Madeira Global - Vol. 2
Madeira Global - Vol. 2
O
Coordenação das áreas científicas:
Tais foram em tudo as obras do Infante século xxi será cada vez mais o século do conhecimento, A N T R O P O L O G I A E C U LT U R A M AT E R I A L
Madeira
Jorge Freitas Branco
Dom Henrique, continuadas depois pelos tido como meta e prioridade em ordem ao progresso
A R Q U I T E T U R A E PAT R I M Ó N I O / H I S T Ó R I A D A A R T E
reis de Portugal, que levaram adiante o dos povos. O conhecimento é o novo nome do Rui Carita
Global
Atlântico CIÊNCIAS DA SAÚDE
desertas, incógnitas e despovoadas, como que aquele período da nossa história, em que Portugal se salientou Ana Rita Londral
Carnaval CIÊNCIAS DO MAR
era a ilha da Madeira, e as Terceiras ou no palco das nações do mundo pelas viagens de descoberta dos Thomas Dellinger
dos Açores, ele as descobriu, povoou e edi- caminhos marítimos, teve na base a acumulação, a gestão inteligente C I N E M A , V Í D E O E M U LT I M É D I A
Carlos Valente
ficou; e de ilhas desertas que antigamente e a aplicação adequada de um conhecimento científico e técnico.
Este capital de saber permitiu ao nosso país criar a primeira rede
GRANDE DICIONÁRIO C U LT U R A E T R A D I Ç Õ E S P O P U L A R E S
† David Pinto Correia e Thierry Proença dos Santos
eram, estão hoje tão povoadas e populo-
sas, e tão enobrecidas de formosas cidades
de influência global no dealbar da Época Moderna e tornar-se, ao ENCICLOPÉDICO DIREITO E POLÍTICA
José Renato Gonçalves
fossem povoadas de homens, [...] lançou O papel do arquipélago madeirense como ponto nevrálgico, de HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL
† Alberto Vieira
também os primeiros fundamentos da interseção, de absorção e de projeção (povoadores multiétnicos, H I S T Ó R I A M I L I TA R
Rui Carita
geração divina. navegadores, comerciantes, viajantes, cientistas, militares, exilados,
HISTÓRIA POLÍTICA E INSTITUCIONAL/HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
PA D R E A N TÓ N IO VIEIRA, emigrantes, turistas, etc.) faz da Madeira uma das ilhas mais Cristina Trindade e Nelson Veríssimo
H i s t ó ri a d o F u t u ro conhecidas do mundo e com presença frequente na grande I G R E J A C AT Ó L I C A
Agostinho Jardim Gonçalves, José Eduardo Franco e Saturino Gomes
literatura e história mundiais. A Madeira é, pois, uma ilha que
9 789899 012684 >
I N S T I T U I Ç Õ E S E E X P R E S S Õ E S R E L I G I O S A S N Ã O C AT Ó L I C A S
ISBN 978-989-9012-68-4
merece justamente o epíteto de “Ilha Global”, que agora passa a ter Simão Silva
2
M AT E M ÁT I C A E A S T R O N O M I A
Custódia Drumond
PERSONALIDADES TRANSVERSAIS
Cristina Trindade
P S I C O L O G I A E P S I Q U I AT R I A
Jacinto Jardim e Luísa Soares
SOCIEDADE E COMUNICAÇÃO
† José Manuel Paquete de Oliveira
Cristina Trindade
COORDENAÇÃO EXECUTIVA
Madeira
Global
GRANDE DICIONÁRIO
ENCICLOPÉDICO
DA MADEIRA
VOLUME 2
ISBN 978-989-9012-68-4
Theya Editores
Instituto Europeu de Ciências da Cultura
Padre Manuel Antunes – IECCPMA
Rua Ladislau Patrício, n.º 8 – 1.º A,
1750-136 Lisboa
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Tel. 96 99 77 702
PREFÁCIO
A
publicação do volume 2 da obra Madeira Global: Grande Dicionário Enciclopédico
da Madeira deve ser interpretada como um momento de especial afirmação do
projeto, pois é insofismável que a mesma representa, também, uma conquis-
ta sobre os constrangimentos decorrentes da pandemia da Covid-19. Tal conquista não
ilude, todavia, que trabalhar em cultura tem, entre outras várias características, o traço
da incompletude. Cada novo passo que se dá neste território tem como missão abrir
muitos mais caminhos do que aqueles que fecha, e é isso que tem permitido avançar
sempre mais, sem, no entanto, jamais se chegar ao fim. Mesmo considerando a dispo-
nibilização de mais cerca de 900 páginas da obra, que abrigam centenas de entradas,
é indispensável sublinhar que o conhecimento absoluto não existe, nem existirá nunca,
o que não impede, contudo, que, pelo caminho, se vão semeando marcos que fazem
pontos de situação do percurso até então desbravado. No caso do arquipélago da Ma-
deira, esses marcos existem em variadas áreas do saber e são sempre referências a que se
volta, para aferir distâncias, fundamentar progressos ou (in)validar conclusões. Alguns
deles podem eventualmente ser mais ambiciosos e, propondo largas sínteses, visam hori
zontes de 360º, querem-se panóticos, e são constituídos por obras de carácter enciclo-
pédico, termo que, em si mesmo, aponta para um conhecimento em círculo, para uma
abrangência total.
A primeira das obras que, na Madeira, representa esse esforço e tem esse desígnio é o
Elucidário Madeirense, publicado há já um século, mas que continua a servir o seu propósi-
to de lugar incontornável, de sítio de visita obrigatória, quando se procura acesso rápido
a informação sobre qualquer assunto relativo ao arquipélago. Em 100 anos, é forçoso que
muito se tenha alterado, tanto ao nível do conhecimento produzido, como em relação
a novas formas de olhar questões antigas, e também quanto a eventos entretanto ocorri-
dos e que são vitais para um entendimento da atualidade do quadro insular. Cem anos
são igualmente dignos de comemoração, sobretudo se se juntarem aos 600 que decorre-
ram desde a descoberta oficializada destas ilhas e da sua integração efetiva no reino de
VI ¬ PREFÁCIO
Portugal, que, com elas, dá o primeiro passo para a construção de um império ultramari-
no e do mundo globalizado que hoje conhecemos.
O Elucidário Madeirense veio a lume na circunstância da comemoração dos 500 anos
desse mesmo acontecimento, e a obra Madeira Global: Grande Dicionário Enciclopédico da Ma-
deira, cujo volume 2 se edita agora, pretende ocupar o mesmo espaço, utilizando o mesmo
pressuposto, agora ampliado substantivamente no âmbito de um projeto que alcançará os
10 volumes e ao qual o Governo Regional da Madeira tinha o dever político e cultural de,
naturalmente, se associar.
Assim, congratulo-me com a prossecução dos trabalhos há já vários anos iniciados e
que se vão consubstanciando em volumes que se pretende lançar ao ritmo de um por ano,
sendo o presente volume o segundo a vir a lume.
Em nome do Governo Regional da Madeira e das empresas que colaboram neste pro-
jeto, saúdo, pois, o lançamento do volume 2 da obra Madeira Global: Grande Dicionário En-
ciclopédico da Madeira, ciente do importante contributo que proporciona a estudiosos, em
particular, e também ao público em geral.
Jorge Carvalho
Secretário Regional de Educação, Ciência e Tecnologia
da Região Autónoma da Madeira
Educação, formação
Arquitetura e património/História da arte: e empreendedorismo: Linguística:
Rui Carita Jacinto Jardim Aline Bazenga
Universidade da Madeira | Universidade de Lisboa | Universidade da Madeira | Universidade de Lisboa
Universidade Aberta | Universidade de Lisboa
Universidade Nova de Lisboa
Literatura:
Artes e design: Estudos clássicos: Luísa M. Antunes Paolinelli
Isabel Santa Clara Luísa M. Antunes Paolinelli Associação para o Desenvolvimento dos Estudos Globais
Universidade da Madeira | Universidade de Lisboa e Insulares | Universidade da Madeira | Universidade
Associação para o Desenvolvimento dos de Lisboa
Estudos Globais e Insulares | Universidade da Madeira |
Artes performativas: Universidade de Lisboa
Madeira global:
Teresa Norton Dias Sílvio Fernandes Paulo Miguel Rodrigues
Universidade Aberta | Universidade da Madeira |
Universidade da Madeira Universidade da Madeira
Universidade de Lisboa
Teresa Pinheiro
Technische Universität Chemnitz
Thomas Earle
University of Oxford
António José Macedo Ferreira Filipe dos Santos Luísa M. Antunes Paolinelli
Associação Literacia para os Media e Jornalismo | Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira | Associação para o Desenvolvimento dos Estudos
Secretaria Regional de Turismo e Cultura da Região CEHA – Secretaria Regional de Turismo e Cultura da Globais e Insulares | CLEPUL – Faculdade de Letras da
Autónoma da Madeira Região Autónoma da Madeira Universidade de Lisboa | Universidade da Madeira
universalista, que ali deram assento a uma que voltam a aparecer em 1433, com um agra-
nova sociedade. Sendo um ensaio que ime- decimento do Rei D. Duarte não só ao capitão
diatamente originou lucros consideráveis, este ‑donatário do Funchal e aos fidalgos em es-
modelo veio depois a ser exportado para as pecial, mas também “aos povos desta ilha da
outras novas terras, como os Açores e o Brasil, Madeira”, pelos auxílios prestados a navios da
para onde foram enviados planeamentos admi- armada que de Portugal ali tinham vindo, con-
nistrativos e quadros próprios. Da Madeira, saí- tra naus de Castela (FRUTUOSO, 2007, 604).
ram apoios à consolidação das praças do Norte A centralidade e a ligação da Madeira a todo
de África, ao povoamento do Brasil, às explora- o espaço marítimo entre a costa de África e a
ções e conquistas do Oriente, acabando a Ilha da América foram quase contemporâneas com
por funcionar como a verdadeira ponta de o povoamento, muito para além do abasteci-
lança dos descobrimentos portugueses. mento de trigo para as armadas de explora-
A Madeira afirmou-se desde os primeiros tem- ção da costa da Guiné. Em 1470, e.g., residia
pos do povoamento como uma importante refe- no Funchal o feitor real dos dentes de elefante
rência no Atlântico, e logo nos meados séc. xv capturados naquela costa, Fernão Nunes Boa
viu-se envolvida no contrato para exploração da Viagem. Quinhentos anos depois, ainda se
costa africana, o denominado Trauto da Guiné. mantinha o topónimo da rua, que ficava atrás
Desde 1461, 1000 alqueires desta produção des- da igreja de Nossa Senhora do Calhau e junto
tinavam-se à alimentação dos exploradores e ao Hospital da Misericórdia do Funchal (de-
dos comerciantes que trabalhavam nas costas pois demolido), onde residiu o feitor com seu
da Guiné, como referem as respostas do duque irmão, tendo‑se este, por sua vez, envolvido no
D. Fernando (1433-1470), em 1461, às represen- tráfico de trigo para a Costa da Guiné.
tações da população insular que referem a “saca O papel fulcral da Madeira no quadro do
dos mil moios de trigo para o Trauto de Guiné” Atlântico Norte é patente na primeira viagem
(ABM, Câmara Municipal..., tombo i, fls. 204 de Cristóvão Colombo (1451‑1506) às Antilhas,
‑211). O Rei D. Afonso V (1432-1481) firmara com informações, segundo os seus biógrafos,
um contrato com um grupo de mercadores, anteriormente recolhidas no Funchal. Tendo
nos termos do qual nenhum trigo madeirense sido comunicados os resultados dessa viagem
podia ser exportado para outros destinos por a D. João II (1455‑1495), em março de 1492,
conta de outros mercadores ou até por parte desencadeou‑se uma nova partilha do oceano,
dos próprios produtores, enquanto os rendei- celebrada depois pelos tratados de Tordesilhas
ros do fornecimento do Trauto de Guiné não ti- e de Toledo. Nesse contexto, quase de imedia-
vessem adquirido os 1000 moios em causa. Mais to, foi determinada a construção de uma mu-
tarde, em 1466, o infante D. Fernando arrenda ralha no Funchal. As informações dos arquivos
esta exportação a um mercador catalão (ou Ca- portugueses são omissas quanto às possíveis ra-
telam de nome), e depois a sua viúva, D. Beatriz zões para essa construção, mas os Castelhanos
(c. 1420-1506), em 1476, arrenda o mesmo ser- afirmam terem saído da Madeira, por determi-
viço a Batista Lomelino. nação de D. João II, duas caravelas na mesma
Ao longo dos sécs. xv e xvi, a Madeira e os rota de Colombo, as quais, numa primeira fase,
madeirenses participam assim nas viagens de os embaixadores portugueses negam, mas de-
exploração das ilhas e das costas africanas e, pois confirmam.
depois, na ocupação dos domínios do Índico, Resolvido, então, o assunto da nova partilha
na exploração e ocupação do Brasil, etc. As in- dos mares, que deixa de ser, em finais de 1493,
formações mais antigas registadas na Câmara de um meridiano a 100 léguas para ociden-
do Funchal parecem datar de 11 de maio de te de Cabo Verde e passa, segundo proposta
1425, com um agradecimento do rei D. João I dos novos embaixadores portugueses Duarte
(1357‑1433), em princípio, a um navio chegado Pacheco Pereira (1460-1533) e Rui de Leme,
como desmantelado ao Funchal, informações entre outros, a ser a 370 léguas, a urgência
A tl â ntico , oceano ¬ 19
Fig. 2 – Mapa de
Colombo, Bartolomeu
e Cristóvão Colombo (atr.),
Lisboa, c. 1490 (BNF).
indústria que, num breve espaço de tempo, Madeira passou a ter autorização para associar
floresce, especialmente nas áreas de Pernam- ao mesmo, primeiro dois e depois quatro na-
buco, Baía e S. Paulo, arrasando, praticamen- vios. A constituição da Companhia fora efetua-
te, a madeirense. Nos finais do século, e com a da com base na ação do P.e António Vieira e
união ibérica, depois de Filipe II (1527-1598) nas suas ligações com os cristãos-novos, estabe-
abrir os reinos de Castela aos Portugueses, lecendo-se assim uma vasta rede comercial em
assiste‑se a uma impressionante abundância de que entravam os cristãos-novos de Pernambu-
prata nas igrejas madeirenses, tal como a uma co e do Maranhão, no Brasil, de S. Miguel, nos
interessante proliferação de oficinas de pra- Açores, do porto de Viana, no reino, de Ames-
teiros e ourives, só explicável pela entrada da terdão, na Holanda, e do Funchal, como pode-
mesma por contrabando, pois nos domínios mos constatar pelo Rol dos Judeus.
portugueses quase não havia prata e nos regis- As estreitas relações da Madeira com a ca-
tos alfandegários nada consta a esse respeito. pitania de Pernambuco, libertada, depois, da
presença holandesa por João Fernandes Vieira
(c. 1602-1681), e onde também existia uma im-
Meados do século xvii portante colónia madeirense – de tal maneira
Nos anos seguintes, assiste-se de uma forma que o antigo governador de Paraíba e de An-
mais nítida à transferência dos interesses eco- gola chegou a manifestar, no final da vida, a
nómicos portugueses do Índico para o Atlânti- vontade de ser sepultado na Madeira –, leva-
co, aparecendo os cónegos da Sé ligados a esse ram à transferência do primeiro bispo de Per-
tráfego internacional, dando aval à fama de nambuco, D. Estêvão Brioso de Figueiredo
que a maioria possuía uma ligação aos comer- (c. 1620-1689), para a Madeira. O bispo pas-
ciantes cristãos-novos de Amesterdão e da Baía. saria por grandes dificuldades naquela nova
O comércio geral da Madeira consolidou-se na diocese, chegando a sua residência, em desor-
segunda metade do século com a privilegia- dens locais, a ser alvejada por tiro de bacamar-
da ligação ao território brasileiro, então com te. Foi apresentado como bispo para o Funchal
o apoio real e através das armadas da Compa- em 1683 e tomou posse da nova diocese, pes-
nhia Geral do Comércio do Brasil, fundada em soalmente, a 18 de abril de 1685, mas teria um
1649, à frente de cuja primeira viagem se co- curto episcopado de três anos, voltando a Por-
locou o 2.º conde de Castelo Melhor, João Ro- tugal e aí falecendo.
drigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658),
casado com a futura condessa da Calheta e re-
cém-nomeado governador-geral do Brasil.
Séculos xvii e xviii
A Companhia Geral do Comércio do Brasil As principais rotas marítimas internacionais
tinha ficado com o monopólio dos estancos e, dos sécs. xvii e xviii, especialmente as Norte
especialmente, com o respeitante ao comér- ‑Sul, passaram nos mares da Madeira, enquan-
cio do vinho da Madeira. Dada a tradição de to os navios estiveram dependentes do regime
contrabando no porto do Funchal, dificilmen- de ventos no Atlântico Norte. Acrescia ainda
te este monopólio teria sido cumprido, e mais a proximidade do estreito de Gibraltar, a en-
ainda quando esta companhia passou a pes- trada e saída do Mediterrâneo, o que confe-
soa coletiva e se ligou ao comboio – assim se ria à Madeira um importante valor estratégico
chamava o conjunto de naus que navegavam como entreposto comercial, entre os arquipé-
em conjunto para se protegerem mutuamen- lagos dos Açores e das Canárias, patente nas
te dos corsários –, administrado localmente inúmeras visitas de armadas internacionais e
por um delegado, como foi Diogo Fernandes principalmente inglesas, que aqui fizeram es-
Branco em 1668 e, depois, em 1673, o capitão cala. O reconhecimento da posição estratégica
Gaspar de Andrada; a situação continuaria da da Madeira alarga-se ainda com o desenvolvi-
mesma forma a partir do momento em que a mento exponencial, ao longo do séc. xviii, da
A tl â ntico , oceano ¬ 21
Rui Carita
apresentam um elenco de colaboradores cujos
nomes e número (37 na 1.ª edição, 41 na 20.ª)
Atlântico, revista não variaram substancialmente ao longo do
tempo. Alguns destes colaboradores elabora-
O primeiro número da Atlântico. Revista de ram artigos e providenciaram ilustrações. Na
Temas Culturais, publicação periódica de cariz contracapa e no interior – mormente no iní-
cultural e científico, veio a lume na primave- cio, no fim e na separação dos artigos – de
ra de 1985. A revista, de assinatura anual, teve todas as revistas podem ser encontradas pági-
uma vigência temporal de cinco anos e uma nas com anúncios publicitários a produtos e
periodicidade trimestral – deste modo, cada serviços do arquipélago da Madeira.
edição, com cerca de 80 páginas, correspondia O número inaugural, publicado em 1985,
a uma estação do ano. Saíram do prelo 20 nú- nascia, segundo o editorial do mesmo, “como
meros, à razão de quatro por ano, sendo o úl- tentativa sincera de criar na Madeira um local
timo o do inverno de 1989. As suas dimensões de encontro de ideias, um ponto de confluên-
eram de 24 x 17 cm e a paginação iniciava-se cia de opiniões”. Através de uma análise breve,
a cada novo ano. A redação e administração não exaustiva, dos editoriais, no sentido de
da publicação estavam sediadas no Funchal e apreender os propósitos e a filosofia da revista
a fotocomposição, o fotolito, a montagem, a Atlântico, percebe-se que por meio dela se pro-
impressão e o acabamento processavam-se em punha instaurar um espaço de comunicação
Lisboa. aberto e livre, informado pela relevância do
O editor e diretor foi António E. F. Loja, que conhecimento do passado e do presente, com
assinou os editoriais de todas as edições (e, vista a edificar o futuro. Era veiculada a espe-
inclusive, diversos artigos). As fichas técnicas rança de que esta publicação fosse considerada
24 ¬ A tl â ntico , revista
útil e, assim, usada amiúde. Desde cedo, foram M. P. Ferreira (eleições no séc. xix); António
acolhidos colaboradores de outras geografias, Luís Alves Ferronha (Revolta da Madeira, re-
de modo a estreitar as relações com o exterior. publicanismo); Paulo Fragoso Freitas (cultura,
Usavam-se igualmente estas páginas para de- fontes históricas, azulejos); Maurício Fernan-
nunciar o clima de mediocridade e para defen- des (escultura – Francisco Franco, fotografia,
der maior fulgor e riqueza culturais, afirmando vídeo); José Luís de Brito Gomes (a Madeira e
a ligação recíproca e necessária entre cultura e a Rússia); Fátima Freitas Gomes (comércio in-
liberdade. A necessidade do conhecimento do terno no Funchal, hotéis e hospedarias); Maria
passado passava por respeitar e preservar o pa- de Fátima Gomes (festas – romarias); José Lau-
trimónio – cultural e natural; nesse sentido, foi rindo de Góis (Ateneu Comercial do Funchal,
denunciada e criticada a indiferença, a falta de indumentária e indústria, imprensa); David
proteção, o desaparecimento e a intervenção Ferreira de Gouveia (madeirenses no Brasil,
desadequada no mesmo por parte de entida- história do açúcar); Emanuel Janes (implan-
des públicas. A este respeito, afirmava-se a pre- tação da Primeira República); Luís Sena Lino
mência da recuperação dos centros históricos (função social do corpo); João Lizardo (arte
e a relevância da inventariação do património do renascimento, arte mudéjar); António Loja
natural e construído (criticou-se, e.g., a ação de (história social, económica e política, arquite-
instituições governamentais no que tocava ao tura); Castro Lourdes (pintura); Armando de
lobo-marinho). Lucena (escultura – Francisco Franco); Irene
A revista era composta de artigos – estudos Lucília (poesia, ruas); Diogo de Macedo (Fran-
e ensaios – sobre múltiplas temáticas atinen- cisco Franco); Maria Elisa Basto Machado (fi-
tes, principalmente, ao arquipélago da Madei- latelia e maximafilia); João Medina (história
ra; repertórios de literatura (poesia, crónicas, cultural – Zé Povinho, arte – I República); Luís
etc.) e de fotografia; e antologias de fontes his- Francisco de Sousa Melo (teatro, o texto “Alco-
tóricas de diversa índole, reproduzidas no final forado”), com a colaboração de Maurício Fer-
de cada número (em certos casos, anotadas, nandes num dos seus artigos; Anabela Mendes
traduzidas e com considerações introdutórias (cultura e museologia); Mary Noel Menezes
e críticas). (madeirenses na Guiana britânica); António
Contribuíram para a revista os seguintes au- Montês (escultura – Francisco Franco); Teresa
tores (com estudos e ensaios sobretudo relati- Pais (Visconde da Ribeira Brava); Jaime Azeve-
vos à Madeira): Manuel José Biscoito (mares); do Pereira (vimes, o Jardim Botânico da Ajuda
Maria dos Remédios Castelo Branco (viajantes e a Madeira, Padre Eduardo Clemente Nunes
estrangeiros – Jean Mocquet); Teresa Brazão Pereira, João Fernandes Vieira); António Jorge
Câmara (empedrados, bonecas de “maçapão”, Pestana (história militar); Fernando Pessoa (ser-
mobiliário); Celso Caires (fotografia); Zita Car- ras); Gabriel de Jesus Pita (decadência e queda
doso (expostos); Rui Carita (litografia – An- da I República); Raimundo Quintal (turismo,
drew Picken, defesas de Santa Cruz, embutidos, paisagem, ambiente, jardins, quintas, patrimó-
remates de teto, arquitetura religiosa); Fátima nio natural, geografia); Adriano Ribeiro (tra-
Maria Fernandes Machado de Castro (litera- tado de Utrecht); Miguel Rodrigues (Madeira
tura – Raul Brandão); Jorge de Castro (natu- nos finais do séc. xv); José de Sainz-Trueva (he-
reza); Luísa Clode (pintura flamenga, borda- ráldica, ex-librística, quintas, arte, arquitetura
do); Marcelo Costa (habitação, arquitetura); civil e religiosa); Joel Serrão (cultura e filoso-
João Couto (escultura – Francisco Franco); fia – Antero de Quental); António Ribeiro Mar-
Sérgio António Correia (literatura – Bernardo ques da Silva (viajantes estrangeiros, imprensa,
Soares); Silvano Porto da Cruz (museologia e quotidiano das freiras de Santa Clara, arquite-
património); Fátima Pitta Dionísio (literatura tura doméstica, ecologia, política e literatura –
– Camões e análise de soneto, Revolta da Ma- o Conde de Abranhos e o desembargador José
deira); João Ferreira Duarte (filosofia); Pedro Caetano); Jorge Marques da Silva (arqueologia
“ A tl â ntida ” ¬ 25
ilha ou continente no meio do oceano Atlânti- mais tarde denominada Escola Naval, tornan-
co, localização dos Açores e da Madeira, a es- do-se professor catedrático em 1834.
treia do novo programa aconteceu em novem- Fugindo à perseguição contra os liberais,
bro de 1999. emigrou para Inglaterra, em junho de 1828,
Desde então, Açores e Madeira alternaram a mas logo em agosto regressou ao Funchal para
emissão de um programa com 90 min, destina- se juntar ao governador da Madeira, Cap.-Gen.
do a recuperar o mais importante da tradição, José Lúcio Travassos Valdez, na luta contra as
da gastronomia e do cancioneiro madeirenses, tropas absolutistas de D. Miguel. Perante a vitó-
dando a conhecer as instituições e a história ria destas, refugiou-se no navio inglês Alligator,
dos que ficaram na Ilha. com outros madeirenses, e rumou novamente
Ao longo de duas décadas, os profissionais da a Inglaterra, daqui partindo, em 1831, para a
RTP-Madeira deslocaram-se a diferentes comu- ilha Terceira, nos Açores, onde foi organizada
nidades, mostrando as suas realidades e divul- a resistência dos liberais. Em 1832, participou
gando as suas histórias de vida. A produção do na tentativa falhada de conquista da Madeira,
“Atlântida” deslocou-se por três vezes a Boston dominada pelas forças absolutistas, regressan-
(1999, 1999 e 2015). O Reino Unido (2006), do de seguida aos Açores e indo finalmente
a África do Sul (2006 e 2016), a Venezuela juntar-se às tropas de D. Pedro IV, no Porto.
(2007), Jersey (2012), a Austrália (2015) e o Com a vitória liberal, em 1834, foi nomeado
Canadá (2017) foram também palco das emis- governador civil do Porto e condecorado com
sões do “Atlântida”. a Ordem Militar da Torre e Espada. De 25 de
A partir de 2010, com a morte de Maria Au- julho a 25 de novembro de 1835, fez parte do
rora, o programa passou a ser apresentado por Governo presidido pelo duque de Saldanha,
Duarte Rebolo, locutor e jornalista da rádio como ministro e secretário de Estado dos Ne-
Antena 1. gócios da Marinha e Ultramar.
Miguel Torres Cunha Foi deputado pela Madeira, em 1834-1836,
1837-1838, 1838-1840, 1840-1842, e, mais
tarde, por Oliveira de Azeméis, em 1851-1852,
Atouguia, António Aloísio tendo feito parte das comissões da Marinha,
Jervis de Ultramar e Guerra. Em 1841, presidiu à Câ-
mara de Deputados e, entre 1858 e 1861, pre-
António Aloísio Jervis de Atougia nasceu no sidiu algumas vezes, interinamente, à Câma-
Funchal, a 7 de julho de 1797, filho do mor- ra dos Pares. Em 1842, foi nomeado ministro
gado Manuel de Atouguia Jervis e de Antónia da Marinha e Ultramar, no Governo presidido
Joana de Carvalhal Esmeraldo. Em 1811, ini- pelo duque de Palmela, de 7 a 9 de fevereiro
ciou os estudos secundários no colégio inglês de 1842, num ministério conhecido como Go-
Old Hall Green, nos verno do Entrudo. Fez parte do ministério pre-
arredores de Londres, sidido pelo duque de Saldanha (22/05/1851-
matriculando‑se de- 06/06/1856), como ministro e secretário de
pois em Matemática, Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar,
na Univ. de Coimbra. de 4 de março de 1852 a 6 de junho de 1856,
Terminado o curso, acumulando com a pasta de ministro e secre-
em 1822, foi nomea- tário de Estado dos Negócios Estrangeiros, a
do lente substituto da partir de 31 de dezembro de 1852. Foi ainda
Academia da Marinha, diretor da Escola Politécnica de Lisboa e con-
selheiro do Tribunal de Contas.
Foi nomeado par do Reino a 5 de janeiro
António Aloísio Jervis
de Atouguia, retrato a óleo
de 1853 e agraciado com o título de visconde
de 1852 (CHAGAS, 1895, X). de Atouguia, por duas vidas, a 15 de março de
A tum ¬ 27
1853, tendo também recebido várias comendas incessantemente e com muita particularidade
nacionais e estrangeiras. Em 1832, iniciou-se da nossa terra natal – a ilha da Madeira” (O Pro-
na maçonaria, em Angra do Heroísmo. gressista, 1851, 1). Justamente na edição n.º 138,
Faleceu em Lisboa, a 17 de maio de 1861. de 17 de abril de 1854, consta o poema “Ima-
ginação”, assinado por L. d’Athouguia. Trata
Bibliog.: impressa: CHAGAS, Manuel Joaquim Pinheiro, História de Portugal
Popular e Ilustrada, vol. 10, Lisboa, Empresa da História de Portugal, 1895; ‑se de um poema sobre a arte de compor e de
CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, viver, em que o autor, ao longo de seis décimas
Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; DÓRIA, Luís, “Atouguia, António
Aloísio Jervis de (1797-1861), i.º visconde de Atouguia”, in MÓNICA, Maria bem estruturadas quanto à rima e à métrica,
Filomena (dir.), Dicionário Biográfico Parlamentar. 1834-1910, vol. i, Lisboa, recorre à mitologia (Juno, Mercúrio, Vulcano,
Imprensa de Ciências Sociais/Assembleia da República, 2004; SANTOS,
Manuel Pinto dos, Monarquia Constitucional. Organização e Relações do Poder
Vénus, Marte, Jove, Cupido e Ganimedes) e
Governamental com a Câmara dos Deputados – 1834-1910, Lisboa, Assembleia se aproxima do plano do maravilhoso no seu
da República, 1986; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, JGDAF, 1965; digital: “António
modo de expressão. Transcrevem-se aqui os
Aloísio Jervis de Atouguia”, Wikipedia, s.d.: https://pt.wikipedia.org/wiki/ dois primeiros e os dois últimos versos, como
Ant%C3%B3nio_Alo%C3%ADsio_Jervis_de_Atouguia (acedido a 16 jun. 2016).
exemplo: “Tenho asas que me levam/Sobre as
Gabriel Pita nítidas estrelas […]//Adeus, amores da lua/
outros amores me esperavam”.
Apesar do seu prestígio na época em que
Atouguia, Lino Nicolau de viveu, os versos do morgado Lino Nicolau de
Lino Nicolau de Atouguia nasceu na Madeira Atouguia não entram no número das produ-
no 1.º quartel do séc. xix, concretamente em ções com maior sucesso, ainda que, na verda-
1820, não se sabendo ao certo a data do seu de, tenham valor, notando-se nas mesmas uma
falecimento, que aconteceu ainda durante o preocupação estética e trabalho de ritmo e
mesmo século. linguagem, mesmo quando se ocupa do valor
Nicolau de Atouguia foi um poeta madeiren- do próprio vate, como é, aliás, o caso da com-
se que gozou de muito prestígio no Funchal. posição poética “O poeta”, escrito em oitavas
O Elucidário Madeirense menciona as poesias e com estrutura rimática bem delineada, que
deste escritor, que se encontram reunidas no Luís Marino resgata ao esquecimento na sua
volume Colecção de Algumas Obras Poéticas Ofere- obra Musa Insular: Poetas da Madeira.
cidas ao Ilmo. Exmo. Sr. Sebastião Xavier Botelho,
Obras de Lino Nicolau de Atouguia: Colecção de Algumas Obras Poéticas
oferecido no mesmo ano a Sebastião Xavier Oferecidas ao Ilmo. Exmo. Sr. Sebastião Xavier Botelho (1821); “Imaginação”
Botelho, governador da Madeira. São três so- (1854).
netos encomiásticos, de assinalável qualidade Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e
literária, que glorificam Xavier Botelho e exal- XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; MARINO, Luís, Musa Insular:
Poetas da Madeira, Funchal, Eco do Funchal, 1959; PORTO DA CRUZ, Visconde
tam as suas virtudes, comparando a sua integri- do, Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. ii, Funchal,
dade à de Sócrates. Foram também publicados Câmara Municipal do Funchal, 1949; O Progressista, 21 ago. 1851; SILVA,
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense,
poemas seus no periódico O Progressista, sema- 3 vols., Funchal, SREC, 1978; VEIGA, Gilda França, e FREITAS, António Aragão
nário madeirense editado no Funchal pela pri- de, Madeira. Investigação Bibliográfica, vol. i, Funchal, Centro de Apoio de
Ciências Históricas, 1981.
meira vez a 21 de agosto de 1851 e que mais
tarde passou a periódico político, literário e António José Borges
comercial, que saía, pela tipografia Amigo do
Povo, três vezes por semana. Este jornal teve,
na sua fundação, como editor responsável e re- Atum
dator principal, Severiano Gomes de Gouvêa
e as primeiras palavras lidas no n.º 1 do volu- Na Madeira, designa-se por atuns um conjun-
me i foram: “O nosso título dispensa-nos de to de espécies, normalmente de grande porte,
fazermos um programa político. A palavra – pertencentes à família Scombridae, que, a nível
‘progresso’ – está bem definida e as ideias que mundial, contém 15 géneros e cerca de 50 es-
representa são bem conhecidas. Cuidaremos pécies, essencialmente marinhas, habitando os
28 ¬ A tum
mares tropicais e subtropicais. Na área do ar- caudal. Ostenta coloração prateada azulada no
quipélago da Madeira, esta família está repre- ventre e nos flancos, tornando-se azul mais in-
sentada por 10 espécies, que, para além dos tensa no dorso. Tem barbatanas azuladas e pí-
atuns, incluem a cavala, a cavala-da-Índia, o nulas amarelas debruadas de negro.
serralhão ou serrajão, o chapouto ou judeu e É uma espécie epi a mesopelágica, oceânica
o gaiado. e migradora, com os juvenis formando cardu-
São quatro as espécies designadas por atum mes. Os adultos são mais solitários e vivem, em
que podem ser pescadas nos mares da Madeira: regra, a maior profundidade. É o maior dos
Atum-rabil ou rabilho, Thunnus thynnus (Lin- atuns, podendo atingir mais de 3 m de com-
naeus, 1758). É o mais apreciado e o que atinge primento e 560 kg. Carnívoro, voraz e nada-
maiores tamanhos. O seu corpo é muito robus- dor veloz, alimenta-se de peixes e invertebra-
to e fusiforme, de secção quase circular; tem dos pelágicos. A sua reprodução ocorre em
a cabeça cónica, com olhos relativamente pe- maio-junho no mar Mediterrâneo, quando as
quenos, barbatana peitoral pequena, barbata- águas atingem temperaturas superiores a 24 ºC
nas segunda dorsal e anal quase simétricas, se- e em locais específicos e restritos (áreas circun-
guidas de pínulas. Tem quilha robusta de cada dantes às ilhas Baleares, Sicília, Malta, Chipre
lado do pedúnculo caudal, seguida de duas e Golfo do México). A distribuição geográ-
mais pequenas paralelas, na base da barbatana fica do atum-rabil é muito ampla; é o único
peixe pelágico que vive de forma permanen-
te em águas temperadas do oceano Atlântico.
Trabalhos sobre esta espécie sugerem que os
exemplares juvenis e adultos formam com fre-
quência agregações em frentes oceânicas, pro-
vavelmente relacionadas com a concentração
abundante de presas para alimentação. A mi-
gração entre o Mediterrâneo e o Atlântico
norte foi definitivamente aceite nos anos 60 e
70 do séc. xx, baseada na recaptura de uma
vasta série de marcas convencionais, confirma-
das com observações posteriores.
A subespécie T. thynnus thynnus é a que ocor-
re no oceano Atlântico até ao equador. Nos
começos do séc. xxi, foi-se tornando pouco
comum em resultado da sobrepesca a que foi
sujeito pelas frotas internacionais. Na Madeira,
os exemplares juvenis são pescados pela frota
atuneira regional com a arte de salto e vara,
enquanto os indivíduos adultos e de maior
porte são geralmente pescados com linhas de
mão, corrico ou palangre. As capturas desta
espécie pela frota regional oscilaram, nas últi-
mas décadas do séc. xx, entre as 5 e 7 t por
ano, com exceções para os anos de 1994, 1997
e 1998, onde se verificaram picos de captura
da ordem das 219 t, 340 t e 165 t, respetiva-
mente. Em anos posteriores, as descargas desta
Fig. 1 – Pesca de atum-rabil no Caniçal (MOTA, Funchal Notícias,
espécie na Madeira sofreram um forte decrés-
18 nov. 2016). cimo, tornando-se praticamente nulas, devido
A tum ¬ 29
alongadas, possui normalmente um corpo ro- pequenos peixes pelágicos. A desova tem lugar
busto, fusiforme e moderadamente alongado. em torno das zonas costeiras, onde vive habi-
O perfil da cabeça é quase rectilíneo e pouco tualmente quando as temperaturas superam
inclinado. Os olhos são moderadamente gran- os 24 ºC e a termoclina é profunda. As zonas
des. A primeira barbatana dorsal é mais alta no de desova do atum voador no Atlântico encon-
início e separada da segunda dorsal por uma tram-se nas áreas ocidentais subtropicais de
distância igual ou menor que o diâmetro do ambos os hemisférios (Venezuela, mar dos Sar-
olho. A segunda barbatana dorsal é ligeira- gaços e golfo do México) e em todo o mar Me-
mente mais baixa do que a primeira e sensi- diterrâneo. No Atlântico norte, a reprodução
velmente do mesmo tamanho que a barbatana ocorre de abril a setembro, com valores máxi-
anal. Possui oito pínulas nos contornos dorsal mos de desova no mês de julho.
e anal da cauda. As barbatanas peitorais são É cosmopolita nas águas tropicais e subtropi-
muito compridas. Possui coloração prateada cais e é sazonalmente comum em várias áreas
rosada no ventre e flancos, tornando-se azul do oceano Atlântico. O atum voador apresenta
metálico no dorso; a segunda barbatana dor- uma das migrações mais extensas do mundo.
sal e a barbatana anal possuem uma tonalidade Embora não se tenham registado migrações
amarela clara. desde o Atlântico norte para o Atlântico sul,
É uma espécie epi ou mesopelágica, oceâni- alguns exemplares migram do Atlântico norte
ca e migradora, formando cardumes que ra- para o Mediterrâneo e vice-versa; também se
ramente se acercam da costa, preferindo as observam migrações transatlânticas até às cos-
águas profundas e amplas do alto mar. A tem- tas americanas.
peratura é um dos fatores ambientais mais re- Na Madeira, é pescado pelo método do salto
levantes na distribuição do atum voador. Ape- e vara, entre maio e julho; em 2014, atingiu-se
sar das adaptações fisiológicas comuns a outros um pico de captura de 2264 t, valor máximo
tunídeos, que permitem alguma termorregu- ocorrido para esta espécie nos últimos anos do
lação, o voador é uma espécie de tunídeo de séc. xx e primeiros do séc. xxi no arquipélago.
águas temperadas e prefere águas mais frias – É bastante apreciado e tem valor comercial mo-
entre 10 º e 20 ºC – que outras espécies tropi- derado, sendo particularmente absorvido pela
cais, como o albacora. Estas preferências tér- indústria pesqueira na produção de conservas
micas parecem funcionar como barreiras aos enlatadas para consumo interno e exportação.
movimentos do atum voador entre diferentes Atum albacora, Thunnus albacares (Bonna-
regiões e separam populações de atum voador terre, 1788). Este atum, considerado por Adão
como as que se encontram ao norte e ao sul do Nunes o mais fino dos atuns, possui o corpo
Atlântico, assim como as populações do Atlân- robusto, fusiforme e ligeiramente alongado.
tico e do Índico. Os indivíduos juvenis de atum albacora e de
O atum voador é uma das espécies mais pe- patudo confundem-se facilmente, atendendo à
quenas do grupo dos tunídeos, podendo atin- similaridade das suas características morfológi-
gir 127 cm de comprimento. Carnívoro voraz e cas externas, nesta fase do ciclo de vida. Tanto
nadador veloz, alimenta-se essencialmente de as características internas como as externas
destas espécies de tunídeos variam com o tama-
nho e zona de captura. Os exemplares adultos
distinguem-se facilmente das restantes espé-
cies de atuns pelo tamanho da segunda barba-
tana dorsal e a barbatana anal. A sua coloração
é prateada na parte ventral e azul metálico no
dorso. Possui uma mancha amarelada na parte
Fig. 4 – Atum voador (ilustração de Helena Encarnação, Museu de
média do corpo, desde o olho até à cauda. A se-
História Natural do Funchal). gunda barbatana dorsal e a barbatana anal têm
A udit ó rio E clesiástico ¬ 31
em sede de devassa e que diziam respeito, para eclesiástica (o aljube) os prisioneiros, cujo en-
falar apenas das mais comuns, a curas supers- carceramento devia ser verificado duas vezes
ticiosas, faltas à missa e à confissão, quebra do ao dia. A fechar o corpo de pessoal afeto ao
jejum, incumprimento de deveres conjugais, serviço do tribunal, encontra-se o porteiro,
parentais ou filiais, trabalho em dias santos, que devia entregar as citações e trazer as partes
mancebias e adultérios. às audiências, exercendo as suas funções na ci-
Para julgar toda esta impressionante massa dade e até uma légua em redor.
de delitos, que, muito frequentemente, aca- Esta estrutura judicial montada por D. Luís
bava por ser resolvida no tribunal eclesiásti- de Figueiredo Lemos manteve-se em funcio-
co, pois que as estruturas paroquiais cobriam namento, durante toda a Idade Moderna, em
o território de forma muito mais eficaz que as moldes sensivelmente iguais àqueles com que
circunscrições seculares, o auditório dispunha foi criada, mas o advento do liberalismo e o
de um conjunto de funcionários que nele de- afastamento entre a Igreja e o Estado produzi-
sempenhavam diferentes papéis. Assim, e logo do pelas novas circunstâncias políticas vieram
depois do vigário-geral, destacava-se a figura do introduzir alterações significativas ao modo de
promotor, que estava incumbido de requerer funcionamento da justiça eclesiástica.
os feitos da justiça, em particular os provenien- A publicação, em 1917, do primeiro Código
tes do Juízo de Resíduos e Capelas, organis- de Direito Canónico vai criar o Tribunal Ecle-
mo que estava encarregado do cumprimento siástico diocesano, organismo que surge em
dos testamentos e de conhecer as capelas e os substituição do Auditório Eclesiástico. O Có-
morgados, bem como os bens que a essas ins- digo de Direito Canónico publicado em 1983
tituições tinham sido afetos para efeitos de ce- confirmou este órgão, com sede na Cúria
lebração de ofícios divinos. A especial atenção diocesana e com outras normas canónicas
que o promotor devia prestar a estes assuntos aplicáveis.
prendia-se com o perigo em que a não satisfa-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 9;
ção dos encargos pios colocava as “almas dos impressa: Constituições Synodaes do Bispado do Funchal, Lisboa, impresso por
fiéis cristãos que aguardam pelo cumprimen- Pedro Crasbeeck, 1601; PALOMO, Federico, A Contra-Reforma em Portugal.
1540-1700, Lisboa, Livros Horizonte, 2006.
to das obras pias dos seus testamentos” (ABM,
Arquivo do Paço..., doc. 9, fl. 24), sendo este Cristina Trindade
um dos principais motivos do recurso à justi-
ça, pois abundavam os casos em que a última
vontade dos defuntos não era cabalmente sa-
Ausente, Gonçalves Cor (pseud.)
tisfeita. Outra função importante para o fun-
cionamento do tribunal era a do meirinho, ofi- Ö Preto, Pedro Gonçalves
cial a quem cabia a prisão dos infratores, e cuja
remuneração estava indexada à quantidade de
detenções efetuada, bem como ao local onde Austrália
fossem aprisionados os delinquentes. O solici-
tador era outro funcionário judicial, encarre- A Austrália é um vasto país localizado entre
gado de examinar os livros de visitações, a fim os oceanos Índico e Pacífico, dividindo os
de neles apurar as infrações, mas também res- seus 7.682.300 km2 por seis estados federados
ponsável pela arrecadação das penas a serem (New South Wales, Victoria, Western Austra-
pagas à chancelaria, cujos valores seriam de- lia, Queensland, South Australia e Tasmânia)
terminados pelo contador e registados pelo es- e dois territórios (Australian Capital Territory
crivão. A este conjunto de oficiais juntavam-se e Northern Territory). Com designação oficial
ainda o distribuidor, que devia, como o nome de Commonwealth of Australia, tem a sua capi-
indica, distribuir os processos pelos escrivães; e tal e sede de Governo em Camberra. As maio-
o aljubeiro, responsável por manter na prisão res cidades são Sidney e Melbourne.
34 ¬ A ustrália
É um país desenvolvido com uma democra- e denominar de Nova Holanda, a terra a que
cia estável, sendo o seu sistema político a mo- os Britânicos haveriam de, ainda mais tarde,
narquia constitucional e o inglês a sua língua anexar e chamar de Austrália Ocidental.
oficial. O censo de 2011 cifrou a população Em Beyond Capricorn, Peter Trickett, com base
em 21.507.717 habitantes de diversas etnias e no seu estudo dos quatro mapas feitos por Cris-
também proveniente de vários países, entre os tóvão de Mendonça de toda a costa australiana,
quais Portugal. corrobora esta tese de que foi ele que descobriu
Com a maior parte do país a beneficiar de um a Austrália 100 anos antes dos holandeses e 250
clima temperado, a Austrália é um país rico em anos antes do Britânico James Cook.
recursos naturais. Possui abundantes reservas Um grupo de investigadores liderados pelo
minerais e petrolíferas, destacando-se indus- investigador australiano John Molony, a in-
trialmente pela indústria mineira, os químicos vestigar contactos europeus pré-Cook, apesar
e o aço, os equipamentos industriais e de trans- de se concentrarem na costa oriental, crê que
porte e os produtos alimentares transformados. os Portugueses, que estavam em Timor desde
Os seus principais produtos do sector primário cerca de 1510, devem ter feito a curta viagem à
são o trigo, a cevada, a cana‑de‑açúcar, a fruta, costa ocidental no início do séc. xvi.
os bovinos, os ovinos e as aves de capoeira. No Elucidário Madeirense, há referência a An-
tónio de Abreu, madeirense do Arco da Ca-
lheta, ser “um dos portugueses que por ter-
História da descoberta ras do oriente mais se ilustraram na faina das
e o envolvimento dos Portugueses conquistas e descobertas” (SILVA e MENESES,
No começo do séc. xxi, decorriam ainda es- 1940, 9) e que, segundo Major, com base num
tudos para tentar determinar quem foram, mapa de cerca de 1530, chegou às costas da
de facto, os primeiros europeus a descobrir Austrália. Este mapa marca um extenso ter-
esta ilha-continente. No seu livro Early History: ritório com o nome de Grande Java, que fica
The Secret Discovery of Australia: Portuguese Ven- fronteiro a Samatra, e em que estão incorpo-
tures 200 Years before Captain Cook, Kenneth G. radas muitas das ilhas visitadas por António de
McIntyre afirma que a Austrália foi descoberta Abreu, prolongando-se este território até lati-
por volta de 1522 pelo comandante português tudes e longitudes que já são da Austrália. Re-
Cristóvão de Mendonça, que viajava com qua- fere Major que, antes de 1530, ninguém podia
tro caravelas e uma grande tripulação. Refere dar informações a respeito das terras longín-
que, no seguimento da descoberta do caminho quas da Oceânia, senão António de Abreu, que
marítimo para a Índia por Vasco da Gama, o as visitou, incluindo o continente australiano,
oceano Índico se tornara um lago português, que parece ter chegado a ver, reconhecido po-
cujo centro e capital era Goa. E, na fronteira sitivamente um século depois por outro nave-
oriental desse lago, gador português, Herédia.
estava a terra que os A notícia de um imenso e rico continente a
Portugueses haviam sul de Timor por parte de Cristóvão de Men-
de descobrir e deno- donça surge quando Portugal ainda celebra-
minar de Índia Meri- va a descoberta do Brasil. A astúcia dos Portu-
dional, a terra que os gueses, que haviam convencido os Espanhóis a
Holandeses haviam mudar para oeste a linha do Tratado de Torde-
de mais tarde avistar silhas, tinha-lhes dado o Brasil, mas a grande
parte do continente de Mendonça ficava agora
para lá do Meridiano de Tordesilhas e fora do
Fig. 1 – Nau de António de alcance de Portugal. A própria fronteira terres-
Abreu, provável descobridor
da Austrália, armada de 1524
tre da Austrália Ocidental, delineada a régua e
(Livro de Lisuarte..., 1992). esquadro, não é mais do que o tal meridiano.
A ustrália ¬ 35
apreciados pelas segunda e terceira gerações. O Diário de Notícias da Madeira, na sua edi-
Em cada lar, conservava-se um pequeno re- ção de 27 de março de 1908, dá conta da
positório de objetos e lembranças, entre bor- participação da Madeira na exposição de
dados, souvenirs e fotografias, da saudosa Ilha bordado “Madeira na Austrália” pela mão
do Atlântico, e, no jardim, não faltavam or- do comendador Francisco Araújo Figueira,
quídeas, antúrios e fetos, a par de bananeiras tendo este mostrado na redação o diploma
e anoneiras, no pomar. A Austrália, tal como de 1.ª classe ganho pelos excelentes borda-
todos os outros destinos da diáspora madeiren- dos expostos.
se, era terreno fértil para a recolha de histórias Na edição de 24 de abril, dá conta de que os
de vida que muito enriquecerão a compreen- artefactos madeirenses enviados à Exposição
são do fenómeno da emigração da Madeira Australiana por J. A. Pereira, “The Bit-Man”, ha-
para aquele país. Há ainda casos isolados de viam ganhado uma medalha de 1.ª classe na
literatura popular por explorar. referida exposição.
Há duas cidades australianas geminadas com A edição de 23 de agosto de 1918 avança com
o município do Funchal: Marrickville (Nova a informação da ida de 1000 t de trigo austra-
Gales do Sul) e Fremantle (Austrália Ociden- liano para a Madeira a bordo do vapor Minho.
tal). O Protocolo de Geminação entre os Mu- O mesmo jornal, na sua edição de 10 de
nicípios do Funchal e de Marrickville foi assi- junho de 1975, noticia que o plano de urba-
nado a 1 de junho de 1994, e o de Fremantle a nização do Porto Santo, apresentado por uma
6 de fevereiro de 1996. equipa que integrava um australiano, havia ga-
O Governo Regional da Madeira procurou nhado uma menção honrosa.
manter um contacto institucional com esta co- A edição de 20 de setembro de 1975 publica
munidade e, desde 1979, disponibilizou, atra- ainda uma notícia que possibilita às indústrias
vés do Centro das Comunidades Madeirenses, madeirenses oportunidades comerciais na Aus-
depois Centro das Comunidades Madeirenses trália ao nível de toalhas e bordados.
e Migrações, diverso material aos clubes que
o solicitam, sobretudo na forma de trajes re- Presença de flora/fauna australianas
gionais para os grupos folclóricos, instrumen- na Madeira
tos regionais, bandeiras e livros. Entre 1983 e A Madeira, pelo seu clima, alberga, para além
2008, foram nove as visitas oficiais de entidades da sua flora endémica, uma diversidade de
madeirenses àquele país, seja pelo chefe de go- flora de todo o mundo, não sendo a Austrália
verno, os secretários regionais ou presidentes exceção. Não há evidências que estes exempla-
de câmaras, com o objetivo de manter contac- res tenham ido de forma direta para a Madei-
tos com os membros da comunidade e fortale- ra. O mais provável é que tenham ido via Áfri-
cer laços de proximidade. ca do Sul, situação que a rota marítima muito
A Austrália teve representante na Convenção favorecia.
das Comunidades Madeirenses e no Conse- Das folhosas exóticas, a que ocupa as maio-
lho Permanente das Comunidades Madeiren- res áreas é, sem dúvida, o Eucalyptus globulus.
ses, bem como no Fórum Madeira Global e no Oriunda da Austrália, introduzida na Madeira
Conselho da Diáspora Madeirense, onde tem na segunda metade do séc. xix com o objetivo
dois conselheiros. de produzir madeira e lenha, tornou-se infes-
tante. Outros eucaliptos australianos presentes
Outros contactos com a Madeira na Madeira, mas sem a expressão do primei-
Os jornais locais dão conta de várias notícias ro, são o Eucalyptus citriodora, Eucalyptus obliqua,
sobre a Austrália ao longo dos xix e xx, in- Eucalyptus regnans, Eucalyptus viminalis. Da Aus-
cluindo as de carácter político, social e econó- trália foram também as diferentes espécies de
mico. Dos aspetos que tocam a vida madeiren- acácias que povoam algumas vertentes abaixo
se, destacamos os seguintes. dos 1300 m: Acacia melanoxylon, Acacia mearnsii,
38 ¬ A ustrália
robusta e herbácea, muito decorativa conheci- Bibliog.: impressa: BRANDENSTEIN, C. G. von, “The first europeans on
Australia’s west coast”, Boletim do Museu do Centro de Estudos Marítimos de
da como flores-de-palha e sempre-vivas, assim Macau, n.º 3, 1989, pp. 189-206; Id., Early History of Australia. The Portuguese
como outra espécie australiana e neozelande- Colony in the Kimberley: Exploration – Occupation – Dissolution – Vacation
(1512?) – 1520’s – 1580 – (1879), Albany, s.n., 1994; CASIMIRO, Suzy, Settlement
sa, anual, peluda e de muito pequeno porte, a Crossroads. Portuguese Migrants in Australia, s.l., UMI Dissertations Publishing,
Cotula australis. 2002; Id., “The voices of portuguese migrants in Western Australia”, in WILDING,
Raelene, e TILBURY, Farida (orgs.), A Changing People. Diverse Contributions to
Originária da Austrália e do sudeste asiáti- the State of Western Australia, Perth, Department of the Premier and Cabinet,
co, a Ficus pumila, também conhecida como fi- 2004, pp. 150-163; “O descobridor da Austrália”, Diário de Notícias, 24 set.
1896; DIAS, Emmanuela, The Portuguese Arrival (A Chegada do Português),
gueira do inferno, foi provavelmente introdu-
Fremantle, Fremantle City Library, 2002; “Exposição da Austrália”, Diário de
zida na Madeira no séc. xx, sob o binome Ficus Notícias, 27 mar. 1908; JARDIM, Roberto et al., “Madeira”, in VIEIRA, José Neiva,
Árvores e Florestas de Portugal, Açores e Madeira. A Floresta das Ilhas, vol. 6,
stipulata.
Lisboa, Público, 2007, pp. 255-296; JUPP, James (org.), The Australian People. An
Uma espécie australiana de porte arbustivo, Encyclopedia of the Nation, Its People and Their Origins, Cambridge, Cambridge
a Myoporum tenuifolium (também denominada University Press, 2001; Livro de Lisuarte de Abreu, Lisboa, Comissão Nacional
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992; MCINTYRE,
M. acuminatum) é conhecida como mióporo, Kenneth Gordon, The Secret Discovery of Australia. Portuguese Ventures 200
sendo muito cultivada na Madeira e, sobretu- Years before Captain Cook, Medindie/London, Souvenir Press, 1977; “Medalha
de 1.ª classe”, Diário de Notícias, 24 abr. 1908; “Uma monografia”, Diário de
do, no Porto Santo. Notícias, 7 nov. 1911; “Oportunidades comerciais”, Diário de Notícias, 20 set.
Há ainda a registar a Oxalis exilis, ou azedi- 1975; O Oriente do Funchal, 8 fev. 1873; PETERS, Nonja, We Came by Sea.
Celebrating Western Australia’s Migrant Welcome Walls, Welshpool, Western
nha, a mais pequena das Oxalis existentes na Australian Museum, 2010; “Premiado de ‘acordo com os interesses das
Madeira, originária da Austrália e da Nova Ze- populações’. O plano do holandês Rooda van Eysinga para a urbanização
do Porto Santo”, Diário de Notícias, 10 jun. 1975; SILVA, Fernando Augusto
lândia, que deve ter sido introduzida na Ma- da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
deira por acidente, uma vez que não possui Tip. Esperança, 1940; TRICKETT, Peter, Beyond Capricorn. How Portuguese
Adventurers Secretly Discovered and Mapped Australia and New Zealand
valor decorativo. Refira-se ainda a Rytidosperma 250 Years before Captain Cook, s.l., East Street Publications, 2007; “Trigos e
tenuis, erva perene de introdução recente na farinhas”, Diário de Notícias, 23 ago. 1918; VIEIRA, Rui Manuel da Silva, Fora
da Madeira, Plantas Vasculares Naturalizadas no Arquipélago da Madeira,
Madeira, provavelmente também acidental, e
Funchal, Museu Municipal do Funchal (História Natural), 2002; WESTERN
com a mesma proveniência. AUSTRALIA DEPARTMENT OF THE PREMIER AND CABINET/OFFICE OF
MULTICULTURAL INTERESTS, Western Australian Community Profiles. 2001
Finalmente, ao nível das palmeiras, há duas
Census: Portugal-Born, s.l., s.n., 2005; WITCOMBE, Andrea, Travellers and
espécies provenientes da Austrália na Madei- Immigrants. Portugueses em Perth, Perth, Curtin University of Technology,
ra, a Archontophoenix cunninghamiana, uma es- 1997; Id., “Using souvenirs to rethink how we tell histories of migration. Some
thoughts”, in DUDLEY, Sandra et al. (orgs.), Narrating Objects, Collecting Stories,
pécie da Austrália Oriental vulgarmente co- London, Routledge, 2012; digital: AUSTRALIAN BUREAU OF STATISTICS,
nhecida por palmeira-elegante, e a Livistona “Population clock”, Australian Bureau of Statistics, s.d.: http://www.abs.gov.au/
AUSSTATS/[email protected]/Web+Pages/Population+Clock?opendocument (acedido
australis, muito decorativa e conhecida por a 15 maio 2016); AUSTRALIAN GOVERNMENT, “Helping you find government
palmeira-de-leque. information and services”, Australian Government, s.d.: http://www.australia.gov.
au/ (acedido a 15 maio 2016); EMBAIXADA DE PORTUGAL NA AUSTRÁLIA/
Ao nível da fauna, temos o caso curioso do MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, “Dados gerais”, Embaixada de
Pelagodroma marina ou calcamar, cuja criação Portugal na Austrália/Ministério dos Negócios Estrangeiros, s.d.: https://www.
camberra.embaixadaportugal.mne.pt/ (acedido a 15 maio 2016); VELOSO,
apenas se encontra em dois pontos quase dia- Ricardo, “De Mendonça ao pastel de nata”, Imigrantes, Portugueses na Austrália,
metralmente opostos do globo: as Selvagens e s.d.: http://imigrantes.no.sapo.pt/page6.australia.html (acedido a 15 maio 2016).
D. Isabel, filha de D. Manuel I, casou-se com dias esteve presente em várias festas e receções
Carlos V, Imperador do Sacro Império Roma- que lhe foram dedicadas por ilustres locais.
no-Germânico e Rei das Espanhas. A dinastia Maximiliano de Habsburgo-Lorena, irmão
dos Habsburgos estendeu-se ao longo de sé- do Imperador Francisco José da Áustria, terá
culos e trouxe para Portugal várias rainhas: estado para se casar com D. Maria Amélia de
D. Leonor da Áustria, esposa em segundas Bragança (filha de D. Pedro I e de sua segun-
núpcias de D. Manuel I; D. Catarina da Áus- da esposa, D. Maria Amélia). Todavia, ela fa-
tria, esposa de D. João III; D. Margarida da leceu na ilha da Madeira antes de o matrimó-
Áustria, esposa de Filipe II; D. Maria Ana nio se ter realizado. Maximiliano acabou por
da Áustria, esposa de D. João V; e D. Leopol- se casar com Maria Carlota da Bélgica e foi
dina da Áustria, esposa de D. Pedro IV. Por com ela para a Madeira a 6 de dezembro de
outro lado, também Portugal esteve de certa 1859. O príncipe seguiu viagem para a Améri-
maneira sob a alçada do poder desta família ca do Sul, enquanto a princesa ficou no Fun-
durante a dinastia filipina, uma vez que Fili- chal até ao seu regresso, a 5 de março de 1860,
pe I de Portugal era um Habsburgo, filho de partindo ambos para a Áustria uma semana de-
D. Isabel de Portugal e de Carlos V. pois. Uns anos mais tarde, após a sua aclama-
Foi igualmente através dos Habsburgos que a ção como Imperador do México, Maximiliano
relação da Áustria com a ilha da Madeira se es- voltou a passar pela Madeira, a 28 de abril de
treitou. No séc. xix, a Madeira tornou-se num 1864, na fragata Navara, fazendo escala na via-
local de eleição para a nobreza europeia, tanto gem para a sua nova terra.
para fins turísticos como terapêuticos, mas Isabel da Áustria, cunhada do Imperador do
também a escala ideal para quem fosse cruzar México, por ser esposa do Imperador Francis-
o Atlântico. co José, popularmente chamada Sissi, esteve
D. Leopoldina, filha do Imperador Francis- por duas vezes na ilha da Madeira. Sissi che-
co I da Áustria, fez escala na Madeira entre 11 gou ao Funchal no iate real britânico Victoria
e 13 de setembro de 1817, a caminho do Rio and Albert, a 29 de novembro de 1860, para
de Janeiro, onde iria contrair matrimónio com passar uma temporada, por um lado, para se
o então infante D. Pedro (futuro D. Pedro IV restabelecer da depressão e anorexia causadas
de Portugal e Imperador D. Pedro I do Brasil). pela morte de sua filha Sophie, de dois anos, e,
A futura imperatriz do Brasil ficou hospedada por outro, para recuperar forças e ânimo para
no palácio de S. Lourenço, e ao longo destes a exigente vida palaciana em Viena, para onde
regressou a 28 de abril de 1861. Durante estes
cinco meses, residiu na Quinta Vigia, onde de-
pois foi instalado o Hotel Casino Park, perto
do qual se poderá encontrar uma estátua em
tamanho real da Imperatriz. A segunda visita
de Sissi à ilha da Madeira deu-se quase duas dé-
cadas depois. Desta feita, chegou no iate impe-
rial austríaco Greif, a 23 de dezembro de 1893,
ficando a residir inicialmente na Villa Cliff,
casa pertencente ao então novo Reid’s Palace,
e posteriormente no próprio hotel, até 4 de fe-
vereiro de 1894.
Não obstante o mediatismo de Sissi, um dos
laços indeléveis entre a ilha da Madeira e a his-
tória da Áustria prende-se com o destino de
Fig. 1 – Desembarque da princesa Leopoldina no Funchal
a 11 de setembro de 1817, aguarela de Julien Palliere
seu sobrinho-neto, Carlos I, conhecido por “o
(coleção particular, Porto). último Imperador”. Carlos I subiu ao trono
Á ustria ¬ 41
obras da nova capela mortuária e a translada- registado nos respetivos sumários, a fixação, no
ção do corpo para a dita capela. A descendên- ano letivo de 1918-1919, da expressão “autar-
cia de Carlos I decidiu que o corpo não deveria quias locais” (ALEXANDRINO, 2014, 22ss.).
ser transladado para a Áustria, mas manter-se Por conseguinte, quanto à introdução da ex-
na Madeira, em agradecimento por todo o pressão “autarquias locais”, parece dever pre-
apoio que o povo madeirense dera à sua famí- valecer a tese segundo a qual a mesma se deve
lia durante o difícil período do exílio. primeiramente à doutrina, que se antecipou
deste modo à Constituição de 1933.
Bibliog.: impressa: PIEPER, Dietmar, e SALTZWEDEL, Johannes (orgs.), Die Welt
der Habsburger, München, Goldman, 2011; SCHEIDL, Ludwig, e CAETANO, José Ainda assim, nas décadas seguintes, a expres-
A. Palma, Relações entre Portugal e a Áustria/Beziehungen zwischen Portugal são “autarquias locais” não viria a merecer gran-
und Österreich, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002; SILVA, Fernando Augusto da, e
MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, de adesão, nem nas leis, nem na prática, onde
1984; VOCELKA, Karl, Geschichte Österreichs. Kultur, Gesellschaft, Politik, continuou a ser preferentemente utilizada a ex-
München, Wilhelm Heyne Verlag, 2013; digital: MUTSCHLECHNER, Martin,
“Habsburgs im exil. Von der Schweiz nach Madeira”, Die Welt der Habsburger,
pressão “corpos administrativos” (OLIVEIRA,
s.d.: http://www.habsburger.net/de/kapitel/habsburg-im-exil-i-von-der-schweiz- 2013, 127), nem na doutrina, como se comprova
nach-madeira?language=de (acedido a 14 maio 2016).
afinal pela “demorada hesitação” registada nas
Cláudia Fernandes sucessivas edições do Manual de Direito Adminis-
trativo, de Marcelo Caetano, a respeito da desig-
Autarquia local nação do parágrafo dedicado à Administração
Local, a qual só a partir da 8.ª edição, datada de
Na sua raiz etimológica, o termo autarquia sig- 1968, passa a ser a de “Autarquias Locais”.
nifica autossuficiência, independência, i.e, a Apesar desse difícil enraizamento, a verdade
característica daquele que se basta a si próprio, é que tanto a Constituição portuguesa de 1976
sendo ainda esse o sentido que o termo possui como as leis fundamentais do ordenamento
no âmbito da sociologia ou da economia. local do novo regime fizeram uma opção ine-
Ora, independentemente da discussão sobre quívoca pela expressão “autarquias locais”, que
a substância do conceito, tem o seu interesse desta forma se impôs ao legislador e à doutri-
indagar sobre a entrada e a fixação, doutriná- na, entrando também na linguagem corrente.
ria e legislativa, da expressão “autarquia local”
em Portugal.
Segundo Marcelo Caetano, a expressão “au- Características das autarquias locais
tarquias locais” não teria sido introduzida entre As autarquias locais são, antes de mais, pessoas
nós pela doutrina, mas por via legislativa. Em coletivas de direito público. Todavia, apresen-
resultado de investigações mais recentes, foi, tam, à partida, um conjunto de traços distin-
no entanto, possível chegar a resultados algo tivos no confronto com as demais pessoas co-
diferentes: por um lado, letivas públicas, mesmo com aquelas que lhes
antes de 1915, houve pelo estão mais próximas, as pessoas coletivas públi-
menos dois autores que cas autónomas.
utilizaram a expressão Na medida em que traduzem uma forma
“autarquias locais” nos específica de administração autónoma, as au-
seus cursos, ao lado de tarquias locais preenchem os requisitos bási-
outras expressões na al- cos desta, que são os seguintes: a presença de
tura mais frequentes; por uma coletividade infraestadual; interesses pró-
outro lado, deve-se ao en- prios; autogoverno; responsabilidade própria;
sino oral do Prof. Alberto e o facto de se situarem forçosamente no âm-
da Cunha Rocha Saraiva, bito da Administração Pública (MOREIRA,
1997, 78 ss.). Porém, distinguem-se das de-
Fig. 1 – Manual de Direito
Administrativo (1957), mais espécies do género por um conjunto de
de Marcelo Caetano. traços específicos: (1) por congregarem todos
A utarquia local ¬ 43
No nosso ordenamento, o “ponto de refe- Deste elemento decorre que não há autar-
rência” reside na disposição constitucional quia local sem poderes locais, mas decorre
segundo a qual as autarquias locais visam a igualmente que o exercício desses poderes pú-
“prossecução de interesses próprios das popu- blicos pressupõe um certo grau de imediatez,
lações respetivas” (artigo 235.º, n.º 2), cláusula designadamente do ponto de vista da relação
geral essa que está ainda implicada na garantia entre a comunidade e os órgãos dela repre-
constitucional da autonomia local e no prin- sentativos, significando ainda que esses órgãos
cípio da subsidiariedade, na medida em que dependem e respondem diretamente perante
os mesmos pressupõem que os entes locais a comunidade, pela forma como exercem os
tenham uma capacidade geral para desem- poderes e prosseguem a realização dos interes-
penhar todas as tarefas com incidência local. ses locais, podendo a comunidade acionar os
No plano da lei ordinária, releva hoje parti- mecanismos de prestação de contas correspon-
cularmente o disposto nos artigos 7.º e 23.º da dentes. Em termos práticos, é normal que seja
Lei de Reforma da Administração Local, apro- com a eleição por sufrágio universal, direto e
vada como anexo à Lei n.º 75/2013, de 12 de secreto dos órgãos das autarquias locais que se
setembro, ao estatuírem que constituem atri- revele este elemento essencial; todavia, ainda
buições das freguesias e dos municípios a pro- que no sistema português esse grau de repre-
moção e salvaguarda “dos interesses próprios sentatividade dos órgãos se afigure um elemen-
das respetivas populações”. to necessário, nem o mesmo é por si só sufi-
Como definir os interesses locais? ciente (como se comprova pelas organizações
Sem prejuízo da dificuldade do conceito, defi- de moradores), nem no direito comparado
nimos os interesses locais como “dados, realida- ele se revela indispensável (como se comprova
des ou estados que uma concreta comunidade pelas províncias espanholas).
local tem razões para querer” (ALEXANDRI- Mas este elemento pressupõe ainda a indepen-
NO, 2014, 243), o que pressupõe que os mes- dência, enquanto nota particularmente qualifica-
mos estejam situados em concreto, que sejam dora da autonomia local, a qual se define nomea-
dados à norma e à comunidade, que sejam damente pela autonomia de orientação e tem
aptos à realização de fins e tarefas, mas também como principal corolário uma estrita delimita-
que sejam variáveis de autarquia para autarquia. ção dos poderes de controlo (no sentido de não
Por fim, desta relatividade dos interesses lo- poderem envolver apreciação de mérito sobre a
cais deriva um conjunto de consequências, no- forma de realização dos interesses locais).
meadamente: a possível existência de interesses Quanto ao exercício de outras atribuições,
exclusivos; a ocorrência de fenómenos de perda em especial as que foram objeto de expressa fi-
do carácter local de um interesse; a regra da so- xação, delegação ou transferência legal (zona
breposição de interesses; a recusa da tese de que particularmente regida pelo critério da sub-
as autarquias locais estão limitadas à realização sidiariedade), desse elemento decorre ainda
dos interesses locais; a necessidade de circuns- o dever de consideração e amizade para com
crever, através da lei, a área de incidência dos o poder local, bem como uma regra de devida
interesses locais; o apoio que pode ser pedido cooperação por parte da administração local,
ao critério da preponderância do interesse. mas não menos a atenção a parâmetros de jus-
tiça, eficiência e avaliação.
Poderes públicos autónomos
Categorias de autarquias locais
O quarto e último elemento constitutivo do
conceito de autarquia local, os poderes públi- Segundo a Constituição, no continente as au-
cos autónomos, remete para a generalidade tarquias locais são as freguesias, os municí-
dos elementos implícitos, por estar intrinseca- pios e as regiões administrativas (artigo 236.º,
mente ligado ao sentido de poder local demo- n.º 1), podendo a lei estabelecer, nas gran-
crático e ao conceito constitucional de autono- des áreas urbanas e nas ilhas, de acordo com
mia local. as suas condições específicas, “outras formas
A utarquia local ¬ 47
direito a constituir uma unidade política e ad- os seus principais intervenientes, como Fernan-
ministrativa. O documento apresentava oito do Augusto da Silva, Vasco Gonçalves Marques,
bases para a constituição da autonomia: fun- Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969),
ções representativa, governativa, administrati- Fernando Tolentino da Costa, entre outros.
va, educativa, judicial, de ordem pública, bases A questão da autonomia, no entanto, ficou
sociais e morais administrativas e religião. Na por aí e a resposta do regime do Estado Novo
publicação do V Centenário, foi acrescentada foi sempre mais que evasiva. Saliente-se que,
mais uma: a dedução de uma percentagem fixa por detrás de muita da formação ideológica
para o Estado, das receitas cobradas pelo fisco do referido regime se encontrava o madeiren-
no arquipélago da Madeira. se Quirino Avelino de Jesus (1865-1935), que
Nos finais desse ano de 1922 e nos inícios fora advogado da Casa Hinton e tinha uma po-
de 1923, a convite da Junta Geral do Distri- sição bastante rígida em relação a esta e a outras
to do Funchal, os distritos de Ponta Delgada e questões. Assim, a posição que o Estado Novo
de Angra do Heroísmo enviaram delegações à assumiu, pelo dec. de 31 de julho de 1928, foi a
Madeira para assistirem às comemorações do de alargar as responsabilidades da Junta Geral
V Centenário e estudarem as várias propostas do Funchal nas áreas ligadas aos Ministérios do
de ampliação da autonomia. Acabou por ser Comércio e Comunicações, da Agricultura e da
elaborado um documento sob o título: “Projeto Instrução, passando para responsabilidades da
de bases para uma reorganização geral adminis- Junta aspetos que eram anteriormente do Go-
trativa dos distritos insulares”, que teve ampla verno civil, como a polícia cívica, a saúde pú-
divulgação nos jornais dos dois arquipélagos. blica, a assistência e previdência, estas últimas
A campanha tinha deixado de ser açoriana ou dependentes dos Ministérios do Interior e das
madeirense, para ser insulana. No entanto, não Finanças. No entanto, as verbas e receitas para
foi possível reunir em torno de um mesmo do- fazer frente a estes novos encargos ficaram, uma
cumento os três distritos insulares, acabando vez mais, no Terreiro do Paço.
a Madeira por apresentar, através do senador Os conflitos surgidos, entretanto, como a Re-
Vasco Gonçalves Marques (1877‑1949), no con- volta das Farinhas, motivada pelo chamado “de-
gresso de 9 de março de 1923, ligeiras altera- creto da fome”, que criava um monopólio sobre
ções ao estatuto em vigor, muito aquém do de- as farinhas, a que se seguiu o pronunciamento
fendido pelo próprio Vasco Marques em finais militar conhecido como Revolta da Madeira,
de 1922, enquanto presidente da Junta Geral do em 1931, e mais tarde, em 1936, a Revolta do
Funchal. Por outro lado, as sucessivas quedas Leite, face ao estabelecimento de mais um mo-
dos Governos da capital não deixaram avançar nopólio, que limitava a ação dos pequenos pro-
a discussão da proposta apresentada. dutores, colocaram continuamente em causa
Ainda em 1923, surgiu um novo movimen- a autoridade do emergente Estado Novo, não
to com base num sector mais conservador, que deixando grande abertura para discussões deste
passou a utilizar o termo “regional”, em vez tipo. A Constituição de 1933 deu mostras de um
de “autonómico”. Fernando Augusto da Silva deliberado empenho na contenção do movi-
(1863-1949) preconizou a fundação de um Par- mento autonómico insular e, embora se fizesse
tido Regional que pugnasse por uma ampla e menção a um futuro estatuto para os distritos
verdadeira autonomia para a Madeira. Com autonómicos das ilhas adjacentes, houve que es-
base no Jornal da Madeira e por via do seu di- perar alguns anos para o mesmo ser publicado.
retor e fundador, Luís Vieira de Castro (1898- Em março de 1938, este assunto conhe-
1954), surgiu um novo conceito de regionalis- ceu novos estudos, da responsabilidade de
mo que tentou retomar o tema da autonomia. Marcelo José das Neves Alves Caetano (1906-
Em finais de 1923, neste jornal e pela pena do -1980), tendo, então, sido aprovado na Assem-
Cap. Armando Pinto Correia (1897‑1943), reali- bleia Nacional novo regime administrativo
zou-se um inquérito, ouvindo-se sobre este tema para o arquipélago da Madeira. O decreto-lei
54 ¬ A utonomia
Fig. 6 – Prof. Marcelo Caetano no palácio de S. Lourenço, dezembro de 1969 (antigo arquivo do Diário de Notícias, Funchal).
alteração à direção anterior, não tendo nin- ultramarinos em geral do que os arquipélagos
guém pedido oficialmente a palavra. Ao longo atlânticos. Tendo sido inaugurado no final do
deste ano, registam-se tímidas alterações, ano anterior o complexo militar de S. Marti-
como as comemorações da Comissão Adminis- nho, o novo quartel do Batalhão Independen-
trativa dos Aproveitamentos Hidráulicos, a 14 te de Infantaria n.º 19 – que abandonava assim
de março, que contaram com a presença, na o velho quartel do Colégio dos Jesuítas –, em-
Madeira, do ministro e do secretário de Estado preendimento que tivera a participação da
das Obras Públicas e Comunicações, Rui San- Junta Geral, foi, a seu pedido, exonerado o
ches (1919-2009), sobrinho de Marcelo Caeta- Cor. Fernando Homem Costa, já há quase 11
no e de José Adolfo Pinto Eliseu (1916-?). Nos anos na presidência da Junta e com algumas di-
finais de março, os deputados pela Madeira e vergências com Braamcamp Sobral, a que não
pelos Açores reuniram-se em S. Lourenço com era estranha a ampla polémica sobre a autono-
os governadores dos distritos insulares para es- mia e a questão da Comissão de Planeamen-
tudarem a revisão do estatuto dos distritos au- to dentro da Junta Geral. Preocupado com o
tónomos das ilhas adjacentes. Nessa sequência, impasse criado nos trabalhos referentes ao pla-
e na da carta entregue depois ao governador neamento regional, cuja responsabilidade, não
pelos elementos da oposição, foi criada em sendo da pessoa do presidente da Junta Geral,
junho, na Junta Geral, uma Comissão de Es- era, no entanto, inerente a essa função, tinha
tudos e Coordenação Económica, sob a pre- entendido que havia interesse em dar nova es-
sidência do ex-deputado Rui Vieira, assunto truturação aos serviços distritais, em especial à
pelo qual a Associação, através da sua chamada Junta Geral do Distrito, pelo que punha o seu
Comissão Delegada, se vinha a bater em contí- lugar à disposição.
nuas exposições desde 1955. O governador aceitou o pedido e, por alva-
O ano de 1971 registou, assim, algumas alte- rá de 24 de fevereiro, foram nomeados Rui
rações à principal estrutura executiva insular e Vieira e Manuel de Sousa (n. 1928) para os
à Junta Geral, através da revisão dos seus esta- lugares do Cor. Homem Costa e de António
tutos no quadro da revisão constitucional. Mas Melvill de Araújo (n. 1925), presidente subs-
a revisão constitucional então sumariamente tituto da Junta Geral. A 8 de janeiro de 1974,
elaborada visava mais os chamados territórios Manuel de Sousa ainda seria empossado, para
58 ¬ A utonomia
estudo pelo primeiro-ministro, mas sofreria torna-se necessário diferenciar dois momentos.
inúmeras alterações nos 30 anos de história O período inicial de ocupação do território da
seguintes. Ilha, que ocorreu entre 1433 e 1497, tendo-se
A Assembleia Regional teve a sua cerimónia definido o sistema de senhorio que sucedeu à
de abertura a 19 de julho de 1976, no salão plena afirmação das instituições régias, e, de-
nobre da Junta Geral, tendo como imediata e pois, o período a partir de 1901, com a autono-
principal função a elaboração do Estatuto Po- mia limitada das juntas gerais, que deu lugar,
lítico-Administrativo da Região Autónoma da em 1976, ao Governo regional da Madeira e a
Madeira, que funcionaria como provisório por um novo sistema político e administrativo.
mais de uma década. A 13 de setembro, chega- Por lei de 20 de março de 1907, existiam
ria à Madeira o primeiro ministro da República, dois tipos de contas do Estado para a receita
o Gen. Lino Dias Miguel, e a 1 de outubro, na e a despesa: a conta do ano económico, que
sala amarela do palácio de S. Lourenço, tomava ficava aberta por cinco anos, e a conta de ge-
posse o primeiro Governo Regional da Madeira. rência, encerrada anualmente, que seria o re-
gisto das operações contabilísticas e financei-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, tombo 1, fl. 52,
e tombo 6; AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 4804-4805; Arquivo da ACIF
ras do ano económico. Pelo dec. n.º 3519, de 8
‑CCIM, CE 1969, carta de 31 mar. 1969; impressa: AZEREDO, Carlos de, de maio de 1919, estes prazos foram alterados,
Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império, Porto, Civilização, 2004; CALISTO,
tendo a conta da receita e da despesa de 1918
Luís, Achas na Autonomia. Viagem ao Interior da FLAMA, Funchal, Diário de
Notícias, 1996; CÂMARA, Bendita, A Economia da Madeira (1850-1914), Lisboa, ficado aberta apenas durante dois anos. Poste-
Imprensa de Ciências Sociais, 2002; CARITA, Rui, 30 Anos de Autonomia. 1976 riormente, o dec. n.º 18.381, de 24 de maio de
‑2006, Funchal, Assembleia Legislativa Regional, 2009; CLODE, Luiz Peter, Registo
Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica 1930, determinou com força de lei que estas
do Funchal, 1983; Comércio do Funchal, 21 abr. 1968; Diário de Notícias, 20 deveriam ser encerradas 45 dias após o fim do
out. 1922; F. L., “Autonomia”, Diário de Notícias, 9 nov. 1921, p. 5; GOMES,
Fátima Freitas, “Fernando Tolentino da Costa (1874-1957), 9 de outubro de ano económico.
1922. O discurso autonomista”, in Junta Geral do Distrito do Funchal (1836 Esta situação conduziu a que os valores apre-
‑1976). Apontamentos Biográficos de Presidentes da Junta Geral no Séc. XX, vol. 2,
Funchal, DRAC, 2016, pp. 155-173; GOUVEIA, Gregório, Madeira, Tradições sentados em distintos documentos fossem di-
Autonomistas e Revolução dos Cravos, Funchal, O Liberal, 2002; HENRIQUES, ferenciados, estando a informação organizada
Albertina Maria de Sousa Gonçalves, Órgãos Políticos e Classe Política na Região
Autónoma da Madeira, Funchal, CEHA, 1999; JARDIM, Alberto João, Tribuna
com base em diferentes critérios, impedindo
Livre, 3 vols., Ponta Delgada, Jornal da Cultura, 1995; MENDONÇA, Maria, “Isto uma adequada valorização a partir das regras
de autonomia”, Eco do Funchal, 14 out. 1968; O Patriota Funchalense, 2 jul. 1821;
RODRIGUES, Paulo Miguel, Estudos sobre o Século XIX na Madeira, Política,
contabilísticas posteriores. Mesmo assim, não
Economia e Emigração, Funchal, Imprensa Académica, 2015; SILVA, Fernando é justificável a existência de algumas dispari-
Augusto da (coord.), V Centenário da Descoberta da Madeira, Funchal,
dades (aliás muito frequentes) que podem ser
Comissão de Propaganda e Publicidade do Centenário, 1922; SOUSA, Ana Isabel
de, Maria Mendonça. Uma Mulher sem Medo, Nordeste, Câmara Municipal encontradas na apresentação dos dados conta-
do Nordeste, 2001; VERÍSSIMO, Nelson, “O projecto de Passos Manuel para
bilísticos. O facto foi devidamente referencia-
revogar legislação especial da Madeira. Anáthema de nossa existência”, Diário de
Notícias, 24 maio 1987; Id., “O alargamento da autonomia dos distritos insulares. do, nomeadamente na imprensa, sem se com-
O debate na Madeira (1922-1923)”, in Actas do II Colóquio Internacional de preender a razão de tão evidentes diferenças
História da Madeira, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1990, pp. 493-515; Id., “Autonomia insular. numéricas. Uma deficiente informação conta-
As ideias de Quirino Avelino de Jesus”, Islenha, n.º 7, jul.-dez. 1990, pp. 32-36; bilística deu origem a incorreções na apresen-
Id., “Autonomia insular. O debate na Primavera Marcelista”, Islenha, n.º 9,
jul.-dez. 1991, pp. 5-20. tação de certos dados da receita e da despesa
da Madeira, divulgados na imprensa e em al-
Rui Carita
gumas publicações, durante os sécs. xix e xx.
De acordo com a receita e a despesa do Tesou-
Finanças ro na Madeira, entre os anos económicos de
A autonomia é um conceito amplo em termos 1874-1875 e 1913-1914, a Ilha apresentaria um
políticos e jurisdicionais. Para se entender a saldo negativo nos anos económicos de 1888-
sua ligação às finanças, deve-se acompanhar a 1889 a 1891-1892. Esta situação, porém, não
sua evolução, tendo em conta as implicações corresponde à realidade dos dados apurados
que apresenta em termos da estrutura e ges- em informação paralela. Na verdade, a Madei-
tão dos recursos financeiros. Neste quadro, ra nunca apresentou qualquer saldo negativo.
A utonomia ¬ 61
de contrabando, que em muitos casos é con- No mesmo jornal, surge em 1924, uma acu-
siderado como superior a um quarto do total sação semelhante, de forma clara: “é preciso
das transações. que os madeirenses unidos pelo mesmo pen-
A autonomia, concedida, em 1895, a alguns samento façam ver de um modo irrecusável
dos distritos dos Açores e, em 1901, à Madeira, aos governos de Lisboa, que são mais algu-
poderá muitas vezes ser entendida como uma ma coisa do que matéria coletável [...] o povo
possibilidade de avanço e de afirmação dos es- da Madeira é um povo livre [...] não é escra-
paços insulares, dando-lhe os meios para o seu vo nem burro de carga” (Id., Ibid.). Em 1931,
autodesenvolvimento. No entanto, tudo isso em plena euforia da revolta da Madeira, o
teve parca expressão nos diplomas oficiais. Re- discurso dos cabecilhas ia ao encontro desta
corde-se o debate e a intervenção de diversos aspiração dos madeirenses de administrarem
políticos insulares, entre os finais do séc. xix as suas receitas para benefício próprio. Num
e o findar do primeiro quartel da centúria se- manifesto aos madeirenses, datado de 21 de
guinte, em que se reivindicaram e apresenta- abril, apelava-se à sua adesão à revolta, pois
ram propostas de autonomia política e finan- o seu triunfo “permitirá falar com liberdade
ceira que tardaram a concretizar-se. Insulares e firmeza, para pedir, para exigir do governo
e continentais enfrentaram-se, frequentemen- que as suas receitas próprias cá fiquem du-
te, sobre estas questões, tendo, talvez, existido rante largos anos, a fim de com elas serem
medo dos primeiros em cortar este laço umbi- executadas obras importantes e de grande
lical e, dos outros, em perder o domínio e o necessidade, há largos anos, reclamadas, mas
controlo político e financeiro. sempre postas de parte, para satisfação de ca-
Estas condições nunca satisfizeram os madei- prichos pessoais e de ódios políticos” (VIEI-
renses e os açorianos e, ao longo do tempo, RA, 2014g, 69).
foram surgindo sugestões de alargamento da No diferendo entre a metrópole e as ilhas
autonomia financeira. Com efeito, desde o sobre as questões financeiras e tributárias, há
séc. xix que a principal questão no debate e dois momentos de grande debate: com o Es-
na reivindicação da autonomia se prende com tado Novo e, a partir de 1974, com o Estado
as finanças. A cobrança dos impostos e a aplica- democrático. A intervenção de Oliveira Sala-
ção do produto líquido não revertia em bene- zar, no sentido do saneamento das finanças
fício da Região. Esta ideia persistia e dominava públicas, aconteceu num momento de grande
o debate. Em 1882, lia-se no Distrito do Fun- efervescência nos espaços insulares, onde sur-
chal que o governo “só se lembra desta terra giram, em 1931 e 1936, duas convulsões popu-
para levantar do seu cofre central o produto lares que geraram neste governante alguma
de tanto sacrifício” (VIEIRA, 2014g, 51). Esta antipatia em relação à Madeira e aos madeiren-
reclamação chegou à Assembleia pela voz de ses. A Revolução de 25 de abril de 1974 abriu o
Manuel José Vieira, numa intervenção de 7 de caminho para uma nova realidade nas relações
maio de 1883: “sabemos que fazemos parte do entre a Ilha e o continente, que culminaria,
reino de Portugal única e exclusivamente para em 1976, com a criação da região autónoma,
quinhoarmos nos encargos que se renovam ou com Parlamento e Governo regionais. Surgiu
batizam com nomes diferentes mas que sem- uma realidade política diferente, mas nem por
pre se acrescentam” (Id., Ibid., 45). Em 1887, isso as questões financeiras deixariam de reve-
no Diário de Notícias, surge o apelo à união e lar o desacordo entre a Região e a metrópole.
à luta “por todos os meios e incessantemente Por parte desta, estava sempre latente a pre-
a fim de se conseguir dos poderes públicos a tensa ingratidão das ilhas e a ideia de que as
reparação que nos é devida por meio de obras mesmas não se mostravam disponíveis para o
e providências legislativas que nos assegurem esforço nacional de recuperação financeira, es-
um futuro, não diremos brilhante, mas de mo- tando, permanentemente, a reivindicar apoios
desta prosperidade” (VIEIRA, 2014d, 37). financeiros.
A utonomia ¬ 63
esta o direito de reforma dos arcaicos forais circunstâncias, estabelece-se a ideia dos direi-
que regulamentavam a fiscalidade, pela neces- tos senhoriais, que está longe da ideia do im-
sidade de adequar os regimentos à nova rea- posto ou tributo que se impõe com uma de-
lidade socioeconómica. A presença da Coroa terminada função social, económica e cultural,
e das instituições que a representam ao nível ou em troca de serviços. Mas esta ideia medie-
da justiça e da fiscalidade consolidaram-se nos val dos direitos senhoriais continuará presente
anos seguintes, pois esta Ilha era uma das suas até à época liberal.
primeiras e principais fontes de riqueza. Esta forma de encarar a situação tributária
A partir de então, a Fazenda Real nunca pres- não implicava uma atitude retributiva que,
cindiu do contributo madeirense e continuou quando acontecia, era apenas a título de dádiva
a usar todos os meios para usufruir da rique- ou de esmola. Existem inúmeros testemunhos
za gerada no arquipélago através dos tributos destas situações no reinado de D. Manuel, que
existentes, sendo alguns deles específicos da foi certamente, de entre todos os monarcas,
Ilha, assim como por meio do apelo a perma- o que mais lucro obteve com a economia ma-
nentes empréstimos e fintas. Esta política de deirense, mas também aquele que se mostrou
constante solicitação do esforço tributário dos mais magnânimo para com os habitantes da
madeirenses foi prejudicial à Madeira, geran- Ilha. A contrapartida a este contributo dos ma-
do laços de cada vez maior dependência e um deirenses estará quase só na política de ofertas
atraso secular, manifesto aos mais diversos ní- estabelecida pelo mesmo Rei, que aumentou,
veis, mas acima de tudo no estado de degrada- em muito, o património artístico da Madeira.
ção dos edifícios das instituições da Coroa, das Em diversas circunstâncias, é manifesta uma
igrejas e das capelas. O direito de padroado tradição não retributiva por parte da Coroa,
era um compromisso e um encargo assumidos mesmo nas suas obrigações. As grandes obras
pelo Rei, que raras vezes o honrou. A Coroa de construção da praça, dos paços do conce-
atuou de todas as formas, no sentido de evi- lho, da cadeia e da igreja fazem-se, em princí-
tar o chamado açúcar cativo, i.e., o açúcar sub- pio, à custa dos moradores, através de taxas, do
traído ao pagamento dos tributos régios, no- seu trabalho braçal e de algumas das chama-
meadamente aos quintos e às dízimas de saída. das esmolas da Coroa. Assim sucedeu com as
Para isso, foi estabelecido um apertado siste- obras do Hospital da Misericórdia do Funchal,
ma de controlo que começava nos canaviais, com as da Sé do Funchal e com as das cadeias.
continuava no engenho e terminava à saída do O mesmo aconteceu com as obras de fortifica-
porto. Assim, como forma de controlar e de ção, tão importantes para segurança dos mora-
prever a receita, determinou-se a regra do es- dores e para a salvaguarda da soberania e dos
timo da produção de açúcar dos diversos pro- interesses financeiros da Coroa. Até, na verda-
prietários de canaviais. de, a imposição do vinho, criada em 1485 para
A pressão fiscal sobre os produtos de alta ren- acudir às principais despesas do município,
tabilidade poderá ter muitas vezes efeitos ne- acabou por ser usada pela Coroa com outras fi-
gativos, em situação de livre concorrência com nalidades. Portanto, como já se disse, a Madei-
outros mercados e com outros produtos. Em ra foi um contribuinte ativo para os cofres da
princípios do séc. xvi, a concorrência dos açú- Coroa, mas poucas vezes sentiu o retorno útil
cares dos mercados da Madeira e das Canárias da sua riqueza. As ocasiões em que o saldo das
esteve sujeita a esta situação, criando circuns- contas foi negativo foram raras: quando foi ne-
tâncias desfavoráveis para a Ilha. cessário um apoio da Coroa, este foi feito atra-
Na época senhorial, o donatário conside- vés de um empréstimo com retorno.
rava-se o proprietário do espaço da Ilha e, Os encargos definidos pela despesa fixa da
portanto, tudo o que recebia dos povoado- Coroa na Ilha eram, por norma, muito redu-
res que haviam aceitado dádivas de terras era zidos. Considere-se, e.g., os dados disponíveis
um tributo, fruto do direito de posse. Nestas para o período de 1501 a 1537, durante o qual
A utonomia ¬ 65
contribuições, 5 por cento das quantias arre- principais problemas com que esta se debatia e
cadas, cuja dedução será feita em cada ordem criar uma comissão para reclamar as soluções
de entrega de receitas, assinada pelo inspetor necessárias junto dos parlamentares madeiren-
de finanças” (Id., Ibid,, 485). ses e dos ministérios do Terreiro do Paço, em
Em 1922, a situação da Ilha não era distinta Lisboa. Isto é, criar um grupo de pressão ma-
dos anos anteriores; no entanto, foi o ano es- deirense na capital.
colhido para a comemoração do quinto cente- Entre os finais de 1922 e os princípios de
nário do descobrimento da Madeira. Este foi 1923, gerou-se no Funchal um clima eufórico
o argumento para fazer despertar o espírito de debate em torno do alargamento da autono-
autonomista e regional dos madeirenses. Em mia. Porém, realizado o debate, algumas ideias
outubro e novembro de 1920, Eduardo Anto- haviam demonstrado que, sem a colaboração
nino Pestana, entusiasmado com os resultados da classe política da Madeira e do continente,
positivos da realização de congressos regionais não era possível fazer avançar o parco regime
em várias localidades do continente (uma ini- autonómico de 1901. A classe política da Ma-
ciativa que partira de Augusto de Castro, então deira, dependente das estruturas e dos favores
diretor do Diário de Notícias de Lisboa), recla- da continental, estava dividida. Por outro lado,
mava insistentemente, no Diário de Notícias do as forças vivas madeirenses não só não sabiam
Funchal, a necessidade de uma iniciativa idên- bem o que queriam, como estavam também
tica na Madeira. O objetivo do congresso a rea- acomodadas. A ideia de autonomia era agora
lizar na Ilha era produzir um levantamento dos distinta daquela que tinha existido em finais
do séc. xix. A influência inglesa conduziu à
reivindicação de uma ampla autonomia que,
segundo se dizia em 9 de novembro de 1921,
deveria ter na bandeira “a única ligação com a
Mãe Pátria” (Id., Ibid., 71).
Para o movimento autonomista madeiren-
se dos anos 20, muito contribuiu a atitude do
então presidente da Comissão Executiva da
Junta Geral, Fernando Tolentino Costa, que,
aproveitando a passagem pela Ilha do Presi-
dente da República, António José de Almei-
da, a 9 de outubro de 1922, quando regres-
sava do Brasil, lançou o desafio no sentido
do alargamento da autonomia. O facto teve
eco na imprensa local e fez com que o mo-
vimento autonomista ganhasse novo alento.
A Junta Geral, tomando a liderança do pro-
cesso, enviou um ofício para as juntas gerais
dos Açores (Ponta Delgada e Angra do He-
roísmo), propondo uma congregação de es-
forços e uma concertação de ações com este
objetivo, convocando uma assembleia de ma-
deirenses, donde saiu uma comissão autono-
mista que se reuniu pela primeira vez a 21
de dezembro de 1922, na sede da Associação
Fig. 10 – “Viagem às ilhas. A descida do Monte”, caricatura da Comercial do Funchal. Foi aqui que Manuel
visita régia com a Crise Agrícola e os Credores Externos em carro
de cesto, litografia de Rafael Bordalo Pinheiro (A Paródia, 10 jul. Pestana Reis apresentou o texto das bases
1901). da autonomia, que foi depois publicado na
68 ¬ A utonomia
brochura das comemorações do quinto cen- apresentado por Manuel Pestana Reis (1894
tenário da descoberta da Madeira. ‑1966) era a questão financeira.
Com a proposta de estatuto em debate, pre- A Revolução de 28 de maio de 1926 foi sau-
tendia-se estabelecer, pela primeira vez, a coe- dada por muitos sectores da sociedade madei-
xistência dos poderes legislativos e executivos. rense que depositaram nela as suas esperan-
Surgia, assim, um conselho legislativo eleito ças de mudança. A primeira alteração ocorreu
entre as câmaras e as associações de classe, que com o dec. n.º 15.035, de 16 de fevereiro de
poderia legislar no domínio regional. Apenas 1928, que ia ao encontro de algumas das rei-
lhe estariam vedadas as questões referentes vindicações no campo financeiro. A receita da
ao exército, às relações com o estrangeiro, à cobrança da contribuição predial rústica e ur-
formação do Governo, à justiça e ao ensino. bana, da contribuição industrial, do imposto
O quadro institucional completava-se com o de aplicação de capitais e do imposto de tran-
conselho executivo, eleito pelo legislativo, com sações era da Junta seria usada em benefício
a função de superintender as finanças, de fis- da Região, ficando o Estado com apenas 1 %
calizar o orçamento e de superintender os ser- desta para despesas de cobrança.
viços e as obras públicas. A representação do A 31 de julho, com o dec. n.º 35.805, a situa-
governo no distrito continuaria a ser feita pelo ção alterou-se novamente. Este decreto, assina-
governador civil, nomeado mediante consulta do pelo então ministro das Finanças, Oliveira
ao conselho executivo. Ao mesmo, seriam aco- Salazar, marcou o princípio do fim do comba-
metidas funções de fiscalização e de assistência te autonomista das ilhas. Antes, aumentara-se
aos diversos órgãos da administração. a receita dos distritos, agora, impunham-se
Uma das reivindicações mais destacadas foi o novos encargos, com o alargamento da descen-
direito à fruição em benefício próprio das recei- tralização a serviços dependentes dos ministé-
tas arrecadadas. A Madeira deveria deter a sua rios do Comércio, Agricultura e Instrução, do
total administração, ficando ao Estado apenas Governo Civil, da polícia cívica, da saúde, da
o direito a uma quantia fixa para cobrir os cus- assistência e da previdência. Sem capacidade
tos da cobrança. Esta autonomia era entendida para acabar com a autonomia, Salazar acedeu
pelo próprio Manuel Pestana Reis como uma às aspirações autonomistas transferindo al-
forma de “desconcentração política e adminis- guns serviços, que conduziram à asfixia finan-
trativa” (Id., Ibid., 76) e ia ao encontro de ante- ceira das Juntas. As reformas do Governo do
riores propostas surgidas nos Açores, da autoria Estado Novo não satisfizeram a ambição dos
de Aristides da Mota (1892) e de Francisco de regionalistas.
Ataíde Manuel de Faria e Maia (1921). Duran- O madeirense Quirino de Jesus, ainda que
te este momento, o intercâmbio dos projetos muito próximo de Salazar na definição da po-
autonomistas de ambos os arquipélagos foi um lítica económica e financeira, não conseguiu
facto, tendo sido, de novo, promovido pelo pre- demovê-lo quanto à sua visão da autonomia.
sidente da Junta. Em dezembro de 1922, uma Ele defendera que a autonomia insular era de-
representação de Ponta Delgada, chefiada por finida pelo carácter financeiro e económico,
Luís de Bettencourt e Câmara e por José Bruno só se podendo afirmar com reformas financei-
Carreiro, chegou à Madeira, seguindo-se, em ja- ras. De acordo com a sua ideia de divisão admi-
neiro do ano seguinte, a presença de Frederi- nistrativa, o distrito cederia lugar à província,
co Augusto Lopes da Silva, de Angra. No ano que passaria a ter ao comando um governador-
imediato, na Madeira, também foi discutida a -geral residente, de nomeação governamental.
temática da autonomia. Evocou-se o quinto cen- A ele juntava-se a Junta Geral de Província e
tenário da descoberta da Madeira e todos, ou o Conselho de Governo. A primeira era com-
quase todos, clamaram por uma nova descober- posta por procuradores eleitos pelas Câmaras
ta, materializada em mais e melhor autonomia. Municipais, pelas associações, pelos professo-
Um dos pontos assentes do projeto autonomista res e pelos chefes de serviço das repartições
A utonomia ¬ 69
públicas, enquanto o segundo seria presidido Quando Marcelo Caetano substituiu Salazar,
pelo governador, integrando vogais eleitos de a 27 de outubro de 1968, era evidente a expec-
entre os procuradores e os chefes dos serviços. tativa dos insulares quanto às reivindicadas al-
A Constituição, aprovada em 11 de abril de terações do estatuto. Esta possibilidade havia
1933, estabelecia para as ilhas uma adminis- sido admitida pelo próprio presidente do Con-
tração especial (artº. 124 § 2.º), que só foi re- selho de Ministros quando, em dezembro de
gulamentada pela lei n.º 1967, de 30 de abril 1969, visitara a Madeira. Na verdade, a déc.
de 1938, que estava muito distante destes pro- de 60 foi, de novo, uma altura de debate da
pósitos. No preâmbulo da lei, refere-se que a autonomia, sendo o Comércio do Funchal o por-
geografia obrigou a esta descentralização e des- ta-voz destes anseios. Então, para além da visí-
concentração “em benefício dos povos e com vel asfixia financeira das juntas, insistia-se na
vantagem para a boa administração”. As recla- necessidade de um plano de desenvolvimento
mações dos insulares levaram a que o Governo regional, que chegou à Assembleia Nacional a
as atendesse, em 1928, com alterações signifi- 5 de abril de 1963, pela voz do deputado ma-
cativas, através da descentralização de muitos deirense Agostinho Cardoso. As eleições para
serviços; mas surgiram novamente imensas re- a Assembleia Nacional de 26 de outubro de
clamações, porque as receitas eram insuficien- 1969 acontecem no decurso do debate do pro-
tes, continuando o legislador a negar a possi- cesso autonómico, sendo este ideário assumi-
bilidade do usufruto total das receitas fiscais: do pelos candidatos da oposição democrática.
“Formam as ilhas adjacentes um todo com o Durante muito tempo, as reivindicações dos
continente, é o mesmo o seu sistema de admi- madeirenses assentaram no retorno do di-
nistração e governo, como o mesmo é o grau de nheiro dos seus impostos para a realização de
civilização dos habitantes e de progresso social: obras necessárias ao desenvolvimento da Ilha,
seria, pois, contrário ao bem comum consagrar que, em muitas situações, acabariam por tra-
uma forma egoísta de plena autonomia finan- zer retorno ao Estado. Com um programa de
ceira que parecesse realizar a desintegração do regadio, ampliar-se-ia a área agrícola e tam-
Estado de uma parte do seu território metro- bém os tributos; com a construção de portos,
politano”. Sobre as anteriores medidas dizia-se de cais e de embarcadouros, seriam garanti-
“que foi excessiva a liberdade conferida às jun- das as condições de circulação de pessoas e
tas em 1928” (Id., Ibid., 78), pois a descentrali- de produtos, animando eficazmente a agricul-
zação sem a tutela governamental podia ser um tura e o mercado; por fim, o porto principal
princípio para uma má gestão. Deste modo, no Funchal, com condições de apoio à nave-
manteve-se a descentralização existente, pas- gação livre de taxas tributárias, era uma espe-
sando, todavia, a ser fiscalizada pelo governo rança para os madeirenses, que viram nele a
civil e tutelada pelo Governo central. Nesta re- possibilidade de uma grande escala oceânica
forma do estatuto, surge, como uma novidade, e de desembarque de turistas.
a função de coordenação económica da Junta, Tudo isto era conhecido e sabido, mas con-
que tinha uma expressão ao nível do planea- tinuavam a tardar as soluções. As populações
mento apenas nos planos trienais. Esta proble- continuavam isoladas nos seus locais de nasci-
mática motivou um debate público no Funchal, mento, frequentemente alheias a tudo. A ida
em janeiro de 1968, sob a epígrafe I Semana ao Funchal era um acontecimento ocasional
de Estudos sobre problemas sociais económi- e de grande comemoração. Desde o primeiro
cos do desenvolvimento. Como corolário desta quartel do séc. xix, as reclamações dos madei-
reivindicação, foi publicado, em 11 de março renses manifestaram-se no sentido de o Esta-
de 1969, o dec.-lei n.º 48.905, que estabeleceu e do intervir na Madeira através de obras públi-
regulamentou o planeamento regional, função cas para a abertura de caminhos, de levadas
que ficou a cargo da Junta Geral, merecendo a e de canalização das ribeiras. A crise agrícola
contestação de todos os sectores. e comercial fez despertar o olhar crítico de
70 ¬ A utonomia
difícil execução orçamental, levando à nego- de contos e, no terceiro (2000-2006), 140 mi-
ciação de um programa de reequilíbrio finan- lhões de contos.
ceiro com o Governo da República. Pela reso- As medidas de correção dos desequilíbrios
lução n.º 9/86, de 16 de janeiro, o Governo internos de desenvolvimento e a política de
mandatou o ministro da República e o minis- coesão comunitária, asseguradas pelos diversos
tro das Finanças para estabelecerem com o Go- QCA (I QCA 1989-1993; II QCA 1994-1999)
verno regional um programa de reequilíbrio e pelo fundo de coesão, para além de outros
financeiro da RAM, assinado a 26 de fevereiro apoios no âmbito dos diversos programas co-
de 1986. A 22 de setembro de 1989, houve um munitários, asseguraram à Madeira os meios fi-
novo programa de recuperação financeira até nanceiros necessários para vencer as dificulda-
31 de dezembro de 1997, que se repercutiu no des ancestrais de desenvolvimento económico.
orçamento regional de 1990. Um dos principais problemas da política go-
O impacto mais significativo do período de- vernativa estava relacionado com a disponibi-
mocrático decorreu de uma intervenção resul- lidade de verbas, por parte do Orçamento do
tante da integração de Portugal na Comunida- Estado, para cobrir as carências resultantes da
de Económica Europeia e não da obrigação, transferência dos serviços e das políticas de
que ao Estado era devida pela lei e pela Consti- investimento que se estabeleciam necessaria-
tuição, de colmatar as assimetrias de desenvol- mente para acatar o atraso secular a que a Ilha
vimento económico da Região. A 5 de junho tinha ficado votada. A conta de 1978 apontava
de 1985, a Assembleia regional da Madeira um crescimento da despesa em 124,75 %, en-
aprovou a integração da RAM no processo de quanto o da receita se limitava a apenas 57,4
adesão de Portugal à CEE, o que veio a aconte- %. Esta situação de rutura financeira situava-
cer, em pleno, a partir de 1 de janeiro de 1986. -se, muitas vezes, fora do alcance da Região, ou
A resolução do Parlamento regional reconhe- porque o Estado não procedia à definição do
ceu as vantagens da adesão para o progresso valor das transferências, ou porque a Madeira
económico, para o reforço do contributo in- não dispunha de quaisquer mecanismos fiscais
sular e para a formação da Comunidade. Em que permitissem resolver os seus problemas.
1988, na sequência de um memorando apre- No decurso das décs. de 70 e 80, os orça-
sentado pelas regiões autónomas da Madeira mentos da Região foram apresentados de
e dos Açores, a Comunidade aprovou um pro- forma tardia, porque se aguardava pela apro-
grama de medidas específicas, no sentido da vação do Orçamento Geral do Estado, em que
sua plena integração no Mercado Único. Foi o ficaria estabelecido o valor das transferências,
princípio do reconhecimento do Estatuto Es- uma vez que a receita dos impostos e das taxas
pecial das Regiões Ultraperiféricas, consagra- – proveniente dos tempos da Junta Geral, re-
do no tratado de Maastricht, com a declaração forçada com o estatuto provisório de 1976 –
comum sobre as regiões ultraperiféricas. era claramente insuficiente para cobrir os en-
A aposta comunitária na política regional cargos associados à transferência dos serviços,
favoreceu o aparecimento de programas fi- nomeadamente nos âmbitos do ensino e da
nanceiros, dos quais a Madeira, a partir de saúde.
1986, passou a poder usufruir. Neste sentido, É certo que o estatuto (art.º 56) definiu o
surgiu em 1985, o Fundo Europeu para o De- princípio da solidariedade nacional quanto
senvolvimento Regional (FEDER). Entretan- ao apoio financeiro do Estado para cobrir as
to, em 1991, o Tratado da União Europeia despesas, mas as contingências da conjuntura
estabeleceu a política regional e de coesão, de crise política implicavam que esta garantia
criando o Comité das Regiões e o Fundo de tardasse ou não surgisse. Neste quadro, restava
Coesão. A Madeira recebeu, no primeiro e à Região o recurso ao endividamento interno
no segundo Quadro Comunitário de Apoio para cobrir os investimentos necessários à exe-
(QCA) (entre 1986 e 1999), 176,7 milhões cução do plano regional que, de acordo com
72 ¬ A utonomia
o mesmo estatuto (art.º 58), deveriam ser defi- domínio ((alínea n) do art.º 229). Era o único
nidos por diploma do Governo da República. meio de a Região sustentar uma estrutura fi-
Em 1980, o orçamento apresentava um défice nanceira que lhe permitisse consolidar a sua
de 2.017.730 contos porque ainda não era co- autonomia política e económica.
nhecida a verba a estabelecer no Orçamento A lei do orçamento do Estado n.º 42/83, de
do Estado, mas a Região decidiu manter uma 31 de dezembro, consagra a possibilidade de a
verba de transferências por considerar impe- Região se endividar em 5 milhões de contos,
rioso o cumprimento do plano de investimen- para poder colmatar os constantes défices or-
tos, deixando em aberto a possibilidade do seu çamentais. Mas, em sede do orçamento regio-
financiamento através de um empréstimo. nal de 1984, voltou-se a insistir na ausência de
Em 1981, agravou-se ainda mais a situação fi- contrapartidas financeiras por parte do Estado
nanceira e orçamental, devido ao volume de em face da transferência dos serviços, pelo que
serviços que tinham sido regionalizados no de- o investimento dos últimos sete anos só havia
curso do ano anterior sem a devida contrapar- sido possível mediante o recurso ao crédito in-
tida financeira, e à aprovação tardia, em abril, terno. Insiste-se na ideia de que “uma política
do Orçamento de Estado. Desta forma, a Ma- orçamental verdadeiramente autónoma só será
deira não teve alternativa, e o seu orçamento concretizada quando todas as componentes do
foi apenas aprovado em maio. A mesma situa- orçamento regional estiverem sob o domínio
ção de precariedade dos meios orçamentais dos órgãos de governo próprio da Região.” Por
justifica o défice de 7.274.081 contos, expli- outro lado, “sobre o Estado recaem determi-
cado pela “evolução crescente da própria au- nadas obrigações, aliás, constitucionais, no que
tonomia regional” (VIEIRA, 2014b, 707). Em respeita à recuperação do atraso económico
1983, o orçamento só foi aprovado em junho estrutural em que a Região se encontra devido
do ano de execução, pelas mesmas razões, à ausência ancestral de qualquer política séria
ocorrendo uma nova situação, com o decrésci- de desenvolvimento regional da iniciativa do
mo das transferências do Orçamento do Esta- poder central” (VIEIRA, 2014g, 84).
do, que veio a agravar o défice em 14.976.482 O desacordo financeiro continua em 1985,
contos. A despesa foi justificada pela transfe- acusando-se, em finais do ano anterior, o Go-
rência de serviços sem a necessária contrapar- verno regional de ter aumentado as dificulda-
tida financeira, bem como pela necessidade de des financeiras que obrigaram ao aumento do
vencer o atraso da Região através de grandes défice e do endividamento da Região. Deste
obras estruturantes. modo, insiste-se na necessidade de alteração
Em 1983, no sentido de vencer estas dificul- dos “critérios de transferências do Orçamento
dades orçamentais e financeiras, o Governo re- do Estado para a Região Autónoma da Madei-
gional expressou a sua intenção de lutar para ra” (VIEIRA, 2014b, 708).
que fosse encontrado “um critério mais justo, A principal receita da Região incidia nos im-
que permita à regiões autónomas recuperar postos, sendo os diretos de maior peso. Para
o atraso económico e social em que se en- o período compreendido entre 1976 e 1988,
contram relativamente ao continente, o mais os impostos principais foram a contribuição in-
breve quanto possível, mas sem que isso cons- dustrial, o imposto profissional, o imposto de
titua uma penalização para as disponibilidades capitais, o imposto complementar, o imposto
financeiras” (VIEIRA, 2014b, 707) com uma sobre sucessões e doações, e a sisa. A partir de
proposta de alteração dos critério de cobertura 1989, passaram a ter destaque o imposto sobre
do défice da Madeira. A par disso, aponta-se a o rendimento das pessoas singulares (IRS) e o
necessidade de reformas da política monetária imposto sobre o rendimento das pessoas cole-
e financeira, para que as regiões possam ado- tivas (IRC), como reflexo das mudanças ocor-
tar a assunção plena dos direitos e das respon- ridas com o sistema tributário português. No
sabilidades que a Constituição consagra neste grupo dos impostos indiretos, existiam: o IVA,
A utonomia ¬ 73
rural da União Europeia. O FEADER é, junta- a distância em relação à meta final era ainda
mente com o Fundo Europeu Agrícola de Ga- grande, afirmando-se, no orçamento de 1990,
rantia (FEAGA), um dos dois instrumentos de que a Região não controlava as variáveis que
financiamento da PAC que substituem, desde 1 afetavam a cobrança, quer dos impostos dire-
de janeiro de 2007, o FEOGA – secção Orien- tos, quer dos impostos indiretos, que deter-
tação, e o FEOGA – secção Garantia, respeti- minavam a respetiva evolução. Essas variáveis
vamente. O Fundo Europeu das Pescas (FEP) foram fixadas pelas leis do OE, limitando-se a
foi um fundo criado para o período 2007-2013 Madeira a receber os respetivos impostos co-
com o fim de facilitar a aplicação da Política brados pelo Estado na Região. A sua previsão,
Comum da Pesca e apoiar as reestruturações por isso, acabou por ser mais difícil do que
necessárias ao sector. seria se a Ilha procedesse à respetiva cobrança.
Em termos de apoios europeus, e no que Em vésperas da aprovação da lei n.º 13/98,
diz respeito à Região Autónoma da Madeira, de 24 de fevereiro, a lei de finanças das re-
é de destacar o INTERVIR+, o Programa Ope- giões autónomas e o orçamento da Região de
racional de Valorização do Potencial Econó- 1997 foram usados para argumentar em Lis-
mico e Coesão Territorial da RAM, aprovado boa o seguinte: a regionalização, melhorando
pela Comissão Europeia, através da decisão C, a eficiência e a equidade das finanças públi-
n.º 4622, de 5 de outubro de 2007, que tem por cas, teria de contribuir para uma melhor per-
objetivo assegurar o crescimento da economia formance da economia da Madeira, pelo que o
regional, o emprego, as políticas de proteção modelo de financiamento dos orçamentos re-
do ambiente, a coesão social e o desenvolvi- gionais deveria permitir às regiões autónomas
mento territorial. Este programa é cofinancia- aproximarem-se do nível médio de rendimen-
do pelo FEDER e por RUMOS – Programa to do continente, da igualdade de oportunida-
Operacional de Valorização do Potencial Hu- des e da igual qualidade de aprovisionamento
mano e Coesão Social da RAM, cuja versão de serviços e de bens públicos. A definição das
final foi aprovada pela Comissão Europeia em relações financeiras entre o Estado e as regiões
26/10/2007. autónomas teria assim de ser feita em respeito
Ao nível da RAM, são de considerar o Progra- pela autonomia regional e num quadro do re-
ma de Investimentos e Despesas de Desenvol- forço da coesão económica e social nacional e
vimento da Administração Central (PIDDAC), da solidariedade do Estado.
que corresponde, no orçamento, à parte refe- A nova centúria pareceu levar um novo alen-
rente aos investimentos, e o Programa de In- to aos discursos e às práticas financeiras. O or-
vestimentos e Despesas de Desenvolvimento çamento de 2002 alimentou esta esperança, ao
da Região Autónoma da Madeira (PIDDAR), a afirmar que “o início do processo de regiona-
designação formal para a concretização anual lização dos serviços de finanças permitirá im-
da estratégia delineada no Plano de Desenvol- portante evolução na gestão, controlo e apu-
vimento Económico e Social (PDES), para o ramento da receita tributária, possibilitando
período de 2007 a 2013. uma maior arrecadação de verbas. [...] A Re-
No debate político, as questões financeiras gião não dispõe ainda de todos os instrumen-
continuam a ser o calcanhar de Aquiles da au- tos que lhe permitam exercer um controle efe-
tonomia legislada nos finais do séc. xx. Toda- tivo” (VIEIRA, 2014g, 91).
via, deram-se passos significativos no sentido Em 2005, sabe-se da existência de um grupo
de a Região passar a ter o controlo do sistema de trabalho, “tendo em vista o apuramento
financeiro, o que permitiria uma gestão certa- das receitas fiscais em falta, circuitos de co-
mente mais racional brança, controlo, gestão e afetação às regiões,
A lei n.º 19/83, de 13 de dezembro, conce- com significativos resultados ao nível de apu-
deu uma autorização ao Governo para estabe- ramento de montantes por regularizar na cor-
lecer o regime das finanças regionais; porém, reção dos métodos de arrecadação, controlo
76 ¬ A utonomia
e transferência de verbas para os cofres regio- alfandegários, a sua transferência foi mensal.
nais”. Foi, ainda, constituída uma comissão de Uma nova alteração desta lei aconteceu pela
inquérito, na Assembleia Legislativa Regional, lei orgânica n.º 1/2010 de 29 de março. O le-
“para averiguar se os bancos que têm sede no gislador insistiu na ideia de que “a autonomia
continente e exercem a sua atividade na Região financeira regional desenvolve-se no quadro
Autónoma da Madeira entregam aos cofres da do princípio da estabilidade orçamental, que
Região as receitas fiscais devidas. As conclu- pressupõe, no médio prazo, uma situação pró-
sões do relatório demonstram, uma vez mais, a xima do equilíbrio orçamental” (n.º 1, do art.º
não correta afetação da receita fiscal à Região, 6). Isto abriu o assunto para o estabelecimento
onde é efetivamente gerada” (VIEIRA, 2014b, de regras apertadas relativamente ao endivida-
753). mento, que passou a estar sujeito a um valor
Em 2006, de novo em vésperas de uma nova máximo, enquanto as violações passaram a
regulamentação das relações financeiras entre estar sujeitas a penalizações.
o Estado e a Região, denunciava-se o incumpri- Para a Região, o enquadramento do Orça-
mento do Estado que, no Orçamento de 2006, mento da Região Autónoma da Madeira foi es-
não assegurava as transferências dos custos tabelecido pela lei n.º 28/92, de 1 de setem-
da insularidade e desenvolvimento económi- bro. Esta norma orçamental está dependente
co, apontando-se responsabilidades a assumir: da que foi estabelecida para o continente em
“O aprofundamento da autonomia em maté- 1991, em matéria orçamental e de execução,
ria fiscal, revela-se um instrumento de política tendo-se aplicado supletiva e subsidiariamente
essencial para que o Governo regional possa as leis gerais da República e, designadamente,
prosseguir uma estratégia de desenvolvimen- a lei do Orçamento de Estado para 1991, com
to sustentada, promovendo a maximização da as devidas adaptações.
eficiência fiscal e adaptando o sistema fiscal a
Bibliog.: Autonomia e História das Ilhas, Funchal, CEHA, 2001; ELAVAI,
condições cada vez mais específicas da econo- Augusto, Um Percurso nos Açores. Finanças Regionais: Coesão e
mia regional, num princípio de unidade dife- Desenvolvimento, Angra do Heroísmo, PaPyRo, 2001; FARIA, Cláudia et al.,
Paisagens Literárias (Quadros da Madeira), Funchal, CEHA, 2013; FERREIRA,
renciada” (Id., Ibid.). Eduardo Paz, As Finanças Regionais, Lisboa, INCM, 1985; Leis das Finanças
O inevitável aconteceu. Em 19 de fevereiro Locais e das Finanças Regionais, Massamá, Edimarta, 2007; LEITE, José
Guilherme Reis, A Autonomia dos Açores na Legislação Portuguesa. 1892-
de 2007, pela lei orgânica n.º 1/2007, o Par- 1947, Horta, Assembleia Regional dos Açores, 1987; LOUREIRO, Adolfo,
lamento aprovou a lei das finanças regionais, Breves Notícias sobre os Archipélagos da Madeira, Açores, Canárias e Cabo
Verde. Conferências, Lisboa, Imprensa Nacional, 1894; A Paródia, 10 jul. 1901;
revogando a lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro. Quinto Centenário do Descobrimento da Madeira, Funchal, Comissão de
Aqui ficaram definidos os impostos, perten- Propaganda e Publicidade do Centenário, 1922; RODRIGUES, Paulo Miguel,
“A Junta da Fazenda da Madeira na política externa portuguesa (1801-
ça da Região, e os mecanismos de avaliação 1834)”, Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, n.º 1, 2009,
do valor das transferências, de acordo com a pp. 477-498; VERÍSSIMO, Nelson, A Madeira e o Sidonismo, Funchal, DRAC,
1983; Id., “Em 1917, a Madeira reclama autonomia”, Revista Atlântico, n.º 3,
população. Perante isto, o Governo regional
1985, pp. 229-232; Id., “O alargamento da autonomia dos distritos insulares.
apresentou a sua demissão a 21 de fevereiro, O debate na Madeira (1922-1923)”, in Actas do II Colóquio Internacional de
obrigando a novas eleições regionais onde con- História da Madeira, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1990, pp. 493-515; Id., “Autonomia insular.
quistou uma folgada maioria absoluta. Tudo As ideias de Quirino Avelino de Jesus”, Islenha, n.º 7, jul.-dez. 1990, pp. 32-
parecia, então, voltar ao princípio, no debate 36; VIEIRA, Alberto (coord.), A Autonomia. História e Documentos, Funchal,
CEHA, 2001; Id., Cronologia. A História das Instituições, Finanças e Impostos,
financeiro das autonomias. Ainda de acordo Funchal, CEHA, 2014; Id. (coord.), Debates Parlamentares. 1821-2010, Funchal,
com a portaria n.º 1418/2008, estabeleceu-se a CEHA, 2014a; Id., O Deve e o Haver das Finanças da Madeira. Finanças Públicas
e Fiscalidade na Madeira nos Séculos XV a XXI, Funchal, CEHA, 2014b; Id.
fórmula de apuramento do IVA e a sua transfe- (org.), Deve e Haver. Instrumentos de Trabalho, Funchal, CEHA, 2014c; Id.,
rência em duodécimos. Esta nova situação im- Dicionário de Finanças Públicas. Conceitos, Instituições, Funcionários, Funchal,
CEHA, 2014d; Id., Dicionário de Impostos. Contribuições, Direitos, Impostos,
plicou uma perda de 22,5 milhões de euros em Rendas e Tributos, Funchal, CEHA, 2014e; Id., Entender o Deve e o Haver das
relação ao sistema de capitação de 1998. Ao Es- Finanças da Madeira, Funchal, CEHA, 2014f; Id., Livro das Citações do Deve e
o Haver das Finanças da Madeira, Funchal, CEHA, 2014g; Id. (org.), Memória
tado, coube o direito de 2 % das transferên- Digital. O Deve e o Haver das Finanças da Madeira, Funchal, CEHA, 2014h.
cias do IVA, a título de compensação pela uti-
lização dos seus serviços. No caso dos impostos † Alberto Vieira
A utonomia ¬ 77
Autonomia política,
legislativa e financeira
A autonomia regional pode ser entendida em
diferentes perspetivas – política, normativa ou
legislativa, financeira (incluindo orçamental,
patrimonial, fiscal e creditícia) e administra-
tiva, entre outras –, mas sempre em confron-
to com a noção de Estado centralizado, que
impede formas de organização política aber-
tas e situações de diferenciação e de descen-
tralização territorial de poderes e de funções
políticas e financeiras tipicamente estatais,
incluindo aspetos relativos à administração
da justiça, à garantia da segurança pública
e da defesa e à representação externa. No âm-
bito de um determinado Estado, a aceitação e
o reconhecimento do instituto da autonomia
regional concretizam-se pela atribuição cons-
titucional ou legal de um conjunto de pode-
res e funções de natureza política e financeira
a novas entidades públicas de base territorial,
as regiões ou comunidades autónomas, com
dimensão “intermédia” entre o Estado e as
autarquias locais, i.e., de âmbito infraestatal e
supramunicipal, e dotadas de órgãos de go-
verno próprio democraticamente legitimados
(parlamento ou assembleia regional, Gover-
no regional).
Num Estado unitário e centralizado, todas as Fig. 11 – Trilogia dos Poderes, bronze de Amândio de Sousa, 1990,
competências ou poderes políticos essenciais pátio da Assembleia Legislativa Regional (arquivo particular).
típicos do Estado cabem e são exercidos exclu-
sivamente pelos órgãos decisórios do próprio além da inerente indivisibilidade do território
Estado, não se admitindo consequentemente reconhecido ao Estado.
quaisquer outras estruturas organizatórias de Ao invés do Estado centralizado, no Esta-
governação que pudessem exercer tais pode- do politicamente descentralizado admitem-se
res, sejam internas (Estados federados, regiões outras formas de exercício do poder político,
ou comunidades politicamente autónomas) sem o domínio exclusivo do próprio Estado e
ou externas (organismos internacionais ou dos seus órgãos de governo soberano, incluin-
supranacionais), sejam diferenciadas (federa- do regimes de autonomia regional e outras
ções) ou não (confederações). formas de descentralização territorial, como
Da unicidade do Estado soberano decorre as baseadas em autarquias locais (municípios,
a imediatidade das relações jurídicas estabe- freguesias).
lecidas entre o poder público central e os ci- Em Portugal, o respeito pela autonomia re-
dadãos, bem como a exclusão de qualquer gional, através da fórmula “regime autonómi-
intermediação por parte de estruturas organi- co insular” (introduzida pela lei constitucional
zatórias intermédias nas relações estabelecidas n.º 1/97), constitui uma obrigação constitu-
entre o Estado e os respetivos cidadãos, para cional do Estado, por força do art. 6.º-1 da
78 ¬ A utonomia
ou mesmo de quaisquer novas entidades juridi- compagináveis com uma simples divisão geo-
camente autónomas, como já se experimentou gráfica do território do Estado, baseada apenas
em diferentes países e momentos históricos, em critérios físicos ou orográficos, por assim
incluindo os casos dos distritos portugueses dizer imposta pela natureza, incluindo as situa-
(distritos administrativos ou civis mas também ções de insularidade, mas também, para além
de âmbito sectorial, como os distritos judiciais, dessa divisão territorial, o reconhecimento e a
militares, etc.), dos departamentos em França atribuição de personalidade jurídica própria
(até determinada altura) e das regiões-plano. à coletividade regional, que justificadamente
Alguns dos objetivos, dos meios e a própria exige participar politicamente de modo refor-
dimensão dos processos de regionalização (ad- çado, através de órgãos representativos demo-
ministrativa) no seio dos Estados podem assi- craticamente legitimados, dotados de pode-
milar-se ou até, eventualmente, coincidir com res políticos substanciais aptos a salvaguardar
os das experiências históricas e políticas do re- os anseios comuns, não confundíveis com os
gionalismo político, e as respetivas fronteiras de outras comunidades inseridas no seio do
tendem a ser difíceis de identificar com total mesmo Estado.
nitidez, mas os instrumentos utilizados, bem Quando são referidas “regiões” num proces-
como a natureza e as finalidades, não se con- so de mera desconcentração de poder do Esta-
fundem, e podem e devem ser distinguidos. do, não se está ainda perante a emergência de
Efetivamente, as regiões autónomas dispõem novas entidades dotadas de personalidade jurí-
de órgãos de governo próprio dotados de po- dica própria, distinta da do Estado, ao invés do
deres “com natureza política”, o que afeta a que se verifica no fenómeno da descentraliza-
própria forma do Estado, ao invés do que se ção, administrativa e/ou política, independen-
verifica com as regiões meramente administra- temente de as respetivas causas e justificações
tivas, que têm natureza idêntica ao fenómeno ou fundamentos poderem variar muito.
já muito antigo do municipalismo e, em geral, Quanto às autarquias locais, “reguladas por
do poder (autárquico) local, em que, não rara- lei, de harmonia com o princípio da descen-
mente, são também reconhecidos e atribuídos tralização administrativa” (art. 237.º), também
amplos poderes de autogoverno, mas sempre “não têm natureza política”, apesar de a Cons-
ao abrigo de um quadro legal estatal estrito, tituição portuguesa colocar os respetivos ór-
com natureza meramente administrativa. gãos, até certo ponto, a par dos órgãos de so-
Variam muito, no plano conceitual e nas suas berania e dos órgãos das regiões autónomas,
múltiplas concretizações pelos ordenamentos designadamente nos arts. 114.º e seguintes, e
jurídicos, em função das competências efetiva- de prever um estatuto desses órgãos e das au-
mente “devolvidas” ou atribuídas pelo Estado tarquias (freguesias, municípios e regiões ad-
aos organismos regionais, por um lado, o fe- ministrativas – art. 236.º) baseado na represen-
nómeno da regionalização administrativa, em tação democrática (cf. art. 239.º).
sentido amplo – que implica a simples divisão De qualquer modo, a distinção entre descen-
do território (nacional ou estatal) em porções tralização política e descentralização adminis-
de menor dimensão, muito variáveis consoan- trativa é tipicamente europeia, sendo por isso
te o significado e a importância destas – e, por ignorada ou até expressamente contestada nos
outro lado, o fenómeno do regionalismo polí- Estados Unidos da América, onde se conside-
tico – que pressupõe uma diferenciação regio- ra seguro que a descentralização administrati-
nal significativa e consciente nos planos cultu- va reveste necessariamente a natureza de um
ral, histórico e também geográfico, em geral fenómeno político. Mesmo na Europa, alguns
reclamada pela população da circunscrição autores franceses e espanhóis (como Esteban/
regional, implicando não apenas a identifica- González-Trevijano) qualificam a descentrali-
ção e o reconhecimento das especificidades zação como questão “eminentemente políti-
da região e das suas populações, dificilmente ca”, por implicar uma redistribuição geográfica
80 ¬ A utonomia
1976 para os arquipélagos da Madeira e dos nos mais diversos planos – normativo, político,
Açores compreende diversas dimensões de institucional, financeiro.
autonomia regional, em especial, conforme Todas estas modificações de fundo decorren-
já foi mencionado, autonomia política, auto- tes do estabelecimento da autonomia regional
nomia normativa, maxime legislativa, autono- justificam, sem dúvida, as novas designações
mia administrativa e autonomia financeira “Estado unitário regional” e, também, “Estado
(incluindo autonomia orçamental, autono- regional”, mas não no sentido de um Estado
mia patrimonial, autonomia fiscal e autono- integralmente, apenas parcialmente, regional.
mia creditícia), entendidas como liberdade Quer a conceção constitucional da autono-
de ação e de decisão num quadro de compe- mia regional e do regionalismo político, quer
tências atribuídas constitucional e estatuta- a sua teorização moderna são relativamente re-
riamente e em geral não sujeitas a controlo centes, apontando-se geralmente como mar-
ou tutela por parte dos órgãos de governação cos fundadores as Constituições espanhola de
central. 1931 e italiana de 1947, sem prejuízo de se co-
Esta intensa componente regional do Esta- nhecerem exemplos anteriores de Estados re-
do português, tal como prevista e garantida gionais, como a Áustria, antes de 1918, ou o
pela Constituição e pelas leis vigentes, apesar Brasil, no Império, após a revisão constitucio-
de circunscrita aos arquipélagos da Madeira e nal de 1834.
dos Açores, levou a doutrina constitucional a A distinção básica relativa às formas do Esta-
dividir-se quanto à qualificação ou não da res- do, entre Estados simples ou unitários e Esta-
petiva natureza como verdadeiro “Estado re- dos compostos ou complexos, ganha relevân-
gional”, ou “Estado unitário regional”, até ao cia somente no contexto de um de entre os
ponto de pôr eventualmente em crise a quali- vários tipos históricos de Estado, tal como pas-
ficação tradicional e literal das leis como “Esta- saram a ser enumerados desde Jellinek (Esta-
do unitário”. do oriental, Estado grego, Estado romano, “Es-
Certo é que o Estado português continua a tado” medieval e Estado moderno). Por isso,
não ser uma espécie de Estado federal, sem a distinção entre Estado unitário e Estado fe-
prejuízo de já terem sido apresentadas propos- deral justifica-se apenas no contexto do Estado
tas nesse sentido, designadamente no decur- moderno de tipo europeu e, sobretudo, a par-
so da quarta revisão constitucional, com vista tir do despontar do constitucionalismo, como
a tornar a Madeira e os Açores em espécies de observa, conjuntamente com outros autores,
“Estados federados” de um alegado “Estado fe- Jorge Miranda.
deral” ou equiparado. De qualquer modo, as formas de Estado
A Constituição portuguesa em vigor é ine- não se confundem com formas de governo ou
quívoca ao dispor, no art. 225.º-3, que “A auto- com sistemas de governo, nem com regimes
nomia político-administrativa [dos Açores e da políticos.
Madeira] não afeta a integridade da soberania Enquanto a forma de Estado corresponde
do Estado...”, poder soberano que, por isso, se ao modo de o Estado dispor o seu poder em
mantém uno (“O Estado é unitário...”, na reda- relação com outros poderes de natureza se-
ção do art. 6.º-1). melhante, em termos de coordenação e de
Contudo, mesmo os autores que defendem subordinação, bem como quanto ao povo e
e sublinham sem reservas a natureza unitária ao território, que se sujeitam a um ou a mais
do Estado português, considerando-a pouco do que um poder político, a forma de gover-
ou nada prejudicada pela consagração cons- no, diversamente, trata-se do modo de uma
titucional, em 1976, do novo estatuto da au- comunidade política organizar o seu poder
tonomia regional, não excluem certamente o e de estabelecer a diferenciação entre gover-
significado profundo e os efeitos inovatórios nantes e governados à luz de certos princípios
substanciais inerentes ao regionalismo político políticos.
82 ¬ A utonomia
Quanto ao sistema de governo, abrange ape- política tem sempre base territorial, a des-
nas o conjunto de órgãos de função políti- centralização estritamente institucional ou
ca e o modo como está internamente organi- funcional não tem natureza política, apenas
zado, incluindo os poderes e os estatutos dos administrativa.
governantes. Quanto ao Estado composto ou complexo,
No que respeita aos regimes políticos, cor- de base geográfica e territorial (como o Esta-
respondem a expressões e concretizações das do regional), abrange a federação ou Estado
várias constituições ou leis fundamentais, re- federal e a união real de Estados. Em ambos
conduzindo-se a grandes tipologias – Estado os casos, há uma associação ou união de Es-
liberal, Estado social de direito, Estado soviéti- tados que dá origem a um novo Estado, que
co, Estado fascista –, não perduráveis tanto, em vai englobar os Estados que o compõem. Na
regra, quanto as formas de Estado, apesar de federação são criados órgãos de governo com-
substancialmente mais compreensivas, por en- pletamente distintos dos órgãos dos Estados
volverem amplos domínios como o dos direi- membros e um sistema jurídico e político-cons-
tos fundamentais da pessoa humana e o siste- titucional novo, com uma estrutura de sobre-
ma de organização económica, para além dos posição; na união real, ao invés, são aproveita-
aspetos políticos estruturais, que determinam dos e elevados a comuns alguns dos órgãos dos
a forma de Estado. Estados membros (a respetiva estrutura resulta
Os critérios de distinção essencial entre os da fusão ou comunhão institucional).
Estados unitários ou simples e os Estados com- Apesar de a maior parte dos Estados do
postos ou complexos assentam na unicidade mundo ser unitária e centralizada, isso não
ou pluralidade de (i) poderes políticos ou so- significa que a forma unitária seja ou deva ser
beranos na ordem interna, de (ii) ordenamen- considerada a normal; tão normais como o
tos jurídicos originários ou de Constituições, Estado centralizado são o Estado regional e
de (iii) sistemas de funções e órgãos do Estado, o Estado federal
e de (iv) centros de decisão política a se (como Acrescente-se que qualquer Estado, mesmo
sintetiza Jorge Miranda). o Estado federal, é unitário, no sentido de
O Estado unitário pode corresponder a um que, na respetiva estrutura interna, o respetivo
(i) Estado unitário centralizado ou a um (ii) Es- poder é uno (característica que se revela par-
tado unitário descentralizado ou regional. ticularmente evidente nos domínios da defesa
Presentemente, todos ou quase todos os Es- nacional ou da representação externa, perante
tados do mundo admitem descentralização ad- outros Estados e organizações internacionais –
ministrativa, seja de âmbito territorial (através como as Nações Unidas ou a União Europeia).
da existência e funcionamento de municípios, O Estado regional pode ser integral ou par-
freguesias e outras circunscrições administra- cialmente regional, consoante a totalidade ou
tivas, mais ou menos extensas), seja de âmbito apenas parte do respetivo território se encontre
institucional ou funcional (através da existên- dividida em regiões politicamente autónomas.
cia e funcionamento de associações, funda- No Estado parcialmente regional – como o
ções, institutos e outras formas de entidades Estado português desde a entrada em vigor da
públicas). Constituição de 1976 – só uma parte do terri-
Pelo contrário, só alguns Estados do mundo tório está dividida em regiões politicamente
admitem, no começo do séc. xxi, descentrali- autónomas (no caso português, a parte cor-
zação política, através da existência e funciona- respondente aos arquipélagos dos Açores e
mento de províncias ou regiões politicamente da Madeira); as restantes partes do território
autónomas, cujos órgãos de governação exer- do Estado podem ser ou não divididas em re-
cem algumas funções políticas, de natureza le- giões ou outra modalidade de circunscrições
gislativa e governativa, a par dos órgãos cen- admitidas pela Constituição e pela lei, com
trais do Estado. Enquanto a descentralização maior ou menor (ou nenhuma) autonomia
A utonomia ¬ 83
finanças públicas e direito financeiro, os quais bilateral ou sinalagmática, e também são in-
podem ser subdivididos, mais especificamente, cluídas nos tributos –, para além dos poderes
como o são habitualmente, em: para lançar, liquidar e cobrar esses tributos.
(iv-a) autonomia orçamental regional, ati- Em todas as situações de autonomia regional
nente ao domínio orçamental ou financeiro enunciadas, e noutras que poderiam ser en-
em sentido estrito (poderes autónomos para saiadas e especificadas, os poderes atribuídos à
a aprovação e também para a execução anual região autónoma devem ser sempre exercidos
do Orçamento da região autónoma, que, em em conformidade com e dentro dos limites do
geral, à imagem do Orçamento do Estado, disposto na Constituição, nos estatutos pró-
contém a previsão e a autorização política para prios de autonomia regional e ainda em outras
a cobrança de todas as receitas e para a reali- leis aplicáveis, em articulação e sem prejuízo
zação de todas as despesas públicas regionais de um conjunto delimitado de poderes polí-
durante o período da respetiva vigência – de ticos, legislativos e financeiros constitucional-
1 de janeiro a 31 de dezembro de cada ano mente reservados para o Estado central.
civil – em conformidade com múltiplas dispo- Atendendo à complexidade e às especificida-
sições específicas); des das várias dimensões de autonomia regio-
(iv-b) autonomia patrimonial regional, que nal, cujos conteúdos e significados são dinâmi-
abrange um conjunto de poderes através dos cos, porque variam com o decurso do tempo
quais os órgãos de governo próprio e os órgãos e por todo o tipo de influências, em especial
da administração pública regional, legalmente do legislador mas não apenas dele, também
subordinados aos primeiros, procedem à aqui- dos seus múltiplos intérpretes (designadamen-
sição, administração e disposição dos bens que te do Tribunal Constitucional), bem assim do
passarão a integrar, já integram ou deixarão modo como têm sido exercidos os diversos
de integrar o património (duradouro, não du- poderes por parte dos seus principais aplica-
radouro, imobiliário, mobiliário, de tesoura- dores, que são os titulares dos órgãos de Go-
ria...) da região autónoma; verno regional, e por outros entes, enfim, por
(iv-c) autonomia creditícia regional, que en- tudo isso justifica-se o desenvolvimento de di-
volve os poderes jurídicos necessários à contra- ferentes dimensões da autonomia regional em
ção ou emissão (venda), à gestão e ao reem- alguns textos autónomos, ora mais gerais ora
bolso (aquisição) de títulos de dívida pública mais específicos (a começar, sistematicamente,
da região autónoma e de outros entes públicos quanto aos primeiros, por Região autónoma.
regionais; Tendo a autonomia regional por ponto de
(iv-d) autonomia tributária regional, maxi- referência central a região autónoma, impor-
me autonomia fiscal regional, que pode in- ta observar que tanto esta última como aque-
cluir os poderes habilitantes para a criação, la podem ser entendidas em sentidos diversos,
modificação e extinção de tributos (maxime enquanto conceito, enquanto instituição jurí-
de impostos), que constituem receitas públicas dico-política, enquanto realidade social.
coativas exigíveis a todos os sujeitos jurídicos, Se a explicação teórica da noção de região
públicos ou privados, no território regional, de se situa no plano conceitual, a sua qualifica-
que é credora a região autónoma – entre os tri- ção política e jurídica basear-se-á no respeti-
butos evidenciam-se os impostos propriamente vo posicionamento na teoria geral do Estado,
ditos, dada a sua grande relevância financeira, tendo em vista determinar, designadamente,
mas incluem-se igualmente as designadas con- qual o seu significado preciso, qual o grau de
tribuições especiais, que, apesar de algumas autonomia “política” e “administrativa” pre-
especificidades financeiras, são, do ponto de tendido, quais os respetivos limites no quadro
vista jurídico, verdadeiros impostos, com na- do Estado e como foi historicamente (ou está
tureza patrimonialmente unilateral, o que não a ser) concretizado o processo de autonomia
se verifica no caso das taxas, que têm natureza regional.
A utonomia ¬ 85
Em vez de procurar uma eventual noção “im- físicas (território) e humanas e sociais (popula-
possível” de região autónoma ou de autono- ção) subjacentes a qualquer circunscrição ad-
mia regional, dadas as condições da explicação ministrativa “de população e território”, antes
teórica e a multiplicidade das possíveis concre- complementa-as decisivamente, sem deixar de
tizações históricas, pode enveredar-se por uma realçar a circunstância de estarmos perante
abordagem mais sociológica da região através um novo ente jurídico, ao qual foi atribuído
do estudo da dimensão social da população um determinado complexo de direitos e obri-
regional à luz da experiência (o que se pre- gações (através do qual se viabiliza o relacio-
tende com a instituição desta ou daquela re- namento com outros entes ou sujeitos, sejam
gião, ou quais as relações que se têm em vista privados, públicos – de nível superior, de nível
com o meio social), com os riscos de constan- inferior ou sem uma relação de hierarquia –
te ou mesmo vertiginosa mutação do objeto ou com outra natureza), e ainda de identificar
estudado. a região como uma realidade política e jurídi-
Do ponto de vista do Estado, os fenómenos ca, mas também social e culturalmente dinâ-
do regionalismo político e também da regiona- mica, simultaneamente conformada por toda
lização podem consistir numa fórmula mais ou a realidade que a envolve e igualmente confor-
menos indireta e sofisticada de integração na- madora dessa realidade.
cional, conforme notado a propósito do caso Podemos distinguir pelo menos dois proces-
italiano. sos que se encontram frequentemente na ori-
Do ponto de vista das forças vivas regionais, gem das divisões territoriais nacionais, já men-
a criação e/ou o reconhecimento de regiões cionados anteriormente: a “desconcentração”
políticas pode representar um meio de defe- e a “descentralização” administrativas do apa-
sa ou de salvaguarda de particularismos regio- relho do Estado.
nais, um incentivo ao crescimento e ao desen- No caso de uma situação de mera “descon-
volvimento económico e social da população centração” administrativa de poderes, um ser-
regional, e a garantia e uma participação mais viço público ou um conjunto de serviços do Es-
justa dos habitantes das regiões nos benefícios tado pode passar a exercer competências com
da pertença ao todo nacional. alguma autonomia numa dada circunscrição
Nesta perspetiva, a autonomia regional, para do território nacional, mas também com su-
além de relativa, é também seletiva, no sentido bordinação aos poderes de direção do Gover-
de com ela se pretender filtrar (e congregar) no central (para além da “desconcentração”
as vantagens e (excluir) os inconvenientes do geográfica, fala-se ainda em “desconcentração”
processo de integração ou de coesão nacional. meramente técnica, funcional ou vertical, i.e.,
A dificuldade imediata respeitará à qualificação sem projeção geográfica).
da natureza positiva ou negativa dos fins iden- Se tudo continuar a processar-se no âmbi-
tificados, que as populações envolvidas preten- to da pessoa coletiva Estado, estaremos ainda
dem prosseguir, e talvez mais ainda das, ou de perante uma variante da centralização. Sim-
algumas das, medidas concretamente adotadas plesmente, por razões de eficiência interna, a
com vista a alcançar aqueles ou outros fins. competência para o exercício de determinada
Na ótica da ciência política, a região é um função é atribuída a um órgão “regional” (ou
espaço de exercício autónomo do poder polí- então “central especializado”), no sentido de
tico, enquanto para a ciência do direito a ideia encarregado de uma área territorial inferior
de região corresponde a uma nova entidade ao território nacional (ou de uma tarefa es-
ou pessoa coletiva pública à qual são atribuí- pecial no âmbito da administração central),
das competências relativas a um território de em relação à qual tem (ou se supõe dever
extensão intermédia, inferior ao do Estado e ter) maior conhecimento, em razão da pro-
superior ao das autarquias locais. Esta noção ximidade e das responsabilidades funcionais
não prescinde, sem dúvida, das características específicas.
86 ¬ A utonomia
Diversamente, a região, entendida como ente instância superior. Dispondo o ente descentrali-
político e jurídico autónomo, dotado de pode- zado de atribuições e poderes próprios, prosse-
res de (auto)governo, tendo, no entanto, por guindo interesses próprios, inexiste um poder
referência e por base uma determinada divisão de direção do Estado sobre ele.
territorial do Estado e os cidadãos com uma li- A autonomia regional significa, assim, a facul-
gação jurídico-política relevante a essa divisão dade de o ser racional ditar as leis morais por
territorial, é uma construção recente. que se rege e, no domínio jurídico, significa o
Um dos exemplos pioneiros e mais elucidati- poder de instituir as normas jurídicas próprias.
vos do regionalismo político moderno no sen- Neste quadro teórico, ao considerar-se in-
tido aqui mencionado, o italiano, surgiu, ou suficiente a autonomia local e provincial para
foi reconhecido como tal, somente após a Se- representar cabalmente a realidade social do
gunda Guerra Mundial, com a Carta Constitu- país e para alcançar a maior eficiência do Esta-
cional de 1948. do, o movimento regionalista tem normalmen-
Pode sustentar-se, com Batista Machado, que te por objetivo oferecer uma nova forma de
o Estado deve reconhecer a liberdade dos entes organização dos poderes públicos a um nível
organizativos infraestatais, em nome de um considerado mais adequado para a articulação
princípio superior de direito assente num im- territorial das modernas funções públicas, in-
perativo ôntico-normativo limitador do âmbito cluindo a função de intervenção e de orienta-
de competência do poder, em nome de uma re- ção sobre a economia e de melhor organização
lação profunda entre descentralização adminis- do território, evitando ao mesmo tempo even-
trativa e estrutura liberal do Estado. tuais fraturas entre o Estado nacional e outros
Neste contexto, para ser verdadeiramente le- entes públicos locais, i.e, sem prejudicar a auto-
gítimo, o poder democrático da maioria reuni- nomia e o autogoverno das autarquias de nível
do no Estado deve respeitar as autonomias ou inferior.
esferas próprias de competências das entidades A configuração das regiões ou comunidades
infraestatais, tendo, por conseguinte, de con- autónomas no seio dos Estados varia muito com
finar-se à respetiva esfera própria. Segundo o os países, podendo traduzir-se, juridicamente,
autor citado, não pode considerar-se democráti- na vigência de um estatuto unitário ou homogé-
ca a desconsideração ou o não reconhecimento neo, idêntico para as diversas regiões, ou então
de autonomia de organização e de gestão às co- de estatutos variados ou heterogéneos, mais ou
letividades, que lhes pertence por natureza pró- menos diferenciados consoante as particulari-
pria. A igualdade sem liberdade (o direito à au- dades regionais neles previstas.
to-organização e à autodeterminação) constitui, Em Itália, e.g., existem as regiões de “estatu-
assim, deturpação da democracia. to ordinário” e as regiões de “estatuto especial”,
Se o Estado é do povo, a autodeterminação po- fundadas em especificidades regionais (existên-
lítica deve ser reconhecida como algo que lhe é cia de fortes minorias linguísticas, de movimen-
anterior e superior. As competências do Estado, tos separatistas, ou de outras particularidades
enquanto “facto de autoridade” que se impõe, históricas, culturais ou naturais), cujo estatuto
têm de ficar limitadas sob pena de esse poder tem divergido com as alterações legislativas. En-
privar os cidadãos da liberdade de se auto-orga- contramos uma diferenciação de algum modo
nizarem e de se autodeterminarem em quadros comparável entre as comunidades autónomas
organizatórios diversos, por eles escolhidos. espanholas, de “regime comum” e de “regime
Ao invés da participação política, em que o especial”, com particularidades designadamen-
quadro da ação se encontra predeterminado, te no plano financeiro e tributário.
na descentralização deparamo-nos perante a Outra distinção permite contrapor as comu-
ideia de auto-organização e de autodetermi- nidades ou regiões de “via lenta” às de “via rá-
nação política, segundo um princípio de auto- pida”, conforme o momento histórico de trans-
nomia, por forma independente de qualquer ferência das competências regionais.
88 ¬ A utonomia
A França, e.g., fiel à sua história centralizado- regional ocorreu com a Constituição de 1976,
ra, manteve durante muito tempo os departa- que erigiu os arquipélagos dos Açores e da Ma-
mentos – criados na época da Revolução, segun- deira em “regiões autónomas dotadas de estatu-
do uma lógica centralizadora (o Estado é uno; tos político-administrativos próprios”, sem pre-
os departamentos não são mais do que secções juízo de o Estado se manter unitário (art. 6.º).
de um mesmo todo) e artificial, i.e., sem apro- Isso não significa que a tradição não tivesse
veitamento das divisões territoriais sedimenta- sido de ampla autonomia de decisão adminis-
das pela história – para aí instalar os agentes do trativa e política insular, resultante das dificul-
Estado, sem embargo de um avanço no sentido dades de comunicações e também da estrutura
do processo descentralizador (com a lei de 2 de relativamente descentralizadora do regime an-
março de 1982). As medidas de descentralização tigo, com as donatarias iniciais, extintas pelo
são relativamente recentes, nunca atingindo ou marquês de Pombal, e com os capitães-gene-
se aproximando dos extremos regionalistas, por rais, nomeados por Filipe II, para os Açores e
vezes à beira da independência, tal como expe- para a Madeira.
rimentados em alguns países vizinhos, sobretu- Com o advento da monarquia liberal, procu-
do em Espanha (sendo disso exemplo maior a rou-se integrar os dois arquipélagos num mo-
Catalunha), mas também, persistentemente, na delo jurídico-institucional e financeiro que os
Bélgica, entre outras situações. aproximasse de circunscrições ou autarquias e
Só em 1955 foram previstos, em França, por centros de decisão regionalizados, semelhan-
decreto, “programas de ação regional”, com tes aos existentes no território continental
reagrupamento dos departamentos em 21 cir- europeu, caracterizados pela centralização e
cunscrições regionais, para efeitos de prosse- uniformização, ambas facilitadas pela relativa
cução do desenvolvimento económico e do proximidade geográfica e por mutações técni-
ordenamento do território. O projeto de lei cas, incluindo a modernização verificada nos
submetido a referendo em abril de 1969 pre- transportes marítimos e nas telecomunicações,
via a transformação das circunscrições regio- ao longo dos sécs. xix e xx.
nais em coletividades dotadas de uma assem- O conhecimento dos problemas regionais
bleia eleita. A derrota por sufrágio popular do e locais e a resposta aos mesmos tornaram-se
projeto legislativo manteve em aberto o deba- muito mais céleres no decurso do liberalismo
te entre os defensores do “poder regional” nos monárquico e republicano, permitindo uma
confins do federalismo e os defensores do re- adaptação e assimilação regionais aos proces-
gionalismo prudente e temperado, defendido sos decisórios adotados para as autarquias e
pelo Presidente Pompidou. centros de decisão e de interesses desconcen-
A lei de 5 de julho de 1972 manteve na “re- trados do território continental.
gião” a natureza de circunscrição administra- Em 1836, com Passos Manuel, foram criados
tiva do Estado para efeitos económicos e tam- três distritos insulares nos Açores e um na Ma-
bém reconheceu “personalidade regional”, deira. Esta uniformização administrativa, con-
sob a forma de um estabelecimento público jugada com altas de preços e a extinção do
com atribuições, órgãos e recursos próprios. Tribunal da Relação dos Açores e das juntas ge-
A região tornou-se em coletividade descen- rais, contribuiu para o subsequente desconten-
tralizada pela lei de 2 de março de 1982, embo- tamento populacional e, por fim, para o movi-
ra as eleições dos respetivos órgãos só tenham mento autonomista.
sido concretizadas em 1986. As sucessivas re- A necessidade de atribuir maiores pode-
formas deixaram intacta a divisão regional ini- res aos distritos insulares conduziu, por fim,
cial (tendo sido acrescentada, em 1976, uma ao estabelecimento do regime autonómico,
nova região – Île-de-France – às 21 iniciais). descentralizador, de João Franco e Hintze Ri-
Quanto a Portugal, conforme já foi referido, beiro, instituído pelo dec. de 2 de março de
a grande viragem em matéria de organização 1895, alterado posteriormente e aplicado
A utonomia ¬ 89
Tribunal de Contas nos dois arquipélagos, em Na Madeira, foi criada uma junta de pla-
conformidade com o art. 92.º do mencionado neamento pelo dec.-lei n.º 138/75, de 18 de
estatuto. março, depois junta regional (nos termos do
Tudo somado, e recorrendo à elucidativa sín- dec.-lei n.º 101/76, de 3 de fevereiro), en-
tese feita por Sousa Franco, “a descentralização quanto nos Açores surgiu uma junta admi-
era limitada e sempre meramente administrati- nistrativa e de desenvolvimento regional, por
va, sem base nem conteúdo político (democrá- força do dec.-lei n.º 458-B/75, de 22 de agos-
tico ou outro), além de ser evidente a asfixia to, com alterações introduzidas depois pelo
financeira, com ‘receitas de vida e despesas de dec.-lei n.º 100/76, de 3 de fevereiro. Neste
morte’ (Armando Cândido); daí que o regime, último arquipélago, após uma divisão por dis-
a par da sangria emigratória, agravasse o sub- tritos, evoluiu-se para um órgão de governo
desenvolvimento, em vez de permitir atacá-lo”. único, com poderes decisórios sobre todo o
Esta situação social e politicamente muito di- território.
fícil ou mesmo insuportável deu origem, mais As juntas regionais, nomeadas pelos órgãos
nos Açores do que na Madeira, ao surgimen- do poder central revolucionário, eram pre-
to de pensadores e de correntes de opinião sididas pelo governador militar e integravam
ideológicas ou cívico-políticas a reivindicar ora seis vogais especializados nas diferentes áreas
maior autonomia, ora até o separatismo, par- administrativas. Competia-lhes elaborar regu-
ticularmente em dois momentos históricos: lamentos administrativos e executar no respe-
durante a recessão económica subsequente a tivo arquipélago os poderes que, no território
1891 e durante a Primeira República. Em vá- continental, cabiam aos ministros do Gover-
rias ocasiões, os movimentos separatistas aço- no central, ficando ainda incumbidas de pre-
rianos conseguiram concentrar grande prota- parar a transferência dos serviços periféricos
gonismo, tanto no território insular, como nas do Estado para a futura administração pública
comunidades emigrantes, sobretudo nos Esta- regional.
dos Unidos da América. Ao abrigo de amplas delegações de poderes
Por tudo o descrito, não se duvidará que as do Governo central, as juntas regionais insula-
transformações ocorridas nos arquipélagos da res deram expressão a tendências autonomis-
Madeira e dos Açores a meio da déc. de 70 tas e, por vezes, separatistas, em especial nos
do séc. xx, nos domínios político-administra- Açores, certamente estimuladas pelo contraste
tivo, financeiro, social e cultural, tenham sido político e ideológico verificado entre os terri-
das mais significativas em toda a sua história, tórios continental e os dois arquipélagos.
representando, seguramente, desde o povoa- Neste contexto histórico específico, teceram-
mento inicial até ao presente, a mais impor- -se as condições para a transferência de pode-
tante alteração estrutural global desde a da res dos órgãos de governação nacional para os
época dos descobrimentos – sem prejuízo da órgãos de governação própria dos Açores e da
respetiva consolidação nos anos e décadas Madeira, no respeitante aos serviços públicos
seguintes. de âmbito exclusivamente regional, referindo-
Com os Governos provisórios da República, -se a esse propósito uma espécie de pré-auto-
durante o período revolucionário pré-demo- nomia política regional, na expressão de Sousa
crático, entre o golpe de 25 de Abril de 1974 Franco, precisamente porque o novo regime
e a aprovação da Constituição portuguesa de de autonomia política regional só ficaria con-
1976, os governadores de distrito e as juntas sagrado com a aprovação da Constituição por-
gerais foram suspensos, tendo sido criadas em tuguesa de 1976, ainda hoje em vigor.
sua substituição juntas de governo para cada As alterações fundamentais em matéria de
um dos arquipélagos, dos Açores e da Madeira, autonomia regional ficaram logo consagradas
com algumas adaptações de pormenor e apa- com a criação da região autónoma pela nova
gamento gradual dos governadores. Constituição.
A utonomia ¬ 91
A região autónoma tornou-se, daí em dian- da conformidade das leis (também regionais)
te, no novo centro de exercício do poder po- com a Constituição e outras leis fundamentais
lítico democrático próprio regional, integra- do ordenamento jurídico, em especial a Co-
do num verdadeiro Estado regional – apesar missão Constitucional e, posteriormente, o Tri-
de, conforme referido, não se ter chegado a bunal Constitucional.
acolher esta designação no texto da Constitui- Após a receção de qualquer decreto do Go-
ção –, por influência sobretudo dos deputados verno regional que lhe tenha enviado para as-
madeirenses e açorianos eleitos pelo Partido sinatura, o representante da República deve as-
Popular Democrático (PPD, posteriormente siná-lo ou recusar a assinatura, comunicando
designado Partido Social Democrata – PSD) e por escrito o sentido dessa recusa ao Governo
inspiração no Estado regional italiano, estabe- regional, o qual poderá converter o decreto
lecido pela Constituição transalpina de 1974, em proposta a apresentar à Assembleia Legis-
e ainda noutras situações europeias de regio- lativa Regional (n.º 4 do mesmo art. 233.º da
nalismo insular autónomo (ilhas do Canal, no Constituição). O representante da República
Reino Unido, e ilhas Faröe e Gronelândia, na exerce ainda o direito de veto nos termos dos
Dinamarca). arts. 278.º e 279.º da Constituição (fiscalização
O reconhecimento de poderes legislativos e preventiva da constitucionalidade).
governativos próprios da região autónoma é a Em Portugal, por se tratar de um “Estado
característica principal típica do regionalismo unitário regional”, o poder legislativo encon-
político português e das suas “regiões políticas” tra-se repartido entre os órgãos legislativos cen-
ou “político-administrativas”, a qual permite trais (a Assembleia da República e o Governo
estabelecer uma distinção clara relativamente da República) e o ou os órgãos legislativos re-
à forma tradicional e menos intensa de auto- gionais (maxime a Assembleia Legislativa, não
nomia, de natureza meramente administrativa. sendo no entanto exclusiva, mas antes partilha-
A capacidade de as regiões autónomas portu- da com o Governo regional, a respetiva com-
guesas produzirem normas jurídicas tem ape- petência, designadamente, para regulamentar
nas por limite vago os princípios gerais do or- a legislação regional, exercer poder tributário
denamento jurídico do Estado, apesar de a sua próprio nos termos da lei ou definir atos ilíci-
determinação rigorosa tender a levantar (não tos de mera ordenação social e respetivas san-
raramente enorme) controvérsia, como suce- ções, conforme disposto no n.º 1 do art. 232.º
deu já em vários momentos mais ou menos da Constituição).
críticos da experiência das regiões autónomas As matérias de âmbito nacional cabem aos
portuguesas. A resolução desses conflitos é re- órgãos legislativos soberanos do Estado, en-
metida, em última instância, para o órgão in- quanto as matérias de âmbito regional consti-
cumbido da assinatura e ordem de publicação tuem o objeto das leis dimanadas dos órgãos
oficial dos decretos legislativos regionais e dos legislativos regionais, repartição que ficou re-
decretos regulamentares regionais, o represen- forçada, a partir de determinada altura, com a
tante da República – que, após a receção de alusão constitucional, no art. 6.º/1, ao princí-
qualquer decreto da Assembleia Legislativa da pio da subsidiariedade, enquanto trave orien-
região autónoma que lhe seja enviado para as- tadora da organização do Estado.
sinatura, ou da publicação da decisão do Tribu- As relações entre o poder central do Estado
nal Constitucional que não se pronuncie pela e o poder regional (das regiões autónomas), e
inconstitucionalidade de norma dele constan- entre estes dois poderes e o poder local (das
te, deve assiná-lo ou então exercer o seu direi- autarquias locais), tendem a gerar dificulda-
to de veto, solicitando nova apreciação do di- des e, por vezes, conflitos muito sérios. Essas
ploma em mensagem fundamentada (n.º 2 do dificuldades serão praticamente inevitáveis,
art. 233.º da Constituição) – bem assim para o pelo menos em momentos politicamente mais
órgão ou órgãos encarregados da fiscalização delicados, dada a divergência de interesses
92 ¬ A utonomia
envolvidos: nacionais, regionais e locais. As re- Assim, em vez de uma tutela “intrínseca”, es-
lações que necessariamente se estabelecem tabelecendo o conteúdo e o sentido de deci-
entre os vários níveis de governação, em áreas sões ou os interesses a realizar e um rumo de
tão díspares (do ordenamento do território e atuação, a “tutela” sobre as coletividades terri-
urbanística ao saneamento e à proteção am- toriais autónomas não pode atentar contra a
biental, para além da dimensão e da repartição sua “autodeterminação”, i.e., contra a defini-
do financiamento, entre tantas outras), não as- ção e expressão livre de interesses próprios, re-
sentam sempre em interesses comuns mas sim, gionais ou locais (pressuposto da existência de
em muitos casos, em interesses divergentes ou uma região ou de uma autarquia local), distin-
contrapostos, de arbitragem complexa e difí- tos do interesse geral (do Estado).
cil, ou mesmo impossível, sobretudo, mas não Enquanto na tutela institucional interna pre-
apenas, quando a lei não prevê uma solução valece sempre a vontade superior, na tutela
explícita para esses conflitos. sobre os entes territoriais, pelo contrário, o seu
A fim de melhor alcançar um ponto de justo exercício é feito por órgãos que não podem
equilíbrio entre os interesses comuns (nacio- definir os interesses em jogo, procedendo a
nais) e os interesses particulares regionais (ca- uma mera delimitação externa da respetiva
racterizados pela diversidade), têm sido pro- autonomia.
postos e estabelecidos diferentes mecanismos Apesar de uma certa relação de supraor-
de conciliação. denação, a tutela externa restringe-se, por-
Entre os diversos mecanismos destinados a tanto, a uma coordenação de interesses e de
promover a boa relação entre o Estado e os vontades divergentes. A incumbência de de-
entes regionais, encontramos os “represen- fender o interesse nacional e o respeito pela
tantes” da República, aos quais são atribuídas legalidade resultam da própria Constituição
essas funções, dando lugar por vezes a algu- para os órgãos de soberania, no quadro das
ma hostilidade regional, eventualmente por suas competências, sendo por isso indiferen-
simbolizarem ou lembrarem uma espécie de te que uma lei eventualmente declare a abo-
controlo de tipo colonial, pondo porventu- lição da tutela, mais como forma de profissão
ra em risco o próprio estatuto autonómico. de fé política do que de uma realidade jurí-
Para as regiões autónomas portuguesas, foi dica (para recorrer ao juízo de René Chapus,
criada, inicialmente, a figura dos ministros a propósito da lei francesa de 2 de março de
da República, depois representantes da Repú- 1982).
blica (aos quais se refere o atual art. 230.º da Como a tutela não se presume, pode limi-
Constituição). tar-se ao poder de desencadear um controlo a
Debateu-se se se justifica falar em tutela do exercer por outra entidade (o tribunal, para
Estado sobre as entidades públicas descentrali- fiscalização da legalidade) ou então abranger
zadas. Se é manifestamente descabido o para- ainda outros poderes: de aprovação, de autori-
lelismo com os estatutos de “menoridade” e de zação e de anulação de atos ou até de substitui-
“incapacidade”, que justificam a “tutela” civil, ção de uma ação não realizada (mas nunca os
será ainda de tutela que se trata, mas num sen- poderes de instrução e de reforma).
tido diverso, típico do direito público, quando Neste caso, o controlo restringe-se, em regra,
nos referimos aos poderes de controlo exerci- à apreciação a posteriori da legalidade dos atos
dos pelo Estado sobre aquelas entidades. Trata- da autoridade descentralizada por parte de ór-
-se, no entanto, de uma “tutela especial”, “radi- gãos independentes (tribunais administrativos,
calmente diversa” da exercida pelas entidades financeiros). Se abrangesse a oportunidade
públicas territoriais sobre os institutos delas dos atos, fazendo prevalecer os pontos de vista
dependentes, encarregados de assegurar um da autoridade central, o grau de autonomia
determinado interesse por aquelas definido e restringir-se-ia até ao ponto de a pôr em risco e
representado. provocar a sua erosão completa.
A utonomia ¬ 93
poderes económicos e financeiros das regiões autónomas pela jurisprudência integrar considerações ambientais na toma-
do Tribunal Constitucional”, in MIRANDA, Jorge, e SILVA, Jorge Pereira da
(orgs.), Estudos de Direito Regional, Lisboa, Lex, 1997, pp. 567-584; FRANCO, da de decisão sobre a sua aprovação e no de-
António Sousa, Finanças Públicas e Direito Financeiro, 4.ª ed., Coimbra, senvolvimento socioeconómico. O objetivo é
Almedina, 1994; Id., “As finanças das regiões autónomas. Uma tentativa
de síntese”, in MIRANDA, Jorge, e SILVA, Jorge Pereira (orgs.), Estudos de
reduzir o impacto ambiental e promover um
Direito Regional, Lisboa, Lex, 1997, pp. 515-566; GONÇALVES, José Renato, nível elevado de proteção do ambiente, testan-
“Regionalismo político e desenvolvimento regional. Nos 33 anos das regiões
autónomas portuguesas”, in MIRANDA, Jorge (coord.), Estudos em Homenagem
do a sua conformidade com o desenvolvimen-
ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, vol. i, Lisboa/Coimbra, Faculdade de Direito to sustentável.
da Universidade de Lisboa/Coimbra Editora, 2010, pp. 509-556; GOUVEIA,
O procedimento termina numa declaração
Jorge Bacelar, A Autonomia Legislativa das Regiões Autónomas Portuguesas,
Lisboa, Ediual, 2012; MACHADO, João Baptista, Participação e Descentralização, que provê as entidades competentes com in-
Democratização e Neutralidade na Constituição de 1976, Coimbra, Almedina,
formação sobre as consequências ambientais
1982; MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, vols. iii e v, Coimbra,
Coimbra Editora, 2011 e 2014; MORAIS, Carlos Blanco de, A Autonomia das atividades projetadas, requer que as deci-
Legislativa Regional, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito sões a tomar sejam influenciadas por essa in-
de Lisboa, 1993; PALAZZOLI, Claude, Les Régions Italiennes. Contribution à
l’Étude de la Décentralisation Politique, Paris, Librairie Générale de Droit et de formação e institui um mecanismo que possibi-
Jurisprudence, 1966. lita a participação das pessoas potencialmente
José Renato Gonçalves afetadas.
Trata-se de uma exigência com arrimo no di-
reito internacional e no direito europeu. No
Avaliação do impacto plano do direito internacional, há que consi-
derar, por um lado, as previsões de convenções
ambiental
internacionais que dispõem sobre essa ava-
A avaliação do impacto ambiental de proje- liação, como é o caso da Convenção sobre a
tos públicos e privados e de planos e progra- Avaliação dos Impactos Ambientais num Con-
mas que possam ter efeitos significativos no texto Transfronteiriço, de 25/02/1991 (apro-
ambiente é o procedimento que se destina a vada pelo dec. n.º 59/99, de 17/12, publicada
no DR, n.º 292, Série I-A, de 17/12/1999), prevista em diversos atos legislativos (a título
do art. 14.º (“Avaliação de impacte e minimi- de exemplo, cf. arts. 8.º e 101.º, alínea f), e
zação dos impactes adversos”) da Convenção n.os 4.8/4, 5.2/1-b), 6/6.3 do Anexo I, n.º 7 da
das Nações Unidas sobre a Diversidade Bio- Parte I e n.º 6 da Parte II do Anexo XI do Re-
lógica, de 20/05/1992 (aprovada pelo dec. gulamento n.º 1303/2013 do Parlamento Eu-
n.º 21/93, de 21/06, in DR, I Série-A, n.º 143, ropeu e do Conselho da UE, de 17/12/2013,
de 21/06/1993) e do art. 206.º (“Avaliação dos regulamento geral dos fundos estruturais e de
efeitos potenciais de atividades”) da Conven- investimento; e arts. 4.º, n.º 3, e 13.º, n.º 4, da
ção das Nações Unidas sobre Direito do Mar diretiva 2012/18/UE do Parlamento Europeu
(aprovada pela Resolução da Assembleia da e do Conselho, de 04/07/2012, relativa ao con-
República n.º 60-B/97, de 14/10, in DR, I-Série trolo dos perigos associados a acidentes graves
A, n.º 238, de 14/10/1997). Por outro lado, há que envolvem substâncias perigosas).
que ter presente o reconhecimento pelo Tri- Por outro lado, no direito da UE, a avaliação
bunal Internacional de Justiça e pelo Tribunal de impacto ambiental é objeto de uma disci-
Internacional do Direito do Mar da “obrigação plina específica: i) relativamente aos efeitos de
de avaliação de impacto ambiental […] como determinados projetos, públicos e privados, no
uma obrigação geral do direito internacional ambiente (diretiva 2011/92/EU do Parlamen-
costumeiro” (respetivamente, TRIBUNAL IN- to Europeu e do Conselho, de 13/12/2011,
TERNACIONAL DE JUSTIÇA, “Pulp Mills…”, JO L 26 de 29.01.2012, p. 1, alterada pela di-
ac. de 20 abr. 2010, §204, e TRIBUNAL INTER- retiva 2014/52/UE do Parlamento Europeu
NACIONAL DO DIREITO DO MAR, “Respon- e do Conselho de 16/04/2014, JO L 124 de
sibilities and Obligations…”, advisory opinion 25/04/2014, p. 1), a qual harmoniza as exigên-
de 1 fev. 2011, §145); e, bem assim, a sua afir- cias fundamentais da avaliação de impacto am-
mação como princípio na “Declaração da Con- biental de tais projetos nos Estados-Membros;
ferência das Nações Unidas sobre Meio Am- ii) e relativamente aos efeitos de determina-
biente e Desenvolvimento”, realizada no Rio dos planos e programas no ambiente (direti-
de Janeiro, de 3 a 14 de junho de 1992. va 2001/42/CE do Parlamento Europeu e do
À luz da jurisprudência do Tribunal Euro- Conselho, de 27 de junho de 2001, JO L 197
peu dos Direitos do Homem, sobre o direito de 21/7/2001, p. 30), com maior abrangência
ao respeito da vida privada e familiar e do do- espacial, temporal e contextual, que introduz,
micílio (art. 8.º da Convenção para a Proteção numa fase inicial de opções de desenvolvimen-
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fun- to, considerações ambientais como, e.g., as mu-
damentais, de 04/11/1950, aprovada pela lei danças climáticas e a biodiversidade.
n.º 65/78, de 13/10, in DR, I Série, n.º 236, O regime jurídico da avaliação de impacto
de 13/10/1978), sempre que os procedimen- ambiental dos Estados-Membros é estrutura-
tos de decisão pública envolvam “complexas do por estas diretivas cuja interpretação foi
questões ambientais e de política económica” sendo escalpelizada pela jurisprudência do
devem implicar “investigações e estudos ade- Tribunal de Justiça da União Europeia. Assim
quados” para que os efeitos prejudiciais no é no caso português, respetivamente, com o
meio ambiente e a afetação dos direitos das dec.-lei n.º 151-B/2013, de 30/10, alterado
pessoas sejam previstos e avaliados antecipa- pelo dec.-lei n.º 47/2014, de 24/03, e com o
damente e seja “definido um justo equilíbrio dec.-lei n.º 232/2007, de 15/06, alterado pelo
entre os vários interesses conflituantes em dec.-lei n.º 58/2011, de 04/05, que têm igual-
jogo” (e.g., acórdão do Tribunal Europeu dos mente referência fundamental no art. 18.º da
Direitos do Homem, de 02/11/2006, Giaco- lei de bases do ambiente (lei n.º 19/2014, de
melli contra Itália, proc. n.º 59909/00, n.º 83). 24/03). Aplicam-se às Regiões dos Açores e da
A avaliação de impacto ambiental no direi- Madeira, sem prejuízo das adaptações decor-
to da União Europeia (UE) está, por um lado, rentes da estrutura própria da Administração
A valia ç ã o do impacto ambiental ¬ 97
Fig. 2 – Pontão do ilhéu da Cal do Porto Santo (fotografia de Virgílio Gomes, 2016).
Regional Autónoma. As autoridades locais, re- segunda categoria é: i) auxiliada pela fixação
gionais e nacionais estão vinculadas a conside- de limiares ou critérios, os quais visam facili-
rar o conjunto normativo agora referido nos tar a apreciação sobre se um projeto está su-
limites das referidas legislação e jurisprudên- jeito à obrigação de avaliação de impacto am-
cia europeias. biental e não subtrair de antemão o mesmo
Nos termos do regime resultante destas dis- a essa obrigação; ii) e/ou feita numa análise
posições, os projetos sujeitos a avaliação de caso a caso, pela aferição da suscetibilidade
impacto ambiental são: i) os projetos de de- de terem efeitos relevantes no ambiente a
terminadas categorias em relação aos quais partir dos referidos critérios de seleção. Su-
é certo que têm um impacto significativo jeitas a avaliação de impacto ambiental estão
no ambiente, identificados normativamen- também as alterações ou ampliações que re-
te como tais; ii) e os projetos que, não tendo configurem os projetos por referência aos re-
necessariamente um tal impacto em todos os feridos parâmetros e/ou em termos de impac-
casos, o podem ter, considerando (como cri- tos negativos importantes no ambiente.
térios de seleção) as características do projeto A decisão relativa à (des)necessidade de ava-
(e.g., a sua dimensão e riscos para a saúde hu- liação do impacto ambiental “deve conter ou
mana), a sua localização (i.e., a “sensibilida- ser acompanhada de todos os elementos que
de ambiental das zonas geográficas suscetíveis permitam fiscalizar que a mesma se baseia
de serem afetadas pelos projetos”) e o tipo e numa verificação prévia adequada” à luz dos
as características do impacto ambiental que critérios pertinentes (acórdão do Tribunal
lhe estão associados (e.g., em termos de área de Justiça das Comunidades Europeias, atual
abrangida e de duração e reversibilidade dos Tribunal de Justiça da União Europeia, de
efeitos). A determinação dos projetos desta 10/06/2004, C-87/02, n.º 49; tribunal a que se
98 ¬ A valia ç ã o do impacto ambiental
A “finalidade da diretiva 2001/42, que con- qual o Tribunal de Justiça das Comunidades
siste em garantir um nível elevado de prote- Europeias censurou o facto de o direito espa-
ção do ambiente”, impõe uma interpretação nhol não assegurar, então, a avaliação do im-
extensiva das suas disposições. Nestes termos, pacto ambiental de todos os fatores referidos
não está excluída de avaliação do impacto am- no texto e, por conseguinte, também a sua in-
biental a revogação, parcial ou total, de um teração (n.os 36 e 37).
plano ou de um programa suscetível de ter Quando está em causa um sítio da lista na-
efeitos significativos no ambiente, na medida cional de sítios, um sítio de interesse comu-
em que envolva a modificação dos “efeitos am- nitário, uma zona especial de conservação ou
bientais que foram avaliados” e importe “uma uma zona de proteção especial, as “incidên-
alteração da planificação prevista nos territó- cias ambientais” das “ações, planos ou proje-
rios afetados” (ac. de 22 mar. 2012, C-567/10, tos não diretamente relacionados com a ges-
n.os 33 e 34). tão” respetiva e não necessários para a mesma
O regime de avaliação de impacto ambien- devem, quando suscetíveis de ter nele impac-
tal admite derrogações em relação a alguns to significativo, ser avaliadas à luz dos objeti-
projetos ou que a avaliação ocorra em outros vos da sua conservação (dec.-lei n.º 140/99,
termos. É o caso, por um lado, dos projetos de 24/04, alterado e republicado pelo dec.-
que respeitam à defesa nacional e dos que -lei n.º 49/2005, de 24/02, maxime, arts. 7.º,
têm como único objetivo a resposta a casos de n.º 2, alínea c), e 10.º).
emergência civil; e, por outro lado, dos proje- A aprovação de projetos, planos e progra-
tos objeto de ato legislativo nacional específi- mas que possam ter um impacto significativo
co. No caso dos planos e programas, podem no ambiente só deve ser concedida depois da
ser excluídos de procedimento de avaliação do respetiva avaliação ambiental. A “qualificação
impacto ambiental os destinados unicamente à de uma decisão como ‘aprovação’” segundo o
defesa nacional ou à proteção civil e os planos direito nacional deve fazer-se em conformida-
e programas financeiros ou orçamentais. de com o direito da UE, que reserva para si a
A avaliação do impacto ambiental deve iden- noção (ac. de 4 maio 2006, C‑290/03, n.º 41).
tificar, descrever e avaliar de modo adequado, A aprovação é o ato permissivo do projeto,
em função de cada caso particular, os efeitos plano ou programa, sem o qual não podem ser
ambientais diretos e indiretos, “secundários, realizados ou executados. O efeito útil daque-
cumulativos, a curto, médio e longo prazo, la avaliação reconduz ao conceito de aprova-
permanentes e temporários, positivos e nega- ção, designadamente uma decisão de fixação
tivos” (nota 1 ao anexo IV à diretiva 2011/92/ de novas condições e “de aprovação de aspe-
UE) de um projeto sobre: i) a “população e saúde tos abrangidos pelas novas condições”, como
humana”; ii) a “biodiversidade, com particular pode acontecer, e.g., no quadro da “retoma de
ênfase nas espécies e habitats protegidos pela uma exploração mineira” (ac. de 7 mar. 2004,
Diretiva 92/43/CEE do Conselho e pela Dire- C-201/02, n.º 47).
tiva 2009/147/CE do Parlamento Europeu e A “simples verificação da existência de uma
do Conselho”; iii) a “terra, solo, água, ar e al- ‘aprovação’” pode não dar “uma resposta
terações climáticas”; iv) os “bens materiais, pa- completa no que se refere à obrigação” de
trimónio cultural e paisagem”; v) e a inter-rela- uma avaliação dos efeitos de um projeto no
ção entre os mesmos. Na aferição dos efeitos, ambiente, sendo também “necessário anali-
deve incluir-se, se o projeto o justificar, a sua sar a questão do momento em que deve ser
vulnerabilidade quanto aos riscos de acidentes efetuada essa avaliação” (ac. de 7 jan. 2004,
graves e/ou de catástrofes. A necessidade da C-201/02, n.º 49). A avaliação deve, em prin-
investigação e análise ser, nestes termos, com- cípio, ter lugar assim que seja possível iden-
pleta, pode ser ilustrada pelo ac. de 16 mar. tificar e avaliar todos os efeitos que o proje-
2006, Comissão contra Espanha, C-332/04, no to pode ter no ambiente. Deste modo: i) num
100 ¬ A valia ç ã o do impacto ambiental
tamanho, pelo seu bico mais curto e pela colo- ovo. É uma ave marinha de médio porte, que
ração mais escura do dorso cinzento e da cabe- no mar se distingue pelo facto de a parte in-
ça. Alimenta-se de pequenos camarões, peque- ferior das asas ser de cor escura, contrastando
nos peixes e plâncton, que captura através de com o peito e ventre branco, e por apresentar
mergulhos pouco profundos ou à superfície da um voo distinto, efetuando “Vs” pronuncia-
água. dos. Considerou-se que se tratava da mesma
Roque-de-castro, Hydrobates castro (Harcourt espécie que ocorre em Cabo Verde, mas estu-
1851) – A ave marinha mais pequena que ni- dos morfométricos, acústicos e genéticos con-
difica no arquipélago, sendo menor que um firmaram a sua separação, permitindo a sua
melro Turdus merula. É facilmente reconhecida classificação como espécie endémica do ar-
por apresentar plumagem quase toda negra, à quipélago da Madeira. Em 2015, a população
exceção de uma barra branca junto à cauda. no Bugio foi estimada entre 160 a 180 casais
reprodutores. Alimenta-se de peixes, crustá-
ceos (tipo camarão) e, em especial, de cefaló-
podes (lulas).
Freira-da-madeira, Pterodroma madeira (Ma-
thews 1934) – Ave endémica da ilha da Ma-
deira que nidifica apenas nos picos mais ele-
vados da mesma, entre o Pico do Areeiro e o
Pico Ruivo. É considerada a ave marinha mais
ameaçada da Europa e julgou-se extinta até
aos finais da déc. de 1960, altura em que foi
redescoberta por Paul Alexander Zino. O seu
Fig. 3 – Roque-de-castro (fotografia de Porto Santo Verde, 2015). nome inglês, Zino’s petrel, é um reconhecimen-
to ao trabalho desenvolvido por este ornitólo-
Em Portugal, nidifica nas Berlengas, nos Aço- go. Desde o período da sua redescoberta, a es-
res e na Madeira. No arquipélago da Madeira, pécie foi alvo de trabalhos de conservação, de
está presente em todas as ilhas e apresenta duas forma a recuperar o seu habitat de nidificação
populações que nidificam em períodos distin- e evitar o ataque por predadores introduzi-
tos: a população de verão, que está presente dos, tais como ratos e gatos. A sua população
entre abril e setembro, e a população de inver- foi crescendo lentamente até 2010, perío-
no, que se reproduz entre setembro e março. do em que se estimava a existência entre 65
Aproveita pequenos buracos entre pedras, fen- a 80 casais. Em agosto de 2010, um violento
das de rochas e muros de pedra para construir incêndio consumiu uma parte significativa do
os seus ninhos, que são de reduzida dimensão.
Alimenta-se exclusivamente de pequenos orga-
nismos vertebrados e invertebrados, que captu-
ra à superfície do mar.
Freira-do-bugio, Pterodroma deserta (Mathews,
1934) – Ave que nidifica apenas no Bugio,
uma das três ilhas Desertas. O seu período
reprodutor ocorre entre junho e dezembro
e os ninhos estão concentrados no planalto
sul do Bugio e em algumas zonas de escarpa
adjacente. Estes ninhos são escavados no solo
e formados por um túnel, que pode atingir
mais de um metro de profundidade, tendo no Fig. 4 – Freira-da-madeira (fotografia do Parque Natural da Ma-
final uma cavidade onde é colocado um único deira, 2008).
106 ¬ A ves
Fig. 5 – Cagarra ou pardela em voo (fotografia de Thomas Fig. 6 – Patagarro, estrapagado, papagarro ou boieiro (fotografia
Dellinger, 2010). de Virgílio Gomes, 2008).
A ves ¬ 107
Coruja ou coruja-das-torres, Tyto alba schmitzi Santo e na Madeira, está amplamente distribuí-
(Hartert 1900) – É a única ave de rapina no- da, ocupando praticamente todos os habitats,
turna a residir no arquipélago, nidificando nas tais como áreas abertas, áreas florestais, áreas
ilhas da Madeira, do Porto Santo e também nas agrícolas e até mesmo áreas urbanas, desde a
ilhas Desertas. Distribui-se ao longo de toda costa até aos picos mais elevados, a 1800 m de
a ilha da Madeira, entre as zonas litorais e as altitude. A subespécie B. b. harterti, que é endé-
zonas de cotas menos elevadas. As suas áreas de mica do arquipélago da Madeira, tem colora-
ocorrência estão particularmente associadas à ção castanha avermelhada, com cauda cinzen-
presença humana, ocorrendo em zonas rurais ta clara. O ventre pode ser castanho-escuro,
e urbanas, evitando normalmente as áreas flo- uniforme ou listrado, e manchado de amarelo
restadas. A subespécie T. a. schmitzi, que é en- esbranquiçado. Em 2015, a população da Ma-
démica do arquipélago da Madeira, apresenta deira e do Porto Santo foi estimada em cerca
o mesmo padrão de coloração que a sua con- de 300 aves. Apresenta uma alimentação varia-
génere continental; no entanto, é bem mais da, que inclui pequenos mamíferos (murgan-
pardacenta. A sua alimentação é composta so- hos e coelhos), assim como aves, répteis, anfí-
bretudo por pequenos roedores e, em menor bios e insetos.
escala, por morcegos, aves e insetos. Poupa, no Porto Santo conhecida por pim-
Fura-bardos ou gavião, Accipiter nisus granti pão, Upupa epops (Linnaeus 1758) – Uma das
(Sharpe 1890) – No arquipélago da Madei- aves mais fáceis de identificar, pela sua silhue-
ra, ocorre apenas na ilha da Madeira, sendo ta, a coloração alvinegra das asas, o bico com-
uma ave de rapina própria de ambientes flo- prido e curvo, e a sua poupa, que abre em se-
restais, quer sejam de laurissilva ou pinhal, de micírculo. O canto, embora em tom baixo,
preferência que apresentem um sub-bosque também é distintivo. Nidifica exclusivamente
arbustivo. Pode ainda ser observada perto de no Porto Santo; no entanto, existem registos
campos agrícolas, em áreas abertas e áreas ur- da sua presença em todas as ilhas do arquipé-
banas, que utiliza como área de caça. A subes- lago da Madeira. Ocorre essencialmente em
pécie A. n. granti ocorre apenas nos arquipé- áreas abertas e secas, de vegetação rasteira,
lagos da Madeira e das Canárias, sendo mais que apresentem núcleos arbustivos, em áreas
escura no dorso que a espécie nominal, e mais agrícolas e em campos de golfe. É sempre ob-
listrada no ventre. Esta subespécie apresenta servada isolada ou aos pares, e constrói os
também um acentuado dimorfismo sexual, seus ninhos em cavidades de árvores, montes
não só ao nível da coloração da plumagem, de pedras e ruínas. Alimenta-se de insetos e
mas também nas dimensões. Embora se saiba suas larvas.
que ocorre de forma dispersa pela Ilha, em
2015 o seu efetivo populacional não era co-
nhecido, principalmente por ser uma ave de
hábitos discretos, voo rápido e difícil observa-
ção. Alimenta-se de uma diversidade de aves,
tais como pombo-trocaz, pombo-da-rocha,
tentilhão, melro-preto, canário, entre outros
passeriformes.
Manta, Buteo buteo harterti (Swann 1919) –
Ocorre nas ilhas da Madeira e do Porto Santo.
Até 1996, também nidificava nas Desertas, mas
após a eliminação dos herbívoros, a espécie
abandonou as ilhas, não havendo, em 2015,
indícios da sua nidificação, embora seja fre-
quentemente observada nestas ilhas. No Porto Fig. 9 – Poupa ou pimpão (fotografia de Porto Santo Verde, 2015).
110 ¬ A ves
Fig. 10 – Francelho em voo (fotografia de Virgílio Gomes, 2019). Fig. 11 – Toutinegra (fotografia de Virgílio Gomes, 2015).
Francelho, Falco tinnunculus canariensis (Koenig também está amplamente distribuída, sendo
1889) – Ocorre em todas as ilhas do arquipéla- possível observá-la desde a beira-mar até aos
go, embora não existam, em 2015, registos da picos de maior altitude. No arquipélago da Ma-
sua nidificação nas Desertas e Selvagens. Pode deira, nidifica a subespécie S. a. Heineken, que
ser encontrado em praticamente todos os habi- também ocorre na Península Ibérica, no Norte
tats terrestres e a diferentes faixas altitudinais, de África e nas Canárias. Esta é marcadamente
mas procura essencialmente áreas abertas com mais escura e mais pequena. Alimenta-se, em
vegetação herbácea e arbustiva, núcleos de pi- especial, de insetos, mas também pode consu-
nhal disperso, áreas agrícolas e áreas urbanas, mir frutos e bagas.
onde facilmente pode encontrar as suas presas. Cigarrinho, Sylvia conspicillata orbitalis (Wahl-
A subespécie F. t. canariensis, que ocorre apenas berg 1854) – Ocorre nas ilhas da Madeira e
nos arquipélagos da Madeira e das Canárias, é, do Porto Santo. Na Madeira, distribui-se de
de forma geral, mais escura. A cabeça do macho forma descontínua, estando presente prefe-
apresenta um cinzento mais escuro e é mais lis- rencialmente em áreas abertas onde predomi-
trada, enquanto o dorso é castanho mais escu- nam espécies arbustivas como a Urze, a Giesta
ro e com manchas pretas maiores. O dorso da e a Carqueja, concentrando-se na parte oeste
fêmea é muito mais listrado e as penas superio- e central da Ilha. No Porto Santo, distribui-
res da cauda são de um cinzento-azulado. Ali- -se preferencialmente pela faixa litoral sul da
menta-se de murganhos, lagartixas e insetos. ilha. A subespécie S. c. orbitalis é endémica da
Toutinegra, Sylvia atricapilla heineken (Jardine Macaronésia e ocorre também nas Canárias e
1830) – Nidifica apenas nas ilhas da Madeira em Cabo Verde, caracterizando-se por ser mais
e do Porto Santo, mas a nidificação nesta últi- escura e mais colorida que a espécie nominal.
ma ilha só foi confirmada nos primeiros anos Apresenta coroa cinzenta mais escura, dorso
do séc. xxi. É uma ave relativamente comum, castanho mais escuro e asas mais acastanhadas
uma vez que apresenta uma grande adaptabi- no macho, sendo o dorso da fêmea também
lidade a locais criados pelo Homem, tais como mais escuro. A sua alimentação é predominan-
meios agrícolas, jardins e parques do interior temente insectívora, podendo, no entanto,
de cidades. Embora procure áreas arborizadas, consumir também frutos e bagas.
a sua presença na floresta laurissilva é quase Bis-bis, Regulus madeirensis (Harcourt 1851) –
nula, preferindo as zonas limítrofes à mesma É a ave mais pequena que ocorre nas ilhas
e áreas de floresta exótica. No Porto Santo, da Madeira e do Porto Santo, embora, nesta
A ves ¬ 111
Tentilhão, Fringilla coelebs madeirensis (Sharpe marginais de florestas ou bosques, quer sejam
1888) – Subespécie endémica que, nestes ar- indígenas ou exóticos. No Porto Santo e nas
quipélagos, ocorre apenas na ilha da Madeira. Desertas, ocupa áreas mais áridas. Alimenta-
É uma espécie comum nas áreas de laurissilva -se de sementes e de outras matérias vegetais,
e floresta exótica, mas também pode ser en- podendo ocasionalmente consumir pequenos
contrada em algumas áreas agrícolas. É uma invertebrados.
das aves mais sociáveis que ocorre na Ilha, Verdilhão, Carduelis chloris (Linnaeus 1758) –
sendo fácil a sua observação ao longo das leva- No arquipélago da Madeira, nidifica exclusi-
das e dos parques de merendas. A subespécie vamente na ilha da Madeira. Já foi considera-
F. c. maderensis distingue-se, relativamente à da uma ave rara, mas em 2015 a sua presença
sua congénere europeia, por apresentar plu- podia ser detetada ao longo de grande parte
magem mais colorida e pelo canto ser mais da Ilha. Ocorre em jardins, parques urba-
alto e mais melodioso. Ao nível da coloração nos e cemitérios, áreas de floresta exótica
da plumagem, as diferenças são mais notó- pouco densa, e em áreas agrícolas e espa-
rias no macho, que apresenta peito rosado, ços de floresta de transição perto delas. De
dorso verde acastanhado e cabeça mais azu- forma geral, está ausente do interior de gran-
lada. Alimenta-se sobretudo de sementes e de des manchas florestais, tal como a laurissil-
outras matérias vegetais, mas durante o perío- va, preferindo as áreas limítrofes. É pouco
do de reprodução consome principalmente frequente a altitudes elevadas, sendo geral-
invertebrados. mente rara acima dos 1000 m. Alimenta-se
Canário-da-terra, Serinus canaria (Linnaeus de uma grande variedade de sementes, bagas
1758) – Espécie endémica da Macaronésia, e insetos.
que ocorre nos arquipélagos dos Açores, da Pintassilgo, Carduelis carduelis parva (Tshusi
Madeira e das Canárias. Ocorre em todas as 1901) – É a ave mais colorida da avifauna do
ilhas do arquipélago, exceto nas Selvagens, e arquipélago, nidificando apenas nas ilhas da
pode ser encontrado em distintos habitats e a Madeira e do Porto Santo, embora nesta úl-
várias altitudes. No verão, em especial, apa- tima a nidificação só tenha sido confirmada
rece em alguns dos picos mais altos da ilha no começo do séc. xxi. Nas Desertas, também
da Madeira, mas, em geral, ocorre em áreas foi detetada a sua presença no ilhéu Chão e
urbanas, áreas abertas com vegetação rastei- no Bugio. Pode ser observada desde em áreas
ra ou pouco densa, áreas agrícolas e áreas à beira-mar até aos pontos mais elevados da
114 ¬ A ves
Fig. 17 – Pintarroxo (fotografia de Virgílio Gomes, 2010). Fig. 18 – Patos-mandarins (fotografia de Virgílio Gomes, 2010).
A ves ¬ 115
Porto Santo, sendo a única ilha do arquipé- 2009. Os seus ninhos são construídos em ca-
lago onde ocorre. Está presente em diver- vidades localizadas em árvores. A colonização
sas reservas de água, desde que as mesmas da ilha da Madeira resultou de aves domésti-
apresentem nas margens vegetação densa ou cas que escaparam ou de libertação intencio-
arbustos. Tal como ocorreu em Inglaterra e nal das mesmas. Frequenta diversos jardins e
na Europa, o estabelecimento de uma popu- parques, desde que neles estejam presentes es-
lação no Porto Santo será resultado de aves pécies de plantas tropicais de que se possa ali-
domésticas que escaparam ou de libertação mentar. Alimenta-se essencialmente de semen-
intencional das mesmas. São aves omnívoras, tes e frutos.
baseando a sua alimentação em sementes, Bico-de-lacre, Estrilda astrild (Linnaeus 1758) –
minhocas e insetos. Ave originária do continente africano, em es-
Rola-turca, Streptopelia decaocto (Frivaldszky pecial de regiões a sul do Sahara. Esta é a espé-
1838) – Espécie com ampla distribuição global, cie de ave exótica mais abundante na Madeira.
que no final do séc. xx apresentou uma rápida Supõe-se que a introdução ocorreu através de
expansão natural na Europa. Na Macaronésia, aves que escaparam de gaiola e que se estabe-
está bem estabelecida nas Canárias, onde nidi- leceram. A sua introdução na ilha do Porto
fica em todas as ilhas exceto El Hierro, mas a Santo data de 1978, enquanto na Madeira exis-
sua colonização nos arquipélagos da Madeira e tem registos desde 1986. Para nidificar utiliza
dos Açores é posterior; está amplamente distri- caniçais, canaviais, sebes (normalmente bem
buída pelo Porto Santo, sendo observada em desenvolvidas e próximas de água), matas ri-
áreas urbanas, parques e jardins, onde constrói beirinhas com denso coberto arbustivo e zonas
os seus ninhos em árvores de grande porte. Na cultivadas. Na ilha da Madeira, encontra-se em
ilha da Madeira, ocorre apenas numa peque- diversos locais próximos de ribeiras e lagoas,
na área do Caniçal, onde tem sido observada tais como Machico e Lagoa do Lugar de Baixo.
desde 2004. Também já tem sido observada Alimenta-se de sementes, mas por vezes tam-
nas Desertas e Selvagens, embora não existam bém de insetos.
registos da sua nidificação. Desconhece-se a Lugre, Carduelis sinica (Linnaeus, 1766) – Ave
origem desta população, nomeadamente se é originária do continente europeu e asiático,
resultante de um fenómeno de colonização na- que se encontra bem distribuída desde a Euro-
tural ou se tem origem em fugas ou na liber- pa Ocidental e a Rússia meridional até à costa
tação de aves de cativeiro. Esta espécie é facil- do oceano Pacífico. O lugre era considerado
mente identificada por ser do tamanho de um uma espécie acidental no arquipélago da Ma-
pombo e apresentar plumagem cinzento claro, deira, até que a sua nidificação foi confirmada
com parcial colar preto no pescoço. Alimenta- na ilha da Madeira em 2002, quando foi ob-
-se principalmente de grãos de cereais e outras servado um adulto a alimentar uma cria. Este
sementes, podendo também ingerir as partes registo ocorreu numa área de lazer situada na
verdes das plantas, invertebrados e pão. vertente sul da ilha, a cerca de 1200 m de alti-
Periquito-rabijunco, Psittacula krameri (Sco- tude, que apresenta um estrato arbóreo bem
poli, 1769) – Ave de origem africana e asiática desenvolvido, dominado por espécies intro-
que se assemelha a um periquito, mas de maio- duzidas, como pinheiros e abetos. Durante os
res dimensões, e que pode ser detetada pelos últimos anos, a espécie tem sido detetada em
seus chamamentos roucos e estridentes quan- diversos locais da Madeira, sempre em áreas
do em voo. Ocorre apenas na ilha da Madeira dominadas por coníferas e, de forma geral, em
e os primeiros registos da espécie em liberda- associação com linhas de água e pequenos ca-
de datam do ano 2000, com a observação de nais. Pelo facto de a espécie ter sido registada
aves isoladas ou em pequenos bandos. Embora no arquipélago da Madeira ao longo de vários
existam registos dispersos pela Ilha, a sua nidi- anos, a sua introdução na avifauna regional po-
ficação apenas foi confirmada no Funchal em derá ter sido um processo natural ou derivado
116 ¬ A ves
Aves visitantes
Embora o arquipélago da Madeira esteja
fora das principais rotas migratórias segui-
das pelas aves que nidificam na Europa e mi-
gram para África, existem registos de cerca
de 337 espécies de aves visitantes que podem
ser observadas regularmente ou apenas aci-
dentalmente. Aqui são apresentadas algumas Fig. 19 – Pardela-preta em voo (fotografia de Virgílio Gomes,
das espécies cuja presença tem sido registada 2015).
zonas com grande abundância de insetos, e.g. entre os meses de março e abril. Ocorre essen-
junto a ribeiras e lagoas, onde captura as pre- cialmente em áreas abertas com afloramentos
sas em voo. rochosos e vegetação herbácea (desde a bei-
Laverca, Alauda arvensis (Linnaeus 1758) – É a ra-mar até aos locais de maior altitude da Ma-
cotovia (passeriforme de pequeno porte típico deira) e em áreas agrícolas. Alimenta-se essen-
de zonas áridas) mais comum e com maior dis- cialmente de insetos e outros invertebrados,
tribuição pelo continente europeu, que ocupa embora também ingira bagas.
grande parte do Norte e Leste da Europa. Faz Lavandeira-de-fora ou alvéola-branca, Mota-
pequenas migrações, deslocando-se para o Sul cilla alba (Linnaeus 1758) – Nidifica em grande
da Europa e as áreas mediterrânicas. Apresen- parte do continente europeu, desde as áreas
ta um voo característico, que se distingue pelo mediterrânicas até o círculo polar ártico. In-
facto de pairar ligeiramente antes de pousar. verna no sul do Mediterrâneo, e em áreas tro-
É uma invernante regular no arquipélago da picais e subtropicais do continente africano.
Madeira, ocorrendo entre os meses de outu- No arquipélago da Madeira, é uma espécie in-
bro e fevereiro. Pode ser encontrada em áreas vernante que está presente entre os meses de
abertas com vegetação pouco desenvolvida e outubro e abril, e ocorre numa grande diversi-
áreas mistas de matos, desde a beira-mar até dades de habitats, tais como áreas abertas com
aos picos mais elevados da ilha da Madeira, e, vegetação rasteira, zonas urbanas, orla costei-
por vezes, em terrenos agrícolas. Forma ban- ra, prados e terrenos agrícolas. De forma geral,
dos que podem atingir dezenas de indivíduos. é observada isolada ou em pequenos bandos
Apresenta uma dieta variada que inclui plan- até três indivíduos. Alimenta-se de invertebra-
tas e animais, embora folhas, grãos e sementes dos, que captura no solo, sobre vegetação ras-
sejam mais importantes no outono e inverno. teira, na superfície da água ou em pleno voo.
Rabirruivo-comum, Phoenicurus ochruros Escrevedeira-das-neves, Plectrophenax nivalis
(Gmelin 1774) – Nidifica ao longo das áreas (Linnaeus 1758) – Nenhuma outra ave terres-
mediterrânicas e das áreas com temperaturas tre apresenta uma área de nidificação tão a
amenas do continente europeu. A maior parte norte, nidificando nas ilhas do Oceano Árti-
da população europeia não efetua longas mi- co, na Gronelândia, Islândia e Noruega. A sua
grações, embora se possa deslocar até o Nor- principal área de invernada é a Europa central
deste de África. É uma ave invernante, que está e setentrional. Embora o arquipélago da Ma-
presente no arquipélago da Madeira entre os deira esteja situado a sul da sua área normal
meses de outubro e março, ocorrendo prefe- de invernada, no começo do séc. xxi tem sido
rencialmente em áreas abertas com vegetação anualmente observada nos picos mais elevados
rasteira, desde a beira-mar até aos picos mais da ilha da Madeira. Ocorre durante os meses
elevados da ilha da Madeira, assim como em de outono e inverno, em pequenos bandos de
rochas na orla costeira. De forma geral, é ob- 3 a 10 indivíduos. A sua alimentação baseia-
servada isolada, não formando bandos. A sua -se essencialmente em sementes e pequenos
dieta é dominada por pequenos invertebrados, invertebrados.
que captura no solo, frutos e bagas.
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A ves marinhas pelágicas ¬ 123
por Ernesto Schmitz em 1903, quando alguém da freira-da-madeira, que afinal não estava ex-
lhe trouxe uma ave das serras de Santo Antó- tinta e cuja nidificação viria a ser confirmada
nio, Funchal. Na altura, o próprio identificou a 16 de junho desse ano naquele local. Desde
a ave que lhe trouxeram como sendo freira-do- então e até à déc. de 1980, foram feitas visi-
-bugio (Oestrellata feae, depois designada de Pte- tas noturnas regulares à área de nidificação no
rodroma deserta), que ele sabia que nidificava no pico do Areeiro por um grupo de ornitólogos
ilhéu do Bugio, Desertas, de onde já tinha obti- amadores, que incluíam P. A. Zino, F. Zino, Ma-
do alguns exemplares. Após a saída de Ernesto nuel Biscoito, Henrique Costa Neves, Donato
Schmitz da Madeira, em 1908, pouco mais se Caires, Miguel Mendes Moreira, Edward Ger-
ouviu falar da freira-da-madeira ao ponto de, rard e Elizabeth Zino, que mais tarde constituí-
na déc. de 1950, ter sido considerada extinta. ram uma associação para a proteção da nature-
Em 1963, G. E. Maul organizou uma expedi- za denominada FCP-Freiras-Associação para a
ção científica às ilhas Selvagens. Nessa viagem, Conservação e Proteção da Natureza da Madei-
entre outros, encontravam-se C. Jouanin e F. ra, cujo papel foi crucial na salvaguarda desta
Roux do Laboratório de Ornitologia do Museu espécie.
de História Natural de Paris, como também Em 1985, numa das visitas aos locais de nidi-
P. A. Zino e seu filho Francis Zino. Estes de- ficação por F. Zino e Henrique Costa Neves, foi
senvolveram vários estudos sobre as aves do ar- encontrado apenas um ovo e roído por ratos,
quipélago, incluindo excelentes gravações das o que os alertou para uma predação muito pe-
vocalizações da freira-do-bugio. rigosa para a sobrevivência da espécie. A 12 de
Entre 1967 e 1968, P. A. Zino e os ornitólo- junho de 1986, Manuel Biscoito e F. Zino con-
gos franceses realizaram várias visitas à área seguiram apanhar uma freira-da-madeira, que
sobranceira ao Curral das Freiras para tentar foi anilhada com a anilha n.º J01150. Pesava
ouvir o chamamento da freira-da-madeira, mas 185 g e foi o primeiro indivíduo desta espécie
sem sucesso. Uma vez mais, a ideia de que as a ser anilhado.
aves estavam extintas foi lançada, mas G. E. Alan Buckle, da empresa fitofarmacêutica
Maul estava convencido de que existia uma pe- britânica ICI, e Andy Swash, do Ministério da
quena colónia ainda não descoberta, porque, Agricultura, Pescas e Alimentação do Reino
em 1941 e 1951, dois juvenis da freira-da-ma- Unido, planearam, em 1986, um sistema para
deira foram encontrados no Funchal, com cer- eliminar a predação dos ratos sobre as aves,
teza atraídos pelas luzes da cidade, e levados que consistia na colocação de veneno em cai-
para o Museu Municipal. xas de madeira feitas para o efeito, que impe-
P. A. Zino, considerando que a freira-do-bu- diam qualquer tipo de envenenamento aciden-
gio e a freira-da-madeira seriam muito seme- tal da fauna circundante. No início de 1987, a
lhantes, ao ponto de E. Schmitz não ter nota- ICI decidiu não só dar o seu know-how, como
do a diferença entre elas, decidiu, com a ajuda também financiar a compra de material de
de Campos de Andrada, da Direção dos Servi- montanha e todo o veneno necessário (Klerat,
ços Florestais, confrontar os pastores da área Brodifacoum). Desde 1987 até 2004, foi colo-
do Curral das Freiras e do Pico do Areeiro com cada uma série de caixas de veneno, fabrica-
o registo áudio da freira-do-bugio. Depois de das no Museu de História Natural do Funchal,
muitas tentativas, o pastor Lucas do Curral formando um cordão sanitário à volta dos ni-
das Freiras reconheceu os sons, e identificou- nhos. Todas as caixas eram numeradas e visi-
-os como sendo o canto das almas dos pastores tadas regularmente, anotando-se os dados de
que tinham morrido nas montanhas, no pico cada uma. Este trabalho tornou-se um dos pro-
do Cidrão. gramas de controlo de ratos mais longo e com-
Com a sugestão do local, em abril de 1969, pleto a nível mundial.
G. E. Maul, P. A. Zino e F. Zino confirmaram Em 1992, foram encontradas 10 aves mor-
os referidos sons, ouvidos à noite, como sendo tas no local de nidificação, o que na altura
124 ¬ A ves marinhas pelágicas
representava 25 % da população conhecida. desde a costa de Marrocos até aos Açores. Du-
Esta catástrofe deveu-se à predação por gatos rante a época de inverno, as aves distribuem-
assilvestrados. Imediatamente foi montado -se numa área mais vasta, que para sul inclui
um dispositivo de captura destes predadores, o Nordeste Brasileiro, Ascensão e Santa Hele-
tendo sido retirados do local uma média de 10 na e o meio do Atlântico sul, até à latitude da
gatos por ano. Namíbia.
O Serviço do Parque Natural da Madeira Em 2016, a população nidificante de frei-
(SPNM), posteriormente Instituto das Flo- ra-da-madeira não devia exceder os 70 casais,
restas e Conservação da Natureza (IFCN), IP- tendo este número sido muito afetado pela des-
-RAM, manteve o acompanhamento da colónia truição causada pelo incêndio de 2010. A espé-
de freiras da Madeira e a respetiva manuten- cie consta da Lista Vermelha da União Inter-
ção do esquema de controlo de predadores. nacional de Conservação da Natureza (UICN)
O grande incêndio florestal de 13 de agosto (2016) com o estatuto de “em perigo”. A sua
de 2010 atingiu as áreas de nidificação da frei- área de nidificação está protegida no âmbito
ra-da-madeira, destruindo tudo em volta dos da Reserva Geológica e de Vegetação de Altitu-
ninhos e matando, pelo menos, 38 juvenis e de, do Parque Natural da Madeira, criada em
4 adultos, no que se pode considerar uma das 1982, que por sua vez está integrada na Rede
maiores catástrofes conhecidas para a espécie. Natura 2000, como Zona de Proteção Especial
O SPNM iniciou, no mesmo ano, um processo (ZPE) e Zona Especial de Conservação (ZEC).
de recuperação do habitat, com a colocação de Freira-do-bugio – Esta ave, da família Proce-
ninhos artificiais e de cobertura vegetal para o llariidae, é muito próxima da freira-da-madei-
controlo da erosão. Neste ano, apenas um juve- ra, distinguindo-se essencialmente por ter um
nil foi encontrado vivo e foi anilhado. bico mais robusto, ser maior e nidificar numa
A freira-da-madeira, como todos os outros época não coincidente com a da freira-da-ma-
membros da sua família, não se encontra pre- deira. Até 2016, só se conhecia a sua nidifica-
sente todo o ano na Ilha. Os indivíduos repro- ção no ilhéu do Bugio, o mais a sul das ilhas De-
dutores regressam aos seus locais de nidificação sertas. Durante muito tempo foi considerada
em meados de março, seguidos dos pré-repro- uma subespécie de Pterodroma mollis (GOULD,
dutores. A postura tem o seu início por volta 1844) (P. mollis deserta, MATHEWS, 1934) e,
de 15 de maio, com apenas um ovo por casal. mais tarde, como sendo P. feae (SALVADORI,
O ninho é uma câmara no final de uma gale- 1899), que também nidifica em Cabo Verde.
ria escavada no solo – podendo atingir 1,5 m Posteriormente, face às diferenças morfoló-
de profundidade – em pequenos parapeitos – gicas, biológicas e genéticas, foi considerada
chamados mangas – situados nas paredes ro-
chosas de alguns picos do maciço central da
Madeira, a quase 1800 m de altitude. A eclosão
tem lugar no início de julho. Os juvenis são ali-
mentados pelos progenitores alternadamente
até estarem em condições de voar, no final de
setembro, princípios de outubro.
Com recurso à utilização de minúsculos geo-
localizadores colocados numa anilha na pata
da ave, F. Zino e colaboradores conseguiram,
em 2007, determinar as principais áreas no
oceano por onde as freiras da Madeira se dis-
tribuem. Assim, durante o período da reprodu-
ção, as aves não saem do oceano Atlântico nor-
deste, entre o Sul da Islândia e Cabo Verde e Fig. 2 – Freira-do-bugio (fotografia de Virgílio Gomes, 2017).
A ves marinhas pelágicas ¬ 125
A sua longevidade é grande, podendo atin- conjunto do arquipélago da Madeira, este nú-
gir pelo menos 30 anos. Os adultos voltarão mero fosse superior a 45.000.
às Selvagens no início da primavera seguinte Em 2016, a cagarra constava da Lista Verme-
para nova reprodução, havendo grande fideli- lha da UICN com o estatuto de “menor preo-
dade ao parceiro e ao ninho. cupação”. Para além da proteção de que já dis-
Anualmente, e desde 1963, tem lugar a ani- punham, em 2001 as ilhas Selvagens passaram a
lhagem de juvenis nascidos no ano, em alguns integrar a Rede Natura 2000, como ZPE e ZEC.
locais de estudo na Selvagem Grande. Este Patagarro – Esta ave da família Procellariidae
esforço visa obter dados a longo prazo sobre tem nidificação confirmada apenas na ilha da
o comportamento da colónia e a biologia da Madeira, onde foi assinalada pela primeira vez
espécie, bem como contribuir para o conhe- em 1851, e, dada a inacessibilidade da maioria
cimento da sua migração. Para este último as- dos seus ninhos, é talvez a menos estudada no
peto muito tem contribuído a utilização de arquipélago. As aves começam a chegar à Ilha
emissores seguidos por satélite e geolocalizado- em meados de janeiro e a visitar os ninhos em
res. Durante a época de reprodução, os adultos fevereiro, altura em que se pode encontrar um
reprodutores deslocam-se das Selvagens para a grande número de aves pousadas no mar (jan-
costa africana, a fim de se alimentarem na área gadas), ao largo das principais ribeiras da Ma-
de afloramento que existe ao largo de Marro- deira. Já de noite, sobem os vales das ribeiras
cos. Durante o dia, e enquanto decorre a incu- mais fundas até aos ninhos que se situam nas
bação, em regra só um dos progenitores está suas cabeceiras, por vezes a 1000 m de altitu-
no ninho, enquanto o outro está no mar em de. A postura tem lugar em meados de março
alimentação. Após a eclosão, os progenitores (apenas um ovo por casal e por época) e a
vão ao ninho à vez, para alimentar os juvenis. saída dos juvenis dos ninhos dá-se entre o final
Nas Selvagens e ao contrário do que acontece de junho e o início de agosto. Em setembro,
noutras colónias, o regresso das cagarras a terra também é possível avistar patagarros no mar ao
dá-se ainda com luz do dia, criando ao final da largo da Madeira em elevado número. Trata-se,
tarde um espetáculo inigualável de milhares contudo, de aves em migração, provavelmente
de aves em voo a dirigir-se para os ninhos. Após oriundas das colónias nas ilhas Britânicas.
a reprodução, em meados de novembro, pro- Em 2016, esta espécie constava da Lista Ver-
genitores e crias abandonam as ilhas para a sua melha da UICN com o estatuto de “menor
migração anual até aos mares do Atlântico sul, preocupação”, embora se reconhecesse que a
quer para a área do mar da Prata, na Argenti- tendência populacional é decrescente. Na Ma-
na, quer para a área da corrente de Benguela. deira, o patagarro está sujeito a várias ameaças,
Alguns indivíduos chegam a dobrar o cabo da
Boa Esperança e a penetrar no oceano Índico,
até ao canal de Moçambique.
Com a criação da Reserva, a cessação da
caça e o esforço inicial de conservação em-
preendido por P. A. Zino e continuado desde
então pelo SPNM, a colónia de cagarras foi
aumentando progressivamente, também
como resultado da eliminação, em 2003, dos
coelhos e morganhos que existiam na Selva-
gem Grande, introduzidos voluntária e invo-
luntariamente pelo homem na tentativa de
colonização destas ilhas. Em 2016, calcula-
va-se que só na Selvagem Grande existissem Fig. 6 – Patagarro (fotografia de
mais de 29.000 pares reprodutores e que, no Virgílio Gomes, 2008).
128 ¬ A ves marinhas pelágicas
em particular a predação por ratos e, em al- a época de reprodução, quer na sua migração
guns locais, a colheita de juvenis para consumo anual.
humano. Na área do Parque Ecológico do Fun- Como já foi referido, esta espécie, que ocor-
chal, onde se situam alguns ninhos, foi monta- re apenas nos arquipélagos macaronésicos dos
do um esquema de controlo de ratos semelhan- Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde, é
te ao utilizado para a freira-da-madeira. Como pouco comum e o seu estatuto de ameaça não
todas as restantes aves marinhas pelágicas, o foi ainda avaliado pela UICN. Nas Desertas e
patagarro é suscetível de ser atraído pela ilu- nas Selvagens, encontra-se protegida pelo esta-
minação pública e com isso ficar desorientado. tuto das respetivas reservas naturais.
Assim, no final do período de reprodução, é A taxonomia das pardelas pretas e brancas
comum encontrar patagarros juvenis pousados tem sido muito discutida e é até problemáti-
no chão em áreas urbanas; se forem colocadas ca. Devido à sua aparência semelhante a Puf-
à beira-mar à noite, para evitar serem atacadas finus assimilis (pardela associada ao hemisfério
por gaivotas, têm normalmente capacidade de sul), o pintainho foi considerado uma subes-
regressar ao seu meio natural. pécie desta: Puffinus assimilis baroli. Contudo,
A título de curiosidade, refira-se que os pa- estudos genéticos revelaram que o pintainho
tagarros, quando sobem os vales das ribeiras estava mais relacionado com Puffinus lherminie-
à noite, emitem um som característico, o que ri. Em 2016, o seu estatuto não estava ainda de-
levou as pessoas que habitam nesses locais a cidido: enquanto uns autores consideravam o
traduzir onomatopeicamente o seu canto da pintainho uma espécie distinta, Puffinus baroli,
seguinte forma: “Vou para a serra vou lavado, outros consideravam-na ainda subespécie: Puf-
vou para o mar vou cagado!” finus lherminieri baroli.
Pintainho – Pertencente à família Procellarii- Calcamar – Esta pequena ave da família Hy-
dae, esta ave assinalada por E. V. Harcourt em drobatidae deve o seu nome vulgar ao facto
1851 é talvez menos comum do que se pensava de bater com as suas patas na superfície da
e, sendo uma nidificante de inverno é relativa- água, quando se está a alimentar. A subespé-
mente pouco estudada. Nidifica isoladamente cie Pelagodroma marina hypoleuca nidifica ape-
na Madeira e nos ilhéus do Porto Santo e tem nas nos arquipélagos das Canárias e da Madei-
as suas maiores colónias na Selvagem Grande e ra, sendo que na Madeira nidifica apenas nas
nas Desertas, sendo que na primeira a sua po- ilhas Selvagens, que constituem assim o limi-
pulação ronda os 2000 casais. te norte da área de nidificação desta subespé-
A época da reprodução inicia-se em novem- cie, assinalada pela primeira vez em 1895 por
bro-dezembro, com os indivíduos pré-reprodu- Ogilvie Grant. Outras cinco subespécies de Pe-
tores a visitarem os ninhos, que na Selvagem lagodroma marina são conhecidas e distribuem-
Grande estão localizados em fendas rochosas -se pelos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico,
ou no interior dos muros de pedra que lá exis- sendo a subespécie P. m. eadesorum, que nidi-
tem. Por vezes, estas aves utilizam ninhos deso- fica em Cabo Verde, a que se encontra mais
cupados de cagarras e de almas negras. É pro- próxima.
vável que o início da postura ocorra em finais Os calcamares, cuja população na Selvagem
de fevereiro e a saída dos juvenis do ninho em Grande se estima em cerca de 40.000 pares, ni-
finais de maio, início de junho. No período da dificam maioritariamente em locais específicos
reprodução, os adultos regressam a terra de do planalto, o Chão dos Calcamares e o Chão
noite e em noites escuras cantam continua- dos Caramujos. Fazem os ninhos em galerias
mente. O seu canto cessa de imediato com que escavam no solo arenoso e cujas entradas
o aparecimento da lua ou com qualquer luz ficam disfarçadas por entre a vegetação. Desta
artificial. forma, os ovos e os juvenis ficam protegidos
É provável que os pintainhos não se afastem dos predadores, nomeadamente das gaivotas e
muito dos locais de nidificação, quer durante lagartixas.
A ves marinhas pelágicas ¬ 129
Fig. 7 – Calcamar em voo (fotografia de Virgílio Gomes, 2007). Fig. 8 – Roque-de-castro em voo (fotógrafo não identificado).
Na Selvagem Pequena e no ilhéu de Fora, de- Contudo, em 2016, não existiam estimativas
vido às condições de solo muito propícias, o fiáveis do número de casais existente.
calcamar ocorre em número muito superior ao A reprodução desta espécie tem sido alvo de
da Selvagem Grande (mais de 60.000 casais) e, debate, pois já se encontraram ovos em todos
no seu conjunto, estas ilhas contêm a maior co- os meses do ano. Contudo, parece haver dois
lónia desta espécie no oceano Atlântico. picos de abundância de ovos, indiciando a
Tal como os restantes Procellariiformes, os presença de duas populações, uma nidifican-
calcamares também só põem um ovo por ano, do no inverno (novembro-dezembro) e outra
vindo a terra apenas para nidificar. Estão à no verão (junho). Os estudos de genética po-
volta das ilhas a partir de dezembro e a pos- derão lançar alguma luz sobre esta questão
tura tem lugar no final de março, princípios e eventualmente revelar a presença de duas
de abril. A eclosão dá-se entre fim de maio e entidades taxonomicamente distintas. Al-
princípios de junho e, em finais de julho, prin- guns autores colocam esta espécie no género
cípios de agosto, os juvenis abandonam a Ilha. Hydrobates.
Em setembro, já todos os calcamares iniciaram Os ninhos são, em regra, feitos em pequenos
a sua migração anual sendo possível que se des- orifícios fundos, naturais ou artificiais, incluin-
loquem, tal como as cagarras, para os mares do do ninhos abandonados de outras espécies,
Sul durante o inverno. nomeadamente calcamares e almas negras.
Em 2016, o seu estatuto de ameaça não tinha Em 2016, o seu estatuto de ameaça pela
sido avaliado pela UICN. Nas ilhas, os seus UICN foi dado como “menor preocupação”.
maiores inimigos são as gaivotas, já que, dado o Nas ilhas, a sua ameaça maior advém das gai-
estatuto de proteção das Selvagens, a perturba- votas e largatixas, tal como acontece com as
ção humana é negligenciável, desde que haja almas negras e calcamares. Também o excesso
vigilância permanente. de iluminação nas zonas urbanas litorais cons-
Roque-de-castro – O roque-de-castro é uma titui fator de ameaça.
pequena ave marinha pelágica nidificante no No começo do séc. xxi, uma outra espécie
arquipélago da Madeira e pertence à família muito semelhante ao roque-de-castro, o pai-
Hydrobatidae. A espécie foi descrita por E. V. nho de Swinhoe, Oceanodroma monorhis, foi ob-
Harcourt em 1851, com base em exemplares servada na Selvagem Grande, com todas as in-
colhidos na Madeira, daí também ser conhe- dicações de ser nidificante. Porém, não tinha
cida por painho da Madeira. É provavelmen- sido encontrada uma prova inequívoca de que
te mais comum do que parece e nidifica em tal se verificasse.
todas as ilhas do arquipélago, com as colónias Na área oceânica do arquipélago da Madei-
mais importantes nas Desertas e nas Selvagens. ra, podem ainda ser observadas, em certas
130 ¬ A vezac , M arie - A rmand P ascal d ’
os três tripulantes, que vinham apoiar um e, por fim, em 1992, pilotagem, em parceria
avião com uma avaria. As causas deste acidente com o Aeroclube de Torres Vedras. A par-
nunca foram bem apuradas. É, porém, a 19 de tir de 1995, chegaram as aeronaves que fa-
novembro de 1977 que se dá o infame aciden- riam parte da frota do aeroclube, um Cess-
te de um Boeing 727-200 da TAP, o Sacadura na FTB 337 e um Havilland Canada DHC-1
Cabral. O avião, que provinha de Bruxelas via Chipmunk, ambos cedidos pela Força Aérea
Lisboa, tentava aterrar pela 3.ª vez na pista 24 Portuguesa. No séc. xxi, esta instituição dá
do aeroporto de Santa Catarina. Após a apro- formação na área de pilotagem, parapente e
ximação, o avião aterrou muito para além do asa-delta, sendo a sua frota composta por um
normal, entrou em aquaplanagem e saiu pela Piper PA-28 e um Socata TB-10.
cabeceira da pista, que tinha um desnível de
Bibliog.: impressa: FORÇA AÉREA PORTUGUESA, A Aviação na Madeira,
algumas dezenas de metros em relação à estra- Lisboa, By the Book, 2010; Revista da Armada, n.º 476, 2013; digital:
da, partindo-se em dois. Como consequência, “ARTOP – Aero Topográfica, Lda.”, Restos de Colecção, 16 abr. 2012: http://
restosdecoleccao.blogspot.com/2012/04/artop-aero-topografica-lda.html
a TAP deixou de operar o modelo 727 da série
(acedido a 11 dez. 2020); PINTO, Duarte Fernandes, “Ilha da Madeira – Câmara
200 para a Madeira, passando apenas a operar de Lobos”, A Terceira Dimensão, 9 set. 2010: http://portugalfotografiaaerea.
o 727-100, 5 m mais curto, e foi feito o primei- blogspot.com/2010/09/ilha-da-madeira-camara-de-lobos.html (acedido a 11
dez. 2020); SANTOS, José F., “Aviões da AM-Breguet Br.14-A2”, Ex-OGMA, 17
ro aumento da pista de Santa Catarina, de 1600 mar. 2009: https://ex-ogma.blogspot.com/2009/03/avioes-da-am-breguet-
para 1800 m. A nova extensão da pista possibi- br14-a2.html (acedido a 11 dez. 2020).
séc. xx, foram vários os trabalhos publicados, Madeira, publicado em 1997 pela Associação
entre os quais se destaca o livro, em quatro vo- dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal,
lumes, escrito por David Bannerman e Wini- da autoria de Duarte Câmara, e A Conservação e
fred Mary Bannerman, intitulado Birds of the Gestão das Aves do Arquipélago da Madeira, publi-
Atlantic Islands; esta obra, dedicada à avifauna cado pelo Parque Natural da Madeira (PNM)
da Macaronésia, aborda as aves das ilhas Selva- em 1999, da autoria de Paulo Oliveira). Vários
gens no primeiro volume (de 1963 e da auto- outros trabalhos foram publicados na segun-
ria de David Bannerman apenas) e as aves das da metade do séc. xx e nos inícios do séc. xxi
ilhas da Madeira, Desertas e do Porto Santo (e.g., o artigo “Birds of the archipelago of Ma-
no segundo volume (de 1965); ultrapassa, de deira and the Selvagens. New records and che-
longe, em termos de conteúdo, os trabalhos cklist”, publicado por Francis Zino, Manuel
anteriores, que consistiam essencialmente em Biscoito e Paul Alexander Zino e pelos seus co-
listas de aves e em referências a locais de obser- laboradores, em 1995, que veio atualizar a lista
vação; nela, além da listagem das espécies ni- das aves nidificantes de Bernstrom, de 1957).
dificantes e visitantes ocasionais, são incluídos Esta lista, por sua vez, é atualizada, em 2010,
aspetos relevantes referentes à distribuição, à num trabalho de Hugo Romano, Catarina Cor-
taxonomia e à ecologia. Após este trabalho de reia-Fagundes, Francis Zino e Manuel Biscoito.
referência, aumentou o número de publica- Importante é também o livro Aves do Arquipé-
ções sobre aves (e de autores nesta área), os lago da Madeira, de Manuel Biscoito e Francis
quais abordam vários aspetos da biologia, do Zino, publicado em 2002. The EBCC Atlas of Eu-
comportamento, da distribuição, da taxono- ropean Breeding Birds (Atlas das Aves Nidificantes
mia e da conservação das aves no arquipélago na Europa), publicado em 1997 pelo European
da Madeira (e.g., o Guia de Campo das Aves do Bird Census Council, referia as aves dos arqui-
Parque Ecológico do Funchal e do Arquipélago da pélagos da Madeira e Selvagens. Em 2011, o
Fig. 1 – Vertebrados da Madeira, vol. 1 (1948), de Alberto Artur Fig. 2 – Aves do Arquipélago da Madeira (2002), de Manuel
Sarmento. Biscoito e Francis Zino.
136 ¬ A vifauna
ornitólogo Garcia-del-Rey publicou o livro Field são ainda pouco conhecidos. Com um compri-
Guide to the Birds of Macaronesia. Azores, Madei- mento total entre 32 e 34 cm e envergadura
ra, Canary Islands, Cape Verde, relevante para o entre 80 e 86 cm, é mais pequena, mais leve, e
conhecimento e a divulgação da avifauna ma- possui bico e asas menores do que a freira-do-
caronésica. Outro livro a referir é o da autoria -bugio. É uma ave com bico curto, grosso e es-
de Tony Clarke, intitulado Birds of the Atlantic curo. É cinzento-escura no dorso e mais clara
Islands, publicado em 2006. Existe uma pági- na fronte. Em voo, nota-se que a região ven-
na na Internet, Atlas das Aves do Arquipélago da tral é clara e os bordos da cauda são escuros.
Madeira, que é mantida pelo Serviço do PNM e A cauda é clara. As asas formam um V pronun-
pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das ciado e a parte inferior e interna das asas é es-
Aves. cura. Isto diferencia-a de outras aves, exceto da
O número de espécies de aves nidifican- freira-do-bugio (Pterodroma deserta).
tes nos arquipélagos da Madeira e Selvagens Nidifica essencialmente no maciço monta-
ronda as quatro dezenas, mas, se considerar- nhoso central da Madeira, uma zona de prote-
mos as espécies migradoras e as ocasionais, o ção especial (ZPE) integrada na Rede Natura
número ultrapassa as 300 espécies. Destacam- 2000. Chega a esta zona normalmente em fe-
se quatro espécies pelo seu carácter endémico: vereiro ou março; entre março e abril, limpa
Pterodroma madeira, Pterodroma deserta, Columba o ninho, volta em seguida ao mar, e só depois
trocaz e Regulus madeirensis. retorna para fazer a postura – este fenómeno
As aves marinhas são, nalguns casos, difíceis é designado por êxodo pré-postura. Um único
de observar junto à costa durante o dia. Geral- ovo é posto em maio, em túneis geralmente
mente, aproximam-se da costa ao anoitecer e não retilíneos com mais de 1 m de compri-
durante a nidificação, sendo que pelo menos mento, construídos em solo fofo nas encostas
um dos progenitores está escondido no ninho escarpadas dos picos mais altos. Nesta espécie,
durante este período. Durante a sua evolução, os machos e as fêmeas alternam na incubação.
estas aves escolheram ilhas como locais de ni- Deixa o ninho em setembro ou outubro.
dificação por não existirem predadores nelas. As crias nascidas nesse ano só atingem a ma-
Com a chegada do Homem a muitas destas turidade ao fim de seis anos. O efetivo é muito
ilhas, chegaram também com ele vários preda- baixo – 60 a 75 casais reprodutores (de acordo
dores, entre os quais se destacam as ratazanas com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madei-
e os murganhos. Desde então, são inúmeras as ra) –, tendo eventualmente ocorrido alguma
espécies e populações de aves marinhas que redução do mesmo aquando dos incêndios de
enfrentam o perigo de extinção. As aves mari- 2012. É uma das aves mais ameaçadas de extin-
nhas mais comuns nos arquipélagos da Madei- ção, tendo o estatuto de conservação “em pe-
ra e das Selvagens são: rigo” (nos termos da União Internacional para
Freira-da-madeira (Pterodroma madeira (Ma- a Conservação da Natureza (IUCN), de setem-
thews, 1934)) – Também conhecida como alma- bro de 2012). Têm sido realizados vários esfor-
-penada do-cidrão, devido aos sons que emite, ços com vista à proteção da ave – Alexander
semelhantes a uivos, inclui-se na família Proce- Zino e João Gouveia, juntamente com Gun-
llariidae, ordem Procellariiformes. É muito pa- ther Maul e Francis Zino, deram os primeiros
recida com a freira-do-bugio e com o gongon passos neste sentido com o Freira Conserva-
das ilhas de Cabo Verde. É uma ave endémi- tion Project. Programas LIFE e outros projetos
ca da ilha da Madeira e encontra-se em perigo têm decorrido e envolvido a recuperação do
de extinção. Já o P.e Ernesto Schmitz referia a habitat, a eliminação de vertebrados exóticos
sua presença na Ilha em 1903; no entanto, pos- (gatos, ratos, coelhos) e a compra de terrenos
teriormente, e durante muito tempo, foi dada nos picos mais altos. As principais ameaças à
como extinta, sendo “redescoberta” em mea- sobrevivência da freira-da-madeira são a preda-
dos do séc. xx. Vários aspetos da sua biologia ção de ovos e de juvenis pelos gatos e ratos e
A vifauna ¬ 137
espécie têm sido progressivamente debeladas 50 cm de comprimento total, sendo a ave ma-
pelo Serviço do PNM por meio de programas rinha de maior porte dos arquipélagos da Ma-
específicos focados na conservação da espécie deira e das Selvagens, e é facilmente identifi-
e do seu habitat. Em 2006, foi iniciado o Pro- cável pelo seu voo rápido e planado, rente às
jeto SOS Freira-do-Bugio, do Programa LIFE ondas. As asas longas diferenciam-na da gaivo-
‑Natureza, que envolveu, entre outras tarefas, ta; outra característica que a diferencia de ou-
a retirada dos herbívoros introduzidos e a co- tras aves marinhas que nidificam nestes arqui-
locação de ninhos artificiais. A ave consta do pélagos é a cor amarela do seu bico. Esta ave é
anexo ii da Convenção de Berna e do anexo i branca nas superfícies inferiores e acastanhada
da diretiva “Aves”. O local onde nidifica é re- nas superiores.
serva integral e é uma zona da Rede Natura Nidifica em cavidades de rochas e por baixo
2000. Tal como acontece no caso da freira-da- de grandes pedras, nas falésias rochosas ou nos
-madeira, apesar dos avanços no conhecimen- planaltos; nas ilhas Selvagens, nidifica também
to da espécie, muito há ainda por saber acerca no solo, entre a vegetação rasteira. A postura
dela (designadamente sobre a sua distribuição compreende apenas um ovo, do qual eclode
espacial ao longo do ano, principalmente no uma ave que só atingirá a maturidade ao fim de
outono e no inverno). nove anos. Entre dezembro e fevereiro encon-
Cagarra ou pardela-de-bico-amarelo (Calonec- tra-se no hemisfério Sul, perto da costa nordes-
tris diomedea borealis (Cory, 1881)) – Em algu- te do Brasil. Segundo o Atlas das Aves do Arqui-
mas obras, como no já mencionado Field Guide pélago da Madeira existem, no mínimo, 40.000
to the Birds of Macaronesia, de Eduardo Garcia- indivíduos, amplamente concentrados nas
-del-Rey, e na base de dados Avibase, disponí- ilhas Selvagens (38.000 indivíduos). Embora
vel online, há uma alteração de nome, sendo não seja considerada uma ave ameaçada, a cap-
considerada como Calonectris borealis. Inclui-se tura ilegal, a destruição do habitat e a predação
na família Procellariidae e na ordem Procella- por gatos e ratos constituem fatores limitantes
riiformes. É a ave marinha mais avistada entre da espécie. De acordo com o Livro Vermelho e a
março e novembro nos mares do arquipélago IUCN, o seu estatuto é “pouco preocupante”.
da Madeira e do arquipélago das Selvagens, ni- Na Madeira, alguns locais de nidificação da ca-
dificando em todas as suas ilhas. Tem cerca de garra estão em áreas do PNM e são zonas da
Rede Natura 2000. Esta ave faz parte do anexo
i da diretiva “Aves” e do anexo ii da Conven-
ção de Berna. Durante muito tempo, a cagarra
foi caçada, principalmente nas ilhas Desertas e
nas Selvagens; segundo o Elucidário Madeirense,
eram capturados, por homens de São Gonçalo
e do Caniço, cerca de 18.000 indivíduos por
ano nas Selvagens. A cagarra era salgada e le-
vada para a Madeira para ser vendida às classes
mais desfavorecidas; as suas penas eram utiliza-
das sobretudo no fabrico de colchões. A última
expedição para a captura de cagarra nas ilhas
Selvagens partiu do Funchal a 15 de setembro
de 1967. A caça à cagarra foi proibida.
Patagarro (Puffinus puffinus puffinus (Brunnich,
1764), ou simplesmente Puffinus puffinus
(Brunnich, 1764)) – Também conhecido como
Fig. 4 – Cagarra ou pardela (fotografia de Thomas Dellinger,
fura-bucho, pardela-sombria, estapagado, pa-
2010). pagarro e boieiro; alguns destes nomes são
A vifauna ¬ 139
estar sob vigilância permanente nas ilhas De- Procellariiformes. A nível mundial, distribui-
sertas e Selvagens. Esta ave consta do anexo i -se entre as regiões tropicais do Pacífico e do
da diretiva “Aves” e do anexo ii da Convenção Atlântico, ocupando áreas como o arquipélago
de Berna. da Madeira, o arquipélago das Selvagens e ou-
Alma-negra (Bulweria bulwerii (Jardine & Selby, tros arquipélagos da Macaronésia, as ilhas de
1828)) – Ave da família Procellariidae, ordem Ascensão e de Santa Helena, os arquipélagos
Procellariiformes, apresenta uma ampla distri- das Galápagos e do Havai. Trata-se de uma ave
buição mundial, ocorrendo desde a Macaro- de pequeno porte, de coloração negra e com
nésia ao Havai. Na Macaronésia, nidifica nos uma faixa branca no uropígio, sendo a cauda
arquipélagos da Madeira, das Selvagens, dos ligeiramente bifurcada. No arquipélago da Ma-
Açores, das Canárias e de Cabo Verde. Trata-se deira, existem duas populações com tempos de
da ave marinha de menor porte do arquipéla- nidificação diferentes (verão e inverno) e este
go da Madeira. Completamente negra e com facto poderá corresponder à coexistência de
asas pontiagudas (de grande envergadura em duas espécies, a exemplo do que acontece nos
relação ao tamanho do corpo), apresenta um Açores. No arquipélago dos Açores, o grupo
voo rápido e planado. Entre abril e setembro, que nidifica no verão tem a designação de Hy-
nidifica em pequenas ilhas, ilhéus e falésias cos- drobates monteiroi (Bolton et al., 2008), sendo
teiras. A postura consiste em apenas num ovo, que o outro se denomina Hydrobates castro.
que é posto no chão, em buracos no solo ou A população total nos arquipélagos da Madei-
em cavidades nas rochas, por baixo de grandes ra e das Selvagens poderá ser superior a 10.000
pedras e em muros artificiais. Nas ilhas Deser- indivíduos. A postura (de um ovo), em ninhos,
tas e Selvagens, existem mais de 10.000 casais, é efetuada em pequenas ilhas, ilhéus e falésias
sendo provavelmente as Desertas o lugar com costeiras e muros de pedra artificiais; nas Selva-
a maior concentração mundial de indivíduos gens, o roque-de-castro utiliza também ninhos
(no entanto, pouco se sabe sobre o número de calcamar abandonados. As principais amea-
de aves que poderá ocorrer na Madeira e em ças à sobrevivência da espécie são a iluminação
Porto Santo). Antes dos programas de recupe- artificial existente ao longo a costa (principal-
ração de habitats das Desertas e Selvagens, os mente na ilha da Madeira), a predação por ani-
ratos constituíam um sério perigo para a sobre- mais exóticos (como os ratos) e a perda do ha-
vivência da espécie, assim como a captura de bitat em algumas áreas da sua ocorrência. Boa
juvenis para servirem como isco (prática entre- parte da área em que ocorre é reserva integral
tanto extinta). Os ratos, os gatos e as gaivotas e corresponde a zonas da Rede Natura 2000.
constituem ameaças em algumas áreas não su- A espécie está incluída no anexo i da diretiva
jeitas a programas de recuperação. Já em finais “Aves” e anexo ii da Convenção de Berna.
do séc. xx, inícios do séc. xxi, uma ameaça, Calcamar (Pelagodroma marina hypoleuca (Webb,
a formiga-argentina, cresceu e começou a tor- Berthelot & Mouquin-Tandon, 1841)) – Esta
nar-se preocupante, principalmente nas Deser- ave, da família Hydrobatidae, ordem Procella-
tas. A elevada pressão turística, a degradação riiformes, é uma subespécie endémica da Ma-
do habitat e a erosão dos solos constituem tam- caronésia e ocorre no arquipélago das Caná-
bém importantes fatores de risco. O maior nú- rias e no arquipélago das Selvagens (as ilhas
mero de aves que ocorre e nidifica no arqui- Selvagens constituem o extremo norte da sua
pélago da Madeira concentra-se em zonas de distribuição geográfica). É a ave que nidifica
reserva integral e da Rede Natura 2000. Esta em maior número no arquipélago das Selva-
espécie consta do anexo i da diretiva “Aves” e gens, fazendo-o na primavera, em ninhos pro-
anexo ii da Convenção de Berna. fundos escavados no solo. Chega geralmente
Roque-de-castro, paínho-da-madeira, roqui- após o fim do inverno, abandonando as ilhas
nho ou angelito (Hydrobates castro (Harcout, entre junho e agosto. A postura é constituí-
1851)) – Ave da família Hydrobatidae, ordem da por um ovo apenas. Trata-se de uma ave
A vifauna ¬ 141
é muito semelhante à daquela. Na Madeira, “esguia”, pelo peito amarelo e pelo movi-
é mais frequente na Ponta de São Louren- mento característico, vertical e cadenciado,
ço, no Pico do Arieiro e na Ponta do Pargo, da cauda, quando a ave está assente no solo.
facto que se deve à sua preferência por terre- Apresenta um voo ondulado acompanhado
nos secos e por zonas com vegetação rasteira, de chamamento agudo e metálico. Tem entre
desde a costa às cotas mais elevadas. Nas Sel- 17 e 20 cm de comprimento total e encontra-
vagens, a subespécie Anthus berthelotii bertheloti -se sobretudo na proximidade de cursos de
ocorre essencialmente nos locais de planalto, água e de poços, desde cotas mais baixas até
e menos nas falésias. zonas de maior altitude. Põe entre três e cinco
O corre-caminhos nidifica no chão, no ou- ovos em ninho construído em cavidades de
tono e na primavera, e é facilmente iden- paredes ou barrancos. Diferencia-se das ou-
tificável pelo seu comportamento. Costu- tras formas da espécie por ter o dorso mais
ma correr e faz voos curtos, facto que está escuro. Segundo o Atlas das Aves do Arquipé-
na origem do seu nome vulgar. Em voo no- lago da Madeira, o efetivo populacional situa-
tam-se as retrizes externas brancas. A popu- -se entre os 2500 e os 10.000 indivíduos. Boa
lação de Anthus berthelotii madeirensis situa-se parte da população ocorre em sítios da Rede
entre as 2500 e as 10.000 aves e parece está- Natura 2000 e do PNM, o que lhe confere al-
vel. Faz ninho no solo, entre fevereiro e agos- guma proteção. A espécie consta do anexo ii
to, pondo cerca de quatro ovos. A população da Convenção de Berna.
existente nas Selvagens é considerada “vul- Papinho (Erithacus rubecula rubecula (Lin-
nerável” devido ao número reduzido de indi- naeus, 1758)) – É uma subespécie da famí-
víduos que a constitui. lia Muscicapidae, ordem Passeriformes, que
Ambas as subespécies podem ocorrer em se distribui por Marrocos, pelos Açores, pelo
áreas de reserva integral e parcial do PNM e Oeste das Canárias, pela ilha da Madeira e
em zonas da Rede Natura 2000. A espécie cons- pela ilha do Porto Santo (onde é rara). Na Ma-
ta do anexo ii da Convenção de Berna. deira, pode ocorrer desde a beira-mar até aos
Lavandeira (Motacilla cinerea schmitzi (Tschu- 1700 m de altitude. É facilmente identificável
si, 1900)) – De acordo com a obra Elucidário pelo seu peito ruivo. O adulto é castanho no
Madeirense, era chamada papamoscas em cer- dorso e castanho-claro no abdómen e nos flan-
tos locais do Porto da Cruz. É uma subespé- cos; os juvenis são claros com peito mancha-
cie endémica do arquipélago da Madeira, da do. Mede entre 12,5 e 14 cm de comprimento
família Motacillidae, ordem Passeriformes. total. A ave tem um canto melodioso. Ocorre
Ocorre na Madeira e no Porto Santo. Esta essencialmente em zonas de floresta indígena,
ave é facilmente identificável pela sua forma floresta exótica, floresta de transição, urzais,
A vifauna ¬ 145
algumas aves melânicas em que a cor preta do sendo castanho-clara no peito e na região ven-
barrete do macho desce abaixo da nuca (pelo tral. Existe apenas na ilha da Madeira, sendo
que recebem, em alguns locais, a denomina- observada em toda a sua extensão, exceto a
ção de toutinegras de capelo). O comprimen- mais baixa altitude. É frequente em zonas ar-
to total no adulto varia entre 13,5 e 15 cm. borizadas, com vegetação indígena ou exótica,
Pode ser observada em vários habitats (áreas em áreas agrícolas e rurais habitadas e em re-
com arbustos densos, clareiras, zonas florestais giões com vegetação arbustiva ou mesmo ras-
de transição e jardins), sendo rara na laurissil- teira; também se observa com regularidade em
va. Não ultrapassa os 1400 m de altitude, sendo zonas de merenda (onde “petisca” os restos de
pouco frequente a partir dos 800 m. De acordo comida deixados pelas pessoas). Alimenta-se
com o Atlas das Aves do Arquipélagos do Madei- de sementes e insetos. De acordo com o Atlas
ra, deverão existir mais de 10.000 indivíduos. das Aves do Arquipélago da Madeira, a população
Entre março e junho, constrói o seu ninho é numerosa (superior a 100.000 indivíduos).
nos ramos das árvores e nos arbustos e põe até Algumas das áreas em que ocorre pertencem
cinco ovos. No passado, devido aos seus dotes à Rede Natura 2000 e ao PNM. Faz parte do
canoros (o típico “tac-tac”), eram capturadas anexo iii da Convenção de Berna. Tal como
e aprisionadas em gaiolas; nos começos do acontece relativamente a outras aves do arqui-
séc. xxi, esta prática está proibida. Algumas pélago da Madeira, são necessários estudos
áreas onde ocorre são zonas da Rede Natura para conhecê-la melhor.
2000 e do PNM, o que confere alguma prote- Canário-da-terra ou canário (Serinus canaria
ção à subespécie. A espécie consta do anexo ii (Linnaeus, 1758)) – É um endemismo maca-
da Convenção de Berna. ronésico da família Fringillidae, ordem Pas-
Tentilhão (Fringilla coelebs maderensis (Shar- seriformes. Tem entre 12,5 e 13,5 cm de com-
pe, 1888)) – Trata-se de uma subespécie per- primento. Apresenta dimorfismo sexual: os
tencente à família Fringillidae, ordem Passeri- machos são mais coloridos e têm cores mais
formes, endémica da ilha da Madeira. Tendo vivas – são mais amarelados – e definidas do
entre 14 e 16 cm, possui faixas alares e parte ex- que as fêmeas, que são mais discretas (têm
terna da cauda brancas. O dimorfismo sexual cores menos vivas e mais acastanhadas). Distri-
é evidente: os machos são mais vistosos, têm to- bui-se pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo
nalidades mais vivas (o peito é rosado ou cor e Desertas. É também encontrada nos arqui-
de tijolo, o dorso verde-acastanhado e a cabe- pélagos dos Açores e das Canárias. O habitat
ça azulada); a fêmea é menos colorida, tendo da espécie é variado, compreendendo zonas
geralmente tonalidade verde-acastanhada e rurais agrícolas, jardins, áreas urbanas, zonas
Fig. 12 – Tentilhão macho (fotografia de José Jesus, 2016). Fig. 13 – Canário-da-terra fêmea (fotografia de José Jesus, 2011).
A vifauna ¬ 147
homogénea e escura. Ocorre em vários locais, arquipélago deixa de ser tida como endémica,
incluindo em áreas da Rede Natura 2000 e do havendo que considerar as populações ociden-
PNM. A espécie consta do anexo ii da Con- tais da região paleártica e da África Ociden-
venção de Berna. Segundo o Atlas das Aves do tal como constituintes da mesma subespécie
Arquipélago da Madeira, existem entre 2500 e (Buteo buteo buteo). Independentemente das
10.000 indivíduos. dúvidas taxonómicas quanto ao estatuto da
Andorinhão ou andorinha-do-mar (Apus pal- manta, esta é a maior das aves de rapina que ni-
lidus brehmorum Hartert, 1901) – Trata-se de dificam no arquipélago da Madeira, tendo um
uma ave da família Apodidae, ordem Apodi- comprimento total que poderá superar os 50
formes, que ocorre nas ilhas da Madeira e do cm e uma envergadura que poderá chegar aos
Porto Santo e também em algumas ilhas das 130 cm. É frequente observá-la voando, com
Canárias, podendo ser igualmente observada batimentos de asa lentos, ou planando em cír-
nas costas da Europa Meridional (entre a pe- culos, aproveitando as correntes matinais de ar
nínsula Ibérica e a Turquia) e no Norte de Áfri- ascendente (pode também efetuar voos curtos
ca. Com um comprimento total que varia entre e picados). Ocorre em vários habitats: falésias
os 16 e os 18 cm, distingue-se do andorinhão- costeiras e interiores, zonas com pouca vege-
-da-serra (Apus unicolor) por ser um pouco tação rasteira, áreas florestais indígenas e exó-
maior do que ele, pela mancha clara na gar- ticas, áreas agrícolas e suburbanas. A parte su-
ganta e pela sua coloração menos homogénea. perior do corpo é geralmente castanho-escura;
No inverno, parece migrar para regiões situa- o peito é uniformemente castanho-escuro, lis-
das a sul do Saara. Embora haja algum desco- tado ou manchado de creme-amarelado. Em
nhecimento quanto à sua distribuição e abun- voo, as asas mostram cinco rémiges primárias
dância, sabe-se que esta ave ocorre em vários soltas (que parecem dedos) e manchas cla-
habitats, desde falésias e ilhéus (onde nidifica) ras e orlas escuras na parte inferior. A cauda
a zonas de interior, entre as quais as regiões de é relativamente curta e a cabeça de pequena
montanha, áreas rurais ou áreas suburbanas. É dimensão. Esta ave alimenta-se de roedores,
menos abundante do que a Apus unicolor. coelhos, algumas aves (como a perdiz), lagar-
A exemplo do que acontece noutras ilhas tixas e insetos. Nidifica a média ou elevada al-
oceânicas, as aves de rapina estão representa- titude, em precipícios e em árvores de grande
das por um baixo número de espécies, quan- porte. A construção do ninho começa em feve-
do comparado com o existente em áreas con- reiro ou março. Os pintos deixam o ninho nos
tinentais com características semelhantes. No meses de julho e agosto. Segundo o Atlas das
arquipélago da Madeira e no arquipélago das Aves do Arquipélago da Madeira, a população é
Selvagens, nidificam a manta, o francelho, o superior a 2500 indivíduos, essencialmente lo-
fura-bardos e a coruja-das-torres. calizados na ilha da Madeira. No entanto, em
Manta – Alguns madeirenses conhecem-na 2006 a Sociedade Portuguesa para o Estudo
como milhafre. Trata-se de uma ave da famí- das Aves tinha uma estimativa distinta (cerca
lia Accipitridae, ordem Accipitriformes. Du- de 300 aves nas ilhas da Madeira e do Porto
rante muito tempo, foi considerada como a Santo). As ameaças que pairam sobre a manta
subespécie Buteo buteo harterti Swan, 1919; no são o envenenamento secundário por pestici-
entanto, é considerada por alguns cientistas das, a captura e o abate ilegais. No passado, era
como Buteo buteo buteo (Linnaeus, 1758). Se perseguida e caçada, pelo facto de predar gali-
considerarmos esta ave de rapina como Buteo nhas (e outras aves domésticas) e coelhos.
buteo harterti, podemos afirmar que a subespé- Parte da sua área de ocorrência está incluída
cie ocorre nas ilhas da Madeira, do Porto Santo em zonas da Rede Natura 2000 e em algumas
e Desertas, sendo endémica do arquipélago da regiões com estatuto de reserva integral e par-
Madeira. No entanto, se considerarmos a ave cial do PNM. A ave consta do anexo i da di-
como Buteo buteo buteo, então a população do retiva “Aves” e do anexo iii da Convenção de
150 ¬ A vifauna
estatuto “em perigo”. As construções sobre Para prevenir possíveis impactos graves, seria
dunas e a circulação de veículos sobre elas necessário o controlo destas aves e, eventual-
constituem as principais ameaças. mente, a sua erradicação.
Outra ave nidificante do arquipélago da Ma- Outras aves nidificantes, presumivelmente
deira, não referida acima, considerada na lis- introduzidas pelo Homem, são o bico-de-lacre
tagem de Romano e colegas de 2010 (mas não (Estrilda astrild Linnaeus, 1758), o pato-mudo
considerada noutras fontes, como o Atlas das (Cairina moschata Linnaeus, 1758) e o periqui-
Aves do Arquipélago da Madeira), é o pato-real to-de-colar (Psittacula krameri (Scopoli, 1769)).
(Anas platyrhynchus Linnaeus, 1758). Há ainda outras espécies, possivelmente intro-
Há algumas espécies nidificantes ocasionais, duzidas, cuja nidificação na ilha da Madeira
como é o caso do garajau-escuro (Onychoprion não está confirmada, como a caturra (Nymphi-
fuscatus (Linnaeus, 1766)) e do pato manda- cus hollandicus (Kerr, 1792)) e o papagaio-do-se-
rim (Aix galericulata Linnaeus, 1758). negal (Poicephalus senegalus (Linnaeus, 1766)).
Rola-turca (Streptopelia decaocto (Frivaldszky, Muitas espécies de aves foram introduzidas
1838)) – Trata-se de uma ave da família Colum- para a caça, mas algumas foram depois dadas
bidae, ordem Columbiformes. Provavelmen- como extintas, como é o caso da galinha-d’An-
te introduzida no arquipélago da Madeira, a gola (Numida meleagris (Linnaeus, 1758)), da
espécie é originária do subcontinente india- perdiz-moura (Alectoris barbara (Bonnaterre,
no. Ocorre nas regiões paleárticas ocidental e 1792)), do faisão (Phasianus colchicus Linnaeus,
oriental. O primeiro registo de nidificação na 1758) e do pavão (Pavo cristatus Linnaeus, 1758).
ilha da Madeira (na Ponta de São Lourenço) Outras espécies, de que existem referências,
data de 2009. É uma ave de média dimensão, de encontram-se extintas no meio selvagem do ar-
31 a 34 cm de comprimento total, e elegante. quipélago da Madeira. Têm sido encontradas e
A cauda é longa. A plumagem é pálida; no en- descritas espécies fósseis, especialmente encon-
tanto, existe uma barra preta estreita, delinea- tradas nas dunas da Piedade e no Porto Santo,
da a branco, nos lados do pescoço. Alimenta-se tais como o mocho Otus mauli Rando et al., 2012,
essencialmente de matéria vegetal, como grãos. o ralídeo, Rallus lowei Alcover et al., 2015, uma es-
Foram já registados casos de nidificação de pécie robusta que possuía asas pequenas e não
outra espécie do género, a rola-comum (Strep- voava, ambas encontradas na ilha da Madeira, e o
topelia turtur), possivelmente também introdu- Rallus adolfocaesaris Alcover et al., 2015, uma espé-
zida pelo Homem. Não se conhecem os efei- cie menos robusta do que a anterior e encontra-
tos da introdução destas duas espécies de rolas. da na ilha do Porto Santo. Muitas outras espécies
fósseis das dunas da Piedade e do Porto Santo Nome científico Nome vulgar
poderão estar por descobrir ou descrever. PROCELLARIDAE
A organização BirdLife International tem Fulmarus glacialis Fulmar-glacial
Pterodroma mollis Freira* **
um programa cujo objetivo é identificar, pro- Calonectris diomedea diomedea Cagarra
teger e gerir uma rede de áreas relevantes para Calonectris edwardsii Cagarra
a viabilidade, a longo prazo, de populações na- Puffinus gravis Pardela-de-barrete
turais de aves, mediante critérios estabelecidos Puffinus griseus Pardela-preta
Puffinius mauretanicus Pardela-do-mediterrâneo
internacionalmente. Estas áreas recebem a de- HYDROBATIDAE
signação de Important Bird and Biodiversity Oceanites oceanicus Casquilho ou painho-de-wilson
Areas [Áreas Importantes para as Aves e Biodi- Hydrobates pelagicus Painho-de-cauda-quadrada**
versidade] (IBAs). As IBAs do arquipélago da Hydrobates leucorhoa Painho-de-cauda-forcada
Hydrobates monorhis Painho-de-swinhoe**
Madeira e as principais espécies em cada uma PHAETHONTIDAE
delas encontram-se a seguir referidas: Phaethon aethereus Rabijunco
Laurissilva (código: PT083, área: 15.242 ha): FREGATIDAE
alma-negra, cagarra, fura-bardos, pombo-tro- Fregata magnificens Fragata-comum*
SULIDAE
caz, andorinhão-da-serra e canário-da-terra.
Morus bassanus Ganso-patola
Maciço montanhoso oriental (código: Sula leucogaster Alcatraz
PT084, área: 3411 ha): freira-da-madeira, fura- Phalacrocorax carbo Corvo-marinho
-bardos, pombo-trocaz, andorinhão-da-serra e Phalacrocorax aristotelis Galheta
corre-caminhos. ARDEIDAE
Bataurus stellaris Abetouro
Ilhas Desertas (código: PT085, área: 1384 ha): Nycticorax nycticorax Goraz
freira-do-bugio, alma-negra, cagarra, pintainho, Bubulcus ibis Carraceiro
roquinho, andorinhão-da-serra, corre-cami- Egretta garzetta Garça-branca
nhos e canário-da-terra. Egretta gularis Garça-dos-recifes
Ixobrychus minutus Garçote
Ilhas Selvagens (código: PT086, área: 265 ha): Ardeola ralloides Papa-ratos
alma-negra, cagarra, pintainho, calcamar, ro- Ardea alba Garça-branca-grande
quinho, corre-caminhos. Ardea cinerea Garça-real
Ponta de São Lourenço (código: PT087, área: Ardea purpurea Garça-vermelha
Butorides virescens Garça-verde
321 ha): alma-negra, pintainho, roquinho, gai- CICONIIDAE
vina-rosada, gaivina, andorinhão-da-serra, caná- Ciconia nigra Cegonha-preta
rio-da-terra e corre-caminhos. Ciconia ciconia Cegonha-branca
Ponta do Pargo (código: PT088, área: 1161 Plegadis falcinellus Ibis-preto
Platalea leucorodia Colhereiro
ha): roquinho, fura-bardos, andorinhão-da-ser-
ANATIDAE
ra, corre-caminhos e canário-da-terra. Mergus merganser Merganso-grande*
Ilhéus do Porto Santo (código: PT089, área: Mergus serrator Merganso-de-poupa
204 ha): pintainho, andorinhão-da-serra, corre- Anser fabalis Ganso-campestre
Anser brachyrhynchus Ganso-de-bico-curto
-caminhos, canário-da-terra.
Anser albifrons Ganso-de-testa-branca
Porto Santo-Oeste (código: PT090, área: 929 Anser anser Ganso-bravo
ha): roquinho, gaivina, gaivina-rosada, andori- Tadorna ferruginea Pato-ferrugíneo
nhão-da-serra, corre-caminhos, canário-da-terra. Tadorna tadorna Tadorna
Branta bernicla Ganso-de-faces-negras
Anas americana Piadeira-americana
Nome científico Nome vulgar Anas carolinensis Marrequinha-americana
GAVIIDAE Anas penelope Piadeira Anas crecca
Gavia immer Mobelha-grande Anas platyrhynchus Pato-real
Gavia arctica Mobelha-ártica* Anas acuta Arrábio
POPICIPEDIDAE Anas clypeata Pato-colhereiro
Tachybaptus ruficollis Mergulhão-pequeno Anas discors Pato-d’asa-azul
Podiceps nigricollis Cagarraz Anas querquedula Marreco
Podiceps auritus Mergulhão-de-pescoço-castanho Anas strepera Frisada
156 ¬ A vifauna
1851) populations on the island of Selvagem Grande, Portugal”, Boletim do moinhos foi uma importante receita das fa-
Museu Municipal do Funchal, sup. 5, 1998, pp. 167-176; FRUTUOSO, Gaspar,
As Saudades da Terra. História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e mílias dos descendentes dos capitães do do-
Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Empresa Municipal natário, continuando-se a manter uma estru-
Funchal 500 Anos, 2007; GARCIA-DEL-REY, Eduardo, Field Guide to the Birds
of Macaronesia. Azores, Madeira, Canary Islands, Cape Verde, Barcelona, Lynx
tura de cobrança por rendeiros. Em 1693,
Ediciones, 2011; HAGEMEIJER, Ward, e BLAIR, Michael, The EBCC Atlas of este rendimento dos donatários atingia os
European Breeding Birds. Their Distribution and Abundance, London, T. & A.
D. Poyser, 1997; HARCOURT, Eduard Vernon, A Sketch of Madeira, London, John
1.857$500 réis.
Murray, 1851; HARTWIG, Waldemar, “Die voegel der Madeira inselgruppe”, Os moinhos e as azenhas partilham uma
Ornis, vol. 7, 1891, pp. 151-188; JESUS, José et al., “Phylogenetic relationships of
mesma estrutura, que consiste em duas pedras
gadfly petrels Pterodroma spp. from the northeastern Atlantic ocean. Molecular
evidence for specific status of Bugio and Cape Verde petrels and implications que definem o processo da moenda do cereal,
for conservation”, Bird Conservation International, vol. 19, 2009, pp. 199-214;
sendo a sua força motriz a água, no caso da aze-
OLIVEIRA, Paulo, A Conservação e Gestão das Aves do Arquipélago da Madeira,
Funchal, Parque Natural da Madeira, 1999; Id., e MENEZES, Dília, Birds of nha, e o vento ou a força humana e animal, no
the Archipelago of Madeira, Funchal, Serviço do Parque Natural da Madeira, caso do moinho.
2004; PEREIRA, Eduardo C. N., Ilhas de Zargo, 4.ª ed., 2 vols., Funchal, Câmara
Municipal do Funchal, 1989; RANDO, Juan et al., “A new species of extinct fossil Na Madeira, a aposta foi para as azenhas, de-
scops owl (Aves: Strigiformes: Strigidae: Otus) from the archipelago of Madeira vido à fácil utilização da sua força motriz. Mui-
(north Atlantic ocean)”, Zootaxa, n.º 3182, 2012, pp. 29-42; ROMANO, Hugo
et al., “Birds of the archipelagos of Madeira and the Selvagens II. New records tas vezes, procura-se juntar no mesmo espaço
and checklist update (1995-2010)”, Boletim do Museu Municipal do Funchal, o processo de moenda do cereal e da cana,
vol. 60, 2010, pp. 5-44; SARMENTO, Alberto A., Vertebrados da Madeira.
Mamíferos – Aves – Répteis – Batráquios, vol. 1, Funchal, JGDAF, 1948; SILVA, criando-se um mecanismo de dupla utiliza-
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, ção. Aliás, existe na ilha uma situação particu-
3 vols., Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978; SLOANE,
Hans, A Voyage to the Islands Madera, Barbados, Nieves, St. Christophers and
lar de que há testemunho: estruturas de dupla
Jamaica, with the Natural History of the Herbs and Trees, Four-Footed Beasts, funcionalidade que atuam, em simultâneo, na
Fishes, Birds, Insects, Reptiles & c. of the Last of Those Islands, vol. i, London, B. M.,
1707; SVENSSON, Lars et al., Colins Bird Guide. The Most Complete Guide to the
moenda do cereal e da cana. O Museu Etno-
Birds of Britain and Europe, 2.ª ed., London, Harper Collins, 2009; ZINO, Francis gráfico preserva uma estrutura destas, que terá
et al., “Birds of the archipelago of Madeira and the Selvagens. New records and
funcionado ainda no séc. xx. Fora da Madeira,
checklist”, Boletim do Museu Municipal do Funchal, vol. 47, 1995, pp. 61-100;
digital: Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira: http://www.atlasdasaves.
netmadeira.com (acedido a 2 jun. 2014); Avibase: http://avibase.bsc-eoc.org/
avibase.jsp?lang=PT&pg=home (acedido a 1 maio 2015); BirdLife International:
http://www.birdlife.org (acedido a 25 maio 2014); GILL, Frank, e DONSKER,
David (eds.), IOC World Bird List (v 6.3), 2016: http://www.worldbirdnames.
org (acedido a 22 jul. 2016); Projecto SOS Freira-do-Bugio: http://www.
sosfreiradobugio.pt (acedido a 9 maio 2016).
José Jesus
Azenhas e moinhos
Os cereais assumem um papel fundamental
na dieta alimentar das populações e, por isso,
estão presentes nos primórdios da criação da
sociedade, tal como as estruturas necessárias
para a sua produção e posterior transforma-
ção em farinha e pão. Em torno do moinho
e do forno, estabeleceu-se uma teia de rela-
ções socioeconómicas, sob o olhar atento do
capitão do donatário, que é quem dispõe do
monopólio destes meios para seu usufruto,
mediante a contrapartida da meia maquia,
i.e., a medida do cereal que fazia o paga-
mento ao moleiro por cada alqueire de ce-
real moído, como forma de pagamento pelo Fig. 1 – Antigo moinho de água da Calheta, reconstrução
serviço de moagem. Até 1821, a renda dos de c. 1800 (fotografia de José Lemos Silva, 2010).
160 ¬ A zenhas e moinhos
moinhos em condições, de terem moleiros das moendas. Pelo desempenho do cargo, ti-
habilitados e cumpridores do seu papel. Em nham direito a 800 réis e um alqueire de pão
1490, o senhorio da ilha, D. Manuel, insiste em por semana, pagos pelo rendeiro. Eram obri-
que as normas que regem os moinhos e a ação gados a fazer toda a sua vida no moinho, per-
dos moleiros sejam as mesmas que as do reino. manecendo aí dia e noite. Mesmo ao sábado,
Ao mesmo tempo, referem-se os moinhos que era obrigatória a sua presença, para receber o
vão construir: “No Funchal que se reparem trigo até à meia-noite e fazer boas farinhas e
bem os moinhos que agora são feitos e que lhe pouco farelo. A sua ausência do moinho era
ponham pedras grandes e que façam mais no punida com a multa de 200 cruzados. O mo-
dito logo do Funchal dois moinhos bons de pe- leiro estava, ainda, proibido de dar alimento
dras grandes e alvas” (Id., 1973, vol. xvi, 239). a quem quer que fosse e as mulheres não po-
Temos a informação da existência de moinhos diam recolher farinha.
suficientes em Câmara de Lobos Ribeira Brava, No caso da Ponta de Sol, a nomeação do mo-
Ponta do Sol, Calheta, apenas deverá ser feito leiro para os dois moinhos da vila e o da Ma-
um no Caniço o dito capitão. dalena do Mar era feita pela vereação, depen-
A meia maquia dos moinhos foi uma impor- dendo a sua permanência no cargo do bom
tante riqueza dos capitães do donatário, de ou mau serviço prestado. Assim, João Figuei-
forma que Manuel Thomás afirmava, na Insula- ra, por servir mal e ser prepotente, foi desti-
na, que “De seus moinhos, a maior usura/pois tuído do cargo. Em 1681, porque as queixas
para sempre os terem bem pagados” (THO- do povo contra os moleiros se avolumaram,
MÁS, 1635, 467). Em 1752, esta renda de toda surgindo acusações de roubo e dano nas fa-
a ilha valia 3.020$393 réis. rinhas, foi-lhes dada ordem de prisão, sendo
Associado aos moinhos estará, a partir de substituídos por outros. Vários foram também
1635, um donativo para as despesas da guerra, os conflitos surgidos entre o rendeiro dos
no valor de 200.000 cruzados, que correspon- moinhos, nomeado pelo capitão para supe-
derá a uma maquia por alqueire de trigo. rintender a arrecadação dos seus direitos, e
Os moleiros eram providos pelo rendeiro dos os vereadores, em virtude de aquele procurar
moinhos, uma vez que este era um direito do intervir nos moinhos e dispor dos moleiros a
capitão do donatário, a quem cumpria apre- seu bel-prazer. Em 1600, e.g., foi o dito rendei-
sentar fiança e prestar juramento perante a ve- ro surpreendido pela vereação e intimado a
reação, responsabilizando-se pelo bom serviço não frequentar os moinhos mais do que uma
vez por dia, entendendo-se a sua presença
como prejudicial ao povo. Alguns anos mais
tarde, em 1627, foi mesmo admoestado, desta
feita porque retirara do moinho de baixo o
moleiro, o que era prejudicial aos interesses
do concelho.
A partir das posturas do Funchal do séc. xvi,
é possível reconstituiu e estabelecer as limita-
ções que caracterizavam o ambiente quotidia-
no dos moinhos, que, sendo locais de grande
afluência de gentes, eram um dos mais des-
tacados espaços de sociabilidade, razão pela
qual estavam sujeitos a normas de conduta
rigorosas.
Havia o moleiro e o maquieiro. O primei-
Fig. 3 – Moinho de água junto ao curral, litografia de Frank Dillon,
ro era examinado pela Câmara e só podia
Londres, 1850 (coleção particular). moer depois de ter prestado juramento e feito
A zenhas e moinhos ¬ 163
fiança; caso contrário, ele e o rendeiro sujeita- por que não haja dúvida isso a registar e pesar
vam-se a uma pena de 1000 réis de cadeia. Para no peso quando o levar em grão e o trouxer
além disso, não podia ser mudado da função em farinha e achando que o leve doutra ma-
sem autorização da Câmara. O maquieiro era neira ou maior quantia do que se a provisão
ajuramentado na câmara e tinha a obrigação requere, pagarão 500 réis” (Ibid.).
de o fazer de forma correta, de modo que nem A subtração dolosa do produto, cereal, fari-
o capitão, nem o povo fossem “constrangidos nha ou farelo, parece ter sido um problema,
a moer mais do que convém” tudo isto, com o tendo em conta as limitações impostas. Assim,
objetivo de “se fazer verdade e farinhas hones- para impedir que isso acontecesse, instituiu-se
tas e boas” (ABM, Câmara Municipal do Fun- que “nenhum moleiro criará porcos, galinhas,
chal, Livro de Posturas, fls. 25-30v.). adens, patos, nem outra ave nem cão, nem
O moleiro devia dedicar-se em exclusivo ao coisas semelhantes”. Depois, as mulheres dos
ofício, estando impedido de ter outra qual- moleiros, mancebas ou criados, não serão car-
quer “granjearia”, como “vinhas” ou “herda- reteiras, sob pena de 500 réis; e as carreteiras
des de renda”, estando o incumprimento su- farão seu caminho direito ao levar ou trazer do
jeito à pena de 10.000 réis pagos da cadeia. pão dos moinhos para casa de seus donos, e
Ainda são estabelecidas regras quanto à forma serão obrigadas levá-lo ao peso, sob pena de
de solucionar a questão das perdas na quan- 500 réis” (Ibid.).
tidade da farinha, de forma a não prejudicar Ainda em 1725, continua a recomendar-se es-
o povo. Assim, todo aquele que “danar fari- peciais cuidados para evitar os furtos por parte
nha ou der menos farinha do trigo que rece- de criados e escravos ou carreteiras, as vendei-
beu pagará o dano a seu dono”. À terceira vez ras, porque estes de forma dolosa compravam
que isto suceda, para além das penas estabe- as farinhas aos moços, escravos e outros, que
lecidas, “será envergonhado e posto na Pico- faziam este serviço de transporte do moinho
ta”. Além do mais, o moleiro, jurado na câ- e, de forma insistente, furtavam parte ao seu
mara, não podia ter ajudante “nem lhe moerá dono. O moleiro era responsável por qualquer
outra pessoa, salvo se a Câmara der licença perda que acontecesse na farinha, sendo obri-
por algum justo respeito que será estando o gado a restituí-la. Deste modo, os moleiros, sob
moleiro doente ou impedido para não poder pena de 200 réis, deveriam ter medidas de al-
trabalhar” (Ibid.). queire e meio alqueire, maquia e meia maquia,
O moinho era um espaço importante na so- afiladas pelo afilador.
ciabilidade das localidades, pelo que se assistia Em 1851, as posturas sobre os moleiros man-
diariamente a ajuntamentos de pessoas. Daí o têm a mesma vigilância, como se pode verifi-
estabelecimento de algumas regras de conduta car pelas da Ponta de Sol. Assim, continua a
social entre os diversos sexos, estando vedado ser obrigatória a licença da Câmara e acrescen-
às mulheres e, de forma especial, às “mancebas ta-se que o moleiro não pode ser portador de
dos moleiros nos moinhos onde estiver o mari- qualquer moléstia. Nessa data, surgem regras
do ou barregão” (Ibid.). para o processo da moenda: “é proibido aos
A mulher do moleiro estava, assim, limitada moleiros, o moera picadura, sem terem pri-
no acesso a este espaço, só estando autorizada meiro limpado o moinho com cereais seus,
a levar a comida ao marido nas horas devidas: trigo ou outro qualquer grão alheio, sob pena
“às horas devidas a mulher do moleiro leve de de 1500 reis, metade para o Concelho e outra
comer ao marido”. Procurando-se evitar qual- metade para o denunciante, além da indem-
quer iniciativa de furto de cereais ou farinha, nização à parte prejudicada. Por outro lado,
esta não podia ser encontrada no moinho do o moleiro que falsificar a faúlha de qualquer
seu marido “com farinha nem trigo, somente grão, misturando-lhe a de outro de diferente
com o que levar de sua casa para sua provisão espécie, ou trocando o grão de melhor quali-
que de força há de ser moído nos moinhos e dade pelo de pior, ou que não der o peso ou
164 ¬ A zenhas e moinhos
Brothers & C.ª, Azevedo Santos & C.ª, Antó- de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de
nio Giorgi & C.ª), sendo registadas mais 3 em quem teve geração.
1907 (Companhia Madeirense de Moagem a Concluiu o curso de Direito, em 1849, na
Vapor, Carlos José Zino, Empreza Funchalen- Univ. de Coimbra e foi para Lisboa, onde re-
se de Moagem, Lda.). Na déc.de 30 do séc. xx, sidiu durante cerca de seis anos. Seguiu poste-
a intervenção governamental para a regulação riormente para a ilha da Madeira, onde exer-
do sector moageiro gerou um movimento po- ceu funções de professor, ocupando uma vaga
pular que ficou conhecido como a revolta da através de concurso público. Anteriormente,
farinha e que foi a antecâmara da chamada Re- tinha tentado um lugar na magistratura judi-
volta da Madeira. cial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais
tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Li-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Livro de Posturas,
fls. 25-30v.; impressa: BAPTISTA, Arthur José, Breves Considerações sobre a tterário (1866), explicava a razão pela qual não
Indústria de Moagem em Portugal, Lisboa, s.n., 1908; BRANCO, Jorge de Freitas, tinha conseguido aquele emprego e se consi-
Camponeses da Madeira. As Bases Materiais do Quotidiano no Arquipélago
(1750-1900), Lisboa, Dom Quixote, 1987; CAMACHO, Rui et al., “Os moinhos de derava injustiçado.
água da Madeira. I – Concelho de Santa Cruz”, Xarabanda, n.º 2, 1992, pp. 28- No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a ca-
32; CÂMARA, Benedita, A Economia da Madeira (1850-1914), Lisboa, Imprensa
de Ciências Sociais, 2002; FRUTUOSO, Gaspar, Livro Segundo das Saudades da
deira de Oratória, Poética e Literatura, que
Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1979; GUIMARÃES, regeu durante 26 anos. Também no mesmo
Sílvia, “Moinhos de água no concelho de São Vicente”, Xarabanda, n.º 7, 1995,
pp. 41-42; Informações para a Estatística Industrial Publicadas pela Repartição de
Liceu, foi professor de Português e Recitação
Pesos e Medidas. Distritos de Leiria e Funchal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1863; e fez parte, como sócio e secretário, da Associa-
MELLO, Luís Francisco de, “Tombo 1.º do Registo Geral da Câmara Municipal
do Funchal”, Arquivo Histórico da Madeira, vols. xv-xvi, 1972-1973; NÓBREGA,
ção de Conferências, inaugurada a 9 de maio
Manuel, “Moagem do cereal”, Girão, vol. 1, n.º 1, 1988, pp. 21-24; OLIVEIRA, de 1856, com a finalidade de promover o de-
Ernesto Veiga de et al., Moinhos de Vento. Açores e Porto Santo, Lisboa, Centro
senvolvimento dos princípios da educação po-
de Estudos de Etnologia Peninsular, 1965; RIBEIRO, João Adriano, Ponta de
Sol. Subsídios para a História do Concelho, Ponta do Sol, Câmara Municipal de pular e de elaborar uma discussão com vista
Ponta do Sol, 1993; Id., “A rua dos Moinhos no século xviii”, Margem 2, n.º 2, à escolha dos melhores métodos de ensino.
dez. 1995, pp. 15-24; Id. et al., Moinhos e Águas do Concelho de Santa Cruz,
Santa Cruz, Câmara Municipal de Santa Cruz, 1995; RÜDT, Käte, “Madeira. A Associação de Conferências era composta
Estudo linguístico-etnográfico”, Boletim de Filologia, vol. v, n.os 1-5, 1937-1938, por professores do ensino público e particular
pp. 59‑91 e 289-349; SANTOS, Rui, “Um velho moinho”, Jornal da Madeira,
23 out. 1993; SOUSA, Élvio, Duarte Martins, Arqueologia na Área Urbana de da capital do distrito da Madeira.
Machico. Leituras do Quotidiano nos Séculos XV, XVI e XVII, Dissertação de Em 1856, por ocasião da epidemia de cóle-
Mestrado em História Regional e Local apresentada à Universidade de Lisboa,
Lisboa, texto policopiado, 2003; TAYLOR, Ellen, Madeira Its Scenery and how ra (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha,
to See It, London, Edward Stanford, 1882; TOMÁS, Manuel, Insulana, Amberes, causando uma elevada taxa mortalidade, pres-
Caza de loam Mevrsio Impressor, 1635; VIEIRA, Alberto, “Anexo documental”, in
O Infante e as Ilhas, Funchal, CEHA, 1994.
tou relevantes serviços no desempenho do
cargo de administrador do concelho do Fun-
† Alberto Vieira
chal. A 24 de julho
de 1856, escrevia no
Azevedo, Álvaro Rodrigues de periódico A Discussão,
revelando as medidas
Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, tomadas pela Câma-
professor, político, jornalista, escritor e histo- ra Municipal que, no
riador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de sentido de tentar com-
março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de ja- bater a epidemia, con-
neiro de 1898, dois meses antes de completar cedeu 150$000 reis
73 anos. Apesar de ter nascido no continente, mensais para que o
viveu na Madeira durante muitos anos e consi-
derava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se
José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado
de nome quando ingressou na universidade. Fig. 1 – As Saudades da Terra
(reed. 2007), de Gaspar Frutuo-
Era filho de António Plácido de Azevedo, na- so (anot. Álvaro Rodrigues de
tural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro Azevedo).
166 ¬ A zevedo , Á lvaro R odrigues de
que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câma-
tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título ra Militar e no cabido da Sé. Também foram
idêntico, mas apenas um foi publicado nas Me- relevantes os textos que reuniu de cronistas
mórias do Conservatório, tendo outro ficado em como Zurara, João de Barros e Damião de
arquivo. Este equívoco terá desencadeando a Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo
referida controvérsia, suscitando uma troca de Braga, seu amigo, com quem se correspon-
correspondência entre ambos, através da im- dia, teve uma grande influência no seu pen-
prensa periódica. samento e na sua escrita, sendo através deste
Nas suas produções literárias encontram-se, que tomou contacto com a teoria da história
entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em positivista, em voga na época. Contou ainda
um Acto (1859), uma crítica de costumes ma- com a colaboração de João Joaquim de Frei-
deirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philolo- tas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que
gia e Redacçao (1869), no qual pretende desen- o ajudou nos trabalhos de revisão textual.
volver competências de produção linguística. Apesar de todas as dificuldades que teve de
Como escritor e historiador, produziu im- ultrapassar, e da obra inédita que deu à es-
portantes trabalhos sobre o arquipélago da tampa, em 1873, não obteve o devido valor e
Madeira. O seu legado mais importante para reconhecimento por parte dos seus coevos.
a historiografia madeirense foi a publicação Só muitos anos mais tarde é que o seu traba-
do manuscrito As Saudades da Terra (1873), lho foi valorizado pelos eruditos madeiren-
redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ses. Na verdade, esta obra pioneira na his-
ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues toriografia insular abriu caminho para que
de Azevedo redigiu 30 notas que acrescen- outros madeirenses começassem a interessar-
tou ao manuscrito, na parte que diz respeito -se pelo estudo da sua história, do seu passa-
à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns do e das suas raízes. As suas anotações cons-
pontos da história do arquipélago. O traba- tituíram uma fonte importante para outros
lho de investigação, de pesquisas e de con- estudiosos, sobretudo para os intelectuais
sultas em livros, manuscritos ou outras fon- da primeira metade do séc. xx e para os ho-
tes, que empreendeu para a elaboração das mens da chamada Geração do Cenáculo, que
anotações presentes na edição de As Saudades recorreram com frequência às investigações
da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvi- do seu antecessor. Antes do trabalho feito
mento do seu gosto pelo estudo da história nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azeve-
da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro do, os estudos relativos à história do arquipé-
Rodrigues de Azevedo “poderá ser conside- lago eram muito vagos, circunscrevendo-se a
rado o pioneiro da historiografia hodierna breves notas e estudos.
na ilha. O seu trabalho publicado em anota- A sua obra teve, assim, um grande impac-
ção a As Saudades da Terra, em 1873, é mode- to em estudiosos como, entre outros, Alber-
lar e surge como uma peça-chave para todos to Artur Sarmento, [só usamos títulos quan-
os que se debruçam sobre a história da ilha” do o contexto o justifica] Fernando Augusto
(VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Aze- da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto
vedo confessou que teve muitas dificulda- da Cruz, sendo mesmo uma base de referência
des na elaboração destas notas, que foi um para a elaboração de obras como o Elucidário
processo moroso, fruto de muito trabalho Madeirense (1921). De facto, são muitas as refe-
de investigação, de dia, e de escrita, à noite, rências aos apontamentos e ao nome de Álva-
acumulado com a sua profissão. A obra, en- ro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que
cetada em meados de 1870, demorou cerca compõem o Elucidário, tendo os seus autores
de três anos a completar. Os trabalhos de in- confessado que “são as Saudades da Terra, e
vestigação foram feitos nos arquivos da Ilha, sobretudo as suas valiosas e abundantes notas,
nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de o mais rico, copioso e seguro repositório de
168 ¬ A zevedo , A mélia A ugusta de
elementos que possuímos para a história do com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de
nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, 1998, Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das
II, 126). Neste sentido, também outros auto- suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qual-
res terão consultado e referenciado as notas a quer homenagem a este homem que se empe-
Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do nhou pelo progresso da Ilha.
Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes
Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso Proferido na
de Notas e Comentários para a História Literária da Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em que Se Expõe e Combate Esta
Madeira (1949-1953). Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista.
Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de
Ainda relativamente à história da Madeira,
Recitação, Philologia e Redacçao (1869); Corografia do Arquipélago da Madeira
Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de (1873); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas
uma série de artigos, nomeadamente, “Ma- do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI
Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); “A casa em que Christovão
chico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Colombo habitou na ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago
Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário da Madeira (1880); Benavente. Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma,
Continuada e Editada por Ruy d’Azevedo (1926).
Universal Português Ilustrado, dirigido por Fer-
nandes Costa. Bibliog.: A. A., “Crítica literária. Bosquejo historico da literatura classica grega,
latina e portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”, A Discussão, 31 jan.
Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Ro- 1856; 7 fev. 1856; 21 fev. 1856; 6 mar. 1856; 26 jun. 1856; 24 jul. 1856; CLODE,
manceiro do Arquipélago da Madeira, um volume Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal,
Caixa Económica do Funchal, 1983; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da
de 514 páginas, resultado das suas recolhas da Terra. História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot.
tradição oral em diversas freguesias da Madeira Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500
Anos, 2007; MARINO, Luís, Musa Insular: Poetas da Madeira, Funchal, Eco
e do Porto Santo, para o qual terão contribuí- do Funchal, 1959; PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários
do as influências de Teófilo Braga. As compo- para a História Literária da Madeira, 3 vols., Funchal, Câmara Municipal
do Funchal, 1949-1953; SILVA, António Carvalho, “Apontamentos sobre
sições foram classificadas por géneros, a saber, gramáticas madeirenses (1)”, Islenha, n.º 18, jan.-jun. 1996, pp. 101-109; Id.,
“Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por “Apontamentos sobre gramáticas madeirenses (2)”, Islenha, n.º 19, jul.-dez.
1996, pp. 159-170; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
sua vez, foram divididos em espécies. Nas “His- de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; SILVA, Inocêncio
tórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu Francisco da, Diccionario Bibliographico Portuguez, vol. 1, Lisboa, INCM, 1858;
VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António Aragão de, Madeira. Investigação
as seguintes espécies: “Romances ao divino”;
Bibliográfica, 3 vols., Funchal, DRAC, 1981-1984.
“Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No
género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: Sílvia G. Gomes
“Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Con-
tos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlen-
gas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”,
Azevedo, Amélia Augusta de
contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de
adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos Amélia Augusta de Azevedo foi uma musicólo-
para a elaboração do cancioneiro, que, porém, ga e executante madeirense que se tornou co-
não chegou a publicar. nhecida não só no meio artístico nacional, mas
No ano seguinte à publicação do Romanceiro, também em França, onde várias composições
em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido suas foram editadas.
com a ingratidão dos madeirenses pelo seu tra- Filha de António Pedro de Azevedo, nas-
balho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, ceu no Funchal em 1840. Nessa cidade, cedo
acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou se evidenciou pela interpretação de peças em
residência até ao fim da sua vida. Deixou uma machete e braga. O reconhecimento das suas
coleção de apontamentos avulsos sobre a his- qualidades fez com que se mudasse para Lis-
tória, o romanceiro e o cancioneiro da Madei- boa, onde, a 4 de julho de 1873, se inscreveu
ra, que foi coligindo ao longo do tempo que ali como aluna externa no Conservatório Nacio-
passou, os quais foram adquiridos pela Bibliote- nal, instituição em que haveria de prestar pro-
ca Nacional de Lisboa, após a sua morte. vas de Rudimentos de Teoria Musical e Sol-
No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras fejo. Embora seja certo que se apresentou ao
e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua exame da primeira das disciplinas, no qual foi
A zevedo , A mérico O lavo C orreia de ¬ 169
Fig. 1 – Cap. Américo Olavo Correia de Azevedo, c. 1916 (BNP, Fig. 2 – Na Grande Guerra (1917-1918) (reed. 2017),
Espólio Bernardino Machado). de Américo Olavo.
A personalidade de Américo Olavo fica de pasto para os animais que, de forma asselva-
ainda ligada às letras, nomeadamente a par- jada e desregrada, se alimentavam em zonas ser-
tir da sua experiência bélica. Foi o autor do ranas. Deste modo, o coberto florestal indígena
livro memorialista Na Grande Guerra (1919). foi bastante afetado e delapidado na ilha da Ma-
Em coautoria com Chagas Franco, publicou deira, chegando mesmo a desaparecer na ilha
uma coletânea de contos a que deu o nome do Porto Santo. A falta de técnicos e de pessoas
Dentro da Vida (1909). conhecedoras da flora e da floresta madeiren-
se, bem como das consequências da sua devasta-
Obras de Américo Olavo Correia de Azevedo: Dentro da Vida (1909)
(coautoria); Na Grande Guerra (1919).
ção, fez com que esta situação se perpetuasse e
Bibliog.: impressa: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses.
agravasse durante séculos. A situação na ilha do
Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; OLAVO, Américo, Porto Santo ainda era mais grave, piorando con-
Na Grande Guerra (1917-1918), Viseu/Lisboa, Quartzo/Direcção de História e
sideravelmente em meados do séc. xviii e le-
Cultura Militar, 2017; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional da Educação e vando quase à completa desertificação da Ilha.
Cultura, 1978; digital: “Américo Olavo”, Projecto Vercial, s.d.: http://alfarrabio. O conhecimento e os principais estudos sobre a
di.uminho.pt/vercial/olavo2.htm (acedido a 12 dez. 2018); Instituto de História
Contemporânea: http://ihc.fcsh.unl.pt/pt/recursos/biografias/item/4452- floresta madeirense pertenciam, nessa época, a
poppe-%C3%A1lvaro-1879-1972 (acedido a 2 maio 2015). naturalistas estrangeiros que, por diversos mo-
Carlos Maduro tivos, passavam na Madeira ou iam até esse ar-
quipélago atraídos pela riqueza da sua flora e
fauna e dos inúmeros endemismos existentes.
Azevedo, António Bon de Sousa Segundo Rui Carita, os naturalistas estrangeiros
Schiappa de que mais se evidenciaram na época com traba-
lhos de divulgação da fauna e flora desse terri-
Regente florestal de formação, desempenhou tório foram o reverendo inglês Thomas Lowe,
importantes funções silvícolas no distrito que preparou os álbuns com que a Madeira
do Funchal nos finais do séc. xix e início do
séc. xx.
Nasceu em Lisboa em 1870, no seio de uma
família distinta, sendo o seu avô materno o
Ten.-Gen. Pedro Paulo Ferreira de Sousa, pri-
meiro barão de Pernes. Foi para a ilha da Ma-
deira em finais do séc. xix, onde casou com
uma madeirense, filha de José António de Al-
mada, passando a viver no Funchal.
Desempenhou um importante papel na área
florestal, tanto na ilha da Madeira como na
ilha do Porto Santo. Na primeira, foi respon-
sável pela preservação das manchas de flores-
ta natural que se encontravam ameaçadas na
época; na segunda, foi responsável pelos pri-
meiros trabalhos de reflorestação daquele es-
paço, que estava há séculos desprovido de um
coberto florestal.
Fruto da riqueza existente na floresta indí-
gena da Madeira e do Porto Santo, iniciou-se,
após a descoberta destas ilhas, um processo de
delapidação do coberto florestal existente com
os objetivos de exploração de madeira e carvão, Fig. 1 – António Bon de Sousa Schiappa de Azevedo, c. 1910 (ABM,
implementação de áreas agrícolas e constituição Photographia Vicente).
172 ¬ A zevedo , A nt ó nio P edro de
Fig. 1 – Abono de António Pedro de Azevedo para seguir para a Madeira, paço de Sintra (7 set. 1848) (AHM, Processos Individuais).
da Madeira dessa época vão ser marcadas por que no Funchal, em 1834, era confirmado pelo
três engenheiros militares: Manuel José Júlio cônsul Henry Veich (c. 1770-1857).
Guerra (1801-1869), cuja atuação não terá O futuro engenheiro viria a completar o
sido particularmente notável, Tibério Augusto curso em 1837, sendo promovido a tenente
Blanc (c. 1810-1875) e António Pedro de Aze- a 5 de setembro desse ano. Estagiaria no con-
vedo (1812-1889), que, pelo contrário, deixa- tinente até finais de 1840, chegaria a capitão
ram uma obra verdadeiramente notável, e que a 22 de fevereiro do ano seguinte e seria en-
se viriam, entretanto, a desentender aberta e viado de novo para a Madeira, então como
violentamente. Em princípio, não estavam em responsável pelo estabelecimento das linhas
causa assuntos técnicos e profissionais entre telegráficas. Logo nesse ano de 1841, percor-
estes dois engenheiros, mas sim filiações ou re toda a linha de costa da ilha, périplo de
amizades políticas e partidárias. que resulta o Reconhecimento Militar da Ilha da
António Pedro de Azevedo nascera em Cami- Madeira, com as plantas das principais vilas
nha a 9 de fevereiro de 1812 e assentou praça a e linhas de fortificação, Reconhecimento que
4 de setembro de 1826, apenas com 14 anos de ainda repetiria, ampliado, em 1860. No ano
idade, sendo promovido a alferes a 9 de julho seguinte, trabalharia com o coronel Alexan-
de 1827 e entrando no ano seguinte para a Aca- der Thomas Emeric Vidal (1792-1863) e ou-
demia Real de Fortificação, Artilharia e Dese- tros oficiais do vapor de guerra inglês Styx no
nho. As alterações políticas dos anos seguintes levantamento das cartas geo-hidrográficas do
levaram-no a interromper os estudos, prestan- arquipélago da Madeira, sucessivamente pu-
do uma comissão de serviço em Elvas e sendo blicadas em Londres nos anos seguintes e, de-
colocado na Madeira em 1830, integrando, pois, em Lisboa, em 1877, a do Porto Santo,
depois, as forças absolutistas da reocupação do em 1879, a da Madeira, e em 1886, a das De-
Porto Santo, a 29 de maio de 1832, quando se sertas, quando António Pedro de Azevedo era
procedeu, de novo, à aclamação de D. Miguel. já general reformado.
Talvez por isso, nunca deixou de fazer constar Os primeiros trabalhos de António Pedro
nos seus documentos que desde estudante so- de Azevedo seriam geo-hidrográficos e geo-
frera represálias devido às suas ideias liberais, o désicos, por vezes com complexas memórias
174 ¬ A zevedo , A nt ó nio P edro de
direção das obras públicas distritais, ocorrida divulgada nos periódicos locais, especialmente
em 1852, na sequência da criação, em Lisboa, em A Ordem (Funchal, 25 set., 13 nov., 4 e 18
do Ministério das Obras Públicas, Comércio dez. 1852), que representava então uma certa
e Indústria, em 28 de agosto desse ano, pelo ala esquerda da regeneração.
também engenheiro militar António Maria O Ministério das Obras Públicas, Comércio e
Fontes Pereira de Melo (1819-1887). À fren- Indústria, em Lisboa, no entanto, parece não
te da repartição do Funchal foi colocado Ti- ter entendido assim a situação, passando a en-
bério Blanc, que já em 27 de julho de 1847 carregar logo António Pedro de Azevedo de vá-
fora encarregado da inspeção geral e superior rios projetos na área das obras públicas e de-
das obras da Junta Geral e que estava há mais terminando a Tibério Blanc que entregasse o
tempo na Madeira, embora, mais velho, não projeto final das obras da levada do Rabaçal.
fosse hierarquicamente mais antigo. Nessa sequência, em fevereiro de 1853, exo-
A época corresponde a uma nova inflexão nerava Tibério Blanc do cargo da direção das
política da regeneração, proclamando-se o Obras Públicas, indicando que deveria entre-
Maj. António Pedro de Azevedo adversário po- gar a comissão a António Pedro de Azevedo.
lítico do anterior governador José Silvestre Ri- A passagem dos diversos materiais e, especial-
beiro, considerado localmente pelos “novos mente, o arquivo das obras públicas do distri-
regeneradores” como pouco dialogante e até to levantou inúmeros problemas, patentes em
autoritário. Com a nova situação, e não tendo vários ofícios trocados entre o Governo Civil e
sido nomeado como diretor geral das obras o Ministério.
públicas do distrito, António Pedro de Azeve- A atividade do Maj. António Pedro de Azeve-
do consegue ser nomeado inspetor das mes- do na área da cartografia foi verdadeiramen-
mas obras, escrevendo então a Tibério Blanc te notável, a ele se ficando a dever uma exce-
a comunicar-lhe as suas novas funções, solici- cional coleção de plantas das diversas vilas e
tando-lhe vários elementos sobre as obras do lugares da ilha da Madeira, referentes, essen-
Rabaçal e, inclusivamente, alojamento no local cialmente, à fortificação, mas também ao ur-
para proceder à inspeção das mesmas, ofícios banismo, constituindo o mais importante con-
depois divulgados nos periódicos do Funchal. junto iconográfico dos meados do séc. xix
As notícias das desavenças entre os dois en- legado à posteridade. A sua atividade como
genheiros só poderiam chegar aos periódicos engenheiro construtor, no entanto, conheceu
do Funchal através do Maj. António Pedro de vários percalços. A 3 de outubro de 1853, e.g.,
Azevedo, mesmo os protestos pelo atraso com a ponte do Porto da Cruz, após ter-lhe sido
que decorria a inspeção à levada do Rabaçal, retirado o “simples”, ruiu, o mesmo vindo a
a primeira a efetuar-se àquela obra, uma das acontecer, no mês seguinte, à ponte da vila de
mais importantes obras públicas da Madeira. São Vicente, que por pouco não vitimava 15
A questão arrastou-se pelos meses de outubro dos trabalhadores que aí se encontravam. Tal-
e novembro de 1852, embora Tibério Blanc ti- vez por isso, já a 31 de outubro, o visconde de
vesse logo colocado toda a obra à disposição de Fornos de Algodres suspendia o Maj. Azevedo
António Pedro de Azevedo, inclusivamente os das suas funções de diretor interino das Obras
serviços do apontador-geral, José Maria Passos. Públicas.
Os resultados acabaram por revelar que tudo O correspondente do periódico A Ordem em
se encontrava a decorrer conforme os proje- São Vicente, que geralmente defendia Tibério
tos inicialmente definidos, havendo perfeita Blanc, perante o acidente não deixa de relem-
consonância entre os trabalhos desenvolvidos brar a atuação do anterior engenheiro, que se
pelo Maj. Tibério Blanc e a inspeção efetuada não poupava a incómodos e fadigas, expon-
pelo Maj. António Pedro de Azevedo, como do-se muitas vezes a perigos eminentes, como
consta na carta do apontador-geral José Maria quando “mandou abrir a estrada do Passo
Passos, de 20 de novembro desse mesmo ano, da Areia, e deu princípio à da Rocha para o
176 ¬ A zevedo , A nt ó nio P edro de
Fig. 4 – Planta das Fortificações da Ilha da Madeira em 1855 (DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar).
Seixal”, só para que as obras não sofressem Pontinha, de outubro de 1847. Parece, assim,
algum inconveniente, do qual resultasse pre- que nos mais de 10 anos em que António
juízo público e à Fazenda (A Ordem, 8 out., 5 e Pedro de Azevedo esteve à frente daquele ar-
26 nov. e 3 dez. 1853). quivo se não apagou o antagonismo cultivado
O Maj. António Pedro de Azevedo havia de se na Madeira em relação a Tibério Blanc.
retirar para Lisboa em meados de 1865, onde
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivos Particulares, Doação Rui Carita, plantas
Tibério Blanc também já se encontrava, mas várias; Ibid., Diplomas; Ibid., Governo Civil, liv. 6, fl. 91v.; liv. 135, fl. 187; liv. 421;
conheceria uma outra carreira política. Co- AHM, Processos Individuais, cx. 842, Cunha; cx. 965, proc. 593-3, António
Pedro de Azevedo; DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia
ronel por dec. de 9 de agosto de 1865, pouco
Militar, António Pedro de Azevedo, Reconhecimento Militar da Ilha da Madeira,
depois de chegar ao continente seria nomea- Memória de 1841, 1344, 1A/12A/16 e 1345-43; 1860, 2772, 1A/12A/16; impressa:
do chefe de gabinete do ministro da Guerra, a CARITA, Rui (colab. Álvaro Vieira Simões), Arquitectura Militar da Madeira dos
Sécs. XVI a XIX, catálogo de exposição patente no Teatro Municipal do Funchal
18 de novembro de 1869, e, com essa nomea- por ocasião das comemorações nacionais do Dia de Portugal, de Camões e
ção, seria general um mês depois, a 13 de de- das Comunidades, 10 jun. 1981, Funchal, Zona Militar da Madeira, 1981; Id.,
Arquitectura Militar da Madeira. Séculos XVI a XIX, catálogo de exposição
zembro. Passaria ainda a diretor do arquivo da patente na Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, Lisboa, FCG, 1982; Id., Paulo
Engenharia Militar, reformando-se a 31 de de- Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira, Funchal, DRAC, 1982; Id.,
História da Madeira, vols. vi-vii, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 2003
zembro de 1878, mas mantendo-se à frente do e 2008; Documentos para a História das Cortes Gerais, t. vi, Lisboa, Imprensa
arquivo e preparando a edição das suas cartas Nacional, 1889; MENEZES, Sérvulo Drumond de, Collecção de Documentos
Relativos á Construção da Ponte do Ribeiro Seco, Funchal, Typ. L. Vianna Junior,
geográficas do arquipélago. Faleceria em Lis- 1848; Id., Uma Época Administrativa da Madeira e Porto Santo a contar do Dia 7
boa, a 10 de agosto de 1889. de Outubro de 1846, 2 vols., Funchal, Typ. Nacional, 1849-1850; A Ordem, Funchal,
25 set. 1852; 13 nov. 1852; 4 dez. 1852; 18 dez. 1852; 8 out. 1853; 5 nov. 1853;
Nos arquivos da Engenharia Militar, constam 26 nov. 1853; 3 dez. 1853; SANTOS, Rui, “Um capitão de engenheiros (Tibério
quase uma centena de trabalhos assinados e Augusto Blanc, Santarém, 1810?; m. 1875)”, Jornal da Madeira, 25 dez. 1991; 5 jan.
1992; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
determinados por António Pedro de Azevedo,
Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VITERBO, Sousa, Diccionário Histórico
incluindo as plantas da levada do Rabaçal, mas e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses, 1899-1922,
reedição fac-símile, 3 vols., Lisboa, INCM, 1988.
nenhum com a assinatura de Tibério Augusto
Blanc, salvo um mapa de gastos da estrada da Rui Carita
A zevedo , C arlos O lavo C orreia de ( J únior ) ¬ 177
seus amigos, Xavier da Silva, acabaram por ori- Bibliog.: manuscrita: ABM, Registos Paroquiais, Santa Maria Maior, Batismos,
ginar uma denúncia. Se bem que Carlos tenha liv. 2098, fls. 39v.-40; Ibid., Registos Paroquiais, Santa Maria Maior, Casamentos,
liv. 2130, fls. 13-13v.; AHM, Livro de Matrícula do Pessoal, Registo das Praças
conseguido manter o seu cargo, Xavier aca- do 2.º Batalhão (1901-1905), liv. 47, doc. 957, Carlos Olavo Correia de Azevedo
bou por ser preso, acusado de professar ideias Júnior; Ibid., Portugal e Campanhas na Europa, Boletins Individuais de
Militares do CEP 1914/1918, Oficiais, cx. 6, Carlos Olavo Correia de Azevedo;
comunistas. ANTT, Secretaria Geral da Presidência do Conselho de Ministros, Gabinete
Além da advocacia e da política, destacou-se do Presidente, cx. 10, proc. 302/5, n.º 9; impressa: Annuário da Universidade
de Coimbra, anos letivos de 1903-1904 a 1908-1909, Coimbra, Imprensa
no campo das letras. Foi autor de vários livros, da Universidade, 1903-1909; CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de
tendo publicado, além do atrás mencionado Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983;
“Dr. Carlos Olavo”, Diário de Notícias, Funchal, 17 nov. 1958, p. 8; DUARTE,
Jornal d’um Prisioneiro de Guerra na Alemanha, António Paulo, “Azevedo, Carlos Olavo Correia de”, in ROLLO, Maria Fernanda
também as seguintes obras: A Vida Turbulenta (coord.), Dicionário de História da I República e do Republicanismo, vol. i,
A zevedo , D omingos O lavo C orreia de ¬ 179
em Lisboa, ainda seria necessário preencher (1792‑1863), então elevado a barão de Lorde-
um lugar de senador, para o qual foi elei- lo. O barão, no entanto, pediu a exoneração
to João Gualberto de Oliveira (1788-1852), e passado pouco tempo, e o governo começou a
também os vários lugares de deputados, para ser assegurado pelo 13.º morgado do Caniço,
que foram eleitos como deputados substitutos Aires de Ornelas e Vasconcelos (1779-1852),
Domingos Olavo Correia de Azevedo e o Cón. como administrador-geral interino, a partir de
Gregório Nazianzeno de Medina e Vasconce- 2 de janeiro de 1841. Aires de Ornelas, contu-
los (1788-1858). Em novas eleições, seria eleito do, pediria igualmente a exoneração, alvitran-
ainda nesse ano, dado ter havido novas vagas, do dificuldades económicas, sendo o lugar en-
Daniel de Ornelas e Vasconcelos (1800-1878), tregue a Domingos Olavo Correia de Azevedo.
o futuro barão de S. Pedro, para uma vaga de Domingos Olavo Correia de Azevedo ocupou
senador, e Domingos Olavo Correia de Azeve- a posição de deputado substituto nas eleições
do, novamente para deputado substituto. seguintes, e, por decreto de 26 de fevereiro de
Data do governo de Gamboa e Liz a rees- 1841, foi nomeado administrador-geral do dis-
truturação da oficina impressora até então trito, lugar de que tomou posse a 2 de abril do
montada nas instalações de S. Lourenço, de- mesmo ano, conforme a portaria de 29 desse
pois transferida para o extinto Convento de mesmo mês. Data do governo de Olavo Cor-
São Francisco, com acesso pela porta da R. de reia de Azevedo a instalação da Junta de 1842,
São Francisco. A 24 de fevereiro de 1838, aque- reformulada pelo decreto de 8 de março nesse
le administrador-geral mandava distribuir um ano, a partir do qual passou a contar com sala
aviso que fora impresso nas novas instalações, própria em S. Lourenço, horário e dias esta-
informando que a Tipografia Nacional estava belecidos para as reuniões, tendo já o admi-
apta a imprimir quaisquer “obras de particu- nistrador-geral participado nas assembleias
lares, em qualquer língua, por preços cómo- preparatórias anteriores. Os procuradores à
dos e taxados para as obras grandes” (ABM, Al- Junta Geral começaram, a partir de 30 de abril
fândega do Funchal, liv. 675, Aviso de 24 fev. desse ano, a reunir-se em S. Lourenço todos
1838). O aviso apresentava também uma tabela os sábados não feriados, pelo meio-dia, passan-
de preços e informava que as obras em línguas do as reuniões a ter atas a partir de 9 de maio
estrangeiras, de que não existissem tradutores desse ano. Data desse ano a primeira emissão
oficiais, teriam de ser acrescidas dessa despesa. de uma moeda para circular na Madeira, a pe-
Divulgavam-se assim os impressos para as várias cunia madeirensis, com o valor facial de X réis,
cerimónias oficiais, com espaços em branco uma emissão devida ao então ministro Conde
para se acrescentar, em manuscrito, o evento e de Tojal que se repetiria nos anos seguintes,
o horário. A 30 de maio, já o então presidente embora tais emissões nunca chegassem para as
da Câmara do Funchal, Sérvulo Drumond de necessidades de circulação monetária da praça
Meneses, através de impresso, convidou as res- do Funchal.
tantes autoridades do Funchal para mais um Te Conta o Elucidário Madeirense que o início do
Deum na Catedral, “pelas 11 da manhã” do dia governo de Domingos Olavo Correia de Aze-
5 de junho pelo aniversário da “nossa Restaura- vedo foi marcado por um interessante episó-
ção” (Ibid., Alfândega do Funchal, liv. 675, con- dio de afirmação da soberania nacional. Nos
vites de 30 maio e 2 abr. 1838), e em 1840 o começos de 1841, o patacho britânico Bernar-
presidente seguinte, Domingos Olavo Correia da teria sido encontrado a fazer contrabando
de Azevedo, fez um convite idêntico, então nas águas da Madeira; obrigado a entrar no
para o Te Deum comemorativo da “Restaura- porto do Funchal pela fiscalização marítima,
ção do Governo Legítimo” (Ibid., Alfândega do foi apreendido e, posteriormente, vendido em
Funchal, liv. 675, 25 maio 1840). hasta pública, de acordo com as leis aduaneiras
A administração-geral veio a ser ocupada e internacionais. Pouco tempo depois, a 8 de
depois pelo Brig. José da Fonseca e Gouveia agosto desse ano, entrou na baía da cidade o
A zevedo , D omingos O lavo C orreia de ¬ 181
Fig. 3 – Wrecks of the Dart & Novo Beijinho, desenho a aguarela de Emily Geneviève Smith (26 out. 1842) (Museu Quinta das Cruzes).
Nos inícios de 1842, entretanto, tinham de guerra Douro, mas “sem qualquer indicação
ocorrido novas alterações no continente, do seu destino ou pena” (Ibid., Governo Civil,
sendo dissolvidas as Cortes, por decreto de 10 liv. 643, fl. 117), que foram então enviados para
de fevereiro, e declarada em vigor, novamen- a fortaleza de S. João do Pico. Os presos regres-
te, a antiga Carta de 1826, algo que veio mais sariam ao continente no patacho Zarco, em de-
uma vez a ser celebrado no Funchal por um zembro desse ano, novamente sem indicações
Te Deum, a 27 de fevereiro, em “ação de gra- especiais, pelo que nem se sabe sequer quem
ças pelo plausível motivo de se achar em vigor seriam, voltando o governador a escrever para
a Carta Constitucional de 1826” (ABM, Alfân- Lisboa a pedir indicação da rubrica orçamen-
dega do Funchal, liv. 676, convite impresso). tal onde deveria indexar a despesa de 150$000
Por decreto da data de dissolução das Cortes e réis que fizera com o transporte dos mesmos
pelo decreto de 5 de março, foram marcadas “presos políticos” (Ibid., Governo Civil, liv. 643,
novas eleições, que vieram a ocorrer em junho fl. 118).
desse ano. Foram então eleitos Luís Vicente de Terminada a agitada legislatura de 1842 a
Afonseca (1803-1878), Bartolomeu dos Márti- 1844 em Lisboa, o decreto de 25 de abril de
res Dias e Sousa (1806-1882), João da Câma- 1845 ordenou uma reunião das assembleias
ra Leme Carvalhal Esmeraldo (1831-1888) e eleitorais, que ocorreria em agosto do ano se-
o futuro conselheiro Francisco Correia Heré- guinte. Nessa altura, a Madeira confrontou-se
dia, mantendo o administrador-geral o lugar com a diminuição de quatro para três depu-
de deputado substituto. tados, devido à atenção atribuída ao censo de
Nos inícios de 1844, rebentavam, entretan- 1840, ignorando-se o mais recente, que era
to, novos pronunciamentos militares, em Tor- do ano anterior. Conforme se queixa a então
res Novas e em Almeida, e, embora as eleições Junta de 1842, num documento que o gover-
de 1845 viessem a dar um folgado triunfo aos nador transcreve para o Ministério do Reino,
apoiantes de Costa Cabral (1803-1889), foram- o decreto entrara em linha de conta com um
-lhes apontadas as maiores irregularidades. Por quantitativo de 25.040 fogos correspondentes
essa altura, o administrador-geral do distrito, ao ano de 1840, que equivalia a três deputa-
Domingos Olavo Correia de Azevedo, escre- dos, e não com o de 26.106 fogos, que era o
via para o Governo de Lisboa a congratular-se número relativo a 1844, correspondendo aos
por haver “sido superada a revolta que, inicia- quatro deputados que o distrito até então ele-
da em Torres Novas, terminara em Almeida” gia. Mas a queixa acabou por não ser aceite em
(ABM, Governo Civil, liv. 643, fl. 84) e a infor- Lisboa, tendo sido eleitos somente três depu-
mar que não tinha havido na Madeira quais- tados: de novo, Lourenço José Moniz, Luís Vi-
quer mudanças por esse motivo; e, embora, no cente de Afonseca e Bartolomeu dos Mártires
aspeto político, corresse tudo bem na Madeira, Dias e Sousa.
também alertava, mais uma vez, para a possi- No Minho, entretanto, rebentava a chamada
bilidade de acontecer um confronto grave no revolta da Maria da Fonte e, na sua sequência,
campo religioso, conforme ele próprio vinha foi montada uma junta governativa em Trás-
sublinhando há muitos meses, sem que tivesse -os-Montes, a que se seguiu a Junta do Supre-
obtido qualquer resposta ou diretiva de Lisboa mo Governo do Porto, enquanto o Governo
para poder enfrentar ou delimitar a situação. de Costa Cabral caía. Para o novo Governo,
Em causa, estavam as atividades proselitistas foi chamado o duque de Palmela (1781-1850),
do reverendo Robert Reid Kalley (1809-1888), que, para a pasta do Reino, convidou mais
que teriam depois profundas repercussões na- uma vez o antigo prefeito da Madeira, Luís
cionais e internacionais. da Silva Mouzinho de Albuquerque. O Gover-
A 23 de maio de 1844, o governador infor- no de Lisboa empreendeu então uma série de
mava da chegada ao Funchal, em abril desse recuos, suspendeu as leis da saúde pública e
ano, de 10 presos políticos, vindos no brigue da reforma tributária, e exonerou uma série
184 ¬ A zevedo , J aime B oaventura de
deveria, logo à chegada, visitar o bispo, com Lourenço”, salão de que não temos qualquer
quem, em princípio, deveria manter as melho- outra informação, “e uma conspiração que in-
res relações possíveis, pois nisso “consiste todo tentaram fazer os soldados”, “tentando tirar a
o sossego da terra e a sua quietação” (BNP, Co- vida” (ABM, Câmara Municipal do Funchal,
leção Pombalina, cód. 526, fls. 275-282). De- Registo Geral, t. 7, fl. 245v.) ao governador e
veria mesmo haver uma específica atenção a ao juiz de fora da câmara, então António de
tudo o que se relacionasse com o prelado dio- Macedo Velho. No atentado ao governador
cesano, não permitindo que na sua presença teria estado envolvido o capitão de artilharia
se murmurasse a seu respeito e, no caso de isso António Nunes, que imediatamente a seguir
acontecer, deveria repreender-se asperamente à sedição se ausentou do Funchal, tal como o
quem o tivesse feito. provedor da Alfândega. Por causa desta sedi-
Acontece, porém, que terá havido alguma ção, deslocou-se ao Funchal, com poderes ex-
desarmonia entre estas duas autoridades e, cecionais, o desembargador Diogo Salter de
tendo o bispo, D. José de Sousa Castelo Bran- Macedo (1654-c. 1730), com provisão passada
co (1654-1740), solicitado que o governador em Lisboa, a 7 de janeiro de 1704, que se apre-
colocasse homens da milícia das companhias sentou na Madeira a 9 de junho desse ano. Em
de ordenanças do Funchal às suas ordens, prol da correção das suas averiguações, dever-
João da Costa de Ataíde recusou-se a aceder -se-ia fazer sair da cidade o governador, João
ao pedido e, depois de enviar o assunto ao Rei da Costa de Ataíde, “em distância de dez lé-
D. Pedro II (1648-1706), teve o seu apoio ex- guas, para que não fosse, com a sua presença
presso em alvará régio, emitido a 15 de janeiro e poder, assistindo” às averiguações, interferir
de 1703. As posições devem ter-se extremado nas mesmas. Nas ordens do desembargador,
e para isso deverá ter contribuído o arcediago vinha expresso: “e na mesma embarcação em
da Sé do Funchal, António Correia de Betten- que fores tirar esta devassa, voltará o provedor
court (1664-1725), sucessivamente promovido da fazenda Manuel Mexia, por não ser conve-
por este prelado e irmão do cronista Henrique niente que fique na Ilha depois da vossa chega-
Henriques de Noronha (1667-1730). da, para se não dar tempo a negociações, e por
Assim se explica a defesa do bispo e, acrescen- ser o dito Provedor da Fazenda envolvido em
te-se, do irmão, que levou Noronha a escrever mais suspeições” (Ibid.).
que, em 1703, D. José de Castelo Branco, “em As questões em causa terão tido uma signifi-
razão do ofício de bom Pastor, teve algumas cativa gravidade e envolvido também o bispo,
dissensões com o governador João da Costa de pois ficou escrito no regimento do desembar-
Ataíde e com o provedor da fazenda real, o de- gador: “E a queixa contra o Bispo deverá ser
sembargador Manuel Mexia Galvão, de cujos queimada, para dela não ficar nada, nem me-
procedimentos se queixou a el-rei D. Pedro II”. mória, e disso deverá ser dado conhecimen-
O Rei enviou então um sindicante ao Funchal, to ao Bispo, para o mesmo saber como o Rei
“para que chamando o dito Provedor à Câma- e as suas Justiças tratam semelhantes casos”
ra, lhe estranhara corretivamente os seus pro- – o que não foi aquilo que Henrique Henri-
cedimentos, fazendo-o assim saber ao dito Pre- ques de Noronha acabou por escrever. Neste
lado. Tudo consta da provisão passada a sete de caso, havia ainda queixas contra a família No-
janeiro de 1704” (NORONHA, 1996, 127-128). ronha, a que pertencia o arcediago, e contra
Ora, o que consta da provisão datada de 7 de a família do vigário-geral da Diocese, e ainda
janeiro de 1704 não é, contudo, isso – e envol- se encontrava envolvido o juiz de fora da câ-
ve inclusive algo mais grave: os Noronha pas- mara do Funchal, “a quem [os soldados] fize-
sam a estar explicitamente envolvidos nos que- ram uma sátira difamatória” (Ibid.). Os auto-
sitos a serem investigados pelo desembargador. res do Elucidário Madeirense seguem de perto
Em finais de 1703 terá havido uma sedi- as opiniões de Noronha, embora não deixan-
ção “no salão da Índia da fortaleza de S. do de salientar ter sido este bispo “estrénuo
A zevedo , M aximiliano E ugénio de ¬ 187
defensor dos privilégios e regalias de que go- Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral,
tombo 7; ANTT, Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 16, Manuel de Santo
zava a Igreja” (SILVA e MENESES, 1998, I, António e Silva, Thesouro da Nobreza de Portugal, 1783; BNP, Coleção
260). Sobre o governador limitam-se a dar a Pombalina, cód. 526; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vols. iii-
iv, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1992 e 1996; COSTA, António
sua posse e falecimento. Carvalho da, Corografia Portugueza e Descripçam Topografica do Famoso Reyno
As ordens dirigidas ao desembargador e de Portugal, com as Noticias das Fundações das Cidades, Villas, & Lugares,
Que Contem; Varões Illustres, Genealogias das Familias Nobres, Fundações de
corregedor Salter de Macedo foram passadas Conventos, Catalogos dos Bispos, Antiguidades, Maravilhas da Natureza, Edificios,
em janeiro, mas o mesmo só se apresentou & Outras Curiosas Observaçoens, t. 2, Lisboa, Officina de Valentim da Costa
Deslandes, 1708; NORONHA, Henrique Henriques de, Memórias Seculares e
na Ilha em junho, pelo que desconhecemos
Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal na Ilha da
totalmente o que teria conseguido averiguar. Madeira, Funchal, CEHA, 1996; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos
Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VERÍSSIMO,
Entretanto, já tinha falecido no Funchal o
Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal,
Gov. João da Costa Ataíde, a 8 de março, e DRAC, 2000.
já tinha tomado posse Duarte Sodré Pereira Rui Carita
(1666-1738). O novo governador tinha sido
nomeado em novembro de 1703, “havendo
respeito a desobrigar” João da Costa de Ataí- Azevedo, Maximiliano
de, referindo-se os merecimentos dos ante- Eugénio de
riores serviços e ainda “por [ser] quem ele
é”, conforme vem expresso na carta paten- Nascido no Funchal a 16 de fevereiro de 1850,
te de Sodré Pereira (ABM, Câmara Munici- faleceu em Lisboa a 4 de dezembro de 1911.
pal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fls. 233- Mais conhecido por Maximiliano d’Azeve-
253v.), parecendo que em Lisboa ainda se do (com os pseudónimos de Alberto de Ma-
não havia tido notícia da sedição. No entan- galhães, Silvestre, Zélio e Max), foi coronel
to, o Gov. Duarte Sodré Pereira demorou-se no Exército Português, distinguindo-se como
algum tempo em Lisboa, decerto por ques- autor de diversas obras de carácter histórico
tões oficiais, pois só em março de 1704 foi e de peças teatrais, jornalista e crítico da arte
nomeado para o Conselho de Estado, che- dramática.
gando ao Funchal quando o anterior gover- Filho de António Pedro de Azevedo e de Te-
nador já tinha falecido. resa Rosa Bernes, foi afilhado de batismo do
O Gov. João da Costa de Ataíde foi sepultado príncipe Maximilian von Eichstätt, duque de
na igreja do Colégio da Companhia de Jesus, Leuchtenberg e príncipe de Eichstaedt, o qual,
como aconteceu sempre que um governador na altura do seu nascimento, se encontrava na
faleceu no Funchal e “foram depois levados os ilha da Madeira. Concluiu os estudos secundá-
seus ossos a Lisboa” (NORONHA, Ibid., 58). rios no Liceu Nacional do Funchal, frequentou
Não se casou nem deixou descendência, su- os estudos prepara-
cedendo na casa de seus pais o irmão Gaspar tórios da Escola Po-
da Costa de Ataíde, sucessivamente capitão litécnica em Lisboa,
de mar e guerra, sargento-mor de batalha, fis- ingressou depois na
cal da Armada, alcaide-mor de Sortelha, que Escola do Exército
tinha passado à Índia em 1701, por capitão- e terminou o curso
-mor das naus daquele Estado, mas não cons- de Artilharia em
tando também descendência do mesmo. Duas 1875.
das irmãs foram freiras em S.ta Clara de Lisboa, Iniciou a carrei-
outra morreu ainda jovem e D. Leonor Maria ra de oficial de ar-
de Ataíde casou-se com Sebastião de Carva- tilharia como 2.º te-
lho e Melo (c. 1625-1719), sendo avó do futu- nente em Santarém
ro ministro Sebastião José de Carvalho e Melo
Fig. 1 – Maximiliano
(1699-1782), sucessivamente conde de Oeiras Eugénio de Azevedo
e marquês de Pombal. (O Occidente, 20 dez. 1911).
188 ¬ A zevedo , M aximiliano E ugénio de
intitulada “Aos meus amigos”, na qual justifica do Estado-Maior e vice-presidente), Jaime Lei-
a sua modesta publicação e alude ao seu apre- tão de Castro (coronel de artilharia), Adelino
ço pelo marquês, nos diz: “I. De joelhos heróis! Augusto da Fonseca Lage (tenente e tesourei-
Baixai a fronte altiva,/Que passa triunfante, ro), João Severo da Cunha (major de enge-
aureolada e viva/A sombra de outro herói! – a nharia), Guilherme Luís dos Santos Ferreira
lusitana gloria/Que há um século morreu para (major de infantaria), Cristóvão Ayres de Ma-
viver na História./[...] É justo que façais dupla galhães Sepúlveda (tenente-coronel de infan-
consagração:/Ao génio da Epopeia e ao génio taria), Luís Henrique Pacheco Simões (capitão
da Instrução!” de infantaria) e José Justino Teixeira Botelho
Ernesto do Canto, no seu artigo “O Gremio (capitão e secretário).
Litterario” (1882), atribui a Maximiliano de Raul Brandão publica, em 1914, o registo de
Azevedo o discurso sobre Garrett proferido no cariz histórico intitulado A Conspiração de 1817,
sarau realizado pelo Grémio a 10 de junho de em memória de Maximiliano de Azevedo.
1880, nas comemorações do tricentenário de
Obras de Maximiliano Eugénio de Azevedo: O Amor; Os Anos da Menina;
Camões. O Às de Paus; A Ave Agoureira; Os Beijos do Diabo; O Capitão de Bandidos;
Num dos momentos sensíveis da sua vida, em Capricho de Sogra; Causa Célebre; Cinto e Bordão; Condecorado; Contos e
Bordão; O Convento do Diabo; Crime das Picoas; O Demónio dos Mares;
maio de 1885, aquando do falecimento do seu
O Diário do Governo; Os Dois Órfãos; Duas Crianças; Educação Errada;
grande amigo Gervásio Lobato, Maximiliano Engaiolado; Entre a Vítima e o Carrasco; O Epílogo; O Epílogo, por força!;
de Azevedo fez parte obrigatória da comissão A Feiticeira; Os Filhos do Capitão Grant; Frou-Frou; A Galdéria; Gostos não
Se Discutem; O Homem das 16 Mulheres; Um Homem Sério; Homenagem ao
de homenagem à memória do ilustre escritor, Marquês de Pombal (pseud. Alberto de Magalhães); A Honra; Ideias de Mme.
com enfáticas dedicatórias. Aubry; O Incêndio do Lugre Atlântico; Os Jesuítas; João José; Lua Cheia; Luis XI
e os Senhores Feudais; A Mãe da Minha Mulher; Marchas e Estacionamentos
Em 1909, o dramaturgo coordenou, com (colab. Artur Perdigão); Margarida do Monte; Marido Ó; Maridos e Amantes;
D. João da Câmara, José António de Freitas e Maridos Que Choram; A Mendiga; O Mestre de Obras; A Moda; Naná; No
Dia do Noivado; Um Pai da Pátria; Paulo; Paulo e Virginia; A Pesca Milagrosa;
Raul Brandão, O Livro das Creanças Portuguezas Prisioneiro da Palavra; Purgatório de Casados; Ralham as Comadres; Rapto
e Brazileiras. Ainda com Raul Brandão e João da de Um Navio; O Romance de Uma Actriz; Rosinha do Castelo; Santos de Casa;
O Sargento de 5 de Linha; O Segredo do Padre; A Sereia; Sozinha; As Surpresas
Câmara, elaborou, em 1903 e 1904, o compên- do Divórcio; Susana; Templo de Salomão; Tiro das Bocas de Fogo; A Tosca;
dio Livro de Leitura para as Escolas de Instrução Veteranos e Galuchos; Vida Curada; As Vitimas do Folhetim; Zefa; Inez de
Castro (1894); Histórias das Ilhas. Reminiscências dos Açores e da Madeira
Primária, destinado à 1.ª e 4.ª classes, aprovado (1899); Em Campanha e no Quartel (1900); “Sá da Bandeira e… os dois
pelo ministro e pela comissão técnica, tendo patacos” (colab. Ribeiro Carvalho) (1903); Em Casa do Filho (1905); “O jornal
do mar” (pseud. Alfredo Guimarães) (1911).
sido considerado o modelo de manual perfei-
to idealizado pelo Governo, sendo visto como Bibliog.: impressa: ANDRADE, Adriano Guerra, Dicionário de Pseudónimos
e Iniciais de Escritores Portugueses, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1999; Boletim
um manual inovador no panorama nacional das Bibliothecas, ano 9, n.º 13, 1908; BRANDÃO, Raul, A Conspiração
de então, como o considerou João de Barros, de 1817. Quem Matou Gomes Freire, Porto, Typ. da Empresa Literária e
Typographica, 1914; CANTO, Ernesto do, “O Gremio Litterario”, Archivo
diretor-geral na altura, por acreditar no senti- dos Açores, vol. vi, n.º 49, 1882; CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico
do patriótico e moral que o manual transmi- de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal,
1983; Diário do Governo, n.º 41, 22 nov. 1910; “Maximiliano d’Azevedo”,
tia. Com os mesmos autores, Maximiliano de Brasil-Portugal, n.º 310, 16 dez. 1911, p. 343; O Occidente, 20 dez. 1911;
Azevedo organizou Patria Portugueza em 1906, PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História
Literária da Madeira, 3 vols., Funchal, Câmara Municipal do Funchal,
destinado aos alunos das escolas de instrução
1949-1953; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
primária. Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1965;
Dois anos antes da sua morte, em 1909, os SILVA, Inocêncio F., Dicionário Bibliographico Portuguez, 2.ª ed., vol. xvii,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1973; “Variedades”, Serões, n.º 19, maio-jun.
conhecimentos fecundos nas áreas bélicas e 1903, pp. 1-8; n.º 24, 1904; n.º 78, dez. 1911; digital: CORREIA, Rita, “Brasil-
literárias valeram-lhe a nomeação para inte- Portugal”, Hemeroteca Digital, 29 abr. 2009: http://hemerotecadigital.
cm-lisboa.pt/FichasHistoricas/BrasilPortugal.pdf (acedido a 17 mar.
grar a comissão que desenvolveu o programa 2020); Id., “Occidente (O). Revista Illustrada de Portugal e do Estrangeiro”,
para as comemorações da Guerra Peninsular, Hemeroteca Digital, 16 mar. 2012: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.
pt/FichasHistoricas/Ocidente.pdf (acedido a 17 mar. 2020); Id., “Serões.
com a participação de todas as bibliotecas do Revista Mensal Illustrada”, Hemeroteca Digital, 24 abr. 2012: http://
país, juntamente com João Carlos Rodrigues hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/FichasHistoricas/Seroes.pdf (acedido a 17
mar. 2020).
da Costa (general e presidente da comissão),
Alfredo Pereira Taveira de Magalhães (coronel Helena Paula F. S. Borges
A zulejaria ¬ 191
Azulejaria
A utilização do azulejo em Portugal é uma
herança da cultura islâmica, mas face ao seu
baixo custo e às suas capacidades de requali-
ficação arquitetónica, como a higienização
dos espaços muito concorridos, em especial
das igrejas e capelas, assumiu-se rapidamen-
te como um elemento essencial de decoração
e, depois, também de catequização. O azulejo
transcende assim a sua função utilitária de re-
vestimento de chãos e paredes nos edifícios re-
ligiosos e civis, transformando-se num impor-
tante suporte do imaginário estético português
e passando aos espaços públicos urbanos. Com
Fig. 2 – Azulejos mudéjares do antigo Convento da Piedade, Sevi-
as suas diferentes características, desde as pos- lha, c. 1520 (sacristia da igreja matriz de Santa Cruz).
sibilidades de uma rápida lavagem, à reflexão
da luz ambiente, à possibilidade de ampliar
visualmente os espaços e de lhes dar infinitas variantes cromáticas, o azulejo veio a assumir-
-se como uma das produções mais originais da
cultura portuguesa.
As ilhas atlânticas, infelizmente, não possuem
terrenos capazes de fornecer bons materiais
para cerâmica, mas, tal como na generalidade
do espaço português, a Madeira é depositária
de um acervo notável de azulejaria, cobrindo
toda a história desta atividade no nosso país,
desde os sécs. xv e xvi à atualidade. Acresce
ainda o facto de terem chegado até nós com
Fig. 1 – Azulejos mudéjares, Sevilha (?), c. 1514 (coruchéu da Sé Fig. 3 – Azulejos ditos “pisanos”, Lisboa, c. 1580 (chão da capela
do Funchal). de S. Gonçalo do Convento de S.ta Clara do Funchal).
192 ¬ A zulejaria
Os primeiros anos do séc. xvii devem ter co- de parede, não apresentando especiais cuida-
nhecido uma especial necessidade de revesti- dos decorativos. No entanto, começaram nes-
mentos cerâmicos para várias igrejas, para que tes anos a ocorrer alterações de gosto, espe-
isso tivesse sido assumido pela Fazenda Real, cialmente fruto dos contactos com o Oriente.
responsável pelo equipamento das mesmas. Nesse quadro, quando o Convento de S.ta Clara
Nesse quadro, entre 1620 e 1630, vieram do encomendou novos painéis policromos em Lis-
continente alguns milhares de azulejos pseu- boa, teve algumas dificuldades na sua coloca-
doenxaquetados azuis e brancos para constituí- ção, dados os motivos utilizados serem muito
rem painéis, tal como barras de anjinhos com pouco próprios para um convento de freiras
albarradas e outras, que decoram ainda hoje as clarissas. A barra em questão, e provavelmente
paredes da Capela de N. S.ª de Lourdes da Sé os demais painéis que não chegaram até nós,
do Funchal, o coro alto e o coruchéu da torre apresentava motivos inspirados nas tradições
do Convento de S.ta Clara, toda a nave da ma- indianas, como “nagas” ou “nagiras”, de seios
triz de S. Pedro e a cruz sobre a entrada do nus e corpo de serpente, que acabou colocada
recolhimento do Bom Jesus, subsistindo ainda no remate junto ao teto da igreja, totalmente
este tipo de azulejos em rodapés das matrizes fora do alcance de qualquer observador.
de S.ta Luzia e da Calheta, e ainda na torre da Os azulejos do séc. xvii inspiraram-se depois
matriz de S. Jorge. nos têxteis orientais, formando complexos ta-
A originalidade destes azulejos de padrão é petes, assim designados porque o efeito de-
imitarem os chamados painéis de caixilho ou corativo obtido pela repetição ritmada do pa-
painéis enxaquetados, que utilizavam várias drão utilizado se assemelhava ao dos brocados
peças de diferentes tamanhos através da pintu- ornamentais ricos, que ainda hoje preenchem
ra a azul-cobalto do engobe branco de esmalte muitas das igrejas da Madeira, acompanhan-
estanífero mas em azulejos únicos, dentro da do e realçando os elementos arquitetónicos,
tradição do alicatado islâmico. Se as barras que emoldurando retábulos e pinturas. Pontual-
os acompanham são muitos comuns no conti- mente, como nas capelas do transepto da igre-
nente, deste tipo de azulejos não se conhecem ja do Colégio, apresentam mesmo imaginária
exemplares, em princípio, fora da Madeira, religiosa, mas parece ser o único caso que che-
pelo que deduzimos ser uma encomenda algo gou até nós. Alguns conjuntos envolvem vários
retrógrada da Fazenda Régia do Funchal. azulejos diferentes, como na igreja do Conven-
Salvo casos pontuais como este, até os iní- to de S.ta Clara, que apresenta o “padrão Mar-
cios do séc. xvii, na generalidade, os azulejos vila” o mais complexo, com 12 x 12 azulejos.
eram entendidos como simples revestimentos Estes complexos painéis acompanham os do
chamado “padrão Santa Clara”, mais simples e
comum a quase todos os conventos de clarissas
portugueses, daí lhe advindo o nome.
Os painéis mais comuns na madeira desta
época são os de “massarocas” e de “camélias”,
nas suas várias versões, comuns por todo o ter-
ritório português, incluindo ainda o Brasil,
Cabo Verde, etc., mas pontualmente houve en-
comendas especiais, como a que cobria as pa-
redes da demolida igreja de N. S.ª de Guadalu-
pe, no Porto da Cruz, de um padrão dos finais
do séc. xvii que não se conhece fora da Madei-
ra. Subsistem, entretanto, alguns azulejos deste
Fig. 5 – Tapete de azulejos padrão Santa Clara, Lisboa, c. 1635
padrão no salão paroquial da atual igreja do
(nave da igreja do Convento de S.ta Clara do Funchal). Porto da Cruz.
194 ¬ A zulejaria
Baamas Multicultural History Society of Ontario, 1990, pp. 42-60; Id., “A emigração
madeirense na segunda metade do século xix”, in Emigração e Imigração
em Portugal, Lisboa, Fragmentos, 1993, pp. 108-144; Id., “As migrações e os
Independentes desde 1973, as Baamas são um Descobrimentos”, in Imigração e Emigração nas Ilhas, Funchal, CEHA, 2001,
pp. 27-62; Id., A Vinha e o Vinho na História da Madeira. Séculos XV a XX,
país com mais de 3000 ilhas e ilhéus, tendo
Funchal, CEHA, 2003.
como capital Nassau, na ilha de Nova Provi-
† Alberto Vieira
dência. Foi na ilha de Guanahani (batizada
como San Salvador) que desembarcou Cristó-
vão Colombo, em 1492.
O processo de ocupação destas ilhas foi de-
Baía
morado, devendo assinalar-se desde o séc. xvii A presença madeirense no território brasileiro
o interesse dos Ingleses. Assim, em 1648, ocor- afirma-se de acordo com o desenvolvimento e
reu a fixação de um grupo originário das Ber- importância que assumem os portos e os ter-
mudas na ilha de Eleutéria e, pouco tempo ritórios que os envolvem. Se, no primeiro mo-
depois, de outro na ilha de Nova Providência. mento, esta é notada em Santos, alarga-se, de-
Em 1670, Charles II concedeu as ilhas, em re- pois, a outras regiões do litoral, como a Baía de
gime de aluguer, aos lords proprietários das Todos os Santos e Recife em Pernambuco. Em
Carolinas. todos os lugares onde o açúcar assumiu impor-
A partir desta presença britânica, na segunda tância na economia e na valorização dos espa-
metade do séc. xvii, assinalam-se relações co- ços, é notória a intervenção de madeirenses,
merciais entre a Madeira e este grupo de ilhas, tendo em conta que a eles está associada tanto
baseadas no fornecimento de vinho madei- a cana-de-açúcar, como a tecnologia adequada
rense. Sabemos do consumo de vinho nestas para o fabrico do açúcar. Baltasar de Aragão e
ilhas, sem que existam registos da exportação Sousa (1564-1613), fidalgo madeirense, é do-
rumo a este destino, mas a chegada aqui pode- cumentado como dono de engenho.
ria acontecer por via indireta, através de outras Se, no séc. xv, a Madeira se apresentava
Antilhas inglesas. como uma dádiva da natureza para os primei-
ros europeus, o Brasil será a compensação
Bibliog.: Boletim do Arquivo Regional da Madeira. Série Índices dos Passaportes.
1871-1915, 2 vols., Funchal, Arquivo Regional da Madeira, 2000; PITA, Gabriel,
dos deuses para o trabalho hercúleo dos ma-
A Freguesia dos Canhas. Um Contributo para a Sua História, Canhas, Junta de deirenses no lançamento da cultura açucarei-
Freguesia dos Canhas, 2003; VIEIRA, Alberto, “Emigration from the portuguese
islands in the second half of the nineteenth century. The case of Madeira”, in
ra no mundo atlântico. A cultura dá duas co-
HIGGS, David (org.), Portuguese Migration in Global Perspective, Toronto, The lheitas e espaços chãos, fora da proximidade
184 ¬ Baía
Fig. 1 – Planta da Restituicao da Bahia, João Teixeira Albernaz, o Velho, 1631 (Biblioteca Itamaraty, Rio de Janeiro, Brasil).
dos abismos, para produzir açúcar. Daí a forma uma estrutura diferente para o espaço atlân-
rápida como tudo aconteceu e a necessidade tico, definida pelas capitanias. Foi a 8 de maio
de encontrar soluções técnicas capazes de ace- de 1440 que o infante D. Henrique lançou a
lerar o processo de fabrico do açúcar, corres- base da nova estrutura, ao conceder a Tristão
pondendo à abundância das colheitas de cana. Vaz a carta de capitão de Machico. A partir daí,
Sucedeu assim em Santos, como na Baía ou Re- ficou definido o novo sistema institucional que
cife. E em todos os lugares mantém-se o rasto deu corpo ao governo português no Atlântico,
da presença madeirense. tanto nas ilhas como na costa brasileira. Sem
É notória a intervenção dos madeirenses dúvida que o facto mais significativo desta es-
na Baía, e as ligações deste porto ao Funchal trutura institucional deriva de a Madeira ter
foram também uma constante ao longo da his- servido de modelo referencial para o seu deli-
tória do Brasil. A Baía foi um porto de apoio à neamento no espaço atlântico.
navegação oceânica e, entre 1553 a 1763, a sede O monarca insiste, nas cartas de doação de
do poder administrativo da colónia brasileira. capitanias posteriores, na fidelidade ao sistema
Mas existem, ainda, outros vínculos que re- traçado para a Madeira. Assim o comprovam
forçaram esta ligação com a Baía. A Madei- idênticas cartas concedidas aos novos capitães
ra foi, nos alvores do séc. xv, a primeira ex- das ilhas dos Açores e Cabo Verde. O mesmo su-
periência de ocupação dos portugueses em cede com a estrutura institucional que chegou
que se ensaiaram produtos, técnicas e estru- a S. Tomé e ao Brasil. Na montagem da estru-
turas institucionais. Tudo isto foi usado, em tura de poder municipal, sabemos das ligações
larga escala, noutras ilhas e no litoral africano à Madeira e do uso dos regimentos e ordens
e americano. Assim, o Funchal tornou-se uma régias que haviam sido dadas para o Funchal.
escala obrigatória nas ligações da Baía com a A Madeira foi, assim, a referência institucional,
capital do império. No quadro político insti- e, em caso de dúvida ou omissão, a resposta
tucional, o sistema madeirense apresentava vinha célere da coroa a recomendar-se seguir
Baía ¬ 185
para 300 pipas com os produtos da terra que toda a discrição, conforme recomendava o
seriam trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Conselho da Fazenda, mediante as licenças, e
Mais tarde, ficou estabelecido que os mesmos a sua entrega deveria ser feita de forma a favo-
não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar. recer todos os mercadores da ilha. Para estes
No séc. xviii, o movimento comercial am- navios havia uma escrituração à parte na Alfân-
plia-se, não obstante as insistentes recomenda- dega do Funchal. No período de 1727 a 1799,
ções para o respeito da norma limitadora do num total de 184 navios identificados, 42 são
volume destas trocas, estabelecida no século an- provenientes da Baía.
terior. Nesta centúria, conseguimos reunir 117 No quadro dos produtos envolvidos neste co-
licenças para o período de 1736 a 1775. As au- mércio, o Brasil, a partir de finais do séc. xvi,
torizações eram concedidas pelo governador foi o principal mercado para o vinho Madeira,
exclusivamente aos mercadores madeirenses. que era trocado por açúcar. Para o período de
Destes, merecem a nossa atenção Bento Fer- 1572 a 1695, das 1997 pipas exportadas, 197
reira, Francisco Luís Vasconcelos e Francisco foram para a Baía. O preço de venda à chegada
Teodoro, pelo número de licenças consegui- ao mercado de destino tem a ver com os custos
das. Por determinação de 1664, os navios pa- fixos para o transporte, os tributos que onera-
gavam um donativo de 50.000 réis, existindo, vam a saída da Madeira e a entrada no merca-
no Funchal, um comissário dos comboios que do consumidor, a que se deveriam adicionar as
procedia à arrecadação dos referidos direitos: inevitáveis perdas estimadas em cerca de 10%.
em 1676, era Diogo Fernandes Branco quem Mesmo assim, o lucro era elevado. Em 1650,
os administrava. De acordo com as recomen- numa pipa de vinho, que à saída do Funchal
dações do Conselho da Fazenda, a arrecada- tinha o valor de 10$000 réis e à chegada à Baía
ção dos direitos de entrada do açúcar do Brasil de 40$000 réis, o lucro representava 60% do
era lançada em livro próprio. Foi a partir de al- capital investido.
guns destes dados e de outros soltos, reunidos Nos sécs. xvii e xviii, o açúcar do Brasil teve
na documentação, que procurámos avaliar a um lugar importante na economia madeiren-
real importância das relações comerciais entre se, não apenas por apoiar as indústrias de con-
a Madeira e o Brasil, assentes, predominante- servas e casca, mas, fundamentalmente, pelo
mente, no açúcar. Para o período de 1650 a ativo movimento de reexportação. A déc. de 80
1691, identificámos 39 navios provenientes da do séc. xviii marca o início da quebra desse
Baía, Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão comércio, a qual teve repercussões evidentes
com mais de 10.722 caixas de açúcar. Da Baía, no negócio de casca e conservas da ilha. Assim,
houve 17 navios, que transportaram 2489 arro- em 1779, o governador João Gonçalves da Câ-
bas e 29 caixas de açúcar. A partir da Baía, Rio mara refere que o comércio da casca na ilha
de Janeiro ou Recife chegava o açúcar, farinha estava quase extinto.
de pau e mel. Neste circuito de escoamento e comércio do
Facto de particular interesse é a participação açúcar brasileiro é evidente a intervenção de
das comunidades da Companhia de Jesus da madeirenses e açorianos. As ilhas tinham para
Baía, Rio de Janeiro e Maranhão no comércio, oferecer vinho ou vinagre para o abastecimen-
que, usufruindo do privilégio de isenção dos to do mercado brasileiro, sendo compensadas
direitos, também colocavam o açúcar das suas com o acesso ao rendoso comércio do açúcar,
fazendas no mercado madeirense. Eles condu- tabaco e pau-brasil. A este se acrescenta o aces-
ziram à ilha 82 caixas de açúcar, sendo 65 da so ao tráfico negreiro, cobrindo um circuito
Baía. de triangulação que ligava o Funchal à costa
A Madeira tinha autorização para realizar co- africana e ao Brasil. Para isso, os madeirenses
mércio direto com duas embarcações que es- criaram a sua própria rede de negócios, com
tavam autorizadas apenas a uma viagem anual. compatrícios fixos em Angola e no Brasil. Um
Este movimento das embarcações fazia-se com exemplo disso é o mercador Diogo Fernandes
Baía ¬ 187
Bibliog.: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. vi, Funchal, Secretaria Regional
de Educação, Juventude e Emprego, 2003; GUERRA, Jorge Valdemar, “A Casa da
Ópera do Funchal”, Islenha, n.º 11, jul.-dez. 1992, pp. 113-149; PORTO DA CRUZ,
Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. ii,
Funchal, Câmara Municipal do Funchal, s.d.; SILVA, Fernando Augusto da, e
MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Câmara
Municipal do Funchal, 1965.
Gabriel Pita
de uma compilação de 13 artigos sobre cativos Memphis entre 1873 e 1879, ainda que o navio
americanos, cujo paradeiro era desconhecido, tenha partido de New Bedford.
e resulta de uma investigação profunda de re- Durante a sua estadia na Ilha, entre os dias
gistos históricos do séc. xviii, acompanhada de 12 e 16 de setembro, partindo em seguida no-
visitas frequentes a locais e investigação de mis- vamente para os Açores, Alice Baker visitou
sões índias do início do período colonial em essencialmente o Funchal, com particular in-
Nova Inglaterra. Após a publicação e o êxito teresse os lugares de culto religioso, como as
da obra, e pela sua especialidade em história igrejas de Santa Clara, da Sé e a de Nossa Se-
da Nova Inglaterra, Alice Baker foi convidada a nhora do Monte. Ao longo da sua breve visita,
integrar a Sociedade Histórica de Nova Iorque, deu voz à efervescência e ao frenesim citadi-
Montreal e Cambridge. Alice Baker era igual- no, às levadas, à natureza e às paisagens subli-
mente membro da Pocumtuck Valley Memo- mes. Salienta: “The city of Funchal shows more
rial Association. signs of wealth and comfort than any we have
Baker fez-se acompanhar por Coleman nou- seen in the other islands [A cidade do Funchal
tras viagens que fez, nomeadamente ao Que- exibe mais sinais de riqueza e conforto do que
beque, aquando da investigação que deu ori- quaisquer outros que tenhamos visto noutras
gem ao livro True Stories of New England Captives ilhas]” (BAKER, 1882, 142). Destaca a cidade
Carried to Canada during the Old French and In- pitoresca que é o Funchal e a aparência de um
dian Wars (1897), com o objetivo de ilustrar as certo desenvolvimento e riqueza que se des-
suas obras. Emma Coleman terminou inclusive vanece à medida que se afasta do coração da
a obra Epitaphs in the Old Burying-Ground at Deer- cidade.
field (1924), publicada postumamente à morte Alice Baker faleceu a 11 de abril de 1909 em
de Baker. Boston, Massachusetts. Há registo de que esta-
Os dois títulos menos conhecidos da autoria ria a preparar um novo livro intitulado Gleanin-
de Alice Baker são Old Abe, War Eagle of Wiscon- gs from New England and Canadian Archives Con-
sin (1904), uma conferência proferida no Old cerning Captives in the Old Wars, que nunca viu a
South Meeting House, em Boston, a 22 de feve- luz da publicação.
reiro de 1879, sobre a águia mascote do 8.º Re-
gimento de Infantaria Voluntário de Wisconsin Obras de Charlotte Alice Baker: A Summer in the Azores, with a Glimpse
of Madeira (1882); True Stories of New England Captives Carried to Canada
na Guerra Civil Americana e símbolo da arma- during the Old French and Indian Wars (1897); Old Abe, War Eagle of Wisconsin
da norte-americana, e Books as Tools for Children (1904); Books as Tools for Children (1908); Epitaphs in the Old Burying-Ground at
Deerfield (1924) (coautoria).
(1908), um breve artigo compilado em livro que
expõe, de forma concisa, uma reflexão sobre a Bibliog.: BAKER, Charlotte Alice, A Summer in the Azores, with a Glimpse of
Madeira, Boston/New York, Lee and Shepard Publishers/Charles T. Dillingham,
leitura e a aprendizagem nas crianças. 1882; The Biographical Cyclopaedia of American Women, vol. 2, New York,
O diário A Summer in the Azores, with a Glimpse Halvord Publishing Company, 1926; HIGGINS, Thomas L. et al., Images of
America. Baystate Franklin Medical Center, Charleston, Arcadia Publishing,
of Madeira surge na sequência de uma viagem 2016; SCANLON, Jennifer, e COSNER, Shaaron, American Women Historians,
de Alice Baker aos Açores, realizando uma 1700’s-1990’s. A Biographical Dictionary, Westport, Greenwood Press, 1996.
Fig. 2 – Conhecimento de embarque no brigue Especulador de duas pipas de vinho Madeira com destino a São Petersburgo de João Fran-
cisco de Oliveira, Funchal (28 abr. 1824) (coleção particular).
tendência dos madeirenses para a monocultu- garça, ganga, guingão, linho, lona, lustrina,
ra, o que levou alguns a afirmarem que o pro- laia, lapim, melânia, morim, holanda, holandi-
cesso económico do arquipélago se processou lha, pelúcia, ratina, ruão, sarja, seda, cetim, sar-
por ciclos de produtos económicos. gelim, serafina, tafetá, talagarça, veludo) e de
A economia da Ilha havia-se orientado para produtos acabados (meias, cobertores, botões
a monocultura com interesse mercantil desde variados, damasco, colchas, barbas de baleia,
finais do séc. xv, que a conduziu a uma de- botas e botins, camisas, camisolas, casacas, ja-
pendência extrema do mercado externo. quetas, capotes, calças, chapéus, lenços, luvas),
Com a afirmação do vinho, abriu-se o cami- fumos para luto, chapéus de sol, castiçais, ca-
nho para o domínio dos Ingleses, que cedo deiras, canapés, camilhas, cómodas e outras
passaram a controlar a circulação mercan- peças de mobiliário, carros, seges, cavalos e
til, dominando os circuitos abastecedores de chicotes para bestas, munições para tiro e caça,
trigo e milho americano e de manufaturas eu- bocetas, cofres, descalçadores, estanhos e co-
ropeias a troco do vinho. O total controlo da bres lavrados, malas e baús, escovas, espelhos
esfera mercantil fazia com que o lucro fosse e frasqueiras. Juntavam-se ainda objetos de
elevado. Mas a fragilidade da economia ma- higiene e limpeza, como sabões e sabonetes,
deirense é uma evidência histórica, sendo re- pedra-ume e anil; objetos de uso doméstico,
sultado da insistente aposta num produto de como agulhas, ferros para engomar, panelas de
exportação. O vinho passou a assumir uma ferro e frigideiras, alvaiada, brochas, garrafas,
posição cimeira nas exportações desde a déc. garrafões e boiões, e aprestos vários para na-
de 70 do séc. xvi. vios, como mastros, vergas, cordas, amarras e
Em 1811, segundo uma listagem feita na Al- moitões. Acresce ainda um lote de produtos de
fândega para a cobrança dos direitos de impor- uso industrial, como carvão de pedra, antimó-
tação, a Inglaterra fornecia uma variedade de nio, aço, chumbo, folha de flandres, enxofre,
tecidos em bruto (algodão, brim, baeta, bom- arame, breu e zarcão, cal, cabelo para estofos,
bazina, bretanha, bertanjil, camelão, crepe, graxa, lacre, grude, gesso, pás, pregos, lâmi-
cassa, colchas, cambraia, casimira, duquesa, nas, navalhas, limas, lixas de papel e óleo de
duraque, estofo, estamenha, escumilha, fus- linhaça. Por fim, aparecem os pianos, as cartas
tão, fio de lã e de algodão, florentina, filó, de jogar, os cachimbos, os rabos de urso e os
194 ¬ B alan ç a comercial
saídas, e de o vinho ser a única moeda de troca, deplorável de não terem os habitantes de que
segundo se dizia em 1799. O inglês J. Banger vivam, nem que vendam, ou troquem no comér-
tinha, em finais do séc. xviii, o privilégio do cio interno, vista a inação exterior. Porquanto
negócio das farinhas americanas, mas, em a lavoura, os frutos de pão, legumes, e carnes
1795, com a crise de fome, o Erário Régio pro- de forma alguma chegam a sustentação dos três
curou contrariar esta situação. A Junta da Real meses, todo o mais fornecimento é introduzi-
Fazenda do Funchal notava, em fevereiro de do pelos estrangeiros a troco de vinhos, e não
1776, que a conjuntura não era favorável: “Ha- tendo este saída, também a entrada daquele é
vendo-se já em premeditadas considerações da nenhuma, e por consequência nem letras para
Junta praticado a instante e temível situação, a se suprirem de Lisboa onde não há géneros per-
que estava reduzida a exportação, extração dos mutáveis... Estão as casas ricas de vinho, pobres
vinhos desta ilha na falta do qual, por contribuir de sustento e de alimento” (ANTT, Provedoria e
de a base de todo o viver dela, lhe ficam inferio- Junta…, liv. 942, fls. 13-15).
res e frustradas todas as especulativas e práticas Em 1822, a casa de J. H. March, cônsul ame-
advertidas no aumento da cultura, manufaturas ricano, foi acusada por Casado Giraldes de
e giro mercantil, e consequentemente inativo o ser detentora do monopólio das farinhas. Em
comércio, no qual se presente se conhece a gra- 1827, o Gov. José Lúcio Travassos Valdez dava
víssima decadência, nenhum giro e a abundan- conta das alterações produzidas no mercado do
te colheita de vinhos, que nem se pode navegar, vinho da Madeira a partir de 1815.
por estar as impedindo nas terras de seu con- Por tudo isto, a Madeira foi historicamente
sumo maior, quais são nos domínios britânicos, um espaço gerador de riqueza, que, contudo,
pela civil comoção, ou rebelião deles, nem se quase só lhe serviu para acudir, e mal, à sub-
mover o comércio interior na ilha, e chegando sistência. Muita riqueza foi arrancada à terra
seus habitadores, que os tem em seus armazéns pelos madeirenses, mas apenas fez enriquecer
e adegas ao ponto mais pungente de se repu- o senhorio, a Coroa e os estrangeiros.
tarem de pobres; porque procedendo com gé- A Madeira manteve, desde meados do
neros de primeira necessidade e sustento e não séc. xv, um comércio assíduo com o reino, ati-
lhes continuando com este socorro por lhe não vado pela oferta de madeiras, urzela, trigo e,
aceitarem o pagamento em vinho pela falta de depois, açúcar e vinho. O movimento alargou-
ordem que tinham para a sua extração e não ha- se às cidades nórdicas e mediterrânicas, com o
vendo na terra géneros de permutação interior, aparecimento de estrangeiros interessados no
nem dos estrangeiros pela falta de retorno, [...] comércio do açúcar. A evolução das trocas foi
não tendo a ilha para seu sustento frutos mais rápida e lucrativa para os forasteiros, pelo que,
para três meses que a tanto chega a inércia dele. em 1493, a Fazenda Real lançou uma imposi-
Fornecem pelo único e assaz avultado, que tem ção sobre o movimento do porto da cidade do
em vinho para troca cuja extração se acha aba- Funchal para a despesa da construção da cerca
tida e aniquilada, sem outro recurso, que não e dos muros. Da dedução de um vintém sobre
seja a de espera sem vindas, que não, nem pode a tonelagem, tirou-se o rendimento de 100.000
haver sem aquele... qual o de uma necessidade reais, e quanto ao 1 % sobre as mercadorias,
nunca vista na ilha, que tendo por princípio a arrecadaram-se 250 reais. Foi com base nisto
falta de introdução de víveres tinha por fim a que, em 1508, D. Manuel justificou a elevação
consternação e falta pública”. Em dezembro, do Funchal à categoria de cidade: “Tem cres-
a situação da exportação do vinho era de ver- cido em muito grande população e como nela
dadeira catástrofe: “Senhor a consternação em vivem muitos fidalgos cavaleiros e pessoas hon-
que se achava esta ilha sem ter para exportar os radas e de grandes fazendas pelas quais e pelo
seus vinhos, que não tendo consumo senão nas grande trato da dita ilha” (VIEIRA, 2003, 331).
terras anglicas, e achando-se substado pela re- Múltiplas razões fizeram com que o Fun-
volução da América, e tem chegado ao ponto chal se afirmasse, no séc. xviii, como centro
B alan ç a comercial ¬ 197
significativo na balança das importações. Por cana sacarina; assistiu à derrocada da indústria
carta de lei de 27 de maio de 1843, o carvão de dos bordados; vê decrescer o valor dos lacti-
pedra deixou de ser taxado à entrada. cínios; compra pão e roupa, desequilibrando
A partir de meados do séc. xix, a política sempre a sua balança; paga ao estado tributos
de favorecimento da cultura da cana sacarina que, contrariamente ao que era de prever, ul-
obrigou a um conjunto específico de medidas trapassam o limite dos sacrifícios exigidos ao
aduaneiras protetoras da produção madeiren- continente. Nesta Economia empobrecida só
se, as quais favoreceram o principal engenho duas coisas aumentaram: população e impos-
de produção pertencente à família Hinton. To- tos” (VIEIRA, 2014, 628-629).
davia, a partir dos primórdios do séc. xx, foi As pautas aduaneiras foram um importante
insistente a política no sentido de criar me- mecanismo de represália político-económica,
canismos que favorecessem a autossuficiência como regulador da balança de pagamentos,
da Ilha, medida que foi reforçada no Estado mas que na Ilha nunca surtiu efeito. Pelo dec.
Novo. A grande aposta estava na definição de 14, de 20 de abril de 1832, fez-se a reforma da
um regime de policultura, capaz de garantir pauta aduaneira, a que se seguiu outra, pelo
uma estabilidade económica à principal rique- dec. de 10 de janeiro de 1837. A partir desta
za da Ilha, que continuava a ser a exploração data, a pauta passou a ser geral para todo o
agrícola. Em primeiro lugar, procurou-se asse- país, deixando de existir as pautas específicas
gurar o necessário equilíbrio entre as culturas para cada alfândega. Mesmo assim, em 1843,
de subsistência e de mercado, para que as pri- um decreto permitiu um privilégio especial
meiras pudessem suprir, o mais possível, as ne- para a Madeira, melhor dizendo para os Ingle-
cessidades das populações. Depois, no quadro ses, ao conceder uma redução de cerca de 50
das culturas de exportação, promoveu-se uma % nos direitos de entrada e saída. Esta lei de
diversificação, de acordo com as solicitações exceção foi acolhida na Ilha e em Inglaterra
do mercado. com regozijo.
As guerras mundiais tiveram um efeito ne- A 28 de dezembro de 1852, foi criada uma
fasto na economia madeirense, arrastando a nova comissão para as pautas aduaneiras que
maioria da população para um estado de ex- suprimiu a Comissão Permanente e a Comis-
trema carência. O porto parou, e a cidade per- são Revisora. Uma nova pauta aduaneira foi
deu quase todo o movimento que tinha. Além aprovada por dec. de 31 de dezembro de 1852.
disso, os madeirenses, porque dependiam do É nítida uma intenção livre-cambista, mas a ne-
exterior para quase tudo o que precisavam cessidade de receita impediu que se avançasse
para a sua subsistência, estiveram sujeitos a um mais. A 22 de dezembro de 1856, como resulta-
regime de racionamento de produtos, que, do dos estudos desta comissão, foi aprovada a
em muitas situações, conduziu à fome. O Gov. nova pauta aduaneira, seguindo-se outras, a 18
civil José Nosolini, em relatório enviado ao mi- de dezembro de 1861 e a 10 de maio de 1892.
nistro do Interior dando conta desta situação, Com a instauração do regime republicano, in-
perguntava-se: “E a economia madeirense tem troduziram-se alterações na cobrança dos di-
reservas que lhe permitam suportar esta in- reitos, por força da desvalorização da moeda
tensa sangria?”. A resposta é imediata: “A Ma- e da Primeira Guerra Mundial, ficando deter-
deira vive de há muito, ou melhor, agoniza de minado, pelo dec. 41.333, de 18 de abril de
há muito que importa dominar de vez”. Mais 1918, que os direitos de importação deveriam
adiante, é claro quanto ao quadro negro da ser pagos em ouro. Criaram-se, desta forma, di-
Ilha: “A Madeira esvai-se irremediavelmente. ficuldades à exportação, assim como à entrada
As suas riquezas diminuem dia a dia. As pou- de mercadorias. Por outro lado, o dec. 4682,
cas reservas são diária e metodicamente drena- de 27 de abril de 1918, estabeleceu sobreta-
das para fora da sua economia. [...] A Madeira xas relativas à importação de diversas merca-
perde no vinho; sofreu o prejuízo enorme da dorias. Esta oneração fiscal das importações
B alan ç a comercial ¬ 199
continuou, pois, por dec. 6263, de 2 de dezem- que o diferencial entre as entradas e as saídas
bro de 1919, em que foram duplicados todos foi aumentando consideravelmente. Este cres-
os direitos e sobretaxas de importação esta- cimento foi impulsionado pelos níveis de de-
belecidos em 1918, permanecendo a exigên- senvolvimento que a Região foi ganhando, e
cia, em ouro, de apenas metade do valor. Por que necessitaram de ser nutridos. No ano 1976,
outro lado, ainda, o dec. 1193, de 31 de agosto o somatório das entradas e importações na Re-
de 1920, determinou que o quantitativo inte- gião foi de 16,948 milhões de euros, sendo as
gral dos direitos e sobretaxas fosse exigido em saídas e as exportações de 4,851 milhões de
ouro. Pelo dec. 8747, de 31 de março de 1923, euros. O saldo para esse ano foi de -12,097 mi-
foi aprovada nova pauta aduaneira em que são lhões de euros, enquanto a taxa de cobertura,
abolidas algumas sobretaxas. Este decreto, re- que representa o quociente das saídas e das en-
visto pela lei 1668, de 9 de setembro de 1924, tradas, foi de 17,3 %.
não gerou consensos. Esta era uma forma de No ano seguinte, o saldo ganhava maior ex-
regularizar o comércio externo no pós-Primei- pressão com uma variação de 50,4 % em re-
ra Guerra Mundial. Com o regime da Ditadura lação ao ano anterior, cifrando-se em -48,230
Militar, ocorreu uma reforma da pauta, através milhões de euros, com a taxa de cobertura a
do dec. 17.823, de 31 de dezembro de 1929, diminuir para 16,7 %. Nos anos 1978 e 1979,
que era já a expressão plena dessa mudança as entradas e as importações voltaram a au-
das conjunturas política e económica mun- mentar em maior proporção que as saídas
diais. Todavia, as medidas protecionistas con- e as exportações, fixando o saldo em -27,032
tinuaram a marcar presença, como se poderá milhões de euros e -38,092 milhões de euros,
verificar pelo dec. 20.935, de 26 de fevereiro respetivamente.
de 1932, que impõe um adicional de 20 % aos Durante a déc. de 80, a tendência foi a de
direitos de importação, e pelo dec. 24.115, de aumento anual do diferencial entre as entra-
29 de junho de 1934, pelo qual foi estabeleci- das e as importações, e as saídas e as exporta-
do o regime de proteção de bandeira ao serem ções, com exceção de 1984, em que o saldo foi
taxadas, através de um adicional de 13,5 %, as de -109,479 milhões de euros, quando no ano
mercadorias exportadas em navios estrangei- anterior a variável tomou o valor de -112,864
ros. Já o dec.-lei 30.252, de 30 de dezembro de milhões de euros. Em 1990, o saldo ascendeu
1939, duplicou o valor dos direitos de exporta- aos -364,258 milhões de euros, resultantes do
ção específicos e fez incidir 2,5 % sobre a taxa facto das entradas, em conjunto com as im-
dos direitos de exportação ad valorem. Esta si- portações, terem sido de 406,002 milhões de
tuação perdurou até 1947. euros, e as saídas, juntamente com as expor-
A balança comercial é um indicador que tra- tações, terem ficado pelos 41,744 milhões de
duz a diferença entre as exportações e as im- euros, cerca de 10 % das entradas.
portações de bens e serviços de uma dada re- Cabe destacar que, ao analisar com uma
gião. A Região Autónoma da Madeira (RAM), maior especificidade os valores acima apresen-
pelas limitações associadas à sua insularidade tados, a estrutura das entradas na RAM é ca-
e pelos escassos recursos de que dispõe, apre- racterizada pela predominância do comércio
senta um saldo entre o somatório das saídas e estabelecido com o continente e com a Região
das exportações e o conjunto das entradas e Autónoma dos Açores, em comparação com
das importações negativo. Na realidade, quan- aquele que se desenvolveu com países tercei-
do é considerada esta variável, verifica-se que a ros. Tome-se como exemplo o ano de 1976, em
quase totalidade do consumo da RAM advém que as entradas de produtos e serviços prove-
do exterior, sendo remetido um valor muito nientes dos Açores e do território continental
mais baixo. foram de 13,477 milhões de euros, enquanto
Ao analisarmos os dados disponibilizados re- as importações se fixaram em 3,471 milhões
ferentes ao comércio com o exterior, notamos de euros. Assim sendo, enquanto o mercado
200 ¬ B alan ç a comercial
nacional representava 79,5 % das entradas to- variação negativa das importações foi superior,
tais, as importações representavam 20,5 %. Em de 43,7 %, permitindo o aumento da taxa de
1991, esta realidade era ainda mais realçada, cobertura.
na medida em que as entradas do mercado Quando analisada a estrutura das importa-
nacional ascenderam aos 387,427 milhões de ções da RAM, verifica-se que embora, nos anos
euros, totalizando 87,2 % do total de entradas, de 1993 e 1994, as importações extra-UE te-
sendo que as importações, de 56,974 milhões nham sido superiores às importações intra-UE,
de euros, representaram 12,8 %. a partir de 1995, houve um aprofundamento
Não obstante o volume de entradas ser su- das relações comerciais entre países perten-
perior ao de importações, cabe destacar que, centes à UE e a Região, na medida em que as
no que se refere ao comércio internacional, a importações intra-UE ultrapassaram significati-
RAM apresentou, durante um longo período, vamente as extra-UE. Tome-se como exemplo
um decréscimo na taxa de cobertura, sendo o facto de, no ano 2012, para um volume de
cada vez maior a sua dependência em relação importações que ascendia aos 173,882 milhões
aos países terceiros. Se, em 1976, as exporta- de euros, 157,466 milhões de euros, cerca de
ções cobriam em 70,5 % as importações, em 90,6 %, constituírem importações de países
1991, a taxa de cobertura diminuiu para 67,4 pertencentes à UE. Dentro do leque de países
%. Em 2010, a diminuição foi ainda mais no- que fazem parte da União, os mercados que
tável, tendo em conta que as exportações co- representam a principal fonte das importações
briam em 37,0 % as importações. da RAM são a Espanha, que, para 2012, re-
Todavia, e não obstante a tendência da di- presentou 69,131 milhões de euros; a França,
minuição da taxa de cobertura, cabe destacar com 58,792 milhões de euros, e a Itália, com
que, a partir de 2011, se verificou um revés na- 7,166 milhões de euros. Em suma, estes três
quilo que se constatava até essa data. Isto por- países representavam 85,7 % das importações
que, com variações anuais tendencialmente intracomunitárias.
negativas para as importações e tendencial- A estrutura apresentada anteriormente re-
mente positivas para as exportações, os anos presenta um conjunto de alterações que se
de 2011 e 2012 apresentaram taxas de cobertu- verificou ao longo dos anos e que lhe conce-
ra de 52,4 % e 83,5 %, respetivamente, sendo deu a ordenação que atualmente apresenta, já
que, para 2013, os resultados provisórios indi- que em 1988, os países pertencentes à União,
cavam que as exportações cobriam 85 % das e com maior peso nas importações da RAM,
importações. eram: o Reino Unido, com 6,448 milhões de
Relativamente aos dados verificados nestes euros; a França, com 5,270 milhões de euros, e
últimos anos, é notável que, em 2011, o au- os Países Baixos, com 4,243 milhões de euros.
mento significativo da taxa de cobertura tenha Estes três mercados constituíam 57,2 % das im-
sido ocasionado em grande parte pela diminui- portações intra-UE.
ção abrupta das importações, já que as mesmas No que a exportações diz respeito, o mercado
apresentaram uma variação anual negativa de europeu e o mercado africano foram assumin-
24,6 %, tendo sido verificado um aumento das do grande relevo, tendo o segundo, em 2011,
exportações, na ordem dos 6,8 %, se compara- ultrapassado o primeiro, já que as exportações
das com as do ano anterior. Por outro lado, o para o continente africano se situaram nos
ano de 2012 revelou-se um marco importante 30,415 milhões de euros. Os países africanos
no que a exportações diz respeito, já que, se de língua oficial portuguesa, particularmen-
em 2011 o valor das mesmas era de 62,330 mi- te Angola, foram os mercados mais importan-
lhões de euros, no ano seguinte aumentaram tes em África. Em contrapartida, para o conti-
para 145,06, um crescimento na ordem dos nente europeu, as expedições foram de 25,171
132,7 %. Apesar de os dados de 2013 indica- milhões de euros, sendo que os países da UE,
rem uma queda de 42,7 % nas exportações, a com 24,432 milhões de euros, representaram a
B aldy , J osé M aria ¬ 201
quase totalidade das exportações para a Euro- Luís de Brito, “A Madeira e a Rússia”, Atlântico, n.º 4, 1985, pp. 298-305; LOJA,
António Egídio Fernandes, Crónica de Uma Revolução. A Madeira na Revolução
pa, tendo como países com maior proporção Liberal, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008; MAURO,
no total das exportações a Espanha, a Itália e Frédéric, Portugal, o Brasil e o Atlântico (1570-1670), vol. i, Lisboa, Estampa,
1989; MIRANDA, Susana Munch, “O porto do Funchal. Estrutura alfandegária
a França. e movimento comercial (1500-1526)”, in Actas do II Colóquio Internacional de
Historicamente, o mercado europeu consti- História da Madeira, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1990, pp. 67-98; OLIVEIRA, Aurélio, “A Madeira
tuiu a principal zona económica de destino das
nas linhas de comércio do Atlântico”, in Actas do III Colóquio Internacional de
exportações da RAM. Tome-se como exemplo História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993, pp. 917-931; PEREIRA, Fernando
o facto de, em 1988, as exportações da Região Jasmins, Estudos de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1991; RIBEIRO, J.
Adriano, “A casquinha na rota das navegações do Atlântico norte nos séculos
terem sido de 27,162 milhões de euros, dos xvii e xviii”, in Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira,
quais 23,068 milhões de euros eram resultan- Funchal, CEHA, 1993, pp. 345-352; RIBEIRO, Jorge Manuel Martins, “A Madeira
e os Americanos (séculos xviii-xix)”, in Actas do III Colóquio Internacional de
tes das expedições para países europeus. História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993, pp. 389-402; RODRIGUES, Ramon
No que concerne à natureza das importações, Honorato, Breves Considerações sobre o Problema Económico Português, Funchal,
Tip. Esperança, 1927; Id., Subsídios para a Solução do Problema Agrícola da
existe um claro relacionamento com a condi- Madeira, Lisboa, Imprensa Lucas & Cº Lda, 1934; Id., Questões Económicas, 2
ção de isolamento, com os recursos de que a vols., Funchal, Tip. Jornal da Madeira, 1953-1955; SANTANA, Elisa Torres, “Las
relaciones comerciales entre Madeira y las Canarias orientales en el premier
Região dispõe e com a capacidade de produ- cuarto del siglo xvii. Una aproximación a su realidad historica”, in Actas do I
ção nela instalada. Em 2012, 31,7 % das impor- Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. ii, Funchal, DRAC, 1990,
pp. 816-843; SERRÃO, Joel, “Em torno da economia madeirense de 1550 a 1640”,
tações foram relativas ao grupo de produtos
Das Artes e da História da Madeira, vol. 1, n.º 1, 1950, pp. 21-23; Id., “Sobre o
onde se incluem os veículos e outro material ‘trigo das ilhas’ nos sécs. xv e xvi”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 1,
de transporte. Em segundo lugar, surgem os n.º 2, 1950, pp. 1-6; Id., “Rendimento das alfândegas do arquipélago da Madeira
(1581-1587)”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 1, n.º 5, 1951, pp. 1-5;
metais comuns, a representar, com os 31,434 vol. 1, n.º 6, 1951, pp. 14-18; SILBERT, Albert, Uma Encruzilhada do Atlântico.
milhões de euros, 18,1 % das importações, apa- Madeira (1640-1820), Funchal, CEHA, 1997; SILVA, José Manuel Azevedo e,
“A navegação e comércio vistos do Funchal, nos finais do século xvii”, in Actas
recendo de seguida os produtos agrícolas, com do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993;
17,3 %. Relativamente às exportações, e apesar Id., A Madeira e a Construção do Mundo Atlântico (Séculos XV-XVII), 2 vols.,
Funchal, CEHA, 1995; SOUSA, João José de, “O porto do Funchal no séc. xviii.
da importância relativa que têm assumido cer- Alguns aspectos”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 6, n.º 36, 1966, pp. 20-
tos grupos de produtos em determinados anos, 24; Id., “O porto do Funchal e a economia da Madeira no século xviii”, Das
Artes e da História da Madeira, vol. 7, n.º 37, 1967, pp. 63-80; Id., “Notas sobre
e.g. o de veículos e outro material de transpor-
as relações comerciais entre a Madeira e o Brasil no século xviii”, Das Artes e
te, que em 2012 representou 39,6 % das im- da História da Madeira, vol. 7, n.º 39, 1968, pp. 43-44; VASCONCELOS, Cláudia
portações, os produtos agrícolas e alimentares Câmara et al., Madeira. Reflexões sobre o Desenvolvimento, Funchal, s.n., 2005;
VIEIRA, Alberto, O Comércio Inter-Insular nos Séculos XV e XVI. Madeira, Açores
revelam-se como aqueles que estatisticamente e Canárias, Funchal, CEHA, 1987; Id., “O arquipélago da Madeira no quadro
têm mantido alguma estabilidade na sua signi- da economia europeia e atlântica”, in Documentos Congresuales. Economía e
Insularidad (Siglos XIV-XX), t. 1, La Laguna, Universidad de La Laguna, 2007,
ficância nas exportações regionais. pp. 261-287; Id., O Deve e o Haver das Finanças da Madeira, Funchal, CEHA,
2014; digital: “Série retrospectiva do comércio internacional. 1976-2013”,
Legislação: decretos: n.º 14, de 20 abr. 1832; 10 jan. 1837; 20 mar. 1841; 31 Direção Regional de Estatística da Madeira, s.d.: http://estatistica.gov-madeira.
dez. 1852; 22 dez. 1856; 23 ago. 1860; 18 dez. 1861; 25 jan. 1871; 6 jul. 1882; 14 pt/index.php/download-now/economica/comercio-pt/comercio-internacional-
dez. 1882; 17 dez. 1885; 22 set. 1887; 10 maio 1892; n.º 8471, de 27 mar. 1923; pt/comerciointernacional-quadros-pt/completa/finish/518-completas/2762-
n.º 8747, de 31 mar. 1923; n.º 17.823, de 31 dez. 1929; n.os 37.444 e 37.445, de 9 comercio-internacional-de-bens-na-regiao-autonoma-da-madeira-1976-2013
jun. 1949; decretos-lei: n.º 37.977, de 21 set. 1950; n.º 42.656, de 18 nov. 1956; (acedido a 1 fev. 2015).
n.º 42.785, de 31 dez. 1959; n.º 43.295, de 5 nov. 1960; n.º 56/76, de 22 jan.;
n.º 193/76, de 16 mar.; n.º 225-F/76, de 31 mar.; n.º 426/76, de 1 jun.; n.º 729/76, † Alberto Vieira
de 14 out.; n.º 102/78, de 23 maio; n.º 149-A/78, de 19 jun.; n.º 204-A/80, de
28 jun.; n.º 6/81, de 24 jan.; n.º 200/82, de 21 maio; n.º 201/82, de 21 maio; Sérgio Rodrigues
n.º 389/87, de 31 dez.; n.º 19/92, de 19 fev; leis: n.º 2/78, de 17 jan.
A nomeação do Brig. José Maria Baldy como de Listas Que Contem os Nomes das Pessoas, Que Ficarão Pronunciadas nas
Devassas, e Summarios: a Que Mandou Proceder o Governo Usurpador depois da
governador civil do Funchal só veio a ser feita Heroica Contra-Revolução, Que Arrebentou na mui Nobre e Leal Cidade do Porto
pelo dec. de 20 de abril de 1859, tomando em 16 de Maio de 1828, Porto, Typ. de Viúva Alves Ribeiro & Filho, 1833.
na Ribeira da Janela, costa norte da Madeira. décadas de atividade, o mandador foi Luís
No entanto, as árduas condições de trabalho, Reis, oriundo da freguesia das Capelas, na ilha
devidas, sobretudo, ao mar agreste, forçaram de São Miguel (Açores), e substituído, até ao
a construção de novas instalações na costa Sul, fim da atividade, por seu filho, Eleutério Reis.
mais abrigada dos ventos e do mar. Assim, a O crescimento da baleação na Madeira de-
partir de 1942, a maioria das baleias passou a veu-se, não apenas à disponibilidade de ca-
ser desmanchada no calhau do Garajau. Tam- chalotes nestas águas, mas também à pronta
bém foi montado um traiól no Porto Santo, em aprendizagem dos novos vigias e baleeiros –
1944, mas que nunca chegou a operar. de naturalidade madeirense – que no convívio
Nos primeiros anos, a atividade foi desen- com os experientes baleeiros do arquipélago
volvida com um alvará provisório atribuído vizinho forjaram o seu saber. A rápida adapta-
formalmente pelo Estado português a Pedro ção dos homens locais a esta nova faina per-
Cymbron. Este dispunha dos equipamentos e mitiu que em 1944 todos os vigias e a grande
dos homens com a experiência para começar a maioria das tripulações das baleeiras fossem
atividade e contava com o apoio logístico local madeirenses.
e o conhecimento das lides do mar do piloto Com o sucesso dos primeiros anos da ativi-
Gouveia. Em 1940, constituiu seu irmão José dade, foi criada a 2 de dezembro de 1944 a
Cymbron, funcionário da Alfândega do Fun- Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira,
chal, procurador para gerir e administrar a ati- Lda. (EBAM). Assinaram a escritura de consti-
vidade na Madeira. tuição da empresa Pedro de Chaves Cymbron
Três anos após o início da atividade, já exis- Borges de Sousa, José de Chaves Cymbron Bor-
tiam nove baleeiras a caçar, apoiadas por qua- ges de Sousa, Simplício dos Passos Gouveia e
tro lanchas. Estas baleeiras operavam a partir Francisco Marcelino dos Reis, com os segundo
do Porto Moniz, Funchal e Garajau, e caçavam e terceiro outorgantes a tornarem-se sócios-ge-
cachalotes sob a coordenação de um respon- rentes da EBAM. A partir de 1946, a concessão
sável, chamado mandador. Nas primeiras duas exclusiva da atividade baleeira inicialmente
atribuída pelo Estado português a Pedro Cym-
bron foi entregue à EBAM, que a viu ser reno-
vada sucessivamente até 1981.
As primeiras vigias foram construções em
madeira com telhado em chapa ondulada
de fibrocimento. Estas vigias foram construí-
das pela armação baleeira de Pedro Cymbron
entre 1940 e 1943. Eram um total de oito na
Madeira, designadamente em Porto Moniz,
São Jorge, Caniçal, Machico, Garajau, São Mar-
tinho, Ponta do Sol e Ponta do Pargo, e uma no
Porto Santo. Entretanto, a capitania do Porto
do Funchal iniciou em 1943, em plena Segun-
da Guerra Mundial, a construção de uma rede
de vigias na ilha da Madeira, no Porto Santo e
nas Desertas para controlar visualmente o trá-
fego marítimo e aéreo na costa, especialmente
de navios e submarinos dos países beligeran-
tes que pudessem constituir uma ameaça mi-
litar ao arquipélago. Estas vigias, em menor
Fig. 3 – Vigia da Ribeira Brava, c. 1940 (fotografia de José Lemos
número, foram construídas integralmente em
Silva, 2014). betão, e algumas ao lado das vigias das baleias
B aleia , ca ç a à ¬ 207
existentes. Com o fim da guerra as vigias da ca- temperatura e pressão de vapor extraíam com
pitania do Porto do Funchal foram entregues maior eficácia e qualidade o óleo do toucinho
à EBAM, substituindo as vigias em madeira e dos cachalotes. Com estes equipamentos, tam-
expandindo a rede que passou a cobrir todas bém foram ensaiadas as primeiras experiências
as costas do arquipélago. de produção de farinhas de baleia. Mas o in-
O sucesso inicial da caça ao cachalote fomen- vestimento na capacidade de processamento
tou novos investimentos. Na sequência dos in- das baleias não terminou aí. Em 1949, iniciou-
vestimentos nos meios de caça, também foram -se a construção da fábrica de processamento
melhorados os meios de comunicação e de ex- dos produtos da baleia, no Caniçal. A fábrica
tração dos produtos das baleias. Nos primei- iniciou o seu funcionamento dois anos mais
ros anos, as comunicações entre as vigias e as tarde, coincidindo com o fim do desmanche
baleeiras eram rudimentares e pouco eficien- nos restantes locais. A partir de então, o Ca-
tes – utilizavam-se lençóis brancos ou sinais de niçal tornou-se no centro da caça à baleia na
fumo. No entanto, a deterioração da visibili- Madeira.
dade, provocada por frequentes neblinas, ra- Os anos 50 trouxeram inovação e maior di-
pidamente afetava essas comunicações visuais, namismo a esta atividade, com avanços no fa-
constituindo um problema crucial que limi- brico das baleeiras, que passaram a ser cons-
tava o crescimento da atividade. Aproveitan- truídas em contraplacado marítimo e onde os
do a disponibilidade de excedentes militares motores a gasolina substituíram os remos e as
norte-americanos da Segunda Grande Guerra, velas como força propulsora.
foram comprados pela EBAM rádios-telefones Além disso, foi nesta época que a EBAM alar-
para estabelecer-se uma rede de comunicações gou, experimentalmente, a caça às grandes ba-
sem fio que ligava as vigias entre si e também as leias de barbas. A captura destes animais exigia
embarcações no mar. meios diferentes dos utilizados para os cacha-
Inicialmente, o óleo dos cachalotes era ex- lotes. Para tal, foram contratados dois navios
traído recorrendo a caldeiros alimentados a baleeiros, o HVAL I, de pavilhão norueguês, e
fogo directo, um método rudimentar e pouco o baleeiro Persistência, pertencente à Empresa
eficiente. A partir de 1947, passaram a utilizar- Francisco Marcelino dos Reis, Lda., que ope-
-se autoclaves nas instalações do Garajau. Estes rava na costa portuguesa continental. Mais
equipamentos funcionavam como grandes pa- tarde, o baleeiro Persistência foi adquirido pela
nelas de pressão, que recorrendo à elevada EBAM para a função de rebocador. Os navios
208 ¬ B anana
Luís Freitas
Banana
A banana é o fruto da bananeira, uma planta
herbácea da família Musaceae (género Musa).
Originária do Sudeste da Ásia, aparece na Ma-
deira no séc. xvi. A chamada bananeira anã
(Musa nana L.) chegou à Madeira provenien-
te de Demerara, entre 1840 e 1843. Antes
disso, existia na Ilha a chamada bananeira
da terra (Musa sapientum L.). Outras varieda-
des foram surgindo ao longo dos tempos ou Fig. 1 – Cacho de bananas (fotografia de Bernardes Franco, 2019).
B anana ¬ 209
de Lobos, Calheta, Ribeira Brava, Santa Cruz folha depressa se rompem até ficarem em fran-
e Machico. O Funchal, que foi durante muito ja de cada banda da haste. Do centro da planta
tempo a sua principal área de produção, aca- nasce um talo nodoso, semelhante a uma es-
bou por perder essa importância, por força da pinha dorsal, que se encurva e suporta os fru-
pressão da construção imobiliária. tos num cacho de cinquenta a sessenta, muito
É a partir do séc. xvii que a informação sobre parecidos com salsichas pequenas, na forma,
este fruto se torna mais abundante, nomeada- a princípio de tom verde-escuro mas que vão
mente pela voz dos estrangeiros que ficam des- amarelecendo ao amadurecer. No fim do talo
lumbrados com o seu exotismo. Em 1689, John está a flor, que faz lembrar um coração de vi-
Ovington define-a como o fruto proibido. Ro- tela. As folhas e hastes são de um verde páli-
bert Wilson, em obra publicada em 1806, ape- do delicado. O fruto, substancial e doce, mas
sar de se referir a expedições realizadas entre um tanto insípido. Há várias espécies, algumas
1764 e 1789, enaltece as capacidades de adap- maiores do que outras, e a mais apreciada é
tação do solo madeirense a todo o tipo de cul- uma, pequena, chamada banana de prata. Não
turas e árvores de fruto, incluindo aí as bana- existe estação própria das bananas; produzem-
nas. O Rev. Robert Walsh (1772-1852), que -se em toda a roda do ano. Há uma variedade
esteve na Madeira entre 1828 e 1829, refere, que não dá fruto, apenas uma linda flor escar-
entre os frutos, a banana. A paisagem servida late” (FRANÇA, 1970, 147).
de bananeiras nos jardins deslumbra Wortley Foi a Madeira que trouxe à Europa a ba-
em 1854. nana, como outros frutos do chamado novo
Uma das descrições mais pormenorizadas da mundo, contribuindo para a sua generaliza-
bananeira é a apresentada por Isabella de Fran- ção no gosto e na dieta diária dos europeus.
ça, em 1853: “A própria bananeira é das mais Desde 1848 que esta banana chegava a merca-
curiosas. Cresce com um caule nu, da gros- dos externos, como Londres e Liverpool, mas a
sura de uma perna humana, até sete ou oito sua importância na economia madeirense era
pés de altura, e aí divide-se em vários ramos, ainda diminuta, uma vez que o deputado Lou-
cada um com uma folha só, de seis ou sete pés renço José Moniz, em 1850, refere que as tro-
de comprido e cerca de catorze polegadas de cas com o exterior se haviam reduzido 100 %,
largo, e uma haste grossa no meio; os lados da ficando por umas bagatelas de fruta banana.
210 ¬ B anana
A obra de James Yate Johnson (1820-1900) A Primeira Guerra Mundial gerou inúmeras
testemunha, para 1883, a exportação de ba- dificuldades em termos do mercado externo
nana, que representava já 13,2 %. Diz-se que, do arquipélago, refletindo-se nas exportações
em 1893, Sissi (1837-1898), depois de desem- e no abastecimento de bens de subsistência.
barcar no cais, desapareceu alguns momentos Perante isso, o Governo Civil decidiu criar li-
para ir à pastelaria Felisberta comer bananas à mitações à saída de banana, de forma a prover
mão. Desta forma, a banana é um atrativo para o mercado local. Em 1911, a Madeira exporta-
muitos dos visitantes, daí a sua assídua referên- va 550.000 kg de banana, subindo para 619.790
cia nos textos e guias de viagem. kg no ano imediato. Sabemos pela imprensa
A banana começou a adquirir importância que, nos anos de 1918 e 1919, a escassez de ba-
na economia de exportação da Ilha a partir da nana na praça funchalense era evidente, levan-
déc. de 80 do séc. xix, com os portos ingleses. do à intervenção das autoridades para contro-
É, aliás, na Inglaterra que se consolida o merca- lar o seu comércio local e de exportação para
do estrangeiro da banana madeirense, a que se Lisboa. Assim, em abril de 1918, fez-se sentir
associa, a partir de 1904, o de Hamburgo. Ainda a sua falta nos locais de venda, surgindo, en-
em 1895, afirma-se que este produto é o mais tretanto, a informação de que tinha chega-
bem remunerado e de mais fácil mercado na Eu- do a Lisboa banana no valor de 15 contos, de
ropa. Assim, em 1904, seguiram para Hambur- contrabando. Em agosto de 1918, o governa-
go 185 grades com banana, e, no ano seguinte, dor autorizou a exportação de 100 grades, ao
182 gigos de banana para Londres, sendo 132 mesmo tempo que determinou a criação de
em nome de Leacock & Co. Mas aquilo que pa- um depósito aberto para a sua venda, com um
recia ser uma abertura promissora do mercado lote de 500 kg. A 3 de dezembro de 1919, os ex-
britânico cedo se revelou uma dificuldade, com portadores criaram outro depósito para venda
a concorrência da banana doutros mercados. de banana num barracão nos paços do conce-
As Canárias começaram a apostar nesta cultu- lho. A 21 de dezembro, face à escassez de pão,
ra de exportação a partir de 1882, e a América refere-se a disponibilidade de 300 kg de bana-
Central começou a ter presença visível na Euro- na para venda a sete centavos o quilo. A medi-
pa desde 1896. Mas foi no séc. xx que se conso- da proibitiva de exportação repetiu-se em 6 de
lidaram estes mercados abastecedores, atuando abril de 1920, e sabemos que cada passageiro
de forma concorrente com a Madeira: a Jamaica apenas estava autorizado a transportar consigo
e a Costa Rica a partir de 1907, juntando-se-lhes um cacho de bananas.
as Canárias em 1911. A banana fazia parte da oferta de produtos
Um dos problemas da exportação da bana- regionais que os bomboteiros faziam chegar
na prendia-se com o processo de embalagem, aos navios, tendo sempre clientes para o fruto
de forma a que o fruto não perdesse qualida- desconhecido e apetitoso. Para evitar excessos,
de. Esta questão já se colocava em 1888 e con- um edital do governador civil, de 27 de maio
tinuou no tempo. Em 1907, os cachos eram en- de 1920, determinava que a sua venda a bordo
volvidos em algodão em rama e embalados em só podia acontecer quando em perfeito estado
caixas ou grades, que se ajustavam às dimensões de maturação. Pensava-se fundamentalmente
do cacho. Este processo fazia aumentar os cus- na ação dos bomboteiros que tinham, neste
tos da fase de circulação do produto. Daí busca- produto regional, uma grande aposta para as
rem-se alternativas, com o recurso à palha seca suas vendas a bordo, abastecendo-se nos de-
dos cereais e mesmo da bananeira. Ao mesmo pósitos do Grémio de Exportadores de Frutas
tempo, procurou-se criar condições para que a e Produtores Hortícolas da Ilha da Madeira
banana madeirense mantivesse a sua qualidade (GEFPHIM) a partir de 1935.
em termos de aspeto, aroma, sabor, riqueza sa- Passados os anos da guerra, a banana da Ma-
carina e digestibilidade, fatores de valorização deira continuou em expansão, mas aquilo com
face à competição de outros mercados. que os madeirenses não contavam era com a
B anana ¬ 211
regional, em geral, e as famílias, em particular, evidenciam que o seu consumo se havia gene-
estavam seriamente ameaçadas. Entretanto, vá- ralizado no país em 1973, e não se ficava ape-
rias empresas surgiram no mercado regional nas pelos grandes centros. Assim, de uma ex-
para se dedicarem à comercialização de ba- portação de 15.779.282 kg, 2.483.523 kg foram
nana. A delegação da Junta Nacional das Fru- enviados para os Açores, 13.294.309 kg para o
tas foi criada a 5 de junho de 1935, por dec. continente, e 1250 kg como mantimento para
n.º 25.464, para promover a fruticultura, com navios estrangeiros. Dos 13.294.309 kg que
especial atenção à cultura e ao comércio da ba- chegavam a Lisboa ou Aveiro, 10.369.083 kg
nana. Desde a déc. de 30 que se manifesta no- eram distribuídos por todo o país. Até 1953,
tória a valorização da fruticultura e horticultu- a Madeira fornecia em exclusivo o mercado
ra por força da sua exportação, com demanda continental, surgindo, neste ano, a banana de
em diversos países europeus, no continente e Cabo Verde e, em 1959, a de Angola.
nos Açores. De acordo com o aviso de 16 de Ao problema do transporte da banana, asso-
abril de 1939, o GEFPHIM cobrava uma taxa ciava-se o do seu manuseamento em Lisboa,
de $02 por cada kg de banana exportado para que fazia com que houvesse uma perda elevada
Inglaterra. A 31 de dezembro de 1973, o Gré- de produto e da sua qualidade. Tardava a dis-
mio tinha 28 sócios em nome individual e 39 ponibilização dos barcos, e as condições de ar-
sócios de associações, sociedades e empresas. mazenamento das bananas, no Funchal e à sua
A partir de 1938, é notório que a Ilha produ- chegada a Lisboa, não eram as melhores, che-
zia excedentes hortícolas e frutícolas, que ex- gando ao consumidor em condições impró-
portava para o continente português e alguns prias para consumo. Esta reclamação terá voz
países europeus, como Inglaterra, Irlanda, Bél- no deputado Agostinho Cardoso, que aponta-
gica, Alemanha, Itália, e ainda para África e va, em 1964, perdas na ordem dos 15 %. Por
para os Açores. Com a Segunda Guerra Mun- isso, havia que tomar medidas urgentes.
dial, de novo se fecharam os mercados euro- A partir de 1955, a banana africana, de Ango-
peus, mas manteve-se o português. A impren- la e Cabo Verde, passou a ser uma real ameaça
sa fazia eco da ausência dos vapores da Union à madeirense, o que se confirma em pleno a
Castle Line, a partir de setembro de 1939. Em partir de 1960. Mesmo assim, esta não perdeu
1940, as exportações de produtos frutícolas e valor económico nas exportações, permane-
hortícolas representavam 3960 contos, 6 % do cendo em terceiro lugar em 1960, com 100.000
total da receita entrada na Ilha. Neste grupo, a contos, passando para 90.000 contos em 1964.
banana representava já um valor significativo, Os anos 60 marcam uma fase decisiva na
com mais de 99 %. evolução do mercado da banana da Madeira.
Terminada a guerra, tudo voltou ao que era A garantia da sua continuidade implicava que
antes, com a Madeira a recuperar os seus mer- se apurassem os padrões de qualidade face à
cados. Em setembro de 1945, a Madeira recla- concorrência de outros mercados, sendo fun-
mou um navio-fruteiro para permitir o escoa- damental a publicação, em 21 de novembro de
mento da banana, uma vez que o Funchalense 1964, da port. 20.923, que regulava o comér-
não permitia a sua total saída. Em 1964, para cio interno da banana da Madeira. A discipli-
uma exportação de 23.557 t, é calculada uma na no processo de apanha, na circulação, no
perda de 3532 t. armazenamento e na venda da banana impli-
O Grémio Funchalense dispunha, em Por- cava novas regras, de forma a garantir a qua-
tugal continental, de duas delegações/centros lidade do produto quando chegasse às mãos
de reexpedição de banana, um em Lisboa e do consumidor, competindo ao GEFPHIM e à
outro em Aveiro. O de Lisboa começou a fun- Junta Nacional das Frutas a missão de fiscalizar
cionar em maio de 1936, enquanto o de Aveiro o cumprimento destas regras.
só em 1969. Os dados da reexpedição da ba- Em 1966, alcançou-se o pico da produção
nana da Madeira a partir de ambos os centros madeirense, ganhando esta cultura terreno em
B anana ¬ 213
relação à cana sacarina. As exportações atingi- Nesta época, os principais mercados eram
ram os 32.178.551 kg, mas o continente portu- o continente português, com 13.294.509 kg,
guês contava com mais 11.683.516 kg de bana- e os Açores, com apenas 2.483.523 kg. Neste
na de Angola e Cabo Verde. Alberto Araújo, mesmo ano, Lisboa recebeu 64.278.167 kg
na Assembleia Nacional, afirmava que a bana- de banana de Angola e 1.283.455 kg de Cabo
na era uma importante riqueza económica da Verde. Tornavam-se cada vez mais evidentes os
Ilha, ocupando o quarto lugar depois dos bor- efeitos da concorrência da banana da África
dados, vinhos e vimes. Entretanto, em Angola, portuguesa. Assim, o envio da banana madei-
a produção e exportação começavam a organi- rense decresceu 3.390.611 kg, enquanto o da
zar-se, surgindo uma sociedade anónima, em de Angola subiu 11.926.466 kg.
1967, que terá repercussões no mercado conti- Embora a Madeira tenha sido pioneira na
nental, em prejuízo da Madeira. O ano de 1969 oferta de banana ao mercado europeu, cedo
foi bom para esta cultura, mas redobraram as perdeu importância em relação aos demais
reclamações dos deputados madeirenses face mercados abastecedores. Em 1950, a produção
à concorrência da banana africana e à neces- era de 20.000 t, e a exportação para o conti-
sidade de criar um sistema adequado de trans- nente, a Inglaterra e a França chegava até aos
porte e armazenamento para o abastecimento 500.000 cachos. Passados cinco anos, a Ilha
do principal mercado, o continente português. produzia mais de 20.000 t, das quais 91 % se
A par disso, a Madeira debatia-se com um pro- destinavam ao continente português e ape-
blema: a banana apresentava-se no mercado nas 0,3 % ao externo, não alcançando as 80 t.
europeu como o fruto mais caro do mundo. Os mercados estrangeiros, em 1955, eram a In-
A solução passava pelos armazéns de amadure- glaterra, Irlanda e Itália. Paulatinamente, a ba-
cimento em Lisboa, que surgiram em 1966, e nana da Madeira, devido aos condicionalismos
pelo alívio das taxas e encargos que oneravam
a banana madeirense. Com a port. 23.979, de
21 de março de 1969, foi determinada a per-
centagem do quantitativo da expedição de ba-
nana em pencas, da ilha da Madeira para o
continente, a embarcar em cada semana.
Alguns dados disponíveis sobre a evolução
do volume das exportações da banana eviden-
ciam esta quebra acentuada. Assim, em 1969,
foram exportados 32.862.396 kg, em 1970,
29.319.955 kg, no ano imediato, 25.079.821 kg,
seguindo-se uma queda abrupta, em 1972, com
17.996.479 kg, e, em 1973, com 15.779.282 kg.
O relatório do GEFPHIM referente a 1973
elucida-nos sobre a forma de intervenção da
instituição e a situação do mercado da bana-
na madeirense. Recorde-se que, nesse ano, a
port. 571/73, de 20 de agosto, alterou a port.
de 1969 quanto à forma de distribuição da ba-
nana da Madeira. Embora naquele relatório
sejam referidos outros produtos, como os aba-
cates, as anonas, os tomates, a batata e a ce-
bola, quase toda a atenção está voltada para a
banana, central na atividade do Grémio, com Fig. 4 – Bilhete-postal do Grémio das Frutas da Madeira, c. 1970
15.779.282 kg. (coleção particular).
214 ¬ B anana
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58,6 %, a banana de segunda categoria a re- gov-madeira.pt/index.php/download-now/economica/agricultura-floresta-
presentar 21,1 % da banana comercializada, e e-pesca/prod-veg-prd-animal-pesca-pt/prod-vegetal-serie-pt/serie-longa/
finish/516-serie-longa/1345-serie-retrospetiva-das-estatisticas-da-agricultura-
a banana de primeira a ter uma importância e-pesca-1976-2013 (acedido a 15 dez. 2014).
relativa de 20,3 %.
† Alberto Vieira
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Organization of the United Nations, 1986; REYNOLDS, P. K., The Banana. Its
variável de folhas, diferencia posteriormente,
History, Cultivation and Place among Staple Foods, Boston, Houghoton Mifflin a partir do meristema apical, um escape floral,
B ananeira ¬ 217
o qual origina uma inflorescência terminal bananeiras têm-se quase completamente natu-
complexa, com múltiplas brácteas, onde se de- ralizado na Madeira; a sua vegetação é tão de-
senvolvem os frutos comestíveis. A banana da senvolvida, e os frutos tão copiosos, perfeitos e
Madeira (o fruto) pertence ao grupo AAA – saborosos como nos lugares donde são indíge-
cultivares triploides originárias de Musa acu- nas” (CASTELO DE PAIVA, 1855, 8).
minata, subgrupo Cavandish, e caracteriza-se Os primeiros tipos de bananeiras que chega-
por ser uma baga (em rigor, uma pseudobaga) ram à Ilha e que aí se cultivavam eram a ba-
alongada, mais ou menos cilíndrica, com ex- naneira da terra (Musa sapientum L.), talvez
tremidade apical arredondada. A sua superfí- a primeira a ser cultivada, e a bananeira pla-
cie é lisa e adquire uma coloração amarelada tina (Musa acuminata Colla × Musa balbisiana
durante a maturação do fruto. Colla.). Todavia, no séc. xx não há vestígios
A presença de bananeiras na Madeira é dessas variedades. Outras variedades foram in-
muito antiga, de acordo com várias fontes bi- troduzidas e cultivadas na Madeira, algumas
bliográficas. No Elucidário Madeirense afirma-se hoje quase totalmente desconhecidas, como
que esta cultura “já existia na ilha em 1552, pois a bananeira maçã, a bananeira de senhora, a
que dela fala Nichols, viajante inglês que esteve bananeira roxa, a bananeira de ouro, a bana-
aqui naquele ano” (SILVA, e MENESES, 1998, neira de macaco, a bananeira brasileira e a ba-
I, 230), numa provável referência à Musa x sa- naneira de prata. Já Augusto da Silva e Azeve-
pientum L. e não à Musa acuminata Colla., infor- do de Meneses referem que “a bananeira da
mação corroborada por Henriques de Gouveia terra é hoje raríssima na Madeira, e o mesmo
(1939). De igual modo, Hans Sloane, médico se pode dizer acerca da bananeira ‘plantina’
e naturalista inglês que visitou o Funchal em (Musa paradisiaca), cujos frutos muito grandes
1687, faz referência à presença de bananeiras se comem fritos ou cozidos. A bananeira de
na Ilha. Mais se refere que, em 1855, o barão frutos roxos, a bananeira maçã e a bananeira
de Castelo de Paiva, encarregado pelo Gover- de senhora são variedades da Musa sapientum,
no e enviado à Madeira para implementar o es- que se não têm vulgarizado” (SILVA, e MENE-
tudo do estado da ilha da Madeira, referiu: “as SES, 1998, I, 231). Apenas a bananeira de prata
218 ¬ B ananeira
durante este período até 1934, os exportado- 1911, a Madeira exportou 550.000 kg de ba-
res madeirenses sofreram grandes prejuízos nanas, 493.990 kg em 1912, e 619.790 kg em
com o comércio, especialmente devido à uma 1913. Refere o mesmo autor que, à data da edi-
forte concorrência sem controlo, a rivalidades ção do seu livro, o consumo local de banana
nas empresas de navegação e a uma política de era diminuto, e que a generalidade da produ-
descontos impostas pelos recetores desta fruta. ção seria exportada, servindo o excedente para
Visando regularizar o mercado e a produção, abastecer os navios que faziam escala no porto
bem como uma maior regularização das expe- do Funchal.
dições, mas especialmente a definição de pre- No decorrer da Primeira Guerra Mundial,
ços mínimos de compra ao produtor, foi cria- a produção regional aumentou ligeiramente,
do, em 1935, o Grémio dos Exportadores de passando de cerca de 600 para 800 t anuais,
Fruta e Produtos Hortícolas da Ilha da Madei- quantidades que se mantiveram em crescendo
ra, um organismo cooperativo que se manteve gradual no pós-guerra, tendo sido remetidas,
em funcionamento até 1975. Com o fim do Es- em 1925, 1200 t de banana para o mercado na-
tado Novo, foram criadas cooperativas que vi- cional. Já durante a Segunda Guerra Mundial,
saram a agregação das produções e das suas ex- a expedição da banana limitou-se ao mercado
pedições, das quais se destacam a Cooperativa continental, expedição essa que foi aumentan-
Agrícola dos Produtores de Frutas da Madeira, do gradualmente entre 1940 e 1966, como re-
CRL e a Cooperativa de Produtores de Bana- sultado de um maior número de plantações e,
na da Madeira, CRL. Já em 2008, e na tentati- simultaneamente, da procura. No que concer-
va de ultrapassar graves problemas financeiros ne às exportações, estas foram sempre muito
das cooperativas, através da implementação de diminutas e a preços pouco estimulantes, só
uma reestruturação que tornasse sustentável o tendo algum significado entre 1953 e 1955, pe-
sector da banana, o Governo Regional da Ma- ríodo temporal no qual ocorreram expedições
deira criou a Empresa de Gestão do Setor da para a Alemanha, a Dinamarca, a Grécia, a In-
Banana, Lda. (GESBA). Em 2016, a GESBA re- glaterra, a Irlanda, a Itália e Marrocos.
cebia a produção dos cerca de 2900 bananicul- Durante um largo período, a Madeira foi a
tores, e a banana produzida destinava-se a ser principal região fornecedora de bananas do
comercializada na Região e em Portugal con- mercado nacional, mas, em 1953, Cabo Verde
tinental, representando cotas de mercado na iniciou as remessas para o mercado conti-
ordem dos 15 % e dos 85 %, respetivamente. nental, que foram gradualmente aumentan-
A banana da Madeira adquiriu elevada no- do, passando de 2500 t em 1960 para cerca
toriedade e uma imagem bem definida junto de 5324 t em 1970. Nesta última data, Angola
dos consumidores, resultando da combina- passou também a ser fornecedora deste fruto,
ção de parâmetros tais como sabor, aroma, as- transformando-se, em cerca de 10 anos, num
peto, tamanho e conservação. Todavia, e ape- concorrente sério à banana da Madeira, uma
sar de produzida há longa data na Madeira, o vez que passou de cerca de 1 t em 1960 para
seu comércio, especialmente a expedição para cerca de 34.787 t uma década depois, resulta-
Portugal continental, só começou, verdadeira- do proveniente de um forte investimento em
mente, com a viragem do séc. xx. Apesar de novas plantações naquele território ultramari-
ter sido a partir da Madeira que a Europa co- no. Em igual período, a Madeira produziu para
nheceu este fruto, já em 1848 decorriam pe- expedição cerca de 25.357 t e 28.953 t, respe-
quenas exportações de banana para Portugal tivamente, sendo a produção de banana na
continental, para Londres e Liverpool, embora Madeira em 1970 de cerca de 36.000 t anuais.
ainda sem relevância económica. Assim, e se- A concorrência das bananas provenientes de
gundo Henriques de Gouveia (1939), a ativida- outras províncias ultramarinas teve impacto
de começou a deter um carácter mais formal e sobre o consumidor nacional, que, à data, pre-
comercial apenas a partir de 1910, já que, em feria a banana africana, especialmente devido
220 ¬ B ananeira
apesar das flutuações, constituindo um dos pi- ou em produtos. O Funchal ou Las Palmas
lares fundamentais da economia agrária regio- surgiram, no séc. xvi, como importantes pra-
nal, a par da vinha e da cana sacarina. Segun- ças bancárias, situando-se ao nível das de Me-
do a Análise da Série Retrospetiva das Estatísticas dina del Campo e de Valência. Os genoveses
da Agricultura e Pesca 1976-2014, as expedições detinham aí a maior parte do movimento de
de banana para o mercado nacional são uma cédulas. A letra de câmbio teve uma importân-
constante realidade, tendo apresentado um cia igual nas transações comerciais com o ex-
forte decréscimo de 1995 até à primeira déca- terior. Este meio de pagamento ativou o trato
da do séc. xxi e, posteriormente, uma ligeira do açúcar, sendo usual nas trocas com o reino,
tendência de crescimento. nomeadamente com Lisboa. A existência de
uma importante comunidade de italianos
Bibliog.: CASTELO DE PAIVA, Barão de, Relatório do Barão do Castelo de
Paiva, Encarregado pelo Governo de Estudar o Estado da Ilha da Madeira
e de flamengos, ligada ao comércio do açú-
sob as Relações Agrícola e Económica, Lisboa, Imprensa Nacional, 1855; car com as principais praças europeias, con-
COMISSÃO DE PLANEAMENTO DA REGIÃO DA MADEIRA, Trabalhos
tribuiu para a generalização desta forma de
Preparatórios do IV Plano de Fomento, Relatório do Grupo de Trabalho da
Lavoura, Funchal, s.n., 1971; DANIELLS, Jeff et al., Musalogue. A Catalogue of pagamento. Os florentinos, experientes nas
Musa Germplasm. Diversity in the Genus Musa, Montpellier, International transações financeiras, surgiram também com
Network for the Improvement of Banana and Plantain, 2001; GOUVEIA, Vicente
Henriques de, A Banana. Fruto de Todo o Ano, Alimento-Medicamento, Funchal, grande evidência, sendo particularmente im-
Tip. Funchal, 1939; LEÇA, Joaquim, Agricultando, Agricultando, Funchal, ed. do portantes as ações de Feducho Lamoroto e de
Autor, 2011; MABBERLEY, D. J., The Plant-Book. A Portable Dictionary of the
Vascular Plants, Cambridge, Cambridge University Press, 1997; Recenseamento Francisco Lape. Neste contexto, verificou-se
Agrícola de 2009. Região Autónoma da Madeira, Funchal, Direção Regional de a presença de destacadas sociedades comer-
Estatística, 2011; RIBEIRO, L., A Cultura da Bananeira (Musa acuminata Colla,
AAA) na Região Autónoma da Madeira, Trabalho apresentado à Universidade ciais europeias, que substabeleciam as tarefas
de Évora para conclusão de licenciatura, Évora, texto policopiado, 1992; Série a desempenhar em familiares ou concidadãos
Retrospetiva das Estatísticas da Agricultura e Pesca 1976-2014. Região Autónoma
da Madeira, Funchal, Direção Regional de Estatística, Funchal, 2015; SILVA,
com o estatuto de societários, de agentes ou
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, de procuradores. Os Welsers, e.g., tinham um
3 vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998; SLOANE,
H., A Voyage to the Islands Madera, Barbados, Nieves, S. Christophers and
feitor em Lisboa (Lucas Rem) e vários agen-
Jamaica, vol. 2, London, s.n., 1725; TELES, Diana Cristina Silva Côrte, Estudo tes substabelecidos no Funchal e em La Palma.
das Potencialidades de Conversão da Cultura da Bananeira para o Modo
A forma mais divulgada de associação e de
de Produção Biológico, Situação Atual e Perspetivas Futuras, Dissertação de
Mestrado em Segurança Alimentar e Saúde Pública apresentada ao Instituto alargamento da rede de negócios foi a com-
Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz, Almada, texto policopiado, 2010.
panhia ou sociedade comercial, nas suas di-
Cláudia Dias Ferreira versas modalidades. Estas definiam-se, de um
modo geral, pelo seu carácter familiar, pela
eventualidade da sua ação e por uma compo-
Bancos e casas bancárias sição variada de intervenientes, que investiam
o seu capital ou o seu trabalho. Tratava-se, ge-
O facto de a Madeira, por força da importância ralmente, de empresas familiares, que se ser-
do açúcar, ter assumido uma grande prepon- viam dos laços de parentesco para assegurar
derância no comércio mediterrâneo-europeu, a permanência da sua ação, a solidariedade e
a partir do último quartel do séc. xv, e de ter a comunhão de interesses. Quando tal se tor-
atraído as atenções das sociedades comerciais nava impossível, recorria-se aos compatrícios
conduziu a que as práticas bancárias chegas- avizinhados nas principais praças. Esta última
sem cedo à Ilha. forma surgiu, com frequência, na Madeira.
As dificuldades do sistema monetário, uma O relacionamento dos intervenientes nestas
situação comum na Madeira, não implicaram sociedades fazia-se de acordo com o investi-
apenas o recurso à troca produto a produto, mento na empresa: capital e trabalho. Quan-
mas, de igual modo, a procura de outras for- do um dos societários apenas intervinha com o
mas de pagamento substitutivas da moeda, seu trabalho, poderia ser definido como agen-
então em voga na Europa: a carta ou letra de te ou feitor. Quando esses laços eram de menor
câmbio e o trespasse de dívidas em dinheiro dimensão, surgia o procurador, que, mediante
B ancos e casas bancárias ¬ 223
Fig. 1 – Antigo Banco Nacional Ultramarino, 1925-1926, depois Caixa Geral de Depósitos, Funchal (fotografia de Bernardes Franco, 2015).
um documento notarial, atuava sobre a fazen- sob esta forma, houve Baptista Morelli, B. Mar-
da do seu parceiro no mercado local, cobran- chioni, Welser, Claaes, Charles Correa, Pero de
do, por isso, uma determinada percentagem. Ayala, e Pero de Mimença.
Ambas as situações apareceram com grande Na déc. de 90 do séc. xv, o açúcar madeiren-
evidência na praça funchalense, enquanto nas se sofreu uma quebra nos preços, não por falta
Canárias se afirmou, com muita acuidade, a de procura, mas por excesso de oferta da praça
segunda. funchalense. Os madeirenses reclamaram em
A rede de negócios funchalense, em tomo do vários sentidos e clamaram por medidas da
trato do açúcar, foi criada e incentivada pelo Coroa. A 12 de outubro de 1496, D. Manuel
mercador estrangeiro, alemão ou italiano, que respondeu “vimos uma carta com certos ca-
aí apartou depois da reconfortante e vantajo- pítulos e apontamentos que nos enviastes em
sa escala em Lisboa; ele dominou as principais que nos declaras os danos e perdas que tendes
sociedades intervenientes no comércio açuca- recebidas por razão dos contratos e dempres-
reiro, não obstante ter morada fixa em Lisboa, tidos e vendas dante mão que se em essa Ilha
Flandres ou Génova; o seu domínio atingiu fazem nos quais entram muitas onzenas donde
não só as sociedades criadas no exterior com se seguem grandes demandas de maneira que
intervenção na Ilha, mas também o grupo de essa Ilha está em caminho para se perder pe-
agentes ou feitores e procuradores substabele- dindo-nos por mercê que defendêssemos que
cidos no Funchal. A escolha destes é criteriosa; tais contratos se não fizessem e que não hou-
primeiro os familiares, depois os compatrícios vesse um estrangeiro” (MELO, 1973, 350).
enraizados na sociedade e, só depois, os madei- Foram dadas várias orientações no sentido de
renses ou nacionais. Entre as principais casas atalhar as situações e de procurar estabelecer
intervenientes no trato açucareiro madeirense a regularidade das operações comerciais, dos
224 ¬ B ancos e casas bancárias
empréstimos e das vendas, sem dano para os deste modo, pelo facto de os britânicos terem
intervenientes. criado na Ilha uma importante praça bancária,
A moeda e os usuais meios de pagamento que, muitas vezes, se entrelaçava com as de-
são um fator importante e ativador do movi- mais operações do império, de forma especial
mento de troca. Aliás, o progresso da atividade do Brasil.
comercial depende, em última instância, da si- Apenas no séc. xix surgiram notícias dos
tuação monetária e das condições de crédito. primeiros bancos, tal como hoje se entende.
No caso concreto da Madeira, onde se afirma- Até então, não se divisava semelhante situa-
ria uma economia colonial, o instrumento de ção e as operações bancárias eram oferecidas,
troca teria uma ação primordial na estrutura no caso dos empréstimos, pelas confrarias,
económica insular. A moeda e os seus substi- pelas misericórdias e por alguns particulares,
tutos foram, ainda, necessários para a compra mas sempre numa postura de medo, tendo
de manufaturas de importação e aquisição dos em conta a posição declarada da Igreja, que
bens essenciais de que a sociedade insular ca- fazia guerra à usura e às onzenas. Assinale-se
recia, pois os produtos dominantes não perfa- que, nas constituições sinodais do Funchal,
ziam nem contrabalançavam essa entrada. de 1578, 1597, 1615 e 1695, não há qualquer
A situação monetária das ilhas não se apre- condenação a estas. Mas, já em 1725, o bispo
sentava diferente, pois em todas era dominante afirmava que “achei [...] muitas usuras e on-
a falta do metal amoedável e da sua circulação. zenas que são transcendentes por toda a Ilha”
Esta foi, assim, a característica dominante da (TRINDADE, 2012, 17). Esta atividade foi,
sociedade insular, que condicionou, de modo assim, denunciada nas visitações de S. Jorge,
vincado, as operações financeiras e contribuiu em 1727, como nas de Ponta Delgada, em
para o entorpecimento das relações de troca. 1733. A sua denúncia foi insistente por parte
Esta questão tornou necessária a criação de da Igreja. Pela insistência dos prelados nas vi-
novas formas de pagamento e condicionou o sitações ao espaço rural contra esta prática,
aparecimento de novos instrumentos de troca. pode-se afirmar que esta foi generalizada em
Assim, ter-se-ia generalizado, nestas ilhas, o pa- todo o arquipélago, apontando-se assidua-
gamento em géneros, a troca produto a pro- mente como alvos desta prática os senhorios
duto e, em circuitos mais amplos, o crédito, a e os ingleses. A situação do Porto Santo leva-
letra de câmbio e o trespasse de dívidas. ria a coroa a intervir, em 1770, apesar de não
Embora não haja factos que corroborem ter como controlar a posição e postura ingle-
e documentos que atestem a importância da sa, que assumiu um protagonismo desusado
praça financeira madeirense, é necessário con- nos sécs. xviii e xix, de tal forma que, em
siderar o volume das operações comerciais 1873, Álvaro Rodrigues de Azevedo referia a
em jogo nesta altura e a circunstância de, na “leonina usura”. E assim era, pois, em 1791, o
Madeira, atuarem alguns dos mercadores e al- ajudante Manuel Figueira de Ornelas cobrava
gumas das sociedades europeias mais impor- juros de 20 %. Desta forma, o Alf. Nicolau da
tantes, que fizeram com que as suas práticas Ponte foi condenado “visto ser pouco liso nos
bancárias atingissem a Ilha. Mais tarde, a partir seus contratos, e querer enriquecer-se à custa
de meados da centúria seiscentista, com a for- e chupando o sangue dos pobres” (TRINDA-
mação da feitoria britânica, a atividade bancá- DE, 1999, 154).
ria assumiu uma nova dimensão, com o predo- A usura, tão generalizada em toda a Ilha,
mínio da letra de crédito, como se constata na levou a Igreja a assumir uma posição protecio-
correspondência comercial de Diogo Fernan- nista até ao séc. xix, através das confrarias, das
des Branco ou de William Bolton. misericórdias, dos colégios (o caso dos Jesuítas
Nesta época, a presença da comunidade bri- do Funchal), e dos conventos, como o de S.ta
tânica conferiu outra perspetiva às operações Clara, intervindo com uma política de emprés-
comerciais e bancárias. A Madeira beneficiaria, timos, a juros adequados.
B ancos e casas bancárias ¬ 225
“As casas bancárias estabelecidas agora no Fun- levaram a uma corrida desenfreada dos po-
chal são as de Blandy Brothers & C.ª, Henrique pulares ao levantamento das suas economias.
Figueira da Silva, Reid Castro & C.ª, Rocha Ma- Os boatos eram anónimos, mas facilmente
chado & C.ª, e Sardinha & C.ª. Estas casas que identificáveis, sabendo-se do interesse de al-
realizam as operações bancarias exigidas pelo gumas famílias estrangeiras, com interesses na
comércio do Funchal, e ainda outras, estão atividade bancária e em sectores industriais fi-
todas em estado bastante próspero, devido à nanciados por esta casa. Por outro lado, se se
sua excelente administração e à confiança de tiver em conta que os dois principais beneficiá-
que gozam no mercado, como para os elevados rios da venda em hasta pública do património
juros, que eram de 12 a 15 %, podendo mesmo do banco foram as famílias Blandy e Hinton,
chegar aos 24 % ao ano” (SILVA e MENESES, não se estará longe de fazer sair do anonima-
1978, I, 116-117). to os principais orquestradores da situação que
Já para a déc. de 30, houve notícias de di- levou à falência do Banco Figueira e do Banco
versas instituições bancárias locais e nacionais Sardinha e que teve um efeito negativo na ati-
com intervenção no crédito. Assim, são conhe- vidade bancária da Ilha, nos anos imediatos,
cidas 4 agências de bancos nacionais – Bancos tendo a maioria da população perdido as suas
de Portugal (1878) e Nacional Ultramarino economias por não aceitar os bancos públicos
(1919), Companhia de Credito Predial Portu- e por preferir a esteira das camas ou um outro
guês, Banco Espírito Santo – e 11 casas ban- sítio que considerava mais seguro.
cárias com sede no Funchal – Reid, Castro & Para esta situação, também se apontam cul-
Co., Rocha Machado & Co., Teixeira Macha- pas ao Governo (sendo então ministro das Fi-
do & Co., Rodrigues Simão & Co., Sardinha nanças Oliveira Salazar) por não ter tomado
& Co., Henrique Figueira da Silva, Blandy & qualquer medida para evitar esta situação de
Co., Banco Madeira (1920), A. Adida & Co., falência, pois, em 1929, havia assumido uma
Rodrigues & Irmão Co., Teixeira & Machado atitude diferente com a casa bancária de Hen-
C.ª. De entre estas, destacava-se a casa bancária rique Tota. Mas, se tivermos em conta as faci-
com o nome do seu proprietário, Henrique Fi- lidades que algumas destas famílias inglesas,
gueira Sardinha (1868-1945), mais conhecida beneficiadas com as falências, tinham junto do
por Banco Sardinha, que se havia populariza- Governo da República, não será difícil de adi-
do, tendo uma importante carteira de depósi- vinhar o porquê desta atitude.
tos e de empréstimos, no valor de um milhão A falência destas duas casas bancárias, Sardi-
de libras esterlinas, a um grupo significativo nha e Figueira, abalou a economia madeirense
de empresas madeirenses. A Casa Bancária de da déc. de 30, uma vez que ambas representa-
Henrique Figueira da Silva, ou Banco Figuei- vam 75 % dos depósitos e empréstimos da Ilha.
ra, surgiu em 1898, com instalações na R. dos Com a ida do património destas casas bancá-
Murças. Esta casa dominava os financiamen- rias à praça pública, a família Hinton arrema-
tos ao comércio e à indústria da Ilha, sendo de tou o seu rival, a Fábrica de S. Filipe, e a famí-
destacar a sua ação nos sectores das moagens e lia Blandy, as moagens e muitos dos prédios do
dos engenhos de açúcar e de aguardente com Funchal. Por outro lado, a casa bancária desta
a Fábrica de S. Filipe. última família foi uma das mais favorecidas
Normalmente, aponta-se a situação ocorrida com a situação do sistema de depósitos e crédi-
em 20 de novembro de 1930 como um efeito tos bancários.
retardatário da quinta-feira negra de Nova Ior- A solução da crise bancária madeirense, mais
que, de 24 de outubro de 1929. Mas, ao nível apregoada na altura, era a da fusão. Esta ideia
da sociedade madeirense, a maioria dos teste- colhia a concordância dos responsáveis dos
munhos apontam para um turbilhão de boa- bancos da Madeira, Sardinha e Henriques e
tos lançados anonimamente na cidade que Irmão e C.ª, e foi aceite pelo Gov. Artur Almei-
apontavam a falta de liquidez desta casa e que da Cabaço, que, por sua vez, fez a proposta a
228 ¬ B ancos e casas bancárias
Silva tornou-se um acontecimento sem retorno uma forma corrente em todas as casas bancá-
e de efeitos muito nefastos na economia da Ma- rias e perguntou porque se deveria então pe-
deira e dos seus depositantes, de longe a maior nalizar apenas esta com a falência e recuperar
casa bancária” (Id., Ibid., 126). Este autor apre- as outras. Parece ter havido muitos interesses
senta, como exemplo, o montante do valor dos apostados no desmantelamento desta casa ban-
seus depósitos que correspondiam, ao tempo cária, o que, ligado à má gestão do banco, fa-
da falência, ao dobro de todos os outros ban- cilitou a vida dos pretendentes, cometendo-se
cos a trabalhar na Madeira. O banco foi liqui- um gravíssimo erro com consequências nefas-
dado por via administrativa através do dec. tas para a economia da Madeira, pois não fazia
n.º 20.316, de 16 de setembro de 1931, sem sentido reorganizar a banca madeirense, dei-
prerrogativas ou a possibilidade de poder re- xando de fora o maior banco da época. Lem-
constituir-se, mesmo após o relatório da comis- bre-se ainda que, na Madeira, a situação ban-
são liquidatária de 31 de dezembro de 1931, cária era muito frágil, com exceção para a casa
onde se refere um ativo de 87.033.509$00, su- Blandy, ficando no ar muitas suspeições.
perior ao passivo de 77.861.344$00. A comis- A casa bancária Reid, Castro e C.ª foi funda-
são liquidatária requereu a falência desta casa da por Henrique Vieira de Castro, oriundo do
bancária a 19 de novembro de 1931, no tribu- Porto e colocado, no Funchal, como delega-
nal judicial do Funchal. A falência foi decreta- do do Banco de Portugal, fixando residência
da por uma votação de 2 votos contra 1. O ban- na Madeira, a partir de 1893. Tendo enrique-
queiro recorreu da sentença para o Tribunal cido, fundou a casa bancária com esse nome
da Relação de Lisboa, em março de 1935, o entre outras empresas ligadas aos vários ramos
qual revogou a sentença do tribunal do Fun- económicos da Ilha. A casa bancária foi cons-
chal, com o argumento de que, para a decla- tituída como sociedade por quotas, em 1905,
ração de falência, não bastava a suspensão de
pagamentos: “a falência decorre da relação
ativo/passivo do estabelecimento e, neste caso,
o ativo é superior” (Id., Ibid., 128). A comissão
liquidatária voltaria a recorrer para o Supremo
Tribunal que confirmou a decisão da Relação,
indicando que, quando esta casa bancária sus-
pendeu os pagamentos, não se encontrava em
situação de falência. No entanto, apesar des-
tes reveses, a comissão liquidatária continuava
a desfazer-se dos bens do banco em hasta pú-
blica e em vendas diretas. João Abel de Freitas
diz que esta falência foi “um grande imbróglio
de consequências nefastas para a economia da
Madeira que serviu determinados interesses e
com largos prejuízos para os depositantes” (Id.,
Ibid., 128). Este autor insinuou que esta falên-
cia fora incentivada por terceiros e por forças
e interesses que apostaram na sua liquidação e
que contou com jogos de influência junto de
Salazar para que o fim fosse este. Havia ainda
outra tese que defendia a falência, apontando
“para uma certa maquilhagem da escrita como
argumento para a falência” (Id., Ibid., 130). Fig. 6 – Caricatura sobre a falência do Reid, Castro & Co.
Opinou o autor referido que esta era, então, (Re-Nhau-Nhau, 12 dez. 1931).
232 ¬ B ancos e casas bancárias
sob o nome de Reid, Castro e Companhia Ld.ª, comissário do Governo, o que aconteceu a 15
com o capital de 60.000$00 réis e com os sócios de dezembro desse ano, tendo recaído a esco-
William James Reid, Alfred Eduard Reid, Hen- lha em Nuno de Vasconcelos Porto, a quem
rique Vieira de Castro, Abraham Adida, viscon- foi retirada a autorização para o exercício da
de de Cacongo, Alfred L. Jones, e Eduardo A. indústria bancária, por portaria de 18 de maio
Cunha. A 29 de maio de 1912, a empresa foi de 1932, com a sua imediata liquidação. A co-
vendida a William James Reid, Alfred Eduard missão liquidatária, nomeada a 13 de junho
Reid, Henrique Vieira de Castro e Abraham desse ano, foi constituída por Juvenal Raimun-
Adida, e transformada em sociedade comercial do de Vasconcelos, que representava os sócios,
em nome coletivo, de responsabilidade ilimi- e José Quirino de Castro, que representava
tada. A 17 de junho do mesmo ano, o capital os credores, tomando posse no dia 23 desse
social foi aumentado para 100.000$00 réis, dis- mês. Esta comissão não conseguiu cumprir o
tribuídos entre eles da seguinte forma: William seu trabalho dentro do prazo previsto, em es-
e Alfred Reid com 25 contos cada, Henrique pecial devido à situação de grave crise finan-
Vieira de Castro com 40 contos, e Abraham ceira da praça do Funchal, sendo prorrogado
Adida com 10 contos, tendo Henrique Vieira o seu prazo até ao dia 20 de janeiro de 1934.
de Castro sido nomeado gerente, com o venci- No entanto, o processo de liquidação desta
mento anual de 1.080.000$00 réis e 10 % nos sociedade só se encerrou a 12 de agosto de
lucros líquidos quando superiores a 8 % do ca- 1944, após a aprovação das contas de liquida-
pital social da sociedade. Era um vencimento ção, sendo apresentado um relatório à Inspe-
simbólico. A partir daqui, surgiu a casa bancá- ção do Comércio Bancário e resultando daqui
ria propriamente dita, já que a sociedade pas- elevados prejuízos para os credores comuns,
sou a ter por objetivo as transações bancárias. cerca de 324, que perderam tudo, no valor de
Em junho de 1925, com a morte de Abraham 14.990.137$00. Sardinha e C.ª, com um crédi-
Adida e, em 1927, com a de Henrique Vieira to de 1.760.714$00, recuperou 1.045.900$00,
de Castro, o pacto social foi alterado para re- e Luís da Rocha Machado, com um crédito de
gisto das quotas em nome dos herdeiros, em 650.072$00, recuperou 200.000$00. A realiza-
virtude do dec. n.º 10.634, de 20 de março de ção da venda do património imobiliário (15
1925, o que fez com que esta casa bancária soli- prédios rústicos e urbanos) pouco rendeu e a
citasse, a 10 de junho desse ano, a sua inscrição venda em hasta pública das águas foi pouco
no registo das instituições de crédito. Este pro- transparente, tendo garantido um valor muito
cesso demorou, por não corresponder a todas abaixo de real.
as regras do referido diploma, ficando apenas A casa bancária Rocha Machado teve em
concluído em 1930, com o depósito obrigató- Luís da Rocha Machado, um açoriano, emi-
rio na Caixa Geral de Depósitos e com a apre- grante no Brasil e radicado na Madeira, como
sentação da guia do pagamento do registo no funcionário da casa Blandy, o seu proprietário.
valor de 523$00. A partir de 1890, deixou a casa Blandy e de-
Depois da morte de Henrique Vieira de Cas- dicou-se a vários negócios. Não há muita in-
tro, o banco perdeu algum fulgor, devido à formação disponível sobre esta casa bancária,
falta de experiência empresarial dos herdei- sabendo-se que ela se antecipou aos aconteci-
ros, acusando um atraso, a partir de janeiro mentos económicos dos finais da déc. de 1920,
de 1931, e originando muitas queixas junto da na Madeira, fundindo-se, a 10 de outubro de
Inspeção do Comércio Bancário e do Comissá- 1928, com Cupertino de Miranda e Irmão, Ld.ª
rio do Governo, na fase de liquidação. e com o Banco Económico Português, dando
A partir de 7 de dezembro de 1931, foi co- origem ao Banco do Comércio e do Ultramar,
municada à Inspeção do Comércio Bancário que também sofreu um processo de liquida-
e ao ministro das Finanças a suspensão de ção, realizado em setembro de 1932. No capi-
pagamentos, aguardando-se a nomeação do tal social deste banco, participaram algumas
B ancos e casas bancárias ¬ 233
parte correspondente, em prestações semestrais Santo, o Banco Pinto e Sotto Mayor, o Banco
de igual valor, cada uma com um juro de 6 % Fonsecas e Burnay, o Montepio Geral, o Banco
ao ano, no prazo de 6 anos a contar do dia do Português do Atlântico, o Banco Português de
óbito. A crise de 1929 e o número exagerado de Investimento, o Banco BIC, e a Caixa Econó-
casas bancárias fizeram com que o sector estag- mica do Funchal (este foi um banco de raiz
nasse; a instabilidade instalou-se nas casas ban- madeirense, que passou por algumas dificulda-
cárias e algumas abriram falência. A casa ban- des, após o 25 de Abril, tendo-se transformado
cária Sardinha e C.ª suspendeu os pagamentos no Banco Internacional do Funchal). Com a
a 21 de novembro de 1931. A 3 de janeiro de expansão económica e financeira proporcio-
1932, Eduardo Paquete foi nomeado comissá- nada pelas novas condições económicas saídas
rio do Governo junto deste banco. A casa ban- da Revolução de 1974, proliferam novas filiais
cária Sardinha e C.ª reconstituiu-se sob o nome de bancos nacionais e estrangeiros.
de Banco Sardinha, por dec. de 30 de abril de Tendo em consideração as publicações do
1931, com o apoio do Banco de Portugal e da Instituto Nacional de Estatística e da Direção
Caixa Geral de Depósitos, contando com uma Regional de Estatística da Madeira (DREM),
grande tolerância por parte de Salazar na sua é possível verificar o comportamento mais re-
reconstituição. Esta passou a sociedade anóni- cente de um conjunto de variáveis relaciona-
ma, a 21 de maio de 1931, sob a designação de das com a atividade da Banca.
Banco Sardinha “sendo os primeiros outorgan- Desde o ano 1998, o número de estabeleci-
tes da escritura de mudança os sócios da casa mentos bancários demonstrou uma evolução
Sardinha e Companhia e os segundos outor- como que a dois ritmos, sendo que foi verifi-
gantes, todas as pessoas, na generalidade credo- cado um período inicial favorável e, posterior-
res, que subscreveram o aumento de capital em mente, um outro no qual as variáveis apre-
3.000 contos” (Id., Ibid., 173). Neste aumento sentavam um certo ressentimento no sector,
de capital, 7 pessoas subscreveram 50.000$00 e seguramente pela própria crise financeira que
23 outras subscreveram ações entre 45.000$00 e assolou o mundo e provocou efeitos colaterais
10.000$00; no entanto, a desconfiança face à re- na Região. Para o ano 1998, o número de esta-
constituição das casas bancárias era muito gran- belecimentos de bancos e de caixas económi-
de e levou a uma corrida aos levantamentos e à cas na RAM era de 133, representando cerca
exigência de reembolsos dos créditos por com- de 2,6 % do total de estabelecimentos a nível
pleto, havendo necessidade de recorrer a novas nacional. No ano 2000, o número de estabele-
moratórias. Prorrogaram-se os prazos, mesmo cimentos ascendia a 150 na Região, com uma
após a sua transformação em banco, e a suspen- proporção de 3,0 % comparativamente ao nú-
são de pagamentos foi-se consolidando com in- mero de estabelecimentos em Portugal con-
demnizações tardias, com muitos processos ju- tinental. Esta proporção foi tendencialmen-
diciários e com sucessivas prorrogações. Esta te aumentando, embora o valor mais elevado
era a segunda maior casa bancária da Madeira tenha sido o de 3,2 %, que se constatou nos
da época, em número de depósitos. No seu pro- anos 2001, 2002 e 2007, onde o número de es-
cesso de liquidação, ela foi alvo de alguns pro- tabelecimentos na Madeira era de 156, 156 e
cessos polémicos e judiciais com alguns dos de- 171, respetivamente.
vedores, entre eles, Tiago Matias de Aguiar, F. F. Todavia, foi no ano 2009 que se verificou
Ferraz e C.ª Ld.ª que mostraram discordância o número mais elevado de estabelecimentos
quanto à forma de liquidação dos seus créditos. na Região, com 182, quando Portugal tinha
Entretanto, com o cimentar da sustentabili- 5877 estabelecimentos bancários e caixas eco-
dade económica e financeira do Estado Novo, nómicas. De notar que, a partir do ano 2010,
filiais de outros bancos nacionais foram apare- inclusive, verificou-se uma queda no número
cendo na praça financeira do Funchal, como daqueles. Queda essa que não foi um fenóme-
a Caixa Geral de Depósitos, o Banco Espírito no único da Região, mas também de todo o
B ancos e casas bancárias ¬ 235
território nacional, embora seja de interesse ano 2013 apresentassem um número de fun-
ressaltar que a diminuição do número de es- cionários novamente inferior ao ano imediata-
tabelecimentos foi mais acentuada na Madei- mente anterior, fixando-se em 842.
ra, pois, ao se verificar a proporção do núme- Os dados apresentados anteriormente
ro de estabelecimentos bancários regionais no podem ser analisados efetuando induções
número de estabelecimentos bancários nacio- sobre os motivos que provocaram esta diminui-
nais para o ano 2013, o valor ficou pelos 2,8 %, ção de pessoal ao serviço, apoiadas, eventual-
um valor percentual inferior ao verificado em mente, no argumento da melhor utilização e
anos anteriores, comparável com aqueles que otimização dos serviços. Todavia, cabe destacar
se verificavam nos últimos anos da déc. de 90 que, a partir do ano 2008, o sistema bancário
do séc. xx. se ressentiu, fundamentalmente, pela crise fi-
No ano 2010, o número de estabelecimen- nanceira despoletada.
tos passou para os 178, diminuindo no ano se- Este fenómeno não se fez sentir unicamente
guinte para 169. No ano 2012, verificou-se uma em território regional, mas também no espaço
nova queda para 157, sendo que, no ano 2013, nacional, porque, se se comparar a proporção
foram encerrados 10 estabelecimentos bancá- do pessoal ao serviço em bancos e em caixas
rios, passando a RAM a contar com apenas 147. económicas na RAM relativamente ao pessoal
Outra forma de se analisar a evolução do sec- ao serviço nas instituições de todo o país, veri-
tor é através do número de pessoas ao servi- fica-se que, apesar de ter havido algumas alte-
ço nesses mesmos estabelecimentos. No ano rações pontuais, o valor percentual se manteve
1998, o número de funcionários do sector nos 1,6 %.
bancário cifrava-se nos 946, sendo que a par- Uma publicação de 2014 do periódico Econó-
tir desse ano verificou-se uma diminuição que mico constatava o encerramento de um núme-
faria com que, no ano 2001, o número fosse de ro elevado de agências bancárias nesse mesmo
851 pessoas. No entanto, a partir do ano 2002 ano. Segundo a mesma, os bancos com maior
e até o ano 2004, constatou-se um crescimento, presença em Portugal fecharam 200 balcões
no qual, no ano 2002, o sector bancário conta- em território nacional no ano 2014. Na publi-
va com 922 colaboradores, passando para 945, cação, o encerramento de balcões e o despe-
no ano seguinte, e para 1098, em 2004. dimento de colaboradores são explicados não
A partir do ano 2005, voltou a verificar-se só pelas exigências efetuadas pelas autorida-
uma tendência caracterizada pela diminuição des europeias, após ter-se intervencionado um
do pessoal ao serviço, muito embora, no triénio conjunto de instituições bancárias, mas tam-
2008-2010, o número tenha superado o milhar bém pelos prejuízos verificados no sector que
de pessoas. A partir do ano 2011, o número de- obrigaram a elaborar planos de reestruturação
caiu, fazendo com que os dados referentes ao assentes parcialmente nestas medidas.
Fig. 8 – Calendário da Caixa Económica do Funchal para 1983 Fig. 9 – Calendário da Caixa Económica do Funchal para 1984 e
(coleção particular). 1985 (coleção particular).
236 ¬ B ancos e casas bancárias
Outro dado de elevado interesse, relaciona- economia, determinados dados da DREM re-
do com o número de terminais multibanco na velam que, a 31 de dezembro de 2013, a per-
Região, permite-nos concluir que foi verifica- centagem de devedores face ao total da popu-
do um crescimento importante daqueles entre lação adulta residente na RAM era de 51,1 %,
o ano 1997 e o ano 2013. Enquanto, no ano valor inferior ao verificado no território na-
1997, o número de terminais na RAM era de cional (52,9 %). Cabe destacar de igual forma
98, no ano 2013 o número ascendia aos 327. que cerca de 1 em cada 4 adultos residentes
Neste intervalo de tempo, apenas foram veri- na RAM tinha um empréstimo à habitação,
ficadas diminuições anuais no ano 2011, mo- e para 43,2 % foi concedido um empréstimo
mento em que o número caiu para 344, quan- para consumo e para outros fins, empréstimo
do em 2010 o número de terminais era de 347, esse que, a 31 de dezembro de 2013, ainda es-
e no ano 2013, altura em que se verificou uma tava em dívida.
diminuição de 18 terminais multibanco. Rela-
Bibliog.: impressa: ALMEIDA, Eduardo Castro e, Archivo da Marinha e
tivamente a esta variável, é possível verificar,
Ultramar. Inventário. Madeira e Porto Santo, Coimbra, Imprensa de Coimbra,
de igual forma, que, entre o ano 1997 e o ano 1907; AMORIM, Inês, “Dar e haver na Época Moderna. Entre a filantropia
2013, a distribuição concelhia desses mesmos e a dependência creditícia – especificidades insulares?”, Anuário do Centro
de Estudos de História do Atlântico, n.º 3, 2011, pp. 229-243; ARAGÃO,
terminais sofreu alterações, destacando-se a António, A Madeira Vista por Estrangeiros (1455-1700), Funchal, DRAC, 1981;
descentralização dos terminais no concelho do CORREIA, Liliana Martins, A Família Blandy. Economia e Cultura. Século
XIX, Dissertação de Mestrado em Cultura e Literatura Anglo-Americanas
Funchal: no ano 1997, localizavam-se ali 61,2 % apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2005;
do número total, um valor que diminuiu para FARIA, Cláudia, Phelps. Percurso de Uma Família Britânica na Madeira
de Oitocentos, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008;
55,7 % no ano 2013. Não obstante, apesar de FREITAS, João Abel, Salazar na Crise da Banca Madeirense. Uma Teia de
ter havido um aumento da proporção de ter- Muitos Nós, Lisboa, Colibri, 2014; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da
minais nos restantes concelhos que não a ca- Terra. História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens,
anot. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Typ. Funchalense, 1873;
pital da RAM, verificou-se uma diminuição da GOMES, Eduarda, O Convento da Encarnação do Funchal. Subsídio para
mesma em concelhos como: a Calheta, onde a Sua História. 1660-1777, Funchal, CEHA, 1995; JARDIM, Maria Dina dos
Ramos, A Santa Casa da Misericórdia do Funchal. Século XVIII. Subsídios
a relação passou de 6,1 % para 3,1 %, entre para a Sua História, Funchal, CEHA, 1996; LAINS, Pedro, História da Caixa
o ano 1997 e 2013; o Porto Moniz, onde, no Geral de Depósitos. 1910-1974, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2008;
MELO, Luís de Sousa, “Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do
ano 1997, os terminais multibanco representa- Funchal. 1ª parte”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. xvii, 1973; Re-Nhau-
vam 2,0 % do total regional, e, no ano 2013, Nhau, 17 mar. e 12 dez. 1931; RODRIGUES, Elisabete, Os Cossart. Uma
Família Inglesa na Madeira Oitocentista, Funchal, CEHA, 2013; RODRIGUES,
um valor inferior situado nos 1,8 %; a Ribeira
Paulo, A Madeira entre 1820 e 1842. Relações de Poder e Influência Britânica,
Brava e São Vicente, que, no ano 1997, repre- Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008; SANTOS, Eugénio,
sentavam 5,1 % e 4,1 %, e, no ano 2013, 4,0 % “A sociedade madeirense da época moderna. Alguns indicadores”, in Actas
do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. ii, Funchal, Governo
e 1,8 %, respetivamente. Regional da Madeira, 1990, pp. 1212-1224; SILVA, Fernando Augusto da, e
O número de operações efetuadas em termi- MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal DRAC,
1978; SILVA, Maria Júlia de Oliveira e, Fidalgos-Mercadores no Século XVIII.
nais multibanco também aumentou significa- Duarte Sodré Pereira, Lisboa, INCM, 1992; SIMON, André Louis, The Bolton
tivamente, quase que quadruplicando entre o Letters. The Letters of An English Merchant in Madeira. 1695-1714, London,
T. W. Laurie, Ltd., 1928; TRINDADE, Ana Cristina Machado, A Moral e o
ano 1997, ano no qual o número de operações
Pecado Público na Madeira na Segunda Metade do Século XVIII, Funchal,
foi de 5411 milhões. No ano 2013, foram regis- CEHA, 1999; Id., “Plantar Nova Christandade”. Um Desígnio Jacobeu para
tadas 21.010 milhões de operações em território a Diocese do Funchal. D. Frei Manuel Coutinho. 1725-1741, Funchal, DRAC,
2012; VALÉRIO, Nuno (coord.), História do Sistema Bancário Português,
regional. Os números alteraram-se de tal forma Lisboa, Banco de Portugal, 2006; VIEIRA, Alberto (coord.), O Público e o
que uma análise à caracterização desses mesmos Privado na História da Madeira, vol. i, Funchal, CEHA, 1996; digital: “Pessoal
ao serviço (n.º) nos estabelecimentos de bancos e caixas económicas
movimentos permite constatar a dinâmica veri- por localização geográfica (NUTS – 2002). Anual”, Instituto Nacional de
ficada. Tome-se como exemplo o ano de 1997, Estatística, s.d.: http://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_
indicadores&indOcorrCod=0000226&contexto=bd&selTab=tab2 (acedido a
no concelho de Porto Moniz, onde o número 22 dez. 2014).
de operações efetuadas foi de 23.000, sendo
apenas de 19.000 no concelho da Ponta do Sol. † Alberto Vieira
Sendo uma das principais funções das ins- Emanuel Janes
tituições bancárias a concessão de crédito à Sérgio Rodrigues
B anda d ’ A lém ¬ 237
Banda d’Além
O grupo de música tradicional madeirense
Banda d’Além iniciou a sua atividade em 1995,
no Funchal, sendo o seu mentor o professor,
músico e compositor Mário André Rosado.
O grupo tem como objetivo principal a divul-
gação das músicas tradicionais da Madeira e do
Porto Santo.
A banda surgiu na sequência de um projeto
extracurricular da Escola Secundária de Fran-
cisco Franco, dinamizado pelo Prof. Mário
André, que tinha como propósito a valorização
da música tradicional madeirense. Na base da
escolha do nome do grupo esteve a existência
de diversos locais na Madeira com a denomi-
nação de Banda d’Além e também o intuito de
olhar para além do passado em busca da tradi-
ção e de projetá-la para o futuro, atualizando-a
e reinventando-a.
Com um reportório fortemente ligado às raí-
Fig. 1 – Prof. Mário André, mentor do grupo musical Banda
zes populares, o agrupamento tem contribuí- d’Além, 2011 (Banda d’Além – Facebook).
do, ao longo da sua existência, para a recolha,
preservação e divulgação das músicas tradicio- deslocações à Venezuela, em 2008 e 2011, onde
nais do arquipélago da Madeira. As interpreta- foram atuar no Centro Português de Caracas,
ções do grupo assentam, sobretudo, numa har- primeiro no âmbito das comemorações dos 50
monia vocal e instrumental, com maior relevo anos do Centro e dos 500 anos da cidade do
para os cordofones tradicionais madeirenses Funchal e depois para participar no espetácu-
(viola de arame, braguinha e rajão). Estes são lo comemorativo do Dia da Região Autónoma
complementados pelas teclas, percussão, ban- da Madeira e das Comunidades Madeirenses.
dolim, viola, violino, acordeão e flauta. Além Em 2012, integraram o programa de encerra-
das escolhas musicais baseadas no cancioneiro mento da VIII Feira Tradicional Arte na Ilha,
madeirense, o grupo evidencia um estilo parti- em Meira, Galiza, e em 2014 viajaram até aos
cular ao recriar composições tradicionais e ao Estados Unidos da América, onde realizaram
dar voz a poetas contemporâneos. algumas atuações.
No seu historial, a Banda d’Além regista a Ao longo da sua carreira, o grupo tem sido
participação em eventos culturais distintos, promovido nos vários meios da comunicação
realizados no arquipélago madeirense, como social, quer na imprensa, em diversos perió-
o Festival Raízes do Atlântico, o Festival de dicos, quer na internet, na rádio ou na televi-
Arte Camachense, a Semana Gastronómica de são. Dentre os vários programas televisivos
Machico, a Semana do Mar do Porto Moniz, em que participaram, destacam-se os progra-
a Feira do Livro do Funchal e a Festa das Vin- mas «Atlântida», «Noites de Verão» e «Festa
dimas, entre muitos outros, incluindo os típi- da Flor», por serem transmitidos por diversos
cos arraiais madeirenses. Do seu roteiro fazem canais da RTP, incluindo o canal RTP Interna-
parte, igualmente, apresentações públicas cional, sendo esta uma forma de aproximar os
fora da Região, em vários locais do continen- muitos emigrantes espalhados pelo mundo da
te, no arquipélago dos Açores e também fora música popular madeirense e das suas raízes
do país. A nível internacional, destacam-se as culturais.
238 ¬ B andas filarm ó nicas
1814, vai dar a conhecer aos madeirenses um e o da festa, estariam doravante com acompa-
certo tipo de banda, que será posteriormente nhamento musical adequado: marcha grave e
desenvolvida em Portugal continental, primei- música religiosa, por um lado, e, por outro, um
ro na Banda da Armada e depois nos batalhões repertório que passaria do pasodoble à marcha
e regimentos de infantaria espalhados pelo portuguesa e outras melodias popularizadas,
país. Este formato musical, que integrava sopro primeiro pelo teatro de revista e num segundo
e percussão, tem uma primeira localização, Lis- momento pela rádio e disco.
boa, e um propósito, a reformulação da Ma- Os contratos para estes eventos designa-
rinha Portuguesa e das restantes forças. Será vam-se de contrato a seco ou de contrato a
sobretudo a partir de 1828, com a presença da comer. No primeiro, a coletividade musical
Banda do Regimento e da Banda do Batalhão, levava o seu próprio cozinheiro, que faria as
que os ouvidos dos madeirenses se concentra- refeições necessárias às expensas da direção.
rão nos desfiles e concertos ao ar livre destas No segundo caso, a banda ganharia menos
novas formações musicais. dinheiro, uma vez que o festeiro descontava
O modelo, a formação e direção das bandas nas refeições por ele cedidas. A banda come-
civis iria ser decalcado das congéneres milita- çava a sua prestação musical pela manhã, logo
res, sendo os seus mestres contratados pelas depois da missa, indo depois tocar à casa do
mais importantes sociedades musicais madei- festeiro. A banda podia também ir de porta
renses. Assim aconteceu com a Banda Muni- em porta, acompanhada pelo festeiro e mor-
cipal do Funchal (1850), a Banda Municipal domos. Existem episódios em que os músicos
de Câmara de Lobos (1872) e a Banda Distri- contavam centenas de hinos tocados, pois era
tal do Funchal (1872), as três mais antigas for- necessário tocar para todos os que tinham
mações que durante muito tempo disputavam contribuído para a festa. A meio da tarde, ser-
entre si não só aspetos de rivalidade mas os via-se o almoço, geralmente espetada, bata-
talentosos mestres militares, únicos ao tempo tas com atum ou caldeirada de bacalhau. Ao
no saber musical específico para este tipo de princípio da noite iniciava-se a festa que du-
agrupamento. rava até à meia-noite. No dia seguinte, a pro-
O séc. xix iria ver nascer muitas bandas cissão era o momento mais alto da prestação
tanto no Funchal como no mundo rural, algu- musical, seguindo-se uma atuação ao longo
mas de vida curta, das quais a história se resu- da tarde e noite.
me a uma ou duas atuações, registadas pelos
diários de então. No entanto, é, sem dúvida ne-
nhuma, fora do Funchal que o fenómeno das
bandas ganha expressão. Primeiro no Paul do
Mar (1874), depois na Ponta do Sol (1882) se-
guindo-se Faial (1895), Santa Cruz e Machico
(1896). Centrando a sua atividade à volta da
escola de música, as bandas ganharam a sim-
patia das populações e a convivência fácil com
a comunidade, que as prestigiaram apoiando-
-as na compra de instrumentos ou contratan-
do os serviços musicais para as diversas festas
tradicionais ao longo do calendário, fonte de
receitas para manter os ativos, tanto os músi-
cos como os mestres. O arraial madeirense, na
sua ideia chave de partilha do profano e do sa-
grado, encontraria na banda de música o seu Fig. 2 – Filarmónica Recreio dos Lavradores, Câmara de Lobos,
perfeito aliado. Dois momentos, o da procissão 10 de agosto de 1894 (arquivo da revista Girão).
240 ¬ B andas filarm ó nicas
Os contratos não eram escritos. Cabia ao fes- experiência da filarmónica a única da sua vida
teiro escolher uma banda da sua preferência, artística. Nas décs. de 30 e 40 do séc. xx, o fato
a banda da festa, podendo convidar mais uma da banda era para o instrumentista o único
ou até várias outras bandas, as bandas convi- que possuía, tal como os próprios sapatos, ser-
dadas. No adro da igreja eram colocados dois vindo estes para ocasiões solenes. Conta-se que
coretos: o da direita o era da banda da festa e o esse foi um dos motivos para nas décadas se-
outro, o da banda convidada. Quando existiam guintes as fardas das filarmónicas madeirenses
mais bandas, os coretos espalhavam-se pelos ar- terem várias cores, nomeadamente o doura-
redores do recinto do arraial. A banda da festa do, em riscas nas calças ou casaco. O propósito
seguia na frente da procissão e a banda con- era simples: evitar a utilização do fato fora da
vidada atrás. Os mestres das bandas, também atividade musical. Eram tempos de miséria a
angariadores de serviços musicais, tentavam a todos os níveis, mas que, apesar de tudo, servi-
todo o custo que a sua banda fosse a banda da ram para muitos dos executantes aprenderem
festa, a banda principal, o que era visto com a ler, escrever e contar, já que cabia também
prestígio. esse papel às próprias bandas.
No mundo hierarquizado das filarmónicas Destaca-se nos registos o concelho de Santa-
só a direção e eventualmente o mestre sabe- na, que reunia três filarmónicas: Banda Filar-
riam o valor exato do contrato. Os músicos mónica do Faial (1895), Banda Municipal de
não recebiam todos por igual, existindo a de- Santana (1926) e Banda Escola de N. S.ª de Fá-
signação de partes, meias partes e quartos de tima do Arco de São Jorge (1933). A atividade
parte, contemplando a antiguidade dos exe- da escola da banda variava conforme os mes-
cutantes, mas nunca revelando o montan- tres, o seu saber, a sua persistência e o seu ca-
te final pelo serviço musical. O fardamento risma. No entanto, há um traço geral quanto
era fornecido pela banda, assim como o ins- ao modo de operacionalizar o estudo e ensaio:
trumento, existindo casos em que o próprio duas vezes por semana para acompanhamen-
executante adquiria à banda, em prestações, tos e contra cantos, duas vezes para canto (so-
tanto o fardamento como o instrumento. listas) e duas vezes ensaio geral, significando,
A entrada para a filarmónica dava-se por volta em termos de dias de semana, uma ação que
dos 15 anos, aprendendo o jovem primeiro se desenrolava de segunda a sábado. As bandas
o solfejo e só mais à frente tomando contato filarmónicas foram também das primeiras so-
com o instrumento. ciedades recreativas que reuniram executantes
Nas bandas estudadas, verificou-se uma masculinos de nível socioeconómico e cultural
longa permanência dos instrumentistas. Até mais humilde.
25 de abril de 1974, era frequente os músi- A formação, mas sobretudo a continuação da
cos tocarem até aos 70 anos de idade, sendo a atividade, gerava muitos problemas e mesmo
obstáculos. O fardamento, os instrumentos, o
mestre de música e os músicos, bem como a
casa de ensaio, careciam de uma capacidade
organizativa, que passava pelas quotas dos só-
cios e beneméritos, de modo a suprir as des-
pesas contratadas. Isso mesmo se pode en-
tender quando em 1913 surgiu a Federação
das Filarmónicas, numa tentativa de apoio às
coletividades.
Desde 1850, com o aparecimento da primei-
ra banda civil, a Sociedade dos Artistas Madei-
Fig. 3 – Banda Nova de Câmara de Lobos, 11 de outubro de 1998
renses, se conjugava nos concertos públicos, na
(fotografia de Rui Camacho). Pç. da Constituição e na Pç. Académica, a já
B andas filarm ó nicas ¬ 241
Num leque mais alargado, ao longo das décs. época. A filarmónica apresentava-se com 40 fi-
de 50 e 70 do séc. xx, no que diz respeito a di- guras, exibindo também um novo fardamento.
reção e composição para banda, o destaque vai O nível do repertório apresentado foi tema de
para João Ornelas Abreu, Raul Serrão, João Fi- análise pela imprensa. O maestro foi elogiado
gueira Quintal e Abel Teixeira Mendes, sendo pelo rumo em que direcionava a coletividade
os últimos três músicos militares de carreira musical, colocando-a num novo ciclo e pata-
que receberam uma sólida formação e que a mar de qualidade.
souberam reverter nas bandas civis por onde A atividade das bandas centrava-se em três
passaram. grandes áreas: a escola de música, a festa tradi-
A presença das bandas nas festas tradicionais, cional madeirense (os arraiais) e os concertos
nos concertos públicos patrocinados pelo go- públicos. Nem todas as formações conseguiam
vernador ou Câmara colocou em evidência esta o pleno nessas linhas mestras. De entre o leque
subcultura musical, tornando-se já na primeira das filarmónicas madeirenses, a Banda Muni-
década do séc. xx um incontornável ativo cultu- cipal do Funchal, a Banda Distrital do Fun-
ral. Em 1909, num intercâmbio com as vizinhas chal, a Banda Municipal de Câmara de Lobos
canárias, deslocou-se à ilha de Tenerife a Filar- e a Banda Recreio Camponês são as mais ati-
mónica Artístico Madeirense (atual Banda Dis- vas, atendendo a um período continuado pelas
trital do Funchal) para uma série de concertos e décs. de 30, 40 e 50 do séc. xx. As bandas vi-
animações. Seria a primeira vez que uma banda viam, sem margem para dúvida, do dinheiro
madeirense saía em digressão, neste caso para ganho pelos serviços prestados nas principais
uma atuação na Festa de Maio de Santa Cruz de festas da ilha, entre elas as do Estreito da Calhe-
Tenerife. O acontecimento foi muito relatado ta, Monte, São Pedro da Ribeira Brava, Ponta
nos jornais da época e gerou um grande entu- Delgada, Loreto e Santo António, que chega-
siasmo por parte da população. Em 1913, outra vam em certos anos a solicitar 5 a 7 bandas
formação, a Banda dos Artistas Funchalenses de música. Estas festividades foram potencia-
(atual Banda Municipal do Funchal), teve igual das pelo forte contributo dos emigrantes que
privilégio na participação das mencionadas fes- se encontravam no Brasil, Curaçau, Venezuela
tas em Tenerife. Fica também registado para a e África do Sul, atingindo o pique da procura
história o facto de nessa digressão se ter toca- das formações musicais nas décs. de 50 e 60 do
do, pela primeira vez, o hino republicano portu- século passado.
guês no estrangeiro, o qual é atribuído até hoje Enquanto atividade interna, dirigida a só-
apenas a esta banda madeirense. cios e familiares, as filarmónicas madeirenses
A Banda dos Artistas Funchalenses seria a apostavam em bailes e festas por altura do Car-
protagonista durante décadas de um envolvi- naval e Santos Populares. Desenvolveram-se
mento e aprofundamento musical e artístico,
devido ao seu maestro e diretor musical, o ca-
pitão Gustavo Augusto Coelho, uma persona-
lidade que marcaria também o mundo filar-
mónico madeirense, enquanto referência por
causa da qualidade no desempenho do seu ofí-
cio como maestro, compositor e professor. Em
1927, ainda no posto de tenente do exército,
orientou a Banda dos Artistas Funchalenses na
célebre digressão aos Açores, vencendo a gran-
de dificuldade de entrosamento entre as ilhas
portuguesas. E, mais uma vez, pela originalida-
de de tal evento, esta filarmónica alcançou um Fig. 5 – Banda da Camacha, 16 de setembro de 1994
grande sucesso, testemunhado pelos jornais da (fotografia de Rui Camacho).
244 ¬ B andeiras
também grupos de teatro amador e coros que maioria civis, com cursos de instrumentos, e
entrelaçavam vários espetáculos anunciados na levarem métodos específicos para cada instru-
imprensa diária, alguns incluindo número de mento e naipe da banda, o que não acontecia
variedades, fado, teatro de revista e até proje- antes, pois tudo se concentrava no mestre (que
ção de filmes. Destacou-se neste tipo de festa, era geralmente um músico militar que ensina-
patrocinado em exclusivo pela banda, o carna- va todos os instrumentos).
val da Banda Distrital do Funchal. Este, realiza- Outra formação que marcou o mundo das
do ao estilo brasileiro, reunia toda a formação bandas filarmónicas madeirenses foi a Banda
numa troupe musical, com um enredo apropria- Orquestral de Câmara de Lobos – Os Infantes.
do. A festa começava com o percurso da Pon- Nesta, o instrumentário vulgar de uma banda
tinha até ao cais da cidade, como se a banda foi acrescentado de bateria, piano, baixo elétri-
viesse de fora. Todos os anos havia um ou dois co e guitarra elétrica. As suas atuações, ao con-
trajes diferentes, e a música, ao estilo brasilei- trário das outras bandas, requeriam um palco,
ro, era enviada para um dos membros da dire- já não um coreto. Também o serviço musical
ção, o Sr. Brazão, que, sendo brasileiro, tinha de acompanhamento à procissão era executa-
inúmeros contactos com escolas de samba ca- do por uma parte da banda, pressupondo dois
riocas. Essa ligação permitia tocar todo o tipo tipos de ensaio, um para espetáculo e outro
de repertório recente, uma grande vantagem que atendia ao tradicional arraial insular.
perante as congéneres que se limitavam a tocar O fenómeno das bandas ressurgiu nos anos
temas antigos. O Funchal aderia em massa ao 90, com a Banda Juvenil do Gabinete de Apoio
carnaval dos “guerrilhas”, o nome pelo qual à Expressão Musical e Dramática, relançando
eram conhecidos pela população. Para além nas camadas mais novas o gosto pelos instru-
do concerto no Jardim Municipal do Funchal, mentos de sopro. Um ponto alto destas forma-
uma série de bailes animavam a sede da banda, ções é a apresentação musical no Encontro de
acompanhados por uma formação musical Bandas que se realiza anualmente na Ribeira
criada no seu seio, que se designava Orques- Brava, no qual têm sido homenageados músi-
tra Brilhante. Os bailes iam pela noite dentro, cos e mestres que marcaram a história das filar-
até às quatro horas da manhã, com uma auto- mónicas madeirenses.
rização especial do governador civil da Madei-
Bibliog.: MORAIS, Manuel (coord.), A Madeira e a Música, Funchal, Empresa
ra. Seguia-se um périplo pelos hotéis da cidade Municipal Funchal 500 Anos, 2008; SARDINHA, Vítor, e CAMACHO, Rui, Rostos
para animação dos turistas. Os músicos atua- e Traços das Bandas Filarmónicas Madeirenses, Funchal, DRAC/Associação
Musical e Cultural Xarabanda, 2001.
vam de forma graciosa, sendo todo o dinheiro
arrecadado para o cofre da coletividade, que Vítor Sardinha
via assim uma nova forma de financiamento
para compra de instrumentos e fardamento.
Até 25 de abril de 1974, o movimento artísti-
Bandeiras
co das filarmónicas esteve em expansão, quer
pelo número de elementos, quer pelas solici- A bandeira é o símbolo visual definido classi-
tações para atuar. Por esta altura, também as camente como representativo de um Estado
bandas começaram a admitir executantes femi- soberano, um país ou uma região, um muni-
ninos, sendo a Banda Paroquial da Camacha a cípio ou uma freguesia, uma organização so-
primeira a fazê-lo com a admissão de seis ele- cial, civil, profissional ou religiosa, tal como de
mentos, em 1971. Esta banda difere de todas as toda e qualquer entidade constituída, como
outras, uma vez que nasceu dentro de uma pa- teria sido o caso das famílias dos capitães-dona-
róquia fomentada pelo seu mentor, o P.e Marti- tários insulares e das dos principais terratenen-
nho. Após a Revolução de Abril, muitas altera- tes, com capacidade para levantar forças milita-
ções se iriam dar, a mais importante das quais res e obrigação de o fazer. Desde a constituição
foi o facto de os mestres passarem a ser na sua do Império Romano que as legiões utilizavam
B andeiras ¬ 245
relação com as suas origens, i.e., à Ordem de de humanistas, de forma sistemática e deta-
Cristo. Estas insígnias seriam discutidas na ge- lhada, dando provas dos factos históricos, co-
neralidade a 26 de julho e aprovadas dois dias letando dados biográficos e fazendo estudos
depois; a respetiva regulamentação seria publi- filológicos sobre as edições de textos e das cor-
cada a 12 de setembro. respondências dos autores. Neste leque de tra-
balhos, está incluída Vita e Lettere di Amerigo Ves-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Avulsos, cxs. 2
e 4; Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombos 1 e 3; Ibid.,
pucci, Gentiluomo Fiorentino, Raccolte e Illustrate
Câmara Municipal do Funchal, Vereações, livs. 1550 e 1627; Ibid., Governo dall’Abate Angelo Maria Bandini (Vida e Cartas
Civil, cód. 418, Livro da Carga das Fortificações, 1724; AGS, Guerra y Marina, leg.
de Américo Vespúcio, Cavalheiro Florentino, Recolhi-
127; AHM, 47.ª sec., doc. 16.750; ANTT, Cabido da Sé do Funchal, Avulsos, mç. 4;
impressa: 30 Anos de Autonomia. 1976-2006, Funchal, Assembleia Legislativa das e Ilustradas pelo Abade Angelo Maria Bandini),
da Madeira, 2009; ALEXANDRE, Paulo Jorge Morais, A Heráldica do Exército na publicada em Florença, em 1745, na Stamperia
República Portuguesa no Século XX, Dissertação de Doutoramento em História
da Arte apresentada à Universidade de Coimbra, Coimbra, texto policopiado, all’Insegna di Apollo.
2009; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. iii, Funchal, Secretaria Regional Na obra Vita e Lettere di Amerigo Vespucci, teve
da Educação, 1991; COSTA, José Pereira da, Vereações da Câmara Municipal
do Funchal. Século XV, Funchal, CEHA, 1995; FRANÇA, Isabella de, Jornal de o mérito de dar atenção, pela primeira vez,
Uma Visita à Madeira e a Portugal. 1853-1854, anot. Cabral do Nascimento e ao humanista florentino Vespúcio, abrindo
João dos Santos Simões, Funchal, JGDAF, 1970; LANGHANS, F. P. de Almeida,
Heráldica, Ciência de Temas Vivos, 2 vols., Lisboa, Fundação Nacional para a um debate animado e acabando por estabele-
Alegria no Trabalho, 1966; MELO, Luís de Sousa (ed. lit.), Tombo 1.º do Registo cer Stanislao Canovai como uma fonte “muito
Geral da Câmara Municipal do Funchal, vols. 15-18, Funchal, JGDAF, 1972-1974;
NORONHA, Henrique Henriques de, Nobiliário Genealógico das Famílias Que
louvável”, na medida em que confirmou a au-
Passarão a Viver a Esta Ilha d’a Madeira depois do Seu Descobrimento, Que toria das cartas de Vespucci, disponibilizan-
Foi no Ano de 1420, São Paulo, Revista Genealógica Brasileira, 1948; SILVA,
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3
do aos estudiosos documentos fundamentais
vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998.
Rui Carita
Valeria Biagi
Baptista, Gregório
Fr. Gregório Baptista nasceu no Funchal em
data que, apesar de desconhecida, se pode si-
tuar nos finais do séc. xvi.
Alguns dados relativos ao seu percurso
podem depreender-se pela leitura do proces-
so de inquirição de apuramento da limpeza
de sangue apresentado, em 1623, ao Tribunal
do Santo Ofício, a cujo serviço desejava ser
Fig. 1 – Primeira Parte dos Sermoens das Domingas de Todo o
admitido.
Anno Quadruplicados (1629), de Fr. Gregório Baptista.
Segundo esse documento, Fr. Gregório Bap-
tista afirmava ser filho de Francisco Medina e
Isabel Dias. O seu avô paterno era Pedro Medi- de ter origem judaica, a qual, mesmo que pro-
na. Pelo lado materno, era neto de Pedro Dias vavelmente infundada, bastou para que a de-
e Simoa Lopes, naturais da freguesia da Sé. cisão dos inquisidores fosse desfavorável ao
A vida deste escritor madeirense foi marca- frade, determinando a anulação do processo.
da por um percurso algo itinerante. Mudou No fim da vida, homenageando a Ordem
de hábito religioso três vezes e nunca se fixou que o acolheu na juventude, Fr. Gregório Bap-
num local específico, como é atestado pelas tista voltou a vestir o hábito franciscano no Al-
testemunhas do processo do Santo Ofício, que garve, regressando ao ensino das Escrituras
indicam que Fr. Gregório Baptista foi pregador como lente no Convento de S.ta Maria de Jesus,
na Ponta de Sol, ilha da Madeira, tendo depois também conhecido por Convento de S. Fran-
viajado até às ilhas dos Açores e de Lançarote. cisco de Xabregas, onde ocupou o lugar de
Sabe-se que iniciou a vida religiosa, ainda examinador das três ordens militares. Diogo
muito jovem, na Ordem Seráfica, na província Barbosa Machado refere que o frade morreu
da Catalunha. Contudo, ao tempo do referi- na Catalunha depois de 1640.
do processo, Fr. Gregório Baptista professava Fr. Gregório Baptista é considerado um dos
na Ordem de S. Bento, na qual ingressou na autores madeirenses mais prolíferos do seu
Baía, no Brasil, nela tendo desempenhado as tempo, tendo as suas obras sido traduzidas
funções de professor. Ficou conhecido entre os para castelhano e italiano. Conhecem-se al-
seus pares como bom pregador, homem de le- gumas das que foram publicadas entre 1621
tras e mestre em teologia. e 1638: Annotationes in Caput XIII. Sacrosancti
A admissão de Fr. Gregório Baptista ao servi- Christi Evangelii secundùm Joannem (Conimbri-
ço do Santo Ofício foi impedida pela suspeita cae, apud Nicolaum Carvalho, 1621); Sermão
252 ¬ B arbosa , A nt ó nio J osé
Carlos Barradas
Fig. 2 – Completas da Vida de Christo... (1623), de Fr. Gregório
Baptista.
Senhor Barboza. We got a very full-toned little (fl. 1841-1875) é outro compositor machetis-
instrument in the Carreira [D [...] anda muito ta incluído nesta compilação, designadamente
ocupada em aprender a tocar machete com com três danças (“Waltz by C. D. de Vasconce-
o senhor [António José] Barbosa. Temos na llos”, “Marcha n.º 1 composta por C. D. de Vas-
[R. da] Carreira um pequeno instrumento de concellos” e “Clara polka”). Neste manuscrito,
sonoridade bem cheia]” (Id., Ibid., 230). Nos quase todos os títulos estão em inglês, embora
inícios da déc. de 20 do séc. xx, o seu nome é também haja alguns em português. Destes, uns
de novo mencionado: “Houve no Funchal al- têm tradução para inglês e outros, escritos ori-
guns professores de braguinha, entre eles [...] ginalmente em língua inglesa, apresentam-se
António José Barbosa” (SILVA e MENESES, traduzidos para português.
1984, I, 167). Também Carlos M. Santos o cita Será que estes Princípios, seguramente escri-
como “afamado compositor, cantor de igreja e tos com fins pedagógicos, foram usados por
professôr” de machete (SANTOS, 1938, 35). António José Barbosa para dar lições de ma-
Desde pelo menos a déc. de 30 do séc. xx chete a algumas das senhoras inglesas com
que temos notícia da existência de um método quem privou?
pedagógico para machete da autoria do nosso Outra questão sobre estes Principios para Ma-
machetista, intitulado Principios para Mache- chete prende-se com a datação da sua cópia.
te, Arranjado por A. J. Barboza. Nesta coletânea No frontispício, lê-se que foi escrito no “Fxal
manuscrita, depositada no arquivo da Associa- Madeira”, mas não foi acrescentada qualquer
ção Musical e Cultural Xarabanda, do Funchal, data. De acordo com os compositores aqui in-
foram copiadas 44 peças para o machete ma- cluídos, bem como com os tipos de letra em-
deirense a solo. O manuscrito começa com um pregues na sua feitura, a sua cópia deve ter tido
diagrama do braço do machete (quatro cor- lugar por volta de 1870.
das, afinadas, do grave para o agudo, ré3-sol3-si- É através do seu assento de óbito que ficamos
3
-ré4, divididas por 17 trastes), seguido de um a saber que António José Barbosa era, além de
grupo de exercícios técnicos (“Escala natural”, machetista, também “músico cantor da Sé Ca-
“Escala cromática”, “Salto de 3as”, “Salto de 3as tedral”, tendo sido “sepultado em jazigo no
unidas” e “Notas ligadas”). A partir destes exer- cemitério público das Angustias” (ABM, Paró-
cícios (onde foram anotadas dedilhações da quias, São Pedro, liv. 6835, 1899, fls. 3-3v.).
mão esquerda), inicia-se a cópia de um reper-
tório muito rico e variado para o machete ma- Bibliog.: manuscrita: ABM, Paróquias, Santa Luzia, liv. 157, 1822, fl. 36; Ibid.,
Paróquias, São Pedro, liv. 6835, 1899, fls. 3-3v.; impressa: BARBOSA, António
deirense oitocentista (MORAIS, 2011, 26-28). José, “Os princípios para machete”, Xarabanda, n.º 18, 2010, pp. 106-124;
Na sua maioria, foram grafadas as típicas dan- ESTEIREIRO, Paulo (coord.), 50 Histórias de Músicos na Madeira, Funchal,
Associação de Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística,
ças de salão oitocentistas (valsas, marchas, pol-
2008; MORAIS, Manuel, António José Barbosa (1822-1899). Princípios para
cas, quadrilhas, contradanças e galopes), mas Machete, texto não publicado; Id., “Achegas para a história da música na
também encontramos canções (inglesas, esco- Madeira (c. 1584-c. 1897). Os instrumentos populares de corda dedilhada
na Madeira”, in MORAIS, Manuel (coord.), A Madeira e a Música. Estudos (c.
cesas, alemãs e espanholas), hinos (religiosos 1508-c. 1974), Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008, pp. 20-97;
e patrióticos) e árias de ópera, todos arranja- Id., “O machete madeirense”, in ESTEIREIRO, Paulo (coord.), 5 Olhares sobre
o Património Musical Madeirense, Funchal, Associação Musical e Cultural
dos por António José Barbosa. Dos composi- Xarabanda/Associação dos Amigos do Gabinete Coordenador de Educação
tores escolhidos, destacamos os nomes de J. Artística, 2011, pp. 21-37; SANTOS, Carlos M., Tocares e Cantares da Ilha,
Funchal, ed. do Autor, 1938; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos
Strauss, V. Bellini, F. Kücken, D. J. dos Santos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984; TAYLOR,
(ESTEIREIRO, 2008, 1-3), entre outros. Como Ellen M., Madeira. Its Scenery, and how to See It. With Letters of a Year’s
Residence, and Lists of the Trees, Flowers, Ferns and Seaweeds, London, Edward
compositor, Barbosa está representado por
Stanford, 1882.
três danças: duas valsas (“Waltz amante esque-
cida by A. J. Barboza/The ladie that neglects Fontes áudio: O Machete Madeirense no Século XIX, CD-ROM+áudio, Funchal,
Gabinete Coordenador de Educação Artística, 2009; Sarau Musical no Funchal,
her lover” e “Waltz não te importes by A. J. Bar- CD-ROM+áudio, Funchal, Gabinete Coordenador de Educação Artística, 2011.
boza”) e uma polca (“Polka descahida by A. J.
Barboza”). Cândido Drumond de Vasconcelos Manuel Morais
254 ¬ B arbosa , D aniel M aria V ieira
Nacional, nos finais de 1945, que são também Barbosa, Pedro Correa
pontualmente visíveis na distrital do Funchal.
Assim, em vez de Juvenal de Araújo apresen- Cónego da Sé do Funchal e vigário-geral do
tou-se às urnas o irmão, Alberto Henriques mesmo bispado, nasceu na cidade do Funchal.
de Araújo (1893-1997), que, entre outros car- Era filho de José Barbosa, homem que vivia das
gos, era secretário permanente da Associação suas fazendas, um estanqueiro que serviu de
Comercial e diretor do Diário de Notícias, pro- feitor dos contratadores do tabaco na ilha da
priedade da empresa Blandy Brothers. Como Madeira, natural da freguesia de Santa Maria
número dois manteve-se Álvaro Favila Vieira Madalena, em Lisboa, e de sua mulher Maria
(1902-1963) e em substituição de Luís Vieira Correa, natural da freguesia da Madalena do
de Castro (1898-1954), demasiado envolvido Mar, na ilha da Madeira. Era neto paterno de
nos primórdios do Estado Novo, apresentou-se Duarte Barbosa, um fanqueiro, e de Maria Fer-
o madeirense Gabriel Maurício Teixeira (1897- reira, que haviam morado em Lisboa, na rua
1973), então governador de Macau, que seria dos Fanqueiros, artéria onde ficavam localiza-
depois nomeado governador-geral de Moçam- das as lojas que vendiam roupas provenientes
bique, casado com Maria João Kopke Vieira de de fora do Reino. Pela via materna, era neto de
Castro, prima do deputado substituído. Jacinto de Freitas da Silva, um homem nobre,
Daniel Barbosa cessou funções a 27 de feve- dos principais do Funchal, e de uma mulher
reiro de 1947, sendo nomeado para o substi- com quem aquele mantivera um relaciona-
tuir, a 8 de março seguinte, João Abel de Freitas. mento ilícito, chamada Domingas Rodrigues.
A nomeação de Daniel Barbosa para ministro Pese ser filha natural, a mãe de Pedro Correa
da Economia é, no entanto, logo de 4 de feve- Barbosa foi criada por Jacinto de Freitas da
reiro de 1947, função que desempenhou até Silva “de portas a dentro”, o que lhe permitiu
16 de outubro de 1948 e onde ficou conheci- adquirir o mesmo estatuto do progenitor, que
do como “o Daniel das farturas”, dado ter vivido acabou por a legitimar e dotar.
uma época de abrandamento do sistema do ra- Na déc. de 70 do séc. xvii, foi estudar para
cionamento da economia de guerra. Nesse ano a Univ. de Coimbra, onde, a 1 de outubro de
ascenderia ao lugar de catedrático na Univ. do 1673, efetuou uma matrícula em Instituta.
Porto, mas em 1952, transferia-se para o Insti- No ano seguinte, matriculou-se em Cânones.
tuto Superior Técnico da Univ. Técnica de Lis- Alcançou o bacharelato nessa área do saber
boa, que chefiou, como professor catedrático a 11 de julho de 1678, e a formatura a 16 de
de ensino da Economia. Manteria, entretanto, maio de 1679, tendo sido em ambos os atos
o lugar de deputado na Assembleia Nacional, aprovado nemine discrepante, classificação que
entre 1949 e 1957, voltando a ocupar uma pasta implicou a unanimidade por parte do júri, mas
ministerial, então a da Indústria e Energia, em que não esclarece sobre as suas capacidades in-
1974, no último elenco governativo de Marce- telectuais. Existe informação de que, na cida-
lo Caetano (1906-1980) e na sequência de go- de do Mondego, mas também na do Funchal,
vernador do Banco de Fomento Nacional, lugar serviu na Irmandade dos Terceiros de S. Fran-
que ocupava desde 1965. Faleceu em Cascais, cisco. A devoção ao dito patriarca levou-o, mais
em 12 de maio de 1986. tarde, a consagrar-lhe uma ermida que man-
dou edificar, dotar e ornar na sua quinta do
Bibliog.: BARBOSA, Daniel Maria Vieira, Na Pasta da Economia. Discursos,
Pico, freguesia de São Pedro, no Funchal, tem-
Declarações e Súmulas das Conferências com a Imprensa, Lisboa, Portugália,
1948; Junta Geral do Distrito do Funchal, 2 vols., Funchal, DRAC, 2016; ROSAS, plo que recebeu autorização para celebrar os
Fernando et al., Daniel Barbosa, Salazar e Caetano. Correspondência Política, ofícios divinos em dezembro de 1697.
Lisboa, Círculo de Leitores, 2002; digital: MALTEZ, José Adelino, “Barbosa, Daniel
Maria Vieira (1909-1986)”, Repertório Português de Ciência Política. República, D. Fr. José de Santa Maria Saldanha, bispo do
2004: http://maltez.info/respublica/topicos/aaletrab/barbosa,_daniel.htm Funchal (1690-1696), fê-lo cónego meio pre-
(acedido a 15 maio 2017).
bendado na Sé da sua Diocese, não obstante
Rui Carita recair sobre a sua família fama de cristã-novice.
256 ¬ B arbosa , P edro C orrea
Aliás, em 1647, o rumor já havia sido levantado mais tarde, um sobrinho homónimo e uma so-
em relação a seu pai, quando aquele pretende- brinha-neta tivessem conseguido habilitar-se
ra ocupar a escrivania da Câmara do Funchal, pelo Santo Ofício, o primeiro para obter a fa-
o que apenas conseguiu depois de recorrer ao miliatura e a segunda para celebrar matrimó-
Desembargo do Paço. O mesmo prelado dio- nio com um familiar do Tribunal da Fé.
cesano designou-o vigário-geral do bispado, o Pedro Correa Barbosa foi ainda professor
que, mais uma vez, motivou os seus inimigos a de Cânones e examinador sinodal do bispa-
publicitar a sua suposta impureza de sangue, do funchalense. A propósito, recorde-se que,
por intermédio de pasquins. É de notar que em 1695, o antístite daquela Diocese convocou
esse importante cargo, que já desempenha- um sínodo diocesano, no qual foram promul-
va em dezembro de 1694, lhe proporcionava gadas algumas constituições sobre a disciplina
largos proventos (segundo relatório ad limina eclesiástica, mas que, dada a sua transferência
de 1693, a renda em dinheiro do vigário-geral para a Diocese do Porto, acabaram por não ser
era de 37 ducados de câmara), o que natural- impressas.
mente intensificou o ódio dos seus contrários. Segundo Diogo Barbosa Machado, autor da
Para tentar colocar cobro à infâmia, recorreu famosa Biblioteca Lusitana, Pedro Correa Bar-
à Casa da Suplicação, correição do cível de bosa foi um pregador insigne. Sem prejuízo,
Lisboa, tendo conseguido obter justificação conhece-se apenas um sermão impresso da sua
de genere, sobre a limpeza do seu sangue, em autoria, pregado a 13 de junho de 1697, na
fevereiro de 1699. Como seria expetável, tais festa de S.to António, texto que foi dado à es-
rumores, ainda que falsos, persistiram. Porém, tampa em Lisboa, na oficina de Miguel Deslan-
esses rumores não impossibilitaram que, anos des, em 1699, com o título Sermaõ Panegyrico na
Solemnissima, & Anniversaria festa, que o Reveren-
do Cabido da Santa Sè do Funchal da Ilha da Ma-
deira, faz na tarde do dia oitavo do Corpo de Deos.
Faleceu a 3 de fevereiro de 1709, tendo sido
sepultado na capela maior da Sé do Funchal,
no jazigo dos padres capitulares. Fez testamen-
to, aprovado pelo tabelião Filipe Rodrigues
Cunha, em que instituiu por seu herdeiro uni-
versal António Correa Barbosa, seu irmão, dei-
xando-lhe os seus bens em vínculo de morgado
com obrigação de, anualmente, no dia em que
fosse celebrada a festividade de Nossa Senho-
ra do Amparo na Sé do Funchal, dotar uma
órfã com 20.000 réis e mandar dizer uma missa
por sua alma. Deixou ainda 30.000 réis aos re-
ligiosos de S. Francisco da cidade do Funchal;
20.000 réis à fábrica da Sé; e 4000 réis para os
pobres do hospital daquela urbe.
Bibliog.: manuscrita: ABM, Registos Paroquiais, Sé, Óbitos, liv. 9, fl. 128v.;
ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 12, n.º 13; Ibid., Tribunal do Santo
Ofício, Conselho Geral, Habilitações, mç. 10, doc. 202, Gaspar; mç. 31, doc.
563, Pedro; AUC, Atos e Graus, vol. 43, IV-1.ª D-1-1-43, fls. 48v. (1677-1678)
e 33 (1678-1679); Ibid., Matrículas, vol. 16, IV-1.ª D-1-3-24, fl. 107v.; vol. 17,
IV-1.ª D-1-3-25, fls. 17v., 24, 51v., 53; vol. 18, IV-1.ª D-1-3-26, fls. 82 e 104v.;
impressa: BARBOSA, Pedro Correa, Sermaõ Panegyrico na Solemnissima, &
Anniversaria Festa, Que o Reverendo Cabido da Santa Sè do Funchal da Ilha
Sermão Panegyrico na Solemnissima, & Anniversaria Festa… da Madeira, Faz na Tarde do Dia Oitavo do Corpo de Deos, Lisboa, Oficina de
(1699), de Pedro Correa Barbosa. Miguel Deslandes, 1699; MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana,
B arreto , A ngelino de S ousa ( I ) ¬ 257
Historica, Critica, e Chronologica, Coimbra, Atlântida Editora, 1966; NORONHA, de grande pobreza na capital, e estes dois aspe-
Henrique Henriques de, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição
da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1996; tos da sua vivência assumem-se como elemen-
SILVA, Fernando Augusto da, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, tos indispensáveis à sua definição enquanto
vol. 1, Funchal, Tip. O Jornal, 1946; Id., e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998;
pessoa: a vontade de estar próximo dos jovens,
SILVA, Inocêncio Francisco da, Dicionário Bibliográfico Português, Lisboa, mas também dos mais pobres, e estes dois inte-
INCM, 1973; TRINDADE, Ana Cristina M., e TEIXEIRA, Dulce Manuela Maia R.,
O Auditório Eclesiástico da Diocese do Funchal. Regimento e Espólio Documental
resses muito seus acompanhá-lo-iam até ao fim
do Século XVII, Funchal, Instituto Superior de Administração e Línguas, 2003. da sua vida.
Desvinculado da Companhia de Jesus em
Ricardo Pessa de Oliveira
1952, permanece em Lisboa, mas agora para
se dedicar a uma obra social, a Caridade, aí
Barreto, Angelino de Sousa (I) exercendo, durante 14 anos, o seu múnus
sacerdotal.
Angelino de Sousa Barreto foi um padre ma- Em 1964, retorna ao Funchal, onde retoma
deirense nascido a 1 de janeiro de 1905, no as suas funções docentes, desta vez no Liceu de
Porto Moniz, sendo filho de um casal compos- Jaime Moniz e na Escola do Magistério, estan-
to por João Fernandes de Sousa Barreto e Cris- do encarregado de ensinar latim, português e
tina Rosa Jardim, igualmente naturais daquela religião e moral.
freguesia. Depois de ter sido aluno do Semi- Sempre fiel aos seus ideais de apoio aos
nário do Funchal até ao 2.º ano do curso, dali desfavorecidos, fundou a Casa do Pobre, que
seguiu para Roma, onde se licenciou em Teo- chega a dispor de uma sede física, no canto do
logia, na Univ. Gregoriana, e se ordenou em Muro, a qual foi, posteriormente, transforma-
1930. Pretendendo continuar a estudar, ma- da em jardim de infância e entregue às Irmãs
triculou-se depois em Direito Canónico, mas a Missionárias de Maria.
morte do Cón. Manuel Gomes Jardim, profes- Em outubro de 1974, no contexto revolu-
sor no Seminário do Funchal, exigiu o seu re- cionário que então se vivia, foi convocado pelo
gresso à Madeira para ocupar o lugar entretan- bispo D. Francisco Santana para lançar o Mo-
to vago, pelo que não lhe foi possível concluir vimento Jovens Cristãos da Madeira, causa que
o novo curso que iniciara. abraçou com o entusiasmo de sempre, tendo
Em outubro de 1933, estreava-se como do- igualmente fundado o Molijó – Movimento
cente na Madeira proferindo a oração de sa- de Libertação dos Jovens, comprometido com
piência no Seminário da Encarnação que aca- a luta contra os consumos de álcool e drogas.
bava de ser devolvido à Diocese depois do Em simultâneo, era capelão da cadeia dos Vi-
“sequestro” do edifício pelas forças da Primei- veiros e do Lar dos Velhinhos, no Lazareto.
ra República. Igualmente indigitado arcipreste do Funchal,
Após alguns anos em que lecionou teologia não descurava o acompanhamento da juventu-
e latim no Seminário decidiu, em 1943, en- de e, pouco tempo antes de morrer, já doen-
trar na Companhia de Jesus, na qual militou te, ainda se deslocou a Taizé, na companhia de
até 1952. Nesse período, durante o qual viveu 300 jovens, assessorado pelo P.e Felício, como
em Lisboa, entregou-se também a várias ativi- assistente dos jovens cristãos. Em 1979, tornou-
dades, entre as quais se contam a de reitor da -se diretor do Centro Académico.
igreja dos Santos Doze Apóstolos e a de cola- Outra faceta da sua vida era a de escritor,
borador da Obra de Assistência à Juventude condição em que publicou os opúsculos Beato
Pobre, tendo ainda sido secretário da Socie- Nuno Álvares Pereira, e Vocação Missionária de
dade da Independência. A par destas ocupa- Portugal e Deus. Reflexões sobre a Vida, enquanto
ções, o P.e Barreto mantinha-se como docente, colaborava com o Jornal da Madeira.
tendo dado aulas de religião e moral nos liceus Haveria de falecer em 1985, em Joanesbur-
Passos Manuel e Gil Vicente. Muitas vezes, no go, onde se encontrava de visita a familiares,
fim das aulas, levava os alunos a visitar zonas acometido por um acidente vascular cerebral.
258 ¬ B arreto , A ngelino de S ousa ( I I )
Obras de Angelino de Sousa Barreto: Beato Nuno Álvares Pereira (s.d.); Irlanda, e depois em Salamanca, em Espanha,
Vocação Missionária de Portugal e Deus. Reflexões sobre a Vida (s.d.).
em 1964. Entretanto, foi ordenado sacerdo-
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX te pelo cardeal Cerejeira, na igreja do Colé-
e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; Jornal da Madeira, 29 out.
1985, p. 3. gio de S. João de Brito, a 1 de julho de 1962,
celebrando a missa nova na Madeira, em São
Cristina Trindade Roque (para onde fora residir em criança), a
5 de agosto deste mesmo ano. Foi professor
no Instituto Nun’Álvares, em 1964-65, no Co-
Barreto, Angelino de Sousa (II) légio Apostólico da Imaculada Conceição, em
Cernache, Coimbra, em 1965-1969, e, final-
Angelino de Sousa Barreto nasceu a 13 de no-
mente, na Faculdade de Filosofia da Univ. Ca-
vembro de 1931, no sítio da Ribeirinha, fregue-
tólica, em Braga, em 1969-1970. Neste último
sia e concelho do Porto Moniz, filho de Ma-
ano, passou a exercer o cargo de secretário da
nuel Fernandes de Sousa Barreto e de Luísa
Língua Portuguesa na Cúria geral, em Roma,
Fernandes de Sousa Barreto.
onde era também assistente espiritual dos es-
Fez o ensino secundário na Escola Apostólica
cuteiros. Estava, entretanto, a preparar a tese
de Macieira de Cambra, em Vale de Cambra,
de doutoramento sobre a filosofia marxista e,
de 1943 a 1948, iniciando o noviciado na Com-
segundo o diretor da Faculdade de Filosofia
panhia de Jesus a 7 de setembro daquele últi-
de Braga, Júlio Fragata, havia planos para vol-
mo ano, no Convento de S.ta Marinha da Costa,
tar a Portugal, para a lecionação nesta mesma
em Guimarães, e cursando Humanidades, de
faculdade.
1950 a 1953; seguiram-se os estudos filosóficos
Faleceu no Hospital Umberto I, em Ancona,
na Pontifícia Faculdade de Filosofia de Braga,
na sequência dum acidente de viação em Ca-
depois Faculdade de Filosofia da Univ. Católi-
podarco, arredores de Roma, a 25 de julho de
ca, de 1953 a 1956. De 1956 a 1959, foi prefeito
1978.
e professor no Instituto Nun’Álvares, também
L’Osservatore Romano, edição semanal em por-
designado de Colégio das Caldinhas, em Santo
tuguês, dedicou-lhe, a 30 de julho de 1978, um
Tirso. Iniciou o estudo da Teologia em Frank-
extenso artigo em que são relevados os seus
furt, na Alemanha, terminando em Dublin, na
dotes intelectuais e espirituais. É também de
salientar o testemunho do P.e Júlio Fragata, no
Jornal da Madeira, de 10 de setembro de 1978, à
página 8, onde pode ler-se: “Conheci o P.e An-
gelino há cerca de 25 anos. Já nessa altura me
impressionou a sua juventude. Na delicadeza
das suas maneiras, ocultava-se a generosidade
profunda; na serenidade da sua atuação, a fi-
neza da entrega ao Senhor; na limpidez do seu
olhar, o esplendor de Deus; e, na simplicida-
de do seu modo de ser, a fidelidade ao apelo
de Cristo: ‘se não vos tornardes como crianças,
não entrareis no reino dos Céus’. Não é fre-
quente encontrar jovens para quem tudo isto
seja realidade, embora passageira. Continuei
a lidar com o P.e Angelino, no decurso destes
anos, nalgumas épocas com assiduidade. Tive
o gosto de verificar sempre que estas primei-
P.e Angelino de Sousa Barreto (“Faleceu o P.e Dr. Angelino...”, JM,
ras impressões, longe de se desvanecerem,
26 jul. 1978, 3). se consolidavam, adquirindo nele um aspeto
B arreto , J er ó nimo ¬ 259
meio prebendados, cujo ordenado foi buscar que Fortunato de Almeida chega mesmo a as-
à extinção de quatro benefícios pré-existentes: sumir a sua pertença aos quadros dos inacianos
um em Machico, outro na Ribeira Brava, um quando acrescenta (num resumo que apresen-
terceiro em São Jorge e o último nas Achadas ta dos bispos do Funchal a seguir ao nome de
da Cruz (NORONHA, 1993, 97; SILVA, 1946, cada prelado) “da Companhia de Jesus”: erro
115). A escolha destas localidades para serem que é logo acompanhado de outro, em que o
privadas dos benefícios referidos prende-se, dá como irmão de D. João Nunes Barreto, do
também, com alterações demográficas sofri- qual era o bispo, como se viu, apenas sobrinho
das, as quais, por razões diversas, implicaram a (ALMEIDA, 1968, II, 698).
redução da população residente, o que veio a Um dos aspectos, porém, em que a posição
permitir o redimensionamento da rede de as- de D. Jerónimo Barreto se afastava da dos pa-
sistência eclesiástica. No quadro desses ajusta- dres da Companhia encontra-se na adesão que
mentos, foi ainda em tempo deste prelado que o bispo claramente manifestou ao partido de
se criaram duas novas paróquias, a saber: a dos Filipe II de Espanha na crise dinástica de 1580.
Canhas e a do Porto da Cruz, instituídas por al- De facto, a assunção do apoio do prelado às
vará régio, a primeira a 30 de janeiro de 1577 pretensões castelhanas ao trono de Portugal
e a segunda a 20 de setembro do mesmo ano. contrasta com a neutralidade com que a Com-
Como forma de compensar o acréscimo de tra- panhia procurava seguir o evoluir da crise, a
balho que as novas fronteiras da freguesia da qual se pode, eventualmente, atribuir ao facto
Sé acarretaram ao cabido, foram os ordenados de, na Ordem, militarem contingentes de por-
dos cónegos aumentados em 6000 reais para tugueses e espanhóis.
cada um e complementados com mais 5000 No arquipélago da Madeira, havia-se cons-
réis anuais para as missas de vigílias, advento e tituído um forte movimento de apoio às pre-
quaresma, conforme se vê em alvará de D. Se- tensões de D. António, prior do Crato, o qual
bastião de 26 de setembro de 1577. incorporava a presença de alguns eclesiásticos,
A forte ligação à Companhia de Jesus, que designadamente o deão, D. Francisco Henri-
desde muito cedo acompanhara a pessoa de ques, e isso implicava, por parte do bispo, uma
D. Jerónimo Barreto, continuou a fazer-se definição quanto à sua posição no seio do con-
sentir ao longo do seu episcopado madeiren- flito. Alinhando com a maior parte do clero
se. Com efeito, logo depois do desembarque madeirense, que se perfilava no apoio à causa
na Ilha, escolheu o prelado o colégio dos Je- castelhana, o bispo do Funchal “não disfarça-
suítas para sua primeira morada no Funchal, va” a sua preferência e essa atitude rapidamen-
enquanto se não arranjavam aposentos para a te redundou em seu proveito (SARMENTO,
sua instalação definitiva, e disso mesmo dava 1946, I, 164). De acordo com José Pedro Paiva,
conta para Roma o reitor do colégio, Manuel os serviços prodigalizados por prelados à causa
Sequeira, o qual, em novembro de 1574, se espanhola foram de grande relevância para o
regozijava com a chegada do novo prelado, destino de quem os prestou, chegando mesmo
considerando-o grande amigo da Companhia. a ser recompensados com promoções “estron-
Esse mesmo reitor, em nova carta enviada para dosas” (PAIVA, 2006, 375). Foi este o caso de
Roma a 28 de janeiro de 1575, afirmava que D. Jerónimo Barreto, que, após 12 anos à fren-
o bispo amava a Companhia com “estranhado te dos destinos da Diocese do Funchal, se viu al-
afeto”, visitava o colégio com grande frequên- candorado à posição de bispo do Algarve, cuja
cia, aconselhava-se com os seus padres e “tama- mitra foi ocupar em 1585, ou seja, no mesmo
nha parte lhes entregava de seu ofício que bem ano em que deixou vago o lugar na Madeira.
declarava querer ser e parecer todo nosso” Já a caminho da ocupação das novas funções,
(CARITA, 1991, II, 124). A identificação de teve D. Jerónimo Barreto ocasião de escrever
D. Jerónimo Barreto com o ideário da Com- ao cabido do Funchal uma carta onde se des-
panhia foi, de facto, de tão grande magnitude, pedia, manifestando o amor que o clero e a
264 ¬ B arreto , M anuel A gostinho
prelado para o arquipélago madeirense. Con- ausência de pastor” se tinha feito sentir “talvez
firmado em 29 de setembro de 1876, foi sagra- como em parte nenhuma”, (COELHO, 2015,
do bispo na basílica da Estrela, em Lisboa, a 4 2), a frequência com que publicava pastorais,
de fevereiro de 1877, e rapidamente se deslo- as visitas à Diocese, o empenho em diversos
cou para a Madeira, onde entrou solenemente projetos, contristavam, porém, uma parte da
a 25 do mesmo mês de fevereiro. população da Madeira. Em 1881, Frederico
Pouco tempo depois de chegar, a 2 de março, Pinto Coelho publicava um opúsculo designa-
tornava pública a primeira das muitas pastorais do O Sudario Negro ou Apontamentos para a Bio-
que produziu, na qual fazia a sua apresenta- graphia de D. Manuel Agostinho Barreto, Bispo do
ção aos diocesanos e deixava já algumas pistas Funchal, obra onde se compendiavam, contra o
para os valores que orientariam o seu episco- bispo, uma série de irregularidades cometidas,
pado, designadamente algum ultramontanis- ou por ele diretamente ou por uns missioná-
mo, expresso na exaltação que fazia da figura rios que tinha levado para pregar na Diocese
do Papa: “Veneração e amor, caríssimos filhos, e a quem se atribuíam os mais escuros desíg-
respeito e submissão à pessoa e à voz infalível nios. O bispo via-se acusado de fazer, ou man-
de Pedro, representada e escutada em Pio IX” dar fazer, comércio com catecismos, bentinhos
(BARRETO, 7 abr. 1877, 305). e outros itens semelhantes, de favorecer a dela-
Dois dias depois desta publicação, suicidou- ção do segredo da confissão, de obrigar o clero
se, no Funchal, um jovem artista, Coutinho a frequentar formação no Seminário, a fim de
Gorjão, cujo enterramento se fez no cemité- se inteirar dos pecados de cada pároco ou cura,
rio das Angústias com licença da Câmara Mu- e, até, de ter tido comportamentos menos pró-
nicipal, depois de o bispo ter proibido a sua prios na Diocese de Lamego dos quais teriam
sepultura em solo consagrado. Tendo o facto resultado filhos. Esta obra, bastante mal in-
chegado ao conhecimento do prelado, este de tencionada e claramente parcial, foi de pron-
imediato interditou o cemitério e, sem perda to contestada pelo Cón. António Aires Pache-
de tempo, assumiu, do púlpito da Sé, uma vi- co, que lhe respondeu com o Sudario Negro no
gorosa posição contra o senado funchalense, Banco dos Reos, bem como por um autor de La-
que lhe granjeou, com certeza, alguns inimi- mego que fez sair um folheto intitulado O Ex-
gos, designadamente entre os liberais. O estré- celentíssimo e Reverendíssimo Bispo do Funchal De-
pito desta polémica ouviu-se logo na imprensa sagravado pelos Lamecenses, com data de abril de
madeirense e não só, pois até no Porto, na se- 1882, no qual se reafirmava a honra do prelado
quência destes acontecimentos, surgiu um fo- e até dos próprios habitantes de Lamego.
lheto intitulado A Sepultura Eclesiástica e os Suici- Polémicas à parte, D. Manuel Agostinho Bar-
das, que pretendia responder à crítica posição reto foi prosseguindo, na Diocese, com a sua
localmente assumida pelo periódico A Lei. ação pastoral, da qual há que destacar o em-
A reforçar as palavras acesas com que comen- penho que pôs na reestruturação do Seminá-
tou o sucedido em sermão na Sé, D. Manuel rio do Funchal. Tendo chegado à Madeira em
Agostinho Barreto publicou uma admoestação fevereiro de 1877, logo em outubro do ano se-
pastoral, na qual verberava o suicídio e conde- guinte a sua intervenção no Seminário se tor-
nava, sem rebuços, todos os seus praticantes. nava visível através da reforma que empreen-
À semelhança da pastoral anterior e de várias deu, e que passou pela criação de um ciclo de
posteriores, também este texto teve honras de estudos preparatórios, pelo aumento do nú-
publicação na imprensa nacional, pois foi di- mero de alunos internos e pela remodelação
vulgado pelo periódico Bem Público – um jornal do espaço. Nesta obra, pôde D. Manuel Agos-
católico que se publicou em Lisboa entre 1857 tinho contar com a ajuda de um Alemão, o
e 1877 – a 14 de abril de 1877. padre Ernst Schmitz, a quem foram entregues,
A ação destemida do prelado, a forma como além da direção do estabelecimento, funções
pretendia reganhar um rebanho no qual “a docentes e de modernização curricular, a qual
266 ¬ B arreto , M anuel A gostinho
Geral, nomeada por decreto de 10 de feverei- volta a ser presidente, mas este seu mandato
ro de 1913. será interrompido pelo movimento revolucio-
A 1 de maio deste mesmo ano, é nomeado nário sidonista, que interrompe os trabalhos
para governador substituto, pelo governador de todos os organismos administrativos no
civil Ernesto Sá Cardoso, na mesma data em país. O retorno dos democráticos ao governo
que o Partido Democrático da Madeira inicia colocá-lo-á de novo na presidência da Junta
a sua atividade. Toma posse deste lugar a 10 Geral. Após as eleições administrativas de 25
deste mesmo mês e ocupá-lo-á até ao início do de maio de 1919 para o triénio de 1920-1922,
consulado de Pimenta de Castro, em janeiro volta a ser escolhido presidente entre os seus
de 1915. pares a 16 de junho daquele ano, na reunião
A nova ordem republicana será regulamenta- de constituição da mesma.
da, ao nível das administrações, pela lei n.º 88, A sua vida política mudará de rumo numa das
de 7 de agosto de 1913, e as primeiras eleições divisões entre republicanos. Em 30 de maio de
diretas para os corpos administrativos reali- 1920, encontra-se no grupo que constitui a co-
zam-se a 1 de novembro, mantendo-se no go- missão política do novo Partido Republicano
verno a maioria democrática. Os procuradores de Reconstituição Nacional, também chamado
eleitos à Junta Geral do Funchal serão alguns Reconstituinte, criado em reunião realizada na
dos vogais da anterior comissão administrativa, Quinta do Jasmineiro a 30 de maio de 1920.
entre os quais se vai integrar, a partir de 1 de No exercício da sua cidadania, por diversas
maio de 1914, Remígio Barreto, que vem a ser vezes representa e preside na freguesia e con-
o segundo presidente deste organismo, logo celho de Santa Cruz a assembleias eleitorais
após o período conturbado do consulado de primárias do distrito.
Pimenta de Castro. Em 2 de janeiro de 1963, à beira de fazer
Nas eleições gerais para deputados e senado- os 94 anos, falece na sua residência à calçada
res do Congresso da República de 13 de junho de São Gil, freguesia de Santa Cruz, saindo da
de 1915, é eleito senador pelo Partido De- capela privativa do solar para o cemitério do
mocrático, juntamente com o general Daniel mesmo concelho. O Diário de Notícias da Ma-
Telo Simões Soares e Vasco Gonçalves Mar- deira e O Jornal lembram-no como “madeiren-
ques. Nesta altura, deixa a direção política de se entusiasta, possuidor de um forte sentimen-
O Liberal. to regionalista”, muito dedicado aos problemas
As questões político-partidárias agravam-se da terra, à qual presta “valiosos serviços” e,
no final de 1915 e início de 1916, sobretudo com maior interesse e muito carinho, aos pro-
a partir de 9 de março, com a entrada de Por- blemas do concelho onde nasceu (DN, 3 jan.
tugal na Primeira Guerra Mundial. A instabili- 1963, 1 e 6; OJ, 3 jan. 1963, 1 e 8).
dade instala-se na administração pública por
Bibliog.: manuscrita: ABM, Associação Humanitária dos Bombeiros
todo o país, refletindo-se também na Junta Voluntários do Funchal, liv. 31, fl. 38; Ibid., Governo Civil do Funchal, Alvarás,
Geral, onde muitas sessões não se realizam por liv. 82; Ibid., Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, Secretaria, Atas
da Junta Geral, livs. 193 (1902-1914) e 2246 (1914-1919); Ibid., Junta Geral
falta de quorum. Apesar destes factos, este de-
do Distrito Autónomo do Funchal, Secretaria, Atas das Sessões da Comissão
mocrático manter-se-á no cargo, que sofre vá- Executiva/Administrativa, livs. 2255-2261; Ibid., Registos Paroquiais, Santa
rias interrupções. As eleições administrativas Cruz, Batismos, liv. 2496-A; Ibid., Registos Paroquiais, Sé, Casamentos, liv. 6445-
A; impressa: Anuário da Universidade de Coimbra (anos letivos 1891/1892
marcadas para novembro de 1916, destinadas à a 1899/1900), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892-1900; CLODE, Luiz
constituição dos novos corpos administrativos Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; Collecção Official de Legislação Portuguesa. Anno
para o triénio de 1917-1919, são adiadas sem de 1906, Lisboa, Imprensa Nacional, 1907; “A eleição de domingo”, Correio da
qualquer previsão de agendamento, em conse- Tarde, 19 out. 1908, p. 1; “As eleições”, Diário de Notícias, Funchal, 13 jun. 1915,
p. 2; GOMES, Fátima Freitas, e VERÍSSIMO, Nelson, A Madeira e o Sidonismo,
quência de Portugal ter entrado na guerra, e Funchal, DRAC, 1983; “Junta Geral do Distrito do Funchal/Edital”, Diário de
só se realizam a 18 de novembro de 1917, para Notícias, Funchal, 28 dez. 1916, p. 3; “Junta Geral do Funchal”, Diário de Notícias,
Funchal, 1 maio 1913, p. 1; “O liberal”, Diário de Notícias, Funchal, 1 maio 1913,
o triénio de 1918-1920. Remígio Barreto está p. 2; “O liberal”, Diário de Notícias, Funchal, 3 maio 1913, p. 2; MARTINS, Teresa
entre os procuradores eleitos à Junta Geral e Florença, O Movimento Republicano na Madeira. 1882-1913, Funchal, CEHA,
270 ¬ B arroco
Barroco
O barroco é considerado o estilo corresponden-
te ao Absolutismo e à Contrarreforma, muitas
vezes identificado com a ascensão da Compa-
nhia de Jesus, distinguindo-se por um esplen-
dor exuberante, um certo exagero da forma e
um quase “horror ao vazio”, sendo tudo meto-
dicamente preenchido. Embora o barroco seja
uma continuação natural do anterior Renas-
cimento, compartilhando os movimentos um
grande interesse pela arte da Antiguidade Clás-
sica, as interpretações são diferentes e ainda
Fig. 1 – Nossa Senhora dos Anjos, oficina portuguesa ou brasilei-
mais os resultados finais. Enquanto no Renas- ra, c. 1740, proveniente do antigo recolhimento do Carmo (Mu-
cimento o tratamento das temáticas se pauta seu de Arte Sacra do Funchal).
pela moderação, pela economia formal, pela
austeridade, pelo equilíbrio e pela harmonia, e.g., mas quase nada chegou à contemporanei-
o tratamento barroco de temas idênticos mos- dade, perdendo-se continuamente no espaço
tra um novo dinamismo: contrastes mais for- de uma a duas gerações. Nesse quadro, foi so-
tes, maior dramaticidade, exuberância e realis- mente na área da devoção religiosa que algo se
mo, com uma tendência pelo decorativo, além preservou, tendo sido, aliás, e de uma forma
de manifestar uma tensão entre o gosto pela geral, a Igreja a única instituição que soube,
materialidade opulenta e as demandas de uma quis ou conseguiu preservar verdadeiramente
vida espiritual. o seu património.
O movimento barroco abarcou toda a socie- O período barroco corresponde a todo um
dade e as formas de comunicação, como a poe- novo tipo de vida e de espiritualidade desen-
sia e o teatro, tendo ganho um muito especial volvido pela Contrarreforma católica que não
lugar junto das classes dirigentes nas formas de pode ser entendido se não for enquadrado
vestir, nas joias, no mobiliário, etc., mas muito numa nova forma de entender o mundo, o
difícil de medir e perspetivar numa sociedade homem e Deus. Ao longo do séc. xvii, a Igre-
de grande mobilidade como sempre foi a ma- ja conquistou uma presença quase absoluta no
deirense. Desta época, ficaram alguns registos quotidiano, desde o nascimento até muito para
de inventário das principais famílias, com ex- além da morte, devido à complexa criação de
cecionais quantidades de mobiliário de diversa toda uma sequência de estados para o alcance
proveniência, desde a Europa até ao Oriente, da vida eterna. A Igreja acompanha, assim, o
de tapeçarias, de peças de aparato e de joias, homem no atestamento da sua existência legal
B arroco ¬ 271
Fig. 3 – Interior da igreja de São Jorge, 1751 (fotografia de Bernardes Franco, 2016).
pintura, escultura, azulejos, pratas e têxteis. de Noronha (1667-1730), uma das poucas per-
Tal é-nos confirmado nos documentos da sonalidades de que, até ao séc. xviii, conhe-
época, embora muitos desses aspetos não te- cemos um retrato, enumeraria em várias pági-
nham chegado aos nossos dias, especialmente nas a “Memória dos Santos que são protetores
no que se refere à quantidade de cortinados, desta Diocese; Relíquias, Santuários e Imagens
sedas, tapetes e tapeçarias, dada a reorganiza- milagrosas dela” nas suas Memórias Seculares e
ção e a depuração dos espaços ocorridas de- Eclesiásticas (1722), encomendada pela Real
pois nos sécs. xix e xx. Academia da História.
Assim, não foi por acaso que o bispo D. frei A dinamização desta nova maneira de enten-
Lourenço de Távora (1566-1629) pretendeu, der o espaço e de cativar a atenção do espeta-
na sua entrada solene na sé do Funchal, fazê- dor deve ter entrado na Madeira pela mão da
-lo a cavalo e sob pálio, o que para um frade Companhia de Jesus, que determinou, a par-
capuchinho é hoje, no mínimo, insólito, tendo tir dos seus principais colégios, a constituição
sido contrariado pelo gabinete régio filipino. de uma arquitetura quase própria, tal como
Este prelado desenvolveu depois um intenso de oficinas de pintura, de escultura e de talha
programa em prol da incentivação das celebra- que fizeram depois circular desenhos do que
ções das festas dos santos e proclamou como ali se fazia e gravuras dos temas a utilizar. Pe-
milagroso o caso da visão de uma das filhas de rante o erguer da monumental igreja do colé-
Zarco, à frente da qual a imagem de Cristo do gio do Funchal, cuja primeira pedra foi lança-
Convento de S. Francisco do Funchal despren- da em 1629 e que, por cerca de 1631, já teria as
dera um dos braços da cruz. Neste novo quadro, paredes levantadas, sendo da década seguinte
nos inícios do séc. xviii, Henrique Henriques a montagem dos enormes retábulos de talha
B arroco ¬ 273
dourada, o cabido da sé não poderia ter ficado talha vazada de trabalho mais minucioso, den-
parado. tro do gosto rococó. A mesma equipa proce-
Terá sido, assim, nessa sequência que os res- deu, entretanto, ao trabalho de reformulação
ponsáveis da sé do Funchal chamaram o imagi- da capela do Santíssimo da sé, depois executa-
nário Manuel Pereira (c. 1604-1679), responsá- do por uma ampla equipa de escultores e enta-
vel pelos trabalhos de talha da igreja do Colégio lhadores. Nos meados do século, proceder-se-
dos Jesuítas. Os trabalhos do novo camarim da -ia, ainda, à redefinição do conjunto de altares
sé do Funchal foram entregues àquela oficina, da nova igreja matriz de S. Jorge, porventura
decorrendo entre 1648 e 1652, seguindo-se,
entre 1660 e 1670, o coroamento dos arcos das
capelas colaterais, embora talvez sem o contri-
buto do mestre principal. A mesma oficina foi,
em 1677, responsável pelo retábulo do Bom
Jesus, o qual ainda foi reformulado pelo seu
sobrinho Manuel Pereira de Almeida (c. 1630-
c. 1710), que, em 1697, seria também respon-
sável pelo novo retábulo de S.to António. A sé
do Funchal entrava, então, no tratamento glo-
bal das suas máquinas retabulares, massiva e
predominantemente douradas, fazendo a tran-
sição do maneirismo para o barroco, apelida-
do na Ilha de “barroco nacional”, na procura
de “uma eficácia da imagem” anunciada na se-
quência do Concílio de Trento, em meados do
séc. xvi, e executada no séc. xvii.
Num curto espaço de tempo, o exemplo era
seguido pelas restantes igrejas matrizes, que
reformulam totalmente os espaços das suas ca-
pelas-mores, a que se seguem os das naves e
demais capelas paroquiais e privadas. O exem-
plo da constituição de obras totais e dinâmi-
cas, como o conjunto da igreja do colégio do
Funchal, seria seguido por outras instituições,
como o recolhimento do Carmo onde, por
volta de 1686, se levanta o mais monumental
conjunto tumular da região, encomendado em
Lisboa à oficina de Luís Nunes Tinoco (1642-
1719), seguindo-se, pouco depois, a monta-
gem do magistral retábulo e a encomenda, em
Lisboa, à oficina de Bento Coelho da Silveira
(1617-1708) da tela da Imaculada.
O formulário barroco dominaria, ainda, a
matriz de S. Pedro do Funchal com a altera-
ção da capela do Santíssimo por volta de 1660,
que seria novamente modificada no século se-
guinte, datando da déc. de 40 a encomenda do
novo retábulo-mor, já anunciando o final do Fig. 4 – Capela do Santíssimo da Sé, oficina de Agostinho José
período barroco através da utilização de uma Marques, 1769 a 1772 (fotografia de Bernardes Franco, 2016).
274 ¬ B arroco
Fig. 5 – Sacristia da igreja do Colégio do Funchal, reforma de c. 1720 (fotografia de Bernardes Franco, 2017).
o mais homogéneo trabalho da transição do na sacristia da sé, mas nunca chegou a ser aca-
apogeu do barroco para o rococó, dentro do bado, tal como aconteceu um pouco por toda
espírito da “obra total”, no qual a talha do al- a Ilha, salvaguardando, claro, as capacidades
tar-mor se prolonga pelas paredes da capela, económicas das paróquias, que dificilmente
servindo de moldura às pinturas, e o teto se poderiam ombrear com a poderosa Compa-
apresenta totalmente pintado. nhia de Jesus ou com a sé do Funchal.
Seria, no entanto, nas sacristias, especial-
mente na da igreja do Colégio, um dos conjun- Bibliog.: CARITA, Rui, História da Madeira, vols. iii-v, Funchal, Secretaria
Regional da Educação, 1993-1999; Id., “A nobreza da Madeira nos inícios do
tos mais conseguidos da região, que o sentido séc. xviii. O inventário de bens do capitão-cabo Pedro de Faria e Abreu”,
de “obra total” assumiria a sua máxima expres- Islenha, n.º 31, jul.-dez. 2002, pp. 46-54; Id., Colégio dos Jesuítas do Funchal,
Funchal, Associação Académica da Universidade da Madeira, 2013; Id.,
são de luxo e de ostentação: desde o maravi-
A Igreja Nova de São Jorge, Ilha da Madeira, Funchal, DRAC/Associação dos
lhoso armário paramenteiro de alçado enta- Amigos de S. Jorge, 2013; FARIA, Higino, “A função das artes decorativas na
lhado e preenchido com os principais milagres construção do barroco da capela da Lombada dos Esmeraldos. Esplendor e
fé”, Islenha, n.º 54, jan.-jun. 2014, pp. 55-88; FREITAS, Eugénio de Andrea da
dos santos da companhia, até aos armários de Cunha e, “Inventário de uma fidalga madeirense no século xviii”, Das Artes e da
parede, com molduras de mármores embuti- História da Madeira, vol. 6, 1939, pp. 71-73; LADEIRA, Paulo Jesus, A Talha e a
Pintura Rococó no Arquipélago da Madeira (1760-1820), Funchal, CEHA, 2009;
das, tudo ainda emoldurado por azulejos, e, LAMEIRA, Francisco et al., Retábulos na Diocese do Funchal, Faro, Universidade
por fim, o conjunto coberto por teto pintado do Algarve, 2014; RODRIGUES, Rita, “Manuel Pereira, entalhador e imaginário
madeirense do século xvii, e os circuitos de divulgação de modelos para as
com “brutescos” a envolverem o símbolo do periferias”, Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, n.º 2, 2010,
orago. O modelo foi, pouco depois, copiado pp. 229-325; Id., A Pintura Proto-Barroca e Barroca no Arquipélago da Madeira,
B arros , J o ã o H igino de ¬ 275
entre 1646 e 1750. A Eficácia da Imagem, 2 vols., Dissertação de Doutoramento Santos, Abel Rocha Gouveia e Domingos Reis,
em Estudos Interculturais apresentada à Universidade da Madeira, Funchal,
texto policopiado, 2012; SANTA CLARA, Isabel, Das Coisas Visíveis às Invisíveis. um romance intitulado Uma Tragédia na Ma-
Contributos para o Estudo da Pintura Maneirista na Ilha da Madeira (1540-1620), deira, editado no Funchal em 1910. A poesia
2 vols., Dissertação de Doutoramento em História da Arte da Época Moderna
apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2004;
também o cativava, como se pode constatar
SERRÃO, Vítor, “O barroco”, in História da Arte em Portugal, vol. iv, Lisboa, pelo facto de Luís Marino o ter incluído no
Presença, 2003; TOMÁS, Manuel, Insulana, Amberes, Ioam Mevrsio Impressor,
1635; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século
conjunto de poetas madeirenses descritos na
XVII, Funchal, DRAC, 2000. Musa Insular, com uma poesia intitulada “Duas
Marias”.
Rui Carita
Dedicou-se, de igual modo, ao jornalismo
madeirense, fazendo parte, ainda jovem, da re-
Barros, João Higino de dação do Diário Popular e tendo dirigido, pos-
teriormente, o Comércio do Funchal. Colaborou
Foi um funcionário público, comerciante, jor- no Jornal da Madeira e no Diário de Notícias, es-
nalista e escritor madeirense, nascido na fre- crevendo ainda para o Almanaque Ilustrado do
guesia do Estreito de Câmara de Lobos a 11 de Diário da Madeira (1913) e para o Almanaque da
janeiro de 1883, filho de Isabel Augusta de Bar- Madeira (1915).
ros e de Francisco António de Barros, sendo le- João Higino de Barros assumiu uma posi-
gitimado pelo matrimónio de ambos, em 20 de ção de relevo como presidente da Direção da
outubro de 1908. João Higino de Barros casou- Banda Municipal do Funchal, também conhe-
se por duas vezes, a primeira em 9 de fevereiro cida por Banda dos Artistas Funchalenses, du-
de 1901 com Maria Augusta de Gouveia, nas- rante 10 anos. Nesse período, trabalhou com
cendo deste casamento um filho, e a segunda probidade e zelo para que esta banda atingisse
vez, já viúvo, com Rosa Brígida de Vasconcelos, elevados patamares de qualidade, o que conse-
em São Pedro, a 7 de Setembro de 1907, união guiu graças à preciosa colaboração do talento-
da qual nasceram duas filhas. so maestro capitão Gustavo Coelho, tornando
Sobre a sua infância pouco se sabe, embora a a Banda Municipal do Funchal uma das me-
notícia da sua morte refira que João Higino de lhores a nível nacional. Partiu de sua iniciati-
Barros “veio muito novo para o Funchal” (DN, va um dos pontos altos de consagração dessa
12 maio 1917, 2). Ainda que não se saiba tam- banda, que, pela primeira vez da sua história,
bém onde estudou, temos conhecimento, con- saiu da Ilha em digressão: a 10 de outubro de
tudo, de que principiou a carreira profissional 1927, a Banda partiu no Lima rumo aos Aço-
como fiscal dos produtos agrícolas, tendo tran- res, acompanhada por um grupo de excursio-
sitado para a empresa comercial Giorgi & C.ª, nistas, tendo regressado à ilha da Madeira a 23
onde demonstrou probidade durante as suas de outubro de 1927, momento assinalado por
funções e ocupou um papel de relevo. Sabe-se uma receção apoteótica no cais do Funchal.
que, aquando da dissolução da Companha de Por ocasião desta visita aos Açores, João Higi-
Tabacos da Madeira, possuía ações comerciais no de Barros compôs uma canção intitulada
nesta empresa. À data da sua morte, João Higi- “Homenagem a São Miguel”, com música de
no de Barros desempenhava as funções de ge- Gustavo Coelho.
rente técnico da Sociedade Mercantil Insular Desta viagem e do sucesso artístico da banda,
Lda. João Higino de Barros dirá, quando entrevis-
Durante o curto governo de Sidónio Pais, de tado pelo Diário de Notícias, que “O sucesso ar-
8 de dezembro de 1917 a 14 de dezembro de tístico excedeu toda a nossa expetativa. Tanto
1918, João Higino de Barros fez parte da co- o grupo dramático como a banda, agradaram
missão administrativa da Câmara Municipal do absolutamente e foram delirantemente aplau-
Funchal. didos” (DN, 25 out. 1927, 2).
Cultivou o gosto pelas letras, escrevendo, em Em 1930, abandonou o cargo que ocupa-
colaboração com Albino de Menezes, Baptista va na Banda Municipal do Funchal de forma
276 ¬ B arrow , J ohn
alemães. As mulheres do campo, na ceifa e fundadores, com sir John Franklin (1786-1847)
no mato, vestiam apenas camisa, saia e barre- e Francis Beaufort (1774-1857), da Royal Geo-
te com um lenço atado à cabeça, enquanto as graphical Society. Recebeu, em 1821, o grau
senhoras e donzelas invariavelmente trajavam académico da Univ. de Edimburgo e, em 1835,
de preto, com um capucho cobrindo a cabe- foi agraciado com o título de barão, por indi-
ça. Contrariamente aos costumes dos outros cação do ministro sir Robert Peel (1788-1850).
países, onde os pedintes se apresentavam com Nos últimos anos da sua vida, dedicou-se a es-
“aparência que imprime compaixão, aqui os crever as suas memórias, somente publicadas
pobres usavam o seu melhor fato na missão de em 2009, e a fomentar as viagens científicas no
mendigar, tendo observado um de cabeleira e Ártico, ação que iniciara como secretário per-
espadim” (Id., Ibid., 133). manente do Almirantado, tendo ficado vários
A descrição da ilha da Madeira não é assim acidentes geográficos dessa área com o seu
especialmente importante, embora apresente nome. Morreu em 1848.
uma pequena ilustração do porto do Funchal;
Obras de John Barrow: Travels in China. Containing Descriptions, Observations,
mas inclui uma litografia inédita da capela dos and Comparisons, Made and Collected in the Course of a Short Residence at the
ossos do Convento de S. Francisco do Funchal, Imperial Palace of Yuen-Min-Yuen, and on a Subsequent Journey through the
Country from Pekin to Canton (1804); A Voyage to Cochinchina in the Years 1792
depois copiada noutras publicações.
and 1793, Containing a General View of the Valuable Productions and the Political
A viagem de John Barrow integrou-se na Importance of This Flourishing Kingdom (1806); An Auto-Biographical Memoir of
época de afirmação do domínio da navegação Sir John Barrow, Bart, Late of the Admiralty, Including Reflections, Observations,
and Reminiscences at Home and abroad, from Early Life to Advanced Age (2009).
atlântica, que levaria ao grande conflito das
Guerras Napoleónicas. Como secretário per- Bibliog.: BARROW, John, A Voyage to Cochinchina in the Years 1792 and
1793, Containing a General View of the Valuable Productions and the Political
manente do Almirantado britânico, Barrow Importance of This Flourishing Kingdom, London, T. Cadell and W. Davies in
ficou com a fama de ter sido o proponente da the Strand, 1806; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. vii, Funchal, Secretaria
Regional da Educação/Universidade da Madeira, 2008; SARMENTO, Alberto
ilha de Santa Helena como local de exílio para Artur, Ensaios Históricos da Minha Terra. Ilha da Madeira, 2.ª ed., 3 vols., Funchal,
Napoleão Bonaparte (1769-1821) após a der- JGDAF, 1952; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; STAUNTON, George
rota na batalha Waterloo, em 1815. Foi mem- Leonard, An Authentic Account of an Embassy from the King of Great Britain to
bro do Raleigh Club, fundado por sir Joseph the Emperor of China Including Cursory Observations Made, and Information
Obtained in Travelling through That Anciente Empire; together with a Relation of
Banks (1743-1820) em 1788 e, depois, um dos the Voyage Undertaken on the Occasion of His Majesty’s Ship The Lion, and the
Ship Hndostan, in the East India Company’s Service, to the Yellow Sea and Gulf
of Pekin, as well as of Their Return to Europe; Taken chiefly from the Papers of His
Excellency the Earl of Macartney, Sir Erasmus Gower, and of Other Gentlemen in
the Several Departments of the Embassy, 3 vols., London, W. Bulmer & Co. for
G. Nicol, 1797; WILHEM, Eberhard Axel, “Os madeirenses na visão de alguns
germânicos. O seu aspecto e carácter e a sua maneira de viver (I) (1825 a 1860)”,
Xarabanda, n.º 7, 1995, pp. 2-13.
Rui Carita
Batalhão de Voluntários
A formação dos Batalhões de Voluntários en-
quadra-se na complexa situação de confron-
to entre liberais e absolutistas no contexto da
guerra civil portuguesa de 1828-1834. A pri-
meira força foi determinada pelo Gov. José
Lúcio Travassos Valdês (1787-1862), futuro
conde do Bonfim, por portaria de 28 de junho
de 1828, com denominação de Batalhão de Vo-
luntários Reais de D. Pedro IV, composto por
Fig. 3 – Capela dos ossos do Convento de S. Francisco do Funchal,
litografia de T. Cadell e W. Davies (BARROW, 1806, 37). seis companhias de 100 praças cada e dotado
B atalh ã o de V oluntários ¬ 279
corregedor para a comarca e demais magis- Machico e, avançando para o Funchal, bene-
trados de uma alçada de Justiça, munidos de ficiaram do rebentamento do paiol do forte
poderes discricionários, como havia aconteci- do Porto Novo, onde se haviam concentrado
do em 1823. O Gov. Travassos Valdês enviou a os principais meios de defesa, que lhes abriu
bordo um emissário comunicando o estado de o caminho para a cidade, não tendo havido
espírito na ilha, que se oporia a qualquer de- qualquer outra força que especialmente as
sembarque e intimando a fragata à saída ime- enfrentasse.
diata das águas da Madeira. De imediato, o go- No regime seguinte, absolutista, determi-
vernador enviou ordens a todas as tropas de nou o Gov. José Maria Monteiro, a 6 de se-
1.ª e 2.ª linhas, assim como ao sargento-mor do tembro de 1828, o alistamento para um corpo
Funchal e aos comandantes dos fortes e redu- de Voluntários Realistas Urbanos da Madeira,
tos da linha costeira, para fazerem face à situa- com um major comandante e quatro compa-
ção. No mês seguinte, chegava nova esquadra nhias, devendo cada uma ter 1 tenente, 1 al-
“realista” e o governador preparava a defesa feres, 10 sargentos, 1 furriel, 2 cabos, 2 pra-
da ilha, essencialmente com base no Batalhão ças anspeçadas e 52 soldados. Com data de 1
de Voluntários, que, segundo o governador do de setembro, já tinha nomeado o tenente de
Porto Santo, o Brig. João José da Cunha Fidié Artilharia Policarpo António Teives para co-
(c. 1790-1856), teria 600 homens. As forças do mandar os Voluntários, que seria graduado
Rei D. Miguel haveriam de desembarcar em em major, “atendendo à reconhecida honra
e fidelidade” do mesmo (ABM, Governo Civil,
798, fl. 35v.). Segundo os ofícios do seguinte
governador, D. Álvaro da Costa de Sousa de
Macedo (1789-1835), para o conde de Basto,
de 30 de agosto e 9 de setembro de 1831, esse
corpo só chegara a ter uma companhia, em-
bora para o mesmo o governador reclamasse
os privilégios e regalias concedidos aos volun-
tários do reino pelo decreto de 26 de setem-
bro de 1828. À data, era capitão e comandan-
te dos Realistas Urbanos Pedro Agostinho
Teixeira de Vasconcelos, que a 8 de novembro
de 1831 requeria para si e para os seus oficiais
subalternos a honra de usar “a medalha de
ouro com a Efígie Real” de D. Miguel (AHU,
Madeira e Porto Santo, docs. 11955 e 11956).
Com a chegada das forças constitucionais de
D. Pedro IV, em julho de 1834, não se registou
sequer qualquer movimento deste corpo de
voluntários realistas urbanos.
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivos Particulares; Ibid., Câmara Municipal
do Funchal, Registo Geral, tombo 6; Ibid., Governo Civil, livs. 178, 192 e 798;
AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 10.723-10.724, 10.787-10.788, 11.955-11.956
e 12.817; impressa: CARITA, Rui, Paulo Dias de Almeida, Tenente Coronel do
Real Corpo de Engenheiros, e a Sua Descrição da Ilha da Madeira de 1817/1827,
Funchal, DRAC, 1982; Id., História da Madeira, vol. v, Funchal, Secretaria
Regional de Educação, Juventude e Emprego, 2003; FREITAS, Lourenço de,
“A Batalha das Voltas”, Islenha, n.º 13, jul.-dez. 1993, pp. 138-150; SILVA,
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3
Fig. 2 – Patente de alferes dos Voluntários Reais de D. Pedro IV vols., Funchal, DRAC, 1998.
para José Bento Travassos Valdês, Funchal, 16 de julho de 1828
(ABM, Arquivos Particulares). Rui Carita
B atistas ¬ 281
diversidade que constitui a mais importante de Santa Cruz do Rio Pardo, Brasil, onde tra-
marca de água destas igrejas. balharam entre 1972 e 1975. Edgar Potter, com
Em Portugal, ao longo do séc. xx, o trabalho formação na área da construção civil, conheceu
batista foi ganhando dimensão, abrangendo as o trabalho batista em Portugal através do antigo
principais cidades do território nacional, con- padre católico António Gonçalves Pires, que, na
tribuindo para tal a constituição de associações déc. de 70 do séc. xx, era pastor em São Paulo,
de cooperação, geralmente apoiadas por juntas Brasil. Após saber da ida dos missionários Fran-
missionárias estrangeiras. Apesar disso, a Madei- cisco António e Márcia Venturini Souza para os
ra nunca foi um território considerado relevan- Açores e da ausência de trabalho na Madeira,
te para o trabalho missionário batista em Portu- em 1975, Potter preparou-se para ir para esta
gal. Ao contrário dos Açores, onde terá existido região. Com o apoio de igrejas locais e de cren-
um pequeno e fugaz trabalho por volta de 1912, tes batistas, o casal instalou-se, em 1976, em
ressurgido em 1974, o arquipélago da Madei- Santa Cruz, onde, no ano seguinte, inaugurou
ra só conhecerá a primeira igreja batista nos fi- a Missão Baptista. De forma a poder sustentar
nais dos anos 1970. Antes disso, houve contac- financeiramente o trabalho, Edgar Potter lecio-
tos com alguns pastores batistas do continente, nou Inglês e dedicou-se a realizar traduções de
sobretudo com João Jorge de Oliveira (1883- inglês para português. O casal abriu ainda uma
1958), chegando mesmo este a visitar a Ilha em livraria e, mais tarde, entre 2001 e 2013, Potter
1911 e 1912, e com João Gomes Loja (?-?), natu- assumiu o cargo de cônsul dos EUA no Funchal.
ral da Madeira, pastor da Igreja Baptista Portu- Em 1980, pela primeira vez na Região, a igre-
guesa de Cambridge, Massachusetts, nos EUA, ja realizou batismos: um dos filhos do casal e
que esteve na Madeira em 1924, colaborando uma jovem madeirense. A Igreja Baptista de
com a Missão Metodista Episcopal ali instalada. Santa Cruz viria a ser organizada a 31 de ja-
Mas é apenas em 1976 que chegam à Madeira neiro de 1981, com seis membros, realizando,
os primeiros missionários batistas, de nacionali- logo na semana seguinte, mais um culto de
dade norte-americana, Edgar R. Potter e Abigail batismos. Foi a 1 de dezembro de 1982 que
Louise Potter, como enviados da Igreja Batista esta igreja abriu o primeiro lugar de culto no
Funchal, mais precisamen-
te na Choupana, de onde
se mudou, em 1984, para a
R. das Murças. Em 1985, a
igreja mudou a sua desig-
nação para Igreja Baptista
do Funchal e abandonou,
no ano seguinte, a vila
de Santa Cruz. Em 1987,
foi inaugurado um novo
lugar de culto no Funchal,
na posteriormente deno-
minada R. Silvestre Quin-
tino de Freitas, mais no
centro da cidade, num es-
paço destinado a garagem
e que foi substituído, em
2004, por um novo edifí-
cio, construído proposi-
tadamente para instalar a
Igreja Batista do Funchal (R. Quintino de Freitas) (fotografia de Bernardes Franco, 2020). igreja.
B azenga , G il ¬ 283
Desde a sua fundação, o trabalho iniciado Press, 2010; Voz da Madeira, ano iv, n.º 39, set. 1911; ano v, n.º 50, ago. 1912;
ano v, n.º 53, nov. 1912; ano xii, n.º 132, abr. 1924; ano xii, n.º 133, maio
pelos missionários Potter não tem tido uma li- 1924; ano xii, n.º 134, jun. 1924; digital: Igreja Baptista do Funchal: www.
gação formal com qualquer organização batista funchalbaptistchurch.com (acedido a 17 jun. 2020); Voz Baptista Madeirense:
http://vozbaptistamadeirense.blogspot.com (acedido a 25 jan. 2021).
portuguesa, mantendo, contudo, uma coope-
ração pontual com outras igrejas portuguesas Fontes orais: POTTER, Edgar, entrevistado por Rúben Baptista de Oliveira, 1
abr. 2015 [registo na posse do autor].
e com a Convenção Baptista Portuguesa. De
resto, a presença deste casal foi, ao longo dos Rúben Baptista de Oliveira
anos, relativamente discreta, sendo pouco co-
nhecida para a larga maioria dos batistas por-
tugueses. O Semeador Baptista, principal e mais
Bazenga, Gil
antigo órgão do movimento em Portugal em Gil França Bazenga nasceu em 1933, no Fun-
publicação, ao invés do que acontecia com o chal, e faleceu em 2013. Nos anos 50, frequen-
trabalho nos Açores, não fará mais do que bre- tou o curso de Arquitetura na Escola Supe-
ves referências a esta comunidade funchalen- rior de Belas Artes do Porto e nas décs. de 60
se, mencionando por duas ou três ocasiões a e 70 viveu em Moçambique, onde foi docente
presença de um trabalho naquela cidade. e onde dinamizou várias atividades culturais,
Na déc. de 80 do séc. xx, a Igreja Baptista do destacando-se o desempenho na coordenação
Funchal teve um programa de rádio, que emi- do Auditório e Galeria de Arte da Cidade da
tiu durante dois anos, e manteve como fonte Beira e do Centro de Cultura e Arte da Beira.
de divulgação do seu trabalho um blogue na Em finais dos anos 70, regressa ao Funchal,
Internet intitulado Voz Baptista Madeirense. No onde conclui, no Instituto Superior de Artes
início do séc. xxi, continuava ainda presente Plásticas da Madeira (ISAPM), o curso de Artes
nas redes sociais. Plásticas, na sua variante de Escultura.
Em 2016, Edgar Potter anunciou o regres- Escultor de formação, Bazenga destacou-se
so ao seu país de origem, exatamente 40 anos também enquanto docente de Artes Visuais,
após a chegada da família à Região. Para o tendo pertencido ao quadro de professores
substituir na liderança da igreja, foi escolhi- da Escola Secundária de Francisco Franco, no
do José Carlos Ribeiro Gonçalves, natural do Funchal. Para além da sua atividade como do-
Porto, que para o efeito foi constituído pastor. cente, desenvolveu uma prática contínua espe-
A Igreja Baptista do Funchal tem cerca de cializada na área da cerâmica, explorando com
45 membros e realiza serviço de culto aos do- rigor e criatividade diversas possibilidades téc-
mingos, em línguas inglesa, russa e portugue- nicas desta linguagem. Neste contexto, foi um
sa, tendo uma assistência conjunta de 70 a 80 dos protagonistas da intensa movimentação
pessoas. Mantém igualmente ativo o projeto cultural e artística ocorrida no Funchal nos
“A Porta” que procura transmitir o evangelho anos 80, tendo participado em diversas exposi-
a crianças, adolescente e jovens da ilha da Ma- ções coletivas, das quais se destacam as mostras
deira. Dinamizado pelo casal Ismael e Vânia promovidas pelo ISAPM, a primeira das quais
Luzia, membros da igreja, o projeto leva a na própria galeria do ISAPM, em 1981; outra
cabo diversas atividades como clubes bíblicos, no Museu de Arte Sacra do Funchal, em 1983;
megaclubes, retiros e acampamentos, aliando e outras duas novamente na galeria do ISAPM,
uma componente lúdica ao ensino centrado em 1984 e 1989.
na Bíblia. Ainda em 1982, fez parte da Exposição de
Artistas Madeirenses que teve lugar no Salão
Bibliog.: impressa: BRIGGS, John, “The english baptists”, in DOWLEY, Tim Nobre do Teatro Municipal Baltazar Dias; uma
(ed.), Eerdmans’ Handbook to the History of Christianity, Grand Rapids,
mostra de pintura, escultura e cerâmica onde
Eerdmans, 1987; FAIRCLOTH, Samuel D., Esboço da História dos Baptistas.
Súmula do Livro “A History of the Baptists” por Roberto G. Torbet, Ph. D., Gil Bazenga partilhou o espaço com a pin-
Leiria, Vida Nova, 1959; FELIZARDO, Herlânder, História dos Baptistas em tora Alice Sousa e o escultor Franco Fernan-
Portugal, Lisboa, Centro Baptista de Publicações, 1995; JOHNSON, Robert E.,
A Global Introduction to Baptist Churches, Cambridge, Cambridge University des, colegas que o acompanharam ao longo
284 ¬ B azenga , G il
de experiências realizadas e os diferentes tipos dos quais somente cinco chegaram à idade
de objetos criados por Gil Bazenga, destacan- adulta: D. João de Viseu (1448-1472), falecido
do-se uma clara influência estética com raí- sem descendência; D. Diogo de Viseu (1451-
zes num modernismo de carácter orgânico e 1484), depois assassinado por seu primo e
abstratizante, onde se salienta uma forte pre- cunhado D. João II, em 1484, dado que, no
sença de um cromatismo brilhante e de fortes mínimo, mantinha contactos com a corte de
contrastes, compensado por algumas peças de Castela e Aragão; a Rainha D. Leonor, mulher
pendor mais térreo e brutalista. de D. João II; D. Isabel de Viseu (1459-1521),
depois duquesa de Bragança, tendo o mari-
Bibliog.: VALENTE, António Carlos Jardim, As Artes Plásticas na Madeira
(1910-1990). Conjunturas, Factos e Protagonistas do Panorama Artístico Regional
do, entretanto, sido sentenciado em Évora,
no Século XX, Dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à a 21 de junho de 1483; e o Rei D. Manuel.
Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 1999.
O irmão mais velho de D. Beatriz, D. Diogo
Carlos Valente (1425-1443), faleceu prematuramente e a irmã
D. Isabel (1428-1496) casou-se com João II de
Castela (1405-1454), sendo mãe de Isabel, a
Católica.
Beatriz de Portugal
Não se encontra especialmente estudada
A duquesa D. Beatriz exerceu ao longo da a influência do infante D. João dentro da di-
sua vida uma intensa atividade política, por nastia de Avis, apagada pela quase omnipo-
vezes pouco avaliada, intervindo na direção da tência e presença de seu irmão D. Henrique
Ordem de Cristo, de que foi por largo tempo (1394-1460), a quem quase sempre se opôs e
administradora, muito provavelmente ainda por quem, também quase sempre, foi derro-
no tempo do infante D. Fernando e, decidi- tado. Foi Mestre da Ordem de Santiago e 3.º
damente, após o falecimento do mesmo, em
1470. Posteriormente, como tia da Rainha de
Castela, Isabel, a Católica (1451-1504), e como
sogra do Rei D. João II (1455-1495), desempe-
nhou um papel determinante na aproxima-
ção das coroas de Portugal, Castela e Aragão,
mas, na sequência dos acontecimentos, viria a
perder o genro e, depois, o filho mais velho.
O projeto acordado com a sobrinha, no entan-
to, manter-se-ia e, com uma determinação no-
tável e, por certo, com o apoio da filha, a Rai-
nha D. Leonor (1458-1525), colocaria depois
no trono de Portugal o filho mais novo D. Ma-
nuel (1469-1521).
D. Beatriz era filha do infante D. João (1400-
1442), mestre da Ordem de Santiago e 3.º con-
destável de Portugal, e de sua meia sobrinha
D. Isabel de Barcelos (1402-1465), tendo nas-
cido provavelmente em Barcelos ou em Alcá-
cer do Sal, por volta de 1420. Educada entre
a administração da Ordem de Santiago e a
casa de Barcelos, D. Beatriz veio a casar-se,
em 1447, com seu primo D. Fernando (1433-
1470), duque de Viseu e filho do Rei D. Duar- Fig. 1 – Infanta D. Beatriz de Portugal, óleo de 1678
te (1391-1438), tendo o casal tido nove filhos, (Museu Regional de Beja).
286 ¬ B eatriz de P ortugal
de Teive, Mendo Afonso, João Afonso Mealhei- aos pedidos de escusa, tendo o infante respon-
ro, João Gomes, o Trovador e, inclusivamente, dido nos seus apontamentos de 7 de novembro
ao 2.º filho de Zarco, Rui Gonçalves da Câmara de 1466 que “os alvarás que tenho dado são
(1430-1497), depois capitão da ilha de S. Mi- tão poucos que os não entendo brigar em ne-
guel, nos Açores. A 1 de novembro, entretanto, nhuma maneira” (MELO, 1972, 36-37). Tinha
já tinha ordenado D. Beatriz, através de carta faltado assim alguma coragem ao infante, em
trazida depois de Lisboa por Álvaro Eanes, es- 1466, que sobrou à sua viúva, em 1471. O con-
cudeiro do duque D. Diogo, que todos os cha- flito acabou por ser dirimido, em consonância
mados homens bons servissem nos pelouros com as disposições da duquesa, e, em sessão
de oficiais dos concelhos, anulando quaisquer realizada a 5 de fevereiro, a convocatória se-
alvarás anteriores que eventualmente possuís- guinte a todos os homens bons do Funchal já
sem. Do encargo, apenas se escusava o conta- previa uma multa de 5$000 reais a quem se não
dor Diogo Afonso. apresentasse. Os recalcitrantes haviam sido
A carta da infanta foi presente à vereação derrotados pela sombra da duquesa.
realizada a 31 de janeiro do ano seguinte de Pouco depois, em finais desse mês de janei-
1472, à qual, para além do capitão João Gon- ro, tendo conhecimento de que o bispo de
çalves da Câmara (1414-1501), assistiram seus Tânger, D. Nuno de Aguiar, em princípio na-
irmãos, os fidalgos Rodrigo Gonçalves e Gar- tural da Madeira, tentava integrar a Ilha na
cia Rodrigues, bem como Diogo de Teive, Ro- sua diocese e, inclusivamente, visitar canoni-
drigo Lopes, Pero Lourenço, Mendo Afonso, camente a mesma, a infanta, em coordenação
Pero Álvares, escudeiros, Gonçalo Anes, escri- com o vigário de Tomar, sede da Ordem Cristo,
vão, João Preto, escrivão, Afonso Lopes, tabe- opôs-se terminantemente. Esse monge cister-
lião, João do Porto, sapateiro, Antão Gonçal- ciense acompanhara D. Afonso V às jornadas
ves, João do Porto, barbeiro, Pero Gonçalves, de África, tendo estado presente nas tomadas
Gonçalo Jara, João de Sintra, sapateiros, e mui- de Arzila e Tânger, vindo assim a ser apresen-
tos outros, levantando-se vários protestos, dado tado como bispo dessa nova diocese em 1468.
cancelarem-se privilégios considerados adqui- Não havendo limites perfeitamente definidos,
ridos. A voz do escudeiro Rui Lopes, que de- o novo bispo tentou englobar na sua diocese a
tinha um alvará emitido pelo infante D. Fer- população das ilhas atlânticas portuguesas, as-
nando e confirmado pela duquesa, conforme sunto que, de imediato, requereu para Roma,
referiu, expressava a indignação sentida pelos sendo atendido pelo Papa Paulo II (1417-
atingidos, como Mendo Afonso, que invocou 1471), por breve de 28 de fevereiro de 1468.
também possuir um alvará emitido pelo infan- A posição de D. Nuno de Aguiar era de
te D. Henrique, confirmado posteriormente certa forma lógica, quer pela posição geográ-
pelos infantes D. Fernando e D. Beatriz. Rui fica da nova Diocese, quer pelo povoamento
Lopes acusou então Álvaro Eanes, embora ci- dos arquipélagos atlânticos, feito na sequência
tando-o como seu amigo, de não ter defendi- da conquista de Ceuta. Por outro lado, havia
do os seus interesses, como era seu dever, tra- ainda que considerar o papel das ilhas em rela-
zendo para a ilha uma decisão contida numa ção a todo o Norte de África, verdadeiro teatro
“carta de mulher” (Id., Ibid., 29). Na vereação de operações, especialmente da Madeira, onde
de 3 de fevereiro o assunto voltaria à discussão, quase todos os mancebos, principalmente no-
e Rui Lopes, fora de si, esgrimiu ainda outras bres, iam cumprir, passe a expressão, o serviço
razões, essas pessoais, pois que vindo a ser elei- militar. Assim, existindo já a Diocese de Ceuta,
to para qualquer dos lugares camarários, como correspondente ao território marroquino me-
obrigado, “nunca havia de servir bem em ne- diterrâneo, ao criar-se uma nova diocese por-
nhuma cousa” (Id., Ibid., 31). tuguesa para o território atlântico, a mesma
Acrescente-se que, em vida de D. Fernando, deveria logicamente englobar as novas ilhas aí
o concelho já se havia queixado relativamente povoadas pelos portugueses.
288 ¬ B eatriz de P ortugal
A petição do bispo de Tânger era, no entan- enviar o contador Luís de Atouguia, que fora
to, entendida pela Ordem de Cristo como inva- guarda-roupa do infante, para superintender
lidada pelas doações conseguidas pelo infante ao assunto, o que haveria de fazer dois meses
D. Henrique, não se tendo tomado, de imedia- depois, com “carta de crença” de 23 de maio e
to, quaisquer providências de que se saiba. Mas como contador do duque seu filho na ilha da
a situação viria a alterar-se em 1472, quando o Madeira (Id., Ibid., 67-69).
bispo resolveu visitar a Madeira. Assim, a infan- Os anos seguintes foram de guerra com Cas-
ta D. Beatriz, como tutora de seu filho D. João tela, cujas armadas chegam a assediar a Madei-
e, portanto, como administradora da Ordem ra, para o que as gentes da Ilha se apressaram
de Cristo, opôs-se à visita do prelado que se in- a apoiar as armadas montadas por D. Afonso
titulava “bispo das ilhas”, enviando carta aos ca- V, esforço que o Rei agradece a 7 de agosto
pitães “e a todos os juízes e justiças oficiais”, or- de 1473. Nessa sequência, viriam os morado-
denando “que não deixem entrar em esta ilha res a solicitar a D. Beatriz a construção de uma
nenhum bispo”, “nem alguma outra pessoa” fortaleza, uma pretensão a que a duquesa, em
por sua licença ou representação (Id., Ibid., 58- carta datada de Bragança, de 20 de fevereiro
60). Esta ordem tem a data de 21 de janeiro de 1476, se escusa por ir onerar a sua Fazenda,
de 1472 e acompanhava uma outra do vigário ao momento sobrecarregada com outras des-
de Tomar, o “Dom Prior e Comendador mor pesas. A altura não podia ser pior, pois o infan-
de Requerimento”, então frei Pedro Vaz, em te D. João de Portugal casara-se, em 1471, com
que recomendava “que não usurpe ninguém a D. Leonor, filha da infanta, e tivera um filho
Jurisdição Espiritual destas ilhas”, carta envia- em 1475, como a jovem princesa comunicou
da também à Câmara Municipal do Funchal, à ilha da Madeira. O Rei D. Afonso V, entre-
tendo estado ambas presentes na vereação de 2 tanto, entregara a regência ao futuro D. João
de junho desse ano. A carta em nome do prior II e invadira Castela para defender as preten-
de Tomar exorta mesmo a população a que sões ao trono de sua sobrinha D. Joana (1462-
não se agaste, pois “cedo, com o favor divino, 1530), a Beltraneja, e, em janeiro de 1476, o
esperava el-Rei, nosso Senhor, criar bispo da futuro D. João II entregara, por sua vez, a re-
mesma Ordem na ilha” (Id., Ibid.). gência à jovem mulher e invadira igualmente
No final desse ano, falecendo o duque Castela em apoio do pai, ocorrendo a desastro-
D. João, envia a infanta à Ilha o seu contador sa batalha de Toro a 2 de março desse ano. Por
Diogo Afonso para tomar posse da mesma em essa razão se encontrava a infanta D. Beatriz,
nome do novo duque D. Diogo. A partir de mãe da Rainha regente, com a mesma em Bra-
então, a administração da Ilha seria acompa- gança, pelo que a situação era muito delicada
nhada com a presença de um contador, Luís para decidir assuntos sobre obras de fortifica-
de Atouguia, que se manteria depois, inclusiva- ção na Madeira.
mente com o duque D. Manuel. A infanta in- A dimensão política da infanta D. Beatriz à
terfere, entretanto, nos mais diversos campos, época é revelada na sua presença no conselho
quando, e.g., os moradores acusavam os es- régio, reunido no Porto, em agosto desse ano
trangeiros vindos do continente de prejudicar de 1476, nas vésperas da partida de D. Afonso
o comércio, solicitando a sua expulsão: uma V para França, em busca do auxílio de Luís XI
posição que encontrara eco durante a gestão (1423-1483), tentando reverter o desastre de
de D. Fernando. Não foi essa a posição da du- Toro, sendo a única figura feminina presente.
quesa, que entendeu que a economia da Ilha Era a primeira guerra luso-castelhana depois
se iria ressentir e assim o fez saber, através de do início dos Descobrimentos e logo as novas
carta datada de Beja, a 15 de março de 1473, áreas sob a influência portuguesa foram envol-
recomendando “alguma temperança, que seja vidas no conflito. A Rainha Isabel de Castela
para bem da terra e a eles de não tanto agra- pretendia retomar a política de seu pai, o Rei
vo”. Face à situação, informa ainda que iria João II (1406-1454), que sempre se opusera
B eatriz de P ortugal ¬ 289
ao avanço das caravelas portuguesas ao longo O tratado viria a ser depois assinado em Alcá-
da costa da Guiné, ao contrário de seu irmão çovas, a 4 de setembro de 1479, por D. Afonso
Henrique IV (1454-1474), que nunca se inte- V e pelo príncipe D. João II, confirmado por
ressara especialmente pelo assunto. Por isso, Isabel, a Católica, em Trujillo, a 27 do referi-
várias armadas castelhanas foram enviadas à do mês, e ratificado em Toledo, por Fernan-
Guiné, na tentativa de controlar a região da do e Isabel, a 6 de março de 1480. Depois, foi
Mina. Os navios castelhanos atacaram pelo D. Beatriz quem reuniu em Moura, nas céle-
menos as ilhas de Porto Santo e de Santiago, bres Terçarias, D. Joana – a Excelente Senhora
em Cabo Verde. O interesse de Isabel pelo em Portugal, mas a Beltraneja em Castela – e
Atlântico colocava em causa os domínios da os infantes de Portugal e de Castela: o seu neto
Ordem de Cristo, pelo que, no campo das D. Afonso (1475-1491) e a sua sobrinha-neta
moedas de troca, quando a diplomacia fosse D. Isabel (1470-1498), confiados à sua guarda
chamada a sarar as feridas da guerra, teria na e educação. Os infantes eram assim os reféns
administradora daquela Ordem uma das pri- que ambos os reinos entregavam como penho-
meiras interessadas. A guerra luso-castelhana res da paz; D. Beatriz entregava igualmente
foi decisiva para a recomposição do mapa po- um dos seus filhos, alternadamente D. Diogo e
lítico peninsular, unindo as coroas de Castela D. Manuel, que também permaneceram como
e de Aragão, pois Isabel, a Católica, era casada reféns em Castela. Em agosto de 1481, era in-
com Fernando de Aragão (1452-1516); quan- clusivamente comunicado para a Madeira, em
do o conflito caiu num impasse, com a abdi- carta expedida de Moura, que algumas ques-
cação de D. Afonso V, em 1477, embora só tões então levadas pelo procurador Duarte Pes-
efetiva alguns anos depois e sendo o governo tana, dado o duque D. Diogo e também a in-
partilhado com o futuro D. João II, foi D. Bea- fanta estarem de partida para Castela, teriam
triz quem representou Portugal no encontro de ser adiadas.
que veio a decidir os termos da paz entre os A administração da Ordem de Cristo havia-
reinos ibéricos. -se consolidado decididamente no quadro do
A Rainha Isabel de Castela era filha da ho- Atlântico, reformulando mesmo a inicial divi-
mónima D. Isabel, irmã de D. Beatriz, o que são das capitanias no arquipélago dos Açores.
as colocou numa posição de maior proximida- Durante o governo das ilhas por D. Fernando
de pessoal para tentarem resolver o conflito. (1461-1470), a atenção da administração da
Em meados de março de 1479, D. Beatriz, se- Ordem de Cristo concentrara-se sobretudo no
guida por um pequeníssimo séquito, cruzou a desenvolvimento económico da ilha da Madei-
fronteira luso-castelhana em Segura e dirigiu- ra e no início do povoamento da ilha de Santia-
-se para Alcântara, onde era esperada pela so- go, no arquipélago de Cabo Verde. D. Beatriz
brinha, em situação idêntica, numa povoação distinguiu-se pela atenção especial que prestou
próxima da fronteira portuguesa, sem ter um às ilhas dos Açores, tendo promovido a troca
exército a protegê-la. As conversações duraram do capitão de S. Miguel, que passou a ser Rui
cerca de uma semana e no final conseguiu-se Gonçalves da Câmara, 2.º filho de Zarco, que
um acordo, que é conhecido nos seus termos adquiriu a capitania, iniciando uma dinâmica
gerais: Portugal reconhecia a realeza de Isa- totalmente diferente e tendo dividido a ilha
bel e comprometia-se a impedir que Joana, a Terceira em duas capitanias.
Beltraneja, continuasse a ser pretendente ao O impulso que veio a imprimir à Madeira
trono castelhano; Castela ficava com o direito também foi notório, pressionando ao cum-
de conquistar o arquipélago das Canárias, mas primento da justiça, para o que estabeleceu
reconhecia o direito de Portugal sobre os ar- prazos e coimas dos testamentos e resíduos e,
quipélagos dos Açores, da Madeira e de Cabo muito especialmente, a instituição de postos
Verde, tal como sobre a costa da Guiné a partir alfandegários, a fim de as mercadorias carre-
do paralelo das Canárias. gadas e descarregadas poderem ser realmente
290 ¬ B eatriz de P ortugal
avaliadas, controlando todo o movimento dos II comunique que “outorgara ao duque, meu
navios, e para que se pudessem conhecer e muito amado e presado primo”, o que perten-
arrecadar os respetivos direitos, sedeando- cera ao seu falecido irmão (Id., Ibid., 140-141)
-se um posto no Funchal e outro na capitania e só a 10 de janeiro seguinte, de Montemor-o-
de Machico. Deve-se também à administração -Novo, escreva a comunicar ter feito mercê das
de D. Beatriz a determinação de 25 de junho ilhas ao duque de Beja, “meu muito presado
de 1481, indicando que os procuradores dos e amado primo, o qual temos por filho” (Id.,
mesteres fossem recebidos na Câmara quando Ibid., 144-145). A partir de então, parece ter
fossem requerer, devendo ser “acatados com sido discreta a ação de D. Beatriz, mas apoian-
honra”, tendo-se acrescentado à margem, no do por certo o seu último filho, D. Manuel, na
registo camarário, que até então “os meste- governação.
res não vinham às vereações e requeriam de Quando seu neto, o príncipe D. Afonso, mor-
fora” (Id., Ibid., 114). Dois anos depois, a 21 reu de acidente em Santarém, em 1491, D. Bea-
de dezembro de 1483, seria o duque D. Diogo triz congregou as forças da sua casa com o apoio
a determinar a instituição no Funchal da casa da filha, D. Leonor, para defender os direitos de
dos 24 mesteres “para requererem pelo povo D. Manuel à sucessão de D. João II. Viveu os últi-
miúdo” (Id., Ibid., 134-135). mos anos da sua vida em regra retirada em Beja,
Um dos principais problemas destes anos, no embora saibamos que, e.g., no Natal de 1500 es-
entanto, foi o pedido de 1.200.000 réis feito tava em Lisboa, tendo participado nos festejos
à Madeira por D. Afonso V a 17 de agosto de organizados por D. Manuel I, o mesmo acon-
1478, para as despesas de guerra com Caste- tecendo em 1502. A 6 de junho desse ano, na
la, que colocou em polvorosa os moradores. alcáçova real de São Jorge, em Lisboa, nasceu
No ano seguinte, a 25 de julho, será o prínci- o príncipe D. João (1502-1557), futuro D. João
pe D. João a insistir na contribuição, então de- III, que teve depois como padrinho o doge de
signada como peita e já só de 1.000.000, com Veneza, o célebre Leonardo Loredan (1436-
o pormenor de a carta se encontrar registada 1521), representado pelo seu embaixador em
como do “Rei D. João”, embora no texto se Lisboa e, como madrinhas, sua tia D. Leonor,
referira sempre “a mim e meu filho”, ou seja, viúva de D. João II, e sua avó D. Beatriz, duque-
D. Afonso V e o futuro D. João II. Os morado- sa de Beja. Segundo a tradição, teriam sido as
res ainda tentaram junto da infanta, que tra- rainhas velhas a encomendar o depois célebre
tam por “Muito alta e muito excelente princesa Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, da au-
e muito virtuosa senhora”, escusar-se ao paga- toria de Gil Vicente, que foi representado pelo
mento (Id., Ibid., 96-98); depois foram mesmo próprio, a 7 de junho, uma terça-feira, na câma-
procuradores ao reino, a infanta tentou aliviar ra da Rainha D. Maria, espetáculo a que assistiu
a contribuição, mas uma grande parte acabou o Rei, as madrinhas e a duquesa viúva D. Leo-
por ser paga. nor de Bragança, para além de outros elemen-
D. Beatriz assistiu depois à execução de seu tos da corte.
genro, o duque de Bragança, em 1483, e ao as- D. Beatriz veio a falecer no seu convento de
sassinato de seu filho D. Diogo, a 27 de agosto Beja, a 30 de setembro de 1506, onde, já sob
de 1484, que D. João II comunicou à Madeira sua tutela, se haviam formado 10 anos antes as
logo a 28 se agosto, enviando Gil Eanes, cava- primeiras freiras que, idas da ilha da Madeira,
leiro, especialmente para explicar o que se pas- regressariam depois ao Funchal para fundar o
sara. A 13 de setembro, já era o duque D. Ma- Convento de S.ta Clara.
nuel a assumir a administração do ducado de
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Avulsos, mç. 1, doc.
Beja e Viseu, escrevendo de Setúbal para a Ilha, 12; Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 1; AGS, Patronato
para que lhe enviassem os assuntos que estives- Real, n.º 4089, leg. 49, doc. 44; ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, liv. 312;
Ibid., Chancelaria de D. Afonso V, liv. 21; Ibid., Gavetas, gaveta 17, mç. 6, doc.
sem pendentes da vigência de sua mãe e do fa- 16; Ibid., Leitura Nova, liv. 3 de místicos, 1516; impressa: Arquivo Histórico
lecido, embora só a 26 de novembro D. João da Madeira, vol. xv, 1972; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. i, Funchal,
B eckett, S amuel ¬ 291
Rui Carita
Beckett, Samuel
Nasceu em Dublin, em 1906, morreu em Paris,
em 1989, e viveu uma temporada no arquipéla-
go da Madeira, entre 1968 e 1969. O dramatur-
go e escritor irlandês chegou ao Funchal a 2 de
dezembro de 1968, mas mudou-se logo depois
para a ilha do Porto Santo, permanecendo aí
até meados de fevereiro de 1969.
Deste período madeirense de Samuel Beckett,
é conhecida correspondência diversa, que, além
do interesse biográfico inerente – pois, para
alargar e completar o conhecimento dos gran- Fig. 1 – Damned to Fame. The Life of Samuel Beckett (1996), de
des homens, publicam-se-lhes as cartas, todos os James Knowlson.
o Porto Santo, fugindo assim à cidade do Nesta quadra do ano, o Hotel Porto Santo
Funchal, que descrevia outra vez a traços de acolhia poucos hóspedes – apenas alguns Ale-
chumbo, tomada por um excesso de automó- mães se deixavam ficar, pelo conforto do meio
veis fumarentos e ruidosos, cheirando a gaso- inverno meridiano. Apesar da monotonia, Sa-
lina, com chuva, vento e frio, a neve nos picos, muel Beckett sentia-se bem e foi adiando a
sob um céu pesado. partida.
Na circunstância descrita, a impressão pes- Com o sol de janeiro, pode experimentar-se
soal que Samuel Beckett retém e que nos dei- uma ilusão de primavera na Ilha Dourada. E, na
xou do Funchal é, pois, bastante negativa, na delícia de uma hora dessas, Samuel Beckett não
perspetiva de quem esperava encontrar du- esconde o seu fascínio pelo Porto Santo: numa
rante o inverno um local pacato e de clima carta do dia 28, confidencia a Barbara Bray que
ameno para uma temporada de restabeleci- esta pequena ilha seria o sítio ideal para se pas-
mento da saúde. sar com simplicidade e harmonia os derradei-
Samuel Beckett aterrou na Ilha Dourada ros dias da vida, numa casita chã de frente para
a 12 de dezembro de 1968 e instalou-se no o mar, com um quintal em redor. E, com certo
Hotel Porto Santo – então o único alojamento humor, acrescenta que só tinha pena que não
turístico moderno, inaugurado poucos anos houvesse dentistas por ali – até aos anos 80, os
antes, em 1962. Num postal telegráfico para habitantes do Porto Santo consumiam a água
Barbara Bray, mostra-se muito satisfeito com a salobra das nascentes da ilha e por isso os seus
quietude e ambiência da pequena ilha, o sos- dentes adquiriam uma aparência acastanhada
sego do hotel, que dava para a praia esplên- resultante da acentuada oxidação.
dida, o clima suave. O Porto Santo agradou a Samuel Beckett deixou o Porto Santo a 14
Samuel Beckett desde o primeiro momento. de fevereiro de 1969, num voo da TAP para
O isolamento da ilha mantinha-o afastado do Lisboa. Deteve-se em Cascais durante duas se-
mundo – correio, só três vezes por semana; manas e regressou a Paris a 2 de março. Nesse
jornais, os que a tripulação da TAP deixava no mesmo ano, ser-lhe-ia atribuído o Prémio
hotel. Passava os dias tranquilamente, entre Nobel da Literatura. Esta passagem e perma-
caminhadas pela praia e, mais raramente, pas- nência de Samuel Beckett em Portugal é re-
seios à vila, a uma distância de uns 10 minutos ferida, designadamente, na biografia de refe-
a pé. Uma vez por outra, uma breve incursão rência Damned to Fame. The Life of Samuel Beckett
ao interior insular, ou à Camacha, no Norte. (1996), de James Knowlson.
A falta de estradas condicionava as deambu- Grande parte da correspondência de Samuel
lações. Impressionava-o a aridez da paisagem Beckett está depositada na Beckett Internatio-
ilhoa. nal Foundation, na Univ. de Reading; no Harry
Ransom Humanities Research Center e no Tri-
nity College da Univ. de Dublin (caso das car-
tas a Barbara Bray referidas); na Irish Literary
Library, Emory University, Austin, Texas; e na
John J. Burns Library, Boston College, Massa-
chusetts. Nestes arquivos, encontram-se tam-
bém postais ilustrados do Porto Santo, com vis-
tas da Foto Perestrellos, alguns endereçados ao
seu editor, Robert Pinget. A Beckett Founda-
tion/Cambridge University Press, em parceria
com várias instituições universitárias, começou
a publicar sistematicamente, em 2009, a corres-
pondência de Samuel Beckett, mas as cartas re-
Fig. 2 – Porto Santo, bilhete-postal (Foto Perestrellos, c. 1950). metidas do Porto Santo, designadamente para
B ello , A nastácio ( pseud . ) ¬ 293
José Campinho
Bello,
Anastácio
(pseud.)
Nasceu no sítio dos
Arrifes, freguesia de
São Pedro, Funchal, Fig. 2 – Retrato de desconhecido, desenho de Anastácio Bello,
a 11 de maio de 1868, 1902 (coleção particular).
filho de Cândido da
Câmara, nascido na Fig. 1 – Fotografia do passa- Tirou passaporte para o Rio de Janeiro em
freguesia da Sé, e de porte de Manuel Anastácio 10 de julho de 1920, mas desconhecem-se por-
da Silva (Anastácio Bello
Rosa da Silva, nascida [pseud.]), 1920 (arquivo par- menores da sua estada nesta cidade.
na vila e concelho de ticular). São referência da sua obra os retratos do rei
São Vicente. D. Carlos de Bragança e da rainha D. Maria
Casou com Leocádia Bello Perestrelo a 14 de Amélia de Orleães, assim como o conjunto de
junho de 1888 na freguesia da Sé, filha de João retratos de presidentes da CMF, datados do final
Perestrelo e de Catarina da Silva Perestrelo, na- do séc. xix e princípio do séc. xx, pertencentes
turais da ilha do Porto Santo. O casal teve dois ao espólio do Teatro Baltazar Dias do Funchal.
filhos: Álvaro, nascido a 17 de setembro de Faleceu com 69 anos, vítima de cancro na
1889, e Maria, nascida a 24 de março de 1894, laringe, no Asilo dos Velhinhos, à Calçada de
ambos da freguesia de São Pedro, Funchal. Santa Clara em São Pedro a 14 de janeiro de
Este desenhador a crayon, artista de mérito 1938, onde esteve recolhido no último ano de
comprovado pela sua técnica inconfundível, vida, tendo sido sepultado no Cemitério das
foi um dos alunos fundadores da extinta Esco- Angústias. Apesar de o seu percurso de vida ser
la Industrial Josefa d’Óbidos, no Funchal, pos- pouco conhecido, a obra de Anastácio Bello
teriormente designada Escola de Desenho In- está presente na casa de muitas famílias bur-
dustrial de António Augusto de Aguiar, na qual guesas da época, perpetuando os seus ances-
esteve entre 1889 e 1893, tendo privado com o trais em expressivos retratos, de grande forma-
pintor retratista espanhol Manuel de la Cuadra to, desenhados a lápis de carvão.
y Estévez (1835-1903), que aí lecionou.
Bibliog.: manuscrita: ABM, Passaporte n.º 2849, cx. 23, cap. 4610-07-1920; Ibid.,
Através do Diário de Notícias da Madeira (12 Registos Paroquiais, Óbitos, liv. 278, doc. 12, 1938; Ibid., Registos Paroquiais, São
maio 1897), temos conhecimento de que viveu Pedro, Batismos, liv. 1372, 1868, fl. 34; liv. 1394, 1890, fl. 49v.; liv. 6795, 1895, fl. 10;
Ibid., Registos Paroquiais, Sé, Casamentos, liv. 1324, 1888, fl. 16; impressa: Diário
alguns anos nos Açores, onde lecionou a disci- de Notícias, Funchal, 12 maio 1897; 4 jan. 1938.
plina de desenho na Escola Industrial Gonçalo
Teresa Margarida Lopes Brazão
Álvares Cabral, em Ponta Delgada. Cupertino da Câmara
294 ¬ B eneden , C harles van
Beneficência
A assistência social teve diversas formas de
expressão ao longo da história: caridade, fi-
lantropia, benemerência, assistência e polí-
tica social. A Igreja define a caridade como
uma forma de apoio aos necessitados, mas, no
séc. iv, o Imperador Juliano refere uma forma
de intervenção social não cristã que ficou co-
nhecida como filantropia. Nos sécs. xix e xx,
esta ganhou uma nova expressão com o mu-
tualismo e a assistência social.
É a Constituição republicana de 1911 que de-
fine e obriga o Estado à responsabilização pela
assistência pública, levando à criação do Fundo
Qt. dos Cedros, estudo de Max Römer, 1924 (coleção de João
Nacional de Assistência. Contudo, a plenitude
Pedro Ferraz, Funchal). desta função social do Estado só será definida
com o Governo da Ditadura Militar, saído da
Revolução de 1926. Desta forma, num primei-
nomeadamente Au Nord-Ouest de l’Afrique. Ma-
ro momento, o sistema assistencial e de bene-
dère, les Îles Canaries, le Maroc, em Bruxelas, em
ficência é de iniciativa privada, tendo a Igreja
1882.
Católica um papel fundamental no seu incen-
Colaborador na revista belga La Jeune Wallo-
tivo e na sua manutenção.
nie, publicou a interessante narrativa Voyage aux
No entanto, as principais reformas do sis-
Îles Salvages, que ocupa 50 páginas da mesma
tema de segurança social acontecem a partir
revista e que vem acompanhada de excelentes
de 1929: o dec. 16.667, de 27 de março, cria a
gravuras. Há quem afirme que nas comédias
Caixa Nacional de Aposentações e a Caixa Na-
deste autor Les Titularisés e Le Mariagicide se
cional de Previdência, que unem todos os pro-
encontram incarnadas em várias personagens
cessos de aposentação e reforma. Em 1934, é
algumas pessoas conhecidas na sociedade fun-
constituído o Montepio dos Servidores do Es-
chalense (SILVA e MENESES, 1978, 264).
tado, que atribui pensões de sobrevivência aos
Existe um estudo bibliográfico de 1911 sobre
herdeiros dos funcionários públicos. Relativa-
Charles van Beneden (Etude Bibliographique
mente aos demais trabalhadores, foi aprovado
sur Charles van Beneden), da autoria de Joseph
o estatuto do Trabalho Nacional, pela lei 1884,
Chot, com 116 páginas, publicado em Bruxelas
de 6 de março de 1935, que institui o seguro na
pela Dechenne.
doença. Neste mesmo ano, foi criada a Caixa
Obras de Charles van Beneden: Au Nord-Ouest de l’Afrique. Madère, les Îles
Nacional de Pensões. As reformas concluem-se
Canaries, le Maroc (1882); Entre Névropathes (1888); Généalogie (1891); Le com a criação, em 1942, do abono de família e,
Mariagicide. Comédie Humaine en Cinq Actes et Six Tableaux (1898); Michel
Côme (1899); Les Titularisés (1902); Une Interview au Transformisme (1905);
em 1965, da Assistência na Doença aos Servi-
Attale. Tragédie en 5 Actes (1908); Clara Camacho (1908); La Floche du Soldad dores do Estado.
296 ¬ B enefic ê ncia
Na Madeira, onde o cristianismo está pre- ficou conhecido como o Hospital de S.ta Isa-
sente desde o séc. xv, as diversas instituições bel. As obras prolongaram-se entre 1685 e
que surgem têm relação com a caridade. 1688. Em 1695, estava já definitivamente ins-
Assim, temos múltiplas iniciativas particulares talado o novo hospital, uma vez que se proce-
de mercearias, confrarias e misericórdias, que deu à venda das antigas instalações. Os Ingle-
se associam nesta função assistencial. ses instalaram aí, em 1807, a sua enfermaria.
As suas instalações foram também utilizadas
para os cursos de Medicina da Escola Médico
Hospitais e outras instituições de saúde Cirúrgica, sucessora da Aula Médico-Cirúrgi-
Em 1459, João Gonçalves Zarco doou um ca do Funchal. Perante um início do séc. xix
chão junto à capela de S. Paulo para a cons- marcado por diversas epidemias, que causa-
trução de um hospital. Funcionou durante ram elevada mortandade e colocaram a neces-
cerca de 15 anos. Temos ainda referências a sidade de um adequado desenvolvimento dos
outros três hospitais de iniciativa particular: o serviços de saúde, surgiu, em 1816, a Aula Mé-
de Gonçalo Eanes Velosa, para agasalhar po- dico-Cirúrgica do Funchal, que pretendia dar
bres e enfermos, autorizado, em 1469, pelo um salto qualitativo nos cuidados de saúde.
infante D. Fernando; o de Pero Vaz de Alcofo- Esta Aula funcionou apenas até 1821, sendo
rado, referido em 1471; e o de Duarte Pesta- retomada em 1836, já sob a forma de Escola
na, mencionado em vereação de 1486. Cons- Médico Cirúrgica. A vida da Escola foi atribu-
tança Rodrigues, mulher de João Gonçalves lada, pela conjuntura política liberal. Mesmo
Zarco, deixou, por testamento de 1484, cinco assim, funcionou até 11 de dezembro de 1910
casas térreas, que funcionaram como mercea- e formou 240 médicos.
rias para albergar cinco pessoas idosas. No decurso do séc. xix, eram evidentes as
A partir de finais do séc. xv, o sistema assis- ações de filantropismo da comunidade britâ-
tencial foi alvo de uma reforma, por interven- nica na Ilha, que iam da ajuda para acudir a si-
ção papal. Assim, em 1485, o Papa Inocêncio tuações de fome, à construção de pontes e es-
VIII recomendou que os pequenos hospitais tradas. E mesmo hospitais, como sucedeu, em
fossem anexados aos maiores. De acordo com 1823, com uma dádiva da firma Phelps Page
este espírito, a Coroa aprovou, em 1498, o & Co. para o Hospital do Funchal. “A filan-
“compromisso” do Hospital de Lisboa, que tropia dos Srs. Phelps Page & Co. negociantes
veio a congregar todos os demais aí existen- Britânicos desta Praça, já tão proclamada por
tes. O mesmo princípio foi seguido em todas muitos, e repetidos atos de beneficência, que
as vilas do reino, por autorização papal de 23 lhes tem granjeado um nome distinto entre
de outubro de 1501, reforçada por carta régia nossos Concidadãos, acaba de dar outro tes-
de 1507. temunho da cordialidade com que cada vez
Na Madeira, foi D. Manuel quem tomou a mais se esclarecem. Apenas souberam de um
iniciativa, sendo favorável à construção do Facultativo do Hospital as necessidades deste
Novo Hospital no chão de Bartolomeu de respeitável estabelecimento, eles mandaram
Marchena. vir de Inglaterra 100 cobertores, que ofere-
O primeiro hospital da Misericórdia funcio- ceram para uso do mesmo Hospital. A Mesa
nou na zona de Nossa Senhora do Calhau, no Administradora tem-lhes significado sua gra-
espaço onde hoje existe a rua com o topóni- tidão, e nós nos apressamos a anunciar tão
mo de Hospital Velho. Este passou, a partir de generosa ação para que ninguém possa igno-
1514, para a alçada da Misericórdia do Fun- rar o quanto apreciamos com os bons, ações
chal. As condições precárias oferecidas por tão recomendáveis” (O Patriota Funchalense, 21
estas instalações obrigaram à sua transferên- maio 1823, 4).
cia, no séc. xvii, para o novo hospital man- Ainda nessa centúria, registe-se o surgi-
dado construir junto do terreiro da Sé, que mento de um outro serviço. Em 1844, foram
B enefic ê ncia ¬ 297
(1520) e no Porto Santo (1767). Nas confra- mesa, na forma do seu antigo compromisso,
rias ligadas às misericórdias, os irmãos tinham e que lhe fosse aplicada legislação particular
assegurada a assistência hospitalar e espiri- e privilégios iguais aos concedidos pelo Go-
tual. Estas instituições viveram sempre com verno à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
grandes dificuldades, agravadas em meados e ao Hospital de S. José. Nesse ano, a Junta
do séc. xix, devido às circunstâncias econó- Geral pediu ao Governo autorização para dis-
micas em que se encontrava o distrito. por dos rendimentos das extintas confrarias
Em 1839, a Junta Geral do Distrito deu a favor do Asilo de Mendicidade e do Hospi-
grande destaque nas suas reuniões aos pro- tal da Santa Casa da Misericórdia do Funchal.
blemas relacionados com as confrarias e mi- O Governo concedeu a aplicação dos rendi-
sericórdias, e propôs a criação de um asilo de mentos e bens próprios das extintas confra-
mendicidade. A 18 de julho desse ano, foi de- rias de Nossa Senhora da Piedade, dos Reis
cidido, ao abrigo dos arts. 6.º e 10.º do dec. de Magos e das Almas ao Asilo e ao Hospital da
21 de outubro de 1836, pedir à Administra- Misericórdia. O governador civil solicitou à
ção Geral esclarecimentos sobre as confrarias Junta Geral a criação de um rendimento fixo
extintas no distrito e o montante dos bens ja- para estes estabelecimentos, dando ao pouco
centes de cada uma, quais as que tinham so- que restava dos socorros públicos uma aplica-
bras dos seus rendimentos e o montante des- ção mais conforme com a sua instituição. Esta
sas sobras para ser aplicado em beneficência, medida foi atendida pelo Governo, por alvará
sendo nomeada uma comissão para analisar régio de 13 de março de 1855.
esta questão e apresentar um parecer sobre a O Governo central, através de portaria do
mesma. A 30 de julho de 1839, foi proposto Ministério do Reino de 28 de abril de 1855,
que, face ao estado lastimável de miséria e de mandou o governador civil proceder à refor-
completa ruína da Santa Casa da Misericór- ma do Compromisso da Misericórdia, em con-
dia do Funchal e ao abandono em que se en- formidade com a port. de 3 de abril de 1852.
contravam os presos na cadeia, as sobras dos A 28 de novembro de 1864, Manuel José
rendimentos das confrarias existentes dessem Vieira Júnior foi encarregado de examinar
entrada na tesouraria da Santa Casa da Miseri- o estado de decadência da Misericórdia e do
córdia do Funchal, como subsídio para encar- Hospital do Funchal, e de indicar as medidas
gos dessa instituição, assim como a criação de necessárias para a resolução desse problema.
uma caixa de socorro para os pobres que se Em 1868, as misericórdias de Machico, Santa
achavam encarcerados. A partir desta caixa, Cruz e Calheta não possuíam os meios neces-
deviam ser asseguradas as despesas com a sus- sários para satisfazer as despesas do tratamen-
tentação e o vestuário, a limpeza e os reparos to gratuito dos doentes dos seus concelhos,
das prisões. tendo estes que se deslocar para o efeito ao
O procurador à Junta Geral, Cón. José Joa- Hospital da Santa Casa da Misericórdia do
quim de Sá, na reunião de 4 de maio de 1854, Funchal.
apresentou uma proposta para que a Miseri-
córdia pudesse fazer lotarias, cedendo o Go-
verno, a favor do mesmo estabelecimento, os
Asilo de Mendicidade do Funchal
5 % que delas recebia, propondo ainda a sus- Em 1844, o governador civil do distrito, reco-
pensão das execuções fiscais para todas as dí- nhecendo as vantagens do estabelecimento,
vidas contraídas até 1852. Na reunião de dia no Funchal, dum asilo de mendicidade, pedia
12 desse mês, o mesmo procurador apresen- à Junta Geral o seu apoio e concorrência com
tou outro projeto, aprovado por unanimida- as sobras dos rendimentos das extintas con-
de, para que a Junta pedisse ao Governo que a frarias, sem prejuízo da sua antiga aplicação
Santa Casa da Misericórdia do Funchal passas- para o Hospital da Misericórdia do Funchal.
se a ser administrada por um provedor e uma A 8 de junho de 1844, a Junta Geral aprovou
B enefic ê ncia ¬ 299
a constituição dum asilo de mendicidade, dei- o distrito. Mas não tinha fundos próprios.
xando à sua disposição a soma proveniente Os meios extraordinários de que se lançava
dos rendimentos das extintas confrarias, que mão (bazares, espetáculos, rendimentos de
seria aplicada na Misericórdia do Funchal e confrarias extintas, etc.) eram insuficientes
no Asilo de Mendicidade. Foi também de- para a sua manutenção. As comparticipações
cidido que parte destes rendimentos seria de beneméritos eram quase irrisórias. A Junta
usada para a construção de uma enfermaria Geral contribuía com os meios que podia.
de mendigos e inválidos que padecessem de A solução era a de que as câmaras votassem
moléstias, disformes, cegos, surdos e velhos uma lei de dotação ao Asilo de Mendicida-
decrépitos. de e Órfãos do Funchal, a exemplo do que
O Asilo de Mendicidade do Funchal foi acontecia em outros distritos. Além destas su-
então criado em 1847, depois da grave crise gestões, a Junta decidiu autorizar o chefe do
agrícola e comercial por que passou o distrito distrito a aplicar neste estabelecimento todos
nos anos de 1846 e 1847, cabendo tal feito ao os rendimentos pertencentes às extintas con-
governador civil da Madeira, José Silvestre Ri- frarias, recomendando que este usasse todos
beiro (1846-1852). os meios ao seu alcance para obrigar todos os
Em 1856, houve uma epidemia de cólera, devedores ao cofre dos socorros públicos a pa-
que vitimou muitos madeirenses, deixando garem as suas dívidas para que fossem aplica-
muitas crianças na orfandade e desamparadas, das no Asilo e na Santa Casa da Misericórdia
para as quais era necessário procurar abrigo. do Funchal.
O governador civil de então decidiu adaptar A 6 de julho de 1863, o Cón. Filipe José
algumas dependências do extinto Convento Nunes propunha que a Junta Geral solicitas-
de S. Francisco, instalando ali um asilo des- se ao Governo uma lei de dotação ao Asilo
tinado exclusivamente a crianças, ficando a de Mendicidade e Órfãos desse distrito, sem
sua direção a cargo do Asilo de Mendicidade, o que tinha necessariamente de fechar-se a
que, devido à falta de recursos para mantê- porta. Dois dias depois, apresentou, por parte
-los separados, os uniu, em 1862, no Asilo de da comissão do Asilo de Mendicidade e Ór-
Mendicidade e Órfãos. Este estabelecimento fãos, o seu parecer, recomendando ao gover-
pio não tinha bens próprios e vivia exclusi- nador civil que empregasse todos os meios ao
vamente da caridade pública, o que lhe cau-
sava problemas em tempos de crise, pondo-
-se em causa por várias vezes a sua existência.
O governador civil Jacinto António Perdigão
(1863-1868) empenhou-se na defesa desta ins-
tituição de caridade, organizando e aprovan-
do os seus estatutos, e obrigando a Câmara
Municipal do Funchal a pagar-lhe uma dívi-
da de cinco contos de réis de que o Asilo era
credor, constituindo com este dinheiro o seu
fundo permanente.
No entanto, o Asilo lutou sempre contra
muitas dificuldades, que iam sendo ultrapas-
sadas com a comparticipação da Junta, das câ-
maras municipais e do governo. Existia apenas
um estabelecimento destes para uma popula-
ção de mais de 100.000 habitantes. Por estas
Fig. 2 – Abrigo de Nossa Senhora da Conceição, antigo Asilo de
razões, a conservação dum estabelecimen- Mendicidade e Órfãos de 1850, Av. do Infante, Funchal (arquivo
to deste género era de suma utilidade para particular).
300 ¬ B enefic ê ncia
da dívida às amas dos expostos em relação a No final do ano de 1857, o número de ex-
todas as outras despesas municipais, impon- postos em todo o distrito era de 972 (dois anos
do que os pagamentos atrasados fossem fei- antes, ordenara-se às câmaras que colocassem
tos num curto espaço de tempo, em presta- um cognome aos expostos no ato do batismo,
ções mensais. a fim de melhor serem conhecidos no recen-
Em 1854, pelas contas relativas à sustentação seamento), e a despesa com a sua sustentação
dos expostos, sabe-se que as câmaras do distri- atingiu 12.385.910 réis, a qual foi distribuí-
to deviam às amas, até 31 de março desse ano, da pelas câmaras municipais, através de quo-
a quantia de 18.379.232 réis. A Junta Geral en- tas calculadas segundo a receita de cada uma
tendia que era urgente criar uma receita es- no decurso desse ano. Da falta de meios com
pecífica para fazer face a esta despesa, suge- que lutavam as câmaras municipais, resultava
rindo a criação dum imposto sobre o mel e os que as amas dos expostos eram credoras de
figos importados, mas, reconhecendo os pro- 37.145.475 réis, quantia que dificilmente seria
blemas que causaria à comercialização desses amortizada sem o lançamento de uma derra-
produtos, decidiu solicitar ao Governo um ma para este fim.
auxílio extraordinário para pagamento da- Em 1863, o Cón. Filipe José Nunes, que
quela dívida, comprometendo-se as câmaras, fazia parte da comissão dos expostos, consi-
a partir dali, a cumprir o integral pagamento derava que as rendas do concelho do Funchal
anual desta despesa. Para impedir o progressi- eram, na sua quase totalidade, consumidas
vo aumento de expostos, cuja despesa poderia pelos expostos. Solicitava que se determinasse
absorver a maior parte dos rendimentos das que as câmaras municipais, sempre que fosse
câmaras, recomendava uma vigilância aperta- possível, fizessem com que os expostos fossem
da sobre as mulheres solteiras em estado de criados por amas domiciliadas no mesmo con-
gravidez, para que fossem obrigadas não só celho e não por amas que residissem noutros
a apresentar os filhos como a criá-los. Para a concelhos. Desse modo, seria mais fácil não
regular sustentação dos expostos, a comissão só evitar alguns abusos, mas também fiscalizar
administrativa entendia que devia manter-se a o bem-estar dos expostos.
deliberação da Junta de 18 de junho de 1845, A 11 de julho desse ano, a verba de 8850.000
a qual estabelecia que as câmaras concorres- réis, proposta no orçamento e aprovada para
sem para a caixa dos expostos com uma quota sustentação dos expostos a cargo das câmaras
proporcional à sua receita. municipais do distrito, foi distribuída na pro-
Em 1855, na apresentação do seu relatório, porção das contas da receita das referidas câ-
o governador civil informava a Junta de que maras no ano civil de 1862.
tinham sido adotadas medidas para normali-
zar a administração dos expostos. No entan- CONCELHOS RECEITAS QUOTA
(1878); a Associação Filantrópica dos Estudan- No início do séc. xx, o Hospital do Funchal,
tes do Funchal (13 maio 1892); e a Assistência que desde há vários anos caminhava em pro-
Protectora dos Estudantes Pobres (1907). Jun- gressiva decadência, começava a levantar-se
tava-se ainda a Sociedade Filantrópica Acadé- dia a dia do abatimento em que jazia, e dimi-
mica (23 dez. 1849), fundada pelo madeirense nuíam as dificuldades penosíssimas que lhe
Feliciano Augusto de Bento Correia, quando eram já quase vida normal. O Asilo de Men-
estudava Direito em Coimbra. dicidade tinha melhorado sucessivamente, de-
Em 1863, a população do distrito em idade vido ao empenho dos poderes do distrito e às
própria para receber a instrução primária não verbas que ali tinham sido investidas. As maio-
excederia muito as 6000 almas. A frequência, res dificuldades encontradas advinham da falta
em 1862, fora de 2704 indivíduos, distribuídos de estatutos aprovados que dessem vida legal.
do seguinte modo: 1341 nas escolas municipais A administração das confrarias continuava
e 620 nas particulares. Dos 2704 alunos, 1113 atestando a necessidade de acudir-lhe com al-
pertenciam ao sexo feminino. Constatava-se guma providência que habilitasse esses estabe-
que, havia poucos anos, apenas existia uma es- lecimentos a satisfazerem melhor os fins da sua
cola régia para o sexo feminino em todo o dis- instituição e a produzirem o bem que se espe-
trito. Nessa altura, a educação da mulher era rava deles.
completamente descurada pelo homem. Nesse Em 1913, já com a república implantada no
ano, já contava o distrito com nove escolas ré- país, a Junta Geral, atenta à questão social, de-
gias para o sexo feminino e algumas outras cidiu auxiliar diferentes instituições de solida-
particulares. A Junta, entusiasmada com estes riedade social com um subsídio anual, caben-
números, ia criando escolas mais próximas das do à Santa Casa da Misericórdia do Funchal e
populações. ao Asilo de Mendicidade 1.000.000 réis, aos ór-
Os únicos meios considerados eficazes para fãos do Funchal, 800.000 réis, ao Auxílio Ma-
combater e cortar pela raiz a mendicida- ternal, 300.000 réis, à Assistência de Crianças
de eram a difusão da instrução, a generaliza- Fracas, 300.000 réis. Foi ainda decidido pedir
ção dos princípios económicos, disseminados ao Governo a dispensa da contribuição de
pelas massas, revestidos com a linguagem pró- 1500$000 réis para o fundo especial de bene-
pria e a elas acessível, e o amor pela religião. ficência, que em nada aproveitava ao distrito,
Assim sendo, a Junta Geral tentou, pelos meios devendo essa verba reverter para benefício do
ao seu alcance, divulgar entre a população as Hospital Civil, para tratamento de tuberculo-
vantagens da instrução pública, embora reco- sos indigentes. A 15 de maio de 1916, foi deci-
nhecesse que o quadro de dificuldades não dido subsidiar a sopa económica com a quan-
fosse propício ao desenvolvimento da escolari- tia de 200.000 réis, e a Assistência Protectora
dade, mesmo tendo as estatísticas da época re- dos Estudantes Pobres com igual verba.
velado alguns progressos. O número de escolas A Junta Geral comparticipou apoios à bene-
era então muito limitado, e o acesso a elas era ficência, em 1915, com cerca de 30.000.000
muito difícil. réis, e, no ano seguinte, com uma verba seme-
Relativamente a um outro sector, o dos bor- lhante, distribuída pelo Manicómio Câmara
dados, entre finais do séc. xix e meados do se- Pestana, expostos e desvalidos, Asilo dos Ve-
guinte, este era um dos que espelhava maiores lhinhos, Sopa Económica, Assistência Protec-
carências, que só vieram a ser contempladas tora dos Estudantes Pobres, Vítimas dos Tem-
pela Caixa de Previdência a partir de 1946. To- porais na Ribeira da Janela. A Junta mantinha
davia, para atender à pobreza das bordadeiras, ainda 20 alunos pobres na Escola de Utilidades
surgiram formas de apoio social. Em 1894, sur- e Belas Artes, e também no posto de desinfe-
giu a Sociedade José Júlio Rodrigues de Pro- ção, fornecendo gratuitamente aos pobres col-
tecção das Bordadeiras e, em 1907, as casas de chões, enxergões e roupa de cama, entre ou-
bordados criaram uma caixa de socorro. tros materiais.
B ens da I greja ¬ 305
A côngrua consistia num estipêndio pago beneficial. De igual modo, alguns dos cargos
pela Fazenda Régia que correspondia à com- da Sé recebiam perpetuamente o seu venci-
pensação atribuída à clerezia pelos serviços mento. Assim acontecia com as dignidades, os
espirituais. Esse vencimento, estipulado pelo cónegos, os meios-cónegos e o mestre da cape-
monarca sob proposta do bispo, era pago em la. Os cónegos começaram por receber 12.000
dinheiro ou de forma mista, entre numerá- reais, sendo aumentados até receberem 60.000
rio e géneros, e variava consoante os serviços réis em 1595. Os outros elementos da Sé, como
ou cargos exercidos, o lugar do exercício das o sacristão, o sineiro, o escrivão, o organista, o
funções e, desde 1572, o número de paroquia- pregador, os capelães, os curas, o subchantre,
nos. A primeira informação relativa às côn- os moços do coro, o altareiro, o porteiro e o
gruas data de 1485 e informa que D. Manuel aljubeiro, recebiam a sua côngrua durante o
definiu para o vigário do Funchal 50.000 reais ano ou anos que serviam, podendo ser substi-
anuais, para o de Machico 20.000 reais e para tuídos caso o bispo ou o cabido pretendessem.
cada um dos nove raçoeiros nessas localidades A título de exemplo, sabe-se que, em 1736, os
8000 reais. Já em 1490, D. Manuel I atribuiu ao dois curas da Sé receberam, cada um, um moio
vigário do Funchal, Fr. Nuno Cão, 3000 reais, e 36 alqueires de trigo, sete pipas, 17 almudes
três moios de trigo, duas pipas de vinho, doze e duas canadas de vinho. Já cada um dos 10 ca-
cabritos, doze frangos, duas arrobas de açúcar pelães, no mesmo período, recebeu 8700 réis,
e 2/3 do pé-de-altar. Para os sécs. xvi e xvii, os um moio e 23 alqueires de trigo e três pipas
documentos relativos aos pagamentos dos clé- de vinho. Ao analisar-se as côngruas em valor
rigos, presentes no Corpo Cronológico ou no monetário apercebemo-nos de que, a partir
fundo do Cabido da Sé do Funchal na Torre do do séc. xvii, o seu valor baixou bruscamente,
Tombo, são abundantes. Fernando Jasmins Pe- como demonstram as tabelas apresentadas por
reira estudou em profundidade este tema, pu- Fernando Jasmins Pereira. Essa quebra é justi-
blicando a maioria dos valores das côngruas e a ficada pelo pedido dos capitulares ao monarca
sua evolução. É conveniente distinguir as côn- para lhes modificar as côngruas, adotando-se
gruas dos clérigos das igrejas paroquiais das do o modelo da Diocese de Angra, onde os ven-
clero catedralício. Sabe-se que este último pos- cimentos recebidos correspondiam a 2/3 em
suía os rendimentos mais elevados. O bispo trigo e vinho e o restante em dinheiro, com
recebia a maior côngrua da ilha. Quando a a equivalência de 6000 réis por cada moio de
mitra foi constituída, a côngrua ficou estabele- trigo e 3000 réis por pipa de vinho.
cida em 200.000 reais, sendo constantemente Os eclesiásticos que serviam nas paróquias
acrescentada até valer 1200 réis, 10 moios de recebiam igualmente os seus rendimentos pro-
trigo e 5 de cevada em 1603. Porém, em 1673, venientes da Fazenda Régia. Analogamente
com D. Gabriel de Almeida, os rendimentos ao ocorrido na Sé, estes receberiam perpetua-
foram alterados, fixando-se o vencimento em mente a côngrua caso fossem párocos, benefi-
266.600 réis, 49 moios e 26 alqueires de trigo, ciados ou tesoureiros, ou consoante o período
2,5 moios de cevada e 101 pipas e 9 almudes dos seus ofícios se fossem curas ou organistas.
de vinho. Além destas quantias, o bispo rece- Critérios de isolamento ditaram as diferen-
bia ainda ajudas de custo para pagar a deslo- ças entre os vencimentos dos párocos. Porém,
cação ao bispado, a realização de visitações, desde 1572, e até 1577, aplicou-se a mesma me-
a expedição de bulas e breves papais, os ven- dida que à diocese angrense – ainda que neste
cimentos ao provisor do bispado e ao vigário- caso tenha sido feita por carta geral –, unifor-
-geral e para despender em esmolas. Em 1736, mizando os vencimentos dos párocos consoan-
D. Fr. Manuel Coutinho recebeu 100.000 réis te o número de paroquianos. Os presbíteros
para pagar aos oficiais e 160.000 para esmolas. que cuidassem de menos de 100 fiéis recebe-
É de notar que esta côngrua era vitalícia por riam 20.000 réis, enquanto nas paróquias que
o bispado ser um cargo inserido no sistema continham entre 100 e 200 crentes os párocos
B ens da I greja ¬ 309
necessários. Além destes valores, as fábricas ad- nos conventos de S.ta Clara, no Convento da
ministravam as oblatas, doações e esmolas dos Encarnação e no Colégio dos Jesuítas, que pos-
fiéis, o dinheiro resultante da venda de sepul- suíam uma base económica distinta.
turas e capelas, os foros dos bens de raiz, os Os conventos franciscanos femininos foram
juros do dinheiro emprestado e o dinheiro de- todos constituídos através das rendas outorga-
vido pelos fiéis, para pagamento de sufrágios das pelos seus fundadores. Essa dotação inicial,
pelas almas e pelas penas pecuniárias impos- fundamental para a construção do cenóbio e
tas por eclesiásticos. Esporadicamente, as fá- das suas dependências, poderia ser efetuada
bricas lucravam com a venda de ornamentos em numerário ou em património que pudes-
ou alfaias danificados ou excedentes e com o se, rapidamente, dar os proventos necessários à
dinheiro que não era pago aos clérigos, por edificação. A título de exemplo, os fundadores
motivos da sua vacatura ou por faltas no servi- do Convento das Mercês, Gaspar Berenguer de
ço destes (SILVA, 1995, I, 538). Já em 1691, a Andrade e Isabel de França Andrade, sua mu-
receita da fábrica da Sé ascendeu aos 209.687 lher, dotaram-no com 160.000 réis anuais desde
réis, compondo este valor os 40.000 réis da 1654. Já o cónego Henrique Calaça de Vivei-
doação anual da Fazenda Régia, dos foros das ros, em 1645, dotou o cenóbio da Encarnação
casas, das sepulturas, da venda de vinho, ceva- com quatro propriedades urbanas e 24 rústicas.
da e centeio, de ofertas em dinheiro e de ou- O Convento de S.ta Clara teve o patronato de
tras proveniências (Ibid., 539). João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do
O liberalismo, ao contrário do ocorrido com donatário no Funchal, e o apoio de D. Manuel,
o clero regular, não gerou especiais modifica- grão-mestre da Ordem de Cristo, que incitou os
ções nos rendimentos do clero secular, dimi- oficiais camarários a auxiliarem nas obras ini-
nuindo ligeiramente as côngruas, mas atuali- ciais do Convento, pois “has freyrasque em elle
zando-as posteriormente. Todavia, a Primeira amde emtrar nom am de seer estramgeyras mas
República eliminou as doações à Igreja e subs- filhas e paremtas dos primcipaees da terra”. Foi
tituiu por pensões o regime de côngruas, que Gonçalves da Câmara que dotou o Convento de
regressou com a implementação do Estado uma das suas mais rentáveis e famosas proprie-
Novo, embora noutro quadro. dades, o “curral grande” ou “Curral das Freiras”
(FONTOURA, 2000, 97).
Os dotes de entrada das noviças ou de senho-
Clero regular ras que se recolhiam no cenóbio auxiliaram
Ao contrário do clero secular, as duas ordens re-
ligiosas instaladas no arquipélago madeirense –
franciscana e jesuíta – foram acumuladoras de
bens de raiz, destacando-se, ao longo do Antigo
Regime, como importantes instâncias económi-
cas das ilhas. Todavia, esta situação não é gene-
ralizada. Os conventos masculinos franciscanos
e o Convento feminino das Mercês foram de-
dicados a ordens de extrema observância, cum-
prindo rigorosamente o seu voto de pobreza e
não acumulando bens além do estritamente ne-
cessário para subsistirem e efetuarem os ofícios
religiosos. Assim, viveram da pequena horta ou
cerca existente no interior das muralhas do con-
vento, das esmolas dos fiéis, de doações de pe-
quena monta ou da venda de produtos por estes Fig. 5 – Convento de S. Francisco do Funchal com as suas hortas,
produzidos. No entanto, é necessário atentar pormenor da planta do Funchal de c. 1567 (BNB).
B ens da I greja ¬ 311
nessa acumulação de bens patrimoniais. Veja- O pagamento desenrolava-se em três fases: nos
-se, e.g., o caso seguinte: Emília de Santiago, primeiros três anos, o colono não pagava ou
quando, nos inícios do séc. xvii, se recolheu entregava uma galinha; nos três seguintes, era-
ao Convento de S.ta Clara, deixou testamenta- -lhe cobrado 1/3 da produção; nos últimos
do que doava dois cerrados de canas, perto da anos, pagaria metade da produção. Mas é de
levada de Santa Luzia, avaliados em 305.000 notar que nem todas as propriedades eram co-
réis, um terreno de vinha na serra, estimado locadas a render. Por exemplo, o Convento da
em 100.000 réis e o seu escravo, Pedro, ao Con- Encarnação deixava algumas terras em baldio
vento (SILVA, 1995, II, 933). destinadas à pastorícia.
Porém, nem todas as propriedades foram ad- Os rendimentos que os conventos auferiam
quiridas por doação. As propriedades que os provinham de múltiplas origens. As mercês ré-
Jesuítas possuíam foram todas compradas e, gias foram deveras importantes para alguns con-
através de criteriosa administração, largamen- ventos. Já se referiu a importância que o Con-
te rentabilizadas. Em 1577, a quinta do Pico vento de S.ta Clara tinha para D. Manuel I, ao
do Cardo foi vendida aos padres por 100.000 ponto de este incitar a Câmara a apoiar a sua
reais, além dos 30.000 reais anuais que o con- construção. Também o Convento das Mercês re-
trato estipulava que se desse ao antigo proprie- cebeu o auxílio da Coroa. D. Luísa de Gusmão,
tário até este falecer. No ano seguinte, compra- rainha regente, doou 16.000 réis anuais ao Con-
ram diversas casas a Garcia Homem de Sousa; vento; D. João V outorgou 40.000 réis e D. José
em 1595, adquiriram a quinta Grande; e, em ofereceu uma arroba de cera anual para as fes-
1600, obtiveram a quinta dos Frias. tividades em honra do seu santo homónimo.
Assim, o património imóvel pertencente ao Também os Jesuítas foram bafejados pela mercê
clero regular era múltiplo e em avultado nú- régia, pois em 1569 receberam uma dotação
mero, distinguindo-se em três parcelas: o cenó- de 600.000 reais. Porém, em 1594, decidiu-se
bio – o complexo habitacional e laboral destes que esse valor deveria ser retirado dos dízimos
clérigos –, as propriedades rústicas e os prédios da Ribeira Brava, cobrando-se também dos dí-
urbanos, que explorava. O Convento de S.ta zimos do Campanário, Tabua e Serra de Água.
Clara totalizou as 104 propriedades rurais além E se esse valor estava inicialmente estimado em
de diversas casas na cidade do Funchal. Para 600.000 reais, no triénio de 1759-1761 o mon-
o Convento da Encarnação, Eduarda Gomes tante recolhido foi de 17.011.650 réis.
contabilizou 11 propriedades urbanas e 66 rús- Os dotes de entrada eram uma das prin-
ticas. Já o colégio dos Jesuítas chegou a possuir cipais rendas dos conventos. Em S.ta Clara, o
28 propriedades rurais. dote estava fixado em 300.000 reais, enquan-
No que concerne à exploração destes bens, to na Encarnação era de 400.000 réis, 300.000
sabe-se que a cerca ou a horta eram explora- para a compra de bens e colocação a juros e
das pela própria comunidade conventual e 100.000 para as obras do convento. Porém,
pelos seus serventuários. Os prédios urbanos por diversas vezes esse valor foi ultrapassado, e,
eram arrendados ou vendidos. Já as proprie- não raras vezes, as professas legavam todos os
dades rústicas eram exploradas em regime de seus bens aos cenóbios. Assim aconteceu com
meação, o que significa que o convento cedia Francisca de Carvalho, que, em 1620, entrou
o domínio útil da terra mediante o pagamen- com um dote avaliado em 800.000 réis, entre
to de uma renda ou foro. Essa era paga nor- dinheiro e propriedades, no Convento de S.ta
malmente em dinheiro ou em géneros. João Clara (SILVA, 1995, II, 932-934). No Convento
José Abreu de Sousa estudou os contratos cele- das Mercês, onde a regra proibia a acumula-
brados pelo Convento de S.ta Clara, detetando ção de bens, os dotes das noviças eram colo-
que estes eram na sua maioria de arrendamen- cados a render, através do juro a 5 ou a 6,25
to de 9 ou 18 anos, ainda que existam alguns %. O rendimento proveniente era aplicado
exemplos de contratos enfitêuticos perpétuos. nas despesas da igreja e do culto divino e, caso
312 ¬ B ens da I greja
1700, a Misericórdia recebeu 370.323 réis das encadernação encareciam o produto. Assim se
suas propriedades rústicas. Já os valores recebi- justifica que, ao extinguir-se o Colégio dos Je-
dos em géneros eram vendidos no dia da festa suítas, se tenha efetuado um inventário dos li-
do santo padroeiro. vros existentes na sua biblioteca.
Também constituíam receitas das confra- Os bens móveis das confrarias baseavam-se
rias os laudémios. Estes consistiam no imposto essencialmente em alfaias litúrgicas. Estas se-
sobre a transferência de propriedade, e, apesar riam na sua maioria compradas, ou reaprovei-
de rentáveis, não eram regulares. Um outro ren- tadas de peças mais antigas e estragadas, ainda
dimento da Misericórdia era proveniente dos que algumas fossem doadas, tanto no caso das
enterramentos. Representando 5 % das recei- confrarias como nos conventos e nas igrejas
tas, consistia no dinheiro angariado pela venda seculares. A celebração do culto divino a isso
das sepulturas na igreja da Misericórdia, que era obrigava. Observe-se que, em 1670, a confraria
depois utilizado para amparar os pobres. do Santíssimo Sacramento do Funchal possuía
um sacrário e um retábulo de Jesus Cristo, dois
lampadários de prata, quatro castiçais de prata
Bens móveis grandes, dois cálices, um turíbulo, além de
Muito se poderia escrever sobre o património cinco peças de ornamento branco, um frontal,
móvel das instituições referidas anteriormente. um pano do sepulcro, quatro alvas e outros ob-
Poder-se-ia, para algumas delas elaborar listas jetos necessários à correta celebração da missa.
do espólio que as igrejas, os conventos e os alta- Se algum destes objetos foi doado, sabe-se que
res de algumas confrarias possuíram. Alguns au- as mordomas da confraria compraram os qua-
tores já as elaboraram, publicando róis feitos no tro castiçais de prata por 46.860 réis.
passado ou estudando as peças. Assim o fizeram
Pita Ferreira para a sé ou Nídia Estreia para as
confrarias da sé, além de muitos outros. Os bens
móveis da Igreja madeirense consistiam, grosso
modo, em obras de arte sacra e em alfaias litúrgi-
cas e ornamentos. As primeiras, além da função
de embelezamento, tinham um papel catequéti-
co muito importante, guardando-se as segundas
para a celebração dos ofícios divinos.
Estes bens chegavam à Igreja e às instituições
pararreligiosas por doação ou por compra.
Quando por doação, eram de particulares mas
também da coroa. São exemplo disso, as diver-
sas peças – como uma cruz peitoral de cristal
com engastes de ouro – e os tecidos doados
por morte do bispo D. Fr. Gabriel de Almeida à
fábrica da Sé, em 1674 e as vestimentas doadas
por D. Manuel às igrejas madeirenses. As fá-
bricas paroquiais também despendiam verbas
na compra de bens móveis. A do Porto Santo,
em 1593, necessitou de adquirir uma lâmpada
de vidro para a capela-mor, e um novo missal,
no início do século seguinte. Os livros devem
também ser considerados bens e peças de arte,
pois a qualidade dos materiais utilizados e a Fig. 8 – Lampadários da capela do Santíssimo da Sé, João da Silva
técnica necessária para a escrita, iluminura e Esteves, 1767.
B enzoni , G irolamo ¬ 315
que não poderiam vir de outro lugar que da Beresford, William Carr
terra [...] decidiu tentar a viagem” (BENZONI,
1572, 12). No segundo livro, trata do comér- Nascido na Irlanda, em 1768, tinha 39 anos
cio de escravos, enquanto no terceiro se centra e era brigadeiro-general quando tomou for-
na conquista do Peru por Pizarro. O estilo é malmente a Madeira para a Coroa britânica,
moderno, embora às vezes um pouco simples; a 26 de dezembro de 1807, com a assinatura
os momentos de particular vivacidade resul- da capitulação. No ano anterior, participara no
tam de queixas contra os espanhóis e das expe- equívoco que fora a expedição a Buenos Aires
riências diretas que despertaram emoções for- (onde foi feito prisioneiro).
tes no autor. Pela utilização que faz das obras Entrou no Exército britânico em 1785, pelo
de outros autores, La Historia del Mondo Nuovo que, em 1807, tinha já uma vasta experiência
foi, no passado, considerada plágio e injusta- militar e de combate, desde o Cerco de Toulon
mente subestimada pelos estudiosos contem-
porâneos, que acusaram Benzoni de má pre-
paração científica. No entanto, o trabalho teve
muita fama, tanto na Itália como no exterior,
razão pela qual foram feitas 32 edições.
Em relação à Madeira e a Colombo, Benzo-
ni recorreu, no primeiro livro, a várias fontes
da sua época, incluindo o tratado Delle Naviga-
tioni et Viaggi (3 vols., 1550-1606), de Giovanni
Battista Ramusio, e a Historia de las Nuevas In-
dias Occidentales (1560), do espanhol Francisco
Lopez de Gomara. Em três páginas de conteú-
do interessante, Benzoni relata que, de acordo
com algumas fontes, Colombo, “já marinhei- William Carr Beresford, óleo sobre papel de sir William Beechey,
ro”, teria tido notícias do novo mundo através 1830 (National Portrait Gallery, Londres).
de um navegador que “fazia comércio nas ilhas
Canárias e Madeira” (Id., Ibid., 11). De acordo (em 1793) até à captura da cidade do Cabo da
com outras fontes, o mesmo navegador, chega- Boa Esperança (onde comandou uma briga-
do à Madeira, tinha ficado em casa de Colom- da), em 1806, passando pela expedição envia-
bo “onde lhe contou da viagem feita e as novas da em Egito (entre 1801-1803).
terras que tinha visto para que […] as colocasse Depois da missão na Madeira, serviu com
nos mapas, que comprava, e levava muitos para John Moore na península (1808-1809). De
fora; e no caso de morrer, deixava-lhe o traçado, resto, a atividade em Portugal do futuro conde
e o que sabia das novas terras” (Id., Ibid.). de Trancoso, marquês de Campo Maior e
duque de Elvas é conhecida. O que muitas
Obras de Girolamo Benzoni: La Historia del Mondo Nuovo di M. Girolamo vezes a historiografia portuguesa e estrangei-
Benzoni Milanese. La Qual Tratta dell’Isole & Mari Nuovamente Ritrovati & delle
Nuove Città da Lui Proprio Vedute, per Acqua & per Terra in Quattordeci Anni ra esquece é o seu desempenho como gover-
(1565). nador-general da Madeira, entre dezembro de
Bibliog.: BENZONI, Girolamo, La Historia del Mondo Nuovo di M. Girolamo 1807 e abril de 1808, em nome de Jorge III,
Benzoni Milanese. La Qual Tratta dell’Isole & Mari Nuovamente Ritrovati & delle onde começou a adotar, nas forças locais, al-
Nuove Città da Lui Proprio Vedute, per Acqua & per Terra in Quattordeci Anni,
Venezia, Pietro e Francesco Tini, 1572; Dizionario Biografico degli Italiani, vol. 8, gumas das iniciativas que depois tentou imple-
Roma, Istituto dell’Enciclopedia Italiana, 1966; FRACCACRETA, Augusto, Alcune mentar no Exército português.
Osservazioni su l’Historia del Mondo Nuovo di G. Benzoni, Roma, Tip. Terme,
1939; MAZZUCHELLI, Giammaria, Gli Scrittori d’Italia, vol. ii, pt. ii, Brescia, Saiu do Funchal em finais de agosto de 1808.
Giambatista Bossini, 1760; ROMEO, Rosario, Le Scoperte Americane nella Foi promovido a general em 1825. Terá morri-
Coscienza Italiana del Cinquecento, Roma/Bari, Laterza, 1989.
do em 1854.
Valeria Biagi Paulo Miguel Rodrigues
B ermudas ¬ 317
Bermudas
Grupo de ilhas no Atlântico, próximas dos Es-
tados Unidos da América, sob dependência da
Grã‑Bretanha. O grupo é constituído por 150
pequenas ilhas, ilhéus e rochedos. A designa-
ção tem origem em Juan Bermúdez que as en-
controu na primeira década do séc. xvi. Foi
ocupado pelos Ingleses em 1609, mas só em
1684 assumiu o estatuto de colónia.
As ligações das Bermudas à Madeira ganham
importância a partir do séc. xvii, quando os
britânicos estabeleceram, no Funchal, um
centro de apoio à navegação oceânica para
as suas colónias. A legislação promulgada por
Cromwell em 1660 estabelece condições espe-
ciais para o relacionamento do porto madei-
rense com as colónias britânicas. Note-se que,
em julho de 1698, os governadores de Barba-
dos, São Cristóvão e Bermuda fizeram escala
no Funchal, onde permaneceram oito dias.
Estas ilhas da América Central podem ser
consideradas um mercado e uma área de na-
vegação muito intensa em termos inter-regio-
nais. Apesar de, muitas vezes, os passageiros/ East Broadway Bermuda, bilhete-postal de c. 1900
(coleção particular).
emigrantes e os produtos não terem como des-
tino um determinado porto, esse acaba por se
tornar o seu destino final, havendo um meca- Madeira, sendo os primeiros trabalhadores
nismo de redistribuição interna, que escapa ao madeirenses levados para essa colónia. Em-
investigador que apenas faz a leitura da infor- bora não tenha tido sucesso, esse projeto terá
mação documental desde o ponto de partida. sido o princípio da emigração madeirense
A política comercial britânica, a partir do para este destino, que ganhou importância a
séc. xvii, favoreceu o comércio do vinho Ma- partir da déc. de 40 do séc. xix. O registo de
deira para as colónias britânicas. Desta forma, passaportes para o período de 1872 a 1910 re-
as Bermudas receberão vinho e aguardente da fere alguns pedidos de madeirenses com a in-
Ilha em condições muito favoráveis, em troca tenção de viajar para este destino. O primei-
de trigo, milho, óleo e tabaco. Há, ainda, a re- ro registo é de João Gonçalves Cabral, que
ferência à importação de 16 escravos. A 8 de manifestou esse desejo em 1890. Mas, antes
agosto de 1728, aportou ao Funchal a balandra disso, já muitos madeirenses tinham partido
Vitória, oriunda das Bermudas com destino a nesta direção, sem que se tenha o registo na
Barbados, que transportava trigo, farinha, óleo documentação.
e tabaco; a 5 de novembro, aportou no mesmo Note-se ainda que Arthur Raleigh Blandy
porto, com destino às Bermudas, a balandra Cossart, oficial do Exército Britânico ligado
Isabel, propriedade de Bristol Brown, das Ber- a importantes famílias inglesas residentes na
mudas, que fazia a rota da Terra Nova trans- Ilha, prestou serviço nas Bermudas, em 1896.
portando bacalhau. Por fim, assinala-se o naufrágio, nas Achadas
Em 1747, houve a ideia de criar nas Ber- da Cruz, do iate americano Varuna, de Eugene
mudas um vinhedo com castas oriundas da Higgins, que teve lugar em 16 de novembro de
318 ¬ B ernardes , L í lia
pássaros”, que foi publicado na edição ele- João Abel de Freitas”, testemunhando a autora
trónica de 28 de abril de 2016 do Diário de Notí- que “Apresentarei o livro tal como o li, ou me-
cias de Lisboa, jornal “para o qual reportou das lhor, tal como o vivi” (168). Na segunda publi-
ilhas [...], numa frente de resistência ao jardi- cação, escreveu “Uma história de amor”.
nismo que lhe valeu [...] ser denominada em Numa altura em que os direitos das mulhe-
2012 pelo PSD regional […] como ‘inimiga da res se consolidavam por todo o país, também
Madeira’” (CÂNCIO, DN, 28 abr. 2016). Lília na Madeira movimentos mais ou menos femi-
Bernardes não cedeu nunca ao que conside- nistas se afirmavam. Era importante debater
rava serem tentativas de condicionamento da questões relacionadas com a mulher. Esse foi o
liberdade dos jornalistas. A pressão política era principal propósito da realização, no Funchal,
tanta que o Diário de Notícias de Lisboa optou de um congresso internacional sobre o tema.
por abrir uma delegação oficial no Funchal, Neste encontro, participou como intervenien-
em 1995, para que a jornalista ficasse mais te Lília Bernardes.
protegida. No seguimento da mesma temática, mas no
Lília Bernardes é um nome de referên- Jornal da Madeira, a jornalista publicou uma en-
cia no jornalismo madeirense do final do trevista à escritora Helena Marques com o tí-
séc. xx. Ao longo da carreira, cobriu para o tulo “É difícil imaginar um país onde não se
Diário de Notícias de Lisboa grandes aconteci- podia escrever”, na qual as questões da liberda-
mentos, como o julgamento do P.e Frederico de feminina estão bem vincadas.
Cunha e a morte de vários jovens trabalha- Ao longo da sua carreira, além do Diá-
dores na obra da abertura do túnel rodoviá- rio de Notícias de Lisboa, Lília Bernardes rea-
rio para o Curral das Freiras, no concelho lizou trabalhos para O Público e o Observador,
de Câmara de Lobos, tendo igualmente re- passou pela rádio TSF-Madeira, onde fazia
latado atos eleitorais para todos os órgãos de
poder. Acompanhou, por várias vezes, visitas
oficiais de presidentes da República e do Go-
verno regional. Escreveu sobre temas algu-
mas vezes polémicos na área cultural, como
“A cultura na Madeira. Que política é segui-
da?”; um texto no qual abordou o lobby gay
no sector cultural; e “Repensar a escultura
madeirense”, onde questionou o conjunto
escultórico da Ilha. Ainda no âmbito da cul-
tura, a jornalista escreveu sobre a importân-
cia de preservar a história da Madeira atra-
vés do “Photografia Museu ‘Vicentes’. Foram
os primeiros”. Para o público nacional, Lília
Bernardes alertava o país para questões so-
ciais regionais, como a decadência de ativi-
dades económicas tradicionais, entre elas o
bordado Madeira, uma “espécie” em vias de
extinção. Publicou diversas entrevistas, como
a de Alberto João Jardim com o título “Con-
fesso-me uma vez por ano e sou absolvido”.
Num âmbito mais científico, a jornalista tam-
bém colaborou com revistas especializadas,
como a Islenha e Margem 2. Na primeira, edi-
tou o artigo “A Revolta do Leite, Madeira 1936 de Fig. 2 – Cartaz da peça As Criadas, Funchal, 1986.
320 ¬ B ernardes , L í lia
comentário político, pela RDP-Madeira, onde No filme Até amanhã Mário, de Solveig Nor-
participou na radionovela de grande sucesso dlund, estreado em 1994, interpretou o papel
“Neto herói”, nos anos 80, e pela RTP-Madeira, de mãe do protagonista. O filme sobre a vida
apresentando programas como “Conversas sol- de um rapaz que pedia esmolas assumiu par-
tas”, “Histórias que a vida conta”, “Tem a pala- ticular relevância por ter surgido na altura do
vra”, “Parlamento” e “Negócios em dia”, entre polémico processo de abuso sexual de meno-
outros. Foi coautora, com o companheiro João res em que as vítimas eram “os meninos das
Abel de Freitas e Raimundo Narciso, do blo- caixinhas”, crianças de Câmara de Lobos que
gue Puxa Palavra, no qual essencialmente es- pediam dinheiro aos turistas no Funchal. Lília
crevia opinião. Bernardes dedicou-se a este processo não só
Lília Bernardes integrou o núcleo fundador do ponto de vista profissional, como jornalis-
do Teatro Experimental do Funchal em 1975. ta, mas também pessoal. Colaborou de forma
Desde cedo, esteve ligada ao teatro, quer como decisiva na orientação dos familiares das ví-
atriz, na peça As Criadas, de Jean Genet, ence- timas para seguirem com um processo judi-
nada por Eduardo Luiz, quer como dramatur- cial. O seu empenho resultou na condena-
ga. Em 1996, escreveu Soprou Vento de Leste, peça ção de um cidadão belga ao pagamento de
que estreou no Teatro Municipal Baltazar Dias indemnizações.
e esteve em itinerância até 2006. Antes, em Ao longo de uma carreira de jornalista de
1989, escreveu Um Dia em Cada Ano, dando ori- mais de duas décadas, foi processada 10 vezes,
gem a um teledramático realizado por Paulo mas nunca perdeu nenhum processo. Aban-
Valente para a RTP-Madeira. Ainda no mesmo donou o jornalismo quando foi incluída num
ano, uma versão continuada desse texto es- despedimento coletivo no Diário de Notícias de
treou no Festival de Teatro Madeirense, pro- Lisboa, que a deixou profundamente magoa-
movido pelo INATEL, na Camacha, com o tí- da pela forma como foi tratada. Seguiu em
tulo “Gente”. frente, até ao fim da vida, a trabalhar como
Mulher com gosto pelas coisas da cultura, adjunta, para a área da comunicação, do pre-
Lília Bernardes passou também pelo cinema. sidente do Governo regional da Madeira, Mi-
guel Albuquerque, sucessor de Jardim no Go-
verno e no PSD.
Chegou a dizer que “Nunca pensei entrar
aqui [Qt. Vigia, de onde chegou a ser expul-
sa por Alberto João Jardim] todos os dias, ser
este o meu local de trabalho. O que é que ele
[Alberto João] há de pensar?” (CÂNCIO, DN,
28 abr. 2016).
A morte da jornalista surpreendeu pessoas de
todos os quadrantes, que manifestaram gran-
de pesar, como, e.g., Marcelo Rebelo de Sousa,
Presidente da República. Em memória de Lília
Bernardes, tanto na Assembleia da República
como na Assembleia Legislativa da Madeira, fe-
z-se um minuto de silêncio, e nesta foram apro-
vados votos de pesar apresentados por várias
forças partidárias. Todos lhe reconhecem cora-
gem e integridade pessoal e profissional.
No Dia da Região Autónoma da Madeira e
Fig. 3 – Fotografia promocional de Até amanhã Mário, de Solveig
das Comunidades Madeirenses de 2016, foi
Nordlund, Funchal, 1994 (arquivo particular). agraciada, a título póstumo, com a insígnia
B ernes , fam í lia ¬ 321
um e cinco retratos em gravura assinados – Serra de Água realizou dois quadros, referin-
“Bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira” do-se na comunicação social que ia em breve
(DM, 7 mar. 1915, 1) “Major José Maria de Gou- dar início aos trabalhos de pintura ornamen-
veia” (Revista Madeirense, 3 fev. 1901, 81), “Padre tal. Por esta altura afirmava-se que como pin-
João Maurício Henriques” (Revista Madeirense, tor não há “ninguém aí que o não conheça ou
29 dez. 1901, 42), “Conde de Canavial” (Revista ao menos que não tenha ouvido falar do seu
Madeirense, 23 fev. 1902, 97), “Almeida Garret” nome” (“Artistas Madeirenses…”, DM, 14 fev.
(Revista Madeirense, 08 jun. 1902, 217), “Conse- 1914, 1). Em 1915, nas obras realizadas na igre-
lheiro Carlos Maria de Vasconcelos Sobral” (Re- ja do Jardim do Mar, em parceria com o pintor
vista Madeirense, 06 jul. 1902, 248) –, entre ou- João Firmino Fernandes, executou a pintura
tros que lhe são atribuídos pela semelhança de dos altares e marmoreados no coro, de orna-
traço, destacando-se ainda algumas paisagens mentação e figurativa nos tetos, assinando João
ao gosto romântico: “Ponte Monumental no Firmino o painel central. Para esta igreja pinta,
Funchal” (Revista Madeirense, 20 abr. 1902, 166), em 1923, três quadros, um da Ceia de Cristo
“Capela de São Vicente” (Revista Madeirense, 04 para o altar do Santíssimo e dois para as pa-
maio 1902, 188), “Ponte Nova no Funchal” (Re- redes laterais. Em 1918, na igreja da Ponta do
vista Madeirense, 29 jun. 1902, 244). Sol, realizou a pintura do teto onde represen-
De sua autoria são conhecidas diversas pintu- tou e assinou diversas cenas de Nossa Senhora
ras em tela a óleo e tetos, ornamentos e dou- da Luz. No ano seguinte, aquando das inter-
ramentos para diversos templos na Madeira. venções na igreja do Curral das Freiras, pinta
As pinturas dos tetos das igrejas de São Pedro para o altar-mor um painel do Anjo da Guarda,
e de São Martinho, ambas no Funchal, alusivas podendo ser-lhe atribuído o outro painel da
a São Pedro, são os dois primeiros trabalhos co- mesma temática. Em 1920, pintou um quadro
nhecidos, datam de 1900 e estão assinados. Na alegórico para a capela batismal da igreja pa-
igreja de São Sebastião, em Câmara de Lobos, roquial de São Vicente, aquando dos marmo-
Luís Bernes tem uma pintura assinada no teto reados executados em estilo gótico pelo pintor
do subcoro. Na capela de N.ª Sr.ª da Conceição, José Zeferino Nunes, e trabalhou no teto da
em Câmara de Lobos, pintou, em 1908, o teto igreja de São Brás, no Arco da Calheta, onde
e restaurou/repintou alguns quadros do pintor são visíveis vários estilos pictóricos nos painéis,
Nicolau Ferreira, de finais do séc. xviii, assinan- assinando Luís Bernes os de Nossa Senhora da
do o painel Fuga para o Egito. Nas obras realiza- Boa Hora, São Brás e Nossa Senhora da Con-
das em igrejas, nas décs. de 10 a 30 do séc. xx, ceição. Entre 1920 e abril de 1922, realizaram-
é comum a realização de obras de pintura em -se diversas obras de melhoramento na igreja
tetos, em simultâneo com a pintura de novas da Camacha, entre as quais a pintura do coro e
telas figurativas (cópias) ou restauro/repinte de do teto, onde constam nove painéis. Os traba-
antigas, das que se encontravam em mau esta- lhos de pintura foram dirigidos por Luís Ber-
do, assinando por vezes as pinturas intervencio- nes, que assinou, coadjuvado por João Firmino
nadas; por vezes em simultâneo construíam-se Fernandes e contando no final com a partici-
novos retábulos em talha. pação na pintura decorativa da oficina de pin-
Para a igreja de N.ª S.ª da Graça, no Estreito tura Cirilo (José Zeferino Nunes) & Velosa. Em
de Câmara de Lobos, Luís Bernes (re?)pinta, 1921, a equipa de Luís Bernes, João Firmino
em 1910, o teto da capela-mor; em 1909/1910 e José Joaquim Mendonça pintaram o teto do
repinta e pinta telas para a capela-mor: a Anun- salão grande do edifício onde funcionou o Se-
ciação, a Visitação, a Ceia em Casa de Emaús, um minário e depois a Escola Preparatória de Bar-
jarrão com flores, a Eucaristia e, em 1913, pinta tolomeu Perestrelo.
um retábulo para o altar-mor. Ficou encarre- Nestes anos são executadas muitas obras. Por
gue, neste ano, da pintura dos tetos das salas exemplo, entre 1922 e 1924, na igreja da Fajã
do palácio de São Lourenço, e para a igreja da da Ovelha, são realizados sob sua direção e com
B ernes , fam í lia ¬ 323
Fig. 3 – Notícia do falecimento Dos sete filhos de Luís António Bernes, qua-
do pintor Luís António Bernes
(DN, 23 out. 1936, 3).
tro continuaram o ofício, nomeadamente Alfre-
do Pedro, Luís António, Alberto e Leontina.
Quanto ao pintor Alberto Bernes (n. 1905),
que expôs na Livraria desconhecemos referências aos seus trabalhos.
Popular, nas montras De Luís Bernes Júnior (n. 1909) sabemos que
do Golden Gate e da era gravador da casa Leacock e morava no cami-
Casa Santa Teresinha, nho do Palheiro. Leontina Bernes (n. 1892, m.
na R. da Carreira: uma antes de 1936) desenvolvia o ofício no Hospício
“cópia dum quadro ho- da Imperatriz D. Amélia (1915) e com seu pai
landês do seculo xvi” no ateliê da Photografia Vicentes (1916), reali-
que representa “um zando variados trabalhos: pintura decorativa em
grupo de quatro indi- vidro e bandejas; flores em cetim e seda; tabule-
víduos em volta duma tas de luxo; envernizamento de mapas; doura-
pipa que se esboroa de dos e prateados em igrejas; gravuras em chapas
velha, todos eles com aspectos de quem passa de latão, ouro ou prata; conserto e encarne de
o tempo no gasto de fumo e álcool e ao fundo, imagens, tendo sido responsável em 1927 pelo
bem nítido, destaca-se um outro grupo em encarne da imagem do orago da capela de São
preparativos d’uma refeição” (1914) (“Artis- João Batista da Ribeira. Segundo a imprensa,
tas madeirenses…”, DM, 14 fev. 1914, 1); uma em 1923 Leontina Bernes já tinha o seu nome
cópia do quadro de João Gonçalves Zarco, ligado a importantes trabalhos de decoração.
existente no palácio de S. Lourenço, que foi ri- Alfredo Bernes (n. 1911) foi o que mais se
fado para angariar dinheiro a favor dos pobres destacou. Morava na R. das Maravilhas, n.º 12,
da freguesia do Monte; um quadro represen- e em 1924 publicitava os seus trabalhos na área
tando a chegada da “caravela” de Gonçalves da pintura em casas e estabelecimentos. Como
Zarco à Madeira (rifado no valor de 300$00 gravador, estudou na Escola Industrial do Fun-
por ocasião do V centenário da descoberta da chal no biénio letivo de 1929/1931 o curso de
Madeira); uma Virgem das Graças “destacada Aperfeiçoamento, frequentando a disciplina
d’um fundo de nuvens de tempestade, a sur- de Desenho Geral (1.º e 2.º anos), que con-
gir sobre a cidade do Funchal” […] deixando cluiu com 15 valores.
ver através dum rasgo de nuvens o molhe da Comparada com as obras de seu pai, a sua pro-
Pontinha.” (1917) (“Quadro a óleo”, DM, 11 dução pictórica revela uma paleta menos rica e
jan. 1917, 2); dois quadros, um representan- mais ingénua. Foi autor de tetos e quadros, pin-
do a Ponta dos Corvos, no Seixal, e o outro a tando em diversas igrejas, caso dos tetos na igre-
caravela supracitada (1925) e um quadro que ja paroquial da Madalena do Mar, onde assinou
“representa um veleiro americano, tendo nas os dois painéis centrais que representam cenas
proximidades uma baleeira tripulada por três de Maria Madalena, o Lava-Pés e Noli Me Tangere;
rudes marinheiros, tendo um deles, nos bra- na igreja paroquial de Ponta Delgada, em parce-
ços, a venerada imagem do Senhor dos Mila- ria com os pintores António Gouveia e João Sil-
gres, de Machico, por eles encontrada no alto vino, foi responsável pela pintura dos tetos das
mar, após o aluvião que assolou a Madeira” capelas principal e duas laterais, e por quadros
em 1803 (1928) e que se encontra na capela para as mesmas, tendo assinado alguns (1932);
dos Milagres em Machico (“Quadro artístico”, foi autor dos tetos e quadros para a igreja da fre-
DN Madeira, 21 nov. 1928, 1). Realizou ainda guesia de Boaventura (1933); o teto da capela-
a pintura do estandarte da Câmara Municipal -mor representando Deus Pai, Cristo Ressuscitado
do Funchal (1914) e uma aguarela que ser- e Custódia com a Hóstia (1952) e o teto da nave
viu de reclame da Escola de Utilidades e Belas da igreja paroquial do Curral das Freiras, onde
Artes da Madeira (1916). assina o painel central de Nossa Senhora do
B erredo , A nt ó nio P ereira de ¬ 325
Livramento envolta de nuvens sobre uma repre- da Madeira, 13 jul. 1913, p. 2; “Trabalhos de pintura”, Diário de Notícias, Funchal,
15 mar. 1922, p. 1; “Vida artística. Mais uma tela de Luiz Bernes”, O Progresso,
sentação do Curral das Freiras (1952); realizou 14 jan. 1917; “Vida artística. Trabalhos de pintura”, Diário de Notícias, Funchal,
a decoração da igreja nova de São Martinho, no 8 abr. 1923, p. 1.
Fig. 2 – A Invencível Armada, 1588, óleo de c. 1700 (National Maritime Museum, Londres).
Arganil e da Castanheira, na Ordem de Cris- do Funchal, Registo Geral, tombo 3, fl. 183v.),
to. Era filho de António Lopes Homem e de sendo o registo da provisão do capitão geral na
Maria Pereira, sua mulher, sendo o pai figura Provedoria da Fazenda da mesma data. As coi-
próxima do secretário Miguel de Moura (1538 sas não lhe correriam muito bem no Funchal,
‑1600), que viria depois a integrar o Conselho como largamente se haveria de queixar para
de Regência (1593-1598) e que sucedeu ao car- Lisboa a 29 de abril de 1592. Primeiro, todos
deal e arquiduque Alberto de Áustria (1559 os seus haveres tinham sido tomados por cor-
‑1621) quando este saiu para se tornar gover- sários, daí que os 2000 cruzados com que fora
nador dos Países Baixos. Não descortinámos, dotado para o Governo não lhe tenham che-
no entanto, os ascendentes familiares aos quais gado para as despesas. Depois, chegado à for-
foi buscar o apelido Berredo. taleza, descobriu que os soldados do presídio
António Pereira de Berredo assumiu Gover- não eram pagos há mais de um ano, acabando
no da ilha da Madeira por patente de 30 de de- por fazer face às suas necessidades com roubos
zembro de 1590, tomando posse a 21 de agosto à população, pelo que pouco lhe obedeciam.
do seguinte ano de 1591. A carta vem transcri- Nesse aspeto, acabavam por ter a cobertura do
ta com a data de posse na Câmara Municipal Cap. João Carrião Pardo, situação a que a frou-
do Funchal, como “Carta de El-Rei Nosso Se- xidão do desembargador António de Melo,
nhor a Esta Camara sobre o Geral Antonio Pe- que tomara posse a 17 de agosto de 1591 e que
reira”, informando: “Eu mando ora Antonio desempenhava igualmente as funções de pro-
Pereira do meu concelho para ora me servir vedor da Fazenda, não ajudava.
de geral dessa Ilha e superintendente das coi- O governador, que já então não gozava de
sas da guerra dela” (ABM, Câmara Municipal muito boa saúde, o que também se passava
328 ¬ B erredo , A nt ó nio P ereira de
com sua mulher, Mariana de Portugal, quei- não acedessem aos seus pedidos. O governa-
xava-se amargamente para Lisboa da situação dor recusou-se a negociar, com base na gente
do presídio, dos capitães castelhanos e por- do Porto Santo, que se encontrava em armas,
tugueses. Refere numa carta que, em todo o pronta a defender a ilha, e por ter sido in-
tempo que fora militar, “não houve algum que formado de que essas naus inglesas deveriam
me perdesse o respeito e que hoje, sem funda- fazer parte dos navios de Francis Drake e do
mento, me têm assim maltratado” (ANTT, Ga- conde de Cumberland (1558-1605), que em
vetas, xx, mç. 15, doc. 104), e que se sentia tão 1589 saqueara a vila Horta nos Açores e que
desconsiderado, que temia francamente o fu- António Pereira conhecia da Invencível Arma-
turo. Cita então um fidalgo recentemente che- da. A carta termina por, mais uma vez, solicitar
gado ao Funchal, Simão de Atouguia (1552-?), a “mercê de licença para me poder ir a minha
neto de João Fernandes de Amil e sobrinho de casa” (Ibid.), no que não foi atendido.
Manuel de Amil, tesoureiro das fortificações e A 5 de setembro do mesmo ano de 1592,
depois escrivão de guerra, com quem já teria o governador voltou a escrever para Lisboa,
tido problemas em Tânger, e o próprio capitão dando conta da maneira como se resolvera o
castelhano João Carrião. Deste capitão, diz o assunto dos corsários ingleses no Porto Santo
governador que tinha sofrido “alguns desatina- e das aquisições de pólvora e de mosquetes.
dos termos e muitas desordens, a que se com A pólvora destinava-se aos exercícios de barrei-
brevidade não acudira, seriam causa de muitos ra efetuados todos os domingos e controlados
males”. E acrescenta: “Este capitão não entrou pelo governador, sargento-mor e capitães en-
nesta fortaleza, nem tratou de mim em coisa tertenidos, ou seja, sem comando de compa-
alguma e confesso a Vossa Majestade, que me nhia. Nesta carta, descreve alguns incidentes
receio dele pela grande natureza que tem de ocorridos na Madalena do Mar, onde se fizera
fazer conluios e folgar com novidades” (Ibid.). um exercício de fogo de barreira a 28 de agos-
Por outro lado, dava as melhores referências to. O governador tinha ido acompanhado de
do tenente do presídio, Luís de Benevides, em- Lisboa pelo Cap. Pero de Faria, adjunto para
bora com a situação vigente dos pagamentos assuntos militares que, na Madalena, tinha ten-
pouco o pudesse ajudar. Em face da situação, tado prender os vários negligentes do serviço
o governador propõe nesta carta “que destas de vigias e alardos. Os populares tinham então
duas companhias se fizesse uma só, e sendo apedrejado o Cap. Pero de Faria e um dos seus
assim, nesta fortaleza se podiam alojar, e seria criados, o qual “feriram muito mal, de cima
menos gasto, e os donos das casas que ora ser- dumas rochas, onde se fizeram fortes” (ANTT,
vem de quartel receberiam nisso grande esmo- Gavetas, xx, mç. 15, doc. 105). Esta carta dá
la e mercê” (Ibid.). ainda parte do movimento de navios no mar da
Nesta carta, o governador conta também o Madeira, com a passagem de vários navios do
sucedido com a Armada que se deslocava para porto de Marselha, que tinham ido comerciar
a Índia e que incluía o célebre galeão S. Panta- açúcar em Cabo de Gué e que haviam informa-
leão. Os navios tinham passado na Madeira um do da presença de cerca de 12 navios ingleses
pouco dispersos, o que levou a que uma urca também nesse comércio. O governador tinha
fosse tomada por três navios ingleses. Na urca, apresado, a 23 de agosto, um desses navios de
seguia Gaspar de Figueiredo, ouvidor-geral da Marselha, uma setia, barco comprido, afilado
Índia, que os corsários colocaram em terra, na de boca aberta, de velas e remos, extremamen-
ilha do Porto Santo. Os corsários tinham ten- te rápido. Para que não pudesse sair do porto,
tado negociar com o governador da Madeira apreendera-lhe as três velas grandes, pensando
a vida do ouvidor e do mestre dessa urca, tal que assim não se poderia fazer ao mar.
como as mercadorias e a restante gente que Apesar dos pedidos, Lisboa manteve o go-
seguia no navio, ameaçando levar tudo para vernador e as duas companhias do presídio.
o Norte de África (Berberia, como se cita) se Assim, D. António Pereira, como começa a
B erredo , A nt ó nio P ereira de ¬ 329
ser referido, teve de reformular a Junta Mili- Jerónimo Lopes; João Carrilho, de Aguilar de
tar criada pelo conde de Lançarote, D. Agus- Campo; João de Gambôa, natural de Escoitia,
tín de Herrera y Rojas (1537-1598), também no reino de Biscaia, Guipúscua; João Rodri-
chamada sala de Governo, dividindo-a ao meio gues, de Badajoz; e Pedro Sans, todos da com-
e só reunindo com dois capitães de cada vez. panhia de Luís de Benevides. Da companhia
Este órgão era formado pelos quatro capitães do Cap. João Carrião Pardo, foram envolvidos
das ordenanças, para além do comandante da os soldados Afonso Gomes de Segóvia; Fran-
guarnição da fortaleza, nessa altura o Cap. Luís cisco Ortiz; Miguel Fernandes; Diogo Lopez,
de Benevides, dada a saída em finais de 1588, mosqueteiro, natural de Valladolid, e Roque
ou princípios de 1589, do Cap. Juan de Aran- de Penafiel, também de Valhadolid. No entan-
da. Este órgão não tinha sido muito desenvol- to, tratou-se tudo de pequenos delitos incluí-
vido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), se dos nas preposições, geralmente denunciados
é que este alguma vez o reuniu. Efetivamente, por camaradas da mesma companhia, que al-
parece que teria tido razões para isso, pois com guns – como Belchior Simões – nem confessa-
o novo governador estes elementos acabaram ram, acabando todos por ver os seus processos
por se envolver em intrigas várias, que incluí- despachados no Funchal.
ram o próprio D. António Pereira e que leva- Passando em revista estes processos, ressal-
ram a uma alçada do licenciado Pero de Alfa- ta, essencialmente, o isolamento então vivido
ro, e depois a outra, presente no Funchal a 29 por esses soldados do presídio castelhano e
de agosto de 1594, presidida por Miguel de La até uma certa má vontade contra os mesmos
Plaza. A primeira alçada derivou de queixas e por parte da população civil. O principal pro-
arbitrariedades dos capitães castelhanos com cesso envolve o soldado Pedro Sans, já citado,
os pagamentos recebidos pela Fazenda, mas a e uma série de companheiros. Em linhas ge-
segunda deve ter-se deslocado à Ilha também rais, estando alguns soldados na igreja do Co-
motivada pelo escândalo causado pela visitação légio, no Funchal, a assistir a uma prédica do
de 1592, que envolvera alguns dos militares da P.e Lopo de Castanheta, aliás escrivão da visi-
guarnição castelhana, embora por razões que tação, estes murmuraram ao ouvir o pregador
posteriormente seriam consideradas ridículas. referir que os soldados eram maus porque ha-
O Funchal foi visitado pela primeira vez por viam feito mal a Jesus. Teriam então murmu-
um oficial do Santo Ofício, Jerónimo Teixeira rado os soldados que maus eram os soldados
Cabral (c. 1540-1614), depois bispo de Angra romanos, pois eles, castelhanos, eram cristãos
e, sucessivamente, de Miranda e de Lamego, e bons, e nunca fariam mal a Jesus. Tal bas-
visitação que ocorreu em 1591. A visitação en- tou para de imediato serem presos no aljube
volveu um prolongado processo contra os cris- da Sé. No complicado processo que se seguiu,
tãos-novos e acabou por envolver também um foram chamadas, ou apareceram a depor, as
quantitativo populacional importante, prin- mais diversas pessoas, algumas das quais, para
cipalmente do Funchal. Assim, acabaram por além de se identificarem, quase não disseram
se ver envolvidos com a Inquisição muitos dos mais nada. Depuseram alguns dos assistentes
militares do presídio castelhano estacionado à cerimónia, como os ourives de ouro Pedro
na fortaleza de S. Lourenço, inclusivamen- Gonçalves de Negro, cristão-novo, e Manuel
te alguns dos oficiais superiores, como o Ten. Fernandes, cristão velho, o ourives de prata
Alonso de Segura, natural de Castelo Branco, Salvador Rodriguez, de 33 anos, e o alfaiate
da companhia do Cap. Luís de Benevides, e Simão Gonçalves, entre outros. O processo
o próprio Cap. João Carrião Pardo, da outra acabou por ser despachado no Funchal e por
companhia. Nesta visitação, foram ainda en- não levar a especiais penas.
volvidos os soldados Alonso de Vila Real, na- Outro processo, praticamente só envolven-
tural de Castro Monte; Belchior Simões; Fran- do soldados do presídio, roda à volta de uma
cisco de Velasco; Garcia Sanches, das Astúrias; partida de dados, jogada na casa da guarda da
330 ¬ B erredo , A nt ó nio P ereira de
fortaleza Velha, em meados de 1591. O solda- janeiro de 1592 e sancionado por mandado
do Francisco Velasco, cansado de não ter sorte do Cap.-Gen. João da Silva. Ora o quantitati-
aos dados, disse num determinado momento, vo é francamente elevado para ser um simples
na febre do jogo, que renegaria a sua fé se não soldo, devendo tratar-se de uma obra de em-
tivesse sorte na jogada seguinte. Não teve. Isso preitada e envolver mesmo aquisições impor-
bastou para ser acusado do crime de proposi- tantes de material. A família Bocarro foi uma
ção herética, ou seja, renegação da fé, pelos das principais famílias de fundidores portu-
seus camaradas de jogo e para dar origem a gueses, tendo tido o seu expoente máximo
mais uma série de processos. em Manuel Tavares Bocarro (at. 1625‑1652),
A notícia da partida do inquisidor foi dada na fundição de Macau. Descendente de vá-
pelo governador em carta de 29 de abril de rias gerações de fundidores, o seu avô mater-
1592. O visitador Jerónimo Teixeira partira no, o fundidor Francisco Dias, era irmão de
a 18 desse mês numa nau escocesa, viagem João Dias e tio de Baltazar Gomes e António
“bem negociada, da qual o capitão ficou aqui Gomes Feo, todos fundidores de artilharia
em terra, e é homem conhecido, segundo me nos inícios e meados do séc. xvi. Este Antó-
dizem, e o preço foi muito moderado porque nio Bocarro, a ser membro da mesma família,
foi de caminho fazer sua viagem” (ANTT, Ga- em princípio ter-se-ia deslocado ao Funchal
vetas, xx, mç. 15, doc. 106). em finais do 1591 para preparar a fundição
Com os pedidos do governador e os casos de S. Lourenço, que sabemos a laborar alguns
da Inquisição, que não devem ter deixado de anos depois, embora, tanto quanto temos co-
pesar nas preocupações de Lisboa e Madrid, ou nhecimento, esta não tenha chegado a fundir
com as alçadas que se deslocaram nesses anos à bocas de fogo.
Madeira, voltou-se a tentar colocar em ordem O Gov. D. António Lopes Pereira de Berre-
os pagamentos das companhias do presídio do do, como também depois aparece referido, en-
Funchal. Aparecem a receber os quantitativos, tregou o Governo a 20 de abril de 1595, data
em Lisboa, a condessa da Calheta, Maria de em que tomou posse o novo Gov. Diogo de
Alencastre, na menoridade do filho, Fernan- Azambuja de Melo (c. 1530-1599). António Pe-
do Martins Mascarenhas, mas que não seria o reira, que, em 1592, no Funchal, se queixava
então bispo do Algarve (1548-1628) – que não de falta de saúde e desejava voltar para a sua
era menor –, e Rui Dias da Câmara (c. 1542 casa no continente, ainda assumiria o lugar de
‑c. 1600), seu primo por afinidade. As letras de capitão de Tânger, em agosto de 1599, substi-
câmbio foram passadas por João de Valdaves- tuindo Aires de Saldanha (1542-1605), que foi
so Aldamar para Jerónimo de Aranda, pagador nomeado vice-rei da Índia, lugar que ocupou
do exército. No ano seguinte, 1593, há man- até setembro de 1605, quando foi substituído
dados do Cap.-Gen. João da Silva (1528-1601), por Nuno de Mendonça (c. 1560-c. 1633). Em
4.º conde de Portalegre, para Jerónimo de 1613, foi também enviado a Marrocos como
Aranda fazer diversos pagamentos, nomeada- inspetor das fortificações e com instruções
mente ao Sarg.-mor Pedro Borges de Sousa e para reformar parte das mesmas, intento lo-
a António Bocarro. Nestes anos, há igualmen- calmente muito pouco aceite. Teria ainda sido
te registo de pagamentos pontuais a diversos nomeado para a Índia com o governo da parte
soldados que devem ter acabado o seu servi- do Sul, a primeira sucessão do Estado e outras
ço na Madeira. Encontrámos elementos sobre mercês, mas nada aceitou, dada a avançada
Diogo de Naba, Garcia de Gusmão, que, por- idade. Deve ter falecido em 1614.
que culpado duma morte, não teve direito a
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral,
soldo algum, e Fernando de Torres. tombos 2-3; AGS, Guerra y Marina, leg. 238; ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv.
Um dos pagamentos mais interessantes foi 6; Ibid., Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 16, Manuel de Santo António e Silva,
Thesouro da Nobreza de Portugal, 1783; Ibid., Corpo Cronológico, pt. ii, mçs. 239,
o que se fez a António Bocarro, de 1.600$000, 261-263, 267 e 269; Ibid., Gavetas, gaveta 20, mç. 15; Ibid., Provedoria e Junta da
recebido por Manuel Bocarro a 8 de Real Fazenda do Funchal, liv. 694; Ibid., Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
B ettencourt, A nt ó nio J o ã o de F ran ç a ¬ 331
Lisboa, liv. 790, procs. individuais 1595, 2149, 9683 e 10.975; impressa: CARITA, Rita Telo de Meneses. Tendo cursado o Liceu
Rui, História da Madeira, vol. ii, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1991;
MELO, Francisco Manuel de, Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa. A el Rey do Funchal, inscreveu-se na Faculdade de Teo-
Nosso Senhor D. Afonso VI, em Cinco Relaçoens de Sucessos Pertencentes a Este logia da Univ. de Coimbra, em 6 de outubro de
Reyno, Que Contem Negocios Publicos, Politicos, Amorosos, Belicos, Triunfantes,
Lisboa, Officina de Henrique Valente Oliveira, 1660; NORONHA, Henrique
1854, onde se doutorou e recebeu o capelo a
Henriques de, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História 27 de julho de 1862.
da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1996; SALGADO,
Augusto, e VAZ, João Pedro, Invencível Armada 1588. A Participação Portuguesa,
Apesar de se ter distinguido durante os seus
Lisboa, Tribuna da História, 2002; SARMENTO, Alberto Artur, Ensaios Históricos anos de estudo na universidade, apenas em
da Minha Terra. Ilha da Madeira, 3 vols., Funchal, JGDAF, 1946-1951; SERRÃO,
1872 viria a concorrer para lente de Teolo-
Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vol. iv, Lisboa, Verbo, 1979.
gia, tendo competido, nessa ocasião, com Luís
Rui Carita Maria da Silva Ramos e alcançado o primeiro
lugar. Tornou-se no primeiro madeirense a
reger a cadeira de Teologia na Univ. de Coim-
Bettencourt, Anastácio Moniz de bra depois da reforma pombalina. Publicou
então o estudo que o distinguiu, Verdade Philo-
Nasceu no Funchal e faleceu na ilha Terceira,
sophica do Mysterio da Encarnação, de que se fize-
nos Açores, onde residiu durante largos anos.
ram duas edições sucessivas.
Desconhecem-se as datas do seu nascimento e
Os anos que se seguiram foram de uma
do seu falecimento.
grande atividade. Foi professor de Teologia
Casou-se em 1808, na freguesia de S. Pedro,
no Seminário de Coimbra e lecionou Histó-
no Funchal, com Ana Jacinta de Bettencourt
ria e Hebraico no liceu coimbrão. Pertenceu
Pita. Um dos seus filhos foi Nicolau António
a várias sociedades científicas e ao Instituto
de Bettencourt.
de Coimbra, de que foi segundo vice-secretá-
Era médico e possuía o grau de bacharel
rio. Foi o fundador e um dos principais reda-
em Cânones pela Univ. de Coimbra. A 18 de
tores da Revista de Theologia, com grande pro-
maio de 1801, foi nomeado professor substitu-
jeção no seu tempo. Enfim, foi um dos mais
to das cadeiras de Retórica e de Filosofia, que
ativos e zelosos provedores da Santa Casa da
na altura havia no Funchal, e, a 30 de março de
Misericórdia de Coimbra, cargo que ocupou
1803, professor da cadeira de Filosofia Racio-
em 1877.
nal. Pouco tempo depois, foi viver para a ilha
Como outros professores da faculdade teoló-
Terceira.
gica coimbrã, o lente madeirense foi um acér-
Dedicou-se ainda à poesia, escrevendo com-
rimo defensor do tomismo e um opositor às
posições que, apesar de manifestarem as in-
novas filosofias oitocentistas: o materialismo, o
fluências próprias da época, afirmam um estilo
positivismo, o ateísmo e o evolucionismo.
original.
António João de França Bettencourt viria a
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e falecer em Coimbra, a 29 de outubro de 1882,
XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; PORTO DA CRUZ, Visconde com 55 anos.
do, Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. i, Funchal,
Câmara Municipal do Funchal, 1949; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional Obras de António João de França Bettencourt: Verdade Philosophica do
da Educação e Cultura, 1978. Mysterio da Encarnação (1872); “O atheismo dos nossos dias” (1877-1878);
“Catholicismo” (1877-1878); “O christianismo e a crítica” (1877-1878).
António José Borges Bibliog.: impressa: AZEVEDO, Carlos A. M., “L’insegnalento nella Facoltà
di Teologia di Coimbra nel contesto europeo del secolo xix”, in CLEMENTE,
Manuel et al., A Igreja e o Clero Português no Contexto Europeu, Lisboa,
Universidade Católica Portuguesa, 2005, pp. 295-306; FIGUEIRA, Maria F. Reis,
Bettencourt, António João de “A Faculdade de Teologia perante o materialismo (1861-1905)”, Revista de
História das Ideias, vol. 1, 1977, pp. 205-235; LOPES, Maria Antónia, “Provedores
França e escrivães da Misericórdia de Coimbra de 1700 a 1910. Elites e fontes de
poder”, Revista Portuguesa de História, t. xxxvi, 2002-2003, pp. 203‑274;
António João de França Bettencourt nasceu na PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária
da Madeira, vol. 1, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1949; RODRIGUES,
Calheta, em 19 de outubro de 1827, filho de Manuel Augusto, “Problemática religiosa em Portugal no século xix, no
António João de França Bettencourt e de Ana contexto europeu”, Análise Social, vol. xvi, n.os 61-62, 1980, pp. 407‑428; SILVA,
332 ¬ B ettencourt, E dmundo de
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, do 1º Salão dos Independentes, por Campos de Fi-
3 vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998; digital:
FERREIRA, Licínia Rodrigues, Sócios do Instituto de Coimbra (1852-1978), gueiredo, na Breve Antologia de Poesia Moderna
Coimbra, s.n., 2015: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/21258/3/ e, por João Carlos, no Cancioneiro de Coimbra.
Lista%20de%20s%c3%b3cios_2015.pdf (acedido a 24 abr. 2018); “Presidentes e
direção”, Universidade de Coimbra, s.d.: www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/
O seu estro refletiu-se ainda na Gacete Literaria
Textos/instituto/presidentes (acedido a 24 abr. 2018). de Madrid, bem como noutras revistas estran-
geiras, tendo sido incluído por Vitorino Nemé-
Porfírio Pinto
sio e Carlos Queirós noutras antologias.
Em 1930, rompeu definitivamente com o
movimento presencista, no que foi secundado
Bettencourt, Carlos Cristóvão por Branquinho da Fonseca e Miguel Torga,
da Câmara Leme Escórcio de por achar que os presencistas se haviam de-
ä Cristóvão, Carlos (nome literário) mitido da defesa de valores sociais e políticos
pelos quais sempre se batera, e ainda por dese-
jar seguir um caminho novo, eminentemente
moderno. Recusou-se, também por isso, a cola-
Bettencourt, Edmundo de
borar na revista dissidente Sinal, mantendo-se,
De seu nome completo Edmundo Alberto de a partir de então, à margem de grupos literá-
Bettencourt (Funchal, 7 de agosto de 1899-Lis- rios, deixando igualmente de cantar e gravar
boa, 1 de fevereiro de 1973), revelou-se como discos, e fixando-se definitivamente em Lisboa.
poeta quando era ainda aluno do Liceu do Republicano, laico e anarquista convic-
Funchal, tendo publicado o primeiro poema to, pautava a sua vida pela vivência de ideais,
(sonetilho) no Diário de Notícias. Findo o curso tendo sempre recusado servir-se da política
liceal, partiu em 1918, com 19 anos, para Lis- para benefício pessoal. Repudiava abertamen-
boa, onde, por pouco tempo, frequentou a Fa- te o salazarismo, tendo sido perseguido, sobre-
culdade de Direito da Univ. de Lisboa, transfe- tudo quando, por altura da Segunda Guerra
rindo-se, mais tarde, para a de Coimbra, cidade Mundial, apôs a assinatura num abaixo-assi-
da sua sagração como poeta-cantor, mas sem nado de reivindicação sindical. Era então tra-
chegar a licenciar-se. balhador na Comissão Reguladora do Comér-
Colaborador assíduo da imprensa insular e cio de Metais, na capital. Exerceu ainda outras
continental, destacou-se como membro funda- profissões, a última das quais foi a de delegado
dor da revista presença (1927), tendo-se-lhe jun- de propaganda médica.
tado mais tarde Casais Montei- Por haver, nos seus tempos
ro e Miguel Torga. Conhecida de Coimbra, ousado cantar
também como Folha de Arte e “Samaritana”, de Álvaro Leal,
Cultura, congregou um mo- foi altamente atacado pela
vimento vanguardista, digno hierarquia da Igreja Católica,
herdeiro do Orpheu. Edmun- mas debalde, pois a sua voz
do de Bettencourt colabo- de “rouxinol da Madeira” ou
rou também noutras impor- “bicho canoro” (como era co-
tantes revistas, com destaque nhecido) celebrizou para sem-
para Bysâncio, Vértice, Ocidente pre esta canção.
e Seara Nova. Foi incluído por Publicou em vida quatro li-
António Pedro no Cancioneiro vros de poesia, nos quais reu-
niu poemas de vários anos,
a saber: O Momento e a Legen-
da (1917-1930); Rede Invisível
Fig. 1 – Edmundo de Bettencourt, c. 1950
(ABM, Arquivo Particular
(1930-1933), que Herberto
de José de Sainz-Trueva). Helder muito elogiou; Poemas
B ettencourt, E dmundo de ¬ 333
Pelo seu alto valor como poeta-cantor, me- Era membro da Associação dos Arquitectos
receu as caricaturas que dele fizeram vários Civis e Arqueólogos Portugueses, e da Asso-
artistas. Em 1999, aquando do centenário do ciação dos Engenheiros Civis Portugueses. Foi
seu nascimento, o Governo regional da Ma- um dos membros fundadores da Sociedade de
deira homenageou-o com uma sessão pública Geografia de Lisboa, em 1875.
e a colocação de uma placa de metal na casa Publicou vários livros e mapas, entre os quais:
onde nasceu, à R. dos Murças, no Funchal. Dicionário Corográfico Português; Atlas Pecuário de
No mesmo ano, a então Direção Regional dos Portugal; Memória sobre a Descoberta das Ilhas de
Assuntos Culturais editou, em parceria com a Porto Santo e Madeira (1418-1419); Descobrimentos.
Assírio & Alvim, a sua obra completa, Poemas Guerras e Conquistas dos Portugueses em Terras do
de Edmundo de Bettencourt, bem como o livro de Ultramar nos Séculos XV e XVI; e Noções de Choro-
António Nunes, intitulado No Rasto de Edmun- graphia de Portugal. Seguidas da Carta Geographica
do de Bettencourt. Uma Voz para a Modernidade. do Continente e de Um Planispherio onde Se Indica a
Pela mesma altura, publicaram-se alguns estu- Posição Geographica das Possessões Portuguezas.
dos, mormente na revista Islenha, sobre a sua Na Memória sobre a Descoberta das Ilhas de Porto
poesia. Santo e Madeira (1418-1419), Emiliano Betten-
Obras de Edmundo Bettencourt: O Momento e a Legenda (1930); Rede
court defende a prioridade portuguesa na des-
Invisível (1933); Poemas Surdos (1940); “Liberdade” (1946); Ligação (1962); coberta do arquipélago da Madeira, refutando
Poemas de Edmundo de Bettencourt (1963).
o inglês Major, que, no livro The Life of Prin-
Bibliog.: ABREU, Paula, “Edmundo de Bettencourt. Poesia e voz da Madeira
ce Henry of Portugal, toma como verdadeira a
no fado de Coimbra”, Olhar. Jornal da Madeira, 8 dez. 2007, pp. 8-9; CLODE,
Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, lenda de Machim e a enquadra na descrição da
Caixa Económica do Funchal, 1983; DIONÍSIO, Fátima Pitta, “Edmundo de
Bettencourt. O vigor surrealizante de Poemas Surdos em ‘Balada dos lobos e
a virgem’”, Islenha, n.º 24, jan.-jun. 1999, pp. 23-26; “Inéditos de Edmundo de
Bettencourt”, Atlântico, n.º 2, 1985, pp. 136-137; MARINO, Luís, Musa Insular:
Poetas da Madeira, Funchal, Eco do Funchal, 1959; NEMÉSIO, Vitorino, “Se bem
me lembro… Edmundo de Bettencourt”, Islenha, n.º 24, jan.-jun. 1999, pp. 27
‑30; NUNES, António, No Rasto de Edmundo de Bettencourt. Uma Voz para a
Modernidade, Funchal, DRAC, 1999; Id., “Aproximações ao espólio fotográfico
de Edmundo de Bettencourt”, Islenha, n.º 34, jan.-jun. 2004, pp. 58-64; PEREIRA,
Teresa, “Bettencourt e a Presença”, Islenha, n.º 24, jan.-jun. 1999, pp. 13-21; Id.,
“Edmundo de Bettencourt”, Saber, n.º 8, jun. 2004, pp. 24-25; presença, n.º 5, 4
jun. 1927; ROCHA, Luís, “Edmundo de Bettencourt. A voz silenciosa”, revista
do Diário de Notícias, 8-14 ago. 1999, pp. 13-16; SEIXO, Maria Alzira, “A ventura
do canto em Edmundo de Bettencourt”, Islenha, n.º 24, jan.-jun. 1999, pp. 5-12;
SILVA, Margarida Macedo, “Lembrar Edmundo de Bettencourt”, Islenha, n.º 15,
jul.-dez. 1994, pp. 46-48; TEIXEIRA, Mónica, “Edmundo de Bettencourt entre a
vanguarda e a tradição”, Islenha, n.º 16, jan.-jun. 1995, pp. 43-48; Id., Tendências
da Literatura na Ilha da Madeira nos Séculos XIX e XX, Funchal, DRAC, 2005;
VERÍSSIMO, Nelson, “Samaritana”, Diário de Notícias, Funchal, 29 jan. 1995,
pp. 70-72.
Fig. 2 – Dei Verbum, Constituição Dogmática sobre a Revelação Fig. 3 – Biblia Sacra Vulgatae Editionis (1598).
Divina (2011).
que prometeu assistir os seus apóstolos envian- escritura, e já se encontra na própria Bíblia,
do o Espírito Santo. quando nela se está a querer referir o Anti-
O texto da Dei Verbum dá grande importância go Testamento. Em relação à ressurreição de
à Sagrada Escritura, à tradição e ao magistério Jesus, S. João escreve: “Acreditaram na Escri-
da Igreja. As três funções, em conjunto, são ne- tura e nas palavras que Jesus tinha dito” (Jo 2,
cessárias para a vida da comunidade cristã. 22). S. Paulo, ao falar da lei dada aos hebreus,
Nos arts. 22 e 25, o Concílio insiste com os escreve: “A Escritura encerrou tudo debaixo
fiéis para que leiam e meditem a palavra de do pecado” (Gl 3, 22).
Deus contida na Bíblia, tendo em conta a tra- A Bíblia, sendo a palavra de Deus, não pode
dição e o magistério. A palavra de Deus foi con- ser interpretada sem ser relacionada com o
fiada à Igreja, está escrita numa linguagem hu- modo de pensar dos homens nos diversos pe-
mana, Deus serviu-se dos escritores inspirados ríodos da história humana. A ciência bíbli-
para nos transmitir as palavras que Ele inspi- ca, através de critérios científicos, procede
rou através do Espírito Santo e protege-nos do a uma interpretação das comunidades que
erro através do magistério da Igreja. a receberam e, em parte, colaboraram na sua
formação, como acontece nos Evangelhos.
A Bíblia, portanto, sendo palavra de Deus,
Vulgata serve-se do modo de pensar e do ambiente
A Bíblia é o conjunto dos livros do Antigo e dos homens.
Novo Testamento, ela mostra-nos a ação de O Antigo Testamento foi escrito na língua
Deus na história humana da salvação. A pala- hebraica e grega, o Novo Testamento foi escri-
vra “bíblia” vem do grego e significa livro ou to em grego. O texto que acompanhou a Igreja
338 ¬ B í blia
uma certa formação histórica, literária e teoló- No Novo Testamento, o termo “palavra” apa-
gica, caso contrário, corre-se o perigo de assu- rece poucas vezes em S. Mateus e S. Marcos, sig-
mir uma posição fundamentalista, que é o que nificando o evangelho proclamado por Jesus
acontece com tantos movimentos religiosos rí- (cf. Mc 2, 2; Mt 13, 18); em S. Lucas e nos Atos
gidos, ou então de considerar a Bíblia como dos Apóstolos, a palavra indica também o evan-
obra literária, inferior à literatura clássica do gelho pregado por Jesus (cf. Lc 5, 1; 4, 32).
seu tempo. Assim aconteceu com o grande S. Lucas usa muitas vezes a expressão “palavra
Doutor da Igreja S.to Agostinho, antes da sua de Deus” para designar o Evangelho. O traba-
conversão, na cidade de Milão. O espiritualis- lho dos apóstolos é o ministério da palavra.
mo vago, que extrai do texto aplicações gené- Nos escritos de S. Paulo, o termo “palavra” in-
ricas sem precisar o sentido real, pode colocar dica geralmente o Evangelho (cf. 1Cor 14, 36;
na palavra de Deus os próprios sentimentos, Gl 6, 6). Paulo chama-lhe “palavra de Deus”,
emoções, o que se deseja e não o que Deus “palavra de Cristo”, que é revelada por meio
quer dizer-nos com o texto inspirado. da pregação (cf. Tt 1, 3), que é o objetivo da
A palavra de Deus incarnou num homem catequese (cf. Gl 6, 6). A fé vem da escrita e a
da nossa raça, Jesus de Nazaré, mas também escrita vem da pregação da palavra.
numa história concreta, num território limita- Nas outras cartas apostólicas e livros do Novo
do do Médio Oriente, num contexto preciso, Testamento, o termo “palavra” também é indi-
santificado por Deus com sinais da revelação cativo de evangelho (cf. Hb 13, 7), de palavra
divina e da nossa salvação. de Deus (cf. 1Pd 1, 23). A palavra é uma se-
Na língua grega, há uma palavra sobre a qual mente imortal, ela faz com que o fiel renasça
temos que refletir, “hermenêutica”, que signi- de novo (cf. 1Pd 1, 23). Na carta aos Hebreus,
fica interpretação. Quando aplicada à Bíblia, é uma espada de dois gumes, é a espada do Es-
significa que o Espírito Santo, segundo escreve pírito Santo (cf. Hb 4, 12).
S. João, “nos ensinará todas as coisas e recorda- Nos escritos de S. João, o termo “palavra” não
rá tudo aquilo que foi dito na Revelação” (Jo é indicativo de evangelho, mas das palavras do
14, 26). próprio Jesus Cristo, ou então das palavras do
Pai pronunciadas por Jesus. Quando Jesus fala
da “minha palavra” (Jo 5, 24), esta não é sua,
A Bíblia, palavra de Deus mas do Pai (cf. Jo 8, 55). O Pai ordena o que
Os judeus, como outros povos na Antiguida- Jesus deve dizer.
de, acreditavam que a palavra falada era uma No prólogo, S. João refere-se ao que os após-
realidade com um poder especial. As palavras tolos ouviram, viram, contemplaram e tocaram
tinham força nas alianças, nos matrimónios, com as mãos, “a palavra da vida” (1Jo 1, 1-3).
nos contratos. Os hebreus usavam a palavra Neste mesmo prólogo (cf. 1Jo 1, 1-14), Jesus é
para indicar uma realidade, aquilo a que nós identificado com o Pai (cf. 1Jo 1, 1), é a vida da
chamamos coisa. comunidade (cf. 1Jo 1, 4-10), é luz que traz a
No Antigo Testamento, a palavra de Deus re- vida (cf. 1Jo 1, 4ss.).
fere-se geralmente à palavra pronunciada pelos Não é fruto da especulação grega, nem do
profetas. Deus põe as suas palavras na boca do filósofo Filão o lugar onde S. João foi beber a
profeta (cf. Jr 23, 16-28). Jeremias recebe a pa- teologia e o fundamento da palavra de Deus.
lavra de Deus na boca, Ezequiel come o rolo A sua base encontra-se na Bíblia.
no qual estava escrita essa mesma palavra de
Deus. O texto diz que a palavra se “cumpre”,
“vem”, “realiza” o que significa, “cria” (Gn 1; Is
Concílio de Trento e Sagrada Escritura
40, 26). No livro do Deuteronómio, a lei escri- O Concílio de Trento reuniu-se no Norte da
ta é palavra de Deus (cf. Dt 4, 13), é a vida de Itália, em Tirol, nesse tempo território inde-
Israel (cf. Dt 32, 47). pendente, entre os anos 1545-1563. Teve 25
346 ¬ B í blia
sessões. Procurou responder aos problemas e Quando terminou o Concílio de Trento, que
doutrina que a Reforma de Martinho Lutero procurou educar e defender os cristãos das
tinha trazido à Igreja, havia 28 anos, no centro teses extremistas de Lutero, assinaram as atas
da Europa. Quando o Concílio se reuniu, Lu- 217 padres conciliares, de 15 nações diferen-
tero já estava muito velho, tendo morrido um tes. Portugal teve sempre uma forte participa-
ano mais tarde, mas os outros reformadores, ção, principalmente no último período, com o
na Suíça, ainda estavam vivos e ativos. B.º Fr. Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de
No primeiro período do Concílio, os padres Braga.
trataram de Sagrada Escritura e Tradição. Era o Os reis portugueses protegeram e favorece-
maior problema, ao qual se devia dar uma res- ram a participação de bispos no Concílio e, de-
posta. O Concílio colocou a Bíblia no mesmo pois, a aplicação das orientações do Concílio
plano da Tradição. Afirmou que a tradução da nas dioceses. Um dos resultados práticos foi a
Vulgata em latim era suficiente para qualquer construção de seminários para a formação de
discussão dogmática e que só o Magistério da sacerdotes, o que, na Madeira, em relação ao
Igreja tinha o direito de interpretar as Escritu- ensino, ficou a cargo dos padres jesuítas.
ras. O Concílio admitiu no cânone bíblico os A Madeira forneceu à Companhia de Jesus
livros chamados deuterocanónicos. Estes de- homens de grande valor espiritual e intelec-
cretos provocaram uma divisão na cristandade, tual, distinguindo-se entre eles Leão Hen-
católicos dum lado, protestantes do outro (val- riques, natural da Ponta do Sol, e Manuel
denses, de Pedro Valdo, anabatistas, luteranos, Álvares, da Ribeira Brava, autor da célebre
presbiterianos, de Calvino); a grande divisão A Gramática Latina do Pe. Manuel Álvares, que
dos ortodoxos acontecera em 1504. teve diversas edições na Europa, Ásia e Brasil.
Em 1540, foi fundada a Companhia de Jesus, O bispo D. Jerónimo Barreto, com o auxílio
por S.to Inácio de Loiola, para através do es- dos padres da Companhia de Jesus, instalou
tudo e criação de universidades se tornar um um seminário para a educação e formação do
instrumento de defesa da doutrina da Igreja. clero. O Seminário abriu as suas portas a 20 de
A Univ. Gregoriana, em Roma, e, mais tarde, o setembro de 1566.
Pontifício Instituto Bíblico, na mesma cidade, A 18 de março de 1570, chegaram ao Fun-
formaram o ambiente intelectual e científico chal os padres Manuel de Sequeira, reitor do
de grande parte dos bispos, professores e pa- Colégio, Pedro Quaresma, professor de teolo-
dres da Igreja Católica. gia moral, e Belchior de Oliveira, para desem-
penhar funções religiosas, o diácono Vasco Ba-
tista, professor de latim e retórica, e mais dois
religiosos. No seu Colégio, ensinavam lógica e
retórica, correspondendo a um curso intensi-
vo de humanidades. Com a abertura do Colé-
gio, os cursos funcionavam nas aulas do pátio,
dependência do mesmo edifício. Com a ex-
pulsão dos Jesuítas pelo Marquês de Pombal,
os padres permaneceram um ano presos no
Funchal, e a 16 de julho de 1760 tomaram o
barco para Lisboa. Nos estudos, ministravam-
-se aulas de teologia e a Sagrada Escritura ser-
via para provar a doutrina da Igreja. Quanto à
Bíblia dos pobres, na pintura e escultura, re-
presentam-se cenas da paixão, morte e ressur-
Fig. 9 – Última sessão do Concílio de Trento, 1563 a 1575, óleo de
reição de Jesus, da via-sacra e do evangelho da
c. 1633 (Museu Diocesano Tridentino, Trento). Infância.
B í blia ¬ 347
Fig. 10 – Anunciação, pormenor do retábulo do altar‑mor da Sé do Funchal, c. 1514 (fotografia de Bernardes Franco, 2015).
348 ¬ B í blia
Fig. 11 – Descida da Cruz, pormenor do retábulo do altar‑mor da Sé do Funchal, c. 1514 (fotografia de Bernardes Franco, 2015).
B í blia ¬ 349
Se considerarmos as pinturas nos retábulos Escritura, tudo isto é pouco, tendo em conta
das igrejas da Diocese, notamos que elas encer- o Novo Testamento, e muito pouco, tendo em
ram três ciclos: um dedicado à paixão, morte e conta o Antigo. Embora nas pregações os ora-
ressurreição de Jesus, outro ao tempo natalício dores sacros citem mais algumas cenas, temos
e um outro à eucaristia. O retábulo que me- de confessar que a Sagrada Escritura não era
lhor representa esta divisão é o da Sé do Fun- muito conhecida dos cristãos, sendo mais ma-
chal, mandado construir pelo Rei D. Manuel. nuseada pelos protestantes. A autoridade da
O Antigo Testamento é pouco representado. Igreja regulava as questões disputadas pelos
Prefere-se, geralmente, o Novo Testamento, protestantes, embora nas universidades os
embora para a oração fossem usados os sal- mestres, e, no caso da Madeira, os Jesuítas,
mos, na reza do Ofício, com pausas no meio fossem competentes nestes assuntos. A Bíblia
e no fim do versículo. O Natal influenciou a dos pobres, pintura e escultura, não era sufi-
representação da Árvore de Jessé, por causa da ciente para um conhecimento da Bíblia. A de-
ascendência de Jesus, que encontramos numa voção aos santos, tanto aos populares como
magnífica pintura no Convento de S.ta Clara, aos patronos, tinha um peso muito maior. Sob
na igreja de Machico, na talha do altar do Sa- este aspeto, o Concílio de Trento não con-
grado Coração de Jesus, etc. seguiu colocar a Bíblia na mão dos cristãos,
As pinturas do retábulo da Sé, mandado mesmo defendendo a integridade e validade
pintar pelo Rei D. Manuel I, são atribuídas da Vulgata.
ao pintor flamengo Francisco Henriques ou
ao Mestre da Lourinhã. Na parte superior,
colocava-se habitualmente a escultura do Se-
Traduções da Bíblia em português
nhor Crucificado; ao lado do nicho, apresen- O povo judeu guardou como tesouro precioso
ta-se a oração de Jesus no Horto e o Senhor os livros sagrados conservados no rolo da Sa-
com a cruz às costas; do lado oposto, a desci- grada Escritura. Os textos encontrados nas gru-
da da cruz e a ressurreição. No repartimento tas do Qumran por Roland de Vaux, da École
do centro, temos a anunciação do Senhor e Biblique de Jerusalém, e o magnífico texto de
o nascimento de Jesus; na parte central, a Se- Isaías conservado no Museu de Jerusalém são
nhora da Assunção; e, do outro lado, a vinda relíquias que o tempo não consumiu. O povo
do Espírito Santo e a assunção de Nossa Se- hebreu não só conservou como leu a Bíblia,
nhora ao Céu. No terceiro repartimento, foi não precisando de traduzi-la, mesmo quan-
colocado o sacrifício de Melquisedec e a ins- do a língua falada era o aramaico. Os meni-
tituição da eucaristia; do lado oposto, o mila- nos judeus, que desde os quatro anos de idade
gre do sacrifício de S. Gregório e a recolha do aprendiam a ler os rolos da Lei, eram acompa-
maná no deserto. nhados de traduções vernáculas quando nasci-
No altar do Senhor Jesus, o retábulo apresen- dos e educados no estrangeiro, como aconte-
ta O Encontro de São Joaquim com Santa Ana, nar- ceu com Saulo, na cidade de Tarso, o futuro
rado num livro apócrifo, A Fuga para o Egito, S. Paulo. Jesus recebeu o texto bíblico como
A Circuncisão e a Adoração dos Magos, sendo era lido nas sinagogas e no Templo.
estes dois quadros do pintor flamengo Coxie. O Novo Testamento, antes de ser escrito, foi
No altar de S.to António, o retábulo representa anunciado pelos apóstolos e missionários, so-
S. Jerónimo e S. Lourenço, e, do pintor Coxie, bressaindo entre eles Paulo de Tarso, que nos
A Vocação de São Mateus e Os Estigmas de São deixou nas suas cartas os primeiros textos inspi-
Francisco. rados do Novo Testamento, escritos em grego.
Todas as igrejas paroquiais têm os quadros A Escritura Sagrada foi escrita em hebraico,
da via-sacra, sendo esta devoção muito popu- aramaico e grego. O latim, língua do Império
lar durante a Quaresma e Semana Santa. Para Romano, conheceu a Bíblia através da Vetus
obter um conhecimento geral da Sagrada Latina e da Vulgata, traduzida por S. Jerónimo.
350 ¬ B í blia
Entre 1725 e 1797, apareceu a tradução de O documento pontifício de Pio XII aos exe-
António Pereira de Figueiredo, da Congrega- getas católicos Divino Afflante Spiritu (1943) en-
ção do Oratório, teólogo da confiança do Mar- corajou o estudo, a tradução e o ensino da Sa-
quês de Pombal. Esta tradução foi editada num grada Escritura.
só volume em 1821. A tradução é feita com Luiz Gonzaga da Fonseca, professor do Pon-
base na Vulgata, tem mérito literário, foi edita- tifício Instituto Bíblico e diretor espiritual do
da por católicos e protestantes. Nesta altura, o Pontifício Colégio Português, fez uma revisão
ambiente já era mais favorável à tradução e pu- do texto de Matos Soares, que foi editada num
blicação da Bíblia; embora com grande atraso só volume em 1956.
em relação a outros países da Europa, a Bíblia No Brasil, também começaram a ser publica-
acaba por também ser publicada integralmen- das Bíblias em português. Merece menção a Bí-
te em português. blia Sagrada, traduzida pelos Franciscanos de
Desde então, apareceram outras traduções Petrópolis (1950-1982). Seguiram-se depois a
de partes da Bíblia, assim como resumos da Tradução Ecuménica da Bíblia (1994) e a Bí-
história bíblica ou narrativas do Velho e Novo blia de Jerusalém (2002).
Testamento. A tradução do Pontifício Instituto Bíblico de
Teve grande difusão entre nós a Bíblia Sa- Roma, dirigida por Vaccari, foi traduzida e pu-
grada, traduzida por Matos Soares, da Diocese blicada pelas Paulinas (São Paulo, 1967; Lis-
do Porto, a partir da Vulgata e publicada pelas boa, 1978).
Paulinas (Lisboa, 1942). De 1957 a 1970, a Editora Universus publi-
cou a Bíblia Ilustrada, com lâminas a cores.
Foi a primeira tradução portuguesa dos textos
originais. Os Franciscanos capuchinhos, atra-
vés da Difusora Bíblica, têm publicado diversas
edições da Bíblia desde 1962. A Difusora Bíbli-
ca editou a Boa Nova, tradução interconfessio-
nal de biblistas católicos e protestantes a partir
do texto original.
Em 1980, a Difusora Bíblica publicou uma
nova tradução a partir dos textos originais.
Em Portugal, a Conferência Episcopal Portu-
guesa encomendou e patrocinou a tradução
da Bíblia para a liturgia e catequese, que foi
assumida pelos biblistas da Associação Bíblica
Portuguesa.
No princípio do séc. xix, a Bíblia estava tra-
duzida em 78 línguas, no princípio do séc. xxi,
em mais de 2426 línguas das 6500 que se jul-
gam existir no mundo. Nenhum outro livro foi
tão traduzido como a Bíblia. Deus, segundo o
autor da epístola aos Hebreus, “tendo falado
outrora muitas vezes e de muitos modos aos
nossos pais pelos profetas, nestes dias que são
os últimos, falou-nos por meio de Seu Filho, a
quem constituiu herdeiro de tudo, por Quem
criou o mundo” (Hb 1, 1-2).
A 12 de outubro de 1838, chegou ao Fun-
Fig. 14 – Vulgata (1791), de António Pereira de Figueiredo. chal Robert Kalley, nascido na Escócia a 6 de
B í blia ¬ 353
desse anglicano. Nos seus longos passeios em (1821-1838). Em 1864, era bispo D. Patrício
comum, falaram da unidade da Igreja. Quan- Xavier de Moura (1859-1872), que governou a
do seguiram para a Europa, encontraram-se Diocese durante 13 anos, tendo adquirido uma
com o cardeal Mercier, arcebispo de Malines. importante biblioteca sobre teologia, Sagrada
Surgiram conversações e estudos destes encon- Escritura, direito canónico e outros temas, a
tros que o Espírito Santo, no Concílio Vaticano partir de livros provenientes de conventos ex-
II, inspirou os padres conciliares a defender, tintos em Portugal, como o de Alcobaça, e do
votando estes a favor do Decreto Unitatis Redinte- Mosteiro da Ordem dos Eremitas de São Paulo,
gratio sobre o Ecumenismo, aprovado a 21 de no- em Lisboa.
vembro de 1964. O bispo D. Patrício lutou pela integridade
A comunidade anglicana, notável pela sua to- da fé e procurou elevar o nível moral do clero.
lerância, respeita a fé católica dos madeiren- A aquisição destes livros talvez tivesse essa fina-
ses, e é também respeitada em toda a Diocese. lidade, num tempo em que a política tornou o
Após o Concílio, tem estabelecido as melhores seu episcopado turbulento, com perseguições
relações com os bispos diocesanos, a começar dentro do próprio presbitério. Indicou como
por D. Teodoro de Faria. O seu templo, aberto seu sucessor D. Aires de Ornelas (1872-1874),
ao público em 1822, continua a receber a co- primeiro bispo madeirense, natural da Dioce-
munidade anglicana que vive na Madeira e os se, que, não obstante a sua conduta irrepreen-
turistas que nos visitam. sível e qualidades de governo, só dirigiu a Dio-
Há outra comunidade, de rito escocês, com cese durante dois anos, devido às intrigas de
templo no Funchal a receber os fiéis da igreja liberais e maçónicos.
luterana, o que evidencia que a Madeira está Entre os volumes adquiridos, há vários co-
aberta ao verdadeiro ecumenismo. A pastora mentários da Sagrada Escritura: Biblia Sacra,
Ilse Berardo, luterana, é convidada pelos cató- edição da Vulgata, reconhecida pelos Papas
licos para encontros de estudo e oração, sendo Xisto V e Clemente VIII, publicada em Vene-
as suas alocuções e dissertações respeitadas e za em 1749, com 28 volumes; Commentarius
admiradas devido ao seu espírito ecuménico, Litteralis in Omnes Libros Veteris et Novi Testa-
bíblico e científico. menti, mais antiga, de Augustin Calmet, obra
No séc. xxi, todos estes cristãos se servem da escrita em francês pelo autor e depois tra-
Sagrada Escritura nos atos religiosos. E, no mês duzida para latim, sendo esta a versão exis-
de janeiro, reúnem-se em oração pela unidade tente, publicada em Veneza em 1667, em 8
das igrejas, num espírito de devoção e respeito volumes; Sacra Biblia, obra publicada em Ve-
pelas diversas confissões religiosas. neza em 1747 (são quatro volumes, que per-
No decreto sobre o ecumenismo, pode ler-se: tenciam à Ordem dos Eremitas de S. Paulo,
“todos na Igreja, segundo o ofício designado a passando a ser propriedade do Seminário do
cada um, quer nas várias formas de vida espi- Funchal em 1864; segundo estes exemplares
ritual e da disciplina, quer na diversidade dos memoráveis, a mesma terá sido antes impres-
ritos litúrgicos, até mesmo na elaboração teo- sa em Antuérpia, em 1615); Commentariorum
lógica da verdade revelada, embora mantendo et Disputa, de Bento Pereira Valentini, jesuí-
a unidade nas coisas necessárias, conservam a ta, publicado em Lion no ano de 1599 (per-
devida liberdade; em tudo, porém respeitem a tencia à livraria do Mosteiro de Alcobaça);
caridade” (PAULO VI, 1964, 4). relacionada com o apóstolo S. Paulo, temos a
obra Commentarium in Omnes B. Pauli Apostoli
et Septem Canonicas Aliorum Apostolorum Epis-
Bibliotecas dos mosteiros tulas, de Liberto Fromondo, publicada em
Em Portugal, as ordens religiosas foram ex- Lovaina em 1661.
tintas em 1834, era então bispo do Funchal Entre todos estes volumes, tem um valor
D. Francisco José Rodrigues de Andrade inestimável a Bíblia Hebraica, escrita em
B í blia ¬ 355
hebreu, com tradução em latim, sob o texto dificultavam a vida aos seminários em Portu-
hebraico, de Pagnini Lucensis, publicada em gal, encontrando-se muitos deles encerrados
Antuérpia, na oficina de Cristóvão Plantini, por falta de meios de subsistência.
em 1684. Com a nomeação de D. Manuel Agostinho
Com a extinção das ordens religiosas, as Barreto (1876-1911), um dos bispos que rege-
suas bibliotecas foram vendidas e dispersas, neraram a Diocese, foi colocado à frente do Se-
chegando ao Funchal centenas, talvez milha- minário um padre religioso alemão, o P.e Ernst
res, de volumes encadernados, uns com títu- Johann Schmitz, que conseguiu formar um
los dourados e outros com capas em pergami- escol de sacerdotes, de onde provieram bispos,
nho branco. cientistas, músicos, professores, e enviou para
As estantes que continham estes volumes estudar em Roma alguns alunos – um deles no-
estavam dispostas ao longo de uma sala de meado reitor do Pontifício Colégio Português,
aulas do Seminário da Encarnação. O lugar D. Teodósio Clemente de Gouveia, mais tarde
era o menos indicado: os alunos dos primei- cardeal e arcebispo de Lourenço Marques, de-
ros anos divertiam-se a abrir livros e rasgar pois Maputo.
páginas com figuras, antes de os professo- A tradição de estudar a Sagrada Escritu-
res chegarem para dar as aulas. Além disso, ra, enviar alunos para Roma e enriquecer a
a traça e a formiga-branca atacaram alguns biblioteca do Seminário continuou com o
volumes, que foram queimados no pátio de bispo D. António Manuel Pereira Ribeiro
recreio do mesmo Seminário. O cónego Ful- (1914-1957).
gêncio, que estudara teologia em Roma, con- Quando as universidades católicas quise-
denava estas fogueiras, num tempo em que ram aprofundar o estudo da Bíblia, que nessa
estes livros ainda eram consultados pelos alu- época era estudada e ensinada cientificamen-
nos que discursavam nas sessões académicas. te pelos protestantes, o dominicano francês
Com a abertura do Seminário na R. do Jas- M. J. Lagrange fundou em Jerusalém a École
mineiro, a biblioteca foi transferida para este Biblique et Archéologique Française. Passa-
edifício. Ainda são recordadas as consultas do muito pouco tempo, a École tornou-se co-
que os alunos de teologia realizavam para os nhecida no mundo científico. Os livros de La-
trabalhos a apresentar aos professores. Após grange tiveram uma larga difusão. A Diocese
a Revolução dos Cravos e a ocupação do Se- do Funchal procurou atualizar-se comprando
minário da Encarnação, a pupila dos olhos do todas as obras que publicava na Editora Gabal-
bispo D. Manuel Agostinho Barreto, a biblio- da, em Paris. No séc. xxi, conservam-se na bi-
teca foi levada para o paço episcopal, ocupan- blioteca da Cúria diocesana os seguintes livros
do as paredes do salão nobre. Por fim, com a de Lagrange: Évangile selon Saint Luc (1927),
construção do novo edifício da Cúria dioce- Évangile selon Saint Marc (1929), Évangile selon
sana pelo Bispo D. Teodoro, os livros foram Saint Matthieu (1927), L’évangile de Jésus Christ
colocados na biblioteca do arquivo, onde se (1929), Évangile selon Saint Jean (1927), Saint
encontram atualmente. Infelizmente, alguns Paul, Épître aux Galates (1926); Saint Paul, Épître
livros desapareceram, como o grande comen- aux Romains (1922), M. Loisy et le Modernisme
tário ao evangelho de S. Mateus do exegeta (1932).
jesuíta flamengo Cornelius a Lapide (1567- Fazem parte do recheio desta biblioteca os
1637), um dos volumes mais atraentes e dou- comentários do Antigo e Novo Testamento de
rados, que se encontrava em boas condições José Knabenbauer, sj, livros publicados desde
de conservação. 1907 até 1923.
Louvamos os bispos que apreciaram e com- As aquisições continuaram, porque a Diocese
praram estes livros, numa época em que li- enviava alunos para Roma para estudar a Sagra-
berais e maçónicos dominavam e exerciam da Escritura, além de teologia, filosofia, direi-
uma ação repressiva sobre a religião católica e to, história eclesiástica, moral e música sacra.
356 ¬ B í blia
Foram professores de Sagrada Escritura no Se- As semanas bíblicas eram organizadas pelas
minário do Funchal e formados em Roma no religiosas quando recebiam convites dos pá-
Pontifício Instituto Bíblico José Maurício de rocos para proceder à sua organização, que
Freitas (1952), Teodoro de Faria (1962-1966), abrangia a celebração da eucaristia quotidia-
Emanuel Eleutério de Ornelas, José Tolentino na, visitas aos doentes nas paróquias, cateque-
Calaça de Mendonça, Tony Vítor de Sousa (em ses a crianças e adolescentes, convites ao bispo
Paris) e José Ornelas Carvalho, dehoniano e e a professores de Sagrada Escritura para fa-
professor na Univ. Católica. zerem as homilias, que naturalmente eram
As aulas de teologia e Sagrada Escritura na sobre temas bíblicos. Por fim, preparavam um
Diocese exigiam que os bispos diocesanos en- encerramento mui festivo, com um cortejo de
contrassem professores competentes, envian- figuras bíblicas, vestindo trajes da época, se-
do jovens sacerdotes a estudar em Roma nas guindo-se a eucaristia dominical, sempre com
universidades pontifícias para esse efeito, al- muita participação da comunidade cristã. Du-
guns dos quais mais tarde foram chamados ao rante a semana, montavam na paróquia uma
episcopado. Sem aulas no Seminário Maior, a exposição com livros sobre a Sagrada Escritu-
Diocese não prepara professores, chamando ra e a piedade cristã, que os participantes po-
do continente padres e bispos para a atuali- diam adquirir.
zação de sacerdotes e leigos. A longo prazo, a Estas semanas realizavam-se durante todo
Diocese fica empobrecida. Embora com os alu- o ano e atingiram quase todas as paróquias.
nos a estudar na Univ. Católica, nenhum deles As duas religiosas que organizavam a sema-
se especializa no ramo de ciência teológica e na tornaram-se muito conhecidas e respeita-
bíblica. das na Madeira, pedindo a ajuda e participa-
A Diocese do Funchal tinha encontrado um ção de muitos fiéis, homens e mulheres, que
equilíbrio quando os alunos frequentavam dois se comprometiam com muito gosto em todos
anos de teologia no Funchal e outros quatro os serviços e organização. Délia Moreira Lopes
na Univ. Católica, em Lisboa. Durante o epis- e Maria Rosa Gonçalves Dias exerceram estes
copado do bispo D. Teodoro de Faria, houve cursos bíblicos com competência, generosida-
sempre alunos a estudar em Roma e, durante de e dedicação durante vários anos, deixando
21 anos, também em Paris. Uma diocese isola- marcas profundas na comunidade cristã e um
da no Atlântico como a Madeira precisa de ter grande amor à Sagrada Escritura.
membros do clero preparados para responder
a perguntas e refutar objeções e erros que se
levantam em todas as épocas, sem ter de recor-
Com a Bíblia na mão
rer a cada momento a técnicos ou professores Os homens visitaram as terras da Bíblia em
do continente. todos os tempos, tanto no tempo do Antigo
como no do Novo Testamento. A própria Bí-
blia fixou as datas das grandes festividades, al-
Filhas de São Paulo e semanas bíblicas turas em que o povo judeu devia subir até ao
Por ocasião do Concílio Vaticano II, em 1974, Templo de Jerusalém, a casa de Deus: Páscoa,
as Irmãs Paulinas abriram no Funchal uma li- Pentecostes e Tabernáculos. Jesus, com a sua
vraria com livros religiosos, principalmente família, subia a Jerusalém cantando os salmos
bíblias e temas bíblicos. Foi uma realização das ascensões, como fazem ainda, no séc. xxi,
feliz, as religiosas empenharam-se não ape- os peregrinos.
nas na venda de livros, mas também na orga- No ano 70 da nossa era, com a destruição do
nização de semanas bíblicas em quase todas Templo pelo imperador Tito, o povo judeu foi
as paróquias da Diocese, além dos programas disperso, mas Jerusalém, com os cristãos bizan-
religiosos na rádio, que eram do agrado da tinos, tornou-se de novo centro de oração e
população. peregrinações; os desertos e lugares íngremes
B í blia ¬ 357
lugares santos desde a Madeira, do continente Há uma grande conclusão a tirar quando se
e do estrangeiro. coloca Jesus Cristo no centro da nossa vida: es-
Nos vários grupos, cria-se sempre um am- tamos em comunhão com Ele. Com a sua pa-
biente de comunidade viva, todas as pessoas lavra, tudo se torna possível. Na Terra Santa, a
se ajudam umas às outras, sabendo sorrir pe- Bíblia nunca saía das nossas mãos, e na Diocese
rante algumas situações menos agradáveis, não pode sair das nossas vidas, para contempla-
participando na eucaristia diária, na oração ção e deleite interior.
comunitária, na reza do terço, na leitura dos
textos bíblicos, na visita aos lugares históricos;
vive-se um ambiente de sã alegria e de louvor
Renovamento Bíblico
a Deus pela graça da visita da revelação divina
na Diocese do Funchal
à Terra. Antes do Concílio, quando o Seminário Dio-
Alguns dos peregrinos participam mais de cesano recebeu os sacerdotes formados em
uma vez nesta experiência espiritual, que revi- Roma, no Pontifício Colégio Português, a Dio-
vem sempre quando na missa se lê a Bíblia ou cese viu com grande satisfação um renova-
quando se servem dela para a oração particu- mento espiritual e cultural, que correspondia
lar ou para contemplar a palavra de Deus. Por a uma aspiração antiga e satisfazia o pedido
exemplo, uma das figuras bíblicas que se apre- que o Papa Pio XII fizera aos bispos portugue-
senta para tema de meditação é a do apósto- ses, na visita ad limina, para que enviassem ao
lo Paulo, tanto em Jerusalém, quando foi deti- menos dois alunos de cada diocese a hospeda-
do no Templo, como em Cesareia, onde esteve rem-se no Colégio de Via Banco Santo Spirito,
preso até ser enviado para Roma. edifício magnífico do arquiteto Júlio Romano.
Paulo orientou todas as suas energias para Em 1975, foram enviados do Funchal dois
servir exclusivamente Jesus Cristo e o evange- jovens sacerdotes, Maurílio Jorge Quintal de
lho: “Ai de mim se não evangeliza” (1Cor 9, Gouveia e Teodoro de Faria, o primeiro para
17). Este apóstolo é caracterizado pelo seu estudar teologia e o segundo a Sagrada Escritu-
universalismo, tema importante para os par- ra, devendo, entretanto, estudar também teo-
ticipantes nas peregrinações que vivem numa logia, para obter a licenciatura e matricular-se
diocese onde se misturam povos e confissões no Instituto Bíblico. No ano seguinte, foram
religiosas, como, e.g., a Madeira, terra de tu- seguidos por Abel Augusto da Silva, que foi es-
rismo, onde se encontram visitantes que per- tudar história eclesiástica e arte cristã, e Arnal-
correm serras, vales, levadas e abismos, e que do Rufino da Silva, que se dedicou ao estuda
necessitam por vezes de auxílio, que entram da música sacra.
nas igrejas e participam nas festas, mesmo nas O bispo diocesano era então D. David de
religiosas. Sousa, ofm, também formado na Sagrada Es-
Nesta Diocese, temos de respirar universa- critura. Em 1962, a 11 de outubro, começou o
lidade e ecumenismo; como Paulo, é preciso Concílio Vaticano II, cuja preparação se inicia-
“fazer tudo a todos” (1Cor 9, 22). A vida do ra quando os quatro professores e educadores
apóstolo foi uma contínua luta contra as difi- do Seminário ainda estudavam em Roma e o
culdades: “perigos nos rios, perigos de bandi- P.e Teodoro em Jerusalém.
dos, perigos dos nacionais, perigo dos pagãos, A Ação Católica estava então florescente.
perigos na cidade, perigos no deserto, peri- As paróquias renovaram-se com o início dos
gos no mar, perigos nos falsos irmãos” (2Cor Cursos de Cristandade, com a presença e par-
11, 26ss.). Tudo isto sofreu o apóstolo porque ticipação assídua de leigos apostólicos, des-
“o amor de Cristo nos impele […] para que temidos na forma como apresentavam ex-
os que vivem não vivam para si mesmos, mas ternamente a sua fé. O desejo de saber mais
para aquele que morreu e ressuscitou por eles” teologia, Sagrada Escritura e também história
(2Cor 5, 14). da Igreja destes cristãos, alguns convertidos
B í blia ¬ 359
a expressão desse domínio. Em 1759, por ordem Colégio dos Jesuítas (com ou sem os Jesuítas),
do Marquês de Pombal, são reformadas as or- do Seminário e dos conventos existentes assu-
dens religiosas e concretiza-se a expulsão dos Je- mido papéis determinantes nesse contexto. De
suítas, seguindo-se a confiscação dos seus bens, acordo com o Elucidário Madeirense, os acervos
depois integrados na Fazenda Régia. Nesta se- das bibliotecas (livrarias) dos conventos, extin-
quência de factos marcantes da era pombalina, tos por decreto de 28 de maio de 1834, foram
as escolas anexas às ordens religiosas e as que incorporados na Biblioteca Municipal do Fun-
seguiam a doutrina e o método jesuíticos tive- chal (BMF) em 1863.
ram, paulatinamente, de aderir ao ideário pom- A instituição do ensino superior ocorreu na
balino e iluminista. Refere a mesma autora que, Madeira no séc. xix, através da antiga Esco-
em 1772, ao criar um novo imposto – o Subsídio la Médico-Cirúrgica do Funchal, fundada em
Literário –, no reino e nas ilhas dos Açores e da 1816 (mas só oficialmente criada em 1836, ini-
Madeira, o Marquês de Pombal pretendia atin- ciando atividade no ano seguinte) e encerrada
gir o objetivo de anular o poder do ensino dos em 1910. Localizada no antigo Colégio dos Je-
Jesuítas e transferi-lo para a competência do Es- suítas, a sua biblioteca era rica, constituída por
tado. O imposto começa a ser cobrado em 1775, “mais de duas mil obras”, que foram depois
financiando as aulas de Ler, de Escrever e de transferidas para a BMF (COSTA et al., 1992,
Contar, de Gramática Latina, de Língua Grega, 21). O perfil do seu acervo diz respeito à ges-
de Retórica e de Filosofia, que, com o devir do tão hospitalar, anatomia, farmacologia, cirur-
tempo, são lecionadas na igreja de São João gia e mais assuntos relacionados com a saúde, a
Evangelista do Colégio do Funchal e, em 1789, medicina, as curandices e outros, tendo muitos
passam a acumular com as aulas do Seminário. destes livros sido oferecidos pelo Dr. Nathaniel
As cadeiras de Ler, de Escrever e de Contar são Lister, médico inglês.
também lecionadas em Santa Cruz, São Vicen- Os regimes liberal e republicano deram ên-
te, Machico, Porto Santo, Calheta, Campanário, fase à instrução escolar, mas, regra geral, privi-
Ribeira Brava e Ponta do Sol. As cadeiras men- legiaram o livro único, pelo que as bibliotecas
cionadas e lecionadas eram acompanhadas das escolares eram desnecessárias.
bibliografias adequadas, tendo as bibliotecas do Em 1819, Joseph Phelps, comerciante de ori-
gem britânica que se fixou na Madeira e cons-
truiu a firma vinícola Phelps Page & Co., de-
dicou-se, também, a promover a instrução dos
madeirenses, criando a Escola Lancasteriana,
com o apoio de sua mulher, Elisabeth Phelps.
A Ir. Mary Wilson, que chegou à ilha da Madeira
em 1881, como enfermeira de uma doente bri-
tânica, dedicou-se posteriormente à catequese
das crianças, aos doentes e à educação da juven-
tude, formando, nos finais do séc. xix e princí-
pios do séc. xx, várias escolas no Porto Santo,
no Arco de São Jorge, em Santana, no Santo da
Serra, em Machico e em Câmara de Lobos. Em
1838, o médico Robert Kalley dedicou-se ao en-
sino primário, atividade que manteve durante
os 10 anos seguintes. É presumível que estas es-
colas, cujo método de ensino não se identificava
com o método nacional, tivessem beneficiado
Fig. 2 – Biblioteca da sala do Cabido da Sé do Funchal, 1734 e
de pequenos fundos documentais para apoiar a
seguintes (arquivo particular). aprendizagem dos alunos.
B ibliotecas ¬ 363
dramatizações, gincanas, concursos, visitas de lançando sementes que cresceram nas crianças
estudo, intercâmbios culturais, atividades de que tiveram acesso às bibliotecas O Jardim e às
expressão artística e plástica, visionamento de suas atividades informativa e formativa. Para
filmes, audição de histórias, encontro de escri- Margarida Silva, a leitura promovia o pensa-
tores e comemorações de efemérides. mento, a reflexão, o espírito crítico e a metacog-
A sede de coordenação do projeto situava- nição, princípios orientadores da nova escola,
se na Escola Básica e Secundária da Calheta, na qual as bibliotecas deveriam funcionar como
sob a tutela da SREHR. No caso do 1.º ciclo/ autênticos laboratórios dessa aprendizagem.
PE, o Baú de Leitura era coordenado por um Criada em 1979, a RBIJ é resultado da ausência
coordenador geral e pelos coordenadores con- das bibliotecas escolares, tanto mais que, à data,
celhios. Ao nível das escolas do 2.º e 3.º ciclos e a RAM não beneficiava de uma rede suficiente
do secundário, o projeto era coordenado por de infraestrutura escolar. Assim, as bibliotecas
duas coordenadoras gerais. infantojuvenis O Jardim foram bibliotecas esco-
lares criadas fora do espaço físico da escola, que
Bibliotecas infantojuvenis. O Jardim se mantiveram ao longo de cerca de 16 anos.
e a Biblioteca de Educação Permanente Existiu um projeto para a criação de uma bi-
A Árvore blioteca infantojuvenil O Jardim na ilha de Je-
A 5 de maio de 1979, foi inaugurada no con- rsey, mas que nunca foi concretizado. A RBIJ
celho do Funchal a biblioteca infantil, sendo teve o seu termo entre 1993 e 1995, tendo o
esta a primeira biblioteca da Rede de Bibliote- seu acervo sido incorporado nas bibliotecas
cas Infantojuvenis (RBIJ) O Jardim, designação das escolas então construídas. Na fig. 6 apre-
que a passa a identificar a partir de 1982. Já a 31 senta-se uma tabela com as bibliotecas que
de março do mesmo ano havia sido inaugura- constituíram a rede infantojuvenil O Jardim.
do um atelier de leitura infantil e lançada uma As bibliotecas da rede O Jardim tinham uma
experiência museológica de campo que esteve agenda de formação exigente e planificada, que
na génese da referida rede de bibliotecas. Maria envolvia docentes do ensino primário, estagiá-
Margarida Macedo Silva foi a fundadora e di- rios(as) do Magistério Primário, educadoras de
retora deste projeto. Profissional competente, infância e de outros níveis de escolaridade, bem
inovadora e criativa, construiu uma obra muito como discentes da Escola de Magistério Primá-
avançada para uma realidade ainda atrasada do rio. Apresentam-se alguns exemplos das agen-
ponto de vista dos hábitos de leitura e culturais, das de trabalho da RBIJ O Jardim e da Biblioteca
Fig. 6 – Tabela das bibliotecas que constituíram O Jardim (SILVA, 1999; FREITAS, 2015).
368 ¬ B ibliotecas
A Árvore, de que falaremos adiante: criação de aprendizagem dos futuros professores do en-
clubes de leitura, dedicados a escritores portu- sino primário. Totalizava 4.193 unidades do-
gueses; momentos de poesia e musicais; encon- cumentais, de acordo com o livro de regis-
tros com a Região, seguidos de debate; criação tos, sendo o pedagogo Jean Piaget o autor de
do projeto Fazendo Artes na Alfabetização, com eleição.
recurso à linguagem dos cartazes, à confeção de
grelhas para enriquecimento de vocabulário, à
utilização da “roda de palavras” e do teatro de
Biblioteca da Escola Superior de Educação
bonecas, passando pela construção e organiza- A Escola Superior de Educação, criada a 12 de
ção de ficheiros de alfabetização e ficheiros de novembro de 1985, funcionou no antigo Colé-
leitores; iniciação de leitores na investigação li- gio dos Jesuítas, tendo a sua biblioteca herda-
terária e jornalística; criação de uma oficina de do o acervo da biblioteca da antiga Escola do
artesanato e de bonecos e realização de teatro Magistério Primário, que totalizou 4.175 unida-
de mesa para conhecer Gil Vicente; exposições; des documentais, de acordo com o livro de re-
e a criação do Museu do Livro Escolar, passan- gisto. A sua extinção ocorreu em 1989, através
do por debates com autores madeirenses. No do dec.-lei n.º 391/89, de 9 de novembro, e o
que diz respeito à educação permanente, refere seu acervo foi integrado na Biblioteca da UMa.
Margarida Silva que “os meses de férias foram
os mais produtivos, e estamos certos de que
preenchendo tempos livres, sob este aspeto in- Biblioteca da Universidade da Madeira
formal, abrimos pistas à juventude madeirense A Biblioteca da Universidade da Madeira
para uma Educação Permanente” (SILVA, 1999, (UMa) foi fundada aquando da criação da
123). As atividades eram executadas com a par- mesma Universidade, em 1988, pelo dec.-lei
ticipação dos bibliotecários como animadores, n.º 319-A, de 13 de setembro desse ano. Cor-
trabalhando em grupo. respondia a um espaço físico lacónico cujo
Porém, a RBIJ O Jardim tornou-se insufi- acervo era constituído pelos acervos das esco-
ciente para os utentes de uma faixa etária su- las que estiveram na génese da Universidade: o
perior, pelo que em 1982 é criada a Biblioteca da Escola do Magistério Primário (com 4.193
de Educação Permanente A Árvore, que fun- unidades documentais), o da Escola Superior
cionou paredes meias com O Jardim de Santo de Educação (com 4.175) e o das extensões
António, numa linha interdisciplinar e de par- universitárias (cujo acervo totalizava 4.020 uni-
tilha entre a escola e a comunidade, como re- dades). O acervo era orientado para os âmbi-
fere Margarida Silva: “Se ‘O Jardim’ Biblioteca tos científicos das Ciências da Educação e das
Infantil é um complemento da Escola (não o Políticas de Ensino e da Aprendizagem, num
seu substituto), a ‘A Árvore’, Centro de Edu- total de cerca de 12.378 unidades documen-
cação Permanente, não substitui os cursos de tais, e encontrava-se verdadeiramente desatua-
alfabetização, apenas constitui uma forte mo- lizado e empobrecido face às novas teorias que
tivação fazendo a ligação Escola-Comunidade” emergiam nos referidos domínios científicos,
(Id., Ibid., 37-38). A biblioteca A Árvore seguiu não satisfazendo as necessidades informacio-
os conceitos da UNESCO no que diz respeito nais dos cursos que iam sendo desenhados e
à Educação Permanente, depois designada por consolidados na nova estrutura de ensino su-
“educação ao longo da vida”. perior. Além disso, os recursos humanos afetos
à biblioteca eram reduzidos, com horários des-
contínuos, desadaptados aos diplomas laborais
Biblioteca da Escola do Magistério Primário
em vigor e destituídos de qualificações, carac-
Criada em 1943, a Biblioteca da Escola do terísticas que deram origem a uma biblioteca
Magistério Primário era constituída por um doméstica, empírica, personalizada e estagna-
acervo cujo perfil convergia para o ensino e da cientificamente.
B ibliotecas ¬ 369
Em 1992-1993, ano em que a Biblioteca da Arquivo. Com o lema: “Informar para formar
UMa integrou recursos humanos qualifica- rumo à cognição, à criação do conhecimento”,
dos, surgiu um novo lema, baseado na máxima a entrada no séc. xxi conduziu à criação de
“Transformar tudo e todos”. Formar e recon- uma biblioteca verdadeiramente científica, em
verter recursos humanos, atualizar o acervo, que os acervos (documental e digital) se foram
disponibilizá-lo em regime de livre acesso e construindo em interação com os professores
tratá-lo, em termos técnicos e informáticos, de e investigadores da academia, relação que re-
acordo com normas internacionais que permi- presentou o ícone de uma nova cultura orga-
tissem a transferência da informação sem obs- nizacional e informacional, onde todos par-
táculos – o que culminou com a construção do ticipavam e assumiam a responsabilidade da
catálogo informatizado, através do programa adequação dos acervos aos curricula lecionados
Mini Micro CDS/ISIS (PORBASE) –, aceder à na UMa e ao ideal europeu, razão pela qual
Internet (em 1993), desenvolver as figuras do se lhe associou o acervo do Centro de Docu-
empréstimo domiciliário e do EIB (Emprésti- mentação Europeia (CDE). A reestruturação
mo Inter-Bibliotecas, nacional e internacional do lema reforçou a implementação de uma ati-
– foi aberto um canal com The British Library) tude informacional orientada para a academia
e cooperar com a Biblioteca Nacional de Por- e exógena a ela, i.e., tanto para o utilizador in-
tugal (BNP), com vista a alimentar o catálogo terno, como para o externo.
bibliográfico nacional (PORBASE) e integrá- Em 2014, o acervo documental, em supor-
-lo no universo dos seus cooperantes, foram os te papel, totalizava 121.216 unidades docu-
objetivos que alimentaram a nova visão, con- mentais, distribuído pelas seguintes coleções:
cretizados com sucesso. A transformação foi 59.000 monografias; 27.842 fascículos de pu-
acompanhada pelo Grupo de Docentes para a blicações periódicas; 6612 MNL (cassetes,
Biblioteca, e esta recebeu a designação de Cen- disquetes, CD-ROM e DVD); 3822 trabalhos
tro de Documentação e Informação. académicos (dissertações de mestrado e teses
A partir de setembro de 1997, quando a Bi- de doutoramento); 6552 monografias CDE;
blioteca da UMa beneficiou de um espaço físi- 16.038 publicações periódicas CDE e 1350
co mais adequado no edifício universitário do MNL CDE – total adquirido por via da com-
Campus da Penteada, ao desenvolvimento cien- pra e raramente por via da oferta; e a coleção
tífico, técnico e cultural que contribuiu para o digital, que continha milhares de documentos
inevitável progresso da tríade ensino/apren- digitais de carácter científico.
dizagem/investigação correspondeu um novo Os utilizadores da biblioteca eram constituí-
lema: “Integrar e flexibilizar tudo e todos”. dos maioritariamente pelos elementos da aca-
Atualizar as metodologias documental e infor- demia, concretamente pelos utilizadores in-
mática, modernizar a sala de leitura, dotando-a ternos: alunos, professores, investigadores e
de rede local e de computadores que permitis- funcionários. Estimava-se em cerca de 3000 os
sem ao utilizador realizar as suas pesquisas, agi- utilizadores inscritos na unidade de biblioteca,
lizar processos documentais e assegurar uma número que correspondia à população da aca-
abordagem mais flexível com o utilizador inter- demia. Simultaneamente, a biblioteca estava
no e a abertura à sociedade civil foram metas aberta a utilizadores externos, distribuídos es-
atingidas com êxito. sencialmente por investigadores, mestrandos,
A biblioteca assumiu várias designações, em doutorandos e população em geral, que pro-
conformidade com as alterações dos seus esta- curava neste sector informação científica, em
tutos: Centro de Documentação e Informação, particular a digital e o serviço de EIB, para de-
em 1993; Serviços de Documentação e Infor- senvolver os seus trabalhos de investigação.
mação, em 1996; Sector de Documentação e Em 2013, a Biblioteca da UMa contava com
Arquivo, Unidade de Documentação Arquivo, 11 profissionais qualificados no âmbito das
em 2008; e, em 2013, Unidade de Biblioteca e ciências documentais: um doutorado neste
370 ¬ B ibliotecas
têm assento. Em 2015, a FCCN/FCT (Funda- pelos utilizadores na Sala de Leitura desen-
ção para a Computação Científica Nacional, da volveu a interação entre as fontes eletrónicas
Fundação para a Ciência e a Tecnologia) era e as fontes impressas. Podemos concluir que a
a fundação portuguesa que reunia as biblio- Unidade de Biblioteca estava em condições de
tecas portuguesas, entre as quais a Biblioteca acompanhar o progresso científico promovi-
da UMa, concretizando projetos avançados no do na UMa e de atuar como espaço transversal
âmbito das TIC, da política do OAI em 2002 e de informação científica, técnica e cultural na
de programas financeiros europeus, entre ou- academia, sendo um dos epicentros da Univer-
tros, e projetando as bibliotecas universitárias sidade e uma biblioteca científica na RAM. Era
portuguesas à escala global. Enquanto a POR- igualmente uma porta aberta para o exterior
BASE, sediada na BNP, projetou, em 1993, a e para a sociedade científica. Essa era a con-
biblioteca para Portugal, o OAI, em 2002, e a tribuição da Biblioteca da UMa para a RAM e
FCCN/FCT e a USE.pt, em 2013, projetaram- para a sociedade de economias de informação
-na para o mundo webizado. e do conhecimento, sustentadas pelos funda-
A Biblioteca oferecia os seguintes serviços: téc- mentos filosóficos da razão comunicativa, ar-
nicos, digital (gestão das bases de dados) e de gumentativa e crítica de Jürgen Habermas.
referência (incluindo a gestão do catalogo, o
atendimento, a sala de leitura, os empréstimos,
o marketing documental – que compreendia a
Biblioteca do Centro de Estudos
formação de utilizadores nas unidades curri-
de História do Atlântico
culares e na própria Biblioteca, uma formação As instalações do Centro de Estudos de His-
muito solicitada pelos docentes, uma vez que in- tória do Atlântico (CEHA), situadas na R. das
cide no Processo de Pesquisa de Informação no Mercês, no Funchal, desde 1 de outubro de
catálogo e nas bases de dados mais relevantes; 2009, permitiram oferecer serviços à popula-
visitas de estudo de alunos das mais diversas es- ção madeirense, bem como aos estudiosos na-
colas da RAM e de grupos de cidadãos; a rea- cionais e estrangeiros que visitam este Centro.
lização de um workshop anual; lançamentos de A biblioteca do CEHA tem fundos documen-
livros; diversos seminários; e agenda cultural). tais próprios, que se formaram através do in-
Os empréstimos (domiciliário, permanente tercâmbio com diversas instituições. Em 2013,
e interbibliotecas) eram realizados pelo ser- contava com um total de 1121 livros e 111 pu-
viço de referência, juntamente com o serviço blicações periódicas, enquanto a biblioteca de
digital. Todos os documentos podiam ser ob- Alberto Vieira, fundo documental doado ao
jeto de empréstimo, com exceção das publica- Centro em 2010, registava um total de 4846 li-
ções periódicas e das obras de referência, po- vros e 317 publicações periódicas.
dendo também o utilizador externo beneficiar A biblioteca e o fundo documental de Alber-
do empréstimo domiciliário. Os produtos que to Vieira contemplavam bibliografia especiali-
a Biblioteca disponibilizava eram os seguintes: zada sobre a história da Madeira e demais ilhas
BibUMa, DigitUMa, B-On, Web of Knowled- do mundo, com especial destaque para o espa-
ge, RCAAP, OpenAire, a eLibraryUSA, ColCat ço Atlântico (Madeira, Açores, Canárias, Cabo
(Catálogo Coletivo, que permite a pesquisa in- Verde, São Tomé e Santa Catarina), com fun-
tegrada), PORBASE, Facebook e Webpage, que dos especiais, em diversas línguas, sobre a his-
ofereciam aos membros da academia inúmera tória da escravatura, da ciência e técnica, da
informação científica, técnica e cultural. autonomia, do açúcar e do vinho.
Se em 1992-1993, a Biblioteca beneficiou da Em 2015, previa-se que a biblioteca do
ligação à rede computacional, que permitiu o CEHA não tardasse a ficar totalmente disponí-
acesso à Internet; em 2006, a rede sem fios ex- vel em formato digital; parte do acervo de his-
pandiu-se na UMa, em particular na Biblioteca. tória da Madeira já se encontrava disponível.
A fácil usabilidade dos computadores portáteis O CEHA disponibilizava ainda um conjunto de
372 ¬ B ibliotecas
e de igreja, música vocal sacra variada, música áreas das ciências do mar, concretamente eco-
para piano, música para viola, etc. Para além logia costeira e ictiologia.
disso, dispunha também de um extenso acervo A partir de 1933, o segundo núcleo docu-
na área do vídeo e áudio (CD). mental formou a Biblioteca do Museu de His-
tória Natural do Funchal, que está em contac-
to permanente com outras bibliotecas, centros
Centro de Informação e Documentação de documentação de universidades e outras ins-
O Centro de Informação e Documentação tituições científicas em todo o mundo, com o
(CID), integrado, em 2015, no Departamento objetivo de trocar e divulgar informações, enri-
de Ciência e Recursos Naturais da Câmara Mu- quecendo assim o seu património cultural cien-
nicipal do Funchal (CMF), era composto por tífico. O engrandecimento do acervo documen-
dois núcleos documentais: a Biblioteca Profes- tal desta biblioteca efetuava-se de três formas:
sor Luiz Saldanha da Estação de Biologia Ma- compra, oferta e permuta. Esta última era feita
rinha do Funchal, e a Biblioteca do Museu de através da edição de duas publicações científi-
História Natural do Funchal (MHNF). cas, o Boletim do Museu Municipal do Funchal e o
A Biblioteca Professor Luiz Saldanha da Es- Suplemento do Boletim do Museu Municipal do Fun-
tação de Biologia Marinha do Funchal deve a chal, que contêm trabalhos científicos de grande
sua designação à figura deste professor e ocea- relevo nas diversas áreas da história natural da
nógrafo de prestígio internacional, que doou à Macaronésia. Para além destes, publicava ainda
Biblioteca o seu espólio científico, para servir a revista Bocagiana, destinada não só à descrição
de apoio à investigação. Foi criada a 28 de se- de espécies novas, mas também à divulgação
tembro de 1999, integrada na Estação de Bio- de artigos carenciados de publicação urgente.
logia Marinha do Funchal. Estas revistas eram distribuídas gratuitamente a
Encontravam-se depositados na Biblioteca diversas instituições de investigação científica,
Professor Luiz Saldanha três espólios ou acer- universidades e bibliotecas a nível mundial.
vos de elevada relevância para a comunidade Em 2015, os utilizadores do CID eram essen-
científica, a saber: o espólio Professor Gün- cialmente estudantes do nível secundário e su-
ther Edmund Maul, com- perior, docentes e investi-
posto por monografias (al- gadores. O acesso era livre,
gumas delas com uma certa podendo os utilizadores (in-
raridade), revistas, corres- ternos e externos) consultar
pondência científica, rela- as bibliotecas de acordo com
tos de viagens, manuscritos, a área de interesse, quer na
etc., alargando-se a todas as Biblioteca da Estação Bio-
áreas da história natural; o logia Marinha do Funchal,
espólio Professor Luiz Viei- quer na Biblioteca do MHNF.
ra Caldas Saldanha, com- O total do acervo do CID
posto por monografias, correspondia, nesta altura,
revistas, correspondência a aproximadamente 13.000
científica, desenhos, pos- documentos (monografias,
tais, etc. (grande parte do revistas e MNL). Para além
espólio cobre as áreas da do suporte em papel, o Cen-
biologia marinha, oceano- tro assegurava ainda o aces-
grafia e ictiologia); e o es- so eletrónico em suporte
pólio Professor Doutor Ar-
mando Almeida, composto
essencialmente por traba- Fig. 7 – Biblioteca do Museu Municipal
lhos científicos abrangendo do Funchal (arquivo particular).
374 ¬ B ibliotecas
digital. Duas bases de dados permitiam o acesso do património documental e propor a edi-
aos documentais digitais: Prisma (módulo de ca- ção e difusão de publicações com interesse
talogação e gestão de monografias e de publica- para a ALRAM e as que respeitam à história
ções em série) e Procite/Endnote. O CID facul- do Parlamento, em estreita colaboração com
tava o acesso à informação de carácter científico o Departamento de Relações Externas e para a
e técnico da Biblioteca da Estação de Biologia Comunicação Social; g) gerir o acervo e o fun-
Marinha do Funchal, nas áreas, em particular, cionamento da biblioteca da ALRAM; h) or-
da biologia marinha, oceanografia e pesca, e da ganizar e assegurar a manutenção do Arquivo
Biblioteca do MHNF nas restantes áreas, como Histórico-Parlamentar e o arquivo corrente de
biologia terrestre, história natural da Macaroné- todos os serviços da ALRAM.
sia e geologia. Estimava-se que muito em breve O seu acervo era, nesta data, constituído pela
o Centro estaria disponível para prestar o ser- produção documental que resulta das ativida-
viço de empréstimo interbibliotecas. Contava des legislativas, por coleções de monografias,
com acesso eletrónico à informação científica publicações periódicas e bases de dados, cujos
em linha, ou através de suporte digital, e a con- perfis se adequam às atividades parlamentares.
sulta do catálogo bibliográfico. O Centro de Documentação beneficiava de
O CID beneficiava de recursos humanos qua- pessoal qualificado, conferindo qualidade ao
lificados no âmbito das ciências documentais. tratamento e à disseminação da informação le-
gislativa e parlamentar.
Centro de Documentação
da Assembleia Legislativa Administrações pública e local,
da Região Autónoma da Madeira os laboratórios e os museus
O Centro de Documentação da Assembleia Nas Secretarias Regionais do GRM existiam,
Legislativa da Região Autónoma da Madei- em 2015, centros de documentação e informa-
ra (ALRAM) foi criado, em simultâneo com ção que beneficiavam de núcleos documentais
o edifício da Assembleia, a 4 de dezembro de ao serviço dos seus funcionários.
1987, designando-se, à época, biblioteca da As-
sembleia Legislativa Regional. Em 2015, era
composto por dois sectores – o arquivo e a bi-
blioteca, de acordo com a estrutura orgânica
da ALRAM – e assumia a designação de Cen-
tro de Documentação, ao qual competia: a) re-
colher, organizar, tratar, armazenar e difundir
a informação nacional e estrangeira nas várias
áreas do conhecimento; b) produzir e difundir
cadernos de informação, ou outros produtos,
adequados aos temas em apreciação nos vários
órgãos da ALRAM; c) recolher, selecionar, tra-
tar e conservar todos os documentos referen-
tes aos deputados e a atos e factos da ALRAM;
d) recolher, registar, catalogar, indexar e zelar
pela conservação de todas as espécies do espó-
lio documental da ALRAM; e) prestar informa-
ções sobre a bibliografia e documentação exis-
tentes no acervo e facultar o respetivo acesso,
nos termos do regulamento interno; f) promo- Fig. 8 – Biblioteca da Assembleia Regional, 1987, Funchal
ver e colaborar em atividades de divulgação (arquivo particular).
B ibliotecas ¬ 375
Os laboratórios existentes na RAM, que têm europeias, quer em suporte papel, quer em su-
assegurado estudos relevantes para a Região porte digital, através das bases de dados que a
(a saber: o Laboratório Regional de Engenharia UE colocava ao dispor do cidadão.
Civil, o Laboratório de Metrologia da Madeira
Dr. José Agostinho Gomes Pereira de Gouveia,
o Laboratório de Saúde Pública, o Laboratório
Centro de Informação Europe Direct
Regional de Controlo de Qualidade da Água, A RAM beneficiava de um Centro de Informa-
entre outros), bem como os museus e o Jardim ção Europe Direct Madeira (CIED Madeira),
Botânico da Madeira, beneficiavam, nesta data, criado em 2013 e localizado no Edifício Casa
de bibliotecas, algumas com núcleos documen- da Cultura, na freguesia de Câmara de Lobos.
tais antigos, ricos e variados, que apoiavam e O Centro dependia hierarquicamente da re-
valorizavam as atividades dos seus funcionários presentação da Comissão Europeia em Por-
que se dedicavam à investigação. tugal e destinava-se à população em geral. Re-
lativamente ao seu acervo, contava com 196
unidades, em atualização em 2015, distribuídas
Centro de Documentação Europeia por: 103 publicações; 27 revistas/newsletters; 46
O Centro de Documentação Europeia (CDE) panfletos/brochuras; e 20 cartazes/posters.
(específico e não completo) foi alojado na Era objetivo do CIED Madeira prestar um
Biblioteca da UMa em 1995, altura em que a serviço de proximidade adaptado às necessi-
Universidade se lançou a uma candidatura co- dades locais/regionais, permitindo ao públi-
munitária para a sua aquisição. A UMa forne- co em geral obter informações, orientações,
ceu o espaço físico, o pessoal qualificado e as assistência e respostas a perguntas sobre a UE
ferramentas informáticas, desde o hardware ao no que respeita ao seu funcionamento, prio-
software, enquanto a UE, através da Comissão ridades, legislação, políticas, programas e pos-
Europeia e da representação da Comissão Eu- sibilidades de financiamento, mas também, e
ropeia em Portugal, forneceu o acervo docu- fundamentalmente, aos seus direitos enquan-
mental, quer em suporte papel, quer em su- to cidadãos europeus. O Centro disponibili-
porte digital. zava igualmente na sua sede um conjunto de
O Centro tinha por objetivo divulgar o ideá- publicações sobre as mais diversas temáticas de
rio comunitário junto da academia, razão intervenção da UE.
pela qual se realizavam eventos e inúmeras ex- O CIED Madeira organizava sessões infor-
posições nesse âmbito. Em 2015, o seu acervo mativas para o público em geral, e em particu-
estava estimado em 23.940 unidades (cujas re- lar para as escolas da área de abrangência do
ferências se encontravam no catálogo da Bi- Centro e para alunos das diversas faixas etárias.
blioteca da UMa), distribuído pelas seguintes Nestas sessões, eram tratados temas de interes-
tipologias documentais: 6552 monografias, se que iam ao encontro de possíveis necessi-
16.038 fascículos de publicações periódicas, dades de informação sobre a UE, de carácter
1359 unidades de MNL. Estavam também dis- mais geral ou mais específico, consoante os
poníveis milhares de documentos digitais, objetivos da ação. As apresentações para o pú-
que podiam ser acedidos através do portal da blico escolar tentavam, através de jogos e da
Europa. distribuição de material publicado pela UE, es-
timular o interesse para as questões europeias.
1983/08/25-
Funchal BI049 1963 1983? PT FCG FCG:SBAL-S010-P0015
2000/11/21
1986/11/25-
Ponta do Sol BI061 196? 1983? PT FCG FCG:SBAL-S010-P0001
2002/10/08
1983/08/25-
São Vicente BI050 196? 1983? PT FCG FCG:SBAL-S010-P0006
1999/11/22
Fig. 10 – Tabela com dados sobre as bibliotecas itinerantes FCG na Madeira (dados fornecidos pela Biblioteca de Arte
e pelo Arquivo da FCG) (FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, 1983; FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN e
SERVIÇO DE BIBLIOTECAS ITINERANTES E FIXAS, 1984).
B ibliotecas ¬ 379
Câmara PT FCG
BF012 1980/01/10 2002/11/13 1979/05/08-2002/11/13
de Lobos FCG:SBAL-S002-P0006
PT FCG
Funchal BF048 1961 2002/11/13 1961/04/24-2002/11/13
FCG:SBAL-S002-P0100
PT FCG
Machico BF074 1964/09/14 2002/11/13 1963/09/16-2002/11/13
FCG:SBAL-S002-P0108
Ponta do PT FCG
BF077 1963 2002/11/13 1963/09/25-2002/11/13
Sol FCG:SBAL-S002-P0104
PT FCG
Porto Santo BF078 1964/12/05 2002/11/13 1963/01/16-2002/11/13
FCG:SBAL-S002-P0058
Ribeira PT FCG
BF082 1964/09/30 2002 1964/09/21-2001/12/10
Brava FCG:SBAL-S002-P0062
PT FCG
Santa Cruz BF073 Julho 1964 2002/11/13 1964/05/21-2002/11/13
FCG:SBAL-S002-P0039
PT FCG
Santana BF076 1964? 2002/11/13 1964/06/08-2002/11/13
FCG:SBAL-S002-P0053
PT FCG
São Vicente BF175 1978/01/22 2002 1990/01/03-2002/08/22
FCG:SBAL-S002-P0002
Fig. 11 – Tabela com dados sobre as bibliotecas fixas FCG na Madeira (dados fornecidos pela Biblioteca de Arte
e pelo Arquivo da FCG) (FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, 1983 e FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN e
SERVIÇO DE BIBLIOTECAS ITINERANTES E FIXAS, 1984).
tendo como público-alvo o cidadão mais le- completamente extinto. O acervo das biblio-
trado que procurava informação e conheci- tecas fixas foi integrado nas bibliotecas mu-
mento. Em suma, as bibliotecas da FCG pro- nicipais que foram sendo criadas em todos os
moveram uma verdadeira revolução cultural, municípios.
uma vez que tudo é transportável, incluído o
conhecimento.
Em 1987, o Programa Nacional de Leitura
Biblioteca do Hospital Dr. Nélio Mendonça
Pública, que tinha por objetivo criar e desen- A biblioteca do Hospital Dr. Nélio Mendonça,
volver bibliotecas públicas modernas e ade- no Funchal, surgiu três anos após a inaugura-
quadas às linhas orientadoras do Manifesto ção do Hospital, em 1976, e ficou localizada no
da UNESCO sobre as Bibliotecas Públicas, piso 0 do mesmo. Tratava-se de uma bibliote-
terá debilitado o serviço e objetivos do SBIF ca tradicional especializada na área da Saúde,
da FCG. Contudo, em 1993, este é reestrutu- tendo como principal objetivo auxiliar o traba-
rado e adaptado à nova temporalidade, pas- lho de pesquisa dos profissionais de saúde da
sando a designar-se Serviço de Bibliotecas instituição e servir um vasto leque de utentes:
e Apoio à Leitura (SBAL), que em 2002 foi médicos, enfermeiros, investigadores, técnicos
380 ¬ B ibliotecas
em 1993, tendo recebido, desde então, perso- Drumond de Meneses, ocupando à época
nalidades de destaque na área da política, das uma sala na CMF. A 19 de setembro de 1929,
letras, da história, das ciências e das artes. a Biblioteca muda de instalações para o pa-
Com um acervo que resulta essencialmente lácio de S. Pedro, no Funchal. Em agosto de
de doações, englobava, em 2015, várias salas de 2009, muda novamente de instalações, desta
leitura: as salas Simón Bolívar, American Cul- feita para um piso do Edifício 2000, situado
ture Corner, Zwanayo, Sir Winston Churchill, na Av. Calouste Gulbenkian, sem que tivesse
France, Deutschland e Italia. Além dos livros beneficiado do programa da RRBP da RAM.
em língua estrangeira das salas mencionadas, Dos seus bibliotecários mais importantes até
a Biblioteca possuía também uma vasta cole- 2015, merecem destaque Carlos Azevedo de
ção de livros em russo, norueguês, finlandês Meneses, que trabalhou na Biblioteca até à
e sueco. Do seu acervo faziam parte monogra- sua morte, aos 65 anos, e Adolfo César de No-
fias, publicações periódicas, material multimé- ronha, mais tarde nomeado diretor, o grande
dia e cartazes pertencentes às diversas salas de impulsionador não só da biblioteca, mas tam-
leitura, e com informação cultural, histórica e bém do museu.
literária dos diferentes países representados. Os recursos humanos da BMF possuíam,
A Biblioteca tinha como principais objetivos em 2015, qualificações adequadas ao desem-
promover ações de carácter cultural, tendo em penho documental e tecnológico. Assim,
vista a divulgação das culturas dos países repre- além de organizar, preservar, conservar e
sentados. Deste modo, pretendia alargar a ou- divulgar a herança pública que constitui o
tras culturas um valor acrescido à cultura da acervo desta biblioteca, a BMF tinha como
RAM, educar e informar, proporcionando tam- missão: facilitar o acesso à informação de
bém, especialmente aos estudantes, um profun- forma igualitária e democrática; ser um su-
do e fácil acesso a informação de outras cultu- porte para a educação e investigação quer a
ras. Todos os núcleos existentes na Biblioteca nível individual, quer a nível de instituições;
abrangiam as diversas áreas do conhecimento, oferecer meios e serviços destinados a satis-
tendo cada sala o seu catálogo organizado se- fazer as necessidades individuais, educativas
gundo autor/título/assunto, seguindo as nor- e de investigação dos utilizadores; fornecer a
mas da CDU e da Dewey Decimal Classification. informação de forma célere e eficaz, recor-
Embora a Biblioteca fosse na sua maioria rendo para o efeito às TIC; e cooperar, sem-
consultada por estrangeiros, residentes ou vi- pre que possível, com outras organizações.
sitantes da RAM, os seus leitores eram também As atividades mais relevantes para os muníci-
alunos e professores de escolas (1.º, 2.º e 3.º ci- pes passavam pela Hora do Conto, e as con-
clos e secundário), estudantes universitários, ferências e visitas guiadas à BMF.
das áreas de línguas e culturas estrangeiras, e O seu acervo contava, a esta data, com
o leitor madeirense. A Biblioteca dispunha de cerca de 300.000 obras, algumas do séc. xix,
vários serviços: leitura presencial; empréstimo incidindo sobre a história, geografia, biolo-
domiciliário; serviço de referência e informa- gia e outras vertentes do conhecimento re-
ção; acesso à Internet; relações públicas e dina- lativas à ilha da Madeira. Quanto aos perió-
mização cultural; serviço de fotocópias; acesso dicos, possuía 95 títulos de jornais regionais
ao catálogo presencial e online e ao fundo de desde 1821, dentre os quais se destacavam
documentos reservados. A Aurora Litteraria, A Chronica, A Cruz: Sema-
nário Catholico, A Discussão e O Patriota Fun-
chalense. Havia coleções que se destacavam: a
Biblioteca Municipal do Funchal coleção Hinton; as coleções de William e Al-
A 13 de janeiro de 1838, foi criada a Bibliote- fredo Reid; a coleção de obras sobre a ilha da
ca Municipal do Funchal (BMF) por delibera- Madeira; e a coleção do historiador Joel Ser-
ção camarária, sob a presidência de Sérvulo rão. Na coleção digital, incluía-se o Diário de
384 ¬ B ibliotecas
Notícias desde 1900 a 1922, cerca de 300 di- obras nas diversas áreas do saber, contava com
gitalizações de monografias da temática Ma- uma área de leitura/estudo, equipada com li-
deira e outras que se encontravam em mau gação sem fios.
estado de conservação.
Segundo o Elucidário Madeirense, a BMF
incluiria no seu acervo a coleção da Escola
Biblioteca Municipal de Câmara de Lobos
Médico-Cirúrgica do Funchal; ao longo dos A Biblioteca Municipal de Câmara de Lobos,
anos, todavia, esta coleção dispersou-se e em uma biblioteca pública, municipal, do tipo
2015 a Biblioteca ainda não a reunira na glo- BM2, possuía em 2015 dois polos de leitura:
balidade. Beneficiou do acervo da biblioteca um no Estreito de Câmara de Lobos e outro
fixa da FCG n.º 48, do Funchal, cujo acer- no Curral das Freiras.
vo foi incorporado na BMF e na Biblioteca Desde meados da déc. de 60 até 1980, Câ-
de Santo António do Funchal. A BMF tinha mara de Lobos recebeu com periodicidade
sob a sua alçada as bibliotecas dos bairros da mensal a biblioteca itinerante da FCG. Numa
Penteada, inaugurada em 1988, e da Naza- parceria entre a FCG e a Câmara Municipal
ré, em 1989, que pertenceram à FCG, e a bi- (a FCG fornecia os equipamentos e materiais
blioteca de Santo António, inaugurada a 6 de e a Câmara os recursos humanos e o espaço), a
julho de 2013. 1 de outubro de 1980 abriu a biblioteca fixa
A BMF foi depositária de uma coleção ver- n.º 12, no Lg. do Poço, mudando de instala-
dadeiramente madeirense, rica e heterogénea, ções, em 2004, para a Casa da Cultura de Câ-
quer em monografias, quer em jornais (pos- mara de Lobos. As negociações com o ex-IPLB
suindo, e.g., um título de um jornal insular da- para a instalação de uma nova biblioteca, vira-
tado de 1821, após a revolução liberal). da para o futuro e para a comunidade, resulta-
ram na inauguração, a 3 de maio de 2009, da
nova Biblioteca, o único projeto de raiz apro-
Biblioteca Municipal da Calheta vado na RAM no âmbito da Rede Nacional de
Inaugurada em 1996, a Biblioteca Municipal Bibliotecas Públicas. Este novo espaço passou a
da Calheta – Casa das Mudas foi construída ser a base da rede de bibliotecas do concelho e
tendo por base a biblioteca fixa n.º 75 da FCG, a base técnica, orientada para a uniformização
Casa da Cultura, instalada na Calheta desde dos serviços e para a informatização de todos
1973 (a FCG refere a data de 1980) até 2002, os dados referentes ao fundo documental a
ano em que se torna uma unidade orgânica da nível central, que, posteriormente, se distribui
Câmara Municipal da Calheta, beneficiando pelos polos do Estreito de Câmara de Lobos
do apoio e do empenho financeiro desta.
A Biblioteca é constituída por três polos de
leitura, assim distribuídos: polo do Arco da Ca-
lheta (1991), depois designado por Biblioteca
Municipal do Arco da Calheta; polo do Paul do
Mar (2001), depois designado por Biblioteca
Municipal do Paul do Mar; e polo do Jardim
do Mar (2002), depois designado por Bibliote-
ca Municipal do Jardim do Mar.
Em 2015, o seu acervo em suporte papel esta-
va estimado em 9000 obras e o MNL era cons-
tituído por 76 DVD, 7 jogos e 2 CD. Os serviços
e os produtos prestados eram disponibilizados
aos utilizadores pelo bibliotecário, dentro do Fig. 13 – Biblioteca Municipal de Câmara de Lobos,
espaço da Biblioteca. Para além da oferta de projeto da Arqt. Joana Rodrigues, 2004 (arquivo particular).
B ibliotecas ¬ 385
(que começou, de igual modo, como uma bi- Biblioteca Municipal da Ponta do Sol
blioteca fixa da FCG, em 1982, e passou para
um novo edifício em 2006) e do Curral das Criada em 1963 a partir da biblioteca fixa
Freiras (aberto em 2010). n.º 77 da FCG, cujo acervo absorveu, a Biblio-
A rede de bibliotecas do concelho de Câma- teca Municipal da Ponta do Sol era um servi-
ra de Lobos possuía, em 2015, mais de 35.000 ço público que tinha por finalidade facilitar o
documentos em papel, cerca de 500 documen- acesso à cultura, à informação, à educação e ao
tos sonoros, mais 1500 documentos audiovi- lazer, contribuindo para elevar o nível cultural
suais e 200 CD-ROM. e a qualidade de vida dos madeirenses.
Como centro de recursos educativos, a Bi-
blioteca tem como principais objetivos: estimu-
Biblioteca Municipal de Machico lar o gosto pela leitura e fomentar a compreen-
Em 1964, com o apoio da FCG, foi instalada são do mundo; criar condições para a fruição
uma biblioteca nos paços do concelho da Câ- da criação literária, científica e artística, pro-
mara Municipal de Machico, no salão do 1.º porcionando o desenvolvimento da capacida-
andar. A 14 de setembro de 1964, foi inaugu- de crítica do indivíduo; conservar, valorizar,
rada a biblioteca fixa n.º 74 da FCG, embora promover e difundir o património escrito, em
a biblioteca itinerante da FCG de São Vicen- especial o respeitante ao fundo local, o qual irá
te servisse, também, a população deste conce- contribuir para o reforço da identidade cultu-
lho. Anos passados, e para responder às neces- ral da região; e difundir documentação e infor-
sidades dos leitores, a Biblioteca foi transferida mação útil e atualizada, em diversos suportes e
para uma maior área da Câmara. Assim, a 3 de relativa às várias áreas do saber, satisfazendo,
março de 2008 é inaugurada a Biblioteca Mu- assim, as necessidades dos utilizadores e dos di-
nicipal de Machico no Edifício Fórum Machi- ferentes grupos sociais.
co, passando a contar com um espaço digno
ao serviço de toda a comunidade. O municí-
Biblioteca Municipal do Porto Moniz
pio concorreu ao programa da RRBP (IPLP/
DRAC) apenas para apoios à aquisição de mo- A Biblioteca Municipal do Porto Moniz foi
biliário e equipamento, fundos documentais e inaugurada a 22 de julho de 1988 e instalada
informatização. na sede da Câmara Municipal, no rés-do-chão.
Em 2015, a Biblioteca disponibilizava cerca Anteriormente, ocupava um espaço no edifício
de 18.500 livros para todas as idades, distri- onde estava instalada a antiga Câmara. O mu-
buídos em regime de livre acesso às estantes. nicípio de Porto Moniz beneficiou da biblio-
Existia uma coleção de livros que se encontra- teca fixa n.º 83 da FCG, instalada por volta de
va resguardada, cujo interesse residia sobre- 1964, que foi a base da Biblioteca Municipal,
tudo na área da literatura e dos estudos lite- que contou com o apoio financeiro da Câma-
rários portugueses, que exigia um pedido de ra; esta candidatou-se ao programa da RRBP,
pesquisa aos técnicos. Para além dos livros, mas não foi possível avançar com a construção
a Biblioteca contava também com MNL, em do edifício por falta de verbas.
particular CD de todo o género de música, fil- Em 2015, o seu acervo estava estimado num
mes vários e CD-ROM (num total de cerca de total de 10.474 volumes, sendo composto por
50 unidades), sobre muitas áreas do conhe- monografias e revistas que se enquadravam no
cimento, promovendo aos munícipes o em- perfil do utilizador do município. O emprésti-
préstimo domiciliário, serviços de fotocópias, mo de livros, a leitura de revistas, o apoio aos
digitalização de documentos, atividades de leitores e a existência de terminais informáti-
promoção de leitura, entre outros. Em 2013, cos com ligação à Internet eram os principais
foi inaugurada uma extensão desta Biblioteca serviços e produtos que a Biblioteca oferecia à
no Museu da Baleia. comunidade de utilizadores.
386 ¬ B ibliotecas
Biblioteca Municipal
da Ribeira Brava Biblioteca Municipal de Santana
A Biblioteca Municipal da Ribeira Brava teve A Biblioteca Municipal de Santana teve a sua
a sua génese na biblioteca fixa da FCG n.º 82, génese na biblioteca fixa da FCG n.º 76, fun-
inaugurada a 30 de setembro de 1964 e desa- dada por volta de 1964 e desativada em 2010,
tivada em 2003. A construção da Biblioteca foi cujo acervo foi incorporado na Biblioteca com
possível graças à sensibilidade para as questões o empenho financeiro da Câmara Municipal
da cultura e da literacia dos representantes au- de Santana. Em 1997, o edifício da Câmara foi
tárquicos. Totalmente remodelada e inaugura- alvo de um projeto de ampliação, que não be-
da a 20 de novembro de 2001, a Biblioteca Mu- neficiou do programa financeiro da Rede de
nicipal possuía em 2015 um acervo de obras Leitura Pública, e se revelou uma obra de cariz
e documentos em suporte papel no total de moderno, que incluiu a construção do salão
15.694, disponível a todos os munícipes. nobre e da Biblioteca Municipal; esta última
Os serviços que prestava aos leitores eram: começou a funcionar, em janeiro de 2010, nas
leitura de monografias e das publicações de instalações da Casa da Cultura de Santana.
diários e jornais; acesso a computadores e rede O seu acervo era constituído, em 2015, por
sem fios; exposições e atividades culturais de documentos em suporte papel, e estimado em
apoio à educação e promoção do desenvolvi- 18.000 títulos, distribuídos por monografias,
mento cultural do concelho. publicações periódicas e MNL.
B ibliotecas ¬ 387
Biblioteca Municipal de São Vicente apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2005;
HABERMAS, Jürgen, Théorie de l’Agir Communicationnel: pour Une Critique de la
Raison Fonctionnaliste, vol. 2, Paris, Fayard, 1987; ITURBE, Kepa Osorio (coord.),
Inaugurada em 1986, a Biblioteca Municipal La Biblioteca Escolar: Un Derecho Irrenunciable, Madrid, Asociación Española de
de São Vicente ocupou um espaço no edifício Amigos del Libro Infantil y Juvenil, D.L., 1998; MENDONÇA, Alice Maria Justa
Ferreira, A Problemática do Insucesso Escolar: a Escolaridade Obrigatória no
da Câmara Municipal de São Vicente, sendo Arquipélago da Madeira em Finais do Século XX (1994-2000), Dissertação de
um serviço cultural da Câmara que não bene- Doutoramento em Sociologia da Educação apresentada à Universidade da
Madeira, Funchal, texto policopiado, 2006; PIAGET, Jean, Psicologia e
ficiou do programa financeiro da Rede de Lei- Epistemologia: para Uma Teoria do Conhecimento, 3.ª ed., Lisboa, Dom Quixote,
tura Pública. Nasceu da biblioteca itinerante 1977; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978; SILVA,
BI50 e da biblioteca fixa FCG n.º 175, designa- Maria Iolanda Pereira da, A Biblioteca Escolar e as TIC: Modelo para Novas
da Biblioteca Municipal Calouste Gulbenkian Aprendizagens. Estudo de Caso em Três Escolas Secundárias da Região Autónoma
da Madeira 2005/2006, Dissertação de Doutoramento em Ciências da
de São Vicente, inaugurada a 22 de janeiro Informação apresentada à Universidad Complutense de Madrid, Madrid, texto
de 1987 e desativada em 2002. A FCG doou os policopiado, 2008; SILVA, Maria Margarida Macedo, A Sementeira do Livro,
Barcelos, ed. do Autor, 1999; SOUSA, Jesus Maria Angélica Fernandes, La
seus acervos ao município, ou seja, à Biblioteca Dimension Personelle dans la Formation des Enseignants de l’Enseignement de
Municipal, que em 2013 contava com um total Base du 1er Cycle à Madère, Dissertação de Doutoramento em Ciências da
Educação apresentada à Université de Caen, Caen, texto policopiado, 1995;
de 21.998 unidades em suporte papel e 12.724
digital: ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA,
unidades em suporte digital. Estrutura Orgânica da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira,
A Biblioteca disponibilizava diversos servi- s.d.: http://www.alram.pt/images/stories/II.LEGISLATIVA/ESTRUTURA.
ORGANICA.ALRAM/Estrutura.Organica.da.ALRAM.pdf (acedido a 10 out.
ços e produtos aos munícipes: a consulta de 2015); Biblioteca da Direção de Serviços de Educação Artística e Multimédia:
um vasto número de documentos, impressos http://bibliotecadseam.madeira-edu.pt e http://www.recursosonline.org
(acedidos a 10 out. 2015); Biblioteca da Direção Regional de Juventude e
e multimédia, para além de empréstimo do- Desporto/Ponto Jovem: http://www02.madeira-edu.pt/drjd/juventude/
miciliário, quer de livros quer de documen- tabid/218/ctl/Read/mid/913/InformacaoId/2071/UnidadeOrganicaId/4/
Default.aspx (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca da Escola Secundária de
tos audiovisuais, e serviço grátis de fotocópias. Francisco Franco: http://escolas.madeira-edu.pt/esffranco/Escola/
Disponibilizava ainda outros apoios, nomeada- Servi%C3%A7os/Biblioteca/tabid/14821/Default.aspx (acedido a 10 out. 2015);
Biblioteca da Escola Secundária Jaime Moniz: http://www.jaimemoniz.com
mente: serviço na área da animação cultural, (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca da Universidade da Madeira: http://uda.
procurando dar respostas às necessidades de uma.pt, http://www3.uma.pt/Sectores/SDA/index.php?menu_item=2 e http://
europedirect.aigmadeira.com (acedidos a 10 out. 2015); Biblioteca de Assuntos
informação, cultura, lazer e educação a todos Europeus – Casa da Europa da Madeira: http://www.visitmadeira.pt/pt-pt/o-
os munícipes; aconselhamento à leitura e que-fazer/eventos/pesquisa/biblioteca-de-assuntos-europeus--casa-da-europa-
na-madeira (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca de Culturas Estrangeiras: http://
apoio a trabalhos escolares, apoiando também,
www.bprmadeira.org/site/index.php/noticias/448-catalogo-biblioteca-cultura-
quando solicitadas, as bibliotecas escolares. estrangeiras (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca do Centro Cultural John dos
Passos: http://cultura.madeira-edu.pt/ccjdp/OCentroCultural/Biblioteca/
No concelho de São Vicente, ficavam situa-
tabid/910/language/pt-PT/Default.aspx (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca do
das a Biblioteca Municipal de Boaventura, per- Centro de Estudos de História do Atlântico: http://ceha.gov-madeira.pt/CEHA/
tencente à Casa do Povo de Boaventura, e a biblioteca (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca do Conservatório – Escola das
Artes Eng.º Luiz Peter Clode: http://www.conservatorioescoladasartes.com/site/
Biblioteca Municipal da Ponta Delgada, per- index.php?pagina=biblio (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca Municipal da
tencente à Casa do Povo da Ponta Delgada, Calheta: http://www.cmcalheta.pt/pt/viver/equipamentos/bibliotecas (acedido
a 10 out. 2015); Biblioteca Municipal da Ponta do Sol: http://www.cm-
servindo ambas as respetivas populações locais. pontadosol.pt/biblioteca-municipal (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca
Municipal da Ribeira Brava: http://www.cm-ribeirabrava.pt/index
php?lang=pt&s=directorio&pid=177&title=biblioteca_&ppid=142 (acedido a
Bibliog.: impressa: CALIXTO, José António, A Biblioteca Escolar e a Sociedade 10 out. 2015); Biblioteca Municipal de Câmara de Lobos: http://www.cm-
da Informação, Lisboa, Caminho, 1996; COSTA, José Pereira et al., Assistência camaradelobos.pt/Default.aspx?ID=1151#.VhumcCugs2w (acedido a
Médico-Social na Madeira e a Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, Funchal, 10 out. 2015); Biblioteca Municipal de Machico: www.cm-machico.pt/view-
Secretaria Regional do Turismo, Cultura e Emigração, 1992; FERNANDES, equipamento.php?publicacao_id=971 (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca
Margarida Ramires, Mudança e Inovação na Pós-Modernidade: Perspectivas Municipal de Santa Cruz: http://cultura.madeira-edu.pt/agendacultural/
Curriculares, Porto, Porto Editora, 2000; FINO, Carlos Manuel Nogueira, Novas Bibliotecas/BibliotecaMunicipaldeSantaCruz/tabid/885/language/pt-PT/
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Oitocentos, Dissertação de Mestrado em Cultura e Literatura Anglo-Americanas Centro de Informação e Documentação: http://www.cm-funchal.pt/ciencia/
388 ¬ B iddle , A nthony J oseph D rexel
index.php?option=com_content&view=article&id=206&Itemid=328 (acedido
a 10 out. 2015); Centro de Informação Europe Direct Madeira: http://
europedirect.aigmadeira.com (acedido a 10 out. 2015); Digital Repository
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ASSOCIATIONS AND INSTITUTIONS/UNESCO, “A biblioteca escolar no
ensino-aprendizagem para todos: manifesto da biblioteca escolar da IFLA/
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publications/school-library-guidelines/school-library-guidelines-pt.pdf (acedido
a 10 out. 2015); “Manifesto da UNESCO sobre bibliotecas públicas”, Direcção
‑Geral do Livro e das Bibliotecas, 1994: http://www.dglb.pt/sites/DGLB/
Portugues/bibliotecasPublicas/Paginas/manifestoUnescoBibliotecasPublicas.
aspx (acedido a 10 out. 2015); “Mary Jane Wilson”, Congregação das Irmãs
Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, s.d.: http://www.cifnsv.com/2009/
index.php?option=com_content&view=article&id=12&Itemid=34&lang=pt
(acedido a 10 out. 2015); NEVES, Rui, As Bibliotecas em Movimento.
As Bibliotecas em Portugal, comunicação apresentada no II Congresso de
Bibliotecas Móviles, Barcelona, 21-22 out. 2005: http://www.bibliobuses.com/
documentos/ruineves.pdf (acedido a 10 out. 2015); Projeto Baú de Leitura:
http://projetos.gov-madeira.pt/baudeleitura (acedido a 10 out. 2015);
SECRETARIA REGIONAL DA EDUCAÇÃO E RECURSOS HUMANOS, DIREÇÃO
REGIONAL DE PLANEAMENTO, RECURSOS E INFRAESTRUTURAS, Anuário
2011: Estatísticas da Educação e do Desporto (2010/2011), 2012: http://www02.
madeira-edu.pt/Main/Pesquisar/tabid/84/ctl/ReadInformcao/mid/432/
InformacaoId/1900/UnidadeOrganicaId/1/Default.aspx (acedido a
10 out. 2015); Teatroteca Fernando Augusto: http://cultura.madeira-edu.pt/
agendacultural/Bibliotecas/TeatroTecaFernandoAugusto/tabid/897/language/
pt-PT/Default.aspx (acedido a 10 out. 2015).
entrada que lhe dedica no seu Elucidário Ma- deles, o autor americano
deirense, rejeita algumas das observações que discorre sobre as mais
o autor americano escreveu sobre a ilha da variadas temáticas, sem
Madeira. apresentar uma organi-
Sem citar particularmente alguma passagem zação digna desse nome.
dos livros de Anthony Biddle, Fernando Augus- Por exemplo, no segun-
to da Silva destaca o segundo título que aquele do artigo, tanto discorre
escreveu, The Land of the Wine, o único que leu sobre a influência ingle-
com alguma atenção e interesse, não pela quali- sa na Ilha, como descre-
dade da obra, mas sim pela “série de erros e de ve o clima ou os vários
dislates que contém”. Acrescenta ainda, lançan- “distritos” rurais. Este
do uma crítica pessoal assaz irónica, num regis- livro apresenta-se em
to pouco usual na sua escrita, que o “Sr. Biddle”, todos os aspetos como
já que se apresentava como sócio de três insti- um registo de impres-
tuições científicas americanas, deveria também sões de viagens. A estru-
pertencer a “alguma das muitas sociedades de tura do vol. ii, publicado
temperança do seu país”, porque, assim, “talvez em 1899, que nos é apre-
Fig. 2 – The Madeira
tivesse produzido obra mais honesta e exata do sentada por Biddle, não Islands (1896),
que aquela que ousou publicar sobra a nossa coincide com a organi- de Drexel Biddle.
Ilha” (SILVA e MENESES, 1984, I, 152). zação em “artigos” cons-
Sabe-se com relativa certeza que Anthony Bi- tante no vol. i, estando divido em quatro partes,
ddle residiu com a família na ilha da Madei- com numeração iniciada na 4.ª parte, sendo a
ra entre 1889 e 1891, onde ficou hospedado última a 7.ª parte. Apesar da incoerência, Bid-
no Hotel Miles Carmo, como o próprio indi- dle constrói um formato esquematizado, coin-
ca. Durante esta estadia na Ilha, Anthony Bid- cidente com uma ideia de descrição científica
dle estabeleceu contactos com as autoridades das várias temáticas abordadas. De facto, este
comerciais madeirenses, como se depreende volume recria na estrutura e na forma os dois
pelo facto de se apresentar, no vol. ii de The volumes precedentes de The Land of the Wine.
Madeira Islands, como “Delegado, com espe- No prefácio de The Land of the Wine, Anthony
cial nomeação, da Associação Comercial do Biddle elucida que os dois volumes, ambos pu-
Funchal”, para o Congresso Internacional de blicados em 1901, foram preparados durante 12
Comércio, em Filadélfia (EUA), em 1899, e vi- anos, pretendendo que estas obras sejam, por
ce-presidente para a Madeira do conselho con- um lado, livros de referência e de estudo, para
sultivo do Museu Comercial da Madeira (BID- consulta de estudantes, com tabelas e índex de
DLE, 1896-1899, II, 5). referência e, por outro, um livro lúdico que
As duas obras escritas por Anthony Biddle, narra a experiência de viagem, de aventura e
The Madeira Islands e The Land of the Wine, di- descoberta, ao gosto dos amantes de literatura
vididas em dois volumes, foram o resultado da de viagem, apresentando pistas e informações
sua inesgotável curiosidade sobre a Ilha e os essenciais para quem quiser descobrir a ilha da
madeirenses; como o próprio escreveu: “Every- Madeira. Os 2 volumes estão divididos em 7 par-
thing is curious [é tudo muito curioso]” (Id., tes contendo um total de 28 capítulos. O início
Ibid., I, 1). Os volumes estão profusamente ilus- de cada parágrafo é seguido de um pequeno tí-
trados com mapas, fotografias e desenhos. tulo sobre o tema estudado. No vol. i, a 1.ª parte
No vol. i do livro The Madeira Islands, An- é dedicada à história da Ilha, a 2.ª parte é sobre a
thony Biddle ensaia em traços gerais muitos viagem e os locais turísticos, a 3.ª parte é dedica-
dos temas que irá depois reescrever e aprofun- da à geografia e à geologia, sendo acompanha-
dar no livro The Land of the Wine, dividindo as do por um prefácio e um posfácio. Os temas tra-
suas impressões em oito artigos. Em cada um tados no vol. ii são, por ordem, os madeirenses,
390 ¬ B iddle , A nthony J oseph D rexel
as suas características, religião, leis e Fig. 3 – The Land of the Wine (1901), 2 vols.,
de Drexel Biddle.
os seus costumes, a flora, as vinhas
e os vinhos, e por fim, a fauna.
Uma leitura atenta aos quatro vo- descreve os lavradores madeirenses,
lumes editados por Anthony Bidd- apesar de os considerar simples e es-
le revela certas opiniões que pro- túpidos, enaltece as qualidades de
vavelmente estarão na origem da bons trabalhadores, poupados e de-
reação crítica de Fernando Augus- votos. Se o avistamento da natureza
to da Silva a estas obras. A título luxuriante madeirense provoca em
exemplificativo, Anthony Biddle, Biddle maravilhamento e admiração
ao falar sobre as feições dos ma- durante o dia, o mesmo acontece du-
deirenses, refere que regra geral rante a noite madeirense, tendo o es-
eram de compleição negra, consi- critor dedicado um parágrafo à des-
derando que não são verdadeiros Portugueses, crição romântica da sensação de beleza estranha
sobretudo os de classe mais baixa, por terem que provocam no viajante as noites de luar, e,
sangue africano, uma vez que, depois da aboli- do mesmo modo aquelas em que o céu escuro
ção da escravatura, os escravos se haviam mis- e limpo releva os astros, escrevendo que estes se
turado com os europeus. Acrescenta, ainda, a mostram ao olhar mais resplandecentes do que
este propósito, que os madeirenses têm uma em qualquer outra parte do mundo. Percebe-se
mistura de sangue mouro, muito graças à pira- também o cuidado em Anthony Biddle apren-
taria que havia nas águas do Mediterrâneo e do der um pouco de português aquando da sua es-
Atlântico, e ao facto de muitos desses piratas se tadia na Ilha, percetível quando descreve a va-
terem fixado na Ilha. Outra afirmação duvido- riedade dos frutos e produtos hortícolas, e tem
sa de Anthony Biddle acerca dos madeirenses a preocupação em registar os nomes em dupla
é que os ilhéus se sentem indignados quando grafia, apresentando a palavra em português e
são considerados portugueses, pois os madei- em inglês.
renses têm uma ardente admiração pelos Ame- Os escritos sobre a Madeira de Anthony Dra-
ricanos, havendo entre eles a ideia de que os xel Biddle, pela sua abrangência temática, ape-
Americanos desejam anexar a Ilha porque pre- sar de não terem merecido a consideração do in-
cisam da sua ajuda. Sobre este assunto, An- signe autor do Elucidário Madeirense, constituem
thony Biddle explica que, se alguém pergun- um interessante, embora por vezes caricato, do-
tar a um madeirense de inteligência mediana cumento de literatura de viagem de um alegre
o que pensa sobre a América, este responderá milionário americano, reveladora da crescen-
com toda a convicção que a anexação da Ilha te influência da riqueza americana no mundo,
por parte dos Americanos está planeada, ape- que se reflete em alguns espaços mais peque-
nas esperando uma boa oportunidade para li- nos, como acontece com a ilha da Madeira.
bertar os madeirenses do jugo monárquico.
Obras de Anthony Joseph Drexel Biddle: The Madeira Islands (1896-1899); The
Por outro lado, Anthony Biddle manifesta Land of the Wine. Being An Account of the Madeira Islands at the Beginning of the
uma genuína afeição e maravilhamento pela Twentieth Century and from a New Point of Vue (1901).
Ilha, referindo que a aproximação à cidade do Bibliog.: BIDDLE, Anthony Joseph Drexel, The Madeira Islands, 2 vols.,
Philadelphia, Drexel Biddle Publisher, 1896-1899; Id., The Land of the Wine. Being
Funchal revela “the most sublimely grand and An Account of the Madeira Islands at the Beginning of the Twentieth Century and
beautiful sights probably to be found in the from a New Point of View, 2 vols., Philadelphia, Drexel Biddle Publisher, 1901;
LEONARD, John W. (org.), Who’s Who in America. A Biographical Dictionary
world [provavelmente uma das paisagens mais of Notable Living Men and Women of the United States. 1901-1902, Chicago, A.
grandiosas e sublimes do mundo]” (BIDDLE, N. Marquis Publishers, 1901; SILVA, A. Marques da, “Visitantes estrangeiros na
Madeira. Uma tradição de violência. O tipo físico e o carácter do madeirense”,
1896-1899, I, 40). Atlântico, n.º 1, 1985, pp. 20-53; Id., Passaram pela Madeira, Funchal, Empresa
O autor americano enaltece a beleza e os Municipal Funchal 500 Anos, 2008; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984.
cuidados que os madeirenses têm com os jar-
dins, sejam eles públicos ou privados. Quando Carlos Barradas
B ilhardice ¬ 391
Bilhardice
O estudo do regionalismo madeirense “bilhar-
dice” tem como escopo a sua individualização
em relação a outros termos que a língua portu-
guesa oferece e que poderiam aparecer como
sinónimos deste regionalismo sem qualquer
diferenciação semântica. A riqueza semântica
do termo “bilhardice” obrigará a testes vários
no eixo paradigmático e no eixo sintagmáti-
co, consoante a nomenclatura de Ferdinand
Saussure. A semântica deste termo é mais sus-
tentada em conhecimentos pragmáticos re-
sultantes da sua realização em concreto, da
experiência própria de sujeito falante do por-
tuguês madeirense e da sustentação ideológi-
ca em diferentes campos científicos, mais ou
menos implícitos, nomeadamente da linguísti-
ca, da semântica, da psicologia, da sociologia
e de outros ramos gnosiológicos, incluindo o
da filosofia. Com efeito, a consulta de dicio-
nários e enciclopédias da língua portuguesa
revela que este vocábulo não regista nenhu- Fig. 1 – Camponeses conversando no alto da serra, aguarela de
viajante britânico, 1860 (Casa-Museu Frederico de Freitas).
ma entrada nessas obras. Exceção a esta situa-
ção é o Dicionário Priberam da Língua Portugue-
sa (DPLP), online, que o regista como tendo o e informações acerca de um termo, o recurso
mesmo significado de “bisbilhotice”. A Gran- a exemplos construídos em situações possíveis
de Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, autorida- de comunicação de fala foi a base essencial do
de científica de reconhecido prestígio, na sua estudo deste regionalismo. Em tal situação,
edição de 1936, registava uma entrada de um este trabalho não pôde contar com o registo
termo cognato de “bilhardice” e definia assim sistemático do termo “bilhardice” em dicioná-
“bilhardeira”: “o mesmo que mexeriqueira, in- rios ou enciclopédias, que costumam reivindi-
trigante, na ilha da Madeira; ordinária ou de car para si a objetividade, como se se situassem
fraco valor moral em Évora. Em Beja, mulher acima das determinações socio‑históricas em
de mau génio”. Já nas últimas edições, entre que um vocábulo surge e é usado, quando é
1998 e 1999, o termo deixa de aparecer. A sua certo que as definições de um verbete, em di-
formação morfológica fez uso das potenciali- cionários e enciclopédias, podem trazer implí-
dades do sistema aplicadas à forma, tendo‑se o citas perspetivas ideológicas e culturais, mesmo
sujeito falante, por intuição linguística, limita- que possam não ter sido objeto de um ato re-
do a acrescentar ao radical adjetival “bilhard‑” flexivo. Contudo, esse obstáculo tornou‑se um
o sufixo “‑ice”, que se junta a adjetivos para for- desafio e determinou o método da pesquisa e
mar nomes, como em sovin‑ + ice > sovinice ou da elaboração do mesmo, partindo da consul-
tol‑ + ice > tolice. ta de trabalhos já efetuados sobre o mesmo as-
Assim, sem grandes meios de consulta do sunto, os quais tiveram e anotaram as mesmas
ponto de vista de dicionários ou enciclopé- dificuldades, mas cujos autores têm o conheci-
dias que registassem o verbete do regionalis- mento da realidade da língua em contexto, do
mo “bilhardice”, i.e., aquilo a que a lexicogra- contexto sociocultural madeirense, da língua
fia designa o conjunto de aceções, exemplos portuguesa tal como é falada na Madeira e do
392 ¬ B ilhardice
uso muito peculiar do termo “bilhardice” pela e na versão online da edição de 1913 do Novo
população da região. Com efeito, as diferentes Diccionário da Língua Portuguesa de Cândido de
aceções de um termo resultam também daqui- Figueiredo encontram‑se duas entradas para
lo a que Saussure chama “realidade da língua”, o verbo “bilhardar” e uma para “bilhardeiro”:
ou seja, da relação do sujeito com os signos “Bilhardar, 1 v. i. Dar duas vezes na bola com o
que usa, porque a compreensão do signo lin- taco ou tocar duas bolas ao mesmo tempo, no
guístico e a sua realização se dão num deter- jogo do bilhar. (Fr. billarder); bilhardar, 2 v. i.
minado contexto sociocultural e, nesse contex- Jogar a bilharda. Pop. Vadiar”. “Bilhardeiro, m.
to, ele adquire uma significação que vai para Jogador de bilharda. Vadio, garoto”. O termo
além da mera equivalência de significantes ins- “bilhardice” também não se encontra neste di-
critos na paradigmática da sinonímia, o que cionário, facto já observado por outros auto-
implica a variação de valores de acordo com res, que, por sua vez, citam outros: “A palavra
a realidade sociocultural em que se movimen- bilhardice é um termo regional para as palavras
ta o sujeito falante, pois cada palavra de uma bisbilhotice, mexerico, coscuvilhice. O que a
linha sintagmática se relaciona com as entida- torna interessante, de facto, é tratar‑se de um
des no sintagma, mas igualmente com outras regionalismo, e ser usada, frequentemente, em
que são suscetíveis de o substituir na coluna detrimento das anteriores. Curiosamente, não
paradigmática. Para além disso, os dicioná- constitui entrada de dicionários e é apenas refe-
rios e enciclopédias são produto de autores rida como ‘falso testemunho, alveiosia. Aquelas ra-
que são fruto de contextos socioculturais que parigas não faze m senão bilhardar’” (BARBEI-
os condicionam e lhes proporcionam o ma- TO, “Para a Compreensão…”). Note‑se que o
terial necessário para o seu trabalho, em que trecho da citação colocado em itálico tem por
um exemplo ilustrativo pode ser, exatamen- autor Jaime Vieira dos Santos, em “Vocabulá-
te, este excurso sobre o termo “bilhardice”. rio do Dialecto Madeirense”, artigo publicado
Já o uso do verbo “bilhardar” e de “bilhardei- na Revista de Portugal. Em Palavras d’Aquintro-
ro” pode anotar‑se no DPLP (“Bilhardar: Picar dia, de Ana Cristina de Figueiredo, o termo
duas vezes a bola com o taco. Picar duas bolas aparece registado com várias aceções: “Ato de
ao mesmo tempo quando estão juntas. Jogar a conversar animadamente (Cavaqueira). ‘Aque-
bilharda. Regionalismo, o mesmo que bisbilho- las parecem duas comadres: sempre na bilhar-
tar”; “Bilhardeiro: Jogador de bilharda. Man- dice!’” ou “ação de comentar a vida alheia e de
drião, calaceiro. O mesmo que bisbilhoteiro”), arranjar intrigas ou mexerico sobre a vida de
outrem (alcovitice, bisbilhotice, coscuvilhice,
mexerico)” (FIGUEIREDO, 2011, 104‑105).
Interessante será referir o que diz sobre “bi-
lhardice” David Pinto Correia: “Quanto à ‘bi-
lhardice’, termo felicíssimo exclusivamente
madeirense, que sintetiza, com os seus pró-
ximos ‘bilhardeiro’ e ‘bilhardeira’ e ‘bilhar-
dar’ (interessante será verificar que este verbo
quase só se conjuga no infinitivo ou em formas
perifrásticas), e com uma sonoridade bem ex-
pressiva, muito do que outras palavras de sen-
tido próximo (como, e.g., ‘intriga’, ‘bisbilhoti-
ce’, ‘mexeriquice’) não conseguem exprimir:
a sua complexidade semântica integra a prin-
cipal significação de ‘difundir uma situação’,
Fig. 2 – Conversa de rua, pormenor da litografia
mormente ‘reservada’, ‘que não era necessa-
Franciscan Convent, de Frank Dillon, Funchal, 1850. riamente divulgável’, ou mesmo ‘que devia ser
B ilhardice ¬ 393
mantida em segredo’, mas também a de uma eram os mais fracos, ou senão mais fracos, os
crítica velada ou de reprovação ao ato em si, menos compensados socialmente” (Id., Ibid.).
ao mesmo tempo que contém muito de ironia, Neste jogo social, a autora observa a mudança
e de caracterização de tal prática como lúdica que a liberdade política e cultural veio a ter na
(como se se quisesse indicar que ‘é um dizer mudança das mentalidades: “A liberdade ten-
por dizer’, ‘divulgar por divulgar’, sem procu- deu a desmontar esta coisa toda, graças a Deus.
rar consequências graves para o que é divulga- Foram inúmeras as personagens desmascara-
do ou sobretudo para quem é posto em causa das, e hoje fala‑se das pessoas doutra maneira.
pela divulgação, o que está longe de ser verda- Parecia que a mentalidade dos madeirenses es-
de), uma espécie de hábito atavicamente gra- tava a crescer. O número de pessoas aumentou,
tuito, inofensivo” (CORREIA, 1999, 25). Esta e deixou de ter o mesmo impacto saber que
longa citação justifica‑se não só pela autori- a dona Sílvia do monte andava a encontrar‑se
dade científica do autor, mas, sobretudo, por com o senhor Silva da zona velha. Porque nin-
colmatar a ausência já anotada do termo em guém os conhece. E também hoje as pessoas
dicionários académicos, na medida em que a assumem muito mais o que fazem, e não tem
sua riqueza semântica serve de fonte autoriza- graça nenhuma falar de coisas que as próprias
da para este verbete. Pela mesma linha do ca- pessoas assumem”. E afirma, nessa sua aborda-
rácter lúdico‑narrativo para aqueles que prati- gem sociocultural da liberdade, que “A ilite-
cam a “bilhardice” envereda Teresa Brazão, ao racia do estado novo alimentava a bilhardice.
dizer que “A bilhardice é o curioso e permanen- Por isso, agora, temos de investir mais em cul-
te hábito que têm as pessoas, de saber porme- tura. Só assim a sociedade ficará melhor, para
nores acerca daquilo que não lhes diz respeito, todos vivermos confortavelmente nela, com a
especialmente quando se trata da vida alheia. tão propagada qualidade de vida” (Id., Ibid.).
De cultivar e fazer crescer desmesuradamen- Este excurso de Teresa Brazão revela‑se bastan-
te esses pormenores, que acabam tão maio- te pertinente neste verbete, uma vez que a au-
res quão enorme o desejo dos seus insaciáveis tora, ao situar socioculturalmente a “bilhardi-
criadores […] A Madeira, meio pequeno, que, ce” num meio pequeno e ao perspetivá‑la em
apesar de tudo, já não é assim tão pequeno, outras vertentes, nomeadamente a político
foi, desde tempos imemoriais, solo fértil para ‑cultural, confere a esta característica um
o cultivo de tal hábito social” (BRAZÃO, 2005, cunho marcadamente regional, pela impor-
68). A autora não deixa, contudo, de notar não tância que ela assume na sociedade madeiren-
só o jogo social que está por detrás da sua práti- se em todos os extratos socioculturais; ou seja,
ca em favor de elementos mais bem situados na fica aqui claro não se tratar de uma característi-
esfera social, mas igualmente os efeitos que tal ca exclusivamente popular, como, por vezes, se
pode provocar nos alvos da “bilhardice”, que, possa pensar ou dizer. O conhecimento desta
nesse caso, seriam mais frágeis na hierarquia realidade contribui para o enriquecimento da
social, ou a desigualdade entre o homem e a semântica do vocábulo “bilhardice” e, de certo
mulher: “Era mesmo assim. Na mesma medida modo, ajuda a preencher a lacuna que deriva
em que se exageravam e chafurdavam os de- da sua ausência sistemática em dicionários e
feitos de alguns, exaltava‑se e engrandecia‑se a enciclopédias.
virtude de outros. Esses outros alimentavam a No estudo de um determinado regionalis-
bilhardice, porque ela lhes era favorável. Quan- mo, a primeira questão que se coloca é a de
to mais mal se dissesse dos outros, mais bem se saber se existem palavras no idioma que pos-
diria deles próprios, numa espécie de equação sam substituir, com propriedade ou total equi-
matemática ou regra dos termos da lógica aris- valência, esse regionalismo. E logo aqui de-
totélica. Assim, as suas poses, estudadíssimas e paramos com a questão da sinonímia. Outra
refinadíssimas, refletiam a sua enorme embora é a de saber se a palavra em questão cumpre
só aparente virtude. […] As principais vítimas uma função que nenhuma outra cumpre para
394 ¬ B ilhardice
os sujeitos falantes dessa região. Posta assim a não se esgota em nenhuma delas em particu-
questão, o madeirensismo “bilhardice” pode lar). O signo “bilhardice”, que não designa um
ser comparado com outros termos que lhe são objeto, uma realidade física, tangível, mas uma
correlatos na língua portuguesa, como “coscu- realidade fisicamente intangível, só pode ser
vilhice”, “mexerico”, “bisbilhotice”, “intriga”, entendido ligando‑o à realidade exterior que
“alcovitice” ou até mesmo “fofoca”, que, note lhe deu origem, em correlação com uma lin-
‑se, nos remete mais para o português brasi- guagem interior traduzida em imagens men-
leiro, pois não provém do português lusitano tais que não se ativam de forma reflexiva, mas
e tem etimologia africana, mais propriamen- de forma inconsciente e automática, o que re-
te da língua banta. Apesar de os dicionários mete não só para o campo da psicologia, da
darem de “fofoca” o sinónimo “mexerico”, esse sociologia, da cultura, do folclore, dos hábi-
termo não deixa de ter um contexto de signifi- tos, da geografia e do meio, mas também para
cação que, não obstante a etimologia africana, uma fronteira que define o que é ser madei-
tem ressonância nitidamente brasileira. Assim, rense. Nessa perspetiva, o madeirensismo “bi-
ao ouvir o termo “fofoca”, um europeu tende lhardice” não é suscetível de ser substituído
a evocar de forma espontânea contextos exó- por outros termos que se reivindiquem como
ticos, aquilo a que Sartre chama o “estado de seus sinónimos sem que isso tenha um custo
consciência”, que implica uma espécie de inér- de esvaziamento mental, do ponto de vista cul-
cia, de passividade reflexiva ao ouvir um deter- tural, em quem ouve e em quem fala, no caso
minado signo face à realidade que ele desig- de falantes madeirenses, perdendo‑se o con-
na. Assim, se é certo que pode haver múltiplos texto sociocultural de uma mundividência que
sinónimos para o termo “fofoca”, tantos quan- só pode ser traduzida por este termo enquan-
tos aqueles que nos devolve um bom dicioná- to regionalismo compósito de uma realidade
rio, a verdade é que nenhum deles ecoará me- cultural. Esteja o sujeito falante na Madeira ou
lhor no nosso imaginário como significativo de em qualquer parte do mundo, a “bilhardice”
um ambiente brasileiro. evoca a ida à igreja, os arraiais em seu redor, a
O que fica dito acerca do brasileirismo “fo- conversa entre vizinhas, ou vizinhos, a aldeia, a
foca” aplica‑se, com a mesma propriedade, rua, o bairro, a cidade e o campo, enfim, a Ma-
ao madeirensismo “bilhardice”. O uso de um deira e as suas duas ilhas.
signo provoca uma atitude de consciência que Ou seja, a relação necessária do uso de um
integra esse signo numa estrutura mental que signo com determinado contexto habita no
não depende de um objeto particular (o signo sujeito falante em função de uma opção que
“árvore” é o universal de todas as árvores, mas lhe é imposta por um contexto sociocultural.
A opção do sujeito falante pelo termo “bilhardi-
ce”, nesse caso, deriva de ele julgar que é o que
melhor traduz a realidade que quer transmitir.
Pode haver a tentação de o argumento do nível
sociocultural do falante explicar o uso deste
termo em detrimento de outros que poderiam
ser tomados como sinónimos e com a mesma
eficácia, contudo, tal não se verifica, pois
observa‑se o seu uso por indivíduos de diferen-
tes extratos sociais. Também quando à questão
diafásica, a opção ou não por este termo não
difere da que é feita por qualquer outro que se
apresente como sinónimo, e.g., em situação so-
Fig. 3 – Conversa na praia do Calhau, pormenor da litografia
lene, onde não se fala de coscuvilhice e termos
The Governor’s House, de Frank Dillon, Funchal, 1850. equivalentes; e se, após o ato solene, houver
B ilhardice ¬ 395
cavaqueira, o termo “bilhardice”, mesmo nos e a sua prática só pode ser entendida em meios
salões dos diferentes fora regionais – políticos, geográficos pequenos, em que todos se co-
culturais, sociais –, antepor‑se‑á a outros toma- nhecem. O mais importante, contudo, é que
dos como equivalentes. Resta a variação dia- não é possível criar uma rede de sinónimos
tópica, e é nela que devemos prosseguir, visto do mesmo campo semântico, visto que o vocá-
tratar‑se de um regionalismo. Sobre a questão bulo se estende em várias linhas significativas.
da relação intrínseca entre o significante e o Perguntar‑se‑á se nos casos exemplificados o
significado no interior do signo, ressalvando termo “bilhardice” poderia ser substituído por
a voluntária construção pleonástica da frase, e outras palavras no campo da sinonímia. A res-
se o significado de um signo é assumido como posta é “não”, uma vez que, entre os sujeitos
representação mental coletiva de um ente, ser falantes, se dá ao termo “bilhardice” um signi-
concreto ou abstrato, aduz‑se que um signo não ficado de acordo com as circunstâncias, o que
pode subsistir, ontologicamente, numa espécie é relevante, porque os significados chegam a
de mundo platónico das ideias sem uma neces- cair no campo da antonímia. Retenham‑se,
sária ligação a um referente exterior a si, que é além dos exemplos já dados, mais dois: “Maria
a razão da sua existência. As situações em con- é uma pessoa a quem se pode fazer uma bilhar-
creto do uso da palavra remetem para a sua ri- dice!”: aqui, o sinónimo é “confidência”, clara-
queza semântica e negam qualquer sinonímia mente antónimo de “coscuvilhice”, a ideia de
simplificada. Tal implica considerar, para além que Maria é discreta. “Helena andou a fazer bi-
do nome abstrato “bilhardice”, o verbo “bilhar- lhardices sobre Maria”: aqui, o termo “bilhardi-
dar” e o adjetivo “bilhardeiro” (incluindo a sua ce” é sinónimo de “coscuvilhice”, veiculando a
forma correspondente ao grau aumentativo, ideia de que Helena é indiscreta. Ou ainda ou-
“bilhardão”), classes morfológicas importan- tros casos, desta vez ilustrativos dos vários sen-
tes para um quadro semântico variado destes tidos do nome “bilhardice”: “Não me venhas
termos. Vejamos casos concretos de aplicação: com bilhardices, que eu já te conheço, gostas
“Olhe, venho aqui fazer‑lhe uma bilhardice”. é de espalhar confusão!”: aqui, significa intri-
Nesta enunciação, estão pressupostas a cum- ga e origem de conflito. “Aquelas três estão há
plicidade entre os dois sujeitos falantes, a con- mais de duas horas numa bilhardice pegada!”:
fiança e a proximidade, quer humanas, quer aqui, o termo adquire o sentido de cavaqueira,
geográficas, tipo porta com porta, no aspeto conversa, sem qualquer tipo de insinuação ou
espacial. Que significará, então, aqui “bilhar- acusação.
dice”? Confidência, segredo, maledicência ou Para completar este excurso argumentativo
não, dependendo do conteúdo. Imaginemos e afastar de vez a hipótese de sinonímia abso-
vários exemplos: “– Olhe, venho aqui fazer‑lhe luta de “bilhardice” com outros vocábulos da
uma bilhardice. Sabe que Maria tem um aman- nossa língua, aduzo, em defesa da diferencia-
te?! – Não me diga! E ela que se tinha por me- ção deste vocábulo em relação a termos que
lhor que as outras!”: aqui, o caso é nitidamente se apresentam como sinónimos, outros exem-
de conversa de maldizer. “– Olhe, venho aqui plos: com dois adjetivos da mesma família:
fazer‑lhe uma bilhardice. Sabia que Maria tem “António é um bilhardeiro. Contei‑lhe um se-
um tumor? – Ah, coitada da rapariga, tão nova, gredo e logo espalhou por todo o lado!”: An-
com filhos pra criar!”: aqui, o caso é de solida- tónio, aqui, é um indivíduo que não merece
riedade, uma confidência, em que a “bilhardi- confiança. “Maria é um bilhardão! Ouve aqui e
ce” implica uma obrigação solidária, em que conta acolá e, ainda por cima, distorce tudo!”:
todos sabem de uma triste realidade que mere- Maria, além de coscuvilheira, é enredadeira e,
ce discrição, pelo menos perante Maria, e todos subentende‑se, mentirosa. Outro exemplo, em
têm o dever de passar a ser compassivos com que o significado muda radicalmente, com re-
ela. Como se vê, a imagem mental do signo “bi- curso ao verbo “bilhardar”: “Estás a bilhardar,
lhardice” varia de acordo com as circunstâncias, eu não disse nada disso!”: neste caso, a mentira
396 ¬ B ilhardice
é a base da significação. Como se pode infe- hora em que é designado: “estrela da manhã”
rir destes exemplos de vocábulos cognatos de ou “estrela da tarde”. Ou seja, a representação
“bilhardice”, cada palavra é o centro de uma subjetiva do signo linguístico “estrela” muda
gramática de interpretação da vivência huma- de acordo com o contexto e com a sua vivên-
na em cada lugar e em cada circunstância, e cia. Por sua vez, enquanto o signo saussuriano
há que concluir que os madeirenses procura- é uma imagem universal e objetiva, apreendida
ram novas palavras por necessidade de traduzir coletivamente, ao sinal (o signo de Saussure,
aquilo que mais nenhuma comunidade viveu. recorde‑se) Frege associa outra componente:
Por isso, a palavra “bilhardice” pode ser sinóni- a representação que o sujeito falante associa a
mo de outras palavras, mas essoutras palavras esse sinal, e que é inteiramente subjetiva. Entre
não traduzem exatamente aquilo que os ma- o signo de Saussure e o sinal de Frege não há
deirenses viveram. diferença quanto à universalidade e à repre-
Vejamos, a propósito deste assunto, a teoria sentação de uma imagem apreendida coletiva-
de Gottlob Frege, esclarecendo, porém, a prio- mente. A questão está em que, para Frege, a
ri, a nomenclatura deste autor com a equivalen- representação mental associada ao sinal é in-
te terminologia saussuriana: o sinal ou nome teiramente subjetiva.
próprio é equivalente a signo; a referência ou Não é fácil encontrar na língua portuguesa
realidade designada é o referente saussuriano; um termo que traduza, com a mesma eficácia e
o significado é o mesmo que em Saussure (sig- fidelidade, a realidade sociológica madeirense
nificado). Como é que a relação no interior veiculada pelo termo “bilhardice”, até porque
do sinal ou nome próprio, em Frege, estabe- ela mesma, como vimos nos exemplos expos-
lece a ligação entre a referência (que é reali- tos ao longo deste excurso, tem uma plurali-
dade designada) e o significado, ou seja, qual dade semântica que difere de acordo com o
é a diferença entre o significado em Saussure sintagma em que se insere. Convém ler, para
e em Gottlob Frege, se ambos usam o mesmo estabelecer um paralelo de situação, o seguin-
termo? É que em Saussure tudo se passa no in- te texto sobre a palavra “saudade”: “Saudade é
terior do signo, que é um universal abstrato, substantivo abstrato, tão abstrato que só existe
mas em Frege o significado é o modo como na língua portuguesa. Os outros idiomas têm
o referente, físico ou abstrato, se realiza na dificuldade em traduzi‑la ou atribuir‑lhe um
mente do sujeito falante: aquilo que cada um significado preciso: ‘Te extraño’ (castelhano),
pensa ou sente ao ouvir um signo, seja ele qual ‘J’ai [du] regret [de]’ (francês) e ‘Ich vermis-
for, é determinado pela sua experiência subje- se dish’ (alemão). No inglês têm‑se várias ten-
tiva, como adiante veremos. No caso em estu- tativas: ‘homesickness’ (equivalente a saudade
do, a mesma realidade pode ser designada por de casa ou do país), ‘longing’ e ‘to miss’ (sen-
um sujeito falante não madeirense por outro tir falta de uma pessoa), e ‘nostalgia’ (nostal-
termo que não “bilhardice”; já para um sujei- gia do passado, da infância). Mas todas essas
to falante madeirense, a imagem da realidade expressões estrangeiras não definem o senti-
contextual que ele pretende transmitir a outro mento luso‑brasileiro de saudade. São apenas
sujeito madeirense só tem uma representação tentativas de determinar esse sentimento que
mental adequada se for designada pela pala- sentem os povos de cultura portuguesa. Assim,
vra “bilhardice”. Para corroborar esta ideia, essa palavra ‘saudade’ não é apenas um obs-
recorro‑me do exemplo clássico de Frege, que táculo ou uma incompatibilidade da lingua-
vai mais longe, ao defender que a mesma re- gem, mas antes, e principalmente, uma carac-
ferência pode, inclusive, ter significados dife- terística cultural daqueles que falam a língua
rentes em função do contexto em que é dita. portuguesa” (LESSA, “O Mito da Palavra Sau-
O planeta Vénus não deixa de ser o mesmo dade”). Donde se deduz que “bilhardice” está
em qualquer altura do dia, mas o ato elocutó- para o falar madeirense como “saudade” está
rio ganha semânticas diferentes consoante a para a língua portuguesa, no sentido em que
B iodiversidade ¬ 397
nenhuma delas, no seu âmbito, encontra um Bibliog.: impressa: ALLEAU, René, A Ciência dos Símbolos, Lisboa, Edições 70,
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mesmo tempo, na sua singularidade, e mesmo 1999; BENVENISTE, Émile, Problemas de Linguística Geral, vol. i, Campinas,
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meadamente os brasileirismos, como é o caso
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SARTRE, Jean‑Paul, L’Imaginaire, Saint‑Amand, Gallimard, 1940; SAUSSURE,
o que acontece quando estamos perante um Ferdinand, Curso de Linguística Geral, São Paulo, Cultrix, 1970; SILVA, António
signo diferente, como “bilhardice”, oriundo Marques da, Linguagem Popular da Madeira, Funchal, DRAC, 2013; SILVA, João
Henrique, Essa Coisa Que Nos Olha no Espelho, Porto, Universidade Católica
de uma determinada região, no contexto mais Portuguesa, 1998; TODOROV, Tzvetan, Poética, Lisboa, Teorema, 1993; digital:
geral da língua portuguesa? Já vimos isso com BARBEITO, Ricardo, “Para a compreensão da bilhardice”, Ricardo Barbeito, s.d.:
http://www.ricardobarbeito.com/Para_a_compreensao_da_bilhardice.pdf
o signo “árvore” ou outro signo qualquer: o (acedido a 22 jul. 2016); Dicionário Priberam: http://www.priberam.pt/DLPO/
que pensa cada um quando o profere ou quan- (acedido a 22 jul. 2016); LESSA, Luísa, “O mito da palavra saudade”, Gosto de
Ler, História e Literatura, s.d.: http://www.gostodeler.com.br/materia/19056/o_
do o ouve está dependente da experiência sub- mito_da_palavra_saudade.html (acedido a 22 jul. 2016); REBELO, Helena,
jetiva. O signo “bilhardice” obteve, desde há “A arte de criar palavras ou de ‘bilhar’ à ‘bilhardice’”, A_Bilhardice/Arte Pública/
Happening_Instalação/Avenida Arriaga Salão Nobre do Teatro Municipal
muito, um significado que é geral e abstrato Baltazar Dias, 23 jan. 2009: http://a‑bilhardice.blogspot.pt/ (acedido a 22 jul.
no contexto cultural madeirense, que deriva 2016); RODRIGUES, Fábio della Paschoa, “O arbitrário do signo, o sentido e a
referência”, Universidade Estadual de Campinas, s.d.: http://www.unicamp.br/iel/
da vivência de uma comunidade e que se con- site/alunos/publicacoes/textos/a00001.htm (acedido a 22 jul. 2016).
cretiza em cada ato de fala particular, como re-
sultado da memória, da experiência e da vivên- Miguel Luís da Fonseca
cia do falante, as quais conferem a essa palavra
uma representação mental, segundo a tese de
Frege. É esta referência ao mundo real, à pró- Biodiversidade
pria vida dos sujeitos falantes, que justifica a
diferença que, de facto, existe entre o termo Em 1985, durante a preparação de um fórum
“bilhardice” e os vocábulos que se apresentam sobre a diversidade biológica, Walter G. Rosen
como seus sinónimos na nossa língua. A bilhar- utilizou pela primeira vez a palavra “biodiver-
dice é, portanto, um conceito cuja amplitude sidade”, mais tarde popularizada a partir da
semântica não encontra paralelo em qualquer publicação da mesma por E. O. Wilson nas
outro termo da língua portuguesa. atas desse fórum. Inicialmente, o conceito de
398 ¬ B iodiversidade
diversidade biológica estava associado ao nú- de que fazem parte, incluindo ainda a diversi-
mero de espécies que habitavam um determi- dade dentro de espécies, entre espécies e de
nado espaço geográfico. No entanto, com o ecossistemas.
passar do tempo, este conceito foi sendo al- Nos começos do séc. xxi, estavam identifica-
terado no sentido de incorporar outros aspe- das nos arquipélagos da Madeira e das Selva-
tos, tais como a abundância dessas espécies no gens mais de 7500 espécies e subespécies ter-
ambiente e a variação entre os organismos da restres, das quais cerca de 1500 são endémicas
mesma espécie. Posteriormente, a noção de desta região. Do total de espécies conhecidas,
diversidade biológica procurou referir e inte- 42 % pertencem a fungos e plantas, 58 % cor-
grar toda a variedade e variabilidade que pos- respondem a animais, sendo a maioria destes
samos encontrar em organismos vivos e nos pertencente ao grupo dos invertebrados, com
ambientes nos quais estão inseridos. “Biodi- destaque para os moluscos e os artrópodes. No
versidade”, sinónimo de “diversidade biológi- contexto biogeográfico da Macaronésia, a ilha
ca”, de acordo com o texto elaborado na Con- da Madeira destaca‑se por ser a segunda ilha
venção sobre Diversidade Biológica, assinado mais rica em número de taxa nos arquipélagos
durante a Conferência das Nações Unidas atlânticos dos Açores, da Madeira, das Selva-
sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, gens, das Canárias e de Cabo Verde, apenas ul-
realizada no Rio de Janeiro em 1992, consis- trapassada pela ilha de Tenerife, no arquipéla-
te na variabilidade de organismos vivos de go das Canárias. No entanto, a ilha de Tenerife
todas as origens, compreendendo os ecossiste- é muito maior do que a da Madeira, o que nos
mas terrestres, marinhos e outros ecossistemas leva a afirmar que a Madeira é claramente um
aquáticos, bem como os complexos ecológicos hotspot de biodiversidade. A fauna e a flora ter-
restres indígenas dos arquipélagos da Macaro-
nésia apresentam uma grande afinidade com
as espécies existentes nos continentes europeu
e africano. No caso concreto dos arquipélagos
da Madeira e das Selvagens, as espécies indí-
genas têm essencialmente afinidades com a re-
gião mediterrânica, com a península Ibérica
e com o Norte de África. De acordo com José
Jesus et al., a maioria das espécies da Macaroné-
sia terá dispersado para estas ilhas no Miocéni-
co e Pleistocénico, aquando da glaciação e da
desertificação do Norte de África, que levou a
extinções massivas e à migração e dispersão de
muitas espécies de animais e de plantas. Devi-
do ao isolamento, estas ilhas atlânticas são de
extrema importância para a compreensão de
muitos processos de natureza evolutiva e eco-
lógica, nomeadamente a especiação, i.e., a for-
mação de novas espécies, mais concretamente
os endemismos. É por esta razão que cerca de
20 % das espécies terrestres identificadas para
os arquipélagos da Madeira e das Selvagens são
endémicas.
A biodiversidade marinha dos arquipélagos
Fig. 1 – Aspeto da diversidade biológica
da Madeira e das Selvagens, tal como a terres-
(fotografia de Bernardes Franco, 2015). tre, apresenta afinidades predominantemente
B iodiversidade ¬ 399
espécies distintas, bem como as suas filogenias, são ecorregiões. O estudo da distribuição es-
ligada de forma tão clara à geografia e, parti- pacial de táxones designa‑se por “corologia”;
cularmente, por que motivo existem nas ilhas tratando‑se de ecossistemas, formações vege-
espécies tão peculiares? tais ou biomas, usa‑se a designação “sincoro-
No séc. xx, são fundamentais os trabalhos logia”. As unidades de diferente categoria da
e as contribuições de muitos autores, com corologia ou sincorologia são designadas phy-
destaque para Julian Huxley, Charles Elton e tochorion, no singular, e phytochoria, no plural.
Sherwin Carlquist, cujas publicações acerca Os diferentes sistemas de classificação bio-
das formas de crescimento de plantas, nomea- geográfica constituem um sistema hierárqui-
damente tipos de crescimento secundário, in- co composto por unidades de generalidade e
cluem muitos exemplos da flora da Madeira. dimensão decrescentes, que são o reino, a re-
Com o advento de estudos moleculares e a pos- gião, a província, o sector, o distrito, o comple-
sibilidade de esclarecer relações filogenéticas, xo paisagístico ou tesselar e a tessela. Esta últi-
são cruciais as contribuições de Peter Grant e ma é o phytochorion elementar e caracteriza‑se
de Tod F. Stuessy. por ser uma porção de território ambiental-
Tal como referem Robert J. Whittaker e José mente uniforme que contém apenas um tipo
María Fernández‑Palacios, na obra Island Bio- de ecossistema.
geography (2007), a simplicidade relativa dos sis- O arquipélago da Madeira possui uma gran-
temas biológicos insulares transforma as ilhas de originalidade biogeográfica devido não
em laboratórios biológicos em que o controlo só ao grande número de plantas endémicas,
dos fatores, sendo mais simples, permite si- mas também à composição original dos seus
multaneamente uma melhor interpretação e o ecossistemas naturais. As razões desta distinção
teste de hipóteses biológicas. relativamente aos territórios continentais
Num sentido restrito, a biogeografia é a ciên- europeus, africanos e americanos, que partilha
cia que tem por objeto a distribuição espacial com os outros arquipélagos da Macaronésia,
dos seres vivos na Terra. Numa perspetiva mais são de natureza paleobiogeográfica, geológica
abrangente, as teorias biogeográficas anali- e histórica. No seu conjunto, os arquipélagos
sam os fatores ecológicos, climáticos, geológi- da Macaronésia (Açores, Madeira, Selvagens,
cos, evolutivos e paleoecológicos (e paleonto- Canárias e Cabo Verde) possuem graus, maio-
lógicos) que estão na origem da distribuição res ou menores, de semelhança entre si. A ve-
dos organismos, dos ecossistemas ou biomas getação da Macaronésia, e do arquipélago da
da Terra. Devido ao carácter relativamente Madeira em particular, tem sido interpretada
fixo da vegetação, por comparação com o das como uma relíquia da vegetação do Terciário
populações animais, e à correspondência que que existiu em torno do oceano arcaico Tethys
tem com o clima e a geologia, utilizam‑se com (que unia os oceanos Atlântico e Índico, estan-
vantagem os ecossistemas vegetais como base do na origem do mar Mediterrâneo). A vege-
para a divisão da Terra em bio ou ecorregiões tação florestal tethysiana seria dominada por
relativamente estáveis. Num sentido restrito, florestas mesofíticas de carácter subtropical,
trata‑se, portanto, de fitogeografia, ou geogra- com árvores de folhas largas, brilhantes e per-
fia das plantas. sistentes, e designada por Geoflora, sendo domi-
As unidades territoriais podem caracterizar nada por famílias como as lauráceas, celastrá-
‑se através da distribuição de um ou vários táxo- ceas, oleáceas, mirsináceas e ramnáceas (que
nes (família, género, espécie), que, achando‑se correspondem a uma laurissilva). Significativa-
exclusivamente num dado território, o carac- mente, a vegetação florestal zonal da Madeira
terizam univocamente como biorregião uni- e das Canárias é dominada por lauráceas (Lau-
forme e de características exclusivas. Por ana- rus novocanariensis, Apollonias barbujana, Ocotea
logia, fazendo uso de ecossistemas ao invés de foetens e Persea indica) e, secundariamente, por
apenas táxones, as unidades biogeográficas oleáceas (Picconia excelsa) ou outras famílias
402 ¬ B iogeografia
tropicais, como as mirsináceas (Heberdenia ex- medida, a flora tropical tethysiana em latitu-
celsa). Nas áreas continentais em torno do Te- des relativamente elevadas. A partir do refe-
thys, vários eventos ambientais violentos e de rido remanescente tethysiano e de plantas en-
escala global, ligados à dinâmica tectónica alpi- tretanto chegadas de áreas continentais, por
na e ao surgimento do clima mediterrânico du- via de dispersão de longa distância (zoocoria),
rante o Terciário Médio e Tardio (Miocénico iniciou‑se um intenso processo de especiação,
principalmente), deram origem a uma disrup- descrito como “radiação adaptativa”, que foi fa-
ção dramática da vegetação e ao aparecimento cilitado pelo isolamento insular e pela ausência
de novas pressões evolutivas. Nas áreas conti- de herbívoros (cuja introdução pelo Homem
nentais, surgiu também a oportunidade global é a causa de extinções massivas em ambientes
para o estabelecimento de novas floras através insulares, sendo até considerada a primeira
de vias migratórias leste‑oeste e norte‑sul, no- causa de extinções em ilhas). Surgiram assim
meadamente da flora estepária neomediterrâ- inúmeros táxones de plantas neoendémicas
nica com origem na Eurásia e da flora cadu- (endemismos recentes), que coexistem com
cifólia vinda das regiões circumárticas (flora os paleoendemismos herdados da vegetação
artoterciária). terciária, ainda que estes últimos possam ter
As ilhas da Macaronésia não foram afetadas chegado à ilha da Madeira de forma faseada,
significativamente por estes fenómenos, aos em resultado da presença de uma ilha muito
quais, nos continentes, acresceram ainda, du- mais antiga como é o Porto Santo, num pro-
rante o Pleistoceno, as sucessivas vagas de ci- cesso denominado de “stepping‑stone”, através
clos glaciares, que corresponderam a extinções de outras paleoilhas que constituíram a deno-
de ecossistemas e floras, sobretudo durante os minada “paleo‑Macaronésia”. No estudo “A re-
períodos frios e secos. Assim, a Macaronésia construction of palaeo‑Macaronesia, with parti-
reteve (e serviu-lhe de refúgio), em grande cular reference to the long‑term biogeography
B iogeografia ¬ 403
of the Atlantic island laurel forests” (2011), é Muitos destes neoendemismos correspon-
descrita a importância biogeográfica da “paleo dem ao chamado “síndrome lenhoso insular”
‑Macaronésia”, nomeadamente nas laurissilvas. e exibem rosetas de folhas nos extremos dis-
Os elementos florísticos neoendémicos mais tais dos caules (caulirrosuladas) e inflorescên-
notáveis da Macaronésia, em particular do ar- cias ramificadas em forma de candelabro. No
quipélago da Madeira, são elementos lenho- passado, alguns autores tomaram este grupo
sos (com crescimento secundário anómalo na fisionómico de plantas como uma herança ar-
maior parte dos casos, como demonstra, em di- caica da floresta terciária (paleoendemismos),
versos estudos, Sherwin Carlquist) pertencen- mas estudos moleculares têm revelado tratar
tes a grupos taxonómicos que correspondem ‑se de neoendemismos com origem em eventos
normalmente a plantas herbáceas em áreas de dispersão raros ou mesmo únicos e recen-
continentais, entre os quais se encontram tes com origem em antepassados continentais,
os antepassados dos endemismos insulares. tal como já referido. Outros grupos de plantas
Refira‑se, a este propósito, que os processos não florestais e que exibem carácter lenhoso
de retrocolonização, i.e., o regresso, por assim são os matagais altos paleomediterrânicos ter-
dizer, de plantas com hábito lenhoso insular a mófilos dominados por plantas de folhas rijas e
territórios continentais, são incomuns, mas in- coriáceas (e.g., Olea maderensis e Syderoxylon mir-
cluem Convolvulus fernandesii, endemismo por- mulans) ou de folhas e caules suculentos (e.g.,
tuguês do cabo Espichel que teve origem em Euphorbia piscatoria e Dracaena draco). Este tipo
Convululus massonii, endemismo da Madeira. de vegetação tem afinidade com um elemento
Assim, são frequentes ou específicos da Ma- florístico designado por Rand flora, de distri-
caronésia e, consequentemente, também do buição circum‑mediterrânica, da periferia do
arquipélago da Madeira vários géneros, sub- continente africano e da península Arábica, e
géneros, secções (divisões dos subgéneros) de características subtropicais xéricas e semi-
ou espécies exclusivas de um arquipélago ou desérticas, e sem afinidade com a flora mais
grupo de arquipélagos. No extremo territorial continental africana e europeia.
oposto, existem espécies endémicas apenas de De forma resumida, a vegetação da Madei-
uma ilha ou até de um único rochedo. ra deve a sua grande originalidade à combi-
Os táxones mais característicos e ricos em en- nação de seis elementos paleobiogeográficos
demismos são: asteráceas (Tolpis, Sonchus, Peri- principais: flora florestal subtropical terciária
callis), boragináceas (Echium) e campanuláceas (árvores e ptéridofitos [fetos]); flora neoen-
(Musschia na Madeira, Azorina nos Açores, Ca- démica de hábito lenhoso insular (Echium,
narina nas Canárias e Campanula nas Canárias Isoplexis, Musschia e Euphorbia); flora lenhosa
e em Cabo Verde). Exclusivamente endémi- paleomediterrânica suculenta e esclerofila xé-
cos da Madeira, para além do já citado Muss- rica (e.g., no género Olea e Maytenus, e nas es-
chia, refiram‑se, entre os mais notáveis, Moni- pécies da subsecção Macaronesicae do género
zia, Melanoselinum (apiáceas), Sinapidendron Euphorbia); vestígios de flora continental euro
(brassicáceas) e Chamaemeles (rosáceas). Ou- ‑siberiana temperada (Sorbus maderensis); flora
tros grupos, como Aeonium, Plantago, Sideritis e neomediterrânica continental (Sideritis, Micro-
Euphorbia (subsecção Macaronesicae), possuem meria e Lavandula); e flora antropogénica, i.e.,
inúmeros endemismos exclusivos ou partilha- introduzida pelo Homem.
dos com outras áreas da Macaronésia. Alguns O arquipélago da Madeira é comummente
géneros, como Apollonias e Pittosporum, têm os incluído na região macaronésica. O termo “ma-
seus únicos representantes fora dos trópicos na caronésia”, de origem grega (significa “ilhas
Macaronésia. Assim, notavelmente, Pittosppo- afortunadas”), é também muitas vezes usado no
rum coriaceum, endémico da Madeira, é o único sentido de região biogeográfica, i.e., da hierar-
representante do género em todo o reino ho- quia de phytocoria em que a Madeira se inclui.
lártico (Eurásia e América do Norte). É relevante referir dois modelos. O primeiro,
404 ¬ B iogeografia
nos tecidos, o que causa a morte celular. Por úl- com exceção das cotas mais elevadas), medi-
timo, os índices ombrotérmicos procuram tra- terrânico xérico hiperoceânico (apenas numa
duzir a disponibilidade de água no solo para estreita faixa junto ao mar) e temperado hipe-
as plantas, combinando dados de precipitação roceânico (nas cotas mais altas da encosta sul
e de temperatura (total anual ou dos dois, três e na maior parte da encosta norte). Adicional-
e quatro meses mais secos, de modo a conside- mente, em cada bioclima reconhecem‑se inter-
rar também medidas da severidade da secura valos – termotipos e ombrotipos –, com base,
do verão). Estes índices assumem que uma de- respetivamente, nos valores do índice de ter-
terminada quantidade de chuva é mais eficaz- micidade compensado e no índice ombrotér
mente aproveitada pelas plantas se a tempera- mico. Na Madeira, ocorrem os termotipos in-
tura for baixa, uma vez que, nestas condições, framediterrânico (mais quente, ao longo da
as perdas de água da chuva por evaporação di- costa sul), termomediterrânico e mesomedi-
reta e por transpiração são menores. As plantas terrânico, e ainda infratemperado, termotem-
têm mecanismos que lhes permitem manter o perado, mesotemperado e supratemperado
seu conteúdo em água, mesmo em situações (este último apenas nos picos mais altos). E os
de seca, embora dentro de certos limites. ombrotipos seco, sub‑húmido, húmido, hiper
Este sistema de classificação considera cinco ‑húmido e ultra‑hiper‑húmido.
macrobioclimas, dois dos quais estão represen- O reconhecimento de tipos bioclimáticos
tados na Madeira: o mediterrânico e o tempe- e a sua espacialização em cartografia consti-
rado. O macrobioclima mediterrânico é ca- tuem uma ferramenta fundamental para a car-
racterizado por um período seco de verão de, tografia de vegetação potencial, uma vez que,
pelo menos, dois meses; o temperado é um em contexto insular, o clima é determinante.
clima fresco, sem secura estival. Estas unida- Na Madeira, “observa‑se que as condições de
des, por sua vez, subdividem‑se em bioclimas, solo são bastante homogéneas […] uma vez
reconhecendo‑se, no território em análise, os que os solos se formam a partir de materiais
tipos mediterrânico pluviestacional hiperoceâ- semelhantes em praticamente toda a ilha […].
nico (que abrange quase toda a encosta sul, Por outro lado, a correlação entre andares de
vegetação e clima é particular-
mente elevada nos territórios
insulares que, como a Madeira,
apresentam um relevo bastan-
te simples” (MESQUITA et al.,
2007, 331‑332). Para cada uma
das séries de vegetação que se
reconhece ocorrerem na ilha
da Madeira, e tendo em conta
o conhecimento que existe
acerca da ecologia das mesmas,
é possível determinar quais as
combinações de tipos biocli-
máticos que lhe correspondem
e assim mapear a sua área de
ocorrência.
Na cartografia de séries de ve-
getação, as unidades represen-
tadas correspondem às condi-
Fig. 3 – Mapa de termotipos da ilha da Madeira
ções médias de habitat de cada
(MESQUITA et al., 2007, 329). local, referindo‑se à vegetação
B iogeografia ¬ 407
Journal of Botany, vol. 91, n.º 7, 2004, pp. 1070‑1085; FERNÁNDEZ‑PALACIOS, no ambiente e não em taxonomia. Essa se-
José María et al., “A reconstruction of palaeo‑Macaronesia, with particular
reference to the long‑term biogeography of the Atlantic island laurel forests”, paração é tradicionalmente efetuada somen-
Journal of Biogeography, vol. 38, 2011, pp. 226‑246; GÓIS‑MARQUES, C. et al., te no domínio marítimo, já que quase nunca
“Inventory and review of the Mio‑Pleistocene São Jorge flora (Madeira island,
Portugal). Palaeoecological and biogeographical implications”, Journal of
se refere o seu contraponto lógico, que seria
Systematic Palaeontology, vol. 16, n.º 2, 2017, pp. 159‑177; HEANEY, Lawrence R., a biologia terreste. No entanto, é necessário
“Introduction and commentary”, in WALLACE, Alfred Russel, Island Life, or, The
Phenomena and Causes of Insular Faunas and Floras, including a Revision and
compreender que a maioria das disciplinas
Ateempted Solution of the Problem of Geological Climates, Chicago/London, biológicas se pode aplicaraos organismos ma-
The University of Chicago Press, 2013, pp. xi‑lxxi; JARDIM, R., e SEQUEIRA,
rinhos, como sejam a ecologia, a genética, o
M. Menezes de, “As plantas vasculares (Pteridophyta e Spermatophyta) dos
arquipélagos da Madeira e das Selvagens”, in BORGES, P. A. V. et al. (eds.), A List comportamento, a fisiologia, etc., sendo que
of the Terrestrial Fungi, Flora and Fauna of Madeira and Selvagens Archipelagos,
a biologia marinha abrange todas estas áreas.
Funchal/Angra do Heroísmo, Direcção Regional do Ambiente da Madeira/
Universidade dos Açores, 2008, pp. 157‑178; MACARTHUR, R. H., e WILSON, O mar ocupa cerca de 71 % da superfície
E. O., The Theory of Island Biogeography, New Jersey, Princeton University terrestre. No entanto, a verdadeira dimen-
Press, 1967; MÉDAIL, F., e QUÉZEL, P., “The phytogeographical significance of
S. W. Morocco compared to the Canary islands”, Plant Ecology, vol. 140, 1999, são do mar enquanto habitat é tridimensio-
pp. 221‑244; MESQUITA, S., “Subsistemas da estrutura ecológica nacional. nal, pelo que, ao contrário dos habitats terres-
Vegetação”, in MAGALHÃES, M. R. (coord.), Estrutura Ecológica Nacional.
Uma Proposta de Delimitação e Regulamentação, Lisboa, Centro de Estudos tres, que são essencialmente bidimensionais,
de Arquitectura Paisagista “Professor Caldeira Cabral”/Instituto Superior de a área marítima total de 361.900.000 km2 cor-
Agronomia Press, 2013, pp. 105‑120; MESQUITA, S., et al., “Distribuição das
principais manchas florestais”, in SILVA, J. (ed.), Árvores e Florestas de Portugal, responde a um volume de 1.335.000.000 km3,
vol. 6, Lisboa, Público/Fundação Luso‑Americana para o Desenvolvimento/ com uma profundidade média de 3688 m e
Liga para a Protecção da Natureza, 2007, pp. 323‑335; RIVAS‑MARTÍNEZ, S.,
“Les étages bioclimatiques de la végetation de la péninsule Ibérique”, Anales
uma profundidade máxima de 10.803 m.
del Jardín Botánico de Madrid, vol. 37, n.º 2, 1981, pp. 251‑268; RIVAS A água dos oceanos representa 97 % do total
‑MARTÍNEZ, S., et al., “Las comunidades vegetales de la isla de Tenerife (islas
Canarias)”, Itinera Geobotanica, vol. 7, 1993, pp. 169‑374; RIVAS‑MARTÍNEZ, S.
de água no nosso planeta. Todo este volume é
et al., “Biogeography of Spain and Portugal, preliminary typological synopsis”, habitado e representa o maior habitat interco-
International Journal of Geobotanical Research, vol. 4, 2014, pp. 1‑64; RIVAS
nectado do nosso planeta.
‑MARTÍNEZ, S. et al., “Geobotanical survey of Cabo Verde islands (West
Africa)”, International Journal of Geobotanical Research, vol. 7, 2017, pp. 1‑103; É geralmente aceite que a biodiversidade
SCHMITHÜSEN, J., Allgemeine Vegetationsgeographie, vol. 4, Berlin, Dritte
marinha é muito inferior à terrestre,
Auflage, 1968; SILVA, A. R. Pinto da, e TELES, A. N., “Convolvulus fernandesii
Pinto da Silva et Teles, um notavel endemismo portugues de origem estimando‑se que o mar contenha somen-
macaronesica”, Boletim da Sociedade Broteriana, sér. 2, vol. 54, 1981, pp. 233 te cerca de 2 % do total de espécies, pesem
‑237; TAKHTAJAN, A. L., Floristic Regions of the World, Berkeley, University
of California Press, 1986; TRIANTIS, K. A. et al., “The island species‑area embora a imensidão do habitat disponível e o
relationship. Biology and statistics”, Journal of Biogeography, vol. 39, n.º 2, facto de a vida se ter originado no mar e, con-
2012, pp. 215‑231; VARGAS, P., “Are Macaronesian islands refugia of relict
plant lineages? A molecular survey”, in WEISS, Steven, e FERRAND, Nuno sequentemente, o tempo evolutivo disponível
(eds.), Phylogeography of Southern European Refugia, New York, Springer, ser muito mais longo do que em terra, poden-
2007, pp. 297‑314; WHITTAKER, Robert J., e FERNÁNDEZ‑PALACIOS, José
María, Island Biogeography, 2.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2007;
do pressupor‑se que a diversidade fosse maior.
WHITTAKER, Robert J. et al., “A general dynamic theory of oceanic island No entanto, o mar alberga uma maior diversi-
biogeography”, Journal of Biogeography, vol. 35, n.º 6, 2008, pp. 977‑994; digital:
KONDRASKOV, P. et al., “Biogeography of Mediterranean hotspot biodiversity.
dade de taxa mais elevados: 43 filos são mari-
Re‑evaluating the ‘Tertiary relict’ hypothesis of Macaronesian laurel forests”, nhos e 90 % de todas as classes são marinhas,
PLoS ONE, 2015: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.
pone.0132091#abstract0 (acedido a 26 dez. 2018); Worldwide Bioclimatic
enquanto em terra essa diversidade é muito
Classification System: www.globalbioclimatics.org (acedido a 22 jan. 2019). menor (28 filos). Estão descritas cerca de
300.000 espécies marinhas, o que representa
Jorge Capelo
cerca de 16 % do total de espécies descritas.
Miguel Sequeira
A diversidade marinha não se encontra dis-
Sandra Mesquita
tribuída no mar de forma equitativa, existin-
do padrões. Os maiores repositórios de espé-
Biologia marinha cies marinhas são os recifes de coral e o mar
profundo, devido à enormidade da área que
A biologia marinha é a ciência que estuda a ocupam. Em termos de diversidade espacial,
vida nos mares, os organismos e as relações existem gradientes: (1) um gradiente latitu-
entre si e com o ambiente marinho. Trata dinal com uma maior diversidade em áreas
‑se de uma divisão dos organismos baseada tropicais; (2) um gradiente longitudinal com
B iologia marinha ¬ 409
Reveem‑se aqui alguns dos fatores abióticos, Origina assim correntes diversas ao longo das
primeiro, para depois se abordar os habitats e costas, incluindo levantamentos localizados.
as comunidades bióticas. Por exemplo, na costa sul da ilha da Madeira,
a direção predominante da corrente costeira
é de oeste para este.
Fatores abióticos A ondulação é gerada pela ação dos ventos
O arquipélago da Madeira situa‑se na latitu- ao passarem sobre a superfície da água. Essas
de de 32‑33º N. Esta é uma zona de calma- ondas são desviadas progressivamente em re-
rias, situada entre as zonas dos ventos de oeste lação ao vento que as originou devido à ação
(30‑60º N) e a zona dos ventos alísios de nor- da rotação da Terra. Na Madeira, existe uma
deste (0‑30º N). No entanto, são os ventos predominância de ventos alísios de nordeste,
alísios de nordeste que exercem a influên- gerando uma ondulação contínua que emba-
cia predominante, atuando sobre o mar e in- te nas costas destas ilhas, com uma média de
fluenciando as correntes superficiais. Estas 350 ondas por hora. A ondulação é geralmen-
correntes de superfície na área do arquipéla- te mais acentuada na costa norte da ilha, es-
go da Madeira têm predominantemente uma tando a costa sul a sotavento protegida pelas
direção a sudeste. Inserem‑se num sistema montanhas. A ondulação é frequentemen-
de correntes denominadas “giro oceânico do te fraca ou moderada, com rumos predomi-
Atlântico Norte“. Tradicionalmente, este giro nantes de noroeste a nordeste na costa norte
é descrito como iniciando-se com a corrente e sudoeste a sudeste na costa sul. Os tempo-
do golfo que se origina no golfo do México, rais ocasionais procedentes de sudoeste são
acompanha o continente americano e atraves- os que maiores estragos ocasionam nas costas
sa o Atlântico Norte, de sudoeste a nordeste. da Madeira, especialmente na costa sul, já que
Um pouco a sudoeste dos Açores, subdivide essa ondulação não é quebrada pela barreira
‑se em dois braços: a corrente do Atlântico protetora constituída pela ilha da Madeira e
Norte, que vai banhar o Norte do continente pelas ilhas Desertas.
europeu, e a corrente dos Açores, que poste- No arquipélago da Madeira e das Selvagens,
riormente se designa por “corrente de Portu- as marés são do tipo semidiurno regular, com
gal” junto à costa continental portuguesa, e duas preia‑mares e duas baixa‑mares em cada
“corrente das Canárias”, mais ao largo. Este dia lunar. A maior amplitude de maré viva é
sistema de correntes sofre um natural alarga- de 2,74 m. Em todo o arquipélago, os máxi-
mento e enfraquecimento com a sua migra- mos e os mínimos das marés ocorrem quase
ção para este da bacia oceânica, girando gra- em simultâneo, sendo as amplitudes também
dualmente no sentido sudeste. Estas correntes aproximadamente iguais. Os valores teóricos
acabam por se integrar nas correntes subtro- das preia‑mares e baixa‑mares de águas vivas
pical e equatorial do Norte que voltam a atra- e mortas apresentam‑se na fig. 5 e servem de
vessar a bacia oceânica em direção a oeste pontos de referência para a zonação da área
para fechar o giro. São as correntes dos Aço- litoral.
res e das Canárias com direção sudeste que A temperatura da água do mar na zona
influenciam o arquipélago da Madeira. A cor- do arquipélago da Madeira é fortemente in-
rente dos Açores subdivide‑se a sul dos Açores fluenciada pelo efeito da corrente das Caná-
em dois braços: o superior, meandrando em rias com um aporte de água relativamente
direção ao golfo de Cádis, e o inferior, pas- fria. O valor médio é de 19,5 °C, variando
sando através da Madeira em direção às Ca- entre 16 e 26 °C, de acordo com a boia on-
nárias, variando ainda de forma sazonal, pas- dógrafo do Instituto Hidrográfico situada
sando mais perto da Madeira de inverno que na costa sul da Madeira, gerida pela Admi-
de verão. Esta corrente, ao embater nas pla- nistração dos Portos da Região Autónoma
taformas das ilhas, é desviada pelas mesmas. da Madeira, ou com dados aferidos através
B iologia marinha ¬ 411
Fig. 3 - Gráfico da ondulação indicando a altura significativa e a direção da ondulação para as três boias ondógrafo do Instituto Hidrográ-
fico fundeadas no Funchal, no Caniçal e no Porto Santo. A ondulação prevalecente é condicionada pela localização da boia. No Funchal,
observa-se, de forma clara, que ondas maiores correspondentes aos temporais vêm de direções sudoeste.
Ao nível do mar profundo, têm sido feitas regionais, assim como a promoção e me-
prospeções regulares tendo como alvo espé- lhoria do acesso a estes recursos. Em 1988,
cies específicas, especialmente as que têm po- estabeleceu‑se a Univ. da Madeira, que, a par-
tencial pesqueiro, no âmbito do projeto PES- tir de 1992, integrou docentes e investigado-
CPROF. O projeto Madeira Mar Profundo, res da área marinha. A partir desta data, mais
promovido pela Direção Regional do Orde- instituições se juntaram, com relevo para o
namento do Território e Ambiente, já obteve Centro de Maricultura da Calheta, o Museu
dados inovadores neste âmbito. da Baleia, o Observatório Oceânico da Ma-
Os montes submarinos que se situam na deira, o Centro Interdisciplinar de Investi-
Zona Económica Exclusiva da Madeira e que gação Marinha e Ambiental da Madeira e o
se inserem no complexo geológico Madeira MARE – Centro de Ciências do Mar e do Am-
‑Tore (entre o território do continente e a biente da Madeira. A área tem apresentado
ilha da Madeira) são também um habitat im- bastante dinamismo e visibilidade científica.
portante, tendo sido alvo de prospeção no
âmbito do projeto Biometore.
Legislação: diretiva do Conselho das Comunidades Europeias n.º 92/43/
Várias áreas marinhas encontram‑se protegi- EEC, de 21 maio; dec.‑lei n.º 140/99, de 24 abr.; resolução da Presidência do
das, como a Reserva Natural das Ilhas Deser- Governo Regional n.º 699/2016, de 17 out.; dec. leg. regional n.º 4/2017/M,
de 30 jan.
tas, a Reserva Natural das Ilhas Selvagens e a
Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Bibliog.: impressa: ALVES, F. et al., “Local benthic assemblages in
shallow rocky reefs find refuge in a marine protected area at Madeira
Santo. Foram ainda criados o Parque Mari- Island”, Journal of Coastal Conservation, vol. 23, n.º 2, 2019, pp. 373‑383;
nho do Cabo Girão, em 2016, e o Parque Na- ALVES, J. M. R. et al., “Dynamics and oceanic response of the Madeira
tural Marinho da Ponta do Pargo, em 2018. tip‑jets”, Quarterly Journal of the Royal Meteorological Society, vol. 146,
n.º 732, 2020, pp. 3048‑3063; AUGIER, H., “Première contribution à
Também foi aprovada a inclusão do Sítio de l’étude et à la cartographie des biocénoses marines benthiques de l’île de
Importância Comunitária “Sítio Cetáceos da Madère”, Boletim do Museu Municipal do Funchal, vol. 37, 1985, pp. 86
‑129; BIANCHI, C. N. et al., “Sublittoral epibenthic communities around
Madeira”. Áreas protegidas contribuem ativa- Funchal (Island of Madeira, NE Atlantic)”, Boletim do Museu Municipal
mente para um aumento da biodiversidade. do Funchal, sup. 5, 1996, pp. 59‑80; BRIGGS, J. C., “Species diversity: land
and sea compared”, Systematic Biology, vol. 43, n.º 1, 1994, pp. 130‑135;
Id., Global Biogeography. Developments in Palaeontology and Stratigraphy,
vol. 14, Amsterdam/New York, Elsevier, 1995; CABIOC’H, J., “Un fond de
Investigação maërl de l’archipel de Madère et son peuplement végétal”, Bulletin de
la Société Phycologique de France, vol. 19, 1974, pp. 74‑82; CALDEIRA, R.
Historicamente, a investigação em biologia M. A., e LEKOU, S., Madeira, Um Oásis no Atlântico. Uma Introdução aos
Estudos Oceanográficos no Arquipélago da Madeira, Funchal, Direcção
marinha existe desde o séc. xix. Na Madeira,
Regional de Formação Profissional, 2000; CALDEIRA, R. M. A. et al., “Sea
vários organismos têm‑se dedicado à inves- ‑surface signatures of the island mass effect phenomena around Madeira
tigação em biologia marinha. A mais antiga Island, Northeast Atlantic”, Remote Sensing of Environment, vol. 80, n.º 2,
2002, pp. 336‑360; FREITAS, R. et al., “Restructuring of the ‘Macaronesia’
instituição com investigação contínua nesta biogeographic unit: a marine multi‑taxon biogeographical approach”,
área é o Museu Municipal do Funchal, fun- Scientific Reports, vol. 9, 2019; GESTOSO, I. et al., “Marine protected
communities against biological invasions: a case study from an offshore
dado em 1929 como Museu de Ciências Na- island”, Marine Pollution Bulletin, vol. 119, n.º 1, 2017, pp. 72‑80; GUIDETTI,
turais, sob proposta de Adolfo César de No- P., e BUSSOTTI, S., “Effects of seagrass canopy removal on fish in shallow
Mediterranean seagrass (Cymodocea nodosa and Zostera noltii) meadows:
ronha. Foi no âmbito desta instituição que a local‑scale approach”, Marine Biology, vol. 140, 2002, pp. 445‑453;
investigadores como Günther E. Maul fize- INSTITUTO HIDROGRÁFICO, Roteiro do Arquipélago da Madeira e Ilhas
Selvagens, 2.ª ed., Lisboa, Marinha Portuguesa – Instituto Hidrográfico,
ram a sua carreira. O Museu Municipal do
1979; INSTITUTO NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO DAS PESCAS, Programa
Funchal publica também as únicas revistas de Apoio às Pescas na Madeira. IV Cruzeiro de Reconhecimento de Pesca
científicas dedicadas a esta área desde 1945: e Oceanografia 020390582, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação das
Pescas, 1984; JOHNSON, J., e STEVENS, I., “A fine resolution model of the
Boletim Museu Municipal do Funchal e Bocagia- eastern North Atlantic between the Azores, the Canary Islands and the
na. A segunda instituição na área aplicada foi Gibraltar strait”, Deep Sea Research, vol. 47, 2000, pp. 875‑899; KAUFMANN,
M., e MARANHÃO, M., GESMAR (Gestão Sustentável dos Recursos
a Direção Regional das Pescas, integrada na Marinhos): Relatório Final do Projeto. PCT 2007‑2013 GESMAR (MAC/2/
Secretaria Regional de Agricultura e Pescas C068), Funchal, Universidade da Madeira, 2012; LEDOYER, M., “Aperçu sur
la faune vagile de quelques biotopes de l’archipel de Madère. Comparaison
do Governo regional, cuja função é a reco- avec les biotopes méditerranéens homologues”, Arquivos do Museu Bocage,
lha de informação estatística sobre as pescas vol. 1, n.º 19, 1967, pp. 415‑424; LONGHURST, A. R., Ecological Geography
414 ¬ B lanchard , P ierre
of the Sea, 2.ª ed., Amsterdam/Boston, Academic Press, 2007; MARTINS, Le Trésor des Enfants: Divisé en Trois Parties. La
A. et al., “Sea surface temperature (AVHRR, MODIS) and ocean colour
(MODIS) seasonal and interannual variability in the Macaronesian islands Morale, la Vertu, la Civilité, com tradução por-
of Azores, Madeira, and Canaries”, Remote Sensing of the Ocean, Sea Ice, tuguesa, que em 1879 já ia na 36ª edição; e Le
and Large Water Regions, 6743, proc. SPIE – The International Society
for Optical Engineering, 2007, pp. A1‑15; NEVES, P. et al., Resultados do
Voyageur de la Jeunesse dans les Quatre Parties du
Programa de Monitorização da Biodiversidade Marinha dos Habitats Monde. Ouvrage Élémentaire, em seis volumes.
Naturais e Artificiais Subtidais na Ilha do Porto Santo. Relatório Científico
CORDECA, Funchal, Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e
Também deste último texto foram muitas as
Ambiental da Madeira, 2018; PENMAN, H. L., “The water cycle”, Scientific edições, contando‑se numa década cerca de
American, vol. 223, n.º 3, 1970, pp. 98‑108; REAKA‑KUDLA, M. L., “The
quatro. A divulgação dos conhecimentos que
global biodiversity of coral reefs: a comparison with rain forests”, in REAKA
‑KUDLA, M. L. et al. (eds.), Biodiversity II: Understanding and Protecting Our transmitia foi por isso muito vasta, servindo
Biological Resources, Washington, DC, Joseph Henry Press, 1997, pp. 83
durante largos anos para a educação dos jo-
‑108; RIBEIRO, C., e NEVES, P., “Habitat mapping of Cabo Girão Marine
Park (Madeira island): a tool for conservation and management”, Journal vens franceses.
of Coastal Conservation, vol. 24, n.º 2, 2020; SALA, E., e KNOWLTON, N., No quarto volume desta última obra, Blan-
“Global marine biodiversity trends”, Annual Review of Environment and
Resources, vol. 31, n.º 1, 2006, pp. 93‑122; SCHÄFER, S. et al., “Lost and chard começa a viagem no Indostão, passa
found: a new hope for the seagrass Cymodocea nodosa in the marine pela Pérsia, pelas Arábias, por algumas ilhas
ecosystem of a subtropical Atlantic Island”, Regional Studies in Marine
Science, vol. 41, 2021; SPALDING, M. D. et al., “Marine ecoregions of the do Mediterrâneo, pelas ilhas da Ásia, pela
world: a bioregionalization of coastal and shelf areas”, BioScience, vol. 57, África, pela Abissínia, pelo que denomina
n.º 7, 2007, pp. 573‑583; STRAMMA, L., e SIEDLER, G., “Seasonal changes
in the North Atlantic subtropical gyre”, Journal of Geophysical Research: “Estados Barbáricos” ou “Barbárie” (nos quais
Oceans, vol. 93, n.º C7, 1988, pp. 8111‑8118; TITTENSOR, D. P. et al., “Global inclui Tripoli, Tunísia, Argélia, o Império de
patterns and predictors of marine biodiversity across taxa”, Nature, vol. 466,
n.º 7310, 2010, pp. 1098‑1101; TROMM, R., Oceanografia Sísmica da Planície
Marrocos e Biledulgerid), pelo Sahara e, final-
Abissal do Arquipélago da Madeira, Dissertação de Mestrado em Ciências mente, do grande deserto chega às “Ilhas da
Geofísicas (Geofísica Interna) apresentada à Universidade de Lisboa, Lisboa,
texto policopiado, 2017; digital: EAKINS, B. W., e SHARMAN, G. F., Volumes
Madeira”, com as quais fecha o tomo (BLAN-
of the World’s Oceans from ETOPO1, 2010: https://www.ngdc.noaa.gov/mgg/ CHARD, 1818, 438).
global/etopo1_ocean_volumes.html (acedido a 10 jan. 2021); WIRTZ, P., The
O autor transmite o que considera ser a in-
Fauna of Madeira. A List of the Species Lists, 2014: https://www.researchgate.
net/profile/Peter‑Wirtz/publication/261992435_The_Fauna_of_Madeira_ formação mais pertinente sobre o arquipé-
Island_‑_a_list_of_the_species_lists/data/0c96053624861e6e27000000/
lago: a constituição e dimensão das ilhas; a
FAUNMAD.doc.
história do descobrimento e a caracterização
Thomas Dellinger da sua economia. Apesar de se enganar na
data da descoberta, provavelmente fruto de
uma gralha, situando assim a chegada dos
Blanchard, Pierre Portugueses em 1519, Blanchard parece co-
nhecer bem a bibliografia sobre as ilhas. Re-
Autor, editor e educador, Pierre Blanchard fere o incêndio no início do povoamento, a
nasceu em Dammartin em 1772 e faleceu em forte arborização e fertilidade dos terrenos
Angers em 1856. Dedicou‑se às letras desde e o papel da cana‑de‑açúcar na economia
cedo, publicando os primeiros textos no pe- da ilha e na difusão desta cultura no Brasil.
ríodo da Revolução Francesa com os pseudó- Considera o açúcar da Madeira muito bom e
nimos Platon Blanchard e P. B**. Em 1800, afirma que deixa na boca um odor de violeta,
inaugurou em Paris uma instituição para jo- forte e agradável. Em relação ao vinho, afir-
vens. Estabeleceu‑se como livreiro em 1809, ma que a cultura da vinha ultrapassou as es-
a fim de comercializar e divulgar as obras de peranças dos cultivadores, produzindo‑se na
educação de sua autoria. Trabalhou em asso- ilha da Madeira diversos vinhos que estão a
ciação com Alexis Eymery entre 1811 e 1812. par dos melhores que existem, sendo os seus
Em 1834, passou a outro editor a licença da nomes Madeira, Malvasia e Alicante. A Ma-
livraria. deira, segundo o autor, exportava cerca de
Dedicou‑se à escrita de textos de teor didáti- 20.000 barricas por ano para as colónias oci-
co, tendo como principal finalidade a educa- dentais e para os Barbados.
ção das crianças e dos jovens. No conjunto da Além do açúcar e do vinho, a Ilha era famosa
sua obra, destacam‑se Les Accidents de l’Enfance; pela comercialização do mel, da cera, do couro
B lanc , T ibério A ugusto ¬ 415
Fig. 2 – Estragos da Aluvião de 1842, cópia de 1844 (DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos..., 1340-1A-12-15).
obras públicas não deve ter agradado a Tibério Em fins de 1846, já o conselheiro José Silves-
Blanc, que, até certo ponto, se apaga nos anos tre Ribeiro (1807‑1891) iniciara as consultas
seguintes, assim como a António Pedro de Aze- sobre o modo de levar a efeito a obra da ponte
vedo, que pouco tempo depois volta para o projetada pelo seu antecessor, Luís da Silva
continente, embora regressasse, também em Mouzinho de Albuquerque (1792‑1847), mas
pouco tempo, à Madeira. só em 1848 se pôde dar começo aos trabalhos,
Entre as mais importantes obras públicas da depois de o conselheiro ter obtido a promessa
Madeira dos meados do séc. xix, encontram de donativos que chegassem para satisfazer a
‑se a ponte do Ribeiro Seco, a Estrada Mo- quarta parte das despesas em que haviam sido
numental para Câmara de Lobos e as várias orçados os trabalhos. A arrematação das obras
pontes para tal construídas, assim como a le- da ponte teve lugar a 27 de fevereiro de 1848,
vada do Rabaçal. Este conjunto de obras teve e, a 6 de março seguinte, começaram os tra-
a direção do Eng.º Tibério Augusto Blanc e, balhos, tendo pouco antes o governador aber-
dados os interesses políticos e económicos to uma subscrição para os gastos da ponte. Em
que envolveu, foi objeto de ampla discussão junho desse ano, José Silvestre Ribeiro partiria
nos periódicos da época. Não lograram assim de licença para o continente, não deixando de,
estes trabalhos, durante a sua execução, face antes de partir, louvar Tibério Blanc pelos tra-
aos sucessivos encargos que todos tiveram e balhos já desenvolvidos na ponte e no traçado
que quase duplicaram os orçamentos iniciais, da futura Estrada Monumental.
a larga aceitação que viriam a conhecer após As obras da ponte do Ribeiro Seco foram
a sua conclusão. arrematadas pela quantia de quase 6 contos
418 ¬ B lanc , T ibério A ugusto
de réis, sendo arrematantes o mestre de obras desse ano se deslocara a Santa Cruz para esco-
José Pereira e seus sócios António Joaquim lher o terreno para o futuro cemitério. No ano
Marques Basto, João António Bianchi e Fran- seguinte, continuaria os seus trabalhos e, inclusi-
cisco Luís Pereira. Os trabalhos ficaram aca- vamente, responderia, por indicação também do
bados em fevereiro de 1849, altura em que Gov. José Silvestre Ribeiro, aos quesitos apresen-
Tibério Blanc comunicou ao governador civil tados pela Câmara Municipal do Funchal sobre
interino, Sérvulo Drumond de Meneses (1802 a iluminação a gás da cidade.
‑1867), em ofício de 5 de dezembro do mesmo O problema mais grave viria a ocorrer, en-
ano, estar concluída a grandiosa obra, com tretanto, em relação à levada do Rabaçal.
toda a “solidez e perfeição” requeridas, tendo O Eng.º Tibério Blanc fora colocado em agos-
o governador interino louvado a forma como to de 1848 à frente dos trabalhos da cons-
tinha “dirigido a execução do plano que ha- trução da levada, cujos primeiros estudos
bilmente traçara da mesma obra”. Mais tarde, datavam dos meados do século anterior, de
toda a documentação respeitante à obra seria outubro de 1768, do tempo do sargento‑mor
publicada em volume independente, integra- Francisco de Alincourt (1733‑1816), do aju-
da nas várias obras respeitantes à atuação da dante Salustiano da Costa (c. 1745‑c. 1820)
administração de José Silvestre Ribeiro (ME- e do Gov. João António de Sá Pereira (1719
NEZES, 1848). ‑1804). Os trabalhos de perfuração do im-
Tibério Blanc, talvez para poder acompa- portante túnel decorreram nos dois anos se-
nhar mais de perto a obra da Estrada Monu- guintes, comunicando o engenheiro, a 5 de
mental, tinha adquirido um terreno junto à novembro de 1850, em ofício escrito do lugar
ponte do Ribeiro Seco, onde fizera construir do Rabaçal, a finalização daquela fase dos tra-
uma residência. Assim, em breve era atacado balhos. No mesmo documento dava ainda
pelo jornal O Archivista, insinuando‑se que na conta de ter informado os vigários da Calheta,
execução dessa casa se servira dos materiais Estreito, Prazeres, Fajã da Ovelha e Ponta do
do Estado destinados à Estrada Monumen- Pargo, localidades que mais tarde haveriam de
tal. Face às insinuações, o engenheiro enviou beneficiar dos trabalhos em curso. Acrescen-
um ofício ao governador dando conta do an- tava também que encarregara os portadores
damento dos trabalhos e, ao mesmo tempo, das cartas de, nos adros das respetivas igrejas,
demonstrando que nada de censurável havia darem girândolas de foguetes pela consuma-
feito. Acrescentava ainda que resolvera entre- ção do importante túnel de ligação das partes
tanto vender a dita casa e regressar à que ad- norte e sul do monte das Estrebarias.
quirira anteriormente, em setembro de 1848, As questões entre Tibério Blanc e Antó-
no Salto de Cavalo. O Archivista viria a publi- nio Pedro de Azevedo, no entanto, datavam
car os esclarecimentos de Tibério Blanc, mas de, pelo menos, os inícios de 1848. Tibério
acrescentaria que, apesar de tudo, o enge- Blanc fora nomeado por despacho régio de
nheiro deveria de futuro fazer a sua residên- 23 de janeiro de 1839, em comissão de servi-
cia um pouco mais afastada das obras que ço civil, encarregado da direção das obras pú-
dirigia. blicas civis do distrito, ou seja, passara para a
O incidente não deve ter afetado a ação e acei- dependência direta do governador civil. Ora,
tação institucional de Tibério Blanc, que desde com o afastamento de Júlio Ribeiro Guerra,
1850 integrava a direção da Sociedade Agríco- passara o Cap. António Pedro de Azevedo a
la Madeirense, composta por quase 30 pessoas, chefiar o Comando da Engenharia da 9.ª Divi-
dando nesse ano orçamento para umas obras são Militar, pelo que entendeu dever Tibério
a executar na cadeia da cidade para a constru- Blanc dar‑lhe conhecimento dos trabalhos em
ção de uma lareira e respetiva chaminé, a fim que andava. A questão entre os dois chegou
de evitar que os presos fizessem lume ao longo a Lisboa e teve como despacho a suspensão
dos muros, provocando fumos. Também no final de ambos a 31 de março desse ano de 1848,
B lanc , T ibério A ugusto ¬ 419
Fig. 4 – Mappa Demonstrativo da Despeza Feita com Jornaes e Materiaes Gastos na Obra da Pontinha: desde 19 de Abril ate 29 d’Outubro
de 1847 (DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos..., 1321-2-22A-109).
grande impacto na Ilha, com a falência de di- acima de tudo, o acervo privado de cartas co-
versas casas bancárias. merciais e demais livros da contabilidade das
Boatos e testemunhos apontam quase sem- empresas, que sabemos existirem para esta fa-
pre o dedo acusador à firma Blandy pela situa- mília e que já tivemos oportunidade de manu-
ção criada com a falência das casas bancárias. sear, são fundamentais para o estudo no do-
Neste quadro, por falta de documentos oficiais mínio da chamada história empresarial, que,
e na ausência de informações na imprensa da entre nós, ainda não alcançou adeptos. As car-
época, vimos nos livros notariais uma possibili- tas comerciais obedecem a uma lógica, uma
dade de encontrar algum rastro dessa denún- vez que são um instrumento fundamental da
cia, entretanto ainda por provar. Foi por isso atividade comercial entre distintos mercadores
que, no quadro dos estudos que coordenamos e seus agentes. Muitas vezes, o sucesso deste
sobre a economia e influência das comuni- sistema de circulação de produtos depende
dades estrangeiras, solicitámos a participação da forma expedita com que as mesmas circu-
de José Luís de Sousa para proceder ao levan- lam e chegam ao destinatário. A sua utilização
tamento de todos os atos notariais em que a na construção da História tem sido múltipla,
firma Blandy participou, durante o período buscando‑se os dados que inferem sobre as
de 1910 a 1974, no sentido de perceber a sua mercadorias em troca, os portos de destino e
forma de atuação face à realidade socioeconó- os meios de pagamento, mas raras vezes se olha
mica do período em questão. para estas de outra forma, na busca da intimi-
No estudo destas empresas, é fundamental dade e vivências dos seus interlocutores.
o recurso aos arquivos privados, quando estão Em 1980, no quadro dos estudos que tínha-
disponíveis ou o seu acesso facilitado. Neste mos em curso, quisemos proceder a um levan-
caso, os atos tombados nos registos notariais e, tamento da documentação empresarial ligada
ao sector do vinho a partir do achado da do-
cumentação de algumas das empresas que se
haviam associado para dar origem à Madeira
Wine Association (MWA), hoje Madeira Wine
Company (MWC). Com as facilidades conce-
didas pela sua direção, procedemos à orga-
nização dos referidos arquivos, com o fito de
procedermos, na época, à sua microfilmagem
para, num futuro, podermos realizar um estu-
do mais abrangente da história do vinho que
incidisse sobre o vinho Madeira. Entretanto,
faltou entendimento a quem de direito para
que esta missão se concretizasse, e parte sig-
nificativa deste espólio acabou desmantelado.
O que sobrou está disponível no museu da
MWC, nas Adegas de S. Francisco (ASF).
Não podemos esquecer que a história da Ma-
deira, a partir de meados do séc. xvii, embo-
ra a sua presença seja anterior, não pode ser
entendida sem esta comunidade, que assume
um papel dominante no comércio do vinho,
na navegação e demais sectores económicos
da sociedade madeirense. Muitos, porque fa-
ziam do negócio do vinho a sua principal ativi-
Fig. 3 – Charles Ridpath Blandy, c. 1875 (Arquivo Cossart). dade e fonte de lucro, partiram com as crises
B landy , fam í lia e casa comercial ¬ 425
de 1852 e 1872. Outros aproveitaram‑se desta déc. de 30, passa a intervir na hotelaria, com
e de outras crises para reforçar posições e ga- a compra do Hotel Reids, que foi vendido em
nhar dimensão económica. Na verdade, foram 1996, mas a sua situação saiu reforçada neste
os momentos de crise da economia madeiren- sector, em 2000, com o Porto Bay Group, que
se que deram a vantagem para esta afirmação se expande para o Brasil (2007) e para o Algar-
da casa comercial. Foi assim na segunda me- ve (2008).
tade do séc. xix, com a crise do comércio do Foi no negócio do vinho que John Blan-
vinho, bem como na déc. de 30, com a crise dy consolidou os seus negócios na Ilha e fez
bancária. erguer o império que a casa hoje detém. Em
A tradição aponta a presença de John Blan- 1811, começou a negociar vinhos, adquirindo
dy desde 1807, como furriel das forças do Gen. rapidamente uma posição destacada no sector
Beresford. Entretanto, Emmanuel Berk encon- das exportações. Um facto curioso sucedeu em
trou, em agosto de 2006, uma carta de apresen- 1816, com a entrada de duas vasilhas com 92
tação datada de 23 de dezembro de 1807 e diri- garrafas de vinho do Porto, pedidas por John
gida à firma Newton, Gordon, Murdoch & Co. Blandy para curar uma moléstia da mulher.
em que se revela a vinda deste súbdito de Sua Nos dados das exportações de 1823, sabemos
Majestade para a Ilha a fim de cuidar da sua que exportou 10 pipas, subindo para 152, em
saúde, oferecendo os seus préstimos para um 1824. Os principais destinos foram Londres,
qualquer emprego de contabilidade. É mais Índia, Jamaica, Demerara, Baltimore e Fila-
um entre muitos britânicos que a Madeira aco- délfia. Foi o seu filho, Charles Ridpath Blan-
lhe em busca dos efeitos benfazejos do clima dy (1812‑1879), que assumiu a gerência da
na cura de doenças e que acaba por se fixar e Casa em 1855, quem deu o golpe de mestre,
fazer vida na Ilha. ao avançar com um investimento na compra
Blandy Brothers Lda., popularmente conhe- dos stocks de vinhos velhos existentes em diver-
cida como a Casa Blandy, é a cara visível, em sas casas da Ilha. Foi precisamente no ano que
termos comerciais, da família Blandy no ar- assumiu esta direção que comprou a Qt. do Pa-
quipélago. Começou com os vinhos em 1811 lheiro Ferreiro, propriedade do conde de Car-
e, como todas as famílias inglesas, alargou o valhal, que havia sido penhorada por dívidas à
ramo de negócios a todos os sectores da ativi- Fazenda Real. Com isto construiu uma reserva
dade comercial, com particular incidência na que se manteve até à atualidade como o maior
navegação marítima, em 1862, como agente, património vínico do arquipélago e que pro-
em 1878, como abastecedora de água e car- piciou às futuras gerações, nomeadamente no
vão aos navios, em 1855, como interventora período das crises resultantes do oídio, mas
na cabotagem marítima, em 1897, e, ainda, na acima de tudo da filoxera, em 1872, dar con-
construção naval, em 1896. O leque das suas tinuidade e importância à casa de vinhos. Esta
atividades alarga‑se depois à água, através da política teve continuidade com o filho, John
chamada “levada Blandy”, e ao abastecimento Burden Blandy (1839‑1912), que assumiu a di-
doméstico de água, à moagem dos cereais, em reção da casa em 1878.
1930 [?], aos fornos de cal, em 1945, e mesmo As ASF, no Funchal, onde hoje se encontra a
à imprensa, com o Diário de Notícias, a partir da Blandy’s Wine Lodge, foram adquiridas à Câ-
déc. de 30 do séc. xx. Está também assinalada mara Municipal do Funchal depois de 1836, al-
como banqueira, a partir de 1880, mas a Casa tura em que foram expropriadas à família ma-
Bancária Blandy Brothers [banqueiros] Lda. deirense de Pedro Jorge Monteiro e do cônsul
só começou em 1923, estando associada à crise francês Nicolau de La Tuelliére, casado com
bancária que aconteceu em 1931, partilhan- uma filha do primeiro, uma família historica-
do, com a Casa Hinton, o património ligado mente ligada aos vinhos e com grande poder
ao banco de Henrique Figueira da Silva, vendi- neste comércio no decurso da segunda metade
do em hasta pública por insolvência. Ainda na do séc. xviii, mas que agora estava falida.
426 ¬ B landy , fam í lia e casa comercial
A Casa envolveu‑se no comércio com o vinho & Filhos, Luís Gomes da Conceição & Filhos
americano. Em 1863, Charles Blandy, em carta (1863), Miles Madeira Lda., F. F. Ferraz &
a Jefferson Davis, presidente dos Estados Con- Cia. e T. T. da Câmara Lomelino (1820). Cos-
federados, reclamava o pagamento dos danos sart Gordon & Co. Lda. (1745) foi o último a
causados com a perda de mercadoria provoca- juntar‑se ao grupo, em 1953. A partir de 31 de
da pelo afundamento do barco Lauraetta pelo dezembro de 1981, a firma alterou a designa-
barco Alabama. Nos primeiros anos do séc. xx, ção para MWC. Iniciou‑se aqui uma nova fase
a firma Blandy Brothers & Co. ocupava o se- que levou a que a família Blandy assumisse,
gundo lugar, depois da Cossart Gordon & Co., em 1979, uma posição maioritária. A partir de
no conjunto das firmas estrangeiras exporta- 1989, partilhou o património com a família Sy-
doras de vinho Madeira. mington, que adquiriu o controlo da empresa,
A 9 de agosto de 1913, foi constituída, por es- situação que acabou por se reverter em 2011.
critura notarial, a firma MWA, reunindo algu- Em setembro de 2000, foi atribuída à MWC
mas empresas ligadas ao comércio de vinhos: a certificação de qualidade na produção, pela
Harry Hinton, Blandy Madeira Lda. (1811), norma ISO 9001. Na R. de S. Francisco per-
John Frothingham Welsh, Cunha e Co. Lda. e manecem os antigos armazéns que foram da
Henriques & Câmara, a que aderiram, depois, firma Blandy, como espaço museológico e de
Donaldson e Krohn Brothers. É a consequên- provas, enquanto no Lg. Severiano Ferraz se
cia inevitável da crise do mercado do vinho, instalou todo o espaço de vinificação e engar-
nos princípios do século, agravada, nos anos rafamento, com o recurso às mais modernas
imediatos, com as guerras mundiais. Passa- tecnologias. É aqui que podemos ainda encon-
dos 12 anos, ganhou nova dimensão, passan- trar em funcionamento as estufas de madeira
do a ocupar as instalações da firma Blandy no e cimento.
centro do Funchal, as ASF, e a contar com a A família também assumiu uma posição
adesão de outras casas comerciais: Abudarham destacada nas moagens, a partir de 1900,
Fig. 4 – Armazéns Blandy, Passeio Público, gravura de Henry Vizetelli, 1880 (coleção particular).
B landy , fam í lia e casa comercial ¬ 427
morte, Henry Veitch solicitou, em 1822, a de- elementos da UDP Madeira e da União do
volução do vinho, vendendo-o depois à Blandy Povo da Madeira (UPM), que desde 1974 e
Brothers, que o engarrafou, em 1840, na con- 1975 vinham mostrando uma interessante
dição de vinho velho e da roda. Churchill, de representação eleitoral para uma formação
férias no Funchal, em 1950, foi presenteado dada como de extrema‑esquerda, logo funda-
com uma destas garrafas do vinho que o de- mentalmente vocacionada para a luta de rua
posto imperador não bebeu. e não para eleições democráticas. O mesmo
caminho, aliás, viria a trilhar o Bloco de Es-
Bibliog.: BINNEY, Marcus, The Blandys of Madeira. 1811‑2011, London, Frances
Lincoln, 2011; BLANDY, G. (org.), The Bolton Letters. The Letters of An English
querda (BE), mas mais de 20 anos depois do
Merchant in Madeira, vol. ii, Funchal, s.n., 1960; CLODE, Luiz Peter, Algumas que fizera a UDP Madeira. Esta nova plata-
Famílias Inglesas Que Passaram a Esta Ilha, Funchal, Tip. Comercial, 1950;
forma não invalidou que continuassem, no
CORREIA, Liliana Martins, A Família Blandy. Economia e Cultura. Século XIX,
Dissertação de Mestrado em Cultura e Literatura Anglo‑Americanas terreno, a existir elementos arvorados em
apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2005; representantes das anteriores formações
COSSART, Noel, Madeira, the Island Vineyard, London, Christie’s Wine
Publications, 1984; GREGORY, Desmond, The Beneficient Usurpers. A History of revolucionárias.
the British in Madeira, London, Associated University Presses, 1988; HANCOCK, As ideias marxistas entraram em Portugal
David, Citizens of the World. London Merchants and the Integration of the British
Atlantic Community. 1735‑1785, Cambridge, Cambridge University Press, 1997; no final do séc. xix e nos inícios do séc. xx,
Id., Oceans of Wine. Madeira and the Emergence of American Trade and Taste, embora só algum tempo depois apareçam na
Yale, Yale University Press, 2009; MINCHINTON, Walter, “Britain and Madeira
to 1914”, in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, Madeira, através de panfletos, provavelmen-
CEHA, 1986, pp. 498‑523; Id., “British residents and their problems in Madeira te produzidos noutro lugar. Nos meados do
before 1815”, in Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira,
Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
séc. xx aparecem no meio universitário com
Portugueses, 1990, pp. 477‑492; OLIVEIRA, Maria João, “O varadouro de S. outro cariz, inspiradas nos conflitos e debates
Tiago”, Xarabanda, vol. 10, 1996, pp. 45‑52; SAINZ‑TRUEVA, José de, “Quinta
do Palheiro Ferreiro”, Atlântico, n.º 15, 1988, pp. 222‑232; SOUSA, José Luís
do Maio de 1968, em França, mas através de
de, A Dialéctica da Blandy Brothers & Companhia Limitada na Economia da formações que mudavam constantemente de
Madeira [1920‑1974], Funchal, ed. do Autor, 2012; VASCONCELOS, Mota de,
nome, de fugaz existência e linguagem pan-
Almanaque para o Desportista Madeirense, Ano de 1945, Funchal, Tip. Comércio
do Funchal, 1945; VIEIRA, Alberto, “A propósito de contratos e quebra de fletária, pelo que dificilmente registáveis pela
contratos dos registos notariais na história e da história das empresas”, in
História. Com o (re)aparecimento do semaná-
Anuário 2012, Funchal, CEHA, 2012, pp. 358‑401; VIZETELLY, Henry, Facts about
Port and Madeira. With Notices of the Wine Vintaged around Lisbon and the rio Comércio do Funchal, em 1966, uma certa ju-
Wines of Tenerife, London, Ward Loch and Co., 1880. ventude intelectual de formação universitária
† Alberto Vieira e não só, pois que um dos suportes deste sema-
nário foi o trabalho voluntário da Juventude
Operária Católica (JOC), gravitou à volta da-
quela publicação, organizando tertúlias e for-
Bloco de Esquerda
necendo e editando material.
Esta formação política nasceu em 1999, es- Das primeiras formações de extrema
sencialmente a partir da direção nacional da ‑esquerda do pós‑25 de Abril, a UPM nasceu
União Democrática Popular (UDP), de inde- assim de elementos ligados ao Comércio do Fun-
pendentes e de outros elementos de esquer- chal, ao Centro de Cultura Operária e ao pro-
da ou de extrema‑esquerda, fessorado da Ilha, desenvol-
como o Partido Socialista Revo- vendo com forças populares,
lucionário (PSR) e o movimen- de longe, a mais ativa e rei-
to Política XXI. Os contactos vi- vindicativa campanha da con-
nham do ano anterior, e o ideal turbada época. Apresentou‑se
comum que levou à fusão foi a pela primeira vez num comí-
defesa do socialismo em liber- cio no Pavilhão Gimnodes-
dade, a crítica às experiências portivo do Funchal, em junho
soviéticas e outras ao socialismo de 1974, e promoveu, logo a
dito real. Nesta nova formação,
entraram depois igualmente os Fig. 1 – Logótipo do Bloco de Esquerda.
B loco de E squerda ¬ 429
série de pessoas oriundas de organizações de empreendido desde essa época até ao presen-
génese trotskista, na Madeira o BE foi consti- te da recensão.
tuído essencialmente por marxistas, leninistas A análise da “boa imprensa” madeirense é
e estalinistas provenientes da UDP. feita no contexto de uma sociedade munida da
A UDP Madeira levou algum tempo a passar “utensilagem mental” (para usar a expressão
a usar a designação de BE, surgida em 1999, de Fernand Braudel) que nos conferem o Con-
ainda não usando essa sigla nas eleições de cílio Vaticano II e todas as correntes de pensa-
2000, mas já o fazendo nas eleições de 2004. mento que atravessaram os séculos referidos e
Nas eleições de 2011, o BE Madeira não con- mesmo o séc. xxi. Na verdade, temos de ter
seguiu eleger nenhum deputado, mas a 29 de em conta que a “boa imprensa” formula como
março de 2015 já conseguiu dois, e, a 4 de ou- objetivo a doutrinação da sociedade, através
tubro desse ano, conseguiria mesmo eleger um de uma normatização, que inclui uma deter-
deputado pela Madeira para a Assembleia da minada conceção de família e do seu papel na
República. sociedade. Este trabalho foi feito, justamente,
no momento em que o sínodo dos bispos, pa-
Bibliog.: AZEREDO, Carlos de, Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império,
Porto, Civilização, 2004; CALISTO, Luís, Achas na Autonomia, Viagem ao
tamar eclesiástico anterior a um concílio, aca-
Interior da FLAMA, Funchal, Diário de Notícias, 1996; GOUVEIA, Gregório, bava de se realizarem Roma, sob o múnus do
Madeira, Tradições Autonomistas e Revolução dos Cravos, Funchal, O Liberal,
Papa Francisco, em torno do tema da famí-
2002; SILVA, Vicente Jorge, O Comércio do Funchal e a Autonomia, Lisboa,
Viver a Madeira, 2006. lia, cujos cânones clássicos continuam a ser os
mesmos: família monogâmica, casamento para
Rui Carita
toda a vida, sem a existência do divórcio, que
continua a ser vedado no direito canónico,
mas constantemente efetivado após uma vida
Boa imprensa
conjugal que, ab initio, se quis até que a morte
Na Madeira, durante todo o séc. xix e até ao separasse os membros do casal.
primeiro quartel do séc. xx, a imprensa ca- Esta realidade levanta novos desafios à Igre-
tólica, chamada “boa imprensa”, permite‑nos ja Católica, nomeadamente quanto à confis-
analisar o discurso normativo segundo os câ- são e absolvição, bem como quanto à comu-
nones do catolicismo, face a um mundo euro- nhão dos divorciados e recasados, i.e., face às
peu em transformação em todos os sectores, leis civis. Outro desafio, não menos atual, é
nomeadamente nos campos filosófico e ideo- o da união conjugal de indivíduos do mesmo
lógico, o que, obviamente, terá reflexos pro- sexo, questão que esse sínodo episcopal não
fundos de natureza teológica. Se é um facto se absteve de debater, tal como a questão do
histórico que a autoridade da Igreja Católica batismo de crianças de pais solteiros ou sepa-
e do papa já havia sido contestada pela Refor- rados. A Igreja Católica sempre foi apontada
ma Protestante de Lutero e Calvino, no início como uma instituição a quem fogem os tem-
do séc. xvi, enquanto, no interior do cristia- pos hodiernos de cada época, na medida em
nismo, a sua essência não era questionada, o que a sua visão do tempo nem sempre coinci-
período em análise é o tempo em que a pró- de, segundo os seus críticos, com aquela que é
pria autoridade das religiões reveladas, não a visão atualíssima, mas sempre efémera, visto
apenas o cristianismo, mas igualmente o ju- que cada moda é sempre sufocada pela vaga
daísmo e o islamismo, começa a ser equacio- sucessiva, dentro do ciclo ininterrupto que
nada e até refutada. Vista a questão a partir cada época tem para oferecer. A esta ideia,
do séc. xxi, é possível uma outra panorâmi- a Igreja sempre contrapôs a dos valores eter-
ca do que então aconteceu, pois, sempre que nos. Esta mutação constante dos tempos, ge-
se analisa uma determinada época do passa- radora de insegurança, teria como alternativa,
do, parte‑se da perspetiva cultural do momen- numa visão conservadora ou clássica, confor-
to em que essa análise é feita e do percurso me a perspetiva, a segurança ontológica do
B oa imprensa ¬ 431
lar, com os papéis bem definidos, com o mo- imprensa” não se limitava à esfera estrita do
delo do homem, como pai e chefe de família, religioso, dos sacramentos, das verdades da fé,
e o da mulher, como esposa e mãe, no qua- como primeira instância do catolicismo. Antes
dro completo de uma relação tendencialmen- ambicionava oferecer uma identidade de vida
te procriadora, em que os filhos encontravam cujas bases estivessem fundadas sobre o catoli-
o tal universo seguro face à insegurança do cismo. A normatização da vida terrena e a re-
mundo exterior. A este mundo interior da fa- lação do Homem com o Alto através da Igreja
mília, a Igreja oferecia, no espaço exterior, têm marcos ao longo dos séculos. Com efeito,
uma simbologia religiosa em que se incluía a desde os fins da Idade Média, podemos desta-
devoção mariana, o culto dos santos, com o car três momentos marcantes na construção da
seu lado sacro e profano, as procissões e ro- identidade católica como norma, com o Concí-
marias e a exigência da penitência para poder lio de Trento (1545‑1563), o primeiro Concílio
participar, de forma plena, no sacramento Vaticano (1869‑1870) e o Concílio Vaticano II
essencial da transubstanciação eucarística. (1962‑1965).
É assim, neste cenário, que a barca de Pedro Tudo isso levanta a questão dos novos desa-
atravessa as vagas dos tempos: a família e o lar, fios e valores com que a Igreja se vê confron-
a comunidade católica, com as datas simbóli- tada, sobretudo desde o séc. xviii. É nessa
cas do calendário litúrgico, com dias consa- encruzilhada da História que é convocado o
grados aos santos, a par dos feriados públicos, Concílio Vaticano II, em 1961, pela bula papal
que mudam ao sabor dos regimes. Humanae Salutis, de João XXIII, concluído
A manutenção do universo católico, que vive- já no pontificado de Paulo VI. Este Concí-
ria a pairar acima da incontingência dos tem- lio, em contraste com os anteriores da histó-
pos, tinha de ombrear com uma imprensa que ria da Igreja, que, muitas vezes, significaram
não partilhava dos valores pregados pela Igre- um maior enclausuramento da Igreja Católi-
ja, a “má imprensa”, os quais não só divergiam ca face ao mundo, tem uma natureza diversa,
dos da “boa imprensa” como os combatiam de abertura ao mundo, o que representou, se-
sistematicamente. Era um combate recípro- gundo algumas leituras, o fim do complexo de
co: cada adversário considerava que o outro fortaleza em que a Igreja tendeu a fechar‑se
mantinha uma posição ilegítima, sendo que depois da Idade Média.
ambos os lados estavam convencidos de que No tempo medieval, a Igreja confundia‑se
eram detentores de uma crença que, metafí- com o próprio mundo conhecido dos católi-
sica e/ou religiosa, se propunha salvar a hu- cos, em grande medida o mundo europeu.
manidade, numa linha utópica e salvífica que Mas, se os três concílios referidos são marcos
remonta à Antiguidade clássica grega. A “boa na história do catolicismo, a doutrina de nor-
imprensa” pretendia ser, e declarava‑se, o ba- matização da vida dos católicos levada a cabo
luarte dos valores face a um mundo que se dis- pela Igreja, mesmo no plano secular, sempre
solvia nas correntes que queriam substituir a existiu, desde os seus primórdios, e isso traduz
crença em Deus pela crença na ciência, nas ‑se no facto de ter havido 21 concílios ao longo
ideologias que tinham a mesma estrutura te- destes mais de 2000 anos. A questão é saber se
leológica, como o marxismo, mas que, em vez essa normatização coincide com a mensagem
de situar a salvação na outra vida, queriam uma de Cristo, que aceitava o mundo na sua diver-
sociedade perfeita neste mundo. Contra isso, sidade, como se vê quando conta a parábola
a “boa imprensa” tinha uma missão: desejava do samaritano, ou quando convive com a mu-
abarcar todos os aspetos da vida, não apenas a lher adúltera, ou com o cobrador de impostos,
religião, mas igualmente a arte, a literatura, a porque a todos quer imbuir do seu amor. Ou
própria ciência, criando uma cosmovisão que seja, Cristo inclui na sua mensagem a alteri-
pretendia dispensar a “imprensa má” e condu- dade, o outro que é recusado, constantemen-
zir o rebanho nos caminhos de Deus. A “boa te, por sectores fundamentalistas nas diversas
432 ¬ B oa imprensa
culturas. A atitude da recusa torna‑se um obs- sua existência, e inclui não apenas a questão
táculo à comunhão universal. ideológica e política dos seus membros, mas
A interpretação das igrejas cristãs da dou- também a polémica da masculinização da dou-
trina de Cristo é suscetível de ser alterada ao trina, que, nos primeiros séculos, teria levado
longo dos séculos, isso provam‑no vários fac- à ascendência de uma perspetiva esvaziada do
tos. Basta ver que, ainda no séc. xxi, algumas papel da mulher. Nesse processo, incluir‑se‑ia a
igrejas cristãs consideram autênticos, e, por- postergação de um hipotético evangelho apó-
tanto, de inspiração divina, livros que as outras crifo atribuído a Maria Madalena, cuja lideran-
principais igrejas cristãs não aceitam. A Igre- ça incomodaria os apóstolos. Se o documento
ja Ortodoxa da Etiópia reconhece o Pastor de é real, a sua autoria fica por confirmar. Con-
Hermas e os Atos de Paulo; a Igreja Apostóli- tudo, do ponto de vista simbólico, significa a
ca Arménia ora aceita a Terceira Epístola aos existência de dois modelos de Igreja paralelos,
Coríntios, ora não a inclui entre os livros ca- um quase estático e outro dinâmico, capaz de
nónicos do Novo Testamento; a mesma Igre- atribuir à mulher um estatuto idêntico ao do
ja não incluía na sua Bíblia o Apocalipse até homem.
1200. Já a Bíblia copta, adotada pela Igreja do O Concílio Vaticano II questiona esse des-
Egito, continua a incluir as duas epístolas de fasamento temporal e revela, no seio da Igre-
Clemente. Poder‑se‑á arguir que estas igrejas ja, aquilo que tinha vindo a ser ocultado, pelo
não comungam da mesma perspetiva doutri- menos desde o séc. xix: a multipolaridade de
nal que a Igreja de Roma. Por um lado, todas identidades sociais e políticas que faziam a sua
estas igrejas cristãs, sem incluir as designadas própria leitura da doutrina, até então oficiali-
igrejas protestantes, se consideram lídimas zada numa versão essencialmente conservado-
intérpretes da doutrina de Cristo; por outro, ra e normalmente veiculada pela “boa impren-
temos o exemplo do Apocalipse, que, duran- sa”, que, sob a capa da normatização, oferecia
te muito tempo, não foi considerado autênti- e impunha uma certa visão do mundo dentro
co pela própria Igreja Católica. Isto alerta‑nos, da própria Igreja Católica, apresentando‑se
desde logo, para duas coisas: primeira, a Igreja como sendo a desta. Ao abrir‑se à sua plurali-
não é uma instituição estática e imune ao es- dade interna, a Igreja abria‑se ao mundo como
pírito do tempo, como alguns, dentro e extra um todo, mas na sua heterogeneidade. É óbvio
muros, julgam; segunda, é preciso saber ler na que essa abertura expunha a Igreja aos ventos
doutrina o que ela contém de marca do eter- da mudança e a confrontava com a sua própria
no, do divino ou do humano. Qual a impor- unidade. A dialética social, que sempre existira
tância destes factos? Revelar que a análise das no interior da Igreja, tornava‑a agora vulnerá-
opções culturais, ideológicas e religiosas deve vel e suscetível de ver a sua unidade abalada,
passar pelo conhecimento de que nem sequer uma unidade que, tantas vezes, sufocara o pro-
o sagrado da mesma confissão, neste caso o cesso dinâmico inerente a qualquer instituição
cristianismo, chega, necessariamente, ao esta- humana, ainda que se reivindicando, natural-
tuto de universal nas suas diferentes igrejas, o mente, de natureza divina. Era agora a vez de
que deve prevenir os fiéis contra uma aceita- as forças progressistas quererem impor a sua
ção cega de crenças e convicções, obrigando visão da doutrina. O equilíbrio entre os dife-
‑os a precaver‑se contra os fundamentalismos e rentes sectores no seio da Igreja, que tinham li-
a uma incessante busca do que é, efetivamen- gações ao exterior, revelava‑se, portanto, muito
te, de natureza universal. complexo. Afinal, não é a isso que se assiste, ou
A busca da síntese de um corpo por natureza seja, às várias tentativas de apropriação secto-
plural como é o corpo da Igreja será perma- rial do carisma do Papa Francisco na sua liga-
nente. A pluralidade sociológica da Igreja é a ção com o mundo?
origem da tensão permanente no seu seio, o Desde aquele instante em que o univer-
que, aliás, se verifica desde os primórdios da so emergiu da incubação em que sempre se
B oa imprensa ¬ 433
mantivera, a natureza iniciou o seu processo e semelhança, que não quer dizer igualdade
infindável de se auto‑organizar, ainda antes absoluta, isso não signifique que não tenha o
de o ser pensante ter a veleidade de repetir, direito de querer caminhar em direção ao ab-
ele mesmo, o gesto inicial do fiat lux, tenha ele soluto, num processo hegeliano do espírito em
aqui o sentido literal ou literário da passagem busca de si mesmo.
do caos à ordem natural das coisas, porque é A República, de Platão, A Cidade de Deus, de
disso mesmo que se trata; em cada momento S.to Agostinho, A Cidade do Sol, de Campanella,
e em todos os tempos, há que reorganizar, re- a Utopia, de Thomas More, todas estas obras
fundar e ordenar os elementos que se disper- são proposições de arquétipos de sociedades
sam caoticamente se não forem absorvidos e perfeitas a construir na Terra, tal como a pro-
submetidos a um sistema que lhes dê a ordem posta marxista de uma sociedade sem classes,
necessária. Todas as tentativas que, ao longo onde não haveria mais exploração do Homem
dos séculos, se propuseram e nos propuseram a pelo Homem; ao contrário do que acontece
construção de uma sociedade perfeita têm em numa sociedade capitalista, em que o Homem
si duas ideias propulsoras: o mundo está uma é o lobo do próprio Homem, a igualdade seria
desordem; é preciso ordená‑lo. E uma estrutu- perfeita. Todos estes modelos defendem a har-
ra imanente: a do momento do fiat lux, em sen- monia entre os homens e são compatíveis com
tido teológico e/ou científico, que supere as o “amai‑vos uns aos outros” de Cristo, só que
trevas. Ao querer repetir esse momento inaudi- Ele, que era filho de Deus, segundo os cristãos,
to e irreproduzível em termos absolutos, os ho- ainda assim, não teve a veleidade de querer pro-
mens sempre quiseram reservar para si o papel por um sistema, político ou mesmo teológico,
do demiurgo. E, concomitantemente, sempre perfeito – “o meu Reino não é deste Mundo”
tenderam do politeísmo para o monoteísmo, (Jo 18, 36). Mas ninguém o levou a sério e foi
i.e., não só quiseram repetir o instante da cria- crucificado, e note‑se que não é metáfora, como
ção, como sempre quiseram ser únicos no sis- pode parecer neste (con)texto, mas facto his-
tema que propunham, porque esta é a nature- tórico que todos aceitam. Já aqueles modelos
za das coisas: se o modelo de sociedade que se eram e são todos deste mundo e pronunciam
propõe é aquele que melhor a serve, por que ‑se sobre os aspetos da vida humana.
razão se haveria de discutir outro modelo que A propósito do chocolate, proveniente da
concorra com ele? E, a partir daí, entendiam América Central, e que aparece na Europa no
que o seu modelo estaria para o já existente, final do séc. xvi, José Tolentino de Mendonça
no tempo ou na avaliação do que é proposto, lembra uma questão teológica e religiosa: o uso
como a luz está para as trevas. E é neste ins- do chocolate quebra ou não a lei do jejum no
tante que começa a recusa do outro. Qualquer tempo da Quaresma? Uns defendem que sim
modelo filosófico, cultural ou religioso traz no e outros que não, pois, se é alimento quando
seu ADN a ideia de proposta e a ideia de recu- sólido, violando o jejum, já diluído em água,
sa. Se essa tensão não for superada, através de torna‑se bebida. Afirma Tolentino de Mendon-
um processo dialógico, essa recusa mútua trará ça: “a questão de fundo não é tanto o choco-
a rutura a qualquer sociedade, exatamente o late em si quanto o que ele representa: o con-
oposto do que propõe cada um dos vários mo- fronto de modos de interpretar o mundo. De
delos. Mas não haverá legitimidade em cada um lado, perfila‑se uma posição ascética de ru-
um dos modelos? Enquanto proposta, opção tura; de outro, expressa‑se um entendimento
e direito à recusa do modelo alternativo, sim; do valor do mundo e da criação” (MENDON-
enquanto recusa do conhecimento do outro, ÇA, Revista Expresso, 6 set. 2014, 8). Portanto,
do direito à existência do outro e do diálogo nada fica de fora dos sistemas de valores que
com ele, não. E não, porque o Homem não é se outorguem o papel de ordenadores de uma
Deus, mesmo que, aceitando o princípio teo- sociedade, com autoridade para se pronunciar
lógico de que tenha sido feito à sua imagem sobre o que existe ou sobre o que aparece.
434 ¬ B oa imprensa
O catolicismo é um dos vários sistemas de va- Essa autocaracterização teria ainda como in-
lores que se propõem às sociedades. E afirma tenção não dar oportunidade a que a leitura
‑se não apenas no aspeto religioso, mas igual- de outras publicações, nos vários campos do
mente na representação cultural e normativa saber, induzisse outros valores incompatíveis
que pretende para a sociedade em que se inse- com o modelo de sociedade que a “boa im-
re, sem descurar a questão política. Na socieda- prensa” pretendia incutir na Madeira. Assim,
de madeirense, isso é visível na imprensa católi- a doutrinação era multidisciplinar, mesmo que
ca, a chamada “boa imprensa”; boa justamente partisse do campo religioso.
porque, segundo a própria, veiculava os valo- Neste jornal, na edição de 6 de dezembro
res bons e deles fazia eco e múnus doutrinário. de 1879, o artigo de fundo era precisamente
Esse modelo de sociedade manteve‑se em todo “A penitência”, começando por falar sobre a
o séc. xix, até ao Concílio Vaticano II, em que forma de proceder dos apóstolos: “Se quiser-
o diálogo ecuménico veio instituir uma nova mos mais uma prova da maneira de proceder
relação com as outras confissões religiosas e, dos Apóstolos, abramos mais uma vez a Escritu-
assim, alterar o conceito de alteridade, desde ra” (Religião e Progresso, 6 dez. 1879, 1). E conta
sempre presente na cultura ocidental. Que a o artigo o caso de um homem de nome Simão
imprensa católica não se confinava nem se pre- que havia sido convertido pelo apóstolo Filipe
tendia confinar ao carácter religioso di‑lo logo, e a forma como reagiu ao ver o poder dos após-
inclusive, a denominação de alguns periódi- tolos: “Tempos depois do batismo deste con-
cos. Em 1879, circulava na imprensa regional verso, vendo ele que pela imposição das mãos
um jornal que se intitulava Religião e Progresso, dos Apóstolos sobre a cabeça dos novos con-
que já no nome traz implícita a mensagem de vertidos, descia sobre eles o Espírito Santo,
que a religião não era incompatível com o pro- pretendeu comprar este poder. Simão pensa-
gresso, ideia, a de progresso, muito divulgada va naturalmente que lhe seria de muita van-
desde o Iluminismo, em que havia a difusão da tagem alcançar este poder; porque, exercido,
crença de que a razão vinha ocupar o lugar de lhe seria bem rendoso” (Ibid.). A questão teo-
Deus na vida do Homem, que se acentua com lógica é saber como é que Simão seria perdoa-
as doutrinas filosóficas materialistas; estávamos do desta iniquidade. E aqui levanta‑se uma
então nas vésperas do auge das teorias marxis- polémica entre catolicismo e protestantismo:
tas, que vieram a sustentar a Revolução de Ou- “Se a fé somente é o que justifica o homem,
tubro (1917), ano em que do Céu desciam as bastar‑lhe‑á recordar os artigos que o apósto-
anunciadas aparições de Fátima. lo S. Filipe lhe havia ensinado antes do batis-
O jornal Religião e Progresso, como se pode ler mo”, diz o articulista, e prossegue: “Não foi
na sua capa, autodefinia‑se como “jornal reli- isso, porém, o que lhe prescreveu São Pedro.
gioso, litterário, politico e scientifico”, na gra- Terminantemente lhe disse: Poenitentiam age ab
fia da época e antes da reforma ortográfica hac nequitia tua: faze penitência dessa malda-
radical de 1911, o que significa que este perió- de” (Ibid.). E, neste ponto, afirma: “Creio que
dico, embora declarando‑se, desde logo, reli- o Protestantismo não negará a um Apóstolo, o
gioso, bem como mostrando ao que vinha, não conhecimento daquilo que é necessário para
deixa de dizer que cobria vários campos do a remissão dos pecados” (Ibid.). E prossegue
saber, dispensando, assim, outras publicações lembrando: “Simão era crente: Tunc et ipse cre-
que se apresentassem como literárias, políticas dit: mas, se apesar da fé de Simão, o apóstolo
ou científicas, porque ali tudo podia ser en- obrigou‑o a fazer penitência […] que devemos
contrado. Intenção que se percebe muito bem, concluir? Que não é somente a fé que justifi-
porque, se o objetivo era a normatividade, essa ca o homem, mas sim acompanhada da peni-
normatividade devia abranger todos os aspe- tência, a qual é absolutamente necessária para
tos da vida em sociedade e não podia deixar‑se a justificação, e que, por consequência, é erro
ultrapassar nem ser considerada ultrapassada. considerá‑la inútil” (Ibid.).
B oa imprensa ¬ 435
Este é um ponto crucial num órgão da im- ordena que seja a todos: omni creatura; man-
prensa católica, uma vez que a penitência e o dando perdoar os pecados, deixa ao juízo dos
perdão do pecado são um dogma essencial ao Apóstolas [sic] o julgar se os homens têm ou
catolicismo e um poder inalienável sobre os não arrependimento” (Ibid.). Portanto, o arti-
crentes, a quem não bastava ter fé para lhes culista, “C.”, como ele assina, “deixa ao juízo
serem perdoados os pecados, questão que o dos Apóstolos” (Ibid.), que são homens, não só
autor do artigo levanta: “Se isto assim é, se a perdoar, mas decidir se há arrependimento ou
penitência é necessária para a remissão dos não da parte do pecador, o que pode perfeita-
pecados, como é possível que Jesus Cristo qui- mente ser subjetivo, pelo que se trata de um
sesse dizer [ou seja, tivesse dito]: pregai o Evan- poder discricionário e terrível para um crente.
gelho; os pecados serão perdoados àqueles que acredi- O papel da “boa imprensa” fica clarifica-
tarem?! Serão perdoados pela fé, sem a penitência?! do quando compaginado com escritos que
Por acaso, pode a Escritura estar em desacor- se lhe opõem e denunciam os seus objetivos.
do com Jesus Cristo? Não, por certo” (Ibid.). É preciso notar que a missão da “boa impren-
E, finalmente, o articulista chega ao pomo da sa” não tem fronteiras, é uma estratégia que co-
discórdia: “Se há desacordo, é porque a inter- nheceu divulgação por todo o mundo católi-
pretação do Protestantismo é errada; atribui à co, inclusive com legislação que não escondia
Escritura o que ela não diz. Tira dela o que lhe o seu objetivo. Nos finais de 1841, o Governo
apraz e não o que lá se acha” (Ibid.). Portanto, prussiano aprovava um decreto em que con-
a posição do protestantismo sobre a questão da siderava oficialmente hostil qualquer publica-
importância da fé na salvação do Homem só ção que o mesmo poder público considerasse
pode resultar de uma má interpretação da Es- ofensivo à religião. Acontece que o mesmo de-
critura. E de falta de senso: “Apelemos para o creto censório revela que, na conceção ideoló-
bom senso. Quem será que ouvindo estas pa- gica dos seus autores, religião e política se con-
lavras – os pecados serão perdoados àqueles a quem fundiam – deliberadamente ou não, visto que
os perdoardes, serão retidos àqueles a quem os reti- poderiam confundir religião e política sem a
verdes – entenderá o seguinte: os pecados serão intenção de o fazer. Sendo ambas conservado-
perdoados àqueles que acreditarem, serão retidos ras, não podia nenhuma delas, nem a fé nem a
àqueles que não acreditarem?!” (Ibid.). política, ser, de modo algum, progressista.
Então, qual é o ponto essencial para o qual Contra este sincretismo levantavam‑se vozes
o articulista pretende chamar a atenção, além por todo o lado. A 5 de maio de 1842, no dia do
da discórdia na interpretação e da atribui- seu 24.º aniversário, Karl Marx estreia‑se com
ção de falta de senso ao protestantismo? É o o seu primeiro trabalho jornalístico, justamen-
poder do sacerdote de perdoar os pecados, te com um artigo que era uma verdadeira de-
sem o qual não há salvação. Esse poder desa- claração de guerra a essa nova lei do Governo
pareceria se bastasse a fé do crente: “Jesus Cris- da Prússia e, assim, à “boa imprensa” prussiana.
to não sujeita o perdão dos pecados à fé, mas O artigo foi escrito no novel periódico Rheinis-
sim ao poder que confere aos Apóstolos: mitto che Zeitung, o qual, justamente à luz do decreto
vos… quorum remiseritis, quorum retinueritis pec- referido, veio a ser alvo de censura e finalmente
cata” (Ibid.); portanto, o poder de perdoar ou encerrado. Marx procura desconstruir os argu-
de não perdoar, de reter ou de não reter, “se- mentos do decreto, que, no seu entendimen-
gundo se verificarem ou não certas condições” to, era absurdo, recorrendo, com eloquência e
(Ibid.). O Evangelho e a sua pregação abran- acutilância, à literatura, mas de uma forma có-
gem todos, mas o perdão não: “Mandando pre- mica e sarcástica, procurando demonstrar que
gar o Evangelho, ordena que seja a todos: omni o decreto acabaria por provocar consequências
creatura; mandando perdoar pecados, não or- contrárias aos seus objetivos: “A liberdade faz
dena que seja a todos: quorum retinueritis. […] [de tal modo] parte da essência do homem que
Jesus Cristo mandando pregar o Evangelho até os seus oponentes a implementam quando
436 ¬ B oa imprensa
combatem a sua realidade; querem apropriar impondo a sua visão do mundo a toda a socie-
para si mesmos, como o ornamento mais pre- dade. Marx estava longe de imaginar – ou será
cioso, aquilo que rejeitaram como ornamento que imagina? – que, em seu nome, a “boa im-
da natureza humana” (MARX, Rheinische Zei- prensa”, católica, haveria de ser proibida em
tung, 5 maio 1842, 1). E depois procura de- países e regimes que se reclamaram da sua dou-
monstrar que ninguém logra combater a liber- trina. Ou melhor, que a “boa imprensa”, nesses
dade em si mesma, mas a liberdade do outro: regimes, passaria a ser aquela que veiculava a
“Nenhum homem combate a liberdade; quan- ou uma nova versão oficial, contraposta à antiga
do muito combate a liberdade de outros. Assim, versão oficial conservadora que a antiga “boa
toda a liberdade existiu sempre num momento imprensa”, a católica, veiculava. A “boa impren-
como um privilégio especial e noutro como um sa”, então, passara a ser a imprensa progressis-
direito universal. A questão tem agora um signi- ta. Este é um ponto que não pode ser torneado
ficado consistente, pela primeira vez. A questão em todas as suas latitudes e azimutes aqui.
não é se a liberdade de imprensa deve existir, Este jornal prussiano, contudo, não terá be-
pois ela existe sempre. A questão é se a liberda- neficiado daquela intimidade de que goza a
de de imprensa é um privilégio de indivíduos imprensa regional, que tem como característi-
particulares ou um privilégio da mente huma- cas a proximidade e a familiaridade, como assi-
na” (Id., Ibid., 1). Essa era a questão essencial: nala António Rego, num artigo justamente in-
a liberdade de imprensa existe sempre para titulado “A dignidade da imprensa regional”.
quem tem toda a liberdade de defender as suas A imprensa regional fala aos crentes quase fa-
ideias, se elas forem permitidas pelo poder, miliarmente. Como assinala o mesmo prela-
mas não existe para aqueles que possam defen- do, são os “jornais regionais uma espécie de
der ideias que o poder, qualquer que ele seja, reserva ecológica da imprensa”, sendo consti-
não consente. Por isso, Marx afirma nesse ar- tuídos por “defeitos dos pequenos espaços cir-
tigo: “A censura não abole a luta [entre “boa culares onde as narrativas da aldeia falam mais
imprensa” e “má imprensa”], fá‑la unilateral, de pessoas que de ideias. Ou das ideias de ape-
converte uma luta aberta numa luta escondi- nas algumas pessoas” (REGO, Ecclesia, 13 fev.
da, converte a luta sobre princípios numa luta 2007). Ora, o autor não deixa de assinalar tam-
de princípios sem poder contra um poder sem bém – não obstante relevar o papel da Igreja
princípios. A verdadeira censura, baseada na na criação da imprensa regional e no seu
própria essência da liberdade de imprensa, é a desenvolvimento, correspondendo ao apelo
crítica. […] A censura é a crítica como mono- da Igreja universal – que a mesma imprensa re-
pólio de poder” (Id., Ibid., 1). gional, no “nosso país surgiu, na linha da boa
A análise de Marx do decreto do Governo da imprensa”, desde diários, semanários e mensá-
Prússia toca no ponto essencial da questão: o rios, “que faziam circular as ideias nas dioceses
decreto não abole a luta entre a “boa impren- e nas aldeias mais longínquas” (Id., Ibid.). Não
sa” e a “má imprensa”, apenas a oculta. O que deixa de se queixar da desconfiança com que
é que Marx critica e denuncia? Que as duas im- o poder político olhou para este “vaivém de in-
prensas não possam pelejar em campo aberto formações” (Id., Ibid.), certamente um poder
e que a uma seja dada a luz do dia, a “boa im- político que não se revia nos valores veiculados
prensa”, enquanto a outra, a “má imprensa”, pela “boa imprensa”, ou que até talvez fosse vi-
se tem de esconder para existir e criticar aque- sado como sendo um poder que estava do lado
la. Esse é o âmago da questão: que as duas não oposto ao desses valores.
possam ser legítimas e que não possam consi- Na dicotomia política entre esquerda e direi-
derar mutuamente “má imprensa” a levada a ta, o poder político que olhava de soslaio para
cabo pela posição oponente e “boa impren- a “boa imprensa” tenderia a ser identificado
sa” a própria. E, sobretudo, critica que ambas com a esquerda, ao passo que a direita políti-
ambicionem viver sozinhas, sem concorrência, ca, cultural e sociológica, não se sentia visada,
B oa imprensa ¬ 437
antes representada e identificada com a “boa conservadores, cada um dos sectores, pois bem
imprensa”. Rego, contudo, reconhecido como sabemos que essa “utensilagem mental” nem
cidadão do mundo por todos, não procede a sempre corresponde à realidade política nas di-
essa dicotomia fácil e simplista, limitando‑se ferentes épocas e latitudes. Não é verdade que
a assinalar, a propósito do porte pago (uma a implantação da República no Brasil se deveu
forma de apoio à imprensa regional), que as a um ato culturalmente de esquerda – visto no
flutuações do poder, sob o pretexto de apoiar séc. xxi assim – da princesa Isabel, que aboliu
os órgãos de imprensa mais fortes, deixam cair a escravatura? E que os democratas america-
os mais pequenos. A generosidade da ideia, nos, de esquerda em termos europeus, no Sul
contudo, trazia no bojo o propósito de “favo- dos Estados Unidos, eram esclavagistas, e que
recer a criação de alternativas a uma impren- os republicanos, considerados conservadores,
sa cristã já existente por outra que, com mais eram favoráveis à abolição da escravatura?
apoios oficiais, autárquicos e nacionais refletis- Em qualquer caso, o que se nota é um pro-
se a voz dos donos” (Id., Ibid.). selitismo em função da posição religiosa, po-
Este artigo de António Rego não deixa de lítica ou ideológica de cada um, que se pode
ser simétrico, e até parece redarguir, quan- revelar quer pela afirmação dos seus princí-
to ao lugar donde parte, de defensor da “boa pios, quer pelo combate aos princípios alhei-
imprensa”, ao de Karl Marx de 5 de maio de ros. É óbvio que, nos sectores e territórios em
1842, contra o decreto prussiano de finais de que uma determinada crença ou ideologia é
1841, já antes referido, em que Karl Marx se maioritária ou tem o privilégio da exclusivida-
insurge contra o decreto por, na prática, de- de, sendo proibidas as outras correntes ideo-
fender os valores veiculados pela “boa impren- lógicas ou religiosas, não é preciso combater
sa”. E nessa posição simétrica à do artigo de a posição oposta nem se afirmar contra ela.
Marx, Rego queixa‑se da forma como estava a Nos casos em que as correntes minoritárias são
ser usado o apoio à imprensa, nomeadamente consentidas, estas têm tendência para se afir-
através do apoio ao porte pago, para dificultar mar, desde logo, perante a corrente dominan-
a vida da “boa imprensa”, que, normalmente, te. No caso da Madeira, em que o catolicismo
tinha dimensão local ou regional, em favor de sempre foi maioritário, era normal que alguns
uma imprensa de maior dimensão, mas que, órgãos de comunicação se afirmassem em fun-
na prática, já não partilhava os valores da “boa ção dele, procurando demarcar‑se nessa afir-
imprensa”, ou seja, que já não era prosélita mação identitária, como é o caso, no séc. xix,
como a “boa imprensa”, mas, pior ainda, no da Revista Histórica do Proselitismo Anti‑Católico,
seu ver, era de um outro proselitismo, porque dirigida por Robert Reid Kalley, cujo título não
laica e aparentemente neutra, portanto, mais deixa margem para dúvidas.
difícil de combater. Voltando à questão do artigo publicado no
Ambos os autores eram, em termos absolu- jornal Religião e Progresso, a sua importância não
tos, i.e., quando não enquadrados em secto- podia ser maior no contexto da “boa impren-
res ditos conservadores ou progressistas, de sa”. Por um lado, versava sobre a penitência e
direita ou de esquerda, rigorosamente equipo- o poder consequente de perdoar; por outro,
lentes na defesa de um determinado tipo de sobre a polémica explícita com o protestantis-
empresa em desfavor de outro, posição cuja mo, que entende que basta a fé, sem os atos,
legitimidade não pode ser contestada enquan- segundo o artigo ali publicado. Subtilmente,
to não propugnar, objetivamente, a extinção e pode ainda dar‑se a entender que os não cató-
a perseguição ao outro tipo de imprensa. Ao licos não têm salvação, uma vez que o poder de
mesmo tempo, o esquema cultural com que perdoar está reservado aos apóstolos, confor-
se encara os dois lados não pode, a não ser me lhes foi conferido por Cristo, ou seja, aos sa-
em termos epistemológicos, situar à esquer- cerdotes, e que, sem esse perdão, ninguém po-
da ou à direita, em termos de progressistas ou deria ter salvação. Querer‑se‑á lançar anátema
438 ¬ B oa imprensa
maior sobre os pecadores que não têm aces- a eliminação física dos não católicos, mesmo
so livre a esse perdão? Aos pecadores que não sendo crentes do mesmo Deus, pelas foguei-
se arrependiam, desde logo, aos protestantes, ras da Inquisição, senão por se ser o outro
imediatamente a seguir! E aos que não parti- em relação ao conceito de sociedade que a
lhassem dos valores veiculados pelo catolicis- maioria defende e, nessa sociedade, ao con-
mo? Aos que não liam a imprensa que os veicu- ceito que ela pretende impor da própria ideia
lava? Aos que, concretamente, não liam aquele de Deus? “A cultura ocidental, erigida sob a
jornal? Estas são as questões que se levantam. égide da ontologia grega, historicamente rele-
Depois, outro artigo do mesmo jornal, que gou o outro em sua alteridade ao esquecimen-
também se intitulava político, fala de um ato to, numa supremacia do ser que justificou as
eleitoral. Penariam, também eternamente, cruzadas, a colonização, a escravidão, os regi-
os que não partilhassem das ideias políticas mes totalitários como o fascismo e o nazismo,
que o jornal veiculava, porque, se há um sis- entre outros […]. A modernidade fundada
tema de valores, ele não se esgota na religião, no racionalismo de Descartes, voltada para a
antes estende‑se a todos os campos, inclusive ideia da perfeição e das verdades inatas (divi-
aos da política, ou seja, também os eleitores, nas), sem a perspetiva da existência do outro,
por certo, não escapariam à retenção da absol- dará luz ao eu gestado no Ocidente desde Pla-
vição. Mera especulação intelectual do leitor, tão” (ESTEVAM, 2008, 275). Essa recusa do
inferência ilegítima do que ali não está? Não outro manifesta‑se na religião, não só entre
estão as deduções no campo da doutrina po- as religiões, mas dentro das próprias religiões
lítica, mas estão, claramente, as posologias da e das suas diferentes correntes. No cristianis-
doutrina religiosa católica para os males do mo, verificamos as guerras permanentes entre
mundo. Sem perdão não há remissão. católicos e protestantes, na Irlanda do Norte.
Não sendo este um tratado de teologia, im- No islamismo, entre sunitas, xiitas, waabami-
portava aqui perceber o conceito de peca- tas, em que cada seita se considera verdadeiro
do. Pecado é a ausência do bem; é a ausência intérprete do pensamento do profeta.
de Deus que origina o mal. O Diabo não é, A designação de “boa imprensa” traz con-
como pareceu ser em certas correntes ultra- sigo uma valoração implícita decorrente do
montanas, o outro lado de Deus, o seu oposto adjetivo “bom”. Ao autor de um artigo de di-
equivalente, porque, então, dessa equivalên- cionário ou de enciclopédia põe‑se a mesma
cia de duas potências poderia, numa oposi- questão que se coloca ao sociólogo, que é a de
ção de contrários, caminhar‑se para uma sín- saber se deve analisar os factos e as instituições
tese hegeliana de superação dessa dicotomia. sem emitir juízes de valor sobre os mesmos.
Sendo Deus aquele que é, “Eu sou aquele No caso da análise da “boa imprensa”, ou seja,
que é” (Ex 3, 14), o Diabo existe, neste caso, da imprensa católica, deverá o autor do texto
como alegoria do mal, como aquele que não limitar‑se a observar, abstendo‑se de ajuizar,
é. O mal tende, numa homologia perigosa e mesmo que veja nela valores morais que possa
de equipolência, a ser aquele que não é como considerar essenciais numa sociedade; situá
nós, ou seja, o outro de nós mesmos, problema ‑los num determinado tempo e lugar ou admi-
que subsiste na cultura ocidental desde que tir que os valores que ela veicula são comuns a
ela existiu. Ora, se o Diabo, como ausência do outros credos religiosos, cristãos ou não? A re-
bem, deve ser extirpado, então o outro – que flexão não tem de ter uma resposta explícita,
é aquele que não é como eu (sou) – tende, mas não podia deixar de ser feita. Em qualquer
primeiro culturalmente e depois em situa- circunstância, o enquadramento de um facto
ções de afirmação radical de sistemas absolu- no seu tempo e na linha do tempo deve ser a
tos que a si mesmo se consideram perfeitos, resposta para a sua compreensão, o que, assim,
a ser eliminado fisicamente, porque perturba obvia a apologia ou a condenação, que não lhe
a ordem instituída. Como é que se entende é exigida. Tem sido essa a linha que segue este
B oa imprensa ¬ 439
artigo: entender a boa imprensa no interstício nação. Claro que esta é uma adaptação ilegíti-
de vários tempos e correntes doutrinárias. ma, porque o articulista transmite o sentimen-
O jornal Pregador Imparcial da Verdade, da Jus- to de parte da nação, que não pode ser tomada
tiça e da Lei, na sua edição de 6 de dezembro de como representante do espírito nacional, que
1823, em tom grandiloquente, anunciava, num é o todo e não a parte. Assim é, quer viva a
artigo intitulado “Alemanha”, que o governo nação em monarquia ou em república, sendo
daquele país tinha dado ordens severas contra que a igualdade, que, em teoria, a república
as sociedades secretas, visando a maçonaria: implica, deveria ser ainda mais impeditiva de
“todo aquele que aspirar aos Empregos, tanto que isso acontecesse, ou seja, de que os cida-
civis como eclesiásticos, está obrigado, para dãos fossem privados de pertencer a institui-
ser admitido aos exames, a apresentar certi- ções públicas por não professarem uma ou
dões de Polícia, que façam fé, de não ser parte outra religião, ou por, professando‑a, perten-
em nenhuma destas associações, e deve ter‑se cerem a uma ala progressista ou conservadora
muito em vista que se verifique esta condição, desse credo religioso. Nem mesmo a natureza
mormente quando se tratar de prover os lu- do regime, ao tempo monárquico, poderia ser
gares de ensino público”. O “pregador impar- respaldo para defender tal iniquidade. Não é
cial da verdade” não só publica como incenti- a natureza do regime, monárquico ou repu-
va a que a medida se propague: “Publiquem‑se blicano, que determina a justeza das leis, que
pois em todas as Nações os quadros de todas as devem consagrar o sentido da justiça, que é an-
Lojas” (“Alemanha”, Pregador Imparcial da Ver- terior às leis positivas universalmente aceites:
dade, da Justiça e da Lei, 6 dez. 1823, 1). “Dizer que não há nada justo a não ser o que
Segundo o espírito do articulista, a publica- ordenam ou proíbem as leis positivas é dizer
ção das listas dos maçónicos resulta da obri- que antes de ser traçado o círculo nem todos
gação de servir o bem público. As instituições os seus raios eram iguais” (ARON, 2010, 57).
não podem ser dominadas por indivíduos que Avisado será, porém, que, se a justeza não for
possam contaminá‑las. Se as instituições resul- consagrada nas leis positivas, estas sejam feitas
tam de um conjunto de circunstâncias, segun- ou refeitas até consagrarem a justeza, sob pena
do Montesquieu, podemos concluir que as que de cair uma sociedade na arbitrariedade do
existem são as melhores possíveis, porque re- juízo individual. De facto, não se pode conside-
sultam de uma determinada influência social. rar válidos critérios cujos efeitos sejam a exclu-
Portanto, impor‑se‑ia saber o que é necessário são de uma parte da sociedade, mas sim aque-
fazer para se atingir os objetivos desejados da les critérios ou leis que, anotando as diferenças
melhor forma possível. Ora, segundo o articu- de uma determinada realidade social ou polí-
lista, atingir da melhor forma possível os inte- tica, ou religiosa, sejam capazes de garantir o
resses sociais de uma instituição é varrer dela respeito por essas diferenças. Ora, o que diz o
os indivíduos que, pertencendo a uma associa- articulista é que a lei a aplicar deve considerar
ção secreta, como a maçonaria, se supõe não válidos para integrar as instituições públicas os
poderem ter direito a ser titulares das mesmas cidadãos que não tenham pertença a organis-
instituições; inversamente, obviamente, para o mos de carácter secreto.
articulista, estes titulares deveriam ser portado- Essa recusa do outro enquanto indivíduo
res dos valores que eram veiculados pela “boa que não partilha dos mesmos valores é um fe-
imprensa”. nómeno resultante da vida em sociedade, por-
Poder‑se‑ia concluir, talvez por extensão ile- que o Homem, no seu estado natural, i.e., ante-
gítima, que o articulista do Pregador Impar- rior ao estado de vida em sociedade, vive “uma
cial da Verdade concordava com a máxima de verdadeira paz, pelo menos um estado alheio à
Montesquieu segundo a qual “a legislação re- distinção paz‑guerra” (Id., Ibid., 58). Esta atitu-
sultou do espírito de uma nação”, devendo de resulta, segundo Montesquieu, da vida em
as leis‑comando submeter‑se ao espírito da sociedade, ao contrário do que pensa Hobbes,
440 ¬ B oa imprensa
para quem o Homem vive, naturalmente, em verificar e comparar a finalidade imanente das
estado de guerra permanente contra o seu se- atitudes humanas com as do autor daquele ar-
melhante. Trata‑se de uma diferença antagóni- tigo e, sobretudo, o momento histórico em
ca: segundo Hobbes, o Homem é um ser por que aquele é escrito.
natureza inimigo do Homem, sendo esta ini- Há, com efeito, dois aspetos culturais clara-
mizade intrínseca ao estado de natureza, ao mente identificáveis no jornal. Por um lado,
passo que, para Montesquieu, o conflito é um esta atitude da “boa imprensa” de recusar
fenómeno social, não sendo possível regres- tudo o que saia dos cânones da doutrina ca-
sar à pureza do Homem no estado de nature- tólica, atitude que tem um contexto histórico
za, antes de viver em coletividade, estado que ‑cultural. Antes de mais, convém esclarecer que
é agora apenas imaginável. Como concebeu a existência da “boa imprensa” é em si mesma
Jean‑Jacques Rosseau, há necessidade de supe- uma prova de que o tempo da afirmação in-
rar o conflito em sociedade através da aceita- questionável da autoridade teológica já passa-
ção do outro, referindo-se portanto à questão ra. O aparecimento da “boa imprensa” coinci-
da alteridade na cultura ocidental. Esse equilí- de com a necessidade de reafirmar e manter
brio social só pode ser conseguido através da a unidade da mensagem católica, num tempo
constatação de que a ordem social é, por regra, em que outro tipo de autoridade começava a
heterogénea, e a liberdade de todos não pode surgir e abalava a autoridade teológica. Passara
senão resultar da inclusão social de todos os o tempo em que as autoridades política e reli-
membros de uma sociedade. giosa coincidiam e juntas formavam a autori-
Hobbes defende um poder absoluto, de dade universal. O tempo histórico da socieda-
forma a resolver o conflito social de perma- de europeia nos princípios do séc. xix haveria
nente guerra. Neste ponto, o articulista coin- de conhecer profundas alterações. Se o poder
cide com Hobbes e não com Cristo, ao defen- político era afirmado pela força das armas, o
der que os maçónicos, ou pedreiros‑livres, não poder religioso era firmado pelo poder teoló-
devem ter acesso a certos empregos, nomea- gico sustentado na infalibilidade papal. É nesse
damente ao ensino público, e que as polícias contexto que o Concílio Vaticano I proclama a
deveriam imprimir as listas dos seus membros infalibilidade papal, dogma da teologia católi-
– se não as fizessem, é “porque apareceriam ca que confere ao papa o dom de definir a in-
talvez marcados com este ferrete o Duque, o terpretação e clarificação certas em matéria de
Marquês, o Conde, o Cavalheiro, o Magistra- fé e moral, na medida em que ele, em comu-
do, o Frade, o Clérigo” (“Alemanha”, Pregador nhão com o Sagrado Magistério, o faz no gozo
Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei, 6 dez. da assistência sobrenatural do Espírito Santo,
1823, 1) –, e acrescenta que não poderia haver ficando, por isso, imune a todo o erro. A fun-
mal em tal coisa, porque sabiam da existência ção de Magistério da Igreja é múnus do papa e
da lei. dos bispos em comunhão com ele.
Se o autor de um artigo se deve dispensar do Auguste Comte assevera que o início do
papel de julgar as instituições, não deve eximir séc. xix assiste ao fim de um tipo de socieda-
‑se ao dever de fornecer todos os dados a quem de que teve origem na Idade Média, em que o
o deve fazer: ao leitor. A equação dos dados poder se caracteriza por ser teológico e militar.
num artigo deve permitir ao leitor desempe- Esses poderes, teológico e militar, partilhavam
nhar o papel de julgar ou de aferir. Se aqui a a supremacia, numa sociedade claramente
atitude do articulista do texto “Alemanha” de- marcada pela hierarquia eclesiástica e militar.
riva da sua ideia de organização da sociedade e A sociedade que dá supremacia a esses poderes
dos valores que defende, essa atitude deve ser está em vias de ceder o lugar a um outro tipo, a
confrontada com o que pensam sobre a ques- sociedade científica: “A sociedade que nasce é
tão da organização social os grandes pensado- científica no mesmo sentido em que a socieda-
res de correntes diversas. Assim, será possível de que morre era teológica” (ARON, 2010, 59).
B oa imprensa ¬ 441
Segundo Comte, a forma de pensar dos tem- da sociologia. Nenhum facto devia ser enten-
pos passados, a dos teólogos, estava a ser substi- dido isoladamente, sobretudo a partir de uma
tuída pela forma de pensar dos sábios. A socie- ciência como a biologia. Já não bastava analisar
dade do início do século tinha agora uma nova os fenómenos per se, mas integrados epistemo-
categoria social que lhe fornecia a base intelec- logicamente. As ciências já não podem ser pu-
tual e moral, que era a dos sábios, que herda- ramente analíticas, mas devem ter carácter sin-
vam o poder espiritual dos padres, passavam a tético, o que origina a conceção sociológica da
ditar o novo modelo de pensar e eram a nova unidade histórica. Ora, não se pode entender
fonte das ideias que serviam a nova ordem so- a sociologia como se ela fosse uma ciência de
cial; ao mesmo tempo, os industriais haviam natureza inorgânica de carácter analítico. Tal
de substituir os militares. Nesta nova ordem, a como a biologia, que não pode explicar um
força militar desapareceria e os detentores da órgão ou uma função sem o integrar anatomi-
nova sociedade exerciam o poder pelo pensa- camente, não se pode compreender um acon-
mento científico, e não pela força. tecimento, por mais relevante, sem o situar na
Analisando a nova sociedade que despontava, sincronia, i.e., no seu tempo, e na corrente dia-
Auguste Comte conclui que a reforma social a crónica, ou seja, sem conhecer os seus antece-
que se assistia implicaria uma reforma intelec- dentes e, eventualmente, estabelecer, prospeti-
tual, e isso só se faria com a síntese da ciência vamente, eventuais desenvolvimentos futuros.
e de uma política positiva. Neste cenário, em Um cientista não pode cortar uma parte
que o poder teológico cede o passo aos sá- do organismo para saber como ele funciona.
bios (a nova classe intelectual proposta por Pode deter‑se, epistemologicamente, sobre
Comte), é natural que a “boa imprensa” sinta ele, mas só o pode explicar no todo, porque
a necessidade de reafirmar o modelo de socie- estamos a falar da vida e não da morte. Essa
dade e de família proposto pela doutrina ca- inserção do elemento no todo da biologia
tólica, que se confronta, ainda por cima com transfere‑se para a sociologia, em que o todo
perturbações sociais derivadas das contradi- tem primazia sobre o elemento. Segundo
ções de uma sociedade em crise de mudan- Comte, “Não compreendemos a situação da
ça. São vários os modelos que se confrontam. religião […] numa sociedade particular, se
O modelo proposto por Comte visa superar as não considerarmos o todo dessa sociedade”
contradições sociais resultantes do confronto (Id., Ibid., 86). Não é possível compreender o
entre a ordem antiga, teológica e militar, e a papel da “boa imprensa” sem conhecer a evo-
nova ordem, científica e social. Ao lado destes lução histórica da sociedade no seu todo e a
dois modelos, surge o grande doutrinador da própria evolução e reinterpretação da dou-
revolução, Karl Marx. Montesquieu, por sua trina da Igreja à luz do evangelho, é certo,
vez, defende a doutrina das instituições livres. mas também à luz da sua adaptação constan-
Em confronto com estes três modelos, temos o te à sociedade do seu tempo, o que contra-
modelo proposto pela “boa imprensa”, para a diz a ideia comum de que a Igreja Católica
qual as verdades são eternas, imutáveis e indis- não é capaz de introduzir no seu seio dinâ-
cutíveis, e, desde o Vaticano I, reforçadas com micas vivas capazes de a reatualizarem – o es-
a infalibilidade papal, que, obviamente, é uma tudo dos 21 consílios da sua história milenar
resposta à nova autoridade – científica – que certamente elucida este ponto. A Igreja po-
surge. Como contestar o que existe por inspi- derá sempre ser acusada de estar mais preo-
ração divina, através do Espírito Santo? Além cupada em manter o statu quo ante do que
de querer divulgar esse modelo à sociedade, a a autoridade incontestável do seu Magistério
missão da “boa imprensa” visa reforçar a unida- na pessoa do papa, mas nunca de ignorar a
de interna da Igreja. passagem do tempo, elemento fundamental
A sociedade tinha de ser vista no seu todo do porvir, uma vez que olha os tempos que
para ser compreendida, e esse era o objetivo passam com a sabedoria do tempo eterno de
442 ¬ B oa imprensa
que é detentora, não apenas enquanto insti- Tanto Comte como Marx pretendem uma
tuição, mas também enquanto representante nova forma de organização do poder tem-
do Verbo, tal como se proclama. poral, i.e., do poder político, mas, enquanto
Enquanto a “boa imprensa” propõe a práti- Marx propõe a revolução, os positivistas de
ca da doutrina cristã na Terra para ganhar o Augusto Comte acreditam que o poder tem-
Paraíso, o positivismo advoga o progresso hu- poral pode ser reformado pelo poder espiri-
mano com base nos avanços da ciência – eti- tual, o que seria levado a cabo pelos sábios e
mologicamente, scientia, note‑se, porque é filósofos, que teriam o mesmo papel que cabe-
aqui importante, como meio para a trans- ria aos padres na idade teológica, segundo a
formação da humanidade. Já o marxismo sua conceção: “O poder espiritual deve regrar
propõe‑se construir uma sociedade justa os sentimentos dos homens, uni‑los em vista
através da dialética que afirma ser imanente de um trabalho comum” (ARON, 2010, 97).
a uma sociedade dividida em classes. Assim, Para os marxistas, não só todas as estruturas
as três correntes de pensamento convergem do velho poder devem ruir pela força da re-
em dois aspetos: a scientia, a ciência, e o seu volução, como o papel de construir uma so-
carácter teleológico. Pela ciência, o conheci- ciedade nova competia às vanguardas revo-
mento da verdade, a “boa imprensa” promete lucionárias, quais sacerdotes de uma nova
ao crente o alcance do Céu; com o progresso metafísica revolucionária.
da ciência, podemos alcançar o progresso A “boa imprensa” segue a linha que defende
ilimitado da humanidade, defendem os po- que o poder de transformar o coração dos ho-
sitivistas; com a ciência da sua circunstân- mens deve continuar a ser da Igreja e do seu
cia e conhecendo os limites da sua vontade Magistério – sacerdotes, bispos e papa –, cuja
no momento da sua escolha – “Os homens autoridade advém da verdade que lhe(s) ins-
fazem sua própria história, mas não a fazem pira o Espírito Santo, fonte da renovação cons-
segundo sua livre vontade; em circunstâncias tante da Igreja, cabendo a esta espalhar, desde
escolhidas por eles próprios, mas nas circuns- o tempo de Cristo, a conversão interior dos ho-
tâncias imediatamente encontradas, dadas mens e da humanidade. Para a “boa impren-
e transmitidas pelo passado” (FRANKLIM, sa”, o catolicismo era a verdadeira religião da
2018, 204) –, o Homem construirá a grande humanidade, e a Igreja, católica por natureza,
síntese final, que é a sociedade sem classes. i.e., universal, tinha o direito e o dever de di-
Assim, as três correntes caminham para um vulgar a sua mensagem através dos meios de
fim previsível, o Paraíso, sendo que, enquan- comunicação ao seu dispor.
to a “boa imprensa”, i.e., a religião católica, Os positivistas, por seu lado, propunham
nos propõe vencer as agruras deste mundo ‑se instituir a sua religião da humanidade,
com o Paraíso no outro, o positivismo e o uma nova religião, de que as religiões do
marxismo propõem‑se construir um outro passado eram apenas formas provisórias,
mundo ainda neste mundo. Perante isto, é procurando no sobrenatural e nos deuses
de concluir – con[s]ciência certa – que, se aquilo que devia ser procurado no cerne da
não desistirem da sua caminhada, ainda que própria humanidade, cuja unidade moral e
por percursos diversos e até divergentes, hão humana era o ser supremo de si mesma. À
de encontrar‑se todos às portas de uma Nova escolástica de Tomás de Aquino e dos Padres
Jerusalém, e também nesse caso serão venci- da Igreja, que tanto tinham influenciado e
das as fronteiras entre este mundo e o outro: fundamentado o catolicismo, Comte con-
“Vi um novo céu e uma nova terra, porque o trapunha a filosofia positivista como fun-
primeiro céu e a primeira terra desaparece- damento da sua nova religião. Embora po-
ram, e o mar já não existia. Vi a cidade santa, sitivista, esta nova religião não dispensava,
a Nova Jerusalém, que descia do céu de junto todavia, os seus templos e capelas, e até um
de Deus” (Ap 21, 1‑2). novo calendário, o calendário positivista,
B oa imprensa ¬ 443
composto por 13 meses de 28 dias, com base para o descanso, tal como os católicos têm o
no calendário lunar, e tinha como ideal o al- domingo; ou os momentos diários de oração
truísmo, palavra criada por Comte. e meditação, no caso dos muçulmanos. Os ri-
Em síntese espontânea: em que é que diver- tuais e implicações culturais de um calendá-
ge o espírito semântico do amor ao próximo rio religioso não deixam de ser reivindicados
de Cristo do altruísmo de Comte e da igualda- pela “boa imprensa”, numa reafirmação dos
de de Karl Marx? O que sabemos, porque ob- valores católicos face ao movimento de secu-
servamos a passagem do tempo e do que ele larização da sociedade, que vinha já dos sé-
deixa prevalecer, é que o poder espiritual que culos passados: “a rivalidade medieval entre o
subsiste é exercido pelas igrejas do passado papado e o império, a Reforma protestante,
ou pelo poder de ideólogos, e não pelos ver- o século das Luzes, para citar apenas as eta-
dadeiros sábios ou filósofos, como idealizava pas principais da secularização das sociedades
Comte na sua nova religião. Se Comte preten- europeias” (BINDÉ, 2006, 35‑36). Essa secu-
dia uma desvalorização dos conflitos ideoló- larização tem ainda outros momentos impor-
gicos e do poder temporal, i.e., do poder po- tantes na crescente secularização, como a Re-
lítico, ambição comum aos doutrinadores da volução Tecnológica, sobretudo no séc. xix,
“boa imprensa”, a verdade é que, no séc. xx, e a crescente urbanização da sociedade, o
a Europa e o mundo sucumbiram por duas que leva “à ‘perda do centro’, isto é, a disso-
vezes a esses conflitos que tiveram por base a lução das tradições comuns e das crenças nos
questão ideológica e que fizeram perecer mi- mesmos valores, seja do ponto de vista reli-
lhões de seres humanos. Comte preferia a des- gioso, seja do ponto de vista ideológico” (Id.,
valorização do conflito ideológico e do poder Ibid., 37). Esse movimento de secularização
da hierarquia temporal e uma ascendência do tem assim um largo rastro. Alguns, nomeada-
poder espiritual dos sábios sobre a organiza- mente os arautos da “boa imprensa”, queriam
ção social, mas isso está longe de ser uma rea- impedi‑lo; outros, que o observavam e não o
lidade: “Provavelmente os homens preferem desejavam, nada lamentavam, como Nietzs-
sempre o que os divide ao que os une. Prova- che ou Spengler, para os quais significava o
velmente cada sociedade é obrigada a insistir crepúsculo do Ocidente, esquecendo, como
no que tem de particular e não nos traços co- lembra Vattimo, que o crepúsculo, ou “alpar-
muns que compartilha com todas as socieda- dinho”, no dizer madeirense, “não é apenas
des” (Id., Ibid., 98). o declínio do Sol no poente, mas aquela luz
As ideias e os valores que, numa sociedade, lenta e insegura que anuncia uma nova auro-
são, subtilmente, insinuados por uma deter- ra” (Id., Ibid.). A “boa imprensa” não deixava
minada doutrina religiosa, ou por uma cor- de estar atenta a esse movimento da seculariza-
rente ideológica ou cultural, têm uma eficácia ção. Num artigo de 11 de dezembro de 1909,
muitas vezes maior do que aqueles que são ex- no jornal Brado d’Oeste, defendia‑se o descan-
plicitamente expostos. Quando os revolucio- so semanal e criticava‑se o seu incumprimen-
nários franceses mudaram o calendário grego- to: “um abuso que não deve continuar” (“Des-
riano por um calendário próprio, ou quando canço semana”, Brado d’Oeste, 11 dez. 1909, 1).
os positivistas pretenderam impor o seu calen- Aqui a questão era a do trabalho e a do direito
dário, sabiam que isso era uma forma de incu- ao descanso semanal, mas a questão das datas
tir os valores simbólicos que esse calendário importantes do calendário litúrgico e dos va-
implicava. No séc. xxi, em países maioritaria- lores da família era uma constante neste bisse-
mente católicos, como o nosso, é frequente manário da imprensa católica. No próprio dia
determinadas confissões religiosas minoritá- 25 de dezembro, dia de Natal, no editorial do
rias reivindicarem a legitimidade de lhes ser Brado d’Oeste, o editorialista escreve: “Veem
concedido o dia de guarda da sua religião, ‑se ali cumpridos oráculos e profecias” (Brado
e.g., no caso de judeus e adventistas, o sábado, d’Oeste, 25 dez. 1909, 1).
444 ¬ B oa imprensa
A profecia era a concretização do que tinha exata do sentido da grande narrativa da hu-
sido anunciado no passado sobre o futuro, e manidade. Assim, as ideologias, as religiões,
assim se fundem a lembrança do passado e a as culturas, as civilizações, são manifestações
espera do futuro, numa espécie de plenitu- parcelares da humanidade, na medida em que
de do ser, situado naquilo a que Derrida de- não a representam no seu todo, mas nenhuma
signa por “logocentrismo”, na medida em que delas deve ser extinta violentamente, porque
essa plenitude se situa na realidade ontológi- isso seria decepar algumas das formas em que
ca do ser, para além da circunstância do ente o espírito humano se manifesta. O mesmo não
no tempo dividido da existência humana, a di- acontece quando uma determinada civilização
mensão temporal da existência humana. Nessa se transforma ou se deixa absorver, paulatina-
realidade “logocêntrica”, o Homem ultrapas- mente, por outra, porque, na verdade, ela não
saria a sua dimensão socio‑político‑religioso desaparece, a não ser superficialmente, antes
‑cultural, situando‑se no plano ontológico, em passa a estar incluída no âmago da cultura em
que se dissolvem as diferentes visões do mundo. que foi absorvida, que deixa de ser o que era,
Isso não significa que essa realidade ontológi- na medida em que, ao absorvê‑la, se deixou
ca seja conseguida à custa do fim das civiliza- também absorver.
ções, mas que todas elas saberiam situar‑se e Os factos não têm sentido quando conside-
compreender‑se como uma das várias manifes- rados individualmente, ganhando-o apenas
tações do ser na sua plenitude, como condição quando integrados no percurso dos aconte-
para a unidade da humanidade na sua plura- cimentos. Na sua dupla dimensão, a História
lidade. Assim, a “boa imprensa” não deixaria atende à realidade dos factos que se vão ins-
de ser entendida como uma das faces da reali- crevendo na linha do tempo (a res gestae), ao
dade, na afirmação dos seus valores, como um passo que é o relato desses factos, a narrativa
dos contributos inalienáveis na afirmação da (rerum gestarum), que lhe confere sentido e ra-
unidade do ser. Mesmo que ela e os que se de- cionalidade. Esse é o papel da “boa imprensa”:
finiam contra ela se considerassem, recíproca atribuir uma dimensão transcendente àquilo
e simultaneamente, como representantes úni- que, no quotidiano, não tem significado que
cos da verdade, excluindo a outra parte, esse o ultrapasse. Se a um facto não for conferida
antagonismo só reforçaria o vitalismo de cada dimensão transcendente, ele esgota‑se por
um, o que significa dizer que só os fazia andar si mesmo. Se, porém, ele for compreendido
mais depressa, na senda de uma visão teleoló- numa dimensão mais vasta que o ultrapassa, tal
gica da realidade. circunstância dá‑lhe uma dimensão simbólica.
Todas as manifestações religiosas, culturais O nascimento de um menino numa gruta é um
e civilizacionais participam, numa perspetiva facto da natureza humana. Mas, se a interpre-
hegeliana, da caminhada do Espírito sobre a tação desse acontecimento for determinante
Terra até à realização da consciência da razão na marca da humanidade, ele sobreleva o quo-
na sua plenitude final, mas é normal que ne- tidiano da sua realização.
nhuma delas, ou nem todas elas, tenha a noção Quando o articulista do editorial Brado d’Oes-
do papel insubstituível e único que cada uma te, no já citado artigo sobre o Natal, afirma
protagoniza e de que ele não é exclusivo na que se completam “ali os multiplicados votos
consecução da plenitude da humanidade. Se a de milhares de gerações, sonhos dourados de
História, na visão kantiana, corresponde à rea- homens e promessas infalíveis de um Deus”, e
lização dos planos secretos da natureza, é na- que “Um passado calamitoso e sombrio termi-
tural que os seus protagonistas, muitos deles, na ali” e “um futuro de venturas brilhantes dali
não tenham a noção exata do seu papel no se desenrola”, acrescentando que a partir “Do
grande drama humano. Não se pode, desse recinto tenebroso de uma gruta raia uma auro-
modo, pedir a todos e a cada um que, além de ra de duração eterna”, está não só a proceder
saberem de cor o seu papel, tenham a ciência à inscrição de um facto localizado no “recinto
B oa imprensa ¬ 445
tenebroso de uma gruta”, numa leitura provi- e a coletividade” (ARON, 2010, 114). Mas há,
dencial da História, mas, igualmente, a proce- desde logo, uma diferença radical, ou seja, de
der à interpretação do facto de acordo com a raiz: enquanto o articulista concebe a unidade
característica linear e judaico‑cristã do tempo. do Homem pela intervenção do transcenden-
A “duração eterna” de que fala não funciona te, a unidade preconizada pelo positivismo é
apenas para o futuro, a partir do momento em uma unidade imanente. Se é certo que desde
que a esperança se realiza, mas absorve, igual- o séc. xix todas as doutrinas sociológicas pro-
mente, o passado em que essa esperança nas- põem que se passe do pensamento à ação, ou
ceu e sobreviveu no coração de “milhares de da ciência à política, enquanto fundador de
gerações”. Dá‑se assim a unidade do ser, e o uma nova religião, a religião da humanidade,
“caos do passado recua”. A igualdade dá‑se ali o positivismo desvaloriza o económico e o polí-
pelo “efeito […] edificante, admirável e pro- tico em favor da ciência e da moral, e não acre-
digioso […] do Natal do Homem‑Deus”, por- dita que seja através da mudança do regime ou
que “O escravo sacode e despedaça as algemas; da constituição que o Homem ponha termo às
o senhor […] curva a cerviz; a mulher procla- convulsões da sociedade. Comte inscreve‑se na
ma os seus direitos; o pobre, o desgraçado, linha de Kant, que acreditava no papel da na-
reconhecem alfim que são criaturas de Deus; tureza na marcha inexorável do tempo, e de
a religião transforma e humaniza o homem” Hegel, na espiral ascensional do espírito. Para
(Brado d’Oeste, 25 dez. 1909, 1). O efeito mi- Kant, Hegel e Comte, o tempo é o grande se-
raculoso da igualdade entre o escravo, o se- nhor da História.
nhor, a mulher e o pobre, que se reconhecem Comte admite que apenas o tempo fará pas-
como criaturas de Deus, é alcançado por esse sar das sociedades fragmentadas e injustas pas-
Homem‑Menino‑Deus. sadas e atuais às sociedades reconciliadas do
Ao proceder a essa leitura, a “boa imprensa”, futuro, mas acredita que o esforço dos homens
na sua ânsia de absorver a realidade da vida, de boa vontade, aliado ao sentido inexorável
supera‑se a si mesma e eleva à ontologia do ser da evolução, pode ser mais ou menos longo:
aquilo que, em princípio, é um facto da vida “Na duração e nas modalidades da evolução,
quotidiana dos entes. Mesmo aqueles que não em si própria inevitável, exprime‑se a parte de
concordam com a leitura transcendente da- liberdade reservada aos homens”. Comte não
quele facto não podem negar que essa leitura é profeta da violência revolucionária, como
é uma leitura universal e não facciosa da rea- Marx, mas acredita que os seres humanos têm
lidade. Ao proceder assim, qualquer religião uma “margem de modificabilidade da fatalida-
exerce um movimento ascendente em relação de” (Id., Ibid., 115). Tal como o cristianismo, o
a si mesma e em relação à realidade concre- positivismo e o marxismo têm subjacente uma
ta, que é, por natureza, fragmentada e caótica, estrutura teleológica e acreditam num aper-
logrando a unidade. Essa consecução da uni- feiçoamento crescente da humanidade. Ou
dade não é, portanto, incompatível com a di- entra a revolução, ou a reforma, que são ou da
versidade religiosa, embora não seja esse, con- sociedade ou do indivíduo. Tanto o positivis-
sabidamente, o pensamento ou o sentimento mo como o cristianismo repudiam o recurso
do articulista. à violência como forma de atingir uma socie-
Augusto Comte pensou a unidade da espé- dade justa. Já Comte e Marx partilham a ideia
cie humana através da constância da sua natu- de que a única transformação social possível é
reza essencial, que podia observar, contudo, aquela que implica o fim do pensamento teoló-
através da diversidade das instituições históri- gico, com a diferença de que o primeiro é apo-
cas no plano social. Na sua conceção, “a afir- logista do pensamento reformador pela ciên-
mação da unidade humana […] implica uma cia e o segundo pela revolução.
certa conceção do homem, da sua natureza, A relação entre as conceções religiosas e os
da sua vocação e da relação entre o indivíduo comportamentos económicos é vista por Max
446 ¬ B oa imprensa
Weber como uma das causas das transforma- pelos movimentos de translação ou de rotação
ções económicas das sociedades, na medida em da Terra ou do retorno das estações, em que
que uma determinada interpretação do protes- tudo recomeça, deu‑nos uma ideia de renova-
tantismo vai favorecer a criação do sistema ca- ção que se foi inscrevendo na nossa cultura oci-
pitalista, fundamentada na conformidade, in- dental e que o próprio folclore absorveu – “a
telectual ou espiritual, entre o espírito da ética primavera vai e volta sempre”, diz uma canção
protestante – ou de uma certa ética protestan- do folclore madeirense –, como se o tempo se
te – e o espírito do capitalismo. A tese de Max estivesse a renovar ciclicamente. Na conceção
Weber é que há uma adequação significativa do tempo ciclo, o passado não tem o peso que
entre o espírito do capitalismo e o espírito do advém de se julgar que afeta as futuras civili-
protestantismo: “A ética protestante a que Max zações e não há a inscrição da ideia de futuro,
Weber se refere é, essencialmente, a conceção porque o tempo é encarado como algo que se
calvinista” (Id., Ibid.), segundo a qual Deus pre- renova incessantemente.
destinou cada ser humano para a salvação ou O judaísmo, ao anunciar a vinda de um Mes-
para a condenação; portanto, o Homem não sias, vem instituir, pela primeira vez, uma ideia
pode, pelas suas obras, alterar a decisão divina, de futuro, um futuro de luz e esperança, que o
de antemão fixada. Mas, pelo menos, é conce- cristianismo há de confirmar mais tarde, com
bível uma outra interpretação. Segundo Max o nascimento de Cristo, mas, sobretudo, com a
Weber, é através do trabalho que “certas seitas sua ressurreição, provando que o futuro mes-
calvinistas acabam por descobrir no êxito tem- siânico e salvífico tinha sentido. Essa ideia de
poral, eventualmente no sucesso económico, a futuro mantém‑se com a parúsia, a segunda
prova da escolha de Deus” (Id., Ibid.). Assim, vinda de Cristo. Essa esperança no futuro ini-
o trabalho seria a melhor forma para ultra- cia a ideia de tempo linear, porque incute nos
passar a dúvida na própria salvação e obter a povos o sentimento de caminhada em direção
certeza da graça, sendo também por isso a me- a algo, a um tempo em que a realização plena
lhor forma de ultrapassar a angústia religiosa. do Homem acontecerá. Essa conceção de ca-
A “boa imprensa” reconhece ao trabalho o seu minhada para um fim imbuiu ainda as ideolo-
papel de transformador do mundo e o facto gias de matriz materialista, como o marxismo,
de ser um fator do progresso. No editorial do o que significa que o futuro se transformou em
periódico Brado d’Oeste de 15 de dezembro de tempo de utopia, fosse qual fosse a doutrina,
1909, o articulista afirma, convictamente, o seu religiosa, política, ou filosófica: o judaísmo, à
“relevante e grandioso papel […] no seio das espera do Messias; o cristianismo, em que a
sociedades de todos os tempos. […] O que promessa de uma recompensa no Céu anula a
seria, sem ele, finalmente, do desenvolvimen- própria ideia de morte definitiva do Homem,
to, do progresso? […] Ele é a mola propulsora enquanto ser espiritual; o positivismo, com a
de todo o progresso, de toda a civilização, de sua religião da humanidade; o materialismo
toda a felicidade” (Id., Ibid.). O trabalho é visto marxista, com a promessa de uma sociedade
como forma de combater o ócio e de afirmar sem classes e igualitária, em que a luta contra a
um valor moral. De um modo ou de outro, ca- exploração ganha um sentido de futuro.
tólicos e protestantes são levados a agir, embo- Quer o cristianismo quer o marxismo criam
ra uns para se salvar e outros para ver o sinal no Homem o desejo de futuro, porque é lá
da salvação. que se situa ou a salvação ou a utopia, a cren-
A nossa conceção de tempo linear provém ça numa sociedade em que, em qualquer caso,
da cultura judaico‑cristã, que veio substituir a haverá o reconhecimento de que todos os ho-
ideia do “eterno retorno” herdada das antigas mens são iguais, o que o cristianismo reconhe-
civilizações euroasiáticas, nomeadamente da ce à partida (mas que só é possível quando o
antiga Babilónia, ou ameríndias, maia e hindu. Homem se insere no projeto de salvação) e
Essa cosmologia do tempo, que nos é dada o marxismo visa garantir, desde que todos os
B oa imprensa ¬ 447
cidadãos desencadeiem um processo de luta tempo real da Internet. A crise financeira tem
contra as desigualdades. O cristianismo impli- como um dos seus principais fatores a ques-
ca uma consciência moral e o reconhecimento tão do tempo, com resultados catastróficos a
do outro, ao passo que o marxismo exige uma nível social, económico e humano: “a urgên-
ética de entrega a uma luta contra a explora- cia desorganiza a estrutura do tempo e retira
ção, em nome desse futuro. Ambas as doutri- a legitimidade à utopia” (BINDÉ, 2006, 421).
nas, a cristã e a marxista, são imbuídas de coe- Enquanto no passado era costume o Homem
são ideológica sólida, porque conduzem os sacrificar o presente em nome do futuro dos
seus sequazes em nome desse futuro. Essa coe- seus descendentes, o Homem do séc. xxi pa-
são, todavia, só é possível quando há convicção rece estar a sacrificar as futuras gerações em
e adesão profunda a essa ideia de porvir; só a nome do presente, como se o tempo, de re-
convicção garante a longa espera, quiçá espe- pente, houvesse sido abolido, como se o pre-
ra sem fim, pela realização dessa expectativa, sente estivesse a fazer um saque ao futuro, gas-
sob pena de a própria doutrina se fragmentar tando todos os recursos conseguidos ao longo
e originar a deserção dos seus prosélitos. Tal- de várias gerações e ameaçando não só o bem
vez isso explique o desmoronamento dos regi- ‑estar das futuras gerações, mas também o
mes políticos que se ergueram com base nessa próprio equilíbrio do planeta e, por via disso,
expectativa utópica. Enquanto o ideal do so- a própria vida humana. Cansado de se projetar
cialismo nunca foi atingido (ao fim de longas no futuro, lugar da promessa não cumprida, o
décadas pôde observar‑se isso), as religiões per- ser humano, como se sentisse que tinha caído
manecem coesas, apesar das vicissitudes (a es- num logro, quer o futuro com urgência. Aliás,
perança no Paraíso ultraterreno nunca foi des- é frequente observarmos frases publicitárias
mentida). Essas utopias, nomeadamente as de que anunciam que “o futuro é já hoje!”. Com
cariz ideológico e filosófico, iniciaram‑se com a chegada do cristianismo, a noção de tempo
o Iluminismo, prosseguiram com o racionalis- linear, baseada no facto único da morte – e res-
mo e o positivismo e tiveram uma versão imi- surreição – de Cristo, fez a sua aparição: a ideia
nentemente ideológica com o materialismo de temporalidade linear que preside à conce-
marxista – construído, note‑se, a partir do idea- ção de A Cidade de Deus, de S.to Agostinho: “No
lismo hegeliano e da sua dialética –, ao longo momento da queda do Império Romano […]
dos sécs. xviii e xix, com o marxismo a fazer Santo Agostinho ilumina a história do ponto
prova da sua eficácia ao longo de quase todo o de vista transcendente, a partir da Cidade de
séc. xx. Mas essas ainda eram épocas em que Deus; a distinção entre as duas cidades vai re-
o tempo se projetava à la longue; o tempo das gular, a partir daí, o modelo cristão da tempo-
longas viagens de barco e de comboio e em ralidade” (RUSS, 1997, 54). S.to Agostinho, em
que a própria vida amorosa tinha o seu tempo A Cidade de Deus, afirma que “O Cristo morreu
de espera e de consumação. Ao invés, os tem- uma vez pelos nossos pecados e, depois de res-
pos que correm não se compadecem com tão suscitado, nunca mais morrerá”.
longa espera. De repente, todos fomos toma- Para que a atual geração não faça um saque
dos pelo carácter imediato das realizações hu- sem fundo sobre o futuro dos vindouros e estes
manas. Todas as atividades humanas, mesmo as não nos cobrem o que estamos a fazer com o
de carácter pessoal, foram atingidas pela fuga- tempo que é nosso, e que é sempre irreversí-
cidade do tempo, em que tudo se deve reali- vel, terá de haver um contrato geracional, um
zar já. Normalmente, o afeto e o amor preci- pacto do tempo, em que possa haver um in-
sam de tempo para ser profundos. Se olharmos vestimento no presente com efeitos imediatos,
para os transportes e para os meios de comu- mas com consequências positivas para as gera-
nicação, vemos que foram tomados pela ur- ções futuras. Só com base nesse equilíbrio, na
gência; da mesma forma, a carta, o diário, o gestão criteriosa do tempo, é que é possível re-
telégrafo, foram ultrapassados pela ligação em colocar o mesmo tempo nos carris da História
448 ¬ B oa imprensa
e retomar o comboio da viagem com todas as Um programa que implique uma nova
carruagens, do passado, do presente e do fu- moral implica uma ligação entre a doutrina
turo, de forma a que os passageiros dos dife- e a prática. Desse ponto de vista, o cristianis-
rentes tempos não se sintam desconfortáveis mo vem representar uma verdadeira revolu-
porque os passageiros das outras carruagens ção, não só porque modificou a nossa ideia
invadiram o seu espaço‑tempo. Nessa perspeti- de Deus, como também da sua relação com o
va, poderemos pedir uma concessão de tempo Homem. Os deuses antigos imanentes à natu-
ao futuro, para que não fiquemos sufocados reza são substituídos por um Deus transcen-
pela ditadura da urgência. Esse contrato gera- dente, que, não obstante a sua natureza trans-
cional deve abranger todos aqueles que, cren- cendente – mistério da Encarnação –, se faz
tes ou ateus, católicos ou protestantes, cristãos homem: “Cristo, o Homem‑Deus, aliança de
ou muçulmanos, entendem que é preciso, para Carne e de Luz, estabelece uma ponte entre
usar a expressão de Jérôme Bindé, “alargar a o homem e o Absoluto: ele garante uma me-
comunidade ética” que acha que é necessário diação entre as duas ordens e, pelo seu sacrifí-
estabelecer compromisso com o futuro, tendo cio, resgata a humanidade. É a Boa Nova que
a noção de que as decisões que tomarmos hoje se anuncia” (RUSS, 1997, 51). E, paradoxal-
não podem ser apenas na expectativa do bem mente, é através do seu corpo, o corpo que no
‑estar individual de cada um, dos resultados Homem é sede do pecado, que Cristo vai salvar
financeiros a apresentar ao fim do trimestre, a humanidade em queda e reerguê‑la, como
dos resultados eleitorais de uma nova eleição, se o Homem recuperasse, de novo, o ser: “o
mas que terão consequências a longa prazo: homem só é homem na medida em que des-
“O reforço das capacidades de antecipação e perta para o ser” (DURAND, 1996, 295); ao
de prospetiva é portanto uma prioridade para Homem é‑lhe devolvida, de novo, a dignidade
os governos, as organizações internacionais, as de se ver como um ser livre. É essa condição
instituições científicas, o sector privado, os in- de Homem livre que a “boa imprensa” destaca,
tervenientes da sociedade e para cada um de ilibando Deus da existência do mal, visto que
nós” (BINDÉ, 2006, 422). o Deus do catolicismo, ao contrário do Deus
Este é o tempo em que à cultura do instan- do calvinismo, não decide de antemão a sorte
tâneo temos de responder com a cultura do do Homem, antes lhe confere a responsabili-
compromisso, para que as decisões que foram dade e a liberdade de começar de novo. Camus
tomadas no passado possam ser salvas, desde compara o Homem a Sísifo, que empurra o ro-
que integradas num projeto de futuro. Não chedo, suportando o seu fardo desde sempre,
haverá futuro se todos nos deixarmos envolver mas com a grandeza e a dignidade de quem
por interesses que se deixam consumir pela nunca cessa de o fazer. Camus, contudo, fala
recompensa imediata. A cultura de compro- de um mundo sem Deus e sem a eternidade.
misso dos melhores será a melhor forma de A “boa imprensa”, por sua vez, transmite a es-
a todos envolver. Temos todos de nos empe- perança de uma luz que oferece a eternidade
nhar no futuro a partir das lições do passa- da salvação. Será feliz o Homem que procu-
do. Se nos detivermos todos a olhar, contem- ra dar sentido a um mundo que parece estar
plativamente, o passado, ficaremos divididos. submerso no absurdo e na ausência de senti-
Se, porém, estivermos cientes do nosso pas- do? – “A própria luta na direção do cume basta
sado comum, empenhar‑nos‑emos coletiva- para encher o coração de um homem. Temos
mente, seremos capazes de construir o futu- de imaginar que Sísifo era feliz” (Id., Ibid, 297).
ro de que necessitamos, para que o horizonte O humanismo que impregnou várias corren-
não se afaste de nós porque não o pensamos tes do pensamento do séc. xx, incluindo o hu-
bem. Como dizia Pascal, “esforcemo‑nos para manismo marxista, desde Mounier a Gide e a
pensar bem: é este o princípio da moral” (Id., Sartre, não deixou de (re)colocar o Homem
Ibid., 424). no centro da História, onde ele, aliás, já estava
B oa imprensa ¬ 449
desde o momento em que foi chamado a cons- “Entre os termos mundial e universal existe uma
truir o seu destino, “assim na Terra como no analogia enganadora. A universalidade é a dos
Céu”, onde, ainda assim, se cumpre a vonta- direitos do homem, das liberdades, da cultura,
de de Deus. E não é assim desde o suspiro no da democracia. A mundialização é a das técni-
Calvário, em que Cristo pede o afastamento do cas, do mercado, do turismo, da informação”
cálix do sofrimento? Contudo, Ele diz: “faça‑se (BINDÉ, 2006, 49). E depois chama a atenção
a Sua vontade” (Lc 22, 42), a de Deus. Por um para as dinâmicas de ambas, defendendo a tese
breve momento, Cristo colocou‑se diante do de que a mundialização ganhou uma dinâmi-
instante eterno, a escolha entre beber o cálix ca irreversível, ao passo que a universalidade
até ao fim e fazer a vontade de Deus ou fazer o estaria em recuo ou até em vias de desapare-
mais fácil, olhando só para o presente. Afinal, cer. Assim, verificamos que, num momento em
que vontade prevaleceu, a de Cristo Homem que os avanços tecnológicos poderiam ser um
ou a de (Cristo) Deus? O que houve foi uma meio de divulgar valores como os direitos do
coincidência entre a vontade de Deus Pai e a Homem, a liberdade, a cultura, a democracia,
de Deus Filho, et bien sûr: Cristo escolheu, vo- o amor ao próximo, valores inseparáveis da
luntariamente, a liberdade de não cair, e com Modernidade ocidental, os mesmos podem re-
Ele o Homem, no abismo do nada. Parecia, cuar em função do predomínio, em potência,
assim, estar a dar uma resposta, com vinte sécu- das técnicas do mercado, que, afinal, mesmo
los de antecedência, ao humanismo ateu, que nesse campo, podem falhar, por falta de uma
era fundamentalmente niilista, segundo os ética que as sustente, como a crise que se veri-
proponentes do existencialismo cristão, como fica acentuada na passagem do séc. xx para o
Gabriel Marcel, Emmanuel Mounier, Jacques séc. xxi veio confirmar. Será possível afirmar,
Maritain, entre outros, que também, à sua ma- a esta distância, que, ainda no dealbar do
neira, procuravam a síntese das várias dialéticas séc. xix, a “boa imprensa” já teria a noção de
do séc. xx, entre o ateísmo e o sagrado, a liber- que a secularização da sociedade em curso não
dade da renúncia humana e a transcendência teria, afinal, força suficiente para se impor em
divina. Superando essas angústias existenciais termos definitivos? O que aconteceu, afinal, à
que a reflexão sobre a morte traz, a “boa im- nova religião da humanidade, com os seus tem-
prensa” apresentava a imagem da sobrevivên- plos e os seus sábios e filósofos, representantes
cia contra a ideia de morte. Era necessário dessa nova espiritualidade? Tiveram sucesso os
reconstruir o compromisso entre os desafios anunciadores de uma nova ética capaz de subs-
que se colocam ao cristão no dia a dia e o ho- tituir a moral cristã que era propagada pela
rizonte que a vinda de Cristo representou para “boa imprensa”? Com efeito, haveríamos de as-
nós. A “boa imprensa” tem no seu sintagma o sistir, desde o início do séc. xix até ao princí-
adjetivo “boa”, que a demarca da restante im- pio do séc. xxi, a um movimento de seculariza-
prensa, mas isso não significa necessariamente ção dupla, ou com duas fases. Numa primeira
que ela não tenha como objetivo último a di- fase, Auguste Comte enuncia a lei dos três esta-
vulgação de uma mensagem e de uma doutri- dos, que correspondem ao longo percurso da
na que se considera universais – “Ide por todo história humana. Este pensador afirma que a
o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” humanidade viveu o estado teológico, em que
(Mc 16, 15) – e que a si mesma se atribua uma Deus está presente em tudo, seguido do estado
missão cujo limite é atingir o pleno da divulga- metafísico, em que a ignorância da realidade
ção dos valores da mensagem, que é a do amor ou a falta de crença num Deus todo-poderoso
ao outro, que é o próximo. Esta dimensão uni- leva a pensar que há relações misteriosas entre
versal da mensagem, que decorre das palavras todas as coisas e entre estas e os espíritos. Em
do próprio Cristo, teria condições de futuro? face disso, para inaugurar uma segunda fase,
Estabelecendo uma distinção entre mundializa- Comte estabelece o estado positivo, em que a
ção e universalidade, Jean Baudrillard afirma: humanidade, finalmente liberta da presença
450 ¬ B oa imprensa
de qualquer crença e guiada pelo espírito cien- má’”, no dizer de Jean Baudrillard, que afir-
tífico, busca o conhecimento absoluto e subs- ma ainda que “O universal era uma cultura da
titui toda a influência teológica pela observa- transcendência, da reflexão do tema e do con-
ção dos factos científicos. Comte, porém, não ceito, uma cultura com três dimensões, a do
advoga o fim do culto, apenas a substituição espaço, do real e da representação. O espaço
do culto de Deus, que substitui pelo culto do virtual é o do ecrã, da rede, da imanência, do
“Grande Ser” hipostasiado, por ser “o conjun- numérico” (BINDÉ, 2006, 49). Ou seja, a trans-
to dos seres passados, futuros e presentes que cendência era comum a todas as doutrinas, fos-
concorrem livremente para o aperfeiçoamen- sem elas a da utopia marxista, do espírito de
to da ordem universal” (COMTE, 1983, 30). Hegel, do positivismo de Comte ou a propa-
Comte não só substitui o culto de Deus pelo do gada pela “boa imprensa”, porque todas eram
“Grande Ser”, como defende que “O culto dos detentoras de valores que consideravam uni-
homens verdadeiramente superiores forma versais. Desde o séc. xviii, procuravam‑se suce-
uma parte essencial do culto da Humanidade. dâneos ou sucessores para o Deus dos cristãos:
Mesmo durante a vida objetiva, cada um deles razão, natureza, História, progresso, Homem,
constitui uma personificação do Grande Ser. Iluminismo e a própria Europa, como utopia,
Todavia, esta representação exige que sejam que nós vamos vendo soçobrar como distopia,
idealmente afastadas as graves imperfeições essa Europa onde nasce o humanismo que lhe
que, muitas vezes, alteram as melhores natu- dá a base cultural: “O humanismo está ligado a
rezas” (Id., Ibid., 63). Em rigor, o positivismo uma Europa que tem a vocação do Universal e
de Comte deixa de crer em Deus para passar a que encarna ‘uma grande república divida em
crer na ciência e na humanidade. Se o “Gran- vários Estados’ (Voltaire)” (RUSS, 1997, 180).
de Ser” é tão abstrato como o Deus da religião, O cristianismo era colocado em causa no seu
o positivismo de Comte pode fazer desapare- todo, “tanto o Deus dos católicos como o de
cer o Deus que a “boa imprensa” defende, esse Calvino, processo global e não singular que in-
Deus que se fez homem e, depois de morto flamava os espíritos” (Id., Ibid., 181).
e sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, para A “boa imprensa” nasce, assim, num contex-
logo o reencarnar no “Grande Ser”, o ser de to em que nem sequer era o catolicismo que
toda a humanidade; tal como Deus encarnou se contestava, mas sim a própria ideia de Deus,
em Cristo, também o “Grande Ser”, além de se um Deus cuja existência não se podia provar.
concretizar em “o conjunto dos seres passados, É certo que a “boa imprensa”, de tendência
futuros e presentes”, pode ser personificado, proselitista, e tantas vezes de natureza local,
durante a vida, por cada um desses homens su- poderia, muitas vezes, julgar que se tratava de
periores e sábios que passam a ser a nova auto- uma guerra inter‑religiosa, mas a questão era
ridade moral na nova sociedade. muito mais funda e muito mais vasta: era a pró-
No séc. xx, como se sabe, os positivistas pria ideia da morte de Deus que se prenuncia-
nunca conseguiram que a superioridade ética va desde o Iluminismo e que é posta em julga-
desses seres prevalecesse sobre o poder tempo- mento, com a natureza a constituir‑se como o
ral. Este é o momento em que se dá a morte fundamento de uma religião natural desde os
das crenças em entidades superiores, sejam inícios do séc. xviii.
elas Deus, o “Grande Ser” ou as grandes uto- Jean Meslier, eclesiástico e ateu, afirma, em
pias, todas elas teleologicamente dirigidas para testamento publicado por Voltaire, que o cris-
um tempo de plena afirmação da humanida- tianismo não era uma instituição divina e con-
de. Fosse qual fosse a natureza e o percurso trariava as leis da natureza. Seguem‑se, na sua
da participação do singular no universal, por esteira, “Voltaire, Montesquieu, Helvétius e,
transcendência ou imanência, a perda desse de um modo geral, os Filósofos que, sem rea-
carácter universal levou “à exterminação de lizar estudos de exegese, censuram ao cristia-
todos os nossos valores, o que é uma ‘morte nismo o facto de exigir demasiado à razão,
B oa imprensa ¬ 451
que não admite nem milagres, nem revelação, menos intransigentes contra aqueles que não
nem sobrenatural […]. Apenas no seio da Na- aceitavam os novos projetos de sociedade que
tureza e da Razão, paradigmas fundamentais eles propunham, sobretudo quando se tratou
do pensamento da Aufklarüng, existe uma de as levar ou tentar levar à prática. Como re-
crença válida” (Id., Ibid., 182). Contra os livros construir, então, a universalidade dos valores
sagrados e a revelação, ergue‑se, em pleno, a a partir das crenças monoteístas, deístas ou
ratio, o dinamismo religioso da Aufklarüng, utópicas, no tempo da relativização de todos
“uma força universal que não pode reduzir‑se os valores ou, segundo os niilistas, já sem
às representações singulares da fé. Pois o sé- valores, de que estavam imbuídos todas
culo xviii, embora critique a lei revelada, aqueles doutrinas, que, crentes ou ateias,
também faz o alargamento da ideia de Deus tinham sentido teleológico e de caminhada
[…] Confúcio situa‑se ao lado de Cristo” (Id., para uma sociedade humana perfeita, algures
Ibid., 184). Esta posição filosófica de conceber no devir histórico ou teológico? Fará sentido
um (novo) Deus como ser supremo através da colocar essa questão no âmbito deste artigo
razão e não por revelação divina dos textos sobre a “boa imprensa”? Esse é o desafio que
sagrados (Talmude, Bíblia ou Alcorão), e a se nos coloca como forma de volver ao univer-
que se convencionou chamar deísmo, alas- sal, onde todas as formas de expressão se
trou por toda a Europa. Ter‑se‑ia esta religião podem encontrar, não um universal por abs-
deísta baseado na natureza e na razão e não tração, situado acima do mundo real, mas ob-
na revelação? Ter‑se‑ia libertado da “tirania” tido com a inclusão de cada um, ou seja, de
da crença e da fé, de que era acusada a velha todos. Quando o Deus dos cristãos nos manda
Igreja? – “Ao mesmo tempo que o respeito amar o próximo, Ele exemplifica pela ação.
dos homens pela Igreja se desmorona, o Jesus come com os publicanos e pecadores: “E
deísmo impõe‑se e o culto do Ser Supremo, sucedeu que, estando ele em casa, à mesa,
caro a Robespierre e à Revolução Francesa, muitos publicanos e pecadores vieram e toma-
não está longe. Como esquecer esse culto deís- ram lugar com Jesus e seus discípulos”
ta, instituído pelo decreto de 7 de maio de (Mt 9, 10). Quando criticado, Jesus redar-
1974? Robespierre, influenciado por Rous- guiu: “Os sãos não precisam de médico, e sim
seau, rejeita as tendências ateístas dos segui- os doentes. Ide, porém, e aprendei o que isto
dores de Herbert e contrapõe‑lhes a religião significa: misericórdia e não holocaustos (Mt,
natural e o reconhecimento do Ser Supremo” 12, 13). Note‑se que, nesta passagem do Evan-
(Id., Ibid., 185‑186), isto por um lado; por gelho de Mateus, a palavra “holocaustos” apa-
outro, ao “Grande Ser” da religião positivista, rece algumas vezes em lugar da palavra “sacri-
Comte advoga o culto, mas não via como boas fício”, o que, em termos práticos, conduz ao
as dúvidas sobre a sua existência. Ou seja, os mesmo resultado, visto que o sacrifício impli-
apóstolos das novas correntes deístas eram tão cava a imolação pelo fogo e o significado da
dogmáticos quanto os das religiões reveladas, palavra “holocausto” é, etimologicamente,
e os ateus, que não criam nem numas nem holo (todo) e kausto (queimado), palavra his-
noutras, sentiam o fenómeno da rejeição. toricamente sugestiva, sabendo que o Holo-
Os sacerdotes dos novos credos, tal como os causto, que está historicamente próximo do
fautores da “boa imprensa”, estavam imbuí- séc. xxi, significou a recusa completa da alte-
dos de proselitismo em toda a semântica da ridade. Ora, uma cultura de liberdade admite
palavra, procurando fazer o apostolado das o outro como essencial ao todo. Só podemos
suas ideias, como qualquer prosélito, que, chegar ao universal pela inclusão de todos, o
além de convertido, se porta de forma sectá- que significa incluir um por um, até atingir
ria, i.e., como membro de uma seita. Por sua essa universalidade. Não se pode amar o uni-
vez, os partidários das novas utopias materia- versal nem ele existe se se excluir uma parte
listas dos sécs. xix e xx não se mostrariam de si. Repare‑se no que diz Hannah Arendt,
452 ¬ B oa imprensa
citada por Hélé Béji, ao ser acusada de não indivíduo moderno sofre as suas consequên-
gostar o bastante dos judeus, a propósito do cias, nessa forma de escravidão moderna a
processo de Eichmann: “Esse povo já só acre- que os médicos chamam stress, vítima de ser o
dita em si mesmo? Que espera ganhar com seu próprio senhor […] compreendemos que
isso? Não tenho qualquer amor ao povo judeu, a necessidade de identidade tenha destronado
nem aos povos alemão, francês, ou america- a liberdade” (Id., Ibid., 58). Esses valores hipos-
no, nem à classe operária. A única espécie de tasiados foram erguidos em nome da liberda-
amor em que acredito é no amor das pessoas. de contra o obscurantismo religioso, mas o
Esse amor pelos judeus, uma vez que eu pró- que se verifica é que o Homem moderno se
pria sou judia, é suspeito” (BINDÉ, 2006, 60). perdeu num “individualismo que é uma ideo-
O que Arendt nos explica é que amar um logia de massas e já não uma singularidade
povo é amar um universal abstrato, tal como criadora” (Id., Ibid.). Perguntamo‑nos: qual
amar a classe operária; só acredita no amor dos dois é mais livre: o homem individualista
das pessoas, de cada pessoa, seja ela do subsumido nas massas anónimas ou o homem
proletariado ou de outra classe social, ou seja a quem era dado o dom de dialogar, intima-
de que nacionalidade for, como o bom sama- mente, com o seu Deus, esse Deus que se sa-
ritano, que era estrangeiro: “o pertencer a crificara por ele, segundo a doutrina cristã di-
uma mesma cultura ou a uma mesma religião vulgada pela “boa imprensa”? Béji afirma que
não é uma garantia de tolerância ou de felici- “um dos sinais mais desumanos da cultura é a
dade política, porque não é a ligação cultural separação do religioso e do espiritual”. Afinal,
que faz a ligação política, mas antes a ligação não era esse o caminho, o da liberdade, que
civil”, como afirma Hélé Béji (Id., Ibid., 59). se iniciara desde o Iluminismo? No séc. xxi, o
Tomando a diferença conceptual entre reli- Homem está só perante a multidão, e, nas
gioso e espiritual, a propósito do diálogo de redes sociais, tem milhares de amigos virtuais,
culturas, Béji afirma que a reivindicação da mas sem a convivialidade de outrora. No jor-
identidade, quando é feita à custa da univer- nal A Verdade de 5 de fevereiro de 1916, num
salidade, está eivada de uma violência de na- artigo intitulado “Miasmas d’alma”, com o
tureza religiosa, no sentido da crença vivida subtítulo “Estudo psycologico”, o articulista
como tirania, e não da espiritualidade e da li- escreve: “a vida é uma tragédia escrita por
berdade de pensamento. O que é que sobrele- Deus e representada no Teatro do Universo…
va na “boa imprensa”: a espiritualidade ou a Nela se identificam em biliões de atores os gé-
tirania da crença religiosa? O que ali estava à neros de carácter disfarçadas pela ação da
superfície era, de facto, a tirania da crença. peça ou pelas exigências do enredo. […]
Contra essa tirania, e em nome da liberdade, Subiu o pano. […] Principia a representar‑se
vão revoltar‑se a civilização e a razão, mas logo a Vida, peça d’um só ato […] Que grandes
estabelecem novas tiranias, usando a mesma atores tem a tragédia escrita por Deus. […]
nomenclatura, o que é natural, como filhas Que génios! Com que arte alguns represen-
dessa primeira crença. Só que nessa aparente tam o papel de honestos! […] Ao entrarem,
tirania da crença propagandeada pela “boa porém, no camarim que é o seu lar, passam a
imprensa” germinava também a liberdade da esponja pela face, e ficam o que eram: hipó-
sua contestação, o que era perfeitamente critas, falsos, aventureiros do destino. Outros
plausível, numa doutrina provinda de quem, abraçam a religião, tudo perdoam, tudo es-
como Jesus, não escolhia as companhias para quecem, amam os seus inimigos, se levam
comer. “Quando olhamos os esquemas de ci- uma bofetada na face direita entregam como
vilização (Ciência, Razão, Progresso, Repúbli- Cristo a face esquerda, aconselham a essência
ca, Moral e outras ‘entidades com maiúsculas do bem, guiam os fracos, choram a desdita
em estado de prostração’, segundo a expres- dos seus irmãos, mas finda a cena, recolhem a
são de Marcel Gaucher), verificamos que o bastidores, passam a esponja e lá ficam, no
B oa imprensa ¬ 453
que são: covardes, intriguistas de escada, espe- ver, no postulado ético da responsabilidade”
culadores e párias! Que exuberante é o Tea- (Id., Ibid., 40). Essa ética da responsabilidade
tro do Universo!”. Que questão se poderá co- deve ser exercida na busca e no exercício de
locar ao artigo escrito por quem acredita em valores absolutos, como a verdade, o bem, o
Deus quanto ao seu sentido? Como pode esse sagrado, a beleza, valores intemporais e inde-
Deus, origem do bem, encher o mundo destas pendentes da História, englobados numa
personagens que “representam o papel de ho- ética cuja consumação tornaria o mundo este-
nestos”, “hipócritas, falsos, aventureiros do ticamente harmonioso, o que contribuiria
destino”, ou que “abraçam a religião, tudo para a ressurreição de Deus, ou do bem abso-
perdoam, tudo esquecem, amam os seus ini- luto, como ideal a atingir em cada circunstân-
migos”, “aconselham a essência do bem”, para cia, sabendo habitar o tempo e o lugar.
depois, tendo recolhido aos bastidores, se re- Existe, a um tempo, a marca do efémero e do
velarem “intriguistas de escada, especulado- eterno. Quando a “boa imprensa” se concede
res e párias!”? Pode Deus ser o autor do “Tea- o direito de divulgar os valores em que acredi-
tro do Universo” com este tipo de personagens? ta e exclui o próximo por divergências confes-
Ou o autor entrou em contradição com a dou- sionais, ela comporta‑se como qualquer poder
trina que divulga? Coloca‑se aqui a questão da temporal, para o qual o que mais conta é a auto-
teodiceia, da justificação racional de Deus e ridade, e menos a revelação de que a doutrina
da sua coexistência com o mal, aporia da cul- cristã é filha. Mas quando, e apesar disso, ela é
tura ocidental e da cultura oriental. “O teólo- genuinamente crente nos valores que propaga,
go contemporâneo Maurice Zundel dizia, então, torna‑se num espaço de diálogo e supe-
com alguma ironia, que, se o mal existisse ra os muros do poder profano, literalmente o
realmente, Deus seria a sua primeira vítima, poder que está além e acima das barreiras que
quase fazendo suas as célebres palavras de dividem. Qualquer corrente ideológica, reli-
Stendhal, segundo as quais a única desculpa giosa ou filosófica que se coloca nas margens
de Deus em face do mal e do sofrimento só do universal e recusa o diálogo adquire carac-
poderia ser a Sua inexistência” (CORREIA, terísticas que a confundem com qualquer cor-
2006, 35). Contudo, o editorialista, católico, rente fundamentalista e, a breve trecho, acaba
não poderia ter subentendido essa ideia de por perder a possibilidade de construir o es-
que Deus, autor do teatro da vida, seria o res- paço em que todos se devem encontrar. Essa
ponsável do mal provocado pelas persona- recusa torna o conflito inevitável. Um cenário
gens da vida no palco do mundo, numa pará- que não tem de ser imaginado, seja quando
frase vicentina. O que ele critica é justamente se pensa nas fogueiras da Inquisição, seja nos
que o mal exista, não por vontade de Deus, campos de concentração de todos os lugares e
mas por ação das personagens, que são, na azimutes ou no apogeu da recusa da alteridade
realidade, a humanidade. Trata‑se da questão que foi a Segunda Guerra Mundial, onde, em
essencial do Homem colocado perante a res- nome de ideologias absolutas que se considera-
ponsabilidade de construir o seu destino, se- vam prenhes de razão, não se concedeu lugar
gundo o seu livre‑arbítrio e uma ética da res- ao espaço de diálogo e se cedeu o passo à lou-
ponsabilidade que não deixa ficar a teodiceia cura do desumano, de onde a justiça se afastou
desarmada perante esta questão: “a teodiceia ou foi afastada violentamente.
não ficou sem recursos. Com efeito, é possível Emmanuel Levinas exprime a exigência do
surpreender vários modelos teóricos que visam nosso tempo ao afirmar que a justiça só é jus-
mostrar que não existe qualquer incompatibi- tiça numa sociedade onde não exista distinção
lidade lógica entre a existência de Deus e o entre próximos e afastados, mas também onde
problema do mal”, tendo como base “o para- exista a impossibilidade de passar ao largo do
digma que é invocado por vários filósofos teís- mais próximo. No caso da “boa imprensa”, ela
tas contemporâneos e que se funda, a meu revela a sua visão do mundo, mas, na sua visão
454 ¬ B ocage , J osé V icente B arbosa du
singular, não deixa de especular, quer dizer, ver o rosto de Cristo em cada ser humano,
de espelhar o universal, visto que o singular situando‑se a frase na semântica do religioso
não deixa de ser uma face do poliedro, que é ou da metáfora, conforme a queira entender o
universal. E, descendo até ao mais local, a im- leitor, senhor último da palavra.
prensa católica madeirense teceu as linhas do Bibliog.: impressa: “A penitência”, Religião e Progresso, 6 dez. 1879, p. 1;
universal na sua diocese, até à mais humilde “Alemanha”, Pregador Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei, 6 dez. 1823,
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capela do mais recôndito lugarejo, no esconso ARON, Raymond, As Etapas do Pensamento Sociológico, 9.ª ed., Alfragide, Dom
do mais remoto cabeço. Afinal, aquilo que no Quixote, 2010; AZEVEDO, Joaquim, e RAMOS, José, Inventário da Imprensa
Católica Portuguesa entre 1820 e 1910, Lisboa, Centro de Estudos de História
séc. xxi se considera universal é o que se divul-
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ga em todo o globo a partir de um determina- onde Vão os Valores?, Lisboa, Instituto Piaget, 2006; Brado d’Oeste, 25 dez.
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do local. Aquilo que é local em cada momen-
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to está apenas à espera de uma oportunidade abr. 2006, pp. 35‑52; “Descanço semana”, Brado d’Oeste, 11 dez. 1909, p. 1;
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Não dizemos nós que as Sagradas Escrituras de um novo paradigma na cultura ocidental em Joel Birman e Emmanuel
não podem ser tomadas à letra? Todo o texto Lévinas”, Horizonte, vol. 6, n.º 12, jun. 2008, pp. 169‑179; LÉNINE, V. I., O Que
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e só assim ele pode atravessar a passagem do Revista Expresso, 6 set. 2014; “Miasmas d’alma. Estudo psycologico”, A Verdade,
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universal, que deve ser o objetivo de toda a ma- RUSS, Jacqueline, A Aventura do Pensamento Europeu: Uma História das Ideias
nifestação humana, se pode construir quando Ocidentais, Lisboa, Terramar, 1997; digital: FRANKLIN, Rúben Maciel, “Da
revolução, a modernidade e o progresso: a emergência da filosofia da história
não vemos em cada instante o sinal do eterno. em Kant, Hegel e Marx”, Revista de Teoria da História, n.º 6, dez. 2011, pp. 203
A espiritualidade é saber ver o universal no sin- ‑229: https://www.revistas.ufg.br/teoria/article/view/28984/16153 (acedido
a 21 jul. 2018); “On freedom of the press”, Marxists Internet Archive: https://
gular. Se se diz que o amante vê o ser que ama
www.marxists.org/archive/marx/works/1842/free‑press/index.htm (acedido
em todo o lado, e que se não virmos a verdade a 14 nov. 2018); REGO, António, “A dignidade da imprensa regional”, Ecclesia,
13 fev. 2007: http://www.agencia.ecclesia.pt/noticias/editorial/a‑dignidade
naquilo que é diferente é porque não estamos
‑da‑imprensa‑regional/ (acedido a 21 jul. 2018); RIBAS, Ana Cláudia, “A boa
suficientemente apaixonados, por não termos imprensa, a política e a família: os discursos normatizantes no jornal O Apóstolo
para Leyla os mesmos olhos de Majnun, então (1929‑1959)”, Revista Espaço Plural, n.º 24, 2011, pp. 96‑106: http://e‑revista.
unioeste.br/index.php/espacoplural/article/view/7240/5312 (acedido a 21 jul.
é porque temos um longo caminho a percor- 2018); SILVEIRA, Diego Omar, “A peleja pela ‘boa imprensa’: reflexões sobre os
rer entre o amor do ser singular que julgamos jornais da Igreja, a romanização dos costumes e a identidade católica no Brasil”,
9.º Encontro Nacional de História da Mídia, 30 maio‑1 jun. 2013: http://www.
amar – pessoa, pátria, cultura, língua – até po- ufrgs.br/alcar/encontros‑nacionais‑1/encontros‑nacionais/9o‑encontro‑2013/
dermos ver essa pessoa, essa pátria, essa cultura artigos/gt‑historia‑da‑midia‑impressa/a‑peleja‑pela‑201cboa‑imprensa201d
‑reflexoes‑sobre‑os‑jornais‑da‑igreja‑a‑romanizacao‑dos‑costumes‑e‑a
e essa língua em todas as pessoas, pátrias, cul- ‑identidade‑catolica‑no‑brasil (acedido a 21 jul. 2018).
turas e línguas, e então, e só então, estaremos
verdadeiramente apaixonados, porque atingi- Miguel Luís da Fonseca
mos o patamar do amor universal induzido a
partir do singular e a ele volvendo em cada di- Bocage, José Vicente Barbosa du
verso ser e em todos os seres.
A verdade é pura, branca e una, mas a sua José Vicente Barbosa du Bocage (1823‑1907)
singularidade constrói‑se a partir da pluralida- formou‑se em Medicina na Univ. de Coimbra,
de que a forma, pois o branco é a síntese das foi lente de Zoologia na Escola Politécnica de
sete cores do arco‑íris, o símbolo da aliança Lisboa e, posteriormente, foi nomeado dire-
entre o transcendente e o imanente. Ou seja, a tor da secção de Zoologia do Museu Nacio-
exclusão de qualquer uma das sete cores torna- nal de Lisboa. Como naturalista, é conhecido
ria impossível a unidade traduzida pelo bran- sobretudo pelos seus trabalhos em taxonomia
co. Assim, o universalismo só o pode ser se in- africana. Foi cofundador da Sociedade de
tegrar todos os matizes em que se realiza e que Geografia de Lisboa e sócio da Academia Real
o realizam. Ou, por outras palavras, é possível das Ciências e da London Zoological Society.
B ocage , J osé V icente B arbosa du ¬ 455
Em 1859, pede autorização para fazer uma Nos seus últimos anos de vida, continuou
viagem pela Europa e visitar outros museus, com os seus estudos sobre a fauna portuguesa
a fim de estabelecer colaborações, aprender e ainda publicou, em 1903, a Contribution à la
como outras instituições semelhantes organi- Faune des Quatre Îles du Golfe de Guinée, embo-
zavam as suas coleções e, também, adquirir ra já tivesse ficado cego. Nesse mesmo ano, foi
mais espécimenes que ajudassem a melho- homenageado com a medalha de honra da So-
rar e completar as coleções portuguesas. Bar- ciedade de Geografia, numa sessão presidida
bosa du Bocage estabelece, assim, as linhas pelo Rei D. Carlos. Em 1905, a secção de Zoo-
orientadoras do museu: aumentar a diversi- logia do Museu Nacional de Lisboa foi nomea-
dade de exemplares de determinados gru- da Museu José Vicente Barbosa du Bocage em
pos taxonómicos que melhor representem a sua honra.
fauna portuguesa continental e das posses- Entre a sua vasta produção científica,
sões do ultramar. Em 1863, publica a lista dos contam‑se as diversas instruções práticas que
mamíferos e répteis de Portugal na Revue et escrevera no Museu Nacional de Lisboa sobre
Magasin Zoologie de Paris, e em 1866 funda o como preparar e organizar coleções zoológi-
Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Na- cas. Estas instruções eram um conjunto de re-
turaes no seio da Academia das Ciências, tam- gras com o intuito de disciplinar os viajantes
bém com a finalidade de o intercambiar com e investigadores sobre como recolher e enviar
revistas periódicas de outros museus e insti- exemplares de modo sistematizado ao museu.
tuições científicas. Estes manuais foram enviados não só aos dife-
Barbosa du Bocage é nomeado membro rentes museus portugueses, mas também aos
do Conselho Superior de Instrução Pública museus localizados nas regiões do ultramar.
em 1866, cargo que ocupará até à dissolução Um exemplar destas instruções encontra
deste Conselho. Em 1875, é nomeado vice ‑se, inclusivamente, no Catalogue of Books and
‑presidente da Academia Real das Ciências, Manuscripts publicado no British Museum de
tendo ocupado um lugar distinto na comis- Londres em 1903.
são central permanente de Geografia, sendo José Vicente Barbosa du Bocage recebeu inú-
depois nomeado presidente da Sociedade de meras honras e condecorações: Grã‑Cruz das
Geografia de Lisboa. Em 1877, publica Orni- ordens de S. Tiago e do Mérito Naval, de Espa-
thologie d’Angola e, nesse mesmo ano, parte nha, e de Francisco José, de Áustria; comenda-
de Lisboa para África na expedição de Serpa dor das ordens da Rosa, do Brasil, e de Isabel
Pinto, Capelo e Ivens. Esta expedição tinha a Católica, de Espanha, e oficial da Legião de
como objetivos explorar as regiões entre An- Honra, de França. Tem o seu nome numa ave-
gola e Moçambique, assim como estudar as nida em Lisboa (Av. Barbosa du Bocage), na
bacias hidrográficas de Zaire e Zambeze. Em zona do Campo Pequeno. Morreu em Lisboa,
1879, Barbosa du Bocage é eleito deputado a 3 de novembro de 1907.
da nação e faz parte das comissões de Instru-
ção Pública, Saúde e Negócios Estrangeiros e Obras de José Vicente Barbosa du Bocage: Memoria sobre a Cabra Montês
da Serra do Gerês, Apresentada e Lida à Primeira Classe da Academia Real das
do Ultramar. Em 1881, reforma‑se como lente Ciências (1857); Ornithologie d’Angola (1877); Contribution à la Faune des Quatre
proprietário e toma posse como par do Reino Îles du Golfe de Guinée (1903).
Boletins
Raphael Bluteau, no seu Vocabulário Portuguez
& Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, da-
tado do séc. xviii, mais especificamente no
vol. ii, dá uma definição de “boletim” como
sendo um “recado militar por escrito”, e refere,
a esse propósito, duas citações em que o termo
é empregado em contextos militares. A primei-
ra, da autoria de Brito, é de uma obra intitu-
lada Guerra no Brasil, em que, num contexto
de uma batalha, um “tambor” (mensageiro),
na presença de um general, lhe deu um papel,
em cuja margem estava escrito “boletim”, no
qual havia uma mensagem dos soldados. A se-
gunda citação faz menção do uso do termo por
Francisco Manuel de Melo na obra Epanáfora
Triunfante. Nesta, o autor escreve que o gene-
ral da Armada Portuguesa, aproveitando a dis-
córdia do lado inimigo, ordenou que “se pas-
sassem, e repartissem Boletins, escritos nas três
línguas de Holanda, Inglaterra, e França; em
que se convidasse em prémio, e liberdade aos
soldados, que se reduzissem a nosso partido” Fig. 1 – Arquivo Histórico da Madeira (1990).
(MELO, 2007, 513). Noutra página, percebe
‑se que os “boletins” ordenados pelo general
da Armada tiveram o efeito pretendido, uma deu “o grande surto da imprensa política e no-
vez que, nas palavras do mesmo autor, acaba- ticiosa”, no contexto resultante da primeira in-
ram “passando‑se aos Portugueses muitos dos vasão francesa e do esforço empreendido pelas
soldados estrangeiros” (Id., Ibid., 523). autoridades portuguesas em “desenvolver uma
Depreendemos destas citações que o bole- atividade de propaganda” (TENGARRINHA,
tim, na sua significação original, era um escri- 2013, 161). A imprensa então surgida era pa-
to militar, utilizado para a troca de mensagens trocinada tanto pelo governo como pela inicia-
entre as altas patentes do Exército com infor- tiva privada, e ajudou a constituir o primeiro
mação militar para os soldados. grande “espaço público de debate político” em
O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa Portugal. Este espaço era, apesar de tudo, limi-
elucida que o termo “boletim” é originário do tado e circunscrito aos interesses nacionais e
italiano “bolletino” ou “bulletin”, diminutivo do governo, estando a liberdade de imprensa
de “bolleto/boleto”, que teve origem no étimo fortemente cerceada, sendo proibida qualquer
latino bŭlla, explicando que este termo serve reação contra o Governo português ou mani-
para designar “um escrito breve, dado por festação a favor dos ideais liberais.
competente autoridade, com certo fim”, indi- Foi este o contexto em que apareceu, pela
cando, como anteriormente referimos, que foi Impressão Régia, o Boletim, impresso em Lis-
Francisco Manuel de Melo quem no séc. xvii boa, que segundo Tengarrinha era “de carác-
utilizou pela primeira vez o termo na língua ter noticioso”, não havendo mais informação
portuguesa (MACHADO, 1995, 445). sobre esta folha informativa. Atendendo ao
José Tengarrinha explica que foi no princípio aparecimento deste Boletim, será muito pro-
do séc. xix, mais precisamente em 1809, que se vavelmente no princípio do séc. xix que o
458 ¬ B oletins
boletim, enquanto documento de exclusiva na- Açores e Madeira, no Brasil e até nas provín-
tureza militar e informativa, passa a servir tam- cias ultramarinas”, recomendando que fosse
bém os interesses do Estado e a consequente realizado um esforço para que estas publica-
esfera dos assuntos públicos. ções tivessem uma maior circulação, propon-
A Memoria ácerca das Imprensas do Governo, do o envio de exemplares para várias bibliote-
Obras Subsidiadas pelo Estado, Bibliothecas, Archi- cas (Id., Ibid., 18).
vos, Boletins das Provincias Ultramarinas Periodi- Atendendo às palavras de Travassos Valdez,
cos e Livros Publicados no Ultramar, Bibliographia é provável que a ideia de editar uma folha no-
Ultramarina, da autoria de Lúcio Travassos Val- ticiosa oficial do Estado em Portugal tenha
dez, lança algumas luzes sobre a legislação e origem no ultramar, com a suprarreferida ne-
impressão dos Boletins subsidiados pelo Esta- cessidade de as autoridades governamentais
do, ainda que o autor se limite a analisar os consolidarem e fomentarem a influência e o
boletins publicados no ultramar. Lúcio Travas- poder em terras longínquas que estavam a ser
sos Valdez elucida que foi graças aos esforços colonizadas, dando a conhecer e, ao mesmo
do visconde de Sá da Bandeira e de António tempo, a promover o trabalho realizado nas
Manuel Lopes Vieira de Castro que foi intro- colónias, garantindo assim, por meio do bole-
duzida a imprensa nas províncias ultramari- tim, a presença e a autoridade, bem como uma
nas, designadamente através do decreto da aproximação à população que procurava colo-
reforma administrativa do ultramar de 7 de de- nizar aquelas terras, que podia ser mais facil-
zembro de 1836, que ordenava que em todas mente ignorada. É curioso notar que o termo
as referidas províncias se imprimisse um Bole- “boletim” aparece, precisamente, citado no
tim Official, que devia conter “as ordens, peças, contexto de guerra no império ultramarino
oficiais, e tudo o mais que fosse do interesse português, na reconquista de Pernambuco, no
público” (VALDEZ, 1880, 13). As dificuldades Brasil.
de execução desta determinação, que levou 15 Na ilha da Madeira, o primeiro boletim a
anos a acontecer em Moçambique e quase 20 ser editado por um órgão oficial data de 1847,
em São Tomé, explicam que se volte a subli- da responsabilidade da Junta Governativa do
nhar a necessidade de se publicar um Boletim Distrito do Funchal, fruto do contexto revolu-
Official conforme consta da lei 1 de dezembro cionário que então Portugal vivia. Na sequên-
de 1875. cia dos levantamentos da Revolta da Maria da
As disposições do decreto de 1836 deter- Fonte contra as reformas de Costa Cabral, e da
minavam que a redação do Boletim era da Patuleia, revolta originada no Porto que levou
responsabilidade do secretário do governo. ao pronunciamento da Junta do Porto e à guer-
Outra determinação de 14 de fevereiro de ra civil, o país ficou dividido entre cartistas, por
1855 dispunha sobre a regulação e os moldes um lado, e a aliança paradoxal dos setembris-
nos quais os boletins deveriam ser redigidos, tas e dos absolutistas, por outro. A Madeira,
ordenando que fossem publicados documen- neste contexto, tal como outras zonas do país,
tos históricos importantes existentes nos res- aderiu, a 29 de abril de 1847, à Revolta da Pa-
petivos arquivos. tuleia, liderada por um grupo de revolucioná-
Os boletins ultramarinos tornaram‑se textos rios que formou uma junta governativa, tendo
importantes pelos conteúdos neles publica- substituído o então governador da Madeira
dos, tais como, nas palavras de Valdez, “docu- José Silvestre Ribeiro. Este boletim intitulava
mentos valiosos, descrições de países, roteiros ‑se, à semelhança dos boletins publicados nas
de viagem, histórias, estatísticas, tratados, etc.” colónias ultramarinas, Boletim Official. Não se
(Id., Ibid., 16). sabendo a data da edição do primeiro núme-
Travassos Valdez assinala, ainda, que os bo- ro, pensamos que foi muito pouco tempo de-
letins do governo são em geral “pouco conhe- pois do pronunciamento da Junta Governati-
cidos no continente do reino, nas ilhas dos va do Funchal, já que o segundo número data
B oletins ¬ 459
Se alguns destes boletins tiveram uma pre- Dos boletins relativos às instituições despor-
sença significativa e assídua resultante da im- tivas, temos conhecimento de um, quinzenal,
portância e força das instituições que os patro- do Club Sport Marítimo, editado em 1952 por
cinavam, outros nem tanto, circunscrevendo a Manuel Rodrigues Gouveia.
sua publicação a um curto espaço de tempo. Da parte de algumas escolas madeirenses
Entre os boletins de maior peso, contam‑se partiu a iniciativa de publicar um boletim,
as folhas editadas pelos órgãos governativos re- como aconteceu, e.g., com o Boletim Biblio-
lativos ao poder central, entre os quais se des- gráfico, Escola Secundária Francisco Franco, edi-
taca o boletim editado pela Junta Geral do Dis- tado por esta escola secundária, em 1982; o
trito Autónomo do Funchal entre janeiro de Gente Nova, boletim mensal da Escola Salesia-
1953 e novembro de 1974, tendo sido publica- na de Artes e Ofícios dirigido pelo P.e David
do mensalmente. No primeiro número pode Bernardo, em 2003; e o Ideias Vivas, da Esco-
ler‑se que a Junta Geral, ao editar o boletim, la de Santana B+S Bispo D. Manuel Ferreira
tinha por objetivo estreitar o contacto com Cabral.
os madeirenses e informá‑los sobre a vida ad- No que aos boletins de carácter eclesiástico/
ministrativa da Junta Geral do Funchal, para religioso diz respeito, contam‑se algumas pu-
assim “sentir os seus anseios e dar realização às blicações madeirenses sob a égide da Diocese
suas aspirações” (Boletim da Junta Geral do Distri- do Funchal, que tiveram, no início do séc. xx,
to do Funchal, 1953, 1). Este boletim tinha um assídua publicação e continuidade. Como já
suplemento dedicado à agricultura, publicado mencionámos anteriormente, foi editado o
entre 1958 e 1974. Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira, sendo o
Em anos mais recentes, foram publicados al- primeiro número datado de 1 de janeiro de
guns boletins que partiram da iniciativa das se- 1901 e o último de 15 de janeiro de 1912.
cretarias regionais, e.g., o boletim da Direção
Regional do Trabalho, editado em 1982, sendo
relançado novamente em 2003 um boletim in-
titulado Prios. Em 2000, a Secretaria Regional
da Educação editou também o seu primeiro
boletim, exemplo seguido, também, pela vice
‑presidência do Governo regional, iniciando
a publicação de um boletim informativo em
2006.
Relativos ao poder local, a partir dos finais
do séc. xx, as diversas câmaras municipais da
ilha da Madeira, e inclusive algumas das suas
freguesias, iniciaram a publicação de boletins,
o que muito contribuiu para a popularização
deste formato no espaço público dos municí-
pios. Apenas para mencionar alguns, pela sua
regular publicação, destaque-se o Boletim da Câ-
mara Municipal do Funchal, lançado em 1985, o
Boletim Municipal de Santa Cruz, em 1987, o Bole-
tim Municipal de Câmara de Lobos e o Boletim Mu-
nicipal de São Vicente, em 1995. De entre as jun-
tas de freguesia madeirenses que publicaram
boletins, destacam‑se a Junta de Freguesia do
Porto da Cruz, em 1989, e a Junta de Freguesia Fig. 4 – Boletim da Direcção Geral dos Edificios e Monumentos
de Santa Maria Maior, em 1993. Nacionais, n.º 84 (jun. 1956).
462 ¬ B oletins
Nesse mesmo ano, a 1 de março de 1912, Algumas paróquias também editaram os seus
foi editado o Boletim Ecclesiastico da Madeira, boletins, como aconteceu, e.g., com o bole-
sendo o diretor, proprietário e editor o P.e M. tim da paróquia de Santo António, que tinha
F. Camacho, e estando a redação e a admi- como diretor e editor o P.e Fernando Augus-
nistração a cargo da Câmara Eclesiástica do to da Silva e se publicou entre 8 de março de
Funchal, tendo sido impresso na Typografia 1914 e 22 de fevereiro de 1915, tendo um total
Camões. O primeiro número deste boletim de 24 números, ou, ainda, o boletim da paró-
inicia‑se com uma exortação do cónego da quia de Santa Maria Maior, intitulado O Sino de
Sé do Funchal e vigário capitular da Dioce- Santa Maria.
se em sede vacante, António Manuel Pereira Ainda no âmbito eclesiástico, surgiu a edi-
Ribeiro, apelando ao ânimo dos fiéis que “so- ção de publicações associadas a congregações
frem” com “os atentados cometidos contra a e causas religiosas, de que são exemplo o bo-
nossa sacrossanta [sic] Religião, as persegui- letim trimestral dedicado a Mary Jane Wilson,
ções movidas contra a santa Madre Igreja e os intitulado A Boa Mãe – Irmã Maria de S. Fran-
seus ministros” (Boletim Ecclesiastico da Madei- cisco Wilson, que ainda se publica, e o bole-
ra, 1 mar. 1912, 2). A edição deste boletim foi tim consagrado à causa da beatificação da M.e
uma resposta da Diocese do Funchal às con- Virgínia Brites da Paixão, intitulado Boletim
sequências da implantação do regime repu- da Madre Virgínia: Mensageira do Imaculado Cora-
blicano em Portugal, nomeadamente à lei da ção de Maria, iniciado em 2008.
separação do Estado e da Igreja, que deixou Com presença assídua no panorama edito-
a Diocese e os padres numa “tristíssima situa- rial madeirense, encontravam‑se os boletins
ção” (Ibid., 6). Ao mesmo tempo, há neste bo- dedicados aos assuntos agrícolas e agropecuá-
letim uma intenção de aproximar e de unir os rios. Sendo a agricultura um tema de suma
fiéis aos seus párocos e à Diocese, num tempo importância para os madeirenses, base da
conturbado que a Igreja então vivia, aconse- economia e sustento de muitas famílias, os bo-
lhando o Cón. António Manuel Pereira Ribei- letins dos órgãos governativos incluíam uma
ro aos párocos a leitura do boletim “à estação secção dedicada à agricultura, expondo os de-
da missa conventual” (Ibid., 7). Este boletim safios e informação útil aos agricultores. Nos
tinha uma periodicidade mensal, e a sua pu- inícios do séc. xx, surgiu o mais antigo bole-
blicação teve a sua última edição em 1919. tim dedicado em exclusivo à temática agrícola
Outro boletim diocesano que se destacou publicado na Madeira, já se encontrando em
foi A Vida Diocesana, boletim da Diocese do circulação um boletim agrícola a nível nacio-
Funchal, propriedade da Empresa da Vida nal da responsabilidade da Direção Geral da
Diocesana. A sua publicação foi iniciada a Agricultura.
3 de junho de 1921, e tinha como diretor Com efeito, a 17 de fevereiro de 1924 foi edi-
e editor o Cón. Dr. Manuel Gomes Jardim, tado o Boletim Agrícola, folha informativa da Es-
estando a administração a cargo da Câmara tação Agrária do Funchal, com periodicidade
Eclesiástica, sendo impresso nas oficinas ti- quinzenal, dirigida pelo engenheiro agróno-
pográficas de O Correio da Madeira. A Dioce- mo Dr. Aurélio Botelho Moniz, que teve a últi-
se do Funchal seguia assim o modelo adota- ma edição a 1 de maio desse mesmo ano.
do por “todas as Dioceses bem organizadas”, Outro boletim que achamos de relevo men-
publicando também o seu boletim oficial, cionar neste âmbito, e por todo o contexto que
sendo este boletim a “voz autorizada” que lhe está associado, e que reporta à Revolta do
une hierarquicamente os milhares de cris- Leite, é o boletim da Junta dos Lacticínios da
tãos madeirenses à Diocese (A Vida Diocesa- Madeira, intitulado Boletim de Informação e Publi-
na, 3 jun. 1921, 1). Existem no Arquivo Re- cidade, editado entre 1938 e 1953. Este boletim
gional da Madeira exemplares deste boletim pretendia ser um espaço de análise e estudo
até 1 de fevereiro de 1925. sobre os problemas e desafios que a indústria
B oletins ¬ 463
tendo em Álvaro Rodrigues de Azevedo e Fer- a compreensão por parte dessas mesmas ins-
nando Augusto da Silva os principais arau- tituições de que, mais do que ser um edifício
tos da necessidade de criar uma “revista em em pedra, uma determinada instituição existe
que sejam transcritos documentos inéditos de porque tem capacidade de fazer chegar as suas
valor histórico (e onde também se publica- ideias e valores à sociedade.
riam artigos de carácter arqueológico e artís-
Boletins: ACIF – Boletim da Associação Comercial e Industrial do Funchal,
tico)” (Arquivo Histórico da Madeira, 1931, 2).
1982‑1998; O Archivista, 7 dez. 1850‑27 dez. 1850; Arquivo Histórico da
Este Boletim tem a particularidade de ser ante- Madeira: Boletim do Arquivo Distrital do Funchal, 1931‑1939; 1949‑1951; 1958
rior à instalação do próprio Arquivo Histórico ‑1960; 1962; 1964; 1972‑1974; 1990; 2013; Assicom – Boletim (Associação dos
Industriais de Construção da Madeira), 1980; Associação Cultural Encontros
da Madeira. da Eira: Uso e Costumes da RAM, 2008; Biodiversidade e Natureza, 2015‑2016;
Sob a égide do Museu Municipal do Funchal A Boa Mãe: Irmã Maria de S. Francisco Wilson, Boletim Trimestral, 1989‑2018;
Boletim Agrícola, 2003; Boletim Bibliográfico [da] Escola Secundária Francisco
(História Natural), foi publicado um boletim Franco, 1982; Boletim Climatológico do Funchal, Observatório do Infante D. Luís,
de vocação científica de estudo da fauna mari- 1939‑1945; Boletim Comercial da Madeira, 1929‑1930; Boletim da Casa‑Museu
Dr. Horácio Bento de Gouveia, 1998‑2007; Boletim da Junta Geral do Distrito
nha madeirense, tendo o seu primeiro número Autónomo do Funchal, 1953‑1973; 1974; Boletim da Madre Virgínia: Mensageira
vindo a lume em agosto de 1945, editado pela do Imaculado Coração da Madeira, 2008; Boletim de Informação dos Centros
de Abastecimento Agrícola da Madeira, 1999‑2005; Boletim de Informação e
Câmara Municipal do Funchal. Este boletim Publicidade, 1938; 1940; 1950‑1952; 1954; Boletim do CEN, 1995‑1997; 1999;
constituiu um importante meio de divulgação Boletim do Centro Monarquico da Madeira, ago. 1923‑nov. 1923; Boletim do
Clube Filatélico da Madeira, 1965; Boletim do Districto Administrativo do Funchal,
do conhecimento natural e da biodiversidade 1 mar. 1862‑19 dez. 1863; Boletim do Museu Municipal do Funchal, 1945;
do mar da Madeira. 1956‑1970; 1972‑1976; 1980; 1982‑1996; 1999‑2000; 2002‑2006; 2008‑2009;
Boletim Ecclesiastico da Madeira, 1 mar. 1912-1 fev. 1918; Boletim Informativo,
No âmbito das artes plásticas, em maio de
2000; Boletim Informativo – Antral – da Delegação Autónoma da Madeira,
1979 surge o Boletim do Instituto Superior de Artes 1983; Boletim Informativo da Câmara Municipal da Calheta, 2002; Boletim
Plásticas da Madeira, tendo como diretor e re- Informativo da Direcção Regional do Trabalho, 1982; Boletim Informativo da
Junta de Freguesia de Santo António, 1995; Boletim Informativo da Sociedade de
dator António Gorjão, na redação Isabel Santa Desenvolvimento da Madeira, 1998‑1999; Boletim Informativo da Universidade
Clara e na orientação gráfica Maurício Fernan- da Madeira, jul. 2005‑mar. 2009; Boletim Informativo da ZMM, 2006; Boletim
Informativo O Curioso, 1999‑2004; Boletim Judicial, Orgão dos Empregados
des e Tolentino de Nóbrega. A edição deste bo- Judiciaes da Ilha da Madeira, 22 nov. 1877‑11 maio 1878; Boletim Mensal das
letim no meio editorial madeirense pelo Ins- Observações Meteorológicas no Arquipélago da Madeira, 1934‑1978; Boletim
Mensal Diocesano da Obra de S. Francisco de Sales: para Defeza e Conservação
tituto Superior de Artes Plásticas da Madeira da Fé na Diocese do Funchal, 1896‑1900; Boletim Municipal da Câmara
assumia vários objetivos, quer na sua compo- Municipal da Ponta de Sol, 2009; Boletim Municipal da Câmara Municipal
de Câmara de Lobos, 1995‑1998; 2000‑2003; 2007‑2010; Boletim Municipal
nente pedagógica, quer como meio de divulga- da Câmara Municipal do Funchal, 1985‑1993; Boletim Paroquial de Santa
ção das atividades, ao mesmo tempo que, num Luzia, 1992‑1996; Boletim Semanal: Delegação Regional da Madeira Banco de
Portugal, 1985; Bolletim Official, 20 ago. 1846‑15 maio 1847; Buzico: Boletim da
sentido mais lato, se configurava como uma re-
Comunidade Educativa de S. Vicente, 2008; 2010‑2011; O Camacheiro: Boletim
vista de cultura. Informativo da Casa do Povo da Camacha, 2003; Centro de Estudos de História
Desde os fins do séc. xix e até aos nossos do Atlântico (CEHA): Boletim Informativo, 1998; 2001; 2004; 2006; Conservação
e Natureza: Boletim Informativo do Serviço do Parque Natural da Madeira,
dias, o boletim conquistou um espaço impor- 2006‑2010; 2012‑2013; O Corvo: Boletim Informativo da Câmara Municipal de
tante na forma como as diversas instituições, São Vicente, 1993; 1995‑2001; CRIMA – Boletim Semanal Centro Regional de
Informação Mercados Agrícolas, 1988‑2001; Dar Vida aos Anos: Boletim dos
tanto públicas como privadas, comunicam Ginásios da Câmara Municipal do Funchal, 2003; O Districto do Funchal, 24 maio
com um determinado público, respondendo 1877‑24 mar. 1878; O Domingo Catholico, fev. 1885‑dez. 1889; Educação Especial,
1984; Espaço Arte: Boletim do Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira,
às exigências de uma sociedade em constante 1979‑1981; 1987‑1990; O Funchalense, 3 maio 1847‑27 jun. 1847; A Gaivota:
procura por informação especializada e per- Boletim Escolar, 2000; Gente Nova: Boletim Mensal da Escola Salesiana de Artes
e Ofícios, 2002‑2004; Ideias Vivas, Clube de Jornalismo, Boletim, 2002‑2003;
sonalizada. Com o advento da era digital, os 2009‑2011; O Jovem: Boletim Interno da Juventude Evangélica da Madeira, s.d.;
boletins renascem sob a forma anglo‑saxónica O Marítimo: Boletim Quinzenal do Club Sport Marítimo, 1952; Museu Quinta das
Cruzes: Boletim, 2004; 2006; 2008; 2010; 2012; Museu Quinta das Cruzes: Boletim
da newsletter, mantendo em tudo a função
Infantil, 2008; 2010; Notícias Horários: Boletim Informativo, 2004; A Ordem, 5
original. jan. 1852‑1 set. 1860; Parochia de Santo Antonio do Funchal, 1914‑1915; Porto
Os boletins anteriormente descritos mos- Santo: Boletim Municipal, 2000; PRIO: Boletim Informativo, 2003; Protecção Civil:
Boletim, 2010; A Quinzena Religiosa, 1 jan. 1901‑15 jan. 1912; Rotary Clube do
tram, por um lado, no particular contexto da Funchal: Boletim Mensal, 2005; 2008; Semanário Official, 6 maio 1854‑15 fev.
ilha da Madeira, o pioneirismo comunicacio- 1860; O Sino de Santa Maria: Boletim Paroquial de Santa Maria Maior, s.d.;
Sorveira: Boletim Informativo do Parque Ecológico do Funchal, jul./ago. 2003‑jun.
nal entre as mais variadas instituições e um 2008; Suplemento Agrícola do Boletim Distrital, 1958‑1974; Vice‑Presidência:
determinado público, e, por outro, também Boletim Informativo, 2006; Vida Diocesana, 1 jul. 1921‑abr./jun. 1925.
B olton , W illiam ¬ 465
Carlos Barradas
Bolton, William
William Bolton (c. 1650‑1750) foi um comer-
ciante de Warwickshire que, beneficiando de
uma lei britânica de 1663 cujo objetivo era
aumentar o capital proveniente do comércio The Bolton Letters. The Letters of An English Merchant in Madeira,
vol. II (1976), edição de John Blandy.
com as colónias, se transferiu para a Madeira
por volta de 1695, onde se instalou como co-
merciante e banqueiro. As cartas de William Bolton são considera-
Desde a sua chegada à Ilha, e nos 20 anos das pelos historiadores muito importantes
em que aí permanecerá, William Bolton man- como documentos primários para o conheci-
tém uma constante correspondência com os mento do comércio atlântico e da economia
seus associados em Londres, Robert, William e da Madeira, mas também para o quotidiano
Gyles Heysham. Escritas entre 1695 e 1714, as da época, do qual o autor dava conta. Richard
cartas originais foram depositadas na Kenneth W. Clement afirma que o conteúdo da corres-
Spencer Research Library da Univ. do Kansas, pondência é fundamental para a investigação,
nos EUA. Em 1928, André L. Simon, fundador já que constitui um testemunho não só para a
e presidente da Wine & Food Society, publicou história económica do arquipélago, mas tam-
em Londres parte do acervo, com o título The bém dos “day‑to‑day details of political news,
Bolton Letters: The Letters of An English Merchant naval movements, and trade gossip [pormeno-
in Madeira, 1695‑1714. Simon planeava publi- res das notícias políticas do dia a dia, da ati-
car dois volumes, mas deu à estampa apenas o vidade naval e dos mexericos do comércio]”
primeiro, que inclui as cartas datadas de 1695 (CLEMENT, 1989, 196). As cartas de Bolton
a 1700. Em 1960, Graham Blandy fez uma edi- são também importantes para o estudo da cul-
ção a stencil do restante conjunto de cartas, que tura do vinho, sendo citadas no livro do presti-
compreende o período de 1701 a 1714. Alguns giado enólogo inglês Richard Mayson, Madeira:
pequenos excertos das cartas do volume editado The Islands and Their Wines, pelas informações
por André L. Simon foram traduzidos e publica- sobre a qualidade e quantidade das colheitas
dos por António Marques da Silva, em Passaram em diferentes anos (MAYSON, 2015, 7). Falta,
pela Madeira, em 2008. no entanto, como sublinha Clement, uma
466 ¬ B ombardeamentos , P rimeira G uerra M undial
edição crítica e académica da totalidade das ao qual se podem ainda juntar os momentos
cartas. O estudioso aconselha também a leitu- em que se registou ou houve apenas notícia da
ra cruzada com o Letter‑Book de Daniel Prior, atividade dos U‑boats no mar do arquipélago,
capitão do brigue Abigail, de Boston, que na com todas as consequências, políticas e milita-
déc. de 1790 se dedicou ao comércio no Atlân- res, que daí resultaram.
tico, podendo os investigadores, assim, adqui- A canhoneira francesa La Surprise, em serviço
rir uma imagem mais completa e documenta- de escolta, e o vapor Dácia, usado na reparação
da do comércio que unia a Europa à América. de cabos submarinos, chegaram a 3 de dezem-
Bolton dá conta de um comércio florescente bro de 1916, pelas 8.30 h, provenientes de Gi-
que passava pela Madeira: o vinho seguia da braltar. A missão do Dácia era desviar para Brest
Ilha para as Índias Ocidentais, para as colónias o cabo alemão da América do Sul. No Funchal,
americanas, a Inglaterra e a Irlanda, sendo já se encontrava então o vapor armado francês
também na Ilha abastecidos os navios com pro- Kanguroo, desde 24 de novembro, proveniente
dutos alimentares frescos e manufaturados; de de Bordéus e utilizado para o transporte e para
Inglaterra, chegavam o trigo e os produtos de a reparação de submersíveis. Seguindo‑os, e à
lã, seda e algodão, o mobiliário e produtos ma- sua espera, estava o U‑38, sob o comando do
nufaturados; da Irlanda, provinham a carne e Cap.‑Ten. Max Valentiner.
os lacticínios; da Terra Nova, o peixe; de Bos- A primeira explosão deu‑se cerca de 30 mi-
ton e Nova Iorque, o óleo de baleia e as ma- nutos depois de o Dácia e a Surprise terem fun-
deiras; da Virgínia e das Carolinas, o arroz e o deado, em frente ao cais. A canhoneira foi a
milho; das Índias Ocidentais, o açúcar.
É igualmente interessante a rivalidade exis-
tente entre os comerciantes ingleses, de que
dá conta, chegando mesmo Bolton a ser preso
por problemas criados pelos seus rivais (SILVA,
2008, 43‑47).
Obras de William Bolton: The Bolton Letters. The Letters of An English Merchant
in Madeira. 1695‑1714 (2 vols., 1928 e 1960).
Bombardeamentos, Primeira
Guerra Mundial
Durante a Primeira Guerra Mundial, a baía e
a cidade do Funchal foram atingidas por dois
bombardeamentos realizados por submarinos
alemães: o primeiro ocorreu na manhã de 3 de
dezembro, pelo U38; o segundo, na manhã de
12 de dezembro de 1917, pelo U156. O Fun-
chal foi o único espaço português no hemisfé-
Fig. 1 – Ataque do submarino alemão ao porto do Funchal
rio norte a sofrer um ataque de tal dimensão, a 3 de dezembro de 1916 (Ilustração Portugueza, jan. 1917).
B ombardeamentos , P rimeira G uerra M undial ¬ 467
Fig. 3 – Boias dos navios Kanguroo e SS Dácia e da canhoneira Surprise, afundados no Funchal a 3 de dezembro de 1916
(Museu da Liga dos Combatentes).
causa deste atraso, que ainda mais se eviden- Depois, vindo de oeste, surgiu o Mariano de
ciou devido ao bombardeamento, verificou‑se Carvalho, que começou a ripostar a 700 m. Esta
uma acesa polémica entre os capitães de ar- ação concertada contribuiu para que o subma-
tilharia e os do porto. O assunto chegou aos rino se afastasse.
periódicos e a peça acabou por ser montada As baterias (Qts. Vigia, das Neves e S. Tiago)
ainda em dezembro de 1916. não participaram no confronto, justificando‑se
Cumprida a missão, o U‑38 rumou para o comandante militar, mais tarde, com a dis-
Leste, tendo sido visto na Ponta de S. Louren- tância a que se encontrava o submarino e com
ço, quando seguia em direção ao Porto Santo. a proximidade a que dele estavam os vapores
Toda a operação durou cerca de duas horas e portugueses. A conhecida imprecisão de tiro
cifrou‑se na morte de 34 tripulantes da Surprise, e a escuridão que ainda se verificava também
de 5 carregadores de carvão e de 1 emprega- contribuíram para aquela opção.
do da firma Blandy. Em terra, os feridos (dois Na cidade, os alvos foram o cabo submarino,
praças e um sargento) resultaram do incidente a estação de TSF (contígua ao Convento de
que se referiu com uma das peças da Qt. Vigia. S.ta Clara), o palácio de S. Lourenço, as plata-
Os prejuízos nos edifícios não foram signifi- formas de artilharia e o forte de S. Tiago. Ape-
cativos, e apenas a estação do cabo poderia ter sar de tudo, nenhum dos alvos foi seriamen-
sido gravemente atingida, se não tivesse sido te danificado, e as consequências mais graves
protegida por uma casa alta, que ficava à sua foram a morte de cinco civis, os vários feridos
frente, onde embateu um dos projéteis. e o pânico generalizado. Pela relativa preci-
O segundo bombardeamento, a 12 de de- são do tiro, aumentaram as suspeitas de que os
zembro, foi substancialmente diferente do submarinos alemães estariam a receber infor-
primeiro. Começou mais cedo, pelas 6.20 h, e mações provenientes da Ilha.
visou apenas alvos terrestres. A ação só demo- Logo após o bombardeamento de 1917,
rou 30 minutos, e o U‑156, sob o comando do foi proibida a iluminação noturna, o que se
Cap.‑Ten. Konrad Gansser, usou peças de cali- manteve até ao fim da guerra, e nomeado
bre 120 e 150 mm de tiro rápido. um novo governador civil, Carlos José Bara-
O submarino foi avistado em frente ao forte ta Pinto Feio. Em Lisboa, foi criada uma co-
de S. Tiago, por pescadores, a duas léguas de missão com o objetivo de apresentar uma
distância de terra. Dado o alerta, ainda assim, proposta para a remodelação da defesa das
quando o Dekade I iniciou a perseguição, já o ilhas. Para o Funchal, foi enviada, entretanto,
submarino efetuara entre 40 a 50 disparos. uma companhia de artilharia de guarnição.
B ombardeiros ¬ 469
Contudo, um pouco à semelhança do que Ainda assim, tentou‑se delinear uma aproxi-
sucedera em 1916, a maior consequência do mação da Madeira aos EUA e com ela a cons-
bombardeamento foi ter apressado o pedido trução de um novo paradigma militar, que re-
de ajuda aos EUA, por intermédio do agen- presentava o início do fim da multissecular
te consular na Madeira, Humberto dos Pas- inserção do arquipélago na esfera de influên-
sos Freitas, que solicitou ao chefe da divisão cia britânica. Depois, em tempo de crise, re-
naval norte‑americana, estacionada nos Aço- gressaram, como já sucedera no passado, a
res, o envio de um destroyer para a defesa do aposta no aumento da produção da cana saca-
porto. O pedido não foi atendido de imedia- rina e, com o fim da guerra, o desenvolvimento
to, mas, passados dois meses, foi destacada da indústria turística. Por último, com as crises,
uma canhoneira da marinha americana para regressou também o debate sobre a questão da
patrulhar as águas madeirenses. Firmou‑se de- autonomia insular, que se iria prolongar pela
pois um acordo para o estacionamento da re- déc. de 20.
ferida unidade no Funchal, a fim de levantar
o espírito da população. Ao mesmo tempo, Bibliog.: FOURNIER, António, “Max Valentiner e a síndrome de von Richthofen”,
Islenha, n.º 48, jan.‑jun. 2011, pp. 121‑132; GIBSON, R. H., Histoire de la Guerre
solicitou‑se ao Governo de Lisboa a presen- Sous‑Marine 1914‑1918, Paris, Payot, 1932; GIBSON, R. H., e PRENDERGAST,
ça de um caça‑minas. Na prática, contudo, Maurice, The German Submarine War 1914‑1918, Annopolis, Naval Institute
Press, 2003; HALPERN, Paul G., A Naval History of World War I, Annapolis,
pouco ou nada se concretizou. Naval Institute, 1994; Ilustração Portugueza, jan. 1917; RODRIGUES, Paulo
Miguel, “A ilha da Madeira durante a Grande Guerra (1914‑1918). Tópicos de
política e defesa”, Nação e Defesa, n.º 139, 2014, pp. 64‑83; TARRANT, V. E., The
U‑Boat Offensive 1914‑1945, New York, Sterling, 1989; WILHELM, Eberhard Axel,
“O ataque de um submarino alemão ao porto do Funchal, em 1916”, Islenha,
n.º 48, jan.‑jun. 2011, pp. 97‑120.
Bombardeiros
Nos sécs. xv e xvi, a artilharia era servida por
artífices especialmente contratados, que mui-
tas vezes eram também fundidores e constru-
tores e, localmente, tinham outras profissões.
Depois de separadas as funções, foi estabele-
cido um número fixo de bombardeiros, aqui-
lo a que posteriormente se chamaria “os efeti-
vos”, que eram examinados e depois inscritos
Fig. 4 – Capela-mor da igreja de S.ta Clara, alvo do como bombardeiros da Nómina. A instituição
bombardeamento do submarino alemão, 12 de dezembro de
1917 (bilhete-postal Perestrellos) (coleção particular). da Nómina dos Bombardeiros de Lisboa, ou
seja, a criação de uma lista nominal (donde a
designação) com 100 elementos, todos “nossos
naturais e moradores nesta cidade de Lisboa”
(ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo
Geral, tombo 7, fls. 36‑37), data de 1515 e terá
sido uma organização extensiva ao Funchal,
embora só tenha sido registada bastante mais
tarde, num treslado do séc. xvii. Como era
apanágio das corporações à época, a Nómina
Fig. 5 – Estilhaço de granada do submarino alemão
também tinha um santo padroeiro, neste caso
lançada sobre o Funchal a 12 de dezembro de 1917
(Museu Militar da Madeira). S.ta Bárbara, santa evocada em caso de trovoada
470 ¬ B ombardeiros
e pelos que trabalhavam com artifícios pirotéc- havia no reino, é possível que não tenha che-
nicos, como os artilheiros, engenheiros e ar- gado sozinho. No entanto, nominalmente, o
quitetos militares. Esta organização manteve primeiro bombardeiro referido na Madeira
‑se mesmo depois de 1675, quando a função é Álvaro Afonso, que, em novembro de 1551,
passou para o foro exclusivamente militar e os surge na documentação da Santa Casa da Mi-
bombardeiros passaram a soldados regulares, sericórdia do Funchal como “condestabre dos
designados por “artilheiros”. bombardeiros do castelo e fortaleza desta cida-
O primeiro bombardeiro de que temos co- de” (ABM, Misericórdia do Funchal, liv. 710,
nhecimento na Ilha terá sido o moço de câma- fl. 226v.). Mais tarde, refere‑se que, sobre o or-
ra do capitão do Funchal, Jerónimo Cabreira, denado inicial de 8$000 réis, tendo em conta
nomeado, em 1542, para guardar o baluarte, o tempo que tinha já servido de bombardeiro
ou seja, a futura fortaleza do Funchal, nessa e a certidão do capitão-donatário do Funchal,
data em construção, depois denominada de lhe eram acrescentados mais 4$000 anuais. Em
S. Lourenço. É possível que tenha havido ou- 1561, existe referência ao contrato de mais um
tros bombardeiros na Ilha, dado que os pri- bombardeiro, em princípio fora da Nómina,
meiros privilégios dos artilheiros têm a data que só mais tarde foi instituída no Funchal:
de 1515 e as bocasdefogo para a fortaleza vie- Fernão da Costa. Em 1566, chegado de Lisboa,
ram em 1529. Dada a qualidade do material, foi nomeado condestável da fortaleza Gonça-
referido posteriormente como do melhor que lo Fernandes, que Gaspar Frutuoso refere, du-
rante o ataque dos corsários desse mesmo ano,
como «português, já entrado em anos, grande
bombardeiro». Veio a morrer nesse mesmo ata-
que, «com o seu bota‑fogo na mão» (FRUTUO-
SO, 1968, 329), não lhe tendo o governador
deixado fazer fogo sobre os navios quando os
mesmos passaram ao alcance das suas peças na
baía do Funchal.
Gonçalo Fernandes surge em meados de
1566, com um alvará datado de 20 de junho
desse ano, registado na Alfândega, com a mis-
são de levantar a Nómina do Funchal, com oito
bombardeiros, que deveriam então ser os pró-
prios guardas da Alfândega do Funchal. O con-
destável teria de ordenado 24$000 réis, haven-
do igual ordenado para a Nómina, logo 3$000
réis para cada homem, a que acrescentava o
ordenado de 12$000 que já recebiam como
guardas da Alfândega. Os guardas da Alfânde-
ga terão sido examinados como bombardeiros
pelo condestável (supõe‑se assim que já teriam
alguma instrução rudimentar nesta área) e
aprovados pelo 5.º capitão do Funchal, Simão
Gonçalves da Câmara (1512‑1580), ausente em
Lisboa nesta data e substituído por seu tio, Fran-
cisco Gonçalves da Câmara (c. 1510‑c. 1586).
Mantém‑se assim o espírito com que foi deter-
Fig. 1 – Trons, ou bombardas, montados em reparo
com mantelete, c. 1475; pormenor da tapeçaria do cerco
minada, em Lisboa, a construção da fortaleza
de Arzila (Colegiada de Pastrana, Espanha). do Funchal: proteção à Fazenda Régia, sendo o
B ombardeiros ¬ 471
Pelo Livro de Receita e Despesa da Fortifi- entanto, a 14 de dezembro de 1642, o rei de-
cação, dos finais do séc. xvi e inícios do xvii, terminava ao governador que fizesse “assentar
percebe‑se as dificuldades com as verbas (ABM, na dita companhia uma praça de bombardei-
Câmara Municipal do Funchal, n/cat., Receita e ro, a João Amorim, com soldo diário de $050
Despesa da Fortificação. 1600 a 1611). A priorida- réis, entrando no número dos 100 homens de
de foi para a construção dos muros frente ao que se compunha a mesma companhia” (BNP,
mar, junto à fortaleza Nova, e as verbas que res- IGRAPRFF, fl. 11), voltando‑se assim à desig-
taram quase se limitaram aos encargos fixos, nação de “bombardeiro”. Curiosamente, algu-
pagos em quartéis, onde se mencionam os três mas das nomeações nesta época aparecem re-
bombardeiros do Funchal: Miguel Fernandes, gistadas na chancelaria da Ordem de Cristo e
Estêvão Álvares e Gaspar Rodrigues, receben- sem correspondência nos registos da Fazenda
do 1$000 réis cada um. Estes pagamentos não do Funchal. Entre os nomeados, regista‑se Ma-
tinham data fixa, podendo mesmo atrasar‑se nuel Soares (Pinheiro), com carta de condestá-
um ano ou mais e, devido a outras dificulda- vel da fortaleza Nova da Praia, por certo a de S.
des, ser pagos anualmente, como aconteceu Filipe, da praça do Pelourinho, com data de 22
em 1604 com João Gonçalves, bombardeiro da de março; José Pires, para bombardeiro da vila
Calheta, ou com os três bombardeiros de Ma- de Machico, com carta de 23 de abril; António
chico, pela mesma data. As dificuldades eco- de Sousa Maciel, para condestável da ilha da
nómicas e a falta de liquidez contínua dos di- Madeira, com carta de 6 de julho; Pedro Ro-
nheiros da Alfândega do Funchal levaram a drigues, com carta da praça de bombardeiro
disciplinar os pagamentos dos bombardeiros da fortaleza de S. Lourenço, com data de 3 de
contratados, aumentando os ordenados pagos agosto, todos de 1641; e Domingos Francisco,
em géneros, mormente com vinho. Foi assim para artilheiro da mesma fortaleza, com carta
o caso dos bombardeiros Manuel Fernandes e de 9 de agosto de 1642.
Jerónimo Gonçalves de Sousa, tanoeiro, entre Nos anos seguintes, foram preenchidos e
1632 e 1634, que, dado o falecimento dos bom- atualizados os lugares e as situações dos bom-
bardeiros Afonseca Rodrigues, Fernandes Coe- bardeiros e artilheiros da Madeira. Por exem-
lho e Domingos Fernandes, o “Sábio”, este últi- plo, em 1647, a carta de bombardeiro da for-
mo carpinteiro, passaram a ser abonados com taleza de S. Lourenço de Simão Gonçalves
uma pipa de vinho em vez de com quantia de Florença, com 36$000 réis ao ano, refere que
3$000 réis, que até aí tinham recebido os bom- servia no lugar há 20 anos e que o mesmo es-
bardeiros anteriores. tava vago pelo falecimento de seu pai, António
A reformulação da situação dos bombardei- Gonçalves Florença; em 1648, o provimento de
ros, civis de profissões várias, que pontualmen- Inácio Luís, tanoeiro, do ofício de bombardei-
te exerciam essa função, apa- ro era dotado com 3$000 réis
rece a partir de 1640, com a ao ano, e a praça de bombar-
aclamação de D. João IV e a deiro de S. Lourenço, de Ma-
progressiva e lenta constitui- nuel de Lima, que entretan-
ção dos novos corpos milita- to tinha falecido, era a praça
res permanentes. A primeira ocupada por António Mendes,
ordem régia deu‑se logo a 15 com 3$000 réis de ordenado.
de setembro de 1641, com a Em 1648, os artilheiros da Ma-
reforma da companhia do pre- deira ainda registavam na Câ-
sídio e com a indicação de que mara Municipal do Funchal
se provessem as fortalezas “dos
necessários artilheiros, para Fig. 3 – Bala, ou pelouro de ferro,
sécs. xvi/xviii, emparedada em
serem todos pagos à maneira S. Lourenço e recuperada nas obras de
das fortalezas do reino”. No 1992 (Museu Militar da Madeira).
B ombardeiros ¬ 473
os antigos privilégios dos bombardeiros por- então fora condestável dos bombardeiros do
tugueses outorgados por D. Manuel em 1515, Funchal.
sinal da vigência dos privilégios em questão e Nos inícios do séc. xviii, e.g., regista-se na “fé
do seu possível usufruto ao nível da organiza- de ofício” do artilheiro Inácio Miranda que era
ção camarária. natural da cidade do Funchal e que fora da for-
No último quartel do séc. xvii, funcionando taleza de S. Lourenço, servindo “nesta ilha da
a fortaleza do Ilhéu como registo do porto do Madeira em praça de bombardeiro e artilheiro
Funchal, com a obrigação de salvar os navios na fortaleza de N. S.ª da Conceição do Ilhéu, na
de guerra que entravam, esta teve de ser inde- do Pico e em S. Lourenço, 36 anos, 5 meses e 17
pendentemente artilhada, deixando assim de dias começados ao 1.º de janeiro do dito ano de
depender de S. Lourenço. Com o aumento do 1674”, em que fora provido posto de artilheiro
movimento do porto, as despesas em pólvora com um soldo de 3$000 réis pelo Gov. Diogo de
aumentaram, assistindo‑se a um contínuo pe- Mendonça Furtado, “até 17 de junho de 1700,
dido de provisões desde 1675 até 1689. Perante dia antecedente ao do seu falecimento” (Ibid.,
este esforço suplementar pedido aos artilhei- liv. 971, fls. 22v‑23). Esta “fé de ofício” fora pe-
ros do Ilhéu e de S. Lourenço, o rei concedeu dida pelo seu filho a 7 de dezembro de 1735.
‑lhes um suplemento de “meio tostão por dia, Alguns anos mais tarde, em 1738, houve tam-
na forma como são os soldados pagos do dito bém a “fé de ofício” de Benedito dos Ramos,
castelo de S. Lourenço” (ANTT, JPRFF, liv. 966, condestável do forte de N.a S.ra da Penha de
fls. 4‑4v.). A designação de “bombardeiro” França. O condestável tinha servido 31 anos, 4
manteve‑se até ao início do séc. xviii, como de- meses e 8 dias, dos quais 12 anos, 10 meses e
monstra a nomeação do Cap. António Nunes 16 dias como praça de artilheiro e o restante
como capitão da artilharia da ilha da Madei- tempo como condestável. Encontrava‑se colo-
ra, em setembro de 1689, referindo‑se que até cado no forte do Ilhéu desde 12 de outubro de
Fig. 4 – Trom,
ou bombarda,
montado em
reparo com
rodas, c. 1475;
pormenor da
tapeçaria do
cerco de Arzila
(Colegiada
de Pastrana,
Espanha).
474 ¬ B ombeiros
automacas prestam um inestimável serviço de através dele que o europeu purificou a terra
transporte de doentes, enquanto os carros de e a ilha, afugentou o mal, abriu clareiras para
desencarceramento atuam, com frequência, assentar morada e lançar as sementes à terra.
nos desastres de viação, uma das principais tra- Alguns textos dizem‑nos que este primeiro in-
gédias dos dias de hoje. cêndio durou sete anos, mas nada há que possa
Também apelidados de “soldados da paz”, em abonar em favor de tamanha durabilidade das
oposição aos que intervêm apenas no campo chamas. Na hipótese de o fogo ter ardido sete
de batalha, os bombeiros são uma presença anos, sem ter em conta a época das chuvas, não
imprescindível para a sociedade, como garan- teria sobrado floresta e as madeiras não assumi-
te da nossa salvaguarda em face da ameaça de riam o valor económico que detiveram nos pri-
incêndios, catástrofes e de situações que acon- meiros anos de ocupação e exploração econó-
tecem cada vez mais no quotidiano. Eles são mica. A imagem do incêndio duradouro, que
a nossa “boia de salvação” onde o perigo está afugentou os espíritos do mal e enriqueceu a
sempre à espreita. Por tudo isto, e pela forma terra de cinzas para a primeira lavra, deve ser
de intervenção desinteressada, são merece- entendida como uma figura de estilo, com o
dores do seu reconhecimento e valorização. fim de evidenciar a dimensão e o efeito aterra-
Os bombeiros são o exemplo da dedicação ao dor resultante das primeiras fogueiras. O fogo,
outro. Para eles, o combate está na defesa do porém, assumiu um papel benéfico, tendo espa-
homem e dos seus haveres contra os efeitos de- ço livre para avançar no terreno. Foi assim que
voradores do fogo e o impacto das catástrofes, se abriu caminho à humanização do espaço.
atuando sempre na linha da frente de combate As queimadas eram uma prática comum dos
aos incêndios, no resgate de mortos e feridos, europeus no processo de arroteamento das
no socorro a náufragos e no apoio em caso terras. É daí que vem, certamente, o nome das
de catástrofe natural, quer sejam voluntários, Queimadas, em Santana. E na Ilha, não obs-
quer sejam profissionais. tante os efeitos do primeiro fogo, o agricultor
Os sécs. xix e xx madeirenses foram mar- não abandonou esta prática. Em 1466, passa-
cados pelas aluviões que devastaram a cidade dos 46 anos sobre o início da ocupação, ainda
do Funchal e demais populações ribeirinhas, se faziam queimadas para abrir novas áreas de
sinónimo de destruição, tragédia e muito tra- cultivo, contudo, o duque D. Fernando impe-
balho para voluntários e, depois, no séc. xx, diu tal prática, ordenando que este serviço pas-
bombeiros. A partir de 1929, a intervenção sasse a ser feito a machado. Foi também esta
dos bombeiros faz‑se notar com as as aluviões e preocupação que levou a população rural, a
cheias que, sucessivamente, ocorreram na Ilha viver maioritariamente em casas de palha, a
entre 1901 e 2010. Por outro lado, a História separar o espaço da cozinha do resto da casa.
assinala, de forma evidente, os efeitos devasta- O mesmo infante recomendava, em 1482, ao
dores do fogo. A sua descoberta pelo Homem Senado do Funchal o cumprimento da proi-
revolucionou o modo de vida e veio a colocá bição de “se tirarem abelheiras com fogo na
‑lo perante um novo perigo e a necessidade de serra” (MELO, 1973, 242‑244), tendo em conta
o combater. O poder do fogo foi, desde muito a destruição dos incêndios que daí poderiam
cedo, ritualizado, e a ele se liga uma persisten- resultar. A situação continuou, e, em 1493,
te tradição, de que são exemplo as fogueiras D. Manuel acusava a vereação do Funchal de
de S. João, assumindo uma dimensão mágica e desleixo no cumprimento dos regimentos
dominando o imaginário humano. O fogo as- sobre os fogos. Contudo, a teimosia era mais
sume, deste modo, um papel fundamental na forte que a prevenção, pelo que, ainda hoje,
história da ilha da Madeira. muitos dos incêndios que acontecem por toda
Os primórdios da ocupação da Ilha associam a Ilha são fruto das queimadas agrícolas.
‑se ao fogo, e foi através do seu poder que ela Outro foco e origem dos incêndios na flo-
ofereceu aos europeus o açúcar e o vinho. Foi resta era resultado da ação dos carvoeiros.
476 ¬ B ombeiros
Fig. 2 – Grande incêndio na área de São Gonçalo e Palheiro Ferreiro, a 19 de julho de 2012 (fotografia de Virgílio Gomes).
Estes, por força da necessidade de carvão para de entender que o perigo estava sempre à es-
venderem na cidade, acendiam fogueiras que preita. Desde 1461 que se nota especial aten-
depois escapavam ao seu controlo. A primei- ção à defesa do Funchal contra incêndios.
ra vítima terá sido o próprio João Gonçal- Assim, determina‑se que os engenhos sejam
ves Zarco, traído por uma mudança de vento cobertos de telha e recomenda‑se o mesmo
que fez com que o fogo atingisse a sua casa, para as casas da rua dos Mercadores. Mas em
refugiando‑se, com a família, nas águas do 1493 este trabalho ainda não tinha sido feito,
oceano. Os municípios consideravamos car- de forma que as casas de cobertura de palha
voeiros quase sempre os responsáveis pelos se arrastam no tempo, sendo interminável,
fogos que se ateavam na serra. Um deles, em desde o séc. xv, o conjunto de regulamentos,
1919, causou o maior incêndio de que há me- ordenações e posturas sobre o assunto. A 9
mória na Ilha, depois do primeiro que abriu a de março de 1490, o donatário recomendava:
porta aos europeus no séc. xv. “tanto que se viir fogo que se presuma que
A imagem aterrorizadora e destrutiva do es em lugar de dapno da povoaçam que mays
fogo obrigou as autoridades a definir medi- perto estever repicaram logo e yram la o juyz
das no sentido de controlar as fogueiras, bem e o allcayde e seus homens e alguüs outros
como os materiais de construção das casas que pareça que abastaram pera o apagar [...]
dos diversos aglomerados populacionais. e achando qualquer pesoa ou pesoas culpadas
Esta preocupação incidia mais nos núcleos no dito caso ou emdicios por que se presu-
de povoamento, cujas construções eram fei- ma ellas o poerem os premderam logo e [...]
tas de materiais inflamáveis, que, desse modo, se dem grandes pennas aos sobreditos asy nos
eram focos fáceis de incêndios. Se tivermos corpos como nas fazendas segundo a calidade
em conta que as primeiras casas construídas das pesoas e o dapno que ho dito foguo fezer”
na Ilha eram de palha e madeira, fácil será (MELO, 1972, 242).
B ombeiros ¬ 477
de manobra eram dados pelo sino da igreja, si- considerado ineficaz perante a constância e
renes e foguetes. No caso do Funchal, havia‑se proporções dos incêndios que se atearam na
estabelecido um sistema de sinais para avisar a cidade. A imprensa, ao mesmo tempo que re-
deflagração de um incêndio, através dos sinos latava o sucedido, clamava por medidas no sen-
da catedral. Para as freguesias da cidade, havia tido de o município constituir uma companhia
um conjunto de badaladas que avisava da exis- de bombeiros, como era sua atribuição. A 19
tência de fogo, uso que desapareceu em finais de agosto de 1886, o administrador do conce-
do séc. xix. lho, solicitado pelo governador civil, interpe-
Desta forma, os incêndios são uma presen- lou a vereação sobre a necessidade de organi-
ça constante na história da Madeira, ficando zar um serviço de incêndios. Foi assim que, em
registada a memória daqueles que mais se evi- 1898, surgiu a Associação dos Bombeiros Vo-
denciaram. Até ao aparecimento das primei- luntários do Funchal.
ras corporações de bombeiros, em finais do O alargamento do serviço de bombeiros aos
séc. xix, devemos registar incêndios todos os demais municípios não se cumpriu de acordo
anos a partir de 1883, com frequência no es- com as determinações oficiais. O primeiro mu-
paço urbano, em oficinas, armazéns, padarias, nicípio fora do Funchal a dispor de um serviço
lojas, mercearias e igrejas, e outros que defla- de bombeiros foi o de Santa Cruz, em 1932,
graram nas serras em 1419 e em 1919, 1946, por iniciativa de Joaquim Vasconcelos de Gou-
1949, 1951 e 1953. Estes últimos aconteceram veia. Machico só teve igual serviço em 1948,
com alguma irregularidade até à déc. de 90 do
séc. xx, tornando‑se, a partir de então, uma
presença constante durante o período estival.
A definição de medidas para o combate aos
incêndios em Portugal está documentada a
partir de 1395, altura em que D. João I atri-
bui esta função aos municípios, compromis-
so que se manteve até à revolução liberal sob
o arbítrio destes. Pelo decreto de 16 de maio
de 1832 determinou‑se que esta passaria a ser
uma função a cargo do provedor do concelho,
ficando mais tarde, de acordo com o código
administrativo de 1842, o serviço de preven-
ção de incêndios, inundações e naufrágios de-
pendente do administrador do concelho. Fi-
nalmente, em 1867, os municípios passaram
as competências respeitantes ao socorro para
a extinção dos incêndios e inundações. Foi de
acordo com esta orientação que, na Câmara,
um dos vereadores passou a assumir o pelouro
dos incêndios, sendo o primeiro no Funchal,
o Dr. José Joaquim de Freitas. Nesta época,
o serviço de incêndios era ainda incipiente,
contudo, estavam disponíveis várias bombas
de particulares e de instituições que acudiam
em caso de incêndio, sendo de destacar as da
Casa Blandy, do engenho do Hinton e da Al-
fândega. O município era também detentor Fig. 4 – Inauguração dos Serviços de Incêndios do Funchal,
de uma bomba de incêndio, mas o serviço era a 7 de abril de 1889 (ABM).
480 ¬ B ombeiros
com a primeira bomba portátil, uma oferta nunca oferecer as condições adequadas de
do Conselho Nacional de Incêndios. Depois apoio à navegação, sendo que até à construção
disso, só o município da Ponta de Sol montou, do porto muitos foram os naufrágios de em-
em 1960, o serviço de bombeiros voluntários. barcações que, a partir de finais do séc. xix,
Em 1968, o município de São Vicente aponta passaram a contar com o serviço de socorros
a necessidade de criação de uma companhia a náufragos dos bombeiros. A partir de 1926,
de bombeiros, mas a falta de meios financei- esta missão foi atribuída à Associação de Bom-
ros impede‑o de concretizar o desejo, de forma beiros Voluntários Madeirenses. O serviço dos
que o concelho só terá uma companhia de bombeiros alargou‑se, também, ao apoio aos
bombeiros em 1994. A cobertura integral dos feridos de manifestações e revoltas, como suce-
municípios da Ilha apenas ficaria completa nos deu entre abril e maio de 1931, com a célebre
finais do séc. xx. Revolta da Madeira.
O serviço a prestar pelos bombeiros não se Até ao aparecimento da imprensa madeiren-
resumia apenas a apagar incêndios, incidindo se, no séc. xix, com o primeiro jornal, o Patrio-
também no socorro a náufragos e no apoio em ta Funchalense, publicado a 1 de julho de 1821,
caso de calamidade. As aluviões que fustigavam não existe um registo completo dos incêndios
a Ilha na época invernal foram um dos princi- que deflagraram no espaço urbanizado e flo-
pais motivos e preocupações, bem como uma restado. No largo período de mais de três sé-
evidência, do prestimoso serviço dos bombei- culos, ficou apenas o registo de dois grandes
ros, a partir de finais do séc. xix. Os sécs. xix incêndios, já referidos: o primeiro, para abrir
e xx foram pautados por diversas aluviões que caminho aos povoados, seguindo‑se o fogo do
espalharam o terror e a morte em toda a Ilha, céu, em 1593. O séc. xvii revela‑nos os incên-
mas de forma especial nas localidades assen- dios no palácio de S. Lourenço, em 1699, e no
tes no leito das ribeiras. Por outro lado, deve- paço episcopal. Para o séc. xviii, ficou apenas
mos ter em conta o facto de a baía do Funchal o registo do incêndio no Teatro Grande, que
Fig. 5 – Carro dos Serviços de Incêndios da Câmara Municipal do Funchal, c. 1890 (ABM, Câmara Municipal do Funchal,
Bombeiros Municipais do Funchal, 2627, 3).
B ombeiros ¬ 481
Proteção civil
A proteção civil começa na déc. de 30 do
séc. xx, altura em que surgiu, em Paris, a Orga-
nização Internacional de Proteção Civil. A sua
consolidação dá‑se em 1935, com um conjun-
to de medidas implementadas pela Sociedade
das Nações, e depois, em 1950, com o apareci-
mento da Associação de Proteção Civil, que em
1958 ganha dimensão internacional. Em Por-
tugal, a sua organização torna‑se uma realida-
de após a Segunda Guerra Mundial, pelo que
desde 1958 existe a Organização Nacional da
Defesa Civil do Território.
A partir de 1970, a chamada Defesa Civil dá
lugar à Proteção Civil, o que acontece na Ma-
deira a 30 de junho de 2009, passando a orga-
Fig. 9 – O Bombeiro Madeirense e a Sua História (1963),
de Vasco F. Campos e Alberto Malho.
nismo de cúpula que superintende todos os
serviços de proteção e socorro aos cidadãos
nas diversas vertentes. Esta situação atual re-
a legislar no sentido do alargamento da base sulta da evolução correspondente do serviço
tributável do imposto para o SNB, de forma a criado a 17 de fevereiro de 1982, conheci-
harmonizar a respetiva base tributável, com a do como Serviço Regional de Proteção Civil
do extinto imposto, para o serviço de incên- da Madeira, que funcionava na dependência
dios e, ainda, para os prémios de seguro de direta da Presidência do Governo Regional,
transporte de mercadorias perigosas, incluin- tendo passado, desde 9 novembro de 1988,
do o seguro de carga e o das viaturas especi- para a Secretaria Regional da Administração
ficamente destinadas a este tipo de transpor- Pública. Em 1992, transita para a Secretaria
te. De acordo com o Código Administrativo, Regional dos Assuntos Sociais. A partir de 30
a matéria coletável é constituída pelo valor de março de 2006, com a criação do Serviço
patrimonial dos prédios não seguros, pela di- Regional de Proteção Civil e Bombeiros da
ferença entre o valor tributável dos prédios, Madeira, todos os sectores que pertenciam ao
se este for superior, e o valor pelo qual estes Serviço Regional de Proteção Civil da Madei-
se encontram seguros contra incêndios, pelo ra passam a integrar este serviço de coordena-
valor determinado para os estabelecimentos ção de proteção civil e de socorro. Finalmen-
comerciais ou industriais não seguros e pela te, a 30 de junho de 2009, foi criado o Serviço
diferença entre o valor determinado para os Regional de Proteção Civil, IP‑RAM, com o
estabelecimentos comerciais ou industriais e consequente Regime Jurídico do Sistema de
o valor pelo qual estes se encontram seguros Proteção Civil da Região Autónoma da Madei-
contra incêndios. A taxa aplicável varia entre ra (RAM).
486 ¬ B ombeiros
Fig. 10 – Quartel dos Bombeiros Voluntários da Calheta (fotografia de Bernardes Franco, 2018).
históricos: ainda Torriani. Colecção de documentos: parque na cidade: eram conhecidos como bamboteiros/bombo-
conferências culturais: estampas da Madeira: arquivo distrital: publicações
recebidas”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. iv, n.º 2, 1935, pp. 125‑128; teiros, uma figura que está presente no quo-
NATIVIDADE, J. Vieira, Madeira. A Epopeia Rural, Funchal, JGDAF, 1954; tidiano do porto e do movimento dos navios
SEQUEIRA, Manuel Braz, Opusculo de Propaganda. Argumento a favor da
Arborização Obrigatória das Serras da Ilha da Madeira, Funchal, s.n., 1913;
que o escalavam. Maria Lamas refere‑a, em
SILVA, Fernando Augusto da, Dicionário Corográfico do Arquipélago da 1956, como “bombota”.
Madeira, Funchal, ed. do Autor, 1934; Id., O Revestimento Florestal do
Arquipélago da Madeira, Funchal, s.n., 1946; VIEIRA, Alberto, Os Bombeiros
Semelhante atividade existia no porto de Las
Voluntários Madeirense. Breves Apontamentos Históricos, Funchal, Associação Palmas, sendo conhecida como “cambullón”,
dos Bombeiros Voluntários Madeirenses, 2001; Id., A Vinha e o Vinho na
e os que se dedicavam a ela conhecidos como
História da Madeira. Séculos XV‑XX, Funchal, CEHA, 2003.
“cambulloneros”. Não obstante alguns aponta-
† Alberto Vieira rem a origem portuguesa da palavra, que terá
chegado aí a partir da Madeira, hoje sabemos
que a palavra “cambullón” é uma deturpação
Bombote e bomboteiros da expressão inglesa “come buy on” (em por-
tuguês: “vem comprar”).
Do inglês “bumboat”, que define as peque- O bombote é um dos aspetos característi-
nas embarcações que proviam, de forma di- cos do quotidiano da baía do Funchal, tendo
reta, os barcos que escalavam os portos com como principal assento a zona dos pescadores
objetos e produtos da região. Em Singapu- e barqueiros, nas praias de São Lázaro. Aí vara-
ra, e.g., são sinónimo dos táxis aquáticos. No vam as embarcações e se situavam as arrecada-
linguajar madeirense, a atividade é apresen- ções, perto do calhau. No mundo e quotidiano
tada como o “bambote”, i.e., uma pequena do mar funchalense, está sempre presente a fi-
embarcação a remos que estava autorizada a gura do bomboteiro, que, não obstante estar
aproximar‑se das embarcações que aportavam documentada apenas a partir do séc. xviii,
ao Funchal e aí proceder à venda direta dos deverá existir desde que, na baía funchalen-
produtos regionais. Na expressão popular, se, lançaram âncora as primeiras caravelas ou
os homens que se dedicavam a esta atividade naus em busca de refresco.
Fig. 1 – Funchal from the Bay, litografia de Andrew Picken, 1840 (coleção particular).
488 ¬ B ombote e bomboteiros
facto de este não querer pagar a viagem, deci- haver o incómodo do desembarque em terra.
diu o Lage fazer justiça por suas próprias mãos, Certamente que, quando o Funchal, nos anos
matando‑o. É a partir do processo que decor- 60, ficou servido de um porto adequado ao
reu, e que foi transcrito no referido jornal, que embarque e desembarque de passageiros, esta
sabemos da importância da atividade, sendo atividade perdeu importância e teve de con-
este o registo documental mais antigo que correr com idênticas situações de venda em
temos da prática do bombote. Sabemos, aliás, terra seca, feita com melhores condições de se-
que, em 1920, os bomboteiros podiam com- gurança para quem as exercia. Atente‑se que,
prar banana aos produtores ou no depósito em 1957, estavam registados na Alfândega 171
para venderem a bordo. Nesta época, é nítida bomboteiros, e, após 1964, com a inauguração
a preocupação das autoridades quanto à venda do novo porto artificial, estes começam a per-
deste fruto, chegando‑se a fiscalizar o seu esta- der importância numérica, nomeadamente na
do de maturação para venda ao público. Desta década seguinte. Com o novo porto em pleno
forma, vemos em edital, publicado a 28 de de- funcionamento, a baía do Funchal perdeu
zembro de 1920 no Diário de Notícias, que a todo o movimento a que estava sujeita diaria-
venda a bordo pelos bomboteiros só poderia mente, aquando da chegada de um navio.
ser feita no perfeito estado de maturação. De acordo com um edital do capitão do porto
Ao contrário destas vozes, a maioria das im- de 30 de maio de 1920, era elevado o número
pressões que se colhem em textos de visitan- de embarcações registadas ao serviço do porto:
tes é muito favorável a este grupo de agentes barcos de bombote, de pesca do Funchal, de
do pequeno comércio flutuante, que facilita- pesca de costa, de carga e passageiros de costa
vam a compra dos chamados “souvenirs”, sem e de bagagem, de passageiros, de rocega e de
Fig. 3 – Bomboteiros com vimes no porto do Funchal, bilhete-postal, c. 1930 (coleção Melim Mendes).
490 ¬ B ombote e bomboteiros
Fig. 4 – Bomboteiros com vimes no porto do Funchal, Franz Grasser, Kraft durch Freude, 1936 a 1939 (Deutsche Fotothek).
B ombote e bomboteiros ¬ 491
Bonaparte, Napoleão
O conhecido líder militar, estratega e político,
que se destacou durante as chamadas guerras
da Revolução Francesa, coroado imperador
com o título de Napoleão I, esteve em 1804
(até 1814, e depois, durante um breve perío-
do – dos famosos Cem Dias –, em 1815) liga-
do à Madeira em dupla perspetiva: por um
lado, no quadro dos interesses expansionis-
tas e imperiais da França, durante as Guerras
Napoleónicas e também no início da Guerra
Peninsular; por outro, pelo facto de ele pró-
prio ter estado durante dois dias estacionado
na baía do Funchal, na segunda quinzena de
agosto de 1815, a bordo do HMS Northumber-
land, feito prisioneiro e a caminho do seu exí-
lio definitivo, na ilha de Santa Helena. Esta foi,
aliás, a única vez em que o Imperador esteve
efetivamente em território português – neste
caso, mais precisamente, em águas portugue-
sas. Uma vida, note‑se, que parece ter sido de-
terminada por espaços insulares: nasceu na
Córsega, nunca conseguiu invadir uma ilha (a
Grã‑Bretanha), esteve preso em Elba e acabou
exilado em Santa Helena.
Existindo publicados milhares de páginas a
respeito de Napoleão, entre as quais se podem
destacar – para além dos clássicos de Norvins
(1827), Thiers (1845‑1862), Michelet (1875),
Fig. 1 – Napoleão Bonaparte, Jacques-Louis David, 1812 (National
Bainville (1931) e Madelin (1937‑1948) – as vá- Gallery of Art, Washington).
rias obras de Jean Tulard (1988, 1997, 2006 e
2015), assim como as posteriores de Paul John-
son (2002), Andrew Roberts (2014), Charles na Madeira, em julho de 1801, aí permanecen-
Esdaile (2007), afigura‑se‑nos de todo desne- do até janeiro de 1802, concretizando assim
cessário desenvolver aqui uma apresentação de a primeira ocupação britânica, por receio de
cariz biográfico, daí a opção por um texto que que a (cedência da) Ilha pudesse fazer parte
tenha por objeto exclusivo as supra referidas de um entendimento ou acordo secreto entre
ligações à Madeira. Portugal e a França.
Neste sentido, a primeira associação dos inte- O segundo momento, bastante mais agudo,
resses da França napoleónica à Madeira deu‑se mas na sua génese até muito semelhante ao pri-
no âmbito e na sequência da Guerra das La- meiro, deu‑se em 1807, quando, na sequência
ranjas (maio‑ junho de 1801), quando, peran- da nova viragem da França para a península e
te a eventual ameaça aos interesses britânicos para Portugal, com o envio e a presença efetiva
no espaço peninsular e, em particular, àque- de tropas napoleónicas no terreno continental,
les que estavam relacionados com Portugal, as a Ilha foi tomada pelos Britânicos, em dezem-
forças britânicas, lideradas pelo Gen. William bro, desta vez na sequência da primeira invasão
Henry Clinton (1769‑1846), desembarcaram francesa (liderada por Junot) e da fuga da corte
B onaparte , N apole ã o ¬ 493
Fig. 4 – Napoleão em Santa Helena, aguarela de Franz Joseph Sandmann, c. 1820 (coleção Château de Malmaison, Rueil-Malmaison, França).
visita do cônsul britânico, Henry Veitch (o único Joinville. Seguia, por ordem do Rei Luís Filipe,
autorizado a subir a bordo), e toda a esquadra para a ilha de Santa Helena, de onde ia resga-
reforçou os seus aprovisionamentos (com gado, tar o corpo do antigo imperador, retirando‑o
outros animais, água e víveres, como legumes e do vale dos Gerânios e levando‑o para França
frutas, tendo Las Cases reservado os seus elogios (onde, em 1861, seria definitivamente deposi-
para as uvas e os figos madeirenses). Sabe‑se que tado em Les Invalides).
Bonaparte pediu ao Alm. Cockburn para enco- A passagem desta comitiva (em 1840), assim
mendar alguns livros na Madeira, ilha a respei- como a da anterior, do próprio Napoleão (em
to da qual também inquiriu, quer aquele almi- 1815), foi romanceada e interligada pelo es-
rante, quer em especial o cônsul Veitch, quando critor madeirense João dos Reis Gomes (1869
com ele privou a bordo, pretendendo receber ‑1950) em O Anel do Imperador, obra publicada
informações sobre a sua história, os seus habi- no Funchal em 1934.
tantes e as suas produções. Bibliog.: BAINVILLE, Jacques, Napoléon, Paris, Arthème Fayard, 1931; CÂMARA,
Os relatos de Glover e de Cockburn coinci- Paulo Perestrelo da, Breve Notícia sobre a Ilha da Madeira, Lisboa, A. das Bellas
Artes, 1841; ESDAILE, Charles, Napoleon’s Wars. An International History.
dem na afirmação de que ao fazer perguntas 1803‑1815, London, Allen Lane, 2007; JOHNSON, Paul, Napoleon, London,
sobre as diversas ilhas do Atlântico Bonapar- Weidenfeld & Nicolson, 2002; MADELIN, Louis, Histoire du Consulat et de
l’Empire, 16 vols., Paris, Hachette, 1937‑1953; MARCHAND, Louis‑Joseph, In
te revelara uma ignorância que para aqueles Napoleon’s Shadow. Being the First English Language Edition of the Complete
era espantosa, por afirmar não saber a quem Memoirs of Louis‑Joseph Marchand, Valet and Friend of the Emperor. 1811‑1821,
San Francisco, Proctor Jones Pub. Co., 1998; NORVINS, Jacques Marquet de
pertenciam.
Montbreton de, Histoire de Napoléon, Paris, Ambroise Dupont, 1827; ROBERTS,
No relato que remeteu para o Foreign Offi- Andrew, Napoleon. A Life, London, s.n., 2014; RODRIGUES, Paulo, A Política e
ce em finais de agosto, o cônsul Veitch afirma as Questões Militares na Madeira. O Período das Guerras Napoleónicas, Funchal,
CEHA, 1999; Id., “O Anel do Imperador (1934), de João dos Reis Gomes, entre
que Bonaparte parecia estar conciliado com a a história e a ficção. Napoleão e a Madeira”, Carnets, Invasions & Évasions. La
sua situação. France et Nous; Nous et la France, n.º especial, outono‑inverno, 2011‑2012,
pp. 81‑97; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
O Northumberland fez‑se à vela a 25 de agos- Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984; THIERS, Adolphe, Histoire
to, com destino a Santa Helena, onde chegou du Consulat et l’Empire Faisant Suite à l’Histoire de la Révolution Française,
Paris, s.n., 1845‑1862; TULARD, Jean (dir.), Dictionnaire Napoléon, Paris, Fayard,
a 13 de setembro; o antigo Imperador morreu 1988; Id., Napoléon. Le Pouvoir, la Nation, la Légende, Paris, Librairie Générale
nessa ilha a 5 de maio de 1821. Française, 1997; Id., Napoléon. Les Grands Moments d’Un Destin, Paris, Fayard,
2006; Id., Le Monde selon Napoléon, Paris, Tallandier, 2015; VENTURA, António,
Em 1840, passados 19 anos sobre a morte “Prefácio. Napoleão e a Madeira”, in RODRIGUES, Paulo Miguel, A Política e as
de Bonaparte e 25 desde a sua passagem pelo Questões Militares na Madeira. O Período das Guerras Napoleónicas, Funchal,
CEHA, 1999, pp. 15‑19.
Funchal, fundeou na baía a fragata france-
sa Belle Poule, sob o comando do príncipe de Paulo Miguel Rodrigues
B ordadeiras ¬ 495
Bordadeiras
Na Madeira, a atividade de bordar remonta,
com certeza, aos tempos do povoamento, uma
vez que era praticada no continente português,
de onde era oriunda a maioria dos povoadores.
Até meados do séc. xix, bordava‑se por três ra-
zões principais: as senhoras da nobreza, por re-
creação e necessidade de preencher o tempo,
uma vez que nada as obrigava a fazê‑lo, e as
mulheres de escalões sociais inferiores para os Fig. 1 – Bordadeiras da Madeira, aguarela de Max Römer,
c. 1945 (coleção de Edward Kassab).
seus próprios dotes de casamento ou por en-
comenda. Este mester não se podia conside-
rar uma profissão propriamente dita, uma vez passou a ser frequentada por jovens madeiren-
que ninguém se dedicava a ele a tempo inteiro, ses, que, pela primeira vez, faziam uma forma-
podendo, nos casos em que havia encomen- ção mais estruturada naquela arte. Esta inicia-
das, receber‑se alguma recompensa financei- tiva abriu às jovens possibilidades de evolução
ra, ainda que essa atividade não fosse a única técnica, e o resultado deste progresso foi mos-
ocupação das mulheres que a praticavam. trado numa exposição no palácio de S. Lou-
Serbordadeira é um ofício duro, meticuloso, renço, organizada, em 1850, pelo governador
lento, que requer grande precisão, bons olhos para apresentar o melhor da produção regio-
e umas costas resistentes, porque a posição em nal. Esta mostra foi inaugurada em abril, mês
que se executa o bordado penaliza o corpo, e que registava a maior concentração de estran-
os rendimentos que permite nunca correspon- geiros, e a estratégia resultou, pois na Grande
dem aos verdadeiros tempo e esforço que lhe Exposição Mundial de 1851, em Londres, o
são dedicados. Mesmo assim, o bordado ocu- bordado foi exposto e deu nas vistas, o que
pou, durante séculos, um lugar importante no seria determinante para o seu futuro. A partir
quotidiano das mulheres madeirenses. desse momento, o mercado alargou‑se a uma
Porém, a situação alterou‑se na déc. de 40 escala internacional, e o bordado começou a
do séc. xix, quando uma jovem inglesa tomou conquistar apreciadores em diversas partes
uma iniciativa que mudou definitivamente do mundo, o que fomentou um outro tipo de
este cenário. Trata‑se de miss Elizabeth Phelps, produção, mais voltada para maiores consu-
mais conhecida por Bella, precisamente para mos. Esta diferença veio autorizar, até certo
a distinguir da mãe, Elizabeth, que, por outras ponto, que o bordado passasse a ser encarado
razões, era também uma senhora importante como uma ocupação profissional e fosse pra-
dessa época, pois em conjunto com o marido, ticado para além das horas vagas que anterior-
Joseph, era fundadora da escola lancasteria- mente se lhe dedicavam.
na. Bella, filha de um casal empreendedor e Além de devedor da intervenção inglesa no
abastado graças a negócios com vinhos, her- seu sistema de produção, o bordado da Ma-
dou dos pais o espírito destemido e decidiu deira é também tributário da presença de Ale-
fundar no Funchal uma escola de bordar que mães, que, a partir dos fins do séc. xix, irão
se aventurou na importação de tipos de pon- participar de forma significativa no sector.
tos não praticados ainda na Madeira. A escola Assim, alguns súbditos germânicos chegados
496 ¬ B ordadeiras
vindas de diversas partes do mundo para orna- das indústrias caseiras e apoiaram o ensino fe-
mentar os locais de culto, e.g., as pinturas rea- minino, que se desenvolvia na Região por in-
lizadas por artistas renascentistas, italianos e tervenção de entidades públicas e privadas.
flamengos, que também criavam e projetavam As encomendas foram surgindo e as vendas au-
desenhos para serem bordados, aplicados na mentaram, mas grande parte dos artigos saía
criação de rendas e retratados nas suas obras. da Região clandestinamente. O desenho pas-
A execução era feita pelas religiosas e por me- sou a ser preestabelecido, personalizado e a
ninas das classes mais abastadas que com elas obedecer a padrões relacionados entre si, geo-
aprendiam a arte do saber‑fazer. Bordava‑se métricos, florais, monogramas, isolados, repe-
com materiais produzidos na Região ou ad- tidos, em arco, com simetria ou não, impres-
quiridos, no Funchal, a mercadores. Os fios de sos no tecido através de carimbos em madeira
ouro e prata eram utilizados, bem como o fio de superfície plana ou em rolo com pigmento
de seda aplicado a ponto matiz sem urdidura, preto ou azul, geralmente na origem da enco-
que conseguia dar efeitos harmoniosos de cor menda, mas também na Região. A execução
e desenho aplicados sobre o pano, que poderia era feita por bordadeiras locais, nas suas casas,
ser o linho, o morim (tecido leve de algodão), seguindo as instruções de pontos, das diferen-
a cambraia (só depois do início do séc. xvi), a tes classes, que vinham sendo introduzidos na
seda (depois do séc. xvii) ou o damasco. Estes Região por professoras chegadas da Europa,
locais de culto eram procurados por aqueles que os ensinavam através do método lancaste-
que visitavam a Ilha, e através deles os magnífi- riano, no sentido de obter padrões coerentes e
cos trabalhos foram sendo divulgados. leves, de acordo com o que se vinha realizando
A industrialização com início em Inglater- na Europa. Na classe dos bastidos, eram já co-
ra e alargada ao resto da Europa, ao longo do nhecidos, para além dos pontos de contorno,
séc. xix, democratizou o bordado, que se di- as folhas fechadas feitas a ponto chão ou com
fundiu no seio de uma sociedade burguesa de urdidura, os garanitos, as viúvas, as solteirinhas
consumo, em ascensão e cosmopolita. O bor- e o pesponto. A classe dos caseados passou a
dado a branco e as rendas como símbolo de ter, para além do caseado simples liso, outras
pureza, leveza, higiene, honestidade e status configurações, como a forma de unha, curva,
entraram na moda divulgada por revistas de es- bico ou misto. Na classe dos abertos, que per-
pecialidade, em conformidade com o gosto das mitem transparências, através do recorte no
novas correntes artísticas do neoclássico e do tecido, e o respetivo rebordo urdido de liga-
romantismo. Os estrangeiros presentes na Re- ção entre elementos a ponto caseado e/ou
gião reconheceram o trabalho magnífico das ponto cordão, eram conhecidos o ilhó aberto
bordadeiras locais, promoveram o incremento de forma circular, o ilhó aberto de grega de
forma oval, a folha aberta, a cavaca circular
com aberturas recortadas, as estrelas e as rose-
tas de cinco ou sete pontas abertas e com um
garanito ao centro. Na classe dos arrendados,
que também permitiam transparências, através
da retirada de fios do tecido, na vertical e na
horizontal, e das aberturas presas com linha de
bordar, encontramos o crivo ou óculo de rede,
a cruzinha, o olho de passarinho, a latadinha,
o ponto ana e o ponto escada. Na classe dos
diversos, para além do ponto matiz, houve a
adaptação de pontos a várias finalidades, em
Fig. 2 – Livro de desenhos de bordados, c. 1945
que encontramos o ponto richelieu e o oficial,
(coleção de Bordal, Bordados da Madeira, Lda.). com aparência próxima à renda, tal como o
B ordado ¬ 499
Georgina Garrido
trabalho da agulha. Raras eram as peças que 1956, com breve referência histórica ao borda-
saíam do circuito familiar. Estávamos perante do, bem como em As Mulheres do meu País, de
um bordado ancestral que seguia uma tradi- 1948, onde presta homenagem à bordadeira
ção familiar, adequando‑se a novas formas e madeirense.
ao gosto do seu criador, que era também o O madeirense Horácio Bento de Gouveia de-
executor. A segunda metade do séc. xix foi dicou um dos seus romances do quotidiano da
o momento de viragem desta realidade, com Ilha à vida da bordadeira. Trata‑se de Lágrimas
o estabelecimento de regras e padrões para a Correndo Mundo, de 1959, que pode ser consi-
produção do produto. derado um livro de homenagem à bordadei-
A partir de meados de Oitocentos, o bor- ra madeirense da primeira metade do séc. xx.
dado da Madeira passou a ser uma referên- O convívio com a vida difícil das bordadeiras
cia assídua nos roteiros turísticos e nos diários de Ponta Delgada da freguesia do concelho
de viagem. Mesmo assim, em 1901, Ellen M. de São Vicente levou‑o a concluir que as peças
Taylor refere a ignorância que existia sobre o de bordado são “lágrimas que correm mundo,
superior trabalho realizado na Ilha pelas bor- transformadas em regalo dos olhos por mãos
dadeiras. Todavia, isto não era impedimento pacientes de ignoradas artistas”.
para que as exportações fossem elevadas, che- Calvet de Magalhães, no magistral texto Bor-
gando às 25 toneladas. Ainda no mesmo ano, o dados e Rendas de Portugal, de 1963, dedica largo
norte‑americano Anthony J. Drexel Biddle afir- espaço aos segredos do bordado da Madeira.
mava que a Madeira era famosa pelo bordado, Com efeito, a fama e importância desta tradi-
ocupando esta indústria o sexo feminino, na ção mantiveram‑se na déc. de 60, tendo o bor-
cidade e no campo. O trabalho de Ms. Phelps dado continuado a despertar a atenção dos
na promoção desta atividade, a partir de 1856, visitantes. A exaltação da arte do bordado e
é motivo de orgulho para os Britânicos. do paciente labor das bordadeiras surgiu no-
A imagem de grandes toalhas de bordado, as- vamente num testemunho literário português
soalhadas no porto pelos bomboteiros, foi uma em 1969, na obra de A. Lopes Oliveira Arquipé-
referência do quotidiano do porto. Com efeito, lago da Madeira, Epopeia Humana.
os bomboteiros aparecem associados ao comér- Na história do bordado não devemos esque-
cio no porto, fazendo um mostrador sobre o cer a sua ligação direta ao vestuário. Com efei-
mar com as toalhas bordadas; de resto, a forma to, desde o momento em que o homem sen-
delicada da exposição destas mesmas toalhas tiu a necessidade de cobrir o corpo, surgiram
nas casas de bordados era algo que impressio- os tecidos elaborados com diversos produtos e
nava qualquer um. De 1932 a 1933, Ferreira de com o recurso a técnicas de confeção com apli-
Castro ficou cativo da beleza dos bordados e da cações de bordado. Na Madeira, as formas de
imagem bucólica das bordadeiras, visível em vestir obedeceram ao padrão dos locais de ori-
toda a Ilha. O romance Eternidade, publicado gem dos colonos e às disponibilidades do meio
em 1933, é o testemunho disso. O mesmo acon- e mercado. Cultivou‑se o linho, e o pastoreio
teceu depois, noutro texto de viagens do autor, de ovelhas foi uma atividade significativa pelo
Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, de 1937. fornecimento de lã para a indumentária local.
Para António Montês, em Terras de Portugal, De acordo com um relatório da indústria da
obra publicada em 1939, o mais comovente Madeira, em 1862 existiam 559 teares de linho
da visita à Ilha foram os ajuntamentos de mu- e lã. A maior incidência ocorria em Santana
lheres a bordar. Também Luís Chaves faz uma e na Calheta, com 160 e 165 teares, respetiva-
exaltação do bordado madeirense no volume mente. No Funchal, a concentração de teares
A Arte Popular em Portugal. Ilhas Adjacentes e Ul- era menor, pois o porto abria‑lhe a possibilida-
tramar, de 1968. E Maria Lamas deixou‑nos um de de acesso aos panos de importação.
verdadeiro poema à terra de exílios, em Ar- Desde o séc. xv que a Coroa promoveu,
quipélago da Madeira. Maravilha Atlântica, de sem sucesso, a cultura da seda. A animação
504 ¬ B ordado , comércio do
em 1881, por iniciativa de Otto von Streit, que Como referimos, os Alemães intervieram no
havia fixado morada no Funchal no ano ante- comércio do bordado a partir da déc. de 80 do
rior, na busca da cura para a tísica pulmonar. séc. xix, fazendo‑o entrar no circuito interna-
Foi o início da intervenção alemã no sector, cional através do porto franco de Hamburgo.
realidade que perdurou até 1916, ano em que A Casa Grande de Otto Von Streit começou
Portugal entrou na Primeira Guerra Mundial. por enviar os bordados em bruto para Ham-
A intervenção dos industriais e comerciantes burgo, onde eram depois preparados para a
alemães foi um marco importante na história exportação, com destino aos EUA, facultando
do bordado madeirense. A partir da déc. de 80, ‑lhes um fácil controlo dos ciclos produtivo e
provocou uma verdadeira revolução no proces- comercial. Assim, se por qualquer motivo o tra-
so de fabrico do bordado. A primeira alteração balho das bordadeiras não satisfizesse os seus
ocorreu ao nível dos tecidos e linhas. A linha interesses, procuravam mão de obra em outros
azul, usada até então, foi substituída pela bran- mercados, uma vez que eram detentores dos
ca. Ao mesmo tempo, introduziu‑se uma nova padrões usados.
técnica de aplicação direta dos desenhos sobre Não obstante a animosidade britânica, os
o tecido, acabando‑se com os desenhos alinha- Alemães conseguiram firmar uma posição de
vados por baixo. Assim, os desenhos, que até destaque no comércio do bordado entre 1890
então eram criação das bordadeiras, passaram e 1914. A sua hegemonia tornou‑se notória a
a ser feitos e estampados no tecido por outrem partir de 1895, altura em que a Alemanha rece-
antes de serem entregues às mesmas. Para fa- beu 33.173 kg de bordados contra os 2751 kg
cilitar o processo, introduziram‑se as máqui- de Inglaterra. Note‑se que estes valores não re-
nas de picotar. A técnica obrigou ao estabele- fletem a realidade das exportações, uma vez
cimento de casas comerciais no Funchal com a que estavam excluídos os bordados enviados
função de procederem ao trabalho de prepa- para o porto franco de Hamburgo, um dos
ração e à distribuição do tecido e linhas pelas principais destinos do produto.
bordadeiras. Junto destas atuavam os caixeiros, A consolidação da presença da comunida-
que procediam à distribuição dos panos pelas de alemã neste comércio só foi possível com a
bordadeiras, recolhendo‑os depois já borda- presença de um influente grupo, diretamente
dos. A tarefa de acabamento, lavagem, engo- implicado no fabrico e exportação do borda-
mar e embalar dos bordados estava reservada à do. Em 1912, o negócio era assegurado por seis
casa, que tinha sede no Funchal. casas: Wilhelm Marum, Georg Wartenberg, R.
A cada vez maior procura de bordado impli- Kretzschomar, Otto von Streit, Dutting & Gaa,
cou as necessárias inovações técnicas devidas Wolflenstein & Horwitz. A saída dos Alemães,
aos Alemães, o aumento da mãodeobra no em 1916, foi compensada pela chegada dos Sí-
bordado e o aperfeiçoamen- rios, que rapidamente, e até
to da rede de agentes de dis- 1925, dominaram o borda-
tribuição e recolha. O facto do madeirense. Depois, foi
de os panos a bordar serem o mercado norte‑americano,
apresentados às bordadeiras que desde 1910 vinha adqui-
já estampados com os dese- rindo importância, a domi-
nhos facilitou a adesão de nar as exportações.
muitas mulheres a esta ativi- A declaração de guerra
dade, que podia ser partilha- da Alemanha a Portugal em
da com os afazeres da vida 1916 e a pronta resposta de
diária. Portugal, com a criação da
Intendência do Inimigo,
Fig. 6 – Casa de Bordados (2017),
por decreto de 4 de maio
de Teresa Klut. do mesmo ano, levaram ao
B ordado , comércio do ¬ 509
arresto dos bens dos Alemães e à sua deporta- saída. Ao mesmo tempo, sucederam‑se entra-
ção para os Açores, na Terceira. Esta situação ves em alguns mercados; e.g., a Inglaterra esta-
foi duplamente prejudicial para a Ilha, pois a beleceu, em 1917, a proibição de importação
fuga dos Alemães não os impediu de prosse- do bordado da Madeira, sendo secundada, no
guir com o comércio de bordado, apenas des- ano imediato, pelos EUA.
viando a atenção para novos mercados, de mão Com a Primeira Guerra Mundial, tivemos
de obra barata. O afrontamento das comuni- a saída dos Alemães, como referimos, e a sua
dades britânica e alemã deverá ter pesado na substituição pelos Sírios, que vieram consoli-
pronta fuga dos Alemães. Ainda em 1916, deu dar as exportações para o mercado americano,
‑se o primeiro bombardeamento alemão à ci- a principal esperança da indústria do bordado
dade do Funchal, em dezembro, ocorrendo da Madeira à data. Porém, a partir de 1924, o
o segundo no ano seguinte e naquele mesmo peso das pautas aduaneiras levou à saída dos
mês. Tudo isto conduziu a um ambiente de Sírios, que entregaram as casas aos madeiren-
hostilidade à comunidade alemã. ses, passando estes a controlar o sector. Nos
Os primeiros anos do séc. xx foram ainda anos seguintes, manteve‑se o número elevado
marcados pela concorrência desenfreada. In- de empresas do ramo.
ternamente, ela envolveu os industriais rela- O movimento autonomista dos anos 20
cionados com o fabrico e comércio do borda- manteve‑se atento aos bordados e, nos seus pla-
do; externamente, a Madeira teve de competir nos, dedicava espaço ao debate e defesa desse
com os mercados produtores da Boémia, Alsá- produto regional, que continuava a ser con-
cia, Irlanda e Suíça. No caso da Suíça, o pro- siderado uma indústria fundamental, quanto
cesso de mecanização em curso desde a déc. mais não fosse para a preservação da identida-
de 60 do séc. xix trazia vantagens acrescidas, de madeirense. O governo da Ditadura, saído
uma vez que reduzia drasticamente os custos da Revolta de 28 de maio de 1926, estabeleceu
de produção. A única garantia para a Madeira algumas medidas de apoio a esta atividade. A 9
continuava a ser os custos baixos da sua mão de setembro de 1926, permitiu a importação
deobra, aspeto que permitia manter a produ- de tecidos de seda e linho para o bordado, em
ção local competitiva. As inovações tecnológi- regime de drawback. A mesma medida alargou
cas no sentido da mecanização do processo de ‑se, em 1928, aos fios de tecido.
fabrico do bordado, ocorridas a partir da se- Em 1929, o golpe fatal da economia norte
gunda metade do séc. xix, não impediram a ‑americana, com o crush da Bolsa de Nova Ior-
Madeira de manter a procura do bordado, não que a arrastar os EUA para uma das piores cri-
só pela qualidade do trabalho, mas, acima de ses da História, riscou este destino do mapa
tudo, pelo referido custo da mão deobra. das exportações. Entretanto, a crise do merca-
do norte‑americano foi contrabalançada com a
valorização do mercado brasileiro, que se man-
Crise do bordado teve até 1956.
A situação da economia mundial durante a pri- Mas os anos 30 foram muito complicados
meira metade do séc. xx, marcada pelas duas para a sociedade madeirense e para a sobre-
guerras mundiais, condicionou o comércio do vivência do bordado. Deste modo, o governo
mercado do bordado. A guerra isolou a Madei- saído da Revolta da Madeira, a 4 de abril de
ra, impedindo‑a de contactar com os merca- 1931, procurou intervir na salvaguarda do sec-
dos fornecedores de matéria‑prima e consumi- tor, abrindo uma linha de crédito de mil contos
dores de bordado. Pior do que isso foi a crise a favor da indústria, logo a 20 de abril seguin-
económica que lhe andou associada e que con- te. Em 1935, o bordado continuava a ser um
dicionou o poder de compra dos potenciais sector sob a vigilância e especial proteção do
clientes. E, como o bordado era considera- governo, tal como refere Salazar em carta es-
do um produto caro, não era fácil encontrar crita ao Dr. João Abel de Freitas, presidente da
510 ¬ B ordado , comércio do
Bordadeiras
Em todos os momentos da história do bordado,
a referência mais comum é ao labor da borda-
deira. É ela que, com mãos de fada, dá o toque
de beleza aos pontos do bordado. A sua destre-
za, dedicação e sacrifício são motivo de cons-
tante panegírico e admiração por todos os que
descobriram o bordado. Preservou‑se na Ilha a
tradição ancestral de bordar e, antes que, em
Fig. 9 – Funcionários da indústria do bordado Madeira, c. 1930 meados do séc. xix, interviessem os estrangei-
(ABM, Perestrellos Photographos).
ros a dominar o circuito de produção, foi a bor-
dadeira quem criou os desenhos e quem tão
o trabalho, conferir novos direitos aos traba- graciosamente os esculpiu à linha sobre o pano.
lhadores, defender a qualidade dos produtos, O labor incansável da bordadeira, em longas
possibilitar a criação de novos mercados de noites, está testemunhado nas peças bordadas
consumo, dignificar o comércio e promover a que encantam os naturais e os visitantes, embe-
expansão das vendas”. Ainda na senda da ação lezam quem as veste, engrandecem as receções
do Grémio, criou‑se a obrigatoriedade do selo e os repastos e enriquecem o aconchego dos
de garantia do bordado, por decreto-lei, a 8 de lençóis e travesseiros. A marca indelével do seu
dezembro de 1938. trabalho está presente em todo o lado.
O 25 de Abril de 1974 destronou o regime e É já imagem de bilhete‑postal o quadro típi-
as estruturas económicas criadas pelo Estado co da bordadeira sentada em frente do casebre
Novo consideradas seu sustentáculo. Os gré- que a abriga durante a noite. Foi um quadro
mios deram lugar às associações, surgindo, no frequentemente mantido na retina dos visitan-
caso do bordado da Madeira, a Associação dos tes, desde finais do séc. xix. A este trabalho iso-
Produtores do Bordado, Tapeçarias e Artesa- lado somou‑se outra imagem, a dos grupos de
nato e Obra de Vimes da Madeira. Depois, o mulheres que se juntavam à beira de caminhos
Instituto do Bordado e Tapeçaria do Artesana- e atalhos. Em toda a Ilha, eram habituais estes
to da Madeira, por decreto regional, em 1977, ajuntamentos de mulheres casadas, donzelas,
veio a atribuir uma nova dinâmica e interven- idosas e crianças, cujas mãos bordavam, mas o
ção do Governo regional no sector. A defesa seu pensamento estava no quotidiano próprio
da qualidade do bordado continuou a ser uma e alheio. Bordava‑se, mas também se conversa-
aposta, definindo‑se o uso do selo holográfico, va sobre a vida de uns e de outros.
a partir de 2000, para evitar falsificações. Podemos afirmar que o bordado é o testemu-
A aposta na inovação levou o Governo regio- nho da arte da mulher madeirense e também
nal a criar o Centro de Moda e Design, de cujos das suas dificuldades quotidianas, uma vez que
B ordado , comércio do ¬ 513
socorros para o pessoal que trabalhava nos e subdesenvolvimento conduziram à forte pres-
seus estabelecimentos. são da emigração, nomeadamente nos anos 50
A persistência de um pagamento baixo do e 60. Muitos madeirenses saíram rumo ao Bra-
trabalho da bordadeira de casa evidencia uma sil, Venezuela e África do Sul, em busca de me-
exploração do trabalho feminino. A razão da lhores condições de vida, primeiro os homens
resignação da bordadeira resultava do facto e depois os restantes elementos do núcleo fa-
de este ser um trabalho executado nos interva- miliar, como comentámos antes. A todo o lado
los das lides caseiras ou nas longas noites, não onde chegou a mulher madeirense chegou
sendo, em muitos casos, uma atividade que as também o bordado. A arte e tradição do bor-
ocupasse o dia inteiro. Os centavos dos pontos dado são‑lhe inseparáveis. No caso do Brasil, é
eram sempre bem‑vindos. Em 1952, os 47.252 conhecido o facto de, nos anos 50, existir um
contos contemplavam mais de 50.000 famílias apelo e promoção da imigração de bordadeiras
em toda a Ilha, o que representava 18 % do madeirenses. No Rio de Janeiro, São Paulo, San-
total da população. tos e Ceará, é notória a presença do bordado
A proteção e o apoio aos profissionais do sec- madeirense. No morro de São Bento, em San-
tor aconteceram já em 1894, com a criação da tos, o bordado já não tem a qualidade dos anos
Sociedade José Júlio Rodrigues de Proteção às 60 e está em vias de desaparecimento. Todavia,
Bordadeiras Madeirenses, associação de bene- em Itapajé, no Ceará, em Fortaleza, mantém‑se
ficência sobre a qual pouco se sabe. A partir vivo. Aqui, a cidade é conhecida como a capital
de dezembro de 1907, como se disse, a inicia- do bordado, que é uma das suas principais ati-
tiva coube às casas alemãs. Nesta data, as casas vidades económicas. Na Venezuela, os testemu-
Wilhelm Marum, R. Kretzchan e George War- nhos de muitas das mulheres madeirenses que
tenberg criaram uma caixa de socorros para os saíram da Ilha nos anos 50 revelam que não
cerca de dois mil trabalhadores que emprega- se perdeu o hábito de bordar, havendo casos
vam. Todos passaram a usufruir de assistência em que se enviaram as peças desde o Funchal,
médica e de medicamentos gratuitos, sendo os devolvendo‑as depois já bordadas.
fundos para a manutenção deste serviço resul- A homenagem à atividade da bordadeira,
tantes do desconto mensal de 50 réis por tra- insistentemente louvada por todos os que co-
balhador feito por cada casa. O alargamento nheceram o seu trabalho, só aconteceu a 30 de
deste sistema de proteção social só sucedeu junho de 1986, com a inauguração da estátua
a partir de 1946, com a criação da Caixa de do escultor Anjos Teixeira nos jardins do então
Previdência. Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesana-
O Grémio dos Industriais dos Bordados, que, to da Madeira.
como vimos, foi fundado em 1935, teve tam-
bém uma ação de relevo no apoio ao sector e
às bordadeiras. Em 1961, criaram‑se escolas in-
Técnicas e materiais
fantis em Câmara de Lobos e Machico que per- Tal como notámos antes, a segunda metade
mitiram o ensino do trabalho da agulha a mais do séc. xix foi marcada por profundas alte-
de 691 crianças. Atente‑se a que, já em 1914, rações nas técnicas usadas no bordado, bem
o Colégio Lisbonense ensinava as técnicas dos como nos tecidos e nos padrões bordados, que
diversos pontos do bordado nos lavores femi- foram ajustados aos padrões mais solicitados
ninos. E, mais tarde, em 1961, as bordadeiras pelos mercados de destino do produto. Primei-
foram apoiadas através da construção de um ro os Ingleses, através de Ms. Phelps, e, depois,
bairro residencial com 30 moradias. os Alemães deram o contributo mais significa-
O séc. xx foi marcado pela dispersão dos ma- tivo para a revolução do bordado e a afirmação
deirenses por diversos destinos de acolhimen- deste no mercado externo.
to. A crise e as dificuldades provocadas pelas Os tecidos mais comuns para bordar eram o
guerras mundiais e pela situação de abandono algodão de cassa, a cambraia, o linho e a seda
516 ¬ B ordado , comércio do
a apresentar‑se como uma mistura do francês duas exposições”, Atlântico, n.º 8, 1986, pp. 245‑257; CLODE, Luiza, e BRAZÃO,
Teresa, Bordados‑Madeira. 1850‑1930, Funchal, DRAC, 1987; DIONÍSIO, Fátima
(com o richelieu), suíço e veneziano. Note‑se Pitta, “Lágrimas correndo mundo. O bordado madeirense como dor e como
que os Italianos, nos anos 50, impuseram os arte”, Islenha, n.º 30, jan.‑jun. 2002, pp. 107‑109; FERREIRA, Duarte Nuno
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dos diversos motivos bordados às tendências ar- Visita à Madeira e a Portugal (1853‑1854), Funchal, JGDAF, 1970; FRUTUOSO,
Gaspar, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural
tísticas dominantes, como a art nouveau e déco. de Ponta Delgada, 1979; GONÇALVES, Manuel, As Raparigas dos Bordados,
Desde então, até começos do séc. xxi, tem‑se Funchal, s.n., 1902; GOUVEIA, Horácio Bento, Lágrimas Correndo Mundo,
Coimbra, Coimbra Editora, 1959; GUERRA, Jorge Valdemar, “Uma memória
mantido este tipo, subordinado a uma criado-
de 1822 do funchalense João Pedro Drumond”, Islenha, n.º 12, jan.‑jun. 1993,
ra arte de imaginação. Neste processo de trans- pp. 181‑208; Indústria de Bordados da Madeira, Funchal, Grémio dos Industriais
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formação do bordado madeirense ocorrido no
Para um projecto de museologia dedicado ao bordado da Madeira”, Islenha,
séc. xx enquadra‑se a policromia dos trabalhos n.º 43, jul.‑dez. 2008, pp. 185‑198; Id., Casa de Bordados, Funchal, DRAC, 2017;
feita por apelo dos mercados consumidores. LIMA, Fernando de Castro Pires de (dir.), A Arte Popular em Portugal, Ilhas
Adjacentes e Ultramar, vol. 1, Lisboa, Verbo, 1968; LIMA, Rui de Abreu de,
O bordado exportado para Inglaterra come- O Bordado Tradicional Português, Lisboa, Instituto do Emprego e Formação
çou por consistir apenas em tiras de pano bor- Profissional, 1994; LUCENA, Vasco, “Os bordados da Madeira”, in BARREIRA,
João (dir.), Arte Portuguesa. As Artes Decorativas, vol. 2, Lisboa, Excelsior, s.d.,
dadas que, já no destino, eram aplicadas sobre pp. 285‑297; “Madeira”, Modas e Bordados, ano xx, n.º 1146, 24 jan. 1934;
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de Informação, s.d.; Id., Bordados e Rendas de Portugal, Lisboa, Direcção‑Geral
O bordado da Madeira, perante as dificulda- do Ensino Primário, 1963; MATOS, Maria Izilda Santos de, “Costura batalhar.
des evidentes de um mercado limitado e exi- O cotidiano de trabalho e de luta feminino. São Paulo (1900‑1930)”, Textos de
História, vol. 8, n.os 1‑2, 2000, pp. 269‑284; MENEZES, Sérvulo Drumond de, Uma
gente, não agonizou. Pelo contrário, soube Época Administrativa da Madeira e Porto Santo, vol. 2, Funchal, Typ. Nacional,
vencer as dificuldades, diversificando as saídas 1850; NASCIMENTO, Francisco Ribeiro do, Bordados da Madeira nos Morros de
Santos, Santos, Prefeitura Municipal, 1992; The National Geographic Magazine,
económicas e ajustando‑se às exigências dos jul. 1934; Re‑Nhau‑Nhau, 22 ago. 1931; SANTOS, Teresa Catarina, O Bordado
clientes. A inovação esteve sempre presente na Madeira. O Processo Criativo do Bordado Madeirense, Dissertação de Mestrado
em Museologia apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e
história do bordado, em especial a partir dos
Tecnologias, Lisboa, texto policopiado, 2005; SANTOS, Victorino José dos
anos 80 do séc. xx. Esta situação continuou Santos, “Indústrias madeirenses bordados, artefactos de verga e embutidos”,
até aos dias de hoje, e as novas tecnologias e Boletim do Trabalho Industrial, n.º 5, 1906, pp. 3‑29; SILVA, A. Marques da,
“Industrias caseiras da Madeira. O bordado”, Mensário das Casas do Povo,
o design entraram no sector como uma tábua n.º 126, 1956, p. 22; SILVA, Elisabete, “Bomboteirismo. A arte de uma profissão”,
salvadora da tradição de bordar no novo milé- Xarabanda, n.º 4, 1993, pp. 13‑14; SOLEDADE, Maria da, Os Bordados da
Madeira. Viagem numa Fábrica de Bordados, Funchal, Eco do Funchal, 1957;
nio. Em todo este processo foi fundamental o VIEIRA, Alberto, “Ofícios e artesãos na história da Madeira”, Xarabanda, n.º 13,
trabalho e a paciência da bordadeira anónima, 2000‑2001, pp. 3‑9; Id., O Bordado da Madeira, Funchal, Bordal, 2006; WALTER,
Carolyn, e HOLMAN, Kathy, The Embroidery of Madeira, New York, Union
a peça fundamental do universo em questão, Square Press, 1987; WILHELM, Eberhard, “Estrangeiros na Madeira. João Wetzler
mas a que menos dele fruiu. industrial de bordados, antiquário e doador duma colecção de pratas”, Islenha,
n.º 2, jan.‑jun. 1988, pp. 69‑76; Id., “As casas alemãs de bordados entre 1880
A História regista dois produtos que, ontem e 1916 e a família Shnitzer”, Islenha, n.º 7, jul.‑dez. 1990, pp. 52‑60; Id., “João
como hoje, são a imagem de marca do arqui- Wetzler. Vendendo bordados e antiguidades, um refugiado judeu fez fortuna na
ilha da Madeira”, Revista de Estudos Judaicos, n.º 3, 1996, pp. 83‑92.
pélago: o vinho e o bordado. Eles correram
mundo e foram, e continuam a ser, produtos de † Alberto Vieira
grande interesse económico que sempre deram
aos estrangeiros a mais elevada maquia e ao ma-
deirense uma magra esmola. O bordado pode Borge, Oscar Fredrik
muito bem ser entendido como uma obra de
arte, mas aqui o artista é anónimo, tanto o dese- Biólogo limnologista e político ativo no movi-
nhador, que traça de forma primorosa os moti- mento operário sueco, nasceu a 21 de janeiro
vos florais e a composição, como a bordadeira, de 1862 em Estocolmo e faleceu nessa cidade
que dá forma e relevo ao traço dele. a 4 de janeiro de 1938. Estudou em Estocol-
mo e Uppsala, onde se doutorou em 1895. Par-
Bibliog.: ARAÚJO, Ana Lídia Pereira Garanito, “Memórias bordadas”, Girão,
n.º 3, 2006, pp. 58‑60; CÂMARA, Benedita, A Economia da Madeira (1850‑1914),
ticipou na expedição à Patagónia organizada
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2002; CÂMARA, Paulo Perestrelo da, pelo antropólogo sueco Erland Nordenskiöld
Noticia sobre a Ilha da Madeira, Lisboa, Typ. da A. das Bellas Artes, 1841;
CLODE, Luiza, “Bordados. Indústria caseira”, Das Artes e da História da
em 1899. Foi membro do conselho da cidade
Madeira, vol. 8, n.º 38, ano xviii, s.d., pp. 31‑40; Id., “Madeira. A propósito de de Estocolmo e deputado no Parlamento pelo
518 ¬ B orges , J o ã o G on ç alves
Manuel Biscoito
Fig. 2 – Chegada de Vasco Borges ao Funchal, sendo recebido pelo Gen. Simões Soares e pelo deputado Ribeira Brava, 1914
(Ilustração Portugueza, 1 jun. 1914, 703).
implantou uma ditadura e conduziu ao Esta- Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998;
digital: “Vasco Borges”, App Parlamento, s.d.: http://app.parlamento.pt/
do Novo. PublicacoesOnLine/DeputadosAN_1935‑1974/html/pdf/b/borges_vasco.pdf
A posição política de Vasco Borges transitou (acedido a 10 maio 2018); “Vasco Borges”, Grão‑Mestre das Ordens Honoríficas
Portuguesas, s.d.: http://www.ordens.presidencia.pt/?idc=153 (acedido a 10
então de uma ativa participação governativa maio 2018).
na Primeira República para o grupo dos ele-
Rui Carita
mentos apoiantes do Estado Novo, onde era
apontado como um dos confidentes de An-
tónio de Oliveira Salazar (1889‑1970), como Botelho, Sebastião Xavier
descrito na sua nota biográfica parlamen-
tar, em relação à então Assembleia Nacional, A 15 de junho de 1818, foi nomeado gover-
onde esteve como deputado na Primeira e Se- nador e capitão general da Madeira o juiz de-
gunda Legislaturas, entre 1935 e 1942. Nesta sembargador Sebastião Xavier Botelho, que
nota, constam as suas participações como mi- chegou ao Funchal a 12 de maio do ano se-
nistro nos vários governos da Primeira Re- guinte e tomou posse três dias depois na Câ-
pública, mas não a sua passagem pelo lugar mara Municipal do Funchal, como era hábito.
de governador civil do Funchal. Foi feito co- O novo governador embarcara em Lisboa a 27
mendador da Ordem Militar de Cristo a 28 de de abril na fragata Vénus, mas ficou no Tejo du-
junho de 1919, elevado à Grã‑Cruz da mesma rante oito dias “por causa dos ventos duros e
Ordem a 2 de dezembro de 1924 e faleceu em contrários, só se fazendo à vela” a 6 de maio,
Lisboa a 19 de novembro de 1942. pelo que só chegou “às sete horas da tarde” do
dia 12 de maio ao Funchal, como informou
Bibliog.: impressa: Ilustração Portugueza, 1 jun. 1914; MELLO, Luís de Sousa,
dois dias depois (ABM, Governo Civil, liv. 202,
e CARITA, Rui, Associação Comercial e Industrial do Funchal. Esboço Histórico
(1836‑1933), Funchal, Edicarte, 2002; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, fls. 105v.‑106).
522 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier
Fig. 3 – Vista do antigo Colégio dos Jesuítas, Edward Hawke Locker, julho de 1805 (ABM, Arquivos Particulares).
tendo em conta que a Coroa só autorizava que área. Por exemplo, com a morte do bacharel
tal se fizesse em Cabo Verde; 2. a anuência ao José Julião de França e Vasconcelos, proprietá-
requerimento, de janeiro de 1817, para que se rio do ofício de juiz dos órfãos de Machico, o
proibisse a entrada de rum e de outras bebidas governador mandou perguntar como havia de
espirituosas; 3. a compra dos vinhos que se pre- proceder para o preencher. Em julho de 1819,
tendia efetuar por conta da Fazenda Real, com tinham‑se apresentado o novo juiz de fora, Luís
o objetivo de os vender em Londres, para en- Ribeiro de Sousa Saraiva, e o novo corregedor,
contrar um meio alternativo de financiamento Luís Gomes de Sousa Teles, ambos chegados à
da Coroa (pretensão que remontava a dezem- Ilha sem carta régia de nomeação devidamen-
bro 1818). te assinada. Embora lhes tenha dado posse do
Detetara igualmente um atraso na arrecada- lugar, não deixou de insistir várias vezes nas
ção, na ordem dos “quatrocentos contos, o que dificuldades que causavam incorreções desse
provém dos muitos devedores falidos”. Achava género. O anterior juiz e corregedor, Manuel
assim que “arrecadar com execuções vivas este Caetano de Almada e Albuquerque, tinha se-
débito” seria “um sistema destrutivo dos habi- guido para o Rio de Janeiro a 16 de janeiro de
tantes da Ilha, cujos cabedais têm diminuído 1817, aliás com muito boa informação do ante-
progressivamente”. O melhor sistema seria pro- rior governador, pelo que Sebastião Xavier Bo-
ceder a “consignações módicas, conciliando os telho optou por lhes dar posse do lugar, dado
interesses da Fazenda Real com os dos habitan- que a falta das autoridades superiores dessa
tes desta Capitania” (Ibid., Madeira, doc. 4624). área era altamente gravosa para a Ilha.
Como jurista que era, deu também, logo Pouco tempo depois, haveria de alvitrar para
de início, especial atenção aos assuntos dessa o Rio de Janeiro que se aplicasse na Junta do
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 525
Crime ou Junta das Justiças da Madeira a lei de Quanto à organização administrativa insular,
15 de novembro de 1810, que instituía e enqua- para além de fortes críticas ao desempenho
drava idêntico órgão nos Açores. Uma das suas dos poderes locais, Sebastião Xavier Botelho
principais preocupações foi o sustentáculo eco- advogou, em 1821, a necessidade de rever a di-
nómico desse órgão, que assentava no dinhei- visão do território, algo que acabaria por acon-
ro das condenações, de que era depositário Joa- tecer após 1834/1835. A este respeito, convém
quim Coelho de Meireles. Foi com base nesta não esquecer que Xavier Botelho era apenas
Junta que, em setembro, Xavier Botelho difun- o segundo governador a não ter de lidar com
diu as novas instruções sobre o Registo do Porto a presença militar britânica e com tudo o que
e que, no ano seguinte, ainda ampliava as ins- esta trouxera, social, política e economicamen-
truções de polícia com 22 artigos sobre os pro- te, desde a divisão de poderes imposta (entre
cedimentos a observar na chegada das embar- 1807 e 1814) até ao relacionamento, relativa-
cações, nas visitas aos navios e no controlo dos mente próximo, que os comandantes milita-
passaportes. Como governador e jurista, igual- res britânicos haviam fomentado com os natu-
mente se interessou por um assunto que até rais da Ilha e os poderes locais, alheando‑se,
então, embora objeto de reparos, não havia en- frequentes vezes, das autoridades insulares
contrado solução: os honorários dos oficiais de (governador, corregedor e juntas). Quanto
justiça da Ilha. No quadro da Junta das Justiças às acusações que fez contra os poderes locais
mandou então reunir, em meados de novembro e os seus “abusos”, “violências” e “extorsões”,
de 1820, todos os advogados do Funchal, nessa apesar de estarem, por vezes, baseadas em re-
altura 16, para se tentar encontrar um consenso latos de terceiros ou resultarem de uma análi-
com vista à unificação das suas remunerações. se superficial ou intuitiva de alguns casos, para
A 22 desse mês de novembro surgia então um além de serem fruto dos próprios interesses de
regulamento provisional com vista à regulamen- consolidação do poder do novo governador, a
tação dos salários dos oficiais de justiça da Ilha. verdade é que se apontavam práticas em rela-
A situação eclesiástica também lhe mereceu ção às quais as queixas já eram antigas. O que
juridicamente algumas reservas. Desde a che- então estava em causa seria uma das constan-
gada à Ilha do bispo de Meliapor e eleito de tes da primeira metade do séc. xix na Madei-
Elvas, D. Fr. Joaquim de Meneses e Ataíde (1765 ra, como o foi no reino: a (elevada) corrupção
‑1821), que a situação era delicada, tendo havi- nas estruturas administrativas (centrais, insula-
do, pelo menos inicialmente, uma franca oposi- res ou locais), que ia desde a simples cobran-
ção do cabido ao novo administrador diocesano. ça indevida de custos, taxas e emolumentos até
Embora alguns cónegos não merecessem, por ao desvio de fundos e à gestão fraudulenta dos
vezes, muita confiança, como já informara o an- recursos existentes, passando pelo benefício e
terior governador, Xavier Botelho colocava algu- usufruto de um conjunto de facilidades e de
mas dúvidas em relação à prisão do Cón. Gregó- privilégios que a lei não previa.
rio Rodrigues de Abreu, às ordens do prelado.
O cónego teria insultado o bispo e outros cóne-
gos da Sé, apelidando‑os de pedreiros‑livres. Em
Visita de reconhecimento à Ilha
causa estaria a recente alteração dos estatutos do Logo nestes primeiros meses do seu governo,
cabido da Sé, feita pelo administrador diocesa- Sebastião Xavier Botelho resolveu visitar toda
no e onde o mesmo assumia um novo papel na a Ilha, saindo em finais de agosto do Funchal,
área da nomeação dos cónegos. Não só por o pelo Oeste, e pensando levar nessa volta cerca
bispo eleito de Elvas não ser bispo do Funchal, de 20 dias, assunto que comunicou para o Rio
mas somente administrador diocesano, como de Janeiro. O governador fez‑se acompanhar
por todo o desenrolar do processo, Xavier Bote- pelo Brig. Jorge Frederico Lecor (c. 1775
lho levantou algumas dúvidas em relação à juris- ‑1822) e pelo Ten.‑Cor. Paulo Dias de Almei-
dição eclesiástica do Funchal. da (c. 1778‑1832), saindo do Funchal a 20
526 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier
Fig. 4 – Planta da Costa e Vila de Santa Cruz, Paulo Dias de Almeida, 1820 (DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia
Militar, 3546-II-3-31-43).
Fig. 6 – Planta da Costa do Caniço, Paulo Dias de Almeida, 1820 (DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar,
3546-II-3-31-43).
(1771‑1828) referindo que “em roda da Ilha, Ilhéu de que se falava há anos, com a monta-
por mal‑entendido sistema de fortificação gem de dois paióis, assim como a execução de
haviam‑se mandado estabelecer uma, 2, ou um outro, fora da mesma e junto à fortaleza do
mais peças de diversos calibres no cume das Pico de São João, o depois paiol geral, mandan-
montanhas que ladeiam as povoações. É de do medir o terreno pelo então Ten.‑Cor. Joa-
notar que a ilha da Madeira é uma grande quim Casado Geraldes (c. 1785‑1845) e apro-
montanha [...]. As peças estão ferrugentas, vando a nomeação do comandante, o major
sem nenhum reparo, sem nenhuma fortifica- de milícias José Joaquim de Freitas e Abreu.
ção e já condenadas por inúteis” (Ibid., Gover- Nessa altura, alterava também o sistema de re-
no Civil, liv. 202, fls. 130ss.). Havia assim que gisto do porto com base na fortaleza do Ilhéu.
repensar a defesa das povoações ao longo das Tinha havido problemas com um navio britâ-
costas da Ilha, pois havia “a possibilidade dos nico, o Tortouse, no tempo de Florêncio José
piratas insurgentes fazerem alguma tentativa Correia de Melo, dado se encontrar estabele-
sobre os gados e mantimentos daquelas povoa- cido que as embarcações não podiam ancorar
ções” (AHU, Madeira, doc. 4697). Face a essa durante a noite, “disparando o Ilhéu um tiro
situação, acionou imediatamente a revisão da seco, repetindo outro com bala e não cessando
fortificação da Ilha, e um ano depois estavam o fogo até eles obedecerem”. No entanto, essa
em obras os fortes da costa do Funchal até Ma- determinação não se observava com os navios
chico. Destes trabalhos, na área do Caniço, de guerra, “que levantam como e quando lhes
Porto Novo e Santa Cruz, deixou‑nos Paulo convém”. Não concordando com o sistema, o
Dias de Almeida uma série de mapas e dese- governador estabeleceu “uma barca, para em
nhos muito pormenorizados. lugar dos tiros, avisar as embarcações de noite
Em junho de 1819, já Sebastião Xavier Bo- que não podiam entrar no porto” (Ibid., Go-
telho acionara os trabalhos da fortaleza do verno Civil, liv. 202, fls. 117, 127‑128v.). Como
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 529
Figs. 7 e 8 – Alçado e planta dos redutos dos Reis Magos e de S. Marcos, Paulo Dias de Almeida, Caniço, 1820 (AHMOP, Madeira 1820).
530 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier
Carvalhal (1778‑1837). João Francisco de Car- duas juntas, do Porto e de Lisboa, num curto
valhal tivera alvará de moço fidalgo durante o espaço de tempo, a 27 de outubro iniciavam
Governo de Sebastião Xavier Botelho e seria de- ‑se os trabalhos para a convocação das futuras
pois senador e deputado pela Madeira. O futu- Cortes Constituintes, nomeando‑se uma Junta
ro 2.º conde de Carvalhal (1831‑1888) era assim Provisória Preparatória das Cortes, para a qual
neto de Sebastião Xavier Botelho, ao qual have- foi convocado também o comerciante Luís
ria de suceder também como par do Reino. Monteiro.
As notícias do que se estava a passar no con-
tinente só chegaram à Madeira em meados do
Pronunciamento liberal de 1820 mês de setembro. Um navio inglês que se di-
A 24 de agosto de 1820, na Pç. de Santo Oví- rigia de Londres para o Rio de Janeiro levou
deo, no Porto, um grupo de militares e intelec- as proclamações dos rebeldes e dos governado-
tuais ligados ao Sinédrio, aos quais não eram res do Reino. Um dos passageiros era Joaquim
estranhas as lojas maçónicas, proclamou a ne- Inácio de Andrade Carreiro, sargento‑mor
cessidade de instalação de uma junta gover- de caçadores do Regimento de Lisboa, e um
nativa que restaurasse as antigas liberdades e outro era um comerciante que vinha de Lon-
propiciasse o reencontro do rei com a nação. dres. O comerciante recebera as informações
O pronunciamento, realizado em nome do por carta do seu correspondente em Lisboa,
rei, que, instalado no Rio de Janeiro, o desco- um negociante inglês, pelo que as proclama-
nhecia, foi impulsionado pela vitória das for- ções do Porto vinham naquela língua, embora
ças constitucionais espanholas, lideradas por a dos governadores do Reino viesse já em por-
Rafael de Riego (1784‑1823), que em janeiro tuguês e impressa. O governador teve acesso à
desse ano tinham forçado Fernando VII (1784 documentação através do sargento‑mor e ime-
‑1833) a repor “La Pepa”, a Constituição de diatamente a mandou traduzir e transmitir à
Cádis. Graças à ausência do Gen. William Be- corte no Rio de Janeiro, acrescentando: “Aqui
resford (1768‑1854), nessa altura no Rio de Ja- nada consta por navios que tenham chegado
neiro, em breve o pronunciamento se estendia dos portos de Portugal e foi esta a primeira
a Lisboa, a 15 de setembro, onde igualmente notícia a semelhante respeito” (Ibid., Governo
se formava uma junta ou governo interino de Civil, liv. 204, fls. 11, 13‑13v.).
que fazia parte o comerciante madeirense Luís A notícia foi depois confirmada pelo bergan-
Monteiro, como representante do alto comér- tim escuna português Providência, que entrou
cio lisbonense. Depois de acordado entre as no porto do Funchal a 25 de setembro e já
Fig. 11 – Letra Emitida na Ilha da Madeira para Pagamento ao Conde de Palmela em Londres; Keir Brothers, Madeira,
4 de março de 1824 (coleção de Adelino Adrião Melo Caravela).
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 533
trazia cartas e gazetas, voltando Sebastião Xa- do governador de “não ter feito cargo algum
vier Botelho a informar o conde dos Arcos dos da comunicação do Governo Intruso estabele-
acontecimentos, acrescentando que os mes- cido em Lisboa” (ABM, Governo Civil, liv. 200,
mos não haviam produzido nenhuma sensação fls. 95v.‑96). No mesmo dia, também se escre-
nem comoção popular, pelo que a população via sobre as notícias enviadas da Madeira acer-
se conservava indiferente a eles. Mesmo assim, ca dos acontecimentos no Porto e em Lisboa,
tinha adotado as necessárias providências para referindo “a indiferença com que os habitan-
evitar qualquer alteração da ordem pública na tes da Ilha haviam olhado” para tais aconteci-
Ilha e que se preparasse qualquer movimento mentos, louvando os “reconhecidos talentos
de adesão. Relata que a Revolta do Porto tam- do governador” (Ibid., Governo Civil, liv. 200,
bém se estendera a Lisboa, mas que unanime- fls. 96‑97) e a sua atitude de distanciamen-
mente foram juradas a manutenção da religião to em relação aos pronunciamentos. Curio-
católica, a conservação da Casa de Bragança e samente, estes ofícios só viriam a chegar ao
a obediência e a fidelidade ao rei, ao trono e Funchal muito tempo depois, em março de
às leis. Ficara assim subsistindo a administra- 1821, quando a situação já se havia alterado
ção de todos os ramos do Estado com os mes- completamente.
mos funcionários, magistrados, leis e as mes- Por meados de novembro de 1820, escalou o
mas formas, tudo em nome do rei e debaixo porto do Funchal o conde de Palmela, em via-
da mesma bandeira. Não se alterara o sistema gem de Londres para o Rio de Janeiro, onde
judicial e conservou‑se a ordem geralmente há muito era esperado, reunindo‑se então
estabelecida. com o governador, o qual lhe volta transmitir
Sebastião Xavier Botelho não cortara a co- a informação de que na Madeira a ordem era
municação com Lisboa, pois isso acarretaria completa e não se receava qualquer perturba-
terríveis consequências para a vida do arquipé- ção. Claro que a situação não era real, desa-
lago, que dependia de Lisboa em vários aspe- gradando profundamente aos partidários dos
tos administrativos, e não só, assunto que volta- pronunciamentos do Porto e de Lisboa a po-
ria a referir a 24 de janeiro do ano seguinte. De sição do governador, pelo que já tinham apa-
qualquer forma, reforçara o controlo das en- recido afixados uns pasquins nas paredes das
tradas e saídas do porto da cidade do Funchal, ruas mais centrais da cidade incitando o povo à
aspeto de que encarregara o Cor. António Re- revolta e, consequentemente, à violência, para
belo Palhares, e mandara o Brig. Frederico que a Madeira se pronunciasse favoravelmen-
Lecor rever toda a fortificação dos arredores. te em relação ao que se passava em Portugal
Nos finais de setembro, o Gov. Xavier Bote- continental. Depois de trocar impressões com
lho recebeu pelo correio o Infante D. Sebastião, o conde de Palmela, o governador desvaloriza-
a comunicação oficial do Governo Provisó- va a situação, informando que, como em toda a
rio, assinada pelo secretário barão de Molelos parte, havia mal‑intencionados que se aprovei-
(1779‑1852), acerca da nova ordem de coisas tam das circunstâncias e que também tinha re-
políticas que se tinham dado no país. Caute- cebido cartas anónimas contra o Governo e os
losamente, o governador voltou a transmitir magistrados, pedindo reformas na administra-
tudo para o Rio de Janeiro, mantendo as mais ção das coisas públicas, etc. No entanto, essas
sérias reservas em relação a esses acontecimen- ações não tinham produzido nenhum efeito,
tos “do governo intruso de Portugal” (AHU, tendo encarregado o então corregedor, Luís
Madeira, docs. 6185‑6187) e esperando uma Gomes de Sousa Teles, e o juiz de fora, José
posição oficial de D. João VI. Ribeiro de Sousa Saraiva, de tentarem localizar
A notícia enviada do Funchal teria chegado os autores dos pasquins.
ao Rio de Janeiro em meados de novembro, O governador, contudo, tinha mandado or-
pois nessa data a corte informaria a “concor- ganizar rondas noturnas civis e militares, em-
dância de Sua Majestade” em relação à atitude bora dentro da maior discrição, sem aparato,
534 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier
Fig. 12 – Pronunciamento de 28 de janeiro de 1821 no Funchal, João José do Nascimento, c. 1821 (Museu Quinta das Cruzes, n.º invent.
2345 MQC).
536 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier
as Cortes e a Regência, não deixando, con- Botelho e se preparava para o remover, como
tudo, de referir sempre para Lisboa a figura na verdade acabou por acontecer um mês de-
tutelar de D. João VI, das mãos do qual rece- pois. Um dos motivos – eventualmente o ca-
bera o Governo da Ilha. Com um certo des- talisador – teve que ver com o facto de o go-
fasamento, continuou também a manter cor- vernador se opor ao envio de tropas do reino
respondência com a corte do Rio de Janeiro. para o Funchal, algo que, na perspetiva dos
Em breve recebia as Bases da nova Constitui- poderes da metrópole, se temia que pudesse
ção política, que tinham sido aprovadas a 9 de estar ligado à (receada) intenção de D. João
março e logo enviadas para todo o país para VI (ou do príncipe regente D. Pedro) tentar
serem juradas, cuja receção prudentemente desembarcar na Ilha antes de jurar as Bases
não acusou de imediato para o Rio de Janei- da Constituição, algo completamente inacei-
ro, mas acataria depois a ordem da Regência tável, como é evidente, pela ameaça concreta
para mandar proceder ao seu juramento. A 26 que poderia representar para a manutenção
de março de 1821, tinham sido eleitos depu- política do poder instituído no reino.
tados da Madeira às Constituintes, que quase A 17 maio de 1821, as Cortes Gerais e as
logo seguiram para Lisboa. Constituintes optavam pelo afastamento do
governador da Madeira, nomeando para o
substituir D. Rodrigo António de Melo, que
Final do Governo de seria porém retardado algumas semanas em
Sebastião Xavier Botelho Lisboa para se oficializar a alteração do títu-
A situação na Ilha entretanto complicava‑se lo, que passou a ser somente “governador da
e assim se manteria ao longo do período li- ilha da Madeira”, desaparecendo assim a de-
beral, tendo inclusivamente aparecido um signação de “capitão‑general”. O novo gover-
panfleto impresso, em maio de 1821, con- nador saiu de Lisboa apenas a 11 de junho, e
tra o governador, o que era uma novidade. só chegaria ao Funchal na noite de 25 desse
Tinham também ocorrido mais alguns pro- mês, com 14 dias de viagem, o que não era
blemas com o padre (e também advogado) normal. Por acordo com Sebastião Xavier Bo-
Dr. Crisóstomo Spínola de Macedo, o que já telho, que desconhecia a nomeação de um
era um hábito e continuaria a sê‑lo. Teriam sucessor, aguardou até ao dia seguinte para
vindo umas cartas do continente dirigidas ao desembarcar, tomando posse a 30 de junho,
P.e Crisóstomo que, por engano ou de propó- nos paços do concelho, e, do Governo da Ilha
sito, o juiz de fora tinha mandado abrir, o que a 2 de julho, tendo o ex‑governador regressa-
motivou um processo movido pelo advogado do na mesma fragata, cinco dias depois.
em questão. Também chegara a informação O desembargador Sebastião Xavier Botelho
ao governador de que tinha sido suspenso o ainda seria nomeado, a 23 de junho de 1824,
juiz dos órfãos, Dr. José Julião de França e governador de Moçambique, cargo que deteve
Vasconcelos, que servia aquele ofício desde até 1829, e depois governador dos Açores e de
outubro de 1807, suspensão efetuada pelos Angola, mas não chegou a tomar posse, alegan-
juízes ordinários de Machico e São Vicente, do, para a escusa, o facto de não ser militar de
“sem que de tal procedimento me dessem carreira. Foi então encarregado de negócios
parte” (Ibid., Governo Civil, liv. 195, fls. 41v. da delegação portuguesa em Paris e, ao abri-
‑42v.), como escreve Xavier Botelho. Tendo go desta função, recebeu vários adiantamentos
‑se averiguado o que se passava, chegou‑se à pagos pela Junta da Fazenda da Madeira (em
conclusão de que a base jurídica tinha sido março de 1835, estava registado como devedor
dada pelo P.e Crisóstomo. de 1750$00 réis). Mais tarde, foi também mem-
Por todas estas e outras razões, já desde o bro da Regência do Brasil, tendo sido nomea-
final de abril corria o rumor de que o Reino do par do Reino a 4 de janeiro de 1836. Regres-
perdera a confiança em Sebastião Xavier sando a Portugal continental, conservou‑se
538 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier
Bowdich, Thomas Edward Fig. 1 – Thomas Edward Bowdich, litografia de James Thomson,
1834 (National Galleries of Scotland, Escócia).
Thomas Edward Bowdich, escritor e viajan-
te inglês, nasceu em Bristol a 20 de junho de
1791 e faleceu em Banjul, capital da Gâmbia, a barão Georges Cuvier, assim como de Alexan-
10 de janeiro de 1824. der von Humboldt e outros eminentes sábios,
Na sua juventude estudou em escolas pú- que o receberam muito bem e o ajudaram na
blicas em Bristol, demonstrando maior incli- consolidação da sua cultura científica. Durante
nação para as letras do que para as ciências. a sua estada em Paris publicou diversos traba-
Inicialmente, pensou seguir advocacia, mas lhos científicos, incluindo de história natural.
seu pai, fabricante de chapéus e comercian- Ficou famoso o seu ensaio sobre as supersti-
te, colocou‑o como sócio na firma. Em 1813, ções, os costumes e as artes comuns aos Egíp-
casou‑se com Sarah Wallis, com a qual parti- cios, Abissínios e Asantes, que constitui o pri-
lhava o interesse pela natureza, as viagens e a meiro grande estudo da cultura e história da
aventura. Inscreveu‑se ainda em Oxford, mas África Ocidental.
não concluiu os estudos aí. Em 1814, conse- Em 1822, viajou com a mulher para Lisboa,
guiu um lugar de escriturário na Royal Afri- onde esteve pouco mais de um mês, consultan-
can Company e partiu para a cidade de Cabo do aí arquivos públicos e privados e escreven-
Corso, no Gana. Em 1816, integrou uma mis- do um trabalho sobre as descobertas dos Por-
são, que acabou por chefiar, ao Império Asan- tugueses em Angola e Moçambique que viria a
te, na Costa do Ouro, tendo obtido um acordo ser publicado em 1824.
com o rei no qual se assegurava a paz e se pre- De Lisboa seguiu para o Funchal, onde che-
servavam os interesses ingleses na região. gou a 14 de outubro de 1822. Permaneceu na
Regressado a Inglaterra em 1818, Bowdich Madeira um ano, tendo sido hóspede do co-
denunciou a corrupção e a ineficiência na merciante e cônsul inglês Henry Veitch. Efe-
Royal African Company. Mudou‑se, dois anos tuou várias viagens pela Ilha, visitando também
depois, para Paris, onde estudou matemática, Porto Santo. Durante esta estadia, efetuou ob-
física e história natural. Aí tornou‑se íntimo do servações meteorológicas, assim como colheitas
540 ¬ B owdich , T homas E dward
Including the Fossil Genera and the Animals (1822); An Account of the Discoveries sem margem para dúvidas, o seu compromisso
of the Portuguese in the Interior of Angola and Mozambique (1824); Excursions in político para com o liberalismo.
Madeira and Porto Santo […] (1825) (coautoria).
O regresso de D. Miguel ao trono e a reim
Bibliog.: impressa: BOWDICH, Thomas E., e BOWDICH, Sarah, Excursions in
plantação do Absolutismo em 1828 voltaram a
Madeira and Porto Santo during the Autumn of 1823, while on His Third Voyage
to Africa to Which Is Added by Mrs Bowdich a Narrative of the Continuance of causar dissabores a Santa Catarina Braga, que
the Voyage to Its Completion, together with the Subsequent Occurrences from Mr. se refere a esse período afirmando ter traba-
Bowdich’s Arrival in Africa to the Period of His Death. A Description of the English
Settlements on the River Gambia. Appendix: Containing Zoological and Botanical lhado “incessantemente, adido à legação por-
Descriptions and Translations from the Arabic, London, Whittaker, 1825; digital: tuguesa, nos tempos mais arriscados e mais
WESTBY‑GIBSON, John, “Bowdich, Thomas Edward (1791(?)‑1824)”, Oxford
Dictionary of National Biography, Oxford, Oxford University Press, 2004: http:// calamitosos” que flagelavam os súbditos da
www.oxforddnb.com/view/article/3027 (acedido a 6 mar. 2017). rainha “nos mundos ambos” (CARDOZO e
Manuel Biscoito COUTINHO, 1849, I, 7), e nesta situação se
manteve até ao regresso a Portugal, em 1834.
De novo no reino, foi “despachado Cóne-
Braga, António Alfredo de Santa go da Sé Metropolitana da Extremadura” (Id.,
Ibid.) e, perto do fim desse ano de 1834, envia-
Catarina
do para a Madeira na qualidade de governa-
António Alfredo de Santa Catarina Braga foi dor do bispado, cargo que assumiu por decre-
um frade franciscano, pertencente ao Con- to de 7 de novembro.
vento de S.to António do Vale da Piedade, no Chegado ao seu destino, Santa Catarina
Porto, nascido na mesma cidade em data in- Braga envolveu‑se muito rapidamente numa
certa, mas situável nos fins do séc. xviii. ação polémica que visava extinguir uma de-
Em 1806, e segundo palavras do próprio, foi voção antiga e muito enraizada na população
“promovido ao magistério público”, tendo le- madeirense, sobretudo entre os moradores
cionado Filosofia Racional, Moral e Teologia de Câmara de Lobos, que consistia na vene-
Dogmática até 1819 na instituição em que pro- ração prestada a Fr. Pedro da Guarda, um
fessara. Adepto dos ideais liberais, abandonou franciscano dos primórdios do povoamen-
o convento e a Ordem Seráfica em 1820, pas- to que o povo considerava santo. Atenden-
sando a clérigo secular, condição em que foi do a que, de facto, o processo de beatificação
colocado como pároco na Abadia de S. Salva- do frade nunca se completara, não obstante
dor da Aveleda, da qual saiu “como vítima das
vicissitudes políticas de 1823” (CARDOZO e
COUTINHO, 1849, I, 6), rumo ao desterro
em Cabo Verde.
Dali partiu, em 1826, para o Brasil, onde
teve a honra de “ser o primeiro eclesiástico
português chamado ao real serviço de Sua
Majestade, a Rainha” (Id., Ibid.). Nessa corte,
pronunciou, a 30 de outubro do ano da che-
gada, um sermão por ocasião do “solene jura-
mento dos súbditos portugueses ali residentes
à carta constitucional da Monarquia Portu-
guesa”. O texto dessa “Oração”, publicado no
Porto em 1827, está eivado de louvores à nova
situação política, e nele abundam referências
à “Sublime CARTA”, ao “Magnífico Libertador
da Monarquia Portuguesa”, D. Pedro IV, e ao
“Santo Código” (BRAGA, 1827, 6‑7), nome por Convento de S. Bernardino, em Câmara de Lobos, litografia de
que designa a Constituição, demonstrando, Luís Bernes, 1898 (Semana Ilustrada, n.º 28, 1898).
542 ¬ B raga , A nt ó nio A lfredo de S anta C atarina
a sua vela acesa, acrescido de outras punições do novo governo liberal”. A isto acrescenta-
só para o homem: varrer a igreja e a sacristia va que o cónego não cumpria a abstinência,
todos os sábados durante dois meses e deitar “dizendo aos criados que lhe preparassem ga-
água benta nas pias. Outros registos mostram linha nos dias de jejum”. Sempre de acordo
o cónego a cumprir o seu programa visita- com a mesma fonte, Santa Catarina Braga re-
cional e a atuar sobre a geografia paroquial, comendava aos criados que comessem peixe,
mandando, e.g., anexar a freguesia de Água de embora para ele devessem preparar a dita
Pena à recém‑criada paróquia de Santo Antó- ave, uma vez que pretendia “deitar a bênção a
nio da Serra (13 de junho de 1836). esta galinha e ela fica logo convertida em tai-
A 26 de março de 1840, António Alfredo nha”. Estes não seriam os únicos pecados do
de Santa Catarina Braga cessou as suas fun- governador do bispado, dado que, chegado a
ções no Funchal, destinando‑se essa exone- Lisboa, se teria entregado a vários negócios,
ração, que o próprio considera “muito hon- entre os quais o de uma fábrica de manteiga e
rosa”, a permitir‑lhe restabelecer as forças depois o de uma de papel. Acompanhando as
físicas e morais, embora depois comente que memórias do criado, o cónego, já velho, aca-
“via declinar a estação favorável sem poder baria por se retirar para a casa de um parente
aproveitá‑la”. Referia‑se o cónego à sua indigi- na Covilhã, onde ficara entrevado, ainda que
tação para o bispado de Bragança, que se via se mantivesse “muito amigo de mulheres”, as
compelido a declinar, uma vez que, embora quais mandaria que lhe passassem à frente e
nunca se tivesse recusado a cumprir o serviço “como não podia fazer outra coisa, acenava
da Igreja e do Estado, sentia estarem os seus ‑lhes com o dedo indicador que era o único
“dias adiantados e debilitada em extremo” a que podia mover” (Revista do Arquivo…, 2016,
sua saúde para “ir afrontar o inverno iminen- 306, mç. 1, doc. 61).
te, em um dos países [sic] mais rigorosos do Estas apreciações, bastante preconceituosas,
Norte de Portugal”, tanto mais que havia “re- são feitas sobre um homem a quem Inocên-
sidido por mais de dezassete anos em regiões cio Francisco da Silva, no seu Dicionário Biblio-
nimiamente áridas, ou abrasadas por um sol gráfico, se refere afirmando que teve carta de
ardente”. Por isso, suplicava humildemente à pregador régio e foi condecorado com o grau
rainha que se dignasse escusá‑lo “desta nova de cavaleiro das ordens de Cristo e de Nossa
comissão”, a qual não podia “desempenhar Senhora da Conceição, e que ainda considera
satisfatoriamente” (CARDOZO e COUTINHO, ter “gozado por muitos anos dos créditos de
1849, I, 7) insigne orador sagrado” (SILVA, 1858, I, 70).
Sem que se saiba exatamente como o cóne-
Obras de António Alfredo de Santa Catarina Braga: Oração Recitada na
go acabou os seus dias, um documento curioso Igreja de S. Francisco de Paula da Corte do Rio de Janeiro, por ocasião do Solemne
e muito parcial da autoria do P.e Teodoro João Juramento dos Súbditos Portuguezes ali Residentes, à Carta Constitucional da
Monarquia Portugueza, em 30 de Outubro de 1826 (1827).
Henriques dá para isso algumas explicações,
que devem, no entanto, ser lidas com reserva, Bibliog.: manuscrita: ACDF, cx. 45, docs. 32‑33 e 148.3; impressa: BRAGA,
António Alfredo de Santa Catarina, Oração Recitada na Igreja de S. Francisco de
dado o enviesamento da prosa. Diz o P.e Teo-
Paula da Corte do Rio de Janeiro, por ocasião do Solemne Juramento dos Súbditos
doro Henriques ter tido conhecimento do des- Portuguezes ali Residentes, à Carta Constitucional da Monarquia Portugueza, em
30 de Outubro de 1826, Porto, Imprensa do Gandra, 1827; CARDOZO, Francisco
tino de Santa Catarina Braga através do teste-
de Sales Gomes, e COUTINHO, Francisco Jozé (orgs.), Miscellanea ou Collecção
munho de um criado do cónego, que sobre Curiosa de Varios Escriptos Religiosos, Civis, Políticos, Moraes e Literários de
ele tinha opinião muito desfavorável, uma vez Diversos Authores, a Principiar pel’os do Insigne e Eloquente Orador Fr. Antonio
Alfredo de Santa Catharina Braga, Egresso do Exctinto Convento de S. Antonio
que o acusava de ser de “muito mau génio e do Valle da Piedade no Porto, t. i, Porto, Typ. Commercial, 1849; Flor do Oceano,
de mau coração”, pois “parecia não dormir 21 jun. 1835; Revista do Arquivo Histórico da Madeira, vol. xxiii, 2016; Semana
Ilustrada, n.º 28, 1898; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
para pensar em fazer mal ao próximo”. O dito de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984; SILVA, Francisco
criado tinha outras razões para não estimar o Inocêncio, Diccionario Biobibliogaphico Portuguez, Applicaveis a Portugal e ao
Brasil, ts. i e viii, Lisboa, Imprensa Nacional, 1858.
cónego, uma das quais era ter sido preso às
suas ordens, por “lhe constar que falava mal Cristina Trindade
544 ¬ B raga , T e ó filo de
Braga, Teófilo de
Filho de Joaquim Manuel Fernandes Braga e
Maria José Albuquerque, aristocratas liberais
açorianos, nasceu em Ponta Delgada, ilha
de São Miguel, Açores, a 24 de fevereiro de
1843.
Começou a atividade literária ainda muito
jovem, na tipografia A Ilha, colaborando nos
periódicos açorianos O Meteoro e O Santel-
mo. Cessados os estudos em Ponta Delgada,
matricula‑se em Direito na Univ. de Coim-
bra, vindo a doutorar‑se em 1868. Toma parte
na célebre polémica Questão Coimbrã com
o texto Teocracias Literárias, colocando‑se
ao lado de Antero de Quental e opondo‑se,
assim, a António Feliciano Castilho. Em 1872,
foi admitido como lente na cátedra de Litera-
turas Modernas no Curso Superior de Letras,
cargo disputado por Manuel Pinheiro Chagas
e Luciano Cordeiro.
Teófilo de Braga torna‑se uma das figuras
mais respeitadas nos círculos intelectuais da Teófilo de Braga enquanto Presidente da República, 1915 (Estúdio
António Novais).
segunda metade do séc. xix e inícios do xx
em Portugal. Trabalhador incansável, escritor
prolífero, deixou uma vasta obra multidisci- República, e o segundo, a 14 de maio de 1915,
plinar, tanto a nível literário como científico, quando substitui na Presidência da Repúbli-
reveladora do seu génio brilhante e determi- ca Manuel de Arriaga, após um levantamento
nado. Como escritor, destacou‑se na poesia, militar, tornando‑se o segundo presidente da
no conto fantástico e no romance histórico, República Portuguesa.
realizando também algumas traduções. En- Relativamente à Madeira, Teófilo de Braga
quanto académico, dedicou‑se aos estudos li- consagra o segundo capítulo do livro Poetas
terários, à história da literatura, à filosofia e à Palacianos aos poetas madeirenses presentes
etnografia, sendo um precursor dos estudos no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
sociológicos em Portugal. O seu pensamen- Este capítulo aparece transcrito por Álvaro
to científico estava imbuído da doutrina po- Rodrigues de Azevedo nas suas anotações no
sitivista de Auguste Comte, da qual Teófilo de livro Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso
Braga foi arauto em Portugal, dirigindo, em (1873). Teófilo de Braga refere, assim, auto-
parceria com Júlio de Matos, a revista O Posi- res como Manoel de Noronha, Tristão Teixei-
tivismo (1878‑1882), órgão de divulgação da ra das Damas, João Gonçalves e Pero Correia,
filosofia positivista. observando que estes constituem uma escola
Dedicou‑se à política, em particular à poética madeirense que germinou no tempo
causa republicana, mais intensamente entre do Rei D. Duarte. O insigne académico inti-
1870 e 1890, atingindo a sua carreira políti- tula tal escola “Ciclo Poético da Ilha da Ma-
ca dois pontos altos: o primeiro momento, a deira”, defendendo que esta foi influenciada
5 de outubro de 1910, na ressaca do sucesso pela poesia aragonesa, com impressões da tra-
da revolução republicana, sendo nomeado dição lendária inglesa denunciadas pela lenda
para a presidência do Governo Provisório da de Machim e Ana de Arfet, e que constituiu
B ranco , J o ã o de F reitas ¬ 545
um ramo diferente dos poetas palacianos do do Romantismo em Portugal (1880); História do Romantismo em Portugal.
Ideia Geral do Romantismo. Garrett – Herculano – Castilho (1880); Os Homens
continente do reino presentes no Cancioneiro d’hoje (1880); Origens Poéticas do Christianismo (1880); Dissolução do Systema
Geral. Monarchico‑Representativo (1881); Memórias de Paulina. Episódio do Séc. XVII
(1881); Camões. A Tipografia e as Ciências do Século (1882); Systema de Sociologia
Contudo, o anotador de Saudades da Terra, (1884); Curso de Historia da Literatura Portugueza (1885); O Mandato Imperativo
Álvaro Rodrigues de Azevedo, faz alguns repa- (1887); As Lendas Christãs (1892); As Modernas Ideias na Litteratura Portugueza
(1892); A Tipografia e as Ciências do Século XVI (1892); Historia da Universidade
ros às ideias de Teófilo de Braga, escrevendo de Coimbra nas Suas Relações com a Instrução Publica Portugueza (1892‑1902);
que “o grupo dos poetas madeirenses deste Dom Francisco Lemos e a Reforma da Universidade de Coimbra (1894); A Pátria
Portugueza. O Território e a Raça (1894); Sá de Miranda e a Eschola Italiana
período não constitui ciclo distinto, é apenas (1896); Bernardim Ribeiro e o Bucolismo (1897); O Baptismo das Náos. Poemeto
ramo do ciclo continental, porque não tem (1898); Eschola de Gil Vicente e Desenvolvimento do Teatro Nacional (1898);
Obra Posthuma (1898); Arcádia Lusitana. Garção, Quita, Figueiredo, Diniz (1899);
tipo próprio” (FRUTUOSO, 1873, 173). Não Mais Mundos. Poemeto Comemorando o IV Centenario do Descobrimento do
obstante, Teófilo de Braga tem o mérito de Brazil (1900); Sobre as Estampas ou Gravuras nos Livros Populares Portuguezes
(séc. xx); Camões e o Sentimento Nacional (1901); Eça de Queiroz e a Sua Obra
lançar as bases de uma historiografia literária (1901); Quarenta Anos de Vida Litteraria: 1860‑1900. Cartas… (1902); Garrett e o
madeirense. Romantismo (1903); Alma Portugueza. Viriatho, Narrativa Epo‑Historica (1904);
Frei Gil de Santarem. Lenda Faustiana da Primeira Renascença (1905); Garret e os
Apesar de tal desacordo, Teófilo de Braga
Dramas Românticos (1905); Quem Foi o Auctor do Segundo Don Quixote? (1905);
manterá com Álvaro Rodrigues de Azevedo Spinosa. Conferência Philosophica e Histórica (1905); Joaquim Silvestre Serrão e
a Música Religiosa em Portugal (1906); Romanceiro Geral Portuguez. Romances
correspondência e amizade. No seu livro Qua-
Heroicos, Novellascos e de Aventuras (1906‑1909); Alma Portugueza. Gomes Freire,
renta Anos de Vida Literária (1860‑1900) (1902), Drama Histórico (1907); Camões. Época e Vida (1907); Historia da Literatura
Portugueza (1909‑1914); O Martyr da Inquisição Portugueza Antonio José da Silva
podemos ler um total de 12 cartas, com datas
(1910); Discursos sobre a Constituição Política da República Portugueza (1911);
compreendidas entre 1861 e 1880, enviadas Stoicismo Divino por Joaquim de Araújo (1912); Tristão, o Enamorado. Quadros
por Álvaro Rodrigues de Azevedo. Do conteú- de Conjunto do Romanceiro Popular Português (1914); Camilo Castelo Branco.
Esboço Biográfico (1916); Os Dois Naufrágios de Camões (1916); Gil Vicente
do das cartas, destaca‑se a influência e inspi- Ourives e Gil Vicente Poeta (1916); Os Seiscentistas (1916); Os Amores de Camões.
ração que Teófilo de Braga exerceu em Álvaro Commentario Biográfico (1917); João de Deus. Escorço Biográfico (1930).
Rodrigues de Azevedo, nomeadamente na sua Bibliog.: impressa: BASTOS, Teixeira, Theophilo Braga e a Sua Obra, Porto,
recolha etnográfica e folclórica dos contos e Lugan & Genelioux, Successores, 1892; BRAGA, Teófilo de, Poetas Palacianos,
Porto, Imprensa Portugueza, 1872; Id., Quarenta Anos de Vida Literária (1860
cantigas populares da ilha da Madeira, que ‑1900), Lisboa, J. A. Rodrigues e C.ª, 1915; CARREIRO, José Bruno (org.), A Vida
originou o livro Romanceiro do Arquipélago da de Teófilo Braga. Resumo Cronológico, Coimbra, s.n., 1955; CIDADE, Hernâni,
Doutor Teófilo Braga. As Directrizes da Sua Obra de História Literária, Lisboa,
Madeira (1880). Ao mesmo tempo, pela leitu- Imprensa Nacional, 1935; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. História
ra das missivas, acompanhamos o processo de das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues
de Azevedo, Funchal, Typ. Funchalense, 1873; Romanceiro do Arquipélago da
elaboração do livro por Álvaro Rodrigues de Madeira, Funchal, Typ. Voz do Povo, 1880; digital: “Braga (Joaquim Teófilo
Azevedo, as reflexões, as dúvidas e os constan- Fernandes)”, O Portal da História, s.d.: http://www.arqnet.pt/dicionario/
bragateofilo.html (acedido a 30 jun. 2015); “Teófilo Braga”, Infopédia, s.d.:
tes pedidos de orientação a Teófilo de Braga. http://www.infopedia.pt/$teofilo‑braga (acedido a 30 jun. 2015); “Teófilo
Teófilo de Braga morre em Lisboa a 28 de Braga”, Presidência da República Portuguesa, s.d.: http://www.presidencia.
pt/?idc=13&idi=37 (acedido a 30 jun. 2015).
janeiro de 1924.
Carlos Barradas
Obras de Teófilo de Braga: Contos Tradicionais do Povo Portuguez. Com um
Estudo sobre a Novelística Geral e Notas Comparativas (s.d.); Gomes Freire de
Andrade (séc. xix); Na Tomada de Jerusalem. Às Nações Alliadas, Comemorando
o Feito das Tropas Oritannicas e dos Contígentes Francezes e Italianos (séc. xix);
Folhas Verdes (1859); Tempestades Sonoras (1864); Visão dos Tempos (1864);
Branco, Alfredo António
Contos Fantásticos (1865); As Theocracias Litterarias (1865); A Ondina do de Castro Teles de Meneses de
Lago (1866); Camões e Os Lusíadas. Estudo Crítico Publicado por Ocasião do
Tricentenário (1867); Cancioneiro e Romanceiro Geral Portuguez. Confecção e
Vasconcelos de Bettencourt
Estudos (1867); Historia da Poesia Popular Portugueza. Ciclos Épicos (1867);
Caracteristicas dos Actos Comerciais (1868); Floresta de Vários Romances (1868);
de Freitas
História do Direito Portuguez. Os Foraes (1868); Theses Escolhidas de Direito Ö Porto da Cruz, visconde do
(1868); Torrentes. Últimos Versos (1869); História do Teatro Portuguez (1870‑1871);
Epopêas da Raça Mosárabe (1871); Historia dos Quinhentistas (1871); Poetas
Palacianos (1872); Historia das Novellas Portuguezas de Cavalleria de Amadis
de Gaula (1873); Historia de Camões (1873); Manual da História da Litteratura
Portugueza. Desde as Suas Origens até ao Presente (1875); Bocage. Sua Vida e Branco, João de Freitas
Época Litteraria (1876); Traços Geraes de Philosophia Positiva. Comprovados pelas
Descobertas Scientificas Modernas (1877); Historia Universal. Esboço de Sociologia Médico, músico, naturalista e escritor madei-
Descriptiva (1878‑1882); Theoria da Historia Litteraria Portuguesa. Da Aspiração
Revolucionaria e a Sua Disciplina Democrática (1879); Camões. Drama Histórico
rense, nasceu no Funchal a 5 de agosto de
em 5 Actos (1880); Historia das Ideias Republicanas em Portugal (1880); História 1854. Estudou na Faculdade de Medicina da
546 ¬ B ranco , J o ã o S oares
Univ. de Coimbra, tendo sido um aluno bri- no Teatro Ginásio, em Lisboa, tendo estas
lhante. Completou os seus estudos em In- peças ficado em cartaz durante alguns anos.
glaterra, tendo‑se relacionado, em Londres, Traduziu e adaptou obras de dramaturgos no-
com os intelectuais mais importantes e de ruegueses, suecos, dinamarqueses e alemães
maior evidência da época. Porém, as artes praticamente desconhecidos em Portugal,
interessavam‑no mais do que a medicina, no- e.g., Casa de Bonecas e Os Esteios da Sociedade, de
meadamente a música, a literatura e o teatro, Ibsen, Os Penedos do Inferno, de Blumenthal;
áreas onde se destacou. O Fim de Sodoma, de Suderman, e Uma Falên-
Em França, na Alemanha e na Áustria, apro- cia, de Bijorson.
fundou os seus conhecimentos musicais, quer Colaborou em revistas literárias em Por-
ao nível da interpretação – tocava piano, tugal e no estrangeiro, tendo para tal con-
órgão, cravo e violoncelo –, quer ao nível da tribuído o facto de dominar várias línguas,
composição, tendo‑se debruçado sobre o es- sendo “considerado, mesmo no estrangei-
tudo da composição dos grandes mestres. No ro, como um dos mais poliglotas, pois fala-
campo literário, especializou‑se na história da va, lia e escrevia corretamente oito línguas,
literatura dos povos nórdicos. Na Noruega, além do português”, afirma o sobrinho, o vis-
onde viveu algum tempo, dedicou‑se ao estu- conde do Porto da Cruz, num artigo sobre o
do da obra do dramaturgo Henrik Ibsen, que tio (PORTO DA CRUZ, 1950, 40) onde rei-
conheceu pessoalmente. tera a influência que João de Freitas Branco
Regressado a Portugal, João de Freitas Bran- exercia sobre os sobrinhos, que, graças à sua
co fixou‑se em Lisboa. A sua casa tornou‑se orientação, se notabilizaram: Luís de Frei-
um centro de encontro e reunião dos mais tas Branco (professor e compositor), o mes-
distintos intelectuais e artistas do país e do tre Pedro de Freitas Branco e o visconde do
estrangeiro. Através dele, ficaram conheci- Porto da Cruz.
das em Portugal as obras de Rudyard Kipling,
Obras de João de Freitas Branco: A Aranha d’Ouro; Califa; Doutor Micróbio;
Maeterlink, Bijorson, entre outros. Trouxe
Festa de Inauguração; José do Egipto; O Homem das Mangas; Os Doidos com
para Portugal a escola ibseniana, uma corren- Juízo; Os Inocentes.
te moderna que veio revolucionar o teatro: Bibliog.: CARITA, Rui, e MELO, Luís Francisco de Sousa, 100 Anos do Teatro
“O teatro ibseniano, grandemente filosófico e Municipal “Baltazar Dias”, Funchal, s.n., 1988; PORTO DA CRUZ, Visconde do,
“Dr. João de Freitas Branco”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 1, n.º 4,
esmerilhador da alma humana, reclama para
nov.‑dez. 1950; Id., Notas & Comentários para a História Literária da Madeira,
seu entendimento alta contenção de espírito, 2 vols., Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1951; SILVA, Ernesto da, Theatro
entrechoque de ideias que têm de depurar‑se Livre & Arte Social, Lisboa, Typ. do Commercio, 1902.
Rui Carita
tradicional que o marquês pretendia afastar com um bico mui comprido”. Como resulta-
dos centros de decisão. Em segundo, cada do destas informações, muito se esforçou o
vez mais se procurava para o lugar de prelado bispo por reconduzir as irmãs ao uso do burel
gente com estudos superiores e com provas das Clarissas, do que resultou uma revolta de
dadas no desempenho de funções importan- 45 freiras, cujos elementos mais recalcitrantes
tes, como eram, neste caso, o magistério uni- acabaram por ser enclausurados e, em casos
versitário, o lugar de desembargador da mesa extremos, excomungados (PEREIRA, 1993,
episcopal e a posição na patriarcal. Em ter- 48). Nos outros conventos de clarissas, a situa-
ceiro lugar, finalmente, o ministro do Reino ção não era muito diferente. Para o das Mer-
preferia gente madura e que comungasse da cês, o que se ofereceu ao P.e Alásio afirmar foi
visão que subscrevia quanto ao lugar e fun- que as freiras tinham caído em “tal relaxação
ções que à Igreja deviam estar destinados no […] que apenas tinham o nome e a mortalha
emergente mundo das Luzes. A maturidade, de religiosas e alguns atos externos de pieda-
no caso de Gaspar Afonso, era‑lhe dada pela de”. Esta situação verificava‑se igualmente em
própria idade, pois, quando foi chamado para Santa Clara, onde só após o retiro de 1764 a
bispo do Funchal, contava já 53 anos. Quanto grande maioria decidiu obedecer ao prelado
à sua adequação à mundividência pombalina, e conformar o hábito com o preconizado pela
o tempo se encarregaria de demonstrar que, regra (Id., Ibid., 48‑49).
também neste caso particular, o Marquês não Como resultado dos relatos produzidos pelos
se enganara. dois missionários na sua estadia de 10 anos no
Assim, e por se encontrar há três anos vaga a Funchal, o bispo foi encarregado, extraordina-
Diocese do Funchal, D. José I chamou Gaspar riamente, de visitar e reformar todos os con-
Afonso da Costa Brandão para lhe entregar a ventos e recolhimentos da cidade, o que lhe
responsabilidade daquele bispado, opção rati- trouxe inúmeros problemas, oposições e resis-
ficada pela bula Apostolatus Officium, de 20 de tências que ele se foi esforçando por resolver
junho de 1756. A sagração episcopal ocorreu
no ano seguinte, o qual também registou a en-
trada solene do novo bispo no Funchal, a 5 de
agosto.
No decurso da preparação para se encar-
regar da Diocese, D. Gaspar Brandão enten-
deu necessário fazer‑se acompanhar de dois
sacerdotes vicentinos, os padres J. Alásio e
José dos Reis, a quem incumbiu de usar os
púlpitos na cidade, de fazer pregações evan-
gélicas em diversas paróquias e de visitar os
conventos em relação aos quais se suspeitasse
de forte abrandamento no cumprimento das
regras da respetiva ordem. Os registos que
esses sacerdotes deixaram da sua ação nos
conventos vieram, de facto, confirmar que
a prática quotidiana intramuros se afastara
muito dos ideais da vida em reclusão e que
esta mereceu dos padres observações pouco
abonatórias. Assim, em relação ao Convento
da Encarnação, afirmaram eles que as freiras
“traziam véus de seda veiados de pano fino, Fig. 2 – Cruzeiro da Missão dos Padres Vicentinos, c. 1760
e ornavam a testa (pouco juízo havia nela!) (igreja matriz de Santa Cruz).
550 ¬ B rand ã o , G aspar A fonso da C osta
e que configuram um dos aspetos difíceis do membros, onde quer que se encontrassem,
seu episcopado. Como consequência desta ati- a posterior dissolução das comunidades e o
vidade visitacional, adotou‑se um conjunto de fim das suas atividades de ensino. Paralela-
medidas novas, umas de carácter disciplinar e mente, avisaram‑se os bispos das diversas dio-
outras relativas a aspetos administrativos, no- ceses de que deveriam emitir pastorais que
meadamente relacionados com a admissão de sublinhassem a intervenção dos Jesuítas no
noviços, a qual foi restringida e passou a ser atentado contra D. José.
alvo de mais criteriosa seleção. Devidamente informado, D. Gaspar Afonso
Poucos meses depois de ter chegado ao Fun- da Costa Brandão não perdeu tempo e, a 29 de
chal, entre fevereiro de 1758 e maio de 1759, maio do mesmo ano, apanhando de surpresa
D. Afonso Brandão viu‑se encarregado de assu- os jesuítas do Funchal, mandou cercar‑lhes o
mir o governo militar do arquipélago, por au- colégio por tropas ao serviço do governador.
sência do Gov. Manuel Saldanha e Albuquer- Logo de seguida, a 27 de junho de 1759,
que. Ainda no exercício das suas funções como fez publicar a primeira das pastorais contra a
governador, o bispo informava o ministro de Companhia de Jesus, na qual se afirmava que,
Estado Tomé Joaquim de Corte‑Real terem “fazendo‑se público neste nosso bispado”, em
chegado ao seu conhecimento uns documen- fevereiro anterior, a sentença do Tribunal da
tos relativos aos “excessos e maquinações” dos Inconfidência, que dava conta do atentado
jesuítas portugueses e espanhóis contra o Tra- contra o rei, e que, na mesma sentença, “se
tado dos Limites, na América do Sul, com data declaravam corréus daquela execranda con-
de 1750, o que começava a configurar os enor- juração os Religiosos pervertidos da Sagrada
mes problemas que se avizinhavam, tendo no Companhia de Jesus, usando estes de doutrina
centro a Companhia de Jesus (CARITA, 1996, falsa e escandalosa com que se fomentou aque-
401). le horroroso atentado”, se impediam, por isso,
De facto, e tomando como pretexto o com- os referidos religiosos do “Ministério de pre-
portamento dos Jesuítas em terras do Brasil, o gar e confessar nesta nossa diocese” (ACDF, cx.
Marquês de Pombal decidira pôr em marcha 45, doc. 25). Mais adiante, acrescentava que se
um plano para diminuir ou, mesmo, extin- mandava a todos os súbditos que “não admi-
guir o domínio que os padres da Companhia tam nem ensinem, nem deem apenso ou cre-
exerciam não só no ultramar, mas mesmo dulidade alguma às doutrinas e proposições
no reino, onde eram senhores do ensino e acima referidas”.
muito próximos da corte, na qual tinham A 4 de julho de 1760, o monarca enviava uma
vindo a desempenhar papéis de precetores missiva em que informava ter mandado sus-
de infantes e de confessores de membros da pender “com os regulares da mesma Compa-
família real. nhia compreendidos naquele infame e escan-
Uma das estratégias seguidas para desacre- daloso atentado […] as demonstrações a que
ditar os Jesuítas em Portugal continental foi como Rei […] me achava necessitado”, igual-
a de os associar aos motins que, no Porto, mente ordenando que “fossem obstados até
se tinham levantado contra a implantação da aqueles procedimentos de que se não devem
Companhia Real dos Vinhos do Porto (em dispensar”, dado que se fazia indispensável
fevereiro de 1758), a que se seguiram a ex- não dilatar por mais tempo “a indefetível defe-
pulsão da corte dos padres da Companhia, sa em que devo sustentar o meu Real decoro”,
queixas para Roma criticando‑lhes a condu- sendo que nada mais lhe restava senão deter-
ta e, finalmente, a implicação dos mesmos minar que “os sobreditos regulares corrompi-
no atentado contra D. José I, a 3 de setem- dos” fossem considerados como “notórios Re-
bro de 1758. Em consequência desta acusa- beldes, Traidores, Adversários e Agressores”
ção, foi determinado o sequestro dos bens e fossem “pronta e efectivamente extermina-
da Companhia, o enclausuramento dos seus dos, desnaturalizados, proscritos e expulsos de
B rand ã o , G aspar A fonso da C osta ¬ 551
todos os meus Reinos e Domínios”. Na sequên- junho de 1760, embarcados para Lisboa sem
cia desta missiva, o bispo voltou a publicar uma levarem mais que os hábitos que vestiam.
nova pastoral (ACDF, cx. 45., doc. 25). Mas a produção de pastorais deste bispo não
O documento, com data de 3 de setembro se confinou aos textos veementes que produ-
de 1760, torna manifesto que, “Desejando Nós ziu contra a Companhia de Jesus. Outras preo-
com a mais eficaz diligência satisfazer a obriga- cupações lhe ocupavam o espírito e justifica-
ção de fiel vassalo de Sua Majestade na pronta vam que, a 16 de agosto de 1765, publicasse
execução dos seus invioláveis mandados”, era nova pastoral destinada a extirpar o pecado
fundamental para o prelado exortar os ecle- da usura. A 24 de julho de 1768 tornou públi-
siásticos e seculares do arquipélago a que “com co um texto longo, virado sobretudo para o
o mais ardente zelo e fidelidade hajam de tri- clero, em que alertava para a importância de
butar uma exata obediência ao nosso Augustís- os eclesiásticos não terem em suas casas mulhe-
simo Monarca […], reconhecendo todos que res abaixo dos 50 anos, de não se dedicarem
na obediência, amor e fidelidade ao Soberano a negócios de nenhuma espécie, de insistirem
[…] consiste a saúde da República, a conserva- no ensino da doutrina, de virem examinar‑se
ção da união […] e a felicidade da Monarquia” regularmente para confessores, extravagantes
(ACDF, cx, 45, doc. 26). incluídos, e de fazerem retiros anuais, entre
A total e plena aceitação de todas as ins- outras recomendações. Para a emissão destas
truções dimanadas do reino demonstra bem diretivas poderá ter contribuído um ofício do
como D. Afonso Brandão tinha sido uma atila- Corr. Francisco Moreira de Matos ao Gov. Sá
da escolha do Marquês, o qual não viu, assim, Pereira, no qual, em relação ao clero, afirmava
as suas expectativas minimamente defraudadas que padres existiam em abundância, mas con-
na Madeira – como, de resto, foi sublinhado fessores muito poucos, a ponto de serem ne-
por José Pedro Paiva, quando dá conta de um cessários “valimentos para qualquer pessoa de
episódio em que o bispo do Funchal se dirigiu menor condição poder gozar deste sacramen-
ao ministro, a 21 de março de 1759, reportan- to, tudo nascido da falta de sacerdotes apro-
do haver recebido uma missiva do monarca, a vados que, pela sua ignorância, só dizem com
qual logo havia mandado cumprir, referindo verdade Domine non sum dignus” (AHU, Madei-
depois que o mesmo “invariavelmente farei ob- ra, cx. 1, doc. 288).
servar e tudo o mais que for serviço de sua Ma- A forma relativamente autoritária como
jestade” (PAIVA, 2001, 50). D. Gaspar Brandão abordava os problemas es-
Depois de um ano de prisão, os 18 jesuítas teve na origem de alguns diferendos que lhe
que se encontravam cercados foram, a 16 de ensombraram o episcopado. Assim, por se ter
Braga o palácio que veio a ter o seu nome e Ornelas, que, ao longo desse ano, inclusiva-
foi o 1.º visconde de S. Lázaro. Tendo‑se ca- mente, se retirou para a sua Qt. das Almas, na
sado, a 1 de maio de 1905, com D. Teresa de Camacha, perto do Funchal.
Jesus Maria José de Sousa e Holstein Beck A gestão política de João Antonino Leite
(1880‑c. 1909), filha de D. Tomás de Sousa Brandão foi quase notável, dado o complexo
e Holstein Beck (1839‑1887), 1.º marquês de período vivido, quase passando despercebido e
Sesimbra, que fora governador civil do Fun- conseguindo sobreviver ao longo de dois anos,
chal entre 1868 e 1869, tornou‑se, assim, o que para a época foi excecional. Manteve‑se,
cunhado do conselheiro Aires de Ornelas e assim, com o Governo de Artur Campos Henri-
Vasconcelos (1866‑1930), também casado ques (1853‑1922), dado como próximo da ala
com uma filha do falecido marquês de Sesim- conservadora dos regeneradores, do Gen. Se-
bra. Com a demissão do Governo do Cons. bastião de Sousa Teles (1847‑1921), governo
João Franco (1885‑1929), que integrara Aires que só durou 33 dias, e de Venceslau de Lima
de Ornelas, após o assassinato do Rei D. Car- (1858‑1919). Parece já não ter ido para o Fun-
los (1863‑1908) e do príncipe D. Luís Filipe chal com a esposa, cuja data de falecimento se
(1887‑1908), foi constituído um “governo de desconhece, casando‑se segunda vez, a 11 de
aclamação”, ou seja, com o acordo de todos setembro de 1909, com Maria Vera de Castel
os partidos, naquele momento, chefiado pelo branco Machado (1885‑1972), filha de um
Alm. Francisco Ferreira do Amaral (1844 conhecido médico e polemista do Funchal,
‑1923), que tomou posse a 4 de fevereiro de Dr. Vicente Cândido Machado (1855‑1911), e
1908. Foi este governo que, a 22 de fevereiro de sua mulher, Maria Gabriela de Castelbran-
seguinte, nomeou João Antonino Leite Bran- co. Veio a ser substituído como governador
dão 47.º governador civil do Funchal, quase civil, a 11 de janeiro de 1910, com o gover-
com certeza por indicação do Cons. Aires de no progressista de Francisco da Veiga Beirão
Fig. 1 – Palácio do Raio, projeto de 1754-1755 e seguintes (Santa Casa da Misericórdia de Braga).
554 ¬ B rand ã o , P edro de L ima
Rui Carita
família num buraco térreo, é hoje um alcoó- Seria um dos elementos do cenáculo portuen-
lico inveterado, que até desaprendeu de rir” se responsáveis pela elaboração do opúsculo
(Id., Ibid., 197). Diz mesmo que o álcool nem Os Nephelibatas (1892), manifesto em prol da
as mulheres deixou de fora, as quais “acom- arte moderna e pastiche decadentista. O esteti-
panham o homem no grogue e dão às crian- cismo e o ludismo decadente e libertário foram
ças de mama chuchas de álcool”. Apesar das conceções que compartilhou com outras vozes
suas descrições impressionistas, descrevendo suas contemporâneas, como as de António
paisagens como quem pinta um quadro, não Nobre, Alberto de Oliveira, Júlio Brandão, Jus-
deixa de fazer um retrato amargo das gentes tino de Montalvão e D. João de Castro.
que vivem na Ilha, como se a paisagem tivesse Depois da fase “nefelibata” e do artificialis-
contaminado o destino dos homens e das mu- mo dândi, Raul Brandão transitou para uma
lheres. Um destino anunciado logo ao avistar fase de responsabilização ética, na qual fun-
a Ilha, onde, “a cada momento que passa, mais daria a sua sensibilidade estética. Os textos
alto e mais escuro se me afigura o paredão que publicados no Correio da Manhã teriam um
nos interceta o mundo. Só há uma vaga clari- elevado sentido ético‑social, refletindo sobre
dade para o lado do mar; o resto é negrume um mundo em crise de valores. As questões
alcantilado e monstruoso colaborando com a sociais e religiosas podem ser encontradas em
espessura da névoa e o indistinto da noite. É o obras como História d’um Palhaço (1896), en-
homem, subvertido, duas vezes isolado entre quanto o naturalismo se espelha em Impressões
a montanha e o mar. É uma alma. E essa pe- e Paisagens (1890).
quenina luz humilde chega a ser para mim ex- Parte integrante da sua obra é também o ca-
traordinária de grandeza: é uma estrela que tastrofismo finissecular de pendor apocalíp-
me faz cismar” (Id., Ibid., 181). tico, acompanhado pela reivindicação da ne-
Todo o relato desta viagem à Madeira surge, cessidade de uma revolução humanitarista,
assim, entre o encanto que a Ilha provoca, presente em obras como Húmus, Memórias e
com as suas paisagens e o seu clima ameno, O Pobre de Pedir.
e a fria e real descrição das condições de vida As suas narrativas de viagens, onde se incluem
das populações. A narrativa de viagem oscila as obras Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas,
entre o poema inspirado pela natureza e o ca- anteriormente mencionada, são verdadeiros
rácter de reportagem crítica da realidade, ex- quadros de paisagem ao jeito impressionista
primindo o significado que o mar e a terra en- de quem pinta.
cerram na condição insular. O próprio Raul Faleceu a 5 de dezembro de 1930, em Lisboa.
Brandão reconhece, no início do livro, que
Obras de Raul Germano Brandão: Impressões e Paisagens (1890); História
este “é feito de notas de viagem, quase sem re- d’Um Palhaço (1896); A Farsa (1903); Os Pobres (1906); Húmus (1917);
toques”, embora amplie um ou outro quadro, Memórias (1919‑1933); Os Pescadores (1923); Teatro. O Gebo e a Sombra, o Rei
Imaginário, o Doido e a Morte (1923); As Ilhas Desconhecidas (1926); O Avejão
sem tirar a frescura das primeiras impressões.
(1929); Pobre de Pedir (1931).
“Não poder eu pintar com palavras alguns dos
Bibliog.: impressa: BRANDÃO, Raul, As Ilhas Desconhecidas. Notas e
sítios mais pitorescos das ilhas, despertando
Paisagens, pref. António Machado Pires, Ponta Delgada, Artes e Letras, 2009;
nos leitores o desejo de os verem com os seus Id., As Ilhas Desconhecidas. Notas e Paisagens, Lisboa, Quetzal, 2011;
próprios olhos!…” (Id., Ibid., 10). O que se NEPOMUCENO, Rui Firmino Faria, A Madeira Vista por Escritores Portugueses
(Séculos XIX e XX), Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008;
segue, contudo, é um quadro perfeito de uma PIRES, António Machado, O Essencial sobre Raul Brandão, Lisboa, INCM, 1997;
época, pintado por um viajante que recusa a SARAIVA, António José, e LOPES, Óscar, História da Literatura Portuguesa,
Porto, Porto Editora, 1987; digital: REYNAUD, Maria João, “Raul Brandão e
mera descrição impressionista, para traçar um Vitorino Nemésio. Afinidades espirituais e estéticas”, Revista da Faculdade
retrato crítico que não é esbatido pela poesia de Letras. Línguas e Literaturas, vol. xviii, 2001, pp. 221‑230: http://ler.letras.
up.pt/uploads/ficheiros/3032.pdf (acedido a 26 jul. 2016); VIÇOSO, Vítor,
da paisagem. “Raul Brandão”, Camões. Instituto de Cooperação e da Língua, s.d.: http://
Raul Brandão integrou a Geração de 90 cvc.instituto‑camoes.pt/seculo‑xx/raul‑brandao‑35424.html#.Vz3rWfkrLIU
(acedido a 26 jul. 2016).
(séc. xix), a qual foi influenciada pela estética
decadentista‑simbolista de matriz parisiense. Raquel Gonçalves
558 ¬ B rasil
Moniz), Furna do Brasil (Porto da Cruz), Sítio como o célebre sociólogo e antropólogo Gil-
da Brasileira (São Gonçalo, Funchal), chácara berto Freyre (1900‑1987) – que visitou a Ilha,
Brasil (Colégio Missionário, Funchal) e assim em 1952, para conhecer a sua realidade e al-
sucessivamente. Na Ilha e no Brasil, existem guns testemunhos da sua ancestral ligação ao
testemunhos reconhecendo esse intercâmbio, Brasil –, que definia de forma clara esse rela-
como é o caso do monumento ao libertador de cionamento: “A irmã mais velha do Brasil é
Pernambuco, João Fernandes Vieira, no Fun- o que foi verdadeiramente a Madeira. E irmã
chal, que também existe no Brasil, e do monu- que se extremou em termos de mãe para com
mento aos casais ilhéus, em Portalegre, no Sul a terra bárbara que as artes dos seus homens
do Brasil. [...] concorreram para transformar rápida e so-
Esse interesse manteve‑se no séc. xx, com lidamente em nova Lusitânia” (FREYRE, 1952,
o ensaio da viagem aérea de Gago Coutinho 440‑446, 448‑449).
(1869‑1959) e Sacadura Cabral (1881‑1924) Às culturas e técnicas de transformação a elas
ao Brasil, em 1922, realizado no ano anterior adjacentes juntam‑se as formas de povoamen-
entre o continente e a Madeira. Em 1930, to, governação e administração, inicialmen-
Júlio Prestes de Albuquerque (1882‑1946), te com as capitanias e depois com as institui-
o presidente eleito do Brasil, que não toma- ções seguintes, pois a Coroa determinou que
ria posse, pois, entretanto, veio a ser instalada as primeiras estruturas de administração pe-
uma ditadura, foi recebido pelo governador riférica seguissem o modelo e a legislação es-
da Madeira, o Cor. José Maria de Freitas (1879 tabelecidos para a Madeira. O sistema institu-
‑c. 1950), no palácio de S. Lourenço. O histo- cional madeirense apresentava uma estrutura
riador Afrânio Peixoto (1876‑1947) afirmava, peculiar, definida pelas capitanias, de amplas
em 1936, que a Madeira fora um entreposto liberdades e isenções, que funcionavam como
e uma estância de passagem para o Brasil, tal atrativos para o povoamento, assim como meio
560 ¬ B rasil
metade do séc. xvi, por força das dificulda- “libertador” de Pernambuco, Manuel Luís, de
des da cultura em solo madeirense. O Brasil, Jacinto de Freitas da Silva, de Egas Moniz e de
nomeadamente Pernambuco, passou a ser a Francisco Berenguer de Andrade.
terra de promissão para muitos. Os dados, Foi a partir dos meados e até finais do
embora avulsos, evidenciam a presença dos séc. xvi que se estabeleceram estes vínculos
madeirenses em todas as capitanias onde che- económicos com a Madeira, continuados atra-
gou o açúcar, como purgadores, carpinteiros, vés do trato ilegal de açúcar para o Funchal e
mestres, mas também como senhores de en- para o mercado europeu, com a designação
genhos. Muitos arrastaram consigo as famí- da “Madeira”. Este movimento seguia as ances-
lias, algumas das quais se notabilizaram. Em trais ligações entre os que, do outro lado do
1579, referia‑se que Manuel Luís, mestre de Atlântico, viam florescer a cultura e aqueles
açúcar, que exercera o ofício na Ilha, estava que, na Ilha, ficavam sem os seus benefícios.
então em Pernambuco. Muitos outros man- Veja‑se, e.g., o caso de Cristóvão Roiz de Câma-
tinham contactos com a Ilha, nomeadamen- ra de Lobos, que, em 1599, declara ter crédito
te quanto ao comércio de açúcar, como foi o em três mestres de açúcar de Pernambuco, de
caso de Francisco Álvares e João Roiz. Deste cerca de 100.000 réis de uma companhia que
modo, em Pernambuco e na Baía, entre os ofi- teve com Francisco Roiz e Francisco Gonçal-
ciais e proprietários de engenho encontram ves. Nos anos seguintes, ainda há referência a
‑se madeirenses, sendo de salientar que al- António de Sá de Albuquerque, em Itamaracá,
guns se tornaram importantes proprietários, a João de Souto, na Paraíba, e a carpinteiros de
como foram os casos de Mem de Sá, de João engenho, como Luís e Pedro Góis, na Paraíba,
Fernandes Vieira (1596‑1681) e, depois, do e assim sucessivamente.
Fig. 4 – Pão de Açúcar do Rio de Janeiro Fig. 5 – Nau de Rui Melo da Câmara da armada da Índia de 1559
(arquivo particular, 2019). (ACL).
562 ¬ B rasil
O açúcar foi, sem dúvida, um dos principais A situação do mercado açucareiro atlânti-
móbeis da atividade, quer nas ilhas, quer no co alterou‑se profundamente ao longo dos
Brasil. A par disso, o relacionamento com os sécs. xvi e xvii, com uma maior capacidade
portos nórdicos facilitou uma maior permeabi- concorrencial por parte das grandes fazendas
lidade às ideias protestantes, o que gerou inú- sul‑americanas, pelo que o açúcar insular es-
meros cuidados por parte do clero e do Santo tava irremediavelmente perdido. Os canaviais
Ofício. A incidência do comércio da Madeira foram desaparecendo paulatinamente das ter-
no açúcar, no pastel e no vinho conduziu ao ras madeirenses e dando lugar aos vinhedos.
estabelecimento de contactos assíduos com os As autoridades ainda tentaram colmatar a si-
portos da Flandres e de Inglaterra, com a pre- tuação, no sentido de evitar a concorrência do
sença ali de uma importante comunidade co- açúcar sul‑americano e, especialmente, do das
mercial com ligações à Madeira e ao Brasil, o colónias espanholas, como sucedeu em 1647.
que avolumou as preocupações dos inquisido- O comerciante de origem inglesa Richarte Pi-
res do Santo Ofício. queforte vendera um escravo, oficial de açúca-
As ligações da comunidade judaica ao Bra- res, a um mercador francês, que o pretendia
sil surgem por força das perseguições que no conduzir a São Cristóvão. A Coroa entendia
reino se moveram contra a mesma e que terão que a saída não deveria ser autorizada e que
levado à sua passagem para a Ilha e, daí, para o escravo deveria ser adquirido e embarcado
o outro lado do Atlântico. A Madeira e o Brasil para o Rio de Janeiro às ordens do provedor da
pareciam atuar como terras francas e de pre- Fazenda, para aí então ser vendido.
tensa tolerância religiosa, permitindo que a
comunidade judaica estabelecesse uma larga
teia de negócios, com especial destaque para
a ligação à cidade de Recife. A comunidade ju-
daica já tinha assumido um papel de destaque
no processo dos Descobrimentos portugueses,
e a judeus foram atribuídas responsabilidades
na definição das rotas comerciais que ligavam
o Atlântico então descoberto aos mercados do
Norte da Europa. Por sua iniciativa, estabele-
ceram uma rede familiar de negócios que foi
um dos principais suportes da rede comercial
resultante dos Descobrimentos. Desde a Ma-
deira, com o incremento do açúcar, que a sua
presença é evidente. Nem a criação do Tribu-
nal da Inquisição os demoveu desta atividade.
Note‑se que, à medida que as intervenções do
Tribunal da Inquisição de Lisboa nos novos es-
paços atlânticos se ampliavam, os judeus iam
avançando para novos destinos ou refugiavam
‑se nas praças do Norte da Europa, mas sem
perder o vínculo aos mercados e espaços de
origem. Certamente que a criação dos colégios
dos Jesuítas no Funchal, em Angra e em Ponta
Delgada, bem como as visitas do Santo Ofício
realizadas em 1575, 1591 e 1618‑1621, con-
tribuiu para afastar a comunidade para Cabo Fig. 6 – Retábulo-mor da Catedral Basílica de São Salvador da
Verde e, depois, para o Brasil. Baía, antiga igreja do Colégio, 1665 a 1679 (arquivo particular).
B rasil ¬ 563
navios foi alargado, permitindo o envio de qua- Apenas a conjuntura da segunda metade
tro embarcações. do séc. xix permitiu o retorno à plantação de
Sem dúvida que os principais móbeis para cana‑de‑açúcar. Mas foram efémeras as tenta-
estas relações comerciais foram os produtos tivas para a sua produção, e, mesmo assim, só
que cada um oferecia. Desde muito cedo, o possíveis mediante uma política protecionista.
Brasil consumia o vinho da Madeira, que tam- Os canaviais perderam a sua função de produ-
bém mantinha ali uma tradição de vinho de tores de açúcar, o ouro branco dos insulares,
missa, pelo facto de não avinagrar. São conhe- mas, em contrapartida, favoreceram uma pro-
cidos pedidos de vinho com este objetivo, em dução alternativa de mel e aguardente. Já não
1575, para a Companhia de Jesus, na Baía. se fala do ouro branco das ilhas, mas sim do
Exportavam‑se ainda vinagre e aguardente. Em rum ou aguardente e do mel, os herdeiros da
1717, António Cordeiro afirmava que o vinho cultura na Madeira, nas Canárias e em Cabo
saía continuamente para o Brasil e para Ango- Verde.
la, enriquecendo muito toda a Ilha. Esta tradi- A emigração dos sécs. xix e xx revela outro
ção do vinho perdurou no tempo, juntando‑se, lado desta ancestral ligação da Madeira ao Bra-
no séc. xx, à do bordado. sil. O Funchal foi, durante muito tempo, para
muitas companhias com origem na Europa,
uma ponte nas rotas de navegação com desti-
no ao Brasil, favorecendo desta forma a saída
de madeirenses. Antes disso, algumas das rotas
e alguns dos comboios do comércio do Brasil
já incluíam a escala na Madeira, como sucedeu
em 1643, a 21 de abril de 1655 e a 27 de maio
de 1747. Certamente que um dos objetivos era
o abastecimento de vinho, que se sabe ter ocor-
rido na primeira data.
Para além desta condição favorável do porto
do Funchal na rota da emigração atlântica, de-
vemos considerar a questão dos sistemas de
contrato, que se vulgarizaram na segunda me-
tade do séc. xix e fizeram com que muitos ma-
deirenses fossem atraídos para as plantações de
café no Brasil. A oferta da viagem e de alguns
meios de apoio iniciais era muito aliciante para
a maioria destes madeirenses, que se encontra-
vam numa terra em quase total abandono e em
que as culturas pouco rendiam além da subsis-
tência. A partir dos portos de Belém, do Rio de
Janeiro e de Santos, entraram no Brasil, apenas
entre 1886 e 1899, 13.606 madeirenses, núme-
ro que aumentaria para 15.017 contabilizando
‑se os clandestinos. Destes, 4335 foram para o
estado de São Paulo. Embora com maior in-
cidência em Araraquara, na capital e em Ri-
beirão Preto, a sua distribuição atingiu diver-
sos locais do estado. É de salientar que apenas
Fig. 8 – Guarita do forte dos Louros de Diogo Fernandes Branco,
115 (2,65 %) ficaram em Santos, o porto de
1645 e seguintes (fotografia de José Lemos Silva, 2005). chegada. Dos referidos 13.606 que chegaram
B rasil ¬ 565
ao Brasil, 9192 tinham contrato e 8527 eram aconteceu. Identificados por um escrivão que
subvencionados. se deslocara à embarcação, a sua presença ra-
A saída da Casa Real para o Rio de Janeiro e pidamente foi comunicada ao governador,
a ocupação do arquipélago pelas forças ingle- António Manuel de Noronha, que, sem saber
sas criaram uma situação especial em relação bem o que fazer, decidiu ouvir um conselho
à Madeira, permitindo o estabelecimento de de magistrados e ainda o capitão do navio e
uma via de comunicação direta entre as autori- o cônsul inglês. Depois de muita discussão, a
dades do arquipélago e a corte, nomeadamen- maioria optou por deixar seguir o navio em
te da Junta da Fazenda. paz, assim se resolvendo uma questão que se
A vinda do rei, D. João VI, para Portugal, poderia ter transformado num incidente di-
como consequência da Revolução Liberal, plomático envolvendo Portugueses e Ingleses.
ocorrida em 1820, esteve na origem de um epi- Outros dois deputados de Pernambuco regres-
sódio que envolveu a Madeira e uns deputados saram em março de 1823, com a mesma esca-
brasileiros que tinham participado na Assem- la, mas sem qualquer alvoroço. Proclamada a
bleia Constituinte. Já depois de reunida a re- independência do Brasil, os deputados madei-
ferida Assembleia em 1821, à qual tinham as- renses foram dos primeiros a reclamar o reatar
sistido, alguns destes deputados, imbuídos de das relações com o novo reino, em intervenção
um espírito autonomista, recusaram aceitar e de João Francisco de Oliveira, a 10 de fevereiro
jurar a Constituição de 1822, que propunha a de 1823.
manutenção da ligação entre os dois reinos, Nos princípios do séc. xix, a ida da Coroa
com um ascendente de Portugal sobre o Bra- portuguesa para o Rio de Janeiro favoreceu
sil. Os deputados dissidentes, temendo pela novas correntes migratórias. No entanto, foi,
sua segurança, conseguiram evadir‑se para sem dúvida, no período conturbado da Revo-
Inglaterra, donde embarcaram com destino lução Liberal que o Brasil se transformou no
ao Brasil. O navio em que viajavam fez, como principal refúgio dos perseguidos políticos.
era habitual, escala na Madeira, e os deputa- As alçadas de 1823 e 1828 forçaram o exílio
dos mantiveram‑se discretamente a bordo, na de muitos madeirenses empenhados na ativi-
esperança de passar despercebidos, o que não dade política do momento. Muitos deles eram
566 ¬ B rasil
de um determinado mogno mais leve, porque pluribus. Os Gonçalves de Andrade no Brasil: ‘Saudades da Terra’, quanto
custava ser visconde”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. viii, n.º 2, 1950, pp. 119
reutilizadas, quer na Madeira quer nos Açores, ‑120; Id., “João Fernandes Vieira e o problema da sua biografia”, Arquivo Histórico
deram mesmo origem à designação de mobiliá- da Madeira, vol. viii, n.º 1, 1950, pp. 71‑80; NUNES, Naidea, “Os caminhos da
palavra ‘garapa’. Brasil, Cabo Verde e Madeira”, in Livro de Comunicações do
rio “caixa‑de‑açúcar”, reaproveitando‑se, algu- Colóquio “Caminhos do Mar”, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 2001,
mas vezes, quase toda a estrutura da caixa, com pp. 175‑186; PEREIRA, Jaime Azevedo, “O valeroso Lucideno”, Atlântico, n.º 17,
1989, pp. 62‑71; PIAZZA, Walter F., “A grande migração açoriana de 1748‑56”, in
os seus malhetes em “cauda‑de‑andorinha” à Memorial de Luís da Silva Ribeiro, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da
mostra, sendo então as portadas almofadadas, Educação e Cultura, 1982; Id., “Madeirenses no povoamento de Santa Catarina
(Brasil) século xviii”, in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira,
as prateleiras interiores, etc., executadas com vol. ii, Funchal, DRAC, 1990, pp. 1268‑1286; Id., A Epopeia Açórico‑Madeirense
outras madeiras entendidas como mais “ricas”, (1746‑1756), Funchal, CEHA, 1999; RAU, Virgínia et al., “Dados sobre a
emigração madeirense para o Brasil no século xviii”, in Actas do Colóquio
como o jacarandá ou a sicupira, já acima cita- Internacional de Estudos Luso‑Brasileiros, Coimbra, s.n., 1965, pp. 495‑505;
das. Estes armários estão presentes em mui- REBELO, Helena, “Madeira. A caminho do Brasil”, Xarabanda, n.º 16, 2005‑2006,
pp. 64‑73; SALDANHA, António Vasconcelos, As Capitanias. O Regime Senhorial
tos dos museus madeirenses e em coleções
na Expansão Ultramarina, Funchal, CEHA, 1992; SANTOS, Maria Licínia
particulares. Fernandes dos, Os Madeirenses na Colonização do Brasil, Funchal, CEHA, 1999;
SILVA, António Dinis da Cruz e, “Ode a João Fernandes Vieira, restaurador de
Bibliog.: manuscrita: BA, ms. 51‑IV‑38, Luís Teixeira, Roteiro de Todos os Sinais, Pernambuco”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 5, 1951, pp. 28‑31;
1587; impressa: Actas da III Semana de Estudos de Cultura Açoriana e SILVEIRA, Enzo, A Ilha da Madeira nos Destinos do Brasil e de Portugal, Funchal,
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Arquivo Histórico da Madeira, vol. vii, n.º 3, 1949, pp. 156‑162; Id., “De rebus † Alberto Vieira
568 ¬ B ras õ es de armas
Brasões de armas
A descrição e o estudo dos brasões de armas
ou escudos encontra‑se a cargo da heráldica,
ciência muito complexa e com uma linguagem
que escapa à maioria das pessoas não iniciadas
nesse tipo de estudos. As origens da heráldica
remontam aos tempos da Idade Média, em que
era imperativo distinguir os participantes nas
batalhas e nos torneios, pelo que havia a neces-
sidade de utilizar bandeiras ou estandartes re-
conhecíveis a uma certa distância e, depois, de
recorrer a outros elementos facilmente reco-
nhecíveis a menor distância. A diferenciação
era definida pelo soberano através da atribui-
ção de determinadas cores e de outros elemen-
tos identificativos a serem pintados nos escudos
dos seus principais servidores. A complexida-
de progressiva da corte portuguesa, entre os
finais do séc. xv e os inícios do xvi, levou à
nomeação de um rei de armas, que tinha por
função organizar o arquivo dos brasões atribuí-
dos e equacionar os novos, a atribuir, propon- Fig. 1 – Armas da família Câmara, c. 1460 e 1525
(ANTT, Casa Real..., liv. 20).
do quem os deveria possuir, juntamente com
as cores e as peças que deveriam figurar nos
respetivos escudos. Os primeiros brasões con- os elementos definidores dos brasões de armas
sistiam essencialmente numa cor, depois de- iniciais foram o escudo, o paquife e o virol e o
finida como sendo um esmalte ou um metal, timbre. Progressivamente, anexaram‑se inúme-
este último quando se tratava de ouro ou de ros outros, como os tenentes ou suportes do
prata. Quase ao mesmo tempo, foi colocado escudo, os coronéis de nobreza, por vezes im-
sobre esse fundo, que em heráldica se designa propriamente designados por “coroas” (só se
“campo”, um animal ou uma parte do mesmo, devem assim nomear quando reais), os listéis
ou até outra figuração, nomeada “peça” e iden- com motes, divisas, lemas e gritos de guerra,
tificativa da personalidade em questão ou da terrados, etc.
família. Este elemento, ou um outro, era ainda A passagem de toda esta linguagem e figu-
geralmente colocado sobre o elmo, constituin- ração para a Madeira não foi direta. Com efei-
do o chamado “timbre”. Acresce que, para os to, o aparente isolamento da sociedade insu-
torneios medievais e outros exercícios milita- lar propiciou, senão algumas inovações, pelo
res, as cores utilizadas nos esmaltes e nos me- menos alguns abusos. Num contexto geral, o
tais eram ainda aplicadas nas vestes, definindo primeiro degrau de nobreza era constituído
‑se também assim, heraldicamente, o paquife, pelos escudeiros, como o nome indica, aqueles
herdeiro dos antigos mantos vestidos pelos ca- que levavam os escudos dos cavaleiros, sendo
valeiros, e o virol, formado por um entrelaça- recrutados entre os pajens e tendo, na Idade
do, em princípio, feito com os mesmos teci- Média, entre 7 e 14 anos. Conforme o seu de-
dos, com uma das cores do esmalte do escudo sempenho e, inclusivamente, a sua posterior
e com uma outra de um dos metais, e colocado prestação em combate, ao atingir a idade adul-
sobre o elmo, lembrando o torçal que defen- ta, entre os 18 e os 20 anos, podiam ser arma-
dia o cavaleiro dos golpes de espada. Portanto, dos cavaleiros, ascendendo assim ao degrau de
B ras õ es de armas ¬ 569
Godinho, dado serem, em princípio, versões quadro, construindo algumas das famílias em
de armas que apresentaram como pertencen- causa as suas capelas, assumiram, pura e sim-
tes às suas famílias de origem. Provavelmente, plesmente, as armas que entenderam. O exem-
esse será o caso dos Bettencourt, Berenguer, plo mais evidente será o dos túmulos parietais
Catanho, Drumond ou Escórcio, Florença, Lo- da igreja do Carmo do Funchal, onde António
melino, Salvago, Spínola, Teive, Valdavesso e de Carvalhal Esmeraldo, casado com Maria
outros. Existem algumas arcas tumulares des- Brandão, usou as armas plenas dos Câmara,
tas famílias de origem estrangeira, e.g., na ma- e os seus cunhados, no túmulo em frente, as
triz de Santa Cruz, igreja de S. Salvador, mas, dos Brandões do continente, embora a famí-
infelizmente, os brasões iniciais foram apaga- lia fosse proveniente de lavradores da Ribeira
dos. O principal panteão insular destas famí- Brava.
lias terá sido o Convento de S. Francisco do Existe um certo vazio de documentação
Funchal, mas as constantes obras a que foi sobre a atribuição de cartas de armas ao longo
sendo sujeito e a sua própria demolição, nos desse século e mesmo do xviii. Mas a atividade
finais do séc. xix, levaram a que se tivesse per- conheceu novo incentivo nos finais da última
dido quase todo esse património. centúria e propagou‑se exponencialmente ao
Ao longo do séc. xvii, as principais famílias longo de Oitocentos, justificando‑se, sobretu-
madeirenses ganharam um novo ascenden- do, enquanto retribuição de serviços políticos,
te social, principalmente advindo da sua par- com a correspondente componente económi-
ticipação na expansão ultramarina ibérica e ca, deixando de ser apenas um retrato da an-
do seu desempenho na América Latina. Neste tiga fidalguia. Divulgaram‑se então armas de
costados com as representações das armas dos
avós, quando não dos bisavós, trisavós, ou ou-
tros, inclusivamente, pelo nome, e nem sem-
pre pertencendo a essas linhagens. Em pouco
tempo, o cartório de nobreza da corte de Lis-
boa abandonaria a relação com os anteriores
elementos heráldicos de identificação, passan-
do a emitir as chamadas armas novas, quase
nada relacionadas com o pensamento subja-
cente às do passado. De facto, esta nova cultura
desenvolveu‑se um pouco por toda a Europa,
em especial na Alemanha.
A questão das mercês novas foi objeto de vá-
rios trabalhos, mostrando, inclusivamente, a
incongruência de algumas das soluções apon-
tadas. Se algumas armas novas dificilmente en-
contrariam enquadramento na heráldica tra-
dicional, outras há em relação às quais não se
compreende a opção tomada. Na primeira si-
tuação, encontra‑se, e.g., o caso de João Rodri-
gues Leitão (1843‑1925), que, tendo tido larga
atividade comercial em Cabinda e conseguin-
do estabelecer muito boas relações na área, foi
um dos responsáveis pelo reconhecimento da
presença portuguesa naquele território pelos
Fig. 8 – Túmulo de António de Carvalhal Esmeraldo e de Maria
membros da Conferência de Berlim, em 1883.
Brandão, 1686 (capela-mor da igreja do Carmo do Funchal). Sendo agraciado com o título de visconde de
B ras õ es de armas ¬ 575
A base da heráldica eclesiástica comunga das surgiu uma mitra a substituir o galero, poden-
normas que regem o desenho geral dos bra- do figurar sob ela uma cruz episcopal e um bá-
sões, embora nela se use, prioritariamente, a culo cruzados.
forma oval para o escudo, diferenciando‑se Os elementos do alto clero sempre assumi-
assim, em especial, nos ornamentos exteriores, ram armas próprias, em especial após a di-
seguindo os cânones e disposições da Igreja. vulgação das normas do Concílio de Trento,
Com efeito, não utiliza o conjunto elmo, pa- ganhando elas um sentido quase pessoal e
quife e virol, identificativo do exercício da fun- afastando‑se das regras específicas da heráldica
ção militar, mas sim o galero, chapéu eclesiás- familiar, nomeadamente com o uso de brica e
tico por excelência, descendente dos chapéus de diferenças. Se tal aspeto ainda aparece em
de abas largas dos peregrinos, sendo a hierar- 1509, quando João de Cró representa as armas
quia definida pela ordem de borlas do mesmo. do bispo D. João Lobo, marcando as armas dos
Pontualmente, podem usar coronéis de nobre- Lobo com um castelo de ouro como diferença,
za, como aconteceu com o 11.º bispo do Fun- por certo em alusão à praça‑forte de Tânger,
chal, D. Fr. António Teles da Silva (c. 1610 o mesmo não sucede depois na maioria das
‑1682), que se fez sepultar com coronel de armas eclesiásticas, que assumem a diferença
conde, título que nunca teve. Mais tarde, sob somente nos ornatos. Assim fez o bispo de La-
o galero, apareceu uma cruz episcopal e, por mego D. Manuel de Noronha (c. 1491‑1569),
vezes, um báculo; depois, ao longo do séc. xx, empregando as armas plenas dos Câmara,
Fig. 11 – Lápide tumular de D. Fr. António Teles da Silva, Fig. 12 – Lápide tumular de D. Manuel de Noronha, bispo de Lamego,
c. 1682 (capela-mor da Sé do Funchal). mas como arcebispo, 1569 (capela dos claustros da Sé de Lamego).
B ras õ es de armas ¬ 577
Fig. 16 – Armas reais do antigo edifício da Câmara do Funchal, 1820 (Museu Quinta das Cruzes) (fotografia de Bernardes Franco, 2017).
580 ¬ B ras õ es de armas
As ilhas da Madeira e do Porto Santo pos- pelo Arqt. Ventura Terra, e o brasão recolheu,
suem uma quantidade apreciável de brasões de então, ao palácio de S. Pedro, onde se previa
armas reais portuguesas, uma vez que a grande organizar um museu regional.
maioria do património edificado, militar, civil O Funchal deve ter tido armas próprias ainda
e religioso, foi construída sob a responsabili- no séc. xv, porém, só conhecemos exemplares
dade da Fazenda Régia. Tal é o caso da Sé do da centúria seguinte. O mais antigo, em prin-
Funchal e, depois, do baluarte de S. Lourenço cípio, é o que está gravado na campainha de
e demais fortificações militares. Mas, também, prata da Câmara, que serviria para chamar um
da maior parte das igrejas matrizes, cujos edi- empregado, e.g., ou para mandar entrar os pe-
fícios eram incumbência régia, acontecendo o ticionários, e que se encontra datado de 1584.
mesmo com o respetivo recheio, encontrando Apresenta cinco pães de açúcar dispostos em
‑se brasões de armas reais em grande parte dos cruz e ladeados por duas canas‑de‑açúcar. Mais
retábulos das suas capelas‑mores. O mesmo se tarde, o poeta e intérprete dos navios estran-
verifica em outros edifícios: referimos antes o geiros Manuel Tomás (1585‑1665), na sua In-
do paço episcopal, mas poderíamos apontar sulana, de 1635, refere cinco formas de açúcar,
ainda os das misericórdias insulares. Este aspe- “cor de fogo”, colocadas num campo de prata
to transitou, igualmente, para os edifícios das e rodeadas por duas canas‑de‑açúcar (TOMÁS,
câmaras municipais, parte dos quais levanta- 1635, 128), o que repete Henrique Henriques
dos também com verbas da Fazenda Régia, le- de Noronha, em 1722 (NORONHA, 1996, 43).
vando a que as armas reais rematassem grande As armas do Funchal voltam a surgir numa
número deles, inclusivamente o da Câmara do salva de prata dos inícios do séc. xvii, neste
Funchal, onde figurariam, juntamente com as caso encimadas por uma cruz de Cristo, e num
armas da cidade, na fachada ou no interior. areeiro de tinteiro do mesmo período.
Do antigo edifício do Lg. da Sé que perten- No séc. xviii, começam a aparecer infor-
cera à casa comercial de D. Guiomar, onde a mações sobre o facto de se usar também um
Câmara do Funchal se instalou, nos últimos ramo de videira nas armas da cidade do Fun-
anos do séc. xviii, subsiste um importante bra- chal, existindo uma pedra de armas, hoje no
são de armas nacional, assente em esfera armi- núcleo museológico da Prç. Colombo, com a
lar, datável, assim, de data próxima a 1819 ou data de 1758, onde já não figuram as formas
1820, quando se criou o Reino Unido de Por- de açúcar, mas pães, estando o escudo ladeado
tugal, Brasil e Algarves. O imóvel foi demoli- por uma cana e um ramo de videira e as armas
do em 1916, dentro da reforma programada encimadas por coronel de nobreza. Sendo os
pãesdeaçúcar representados em prata, não
poderiam, heraldicamente, assentar igualmen-
te em prata, devendo datar dessa época a defi-
nição do campo do escudo em verde, pelo que
tanto a cana‑de‑açúcar como o ramo de videi-
ra passaram para o enquadramento do escudo.
A partir de então, começou a vigorar, assim,
campo verde, com cinco pães de açúcar de
prata ladeados por uma cana‑de‑açúcar e um
ramo de videira, embora com pequenas varian-
tes, pois podem aparecer duas canas‑de‑açúcar
e as armas podem apresentar‑se com coronel
de nobreza e com coroa real.
Na segunda metade do séc. xix, entre 1860 e
Fig. 17 – Armas da Câmara do Funchal, 1758 (Museu
1862, foi editada, por Inácio de Vilhena Barbo-
A Cidade do Açúcar, Funchal). sa, a vasta obra As Cidades e Villas da Monarchia
B ras õ es de armas ¬ 581
Portuguesa da História/Inapa, 2000; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. (1895‑1900), de quem teve cinco filhos. A famí-
História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro
Rodrigues de Azevedo, Funchal, Typ. Funchalense, 1873; GODINHO, António, lia Brassey viveu em Beauport Park, Hastings, e
Livro da Nobreza e Perfeiçam das Armas, Lisboa, Inapa, 1986; Heráldica. Ciência em Normanhurst, Catsfield, Sussex, tendo ini-
de Temas Vivos, 2 vols., Lisboa, Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho,
1966; LANGHANS, Franz Paul de Almeida, Manual de Heráldica Corporativa, Lisboa,
ciado as suas viagens à descoberta do mundo
Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, 1956; LEMOS, Luís Figueiredo em 1869. As viagens da família Brassey estavam
de, Constituições Synodaes do Bispado do Funchal. Com as Extravagantes
novamente Impressas por Mandado de Dom Luis Figueiredo de Lemos, Lisboa,
intimamente ligadas ao Império colonial Inglês,
Pedro de Crasbeeck, 1601; MORAIS‑ALEXANDRE, Paulo Jorge, “A formação da na medida em que eram frequentemente pedi-
heráldica do Exército no Estado Novo”, Congresso de Heráldica Militar, Lisboa,
dos a Thomas Brassey, como membro do Parla-
Academia Portuguesa de Heráldica, 2000, pp. 9‑16; Id., A Heráldica do Exército
na República Portuguesa no Século XX, Dissertação de Doutoramento em mento, estudos e investigações profundas in loco
História apresentada à Universidade de Coimbra, Coimbra, texto policopiado,
sobre as culturas e as economias de outros paí-
2009; NÓBREGA, Artur Vaz‑Osório da, Compêndio Português de História
de Família, Lisboa, Mediatexto, 2003; NORONHA, Henrique Henriques de, ses. É neste contexto que Annie Brassey inicia a
Nobiliário Genealógico das Famílias Que Passarão a Viver a Esta Ilha da Madeira sua produção literária de viagem, como simples
depois do Seu Descobrimento, Que Foi no Ano de 1420, São Paulo, Revista
Genealógica Brasileira, 1948; SAINZ‑TRUEVA, José de, “Heráldica inglesa no ‘Old relatos e entradas de diário com o intuito de in-
Burial Ground’”, Atlântico, n.º 1, 1985, pp. 60‑64; Id., “Igrejas, casas, fortalezas e formar a sua família.
capelas brasonadas da ilha da Madeira e Porto Santo”, Atlântico, n.º 11, 1987,
pp. 182‑196; Id., “Tectos madeirenses armoriados. Achegas para um brasonário A família Brassey realizou uma viagem à volta
insular”, Islenha n.º 1, jul.‑dez. 1987, pp. 111‑124; Id., “Brevíssima memória do mundo, com duração de um ano, com parti-
sobre as armas dos Monizes e Perestrelos”, Islenha, n.º 5, jul.‑dez. 1989, pp. 89
‑93; Id., “Tectos madeirenses armoriados, continuando um inventário”, Islenha, da e chegada a Inglaterra, a bordo do seu yacht
n.º 6, jan.‑jun. 1990, pp. 75‑81; Id., “Heráldica de prestígio em rótulos de vinho privado Sunbeam, alcunha pela qual era conhe-
Madeira”, Islenha, n.º 9, jul.‑dez. 1991, pp. 62‑69; Id., “Heráldica de apelidos
estrangeiros na ilha da Madeira”, Islenha, n.º 18, jan.‑jun. 1996, pp. 110‑121; Id.,
cida uma das filhas de Annie Brassey que fale-
“Heráldica em iconografia relacionada com a Madeira”, Islenha, n.º 24, jan.‑jun. ceu precocemente. É esta viagem familiar de
1999, pp. 57‑70; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998, TOMÁS, Manuel,
descoberta do mundo e dos horizontes que dá
Insulana, Amberes, Caza de Ioam Mevrsio Impressor, 1635; VALDEZ, Ruy Dique
Travassos, Cartas de Brasão Modernas (1872‑1910). Complemento do Arquivo
Heráldico‑Genealógico do Visconde Sanches de Baêna, Porto, Livraria Fernando
Machado, 1935.
Rui Carita
Brassey, Anna
A baronesa Anna Brassey, mais conhecida
por Annie Brassey, nasceu a 7 de outubro de
1839, em Londres, e faleceu a 14 de setem-
bro de 1887, entre a Austrália e a Indonésia.
Descendente de uma família abastada ligada
ao comércio do vinho, Annie Brassey era filha
de John Allnutt e de Elizabeth Harriet Burne-
tt. Foi escritora, fotógrafa amadora e viajante,
sobejamente conhecida pelos seus relatos e
diários de viagem. Órfã de mãe precocemen-
te e educada em casa, cedo Annie Brassey ga-
nhou grande afeição pela leitura, as línguas e
a botânica.
Aos 21 anos, a 9 de outubro de 1860, contraiu
matrimónio na igreja de Saint George, em Lon-
dres, com o barão Thomas Brassey, filiado no
Partido Liberal, membro do Parlamento inglês Fig. 1 – Lady Anna Brassey (“Annie”), fotografia animada, 1866
e governador do estado da Victoria, Austrália (Hastings Museum & Art Gallery, Inglaterra).
B rassey , A nna ¬ 585
Obras de Anna Brassey: The Flight of the “Meteor” (1869); A Cruise on the
“Eöthen” (1872); A Voyage in the “Sunbeam”. Our Home on the Ocean for Eleven
Months (1878); Sunshine and Storm in the East (1880); In the Trades, the Tropics,
& the Roaring Forties (1885); The Last Voyage (1889).
Bibliog.: “Death of lady Brassey”, Faringdon Advertiser and Vale of the White
Horse Gazette, 15 out. 1887, p. 5; “Lady Brassey”, Hastings and St. Leonards
Observer, 15 out. 1887, p. 6; MARSHALL, Edward Henry, “Brassey, Anna”,
in LEE, Sidney, Dictionary of National Biography, London, Smith, Elder &
Co, 1901, pp. 261‑262; “A metropolitan tribute”, Hastings and St. Leonards
Observer, 22 out. 1887, p. 7; MICKELWRIGHT, Nancy, A Victorian Traveler in
the Middle East. The Photography and Travel Writing of Lady Annie Brassey,
Burlington/Vermont, Ashgate, 2003.
O Tempo (5 out. 1912).
Fernanda de Castro
Rui Carita
Fig. 4 – Menina com cesto em miniatura, Funchal, 1894 (ABM, Fig. 5 – Menino a cavalo, Funchal, 1906 (ABM, Photographia
Photographia Vicente, 9470). Vicente, 9590).
As experiências rítmico‑sonoras eram reali- serem apanhados no local onde a água mudava
zadas através das cantigas de roda e de outras de dono. Para matar lagartixas, não faltavam as
brincadeiras cantadas, com pífaros, assobios e “laçadas”, feitas da conhecida “erva rija”, e, para
num‑nuns feitos de cana‑vieira, ou mesmo so- treinar a pontaria, lá estavam as “forquilhas”
prando as flores cor de laranja da trepadeira (fisgas) aproveitando os galhos bifurcados das
bignónia (Bignónia venusta ker‑Gawl), tão co- árvores e os restos de borracha (visgos) das câ-
nhecida na Região por “gaitinhas do Natal”, ou maras dear. As lutas de peões de madeira, feitos
percutindo o “grilinho” de casca de noz, que por artesãos da localidade, aconteciam quando
não podia faltar na época do “pão por Deus” o “sono” do peão não era suficientemente de-
(1 de novembro), ou ainda pelo saltar à corda morado, de modo a permitir que o seu dono
ao som de lengalengas como “A rainha dos o passasse, habilidosamente, do chão para a
mares” ou “Dois cavalinhos a saltar à corda”. palma da sua mão. Por castigo, era o brinque-
Outros jogos eram ainda praticados pela ju- do colocado no chão e sujeito às “bicadas” dos
ventude madeirense, sobretudo nas tardes de outros peões, podendo ser destruído. Sentir‑se
domingo, nos adros das igrejas, nas eiras ou “gigante” a passear sobre umas andas, andadei-
mesmo nas estradas, já que o movimento auto- ras ou andilhas era passatempo também muito
móvel era reduzido. Assim, também se faziam do gosto da rapaziada. Estas eram feitas a partir
brincos de cereja, cestinhos de giesta, colares de varas às quais se pregavam transversalmente,
de flores silvestres e barquinhos de casca de pi- a alturas variadas do chão (20 a 30 cm ou mais),
nheiro para viajarem nas levadas, sobretudo nas duas pequenas tábuas, ou mesmo duas latas de
horas de “giro” (forma de regadio madeirense folha vazias, sobre as quais se apoiavam os pés.
que permite que a água de rega passe perio- As mãos, essas, agarravam‑se às varas e, em equi-
dicamente por vários regantes, os heréus), até líbrio, lá se fazia a caminhada.
B rinquedos e jogos populares ¬ 591
Nas escolas brincava‑se ainda à “mãe camba- do outro, geralmente em Sábado de Aleluia
da”, à “correia”, à “pilhagem”, ao “lenço”, ao ou Domingo de Páscoa, um saco de amên-
“lume”, à “condessa”, à “mamã dá licença”, às doas, chocolates ou outra guloseima própria
“infusas”, aos “cabritinhos”, à “roda”, às “es- da época.
condidas”, ao “ferrolhinho” e à “1, 2, 3, meia
Berlinda
‑lua”, entre outros. Ter destreza no atirar e apa-
Os jogadores ficam, geralmente, em fila ou em
nhar do ringue e ser ágil e certeiro no jogo da
roda, sendo que um deles é destacado para
“matança” eram garantia de prestígio entre a
ficar “na berlinda” (em evidência). Outro ele-
criançada.
mento recolhe, em segredo, opiniões acerca
Para saber quem iniciaria os jogos ou esco-
daquele que está na berlinda e, perante todos,
lheria as equipas, “dava‑se a letra”, usando len-
apresenta‑as. O jogador que está na berlinda
galengas e cantilenas que eram ditas por um
escolhe uma das opiniões apresentadas e aque-
elemento, ritmadamente, tocando em cada
le que a tiver proferido ocupa o seu lugar.
um dos restantes. O elemento que coincidia
com o terminar da lengalenga era o iniciador Damas de 12
ou responsável pelo desenrolar do jogo. Utilizando um caco de barro, risca‑se o tabulei-
Vejamos como se executam alguns destes ro da dama no chão. Numa das extremidades
jogos, tendo como referência a revista Folclo- colocam‑se doze pedras vermelhas (pedaços
re de julho de 1997, que apresenta uma reco- de telha) e, na outra extremidade, doze pedras
lha de jogos populares madeirenses, e o livro pretas (pequenos seixos basálticos), dando‑se
Brinquedos Tradicionais Cantados, Trava Línguas início ao jogo.
e Lengalengas (BRAZÃO, 1985). Regras: as pedras só podem mover‑se para a
frente e lateralmente, deslocando‑se de casa
em casa, não podendo saltar por cima de uma
Jogos casa, exceto para “comer” a pedra adversária;
podem ser “comidas” várias pedras de uma só
Da vassourinha, do pisca‑pisca, do fogo, do
vez, se entre elas houver um intervalo de uma
anel, do farelo, da corda ou puxar do cabo, do
só casa; quando uma pedra consegue atingir
cabrito, do corre, corre sapatinhos, do inhame,
o ponto A fig. 6 toma o nome de “dama”; a
dos botões, da vela, dos riscos, do rête‑rête, das
“dama” pode mover‑se em todas as direções
argolas, passa volante, do relógio, gato pintado,
e saltar quantas casas quiser; caso haja uma
da sapatinha, da barraquinha, das prendas, do
pedra em condições de ser vencida e o jogador
quinau, do cabritinho, a malha, a cabra‑cega e
não o faça, será penalizado com a perda de três
bicho burro, da manhã, do anelinho, os pauzi-
pedras (assopro); vencerá o jogador que con-
nhos ou espadinha, a bilhardeira, belamente,
seguir vencer as pedras todas ao adversário.
a berlinda, a paredinha, damas de 12 ou 21,
a rolha, a pilhagem, meia‑lua, do lume, mamã A
dá licença, matança, correia ou café com leite.
Belamente
É um jogo praticado por crianças, jovens ou
adultos durante a quadra da Quaresma. É joga-
do aos pares. Os elementos participantes com-
binam os dias e as horas em que devem “dar
o belamente”. Nos momentos combinados, os
jogadores devem cumprimentar‑se dizendo a
palavra “belamente”, tentando cada um ser o
primeiro a proferi‑la e, dessa forma, ganhar A
um ponto. O que ganhar mais pontos recebe Fig. 6 – Damas de 12.
592 ¬ B rinquedos e jogos populares
Damas de 21 Infusas
É uma variante das damas de 12, apresentan- Os jogadores agrupam‑se em trios e colocam
do pequenas alterações: utilizam‑se 21 pedras ‑se lado a lado, atrás de uma linha. Em cada
em vez de 12; considera‑se dama quando uma trio um elemento coloca‑se de cócoras, com
pedra alcança um dos pontos A, B, ou C as mãos dadas debaixo das pernas e a boca
cheia de água, imitando uma infusa. Os ou-
tros dois elementos seguram, um de cada lado,
as asas da “infusa”. A um sinal dado tentam
A B C transportá‑la até um local previamente combi-
nado. Ganham os trios que conseguirem alcan-
çar o local sem que a infusa perca, pelo cami-
nho, a água ou as asas.
Jogo do lume
Desenham‑se no chão vários círculos, sempre
um a menos em relação ao número de jogado-
res. Dentro de cada círculo coloca‑se um joga-
dor. O jogador que fica sem círculo dirige‑se a
um dos outros e pergunta: – A vizinha dá‑me
lume? Responde‑lhe o colega, apontando para
outro: – Acolá fumega! Neste momento, todos
os jogadores trocam de lugar, enquanto o joga-
dor que estava de fora tenta ocupar um dos cír-
culos vazios. O elemento que ficar sem círculo
irá pedir lume.
A matança
Dois grupos de jogadores com o mesmo nú-
C B A mero de elementos colocam‑se frente a fren-
te, separados por uma linha que não pode ser
Fig. 7 – Damas de 21. ultrapassada. Escolhe‑se a equipa que deverá
iniciar o jogo e todos os elementos se distri-
buem pelos seus campos. O capitão da equipa
Gigante ou reizinho escolhida tenta atingir, com uma bola, um ele-
De um número ilimitado de jogadores escolhe mento da equipa adversária.
‑se um para ser o “gigante”. Os restantes esco- Quando algum jogador é atingido, sem ter
lhem, em segredo, um fruto para ser adivinha- conseguido apanhar a bola, fica “morto” e vai
do pelo gigante, segundo as características que colocar‑se atrás do grupo adversário, que fica
lhe hão de ser fornecidas. O grupo dirige‑se na posse da bola. O jogo recomeça e cada
ao gigante e um porta‑voz diz: – Senhor gigan- equipa tenta apanhar a bola para atingir os
te, comemos um fruto do seu quintal. Quando adversários ou passá‑la, taticamente, aos seus
está verde é… Quando está maduro é… (re- elementos “mortos”, que estão mais próxi-
ferem as respetivas características). O gigante mos do adversário, para que os possam atingir.
tenta adivinhar, tendo direito a três tentativas. Ganha a equipa que primeiro conseguir matar
Se consegue, corre atrás dos companheiros, todos os elementos da equipa adversária ou
que tentam refugiar‑se num lugar defeso, pre- aquela que conseguir manter o maior núme-
viamente combinado; se algum é apanhado, ro de elementos vivos num período de tempo
passa a ser o gigante. predeterminado.
B rinquedos e jogos populares ¬ 593
Dois cavalinhos
594 ¬ B rinquedos e jogos populares
Movimento: duas crianças “dão a corda”, “1, 2, 3”, para de novo recomeçarem com
enquanto outras duas (o Pedro e o Paulo) a entrada do que saiu. O jogo prossegue
saltam cantando a canção. Previamente já até que algum perca. A canção é também
combinaram quem é o Pedro e quem é o cantada pelas crianças que aguardam a
Paulo e fazem como a letra indica. Cantam sua vez de saltar.
Movimento: duas crianças “dão corda” tal como a própria letra da canção indi-
enquanto uma terceira canta saltando. ca. Canta “1, 2, 3”, para de novo recome-
Ao dizer que deita o lenço à água, atira çar. Só deixará o jogo quando perder, i.e.,
ao chão um lenço, ou qualquer obje- quando se embaraçar na corda ou não
to, substituindo‑o, e depois recolhe‑o, conseguir apanhar o lenço.
São Guiné
Movimento: as crianças fazem uma roda indica, todas as crianças se ajoelham, sen-
simples de mãos dadas, balançando os bra- tam, deitam, de novo se sentam, ajoelham
ços enquanto cantam. Tal como a letra e levantam.
B rinquedos e jogos populares ¬ 595
O meu ganha‑pão
Galinha pintada
Movimento: durante as quadras, as crianças Bibliog.: AMADO, João da Silva, Função Educativa dos Brinquedos Tradicionais
deslocam‑se em roda, de mãos dadas, saltitan- Populares, Coimbra, ed. do Autor, 1992; BRAZÃO, Maria Lígia Lopes,
Brinquedos Tradicionais Cantados, Lisboa, O Livro, 1985; CABRAL, António,
do alternadamente com o pé esquerdo/direi- Jogos Populares Infantis, Porto, Domingos Barreira, 1991; CAIRES, Gilberta
to. Durante o estribilho, que se canta entre Paula et al. (orgs.), O Brinquedo dos Nossos Avós, catálogo de exposição
patente no Teatro Municipal (festas do fim do ano de 1985), Funchal, DRAC,
cada quadra, param para fazer os gestos sugeri- 1986; SECRETARIA REGIONAL DE AGRICULTURA E PESCAS, Folclore. 24
dos pela letra da canção. Horas a Bailar, Funchal, Secretaria Regional de Agricultura e Pescas, 1997;
SOLE, Maria de Borja, O Jogo Infantil, Lisboa, Instituto de Apoio à
Criança, 1992; TERESA, Maria Francisca, Em Casa da Avó na Ilha da Madeira,
Lisboa, Livraria Clássica, 1922.
Lígia Brazão
B ri ó fitos ¬ 597
Briófitos
As ilhas oceânicas são geralmente pequenos
afloramentos nos oceanos, mas de grande im-
portância para o conhecimento de muitos pro-
cessos evolutivos e ecológicos. Devido ao seu
isolamento geográfico, a evolução de plantas
e de animais com características particulares é
favorecida, compreendendo por isso um ele-
vado número de espécies únicas. Adicional-
mente, os diferentes níveis altitudinais que
ocorrem frequentemente nas ilhas oceânicas
vulcânicas resultam numa menor capacidade
de as espécies poderem aumentar os seus li-
mites de distribuição, tornando‑as mais vulne-
ráveis a alterações nas condições ambientais,
comparativamente com as áreas continentais.
A biodiversidade é essencial para o funciona-
mento dos ecossistemas, e são vários os estu-
dos que demonstram uma correlação positiva
entre a riqueza de espécies num ecossistema
e a sua produtividade, estabilidade e sustenta-
Fig. 1 – Briófitos Endémicos da Madeira (2001), de Susana
bilidade. Admite‑se que as alterações climáti-
Fontinha et al.
cas estão já a conduzir à perda diferencial de
populações em zonas marginais quentes da
sua área de distribuição, o que é agravado pela uma área aproximada de 828 km2 e cerca de
alteração e fragmentação dos habitats, contri- 256 km de costa, o que representa 1% da su-
buindo para o empobrecimento dos ecossis- perfície do país. Embora de pequena dimen-
temas. A fragmentação reduz a probabilidade são a uma escala nacional, e ainda menor a
de dispersão e fixação das espécies, bem como nível mundial, a Madeira comtempla uma ele-
o aparecimento ou o reforço de outras popu- vada diversidade biológica. As ilhas da Madei-
lações com diferente variabilidade genética e ra, de Porto Santo, Desertas e Selvagens, bem
capacidade de adaptação a condições ambien- como as restantes ilhas atlânticas que consti-
tais distintas. Na Madeira, é expectável que as tuem o arquipélago das Canárias, incluem‑se
alterações climáticas afetem os ecossistemas e, no hotspot de biodiversidade do Mediterrâneo,
portanto, a biodiversidade de todos os grupos e a ilha da Madeira salienta‑se como a segun-
taxonómicos, o que terá impactos ainda pouco da mais rica em termos de biodiversidade para
quantificados e imprevisíveis. briófitos entre os arquipélagos da Macaroné-
A região da Madeira, constituída pelos arqui- sia, sendo apenas suplantada pela ilha de Tene-
pélagos da Madeira e das Selvagens, fica loca- rife, nas Canárias, a qual é consideravelmente
lizada no oceano Atlântico, na intersecção dos maior.
Neotrópicos, Paleotrópicos, América do Norte Os briófitos são plantas simples, mas de gran-
e Europa, sendo composta por vários conjun- de importância ecológica, desempenhando
tos de ilhas vulcânicas. As Selvagens constituem um papel pioneiro nos ecossistemas terrestres.
o território mais meridional de Portugal, e na São muito sensíveis às alterações ambientais,
ilha da Madeira encontramos uma das maiores entre elas a destruição dos habitats, as altera-
elevações do país (Pico Ruivo, 1862 m de altitu- ções climáticas e a poluição, daí serem frequen-
de). Na sua totalidade, estas ilhas apresentam temente utilizados como bioindicadores. São o
598 ¬ B ri ó fitos
segundo maior grupo de plantas terrestres, e região do maciço montanhoso central, quer
também o mais antigo, sendo conhecidos fós- nas zonas costeiras, igualmente com grande
seis desde o Devónico Superior. Estas plantas, diversidade e abundância de espécies, embora
que não apresentam nem verdadeiras raízes, integrando comunidades distintas de briófitos.
nem caules e folhas, nem um verdadeiro siste- Apesar de a flora de briófitos das zonas costei-
ma de vasos condutores, encontram‑se ampla- ras ser menos abundante e diversa, ela integra
mente distribuídas na Madeira, desde as zonas um elenco de espécies únicas, como endemis-
costeiras expostas, muito próximas do nível do mos e espécies com afinidades com a região
mar, até às regiões montanhosas, apresentan- mediterrânica.
do estratégias e ciclos de vida completamente Foi no final do séc. xviii, em 1787, com Fors-
adaptados às diferentes características de cada ter, e no início do séc. xix, em 1825, com Bow-
um desses habitats. Deste modo, o conhecimen- dich, que se efetuaram as primeiras coleções
to da diversidade, das afinidades biogeográfi- de briófitos na Madeira e as primeiras publica-
cas e do estado de conservação dos briófitos da ções sobre este tema. Porém, foi só no início
Madeira é de elevada importância, podendo do séc. xx que vários botânicos e naturalistas,
vir a ser utilizado para prever as consequências com base em numerosas saídas de campo, in-
das alterações ambientais nos seus ecossiste- tensificaram as publicações acerca da brioflo-
mas. Adicionalmente, aprofundar o conheci- ra da Madeira. Entre eles, são de salientar os
mento sobre este grupo de plantas contribuirá trabalhos de Luisier e de Persson, entre 1907
para o fomento da sua proteção. e 1956, que podemos considerar os verdadei-
Entre os ecossistemas presentes nesta ilha, ros promotores da briologia no arquipélago da
destaca‑se a floresta laurissilva, considera- Madeira. São de destacar ainda, nesse perío-
da uma das florestas perenes laurifólias mais do, as prospeções de Barreto nas décs. de 30 a
bem preservadas da Macaronésia e onde ocor- 50, as de Een, que colheu principalmente com
re uma grande diversidade de briófitos. Tam- Persson, e ainda as de Nóbrega, que se inicia-
bém se destacam outros ecossistemas, quer na ram na déc. de 40 do mesmo século, em co-
laboração com Persson ou com Luisier, e que
prosseguiram para além desse período.
A primeira listagem dos musgos e hepáticas
da Madeira deve‑se a Geheeb & Herzog em
1910. São ainda de realçar os trabalhos desen-
volvidos por Hübschmann em 1971, por Sjö-
gren em 1975 e por Eggers em 1982 – que
publicou uma distribuição detalhada dos brió-
fitos em todos os arquipélagos da Macaroné-
sia –, bem como o trabalho de Koppe & Düll
em 1986. Deve‑se a Nóbrega o desenvolvimen-
to de um intenso trabalho de prospeção, iden-
tificação e colheita de briófitos na Madeira,
que originou as grandes coleções de MADS
(Museu de História Natural do Seminário
do Funchal) e, mais recentemente, de MADJ
(Jardim Botânico da Madeira). Na déc. de 80,
assistiu‑se a uma notória intensificação dos es-
tudos de briologia na Madeira. Tal incremento
deve‑se a Cecília Sérgio, entre 1980 e 1995, o
Fig. 2 – Os Briófitos da Laurissilva da Madeira. Guia de
Algumas Espécies. The Bryophytes of Laurisilva. Guide to Some
qual esteve associado a diversas colaborações,
Species (2006), de Susana Fontinha et al. entre elas com a World Wild Fund (WWF) e
B ri ó fitos ¬ 599
com a European Committee for the Conserva- todos os ecossistemas terrestres, naturais e hu-
tion of Bryophytes (ECCB), que culminaram manizados, desde as zonas costeiras mais ári-
com a publicação do primeiro catálogo anota- das, como são as Selvagens, até aos picos das
do dos briófitos da Madeira e de uma listagem montanhas mais altas, na ilha da Madeira. Mas
de espécies para os arquipélagos da Madeira e é na floresta laurissilva do til, principalmente
Selvagens. Desenvolveu‑se ainda a coleção de entre os 700 e os 1300 m de altitude, na verten-
briófitos da Madeira em LISU (Museu Nacio- te norte da Ilha, que os briófitos existem em
nal de História Natural e da Ciência da Univer- maior abundância, diversidade e incidência de
sidade de Lisboa – Jardim Botânico). Também espécies endémicas. Dados recentes indicam
neste período intensificaram‑se as prospeções que, na Madeira, 58 % da biodiversidade ter-
na Madeira por botânicos portugueses e es- restre corresponde aos animais, ficando em se-
trangeiros e efetuaram‑se numerosas novas gundo lugar os fungos e as plantas, que repre-
adições para a flora deste arquipélago, tendo sentam os 42 % restantes. Os briófitos estão,
sido descritas novas espécies para a ciência. por sua vez, representados com cerca de 7 %
Salientam‑se as investigações desenvolvidas por da biodiversidade total. Com base na revisão
Sim‑Sim (a partir de 1989) e Fontinha (a par- de material, e com os resultados de colheitas e
tir de 1990), bem como a publicação da flora publicações recentes, é possível indicar, para a
de musgos pleurocárpicos da Madeira por He- Madeira, um total de 538 taxa de briófitos, dos
denäs em 1992. Mais recentemente, e no âmbi- quais 6 são antocerotas, 172 são hepáticas e 360
to de vários projetos de investigação envolven- são musgos. Os taxa endémicos (considerando
do investigadores nacionais da Univ. de Lisboa, os endemismos da Madeira e da Macaronésia)
representam cerca de 7% da totalidade dos
da Univ. da Madeira, do Parque Natural da Ma-
taxa. Os briófitos endémicos da Madeira com-
deira e do Jardim Botânico da Madeira e in-
preendem 11 musgos, um dos quais do género
vestigadores estrangeiros, os estudos acerca
Nobregaea, também endémico e monoespecífi-
da diversidade de briófitos do arquipélago da
co (N. latinervis), e 4 hepáticas, uma delas Ric-
Madeira têm abordado aspetos relacionados
cia atlantica, o único briófito endémico comum
com a origem e afinidades biogeográficas e vi-
a todas as ilhas desta região. É ainda de salien-
sado a caracterização ecológica das diferentes
tar a família Echinodiaceae, a única endémica da
comunidades, abrangendo diferentes ecossis-
Macaronésia e Europa, com uma maior inci-
temas (desde a floresta laurissilva da Madeira
dência de endemismos na Madeira.
até às comunidades ripárias e de zonas costei-
Nas zonas costeiras da Madeira pode ser en-
ras, quer da ilha da Madeira, quer das restantes
contrada uma comunidade de briófitos muito
ilhas do arquipélago). Deste modo, tem sido
típica, que se desenvolve em rochas e solos ex-
possível incrementar e atualizar as coleções de
postos e que contém espécies com afinidades
MADJ e de LISU com a inclusão anual de cen- mediterrânicas e com estratégias de vida muito
tenas de espécimes, permitindo ainda a prepa- particulares. Aí, este tipo de ambiente está res-
ração de duplicados de espécies representati- trito à encosta sul da Ilha e ocupa uma área re-
vas da brioflora madeirense. lativamente pequena. Porto Santo, Desertas e
Selvagens são caracterizados por uma elevada
Riqueza florística ocorrência de ambientes secos e expostos, com
elevada influência oceânica, e os briófitos que
A flora de briófitos da Madeira é muito rica aqui podem ser encontrados apresentam ca-
em número de espécies, tendo em considera- racterísticas morfológicas que correspondem a
ção a dimensão reduzida da região, bem como adaptações que lhes permitem colonizar e so-
os impactos de origem antropogénica que breviver em condições extremas. Desenvolvem
ocorreram desde a colonização. Nesta região, frequentemente ciclos de vida curtos ou efé-
os briófitos estão presentes praticamente em meros de modo a beneficiarem ao máximo das
600 ¬ B ri ó fitos
Neste tipo de habitat, podem ser encontra- que a flora de briófitos da Madeira, além de in-
das, com maior frequência e maior área de co- cluir taxa relíquia, paleoendemismos com afi-
bertura, espécies de briófitos como Atrichum nidades com a flora tropical que se extinguiu
androgynum, Brachythecium rivulare, Didymodon na Europa, apresenta ainda afinidades com
insulanus, Fissidens spp. (F. sublineaefolius, F. as- a flora da região mediterrânica e com a flora
plenioides, F. taxifolius var. pallidicaulis), Fontina- africana e neotropical.
lis antipyretica, Hygroamblystegium fluviatile, Lep- Salienta‑se novamente a floresta laurissilva,
todictyum riparium, Philonotis rigida, Plagiomnium que é caracterizada por albergar uma flora de
undulatum, P. undulatum var. madeirense, Rhyn- origem terciária que desapareceu da região
chostegium riparioides, Rhizomnium punctatum e mediterrânica durante as glaciações do Pleis-
Thamnobryum alopecurum, entre os musgos, tocénico e a desertificação do Norte de África,
e Lunularia cruciata, Scapania undulata e Cono- sendo o habitat por excelência da família Echi-
cephalum conicum, entre as hepáticas. nodiaceae, a única endémica da Europa, com
um único género, Echinodium. De acordo com
o conceito de refúgio, os endemismos da Ma-
Padrões biogeográficos caronésia devem ser considerados paleoende-
Admite‑se que a Macaronésia representou um mismos, e as espécies de briófitos atuais desta
refúgio para muitas espécies de plantas desde floresta deveriam revelar afinidades biogeográ-
o início da era Cenozoica, a qual compreendeu ficas com a Europa atlântica e com a península
um longo período de glaciações que conduziu Ibérica, dadas a proximidade geográfica e as
a uma elevada redução na área de distribui- condições climáticas atuais.
ção das florestas tropicais e boreotropicais que Durante a última década, os estudos desen-
cobriam grande parte da superfície terrestre. volvidos revelaram uma origem biogeográfica
Os arquipélagos que constituem esta região muito mais diversificada para a brioflora da
são os locais onde sobreviveu a flora subtro- Macaronésia do que a que é explicada ape-
pical que se extinguiu da Europa continen- nas pela hipótese de uma flora relíquia. De
tal, por isso considerada uma flora paleoen- facto, a flora de briófitos da Macaronésia, e
démica. Diversas investigações desenvolvidas em particular da Madeira, tem revelado afini-
ao longo da última década têm demonstrado dades tanto com os neotrópicos e paleotrópi-
cos, como com a Europa. Em alguns casos, os
eventos de dispersão terão sido seguidos por
uma especiação in situ, tendo conduzido a uma
combinação de neoendemismos e de paleoen-
demismos na brioflora da Macaronésia.
Em contraste com os elevados níveis de en-
demismos e o vasto conhecimento acerca dos
processos de radiação que ocorreram nas an-
giospérmicas da Macaronésia, são poucos os
géneros de briófitos que incluem mais de uma
espécie endémica da Macaronésia. Podemos re-
ferir, como exemplo, três géneros monoespecí-
ficos (Andoa, Hedenasiastrum e Nobregaea) e cinco
géneros (Echinodium, Leucodon, Rhynchostegiella,
Tetrastichium e Thamnobryum) com dois a três en-
demismos. Os avanços recentes sobre a origem
e evolução das espécies de briófitos endémi-
Fig. 6 – Filídeos de musgos e hepáticas sobre a rica camada
de húmus da floresta laurissilva, Ribeiro Frio (fotografia
cas têm revelado a ocorrência de taxa com ori-
de Virgílio Gomes, 2008, e descrição de Paulo Perneta, 2020). gem ancestral a par de outros com uma origem
B ri ó fitos ¬ 603
União Internacional para a Conservação da das Desertas, embora ocorra em Porto Santo,
Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN) numa zona onde a pressão humana é bastan-
para os arquipélagos da Madeira e das Selva- te mais elevada. Também é considerada Vulne-
gens. A aplicação dos critérios da IUCN, re- rável Riccia atlantica, uma hepática endémica
centemente adaptados para as ilhas, tornou com uma área de distribuição restrita, que se
possível a quantificação de taxa ameaçados desenvolve em solos pobres de zonas expostas,
nestes arquipélagos (24 %) e nos seus diferen- muitas vezes próximos de declives ou escarpas.
tes tipos de habitats. Tal avaliação representa Nas zonas de Laurissilva Mediterrânica do
assim um importante contributo para a identi- Barbusano, presentemente muito alteradas,
ficação dos briófitos e das áreas com priorida- apenas em alguns vales fechados e próximo
de para a conservação, ao mesmo tempo que de linhas de ribeiros podem ainda ser encon-
dá indicação acerca dos habitats e taxa cujo co- trados restos da flora de briófitos caracterís-
nhecimento necessita de ser aprofundado. tica desta formação. Fissidens ovatifolius é um
Na Lista Vermelha dos briófitos dos arqui- dos musgos que se encontra muito ameaçado,
pélagos da Madeira e Selvagens estão assina- principalmente devido às atividades de ori-
lados 127 taxa (cerca de 24 % da brioflora), gem antropogénica, bem como aos desliza-
sendo que, especificamente, 5 (1 %) estão Cri- mentos de terras.
ticamente em Perigo (CR), 22 (4 %) em Peri- Embora a maior e mais bem preservada área
go (EN) e 100 (19 %) são considerados Vul- de laurissilva da Macaronésia possa ser encon-
neráveis (VU). Considerando os endemismos trada na Madeira, existem várias ameaças que
da Madeira e da Macaronésia, 13 estão incluí- devem ser consideradas, entre elas o impacto
dos numa categoria de ameaça (58 %). Um das atividades turísticas e a invasão de espécies
número relativamente elevado de taxa (62) exóticas. Neste habitat, observa‑se uma elevada
está na categoria dos Quase Ameaçados (NT) ocorrência de espécies endémicas (c. 39 %) e
(12 %), a qual inclui alguns dos taxa endémi- ameaçadas (c. 3 8%), o que por si só revela a
cos. Os taxa não ameaçados ou Pouco Preocu- importância da manutenção da biodiversidade
pantes (LC) representam 49 % da brioflora desta floresta e da sua gestão adequada.
da Madeira (263 briófitos), e 15 % incluem‑se Aphanolejeunea azorica, Cololejeunea shaeferi,
na categoria Informação Insuficiente (DD). Lejeunea canariensis, Porella inaequalis, Tyliman-
Os dados obtidos indicam duas espécies de thus madeirensis e Echinodium spinosum (um
briófitos endémicas da Madeira como Extin- musgo referido no Anexo II da Diretiva) são
tas (EX) (Fissidens microstictus e Nobregaea lati- exemplos de espécies endémicas ameaçadas,
nervis) e duas espécies como Regionalmente as quais se encontram presentemente restri-
Extintas (RE) (Brachymenium philonotula e Fis- tas às áreas de laurissilva mais bem conserva-
sidens fontanus). das. Também nos bordos da floresta de Eri-
Existe um número significativo de briófitos cáceas é possível encontrar algumas espécies
dos habitats costeiros e de baixa altitude que exclusivas ameaçadas, entre elas a hepática
se encontra ameaçado, como resultado da Plagiochila spinulosa e o musgo Rhytidiadelphus
perda de habitat, devido, principalmente, à ex- loreus. A destruição da vegetação como conse-
pansão urbana e à atividade turística, aliadas quência dos fogos e do pastoreio, principal-
à pequena área deste tipo de habitat. Entre os mente no passado, tem sido a principal causa
taxa ameaçados, salientamos os musgos Acau- de ameaça para este habitat, resultando no
lon muticum e Acaulon triquetrum, ambos com declínio da sua qualidade e das populações
o ciclo de vida anual e uma área de ocorrên- de briófitos, cujo desenvolvimento estava de-
cia restrita à zona da Ponta de São Lourenço. pendente do ensombramento fornecido pela
Por seu lado, Frullania sergiae é uma hepática flora vascular.
endémica da Madeira, com uma área de dis- É nas zonas de grande altitude da Madeira
tribuição muito restrita na zona mais elevada que existem mais espécies ameaçadas (48 %),
B ri ó fitos ¬ 605
o que se deve em parte à pequena área deste ecológicos (e.g., são abrigo para insetos e au-
habitat, mas também à ocorrência, nas últi- xiliam no controlo da erosão). O valor econó-
mas décadas, de fogos e de pastoreio, os quais mico dos briófitos encontra‑se ainda subesti-
terão contribuído para a destruição signifi- mado, dado que em muitas regiões, incluindo
cativa e para o declínio da área de ocupação a região da Madeira, não são considerados
dos briófitos. Por exemplo, espécies como An- parte essencial e integrante do capital natu-
dreaea flexuosa subsp. luisieri, A. heinemannii ral. Um passo importante tomado em sentido
subsp. heinemannii, A. rupestre, Anacolia webbi e contrário seria a avaliação dos serviços ecoló-
Schistidium strictum existem na Madeira acima gicos providenciada pelos briófitos em dife-
dos 1500 m, apresentando por isso uma área rentes habitats e a definição de áreas impor-
de distribuição limitada. Consequentemen- tantes para a conservação de briófitos com
te, a influência antropogénica nos habitats base nos resultados da Lista Vermelha.
de grande altitude da Madeira, bem como as Será então importante fazer a identifica-
atuais projeções dos efeitos causados pelas al- ção de hotspots para os briófitos, especialmen-
terações climáticas, representa novos desafios te com base nos taxa que constam na Lista
à sobrevivência destas espécies. Vermelha, contribuindo deste modo para a
Salientamos algumas espécies endémicas definição de microrreservas e para ações de
da Madeira, como a Bryoxiphium madeirense, conservação e de gestão especificamente dire-
cujo desenvolvimento está altamente depen- cionadas para a sustentabilidade dessas áreas.
dente da manutenção da qualidade e quan- De acordo com os resultados obtidos na
tidade de água do habitat. Esta espécie de Lista Vermelha, Montado dos Pessegueiros,
musgo possui uma ecologia muito particu- Ponta de São Lourenço, pico do Areeiro, pico
lar, estando restrita a paredes rochosas ver- Ruivo, Fanal, Ribeiro Frio/Fajã da Nogueira
ticais com escorrência de água permanen- e Encumeada/parte superior do Vale de Boa-
te. Em 2010, durante um dos incêndios, um ventura são as áreas mais adequadas para a
fogo atingiu uma das maiores populações de implementação destas medidas.
B. madeirense, a qual ficou reduzida a menos Para uma área pequena como é a Madei-
de metade. Outro exemplo de um endemis- ra, a diversidade da brioflora é de facto ex-
mo madeirense é o musgo Thamnobryum fer- tremamente elevada. Em comparação com o
nandesii, que se desenvolve em habitats per- território continental e com as Canárias, re-
manentemente molhados (rochas e quedas giões igualmente com elevada biodiversidade
de água até cerca de 1000 m, principalmente mas com áreas bastante maiores, a Madeira
na parte central da ilha da Madeira). Por fim, salienta‑se com um hotspot de diversidade de
lembramos ainda o musgo Rhamphidium pur- briófitos no Atlântico Norte.
puratum, que se encontra presentemente na Apesar do enorme avanço na informação
categoria dos Quase Ameaçados (NT) e que disponível sobre este grupo taxonómico nos
é considerado uma espécie vulnerável nas Ca- arquipélagos da Madeira e das Selvagens
nárias, pelo que as suas populações requerem que se verificou nas últimas décadas, existem
atenção especial. ainda áreas de conhecimento que devem ser
A conservação dos briófitos é sem dúvida um exploradas e que contribuirão seguramente
tema crucial, uma vez que este grupo taxonó- para uma gestão mais eficiente dos recursos
mico tem um papel fundamental no funcio- naturais.
namento dos ecossistemas, estando envolvido
nos ciclos do carbono e de outros nutrientes, Bibliog.: CAPELO, Jorge et al., “Guia da excursão geobotânica dos
V Encontros ALFA 2004 à ilha da Madeira”, Quercetea, vol. 6, 2004, pp. 5‑45;
nomeadamente na fixação de azoto em as- FONTINHA, Susana et al., Os Briófitos Endémicos da Madeira, Funchal,
sociação com cianobactérias. Podem formar Secretaria Regional do Ambiente e Recursos Naturais, 2001; FONTINHA,
Susana et al., Os Briófitos da Laurissilva da Madeira. Guia de Algumas
extensos tapetes em diversos ecossistemas, Espécies/The Bryophytes of Laurisilva. Guide to Some Species, Lisboa,
influenciando por isso numerosos processos Secretaria Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais/
606 ¬ B rito , J o ã o da C osta de
três anos de sé vagante (1682‑1685), já não Durante o Governo de João da Costa de Brito,
tendo sido este governador a receber o novo ocorreram alguns problemas na capitania de
bispo do Funchal. Machico. Em outubro de 1681, e.g., o juiz ordi-
João da Costa de Brito prestou especial nário de Machico, Filipe Moniz Barreto, reali-
atenção às obras de fortificação do Funchal, zou mais uma diligência na costa norte, então
em especial da muralha da frente mar, que, a vistoria das ribeiras de São Jorge e do Faial,
em novembro de 1681, ainda estavam por para inventariar os bens do concelho. A delibe-
acabar. O Conselho de Guerra, a 24 de no- ração camarária, no entanto, suscitou a revol-
vembro desse ano, apreciou uma carta do go- ta dos moradores do Faial, que, amotinados,
vernador na qual informava faltarem somen- prenderam o juiz e deslocaram‑se à cidade do
te 29 varas (cerca de 54 m) de muro “para Funchal para o entregarem ao governador,
se fechar a cidade”, os quais julgava pode- como registam as vereações a 6 de dezembro
rem concluir‑se no verão seguinte, apesar desse ano. Também os cortes de madeira na-
de considerar muito limitada a consignação quela capitania levantaram problemas, envol-
que tinha para a fortificação (ANTT, Conse- vendo o ouvidor da capitania e o provedor da
lho de Guerra, Consultas, cx. 11, mç. 40A, Fazenda, tendo o assunto sido presente ao go-
n.n.). A obra, no entanto, tardou ainda mais vernador. Nessa sequência, o provedor da Fa-
de 10 anos, tendo o Gov. Lourenço de Alma- zenda, Ambrósio Vieira de Andrade, apresen-
da (1645‑1729) recebido ordem, no início de tou as ordens régias a esse respeito, enviadas
abril de 1688, para dar continuidade à mura- ao príncipe regente a 25 de setembro de 1680.
lha, “a qual o governador João da Costa de A resposta, dada a 20 de fevereiro de 1682, de-
Brito deixou quase em defesa” (ANTT, Mi- terminava que as devassas sobre os cortes de
nistério do Reino, Decretos, mç. 8, n.º 13). madeira e esmoutadas pertenciam à jurisdição
Seria aquele governador a encerrar, em 1689, do provedor, devendo o ouvidor suspender a
esse troço com o portão dos Varadouros. sua atuação nessa área.
João da Costa de Brito deve ter percor- Este e outros assuntos levaram ao envio de
rido, pelo menos, a costa sul da Madeira, uma alçada ao Funchal, com o desembarga-
interessando‑se pela sua defesa, pois o pro- dor Domingos de Matos Cerveira, em janei-
vimento para vigia e facheiro de António da ro de 1683, especialmente para sindicar os
Gama foi assinado em Machico, a 5 de agos- assuntos da Provedoria da Fazenda, o que
to de 1681. Refere o provimento que, como levou, depois, à deslocação do provedor a Lis-
do pico do Facho, em Machico, se descobria boa para explicar a situação, mas pouco se
o mar e se viam “as partes mais solícitas e de teria apurado contra o mesmo, pois voltou ao
investidas” dos mouros, designação dos piratas seu lugar. Cerca de um ano depois, a 29 de
das costas de Argel e, nessa época, também de maio de 1684, João da Costa de Brito entre-
Marrocos, especialmente da área de Salé, era o gou o bastão ao novo governador, Pedro de
sítio ideal para se dar sinal de “prevenção das Lima Brandão (c. 1640‑1718), e, passando a
partes mais retiradas do povoado” (ANTT, Pro- Lisboa, faleceu, cerca de 1700, no Conselho
vedoria…, liv. 966, fl. 213). Este governador da Junta do Comércio.
não terá delegado parte das funções militares
no Ten.‑Gen. Inácio da Câmara Leme (1630 Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal de Machico, Vereações, liv. 107;
Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 7, 1672‑1720; ANTT,
‑1694), assunto que percorreu todos esses anos, Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 19, João do Cró, Livro do Armeiro‑Mor, 1509,
recebendo ordem, de 30 de abril de 1683, com fl. 63; Ibid., Conselho de Guerra, Consultas, cx. 11, mç. 40A, n.n.; Ibid., Ministério
do Reino, Decretos, mç. 8; Ibid., Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal,
várias considerações sobre a relação que deve- livs. 396, 966; impressa: NORONHA, Henrique Henriques de, Memórias
ria ter com o mesmo e com a recomendação Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal na
Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1996; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na
de que colocasse à sua porta a guarda a que Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.
tinha direito, mas que lhe era recusada sob vá-
rios pretextos. Rui Carita
608 ¬ B rito , Óscar S p í nola de
Brjullov, Karl
Karl Pawlowitsch Brjullov nasceu em São Peters
burgo, a 12 de dezembro de 1799, sendo filho
do pintor e decorador Pavel Bryullov, de ori-
gem francesa, ligado à Academia Real de Belas-
-Artes, onde seus filhos Karl e Alexander (1798
‑1877) estudaram entre 1809 e 1821. Os dois
irmãos foram depois bolseiros em Roma, entre
1823 e 1835, viajando por quase toda a Itália
e regressando ambos à Rússia, onde entraram
para professores da Academia Imperial das
Artes. Alexander havia‑se dedicado à arquite-
tura, mas o protagonismo era então de Karl,
como pintor, embora também fosse dado como
arquiteto, especialmente após o seu trabalho
final e monumental como bolseiro, O Último
Dia de Pompeia (1832‑1833), que lhe granjeou
renome internacional, tendo sido exposto em Fig. 1 – Autorretrato de Karl Brjullov, 1838
Roma e Milão. Karl Brjullov, como também (Galeria Tretyakov de Moscovo).
surge mencionado, teria sido o primeiro pin-
tor russo a ter reconhecimento internacional, quadro de apreciáveis dimensões e ainda pin-
marcando a passagem do classicismo para o tado em Itália.
romantismo. Tornou‑se assim num dos artistas Karl Brjullov teria alguns contactos com a
preferidos da alta nobreza russa, executando família imperial russa, tendo retratado a grã
uma série de retratos já decididamente român- ‑duquesa em 1837, embora o retrato tivesse fi-
ticos, mas de grande espontaneidade e perspi- cado por um esboço a óleo, e tendo‑lhe sido
cácia psicológica, especialmente em aguarela, encomendada pelo czar a decoração da cúpula
também a óleo e em grande formato.
A presidência da Academia Real, entretanto,
foi entregue ao príncipe Maximiliano de Leu-
chtenberg (1817‑1852), que em julho de 1839
se tinha casado com a grã‑duquesa Maria Nico-
laevna da Rússia (1819‑1876), filha do Impera-
dor Nicolau I. Entre os irmãos do príncipe Ma-
ximiliano, estavam a ex‑Imperatriz D. Amélia
de Leuchtenberg (1812‑1873), casada em agos-
to de 1829 com o Imperador D. Pedro I do Bra-
sil, a Rainha Josefina de Leuchtenberg (1807
‑1876), casada com o Rei Óscar I da Suécia, e o
príncipe Augusto de Beauharnais (1810‑1835),
que se casara com a Rainha D. Maria II, na Sé
de Lisboa, a 26 de janeiro de 1835, mas que
havia falecido inopinadamente, a 28 de março
seguinte, com uma angina. Terá sido, em prin-
cípio, no contexto das ligações familiares do
príncipe Maximiliano que Brjullov pintou, Fig. 2 – Vista da fortaleza do Pico, Karl Brjullov, 1850
em 1834, a Morte de Inês de Castro, igualmente (Galeria Tretyakov de Moscovo).
610 ¬ B rjullov , K arl
da Catedral de S.to Isaac, em São Petersburgo, outro trabalho onde, para além do duque, fi-
obra que não acabou. Atacado, entretanto, guram o príncipe e cientista Pyotr Romanovich
por tuberculose, Karl foi aconselhado a pas- Bagration (1818‑1876), a princesa Anna Alek-
sar algum tempo na Madeira, para onde partiu seyevna Martynova Bagration (1824‑1885), sua
em meados de 1849, aí se demorando cerca de mulher, o casal Eugène Mussart e Ye. I. Mus-
nove meses, tendo sido assistido pelo Dr. Antó- sart, M. I. Zheleznov, N. A. Lukashevich, o mé-
nio Alves da Silva (1822‑1854), médico que se dico Alves da Silva e o próprio Karl Brjullov,
formara na Univ. de Coimbra (interrompera como grupo de turistas em passeio pela Madei-
o curso em 1846, dadas as convulsões políticas ra, utilizando um carro de bois e uma rede, e
desse ano, vindo a apresentar o trabalho final encontrando‑se ainda acompanhantes a cavalo.
na Univ. de Paris, em dezembro de 1848). Alves “Sua alteza sereníssima”, o duque de Leuch-
da Silva deve ter entrado pouco depois para tenberg, tinha chegado à Madeira na fragata
professor da Escola Médico‑cirúrgica do Fun- russa Kamtchatka, a 23 de agosto de 1849, mas
chal, tendo tido nomeação de lente e demons- esta ficou de quarentena e os passageiros só de-
trador de Anatomia por dec. de 11 de março sembarcaram no dia 27. O príncipe instalou‑se
de 1850. na Qt. das Angústias, depois Qt. Vigia, com a sua
Não sabemos se Karl Brjullov chegou sozinho comitiva, constituída pelo príncipe Pyotr Bra-
à Madeira, mas durante os cerca de nove meses gation, na correspondência dado como Pierre
que aí passou continuou a pintar, inclusivamen- Bagratin, o conde de Ojarowski, o Cap. Pau-
te obras de alguma dimensão, assim como tra- chine, o secretário, Eugène Mussar, o médico,
balhos incontornáveis no seu legado artístico. S. Fisher, e 15 criados (SILVA e MENESES, II,
Neste grupo de obras, encontra‑se o retrato do 1998, 234‑235). O príncipe foi visita habitual
duque Leuchtenberg, o mais divulgado desta do Gov. José Silvestre Ribeiro (1807‑1891) em
alta figura da aristocracia europeia, anos de- S. Lourenço, sendo, inclusivamente, padrinho
pois reproduzido em gravura, assim como um do primeiro filho do Cap. Eng.º António Pedro
Fig. 3 – Turistas russos em carro de bois e rede, Karl Brjullov, 1850 (coleção particular).
B rjullov , K arl ¬ 611
use de invocação dele, ou de arte nigromân- Aquilo que aconteceu, e que de tal modo mar-
tica, ou de qualquer superstição ou seja para cou o porvir que os naturais do Porto Santo
adivinhar ou desligar ou para quaisquer efei- ficaram conhecidos por “profetas”, foi que um
tos, por feiticeira ou bruxa, ou para as sobre- tal Fernão Nunes e a sua sobrinha entrevada,
ditas coisas de favor ou ajuda” (TRINDADE, Filipa Nunes, conseguiram, em 1532, “enga-
1999, 200). nados pelo espírito mau”, convencer os habi-
Lido todo o documento, dava‑se, então, iní- tantes da ilha de que eram dotados de poderes
cio à parte espiritual da visita, a chamada “de- sobrenaturais que lhes permitiam prever o fu-
vassa”, de que ficaram registos que permitem turo e adivinhar os pecados de cada um (FRU-
averiguar a incidência deste tipo de práticas TUOSO, 2008, 55‑61). Crédulos, população e
no arquipélago. Dessa prospeção se conclui clero entraram em pânico, desdobrando‑se em
que, neste âmbito, o comportamento mais fre- rezas e orações para esconjurar o demónio que
quente era o que dizia respeito às curas supers- agia por intermédio do casal possuído. Esta en-
ticiosas, consideradas condenáveis na medida cenação apenas se desvendou por intervenção
em que implicavam o recurso a orações pro- do Corr. João Afonseca, que, chamado à pres-
nunciadas em circunstâncias de tempo, lugar e sa da Madeira, se deslocou à ilha e prendeu os
postura não sancionadas pela Igreja. De entre vigaristas, os quais foram expiar as culpas para
as maleitas que se procuravam curar, avultam, a porta da Sé de Évora, onde ficaram expostos
a larga distância das demais, as que derivavam “em uma escada, cada um com sua carocha de
do mau‑olhado, seguidas do mal de aberto, papel com letras que diziam ‘Profetas do Porto
patologia já do foro da luxação, ou da rotura Santo’ […] ela vestida e ele nu da cintura para
muscular. Os curandeiros, ou, mais frequente- cima” (Id., Ibid., 61).
mente, as curandeiras, eram pessoas que não A persistência destes comportamentos pode
exigiam pagamento pelo serviço prestado, o também testemunhar‑se a partir das denúncias
qual envolvia procedimentos que perduraram feitas ao Tribunal do Santo Ofício, nas duas vi-
e que passavam pelo uso de azeite e água, ou sitas que o mesmo realizou à Madeira, em 1591
pelo mais analógico método de coser um nove- e 1619, nas quais foram arrolados por práticas
lo de linha por nove vezes, o que supostamen- de feitiçaria 7 e 13 casos, respetivamente. Do
te induziria a reparação do músculo afetado. conjunto das denúncias e das condenações efe-
Outros pecados que também se encontram re- tuadas, cumpre sublinhar que todas as implica-
ferenciados nas visitações, embora de forma das são mulheres, o que vem claramente refor-
muito mais esparsa, reportam a ações de feitiça- çar a dominância do feminino neste universo
ria ou bruxaria, aqui entendidas como modos desviante. São, com efeito, sempre mulheres
de convocar o além para provocar o bem do as que praticam, beneficiam e encomendam
cliente ou o mal de alguém que se quer pre- os serviços, que nestes casos específicos se cen-
judicar. Aquilo que distingue um curandeiro tram na coscinomância – a adivinhação, atra-
de um bruxo ou feiticeiro é o pagamento que vés do uso de uma peneira –, na localização de
os últimos exigem e a possibilidade de as in- pessoas ausentes e na previsão do futuro.
vocações realizadas se destinarem a provocar São, também, femininas as figuras que po-
prejuízo a terceiros, situação que nunca se põe voam o imaginário insular de bruxas que se
quando se consulta um curandeiro. colocam às costas de homens incautos que se
Apesar do empenho, continuado e persisten- deixam teletransportar, levando‑as onde pre-
te, desde sempre colocado pela Igreja na re- tendem, e regressam sem saber como, ou as
pressão destes comportamentos, a verdade é que se recusam a morrer sem ter passado o
que eles se identificam desde muito cedo na “novelo”, entidade indefinida, mas que corpo-
história do povo madeirense, sendo, talvez, riza os saberes e os poderes daquela que está
o caso dos “profetas do Porto Santo” um dos de partida. Desse mesmo imaginário fazem,
mais remotos exemplos que se podem arrolar. ainda, parte histórias de galinhas e cabras que
B uch , C hristian L eopold von ¬ 615
Na Madeira, existe uma delegação do Cen- Bibliog.: impressa: DALAI LAMA, A Sabedoria para Viver. Dalai Lama em
Portugal, Lisboa, Ésquilo, 2007; KAY, David N., Tibetan and Zen Buddhism in
tro de Apoio ao Sem‑Abrigo (CASA), de ins- Britain. Transplantation, Development and Adaptation, London/New York,
piração budista, desde outubro de 2007 (um Routledge Curzon, 2004; KHARISHNANDA, Yogi, O Evangelho de Buda.
Transcrito dos Pitakas, as Escrituras Sagradas do Budismo, São Paulo,
mês depois de esta associação ter começado a Pensamento, 2004; RICARD, Matthieu et al., O Budismo e a Natureza da Mente,
sua atividade em Lisboa, a 22 de setembro de Lisboa, Mundos Paralelos, 2005; RINPOCHE, Sogyal, O Livro Tibetano da Vida
e da Morte, Lisboa, Prefácio, 2001; SILVA, Georges da, e HOMENKO, Rita,
2007, no último dia de ensinamentos do Dalai Budismo, Psicologia do Autoconhecimento. O Caminho da Correta Compreensão,
Lama em Portugal, em que Tulku Pema Ri- São Paulo, Pensamento, 2001; TEIXEIRA, António Coelho, “Estudos. História
do budismo em Portugal e da União Budista Portuguesa”, Revista Lusófona de
nopoche distribuiu comida e roupas aos sem
Ciência das Religiões, ano vi, n.º 11, 2007, pp. 225‑244; digital: Fundação Kangyur
‑abrigo), como forma de contribuir para ate- Rinpoche: http://www.krfportugal.org/pt/mestres.php (acedido a 11 ago. 2016).
nuar o sofrimento dos mais pobres e para o Naidea Nunes
bem‑estar de todos os seres. Na Madeira, em
finais de 2015, a associação tinha já 250 vo-
luntários, no Funchal, Calheta, Ponta do Sol Bulas
e Santa Cruz. Nas diferentes delegações da As cartas papais do Arquivo Histórico da Dio-
CASA, a chamada “Casa Amiga” – espalha- cese do Funchal (AHDF) incluem bulas do bis-
da por muitos outros países da Europa e do pado e do arcebispado, bulas e transuntos de
mundo – vai também semanalmente à residên- bulas de confirmação dos bispos, tendo por
cia das pessoas desfavorecidas levar um cabaz vezes agregados papéis referentes à sagração e
de alimentos. Também a associação ecologista posse destes, bem como um “Sumário” da Bula
Mother Earth, outro projeto de Tulku Pema da Cruzada, pertencentes quer ao Arquivo do
Rinpoche para proteger o planeta, ou “mãe” Bispado, quer ao do Cabido da Sé. Algumas
Terra, está na Madeira desde 2014, tendo sido bulas foram identificadas por Orlando de Frei-
criada em Portugal a organização internacio- tas Morna e microfilmadas pelo Arquivo Regio-
nal Protector of Life, a 30 de maio de 2012, nal da Madeira (ABM) em 1998, outras pode-
com o propósito de libertação de um milhão rão integrar o Arquivo dos Bispos.
de vidas de animais por ano. Entre 2010 e 2014, tiveram início a pesqui-
Outra linha de orientação do budismo que sa e o tratamento sistemáticos destas bulas,
existiu na Madeira foi a Nova Tradição Kadam- sendo identificadas oito bulas propriamen-
pa, do inglês New Kadampa Tradition (NKT), te ditas (sete das quais lamentavelmente des-
introduzida na Ilha em 2002. Esta linha do pojadas dos selos pendentes). A exemplo de
budismo surgiu em Inglaterra nos anos 80 do quantos publicaram as principais bulas do
séc. xx e tem o seu principal centro no Noroes- Funchal – D. António Caetano de Sousa, Luís
te de Inglaterra, onde se encontra o Kadam- Augusto Rebelo da Silva, Ricardo Augusto de
pa World Peace Temple. Foi em maio de 1991 Sequeira, Fernando Augusto da Silva, Charles
que Geshe Kelsang Gyatso deu o nome de NKT ‑Martial de Witte, Manuel Juvenal Pita Ferrei-
a esta orientação budista que segue a doutri- ra –, Orlando de Freitas Morna e Maria da
na dos seus livros. Na Madeira, a Nova Tradi- Cunha Paredes pesquisaram e transcreveram
ção Kadampa teve um centro de meditação de- bulas e transuntos de bulas, certidões e tresla-
nominado Centro Avalokiteshvara (Buda da dos destas lançados em livros de registo, elabo-
Compaixão), que oferecia aulas de meditação rando, respetivamente, traduções e sumários.
e organizou várias atividades de âmbito espiri-
tual, como retiros espirituais budistas e ensina-
Bulas do bispado e do arcebispado
mentos de mestres budistas do NKT. Terminou
(1514‑1551)
as suas atividades no verão de 2008.
No começo do séc. xxi, havia 400 milhões Todas datadas de 12 de junho de 1514, a Pro
de budistas espalhados pelo mundo, nas suas Excellenti Praeeminentia, carta de fundação da
diversas tradições, sendo o budismo a quarta Diocese do Funchal, a Gratiae Divinae Prae-
grande religião mundial. mium (dirigida ao rei) e a Hodie Ecclesiae Nostrae
B ulas ¬ 619
Fig. 2 – Transunto da bula Apostulatus Officium, do Papa Pio IX, provendo a D. Manuel Martins Manso no bispado do Funchal,
20 de maio de 1850 (ANTT, Bulas, mç. 60, n.º 8).
620 ¬ B ulas
Tombo, liv. 104; ANTT, Bulas, mç. 60, n.º 8; Ibid., Cabido da Sé do Funchal;
impressa: BRUNET, Jean‑Louis, Le Parfait Notaire Apostolique et Procureur
des Officialitez, Contenant les Regles et les Formules de Toute Sorte d’Actes
Ecclesiastiques…, Paris, Claude Robustel, 1730; As Bulas de Criação da Diocese
do Funchal, texto latino, trad. e notas de Orlando Moisés de Freitas Morna,
Funchal, Região Autónoma da Madeira, 2015; FERREIRA, Manuel Juvenal Pita,
A Sé do Funchal, Funchal, JGDAF, 1963; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades
da Terra. Historia das Ilhas do Porto‑Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens,
Funchal, Typ. Funchalense, 1873; MORNA, Orlando de Freitas, e PAREDES,
Maria da Cunha, Bulário Funchalense I. Sumários, Transcrições e Traduções das
Bulas de Criação do Bispado, do Arcebispado e dos Bispos (1514‑2007), texto
não publicado; SILVA, Fernando Augusto da, Subsídios para a História da
Diocese do Funchal, vol. 1, Funchal, s.n., 1946; Id., e MENESES, Carlos Azevedo
de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; WITTE, D. Charles
‑Martial de, “Les bulles d’érection de la province ecclésiastique de Funchal”,
Arquivo Histórico da Madeira, vol. xiii, 1962‑1963, pp. 79‑136.
Bulwer, James
O reverendo inglês James Bulwer nasceu em
Aylsham, Norfolk, a 21 de março de 1794, fa-
lecendo em Blickling a 11 de junho de 1879.
Tendo estudado no Colégio de Jesus, em Cam-
bridge, onde obteve o grau de mestre em 1823,
teve lições de pintura com John Sell Cotman
Fig. 1 – Rev. James Bulwer, Frederick Sandys, 1858
(1784‑1842), tornando‑se depois naturalista e
(National Gallery of Canada).
membro da Linnean Society. Estabeleceu con-
tactos com outros naturalistas e especializou‑se
em moluscos, deslocando‑se por duas vezes à desenhos de Portugal continental e da Madei-
Madeira, onde efetuou desenhos que seriam, ra. Foi igualmente antiquário, estando na base
dois anos depois, passados a litografia em Lon- da recolha da Norfolk Collection, iniciada
dres e que constituem alguns dos mais antigos pelo seu professor e amigo John Sell Cotman.
elementos iconográficos das ilhas da Madeira e Trabalhou também como arquiteto na adapta-
do Porto Santo. ção da prior’s door da Catedral de Ely, em Cam-
James Bulwer ordenara‑se diácono em 1818 bridgeshire, em que se reconhece a influência
e padre anglicano em 1822, tornando‑se cura de Johan Ruskin e dos pré‑rafaelitas.
da paróquia de Booterstown, em Dublin, no Das suas estadas na Madeira – na primavera
ano seguinte. Passou depois para Bristol, em de 1825, nos finais desse ano e nos inícios de
1831, e para a capela de St. James, em Pica- 1826, esta última com Alfred Lyall, que fora
dilly, em 1833. Deixou Londres em 1839, re- acompanhar a sua irmã doente – resulta o seu
gressando a Norfolk, onde ocupou os lugares trabalho Views in the Island of Madeira, litogra-
de cura em Blickling e, depois, em Hunworth. fado por William Westall (1781‑1850) e outros
Passou, entretanto, alguns invernos em Portu- e editado em Londres, em 1827. Na mesma al-
gal continental, em Espanha e na ilha da Ma- tura, Alfred Lyall editou Rambles in Madeira,
deira. Enquanto esteve na Ilha, contou com a and in Portugal, publicado em 1827 e 1828, tra-
companhia do seu amigo naturalista, filósofo e balho que deve ter realizado, de certa forma,
também reverendo Alfred Lyall (1796‑1865), e com o reverendo anglicano, pela maneira
juntos estudaram a fauna marinha da Região. como se completam, contendo várias referên-
Embora amador, tornou‑se um pintor agua- cias um ao outro. O álbum de James Bulwer
relista de certa nomeada, entre o romantis- apresenta 26 paisagens urbanas e naturais do
mo e o naturalismo, editando alguns dos seus arquipélago e mais 3 pequenas vinhetas, sendo
622 ¬ B ulwer , J ames
Fig. 3 – Porto Santo, cidade, litografia de desenho do Rev. James Bulwer (BULWER, 1827).
B usk , G eorge ¬ 623
lugares, tornando‑se os seus desenhos impres- Unido, primeiro na Dr. Hartley’s School, em
cindíveis para o estudo da arquitetura, do ur- Yorkshire, e, depois, na Royal College of Sur-
banismo e dos aspetos singulares das paisagens geons, em Londres. Como médico, contri-
regionais. Com a dispersão da sua coleção par- buiu para o conhecimento de diferentes epi-
ticular, ainda não foi possível localizar qual- demias. Em 1838, e.g., publicou, juntamente
quer dos trabalhos originais feitos por Bulwer com o seu colega George Budd, um relatório
na Madeira. sobre 20 casos de cólera (Report of Twenty Cases
James Bulwer, enquanto pároco da capela de of Malignant Cholera that Occurred in the Sea-
Saint James, em Piccadilly, Londres, esteve pre- men’s Hospital‑Ship) e escreveu relatórios para
sente na coroação da Rainha Vitória, em 1838, a SHS sobre outras doenças, como o escorbuto
e, no ano seguinte, deixou Londres com desti- e a varíola. Também no campo da parasitolo-
no ao condado de Norfolk, onde exerceu o seu gia, fez valiosas descobertas, tendo, em 1843,
magistério em diversas paróquias. Foi casado descrito 14 vermes parasitários do duodeno.
com Eliza Redfoord, com quem teve três filhos Estes trematodes foram depois chamados Fas-
e uma filha. ciolopsis buski em sua honra. As suas aportações
nesta área tornaram‑no tão conhecido que,
Bibliog.: BULWER, James, Views in the Madeiras, Executed on Stone by Messes,
Westall, Nicholson, Harding, Nash, Villeneuve Gauci, &c. &c. after Drawing numa carta a Charles Darwin de 1863, Joseph
Made from Nature by the Revd. James Bulwer, London, C. & J. Rivington, 1827; Hooker descreve Busk como “o cérebro mais
BURY, Stephen, Benezit Dictionary of British Graphic Artists and Illustrators,
New York, Oxford University Press, 2012; CAMACHO, Ana Margarida fértil que conheço em tudo o que diz respeito
Sottomayor Araújo, “James Bulwer”, in Obras de Referência dos Museus da ao estômago” (“George Busk”, Darwin Corres-
Madeira. 500 Anos de História de Um Arquipélago, catálogo de exposição
comissariada por Francisco Clode de Sousa, e patente na Galeria de Pintura
pondence…), facto que levou Darwin a escrever
do Rei D. Luís, Palácio Nacional da Ajuda, 21 nov. 2009‑28 fev. 2010, Funchal, ‑lhe para pedir conselho sobre os seus próprios
DRAC, 2009, pp. 372‑377; LYALL, Alfred, Rambles in Madeira, and in Portugal
in the Early Part of M.DCCC.XXVI with An Appendix of Details, Illustrative
sintomas gástricos. Darwin também escrevera
of the Health, Climate, Produce and Civil History of the Island, London, C. & a Busk para pedir a sua opinião sobre outros
J. Rivington, 1827; MEARNES, Barbara, e MEARNES, Richard, Biographies
for Birdwatchers. The Lives of Those Commemorated in Western Palearctic
assuntos, nomeadamente se haveria alguma re-
Bird Names, London, Academic Press, 1988; NASCIMENTO, João Cabral lação entre a cor do cabelo e a suscetibilidade
do, Estampas Antigas da Madeira, Funchal, Club Rotário do Funchal, 1935;
às doenças tropicais nos soldados britânicos, e
SAINZ‑TRUEVA, José de (org.), Viagens na Madeira Romântica, catálogo
de exposição comissariada por José de Sainz‑Trueva, e patente no Teatro sobre a evolução dos Bryozoa. Em 1864, Busk,
Municipal do Funchal, dez. 1988‑jan. 1989, Funchal, DRAC, 1988; SOUSA, na altura membro do conselho da Royal Socie-
Francisco Clode de, “Aparências e permanências”, in Estampas, Aguarelas e
Desenhos da Madeira Romântica, catálogo de exposição patente na Casa- ty, foi um dos que persuadiram a Sociedade a
-Museu Frederico de Freitas, jul.‑dez. 1988, Funchal, DRAC, 1988, pp. 15‑38. outorgar a Darwin a medalha Copley, a con-
Manuel Biscoito decoração de maior prestígio no domínio das
Rui Carita ciências.
Durante a sua vida, especialmente após a
Busk, George sua reforma da SHS, em 1855, George Busk
dedicou‑se ao estudo dos Bryozoa (ou Poly-
George Busk, cirurgião e naturalista, trabalhou zoa). Embora não haja registos de ter estado
durante 25 anos para a Seamen’s Hospital So- alguma vez na Madeira, recebeu muitas amos-
ciety (SHS), em Greenwich, Reino Unido, e tras de Bryozoa desta ilha enviadas por James
fez importantes contribuições para os campos Yate Johnson (1820‑1900) e fez uma contri-
da epidemiologia e da parasitologia. Como na- buição importante para o seu conhecimento,
turalista, estudou os invertebrados marinhos descrevendo no total – como se referiu – 45
do filo Bryozoa e descreveu 45 espécies com espécies nos vários artigos que publicou no
base nos exemplares fornecidos por James Quarterly Journal of Microscopical Science: “Zoo-
Y. Johnson. phytology”, “On some Madeiran Polyzoa”, e
Busk nasceu a 12 de agosto de 1807, filho “Catalogue of the Polyzoa, collected by J. Y.
de colonos ingleses, em São Petersburgo, Rús- Johnson, Esq. at Madeira in the years 1859 and
sia. Completou todos os seus estudos no Reino 1860”, tendo a sua coleção sido depositada no
624 ¬ B usk , G eorge
Notícia do falecimento de João Octávio da Costa Cabedo (Ilustração Portugueza, 12 fev. 1912, 205).
Concluído o ensino secundário no Liceu Na- menor, João da Costa Cabedo, que só então foi
cional do Funchal, matriculou‑se em Direito perfilhado, uma pensão anual de 360$000 réis,
na Univ. de Coimbra, onde foi aluno de Afon- até atingir os 21 anos.
so Costa, passando a participar nos comícios Bibliog.: manuscrita: ABM, Registos Paroquiais, Santa Luzia, Batismos,
do Partido Republicano nos finais do regime liv. 1491, 1885, fl. 42v.; Ibid., Registos Paroquiais, Santa Luzia, Casamentos,
liv. 6500 A, 1906, fl. 10v.; impressa: “Os acontecimentos da Moita. Uma
monárquico. Abandonou, entretanto, Direito, cena de selvagens. A morte do madeirense João Octávio da Costa Cabedo”,
acabando por matricular‑se no Curso Superior O Povo, 8 fev. 1912, p. 1; Actas da Câmara de Deputados, sessão de 14 maio
1913; “Administrador linchado”, Diário de Notícias, Funchal, 3 fev. 1912, p. 1;
de Letras, em Lisboa. “Agredido à machadada. A morte dum nosso patrício”, Diário de Notícias,
Com apenas 17 anos, foi diretor interino do Funchal, 9 fev. 1912, p. 1; “O atentado da Moita”, Ilustração Portugueza,
12 fev. 1912, p. 205; “O caso da Moita. Todos os réus foram condenados a
jornal O Direito, do Funchal, e colaborou com penas maiores”, Diário de Notícias, Funchal, 17 maio 1912, p. 3; CLODE, Luiz
vários jornais, nomeadamente o Rebate, O Povo Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; “Crónica fúnebre. Costa Cabedo”, O Povo,
e o Jornal dos Açores. Após o triunfo da repú- 2 fev. 1912, p. 2; “É preso o suposto agressor do administrador da Moita”,
blica, a 5 de outubro de 1910, colaborou, com Diário de Notícias, Funchal, 13 fev. 1912, p. 2; “Pensão”, Diário de Notícias,
Funchal, 21 maio 1912, p. 1; A República nos Concelhos da Margem Sul. Actas
temas políticos, com o jornal O Povo de Aveiro
do Colóquio, Moita, Câmara Municipal da Moita, 2011.
e foi um dos redatores do Intransigente, onde
Gabriel Pita
usou o pseudónimo de João Claro.
Faleceu no Hospital de S. José, a 5 de feve-
reiro de 1912, na sequência de um linchamen- Cabedo, Maria Dulcelinda da
to perpetrado, na madrugada do dia 1 de fe- Costa de
vereiro, por trabalhadores rurais em greve, na
Moita, distrito de Setúbal, onde era adminis- Filha do oficial do Exército Maj. João Augusto
trador do concelho, por se ter recusado a li- da Costa Cabedo e de Matilde Amélia Fernan-
bertar alguns dos grevistas que estavam presos. des Cabedo, e neta de um dos heróis do Min-
Após a sua morte, foi concedida ao seu filho delo, Maximiliano Cabedo, a escritora nasceu
628 ¬ C abedo , M aria D ulcelinda da C osta de
o espírito, pois deixam‑se levar pelo enfeite, valiosa capela desconhecida do grande públi-
pelo encanto ilusório, pelos atavios. No fundo, co”, que saiu em separata e voltou a ser publi-
a escritora denuncia a falta de investimento in- cado em 1970.
telectual, de leitura e dos conhecimentos que
Obras de Maria Dulcelinda da Costa de Cabedo: À Procura do Infinito (s.d.);
se conseguem através dela, criticando os pre- Phantasias e Realidade (1927); “A ilha da Madeira e as suas fontes de água pura”
conceitos que ainda existem em relação à mu- (1932); “Um poeta madeirense desconhecido” (1932); “Uma valiosa capela
desconhecida do grande público” (1963).
lher letrada, ao afirmar que não é a leitura que
perverte, desequilibra ou desorienta, muito Bibliog.: impressa: CABEDO, Maria de, Phantasias e Realidade, Lisboa,
Aillaud/Bertrand, 1927; Id., “Um poeta madeirense desconhecido”, Novo
menos os livros escolhidos da Utile Dulci. Em
Almanach LusoBrasileiro, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1932, pp. 369
relação ao acervo desta biblioteca, lamenta a ‑370; CARDOSO, Maria de Cabedo, “Uma valiosa capela desconhecida do
falta de livros em português, considerando, no grande público”, Olisipo, ano xxvi, n.º 103, jul. 1963, pp. 142‑147; CLODE,
Luiz Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal,
entanto, que entre os livros de estudo se en- Caixa Económica do Funchal, 1983; “D. Maria de Cabedo”, Novo Almanaque
contram obras essenciais: L’Éducation de la Vo- de Lembranças Luso‑Brasileiro, Lisboa, Parceira António Maria Pereira, 1931;
Ilustração Portugueza, 16 out. 1927; PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas
lonté, de Payot, e La Femme de demain, de Étien- & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara
ne Lamy. A leitura desta última é aconselhada Municipal do Funchal, 1953; digital: MACEDO, L. S. Ascensão de, Da Voz à
Pluma. Escritoras e Património Documental de Autoria Feminina de Madeira,
a todas as meninas da sua terra, pois nela se Açores, Canárias e Cabo Verde. Guia Biobibliográfico, Ribeira Brava, ed. do
explica que a educação da mulher data de tem- Autor, 2013: file:///C:/Users/MariaJos%C3%A9/Downloads/Da_Voz_a_Pluma_
Escritoras_e_patrimonio_d%20(2).pdf (acedido a 5 dez. 2017).
pos remotos e que o seu valor e talento não é
uma inovação do feminismo. Luísa M. Antunes Paolinelli
A educação feminina é, na sua opinião, de
grande importância, pelo que não se coíbe de
criticar as mulheres que não aproveitam para
Cabido
alargar os horizontes e a possibilidade de se O cabido é um órgão colegial que, inicialmen-
educarem e serem cooperadoras do homem te, tinha por funções assegurar o serviço reli-
nas ciências modernas e na resolução dos pro- gioso da sé ou igreja a que pertencia, não só
blemas sociais. A educação não significa a re- a celebração das missas, mas também, prin-
cusa da mulher em ser calma, doce e deten- cipalmente, a Liturgia das Horas, tendo, en-
tora de especial compreensão espiritual, mas tretanto, alargado a sua função ao aconselha-
a conjugação dos atributos femininos com o mento do bispo ou do seu vigário‑geral. Este
conhecimento.
De tom poético e de natureza delicada, os
textos de Maria de Cabedo caracterizam‑se por
breves impressões e apontamentos de lugares
e de sentimentos. Apesar de não deixar de de-
monstrar uma certa ironia, principalmente
quando se refere a um determinado mundo
feminino, mais preocupado com a aparência
e com a vida mundana do que com o cultivo
do espírito, a autora investe principalmente
nas descrições de paisagem e na forma como o
efeito do espaço da Ilha se inscreve no espírito.
As narrativas curtas têm como temática peque-
nos episódios e centram‑se na efemeridade da
vida, no amor e na espiritualidade.
A autora publicou ainda um artigo na revista
Olisipo, em 1963, que assinou como D. Maria
de Cabedo Cardoso, da Academia Literária Fe- Fig. 1 – Selo do cabido da Sé do Funchal, 1590 (ABM,
minina do Rio Grande do Sul, intitulado “Uma Arquivo do Paço Episcopal).
C abido ¬ 631
dignidades, passando muitos depois ao cabido; por provisão régia de 25 de janeiro de 1594.
no entanto, a maioria seria, num curto espa- O número de ofícios e de capelães ainda cres-
ço de tempo, de “filhos de homens de bem, ceria nos anos seguintes, constituindo o cabi-
naturais da terra”, como se escrevera em 1513 do da Sé do Funchal – até porque muitas vezes
(ABM, Tombo Velho, fl. 310). em sé vacante – um corpo político, económico
Nos anos seguintes, o quadro de ministros e social que atravessará a história da Madeira.
da Sé foi sendo aumentado, tendo o primeiro No cabido, foram tendo assento os filhos se-
bispo, D. Diogo Pinheiro (c. 1450‑1525), cria- gundos das principais famílias insulares, re-
do o lugar de mestre‑escola, mencionado em presentando, a par e em estreita colaboração
1514, mas só dotado em 1527. Com o segun- com o senado da vizinha Câmara Municipal do
do bispo, D. Martinho de Portugal (c. 1485 Funchal, os seus interesses e opondo‑se, por
‑1547), e a elevação do Funchal a arcebispado, vezes terminantemente, aos poderes enviados
em 1536, foi a Sé dotada de quatro “cape- pelo continente do reino. A Câmara situava‑se
lães de sobrepeliz” e de dois cónegos meios então nas traseiras da Sé, e nela tinham assen-
‑prebendados (BNP, Índice…, fls. 66‑66v.). to, muitas vezes, os morgados representantes
O cabido seria ainda dotado de açougue pró- dessas famílias, que seriam, se não os irmãos,
prio, assunto evocado na carta de D. Manuel pelo menos os parentes mais próximos dos vá-
de 2 de dezembro de 1521, mas só efetivado rios cónegos.
Nos primeiros tempos, e enquanto os pri-
meiros prelados não se deslocaram à sua
diocese, o governo eclesiástico foi assegura-
do por vigários‑gerais, por vezes já como có-
negos do Funchal, competindo aos mesmos
cónegos, com poucas exceções, as visitações
anuais a quase todas freguesias, exarando os
seus provimentos e mantendo não só uma
uniformização de procedimentos, como tam-
bém um amplo e profundo quadro de gover-
nação, intervindo no quotidiano e corrigindo
e disciplinando os aspetos mais particulares
dos paroquianos, como nenhuma entidade
governativa alguma vez conseguiu. As primei-
ras visitações decorreram com delegados do
bispo e do arcebispo do Funchal enviados do
continente, mas, com a obrigação de residên-
cia na sua diocese determinada pelo Concílio
de Trento, na maior parte dos casos, após a
tomada de posse, os prelados efetuavam pes-
soalmente uma visitação, delegavam as se-
guintes no cabido e também, em casos pon-
tuais, nos vigários das principais freguesias.
Pouco tempo depois, retiravam‑se para o con-
tinente, alegando doença ou conseguindo
transferência para outra diocese e entregan-
do o governo ao deão e ao cabido. Contam‑se
quase pelos dedos de uma mão os prelados
Fig. 2 – Edifício do cabido da Sé do Funchal, reconstrução de 1734
que, até ao séc. xx, faleceram na Diocese do
(projeto de Diogo Filipe Garcês) (arquivo particular). Funchal.
C abido ¬ 633
O cabido da Sé, que chegara a ter 21 capitu- Composição da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, antigamente
Primaz de Todas as Conquistas, Distribuída na Forma do Systema da Academia
lares e se reduzira a 12 desde a Concordata de Real da História Portuguesa, Anno de 1722, Funchal, CEHA, 1996; SILVA,
1940, embora não fosse extinto e mantendo per- Fernando Augusto da, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, Funchal,
s.n., 1946; Id., e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols.,
sonalidade própria, viu reduzida uma grande Funchal, DRAC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade
parte do seu anterior papel, relativamente à re- Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.
Fig. 2 – Estação telegráfica do Mindelo, em Cabo Verde, bilhete-postal enviado por Geo W. Worsell Esq, 1905
(antiga coleção Nellie Worsell, da Casa Cory/Johan Cunha, Funchal).
A instalação de cabos submarinos nos espa- especiais de segurança do recinto pela polí-
ços insulares atlânticos, a partir da déc. de 70 cia cívica. As piores previsões confirmaram
do séc. xix, revela mais um papel importante ‑se quando, a 3 de dezembro de 1916 e a 12
atribuído aos espaços insulares na conexão da de dezembro de 1917, os submarinos alemães
Europa com a América e África. Na Madeira, bombardearam de forma relâmpago a cidade
São Vicente e Faial estabeleceram‑se instala- do Funchal, tendo em linha de mira a estação
ções de apoio à amarração dos diversos cabos de S.ta Clara (as bombas acabaram por cair no
que foram servidas por funcionários das com- Convento).
panhias envolvidas, muitas das quais prove- A afirmação do cabo submarino como um
nientes dos países proprietários. Rapidamente meio privilegiado de comunicação com o ex-
se criou, em cada uma das ilhas, a comunida- terior foi efémera. A concorrência da telegra-
de dos cabos submarinos, que estabeleceu e fia sem fios, mercê dos progressos técnicos ge-
manteve ligações diretas com a comunidade rados por Marconi, e a afirmação do correio
residente. Assim, na Madeira, eram frequen- aéreo, associados à Depressão de 1929, condu-
tes os convívios com os locais, despertando ziram a que aqueloutro meio se tornasse obso-
esse grupo estrangeiro a atenção de todos. leto e com elevados custos, dando lugar a uma
Acrescente‑se que a eles se deve a prática de complexa rede de telegrafia sem fios. Este foi
diversas modalidades desportivas, como o fute- o primeiro passo para um rápido enlace de
bol e o críquete. todo o mundo, conseguido em pleno na atua-
A estação do cabo nas proximidades do lidade, com a geração dos satélites. Não obs-
Convento de S.ta Clara era alvo da atenção tante as primeiras experiências de rádio serem
de todos. Com a Primeira Guerra Mundial, de 1825, foi em finais do séc. xix, com Gui-
tornou‑se um centro nevrálgico, em termos lherme Marconi, que se deram os grandes pro-
de circulação de informações, que impor- gressos na transmissão pela telegrafia sem fios.
tava salvaguardar. Desta forma, a partir de Com efeito, foi em 1896, após um ano de expe-
março de 1916, foram estabelecidas medidas riências, que o mesmo registou a patente, em
640 ¬ C abo submarino
Fig. 3 – Jogo de futebol, no antigo Campo de D. Carlos, entre elementos do futuro Marítimo e da Madeira Eastern Telegraph Company,
1909 ou 1910 (antigo arquivo do Marítimo/Campo Almirante Reis).
C abo V erde ¬ 641
em caravela, é que encontraram acidental- Segundo veio a escrever Diogo Gomes, rei-
mente algumas das ilhas do arquipélago de vindicando o descobrimento das ilhas de Cabo
Cabo Verde. Verde para si, as ilhas haviam sido avistadas por
A descoberta das ilhas de Santiago, de Maio, ele e por António da Noli, cada um em sua ca-
do Fogo, da Boavista e do Sal, em finais de 1459 ravela, depois de dois dias e meio de viagem a
ou, mais provavelmente, em 1460, foi reivindica- partir do rio dos Barbacins. Decidindo ambos
da por três navegadores: os italianos Luís de Ca- aproximar‑se, como a caravela de Diogo Gomes
damosto (1432‑1488) e António da Noli (1415 era mais veleira, ele teria chegado primeiro,
‑1497) e Diogo Gomes (c. 1402‑1420‑c. 1502), reconhecendo uma praia de areia branca que
almoxarife de Sintra. O descobridor teria sido lhe pareceu um bom porto, onde fundeou, se-
António da Noli, na companhia do qual teria guido por António da Noli. Diogo Gomes in-
navegado Cadamosto; este, no entanto, escre- sistiu em ir a terra primeiro e, tendo realiza-
vendo depois sobre essa e outras viagens, cha- do a sua intenção e não tendo visto qualquer
mou a si os louros da exploração. Nos finais de sinal de vida humana, nomeou a nova terra
1461 ou inícios de 1462, em nova viagem, o na- “ilha de Santiago”, a qual “assim se chama até
vegador Diogo Afonso (c. 1390‑1498), conta- hoje” (GODINHO, I, 1982, 93‑94). Regressan-
dor da ilha da Madeira e escudeiro do infante do a Portugal, passaram pela ilha da Madeira,
D. Henrique (1394‑1460), teria avistado as ilhas mas uma tempestade arrastou‑os depois para
Brava, de São Nicolau, de Santa Luzia, de Santo os Açores. António da Noli permaneceu algum
Antão, de São Vicente e os ilhéus Raso e Bran- tempo na Madeira, mas, aproveitando vento
co. Segundo os relatos da época, as ilhas esta- favorável, chegou depois a Portugal antes de
vam desertas, não havendo qualquer indício Diogo Gomes e pediu a capitania da ilha de
de presença humana, como depois também es- Santiago a el‑rei, tendo‑a recebido e conserva-
creveu Cadamosto: “não se encontrando nelas do até morrer.
senão pombos e aves de estranhas sortes, e A defesa da tese de um povoamento ante-
grande pescaria de peixe” (MARQUES, sup. I, rior assenta em vagas informações do navega-
1988, 232‑233). dor Duarte Pacheco Pereira (1460‑1533), que
Fig. 2 – Terraços dos Carvoeiros, ilha de São Nicolau (fotografia do projeto CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005).
C abo V erde ¬ 643
fixa e a obrigação de continuar as viagens de de uma vida tão afastada do reino, o almo-
exploração naquela costa. A concessão de xarife recebia o dobro da quantia geralmen-
1469, entretanto, entrava em conflito com a te paga, cabendo‑lhe a cobrança dos direitos
efetuada aos residentes em Santiago, tendo o reais, o arrendamento dos bens da Coroa e o
rei sanado o litígio através da carta régia de pagamento das despesas públicas, pelo que,
1472 que alterou por completo a concedida pouco depois, foi criado o cargo de escrivão
em 1466: os habitantes de Santiago podiam co- do almoxarifado.
merciar, mas só entre Arguim e a Serra Leoa, Com o aumento do povoamento, houve que
restringindo‑se esse comércio às produções lo- proceder à ampliação do quadro dos funcio-
cais: “senão aquelas que eles de suas novida- nários, assim como à sua diversificação pelas
des e colheitas da dita ilha houverem; porque capitanias e pelas ilhas. Teria, entretanto, sido
essas tais somente queremos e mandamos que criado outro almoxarifado, na parte dos Alca-
lá possam levar se quiserem e outras algumas trazes de Santiago, e também, nos inícios do
não” (ANTT, Livro das Ilhas, fls. 2v.‑4). séc. xvi, um feitor dos algodões do Fogo. A Fa-
Os capitães das ilhas de Cabo Verde ter‑se zenda régia passou a dispor então de almoxa-
‑ão deslocado poucas vezes às suas capitanias, rifes, de escrivães, de contadores e de feitores.
salvo os primeiros, que aí teriam estado pon- Do mesmo modo, desenvolveu‑se a organiza-
tualmente e de passagem, mas, em breve, mui- ção da Justiça, estabelecendo‑se o cargo de cor-
tos delegariam as suas funções em familiares regedor, que teria um escrivão ou um meiri-
mais ou menos afastados, ou, por falecimento, nho, e os capitães, entretanto, acabariam por
nos descendentes ou em quem com os mes- nomear ouvidores, dado não estarem nas suas
mos casasse. Com a progressiva passagem das capitanias. Os processos assemelhavam‑se aos
ilhas para a Coroa, houve que proceder à no- da ilha da Madeira. Esta crescente proliferação
meação de funcionários régios para arrecadar de funcionários, se, por um lado, demonstra a
os impostos, tendo‑se referenciado, logo nos necessidade de dotar o arquipélago das estru-
primeiros anos, por volta de 1471, um almoxa- turas administrativas essenciais ao seu funcio-
rife das ilhas, então Diogo Lopes, com assen- namento, à semelhança do reino e da Madeira,
to na ilha de Santiago. Devido às dificuldades por outro, aponta já o crescimento dos privilé-
gios e das regalias de uma determinada classe
não produtiva, num complexo quadro ultra-
marino, muito separado do principal centro
de decisão. O funcionamento futuro da admi-
nistração colonial portuguesa enfermou dessa
complexa burocratização, que, progressiva-
mente, deixaria de ter o suporte populacional
e económico necessário para o seu sustento.
A ligação do povoamento de Cabo Verde à
Madeira é patente ainda na enorme quanti-
dade de topónimos semelhantes nos dois ar-
quipélagos – semelhanças que se encontram
também nos Açores e nas Canárias –, indican-
do a contínua circulação entre estes arquipéla-
gos, determinada pelo regime de ventos e de
correntes que, quase obrigatoriamente, pelo
menos na viagem de ida, levava as embarca-
ções dos sécs. xv e xvi a escalarem a Madeira
Fig. 4 – Interior da igreja de São Domingos de Alcatrazes, 1470 e
para chegarem a Cabo Verde, como acontece-
seguintes, ilha de Santiago (fotografia de Jorge Bruno, 2010). ra no caso das caravelas de António da Noli,
C abo V erde ¬ 645
Fig. 5 – Olifante com as armas reais de Portugal, 1495-1525 (antiga coleção de Filipe II, Museu Nacional de Artes Decorativas de Madrid).
Comércio esclavagista
A partir dos meados do séc. xvi, entretanto,
Cabo Verde configurou‑se como um importan-
te centro de distribuição de escravos no qua-
dro geral do Atlântico e, mais especificamente,
para o grande mercado que passara a ser o bra-
sileiro. Face às limitações impostas por Lisboa,
que sempre pretendeu centralizar ali todo esse
comércio, as ilhas atlânticas estabeleceram um
Fig. 6 – Trapiche do engenho do Paul de Santo Antão (fotografia
circuito próprio, onde Cabo Verde e a Madei-
do projeto CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005). ra funcionaram como centros de circulação e
de distribuição, circuito esse que deve ainda
por dois anos, controlados a partir daquele ar- ter prosperado com a União Ibérica, embora
quipélago, por especial mercê aos lavradores então alargado ao arquipélago das Canárias,
dos açúcares madeirenses. A autorização era que, face às alterações políticas, imediatamen-
dada alegando‑se que se fazia tal para atenuar te começou dali a importar escravos, forne-
as grandes despesas com as diárias dos traba- cendo em troca vinho, em concorrência com
lhadores e dos homens de soldada. A mercê o da Madeira. O comércio com Cabo Verde
foi prorrogada, tendo havido nova licença em mantinha‑se na Ilha, no entanto, com os pro-
1567, então por cinco anos, devendo os es- dutos anteriores, como era o caso da cera, lar-
cravos ser transportados em navios armados gamente referida nos livros de despesa da Sé
à custa dos madeirenses, que teriam conduzi- do Funchal entre os finais do séc. xvi e os iní-
do para a Ilha 150 escravos – então denomina- cios do xvii.
dos “peças”, embora a designação nem sempre Desde os meados do séc. xvi que as ilhas
tenha equivalido a um indivíduo –, destinando atlânticas se configuraram como interpostos
‑se 100 para o Funchal e 50 para a Calheta. da guerra de corso que varreu o Atlântico e
Desde os finais do séc. xv, com os dentes de onde participaram pilotos conhecedores das
elefante, e os inícios do xvi, com o comércio rotas e das ilhas, incluindo alguns provavel-
de couros, e.g., foram estabelecidas rotas co- mente naturais da Madeira, como foi o caso de
merciais que ligavam a ilha de Santiago à da Manuel Serradas, que articulou a sua ação em
Madeira. A 23 de julho de 1523, aportou no Cabo Verde com John Hawkins (1532‑1595) e
Funchal um navio proveniente de Santiago, do com Francis Drake (c. 1540‑1596). Nesse qua-
qual desembarcaram cerca de 3300 peles de dro, procedeu‑se à fortificação da capital de
cabra e 22 arrobas de sebo. Além destas peles, Cabo Verde, então a cidade da Ribeira Gran-
estavam a bordo mais 1100 destinadas a Lis- de (chamada, nos inícios do séc. xxi, Cidade
boa, em obediência a ordens dali emanadas. Velha), para onde foi enviado o Cap. Gaspar
À primeira vista, este navio devia ser um dos Luís de Melo, que integrara as forças envia-
da rota Santiago‑Lisboa; todavia, escalou a Ma- das para a Madeira por Filipe II (1527‑1598)
deira para descarregar o excesso de peles de e, em outubro de 1583, entregara a D. Francés
cabra, proibido por lei de entrar em Lisboa. de Alava y Belmonte (1518/19‑1586) dois dese-
Cerca de três meses mais tarde, a 30 de outu- nhos das defesas do Funchal. Para Cabo Verde
bro, partiu do Funchal para Santiago um navio seguiu também o fortificador João Nunes, e
C abo V erde ¬ 647
Fig. 7 – Fortaleza real de S. Filipe, Cidade Velha (fotografia do projeto CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005).
os projetos elaborados por ambos foram pre- Cabo Verde “a buscar remédio para o mal da
sentes na corte de Madrid, a 12 de julho de lepra”, mas ali viria a “passar a melhor vida” em
1586, tendo começado a construção por volta 1665 (SILVA e MENESES, I, 1998, 252‑253).
de 1588, quando começaram a ser cobradas as Os meados do séc. xvii levaram à consti-
verbas para a construção. O projeto da forta- tuição da Companhia Geral do Comércio do
leza de S. Filipe, na Cidade Velha, não se afas- Brasil, com base na ação do P.e António Vieira
ta assim dos congéneres levantados por essa (1608‑1697) e nas suas ligações com os cristãos
época no Funchal e, depois, em Setúbal, de- ‑novos, estabelecendo‑se assim uma vasta rede
monstrando que se manteve toda uma idêntica comercial em que entravam os cristãos‑novos
política de defesa da União Ibérica, com circu- de Pernambuco e do Maranhão, no Brasil; de
lação de plantas e de técnicos sob o controlo São Miguel, nos Açores; do porto de Viana, no
da Provedoria das Obras de Lisboa. reino; de Amesterdão, na Holanda; do Fun-
Nos primeiros anos do povoamento de Cabo chal, na Madeira; e da Ribeira Grande, na ilha
Verde, o clima daquelas ilhas era tido como de Santiago de Cabo Verde. O célebre prega-
muito saudável, dado aliar alguma secura dor jesuíta tinha circulado pelos arquipélagos
com áreas mais temperadas. No entanto, essa atlânticos, conhecendo assim os circuitos em
fama começou a apagar‑se muito rapidamente, questão e as vantagens de um controlo centra-
tornando‑se habitual considerar aquele arqui- lizado. A Companhia ficou com alguns mono-
pélago como francamente insalubre e propício pólios, mas, dada a tradição de contrabando
a várias doenças. Pontualmente, entretanto, a do porto do Funchal, dificilmente este mo-
inicial fama era reavivada, e, entre outros, veio nopólio teria sido cumprido aqui. A situação
a procurar aquele arquipélago o pregador e ainda continuaria problemática quando esta
cónego do Funchal P.e Francisco de Castro (c. Companhia passou a pessoa coletiva e se ligou
1600‑1665), que fora também pároco de Santo ao comboio, administrado localmente por um
António do Funchal. Segundo o presbítero delegado, e também durante a altura em que
Diogo Barbosa Machado (1682‑1772), o céle- a Madeira passou a ter autorização para asso-
bre pregador madeirense procurara as ilhas de ciar à mesma, primeiro, dois e, depois, quatro
648 ¬ C abo V erde
Fig. 8 – Mapa da costa de África e dos arquipélagos atlânticos, Arnold Colom, Amesterdão, 1690 (cart. digital, Instituto
Açoriano de Cultura).
C abo V erde ¬ 649
o mesmo fazendo os cónegos, vigários e curas. comércio os três arquipélagos atlânticos, mas,
O assunto, no entanto, arrastou‑se pelos anos na centúria de Setecentos, seria o valor comer-
de 1684 a 1695, mesmo após o falecimento cial da urzela a impor‑se. A relevância econó-
do bispo de Cabo Verde, passando para o se- mica da urzela fundamenta a resolução régia
guinte, D. Fr. Vitoriano do Porto (1651‑1705), de 9 de julho de 1739, que estabeleceu a sua
também dado como Vitoriano Portuense, mas comercialização em regime de monopólio.
não sabemos se alguma vez conseguiram ser O novo contrato abrangia as ilhas dos Açores,
pagos nesta época pela Provedoria da Fazen- Madeira e Cabo Verde e reunia os interesses
da do Funchal. Nos inícios do século seguinte, dos conselhos da Fazenda e Ultramarino. Na
no entanto, quando era bispo de Cabo Verde o génese desta determinação, entrava a extração
jacobeu D. Fr. José de Santa Maria Jesus (1670 efetuada pelos Ingleses, principalmente nos
‑1736) e tesoureiro da Sé de Cabo Verde Ma- Açores e em Cabo Verde, passando, então, a
nuel Leitão Manuel, surgiram de novo registos representar contrapartidas para a Coroa por-
de documentação sobre esse assunto, inclusi- tuguesa. O soberano prescrevia a arrematação
vamente depois da morte do prelado, estan- trienal no Conselho Ultramarino e estipulava
do a Ribeira Grande em sede vacante. Assim, a exclusividade na compra e na exportação da
em princípio, só teria havido pagamentos ao urzela em terras de donatários, de câmaras ou
clero de Cabo Verde no triénio de 1736 a 1738, mesmo de particulares. O contrato proibia o
quando era almoxarife do Funchal Francisco aproveitamento individual ou coletivo dos bal-
Rodrigues Baptista e tesoureiro Félix de Azeve- dios que, à data da arrematação, produzissem
do, altura em que se mencionam 426$000 para urzela e isentava os arrematantes do pagamen-
os vigários de Cabo Verde. to de taxas aduaneiras nos portos do reino.
Nos sécs. xvi e xvii, a exportação do pastel Para prevenir fraudes, os arrematantes podiam
para o Norte da Europa gerara uma conjun- nomear conservador, meirinho e feitor em
tura de certa prosperidade, entrando nesse cada um dos arquipélagos.
A tinturaria utilizando a urzela, o drago, o
pastel e outros materiais encontra‑se intima-
mente ligada à tecelagem e parece não ter
sido uma grande atividade na Madeira, fican-
do, até muito perto do princípio do séc. xxi,
como uma atividade de carácter exclusivamen-
te artesanal e caseiro. No Funchal, teria fun-
cionado, ao longo do séc. xvi e até ao xviii,
nas margens da ribeira de Santa Luzia, na área
denominada Tintureira, cujas muralhas esta-
vam continuamente em obras. Nos finais do
séc. xvii, a 19 de janeiro de 1684, não haveria
mesmo nenhum oficial de tinturaria, solicitan-
do Maria de Sousa, viúva que “ficara, por morte
de seu marido, com três filhos, passando mui-
tas misérias e necessidades”, que lhe fosse pas-
sada carta do dito ofício e autorização para que
pagasse a respetiva fiança, “na forma do estilo”.
A vereação mandou que apresentasse “umas
meias, que se disse, tingisse de preto e, por es-
tarmos informados de que fazia bem o ofício
Fig. 10 – Dragoeiros do Cachaço, ilha de São Nicolau (fotografia
de tintureira e não haver outro oficial nesta ci-
do projeto CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005). dade”, foi‑lhe passada “carta de examinação” e
C abo V erde ¬ 651
incidência nos processos disciplinares mili- Sebastião Xavier Botelho (1768‑1840) respon-
tares, depois maçónicos e, finalmente, políti- dia a um pedido de António Perich, gover-
cos. Um dos processos, e.g., envolveu o soldado nador de Cabo Verde, sobre um outro que o
Teodoro Moniz Bettencourt, obrigado a assen- mesmo fizera para o envio de “casais pobres”
tar praça no Batalhão de Artilharia do Funchal, da ilha da Madeira, que tivessem alguns co-
“por causa do seu péssimo comportamento” e nhecimentos de agricultura, para o povoamen-
por se “entregar ao ócio, não fazendo senão in- to da ilha de São Vicente. O governador, no
sultar de palavras as pessoas e famílias que en- início do seu governo e numa altura politica-
contrava na rua ou nos caminhos”, pelo que foi mente instável, escusa‑se a dar uma resposta
depois condenado a degredo para Cabo Verde. ao pedido, embora não se opusesse à hipóte-
O Gov. Pedro Fagundes Bacelar de Antas e Me- se. O ofício abordava igualmente o problema
neses (c. 1760‑1813) teve, entretanto, notícia dos corsários de Buenos Aires, que interferiam
de que o mesmo fugira para a corte no Brasil, na navegação portuguesa e espanhola dessa
acabando por solicitar àquela “que lhe fosse época, acrescentando também que, naquele
aplicado o merecido castigo”. O assunto teria momento, não tinha informações especiais a
envolvido também o Maj.‑Gen. Robert Mead, dar (Ibid., fls. 257v.‑258).
pois, quase na mesma altura, também este es- Alguns anos depois, a alçada absolutista en-
crevia para a corte pedindo ao 5.º conde das viada à Madeira cumpriria o desejo manifes-
Galveias, D. João de Almeida de Melo e Castro tado pelo Governo de Cabo Verde, enviando
(1756‑1814), o julgamento e a condenação do para ali dezenas de elementos. Nesta alçada,
mesmo soldado (ABM, Governo Civil, liv. 203, foi sentenciado o tabelião e poeta Francisco de
fls. 179‑179v.; AHU, Madeira..., docs. 2568, Paula Medina e Vasconcelos (1768‑1824), con-
2571 e 2861‑2867). denado em oito anos de degredo para Angola,
No quadro geral destes contactos, em se- depois comutados para Cabo Verde, com inabi-
tembro de 1819, o governador da Madeira lidade para os ofícios de Justiça e da Fazenda, e
Fig. 12 – Mergulhança no porto do Mindelo, bilhete-postal enviado por Geo W. Worsell Esq, 1905 (antiga coleção Nellie Worsell,
da Casa Cory/Johan Cunha, Funchal).
C abo V erde ¬ 653
Santa Catarina Braga (c. 1780‑c. 1845), natu- também vividas, conseguiu ainda enviar um car-
ral do Porto, como administrador do bispado regamento de 10.000 libras de bolachas e de fa-
do Funchal. Quase duas décadas depois, como rinhas, embarcadas em novembro num brigue
bispo do Funchal, foi apresentado o anterior americano. Em todas as cartas, no entanto, não
bispo de Cabo Verde, D. Patrício Xavier de deixava de expressar o seu “ardente desejo de
Moura (c. 1795‑1872), que não teve, todavia, chegarem notícias sobre a destruição dos ini-
um episcopado feliz. Já tinha idade avançada migos” do Rei D. Miguel (ABM, Governo Civil,
e teria aguentado um difícil governo na Dioce- liv. 192, fls. 112‑113 e 123v.‑125; AHU, Madei-
se de Cabo Verde, a tal ponto que preferiu es- ra..., 12096‑12097), o que continuava a não se
tabelecer residência na pequena ilha do Fogo verificar, e também de exprimir esse desejo aos
e, depois, na de São Nicolau, em vez de na de cônsules em causa, abertamente liberais. Aliás,
Santiago. Alegando motivos de saúde, conse- o irmão, pouco tempo depois, a 8 de setembro
guiu ser transferido para o Funchal. Confirma- de 1833, ao ter conhecimento das alterações em
do por Pio IX em abril de 1859, tomou posse, Lisboa, mandou reunir uma junta governativa
por procuração, a 28 de maio e entrou no Fun- na cidade da Praia e retirou‑se para a Gâmbia.
chal a 26 de agosto seguinte. Faria a sua en- Acrescente‑se, no entanto, que em momen-
trada solene na Sé do Funchal a 18 de setem- tos de dificuldade também o arquipélago de
bro de 1859, algo que já não se enquadraria Cabo Verde ajudou a Madeira, como na catás-
na época, devendo ter‑lhe acarretado depois trofe do oídio, em 1853. O então governador
vários problemas. visconde de Fornos de Algodres, João Maria de
Ao longo do séc. xix, as ligações entre os Abreu Castelo Branco (1789‑1878), chegou a
dois arquipélagos manter‑se‑iam, até pela pro- pedir auxílio aos descendentes de madeirenses
ximidade de alguns dos quadros diretivos, na América do Norte e à Associação Comer-
como foi o caso do último governador absolu- cial de Pernambuco, no Brasil, assim como por
tista da Madeira, D. Álvaro da Costa de Macedo todo o território português. O auxílio de Per-
(1789‑1835), cujo irmão mais novo, D. Duarte nambuco chegaria em novembro desse ano,
da Costa de Sousa de Macedo, era governador sob a forma de dinheiro obtido em subscrição
‑geral das ilhas de Cabo Verde. No final do verão pública, tendo‑se agradecido então a Joaquim
de 1832, e.g., as principais preocupações do go- Baptista Moreira, cônsul de Portugal naquela
vernador da Madeira estavam relacionadas com região. A situação teria sido tão grave, que até
o apoio ao irmão, a braços com uma das maio- do arquipélago de Cabo Verde, que não pou-
res secas da história daquelas ilhas. O governa- cas vezes tinha sido auxiliado pela Madeira nas
dor da Madeira procurou este apoio junto do suas cíclicas e constantes crises de subsistên-
cônsul português em Londres, do inglês e do cia – como, aliás, acontecera dois anos antes,
espanhol na Madeira, e, dentro das dificuldades quando houve uma crise de fome na ilha de
São Vicente e o Gov. José Silvestre Ribeiro
(1807‑1891) enviou barris de farinha e garrafas
com óleo, organizando depois uma subscrição
pública –, vieram auxílios, que o governador
mandou distribuir no concelho de Machico e
no do Porto Santo, como referem os anais da-
quele município.
No contexto dos estreitos contactos entre
os dois arquipélagos, especificamente a 10 de
setembro de 1848, o então jovem tenente de
Engenharia António Maria Fontes Pereira de
Fig. 14 – Inscrição da antiga Alfândega do Mindelo,
1858 a 1860 (fotografia do projeto CHRONOS/Univ. da
Melo (1819‑1887) chegou à Madeira no ber-
Madeira, 2005). gantim Mariana e seguiu para Cabo Verde, a 26
C abo V erde ¬ 655
do mesmo mês, indo ocupar o lugar de ajudan- um acontecimento do qual toda a imprensa da
te às ordens do pai, então governador‑geral. capital se ocupou.
O engenheiro prontificou‑se, nos 15 dias que Pouco tempo depois, surge a extraordinária
permaneceu na Ilha, a visitar as obras da leva- melhoria das comunicações que iria aproximar
da do Rabaçal com o antigo colega, o também ainda mais os dois arquipélagos: o telégrafo
tenente de engenheiros Tibério Augusto Blanc submarino. Este sistema foi instalado na Madei-
(c. 1810‑1875). Em 1863, outro engenheiro mi- ra em 1874 e, pelo contrato estabelecido com a
litar, Januário Correia de Almeida (1829‑1901), Brazilian Telegraph Company, ligou a Madeira
depois de desempenhar o cargo de diretor das ao continente, sendo o centro de controlo em
obras públicas de Cabo Verde, entre 1857 e Carcavelos, junto de Lisboa. Entre 1883 e 1884,
1860, seria nomeado governador da Madeira. ainda seria lançado novo cabo submarino. Esta
Entretanto, outros madeirenses se radicavam companhia seria substituída pela Western Tele-
em Cabo Verde, de que o nome mais impor- graph Company em 1900, já quando se tinha
tante deverá ter sido o de Pedro Maria Gon- estabelecido na Madeira a Eastern Telegraph
çalves de Freitas (1839‑1915), depois visconde Company, passando assim os cabos de ligação
Gonçalves de Freitas, que, ali pontualmente ra- da Inglaterra ao Brasil e à África do Sul pelo
dicado como advogado, representou aquele ar- Funchal e pela cidade de Mindelo, na ilha de
quipélago como deputado nas Cortes e defen- São Vicente, em Cabo Verde. Este aspeto ligou
deu a abolição da escravatura, o que constituiu ainda mais a Madeira àquele arquipélago, cir-
culando, desde os finais do séc. xix e inícios
do xx, muitos dos funcionários destas compa-
nhias entre o Funchal e a cidade do Mindelo.
Existe, inclusivamente, um conjunto de álbuns
de bilhetes‑postais enviados por um desses fun-
cionários, George W. Worsell Esq., entre 1904
e 1906, quando prestava serviço na estação te-
legráfica inglesa, para a mulher, Nellie Worsell,
da Casa Cory, no Funchal.
Nos inícios da República, mantiveram‑se os
contactos e mesmo os apoios, como no caso do
contrato de pessoal para as obras públicas, nas
cíclicas crises de fome por que passou o arqui-
pélago de Cabo Verde. Com o alargamento das
Fig. 15 – Capitania de São Vicente, bilhete-postal enviado Fig. 16 – Reabilitação do Comando do Tarrafal
por Geo W. Worsell Esq, 1905 (antiga coleção Nellie Worsell, de São Nicolau, 1932 (fotografia do projeto
da Casa Cory/Johan Cunha, Funchal). CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005).
656 ¬ C abo V erde
Independência
Depois da independência de Cabo Verde e da
constituição das suas instituições democráti-
cas, que foram apontadas como um exemplo
Fig. 18 – Capa do CD Curso de História e Cultura de Cabo Verde,
nos novos países africanos, na abertura do
2008 (projeto CHRONOS/Univ. da Madeira). séc. xxi reativaram‑se os antigos contactos,
C abral , G uilherme R ead ¬ 657
Rui Carita
palavras que mostram um claro voto de con- deixando assim de ter o estatuto de delegação
fiança e reconhecimento das competências de do círculo aduaneiro do Sul.
Guilherme Read Cabral nas funções para que A poucas semanas de Read Cabral partir
fora nomeado: “estamos convencidos de que para os Açores, mais precisamente a 5 de se-
há de desempenhar‑se superiormente da sua tembro de 1893, a imprensa madeirense noti-
importante comissão de serviço” (Ibid., 1). ciava uma grande destruição nas ilhas do Pico,
Guilherme Read Cabral desembarcou no de São Jorge e do Faial, provocada por um
Funchal a 8 de maio de 1892, vindo de Lis- ciclone a 28 de agosto de 1893. Logo no dia
boa, no vapor Portugal, tomando posse como seguinte, Guilherme Cabral, açoriano de co-
diretor da Alfândega no dia seguinte, a 9 de ração, organizava uma comissão, com outros
maio de 1892. A notícia da sua tomada de dois conterrâneos, Gabriel Samora Moniz e
posse pelo Diário de Notícias surgia acompa- Narciso Xavier de Andrade, no sentido de an-
nhada por uma extensa nota biográfica que gariar donativos a favor das vítimas do ciclone.
atestava “a inteligência e as aptidões do fun- Esta comissão conseguiu angariar, segundo o
cionário distinto e honrado” (“Alfandega do Diário de Notícias, um total de “trezentos e ses-
Funchal”, DN, 10 maio 1892, 1). Sobre a nota, senta e tantos mil reis” (“Cyclone dos Açores”,
ficava bem claro para os madeirenses que DN, 22 set. 1893, 2).
Read Cabral realizara toda a sua carreira pro- Nos 16 meses em que esteve na ilha da Ma-
fissional na área da fiscalização alfandegária. deira, Read Cabral confirmou a boa impres-
Começou, precisamente, em Ponta Delgada, são que causara com a notícia da sua vinda na
no cargo de guarda‑mor da Alfândega, o que
lhe valeu, pelos valorosos serviços, a condeco-
ração da Ordem de Torre e Espada e o título
de comendador. Ascendeu à 1.ª categoria de
oficial das alfândegas, tendo depois assumi-
do o cargo de diretor da Alfândega de Ponta
Delgada, sendo um dos responsáveis pela im-
plementação da Alfândega na Horta, na ilha
do Faial. Foi diretor da 1.ª repartição da Al-
fândega de Lisboa, tendo realizado melhora-
mentos na fiscalização dos vinhos. Neste sen-
tido, os anos de serviço de Read Cabral, os
cargos relevantes para o qual fora nomeado,
bem como alguns estudos inéditos sobre fis-
calidade que publicou, tornavam‑no um dos
primeiros especialistas sobre a matéria em
Portugal.
Guilherme Read Cabral ocupou o cargo de
diretor da Alfândega do Funchal durante 16
meses, entre 9 de maio de 1892 e 21/22 de
setembro de 1893, altura em que foi nomea-
do para o cargo de governador civil do distri-
to da Horta, tendo sido substituído por Carlos
Sobral.
Pouco tempo depois de ter assumido o cargo,
a 11 de maio de 1892, a imprensa noticiava que
a Alfândega do Funchal, depois da reforma
geral das alfândegas, voltaria a ser autónoma, Fig. 2 – Angela Santa Clara (1895), de Guilherme Read Cabral.
C abral , G uilherme R ead ¬ 659
Carlos Barradas
foi alvo do parecer do então procurador‑geral 1924, 1), prometendo ficar alheio a questões
da Coroa e Fazenda, António Cândido Ribei- partidárias.
ro da Costa. A expulsão de Júlio Ferreira Ca- Desempenhou as funções de governador
bral da Escola Médico‑Cirúrgica de Lisboa durante nove meses, terminando o manda-
terá tido origem num desentendimento grave to a 20 de setembro de 1924. Em vésperas
com um dos professores, impedindo‑o assim da sua exoneração do cargo de governador
de prosseguir os estudos. civil, chegava ao Funchal a notícia da imposi-
Desempenhou os primeiros cargos públicos ção do dec. n.º 10.046/1924 do Governo por-
no concelho de Machico, tendo sido nomea- tuguês à Madeira, com a taxa de navegação,
do administrador do concelho a 5 de novem- pondo em causa os interesses económicos dos
bro de 1910 e exonerado a 20 de dezembro de madeirenses.
1913, embora tenha sido posteriormente no- Júlio Ferreira Cabral faleceu a 23 de setem-
meado várias vezes para esta posição. Foi elei- bro de 1930 na vila de Machico, com 61 anos,
to, também, presidente da Câmara Municipal tendo sido sepultado no jazigo de família no
de Machico, em data desconhecida. cemitério das Angústias. À data da morte, de-
Júlio Ferreira Cabral atingiu o auge da car- sempenhava as funções de oficial de registo
reira política ao ser nomeado pelo então mi- civil da Conservatória de Machico.
nistro do Interior, Sá Cardoso, por despacho
datado de 5 de janeiro de 1924, para o lugar Bibliog.: manuscrita: ABM, Conservatória de Machico, Óbitos, liv. 1395,
fl. 84v., proc. 168; Ibid., Registos Paroquiais, Sé, Batismos, liv. 1271, fls. 33v.‑34;
de governador civil do distrito do Funchal, AHPGR, Procuradoria‑Geral da República, Registo de Pareceres e Informações
em substituição do Gen. Simões Soares, to- para o Ministério do Reino, doc. 88, 27 mar. 1900, fls. 49v.‑53v.; ANTT,
Ministério do Interior, Decretos, mç. 250, cx. 69; impressa: CLODE, Luiz
mando posse três dias depois. No discur- Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
so inaugural, Júlio Cabral prometia um de- Económica do Funchal, 1983; “Júlio Ferreira Cabral”, Diário de Notícias,
Funchal, 25 set. 1930, p. 2; “Novo governador civil do Funchal”, Diário de
sempenho no cargo “orientado na máxima Notícias, Funchal, 9 jan. 1924, p. 1; “A taxa de navegação”, Diário de Notícias,
imparcialidade e da máxima independên- Funchal, 19 set. 1924, p. 1.
Minuta do requerimento de Júlio Ferreira Cabral, 27 de março de 1900 (AHPGR, Procuradoria-Geral da República...,
doc. 88, 27 mar. 1900, fl. 49v.).
662 ¬ C abral , M anuel F erreira
Cristina Trindade
deste repertório escrito para se tocar o instru- por volta de 1860, para canto (soprano), acom-
mento a solo, vamos também aqui encontrar panhados por um ou dois machetes: Sou Meni-
exemplos de peças arranjadas para dois ma- na Inocente (o Papão); Diga Senhora Viuva; Huma
chetes afinados ao uníssono: o primeiro ma- Velha Tinha Um Gato; Rubros Fiambres e Menina
chete toca a parte solista, enquanto o segundo não Sejas Tola.
acompanha com simples acordes. Não temos quaisquer dúvidas de que todas
Em qualquer das coletâneas conhecidas, estas coletâneas manuscritas, quer na forma de
mesmo em peças oriundas da Madeira, o seu “princípios para o instrumento”, quer em com-
nome nunca aparece como compositor, mas pilação de um repertório muito variado, se desti-
só como arranjador. Ainda que o machetista navam ao estudo do machete por parte de “mui-
António José Barbosa distribua a letra sobre o tos dos estrangeiros que outrora aportavam à
pentagrama em só duas peças, Monteiro Ca- Madeira” (SILVA e MENESES, 1984, I, 167).
bral estende este procedimento a um número Manuel Joaquim Monteiro Cabral faleceu
muito alargado de canções com texto em in- a 16 de outubro de 1882, na freguesia da Sé,
glês, permitindo, deste modo, a sua execução, “de idade de setenta e cinco anos, casado com
que poderá ser cantada pelo mesmo tocador Dona Rosa Perpétua Cabral [...]. Não fez tes-
ou por outro intérprete. tamento e deixou uma filha. Foi sepultado no
Outra faceta que vamos encontrar em Ma- cemitério público das Angústias em campa
nuel Joaquim Monteiro Cabral é a de coletor particular” (ABM, Paróquia da Sé..., liv. 1352,
de cinco romances madeirenses arranjados, fls. 18v.‑19).
Nos inícios da déc. de 20 do séc. xx, o seu
nome era ainda mencionado como professor
de braguinha: “Houve no Funchal alguns pro-
fessores de braguinha, entre eles Manuel [Joa-
quim Monteiro] Cabral” (SILVA e MENESES,
1984, I, 167).
Bibliog.: manuscrita: ABM, Registos Paroquiais, Nossa Senhora do Monte,
Casamentos, liv. 191, fls. 130‑131v.; Ibid., Registos Paroquiais, Santa Luzia,
Batismos, liv. 1470, fls. 17‑17v.; Ibid., Registos Paroquiais, Sé, Óbitos, liv. 1352,
fls. 18v.‑19; CABRAL, Manuel Joaquim Monteiro, Compilação Manuscrita
para Machete, Encadernada, Constituída por 59 Folhas de Papel, c. 1860
(manuscrito na posse de Manuel Morais); impressa: AZEVEDO, Álvaro
Rodrigues de, Romanceiro do Archipelago da Madeira, Funchal, Typ. Voz
do Povo, 1880; KING, John, “Um método desconhecido para o machete
madeirense”, in MORAIS, Manuel (coord.), A Madeira e a Música. Estudos
(c. 1508‑c. 1974), Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008,
pp. 589‑602; Id., “O machete madeirense”, in ESTEIREIRO, Paulo (coord.), 5
Olhares sobre o Património Musical Madeirense, Funchal, Associação Musical
e Cultural Xarabanda/Associação dos Amigos do Gabinete Coordenador de
Educação Artística, 2011, pp. 21‑37; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984;
VASCONCELOS, Cândido Drumond, e MORAIS, Manuel, Coleção de Peças
para Machete, 1846. Collection of Pieces for Machete, 1846, estudo e revisão
Manuel Morais, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2003.
Manuel Morais
Cacongo, visconde de
João Rodrigues Leitão, nascido em Ponte da
Barca, em 1843, fixou‑se no Funchal, aos 10
anos, com o tio, João José Rodrigues Leitão,
um financeiro do Norte de Portugal. Cresceu
naquela cidade, ali fez os seus estudos e dali se-
guiu, em 1861, para África, ao serviço da casa
bancária do tio. Esteve então nas províncias de
Luanda, Zaire e, depois, em Landara, Cacon-
go, i.e., na margem oposta do rio Congo, onde
adquiriu uma fortuna e estabeleceu uma série
de boas relações com os régulos locais.
Tendo conhecimento de que a França preten-
dia estender a sua influência desde a colónia
do Gabão até às margens do Congo, ocupan-
do, inclusivamente, o Luango e a Ponta Negra,
conseguiu que o governador‑geral de Ango-
la, o Cons. Ferreira do Amaral, enviasse, em Fig. 1 – Visconde de Cacongo, Funchal, c. 1900 (ABM,
Photographia Vicente).
1883, a corveta Rainha de Portugal, comanda-
da pelo Cap.‑Ten. Guilherme de Brito Capelo,
ocupando‑se assim os territórios de Cacongo e igualmente interesses. Estabelecendo‑se no
Massabi. A sua presença e as suas relações nessa Funchal, Pedro Leitão ocupou o lugar de vice
área levaram à aceitação da presença portugue- ‑cônsul do Brasil na Ilha.
sa, alegação depois apresentada pelos delega- O visconde de Cacongo administrou, a partir
dos portugueses na Conferência Internacional do Funchal, os seus interesses em África e no
de Berlim, sustentando que esse território era
português desde 1883, tendo sido aceite.
O trabalho de João Rodrigues Leitão seria
de imediato reconhecido em Lisboa, nos mea-
dos de 1884, tendo sido agraciado com o título
de visconde de Cacongo, por decreto e carta
régia de 1 de agosto desse ano, e carta de bra-
são de armas, mercê nova, por alvará de 24 de
novembro de 1900 e carta de 22 de dezembro
do mesmo ano.
O visconde era casado com uma prima,
D. Fermina Maria Rodrigues Leitão (c. 1845
‑c. 1925), e os interesses da sua casa comercial
em África ficaram, entretanto, a cargo do filho
de ambos, João José Rodrigues Leitão Júnior.
Falecido precocemente João José, aos 23 anos,
a 17 de setembro de 1898, em Landana, Ca-
binda, passaram os interesses gerais da famí-
lia para o sobrinho, Carlos Ernesto Rodrigues
Leitão (1878‑1958), filho de Pedro Petropolita-
no Rodrigues Leitão (1852‑1904), nascido em Fig. 2 – Viscondessa de Cacongo, Funchal, c. 1900 (ABM,
Petrópolis, no Brasil, onde a família possuía Photographia Vicente).
666 ¬ C acongo , visconde de
Fig. 3 – Rainha D. Amélia e Rei D. Carlos com a viscondessa de Cacongo, Qt. do Pomar, Monte, 23 de junho de 1901
(ABM, Visconde de Vale Paraíso).
C acongo , visconde de ¬ 667
(1836‑1912), então administrador do conse- Bibliog.: CALDEIRA, Abel Marques, O Funchal no Primeiro Quartel do
Século XX, 1900‑1925, Funchal, Eco do Funchal, 1964; CARITA, Rui, História da
lho, que somente aceitou a grã‑cruz da Ordem Madeira, vol. vii, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 2008; CLODE, Luiz
de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; Diário da Madeira, 5 abr. 1918; SAINZ‑TRUEVA,
dado achar muito dispendioso aceitar um títu- José de, “Quinta Mãe dos Homens”, Atlântico, n.º 17, 1989, pp. 5‑16; A Sentinela,
lo nobiliárquico. 23 jun. 1918; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson,
Os monárquicos funchalenses reapareceram, “A questão dos sanatórios da Madeira”, Islenha, n.º 6, jan.‑jun. 1990, pp. 124‑144.
entretanto, com a instalação da República Nova
de Sidónio Pais. O primeiro encontro de mo- Rui Carita
nárquicos no quadro da nova situação realizou
‑se nos inícios de abril de 1918, no palácio Torre
Cadamosto, Luís
Bela, à R. dos Ferreiros. Entre os seus promo-
tores, destacavam‑se o visconde de Cacongo, o Luís Cadamosto (Alvise Da Mosto) foi um ex-
Cons. José Leite Monteiro (1841‑1920), Júlio plorador, navegador e escritor italiano. Nasci-
Paulo de Freitas (1863‑1946), Pedro José Lome- do em Veneza em 1429, morreu em 1483, dei-
lino (1864‑1930), Rui Bettencourt da Câmara xando aos descendentes um relato das suas
(1874‑1946), Henrique Augusto Vieira de Cas- viagens, desenvolvimento de uma série de
tro (1869‑1926), Manuel Perestrelo Favila Vieira notas tomadas durante a viagem e redigidas
(1875‑1923), entre outros. As conclusões foram talvez depois do seu regresso a Veneza. Os geó-
dar o voto a Sidónio Pais e “contribuir para a grafos e os homens de cultura da época apre-
constituição de maiorias que apoiem um Gover- ciaram de imediato os testemunhos nele con-
no de ordem, reservando‑se uma representação tidos pela fidelidade das observações, fonte
afirmativa do seu prestígio” (Diário da Madeira, 5 preciosa para os estudos sobre as descobertas
abr. 1918). Desta reunião teria saído o apoio aos geográficas, e, em particular, por causa das in-
nomes propostos por Lisboa, em que constavam formações sobre a Madeira.
dois madeirenses de franco relevo, um da mo- Devido a dificuldades familiares, e em busca
narquia e outro da nova situação vigente, o an- de honras e riquezas, em 1454 Cadamosto em-
tigo ministro da monarquia Aires de Ornelas de barcou num navio da Flandres, desembarcan-
Vasconcelos (1866‑1930), então lugar‑tenente do no cabo de São Vicente, no lugar de retiro
de D. Manuel II no exílio, e o Maj. José Vicen- de D. Henrique, o infante de Sagres, ou Na-
te de Freitas (1892‑1952), anterior governador vegador, o qual demonstrou por ele um vivo
civil do Funchal, e os elementos acordados com interesse. Cadamosto era um exímio conhe-
as estruturas continentais: Duarte Melo Ponce cedor de especiarias, e D. Henrique procura-
de Carvalho, e, como senadores, Alberto Cor- va um navegador capaz de contribuir para as
reia Pinto de Almeida e Adolfo Augusto Bap- novas explorações.
tista Ramires. Salvo os dois primeiros, todos os Tendo partido a 22 de março de 1455, Ca-
restantes eram desconhecidos na Madeira, pelo damosto chegou primeiro ao Porto Santo.
que A Sentinela, que na Ponta do Sol substituíra A ilha é descrita como um pequeno lugar se-
A Época, entretanto apreendida, escreveu que se guro, sem porto, mas protegida dos ventos,
tinham elegido senadores e deputados “todos rica e abundante em carne bovina e outras es-
eles independentes... dos eleitores, que nem de pécies animais. É eficaz a descrição que faz de
nome conheciam tão ilustre gente nova” (A Sen- um delicioso fruto semelhante às cerejas, mas
tinela, 23 jun. 1918). de cor amarela. Cadamosto deixa transparecer
O visconde de Cacongo não assistiu, no en- o seu envolvimento ao narrar seja aquilo que
tanto, ao reajustamento da situação política ele mesmo viu e constatou, seja o que lhe foi
por que se haviam batido os monárquicos e os reportado. Ao autor interessam em particular
católicos, iniciada com o 28 de Maio de 1926, os nomes: a ilha do Porto Santo, assim chama-
pois falecera no ano anterior, a 15 de junho, da porque descoberta no dia de Todos os San-
no Funchal. tos; a ilha da Madeira, ou “ilha dos lenhos”,
C adeirais ¬ 669
Caterina Arcangelo
Cadeirais
Os cadeirais eram um complemento impor-
tante das grandes igrejas conventuais e das
Palácio Ca’ da Mosto, reforma de c. 1300, em Veneza, onde catedrais, onde o clero beneficiado e o cabi-
nasceu Luís Cadamosto (arquivo particular). do oficiavam em conjunto os serviços religio-
sos. Geralmente composto por duas fileiras de
cadeiras em cada lado, de acordo com a hie-
por causa das grandes árvores às quais se teve rarquia dos monges e dos clérigos, o cadeiral
que lançar fogo para que houvesse extensão apresenta quase sempre uma elevação dos es-
de terra para lavrar. A descrição da Madeira, paldares das cadeiras da fila posterior que
à qual Cadamosto chegou, por sua vez, a 28 compõe as paredes laterais do coro, com cada
de março, é especialmente sugestiva. A Ilha, assento a apresentar apoios para os braços e
constituída por quatro capitanias principais uma divisória para os assentos contíguos. O as-
(Machico, SantaCruz, Funchal e Câmara de sento pode ser recolhido na generalidade, de
Lobos) surge‑lhe como uma terra montanhosa modo a permitir a permanência de joelhos ou
como a Sicília, mas fertilíssima, rica de água e em pé, possuindo na parte inferior um apoio,
de vinhas. Entre as árvores, destaca o cedro e o a misericórdia, que possibilita algum repouso
teixo, muito bonito e de cor róseo‑encarnada. nas permanências de pé nas longas celebra-
As casas são despojadas de qualquer fausto, ções litúrgicas.
e os habitantes notabilizam‑se pela tempe- A utilização dos cadeirais nos coros estendeu
rança – quase como os antigos Germanos de ‑se igualmente aos conventos, como os das
Tácito. Clarissas, a maioria das vezes dois, em anda-
Os relatos de Cadamosto, traduzidos para res sobrepostos de acordo com a hierarquia
latim, alemão, francês, inglês e português, apa- dentro dos conventos, tal como se estendeu
receram pela primeira vez na obra Paesi nuova- às igrejas colegiadas, ou seja, onde havia um
mente Ritrovati et Novo Mondo da Alberico Vesputio certo número de clérigos, e que, à semelhan-
Florentino Intitolato, de Francanzio da Montal- ça das catedrais, celebravam ofícios religio-
boddo, publicado em Vicenza, em 1507; nas sos em conjunto. Na Idade Média, os cadei-
obras de Simone Gryaneus (1532), e no volu- rais das catedrais envolviam o presbitério, ou
me 1 da obra de Giovanni Battista Ramusio, in- capela‑mor, fechando‑se aos fiéis. Nos inícios
titulado Delle Navigationi et Viaggi (1550). Entre do séc. xvi passaram para os compartimentos
670 ¬ C adeirais
Fig. 2 – Coro de baixo do Convento de S.ta Clara do Funchal, c. 1500 e seguintes, cadeiral reformado em 1736 (arquivo particular).
C adeirais ¬ 671
mudéjares, relevados e vidrados com óxido O cadeiral do Funchal foi, entretanto, “repa-
de cobre verde‑escuro. O coro de baixo apre- rado” em 1587 e 1588, como consequência da
senta igualmente chão semelhante, mas com implantação das diretivas de Trento, na vigên-
diversos tipos de azulejos mudéjares, tendo cia do bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos
sido o cadeiral reformulado por volta de (1544‑1608), altura em que foi desmanchada
1736, data inscrita na cadeira da madre vigá- a fiada de cadeiras frente ao altar‑mor. Nessas
ria da casa. obras foram colocados uns “topos de canta-
Também deveriam ter tido cadeirais seme- ria” nos degraus da capela‑mor e, no ano se-
lhantes os restantes conventos femininos do guinte, aberta a porta para a capela do Ampa-
Funchal, embora o das Mercês só tivesse um ro e retiradas “umas cadeiras do coro, que não
coro, tal como os conventos de S. Francisco, serviam”, embora se refira que se guardaram
do Funchal, de S. Bernardino, de Câmara de então numa das arrecadações da cerca da Sé
Lobos, ou da Piedade, de Santa Cruz, mas (FERREIRA, 1963, 249).
nada desses chegou até nós, mesmo na forma O cadeiral do Funchal é composto hoje por
de outra informação documental. Os peque- duas ordens de cadeiras: uma superior, com 11
nos conventos da Ribeira Brava e da Calhe- cadeiras altas de cada lado para os capitulares,
ta, dado o escasso número de irmãos, pro- e outra inferior, com oito cadeiras, que se des-
vavelmente não devem ter tido este tipo de tinava aos capelães, sendo o acesso à ordem su-
mobiliário. perior feito pelos espaços entre as segundas e
O cadeiral da Sé do Funchal é o exemplar terceiras cadeiras inferiores de ambos os lados.
mais notável da sua época em Portugal e o A ordem superior possui sobrecéu, dossel ou
único que se encontra no local original. Du- guarda‑voz e espaldar com santoral, com as pri-
rante a montagem, esteve para ser colocado meiras cadeiras superiores destacadas, sendo
sobre a porta principal, em 1515, a pedido da a do lado do Evangelho destinada a ser ocu-
Câmara Municipal do Funchal, mas entretan- pada pelo deão e a do lado da Epístola, pelo
to o Rei D. Manuel mudou de ideias e não se
cumpriu a ordem, muito provavelmente por-
que o cadeiral já devia estar a ser instalado na
capela‑mor e a sua remoção significaria custos
acrescidos, pois muito raramente aquele rei re-
cuou em relação às suas ordens.
Tendo sido projetado no gabinete régio, em
Lisboa, onde trabalhava D. Diogo Pinheiro (c.
1437‑1525), bispo do Funchal, o conjunto de
cadeiral, altar e retábulo da Sé fechava‑se, por
certo, ao corpo da igreja, como também de-
terminara, em princípio, D. Manuel na carta
de janeiro de 1517. Deveria possuir em fren-
te ao retábulo, na parede com que se fechava
ao transepto, uma cadeira especial destinada
ao bispo do Funchal, assim como deveria en-
cerrar junto aos degraus de acesso ao retábu-
lo com outras duas cadeiras ligeiramente mais
altas e destacadas, destinadas ao rei e à rainha,
no caso de se deslocarem à Madeira, como
teria acontecido com os cadeirais de Tomar,
de Alcobaça e em quase todos os castelhanos Fig. 3 – Cadeiral e santoral da capela-mor da Sé do Funchal,
e aragoneses. c. 1514 (arquivo particular).
672 ¬ C adeirais
arcediago, a que se seguiam o chantre e o te- decorre nos locais mais escondidos, como nas
soureiro. As cadeiras dos capelães apresentam altas gárgulas medievais de algumas catedrais,
espaldar com um pequeno friso de talha já de quase fora do alcance visual do transeunte
feição renascentista, utilizando como sobrecéu e fora do local sagrado que é o templo, mas
e guarda‑voz o parapeito da estante superior interpenetrando‑se com a iconografia de cariz
dos cónegos. sacro no seu interior. A sua apresentação no
As cadeiras são dotadas de braçais superio- interior dos templos ocorre somente nos cadei-
res, onde os elementos do cabido e os capelães rais e, mais especificamente, nas misericórdias,
apoiavam os braços nas longas leituras feitas de dado o facto de ficarem escondidas, acrescido
pé, os quais, nos mais complexos cadeirais de do próprio uso privado a que se destinavam,
Espanha, também aparecem com elementos explicando assim em grande parte a aceitação
decorativos, sendo os do Funchal mais simples. do cariz tão licencioso e profano de algumas
Todo o conjunto é rematado por um baldaqui- dessas representações.
no entalhado, que esconde o guarda‑voz, com
as divisórias das cadeiras marcadas superior-
mente por flechas entalhadas. Os espaldares
da ordem superior do cadeiral do Funchal são
decorados com nichos cobertos por baldaqui-
nos também finamente entalhados abrigando
imagens em baixo‑relevo dos principais santos,
apóstolos e profetas, na sequência dos antigos
santorais ou repositórios de devoções.
A mensagem da Igreja Triunfante ocupa assim
o local mais destacado do coroamento superior,
comunicando diretamente ao espectador o sen-
tido da religiosidade através das representações
das suas figuras cimeiras. Entretanto, nos espa-
ços mais baixos e menos visíveis, aparece uma
série de elementos escultóricos mais ou menos
dissonantes, com referências aos bestiários me-
dievais e à marginália, muito comum nos congé-
neres europeus. No cadeiral do Funchal, essas
referências aparecem logo em algumas das mí-
sulas do santoral, sem especial relação com as
grandes figuras representadas superiormente,
nos pomos dos espaldares das cadeiras inferio-
res, nas paciências dos apoios das mãos e, nem
sempre visíveis, nas misericórdias.
Os cadeirais de coro medievais devem ser
os locais em que a decoração melhor espelha
o cariz estremado e contraditório da realida-
de religiosa e social dessa época, como vários
autores têm referido. Na sua decoração con-
fluem pacificamente o sagrado e o profano, o
erudito e o popular, o quotidiano e a lenda,
numa série de referências históricas ances-
trais a que não falta algum sentido de humor. Fig. 4 – Cadeiral da colegiada da igreja matriz de São Pedro do
Esta tradição desenvolve‑se na marginália que Funchal, Manuel Pereira (atr.), 1633 (arquivo particular).
C adeirais ¬ 673
Fig. 6 – Cadeiral do Santíssimo da igreja matriz da Calheta, c. 1770 (fotografia de Bernardes Franco, 2017).
proprietários locais e o P.e Pedro Moreira, be- neoclássica, polidos e com contidos aponta-
neficiado daquela igreja, pelo que já era de- mentos de talha dourada, no início das naves
cididamente um elemento de grande recorte das igrejas matrizes, como subsistem em inú-
local. Assim, encontrando‑se nessa época em meras igrejas da região, costume que perdurou
construção o cadeiral do coro daquela igreja, até aos inícios do séc. xx, período dos mais re-
datado numa das misericórdias de 1633, de centes, já somente polidos ou pintados.
certeza que Manuel Pereira fazia parte da equi- A situação, no entanto, nem sempre foi li-
pa que o entalhava. near, e, pelos finais do séc. xviii, a matriz de
Entre os finais do séc. xviii e meados do xix, N.ª Sr.a da Conceição de Machico voltou a repor
processaram‑se profundas alterações na orga- o cadeiral da colegiada na capela‑mor, como
nização religiosa, primeiro com a centralização se fazia até aos primeiros anos do séc. xvi.
régia, que de certa forma restringiu a atividade Os altos alçados apresentam‑se pintados com
das confrarias, depois com a centralização do um santoral atribuível à oficina de Nicolau Fer-
poder eclesiástico, que levou o bispo D. José da reira e encimados por sobrecéu, sobre o qual,
Costa Torres (1741‑1813), entre outras ações, de um lado, assentam o órgão e, do outro, uma
a extinguir as confrarias das antigas irmanda- tribuna. A Confraria do Santíssimo da Sé, em
des de ofícios da Sé do Funchal, por provisão 1806, também mandava renovar a antiga mesa
episcopal de 18 de abril de 1792, alegando a dos confrades, ou seja, o cadeiral onde faziam
sua “irregular ou nula administração”, passan- as suas reuniões e assistiam, em destaque, às
do os seus documentos e receitas para a fábri- cerimónias religiosas, dado que estava “inteira-
ca da Sé, que se encarregou do cumprimento mente indecente, pela sua antiguidade e gros-
das respetivas obrigações pias. Ficavam assim seria” (FERREIRA, 1963, 313). Foi então cons-
somente as irmandades do Santíssimo e as dos truída uma nova estrutura sob a direção do
oragos das igrejas matrizes, ainda que muitas mestre Manuel Fernandes (Id., Ibid.) ao gosto
tenham resistido durante mais algum tempo. neoclássico da época, com painéis de madeira
Deve datar, assim, desses finais do séc. xviii a embutidos representando vasos com flores, re-
colocação dos cadeirais da confraria do Santís- tirado para o Museu de Arte Sacra nos inícios
simo e dos do orago da freguesia, já de feição de 1970.
C adernos I lha ¬ 675
Rui Carita
Cadernos Ilha
Coleção de 11 títulos de 8 autores, fundada
e dirigida por José António Gonçalves, entre
1988 e 2001. Inaugura‑a com 20 Textos para
Falar de Mim (Poemas de 1970‑1985), qual “Lita- Fig. 1 – 20 Textos para Falar de Mim (1988), de José António de
nia insular”, título do derradeiro poema, em Freitas Gonçalves (Cadernos Ilha n.º 1).
Madeira surge no horizonte como uma “náia- Bibliog.: impressa: CADET, Rita Chiappe, Sorrisos e Lágrimas. Poesias
de D. Maria Rita Chiappe Cadet, Lisboa, Typ. Lallemand Frères, 1875; Id.,
de encantada” (CADET, 1875, 75), formosa, Os Contos da Mamã, Lisboa, Marie François Lallemant, 1883; MACEDO, L. S.
verde, florida, e, como a ilha dos amores, en- Ascensão de, Da Voz à Pluma. Escritoras e Património Documental de Autoria
Feminina de Madeira, Açores, Canárias e Cabo Verde do Século XVI até ao
feitiça quem a vê. Numa verdadeira paródia do Século XX. Guia Biobibliográfico, Ribeira Brava, ed. do Autor, 2013; NEVES,
poema do brasileiro Gonçalves Dias, “Canção César, e CAMPOS, Gualdino de, Cancioneiro de Músicas Populares Contendo
Letra e Música de Canções, Serenatas, Chulas, Danças, Descantes, Cantigas dos
do exílio”, que refere os primores do Brasil e o Campos e das Ruas, Fados, Romances, Hymnos Nacionaes, Cantos Patrióticos,
canto do sabiá, pedindo a Deus que não o leve Cânticos Religiosos de Origem Popular, Cânticos Litúrgicos Popularisados,
Canções Políticas, Cantilenas, Cantos Marítimos, etc. e Cançonetas Estrangeiras
antes de voltar para o Brasil, Cadet escreve: Vulgarisadas em Portugal, vol. 2, Porto, César, Campos e Cia., 1895; digital:
“As aves que ouço em torno/têm mais suave CASTRO, Andreia, “Maria Rita Chiappe Cadet”, Associação Portuguesa de
Mulheres Cientistas/Portuguese Association of Women in Science, s.d.: http://
encanto,/têm notas como um pranto/[…]//
debategraph.org/Details.aspx?nid=425342 (acedido a 6 mar. 2017).
[…] Oh! Eu quisera sempre,/n’esta ilha, sozi-
nha,/o cantar da avezinha/ouvir até morrer” Luísa M. Antunes Paolinelli
(Id., Ibid., 76). A poetisa repete, à semelhança
dos autores continentais e estrangeiros, o topos
edénico da Madeira e o motivo do deslumbre, Caetano, João Vieira
ligando, igualmente, a Ilha, pela sua natureza, Sacerdote, jornalista, escritor e político sem-
à aproximação privilegiada do indivíduo à pro- pre defensor dos princípios do Estado Novo,
vidência e à fé. nasceu na freguesia de Santa Cruz a 11 de de-
O poema “Adeus à Madeira” (Id., Ibid., 114 zembro de 1883, sendo filho de João Vieira
‑115), de 1871, revela o carinho que, entretan- Caetano e de Maria Rosa Vieira Caetano. Fa-
to, desenvolvera pela Ilha, tratada de forma leceu na Ponta do Sol a 25 de janeiro de 1967.
personificada como uma companheira, e o Foi ordenado presbítero a 9 de junho de
medo de não voltar. Deixara no Funchal tam- 1906, tendo estudado no Seminário de Nossa
bém várias amigas, a quem dedicou poemas na Senhora do Bom Despacho. Nomeado pelo
imprensa periódica, incluídos depois em Sorri- prelado diocesano a 1 de maio de 1907, foi
sos e Lágrimas, como Maria J. Morão Pinheiro e coadjutor da paróquia de Santa Cruz. A 18 de
Teresa da Cunha Menezes. dezembro de 1913, passou a coadjutor da fre-
Na Madeira, contribuiu para a imprensa pe- guesia da Ponta do Sol, e, a 14 de agosto de
riódica, como é o caso de O Direito, com diver-
sas composições poéticas, como as elencadas
por Laureano de Macedo (MACEDO, 2013,
369): “Que pensas?” (11 fev. 1871); “Charité”
(18 fev. 1871); “O canto do segador” (25 fev.
1871); “Saudades” (04 mar. 1871); “Resigna‑te”
(18 mar. 1871). Participou, igualmente, em re-
citais de poesia, como atesta o poema “Carida-
de”, publicado em Sorrisos e Lágrimas (CADET,
1875, 94‑99), com a indicação de que foi reci-
tado num concerto a favor do Asilo de Mendi-
cidade da cidade do Funchal.
1924, foi nomeado vice‑vigário do Estreito da jornalismo, pleno de bom senso e elevação na
Calheta. Desde 5 de fevereiro de 1930 até à abordagem aos assuntos, mas também corajoso
data do seu falecimento, foi pároco da igreja nas suas posições.
da Ponta do Sol.
Obras de João Vieira Caetano: Da Choça ao Solar (1917); “Da Madeira e não
Fundou o Patronato da Ponta do Sol, que dos Açores” (1948‑1949).
muito acarinhava, e o Governo, reconhecendo Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses.
os seus méritos, agraciou‑o, pouco tempo antes Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; Grande Enciclopédia
Portuguesa e Brasileira, Lisboa/Rio de Janeiro, Ed. Enciclopédia, s.d.; MARINO,
do seu falecimento, com o grau de comenda- Luís, Musa Insular: Poetas da Madeira, Funchal, Eco do Funchal, 1959;
dor da Ordem de Benemerência. PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária
da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1949; VIEIRA, Gilda
Sacerdote com uma cultura assinalável, escri- França, e FREITAS, António Aragão de, Madeira. Investigação Bibliográfica, vol. i,
tor, poeta – de que é exemplo a poesia “A pri- Funchal, Centro de Apoio de Ciência Históricas, 1981.
meira missa”, composta a 4 de setembro de 1941 António José Borges
para o Congresso de Machico e recitada na ses-
são solene por Ângela Leal Fernandes – e jor-
nalista de reconhecido mérito, de linguagem
Caiado, João de (pseud.)
fluente e acessível a um vasto público de leito- Ö Nascimento, João Cabral do
res, foi colaborador assíduo dos jornais da Ma-
deira, nomeadamente do Jornal, do Correio da Caires, Ângela
Tarde e da Revista Esperança. Neles publicou ar-
tigos doutrinais muito apreciados. Maria Ângela Moreira de Caires, nascida no
Foi fundador do semanário Brado do Oeste, que Funchal a 31 de agosto de 1939, foi uma es-
se publicou na Ponta do Sol, tornando‑se dire- critora, jornalista e copywriter. Era filha de
tor e redator principal, e sustentou algumas po- José Jacinto de Caires, professor de Inglês
lémicas na imprensa, que muito interessaram e jornalista, e de Maria Teresa Moreira de
aos leitores da Madeira. Neste periódico, publi- Caires. Casou com Emanuel José Pinto Fer-
cou em fascículos, em 1917, um romance histó- nandes em 1959, tendo‑se divorciado a 28 de
rico com o título Da Choça ao Solar, com motivos junho de 1976.
madeirenses e que narra um episódio passado É uma figura que cedo se começa a evidenciar
na vila da Ponta do Sol em tempos mais recua- no mundo da escrita. Desde nova que
dos, voltando a ser publicado, em segunda edi-
ção, pela Editorial Eco do Funchal, em 1957,
com prefácio do P.e Joaquim Plácido Pereira.
Assinou alguns dos seus magníficos artigos,
de prosa firme e substancial, apenas com as ini-
ciais “P. C.”.
Além da sua vasta cultura literária, é autor de
uma importante súmula de trabalhos de inves-
tigação histórica respeitante ao arquipélago da
Madeira, de que constitui exemplo “Da Madei-
ra e não dos Açores”, publicado em Das Artes e
da História da Madeira, no Funchal (1948‑1949).
A sua personalidade foi destacada no Eco do
Funchal, que refere a amplitude do seu reco-
nhecimento, pois o P.e João Vieira Caetano foi
soldado, poeta inspirado e jornalista de gran-
de respeito, salientando‑se também pela beleza
dos seus textos e pelo profundo conhecimen-
to dos assuntos que abordou. Um mestre do Fig. 1 – Ângela Caires, 2005 (Sindicato dos Jornalistas).
C aires , Ângela ¬ 681
Caires, Celso
Celso Emílio Silva de Caires nasceu em Torres
Novas, em 1958, mas viveu sempre na Madeira.
Concluiu em 1982 o curso de Artes Plásticas,
na variante de Escultura, no Instituto Superior
de Artes Plásticas da Madeira (ISAPM). Ali de-
sempenhou funções docentes em áreas como
escultura, fotografia, desenho e design gráfico.
Foi um dos principais responsáveis, junto com
Maurício Fernandes, pela implementação da
licenciatura de Design naquele Instituto.
Fez parte da Circul’Arte, uma associação
responsável pela dinâmica artística a que o
Funchal assistiu nos anos 1980. Participou,
em 1982, na coletiva Fragmentos e, em 1984,
numa coletiva de fotografia, ambas realizadas
no Teatro Municipal Baltazar Dias (TMBD).
Também esteve representado nas seguintes co- Fig. 1 – Celso Caires, no Ateneu Café, Funchal, 2013
letivas: Sinais Convencionais, realizada na ga- (arquivo particular).
leria do ISAPM em 1986; Coleção de Inverno,
que teve lugar na galeria da Secretaria Regio- prestar provas públicas, em 1997, para o cargo
nal do Turismo e Cultura (SRTC) no mesmo de professor agregado de Belas-Artes.
ano; Cenas e Objetos, realizada na galeria da Em 1987, participou na feira de arte Marca
SRTC em 1987; Insinuações e Propostas, que Madeira, sendo colaborador e artista expositor
teve lugar no TMBD em 1988; e Situações, rea- e representando a galeria Quetzal. Também
lizada na galeria da SRTC no mesmo ano. nesse ano, participou na mostra coletiva Cir-
Fora da Região, na mesma década, apresen- cul’Arte, que teve lugar no TMBD. Em 2011,
tou trabalho em coletivas como a I Bienal de fez parte do grupo de artistas que participaram
Arte dos Açores, em 1985; a Panorâmica‑Arte no projeto de arte pública Lonarte, realizado
e Cultura, que teve lugar na galeria do Casi- na Calheta, onde apresentou um trabalho de-
no Estoril, em 1985; Dezassete Graus Oeste, nominado Terra. Nele confronta a textura na-
realizada na galeria Altamira, de Lisboa, em tural, desenhada à mão, com a reprodução ar-
1986; Artistas Madeirenses, que teve lugar em tificial em lona, que a amplifica.
Coimbra, na galeria Cinco, em 1988; Fórum de O desenho explorado profissionalmente está
Arte Contemporânea, realizada em Lisboa em na base do seu trabalho como ilustrador e de-
1988; e Olhares Atlânticos, realizada na Biblio- signer gráfico. Destacam‑se as suas colaborações
teca Nacional, em 1991. em projetos de autor na área editorial, nomea-
Expôs individualmente na Ilha em 1989, 1992 damente em livros de poesia, com Carlos Fino,
e 1993, sempre na galeria Funchália. Desta fase de que são exemplo os seguintes: XXII Poemas
destacam‑se os seus trabalhos a pastel seco, que Ilhamar, editado no Funchal em 1987; Simbiose,
manifestam um grande domínio técnico e uma editado pela SRTC em 1988; e Este Cais Vertical,
simbiose entre desenho e pintura, grandemen- editado em 1990. Ilustrou e paginou o Roteiro
te influenciados pela composição e o realismo Histórico‑Turístico da Cidade, editado em 1997, e
do instantâneo fotográfico. Contudo, são dese- fez a imagem gráfica de vários simpósios e en-
nhos onde a forma e as texturas ganham pro- contros internacionais.
tagonismo em detrimento do conteúdo des- Celso Caires experimentou e aprofundou
critivo. A sua investigação nesta área levou‑o a outras técnicas e linguagens, e.g., a fotografia.
C aires , J o ã o de ¬ 683
Carlos Valente
Caires, João de
Nasceu no Funchal, em 1862, e faleceu a 18 de
dezembro de 1939, em Lisboa. Casou‑se com
a escritora Lutgarda Guimarães de Caires, de
Fig. 2 – Do Outro Lado do Oceano, de Celso Caires, 2005
(Av. do Mar, Funchal, arquivo particular). quem teve um filho, Álvaro Guimarães de Cai-
res, médico, natural de Alcobaça.
Além de a praticar continuamente, partici- Escritor e bacharel, formado em Direito na
pou em congressos e publicou artigos sobre Univ. de Coimbra em 1889, abriu escritório em
esta área, tais como: “A introdução da fotogra- Lisboa, onde conquistou um lugar de relevo
fia – Daguerreotipia, ambrotipia e ferrotipo”, como advogado. Foi juiz de Óbidos e adminis-
um artigo editado na revista Atlântico em 1985; trador de Alcobaça.
“O mundo cativo”, editado em 1987 na revista Fundou, com Mendonça e Coito, a Socie-
Espaço Arte; e Retomar a Imagem, em 1992. Em dade de Propaganda de Portugal, tendo di-
1987, apresentou uma comunicação acerca do rigido esta agremiação sob a presidência do
ensino artístico e dos novos meios de produção Cons. Fernando de Sousa até à proclamação
de imagem no Congresso de Arte Portuguesa da República.
Contemporânea, realizado no Funchal. Cultor das letras, organizava em sua casa se-
Escultor de formação, também trabalhou rões literários muito participados, segundo
nesta área, tendo sido responsável pela me- refere Maria Luísa V. de Paiva Boléo. Colabo-
dalha comemorativa dos 15 anos da Univ. da rou nas secções literárias de diversos jornais e
Madeira e publicando, em 2012, uma reflexão revistas. Em 1909, nos Jogos Florais Hispano
“Sobre as medalhas do escultor Ricardo Velo- ‑Portugueses de Salamanca, recebeu, com o
za”, editada na revista Islenha. Deixou ainda livro Paixão do Arcebispo, o prémio de novela.
obra de escultura pública, de que é exemplo Obras de João de Caires: Paixão do Arcebispo.
a figura alegórica em betão intitulada Do Outro Bibliog.: impressa: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses.
Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; Grande Enciclopédia
Lado do Oceano, que foi colocada em 2005 na Portuguesa e Brasileira, Lisboa/Rio de Janeiro, Ed. Enciclopédia, s.d.; digital:
Av. do Mar, no Funchal. BOLÉO, Maria Luísa de Paiva, “Lutgarda de Caires (1873‑1935). A fundadora do
Natal dos Hospitais”, Leme, 22 dez. 2004.
Mas foi sobretudo enquanto docente que
Celso Caires contribuiu para o ensino do António José Borges
684 ¬ C ais da entrada da cidade
Fig. 1 – Dezembarque de S.A.R. a Sereníssima Senhora Princeza Real Leopoldina, na Ilha da Madeira no Dia 11 de Setembro de 1817
às 4 da Tarde, aguarela de Armand Julien Palliere (coleção dos herdeiros de Alfredo Allen, Porto).
C ais da entrada da cidade ¬ 685
Augusto Blanc (c. 1810‑1875), mas um somen- transferido para o continente, não voltando
te capitão e o outro tenente. O mais importan- à Madeira.
te e inglório trabalho de obras públicas desen- Mais tarde, em 1853, Isabella de França (1797
volvido nestes anos pelo novo diretor das obras ‑1880) descreveria que, “perto do sítio onde
públicas, Maj. Manuel José Júlio Guerra, foi o desembarcámos, notam‑se vestígios de um cais,
cais em frente à entrada da cidade, mas a breve planeado há já alguns anos. Nele se gastaram
trecho viria a perder‑se, como o ensaiado nos quantias importantes e se desperdiçaram ma-
baixios de S. Tiago. teriais e trabalho que bem poderiam ter sido
A Câmara Municipal do Funchal, por reso- úteis”. A autora refere ainda que as obras, não
lução de 23 de abril de 1843, por certo após devidamente acauteladas, haviam sido pratica-
acordo com o Maj. Guerra, propunha a cons- mente desfeitas por um temporal. Acrescen-
trução de um cais de pedra em frente à en- ta ainda que “em Portugal, como na maioria
trada da cidade, votando, para isso, a verba das nações, a utilidade pública é a razão que se
de 1200$000 réis. O assunto foi presente ao alega para todas as obras; infelizmente trata‑se
conselho do distrito a 6 de maio seguinte, fi- só de um pretexto; o primeiro objetivo reside
cando encarregado de dirigir a obra o Maj. de na glorificação pessoal, se não nos emolumen-
engenharia Manuel José Júlio Guerra, que a tos que os funcionários auferem. Nestas condi-
24 do mesmo mês solicitava um reforço de ções iniciam‑se obras de vulto; os que as pro-
mais um conto de réis para colocar depois as jetaram deixam os seus cargos antes que elas
obras a coberto do inverno. O custo da obra terminem – e ei‑las abandonadas, para darem
não parava de aumentar, tendo‑se já gasto em lugar a outras, do mesmo modo superiores aos
fevereiro de 1844 mais de quatro contos de recursos do país”. As obras haviam sido planea-
réis, pedindo ainda o Maj. Guerra mais um das pelo Maj. Guerra, acrescentando a autora
reforço de 18 contos de réis, quantia que a que, “numa das efémeras revoluções que então
Câmara não via maneira de poder satisfa- desvairaram Portugal, colocou‑se ele à frente
zer. Em sessão camarária de 6 de março de de um movimento para destituir o governa-
1844, foi colocado o assunto, surgindo uma dor e estabelecer uma junta, de que seria, é
proposta de criação de uma comissão para di-
rigir as obras do cais, entregando‑se a presi-
dência ao Maj. Guerra, mas constituindo um
corpo com um delegado camarário, o Dr. Ma-
nuel Joaquim Moniz, os engenheiros militares
Cap. António Pedro de Azevedo e Ten. Tibé-
rio Augusto Blanc e o Eng.º camarário Vicen-
te de Paula Teixeira (1785‑1855). A proposta
acabou por não ser aprovada superiormente,
continuando as obras sob a desastrosa dire-
ção do Maj. Guerra. Entretanto, assumindo a
direção dos destinos da Ilha a Junta de Go-
verno, na sequência das revoltas da Maria da
Fonte e da Patuleia, que afastou o Gov. José
Silvestre Ribeiro (1807‑1891) e chegou a ter
por presidente o já então Ten.‑Cor. Eng.º Ma-
nuel José Júlio Guerra, ainda viriam a ser des-
bloqueadas importantes verbas para as obras
do cais da entrada da cidade. Com o regres-
so do governador ao palácio de S. Lourenço, Fig. 2 – Reconstrução do cais da entrada da cidade do Funchal,
as obras pararam e o Ten.‑Cor. Guerra seria 1889-1892 (ABM, Photographia Vicente).
686 ¬ C ais da entrada da cidade
alterações, pelo Eng.º José Bernardo Lopes de no seu ofício de 15 de outubro de 1881, volta-
Andrade, em 1887, e veio a ser adjudicado pelos ra a chamar a atenção para as vantagens que a
Engs. franceses Fréderic Combemale, Jules Mi- baía do Funchal ganharia com a construção de
chelon e Arthur Mury, que já em 1885 haviam um cais e porto de abrigo, ação saudada pelos
conseguido a execução das obras do molhe da comerciantes do Funchal. O molhe proposto,
Pontinha. no entanto, era insatisfatório, sendo “apenas
As obras do cais regional iniciaram‑se a 18 de um ponto de partida para a futura construção
janeiro de 1889, envolvendo um montante de de uma doca regular”, que devia completar‑se
87.000$000 réis – vindo a ser depois reconhe- pelo seu prolongamento em direção a leste,
cido a estes empreiteiros, na ocasião do ajuste como refere a direção da Associação Comer-
de contas, vários trabalhos executados fora do cial do Funchal (A Época, 25 abr. 1884, 16 jun.
projeto inicial ajustado, ainda receberam mais e 19 out. 1885), chegando, inclusivamente, a
92.005$485 réis – e demonstrando a complexi- colapsar com o grande temporal ocorrido no
dade do projeto. A obra ficou concluída a 27 último dia de fevereiro e nos primeiros dias de
de abril de 1892, sendo recebida provisoria- março de 1892, que arruinou de forma drásti-
mente nessa data, mas a receção definitiva só ca uma grande parte da obra já feita e a des-
teve lugar a 27 de abril de 1895. Por parecer truiu quase por completo. As obras seriam re-
da Junta Consultiva das Obras Públicas, de 30 começadas em 1893, estando prontas em 1895;
de maio do mesmo ano, foram os empreiteiros porém, as condições de acostagem dos gran-
julgados quites para com o Estado de todas as des navios sempre foram deficientes nesta fase
obrigações que haviam contraído, o que consta do molhe, acabando os paquetes por ficar ao
da portaria de 10 de julho de 1895. largo e os passageiros a ser transferidos por
Ao longo destes anos, decorreram assim lancha para o cais da entrada da cidade.
igualmente as obras do molhe do porto do Assim que, até à ampliação do molhe de acos-
Funchal, cuja iniciativa se ficou a dever ao tagem, nos meados do séc. xx, para leste da for-
governador civil, António de Gouveia Osório taleza do Ilhéu, o movimento de passageiros
(1825‑c. 1905), visconde de Vila Mendo, que, do porto do Funchal foi feito pelo cais frente à
688 ¬ C al ç ada , conde da
política deve ter sido feita pelo tio de sua mu- de 1882. Nestas eleições concorreram o ad-
lher, o advogado e futuro barão de São Pedro, vogado açoriano e republicano Manuel de
senador pela Madeira na legislatura de 1838 a Arriaga (1840‑1917), que se apresentou na
1840, lugar para que foi eleito numa vaga, em Madeira, e, por indicação do líder do Parti-
abril de 1839, e depois par do Reino, etc. Na do Regenerador e presidente do Conselho de
sua residência do Funchal, na R. dos Ferreiros, Ministros, António Maria de Fontes Pereira
onde se instalou depois a Direção Regional dos de Melo (1819‑1887), o líder da oposição, o
Assuntos Culturais, faziam‑se reuniões de ca- Cons. Anselmo José Braamcamp (1819‑1885),
rácter político, pois Daniel de Ornelas passava à frente do Partido Progressista, depois de já
então mais tempo em Lisboa que no Funchal. ter sido líder do Partido Histórico. A estranha
As primeiras informações recolhidas sobre o imposição das cúpulas partidárias continen-
mesmo são sobre a sua presença no concelho tais levou a que a maior parte dos eleitores
do distrito em junho de 1851, quando, com os madeirenses, inclusivamente monárquicos
membros do senado camarário, assina uma pe- e ligados ao Partido Regenerador, colocasse
tição solicitando a D. Maria II (1819‑1853) a abertamente a hipótese de apoiar o candida-
manutenção como governador do Cons. José to republicano. Efetivamente, estava em causa
Silvestre Ribeiro (1807‑1891). o funcionamento do sistema parlamentar, e o
Não se lhe conhece especial filiação parti- Cons. Braamcamp havia perdido as eleições
dária, embora nas eleições de maio de 1870 pelo seu círculo, sendo importante para o
pareça ter apoiado o morgado Agostinho de parlamento a sua presença no mesmo como
Ornelas e Vasconcelos (1836‑1901), membro deputado. Contudo, tal era um problema de
destacado do então Partido Popular, que se Lisboa, e não da Madeira.
opunha ao Fusionista. Nas contas dessas elei- Na primeira volta adivinhava‑se já o desastre,
ções, há documentos que comprovam paga- e o Diário de Notícias, que indiciava o visconde
mentos de despesas feitas por Diogo de Or- da Calçada como apoiante da situação, escre-
nelas, os quais se encontram nos arquivos da via o seguinte: “Os regedores de paróquia que
família Ornelas e Vasconcelos. Não terá sido, trabalham ostensiva e declaradamente con-
assim, por acaso que, por decreto de 17 de ja- tra a monarquia e pelo candidato republica-
neiro e carta de 25 de fevereiro de 1871, foi no ainda não foram demitidos. Parece que o
agraciado com o título de visconde da Calçada,
em homenagem à casa secular em que vivia na
Calç. de Santa Clara, onde depois se instalou a
Casa‑Museu Frederico de Freitas. Por essa altu-
ra, a 5 de março de 1871, o deputado Agosti-
nho de Ornelas refere numa carta enviada ao
irmão, D. Aires de Ornelas (1837‑1880), bispo
do Funchal em maio desse ano, mas já admi-
nistrador apostólico, estar em Lisboa a tratar
de um título para o morgado Diogo Berenguer
de Freitas Neto (1812‑1875), depois visconde
de São João.
O visconde da Calçada foi agraciado com o
título de conde a 4 de outubro desse ano, data
em que também foi oficialmente nomeado go-
vernador civil substituto, situação não muito
comum. Tomou posse desse lugar a 10 do
mesmo mês. Era governador civil substituto Fig. 2 – Fachada da Casa da Calçada, à Calç. de Santa Clara,
na altura das célebres eleições suplementares reforma de c. 1800 e seguintes (Casa-Museu Frederico de Freitas).
690 ¬ C al ç ada , conde da
sr. administrador do concelho ficou muito sa- do governador, uma vez que o juiz conselheiro
tisfeito com este serviço e que o sr. governador Tomás Nunes de Serra e Moura (c. 1840‑1917),
civil substituto também ficou muito contente” nomeado em finais de dezembro de 1883 e que
(DN, 8 nov. 1882). Os resultados dessa primeira tomou posse nos primeiros dias de janeiro se-
volta foram comunicados a Lisboa a 13 de no- guinte, após ter organizado a coligação monár-
vembro pelo governador substituto, que conti- quica que fez frente aos candidatos republica-
nuava a assinar visconde da Calçada, do que se nos nas eleições desse ano, também se retirou
pode pensar que a informação da atribuição do para o continente. Foi, por isso, o visconde da
título de conde só foi conhecida depois, embo- Calçada, já velho, a ver‑se na contingência de
ra Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão ter de requisitar o vapor de fiscalização da Al-
e Figueiroa continuasse a utilizar, mesmo nos fândega, em agosto de 1884, para transportar
anos seguintes, somente o título de visconde. para a Ribeira Brava uma força de 20 praças
O governo de Lisboa enviou ao Funchal o que tinha como objetivo reforçar o destaca-
governador efetivo, o juiz conselheiro Antó- mento militar local face ao tumulto ali ocorri-
nio de Gouveia Osório (1825‑1915), visconde do, que tivera como resultado sete mortos.
de Vila Mendo, que voltou a tomar posse do Nos anos seguintes, a política madeirense
lugar temporariamente, o que não impediu a foi varrida pela figura contundente e truculen-
vitória final de Manuel de Arriaga, retirando‑se ta do visconde do Canavial (1829‑1902), que
de novo o governador civil para Lisboa, onde levou ao levantamento popular da Parreca, tal-
então era conselheiro do Tribunal de Contas, e vez o mais importante levantamento ocorrido
entregando outra vez o governo ao visconde da no séc. xix. Perante a contestação geral, o vis-
Calçada. Foi este que depois suspendeu os di- conde do Canavial veio a apresentar a sua de-
reitos dos cereais importados, assunto que atra- missão a 26 de março de 1888, tendo o gover-
vessou a política dos anos 1883 e 1884. O vis- no sido entregue, uma vez mais, ao visconde
conde continuaria a ocupar o lugar na vigência da Calçada, pois o governador civil seguinte,
João de Alarcão (c. 1850‑1917), embora no-
meado a 5 de abril, só tomaria posse a 8 de
maio seguinte.
Nos anos seguintes, pouco sabemos da atua-
ção política do conde da Calçada, que parece
ter‑se retirado para a sua residência, de onde
pouco teria saído. Na visita régia de 1901, e.g.,
não é mencionado.
O interessante edifício da calçada de Santa
Clara teve obras em 1851, conforme consta no
empedrado da entrada, logo a seguir ao por-
tão gradeado com as suas armas de conde, que
usam brasão esquartelado de Ornelas (moder-
no), Carvalhal (Benfeito), Frazão e Franqui
(por França?), com timbre de Ornelas, tendo
‑se escrito ser de uso muito antigo nesta famí-
lia, mas ignorando‑se a quem foi concedido
(CLODE, 1983, 87). Pensa‑se que o projeto
de reforma da casa seja do arquiteto e egiptó-
logo George Somers Clarke (1841‑1926), que
trabalhava em parceria com John Thomas Mi-
Fig. 3 – Fachada do pátio superior da Casa da Calçada,
reforma romântica com projeto do Arqt. George Somers Clarke
cklethwaite (1843‑1906) e que passou pela Ma-
(atr.), c. 1891 (Casa-Museu Frederico de Freitas). deira em 1890. Os trabalhos deste arquiteto
C al ç ada madeirense ¬ 691
Fig. 1 – Separação de materiais pétreos utilizando uma saranda Fig. 2 – Afloramento de calcários recifais no percurso turístico
na praia do Porto dos Frades, Serra de Fora, Porto Santo geológico da Rota da Cal, que compreende uma antiga zona
(fotografia de João Baptista, 2012). de extração de pedra (fotografia de Paulo Duarte, 2007).
de calçadas sitas nos concelhos do Funchal, de No que diz respeito às rochas carbonatadas,
Câmara de Lobos, da Ponta do Sol, de Santa identificadas como sendo calcários recifais
Cruz, de São Vicente e também na ilha do Porto marinhos, elas apresentam as cores seguintes:
Santo. Nos textos consultados e nos diálogos castanha‑avermelhada, branca leitosa, branca
mantidos com alguns estudiosos e profissionais amarelada ou branca avermelhada. Trata‑se de
do sector, é frequente referir‑se serem os seixos materiais com origem no concelho de São Vi-
brancos feitos de calcário originário de Portu- cente, na ilha da Madeira (fig. 2), no ilhéu da
gal continental, tendo provavelmente servido Cal ou de Baixo e no vale da Ribeira da Serra
de lastro em navios que outrora aportavam ao de Dentro, ilha do Porto Santo. No caso dos
Funchal. Foi propósito da já mencionada in- calcários que ocorrem no afloramento do sítio
vestigação referir os locais de proveniência da dos Lameiros (à cota de 475 m), em São Vicen-
pedra natural utilizada nas calçadas. Tendo em te, eles são, essencialmente, recifais, associados
conta quer o levantamento já efetuado, quer a a tufos de cor castanha‑avermelhada, e aglo-
extensão da sua aplicação em todo o arquipéla- merados, cujos fósseis marinhos identificados
go, admite‑se que a pedra aplicada foi recolhi- correspondem a várias espécies de lamelibrân-
da em vários depósitos de praia das costas sul e quios, gastrópodes, equinodermes, coraliá-
norte da Madeira e do Porto Santo. rios, crustáceos e foraminíferos. Dados de geo-
Atualmente, a recolha dos materiais está res- cronologia isotópica apontam a idade de sete
tringida a depósitos de algumas praias (fig. milhões de anos (Miocénico Superior) para
1) – Formosa (Funchal), Porto Novo (Santa os calcários fossilíferos. Na segunda déc. do
Cruz), Madalena do Mar (Ponta do Sol) e Ca- séc. xxi, puderam ser observados alguns dos
lhau da Serra de Fora e Calhau da Serra de antigos depósitos de calcário recifal no sítio da
Dentro (Porto Santo) –, devidamente autori- Achada do Furtado do Barrinho, Lameiros, ao
zada pelas autoridades regionais competentes percorrer o itinerário turístico‑geológico de-
(Secretaria Regional dos Assuntos Parlamenta- nominado Rota da Cal (fig. 2).
res e Europeus da Região Autónoma da Madei- Na ilha do Porto Santo, os calcários ocorrem
ra e capitania do Porto do Funchal). entre as cotas 0‑165 m, correspondendo‑lhes
A amostragem dos materiais nas praias foi idades compreendidas entre os 13,5 e os 18
feita na baixa‑mar, por duas razões: a primeira, milhões de anos (Miocénico Inferior), tendo
porque a secção da praia é mais ampla; a se- sido neles identificados foraminíferos, celen-
gunda, porque a recolha de material é feita em trados, briozoários, equinodermes, crustáceos,
maior segurança durante a maré baixa. anelídeos e grande variedade de espécies de
C al ç ada madeirense ¬ 693
Tipologias e propriedades
No âmbito da referida investigação, a caracte-
rização petrográfica, mineralógica e química
dos materiais pétreos (calhaus e seixos) amos-
trados nas calçadas madeirenses foi realizada
no departamento de Geociências da Univ. de
Aveiro, tendo permitido o estabelecimento das
tipologias relevantes.
No que diz respeito às rochas vulcânicas, uti-
lizando a relação entre a percentagem de sílica
(SiO2) e a percentagem de alcalis (Na2O + K2O)
adotada no sistema classificativo das rochas vul- Fig. 6 – Pormenor da calçada madeirense em que se observa
cânicas proposto por Peter Francis, foi possí- a utilização de seixos inteiros e partidos pela metade
vel definir as litologias seguintes: traquibasalto, no pavimento do Prq. de Santa Catarina, Funchal
(fotografia de João Baptista, 2014).
traquiandesito e traquito, que apresentam to-
nalidades que vão desde o cinzento‑escuro até
(SiO2) e alumina (Al2O3) variam entre 0,40
ao cinzento‑claro; basalto, hawaiíto e represen-
% e 3,19 %. Assim sendo, os resultados ana-
tantes do grupo minor varieties, que inclui diver-
líticos obtidos permitem identificar a origem
sos tipos de rochas vulcânicas menos comuns;
do seixo e do calhau de calcário aplicados na
normalmente, estes tipos litológicos apresen-
calçada madeirense, a qual está relacionada
tam cor preta.
com rochas carbonatadas locais (calcário reci-
Os resultados da análise química obtidos
fal muito puro). De facto, as investigações rea-
por fluorescência de raios-X indicam que as
lizadas mostram que a pedra calcária aplicada
amostras estudadas de seixos ou calhaus de
foi recolhida em vários depósitos de praia das
calcário do arquipélago da Madeira apresen-
costas sul e norte das ilhas da Madeira e do
tam teores muito baixos de sílica (SiO2) e
Porto Santo (figs. 2 e 3).
de alumina (Al2O3), sempre inferiores a 200
Por sua vez, as propriedades físico‑mecânicas
ppm. Diferentemente, no caso das amostras
dos principais tipos de pedra natural utiliza-
de calcário utilizado em calçada portuguesa
dos na calçada madeirense foram avaliadas
(técnica também presente no arquipélago da
no Laboratório de São Mamede de Infesta
Madeira), provenientes das localidades de
(Porto), afeto ao antigo Instituto Nacional de
Porto de Mós, Alcanena, Albufeira e Lagoa,
Engenharia, Tecnologia e Inovação (poste-
em Portugal continental, os teores de sílica
riormente, Laboratório Nacional de Energia
e Geologia).
A determinação da resistência ao desgaste
por abrasão em vários provetes de pedra natu-
ral foi realizada através do método de desgas-
te de Capon. Os resultados obtidos permitem
concluir que a rocha traquibasáltica é a que
apresenta menor desgaste (0,6 mm), em oposi-
ção ao calcário recifal (4,2 mm).
Se observarmos alguns pavimentos sobre os
quais há grande circulação de pessoas, verifica-
mos facilmente que a superfície superior e ex-
posta da pedra calcária se apresenta plana, ou
Fig. 5 – Calcamento e nivelamento do pavimento com calcão
seja, com maior grau de desgaste, quando com-
mecânico (fotografia de João Baptista, 2004). parada com a superfície superior e exposta da
C al ç ada madeirense ¬ 695
Fig. 7 – Pormenor de vaso com planta Fig. 8 – Pormenor em flor ou representação do ponto richelieu,
(fotografia de João Baptista, 2007). do bordado da Madeira (fotografia de João Baptista, 2007).
696 ¬ C al ç ada madeirense
Preservação
Em meados da segunda déc. do séc. xxi, a cal-
çada foi modificada e adulterada em alguns es-
paços, com a aplicação de materiais estranhos
a esta técnica e com a remoção de motivos.
A pedra rolada foi substituída por cubos e pa-
ralelepípedos de mármore e coberta por arga-
Fig. 11 – Aplicação de paralelepípedos de mármore
massas de areia, cimento e material betumino- na letra P do logograma do Hotel do Porto Santo
so, ou por alcatrão (fig. 11). (fotografia de João Baptista, 2015).
C al ç ada madeirense ¬ 697
ROMARIZ, Carlos, “Notas petrográficas sobre rochas sedimentares ligado à política. Foi um dos fundadores do
portuguesas. Parte XII: calcaritos afânicos da ilha da Madeira”, Boletim do
Museu e Laboratório Mineralógico e Geológico da Faculdade de Ciências, vol. 12, Partido Social Democrata (PSD) após o 25 de
n.º 1, 1971, pp. 55‑65; SAINZ‑TRUEVA, J. M., “A preto e branco”, Islenha, Abril, e à data da morte era presidente do Con-
n.º 8, jan.‑jun. 1991, pp. 129‑135; SILVA, Gumerzindo, “Fósseis do Miocénico
marinho da ilha de Porto Santo”, Memórias e Notícias, n.º 75, 1959, pp. 47
gresso Regional do PSD.
‑88; SILVA, João B. P., “Calçada madeirense. Bordados de pedra”, Revista Saber Muito ligado ao desporto, ao qual dedicou
Madeira, n.º 89, out. 2004, pp. 16‑23; Id., “Calçada madeirense. Importância
do seu conhecimento, divulgação e preservação”, in SILVA, João B. P. (coord.),
um incontestável apoio, chegou a ser presiden-
Simpósio Internacional de Escultura em Pedra. SINEP 2004. 17 a 31 de Maio 2004, te do Clube Desportivo Nacional e do Club
Câmara de Lobos, Câmara Municipal de Câmara de Lobos/Madeira Rochas
Sports Madeira. O Jornal da Madeira de 22 de
‑Divulgações Científicas e Culturais, 2004, pp. 151‑156; Id. et al., “Natural stone
of the Madeira archipelago. Commercial types and properties”, in Eurock2002. dezembro de 1981 chega mesmo a referir que
Workshop on Volcanic Rocks, Funchal, s.n., 2002, pp. 115‑124; WENTWORTH,
o Clube Desportivo Nacional lhe fica a dever
Chester K., “A scale of grade and class terms for clastic sediments”, The Journal
of Geology, vol. 30, n.º 5, jul.‑ago. 1922, pp. 377‑392; ZINGG, THeodor, Beitrag dedicação ilimitada. Ainda relacionado com o
zur Schotteranalyse, Zürich, A. G. Gebr. Leemann & Co., 1935. desporto, Luiz Peter Clode refere que António
Celso de Sousa Figueiredo Gomes Manuel de Sales Caldeira foi o precursor do
João Baptista Pereira Silva Rally da Madeira a nível europeu.
Faleceu no Funchal a 21 de dezembro de
1981, tendo sido sepultado no cemitério
Caldeira, António Manuel de de São Martinho a 22 do mesmo mês.
Sales As participações do seu falecimento no Diário
de Notícias de 22 de dezembro de 1981 incluem
António Manuel de Sales Caldeira nasceu a 27 as da família, do PSD, do grupo parlamentar
de janeiro de 1912, no Porto da Cruz. Filho de do PSD na Assembleia Legislativa Regional, do
João Pedro Sales Caldeira e de Maria Ana Lari- Conselho Distrital da Ordem dos Advogados,
ca Sales Caldeira, casou‑se com Rita de Acácio da Assembleia Geral da Ordem dos Advogados,
Silva Oliveira de Sales Caldeira, natural de Lis- da Direção do Clube Sports Madeira e também
boa, com a qual teve três filhos: Maria Emília das funcionárias dos cabeleireiros Capucine,
Oliveira Sales Caldeira, João Pedro Sales Cal- dos quais Sales Caldeira era proprietário.
deira e Rita de Acácia Sales Caldeira. Já no Jornal da Madeira da mesma data pode
Após a conclusão do liceu, Sales Caldeira ler‑se um artigo que evidencia as qualidades de
matriculou‑se na Faculdade de Direito da Sales Caldeira, descrevendo‑o como uma figu-
Univ. de Lisboa, onde se licenciou com 23 ra bastante conhecida e prestigiada da advoca-
anos. cia madeirense, sendo um homem dinâmico e
Foi subdelegado do Tribunal do Trabalho íntegro.
e posteriormente abriu banca de advogado,
Bibliog.: manuscrita: ABM, Registo de óbito de António Manuel de Sales
tendo muita clientela, primeiro na R. Gon- Caldeira, assento de óbito 1629; impressa: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio
çalves da Câmara, de ‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do
Funchal, 1983; Diário de Notícias, Funchal, 22 dez. 1981; Jornal da Madeira, 22
onde transitou para a dez. 1981.
R. das Pretas, n.º 7, e, Cláudia Neves
depois, na R. João Ta-
vira, n.º 31‑1.º. Além de
ter sido consultor jurí- Caldeira, João da Silveira
dico de várias empre-
sas comerciais e indus- Uma importante informação abre a entrada
triais, esteve também relativa a João da Silveira Caldeira no Elucidá-
rio Madeirense: “escassos dados possuímos para
a biografia deste madeirense” (SILVA e ME-
NESES, 1984, I, 366). Ainda assim, o Elucidá-
António Manuel de Sales
rio apresenta‑o como um médico e investiga-
Caldeira, c. 1970 (ABM,
Arquivos Particulares). dor na área da química, nascido na Madeira
C aldeira , J o ã o da S ilveira ¬ 699
Europa. Durante a sua direção, o Museu rece- nos elucidam sobre outras famílias que aí se fi-
beu ainda acervos vários, nomeadamente mú- xaram. Assim testemunha Gaspar Frutuoso tal
mias, estatuetas funerárias, vasos, mãos e pés riqueza: “É esta vila tão nobre em seus mora-
mumificados de origem egípcia, bem como vá- dores, como abastada pelos muitos e baratos
rios objetos etnográficos oriundos do Pará e mantimentos que nela acham. Desta saíram
das ilhas do Pacífico. em companhia dos capitães do Funchal muitos
Na correspondência enviada para publica- e nobres cavalheiros a servir El‑Rei à sua custa
ção, há referência a diversas pesquisas reali- os lugares de África, e nos socorros que os capi-
zadas, nomeadamente em torno da obtenção tães levaram: onde todos, além de darem mos-
do ácido cítrico puro e de zircónia pura, des- tras de suas pessoas, gastaram muito do seu,
coberta cujos créditos dividiu com o químico porque eram ricos, pelas grossas fazendas que
francês M. du Bois‑Reymond. nesse termo há, como a do Arco, tão afamada”.
A Nova Nomenclatura Química Portuguesa, um E remata afirmando que “foi o condado do
dos primeiros compêndios de assuntos quími- Ilustríssimo Capitão Simão Gonçalves da Câ-
cos no Brasil, datada de 1825, é assinada por mara, Conde desta vila nova da Calheta” (FRU-
João da Silveira Caldeira. TUOSO, 1979, 90).
Obras de João da Silveira Caldeira: Nova Nomenclatura Química Portuguesa
Numas notas de recomendação apresentadas
(1825). em 1698 ao novo governador, António Jorge
Bibliog.: impressa: CARVALHO, Joaquim Augusto Simões, Memoria de Melo (1698‑1701), refere‑se que a Madei-
Historica da Faculdade de Philosophia, Coimbra, s.n., 1872; Correio do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, Tip. de Silva Porto & C., 1822‑1823; Revista Trimestral
ra é dividida em duas capitanias: a da Calheta,
de Historia e Geographia, ou Jornal do Instituto Historico Geographico que tem como donatário o conde de Castelo
Brazileiro, n.º 5, abr. 1840; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos
Melhor, e a de Machico. Este título foi dado,
Azevedo de, Elucidário Madeirense, vol. i, Funchal, DRAC, 1984; digital:
BARATA, Carlos Eduardo de Almeida, “Cemitério Catumbi. São Francisco de segundo se explica, “por virtude do condado
Paula, Rio de Janeiro”, Colégio Brasileiro de Genealogia, s.d.: http://www.cbg. deste título” (NASCIMENTO, 1927, 59). Esta
org.br/baixar/cemiterio_catumbi_3.pdf (acedido a 17 maio 2016); “João da
Silveira Caldeira”, Universidade Federal de Juiz de Fora, s.d.: http://www.ufjf. valorização da Calheta manifesta‑se igualmen-
br/nehc/historia‑da‑quimica‑no‑brasil‑3/joao‑da‑silveira‑caldeira (acedido te em designações como “capitania do Fun-
a 17 maio 2016).
chal” e “casa da Calheta”.
Graça Maria Nóbrega Alves
Os filhos de Zarco foram os primeiros pro-
prietários de terras. Assim, o título de conde de
Vila Nova da Calheta foi dado, a 20 de agosto
Calheta
de 1576, por D. Sebastião a Simão Gonçalves da
O concelho da Calheta deve o seu nome à Câmara (1512-1580), título que deixou de ser
configuração da sua costa. Segundo António usado com D. Luís de Vasconcellos, que pre-
Carvalho Costa, em Corografia Insulana (1713 feriu o de 3.º conde de Castelo Melhor. O de
‑17??), “quando se descobriu, fizeram à mão Valledeamores pertenceu a Duarte Pestana de
uma calheta, de que tomou o nome a Vila, que Brito, que fora armador‑mor de D. João II e
depois ali se povoou” (NASCIMENTO, 1949, D. Manuel e um conhecido poeta representa-
71). Paulo Dias de Almeida, em 1821, refere do no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
uma qualidade especial deste concelho, dizen- A toponímia local espelha estas primeiras pre-
do que “É nestas freguesias que as mulheres senças. Assim, o Lombo do Doutor regista a fi-
trabalham mais que os homens. São elas que xação, em 1480, do valenciano Pedro Beren-
levam os gados ao pasto, que conduzem o gado guer; o Lombo do Atouguia deve o seu nome
à serra, que fazem o corte das lenhas, e por isso a Luís de Atouguia, fidalgo de Beja; já o sítio
são mais robustas e os homens muito acanha- dos Florenças tem origem no florentino João
dos” (CARITA, 1982, 82). Salviati.
Este lugar foi terra de gente ilustre. Para Temos ainda outros fidalgos estrangeiros
além da ligação muito forte aos capitães do do- que aí assentaram morada, como o galego
natário do Funchal, existem referências que João Fernandes de Andrade, conhecido como
C alheta ¬ 701
depois de ter estado no Norte de África, partiu manjares de toda a sorte, como os sabem fazer
para a Índia, em 1511, com Afonso de Albu- as delicadas mulheres da ilha da Madeira”
querque, onde participou em diversas campa- (FRUTUOSO, 1979, 263). Entretanto, Águe-
nhas militares e de descoberta, sendo conside- da de Abreu, sua irmã, denunciou a situação
rado o descobridor das Molucas e o primeiro junto da Coroa, tendo vindo um desembarga-
europeu a avistar a Austrália. Em 1526, depois dor resolver o caso. Como desfecho, algumas
de ter regressado ao reino, foi nomeado capi- penas de morte e desterro, a fuga de António
tão de Malaca. Outros, como o Cap. Francis- Gonçalves para as Canárias e o recolhimento
co de Figueiroa, tiveram um papel de destaque de Isabel de Abreu no Convento de S.ta Clara.
nas guerras de restauração da Baía e Pernam- Muitos destes importantes vizinhos da Ca-
buco, no Brasil. lheta tinham propriedades ou casa na cida-
Temos ainda de recordar o episódio do rapto de. É o caso de Francisco de Abreu Florença,
de Isabel de Abreu por António Gonçalves da do Arco da Calheta, que, em 1642, tinha casas
Câmara, que tão bem relata Gaspar Frutuoso. no Funchal e terras de semeadura e gados na
D. Isabel de Abreu, viúva de João Rodrigues freguesia.
de Noronha, filho do 3.º capitão-donatário do
Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, vivia
no Arco do Calheta. Conta Gaspar Frutuoso:
Administração
“foram feitas grandes festas e bodas, em que O município foi criado a 1 de junho de 1502,
comeram todas aquelas pessoas que os acom- sendo a sede designada Vila Nova da Calheta.
panharam. Estavam na sala primeira dos seus Até 1835, incluíam‑se as freguesias que nesta
paços quatro potes de prata fina em quatro data deram lugar ao município do Porto Moniz.
cantos dela, que levaria cada um deles três al- A vila situava‑se na foz da ribeira e tinha pelou-
mudes de água, com quatro púcaros de prata: rinho, documentado em 1618. Também sabe-
[...] comeram todos em baixela de prata, sem mos existirem os aposentos da alfândega local,
se entremeter no serviço coisa de barro, nem pois que, em 1520, Francisco Homem recebeu
estanho, onde se gastaram ricos e esquisitos 40.000 réis referentes ao eirado que derrubaram
Fig. 3 – Câmara Municipal da Calheta, antiga Santa Casa da Misericórdia (arquivo particular, 2008).
C alheta ¬ 703
Fig. 5 – Retábulo da capela de Jesus, Maria e José, Lombo do Atouguia, 1708 (fotografia de Bernardes Franco).
C alheta ¬ 705
Dr. Pedro Berenguer de Lemilhana, que deu ilha, por ter maior comarca […]. Esta Vila da
o nome ao sítio do Lombo do Doutor, e Luiz Calheta e seu termo foi o condado do Ilus-
de Atouguia, que está ligado ao Lombo do tríssimo Capitão Simão Gonçalves da Câmara,
Atouguia; João Rodrigues Mondragão, natu- Conde desta Vila Nova da Calheta, como se
ral da Biscaia; e Francisco Homem de Gouveia, dirá em seu lugar” (FRUTUOSO, 1979, 90).
juiz dos órfãos e escudeiro fidalgo, que criou A freguesia do Estreito da Calheta deverá ter
o morgadio e a capela dos Reis Magos, no Es- sido criada no princípio do séc. xv. A designa-
treito da Calheta. Recorde‑se que o título de ção “estreito” (desfiladeiro, vale ou profundi-
conde da Calheta foi concedido a Simão Gon- dade) deve‑se, segundo se conta, ao facto de a
çalves da Câmara por alvará de 20 de agosto de passagem para tal território ser estreita. A pri-
1576, como prémio pelos seus feitos nas praças mitiva povoação teve a sua origem numa fazen-
africanas. Em 1600, o título foi incorporado no da concedida no séc. xv ao fidalgo, natural da
condado de Castelo Melhor. Polónia, André Gonçalves de Franças. Foi o
A sua importância, derivada da produção seu filho, João de França, que fez construir a
açucareira, manifesta‑se na profusão de ca- capela de N.ª Sr.ª da Graça, onde, depois, se
pelas (S. José, S.ta Quitéria, Jesus‑Maria‑José, criou e instalou a nova paróquia, sendo tam-
S. Pedro de Alcântara, N.ª Sr.ª da Piedade, S. bém a sede do morgadio que fundou em 1503.
João Batista, N.ª Sr.ª da Boa Morte, S. Fran- A freguesia da Fajã da Ovelha deve o seu
cisco Xavier, N.ª Sr.ª da Penha de França, N.ª nome, segundo a tradição, a um acontecimen-
Sr.ª da Estrela, N.ª Sr.ª da Vida, N.ª Sr.ª de to que envolveu a perda de uma ovelha. A pa-
Monserrate, Almas, N.ª Sr.ª do Bom Sucesso, róquia surgiu em 1550. A 18 de novembro de
N.ª Sr.ª da Nazaré e S.ta Catarina), bem como 1895, a freguesia das Achadas da Cruz, por ex-
na existência de um Convento de S. Francis- tinção do concelho do Porto Moniz, foi‑lhe ane-
co e de uma misericórdia. Sobre esta fregue- xada. Esta freguesia teve um lugar de notário
sia, diz‑nos Gaspar Frutuoso: “Neste lugar da desde 1923.
Calheta, […] se fundou a Vila, que tomou o O Jardim do Mar foi um curato dependen-
nome da Calheta, a mais fértil de todas as da te dos Prazeres ou do Paul, com criação no
segundo quartel do séc. xviii. No séc. xix, antigamente rica de açúcar e ainda tem 2 enge-
ficou conhecido pela qualidade dos seus vi- nhos. Tem 123 fogos e 490 almas de sacramen-
nhos, das castas malvasia e sercial. O local to” (FRUTUOSO, 1979, 125). Quanto ao Arco,
apresentava‑se como uma fajã, daí certamente Frutuoso apenas assinala os povoadores ilustres.
o nome de Paul do Mar. Aí, destacam‑se as sali- Em 1598, diz‑se igualmente que “No Estreito
nas dos sítios das Lagoas e Serra da Cruz. sobre a Calheta está a freguesia de Nossa Senho-
A freguesia da Ponta do Pargo terá sido cria- ra da Graça, com a ermida dos Reis Magos. Tem
da em data anterior a 1560. Sobre a origem do 154 fogos [e] 553 almas de sacramento”. Gaspar
nome, diz‑nos muito claramente Gaspar Fru- Frutuoso nada diz em termos de fogos e popu-
tuoso: “Da Calheta passou o capitão abaixo até lação. O documento apresenta ainda a seguinte
à derradeira ponta sobre o mar, donde pare- informação: “A Fajã da Ovelha tem como igreja
ce que não há mais terra; e estando aqui, lhe principal São João Batista e 2 ermidas: São Lou-
trouxeram os do batel de Tristão e do batel de renço e Santo Amaro, no Paul, ao longo do mar.
Álvaro Afonso um peixe, que parecia pargo, de Tem esta freguesia 70 fogos e 271 pessoas de
maravilhosa grandura, e o maior que até àque- confissão. Sobre a Ponta do Pargo está a fregue-
le tempo tinham visto; por razão do qual peixe sia de São Pedro, que tem 63 fogos e 198 almas
ficou nome aquela Ponta a do Pargo. Desta de confissão” (GOMES, 1932, 34‑35). Frutuoso,
Ponta do Pargo vira a terra para o Norte até por sua vez, apenas assinala a Ponta do Pargo,
outra ponta, que distará desta uns dizem duas, com 200 fogos.
outros três léguas” (Ibid., 90). António Carvalho Costa, em Corografia Insu-
O nome da freguesia dos Prazeres provém lana (1713‑17??), refere a existência de 300 vi-
de uma pequena ermida dedicada a N.ª Sr.ª zinhos da paróquia. Em 1722, segundo Hen-
dos Prazeres que foi edificada nesse território riques de Noronha, o concelho da Calheta
muito antes da criação da paróquia. Esta fregue-
sia tornou‑se independente a 18 de dezembro
de 1676, e uma nova igreja foi mandada cons-
truir pelo Conselho da Fazenda a 20 de novem-
bro de 1745. Posteriormente, foi criada a Quin-
ta Pedagógica dos Prazeres, onde se realizam
várias atividades ligadas ao mundo rural, como
a Festa da Cidra, a Bênção dos Animais, o Leilão
de Animais e a Festa de Debulha do Trigo.
População
Em 1598, um recenseamento da Ilha refere,
relativamente à Calheta, que “A vila da Calhe-
ta tem a igreja principal do Espírito Santo; um
hospital com casa da Misericórdia e tem den-
tro da freguesia 3 ermidas: Nossa Senhora da
Estrela; São Sebastião; e Corpo Santo. Tem
de fogos, como limite, 297, que contêm em si
1129 almas de sacramento” (GOMES, 1932,
32). Note‑se que Gaspar Frutuoso refere para a
vila 400 fogos. O mesmo adianta os demais lu-
gares: “A freguesia do Arco tem a igreja prin-
cipal de São Brás e 2 ermidas: Nossa Senhora Fig. 7 – Namoro, Noivado e Casamento, Lombo do Atouguia
da Consolação e Nossa Senhora do Loreto. Foi (1991), de Maria Elisa de França Brazão.
C alheta ¬ 707
apresentava‑se com 7775 almas e 1678 fogos, da população, que abranda com a crise de fome
servido por 16 clérigos. A situação do concelho de 1847. Assim, em 1835, temos 2781 fogos e
é ainda relatada pelo mesmo autor: “Corre a 13.133 almas, e, em 1843, 2979 fogos e 13.733
povoação estreita pela margem da Ribeira, e na almas. Para 1847, registam-se 11.522 habitantes,
parte mais interior tem a sua Paróquia, a qual para 1863, 12.360, e, para 1877, eram já 16.580.
antigamente esteve na Igreja de Nossa Senhora Em 1911, temos 20.062 habitantes, sendo 13.756
da Estrela, quando se erigiu freguesia que foi da Calheta, onde ocorreram 692 mortes.
no ano de 1461. A que hoje tem a vila é Igreja O censo de 1930 refere para a Calheta 21.960
grande// mas antiga; o seu orago é o Espírito habitantes, número que passa para 23.996 em
Santo tem Colegiada, cujos Ministros são um vi- 1940, 24.255 em 1950, 24.078 em 1960, 21.799
gário com púlpito, Cura, quatro Beneficiados, em 1970, 1505 em 1980 e 12.954 em 1990. Tenha
Tesoureiro e Organista. [...] Tem esta vila, casa ‑se em consideração que, no período de 1955 a
de Misericórdia com muito boa Igreja, e um 1966, foram contados 616 emigrantes legais.
Hospital de Incuráveis, a que deu princípio no No séc. xvi, a Calheta foi alvo de assalto de
ano de 1535. Seu primeiro Provedor o Doutor corsários que geraram uma situação estranha
Pedro Giralte Cavalheiro Florentino que passou de convívio com a população, explicada pelo
a viver nesta parte onde casou com D. Catheri- seu alheamento relativamente ao meio urbano
na Berenguer [...]. Além deste Templo tem mui- e poder civil e militar. Esses terão, depois, se-
tas Igrejas, e ermidas no seu distrito; quais são: guido o seu destino rumo aos Açores em busca
Duas das Almas; a do Corpo Santo, a de Nossa de embarcações castelhanas vindas da América.
Senhora do Monserrate, do Bom Sucesso, da Neste contexto, temos de assinalar que tiveram
Boa morte e da Piedade, a dos Santos Cosme, morada nesta área alguns corsários importan-
e Damião, a de Santo António, de S. Francisco tes, como foi o caso de João Rodrigues Mondra-
Xavier, de S. João, de S. José, a de Jesus Maria gão. Por outro lado, este lugar da Calheta era
José, e a de Santa Catarina, situada no Lombo desprotegido em termos de fortificação militar,
do Doutor, assim chamada por ser habitação do pois só temos notícia da fortaleza de S. Jorge na
Dr. Pedro Berenguer de Leminhana [...]” (NO- vila, em 1688. Além disso, em 1570, organizou
RONHA, 1996, 211‑212). ‑se as companhias das ordenanças, surgindo
Como resultado das devassas realizadas, entre a Calheta como um distrito com duas compa-
1794 e 1795, pela Diocese ao concelho, temos nhias. Para o período de 1627 a 1700, registam
disponível um registo da população. Assim, ‑se 30 destas companhias distribuídas pela vila,
para o Arco da Calheta temos, em 1795, a refe- Ponta do Pargo, Paul do Mar, Lombo da Estrela,
rência a 1977 residentes, sendo 195 menores. Lombo de Atouguia, Lombo da Azenha e Serra
Para o Estreito, em 1794, temos 1678 mora- de Água, Jardim do Mar, Fajã da Ovelha e Estrei-
dores, sendo 91 menores. Na Fajã da Ovelha, to da Calheta. Para 1688, no distrito da Calheta,
em 1794, eram 1502 os moradores, sendo 125 o serviço de defesa das ordenanças apresentava
menores. Em 1794, na Ponta do Pargo, temos ‑se com 13 capitães, 12 alferes, 24 sargentos e
1233 e 95 menores. Para os Prazeres, eram 523, 1531 soldados. Note‑se que depois, em 1818, o
com 35 menores. Paulo Dias de Almeida, na distrito de milícias da Calheta tinha 10 compa-
descrição que faz da Ilha em 1821, refere que nhias com 800 homens.
esta área era considerada o sétimo distrito mili- Vários documentos expressam a situação das
tar e tinha 12.658 habitantes e 2858 fogos. localidades do concelho em termos económi-
Em 1827, a Calheta encontrava-se dividida cos e populacionais, permitindo entender a sua
em dois julgados: da Calheta (Madalena do evolução. Sabemos, e.g., que a aluvião de 1803
Mar e Arco da Calheta) e Estreito da Calheta deixou a vila da Calheta muito arruinada, tendo
(Estreito, Paul do Mar, Prazeres e Fajã da Ove- sido arrasadas 30 casas, além do forte. No refe-
lha), com 11.779 habitantes. Para o período de rido documento de 1817, Paulo Dias de Almei-
1835 a 1850, nota‑se um movimento crescente da faz‑nos uma descrição do arquipélago e de
708 ¬ C alheta
alguns aspetos em termos militares. A partir A vila anicha‑se na margem da ribeira, atuan-
daqui, sabemos do estado da fortificação, bem do como porta de entrada e de saída para a
como do estado dos caminhos e da dificulda- Ilha e para o mundo. Aí estava assente o poder
de de comunicação entre as freguesias. Rela- municipal, como o posto alfandegário de con-
tivamente ao Arco da Calheta, apenas assinala trolo do escoamento do açúcar, daí a concen-
como favorável o bom vinho, que se produzia tração dos engenhos nas margens das ribeiras.
em quantidade. Quanto ao Jardim e Paul do Em 1599, o madeirense Manuel Constantino
Mar, diz que são evidentes as dificuldades de refere que “é a Calheta a maior das vilas [de-
circulação e de acercar por mar. Já relativamen- verá querer dizer todo o município] da Ma-
te à Ponta do Pargo, destaca as suas riquezas deira, quer pelo grande número de cidadãos e
agrícolas. de edifícios, quer pelos núcleos de população”
(CONSTANTINO, 1930, 17).
A Calheta foi também terra de muita produ-
Economia ção de cereal, situação que perdura no tempo,
O lugar da Calheta dominou uma importan- pois, na déc. de 40 do séc. xix, a produção ron-
te área de canaviais, afirmando‑se, desde o dava 1186 moios de trigo e 211 dos outros ce-
séc. xv, como o embarcadouro para o escoa- reais. Todavia, no Arco da Calheta, encontra-
mento do açúcar. Daqui resultou a sua valoriza- mos terras mais produtivas, nomeadamente a
ção em detrimento do alto – a Estrela –, onde Casa de João França, com 120 arrobas de açú-
João Gonçalves Zarco, o primeiro donatário, car, 3 moios de trigo e 3 pipas de vinho.
havia feito doações de terras importantes aos Por seu turno, a atividade em torno da pro-
filhos, João Gonçalves da Câmara e D. Bea- dução de gado assumia uma importância fun-
triz. Em 1502, o lugar foi elevado à categoria damental no concelho, dominado por uma im-
de vila, integrando, no seu perímetro, os mais portante área de pastos. Assinale‑se o planalto
importantes canaviais, pelo que, em termos ad- do Paul da Serra, partilhado com os municí-
ministrativos, se cria uma comarca ligada às co- pios de São Vicente, Ponta do Sol e Calheta,
branças fiscais. cujo usufruto deu azo a motins nas três vilas,
em 1755. Ainda em 1884, os proprietários da
Calheta referem que o trigo que os do Seixal
semeavam no Fanal lhes pertencia.
As ovelhas adquirem, neste contexto, impor-
tância, graças à existência de pastos e à utili-
zação da lã. Em 1858, o concelho tem lojas de
distribuição e venda de tecidos, nomeadamen-
te Mr. W. Hayward, na Ponta do Pargo, e Mes-
srs Smith e W. Hayward, nos Prazeres. A par
disso, destaca‑se a produção de panos no con-
celho, com matéria‑prima local. Para além da
cultura do linho, que era importante, existe
em 1863 o registo de 1958 ovelhas que davam
a lã. O tecer do linho era muito importante no
abastecimento de tecidos, como provam os di-
versos teares existentes em 1863, sendo 78 de
linho no Estreito da Calheta, 36 na Calheta, 4
no Arco, 6 no Jardim do Mar, 19 nos Prazeres,
18 na Fajã da Ovelha e 4 no Paul do Mar.
Fig. 8 – Ovelhas da Quinta Pedagógica dos Prazeres
A comarca açucareira e município da Calhe-
(arquivo particular, 2018). ta foi, no decurso dos sécs. xv e xvi, a que teve
C alheta ¬ 709
Fig. 9 – Engenhos da Calheta, reformulação de c. 1940 e reabilitação de 2000 (fotografia de Bernardes Franco, 2010).
maior produção de açúcar, tendo sido também terras de canas, e grandes aposentos de casas e
terra de gente importante e com grandes liga- igreja e capelão. [...] Acima da Vila, pela terra
ções a João Gonçalves Zarco, capitão do Fun- dentro um quarto de légua, está o engenho
chal, bem como a gente próxima do mundo dos Cabrais e, perto dele, está outro do Dou-
açucareiro, como Leonel Rodrigues, mestre de tor da Calheta, físico, chamado mestre Gabriel.
engenho na ilha de La Palma e natural da Ma- E logo perto de uma légua da Calheta está a
deira, onde havia adquirido este estatuto em fazenda de João Rodrigues Castelhano, que
12 anos de trabalho na profissão. Em 1494, a se chamou assim por falar castelhano, sendo
maior safra situava‑se nas partes do fundo, en- ele genovês de nação, que é grossa fazenda de
globando as comarcas da Ribeira Brava, Ponta canas com seu engenho e capelão [...]. Da fa-
de Sol e Calheta, com 64 % da produção, en- zenda deste João Rodrigues Castelhano a uma
quanto o Funchal e Câmara de Lobos tinham légua está outro engenho de Diogo de França,
apenas 16 %. Uma análise em separado das di- que teve doze filhos, nobres e ricos, boa fazen-
versas comarcas mostra que a do Funchal do- da de canas e vinhas, e águas e frutas” (FRU-
mina a produção, com 33 %, seguindo‑se a Ca- TUOSO, 1979, 126).
lheta, com 27 %. Ao longo do tempo, persistiu, neste lugar, o
Terra de canaviais é, também, sinónimo de ofício de quintador do açúcar – que, no Jardim
terra de engenhos, que aparecem nas proximi- e no Paul do Mar, pertenceu a Mr. Smith –, a pro-
dades das ribeiras, fundamentalmente junto à var a persistência da cultura. A cultura nunca
orla costeira. Na déc. de 80 do séc. xvi, a juris- desapareceu deste concelho, de tal modo que,
dição da Calheta tinha, segundo Gaspar Fru- a partir de meados do séc. xix, as planícies que
tuoso, 10 engenhos de açúcar. Destes, o autor nos sécs. xv e xvi haviam sido locais onde me-
faz referência detalhada aos seguintes: “[A] dravam os canaviais voltaram a recebê‑los com
Um quarto de légua desta Lombada de Gonça- igual pujança. Com o retorno da cultura, na se-
lo Fernandes está outra, que se chama Arco, ou gunda metade do séc. xix, a Calheta voltou a
Lombada do Arco, que foi de João Fernandes, ser terra de canaviais. Assim, se em 1863 são re-
irmão de Gonçalo Fernandes, fazenda tam- ferenciados apenas dois engenhos, entre 1902 e
bém muito grossa, que tem engenho, e muitas 1909 eram já sete, subindo para oito em 1912,
710 ¬ C alheta
sendo de destacar que estes produziam igual- depois, com a Firma Lopes & Duarte. Deste en-
mente aguardente. Sabemos, assim, que a cana genho, apenas restou a parte da fornalha e da
‑de‑açúcar se divulgou em toda a vertente sul chaminé, integradas no jardim público da vila.
e que a Calheta foi uma das mais importantes O Hotel Saccharum ergueu‑se precisamente
áreas de produção nesse tempo, tendo preser- nas ruínas de um dos engenhos que surgiram
vado um importante nicho da sobrevivência da no séc. xix para sustentar uma nova fase da
cultura sacarina na Ilha. agricultura açucareira madeirense. Situa‑se no
O litoral da vila ganha importância com os litoral, numa das margens da ribeira da Serra
engenhos de água de Vicente Lopes (1894), de Água, tendo sido mandado construir em
que, em 1901, dão lugar a outros, a vapor, 1857 por Diogo de Ornelas Frazão, funcionan-
como o da firma Lopes & Duarte e, em 1908, do como fábrica de destilação de aguardente,
o de António Rodrigues Brás, de que resta- com um moinho de três cilindros e dois alam-
ram vestígios nos jardins da vila. Este engenho, biques. As despesas com a construção do edifí-
tendo surgido como fábrica de destilação de cio foram de 8000$000 réis, e a referida maqui-
aguardente, firmou sociedade, algum tempo naria do engenho de 6300$000.
O engenho que se manteve ativo na vila da
Calheta é herdeiro daquele a vapor que surgiu
em 1901. Nesse ano, o engenho já existente foi
alvo de uma profunda remodelação, com a ins-
talação de uma máquina a vapor para espre-
mer a cana, que veio substituir a que existia,
movida a água.
Relativamente à Calheta, deveremos ainda
salientar os engenhos de Luís Agostinho Hen-
riques, no Estreito da Calheta (1895), e de
Francisco João Vasconcelos, no Jardim do Mar
(1900). Ainda em 1901, surgiram novos enge-
nhos de aguardente no Estreito da Calheta,
um de D. Juliana Lopes Jardim e outro de Ti-
búrcio Justino Henriques & Ca. Finalmente,
em 1905, destaca‑se o engenho de José Gomes
Henriques, no Paul do Mar. De acordo com o
decreto de 1954, procedeu‑se à concentração
das diversas unidades industriais fora do Fun-
chal, em três empresas distintas: Sociedade de
Engenhos da Calheta Ltda., Companhia de En-
genhos de Machico Ltda. e Companhia de En-
genhos do Norte.
Património
O património resultante do açúcar não se con-
fina aos engenhos. Outras manifestações patri-
moniais perduraram no tempo, a começar pela
igreja matriz, construída no séc. xv. Entra‑se por
um portal em ogiva e, perante nós, depara‑se a
Fig. 10 – Portal da igreja matriz da Calheta, c. 1502
única nave coberta de um teto de alfarge, que
e reposição de 1609 (arquivo particular, 2000). atinge inegável beleza na capela‑mor, dominada
C alheta ¬ 711
a Portugal, seria indicado para precetor do do Funchal em relação à futura casa dos con-
jovem D. Sebastião, pelo geral Diogo Laines, des da Calheta. O conde Simão Gonçalves da
à Rainha D. Catarina, em carta de 4 de junho Câmara passará a intitular‑se como “do Con-
de 1559. Por sua indicação, o irmão mais novo, selho de El‑Rei Nosso Senhor, Capitão e Go-
P.e Martim Gonçalves Câmara (c. 1539‑1613), vernador da Justiça na ilha da Madeira e na ju-
que fora o primeiro reitor da Univ. de Coim- risdição do Funchal, vedor da sua fazenda em
bra, seria depois escrivão de puridade do novo toda a ilha e na do Porto Santo, Senhor das
rei, função semelhante à de chefe de gabinete lhas Desertas, etc.” (NORONHA, 1948, 113),
de governo na atualidade. vindo os seus sucessores a incluir também o
O quinto capitão do Funchal, Simão Gon- título de alcaide‑mor da fortaleza do Funchal,
çalves da Câmara (II) (1512‑1580), casou que em 1576 estaria ainda em reformulação.
com D. Isabel de Mendonça (c. 1512‑1561), O 1.º conde da Calheta só pontualmente
dama da corte da Rainha D. Catarina e que voltou à Madeira, fazendo‑o, em princípio,
tinha vindo com esta de Castela, num ca- por causa das alterações levadas a cabo pelos
samento de corte, a 4 de outubro de 1538, padres da Companhia na aquisição dos ter-
tendo sido acompanhado pelo infante renos para o futuro colégio, vindo a falecer
D. Luís e pelo arcebispo de Lisboa, demons- no Funchal. Os seus descendentes, como no-
trando a importância da família nessa cidade. bres da corte, não voltariam à Madeira. Al-
O Cap. Simão (II) fixou‑se definitivamente guns anos depois, em 1607, a situação conhe-
na corte em 1555, entregando o governo da ceu uma tentativa de alteração, provavelmente
capitania ao “meio‑tio” Francisco Gonçalves
da Câmara (c. 1510‑c. 1586). Com o saque
de corsários franceses ao Funchal, em 1566,
que assustou as cortes de Lisboa e de Madrid,
levando à intervenção de Filipe II junto do
seu embaixador em França, para que os cul-
pados fossem presos, a Madeira usufruiu de
uma particular atenção por parte da Coroa,
recebendo especialistas militares, regimentos
e verbas para o levar a cabo.
O futuro quinto capitão do Funchal tinha
já participado em várias expedições ao Norte
de África, sendo mesmo aclamado capitão
de Santa Cruz de Cabo de Guer, hoje Agadir,
em maio de 1533. Tendo acompanhado o Rei
D. Sebastião na sua primeira jornada a Áfri-
ca, em 1575, seria agraciado com o título de
conde da Calheta, algo por que os seus irmãos
jesuítas se teriam já batido junto do Rei. Aliás,
este, ao regressar de Marrocos e perante o fale-
cimento do seu precetor, o P.e Luís Gonçalves
da Câmara, chorou‑o sentidamente, como não
havia feito pela avó D. Catarina.
A atribuição do título de conde da Calhe-
ta, a 20 de agosto de 1576, e não o de conde
do Funchal, indica já uma centralização régia
Fig. 2 – Armas dos condes da Calheta e marqueses
por parte da Coroa portuguesa e, inclusiva- de Castelo Melhor, pátio do palácio da Rosa, Pereira Cão,
mente, a independência da câmara da cidade 1904-1906 (arquivo particular).
714 ¬ C alheta , condes da
procurando‑se explorar algum vazio de poder, casar e teve uma filha, D. Mariana de Lencastre
tendo a Câmara do Funchal, face à conjuntu- Vasconcelos e Câmara (c. 1610‑1698). Esta, por
ra económica então vivida, pedido o regresso à sua vez, casou com o primo João Rodrigues de
Ilha do Cap. Simão Gonçalves da Câmara (III) Vasconcelos e Sousa (1593‑1658), 2.º conde de
(1565‑c. 1630), 3.º conde da Calheta. O Con- Castelo Melhor, e usou o título de condessa da
selho de Portugal ainda se pronunciou favora- Calheta e de Castelo Melhor, e, depois de viúva,
velmente, mas advertiu que o conde não deve- como camareira‑mor da Rainha D. Sofia, usou
ria tornar ao Funchal enquanto aí estivessem ainda o título de marquesa de Castelo Melhor,
as tropas castelhanas do presídio de S. Louren- tendo sido uma mulher de grande prestígio,
ço, opinião que foi secundada pelo vice‑rei de que não recusou assumir pessoalmente a defe-
Portugal, D. Pedro de Castilho, bispo de Lei- sa da praça de Monção durante as campanhas
ria, que antes fora bispo de Angra. O assunto da Aclamação.
voltaria a ser abordado em 1630, mas os con- Ao longo dos sécs. xvii e xviii, a condessa e
des da Calheta não voltariam à Madeira e, pou- marquesa de Castelo Melhor manteve os pro-
cas décadas depois, o título passava à Casa dos ventos e as prorrogativas que herdara na capi-
condes e depois marqueses de Castelo Melhor. tania do Funchal, pelo que teve de se bater em
O 1.º conde da Calheta faleceu no Funchal, tribunal com a sua irmã, D. Inês de Noronha,
a 4 de março de 1580, e o filho faleceu em Al- marquesa de Nisa por casamento com D. Vasco
meirim, em julho do mesmo ano, deixando Luís da Gama, e depois com outros primos.
um herdeiro de poucos anos de idade, Simão A condessa nomeava o ouvidor, tinha o exclu-
Gonçalves da Câmara (IV) (1565‑c. 1630), sivo da venda de sal, o padroado do Conven-
3.º conde da Calheta, que, segundo consta, to de S.ta Clara e da mercearia de S.ta Catarina,
nunca usou o título. Este veio a contrair ma- etc., proveitos que passaram aos seus descen-
trimónio com D. Maria de Vasconcelos e Me- dentes até à extinção das capitanias, em 1766.
neses, filha do 1.º conde de Castelo Melhor, e Em meados do séc. xvii, os condes da Calheta
o seu herdeiro, João Gonçalves da Câmara (V) tinham levantado um importante palácio na en-
(1590‑1656), usou o título de 4.º conde da Ca- costa de Belém, em Lisboa, com uma impressio-
lheta. Depois de a sua primeira mulher ter fale- nante arcaria, que se manteve nos séculos pos-
cido de parto, o 4.º conde da Calheta voltou a teriores, debruçada sobre um espelho de água.
Fig. 3 – Antigo palácio dos condes da Calheta, c. 1650, onde posteriormente se instalaram serviços do Instituto de Investigação Científica
Tropical (arquivo particular).
C alif ó rnia ¬ 715
Mais tarde, este palácio veio a ser sucessivamen- Europa e chegou também à Madeira. E parece
te ocupado por serviços do Estado: nele decor- que todos seguiram, de forma cega, o apelo,
reram os interrogatórios do processo Távora, como o testemunha um poeta madeirense:
em 1758, e foram depois instalados os arqui- “Sim, apronta o teu baú,/E, sem perda de um
vos militares; desde 1906, os serviços do Jardim momento,/Lá da bela Califórnia/Vai primeiro
Museu Agrícola Tropical, sucessor do Museu ao Sacramento” (TEIXEIRA, 1848, II, 202).
Agrícola Colonial, e, posteriormente, o Centro Um dos primeiros madeirenses a serem atraí-
de Documentação e Informação do Instituto de dos por esta corrida ao ouro é John Pereira,
Investigação Científica Tropical. que percorreu mais de 25.000 km desde Nova
Orleães até Jamestown, onde criou um impé-
Bibliog.: manuscrita: AGS, Secretarias Provinciales, liv. 1476; ANTT, Corpo
Cronológico, pt. i, 103‑94; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. ii,
rio à custa das primeiras pepitas de ouro que
Funchal, Secretaria Regional de Educação, 1991; Id., História da Madeira, conseguiu, em 1849. Nesse mesmo ano, a no-
2.ª ed. rev. e atualizada, vol. i, Funchal, Secretaria Regional da Educação,
tícia do ouro californiano chegava à Madeira
1999; CENIVAL, Pierre de (trad. e anot.), Chronique de Santa‑Cruz du Cap de
Gué (Agadir), Paris, Paul Geuthner, 1934; FRUTUOSO, Gaspar, Saudades da e os jornais madeirenses faziam eco da desco-
Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1968; NORONHA,
berta, motivando a partida de muitos madei-
Henrique Henriques, Nobiliário Genealógico das Famílias Que Passarão a Viver
a Esta Ilha da Madeira depois do Seu Descobrimento, Que Foi no Ano de 1420, renses para tão longínquo destino. Todavia,
São Paulo, Revista Genealógica Brasileira, 1948; SILVA, Fernando Augusto a maior valorização deste espaço aconteceu a
da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
DRAC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, “A capitoa‑donatária”, Islenha, n.º 3, jul.‑dez. partir da déc. de 30 do séc. xx, com emigran-
1988, pp. 74‑90; Id., Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, tes da costa leste, nomeadamente de New Be-
Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 2000.
dford, apanhados pelos efeitos nefastos da de-
Rui Carita pressão norte‑americana. Foi o que sucedeu,
e.g., a Pedro Prudêncio da Costa. Já a partir do
Havai, uma diversidade de madeirenses tentou
Califórnia
a sorte na costa californiana, como foi o caso
É certo que foi um português, João Rodrigues de Manuel e Francisco dos Ramos, da Serra de
Cabrilho, a primeira pessoa a desembarcar na Água, que haviam saído em 1885 com destino
baía de San Diego, em 1542, ao serviço dos ao Havai.
reis de Espanha. Mais tarde, já em 1769, surgiu
o primeiro assentamento, mas foi a partir de
1848, com a descoberta do ouro, que propria-
mente se iniciou o povoamento do território e
que a Califórnia começou a ganhar importância
como destino de emigração europeia. A corrida
ao ouro naquela região aconteceu a partir de 24
de janeiro de 1848, quando este foi encontrado,
pela primeira vez, em Sutter’s Mill.
A presença de madeirenses nesta região
não resulta de uma ligação direta à Madeira,
o que só sucedeu muito mais tarde. As primei-
ras abordagens acontecem de forma indireta,
através doutras regiões norte‑americanas da
costa leste ou do Havai. Desta forma, no pri-
meiro momento, serão madeirenses já assentes
no continente americano que fazem a travessia
de costa a costa, e só depois chegam aqueles
que são atraídos pelos efeitos da notícia e que
levam à loucura da busca pelo ouro california- Fig. 1 – Homenagem ao Pescador do Paul do Mar, ateliê de
no. Esta notícia espalhou‑se rapidamente na António Mendanha, 2004 (fotografia de José Lemos Silva, 2010).
716 ¬ C alif ó rnia
A pesca e a indústria atraíram muitos destes como Estado da Califórnia, Panamá e África
madeirenses a New Bedford ainda no princí- do Sul, onde enriquecem. Os velhos e os novos
pio do séc. xix, e daí foram partindo para ou- é que se dedicam às campanhas do atum” (PE-
tros destinos considerados mais promissores. REIRA, 1989, II, 125).
De entre esta mobilidade interna dos madei- No séc. xix, surgem, na imprensa madeiren-
renses nos Estados Unidos, podemos assinalar se, referências às diligências efetuadas no sen-
uma diversidade de situações, de que também tido de providenciar o transporte de comboio
podemos dar alguns exemplos. Em 1890, José para aquele destino. Assim, no Diário de Notí-
Abreu Silva parte de Nova Iorque rumo à Ca- cias de 13 de janeiro de 1886, encontramos um
lifórnia. Já António Vieira de Freitas Jr. morre anúncio de viagem de embarcações de Cardiff
aos 81 anos, a 13 de maio de 1972, na Califór- para São Francisco, na Califórnia, mas, entre
nia, depois de passar muito tempo em New Be- 1903 e 1916, encontramos anúncios de barcos
dford, onde havia chegado em 1914. para a costa leste americana, possibilitando‑se
Neste contexto, é ainda de referir os pescado- o destino californiano por via terrestre. Toda-
res do Paul do Mar, que formaram um grupo via, nestes primeiros anos do séc. xx, é reduzi-
significativo de emigrantes nos Estados Uni- do o número de madeirenses que embarcam
dos. Muitos foram atraídos pela atividade do nesta aventura. De acordo com o registo de
mar, primeiro na costa leste e depois na costa passaportes para o período de 1875 a 1915, sa-
oeste. “São de lá os emigrantes, pescadores de bemos que só entre 1902 e 1913 foram feitos
grande nomeada, que se fixam na América do pedidos para viagens com destino à Califórnia.
Norte, sobretudo na Califórnia, e que formam Estão registados 13 casos, sendo 4 do Funchal,
uma comunidade muito abastada” (COUTI- 3 dos Canhas e 1 de cada uma das seguintes
NHO, 1962, 214). Eduardo Pereira atribui localidades fora do Funchal: Arco da Calheta,
mesmo o declínio do núcleo piscatório do Paul Estreito da Calheta, Machico, Ribeira Brava,
do Mar à emigração dos seus pescadores: “[a] Santa Cruz, Faial e Prazeres.
população deste já reduzido núcleo piscatório Por outro lado, a atestar a importância que
decresce devido à emigração dos seus mais vá- os madeirenses começam a ter nesta área,
lidos, corajosos e ativos pauleiros que deban- temos o enraizar de tradições de origem ma-
dam fascinadoramente para terras estranhas deirense, que se assume como fator de coesão
social e da sua valorização como comunidade.
Em 1913, um grupo de madeirenses radicados
em Oakland, na Califórnia, funda a Associação
Madeirense do Estado da Califórnia. Além do
mais, em 1918 e 1926, estes mesmos madeiren-
ses criam uma comissão para reunir dinheiro
para distribuir aos pobres na ilha da Madeira.
Em 1918, reuniram 420 escudos, que enviaram
para o Funchal.
Parece que esta comunidade madeirense de
Oakland adquiriu desusada importância nos
primeiros anos do séc. xx. Não há muita in-
formação sobre a forma como esta emigração
aconteceu, mas a imprensa madeirense atesta,
de forma clara, a pujança desta comunidade.
E parece existir uma ligação muito direta ao
Funchal, pois vimos muitas vezes, na impren-
Fig. 2 – Vitrina da Madeira no The Portuguese Historical Museum
sa funchalense, notícias sobre ela. Um exem-
de São José da Califórnia (arquivo particular, 2015). plo disso é o caso de Maria de Jesus Rebelo,
C alif ó rnia ¬ 717
O The Portuguese Historical Museum de São e os Estados Unidos da América (1776‑1911), Mem Martins, Europa‑América,
1991; MENDONÇA, Duarte, Da Madeira a New Bedford. Um Capítulo
José, na Califórnia, é um repositório e testemu- Ignorado da Emigração Portuguesa nos Estados Unidos da América, Funchal,
nho desta diáspora portuguesa para a costa ca- DRAC, 2007; PEREIRA, Eduardo C. N., Ilhas de Zargo, 2 vols., Funchal, Câmara
Municipal do Funchal, 1989; SILBERT, Albert, Uma Encruzilhada do Atlântico.
liforniana e faz referência a muitos insulares Madeira (1640‑1820), Funchal, CEHA, 1997; SILVA, Fernando Augusto da, e
e madeirenses que emigraram para os Estados MENESES, Carlos Augusto de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC,
1998; SOARES, João de Nóbrega, Um Ano na América, Funchal, Typ. da
Unidos da América. Gazeta da Madeira, 1868; TEIXEIRA, J. A. Monteiro, Obras Poéticas, Funchal,
Além disso, a primeira geminação da cidade Tip. de L. Vianna Junior, 1848‑1849; VASCONCELOS, Joaquim do Espírito
Santo Mota de, Epopeia do Emigrante Insular. Subsídios para a Sua História,
do Funchal foi com a de Oakland, no início na
Movimento para a Sua Consagração, Lisboa, ed. do Autor, 1959; VIEIRA,
déc. de 1970. Foi na sequência desse protocolo Alberto, “A emigração madeirense na segunda metade do século xix”, in
PEREIRA, Miriam Halpern et al. (coords.), Emigração/Imigração em Portugal,
que surgiram, no Funchal, as seguintes desig-
Lisboa, Fragmentos, 1993; Id., “O vinho Madeira. Valorização e importância
nações toponímicas: Trav. de Oakland, R. Ci- económico social através dos testemunhos da literatura e arte”, Douro.
dade de Oakland e impasse 1 da R. da Cidade Estudos e Documentos, vol. vii, n.º 13, 2002, pp. 155‑172; Id., A Vinha e o Vinho
na História da Madeira. Séculos XV a XX, Funchal, CEHA, 2003; WARRIN,
de Oakland. Donald, “Um madeirense no Eldorado. John Pereira de Jamestown, Califórnia”,
in Imigração e Emigração nas Ilhas, Funchal, CEHA, 2003, pp. 201‑214.
Bibliog.: ABREU, José Manuel de, George Day Welsh nas Relações entre a
Madeira e os Estados Unidos da América (Primeira Metade do Século XIX), † Alberto Vieira
Dissertação de Mestrado em Cultura e Literatura Anglo‑Americanas
apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2004;
ARQUIVO HISTÓRICO DA MADEIRA, Índices dos Passaportes. 1901‑1915,
Funchal, DRAC/Arquivo Regional da Madeira, 2005; CALDEIRA, Susana Cal, indústria da
Catarina de Oliveira e Castro, Da Madeira para o Hawaii. A Emigração e o
Contributo Cultural Madeirense, Funchal, CEHA, 2010; COUTINHO, Fernando O desenvolvimento da indústria da cal no arqui-
António de Sousa, Cruzeiro Atlântico, Lisboa, s.n., 1962; Estatutos do Conselho
Supremo da Associação Protectora União Madeirense do Estado da Califórnia, pélago da Madeira está naturalmente depen-
Organizada a 11 de Março de 1913, Incorporada a 16 de Março de 1914, dente da disponibilidade de calcário e de com-
Oakland, Hayward Review Press, 1925; FONTES, Manuel da Costa (ed.),
Romanceiro Português do Canadá, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1979;
bustível, dado que a calcinação do carbonato
Id., Romanceiro Português dos Estados Unidos, 2 vols., Coimbra, Universidade de cálcio em fornos implica grande dispêndio
de Coimbra, 1980‑1983; Id., e FONTES, Maria‑João Câmara, “Sete novos
romances da ilha da Madeira”, Elo, n.os 13‑14, 2007‑2008, pp. 117‑138;
de lenha e/ou carvão mineral. A matéria‑prima
MAGALHÃES, José Calvet de, História das Relações Diplomáticas de Portugal existe no ilhéu de Baixo, ou ilhéu da Cal, no
Fig. 1 – Forno do Barrinho durante a cozedura (fotografia de Dinis Gouveia Pacheco, 2011).
C al , indústria da ¬ 719
vendeu a sua quota a Blandy Brothers & Com- Todavia, face à enorme desvalorização monetá-
panhia, William Hinton & Sons, Andrade & Fi- ria do pós‑guerra, o dec. n.º 13.787, de 16 de
lhos, Pereira & Farinha, e António Joaquim de junho de 1927, atualizou para 15$00 o imposto
Freitas, os quais já possuíam a outra metade. da tonelada de cal e para 3$50 o da pedra cal-
A cartelização da indústria da cal resistiu ao cária, cuja cobrança passou a ser da responsa-
passar dos anos, o que justificou a formação, bilidade da Câmara Municipal do Porto Santo,
em 1913, de uma sociedade para a importação com reserva de 2 % para o Hospital da Santa
de cal de fabrico nacional ou estrangeiro. Casa da Misericórdia do Funchal. Estas taxas
A criação de fornos de cal no Campo de foram atualizadas pelo dec.‑lei n.º 42.925, de
Baixo, em Porto Santo, e as limitações impos- 16 de abril de 1960, passando a ser de 25$00
tas à sua laboração em espaço urbano altera- por tonelada para a cal e de 6$00 para a to-
ram a taxação sobre esta matéria‑prima. Além nelada de pedra calcária, a que acrescia uma
do imposto sobre a pedra de cal, criado no taxa intermédia sobre o carbonato de cálcio,
séc. xix, o decreto de 25 de agosto de 1919 no valor de 7$00 por tonelada.
impôs uma taxa de $00(3) por litro de cal im- Merece especial destaque a criação da Em-
portada. A Alfândega do Funchal procedeu à presa de Exploração de Cal do Porto Santo, em
cobrança deste novo imposto, cuja receita se 1920. Esta sociedade, com sede no Funchal,
destinou, em parte, à edilidade porto‑santense. detinha um forno de cal na serra de Fora, na
ilha do Porto Santo, e uma pedreira no ilhéu
de Baixo. Em 1921, surgiu a Empresa dos Ci-
mentos do Porto Santo, a qual agregava 37
quotas e dois requerimentos de patente para
“novo cimento artificial” e “calcário artificial
para o fabrico de cal” (ABM, Registos Nota-
riais, n.º 1499, fls. 36‑42v.). Poucos meses antes
da publicação do dec. n.º 13.787, a direção as-
sinou um contrato de arrendamento da fábrica
da Fontinha com Ralph Henry Dickson e Her-
man Koenig, válido por 10 anos.
O transporte de calcário do ilhéu de Baixo
e o de cal da ilha do Porto Santo estão docu-
mentados entre 1928 e 1974 (ABM, Câmara
Municipal do Porto Santo, n.os 246‑251, 2028
‑2031, 2193). Após a Segunda Guerra Mun-
dial, verificou‑se uma quebra acentuada tanto
no número de industriais envolvidos no negó-
cio do calcário como na tonelagem de calcário
transportado para a Madeira, por oposição ao
negócio da cal, cujo auge ocorreu no início da
déc. de 1960, coincidindo com a atualização da
taxação sobre estes bens. Apesar de se ter tor-
nado esparsa, encontramos referências à ex-
portação de cal do Porto Santo para a Madeira
até meados da década seguinte. Em ciclo opos-
to, a tonelagem de carbonato de cálcio dupli-
cou nas décadas de 60 e 70 do séc. xx.
Fig. 6 – Forno de cal da praia do Porto Santo, c. 1920,
A exploração do afloramento de sedimentos
Hotel Torre Praia (arquivo particular, 2016). marinhos carbonatados de baixa profundidade
C al , indústria da ¬ 723
maio 1944, p. 1; VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António Aragão de, Madeira. responsável pelos Serviços de Extensão Rural
Investigação Bibliográfica, vol. i, Funchal, Centro de Apoio de Ciências Históricas,
1981; digital: CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO INSTITUTO CULTURAL DE da recém‑criada Secretaria Regional da Agri-
PONTA DELGADA, Catálogo Bibliográfico, s.d.: http://www.icpd.pt/biblioteca/ cultura e Pescas, a 13 de abril de 1982. No ano
index.php?titulo=CAMACHO%2C+Augusto+da+Silva+Branco&sendNow=
(acedido a 4 dez. 2018); COSTA, João Carlos, “Sousa, Arthur Rodrigues”,
seguinte, a 27 de janeiro de 1983, foi nomeado
Aprender Madeira, 10 fev. 2017: http://aprenderamadeira.net/sousa‑arthur para o cargo de secretário regional da Agricul-
‑rodrigues‑de/ (acedido a 4 dez. 2018).
tura, por Alberto João Jardim.
Andreia Carol de Carvalho O Eng.º Baeta Camacho publicou vários ar-
tigos na imprensa regional e apresentou pales-
Camacho, Carlos Agapito tras na Estação Rádio Madeira sobre a produção
Ö Melo, Santiago de (pseud.) de laticínios. A 1 de novembro de 1951, reali-
zou para esta estação de rádio uma palestra in-
titulada “Breves considerações sobre o custo de
Camacho, Carlos José Teodoro produção do leite”, que viria a ser publicada no
Baeta Diário da Madeira, a 6 de novembro do mesmo
Nasceu na freguesia de São Martinho, na ilha ano. Publicou um folheto, em 1952, intitulado
da Madeira, a 2 de abril de 1925, sendo filho “Breves considerações sobre o custo de produ-
de Manuel de Avelino Camacho e de D. Ester ção do leite” e, em data que desconhecemos,
Albertina Henriques Baeta Camacho. Casou a um folheto intitulado “Algumas considerações
26 de abril de 1952 com D. Ester Conceição sobre a pasteurização das natas para o fabrico
Henriques. de manteiga”, da responsabilidade editorial da
Estudou no Liceu do Funchal e acabou o Junta de Laticínios da Madeira. O artigo “Al-
curso em 1942, ano em que entrou no Instituto guns Aspectos da Produção de Leite” foi publi-
Superior de Agronomia, em Lisboa, onde veio cado simultaneamente no Diário de Notícias e no
a concluir o curso de Engenharia Agrónoma, Jornal da Madeira, a 4 de maio de 1956. A 1 de
em novembro de 1947. Foi depois admitido a setembro de 1957, falava aos microfones da Es-
técnico de 3.ª classe, já na Região Autónoma da tação Rádio Madeira tecendo “Algumas consi-
Madeira, na Junta dos Laticínios da Madeira e, derações sobre o abastecimento de leite à cida-
em resultado destas funções, foi enviado à Escó- de.” No âmbito do programa desta estação de
cia, onde fez um estágio de dois meses na Cen- rádio, “A Rádio ao Serviço da Agricultura”, pro-
tral Leiteira de Edimburgo e visitou tudo o que feriu a palestra “Algumas considerações sobre a
tinha que ver com o Milk Marketing Board. preparação de estrumes”, que foi publicada no
Voltaria a Inglaterra, em 1955, para frequen- Diário de Notícias, a 21 de fevereiro de 1958. Pu-
tar um curso de Criação de Gado na Univ. de blicou, também, em data que desconhecemos,
Reading. A 23 de julho de 1961, foi nomeado mas pensa‑se que durante a déc. de 50, as se-
para desempenhar funções de delegado da guintes palestras: “O leite como alimento, sua
Direção‑Geral dos Serviços Agrícolas na Região composição, conservação e higiene”, “O leite
Autónoma da Madeira e vogal do Conselho Re- esterilizado” e “Algumas considerações sobre o
gional da Agricultura da XVI Região, e, passa- XIV Congresso Internacional de Leitaria”.
dos três dias, a 26 de julho, era indicado para O Eng.º Baeta Camacho faleceu no Funchal,
delegado da Junta Nacional das Frutas. a 23 de abril de 1996.
Em 1966, tornou‑se representante da Direção
‑Geral dos Serviços Agrícolas, cargo no âmbito Bibliog.: manuscrita: ABM, Conservatória do Registo Civil, Nascimentos,
liv. 607, 1925, p. 152; impressa: CLODE, Luís Peter, Registo Bio‑Bibliográfico
do qual se debruçou sobre a indústria de lati- de Madeirenses: Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983;
cínios da Madeira. Continuando a sua carreira “O Eng.º Baeta Camacho”, Diário de Notícias, Funchal, 25 jul. 1961, p. 1;
MARINO, Luís, Panorama Literário do Arquipélago da Madeira, vol. 2, texto
de engenheiro agrónomo, acabou por ser pro- não publicado, fl. 140; “Participação”, Diário de Notícias, Funchal, 24 abr.
movido ao lugar de engenheiro de 1.ª classe do 1996, p. 27; “Secretario regional da Agricultura”, Diário de Notícias, Funchal,
28 jan. 1983, p. 8.
quadro do Ministério da Agricultura e Pescas.
Já no quadro do Governo regional, tornou‑se Sara Alves
C amacho , J o ã o F rancisco ¬ 727
Camacho, Carlos Manuel Araújo O seu contacto com a fotografia virá a dar
‑se em Paris, para onde viajou com uma bolsa
Andrade atribuída pela ex‑Imperatriz do Brasil, D. Amé-
Nasceu na freguesia da Sé, no Funchal, a 15 lia Beauharnais Leuchtenberg de Bragança
de fevereiro de 1926. Desconhece‑se a data e o (1812‑1873), que, em 1852, chegara à Madeira
local do seu falecimento. procurando alívio para a doença da sua filha.
Filho do poeta e jornalista Carlos Agapito Ca- Provavelmente por o considerar promissor, de-
macho (de seu pseudónimo Santiago de Melo) cidiu patrocinar‑lhe formação em encaderna-
e de Maria Assunção Araújo Andrade Cama- ção. Manteve‑se em Paris entre 1852 e 1856.
cho, frequentou o Liceu do Funchal, seguindo De regresso à Madeira, voltou ao ofício da en-
depois as pisadas de seu pai e tornando‑se fun- cadernação, desta vez em estabelecimento pró-
cionário da filial do Banco Nacional Ultrama- prio, no n.º 10 da R. João de Tavira. Em 1860,
rino na cidade do Funchal. mudou‑se para o Lg. da Sé e, em 1862, abriu
Foi poeta de pendor modernista, coautor uma loja dedicada à venda de papel. Em 1863,
das obras Areópago (coletânea de cinco poetas iniciou, finalmente, a atividade de fotógrafo,
da nova geração, que até à data não se tinham instalando o seu primeiro estúdio na R. Con-
revelado publicamente, a não ser Jorge de selheiro José Silvestre Ribeiro, não sem antes
Freitas, um dos colaboradores da publicação ter voltado a Paris, onde permaneceu entre
Arquipélago – os restantes quatro autores da co- julho e setembro desse mesmo ano e onde
letânea são Albino Sequeira Nunes, Carlos Ma- adquiriu todo o material necessário ao início
nuel Camacho, Paulo de Sá Brás e Adolfo Bra- da nova atividade. Uns anos depois, mudou‑se
zão Vieira) e Poemas Bestiais, igualmente uma para a R. de São Francisco, continuando como
coletânea, na qual participa também Herberto
Helder, obra que foi alvo da censura. As duas
obras foram publicadas no Funchal. Publicou
ainda Alguns Poemas de Antecedência, também
no Funchal.
Constituem exemplo da sua arte poética os
poemas “Canto negro” e ”Intercepto”, que
Luís Marino regista em Musa Insular.
João Francisco Camacho foi, também, cola- português”. Um pouco adiante, acrescentava
borador de variados periódicos – Mala da Euro- que “Camacho vinha precedido da fama dos
pa (1896‑1897), o já referido O Occidente (1886 seus trabalhos e conquistou logo para o seu
‑1897), Branco e Negro (1856‑1898) e o Boletim ‘atelier’ a elite da sociedade Lisbonense. Mas
Photographico (1900‑1902) –, que frequente- não era só o artista apreciável, mas também o
mente publicavam gravuras feitas a partir de homem de fina educação, e perfeito cavalhei-
imagens recolhidas pelo fotógrafo. O Boletim ro que cativava pelo seu trato quantos se lhe
Photographico, começado a publicar‑se já de- aproximavam” (O Occidente, 20 nov. 1898, 263).
pois da morte do fotógrafo, ocorrida em 1898,
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivo Particular José de Sainz‑Trueva; impressa:
ainda o recorda em 1900, quando, no seu nú- Almanach Ilustrado do Occidente, 1887; Boletim Photographico, julho de 1900;
mero 7, de julho daquele ano, mostra a Torre Obras de Referência dos Museus da Madeira, catálogo, Lisboa/Funchal, Instituto
dos Museus e da Conservação/DRAC, 2010; O Occidente, 1 fev. 1880; 20
de Belém, da autoria de João Francisco, que
nov. 1898; SAINZ‑TRUEVA, José, “João Francisco Camacho. Notas para a sua
fez acompanhar de um texto que se lhe refe- fotobiografia”, Islenha, n.º 15, jan.‑jun. 1995, pp. 15‑28; digital: “João Francisco
re nestes termos: “Em tempos que a máquina Camacho”, Facebook – Museu de Fotografia da Madeira, Atelier Vicente’s, 18 ago.
2020: https://www.facebook.com/mfmvicentes/videos/jo%C3%A3o‑francisco
de mão não estava divulgada, foi feita pelo sau- ‑camacho/645301043055736/ (acedido a 16 abr. 2021); “João Francisco Camacho
doso mestre João F. Camacho esta fotografia (1833‑1898)”, Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, s.d.: https://
arquivo‑abm.madeira.gov.pt/details?id=671364 (acedido a 16 abr. 2021).
da Torre inexcedida depois disso. A câmara
que lhe serviu era por assim dizer um caixo- Cristina Trindade
te… mas as mãos que amparam esse pequeno
caixote eram umas mãos abençoadas” (Boletim
Photographico, jul. 1900, 105‑106).
Camacho, Manuel Francisco
A atestar a atividade intensa que desenvol- O P.e Manuel Francisco Camacho foi uma das
veu ficam as referências à sua participação em figuras marcantes do clero madeirense nos pri-
diversos certames, para além do de Viena: Ex- meiros 70 anos do séc. xx, pelo protagonismo
posição Universal de Filadélfia (1876); Exposi- que assumiu na clerezia e na vida regional.
ção Fotográfica na Casa Portuguesa, em Paris A sua presença na história da Diocese do Fun-
(1886); Exposição Nacional de Fotografia do chal foi marcante, como pároco, pregador, ad-
Porto (1886); Exposição Nacional das Indús- ministrador eclesiástico, político e homem em-
trias Fabris (1888); Exposição Internacional penhado em causas sociais, mas acima de tudo
de Paris (1892), na qual recebeu uma medalha pelo papel que assumiu entre 1924 e 1970,
de prata; e Exposição Insular e Colonial Portu- como vigário‑geral.
guesa (1894). Filho de José Militão Rodrigues e de Maria do
Irmão do também fotógrafo Augusto Maria Monte, nasceu a 2 de agosto de 1877, na fre-
Camacho (1838‑1927) – que, ainda que menos guesia do Curral das Freiras, onde o seu pai
conhecido, levou trabalhos seus a uma outra foi regedor durante muito tempo, e faleceu no
exposição universal, desta feita em Paris, em Funchal, a 14 de dezembro de 1970, com 93
1878, onde obteve uma medalha de prata, anos.
como consta nos cartões do seu estúdio, à Pç. Em 1897, entrou para o Seminário do Fun-
da Constituição, no Funchal, estúdio que pas- chal, ordenando‑se presbítero a 2 de outubro
sou depois para Manuel Olim Perestrelo (1854 de 1904. A sua atividade no serviço eclesiásti-
‑1929) –, João Francisco Camacho faleceu a 8 co paroquial teve início a 5 de março de 1904,
de novembro de 1898. A revista O Occidente, da como cura de Santa Maria Maior.
qual fora colaborador assíduo, referiu‑se‑lhe A 1 de outubro de 1912, num período parti-
em termos de grande admiração, lamentando cularmente difícil para a Igreja Católica, moti-
a morte de “um artista de raça”, que nascera na vado pela separação entre o Estado e a Igreja,
Madeira e cultivara a arte de Daguerre “com foi nomeado vice‑reitor do Seminário do Fun-
tanta inteligência e conhecimento que bem chal, manifestando nesse cargo elevada pru-
lhe poderemos chamar o primeiro fotógrafo dência, aliada a uma grande firmeza.
C amacho , M anuel F rancisco ¬ 731
colonos da primeira lombada na Ponta Del- Até ao princípio da déc. de 70, foi uma fi-
gada, assim como à inauguração da rede de gura incontornável da sociedade madeirense,
iluminação elétrica no Santo da Serra, a 23 de que marcou a história do arquipélago pela sua
novembro. presença e intervenção em múltiplas áreas.
A 19 de maio de 1957, esteve presente na bên- Para além da sua atividade religiosa, social e
ção da igreja paroquial do Porto da Cruz. A 19 cultural, haverá a registar ainda uma breve pas-
de junho, presidiu à missa campal do regresso sagem pela política, tendo sido nomeado para
da Índia da 1.ª Companhia Independente da vogal da comissão administrativa da Câmara
Madeira, expedicionária na Índia. Municipal de Câmara de Lobos, para o triénio
Com a morte do bispo D. António Manuel de 1905‑1907, cargo para o qual foi empossado
Pereira Ribeiro, a 22 de março de 1957, assu- a 2 de janeiro de 1905, mas cujo mandato não
miu, em nome do cabido da Sé do Funchal, as chegou a terminar.
funções de vigário capitular até à chegada do
Bibliog.: impressa: ALMEIDA, Fortunato de, História da Igreja em Portugal,
novo prelado, D. David de Sousa, a 8 de de- vol. iii, Porto/Lisboa, Livraria Civilização, 1970; Boletim da Junta Geral do
zembro de 1957. Havia estado em Lisboa a 10 Distrito Autónomo do Funchal, n.º 12, dez. 1957; CLODE, Luiz Peter, Registo
Bio‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do
de novembro, nas cerimónias de sagração de
Funchal, 1983; Id., e FERREIRA, Manuel Juvenal de Pita, Catalogo Ilustrado da
D. David de Sousa. A saudação da sua entra- Exposição de Ourivesaria do Museu de Arte Sacra. Realizada no Convento de
da na Diocese ficou a cargo do vigário capitu- Santa Clara no Funchal em 1951, Funchal, JGDAF, 1951; PEREIRA, Eduardo
C. N., Ilhas de Zargo, 2.ª ed., 2 vols., Funchal, Câmara Municipal do Funchal,
lar, que dava conta dos tempos difíceis que o 1957; PITA, Gabriel de Jesus, “A Igreja Católica na Madeira do Liberalismo
esperavam: “os tempos atuais reclamam pasto- ao Estado Novo”, Newsletter Ceha, n.º 43, 2012, pp. 18‑20; SILVA, Fernando
Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols.,
res que defendam a grei cristã e católica, com Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978; SILVA, Paulo
ardor e firmeza, com fé ardente, contra os Go- Sérgio Cunha da, D. António Manuel Pereira Ribeiro, Bispo do Funchal (1915
‑1957). Igreja e Sociedade nos Inícios do Século XX no Funchal, Dissertação
lias que ameaçam conspurcar, com ensinamen- de Mestrado em Teologia apresentada à Universidade Católica Portuguesa,
tos nefastos, a doutrina pura e santa do Evan- Lisboa, texto policopiado, 2012; SOUSA, Vitor Manuel Baeta de, D. Frei
David de Sousa, Bispo do Funchal, 1957‑1965. Igreja e Sociedade Madeirense
gelho” (Boletim..., 1957, 4). na Segunda Metade do Século XX, Dissertação de Mestrado em Teologia
Foi provedor da Santa Casa da Misericór- apresentada à Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, texto policopiado,
2015; digital: FREITAS, Manuel Pedro, “CAMACHO, Cónego Manuel
dia durante vários períodos de 1928 a 1935 e Francisco”, Câmara de Lobos. Dicionário Corográfico, s.d.: http://www.
de 1954 a 1958. A sua intervenção conduziu a concelhodecamaradelobos.com/dicionario/camacho_conego_manuel_
francisco.html (acedido a 27 dez. 2018).
que se procedesse à transferência do hospital
da Av. da Arriaga para os Marmeleiros, em no- † Alberto Vieira
vembro de 1930.
Pertenceu à comissão organizadora e execu-
tiva da Exposição de Ourivesaria Sacra, reali- Camacho, Rui
zada no Convento de S.ta Clara em setembro
‑outubro de 1951, sendo, depois, o presidente Alfredo Rui Craveiro Camacho nasceu no Fun-
da comissão responsável pela direção do Museu chal, na freguesia de São Pedro, a 19 de junho
Diocesano de Arte Sacra, cargo que exerceu de 1936 e faleceu em Lisboa a 5 de agosto de
desde a fundação do museu até à sua morte, 2014. Era filho de Alfredo Higino Camacho, jor-
em 1970. Foi, ainda, entre 1937 e 1960, tesou- nalista e administrador do Diário de Notícias, e de
reiro da Comissão de Assistência aos Indigen- Adelina Rosa Craveiro Camacho. Casou‑se com
tes da Madeira e assistente do clero junto da a escritora Helena Marques, a 18 de agosto de
Juventude Católica. 1958, na capela da Encarnação, tendo a boda
Aprimorou‑se a manusear a palavra escrita sido celebrada pelo P.e Agostinho Jardim Gon-
e oral, evidenciando‑se como pregador e co- çalves; dessa união nasceram quatro filhos.
laborador da imprensa católica funchalense, Faz no Liceu do Funchal o curso complemen-
tendo sido diretor e editor do Boletim Eclesiásti- tar de ciências, que concluiu em 1953, conti-
co do Funchal, entre 1 de março de 1912 e 1 de nuando os estudos superiores no Instituto Su-
junho de 1918. perior Técnico, em Lisboa, durante dois anos.
C amacho , S érgio V alentim ¬ 733
unidade simples, unidade – número e suas es- da Câmara, tenente de Caçadores 12, e de
pécies” (CÂMARA, 1904, índice), o modo de Maria Rita Jardim da Câmara, proprietários
ler os números inteiros, a numeração romana, em São Martinho, residentes ao sítio do Ribei-
o sistema monetário, as frações ordinárias e de- ro Seco.
cimais, o sistema métrico, as medidas lineares, Filho de militar, segue a mesma carreira, ini-
de superfície, valor, capacidade e massa. ciando aos 17 anos os estudos no Real Colé-
Homem esclarecido na história e apaixona- gio Militar, onde frequenta o curso da arma
do pela literatura, Alfredo Bettencourt da Câ- de Infantaria. Assenta praça no Regimento
mara era descrito por Alfredo de Freitas Bran- de Cavalaria n.º 2 d’el‑Rei, a 24 de julho de
co, visconde do Porto da Cruz, como sendo um 1896, onde permanece até 10 de novembro
homem “de grande cultura literária e […] um de 1899, período em que é promovido a al-
gramático distinto” (PORTO DA CRUZ, 1953, feres, tornando‑se, por decreto desta mesma
36). Exerceu a atividade de docência no ma- data, aspirante a oficial do Regimento de In-
gistério primário privado durante muitos anos, fantaria n.º 27. Aí, será professor do 2.º curso
tendo igualmente ensinado no Colégio Lisbo- das escolas regimentais de Infantaria por pe-
nense, no Funchal. ríodos entre 1900 e 1904.
Alfredo Bettencourt da Câmara faleceu a 26 É alferes quando se casa aos 24 anos, a 31
de janeiro de 1921, aos 63 anos, na sua residên- de outubro de 1903, com Joana Sultana Abu-
cia, na R. Imperatriz Dona Amélia, no Funchal, darham, nascida no Funchal, mas registada
vítima de congestão pulmonar. Por altura da com nacionalidade francesa no vice‑consulado
sua morte, a imprensa madeirense descreveu‑o de França desta cidade, como seu pai e tios.
como homem dedicado, “tendo exercido o seu O matrimónio realiza‑se na conservatória da
mister com notável proficiência e distinção” Administração do Concelho do Funchal e na
(“Os mortos”, DM, 27 jan. 1921, 2). sacristia da igreja de S. Pedro, tendo o facto de
a noiva professar o culto israelita exigido a dis-
Obras de Alfredo Bettencourt da Câmara: Nova Tabuada, Sistema Métrico
Decimal e Noções de Aritmética (1904); Gramática Portuguesa. Em harmonia pensa do impedimento mista relegionis do pre-
com a Reforma Ortográfica ultimamente Publicada (1912); Exercícios sobre a lado diocesano. A morte inesperada de Jacob
Conjugação dos Verbos Regulares e Irregulares I e II (1915).
Abudarham, pai da noiva, em setembro pode-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Conservatória do Registo Civil do Funchal,
Extrato de Registo de Óbito, liv. 1950, fl. 27v.; Ibid., Registos Paroquiais, Santa
rá ter acelerado o casamento, do qual vêm a
Maria Maior, liv. 2078, fls. 29‑29v.; impressa: CÂMARA, Alfredo Bettencourt nascer duas filhas.
da, Nova Tabuada, Sistema Métrico Decimal e Noções de Aritmética para Uso
das Escolas Primárias, 17.ª ed., s.l., Henrique A. Rodrigues & C.a, Lda, 1904; Id.,
Gramática Portuguesa. Em harmonia com a Reforma Ortográfica ultimamente
Publicada, Funchal, Henrique A. Rodrigues & C.ª, Lda, 1912; CLODE, Luiz
Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; “Os mortos”, Diário da Madeira, 27 jan. 1921, p. 2;
PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária
da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1953; “Registo civil”,
Diário da Madeira, 28 jan. 1921, p. 1; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional
de Turismo e Cultura, 1992; VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António Aragão
de, Madeira. Investigação Bibliográfica, vol. i, Funchal, Centro de Apoio de
Ciências Históricas, 1981.
Andreia Carol de Carvalho
Fernanda de Castro
É promovido a tenente por decreto de 1 de família, mas só a viria a praticar a tempo in-
dezembro do último ano referido. A 27 de teiro após aposentação militar. A concentração
julho de 1908, é colocado no Regimento de In- de esforços financeiros para a consolidação
fantaria n.º 27. Por decreto de 15 de novembro de empresas leva‑o a associar‑se, em fevereiro
de 1911, é promovido a capitão e, a 9 de dezem- de 1908, a Max Abecassis, casado com Mary
bro de 1912, passa ao Estado‑Maior de Infan- Abudarham, e a António Justino Henriques
taria, sendo encarregado da instrução militar de Freitas, constituindo a firma Henriques &
preparatória desta arma no distrito administra- Câmara & C.ª Ld.ª, com sede na rua dos Fer-
tivo do Funchal. Exerce o cargo de adjunto no reiros, n.º 115. A 9 de agosto de 1913, o casal
Comando Militar da Madeira a partir de 8 de Bettencourt da Câmara, através daquela firma,
maio de 1915 e é promovido a major em 1917, torna‑se parte interessada noutra sociedade
por decreto de 27 de agosto, sendo colocado comercial constituída nesta data, denominada
no regimento de Infantaria n.º 27. Passa à si- The Madeira Wine Association Limitada.
tuação de adido quando lhe é concedida licen- Tem o posto de major quando, a 14 junho
ça ilimitada por decreto de 27 de fevereiro de de 1919, na Assembleia Geral da Associação
1919 e ascende à patente de tenente‑coronel Comercial e Industrial do Funchal (ACIF),
por decreto de 18 de outubro de 1921. convocada para eleição de novos corpos ge-
Ao longo da carreira, recebe algumas conde- rentes, é eleito seu presidente, numa equipa
corações. Enquanto major, em março de 1918, da qual fazem parte John Ernest Blandy (vice
é proposto pelo comandante militar da Madei- ‑presidente), José da Costa (tesoureiro), José
ra para ser agraciado com a medalha de prata Quirino de Castro, Leonídio Casimiro Cunha
da classe de Comportamento Exemplar, rece- e Charles Blandy Cossart. Esta equipa conta
bida a 1 de junho desse ano. Conta ainda com ainda, segundo o Diário de Notícias do dia se-
a medalha de ouro comemorativa das campa- guinte, com os empresários Carlos José Zino,
nhas do Exército Português, com a legenda Carlos de Almeida Fernandes e Manuel Jorge
“Funchal‑Defesa Marítima 1916‑1918”, atribuí- Pinto Correia. A direção tem a duração de um
da por via da lei n.º 1123, de 4 de março de ano. A 28 de junho, após tornar‑se presiden-
1921, e com a medalha da Vitória nos termos te da ACIF, constitui, com John Frotingham
do dec. n.º 8993, de 17 de julho de 1923. Passa Welsh e Ricardo Justino Henriques de Freitas,
à situação de adido por lhe ter sido concedida a Sociedade de Bordados da Madeira, Ld.ª,
licença ilimitada em fevereiro de 1919. com sede na rua do Dr. Vieira, n.º 192, entran-
A par da sua carreira militar, é admitido, em do assim noutro ramo de negócios da praça
1901, como leitor no Gabinete de Leitura da As- madeirense. Em 1925 toma, por cedência, as
sociação Comercial do Funchal, aproximando quotas dos irmãos Justino Henriques, que se
‑se do mundo empresarial, meio onde se en- desligam da Madeira Wine.
volve por imperativos do falecimento de seu Com a instauração da Ditadura Militar, este
sogro. A 18 de junho de 1904, Meny Abu- tenente‑coronel aposentado será nomeado em
darham, último filho de Jacob e, à data, único 1926, por alvará de 14 de agosto do novo go-
representante da firma Viúva Abudarham & Fi- vernador civil do distrito, Francisco Luzignam
lhos após o falecimento do pai, realiza, num de Azevedo, para fazer parte da comissão ad-
cartório da cidade, um contrato de administra- ministrativa interina da Junta Geral do Distri-
ção com António Justino Henriques de Frei- to do Funchal, que também o indigita para a
tas e o casal Bettencourt da Câmara, a quem sua presidência. São vogais efetivos desta co-
entrega “a gerência e administração de todos missão Abel Magno de Vasconcelos (capitão),
os negócios” daquela firma (ABM, 3.º Cartório Alexandre da Cunha Telles, Samuel da Con-
Notarial do Funchal, liv. 1408, fl. 66). António ceição Vieira (primeiro‑tenente), Luís Portu-
Bettencourt, com 25 anos, estaria, aparente- gal Rodrigues dos Santos e respetivos substi-
mente, a iniciar‑se na atividade empresarial da tutos. Este foi um período muito instável para
C â mara , A nt ó nio de C arvalhal E smeraldo e ¬ 737
os corpos administrativos. O governador civil Bibliog.: manuscrita: ABM, 1.º Cartório Notarial do Funchal, livs. 3171 e 3223;
Ibid., 3.º Cartório Notarial do Funchal, livs. 1408 e 1429; Ibid., Governo Civil
apresenta o seu pedido de exoneração a 5 de do Funchal, liv. 83, Alvarás, 1919‑1927, fl. 175; Ibid., Junta Geral do Distrito
março de 1927; na sequência deste pedido, e Autónomo do Funchal, Secretaria, livs. 2264‑2265, Atas das Sessões da Comissão
Executiva/Administrativa, 1925‑1928; Ibid., Registos Paroquiais, São Pedro,
por solidariedade para com quem o nomea- Batismos, liv. 1383; Ibid., Registos Paroquiais, São Pedro, Casamentos, liv. 6821‑A;
ra, de quem era também amigo, António Be- AHM, DIV/3/7/1620; impressa: “Associação Comercial do Funchal”, Diário
de Notícias, Funchal, 15 jun. 1919, p. 2; “Associação Comercial. Reunião da
ttencourt da Câmara apresenta idêntico pedi- assembleia geral”, Diário de Notícias, Funchal, 11 jun. 1919, p. 1; CLODE, Luiz
do, no que é acompanhado por Alexandre da Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; “Junta Geral do Funchal”, Diário de Notícias,
Cunha Telles e Luís Portugal Rodrigues dos
Funchal, 8 mar. 1927, p. 1; MARQUES, A. H. de Oliveira, História de Portugal,
Santos. São exonerados por alvará datado de 7 Lisboa, Palas Editores, 1978; MELO, Luís de Sousa, Associação Comercial e
Industrial do Funchal. Esboço Histórico (1836‑1933), Funchal, Edicarte, 2002;
de março, do mesmo governador, que declara
SANTOS, Rui, “O cemitério israelita do Funchal”, Islenha, n.º 10, jan.‑jun. 1992,
terem os demissionários exercido o cargo “com pp. 125‑164; Id., “A família Abudarham no Funchal”, Islenha, n.º 12, jan.‑jun.
o mais acrisolado patriotismo, inexcedível zelo 1997, pp. 108‑140; “Tenente‑coronel António Bettencourt da Câmara”, Diário de
Notícias, Funchal, 1 set. 1927, p. 1; 31 ago. 1928, p. 1.
e comprovada competência” (ABM, Governo
Civil do Funchal, liv. 83, fl. 194v.). A represen- Maria de Fátima Vieira de Abreu
tação solicitando o regresso à Junta Geral deste
grupo, apresentada a 31 de março ao novo go- Câmara, António de Carvalhal
vernador civil e subscrita por inúmeras pessoas
Esmeraldo e
de todas as classes sociais da Ilha, não faz vol-
tar Bettencourt da Câmara à presidência da co- Nasceu na Madeira, cerca de 1662. Desconhece
missão administrativa da Junta Geral. ‑se parte do seu percurso de vida e aponta‑se
Vem a falecer poucos meses após a demis- como data do seu falecimento aproximada-
são deste cargo, no qual, segundo o Diário de mente 1731.
Notícias, este cidadão de “carácter impoluto” Muito pouco ou nada conhecida ficou a obra
e “finíssimo trato, lhano, afável” “nunca que- deste inspirado poeta seiscentista, com acérri-
brou a elegância mental e moral que o carac- mo interesse pelas letras. De ascendência fidal-
terizava, orientando toda a sua ação num alto ga, era filho de Simão Gonçalves da Câmara e
sentimento de justiça e de utilidade coletiva”
(DN, 1 set. 1927, 1). Um ano depois, o mesmo
periódico acrescentaria que este homem de
ação, de “inteligência lúcida e esclarecida […],
deu provas da rigidez do seu carácter e do seu
largo espírito de iniciativa pela forma como
honrou o lugar […] À sua benéfica ação ficou
devendo esta ilha valiosos e inestimáveis servi-
ços”, pelo que merece um “lugar de destaque
no alto comércio desta ilha, tendo dedicado
uma extraordinária atividade a favor do desen-
volvimento e expansão da indústria dos vinhos
da Madeira” e assumido um papel de muito re-
levo na promoção deste produto madeirense
no estrangeiro (DN, 31 ago. 1928, 1).
Ao longo da sua vida de casado, viveu, pri-
meiro, no beco de São Luís, freguesia de Santa
Luzia; em 1919, no Muro da Coelha, São
Roque; e, finalmente, na rua dos Ilhéus, n.º 29,
freguesia de São Pedro, residência onde veio a
falecer a 31 de agosto de 1927, com apenas 48 António de Carvalhal Esmeraldo e Câmara,
anos. Foi a sepultar no cemitério das Angústias. aguarela da Cithara de Aonio (BNP, cód. 11521).
738 ¬ C â mara , A nt ó nio de C arvalhal E smeraldo e
de Maria Correia, e recuperou o mesmo nome Congresso soberano,/A Lusitana, e Régia Ma-
do avô paterno, António de Carvalhal Esme- jestade.//Mas cale a minha Euterpe que se in-
raldo (casado com Jerónima Pereira). Parece fama/Em querer requintar as vossas glórias,/
ter crescido sem a presença do pai a partir de Por quem de balde sei quem vos aclama.//
1677, data em que aquele terá falecido. Da Real Academia entre as Histórias/Lá viverá
Desempenhou o cargo de vereador da Câma- eternal a vossa fama,/Por quem vão imortais
ra Municipal do Funchal (CMF) em 1727, cargo estas Memórias” (Id., Ibid.).
em que foi considerado indómito e temerário, e Com descendência dos Carvalhal, de Ponta
foi ainda fidalgo cavaleiro da Casa Real (por al- Delgada, conhecida como a corte do Norte,
vará de 1662). António Carvalhal, distinto mem- pelo facto de aí ter existido um grupo signifi-
bro dos Correias, era, por essa razão, homem cativo de famílias importantes com muitos in-
dos principais da terra, como se comprova pelo teresses fundiários, a sua ascendência remonta
desempenho do cargo de vereador e pela ocu- a Manuel Afonso Sanha, seu 5.º avô, escudeiro
pação de alguns lugares na Misericórdia do do infante D. Fernando, 2.º senhor da Ilha e
Funchal, na qual, à semelhança de muitos dos pai de D. Manuel I, que viera para a Madeira
seus colegas de vereação, foi escrivão de 1.ª con- com comissões da Fazenda do Infante, fazen-
dição em 1707, 1713, 1714, 1720 e informador do o seu assento naquela freguesia, no tempo
em 1716, circunstâncias reveladoras do prestí- de Afonso V. O seu 3.º avô, António Carvalhal,
gio social de que usufruía. Com efeito, a passa- “o das forças”, fora cavaleiro do hábito de Cris-
gem pela Misericórdia era muito significativa, to e fidalgo escudeiro, por mercê de D. Filipe I
sinónimo de elevado estatuto social, pois os 100 de Portugal e II de Castela, falecido em 1598.
irmãos de 1.ª condição que a constituíam eram Terá escolhido o pseudónimo Poeta Aónio,
recrutados entre pessoas da mais elevada estirpe segundo António Aragão, pela relação direta à
social, que precisavam de disponibilidade eco- região da Grécia antiga, a Aónia, região da Beó-
nómica e presencial para se poderem dedicar às cia, de inspiração das musas e dos deuses, tam-
funções que lhes estavam cometidas. bém cognome de Baco Hércules e Apolo; tal
Da amizade próxima com Henrique Noro- era o nome que os poetas atribuíam aos montes
nha, a quem pediu a diligência de lhe corri- Parnaso e Hélicon, onde teria vivido Áon.
gir a obra, resulta uma profunda dedicatória Julga‑se que nunca terá saído da Ilha, local
deste a António Carvalhal nas Memórias Secula- que só por si já o inspirava, recitando os seus
res e Eclesiásticas: “Meu amigo. Estas Memórias poemas provavelmente acompanhado do som
que por obrigação dos Estatutos, se devem de- da viola. Contrariamente à ideia de que teria
dicar a El Rei, buscam primeiro na vossa corre- estado preso numa fortaleza por motivos amo-
ção, aquela decorosa emenda, com que devem rosos, a julgar por elementos autobiográficos
aparecer em público reverentes; porque sain- indiciados pelo soneto 42 da sua obra magis-
do da minha mão informes, só assim consegui- tral, Cithara de Aonio, António Carvalhal, então
ram nas vossas, pela doutrina, o carácter que vereador da cidade do Funchal, conheceu o
por minhas desmerecem. E se por voto, se ofe- cárcere em 1727, por um período aproximado
recem nas aras de uma Majestade Augusta, por de três anos, por desentendimentos político
afetos se dedicam a uma amizade recíproca” ‑religiosos, mais concretamente por ter defron-
(NORONHA, 1996), retribuída por António tado o bispo, D. Fr. Manuel Coutinho, manifes-
Carvalhal, na página seguinte, com um soneto, tando, juntamente com seu sobrinho, António
que assina como A. A. Edo: “As Memórias da Correia Lomelino (procurador do concelho),
pátria Antiguidade/Contai Henrique e saiba o ideias contrárias às do prelado e conformes às
Tejo afano,/Se sois ArgolaLusa, Maropusula- da CMF no que respeitava às ordens e incum-
no,/Que Lípio também sois na nossa idade.// bências resultantes de um edital acerca da pro-
Para viver a par da eternidade/Grande assen- cissão do Corpo de Deus na cidade. Carvalhal
to vos deu se não me engano,/No seu Museu, e Lomelino nada mais fizeram do que acelerar
C â mara , A nt ó nio de C arvalhal E smeraldo e ¬ 739
P.e Félix Lucas de Carvalhal se encontrava re- Líricas, que eram com louvor aprovados, não
tirado num convento, conseguindo salvar‑se, só pelos naturais, mas ainda pelos melhores
e consigo o texto, como se tivesse feito pro- Poetas Portugueses, e Latinos, que passavam
messa a seu pai, por quem nutria uma enor- desta Corte p.a aquela Ilha. Igualmente foi in-
me admiração, como o afirma no prefácio, e clinado à poesia vulgar, e ainda que a natureza
que lhe confiou a tarefa de escriba, de emen- p.ª esta o considerava, com tudo, como igno-
dar e reformar a obra, tal a confiança e crença rava os primores, e preceitos da arte, p.ª com
na sua erudição e nos seus méritos literários. a melhor arte a exercitar, se lhe fez preciso
Esse manuscrito, no qual se contam 50 sonetos aprendê‑los, não pelas Artes métricas, ou ver-
caracteristicamente heroicos e elegíacos, cor- sificatórias […] mas sim pela Arte Poética de
rigidos, respondidos ou comentados, inicia‑se Aristóteles, de Horácio […] como também
com um longo prefácio (“Prefação – segundo na Poetic. Aristot. de Paulo Belini, de Antó-
o original: Ao Poema Erótico intitulado Citha- nio Minturo, de Moratori, e pelas de outros,
ra de Aonio”), pela mão de Félix Lucas de Car- que todos estes, com os magistrais, e mais fa-
valhal, com mais de 100 páginas, enlaçado por migerados poetas […] se instruía na lição
notas ou reformas aconselhadas, laterais e em deles, lhe ia está dispondo, e facilmente com
rodapé, que inclui a transcrição de citações Entusiasmo, porque assim como o estudo sem
de clássicos, como Ovídio, Vergílio, Horácio, engenho não faz o poeta, assim também não
Séneca, Plauto, comparando‑os com grandes o faz a natureza sem arte, […] porque para
poetas seus contemporâneos. Inclui poemas e conseguir está, por meio de estudo, muito
louvores de amigos dirigidos a António Carva- neste, p.ra com mais ligeiro curso alcançar a
lhal e, em nota de abertura, a dedicatória de arte por prémio” (BNP, Reservados, António
Carvalhal a Henrique Noronha Pina (Lício) e do Carvalhal Esmeraldo, Cythara, “Prefação”).
a Francisco de Vasconcelos Coutinho. Alude‑se, nesta extensa introdução, ao facto
No longo prefácio que Lucas de Carvalhal de que António de Carvalhal fora, por diver-
Esmeraldo dedica ao pai, apoiado nos autores sas vezes, e pelos seus melhores conselheiros
clássicos e confrontando‑o com os da época poéticos e amigos, aconselhado a publicar
que opinaram sobre a sua escrita, diz que “se estas suas composições, revestidas de talento
dá uma breve notícia de A. deste Poema, em e erudição. Contudo, recusava‑o com os sóli-
que, para o eximir da Rigorosa censura, se de- dos fundamentos de que certamente serviria
clara o motivo, que teve p.a fazer os Sonetos, mais de descrédito do que de abono aos seus
e Razões que o precisaram a ordenar delas o sérios e adiantados anos, porque nesta obra se
mesmo Poema, em que se faz juízo Apologé- publicariam somente as verduras da sua mo-
tico sobre as palavras […], por serem sem ne- cidade, do quanto nesta fizera, tão cheias de
cessidade de novo inventadas, em q. finalm.te puerilidade, certamente considerando‑as inca-
se pede ao sapientíssimo e erudito N. a Revi- pazes desse êxito, por poderem “ofender o pa-
são desta poética obra, e a emenda dos seus ladar com o seu amargo mel” (Id., Ibid.). Mais
defeitos, erros, e vícios, sobre os quais também adiante, surge‑nos a informação de que Lucas
superficialm.te se toca. António de Carvalhal de Carvalhal Esmeraldo ponderou alterar o tí-
Esmeraldo, Cavaleiro da Casa de Sua Majest., tulo da obra atribuído por seu pai, alvitrando
por alvará passado no ano de 1676, […] natu- outras possibilidades, fundamentalmente com
ral da Ilha da Madeira, a versar e instruir‑se nas receio dos censores. Contudo, a obra Chitara
Universidades, Colégios e nas Academias […], de Aonio manteve a designação original: Citha-
sabia as Línguas Francesa, Italiana, Castelha- ra de Aonio, Poema Erótico Que Compunha e Escre-
na e Portuguesa […] tinha bebido das fontes via Antonio de Carvalhal Esmeraldo, Fidalgo Ca-
da poesia as puras lições […] e os graves es- valleiro da Caza de Sua Magestade Fidellissima.
tilos das melhores Musas […], compunha António Carvalhal poderá ser recorda-
com elegância Poemas Heroicos, Elegíacas e do como o poeta aflito e perdido de amor
C â mara , A nt ó nio R osa da ¬ 741
platónico, de fina lira infeliz, mas de irrequieta Foi ordenado presbítero a 23 de setembro de
sensibilidade, autor de mui belos sonetos de ins- 1939, celebrando missa nova no dia seguinte e
piração clássica firme e elevada, bem ao tom de passando a ser conhecido como Rev. P.e Rosa.
uma Fenix Renascida ou Obras Poéticas dos Melhores Logo a partir desse ano, tornou‑se professor e
Engenhos Portugueses. Como ele próprio se auto- prefeito do Seminário Diocesano do Funchal.
caracteriza, na dedicatória da sua Cithara, “um O sacerdote diocesano foi, a partir da déc.
fino namorado, outro verso achado em penas, de 40, vigário no Caniço (Santa Cruz). Em
se de amor perdido” (BNP, Reservados, António 1954, é‑lhe dedicada uma publicação intitula-
do Carvalhal Esmeraldo, Cythara). O manuscri- da Versos de Homenagem ao Rev.º Padre António
to deste desconhecido e inspirado poeta ma- Rosa Câmara, da autoria de uma paroquiana
deirense, que, segundo Noronha, foi um bom anónima (M. J. C.), que, em 16 páginas e 112
poeta, em tudo constitui um marco nas mais an- quadras, relata a tristeza da perda do padre,
tigas poesias insulares barrocas, se não nas pri- que partiu para outra paróquia, o desejo do
meiras de que se tem conhecimento. seu regresso e as suas várias obras e ações na
paróquia, entre outras: alterações numa cape-
Obras de António de Carvalhal Esmeraldo e Câmara: Cithara de Aonio.
Poema Erótico Dividido em Seis Descantes.
la da Mãe de Deus (para o financiamento da
Bibliog.: manuscrita: BNP, Coleção Pombalina, Miscelâneas, n.º 126, fls. 152
qual se editava aquele livro), organização de
‑174; Ibid., reservados, cód. 11521, António do Carvalhal Esmeraldo, Cithara concertos na casa paroquial, construção de um
de Aonio. Poema Erótico Dividido em Seis Descantes; impressa: ARAGÃO,
escritório, compra de paramentos novos, reno-
António, “António de Carvalhal Esmeraldo, Aónio. Desconhecido e inspirado
poeta madeirense que viveu na época de Seiscentos”, Das Artes e da História da vação das sacristias e do sacrário de Jesus, cons-
Madeira, vol. 6, n.º 34, 1964, pp. 33‑35; BORGES, Ângela et al., Antologia Literária, trução de uma corredoura para o púlpito e de
Madeira. Sécs. XVII e XVIII, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1987;
BOTELHO, Sebastião José X., História Verdadeira dos Acontecimentos da Ilha da uma sede de reuniões, compra de um motor e
Madeira depois de Memorável Dia 28 de Janeiro, Escrita por Ordem Chronolgica de bancos para a igreja, construção de novos
por Sebastiaõ José Xavier Botelho e Comprovada com Testemunhos da Melhor Fé
dos Seus Empregos, Jerarquia e Independencia para Destruir Hum Libello Famoso confessionários, renovação dos passos da via
Impresso em Londres por Hum Cidadaõ Funchelense, Lisboa, Officina de António ‑sacra e das portas de guarda‑vento, compra de
Rodrigues Galhardo, 1821; BRAGA, Teófilo, História da Literatura Portuguesa.
Arcádia Lusitana, Lisboa, Imprensa Moderna, 1899; A Fenix Renascida ou uma figura de St. Antão (orago da freguesia) e
Obras Poeticas dos Melhores Engenhos Portuguezes, 2.ª impr. acrescentada por outra de Nossa Senhora de Fátima, renovações
Mathias Pereira da Sylva, Lisboa, Officina dos Herdeiros de Antonio Pedrozo
Galram, 1746; Gazeta de Lisboa, 21 jul. 1832; Gazeta de Lisboa Occidental, 12
nas figuras da Senhora do Livramento e de St.
ago. 1728; JARDIM, Maria Dina dos Ramos, A Santa Casa da Misericórdia do António, compra de uma figura de S. João de
Funchal. Século XVIII, Funchal, CEHA, 1996; MARINO, Luís, Musa Insular: Poetas
da Madeira, Funchal, Eco do Funchal, 1959; NORONHA, Henrique Henriques
Brito, colocação de novas árvores e de um as-
de, Nobiliário da Ilha da Madeira, São Paulo, Revista Genealógica Brasileira, sento à frente da igreja, de azulejos com repre-
1948; Id., Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da
Diocese do Funchal, na Ilha da Madeira, transcr. e notas Alberto Vieira, Funchal,
sentações do Coração de Maria e de Jesus Deus
CEHA, 1996; RIVARA, Joaquim Heliodoro da Cunha, Catálogo de Manuscriptos humanado perto da entrada da igreja e de azu-
da Biblioteca Pública Eborense, Que Comprehende a Noticia dos Codices e Papeis
lejos com a Imaculada Conceição nas fontes.
Relativos ás Cousas da America, Africa e Asia, t. i, Lisboa, Imprensa Nacional,
1850; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário A par do P.e Rosa, saíram também o P.e Cama-
Madeirense, 3 vols., Funchal, Typ. Esperança, 1965; TRINDADE, Ana Cristina cho e o P.e Alfredo.
Machado, Plantar Nova Christandade. Um Desígnio Jacobeu para a Diocese do
Funchal. O Episcopado de D. Frei Manuel Coutinho. 1725‑1741, Dissertação de Foi ainda pároco na Ribeira Brava (de 1956 a
Doutoramento em História apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, 1960, ano em que se dá a cisão da paróquia em
texto policopiado, 2011.
três, tendo como cura Joaquim Roque F. Dan-
Helena Paula F. S. Borges tas), em Santo António (Funchal), na Visitação
(Funchal), em São Pedro (a partir de 29 de se-
tembro de 1966), da Sagrada Família (Funchal)
Câmara, António Rosa da e em São José (desde 30 de setembro de 1969).
António Rosa da Câmara nasceu a 4 de Foi nomeado vogal da Comissão Diocesa-
setembro de 1915 na freguesia de São Pedro, na de Liturgia e Música Sacra a 6 de outubro
Funchal, filho de António Agostinho Câmara de 1967 e, no ano seguinte, a 13 de julho, foi
e de Guilhermina da Conceição Câmara. Mor- apontado como cónego honorário da Sé do
reu a 7 de fevereiro de 1982 no Funchal. Funchal. Mais tarde, mandou reconstruir a
742 ¬ C â mara de L obos
casa paroquial de S. Pedro, em mau estado de sensibilidade pela cultura popular, rural e re-
conservação. gional, já expressa na prosa jornalística.
António Rosa da Câmara faleceu aos 66 anos. É de mencionar ainda a sua tradução do
A missa de corpo presente realizou‑se na igreja drama A Casa da Boneca, de Henrik Ibsen, que
de S. Pedro e foi celebrada pelo vigário‑geral foi publicada na Revista Madeirense a 14 de abril
da Diocese em representação do bispo do Fun- de 1901.
chal, D. Francisco Santana, que se encontrava
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. xix e
gravemente doente e viria a morrer no mês se- xx, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983.
guinte. Atualmente, o seu corpo repousa no António Moniz
cemitério de N.ª Sr.ª das Angústias, em São
Martinho, Funchal.
Bibliog.: impressa: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses. Câmara de Lobos
Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; MATOS, António
Marinho, Ribeira Brava. Evangelização, Devoção e Património Cultural. Subsídios Câmara de Lobos apresenta uma ligação muito
para a História da Sua Paróquia, Funchal, Diocese do Funchal, 2003; M. J. C.,
Versos de Homenagem ao Rev.º Padre António Rosa Câmara, Ex‑Vigário da evidente com a família do primeiro capitão do
Freguesia do Caniço, em benefício das Obras da Capela da Mãe de Deus/Funchal, Funchal e com o início da ocupação do arqui-
Funchal, Tip. Comercial, 1954; RIBEIRO, João Adriano, Arciprestado de Ribeira
Brava e Ponta do Sol, org. Diocese do Funchal, Ribeira Brava/Ponta do Sol,
pélago. O nome da baía e do lugar terá sido
Arciprestado‑Fábrica Paroquial dos Canhas, 2012; digital: “História”, Seminário inspirado pela provável abundância de lobos
Diocesano do Funchal, s.d.: http://www.seminariofunchal.com/historia (acedido
a 26 out. 2018).
‑marinhos (Monachus monachus) que os nave-
gadores, acompanhantes de João Gonçalves
Catarina Encarnação Pereira
Zarco, teriam visto numa furna. O topónimo
foi, depois, integrado no nome de João Gon-
çalves Zarco (c. 1390‑1471), quando recebeu
Câmara, Cândido Álvaro
a carta de armas de 4 de julho de 1460, que
Nasceu no Porto Santo em 1867 e faleceu lhe atribuiu o apelido de “Câmara de Lobos”,
em Lisboa em 1945. Foi oficial do Exérci- embora depois os descendentes tenham usado
to, tendo ocupado os postos de tenente e ca- apenas o de “Câmara”.
pitão do Regimento de Infantaria 27. À data Diz o cronista Gaspar Frutuoso (1522-1591)
da sua morte, ocupava o posto de coronel. que “em uma rocha delgada à maneira de
Foi prosador, dedicando‑se ao estudo do fol- ponta baixa, que entra muito no mar; e entre
clore madeirense e de outros assuntos regio- esta rocha e outra fica um braço de mar em
nais, que divulgava através das suas colabora- remanso, onde a natureza fez uma grande
ções regulares no Diário da Madeira e no Diário lapa, ao modo de câmara de pedra e rocha
do Comércio. viva. Aqui se meteram com os batéis e acharam
Também foi poeta, tendo publicado diversos tantos lobos‑marinhos, que era um espanto; e
poemas em vários jornais madeirenses. Neste não foi pequeno refresco, e passatempo para
âmbito, foi ainda colaborador fixo da Revista a gente; porque mataram muitos deles, e tive-
Madeirense, um periódico semanal que, em 84 ram na matança muito prazer e festa. Pelo que
números vindos à estampa entre junho de 1901 o Cap. João Gonçalves deu nome a este reman-
e julho de 1902, visou dar a conhecer a litera- so Câmara de Lobos, donde tomou o apelido,
tura, o comércio, a agricultura e a indústria do […] e deste lugar tomou suas armas, que El
arquipélago. Publicou, na secção “Artes & Le- ‑Rei lhe deu, tornando ao reino” (FRUTUO-
tras”, os poemas “Rústica: mas quem?”, “Ruí- SO, 2008, 39‑40). Esta descrição levanta hoje
nas”, “O moinho velho”, “Santelmo”, “Joeiras”, dúvidas a alguns investigadores, pois não cons-
“Retábulo”, “Espírito gentil” e “A morte do cla- ta assim da inicial descrição de Alcoforado,
rim”. Na secção “Lira madeirense”, destaca “que foi a tudo presente”, e teria sido acrescen-
‑se o seu poema “A apanha da cana”. Nestes tada pelo Cón. Jerónimo Dias Leite (c. 1537‑c.
poemas, manifestou e reforçou a sua especial 1593), mais de 150 anos depois, após ter estado
C â mara de L obos ¬ 743
Fig. 1 – Vista geral da cidade de Câmara de Lobos (fotografia de Bernardes Franco, 2017).
como capelão em Arguim, onde, aí sim, eram A proximidade deste território ao Funchal
os lobos‑marinhos abundantes e se praticava a sempre impediu que Câmara de Lobos ganhas-
sua caça. se a importância devida em termos administra-
Para além deste episódio, deve‑se considerar tivos, mantendo‑se como uma periferia agríco-
que o território deste concelho foi marcado la distante do município funchalense até 1835,
pela imponência do cabo Girão, uma referên- altura em que assumiu autonomia municipal.
cia na paisagem madeirense. A designação, se- Em 1817, Paulo Dias de Almeida (c. 1778
gundo a tradição, resultou do facto de os na- ‑1832) referia que, embora sendo “um dos lu-
vegadores, no séc. xv, ao chegarem à Ilha na gares mais bem povoados e o mais próximo
primeira viagem de reconhecimento, terem
feito o retorno ou giro ao ponto de partida.
Um dos testemunhos mais importantes foi
dado, em 1854, por Isabella de França (1797
‑1880): “É impressionante olhar para tamanha
altura, com os penhascos vermelhos a brilhar a
luz, como se fossem os limites de um céu que
pendesse sobre outro mundo para lá do nosso.
Sucedia‑se uma longa fila de rochas sobrancei-
ras ao mar, de altitude variável e aqui e ali apla-
nadas em manchas de vinhedos e outras cul-
turas. Havia camponeses a trabalhar em sítios
onde parecia não existir espaço para assentar
um pé; dir‑se‑ia que estavam colados à rocha.
Na verdade, só os poderia comparar a mos-
cas deslocando‑se num espelho, e, no entanto,
moviam‑se cá e lá e andavam acima e abaixo
como se tivessem o poder de sustentar‑se no ar,
independentes de todas as leis da locomoção Fig. 2 – Cabo Girão, óleo de John Fredrick Eckersberg, 1852
humana” (FRANÇA, 1970, 90‑91). (Museu Quinta das Cruzes).
744 ¬ C â mara de L obos
da cidade, está inteiramente sem defesa e “fazer jurisdição sobre si”. O infante D. Fernan-
muito sujeito a ser saqueado por qualquer cor- do (1433‑1470), contudo, em sentença de 6 de
sário de pequena força” (CARITA, 1982, 60), agosto de 1468, determinou que o lugar de Câ-
provando a pouca atenção e a situação de aban- mara de Lobos deveria continuar a ser “termo
dono que persistiam em princípios do séc. xix. e jurisdição da vila do Funchal” (SILVA, 1995,
A criação do município, em 1835, porém, seria I, 661). A pretensão das populações de Câma-
um caminho para a sua valorização e rápida ra de Lobos a um estatuto concelhio só veio a
afirmação. ser concretizada pela portaria de 25 de maio
de 1835, que estabeleceu uma reestruturação
da estrutura municipal madeirense. Até então,
Concelho de Câmara de Lobos os funcionários com jurisdição para atuar na-
A separação do Funchal foi uma das mais an- quele território limitavam‑se a juízes pedâneos,
tigas reivindicações, mas tardou a acontecer. i.e., que julgavam de pé, e, depois, a um juiz e a
A sede da capitania era muito distante, o que um alcaide do lugar, documentados a partir de
prejudicava os interesses dos moradores deste princípios do séc. xvi.
lugar, sobretudo no que tocava à justiça, “que Foi com a alteração da situação política do
lhes é grande opressão e perdimento de suas Liberalismo, com reflexos no poder local, que
fazendas”, o que vem justificar a intenção de foram criados os novos municípios de Câmara
de Lobos, Santana e Porto Moniz. De acordo
com o Elucidário Madeirense (1978), a instalação
do concelho ocorreu a 16 de outubro de 1835,
mas as investigações de Manuel Pedro de Frei-
tas conduziram à retificação desta data, estabe-
lecendo, como fundador, o dia 4 de outubro,
data de registo da primeira ata das eleições e
de juramento dos oficiais eleitos. Esta sessão
decorreu na sacristia da igreja de S. Sebastião,
em Câmara de Lobos, sendo a mesa eleitoral
presidida por João Crisóstomo Urel, vereador
da Câmara do Funchal. Por força desta circuns-
tância, o dia do concelho, que, desde 1977, era
assinalado a 16 de outubro, passou a ser cele-
brado a 4 de outubro.
Com o tempo, a sua jurisdição territorial foi
sendo alterada. A 6 de maio de 1914, a fregue-
sia do Campanário passou para a jurisdição do
concelho da Ribeira Brava, entretanto criado.
A 15 de setembro de 1994, a sede da freguesia
do Estreito de Câmara de Lobos foi elevada à
categoria de vila, e, a 3 de agosto de 1996, a
sede do concelho passou à categoria de cida-
de. O município tinha sido constituído pelas
freguesias de Câmara de Lobos, Estreito de
Câmara de Lobos, Jardim da Serra, Curral das
Freiras e Quinta Grande, que tinham estado
integradas no Funchal.
Fig. 3 – Câmara de Lobos, litografia aguarelada de Andrew Picken,
A valorização económica do espaço e a cons-
1842 (Secretaria Regional de Turismo e Cultura). ciência política dessa elite favoreceram a nova
C â mara de L obos ¬ 745
Organização do povoamento
Nos primeiros tempos do povoamento, o fu-
turo capitão do Funchal deve ter considera-
do a hipótese de estabelecer aqui a sua pri-
meira morada, sendo, depois, preterida em
favor do Funchal. Diz o cronista Gaspar Fru-
tuoso: “Chegando a um alto sobre a Câmara
de Lobos, traçou ali onde se fizesse uma igre-
ja do Espírito Santo; passando mais abaixo a
umas serras muito altas, ali traçou outra igre-
ja da Vera Cruz. E todos estes altos tomou para
seus herdeiros”. A proximidade e o crescimen-
to do Funchal conduziram à dependência de
Câmara de Lobos, cuja zona urbanizada se ca-
racterizava, segundo o cronista, como peque-
na, tendo “duzentos fogos e uma só rua princi-
Fig. 4 – Armas da antiga vila de Câmara de Lobos, teto pal e muito comprida, e, no cabo dela, a igreja,
do antigo salão nobre do palácio da Encarnação da Junta Geral,
1921 (arquivo particular). muito boa e bem consertada” (FRUTUOSO,
1968, 87 e 122).
O processo de povoamento começou a partir
realidade e a afirmação do município, pelo
da baía e foi, com o tempo, subindo a encosta
que, de acordo com recolha de Manuel Pedro
e alargando‑se para poente. Assim, o lugar do
de Freitas (1999), a galeria de todos aqueles
Estreito de Câmara de Lobos deverá ter come-
que exerceram o cargo de presidente é maiori-
çado em 1440, com o eremitério dos Francisca-
tariamente originária das freguesias de Câma-
nos, tendo rapidamente ganhado importância,
ra de Lobos e de Estreito de Câmara de Lobos.
pois em 1460 já existia uma capelania, e a paró-
A tardia valorização da utilização dos ele-
quia terá sido criada entre 1515 e 1520.
mentos heráldicos resultou, em princípio,
A freguesia da Quinta Grande foi criada a 24
do pouco interesse que os mesmos assumiam
de julho de 1848, definindo‑se o seu território
em termos práticos no quotidiano. Embora se
por áreas desanexadas às freguesias de Câma-
tenha documentado um vago brasão de armas
ra de Lobos e do Campanário. A 8 de feverei-
do concelho desde 1921, num dos tetos pinta-
ro de 1820, havia sido elevada à categoria de
dos do antigo salão do palácio da Encarnação
curato. A designação “Quinta Grande” é ante-
da Junta Geral, no Funchal, só em 1940, por
rior aos Jesuítas, pois em 1501 a área era já re-
ocasião da Exposição do Mundo Português, se
ferida como a Quinta do Cabo Girão, sendo
sentiu a necessidade de dispor da heráldica do
propriedade de João Gonçalves da Câmara
concelho, que foi aprovada em sessão camará-
ria de 6 de setembro de 1944, e do estandarte,
em março de 1949. Sinal desse desinteresse é
a publicação do brasão de armas somente no
Diário do Governo de 4 de janeiro de 1957 (n.º 3,
série ii). A última alteração foi de 9 de janeiro
de 1997, por força da elevação do lugar de Câ-
mara de Lobos à categoria de cidade, surgindo
as quatro torres acasteladas. Estas armas apre-
sentam dois lobos‑marinhos, em memória do
primeiro encontro dos Portugueses com a fu-
tura Câmara de Lobos. Fig. 5 – Armas da cidade de Câmara de Lobos, 1957 e 1997.
746 ¬ C â mara de L obos
Fig. 6 – Qt. do Jardim da Serra, litografia inglesa aguarelada, c. 1850 (Casa-Museu Frederico de Freitas).
(c. 1414‑1501), filho de Zarco, que a passou ao A capela da Vera Cruz é atribuída à família
seu filho Manuel de Noronha. Sobre esta quin- dos capitães do Funchal. Mas, certamente, o
ta, refere o cronista: “Tem esta quinta boas ter- facto de toda a área ter sido propriedade dos
ras de canas e de trigo e centeio, mas vinhas Jesuítas, entre os sécs. xvi e xviii, não deve-
poucas, por ser a terra alta, ainda que ao longo rá ser alheio à perpetuação do seu nome de
do mar tem o mesmo Luís de Noronha uma “Quinta dos Jesuítas”. Esta foi‑lhes vendida a
fajã de grande pomar e vinhas de muito preço, 27 de abril de 1595, por Fernão Gonçalves da
e passatempo, que dá cada ano 40, 50 pipas de Câmara. Diz‑se que o sítio da quinta era onde
malvasias. E está a ribeira dos Melões, que pa- estava situada a casa e capela dos Jesuítas. To-
rece que os há naquela parte muitos e, sobretu- davia, em 1770, depois do confisco dos bens
do, estremados, que dá também muitas canas daqueles, passou ao domínio privado, por
e, em parte, algumas vinhas” (Id., Ibid., 123). venda em hasta pública.
C â mara de L obos ¬ 747
O Curral das Freiras foi buscar o nome ao da reforma de 24 de novembro de 1960: as qua-
facto de a propriedade ter integrado o dote tro paróquias anteriores de Câmara de Lobos,
de freiras da família Câmara, quando do seu orago de S. Sebastião (1430?); a do Estreito de
ingresso no recém‑fundado Convento de Câmara de Lobos, de Nossa Senhora da Graça
S.ta Clara. O sítio estava dedicado a pastagens (1509?); a do Curral das Freiras, de Nossa Se-
de gado, das quais as freiras do Convento pas- nhora do Livramento (17 de março de 1790); e
saram a tirar um elevado benefício em carne a da Quinta Grande, de Nossa Senhora dos Re-
e manteiga para o seu consumo diário. A tra- médios (24 de julho de 1848); e as novas cinco,
dição aponta que, em 1566, quando do assal- pela divisão de Câmara de Lobos em três paró-
to de B. de Montluc ao Funchal, as freiras se quias (Câmara de Lobos, Carmo e Santa Ce-
teriam escondido nesta sua quinta. Diz o cro- cília) e do Estreito de Câmara de Lobos em
nista Gaspar Frutuoso: “As freiras e o Cura- mais quatro (a antiga do Estreito de Câmara de
do, com alguns frades e o homem que as de- Lobos e as novas paróquias de Nossa Senhora
fendeu, enquanto isto do baluarte passou, da Encarnação; do Garachico, com invocação
saíram por entre os canaviais e se acolheram de Nossa Senhora do Bom Sucesso; e de São
e não pararam até o seu Curral, que dista bom Tiago). Quanto à paróquia da Quinta Grande,
pedaço da cidade, e, assim se foram, deixan- só seria alvo de alterações em termos de área
do tudo no mosteiro, sem salvar nenhum or- geográfica.
namento; salvo a custódia do Santíssimo Sa- Nos princípios do séc. xxi, o município era
cramento, que um padre comungou, e alguns constituído pelas freguesias civis administra-
cálices, que puderam levar nas mangas, tudo o tivas de Câmara de Lobos, Estreito de Câma-
mais foi roubado” (Id., Ibid., 345). As terras do ra de Lobos, Curral das Freiras, Quinta Gran-
Curral haviam sido doadas por João Gonçalves de e Jardim da Serra (5 de julho de 1996).
Zarco a João Ferreira, mas, em 1480, passaram,
por venda, para a posse do capitão-donatário
João Gonçalves da Câmara, que as entregou ao
Sociedade
Convento, como dote das filhas Elvira e Joana, O lugar de Câmara de Lobos começou o po-
dando assim início à posse por aquela comuni- voamento no tempo de João Gonçalves Zarco,
dade. Em termos de jurisdição paroquial, per- que ali distribuiu terras a alguns dos seus com-
tencia à freguesia de Santo António, mas, a 17 panheiros. Através dos livros de manifesto da
de março de 1790, assumiu o estatuto de paró- produção do vinho e da receita do subsídio li-
quia independente. terário, que recaía sobre o mesmo, é possível
O Jardim da Serra tem o seu nome tradicio- rastrear esta realidade e estabelecer uma ideia
nalmente ligado ao cônsul inglês Henry Veit- da elite fundiária. Recorde‑se que a área que
ch, que ali fez construir uma quinta com um vai do Funchal ao Campanário, que inclui a
jardim, que deslumbravam todos os que ali área de Câmara de Lobos, foi dominada por
passavam, embora o Diário de Notícias de 13 de terras de morgadio. Assim, num registo para
outubro de 1903 se limite a indicar que o to- 1819‑1834, tinham‑se estabelecido mais 12
pónimo decorre apenas do facto de ser “um morgados em Câmara de Lobos, a acrescentar
vale de montanhas no interior que mereceu aos preexistentes. Podemos destacar os mais
este nome por força da vegetação que o reves- importantes: do visconde de Torre Bela, de
te”. A freguesia só foi criada a 5 de julho de João de Carvalhal, de Aires de Ornelas e Vas-
1996, no local da paróquia de São Tiago, cria- concelos, de João da Câmara Leme, de José
da em 1961. Ferreira, de António Ferreira, de Carlos Vicen-
Em meados do séc. xx, por iniciativa de te, de Henrique Fernandes e de Fernando da
D. David de Sousa (1957‑1965), bispo da Dio- Câmara. Nestas terras, predominou o contrato
cese do Funchal, o arciprestado de Câmara de de colonia, sendo de assinalar que, em 1829, o
Lobos apresentou nove paróquias, resultantes número de senhorios era superior a 30, com
748 ¬ C â mara de L obos
especial realce para Pedro Santana, o visconde Vigário, Cura, quatro Beneficiados, Tesourei-
de Torre Bela, e João da Câmara. ro, e organista; compreende 390 fogos, com
O crescimento demográfico da área do con- 1820 almas […] Por cima deste lugar fica outra
celho foi atestado em diversos momentos por freguesia que chamam do Estreito de Câmara
múltiplos testemunhos, desde que Frutuoso a de Lobos, mais para o sertão; cuja paróquia é
descrevera como tendo 200 fogos. Em 1598, o da invocação de N.ª Sr.ª da Graça; tem um Vi-
“recenseamento dos fogos” diz que “no Lugar gário, e Cura; que administram os Sacramen-
de Câmara de Lobos há a igreja principal de tos a 1048 almas, em 288 casas dispersas; no
S. Sebastião e duas ermidas: N.ª Sr.ª da Con- seu distrito estão as ermidas de S. António, de
ceição, que foi a segunda igreja que nesta se N.ª Sr.ª da Encarnação, e do Socorro” (NORO-
fez, e a do Espírito Santo. Tem logo fora do NHA, 1996, 223‑224).
lugar um mosteiro de S. Bernardino, com 10 Paulo Dias de Almeida, em princípios do
a 12 religiosos. […]. Tem este lugar 134 fogos séc. xix, referiu o lugar de Câmara de Lobos
e 510 almas de sacramento […]. No Estrei- como “sendo este um dos lugares mais bem
to sobre Câmara de Lobos está a freguesia povoados e o mais próximo da cidade […].
de Nossa Senhora da Graça, que tem 97 fogos Compreende duas freguesias com 6550 habi-
e 404 pessoas de confissão” (CARITA, 1991, tantes, 1348 fogos, 1642 pipas de vinho e 92
235 e 239). moios de trigo e centeio” (CARITA, 1982, 60
Em 1722, Henrique Henriques de Noronha e 79).
(1667‑1730), natural deste lugar, descreveu
assim Câmara de Lobos: “No seu porto faz este
lugar uma baía, acompanhada por uma e outra
Economia e riqueza dos recursos
parte de rocha, com 170 passos de largo, a tiro Câmara de Lobos é um concelho que se di-
de mosquete pelo mar dentro, compõem‑se vide entre o mar e a terra. As populações ri-
de uma só, mas grande rua, que principia no beirinhas, aproveitando as condições da baía,
desembarcadoiro, onde está uma boa Igreja têm‑se dedicado à pesca, nomeadamente do
de N.ª Sr.ª da Conceição, e se termina na da peixe‑espada. É tradição do local a indústria
Paróquia da invocação de S. Sebastião, Igreja da secagem da gata, um peixe que vem com
colegiada hoje de moderno reedificada. Tem a captura do principal. No princípio, porém,
era um local agrícola, dizendo‑se mesmo que
ali se plantaram as primeiras videiras, a que
se seguiram os canaviais. A maior valorização
agrícola do território aconteceu, de forma par-
ticular, a partir de 1952, com a abertura da le-
vada do Norte, que possibilitou o desenvolvi-
mento de culturas de regadio. Daí que o ato
de inauguração da levada tivesse sido muito
celebrado pela população da Quinta Gran-
de, do Estreito e de Câmara de Lobos. Refere,
assim, Gaspar Frutuoso: “Tem mais dois enge-
nhos de açúcar, um, que foi de António Cor-
reia, e outro de Duarte Mendes, e muitas
canas e vinhas de boas malvasias, e muitas fru-
tas de toda sorte, e muita água”. E, encosta
acima, assinala “os pomares do Estreito, que
têm muita castanha e noz, e peros de toda
Fig. 7 – Convento de S. Bernardino depois das obras de
sorte muito doces, e vinhas e criações” (FRU-
reabilitação de 2014 a 2015 (arquivo particular). TUOSO, 1968, 120 e 122).
C â mara de L obos ¬ 749
de colonia, ocupadas com vinha, nos sítios da malvasia‑cândida. O senhor da Ilha preten-
Torre e da Quinta Grande. A partir de 1850, dia cultivar o vinho no novo espaço. Todavia,
João Joaquim Gonçalves Henriques (1836 nunca previu que havia de se tornar no mais
‑1895), com base nas propriedades da famí- afamado da Madeira, levando o seu nome
lia em Belém (Câmara de Lobos), instalou‑se aos quatro cantos do mundo. Em meados do
como partidista do vinho Madeira, fornecen- séc. xv, o veneziano Luís Cadamosto (1429
do as principais casas. Em 1913, surgiu a atual ‑1483) fazia fé nessa realidade. Aliás, em 1530,
empresa, resultado da fusão da Casa de Vinhos outro italiano, Giulio Landi (1498‑1579), pro-
da Madeira Lda., da Belém’s Madeira Lda., da clamava que o malvasia madeirense era reputa-
Carmo Vinhos Lda., da António Eduardo Hen- do melhor do que o vinho de cândida. A fama
riques Sucrs. Lda. e da António Filipe Vinhos persistiu, sendo o malvasia o mais considera-
Lda. Em 1960, foi a vez da Freitas Martins Cal- do de todos os vinhos da Ilha. A produção foi
deira & Cia. se juntar ao grupo. A firma esteve, sempre reduzida, mas a procura foi elevada.
no princípio do séc. xxi, nas mãos dos sócios Em 1757, a produção foi de apenas 50 pipas,
A. N. Jardim, Peter Cossart e Nunes Pereira. muito disputadas pelos mercadores funcha-
Em 1992, iniciou um processo de moderniza- lenses. Ali, incluíam‑se algumas pipas da Fajã
ção, transferindo‑se do Funchal para o conce- dos Padres, zona que se confunde com o pró-
lho de Câmara de Lobos. Na vila, junto à ri- prio vinho. Os Jesuítas destacaram‑se na pro-
beira do Vigário, localizavam‑se as instalações dução de vinho, sendo acusados, em 1689, por
de vinhos, as lojas de vendas e o escritório, en-
quanto na Quinta Grande ficavam 10 ha de
vinha das diversas castas nobres e as instalações
de receção da uva, vinificação e estufa.
Na época das vindimas, o Estreito é um local
de grande atividade e animação. Neste contex-
to, assinala‑se a primeira festa das vindimas, ce-
lebrada em 1963, que voltou a ser realizada em
1979, com grande animação, tendo continui-
dade nos anos posteriores.
Os Jesuítas foram detentores de exten-
sas áreas de vinha no Funchal e na Quin-
ta Grande. No séc. xix, a Quinta Grande foi
uma das freguesias que não foi molestada
pelos efeitos nefastos da filoxera, persistin-
do na Fajã dos Padres, de acordo com a tradi-
ção, os bacelos da primitiva casta de malvasia.
A Companhia de Jesus está ligada à Fajã dos
Padres e ao malvasia, o mais celebrado dos vi-
nhos aí produzido.
A malvasia‑cândida manteve‑se, por muito
tempo, a rainha das videiras, quer no Medi-
terrâneo, quer no Atlântico, tendo, por as-
sento, e.g., a Madeira e as Canárias. Na Eu-
ropa do séc. xvi, este vinho foi celebrado
por poetas e dramaturgos, e.g., por William
Shakespeare (1564‑1616). A fama condicionou
a opção do infante D. Henrique (1394‑1460) Fig. 10 – Fajã dos Padres, 1970 (Willy Heinzelmann/Delegação de
de recomendar aos povoadores as videiras de Turismo da Madeira).
752 ¬ C â mara de L obos
Fig. 12 – Capela da Conceição e de Santelmo, Câmara de Lobos, litografia de Frank Dillon, 1850 (DILLON, 1990).
754 ¬ C â mara de L obos
desde os tempos dos Descobrimento, os prin- grandes ocasiões, como na desafronta de ofen-
cipais abastecedores da Madeira, especializa- sas que atingem alguns da sua classe, casam
dos, além disso, na pesca do espada” (LAMAS, sempre dentro do seu meio, têm o seu diale-
1956, 146). to, o seu código e o seu conceito de honra,
Por toda a Ilha, barqueiros e pescadores, que lhes dita as atitudes. Pena é o hábito de
desde o Caniçal ao Paul do Mar, estavam na esbanjar nas tabernas o ganho de dias e dias
mira dos oficiais do contrabando, pois eram de trabalho, de que resulta tanta miséria. Vêm
os interlocutores diretos e ativos deste proces- do mar com os membros lassos, o cérebro en-
so, do qual retiravam não negligenciáveis lu- torpecido, a boca a saber a sal; e a excitante
cros. Na primeira metade do séc. xix, era evi- poncha de aguardente aquece‑lhes o sangue e
dente o conluio dos pescadores de Câmara de dá‑lhes a sensação de se libertarem, momen-
Lobos com esta atividade, fazendo da baía do taneamente, dos barcos, das redes, das mare-
lugar um destacado centro de contrabando. sias e da penúria” (Id., Ibid., 149). No entanto,
Deste modo, em 1838, o diretor da Alfândega nem sempre a proximidade do mar e a presen-
apelava ao governador civil no sentido de se ça de uma comunidade de pescadores signifi-
estabelecer uma vigilância permanente nesta cavam uma disponibilidade de pescado, pelo
baía com oito praças. Na verdade, os terços au- que um pescador de Câmara de Lobos, certa-
xiliares e as tropas regulares de artilharia cum- mente atraído pelo melhor preço do pescado
priam também esta função de vigilância auxi- no mercado do Funchal, foi “condenado por
liar à Alfândega. não vender metade do seu peixe ao povo do
É manifesta a imagem que o lugar sempre lugar” (SILVA, 1995, 298).
transmitiu da sua ligação à pesca e ao mar. San- Nesta ligação ao mundo do mar e aos pes-
telmo, na versão portuguesa de S. Pedro Gon- cadores, aparece‑nos associada a poncha
çalves Telmo (1190‑1246), ou Corpo Santo, como a bebida favorita, a qual acabou por
sempre foi a invocação óbvia em momentos adquirir um estatuto de bebida regional, ser-
de tempestade. A ele se associavam as cente- vida em toda a Ilha. Segundo Maria Lamas,
lhas luminosas que apareciam nas extremida- em meados do séc. xx, o consumo e a fama
des dos mastros dos navios, provocadas pela da poncha já estavam difundidos: “Aguar-
eletricidade atmosférica. Este fenómeno ficou dente de cana, sumo de limão, água e açú-
conhecido como fogo de Santelmo. A devoção car, tudo batido com um pauzinho apropria-
ao santo ocorria com particular incidência no do que se faz rolar rapidamente, entre as
Funchal, junto ao cabo do Calhau, em Câmara palmas das mãos – é a receita da bebida cem
de Lobos e na Calheta. Nestes portos piscató- por cento madeirense a que chamam ‘pon-
rios, existiu uma capela da sua invocação, cujo cha’ ou ‘ponchinha’, um diminuitivo po-
culto era assegurado por uma confraria da res- pular de muito apreço. Bebem‑na especial-
ponsabilidade dos mesmos pescadores. Cada mente os pescadores, é certo, mas grande
barco deveria entregar uma cotização à confra- consumo lhe dão também pastores e outros
ria, para a possibilidade de auxílio em caso de homens da montanha – nem há nada me-
naufrágio ou de morte. Todo esse apoio passou lhor para dar calor e levantar o ânimo, so-
a estar, desde 1939, centralizado na Casa dos bretudo nas friagens do Inverno […]. A de
Pescadores. Câmara de Lobos tem fama – em nenhu-
O quotidiano do ilhéu e da vila marcou, ma outra freguesia há quem saiba prepará‑la
durante muitos anos, a imagem de Câmara como ali” (LAMAS, 1956, 149).
de Lobos. Maria Lamas descreve assim esse Outro recurso eram as madeiras e as lenhas,
mundo: “Lá do seu bairro, construído sobre que tinham uma utilização diversa no conce-
o Ilhéu e nas ruelas onde as suas habitações lho e no Funchal. Até meados do séc. xix, a
se comprimem, constituíam uma colónia fe- floresta foi um meio indispensável à sobre-
chada. Pouco expansivos, mas solidários nas vivência e às comodidades humanas, com o
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Fig. 14 – Altar-mor e altares colaterais da igreja matriz de S. Sebastião, reforma de c. 1700 e seguintes (fotografia de Bernardes Franco).
tanto ouro e tanta prata!” (FRANÇA, 1970, Nas diversas freguesias, criaram‑se institui-
197). Não refere esta atenta viajante a peque- ções culturais e desportivas que desenvolveram
na capela da Conceição, sede da Confraria de um papel relevante no concelho, editando re-
São Pedro Gonçalves Telmo, ainda com vestí- vistas, como a Girão, publicada a partir de 1988,
gios da inicial capela gótico‑renascentista, vi- e criando diversos grupos folclóricos ou festas
síveis no campanário, mas obra de completa regionais, como a da Castanha, no Curral das
reformulação barroca do início do séc. xviii, Freiras, e a da Cereja, no Jardim da Serra. No
uma das poucas campanhas de obras em edifí- centro da cidade, funciona uma biblioteca mu-
cios religiosos de que conhecemos documen- nicipal, com interessante atividade, e o Museu
talmente os autores do retábulo, neste caso a da Imprensa da Madeira.
oficina de talha de Manuel Câmara, pai e filho,
em 1723. As paredes encontram‑se revestidas
de telas com a vida de S. Telmo, umas dos fi-
Personalidades
nais do séc. xviii e da oficina de Nicolau Fer- De entre as várias personalidades deste conce-
reira, outras dos primeiros anos do séc. xx, de lho, para além das já mencionadas, destacam‑se,
Luís Bernes (1865‑1936). entre outros: Jaime César de Abreu (1899‑1967),
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Bibliog.: manuscrita: ABM, Juízo dos Resíduos e Capelas, Testamento de 30 de Funchal, CEHA, 1999; VERÍSSIMO, Nelson, O Convento de S. Bernardino em
Maio de 1571, fls. 499v.‑500v.; impressa: ARAGÃO, António, A Madeira Vista Câmara de Lobos. Elementos para a Sua História, Câmara de Lobos, Centro
por Estrangeiros, Funchal, DRAC, 1981; BOWDICH, Thomas Edward, Excursions Social e Paroquial de Santa Cecília, 2002; VIEIRA, Alberto, História do Vinho
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Voyage to Africa, London, G. B. Whittaker, 1825; CARITA, Rui, Paulo Dias de Axel, “O concelho de Câmara de Lobos entre 1850 e 1910 visto por alguns
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do Funchal, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1987; Id., História da
Madeira, vol. ii, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1991; CASTRO, José † Alberto Vieira
Manuel, Descobrimento da Ilha da Madeira Ano 1420. Epanáfora Amorosa: a
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Relação de Francisco Alcoforado aqui Incluída, Lisboa, Ler, 1975; CORVO, João
de Andrade, Memória sôbre a Mangra, ou Doença das Vinhas, nas Ilhas da
Câmara, Fernando Augusto
Madeira e Pôrto Santo, Lisboa, Academia Real das Ciências, 1855; COSTA,
António Carvalho, “Corografia insulana”, in NASCIMENTO, João Cabral Fernando Augusto Câmara nasceu na fregue-
do (org. e notas), Documentos para a História das Capitanias da Madeira, sia de Santa Luzia, a 11 de junho de 1880.
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Câmara Municipal do Funchal. Primeira Metade do Século XVI, Funchal, CEHA, Seus pais eram João Urbano Câmara e Luzia
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of Madeira, reed. de Paul Alexander Zino, Porto, Litografia Nacional, 1990;
DRIVER, John, Letters from Madeira in 1834, London, Longman & Co, 1838; sidência nos Açores. Foram seus irmãos João
FRANÇA, Isabella de, Jornal de Uma Visita à Madeira e a Portugal. 1853‑1954, Urbano Câmara Júnior e Luís Câmara, que
Funchal, JGDAF, 1970; FREITAS, Duarte Manuel Roque de, “Contributos para
uma transcrição integral do livro do tombo da igreja de Câmara de Lobos,
também se estabeleceram nos Açores. Era
1729, parte i”, Girão, vol. ii, n.º 4, 2007, pp. 29‑39; Id., “Contributos para tio‑avô do caricaturista açoriano Vítor Câma-
uma transcrição integral do livro do tombo da igreja de Câmara de Lobos,
1729, parte ii”, Girão, vol. ii, n.º 5, 2009, pp. 49‑88; FREITAS, Manuel Pedro
ra, que passou pela Madeira por alturas do
S., “O município de Câmara de Lobos. A sua criação e o exercício do poder Natal de 1947.
ao longo de 164 anos”, in O Município no Mundo Português, Funchal, CEHA,
1998, pp. 403‑414; Id., O Concelho de Câmara de Lobos e os Seus Presidentes
Augusto Câmara exerceu funções de alta res-
da Câmara (1835‑1999), Câmara de Lobos, Câmara Municipal de Câmara ponsabilidade na Direção das Obras Públicas
de Lobos, 1999; Id., “Município de Câmara de Lobos. Criação, instalação,
da Junta Geral do Distrito Autónomo do Fun-
armas e feriado”, Girão, n.º 1, 2.º sem. 2005, pp. 7‑24; FRUTUOSO, Gaspar,
As Saudades da Terra. História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas chal, demonstrando uma elevada aptidão para
e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Typ. Funchalense, o desenho. Era, com efeito, um exímio artis-
1873; Id., Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto
Cultural de Ponta Delgada, 1968; Id., As Saudades da Terra. História das Ilhas ta decorador e cenógrafo, tendo executado vá-
do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, Funchal, Empresa Municipal rios trabalhos para o Teatro Municipal e deixa-
Funchal 500 Anos, 2008; Girão, n.º 4, 1.º sem. 1990; GOMES, J. L. de Brito,
“Reçençeamento dos foguos almas fregresas, e mais igrejas que tem a ilha da do, embora dispersa, uma obra que atesta os
Madeira tirado pellos rois das confiçois, assi em geral como em particular”, seus talentos como desenhador.
Arquivo Histórico da Madeira, vol. ii, 1932, pp. 28‑35; GONÇALVES, João
Luís Rodrigues, Campanário. A Freguesia e Sua Gente, Campanário, Junta de Entusiasta da educação física, foi um dos
Freguesia do Campanário, 2004; LAMAS, Maria, Madeira. Maravilha Atlântica, mais antigos dirigentes do movimento des-
Funchal, Eco do Funchal, 1956; MENEZES, Sérvulo Drummond de, Uma Época
Administrativa da Madeira e Porto Santo, a contar do Dia 7 de Outubro de 1846,
portivo da Madeira. Entre 1932 e 1933, Fer-
3 vols., Funchal, Typ. Nacional, 1849‑1852; NORONHA, Henrique Henriques de, nando Augusto Câmara foi presidente do
Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do
Funchal, Funchal, CEHA, 1996; RIBEIRO, Ana Maria et al., “A pesca em Câmara
Club Sport Marítimo, que, em 2015, contava
de Lobos”, Xarabanda, n.º 4, 1993, pp. 8‑12; RIBEIRO, João, “Riqueza florestal com cerca de 24.000 sócios inscritos. Funda-
do concelho de Câmara de Lobos (antes da sua fundação)”, Girão, n.º 2, 1989,
pp. 62‑63; Id., “Indústria e manufactura no concelho de Câmara de Lobos
do a 20 de setembro de 1910, a sua principal
no séc. xix”, Girão, n.º 9, 1992, pp. 431‑435; Id., “As indústrias no concelho de modalidade é o futebol, apresentando igual-
Câmara de Lobos”, Girão, n.º 9, 1993; Id., “A actividade económica do concelho
mente as práticas do andebol, do automobi-
de Câmara de Lobos nos primórdios da sua fundação”, Girão, n.º 12, 1.º sem.
1994, pp. 31‑40; Id., A Pedra de Cantaria na Madeira, Funchal, Calcamar, 2003; lismo, do atletismo, do basquetebol, do fut-
SANTOS, Manuela, “Notas sobre a fundação do concelho de Câmara de sal, do hóquei em patins, da patinagem, do
Lobos”, Girão, n.º 11, 1988, pp. 8‑11; Id., “Notas sobre a freguesia do Estreito”,
Girão, n.º 14, 1990, pp. 131‑135; Id., e FREITAS, Graça, “Notas sobre a freguesia karaté, da natação, da pesca desportiva, do
de Câmara de Lobos”, Girão, n.º 5, 1990, pp. 177‑180; SARMENTO, Alberto tiro e do voleibol.
Artur, As Freguesias da Madeira, Funchal, Tip. do Diário de Noticias, 1932‑1953;
Id., Corografia Elementar do Arquipélago da Madeira, 2.ª ed., Funchal, s.n., 1936; Augusto Câmara foi também um grande im-
SILVA, Fernando Augusto da, Subsídios para a História da Diocese do Funchal. pulsionador do charadismo na Madeira e co-
1425‑1800, Funchal, s.n., 1946; Id., e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978; laborou em diversas revistas da especialida-
SILVA, José Manuel Azevedo e, A Madeira e a Construção do Mundo Atlântico de, quer em Portugal quer no estrangeiro.
(Séculos XV‑XVII), 2 vols., Funchal, CEHA, 1995; SOUSA, João de, “Curral das
Freiras”, Girão, n.º 5, 1990, pp. 222‑223; TRINDADE, Ana Cristina Machado,
Atentando na imprensa jornalística e em ou-
A Moral e o Pecado Público na Madeira na Segunda Metade do Século XVIII, tras publicações da Madeira e do continente,
C â mara , J aime de B arros ¬ 759
Projeto para uma montra na R. dos Ferreiros, desenho de Fernando Augusto Câmara, 18 de outubro de 1922
(fotografia de Teresa Vasconcelos, 2006).
verifica‑se que escreveu no Diário de Notícias, no Importa referir ainda que se dedicava ao es-
Almanaque de Lembranças Luso‑Brasileiro, no Al- tudo da filologia. Na verdade, na altura em que
manaque de Lembranças Madeirenses, no Almana- faleceu no Funchal, a 30 de junho de 1949,
que da Madeira, no Almanaque Ilustrado do Diário tinha em mãos a preparação de um dicionário
da Madeira, no Diário Popular, no Eco do Fun- de mitologia.
chal e noutros jornais do Funchal. Mais tarde,
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. xix e
dedicou a maior parte do seu tempo à leitura, xx, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; MARINO, Luís, Musa Insular:
isolando‑se entre os seus livros, consagrando Poetas da Madeira, Funchal, Eco do Funchal, 1959; PORTO DA CRUZ, Visconde
do, Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. iii, Funchal,
‑lhes a sua melhor atenção. Câmara Municipal do Funchal, 1949; VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António
Entusiasmou‑se com os primeiros Jogos Flo- Aragão de, Madeira. Investigação Bibliográfica, vol. i, Funchal, Centro de Apoio
de Ciências Históricas, 1981.
rais da Madeira e enviou para o concurso uma
composição dedicada a António Gomes, que António José Borges
também se dedicava às letras; publicou outros
poemas em jornais e revistas.
Luís Marino, na obra Musa Insular, destaca Câmara, Jaime de Barros
os poemas “Ilha dos Amores”, um soneto acrós-
tico no qual sobressai, lendo a primeira letra Nascido em São José, estado de Santa Catarina,
de cada verso ao longo do poema, a expres- no Brasil, a de 3 de julho de 1894, era filho do
são “perolado oceano”, e “Balada”, composto segundo matrimónio do escrivão de órfãos Joa-
por três sugestivas e expressivas estrofes (sex- quim Xavier de Oliveira Câmara com Anna de
tilhas), ambos com data de 1904 e publicados Carvalho Barros, sendo dado, pelos seus bió-
no Funchal. grafos brasileiros, como descendente direto,
760 ¬ C â mara , J aime de B arros
povo, destacando‑se, neste sentido, os Ensaios das Letras, 2007; GOUVEIA, Horácio Bento de, “Um poeta esquecido, Jaime
Câmara”, Diário de Notícias, 13 dez. 1964, pp. 3‑6; “Jayme Câmara”, Diário de
de Etnografia (1931), as crónicas De San Louren- Notícias, 25 dez. 1946, p. 8; MARINO, Luís, Musa Insular: Poetas da Madeira,
ço: Prosas do Estio e do Outono (1932) e Senho- Funchal, Eco do Funchal, 1969; PORTO DA CRUZ, Visconde do, “Das letras,
das sciencias e das artes”, Independência, n.º 3, 24 jun. 1928, p. 2; Id., Notas &
ra da Luz: Subsídios Etnográficos (1938), textos Comentários para a História Literária da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara
de teor etnográfico nos quais Jaime Câmara Municipal do Funchal, 1953; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos
Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional de
retratou o povo ilhéu. Nestas narrativas, per- Turismo e Cultura, 1998; VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António Aragão de,
correu diferentes lugares do arquipélago, Madeira. Investigação Bibliográfica, vol. ii, Funchal, DRAC/Centro de Apoio de
Ciências Históricas, 1984.
do campo à cidade, descrevendo paisagens e
dando a conhecer alguns costumes e tradições, Sílvia G. Gomes
como as comemorações dos santos populares
(Santo António, São João e São Pedro), entre
outros festejos e arraiais típicos, realizados em Câmara, João Agostinho Pereira
diferentes épocas do ano. Nos textos sobre a de Agrela e
vida na cidade, fez uma breve descrição de ruas
do Funchal, a origem dos seus nomes, os ser- Nasceu no Funchal, em março de 1777, e fa-
viços e os estabelecimentos comerciais ali exis- leceu na mesma cidade a 28 de fevereiro de
tentes, a vida intelectual, o futebol, o teatro e 1835. Seus pais eram João Agostinho Teles
o cinema, e demais aspetos da vida social e cul- de Meneses e Ana Francisca de Castelo Bran-
tural do meio urbano. Estes escritos permitem co e Câmara, casados a 26 de junho de 1776.
conhecer vivências da população da Madeira Não chegou a contrair matrimónio com Vi-
em épocas passadas e contribuem para preser- cência Teles de Meneses Esmeraldo, filha
var uma parte da identidade cultural madei- de Cristóvão Esmeraldo Teles e de Maria de
rense, firmando o nome do seu autor entre os Mendonça, uma vez que aquela faleceu na
intelectuais que trabalharam em prol da cultu- véspera do casamento, mas dela teve dois fi-
ra do arquipélago. lhos. Casou‑se por procuração com Quitéria
Na sua atividade jornalística, dirigiu de 1908 Francisca Esmeraldo da Câmara, falecida a
a 1910, com António Feliciano Rodrigues, os 25 de agosto de 1856 em Santa Cruz. Tive-
três primeiros volumes do Almanach de Lem- ram três filhos: Pedro Agostinho de Agrela
branças Madeirense, nos quais publicou poemas, e Câmara, Gaspar Agostinho Pereira de Me-
biografias, informações diversas sobre a Ilha e neses e Maria Antónia, que casou com José
textos de teor etnográfico. Colaborou na im- Cupertino da Câmara.
prensa madeirense, nomeadamente no Heral- Simpatizava com as ideias liberais, tendo
do da Madeira, no Diário de Notícias, no Diário sido, por este motivo, preso em 1825 e enviado
Popular e no Diário da Madeira. Na imprensa para Lisboa, onde permaneceu um ano na fra-
nacional, foi colaborador nas revistas Ilustração gata D. Pedro e outro ano na cadeia do Limoei-
Portuguesa, Renascença, Instituto e no Almanaque ro. Regressou à Madeira somente em 1834.
Bertrand. Exerceu a função de escrivão na Câmara
Foi agraciado com o grau de oficial da Ordem do Funchal e foi sócio efetivo da Sociedade
de Santiago da Espada pelo Estado português Funchalense dos Amigos das Ciências e das
e era sócio do Instituto de Coimbra. Artes. Possuía, com efeito, a mais importante
livraria que no seu tempo houve na ilha da
Obras de Jaime Câmara: Poema Antigo (1907); Almanach de Lembranças Madeira.
Madeirense (1908‑1910) (coautoria); Sátira (1910); Versos Humorísticos (1914);
Ao longo da vida, dedicou‑se aos estudos lite-
Júnia. Episódio de Tragédia (1918); Fructos (1920); Carta em Prosa (1921); Auto
dos Vilões (1923); Estela (1926); Poemêtos da Ilha. Insulares (1929); Ensaios de rários e históricos, muito em especial às inves-
Etnografia (1931); De San Lourenço. Prosas do Estio e do Outono (1932); Senhora tigações genealógicas, tendo sido um escritor
da Luz. Subsídios Etnográficos (1938).
muito estimado.
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e
Teve a iniciativa de, no princípio do séc. xix,
XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; Diário de Notícias, 1920‑1922;
FIGUEIREDO, Fernando et al., Crónica Madeirense (1900‑2006), Porto, Campo mandar extrair a cópia de Saudades da Terra
764 ¬ C â mara , J o ã o de B rito
Marta Caires
Câmara, Jorge da
A opção do Conselho de Portugal em Madrid,
após os cinco anos de governo de D. Manuel
Pereira Coutinho (c. 1550-c. 1635), recaiu em
D. Jorge da Câmara, a quem chamaram “o
Poeta” (NORONHA, 1996, 50), filho natural
de Rui Gonçalves da Câmara (c. 1520-c.1590),
capitão de Barcelor, de Ormuz e capitão-mor
do mar da Índia, onde falecera. Rui Gonçalves
era o quinto filho do Cap. João Gonçalves da
Câmara (1489-1536), irmão de Simão (1512-
1580), 1.º conde da Calheta, e dos padres Luís
Fig. 4 – Auto da Lenda (1943), de João de Brito Câmara. (1518-1575) e Martim (c. 1539-1613), e cunha-
do do Alm. D. Lopo de Azevedo, que se casara
com a sua irmã D. Isabel de Vilhena. O jovem
seus os problemas alheios, mas o mar é sem-
Jorge da Câmara acompanhou o pai à Índia, aí
pre um cerco. O ambiente, por muito que a
inquietude o dilate, asfixia a solidão” (CÂMA-
RA, 1967, 11)
João de Brito Câmara morreu a 26 de de-
zembro de 1967, no primeiro dia da oitava do
Natal, antes de ver o seu último livro publi-
cado. Na entrevista concedida ao Comércio do
Funchal e publicada um ano após a sua morte,
o poeta lamentava a morte, que sabia aproxi-
mar-se, dado o seu estado de saúde: “Eu gosta-
ria de viver alguns anos mais. Creio que para
o ano que vem já não verei estas árvores. Você
não conhece ainda esta obsessão de voltar aos
lugares que são nossos e que em breve estarão
já perdidos” (TEIXEIRA, 2002, 290). Morreu
aos 59 anos, na Madeira, e deixa escrito no
poema “Resquício” o seu último desejo: “Mais
por Beleza do que por Fama/Então – Se-
nhor! – só peço que reste ao menos/Um verso
só do meu rude canto!”
ganhando alguma notoriedade, e, com o seu Braga, D. Aleixo de Meneses (1559-1617), que
falecimento, veio para Portugal, onde a famí- parecia “dizer-lhes que não convém por agora
lia o deve ter acolhido e protegido, para pas- tratar desta matéria” (Id., Ibid.).
sar a ser tratado por D. Jorge, passar a usar as A corte de Lisboa, na saída de D. Manuel Pe-
armas dos Câmara – embora com uma diferen- reira e na passagem para o governo do bispo
ça: uma pequena cruz sobre a torre – e vir a ser D. Lourenço de Távora, em julho de 1614,
votado no Conselho de Estado ou no Conselho enviara uma alçada à Madeira, mas, peran-
de Portugal para governador da Madeira. te a situação encontrada pelo licenciado Ma-
A provisão de governador para D. Jorge da nuel Álvares Frausto, foi enviada nova alçada,
Câmara foi assinada a 18 de janeiro de 1614, desta vez acompanhada de forças militares e
mas a fixação do seu ordenado e o agenda- deslocando-se em transporte próprio. Veio
mento da sua menagem atrasaram a sua des- como presidente o doutor Gonçalo de Sousa,
locação para a Madeira. Entretanto, também “desembargador dos agravos”, acompanha-
a situação da justiça na Ilha se havia complica- do de alabardeiros, podendo sentenciar até
do, com as queixas da Câmara contra o gover- morte natural. Entre as várias indicações que
nador e vice-versa. O Gov. D. Manuel Pereira trazia, deveria saber das “entradas no mostei-
encontrava-se ligado à família dos Carvalhos, ro das freiras, mortes, resistências, tiradas de
provedores das obras reais, e devia ter um co- pistoletes, espingardas, cutiladas pelo rosto de
nhecimento muito apurado de gestão de obras que houvera aleijão, força feita a mulheres,
públicas, pelo que os conflitos com a Câmara roubos graves, traições e aleivosia, falsidades
do Funchal foram muitos. A edilidade funcha- de escrivães e juramentos falsos”, etc. Tinha
lense não entendia ou não queria entender os ainda como indicação sobre as devassas ante-
gastos do governador com as obras militares, riores: “Parecendo-vos que não estão bem tira-
estando em construção as fortalezas de S. João das, as queimareis” (ABM, RG, Tombo Velho,
do Pico e de Santiago, instituída a fragata de fls. 270-272).
patrulhamento dos mares do arquipélago, que Só depois da chegada desta alçada tomou
a Câmara conseguiu suspender, e a permanên- posse o Gov. D. Jorge da Câmara, porque tam-
cia no Funchal de um presídio castelhano. bém só a 4 de novembro tinha prestado mena-
Nesse quadro, com a saída pontual do Gov. gem do lugar. Tomou posse a 18 de dezembro
D. Manuel Pereira e a entrega do governo ao de 1614 e foi o primeiro a ver instituído o seu
bispo do Funchal D. Fr. Lourenço de Távo- ordenado em 600$000 réis anuais, por alvará
ra (1566-1629), sobrinho de D. Cristóvão de datado de 6 de setembro desse ano, quantitati-
Moura, já a Câmara deve ter pedido para Ma- vo que se manteve ao longo de todo o séc. xvii.
drid a saída do presídio. O governador, entre- D. Jorge da Câmara ficou à frente dos destinos
tanto, regressou ao Funchal, mas a 14 de julho da Ilha durante quatro anos, durante os quais
de 1614 conseguiu autorização para voltar ao tentou fazer frente aos problemas de defesa,
continente, tornando a entregar o governo ao mas, infelizmente, em relação ao Porto Santo,
bispo. A Câmara deve ter voltado a insistir para que aliás não dependiam diretamente dele,
Madrid, pois o despacho de D. Filipe II, do pa- com muito maus resultados.
lácio do Prado, a 18 de novembro de 1614, in- A tomada de posse do governo com um de-
forma que se murmurava na cidade contra o sembargador em serviço na Ilha levou a curto
presídio castelhano e que a Câmara escrevera prazo à incompatibilização das duas autorida-
ao vice-rei D. Pedro de Castilho (c. 1540-1615) des, queixando-se o governador disso a Ma-
para se tirar da Ilha “o presídio de soldados drid, por cartas de 8 de abril e 2 de maio de
espanhóis que nela há” (AGS, SP, liv. 1511, 1615. A primeira questão teve por base o pa-
fl. 225). O vice-rei enviara o pedido para Ma- gamento dos soldados do presídio, dado que
drid a 18 de julho, e em novembro o rei es- o desembargador Gonçalo de Sousa também
crevia ao seu sucessor, entretanto arcebispo de tinha vindo para a Ilha com forças próprias.
C â mara , J orge da ¬ 769
Alertou também o provedor da Fazenda, An- a aquisição de 50 moios de trigo, que, não ha-
tónio Gomes, para que se tomassem as devidas vendo dinheiro, foi adquirido fiado. No entan-
cautelas. De imediato, a Câmara deve ter escri- to, ao que se saiba, nada foi na altura comuni-
to ao rei a pedir aumento de verbas para fortifi- cado ao Porto Santo ou a Machico.
cação e defesa. A resposta veio com data de 15 Devido a esta situação, o governador já ul-
de maio desse ano, aplicando-se um reforço de timara algumas obras da fortificação e apro-
5000 cruzados para acabar a muralha ao longo veitou também para remeter à Câmara algu-
do mar e aplicar no resgate dos cativos. A verba mas contas antigas. Assim, na vereação de 8
foi recolhida através de finta no ano seguinte, de julho, apresentou-se na Câmara o ajudan-
por ordem do “governador, provedor da fazen- te do sargento-mor, Jácome Caldeira, com
da e procuradores dos vinte e quatro meste- um requerimento por escrito “em que pedia
res”, na ordem dos 15.000 cruzados, “dos quais aos ditos oficiais mandassem pagar as portas
se abatem da esmola do Rei para a fortificação, desta cidade, por quanto a tinha fortificado,
5.000 cruzados, para acabar o muro frente ao e feitas as ditas portas ficava a cidade fecha-
mar” (ABM, Registo Geral, t. 3, fls. 116v.-117). da e mais forte e segura para se defender e
Perante o volume de obras em curso e a ordem ofender ao inimigo, de que tinha novas ser
de se continuar esta muralha e, com certeza, se saído”. No entanto, acrescentava o requeri-
proceder ao seu encerramento, que era o forte mento: “assim por ter feito outras provisões,
de Santiago, perguntou-se ao rei se se devia in- que não só com o dinheiro da fortificação,
terromper as obras do forte do Pico, ao que mas antes de sua casa tinha muita despesa em
se respondeu que não. Assim, continuou-se serviço de Sua Majestade, pelo que não era
igualmente a fortaleza do Pico, que a partir de bastante o dinheiro aplicado à fortificação”.
julho passou a ter já oficialmente um tenente, Curiosamente, e ao contrário da atitude assu-
com acréscimo de ordenado para lenha, água mida com o anterior governador, D. Manuel
e azeite para a casa da guarda. Pereira, os vereadores “disseram que não so-
A corte de Lisboa enviou ainda uma provi- mente as ditas portas se pagariam do terço da
são régia para que livremente pudessem de- imposição que toca a este concelho”, como
sembarcar armas sem pagarem direitos e que “com suas fazendas e pessoas acudiriam ao
as pessoas em condições de comprá-las fossem que fosse serviço de Sua Majestade” (Id., Ibid.,
obrigadas a prover-se delas. No entanto, as re- fl. 29) e segurança da cidade e dos seus mora-
quisições feitas oficialmente não foram aten- dores, acrescente-se.
didas, conforme referido na mesma provisão: Como era de esperar, nos primeiros dias de
“por ora se escusam os mosquetes que pedis” agosto desse ano de 1617, o Porto Santo sofreu
(ABM, Câmara Municipal do Funchal, Verea- um terrível saque a que quase nada escapou.
ções, liv. 1320, fl. 29). Quanto à pólvora pedi- Apanhados de surpresa, os habitantes ainda es-
da, entendia-se que a que existia nas fortalezas boçaram uma vaga resistência, organizada pelo
era suficiente. O assunto adquiriu tal relevân- sargento-mor João de Viveiros, mas acabaram
cia que, na vereação geral de 22 de julho de por ser quase todos presos. Dos cerca de 900
1617, compareceu, além do governador, o capi- habitantes da ilha, terão escapado somente 18
tão do presídio e novo bispo da Diocese, D. Je- homens e 7 mulheres, escondidos nas fráguas e
rónimo Fernando (c. 1590‑1650). Na abertura faldas da serra. Tudo o mais foi queimado e es-
da sessão, “logo pelo dito Geral foi dito que ele tropiado pelos piratas argelinos. A história do
tivera duas cartas de Argel pelas quais era avisa- Porto Santo ficou para sempre ligada a este de-
do estarem para sair muitos navios que vinham sastre e às complexas negociações para recupe-
sobre esta ilha” (Id., Ibid., fl. 30v.). Novamente rar essa população. Na Genealogia de Henrique
se discutiu a necessidade de abastecer a forta- Henriques de Noronha, encontram-se ecos vá-
leza de S. Lourenço de trigo, para o caso de ser rios destes acontecimentos, que não pouparam
necessário recolher ali população. Assentou-se as principais famílias madeirenses, como Aires
C â mara , J orge da ¬ 771
sobre a vantagem de o Liceu Nacional do Fun- a ventura da esposa, o futuro do filhinho queri-
chal ser elevado à primeira categoria, já que, do”. José Bettencourt da Câmara era lembrado
deste modo, facilitava aos alunos madeirenses também como filho e esposo exemplar, e como
o ingresso no ensino superior, evitando que amigo que dava os conselhos mais prudentes,
estes se deslocassem ao continente para reali- as lições mais proveitosas e ensinamentos leais,
zar exames nos liceus de primeira categoria. em que todos reconheciam o valor e “lhe admi-
Em maio de 1863, iniciou a colaboração com ravam a nobreza da sua alma, a sinceridade do
o periódico literário Archivo Litterário, apresen- coração” (O Direito, 26 abr. 1875, 1).
tando uma coluna dedicada à história da Ma- O periódico A Voz do Povo refere que o ma-
deira intitulada “Ilha da Madeira, curiosidades logrado José Bettencourt da Câmara já se sen-
históricas, 1418 a 1580”. Esta rubrica teve um tira incomodado de saúde, acrescentando
total de nove capítulos, contendo apontamen- que o jovem nutria simpatias gerais e que era
tos e comentários breves sobre a história da um mancebo talentoso (A Voz do Povo, 23 out.
Ilha. 1875, 2). A gazeta O Popular anuncia a morte
José Bettencourt da Câmara foi redator e dire- de José Bettencourt da Câmara com um ar-
tor do periódico literário O Crespúsculo conjun- tigo assinado por Pinto Coelho e intitulado
tamente com Maurício Carlos de Castelbranco “À morte do meu amigo José Bettencourt da
Manoel. Este periódico, publicado pela primei- Câmara”, no qual, num triste adeus, ressal-
ra vez a 15 de fevereiro de 1865, foi herdeiro, va as características pessoais de “Bom amigo,
segundo o próprio José Bettencourt da Câmara, bom esposo, bom cidadão”, que conquistara
dos periódicos literários O Recreio e o Archivo Li- a afeição de todos com quem privava. Pinto
tterário, sendo seu propósito colmatar a falta de Coelho lembrava a humildade e o talento do
um jornal de literatura, já que os jornais políti- seu amigo como “conhecedor profundo do
cos abundavam na imprensa regional. O perió- pátrio idioma”, ficando conhecido pelo seu
dico contou com 12 números, tendo cessado a estilo, caracterizado pelo “vigor e amenidade
publicação a 31 de julho de 1865. da linguagem”, sem nunca ter sido arrastado
Segundo Fernando Augusto da Silva e o vis- para as lutas partidárias (O Popular, 27 out.
conde do Porto da Cruz, Bettencourt da Câ- 1975, 4).
mara dedicou-se a estudos de genealogia e he-
ráldica, contribuindo com algumas notas sobre Bibliog.: manuscrita: ABM, Liceu Nacional do Funchal, 468, n.º 51, fl. 30; Ibid.,
Registos Paroquiais, Óbitos, liv. 1347, n.º 61, fl. 16; impressa: Archivo Litterario, 6
estes assuntos para Saudades da Terra. Em 1974, maio 1863; 13 maio 1863; 27 maio 1863; 3 jun. 1863; 10 jun. 1863; 17 jun. 1863;
foi eleito sócio honorário da Associação Re- 3 jul. 1863; 10 jul. 1863; 22 jul. 1863; O Crepúsculo, 15 fev. 1865; 31 jun. 1865;
O Direito, 26 out. 1875; O Noticioso, 26 nov. 1863; O Popular, 27 out. 1975;
creio Académico.
PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária
José Bettencourt da Câmara morre, segundo da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1953; O Recreio, 26
nov. 1863; 28 jan. 1864; 13 jun. 1864; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
o registo de óbito, a 19 de outubro de 1875,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional
com 31 anos, em Câmara de Lobos, vindo de da Educação e Cultura, 1978; A Voz do Povo, 23 out. 1875.
viagem do Estreito da Calheta. Na altura da Carlos Barradas
sua morte, trabalhava na secretaria do Gover-
no Civil. A morte de José Bettencourt da Câ-
mara provocou uma onda de comoção, como
Câmara, José Manuel da
evidenciam alguns jornais da época. No pe-
riódico O Direito, a notícia do seu falecimento A escolha de um novo governador e capitão-
abre a primeira página com um texto intitula- -general para a Madeira, em 1800, recaiu sobre
do “Um túmulo”, que é um lamento sentido à um elemento da corte com relações na Madei-
súbita morte de um jovem cheio de futuro e ra, em princípio neto do 4.º conde da Ribeira
esperança e de um “talento tão cultivado e no Grande (1712-1757): D. José Manuel da Câma-
‘arredol doirado da manhã da vida’, quando ra (c. 1760-c. 1825), que a 21 de março desse
descortinava larga existência, quando sonhava ano recebeu “aviso de nomeação” e patente a
774 ¬ C â mara , J osé M anuel da
detalhe de serviço de guarnição: “A guarda do reservas, achando terem sido feitas “exorbitan-
Quartel da Quinta, vulgarmente chamada de tes despesas” e ter sido “imprópria e mal logra-
Diogo Aires, estará pronta para fazer as conti- da” quase toda a obra “que ultimamente se fez”
nências à chegada de Sua Ex.ª o Il.mo e Ex.mo (Ibid.). Esta opinião colocou-o contra os mem-
Sr. General deste Estado e arvorará a bandeira bros do anterior governo interino, assim como
logo que o avistarem; Esta bandeira será per- contra os oficiais que mais diretamente tinham
manente e se retirará quando S. Ex.ª se reco- acompanhado as obras em causas. Nesse qua-
lha de todo para o seu palácio (S. Lourenço); dro, logo a 12 de dezembro, não tinha dúvi-
Saindo S. Ex.ª em palanquim ou qualquer outra da em solicitar a vinda de um oficial do Real
comodidade que não seja de cavalo, o sargento Corpo de Engenheiros com a patente de te-
com uma guarda de 4 homens o acompanharão nente-coronel. Alvitrou que este fosse o então
como indo de cadeirinha; A casa de campo que Cap. Pedro José Botelho, o que até ao final do
vai servir de quartel-general se denomina daqui seu mandato não conseguiria. Todo o Gover-
em diante, dos Reais Próprios” (SARMENTO, no de José Manuel da Câmara veio a ser pon-
1952, 155-156). tuado por longos braços-de-ferro, que não con-
Esta tomada de posição não deve ter agra- seguiu ultrapassar por razões várias. Mesmo
dado à antiga nobreza insular, e deve ter assim, a situação que melhor resolveu foi a da
sido nesse confronto que ocorreu o inciden- ocupação inglesa, dadas as razoáveis relações
te com Henrique Correia de Vilhena Henri- que conseguiu estabelecer com o Brig. William
ques (1769-c. 1830), irmão do futuro viscon- Henry Clinton (1769-1846) e com o Cor. Tho-
de de Torre Bela (1768-1821). O morgado não mas William Gordon.
se teria apeado do cavalo, quando passara pe- Num curto espaço de tempo, na sequência
rante o palanquim do governador no final do da chamada Guerra das Laranjas e do acordo
verão de 1803 e perto da Qt. do Descanso, pelo celebrado entre Portugal, Espanha e França,
que José Manuel da Câmara o mandou pren-
der de imediato na fortaleza do Ilhéu, a pior
prisão do Funchal. A corte de Lisboa também
não aprovou a posição do governador e, logo
que se soube da prisão, o visconde da Ana-
dia, João Rodrigues de Sá e Melo (1755-1809),
mandou libertar Henrique Correia de Vilhena.
Nos dias seguintes à sua tomada de posse, o
governador assumiu a presidência da Junta da
Fazenda; logo a 9 de dezembro, visitou a con-
tadoria, um dos assuntos que lhe tinha sido es-
pecificamente encomendado em Lisboa, pas-
sou revista às tropas e visitou as principais obras
fortificadas do Funchal, mostrando interesse
em fazer o mesmo aos restantes trabalhos dessa
área num curto espaço de tempo. A situação das
forças armadas insulares deixou-o bem impres-
sionado, parecendo-lhe não se encontrarem
no “pior pé”, mostrando mesmo “firmeza nas
suas marchas” e até alguma “regularidade de-
cente nos fogos”, como comunicou para Lisboa
(AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 1170).
Fig. 2 – British Camp, desenho, de T. W. Gordon,
As obras de fortificação entretanto levadas a do aquartelamento britânico nos Ilhéus, 6 de janeiro de 1802
cabo infelizmente mereceram-lhe as maiores (ABM, Arquivos Particulares).
776 ¬ C â mara , J osé M anuel da
que colocava em causa os interesses ingleses de transitar para o futuro quartel do colégio.
nas costas portugueses, ocorreria a primeira O comando britânico ocupou a fortaleza de S.
ocupação inglesa da Madeira. Esta ocupação Lourenço, de onde o governador foi obrigado
encontrou a Ilha sem qualquer possibilidade a sair, recolhendo-se à Qt. do Descanso, na R.
de resposta. Na hipótese de Inglaterra perder de Santa Luzia, propriedade de Diogo Aires,
o acesso aos portos do continente português onde habitualmente os governadores da Ma-
e à passagem estratégica de Gibraltar, não lhe deira passavam o verão.
restava outra alternativa senão a de recuar essa Em outubro de 1801, eram assinados os Pre-
linha de defesa, ocupando a ilha da Madeira liminares de Londres, com vista à celebração
para manter no mínimo a segurança das suas de uma paz geral entre os interesses ingle-
rotas no Atlântico. ses e franceses, pelo que já não havia justifi-
A 23 de julho de 1801, uma esquadra ingle- cação para a manutenção das chamadas tro-
sa de cinco navios de guerra apresentava-se à pas auxiliares inglesas na Madeira. Acrescia
vista do Funchal e, a 24, formava “em linha de que se somava uma série de pequenos inci-
batalha, fundeando ao longo desta capital, em dentes entre aquelas e a população local, es-
distância de tiro de espingarda, amarrando-se pecialmente alguns rapazes “que pelas ruas
por todos os lados”, como mais tarde o Gov. da cidade arremedavam os oficiais auxiliares
D. José Manuel da Câmara informou para Lis- britânicos” (RODRIGUES, 1999, 155-156),
boa (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 1293). o que, somado também aos elevados custos
O Cor. Clinton e o Cap. James Bowen desem- que a campanha estava a representar para o
barcaram e dirigiram-se ao palácio de S. Lou- Tesouro britânico, levou à ordem de retirada
renço, informando o governador de que, “em das forças inglesas, dada a 13 de novembro.
consequência da estreita aliança e íntima ami- No entanto, as forças britânicas só viriam a
zade que há anos tem unido as cortes de Lis- sair do Funchal em janeiro do ano seguin-
boa e Londres, desejando na presente e pe- te, mas ainda antes da celebração do Tratado
rigosa crise prestar todo socorro e auxílio”, de Amiens, assinado dois meses depois, em
mandava ocupar a Ilha por “uma esquadra de março de 1802.
suas naus de guerra”, pelo que o governador A estadia das tropas britânicas mereceu os
dispunha de duas horas para aceitar, de forma maiores elogios das autoridades locais, pelo
incondicional, a presença britânica. Estas for- menos oficialmente, e salvaguardando o bispo
ças abandonariam a Ilha assim que as ameaças da Diocese do Funchal, que se absteve nesse
internacionais se desvanecessem (ABM, Câma- aspeto. Na preparação do embarque, o patrão
ra Municipal do Funchal, Vereações, liv. 198, da ribeira, António da Silva Carvalho, recebeu
fls. 23-24). ordem, a 13 de janeiro, para mandar preparar
Perante a chegada das forças britânicas, José “todos os barcos do cabrestante prontos para
Manuel da Câmara reuniu de imediato um conduzirem a bordo dos transportes toda a ba-
conselho militar com as principais figuras in- gagem” da tropa britânica e foi avisado o vice-
sulares, salvo o bispo, o corregedor e o juiz de -cônsul inglês para fazer transportar a mesma
fora, que não se encontravam na cidade. Pe- bagagem para o calhau da praia, e que, se não
rante o isolamento da Ilha e a formação de bastassem os barcos do cabrestante, “manda-
combate da força naval britânica, não restava rá apressar os barcos das vilas que vir suficien-
outra alternativa senão aceitar as condições tes [para que] não sofra demora” o embarque
inglesas e esperar que se cumprissem as pro- (SARMENTO, 1952, 162-163). O Brig. William
messas de abandono da Madeira logo que as Clinton entregou as chaves da fortaleza de
condições internacionais o permitissem, o que S. Lourenço a 17 de janeiro, e, a 19, as tropas
aliás se cumpriu. As forças ficaram instaladas começaram a embarcar, tendo o brigadeiro-ge-
num acampamento militar na área dos ilhéus, neral apresentado as despedidas finais a 27 do
mas, com a chegada do inverno, haveriam mesmo mês.
C â mara , J osé M anuel da ¬ 777
O Brig. Gen. graduado William Clinton se- “cujos sentimentos” lhe pareciam “muito bem
guiu para Londres no Arcthusa, comandado fundados e igualmente semelhantes aos ante-
pelo Cap. Wooley, e o 1.º batalhão do 85.º re- riores procedimentos” dos seus “predecessores
gimento, a bordo da nau Ruyter e no navio de neste lugar”. O Gov. José Manuel da Câmara
transporte Calcutá, seguiu para a Jamaica, nas não duvidava, assim, da mesma, “por estar dig-
Índias Ocidentais inglesas, onde viria a servir namente persuadido de que sendo os vinhos
sob as ordens do Maj.-Gen. Nugent. William da Madeira a sua principal moeda, que tudo o
Clinton viria a servir na Suécia, depois do que que tenda a falsificá-los ou confundi-los é pre-
foi promovido a major-general, em 1808, e nas parar a sua ruína, e nesta a dos reais direitos de
campanhas da Catalunha, então com tropas V. A. R. que tanta consideração se prova serem
portuguesas, onde foi promovido a tenente- pelas avultadas remessas que tão frequente-
-general, em 1823. Em janeiro de 1827, desem- mente se dirigem ao Erário Régio dessa capi-
barcaria em Lisboa à frente das tropas inglesas tal do Reino” (ABM, Governo Civil, liv. 198,
que vieram apoiar a regência da infanta D. Isa- fls. 11v.-12).
bel Maria. As grandes dificuldades que no entanto ime-
Os primeiros meses de governo de José Ma- diatamente se lhe depararam foram as da corte
nuel da Câmara tinham sido ocupados, entre de Lisboa, que não compreenderia a situação
outros assuntos, com o problema da baldeação da Madeira, nem sequer o que tinha manda-
do vinho na praça do Funchal e com uma série do o governador executar, preocupando-se,
de denúncias relacionadas com essa área, assun- em primeiro lugar, em assegurar os seus ren-
tos que lhe haviam sido entregues em Lisboa. dimentos na Ilha. Por outro lado, localmente,
Teria comunicado o assunto à Câmara, pelo que deparou com uma burocracia governamental
a 23 de maio de 1801 recebia uma representa- instituída, principalmente por parte da Junta
ção do Senado e dos “homens bons da Casa dos da Fazenda, mas também por um certo status
24” protestando novamente contra a pretensão quo, inclusivamente com possibilidades de re-
de Domingos de Oliveira e acusando-o de no lações paralelas com a capital, o que não só lhe
porto do Funchal, “ou fora dele, misturar aque- boicotava determinadas iniciativas, como lhe
les com estes vinhos e fazê-los passar por vinhos reservava um espaço de manobra excecional-
da Madeira, com que estes se desacreditarão, mente limitado.
perdendo o seu grande preço” (AHU, Madei- Os problemas surgiram logo na implanta-
ra e Porto Santo, docs. 1203-1204). Para além ção do novo sistema militar que lhe fora de-
da representação camarária, foi também envia- terminado em Lisboa. Depois de avaliar a si-
da uma representação do cônsul inglês Carlos tuação ao longo de cinco meses, o governador
Murray, em nome dos comerciantes estrangei- propôs para a corte a nomeação dos principais
ros e nacionais radicados na Ilha. quadros para os vários distritos e para o corpo
José Manuel da Câmara responderia ao ga- de artilharia, tendo o cuidado de evitar que
binete real a 25 de maio exclusivamente sobre as propostas aumentassem as despesas da Fa-
o problema da “baldeação” do vinho do Faial, zenda Real, e cumprir o que lhe fora determi-
depreendendo-se que tudo o resto de que fora nado, de prover as faltas com elementos resi-
incumbido por D. João VI teriam sido vagas dentes. Teve mesmo o cuidado de escolher a
acusações. José Manuel da Câmara manda- data do aniversário real para a proposta e de
ra o presidente e juiz de fora da Câmara do informar que os oficiais em causa, para além
Funchal ouvir novamente a “nobreza e povo” de serem os mais aptos, se destinavam à “for-
sobre a entrada do vinho do Faial e entendia matura do Batalhão” que, “conforme as Reais
que o assunto era “sem dúvida um dos pro- Ordens”, se estava a montar (AHU, Madeira e
blemas de maior consideração e peso dos que Porto Santo, docs. 1194-1196).
me foram incumbidos antes da minha chega- Mesmo depois da primeira ocupação inglesa
da a esta Ilha”. Enviava assim nova informação, e da constatação na corte de que a organização
778 ¬ C â mara , J osé M anuel da
e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 778, tratar da sua saúde” (AHU, Madeira e Porto
fls. 23v.-24). Santo, doc. 1173). No dia seguinte ainda escre-
Em maio de 1803, a situação internacional via sobre “a falta de ilustração do clero” da Ma-
voltou a ensombrar-se com o rompimento da deira, numa alusão muito provável à situação
Paz de Amiens, pelo que o visconde de Anadia do Colégio dos Jesuítas e das dificuldades que
não teve outra alternativa senão recomendar tinha em prover as diversas paróquias e bene-
as “medidas e preocupações de defesa” que a fícios eclesiásticos, enumerando as vagas que
situação aconselhava. Acrescentava no entan- possuía (AHU, Madeira e Porto Santo, doc.
to que, de momento e mais uma vez, a posi- 1174).
ção portuguesa era de neutralidade, “enquan- Ora, tudo leva a crer que estas cartas teriam
to for possível” (ABM, Governo Civil, liv. 197, surgido após a troca de impressões ocorrida
fl. 59), o que para a Madeira, isolada no meio com o governador, onde este, com certeza,
do Atlântico, era a pior hipótese. Nos meses trocou informações sobre a situação da Ilha,
seguintes, o governador voltou a incentivar as pois o bispo do Funchal era o número dois da
obras de fortificação e até a pensar na constru- hierarquia insular. Também terá dado conta,
ção de um novo edifício para quartel, mas uma em princípio, das instruções de que vinha in-
terrível aluvião, ocorrida a 9 de outubro desse cumbido. Mesmo que D. José Manuel da Câ-
ano, fez suspender todos os trabalhos de forti- mara não o tivesse feito diretamente, na Ilha
ficação militar. não é fácil guardar segredo. Acontece que pelo
As maiores dificuldades ocorreram com o menos dois aspetos destas instruções não po-
bispo do Funchal, D. Luís Rodrigues de Vila- diam agradar ao prelado. Primeiro, a alusão de
res. O bispo assumira o governo interino da que “debaixo do pretexto de religião” se pode-
Madeira e afastara-se inclusivamente dos res- riam violar os direitos reais e de que era ao go-
tantes membros do triunvirato, ou seja, o go- vernador que competia a inspeção das escolas
verno interino constituído após a morte do públicas (ABM, Governo Civil, liv. 197, fls. 32
Gov. D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (1726- ‑38); este aspeto parece ser o que levava o bispo
-1798). A posição do bispo é patente, e.g., a querer ir a Lisboa. Segundo, a ordem entre-
no livro das eleições da Confraria da Soleda- gue ao governador em Lisboa, que concedia
de do Convento de S. Francisco do Funchal, o Colégio dos Jesuítas para “celeiro público”
para onde os governadores, após a tomada de (Ibid., fl. 4v.).
posse, tradicionalmente entravam. O bispo O bispo não se deslocou a Lisboa, mas o afas-
entrou para a confraria a 12 de abril de 1779, tamento entre as duas entidades começou a
mandando exarar “bispo e governador deste definir-se aquando da chegada das forças in-
estado” com uma cartela semelhante aos res- glesas, quando D. Luís Rodrigues de Vilares se
tantes. No entanto, a 21 de abril de 1800, man- recusou a regressar ao Funchal e a participar
dava pintar na folha de rosto desse livro uma nas reuniões, arvorando-se em defensor dos
aparatosa cartela com as suas armas de fé enci- interesses da Coroa portuguesa. O afastamen-
madas por coroa de conde, intitulando-se pre- to piorou com a proposta do governador de
sidente da Confraria e, de novo, “bispo e go- cedência do Colégio para aquartelamento das
vernador deste estado” (ABM, Governo Civil, forças britânicas e continuou quando o bispo,
liv. 235, fl. 1). adiantando-se ao governador, assim que houve
Quando da chegada do novo governador e conhecimento da assinatura dos Preliminares
aos primeiros contactos, depois de o ter recebi- de Londres, a 26 de novembro de 1821, man-
do em dezembro, aparentemente muito bem, dou celebrar três dias de luminárias e um Te
a 8 de fevereiro o bispo solicitava diretamente Deum na Sé do Funchal, ao qual, por ordem do
a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, depois de o governador, nenhum militar compareceu.
felicitar pela sua nomeação para presidente do Com a saída das forças inglesas, o governa-
Real Erário, para se deslocar a Lisboa, “para dor, que já tinha manifestado a sua vontade de
780 ¬ C â mara , J osé M anuel da
presente na festa com baile em casa do cônsul As questões entre a comunidade inglesa e o
britânico, por ocasião do aniversário de Jorge governador chegaram a levar à prisão de um
III de Inglaterra. Como o governador comuni- influente membro da praça comercial britâni-
cou para Lisboa, “para grande males, grandes ca, William Penfold (1776-1835), que D. José
e eficazes remédios” (AHU, Madeira e Porto Manuel da Câmara mandou inclusivamente
Santo, docs. 1355-1358), e em junho de 1803 prender no consulado britânico, em outubro
fixou-lhe residência no Santo da Serra, proibin- de 1803, por alegado desrespeito à sua autori-
do-o de entrar no Funchal, decisão revogada a dade. A decisão era tão inusitada que foi con-
22 de agosto pelo Governo de Lisboa. Em causa testada por todo o corpo consular acreditado
estariam não só as várias faltas de cortesia entre na Ilha e, inclusivamente, não teve o apoio do
as duas individualidades, mas também as reu- corregedor, José Pedro de Lemos.
niões secretas realizadas entre o bispo, o cônsul A ação do Gov. D. José Manuel da Câmara
José Pringle e outros elementos, que os infor- teve, assim, alguns aspetos difíceis, que extra-
madores do governador indicavam como ma- vasaram muito as suas competências. Logo que
çons da Madeira, informação que não se devia chegara ao Funchal, v.g., o governador planea-
afastar da verdade, pois funcionavam então no ra uma série de obras mais ou menos mega-
Funchal várias e ativas lojas maçónicas, e tanto lómanas, entre as quais uma grande praça para
o cônsul como o vice-cônsul eram membros das levantar uma estátua em bronze de D. João,
mesmas, tal como os membros das principais príncipe regente, a cavalo e sobre um pedestal,
famílias madeirenses. Entre estes, encontrava- em reconhecimento “pelos incomparáveis be-
-se Henrique Correia de Vilhena Henriques, nefícios geralmente recebidos” (ABM, Gover-
irmão do futuro visconde de Torre Bela, que o no Civil, liv. 198, fls. 30-32v.). Claro que Lisboa
governador mandara prender no verão de 1803 não se opôs à ideia, mas lembrou que naquela
e que, já em dezembro de 1791, em Lisboa, fora altura “não convém diminuir a sobra das ren-
ouvido pelo Tribunal do Santo Ofício por fre- das reais, que se remetem para o Erário”, pelo
quentar lojas maçónicas no Funchal. O gover- que a obra se deveria “depois executar com
nador acusa também o bispo de ser pedreiro- mais vagar” (Ibid., liv. 197, 28 maio 1802).
-livre, levanta-lhe um processo e alvitra mesmo Também se encontrou muitas vezes em con-
para Lisboa se, como lhe fora determinado nas fronto com a Câmara. Um dos problemas mais
instruções que recebera, não o deveria mandar graves nestes anos era a importação de “vinhos
prender e enviar para o continente. de fora”, que não poucas vezes serviam para
O bispo, no entanto, possuía também contac- “baldear” com o vinho local, prática a que o
tos em Lisboa, pelo que, em julho desse ano, o Senado camarário se opunha terminantemen-
governador da Madeira se queixava ao viscon- te. Sobre este assunto, o governador já trouxe-
de da Anadia de que o andariam a denegrir ra de Lisboa, para averiguar, queixas chegadas
na corte. Assim, só um novo “barão de Alver- à capital. O governador, no entanto, em breve
ca” poderia “decepar” o mal, mas mesmo assim também pretendia desembarcar 50 pipas de
necessitaria de apoio no ministério (Ibid., doc. vinho de Málaga, atitude a que o Senado se
1293). A referência ao antigo governador da opôs por unanimidade, demonstrando uma
Madeira, João António de Sá Pereira (1719- posição muito firme nesse âmbito.
1804), que tomara atitudes verdadeiramente Dentro desses conflitos, e perante queixa
ímpares no Funchal e para as quais sempre ti- apresentada em Lisboa pela Câmara, na ses-
vera o apoio do Marquês de Pombal, era quase são de vereação de 18 de outubro, v.g., era
perfeita, pois o barão de Alverca era tio do vis- mostrada a resposta régia. Estranhava o prín-
conde da Anadia. No entanto, o tempo não era cipe D. João que o governador “andasse a afi-
o mesmo e, principalmente, Sá Pereira nunca xar editais e ordens suas”, leia-se, a mandar
tivera o mais pequeno desentendimento com o afixá-las, com certeza, “nas portas das igrejas
então bispo do Funchal. do campo”, segundo se queixara a Câmara.
782 ¬ C â mara , J osé M anuel da
Rei para fazer parte do corpo docente da Uni- sinal que Rodrigues interpretou como de sim-
versidade. Em 1544, reencontrou Fabro, que es- ples humildade, situação que Câmara, todavia,
tava de visita a Coimbra, a quem foi atribuída não iria reconhecer com complacência e que
a sua vocação. Depois desse encontro, Câma- seria o prefácio do confronto que iria abalar
ra retirou-se para a Vila de Coja, onde, afasta- a província portuguesa (RODRIGUES, 1931-
do de tudo e de todos, pôde realizar os exer- 1950, I, 2, 31).
cícios espirituais da Companhia. Ingressou na Em 1547, quando o madeirense era o reitor
ordem a 27 de abril de 1545, cinco anos depois do Colégio, Loyola escrevia à comunidade do
do reconhecimento papal dessa jovem congre- Mondego sobre as práticas adotadas por aque-
gação. A sua entrada ocorreu um ano após ter les estudantes, parcialmente instigadas por
sido revogado o limite de 60 professos na con- Simão Rodrigues, como anteriormente referi-
gregação, que tinha sido imposto por Paulo III do, e que estavam a chocar a comunidade e a
na bula de fundação, possibilitando assim que a comprometer a posição da ordem em Portugal.
Companhia respondesse aos apelos de novos in- Inspirados por interpretações erradas de algu-
gressos; nesse ano, começaram a chegar relatos mas passagens dos Exercícios inacianos, alguns
de práticas penitenciais estranhas por parte dos estudantes desfilavam por Coimbra carregando
estudantes do Colégio de Coimbra, parcialmen- crânios e vestidos de forma pouco séria, numa
te instigadas pelo padre provincial português, o atitude excessiva que Loyola repudiava. A carta
mestre Simão Rodrigues. do geral atesta a preocupação do líder da Com-
Gonçalves da Câmara fez o seu noviciado no panhia perante os testemunhos que chegavam
novo Colégio de Valença, onde era reitor o P.e a Roma: “Quando tal moderação está ausente,
Diogo de Miró, retornando depois para Coim- o bem é transformado em mal e a virtude em
bra, devido a uma enfermidade nos olhos. vício” (Monumenta Ignatiana…, 1903, 504).
Tendo de se deslocar a Madrid, o madeirense Em 1548, o padre madeirense parte para a
reencontra-se com o P.e Pedro Fabro, em janeiro primeira missão jesuíta em Tetuão (Marrocos),
de 1546. Regressa a Coimbra cinco dias depois pretendendo prestar ajuda espiritual aos Portu-
do encontro, que parece ter sido proveitoso, gueses e visitar os cristãos cativos, acabando por
como se depreende da carta de recomendação regressar a Lisboa, novamente devido a doen-
que ele e o seu companheiro de viagem, Gonça- ça. Francisco Rodrigues relata que, nesse ano,
lo Fernandes, receberam para entregar ao rei- nascia em Roma a intenção de substituir o pro-
tor do Colégio de Jesus. vincial português, cuja liderança não satisfazia
Em 1547, foi ordenado sacerdote e nomea- inteiramente Loyola. Desde 1545, chegavam re-
do reitor do Colégio de Coimbra, numa subida latos da província portuguesa sobre a insubor-
meteórica, substituindo o P.e Martinho de Santa dinação de alguns membros da Companhia,
Cruz, reitor quando Câmara ingressou na Com- incluindo do próprio provincial, perante as or-
panhia. Em pouco mais de dois anos, Luís Gon- dens oriundas de Roma. O P.e Simão, pela in-
çalves da Câmara ingressa na ordem e chega a coerência e pela imprudência que demonstrava
reitor de um dos seus colégios. Já no séc. xvii o ter em algumas das suas missivas – e de acordo
P.e António Franco relatava, na sua narrativa afe- com os relatos de outros padres –, estava a de-
tuosa e parcial, que Simão Rodrigues o retirou sagradar à cúpula da Companhia em Roma. A 9
do cargo de reitor, atribuindo-lhe a função de de dezembro de 1550, quando Simão Rodrigues
cozinheiro, “no qual ofício se houve, como se obteve do Rei a desejada licença para se ausen-
só para ele entrara na Companhia” (FRANCO, tar para Roma, deixou o ofício de confessor do
1930, 145). Aliás, o próprio Simão Rodrigues príncipe regente D. João ao P.e Gonçalves da Câ-
afiançava, em carta ao padre-geral da ordem, mara, nomeado pelo próprio geral, que se ocu-
que “mais se gozava e maior contentamento re- paria dessa missão até meados de 1552. O cargo
cebia em ser cozinheiro da Companhia de Jesus conferia grande destaque à ordem a que per-
do que mestre e confessor do príncipe”, num tencesse o escolhido, e é certo que o confessor e
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o precetor possuíam alguma influência nas de- “só de ouvir o nome do P.e Simão Rodrigues,
cisões políticas que eram tomadas. Ampliava-se, [Câmara] acendia-se de tal modo, que pare-
deste modo, uma teia de interesses que criou cia sair fora dos seus sentidos” (RODRIGUES,
muitos inimigos aos Inacianos e lhes provocou 1931-1950, I, 2, 83). Nas cartas de Câmara estão
muitos dissabores. patentes uma certa extrapolação que fez dos
No início da déc. de 50 do séc. xvi, a provín- acontecimentos, o pendor negativo que con-
cia portuguesa da Companhia viveu um perío- feriu à atuação do provincial e a interpretação
do de “grande tribulação” (RODRIGUES, 1931- fantasiosa das consequências do seu afastamen-
1950, I, 2, 10), com uma profunda cisão no seu to para a província. Nas suas palavras, os aliados
seio, a qual teve dois protagonistas: o próprio do antigo provincial sairiam da ordem ou se-
Simão Rodrigues, provincial desde 1546 e um riam expulsos, por compactuarem com as suas
dos prime patris da ordem, e Luís Gonçalves da ideias perversas. Após a expulsão de Rodrigues,
Câmara. Confrontavam-se, assim, os partidários pouco tempo passou até que o P.e Gonçalves da
de uma posição mais moderada e os adeptos de Câmara reincidisse na sua visão crítica sobre o
uma linha mais rigorosa, onde se inseria o ma- governo da província e escrevesse para Roma
deirense. O cisma instalado acabou por condu- indicando a falta de habilidade de Miró para a
zir a uma divisão interna na Companhia, pro- liderança.
longando-se durante as décadas seguintes. A 18 Em 1553, Câmara deixou Portugal, chegan-
de agosto de 1551, atendendo a um pedido de do a 23 de maio a Roma, onde executou um
D. João III, o padre valenciano Diogo Miró che- trabalho que o perpetuou na história da Com-
gou, por determinação do geral, a Coimbra, panhia. Quando se encontra com Loyola, o im-
onde se inteirou sobre a veracidade das críti- pacto é tão grande que o próprio Pedro Fabro,
cas dirigidas ao provincial. As acusações con- tão admirado pelo madeirense, parecerá, aos
tra Simão acumulavam-se e Loyola decidiu, por seus olhos, uma criança em comparação com a
fim, afastá-lo do governo da província, sendo grandiosa figura do geral. No início de dezem-
expulso do reino em 1553. Não parece haver re- bro, para esclarecer o diferendo contra Simão
gisto dos delatores e das acusações finais contra Rodrigues, Loyola estabeleceu um julgamento
o provincial, pela ausência de correspondência e nomeou Gonçalves da Câmara como um dos
conservada. No início de 1552, são remetidas acusadores. A 7 de fevereiro de 1554, foi pro-
as missivas de Loyola que depunham o provin- nunciada a sentença que ratificava a saída de
cial. Após o seu afastamento, o cargo transitou Rodrigues do reino e do cargo. O padre madei-
para Miró e Simão foi designado líder da nova rense saiu, uma vez mais, vencedor.
província de Aragão, que foi propositadamen- A ida de Câmara a Roma estava relacionada
te erigida neste contexto. Nesse período, outros com os problemas da província portuguesa,
jesuítas tornaram-se confessores das personali- conforme amplamente relatado nas várias mis-
dades mais influentes do reino, potenciando as sivas trocadas entre Roma e Portugal ao longo
tensões externas contra a província portugue- dos anos, mas Câmara acabaria por ter aí uma
sa da ordem, agravadas pela própria celeuma missão ainda mais importante. O padre funda-
interna. dor recebia vários apelos para que deixasse um
Alguns investigadores acusam Gonçalves da registo da sua vida, principalmente do período
Câmara de desacreditar Simão Rodrigues pe- anterior ao reconhecimento da ordem. O jesuí-
rante a cúpula da Companhia, o que pode ser ta madeirense acabou por ser o escolhido – se-
verificado nas críticas por si enviadas a Roma, gundo alguns relatos internos, devido à sua me-
mediante as quais pretendia que o provincial, mória prodigiosa – para o elaborar. Certamente,
para além de deixar o governo da província, preferiu-se Gonçalves da Câmara devido ao seu
abandonasse Portugal. A (alegada) estima de empenho na resolução dos problemas da pro-
outrora havia desaparecido por completo, e a víncia portuguesa e à lealdade a toda a rede de
tensão entre ambos é relatada de tal forma que, influências de que se cercava, a qual crescia. As
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completo, devido ao ritmo acelerado imposto Câmara e Inácio de Azevedo. Ao seu regresso,
pelo fundador. Na véspera do seu regresso a o madeirense visitou vários colégios e analisou
Portugal, os relatos tinham fim. Cinco dia antes, os problemas que a Companhia, por se encon-
a 18 de outubro, o jesuíta interrompera os tra- trar “bastante desacreditada”, enfrentava nos
balhos do Memorial, retomados apenas em 1573, estudos cuja superintendência lhe fora confia-
quando se encontrava em Évora. A narrativa di- da (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 362). As re-
tada pelo fundador representa um documento formas que conduziu pareceram produtivas, e
histórico único, de valor incalculável, sendo a acabou por desempenhar um papel importante
biografia espiritual de Loyola mais importante junto do Rei na manutenção da tutela da Com-
e a mais difundida. O método de trabalho para panhia sobre o Colégio de Jesus.
as duas obras foi distinto. Com Loyola, duran- Em 1556, a Companhia perdeu o seu geral e
te a preparação da Autobiografia, Câmara pri- idealizador, a 31 de julho, e o governo foi entre-
vou, por diversas vezes, na chamada “torre ver- gue ao vigário-geral, o P.e Diogo Laynez. A con-
melha”, onde memorizava as conversas com o gregação que elegeu o segundo geral teve início
geral; após o encontro, recolhia-se na sua cela a 19 de junho de 1558. A 9 de maio, chegaram
para ditar ao cronista o que tinha ouvido. Para a a Roma os cinco padres eleitores portugueses,
elaboração do Memorial, o madeirense registou que se juntaram ao P.e Simão Rodrigues. Entre
o que viu e ouviu na presença do próprio Iná- eles, estava Luís Gonçalves da Câmara. Os en-
cio, durante as atividades do quotidiano; poste- viados foram escolhidos, em novembro de 1556,
riormente, também ditou estes escritos ao seu na congregação provincial que foi celebrada na
secretário pessoal; o objetivo foi a execução de casa de S. Roque. O novo geral acabou eleito
um diário com o máximo possível de informa- a 2 de julho de 1558, com 13 votos dos 20 elei-
ções sobre o padre fundador, o qual foi compos- tores. Poucos dias depois, o padre madeirense
to durante pouco mais de seis meses. foi eleito para o Conselho Supremo da Ordem,
Durante a sua estadia em Roma, Gonçalves da com o cargo e o nome de assistente de Portugal.
Câmara manteve correspondência com D. João No final dos trabalhos, Câmara permaneceu em
III. O Monarca não escondeu o desejo de ver Roma. Ainda nesse ano, e no seguimento das
o madeirense de regresso a Portugal. Quando decisões tomadas pela congregação, no sentido
deixou Roma, a 23 de outubro de 1555, fez-se de organizar o governo da Companhia em “as-
acompanhar de vários jesuítas e levou consi- sistências”, Câmara foi nomeado um dos quatro
go várias cartas de recomendação. Além disso, assistentes.
Loyola atribuiu-lhe importantes prerrogativas: Em 1557, a morte do rei português deu outro
nomeou-o colateral do provincial português, rumo e outro impulso à posição de Câmara,
o castelhano Miguel de Torres, que passava mesmo que alguns autores afirmem que tais
assim a partilhar o governo da província com acontecimentos ocorreram contra a sua vonta-
o madeirense; isentou-o da obediência a qual- de. Três dias após a morte do Monarca, a Rai-
quer superior da província, respondendo ape- nha D. Catarina reuniu o Conselho e assumiu
nas ao Rei D. João III; concedeu-lhe escolher a a regência e a tutoria do futuro rei. Enquanto
casa da Companhia em que preferisse residir; o nome do aio do jovem D. Sebastião foi esco-
e deu-lhe poder para declarar e determinar lhido pacificamente, o do seu mestre, que seria
sobre a missão na Etiópia. A combinação desse o responsável pela sua instrução intelectual e
poder com o temperamento explosivo de Câ- moral, não teve a mesma sorte. Amador Rebelo,
mara acarretou muitos problemas e queixas, padre jesuíta que coadjuvou Gonçalves da Câ-
que tinham origem no provincial, referindo a mara no seu ofício e autor da Relação da Vida
natureza colérica do madeirense, e até nos seus d’El Rei D. Sebastião (1685-1700), refere que a es-
companheiros de ordem. Em 1556, um jesuíta colha, tanto do aio como do mestre, correspon-
escreveu que o governo da província estava par- deu a um desejo expresso de D. João III e muito
tido entre Miguel de Torres, Luís Gonçalves da apoiado pelo seu irmão, o cardeal D. Henrique.
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e da dedicação inabalável” (CRUZ, 2012, 88). influência castelhana da rainha-mãe na luta pela
Porém, em 1566, o madeirense afasta-se das regência, o que também refletia a disputa, den-
funções que desempenhava, sendo substituído tro da Companhia, entre os partidários da linha
por Luís de Montoya, frade agostinho. Ainda próxima de Câmara e os seus opositores. Fran-
nesse ano, em outubro, a Madeira sofre um ata- cisco de Borja, que se tornou o terceiro geral da
que corsário francês, o que desperta no P.e Luís ordem, ainda tentou remover Câmara do cargo
Gonçalves da Câmara e no seu primo, o P.e Leão de confessor, mas sem êxito. Dentro da própria
Henriques (confessor do cardeal D. Henrique), congregação, a posição e a influência do madei-
o alegado desejo de embarcar na armada de so- rense incomodavam. A carta do jesuíta António
corro que foi enviada ao Funchal. Câmara aca- Correia ao geral retratava as intrigas do reino:
bou por não ser autorizado pelo Rei a fazê-lo, tal “Dizem que Luís Gonçalves governa, e o cardeal
como não obteve autorização para realizar ou- é seu instrumento” (ARSI, Epistolae Lusitanae,
tras deslocações que o afastariam de si. Segundo n.º 62, 274).
alguns investigadores, os irmãos Câmara desem- Em nada contribuiu para acalmar as hostes a
penhavam uma influência certeira para que D. ascensão a determinados cargos e a visibilidade
Sebastião preterisse o cardeal, na disputa que o do seu irmão, o P.e Martim Gonçalves da Câma-
tio-avô e a avó protagonizavam. ra, que foi “sacerdote do hábito de S. Pedro [e,
Após cerca de dois anos de ausência, o madei- mais tarde, jesuíta], doutor teólogo e antigo rei-
rense regressa ao cargo por insistência do Rei, tor da universidade” de Coimbra (ALMEIDA,
quando este atinge a maioridade. Os historiado- 2003, 420), além de ser uma figura afeta ao cír-
res diferem sobre o período de afastamento do culo do cardeal. Martim assumiu a liderança da
P.e Gonçalves da Câmara, em que o agostinho Mesa da Consciência (em 1564), do Desembar-
desempenhou o cargo de mestre. A sua saída go do Paço e dos restantes tribunais, além do
foi justificada, por um investigador america- cargo de escrivão de puridade (em 1569). Tam-
no, como estando relacionada com abusos se- bém foi vedor da Fazenda no Conselho Real.
xuais infligidos pelo madeirense ao jovem Rei. Com o protagonismo que Martim Gonçalves ga-
Johnson, em “Um pedófilo no palácio…”, alega nhava, muito por influência do cardeal, os âni-
que a enfermidade de que o Rei sofria, relatada mos de D. Catarina exasperaram-se, em virtude
desde 1563 e relacionada com a “expulsão de da sua crescente aversão ao poder que os ir-
pequenos cálculos renais” (CRUZ, 2012, 124), mãos Câmara ganhavam. A ascensão do madei-
e que tem nos historiadores vários diagnósticos rense nos negócios do reino era justificada, por
(espermatorreia, uretrite, infeção bálano-pre- D. Henrique, pela importância que o jovem e
pucial, crise renal, etc.), era uma doença vené- inexperiente rei tinha, fazendo-se cercar de mi-
rea, gonorreia ou clamídia (ou ambas), causa- nistros que zelassem pelos interesses do reino.
da por abusos sexuais perpetrados por Câmara, Agora, eram dois Gonçalves da Câmara. Por
que teria sido contaminado na sua ida a Marro- altura da deslocação do Rei a Coimbra, chega
cos no final da déc. de 40. Considerada como às mãos do P.e Luís Gonçalves da Câmara uma
uma versão apócrifa dos acontecimentos, não carta anónima contra si, o seu irmão e a Compa-
existem indícios credíveis que sustentem esta nhia em que se reflete toda esta celeuma, agu-
teoria, que está embrenhada e apoiada em algu- çada com as diligências em torno do casamento
mas interpretações enganosas ou parciais e en- do Rei, e em que se defrontavam vários interve-
volve contradições e erros na sua argumentação. nientes, sendo cada vez mais forte a campanha
A 20 de janeiro de 1568, quando completou de descrédito contra o madeirense. O confes-
14 anos, D. Sebastião assumiu o governo do sor privava cada vez mais com o Rei, chegan-
reino; em maio, já havia notícias da reintegra- do às três horas por sessão, o que provocava e
ção do P.e Gonçalves da Câmara como seu con- atiçava os seus críticos. Numa das deslocações
fessor, adensando o confronto entre o cardeal à Universidade, a receção pouco amistosa que
e D. Catarina, que vinha desde as acusações da o Rei recebeu, com uma forte pateada, deve-se
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em parte aos irmãos Câmara. Os dois madeiren- concretizados. D. Sebastião desposaria Margari-
ses eram personagens centrais na troça a D. Se- da de Valois, que tinha sido por ele recusada a
bastião, difundida nomeadamente nos pasquins mando do seu primo. Fortunato volta a referir
da cidade, em que se justificava o facto de o Rei documentação coeva, indicando que o rei por-
não contrair matrimónio com o estar abarrega- tuguês não respondeu, por conselho dos irmãos
do (amigado) com os dois irmãos. Não pode- Câmara, a três cartas sobre a mudança de pla-
mos esquecer que já há muitos anos a Univer- nos que Filipe II lhe remeteu. Além de Filipe II
sidade e a Companhia estavam envolvidas em alegar que se tinha visto forçado a dar D. Isabel
grandes disputas, que cessariam com a assinatu- ao rei de França, em prol do cristianismo, refere
ra de um contrato, em 1572. Este documento as- que se comprometeu, com o cardeal de Guise,
segurava que a Universidade pagaria uma renda em relação ao casamento de D. Sebastião com
ao Colégio das Artes, entre outras prerrogativas Margarida de Valois (CRUZ, 2012, 152-153). Tal
conseguidas para a Companhia. A intervenção ingerência, em favor do poder de Castela e do
do madeirense foi fulcral para o processo, o que Sacro Império nos negócios portugueses, pro-
terá fomentado os movimentos opositores e crí- vocou duras críticas até da Rainha D. Catarina,
ticos à sua figura. castelhana de nascimento. Quando D. Sebas-
Sobre os matrimónios falhados do Monarca, tião recusa o casamento proposto por Filipe II,
interessa dissipar a maquinação criada para cul- os inimigos do P.e Luís Gonçalves da Câmara co-
par os irmãos Câmara, difundida durante o rei- meçam a imputar-lhe a culpa pela rejeição do
nado e ampliada nos séculos seguintes. Quando Rei, esquecendo ou minimizando a intromissão
a esposa de Filipe II, Isabel de Valois, morreu, do monarca de Castela. Sobre as acusações re-
em 1568, seria natural que o Monarca desposas- cebidas, o padre madeirense responde ao geral,
se a sua cunhada, Margarida. França enviou uma recordando o que já tinha manifestado aquan-
embaixada a Madrid, mas o monarca de Castela do da sua escolha para mestre do Rei: “Dei por
mostrou-se pouco decidido no apoio à preten- escrito muitas causas, para não dever tomar este
são de Carlos IX, irmão de Margarida. Face a cargo, e uma delas era que todas as coisas que
tão reservada resposta, o rei de França buscou não fossem bem recebidas do mundo, a culpa
um enlace na corte portuguesa, o que agra- delas se daria aos que andassem junto do rei”
dou aos partidários do cardeal. A esse respeito, (ARSI, Epistolae Lusitanae, n.º 64, fls. 98-99v.).
Fortunato cita um manuscrito da Biblioteca de Ao contrário do que os seus críticos prega-
Paris: “Martim Gonçalves da Câmara, e o Mestre vam, para o jesuíta os grandes problemas en-
seu irmão, […] foram de parecer que convinha frentados pelo Rei estavam na sua política re-
muito ao reino de Portugal aquela aliança de formadora, conforme atestava a sua missiva
parentesco com França” (ALMEIDA, 2003, 421 ao geral em Roma. Tais reformas causavam ao
e 422). Tudo foi alterado quando Filipe II pediu Monarca fortes dissabores, agravados pela der-
a D. Sebastião que não aceitasse desposar a irmã radeira ameaça de D. Catarina se retirar para
do rei francês. O Rei concordou e deixou ao seu Castela, de acordo com o pedido feito pelo
primo o ónus da escolha da futura esposa. Es- seu sobrinho. O madeirense, já muito doente
tava combinado que D. Sebastião desposaria a e quase cego, referiu ao geral o seu cansaço e
arquiduquesa Isabel e Carlos IX a arquiduquesa a sua vontade de permanecer retirado no Colé-
Ana. Ambas eram filhas de Maximiliano, impe- gio de Coimbra por mais algum tempo, o que
rador do Sacro Império Romano-Germânico e teria feito, não fosse a insistência do Rei para
primo de Filipe II. A todos o arranjo pareceu que regressasse à corte. Ainda nesse ano, o jesuí-
bem e foi relatado que os irmãos Câmara con- ta Miguel Torres foi dispensado do seu ofício de
cordavam com tal perspetiva. Tudo se alteraria, confessor, alegadamente pela influência nociva
novamente, quando Filipe II decidiu desposar que Gonçalves da Câmara teve sobre ele. D. Ca-
Ana e ao rei de França era deixada a prometida tarina escreveu ao seu sobrinho, a 8 de junho de
do rei português, Isabel, sendo os matrimónios 1571, descrevendo um suposto complô que os
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três confessores jesuítas da corte desenvolveram futuro seria um fortíssimo crítico da presença
para criar a discórdia entre o Rei, o seu tio-avô dos irmãos Câmara na corte. Quando o P.e Fran-
e ela própria. No mesmo dia, a Rainha enviou cisco de Borja chegou a Madrid, D. Catarina
uma missiva ao Papa sobre a necessidade do ma- enviou D. Juan de Borja, embaixador espanhol
trimónio real para libertar o seu neto da sujei- em Lisboa e filho do geral, para que ele pedisse
ção aos irmãos Câmara. a Filipe II que o P.e Luís Gonçalves da Câmara
A relativa acalmia nas relações entre o neto fosse chamado pelo geral, o que o rei de Caste-
e a avó, após uma breve reaproximação, foi in- la se recusou a fazer. Já em Portugal, o P.e Borja
terrompida quando o Rei se recusou a cumprir pede paciência à Rainha e promete enviar o ma-
os seus desejos, que incluíam o afastamento dos deirense para Roma, o que nunca se chegou a
irmãos Câmara e do próprio cardeal, e quando concretizar. O padre geral só chegaria a Roma
esses pedidos vieram a público. Foi notório o a 28 de setembro de 1572 e faleceria passados
apoio de Filipe II, que escreveu à sua tia indi- três dias. Ainda durante a visita do legado papal
cando a premência em afastar Gonçalves da Câ- a Portugal, o jesuíta madeirense escreve a D. Se-
mara do Rei, sendo necessário reunir esforços bastião, reiterando o cansaço já manifestado e a
e apoiantes, entre os quais o geral e o próprio vontade de se retirar: “Parece que não me que-
Papa, para alcançar esse objetivo. rem já matar, ando, todavia, sem gosto algum,
Em 1571, a Rainha D. Catarina escreve ao ainda que trabalho pelo encobrir o mais que
Papa Pio V, atribuindo ao madeirense a culpa posso” (SERRÃO, 1987, 218).
pelo ódio generalizado à Companhia. A cola- Com a morte de Francisco de Borja, a 30 de
gem ao poder e a alegada intromissão nos as- setembro de 1572, a Rainha vê mais uma opor-
suntos políticos estão entre as críticas dirigidas tunidade para afastar, definitivamente, Câmara
aos padres inacianos, conforme é manifesto na do Rei. Se o seu jogo de influências fosse vito-
missiva da Rainha ao Papa: “Não posso deixar rioso, conseguiria que o madeirense fosse eleito
de sentir o ódio que também por esta causa têm padre-geral e rumasse, permanentemente, para
geralmente à Companhia, sendo a culpa parti- Roma. Na congregação provincial celebrada em
cular deste padre [Luís Gonçalves da Câmara]” Évora durante o mês de dezembro foi debatida
(RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 625). E a con- a antiga polémica envolvendo os primos Gonçal-
testação ao poder dos irmãos Câmara, segundo ves da Câmara e Leão Henriques: “Se conviria
alguns dos seus detratores desse período, tam- que os dois […] se depusessem o cargo de con-
bém está patente n’Os Lusíadas: “Nem Came- fessores […] o que perturbava o sossego da vida
nas, também, cuideis que cante/Quem, com há- regular, e desdizia inteiramente de nosso Institu-
bito honesto e grave, veio,/Por contentar o Rei no to” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 388). A con-
ofício novo,/A despir e roubar o pobre povo” gregação concluiu que os confessores não de-
(VII, 85, 5-8, itálico nosso); “Nem tão-pouco veriam renunciar, ignorando as “murmurações
direi que tome tanto/Em grosso a consciência do povo ignorante ou de homens sem religião”
limpa e certa,/Que se enleve num pobre e humilde (Id., Ibid., 388). Para possível ressentimento do
manto/Onde a ambição acaso ande encoberta” P.e Gonçalves da Câmara, e desespero da Rai-
(VIII, 55, 1-4, itálico nosso). Uma interpretação nha, D. Sebastião não autoriza a ida do padre
coeva, combatida por alguns, mas que encon- jesuíta à terceira congregação geral, que elegeu
tra suporte até no séc. xxi, nomeadamente em o novo líder da ordem, apesar de o madeirense
Vítor Aguiar e Silva. ter sido um dos delegados designados para esse
Apesar de a carta da Rainha ao Sumo Pontí- efeito na congregação provincial. A posição de-
fice não ter tido o efeito esperado, o geral, seu fendida pela comitiva portuguesa, liderada pelo
amigo de infância, visitou, no final de 1571, as seu primo, o P.e Leão Henriques, na qualidade
províncias espanhola e portuguesa, também de vice-provincial, era a de que o próximo padre
movido pelos seus apelos, acompanhado do geral não fosse castelhano nem cristão-novo,
legado papal, o cardeal Alexandrino, que no numa clara oposição à eleição do P.e Juan Afonso
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Literária da Madeira (vol. ii), que a viscondes- 1901, presenteia-os com Morto à Força, comédia
sa tinha sido uma das figuras mais proeminen- representada no Teatro D. Maria Pia (sala cuja
tes da intelectualidade portuguesa do séc. xix, construção tinha sido iniciada com o apoio de
atribuindo-lhe qualidades que a distinguiam João Sauvayre da Câmara, quando este fazia
no cenário literário da época. parte do executivo camarário) e cujos atores
Bulhão Pato – amigo de Jacinto Augusto de foram a própria autora e uma das irmãs, Maria
Sant’Anna e Vasconcelos, filho da escritora e das Dores, além de várias figuras da elite social
tio de Maria Celina – conta, nas suas Memó- madeirense.
rias, a visita que fez à viscondessa, referindo as Maria Celina obteve considerável notorieda-
suas qualidades precisamente como escritora: de no meio social e cultural português, como
“compunha versos, admiráveis de mimo e sen- comprovam as notícias publicadas no Diário
timento. Escrevia prosa adorável. Num meio Illustrado, de Lisboa, na secção “High-Life”, que
mais largo teria sido uma escritora de primeira dão conta dos seus passeios na avenida, do seu
ordem” (PATO, 1894, 279). No mesmo senti- iminente regresso de Jerusalém e da sua che-
do se dirigem as palavras de Alberto F. Gomes, gada do estrangeiro, a 11 de maio de 1898. No
que a considerou um espírito superior e uma Diário de Notícias, aquando do seu falecimento,
mulher pouco vulgar para a época e para o é descrita como “senhora madeirense das mais
meio, dando “exemplo de estreito contacto ilustres pelo sangue, pelo espírito, pela inteli-
com o público e de estímulo às senhoras que gência” (DNM, 28 fev. 1929, 2). Na residência
escreviam nessa época” (GOMES, 1953, 20). que tinha na capital, reunia a alta aristocracia
Responsável pela educação nas letras das portuguesa em serões que lembravam os tem-
netas, a quem dedica o volume dos Diálogos, a pos “em que ainda em Lisboa se juntavam tan-
viscondessa contribuía com composições poé- tos e tantos que marcaram em Portugal pela
ticas para os periódicos da época, não descu- sua distinção e seu talento” (Ibid.). O jornal
rando, como afirma numa das suas poesias, lembra a publicação do seu livro de impressões
o papel de educadora em prol do de poetisa. de viagem e considera a autora “invulgarmente
Esta posição explica o cuidado que teve na ins- culta” (Ibid.). De facto, a escritora não só tinha
trução das netas e a forte impressão que dei- uma educação esmerada, como também pos-
xou em Maria Celina. suía um vasto conhecimento, que adquirira
Na família da escritora não era só a avó a ter com as várias viagens que realizara pela Euro-
uma forte propensão para as letras: o tio Jacinto pa e pelo Médio Oriente.
Augusto de Sant’Anna e Vasconcelos era poeta, É à avó que Maria Celina de Sauvayre da Câ-
autor de um livro de versos prefaciado por Lati- mara dedica, lembrando “aquela que semeou
no Coelho, “com muito aplauso” (PATO, 1894, em minha alma o gérmen de todas as virtudes”
278), e fazia parte do círculo ao qual perten- (CÂMARA, 1899, i), o seu livro De Napoles a Je-
ciam, em Lisboa, Mendes Leal, A. Pedro Lopes rusalem (Diario de Viagem) – relato das lembran-
de Mendonça, José Maria d’Andrade Ferreira, ças e impressões de uma longa viagem que
Luiz de Vasconcelos, António Correia Herédia tinha levado a autora da cidade italiana de Ná-
e Bulhão Pato. Também a sua tia-avó, Maria do poles a Jerusalém (passando por Alexandria,
Monte de Sant’Ana e de Vasconcelos, irmã do Cairo e Jafa) –, com edição em Lisboa de 1899.
visconde das Nogueiras, colaborava na impren- A abertura de espírito e o gosto pela literatu-
sa, mantinha um encontro regular de letrados ra, que alarga os horizontes, especialmente das
em sua casa e dedicava-se à escrita, tendo publi- mulheres, são os traços definidores que a auto-
cado obras na área do romance histórico. ra assume como direta influência da avó. Se o
A irmã mais nova de Maria Celina, Matilde texto abre com uma dedicatória que a recorda,
Olímpia, destacou-se como compositora, poe- termina com a declaração da “saudade eter-
tisa e autora de comédia. Aquando da visita à na” (Id., Ibid., 196) que a sua figura represen-
Madeira dos Reis D. Carlos e D. Amélia, em ta, saudade esta que conduz a autora a refletir
C â mara , M aria C elina de S auvayre da ¬ 797
sobre o sentido da própria existência (“A sen- importante para a ilustração social, histórica e
sação do vácuo, da imensidade, levadas por cultural das jovens e das senhoras que se po-
uma frágil embarcação que levantou âncora!... diam permitir viajar. As mulheres começavam
A última página deste jornal que emudeceu a ganhar, assim, através das deslocações a ou-
e fechei!... A saudade eterna da minha queri- tros países – que as levavam para longe da es-
da avó!...” – Id., Ibid.), encontrando, em parte, fera da proteção familiar, parental ou mari-
resposta nos lugares com forte carga evocativa tal –, a autonomia que conduziria a uma maior
que a autora visita, como é o caso de Jerusalém. autodeterminação. Os novos espaços percor-
A ideia que a escritora madeirense conce- ridos, ao corresponderem a uma abertura de
be da viagem em De Napoles a Jerusalem, e das horizontes, que resultava no incentivo a uma
palavras que a contam e fixam na memória, é maior liberdade de espírito, potenciavam tam-
a de algo dinâmico, que permite a mudança bém uma maior capacidade feminina de inter-
do ser que viaja e do leitor que experimenta venção, como refere a autora madeirense. Esta
as impressões da deslocação através das pala- independência da mulher advinha, segundo
vras. À união da imaginação com a investiga- a escritora, da possibilidade de imaginar, ver
ção, que caracteriza as motivações da viajan- e adquirir um novo olhar sobre os valores, as
te e também da escritora, é aliado o plano da tradições, os costumes e as religiões de outros
comparação: esse plano permite as viagens povos, redimensionando a própria cultura, his-
mentais entre o espaço que ocupa e trilha e tória e mesmo o seu próprio ser. A autora não
o espaço afetivo da terra pátria, uma desloca- raro refere o exemplo de inglesas, americanas
ção em pensamento à Madeira, lugar de sauda- e holandesas, de mulheres cuja sociedade vê
de, mas igualmente de mudança, já que Maria com naturalidade que viajem para aprender e
Celina da Câmara também vê e imagina com para se divertir, ao contrário das portuguesas,
o objetivo de comunicar e aplicar à Madeira menos aventureiras e mais fechadas.
aquilo que julga ser válido. Em Jaffa, comen- Misto de diário de viagem turístico e de diá-
ta: “Os Irmãos das escolas cristãs têm aqui dois rio de peregrinação, o livro da escritora ma-
colégios para rapazes, as Irmãs de S. José da deirense, cuja narração se centra principal-
Aparição um outro para meninas. Além destes mente no Médio Oriente, deixando muito
cada rito tem as suas escolas e hospitais, nós la- pouco espaço para algumas pequenas indica-
tinos temos um muito bem montado com um ções sobre Nápoles, contém uma parte que
dispensário gratuito. (Assim tivéssemos um na fornece recomendações de viagem (melhores
Madeira!)” (Id., Ibid., 66). Com a sua morte, o agências a contratar, custos, alojamento, dura-
que considerara no seu livro como necessário ção das deslocações entre cidades, restauran-
à Ilha torna-se possível, através da doação de tes, ementas, lugares de diversão), chegando
uma das suas residências (na R. da Mouraria, a transcrever um contrato de viagem, e apon-
n.º 29) para instalação de um dispensário. tamentos sobre os monumentos, as paisagens,
A obra de Maria Celina de Sauvayre da Câ- as gentes, os costumes, bem como uma outra
mara insere-se no ambiente social e cultural em que se dedica à descrição dos espaços sim-
do séc. xix, quando a viagem começa a fazer bólicos do cristianismo e dos sentimentos que
parte do mundo da mulher, com o surgimento esses lugares provocam. Esta última parte rela-
da ideia de “tempo livre” (na segunda meta- ciona-se de forma mais evidente com o modo
de do século) e da viagem pedagógica, o grand do diário de peregrinação no interior do gé-
tour – longa viagem de “educação” e “europei- nero da literatura de viagens, ocupando-se a
zação” das camadas mais elevadas da socieda- autora da viagem espiritual que os lugares san-
de, que incluía paragens em Londres, Paris, tos permitem, percorrendo os espaços num ri-
Bruxelas, Roma –, iniciando-se, assim, o turis- tual de expiação, com a promessa de salvação.
mo feminino. O périplo pelos países mais de- Daí a referência privilegiada aos sentimentos,
senvolvidos do continente era entendido como à introspeção, ao guia dos percursos a seguir,
798 ¬ C â mara , M aria C elina de S auvayre da
à Universidade de Santiago de Compostela, Santiago de Compostela, texto pela severa condenação do piloto Gaspar Cal-
policopiado, 2014; PATO, Bulhão, Memórias, Homens Políticos, t. ii, Lisboa,
Typ. da Academia Real das Sciencias, 1894; PORTO DA CRUZ, Visconde do, deira, por ter sido cúmplice do corsário Pier-
Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vols. ii-iii, Funchal, re-Bertrand de Montluc, cuja armada guiou
Câmara Municipal do Funchal, 1915-1953; SILVA, Fernando Augusto da,
e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
aquando do ataque de outubro de 1566.
Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978. Por volta de 1570, Martim Gonçalves da Câ-
mara, o P.e Leão Henriques, também madeiren-
Luísa M. Antunes Paolinelli
se, e o P.e Jorge Serrão, por mercê do cardeal
D. Henrique, são nomeados para o Conselho
Câmara, Martim Gonçalves da Geral da Santa Inquisição, sendo os primeiros
padres jesuítas a ocupar cargos oficiais no Tri-
Martim Gonçalves da Câmara era filho de João bunal do Santo Ofício.
Gonçalves da Câmara, 4.º capitão-donatário do A governação efetiva de D. Sebastião inicia-
Funchal, e de sua mulher, D. Leonor de Vilhe- -se em 1568, tendo como modelo uma monar-
na. Foi o quarto de um total de 12 filhos do quia administrativa, estabelecida por um Con-
casal, sendo irmão do ilustre Simão Gonçalves selho de Despacho. O Conselho de Despacho
da Câmara, o Magnífico, 5.º capitão-donatário era constituído por personalidades políticas da
do Funchal e 1.º conde da Calheta, e do padre época, que representavam uma fação nacio-
jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, tutor e con- nalista afeta ao cardeal D. Henrique, e outro
fessor de D. Sebastião. grupo de nobres simpatizantes da Rainha viúva
Não se sabe exatamente a data de nascimen- D. Catarina de Áustria e favorável a Castela.
to de Martim Gonçalves da Câmara, mas os es- O Rei D. Sebastião, porém, acabaria por dis-
tudiosos apontam-na para cerca de 1539, não solver esta governação tripartida, procurando
havendo, igualmente, registos da sua infância.
Frequentou o Colégio das Artes, juntamente
com seu irmão Rui Gonçalves da Câmara. Com
o valimento do cardeal D. Henrique, Martim
Gonçalves da Câmara foi um dos principais
apoiantes da ordem de Inácio Loyola em Por-
tugal, ao lado de seu irmão Luís Gonçalves da
Câmara.
Recebeu benefícios de seu tio D. Manuel
de Noronha, camareiro-mor do Papa Leão X,
tendo sido nomeado cónego de Silves e pároco
de uma igreja em Penafiel e de outra em Bri-
tiande, benefícios que lhe rendiam um total de
500.000 réis.
A 31 de maio de 1538, sendo bacharel em
Teologia e mestre de Artes, é eleito para fazer
parte do conselho-mor da Univ. de Coimbra.
A influência do cardeal D. Henrique e o claro
apoio à ordem jesuíta, a 16 de junho de 1563,
promovem Martim Gonçalves da Câmara ao
cargo de reitor da Univ. de Coimbra, que acu-
mula com os cargos de presidente da Mesa de
Consciência e do Desembargo do Paço e vedor
da Fazenda do Conselho Geral. Fig. 1 – Verso do alvará régio de mantimento para o vigário
de São Pedro do Funchal, assinado pelo P.e Martim Gonçalves
Segundo Nuno Gonçalves Porto, Martim da Câmara e pelo cardeal D. Henrique, Lisboa,
Gonçalves da Câmara foi um dos responsáveis 23 de julho de 1566 (ABM, Arquivos Particulares).
800 ¬ C â mara , M artim G on ç alves da
instituir um modelo de governação própria Foram escritos vários folhetos de forte conteú-
imbuído no espírito da Contrarreforma, cen- do satírico atingindo os irmãos Câmara, desig-
tralizando a autoridade real como parte do nadamente um onde se podia ler “El-Rei nosso
desígnio divino e defensor da afirmação da senhor por fazer mercê a Luís Gonçalves, e a
cristandade pela força das armas. Neste mode- Martim Gonçalves, e aos padres da Companhia,
lo de governação, o Rei delega poderes a um há por bem de não casar estes quatro anos e
escrivão da puridade, figura equivalente a um estar com eles aberrado” (VELOSO, 1935, 131).
primeiro-ministro. Outro texto, da autoria de Simões de Castro,
Para o cargo de escrivão da puridade, pri- procurava, na mesmo toada cómica, criticar
meiramente, mantém Pedro d’Alcáçova Car- “Um mancebo sem experiência/e um velho
neiro, nobre da confiança de D. Catarina de sem saber/dois irmãos sem consciência/deita-
Áustria. No entanto, por influência de Luís ram este Reino a perder” (Id., Ibid., 42).
Gonçalves da Câmara, o Rei acabaria por co- A campanha contra os padres jesuítas Luís e
locar em 1569 Martim Gonçalves da Câmara Martim Gonçalves da Câmara lançaria um epí-
no lugar de escrivão da puridade. Com os di- teto negro à ordem. Na verdade, mais precisa-
versos cargos que assumia, Martim Gonçalves mente no séc. xviii, ao tempo do Marquês de
da Câmara exercia o seu poder livremente Pombal, e no séc. xix, durante a Revolução Li-
no reino, encarregando-se de todas as maté- beral, as vozes contrárias à ordem de Inácio de
rias de Estado. Escreve Bernardo da Cruz, na Loyola reacendiam a suposta responsabilidade
Crónica de El Rei D. Sebastião, a este propósito: dos Jesuítas na perda da independência e na
“De tal modo cresceu a autoridade de Martim consequente decadência com o reino que se
Gonçalves ante el rei, e o povo, pelo muito viu confrontado.
zelo da justiça que mostrava e diligência que A História veio a provar infundadas as acusa-
respondia aos despachos das partes, que viu ções contra os Câmara. Apesar da grande au-
quase em tudo a descarregar os cuidados nele toridade de que estes gozaram no ensinamen-
e ficar mais livre em seus honestos passatem- to de moralidade ortodoxa cristã ao Monarca,
pos” (CRUZ, 1837, 20). que influenciou a edificação do seu carácter, os
Outro cronista da época, Pero Roíz Soares, irmãos Câmara aconselharam o Rei no sentido
descreve a influência que Martim Gonçalves da de ajustar matrimónio, sendo também contrá-
Câmara detinha sobre D. Sebastião, afirmando rios aos intentos de D. Sebastião no tocante à
que “ele foi tanto na privança e mando que era campanha africana.
tudo neste tempo e nada el-Rei fazia senão o A morte de seu irmão Luís Gonçalves da Câ-
que ele queria” (SOARES, 1953, I, 13). mara, a 15 de março de 1573, acabará por ditar
Foi descrito por Henrique Henriques de No- o início da queda de Martim Gonçalves da Câ-
ronha como um homem que, apesar de priva- mara e o consequente afastamento dos negó-
do do Rei, “já mais de aproveitar do dito va- cios do reino.
limento para si, nem para os seus parentes; Em 1574, a ida do Rei D. Sebastião para
antes lhes não aceitou as nominatas do Bispo Marrocos deixou Martim Gonçalves da Câma-
de Coimbra, e a de Arcebispo de Évora” (NO- ra com plenos poderes nas decisões do reino.
RONHA, 1996, 389). Porém, desentendimentos posteriores com
A hegemonia na corte por parte dos irmãos o cardeal D. Henrique, por se recusar a ser-
Câmara agudizou os ódios dos nobres do par- vir sob o seu jugo, levariam a que deixasse o
tido de D. Catarina de Áustria. Houve uma paço para viver no Convento de S. Domingos
profusa contestação aos irmãos Câmara, que de Benfica.
foram acusados do falhanço das negociações Com o retorno do Rei D. Sebastião de Áfri-
do casamento do Rei e das atitudes e escolhas ca, Martim Gonçalves da Câmara regressa às
irresponsáveis deste que colocavam em perigo antigas funções, vendo-se, no entanto, envolvi-
a independência do reino. do em intrigas perpetradas por nobres a favor
C â mara , M artim G on ç alves da ¬ 801
de D. Álvaro de Castro, e o
regresso de Pedro d’Alcáço-
va Carneiro à esfera de in-
fluência do Rei acabaria por
levá-lo sair do paço em maio
de 1576. Desta época surge
a história fantasiosa de que
Martim Gonçalves da Câma-
ra, numa ação prepotente,
teria humilhado sua cunha-
da D. Maria de Noronha,
viúva de Nuno Gonçalves da
Câmara, por se ter casado com um homem Morreu a 6 de outubro de 1613 e foi sepulta-
de baixa condição, e de que esta atitude pro- do na Casa Professa de S. Roque, na capela que
vocou o descontentamento e o descrédito do edificou para si.
Rei. Este relato é fantasioso, pois Martim Gon- Henrique Henriques de Noronha cita o elo-
çalves da Câmara não tinha nenhum irmão gio do Poeta de Guimarães, que escreveu: “Este
chamado Nuno, nem uma cunhada Maria de que com mil datas afluentes,/Cobra nome
Noronha.
Depois da derrota portuguesa em Alcá-
cer Quibir, no malogrado reinado do cardeal
D. Henrique, Martim Gonçalves da Câmara
ainda desempenhou funções no Conselho de
Estado. Durante a crise de sucessão, procurou
por todos os meios impedir que o reino caís-
se nas mãos da Coroa espanhola, ensaiando a
criação, com seu primo D. João Telo de Me-
nezes, de uma força de defesa do Estado para
impedir a invasão castelhana; neste sentido,
procurou que o clero exortasse o povo a que
protegesse o reino de Portugal. Primeiramen-
te, apoiou a causa dinástica de D. Catarina de
Bragança e, depois, a sucessão de D. António
Prior do Crato, participando nas cortes em
Sintra que o aclamaram como rei de Portugal.
Depois de 1580, estas ações acabariam por
despertar o ódio de Cristóvão de Moura, que
o perseguiu, prendeu e desterrou para Cas-
tela, onde permanecia em 1583. Por volta do
ano de 1595, é autorizado a voltar a Portugal
para se recolher numa das igrejas da ordem da Fig. 4 – R. do Padre Gonçalves da Câmara, Funchal
Companhia de Jesus. (arquivo particular).
802 ¬ C â mara , M atilde O l í mpia S auvayre da
real, pela largueza,/Parco só para si, e seus pa- desde criança, nos eventos musicais funcha-
rentes,/E como tal julgado da Nobreza,/Porto lenses de finais do séc. xix. Matilde Sauvayre
de altos varões, e de prudentes,/Professa nisto da Câmara dedicou-se a ambas as áreas ar-
estilo de grandeza,/Com que amizades con- tísticas – literatura e música –, bem como
servar pretende,/E alta quietação seu zelo em- ao charadismo. Apresentou-se primeiramente
preende” (NORONHA, 1996, 389). como cantora, em eventos semiprivados nos
quais participava a sua irmã Maria das Dores,
Bibliog.: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. ii, Funchal, Secretaria Regional
da Educação, 1991; CRUZ, Bernardo da, Chronica de el-Rei D. Sebastião, Lisboa,
como, e.g., os saraus em casa do médico Adria-
Impressão de Galhardo e Irmãos, 1937; LEITE, Jerónimo Dias, Descobrimento no Augusto Larica e dos viscondes de Monte
da Ilha da Madeira e Discurso da Vida e Feitos dos Capitães da Dita Ilha, Lisboa,
Belo, em janeiro de 1893. Na récita de Car-
Alfa, 1989; Memorial de Pero Roiz Soares, Coimbra, Atlântida, 1953; NORONHA,
Henrique Henriques de, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição naval realizada no palácio dos Viscondes de
da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1996; Torre Bela em fevereiro de 1893, Matilde ini-
PORTO, Nuno de Vasconcelos, “Três madeirenses nacionalistas, esboços
biográficos, Martim Gonçalves da Câmara”, Das Artes e da História da Madeira, ciou também, precocemente, a apresentação
vol. 5, n.º 25, 1957, pp. 45-53; RODRIGUES, Francisco, História da Companhia de da sua própria produção musical e dramáti-
Jesus na Assistência de Portugal, 8 vols., Porto, Livraria Apostolado da Imprensa,
1931-1950; SERRÃO, Joel (coord.), Dicionário de História de Portugal, vol. i, ca, tendo sido interpretadas algumas das suas
Lisboa/Porto, Figueirinhas, 1999; TEIXEIRA, António José, Documentação para canções que integravam a opereta lírica Cha-
a História dos Jesuítas em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1899;
VELOSO, J. M. de Queirós, D. Sebastião. 1555-1578, Lisboa, Empresa Nacional rada (Em Quatro Sílabas) (também intitulada
da Publicidade, 1935; Id., O Interregno dos Governadores e o Breve Reinado de Charada Característica em forma de Sílaba), com-
D. António, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1953.
posta em coautoria com Carolina Dias de Al-
Carlos Barradas meida (?-1895). No concerto de amadores em
benefício da Casa dos Pobres Desamparados
Fig. 2 – Participantes na récita de gala Arraial Madeirense da visita régia, Teatro D. Maria Pia, 22 de junho de 1901
(Photographia Vicente, reeditada na Alemanha).
e da Associação Protetora dos Estudantes Po- repertório apresentado, tendo recebido pelo
bres, realizado a 20 de novembro de 1897 no seu excelente desempenho os encómios do
Teatro D. Maria Pia, Matilde interpretou Aca- conde de Arnoso, secretário do Rei. A primei-
nhamento (monólogo e cançonetas), peça de ra obra apresentada, a comédia Morto à Força,
sua possível autoria, bem como Parais à ta Fê- foi interpretada pela autora (no papel prin-
netre, serenata para canto e piano de Antoi- cipal), por sua irmã Maria das Dores, pelos
ne Queyriaux e Louis Gregh. A demais pro- membros da comissão organizadora barão de
dução teatral e dramático-musical de Matilde Uzel e Luís Vicente de Freitas Branco e por
Sauvayre da Câmara compreende a opere- Adelaide Pestana, Júlia Affonseca, João Teles
ta Dois Dias em Paris, estreada a 24 de junho de Menezes Cabral e Dr. João Leite Montei-
de 1901 no Teatro D. Maria Pia, a comédia ro. Arraial Madeirense, interpretado na ter-
Morto à Força e o quadro Arraial Madeirense, es- ceira parte da récita, é uma obra de carácter
treados numa récita de gala dedicada ao Rei ocasional, destinada à exibição das caracterís-
D. Carlos e à Rainha D. Amélia, realizada no ticas folclorísticas regionais à comitiva real,
mesmo teatro a 20 de junho de 1901, aquan- bem como à laúde da Rainha. O quadro com-
do da visita dos monarcas à Região. A comis- preende uma cena campestre, com “jovens
são responsável pela administração desta ré- da mais alta sociedade” em trajes de “vilão”
cita de gala, constituída pelo conde de Torre e “viloa”, com bailares e cantares, mormen-
Bela (Thomas Russel Manners Webster Gor- te “descantes ao desafio”, acompanhados por
don), o barão de Uzel (Luís Alexandre Ribei- violas e pela orquestra; danças regionais por
ro de Mendonça), Nuno Jardim e o comen- 20 pares de crianças com acompanhamento
dador Luís Vicente de Freitas Branco, terá de orquestra; e um coro dedicado à Rainha
determinado atribuir a direção do evento a D. Amélia, da autoria da biografada, inter-
Matilde Sauvayre da Câmara, à época a com- pretado por todos os intérpretes do quadro
positora diletante de maior renome no Fun- (NÓBREGA, 1901; FREITAS BRANCO, 1949
chal. A biografada foi responsável pela auto- ‑1953, III, 89). Terá cabido exclusivamente a
ria, ensaio e interpretação da maior parte do Matilde Sauvayre da Câmara a interpretação
804 ¬ C â mara , M atilde O l í mpia S auvayre da
dezembro de 1957. O seu espólio foi legado ao 1830 e 1833. Em 1841, seguiu para o Brasil, de
compositor e professor Jorge Croner de Vas- onde regressou em 1853. Após alguns meses
concelos, filho do seu primo, Alexandre Moniz na Europa, retornou novamente ao Rio de Ja-
de Bettencourt (1868-1945) – neto dos viscon- neiro, onde veio a falecer a 4 de fevereiro de
des de Nogueiras, professor de violino e de 1854. Em 1833, casou-se, no Funchal, na paró-
música de câmara do Conservatório Nacional quia de São Pedro, com Ana Madalena de Frei-
de Lisboa. O seu espólio musical, que ficou ao tas Lomelino, com quem teve uma filha, Maria
cuidado de Laura Moniz de Bettencourt, sobri- Augusta Perestrelo.
nha de Jorge Croner de Vasconcelos, em Oei- Na obra Diccionario Bibliographico Portuguez,
ras, Lisboa, compreende a sua produção literá- de Inocêncio Francisco da Silva, o trabalho
ria e musical, nomeadamente a sua obra para empreendido por Paulo Perestrelo da Câma-
canto e piano/guitarra e a opereta Dois Dias em ra foi destacado no volume vi, publicado em
Paris, bem como as coleções de música e teatro 1862. Inocêncio Francisco da Silva afirma,
musical de Carolina Dias de Almeida e de mú- no verbete que lhe dedica, ter conhecido e
sica da sua irmã Maria das Dores. A sua epis- convivido com Paulo Perestrelo da Câmara
tolografia está à guarda de Jacinto Moniz de entre 1830 e 1833. Pelas suas referências, Câ-
Bettencourt. mara partira para o Rio de Janeiro em 1841,
onde permaneceu até 1853, quando retor-
Bibliog.: manuscrita: ABM, 1.ª Repartição de Finanças do Funchal, Processo
de Sucessão de Matilde Sauvayre da Câmara; Arquivo da Família Bettencourt,
nou para Portugal “por conveniências de in-
Fundo Musical Matilde Sauvayre da Câmara, Espólio de Jorge Croner de teresse particular”. A sua estadia em Lisboa
Vasconcelos; impressa: “Apontamentos da viagem de Sua Magestade”, Diário
foi curta e logo regressou ao Rio de Janeiro,
de Notícias, 24 jun. 1901; BETTENCOURT, J. Moniz de, Os Bettencourt. Das
Origens Normandas à Expansão Atlântica, Lisboa, ed. do Autor, 1993; CLODE, falecendo no começo de fevereiro, quando
Luís Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa contava 44 anos.
Económica do Funchal, 1983; “Concerto”, Diário de Notícias, 18 nov. 1897, p.
2; “Espectáculos. Teatro D. Maria Pia”, Diário de Notícias, 19-20 nov. 1897, p. 3; Considerando o conjunto das obras que pu-
ESTEIREIRO, Paulo, 50 Histórias de Músicos na Madeira, Funchal, Associação de blicou, é possível observar que Paulo Perestre-
Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística, 2008; Id., Emergência
e Declínio do Piano na Vida Quotidiana Madeirense (1821-1930), Dissertação lo da Câmara se dedicou ao estudo da mate-
de Doutoramento em Ciências Musicais apresentada à Universidade Nova mática e à redação de textos sobre história e
de Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 2011; “Festa encantadora”, O Direito,
15 fev. 1893, p. 2; GOMES, Alberto F., “Algumas notas sobre os poetas das geografia de Lisboa e Portugal. As suas obras,
‘Flores da Madeira’”, Das Artes e da História da Madeira, n.º 15, 1953, p. 20; apesar de algumas imprecisões, revelam um
Nóbrega, Ciríaco de Brito, A Visita de Suas Majestades os Reis de Portugal ao
Arquipélago Madeirense. Narração das Festas, Funchal, Tip. Esperança, 1901;
autor preocupado com a história e a memória
PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentário para a História Literária do seu país, onde a ilustração ganha contor-
da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1949-1953; “Récita
e baile. Grande festa no palácio Torre Bela”, Diário de Notícias, 18 fev. 1893, p.
nos nítidos.
3; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; “Soirée”, Diário de Notícias, 2 fev. Obras de Paulo Perestrelo da Câmara: Grammatica das Grammaticas da
1893, p. 2; digital: ESTEIREIRO, Paulo, “Matilde Sauvayre da Câmara”, Dicionário Lingua Portuguêza; Theoria de Fracções Complexos e Proporções...; Descripcao
de Músicos na Madeira. Séculos XIX e XX, s.d.: http://www.recursosonline.org/ Geral de Lisboa em 1839, ou Ensaio Historico de Tudo Quanto Esta Capital
index.php?option=com_sobipro&pid=54&sid=77:CAMARA-Matilde-Sauvayre- Contem de mais Notável, e Sua Historia Política e Literária até o Tempo Presente
da&Itemid=0 (acedido a 21 out. 2014). (1839); Memorias sobre a Ilha da Madeira,/Breve Noticia sobre a Ilha da Madeira,
ou Memorias sobre a Sua Geographia, Historia, Geologia, Topographia,
Agricultura e Commercio (1841); Guia de Viajantes em Lisboa e Suas Vizinhaças
Rui Magno Pinto
(1845); Novo Tratado de Arithmetica Commercial, ou Desenvolvimento
Simplificado de Todas as Regras de Arithmetica Relativas ao Commercio... (1846);
Collecção de Provérbios, Adágios, Rifões, Anexins, Sentenças Moraes e Idiotismos
da Lingua Portugueza (1848); Diccionario Geographico, Historico, Politico e
Câmara, Paulo Perestrelo da Literário de Portugal e Seus Domínios... (1850); Nova Descripcao de Lisboa, dos
Seus Arredores, e de Cintra, Pena e Mafra, com Um Ensaio Histórico de Tudo Que
Esta Capital Contém de mais Notável, Ornado com Algumas Estampas (1853).
Paulo Perestrelo da Câmara nasceu na cidade
do Funchal, na ilha da Madeira, em 1810, filho Bibliog.: FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra, Funchal, Typ. Funchalense,
1873; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
do morgado Bento José Perestrelo da Câmara Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978;
e de Ana Perestrelo da Câmara. A sua história SILVA, Inocêncio Francisco da, Diccionario Bibliographico Portuguez, t. vi, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1862.
é pouco conhecida, e as suas publicações apon-
tam para o facto de ter vivido em Lisboa, entre Paulo de Assunção
806 ¬ C aminho de ferro do M onte
Fig. 1 – Vista do Funchal com a linha do caminho de ferro do Monte em construção, 1890 (ABM, Arquivos Particulares).
O projeto do caminho de ferro do Monte A ideia nasceu com António José Marques,
surge na Madeira neste quadro, como resul- natural de Lisboa, primeiro concessionário do
tado de diferentes fatores que se conjugaram empreendimento, cuja proposta foi apresenta-
entre si. Aparece para responder à necessidade da na Câmara Municipal do Funchal (CMF),
de dotar a Ilha de um transporte mais seguro, na sessão de 17 de fevereiro de 1887. O projeto
que não expusesse os seus visitantes e habitan- conheceu alguns impasses, vindo a concessão a
tes aos perigos do relevo insular, para reduzir ser assumida pelo Cap. Manuel Alexandre de
o tempo de viagem até ao Monte, para satisfa- Sousa, segundo concessionário, situação aceite
zer o anseio de querer acompanhar o progres- em sessão camarária de 24 de julho de 1890.
so ao nível dos transportes que se verificava na A Sociedade do Caminho de Ferro do Monte
Europa, para apoiar o desenvolvimento turísti- acabou por ser constituída a 17 de outubro
co, especialmente no percurso do Funchal ao desse ano, integrando, entre os principais acio-
Monte, e para satisfazer interesses económicos nistas, Luís da Rocha Machado (1848-1912),
de algumas entidades da Ilha. Sendo a fregue- o vereador municipal João Luís Henriques,
sia do Monte um local de grande afluência de Porfírio de Oliveira e o inglês Walter Hastings
residentes e forasteiros, o caminho de ferro Coward, que passaria a representar a compa-
trouxe não só a facilidade de deslocação, mas nhia em Londres.
também proporcionou às freguesias do Monte Os principais comerciantes ingleses residen-
e de Santa Luzia um crescimento urbanístico, tes na Ilha demarcaram-se do projeto, che-
pois valorizou os terrenos circundantes e pro- gando mesmo a boicotá-lo, e os grandes pro-
porcionou aos seus proprietários e investidores prietários madeirenses limitaram-se a entrar
a edificação de numerosas habitações. com pequenas quantias. No entanto, entraram
808 ¬ C aminho de ferro do M onte
Fig. 5 – Funcionários e passageiros no caminho de ferro do Monte, c. 1920 (ABM, Arquivos Particulares).
vereadores da CMF na época estudada. A ação Gonçalves. São os casos das agências bancárias,
da Câmara também se estendeu à vistoria das de navegação, de carvão, tipografias, entre
obras, nomeadamente a 17 de março de 1893, outros. Todos eles, implicitamente, tanto po-
para averiguar as condições de segurança para deriam complementar o funcionamento do
a abertura da linha ao público. De facto, fize- comboio do Monte, como poderiam ser dire-
ram a vistoria o diretor das obras públicas, o tamente concorrentes.
subdelegado da saúde e os engenheiros já cita- Após a inauguração e início da exploração
dos, os irmãos Trigo, o que deve ter levado ao do caminho de ferro do Monte, cuja estação
afastamento, em agosto, do Cap. Manuel Au- principal e os escritórios da Companhia se se-
gusto de Sousa. dearam na rua do Pombal, todos os sectores da
Os sucessivos diretores da CCFM estiveram, sociedade madeirense aplaudiram esse feito.
amiudadas vezes, direta ou indiretamente im- Se estivermos perante um sentimento verídi-
plicados no confronto com outros poderes pri- co, as lutas e rivalidades anteriores teriam sido
vados instalados. Inicialmente, foi o caso de mera manobra de persuasão; caso contrário,
Luís da Rocha Machado, em confronto com não teriam passado de pura hipocrisia de al-
John Burden Blandy (1839-1912) relativamen- guns que nunca acreditaram, ou nunca quise-
te à polémica do término da linha férrea no ram, que a iniciativa privada conseguisse levar
Monte, na década de 90 do séc. xix. Posterior- a cabo o empreendimento.
mente, embora essa luta não seja tão explícita, Não se pode afirmar com precisão que o com-
ela mantém-se, dado o mesmo John B. Blandy boio foi o maior responsável pelo aumento da
oferecer um conjunto de serviços à população construção das habitações pela encosta, uma
que, em determinados sectores económicos, vez que a cidade se estendeu por toda a mon-
eram diretamente concorrentes com os do di- tanha envolvente. Contudo, deve referir-se que
retor da Companhia, o comendador Manuel os requerimentos dos cidadãos das freguesias
812 ¬ C aminho de ferro do M onte
Fig. 7 – Viagem inaugural do segundo troço do comboio do Monte, 2 de agosto de 1894 (ABM, Arquivos Particulares).
C aminho de ferro do M onte ¬ 813
Fig. 8 – João Gonçalves Zarco, bronze de Francisco Franco (1914), restaurante do Terreiro da Luta,
aguarela de Max Römer, 1922 (Casa-Museu Frederico de Freitas).
puxados por três cavalos e se deslocavam sobre um restaurante panorâmico que era explora-
carris. Estes carros circulavam diariamente e do pela própria CCFM, com capacidade para
estabeleciam a ligação entre a referida praça e 400 clientes e considerado, então, do melhor
a rua do Pombal, onde estava, e está, a estação a nível internacional. O restaurante não dei-
do elevador do Monte. O “carro americano” xou de melhorar o seu enquadramento e de
estacionava no largo da Restauração, ao sul da cuidar da sua imagem, pelo que, em 1914, foi
praça da Constituição e junto das traseiras da encomendada para o jardim uma escultura de
fortaleza de S. Lourenço, como atestam várias um romântico e jovem Zarco a Francisco Fran-
fotografias. co (1885-1955), e, a partir de 1922, data em
Em termos de viabilidade económica, as previ- que se fixou na Madeira o aguarelista austríaco
sões não só foram atingidas, como foram supera- Max Römer (1878-1960), este, em nome e por
das, segundo o Relatório de Contas da Companhia encomenda da Mount Railway Co., cuidou lar-
relativo ao ano de 1897. Neste ano, a empresa gamente da imagem da companhia.
liquidou o seu passivo, obtendo ainda os primei- O caminho de ferro do Monte era uma via-
ros lucros resultantes da sua atividade, pelo que, -férrea de cremalheira do sistema Riggenba-
consolidada a situação, a 12 de julho de 1910, a ch. Desenvolvia-se em via única de bitola mé-
CCFM, em assembleia geral, decidiu prolongar trica, exceto nas estações do Livramento e do
o comboio até ao Terreiro da Luta. A preten- Monte, onde havia um desvio para permitir
são foi aprovada pela CMF, a 4 de agosto desse o cruzamento de comboios. As composições
ano. Cerca de dois anos depois, a 24 de julho eram formadas por uma única carruagem,
de 1912, o comboio chegava finalmente ao Ter- que era empurrada (no sentido ascendente)
reiro da Luta, a 850 m de altitude, ficando, no ou sustida (no descendente) pela locomotiva;
total, com uma extensão de 3911 m e as seguin- o peso da carruagem mantinha-a em contacto
tes paragens: Pombal, Levada de Santa Luzia, com a locomotiva, pelo que não havia neces-
Livramento, Quinta Sant’Ana (Sant’Ana), Fla- sidade de atrelagem. A companhia chegou a
mengo, Confeitaria, Atalhinho (Monte), Largo possuir cinco locomotivas, quatro construídas
da Fonte e Terreiro da Luta. pelas firmas alemãs Maschinen-Fabrick Esslin-
Na mesma data, inaugura-se na estação do Ter- gen, de Estugarda, e uma pela Schweizerische
reiro da Luta o Chalet Restaurant-Esplanade, Lokomotiv-und Maschinenfabrik, de Sitz, em
814 ¬ C aminho de ferro do M onte
Winterthur, e cinco carruagens de passagei- século, a CCFM possuía três locomotivas, uma
ros com capacidade para 60 pessoas, uma das nova e duas antigas, que, apesar de terem sido
quais se encontra hoje no Museu do Caminho sujeitas a várias reparações, ofereciam pouca
de Ferro de Berlim. Existiam ainda alguns va- segurança.
gões mais pequenos e baixos para transporte Um violento desastre ocorreu a 10 de se-
de bagagem. tembro de 1919, quando o comboio subia
A exploração do comboio do Monte não em direção ao Monte, dando-se uma explo-
foi imune às crises e conjunturas económicas são na caldeira da locomotiva, que a des-
ao nível europeu das primeiras décadas do truiu totalmente. Deste acidente resultaram
séc. xx. Foi o que aconteceu durante a Primei- quatro mortos e vários feridos, entre os 56
ra Guerra Mundial, em que o menor fluxo de passageiros que seguiam a bordo. As viagens
visitantes e a redução do abastecimento de car- foram suspensas até 1 de fevereiro do ano se-
vão foram significativos. Nesse sentido, medi- guinte. Pouco mais de 10 anos depois, a 11
das de contenção de despesas, usando menos de janeiro de 1932, ocorreu novo desastre,
carvão e menos água de refrigeração na loco- desta vez por descarrilamento.
motiva, levaram à explosão da caldeira de uma A partir de então, turistas e habitantes vira-
das locomotivas. Nos inícios de 1903, já tendo ram as costas ao caminho de ferro, consideran-
sido tornado público que algumas das locomo- do-o demasiado perigoso, e, com a concorrên-
tivas se encontravam em mau estado de fun- cia do automóvel, tal como com o deflagrar da
cionamento, foi ordenado à Companhia que Segunda Guerra Mundial, a partir de 1939, ve-
seguisse várias precauções, de forma a garantir rificou-se uma quebra muito significativa de tu-
a segurança pública. Nesses primeiros anos do ristas na Madeira, e a CCFM entrou em crise,
Fig. 10 – Madeira, Elevador do Monte, bilhete-postal animado do Bazar do Povo, c. 1905 (ABM, Arquivos Particulares).
acumulando uma grande dívida. Esse conjun- rápido e fomentar o desenvolvimento socioe-
to de fatores levou a que o governo, por dec- conómico da Ilha, tendo cada um deles dei-
-lei n.º 32724, de 29 de março de 1943, tives- xado marcas visíveis na paisagem urbana que
se mandado encerrar a linha, o que aconteceu podem bem servir de elementos iconográficos
logo em abril seguinte, vindo a CMF a abrir da cidade funchalense. O comboio ou eleva-
concurso público para vender em leilão todo o dor do Monte será sempre parte integrante da
material, desde as máquinas às vias. história da Ilha, assim como as influências por
O produto do leilão foi aplicado no paga- ele deixadas no desenvolvimento urbanístico
mento das dívidas da empresa. Parte do mate- do Funchal, na vida quotidiana de muitos ma-
rial resultante do desmantelamento, nomeada- deirenses e no imaginário de muitos dos foras-
mente os carris, foi para a sucata e parte foi teiros que nele viajaram para o idílico sítio do
utilizada pelo arrematador na reparação do Monte.
elevador do Bom Jesus, em Braga. Uma das ve- Em outubro de 2003, a CMF lançou um con-
lhas locomotivas do caminho de ferro ainda curso público internacional para a reconstru-
faria uma última viagem a 17 de maio de 1943, ção do caminho de ferro do Monte, dado cons-
pois o comerciante do Porto que comprara o tituir uma absoluta “mais-valia patrimonial”,
espólio do caminho de ferro do Monte, Fran- como referiu então o presidente da edilidade
cisco Alves de Sousa, teve a ideia de convidar (NÓBREGA, 3 out. 2003, 50). O caderno de
um grupo de amigos a acompanhá-lo numa úl- encargos, que consignava um direito de explo-
tima viagem do comboio. ração de 50 anos, pressupunha um troço em
Fazendo um paralelismo com o atual telefé- funicular entre o largo do Monte e o Terreiro
rico, que liga o centro da cidade do Funchal da Luta e uma ligação por comboio de anima-
ao Monte, podemos dizer que os objetivos de ção turística daí até ao largo das Babosas, local
ambos os empreendimentos se cruzam: apoiar de chegada do atual teleférico do Monte, bem
o turismo, dotar a cidade de um transporte como a recuperação, com materiais da época,
816 ¬ C aminho N eocatecumenal
Bibliog.: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. vii, Funchal, Secretaria Regional
da Educação/Universidade da Madeira, 2008; Id., e MELLO, Luís de Sousa,
Associação Comercial e Industrial do Funchal. Esboço Histórico (1836-1933),
Funchal, Edicarte, 2002; GOMES, Luís Valentim, O Caminho do Comboio e as
Alterações Urbanísticas do Funchal, Funchal, CEHA, 2005; HARCOURT, Edward
Vernon, A Sketch of Madeira, Containing Information for the Traveller, or Invalid
Visitor, com litografias de Susan Vernon Harcourt, London, J. Murray, 1851;
NÓBREGA, Tolentino da, “Funchal reabilita antigo caminho-de-ferro. Concurso
público a nível europeu”, Público, 3 out. 2003, p. 50; SILVA, Fernando Augusto
da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998.
Rui Carita
Caminho Neocatecumenal
O Caminho Neocatecumenal, definido pelo
Papa João Paulo II como “itinerário de forma-
ção cristã” (JOÃO PAULO II, 1990), é uma rea-
Fig. 1 – Kiko Arguëllo (arquivo particular).
lidade eclesial dotada de personalidade jurídi-
ca pública e que tem como objetivo a iniciação
cristã, antes do batismo, ou a redescoberta da de Palomeras Altas, arredores de Madrid, na
iniciação cristã após um período de vida cris- sua maioria habitadas por ciganos, prostitutas
tã de afastamento ou de vivência pouco ativa, e ex-presidiários. Kiko Argüello atravessava,
rumo a uma fé adulta. A aprovação definitiva então, uma crise existencial; Carmen vivia en-
dos estatutos, que contemplam também as di- tusiasmada pelas novas orientações pastorais
ferenças da liturgia e da catequese, foi dada emanadas do Concílio Vaticano II. Posterior-
pelo decreto de 11 de maio de 2008 do Conse- mente, em 1970, associou-se a esta realidade o
lho Pontifício para os Leigos, após uma apro- padre italiano Mario Pezzi (1941), missionário
vação provisória, ad experimentum, concedida comboniano que, em 1992, deixou a sua con-
cinco anos antes. gregação religiosa para se dedicar inteiramen-
Através de uma espécie de retorno às primi- te ao Caminho. Este dispõe hoje de um semi-
tivas comunidades cristãs, o Caminho Neocate- nário missionário internacional, Redemptoris
cumenal pretende ser uma fuga ao anonimato Mater, situado em Roma e fundado em 1986,
e à massificação vigente em algumas assem- e de 99 outros, espalhados por vários países.
bleias paroquiais, facto agravado pela escassez Estão já a funcionar também três seminários
de clero, e uma resposta às determinações do Redemptoris Mater em Portugal: um em Lis-
Concílio Vaticano II (1962-1965) no sentido boa, um no Porto e outro em Évora. Estes semi-
de uma maior renovação do papel dos leigos nários são diocesanos e missionários, erigidos
na evangelização. O pintor espanhol Francisco pelos bispos mas custeados pelo Caminho; a
José Gomes Argüello (Kiko), nascido em Léon formação de base é a mesma de qualquer semi-
em 1939, e Carmen Hernandez, nascida perto nário diocesano, frequentando os candidatos
de Ólvega em 1931, licenciada em Química e ao sacerdócio, no caso português, a Faculda-
Teologia e ex-religiosa da Ordem das Missioná- de de Teologia da Univ. Católica Portuguesa,
rias de Cristo Jesus, foram os iniciadores desta em Lisboa. O Caminho reúne as várias comu-
nova realidade eclesial, em 1964, nas barracas nidades, de 20 a 50 membros dos dois sexos,
C aminho N eocatecumenal ¬ 817
mais de 1.000.000 de membros, sendo a Itália o neocatecumenais espalhadas por oito paró-
país que registava o maior número, seguindo- quias: no concelho do Funchal, duas na Naza-
-se a Espanha. Em Portugal, à data, havia já 300 ré, duas na Graça (Santo António) e uma no
comunidades, dispersas por 19 das 20 dioceses Livramento; no concelho de Câmara de Lobos,
do país; a primeira foi fundada na paróquia de cinco no Estreito de Câmara de Lobos, uma no
Nossa Senhora da Penha de França, em 1968, Garachico e uma no Carmo; no concelho da
a pedido do P.e João de Brito, missionário dos Ribeira Brava, uma em São Bento (Vila); no
Sagrados Corações. concelho de Santa Cruz, uma no Caniço; e, no
O Caminho Neocatecumenal chegou à Ma- concelho de Santana, uma em São Jorge. Os
deira em outubro de 1993, tendo-se forma- responsáveis de cada comunidade da Diocese
do a primeira comunidade na paróquia de do Funchal, escolhidos por eleição, dependem
Santa Maria Maior. Esta comunidade acabou e são orientados por uma equipa de catequis-
por perder alguns elementos, sendo os res- tas itinerantes que superintendem nas comuni-
tantes transferidos para uma outra, que en- dades das regiões autónomas da Madeira e dos
tretanto se formou na paróquia da Graça, na Açores e de Cabo Verde. Esta equipa está em
freguesia de Santo António. Na Diocese do contacto com os bispos das respetivas dioce-
Funchal, existiam, em 2014, 15 comunidades ses, com quem se reúne sempre que necessário
para informar do decurso da atividade evange-
lizadora do Caminho Neocatecumenal.
O Caminho tem já proporcionado vocações
sacerdotais e religiosas em Portugal e noutros
países. Na Diocese do Funchal, esta experiên-
cia é partilhada por vários sacerdotes. Embo-
ra ainda restrito a poucas paróquias, maiorita-
riamente localizadas na costa sul, o Caminho
Neocatecumenal tem já trazido ao seio da Igre-
ja, nesta diocese como em outras, pessoas que
por uma ou outra razão viviam alheadas da sua
fé cristã, e os testemunhos que têm prestado
publicamente revelam esse reencontro com a
fé e uma maturidade e militância cristã que a
elas próprias surpreendeu.
O financiamento das grandes despesas com os
seminários e, pontualmente, com as viagens in-
ternacionais dos catequistas itinerantes provém
da fundação diocesana Sagrada Família de Na-
zaré, com duas sedes, uma em Roma e outra em
Madrid, sendo que a equipa internacional do
Caminho apenas tem o direito de se pronunciar
sobre a aplicação do fundo financeiro. O paga-
mento das despesas correntes e de deslocação
de equipas de catequistas é assegurado pela co-
munidade de origem dos catequistas e pela co-
munidade recetora, através de coletas voluntá-
rias, não havendo lugar a quotas estipuladas.
Gabriel Pita
Camões, Luís de
O nosso maior épico nacional liga-se à his-
tória das representações da Madeira ao de-
dicar uma farta oitava de Os Lusíadas a esta
Ilha, que a engrandece e a faz superar outras
ilhas famosas da Antiguidade clássica, cujos
feitos, geografia, cultura e modelos literários
se constituem, como era prática naquele deal-
bar da Modernidade, como referência deste
poeta maior do humanismo renascentista
português. Eram esses modelos clássicos refe-
rência não só para imitar, mas mais ainda para
atualizar e superar. As narrativas dos humanis-
tas portugueses, como Duarte Pacheco Perei-
ra, Fernando Oliveira, João de Barros, entre Fig. 1 – Luís de Camões, cópia do retrato de Fernão Gomes
(Lisboa, 1570 a 1573), Luís José Pereira de Resende, c. 1820
tantos outros, sobre as gestas decorrentes das
(aquisição pela Comissão Nacional para as Comemorações
viagens marítimas de descobrimento dos ca- dos Descobrimentos Portugueses) (ANTT, n.º invent. 3347).
minhos dos mares e da construção do primei-
ro império da Modernidade são atravessadas
pelo escopo de engrandecimento das realiza- quantas Vénus ama,/Antes, sendo esta sua, se
ções portuguesas por comparação com as ges- esquecera/De Cipro, Gnido, Pafos e Citera”
tas dos impérios antigos, reforçando a tese de (CAMÕES, 2018, V, 5).
que estes foram ultrapassados em muitos as- A Madeira é elevada a um estatuto superior
petos. Ora, a descrição da Madeira enquadra- ao das antigas ilhas clássicas que tinham santuá-
-se neste ideário. Camões coloca na boca de rios dedicados a Vénus, apontando a beleza, as
Vasco da Gama, ao discursar perante o rei de condições amenas, as potencialidades naturais
Melinde, precisamente uma caracterização da e a posição estratégica desta Ilha situada num
Madeira como a ilha pioneira dos Descobri- dos pontos da grande área do extremo ociden-
mentos, porque a primeira a ser oficialmen- tal do mundo conhecido até à sua descober-
te encontrada e povoada no âmbito do mo- ta. Realmente, tinha passado cerca de sécu-
vimento expansionista marítimo promovido lo e meio sobre o achamento e o povoamento
pela Coroa portuguesa e pelas suas ordens e deste arquipélago da Madeira, que garantiria
outras instituições que lhe eram afetas. Aqui a Portugal uma espécie de porto de abrigo e
citamos na íntegra essa famosa estrofe de Ca- rampa de lançamento das viagens marítimas,
mões: “Passámos a grande ilha da Madeira,/ e, ao mesmo tempo, tinha-se constituído ali
Que do muito arvoredo assi se chama,/Das uma espécie de laboratório bem-sucedido de
que nós povoámos, a primeira,/Mais céle- experimentação de novas culturas, novas téc-
bre por nome que por fama;/Mas nem por nicas e novos modelos de organização social,
ser do mundo a derradeira/Se lhe aventajam que depois foram transplantados para outros
820 ¬ C am õ es , L u í s de
pontos do território do Império Português, já timbre antijesuítico, que tinha por referência a
consolidado no tempo de Camões. A posição grelha pombalina de interpretação que sobre-
geográfica da Madeira e o sucesso de alguns valorizava a influência nefasta da Companhia
produtos agrícolas ali plantados, nomeada- de Jesus na corte portuguesa, identificou pe-
mente do açúcar e, depois, do vinho, começa- rentoriamente os Jesuítas e, em particular, dois
ram a dar a esta Ilha a celebridade que Camões irmãos madeirenses na altura muito influentes
já exalta e que mais tarde será ainda mais enfa- como o alvo privilegiado das invetivas de Luís
tizada em cognomes usados para caracterizá-la, de Camões: o padre jesuíta e amigo de Iná-
como “rainha das ilhas”, “pérola do Atlântico”, cio de Loyola Luís Gonçalves da Câmara, que
“flor do oceano” e “jardim do mundo”. tinha sido precetor do jovem Rei, e o seu irmão
Fernando Augusto da Silva dedicou um estu- Martim Gonçalves da Câmara, este padre secu-
do aprofundado ao lugar da Madeira na epo- lar e escrivão da corte, ambos filhos de João
peia camoniana, que se torna obrigatório para Gonçalves da Câmara, quarto capitão-donatá-
quem pretenda aprofundar este tema e onde rio do Funchal.
encontramos a resenha circunstanciada do de- Estas figuras relevantes do teatro político do
bate observado entre alguns estudiosos que reinado de D. Sebastião nunca são diretamen-
chegaram a defender que a descrição da Ilha te nomeadas por Camões. Por isso, as conjetu-
dos Amores patente nos cantos ix e x de Os Lu- ras dos intérpretes estão impregnadas de uma
síadas corresponderia à Madeira ou teria como natural margem de subjetividade interpretati-
modelo esta Ilha, além de dar conta da ques- va que não nos permite inferir conclusões de-
tão também problemática, que envolveu espe- finitivas. O P.e Fernando Augusto da Silva, no
cialistas em navegação, como Gago Coutinho, seu citado estudo, não dá como concluído este
de saber se a armada de Vasco da Gama teria velho debate, não arriscando optar claramen-
passado e acostado à Madeira na sua primei- te por uma das teses em equação, ou seja, ou
ra viagem. O mesmo estudioso madeirense e pela identificação dos alvos da crítica camonia-
autor do Elucidário Madeirense traz à colação as na com estes irmãos Câmara, ou pela referên-
críticas duras exaradas, em especial nas estro- cia genérica a outras personalidades influen-
fes 84 e 85 de Os Lusíadas, sobre os maus e am- tes que não estes colaboradores próximos. De
biciosos conselheiros que rodeavam o Monar- qualquer modo, Fernando Augusto da Silva
ca português D. Sebastião. A historiografia de termina o seu estudo com uma observação
Fig. 2 – Estrofe de Os Lusíadas sobre a Madeira, Prq. de Santa Catarina, Funchal (arquivo particular, 2016).
C ampos , S igfredo V entura da C osta ¬ 821
Canadá
A presença portuguesa no Canadá não é uma
realidade do séc. xx, pois a História refere-nos
uma longa tradição que vincula o Português,
ilhéu ou não, a esse mundo ocidental desde a
segunda metade do séc. xv. Aliás, Jaime Cor-
tesão, com base em Bartolomeu de las Casas,
afirma perentoriamente ter sido o madeirense
Diogo de Teive, com Pedro de Velazco, quem
descobriu a Terra Nova, em 1452, na sua segun-
da viagem, e que, no regresso, terão encontrado
as ilhas das Flores e do Corvo. Por outro lado, Fig. 1 – Reprodução da Pedra de Dighton, Miguel Corte-Real,
Gaspar Frutuoso refere que, por volta de 1472, 1511; oferta dos madeirenses de Rhode Island (EUA), 2008, pro-
menade do Lido, Funchal (fotografia de José Lemos Silva, 2010).
João Vaz Corte Real teria descoberto a Terra
Nova dos Bacalhaus, numa viagem organizada
em parceria com Álvaro Martins Homem.
O cartógrafo João Vaz Dourado, no séc. xvi, portugueses. Traçado o percurso, o reconhe-
corrobora essa informação e chama “terra de cimento da costa americana prolongou-se por
João Vaz” a uma extensão da costa situada a todo o séc. xvi, partilhado por Ingleses, Fran-
norte e leste de Terra Nova. Por outro lado, ceses e Castelhanos.
o globo de Gemma Frisius, de 1537, refere, Antes de 1953, altura em que se iniciou a
entre o continente Ártico e o Canadá, o es- emigração organizada de Portugueses para o
treito dos três irmãos, numa alusão aos irmãos Canadá, já esta região estava incluída nos des-
Corte Reais. tinos dos emigrantes. A rota do bacalhau ga-
Em 1487, mais um madeirense, João Afonso nhou alguma familiaridade nestas paragens e
do Estreito, em parceria com Fernão Dulmo, conduziu à presença permanente de alguns.
está presente noutra tentativa de descoberta Os primeiros Portugueses que se fixaram no
de terra firme a ocidente. Segue-se-lhes João Canadá surgem já no séc. xvii. São eles: Jean
Fernandes, lavrador da ilha Terceira. No mapa Rodrigues e Pierre da Sylva, de Lisboa, e Mar-
de Cantino, de 1502, e no de Jorge Reinel, de tin Pierre, de Braga. O primeiro açoriano de
1519, surge a Gronelândia como a Terra do La- que há notícia, de apelido Miranda, surge em
vrador. Depois, foi a vez dos irmãos Gaspar e 1680. E o primeiro originário da Madeira é
Miguel Corte Real, em 1499 e 1502, a quem Walter Peter Leacock, que sai da Ilha em 1763
são atribuídas três viagens, sendo a terceira fa- e organiza a sua vida e família naquele país.
tídica para Gaspar Corte Real, que se perdeu; Em 1846, surge pela primeira vez na Madeira
desta viagem restaria apenas como testemu- uma perseguição oficial aos súbditos da Coroa
nho a Pedra de Dighton, em Massachussetts. britânica, pelas suas convicções religiosas. Em
Para as historiografias inglesa e canadiana, o 1842, Robert Kalley tornou-se pregador da
grande descobridor do Canadá foi John Cabot, Igreja da Escócia, arrastando centenas de po-
entre 1497 e 1498, um Italiano ao serviço de pulares do Santo da Serra e de Machico. A rea-
Henrique VII de Inglaterra. De acordo com essa ção da Igreja madeirense não se fez esperar
tradição, o barco Mathew, chefiado por John e, em janeiro de 1843, o Cón. Carlos Teles de
Cabot, aportou na Terra Nova a 24 de junho de Menezes apresentava a posição da hierarquia
1497, dois dias após a sua partida de Bristol. religiosa madeirense, definindo o movimento
Os bancos do Bacalhau da Terra Nova con- como herético. Em setembro, o pastor foi proi-
tinuaram a ser por muito tempo um domí- bido de exercer a medicina na Madeira, sendo
nio de intervenção direta dos pescadores preso a 9 de agosto de 1846 e expulso da Ilha,
824 ¬ C anadá
Fig. 2 – Férias no Monte, óleo de Martha Telles, Canadá, 1960 (coleção do Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian).
e a sua residência na Qt. do Vale Formoso sa- No período de 1872 a 1915, em que está or-
queada pelos populares. ganizado o registo de passaportes, há apenas
Da perseguição movida aos seguidores do Dr. três referências de saída de madeirenses para
Kalley resultou a fuga de alguns para as Anti- o Canadá. Em 1910, surge Augusto Alberto De-
lhas e, depois, para América do Norte. Esta si- cano de Bianchi, e em 1911 João Gonçalvez e
tuação ia ao encontro dos interesses britânicos, Manuel Baeta, da Fajã da Ovelha.
uma vez que a abolição da escravatura torna- A partir da déc. de 1950, ocorre uma nova
va imprescindível o recrutamento de mão de vaga de emigração portuguesa para o Cana-
obra livre. dá, com o primeiro embarque a acontecer em
O primeiro madeirense certamente deste 1953. Candidataram-se 123 madeirenses, mas
grupo terá sido Francis Silva (1841-1920), que apenas uma centena teve franqueadas as por-
surge em Halifax, em 1861, nos registos da tas do navio grego S.S. Hellas, a 26 de maio
Igreja Batista de Hantsport. Esta situação levou desse ano. A 1 de junho, desembarcaram em
David Higgs a afirmar que Silva terá saído da Halifax, sendo depois conduzidos para To-
Ilha entre 1848 e 1849, enquadrando-o no ronto, onde foram distribuídos pelo traba-
grupo de adeptos do Rev. Kalley, perseguidos lho no campo, em Niagara Falls e na empresa
pelo Estado e pela ira dos populares. Este é R. F. Welsh, de Toronto. Nesta mesma década
considerado um dos mais ilustres portugueses emigraram mais 285 madeirenses; nos anos 60,
que aportaram ao Canadá no séc. xix. seriam 139 madeirenses, que chegariam aos
O facto de Francis Silva ter pintado sete mu- 358 na década seguinte.
rais e de este património ter sido acarinhado O Português venceu todas as resistências e
pela Nova Scotia Art Gallery, que, entre 25 de conseguiu singrar na sociedade canadiana,
março e 10 de maio de 1982, organizou uma através duma dupla orientação da sua cida-
exposição com este espólio, manteve a sua me- dania. A capacidade de realização e de sacri-
mória e o mérito da sua obra para a posterida- fício fez desta comunidade uma referência
de. É uma arte de cariz naïf que faz, segundo rara no multiculturalismo que deu origem
David Higgs, inúmeras alusões à ilha da Madei- ao Canadá.
ra. O universo insular deste pintor é dominado A 2 de junho de 1963, foi criado em Toronto
pelo mar; o basalto e as colinas íngremes da o Canadian Madeira Centre. Passavam então
Ilha também fazem parte das fixações pictóri- 10 anos sobre a chegada do primeiro grupo de
cas deste artista espoliado por força das suas madeirenses a estas paragens. O ano de 1963
crenças religiosas. é importante para a comunidade madeirense
C ana - de - a ç úcar ¬ 825
de Toronto, que cresce a olhos vistos e ganha Passaportes 1, Funchal, Arquivo Regional da Madeira, 2000; Id., Índice dos
Passaportes. 1901-1915, Série Índice dos Passaportes 2, Funchal, Arquivo
algum fulgor económico. Para trás, haviam fi- Regional da Madeira, 2005; HIGGS, David, “Francis Silver (1841-1920), ou seja,
cado os tempos de grande dificuldade; acalen- Francisco da Silva no contexto da migração portuguesa para o Canadá antes
de 1940. Arte e uma odisseia atlântica”, in Actas do II Colóquio Internacional
ta-se agora a busca das origens, através do espí- de História da Madeira, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações
rito associativo que deu forma à materialização dos Descobrimentos Portugueses, 1990, pp. 401-413; Id., Portuguese Migration
in Global Perspective, Toronto, Multicultural History Society of Ontario, 1990;
das festas populares. Para isso, adquiriu-se um OLIVEIRA, Manuel Armando, e TEIXEIRA, Carlos, Jovens Portugueses e Luso-
vasto espaço, o Madeira Park, onde terão lugar Descendentes no Canadá. Trajectórias de Inserção em Espaços Multiculturais,
Oeiras, Celta Editora, 2004; TEIXEIRA, Carlos, “The portuguese in Toronto.
as festas madeirenses, com especial destaque A community on the move”, Portuguese Studies Review, vol. 4, n.º 1, 1995,
para a de Nossa Senhora do Monte. pp. 57-75; Id., “Cultural resources and ethnic entrepreneurship. A case study
of the portuguese real estate industry in Toronto”, Canadian Geographer,
A força e a capacidade de iniciativa da Casa
n.º 42, 1998, pp. 267-281; Id., Portugueses em Toronto. Uma Comunidade
da Madeira Community Centre ficarão bem em Mudança, Angra do Heroísmo, Gabinete de Emigração e Apoio às
demonstradas nas suas múltiplas iniciativas Comunidades Açorianas, 1999; Id., e LAVIGNE, Gilles, Os Portugueses no
Canadá. Uma Bibliografia. 1953-1996, Lisboa, Direcção-Geral dos Assuntos
para reviver a terra de origem. Nesse Centro, Consulares e Comunidades Portuguesas, 1998; TEIXEIRA, Carlos, e ROSA,
existe uma sala cultural que é um verdadeiro Victor P. da (org.), The Portuguese in Canada. From the Sea to the City,
Toronto, University of Toronto Press, 2000.
recanto madeirense, onde tudo remete à Ilha.
† Alberto Vieira
A partir do processo autonómico, estabelece-
ram-se contactos com esta comunidade e pro-
moveram-se múltiplas atividades. Em 1980, o Cana-de-açúcar
bispo D. Francisco Santana, numa visita que
A cana-de-açúcar, Saccharum officinarum L., é
fez aos Estados Unidos, passou por Toronto, e,
uma gramínea (família Poaceae, tribo Andropo-
na déc. de 90, muitos intelectuais e professores
goneae) pertencente ao género Saccharum L.,
universitários participaram na Semana da Ma-
que inclui cerca de 40 espécies. O nome Saccha-
deira nessa cidade.
rum provém da palavra sânscrita “karkara” ou
Por outro lado, sabemos que, desde mea-
“carkara”. A cana-de-açúcar é, na verdade, um
dos do séc. xix, existiam relações comerciais
agregado complexo de híbridos em que se re-
com este país, sendo o Canadá um mercado
conhecem várias espécies e em que as cultivares
de consumo do bordado madeirense. Esta
atuais possuem origem híbrida, seja entre varie-
procura manteve-se pelo menos até 1923,
dades de S. officinarum, seja com outras espécies
com dados visíveis nos registos de exporta-
do género. A Saccharum officinarum terá sido
ção. Alguns dados soltos referem o nome
isolado de madeirenses rumo a este desti-
no, por razões distintas da emigração. Em
1962, Maria Adília Clode foi para Montreal,
onde constituiu família, enquanto António
José Luís dos Reis fez o doutoramento na
Univ. de Waterloo, no Canadá, e aí traba-
lhou entre 1974 e 1977. Também a pintora
madeirense Marta Teles, ou Martha Telles,
fez formação na Univ. do Quebeque e na de
McGill, de Montreal, tendo grande parte da
sua obra, com especial referência às suas raí-
zes madeirenses, sido ali produzida.
Bibliog.: ALPALHÃO, João António, e ROSA, Vítor M. P. da, A Minority in a
Changing Society. The Portuguese Communities of Quebec, Otawa, University
of Ottawa Press, 1980; ANDERSON, G. M., e HIGGS, David, A Future to
Inherit. The Portuguese Communities of Canada, Toronto, McClelland e
Stewart, 1976; ANTUNES, Conceição, O Associativismo em Toronto. Estudo
de Quatro Associações Portuguesas, Dissertação de Mestrado em Relações
Interculturais apresentada à Universidade Aberta, Lisboa, texto policopiado,
2000; BARROS, Fátima, Índice dos Passaportes. 1872-1900, Série Índice dos Fig. 1 – Cana-de-açúcar (fotografia de Bernardes Franco, 2017).
826 ¬ C ana - de - a ç úcar
chegaram a produzir “300.000 arrobas de açú- demonstra antes uma preocupação em deixar
car” (aproximadamente 4406,4 t) (SILVA e ME- as espécies que pudessem ser utilizadas na cons-
NESES, 1998, 435). Todavia, em simultâneo, o trução de engenhos ou em assegurar que a ma-
açúcar do Brasil e das colónias espanholas co- téria-prima florestal fosse utilizada, exclusiva-
meçou a surgir em grande quantidade na Eu- mente, na produção de açúcar.
ropa. Na déc. de 1530, agravou-se a crise da Com a entrada no arquipélago do oídio
economia açucareira na Madeira, e os agricul- (a mangra, em regionalismo madeirense), que
tores foram obrigados a abandonar os cana- ataca fortemente a vinha, e tentando combater
viais e a substituí-los por vinha, especialmente a os riscos da monocultura, ocorre o ressurgimen-
partir de meados desse século. Esta explicação to da cana sacarina e esta ganha novo folgo, na
concorrencial para a redução do cultivo da ca- déc. de 1820, como uma das alternativas viáveis
na-de-açúcar é a seguida pela maior parte dos para a diversificação da produção agrícola, sur-
historiadores madeirenses. No entanto, exis- gindo, em consequência, novas áreas desta cul-
tem motivos de índole ecológica relacionados tura. Mas foi apenas com o colapso quase total
com o esgotamento ou, pelo menos, a forte re- da vinha, em meados do séc. xix (com o apa-
dução da matéria-prima florestal fundamental recimento da filoxera, que quase dizimou total-
como combustível para a evaporação da guara- mente os vinhedos madeirenses da altura), que
pa e produção de açúcar. Jason Moore descre- a cana-de-açúcar voltou a expandir-se. Inicial-
ve com detalhe as necessidades de lenha rela- mente limitada aos terrenos baixos do Sul, foi,
tivas às exportações de açúcar da Madeira nos progressivamente, abrangendo até zonas não
sécs. xv e xvi, das quais terá resultado o abate aconselhadas para a sua produção. Todavia, este
de uma grande parte da floresta pristina da Re- período de novo fulgor da cultura terminou
gião. Assim, no início do séc. xxi, parecia claro quando, entre 1882 e 1886, se deu, mais uma
que a substituição do cultivo da cana-de-açúcar vez, a quase destruição dos canaviais, em conse-
pelo da vinha se deveu antes de mais ao esgota- quência do aparecimento de uma nova doença,
mento da matéria-prima florestal e, simultanea- provocada pelo fungo Coniothyrium melasporum.
mente, dos solos, resultante da exigente cultura Mas não foram apenas os canaviais madeirenses
da cana-de-açúcar. Esta relação é suportada di- a ser afetados. De facto, desde 1880 que se veri-
retamente, e.g., pelo comentário de João de Bar- ficava a expansão da doença e consequente re-
ros: “conta que o Infante muito sentiu, e parece dução da produção em todo o mundo.
que como profecia viu esta necessidade que a Foi apenas depois de 1920 que a utilização
Ilha tem de lenha; porque dizem que manda- de novas variedades, resultantes de hibridação
va que todos plantassem matas, pelo negócio com outras espécies do género Saccharum (a no-
dos açúcares, de que a Ilha logo deu mostra gas- bilização da cana), permitiu obter não só maior
tar tanta, que era certo vir a esta necessidade” resistência a doenças como maior produção
(Da Asia..., 1778, 34). Diversos autores relatam de sacarose. A introdução de novas variedades
o cultivo progressivo de distintos territórios re- possibilitou a reconstrução dos canaviais, que,
sultantes dos Descobrimentos portugueses até à a partir de 1890, se expandiram novamente,
chegada ao Brasil, facto que também é narrado alimentando a indústria açucareira e o fabrico
nos comentários de outros cronistas dos sécs. xv de rum agrícola (que, entre os madeirenses, é
e xvi. O papel do cultivo da cana-de-açúcar na normalmente conhecido como aguardente de
destruição do coberto vegetal é bem conhecido, cana) e álcool, para além da sua aptidão forra-
tendo ocorrido na Madeira tal como em mui- geira. Este desenvolvimento manteve-se até aos
tas outras áreas do mundo para onde a cultura finais da déc. de 1930, quando a cultura chegou
se expandiu. De facto, alguns documentos do a ocupar uma área de cerca de 6500 ha, tendo
séc. xvi parecem demonstrar uma preocupação posteriormente voltado a decair, estimando-se
ecológica com o corte da floresta para combus- que, em 1952, ocupasse apenas uma superfície
tível, quando, na verdade, uma melhor leitura total de 1420 ha. Esta tendência de decréscimo
828 ¬ C ana - de - a ç úcar
Fig. 2 – Corça com cana-de-açúcar, Lg. António Nobre, Funchal, bilhete-postal animado de c. 1900
(ABM, coleção da Direção Regional dos Assuntos Culturais).
manteve-se de forma acentuada durante toda a constatar que, em 1976, a área dedicada a esta
segunda metade do séc. xx. produção era de 1290 ha, diminuindo, em
Deste facto faz referência a Comissão de Pla- 1981, para 800 ha. Até finais da déc. de 1980, ve-
neamento da Região da Madeira, que, num re- rificou-se um abaixamento substancial da área
latório de 1971, indica mesmo que “a crise da de cultivo (em 1989, os estudos registam a exis-
cana sacarina resulta principalmente dos altos tência de apenas 89 ha desta cultura em toda
custos de produção da cultura quando compa- a Região), essencialmente relacionado com o
rados com os de outras regiões com condições encerramento de diversas unidades industriais
ecológicas mais favoráveis. […] O álcool obtido de grande importância para o escoamento da
a partir da cana é também caro e a sua comer- produção, como a empresa Hinton e o enge-
cialização só é possível à custa dum preço des- nho de Machico. Efetivamente, este facto levou
favorável ao consumidor […]. A única fábrica a um colapso da cultura, por falta de vias de
de açúcar e álcool existente está desatualizada escoamento.
e, dada a constante redução verificada na pro- Para promover o cultivo da cana sacarina, o
dução, está já a trabalhar abaixo do mínimo de Governo regional, na déc. de 1990, passou a
laboração económica”. Em nota de conclusão, a garantir um preço fixo aos produtores, tendo
mesma Comissão infere que, “dos outros produ- também implementado ajudas no âmbito das
tos resultantes do aproveitamento da cana, só as ações de apoio às produções locais estabeleci-
aguardentes e o mel e, eventualmente, os sumos das no Programa de Opções Específicas para
não fermentados poderão ter alguma viabilida- o Afastamento e Insularidade da Madeira e
de económica” (COMISSÃO DE PLANEAMEN- Açores, um projeto instituído pela União Eu-
TO DA REGIÃO DA MADEIRA, 1971, 40). ropeia, através da decisão 91/315/CEE do
Através da análise da Série Retrospetiva das Esta- Conselho, de 26 de junho de 1991, estimulan-
tísticas da Agricultura e Pesca 1976-2014, pode-se do assim não só os agricultores, mas também
C ana - de - a ç úcar ¬ 829
os engenhos ainda em laboração (engenhos solar. Em 2009, contava com um total de 1114
da Calheta e do Porto da Cruz, Fábrica de Mel explorações em cerca de 114,8 ha. A produção
do Ribeiro Seco e, posteriormente, engenho estava localizada preferencialmente nos conce-
novo da Madeira). Com a viragem do século, lhos da Ponta do Sol (freguesias da Ponta do Sol
as áreas de cana-de-açúcar recuperaram ligei- e Canhas), com cerca de 29 % da área regional
ramente e, em 2001, registou-se já a existência de cana-de-açúcar e 33,19 ha; de Machico (Ma-
de cerca de 103 ha desta cultura. Esta tendên- chico e Porto da Cruz), com cerca de 28 % da
cia incremental manteve-se até ao final da série área e 31,69 ha; de Santana (Faial), com cerca
(2014), com o registo de uma área total de ca- de 14 % da área e 16,02 ha; e, finalmente, da
na-de-açúcar na ordem dos 156 ha. Calheta (Arco da Calheta, Calheta e Estreito da
As flutuações anteriormente referidas ao nível Calheta), com cerca de 8 % da área e 9,09 ha,
das áreas produtivas de cana-de-açúcar tiveram como referido no Recenseamento Agrícola de 2009.
reflexos na produção anual da cultura. Assim, A instalação do canavial é fundamental para
em 1976, a produção foi de 28.408 t, diminuin- o sucesso desta cultura, sobretudo a preparação
do, em 1981, para 21.674 t, tendo-se registado o do solo, especialmente porque as plantações de
mínimo de 2871 t já em 2000. Com o estímulo cana sacarina podem atingir, sem problemas de
ao incremento de novas áreas da cultura, na vi- maior, um tempo de vida entre os 20 e os 25
ragem para o séc. xxi, a cultura da cana regis- anos. Na Região, a plantação na costa sul deve
tou, em 2014, uma produção de cerca de 7586 t. ser realizada de finais de fevereiro até maio; a
Agronomicamente, a cana-de-açúcar encon- norte, a mesma deve ser mais serôdia, decor-
tra na Madeira as melhores condições de cultivo rendo de abril a junho, através de estacas que
na costa sul até aos 300 m de altitude e na costa devem ser divididas em propágulos de três a
norte até aos 200 m, em zonas de boa exposição quatro olhos (numa densidade de cerca de 700
kg/ha), dispostos no fundo de manta, com li- densidade/maior teor em sacarose (usualmen-
geira sobreposição. te refletido pelo grau Brix previsível).
As variedades usadas na Região tiveram uma O primeiro engenho para espremer cana doce
elevada variação ao longo dos tempos. Com a que existiu na Madeira foi construído em 1452,
chegada do fungo Coniothyrium melasporum, pro- mas o número de engenhos que laboraram na
moveu-se a introdução de novas variedades, mais Ilha nunca foi consensual. No estimo de 1494,
resistentes à doença, para a reconstituição dos são referenciados apenas 14 engenhos, quan-
canaviais. É o caso da “bambu” (que podia che- do noutro documento, de 1493, se dá conta da
gar em boas condições de produção até zonas existência de 80 mestres de açúcar. Edmund
mais altas) e da “yuba” (com grande resistência von Lippermann refere existirem no Funchal
à secura). Mais tarde, na déc. de 1930, devido 150 engenhos no início do séc. xvi, todavia, este
a alguns problemas ocorridos com as anterio- valor parece pouco razoável para a extensão
res, são introduzidas novas variedades, de Java, arável da Ilha e a produção dos canaviais. Em
da Austrália e da Luisiana. No começo do séc. finais do séc. xvi, Gaspar Frutuoso faz referên-
xix, após estudos efetuados para dar resposta cia a várias dezenas de engenhos, número que
às exigências das unidades industriais, a produ- contrasta com o referido por Fernando Augus-
ção de cana-de-açúcar assentou nas variedades to da Silva e Carlos Azevedo de Meneses para
“POJ-2725” e “NCO-310”, as que melhor garan- o ano de 1826, mencionando existir um único
tiam uma maior resistência ao vírus do rajado engenho em toda a Ilha. Os mesmos autores re-
ou do mosaico da folha e as que tinham maior ferem que, em 1851, havia quatro fábricas na
envelhecida, este rum é o ingrediente funda- FLANDRIN, Jean-Louis, e MONTANARI, Massimo, História da Alimentação,
vol. 1, Lisboa, Terramar, 1996; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra.
mental na produção da poncha da Madeira, História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro
que é o licor típico da Ilha. Rodrigues de Azevedo, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008;
KIPLE, Kenneth, e ORNELAS, Kriemhild, The Cambridge World History of
A evolução da produção de mel de cana veri- Food, vol. i, Cambridge, Cambridge University Press, 2000; LEÇA, Joaquim,
ficada entre 2004 e 2014, considerando a quan- Agricultando, Funchal, ed. do Autor, 2011; MOORE, Jason, “Madeira, sugar,
and the conquest of nature in the ‘first’ sixteenth century. Part I: from ‘island
tidade de mel de cana expressa em litros (com of timber’ to sugar revolution, 1420-1506”, Review, vol. 32, n.º 4, 2009, pp. 345-
uma densidade de cerca de 1,4 kg/l), denota 390; Id., “Madeira, sugar, & the conquest of nature in the ‘first’ sixteenth
century. Part II: from regional crisis to commodity frontier, 1506-1530”,
algumas oscilações, mantendo-se, porém, sem- Review, vol. 33, n.º 1, 2010, pp. 1-24; PRANCE, Ghillean, e NESBITT, Mark
pre acima dos 100.000 l, apesar de, em 2005, ter (eds.), The Cultural History of Plants, New York/London, Routledge, 2005;
SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
ocorrido uma elevada quebra (78.000 l); o má-
Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VIEIRA, Alberto, “O açúcar
ximo foi atingido em 2008, com 160.000 l. Se- na Madeira. Produção e comércio nos séculos xv e xvi”, in Actas del II
gundo os dados da Série Retrospetiva das Estatísti- Seminário Internacional Produccion y Comercio del Azucar de Caña en Epoca
Preindustrial, Motril, Diputación Provincial de Granada, 1991; Id., e CLODE,
cas da Agricultura e Pesca 1976-2014, em 2014, a Francisco, A Rota do Açúcar na Madeira, Funchal, CEHA, 1996.
produção de mel de cana foi de 118.000 l.
Cláudia Dias Ferreira
A produção de rum em litros (rum agrícola a
100 %) rondou, em 2010, os 132.000 l e, a par-
tir dessa data, apresentou uma evolução franca- Canárias
mente positiva, tendo ultrapassado os 220.000 l A presença portuguesa nas Canárias aconteceu
em 2014. preferencialmente através da Madeira, pelo
Bibliog.: BAKKER, H., Sugar Cane Cultivation and Management, New York,
facto de ter sido o primeiro espaço de ocupa-
Springer, 1999; COMISSÃO DE PLANEAMENTO DA REGIÃO DA MADEIRA, ção portuguesa, assim como um dos principais
Trabalhos Preparatórios do IV Plano de Fomento, Relatório do Grupo de
Trabalho da Lavoura, Funchal, Comissão de Planeamento da Região da
eixos do movimento de expansão de pessoas,
Madeira, 1971; Da Asia de João de Barros e de Diogo de Couto, Lisboa, produtos e técnicas no Atlântico. Os Portugue-
Regia Officina Typografica, 1778; DIREÇÃO REGIONAL DE ESTATÍSTICA,
Recenseamento Agrícola de 2009, Funchal, Direção Regional de Estatística,
ses assumiram aí um lugar de relevo, situan-
2011; Id., Série Retrospetiva das Estatísticas da Agricultura e Pesca. 1976-2014, do-se entre os principais obreiros da valoriza-
Funchal, Direção Regional de Estatística, 2015; FERRÃO, José E. Mendes,
ção económica das ilhas, como agricultores,
A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992; pescadores, pedreiros, sapateiros, mareantes e
Fig. 1 – Canárias sob o Trópico de Câncer, Leonardo Turriano, 1582 a 1592 (BGUC, ms. 314).
C anárias ¬ 833
Fig. 3 – Vista do porto de Arrecife, Lanzarote, Leonardo Turriano, 1582 a 1592 (BGUC, ms. 314).
C anárias ¬ 835
Fig. 5 – Plano de Santa Cruz de Tenerife, Leonardo Turriano, 1582 a 1592 (BGUC, ms. 314).
o descerco, em 1640, trouxeram consigo conse- desde 1497, onde são constantes as referên-
quências funestas para tal relacionamento, com cias a portugueses com lugar de destaque na
os madeirenses residentes em Lanzarote a serem sociedade, sendo sempre referenciados em se-
alvo de represálias, sendo de referir o confisco gundo lugar. O mesmo se poderá dizer sobre a
dos bens do filho varão de Simão Acciaioli, que ilha de La Palma, onde os Portugueses marca-
se casara com a filha do conde de Lanzarote. ram uma presença muito forte, tendo a teste-
Desde muito cedo que está documenta- munhá-lo a existência de alguns registos paro-
da a presença lusíada nas ilhas Canárias, em quiais feitos em português. De acordo com uma
La Palma, Lanzarote, Tenerife e Grã-Canária, relação de 1626, a maioria destes portugueses,
tendo a Madeira como um dos principais eixos não constando da relação as ilhas de Fuerteven-
do movimento. Os Portugueses assumiram um tura, La Gomera e El Hierro, residia na ilha de
lugar de relevo, situando-se entre os principais Tenerife e era maioritariamente da ilha de São
obreiros da valorização económica das ilhas. Miguel, nos Açores. São insistentes as informa-
A tradição bélica e aventureira de alguns madei- ções que testemunham uma incidência distinta
renses levou-os a participar ativamente nas cam- deste grupo de insulares, donde se destaca uma
panhas de conquista de Tenerife, recebendo maior incidência de madeirenses para as ilhas
por isso, como recompensa, inúmeras ofertas de Lanzarote e Grã-Canária.
de terra. Daí resultou a forte presença lusíada São múltiplos os testemunhos que atestam a
nesta ilha, onde, em localidades como Icode e importância da comunidade portuguesa nas di-
Daute, surgem como o grupo maioritário. Aliás, versas ilhas. O próprio Gaspar Frutuoso, que es-
Granadilla foi fundada por Gonzalo Gonzalez creveu em finais do séc. xvi, chama a atenção
Zarco, filho de João Gonçalves Zarco, capitão- para este facto, destacando a importância desta
-donatário do Funchal. comunidade em Icod de Los Vinos em Tenerife,
A prova mais evidente da importância da co- bem como em Garafia, Santa Cruz, Tazacorte,
munidade lusíada na ilha está documentada nos San Andrés e Los Sauces, na ilha de La Palma.
Acuerdos del Cabildo de Tenerife, existentes Esta ilha foi uma das que receberam maior
C anárias ¬ 837
Grã-Canária, os impostos resumiam-se a 2,5 % britânico, por força dos tratados luso-britânicos,
do diezmo, mais 3 % ad valorem na alfândega, dando azo às situações que se seguem. Já no séc.
que foi subindo até se situar em 6 % em 1528. xv o vinho das Canárias concorria de forma di-
Nas ilhas de La Palma e Tenerife, manteve-se reta com o da Madeira no mercado britânico,
o regime de isenção fiscal aduaneira até 1522. a atestar pelas referências de Shakespeare, en-
Esta constatação do peso dos encargos sobre a quanto o vinho dos Açores só começou a con-
mesma cultura e o mesmo produto no arqui- correr a partir do séc. xvii. A grande luta foi
pélago vizinho deverá ter influenciado o forte sempre entre o malvasia da Madeira e os caldos
surto da emigração madeirense rumo ao novo de Tenerife. Da disputa pelo mercado europeu
espaço, onde os encargos fiscais eram menores passou-se ao colonial.
e maiores as possibilidades de lucro da explora- O séc. xvii foi o momento de viragem do mer-
ção, contribuindo para uma forte presença ma- cado atlântico do vinho, conseguindo a Madei-
deirense nestas ilhas, ligada à atividade agrícola. ra a preferência do mercado norte-americano
A desigual situação dos encargos fiscais e, sub- e suas colónias nas Antilhas. O vinho da Ma-
sequentemente, dos lucros da exploração agrí- deira estava na moda. Os viticultores e comer-
cola refletiu-se, de igual modo, na evolução do ciantes de Tenerife, para poderem sobreviver,
sistema de exploração económico da cultura, tiveram de se sujeitar ao fabrico de um vinho
colocando a Madeira numa posição desigual semelhante ao Madeira, ou à baldeação com o
face à concorrência de mercado. Começou de Tenerife, para, depois, o venderem com o ró-
aqui o processo de concorrência económica tulo de Madeira. O séc. xviii foi, pois, a época
entre os dois arquipélagos, que irá marcar, de de afirmação do falso e verdadeiro Madeira.
forma clara, a sua vivência a partir de meados Em princípios do séc. xvi, fala-se da malvasia
do séc. xix. Não há dados documentais que das Canárias no mercado londrino, numa po-
corroborem a ida de cepas madeirenses para as sição concorrencial com a da Madeira, mas só
Canárias, mas é muito natural que assim tenha a partir de meados da centúria o vinho adqui-
acontecido. Os testemunhos da linguística e et- riu dimensão de relevo nas exportações. Sabe-se
nografia atestam diversas similitudes em algu- ainda que, até à déc. de 30, Tenerife necessitou
mas designações e técnicas, que deverão estar de importar vinho, definindo-se medidas limita-
ligadas a esta influência de colonos madeiren- tivas da sua importação desde meados da centú-
ses. Atente-se que, em finais do séc. xviii, foi ria. Deste modo, as Canárias, a exemplo da Ma-
relevante o aporte madeirense ao processo de deira, repartem o vinho entre a velha Europa e
vinificação em Tenerife. Francisco Chacon, côn- os novos espaços de ocupação do outro lado do
sul no Funchal, remeteu, a 20 de outubro de Atlântico, como Puerto Rico, República Domi-
1786, um relatório discriminado sobre o pro- nicana e Cuba.
cesso de vinificação do vinho da Madeira. Com A partir de meados do séc. xvii, as Canárias
data provável de 1784, há outro documento, competem diretamente com a Madeira no do-
referido por Guimerá Ravina e encontrado no mínio do mercado do vinho britânico. A união
Archivo Brier Ponte Ximénez, que descreve, de peninsular não terá sido favorável ao vinho ma-
igual modo, o processo de vinificação madei- deirense, uma vez que abriu as portas do mer-
rense, mas que não está assinado. Ambos os do- cado colonial ao vinho das Canárias. A conjun-
cumentos revelam o interesse no arquipélago tura económica que se anunciou em 1640 abriu
vizinho em adequar os processos de vinificação, novas perspetivas para o malvasia da Madei-
de forma a poder concorrer em pé de igualdade ra, com o retorno da posição de privilégio no
nos mesmos mercados que o Madeira. mundo português e britânico. O seu competi-
O aspeto mais evidente que une os dois ar- dor direto era apenas o vinho dos Açores, pro-
quipélagos em torno da cultura prende-se com duzido nas ilhas da Graciosa e do Pico.
a disputa do mercado e a posição preferencial Os pactos de amizade entre as coroas de Por-
que a Madeira assumiu no mercado colonial tugal e Inglaterra sedimentaram as relações
840 ¬ C anárias
comerciais, favorecendo a oferta dos vinhos definida pelas assimetrias propiciadas pela oro-
madeirense e açoriano nas colónias britâni- grafia e o clima, mas também da proximidade
cas da América Central e do Norte, como de- e assiduidade dos contactos. O intercâmbio de
terminavam as leis da navegação, aprovadas pessoas, produtos e técnicas dominou o siste-
em 1641 por Carlos II. A situação de privilé- ma de contactos entre os arquipélagos. As re-
gio concedida ao vinho dos arquipélagos por- lações comerciais aliaram-se à presença de ma-
tugueses repercutiu-se negativamente na eco- deirenses, ao serviço do infante D. Henrique,
nomia das Canárias, tendo sido um travão ao na disputa pela posse do arquipélago e à atra-
desenvolvimento da economia vitivinícola a ção que as ilhas de Lanzarote e Tenerife exer-
partir de finais do séc. xvii. O casamento de ceram sobre os madeirenses. O Funchal foi,
Carlos II de Inglaterra com D. Catarina de Bra- por muito tempo, um porto de apoio aos con-
gança foi o prelúdio da conjuntura favorável tactos entre as Canárias e o velho continente.
aos vinhos Madeira, sendo referido por Viera Se é certo que a maioria dos contactos com os
y Clavijo como um “golpe tan feliz para la isla arquipélagos advém da posição privilegiada da
de la Madera como infausto para las Canárias Madeira, entre as Canárias e a Europa, não é
[golpe tão feliz para a ilha da Madeira como menos certo que o trato comercial resulta das
infausto para as Canárias]” (LORENZO-CÁCE- necessidades e solicitações internas, que impe-
RES, 1941, 19). A guerra de Cromwell contra lem para uma aproximação. E também da ne-
Espanha levou ao encerramento do mercado cessidade de recurso a uma nova fonte de pro-
londrino ao vinho das Canárias, no período de vimento de cereais, face à recusa dos açorianos
1655 a 1660, e ao estabelecimento de medidas a esse fornecimento, a que podemos associar
preferenciais para o das ilhas portuguesas. ainda as solicitações da comunidade portugue-
Com o fim da guerra de fronteiras entre Por- sa residente nas Canárias, de que fazia parte
tugal e Espanha e a assinatura das pazes em um grupo numeroso de madeirenses, que an-
Madrid, a 5 de janeiro de 1668, ratificadas a 13 siavam por estabelecer contactos com os locais
de fevereiro em Lisboa, restabeleceram-se os de origem.
contactos entre os dois arquipélagos. O refor- O trigo foi, sem dúvida, o principal móbil do
ço das relações é testemunhado pela presença comércio canário-madeirense. Os cereais sur-
de Bento de Figueiredo no Funchal como côn- gem como os principais ativadores e suportes
sul castelhano. Não acabaram aqui as dificulda- do sistema de trocas entre a Madeira e as Caná-
des, pois apenas com as pazes de Ultrecht, em rias. De acordo com Giulio Landi, “a ilha pro-
1713, se abriram novas perspetivas de negócio, duziria em maior quantidade se semeasse. Mas a
numa altura em que os vinhos madeirenses e ambição das riquezas faz com que os habitantes,
açorianos haviam conquistado uma posição só- descuidando-se de semear trigo, se dediquem
lida no mercado colonial e britânico. A ques- apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram
tão persistiu no decurso do séc. xviii e, goradas maiores proveitos, o que explica não se colher
as iniciativas diplomáticas, houve que esperar na ilha trigo para mais de seis meses. Por isso
até 1778, quando se anunciou uma nova era há uma carestia de trigo pois em grande abun-
para o vinho da Madeira, com o livre comércio dância é importado das ilhas vizinhas” (VIEIRA,
para as Índias e a abertura do mercado norte- 1987, 104). A Madeira surge, desde finais do séc.
-americano, em consequência da independên- xv, como uma área carente de cereal, necessi-
cia proclamada em 1776. A situação reflete-se, tando de importar mais de metade do que pre-
de forma positiva, nas exportações entre 1790 cisava para o seu consumo. A garantia do abaste-
e 1814. Da parte das Canárias, há que referir a cimento interno de cereais, que havia sido uma
aportação da cochinilha, trazida em 1837 por palavra de ordem no início do povoamento da
Miguel Camacho Almeida. O comércio entre Madeira, não resistiu ao assalto das culturas eu-
as ilhas dos três arquipélagos atlânticos resul- ropeias para exportação que, em pouco tempo,
tou não só da complementaridade económica, invadiram quase todo o território arável.
C anárias ¬ 841
O arquipélago madeirense, composto ape- surge, muitas vezes, aliado a outros produtos
nas por duas ilhas, sendo uma delas de fracos como moeda de troca dos cereais. Assim, em
recursos, tinha necessariamente de assegurar 1521, Juan Pomar, mercador vizinho da Madei-
o abastecimento do exterior, socorrendo-se, ra, enviou a Juan Garcia de Lós, mercador vizi-
para tal, das ilhas vizinhas. Em 1546, dos 12.000 nho da Grã-Canária, algumas pipas de vinho.
moios consumidos, apenas um terço foi produ- E, em 1525, enviou uma pipa e um quarto de
zido localmente, sendo o restante importado vinho e um quarto de vinagre. Entretanto, em
das ilhas próximas ou da Europa. No séc. xvi, 1523, sai do Funchal o navio de Lourenço Mo-
a oferta de cereal das Canárias e dos Açores re- rais com vinte pipas de vinho para o mesmo
presentou cerca de metade das entradas. Para destino; e, finalmente, em 1563, o mercador
o caso açoriano, ele era quase todo provenien- João Nunes envia ao seu cunhado, residente
te de São Miguel e do Faial, enquanto nas Ca- nas Canárias, três pipas de vinho para que este
nárias provinha maioritariamente das ilhas de lhe envie trigo. Este comércio entre a Madeira
Lanzarote, Fuerteventura e Tenerife. A rota de e as Canárias remonta a meados do séc. xv, al-
abastecimento de cereais‚ definida em princí- tura a partir da qual a Madeira passou a receber
pios do séc. xvi, manteve-se com toda a pujan- escravos canários, carne, queijo e sebo, trato
ça até meados do século seguinte. As primeiras que não era do agrado do infante D. Fernando,
referências ao envio de trigo das Canárias para senhorio da Ilha, uma vez que recusou a solici-
a Madeira surgem em 1504, para o trigo remeti- tação dos seus naturais para isenção da dízima
do de La Palma, e em 1506, para o de Tenerife. dos produtos que daí vinham, dizendo a pro-
O comércio do cereal a partir das Canárias pósito “que tam bäo trauto e das minhas ylhas
firmou-se através da regularidade dos contac- dos Açores e tam bõo retorno averem e milhor
tos com a Madeira, sendo apenas prejudicado que de canaria se em elle quiserem emtrar”
pelos embargos temporários, enquanto o dos (VIEIRA, 1987,144), não obstante os vizinhos
Açores foi imposto pela Coroa, uma vez que do Funchal insistirem em manter os seus con-
a burguesia e a aristocracia açorianas, nomea- tactos com as Canárias. Em 1477, Nuno Caya-
damente de São Miguel, não se mostravam do, mercador madeirense, há mais de quinze
interessadas em manter esta via. O cabildo da anos ocupado nesse comércio, recebeu um sal-
Catedral de Grã-Canária queixava-se de não re- vo-conduto dos Reis Católicos para comerciar
ceber a sua parte dos dízimos, que era escoada nessas ilhas. E, em 1513, ao ser apresada na
para a Madeira, tendo ordenado, em 1532, o Grã-Canária uma caravela portuguesa que leva-
seu embargo. va a bordo um malfeitor, o regedor local receou
A rota canária impõe-se pela dominância dos represálias por parte dos madeirenses.
contactos assíduos entre os dois arquipélagos, Um dos mais importantes produtos forne-
não os impedindo as crises de produção, nem cidos pelo mercado madeirense, e que tinha
as limitações impostas pelo cabildo de Tenerife. saída fácil nas Canárias, era o sumagre, que
O cereal era o principal produto e a justifica- terá contribuído para o desenvolvimento da
ção para a permanência deste elo de ligação, indústria de curtumes na Grã-Canária. A uma
traçado em princípios do séc. xv pela comuni- primeira remessa‚ solicitada em 1569, seguiu-
dade normanda daí oriunda. -se, a partir de 1570, a intervenção da classe
A permanência desta rota implicou o alarga- mercantil neste trato. Por exemplo, em 1571,
mento das trocas comerciais entre os arquipé- Anton Solis e Juan de Cabrejas, mercadores
lagos, uma vez que ao comércio do cereal se vizinhos da Grã-Canária, criaram uma compa-
associaram outros produtos, como contraparti- nhia para comerciar o sumagre da Madeira.
da favorável às trocas. A oferta madeirense alar- E, ainda nesta década, surgiram outras compa-
gou-se à fruta verde, às liaças de vime, ao su- nhias com a mesma finalidade, o que atesta a
magre e aos panos de estopa, burel ou liteiro. importância deste produto no comércio com
Nestas relações com as ilhas Canárias, o vinho a Grã-Canária. A documentação continua a ser
842 ¬ C anárias
Fig. 7 – Aborígenes de Gran Canaria, Leonardo Turriano, 1582 a 1592 (BGUC, ms. 314).
de dois navios das Canárias e da saída de oito, manufaturas reexportadas, nomeadamente te-
sendo sete para Las Palmas. cidos provenientes de Londres.
O séc. xviii foi ainda um momento marcado Para o período de 1731 até 1810, são apon-
por contactos assíduos entre os dois arquipé- tadas diversas embarcações das Canárias para
lagos, mantendo-se a função abastecedora do a Madeira, das quais 127 com cereal, destacan-
celeiro das Canárias, a troco, muitas vezes, de do-se uma maior envolvência nas duas décadas
Fig. 8 – Baía da Luz de Las Palmas, Jordão da Luz Perestrello, 1912 (coleção particular, Funchal).
844 ¬ C anárias
finais do séc. xviii. Assinale-se o movimento de já haviam consolidado a sua posição de entre-
mercadorias provenientes das Canárias e Ber- posto do Atlântico para a navegação marítima
béria para este período de 1727 a 1810, em que e para o turismo.
se sublinha, de novo, a presença de cereais. A possibilidade de trazer parte da navegação
Mas o elemento mais importante a destacar é oceânica para a Madeira, como forma de au-
o facto de um grupo significativo de embarca- mentar o movimento do porto comercial, pas-
ções, 28 %, vir a lastro, i.e., sem qualquer movi- sava por medidas que favorecessem esta prefe-
mento de mercadoria associado, o que deverá rência, face às condições então oferecidas por
ser demonstrativo de que as relações comer- outros portos, como os das Canárias. Era ur-
ciais entre os dois arquipélagos deixaram de gente o estabelecimento de condições mais fa-
ser complementares e importantes. A presen- voráveis à entrada e saída no porto do Funchal,
ça do cereal, embora aqui ainda seja significa- através da construção de infraestruturas e da
tivo no movimento entre os dois arquipélagos, criação de medidas fiscais que não fossem pe-
uma vez que representa 27 % das embarcações nalizadoras, nomeadamente quanto à entrada
em movimento, não representa quase nada no e saída do carvão.
conjunto das embarcações que atracaram ao O porto do Funchal perdeu importância
Funchal com cereal, uma vez que fica apenas e movimento comercial. A situação, embora
pelos 2 %. Neste momento, o grande mercado considerada resultado das melhores condições
fornecedor da Ilha é definitivamente a Améri- oferecidas pelos portos das Canárias, não de-
ca do Norte, representando 62 % das embarca- moveu as autoridades portuguesas no sentido
ções entradas com cereais e farinhas, ficando da construção de um novo porto, do estabe-
as ilhas dos Açores com apenas 15 %. A rota lecimento de medidas favoráveis e capazes de
norte-americana do mercado do vinho madei-
rense abriu novas possibilidades de abasteci-
mento de cereais e farinhas e obrigou a altera-
ções nas relações entre as ilhas. Embora no séc.
xviii já se fizesse sentir a concorrência do mer-
cado das Canárias, por força do contrabando
de vinho, um motivo de atrito que se prolonga
pela primeira metade da centúria seguinte, o
principal fator de confronto para os dois arqui-
pélagos será a disputa pelo mercado de nave-
gação e de turismo europeus.
A Madeira é um espaço atlântico que sem-
pre apresentou uma identidade própria, mas
que nunca se livrou da concorrência de ou-
tros espaços vizinhos, como as Canárias. Na
verdade, a sua posição no mar Atlântico con-
duziu a que sempre se estabelecesse uma dis-
puta pela melhor posição no apoio à navega-
ção. Não o entendeu assim a metrópole, e as
políticas fiscais das diversas pautas e de obras
públicas não tiveram em conta esta situação
específica de disputa. Perdeu-se o porto oceâ-
nico, a zona franca, o turismo e a possibili-
dade de futuro. As principais infraestrutu-
ras, que abriram as portas deste progresso, Fig. 9 – Revendedoras, Jordão da Luz Perestrello, Funchal, 1908
tardaram, e, quando chegaram, as Canárias (coleção dos herdeiros de Joan Cunha).
C anárias ¬ 845
atrair a navegação, da criação do porto franco Ltda, entra com parte dos terrenos em Las
e da alteração das taxas alfandegárias sobre o Palmas. Assim se explica a deslocação para as
carvão. Os comerciantes e os políticos madei- Canárias do fotógrafo madeirense Jordão da
renses não conseguiram fazer vingar a política Luz Perestrello, que edita depois vários bilhe-
do porto franco, como forma de recuperação tes-postais, havendo, inclusivamente, imagens
económica do arquipélago. Nas últimas déca- identificadas como sendo das Canárias e que
das do séc. xix, a questão continuava presente mais parecem ser da Madeira, tal como depois
nos debates parlamentares, assim como na rei- de regressado aos estúdios da família no Fun-
vindicação por parte dos madeirenses, tornan- chal também aparecem edições de fotografias
do-se cada vez mais pertinente. dos Perestrellos, como de costumes, que mais
Em 1921, os efeitos nefastos da política tri- parecem daquele arquipélago.
butária niveladora eram evidentes na Madeira. Um dos aspetos mais destacados da presença
O dec. n.º 7822, de 22 de novembro, havia esta- da comunidade portuguesa nas Canárias está
belecido um imposto de comércio sobre a na- na sua capacidade de integração na sociedade
vegação em que se incluía uma taxa de entrada local, sem que se tenham perdido alguns dos
para os turistas, com o imposto especial de 20 valores da sua cultura. Esta situação é relevada
% sobre o valor das passagens e o pagamento por diversos estudiosos e é quase sempre apon-
dos direitos em libras. No entanto, o imposto tada como o fator de sucesso da presença e so-
de farolagem foi suspenso na Madeira, e as leis brevivência portuguesa na história e cultura
de 23 de abril de 1880 e de 21 de maio de 1896 das Canárias. É significativo que esta situação
definiram vantagens especiais para os vapores tivesse conduzido a casos de bilinguismo, pois
que fizessem escala no Funchal. que, em algumas comunidades, as duas línguas
Por fim, a mobilidade de gentes entre os ar- eram faladas e entendidas por ambas as partes,
quipélagos propiciou múltiplas influências no existindo mesmo casos de registos paroquiais
quotidiano que podem ser testemunhadas de escritos em português em algumas paróquias
diversas formas, nomeadamente através da to- de Tenerife, porque, na verdade, muitos dos
ponímia e da linguística. Em quase todas as clérigos eram portugueses. Esta situação do bi-
ilhas, mas de forma especial em La Palma, são linguismo nesta época acontecia também na
evidentes os portuguesismos na nomenclatu- península, com casos paradigmáticos na lite-
ra dos ofícios, utensílios e produtos a que os ratura portuguesa, como Gil Vicente, Camões,
portugueses estiveram ligados: açúcar, vinho, André e Garcia de Resende e João de Barros.
pesca, construção civil e fabrico de calçado. Por outro lado, houve casos de portugueses
Muitas das técnicas e da nomenclatura associa- de sucesso em diversas ilhas, quer na explora-
da a estas atividades estão indissociavelmente ção da terra, quer no comércio. Esta integra-
ligadas aos madeirenses e mostram, na maioria ção da comunidade portuguesa é o prelúdio
dos casos, que são de proveniência portugue- de um diálogo intercultural que tem por palco
sa, quase sempre com passagem pela Madeira. as ilhas e que está para além de todas as adver-
Para a cana-de-açúcar, foram as técnicas de re- sidades e conflitos materializados pelas coroas.
gadio, como também os engenhos de moen-
da, enquanto para a vinha são as latadas de La Bibliog.: manuscrita: BGUC, ms. 314, Leonardo Turriano, Descrittione et
Historia del Regno de l’Isole Canarie giá Dette Fortunate com il Parere delle
Palma, bem como as tipologias dos lagares. Re- Loro Fortificationi, 1592-1594 (edições 1987 e seguintes); impressa: ARMAS,
corde-se a este propósito que a Madeira forne- António Rumeu de, “El conde de Lanzarote, capitán general de la isla de la
Madera (1582-1583)”, Anuario de Estudios Atlanticos, n.º 30, 1984, pp. 404-406;
cia estas ilhas de arcos e madeira para pipas. CABRERA, Manuel Lobo, “Canarias, Madeira y el zumaque”, Islenha, n.º 1,
A situação é ainda patente na participação da jul. dez. 1987, pp. 13-18; Id., “El comércio entre Canárias y Madeira en el siglo
xvi”, in Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal,
família Blandy, radicada na Madeira e com in- CEHA, 1993, pp. 623-634; CADENAS, Carlos Teixidor, “Historia de la fotografia
teresses no turismo, que na construção do ini- en Canárias y Madeira”, Gaceta de Canárias, ano iii, n.os 9-10, pp. 128-131;
CASOLA, Próspero, Visita de Las Yslas y Reyno de La Gran Canaria Hecha por
cial Santa Catalina Hotel, em 1888, pela com- Don Iñigo de Brizuela, 1636 (c.), ed. fac-símile de manuscrito da The New York
panhia The Grand Canary Island Company Public Library, Obadiach Rich Collection 94, ed. Juan Tous Meliá, Santa Cruz
846 ¬ C anavial , M aria E ugénia
Cancioneiro Geral
Beneficiada por uma conjuntura extremamen-
te favorável, em que as grandes potências eu-
ropeias se deparavam com conflitos internos
e guerras entre as potências do coração do
Velho Continente, com a chegada dos Turcos
otomanos aos limites do Império Bizantino e
o início da decadência dos estados italianos
de Génova e Veneza, a nação portuguesa, com
uma paz firmada desde a ascendência da Di-
nastia de Avis, abraçou o desafio civilizacional
de conduzir o Ocidente à conquista do grande
mar oceano.
Em contacto com os grandes centros comer-
ciais do Norte da Europa (Flandres), os Estados
Italianos e a Corte Pontifícia, e com relações
permanentes com a potência ibérica, Castela,
a influência cultural não tardou a acompanhar
o crescimento económico advindo da Expan-
são pelo Norte de África até à conquista do ca-
minho marítimo para Índia, nos dois reinados
que marcaram o apogeu do Império Português
(D. João II e D. Manuel I), à época o maior do
Ocidente.
Na corte, há muito que se ansiava pela eman- Fig. 1 – Garcia de Resende (1470-1536), poeta e cronista,
cipação cultural portuguesa e pela respetiva Évora (António Paiva, 1974).
Garcia de Resende é considerado por muitos Por se encontrar em contacto com as realida-
o criador do “Ciclo dos Castros”, por ser o autor des galaico-portuguesa e castelhana, o Cancio-
dos mais antigos poemas acerca do episódio da neiro de Resende segue os modelos castelhanos
morte de Inês de Castro, conhecidos como Tro- do Cancionero de Poetas Antiguos Que Fizo é Ordenó
vas à Morte de Inês de Castro. No entanto, obte- é Compuso é Acopiló el Judino Johan Alfon de Baena
ve o seu maior reconhecimento com o Cancio- (1445), composto por Juan Alfonso de Baena
neiro Geral, publicado em 1516, no qual reúne (c. 1375-c. 1434), o mais antigo texto deste esti-
a poesia produzida nas cortes de D. Afonso V lo em castelhano, conhecido como o Cancionei-
(1432-1481), D. João II e D. Manuel I. O pró- ro de Baena, e o Cancionero General de Muchos y Di-
logo é dedicado ao príncipe D. João (futuro versos Autores (1511), de Hernando del Castillo
D. João III) e o livro é finalizado com 48 trovas (n. em Segóvia), e nasce com o propósito de
da autoria do compilador. auxiliar a memória, lembrando as composições
Impresso em 1516 em Lisboa, na oficina de cultivadas nos serões palacianos. Assim, Garcia
Hermão de Campos, o Cancioneiro Geral é uma de Resende reuniu cerca de 1000 poemas (150
volumosa coletânea reunida e organizada por em castelhano e o restante em português) de
Garcia de Resende. Das suas páginas constam 318 autores, abrangendo desde a metade do
composições poéticas de 289 poetas portugue- séc. xv até ao início do séc. xvi. Ao contrário
ses e 29 castelhanos, pelo que é uma obra com do cancioneiro de Hernando del Castillo, os
poemas em português e em castelhano. Tem o poemas do Cancioneiro de Resende não se en-
mérito de ter sido a primeira coletânea de poe- contram organizados por temas.
sia impressa em Portugal e o principal reposi- Os temas de Resende são de natureza pala-
tório de poesia portuguesa da época. ciana, havendo ainda poesia religiosa, amoro-
sa, elegíaca e de temática épica. Entre a época
medieval e a época moderna, há uma continui-
dade com a poesia medieval, através de compo-
sições satíricas e géneros como o pranto ou a
tenção e a poética amorosa, e uma outra linha
que reflete a chegada da cultura clássica e as
influências de Petrarca e de Dante Alighie-
ri. Esta poesia é diferente da medieval, uma
vez que não é escrita para ser cantada e bai-
lada. Além do próprio autor, destacam-se aqui
nomes como os do conde de Vimioso, Sá de
Miranda, Bernardim Ribeiro, Duarte de Brito,
Diogo Brandão e João Roiz de Castel Branco.
No Cancioneiro de Resende, são-nos apresen-
tadas novas formas poéticas, vilancetes, canti-
gas, esparsas, trovas (em redondilha maior ou
menor) e ainda composições de arte maior,
além da poesia satírica e de algumas manifes-
tações elegíacas, encomiásticas, heroicas e reli-
giosas. Na compilação, os registos mais assina-
láveis são os de temática amorosa, através da
expressão casuística amorosa e das suas antino-
mias: morte/vida, cuidar/suspirar, querer/de-
sejar, ver/cegar.
Fig. 2 – Cancioneiro Geral (1516), de Garcia de Resende
Nesta panóplia de insignes vultos da litera-
(BNP, reservados, 111 A.). tura portuguesa, estão presentes alguns poetas
850 ¬ C ancioneiro G eral
madeirenses do séc. xv. Disso nos dá conta da colonização de origem flamenga, durante
Teófilo de Braga (1843-1924), que se refere, a época do açúcar. No que respeita à existên-
no seu estudo “Poetas palacianos” (1871), ao cia de um verdadeiro ciclo na Madeira, dis-
“ciclo poético da ilha da Madeira”, durante o tinto do ramo continental, é algo que não se
reinado de D. Duarte I (1391-1438), no qual in- vislumbra, quer a nível temático, quer a nível
sere os seguintes nomes que constam no Can- estrutural, fazendo estes poetas parte de um
cioneiro de Resende: João Gomes, Tristão Vaz todo nacional. Alfredo António de Castro
Teixeira (conhecido como Tristão das Damas Teles de Meneses de Vasconcelos de Betten-
e filho do 1.º capitão-donatário de Machico), court de Freitas Branco, visconde do Porto
João Gonçalves da Câmara (2.º capitão-donatá- da Cruz (1890-1962), é de opinião contrária à
rio do Funchal), Manuel de Noronha (filho de de Álvaro Rodrigues de Azevedo, afirmando,
João Gonçalves da Câmara), Pêro Correia, ou com Teófilo de Braga, que a Madeira tinha,
Pedro Correia (2.º capitão-donatário do Porto de facto, no tempo de D. Duarte I, uma esco-
Santo), Duarte de Brito (casado com uma neta la poética distinta da continental. Pela análise,
de Zarco), Rui de Sousa (igualmente casado o comentador de Saudades da Terra tem uma
com uma neta de Zarco), Rui Gomes de Grã leitura exata, pois a questão do “ciclo poético
(igualmente casado com uma neta de Zarco) e da ilha da Madeira” parece uma falsa questão,
João de Abreu (casado com uma neta de Tris- uma vez que nos poetas oriundos da Madeira
tão Vaz). O capítulo “El-Rei D. Duarte e o ciclo não se distingue uma temática ou estrutura di-
poético da Madeira” é comentado em Saudades ferentes. Provavelmente, a expressão de Teófi-
da Terra (1873) por Álvaro Rodrigues de Azeve- lo de Braga deveria remeter-nos para a origem
do (1825-1898). e não para a matéria, língua e estilo poéticos,
Segundo os comentários de Rodrigues de apesar de não ser esse o entendimento do inte-
Azevedo em Saudades da Terra, os poetas da Ma- lectual açoriano.
deira são fortemente influenciados pela esco- Álvaro Rodrigues de Azevedo considera
la aragonesa, com alguns motivos da Europa que os principais poetas madeirenses repre-
Central e do Norte, provavelmente advindos sentados no Cancioneiro são Tristão Teixeira,
João Gonçalves da Câmara,
Pedro Correia e Manuel de
Noronha.
De João Gomes, de quem
o Cancioneiro apresenta com-
posições, desconhece-se se a
sua origem é a Madeira ou o
continente português, surgin-
do citado como João Gomes
da Ilha ou João Gomes, o Tro-
vador. Casou no Funchal com
D. Guiomar Ferreira, filha de
Gonçalo Aires Ferreira, com-
panheiro de Zarco. Teve ter-
ras de sesmaria nas margens
da ribeira sua homónima. Foi
pajem do infante D. Henri-
que e faleceu em 1495. Além
das 13 composições presen-
Fig. 3 – Armas do príncipe D. João e folha inicial de “O cuydar e sospirar”
tes na disputa de “O cuydar
do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (BNP, reservados, 111 A.). e o sospirar”, existem mais
C ancioneiro G eral ¬ 851
Noronha; por outro, os portugueses procura- Correa, que, segundo citação de Aida Fernan-
ram defender o reino, transmitindo a imagem des Dias (DIAS, 2003, VI, 203), parece ser na-
de uma ilha onde imperava o maravilhoso, a in- tural da Ilha, ao ser referido num verso de Gar-
genuidade e a ignorância. Assim, o ato de Ma- cia de Resende como “Fostes cá trazido d’Ilha”.
nuel de Noronha deu origem a vários ataques Dos poetas citados, nota-se uma predomi-
e contra-ataques, sendo que, no fim, o cau- nância do tema do amor, com exceção de Ma-
sador de toda esta polémica remata com um nuel de Noronha, cujas composição assente no
irónico perdão a António de Valhasco, como Cancioneiro e respetiva panóplia de respostas e
resposta a todas as afrontas de que foi alvo por contra-respostas nos dão a jocosidade poética
parte dos poetas castelhanos: “Antes que de e uma questão de defesa nacional, o que torna
chamalote/fyzera desse rryfam/çeroylas paro o “ciclo poético da Madeira” uma continuação
veram.//E mays das copras farey/outra loba das temáticas caras à lírica portuguesa da época.
de que rria,/que seja casy tam frya/coma curta
Bibliog.: ANTUNES, Luísa Marinho, “A burla às ceroulas de chamelote de
de solya,/que v’ eu ja perdoey./E assy escapa- D. Manuel de Noronha ao Cancioneiro Geral de Garcia de Resende”, Islenha,
rey/nas copras, & no rryfam/das calmas deste n.º 24, jan.-jun. 1999, pp. 31-38; BELTRAN, Vicente, “Cancioneiro de Baena”,
in LANCIANI, Giulia, e TAVANI, Giuseppe (orgs. e coords.), Dicionário da
veram” (Ibid., IV, 229).
Literatura Medieval Galega e Portuguesa, 2.ª ed., Lisboa, Caminho, 2000, pp. 126-
Quanto a Pêro Correia, ou Pedro Correia, 128; DIAS, Aida Fernanda (org.), História Crítica da Literatura Portuguesa. Idade
consta que foi o 2.º capitão-donatário do Porto Média, vol. 1, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1998; Id., Cancioneiro Geral de Garcia de
Resende. Dicionário (Comum, Onomástico e Toponímico), vol. 6, Lisboa, INCM,
Santo, cuja donataria comprou por morte do 2003; FERREIRA, Manuel Juvenal Pita, “Tristão das Damas”, Arquivo Histórico da
seu sogro, Bartolomeu Perestrelo, o 1.º capi- Madeira, vol. xi, 1959, pp. 157-171; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra.
História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro
tão-donatário daquela ilha. Quando, no entan- Rodrigues de Azevedo, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2007;
to, o filho de Bartolomeu Perestrelo atingiu a GOES, José Laurindo, “Estabelecimento e evolução do Ateneu Comercial do
Funchal”, Atlântico, n.º 2, 1985, pp. 127-133; GONÇALVES, Ernesto, “João Gomes
maioridade, a compra da donataria foi impug- da Ilha”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. xi, 1959, pp. 9-82; MAGALHÃES,
nada pelo rei. Pedro Correia foi, igualmente, Isabel Allegro de, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVI.
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, Lisboa, FCG, 1999; MENDES, Margarida
donatário da ilha Graciosa, antes de se fixar no Vieira, “Cancioneiro Geral”, in LANCIANI, Giulia, e TAVANI, Giuseppe (orgs.
Porto Santo. No Cancioneiro, está presente com e coords.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, 2.ª ed.,
Lisboa, Caminho, 2000, pp. 128-132; PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas
um texto de oito versos, que anotamos: “Soes & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. 1, Funchal, Câmara
galante syngular,/& dyno de muyta fama,/ Municipal do Funchal, 1949; RESENDE, Garcia de, Cancioneiro Geral, ed.
preparada por A. J. Gonçalves Guimarães, 5 vols., Coimbra, Imprensa da
poys em tam fermosa dama/v’ soubestes em-
Universidade de Coimbra, 1910-1917; Id., Cancioneiro Geral, texto estabelecido,
preguar./Oxala vos fosse eu,/nam dyguays que pref. e anot. Álvaro Júlio da Costa Pimpão e Aida Fernanda Dias, 2 vols.,
Coimbra, Centro de Estudos Românicos/Instituto de Alta Cultura, 1973-1974;
volo disse,/que tam bem seria seu,/se mo ela
Id., Antologia do Cancioneiro Geral, sel. e introd. Maria Ema Tarracha Ferreira,
consentisse” (Ibid., IV, 81). Lisboa/São Paulo, Verbo, 2009; ROCHA, Andrée Crabbé, Garcia de Resende e
Tanto no Elucidário Madeirense como no texto o Cancioneiro Geral, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1979;
Id., “Garcia de Resende”, in LANCIANI, Giulia, e TAVANI, Giuseppe (orgs. e
de Teófilo de Braga, são apontados outros qua- coords.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, 2.ª ed., Lisboa,
tro poetas madeirenses com composições pre- Caminho, 2000, pp. 288-289; SARAIVA, António José, e LOPES, Óscar, História
da Literatura Portuguesa, 9.ª ed., Porto, Porto Editora, 1976; SILVA, Fernando
sentes no Cancioneiro: Duarte de Brito, Rui de Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols.,
Sousa (m. c. 1522), Rui Gomes de Grã (m. c. Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978.
Ritual de prosperidade em honra de Iemanjá conduzido por Pai Nélio d’Oxalá (Tenda Espírita e Mensageiro de Oxalá),
Caniçal, 31 de dezembro de 2016 (fotografia de Funchal Notícias).
854 ¬ C andomblé e umbanda
dos crentes. O santo de proteção ou orixá da um lugar considerado sagrado, onde ocorre
cabeça (ori) é conhecido através do jogo de a gira para cultuar o orixá. O terreiro engloba
búzios feito pela mãe (iaolorixá) ou pelo pai o quarto do orixá, o salão para fazer as festas,
(babalorixá) de santo. Estes comandam as ses- cantar, exaltar e receber o orixá, etc.
sões ritualísticas com a ajuda dos seus filhos de Num terreiro de umbanda, tal como no can-
santo, iniciados ou iaôs, que têm funções espe- domblé, a gira é a entrada no recinto da mãe
cíficas no terreiro, onde se realizam os cultos e ou pai de santo, ou seja, a abertura para rece-
os religiosos recebem ou incorporam os santos ber uma entidade com o propósito de cura e
e/ou orixás que “baixam”. O barracão é a casa orientação espiritual. A umbanda (“arte de
central de um terreiro de candomblé, onde curar”, do quimbundo de Angola) é uma re-
acontecem as festividades, os rituais religiosos ligião formada dentro da cultura religiosa bra-
e as incorporações dos orixás nas pessoas ini- sileira, que sincretiza vários elementos: índios
ciadas, ao som dos tambores. Um iniciado é (indígenas ancestrais ou caboclos), negros
uma pessoa que é escolhida para ser filho ou (ancestrais pretos-velhos de África, da reli-
filha de santo, passando por anos de aprendi- gião afro-brasileira candomblé), brancos (re-
zagem sobre a religião, as músicas, os cânticos, ligião católica) e da doutrina espírita de Kar-
as folhas e ervas utilizadas nos trabalhos espiri- dec. Uma das principais diferenças em relação
tuais ou ebós, maneiras de andar, dançar e estar ao candomblé é que, na umbanda, os orixás
diante de um pai ou mãe de santo, a história não incorporam, devido à sua elevada posição
dos povos africanos e os seus eguns (espíritos), na hierarquia divina. A prática da caridade é
entre outras coisas. a característica principal deste culto, que tem
Enquanto religião, o candomblé foi muito por base o evangelho. Ao longo do tempo, a
perseguido, mas, no Brasil, a Igreja Católica umbanda passou por várias transformações e
acabou por aceitar os pais e as mães de santos criou diversas ramificações. Assim, as entida-
trajados com os seus filhos de santos. Esta re- des ou guias que cultua estão ligados a diferen-
ligião sofreu, assim, transformações ao longo tes linhas espirituais: pretos-velhos (linhagem
dos séculos: por um lado, sincretizou o seu africana), caboclos (sobretudo índios), baia-
conteúdo com a Igreja Católica; por outro, nos (também chamados Zés e marinheiros),
preservou os elementos essenciais da identida- boiadeiros, povo do Oriente, crianças (erés),
de cultural dos negros africanos escravizados exus e pombagiras, entre outros.
no Brasil. Como escravos de senhores católi- Na Madeira, existem pais de santo de um-
cos, os negros foram proibidos de cultuar a sua banda que realizaram a sua “feitura”, o “as-
religião, sendo obrigados a assistir às missas sentamento” ou “fundamento” (cerimónia ou
nos portais das igrejas. Numa tentativa de fazer ritual de iniciação) de preto-velho no Brasil
sobreviver a sua cultura, começaram a estabe- ou em Lisboa, na linhagem africana, sendo
lecer paralelos entre as suas divindades e os médiuns de incorporação que juntam o espi-
santos da Igreja Católica; num gesto de sincre- ritismo e o catolicismo, bem como a sua intui-
tismo religioso. Cada orixá tem as suas carac- ção e visão, na sua atividade. Desde agosto de
terísticas, o seu dia, a sua cor, a sua dança, os 2006, existe o Umbanda Center na Madeira,
seus instrumentos, frutas e comidas favoritas e começando a divulgação da religião e a rea-
saudações. Também há uma correspondência lização de rituais. Este centro ou terreiro de
entre os orixás e os signos do zodíaco. umbanda está ligado a uma casa de santo do
No que diz respeito à presença do candom- Rio de Janeiro e foi fundado com o seu apoio.
blé na Madeira, existem pais e mães de santo Designando-se primeiramente Tenda Espíri-
na Ilha que vieram do Brasil ou que foram ta Sete Luas, o seu nome foi depois alterado
formados no Brasil ou por brasileiros e africa- para TEMO – Umbanda Center, designação
nos no continente português. O barracão de que significa Tenda Espírita Mensageiro de
candomblé ou roça de santo/casa de santo é Oxalá – Centro de Umbanda.
C ane , irm ã s ¬ 855
A aceitação do candomblé e da umbanda Livros como The Flowers and Gardens of Japan
na Madeira revelou-se um processo lento de- (1908), The Flowers and Gardens of Madeira
vido ao preconceito oriundo do desconheci- (1909, reed. 1926) e The Canary Islands (1911)
mento destas religiões, que são conotadas ne- nasceram desta colaboração, exibindo e des-
gativamente como práticas de macumba e de crevendo paisagens, jardins luxuriantes e o
feitiçaria. quotidiano popular não só através das aguare-
las de Ella, mas também pelas minuciosas des-
Bibliog.: DIAS, Rosana de Queiroz, Os Orixás em Nossas Vidas, São Paulo,
Adonis, 2006; LIGIÉRO, Zeca, Iniciação ao Candomblé, 7.ª ed., Rio de Janeiro,
crições de Florence. O sucesso das aguarelas
Nova Era, 2002; PETROVICH, Carlos e MACHADO, Vanda, Ivê Ayó. Mitos de Ella du Cane é patente no patrocínio da
Afro-Brasileiros, Salvador/Bahia, Universidade Federal da Bahia, 2004; PRETTO,
Câmara Municipal do Funchal, que chancela
Nelson de Luca e SERPA, Luiz Felippe Perret (org.), Expressões de Sabedoria:
Educação, Vida e Saberes. Mãe Stella de Oxóssi Juvany Viana, Salvador, ambas as edições, e, nos anos seguintes, na cir-
Universidade Federal da Bahia, 2002; SALES, Nívio Ramos, A Fala dos Orixás:
culação de inúmeros bilhetes-postais dos seus
Búzios, Caídas, Significados, Leituras, Rio de Janeiro, Pallas, 2005; SARACENI,
Rubens, Código de Umbanda, São Paulo, Madras, 2004. trabalhos na ilha da Madeira. A obra de maior
sucesso editorial das irmãs Cane foi The Flowers
Naidea Nunes
and Gardens of Japan, por ser considerada um
diário de viagem ou uma espécie de diário pai-
sagístico que capta o exotismo do Oriente, ali-
Cane, irmãs
mentando o fascínio do Ocidente pelos jardins
Ella Mary du Cane, mais conhecida por Ella e pela paisagem natural japonesa.
du Cane, nasceu a 4 de junho de 1874, em Em 1895, a Rainha Vitória, admirada com
Hobart, na Tasmânia (Austrália). Florence o trabalho de Ella du Cane, adquiriu diver-
Gertrude Louisa du Cane, comummente co- sos quadros da sua autoria. As pinturas de Ella
nhecida por Florence du Cane, nasceu a 21 foram exibidas na New Society of Painters in
de maio de 1869, também na mesma cidade.
Eram dois dos cinco filhos de sir Charles du
Cane e de Georgiana Susan Copley, residen-
tes em Braxted Park, Essex, Inglaterra. Ella e
Florence eram netas de John Singleton Co-
pley, 1.º barão de Lyndhurst, e bisnetas do
pintor John Singleton Copley. Ella e Floren-
ce eram descentes, pela linhagem paterna, de
Jean du Quesne. Ella du Cane foi uma notável
aguarelista, e Florence uma exímia escritora e
designer de jardins.
Após a morte do seu pai, em Essex, Ella e Flo-
rence du Cane viajaram pelo mundo, compon-
do obras de suma importância relativamente à
flora, à fauna e aos povos dos países que visi-
taram. Antes de colaborar proficuamente com
a sua irmã, Ella du Cane ilustrou os livros The
Italian Lakes (1905), da autoria do inglês Ri-
chard Bagot, e Japan (1907), de John Finne-
more, da coleção Peeps at many Lands. Estas
produções, sob a alçada da editora Adam and
Charles Black, constituíram um impulso para
ambas realizarem as suas próprias viagens e pu-
blicarem obras conjuntas: Ella ilustrava e Flo- Fig. 1 – The Flowers and Gardens of Madeira (1909),
rence escrevia. de Florence du Cane e Ella du Cane.
856 ¬ C ane , irm ã s
Fig. 2 – Poinsettia on the Mount Road, manhãs-de-páscoa Fig. 3 – Jackaranda Tree, jacarandá da Trav. das Capuchinhas,
no caminho do Monte, Ella du Cane, 1904 (coleção particular). Ella du Cane, 1904 (coleção particular).
Water Colours, na The Fine Art Society e na Torrinhas, a Qt. da Levada, entre outros locais
Graves Gallery, em Inglaterra. Nestas galerias, de destaque no Funchal. Relembram passa-
expôs as aguarelas sobre a sua viagem com Flo- gens históricas e lendárias, desde a descober-
rence à Madeira, em 1910. ta até à lenda de Machim, e revisitam livros de
Em 1913, Ella ilustra e Florence colabora na outros viajantes, estudiosos e cientistas que vi-
obra de John Aiton Todd, intitulada The Banks sitaram e estudaram a Madeira, como Gaspar
of the Nile. Nos anos 20-30, Ella expõe e publi- Frutuoso, Ellen Taylor, Piazzi Smyth e Edward
ca um conjunto de aguarelas relativas ao Egito, Bowdick. Florence e Ella destacam a exube-
intitulado The Nile Watercolours e Egypt. Segun- rância da paisagem e das plantas que decoram
do a imprensa da época, as aguarelas de Ella as diversas quintas privadas e os jardins públi-
“radiated sunshine and their subtle colouring cos madeirenses: “By April the wistaria takes
stirs the imagination [irradiavam luz solar e a its place, and the road becomes all mauve, as
sua coloração subtil agita a imaginação]” (Bel- nowhere in the whole of Funchal are there so
fast Newsletter, 31 out. 1905, 9). many beautiful wistarias collected together; all
Ella e Florence viajaram e visitaram a Madei- along this road they seem to have been planted
ra, as Canárias, o Egito, a China, o Sri Lanca with a lavish hand [Em abril, a glicínia toma o
e o Japão, registando extensas descrições si- seu lugar e a estrada fica toda malva, em lugar
nestésicas e aguarelas. Durante a sua viagem à algum do Funchal há tantas glicínias bonitas
Madeira, as irmãs Cane visitaram o Palheiro, reunidas; ao longo de toda esta estrada elas pa-
a Camacha, o Monte, a Qt. dos Ilhéus, a Qt. recem ter sido plantadas por uma mão extrava-
Vigia, a Qt. Stanford, Santa Luzia, a Qt. do Til, gante]” (CANE, 1909, 41).
C anoniza ç ã o , processo de ¬ 857
Após as viagens, Ella dedicou-se ao mister da de 26 anos, o Papa João Paulo II proclamou
pintura e Florence ao design de jardins. Segun- cerca de 1340 beatos e 482 santos. Os papas
do a imprensa inglesa, Florence, além de des- que se lhe seguiram, Bento XVI e Francisco,
crever de forma exímia as paisagens e os locais prosseguiram esse caminho.
por onde passava, era considerada uma distinta Os santos e a santidade são identificados num
jardinista, sendo comparada a Gertrude Jekyll, movimento de baixo para cima: o povo cristão,
insigne escritora e designer de jardins britânica. reconhecendo pela intuição da fé a fama de
Ella du Cane faleceu a 25 de novembro de santidade, indica ao seu bispo, titular da pri-
1943, e Florence a 3 de julho de 1955, em Mal- meira fase do processo, e, em seguida, à Con-
don, Essex, Inglaterra. Florence du Cane legou gregação competente da Santa Sé os candida-
toda a herança ao sobrinho, o conhecido en- tos à canonização. Nem a Congregação para
genheiro naval e comandante da Marinha Real as Causas dos Santos nem o papa “inventam”
inglesa, Peter du Cane. ou “fabricam” santos. O objetivo final de uma
causa não são os beatos ou os santos, mas os
Obras de Florence Gertrude Louisa du Cane (com ilustrações de Ella Mary
du Cane): The Flowers and Gardens of Japan (1908); The Flowers and Gardens of
fiéis, que têm necessidade de que a Igreja con-
Madeira (1909); The Canary Islands (1911). tinue a propor novos modelos de santidade.
Bibliog.: BAGOT, Richard, e CANE, Ella du, The Italian Lakes, London, Adam and
Para compreender a Igreja, é necessário co-
Charles Black, 1912; Belfast Newsletter, 31 out. 1905; Bromyard News, 26 mar. nhecer os santos, que são o seu sinal e o seu
1903; CANE, Florence du, e CANE, Ella du, The Flowers and Gardens of Madeira,
fruto mais amadurecido e eloquente. Para con-
London, Adam and Charles Black, 1909; Daily Telegraph & Courier, 23 abr. 1910;
FOSTER, Joseph, The Peerage, Baronetage and Knightage of the British Empire, templar o rosto de Cristo, é preciso olhar para
Westminster, Nichols and Sons, 1881; GRIFFITHS, Mark, The Lotus Quest. In
os santos. A Igreja proclama santos em nome
Search of the Sacred Flower, London, Chatto & Windus, 2009; MACEDO, L. S.
Ascensão de, Da Voz à Pluma. Escritoras e Património Documental de Autoria daquele anúncio da santidade que a enche e
Feminina de Madeira, Açores, Canárias e Cabo Verde. Guia Biobibliográfico, a transforma em instrumento de santidade no
Ribeira Brava, ed. do Autor, 2013; Mid Sussex Times, 22 maio 1900; MILLAR,
Delia, The Victorian Watercolours and Drawings in the Collection of Her Majesty mundo.
the Queen, London, Philip Wilson, 1995; Portsmouth Evening, 25 out. 1955; Ao longo dos séculos, as causas dos santos
REDFOOT, Alison, Victorian Watercolorist Ella Mary du Cane. A Study in
Resistance and Compliance of Gender Stereotypes, the Professional Art World, sofreram uma grande evolução, não só quan-
Orientalism, and the Interpretation of Japanese Gardens for British Society, to ao método e à autoridade competente, mas
Dissertação de Mestrado em História de Arte apresentada à California State
University, Long Beach, texto policopiado, 2011; Sheffield Independent, 7 fev.
também quanto à investigação que precede a
1898; The Times, 8 jul. 1955. canonização. As causas de canonização têm
Fernanda de Castro a sua origem na vida da Igreja dos primeiros
L. S. Ascensão de Macedo tempos, na homenagem espontânea que pres-
tava aos mártires, como fruto do entusiasmo e
da veneração dos fiéis para com aqueles que
consideravam seus modelos. No tempo de paz
Canonização, processo de
iniciado no reinado de Constantino, o culto
A santidade não é um luxo de poucos, um pri- aos mártires atinge o seu esplendor e o dia
vilégio de uns tantos, mas uma meta que Deus do aniversário de martírio é celebrado solene-
propõe ao Homem, feito à sua imagem e se- mente pelos fiéis com peregrinações aos respe-
melhança, uma proposta que se torna man- tivos túmulos. Mais tarde, começa-se a tributar
damento: “Sede santos, porque Eu, o Senhor, culto também aos cristãos que se distinguiam
vosso Deus, sou santo” (Lv 19, 2). De atributo pela sua firmeza em defesa da fé, os chamados
divino, a santidade passa, assim, a ser vocação confessores – conceito posteriormente alarga-
de todo o Homem. O que a Igreja tem feito é do aos fiéis que se distinguiam pelo seu traba-
reconhecer publicamente que alguns fiéis che- lho apostólico, pelos seus escritos ou pelas suas
garam a essa santidade, ou pelo martírio que virtudes.
aceitaram, ou pelas virtudes cristãs que prati- Entre os sécs. vi e x, não se pode ainda falar
caram heroicamente. Na segunda metade do propriamente de investigação ou de proces-
séc. xx, durante o seu prolongado ministério so de canonização, nem se pode dizer que
858 ¬ C anoniza ç ã o , processo de
Fig. 2 – Zita e Carlos de Áustria saindo da Sé do Funchal, com o Cón. Homem de Gouveia, 8 de dezembro de 1921
(ABM, Perestrellos Photographos).
860 ¬ C anoniza ç ã o , processo de
2006, pp. 179-187; GUTIÉRREZ, José Luis, Studi Sulle Cause di Canonizzazione, queria estabelecer a jornada de Vespúcio de
Roma, Giuffrè Editore, 2005; JOÃO PAULO II, Divinus Perfectionis Magister,
25 jan. 1983; MOREIRA, António Montes, “Evocação de frei Pedro da Guarda forma conclusiva e, em particular, decidiu exa-
no quinto centenário da sua morte”, Islenha, n.º 37, jul.-dez. 2005, pp. 26-41; minar as rotas, a fim de resolver a questão da
RIBEIRO, Abílio Pina, Irmã Wilson, Vida, Testemunhos, Cartas, Lisboa,
Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, 1989;
longitude. A passagem pela Madeira era cru-
RODRIGO, Romualdo, Manuale delle Cause di Beatificazione e Canonizzazione, cial, dado que a Ilha e o arquipélago eram um
Roma, Institutum Historicum Augustinianorum Recollectorum, 2004; SILVA,
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense,
dos pontos geográficos fundamentais, tanto
3 vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998; VERAJA, para os cálculos de Canovai, como para con-
Fabijan, Commento alla Nuova Legislazione per le Cause dei Santi, Roma,
firmar a verdade histórica das várias viagens de
Congregação das Causas dos Santos, 1983.
Vespúcio.
Marcos Gonçalves
Obras de Stanislao Canovai: Elogio di Amerigo Vespucci, Che Riportò il Premio
dalla Nobile Accademia Etrusca di Cortona nel Dì 15 Ottobre dell’Anno 1788. Con
Una Dissertazione Giustificativa di Questo Celebre Navigatore (1798).
Canovai, Stanislao
Bibliog.: CORNIANI, Giambattista, I Secoli della Letteratura Italiana dopo il Suo
Stanislao Canovai nasceu a 27 de março de Risorgimento Commentario […] Continuato Fino all’Età Presente da Stefano
Ticozzi, t. ii, pt. ii, Milano, Vincenzo Ferrario, 1834; DELSEDIME, Piero, Dizionario
1740 em Florença e nesta mesma cidade mor- Biografico degli Italiani, vol. 18, Roma, Istituto dell’Enciclopedia Italiana, 1975;
reu a 17 de novembro de 1812. Foi um dos ma- POZZETTI, Pompilio, Elogio di Stanislao Canovai Scritto da Pompilio Pozzetti,
Professore Emerito e Bibliotecario nella Regia Università di Bologna, Bologna, Tip.
temáticos e físicos mais famosos do séc. xviii e de Fratelli Masi, 1812; TIRABOSCHI, Girolamo, Storia della Lettereratura Italiana,
é considerado o iniciador da corrente científi- vol. iv, Milano, Antonio Fontana, 1833.
os morgadios. Assim, e segundo aqueles nor- as orações rezadas por um parente. Por outro
mativos, está-se em presença de um morgadio lado, possibilitava, ainda, eximir terras à posse
quando o rendimento da fundação se destina, da Igreja, na medida em que a propriedade
quase exclusivamente, ao administrador, en- que gerava os rendimentos permanecia nas
quanto para haver capela é necessário que os mãos dos instituidores, ficando disponível por
bens vinculados revertam, sobretudo, a favor morte do capelão, de modo a poder ser atri-
da realização de objetivos de carácter religio- buída a outro familiar. Para além disto, as ca-
so, como a oferta de esmolas, a sustentação de pelas eram, igualmente, formas de criar um
obras pias ou a celebração de ofícios divinos. património para os filhos segundos, que fica-
A criação deste tipo de vínculos servia uma vam deste modo na posse do rendimento da
série de propósitos, para além do já enuncia- propriedade que sobrava do custo do encar-
do resgate das almas, o que contribui para ex- go. Através das capelas podia-se, ainda, fomen-
plicar o sucesso de que se revestiu a adoção tar as ligações clientelares com ramos colate-
desta prática. Com efeito, a fundação de uma rais da família e alardear o valor do sangue,
capela apresentava uma série de vantagens, pois concediam o direito de fazer sepulturas
nomeadamente a de permitir a um eclesiásti- em lugares destacados, exibindo armas e he-
co, membro da família instituidora, que assim ráldica. Para a Igreja, as capelas tornavam-se
se tornava capelão, ganhar a vida sem ter de igualmente vantajosas, dado representarem
se submeter aos concursos para cargos bene- uma forma de rendimento continuado e pelo
ficiais, ao mesmo tempo que garantia serem facto de muitas dessas fundações estipularem
os encargos “enquanto o mundo for mundo”
ou “enquanto o mundo durar”.
Este conjunto de fatores justifica o aumento
do volume de instituições vinculares que se foi
verificando desde os tempos medievais até aos
finais do séc. xviii, altura em que a publicação
da lei de 9 de setembro de 1769, que proibia
a criação de capelas sem autorização régia, ao
mesmo tempo que exigia que, nas já fundadas,
o dispêndio com os encargos pios não fosse su-
perior a um décimo do rendimento líquido da
propriedade (exceto para os casos da Estrema-
dura e da corte), veio infligir um duro revés
àquela prática.
Muito conotada com os sectores mais ele-
vados da sociedade, pelas razões já referidas,
que favoreciam particularmente as casas mais
poderosas, a instituição das capelas não foi,
contudo, apenas usada pela nobreza, antes se
estendendo a outros estratos sociais que, mo-
vidos pelo mesmo desejo de resgatar as almas
dos parentes e ansiosos por beneficiar da ele-
vação de estatuto que tal procedimento permi-
tia, não se eximiram de, igualmente, estabele-
cer vínculos perpétuos.
Esta prática de mimetismo social encon-
Fig. 3 – Missa São Gregório, retábulo-mor da Sé do Funchal
tra-se bem referenciada por Cabral do Nasci-
(fotografia de Virgílio Gomes, 2014). mento, que refere supor muita gente que “os
C apelas ¬ 867
testamentário tem, porém, o interesse de per- de visitações pastorais. As visitações mais an-
mitir analisar a desvalorização do valor afeto tigas de que há vestígios documentais na Ma-
às celebrações, na medida em que o testamen- deira datam de 1538 e 1541 e encontram-se
to data de 1499, ano em que o preço da missa transcritas pelo consciencioso vigário da Ma-
rondaria os 38 réis, valor que, transposto para dalena do Mar, João Leandro Afonso, que em
uns séculos mais tarde, claramente se mostra 1589, por se aperceber de que o texto estava
insuficiente; assim, e.g., em 1734, D. Fr. Manuel a ficar comprometido, resolveu copiá-las para
Coutinho publicava um edital que estipulava um livro de batismos, casamentos e óbitos, o
120 réis como valor de cada missa, mas, em que acabou por permitir que os séculos futu-
1768, o preço já era de 150 réis. Se se fizerem ros soubessem que, pelos anos 30 da centúria
as contas do legado de 14.000 réis do capitão, de Quinhentos, o cumprimento dos encargos
logo se conclui que o valor estipulado havia pios não era ainda problemático, por não fa-
muito que não chegava para cobrir as despe- zerem aqueles provimentos qualquer referên-
sas inerentes. Este é, com efeito, um problema cia ao assunto.
que cedo se põe e que ameaça o cumprimento O mesmo já não acontece a partir dos finais
das últimas vontades dos testadores, “carregan- do séc. xvi, quando, por determinação de
do a consciência” dos testamenteiros e até a do D. Jerónimo Barreto, se publicam as primei-
bispo, na medida em que também é correspon- ras Constituições Sinodais da Diocese, cujo títu-
sável pela execução dos legados. lo xxii, sobre testamentos, começa por dizer
A preocupação dos prelados com o incum- que sabia o prelado que “muitos testamentei-
primento das vontades testamentárias per- ros em grande cargo de suas consciências dei-
corre os diversos episcopados funchalenses xam de cumprir muitos testamentos e legados
e encontra-se expressa pelos bispos quase pios por muito tempo, por negligência e por
desde os primeiros registos de provimentos outras ocasiões e interesses, por cuja causa as
Fig. 5 – Teto mudéjar da capela dos Reis Magos, c. 1520, Estreito da Calheta (fotografia da Direção Regional da Cultura, 2005).
C apelas ¬ 869
Fig. 6 – Capela do Corpo Santo, c. 1470, reformulada por 1520 e 1594, Funchal (fotografia de Direção Regional da Cultura, 2018).
almas dos testadores não são socorridas com os não procurarem pelas ditas obrigações para
sufrágios”, pelo que ele, bispo, a quem sobre as distribuírem e fazerem dizer em suas igre-
isso incumbia zelar, passava a exarar as deter- jas tomando outras de esmola melhor parada.
minações convenientes à boa execução futura Pelo que mandamos ao prioste desta sé […]
das últimas vontades (Constituições Synodaes…, sob pena de um marco de prata […] que saiba
1585, 141). todas as capelas e missas da obrigação dela e
A partir do momento da publicação do texto as distribuía pelos capitulares” (DGARQ, Cabi-
sinodal, passam a abundar nos provimentos do da Sé do Funchal, mç. 33, fls. 2v.-3). Este
referências a testamentos, encargos e incum- provimento estava tão adequado à realidade
primentos, que desde esse momento se encon- que o prelado seguinte, D. Luís de Figueiredo
tram em praticamente todas as visitas realizadas Lemos, o transcreveu, quase ipsis verbis, para o
a qualquer freguesia, tornando-se, mesmo, um texto das suas Constituições Extravagantes, onde
dos temas mais recorrentemente abordados. figura na Constituição IX.
Assim, na Sé, a 15 de abril de 1588, D. Je- À semelhança do que acontecia na Sé, tam-
rónimo Barreto deixava em provisão que acha- bém nas freguesias rurais a questão do incum-
va “neste bispado muita remissão no cumpri- primento das capelas se punha com acuidade,
mento das capelas, missas e aniversários a que conforme se pode concluir dos provimentos
são os ministradores obrigados e que muita que foram sendo exarados no Seixal, em 1590
parte desta falta é por os priostes das igrejas e em 1599, na Fajã da Ovelha, em 1588, 1590,
870 ¬ C apelas
Fig. 8 – Promessa na capela de N.ª Sr.ª do Faial, no Funchal, litografia de Pitt-Springett, 1843 (reedição de Paul Alexander Zino, 1991).
em que o juiz dos Resíduos, normalmente era a que “lhe dava mais peso” no governo da
homem da terra, preferia, muitas vezes, omi- Diocese, pois envolvia os “maiores”, que lhe
tir-se a criar problemas com os poderosos, o opunham “resistência e contradição”, sobretu-
que, por sua vez, conduzia ao choque entre do por não haver “Provedor que os obrigue”
as jurisdições civis e as religiosas. Para tentar (Ibid., fl. 8v.). Esta omissão do provedor levou
minimizar a tensão, em período de sé vacante, o bispo, inclusivamente, a propor ao rei, por
ocorrido entre 1721 e 1725, o então governa- carta de 22 de fevereiro de 1732, a criação de
dor do bispado, Pedro Álvares Uzel, tinha deci- um lugar “de novo” para um ministro que não
dido abdicar das prerrogativas eclesiásticas na se ocupasse de mais nada a não ser de execu-
gestão das capelas, atribuindo-as todas ao juiz ções testamentárias (Ibid., fl. 60), mas o único
dos Resíduos e provedor das Capelas. Quando resultado que obteve foi o da transferência da-
o novo bispo, D. Fr. Manuel Coutinho, tomou quelas competências do juiz dos Resíduos para
posse do bispado, foi, portanto, confrontado o juiz de fora, o qual, sem tempo para dedicar
com um incumprimento generalizado dos en- ao problema, deixou que tudo continuasse na
cargos pios, razão pela qual, em pastoral que mesma.
promulgou a 29 de setembro de 1725, muito Não admira, assim, que uma pastoral do
pouco tempo depois de chegar, já falava da ne- prelado seguinte, D. Fr. João do Nascimento,
cessidade de os párocos, dentro de um mês, re- publicada a 31 de janeiro de 1744, voltasse a
portarem os testamentos por cumprir. Segun- abordar a problemática, através do pedido en-
do se pode concluir de um longo documento dereçado a todos os administradores de cape-
com as memórias deste prelado, a questão do las para apresentarem aos respetivos párocos
incumprimento das vontades testamentárias “certidão ou sentença do Juiz dos Resíduos”
872 ¬ C apelas
Cristina Trindade Fig. 1 – Infante D. Henrique, Francisco Franco, 1931, Porto Santo
Saturino Gomes (fotografia de Virgílio Gomes, 1 jul. 2018).
874 ¬ C apit ã es do donatário
D. João (1400-1442), passada a 1 de novembro para ele – um abuso em relação ao que lhe
de 1444; e a do Funchal a favor de João Gon- tinha sido dado, pois estes assuntos deveriam
çalves Zarco (c. 1390-1471), a 1 de novembro subir ao rei. O infante não alienou todos os po-
de 1450. deres, pois advertiu, de forma expressa, que os
Na primeira carta de doação a Tristão, o in- seus “mandados e correições sejam cumpridos
fante começa por referir que lhe “apraz que ele como em coisa minha própria” (Ibid.).
possa dar por suas cartas, a terra desta parte, A ressalva da morte ou talhamento de mem-
forra pelo foral da Ilha”, referindo-se, por bro, como atributo real, foi reposta nas pos-
certo, ao anterior foral de seu pai, D. João I teriores doações de D. Afonso V (1432-1481),
(1357-1433). No entanto, também refere o se- que obrigaram o infante D. Henrique a alterar,
guinte: “e o que hei de haver na dita Ilha, é inclusivamente, as doações aos seus capitães.
contido no foral que para ela mandei fazer” Ciente da ultrapassagem das prorrogativas
(BNP, Index Geral…, fls. 1v. e 119v.-120v.), de- reais do sobrinho, veio a alterar o seu testa-
duzindo-se daqui que já tinha feito, ou estava mento ao irmão do rei, o infante D. Fernando
a fazer, ainda outro. Nestes documentos, sensi- (1433-1470), que constituíra como seu herdei-
velmente iguais, o infante D. Henrique delimi- ro, e, inclusivamente, a doar ao rei algumas das
ta, com o máximo rigor possível, as áreas das ilhas dos Açores.
capitanias, indo então mais longe do que tinha Os capitães tinham direitos sobre os moi-
ido o seu irmão D. Duarte, trespassando-lhes nhos da área das suas capitanias, sobre os for-
“a jurisdição [...] do cível e do crime, ressalvan- nos de pão e sobre o sal, podiam criar um
do a morte ou talhamento de membro” (Ibid., imposto sobre as rendas já taxadas para o in-
fl. 1v.). Tristão não cumpriria devidamente o fante – era o chamado direito de redízima – e
seu papel; porém, em tais casos, o infante es- era-lhes permitido distribuir as terras das suas
tipulava que a apelação deveria ser mandada capitanias, podendo as distribuições ser consi-
deradas prescritas ao fim de cinco anos, caso
os beneficiários as não tivessem aproveitado
devidamente durante esse período. Saliente-se
que as disposições de 1425 ou 1426 eram um
pouco diferentes, sendo os terrenos reconfir-
mados aos seus utentes ao fim de um período
de ocupação de 10 anos: “E toda aquela [terra]
que nos ditos dez anos aproveitarem lhes pas-
sará, e não a outra que não aproveitarem. E pe-
dirão de novo autoridade minha [ou seja, ao
Rei D. João I] para o poderem aproveitar, e
nas madeiras, paus, lenhas, matos, arvoredos,
fontes, tornos e olhos de água, pastos, ramos e
ervagens, bagas, bolotas, glandes das árvores,
praias e costas do mar, rios e ribeiras, particu-
lar algum não terá [...]” (BNP, Index Geral…,
fls. 24-25v.).
Tratou-se aqui de um verdadeiro comunita-
rismo agrícola, na medida em que os produtos
e os meios da Ilha eram de usufruto comum,
uma forma de tentar evitar o acréscimo da ri-
Fig. 2 – Carta de doação das ilhas da Madeira, de Porto Santo queza privada, desenvolvendo as riquezas da
e Deserta do Rei D. Duarte ao infante D. Henrique
de forma vitalícia, Lisboa, 23 de setembro de 1433
terra em proveito geral. Aqui não se vislum-
(ANTT, Chancelaria de D. Duarte, liv. 1, fl. 18). brava qualquer domínio ultramarino do tipo
C apit ã es do donatário ¬ 875
Rui Carita
Capitanias
A instituição do regime de capitanias-dona-
tarias, ensaiado no povoamento da Madei-
ra e depois exportado para os Açores, Cabo
Verde, São Tomé e Brasil, marcou profunda-
mente a gesta dos Descobrimentos portugue-
ses. No entanto, em meados do séc. xvi, este
modelo parece ter atingido o limite do seu pe-
Fig. 1 – João Gonçalves Zarco, gravura de 1873
ríodo de duração. Assim, as tentativas da sua (FRUTUOSO, 1873).
C apitanias ¬ 877
vagando depois para a Coroa na sequência da estar ligado, de alguma forma, a um certo as-
morte do 4.º capitão, em 1540, dado que não cendente militar, daí se justificando um certo
tinha descendência legal. Em 1541, D. João III alheamento, ou afastamento, do governador
fez mercê da mesma a António da Silveira, da Madeira em relação a Machico. Registam-se
que tinha sido capitão de Diu. No entanto, presenças várias dos governadores da primei-
este vendeu-a num curto espaço de tempo, em ra metade do séc. xviii nas vilas da capitania
1549, com licença e faculdade de D. João III, do Funchal, mas não nos ocorre nenhuma nas
a Francisco de Gusmão, mordomo da infanta vilas de Machico e Santa Cruz. Os ouvidores
D. Maria, para dote da sua filha, D. Luísa de das capitanias regiam-se pelas Ordenações de
Gusmão. Esta veio a casar com D. Afonso de Filipe II, especialmente pelo título lx, “Corre-
Portugal (1519-1579), 2.º conde de Vimioso, gedores das comarcas e ouvidores dos mestra-
que incorporou na Casa dos Vimioso a capita- dos e de senhores de terras”.
nia de Machico. O 2.º conde viria a falecer em A situação das capitanias do Funchal e de Ma-
Alcácer Quibir, passando então a usar o título chico, com os capitães a residirem na corte e as
o seu filho mais velho, D. Francisco de Portu- mesmas a serem regidas por ouvidores, nunca
gal (1550-1582), que viria a aderir à causa de foi extensível à capitania do Porto Santo, dada
D. António e a falecer em combate ao largo de a presença física, no arquipélago, do respetivo
Vila Franca do Campo, nos Açores. Ficando a capitão-donatário. As coisas alteraram-se algu-
capitania de Machico uma vez mais nas mãos mas vezes nos sécs. xvii e xviii, nas ocasiões
da Coroa, esta foi entregue por Filipe II a Tris- em que o donatário, por motivos vários, aban-
tão Vaz da Veiga. donou o arquipélago. Nesses casos, o próprio
O irmão mais novo dos Vimioso, D. Nuno Ál- capitão do Porto Santo nomeou um governa-
vares de Portugal (c. 1555-c. 1625), move, ainda dor durante a sua ausência e, quando tal se
em vida de Filipe II, um processo à Coroa, ale- deu compulsivamente, a nomeação foi efetua-
gando que o pai teria ficado vivo em Alcácer da pelo governador e capitão-general da Ma-
Quibir, pelo que o irmão assumira ilegalmente deira, antes da extinção das capitanias.
o título e a capitania de Machico. Assim, tendo
falecido o assumido 3.º conde, D. Francisco de
Portugal, em 1582, o irmão considera que a ca-
Capitania do Funchal
pitania não deveria ter vagado para a Coroa, A evolução desta instituição não foi de forma
pois o pai ainda poderia estar vivo algures em alguma linear, até pela diferença nos seus ren-
Marrocos. Falecido Filipe II, este longo e algo dimentos, provindos das rendas territoriais, de
bizarro processo teve seguimento, conseguin- terras e foros, da redízima e do selo, bem como
do a Casa dos Vimioso, falecido Tristão Vaz da de moinhos, serras de água, sabão e sal. Para
Veiga, em 1604, reaver a capitania. uma comparação, veja-se que, em 1653, e.g., o
Ao longo do séc. xvii, as capitanias da Ma- conde-capitão do Funchal pagou a importân-
deira encontravam-se, assim, na posse dos seus cia de 100$000 réis respeitantes ao donativo
anteriores donatários. Dada a estadia na corte para as despesas de guerra. Em 1662, as déci-
dos capitães do Funchal e de Machico – os con- mas dos dois primeiros quartéis foram orçadas
des de Castelo Melhor e os de Vimioso e, de- em 130$000 réis para a condessa da Calheta e
pois, os marqueses de Valença –, as funções de capitoa do Funchal, enquanto para o conde de
comando de tropas propriamente ditas conti- Vimioso, donatário de Machico, foram orçados
nuaram no governador e no capitão-general, em 20$000 réis. A situação económica da capi-
mas a capitania ficou como título, mantendo as tania do Porto Santo era pior. Em 1693, e.g.,
rendas, uma certa intervenção camarária e as a redízima, no valor de 76$800 réis, somente
funções judiciais. O donatário passou a fazer-se conseguia pagar o ordenado do capitão-mor
representar na sede da capitania por um ouvi- Jorge Moniz de Meneses, nomeado a 31 de ou-
dor e lugar-tenente, que, em Machico, podia tubro de 1653, e o mesmo já havia acontecido
C apitanias ¬ 879
Fig. 5 – Provável residência de Bartolomeu Perestrelo, Casa Colombo-Museu do Porto Santo (fotografia de Bernardes Franco, 2018).
Câmara de Machico: “Tenho por bem dizer- na ilha, visto que a mesma tinha governo pró-
-vos, que tendes obrado bem em não con- prio, na pessoa do seu capitão-donatário.
sentirdes, que o suplicante servisse de ouvi- Assim, toda a documentação oficial produzida
dor findo o seu tempo”. Na sequência destes em Lisboa em relação ao Governo da Madeira
acontecimentos, em setembro do mesmo foi sempre omissa em relação à ilha do Porto
ano, era admoestado o Gov. José Correia de Santo, embora alguns governadores tenham
Sá devido à “falta de seriedade e reverência proposto a Lisboa o alargamento das suas com-
com que tratara o caso do ouvidor de Ma- petências àquela capitania.
chico”, admoestação que seria transmitida à Nos inícios do séc. xvii, o Porto Santo foi
Câmara (Ibid., liv. 86, fls. 69v.-70). Não mais alvo de duas alçadas dos corregedores – pri-
voltou a haver ouvidor em Machico, apesar meiro, de António Ferreira, em 1606, e, de-
dos pedidos do governador. pois, de Simão Cardoso Cabral, em 1610 –, que
visavam averiguar as queixas dos moradores
contra o comportamento de Diogo Perestrelo
Capitania do Porto Santo Bisforte (c. 1560-1616), donatário da ilha. Na
A situação desta capitania foi ainda mais nebu- primeira vez, o governador foi afastado da ilha
losa, não só pela pobreza das suas condições e e teve ordem para se apresentar em Lisboa,
habitantes, situação que piorou consideravel- regressando, no entanto, em 1610, altura em
mente ao longo do séc. xviii, como pelo con- que a situação piora. Assim, nesse mesmo ano,
sequente abandono a que, até certo ponto, foi teve nova ordem para se apresentar em Lisboa,
votada pelos seus capitães-donatários. Em face onde ficaria seis anos, sendo perdoado a 15 de
disso, desde o séc. xvii que o governador da outubro de 1616. Desta feita, não terá regres-
Madeira nomeava governadores para o Porto sado ao Porto Santo, pois faleceu no Funchal a
Santo sempre que se verificava vazio de poder 20 de dezembro desse ano.
882 ¬ C apitanias
seguinte, a 15 de junho de 1756, em carta en- tabeliães. Para além disso, as capitanias ficavam
viada do Funchal, apresenta uma representa- reduzidas às alcaidarias-mores, sendo também
ção ao secretário de Estado Diogo Corte Real reduzidos os privilégios exclusivos “dos fornos
sobre a difícil situação da ilha do Porto Santo, de pão de poia, moendas e serrarias aos ter-
marcada pela esterilidade dos últimos anos, mos em que menos ofenderem ao direito di-
pedindo milho e farinha para acudir à fome vino, natural e das gentes, e fizessem calar aos
dos habitantes. Na sequência do relatório ela- atendíveis clamores dos habitantes das referi-
borado pelo Eng.º Francisco de Alincourt das duas ilhas” de Santa Maria e da Madeira
(1733-1816), de abril de 1769, e do edital do (Ibid.).
Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804), O antigo capitão do Funchal ficava, essen-
citando “o ócio e a indigência dos moradores cialmente, com o título da alcaidaria-mor e a
do Porto Santo” (AHU, Madeira, docs. 355, redízima de todos os rendimentos reais da an-
356, 360-363), a situação catastrófica do Porto tiga capitania, praticamente sem encargos, o
Santo teve de ser encarada de outra forma. que significava que o que perdia em prerro-
gativas sociais ganhava em dinheiro. Ficavam
francamente reduzidos os antigos privilégios
Reformas pombalinas de venda de sal, que não podiam exceder o
Com a criação, a 2 de agosto de 1766, de um preço taxado pelas antigas doações, já citadas,
governo centralizado para os Açores cometido assim como o monopólio dos fornos de “pão
a um governador e capitão-general e a conse- de poia”, podendo os habitantes ter fornos
quente extinção das capitanias-donatarias na- particulares para o seu consumo doméstico e
quelas ilhas, o gabinete do Marquês de Pombal para “padejarem”. Viam-se igualmente redu-
nomeou dois juristas práticos nestes assuntos, zidos os antigos monopólios das moendas de
os desembargadores José Francisco Alagoa e água e das serrarias. Em contrapartida, o anti-
Bartolomeu Geraldes de Andrade, para reve- go capitão ficava com o título de marquês de
rem toda a situação dos donatários insulares e juro e herdade, duas dispensas da Lei Mental
“dos títulos dos sobreditos [...] que tiverem di- e o título de conde da Calheta para o primo-
reito para serem conservados” (BNP, cód. 341, génito. Ficavam, igualmente, para a Coroa as
fls. 339-341). Logo a 4 de setembro do mesmo fábricas de sabão branco de Lisboa e de Alma-
ano, foi elaborado, no palácio da Ajuda, um da, mas eram cedidas ao futuro marquês a Qt.
contrato de compensação ao conde de Castelo da Labruja, na Golegã, e parte dos terrenos
Melhor, que o conde registou, a 9 de setembro, da cerca de São Roque, em Lisboa, na base
no tabelião António da Silva Freire. Do proces- dos quais se veio a levantar o magnífico e céle-
so completo, seria solicitada, mais tarde, em bre palácio no qual viveu o conde da Foz, que
1785 e 1788, confirmação a D. Maria I e envia- lhe deu nome, e onde estiveram outras enti-
da documentação à Câmara do Funchal para dades e instituições, como o Secretariado Na-
respetivo registo, em 1790 e 1792. cional de Informação. Ainda no que respei-
Desta forma, a 4 de setembro de 1766, eram ta a bens patrimoniais, o marquês ficava com
incorporadas na Coroa as capitanias da Casa 10.000 cruzados anuais de juro, para consti-
de Castelo Melhor – a de Santa Maria, nos Aço- tuir um vínculo.
res, e a do Funchal, na ilha da Madeira –, ale- Nesta sequência se compreende a ordem do
gando o Rei D. José a existência de “motivos Conselho da Fazenda, de 20 de outubro do se-
justíssimos” e o “benefício da utilidade públi- guinte ano, 1767, dada ao provedor do Funchal
ca e do bem público e comum” dos seus vassa- para tomar posse “da capitania das vilas de Ma-
los. Revertiam, assim, para a Coroa as antigas chico e Santa Cruz”. O ofício da Fazenda espe-
“datas das sesmarias” e as jurisdições e nomea- cifica que a capitania se achava vaga “desde o
ções dos ouvidores, dos oficiais de justiça, da óbito do 5.º conde de Vimioso, D. Luís de Por-
Câmara, dos órfãos, das almotaçarias e dos tugal (1656), sem sucessão, em que depois sem
884 ¬ C apitanias
Fig. 6 – Palácio Foz, antigo palácio dos marqueses de Castelo Melhor, 1777 e seguintes (arquivo particular, 2020).
título se introduziu seu irmão, o 6.º conde de antigas rendas. Em 1783, conseguiu D. Afonso
Vimioso, D. Miguel de Portugal (falecido em Miguel de Portugal e Castro (1748-1802), mar-
1680), e depois muito menos, o filho natural quês de Valença, como tutor do seu filho, conde
deste, o marquês de Valença, Dom Francisco de de Vimioso (1780-1840), receber 1443$330 réis
Portugal (1679-1749), e o atual seu neto, Dom da sua antiga capitania. Saliente-se que, entre
José Miguel de Portugal (e Castro) (1709-1775), 17 de junho de 1779 e 28 de outubro de 1782,
os quais todos, não tirarão cartas, nem mercê a redízima tinha rendido 11.990$522. D. Afon-
têm para a poderem requerer”. Este ofício apro- so Miguel, sendo nomeado governador-geral
veitava ainda para solicitar que fossem revistos do Estado da Baía em 1775, conseguiu, antes
os demais bens da Coroa, não fossem encontrar- de partir, que D. Maria I o nomeasse marquês
-se em idênticas situações. Pedia-se que fossem de Valença e o confirmasse donatário da “ex-
enviadas ao Conselho as listagens desses bens tinta capitania de Machico”, com o título de
com a indicação da respetiva situação, para se conde para o herdeiro e direito aos “bens, ren-
refazer o arquivo “que se incendiou pelo terra- dimentos e direitos da extinta capitania de
moto do primeiro de novembro de mil setecen- Machico no mesmo Estado”, como especifica
tos cinquenta, e cinco” (ANTT, Junta e Prove- a Rainha (ANTT, Junta e Provedoria da Real
doria da Real Fazenda..., liv. 975, fls. 184-184v.). Fazenda..., liv. 977, fls. 97-99). O novo mar-
Em 1772, regista-se na Alfândega toda a docu- quês vice-rei ficou, assim, com mais um título
mentação respeitante à capitania de Machico, e, tal como o marquês de Castelo Melhor em
parecendo o assunto ficar encerrado. relação ao Funchal, com os rendimentos da al-
Tentando acompanhar o que fizera o mar- caidaria da antiga capitania de Machico, que,
quês de Castelo Melhor, os antigos capitães de em 1825, viriam a ser penhorados pelos seus
Machico iniciam também a reivindicação das descendentes.
C apitanias ¬ 885
Muito diferente foi a situação da capita- do ano seguinte, o próprio governador da Ma-
nia do Porto Santo, que, nestes meados do deira, António de Sá Pereira, deslocou-se à
séc. xviii, conheceu um dos piores momen- ilha, acompanhado do Corr. Francisco Morei-
tos da sua existência, ao ponto de se tentar ra de Matos e do oficial Eng.º Francisco Salus-
transferir toda a sua população para a Madei- tiano da Costa (c. 1745-c. 1820), do seu médi-
ra. Desde os inícios do séc. xviii que se vivia co, o Dr. João Joaquim Curado Calhau, e de
na ilha uma situação catastrófica marcada por 25 soldados. A Provedoria recebeu ordens para
inúmeros períodos de fome, o que tinha le- fretar o iate de Francisco Teodoro e Manuel da
vado a população a um completo imobilis- Silva Carvalho, assim como para preparar pro-
mo. Quase todos os governadores alertaram visões de biscoito e uma lista de remédios for-
Lisboa para esta situação, mas só se vieram a necida pelo médico do governador.
tomar medidas efetivas com Manuel de Salda- João António de Sá Pereira procedeu a no-
nha de Albuquerque (1712-1771) e, sobretu- meações várias no Porto Santo, a primeira das
do, com João António de Sá Pereira. quais foi a do Cap. Pedro Teles de Meneses
A capitania foi extinta por diploma de 13 como inspetor da agricultura, recebendo as
de outubro de 1770, após a morte do donatá- primeiras instruções em 1770. A nomeação
rio em Lisboa, não se coibindo o próprio Rei foi depois comunicada à Câmara do Porto
D. José I de apelidar os portossantenses de va- Santo e ao Marquês de Pombal, que a levou
dios, referindo que “os sobreditos moradores ao “Real Arbítrio”, recebendo a aprovação
cuidam em alegar genealogias para fugirem de D. José I (AHTC, Erário Régio, liv. 395,
ao trabalho” (Anais do Município do Porto Santo, fls. 306-309). Na ilha, o Gov. Sá Pereira pro-
1989, 16). Com a extinção da capitania, em cedeu ao emparcelamento dos terrenos e à
1770, foram liquidados de imediato os rendi- reorganização geral da população, assunto
mentos em atraso dos donatários, e, em maio entregue ao corregedor. Como alguns ofícios
Fig. 7 – Câmara Municipal do Porto Santo, Domingos Rodrigues Martins, 1774 (fotografia de Bernardes Franco, 24 abr. 2016).
886 ¬ C apitanias
tinham desaparecido por completo, nos finais Funchal. Explica, então, que, encontrando-se
do ano de 1770 já vários rapazes tinham sido o donatário “há anos nessa corte” (ABM, Go-
transferidos para o Funchal e entregues a vá- verno Civil, liv. 530, fls. 17-18v.), com a morte
rios oficiais, que ficaram encarregados de os do sargento-mor e governador, ficava a ilha a
ensinar. O Governo acabou por tomar a seu ser governada pela Câmara e pelo capitão mais
cargo a sua manutenção – alimentação, ves- antigo. Ora, como a ilha ainda tinha 300 ho-
tuário, alojamento e instrução –, nomeando, mens de ordenanças, deveria ter um sargento-
inclusivamente, um médico-cirurgião para os -mor e governador para o controlo geral dessa
acompanhar, ao qual também foi entregue gente. No entanto, só após a morte do dona-
um dos rapazes. Entre os ofícios que estes jo- tário e a extinção da capitania tal pedido teve
vens aprenderam, estavam os de sapateiro, al- despacho de Lisboa. A proposta da nomeação
faiate, oleiro, carpinteiro, pedreiro, ferreiro, do filho do falecido sargento-mor, Manuel da
cirurgião e sangrador. Câmara Perestrelo de Noronha, foi de 15 de
A nomeação e o trabalho do novo inspetor maio de 1782, sendo confirmada apenas a 23
da agricultura não foram, como já era habi- de setembro de 1785. Este ramo da família foi
tual neste domínio, pacíficos, pois, interferin- sendo todo nobilitado, devendo ter movido in-
do com muitos interesses, principalmente os fluências para não perder tal lugar.
dos proprietários madeirenses, o inspetor foi Este lugar passou, entretanto, a ser subordi-
acusado de inúmeras irregularidades. Assim, nado ao governador da ilha da Madeira, como
ainda que a ilha do Porto Santo tenha sido de consta das nomeações de Manuel Ferreira
imediato dotada de regimento da agricultu- Nobre Figueira, sargento-mor do Regimento
ra, datado de 13 de junho de 1771, os resul- de Milícias de Vila Real, nomeado em 1797.
tados não foram muito animadores. Em finais Efetivamente, este sargento prestou menagem
de 1774, deslocava-se ao Porto Santo o mestre de tal lugar em S. Lourenço, nas mãos do go-
das obras reais, Domingos Rodrigues Martins vernador da Madeira, a 27 de setembro desse
(c. 1710-1781), para inspecionar as fortifica- ano, e o mesmo viria a acontecer com João
ções, transformando-se, por sua decisão, o pe- Baptista Rofle, capitão-tenente da Armada, no-
queno reduto de S. José no forte que viríamos meado em 1800.
a conhecer. Entretanto, devem ter sido execu-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivos Particulares, Processo da Capitania de
tadas obras na Câmara Municipal – também Machico, n/ catalog.; Ibid., Câmara Municipal de Machico, livs. 81, 86-87, 110
elas, certamente, orientadas e dirigidas pelo e 149; Ibid., Câmara Municipal de Santa Cruz, liv. 327; Ibid., Câmara Municipal
do Funchal, Registo Geral, tombos 3, 6-9 e 13; Ibid., Câmara Municipal do
mestre Domingos Rodrigues Martins –, a ajui- Porto Santo, liv. 165; Ibid., Governo Civil, livs. 526-530; Ibid., Registos Paroquiais,
zar pelas armas que passou a ostentar, talvez li- São Pedro, Óbitos, liv. 131; AHTC, Erário Régio, liv. 395; AHU, Madeira e Porto
Santo, docs. 18, 74, 306, 355-356, 360-367 e 394-397; ANTT, Chancelaria de
geiramente anteriores às do forte de S. José. D. Filipe II, livs. 15 e 31; Ibid., Conselho de Guerra, Consultas, mçs. 14 e 124;
Também por essa altura se devem ter iniciado Ibid., Convento de Santa Clara do Funchal, Avulsos, mç. 1; Ibid., Desembargo
do Paço, mç. 1871; Ibid., Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal,
outras obras, como as da casa nobre que poste- livs. 426, 958, 965A, 969-970, 972, 974-977; BNP, Coleção Pombalina, cód. 341;
riormente seria ocupada pelo tribunal, osten- Ibid., reservados, cód. 8391, Index Geral do Registo da Antiga Junta e Provedoria
da Real Fazenda do Funchal; impressa: ALBUQUERQUE, Luís de, e VIEIRA,
tando tal edifício, no lintel da entrada, a data Alberto, O Arquipélago da Madeira no Século XV, Funchal, DRAC, 1987; Anais
de 1788. do Município do Porto Santo, introd. e notas Alberto Vieira e João Adriano
Ribeiro, Porto Santo, Câmara Municipal do Porto Santo, 1989; CARITA, Rui,
O cargo de governador da ilha continuou
História da Madeira, vol. i, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1999;
a ser desempenhado pelo sargento-mor Ni- FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. História das Ilhas do Porto Santo,
colau Bettencourt de Noronha, tio do antigo Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Typ.
Funchalense, 1873; Ordenações Filipinas, 3 vols., Lisboa, FCG, 1985; SALDANHA,
Cap. Nicolau Bettencourt Perestrelo, entre- António Vasconcelos de, As Capitanias. O Regime Senhorial na Expansão
tanto falecido a 9 de abril de 1768. Nessa al- Ultramarina Portuguesa, Funchal, CEHA, 1992; SILVA, Fernando Augusto da, e
MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC,
tura, o governador escreveu para Lisboa a alvi- 1998; SOUSA, João José de, “Capitães donatários do Funchal, séc. xv a xix”,
trar a nomeação do ajudante do sargento-mor Islenha, n.º 1, jul.-dez. 1987, pp. 66-85; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na
Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.
de Machico, Matias Moniz de Bettencourt,
que servia igualmente na sala do Governo do Rui Carita
C apit ã o - geral ¬ 887
Capitão-geral
Com a vigência de Filipe II no trono de Portu-
gal e as conjunturas interna e externa que se
seguiram, acrescidas, principalmente, das posi-
ções e dificuldades experimentadas pelas casas
dos Câmara e dos Vimioso, a direção geral e
superior da defesa da ilha da Madeira foi en-
tregue a um cabo de guerra, governador e ca-
pitão-geral de ambas as capitanias. Esse gover-
nador passou a ser recrutado nos quadros da
corte, por três anos, conforme os interesses
pontualmente em causa e segundo informação
do Conselho de Portugal. A função era especi-
ficamente de “geral e superintendente das coi- Sala dos Retratos dos Governadores e Capitães-Gerais
do palácio de S. Lourenço, óleos de c. 1790 e seguintes
sas da guerra de ambas as capitanias” (VERÍS- (reforma de 1942-2007) (arquivo particular).
SIMO, 2000, 133-134), ou seja, das capitanias
do Funchal e de Machico, mantendo o gover-
no militar da capitania do Porto Santo autono- A polémica tinha contornos essencialmente
mia nesse novo enquadramento. políticos, como de imediato se constata pelo
Nos finais do séc. xix e inícios do séc. xx Elucidário, cuja edição a que nos referimos é co-
houve alguma polémica sobre estas designa- memorativa dos centenários do Estado Novo,
ções e sobre a posição do Des. João Leitão, o quando se escreve que “com o domínio filipi-
primeiro a desempenhar essas funções na Ma- no terminou o governo dos Capitães-Donatá-
deira, embora sem específica carta patente rios”, quando os capitães do Funchal, que se
para tal, situação perfeitamente compreensí- tinham fixado em Lisboa desde 1550, e os con-
vel dada a época que se vivia com o início da des de Vimioso nunca se tinham deslocado a
União Ibérica e, especialmente, com a presen- Machico. O texto continua com a indicação de
ça de D. António, Prior do Crato, nos Açores, que o arquipélago tinha passado a ser “admi-
apoiado por forças navais francesas e ingle- nistrado por Governadores-Gerais, da imedia-
sas, que não pretendiam, de forma alguma, a ta nomeação do governo espanhol” (Id., Ibid.,
união de Portugal a Castela. 99), o que também não é de forma alguma cor-
Depois, igualmente surgiu polémica por reto, pois que ao tempo de Filipe II, e.g., nunca
se entender que durante a União Ibérica se se utilizou o termo “espanhol”, para além de
usou a designação de “geral” e após a Res- que os governadores da Madeira, até aos finais
tauração a de “general”, ideia que fora lança- do séc. xviii, nunca superintenderam sobre a
da por Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825- capitania do Porto Santo.
-1898), nas suas anotações às Saudades da Terra Acresce que as nomeações do período fili-
de Gaspar Frutuoso, no que foi contrariado, pino privilegiaram, inclusivamente, a descen-
depois, por Damião Peres (1889-1976), que dência de João Gonçalves Zarco, nomeando
fora professor no Liceu do Funchal, em tra- para governadores da Madeira Tristão Vaz da
balhos editados no Porto em 1924 e 1925. No Veiga (1537-1604), em 1585, bisneto de Zarco
Funchal, a posição de Álvaro Rodrigues de e filho de Diogo Vaz da Veiga e de Brites Ca-
Azevedo foi defendida por Carlos de Azeve- bral; João Fogaça de Eça (c. 1550-c. 1620),
do de Meneses (1863-1928), nas páginas do em 1603, segundo neto por varonia de João
Diário da Madeira, em artigos de setembro de Gonçalves da Câmara, 2.º capitão do Funchal
1925, “com poderosos argumentos” (SILVA e e filho de António Gonçalves da Câmara, ca-
MENESES, 1998, II, 100). çador-mor de D. João III; e Jorge da Câmara
888 ¬ C ardoso , A gostinho G abriel de J esus
(c. 1570-c. 1630), o Poeta, em 1614, neto do Regional da Educação, 1991; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. História
das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues
4.º capitão do Funchal e filho natural de Rui de Azevedo, Funchal, Typ. Funchalense, 1873; PERES, Damião, O Desembargador
Gonçalves da Câmara, que fora capitão-mor João Leitão. Primeiro Governador Geral da Madeira, Porto, Empresa Industrial
Gráfica do Porto, s.d.; Id., “O problema dos governadores gerais da Madeira”,
de Barcelor e de Ormuz, na Índia, onde fale-
Revista de Estudos Históricos, ano 2, 1925, sep.; SILVA, Fernando Augusto da, e
cera. Com a vigência da Dinastia de Bragança, MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria
somente nos finais do séc. xviii, entre 1777 e Regional de Turismo e Cultura, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na
Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.
1781, se voltou a sentar em S. Lourenço um
Câmara: João Gonçalves da Câmara Coutinho Rui Carita
(ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Registo de
Mercês, liv. 1, fl. 293).
Deixou pois de fazer especial sentido a anti- Cardoso, Agostinho Gabriel de
ga polémica “geral” versus “general”, até por Jesus
“geral” ser uma comum abreviatura de “gene-
Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso foi um
ral”, e o que está em causa são as funções de-
médico, político e jornalista madeirense nasci-
sempenhadas. A partir dos finais do séc. xvi, o
do no Funchal a 10 de julho de 1908, filho de
governo da Madeira passou a ser entregue a um
Domingos Cardoso e de Maria Natividade de
governador e capitão-geral, ouvido o Conselho
Jesus. Casou-se com Maria Prado de Almada,
de Portugal e sendo depois nomeado pelo mo-
com quem teve dez filhos.
narca, cargo sempre entregue a um elemento
Após o ensino secundário no Funchal, fre-
português da nobreza da corte, com mais ou
quentou a Faculdade de Medicina da Univ. de
menos experiência militar, o que vai continuar
Coimbra, tendo completado os estudos na Fa-
por todo o Antigo Regime até ao Liberalismo.
culdade de Medicina da Univ. de Lisboa.
Em julho de 1607, e.g., o Conselho de Por-
Como médico pneumatologista, Agostinho
tugal apreciou os nomes propostos pelo vice-
Cardoso iniciou a sua carreira clínica no Fun-
-rei D. Pedro de Castilho, bispo de Angra, para
o governo da Madeira, tendo o conde de Sa- chal, em 1933, pondo a funcionar o Dispensá-
linas, D. Diogo da Silva e Mendonça, filho de rio Antituberculoso, então inaugurado. Como
Rui Gomes da Silva, proposto o nome do caste- médico-chefe, abriu e organizou o Sanatório
lhano D. Diogo de Carcamo, o que acabou por Dr. João Almada em 1940, procedendo, mais
não passar na votação do conselho. Os restan- tarde, à sua ampliação e reequipamento.
tes conselheiros alvitraram que não seria por Como subdelegado do Instituto Nacional de
certo bem recebido por ser castelhano, para Assistência aos Tuberculosos da Madeira, pro-
além de poder vir a favorecer o presídio cas- moveu a construção do Preventório S.ta Isabel
telhano de S. Lourenço em prejuízo dos natu- e do Centro de Diagnóstico e Profilaxia do
rais, o que não seria conveniente, pelo facto de Funchal, responsáveis pela assinalável baixa da
ser “a gente daquela ilha pouco quieta” e estar mortalidade por tuberculose.
“em parte apartada, aonde o remédio (quando Como subdelegado de saúde do Funchal,
for necessário) chegará tarde” (VERÍSSIMO, planeou e organizou o Serviço de Saúde Mu-
2000, 134). Acabou por ser nomeado D. Ma- nicipal do Funchal, com quatro postos clínicos
nuel Pereira Coutinho, que tomou posse a nas áreas suburbanas, um posto no Funchal e
22 de novembro de 1607 (ABM, Câmara Mu- um Dispensário Higiénico Infantil.
nicipal do Funchal, Registo Geral, tombo 3, Participou no Congresso Internacional de
fl. 69v.), o qual tinha sido capitão-mor das naus Gerontologia, em Washington, e no Congresso
da Índia e depois foi governador de Angola, da União Internacional contra a Tuberculose,
entre 1630 e 1635. em Nova Iorque. Foi sócio do American Colle-
ge of Chest Phisicians.
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral,
tombo 3, fl. 69v.; ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Registo de Mercês, liv. 1, Foi presidente diocesano da Juventude Es-
fl. 293; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. ii, Funchal, Secretaria colar da Ação Católica e do Conselho Central
C ardoso , A gostinho G abriel de J esus ¬ 889
Cabo Verde e, depois, para os Açores, de onde Foi o Eng.º Edgar Cardoso que projetou a
regressou em 1934, quando passou à reserva, primeira ampliação do aeroporto da Madei-
por ter atingido o limite de idade. Contudo, ra. A pista foi aumentada, entre 1982 e 1986,
ainda aceitou a presidência da Comissão Exe- para 1800 m e executada em vigas de betão
cutiva dos Padrões da Grande Guerra, onde prefabricadas, assentes sobre pilares de betão
tentou desenvolver alguma atividade políti- armado. Os seus estudos sobre a ampliação
ca à sombra dos antigos valores da Comissão, do aeroporto da Madeira seriam, mais tarde,
fazendo palestras na então Escola Militar, no adaptados pelo Eng.º António Segadães Tava-
Porto e em outros locais, inclusivamente pu- res para o projeto de extensão da pista, parcial-
blicadas. Sá Cardoso compreendeu, entretan- mente construída em laje sobre o mar.
to, que, com a entrada oficial no Estado Novo, Centenas de estudos e projetos de pontes, ae-
a época era outra, procedendo ao encerra- roportos, portos e grandes edifícios em todo
mento da Comissão dois anos depois, a 10 de o mundo constituem a obra do Eng.º Edgar
novembro de 1936, e publicando o relatório Cardoso.
geral da mesma Comissão (1921-1936), na ti- “O Engenheiro genial, o Professor singu-
pografia da Liga dos Combatentes, até certo lar, o investigador sem paralelo, o inventor de
ponto herdeira daquele ideário. Retirou-se prodigiosa diversidade, o artista plástico das
então da vida política ativa. pontes, o inovador incansável no domínio das
soluções, o homem invulgarmente inteligen-
Bibliog.: BRANDÃO, Pedro Ramos, e FIDALGO, António Chaves, A Maçonaria
e a Participação de Portugal na I Guerra Mundial, Lisboa, Casa das Letras, 2014;
te e humanista, o amigo de tantos que a ele
CARITA, Rui, Roteiros Republicanos. Madeira, Matosinhos, QuidNovi, 2010; recorreram, o Mestre entrou na história da
Ibid., “A Comissão dos Padrões da Grande Guerra do general Gomes da
Costa; padrões, monumentos e túmulos do Soldado Desconhecido”, in Atas
do XXVIII Colóquio de História Militar. 1916-1918: Portugal, do Armistício à
Ditadura Militar, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2018,
pp. 383-396; Ilustração Portuguesa, 14 jul. 1919; MARQUES, A. H. Oliveira et al.,
Parlamentares e Ministros da 1.ª República (1910-1926), Lisboa, Afrontamento,
2000; MARTINS, Teresa Florença, O Movimento Republicano na Madeira.
1882-1913, Funchal, CEHA, 2004.
Rui Carita
Cardoso, Edgar
Edgar Cardoso nasceu no Porto, a 11 de maio
de 1913. Estudou Engenharia na Faculdade
de Engenharia da Univ. do Porto. Apesar do
seu inicial interesse por Engenharia Eletro-
técnica, acabou por se formar em Engenharia
Civil, iniciando a sua carreira profissional na
Divisão de Pontes da Junta Autónoma de Es-
tradas, em Lisboa.
Integrou, em 1951, o corpo docente do Ins-
tituto Superior Técnico, como professor cate-
drático de Pontes. O próprio considerava-se
um engenheiro para idealizar e realizar, pelo
que afirmava que a sua atividade como profes-
sor era uma obrigação para com o seu país: de
ensinar o que tinha estudado ou conhecido.
Eng.º Edgar Cardoso, c. 1995 (Engenho e Arte,
Jubilou-se em 1983. João Bastos, jun. 2020).
894 ¬ C aricaturistas
Engenharia e na de Portugal do séc. xx” (SOA- Em janeiro de 1967, foi lançado num pro-
RES, 2003). grama da RTP, Lugar aos Novos, produzido
Morreu com 87 anos, em julho de 2000. A sua pelo maestro Melo Pereira. No mesmo ano,
morte foi assinalada com um voto de pesar da lançou o EP Como Um Calhau Rolado. Foi con-
Assembleia da República, que o referiu como vidado a integrar o elenco da revista Pois,
um grande português. Pois..., que estreou no Teatro Variedades,
ao Parque Mayer, em Lisboa, a 9 de dezem-
Bibliog.: Edgar Cardoso. Vida e Obra, Resende, Museu Nacional de Resende,
2006; PAULINO, Francisco Faria, e SILVA, Susana, Aeroporto da Madeira. bro de 1967. Participou como convidado no
A História de Um Sonho, Funchal, Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira/ programa de entretenimento Riso e Ritmo, da
Edicart, 2000; SOARES, Luís Lousada, Edgar Cardoso. Engenheiro Civil, Porto,
Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, 2003. RTP.
Em 1970, venceu o título de Rei da Rádio,
Ana Rita Londral
atribuído pela Rádio Antena 1. Na déc. de
1980, foi diretor artístico da discoteca Monte
Cardoso, Gabriel Carlo, mais tarde denominada Loucuras. De
Carlos Paião, gravou os temas “Tímido” e “En-
Gabriel Faustino de Abreu Cardoso é o garrafamento”. Com produção de Toy, gravou
nome de um cantor português de música li- “Viver a cantar 25 anos”. Entre os seus maiores
geira nascido no Arco de São Jorge a 15 de sucessos, merece especial destaque “Festival do
março de 1943. Era filho do maestro e fun- amor”, “Ericeira” e “Venham amigos”.
dador da banda da freguesia do Arco de São Participou em diversos festivais de música,
Jorge e irmão de Cecília Cardoso, também programas de televisão e digressões, tanto em
cantora, conhecida com vários discos grava- Portugal como no estrangeiro, designadamen-
dos. Gabriel Cardoso integrou, com outros te nos Estados Unidos e no Canadá, em espetá-
estudantes, o movimento estudantil musical culos junto das comunidades portuguesas.
gerado pela “febre dos Beatles” na déc. de 60 Morreu em Lisboa, a 8 de fevereiro de 2000.
do século xx.
Cumpriu o serviço militar em Angola, para o Discog.: Canto Estes Dias Felizes, Limão; Cigano, Vão as Nuvens Vem o Sol; De
Dia para Dia, É Inútil, Quem Manda neste Mundo É o Dinheiro, Poema a Meu
que teve de interromper os estudos em Direi- Irmão; Emigrante, Miragem; Ericeira, Custa a Crer; Eu já não Creio; Moreninha;
to. De regresso à pátria, estreia-se nos Açores, Tu Sabes, Um Certo Outono; Vamos Sorrir e Cantar, Amiga Dê Tempo ao Tempo;
Viver a Cantar 25 Anos, Sonho por Sonho; Como Um Calhau Rolado (1967);
no Teatro Micaelense, de Ponta Delgada.
Festival do Amor, ao Meu Amor (1970); Estrada Minha Verdade (1971); Oh Meu
Amor, Engarrafamento (1982); Tímido, Aleluia para o Sonho (1985).
Caricaturistas
A caricatura política no âmbito da comunica-
ção social e do desenho mais ou menos hu-
morístico não ganhou especial visibilidade na
Madeira antes dos finais do séc. xix e inícios
do xx, quando no continente europeu era
prática de há muito comum. Na área das al-
Gabriel Cardoso, 1970 (single “Festival do amor”, Estúdio SIM). cunhas pessoais, na maioria das vezes nascidas
C aricaturistas ¬ 895
Fig. 1 – “Eleição do Funchal. Uma lição d’independencia”, Rafael Fig. 2 – “O grande terramoto politico”, caricatura da dissolução da
Bordalo Pinheiro, 1882 (O António Maria, 30 nov. 1882, 486). Sociedade Alemã dos Sanatórios, 1907 (A Chacota, 25 fev. 1907).
da caricatura física e social, no entanto, pare- Circulavam, no entanto, na Ilha, por certo,
ce sempre ter tido ampla divulgação, como tes- caricaturas em litografias, como é o caso das
temunharam alguns viajantes estrangeiros nos editadas por Rudolph Ackermann (1764-1834)
meados do séc. xix. A atenta inglesa Isabella de e, em especial, as desenhadas por Thomas
França (1794-1880), e.g., elenca inúmeras alcu- Rowlandson (1756-1827). Os acontecimentos
nhas na Madeira, mesmo em relação às prin- em Portugal não escaparam à sátira política
cipais famílias, dando os madeirenses como britânica da época, nomeadamente o assédio
tendo “extraordinária propensão geral para às freiras portuguesas pelos oficiais britânicos
as alcunhas” (FRANÇA, 1970, 94). A prince- (ROWLANDSON, 1811), pelo que devem ter
sa Maria Carlota de Áustria (1840-1927), pela chegado ao Funchal. Ackermann, inclusiva-
mesma época, refere que o administrador do mente, publicou A History of Madeira (1821)
concelho, então Tarquínio Torcato da Câma- com ilustrações caricaturais, dadas como fei-
ra Lomelino (1818-1888), era apelidado sem- tas por alguém há muito residente em Portu-
pre na folha local O Direito de “o paxá de três gal ou na Madeira, que pode ter sido o Ten.-
caudas” (MAXIMILIANO DE HABSBURGO e -Cor. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832) ou,
CARLOTA DA BÉLGICA, 2011, 113-114). Na mais provavelmente, o Cap. Vicente de Paula
Madeira, a caricatura social e a política teriam, Teixeira de Nóbrega (c. 1790-c. 1850), mestre
assim, permanecido nas alcunhas ou apelidos das obras municipais, pois que desenhos muito
e só muito mais tarde teriam passado à repre- semelhantes acompanham as várias versões da
sentação gráfica. Descrição da Ilha da Madeira, de 1817, daquele
896 ¬ C aricaturistas
Caricaturistas do Re-Nhau-Nhau
O caricaturista Roberto Luís Paiva e Cunha
(1904-1966), da fundação do inicial Re-Nhau-
-Nhau, que assinava Terrique, foi o autor do
desenho do cabeçalho que celebrizou a publi-
Fig. 4 – “[O nabo] donde irradia a Ordem e o Progresso”
(Re-Nhau-Nhau, 20 dez. 1929). cação, um gato de alguma forma também ins-
pirado nos de Bordalo Pinheiro. Miniaturista e
às autoridades, mas também congratulando-se ceramista de grande sensibilidade, empregado
com a nomeação de algumas figuras para car- da casa inglesa Cable and Wireless, acabou por
gos diretivos e com o trabalho desenvolvido abandonar o grupo de trabalho inicial, com-
por outras. prometendo-se a desenhar as capas dos núme-
Ficaram assim célebres, e.g., as caricaturas de ros de aniversário do periódico. A semelhança
Fernão Ornelas (1908-1978), que, assumindo com alguns trabalhos posteriores, que, salvo
os destinos da autarquia do Funchal, em janei- na indicação das autorias, parecem da mesma
ro de 1935, somente com 27 anos, foi caricatu- mão, leva-nos a pensar que teria mantido al-
rado tomando posse de triciclo (Re-Nhau-Nhau, guma parceria com os outros elementos do
19 jan. 1935); nos anos seguintes, seria cari- grupo dos caricaturistas. O mais prolífero cari-
caturado de quase toda a forma e feitio, mas caturista, no entanto, terá sido João Ivo Ferrei-
acabou por merecer os mais rasgados elogios ra (1910-1980), que, embora tivesse somente
deste periódico no final do seu mandato, refe- a 4.ª classe, tinha uma grande capacidade in-
rindo-se, inclusivamente, a forma como tinha ventiva e uma forte motivação política, tendo
sido apresentado e colocando-o ao colo do Zé colaborado no Notícias da Madeira em maio de
Madeirense. Descreve-se então na primeira 1931, quando ocorreu a Revolta da Madeira.
folha que “Bem o merece. O Dr. Fernão Or- Outros elementos foram trabalhando para o
nelas, que já passou por esta página de varia- Re-Nhau-Nhau, como o caricaturista Abel, logo
díssimas formas, de triciclo, de automóvel, de no primeiro número, depois Mendonça Rosa,
avião, de tanque bombardeiro, etc., hoje passa que, pelo menos em 1931, colaborou também
ao colo do respetivo Zé como filho amado da com o quinzenário O Fixe, onde já tinham tra-
nossa família municipal” (Re-Nhau-Nhau, 10 balhado Gonçalves Preto, Cardoso, Ferroso,
out. 1946). Rex e outros, figuras de que dificilmente se
898 ¬ C aricaturistas
que para a época, e para este periódico, era 13 jun. 1974). Colaborou também na exposi-
um luxo. ção de caricaturas das festas de fim de ano de
Nos últimos anos do Re-Nhau-Nhau, Paulo Sá 1974, exposição que veio a ser encerrada com-
Brás já surge a publicar também trabalhos no pulsivamente nos primeiros dias do ano se-
célebre e refundado Comércio do Funchal (1966- guinte, dado o aparecimento de caricaturas da
-1975), e a capa que criou para a edição de 1 de Igreja madeirense. Nos anos seguintes, limita-
maio de 1974, com os ex-governantes Marcelo ria os seus trabalhos a caricaturas de um grupo
Caetano (1906-1980) e Américo Tomás (1894- restrito de amigos na Madeira, trabalhando a
-1987), “à sombra amena da bananeira” (Comér- crayon de óleo sobre cartolina, mas afastando,
cio do Funchal, 1 maio 1974), contribuiria deci- em princípio, a hipótese da sua publicação. Re-
didamente, com a equipa daquele periódico e gressaria, no entanto, nos finais da déc. de 80
a manifestação desse dia, para uma mudança com caricaturas na revista Atlântico e, na déca-
total da vida política da Madeira. Sá Brás man- da seguinte, como um dos elementos de refe-
teria a sua colaboração naquele periódico até rência da ilustração da nova versão do Re-Nhau-
ao desaparecimento do mesmo, com algumas -Nhau. Retirar-se-ia entretanto para Lisboa, aí
caricaturas notáveis à época, tais como a de An- falecendo a 3 de janeiro de 2003, mas o seu le-
tónio de Spínola (1910-1996) (Comércio, 20 jun. gado permaneceria nos anos seguintes através
1974) e as dos membros da anterior oposição do traço de Toríbio e depois de outros.
democrática da Madeira (Comércio, 20 maio, Os finais do séc. xx e os inícios do xxi pro-
piciaram o aparecimento do cartoon, desenho
humorístico mais sintético, com pequenas tiras
sequenciais e apontamentos de caricatura po-
lítica, nos principais periódicos madeirenses,
onde chegou a trabalhar pontualmente Maurí-
cio Fernandes (1951-2001), mas sem o âmbito
alargado dos anteriores periódicos de sátira po-
lítica. Na sequência do último Re-Nhau-Nhau,
apareceram também outros periódicos, como
o Garajau e, depois, o Quebra-Costas, entre ou-
tros, mas de carácter quase panfletário, cujo es-
tudo terá de esperar alguns anos de afastamen-
to para um correto enquadramento e análise.
Periódicos com caricaturas: Atlântico, n.º 20, 1989, pp. 248-249, 252-253 e 257;
A Chacota, 9 dez. 1906-3 set. 1907; Comércio do Funchal, 1 maio 1974; 20 maio
1974; 20 jun. 1974 (ed. regional); 13 jun. 1974; Re-Nhau-Nhau, 20 dez. 1929; 31
dez. 1929; 19 jan. 1935; 8 ago. 1938; 22 abr. 1939; 20 jun. 1939; 16 mar. 1940; 6
abr. 1940; out. 1946; O Seringa, 10 jun. 1918; 21 ago. 1918.
Bibliog.: O António Maria, 30 nov. 1882; CARITA, Rui, Paulo Dias de Almeida e
a Descrição da Ilha da Madeira, Funchal, DRAC, 1982; A Chacota, 25 fev. 1907;
Comércio do Funchal, 1 maio 1974; FRANÇA, Isabella de, Jornal de Uma Visita à
Madeira e a Portugal. 1853-1854, Funchal, JGDAF, 1970; GOMES, Fátima Freitas,
e VERÍSSIMO, Nelson, A Madeira e o Sidonismo, Funchal, DRAC, 1983; A History
of Madeira. With a Series of Twenty Seven Coloured Engravings Illustrative of the
Costumes, Manners, and Occupations of the Inhabitants of That Island, London,
Rudolph Ackermann, 1821; MACEDO, Diogo de, “O caricaturista Teixeira
Cabral visto pelo escultor Diogo de Macedo”, Diário de Lisboa, 30 maio 1934,
p. 3; MAXIMILIANO DE HABSBURGO, e CARLOTA DA BÉLGICA, Memórias
da Minha Vida e Um Inverno na Madeira, Lisboa, Sopa das Letras, 2011;
Re-Nhau-Nhau, 20 dez. 1929; 20 jun. 1939; ROWLANDSON, Thomas, Pastime in
Portugal or A Visit to the Nunnerys, London, Thomas Tegg, 1811; O Seringa,
10 jun. 1918; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
Fig. 7 – “Cartaz turístico, à sombra amena da bananeira”, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998.
Marcelo Caetano e Américo Tomás na Madeira; Paulo Sá Brás,
1974 (Comércio do Funchal, 1 maio 1974). Rui Carita
C arlos I ¬ 901
Carlos I
D. Carlos I nasceu em Lisboa a 28 de setembro
de 1863. Filho primogénito do Rei D. Luís I
e da Rainha D. Maria Pia de Saboia, subiu ao
trono em 1889, tendo sido o penúltimo rei
de Portugal. Morreu a 1 de fevereiro de 1908,
quando foi atingido a tiro no Terreiro do Paço
no momento em que seguia com a família em
direção ao palácio das Necessidades.
Sete anos antes, o monarca e a mulher, a Rai-
nha D. Amélia, haviam realizado uma visita aos
arquipélagos da Madeira e dos Açores. Foi uma
deslocação histórica, pois foi a primeira gran-
de visita de Estado portuguesa do século xx.
A importância da deslocação dos monarcas
a território insular está aliás bem patente nos
relatos da imprensa da época. A visita dos sobe-
ranos à Madeira decorreu entre os dias 22 e 25
de junho de 1901, mas o assunto era já notícia
nas semanas anteriores, com os jornais a comu-
nicarem pormenores da agenda real e a vinca-
rem a importância do acontecimento para as
gentes insulares. Um dia antes da chegada do
Rei, o Diário de Notícias, na sua edição de 21
de junho de 1901, escrevia que “a viagem de
Suas Majestades às ilhas da Madeira e Açores
constitui nos dois arquipélagos o assunto pre-
dominante em torno do qual volitam, como
enxame em volta do cortiço, as discussões e
comentários do público”. O matutino explica-
va que o entusiasmo popular poderia trazer o Fig. 1 – D. Carlos I, Adolfo Rodrigues, 1895
(coleção da Câmara Municipal do Funchal).
benefício de “atrair as simpatias dos chefes de
estado para esta formosa ilha, cuja recordação
jamais se lhes olvidará”, além de ser capaz de Senhora D. Amélia, num artigo que realçava
“insuflar na monotonia da vida normal da po- a importância da deslocação oficial e o seu ca-
pulação uma atividade social e comercial, em- rácter inédito. Nessa edição, narrava-se uma
bora transitória, mas de gerais e benéficas con- cidade engalanada para corresponder à “altís-
sequências”. O texto terminava realçando que, sima honra de hospedar os Augustos Monar-
“no estrangeiro, ministros e chefes de Estados cas Portugueses”. Afinal, “pela primeira vez,
conhecem perfeitamente todas as províncias após quasi cinco séculos da sua feliz descober-
dos seus países. Bom é que isto suceda igual- ta, pelos arrojados navegantes João Gonçalves
mente na monarquia portuguesa” (DN, 21 jun. Zargo e Tristão Vaz Teixeira, recebe a Madeira
1901, 1). a inolvidável distinção da visita dos seus Reis”.
Um dia depois da chegada dos monarcas à O longo artigo não se limitava, no entanto, a
Madeira, o mesmo Diário de Notícias, na edi- ser elogioso, mas deixava bem claras as condi-
ção de 23 de junho de 1901, fazia primeira pá- ções de vida das populações e a necessidade
gina com uma gravura do Rei D. Carlos e da de estas se tornarem conhecidas para o reino:
902 ¬ C arlos I
Fig. 2 – Arco triunfal da visita régia na entrada da cidade, Vicente Gomes da Silva (filho), 22 de junho de 1901
(ABM, Photographia Vicente, cx. 292, n.º 5).
“Aqui verão Suas Majestades a exuberância fer- dirige-se diretamente ao Cons. Hintze Ribeiro,
tilíssima deste solo, a ridente paisagem destas a quem apela para fazer eco dos queixumes do
montanhas, a pureza deste céu, a amenidade povo e acabar “com a triste lenda […] da Irlan-
deste clima. […] A Flor do oceano tudo deve da Lusitana” (DN, 23 jun. 1901, 1).
à natureza e pouco ou nada à arte e proteção Pesem embora as queixas, a verdade é que
dos poderes públicos”. De qualquer modo, o todos os jornais da época relatam uma cidade
jornal destaca que o povo humilde e trabalha- transformada para receber os soberanos, que
dor recebe em festa os seus monarcas, descre- percorreram vários locais do Funchal sempre
vendo “os rodilhões de fumo das salvas de ar- seguidos por uma enorme multidão. O entu-
tilharia que saudaram as Majestades […] e os siasmo pela visita estava, aliás, bem patente
brados d’entusiasmo unânime soltados por nas primeiras páginas da imprensa. O Correio
milhares de bocas”. E acrescenta o matutino: da Tarde, que se assumia como católico e no-
“Um povo que mostra aos Reis que apesar dos ticioso, publicou mesmo, a 22 de junho de
justos motivos de queixa que tem contra os ho- 1901, “um número especial destinado a con-
mens da pública governação, do abandono e sagrar e perpetuar esta honrosa e auspiciosa
esquecimento a que tem sido condenado, sabe visita”. Em várias páginas, nas quais também
manter-se com brio, à altura dos seus créditos se reproduziam duas gravuras de D. Carlos I e
de povo hospitaleiro e amante dos seus Mo- da Rainha D. Amélia, descrevia-se que “nunca
narcas”. No artigo, refere-se a visita como uma tamanha gala esta terra viu nem tamanho en-
oportunidade para a Coroa ficar a conhecer o tusiasmo nela palpitou” (Correio da Tarde, 22
estado de abandono e atraso da terra. O artigo jun. 1901, 2).
C arlos I ¬ 903
Mas, enquanto o povo palpitava de entusias- do poder central face às dificuldades insulares.
mo perante a inédita situação de hospedar em Disso fizeram eco os jornais, embora toda a vi-
território insular tão real presença, os jornais sita tivesse decorrido em ambiente de festa e
dos dias seguintes não perdiam a oportunidade sem qualquer reclamação ou manifestação por
para, a par do relato da visita, chamar a aten- parte do povo.
ção para as necessidades da terra e das suas gen-
tes. Novamente o Diário de Notícias, na sua edi- Bibliog.: BRANCO, Maria de Fátima Ramos, e MONGE, Maria de Jesus,
“Palácio de São Lourenço: símbolo e espelho do poder”, Islenha, n.º 50,
ção de 25 de junho de 1901, embora admitindo
jan.-jun. 2012, pp. 23-32; CARITA, Rui, A Visita do Rei D. Carlos à Companhia
que a altura festiva não era propícia para os jor- de Artilharia de Guarnição em 24 de Junho de 1901, catálogo de exposição
nais estarem a reclamar das necessidades do patente no Teatro Municipal do Funchal, Funchal, texto policopiado, 1987;
Id., “Uma mesa de embutidos madeirense”, Atlântico, n.º 17, 1989, pp. 35-38;
povo, apelava ao Cons. Hintze Ribeiro para “em Id., História da Madeira, vol. vii, Funchal, Secretaria Regional da Educação/
qualquer oportunidade, pois que lhe escasseia Universidade da Madeira, 2008; Id., “A visita régia de D. Carlos à Madeira
em 1901”, in Política Diplomática, Militar e Social do Reinado de D. Carlos no
o tempo de o fazer agora, percorrer esta ilha Centenário da Sua Morte, XVIII Colóquio de História Militar. Actas, Lisboa,
onde a par de muitas belezas naturais encontra- Comissão Portuguesa de História Militar, 2009, pp. 61-72; Id., Roteiros
Republicanos, Madeira, Lisboa/Porto, Comissão Nacional para a Celebração
ria o mais deplorável atraso de melhoramentos dos 100 Anos da República/Diário de Notícias/Jornal de Notícias, 2010;
públicos – especialmente no que respeita a es- Correio de Tarde, Funchal, 22 jun. 1901; Diário de Notícias, Funchal, 21 jun.
1901; 23 jun. 1901; 25 jun. 1901; GONÇALVES, Manuel, O Feiticeiro do Norte.
tradas e levadas de irrigação, fatores indispen- A Chegada de Suas Magestades (22 de Junho de 1901), Funchal, Tip. Livraria
sáveis de fomento agrícola, fonte primacial da Popular, 1929; NÓBREGA, Cyriaco de Brito, A Visita de Suas Majestades os
Reis de Portugal ao Archipélago Madeirense. Narração das Festas, Funchal,
riqueza d’esta ilha” (DN, 25 jun. 1901, 1). Tip. Esperança, 1901.
Fica claro que a visita do Rei D. Carlos I gerou
grandes esperanças de uma maior consciência Raquel Gonçalves
904 ¬ C arlos de Á ustria
Fig. 2 – Casamento de Zita de Bragança Bourbon-Parma com Carlos de Áustria, Carl Pietzner, balcão do castelo de Schwarzau, 21 de
outubro de 1911 (Arquivo Casa da Áustria, Viena).
aproxima-se de Carlos, faz-lhe o sinal da cruz vem de Londres: seguir para o Funchal, aonde
na testa e diz-lhe: “Deus abençoe Vossa Majes- chegam a 19 de novembro de 1921. Bento XV
tade” (Id., Ibid., 29). Carlos torna-se imperador comunica ao bispo para atender da melhor
aos 29 anos, e Zita imperatriz aos 24. forma o novo hóspede e ajudá-lo em tudo o
A sua preocupação é a paz: “Eu quero fazer que seja necessário. As autoridades civis têm
tudo para acabar, no mais breve tempo possí- instruções precisas. O cônsul britânico sobe a
vel, os horrores e os sacrifícios da guerra, para bordo. O bispo envia o Cón. Homem de Gou-
conceder aos meus povos as bênçãos da paz” veia a oferecer ajuda. Carlos pede apenas que
(Id., Ibid., 29), escreve no seu primeiro comu- lhe seja permitido ter em casa uma capela com
nicado. É coroado rei da Hungria, a 30 de de- o Santíssimo Sacramento, o que lhe é concedi-
zembro de 1916, na igreja de Matheus. Os paí- do. O casal imperial fica hospedado na Casa Vi-
ses em guerra anelam esmagar o império e o tória, uma dependência do Reid’s Hotel. Dois
Imperador. Maquinam a sua derrota, enquan- dias depois, recebe a visita do bispo D. Antó-
to ele quer a paz. Não aceitando o jugo da ab- nio Manuel Pereira Ribeiro, que lhe concede a
dicação das suas funções de imperador, só lhe devida licença para a capela privada e nomeia
resta a solução do caminho do exílio. seu capelão o referido Cón. Homem de Gou-
A Conferência dos Embaixadores (dos Alia- veia, que se tornará grande amigo e devoto do
dos) decide exilar o soberano. A 31 de outu- Imperador.
bro de 1921, Carlos e Zita são levados de com- Aos filhos, que ficam lá longe, é-lhes permiti-
boio para Baja, junto do Danúbio, onde são do corresponder-se com os pais. O casal impe-
confiados à autoridade do comandante da rial está sem dinheiro. Portugal concede asilo
frota inglesa. A 1 de novembro, embarcam no político, mas recusa-se a cuidar das questões de
Glowworm, navio de guerra inglês. A ordem subsistência. Os estados que sucedem à dupla
906 ¬ C arlos de Á ustria
monarquia, Checoslováquia, Polónia, Jugos- e não se lamenta. Todos oram pela sua saúde,
lávia e Roménia, de nada se responsabilizam colocando um altar no quarto, onde é cele-
e jamais entregam um cêntimo à família real, brada a eucaristia todos os dias. O povo asso-
que está mais pobre que Job. A venda de al- cia-se. A 26 de março, organiza uma procissão
gumas joias alivia a primeira situação. Com o para pedir a cura do Imperador, que há 12
passar do tempo, os madeirenses começam a dias está retido no leito. Ele, porém, não se la-
admirar a família real, vendo nela um modelo menta nem permite que o façam à sua frente.
de verdadeiros cristãos, frequentando a missa “Devo sofrer, para que o meu povo continue
na Catedral ou na capela da Penha de França unido de novo” (Id., Ibid., 57), afirma. Zita
e aceitando resignadamente os acontecimen- pede à Ir. Virgínia que interceda pela saúde
tos. Entretanto, os filhos vêm juntar-se aos pais, de Carlos. Depois de orar e fazer as suas peti-
agravando-se a situação económica. Luís Rocha ções, ela comunica a mensagem recebida de
Machado empresta a Qt. do Monte, sua casa de Jesus: “O Senhor não restituiria a saúde ao im-
férias junto da igreja paroquial. Fazem a mu- perador. Tinham chegado à Madeira espiões
dança. A sala é adaptada a capela. Estão felizes da Europa com a missão de assassinar o Impe-
por estarem juntos, mas ao frio e à fome, sem rador e o filho Otão. Deus queria poupar o seu
queixas nem revoltas contra o destino, confia- servo de uma morte ignominiosa, morreria
dos na Providência e cheios de esperança. Car- de morte natural” (Id., Ibid., 58). Não obstan-
los escreve nessa data: “Estou grato a Deus, por te, Zita continua a rezar. A 1 de abril, Sábado
tudo quanto me manda” (Id., Ibid., 55). Em ja- Santo, baixa a febre para volver a subir. Carlos
neiro de 1922, chega ao Funchal o P.e Zsam- diz a Zita: “Tenho dificuldade em respirar”.
boki, capelão da casa imperial, vindo propor- Paralisam as articulações. Os médicos dizem
cionar maior confiança e esperança. a Zita que é uma questão de horas. O capelão
A 14 de março, depois de uma descida ao dá-lhe o sagrado viático e expõe o Santíssimo
Funchal, Carlos confessa não se sentir bem. no seu quarto. Carlos pede a Zita que se sente
Tem uma bronquite generalizada. Os dois pul- junto dele. Ela vai estar durante quatro horas
mões estão infetados. Carlos sente-se corajoso junto do seu leito, segurando a mão de Carlos
C arlos de Á ustria ¬ 907
testemunhos de católicos que afirmam ter in- servo de Deus, exigência do processo de beati-
vocado o Imperador nas suas orações. ficação. Passados 49 anos, ou seja, a 12 de abril
A 11 de julho de 1949, o cardeal Innitzer, em de 2003, a mesma congregação apresenta o de-
Viena, assina a carta da introdução do exame creto sobre a santidade do servo de Deus, e a
para a causa da canonização de Carlos. A 3 de 20 de dezembro do mesmo ano, na presença
novembro desse ano, a Rádio Vaticana anuncia do santo padre, é promulgado o decreto sobre
oficialmente a abertura do processo de beatifi- o milagre.
cação e canonização. No Funchal, em 1952, o A 10 de maio de 2004, é dada a notícia de
bispo, D. António Manuel Pereira Ribeiro, in- que o ato de beatificação está programado
troduz também o mesmo processo. Em 1954, para o dia 3 de outubro seguinte, conjunta-
são entregues em Roma os atos do processo na mente com outros quatro servos de Deus. A 20
Congregação dos Ritos, hoje chamada Congre- de julho do mesmo ano, Mons. Piero Marini,
gação para as Causas dos Santos. arcebispo titular de Martiano e mestre das ce-
A 1 de abril de 1972, Sábado Santo, faz-se o rimónias litúrgicas pontifícias, envia uma carta
ato de reconhecimento dos restos mortais do a D. Teodoro de Faria comunicando o cerimo-
nial da beatificação do servo de Deus, Carlos
da Áustria. A 3 de outubro, a partir das 10h,
realiza-se a grande solenidade da beatificação,
presidida por João Paulo II, na presença de al-
guns cardeais, muitos bispos, familiares do Im-
perador e ainda de muito povo, incluindo os
peregrinos idos do Funchal, entre os quais se
encontra o presidente do Governo Regional
da Madeira, Dr. Alberto João Jardim, e o bispo
D. Teodoro de Faria, que é quem oficialmente
pede a beatificação. No Monte, o povo enche
toda a igreja para presenciar a cerimónia da
beatificação, transmitida pela RAI através dum
ecrã gigante.
O 21 de outubro é o dia escolhido para a
comemoração litúrgica do B.º Carlos, por ser
o dia do seu casamento. Esse dia é imediata-
mente comemorado na igreja do Monte, com
a celebração da eucaristia presidida pelo então
bispo do Funchal, com o templo repleto de
fiéis devotos. Participa também neste ato o
filho mais velho do Imperador, o arquiduque
Otão de Habsburgo. Por vez primeira se invoca
litúrgica e publicamente o B.º Carlos de Áus-
tria. A partir de então, todos os anos, a 21 de
outubro, tem sido celebrada a eucaristia dos
confessores da Fé, na igreja do Monte, junto
aos seus restos mortais, intensificando a devo-
ção ao B.º Carlos de Áustria.
Fig. 6 – Kapelle mit dem Sarkophag des Exkaisers Karl I
von Oesterreich-Ungarn. Tomb of the Ex-Kaiser Karl I, Bibliog.: FARIA, Teodoro, Beato Carlos da Áustria. Os Habsburg na Madeira,
in the Monte Church, Madeira, túmulo de Carlos de Áustria Funchal, DRAC, 2011.
na igreja do Monte, bilhete-postal de Max Römer, 1925
(coleção dos herdeiros de Joan Cunha). Manuel Gama
C arlota de Á ustria ¬ 909
Carlota de Áustria
A princesa Maria Carlota (1840-1927) era a
filha mais nova do Rei Leopoldo de Saxe-Co-
burgo (1790-1865), que a revolução de 1831
fizera eleger rei da Bélgica, e de Luísa Maria
de Orleães (1812-1850), princesa de França,
tendo nascido no castelo de Laeken, nos arre-
dores de Bruxelas, a 7 de junho de 1840. Den-
tro da política de casamentos e alianças entre as
casas reinantes europeias, chegou a colocar-se
a hipótese do príncipe e futuro Rei D. Pedro V
de Portugal (1837-1861), mas a opção foi para
o seu casamento, a 27 de julho de 1857, com o
arquiduque Ferdinando Maximiliano de Habs-
burgo-Lorena (1832-1867), futuro e malogra-
do Imperador do México, tornando-se, assim,
arquiduquesa de Áustria e, depois, Imperatriz
do México. O arquiduque fora nomeado vice-
-rei da Lombardia e de Veneza, reino depen-
dente do Império Austríaco, por pressão ou
sugestão do Rei Leopoldo da Bélgica, fixando-
-se o casal em Milão. A evolução da Guerra de
Independência de Itália, entretanto, levou à
ampliação do antigo reino da Sardenha com
a Lombardia, em meados de 1859, e ao afasta-
mento do arquiduque Maximiliano de Milão,
passando para Trieste e voltando à armada aus-
Fig. 1 – Maximiliano de Habsburgo e Carlota de Saxe-Coburgo,
tríaca, onde anteriormente prestara serviço. arquiduques de Áustria, Viena, 1857 (Arquivos Imperiais).
Fig. 2 – Qt. Bianchi, no Funchal, Carlota de Saxe-Coburgo, 1860 (Un Hiver à Madère…, 1863).
provar outro “fruto aquoso e detestável duma levou Carlota e a sua comitiva de volta para o
passiflora a que os portugueses chamam mara- Funchal, ficando a arquiduquesa na Madeira
cujá” (Id., Ibid., 89), mas que agradou bastante nesse inverno de 1859-1860, aguardando o re-
ao marido. Mais tarde, mostrou interesse em gresso do marido do Brasil, que ocorreu a 5 de
provar cana-de-açúcar, cujo sabor achou muito março de 1860. Os arquiduques saíram da Ilha
agradável, assim como refere então “um encan- a 12 desse mesmo mês, com destino ao Adriáti-
tador costume da Ilha que consiste em lavar as co e à costa da antiga Dalmácia, que incorpora-
mãos após o jantar em taças cheias de rosas ver- va o então Império Austro-Húngaro.
melhas desfolhadas” (Id., Ibid., 96). Toda a pai-
sagem natural da Madeira, no entanto, a en-
Diário de Carlota
cantou profundamente, considerando-a “um
espetáculo tão grandioso como imponente” A arquiduquesa Carlota, tal como fez Maximi-
(Id., Ibid., 98), como se refere à vista do pico liano, veio a publicar as suas impressões da via-
Grande sobre o Curral das Freiras. As descri- gem à Madeira, tal como as do marido, anóni-
ções das quintas e dos jardins visitados são mas e com um sentido muito crítico para com
igualmente quase sempre encomiásticas. os habitantes da Ilha. O trabalho, editado em
Os arquiduques saíram do Funchal a 15 de Viena em 1863, é um diário que se inicia a 10
dezembro, com destino a Cabo Verde e ao Bra- de novembro de 1859, quando o casal embar-
sil, em viagem de estudo, chegando às Caná- ca num porto do Adriático no navio Fantaisie,
rias, ao porto de Orotava, na ilha de Tenerife, escalando depois em Pola, onde passam para o
a 17 seguinte, mas não lançando âncora, dadas vapor Elisabeth, e acaba a 25 de março de 1860,
as condições do mar. O mau tempo alterou to- quando chegam ao porto de Gravosa, na cida-
talmente o plano de viagem, assim como a au- de croata de Ragusa, que também se denomi-
tonomia do Elisabeth, que não estava prepara- na Dubrovnik. O texto, em francês, é acompa-
do para as grandes viagens atlânticas. O navio nhado por 15 litografias referentes à Madeira,
C arlota de Á ustria ¬ 911
algumas das quais a cores e fora do texto. A au- de Cádis, tecendo depois opiniões gerais sobre
toria destas parece ser de um dos membros da política e eleições, tendo consultado, inclusi-
comitiva de Carlota, que menciona algumas vamente, alguns periódicos locais, embora não
vezes no texto “o pintor” (HABSBURGO e os tendo podido ler completamente, dado não
BÉLGICA, 2011, 105), surgindo depois uma dominar a língua portuguesa, e emitindo opi-
delas assinada pelo Rev. Waldheim X. A. Wien niões que não correspondem taxativamente ao
(NASCIMENTO, 1951, 89). O historiador ita- que lá se encontrava escrito. Mais tarde, tam-
liano Cesare Cantu (1804-1895), mais tarde, ao bém refere as “tendências miguelistas dos ma-
descrever romanticamente a vida deste casal, deirenses” (Id., Ibid., 110) e que o Governo de
referirá taxativamente que Carlota ilustrou Lisboa mandara à Ilha o visconde de Atouguia
este trabalho “com estampas de sua mão” (Id., para atalhar a situação nas seguintes eleições.
Ibid., 101). O investigador Eberhard Axel Wi- O visconde, no entanto, não seria eleito, e Luís
lhelm alvitra que o pintor em questão seria o Vivente de Afonseca (1803-1878), membro do
austríaco Joseph Selleny (1824-1875) (HABS- Partido Reformista, conhecido por Popular,
BURGO e BÉLGICA, 2011, 105), citado em que não era propriamente miguelista, mante-
outras viagens financiadas por Maximiliano e ria o seu lugar de deputado. As fontes de infor-
que se encontrava no Funchal, pelo menos, em mação de Carlota de Áustria não teriam, assim,
abril de 1857, a bordo da fragata Novara; re- sido as melhores.
gressara à Europa em agosto de 1859, pelo que Ao regressar das Canárias, onde nem con-
terá acompanhado os arquiduques nesta via- seguiu desembarcar, Carlota trouxe do Eli-
gem, não tendo ficado, porém, com Carlota, sabeth – que voltou àquele arquipélago para
no Funchal. De qualquer forma, havendo um retomar a viagem para o Brasil – tudo o que
pintor na comitiva e, muito provavelmente,
também um reverendo pintor – embora a ar-
quiduquesa tivesse por certo tido lições de pin-
tura, quase obrigatórias à época na educação
de uma princesa –, na elaboração das estampas
houve vários autores, tal como depois um gra-
vador e litógrafo, que as deram à estampa.
Inverno de 1859-1860
A arquiduquesa, então com apenas 19 anos, era
uma pessoa cultivada, entendendo de botâni-
ca, e.g., e enumerando a maior parte das espé-
cies encontradas pelos seus nomes científicos,
embora na comitiva seguissem naturalistas, que
forneceram também esses dados. A geografia,
a história e a política também lhe eram familia-
res, inclusivamente com algum sentido crítico,
como quando refere que os letreiros das lojas
tinham quase sempre tradução inglesa à vista.
Acrescenta então que, “se bem que tenha vol-
tado a ficar oficialmente, em 1815, sob o domí-
nio português, a Madeira nunca deixou de ser,
de facto, uma espécie de colónia inglesa” (Id.,
Ibid., 90). A autora começa logo por se queixar Fig. 3 – Vilão da Madeira, Carlota de Saxe-Coburgo, 1860
da não existência de portos a partir de Lisboa e (Un Hiver à Madère…, 1863).
912 ¬ C arlota de Á ustria
entendeu necessário para uma longa estadia arquiduquesa ao marido, a quem quase nunca
na Qt. Bianchi. Acrescenta, entretanto, que, alude, tal como também acontece com ele.
“nos países quentes, quanto menos mobilados A descrição encerra com a informação de que
são os quartos, mais estamos à vontade”. Tinha, foi no meio de uma quadrilha, dançada com
assim, encontrado na residência “algumas boas o comandante militar, o Cor. José Herculano
poltronas, paredes caiadas, uma grande estei- Ferreira Horta, “que se abriu para mim o 1.º
ra das Índias”, entendendo “tudo muito adap- de janeiro de 1860” (Id., Ibid., 118).
tado ao clima” e que o “embelezamento das Um dos destaques deste quase diário, para
quintas torna-se, na Madeira, inteiramente su- além dos inúmeros passeios, vai para a festa
pérfluo” (Id., Ibid., 108), face à adaptação ao organizada no palácio de S. Pedro pelo 2.º
meio ambiente e à relação estabelecida com conde do Carvalhal (1831-1888). A arquidu-
a exuberância dos jardins envolventes, que quesa achou que fora “um belíssimo baile, que
nunca deixa de enaltecer. teria feito as honras a um salão de Londres
A comitiva da princesa organizou uma festa ou de Paris. Nunca se suspeitaria de que, no
de Natal, na noite de 24 para 25 de dezem- meio de uma pequena ilha do oceano, priva-
bro, com uma christbaum, escrevendo a mesma da de comunicação com o mundo civilizado,
que teria sido a primeira árvore de Natal que se pudesse ostentar tanta elegância e tão bom
se ergueu na Madeira, o que não era verdade, gosto” (Id., Ibid., 127). Acrescenta ainda que
pois há descrições anteriores (FRANÇA, 1970, a “festa foi muito animada e não faltaram os
169-170) e, por certo, dada a antiga presen- lindos trajes de gala, que faziam lembrar os
ça alemã, muitas teriam sido já montadas. No de Milão”. Ao soar da meia-noite, abriu-se de
final do mês, o cônsul da Áustria organizava repente, como por encanto, uma sala até aí
um baile pela passagem do ano, tendo os con- fechada, surgindo um toldo branco e verme-
vites sido enviados com bastante antecedência. lho decorado aos quatro cantos com bandei-
Escreve então a princesa que “os madeirenses, ras austríacas, belgas e portuguesas. Sob esse
que são muito lentos, não gostam de imprevis- toldo aguardava-os uma ceia sumptuosa, servi-
tos” (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 117), da em pratos armoriados, de porcelana ingle-
daí a antecedência do envio dos convites. As sa, alguns dos quais sobreviveram: “A sala, que
críticas da princesa Carlota a este baile recaí- se prestava a este esplêndido uso, era um tea-
ram essencialmente sobre a obesidade das tro, utilizado normalmente quando das repre-
madeirenses. No intervalo das danças, o côn- sentações de sociedade às quais a aristocracia
sul Bianchi trazia duas senhoras de cada vez portuguesa se entrega com paixão”. No entan-
para as apresentar à arquiduquesa, começan- to, não deixa de voltar a referir que, “entre as
do pelas suas irmãs, a primogénita das quais, frutas que guarneciam o bufete, encontravam-
Isabel Leopoldina, casada com o advogado -se ananases da Ilha, que são muito coriáceos
Gregório Perestrelo da Câmara, por lapso ci- e não se comparam, na minha opinião, com os
tado como Francisco, tinha “sido a mais bo- que amadurecem nas estufas da Europa” (Id.,
nita das três, mas há algum tempo já, embora Ibid., 128).
ainda conserve vestígios disso”. A princesa re- A arquiduquesa foi também a uma récita
fere-se ainda à mulher do cônsul, Ana de Ve- no Teatro Esperança, a 11 de fevereiro, es-
losa Castelo Branco, afirmando que, apesar de pantando-se com o facto de haver um teatro
ser da sua idade, “porém, ultrapassa-me em público no Funchal, embora colocasse algu-
volume”, o mesmo se passando com a irmã, mas reservas. Era, “de muita boa-fé, uma mi-
“duas vezes mais gorda do que ela”. Ao apro- niatura bem proporcionada, deveras bonita
ximar-se a meia-noite, o cônsul serviu vinho no seu género. Não tem nenhum camarote,
velho da Madeira, para ser bebido “pelo ano mas à volta da sala encontravam-se duas filas
novo e pelos ausentes”, o que constitui uma de senhoras muito bem arranjadas”, não re-
das poucas, vagas e prováveis referências da sistindo, porém, a acrescentar: “algumas de
C arlota de Á ustria ¬ 913
pronunciada nutrição” (Id., Ibid., 129). Tam- com diversas bandeirinhas” (Id., Ibid., 132).
bém não deixa de referir que o público se far- Descreve ainda que na sala se viam “três re-
tou de rir com uma série de gracejos vulgares, tratos de corpo inteiro” de D. João VI (1767-
como se se tratasse de qualquer coisa superior. -1826), da mãe, D. Maria I (1734-1816), “que
A 21 de fevereiro, ainda refere o célebre jan- morreu louca”, e do avô, D. José (1714-1777),
tar de gala dado pelo conde de Farrobo (1801- “em cujo tempo reinou Pombal” (1699-1782)
-1869) e pela mulher, em S. Lourenço, desti- (Id., Ibid., 132). Os retratos em questão, salvo
nado a comemorar a sua elevação ao cargo de o de D. João VI, que permaneceu em S. Lou-
governador civil do Funchal. O jantar tinha renço, deveriam ser propriedade dos Farrobo,
sido especialmente preparado, tendo-lhe os regressando com os mesmos a Lisboa. A última
condes de Farrobo apresentado as principais opinião da arquiduquesa, embora abusiva, re-
individualidades insulares e reservando-lhe, flete algum conhecimento da situação política
na mesa, um lugar entre o bispo do Funchal, portuguesa, e a informação sobre D. Maria I
D. Patrício Xavier de Moura (c. 1800-1872), também, embora desconhecesse a autora que
e o conde governador civil. A arquiduquesa o mesmo lhe iria acontecer a si, e dentro de
mostrou-se maravilhada, escrevendo que “o poucos anos.
jantar foi magnífico. Tudo quanto se encon- Após o jantar, descreve Carlota que cantou
trava sobre a mesa, candelabros, requintados “uma pessoa jovem” – que Cabral do Nascimen-
suportes guarnecidos de confeitaria, etc., esta- to (1897-1978) e Duarte Mendonça, que pu-
va coberto por uma profusão de flores, ocul- blicou e anotou a mais recente tradução deste
tando graciosamente a riqueza metálica dos texto, identificam como a cantora Júlia de Fran-
objetos, complementados por pães de açúcar ça Neto (1825-1903) – e que o governador, “que
pertence a uma família muito musical” (Id., Ibid., verga da Madeira, “leves e cómodos” (HABS-
129), a acompanhou ao piano. Parece pouco BURGO e BÉLGICA, 2011, 142), que o mari-
provável que se tratasse da cantora Júlia de Fran- do havia adquirido a 9 de dezembro do ano
ça Neto, que teve aulas de canto em Génova e anterior, quando pensavam que iriam ambos
atuou em vários salões aristocráticos franceses, para o Brasil. Nas suas memórias, Maximiliano
regressando à Madeira em 1854. Embora a can- de Habsburgo refere ter-se deslocado no seu
tora tenha dado depois vários recitais para fins “trenó de quatro lugares à cidade para fazer vá-
de caridade, inclusivamente em S. Lourenço, rias compras: os famosos embutidos, os pontia-
tinha então já 35 anos, pelo que, tendo a atenta gudos barretes madeirenses com para-raios e
Carlota 19, crítica como se mostrou com quase cadeiras de braços feitas de vime para as nossas
todas as mulheres na Madeira, dificilmente po- varandas” (Id., Ibid., 63), numa provável alu-
deria tê-la descrito como uma jovem. são ao palácio de Miramar, em Trieste, onde
O arquiduque Maximiliano entrou no porto residiam.
do Funchal a 5 de março, mas, como vinha do
Brasil e na Baía grassava uma epidemia de fe-
bre-amarela, o navio teve de aguardar cinco
Aventura mexicana
dias de quarentena e só então os passageiros Em abril de 1864, os então Imperadores do
puderam desembarcar, tendo o arquiduque re- México voltavam a passar na Madeira. A 10
cebido uma salva de 21 tiros. Carlota já fizera de abril de 1864, o príncipe Maximiliano de
parte das suas despedidas, e, juntos, os arqui- Áustria aceitara, por indicação ou pressão de
duques ainda assistiram, das janelas do escri- Napoleão III (1808-1873), o referido cargo de
tório do cônsul, a uma procissão. Descreve a imperador, sendo logo aclamado como tal e
autora que tomaram parte na solenidade as passando, a 28 desse mês, pelo porto do Fun-
autoridades locais, como de costume, entre chal, na companhia da Imperatriz Carlota,
as quais o administrador do concelho, que, a caminho do México, onde voltariam a ser
embora tivesse como nome de batismo Tar- aclamados. Deslocaram-se a bordo da fraga-
quínio Torcato da Câmara Lomelino (1818- ta austríaca Novara, acompanhada pela fraga-
1888), a folha local O Direito apelidava sempre ta francesa Thémis, tendo-lhes sido prestadas
de “o paxá de três caudas” (Id., Ibid., 113-114, as devidas honras. Os Imperadores convida-
142). Descreve a arquiduquesa que, na manhã ram depois para jantar a bordo o governador
desse dia 11 de março de 1860, ela e o marido civil, jurisconsulto Jacinto António Perdigão, o
ainda participariam, na capela montada na Qt. bispo da Diocese, D. Patrício Xavier de Moura,
Bianchi, no batizado do filho do cônsul Car- o 2.º conde de Carvalhal, o cônsul Carlos de
los Bianchi, de que foram padrinhos; o rapaz Bianchi, António da Luz Pita (1802-1870), que
nascera a 15 de abril do ano anterior e recebe- a Imperatriz nas suas memórias refere como
ria então o nome de Ferdinando Maximiliano “o médico de maior renome na Madeira” (Id.,
Bianchi (1859-1930). Ibid., 119), e outras personalidades. O Eluci-
Os arquiduques saíram, no dia 12, da Qt. dário Madeirense refere também a presença do
Bianchi, mas antes de embarcarem ainda as- conde de Farrobo, que tinha saído da Madeira,
sistiram a um concerto de caridade no palá- em outubro 1861, para assistir ao casamento
cio do governador, na mesma sala onde fora de D. Pedro V e entregara o governo ao seu
oferecido o banquete, concerto em que parti- secretário, 3.º visconde do Andaluz (1833-c.
cipou Júlia de França Neto (“Notícias locais”, 1900), e que, sabendo da passagem dos Impe-
A Ordem, 10 mar. 1860, 3), embora Carlota radores do México pela Madeira, ali se deslo-
não a mencione, até por só terem assistido a cou para os cumprimentar.
metade dele. Acrescenta ainda a arquiduque- O casamento dos Imperadores do México
sa que o vapor estava ornamentado a preceito não terá sido perfeito, não havendo descen-
para os receber e se viam na coberta móveis de dência. Acresce que Carlota gozou de muito
C armelitas ¬ 915
Fig. 2 – “Lay sisters of the Order of the Lady of Mount Carmel” (A History of Madeira, 1821).
C armelitas ¬ 917
O Carnaval ocupa, com efeito, um lugar par- momento em que se permitem abusos e libe-
ticular no conjunto das festividades que, ao ralidades como forma de preparar o período
longo dos tempos e em vários momentos do de contenção, sacrifício e jejum que se lhe
ano, unem as comunidades humanas, na me- segue – a Quaresma. Em apoio da sua tese,
dida em que se reveste de características únicas Baroja invoca a etimologia do termo, aproxi-
e particulares que autorizam que seja conside- mando-o de “carnal”, aplicado “à época do ano
rado a “mais importante das festas” por vários durante a qual se come carne, em oposição à
autores que o estudaram (SOIHET, 1999, 2). quaresma”, e de “antruejo” (correspondente
Entre as mais notáveis dessas características di- ao português “entrudo”), termo derivado do
ferenciadoras, encontra-se a da possibilidade latim introitus – usado no sentido de aquilo que
de mostrar o mundo ao contrário, permitin- introduz e precede o dito tempo quaresmal
do toda a sorte de representações invertidas: (BAROJA, 1979, 39). Esta ligação do Carnaval
os homens apresentam-se como mulheres e vi- ao cristianismo não obsta a que nele se integre
ce-versa, os pobres como ricos, as altas figuras um conjunto de elementos pagãos que a Igre-
da sociedade podem ser livremente criticadas, ja incorpora justamente para controlar, auto-
as máscaras protegem as identidades e quase rizando os excessos para melhor poder exigir
tudo é permitido. um subsequente comportamento mais virtuo-
As suas origens, sempre remotas, não reú- so e exemplar.
nem, porém, o consenso dos estudiosos, que A oficialização desta ligação foi permitida
divergem na análise dos seus primeiros con- por S. Gregório Magno, que, em 590, autori-
textos. Segundo uns, a celebração do Carnaval zou a realização de cortejos e espetáculos có-
(ainda que não com esta designação) deve pro- micos; a partir daí, o Carnaval singrou nas co-
curar-se na Antiguidade pagã, sendo detetável munidades cristãs, como se atesta, e.g., pela
no Egito, em que a mitologia a liga aos deu- permissão que cerca de 1000 anos mais tarde
ses Ísis e Osíris, em cuja homenagem as pes- o Papa Paulo II outorgou à realização de bai-
soas se reuniam para celebrar a fertilidade da les de máscaras, corridas de cavalos, carros ale-
terra. Dela constava, também, a figura de um góricos e lançamento de ovos, água e farinha,
rei sobrenatural que “permitia a realização de tudo em frente ao seu palácio, no que deveria
sonhos proibidos e ligava a festa ao sentido da ser um espetáculo que pouco se afasta dos fes-
vida e da sua transcendência”, sendo que a sua tejos de Carnaval bem mais recentes.
morte assinalava a necessária purificação dos No que toca à presença do Carnaval em
espíritos depois de um período de excessos Portugal, Guardado da Silva afirma-a logo no
(CAMARGO e BARBOSA, 2012, 8-9). Na Gré- séc. xiii, quando, no reinado de D. Afonso III,
cia e em Roma, também se encontram possí- o uso da palavra “entrudo” se aplicava ao pe-
veis antepassados do Carnaval, materializados, ríodo de três dias que antecede a Quaresma,
para o primeiro caso, nas homenagens a Zeus, enquanto o termo “Carnaval” surgiria apenas
Dionísio e outros deuses, e, para o segundo, no séc. xvi para identificar as festas que come-
nas celebrações em honra de Baco (as Baca- çavam no Dia de Reis e terminavam na Quarta-
nais), Fauno (Lupercais) ou Saturno (Satur- -Feira de Cinzas.
nais). Este conjunto de festividades partilha- Para a Madeira, porém, as referências a
va a referência à alegria, à comida, à bebida, estas festividades são escassas, afirmando José
ao sexo e à subversão do estabelecido (Baco de Sainz-Trueva que alusões específicas “aos
e Dionísio), o conflito entre o caos e a ordem primitivos Entrudos ilhéus não as encontrá-
(Fauno e Pã), e ainda o enaltecimento da agri- mos”, ainda que sejam detetáveis “quadros
cultura e da fertilidade (Saturno e Ceres). de feição burlesca e teatral” nas procissões de
Outros autores, bem representados pelo es- Corpus Christi (SAINT-TRUEVA, 1991, 19),
panhol Júlio Caro Baroja, vinculam o Carna- em cuja retaguarda pontificava o Imperador
val ao cristianismo, explicando-o como um e Rei, levado pelos carniceiros, e a serpe, da
C arnaval ¬ 921
numa zona que incluía o Lg. do Colégio, a R. pós que “mancham as toilettes” e fazem “con-
da Carreira e a de S. Francisco. Ao longo deste juntivites”. Estes eventos costumavam terminar
circuito, mas em particular na zona da R. da com baile de máscaras. No átrio do “Teatro
Carreira, decorriam, de facto, as mais rijas cele- Cannavial” ainda estavam à disposição dos fo-
brações do Carnaval, que incluíam o arremes- liões um restaurante de primeira qualidade e
so de serpentinas tanto das janelas para baixo um sortido de objetos para usos carnavalescos,
como em sentido inverso, mas também de sa- a “preços módicos” (Id., Ibid.).
quinhos com areia do Porto Santo, com grãos A par desta opção, apresentava-se também
de milho e farinha, feijão, grão, e ainda “bis- um desfile de trupes a pé e a cavalo que percor-
nagas com líquidos fedorentos” e ovos podres ria as principais ruas do Funchal, bem como
(SANTOS, 1994, 19). outros bailes de máscaras, nos clubes Recreio
O resultado deste confronto era, segundo o Musical e Recreio Instrução, aos quais se junta-
Diário de Notícias informava, em março de 1905, va, ainda, o do Sports Club, cuja receita rever-
ficar a R. da Carreira com um “aspeto verda- tia a favor do Auxílio Maternal.
deiramente desolador toda coberta dos destro- Em 1905, o administrador do concelho do
ços da batalha carnavalesca”, o que, segundo Funchal procurava disciplinar as festividades
o articulista, provava que “o carnaval nas ruas, proibindo o desfile de “mulheres de má nota”
entre nós, não é suscetível de progresso” (NÓ- que noutros Carnavais tinham tido a ousadia
BREGA, Diário de Notícias, 4 mar. 1984, 5). de percorrer as ruas da cidade de carruagem e
Para quem não apreciasse este tipo de di- lançando sacos de farinha aos espectadores do
vertimento, o Funchal disponibilizava outros, cortejo (Id., Ibid., 5).
como os que decorriam nos Teatros Maria Pia Já mais para meados do séc. xx, em 1931, a
e Canavial, onde se desenrolavam saraus musi- Associação dos Estudantes Pobres começa a fir-
cais com batalhas de flores que não incluíam mar os seus créditos como organizadora dos
festejos desta quadra, sendo que na sua sede ti- licença. O lançamento de objetos restringia-se
nham lugar batalhas de confettis, que iam a par ao de sacos com “um terço de serradura e dois
com “as deslumbrantes festas carnavalescas que terços de confetti” e a chocolates, ou seja, a ar-
se realizam no Salão Parque das Cruzes”, onde tigos que não pudessem causar danos. Era ex-
se apresentavam diversas trupes de mascarados pressamente proibido o uso de máscaras que
(Tribuna da Madeira, 2003, 2.º caderno, 2). impedissem a pronta identificação dos porta-
O Estado Novo irá procurar disciplinar o dores, bem como os disfarces que se asseme-
Carnaval, cuja licenciosidade e o anonimato lhassem aos trajes das forças da ordem, ou fos-
permitido pelas máscaras lhe desagradavam, sem atentatórios da “religião, da moral e dos
pelo que em 1948 é publicado um edital da bons costumes” (Diário de Notícias, 1948, 1).
responsabilidade do Dr. João Abel de Freitas, Apesar destas ameaças à sua genuinidade, o
governador do distrito, que visava “tomar pro- Carnaval madeirense continuou a celebrar-se,
vidências sobre os folguedos”. Era, assim, limi- ainda que os folguedos da R. da Carreira en-
tada a realização de bailes e jogos às casas de trassem num declínio que os conduziu à ex-
espetáculos a isso destinadas ou a casas parti- tinção. Nas décs. de 50 e 60, e até, concreta-
culares, desde que habilitadas com a devida mente, 1974, pontificavam os Guerrilhas, um
grupo musical que recebia do Brasil letras e
músicas, se disfarçava, embarcava numa lan-
cha para saltar no cais, a fingir que estava a
chegar de longe, e a pé percorria o Funchal
tocando não só as músicas novas como o hino
que era executado frente ao palácio de S. Lou-
renço e da Câmara Municipal. Depois, ia para
os hotéis, onde animava os turistas, e, por fim,
regressava ao centro da cidade, terminando o
dia com um grande concerto no Jardim Mu-
nicipal. Esta trupe era, então, a única respon-
sável pelos festejos públicos do Carnaval na
Madeira, mas a Revolução de Abril, apesar de
ter ditado a morte dos Guerrilhas, veio trazer
uma nova dinâmica a esta época do ano.
A partir dos fins da déc. de 1970, começaram
a surgir grupos organizados por particulares,
que desfilavam pelas ruas disfarçados de flores,
catos e palhaços, e.g., muito graças ao empe-
nho e criatividade de pessoas como Artur Fer-
reira, à frente de Sonho de Um Dia, e Ângela
Figueira, que liderava a Caneca Furada. Repre-
sentavam aqueles responsáveis duas formas dis-
tintas de abordar o Carnaval. No caso de Artur
Ferreira, a originalidade era essencial, e tradu-
zia-se também no uso dos materiais disponí-
veis: corda para os cabelos, vassouras para os
chapéus. O caso da Caneca Furada já assinala-
va a tendência, que depois veio a ganhar muito
espaço, de celebrar o Carnaval muito à moda
do Brasil, surgindo grupos inspirados na Esco-
Fig. 5 – Anúncio para o Carnaval de 1957 (DN, 3 mar. 1957). la da Mangueira, do Rio de Janeiro.
C arnaval ¬ 925
Em 1980, e pela primeira vez, o Governo Manuela Aranha surge com uma proposta de
regional associa-se às celebrações e começa a um cortejo alternativo, mais vernáculo e mais
tomar forma a ideia de transformar o Carnaval genuíno – o Trapalhão, que desde então assi-
numa atração para os turistas. Segundo dizia nala a Terça-feira Gorda, trazendo a crítica so-
o então diretor regional do turismo, Ribeiro cial para as ruas, nas quais se pode, então, as-
de Andrade, as manifestações festivas tinham sistir à chamada de atenção para os problemas
sido um verdadeiro sucesso, o que deixava an- que no momento mais preocupações suscitam.
tever que “esta quadra de Entrudo vai passar a Quanto ao outro cortejo, cada vez mais identi-
ser, no futuro, um verdadeiro cartaz turístico” ficado com o seu congénere brasileiro, acon-
(GOUVEIA, 2003, 12). tece no sábado anterior, à noite, e concita as
Com efeito, o Carnaval madeirense come- atenções não só de milhares de madeirenses
çou nessa altura a ganhar uma amplitude tal que, aos poucos, foram aprendendo a apreciá-
que, em 1986, o Diário de Notícias já registava -lo, mas também de muitos turistas que juntam
que Las Palmas adiara os festejos para que não à fruição do desfile o aproveitar das temperatu-
coincidissem com os madeirenses, medida que ras amenas de que a Madeira goza no inverno.
visava não só permitir a grupos da Madeira a A tendência para a “brasilização” do corso ma-
participação em desfiles canários, mas também deirense não deixou de se acentuar, a ponto de
rentabilizar o potencial turístico do evento no séc. xxi, na noite de sábado, só se encon-
(Diário de Notícias, 1986, 1). trarem trupes vestidas de plumas e lantejoulas
Perante o acentuar da tendência para os des- que dançam ao ritmo do samba.
files madeirenses seguirem um figurino bra- Este registo, no entanto, foi crescentemente
sileiro, descaracterizando desse modo o mais garantindo o sucesso das comemorações car-
tradicional Carnaval madeirense, em 1980 navalescas no Funchal, e o êxito contagiou os
Fig. 6 – Desfile Trapalhão de Carnaval na Av. do Mar, Funchal, 28 de fevereiro de 2017 (arquivo particular).
926 ¬ C arnaval
Fig. 7 – Festa dos Compadres de Santana, fevereiro de 2018 (JM, 22 fev. 2019).
concelhos rurais, que, a pouco e pouco, foram hotéis e gerando dividendos significativos,
também começando a promover os seus pró- pelo que continua a justificar a atenção com
prios desfiles e celebrações, ainda que manten- que o Governo regional da Madeira o distin-
do um carácter mais popular, sendo justo salien- gue e apoia.
tar, neste contexto, a forma como em Santana se
Bibliog.: manuscrita: ABM, Administração do Concelho do Funchal, Registo da
vivencia a quadra. Neste concelho do nordeste Correspondência Expedida, liv. 328, fls. 6-6v. e 149-149v.; impressa: BAKHTIN,
madeirense, de facto, o Carnaval assume carac- Mikhail, A Cultura na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François
Rabelais, São Paulo, Hucitec, 1987; BAROJA, Julio Caro, Le Carnaval, Paris,
terísticas muito próprias, baseadas numa tradi- Gallimard, 1979; CAMARGO, Luís Octávio de Lima, e BARBOSA, Fátima Marita,
ção com mais de 50 anos – a Festa dos Compa- “Ordenança do Dia de Corpo de Deus”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. xv,
1972, pp. 120-121; Id., “O Carnaval ancestral como contraponto do cotidiano
dres. Inicialmente de origem popular, a Festa e a sua banalização nas sociedades modernas”, Iara. Revista de Moda, Cultura e
era organizada por pessoas dos diversos sítios Arte, vol. 5, n.º 2, 2012, pp. 4-33; Diário de Notícias, Funchal, 4 fev. 1948; 3 mar.
1957; Diário de Notícias, 20 jan. 1986; DIREÇÃO REGIONAL DOS ASSUNTOS
do concelho que se reuniam para fazer o jul- CULTURAIS, Os Dias dos Nossos Carnavais, Funchal, s.n., 1991; GOUVEIA,
gamento dos compadres, ao qual eram chama- Natércia, “Outros carnavais”, Revista do Diário de Notícias, 8 mar. 2003, pp. 11-14;
Jornal da Madeira, 22 fev. 2019; LOPES, Frederico (Júnior), “As danças do
dos todos os acontecimentos e personalidades entrudo”, Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, n.º 11, 1953, pp. 143-151;
marcantes do ano anterior para serem analisa- NÓBREGA, Tolentino, “Das ‘selvagerias’ da rua da Carreira aos bailes da
alta sociedade. O Carnaval dos (bons) velhos tempos”, Diário de Notícias, 4
dos num tribunal popular, com humor e sáti-
mar. 1984, pp. 5 e 7; Rambles in Madeira, and in Portugal in the Early Part of
ra à mistura. Em 1985, a Câmara Municipal de MDCCCXXVI, London, C. & J. Rivington, 1827; SAINZ-TRUEVA, José de, “Entre
Santana chamou a si a organização do evento, máscaras”, in DIREÇÃO REGIONAL DOS ASSUNTOS CULTURAIS, Os Dias
dos Nossos Carnavais, Funchal, s.n., 1991; SANTOS, Rui, “Página de memórias.
acrescentando ao julgamento um cortejo ale- O Carnaval da rua da Carreira”, Jornal da Madeira, 15 fev. 1994, p. 19; SILVA,
górico que faz desfilar costumes e tradições tí- António Marques da, Passaram pela Madeira, Funchal, Empresa Municipal
Funchal 500 Anos, 2008; SILVA, Carlos Guardado, “História. As origens de uma
picos do concelho e transformando o Carnaval tradição antiga”, Torres Vedras, n.º 6, jan.-fev. 2012, pp. 24-25; SOIHET, Rachel,
de Santana num dos pontos altos dos festejos da “Reflexões sobre o Carnaval na historiografia. Algumas abordagens”, Tempo,
vol. 4, n.º 7, jul. 1999, pp. 1-15; Tribuna da Madeira, 2.º caderno, 2003;
quadra na Madeira. digital: “Alardo”, Danças Folclóricas, 28 fev. 2018: https://dancasfolcloricas.
Plenamente afirmado no séc. xxi como car- blogspot.com/2011/02/alardo.html (acedido a 1 mar. 2018); “Igreja. Do
Carnaval às Cinzas, uma história ligada pela Lua”, Agência Ecclesia, 12 fev. 2018:
taz turístico insular, o Carnaval tornou-se, a par http://www.agencia.ecclesia.pt/portal/igreja-do-carnaval-as-cinzas-uma-
de outras celebrações anuais, um dos momen- historia-ligada-pela-lua-2/ (acedido a 1 mar. 2018).
CEG – Centro de Estudos Globais e Cátedra CIPSH de Estudos Globais da Universidade Aberta
CLEPUL – FLUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas IECCPMA – Instituto Europeu de Ciências
e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa da Cultura Padre Manuel Antunes
Instituições Associadas
UMa – Universidade ADEGI – Associação para o CompaRes APCA – Agência IAC – Instituto
da Madeira Desenvolvimento dos Estudos – International Society de Promoção da Açoriano de Cultura
Globais e Insulares for Iberian-Slavonic Cultura Atlântica
Studies
Mecenas Associados