A Questão de Raça e Etnia
October 5, 2014
Para começar, reflita sobre as seguintes questões: negros e brancos são tratados
igualmente em nossa sociedade? Negros e brancos possuem as mesmas oportunidades
de acesso à educação, emprego, saúde e outros direitos sociais? Afinal, somos um povo
racista ou não? Por que precisamos de uma lei que afirme que “o racismo é crime
inafiançável”? E como podemos realizar uma educação das relações étnico-raciais?
E então? Percebeu como questões complexas estão envolvidas nas relações étnico-
raciais? Essa será nossa preocupação nesta disciplina, desvendar os porquês da
permanência do racismo, suas causas e consequências, bem como as múltiplas
implicações na promoção da igualdade racial na escola e na comunidade.
A partir da aprovação da Lei Federal 10.639/2003, que inclui no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira, o
interesse pela questão das relações étnico-raciais e afrodescendência aumentou
consideravelmente. Nesse sentido, poder público, sociedade civil, movimentos sociais,
enfim, toda a sociedade deve estar envolvida no projeto de uma educação pela igualdade
étnico-racial no Brasil. Leia o que afirma o Parecer do Conselho Nacional de Educação,
CNE-CP 3/2004 com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana:
(…) um equívoco a superar é a crença de que a discussão sobre a questão racial se
limita ao Movimento Negro e a estudiosos do tema e não à escola. A escola, enquanto
instituição social responsável por assegurar o direito da educação a todo e qualquer
cidadão, deverá se posicionar politicamente, como já vimos, contra toda e qualquer
forma de discriminação. A luta pela superação do racismo e da discriminação racial é,
pois, tarefa de todo e qualquer educador, independentemente do seu pertencimento
étnico-racial, crença religiosa ou posição política. O racismo, segundo o Artigo 5º da
Constituição Brasileira, é crime inafiançável e isso se aplica a todos os cidadãos e
instituições, inclusive, à escola. (BRASIL, 2004, p. 7)
Raça
A palavra raça será tomada a partir de uma perspectiva sócio-histórica, segundo
preconizam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-
raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, aprovadas em
junho de 2004 pelo Ministério da Educação:
É importante destacar que se entende por raça a construção social forjada nas tensas
relações entre brancos e negros, muitas vezes simuladas como harmoniosas, nada tendo
a ver com o conceito biológico de raça cunhado no século XVIII e hoje sobejamente
superado. Cabe esclarecer que o termo raça é utilizado com frequência nas relações
sociais brasileiras, para informar como determinadas características físicas, como cor de
pele, tipo de cabelo, entre outras, influenciam, interferem e até mesmo determinam o
destino e o lugar social dos sujeitos no interior da sociedade brasileira. (Brasil, 2004).
Portanto, podemos assumir o uso do termo raça quando quisermos nos referir aos
aspectos físicos (à aparência exterior herdada e transmitida hereditariamente), que
mostram repercussões negativas nas relações entre brancos e negros, ou seja, quando for
necessário demonstrar as tensões existentes a partir das diferenças na cor de pele, olhos,
tipos de cabelo etc, a partir de um padrão estético branco e europeu, que estabelece
também relações de dominação.
Etnia
Trata-se de um conceito que compreende as relações sociais estabelecidas entre sujeitos
que, entre outras coisas, se reconhecem possuidores de uma origem comum, em
contraste com outros, integrantes de grupos diferentes, na sociedade abrangente.
Vejamos o verbete “etnia” apresentado no Dicionário de Relações Étnicas e Raciais
(apud Cashmore, 2000, p. 196):
Um grupo possuidor de algum grau de coerência e solidariedade, composto por pessoas
conscientes, pelo menos em forma latente, de terem origens e interesses comuns. Um
grupo étnico não é mero agrupamento de pessoas ou de um setor da população, mas
uma agregação consciente de pessoas unidas ou proximamente relacionadas por
experiências compartilhadas.
Fica claro, portanto, que etnia implica, por um lado, posicionamento, pertencimento,
opção, escolha, autodenominação do sujeito tendo por referência determinado grupo
étnico. Nesse sentido, a atribuição de pertença de determinada pessoa a determinado
grupo étnico é, em primeiro lugar, endógena, ou seja, parte do próprio sujeito, devendo
ser necessariamente a decisão de pertencimento da própria pessoa que se afirma como
parte daquele grupo étnico. Entretanto, a definição da identidade étnica não é somente
endógena, mas diz respeito também aos significados atribuídos por outros grupos, ou
seja, é na mesma medida exógena.
O racismo científico e as ideias eugenistas no Brasil
Foi no século XIX que a ciência, através da teoria positivista, produziu uma ampla
explicação que colocava os seres humanos organizados hierarquicamente, partindo do
princípio de que há diferenças entre as raças que os colocam naturalmente uns
superiores aos outros. É importante frisar que a palavra “naturalmente” é tomada aqui
no seu sentido mais estrito, trazendo para o plano da natureza a lógica e a organização
dos grupos sociais. A esse respeito, afirmam Lima e Vala (2004, p. 402):
O racismo constitui-se num processo de hierarquização, exclusão e discriminação contra
um indivíduo ou toda uma categoria social que é definida como diferente com base em
alguma marca física externa (real ou imaginada), a qual é ressignificada em termos de
uma marca cultural interna que define padrões de comportamento. Por exemplo, a cor
da pele sendo negra (marca física externa) pode implicar a percepção do sujeito
(indivíduo ou grupo) como preguiçoso, agressivo e alegre (marca cultural interna). É
neste sentido que (…) o é uma redução do cultural ao biológico, uma tentativa de fazer
o primeiro depender do segundo.
Portanto, uma vez que a ciência passou a definir uma ordem natural da realidade social,
todas as diferenças dos traços exteriores, como cor de pele, cabelo, fisionomias,
serviriam a partir de então para colocar homens e mulheres “naturalmente” uns
superiores aos outros e, contra essa “verdade inquestionável”, nada nem ninguém
poderia se contrapor ou fazer alguma coisa a respeito.
O estudo detalhado sobre a eugenia no Brasil encontra-se no livro de Pietra Diwan.
Tratava-se de uma ciência para o “aprimoramento da raça humana”, a partir da qual
várias políticas foram implantadas no Brasil, visando o “branqueamento da população”
e a “cura da fealdade” do povo brasileiro.
Para esses intelectuais, médicos, escritores, juristas e políticos pertencentes às
sociedades eugênicas fundadas no Brasil, a miscigenação era impedimento para o
desenvolvimento do país, pois provocava loucura, criminalidade e doenças. A cura para
os males do Brasil seria “civilizar a herança indígena roubada pelos portugueses e
branquear nossa herança negra”, segundo estudos da autora. As soluções para o
“problema da miscigenação” no Brasil, encontradas pelo Estado Republicano na
passagem para o século XX, foi a implantação no país de várias medidas eugenistas, a
saber:
a) branqueamento pelo cruzamento;
b) controle da imigração;
c) regulação de casamentos;
d) segregacionismo e esterilização.
É muito importante lermos o texto completo de Pietra Diwan, a fim de compreender
profundamente o significado da eugenia, uma das questões mais controversas em nossa
história recente, que se torna praticamente um tabu, tendo em vista a forma como se deu
o banimento desse assunto em todos os livros de história e biografias no Brasil e no
mundo (a autora também usa a expressão “amnésia”). É como se a eugenia nunca
tivesse existido, ficando a impressão de que somente os nazistas alemães teriam sido
“desumanos” o bastante para levar adiante um projeto eugenista daquela envergadura.
Tomados como “bodes expiatórios” da ciência eugenista mundial, ficam conhecidos
como os “grandes vilões da história”, por terem praticado o holocausto contra 6 milhões
de judeus na II Guerra Mundial.
O racismo à brasileira e o mito da democracia racial
O racismo que surge e se preserva na história do Brasil tem uma configuração muito
própria, conforme chamaremos neste módulo de “racismo à brasileira”.
Roberto DaMatta é um dos autores que nos chama a atenção para o nosso passado
extremamente ambíguo, uma vez que vivíamos uma condição social fortemente
hierarquizada e, ao mesmo tempo, precisávamos nos colocar no cenário internacional
como uma nação dita moderna, democrática, de iguais. Neste ponto de nossa reflexão,
queremos enfatizar o aspecto contraditório que até hoje não foi resolvido em nosso
meio, o chamado “mito da democracia racial”. A esse respeito, vejamos o que nos diz
DaMatta (1987, p. 69):
Pode-se, pois, dizer que a “fábula das três raças” se constitui na mais poderosa força
cultural do Brasil, permitindo pensar o país, integrar idealmente sua sociedade e
individualizar sua cultura. Essa fábula hoje tem a força e o estatuto de uma ideologia
dominante: um sistema totalizado de ideias que interpenetra a maioria dos domínios
explicativos da cultura.
Portanto, durante muito tempo, negamos o racismo em nossa sociedade, apoiados
nesses argumentos sobre a cordialidade do brasileiro e a fábula das três raças, atrasando
em muitas décadas a inclusão de grupos excluídos ao longo de nossa história. Somente a
partir do final dos anos de 1990 é que passamos a adotar medidas legais de ações
afirmativas para acelerar o acesso de grupos afrodescendentes aos direitos sociais
fundamentais.
Fonte: online.unip.br