O Ponto Dentro do Círculo
Blog sobre Maçonaria, Filosofia, História, Sociedade e Cultura.
A Tradição Hermética e a Maçonaria (Parte III)
Falta-nos mencionar um pouco mais à Alquimia como influência presente na Ordem
Maçônica. Já assinalamos que Enxofre, Mercúrio e Sal, os princípios alquímicos,
encontram-se diretamente incorporados, desde os primeiros graus.
A Alquimia tem em comum com a Maçonaria o desenvolvimento interior, tendente à
Perfeição, que tanto os alquimistas consideravam o objetivo de seus afãs (já que a
Natureza não tinha finalizado sua Obra, que o Artista ou Adepto devia completar),
como os maçons aos fins últimos da Maçonaria, que incluem a morte e a
consequente regeneração em outro nível, ou estado de consciência.
Por outro lado, costumou-se dizer entre os amigos da Filosofia Hermético-Alquímica
que o último grande Alquimista (e escritor sobre estes temas) foi Irineu Filaleto no
século XVII. Isto é bastante exato de uma perspectiva, só que não se observa com
toda claridade que a partir dessa data não se interrompe esta Tradição até o
presente, mas sim se transforma, e muitíssimos de seus ensinos e símbolos passam à
Maçonaria, como transmissora da Arte Real e da Ciência Sagrada, tanto nos três graus
básicos como na hierarquia dos altos graus. Segundo René Guénon, estes altos graus
são um prolongamento do estudo e da meditação sobre os símbolos e ritos (a uma
parte deles, chamam-nos filosóficos)[20] nascidos do interesse de muitos maçons por
desenvolverem e fazerem efetivas as possibilidades outorgadas pela Iniciação; por
esse motivo a utilidade prática destes graus é indubitável e constituem a
hierarquização que coroa o processo de Conhecimento, tendo em conta sempre o
caráter iniciático da organização, como nos adverte isso o autor, que também nos põe
em guarda sobre o perigo de que estes graus se dediquem a problemas sociais ou
políticos, mutáveis por natureza, e portanto afastados dos alicerces do Templo
maçônico, construído em pedra. (Ver “René Guénon”: artigo “Os Altos Graus”).
No simbolismo maçônico, tal como no Alquímico, o sol e a lua exercem um papel
fundamental e se os encontra em lugares tão essenciais como nos quadros e na
decoração das lojas maçônicas (localizado-se em seu Oriente). Certamente que se
trata dos princípios ativo e passivo, que também se correspondem às colunas Jakín e
Boaz, que deste modo assinalam a oposição destas energias, ao mesmo tempo que
sua conjunção num eixo invisível, do qual tende o prumo o Grande Arquiteto do
Universo. Sem deixar de dar primazia a este significado geral, deve também se ter em
conta a realidade destes astros, já que existe um calendário maçônico cujos dois
pontos extremos constituem, como em quase todas as Tradições, os solstícios de
verão e de inverno, festividades dos dois São Joões, que marcam os pontos limites do
sol em seu percurso, sinalizando também os pontos intermédios correspondentes
aos equinócios na roda temporal, e nos introduzem na doutrina dos ritmos e dos
ciclos. Por outra parte, existe uma preeminência entre estas luminárias, já que a lua
resplandece graças à luz solar, conceito que não é alheio à Tradição Hermética e à
Cabala, posto que ambas são utilizadas de maneira generalizada para indicar graus
de Conhecimento, ou etapas no percurso iniciático. Jean Tourniac no prólogo ao
conhecido Tuileur de Vuillaume[21] aponta, referindo-se aos ciclos, a semelhança do
paredro simbólico lua-sol ao do simbolismo solar e do polar. Esta associação que
possui indefinidas vias de desenvolvimento, poderia igualmente relacionar-se com
dois aspectos da Maçonaria, encarnados nas figuras míticas de Salomão (solar) e
Pitágoras (polar), que por sua vez – e isto não o diz Tourniac – guardariam alguma
analogia com os graus simbólicos (Maçonaria Azul) e os Altos Graus, ou ao menos,
supostamente isto é o que pretenderam aqueles que foram instituindo estes últimos.
A literatura sobre a Maçonaria, ou as investigações históricas sobre a Ordem, soem
incluir os autores, meios e escritos anti-maçônicos, tão confuso é o panorama a
respeito de suas origens e fins, havendo-se criado uma série de “lendas” paralelas, o
que ocasiona que certos investigadores custem cruzar uma espécie de fronteira
“maldita” e invisível que obedece às “lendas negras” a respeito da Maçonaria como as
divulgadas por Leo Taxil na França, muitas delas originadas no catolicismo. Outro tipo
de críticas, não referentes a seu conteúdo espiritual, funda-se na atuação política e
econômica de algumas lojas maçônicas que utilizando a estrutura maçônica, e
aproveitando-se da independência das Oficinas, auferiram vantagens desse modo da
Ordem e do público, projetando uma imagem distorcida da Maçonaria. Deverá se
reconhecer que isto foi desse jeito em ocasiões, embora simultaneamente é o que
acontece há anos com todas as instituições, cuja decomposição é evidente. Em
algumas sociedades a Ordem goza ainda do prestígio que teve no passado, e em
certos países sua força espiritual, como gestora de grandes empreendimentos deixou
rastros claros, que hoje são seguidos. Às vezes há maçons que ainda não conhecem a
Maçonaria, ou acreditam que é outra coisa mais concreta e material, mas todos eles
têm claro seu lema: Liberdade, Igualdade, Fraternidade, e cumprem seu Rito de
acordo a seus Antigos Usos e Costumes. Se não tivesse sido pela coerência e pelo
conteúdo espiritual-intelectual, que os símbolos e os ritos manifestam, a Maçonaria
seria mais um absurdo e, em todo caso, talvez não tivesse chegado até nossos dias.
Outra coisa que deveria ser assinalada é a curiosidade por saber qual é o grau real de
Conhecimento que tem tal ou qual maçom, ou em geral, este ou aquele Iniciado; mas
isso a quem interessa? que importância tem e diante de quem?
Essa pergunta, como é lógico, não cabe nos limites de uma investigação histórica
baseada na documentação, e portanto é muito difícil estabelecer origens claras e
seqüências lógicas num tema que não é [claro], embora se tente forçá-lo [como tal].
Um destes investigadores, o já mencionado J. A. Ferrer Benimelli, que tem mais de
vinte interessantes obra publicadas sobre Maçonaria, e que ignora sistematicamente
a Hermes, informa-nos: “Bernardin, em sua obra Notas para servir à história da
Maçonaria em Nancy até 1805, depois de comparar duzentas e seis obras que tratavam
dos origens da Maçonaria, encontrou trinta e nove opiniões diversas, algumas tão
originais como as que fazem descender a Maçonaria dos primeiros cristãos ou do
próprio Jesus Cristo, de Zoroastro, dos Magos ou dos Jesuítas; para não citar as
teorias mais conhecidas, as chamadas ‘clássicas’, que remontam a Franco-maçonaria
aos Templários, aos Rosacruzes ou aos judeus” e adiciona em nota: “Destes trinta e
nove autores, vinte e oito atribuíram os origens da F. M. aos pedreiros construtores
do período gótico; vinte autores se perdem na antiguidade mais longínqua; dezoito
os situam no Egito; quinze se remontam à Criação, mencionando a existência de uma
loja maçônica maçônica no Paraíso Terrestre; doze, aos Templários; onze, à Inglaterra;
dez, aos primeiros cristãos ou ao próprio Jesus Cristo; nove, à antiga Roma; sete, aos
primitivos Rosacruzes; seis, à Escócia; outros seis, aos judeus, ou à Índia; cinco, aos
partidários dos Stuart; outros cinco, aos jesuítas; quatro, aos druidas; três, à França; o
mesmo número o atribuem: aos escandinavos, aos construtores do templo do
Salomão, e aos sobreviventes do dilúvio; dois, à sociedade ‘Nova Atlântida’, de Bacon,
e à pretendida Torre de Wilwinning [Kilwinning]. Finalmente, à Suécia, China, Japão,
Viena, Veneza, aos Magos, à Caldeia, à ordem dos Essênios, aos Maniqueus, aos que
trabalharam na Torre de Babel e, por último, um que afirma que existia a F. M. antes
da criação do mundo.”[22]
Análogo quanto à confusão das origens, é o que acontece na Tradição Hermética,
com o mito do Hermes e Hermes Trismegisto, e com todo mito ou origem, e por certo
com o Corpus Hermeticum, livros que, como vimos anteriormente[23], condensam e
recordam o saber dessa Tradição. Efetivamente, Jean-Pierre Mahé, um estudioso que
junto com P. J. A. Festugière dedicou sua vida ao estudo destes textos, acredita que os
fragmentos em armênio desta literatura procedem do primeiro século anterior a esta
era e que as versões posteriores conservadas em grego, latim e copta, desprendem-
se delas sendo seu conteúdo nitidamente pagão, fora de influências gnósticas e
cristãs que com certa liberalidade lhe atribuíram. É interessante observar como este
estudioso, ao longo de seu trabalho mais importante a respeito, Hermès en Haute-
Egypte[24], onde coteja diferentes versões do Corpus entre si, com outros manuscritos
encontrados em Nag-Hammadi e com autores da antiguidade, etc. chega à conclusão
de que todos eles estão aparentados, que procedem de uma única fonte, e inclusive
têm um tom, um ar, um aspecto comum, que também se manifesta em seu estilo,
opinião que compartilhamos. Mas este saber, próprio do Corpus[25], que Mahé vê
como solene, repetitivo, contraditório e sentencioso, em suma como má literatura (o
que é boa literatura e quem está em capacidade de defini-la e com relação a que?),
parece-nos difícil de apreciar com parâmetros lógicos, por mais esforço e trabalho
que se ponha nisso, e pese à valiosíssima contribuição que supõe o estabelecimento
destes textos, sua tradução e comentário, embora estejam reiteradamente vistos de
uma perspectiva totalmente alheia à que os textos possuem. Daí o perigo de se
aproximarem de coisas de uma ordem determinada com meios que, por sua
natureza, não são os correspondentes, já que eles mesmos estão formados por séries
de condicionamentos pertencentes ao mundo profano, que ainda uma assombrosa
erudição não sabe esconder, pois aparecem aqui e acolá na literalidade dos
delineamentos, o infantilismo das concepções, a desproporção abismal entre o
sentido sapiencial-emocional do texto e a leitura “universitária”, quer dizer, profana
que se faz do mesmo[26]. Não se deve tratar uma sociedade iniciática por suas ações
humanitárias ou altruístas exclusivamente, pois se corre o perigo de desvirtuar a
autêntica razão de sua existência.
Outro assunto mais ou menos utilizado como crítica, tanto da Maçonaria como do
Hermetismo, é seu caráter pretendidamente sincrético. Em primeiro lugar nos parece
imperdoável o abuso que se faz desta palavra, que equivale para alguns a uma
desqualificação. O Cristianismo, o Islã, o Budismo, a Antiguidade Greco-romana,
inumeráveis Tradições arcaicas, inclusive a Civilização Egípcia e a China, poderiam
hoje ser julgadas como “sincréticas” à luz dos documentos mais antigos e sem
mencionar a ideia de uma Tradição Unânime, além desta ou daquela forma.
Efetivamente, o termo esteve em voga numa época em que a investigação
antropológica e a História das Religiões estavam em fraldas, e se acreditava na
“pureza”, tanto de certas culturas, conceito muito perigoso, além do mais, capaz de
derivar no engano das raças como religiões. Desgraçadamente este termo seguiu
sendo usado, e é utilizado por alguns como uma arma esgrimida para condenar
aquilo que imaginam não lhes convir, ou que escape a suas simplificações
elementares. Muito perto está a História da Igreja, seus Concílios e a formação de
seus Dogmas, sua Teologia, a História dos Papas, etc., para que, em todo caso, a
Cristandade possa reprovar à Tradição Hermética e à Maçonaria, algo neste sentido, e
o dito poderia ser generalizado a outras religiões e influências espirituais que
compõem a Cultura do Ocidente. São inumeráveis as correntes que formaram esta
Civilização, a maior parte das quais, de um modo ou de outro, coexistem conosco
mesmos, e devemos dar graças a Deus, em nome de nossa cultura, porque estas
inter-relações naturais que se transvasam com as migrações humanas de um povo e
sua língua a outro, existiram sempre, pese à ácida recriminação de sincretismo,
emanada de supostas autoridades baseadas em imaginárias estruturas caducas.
Definitivamente, os diversos componentes da Maçonaria não impedem que esta
adaptação da Ciência Sagrada, da Filosofia Perene, seja totalmente Tradicional, senão
mais provam o contrário assim que se consideram em suas doutrinas, quer dizer, em
si.
Continua…
Autor: Federico Gonzalez
Tradução: Igor Silva
Notas
[20] – Outros se consideram, no Rito Escocês Antigo e Aceito: “de perfeição”,
“capitular” e “administrativos”.
[21] – Vuillaume, le Tuileur. Ed. du Rocher, Mónaco 1990, reimpressão do de 1830.
Manual maçônico que contém os seguintes Ritos praticados na França: Escocês
Antigo e Aceito, Francês, da Maçonaria de Adoção, e Egípcio ou de
Misraím. Clique AQUI para ler a resenha em aspanhol.
[22] – José A. Ferrer Benimelli, la Masonería Española en el siglo XVIII. Siglo XXI de
España Editores, Madrid 1986.
[23] – “Os Livros Herméticos”. SYMBOLOS Nº 11-12, Guatemala 1996.
[24] – Les Presses de l’Université Laval, Quebec 1978-1982. 2 vol.
[25] – E que é comum ao resto da literatura hermética, inclusive a Alquimia.
[26] – O discurso do Corpus é efetivamente reiterativo e se repetem certos axiomas
ou máximas num tom que comporta certa solenidade, um “estilo” para ser
identificado entre outros tons, e também porque lhe imprime uma cadência musical,
que à par que fixa a memória, é um agente “invocador”.