Médio na escola Sesi e do Curso Técnico em Redes de
Computadores pelo Senai.
E-mail: [email protected]

Anna Beatriz de Sá Almeida


Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense (1988), com
mestrado (1994) e doutorado (2004) em História pela Universidade Federal
Fluminense. Pesquisadora adjunta da Fundação Oswaldo Cruz, com atuação
em projetos de pesquisa e em cooperação social na área de cultura e
promoção da saúde. Apoiadora do Fórum Favela Universidade.
E-mail: [email protected]

Ana Carolina Lydia


Professora de Geografia, Mestre em Educação pela Faculdade de Formação
de Professores/UERJ.
E-mail: [email protected]

Ana Carolina Lydia Ferreira da Silva


Professora de Geografia, Mestre em Educação pela Faculdade de Formação
de Professores/UERJ.
E-mail: [email protected]

SUMÁRIO 210
Ana Luísa Santana Santos
Estudante do Ensino Médio na escola Sesi e do Curso Técnico em Redes de
Computadores pelo Senai.
E-mail: [email protected]

André Luiz da Silva Lima


Coordenador da Comissão Organizadora das primeiras edições da Jornada
Científica Favelades Universitáries; Doutor em História das Ciências e da Saúde.
Pesquisador e Militante pelo Direito à Saúde nas Favelas e Periferias Urbanas.
E-mail: [email protected]

Aryanne Paiva da Felicidade


Pedagoga e Professora da Educação Básica na Rede Pública de Ensino.
Mestranda do programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e
Comunicação em Periferias Urbanas da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (UERJ/FEBF). Pesquisadora NEPS-CEASM.
E-mail: [email protected]

Danielle Cerri
Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
da Fundação Oswaldo Cruz.
E-mail: [email protected]

Francisco Overlande Manço de Souza


Educador Popular, Professor de História da Rede Pública de Ensino do Estado
do Rio de Janeiro (SEEDUC-RJ). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em
Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ/FEBF). Pesquisador NEPS-CEASM.
E-mail: [email protected]

Heitor Ney Mathias da Silva


Economista e Dr. em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
E-mail: [email protected]

SUMÁRIO 211
Humberto Salustriano da Silva
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro –
UNIRIO. Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Professor de História da Educação Básica na Rede Pública de
Ensino – UFRJ. Pesquisador NEPS-CEASM.
E-mail: [email protected]

Isabel Maciel dos Santos


Estudante do ensino médio na escola Sesi e Técnica estudante do Ensino
Médio na escola Sesi e do Curso Técnico em Logística pelo Senai.
E-mail: [email protected]

Isadora da Silva Barbosa


Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
E-mail: [email protected]

Julia das Núpcias Moura


Estudante do Ensino Médio na escola Sesi e do Curso Técnico em Logística
pelo Senai.
E-mail: [email protected]

Julia Maria Dias Moreira Vaz


Estudante do Ensino Médio na escola Sesi.
E-mail: [email protected]

Júlia Oliveira de Mendonça


Estudante do Ensino Médio na escola Sesi e do Curso Técnico em Logística
pelo Senai.
E-mail: [email protected]

Karina Ribeiro Soares Reis


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense Campus Campos-
Centro-Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil.
E-mail: [email protected]

SUMÁRIO 212
Lidiane Santos Barbosa
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Programa de
Pós-Graduação em Ecoturismo e Conservação.
E-mail: [email protected]

Maria Clara Miranda Mello


Estudante do Ensino Médio na escola Sesi.
E-mail: [email protected]

Mayana Ribeiro Montenario


Aprendiz da Vida, observadora, apaixonada por escrita e movimento humano.
Nascida na região serrana carioca, 22 anos e estudante de Fisioterapia, UFRJ.
Aprecio detalhes: o olhar, a respiração, a natureza, a fotografia e a confeitaria.
E-mail: [email protected]

Michelle Oliveira
Professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
da Fundação Oswaldo Cruz.
E-mail: [email protected]

Natã Neves do Nascimento


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, mestre em
Cultura e Territorialidades (UFF) e possui graduação em Produção Cultural
também pela UFF.
E-mail: [email protected]

Pammella Casimiro de Souza


Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Programa de Pós-
Graduação em Geografia.
E-mail: [email protected]

Rodrigo Silva Magalhães


Doutorando do PPGHS – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
E-mail: [email protected]

SUMÁRIO 213
Rosilaine Souza de Araújo da Silva
Professora na Escola Estadual CIEP 313 Rubem Braga, Escola Municipal
Evaristo de Moraes e Escola Municipal Mario Fernandes Pinheiro.
E-mail: [email protected].

Rosilandia da Cruz Eduardo


Produção Cultural. Membro do Grupo de Pesquisa LABCAPO – Laboratório
Capoeira, EEFD-UFRJ.
E-mail [email protected]

Sabrina Dal Ongaro Savegnago


Produção Cultural. Membro do Grupo de Pesquisa LABCAPO – Laboratório
Capoeira, EEFD-UFRJ.
E-mail: [email protected]

Silvânia Cerqueira
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade
Federal da Bahia, linha de Processos Criativos, bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Capes.
E-mail: [email protected]

Wudson Guilherme de Oliveira


Mestre em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares
– PPGEDUC, pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).
Desenvolve vivências como professor de História, Filosofia, Sociologia
e Geografia nos Anos Finais do Ensino Fundamental, Ensino Médio, EJA,
Palestrante e Oficineiro.
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Yanka Martins Pereira


Assistente social, Especialista em Serviço Social e Saúde pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Mestranda em Serviço Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, bolsista CAPES.
E-mail: [email protected]

SUMÁRIO 214
ÍNDICE REMISSIVO
A desenvolvimento infantil 191, 192, 193, 194
ações afirmativas 12, 75, 170, 171, 182, 189 desigualdade 46, 49, 54, 57, 75, 79, 80, 171, 177
assédio sexual 117, 119, 125 desigualdade racial 171, 177
C desigualdade social 46, 49, 54, 80
capoeira 54, 55, 56, 57, 58, 62, 68, 71, 149 diáspora 50, 170, 187, 189
cartografia 50, 72 diferença 24, 80, 103, 109, 113, 204, 205, 209
cibercultura 156, 158, 159 E
ciberespaço 156, 158, 160, 163 Ecoturismo 139, 149, 150, 152, 154, 212
cidadania 104, 149, 150, 179 educação 14, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 43, 48, 49, 50, 51, 52,
colorismo racial 50 70, 74, 79, 80, 82, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91,
92, 93, 94, 95, 102, 113, 137, 141, 142, 148, 154, 165,
comunicação 67, 68, 132, 160, 163, 164, 178
167, 168, 169, 170, 171, 172, 174, 175, 177, 186, 187, 188,
comunidade 18, 23, 49, 54, 64, 70, 90, 97, 100, 101, 109, 111, 117, 120, 189, 190, 192, 193, 198, 201
131, 174, 187, 197, 198, 200, 204, 205, 206, 207, 208
educação bancária 88, 141
comunidade local 18, 23
educação básica 49, 90, 92, 168
comunidade universitária 54
educação crítica 80, 82, 87
confrontos armados 18, 19, 24
educação formal 18, 19, 22, 23, 86, 89, 91, 93
conhecimento 12, 13, 14, 47, 54, 55, 56, 78, 98, 103, 104, 105, 106,
educação infantil 192, 198, 201
107, 108, 111, 130, 132, 141, 152, 157, 158, 159, 160, 164,
176, 177, 187, 193, 196, 198, 203 educação não formal 86, 87, 90, 91, 92, 93
conhecimento histórico escolar 104, 105 educação popular 20, 21, 24, 84, 85, 87, 88, 93, 95
conjuntos habitacionais 64, 71 efeito-favela 20, 22, 23, 25
Conservação da Natureza 139, 145, 147, 148, 149, 150, 154 EJA 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23, 24, 25, 214
cultura 19, 51, 56, 57, 59, 114, 140, 152, 165, 167, 186, 188, 211, 213 escola pública 22, 84, 85, 87, 89, 90, 91, 92, 94, 95
cultura afro-brasileira 45, 49, 168, 188 escravidão 76, 172, 174
cultura brasileira 55, 136 escrevivência 78, 129, 143, 153
cultura política 92, 94 F
Cultura Popular 152 favela 12, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 25, 27, 36, 39, 40, 61,
currículo 44, 45, 46, 51, 102, 103, 115, 135, 146 66, 72, 74, 75, 76, 77, 78, 81, 82, 98, 100, 101, 106,
107, 109, 115, 133, 135, 142, 150
D
feminismo 128, 130, 136
democracia 47, 48, 90, 91, 93, 177, 180
democracia racial 47, 48, 177

SUMÁRIO 215
G P
gifs de resistores 159, 161, 164 papoeira 54
H pensamento crítico 43, 44, 45, 48, 49, 92
história 51, 95, 97, 101, 102, 104, 105, 106, 107, 110, 111, 112, 113, 114, periferias 12, 13, 14, 28, 43, 47, 86, 87, 88, 94
115, 167, 171, 180, 186, 188, 189, 206, 207, 210, 211, 214 poesia falada 28, 30
história local 70, 97, 104, 106, 110, 111, 114 Poetry Slam 27, 28, 30, 34, 41
I R
identidade 17, 36, 38, 46, 54, 68, 71, 100, 101, 102, 104, 107, 113, racismo 33, 38, 43, 45, 46, 47, 49, 70, 75, 76, 83, 129, 130, 132,
114, 129, 137, 154, 182, 189, 190, 203, 204, 208, 209 135, 136, 142, 146, 150, 151, 153, 154, 168, 169, 170,
igualdade 48, 58, 103, 113, 168, 170, 172, 177, 188, 204 171, 173, 175, 176, 177, 178, 182, 183, 187, 189, 190
intencionalidade política 86, 87, 88, 91, 92 racismo científico 142
interculturalidade 103, 113 racismo estrutural 43, 45, 46, 49, 153, 176
resistência 24, 29, 47, 63, 69, 71, 74, 75, 78, 81, 82, 136, 153, 156,
M
158, 159, 160, 161, 162, 174, 177, 178, 207
marginalização 22, 129, 132
T
memória 62, 64, 71, 101, 107, 108, 112, 113, 114, 129, 134, 145, 153, 207
território 21, 97, 101, 139, 154
meritocracia 47, 80, 86, 176
movimento negro 48, 168, 189 V
movimentos sociais 21, 43, 87, 88, 153 violência 16, 18, 19, 20, 21, 22, 33, 38, 63, 64, 66, 68, 71, 74, 75, 98,
117, 118, 120, 125, 130, 171, 180, 195, 198, 200, 204
mulheres negras 128, 129, 132, 134, 135, 136, 154
vulnerabilidade social 71, 128, 196
O
oralidade 142, 152, 157, 207

SUMÁRIO 216

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