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Madeira Global - Vol. 2

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Acacio JJ Peres
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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José Eduardo Franco

DIREÇÃO José Eduardo Franco ORGANIGRAMA CIENTÍF ICO


Direção:
DIREÇÃO
Cristina Trindade
COORDENAÇÃO EXECUTIVA
José Eduardo Franco
Coordenação executiva:
Cristina Trindade Cristina Trindade
COORDENAÇÃO EXECUTIVA

O
Coordenação das áreas científicas:
Tais foram em tudo as obras do Infante século xxi será cada vez mais o século do conhecimento, A N T R O P O L O G I A E C U LT U R A M AT E R I A L

Madeira
Jorge Freitas Branco
Dom Henrique, continuadas depois pelos tido como meta e prioridade em ordem ao progresso
A R Q U I T E T U R A E PAT R I M Ó N I O / H I S T Ó R I A D A A R T E
reis de Portugal, que levaram adiante o dos povos. O conhecimento é o novo nome do Rui Carita

que ele começou. Primeiramente nele e por


ele se povoaram os desertos dos séculos,
desenvolvimento. Os países e as regiões distinguir-se-ão, acima
de tudo, pela cultura e pela ciência, como capitais decisivos para Madeira
Global
ARTES E DESIGN
Isabel Santa Clara
A R T E S P E R F O R M AT I VA S
gerar inovação, novas fontes de riqueza e saídas alternativas em Teresa Norton Dias
porque muitas ilhas que desde o princípio ordem à sobrevivência da humanidade para além das fronteiras,
GRANDE DICIONÁRIO
ENCICLOPÉDICO BIOLOGIA TERRESTRE/GEOGRAFIA E ECOLOGIA/GEOLOGIA
DA MADEIRA Miguel Sequeira
do mundo por tantos séculos estiveram agora estreitas, do nosso planeta Terra. Não podemos descurar

Global
Atlântico CIÊNCIAS DA SAÚDE
desertas, incógnitas e despovoadas, como que aquele período da nossa história, em que Portugal se salientou Ana Rita Londral
Carnaval CIÊNCIAS DO MAR
era a ilha da Madeira, e as Terceiras ou no palco das nações do mundo pelas viagens de descoberta dos Thomas Dellinger

dos Açores, ele as descobriu, povoou e edi- caminhos marítimos, teve na base a acumulação, a gestão inteligente C I N E M A , V Í D E O E M U LT I M É D I A
Carlos Valente
ficou; e de ilhas desertas que antigamente e a aplicação adequada de um conhecimento científico e técnico.
Este capital de saber permitiu ao nosso país criar a primeira rede
GRANDE DICIONÁRIO C U LT U R A E T R A D I Ç Õ E S P O P U L A R E S
† David Pinto Correia e Thierry Proença dos Santos
eram, estão hoje tão povoadas e populo-
sas, e tão enobrecidas de formosas cidades
de influência global no dealbar da Época Moderna e tornar-se, ao ENCICLOPÉDICO DIREITO E POLÍTICA
José Renato Gonçalves

e sumptuosos edifícios: aedificabuntur


lado de Espanha, o pioneiro, ou seja, o pai da globalização em que
hoje vivemos plenamente. Neste momento charneira da história
DA MADEIRA ECONOMIA E FINANÇAS
† Alberto Vieira e Eduardo Jesus
in te deserta saeculorum. E assim da humanidade, a Madeira começou a ser povoada sob a égide
EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO E EMPREENDEDORISMO
Jacinto Jardim
como nestas ilhas ermas e desertas lançou de Portugal e tornou-se uma espécie de laboratório e rampa de VOLUME 2 ESTUDOS CLÁSSICOS
Luísa M. Antunes Paolinelli e Sílvio Fernandes
este glorioso príncipe os primeiros funda- lançamento do Novo Mundo que se abria aos olhos da Europa nos
FÍSICA, QUÍMICA E ENGENHARIA
mentos da geração humana, fazendo que séculos xv, xvi e xvii. Ana Rita Londral

fossem povoadas de homens, [...] lançou O papel do arquipélago madeirense como ponto nevrálgico, de HISTÓRIA ECONÓMICA E SOCIAL
† Alberto Vieira
também os primeiros fundamentos da interseção, de absorção e de projeção (povoadores multiétnicos, H I S T Ó R I A M I L I TA R
Rui Carita
geração divina. navegadores, comerciantes, viajantes, cientistas, militares, exilados,
HISTÓRIA POLÍTICA E INSTITUCIONAL/HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO
PA D R E A N TÓ N IO VIEIRA, emigrantes, turistas, etc.) faz da Madeira uma das ilhas mais Cristina Trindade e Nelson Veríssimo
H i s t ó ri a d o F u t u ro conhecidas do mundo e com presença frequente na grande I G R E J A C AT Ó L I C A
Agostinho Jardim Gonçalves, José Eduardo Franco e Saturino Gomes
literatura e história mundiais. A Madeira é, pois, uma ilha que
9 789899 012684 >

I N S T I T U I Ç Õ E S E E X P R E S S Õ E S R E L I G I O S A S N Ã O C AT Ó L I C A S
ISBN 978-989-9012-68-4

merece justamente o epíteto de “Ilha Global”, que agora passa a ter Simão Silva

um dicionário global. LINGUÍSTICA


Aline Bazenga

Adaptado da Introdução (volume 1) L I T E R AT U R A


Luísa M. Antunes Paolinelli
MADEIRA GLOBAL
Paulo Miguel Rodrigues

2
M AT E M ÁT I C A E A S T R O N O M I A
Custódia Drumond
PERSONALIDADES TRANSVERSAIS
Cristina Trindade
P S I C O L O G I A E P S I Q U I AT R I A
Jacinto Jardim e Luísa Soares
SOCIEDADE E COMUNICAÇÃO
† José Manuel Paquete de Oliveira

1as_DICMAD02_SK.indd 1 05/04/22 13:25


Madeira
Global
GRANDE DICIONÁRIO
ENCICLOPÉDICO
DA MADEIRA
José Eduardo Franco
DIREÇÃO

Cristina Trindade
COORDENAÇÃO EXECUTIVA

Madeira
Global
GRANDE DICIONÁRIO
ENCICLOPÉDICO
DA MADEIRA
VOLUME 2
ISBN 978-989-9012-68-4

9 789899 012684 >

Título: Madeira Global: Grande Dicionário Enciclopédico da Madeira


Volume 2
Direção: José Eduardo Franco
Coordenação executiva: Cristina Trindade

Design, capa e paginação: António Rochinha Diogo | ARD-Cor


Infografias: Carolina Grilo
Gestão fotográfica: Bernardes Franco
Supervisão iconográfica: Rui Carita
Revisão: Equipa de revisão do CLEPUL e do CEG – Universidade Aberta
Coordenação editorial: Susana Mourato Alves-Jesus

Editora: Theya Editores


IECCPMA/Centro de Estudos Globais e Cátedra CIPSH de Estudos Globais – Universidade Aberta
Impressão e acabamento: Printer Portuguesa
Distribuição: Edições Esgotadas
ISBN: 978-989-9012-68-4
Depósito legal:
Data de lançamento: 2022

Theya Editores
Instituto Europeu de Ciências da Cultura
Padre Manuel Antunes – IECCPMA
Rua Ladislau Patrício, n.º 8 – 1.º A,
1750-136 Lisboa
[email protected]
Tel. 96 99 77 702
PREFÁCIO

A
publicação do volume 2 da obra Madeira Global: Grande Dicionário Enciclopédico
da Madeira deve ser interpretada como um momento de especial afirmação do
projeto, pois é insofismável que a mesma representa, também, uma conquis-
ta sobre os constrangimentos decorrentes da pandemia da Covid-19. Tal conquista não
ilude, todavia, que trabalhar em cultura tem, entre outras várias características, o traço
da incompletude. Cada novo passo que se dá neste território tem como missão abrir
muitos mais caminhos do que aqueles que fecha, e é isso que tem permitido avançar
sempre mais, sem, no entanto, jamais se chegar ao fim. Mesmo considerando a dispo-
nibilização de mais cerca de 900 páginas da obra, que abrigam centenas de entradas,
é indispensável sublinhar que o conhecimento absoluto não existe, nem existirá nunca,
o que não impede, contudo, que, pelo caminho, se vão semeando marcos que fazem
pontos de situação do percurso até então desbravado. No caso do arquipélago da Ma-
deira, esses marcos existem em variadas áreas do saber e são sempre referências a que se
volta, para aferir distâncias, fundamentar progressos ou (in)validar conclusões. Alguns
deles podem eventualmente ser mais ambiciosos e, propondo largas sínteses, visam hori­
zontes de 360º, querem-se panóticos, e são constituídos por obras de carácter enciclo-
pédico, termo que, em si mesmo, aponta para um conhecimento em círculo, para uma
abrangência total.
A primeira das obras que, na Madeira, representa esse esforço e tem esse desígnio é o
Elucidário Madeirense, publicado há já um século, mas que continua a servir o seu propósi-
to de lugar incontornável, de sítio de visita obrigatória, quando se procura acesso rápido
a informação sobre qualquer assunto relativo ao arquipélago. Em 100 anos, é forçoso que
muito se tenha alterado, tanto ao nível do conhecimento produzido, como em relação
a novas formas de olhar questões antigas, e também quanto a eventos entretanto ocorri-
dos e que são vitais para um entendimento da atualidade do quadro insular. Cem anos
são igualmente dignos de comemoração, sobretudo se se juntarem aos 600 que decorre-
ram desde a descoberta oficializada destas ilhas e da sua integração efetiva no reino de
VI ¬ PREFÁCIO

Portugal, que, com elas, dá o primeiro passo para a construção de um império ultramari-
no e do mundo globalizado que hoje conhecemos.
O Elucidário Madeirense veio a lume na circunstância da comemoração dos 500 anos
desse mesmo acontecimento, e a obra Madeira Global: Grande Dicionário Enciclopédico da Ma-
deira, cujo volume 2 se edita agora, pretende ocupar o mesmo espaço, utilizando o mesmo
pressuposto, agora ampliado substantivamente no âmbito de um projeto que alcançará os
10 volumes e ao qual o Governo Regional da Madeira tinha o dever político e cultural de,
naturalmente, se associar.
Assim, congratulo-me com a prossecução dos trabalhos há já vários anos iniciados e
que se vão consubstanciando em volumes que se pretende lançar ao ritmo de um por ano,
sendo o presente volume o segundo a vir a lume.
Em nome do Governo Regional da Madeira e das empresas que colaboram neste pro-
jeto, saúdo, pois, o lançamento do volume 2 da obra Madeira Global: Grande Dicionário En-
ciclopédico da Madeira, ciente do importante contributo que proporciona a estudiosos, em
particular, e também ao público em geral.

Jorge Carvalho
Secretário Regional de Educação, Ciência e Tecnologia
da Região Autónoma da Madeira

Funchal, novembro de 2021


ORGANIGRAMA

DIREÇÃO: Direito e política: Igreja Católica:


José Eduardo Franco José Renato Gonçalves Agostinho Jardim Gonçalves
Universidade de Lisboa Diocese do Funchal | Patriarcado de Lisboa
COORDENAÇÃO EXECUTIVA:
Cristina Trindade José Eduardo Franco
Economia e finanças: Universidade Aberta | Universidade de Lisboa
† Alberto Vieira
CEHA – Secretaria Regional de Turismo Saturino Gomes
e Cultura da Região Autónoma da Madeira | Tribunal da Rota Romana
COORDENAÇÃO
DAS ÁREAS CIENTÍFICAS: Universidade de Lisboa
Instituições e expressões religiosas
Antropologia e cultura material: Eduardo Jesus não católicas:
Ordem dos Economistas
Jorge Freitas Branco Simão Silva
ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa Universidade Aberta

Educação, formação
Arquitetura e património/História da arte: e empreendedorismo: Linguística:
Rui Carita Jacinto Jardim Aline Bazenga
Universidade da Madeira | Universidade de Lisboa | Universidade da Madeira | Universidade de Lisboa
Universidade Aberta | Universidade de Lisboa
Universidade Nova de Lisboa
Literatura:
Artes e design: Estudos clássicos: Luísa M. Antunes Paolinelli
Isabel Santa Clara Luísa M. Antunes Paolinelli Associação para o Desenvolvimento dos Estudos Globais
Universidade da Madeira | Universidade de Lisboa e Insulares | Universidade da Madeira | Universidade
Associação para o Desenvolvimento dos de Lisboa
Estudos Globais e Insulares | Universidade da Madeira |
Artes performativas: Universidade de Lisboa
Madeira global:
Teresa Norton Dias Sílvio Fernandes Paulo Miguel Rodrigues
Universidade Aberta | Universidade da Madeira |
Universidade da Madeira Universidade da Madeira
Universidade de Lisboa

Biologia terrestre/ Física, química e engenharia: Matemática e astronomia:


/Geografia e ecologia/Geologia:
Ana Rita Londral Custódia Drumond
Universidade da Madeira
Miguel Sequeira Universidade Nova de Lisboa
Universidade da Madeira
Personalidades transversais:
História económica e social: Cristina Trindade
Ciências da saúde:
Ana Rita Londral † Alberto Vieira Associação para o Desenvolvimento dos Estudos Globais
e Insulares | Universidade de Lisboa
CEHA – Secretaria Regional de Turismo e Cultura da
Universidade Nova de Lisboa
Região Autónoma da Madeira | Universidade de Lisboa
Psicologia e psiquiatria:
Ciências do mar: Jacinto Jardim
Thomas Dellinger História militar: Universidade Aberta | Universidade de Lisboa
Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos
Rui Carita Luísa Soares
Genéticos | Universidade da Madeira Universidade da Madeira
Universidade da Madeira | Universidade de Lisboa |
Universidade Nova de Lisboa
Cinema, vídeo e multimédia: Sociedade e comunicação:
Carlos Valente † José Manuel Paquete de
Universidade da Madeira | Universidade de Lisboa História política e institucional/História da
educação: Oliveira
ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa
Cultura e tradições populares: Cristina Trindade
Associação para o Desenvolvimento dos Estudos Globais
† David Pinto Correia e Insulares | Universidade de Lisboa Gestão e administração do projeto
Universidade de Lisboa Aprender Madeira:
Thierry Proença dos Santos Nelson Veríssimo Maurício Marques
Universidade da Madeira | Universidade de Lisboa Universidade da Madeira | Universidade Nova de Lisboa Agência de Promoção da Cultura Atlântica
VIII ¬ O rganigrama

CONSELHO CIENTÍFICO CONSULTIVO SECRETARIADO EXECUTIVO: INSTITUIÇÕES CIENTÍFICAS


INTERNACIONAL: COORDENADORAS:
Bernardes Franco | Carolina Este-
Aida Sampaio Lemos ves Soares | Carolina Grilo | Cris- Centro de Estudos Globais
Universidade Aberta
tiana Lucas Silva | Helena Costa e Cátedra CIPSH de Estudos
Carvalho | José Bernardino | Luís Globais (CEG) (Universidade
Anna Kalewska
Uniwersytet Warszawski Pinheiro | Mariana Gomes da Cos- Aberta (UAb))

Annabela Rita ta | Milene Alves | Paula Carreira | Centro de Literaturas e Culturas


Universidade de Lisboa Rita Balsa Pinho | Sofia A. Carva- Lusófonas e Europeias da Facul­
lho | Susana Mourato Alves-Jesus | dade de Letras da Universidade de
António Sampaio da Nóvoa
Universidade de Lisboa Vanda Figueiredo Lisboa (CLEPUL – FLUL)

Christine Vogel Instituto Europeu de Ciências da


Universität Vechta COORDENAÇÃO DE REVISÃO: Cultura Padre Manuel Antunes
Diogo Abreu Maria José Figueiredo | Milene (IECCPMA)
Universidade de Lisboa
Alves
Edgard Leite Equipa de revisão:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro INSTITUIÇÕES ASSOCIADAS:
Álvaro Almeida | Ana Rita Araújo | Universidade da Madeira (UMa)
Ernesto Rodrigues Ana Sofia Couto | Bruno Venâncio |
Universidade de Lisboa Associação para o Desenvolvimen-
Carlos Serra | Diogo Morais Barbo-
Fabrice d’Almeida to dos Estudos Globais e Insulares
Université Paris II Panthéon-Assas sa | Dora Isabel Rosa | Helena Cos-
(ADEGI)
ta Carvalho | Hugo Fraguito | Joa-
Guilherme d’Oliveira Martins International Society for
Fundação Calouste Gulbenkian na Lima | João Diogo Loureiro |
Lia Nunes | Madalena Costa Lima Iberian-Slavonic Studies
João Paulo Oliveira e Costa | Margarida Nobre Bábau | Maria (CompaRes)
Universidade Nova de Lisboa
João Nobre | Maria José Figuei- Agência de Promoção da Cultura
João Relvão Caetano redo | Mariana Gomes da Costa | Atlântica (APCA)
Universidade Aberta
Mário Silva | Marta Marecos Duar- Instituto Açoriano de Cultura
José Ignacio Ruiz Rodríguez te | Miguel Barcelos | Milene Alves (IAC)
Universidad de Alcalá de Henares
| Ricardo Franco | Rui Ferreira | Projeto Aprender Madeira/
José Manuel Azevedo e Silva Rui Maia Rego | Samuel Carvalhais Intervir +
Universidade de Coimbra
de Oliveira | Sara Carvalhais de
Centro de Estudos Geográficos
Luiz Eduardo Oliveira Oliveira | Sofia A. Carvalho | Tiago
Universidade Federal de Sergipe
da Universidade de Lisboa (CEG)
Simões da Silva
Observatório da Língua
Mariagrazia Russo
Università degli Studi Internazionali di Roma Portuguesa (OLP)

Maria Isabel Morán Cabanas


Universidade de Santiago de Compostela
INSTITUIÇÃO PATROCINADORA
Micaela Ramon PRINCIPAL:
Universidade do Minho
Secretaria Regional de Educação,
Miguel Guzmán-Stein Ciência e Tecnologia da Região
Universidad de Costa Rica
Autónoma da Madeira
Onésimo Teotónio Almeida
Brown University

Patrícia Baubeta MECENAS ASSOCIADOS:


University of Birmingham
Pestana Hotel Group
Paulo Maria
Grupo Sousa
Bastos da Silva Dias
Universidade Aberta Jornal da Madeira
Pierre Antoine Fabre Grupo Socicorreia
École des Hautes Études en Sciences Sociales

Teresa Pinheiro
Technische Universität Chemnitz

Thomas Earle
University of Oxford

Valmir Francisco Muraro


Universidade Federal de Santa Catarina
O rganigrama ¬ IX

TÁBUA DE AUTORES E FILIAÇÃO Cristina Trindade José Renato Gonçalves


INSTITUCIONAL: Associação para o Desenvolvimento dos Estudos CIDEEFF – Faculdade de Direito da Universidade de
Globais e Insulares | CLEPUL – Faculdade de Letras da Lisboa
† Alberto Vieira Universidade de Lisboa
Lídia Gouveia
CEHA – Secretaria Regional de Turismo e Cultura da
Região Autónoma da Madeira | CLEPUL – Faculdade de
Dinis Gouveia Pacheco Secretaria Regional de Ambiente, Recursos Naturais e
Secretaria Regional de Educação, Ciência e Tecnologia da Alterações Climáticas da Região Autónoma da Madeira
Letras da Universidade de Lisboa
Região Autónoma da Madeira
Ana Fernanda Neves Lígia Brazão
Emanuel Janes Secretaria Regional de Educação, Ciência e Tecnologia da
Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa CEHA – Secretaria Regional de Turismo e Cultura da Região Autónoma da Madeira
Região Autónoma da Madeira
Ana Isabel Fagundes L. S. Ascensão de Macedo
Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves Ernesto Rodrigues
CEIS20 – Instituto de Investigação Interdisciplinar da
CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Universidade de Coimbra
Ana Rita Londral
Fátima Pitta Dionísio
Universidade Nova de Lisboa
Secretaria Regional de Educação, Ciência e Tecnologia da
Luís Eduardo Nicolau
Associação Académica da Universidade da Madeira |
Andreia Carol de Carvalho Região Autónoma da Madeira
Imprensa Académica
Universidade da Madeira
Fernanda de Castro
Luís Freitas
António José Borges CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa | CLLC – Departamento de Línguas e Culturas da International Whaling Commission | University of
CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Aberdeen
Universidade de Aveiro

António José Macedo Ferreira Filipe dos Santos Luísa M. Antunes Paolinelli
Associação Literacia para os Media e Jornalismo | Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira | Associação para o Desenvolvimento dos Estudos
Secretaria Regional de Turismo e Cultura da Região CEHA – Secretaria Regional de Turismo e Cultura da Globais e Insulares | CLEPUL – Faculdade de Letras da
Autónoma da Madeira Região Autónoma da Madeira Universidade de Lisboa | Universidade da Madeira

António Moniz Francis Zino Manuel António Marques


CHAM – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa | CLEPUL – Faculdade de
FCP – Associação para a Proteção das Freiras e Natureza
Madama de Sousa Filipe
Letras da Universidade de Lisboa Gabriel Pita IFCN – Secretaria Regional de Ambiente, Recursos
Naturais e Alterações Climáticas da Região Autónoma
Secretaria Regional de Educação, Ciência e Tecnologia da
Bernardo de Vasconcelos Região Autónoma da Madeira
da Madeira
Centro Cultural John dos Passos | Secretaria Regional de
Turismo e Cultura da Região Autónoma da Madeira Georgina Garrido Manuel Biscoito
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Estação de Biologia Marinha do Funchal | Museu de
Bruno Abreu Costa História Natural do Funchal – Câmara Municipal do
Universidade da Madeira Graça Maria Nóbrega Alves Funchal
CEHA – Secretaria Regional de Turismo e Cultura da
Carla Ferreira Região Autónoma da Madeira Manuel Faria
CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa Investigador independente
Helena Paula F. S. Borges
Carlos Barradas Secretaria Regional de Educação, Ciência e Tecnologia da Manuel Gama
CEG – Universidade Aberta | CLEPUL – Faculdade de Região Autónoma da Madeira CECS – Universidade do Minho
Letras da Universidade de Lisboa
Hugo Romano Manuel Morais
Carlos Maduro Madeira Wind Birds Universidade de Évora
CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Iolanda Silva Marcos Gonçalves
Carlos Valente Universidade da Madeira
Diocese do Funchal
CIEBA – Faculdade de Belas-Artes da Universidade de
Lisboa | CIERL – Faculdade de Artes e Humanidades da Joana Pinto Salvador Costa Maria de Fátima Vieira de
Universidade da Madeira CH – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Abreu
Catarina Correia-Fagundes João Baptista Pereira Silva Secretaria Regional da Educação, Ciência e Tecnologia da
Madeira Wind Birds GeoBioTec – Departamento de Geociências da Região Autónoma da Madeira
Universidade de Aveiro
Catarina Encarnação Pereira Maria Favila Vieira da Cunha
CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa João Paulo Freitas Paredes
Caterina Arcangelo Cardiff University Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira
Centro Internazionale di Studi sulle Letterature Europee
Jorge Capelo Maria Francisca Teresa Sousa
Celso de Sousa Figueiredo Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária | Lino da Silva
LEAF – Instituto Superior de Agronomia da Universidade
Gomes de Lisboa
Escola Secundária Jaime Moniz
Departamento de Geociências da Universidade de Aveiro
Maria Manuela Sim-Sim
Cláudia Dias Ferreira José Campinho cE3c – Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Universidade Aberta
Secretaria Regional de Agricultura e Desenvolvimento
Marta Caires
Rural da Região Autónoma da Madeira José Eduardo Franco Diário de Notícias (Madeira) | Expresso
Cláudia Fernandes CEG – Universidade Aberta | CLEPUL – Faculdade de
Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Letras da Universidade de Lisboa Miguel Luís da Fonseca
Católica Portuguesa Secretaria Regional de Educação, Ciência e Tecnologia da
José Jesus Região Autónoma da Madeira
Cláudia Neves Universidade da Madeira
Associação para o Desenvolvimento dos Estudos Miguel Sequeira
Globais e Insulares | CLEPUL – Faculdade de Letras da José Melo Alexandrino GBM – Faculdade de Ciências da Vida da Universidade
Universidade de Lisboa CIDP – Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa da Madeira
X ¬ O rganigrama

Miguel Torres Cunha Ricardo Araújo Sílvia G. Gomes


RTP-Madeira Museu de História Natural do Funchal – Câmara CIERL – Faculdade de Artes e Humanidades da
Municipal do Funchal Universidade da Madeira
Naidea Nunes
Ricardo Pessa de Oliveira
CIERL – Faculdade de Artes e Humanidades da
Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel
Teodoro de Faria
Universidade da Madeira | CLEPUL – Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa | CLUL – Faculdade de Letras Antunes Diocese do Funchal
da Universidade de Lisboa
Rúben Baptista de Oliveira Teresa Margarida Lopes Brazão
Pamela Puppo CEHR – Universidade Católica Portuguesa
Cupertino da Câmara
CIBIO-InBio – Universidade do Porto | Marshall University
Rui Carita Secretaria Regional de Educação, Ciência
Paulo de Assunção CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de e Tecnologia da Região Autónoma da Madeira
Lisboa | IAP – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
CLEPUL – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa |
da Universidade Nova de Lisboa | Universidade da
Universidade de São Paulo
Madeira
Teresa Norton Dias
Paulo Figueira Rui Magno Pinto
CEMRI – Universidade Aberta | CIERL – Faculdade de
Artes e Humanidades da Universidade
Secretaria Regional de Educação, Ciência e Tecnologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade da Madeira | CLEPUL – Faculdade de Letras da
Região Autónoma da Madeira Nova de Lisboa Universidade de Lisboa
Paulo Ladeira Sandra Mesquita
Secretaria Regional de Turismo e Cultura da Região GBM – Faculdade de Ciências da Vida da Universidade
Thomas Dellinger
Autónoma da Madeira da Madeira CIBIO-InBio – Universidade do Porto | Universidade
da Madeira
Paulo Miguel Rodrigues Sara Alves
Universidade da Madeira
Universidade da Madeira Valeria Biagi
Porfírio Pinto Saturino Gomes Centro Internazionale di Studi Sirio Giannini
Tribunal da Rota Romana
CEG – Universidade Aberta
Sérgio Rodrigues Vítor Sardinha
Raquel Gonçalves Secretaria Regional das Finanças da Região Autónoma Conservatório-Escola Profissional das Artes da
Câmara Municipal de Santa Cruz | Jornal da Madeira da Madeira Madeira – Eng. Luiz Peter Clode
ABREVIATURAS,
SÍMBOLOS DE UNIDADES
E SIGLAS

ABREVIATURAS: D. – Dom/Dona m. – morte


déc./décs. – década/décadas M.a – Maria
abr. – abril dec./decs. – decreto/decretos M.e – madre
ac./acs. – acórdão/acórdãos dec. leg. – decreto legislativo Maj. – major
a.C. – antes de Cristo dec.-lei – decreto-lei mar. – março
ago. – agosto dec. reg. – decreto regulamentar Mar. – Marechal
al. – alínea desp. – despacho mç./mçs. – maço/maços
Alf. – alferes dez. – dezembro mf. – microfilme
Alm. – almirante dir. – diretor/direção ms. – manuscrito
anot. – anotação doc. – documento n. – nascimento
arq. – arquivo Dr. – doutor N.a Sr.a – Nossa Senhora
Arqt. – arquiteto/arquiteta
ed. – edição n.n. – não numerado
art./arts. – artigo/artigos
ed. lit. – editor literário n.o/n.os – número/números
atr. – atribuído
e.g. – exempli gratia nov. – novembro
Av. – avenida
Eng.o – engenheiro of./ofs. – ofício/ofícios
B.º – beato
Est. – estrada org./orgs. – organizador/
Bibliog. – Bibliografia organizadores
et al. – et alii
Brig. – brigadeiro out. – outubro
etc. – et cetera
c. – cerca p./pp. – página/páginas
fev. – fevereiro
C.a – Companhia P.e – padre
Fig./Figs. – figura/figuras
Calç. – calçada
fl./fls. – fólio/fólios Pç. – praça
can. – cânone (direito canónico)
Fr. – frei port. – portaria
cap./caps. – capítulo/capítulos
Gen. – general proc./procs. – processo/processos
Cap. – capitão
Gov. – governador Prof. – professor
Cap.-Gen. – capitão-general
i.e. – id est Prov. – provedor
cc. – cânones (direito canónico)
Ibid. – ibidem Prq. – parque
cf. – conferir
Id. – idem pseud. – pseudónimo
cód./códs. – códice/códices
impr. – impresso pt. – parte
colab. – colaboração
introd. – introdução/introdutório Qt. – quinta
Cón. – cónego
invent. – inventário R. – rua
Cons. – conselheiro
Ir. – irmã reed. – reedição
coord. – coordenador/
coordenação jan. – janeiro Rev. – reverendo
Cor. – coronel jun. – junho rev. – revista
Corr. – corregedor Lg. – largo S. – São
cx./cxs. – caixa/caixas liv./livs. – livro/livros s.d. – sem data
XII ¬ A breviaturas , s í mbolos de unidades e siglas

s.l. – sem lugar SÍMBOLOS DE UNIDADES: SIGLAS:


s.n. – sem nome
s.p. – sem página cm – centímetros ABM – Arquivo Regional e
Biblioteca Pública da Madeira
S.to/S.ta – santo/santa g – grama
h – hora ACDF – Arquivo da Cúria
sec. – secção Diocesana do Funchal
séc./sécs. – século/séculos ha – hectare
ACIF-CCIM – Associação
sem. – semestre kg – quilo(grama) Comercial e Industrial do
km – quilómetro Funchal-Câmara do Comércio e
sér. – série Indústria da Madeira
set. – setembro m – metro
ACL – Academia das Ciências de
Sr./Sr. – senhor/senhora
a min – minuto Lisboa
ss. – seguintes t – tonelada ACMF – Arquivo Contemporâneo
do Ministério das Finanças
sup. – suplemento
t. – tomo/tomos ACP – África, Caraíbas e Pacífico

Ten. – tenente ADEGI – Associação para o


Desenvolvimento dos Estudos
Ten.-Cor. – tenente-coronel Globais e Insulares
Ten.-Gen. – tenente-general AGS – Arquivo Geral de Simancas
Tip./Typ. – Tipografia/ AHDF – Arquivo Histórico da
Typographia/Typografia Diocese do Funchal
tít. – título AHM – Arquivo Histórico Militar
trad. – tradução/tradutor
AHMOP – Arquivo Histórico do
Trav. – travessa Ministério das Obras Públicas
Univ. – universidade AHP – Arquivo Histórico
v. – verso Parlamentar

V. Ex.a – Vossa Excelência AHPGR – Arquivo Histórico


da Procuradoria-Geral da
vol./vols. – volume/volumes República
AHTC – Arquivo Histórico do
Tribunal de Contas
AHU – Arquivo Histórico
Ultramarino
AML – Arquivo Municipal de
Lisboa
ANTT – Arquivo Nacional da
Torre do Tombo
APCA – Agência de Promoção da
Cultura Atlântica
APEF – Arquivo do Paço Episcopal
do Funchal
ARSI – Archivum Romanum
Societatis Iesu
ASF – Adegas de S. Francisco
ASV – Arquivo Secreto do Vaticano
AUC – Arquivo da Universidade
de Coimbra
BA – Biblioteca da Ajuda
BE – Bloco de Esquerda
BGUC – Biblioteca Geral da
Universidade de Coimbra
A breviaturas , s í mbolos de unidades e siglas ¬ XIII

BNB – Biblioteca Nacional do CIPSH – Conseil International de GEFPHIM – Grémio de


Brasil la Philosophie et des Sciences Exportadores de Frutas e
Humaines Produtores Hortícolas da Ilha da
BNF – Biblioteca Nacional de Madeira
França CLEPUL – Centro de Literaturas e
Culturas Lusófonas e Europeias GESBA – Empresa de Gestão do
BNP – Biblioteca Nacional de
Sector da Banana
Portugal CLLC – Centro de Línguas,
Literaturas e Culturas GRM – Governo Regional da
CAPFM – Cooperativa Agrícola
Madeira
dos Produtores de Frutas da CLUL – Centro de Linguística da
Madeira Universidade de Lisboa IAC – Instituto Açoriano de
CASA – Centro de Apoio ao CMF – Câmara Municipal do Cultura
Sem-Abrigo Funchal IAP – Instituto de Arqueologia e
CCFM – Companhia do Caminho CNUD – Convenção das Nações Paleociências
de Ferro do Monte Unidas sobre o Direito do Mar IECCPMA – Instituto Europeu
CDC – Código de Direito CPRM – Comissão de de Ciências da Cultura Padre
Canónico Planeamento da Região da Manuel Antunes
Madeira IFCN – Instituto das Florestas e
cE3c – Centre for Ecology,
Evolution and Environmental CSF – Cabido da Sé do Funchal Conservação da Natureza
Changes IGP – Instituto Geográfico
DGARQ – Direção-Geral de
CECS – Centro de Estudos de Arquivos Português
Comunicação e Sociedade
DN – Diário de Notícias INCM – Imprensa Nacional-Casa
CEE – Comunidade Económica da Moeda
Europeia DPLP – Dicionário Priberam da
Língua Portuguesa ISAPM – Instituto Superior de
CEG – Centro de Estudos Artes Plásticas da Madeira
Geográficos (Universidade de DR – Diário da República
Lisboa) IUCN – União Internacional para
DRAC – Direção Regional dos a Conservação da Natureza e
CEG – Centro de Estudos Globais Assuntos Culturais dos Recursos Naturais
e Cátedra CIPSH de Estudos DREM – Direção Regional de
Globais (Universidade Aberta) JGDAF – Junta Geral do Distrito
Estatística da Madeira Autónomo do Funchal
CEHA – Centro de Estudos de DSIE – Direção do Serviço de
História do Atlântico JM – Jornal da Madeira
Infraestruturas do Exército
CEHR – Centro de Estudos de JOC – Juventude Operária
EBAM – Empresa Baleeira do
História Religiosa Católica
Arquipélago da Madeira
CEIS20 – Centro de Estudos LEAF – Linking Landscape,
FCG – Fundação Calouste
Interdisciplinares do Século XX Environment, Agriculture and
Gulbenkian
Food
CEMRI – Centro de Estudos FCP – Freira Conservation Project
das Migrações e das Relações MWA – Madeira Wine Association
Interculturais FEADER – Fundo Europeu
Agrícola de Desenvolvimento MWC – Madeira Wine Company
CEP – Corpo Expedicionário Rural
Português NATO – Organização do Tratado
FEAGA – Fundo Europeu Agrícola do Atlântico Norte
CH – Centro de História de Garantia NKT – New Kadampa Tradition
CIBIO-InBio – Centro de FEDER – Fundo Europeu para o
Investigação em Biodiversidade OCM – Organização Comum de
Desenvolvimento Regional Mercado
e Recursos Genéticos
FEOGA – Fundo Europeu de OLP – Observatório da Língua
CIDEEFF – Centro de Investigação Orientação e Garantia Agrícola
de Direito Europeu, Económico, Portuguesa
Financeiro e Fiscal FEP – Fundo Europeu das Pescas
PAC – Política Agrícola Comum
CIDP – Centro de Investigação de FLAMA – Frente de Libertação do
PDES – Plano Estratégico de
Direito Privado Arquipélago da Madeira
Desenvolvimento Económico e
CIEBA – Centro de Estudos e de FLUL – Faculdade de Letras da Social
Investigação em Belas-Artes Universidade de Lisboa
PIB – Produto Interno Bruto
CIERL – Centro de Investigação FNAT – Fundação Nacional para a
em Estudos Regionais e Locais Alegria no Trabalho PIDDAC – Programa de
Investimentos e Despesas
CIM – Companhia Insular de GBM – Grupo de Botânica da de Desenvolvimento da
Moinhos Madeira Administração Central
XIV ¬ A breviaturas , s í mbolos de unidades e siglas

PIDDAR – Programa de RTP-Madeira – Rádio e Televisão UAb – Universidade Aberta


Investimento e Despesas de de Portugal Madeira
Desenvolvimento da RAM UBP – União Budista Portuguesa
SHS – Seamen’s Hospital Society
PNM – Parque Natural da Madeira UDP – União Democrática
SICAL – Sociedade Industrial de Popular
PSD – Partido Social Democrata Cal
PSR – Partido Socialista UE – União Europeia
SNB – Serviço Nacional de
Revolucionário UICN– União Internacional
Bombeiros
PTU – Países e Territórios de Conservação da Natureza
Ultramarinos SREC – Secretaria Regional da
Educação e Cultura UMa – Universidade da Madeira
QCA – Quadro Comunitário de
Apoio SRTC – Secretaria Regional do UNESCO – Organização das
Turismo e Cultura Nações Unidas para a Educação,
RAM – Região Autónoma da a Ciência e a Cultura
Madeira TAP – Transportes Aéreos
Portugueses UPM – União do Povo
RTP Internacional – Rádio da Madeira
e Televisão de Portugal TMBD – Teatro Municipal Baltazar
Internacional Dias ZPE – Zona de Proteção Especial
GRANDE DICIONÁRIO
ENCICLOPÉDICO
DA MADEIRA
A tl â ntico , oceano ¬ 17

Atlântico, oceano do humanismo renascentista, pela junção dum


verdadeiro banco de dados proveniente dos
O arquipélago da Madeira insere-se no espa- múltiplos contactos estabelecidos com outras
ço específico do Atlântico Norte, explorado culturas, que colocaram em causa uma parte
desde o séc. vii a.C. Embora de uma forma não substancial dos conhecimentos herdados da
sistemática e sem as ferramentas da ciência Antiguidade clássica e da época medieval.
moderna, não pode haver dúvidas de que ex- Com as viagens de descobrimentos e explora-
ploradores fenícios, gregos, romanos, cartagi- ção, feitas por mar e, algumas vezes, por terra,
neses e depois árabes navegaram no Atlântico. começou-se a conhecer os novos continentes
Até ao séc. xv, os navegadores não se detinham nos seus contornos reais, revelaram-se povos
nas terras despovoadas, como era o caso do ar- e civilizações desconhecidos entre si. Alterou­
quipélago da Madeira, mas somente naquelas ‑se assim, profundamente, a imagem que o
onde os nativos fossem suscetíveis de lhes for- homem tinha do planeta, rasgando-se horizon-
necer coisas que eles pudessem levar e utilizar, tes que abriram as portas a uma época nova
como acontecia nas Canárias. Aliás, a guerra e imprimiram um sentido diverso à História.
de corso, mesclada de uma ou outra forma De uma certa forma, os Portugueses deram à
com o espírito de cruzada contra os mouros, Humanidade uma dimensão de significado
foi, sem sombra de dúvida, uma das bases de universal.
partida das nossas viagens de expansão desse O povoamento do arquipélago da Madeira,
século. no quadro do Atlântico, surgiu assim como
A partir de então, e com os navegadores por- uma atividade totalmente nova. A Madeira foi
tugueses, todo este espírito viria a ser altera- a primeira experiência de povoamento e ex-
do, tendo-se desenvolvido uma cultura nova, ploração das novas terras descobertas, e para
ainda assente na escolástica, mas precursora a Ilha foram os pioneiros de uma mentalidade

Fig. 1 – Carta náutica portuguesa, Pedro Reinel, 1504 (Bayerische StaatsBibliothek).


18 ¬ A tl â ntico , oceano

universalista, que ali deram assento a uma que voltam a aparecer em 1433, com um agra-
nova sociedade. Sendo um ensaio que ime- decimento do Rei D. Duarte não só ao capitão­
diatamente originou lucros consideráveis, este ‑donatário do Funchal e aos fidalgos em es-
modelo veio depois a ser exportado para as pecial, mas também “aos povos desta ilha da
outras novas terras, como os Açores e o Brasil, Madeira”, pelos auxílios prestados a navios da
para onde foram enviados planeamentos admi- armada que de Portugal ali tinham vindo, con-
nistrativos e quadros próprios. Da Madeira, saí- tra naus de Castela (FRUTUOSO, 2007, 604).
ram apoios à consolidação das praças do Norte A centralidade e a ligação da Madeira a todo
de África, ao povoamento do Brasil, às explora- o espaço marítimo entre a costa de África e a
ções e conquistas do Oriente, acabando a Ilha da América foram quase contemporâneas com
por funcionar como a verdadeira ponta de o povoamento, muito para além do abasteci-
lança dos descobrimentos portugueses. mento de trigo para as armadas de explora-
A Madeira afirmou-se desde os primeiros tem- ção da costa da Guiné. Em 1470, e.g., residia
pos do povoamento como uma importante refe- no Funchal o feitor real dos dentes de elefante
rência no Atlântico, e logo nos meados séc. xv capturados naquela costa, Fernão Nunes Boa
viu-se envolvida no contrato para exploração da Viagem. Quinhentos anos depois, ainda se
costa africana, o denominado Trauto da Guiné. mantinha o topónimo da rua, que ficava atrás
Desde 1461, 1000 alqueires desta produção des- da igreja de Nossa Senhora do Calhau e junto
tinavam-se à alimentação dos exploradores e ao Hospital da Misericórdia do Funchal (de-
dos comerciantes que trabalhavam nas costas pois demolido), onde residiu o feitor com seu
da Guiné, como referem as respostas do duque irmão, tendo­‑se este, por sua vez, envolvido no
D. Fernando (1433-1470), em 1461, às represen- tráfico de trigo para a Costa da Guiné.
tações da população insular que referem a “saca O papel fulcral da Madeira no quadro do
dos mil moios de trigo para o Trauto de Guiné” Atlântico Norte é patente na primeira viagem
(ABM, Câmara Municipal..., tombo i, fls. 204­ de Cristóvão Colombo (1451­‑1506) às Antilhas,
‑211). O Rei D. Afonso V (1432-1481) firmara com informações, segundo os seus biógrafos,
um contrato com um grupo de mercadores, anteriormente recolhidas no Funchal. Tendo
nos termos do qual nenhum trigo madeirense sido comunicados os resultados dessa viagem
podia ser exportado para outros destinos por a D. João II (1455­‑1495), em março de 1492,
conta de outros mercadores ou até por parte desencadeou­‑se uma nova partilha do oceano,
dos próprios produtores, enquanto os rendei- celebrada depois pelos tratados de Tordesilhas
ros do fornecimento do Trauto de Guiné não ti- e de Toledo. Nesse contexto, quase de imedia-
vessem adquirido os 1000 moios em causa. Mais to, foi determinada a construção de uma mu-
tarde, em 1466, o infante D. Fernando arrenda ralha no Funchal. As informações dos arquivos
esta exportação a um mercador catalão (ou Ca- portugueses são omissas quanto às possíveis ra-
telam de nome), e depois a sua viúva, D. Beatriz zões para essa construção, mas os Castelhanos
(c. 1420-1506), em 1476, arrenda o mesmo ser- afirmam terem saído da Madeira, por determi-
viço a Batista Lomelino. nação de D. João II, duas caravelas na mesma
Ao longo dos sécs. xv e xvi, a Madeira e os rota de Colombo, as quais, numa primeira fase,
madeirenses participam assim nas viagens de os embaixadores portugueses negam, mas de-
exploração das ilhas e das costas africanas e, pois confirmam.
depois, na ocupação dos domínios do Índico, Resolvido, então, o assunto da nova partilha
na exploração e ocupação do Brasil, etc. As in- dos mares, que deixa de ser, em finais de 1493,
formações mais antigas registadas na Câmara de um meridiano a 100 léguas para ociden-
do Funchal parecem datar de 11 de maio de te de Cabo Verde e passa, segundo proposta
1425, com um agradecimento do rei D. João I dos novos embaixadores portugueses Duarte
(1357­‑1433), em princípio, a um navio chegado Pacheco Pereira (1460-1533) e Rui de Leme,
como desmantelado ao Funchal, informações entre outros, a ser a 370 léguas, a urgência
A tl â ntico , oceano ¬ 19

Fig. 2 – Mapa de
Colombo, Bartolomeu
e Cristóvão Colombo (atr.),
Lisboa, c. 1490 (BNF).

de fortificar o Funchal não era já premente. A importante localização da Madeira no qua-


Assim, D. João II mandou, em 9 de janeiro de dro do Atlântico Norte e o aumento do corso,
1494, na altura em que deveria ser começa- então especialmente francês, parecem apontar
da a cerca, “que não se façam a cerca e muros a Ilha como um local de reabastecimento do
que mandou fazer”, mas sim “alguns baluar- mesmo, do que se queixam para Lisboa vários
tes, aqueles que necessários forem e assim se quadros locais. Se tal preservou a Ilha de alguns
tapem alguns portais, onde cumprir de se tapa- saques corsários, com a invalidação da fixação
rem, para defesa e guarda da dita ilha” (Ibid., dos huguenotes franceses no Brasil, expulsos
fls. 48-48v.). da baía de Guanabara em 1565, em outubro do
ano seguinte, uma nova armada tentou a sua
instalação no Funchal. A organização encon-
Quadro do século xvi trada, no entanto, não permitiu prolongar a es-
Nos inícios do séc. xvi essa ação de centralida- tadia por muito mais de 15 dias, abandonando
de e apoio às explorações marítimas manteve- os Franceses o Funchal. Nas décadas seguintes,
‑se, reabastecendo‑se aqui várias armadas dos assiste-se à participação de madeirenses, mais
descobrimentos. Em julho de 1520, e.g., a ar- ou menos incógnitos, nas armadas corsárias
mada de Manuel Pacheco, natural dos Açores inglesas, como foi o caso de Manuel Serradas
e “capitão da nau Princesa d’el-rei Nosso Se- que, embora fosse natural dos Açores, se fixara
nhor, que ora Sua Alteza manda a descobrir o na Madeira, aí residindo com a família. Esta si-
reino de Angola”, fez escala na Madeira. Ma- tuação deverá explicar que, tendo saqueado o
nuel Pacheco adquiriu então ao almoxarife continente português, os Açores, as Canárias,
do Funchal um batel de três remos, pois “de Cabo Verde e o Brasil, as armadas inglesas pas-
nenhuma maneira não podiam fazer o dito sassem sempre ao largo da ilha da Madeira.
descobrimento sem o dito batelinho” e o que Ao longo do séc. xvi, a tecnologia açucarei-
existia na nau tinha sido roubado na barra de ra madeirense foi difundida pelos novos cami-
Lisboa por dois grumetes para fugirem (ANTT, nhos da diáspora, primeiro para Cabo Verde
TT, CC, parte II, mç. 90, doc. 130). e, depois, para o Brasil, dando origem a uma
20 ¬ A tl â ntico , oceano

indústria que, num breve espaço de tempo, Madeira passou a ter autorização para associar
floresce, especialmente nas áreas de Pernam- ao mesmo, primeiro dois e depois quatro na-
buco, Baía e S. Paulo, arrasando, praticamen- vios. A constituição da Companhia fora efetua-
te, a madeirense. Nos finais do século, e com a da com base na ação do P.e António Vieira e
união ibérica, depois de Filipe II (1527-1598) nas suas ligações com os cristãos-novos, estabe-
abrir os reinos de Castela aos Portugueses, lecendo-se assim uma vasta rede comercial em
assiste­‑se a uma impressionante abundância de que entravam os cristãos-novos de Pernambu-
prata nas igrejas madeirenses, tal como a uma co e do Maranhão, no Brasil, de S. Miguel, nos
interessante proliferação de oficinas de pra- Açores, do porto de Viana, no reino, de Ames-
teiros e ourives, só explicável pela entrada da terdão, na Holanda, e do Funchal, como pode-
mesma por contrabando, pois nos domínios mos constatar pelo Rol dos Judeus.
portugueses quase não havia prata e nos regis- As estreitas relações da Madeira com a ca-
tos alfandegários nada consta a esse respeito. pitania de Pernambuco, libertada, depois, da
presença holandesa por João Fernandes Vieira
(c. 1602-1681), e onde também existia uma im-
Meados do século xvii portante colónia madeirense – de tal maneira
Nos anos seguintes, assiste-se de uma forma que o antigo governador de Paraíba e de An-
mais nítida à transferência dos interesses eco- gola chegou a manifestar, no final da vida, a
nómicos portugueses do Índico para o Atlânti- vontade de ser sepultado na Madeira –, leva-
co, aparecendo os cónegos da Sé ligados a esse ram à transferência do primeiro bispo de Per-
tráfego internacional, dando aval à fama de nambuco, D. Estêvão Brioso de Figueiredo
que a maioria possuía uma ligação aos comer- (c. 1620-1689), para a Madeira. O bispo pas-
ciantes cristãos-novos de Amesterdão e da Baía. saria por grandes dificuldades naquela nova
O comércio geral da Madeira consolidou-se na diocese, chegando a sua residência, em desor-
segunda metade do século com a privilegia- dens locais, a ser alvejada por tiro de bacamar-
da ligação ao território brasileiro, então com te. Foi apresentado como bispo para o Funchal
o apoio real e através das armadas da Compa- em 1683 e tomou posse da nova diocese, pes-
nhia Geral do Comércio do Brasil, fundada em soalmente, a 18 de abril de 1685, mas teria um
1649, à frente de cuja primeira viagem se co- curto episcopado de três anos, voltando a Por-
locou o 2.º conde de Castelo Melhor, João Ro- tugal e aí falecendo.
drigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658),
casado com a futura condessa da Calheta e re-
cém-nomeado governador-geral do Brasil.
Séculos xvii e xviii
A Companhia Geral do Comércio do Brasil As principais rotas marítimas internacionais
tinha ficado com o monopólio dos estancos e, dos sécs. xvii e xviii, especialmente as Norte­
especialmente, com o respeitante ao comér- ‑Sul, passaram nos mares da Madeira, enquan-
cio do vinho da Madeira. Dada a tradição de to os navios estiveram dependentes do regime
contrabando no porto do Funchal, dificilmen- de ventos no Atlântico Norte. Acrescia ainda
te este monopólio teria sido cumprido, e mais a proximidade do estreito de Gibraltar, a en-
ainda quando esta companhia passou a pes- trada e saída do Mediterrâneo, o que confe-
soa coletiva e se ligou ao comboio – assim se ria à Madeira um importante valor estratégico
chamava o conjunto de naus que navegavam como entreposto comercial, entre os arquipé-
em conjunto para se protegerem mutuamen- lagos dos Açores e das Canárias, patente nas
te dos corsários –, administrado localmente inúmeras visitas de armadas internacionais e
por um delegado, como foi Diogo Fernandes principalmente inglesas, que aqui fizeram es-
Branco em 1668 e, depois, em 1673, o capitão cala. O reconhecimento da posição estratégica
Gaspar de Andrada; a situação continuaria da da Madeira alarga-se ainda com o desenvolvi-
mesma forma a partir do momento em que a mento exponencial, ao longo do séc. xviii, da
A tl â ntico , oceano ¬ 21

confrontos de Boston, que se saldaram por um


massacre em 1770 e, três anos depois, pelo Bos-
ton Tea Party, marco decisivo para as indepen-
dências das colónias da América do Norte. Em
julho de 1775, o segundo congresso continen-
tal elegeu George Washington como coman-
dante das forças militares norte-americanas e,
no mês seguinte, produziu a Declaração de In-
dependência, que seria proclamada em 1776 e
saudada com um brinde de vinho da Madeira.
Será assim, numa constante guerra de corso
de carácter político-económico, que a Ilha se
desenvolve no quadro do Atlântico no final do
séc. xviii. A Madeira, entretanto, vai constituir,
com as suas complexas relações atlânticas, um
polo quase essencial à expansão e consolida-
ção do império colonial britânico e, ao mesmo
tempo, um ponto de observação e difusão da
política dos restantes estados europeus, tendo
crescido, ao longo do século, o número dos re-
presentantes consulares creditados na Ilha. Se,
Fig. 3 – Ataque de submarino alemão ao porto do Funchal a 3 de
nos inícios do século, somente se registam o
dezembro de 1916 (Ilustração Portuguesa, 1 jan. 1917, capa).
cônsul britânico, o francês e o espanhol, depois
aparecem os da Holanda, da Alemanha, da Di-
chamada literatura de viagens, entre o exóti- namarca e da Noruega, da Suécia, de Malta,
co e o científico, onde a Ilha é uma referência de Veneza, de Génova, de Nápoles e Sicília, do
constante. grão ducado da Toscana e, quase nos finais do
Nos finais do séc. xviii, a política geral da século, também dos Estados Unidos da Amé-
Coroa portuguesa oscilou sempre entre a ma- rica, contribuindo todos para um reconheci-
nutenção dos seus tratados com Inglaterra, im- mento internacional da privilegiada situação
prescindíveis à segurança do seu império ultra- estratégica do arquipélago, e levando à urgên-
marino, e com Espanha e França, coligadas ou cia da sua ocupação pelas forças britânicas no
não, de forma a garantir também a sua integri- primeiro ano do século seguinte, de julho de
dade territorial continental europeia. No en- 1801 a janeiro de 1802. Frustradas as tentativas
tanto, a Madeira privilegiava ainda as suas re- de paz nos anos seguintes, a Madeira foi no-
lações com os recém-formados Estados Unidos vamente ocupada por forças inglesas e serviu
da América, seus principais fornecedores de então de base para a invasão do continente eu-
farinhas de trigo, imprescindíveis à sua subsis- ropeu nas chamadas guerras napoleónicas.
tência. Sendo o Funchal um importante centro
internacional de comércio, era igualmente um
importante centro de informações e, por con-
Séculos xix e xx
seguinte, de espionagem. A posição estratégica da Madeira no quadro
O conflito que opôs as colónias americanas do Atlântico não sofre especiais alterações ao
ao monopólio comercial inglês também teve longo do séc. xix, continuando a manter-se
por base o vinho da Madeira, que estava isento como um elo essencial de comunicação, e.g.,
de taxas nos portos da América do Norte, ao entre a corte portuguesa radicada no Bra-
contrário do vinho do Porto e de outros pro- sil e as várias potências europeias, cuja cor-
dutos, na sequência do qual vêm a surgir os respondência passa pelo Funchal, o mesmo
22 ¬ A tl â ntico , oceano

acontecendo com as principais personagens cabos submarinos, a partir de 1872, a Madeira


em trânsito. Em 1817, e.g., passa pelo Funchal passou a ser alvo de disputa das principais po-
a futura princesa do Reino Unido, Portugal e tências europeias, a Inglaterra e a Alemanha,
Brasil, D. Leopoldina de Áustria (1797-1826), boicotando os Ingleses as tentativas de inves-
depois Imperatriz, tal como outras figuras, timento alemão na Madeira, como foi o caso
entre ministros, embaixadores, etc. Nos com- do caminho de ferro do Monte e do sequente
plexos conflitos decorrentes da independência projeto da Sociedade dos Sanatórios. Não foi,
do Brasil, o porto do Funchal foi mesmo palco assim, por acaso que, na Primeira Guerra Mun-
de um incidente caricato, com a passagem de dial, o alvo dos bombardeamentos do primeiro
um grupo de deputados brasileiros fugidos de submarino alemão, a 3 de dezembro de 1916,
Portugal que, partindo depois de Londres para foram os navios de apoio e reabastecimento do
o Brasil, só com a entrada do navio no porto cabo submarino e que o alvo do segundo, a 12
se aperceberam de que estavam em território de dezembro de 1917, foi o próprio centro de
português. operação da estação de transmissões, na calça-
Ao longo do séc. xix, mesmo com o advento da de Santa Clara, embora o edifício atingido
da navegação a vapor, a ilha da Madeira con- tivesse sido a igreja do convento, cuja capela-
tinua a desfrutar de uma excelente posição -mor ficou destruída.
no Atlântico, então como destino turístico te- Ao longo do séc. xx, ainda a localização do
rapêutico e, depois, de lazer, justificando, nos arquipélago no Atlântico despertou um inte-
meados do séc. xx e após a Segunda Guerra resse estratégico a nível internacional, moti-
Mundial, a montagem da primeira compa- vando a construção de instalações da NATO no
nhia de aviação comercial, a Aquila Airways, Porto Santo, depois desativadas. Nos inícios do
entre 1948 e 1949. O interesse estratégico e séc. xxi, o desafio colocado foi a manutenção
militar, no entanto, não diminuiria ao longo do quadro das águas territoriais e da zona eco-
do séc. xix e, com a montagem das redes de nómica exclusiva. Com a entrada em vigor da

Fig. 4 – Mar do Norte, Caniçal (fotografia de Bernardes Franco, 2017).


A tl â ntico , revista ¬ 23

Convenção das Nações Unidas sobre o Direito


do Mar (CNUD), em 1995, e de acordo com
as suas disposições, pelas quais rochedos sem
ocupação humana permanente não dão direi-
to ao estabelecimento de uma Zona Econó-
mica Exclusiva, visando explorar, conservar e
gerir os recursos da região, a Madeira reforçou
a ocupação das ilhas Selvagens, mas tem visto
as mesmas a serem alvo de contestação por
parte das Canárias, pois a localização daque-
las ilhas entre os dois arquipélagos principais
veio a reduzir francamente a zona económica
exclusiva daquele região autónoma espanhola.
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral,
tombos 1, 6 e 7; ANTT, Corpo Cronológico, pt. ii, mç. 90, doc. 130; Ibid.,
Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 966; impressa: FERNANDES,
Maurício de Barros, “A Madeira e os barcos voadores”, Islenha, n.º 21, jul.-dez.
1997, pp. 35-44; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. História das Ilhas do
Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues de Azevedo,
Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2007; GUERRA, Jorge Valdemar,
e BARROS, Fátima, Rol dos Judeus e Seus Descendentes, Funchal, Arquivo
Histórico da Madeira, 2003; Ilustração Portuguesa, 1 jan. 1917; NASCIMENTO,
João Cabral do, “Uma carta de João Fernandes Vieira”, Arquivo Histórico da
Madeira, vol. ii, n.º 4, 1932, pp. 165-167; SARMENTO, Artur Alberto, A Princesa
do Reino Unido Portugal e Brasil na Ilha da Madeira, Funchal, Eco do Funchal,
1943; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder
na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000. Atlântico. Revista de Temas Culturais, n.º 1 (1985).

Rui Carita
apresentam um elenco de colaboradores cujos
nomes e número (37 na 1.ª edição, 41 na 20.ª)
Atlântico, revista não variaram substancialmente ao longo do
tempo. Alguns destes colaboradores elabora-
O primeiro número da Atlântico. Revista de ram artigos e providenciaram ilustrações. Na
Temas Culturais, publicação periódica de cariz contracapa e no interior – mormente no iní-
cultural e científico, veio a lume na primave- cio, no fim e na separação dos artigos – de
ra de 1985. A revista, de assinatura anual, teve todas as revistas podem ser encontradas pági-
uma vigência temporal de cinco anos e uma nas com anúncios publicitários a produtos e
periodicidade trimestral – deste modo, cada serviços do arquipélago da Madeira.
edição, com cerca de 80 páginas, correspondia O número inaugural, publicado em 1985,
a uma estação do ano. Saíram do prelo 20 nú- nascia, segundo o editorial do mesmo, “como
meros, à razão de quatro por ano, sendo o úl- tentativa sincera de criar na Madeira um local
timo o do inverno de 1989. As suas dimensões de encontro de ideias, um ponto de confluên-
eram de 24 x 17 cm e a paginação iniciava-se cia de opiniões”. Através de uma análise breve,
a cada novo ano. A redação e administração não exaustiva, dos editoriais, no sentido de
da publicação estavam sediadas no Funchal e apreender os propósitos e a filosofia da revista
a fotocomposição, o fotolito, a montagem, a Atlântico, percebe-se que por meio dela se pro-
impressão e o acabamento processavam-se em punha instaurar um espaço de comunicação
Lisboa. aberto e livre, informado pela relevância do
O editor e diretor foi António E. F. Loja, que conhecimento do passado e do presente, com
assinou os editoriais de todas as edições (e, vista a edificar o futuro. Era veiculada a espe-
inclusive, diversos artigos). As fichas técnicas rança de que esta publicação fosse considerada
24 ¬ A tl â ntico , revista

útil e, assim, usada amiúde. Desde cedo, foram M. P. Ferreira (eleições no séc. xix); António
acolhidos colaboradores de outras geografias, Luís Alves Ferronha (Revolta da Madeira, re-
de modo a estreitar as relações com o exterior. publicanismo); Paulo Fragoso Freitas (cultura,
Usavam-se igualmente estas páginas para de- fontes históricas, azulejos); Maurício Fernan-
nunciar o clima de mediocridade e para defen- des (escultura – Francisco Franco, fotografia,
der maior fulgor e riqueza culturais, afirmando vídeo); José Luís de Brito Gomes (a Madeira e
a ligação recíproca e necessária entre cultura e a Rússia); Fátima Freitas Gomes (comércio in-
liberdade. A necessidade do conhecimento do terno no Funchal, hotéis e hospedarias); Maria
passado passava por respeitar e preservar o pa- de Fátima Gomes (festas – romarias); José Lau-
trimónio – cultural e natural; nesse sentido, foi rindo de Góis (Ateneu Comercial do Funchal,
denunciada e criticada a indiferença, a falta de indumentária e indústria, imprensa); David
proteção, o desaparecimento e a intervenção Ferreira de Gouveia (madeirenses no Brasil,
desadequada no mesmo por parte de entida- história do açúcar); Emanuel Janes (implan-
des públicas. A este respeito, afirmava-se a pre- tação da Primeira República); Luís Sena Lino
mência da recuperação dos centros históricos (função social do corpo); João Lizardo (arte
e a relevância da inventariação do património do renascimento, arte mudéjar); António Loja
natural e construído (criticou-se, e.g., a ação de (história social, económica e política, arquite-
instituições governamentais no que tocava ao tura); Castro Lourdes (pintura); Armando de
lobo-marinho). Lucena (escultura – Francisco Franco); Irene
A revista era composta de artigos – estudos Lucília (poesia, ruas); Diogo de Macedo (Fran-
e ensaios – sobre múltiplas temáticas atinen- cisco Franco); Maria Elisa Basto Machado (fi-
tes, principalmente, ao arquipélago da Madei- latelia e maximafilia); João Medina (história
ra; repertórios de literatura (poesia, crónicas, cultural – Zé Povinho, arte – I República); Luís
etc.) e de fotografia; e antologias de fontes his- Francisco de Sousa Melo (teatro, o texto “Alco-
tóricas de diversa índole, reproduzidas no final forado”), com a colaboração de Maurício Fer-
de cada número (em certos casos, anotadas, nandes num dos seus artigos; Anabela Mendes
traduzidas e com considerações introdutórias (cultura e museologia); Mary Noel Menezes
e críticas). (madeirenses na Guiana britânica); António
Contribuíram para a revista os seguintes au- Montês (escultura – Francisco Franco); Teresa
tores (com estudos e ensaios sobretudo relati- Pais (Visconde da Ribeira Brava); Jaime Azeve-
vos à Madeira): Manuel José Biscoito (mares); do Pereira (vimes, o Jardim Botânico da Ajuda
Maria dos Remédios Castelo Branco (viajantes e a Madeira, Padre Eduardo Clemente Nunes
estrangeiros – Jean Mocquet); Teresa Brazão Pereira, João Fernandes Vieira); António Jorge
Câmara (empedrados, bonecas de “maçapão”, Pestana (história militar); Fernando Pessoa (ser-
mobiliário); Celso Caires (fotografia); Zita Car- ras); Gabriel de Jesus Pita (decadência e queda
doso (expostos); Rui Carita (litografia – An- da I República); Raimundo Quintal (turismo,
drew Picken, defesas de Santa Cruz, embutidos, paisagem, ambiente, jardins, quintas, patrimó-
remates de teto, arquitetura religiosa); Fátima nio natural, geografia); Adriano Ribeiro (tra-
Maria Fernandes Machado de Castro (litera- tado de Utrecht); Miguel Rodrigues (Madeira
tura – Raul Brandão); Jorge de Castro (natu- nos finais do séc. xv); José de Sainz-Trueva (he-
reza); Luísa Clode (pintura flamenga, borda- ráldica, ex-librística, quintas, arte, arquitetura
do); Marcelo Costa (habitação, arquitetura); civil e religiosa); Joel Serrão (cultura e filoso-
João Couto (escultura – Francisco Franco); fia – Antero de Quental); António Ribeiro Mar-
Sérgio António Correia (literatura – Bernardo ques da Silva (viajantes estrangeiros, imprensa,
Soares); Silvano Porto da Cruz (museologia e quotidiano das freiras de Santa Clara, arquite-
património); Fátima Pitta Dionísio (literatura tura doméstica, ecologia, política e literatura –
– Camões e análise de soneto, Revolta da Ma- o Conde de Abranhos e o desembargador José
deira); João Ferreira Duarte (filosofia); Pedro Caetano); Jorge Marques da Silva (arqueologia
“ A tl â ntida ” ¬ 25

industrial, computador e arte, arte naïve); cultural, científico e historiográfico da Madei-


Amândio de Sousa (museologia, ourivesaria); ra. Esta transformação foi também corporizada
João José Abreu de Sousa (povoamento, emi- pela criação, em 1985, do Centro de Estudos
gração, história político-institucional, social e de História do Atlântico, pela realização, em
económica, rural e urbana, capitania de Ma- 1986, do I Colóquio Internacional de História
chico, rua da Carreira, Convento de S.ta Clara, do Atlântico, e pelo aparecimento, em 1987,
escravos, corsários, levadas); Maria José Soares da revista Islenha.
(madeirenses no Curaçao); Francisco Clode de
Bibliog.: Atlântico. Revista de Temas Culturais, n.os 1-20, 1985-1989; SANTOS,
Sousa (Francisco Franco); Luís de Sousa (Qui- Filipe dos, “A história económica e social do arquipélago da Madeira no recente
rino de Jesus); Manuel Rufino Teixeira (numis- panorama historiográfico (1985-2008). Uma resenha bibliográfica”, Anuário do
Centro de Estudos de História do Atlântico, n.º 1, 2009, pp. 263-315.
mática); Ana Paula Marques Trindade e Tere-
sa Maria Florença Martins (administração nos Filipe dos Santos
sécs. xv e xvi); Nelson Veríssimo (história da
autonomia, festa do Espírito Santo, o Funchal
e a aluvião de 1803, presépios e Meninos Jesus, “Atlântida”
literatura – Bulhão Pato e a Madeira); Maria
Francisca Favila Vieira (mito no discurso plató- O “Atlântida” é o programa televisivo mais an-
tigo e relevante da grelha da RTP Internacio-
nico sobre a alma, ética em Verney); Rui Vieira
(Jardim Botânico da Madeira, Carlos Azevedo nal. Durante mais de uma década foi o único
de Menezes); Eberhard Axel Wilhelm (alemães programa concebido para a comunidade ma-
na Madeira, Max Römer); Manuel Zimbro deirense residente no estrangeiro.
(cultura). Por iniciativa de Maria Aurora Homem, em
No que concerne a repertórios literários, en- novembro de 1997, surge no pequeno ecrã
“Recados das ilhas”, o primeiro programa pro-
contram-se: crónicas (algumas de pendor evoca-
duzido no Centro Regional da Madeira para os
tivo e memorialístico) de Amaro Amarante, An-
emigrantes da Ilha. Desde o primeiro momen-
tónio Ribeiro Marques da Silva, Jorge Sumares
e José Pereira da Costa; poemas de Edmundo to, foi assegurada a emissão para a Madeira e,
Bettencourt, Manuel Vilhena de Carvalho, Fá- através do canal internacional da RTP, para
todo o mundo.
tima Pitta Dionísio, Carlos Alberto Fernandes,
Dois anos depois, Maria Aurora e a RTP-Ma-
Carlos Fino, São Moniz Gouveia, Irene Lucília,
João Cabral de Nascimento, António Manuel deira desafiam a RTP-Açores a dinamizar um
Neves, Gualdino Avelino Rodrigues e José de projeto mais abrangente, envolvendo os dois
Sainz-Trueva; prosa poética de Ângela Varela. arquipélagos e servindo os dois milhões de ma-
Vários artigos e repertórios beneficiaram de deirenses e açorianos, de primeira e segunda
ilustrações (fotografias e desenhos) dos pró- geração, que viviam no estrangeiro.
Adotando uma designação – “Atlântida” – as-
prios autores. Outros foram acompanhados
de fotografias de Rui Camacho, Mota Pimen- sociada a uma lenda em torno de uma grande
ta, Photographia – Museu Vicentes, Maurício
Barros, Carmo Marques, Perestrellos, João Pes-
tana, Sanches Almendra, Gilberta Caires, José
Ivo Correia, João Vasconcelos, Teresa Brazão,
Celso Caires, Manuel Valle e Vicentes e José de
Sainz-Trueva. Outros, ainda, apresentaram de-
senhos de Maurício Fernandes, Sá Braz e Viei-
ra da Silva.
O início da publicação de Atlântico inaugu-
rou, em meados da déc. de 80 do séc. xx, tem-
pos de mudança e de renovação no panorama Logótipo do programa “Atlântida”, 1990.
26 ¬ A touguia , A nt ó nio A lo í sio J ervis de

ilha ou continente no meio do oceano Atlânti- mais tarde denominada Escola Naval, tornan-
co, localização dos Açores e da Madeira, a es- do-se professor catedrático em 1834.
treia do novo programa aconteceu em novem- Fugindo à perseguição contra os liberais,
bro de 1999. emigrou para Inglaterra, em junho de 1828,
Desde então, Açores e Madeira alternaram a mas logo em agosto regressou ao Funchal para
emissão de um programa com 90 min, destina- se juntar ao governador da Madeira, Cap.-Gen.
do a recuperar o mais importante da tradição, José Lúcio Travassos Valdez, na luta contra as
da gastronomia e do cancioneiro madeirenses, tropas absolutistas de D. Miguel. Perante a vitó-
dando a conhecer as instituições e a história ria destas, refugiou-se no navio inglês Alligator,
dos que ficaram na Ilha. com outros madeirenses, e rumou novamente
Ao longo de duas décadas, os profissionais da a Inglaterra, daqui partindo, em 1831, para a
RTP-Madeira deslocaram-se a diferentes comu- ilha Terceira, nos Açores, onde foi organizada
nidades, mostrando as suas realidades e divul- a resistência dos liberais. Em 1832, participou
gando as suas histórias de vida. A produção do na tentativa falhada de conquista da Madeira,
“Atlântida” deslocou-se por três vezes a Boston dominada pelas forças absolutistas, regressan-
(1999, 1999 e 2015). O Reino Unido (2006), do de seguida aos Açores e indo finalmente
a África do Sul (2006 e 2016), a Venezuela juntar-se às tropas de D. Pedro IV, no Porto.
(2007), Jersey (2012), a Austrália (2015) e o Com a vitória liberal, em 1834, foi nomeado
Canadá (2017) foram também palco das emis- governador civil do Porto e condecorado com
sões do “Atlântida”. a Ordem Militar da Torre e Espada. De 25 de
A partir de 2010, com a morte de Maria Au- julho a 25 de novembro de 1835, fez parte do
rora, o programa passou a ser apresentado por Governo presidido pelo duque de Saldanha,
Duarte Rebolo, locutor e jornalista da rádio como ministro e secretário de Estado dos Ne-
Antena 1. gócios da Marinha e Ultramar.
Miguel Torres Cunha Foi deputado pela Madeira, em 1834-1836,
1837-1838, 1838-1840, 1840-1842, e, mais
tarde, por Oliveira de Azeméis, em 1851-1852,
Atouguia, António Aloísio tendo feito parte das comissões da Marinha,
Jervis de Ultramar e Guerra. Em 1841, presidiu à Câ-
mara de Deputados e, entre 1858 e 1861, pre-
António Aloísio Jervis de Atougia nasceu no sidiu algumas vezes, interinamente, à Câma-
Funchal, a 7 de julho de 1797, filho do mor- ra dos Pares. Em 1842, foi nomeado ministro
gado Manuel de Atouguia Jervis e de Antónia da Marinha e Ultramar, no Governo presidido
Joana de Carvalhal Esmeraldo. Em 1811, ini- pelo duque de Palmela, de 7 a 9 de fevereiro
ciou os estudos secundários no colégio inglês de 1842, num ministério conhecido como Go-
Old Hall Green, nos verno do Entrudo. Fez parte do ministério pre-
arredores de Londres, sidido pelo duque de Saldanha (22/05/1851-
matriculando‑se de- 06/06/1856), como ministro e secretário de
pois em Matemática, Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar,
na Univ. de Coimbra. de 4 de março de 1852 a 6 de junho de 1856,
Terminado o curso, acumulando com a pasta de ministro e secre-
em 1822, foi nomea- tário de Estado dos Negócios Estrangeiros, a
do lente substituto da partir de 31 de dezembro de 1852. Foi ainda
Academia da Marinha, diretor da Escola Politécnica de Lisboa e con-
selheiro do Tribunal de Contas.
Foi nomeado par do Reino a 5 de janeiro
António Aloísio Jervis
de Atouguia, retrato a óleo
de 1853 e agraciado com o título de visconde
de 1852 (CHAGAS, 1895, X). de Atouguia, por duas vidas, a 15 de março de
A tum ¬ 27

1853, tendo também recebido várias comendas incessantemente e com muita particularidade
nacionais e estrangeiras. Em 1832, iniciou-se da nossa terra natal – a ilha da Madeira” (O Pro-
na maçonaria, em Angra do Heroísmo. gressista, 1851, 1). Justamente na edição n.º 138,
Faleceu em Lisboa, a 17 de maio de 1861. de 17 de abril de 1854, consta o poema “Ima-
ginação”, assinado por L. d’Athouguia. Trata­
Bibliog.: impressa: CHAGAS, Manuel Joaquim Pinheiro, História de Portugal
Popular e Ilustrada, vol. 10, Lisboa, Empresa da História de Portugal, 1895; ‑se de um poema sobre a arte de compor e de
CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, viver, em que o autor, ao longo de seis décimas
Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; DÓRIA, Luís, “Atouguia, António
Aloísio Jervis de (1797-1861), i.º visconde de Atouguia”, in MÓNICA, Maria bem estruturadas quanto à rima e à métrica,
Filomena (dir.), Dicionário Biográfico Parlamentar. 1834-1910, vol. i, Lisboa, recorre à mitologia (Juno, Mercúrio, Vulcano,
Imprensa de Ciências Sociais/Assembleia da República, 2004; SANTOS,
Manuel Pinto dos, Monarquia Constitucional. Organização e Relações do Poder
Vénus, Marte, Jove, Cupido e Ganimedes) e
Governamental com a Câmara dos Deputados – 1834-1910, Lisboa, Assembleia se aproxima do plano do maravilhoso no seu
da República, 1986; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, JGDAF, 1965; digital: “António
modo de expressão. Transcrevem-se aqui os
Aloísio Jervis de Atouguia”, Wikipedia, s.d.: https://pt.wikipedia.org/wiki/ dois primeiros e os dois últimos versos, como
Ant%C3%B3nio_Alo%C3%ADsio_Jervis_de_Atouguia (acedido a 16 jun. 2016).
exemplo: “Tenho asas que me levam/Sobre as
Gabriel Pita nítidas estrelas […]//Adeus, amores da lua/
outros amores me esperavam”.
Apesar do seu prestígio na época em que
Atouguia, Lino Nicolau de viveu, os versos do morgado Lino Nicolau de
Lino Nicolau de Atouguia nasceu na Madeira Atouguia não entram no número das produ-
no 1.º quartel do séc. xix, concretamente em ções com maior sucesso, ainda que, na verda-
1820, não se sabendo ao certo a data do seu de, tenham valor, notando-se nas mesmas uma
falecimento, que aconteceu ainda durante o preocupação estética e trabalho de ritmo e
mesmo século. linguagem, mesmo quando se ocupa do valor
Nicolau de Atouguia foi um poeta madeiren- do próprio vate, como é, aliás, o caso da com-
se que gozou de muito prestígio no Funchal. posição poética “O poeta”, escrito em oitavas
O Elucidário Madeirense menciona as poesias e com estrutura rimática bem delineada, que
deste escritor, que se encontram reunidas no Luís Marino resgata ao esquecimento na sua
volume Colecção de Algumas Obras Poéticas Ofere- obra Musa Insular: Poetas da Madeira.
cidas ao Ilmo. Exmo. Sr. Sebastião Xavier Botelho,
Obras de Lino Nicolau de Atouguia: Colecção de Algumas Obras Poéticas
oferecido no mesmo ano a Sebastião Xavier Oferecidas ao Ilmo. Exmo. Sr. Sebastião Xavier Botelho (1821); “Imaginação”
Botelho, governador da Madeira. São três so- (1854).

netos encomiásticos, de assinalável qualidade Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e
literária, que glorificam Xavier Botelho e exal- XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; MARINO, Luís, Musa Insular:
Poetas da Madeira, Funchal, Eco do Funchal, 1959; PORTO DA CRUZ, Visconde
tam as suas virtudes, comparando a sua integri- do, Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. ii, Funchal,
dade à de Sócrates. Foram também publicados Câmara Municipal do Funchal, 1949; O Progressista, 21 ago. 1851; SILVA,
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense,
poemas seus no periódico O Progressista, sema- 3 vols., Funchal, SREC, 1978; VEIGA, Gilda França, e FREITAS, António Aragão
nário madeirense editado no Funchal pela pri- de, Madeira. Investigação Bibliográfica, vol. i, Funchal, Centro de Apoio de
Ciências Históricas, 1981.
meira vez a 21 de agosto de 1851 e que mais
tarde passou a periódico político, literário e António José Borges
comercial, que saía, pela tipografia Amigo do
Povo, três vezes por semana. Este jornal teve,
na sua fundação, como editor responsável e re- Atum
dator principal, Severiano Gomes de Gouvêa
e as primeiras palavras lidas no n.º 1 do volu- Na Madeira, designa-se por atuns um conjun-
me i foram: “O nosso título dispensa-nos de to de espécies, normalmente de grande porte,
fazermos um programa político. A palavra – pertencentes à família Scombridae, que, a nível
‘progresso’ – está bem definida e as ideias que mundial, contém 15 géneros e cerca de 50 es-
representa são bem conhecidas. Cuidaremos pécies, essencialmente marinhas, habitando os
28 ¬ A tum

mares tropicais e subtropicais. Na área do ar- caudal. Ostenta coloração prateada azulada no
quipélago da Madeira, esta família está repre- ventre e nos flancos, tornando-se azul mais in-
sentada por 10 espécies, que, para além dos tensa no dorso. Tem barbatanas azuladas e pí-
atuns, incluem a cavala, a cavala-da-Índia, o nulas amarelas debruadas de negro.
serralhão ou serrajão, o chapouto ou judeu e É uma espécie epi a mesopelágica, oceânica
o gaiado. e migradora, com os juvenis formando cardu-
São quatro as espécies designadas por atum mes. Os adultos são mais solitários e vivem, em
que podem ser pescadas nos mares da Madeira: regra, a maior profundidade. É o maior dos
Atum-rabil ou rabilho, Thunnus thynnus (Lin- atuns, podendo atingir mais de 3 m de com-
naeus, 1758). É o mais apreciado e o que atinge primento e 560 kg. Carnívoro, voraz e nada-
maiores tamanhos. O seu corpo é muito robus- dor veloz, alimenta-se de peixes e invertebra-
to e fusiforme, de secção quase circular; tem dos pelágicos. A sua reprodução ocorre em
a cabeça cónica, com olhos relativamente pe- maio-junho no mar Mediterrâneo, quando as
quenos, barbatana peitoral pequena, barbata- águas atingem temperaturas superiores a 24 ºC
nas segunda dorsal e anal quase simétricas, se- e em locais específicos e restritos (áreas circun-
guidas de pínulas. Tem quilha robusta de cada dantes às ilhas Baleares, Sicília, Malta, Chipre
lado do pedúnculo caudal, seguida de duas e Golfo do México). A distribuição geográ-
mais pequenas paralelas, na base da barbatana fica do atum-rabil é muito ampla; é o único
peixe pelágico que vive de forma permanen-
te em águas temperadas do oceano Atlântico.
Trabalhos sobre esta espécie sugerem que os
exemplares juvenis e adultos formam com fre-
quência agregações em frentes oceânicas, pro-
vavelmente relacionadas com a concentração
abundante de presas para alimentação. A mi-
gração entre o Mediterrâneo e o Atlântico
norte foi definitivamente aceite nos anos 60 e
70 do séc. xx, baseada na recaptura de uma
vasta série de marcas convencionais, confirma-
das com observações posteriores.
A subespécie T. thynnus thynnus é a que ocor-
re no oceano Atlântico até ao equador. Nos
começos do séc. xxi, foi-se tornando pouco
comum em resultado da sobrepesca a que foi
sujeito pelas frotas internacionais. Na Madeira,
os exemplares juvenis são pescados pela frota
atuneira regional com a arte de salto e vara,
enquanto os indivíduos adultos e de maior
porte são geralmente pescados com linhas de
mão, corrico ou palangre. As capturas desta
espécie pela frota regional oscilaram, nas últi-
mas décadas do séc. xx, entre as 5 e 7 t por
ano, com exceções para os anos de 1994, 1997
e 1998, onde se verificaram picos de captura
da ordem das 219 t, 340 t e 165 t, respetiva-
mente. Em anos posteriores, as descargas desta
Fig. 1 – Pesca de atum-rabil no Caniçal (MOTA, Funchal Notícias,
espécie na Madeira sofreram um forte decrés-
18 nov. 2016). cimo, tornando-se praticamente nulas, devido
A tum ¬ 29

à implementação de quotas de captura em


todo o oceano Atlântico e mar Mediterrâneo.
Era a espécie que atingia, neste período, valor
comercial mais elevado e a sua carne é muito
apreciada, em particular as partes ventrais – as
ventrechas –, quando gordas. É muito valoriza-
do na cozinha japonesa como sashimi.
Atum-patudo, Thunnus obesus (Lowe, 1839). Fig. 3 – Gaiado (ilustração de Helena Encarnação, Museu de
História Natural do Funchal).
É a espécie mais comum na Madeira. O seu
corpo é robusto, fusiforme e moderadamente que a sua velocidade de deslocação é superior
alto. O perfil da cabeça é ligeiramente conve- à do atum albacora (Thunnus albacares) e com-
xo; tem cabeça cónica e olhos grandes. A pri- parável à do gaiado (Katsuwonus pelamis), apre-
meira barbatana dorsal é mais alta no início, sentando além disso uma série de movimentos
decrescendo de altura de forma gradual até ao sazonais em função dos grupos de idade e da
início da segunda barbatana dorsal, que é pra- natureza das suas migrações, tróficas ou gené-
ticamente simétrica com a barbatana anal; as ticas. É uma espécie cosmopolita nas latitudes
barbatanas peitorais são moderadamente lon- tropicais e subtropicais e não está presente no
gas. Possui uma quilha longitudinal conspícua mar Mediterrâneo. Na Madeira aparece du-
de cada lado do pedúnculo caudal. A colora- rante quase todo o ano, sendo, contudo, mais
ção do corpo é prateada rosada no ventre e comum de março a junho. É pescado com a
azul metálico no dorso, com uma mancha lon- técnica do salto e vara, com auxílio de isco vivo
gitudinal amarelada nos flancos. As extremida- e também à linha. As descargas na Madeira so-
des das barbatanas são amarelas e as pínulas frem flutuações significativas interanuais, in-
caudais amarelas e debruadas de negro. fluenciadas pelo padrão migratório destas es-
É uma espécie epi a mesopelágica, oceânica pécies, que induz a sua abundância junto às
e migradora, podendo ocorrer até 250 m de ilhas do arquipélago de ano para ano. A partir
profundidade. Pode atingir até 2 m de compri- de 2010, as descargas desta espécie rondaram,
mento e 170 kg. Carnívora, alimenta-se de pei- em média, as 1400 t anuais, observando-se um
xes e invertebrados pelágicos. A reprodução decréscimo acentuado em relação a décadas
ocorre durante todo o ano numa vasta zona do anteriores, em que se registavam cerca de 3000
oceano Atlântico em torno do equador, com a 4000 t anuais. No começo do séc. xxi, a uti-
temperaturas superiores a 24 ºC, desde as cos- lização excessiva de dispositivos de concentra-
tas do Brasil até ao golfo da Guiné, com picos ção de pescado pela frota de cerco internacio-
de desova anuais: de janeiro a junho no sul do nal com pescaria dirigida a estas espécies no
Brasil, de dezembro a abril no Golfo da Guiné, golfo da Guiné limitava a migração anual de
de julho a setembro junto às ilhas de Cabo uma grande fração do stock pré-adulto e adul-
Verde e do Senegal. to para as zonas do Atlântico norte, restrin-
O patudo é uma espécie altamente migrató- gindo a sua abundância e consequente baixa
ria. Os dados de marcação-recaptura revelam disponibilidade da espécie para as pescarias
tradicionais destas áreas. A sua carne é muito
apreciada, constituindo prato típico no mês
de junho, quando se festejam os santos popu-
lares na Ilha. Tem valor comercial moderado.
Na culinária japonesa, é utilizado como sashimi
em substituição do atum rabil.
Atum voador, Thunnus alalunga (Bonnater-
re, 1788). Esta espécie de atum, que deve o
Fig. 2 – Atum-patudo (ilustração de Helena Encarnação, Museu
de História Natural do Funchal). seu nome às suas barbatanas peitorais muito
30 ¬ A tum

alongadas, possui normalmente um corpo ro- pequenos peixes pelágicos. A desova tem lugar
busto, fusiforme e moderadamente alongado. em torno das zonas costeiras, onde vive habi-
O perfil da cabeça é quase rectilíneo e pouco tualmente quando as temperaturas superam
inclinado. Os olhos são moderadamente gran- os 24 ºC e a termoclina é profunda. As zonas
des. A primeira barbatana dorsal é mais alta no de desova do atum voador no Atlântico encon-
início e separada da segunda dorsal por uma tram-se nas áreas ocidentais subtropicais de
distância igual ou menor que o diâmetro do ambos os hemisférios (Venezuela, mar dos Sar-
olho. A segunda barbatana dorsal é ligeira- gaços e golfo do México) e em todo o mar Me-
mente mais baixa do que a primeira e sensi- diterrâneo. No Atlântico norte, a reprodução
velmente do mesmo tamanho que a barbatana ocorre de abril a setembro, com valores máxi-
anal. Possui oito pínulas nos contornos dorsal mos de desova no mês de julho.
e anal da cauda. As barbatanas peitorais são É cosmopolita nas águas tropicais e subtropi-
muito compridas. Possui coloração prateada cais e é sazonalmente comum em várias áreas
rosada no ventre e flancos, tornando-se azul do oceano Atlântico. O atum voador apresenta
metálico no dorso; a segunda barbatana dor- uma das migrações mais extensas do mundo.
sal e a barbatana anal possuem uma tonalidade Embora não se tenham registado migrações
amarela clara. desde o Atlântico norte para o Atlântico sul,
É uma espécie epi ou mesopelágica, oceâni- alguns exemplares migram do Atlântico norte
ca e migradora, formando cardumes que ra- para o Mediterrâneo e vice-versa; também se
ramente se acercam da costa, preferindo as observam migrações transatlânticas até às cos-
águas profundas e amplas do alto mar. A tem- tas americanas.
peratura é um dos fatores ambientais mais re- Na Madeira, é pescado pelo método do salto
levantes na distribuição do atum voador. Ape- e vara, entre maio e julho; em 2014, atingiu-se
sar das adaptações fisiológicas comuns a outros um pico de captura de 2264 t, valor máximo
tunídeos, que permitem alguma termorregu- ocorrido para esta espécie nos últimos anos do
lação, o voador é uma espécie de tunídeo de séc. xx e primeiros do séc. xxi no arquipélago.
águas temperadas e prefere águas mais frias – É bastante apreciado e tem valor comercial mo-
entre 10 º e 20 ºC – que outras espécies tropi- derado, sendo particularmente absorvido pela
cais, como o albacora. Estas preferências tér- indústria pesqueira na produção de conservas
micas parecem funcionar como barreiras aos enlatadas para consumo interno e exportação.
movimentos do atum voador entre diferentes Atum albacora, Thunnus albacares (Bonna-
regiões e separam populações de atum voador terre, 1788). Este atum, considerado por Adão
como as que se encontram ao norte e ao sul do Nunes o mais fino dos atuns, possui o corpo
Atlântico, assim como as populações do Atlân- robusto, fusiforme e ligeiramente alongado.
tico e do Índico. Os indivíduos juvenis de atum albacora e de
O atum voador é uma das espécies mais pe- patudo confundem-se facilmente, atendendo à
quenas do grupo dos tunídeos, podendo atin- similaridade das suas características morfológi-
gir 127 cm de comprimento. Carnívoro voraz e cas externas, nesta fase do ciclo de vida. Tanto
nadador veloz, alimenta-se essencialmente de as características internas como as externas
destas espécies de tunídeos variam com o tama-
nho e zona de captura. Os exemplares adultos
distinguem-se facilmente das restantes espé-
cies de atuns pelo tamanho da segunda barba-
tana dorsal e a barbatana anal. A sua coloração
é prateada na parte ventral e azul metálico no
dorso. Possui uma mancha amarelada na parte
Fig. 4 – Atum voador (ilustração de Helena Encarnação, Museu de
média do corpo, desde o olho até à cauda. A se-
História Natural do Funchal). gunda barbatana dorsal e a barbatana anal têm
A udit ó rio E clesiástico ¬ 31

séc. xxi, a sua base tradicional na cidade de


Machico e na vila do Caniçal, de onde é oriun-
da a maioria dos pescadores e armadores.
Bibliog.: impressa: BARD, F. X. et al., “Migraciones”, Recursos, Pesca y
Biología de los Túnidos Tropicales del Atlántico Centro-Oriental, vol. 37, n.º 1,
1991, pp. 120­‑168; Id., “Habitat et écophysiologie des thons. Quoi de neuf
depuis 15 ans?”, Collective Volume of Scientific Papers ICCAT, vol. 50, n.º 1,
1998, pp. 319-342; CAYRÉ, P. et al., “Biologie des thons”, in FONTENEAU, A.,
e MARCILLE, J. (orgs.), Ressources, Pêche et Biologie des Thonidés Tropicaux
de l’Atlantique Centre-Est, Rome, Organisation des Nations Unies pour
l’Alimentation et l’Agriculture, 1988, pp. 157-268; COLLETTE, Bruce B.,
“Scombridae”, in WHITEHEAD, Peter J. P. et al. (orgs.), Fishes of the Northeastern
Atlantic and the Mediterranean, Paris, UNESCO, 1986, pp. 981-997; Id., e
NAUEN, Cornelia E., Scombrids of the World. An Annotated and Illustrated
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FROMENTIN, J.-M., e FONTENEAU, A., “Fishing effects and life history traits.
A case-study comparing tropical versus temperate tunas”, Fisheries Research,
vol. 53, 2001, pp. 133-150; GOUVEIA, L. et al., “Tuna fishery statistics of
Madeira, 1960-1999”, Collection Volume of Scientific Papers of ICCAT, vol. 52,
Fig. 5 – Posta de atum no mercado do Funchal (fotografia de n.º 5, 2001, pp. 1913­‑1926; Id., “Updated fishery statistics for bigeye, skipjack
Bernardes Franco, 2018). and albacore tuna from Madeira archipelago”, Collection Volume of Scientific
Papers of ICCAT, vol. 73, n.º 4, 2017, pp. 1547-1560; HUMSTON, R. et al.,
“Schooling and migration of large pelagic fishes relative to environmental
as pontas amarelas. É uma espécie epipelági- cues”, Fisheries Oceanography, vol. 9, n.º 2, 2000, pp. 136-146; INTERNATIONAL
COMMISSION FOR THE CONSERVATION OF ATLANTIC TUNAS, Report
ca, oceânica e migratória, formando por vezes for Biennial Period, 2014-15, pt. i, vol. 2, Madrid, International Commission
cardumes próximo da superfície. Pode atin- for the Conservation of Atlantic Tunas, 2015; KARAKULAK, Saadet et al.,
“Evidence of a spawning area for the bluefin tuna (Thunnus thynnus L.) in the
gir até 2 m de comprimento furcal e mais de eastern Mediterranean”, Journal of Applied Ichthyology, vol. 20, 2004, pp. 318­
150 kg. Carnívora voraz, alimenta-se de peixes ‑320; MATHER, Frank J. et al., “Historical document. Life history and fisheries
of atlantic bluefin tuna”, National Oceanic & Atmospheric Administration
e invertebrados planctónicos. A reprodução Technical Memo, 1995, pp. 1-165; NISHIKAWA, Y. et al., “Average distribution
ocorre nos meses de verão nas zonas tropicais of larvae of oceanic species of scombrid fishes, 1956-1981”, Far Seas Fisheries
Research Laboratory, sér. s, n.º 12, 1985, pp. 1-99; NUNES, Adão de Abreu,
do golfo da Guiné, das Caraíbas e do golfo do Peixes da Madeira, 2.ª ed., Funchal, JGDAF, 1974; ROYER, F. et al., “The
México. É cosmopolita nas latitudes tropicais e association between bluefin tuna schools and oceanic features in the western
Mediterranean sea”, Marine Ecology Progress Series, vol. 269, 2004, pp. 249-263;
subtropicais, com ocorrências sazonais esporá- SCHAEFER, Kurt M., “Reproductive biology of tunas”, in BLOCK, Barbara A., e
dicas na zona do nordeste do Atlântico nos pri- STEVENS, E. Donald (orgs.), Tuna. Physiology, Ecology, and Evolution, San Diego,
Academic Press, 2001, pp. 225­‑270; digital: MOTA, Helena, “Pequeno atuneiro
meiros anos do séc. xxi. Na Madeira, esta espé- ganha ‘sorte grande’ a poucos metros da costa da Madeira”, Funchal Notícias, 18
cie é pescada da mesma forma que os restantes nov. 2016: https://funchalnoticias.net/2016/11/18/pequeno-atuneiro-ganha-
sorte-grande-a-poucos-metros-da-costa-da-madeira/ (acedido a 29 jan. 2020).
atuns, mas por vezes mais perto da costa, no
verão e outono. As capturas registadas são es- Lídia Gouveia
porádicas e pouco abundantes, rondando em Manuel Biscoito
média as 12 t anuais no período referido. A sua
carne é muito apreciada e atinge um valor co-
mercial moderado a alto. Auditório Eclesiástico
Como já foi referido, a pesca do atum faz-se
tradicionalmente na Madeira pelo método do Na sequência da realização do Concílio de
salto e vara, técnica de pesca na qual o cardu- Trento (1545-1563), a Igreja Católica pôs em
me de atum é atraído para junto da embarca- marcha um vasto programa de reforma, ao
ção e concentrado em seu redor com recurso a qual o conceito de disciplinamento social,
isca viva e depois pescado com uma cana forte, entendido como meio de controlo e coerção
com uma linha e um anzol também iscado com exercido sobre a vida social das populações,
isca viva. Nesta pescaria, são utilizadas embarca- está intimamente associado. Para garantir o su-
ções cujo comprimento pode exceder os 30 m, cesso dos seus propósitos reformistas, a Igre-
e que operam nas águas da Madeira e dos Aço- ja montou um conjunto de dispositivos que vi-
res. Estas embarcações têm, nos começos do savam enquadrar a vivência espiritual e moral
32 ¬ A udit ó rio E clesiástico

das populações e assegurar a sua conformida-


de com o preceituado, para o que precisava de
identificar e punir as infrações. Com a criação
da obrigatoriedade dos registos paroquiais e
dos programas visitacionais das paróquias, a
Igreja dotou-se dos meios para obter informa-
ções e detetar os desvios à norma que se deve-
riam punir. Tal obrigava, naturalmente, à cria-
ção de uma instituição que julgasse e castigasse
os prevaricadores, nos quais se incluíam igual-
mente os clérigos, cujo comportamento tam-
bém era escrutinado de perto.
Este é o contexto em que se insere a criação
de auditórios eclesiásticos nas várias dioceses
do reino, o que, no caso específico da Diocese
do Funchal, veio a ocorrer em 1589, por ação
de D. Luís de Figueiredo Lemos (1585-1608),
um dos prelados insulares mais comprometi-
do com a implementação das determinações
tridentinas.
O seu episcopado foi, com efeito, muito mar- Armas de D. Luís Figueiredo de Lemos, fundador do Auditório
Eclesiástico do Funchal (Constituições Synodaes..., 1601).
cado pela vontade de dotar a Diocese do Fun-
chal de textos e estruturas administrativas que
permitissem a melhor e mais expedita adapta- audiências no foro secular, explicando-se este
ção do território às novas normas conciliares. cuidado pelo facto de os advogados que litiga-
São essas as circunstâncias que determinam, vam numa e noutra instância serem, de modo
e.g., a publicação das primeiras constituições geral, os mesmos.
sinodais e a produção do regimento do auditó- A jurisdição deste foro compreendia privi-
rio eclesiástico, este último feito pelo próprio legiadamente casos de âmbito especificamen-
prelado, o qual, ciente de ser sua obrigação te religioso, como sejam os de dissolução de
o “bom governo e administração das justiças” matrimónio (os matrimoniais), os de não pa-
(ABM, APEF, doc. 9, fl. 8), em pouco tempo o gamento do dízimo (as chamadas causas de-
redigiu e tornou público. cimais), ou ainda os de sacrilégio, que diziam
De acordo com o documento, o territó- respeito a atentados contra pessoas ou bens
rio insular dividia-se em cinco circunscrições. eclesiásticos. Neste rol figuravam ainda as cau-
A maior, a do Funchal, era tutelada pelo vigá- sas de injúria, que versavam as situações em
rio-geral, que nela presidia às audiências e jul- que algum clérigo lesasse a pessoa ou o pa-
gava os casos. Para acudir às partes mais remo- trimónio de outrem. Não se esgotavam aqui,
tas da Diocese, instituíam-se quatro ouvidorias porém, as competências judiciais deste tribu-
– Arguim, Porto Santo, Machico e Calheta –, nal, pois a ele também podiam ser presentes os
onde ministros designados pelo bispo, os ouvi- acusados de um tipo especial de crimes ou pe-
dores, ficavam encarregados da administração cados, os casos de foro misto, que podiam ser
da justiça, com competências tanto mais am- julgados em qualquer instância, secular ou re-
plas quanto mais distante do Funchal ficasse a ligiosa, julgando então o tribunal que primeiro
localidade. tivesse conhecimento da falta. Estão nestas cir-
As sessões de tribunal realizar-se-iam às cunstâncias, e.g., o concubinato, o lenocínio, o
quartas-feiras e aos sábados de manhã por incesto, a blasfémia e a usura. A este conjunto
serem esses os dias em que não se realizavam de faltas ainda se vinham juntar as detetadas
A ustrália ¬ 33

em sede de devassa e que diziam respeito, para eclesiástica (o aljube) os prisioneiros, cujo en-
falar apenas das mais comuns, a curas supers- carceramento devia ser verificado duas vezes
ticiosas, faltas à missa e à confissão, quebra do ao dia. A fechar o corpo de pessoal afeto ao
jejum, incumprimento de deveres conjugais, serviço do tribunal, encontra-se o porteiro,
parentais ou filiais, trabalho em dias santos, que devia entregar as citações e trazer as partes
mancebias e adultérios. às audiências, exercendo as suas funções na ci-
Para julgar toda esta impressionante massa dade e até uma légua em redor.
de delitos, que, muito frequentemente, aca- Esta estrutura judicial montada por D. Luís
bava por ser resolvida no tribunal eclesiásti- de Figueiredo Lemos manteve-se em funcio-
co, pois que as estruturas paroquiais cobriam namento, durante toda a Idade Moderna, em
o território de forma muito mais eficaz que as moldes sensivelmente iguais àqueles com que
circunscrições seculares, o auditório dispunha foi criada, mas o advento do liberalismo e o
de um conjunto de funcionários que nele de- afastamento entre a Igreja e o Estado produzi-
sempenhavam diferentes papéis. Assim, e logo do pelas novas circunstâncias políticas vieram
depois do vigário-geral, destacava-se a figura do introduzir alterações significativas ao modo de
promotor, que estava incumbido de requerer funcionamento da justiça eclesiástica.
os feitos da justiça, em particular os provenien- A publicação, em 1917, do primeiro Código
tes do Juízo de Resíduos e Capelas, organis- de Direito Canónico vai criar o Tribunal Ecle-
mo que estava encarregado do cumprimento siástico diocesano, organismo que surge em
dos testamentos e de conhecer as capelas e os substituição do Auditório Eclesiástico. O Có-
morgados, bem como os bens que a essas ins- digo de Direito Canónico publicado em 1983
tituições tinham sido afetos para efeitos de ce- confirmou este órgão, com sede na Cúria
lebração de ofícios divinos. A especial atenção diocesana e com outras normas canónicas
que o promotor devia prestar a estes assuntos aplicáveis.
prendia-se com o perigo em que a não satisfa-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 9;
ção dos encargos pios colocava as “almas dos impressa: Constituições Synodaes do Bispado do Funchal, Lisboa, impresso por
fiéis cristãos que aguardam pelo cumprimen- Pedro Crasbeeck, 1601; PALOMO, Federico, A Contra-Reforma em Portugal.
1540-1700, Lisboa, Livros Horizonte, 2006.
to das obras pias dos seus testamentos” (ABM,
Arquivo do Paço..., doc. 9, fl. 24), sendo este Cristina Trindade
um dos principais motivos do recurso à justi-
ça, pois abundavam os casos em que a última
vontade dos defuntos não era cabalmente sa-
Ausente, Gonçalves Cor (pseud.)
tisfeita. Outra função importante para o fun-
cionamento do tribunal era a do meirinho, ofi- Ö Preto, Pedro Gonçalves
cial a quem cabia a prisão dos infratores, e cuja
remuneração estava indexada à quantidade de
detenções efetuada, bem como ao local onde Austrália
fossem aprisionados os delinquentes. O solici-
tador era outro funcionário judicial, encarre- A Austrália é um vasto país localizado entre
gado de examinar os livros de visitações, a fim os oceanos Índico e Pacífico, dividindo os
de neles apurar as infrações, mas também res- seus 7.682.300 km2 por seis estados federados
ponsável pela arrecadação das penas a serem (New South Wales, Victoria, Western Austra-
pagas à chancelaria, cujos valores seriam de- lia, Queensland, South Australia e Tasmânia)
terminados pelo contador e registados pelo es- e dois territórios (Australian Capital Territory
crivão. A este conjunto de oficiais juntavam-se e Northern Territory). Com designação oficial
ainda o distribuidor, que devia, como o nome de Commonwealth of Australia, tem a sua capi-
indica, distribuir os processos pelos escrivães; e tal e sede de Governo em Camberra. As maio-
o aljubeiro, responsável por manter na prisão res cidades são Sidney e Melbourne.
34 ¬ A ustrália

É um país desenvolvido com uma democra- e denominar de Nova Holanda, a terra a que
cia estável, sendo o seu sistema político a mo- os Britânicos haveriam de, ainda mais tarde,
narquia constitucional e o inglês a sua língua anexar e chamar de Austrália Ocidental.
oficial. O censo de 2011 cifrou a população Em Beyond Capricorn, Peter Trickett, com base
em 21.507.717 habitantes de diversas etnias e no seu estudo dos quatro mapas feitos por Cris-
também proveniente de vários países, entre os tóvão de Mendonça de toda a costa australiana,
quais Portugal. corrobora esta tese de que foi ele que descobriu
Com a maior parte do país a beneficiar de um a Austrália 100 anos antes dos holandeses e 250
clima temperado, a Austrália é um país rico em anos antes do Britânico James Cook.
recursos naturais. Possui abundantes reservas Um grupo de investigadores liderados pelo
minerais e petrolíferas, destacando-se indus- investigador australiano John Molony, a in-
trialmente pela indústria mineira, os químicos vestigar contactos europeus pré-Cook, apesar
e o aço, os equipamentos industriais e de trans- de se concentrarem na costa oriental, crê que
porte e os produtos alimentares transformados. os Portugueses, que estavam em Timor desde
Os seus principais produtos do sector primário cerca de 1510, devem ter feito a curta viagem à
são o trigo, a cevada, a cana­‑de­‑açúcar, a fruta, costa ocidental no início do séc. xvi.
os bovinos, os ovinos e as aves de capoeira. No Elucidário Madeirense, há referência a An-
tónio de Abreu, madeirense do Arco da Ca-
lheta, ser “um dos portugueses que por ter-
História da descoberta ras do oriente mais se ilustraram na faina das
e o envolvimento dos Portugueses conquistas e descobertas” (SILVA e MENESES,
No começo do séc. xxi, decorriam ainda es- 1940, 9) e que, segundo Major, com base num
tudos para tentar determinar quem foram, mapa de cerca de 1530, chegou às costas da
de facto, os primeiros europeus a descobrir Austrália. Este mapa marca um extenso ter-
esta ilha-continente. No seu livro Early History: ritório com o nome de Grande Java, que fica
The Secret Discovery of Australia: Portuguese Ven- fronteiro a Samatra, e em que estão incorpo-
tures 200 Years before Captain Cook, Kenneth G. radas muitas das ilhas visitadas por António de
McIntyre afirma que a Austrália foi descoberta Abreu, prolongando-se este território até lati-
por volta de 1522 pelo comandante português tudes e longitudes que já são da Austrália. Re-
Cristóvão de Mendonça, que viajava com qua- fere Major que, antes de 1530, ninguém podia
tro caravelas e uma grande tripulação. Refere dar informações a respeito das terras longín-
que, no seguimento da descoberta do caminho quas da Oceânia, senão António de Abreu, que
marítimo para a Índia por Vasco da Gama, o as visitou, incluindo o continente australiano,
oceano Índico se tornara um lago português, que parece ter chegado a ver, reconhecido po-
cujo centro e capital era Goa. E, na fronteira sitivamente um século depois por outro nave-
oriental desse lago, gador português, Herédia.
estava a terra que os A notícia de um imenso e rico continente a
Portugueses haviam sul de Timor por parte de Cristóvão de Men-
de descobrir e deno- donça surge quando Portugal ainda celebra-
minar de Índia Meri- va a descoberta do Brasil. A astúcia dos Portu-
dional, a terra que os gueses, que haviam convencido os Espanhóis a
Holandeses haviam mudar para oeste a linha do Tratado de Torde-
de mais tarde avistar silhas, tinha-lhes dado o Brasil, mas a grande
parte do continente de Mendonça ficava agora
para lá do Meridiano de Tordesilhas e fora do
Fig. 1 – Nau de António de alcance de Portugal. A própria fronteira terres-
Abreu, provável descobridor
da Austrália, armada de 1524
tre da Austrália Ocidental, delineada a régua e
(Livro de Lisuarte..., 1992). esquadro, não é mais do que o tal meridiano.
A ustrália ¬ 35

O Diário de Notícias da Madeira, na sua edi-


ção de 24 de setembro de 1896, dá conta da
publicação do livro de George Collingridge,
The Discovery of Australia, cujo autor, na dispu-
ta pela descoberta do continente por parte de
Portugueses, Holandeses, Ingleses, Espanhóis
e Franceses, chega à conclusão que a descober-
ta deve ser atribuída aos Portugueses.
O linguista C. G. von Brandenstein, que se
dedicou ao estudo linguístico ao longo da
costa noroeste da Austrália, estabelece, em
Early History of Australia: the Portuguese Colony in
the Kimberley, que, entre outros fatores, as tri- Fig. 2 – Java e Austrália (Luca Antara),
Manuel Godinho de Herédia, c. 1600 (BNB).
bos aborígenes da área têm algumas caracterís-
ticas linguísticas que as diferenciam de todas
as outras, aproximando-as de traços europeus, Cidade do Cabo, na África do Sul. São inúme-
além de ter inventariado, segundo constata, ros os registos desde o séc. xix e por grande
cerca de 60 palavras com origem no portu- parte do séc. xx, também nos jornais locais da
guês, e.g., “tartaruga” > “thatharuga”; “chama” época, da passagem de vapores pela Ilha, pro-
> “thama”; “fogueira” > “pugara”/“pughara”; venientes não só de Inglaterra, mas também de
“cinza” > “t’inda”; “monte” > “monta”; e “bola” outros países europeus, com é o caso da Ale-
> “p’bula”. A hipótese que adianta é a de que manha, e que alimentaram o fluxo migrató-
alguns sobreviventes de naufrágio portugue- rio para aquele país de toda a Europa. Apor-
ses que deram à costa na ilha Depuch não tam na Ilha oficiais de cavalaria australianos,
foram resgatados e acabaram por se entender e também Lord Brassey, nomeado governador
com as tribos aborígenes costeiras. Refira-se da Austrália, passa pela Madeira com destino
também o nome toponímico Abrolhos, nessa àquele país, a bordo do seu veleiro Sunbeam, a
mesma costa, que remete para os perigos dos 3 de agosto de 1895.
recifes e o alerta “abre os olhos” por parte dos
marinheiros.
Também na costa ocidental da Austrália Presença portuguesa
foram encontrados, em 2004, fruto da desco- e madeirense na Austrália
berta de um manuscrito em arquivos portu- Os Portugueses acabaram por regressar ao
gueses que narrava o evento e no seguimento continente australiano quatro séculos depois
de 16 anos de investigação pelo Western Aus- da sua descoberta por Cristóvão de Mendonça.
tralia Museum, os destroços do Correio da Azia, Com respeito à presença documentada de Por-
o navio português em viagem de Lisboa para tugueses na Austrália, o censo colonial de 1871
Macau que, a 26 de Novembro de 1816, chocou já regista esta presença. Há registos de duas
no Recife Ningaloo e se afundou com carga famílias portuguesas que emigraram para Si-
geral e um carregamento de 107.000 moedas dney, uma da Madeira a bordo do Alfred em
em prata. O seu resgate revelou-se infrutífero. 1824 e outra de Cabo Verde no início dos anos
80 do séc. xix. No final do séc. xix, já eram
cerca de 400 migrantes, sofrendo uma redução
Papel da Madeira na rota marítima para os 126 em 1947, mantendo-se esta tendên-
para a Austrália cia durante os anos 50.
A Madeira assume-se desde cedo como porto Os pioneiros da imigração portuguesa na
fundamental no percurso marítimo da Europa Austrália foram os madeirenses que, na déc. de
para a Austrália, com passagem também pela 50, estabeleceram uma pequena comunidade
36 ¬ A ustrália

piscatória na cidade de Fremantle, na costa o propósito de frequentar o ensino superior.


ocidental, tendo aí chegado a bordo do North As segunda e terceira gerações dos primeiros a
Cape a 28 de junho de 1952 com uma tripula- chegar integraram-se totalmente como profis-
ção de 22 homens. Este grupo acabou por for- sionais altamente qualificados, como médicos,
mar dois núcleos, um em Fremantle, que se de- advogados e docentes universitários, que muito
dicava à safra da lagosta, e outro que rumou a contribuíram para a causa lusitana. A aborda-
norte para Carnarvon, onde laborava em plan- gem política das autoridades australianas, ape-
tações de banana. A comunidade foi crescendo sar dos sinais já dados após a Segunda Guerra
ao longo dos anos 60, 70 e 80, alimentada por Mundial e da adoção efetiva em 1973, passou
conterrâneos idos da Madalena do Mar e do também e em pleno, a partir de meados dos
Paul do Mar. Existe um busto, descerrado em anos 80 do séc. xx, por uma australianização
1998, de Francisco Correia na marginal da Ma- dos migrantes devido a uma política de multi-
dalena do Mar em homenagem ao homem que culturalismo, que facilitou a visibilidade e inte-
liderou o primeiro grupo de madeirenses a gração de todos os migrantes.
chegar a Fremantle. Nos começos do séc. xxi, O número concreto de Portugueses a viver
a comunidade madeirense na Austrália Oci- na Austrália é sempre difícil de determinar
dental localizava-se sobretudo em Fremantle e com precisão, mas, segundo declarações da
Perth, esta última constituída principalmente cônsul-geral da Austrália em Lisboa numa vi-
por madeirenses que transitaram da África do sita à Madeira em maio de 2014, estimava-se
Sul para a Austrália. nesse ano em cerca de 58.000, a maioria dos
Curiosamente, para as cidades da costa quais já nascidos na Austrália, sendo cerca de
oriental foram muitos madeirenses sobretudo 80 % de origem madeirense. A maioria resi-
da zona leste da Madeira (Santa Cruz, Machico dia nas grandes cidades de Sidney, Melbourne
e também Porto Santo). Chegaram a Wollon- e Perth.
gong, perto de Sidney (Nova Gales do Sul),
e.g., para trabalhar na indústria mineira do car-
vão e do aço.
Contactos e proximidade com a Madeira
Entre 1967 e 1976, o crescimento foi enorme Os madeirenses residentes na Austrália não
– de 1008 para 10.209 migrantes portugueses, esqueceram as suas raízes, e organizaram-se
tendo voltado a abrandar durante os anos 70 em torno de clubes e associações que mantêm
e 80 do séc. xx. O retorno a Portugal nos es- vivas a portugalidade e madeirensidade. No co-
tados orientais foi balanceado com o aumen- meço do séc. xxi, existiam cerca de 14 clubes
to da emigração para a Austrália Ocidental. e associações de Portugueses espalhados pelas
Deste fluxo migratório há evidências nos jor- principais cidades onde residiam, alguns deles
nais regionais da época, sobretudo ao nível da ostentando o nome “Madeira”. Clubes que pro-
publicidade por parte das agências de viagens curavam promover e manter vivas as tradições
com indicação de rotas, já na era da aviação, e portuguesas e madeirenses, com encontros re-
disponibilidade para tratar de toda a tramita- gulares e celebração de festas religiosas e po-
ção de documentos e passagens não só para a pulares habitualmente celebradas na Madeira,
Austrália, como também para outras paragens como é o caso da Festa de N.ª Sr.ª do Monte,
da diáspora madeirense. Há também anúncios o Dia da Região e o Dia de Portugal. Nos en-
classificados de emigrantes já a residir na Aus- contros, a gastronomia madeirense era rainha.
trália em que se procura mulher para fins ma- O mesmo sucedia nos lares madeirenses na-
trimoniais e para residir naquele país. quele país, onde, sobretudo a primeira gera-
A partir dos anos 90, volta a registar-se um ção, reunia a família à volta da mesa aos do-
incremento significativo na entrada de mi- mingos para degustar as iguarias da Madeira:
grantes portugueses, estes com perfis diversos milho cozido, bifes de atum, carne em vinha
dos primeiros, já com qualificações ou com d’alhos e espetada, pratos regionais muito
A ustrália ¬ 37

apreciados pelas segunda e terceira gerações. O Diário de Notícias da Madeira, na sua edi-
Em cada lar, conservava-se um pequeno re- ção de 27 de março de 1908, dá conta da
positório de objetos e lembranças, entre bor- participação da Madeira na exposição de
dados, souvenirs e fotografias, da saudosa Ilha bordado “Madeira na Austrália” pela mão
do Atlântico, e, no jardim, não faltavam or- do comendador Francisco Araújo Figueira,
quídeas, antúrios e fetos, a par de bananeiras tendo este mostrado na redação o diploma
e anoneiras, no pomar. A Austrália, tal como de 1.ª classe ganho pelos excelentes borda-
todos os outros destinos da diáspora madeiren- dos expostos.
se, era terreno fértil para a recolha de histórias Na edição de 24 de abril, dá conta de que os
de vida que muito enriquecerão a compreen- artefactos madeirenses enviados à Exposição
são do fenómeno da emigração da Madeira Australiana por J. A. Pereira, “The Bit-Man”, ha-
para aquele país. Há ainda casos isolados de viam ganhado uma medalha de 1.ª classe na
literatura popular por explorar. referida exposição.
Há duas cidades australianas geminadas com A edição de 23 de agosto de 1918 avança com
o município do Funchal: Marrickville (Nova a informação da ida de 1000 t de trigo austra-
Gales do Sul) e Fremantle (Austrália Ociden- liano para a Madeira a bordo do vapor Minho.
tal). O Protocolo de Geminação entre os Mu- O mesmo jornal, na sua edição de 10 de
nicípios do Funchal e de Marrickville foi assi- junho de 1975, noticia que o plano de urba-
nado a 1 de junho de 1994, e o de Fremantle a nização do Porto Santo, apresentado por uma
6 de fevereiro de 1996. equipa que integrava um australiano, havia ga-
O Governo Regional da Madeira procurou nhado uma menção honrosa.
manter um contacto institucional com esta co- A edição de 20 de setembro de 1975 publica
munidade e, desde 1979, disponibilizou, atra- ainda uma notícia que possibilita às indústrias
vés do Centro das Comunidades Madeirenses, madeirenses oportunidades comerciais na Aus-
depois Centro das Comunidades Madeirenses trália ao nível de toalhas e bordados.
e Migrações, diverso material aos clubes que
o solicitam, sobretudo na forma de trajes re- Presença de flora/fauna australianas
gionais para os grupos folclóricos, instrumen- na Madeira
tos regionais, bandeiras e livros. Entre 1983 e A Madeira, pelo seu clima, alberga, para além
2008, foram nove as visitas oficiais de entidades da sua flora endémica, uma diversidade de
madeirenses àquele país, seja pelo chefe de go- flora de todo o mundo, não sendo a Austrália
verno, os secretários regionais ou presidentes exceção. Não há evidências que estes exempla-
de câmaras, com o objetivo de manter contac- res tenham ido de forma direta para a Madei-
tos com os membros da comunidade e fortale- ra. O mais provável é que tenham ido via Áfri-
cer laços de proximidade. ca do Sul, situação que a rota marítima muito
A Austrália teve representante na Convenção favorecia.
das Comunidades Madeirenses e no Conse- Das folhosas exóticas, a que ocupa as maio-
lho Permanente das Comunidades Madeiren- res áreas é, sem dúvida, o Eucalyptus globulus.
ses, bem como no Fórum Madeira Global e no Oriunda da Austrália, introduzida na Madeira
Conselho da Diáspora Madeirense, onde tem na segunda metade do séc. xix com o objetivo
dois conselheiros. de produzir madeira e lenha, tornou-se infes-
tante. Outros eucaliptos australianos presentes
Outros contactos com a Madeira na Madeira, mas sem a expressão do primei-
Os jornais locais dão conta de várias notícias ro, são o Eucalyptus citriodora, Eucalyptus obliqua,
sobre a Austrália ao longo dos xix e xx, in- Eucalyptus regnans, Eucalyptus viminalis. Da Aus-
cluindo as de carácter político, social e econó- trália foram também as diferentes espécies de
mico. Dos aspetos que tocam a vida madeiren- acácias que povoam algumas vertentes abaixo
se, destacamos os seguintes. dos 1300 m: Acacia melanoxylon, Acacia mearnsii,
38 ¬ A ustrália

habitadas do arquipélago, temos também a


Araucaria heterophylla, que foi descoberta pelo
Cap. Cook e levada para a Europa na sua se-
gunda viagem de circum‑navegação, ao passar
pela ilha de Norfolk, a oeste da Austrália, de
onde é endémica.
O Leptospermum scoparium, ou urze-de-jardim,
originário da Austrália e Nova Zelândia, é uma
espécie naturalizada na Madeira (pelo menos
desde o início do séc. xx) e com carácter in-
vasor, bem como o Pittosporum undulatum, ori-
ginário da Austrália, comummente conhecido
como incenseiro, que terá sido introduzido na
segunda metade do séc. xx, e tem tendência
a tomar-se urna verdadeira praga da floresta
madeirense.
Das várias espécies dos géneros Begónia e Te-
coma existentes na Madeira, a Tecoma australis
e T. Jasminoides são provenientes da Austrália.
Ao nível dos fetos, a Madeira tem quatro es-
pécies provenientes da Oceânia, o Doodia cau-
data, um pequeno feto nativo da Austrália e da
Nova Zelândia, que deve ter sido introduzido
na Madeira, provavelmente por acidente, e foi
Fig. 3 – Eucalyptus globulus, dado como uma das mais altas árvo-
colhido pela primeira vez, como subespontâ-
res da Madeira, c. 1850, Qt. do Jardim da Serra, Estreito de Câma-
ra de Lobos (arquivo particular). neo, em 1962, e o Cyathea cooperi, feto-arbóreo,
de grande valor decorativo, nativo da Austrá-
lia e da Tasmânia. Tem ainda o Dicksonia an-
Acacia dealbata, Acacia falcata, Acacia floribunda, tarctica, feto-arbóreo, exótico e já naturalizado
Acacia verticilata, Acacia elata e Acacia nerifolia, na laurissilva, nativo do sudeste australiano e
sendo as duas primeiras as mais agressivas para o Pteris tremula, feto muito vulgar na Madeira
as espécies indígenas. como planta de jardim e de vaso, nativa da Aus-
O semanário O Oriente do Funchal, na sua trália, da Nova Zelândia e das ilhas Fiji.
edição de 8 de fevereiro de 1873, noticia que A Tetragonia tetragonoides, também identifica-
“Nesta ilha, graças à iniciativa do abastado pro- da como Tetragonia expansa ou espinafre, foi
prietário e honrado negociante desta praça, o introduzida como planta alimentar na Madei-
sr. João José Rodrigues Leitão, está-se ensaian- ra, sendo muito cultivada na Ilha e no Porto
do a plantação do eucalipto. Esta árvore gigan- Santo. Originária da Austrália e Nova Zelân-
tesca e originária da Austrália, pertence à famí- dia, foi Henry Veitch, o antigo cônsul inglês,
lia botânica dos mirtáceos e é conhecida pelo que a introduziu na Madeira por volta de 1825.
nome de Eucalyptus globulus. Nenhuma árvore A Casuarina equisetifolia, conhecida por ca-
merece maior interesse aos lavradores pelas suarina, nativa da Austrália, da Ásia Meridional
suas qualidades económicas e higiénicas [sic]” e de África, é uma árvore muito rústica e de
(O Oriente do Funchal, 8 fev. 1873, 38), entre ou- grandes dimensões, presente nas zonas baixas
tros atributos detalhadamente descritos. do Funchal.
Na bibliografia especializada existente, po- Podemos encontrar na Madeira ainda a Brac-
demos ainda encontrar outras espécies com teantha bracteata, também referida sob o bino-
origem no continente australiano. Nas ilhas me Helicriysum bracteatum, planta australiana
Á ustria ¬ 39

robusta e herbácea, muito decorativa conheci- Bibliog.: impressa: BRANDENSTEIN, C. G. von, “The first europeans on
Australia’s west coast”, Boletim do Museu do Centro de Estudos Marítimos de
da como flores-de-palha e sempre-vivas, assim Macau, n.º 3, 1989, pp. 189-206; Id., Early History of Australia. The Portuguese
como outra espécie australiana e neozelande- Colony in the Kimberley: Exploration – Occupation – Dissolution – Vacation
(1512?) – 1520’s – 1580 – (1879), Albany, s.n., 1994; CASIMIRO, Suzy, Settlement
sa, anual, peluda e de muito pequeno porte, a Crossroads. Portuguese Migrants in Australia, s.l., UMI Dissertations Publishing,
Cotula australis. 2002; Id., “The voices of portuguese migrants in Western Australia”, in WILDING,
Raelene, e TILBURY, Farida (orgs.), A Changing People. Diverse Contributions to
Originária da Austrália e do sudeste asiáti- the State of Western Australia, Perth, Department of the Premier and Cabinet,
co, a Ficus pumila, também conhecida como fi- 2004, pp. 150-163; “O descobridor da Austrália”, Diário de Notícias, 24 set.
1896; DIAS, Emmanuela, The Portuguese Arrival (A Chegada do Português),
gueira do inferno, foi provavelmente introdu-
Fremantle, Fremantle City Library, 2002; “Exposição da Austrália”, Diário de
zida na Madeira no séc. xx, sob o binome Ficus Notícias, 27 mar. 1908; JARDIM, Roberto et al., “Madeira”, in VIEIRA, José Neiva,
Árvores e Florestas de Portugal, Açores e Madeira. A Floresta das Ilhas, vol. 6,
stipulata.
Lisboa, Público, 2007, pp. 255-296; JUPP, James (org.), The Australian People. An
Uma espécie australiana de porte arbustivo, Encyclopedia of the Nation, Its People and Their Origins, Cambridge, Cambridge
a Myoporum tenuifolium (também denominada University Press, 2001; Livro de Lisuarte de Abreu, Lisboa, Comissão Nacional
para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992; MCINTYRE,
M. acuminatum) é conhecida como mióporo, Kenneth Gordon, The Secret Discovery of Australia. Portuguese Ventures 200
sendo muito cultivada na Madeira e, sobretu- Years before Captain Cook, Medindie/London, Souvenir Press, 1977; “Medalha
de 1.ª classe”, Diário de Notícias, 24 abr. 1908; “Uma monografia”, Diário de
do, no Porto Santo. Notícias, 7 nov. 1911; “Oportunidades comerciais”, Diário de Notícias, 20 set.
Há ainda a registar a Oxalis exilis, ou azedi- 1975; O Oriente do Funchal, 8 fev. 1873; PETERS, Nonja, We Came by Sea.
Celebrating Western Australia’s Migrant Welcome Walls, Welshpool, Western
nha, a mais pequena das Oxalis existentes na Australian Museum, 2010; “Premiado de ‘acordo com os interesses das
Madeira, originária da Austrália e da Nova Ze- populações’. O plano do holandês Rooda van Eysinga para a urbanização
do Porto Santo”, Diário de Notícias, 10 jun. 1975; SILVA, Fernando Augusto
lândia, que deve ter sido introduzida na Ma- da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
deira por acidente, uma vez que não possui Tip. Esperança, 1940; TRICKETT, Peter, Beyond Capricorn. How Portuguese
Adventurers Secretly Discovered and Mapped Australia and New Zealand
valor decorativo. Refira-se ainda a Rytidosperma 250 Years before Captain Cook, s.l., East Street Publications, 2007; “Trigos e
tenuis, erva perene de introdução recente na farinhas”, Diário de Notícias, 23 ago. 1918; VIEIRA, Rui Manuel da Silva, Fora
da Madeira, Plantas Vasculares Naturalizadas no Arquipélago da Madeira,
Madeira, provavelmente também acidental, e
Funchal, Museu Municipal do Funchal (História Natural), 2002; WESTERN
com a mesma proveniência. AUSTRALIA DEPARTMENT OF THE PREMIER AND CABINET/OFFICE OF
MULTICULTURAL INTERESTS, Western Australian Community Profiles. 2001
Finalmente, ao nível das palmeiras, há duas
Census: Portugal-Born, s.l., s.n., 2005; WITCOMBE, Andrea, Travellers and
espécies provenientes da Austrália na Madei- Immigrants. Portugueses em Perth, Perth, Curtin University of Technology,
ra, a Archontophoenix cunninghamiana, uma es- 1997; Id., “Using souvenirs to rethink how we tell histories of migration. Some
thoughts”, in DUDLEY, Sandra et al. (orgs.), Narrating Objects, Collecting Stories,
pécie da Austrália Oriental vulgarmente co- London, Routledge, 2012; digital: AUSTRALIAN BUREAU OF STATISTICS,
nhecida por palmeira-elegante, e a Livistona “Population clock”, Australian Bureau of Statistics, s.d.: http://www.abs.gov.au/
AUSSTATS/[email protected]/Web+Pages/Population+Clock?opendocument (acedido
australis, muito decorativa e conhecida por a 15 maio 2016); AUSTRALIAN GOVERNMENT, “Helping you find government
palmeira-de-leque. information and services”, Australian Government, s.d.: http://www.australia.gov.
au/ (acedido a 15 maio 2016); EMBAIXADA DE PORTUGAL NA AUSTRÁLIA/
Ao nível da fauna, temos o caso curioso do MINISTÉRIO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, “Dados gerais”, Embaixada de
Pelagodroma marina ou calcamar, cuja criação Portugal na Austrália/Ministério dos Negócios Estrangeiros, s.d.: https://www.
camberra.embaixadaportugal.mne.pt/ (acedido a 15 maio 2016); VELOSO,
apenas se encontra em dois pontos quase dia- Ricardo, “De Mendonça ao pastel de nata”, Imigrantes, Portugueses na Austrália,
metralmente opostos do globo: as Selvagens e s.d.: http://imigrantes.no.sapo.pt/page6.australia.html (acedido a 15 maio 2016).

a costa ocidental da Austrália.


Bernardo de Vasconcelos
O Diário de Notícias da Madeira de 7 de no-
vembro de 1911 dá conta de uma monografia
que o “distinto naturalista sr. Adolpho Cesar Áustria
de Noronha vai publicar brevemente sobre as
aves das ilhas Selvagens, que deverá ser inserta A partir do séc. xv, foram vários os contra-
no anuário ornitológico de Berlim. A mais in- tos de casamento que se celebraram entre as
teressante das aves que habitam as Selvagens casas reais de Portugal e da Áustria, o que fez
– ‘o calca-mar’ – só se encontra em algumas com que se estabelecessem laços entre os dois
regiões da Austrália e tende a desaparecer da- países. A título de exemplo, D. Leonor, filha
quelas ilhas, em consequência do exercício da do Rei D. Duarte, da Casa de Avis, casou-se
caça” (“Uma monografia”, Diário de Notícias, 7 com o Imperador Frederico I da Casa Real
nov. 1911, 1). da Áustria, i.e., da linhagem dos Habsburgos;
40 ¬ Á ustria

D. Isabel, filha de D. Manuel I, casou-se com dias esteve presente em várias festas e receções
Carlos V, Imperador do Sacro Império Roma- que lhe foram dedicadas por ilustres locais.
no-Germânico e Rei das Espanhas. A dinastia Maximiliano de Habsburgo-Lorena, irmão
dos Habsburgos estendeu-se ao longo de sé- do Imperador Francisco José da Áustria, terá
culos e trouxe para Portugal várias rainhas: estado para se casar com D. Maria Amélia de
D. Leonor da Áustria, esposa em segundas Bragança (filha de D. Pedro I e de sua segun-
núpcias de D. Manuel I; D. Catarina da Áus- da esposa, D. Maria Amélia). Todavia, ela fa-
tria, esposa de D. João III; D. Margarida da leceu na ilha da Madeira antes de o matrimó-
Áustria, esposa de Filipe II; D. Maria Ana nio se ter realizado. Maximiliano acabou por
da Áustria, esposa de D. João V; e D. Leopol- se casar com Maria Carlota da Bélgica e foi
dina da Áustria, esposa de D. Pedro IV. Por com ela para a Madeira a 6 de dezembro de
outro lado, também Portugal esteve de certa 1859. O príncipe seguiu viagem para a Améri-
maneira sob a alçada do poder desta família ca do Sul, enquanto a princesa ficou no Fun-
durante a dinastia filipina, uma vez que Fili- chal até ao seu regresso, a 5 de março de 1860,
pe I de Portugal era um Habsburgo, filho de partindo ambos para a Áustria uma semana de-
D. Isabel de Portugal e de Carlos V. pois. Uns anos mais tarde, após a sua aclama-
Foi igualmente através dos Habsburgos que a ção como Imperador do México, Maximiliano
relação da Áustria com a ilha da Madeira se es- voltou a passar pela Madeira, a 28 de abril de
treitou. No séc. xix, a Madeira tornou-se num 1864, na fragata Navara, fazendo escala na via-
local de eleição para a nobreza europeia, tanto gem para a sua nova terra.
para fins turísticos como terapêuticos, mas Isabel da Áustria, cunhada do Imperador do
também a escala ideal para quem fosse cruzar México, por ser esposa do Imperador Francis-
o Atlântico. co José, popularmente chamada Sissi, esteve
D. Leopoldina, filha do Imperador Francis- por duas vezes na ilha da Madeira. Sissi che-
co I da Áustria, fez escala na Madeira entre 11 gou ao Funchal no iate real britânico Victoria
e 13 de setembro de 1817, a caminho do Rio and Albert, a 29 de novembro de 1860, para
de Janeiro, onde iria contrair matrimónio com passar uma temporada, por um lado, para se
o então infante D. Pedro (futuro D. Pedro IV restabelecer da depressão e anorexia causadas
de Portugal e Imperador D. Pedro I do Brasil). pela morte de sua filha Sophie, de dois anos, e,
A futura imperatriz do Brasil ficou hospedada por outro, para recuperar forças e ânimo para
no palácio de S. Lourenço, e ao longo destes a exigente vida palaciana em Viena, para onde
regressou a 28 de abril de 1861. Durante estes
cinco meses, residiu na Quinta Vigia, onde de-
pois foi instalado o Hotel Casino Park, perto
do qual se poderá encontrar uma estátua em
tamanho real da Imperatriz. A segunda visita
de Sissi à ilha da Madeira deu-se quase duas dé-
cadas depois. Desta feita, chegou no iate impe-
rial austríaco Greif, a 23 de dezembro de 1893,
ficando a residir inicialmente na Villa Cliff,
casa pertencente ao então novo Reid’s Palace,
e posteriormente no próprio hotel, até 4 de fe-
vereiro de 1894.
Não obstante o mediatismo de Sissi, um dos
laços indeléveis entre a ilha da Madeira e a his-
tória da Áustria prende-se com o destino de
Fig. 1 – Desembarque da princesa Leopoldina no Funchal
a 11 de setembro de 1817, aguarela de Julien Palliere
seu sobrinho-neto, Carlos I, conhecido por “o
(coleção particular, Porto). último Imperador”. Carlos I subiu ao trono
Á ustria ¬ 41

filhos, que ainda estavam na Suíça, partindo a


4 de janeiro e regressando a 2 de fevereiro de
1922. A família imperial residiu inicialmente
no Funchal, na Villa Victória, propriedade do
Hotel Reid’s Palace. Todavia, uma vez que os
bens dos Habsburgos tinham sido congelados,
a situação financeira da família era bastante
delicada, o que os obrigou a mudarem-se para
um domicílio mais modesto. Foram então para
a Quinta do Monte, uma casa cedida pela famí-
lia Rocha Machado. Apesar das circunstâncias,
“o último imperador” era estimado pelas gen-
tes da Ilha. Entretanto, porém, Carlos I adoe-
cera e a permanência na residência do Monte
só fez com que a sua saúde piorasse; a casa não
era aquecida e por isso a broncopneumonia
que o atingira revelou-se fatal, resultando no
seu falecimento, a 1 de abril de 1922. O seu
corpo foi sepultado na Capela do Imaculado
Coração de Maria, do lado esquerdo da nave
Fig. 2 – Imperatriz Sissi, bronze do mestre Lagoa Henriques, 2000, central da Igreja de N.ª S.ra do Monte, havendo
Funchal (arquivo particular).
ainda retratos seus e da sua família na sacristia
da igreja. Porém, o seu coração foi levado para
do Império Austríaco e do Reino da Hungria a cripta dos Capuchinhos em Viena, cumprin-
por morte de seu tio-avô, o Imperador Francis- do a tradição dos Habsburgos. A viúva acabou
co José, em 1916, em plena Primeira Guerra por abandonar a ilha da Madeira a 19 de maio
Mundial, mas o seu reinado foi bastante curto. de 1922, rumando a Espanha. A Imperatriz
Em 1918, o fim da Guerra e a associação da Zita voltou à Madeira por duas vezes, de 9 a 11
Áustria com as forças derrotadas resultaram de abril de 1967, com a filha mais nova, e de 10
na dissolução do Império Austro-Húngaro e a 13 de janeiro de 1968, com os dois filhos mais
na implantação da república na Áustria, no velhos. Ambas as visitas se prenderam com as
ano seguinte. Neste enquadramento político,
Carlos I e respetiva família imperial refugia-
ram-se na Suíça, enquanto se decidia entre os
Aliados onde seria o seu exílio. Tanto Carlos I
como a esposa, Zita de Bourbon-Parma, eram
descendentes da portuguesa Casa de Bragan-
ça, ele neto de D. Maria Teresa de Portugal,
casada com o Arquiduque Carlos Luís, e ela
filha da infanta Maria Antónia de Bragança e
do Duque Roberto I de Parma. Portugal, mais
concretamente a ilha da Madeira, foi o desti-
no escolhido para o “último imperador”, de-
vido à sua geografia periférica. Com efeito, o
casal imperial partiu para o exílio no navio da
marinha britânica Cardiff, chegando ao porto
Fig. 3 – Carlos de Áustria numa caçada, na Fajã da Ovelha, com
do Funchal a 19 de novembro de 1921. Apenas
António Vieira de Castro e Gabriel Lomelino Bianchi, 30 de de-
uns meses depois, Zita conseguiu ir buscar os zembro de 1921 (arquivo particular).
42 ¬ A utarquia local

obras da nova capela mortuária e a translada- registado nos respetivos sumários, a fixação, no
ção do corpo para a dita capela. A descendên- ano letivo de 1918-1919, da expressão “autar-
cia de Carlos I decidiu que o corpo não deveria quias locais” (ALEXANDRINO, 2014, 22ss.).
ser transladado para a Áustria, mas manter-se Por conseguinte, quanto à introdução da ex-
na Madeira, em agradecimento por todo o pressão “autarquias locais”, parece dever pre-
apoio que o povo madeirense dera à sua famí- valecer a tese segundo a qual a mesma se deve
lia durante o difícil período do exílio. primeiramente à doutrina, que se antecipou
deste modo à Constituição de 1933.
Bibliog.: impressa: PIEPER, Dietmar, e SALTZWEDEL, Johannes (orgs.), Die Welt
der Habsburger, München, Goldman, 2011; SCHEIDL, Ludwig, e CAETANO, José Ainda assim, nas décadas seguintes, a expres-
A. Palma, Relações entre Portugal e a Áustria/Beziehungen zwischen Portugal são “autarquias locais” não viria a merecer gran-
und Österreich, Lisboa, Assírio & Alvim, 2002; SILVA, Fernando Augusto da, e
MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, de adesão, nem nas leis, nem na prática, onde
1984; VOCELKA, Karl, Geschichte Österreichs. Kultur, Gesellschaft, Politik, continuou a ser preferentemente utilizada a ex-
München, Wilhelm Heyne Verlag, 2013; digital: MUTSCHLECHNER, Martin,
“Habsburgs im exil. Von der Schweiz nach Madeira”, Die Welt der Habsburger,
pressão “corpos administrativos” (OLIVEIRA,
s.d.: http://www.habsburger.net/de/kapitel/habsburg-im-exil-i-von-der-schweiz- 2013, 127), nem na doutrina, como se comprova
nach-madeira?language=de (acedido a 14 maio 2016).
afinal pela “demorada hesitação” registada nas
Cláudia Fernandes sucessivas edições do Manual de Direito Adminis-
trativo, de Marcelo Caetano, a respeito da desig-
Autarquia local nação do parágrafo dedicado à Administração
Local, a qual só a partir da 8.ª edição, datada de
Na sua raiz etimológica, o termo autarquia sig- 1968, passa a ser a de “Autarquias Locais”.
nifica autossuficiência, independência, i.e, a Apesar desse difícil enraizamento, a verdade
característica daquele que se basta a si próprio, é que tanto a Constituição portuguesa de 1976
sendo ainda esse o sentido que o termo possui como as leis fundamentais do ordenamento
no âmbito da sociologia ou da economia. local do novo regime fizeram uma opção ine-
Ora, independentemente da discussão sobre quívoca pela expressão “autarquias locais”, que
a substância do conceito, tem o seu interesse desta forma se impôs ao legislador e à doutri-
indagar sobre a entrada e a fixação, doutriná- na, entrando também na linguagem corrente.
ria e legislativa, da expressão “autarquia local”
em Portugal.
Segundo Marcelo Caetano, a expressão “au- Características das autarquias locais
tarquias locais” não teria sido introduzida entre As autarquias locais são, antes de mais, pessoas
nós pela doutrina, mas por via legislativa. Em coletivas de direito público. Todavia, apresen-
resultado de investigações mais recentes, foi, tam, à partida, um conjunto de traços distin-
no entanto, possível chegar a resultados algo tivos no confronto com as demais pessoas co-
diferentes: por um lado, letivas públicas, mesmo com aquelas que lhes
antes de 1915, houve pelo estão mais próximas, as pessoas coletivas públi-
menos dois autores que cas autónomas.
utilizaram a expressão Na medida em que traduzem uma forma
“autarquias locais” nos específica de administração autónoma, as au-
seus cursos, ao lado de tarquias locais preenchem os requisitos bási-
outras expressões na al- cos desta, que são os seguintes: a presença de
tura mais frequentes; por uma coletividade infraestadual; interesses pró-
outro lado, deve-se ao en- prios; autogoverno; responsabilidade própria;
sino oral do Prof. Alberto e o facto de se situarem forçosamente no âm-
da Cunha Rocha Saraiva, bito da Administração Pública (MOREIRA,
1997, 78 ss.). Porém, distinguem-se das de-
Fig. 1 – Manual de Direito
Admi­nistrativo (1957), mais espécies do género por um conjunto de
de Marcelo Caetano. traços específicos: (1) por congregarem todos
A utarquia local ¬ 43

os membros da comunidade local respetiva dispõem da prerrogativa de, na respetiva esfera


(e não apenas certos grupos sociais); (2) por de atribuições próprias, poderem aprovar pos-
serem entes de fins múltiplos (e não de fins turas e correspondentes sanções (MOREIRA,
específicos); (3) por serem pessoas coletivas 2014, 122), sem que se mostre aí necessária
constitucionalmente necessárias (e não facul- intermediação da lei; (v) As autarquias locais
tativas); (4) por terem uma configuração cons- beneficiam da prerrogativa de terem algumas
titucional paralela à do Estado e por apresenta- das suas atribuições e competências fixadas na
rem uma relação particularmente intensa com Constituição e de os seus órgãos representati-
idênticos princípios e estruturas político-cons- vos serem simultaneamente órgãos constitucio-
titucionais, nomeadamente em termos do ca- nais; (vi) As autarquias locais têm legitimidade
rácter eletivo dos respetivos órgãos e da similar e relevância que justifica a sua participação no
dependência do funcionamento do sistema de Conselho Económico e Social; (vii) As autar-
partidos (diversamente do que sucede com a quias locais, tal como as regiões autónomas,
restante administração autónoma); (5) conse- dispõem de uma garantia constitucional de
quentemente, por beneficiarem de uma densa existência; (viii) Nas autarquias locais, expri-
regulação constitucional (diversamente da de- me-se diretamente a relevância do território
mais administração autónoma, cuja regulação como seu elemento essencial, a começar pela
depende, essencialmente, do legislador). garantia da reserva de lei quanto à respetiva di-
Por sua vez, as autarquias locais não são pas- visão administrativa e a passar pela exigência
síveis de confusão com as regiões autónomas, de uma dupla lei, em matéria de criação, mo-
na medida em que estas, embora tão-pouco dificação e extinção; (ix) Nas autarquias locais,
disponham de soberania (que cabe apenas ao estão envolvidas formas de participação popu-
Estado), beneficiam de determinadas verten- lar de carácter político, seja por via dos parti-
tes das funções política e legislativa, em virtude dos, dos grupos de cidadãos eleitores ou ape-
de um processo de descentralização político­ nas dos cidadãos, individual ou coletivamente
‑administrativa (ou regime autonómico) fun- considerados; (x) As autarquias locais dispõem
dado numa opção do poder constituinte e nas de uma especial proteção constitucional no
“características geográficas, económicas, so- domínio financeiro, envolvendo pelo menos
ciais e culturais e nas aspirações autonomistas um regime das respetivas finanças locais e um
das populações insulares” (artigo 225.º, n.º 1, conjunto de poderes públicos nessa matéria;
da Constituição de 1976). (xi) As autarquias locais beneficiam de uma ga-
Ainda no que respeita às características das rantia institucional de um domínio público au-
autarquias locais, há um notável conjunto de tárquico; (xii) Por último, as autarquias locais
marcas distintivas, no confronto com a gene- dispõem de um poder regulamentar próprio
ralidade das pessoas coletivas públicas, no- diretamente fundado no texto constitucional.
meadamente as que decorrem das seguin-
tes prerrogativas atribuídas pela Constituição
(ALEXANDRINO, 2010, 107-109): (i) As au-
Conceito de autarquia local
tarquias locais dispõem de órgãos diretamente
e seus elementos
eleitos por sufrágio universal, direto e secreto Segundo a Constituição portuguesa de 1976,
da população residente na respetiva circunscri- as autarquias locais são pessoas coletivas terri-
ção territorial; (ii) As autarquias locais gozam toriais dotadas de órgãos representativos, que
do direito de ação popular para defesa dos visam a prossecução de interesses próprios das
respetivos bens; (iii) Apenas as autarquias lo- populações respetivas (artigo 235.º, n.º 2).
cais dispõem do poder de promover a realiza- Uma vez que a existência de uma definição
ção de referendos no âmbito local, dotados de legal não dispensa o trabalho da Ciência do Di-
efeitos juridicamente vinculativos; (iv) Apenas reito, na doutrina posterior à Constituição de
os órgãos representativos das autarquias locais 1976, encontram-se os mais variados modelos
44 ¬ A utarquia local

de apresentação do conceito de autarquia públicos (dado pelo autogoverno inerente à


local, mais ou menos inspirados na lição de legitimidade e representatividade democráti-
Marcelo Caetano, como sucede com a formula- cas dos órgãos), mas também a independência
ção apresentada por Diogo Freitas do Amaral, relativamente a orientações ou poderes condi-
que define as autarquias locais como “pessoas cionantes externos, nomeadamente estaduais.
coletivas públicas de população e território, O conceito apresentado integra em abstrato
correspondentes aos agregados de residentes um conjunto de seis elementos: a personalidade
em diversas circunscrições do território nacio- jurídica, a representatividade dos órgãos, a co-
nal e que asseguram a prossecução dos interes- munidade de residentes, a circunscrição territo-
ses comuns resultantes da vizinhança mediante rial, os interesses locais e os poderes públicos au-
órgãos próprios, representativos dos respetivos tónomos, definidos e exercidos em condições de
habitantes” (AMARAL, 2006, 481). autorresponsabilidade. Todavia, em sistemas de
Ponderando os diversos elementos de cons- Estado constitucional como o português, os dois
trução a ter em conta, a começar pelas estrutu- primeiros elementos (a personalidade jurídica e
ras constitucionais e a passar pelos elementos a representatividade dos órgãos) devem consi-
históricos e teóricos, temos reiteradamente de- derar-se elementos implícitos: um por decorrer
finido autarquia local em termos algo diversos, dos princípios da autonomia e da descentraliza-
como a “forma específica de organização ter- ção, que postulam necessariamente a personali-
ritorial, na qual uma comunidade de residen- dade jurídica dos entes locais; o outro (a repre-
tes numa circunscrição territorial juridicamen- sentatividade dos órgãos) por estar igualmente
te delimitada dentro do território do Estado pressuposto num outro princípio fundamental
prossegue interesses locais, através do exer- do ordenamento local, o princípio democrático,
cício de poderes públicos autónomos” (ALE- uma das traves mestras da Constituição.
XANDRINO, 2010, 111). Por essa ordem de razões, há a considerar
Com esta definição, pretende-se: (i) acen- como elementos constitutivos do conceito de
tuar a ideia de que há outras formas de orga- autarquia local: (a) a comunidade de residen-
nização territorial (como as regiões autóno- tes, (b) a circunscrição territorial, (c) os inte-
mas, as áreas metropolitanas, a própria União resses locais e (d) os poderes públicos autóno-
Europeia ou as organizações de moradores); mos definidos e exercidos em condições de
(ii) acentuar a ideia de que a especificida- autorresponsabilidade.
de dessa organização se traduz no facto de a
mesma constituir um “imperativo constitucio­ Comunidade de residentes
nal”; (iii) assinalar a territorialidade como nota Tinha razão no seu tempo o precursor do Direi-
distintiva essencial do substrato; (iv) notar a to Municipal português, Pascoal José de Melo
particularidade de o subs- Freire, ao estudar as instituições locais no livro
trato pessoal ser referido II das suas Instituições, dedicado ao “Direito das
a toda a comunidade de Pessoas” (ALEXANDRINO, 2014, 83ss.), embo-
residentes; (v) prestar tri- ra seja certo que, com o advento do Estado libe-
buto à referência aos “in- ral e a afirmação da igualdade perante a lei, se
teresses locais”; (vi) acen- começou a desmoronar o estatuto diferenciado
tuar o relevo da feição de vizinho, tal como o mesmo fora concebido
política dos entes locais; ao longo dos séculos nas nossas Ordenações.
(vii) por último, salientar A pertença à comunidade de residentes – que
a ideia de um certo grau constitui um verdadeiro vínculo de natureza
de imediatez dos poderes política, em várias dimensões – afere-se pela
ligação essencialmente fáctica da residência
Fig. 2 – Constituição da República
estável. Porém, diversamente do que suce-
Portuguesa (1976). deu na vigência do Código Administrativo ou
A utarquia local ¬ 45

sucede em geral noutros países, nem a deter- Território


minação do agregado populacional decorre Segundo a doutrina germânica, a relevância
da aplicação das disposições da lei (pois esta territorial das autarquias locais mede-se sobre-
não se refere aos habitantes ou residentes), tudo pelas respetivas consequências, as quais
nem é claro o sentido da aplicação do critério se situam tanto no âmbito da capacidade jurí-
da residência. dica, como no âmbito da titularidade de direi-
Na verdade, tanto a Constituição como as tos (como o direito ao nome ou o direito ao
demais leis básicas do ordenamento local refe- feriado) e no âmbito organizativo.
rem-se em geral apenas aos eleitores, ou seja, Já entre nós, a doutrina costuma referir tra-
referem-se apenas à parcela da população resi- dicionalmente uma tripla função do território:
dente que forma o colégio eleitoral. Ora, esta a de identificar a autarquia local, a de permitir
observação é de extrema importância: (1) pela definir a população respectiva e a de deli­mitar
dificuldade de fixação do universo constitutivo as atribuições e as competências da autarquia
da comunidade de residentes (agravado pelo e dos seus órgãos, em razão do lugar. Contu-
efetivo desfasamento entre os dados relativos do, como há muito foi notado, “[a] verdadeira
ao recenseamento eleitoral e os dados esta- função do território municipal não é a de li-
tísticos sobre a população); (2) pelo desfavor mite espacial dos poderes municipais, mas de
em que se encontram as autarquias com maior elemento definidor dos interesses municipais”
taxa de natalidade, as autarquias com uma po- (PEREIRA, 2006, 244).
pulação mais jovem e as autarquias com maior Nessa medida, ao contrário do que parece
número de não-nacionais; e (3) pela irraciona- resultar do entendimento tradicional, não só
lidade e iniquidade de dar tratamento igual a não é em função da comunidade de residen-
realidades substancialmente diferentes. tes que são definidos os interesses a prosse-
A comunidade de residentes começa por guir, como pode perfeitamente admitir-se a
integrar todas as pessoas que pertençam ao existência de poderes extraterritoriais: sejam
colégio eleitoral para efeitos da eleição local eles poderes de mera pronúncia sobre assun-
(sejam portugueses, cidadãos da União Euro- tos de relevância concelhia, regional ou nacio-
peia ou estrangeiros), mas estende-se também nal, sejam eles poderes públicos de administra-
às demais pessoas residentes no âmbito da cir- ção agressiva (como o exercício de poderes de
cunscrição territorial, designadamente os me- expropriação).
nores e os estrangeiros não inscritos no recen-
seamento eleitoral. Interesses locais
Finalmente, quanto aos direitos de que O terceiro elemento (os interesses locais), ape-
gozam os residentes, pode dizer-se que é muito sar de lhe ser reconhecida a função de valor
heterogéneo o estatuto aplicável a cada um principal e de funda-
destes grupos de pessoas, constituindo o direi- mento da existência das
to de sufrágio a principal prerrogativa do resi- autarquias locais (AMA-
dente local, ao lado do direito de participação RAL, 2006, 484), é o que
no referendo local, dos direitos de informa- levanta maiores dificul-
ção, de consulta e de participação popular. dades, desde logo pela
De notar, no entanto, que, além do direito de inevitável, e nem sempre
sufrágio e dos demais direitos de participação clara, relação com o di-
política e administrativa, o vizinho pode ainda fícil problema das atri-
ser titular ou destinatário de um conjunto de buições das autarquias
situações jurídicas, nomeadamente na esfera locais.
tributária, na da utilização de bens dominiais,
na do acesso aos serviços públicos e mesmo na Fig. 3 – Constituição da República
do acesso à informação. Portuguesa. Índices (2015).
46 ¬ A utarquia local

No nosso ordenamento, o “ponto de refe- Deste elemento decorre que não há autar-
rência” reside na disposição constitucional quia local sem poderes locais, mas decorre
segundo a qual as autarquias locais visam a igualmente que o exercício desses poderes pú-
“prossecução de interesses próprios das popu- blicos pressupõe um certo grau de imediatez,
lações respetivas” (artigo 235.º, n.º 2), cláusula designadamente do ponto de vista da relação
geral essa que está ainda implicada na garantia entre a comunidade e os órgãos dela repre-
constitucional da autonomia local e no prin- sentativos, significando ainda que esses órgãos
cípio da subsidiariedade, na medida em que dependem e respondem diretamente perante
os mesmos pressupõem que os entes locais a comunidade, pela forma como exercem os
tenham uma capacidade geral para desem- poderes e prosseguem a realização dos interes-
penhar todas as tarefas com incidência local. ses locais, podendo a comunidade acionar os
No plano da lei ordinária, releva hoje parti- mecanismos de prestação de contas correspon-
cularmente o disposto nos artigos 7.º e 23.º da dentes. Em termos práticos, é normal que seja
Lei de Reforma da Administração Local, apro- com a eleição por sufrágio universal, direto e
vada como anexo à Lei n.º 75/2013, de 12 de secreto dos órgãos das autarquias locais que se
setembro, ao estatuírem que constituem atri- revele este elemento essencial; todavia, ainda
buições das freguesias e dos municípios a pro- que no sistema português esse grau de repre-
moção e salvaguarda “dos interesses próprios sentatividade dos órgãos se afigure um elemen-
das respetivas populações”. to necessário, nem o mesmo é por si só sufi-
Como definir os interesses locais? ciente (como se comprova pelas organizações
Sem prejuízo da dificuldade do conceito, defi- de moradores), nem no direito comparado
nimos os interesses locais como “dados, realida- ele se revela indispensável (como se comprova
des ou estados que uma concreta comunidade pelas províncias espanholas).
local tem razões para querer” (ALEXANDRI- Mas este elemento pressupõe ainda a indepen-
NO, 2014, 243), o que pressupõe que os mes- dência, enquanto nota particularmente qualifica-
mos estejam situados em concreto, que sejam dora da autonomia local, a qual se define nomea-
dados à norma e à comunidade, que sejam damente pela autonomia de orientação e tem
aptos à realização de fins e tarefas, mas também como principal corolário uma estrita delimita-
que sejam variáveis de autarquia para autarquia. ção dos poderes de controlo (no sentido de não
Por fim, desta relatividade dos interesses lo- poderem envolver apreciação de mérito sobre a
cais deriva um conjunto de consequências, no- forma de realização dos interesses locais).
meadamente: a possível existência de interesses Quanto ao exercício de outras atribuições,
exclusivos; a ocorrência de fenómenos de perda em especial as que foram objeto de expressa fi-
do carácter local de um interesse; a regra da so- xação, delegação ou transferência legal (zona
breposição de interesses; a recusa da tese de que particularmente regida pelo critério da sub-
as autarquias locais estão limitadas à realização sidiariedade), desse elemento decorre ainda
dos interesses locais; a necessidade de circuns- o dever de consideração e amizade para com
crever, através da lei, a área de incidência dos o poder local, bem como uma regra de devida
interesses locais; o apoio que pode ser pedido cooperação por parte da administração local,
ao critério da preponderância do interesse. mas não menos a atenção a parâmetros de jus-
tiça, eficiência e avaliação.
Poderes públicos autónomos
Categorias de autarquias locais
O quarto e último elemento constitutivo do
conceito de autarquia local, os poderes públi- Segundo a Constituição, no continente as au-
cos autónomos, remete para a generalidade tarquias locais são as freguesias, os municí-
dos elementos implícitos, por estar intrinseca- pios e as regiões administrativas (artigo 236.º,
mente ligado ao sentido de poder local demo- n.º 1), podendo a lei estabelecer, nas gran-
crático e ao conceito constitucional de autono- des áreas urbanas e nas ilhas, de acordo com
mia local. as suas condições específicas, “outras formas
A utarquia local ¬ 47

de organização territorial autárquica” (artigo e freguesias, para efeitos de reorganização ad-


236.º, n.º 3). ministrativa do território, a verdade é que con-
À luz desta indicação, a primeira distinção a tinua a ser necessária a introdução de dife-
fazer é entre as autarquias locais impostas pela renciações no estatuto das autarquias locais, a
Constituição e as autarquias locais consentidas começar pelo das grandes cidades e da capital
pela Constituição. (ALEXANDRINO, 2014, 32).
Entre as primeiras, contam-se naturalmente
as duas categorias de autarquias locais existen-
tes à data da aprovação da Constituição, o mu-
Especificidades das autarquias locais
nicípio e a freguesia, e, dubitativamente, face
na Região Autónoma da Madeira
à evolução verificada após a revisão constitu- Abstraindo do plano das características e do
cional de 1997 (que dificultou enormemente conceito de autarquia local, onde não existe
o processo de regionalização do continente), qualquer diferença, no plano das categorias de
também as regiões administrativas. autarquias locais são duas as especificidades a
Quanto às autarquias locais consentidas, ad- notar: a primeira respeita ao facto de nas Re-
mite-se tradicionalmente que o artigo 236.º, giões Autónomas existirem apenas, segundo a
n.º 3 encerra três possibilidades: (1) o estabele- Constituição, freguesias e municípios (236.º,
cimento de outras autarquias locais, para além n.º 2); a segunda é a de que, como há pouco
das existentes; (2) o estabelecimento de outras se referiu, nas ilhas, a lei pode estabelecer ou-
autarquias locais, em vez das existentes; e (3) o tras formas de organização territorial autárqui-
estabelecimento de outras realidades (que não ca (artigo 236.º, n.º 2), havendo a notar que na
sejam autarquias locais). Região Autónoma dos Açores se tenham criado,
Além desta abertura, parece ainda haver primeiro, os Conselhos de Ilha e, em 2009, os
lugar ao alargamento a duas outras hipóteses: Órgãos representativos das ilhas (que todavia
(i) a criação de bairros, circunscrições ou dis- não traduzem estruturas de organização territo-
tritos dos concelhos; (ii) a possibilidade de vir rial autárquica, mas meros órgãos consultivos).
a ter lugar a esse nível a supressão, fusão, incor- Para além disso e independentemente dos
poração ou conversão das freguesias urbanas. poderes legislativos dos órgãos de governo
Relativamente às relações entre as diversas próprios da Região Autónoma em matérias
categorias de autarquias locais, atenta a evo- do regime das autarquias locais, existem ainda
lução histórica e atento todo um conjunto de especificidades de relevo a respeito dos se-
razões, de que o ordenamento português dá guintes domínios de regulação: (i) Criação,
amplo testemunho, não parece haver motivo
para acompanhar a tese da igual dignidade
constitucional entre as freguesias e os municí-
pios, impondo-se, pelo contrário, um princípio
de diferenciação.
Um tópico final é o relativo à classificação
das autarquias locais – problemática que se
prende também com a da uniformidade ou
diferenciação do regime jurídico aplicável.
A este respeito, há desde logo a referir que
caíram em progressivo e definitivo desuso as
disposições do Código Administrativo de 1940
sobre essa matéria. Por sua vez, apesar da in-
trodução em 2007 de uma nova tipologia das
freguesias, para efeitos financeiros, e do ensaio
em 2012 de uma nova tipologia dos municípios Fig. 4 – Junta de Freguesia do Porto Santo (arquivo particular, 2016).
48 ¬ A utonomia

modificação e extinção das autarquias locais: se- Autonomia


gundo o artigo 227.º, n.º 1, alínea l) da Consti-
tuição e o artigo 37.º, n.º 1, alínea g) do Estatu- Esboço histórico
to Político­‑Administrativo da Região Autónoma O conceito de autonomia é complexo e discu-
da Madeira, compete à Assembleia Legislati- tível, dado que envolve um amplo campo de
va Regional criar e extinguir autarquias locais; análise, tanto em termos políticos como juris-
(ii) Tutela administrativa: segundo o artigo 69.º, dicionais, encontrando-se sempre ligado aos
alínea e) do mesmo Estatuto Político-Adminis- recursos financeiros colocados à disposição
trativo, compete ao Governo Regional exercer dos órgãos que gerem as áreas em questão.
o poder de tutela sobre as autarquias locais; Sendo, por conceito político, a capacidade de
(iii) Relações financeiras entre a Região Autó- elaborar as suas próprias leis e regras sem in-
noma e as autarquias locais: nos termos do ar- terferência de um poder central nas tomadas
tigo 122.º do mesmo Estatuto Político-Adminis- de decisões, implica também que tal elabora-
trativo, as relações financeiras entre a Região ção seja, tanto quanto possível, racional em re-
Autónoma e as autarquias locais pautam-se pelo lação aos restantes poderes. Nesse quadro, a
princípio da independência das finanças das autonomia indica uma realidade que é dirigi-
últimas e pelo princípio segundo o qual qual- da por uma lei própria e que, apesar de ser di-
quer forma de apoio financeiro regional às au- ferente das outras, não deve ser incompatível
tarquias locais deve ter por objetivo o reforço com elas. Ora, como nenhuma sociedade é um
da sua capacidade de investimento – disposição corpo totalmente isolado, os conflitos de inte-
esta que foi retomada no artigo 67.º da Lei Or- resses são inúmeros, o que obriga a uma contí-
gânica n.º 2/2013, de 2 de setembro (que apro- nua negociação para tentar eliminar ou, pelo
vou a Lei de Finanças das Regiões Autónomas); menos, delimitar os mesmos conflitos.
(iv) Finanças Locais: por último, segundo 32.º, A conflitualidade é assim mais ou menos
n.º 1, alínea b) da Lei n.º 73/2013, de 3 de se- permanente praticamente desde o início do
tembro (que aprovou o novo Regime Financei- povoamento da Madeira, primeiro, com o
ro das Autarquias Locais), para a distribuição
do Fundo Geral Municipal, numa das compo-
nentes a considerar, a população residente na
Região Autónoma é ponderada pelo fator 1,3.

Bibliog.: ALEXANDRINO, José de Melo, “Direito das autarquias locais”,


in OTERO, Paulo, e GONÇALVES, Pedro (coords.), Tratado de Direito
Administrativo Especial, vol. iv, Coimbra, Almedina, 2010, pp. 11-299; Id., Direito
Municipal. Conteúdos e Métodos de Ensino, Lisboa, Associação Académica da
Faculdade de Direito de Lisboa, 2014; Id., “Os processos de reforma do poder
local. Desenvolvimentos recentes”, Questões Atuais de Direito Local, n.º 3,
jul.-set. 2014, pp. 19-34; AMARAL, Diogo Freitas do (em colab.), Curso de Direito
Administrativo, 3.ª ed., vol. i, Coimbra, Almedina, 2006; CAETANO, Marcelo,
Manual de Direito Administrativo, 10.ª ed., rev. e atualização Diogo Freitas
do Amaral, vol. i, Coimbra, Almedina, 1980; MOREIRA, Vital, Administração
Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, Coimbra Editora, 1997; Id., “Sobre
o poder sancionatório autónomo das autarquias locais”, Questões Atuais
de Direito Local, n.º 4, out.-dez. 2014, pp. 117-122; NABAIS, José Casalta,
“A autonomia local (alguns aspectos gerais)”, in Estudos em Homenagem ao
Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, vol. ii, n.º especial do Boletim da Faculdade
de Direito, 1993, pp. 107-221; OLIVEIRA, António Cândido de (coord.), 30 Anos
de Poder Local na Constituição da República Portuguesa, Braga, Governo Civil
do Distrito de Braga/Centro de Estudos Jurídicos do Minho, 2007; Id., Direito
das Autarquias Locais, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2013; OTERO, Paulo,
Direito Constitucional Português, vol. ii, Coimbra, Almedina, 2010; PEREIRA,
André Gonçalves, Contribuição para Uma Teoria Geral do Direito Municipal,
Dissertação de Curso Complementar apresentada à Universidade de Lisboa,
Lisboa, texto policopiado, 1959.
Fig. 1 – Monumento à Autonomia, bronze de Ricardo Velosa,
José Melo Alexandrino 1987, Funchal (fotografia de Bernardes Franco, 2018).
A utonomia ¬ 49

senhorio, depois com a Coroa e com o Estado,


dependendo sempre do lado em que se coloca
o ponto de observação e conforme se foi crian-
do e consolidando a consciência política ma-
deirense. A partir de 1976, com a instalação do
Governo Regional da Madeira e o novo sistema
político-administrativo, o conflito manteve-se,
tal como se manteve com a integração euro-
peia e a criação de uma moeda comum.
Fig. 2 – Laje sepulcral de Marcos Lopes, escudeiro del Rei, escri-
Raízes da consciência política madeirense vão da Sé e mamposteiro-mor dos cativos, 1530 a 1540 (Sé do
Funchal).
A progressiva formação de uma consciência
política insular, então na defesa de direitos ad-
quiridos, é já de certa forma patente no Fun- D. Filipe III não se impressionou grandemen-
chal, pelo menos, nos finais do séc. xv. Entre te, se é que leu a carta, voltando-se a insistir na
outros exemplos, quando em 1492, o duque contribuição. Os anos seguintes, com a aclama-
D. Manuel (1469-1521) enviou para o Fun- ção de D. João IV (1604­‑1656) em 1640, foram
chal um escrivão para a obra da igreja e fu- quase de rebelião generalizada no Funchal,
tura sé – Marcos Lopes, depois elevado a es- sendo demitidos o provedor da Fazenda e a ve-
cudeiro da Casa Real e mamposteiro-mor dos reação camarária, chegando-se a assassinar os
cativos –, logo a Câmara do Funchal pediu ao corregedores entretanto enviados ao Funchal,
duque para que nessa área se empregasse ape- e, em 1668, nova sedição haveria de prender
nas gente da terra e que o escrivão voltasse ao o governador e, pura e simplesmente, reenviá-
continente. O pedido levou a que o duque, -lo de volta para o continente, elegendo para o
em carta de 13 de janeiro de 1493, respondes- lugar um morgado local.
se que “ao que me pedis, que quando mandar Nos meados do séc. xviii, a configuração de
fazer obras, que não faça oficiais senão dessa uma consciência política madeirense foi assu-
vila e que um escrivão que ora lá tenho para a mida, entre outros aspetos, com a formação de
obra da igreja, que o mande vir; a este capítulo lojas maçónicas, as primeiras constituídas no
não vos respondo coisa alguma senão que me território português, e a resistência às determi-
parece que é de tal substância, que não cabe nações centralistas implantadas pelo Gov. João
nele resposta” (ABM, Câmara Municipal do António de Sá Pereira (1719-1804), depois
Funchal, tombo 1, fl. 52). apelidado de “Pombal madeirense”. A nobre-
—No séc. xvii, com o espetro das guerras do za insular, em particular ligada à casa da mor-
Brasil, pediu-se à Câmara do Funchal a quan- gada D. Guiomar Madalena de Vilhena (1705­
tia de 10.000 cruzados para a restauração de ‑1789), tia-avó do futuro conde de Carvalhal
Pernambuco e para o desempenho das tenças (1778-1837), de acordo com as queixas que
da Fazenda Real, assunto que se arrastava há já esse mesmo governador largamente enviou
alguns anos. A carta foi assinada pela vice-Rai- para Lisboa, colocou sempre reservas às suas
nha Margarida de Saboia, duquesa de Mântua determinações, não se tendo coibido Sá Perei-
(1589­‑1655), com data de 8 de janeiro de 1637, ra, inclusivamente, de deportar para o norte
e, logo a 18 de fevereiro desse ano, os represen- da Ilha um dos tios da morgada, o P.e D. João
tantes dos 24 mesteres enviam uma espantosa José de Sá (1707-1781), ao qual apelidava de
carta a D. Filipe III (1605-1665) lembrando-lhe “dissoluto, mulato e arrogante” (AHU, Madei-
os seus deveres como Rei dos Portugueses, ju- ra e Porto Santo, docs. 4804 e 4805).
rados por seu avô nas cortes de Tomar e que O Gov. Sá Pereira conseguiu, assim, con-
consistiam em respeitar os direitos e privilégios gregar à sua volta um verdadeiro mal-estar e,
outorgados pelos Reis anteriores. Claro que quando teve a notícia da queda, em Lisboa, do
50 ¬ A utonomia

marquês de Pombal (1699-1782), sabendo o à vontade de outrem, acrescentando que uma


que o esperava, abandonou com a família o pa- província, que deve sujeitar os seus interesses
lácio de S. Lourenço praticamente em segredo, aos da metrópole, que, por seu turno, nela não
deixando o Governo entregue a um triunvira- está interessada, deixa de ser província e é de
to. Infelizmente, dada a falta de vento, o navio facto colónia, vivendo escrava.
não conseguiu sair da baía, tendo de ficar ao A situação não conhecera especiais alterações
largo. João António de Sá Pereira viu-se, assim, com a abertura da Assembleia Constituinte li-
na situação de ter de assistir à iluminação festi- beral, em 1821, onde os madeirenses se apre-
va de toda a cidade, comemorando a sua saída sentaram como a primeira parcela ultramarina
e, ainda, nessa sequência, a um espetáculo de a fazer-se representar, tendo, inclusivamente, a
lançamento de fogo de artifício. Câmara Municipal do Funchal mandado ela-
Nos inícios do século seguinte, já eram paten- borar um importante e longo texto para aí ser
tes na Madeira sensibilidades políticas diversifi- apresentado. A época que se seguiu foi muito
cadas, então designadas por partidos, embora complexa, com o surgimento local de inúmeras
longe da configuração que depois se atribuiu publicações periódicas, com as quais os pode-
ao termo, e uma imprensa ativa e até agressi- res instituídos e os diversos interesses em causa
va na defesa dos interesses insulares. Em 1821, não estavam habituados a lidar. Em breve, tudo
fundou-se na Madeira o célebre periódico Pa- seria mais ou menos silenciado e, também num
triota Funchalense, que escolheu para edição do curto espaço de tempo, o país conheceria o re-
seu primeiro número o dia 2 de julho de 1821, trocesso com a implantação de um Governo ab-
considerado o do aniversário do descobrimen- solutista, formado pelo infante D. Miguel (1802-
to oficial da ilha da Madeira. Porta-voz da sen- 1866). Tanto o arquipélago da Madeira, como o
sibilidade de uma emergente classe política, dos Açores, ainda tentaram resistir ao absolutis-
logo nesse ano considerava que a Ilha era tra- mo, mas a breve trecho soçobravam. A situação
tada como colónia e que, longe ser enquadra- então vivida foi verdadeiramente catastrófica e,
da no contexto de uma situação de mãe pátria, na repressão que se seguiu, não ficou na Madei-
a sorte da infeliz Madeira era a de enteada. Em ra um único dos antigos morgados, ou sequer
1822, o mesmo periódico equacionava a situa- um dos cónegos da Sé do Funchal.
ção da Madeira mesmo num contexto de es- Após uma longa e penosa guerra civil, que
cravidão, que consistia em viver absolutamente durou vários anos, o renovado Estado liberal
voltou, mais uma vez, a não compreender a si-
tuação insular. Em causa estava, muito provavel-
mente, a independência do Brasil, situação que
o poder sediado em Lisboa sempre teve dificul-
dades em encarar. Assim, em breve se processa-
vam tentativas várias de centralização, como o
projeto de lei apresentado na Câmara dos De-
putados a 2 de maio de 1839 por Passos Manuel,
ou seja, Manuel da Silva Passos (1801-1862), no
sentido de enquadrar as ilhas adjacentes na lei
geral, lei essa que regulamentava a importação
de cereais. As ilhas possuíam regime especial
nesta área, principalmente decorrente dos seus
défices de produção e das suas relações privi-
legiadas com o estrangeiro. O então deputado
Luís da Silva Mouzinho da Albuquerque (1792-
1846), antigo prefeito da Madeira, chegou a
Fig. 3 – O Patriota Funchalense (2 jul. 1821). apoiar esse projeto, acusando a Madeira de ter
A utonomia ¬ 51

a “habilidade de impor um jugo à Metrópole, com algumas especificidades em relação às jun-


pois o vinho de Portugal não entrava lá, quando tas continentais, com 15 procuradores de elei-
o seu vinho vinha para cá” (VERÍSSIMO, 1987, ção popular como representantes dos diversos
8). Mas a discussão política deste projeto de lei concelhos da Madeira. Com a Implantação da
fez correr muita tinta nos jornais da época e República nasceu uma série de promessas de
conseguiu fazer sentir à Câmara de Deputados descentralização e de autonomia para as então
a injustiça da posição. Defenderam, então, os in- Juntas Gerais dos distritos insulares, mas tam-
teresses da Madeira, a Associação Comercial e bém não cumpridas. A situação de instabilidade
a Câmara Municipal do Funchal, assim como a vivida e o início da Primeira Grande Guerra não
Junta Geral do Distrito; em Lisboa, os interes- autorizaram grandes avanços no campo da des-
ses insulares foram defendidos por Lourenço centralização e da autonomia.
José Moniz (1789-1857) e José Maria Grande
(1799-1857). Discussão da autonomia
Com a conjuntura do pós-guerra, quando já ti-
Juntas gerais nham decorrido 10 anos sobre a Implantação
O dec. de 16 de maio de 1832 criou as Juntas da República, nasceu uma franca contestação
Gerais de Província, mas que não chegaram a política insular ao Governo de Lisboa, patente
funcionar na Madeira. Pela lei de 16 de julho no reacender dos ideais autonómicos. Da dis-
de 1835, voltaram a estabelecer-se as Juntas Ge- cussão então ativada resultou, com data de 17
rais do Distrito, cuja primeira sessão teve lugar de outubro de 1921, um projeto açoriano, da
no Funchal a 15 de julho de 1837, com os 12 autoria de Francisco d’Atayde de Faria e Maia
procuradores determinados pelo código admi- (1876-1959), para um estatuto autonómico
nistrativo. Esta primeira formulação da Junta para os distritos de Ponta Delgada e de Angra
teve 18 reuniões, sendo a do seu encerramen- do Heroísmo. Este projeto retomava algumas
to a de 25 de agosto de 1837, sucedendo-se a ideias anteriores de um outro da autoria do
chamada Junta de 1842, que passou a ter atas e monárquico Aristides Moreira da Mota (1855-
secretariado, representando, efetivamente, as 1942), ampliando francamente as atribuições
forças vivas da Ilha, tendo sido esta estrutura das então Juntas Gerais e conferindo-lhes uma
o primeiro Governo regional da Madeira, em- certa autonomia financeira. As receitas destas
bora muito longe da representatividade que Juntas deviam ter origem nos impostos e rendi-
posteriormente adquiriu. Esta estrutura seria mentos cobrados no distrito. Da sua constitui-
ainda reformulada com a criação dos distri- ção deveria fazer parte uma assembleia de pro-
tos autónomos, instituídos já nos finais do sé- curadores, eleita indiretamente e com funções
culo, de uma forma genérica, pelo dec. de 2 de órgão legislativo, com algumas deliberações
de março de 1895. Infelizmente, este decreto sujeitas a referendo. O projeto previa mesmo a
foi deveras limitado, pouco tempo depois, pela eliminação do cargo de governador civil, subs-
carta de lei de 22 de maio de 1901. tituído por um delegado do Governo central
O decreto que regulamentou a autonomia ou alto-comissário, mas com funções limitadas.
administrativa para a Madeira teve a data de 8 A ideia de autonomia na Madeira tendia mais
de agosto de 1901, na sequência da visita régia para os modelos ingleses, do tipo Crown colo-
do mês anterior e seguia, em linhas gerais, os nies, havendo a esse respeito francas referên-
decretos anteriormente citados e, sobretudo, a cias na comunicação social madeirense, que se
legislação para os Açores, publicada com data queixava do não cumprimento das promessas
de 12 de junho desse ano. A autonomia então republicanas anteriormente formuladas. Estas
instituída ficou bastante aquém do que era es- queixas tinham recomeçado com a Primei-
perado e do que tinham pedido os representan- ra Grande Guerra e as dificuldades então co-
tes dos distritos insulares. Este decreto instituiu locadas ao tráfego marítimo, acrescidas ainda
uma corporação administrativa: a Junta Geral, dos dois bombardeamentos ao Funchal por
52 ¬ A utonomia

das receitas cobradas na Madeira. O orador foi


mesmo mais longe, dizendo: “Não creia Vossa
Excelência nunca nas vozes que acusam o pro-
pósito de nos separamos da metrópole. Orgu-
lhamo-nos de ser portugueses e portugueses
queremos continuar”. No entanto, acrescenta-
va: “Mas ambicionamos paralelamente – e have-
mos de consegui-lo – que nos deem mais largos
recursos e mais ampla autonomia” (GOMES,
2016, 167). O discurso do presidente da Junta
Geral foi amplamente divulgado nos órgãos de
Fig. 4 – Caravela do cortejo histórico do V Centenário da Desco-
comunicação social e desencadeou, uma vez
berta da Madeira, dezembro de 1922 (arquivo particular).
mais, um amplo debate do assunto.
Nesta sequência, surgiu a ideia de ligar este
submarinos alemães, que tinham lançado o pâ- debate às comemorações do V Centenário do
nico em toda a Ilha. Por essa época, o colunista Descobrimento da Madeira, que se encon-
F. L. escrevia no Diário de Notícias: “A meu ver travam em preparação e foram efetuadas um
deve, na Madeira, existir uma única vontade, pouco depois do que deviam, pois só tiveram
uma única ambição política: a nossa completa início em 1922. A figura de Zarco foi assim asso-
e absoluta autonomia, devendo a bandeira ser ciada a todo o debate, alvitrando Manuel Pesta-
a única ligação com a Mãe Pátria” (F. L., DN, 9 na Reis (1894-1966): “No dia em que for decre-
nov. 1921, 5). tada a completa autonomia, ter-se-á descoberto
Nessa sequência, e com a crise resultante do a Madeira pela segunda vez!” (REIS, DN, 20 out.
agravamento da carga fiscal, a ideia de autono- 1922). Não foi, assim, por acaso que o Governo
mia conheceu na Madeira uma alargada discus- central se não fez representar nesses festejos do
são. As principais razões apontadas nestes anos V Centenário. Embora tudo indicasse uma in-
de 1921 e 1922 para a contestação ao Governo tencional e acentuada campanha patriótica dos
central eram a exigência de cobrança em ouro, princípios autonomistas e de nenhuns compro-
o imposto sobre a navegação, o regime cerealí- missos com um projeto de rutura com Portu-
fero, a criação de sobretaxas especiais sobre o gal, o Governo central apresentava-se descon-
vinho da Madeira, a falta de soluções para a cul- fiado e a imprensa da capital não deixava de
tura sacarina e a recusa de verbas para a manu- apontar ao movimento autonomista propósitos
tenção das levadas. No entanto, o mais citado de entrega da Madeira aos Ingleses. Os autono-
como escandaloso era a cobrança na Madeira mistas, no entanto, não desanimaram e incluí-
de 5 % sobre todos os direitos de exportação ram as bases para a ampliação da autonomia na
para se custearem as obras do porto de Leixões. publicação comemorativa do V Centenário, da
A situação na Madeira foi denunciada duran- autoria de Manuel Pestana Reis.
te a visita do Presidente da República, António Este texto baseava-se, precisamente, nos 500
José de Almeida (1866-1929), que, regressado anos de história da Madeira e, por conseguin-
de uma viagem ao Brasil a bordo do vapor in- te, na maioridade para uma completa autono-
glês Arlanza, aproveitara a escala no Funchal, a mia. Esta autonomia justificava-se pela situação
9 de outubro de 1922, para visitar a Ilha. Para geográfica específica, pelas relações interna-
espanto do Presidente e de toda a comitiva, o cionais, pelos usos e costumes das populações,
discurso de boas vindas do presidente em exer- pela fisionomia própria e pelos interesses cole-
cício da Junta Geral do Distrito, Fernando To- tivos decorrentes do grau de desenvolvimento
lentino da Costa (1874-1957), incidiu especi- moral, intelectual e económico. O arquipéla-
ficamente sobre o alargamento da autonomia go reunia, assim, um conjunto de característi-
do distrito e uma maior justiça na repartição cas que o individualizavam como região, tendo
A utonomia ¬ 53

direito a constituir uma unidade política e ad- os seus principais intervenientes, como Fernan-
ministrativa. O documento apresentava oito do Augusto da Silva, Vasco Gonçalves Marques,
bases para a constituição da autonomia: fun- Manuel Gregório Pestana Júnior (1886-1969),
ções representativa, governativa, administrati- Fernando Tolentino da Costa, entre outros.
va, educativa, judicial, de ordem pública, bases A questão da autonomia, no entanto, ficou
sociais e morais administrativas e religião. Na por aí e a resposta do regime do Estado Novo
publicação do V Centenário, foi acrescentada foi sempre mais que evasiva. Saliente-se que,
mais uma: a dedução de uma percentagem fixa por detrás de muita da formação ideológica
para o Estado, das receitas cobradas pelo fisco do referido regime se encontrava o madeiren-
no arquipélago da Madeira. se Quirino Avelino de Jesus (1865-1935), que
Nos finais desse ano de 1922 e nos inícios fora advogado da Casa Hinton e tinha uma po-
de 1923, a convite da Junta Geral do Distri- sição bastante rígida em relação a esta e a outras
to do Funchal, os distritos de Ponta Delgada e questões. Assim, a posição que o Estado Novo
de Angra do Heroísmo enviaram delegações à assumiu, pelo dec. de 31 de julho de 1928, foi a
Madeira para assistirem às comemorações do de alargar as responsabilidades da Junta Geral
V Centenário e estudarem as várias propostas do Funchal nas áreas ligadas aos Ministérios do
de ampliação da autonomia. Acabou por ser Comércio e Comunicações, da Agricultura e da
elaborado um documento sob o título: “Projeto Instrução, passando para responsabilidades da
de bases para uma reorganização geral adminis- Junta aspetos que eram anteriormente do Go-
trativa dos distritos insulares”, que teve ampla verno civil, como a polícia cívica, a saúde pú-
divulgação nos jornais dos dois arquipélagos. blica, a assistência e previdência, estas últimas
A campanha tinha deixado de ser açoriana ou dependentes dos Ministérios do Interior e das
madeirense, para ser insulana. No entanto, não Finanças. No entanto, as verbas e receitas para
foi possível reunir em torno de um mesmo do- fazer frente a estes novos encargos ficaram, uma
cumento os três distritos insulares, acabando vez mais, no Terreiro do Paço.
a Madeira por apresentar, através do senador Os conflitos surgidos, entretanto, como a Re-
Vasco Gonçalves Marques (1877­‑1949), no con- volta das Farinhas, motivada pelo chamado “de-
gresso de 9 de março de 1923, ligeiras altera- creto da fome”, que criava um monopólio sobre
ções ao estatuto em vigor, muito aquém do de- as farinhas, a que se seguiu o pronunciamento
fendido pelo próprio Vasco Marques em finais militar conhecido como Revolta da Madeira,
de 1922, enquanto presidente da Junta Geral do em 1931, e mais tarde, em 1936, a Revolta do
Funchal. Por outro lado, as sucessivas quedas Leite, face ao estabelecimento de mais um mo-
dos Governos da capital não deixaram avançar nopólio, que limitava a ação dos pequenos pro-
a discussão da proposta apresentada. dutores, colocaram continuamente em causa
Ainda em 1923, surgiu um novo movimen- a autoridade do emergente Estado Novo, não
to com base num sector mais conservador, que deixando grande abertura para discussões deste
passou a utilizar o termo “regional”, em vez tipo. A Constituição de 1933 deu mostras de um
de “autonómico”. Fernando Augusto da Silva deliberado empenho na contenção do movi-
(1863-1949) preconizou a fundação de um Par- mento autonómico insular e, embora se fizesse
tido Regional que pugnasse por uma ampla e menção a um futuro estatuto para os distritos
verdadeira autonomia para a Madeira. Com autonómicos das ilhas adjacentes, houve que es-
base no Jornal da Madeira e por via do seu di- perar alguns anos para o mesmo ser publicado.
retor e fundador, Luís Vieira de Castro (1898- Em março de 1938, este assunto conhe-
1954), surgiu um novo conceito de regionalis- ceu novos estudos, da responsabilidade de
mo que tentou retomar o tema da autonomia. Marcelo José das Neves Alves Caetano (1906-
Em finais de 1923, neste jornal e pela pena do -1980), tendo, então, sido aprovado na Assem-
Cap. Armando Pinto Correia (1897­‑1943), reali- bleia Nacional novo regime administrativo
zou-se um inquérito, ouvindo-se sobre este tema para o arquipélago da Madeira. O decreto-lei
54 ¬ A utonomia

regulamentar, no entanto, só foi assinado a 22 Mantinha, ainda, uma redação em Lisboa e


de dezembro de 1939, com a indicação de que outra em Paris, que recebia o contributo de vá-
deveria entrar em execução a 1 de janeiro de rios emigrados políticos.
1941. O arquipélago ficou a constituir um dis- O Comércio do Funchal conheceu mesmo um
trito autonómico, com a sua administração a certo apoio das cúpulas locais da União Na-
cargo de um governador civil com honras de cional, o partido que suportava o regime, in-
ministro de Estado. Mudaram algumas das dis- teressadas na divulgação nacional das especifi-
posições relativas à Junta Geral, como a cria- cidades regionais. A sua existência na Madeira
ção de uma comissão de verificação de contas, demonstrava uma certa pluralidade de opi-
mas a principal alteração foi o nome do distri- niões e, ao mesmo tempo, que determinados
to, que passou a autónomo. Só muitos anos de- aspetos da autonomia regional eram comunga-
pois, com a substituição, em setembro de 1968, dos por largos sectores que iam desde a direi-
de António de Oliveira Salazar (1886-1970) por ta tradicional até à jovem esquerda democrá-
Marcelo Caetano – que se rodeou de represen- tica. Uma certa juventude e irreverência, que
tantes de uma nova vaga de tecnocratas e que levou algumas vezes à suspensão do Comércio do
anunciou uma nova forma de governação, em- Funchal, também levou a que a seu favor inter-
bora tenha ficado muito aquém das necessida- cedessem em Lisboa algumas personalidades
des da época –, houve algum espaço de mano- mais ligadas ao regime; localmente, o periódi-
bra para se voltar ao assunto da autonomia. co não deixou de ter depois um certo apoio
da Junta Geral e do seu presidente, Fernando
Homem Costa (1911-1997).
Comércio do Funchal Desde meados de 1967 que, nas páginas de
e Primavera Marcelista alguns periódicos regionais, com especial des-
Com a abertura surgida com a chamada Prima- taque para o Comércio do Funchal, se discutia
vera Marcelista – um período de renovação in- não só a orgânica da Junta Geral, como até a
troduzido por Marcelo Caetano quando tomou sua representatividade. Foi para análise dessa
o poder –, reacendeu-se a questão da autono- problemática que, nos inícios de 1968, a pró-
mia, sobretudo nos Açores. No Funchal surgira pria Junta Geral e a Comissão Distrital de As-
entretanto, em 1966, um periódico, o Comércio sistência promoveram, entre 9 e 13 de janeiro,
do Funchal, à volta do qual se agruparam al- uma I Semana de Estudos sobre problemas so-
guns elementos que, sem defenderem especi- ciais e económicos do desenvolvimento. O Co-
ficamente os aspetos da autonomia, muito ser- mércio do Funchal noticiou e comentou larga-
viram para alertar, de uma forma geral, para a mente essa I Semana de Estudos, indo mesmo
sua necessidade imediata. O aparecimento do mais longe e propondo uma indispensável re-
Comércio do Funchal representara uma verdadei- visão da estrutura administrativa do arquipé-
ra “pedrada no charco” na comunicação social lago, em face das necessidades de desenvolvi-
nacional da sua época, não só pelos elementos mento programado, no sentido de dotá-lo de
que soube ouvir e publicar, como por ter a sua uma autoridade administrativa central, condi-
sede no Funchal, o que lhe permitia escapar, zente com a expressão distrito autónomo.
por vezes, à censura prévia e publicar coisas A questão do planeamento regional seria
que outros periódicos no continente não con- então tema de debate e, na introdução do
seguiam publicar, salvo, pontualmente, o tam- plano quadrienal da Junta Geral, apresenta-
bém limítrofe Jornal do Fundão. Coordenado a do nos finais do primeiro semestre de 1968, já
partir do Funchal, onde chegou a ter uma tira- se abordava a necessidade de criação de uma
gem de 12.000 exemplares, foi uma importan- comissão de coordenação económica capaz
te escola de formação e aperfeiçoamento de de definir, concretamente, as linhas de força
jornalistas, alguns dos quais se tornaram gran- para um crescimento harmónico da econo-
des nomes da comunicação social portuguesa. mia madeirense. Era o primeiro passo para a
A utonomia ¬ 55

concretização do desejo expresso alguns anos


antes pela Associação Comercial do Funchal,
quando havia criado, em 1954, a antiga Co-
missão de Estudo das Dificuldades do Comér-
cio da Praça do Funchal, que funcionou, pelo
menos, até 1964. Ao longo desse ano de 1968,
os deputados madeirenses na Assembleia Na-
cional também levantaram esse e outros pro-
blemas em Lisboa. A questão da autonomia
havia, mesmo, sido apresentada no Funchal
nas páginas do Eco do Funchal, provavelmente
por Maria Mendonça (1916-1997), chefe da
redação daquele semanário. Na edição de 14
de outubro, sob o título “Isto de autonomia”,
o assunto era, mais uma vez, levantado e che-
gou mesmo a ter ampla repercussão no con-
tinente, visto que foi transcrito na Seara Nova
em janeiro do ano seguinte, suscitando várias
questões e originando comentários e respos-
tas, publicados na mesma revista no número
de maio de 1969.
Em dezembro de 1968, quando da discussão
da Lei de Meios, os deputados pela Madeira
pronunciaram-se a respeito das barreiras al-
Fig. 5 – Comércio do Funchal (21 abr. 1968).
fandegárias, que, longe de apontarem para a
integração económica de todos os territórios
portugueses e para a eliminação progressiva os deputados da Madeira. Contudo, e como
dos obstáculos à livre circulação de mercado- depois se caricaturará, o Governo de Marcelo
rias, serviços e capitais, limitavam profunda- Caetano fez sinal para a esquerda, mas virou
mente a vida económica da Ilha: na sessão de à direita.
12 de dezem­bro, o deputado Alberto de Araú- Através da Associação Comercial do Funchal,
jo (1903­‑1977), mais uma vez, denunciou di- também Alberto de Araújo apresentava o pro-
retamente a injustiça da questão alfandegária blema das barreiras alfandegárias ao novo go-
e já na sessão anterior, Rui Vieira apontara a vernador do Funchal. Nos primeiros meses,
fragilidade da situação da economia madei- o governador civil, Braamcamp Sobral (1912-
rense, chegando a reclamar a necessidade de 1987) tinha enviado a documentação relativa
instituição de uma zona franca, aspiração an- à integração económica nacional, “ou seja a
tiga do tecido empresarial madeirense, à se- formação de um verdadeiro espaço económi-
melhança do efetuado no vizinho arquipéla- co português”, pelo que a Associação não po-
go das Canárias um século antes; na sessão de deria deixar de se pronunciar. Ora, tendo se-
13 desse mês de dezembro, também Agosti- guido com a maior atenção o desenvolvimento
nho Cardoso defendia a necessidade da livre do “calendário de desmobilização pautal, des-
circulação de mercadorias entre a Madeira e tinado a acautelar os interesses da economia
o continente, que desse expressão ao publi- metropolitana e da economia ultramarina, de
cado no dec.-lei 44.016, de 8 de novembro maneira a adaptar gradualmente uma e outra
de 1961, sobre a integração económica dos realidades resultantes de um espaço económi-
territórios portugueses. De todas estas posi- co português” (Arquivo ACIF-CCIM, CE 1969,
ções fez eco o Comércio do Funchal, apoiando carta de 31 mar. 1696), a Madeira continuava,
56 ¬ A utonomia

no entender da Associação, a ser tratada como a estatização da mesma Comissão. De idêntica


território ultramarino. opinião era o Comércio do Funchal, acrescentan-
Nesse quadro, com o pretexto de que esta- do ainda haver serviços não dependentes da
vam sujeitos a um regime especial certos arti- mesma Junta, como era o caso dos sectores da
gos da importação, como tabacos, aguarden- assistência e das pescas, pelo que administrativa-
tes, etc., e beneficiavam de isenção aduaneira mente se não podia funcionar desse modo.
os tecidos que constituíam a matéria-prima da Nos anos seguintes, nas páginas da Voz da
indústria dos bordados, manteve-se em vigor Madeira, Alberto João Gonçalves Cardoso Jar-
uma vasta armadura alfandegária que, “embo- dim (n. 1943), sobrinho de Agostinho Cardo-
ra assegurando ao Estado valiosa receita fiscal, so, defenderia uma forma de autonomia sele-
onera gravemente as mercadorias importadas, tiva, que depois especificou. Em 9 de janeiro
mesmo as de consumo essencial, como sejam de 1970, analisava a conjuntura portuguesa e
os géneros alimentares e os materiais de cons- equacionava os principais problemas do ar-
trução”. Acrescia que as mercadorias eram tri- quipélago, propondo um mais íntimo apoio
butadas em Lisboa e, depois, novamente no material, técnico, humano e político por
Funchal; com efeito, as mercadorias importa- parte de Lisboa à realidade insular. Salientava
das de Lisboa, para além do que pagavam para a necessidade de serem ouvidos os líderes in-
sair, pagavam o frete, o imposto municipal, as sulares, acrescentando, ainda, que deveriam
taxas para a assistência, para o hospital, para os os mesmos possuir uma capacidade plebiscita-
bombeiros, “e tempo houve já que essas mer- da seriamente para que fossem de facto tidos
cadorias importadas na Madeira pagavam uma e ouvidos como tal. No entanto, a falta de de-
taxa para o Porto de Leixões”. Numa altura em mocraticidade, um espírito de acomodação e
que toda a política económica do país, tanto o conceito limitado de ilhas adjacentes, ainda
no plano interno, como no externo, obedecia eivado da dicotomia metrópole/ultramar,
a uma progressiva liberalização dos movimen- não permitiam avançar muito mais.
tos das mercadorias, de pessoas e de capitais, o
que se passava na Madeira era “absolutamente Tímidas alterações da Junta Geral
anacrónico e incompreensível” (Id., Ibid.). Entre 6 e 8 de dezembro de 1969, Marcelo Cae-
Em 11 de março de 1969, era publicado o de- tano, presidente do Conselho de Ministros, vi-
c.-lei 48.905, onde se traçava a orgânica admi- sitou o arquipélago, percorrendo a Madeira e
nistrativa adequada ao início da realização do o Porto Santo, aonde regressou no verão do
planeamento regional, quer nas várias regiões ano seguinte, para um curto período de fé-
do continente, quer nas chamadas ilhas adja- rias na última ilha. Não tendo estado prevista
centes. No entanto, enquanto para os Açores se a sua deslocação à Madeira, não havia nenhu-
previa a constituição de uma comissão regional ma obra para inaugurar. Mesmo assim, optou-
de planeamento, com representantes das Jun- -se então por dar o seu nome ao Estádio dos
tas Gerais dos três distritos do arquipélago, para Barreiros, assunto que lhe foi comunicado nas
a Madeira essa função era desempenhada pela salas do palácio de S. Lourenço, aproveitando-
Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. -se a proximidade de um jogo de futebol entre
A solução não agradou a ninguém, nem sequer o Marítimo e o Varzim. O Estádio dos Barrei-
aos membros da União Nacional; Agostinho ros fora inaugurado em 1957 e, em meados de
Cardoso, na primeira página da edição de 15 1967, fora dotado de eletrificação para jogos
de abril seguinte da Voz da Madeira, apresentava noturnos, com nova inauguração; com a inau-
a sua opinião sob o título: “Planeamento regio- guração como Estádio Marcelo Caetano, a es-
nal: erros dum decreto-lei recente”. O deputa- trutura foi inaugurada três vezes.
do discordava frontalmente da possibilidade de A assembleia geral da Associação do Funchal
a Junta Geral funcionar como Comissão Con- realizada a 26 de janeiro de 1970 somente re-
sultiva Regional, achando que tal representava gistou a presença de 40 sócios, sem qualquer
A utonomia ¬ 57

Fig. 6 – Prof. Marcelo Caetano no palácio de S. Lourenço, dezembro de 1969 (antigo arquivo do Diário de Notícias, Funchal).

alteração à direção anterior, não tendo nin- ultramarinos em geral do que os arquipélagos
guém pedido oficialmente a palavra. Ao longo atlânticos. Tendo sido inaugurado no final do
deste ano, registam-se tímidas alterações, ano anterior o complexo militar de S. Marti-
como as comemorações da Comissão Adminis- nho, o novo quartel do Batalhão Independen-
trativa dos Aproveitamentos Hidráulicos, a 14 te de Infantaria n.º 19 – que abandonava assim
de março, que contaram com a presença, na o velho quartel do Colégio dos Jesuítas –, em-
Madeira, do ministro e do secretário de Estado preendimento que tivera a participação da
das Obras Públicas e Comunicações, Rui San- Junta Geral, foi, a seu pedido, exonerado o
ches (1919-2009), sobrinho de Marcelo Caeta- Cor. Fernando Homem Costa, já há quase 11
no e de José Adolfo Pinto Eliseu (1916-?). Nos anos na presidência da Junta e com algumas di-
finais de março, os deputados pela Madeira e vergências com Braamcamp Sobral, a que não
pelos Açores reuniram-se em S. Lourenço com era estranha a ampla polémica sobre a autono-
os governadores dos distritos insulares para es- mia e a questão da Comissão de Planeamen-
tudarem a revisão do estatuto dos distritos au- to dentro da Junta Geral. Preocupado com o
tónomos das ilhas adjacentes. Nessa sequência, impasse criado nos trabalhos referentes ao pla-
e na da carta entregue depois ao governador neamento regional, cuja responsabilidade, não
pelos elementos da oposição, foi criada em sendo da pessoa do presidente da Junta Geral,
junho, na Junta Geral, uma Comissão de Es- era, no entanto, inerente a essa função, tinha
tudos e Coordenação Económica, sob a pre- entendido que havia interesse em dar nova es-
sidência do ex-deputado Rui Vieira, assunto truturação aos serviços distritais, em especial à
pelo qual a Associação, através da sua chamada Junta Geral do Distrito, pelo que punha o seu
Comissão Delegada, se vinha a bater em contí- lugar à disposição.
nuas exposições desde 1955. O governador aceitou o pedido e, por alva-
O ano de 1971 registou, assim, algumas alte- rá de 24 de fevereiro, foram nomeados Rui
rações à principal estrutura executiva insular e Vieira e Manuel de Sousa (n. 1928) para os
à Junta Geral, através da revisão dos seus esta- lugares do Cor. Homem Costa e de António
tutos no quadro da revisão constitucional. Mas Melvill de Araújo (n. 1925), presidente subs-
a revisão constitucional então sumariamente tituto da Junta Geral. A 8 de janeiro de 1974,
elaborada visava mais os chamados territórios Manuel de Sousa ainda seria empossado, para
58 ¬ A utonomia

um curto período de exercício, como vice- Thomaz (1894-1987), de Marcelo Caetano e


-presidente da Junta Geral. Braamcamp So- de outros governantes, alguns dos elementos
bral conferiria ao Cor. Homem Costa um lou- do Comércio do Funchal, na preparação da ma-
vor pelo destacado zelo, pela competência e a nifestação do 1.º de Maio seguinte, tiveram a
dedicação com que exercera as suas funções ideia de criar o slogan de que a Madeira não
e louvaria, na tomada de posse, as qualidades era caixote do lixo, o que fez com que a situa-
do novo presidente, Rui Vieira, que incorpo- ção da Ilha saísse do anonimato, iniciando-se
rara um grupo de trabalho ad hoc e a quem um processo que conduziria à constituição da
fora cometida a incumbência de, no prazo de Região Autónoma da Madeira.
três meses, equacionar os problemas funda- A Madeira fora dando os primeiros passos,
mentais para um mais rápido desenvolvimen- desde o séc. xix, no caminho da autonomia,
to turístico da região da Madeira, para além pelo que progressivamente se reorganiza-
de outras incidências especiais. ram os partidos políticos e se configuraram,
O trabalho apresentado pelo grupo ad hoc embora de uma forma vaga, as linhas de um
de que Rui Vieira era presidente, constituí- programa autonómico para a Madeira, as-
do por representantes dos diferentes ministé- petos também já pontualmente defendidos
rios interessados, num total de nove técnicos, por Agostinho Cardoso e pelos restantes de-
tinha sido concluído no prazo previsto e as putados da Madeira na Assembleia Nacional.
conclusões mereceram a aprovação do Con- As primeiras linhas gerais foram as expostas
selho de Ministros. Restava aguardar o des- por Alberto João Jardim nas páginas do jornal
pacho dos diversos assuntos equacionados, A Voz da Madeira, dentro da linha da ala liberal
o que se verificou em muito pequena escala. protagonizada por Francisco de Sá Carneiro
Os problemas equacionavam-se na Madeira, (1934-1980). Alberto João Jardim teria tido a
mas a resolução continuava a depender total- cobertura não só do tio, como do depois Gen.
mente de Lisboa. Configuravam-se já, nesta Alípio Tomé Pinto (n. 1936), chefe do Estado-
altura, duas posições nos quadros superiores -Maior do Quartel-General, o qual o autorizou
insulares que se viriam a defrontar nos anos e incentivou a escrever nesse sentido.
seguintes: uma fação marcadamente regiona- A 11 março de 1975, em Lisboa, registou-se
lista, que se demarcava progressivamente do novo pronunciamento militar e, no Funchal,
Governo central e que começava a ganhar voz as forças ligadas ao Movimento Democrático
através dos artigos de Alberto João Jardim, e mostraram-se incapazes de fazer face à situa-
uma outra, com um carácter mais aberto a fu- ção, pelo que, a 20 de março, Fernando Rebe-
turas negociações, mas também condescen- lo (1919-2003) deixou o cargo de governador
dências, com contactos através de jovens qua- civil. Nesse mesmo dia, em Lisboa, aonde fora
dros dos gabinetes da capital, que se reunia à chamado sem saber porquê, o Brig. Carlos de
volta de Rui Vieira. Azeredo (n. 1930) tomava posse do mesmo
cargo, por despacho do ministro da Adminis-
Caminho para a autonomia tração Interna. Quase de imediato, a 25 de
Foi necessário esperar pelo golpe militar de março, dava posse no Funchal à Junta de Pla-
abril de 1974 e o reinício da democracia para neamento para a Madeira, órgão com um cariz
encontrar espaço de manobra político para a transitório, mas com forte poder de decisão.
implantação da progressiva autonomia insu- Este órgão apareceu na sequência do grupo
lar. O 25 de Abril de 1974 só foi sentido na criado alguns anos antes no âmbito da Junta
Madeira ao nível dos contactos do Movimen- Geral, mas já com funções deliberativas mais
to das Forças Armadas, logo dos comandos amplas, superintendendo, inclusive, sobre
militares, e por uma pequena população ur- a mesma Junta Geral e, mesmo, sobre a anti-
bana. No entanto, com a chegada à Madeira ga Comissão Regional de Planeamento, que
do Presidente da República deposto, Américo continuava a existir. Foi esta Junta que veio a
A utonomia ¬ 59

Fig. 7 – Manifestação, no Funchal, 1 de maio de 1974 (fotografia de Agostinho Spínola).

organizar as primeiras eleições democráticas, a 20 de fevereiro seguinte. Foi a Junta de Pla-


ocorridas a 25 de abril de 1975, para a Assem- neamento a autora do primeiro estatuto au-
bleia Constituinte, que tinha como orientação, tonómico do arquipélago da Madeira, efe-
no prazo de um ano, fazer e aprovar uma nova tuado sobre idêntico documento elaborado
Constituição da República Portuguesa. nos Açores e segundo dados já então forne-
A Junta de Planeamento começou a conhe- cidos pelos vários partidos políticos regionais
cer dificuldades de articulação interna a par- ali representados, não se utilizando, ainda, a
tir das eleições de 25 de abril de 1975. Efetiva- denominação de região autónoma. O proje-
mente, se até então a sua nomeação de cúpula, to foi elaborado com base na experiência au-
como havia sido proposta pelo Brig. Carlos de tonómica das ilhas inglesas do Canal, Jersey,
Azeredo na sua apresentação pública, era de- Guernsey e Aldernay, que muitos madeiren-
fensável por não ter havido eleições na Região, ses conheciam bem, um projeto bastante an-
a partir daquela data tal já não era sustentável. tigo na Madeira e que já havia sido defendi-
Acrescia a isto o desgaste do “verão quente” de do muito antes do Estado Novo. O Governo
1975, que levou à demissão da mesma Junta a regional era uma estrutura bastante reduzida,
5 de agosto de 1975. que tinha por modelo os anteriores cargos de
O Brig. Carlos de Azeredo iniciou, então, chefia dos serviços da Junta Geral, com mais
contactos com os vários partidos que haviam competências e aumentados em número para
concorrido às eleições de 25 de abril para a gerir um conjunto de serviços que até então
formação de uma nova estrutura governa- dependia de Lisboa. A Assembleia Regional
tiva, que veio a ser criada pelo Conselho de seria composta por cerca de 18 deputados, re-
Ministros, a 13 de dezembro de 1975, como presentantes dos 11 concelhos do arquipéla-
Junta Governativa e de Desenvolvimento Re- go, contando os maiores com 2 e 3 deputa-
gional da Madeira, mas que só foi empossada dos. O projeto foi dado como aprovado para
60 ¬ A utonomia

estudo pelo primeiro-ministro, mas sofreria torna-se necessário diferenciar dois momentos.
inúmeras alterações nos 30 anos de história O período inicial de ocupação do território da
seguintes. Ilha, que ocorreu entre 1433 e 1497, tendo-se
A Assembleia Regional teve a sua cerimónia definido o sistema de senhorio que sucedeu à
de abertura a 19 de julho de 1976, no salão plena afirmação das instituições régias, e, de-
nobre da Junta Geral, tendo como imediata e pois, o período a partir de 1901, com a autono-
principal função a elaboração do Estatuto Po- mia limitada das juntas gerais, que deu lugar,
lítico-Administrativo da Região Autónoma da em 1976, ao Governo regional da Madeira e a
Madeira, que funcionaria como provisório por um novo sistema político e administrativo.
mais de uma década. A 13 de setembro, chega- Por lei de 20 de março de 1907, existiam
ria à Madeira o primeiro ministro da República, dois tipos de contas do Estado para a receita
o Gen. Lino Dias Miguel, e a 1 de outubro, na e a despesa: a conta do ano económico, que
sala amarela do palácio de S. Lourenço, tomava ficava aberta por cinco anos, e a conta de ge-
posse o primeiro Governo Regional da Madeira. rência, encerrada anualmente, que seria o re-
gisto das operações contabilísticas e financei-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, tombo 1, fl. 52,
e tombo 6; AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 4804-4805; Arquivo da ACIF­
ras do ano económico. Pelo dec. n.º 3519, de 8
‑CCIM, CE 1969, carta de 31 mar. 1969; impressa: AZEREDO, Carlos de, de maio de 1919, estes prazos foram alterados,
Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império, Porto, Civilização, 2004; CALISTO,
tendo a conta da receita e da despesa de 1918
Luís, Achas na Autonomia. Viagem ao Interior da FLAMA, Funchal, Diário de
Notícias, 1996; CÂMARA, Bendita, A Economia da Madeira (1850-1914), Lisboa, ficado aberta apenas durante dois anos. Poste-
Imprensa de Ciências Sociais, 2002; CARITA, Rui, 30 Anos de Autonomia. 1976­ riormente, o dec. n.º 18.381, de 24 de maio de
‑2006, Funchal, Assembleia Legislativa Regional, 2009; CLODE, Luiz Peter, Registo
Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica 1930, determinou com força de lei que estas
do Funchal, 1983; Comércio do Funchal, 21 abr. 1968; Diário de Notícias, 20 deveriam ser encerradas 45 dias após o fim do
out. 1922; F. L., “Autonomia”, Diário de Notícias, 9 nov. 1921, p. 5; GOMES,
Fátima Freitas, “Fernando Tolentino da Costa (1874-1957), 9 de outubro de ano económico.
1922. O discurso autonomista”, in Junta Geral do Distrito do Funchal (1836­ Esta situação conduziu a que os valores apre-
‑1976). Apontamentos Biográficos de Presidentes da Junta Geral no Séc. XX, vol. 2,
Funchal, DRAC, 2016, pp. 155-173; GOUVEIA, Gregório, Madeira, Tradições sentados em distintos documentos fossem di-
Autonomistas e Revolução dos Cravos, Funchal, O Liberal, 2002; HENRIQUES, ferenciados, estando a informação organizada
Albertina Maria de Sousa Gonçalves, Órgãos Políticos e Classe Política na Região
Autónoma da Madeira, Funchal, CEHA, 1999; JARDIM, Alberto João, Tribuna
com base em diferentes critérios, impedindo
Livre, 3 vols., Ponta Delgada, Jornal da Cultura, 1995; MENDONÇA, Maria, “Isto uma adequada valorização a partir das regras
de autonomia”, Eco do Funchal, 14 out. 1968; O Patriota Funchalense, 2 jul. 1821;
RODRIGUES, Paulo Miguel, Estudos sobre o Século XIX na Madeira, Política,
contabilísticas posteriores. Mesmo assim, não
Economia e Emigração, Funchal, Imprensa Académica, 2015; SILVA, Fernando é justificável a existência de algumas dispari-
Augusto da (coord.), V Centenário da Descoberta da Madeira, Funchal,
dades (aliás muito frequentes) que podem ser
Comissão de Propaganda e Publicidade do Centenário, 1922; SOUSA, Ana Isabel
de, Maria Mendonça. Uma Mulher sem Medo, Nordeste, Câmara Municipal encontradas na apresentação dos dados conta-
do Nordeste, 2001; VERÍSSIMO, Nelson, “O projecto de Passos Manuel para
bilísticos. O facto foi devidamente referencia-
revogar legislação especial da Madeira. Anáthema de nossa existência”, Diário de
Notícias, 24 maio 1987; Id., “O alargamento da autonomia dos distritos insulares. do, nomeadamente na imprensa, sem se com-
O debate na Madeira (1922-1923)”, in Actas do II Colóquio Internacional de preender a razão de tão evidentes diferenças
História da Madeira, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1990, pp. 493-515; Id., “Autonomia insular. numéricas. Uma deficiente informação conta-
As ideias de Quirino Avelino de Jesus”, Islenha, n.º 7, jul.-dez. 1990, pp. 32-36; bilística deu origem a incorreções na apresen-
Id., “Autonomia insular. O debate na Primavera Marcelista”, Islenha, n.º 9,
jul.-dez. 1991, pp. 5-20. tação de certos dados da receita e da despesa
da Madeira, divulgados na imprensa e em al-
Rui Carita
gumas publicações, durante os sécs. xix e xx.
De acordo com a receita e a despesa do Tesou-
Finanças ro na Madeira, entre os anos económicos de
A autonomia é um conceito amplo em termos 1874-1875 e 1913-1914, a Ilha apresentaria um
políticos e jurisdicionais. Para se entender a saldo negativo nos anos económicos de 1888-
sua ligação às finanças, deve-se acompanhar a 1889 a 1891-1892. Esta situação, porém, não
sua evolução, tendo em conta as implicações corresponde à realidade dos dados apurados
que apresenta em termos da estrutura e ges- em informação paralela. Na verdade, a Madei-
tão dos recursos financeiros. Neste quadro, ra nunca apresentou qualquer saldo negativo.
A utonomia ¬ 61

A riqueza gerada pelas pesadas e inúmeras tri-


butações sempre suplantou a magra despesa
ou o investimento do senhorio, da Coroa ou
do Estado. Em muitas situações, aparecem
dados de acordo com o ano civil, impedindo a
sua contabilização por ano económico. A isto,
junta-se a dificuldade, comum na documen-
tação oficial do continente, em diferenciar os
dois arquipélagos na escrituração contabilísti-
ca de receitas e de despesas, o que impede, em
muitas situações, de saber qual a importância
atribuída à Madeira. Fig. 8 – Bandeira da Região Autónoma da Madeira.

É típica a ideia de que a informação conta-


bilística disponível é muito dispersa, impossi- e.g., o Batalhão de Infantaria n.º 12 esteve no
bilitando, muitas vezes, o estabelecimento de Funchal entre os anos de 1837 e 1847, período
séries e uma avaliação real das contas. Por con- durante o qual a despesa efetiva da Madeira foi
seguinte, a tarefa de reconstituir e de conhe- superior, pois necessitava de assegurar a ma-
cer o movimento das finanças da Região não nutenção deste gasto. A despesa do Ministério
é fácil. As informações estatísticas oficiais e a da Guerra na Madeira, a partir do orçamento
organização contabilística do orçamento e das de 1833, foi a mais elevada de todas as rubri-
contas surgem apenas a partir da déc. de 30 do cas ministeriais na Ilha, chegando a represen-
séc. xix, mas, mesmo nesta centúria, os dados tar mais de metade do dispêndio total da Ilha.
são, muitas vezes, escassos. Relativamente aos Em março de 1824, e apenas neste mês, existe
séculos anteriores, os dados são avulsos e não uma referência ao desembolso de 10.183$381,
permitem, em algumas situações, as necessá- que representou, então, 55 % da despesa da
rias seriações. Faltam os livros dos contadores Madeira.
da Provedoria da Fazenda, os registos comple- A isto, deve-se juntar a consideração referen-
tos da Alfândega, assim como os dos diversos te a outra realidade muito comum nos espaços
tributos e impostos. Mesmo assim, foi possível insulares, que se prende com o contrabando
recolher, em diversas publicação, dados que de mercadorias proibidas e o descaminho dos
apontam para uma realidade diferente da que direitos. A informação sobre estas atividades
é geralmente aceite. ilícitas é proveniente do séc. xv e é contínua.
Nem sempre os números apresentados reve- Tais atividades seriam os meios habituais dos
lam devidamente o retrato da realidade, no- insulares para se furtarem aos direitos, em sua
meadamente da despesa. Há várias situações opinião excessivos, que penalizavam alguns
que determinam o recurso a variáveis e a rea- produtos de importação e de exportação; eram
lidade, que permitem descobrir que a despe- também modos de combate ao regime de mo-
sa foi superior ao normal e que o arquipélago nopólio de produção e de venda de alguns
teve de assumir encargos que não lhe per- produtos, como o sal, o tabaco, a urzela e o
tenciam. Assim, e.g., instabilidade política do sabão. Para alguns produtos com peso especial
séc. xix transformou a Madeira num espaço de nas exportações, é possível estabelecer uma es-
desterro para os militares opositores, servindo timativa das situações de descaminho aos direi-
como uma forma de desafogar os quartéis do tos, através de análises comparadas dos valores
continente. Entre 1823 e 1919, estiveram esta- da produção e de consumo com os da exporta-
cionados na Ilha diversos batalhões de Caça- ção. Assim, para as ilhas, algumas mercadorias,
dores e de Infantaria, alguns deles com mais como o sal, o sabão e a urzela, que estavam su-
de 400 praças, cuja manutenção seria assegu- jeitas ao regime de monopólio de produção e
rada e paga pelos cofres do Tesouro da Ilha; de comércio, foram alvo de múltiplas situações
62 ¬ A utonomia

de contrabando, que em muitos casos é con- No mesmo jornal, surge em 1924, uma acu-
siderado como superior a um quarto do total sação semelhante, de forma clara: “é preciso
das transações. que os madeirenses unidos pelo mesmo pen-
A autonomia, concedida, em 1895, a alguns samento façam ver de um modo irrecusável
dos distritos dos Açores e, em 1901, à Madeira, aos governos de Lisboa, que são mais algu-
poderá muitas vezes ser entendida como uma ma coisa do que matéria coletável [...] o povo
possibilidade de avanço e de afirmação dos es- da Madeira é um povo livre [...] não é escra-
paços insulares, dando-lhe os meios para o seu vo nem burro de carga” (Id., Ibid.). Em 1931,
autodesenvolvimento. No entanto, tudo isso em plena euforia da revolta da Madeira, o
teve parca expressão nos diplomas oficiais. Re- discurso dos cabecilhas ia ao encontro desta
corde-se o debate e a intervenção de diversos aspiração dos madeirenses de administrarem
políticos insulares, entre os finais do séc. xix as suas receitas para benefício próprio. Num
e o findar do primeiro quartel da centúria se- manifesto aos madeirenses, datado de 21 de
guinte, em que se reivindicaram e apresenta- abril, apelava-se à sua adesão à revolta, pois
ram propostas de autonomia política e finan- o seu triunfo “permitirá falar com liberdade
ceira que tardaram a concretizar-se. Insulares e firmeza, para pedir, para exigir do governo
e continentais enfrentaram-se, frequentemen- que as suas receitas próprias cá fiquem du-
te, sobre estas questões, tendo, talvez, existido rante largos anos, a fim de com elas serem
medo dos primeiros em cortar este laço umbi- executadas obras importantes e de grande
lical e, dos outros, em perder o domínio e o necessidade, há largos anos, reclamadas, mas
controlo político e financeiro. sempre postas de parte, para satisfação de ca-
Estas condições nunca satisfizeram os madei- prichos pessoais e de ódios políticos” (VIEI-
renses e os açorianos e, ao longo do tempo, RA, 2014g, 69).
foram surgindo sugestões de alargamento da No diferendo entre a metrópole e as ilhas
autonomia financeira. Com efeito, desde o sobre as questões financeiras e tributárias, há
séc. xix que a principal questão no debate e dois momentos de grande debate: com o Es-
na reivindicação da autonomia se prende com tado Novo e, a partir de 1974, com o Estado
as finanças. A cobrança dos impostos e a aplica- democrático. A intervenção de Oliveira Sala-
ção do produto líquido não revertia em bene- zar, no sentido do saneamento das finanças
fício da Região. Esta ideia persistia e dominava públicas, aconteceu num momento de grande
o debate. Em 1882, lia-se no Distrito do Fun- efervescência nos espaços insulares, onde sur-
chal que o governo “só se lembra desta terra giram, em 1931 e 1936, duas convulsões popu-
para levantar do seu cofre central o produto lares que geraram neste governante alguma
de tanto sacrifício” (VIEIRA, 2014g, 51). Esta antipatia em relação à Madeira e aos madeiren-
reclamação chegou à Assembleia pela voz de ses. A Revolução de 25 de abril de 1974 abriu o
Manuel José Vieira, numa intervenção de 7 de caminho para uma nova realidade nas relações
maio de 1883: “sabemos que fazemos parte do entre a Ilha e o continente, que culminaria,
reino de Portugal única e exclusivamente para em 1976, com a criação da região autónoma,
quinhoarmos nos encargos que se renovam ou com Parlamento e Governo regionais. Surgiu
batizam com nomes diferentes mas que sem- uma realidade política diferente, mas nem por
pre se acrescentam” (Id., Ibid., 45). Em 1887, isso as questões financeiras deixariam de reve-
no Diário de Notícias, surge o apelo à união e lar o desacordo entre a Região e a metrópole.
à luta “por todos os meios e incessantemente Por parte desta, estava sempre latente a pre-
a fim de se conseguir dos poderes públicos a tensa ingratidão das ilhas e a ideia de que as
reparação que nos é devida por meio de obras mesmas não se mostravam disponíveis para o
e providências legislativas que nos assegurem esforço nacional de recuperação financeira, es-
um futuro, não diremos brilhante, mas de mo- tando, permanentemente, a reivindicar apoios
desta prosperidade” (VIEIRA, 2014d, 37). financeiros.
A utonomia ¬ 63

Expressões da autonomia financeira se tornaria desfavorável em muitos casos. Por


O infante D. Henrique, por carta da doação outro lado, levaria a que uma importante e sig-
de D. Duarte, de 26 de setembro de 1433, tor- nificativa receita local, nomeadamente a da ex-
nou-se o senhorio das ilhas, tendo recebido, portação do açúcar, ficasse nas Alfândegas de
por isso, o pleno direito à sua posse, usufruto Lisboa, do Porto e de Viana do Castelo, a partir
e administração, que passava pela distribuição de onde se exportava uma grande quantidade
das terras, pelo estabelecimento de regimen- daquele produto para os principais mercados
tos para o governo das capitanias, em termos europeus.
de administração económica, fiscal e judicial, e Não temos conhecimento de que o senhorio
pela definição das culturas mais adequadas aos tenha feito qualquer investimento produtivo,
seus objetivos e com maior rentabilidade, tais e.g, em infraestruturas, à exceção das muito ru-
como os cereais, a vinha, o pastel e os canaviais. dimentares alçapremas do infante, nos primór-
Desde muito cedo, estabeleceram-se meca- dios da exploração açucareira. Pelo contrário,
nismos de controlo e de arrecadação dos cha- temos de referir as insistentes queixas relativas
mados direitos senhoriais, com a criação de es- à falta de investimento para a modernização
truturas adequadas. Surgiu assim a figura do e a adequação das infraestruturas aos serviços
almoxarife, que já está testemunhada em 1452, que prestavam. Aos moradores, ficou reser-
e em 1477 foi criada a Alfândega. A quantifica- vada a tarefa de preparar os terrenos para o
ção deste contributo financeiro da Madeira e arroteamento imediato, com a construção de
do Porto Santo é impossível, por falta de regis- muros de sustentação das terras e da abertu-
tos documentais, mas a informação avulsa per- ra de levadas para o regadio, pelo que, inicial-
mite afirmar que estas ilhas foram, desde o iní- mente, a concessão de terras só seria possível
cio, contribuintes ativos. àqueles que tivessem posses para tamanho
Nas finanças da Ordem de Cristo e da investimento.
Casa do Infante, o tributo madeirense era de A Madeira encontrava-se ocupada desde há
1.500.000 reais, correspondendo a 40,54 % do pouco mais de 50 anos e a cultura dos canaviais
total dos rendimentos da sua casa senhorial. entrava no seu momento de apogeu. Daqui
João de Barros refere ainda que o mestrado da resulta a importância e a valorização que lhe
Ordem de Cristo auferia anualmente mais de eram atribuídas no património financeiro do
60.000 arrobas de açúcar da Ilha, confirman- reino. A construção dos paços do concelho foi
do-se que esta tinha um peso significativo nas feita com o financiamento próprio do conce-
finanças das referidas instituições. lho através dos rendimentos da imposição do
Uma das primeiras medidas alcançadas pelo vinho. O projeto de construção de cerca e de
senhorio foi a isenção, por parte da Coroa, da muros, concretizado mais tarde, partiu, tam-
dízima das exportações que se fizessem para o bém, de fontes de financiamento próprias que
reino. Era um incentivo à fixação de colonos oneravam, de novo, as populações. Os apoios
na Ilha, que se manteve durante muito tempo substanciais que se esperariam por parte do
e de que os madeirenses nunca abdicaram, senhorio não existiram. Depois desta fase, sur-
considerando-a, certamente, como um privi- giu a plena afirmação das estruturas de poder
légio perpétuo para a sociedade. Tenha-se em régio, com particular incidência nas que se en-
conta que esta política de isenção da dízima, contravam ligadas às finanças. A Coroa apostou
no movimento de exportações e de importa- ainda na regulamentação rigorosa das estrutu-
ções entre o arquipélago e o continente por- ras fiscais, através dos forais do almoxarifado
tuguês, para além de favorecer as ligações aos das Alfândegas (1499) do Funchal, de Machico
portos do reino e o consumo dos produtos e de Santa Cruz (1515). Esta medida foi ante-
nacionais, contribuiu para estabelecer víncu- cedida, em 1497, da abolição do senhorio, fa-
los de dependência com a metrópole em ter- zendo reverter para a Coroa todo o património
mos do comércio externo da Ilha, situação que madeirense de forma durável e reservando-se
64 ¬ A utonomia

esta o direito de reforma dos arcaicos forais circunstâncias, estabelece-se a ideia dos direi-
que regulamentavam a fiscalidade, pela neces- tos senhoriais, que está longe da ideia do im-
sidade de adequar os regimentos à nova rea- posto ou tributo que se impõe com uma de-
lidade socioeconómica. A presença da Coroa terminada função social, económica e cultural,
e das instituições que a representam ao nível ou em troca de serviços. Mas esta ideia medie-
da justiça e da fiscalidade consolidaram-se nos val dos direitos senhoriais continuará presente
anos seguintes, pois esta Ilha era uma das suas até à época liberal.
primeiras e principais fontes de riqueza. Esta forma de encarar a situação tributária
A partir de então, a Fazenda Real nunca pres- não implicava uma atitude retributiva que,
cindiu do contributo madeirense e continuou quando acontecia, era apenas a título de dádiva
a usar todos os meios para usufruir da rique- ou de esmola. Existem inúmeros testemunhos
za gerada no arquipélago através dos tributos destas situações no reinado de D. Manuel, que
existentes, sendo alguns deles específicos da foi certamente, de entre todos os monarcas,
Ilha, assim como por meio do apelo a perma- o que mais lucro obteve com a economia ma-
nentes empréstimos e fintas. Esta política de deirense, mas também aquele que se mostrou
constante solicitação do esforço tributário dos mais magnânimo para com os habitantes da
madeirenses foi prejudicial à Madeira, geran- Ilha. A contrapartida a este contributo dos ma-
do laços de cada vez maior dependência e um deirenses estará quase só na política de ofertas
atraso secular, manifesto aos mais diversos ní- esta­belecida pelo mesmo Rei, que aumentou,
veis, mas acima de tudo no estado de degrada- em muito, o património artístico da Madeira.
ção dos edifícios das instituições da Coroa, das Em diversas circunstâncias, é manifesta uma
igrejas e das capelas. O direito de padroado tradição não retributiva por parte da Coroa,
era um compromisso e um encargo assumidos mesmo nas suas obrigações. As grandes obras
pelo Rei, que raras vezes o honrou. A Coroa de construção da praça, dos paços do conce-
atuou de todas as formas, no sentido de evi- lho, da cadeia e da igreja fazem-se, em princí-
tar o chamado açúcar cativo, i.e., o açúcar sub- pio, à custa dos moradores, através de taxas, do
traído ao pagamento dos tributos régios, no- seu trabalho braçal e de algumas das chama-
meadamente aos quintos e às dízimas de saída. das esmolas da Coroa. Assim sucedeu com as
Para isso, foi estabelecido um apertado siste- obras do Hospital da Misericórdia do Funchal,
ma de controlo que começava nos canaviais, com as da Sé do Funchal e com as das cadeias.
continuava no engenho e terminava à saída do O mesmo aconteceu com as obras de fortifica-
porto. Assim, como forma de controlar e de ção, tão importantes para segurança dos mora-
prever a receita, determinou-se a regra do es- dores e para a salvaguarda da soberania e dos
timo da produção de açúcar dos diversos pro- interesses financeiros da Coroa. Até, na verda-
prietários de canaviais. de, a imposição do vinho, criada em 1485 para
A pressão fiscal sobre os produtos de alta ren- acudir às principais despesas do município,
tabilidade poderá ter muitas vezes efeitos ne- acabou por ser usada pela Coroa com outras fi-
gativos, em situação de livre concorrência com nalidades. Portanto, como já se disse, a Madei-
outros mercados e com outros produtos. Em ra foi um contribuinte ativo para os cofres da
princípios do séc. xvi, a concorrência dos açú- Coroa, mas poucas vezes sentiu o retorno útil
cares dos mercados da Madeira e das Canárias da sua riqueza. As ocasiões em que o saldo das
esteve sujeita a esta situação, criando circuns- contas foi negativo foram raras: quando foi ne-
tâncias desfavoráveis para a Ilha. cessário um apoio da Coroa, este foi feito atra-
Na época senhorial, o donatário conside- vés de um empréstimo com retorno.
rava-se o proprietário do espaço da Ilha e, Os encargos definidos pela despesa fixa da
portanto, tudo o que recebia dos povoado- Coroa na Ilha eram, por norma, muito redu-
res que haviam aceitado dádivas de terras era zidos. Considere-se, e.g., os dados disponíveis
um tributo, fruto do direito de posse. Nestas para o período de 1501 a 1537, durante o qual
A utonomia ¬ 65

pedidos de Diogo de Azambuja para as obras


da fortaleza de Mogador. E a participação e o
investimento dos madeirenses nas campanhas
africanas não se ficaram apenas pelo séc. xv;
nos séculos seguintes, a Ilha participou de
forma assídua, com mantimentos e com ho-
mens, na defesa das praças, face às investidas
muçulmanas. Mais tarde, haverá uma interven-
ção de vulto dos madeirenses no Brasil, tendo
vários homens e meios financeiros acudido ao
resgate dessa colónia e ajudado à luta contra a
ocupação holandesa.
A Coroa, a exemplo do que havia sucedido
com o senhorio, tinha o direito ao usufruto
da riqueza gerada pelos madeirenses. Desde
os primórdios, estabeleceu-se uma espécie
de contrato de colónia entre o senhor (mais
tarde, a Coroa) e os madeirenses, obrigando-
-os a realizar todo o tipo de benfeitorias e ao
pagamento ao dito proprietário da Madeira
Fig. 9 – Armas reais e da Ordem de Cristo no teto da capela-mor de muito mais que a demidia (metade) das suas
da Sé do Funchal, c. 1514 (arquivo particular).
produções e da sua riqueza. Os primeiros colo-
nos fizeram um esforço enorme para adaptar
a despesa de funcionamento com o almoxari- a orografia da Ilha às condições das distintas
fado começou por ser apenas de 20$000, para práticas agrícolas, um trabalho raras vezes devi-
subir, na déc. de 30, para cerca de 90$000 réis. damente compensado com a parte que sobrava
Depois, para os anos de 1581 e entre 1602 e das suas colheitas. Os madeirenses, ao longo
1618, existiu, de novo, uma situação semelhan- desta época, sentiam que estavam a ser saquea-
te, pois, de uma despesa global com os orde- dos pela Coroa, um sentimento manifestado
nados do clero e dos funcionários, superior a em distintas situações e momentos, a exemplo
7 contos, apenas 2 contos se referem aos fun- do que sucedera, em 1566, com o assalto dos
cionários da justiça e da Fazenda Real, sendo corsários franceses – em que a Fazenda Real
o demais para o clero e o funcionamento das foi a menos prejudicada, pois os cofres foram
igrejas. postos a salvo no Caniço.
O projeto de expansão e de afirmação co- As rendas da Madeira não atuavam apenas
lonial portuguesa teve custos elevados, que como fator de relevo nas finanças dos cofres
foram sendo suportados com financiamentos nacionais: foram também usadas como moeda
estrangeiros e com a riqueza gerada nos novos de troca no quadro das relações diplomáticas
espaços de ocupação, como foi o caso da Ma- internacionais, durante as primeiras décadas
deira. Assim, na primeira metade do séc. xvi, do séc. xix. A Madeira foi entregue a forças
as despesas relacionadas com o socorro e a ma- ocupantes, serviu de garantia a empréstimos,
nutenção das praças africanas são mais um en- e foi apontada como solução para a dívida na-
cargo que os madeirenses assumem em razão cional através da sua venda. Isto prova e refor-
da proximidade. Algumas destas praças, como ça o papel da Madeira no quadro das finanças
Mogador e Safim, estavam na dependência nacionais. E.g., em 1801, foi realizado um em-
quase direta da Madeira, de forma que, em préstimo de 9.000.000 de cruzados, feito com
1506, o Monarca ordena aos almoxarifes e aos a garantia dos dízimos e demais rendas reais
recebedores na Ilha que satisfaçam todos os da Madeira. Depois, em 1809, relativamente
66 ¬ A utonomia

a um empréstimo de 600.000 libras, os Ingle- Após a reforma tributária da déc. de 40 do


ses receberam como garantia os rendimentos séc. xix, surgiram outras em 1911 e em 1922,
das Alfândegas da Madeira e dos Açores, e, em porém, as alterações mais significativas no sis-
1832, a concretização de um empréstimo de tema só aconteceriam a partir de 1928, com a
300.000 libras esterlinas designou, de novo, os intervenção de Oliveira Salazar. Mais uma vez,
rendimentos da Madeira como uma forma de o compasso do tempo político não se coadu-
hipoteca. na com o do sistema tributário. A República,
É problemático o estabelecimento de impos- em 1910, não representou uma rutura com as
tos e de adicionais com finalidades específicas finanças e a contabilidade vigentes, a exem-
que, por serem gerais do país, nunca chegam à plo do que havia sucedido com a Revolução
Madeira. Nesta época, houve momentos de es- Liberal de 1820. A viragem no sistema acon-
plendor, mas também de grandes dificuldades, tece, a partir da déc. de 30, com as reformas
como as aluviões de 1803 e de 1842, em que o de Mouzinho da Silveira, que tiveram apenas
Estado não se mostrou tão magnânimo quanto uma expressão prática e constitucional, com a
deveria ser na sua intervenção e no seu apoio, reforma da Fazenda de 1843. Entretanto, na
como provam os orçamentos e as contas do Es- déc. de 30, na sequência das reformas realiza-
tado a partir de 1833. Os 30 contos enviados das pelo Governo provisório da ilha Terceira,
em 1842, para acudir as despesas associadas à houve, em 1832, a substituição do Tribunal do
aluvião, de pouco serviram. Erário Régio pelo Tribunal do Tesouro, e, em
Por lei de 1761, a Madeira uniformizou o 1833, algumas reformas da Fazenda Pública e
seu sistema tributário com o do continente, das Alfândegas (em todo o caso, foi a partir
deixando de existir situações específicas rela- de 1843 que aconteceu a viragem do sistema,
tivamente a este aspeto. Isto gerou dificulda- que teve continuidade nas reformas da conta-
des de administração financeira devido às di- bilidade e da Fazenda Pública de 1854, 1869,
ferentes realidades do continente e das ilhas 1870, 1881, 1891 e 1907).
que, no caso das Pautas Aduaneiras, tornaram A partir de 1901, a Madeira passou a gozar, a
mais real a expressão dos problemas de uma lei exemplo dos Açores, de autonomia administra-
definida com o desconhecimento da realidade tiva com o restabelecimento da Junta Geral. To-
das distintas e diferenciadas regiões. A ideia de davia, as condições de instabilidade política do
associar as ilhas e os arquipélagos à metrópo- primeiro quartel do séc. xx, associadas às limi-
le através da designação de adjacentes foi uma tadas competências e capacidades financeiras da
medida fatal, com consequências inevitáveis na Junta, não permitiram que surgissem interven-
economia e no sistema tributário. ções deste novo regime administrativo tão favorá-
A possibilidade de intervenção dos insulares veis quanto eram as esperanças dos autonomistas
na Câmara dos Deputados, através de deputa- madeirenses. Tanto mais que a déc. de 30, apro-
dos eleitos, foi uma oportunidade de afirma- veitando a evocação do quinto centenário do
ção desta diferença e da identidade, mas não descobrimento da Madeira, foi um momento de
um reconhecimento, de facto, das divergên- debate por mais e melhor autonomia, revelando
cias que a lei procurava a todo o custo com- a insatisfação da elite política da Ilha.
bater. Em 1895, surgiu a autonomia, primeiro Com a República, não se estabeleceram al-
para alguns distritos dos Açores, sob a forma terações significativas ao sistema vigente. A lei
de restauração das antigas juntas gerais, com n.º 88, de 7 de agosto de 1913, quanto aos
intervenção específica em termos administrati- distritos da Madeira e dos Açores, confirma
vos e financeiros. Depois, em 1901, a Madeira o que está estabelecido no decreto de 2 de
acompanhou o processo. Mas tudo ainda esta- março de 1895, nomeadamente nos artigos
va em aberto em termos de uma plena valori- n.os 28, 29, 30, 31 e 32. Apenas se acrescenta,
zação dos espaços insulares, tendo em vista a no parágrafo n.º 6, que: “As juntas pagarão ao
capacidade de autogoverno. Estado, como compensação pela cobrança das
A utonomia ¬ 67

contribuições, 5 por cento das quantias arre- principais problemas com que esta se debatia e
cadas, cuja dedução será feita em cada ordem criar uma comissão para reclamar as soluções
de entrega de receitas, assinada pelo inspetor necessárias junto dos parlamentares madeiren-
de finanças” (Id., Ibid,, 485). ses e dos ministérios do Terreiro do Paço, em
Em 1922, a situação da Ilha não era distinta Lisboa. Isto é, criar um grupo de pressão ma-
dos anos anteriores; no entanto, foi o ano es- deirense na capital.
colhido para a comemoração do quinto cente- Entre os finais de 1922 e os princípios de
nário do descobrimento da Madeira. Este foi 1923, gerou-se no Funchal um clima eufórico
o argumento para fazer despertar o espírito de debate em torno do alargamento da autono-
autonomista e regional dos madeirenses. Em mia. Porém, realizado o debate, algumas ideias
outubro e novembro de 1920, Eduardo Anto- haviam demonstrado que, sem a colaboração
nino Pestana, entusiasmado com os resultados da classe política da Madeira e do continente,
positivos da realização de congressos regionais não era possível fazer avançar o parco regime
em várias localidades do continente (uma ini- autonómico de 1901. A classe política da Ma-
ciativa que partira de Augusto de Castro, então deira, dependente das estruturas e dos favores
diretor do Diário de Notícias de Lisboa), recla- da continental, estava dividida. Por outro lado,
mava insistentemente, no Diário de Notícias do as forças vivas madeirenses não só não sabiam
Funchal, a necessidade de uma iniciativa idên- bem o que queriam, como estavam também
tica na Madeira. O objetivo do congresso a rea- acomodadas. A ideia de autonomia era agora
lizar na Ilha era produzir um levantamento dos distinta daquela que tinha existido em finais
do séc. xix. A influência inglesa conduziu à
reivindicação de uma ampla autonomia que,
segundo se dizia em 9 de novembro de 1921,
deveria ter na bandeira “a única ligação com a
Mãe Pátria” (Id., Ibid., 71).
Para o movimento autonomista madeiren-
se dos anos 20, muito contribuiu a atitude do
então presidente da Comissão Executiva da
Junta Geral, Fernando Tolentino Costa, que,
aproveitando a passagem pela Ilha do Presi-
dente da República, António José de Almei-
da, a 9 de outubro de 1922, quando regres-
sava do Brasil, lançou o desafio no sentido
do alargamento da autonomia. O facto teve
eco na imprensa local e fez com que o mo-
vimento autonomista ganhasse novo alento.
A Junta Geral, tomando a liderança do pro-
cesso, enviou um ofício para as juntas gerais
dos Açores (Ponta Delgada e Angra do He-
roísmo), propondo uma congregação de es-
forços e uma concertação de ações com este
objetivo, convocando uma assembleia de ma-
deirenses, donde saiu uma comissão autono-
mista que se reuniu pela primeira vez a 21
de dezembro de 1922, na sede da Associação
Fig. 10 – “Viagem às ilhas. A descida do Monte”, caricatura da Comercial do Funchal. Foi aqui que Manuel
visita régia com a Crise Agrícola e os Credores Externos em carro
de cesto, litografia de Rafael Bordalo Pinheiro (A Paródia, 10 jul. Pestana Reis apresentou o texto das bases
1901). da autonomia, que foi depois publicado na
68 ¬ A utonomia

brochura das comemorações do quinto cen- apresentado por Manuel Pestana Reis (1894­
tenário da descoberta da Madeira. ‑1966) era a questão financeira.
Com a proposta de estatuto em debate, pre- A Revolução de 28 de maio de 1926 foi sau-
tendia-se estabelecer, pela primeira vez, a coe- dada por muitos sectores da sociedade madei-
xistência dos poderes legislativos e executivos. rense que depositaram nela as suas esperan-
Surgia, assim, um conselho legislativo eleito ças de mudança. A primeira alteração ocorreu
entre as câmaras e as associações de classe, que com o dec. n.º 15.035, de 16 de fevereiro de
poderia legislar no domínio regional. Apenas 1928, que ia ao encontro de algumas das rei-
lhe estariam vedadas as questões referentes vindicações no campo financeiro. A receita da
ao exército, às relações com o estrangeiro, à cobrança da contribuição predial rústica e ur-
formação do Governo, à justiça e ao ensino. bana, da contribuição industrial, do imposto
O quadro institucional completava-se com o de aplicação de capitais e do imposto de tran-
conselho executivo, eleito pelo legislativo, com sações era da Junta seria usada em benefício
a função de superintender as finanças, de fis- da Região, ficando o Estado com apenas 1 %
calizar o orçamento e de superintender os ser- desta para despesas de cobrança.
viços e as obras públicas. A representação do A 31 de julho, com o dec. n.º 35.805, a situa-
governo no distrito continuaria a ser feita pelo ção alterou-se novamente. Este decreto, assina-
governador civil, nomeado mediante consulta do pelo então ministro das Finanças, Oliveira
ao conselho executivo. Ao mesmo, seriam aco- Salazar, marcou o princípio do fim do comba-
metidas funções de fiscalização e de assistência te autonomista das ilhas. Antes, aumentara-se
aos diversos órgãos da administração. a receita dos distritos, agora, impunham-se
Uma das reivindicações mais destacadas foi o novos encargos, com o alargamento da descen-
direito à fruição em benefício próprio das recei- tralização a serviços dependentes dos ministé-
tas arrecadadas. A Madeira deveria deter a sua rios do Comércio, Agricultura e Instrução, do
total administração, ficando ao Estado apenas Governo Civil, da polícia cívica, da saúde, da
o direito a uma quantia fixa para cobrir os cus- assistência e da previdência. Sem capacidade
tos da cobrança. Esta autonomia era entendida para acabar com a autonomia, Salazar acedeu
pelo próprio Manuel Pestana Reis como uma às aspirações autonomistas transferindo al-
forma de “desconcentração política e adminis- guns serviços, que conduziram à asfixia finan-
trativa” (Id., Ibid., 76) e ia ao encontro de ante- ceira das Juntas. As reformas do Governo do
riores propostas surgidas nos Açores, da autoria Estado Novo não satisfizeram a ambição dos
de Aristides da Mota (1892) e de Francisco de regionalistas.
Ataíde Manuel de Faria e Maia (1921). Duran- O madeirense Quirino de Jesus, ainda que
te este momento, o intercâmbio dos projetos muito próximo de Salazar na definição da po-
autonomistas de ambos os arquipélagos foi um lítica económica e financeira, não conseguiu
facto, tendo sido, de novo, promovido pelo pre- demovê-lo quanto à sua visão da autonomia.
sidente da Junta. Em dezembro de 1922, uma Ele defendera que a autonomia insular era de-
representação de Ponta Delgada, chefiada por finida pelo carácter financeiro e económico,
Luís de Bettencourt e Câmara e por José Bruno só se podendo afirmar com reformas financei-
Carreiro, chegou à Madeira, seguindo-se, em ja- ras. De acordo com a sua ideia de divisão admi-
neiro do ano seguinte, a presença de Frederi- nistrativa, o distrito cederia lugar à província,
co Augusto Lopes da Silva, de Angra. No ano que passaria a ter ao comando um governador-
imediato, na Madeira, também foi discutida a -geral residente, de nomeação governamental.
temática da autonomia. Evocou-se o quinto cen- A ele juntava-se a Junta Geral de Província e
tenário da descoberta da Madeira e todos, ou o Conselho de Governo. A primeira era com-
quase todos, clamaram por uma nova descober- posta por procuradores eleitos pelas Câmaras
ta, materializada em mais e melhor autonomia. Municipais, pelas associações, pelos professo-
Um dos pontos assentes do projeto autonomista res e pelos chefes de serviço das repartições
A utonomia ¬ 69

públicas, enquanto o segundo seria presidido Quando Marcelo Caetano substituiu Salazar,
pelo governador, integrando vogais eleitos de a 27 de outubro de 1968, era evidente a expec-
entre os procuradores e os chefes dos serviços. tativa dos insulares quanto às reivindicadas al-
A Constituição, aprovada em 11 de abril de terações do estatuto. Esta possibilidade havia
1933, estabelecia para as ilhas uma adminis- sido admitida pelo próprio presidente do Con-
tração especial (artº. 124 § 2.º), que só foi re- selho de Ministros quando, em dezembro de
gulamentada pela lei n.º 1967, de 30 de abril 1969, visitara a Madeira. Na verdade, a déc.
de 1938, que estava muito distante destes pro- de 60 foi, de novo, uma altura de debate da
pósitos. No preâmbulo da lei, refere-se que a autonomia, sendo o Comércio do Funchal o por-
geografia obrigou a esta descentralização e des- ta-voz destes anseios. Então, para além da visí-
concentração “em benefício dos povos e com vel asfixia financeira das juntas, insistia-se na
vantagem para a boa administração”. As recla- necessidade de um plano de desenvolvimento
mações dos insulares levaram a que o Governo regional, que chegou à Assembleia Nacional a
as atendesse, em 1928, com alterações signifi- 5 de abril de 1963, pela voz do deputado ma-
cativas, através da descentralização de muitos deirense Agostinho Cardoso. As eleições para
serviços; mas surgiram novamente imensas re- a Assembleia Nacional de 26 de outubro de
clamações, porque as receitas eram insuficien- 1969 acontecem no decurso do debate do pro-
tes, continuando o legislador a negar a possi- cesso autonómico, sendo este ideário assumi-
bilidade do usufruto total das receitas fiscais: do pelos candidatos da oposição democrática.
“Formam as ilhas adjacentes um todo com o Durante muito tempo, as reivindicações dos
continente, é o mesmo o seu sistema de admi- madeirenses assentaram no retorno do di-
nistração e governo, como o mesmo é o grau de nheiro dos seus impostos para a realização de
civilização dos habitantes e de progresso social: obras necessárias ao desenvolvimento da Ilha,
seria, pois, contrário ao bem comum consagrar que, em muitas situações, acabariam por tra-
uma forma egoísta de plena autonomia finan- zer retorno ao Estado. Com um programa de
ceira que parecesse realizar a desintegração do regadio, ampliar-se-ia a área agrícola e tam-
Estado de uma parte do seu território metro- bém os tributos; com a construção de portos,
politano”. Sobre as anteriores medidas dizia-se de cais e de embarcadouros, seriam garanti-
“que foi excessiva a liberdade conferida às jun- das as condições de circulação de pessoas e
tas em 1928” (Id., Ibid., 78), pois a descentrali- de produtos, animando eficazmente a agricul-
zação sem a tutela governamental podia ser um tura e o mercado; por fim, o porto principal
princípio para uma má gestão. Deste modo, no Funchal, com condições de apoio à nave-
manteve-se a descentralização existente, pas- gação livre de taxas tributárias, era uma espe-
sando, todavia, a ser fiscalizada pelo governo rança para os madeirenses, que viram nele a
civil e tutelada pelo Governo central. Nesta re- possibilidade de uma grande escala oceânica
forma do estatuto, surge, como uma novidade, e de desembarque de turistas.
a função de coordenação económica da Junta, Tudo isto era conhecido e sabido, mas con-
que tinha uma expressão ao nível do planea- tinuavam a tardar as soluções. As populações
mento apenas nos planos trienais. Esta proble- continuavam isoladas nos seus locais de nasci-
mática motivou um debate público no Funchal, mento, frequentemente alheias a tudo. A ida
em janeiro de 1968, sob a epígrafe I Semana ao Funchal era um acontecimento ocasional
de Estudos sobre problemas sociais económi- e de grande comemoração. Desde o primeiro
cos do desenvolvimento. Como corolário desta quartel do séc. xix, as reclamações dos madei-
reivindicação, foi publicado, em 11 de março renses manifestaram-se no sentido de o Esta-
de 1969, o dec.-lei n.º 48.905, que estabeleceu e do intervir na Madeira através de obras públi-
regulamentou o planeamento regional, função cas para a abertura de caminhos, de levadas
que ficou a cargo da Junta Geral, merecendo a e de canalização das ribeiras. A crise agrícola
contestação de todos os sectores. e comercial fez despertar o olhar crítico de
70 ¬ A utonomia

muitos madeirenses e ampliou a imagem de municípios são resultantes de impostos autó-


uma terra abandonada à sua sorte, sem nin- nomos (contribuição autárquica, sisa, impos-
guém que lhe acudisse. to sobre veículos e imposto de mais-valia), de
A partir de maio de 1974, alterou-se o espec- algumas participações (definidas pelo Orça-
tro político da Região, tendo-se manifestado à mento do Estado, pelas taxas e pelos impos-
luz do dia vários grupos políticos de cariz re- tos), de taxas e de derramas. A contribuição
gional e promotores da autonomia, que deram autárquica surgiu por lei n.º 106/88, de 17 de
vigor ao movimento autonomista, que ganhou setembro. Quanto às transferências das verbas
forma com o Estatuto Provisório da Madeira, para a Região, refere-se que o Estado estabele-
de 29 de abril de 1976. Depois, o ato eleito- cer, no Orçamento (na rubrica “Encargos Ge-
ral para a Assembleia Regional, a 27 de junho, rais da Nação”), os valores a transferir para a
abriu o caminho para a afirmação do processo Região de acordo “com o princípio da solida-
constitucional, com a atribuição da autonomia riedade nacional” (art.º 56). A partir de 1981
político-administrativa consagrada na Consti- (resolução n.º 310/80, DR 200/80 série i de
tuição que foi aprovada a 2 de abril de 1976. 1980/08/30), ficou estabelecida uma fórmula
Tenha-se em consideração que, a partir de de financiamento do orçamento regional, as-
1986, a realização dos empreendimentos que sente na capitação da despesa pública. A partir
permitiram a total mudança do arquipélago só da revisão constitucional de 1982, foram refor-
foi possível com o apoio financeiro da então çados os poderes tributários das regiões, per-
Comunidade Económica Europeia, a que Por- mitindo-lhes dispor das receitas cobradas.
tugal entretanto aderira. Pelo dec.-lei n.º 500/80, a RAM encontra-
O estatuto provisório, aprovado pelo dec.-lei -se numa situação especial em termos fiscais,
n.º 318-D/76, de 30 de abril, estabeleceu a pos- devido à criação da Zona Franca da Madei-
sibilidade de a Região legislar e regulamentar ra que, a partir de 1987, se encontrou na de-
sobre os impostos regionais (art.º 136), assim pendência da Sociedade de Desenvolvimento
como de criar adicionais aos impostos (art.º da Madeira S.A., que contava com os seguin-
137) e de adaptar o sistema fiscal nacional vi- tes serviços: zona franca industrial, serviços in-
gente às características da RAM (art.º 138). ternacionais, registo internacional de navios e
O alargamento desta faculdade irá permitir serviços financeiros/centro offshore. A entrada
que a Região use esta capacidade legislativa de Portugal na CEE, em 1986, tinha imposto
para criar condições de competitividade fis- limitações ao funcionamento das zonas francas
cal que permitam captar novos investimentos, comerciais dentro do espaço comunitário. Em
nomeadamente para o Centro de Negócios da 1990, o governo aprovou o projeto do terminal
Madeira. marítimo da zona franca do Caniçal. A zona
Ao nível das autarquias, a Constituição de franca foi um fator significativo do desenvolvi-
1976 determinou, de forma clara, a indepen- mento da Região, capaz de captar receitas que
dência orçamental e patrimonial. Pela lei permitiram o seu financiamento. Todavia, as li-
n.º 1/79, de 2 de janeiro, lei das finanças lo- mitações impostas fizeram com que a mesma
cais, foram aumentados os recursos e os pode- perdesse a sua importância, fazendo dela, nos
res financeiros dos municípios e das fregue- começos do séc. xxi, um dos principais pontos
sias. Nela se estabeleceu um regime distinto do diferendo entre a RAM e o Governo central.
para as finanças locais. Seguiram-se alterações, A partir da revisão constitucional de 1982,
pelo dec.-lei n.º 98/84, de 29 de março, mas foram reforçados os poderes tributários das re-
que vigoraram durante pouco tempo, uma vez giões, permitindo dispor das receitas cobradas.
que, pelo dec.-lei n.º 1/87, se procedeu a uma A lei n.º 9/87 de 26 de março institucionalizou
nova regulamentação das finanças locais que o poder tributário próprio das duas regiões au-
lhes atribuiu uma participação nas receitas do tónomas. Os anos de 1985 e 1986 foram de um
IVA e do imposto de sisa. As receitas fiscais dos significado particular para esta conjuntura de
A utonomia ¬ 71

difícil execução orçamental, levando à nego- de contos e, no terceiro (2000-2006), 140 mi-
ciação de um programa de reequilíbrio finan- lhões de contos.
ceiro com o Governo da República. Pela reso- As medidas de correção dos desequilíbrios
lução n.º 9/86, de 16 de janeiro, o Governo internos de desenvolvimento e a política de
mandatou o ministro da República e o minis- coesão comunitária, asseguradas pelos diversos
tro das Finanças para estabelecerem com o Go- QCA (I QCA 1989-1993; II QCA 1994-1999)
verno regional um programa de reequilíbrio e pelo fundo de coesão, para além de outros
financeiro da RAM, assinado a 26 de fevereiro apoios no âmbito dos diversos programas co-
de 1986. A 22 de setembro de 1989, houve um munitários, asseguraram à Madeira os meios fi-
novo programa de recuperação financeira até nanceiros necessários para vencer as dificulda-
31 de dezembro de 1997, que se repercutiu no des ancestrais de desenvolvimento económico.
orçamento regional de 1990. Um dos principais problemas da política go-
O impacto mais significativo do período de- vernativa estava relacionado com a disponibi-
mocrático decorreu de uma intervenção resul- lidade de verbas, por parte do Orçamento do
tante da integração de Portugal na Comunida- Estado, para cobrir as carências resultantes da
de Económica Europeia e não da obrigação, transferência dos serviços e das políticas de
que ao Estado era devida pela lei e pela Consti- investimento que se estabeleciam necessaria-
tuição, de colmatar as assimetrias de desenvol- mente para acatar o atraso secular a que a Ilha
vimento económico da Região. A 5 de junho tinha ficado votada. A conta de 1978 apontava
de 1985, a Assembleia regional da Madeira um crescimento da despesa em 124,75 %, en-
aprovou a integração da RAM no processo de quanto o da receita se limitava a apenas 57,4
adesão de Portugal à CEE, o que veio a aconte- %. Esta situação de rutura financeira situava-
cer, em pleno, a partir de 1 de janeiro de 1986. -se, muitas vezes, fora do alcance da Região, ou
A resolução do Parlamento regional reconhe- porque o Estado não procedia à definição do
ceu as vantagens da adesão para o progresso valor das transferências, ou porque a Madeira
económico, para o reforço do contributo in- não dispunha de quaisquer mecanismos fiscais
sular e para a formação da Comunidade. Em que permitissem resolver os seus problemas.
1988, na sequência de um memorando apre- No decurso das décs. de 70 e 80, os orça-
sentado pelas regiões autónomas da Madeira mentos da Região foram apresentados de
e dos Açores, a Comunidade aprovou um pro- forma tardia, porque se aguardava pela apro-
grama de medidas específicas, no sentido da vação do Orçamento Geral do Estado, em que
sua plena integração no Mercado Único. Foi o ficaria estabelecido o valor das transferências,
princípio do reconhecimento do Estatuto Es- uma vez que a receita dos impostos e das taxas
pecial das Regiões Ultraperiféricas, consagra- – proveniente dos tempos da Junta Geral, re-
do no tratado de Maastricht, com a declaração forçada com o estatuto provisório de 1976 –
comum sobre as regiões ultraperiféricas. era claramente insuficiente para cobrir os en-
A aposta comunitária na política regional cargos associados à transferência dos serviços,
favoreceu o aparecimento de programas fi- nomeadamente nos âmbitos do ensino e da
nanceiros, dos quais a Madeira, a partir de saúde.
1986, passou a poder usufruir. Neste sentido, É certo que o estatuto (art.º 56) definiu o
surgiu em 1985, o Fundo Europeu para o De- princípio da solidariedade nacional quanto
senvolvimento Regional (FEDER). Entretan- ao apoio financeiro do Estado para cobrir as
to, em 1991, o Tratado da União Europeia despesas, mas as contingências da conjuntura
estabeleceu a política regional e de coesão, de crise política implicavam que esta garantia
criando o Comité das Regiões e o Fundo de tardasse ou não surgisse. Neste quadro, restava
Coesão. A Madeira recebeu, no primeiro e à Região o recurso ao endividamento interno
no segundo Quadro Comunitário de Apoio para cobrir os investimentos necessários à exe-
(QCA) (entre 1986 e 1999), 176,7 milhões cução do plano regional que, de acordo com
72 ¬ A utonomia

o mesmo estatuto (art.º 58), deveriam ser defi- domínio ((alínea n) do art.º 229). Era o único
nidos por diploma do Governo da República. meio de a Região sustentar uma estrutura fi-
Em 1980, o orçamento apresentava um défice nanceira que lhe permitisse consolidar a sua
de 2.017.730 contos porque ainda não era co- autonomia política e económica.
nhecida a verba a estabelecer no Orçamento A lei do orçamento do Estado n.º 42/83, de
do Estado, mas a Região decidiu manter uma 31 de dezembro, consagra a possibilidade de a
verba de transferências por considerar impe- Região se endividar em 5 milhões de contos,
rioso o cumprimento do plano de investimen- para poder colmatar os constantes défices or-
tos, deixando em aberto a possibilidade do seu çamentais. Mas, em sede do orçamento regio-
financiamento através de um empréstimo. nal de 1984, voltou-se a insistir na ausência de
Em 1981, agravou-se ainda mais a situação fi- contrapartidas financeiras por parte do Estado
nanceira e orçamental, devido ao volume de em face da transferência dos serviços, pelo que
serviços que tinham sido regionalizados no de- o investimento dos últimos sete anos só havia
curso do ano anterior sem a devida contrapar- sido possível mediante o recurso ao crédito in-
tida financeira, e à aprovação tardia, em abril, terno. Insiste-se na ideia de que “uma política
do Orçamento de Estado. Desta forma, a Ma- orçamental verdadeiramente autónoma só será
deira não teve alternativa, e o seu orçamento concretizada quando todas as componentes do
foi apenas aprovado em maio. A mesma situa- orçamento regional estiverem sob o domínio
ção de precariedade dos meios orçamentais dos órgãos de governo próprio da Região.” Por
justifica o défice de 7.274.081 contos, expli- outro lado, “sobre o Estado recaem determi-
cado pela “evolução crescente da própria au- nadas obrigações, aliás, constitucionais, no que
tonomia regional” (VIEIRA, 2014b, 707). Em respeita à recuperação do atraso económico
1983, o orçamento só foi aprovado em junho estrutural em que a Região se encontra devido
do ano de execução, pelas mesmas razões, à ausência ancestral de qualquer política séria
ocorrendo uma nova situação, com o decrésci- de desenvolvimento regional da iniciativa do
mo das transferências do Orçamento do Esta- poder central” (VIEIRA, 2014g, 84).
do, que veio a agravar o défice em 14.976.482 O desacordo financeiro continua em 1985,
contos. A despesa foi justificada pela transfe- acusando-se, em finais do ano anterior, o Go-
rência de serviços sem a necessária contrapar- verno regional de ter aumentado as dificulda-
tida financeira, bem como pela necessidade de des financeiras que obrigaram ao aumento do
vencer o atraso da Região através de grandes défice e do endividamento da Região. Deste
obras estruturantes. modo, insiste-se na necessidade de alteração
Em 1983, no sentido de vencer estas dificul- dos “critérios de transferências do Orçamento
dades orçamentais e financeiras, o Governo re- do Estado para a Região Autónoma da Madei-
gional expressou a sua intenção de lutar para ra” (VIEIRA, 2014b, 708).
que fosse encontrado “um critério mais justo, A principal receita da Região incidia nos im-
que permita à regiões autónomas recuperar postos, sendo os diretos de maior peso. Para
o atraso económico e social em que se en- o período compreendido entre 1976 e 1988,
contram relativamente ao continente, o mais os impostos principais foram a contribuição in-
breve quanto possível, mas sem que isso cons- dustrial, o imposto profissional, o imposto de
titua uma penalização para as disponibilidades capitais, o imposto complementar, o imposto
financeiras” (VIEIRA, 2014b, 707) com uma sobre sucessões e doações, e a sisa. A partir de
proposta de alteração dos critério de cobertura 1989, passaram a ter destaque o imposto sobre
do défice da Madeira. A par disso, aponta-se a o rendimento das pessoas singulares (IRS) e o
necessidade de reformas da política monetária imposto sobre o rendimento das pessoas cole-
e financeira, para que as regiões possam ado- tivas (IRC), como reflexo das mudanças ocor-
tar a assunção plena dos direitos e das respon- ridas com o sistema tributário português. No
sabilidades que a Constituição consagra neste grupo dos impostos indiretos, existiam: o IVA,
A utonomia ¬ 73

o ISP, o selo, as transações internacionais, as favorecimento dos Açores. Considere-se que o


estampilhas fiscais, o imposto sobre transações, n.º 3 do art. 21.º da lei n.º 13/98, de 24 de fe-
o imposto de consumo de tabaco, o imposto vereiro, refere que “em caso algum poderá ser
sobre venda automóvel, e o imposto sobre be- adotado um modo de cálculo que origine um
bidas alcoólicas e cerveja. menor montante de receitas do que o auferi-
Com a lei n.º 13/98 de 24 de fevereiro, a lei do pelo regime vigente [capitação]”, compro-
de finanças das regiões autónomas, fica con- misso corroborado pela redação da alínea a)
sagrada a salvaguarda das receitas geradas na do n.º 1 do art. 59.º da lei orgânica n.º 1/2007,
RAM, definida e regulamentada a possibilida- de 19 de fevereiro. Daqui resultou, e.g., que a
de de estabelecer adicionais até 10 % aos im- receita de IVA da RAM, em 2007, não poderia
postos (art.º 36), e estabelecida a adaptação do ser inferior aos 315,579 milhões de euros. Re-
sistema tributário às especificidades da RAM corde-se que o compromisso do Orçamento do
(art.º 33, 37), assim como da fórmula e das re- Estado de 2005, de definição do mecanismo de
gras que passariam a definir as transferências capitação subjacente à afetação da receita do
do Estado (art.º 33). Como resultado desta si- IVA na RAM, se traduziu num aumento da re-
tuação, o Orçamento de 2001 estabeleceu al- ceita para os cofres da Região em 6,9 %. Com o
terações às taxas de IRS e IRC cobradas na orçamento de 2007, a cobrança do IVA deixou
RAM. A lei orgânica 1/2007, de 19 de feverei- de depender da capitação para ser o valor de
ro, aprovou a nova lei de finanças das regiões facto cobrado. Há indicações no sentido de um
autónomas e estabeleceu algumas alterações, sistema tributário diferenciado para atenuar os
consideradas penalizadoras para a RAM. custos da insularidade. O art. 5.º do dec. leg.
Assim, o valor das transferências começou regional n.º 2/2001/M, de 20 de fevereiro, na
a estar baseado na população (art.º 37). Tam- redação e sistematização dada pelo dec. leg. re-
bém o IVA deixou de ser transferido de acor- gional n.º 30-A/2003/M, de 31 de dezembro,
do com uma capitação estabelecida, para ser estabeleceu a possibilidade de a RAM alterar a
o valor de facto cobrado. As regras das trans- respetiva taxa.
ferências financeiras foram estabelecidas nos Em 2004, a taxa de IRC passou de 27 % para
art.os 19 e 51 e foram regulamentadas pela por- 22,5 %. Então, anualmente, o dec. leg. regio-
taria n.º 1418/2008, de 9 de dezembro. Com nal que aprovava o orçamento estabelecia a
a revisão constitucional de 1982, foram refor- taxa de imposto prevista no n.º 1 do art.º 80 do
çados os poderes tributários das regiões, per- código do IRC a vigorar na Região. O art.º 2
mitindo-lhe dispor das receitas cobradas. A lei do dec. leg. regional n.º 3/2001/M, de 22 de
n.º 9/87, de 26 de março, institucionalizou o fevereiro, na redação dada pelo dec. leg. regio-
poder tributário próprio das duas regiões au- nal n.º 30-A/2003/M, de 31 de dezembro, con-
tónomas. Com o Orçamento de Estado de sagra a redução das taxas do imposto sobre o
2005, foi adotado o mecanismo da capitação rendimento das pessoas singulares. Anualmen-
subjacente à afetação da receita de IVA pelas te, o decreto legislativo regional que aprova o
regiões autónomas, o que se repercutiu num orçamento estabelece a taxa de imposto previs-
aumento destas receitas em 6,9 %. A partir ta no art.º 68 do Código do IRS a vigorar na Re-
de 2007, em conformidade com as alterações gião. A crise iniciada em 2011 com a interven-
vigentes, a receita do IVA deixou de ser feita ção das autoridades financeiras internacionais
por capitação. Esta alteração terá conduzido a e as regras estabelecidas pelo consequente Me-
uma quebra da receita da Madeira em 22,5 mi- morando assinado com a Troika de credores
lhões de euros. Com a lei orgânica n.º 1/2010, internacionais obrigaram o Governo regional
de 29 de março, são considerados, na defini- a rever esta situação diferenciada da cobrança
ção do valor das transferências, a população, do IRC e do IRS, através do dec. leg. regional
o número de ilhas, e a distância entre a capi- n.º 20/2011/M. DR 246 série i de 2011/12/26.
tal do país e o local mais distante, com claro A plena autonomia tributária e financeira
74 ¬ A utonomia

só foi alcançada em 2005. A partir de 2 de investimentos produtivos e geradores de em-


fevereiro de 2005, de acordo com o dec.-lei prego, nomeadamente os destinados às empre-
n.º 18/2005, de 18 de janeiro, o Governo re- sas; e o Fundo Social Europeu (FSE), instituído
gional passou a exercer a plenitude das compe- em 1957, que apoia a inserção profissional dos
tências no que concerne às suas receitas fiscais desempregados e das categorias desfavorecidas
próprias, e a poder controlar todos os atos ne- da população, financiando, nomeadamente, as
cessários à sua administração e gestão. ações de formação. Para acelerar a convergên-
Estas mudanças traduziram-se num aumen- cia económica, social e territorial, a União Eu-
to da receita fiscal. Esta política de maior jus- ropeia instituiu, em 1994, um Fundo de Coe-
tiça nas transferências na RAM levou a Assem- são, destinado aos países cujo PIB médio por
bleia Legislativa Regional a estabelecer um habitante é inferior a 90 % da média comu-
grupo de trabalho para apurar as receitas em nitária. O Fundo de Coesão tem por finalida-
falta, de forma a ser estabelecido um método de conceder financiamentos para projetos de
de arrecadação, de controlo e de transferên- infraestruturas nos domínios do ambiente e
cia das verbas a que a RAM tem direito. Tam- dos transportes. Contudo, o apoio do Fundo
bém foi constituída uma comissão de inquéri- de Coesão está sujeito a determinadas condi-
to para averiguar se os bancos, que têm a sua ções. Se o défice público de um Estado mem-
sede no continente e exercem a sua atividade bro beneficiário exceder 3 % do PIB nacional
na Madeira, reportam, de forma devida, as re- (de acordo com as regras de convergência da
ceitas geradas na Região para efeitos de im- União Económica e Monetária), não serão
posto. Os resultados apontaram para uma in- aprovados novos projetos enquanto esse saldo
correta afetação da receita fiscal à RAM. Daí negativo não estiver, novamente, sob controlo.
a necessidade de sensibilização das entida- O Fundo Europeu de Desenvolvimento, que
des que, apesar de terem a sua sede fora da é, desde 1959, um instrumento da ajuda co-
Região, exercem atividade na Ilha a atividade munitária de cooperação no desenvolvimen-
para a necessidade do preenchimento correto to dos Estados ACP e dos Países e Territórios
dos modelos de entrega dos impostos, nomea- Ultramarinos (PTU), é estabelecido por cinco
damente IRC, IRS e imposto de selo. No ano anos. Destina-se a promover o investimento
seguinte, também por resolução desta Assem- e a contribuir para reduzir os desequilíbrios
bleia, foi sugerida a revisão da lei das finanças entre as regiões da União. Os financiamentos
regionais, prevista para 2001, que, na verdade, prioritários visam a investigação, a inovação, as
só veio a acontecer em 2006, traduzindo-se em questões ambientais e a prevenção de riscos,
perdas para a Madeira. A aluvião de 20 de fe- enquanto os investimentos em infraestruturas
vereiro de 2010 levou a que vários artigos desta continuam a ter um papel importante, nomea-
lei fossem suspensos e que fosse publicada a damente nas regiões menos desenvolvidas.
lei de meios (lei orgânica n.º 2/2010, de 16 de Para o sector primário, existe, desde 1 de ja-
junho), que estabeleceu o financiamento para neiro de 2007, o Fundo Europeu Agrícola de
o apoio e a reconstrução dos danos causados Desenvolvimento Rural (FEADER), criado
pelo temporal na RAM. para aumentar a competitividade dos sectores
Os Fundos Estruturais e o Fundo de Coe- agrícola e florestal, para melhorar o ambien-
são são os instrumentos financeiros da políti- te e a gestão do espaço rural, apoiando o or-
ca regional da União Europeia, cujo objetivo denamento do território, e para promover a
é reduzir as diferenças de desenvolvimento qualidade de vida e a diversificação das ativi-
entre as regiões e os Estados-Membros, par- dades económicas nas zonas rurais. A reforma
ticipando, assim, plenamente no objetivo de da Política Agrícola Comum (PAC), de junho
coesão económica, social e territorial. Existem de 2003 e de abril de 2004, definiu o FEADER,
dois Fundos Estruturais: o FEDER, que apoia, instituído pelo Regulamento (CE) 1290/2005,
desde 1975, a realização de infraestruturas e para reforçar a política de desenvolvimento
A utonomia ¬ 75

rural da União Europeia. O FEADER é, junta- a distância em relação à meta final era ainda
mente com o Fundo Europeu Agrícola de Ga- grande, afirmando-se, no orçamento de 1990,
rantia (FEAGA), um dos dois instrumentos de que a Região não controlava as variáveis que
financiamento da PAC que substituem, desde 1 afetavam a cobrança, quer dos impostos dire-
de janeiro de 2007, o FEOGA – secção Orien- tos, quer dos impostos indiretos, que deter-
tação, e o FEOGA – secção Garantia, respeti- minavam a respetiva evolução. Essas variáveis
vamente. O Fundo Europeu das Pescas (FEP) foram fixadas pelas leis do OE, limitando-se a
foi um fundo criado para o período 2007-2013 Madeira a receber os respetivos impostos co-
com o fim de facilitar a aplicação da Política brados pelo Estado na Região. A sua previsão,
Comum da Pesca e apoiar as reestruturações por isso, acabou por ser mais difícil do que
necessárias ao sector. seria se a Ilha procedesse à respetiva cobrança.
Em termos de apoios europeus, e no que Em vésperas da aprovação da lei n.º 13/98,
diz respeito à Região Autónoma da Madeira, de 24 de fevereiro, a lei de finanças das re-
é de destacar o INTERVIR+, o Programa Ope- giões autónomas e o orçamento da Região de
racional de Valorização do Potencial Econó- 1997 foram usados para argumentar em Lis-
mico e Coesão Territorial da RAM, aprovado boa o seguinte: a regionalização, melhorando
pela Comissão Europeia, através da decisão C, a eficiência e a equidade das finanças públi-
n.º 4622, de 5 de outubro de 2007, que tem por cas, teria de contribuir para uma melhor per-
objetivo assegurar o crescimento da economia formance da economia da Madeira, pelo que o
regional, o emprego, as políticas de proteção modelo de financiamento dos orçamentos re-
do ambiente, a coesão social e o desenvolvi- gionais deveria permitir às regiões autónomas
mento territorial. Este programa é cofinancia- aproximarem-se do nível médio de rendimen-
do pelo FEDER e por RUMOS – Programa to do continente, da igualdade de oportunida-
Operacional de Valorização do Potencial Hu- des e da igual qualidade de aprovisionamento
mano e Coesão Social da RAM, cuja versão de serviços e de bens públicos. A definição das
final foi aprovada pela Comissão Europeia em relações financeiras entre o Estado e as regiões
26/10/2007. autónomas teria assim de ser feita em respeito
Ao nível da RAM, são de considerar o Progra- pela autonomia regional e num quadro do re-
ma de Investimentos e Despesas de Desenvol- forço da coesão económica e social nacional e
vimento da Administração Central (PIDDAC), da solidariedade do Estado.
que corresponde, no orçamento, à parte refe- A nova centúria pareceu levar um novo alen-
rente aos investimentos, e o Programa de In- to aos discursos e às práticas financeiras. O or-
vestimentos e Despesas de Desenvolvimento çamento de 2002 alimentou esta esperança, ao
da Região Autónoma da Madeira (PIDDAR), a afirmar que “o início do processo de regiona-
designação formal para a concretização anual lização dos serviços de finanças permitirá im-
da estratégia delineada no Plano de Desenvol- portante evolução na gestão, controlo e apu-
vimento Económico e Social (PDES), para o ramento da receita tributária, possibilitando
período de 2007 a 2013. uma maior arrecadação de verbas. [...] A Re-
No debate político, as questões financeiras gião não dispõe ainda de todos os instrumen-
continuam a ser o calcanhar de Aquiles da au- tos que lhe permitam exercer um controle efe-
tonomia legislada nos finais do séc. xx. Toda- tivo” (VIEIRA, 2014g, 91).
via, deram-se passos significativos no sentido Em 2005, sabe-se da existência de um grupo
de a Região passar a ter o controlo do sistema de trabalho, “tendo em vista o apuramento
financeiro, o que permitiria uma gestão certa- das receitas fiscais em falta, circuitos de co-
mente mais racional brança, controlo, gestão e afetação às regiões,
A lei n.º 19/83, de 13 de dezembro, conce- com significativos resultados ao nível de apu-
deu uma autorização ao Governo para estabe- ramento de montantes por regularizar na cor-
lecer o regime das finanças regionais; porém, reção dos métodos de arrecadação, controlo
76 ¬ A utonomia

e transferência de verbas para os cofres regio- alfandegários, a sua transferência foi mensal.
nais”. Foi, ainda, constituída uma comissão de Uma nova alteração desta lei aconteceu pela
inquérito, na Assembleia Legislativa Regional, lei orgânica n.º 1/2010 de 29 de março. O le-
“para averiguar se os bancos que têm sede no gislador insistiu na ideia de que “a autonomia
continente e exercem a sua atividade na Região financeira regional desenvolve-se no quadro
Autónoma da Madeira entregam aos cofres da do princípio da estabilidade orçamental, que
Região as receitas fiscais devidas. As conclu- pressupõe, no médio prazo, uma situação pró-
sões do relatório demonstram, uma vez mais, a xima do equilíbrio orçamental” (n.º 1, do art.º
não correta afetação da receita fiscal à Região, 6). Isto abriu o assunto para o estabelecimento
onde é efetivamente gerada” (VIEIRA, 2014b, de regras apertadas relativamente ao endivida-
753). mento, que passou a estar sujeito a um valor
Em 2006, de novo em vésperas de uma nova máximo, enquanto as violações passaram a
regulamentação das relações financeiras entre estar sujeitas a penalizações.
o Estado e a Região, denunciava-se o incumpri- Para a Região, o enquadramento do Orça-
mento do Estado que, no Orçamento de 2006, mento da Região Autónoma da Madeira foi es-
não assegurava as transferências dos custos tabelecido pela lei n.º 28/92, de 1 de setem-
da insularidade e desenvolvimento económi- bro. Esta norma orçamental está dependente
co, apontando-se responsabilidades a assumir: da que foi estabelecida para o continente em
“O aprofundamento da autonomia em maté- 1991, em matéria orçamental e de execução,
ria fiscal, revela-se um instrumento de política tendo-se aplicado supletiva e subsidiariamente
essencial para que o Governo regional possa as leis gerais da República e, designadamente,
prosseguir uma estratégia de desenvolvimen- a lei do Orçamento de Estado para 1991, com
to sustentada, promovendo a maximização da as devidas adaptações.
eficiência fiscal e adaptando o sistema fiscal a
Bibliog.: Autonomia e História das Ilhas, Funchal, CEHA, 2001; ELAVAI,
condições cada vez mais específicas da econo- Augusto, Um Percurso nos Açores. Finanças Regionais: Coesão e
mia regional, num princípio de unidade dife- Desenvolvimento, Angra do Heroísmo, PaPyRo, 2001; FARIA, Cláudia et al.,
Paisagens Literárias (Quadros da Madeira), Funchal, CEHA, 2013; FERREIRA,
renciada” (Id., Ibid.). Eduardo Paz, As Finanças Regionais, Lisboa, INCM, 1985; Leis das Finanças
O inevitável aconteceu. Em 19 de fevereiro Locais e das Finanças Regionais, Massamá, Edimarta, 2007; LEITE, José
Guilherme Reis, A Autonomia dos Açores na Legislação Portuguesa. 1892-
de 2007, pela lei orgânica n.º 1/2007, o Par- 1947, Horta, Assembleia Regional dos Açores, 1987; LOUREIRO, Adolfo,
lamento aprovou a lei das finanças regionais, Breves Notícias sobre os Archipélagos da Madeira, Açores, Canárias e Cabo
Verde. Conferências, Lisboa, Imprensa Nacional, 1894; A Paródia, 10 jul. 1901;
revogando a lei n.º 13/98, de 24 de fevereiro. Quinto Centenário do Descobrimento da Madeira, Funchal, Comissão de
Aqui ficaram definidos os impostos, perten- Propaganda e Publicidade do Centenário, 1922; RODRIGUES, Paulo Miguel,
“A Junta da Fazenda da Madeira na política externa portuguesa (1801-
ça da Região, e os mecanismos de avaliação 1834)”, Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, n.º 1, 2009,
do valor das transferências, de acordo com a pp. 477-498; VERÍSSIMO, Nelson, A Madeira e o Sidonismo, Funchal, DRAC,
1983; Id., “Em 1917, a Madeira reclama autonomia”, Revista Atlântico, n.º 3,
população. Perante isto, o Governo regional
1985, pp. 229-232; Id., “O alargamento da autonomia dos distritos insulares.
apresentou a sua demissão a 21 de fevereiro, O debate na Madeira (1922-1923)”, in Actas do II Colóquio Internacional de
obrigando a novas eleições regionais onde con- História da Madeira, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1990, pp. 493-515; Id., “Autonomia insular.
quistou uma folgada maioria absoluta. Tudo As ideias de Quirino Avelino de Jesus”, Islenha, n.º 7, jul.-dez. 1990, pp. 32-
parecia, então, voltar ao princípio, no debate 36; VIEIRA, Alberto (coord.), A Autonomia. História e Documentos, Funchal,
CEHA, 2001; Id., Cronologia. A História das Instituições, Finanças e Impostos,
financeiro das autonomias. Ainda de acordo Funchal, CEHA, 2014; Id. (coord.), Debates Parlamentares. 1821-2010, Funchal,
com a portaria n.º 1418/2008, estabeleceu-se a CEHA, 2014a; Id., O Deve e o Haver das Finanças da Madeira. Finanças Públicas
e Fiscalidade na Madeira nos Séculos XV a XXI, Funchal, CEHA, 2014b; Id.
fórmula de apuramento do IVA e a sua transfe- (org.), Deve e Haver. Instrumentos de Trabalho, Funchal, CEHA, 2014c; Id.,
rência em duodécimos. Esta nova situação im- Dicionário de Finanças Públicas. Conceitos, Instituições, Funcionários, Funchal,
CEHA, 2014d; Id., Dicionário de Impostos. Contribuições, Direitos, Impostos,
plicou uma perda de 22,5 milhões de euros em Rendas e Tributos, Funchal, CEHA, 2014e; Id., Entender o Deve e o Haver das
relação ao sistema de capitação de 1998. Ao Es- Finanças da Madeira, Funchal, CEHA, 2014f; Id., Livro das Citações do Deve e
o Haver das Finanças da Madeira, Funchal, CEHA, 2014g; Id. (org.), Memória
tado, coube o direito de 2 % das transferên- Digital. O Deve e o Haver das Finanças da Madeira, Funchal, CEHA, 2014h.
cias do IVA, a título de compensação pela uti-
lização dos seus serviços. No caso dos impostos † Alberto Vieira
A utonomia ¬ 77

Autonomia política,
legislativa e financeira
A autonomia regional pode ser entendida em
diferentes perspetivas – política, normativa ou
legislativa, financeira (incluindo orçamental,
patrimonial, fiscal e creditícia) e administra-
tiva, entre outras –, mas sempre em confron-
to com a noção de Estado centralizado, que
impede formas de organização política aber-
tas e situações de diferenciação e de descen-
tralização territorial de poderes e de funções
políticas e financeiras tipicamente estatais,
incluindo aspetos relativos à administração
da justiça, à garantia da segurança pública
e da defesa e à representação externa. No âm-
bito de um determinado Estado, a aceitação e
o reconhecimento do instituto da autonomia
regional concretizam-se pela atribuição cons-
titucional ou legal de um conjunto de pode-
res e funções de natureza política e financeira
a novas entidades públicas de base territorial,
as regiões ou comunidades autónomas, com
dimensão “intermédia” entre o Estado e as
autarquias locais, i.e., de âmbito infraestatal e
supramunicipal, e dotadas de órgãos de go-
verno próprio democraticamente legitimados
(parlamento ou assembleia regional, Gover-
no regional).
Num Estado unitário e centralizado, todas as Fig. 11 – Trilogia dos Poderes, bronze de Amândio de Sousa, 1990,
competências ou poderes políticos essenciais pátio da Assembleia Legislativa Regional (arquivo particular).
típicos do Estado cabem e são exercidos exclu-
sivamente pelos órgãos decisórios do próprio além da inerente indivisibilidade do território
Estado, não se admitindo consequentemente reconhecido ao Estado.
quaisquer outras estruturas organizatórias de Ao invés do Estado centralizado, no Esta-
governação que pudessem exercer tais pode- do politicamente descentralizado admitem-se
res, sejam internas (Estados federados, regiões outras formas de exercício do poder político,
ou comunidades politicamente autónomas) sem o domínio exclusivo do próprio Estado e
ou externas (organismos internacionais ou dos seus órgãos de governo soberano, incluin-
supranacionais), sejam diferenciadas (federa- do regimes de autonomia regional e outras
ções) ou não (confederações). formas de descentralização territorial, como
Da unicidade do Estado soberano decorre as baseadas em autarquias locais (municípios,
a imediatidade das relações jurídicas estabe- freguesias).
lecidas entre o poder público central e os ci- Em Portugal, o respeito pela autonomia re-
dadãos, bem como a exclusão de qualquer gional, através da fórmula “regime autonómi-
intermediação por parte de estruturas organi- co insular” (introduzida pela lei constitucional
zatórias intermédias nas relações estabelecidas n.º 1/97), constitui uma obrigação constitu-
entre o Estado e os respetivos cidadãos, para cional do Estado, por força do art. 6.º-1 da
78 ¬ A utonomia

Constituição em vigor, e encontra-se garanti- em numerosos aspetos, e nada impede que


do até perante as leis de revisão constitucional, algo de similar se verifique quanto aos poderes
por força do previsto na al. o) do art. 288.º da atribuídos aos respetivos órgãos de governação
lei fundamental, que impõe uma efetiva “auto- e quanto aos instrumentos e mecanismos insti-
nomia político-administrativa dos arquipélagos tucionais e legais de controlo e de intervenção
dos Açores e da Madeira” – entendida como o estatal a que ficam sujeitos. Todavia, a natureza
complexo de normas constitucionais e legais, e o sentido da autonomia política são profun-
designadamente as incluídas nos estatutos po- damente distintos nas mencionadas situações
lítico-administrativos regionais, atinentes à or- especiais de autonomia territorial e nos regi-
ganização, às competências e ao modo de fun- mes de autonomia regional.
cionamento dos respetivos governos próprios Enquanto as regiões autónomas são partes
das regiões autónomas. integrantes do Estado e as respetivas popula-
Algo paradoxalmente, e por isso motivador ções compõem, conjuntamente com outras, o
de crítica frequente, a ordem constitucional povo ao qual corresponde esse Estado, as co-
portuguesa atual continua a consagrar o prin- munidades territoriais autónomas referidas,
cípio do Estado unitário, no art. 6.º da Consti- pelo contrário, apesar da subordinação por
tuição, apesar de não só admitir como impor laços associativos, internacionais, coloniais ou
a respetiva articulação com a ideia de “autogo- feudais em relação a um Estado, distinguem-se
verno regional”, limitada embora aos territó- claramente deste e mantêm-se separadas dele,
rios das Regiões Autónomas da Madeira e dos tanto territorial como politicamente, dado que
Açores. as respetivas populações não integram o povo
A autonomia regional e o fenómeno do re- do Estado em relação ao qual existe subordina-
gionalismo não se confundem com outras ti- ção e o respetivo território não constitui parte
pologias de autonomia política territorial reco- integrante do território do Estado.
nhecidas internacionalmente desde há muito Sobretudo por efeito da concretização cres-
a certas comunidades dependentes de deter- cente do princípio da autodeterminação dos
minados Estados, mas não integradas no res- povos, com sucessivas declarações de indepen-
petivo território, ou então dotadas de regimes dência e decisões de integração plena noutros
especiais, que podem fundar-se, designada- Estados, especialmente a partir de meados do
mente, em laços feudais (e.g., ilha de Man em séc. xx, os exemplos de autonomia política
relação à Coroa Britânica) ou coloniais ou sem integração num determinado Estado, no
quase coloniais (Bermudas e Gibraltar em re- início do séc. xxi, diminuíram abruptamente,
lação, também, à Coroa Britânica, Nova Cale- sem que, todavia, se possa prever a respetiva
dónia e Polinésia em relação à França, Samoa extinção, se atendermos designadamente às
Americana em relação aos Estados Unidos da particularidades presentes na sua origem.
América), na associação a outros Estados (An- Noutro plano, interno ao próprio Estado, o
tilhas Holandesas e Aruba em relação à Holan- instituto da autonomia regional e, em geral,
da, Porto Rico em relação aos Estados Unidos da descentralização também não se confunde
da América) ou ainda em situações interna- com o fenómeno da regionalização, com na-
cionais especiais (Berlim entre 1949 e 1990, tureza estritamente administrativa e que pode
Macau entre 1976 e 1999, territórios sob man- ser concretizado através do estabelecimento
dato ou tutela em fase de preparação para a de autarquias supramunicipais (regiões admi-
autodeterminação, etc.), sem embargo da veri- nistrativas) ou então, simplesmente, median-
ficação de várias semelhanças. te a desconcentração de poderes estatais pelos
A estrutura e a extensão da autonomia polí- vários serviços do Estado presentes nos diver-
tica reconhecida a essas comunidades territo- sos pontos do território nacional, sem recurso
riais, tal como sucede com as regiões autóno- à criação ou reconhecimento de novas entida-
mas, são muito diversas, podendo até coincidir des públicas de base territorial e populacional
A utonomia ¬ 79

ou mesmo de quaisquer novas entidades juridi- compagináveis com uma simples divisão geo-
camente autónomas, como já se experimentou gráfica do território do Estado, baseada apenas
em diferentes países e momentos históricos, em critérios físicos ou orográficos, por assim
incluindo os casos dos distritos portugueses dizer imposta pela natureza, incluindo as situa-
(distritos administrativos ou civis mas também ções de insularidade, mas também, para além
de âmbito sectorial, como os distritos judiciais, dessa divisão territorial, o reconhecimento e a
militares, etc.), dos departamentos em França atribuição de personalidade jurídica própria
(até determinada altura) e das regiões-plano. à coletividade regional, que justificadamente
Alguns dos objetivos, dos meios e a própria exige participar politicamente de modo refor-
dimensão dos processos de regionalização (ad- çado, através de órgãos representativos demo-
ministrativa) no seio dos Estados podem assi- craticamente legitimados, dotados de pode-
milar-se ou até, eventualmente, coincidir com res políticos substanciais aptos a salvaguardar
os das experiências históricas e políticas do re- os anseios comuns, não confundíveis com os
gionalismo político, e as respetivas fronteiras de outras comunidades inseridas no seio do
tendem a ser difíceis de identificar com total mesmo Estado.
nitidez, mas os instrumentos utilizados, bem Quando são referidas “regiões” num proces-
como a natureza e as finalidades, não se con- so de mera desconcentração de poder do Esta-
fundem, e podem e devem ser distinguidos. do, não se está ainda perante a emergência de
Efetivamente, as regiões autónomas dispõem novas entidades dotadas de personalidade jurí-
de órgãos de governo próprio dotados de po- dica própria, distinta da do Estado, ao invés do
deres “com natureza política”, o que afeta a que se verifica no fenómeno da descentraliza-
própria forma do Estado, ao invés do que se ção, administrativa e/ou política, independen-
verifica com as regiões meramente administra- temente de as respetivas causas e justificações
tivas, que têm natureza idêntica ao fenómeno ou fundamentos poderem variar muito.
já muito antigo do municipalismo e, em geral, Quanto às autarquias locais, “reguladas por
do poder (autárquico) local, em que, não rara- lei, de harmonia com o princípio da descen-
mente, são também reconhecidos e atribuídos tralização administrativa” (art. 237.º), também
amplos poderes de autogoverno, mas sempre “não têm natureza política”, apesar de a Cons-
ao abrigo de um quadro legal estatal estrito, tituição portuguesa colocar os respetivos ór-
com natureza meramente administrativa. gãos, até certo ponto, a par dos órgãos de so-
Variam muito, no plano conceitual e nas suas berania e dos órgãos das regiões autónomas,
múltiplas concretizações pelos ordenamentos designadamente nos arts. 114.º e seguintes, e
jurídicos, em função das competências efetiva- de prever um estatuto desses órgãos e das au-
mente “devolvidas” ou atribuídas pelo Estado tarquias (freguesias, municípios e regiões ad-
aos organismos regionais, por um lado, o fe- ministrativas – art. 236.º) baseado na represen-
nómeno da regionalização administrativa, em tação democrática (cf. art. 239.º).
sentido amplo – que implica a simples divisão De qualquer modo, a distinção entre descen-
do território (nacional ou estatal) em porções tralização política e descentralização adminis-
de menor dimensão, muito variáveis consoan- trativa é tipicamente europeia, sendo por isso
te o significado e a importância destas – e, por ignorada ou até expressamente contestada nos
outro lado, o fenómeno do regionalismo polí- Estados Unidos da América, onde se conside-
tico – que pressupõe uma diferenciação regio- ra seguro que a descentralização administrati-
nal significativa e consciente nos planos cultu- va reveste necessariamente a natureza de um
ral, histórico e também geográfico, em geral fenómeno político. Mesmo na Europa, alguns
reclamada pela população da circunscrição autores franceses e espanhóis (como Esteban/
regional, implicando não apenas a identifica- González-Trevijano) qualificam a descentrali-
ção e o reconhecimento das especificidades zação como questão “eminentemente políti-
da região e das suas populações, dificilmente ca”, por implicar uma redistribuição geográfica
80 ¬ A utonomia

do poder e por a sua efetivação se repercutir de independência (movimentos muito ativos


necessariamente sobre o equilíbrio das forças ainda, e.g., na Catalunha, na Escócia e na Lom-
locais e nacionais, não correspondendo assim bardia, etc.).
apenas a uma simples técnica de administração. Certos objetivos económicos figuram em
No entanto, o problema não consiste, segura- geral, desde a origem, nas cartas estatutárias
mente, numa eventual confusão entre descen- das regiões (e.g., na Sicília e na Sardenha). No
tralização política e razões políticas da descen- entanto, foram sobretudo os riscos de secessão,
tralização administrativa. A distinção tem sido na Sicília e no Vale da Aosta, a seguir à Segun-
aceite pela maioria da doutrina da Europa con- da Guerra Mundial, que influenciaram larga-
tinental, mesmo em Espanha, onde a estrutu- mente a reforma regional italiana que satisfez
ra constitucional do Estado parecia conduzir desse modo, em maior ou menor medida, os
à substituição do conceito de descentralização movimentos autonomistas e independentistas.
política pelo de autonomia. Em Espanha, a tensão centralismo versus re-
O critério distintivo entre descentralização gionalismo e também independentismo é se-
administrativa e descentralização política ba- cular, tendo o centralismo continuado a conso-
seia-se no tipo de funções do Estado. Enquanto lidar-se com o constitucionalismo do séc. xix; a
a primeira incide exclusivamente sobre a fun- divisão em províncias e a organização adminis-
ção administrativa, tal como a concebe a mo- trativa em que se apoiava, foram, desde então,
derna teoria das funções do Estado, a segunda o máximo expoente do centralismo (ESTE-
trata de mais do que essa função, envolven- BAN e GONZÁLEZ-TREVIJANO, 1994).
do funções políticas, ou a função governativa No final do séc. xix, notava-se o peso do cen-
(CAUPERS, 1994). tralismo em toda a Espanha, sem terminar o
Menos profícua se afigura a contraposição pleito entre o poder central e as reivindicações
entre um regionalismo político “de princípio”, regionais (sobretudo na Catalunha e no País
no sentido de ter “um fim em si mesmo, em Basco, que, após a Constituição de 1931, con-
função de certos ideais – regionalismo sobretu- seguiram a aprovação dos seus estatutos, em
do sentimental, político e retrospetivo”, e um 1932 e 1936, respetivamente, abolidos, no en-
regionalismo “instrumental” ou “funcional”, tanto, tal como a Constituição, na sequência da
nos termos do qual as regiões são entendidas vitória nacionalista, que sufocou e perseguiu
como meio de prover a realização de um certo duramente as reivindicações regionais, sem as
conjunto de objetivos concretos, sobretudo no conseguir suprimir, agudizando-as mesmo, no
domínio económico, considerado essencial- caso do País Basco.
mente “técnico e moderno”, para recorrer à Em Itália – como mais tarde em Espanha e
terminologia proposta por Palazzoli (PALAZ- também em Portugal, embora com matizes
ZOLI, 1966). díspares –, a solução regional constituiu um
Se, em países como a França, o regionalismo poderoso fator de integração, como observa
moderno foi entendido essencialmente como Jean-Louis Quermonne, no prefácio à obra de
instrumento destinado a melhor estruturar e Claude Palazzoli. Enquanto em França surgiu
estimular o desenvolvimento e crescimento primeiro o planeamento económico regional
económico, o mesmo não deve considerar-se e só depois as regiões, em Itália o primeiro a
em relação a outros países, como Itália e Espa- despontar foi o regionalismo autónomo e só
nha ou Portugal, onde o fundamento histórico depois se aprofundou o planeamento e a pro-
para a instituição ou reconhecimento do regio- gramação regional. Evidentemente, os estatu-
nalismo assumiu uma natureza essencialmente tos autonómicos variam muito entre si, não
política, há muito reclamada por movimentos apenas nas situações referidas de Espanha e de
regionalistas – e, por vezes, independentistas, Itália, mas em geral.
quando o objetivo último é a rutura comple- O regime autonómico regional previsto
ta com o Estado e a consequente declaração na Constituição da República Portuguesa de
A utonomia ¬ 81

1976 para os arquipélagos da Madeira e dos nos mais diversos planos – normativo, político,
Açores compreende diversas dimensões de institucional, financeiro.
autonomia regional, em especial, conforme Todas estas modificações de fundo decorren-
já foi mencionado, autonomia política, auto- tes do estabelecimento da autonomia regional
nomia normativa, maxime legislativa, autono- justificam, sem dúvida, as novas designações
mia administrativa e autonomia financeira “Estado unitário regional” e, também, “Estado
(incluindo autonomia orçamental, autono- regional”, mas não no sentido de um Estado
mia patrimonial, autonomia fiscal e autono- integralmente, apenas parcialmente, regional.
mia creditícia), entendidas como liberdade Quer a conceção constitucional da autono-
de ação e de decisão num quadro de compe- mia regional e do regionalismo político, quer
tências atribuídas constitucional e estatuta- a sua teorização moderna são relativamente re-
riamente e em geral não sujeitas a controlo centes, apontando-se geralmente como mar-
ou tutela por parte dos órgãos de governação cos fundadores as Constituições espanhola de
central. 1931 e italiana de 1947, sem prejuízo de se co-
Esta intensa componente regional do Esta- nhecerem exemplos anteriores de Estados re-
do português, tal como prevista e garantida gionais, como a Áustria, antes de 1918, ou o
pela Constituição e pelas leis vigentes, apesar Brasil, no Império, após a revisão constitucio-
de circunscrita aos arquipélagos da Madeira e nal de 1834.
dos Açores, levou a doutrina constitucional a A distinção básica relativa às formas do Esta-
dividir-se quanto à qualificação ou não da res- do, entre Estados simples ou unitários e Esta-
petiva natureza como verdadeiro “Estado re- dos compostos ou complexos, ganha relevân-
gional”, ou “Estado unitário regional”, até ao cia somente no contexto de um de entre os
ponto de pôr eventualmente em crise a quali- vários tipos históricos de Estado, tal como pas-
ficação tradicional e literal das leis como “Esta- saram a ser enumerados desde Jellinek (Esta-
do unitário”. do oriental, Estado grego, Estado romano, “Es-
Certo é que o Estado português continua a tado” medieval e Estado moderno). Por isso,
não ser uma espécie de Estado federal, sem a distinção entre Estado unitário e Estado fe-
prejuízo de já terem sido apresentadas propos- deral justifica-se apenas no contexto do Estado
tas nesse sentido, designadamente no decur- moderno de tipo europeu e, sobretudo, a par-
so da quarta revisão constitucional, com vista tir do despontar do constitucionalismo, como
a tornar a Madeira e os Açores em espécies de observa, conjuntamente com outros autores,
“Estados federados” de um alegado “Estado fe- Jorge Miranda.
deral” ou equiparado. De qualquer modo, as formas de Estado
A Constituição portuguesa em vigor é ine- não se confundem com formas de governo ou
quívoca ao dispor, no art. 225.º-3, que “A auto- com sistemas de governo, nem com regimes
nomia político-administrativa [dos Açores e da políticos.
Madeira] não afeta a integridade da soberania Enquanto a forma de Estado corresponde
do Estado...”, poder soberano que, por isso, se ao modo de o Estado dispor o seu poder em
mantém uno (“O Estado é unitário...”, na reda- relação com outros poderes de natureza se-
ção do art. 6.º-1). melhante, em termos de coordenação e de
Contudo, mesmo os autores que defendem subordinação, bem como quanto ao povo e
e sublinham sem reservas a natureza unitária ao território, que se sujeitam a um ou a mais
do Estado português, considerando-a pouco do que um poder político, a forma de gover-
ou nada prejudicada pela consagração cons- no, diversamente, trata-se do modo de uma
titucional, em 1976, do novo estatuto da au- comunidade política organizar o seu poder
tonomia regional, não excluem certamente o e de estabelecer a diferenciação entre gover-
significado profundo e os efeitos inovatórios nantes e governados à luz de certos princípios
substanciais inerentes ao regionalismo político políticos.
82 ¬ A utonomia

Quanto ao sistema de governo, abrange ape- política tem sempre base territorial, a des-
nas o conjunto de órgãos de função políti- centralização estritamente institucional ou
ca e o modo como está internamente organi- funcional não tem natureza política, apenas
zado, incluindo os poderes e os estatutos dos administrativa.
governantes. Quanto ao Estado composto ou complexo,
No que respeita aos regimes políticos, cor- de base geográfica e territorial (como o Esta-
respondem a expressões e concretizações das do regional), abrange a federação ou Estado
várias constituições ou leis fundamentais, re- federal e a união real de Estados. Em ambos
conduzindo-se a grandes tipologias – Estado os casos, há uma associação ou união de Es-
liberal, Estado social de direito, Estado soviéti- tados que dá origem a um novo Estado, que
co, Estado fascista –, não perduráveis tanto, em vai englobar os Estados que o compõem. Na
regra, quanto as formas de Estado, apesar de federação são criados órgãos de governo com-
substancialmente mais compreensivas, por en- pletamente distintos dos órgãos dos Estados
volverem amplos domínios como o dos direi- membros e um sistema jurídico e político-cons-
tos fundamentais da pessoa humana e o siste- titucional novo, com uma estrutura de sobre-
ma de organização económica, para além dos posição; na união real, ao invés, são aproveita-
aspetos políticos estruturais, que determinam dos e elevados a comuns alguns dos órgãos dos
a forma de Estado. Estados membros (a respetiva estrutura resulta
Os critérios de distinção essencial entre os da fusão ou comunhão institucional).
Estados unitários ou simples e os Estados com- Apesar de a maior parte dos Estados do
postos ou complexos assentam na unicidade mundo ser unitária e centralizada, isso não
ou pluralidade de (i) poderes políticos ou so- significa que a forma unitária seja ou deva ser
beranos na ordem interna, de (ii) ordenamen- considerada a normal; tão normais como o
tos jurídicos originários ou de Constituições, Estado centralizado são o Estado regional e
de (iii) sistemas de funções e órgãos do Estado, o Estado federal
e de (iv) centros de decisão política a se (como Acrescente-se que qualquer Estado, mesmo
sintetiza Jorge Miranda). o Estado federal, é unitário, no sentido de
O Estado unitário pode corresponder a um que, na respetiva estrutura interna, o respetivo
(i) Estado unitário centralizado ou a um (ii) Es- poder é uno (característica que se revela par-
tado unitário descentralizado ou regional. ticularmente evidente nos domínios da defesa
Presentemente, todos ou quase todos os Es- nacional ou da representação externa, perante
tados do mundo admitem descentralização ad- outros Estados e organizações internacionais –
ministrativa, seja de âmbito territorial (através como as Nações Unidas ou a União Europeia).
da existência e funcionamento de municípios, O Estado regional pode ser integral ou par-
freguesias e outras circunscrições administra- cialmente regional, consoante a totalidade ou
tivas, mais ou menos extensas), seja de âmbito apenas parte do respetivo território se encontre
institucional ou funcional (através da existên- dividida em regiões politicamente autónomas.
cia e funcionamento de associações, funda- No Estado parcialmente regional – como o
ções, institutos e outras formas de entidades Estado português desde a entrada em vigor da
públicas). Constituição de 1976 – só uma parte do terri-
Pelo contrário, só alguns Estados do mundo tório está dividida em regiões politicamente
admitem, no começo do séc. xxi, descentrali- autónomas (no caso português, a parte cor-
zação política, através da existência e funciona- respondente aos arquipélagos dos Açores e
mento de províncias ou regiões politicamente da Madeira); as restantes partes do território
autónomas, cujos órgãos de governação exer- do Estado podem ser ou não divididas em re-
cem algumas funções políticas, de natureza le- giões ou outra modalidade de circunscrições
gislativa e governativa, a par dos órgãos cen- admitidas pela Constituição e pela lei, com
trais do Estado. Enquanto a descentralização maior ou menor (ou nenhuma) autonomia
A utonomia ¬ 83

administrativa, verificando-se, desse modo, di- região autónoma, criados


versidade de condições jurídicas e políticas de e reconhecidos como tal,
região para região. e democraticamente le-
Diversamente, a Espanha e a Itália, bem como gitimados em regra por
a África do Sul, com a Constituição de 1996, meio de eleições gerais,
correspondem a Estados regionais integrais. nos termos e com os limi-
Independentemente de estarmos perante tes do estatuto especial de
um Estado integral ou parcialmente regional, autonomia (política) re-
o Estado regional pode ser homogéneo – se o gional, cujas linhas mes-
estatuto e o modo de organização e de funcio- tras se encontram previs-
namento regionais forem uniformes ou idênti- tas na Constituição e em
cos para todas as regiões – ou heterogéneo – se outras leis fundamentais
o estatuto e o modo de organização e de fun- do Estado;
cionamento das regiões forem diversos, com (ii) autonomia normati-
Fig. 12 – Manual
regiões de estatuto comum e regiões (ou re- va ou legislativa regional, de Direito Constitucional
gião) de estatuto especial. estreitamente conexa e (2010), de Jorge Miranda.
A Itália e a Espanha constituem exemplos em certa medida abrangi-
atuais de Estados regionais heterogéneos, por da pela noção de autonomia política regional,
disporem de regiões com estatuto especial abrange essencialmente a capacidade de os ór-
(como a Sicília, a Sardenha e o Vale de Aosta, gãos de governo próprio regional, democrati-
em Itália) e de comunidades autónomas com camente eleitos e legitimados, poderem criar
regimes diferentes (em Espanha). normas jurídicas e regulamentos, a que todos
Evidentemente, o grau de descentralização os entes (pessoas singulares e coletivas, públi-
política varia muito de Estado para Estado re- cas e privadas) ficam sujeitos, no território re-
gional, resultando da vontade política plasma- gional, em conformidade com a Constituição
da nos respetivos estatutos regionais, em geral do Estado e com o estatuto especial de autono-
atribuídos ou pelo menos reconhecidos pelo mia regional em vigor – é ao abrigo do poder
poder central, sem prejuízo de por vezes se de criar normas jurídicas gerais e abstratas que
admitir a participação dos órgãos de governa- as regiões autónomas portuguesas estabelecem
ção regional na revisão dos estatutos da região decretos legislativos regionais, que são verdadei-
(como sucede com as regiões autónomas por- ros atos legislativos ou leis, de âmbito regional
tuguesas e também com as regiões italianas), (cf. o art. 112.º da Constituição, em especial os
tal como pode variar muito com o decurso do n.os 1 e 3);
tempo, sobretudo, mas não apenas, por se tra- (iii) autonomia administrativa regional, res-
tar de um instituto relativamente recente. peitante à existência e ao funcionamento de
Da diversidade de grau da descentralização uma administração pública regional, distinta
política prevista e efetivamente experimentada no sentido de autónoma e específica relativa-
num determinado Estado emerge a distinção, mente e em certa medida em contraposição,
frequente e compreensiva, já anteriormente embora em articulação e cooperação, com a
aflorada, da autonomia regional em dimen- administração pública do Estado central, por
sões distintas, em função dos domínios subs- um lado, e com a administração pública local e
tanciais abrangidos e das perspetivas de análi- outras modalidades de administração pública
se. Fala-se, então, designadamente, em: (direta, indireta, autónoma, empresarial), de
(i) autonomia política regional, que inclui âmbito regional ou de âmbito nacional ou
a atribuição de um conjunto de poderes e de de âmbito local);
funções de natureza política e governativa, tipi- (iv) autonomia financeira regional, relativa
camente exercidos pelo Estado mas suscetíveis aos poderes atribuídos aos órgãos de governo
de atribuição aos órgãos de governo próprio da próprio da região autónoma em matéria de
84 ¬ A utonomia

finanças públicas e direito financeiro, os quais bilateral ou sinalagmática, e também são in-
podem ser subdivididos, mais especificamente, cluídas nos tributos –, para além dos poderes
como o são habitualmente, em: para lançar, liquidar e cobrar esses tributos.
(iv-a) autonomia orçamental regional, ati- Em todas as situações de autonomia regional
nente ao domínio orçamental ou financeiro enunciadas, e noutras que poderiam ser en-
em sentido estrito (poderes autónomos para saiadas e especificadas, os poderes atribuídos à
a aprovação e também para a execução anual região autónoma devem ser sempre exercidos
do Orçamento da região autónoma, que, em em conformidade com e dentro dos limites do
geral, à imagem do Orçamento do Estado, disposto na Constituição, nos estatutos pró-
contém a previsão e a autorização política para prios de autonomia regional e ainda em outras
a cobrança de todas as receitas e para a reali- leis aplicáveis, em articulação e sem prejuízo
zação de todas as despesas públicas regionais de um conjunto delimitado de poderes polí-
durante o período da respetiva vigência – de ticos, legislativos e financeiros constitucional-
1 de janeiro a 31 de dezembro de cada ano mente reservados para o Estado central.
civil – em conformidade com múltiplas dispo- Atendendo à complexidade e às especificida-
sições específicas); des das várias dimensões de autonomia regio-
(iv-b) autonomia patrimonial regional, que nal, cujos conteúdos e significados são dinâmi-
abrange um conjunto de poderes através dos cos, porque variam com o decurso do tempo
quais os órgãos de governo próprio e os órgãos e por todo o tipo de influências, em especial
da administração pública regional, legalmente do legislador mas não apenas dele, também
subordinados aos primeiros, procedem à aqui- dos seus múltiplos intérpretes (designadamen-
sição, administração e disposição dos bens que te do Tribunal Constitucional), bem assim do
passarão a integrar, já integram ou deixarão modo como têm sido exercidos os diversos
de integrar o património (duradouro, não du- poderes por parte dos seus principais aplica-
radouro, imobiliário, mobiliário, de tesoura- dores, que são os titulares dos órgãos de Go-
ria...) da região autónoma; verno regional, e por outros entes, enfim, por
(iv-c) autonomia creditícia regional, que en- tudo isso justifica-se o desenvolvimento de di-
volve os poderes jurídicos necessários à contra- ferentes dimensões da autonomia regional em
ção ou emissão (venda), à gestão e ao reem- alguns textos autónomos, ora mais gerais ora
bolso (aquisição) de títulos de dívida pública mais específicos (a começar, sistematicamente,
da região autónoma e de outros entes públicos quanto aos primeiros, por Região autónoma.
regionais; Tendo a autonomia regional por ponto de
(iv-d) autonomia tributária regional, maxi- referência central a região autónoma, impor-
me autonomia fiscal regional, que pode in- ta observar que tanto esta última como aque-
cluir os poderes habilitantes para a criação, la podem ser entendidas em sentidos diversos,
modificação e extinção de tributos (maxime enquanto conceito, enquanto instituição jurí-
de impostos), que constituem receitas públicas dico-política, enquanto realidade social.
coativas exigíveis a todos os sujeitos jurídicos, Se a explicação teórica da noção de região
públicos ou privados, no território regional, de se situa no plano conceitual, a sua qualifica-
que é credora a região autónoma – entre os tri- ção política e jurídica basear-se-á no respeti-
butos evidenciam-se os impostos propriamente vo posicionamento na teoria geral do Estado,
ditos, dada a sua grande relevância financeira, tendo em vista determinar, designadamente,
mas incluem-se igualmente as designadas con- qual o seu significado preciso, qual o grau de
tribuições especiais, que, apesar de algumas autonomia “política” e “administrativa” pre-
especificidades financeiras, são, do ponto de tendido, quais os respetivos limites no quadro
vista jurídico, verdadeiros impostos, com na- do Estado e como foi historicamente (ou está
tureza patrimonialmente unilateral, o que não a ser) concretizado o processo de autonomia
se verifica no caso das taxas, que têm natureza regional.
A utonomia ¬ 85

Em vez de procurar uma eventual noção “im- físicas (território) e humanas e sociais (popula-
possível” de região autónoma ou de autono- ção) subjacentes a qualquer circunscrição ad-
mia regional, dadas as condições da explicação ministrativa “de população e território”, antes
teórica e a multiplicidade das possíveis concre- complementa-as decisivamente, sem deixar de
tizações históricas, pode enveredar-se por uma realçar a circunstância de estarmos perante
abordagem mais sociológica da região através um novo ente jurídico, ao qual foi atribuído
do estudo da dimensão social da população um determinado complexo de direitos e obri-
regional à luz da experiência (o que se pre- gações (através do qual se viabiliza o relacio-
tende com a instituição desta ou daquela re- namento com outros entes ou sujeitos, sejam
gião, ou quais as relações que se têm em vista privados, públicos – de nível superior, de nível
com o meio social), com os riscos de constan- inferior ou sem uma relação de hierarquia –
te ou mesmo vertiginosa mutação do objeto ou com outra natureza), e ainda de identificar
estudado. a região como uma realidade política e jurídi-
Do ponto de vista do Estado, os fenómenos ca, mas também social e culturalmente dinâ-
do regionalismo político e também da regiona- mica, simultaneamente conformada por toda
lização podem consistir numa fórmula mais ou a realidade que a envolve e igualmente confor-
menos indireta e sofisticada de integração na- madora dessa realidade.
cional, conforme notado a propósito do caso Podemos distinguir pelo menos dois proces-
italiano. sos que se encontram frequentemente na ori-
Do ponto de vista das forças vivas regionais, gem das divisões territoriais nacionais, já men-
a criação e/ou o reconhecimento de regiões cionados anteriormente: a “desconcentração”
políticas pode representar um meio de defe- e a “descentralização” administrativas do apa-
sa ou de salvaguarda de particularismos regio- relho do Estado.
nais, um incentivo ao crescimento e ao desen- No caso de uma situação de mera “descon-
volvimento económico e social da população centração” administrativa de poderes, um ser-
regional, e a garantia e uma participação mais viço público ou um conjunto de serviços do Es-
justa dos habitantes das regiões nos benefícios tado pode passar a exercer competências com
da pertença ao todo nacional. alguma autonomia numa dada circunscrição
Nesta perspetiva, a autonomia regional, para do território nacional, mas também com su-
além de relativa, é também seletiva, no sentido bordinação aos poderes de direção do Gover-
de com ela se pretender filtrar (e congregar) no central (para além da “desconcentração”
as vantagens e (excluir) os inconvenientes do geográfica, fala-se ainda em “desconcentração”
processo de integração ou de coesão nacional. meramente técnica, funcional ou vertical, i.e.,
A dificuldade imediata respeitará à qualificação sem projeção geográfica).
da natureza positiva ou negativa dos fins iden- Se tudo continuar a processar-se no âmbi-
tificados, que as populações envolvidas preten- to da pessoa coletiva Estado, estaremos ainda
dem prosseguir, e talvez mais ainda das, ou de perante uma variante da centralização. Sim-
algumas das, medidas concretamente adotadas plesmente, por razões de eficiência interna, a
com vista a alcançar aqueles ou outros fins. competência para o exercício de determinada
Na ótica da ciência política, a região é um função é atribuída a um órgão “regional” (ou
espaço de exercício autónomo do poder polí- então “central especializado”), no sentido de
tico, enquanto para a ciência do direito a ideia encarregado de uma área territorial inferior
de região corresponde a uma nova entidade ao território nacional (ou de uma tarefa es-
ou pessoa coletiva pública à qual são atribuí- pecial no âmbito da administração central),
das competências relativas a um território de em relação à qual tem (ou se supõe dever
extensão intermédia, inferior ao do Estado e ter) maior conhecimento, em razão da pro-
superior ao das autarquias locais. Esta noção ximidade e das responsabilidades funcionais
não prescinde, sem dúvida, das características específicas.
86 ¬ A utonomia

Ao invés, no caso da descentralização de po- atualidade, sobretudo desde as revoluções libe-


deres do Estado, são instituídos outros entes rais do séc. xix.
aos quais é atribuída por lei “personalidade O grau de autonomia da nova estrutura or-
jurídica”, passando por isso a ser designados ganizativa individualizada e, consequentemen-
como “pessoas coletivas” públicas, cujos órgãos te, personalizada pela ordem jurídica, a região,
representativos vão atuar autonomamente, varia muito, compreendendo mais ou menos
cumprindo de qualquer modo o disposto nas direitos e deveres, incluindo competências ad-
leis do Estado, em especial na lei fundamental ministrativas e financeiras, podendo atingir um
hierarquicamente superior designada Consti- patamar elevado ou “máximo” de autonomia fi-
tuição, e por isso com sujeição, pelo menos, a nanceira (frequentemente designada “indepen-
certas modalidades de fiscalização estatal (es- dência orçamental” por parte da doutrina) e de
sencialmente de natureza jurisdicional). autonomia política.
Enquanto no processo de mera desconcen- Algumas autarquias infraestatais – como é o
tração administrativa de poderes está pre- caso dos municípios, em vários países europeus,
sente a hierarquia e ausente a personalida- incluindo Portugal, por influência secular do
de jurídica, na descentralização esta última é direito romano – são (muito) mais antigas do
imprescindível. que os próprios Estados modernos. Exigências
A descentralização pode revestir diversas for- de abertura, de participação geral dos cidadãos
mas, umas mais outras menos dependentes do e de controlo múltiplo destas entidades públi-
Estado, incluindo entre elas a descentralização cas levaram a que os seus responsáveis máximos
territorial, que compreende a criação de autar- passassem a sujeitar-se, quase generalizadamen-
quias locais, que são pessoas coletivas públicas te, por um lado, a sufrágio direto e universal e,
“de população e território” , com um substra- por outro, às mais diversas modalidades de fis-
to humano e territorial, reconhecido pelo di- calização e de responsabilização pelo exercício
reito, que lhes atribui personalidade jurídi- de funções públicas, por decorrência do apro-
ca. A descentralização (territorial) do Estado fundamento e aperfeiçoamento dos ditames do
confunde-se, por isso, frequentemente, com a Estado de direito democrático.
regionalização. A noção de região como mera forma de des-
Não estaremos perante uma região, em senti- concentração burocrática do aparelho de Esta-
do jurídico, i.e., dotada de personalidade jurídica do, e.g., para efeitos de programação ou de pla-
própria, quando determinados serviços, embora neamento económico, tem origens antigas em
com poderes sectoriais ou gerais sobre uma de- vários países. Em Itália, e.g., surgiu logo após a
terminada circunscrição, não se diferenciem or- unificação nacional, com o projeto de Farini-
ganizatória e institucionalmente do Estado. -Minghetti, de 1860-1861.
Consequentemente, só se justifica falar em re- Outros países, incluindo Portugal, e sobretu-
gião em sentido jurídico quando surge e passa do com preocupações de racionalidade organi-
a existir um novo ente coletivo a cuja esfera ju- zatória do território, tinham já experimentado
rídica autónoma são daí em diante imputáveis divisões anteriores ou projetado novas divisões
direitos e obrigações atinentes a uma dada cir- territoriais, à escala regional (i.e., intermédia,
cunscrição territorial de nível “intermédio” (i.e., entre a escala nacional e a escala local), quase
de nível inferior ao espaço correspondente ao sempre invocando critérios “naturais”, ou quali-
Estado e superior ao nível local). ficados como tais, apesar das dúvidas suscitadas
Enquanto os titulares dos órgãos dessa pessoa quanto a essa alegada homogeneidade.
coletiva pública forem designados pelo poder Gradualmente ganharam relevância fatores
central do Estado, e deste dependerem para sociais e humanos, muitas vezes complementar-
autorização de parte substancial dos atos pra- mente a critérios naturais, na definição não ape-
ticados, faltará legitimidade democrática, um nas científica e doutrinária, mas também admi-
aspeto com relevância crescente e decisiva na nistrativa e política, do conceito de região.
A utonomia ¬ 87

Diversamente, a região, entendida como ente instância superior. Dispondo o ente descentrali-
político e jurídico autónomo, dotado de pode- zado de atribuições e poderes próprios, prosse-
res de (auto)governo, tendo, no entanto, por guindo interesses próprios, inexiste um poder
referência e por base uma determinada divisão de direção do Estado sobre ele.
territorial do Estado e os cidadãos com uma li- A autonomia regional significa, assim, a facul-
gação jurídico-política relevante a essa divisão dade de o ser racional ditar as leis morais por
territorial, é uma construção recente. que se rege e, no domínio jurídico, significa o
Um dos exemplos pioneiros e mais elucidati- poder de instituir as normas jurídicas próprias.
vos do regionalismo político moderno no sen- Neste quadro teórico, ao considerar-se in-
tido aqui mencionado, o italiano, surgiu, ou suficiente a autonomia local e provincial para
foi reconhecido como tal, somente após a Se- representar cabalmente a realidade social do
gunda Guerra Mundial, com a Carta Constitu- país e para alcançar a maior eficiência do Esta-
cional de 1948. do, o movimento regionalista tem normalmen-
Pode sustentar-se, com Batista Machado, que te por objetivo oferecer uma nova forma de
o Estado deve reconhecer a liberdade dos entes organização dos poderes públicos a um nível
organizativos infraestatais, em nome de um considerado mais adequado para a articulação
princípio superior de direito assente num im- territorial das modernas funções públicas, in-
perativo ôntico-normativo limitador do âmbito cluindo a função de intervenção e de orienta-
de competência do poder, em nome de uma re- ção sobre a economia e de melhor organização
lação profunda entre descentralização adminis- do território, evitando ao mesmo tempo even-
trativa e estrutura liberal do Estado. tuais fraturas entre o Estado nacional e outros
Neste contexto, para ser verdadeiramente le- entes públicos locais, i.e, sem prejudicar a auto-
gítimo, o poder democrático da maioria reuni- nomia e o autogoverno das autarquias de nível
do no Estado deve respeitar as autonomias ou inferior.
esferas próprias de competências das entidades A configuração das regiões ou comunidades
infraestatais, tendo, por conseguinte, de con- autónomas no seio dos Estados varia muito com
finar-se à respetiva esfera própria. Segundo o os países, podendo traduzir-se, juridicamente,
autor citado, não pode considerar-se democráti- na vigência de um estatuto unitário ou homogé-
ca a desconsideração ou o não reconhecimento neo, idêntico para as diversas regiões, ou então
de autonomia de organização e de gestão às co- de estatutos variados ou heterogéneos, mais ou
letividades, que lhes pertence por natureza pró- menos diferenciados consoante as particulari-
pria. A igualdade sem liberdade (o direito à au- dades regionais neles previstas.
to-organização e à autodeterminação) constitui, Em Itália, e.g., existem as regiões de “estatu-
assim, deturpação da democracia. to ordinário” e as regiões de “estatuto especial”,
Se o Estado é do povo, a autodeterminação po- fundadas em especificidades regionais (existên-
lítica deve ser reconhecida como algo que lhe é cia de fortes minorias linguísticas, de movimen-
anterior e superior. As competências do Estado, tos separatistas, ou de outras particularidades
enquanto “facto de autoridade” que se impõe, históricas, culturais ou naturais), cujo estatuto
têm de ficar limitadas sob pena de esse poder tem divergido com as alterações legislativas. En-
privar os cidadãos da liberdade de se auto-orga- contramos uma diferenciação de algum modo
nizarem e de se autodeterminarem em quadros comparável entre as comunidades autónomas
organizatórios diversos, por eles escolhidos. espanholas, de “regime comum” e de “regime
Ao invés da participação política, em que o especial”, com particularidades designadamen-
quadro da ação se encontra predeterminado, te no plano financeiro e tributário.
na descentralização deparamo-nos perante a Outra distinção permite contrapor as comu-
ideia de auto-organização e de autodetermi- nidades ou regiões de “via lenta” às de “via rá-
nação política, segundo um princípio de auto- pida”, conforme o momento histórico de trans-
nomia, por forma independente de qualquer ferência das competências regionais.
88 ¬ A utonomia

A França, e.g., fiel à sua história centralizado- regional ocorreu com a Constituição de 1976,
ra, manteve durante muito tempo os departa- que erigiu os arquipélagos dos Açores e da Ma-
mentos – criados na época da Revolução, segun- deira em “regiões autónomas dotadas de estatu-
do uma lógica centralizadora (o Estado é uno; tos político-administrativos próprios”, sem pre-
os departamentos não são mais do que secções juízo de o Estado se manter unitário (art. 6.º).
de um mesmo todo) e artificial, i.e., sem apro- Isso não significa que a tradição não tivesse
veitamento das divisões territoriais sedimenta- sido de ampla autonomia de decisão adminis-
das pela história – para aí instalar os agentes do trativa e política insular, resultante das dificul-
Estado, sem embargo de um avanço no sentido dades de comunicações e também da estrutura
do processo descentralizador (com a lei de 2 de relativamente descentralizadora do regime an-
março de 1982). As medidas de descentralização tigo, com as donatarias iniciais, extintas pelo
são relativamente recentes, nunca atingindo ou marquês de Pombal, e com os capitães-gene-
se aproximando dos extremos regionalistas, por rais, nomeados por Filipe II, para os Açores e
vezes à beira da independência, tal como expe- para a Madeira.
rimentados em alguns países vizinhos, sobretu- Com o advento da monarquia liberal, procu-
do em Espanha (sendo disso exemplo maior a rou-se integrar os dois arquipélagos num mo-
Catalunha), mas também, persistentemente, na delo jurídico-institucional e financeiro que os
Bélgica, entre outras situações. aproximasse de circunscrições ou autarquias e
Só em 1955 foram previstos, em França, por centros de decisão regionalizados, semelhan-
decreto, “programas de ação regional”, com tes aos existentes no território continental
reagrupamento dos departamentos em 21 cir- europeu, caracterizados pela centralização e
cunscrições regionais, para efeitos de prosse- uniformização, ambas facilitadas pela relativa
cução do desenvolvimento económico e do proximidade geográfica e por mutações técni-
ordenamento do território. O projeto de lei cas, incluindo a modernização verificada nos
submetido a referendo em abril de 1969 pre- transportes marítimos e nas telecomunicações,
via a transformação das circunscrições regio- ao longo dos sécs. xix e xx.
nais em coletividades dotadas de uma assem- O conhecimento dos problemas regionais
bleia eleita. A derrota por sufrágio popular do e locais e a resposta aos mesmos tornaram-se
projeto legislativo manteve em aberto o deba- muito mais céleres no decurso do liberalismo
te entre os defensores do “poder regional” nos monárquico e republicano, permitindo uma
confins do federalismo e os defensores do re- adaptação e assimilação regionais aos proces-
gionalismo prudente e temperado, defendido sos decisórios adotados para as autarquias e
pelo Presidente Pompidou. centros de decisão e de interesses desconcen-
A lei de 5 de julho de 1972 manteve na “re- trados do território continental.
gião” a natureza de circunscrição administra- Em 1836, com Passos Manuel, foram criados
tiva do Estado para efeitos económicos e tam- três distritos insulares nos Açores e um na Ma-
bém reconheceu “personalidade regional”, deira. Esta uniformização administrativa, con-
sob a forma de um estabelecimento público jugada com altas de preços e a extinção do
com atribuições, órgãos e recursos próprios. Tribunal da Relação dos Açores e das juntas ge-
A região tornou-se em coletividade descen- rais, contribuiu para o subsequente desconten-
tralizada pela lei de 2 de março de 1982, embo- tamento populacional e, por fim, para o movi-
ra as eleições dos respetivos órgãos só tenham mento autonomista.
sido concretizadas em 1986. As sucessivas re- A necessidade de atribuir maiores pode-
formas deixaram intacta a divisão regional ini- res aos distritos insulares conduziu, por fim,
cial (tendo sido acrescentada, em 1976, uma ao estabelecimento do regime autonómico,
nova região – Île-de-France – às 21 iniciais). descentralizador, de João Franco e Hintze Ri-
Quanto a Portugal, conforme já foi referido, beiro, instituído pelo dec. de 2 de março de
a grande viragem em matéria de organização 1895, alterado posteriormente e aplicado
A utonomia ¬ 89

sucessivamente a Ponta Delgada, em 1895, O regime autonómico português foi ampla-


Angra do Heroísmo, em 1898, Funchal, em mente modificado pelo estatuto dos distritos
1901, e Horta, em 1939. autónomos das ilhas adjacentes, previsto pela
O surgimento do primeiro regime autonómi- lei n.º 1967, de 30 de abril de 1938, e aprova-
co português, em 1895, coincidiu com a apro- do pelo dec.-lei n.º 30.214, de 22 de dezem-
vação do Código Administrativo, de sentido bro de 1938, revisto e republicado pelo dec.-
centralizador, aplicado no território continen- -lei n.º 36.453, de 4 de agosto de 1947, todos
tal após aquela data. com influência direta de Marcelo Caetano e
Com relevância para o regime autonómico e no contexto do objetivo de institucionalização
para a descentralização do Estado em Portugal, do Estado Novo, que incluiu, designadamente,
a lei n.º 88, de 7 de agosto de 1913, estipulou que a aprovação de um Código Administrativo no
não devia ser criado qualquer novo encargo ou âmbito da administração local autárquica e da
despesa pública sem que simultaneamente fosse administração central desconcentrada ou peri-
prevista uma receita suficiente para o efeito. férica do Estado ao nível local.
No entanto, a tendência geral centralizado- O novo regime autonómico insular portu-
ra foi reforçada durante o regime autoritário guês de 1938, revisto em 1947, perdurou até
conhecido por Ditadura Militar, entre 1926 ao dia 25 de abril de 1974, compreendendo or-
e 1933, e nos primeiros anos de vigência da ganicamente um governador de distrito autó-
Constituição de 1933, que acentuou a men- nomo, nomeado pelo Governo e com poderes
cionada tendência de centralização de pode- muito reforçados comparativamente aos go-
res, sem prejuízo da admissão da eletividade vernadores civis dos distritos do território con-
dos órgãos autárquicos representativos, vigen- tinental, e uma junta geral, órgão de compo-
te tanto no constitucionalismo monárquico, sição parcialmente corporativa e parcialmente
como no republicano. de representação indireta, com membros es-
O modelo administrativo insular português colhidos pelos concelhos do distrito e uma co-
compreendia, fundamentalmente, órgãos au- missão executiva encarregada da administra-
tárquicos até ao nível do distrito, que, nos ar- ção corrente.
quipélagos da Madeira e dos Açores, dispu- O governador representava o Governo no
nham de mais poderes e receitas do que os dos distrito, e os órgãos da pessoa coletiva distrito,
distritos do território continental. a junta geral e a respetiva comissão executiva
Os magistrados administrativos ou governa- tinham atribuições e competências mais vastas,
dores (inicialmente designados prefeitos, com abrangendo outros domínios para além dos de-
Mouzinho da Silveira, e administradores-gerais volvidos aos distritos do território continental.
do distrito, com Passos Manuel, e só a partir de Quanto às atribuições descentralizadas devi-
1842 governadores civis, com Costa Cabral), do às suas características insulares, as juntas ge-
frequentemente militares, nomeados pelo Go- rais deliberavam em vez dos ministros do Go-
verno central, viram depois os seus poderes re- verno central, embora no quadro de um plano
forçados, designadamente entre 1926 e 1939, quadrienal por elas elaborado e submetido à
sendo coadjuvados por comissões administrati- aprovação do Conselho de Ministros.
vas em substituição das anteriores juntas gerais Financeiramente, as juntas gerais arrecada-
de distrito, que eram corpos eletivos. vam o produto de alguns impostos gerais do
O regime autonómico atribuiu às autarquias Estado – a contribuição predial, a contribui-
distritais ou juntas gerais as receitas tributárias ção industrial, o imposto profissional, o impos-
pertencentes ao Estado – as designadas contri- to sobre capitais, entre outros – nos termos do
buições diretas e seus adicionais – com o en- art. 38.º do estatuto dos distritos autónomos
cargo de suportarem o funcionamento de de- das ilhas adjacentes, e as respetivas despesas
terminados serviços públicos que no território encontravam-se sujeitas a exame e visto de uma
continental eram providos pelo Estado. comissão distrital de contas, que substituía o
90 ¬ A utonomia

Tribunal de Contas nos dois arquipélagos, em Na Madeira, foi criada uma junta de pla-
conformidade com o art. 92.º do mencionado neamento pelo dec.-lei n.º 138/75, de 18 de
estatuto. março, depois junta regional (nos termos do
Tudo somado, e recorrendo à elucidativa sín- dec.-lei n.º 101/76, de 3 de fevereiro), en-
tese feita por Sousa Franco, “a descentralização quanto nos Açores surgiu uma junta admi-
era limitada e sempre meramente administrati- nistrativa e de desenvolvimento regional, por
va, sem base nem conteúdo político (democrá- força do dec.-lei n.º 458-B/75, de 22 de agos-
tico ou outro), além de ser evidente a asfixia to, com alterações introduzidas depois pelo
financeira, com ‘receitas de vida e despesas de dec.-lei n.º 100/76, de 3 de fevereiro. Neste
morte’ (Armando Cândido); daí que o regime, último arquipélago, após uma divisão por dis-
a par da sangria emigratória, agravasse o sub- tritos, evoluiu-se para um órgão de governo
desenvolvimento, em vez de permitir atacá-lo”. único, com poderes decisórios sobre todo o
Esta situação social e politicamente muito di- território.
fícil ou mesmo insuportável deu origem, mais As juntas regionais, nomeadas pelos órgãos
nos Açores do que na Madeira, ao surgimen- do poder central revolucionário, eram pre-
to de pensadores e de correntes de opinião sididas pelo governador militar e integravam
ideológicas ou cívico-políticas a reivindicar ora seis vogais especializados nas diferentes áreas
maior autonomia, ora até o separatismo, par- administrativas. Competia-lhes elaborar regu-
ticularmente em dois momentos históricos: lamentos administrativos e executar no respe-
durante a recessão económica subsequente a tivo arquipélago os poderes que, no território
1891 e durante a Primeira República. Em vá- continental, cabiam aos ministros do Gover-
rias ocasiões, os movimentos separatistas aço- no central, ficando ainda incumbidas de pre-
rianos conseguiram concentrar grande prota- parar a transferência dos serviços periféricos
gonismo, tanto no território insular, como nas do Estado para a futura administração pública
comunidades emigrantes, sobretudo nos Esta- regional.
dos Unidos da América. Ao abrigo de amplas delegações de poderes
Por tudo o descrito, não se duvidará que as do Governo central, as juntas regionais insula-
transformações ocorridas nos arquipélagos da res deram expressão a tendências autonomis-
Madeira e dos Açores a meio da déc. de 70 tas e, por vezes, separatistas, em especial nos
do séc. xx, nos domínios político-administra- Açores, certamente estimuladas pelo contraste
tivo, financeiro, social e cultural, tenham sido político e ideológico verificado entre os terri-
das mais significativas em toda a sua história, tórios continental e os dois arquipélagos.
representando, seguramente, desde o povoa- Neste contexto histórico específico, teceram-
mento inicial até ao presente, a mais impor- -se as condições para a transferência de pode-
tante alteração estrutural global desde a da res dos órgãos de governação nacional para os
época dos descobrimentos – sem prejuízo da órgãos de governação própria dos Açores e da
respetiva consolidação nos anos e décadas Madeira, no respeitante aos serviços públicos
seguintes. de âmbito exclusivamente regional, referindo-
Com os Governos provisórios da República, -se a esse propósito uma espécie de pré-auto-
durante o período revolucionário pré-demo- nomia política regional, na expressão de Sousa
crático, entre o golpe de 25 de Abril de 1974 Franco, precisamente porque o novo regime
e a aprovação da Constituição portuguesa de de autonomia política regional só ficaria con-
1976, os governadores de distrito e as juntas sagrado com a aprovação da Constituição por-
gerais foram suspensos, tendo sido criadas em tuguesa de 1976, ainda hoje em vigor.
sua substituição juntas de governo para cada As alterações fundamentais em matéria de
um dos arquipélagos, dos Açores e da Madeira, autonomia regional ficaram logo consagradas
com algumas adaptações de pormenor e apa- com a criação da região autónoma pela nova
gamento gradual dos governadores. Constituição.
A utonomia ¬ 91

A região autónoma tornou-se, daí em dian- da conformidade das leis (também regionais)
te, no novo centro de exercício do poder po- com a Constituição e outras leis fundamentais
lítico democrático próprio regional, integra- do ordenamento jurídico, em especial a Co-
do num verdadeiro Estado regional – apesar missão Constitucional e, posteriormente, o Tri-
de, conforme referido, não se ter chegado a bunal Constitucional.
acolher esta designação no texto da Constitui- Após a receção de qualquer decreto do Go-
ção –, por influência sobretudo dos deputados verno regional que lhe tenha enviado para as-
madeirenses e açorianos eleitos pelo Partido sinatura, o representante da República deve as-
Popular Democrático (PPD, posteriormente siná-lo ou recusar a assinatura, comunicando
designado Partido Social Democrata – PSD) e por escrito o sentido dessa recusa ao Governo
inspiração no Estado regional italiano, estabe- regional, o qual poderá converter o decreto
lecido pela Constituição transalpina de 1974, em proposta a apresentar à Assembleia Legis-
e ainda noutras situações europeias de regio- lativa Regional (n.º 4 do mesmo art. 233.º da
nalismo insular autónomo (ilhas do Canal, no Constituição). O representante da República
Reino Unido, e ilhas Faröe e Gronelândia, na exerce ainda o direito de veto nos termos dos
Dinamarca). arts. 278.º e 279.º da Constituição (fiscalização
O reconhecimento de poderes legislativos e preventiva da constitucionalidade).
governativos próprios da região autónoma é a Em Portugal, por se tratar de um “Estado
característica principal típica do regionalismo unitário regional”, o poder legislativo encon-
político português e das suas “regiões políticas” tra-se repartido entre os órgãos legislativos cen-
ou “político-administrativas”, a qual permite trais (a Assembleia da República e o Governo
estabelecer uma distinção clara relativamente da República) e o ou os órgãos legislativos re-
à forma tradicional e menos intensa de auto- gionais (maxime a Assembleia Legislativa, não
nomia, de natureza meramente administrativa. sendo no entanto exclusiva, mas antes partilha-
A capacidade de as regiões autónomas portu- da com o Governo regional, a respetiva com-
guesas produzirem normas jurídicas tem ape- petência, designadamente, para regulamentar
nas por limite vago os princípios gerais do or- a legislação regional, exercer poder tributário
denamento jurídico do Estado, apesar de a sua próprio nos termos da lei ou definir atos ilíci-
determinação rigorosa tender a levantar (não tos de mera ordenação social e respetivas san-
raramente enorme) controvérsia, como suce- ções, conforme disposto no n.º 1 do art. 232.º
deu já em vários momentos mais ou menos da Constituição).
críticos da experiência das regiões autónomas As matérias de âmbito nacional cabem aos
portuguesas. A resolução desses conflitos é re- órgãos legislativos soberanos do Estado, en-
metida, em última instância, para o órgão in- quanto as matérias de âmbito regional consti-
cumbido da assinatura e ordem de publicação tuem o objeto das leis dimanadas dos órgãos
oficial dos decretos legislativos regionais e dos legislativos regionais, repartição que ficou re-
decretos regulamentares regionais, o represen- forçada, a partir de determinada altura, com a
tante da República – que, após a receção de alusão constitucional, no art. 6.º/1, ao princí-
qualquer decreto da Assembleia Legislativa da pio da subsidiariedade, enquanto trave orien-
região autónoma que lhe seja enviado para as- tadora da organização do Estado.
sinatura, ou da publicação da decisão do Tribu- As relações entre o poder central do Estado
nal Constitucional que não se pronuncie pela e o poder regional (das regiões autónomas), e
inconstitucionalidade de norma dele constan- entre estes dois poderes e o poder local (das
te, deve assiná-lo ou então exercer o seu direi- autarquias locais), tendem a gerar dificulda-
to de veto, solicitando nova apreciação do di- des e, por vezes, conflitos muito sérios. Essas
ploma em mensagem fundamentada (n.º 2 do dificuldades serão praticamente inevitáveis,
art. 233.º da Constituição) – bem assim para o pelo menos em momentos politicamente mais
órgão ou órgãos encarregados da fiscalização delicados, dada a divergência de interesses
92 ¬ A utonomia

envolvidos: nacionais, regionais e locais. As re- Assim, em vez de uma tutela “intrínseca”, es-
lações que necessariamente se estabelecem tabelecendo o conteúdo e o sentido de deci-
entre os vários níveis de governação, em áreas sões ou os interesses a realizar e um rumo de
tão díspares (do ordenamento do território e atuação, a “tutela” sobre as coletividades terri-
urbanística ao saneamento e à proteção am- toriais autónomas não pode atentar contra a
biental, para além da dimensão e da repartição sua “autodeterminação”, i.e., contra a defini-
do financiamento, entre tantas outras), não as- ção e expressão livre de interesses próprios, re-
sentam sempre em interesses comuns mas sim, gionais ou locais (pressuposto da existência de
em muitos casos, em interesses divergentes ou uma região ou de uma autarquia local), distin-
contrapostos, de arbitragem complexa e difí- tos do interesse geral (do Estado).
cil, ou mesmo impossível, sobretudo, mas não Enquanto na tutela institucional interna pre-
apenas, quando a lei não prevê uma solução valece sempre a vontade superior, na tutela
explícita para esses conflitos. sobre os entes territoriais, pelo contrário, o seu
A fim de melhor alcançar um ponto de justo exercício é feito por órgãos que não podem
equilíbrio entre os interesses comuns (nacio- definir os interesses em jogo, procedendo a
nais) e os interesses particulares regionais (ca- uma mera delimitação externa da respetiva
racterizados pela diversidade), têm sido pro- autonomia.
postos e estabelecidos diferentes mecanismos Apesar de uma certa relação de supraor-
de conciliação. denação, a tutela externa restringe-se, por-
Entre os diversos mecanismos destinados a tanto, a uma coordenação de interesses e de
promover a boa relação entre o Estado e os vontades divergentes. A incumbência de de-
entes regionais, encontramos os “represen- fender o interesse nacional e o respeito pela
tantes” da República, aos quais são atribuídas legalidade resultam da própria Constituição
essas funções, dando lugar por vezes a algu- para os órgãos de soberania, no quadro das
ma hostilidade regional, eventualmente por suas competências, sendo por isso indiferen-
simbolizarem ou lembrarem uma espécie de te que uma lei eventualmente declare a abo-
controlo de tipo colonial, pondo porventu- lição da tutela, mais como forma de profissão
ra em risco o próprio estatuto autonómico. de fé política do que de uma realidade jurí-
Para as regiões autónomas portuguesas, foi dica (para recorrer ao juízo de René Chapus,
criada, inicialmente, a figura dos ministros a propósito da lei francesa de 2 de março de
da República, depois representantes da Repú- 1982).
blica (aos quais se refere o atual art. 230.º da Como a tutela não se presume, pode limi-
Constituição). tar-se ao poder de desencadear um controlo a
Debateu-se se se justifica falar em tutela do exercer por outra entidade (o tribunal, para
Estado sobre as entidades públicas descentrali- fiscalização da legalidade) ou então abranger
zadas. Se é manifestamente descabido o para- ainda outros poderes: de aprovação, de autori-
lelismo com os estatutos de “menoridade” e de zação e de anulação de atos ou até de substitui-
“incapacidade”, que justificam a “tutela” civil, ção de uma ação não realizada (mas nunca os
será ainda de tutela que se trata, mas num sen- poderes de instrução e de reforma).
tido diverso, típico do direito público, quando Neste caso, o controlo restringe-se, em regra,
nos referimos aos poderes de controlo exerci- à apreciação a posteriori da legalidade dos atos
dos pelo Estado sobre aquelas entidades. Trata- da autoridade descentralizada por parte de ór-
-se, no entanto, de uma “tutela especial”, “radi- gãos independentes (tribunais administrativos,
calmente diversa” da exercida pelas entidades financeiros). Se abrangesse a oportunidade
públicas territoriais sobre os institutos delas dos atos, fazendo prevalecer os pontos de vista
dependentes, encarregados de assegurar um da autoridade central, o grau de autonomia
determinado interesse por aquelas definido e restringir-se-ia até ao ponto de a pôr em risco e
representado. provocar a sua erosão completa.
A utonomia ¬ 93

Todavia, as dificuldades nas relações entre Contudo, as maiores dificuldades de relacio-


os diversos entes públicos de base territorial namento entre as comunidades autónomas e
podem emergir, não da infração à lei, mas o Governo central espanhol parecem decorrer
de outros constrangimentos ao seu campo de do quadro complexo de repartição de atribui-
atuação, maxime no domínio financeiro, que é ções e competências previsto na Constituição
fortíssima e decisivamente limitador do exercí- (nos arts. 148.º e seguintes).
cio dos poderes autonómicos consagrados na Em Portugal, a matéria da cooperação dos
Constituição. órgãos de soberania com os órgãos regionais
Entre os instrumentos a que é possível re- encontra-se prevista, sem rasgo de criativida-
correr para a resolução de conflitos que sur- de, para além da evidente prudência financei-
jam entre o Estado central e as regiões autó- ra, no (atual) art. 229.º da Constituição, cujo
nomas, para além da figura do representante n.º 4 permite que o Governo da República e os
do Estado na região (ministro da República, Governos regionais acordem “outras formas de
representante da República...), temos ainda cooperação envolvendo, nomeadamente, atos
as conferências, mais ou menos informais, dos de delegação de competências, estabelecendo-
responsáveis políticos máximos dos órgãos de -se em cada caso a correspondente transferên-
governo regional (presidente e/ou secretá- cia de meios financeiros e os mecanismos de
rios do Governo regional) e do Governo na- fiscalização aplicáveis”.
cional (ministros, nas várias áreas sectoriais, e, A repartição de funções entre os níveis nacio-
nos casos mais relevantes ou graves, o próprio nal e regional de governação requer também
primeiro-ministro). uma boa coordenação de tarefas, um dos as-
As reuniões conciliatórias destinadas a ultra- petos decisivos no funcionamento do regiona-
passar os conflitos entre interesses regionais lismo político. Coordenar não é o mesmo que
e nacionais podem ser objeto de alguma ins- cooperar ou colaborar, nem se confunde, mi-
titucionalização, como sucedeu com a Confe- nimamente, com relação hierárquica ou com
rência Estado-Regiões, em Itália, criada junto planificação. É muito menos do que isto, mas
da presidência do Conselho de Ministros, com vai além da mera fixação constitucional ou
o Conselho de Política Fiscal e Financeira em legal de bases gerais.
Espanha, criado pela lei de financiamento das A coordenação entre os níveis nacional e re-
comunidades autónomas para coordenar a ati- gional pode ser prosseguida através de confe-
vidade financeira regional com as finanças do rências sectoriais, comissões mistas, convénios,
Estado, composto pelos ministros das Finanças representação em entidades ou organismos es-
e das Administrações Públicas do Governo na- pecíficos, criação de serviços de registos, etc.,
cional e pelos conselheiros das Finanças das tendo por objeto competências próprias das
comunidades autónomas. regiões. Quando estiverem em jogo competên-
Este último órgão consultivo e de delibera- cias partilhadas – caso da prossecução dos ob-
ção tem responsabilidades efetivas na formu- jetivos de desenvolvimento económico e social
lação, em geral, do sistema de financiamento regional que visem, em especial, a correção de
autonómico espanhol e na fixação dos crité- desigualdades resultantes da insularidade –,
rios de participação nas receitas públicas, atra- não basta uma mera coordenação; é impres-
vés de acordos quinquenais, com vista a evitar cindível também colaboração e, em geral, coo-
a repetição dos problemas anteriormente veri- peração entre os órgãos nacionais e regionais
ficados nas negociações entre o Estado e cada competentes.
comunidade autónoma. Posteriormente, o Do exercício com maior ou menor eficiên-
Conselho ficou também incumbido de garan- cia e eficácia de todas as funções regionais de-
tir que os orçamentos anuais das comunidades penderá, evidentemente, o próprio êxito ou
cumprem a estabilidade orçamental definida fracasso do instituto da autonomia regional e
pelo Governo central. dos fins que lhes são inerentes, entre os quais
94 ¬ A utonomia

avultam o desenvolvimento económico e so- autarquias e a necessária correção de desigual-


cial, para além da própria legitimação institu- dades entre autarquias do mesmo grau”.
cional das regiões autónomas. Todavia, enquanto “simples meio de afirmar
Acrescente-se, sem prejuízo de outros desen- os particularismos”, a descentralização pode
volvimentos em textos específicos, que uma tornar-se em “fonte de desigualdade”.
real autonomia financeira regional, no sentido Neste contexto, a intervenção pública na
de as regiões autónomas disporem dos recur- economia e o seu reforço justificam-se, pri-
sos económicos suficientes a uma prossecução meiramente, com o objetivo essencial de in-
eficaz dos seus fins essenciais, constitui uma tensificar a solidariedade nacional e a justiça,
condição sine qua non para se falar em verda- mediante a garantia da dignidade de todos
deira e “completa” autonomia regional. os cidadãos, independentemente do local de
O critério financeiro é decisivo para a apre- nascimento ou da residência, o que, no âmbi-
ciação de qualquer experiência de descentra- to territorial, exigirá uma repartição equitativa
lização territorial e, por maioria de razão, de dos recursos públicos disponíveis, suportados
regionalismo político, porque só haverá uma pelos contribuintes.
real descentralização do Estado, tal como ob- Dado que umas coletividades são mais prós-
serva René Chapus, se os entes infraestaduais peras e outras menos, coloca-se o problema da
dispuserem dos meios técnicos e financeiros repartição entre elas dos recursos financeiros
bastantes para o cumprimento integral dos obtidos do todo nacional. A dificuldade nu-
fins fixados e considerados fundamentais para clear residirá então, sinteticamente, por um
as populações abrangidas. lado, na seleção dos contribuintes e nos crité-
A Constituição portuguesa incumbiu prio- rios de repartição dos custos ou sacrifícios fis-
ritariamente o Estado de “promover a coesão cais entre eles e, por outro, na distribuição e
económica e social de todo o território nacio- em que medida dos bens ou benefícios públi-
nal, orientando o desenvolvimento no senti- cos oferecidos, bem como dos múltiplos efei-
do de um crescimento equilibrado de todos tos daí decorrentes, nem sempre unívocos,
os sectores e regiões e eliminando progressi- mas conflituantes.
vamente as diferenças económicas entre a ci- Tem sido referida, a este propósito, a neces-
dade e o campo e entre o litoral e o interior” sidade de preenchimento de um conjunto de
(art. 81.º/d)), de “promover a correção das condições para se poder falar verdadeiramente
desigualdades derivadas da insularidade das em descentralização. Para além da (i) atribui-
regiões autónomas e incentivar a sua progres- ção de personalidade jurídica à instituição des-
siva integração em espaços económicos mais centralizada, a região, e da (ii) autonomia real
vastos, no âmbito nacional ou internacional” das autoridades descentralizadas, Chapus, e.g.,
(art. 81.º/e)), acrescentando que os planos de salienta a relevância decisiva do requisito da
desenvolvimento económico e social têm por (iii) disposição dos meios (técnicos e financei-
objetivo “promover o crescimento económico, ros) suficientes para o exercício com eficácia
o desenvolvimento harmonioso e integrado de dos poderes em que se encontram investidas,
sectores e de regiões, a justa repartição indivi- que poderemos reconduzir à noção dada e à
dual e regional do produto nacional, a coorde- configuração concreta de autonomia financei-
nação da política económica com as políticas ra regional.
social, educativa e cultural, a defesa do mundo
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A valia ç ã o do impacto ambiental ¬ 95

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de síntese”, in MIRANDA, Jorge, e SILVA, Jorge Pereira (orgs.), Estudos de
reduzir o impacto ambiental e promover um
Direito Regional, Lisboa, Lex, 1997, pp. 515-566; GONÇALVES, José Renato, nível elevado de proteção do ambiente, testan-
“Regionalismo político e desenvolvimento regional. Nos 33 anos das regiões
autónomas portuguesas”, in MIRANDA, Jorge (coord.), Estudos em Homenagem
do a sua conformidade com o desenvolvimen-
ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, vol. i, Lisboa/Coimbra, Faculdade de Direito to sustentável.
da Universidade de Lisboa/Coimbra Editora, 2010, pp. 509-556; GOUVEIA,
O procedimento termina numa declaração
Jorge Bacelar, A Autonomia Legislativa das Regiões Autónomas Portuguesas,
Lisboa, Ediual, 2012; MACHADO, João Baptista, Participação e Descentralização, que provê as entidades competentes com in-
Democratização e Neutralidade na Constituição de 1976, Coimbra, Almedina,
formação sobre as consequências ambientais
1982; MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, vols. iii e v, Coimbra,
Coimbra Editora, 2011 e 2014; MORAIS, Carlos Blanco de, A Autonomia das atividades projetadas, requer que as deci-
Legislativa Regional, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito sões a tomar sejam influenciadas por essa in-
de Lisboa, 1993; PALAZZOLI, Claude, Les Régions Italiennes. Contribution à
l’Étude de la Décentralisation Politique, Paris, Librairie Générale de Droit et de formação e institui um mecanismo que possibi-
Jurisprudence, 1966. lita a participação das pessoas potencialmente
José Renato Gonçalves afetadas.
Trata-se de uma exigência com arrimo no di-
reito internacional e no direito europeu. No
Avaliação do impacto plano do direito internacional, há que consi-
derar, por um lado, as previsões de convenções
ambiental
internacionais que dispõem sobre essa ava-
A avaliação do impacto ambiental de proje- liação, como é o caso da Convenção sobre a
tos públicos e privados e de planos e progra- Avaliação dos Impactos Ambientais num Con-
mas que possam ter efeitos significativos no texto Transfronteiriço, de 25/02/1991 (apro-
ambiente é o procedimento que se destina a vada pelo dec. n.º 59/99, de 17/12, publicada

Fig. 1 – Faial e Penha de Águia (fotografia de Bernardes Franco, 2017).


96 ¬ A valia ç ã o do impacto ambiental

no DR, n.º 292, Série I-A, de 17/12/1999), prevista em diversos atos legislativos (a título
do art. 14.º (“Avaliação de impacte e minimi- de exemplo, cf. arts. 8.º e 101.º, alínea f), e
zação dos impactes adversos”) da Convenção n.os 4.8/4, 5.2/1-b), 6/6.3 do Anexo I, n.º 7 da
das Nações Unidas sobre a Diversidade Bio- Parte I e n.º 6 da Parte II do Anexo XI do Re-
lógica, de 20/05/1992 (aprovada pelo dec. gulamento n.º 1303/2013 do Parlamento Eu-
n.º 21/93, de 21/06, in DR, I Série-A, n.º 143, ropeu e do Conselho da UE, de 17/12/2013,
de 21/06/1993) e do art. 206.º (“Avaliação dos regulamento geral dos fundos estruturais e de
efeitos potenciais de atividades”) da Conven- investimento; e arts. 4.º, n.º 3, e 13.º, n.º 4, da
ção das Nações Unidas sobre Direito do Mar diretiva 2012/18/UE do Parlamento Europeu
(aprovada pela Resolução da Assembleia da e do Conselho, de 04/07/2012, relativa ao con-
República n.º 60-B/97, de 14/10, in DR, I-Série trolo dos perigos associados a acidentes graves
A, n.º 238, de 14/10/1997). Por outro lado, há que envolvem substâncias perigosas).
que ter presente o reconhecimento pelo Tri- Por outro lado, no direito da UE, a avaliação
bunal Internacional de Justiça e pelo Tribunal de impacto ambiental é objeto de uma disci-
Internacional do Direito do Mar da “obrigação plina específica: i) relativamente aos efeitos de
de avaliação de impacto ambiental […] como determinados projetos, públicos e privados, no
uma obrigação geral do direito internacional ambiente (diretiva 2011/92/EU do Parlamen-
costumeiro” (respetivamente, TRIBUNAL IN- to Europeu e do Conselho, de 13/12/2011,
TERNACIONAL DE JUSTIÇA, “Pulp Mills…”, JO L 26 de 29.01.2012, p. 1, alterada pela di-
ac. de 20 abr. 2010, §204, e TRIBUNAL INTER- retiva 2014/52/UE do Parlamento Europeu
NACIONAL DO DIREITO DO MAR, “Respon- e do Conselho de 16/04/2014, JO L 124 de
sibilities and Obligations…”, advisory opinion 25/04/2014, p. 1), a qual harmoniza as exigên-
de 1 fev. 2011, §145); e, bem assim, a sua afir- cias fundamentais da avaliação de impacto am-
mação como princípio na “Declaração da Con- biental de tais projetos nos Estados-Membros;
ferência das Nações Unidas sobre Meio Am- ii) e relativamente aos efeitos de determina-
biente e Desenvolvimento”, realizada no Rio dos planos e programas no ambiente (direti-
de Janeiro, de 3 a 14 de junho de 1992. va 2001/42/CE do Parlamento Europeu e do
À luz da jurisprudência do Tribunal Euro- Conselho, de 27 de junho de 2001, JO L 197
peu dos Direitos do Homem, sobre o direito de 21/7/2001, p. 30), com maior abrangência
ao respeito da vida privada e familiar e do do- espacial, temporal e contextual, que introduz,
micílio (art. 8.º da Convenção para a Proteção numa fase inicial de opções de desenvolvimen-
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fun- to, considerações ambientais como, e.g., as mu-
damentais, de 04/11/1950, aprovada pela lei danças climáticas e a biodiversidade.
n.º 65/78, de 13/10, in DR, I Série, n.º 236, O regime jurídico da avaliação de impacto
de 13/10/1978), sempre que os procedimen- ambiental dos Estados-Membros é estrutura-
tos de decisão pública envolvam “complexas do por estas diretivas cuja interpretação foi
questões ambientais e de política económica” sendo escalpelizada pela jurisprudência do
devem implicar “investigações e estudos ade- Tribunal de Justiça da União Europeia. Assim
quados” para que os efeitos prejudiciais no é no caso português, respetivamente, com o
meio ambiente e a afetação dos direitos das dec.-lei n.º 151-B/2013, de 30/10, alterado
pessoas sejam previstos e avaliados antecipa- pelo dec.-lei n.º 47/2014, de 24/03, e com o
damente e seja “definido um justo equilíbrio dec.-lei n.º 232/2007, de 15/06, alterado pelo
entre os vários interesses conflituantes em dec.-lei n.º 58/2011, de 04/05, que têm igual-
jogo” (e.g., acórdão do Tribunal Europeu dos mente referência fundamental no art. 18.º da
Direitos do Homem, de 02/11/2006, Giaco- lei de bases do ambiente (lei n.º 19/2014, de
melli contra Itália, proc. n.º 59909/00, n.º 83). 24/03). Aplicam-se às Regiões dos Açores e da
A avaliação de impacto ambiental no direi- Madeira, sem prejuízo das adaptações decor-
to da União Europeia (UE) está, por um lado, rentes da estrutura própria da Administração
A valia ç ã o do impacto ambiental ¬ 97

Fig. 2 – Pontão do ilhéu da Cal do Porto Santo (fotografia de Virgílio Gomes, 2016).

Regional Autónoma. As autoridades locais, re- segunda categoria é: i) auxiliada pela fixação
gionais e nacionais estão vinculadas a conside- de limiares ou critérios, os quais visam facili-
rar o conjunto normativo agora referido nos tar a apreciação sobre se um projeto está su-
limites das referidas legislação e jurisprudên- jeito à obrigação de avaliação de impacto am-
cia europeias. biental e não subtrair de antemão o mesmo
Nos termos do regime resultante destas dis- a essa obrigação; ii) e/ou feita numa análise
posições, os projetos sujeitos a avaliação de caso a caso, pela aferição da suscetibilidade
impacto ambiental são: i) os projetos de de- de terem efeitos relevantes no ambiente a
terminadas categorias em relação aos quais partir dos referidos critérios de seleção. Su-
é certo que têm um impacto significativo jeitas a avaliação de impacto ambiental estão
no ambiente, identificados normativamen- também as alterações ou ampliações que re-
te como tais; ii) e os projetos que, não tendo configurem os projetos por referência aos re-
necessariamente um tal impacto em todos os feridos parâmetros e/ou em termos de impac-
casos, o podem ter, considerando (como cri- tos negativos importantes no ambiente.
térios de seleção) as características do projeto A decisão relativa à (des)necessidade de ava-
(e.g., a sua dimensão e riscos para a saúde hu- liação do impacto ambiental “deve conter ou
mana), a sua localização (i.e., a “sensibilida- ser acompanhada de todos os elementos que
de ambiental das zonas geográficas suscetíveis permitam fiscalizar que a mesma se baseia
de serem afetadas pelos projetos”) e o tipo e numa verificação prévia adequada” à luz dos
as características do impacto ambiental que critérios pertinentes (acórdão do Tribunal
lhe estão associados (e.g., em termos de área de Justiça das Comunidades Europeias, atual
abrangida e de duração e reversibilidade dos Tribunal de Justiça da União Europeia, de
efeitos). A determinação dos projetos desta 10/06/2004, C-87/02, n.º 49; tribunal a que se
98 ¬ A valia ç ã o do impacto ambiental

referem os acórdãos mencionados no texto), do lugar”, não é qualificada como um proje-


utilizando, se disponíveis, informações resul- to; mas já o é a alteração ou a ampliação (por
tantes de avaliações exigidas por outra legis- obras ou por intervenções que alterem a reali-
lação, e deve, com as principais razões que a dade física) desse aterro (ac. de 19 abr. 2012,
informam, ser disponibilizada ao público, de C-121/11, n.os 31-33).
modo que os particulares e autoridades públi- Muitas vezes, as escolhas ambientais em sede
cas interessados possam “garantir o respeito de avaliação de projetos estão condicionadas
dessa obrigação de verificação que recai sobre por planos ou programas nos quais se enqua-
a autoridade competente e, caso seja necessá- dram, pelo que sem as ponderações ambien-
rio, pela via jurisdicional” (ac. de 30 abr. 2009, tais adequadas nesta sede aquela avaliação fica
C‑75/08, n.º 58). prejudicada (razão pela qual devem, se possí-
No caso das áreas sensíveis (com ampla ex- vel, ser simultâneas). Acresce que a utilidade
pressividade no arquipélago da Madeira, cf., e eficácia da proteção ambiental requer tam-
designadamente, os portais do Serviço do Par- bém níveis de ponderação mais abrangentes
que Natural da Madeira e do Instituto da Con- dos efeitos biofísicos, económicos, sociais e
servação da Natureza e das Florestas), a deci- políticos que estejam em causa, o que só pode
são sobre a necessidade de sujeição a avaliação ser assegurado no quadro da adoção (incluin-
de impacto ambiental de projetos e de altera- do mediante procedimento legislativo), por
ções ou ampliações de projetos que nelas se autoridades nacionais, regionais e locais e ou-
localizem cabe, não à entidade licenciadora, tras entidades que exerçam poderes públicos,
mas à autoridade de avaliação do impacto am- dos planos e programas exigidos por lei ou
biental, cujo silêncio, decorrido o prazo legal regulamento.
de decisão, significa a obrigatoriedade dessa Nestes termos, de acordo com o respetivo re-
avaliação. gime jurídico, estão sujeitos a avaliação de im-
O regime jurídico de avaliação do impac- pacto ambiental os programas e planos: i) que
to ambiental deve ser aplicado de modo a ser tenham sido preparados para sectores que a
cumprido o seu objetivo essencial: que os pro- lei prevê e que estabeleçam um quadro para a
jetos suscetíveis de ter efeitos significativos no aprovação futura de projetos abrangidos pelo
ambiente sejam submetidos, antes da sua apro- respetivo regime jurídico da avaliação do im-
vação, a uma avaliação completa desses efeitos. pacto ambiental; ii) que são suscetíveis de ter
O objetivo não pode, como foi suficientemen- efeitos negativos sobre os sítios protegidos, nos
te esclarecido pela jurisprudência europeia, ser termos do regime relativo à preservação dos
defraudado mediante o fracionamento de um habitats naturais e da fauna e da floresta selva-
projeto, mediante a desconsideração de parte gens (diretiva 92/43/CEE do Conselho de 21
do projeto a realizar em outro Estado‑Membro, maio 1992); iii) que estabeleçam um quadro
e deixar de incluir uma análise dos efeitos am- para a aprovação de outros projetos, para além
bientais cumulativos que pode produzir quando dos enumerados naquele regime, passíveis, de
considerado em conjunto com outros projetos. acordo com uma apreciação prévia para o efei-
O termo “projeto” refere‑se à realização de to, de produzir efeitos ambientais significati-
obras, designadamente de construção e de de- vos; iv) planos e programas que se reportem
molição, e de instalações; e refere-se em geral a “pequenas áreas ao nível local e pequenas
a intervenções que alterem a realidade física, alterações” aos planos e programas referidos,
no meio natural ou na paisagem (incluindo as quando forem suscetíveis de ter efeitos im-
intervenções destinadas à exploração de recur- portantes no ambiente (diretiva 2001/42, re-
sos naturais). Assim, e.g., “a simples renovação lativa à avaliação dos efeitos de determinados
de uma licença já existente de exploração de planos e programas no ambiente, e o dec.-lei
um aterro”, sem que haja lugar a “trabalhos n.º 232/2007, de 15/06, que a transpõe para a
ou intervenções que alterem a realidade física ordem jurídica portuguesa).
A valia ç ã o do impacto ambiental ¬ 99

A “finalidade da diretiva 2001/42, que con- qual o Tribunal de Justiça das Comunidades
siste em garantir um nível elevado de prote- Europeias censurou o facto de o direito espa-
ção do ambiente”, impõe uma interpretação nhol não assegurar, então, a avaliação do im-
extensiva das suas disposições. Nestes termos, pacto ambiental de todos os fatores referidos
não está excluída de avaliação do impacto am- no texto e, por conseguinte, também a sua in-
biental a revogação, parcial ou total, de um teração (n.os 36 e 37).
plano ou de um programa suscetível de ter Quando está em causa um sítio da lista na-
efeitos significativos no ambiente, na medida cional de sítios, um sítio de interesse comu-
em que envolva a modificação dos “efeitos am- nitário, uma zona especial de conservação ou
bientais que foram avaliados” e importe “uma uma zona de proteção especial, as “incidên-
alteração da planificação prevista nos territó- cias ambientais” das “ações, planos ou proje-
rios afetados” (ac. de 22 mar. 2012, C-567/10, tos não diretamente relacionados com a ges-
n.os 33 e 34). tão” respetiva e não necessários para a mesma
O regime de avaliação de impacto ambien- devem, quando suscetíveis de ter nele impac-
tal admite derrogações em relação a alguns to significativo, ser avaliadas à luz dos objeti-
projetos ou que a avaliação ocorra em outros vos da sua conservação (dec.-lei n.º 140/99,
termos. É o caso, por um lado, dos projetos de 24/04, alterado e republicado pelo dec.-
que respeitam à defesa nacional e dos que -lei n.º 49/2005, de 24/02, maxime, arts. 7.º,
têm como único objetivo a resposta a casos de n.º 2, alínea c), e 10.º).
emergência civil; e, por outro lado, dos proje- A aprovação de projetos, planos e progra-
tos objeto de ato legislativo nacional específi- mas que possam ter um impacto significativo
co. No caso dos planos e programas, podem no ambiente só deve ser concedida depois da
ser excluídos de procedimento de avaliação do respetiva avaliação ambiental. A “qualificação
impacto ambiental os destinados unicamente à de uma decisão como ‘aprovação’” segundo o
defesa nacional ou à proteção civil e os planos direito nacional deve fazer-se em conformida-
e programas financeiros ou orçamentais. de com o direito da UE, que reserva para si a
A avaliação do impacto ambiental deve iden- noção (ac. de 4 maio 2006, C‑290/03, n.º 41).
tificar, descrever e avaliar de modo adequado, A aprovação é o ato permissivo do projeto,
em função de cada caso particular, os efeitos plano ou programa, sem o qual não podem ser
ambientais diretos e indiretos, “secundários, realizados ou executados. O efeito útil daque-
cumulativos, a curto, médio e longo prazo, la avaliação reconduz ao conceito de aprova-
permanentes e temporários, positivos e nega- ção, designadamente uma decisão de fixação
tivos” (nota 1 ao anexo IV à diretiva 2011/92/ de novas condições e “de aprovação de aspe-
UE) de um projeto sobre: i) a “população e saúde tos abrangidos pelas novas condições”, como
humana”; ii) a “biodiversidade, com particular pode acontecer, e.g., no quadro da “retoma de
ênfase nas espécies e habitats protegidos pela uma exploração mineira” (ac. de 7 mar. 2004,
Diretiva 92/43/CEE do Conselho e pela Dire- C-201/02, n.º 47).
tiva 2009/147/CE do Parlamento Europeu e A “simples verificação da existência de uma
do Conselho”; iii) a “terra, solo, água, ar e al- ‘aprovação’” pode não dar “uma resposta
terações climáticas”; iv) os “bens materiais, pa- completa no que se refere à obrigação” de
trimónio cultural e paisagem”; v) e a inter-rela- uma avaliação dos efeitos de um projeto no
ção entre os mesmos. Na aferição dos efeitos, ambiente, sendo também “necessário anali-
deve incluir-se, se o projeto o justificar, a sua sar a questão do momento em que deve ser
vulnerabilidade quanto aos riscos de acidentes efetuada essa avaliação” (ac. de 7 jan. 2004,
graves e/ou de catástrofes. A necessidade da C-201/02, n.º 49). A avaliação deve, em prin-
investigação e análise ser, nestes termos, com- cípio, ter lugar assim que seja possível iden-
pleta, pode ser ilustrada pelo ac. de 16 mar. tificar e avaliar todos os efeitos que o proje-
2006, Comissão contra Espanha, C-332/04, no to pode ter no ambiente. Deste modo: i) num
100 ¬ A valia ç ã o do impacto ambiental

decisão de execução”, então a avaliação deve


ter lugar durante este procedimento (Ibid.);
iii) e quando o procedimento de avaliação
de impacto ambiental se reporte a um estudo
prévio ou a um anteprojeto, há lugar à verifi-
cação de conformidade ambiental do projeto
de execução (e.g., arts. 2.º, alínea f), 11.º, 20.º
e 21.º do dec.-lei n.º 151-B/2013).
A avaliação de impacto ambiental tem lugar
mediante um procedimento de aferição dos
impactos ambientais prováveis e, sendo o caso,
da forma de os “acomodar” – reduzir e com-
pensar – na realização do projeto ou na defi-
nição do plano ou programa, em cujo procedi-
mento de aprovação se integra ou com o qual
se articula.
O procedimento tem lugar por iniciativa do
autor do pedido de aprovação de um projeto
privado ou da autoridade pública que preten-
de realizar um projeto público, e estando em
causa um plano ou programa, por iniciativa
da entidade, no uso de poderes públicos, res-
ponsável pela sua elaboração, o pedido deve
ser instruído com informação bastante, que,
em síntese, dê a conhecer o projeto, plano ou
programa, o seu impacto sobre o ambiente
e as soluções configuradas para evitar, mini-
mizar e, sendo o caso, compensar os efeitos
ambientais negativos. Previamente ao início
do procedimento de avaliação do impacto
ambiental, o proponente pode solicitar in-
formação do âmbito do estudo de impacto
ambiental ou relatório ambiental (respetiva-
mente, no caso de projetos e de planos ou
Fig. 3 – Cartaz das Jornadas da Paisagem promovidas pela Secre- programas).
taria Regional do Ambiente a 5 de junho de 2017 (fotografias de A iniciativa só dá lugar à abertura do pro-
Virgílio Gomes).
cedimento depois de verificada a completu-
de daqueles elementos. A instrução envolve,
“procedimento de aprovação em várias etapas, num primeiro momento, a apreciação técnica
sendo uma destas a decisão principal e outra das informações fornecidas pelo requerente e,
uma decisão de execução, que não pode ir num segundo momento, a apreciação técnica
além dos parâmetros determinados pela deci- do pedido de aprovação do projeto, plano ou
são principal, o impacto que o projeto possa programa, do ponto de vista da sua viabilidade
ter no ambiente deve ser identificado e ava- ambiental –­ i.e., a identificação dos efeitos cuja
liado durante o procedimento relativo à deci- avaliação é relevante e a análise das soluções
são principal” (ac. de 4 maio 2006, C‑290/03, alternativas que evitem, mitiguem ou compen-
n.º 47); ii) se o impacto “apenas possa ser iden- sem efeitos negativos; segue-se a consulta pú-
tificado durante o procedimento relativo à blica, mediante a disponibilização ao público
A valia ç ã o do impacto ambiental ¬ 101

interessado de toda a informação necessária e O procedimento de avaliação de impacto


o convite para que apresente as suas observa- ambiental de planos e programas têm por base
ções e opiniões. o relatório ambiental, o qual é submetido a
O conjunto dos elementos instrutórios é consulta técnica das entidades competentes e
ponderado num parecer técnico final, por a consulta pública. O resultado da ponderação
uma comissão técnica, e depois submetido à do relatório e dos pareceres, observações e in-
entidade decisora. Esta submete o projeto de formações recolhidos é expresso numa decla-
decisão a audiência prévia, sem prejuízo de ração ambiental e deve ser refletido no plano
antes, se for necessário, ajustar com o propo- ou programa aprovados.
nente a modificação do projeto ou a adoção A consulta pública, já referida, é uma forma
de medidas ambientais adicionais de minimi- de assegurar que o público seja informado e
zação ou compensação. possa envolver-se com utilidade na tomada de
A decisão do procedimento – sobre a possi- decisões que o interessam ou o podem afetar.
bilidade ou oportunidade ambiental e sobre as Trata-se, por outro lado, de melhorar a quali-
melhores condições ambientais para a sua rea- dade e a transparência das decisões ambiental-
lização – pode corresponder a uma declaração mente relevantes.
de impacto ambiental desfavorável, favorável ou A avaliação do impacto ambiental de proje-
favorável condicionada. A aprovação (licencia- tos, planos e programas deve compreender, no
mento ou autorização) do projeto só é possível caso de impactos em outros Estados-Membros,
no caso de aquela decisão consubstanciar uma a disponibilização de informação necessária e
declaração de impacto ambiental favorável ou a ponderação da respetiva pronúncia e demais
favorável condicionada. A falta de uma decisão elementos instrutórios que dessa participação
em certo prazo pela autoridade de avaliação de advenham.
impacto ambiental importa o deferimento táci- O carácter contextual e sentido da avaliação
to, sem prejuízo da entidade competente para a de impacto ambiental dos projetos explica a
aprovação do projeto ter de refletir, na mesma, relevância do tempo na vigência das respetivas
os elementos instrutórios do procedimento de decisões, a qual se traduz na disciplina da ca-
avaliação de impacto ambiental. ducidade e da prorrogação da declaração de
Iniciada a execução do projeto, há lugar a impacto ambiental e da decisão de conformi-
uma pós-avaliação do impacto ambiental, nos dade ambiental do projeto de execução.
termos da qual há um controlo administrati- Sendo a avaliação de impacto ambiental um
vo da eficácia das medidas ambientais defini- pressuposto da aprovação do projeto, a sua
das na declaração de impacto ambiental. Nesta falta ou deficiências não podem deixar de se
sede, a autoridade de avaliação de impacto projetar sobre a sua validade, a qual pode ser
ambiental pode determinar, em relação a im- feita valer nos tribunais administrativos me-
pactos ambientais negativos significativos não diante ação judicial intentada não só pelos
previstos, que ocorram, até à desativação do titulares de posições jurídicas subjetivas mas
projeto, medidas adicionais para os minimizar também por autores populares, no quadro da
ou compensar. lei relativa ao “direito de participação procedi-
Depois de emitida a declaração de impacto mental e de ação popular” (lei n.º 83/95, de
ambiental ou a decisão sobre conformidade 31/08).
ambiental do projeto de execução, por motivo As autoridades competentes dos Estados­
fundamentado, ou quando as circunstâncias o ‑Membros “são obrigadas a adotar, no âmbito
justificam, pode ter lugar um procedimento de das suas competências, todas as medidas ge-
alteração daquelas quanto às medidas de mini- néricas ou particulares a fim de remediar a
mização e de compensação e aos planos de mo- omissão da avaliação dos efeitos no ambien-
nitorização, o que é feito de forma articulada te de um projeto” que a elas deveria ter sido
com o proponente. sujeita (ac. de 7 jan. 2004, C-201/02, n.º 70),
102 ¬ A ves

“nomeadamente, através da revogação ou da INTERNACIONAL DO DIREITO DO MAR, “Responsibilities and obligations of


States sponsoring persons and entities with respect to activities in the area”,
suspensão de uma aprovação já dada, para que opinião consultiva de 1 fev. 2011, caso n.º 17, §145.
essa avaliação seja efetuada” (ac. de 03 jul. 2008,
Bibliog.: impressa: GOMES, Carla Amado, Introdução ao Direito do Ambiente,
C-215/06, n.º 59). Os órgãos jurisdicionais na- 2.ª ed., Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2014;
cionais devem adotar, nos limites da autono- PETERS, Mary Sabina, e KUMAR, Manu, “Achieving sustainability through
effective mechanisms of environmental impact assessment and strategic
mia processual dos Estados, nos processos ju- environmental assessment”, European Energy and Environmental Law Review,
diciais pertinentes, as medidas adequadas para vol. 2, n.º 2, 2013, pp. 79-83; SANDS, Philippe et al., Principles of International
Environmental Law, 3.ª ed., Cambridge, Cambridge University Press, 2012;
impedir a execução de um projeto na falta da digital: EUROPEAN COMMISSION, “Environmental impact assessment of
avaliação ambiental exigida. projects rulings of the Court of Justice”, European Commission, 2013: http://
ec.europa.eu/environment/eia/pdf/eia_case_law.pdf (acedido a 30 set. 2014);
Também em relação aos planos e programas, GOMES, Carla Amado, e ANTUNES, Tiago (dirs.), Revisitando a Avaliação
devem as autoridades competente dos Esta- de Impacto Ambiental, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, s.l., 2014:
http://icjp.pt/sites/default/files/publicacoes/files/e- book_aia.pdf (acedido
dos-Membros adotar medidas que invalidem
a 30 set. 2014); INSTITUTO DA CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E DAS
ou suspendam plano ou programa que não FLORESTAS, “Rede Natura 2000/RN2000 na Região Autónoma da Madeira”,
foi precedido de avaliação ambiental devida Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, s.d.: http://www.icnf.
pt/portal/naturaclas/rn2000/rn-pt/RN-Madeira (acedido a 17 maio 2016);
(ac. de 28 fev. 2012, C-41/11, n.º 46). ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, “Declaração da conferência das
O desrespeito do regime de avaliação de im- Nações Unidas sobre meio ambiente e desenvolvimento”, Rio de Janeiro,
3-14 jun. 1992: http://www.onu.org.br/rio20/img/2012/01/rio92.pdf (acedido
pacto ambiental de projetos, nos termos do a 17 maio 2016); Serviço do Parque Natural da Madeira: http://www.pnm.pt/
mesmo, é passível de gerar responsabilidade index.php?option=com_content&view=article&id=26&Itemid=44&lang=pt
(acedido a 17 maio 2016); TRIBUNAL INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, “Pulp
contraordenacional e responsabilidade civil mills on the river Uruguay, Argentina v. Uruguay”, ac. de 20 abr. 2010, §204:
extracontratual. Esta última envolve, em fun- http://www.icj-cij.org/docket/files/135/15877.pdf (acedido a 17 maio 2016).

ção das situações concretas, a reposição da si- Ana Fernanda Neves


tuação anterior à infração, ou a redução ou
compensação dos impactos provocados e/ou
obrigações indemnizatórias.
Ave do paraíso (pseud.)
Portugal (como os outros Estados-Membros Ö Pestana, Noé Alberto
da UE) tem obrigações específicas e detalha-
das de informação para com a Comissão Eu-
ropeia sobre os termos da aplicação do regime
Aves
de avaliação de impacto ambiental. Os “ser- No arquipélago da Madeira, a classe das aves
viços e organismos das respetivas administra- está representada por 45 espécies reproduto-
ções regionais autónomas”, para o efeito, têm ras que se distribuem por 11 grupos diferen-
também obrigações de informação para com tes, dos quais se destacam os mais numerosos,
a autoridade nacional de avaliação de impac- aves marinhas, aves de rapina e passeriformes.
to ambiental (e.g., arts. 36.º e 48.º do dec.-lei Das aves reprodutoras, as que merecem maior
n.º 151-B/213). destaque são as 4 espécies endémicas do arqui-
pélago, o pombo-trocaz, a freira-da-madeira, o
Acórdãos e decisões: PARLAMENTO EUROPEU e CONSELHO de 20 nov. bis-bis e a freira-do-bugio, e as 3 espécies endé-
2013, decisão n.º 1386/2013/UE relativa a um programa geral de ação da micas da região biogeográfica da Macaronésia
União para 2020 em matéria de ambiente, “Viver bem, dentro dos limites
do nosso planeta”, Jornal Oficial da União Europeia, L 354/171, 28 dez. 2013; (área que inclui os arquipélagos dos Açores,
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (ex-Tribunal de Justiça da Madeira, das Canárias e de Cabo Verde),
das Comunidades Europeias), ac. de 17 mar. 2011, C-275/09, Brussels
Hoofdstedelijk Gewest e outros contra Vlaams Gewest; ac. de 28 fev. 2012, o corre-caminhos, o canário-da-terra e o an-
C-41/11, Inter‑Environnement Wallonie ASBL, Terre wallonne ASBL contra dorinhão-da-serra. Algumas das espécies que
Région wallonne; ac. de 22 mar. 2012, C-567/10, Inter‑Environnement
Bruxelles ASBL, Pétitions‑Patrimoine ASBL, Atelier de Recherche et d’Action
eram visitantes, tais como a galinha-d’água e
Urbaines ASBL contra Région de Bruxelles‑Capitale; ac. de 19 abr. 2012, o galeirão, foram encontrando condições para
C-121/11, Pro‑Braine ASBL e outros contra Commune de Braine‑le‑Château;
ac. de 21 mar. 2013, C-244/12, Salzburger Flughafen GmbH contra
se reproduzirem anualmente no arquipélago.
Umweltsenat; TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM, ac. de Verifica-se também a nidificação de 6 espécies
2 nov. 2006, Giacomelli contra Itália, proc. n.º 59909/00; ac. de 27 jan. 2009,
Tătar contra Roménia, queixa n.º 67021/01; ac. de 14 dez. 2012, Hardy
introduzidas: o pato-mandarim, a rola-turca, o
and Maile contra The United Kingdom, queixa n.º 31965/07; TRIBUNAL periquito-rabijunco, o bico-de-lacre e o lugre,
A ves ¬ 103

que provavelmente se estabeleceram por intro-


dução acidental, após fuga de cativeiro, e a per-
diz, que foi introduzida no início da coloniza-
ção do arquipélago.

Aves nativas nidificantes


Codorniz, Coturnix coturnix confisa (Hartert
1917) – Nidifica nas ilhas da Madeira, de Porto
Santo e das Desertas. Apresenta preferência
pelas áreas abertas com vegetação rasteira que
forma núcleos densos suficientemente altos para
a ave se esconder. Pode ser observada a todos os
níveis altitudinais, desde que exista habitat ade-
quado. É uma espécie cinegética com hábitos Fig. 1 – Pombo-trocaz (fotografia de Virgílio Gomes, 2008).
discretos, sendo quase sempre detetada exclu-
sivamente pelo seu chamamento característi- áreas de floresta mista, áreas agrícolas e meios
co ou, quando assustada, pelo seu voo rápido e rurais. Em 2015, tinha uma população supe-
baixo. A subespécie C. c. confisa, que ocorre ape- rior a 10.000 indivíduos. A sua alimentação é
nas nos arquipélagos da Madeira e das Canárias, essencialmente composta por bagas e frutos
apresenta menores dimensões e plumagem mais das árvores da laurissilva, alimentando-se tam-
escura e avermelhada. É uma ave omnívora, ali- bém de folhas e flores de plantas mais peque-
mentando-se sobretudo de sementes e insetos. nas. Durante o inverno, frequentemente pro-
Pombo-das-rochas, pombo-bravo, pombinho cura alimento nas áreas limítrofes da floresta,
ou pombo-doméstico, Columba livia atlantis onde se alimenta de couves e nas árvores de
(Gmelin 1789) – Em 2015, foram colocadas dú- fruto. Por esta razão, continua a haver confli-
vidas em relação ao estatuto desta espécie de- tos entre esta ave e alguns agricultores, em es-
vido ao cruzamento com aves ferais, ou seja, pecial devido aos elevados prejuízos causados
aves domésticas que se tornaram selvagens. De nos campos agrícolas.
forma geral, a forma pura nidifica em falésias Andorinha ou andorinhão-da-serra, Apus unico-
costeiras pouco perturbadas, em pequenas ca- lor (Jardine 1830) – Espécie endémica da Ma-
vidades ou fissuras de rochas. Na ilha da Madei- caronésia, que nidifica apenas nos arquipéla-
ra, ocorre em diversas áreas do interior e zonas gos da Madeira e das Canárias. Está presente
altas, desde que a presença humana seja pouco nas ilhas da Madeira e do Porto Santo e, embo-
notória. Ocorre também no Porto Santo e nas ra seja frequentemente observada nas Desertas
Desertas, embora não existam registos de nidi- e Selvagens, não existem registos que confir-
ficação nesta última. Alimenta-se sobretudo de mem a sua nidificação nestas ilhas. Encontra-
sementes, cereais e plantas herbáceas, poden- -se bem distribuída por toda a ilha da Madeira,
do ingerir folhas e invertebrados. A subespécie desde a costa até aos 1800 m de altitude, nidi-
C. l. atlantis, que é endémica da Macaronésia, ficando em fendas de rochas de falésias costei-
também ocorre na Madeira e nos arquipélagos ras e do interior, em pequenos ilhéus, ribeiras
dos Açores e de Cabo Verde. e até em núcleos urbanos. Embora esteja pre-
Pombo-trocaz, pombo-escuro-da-serra, pom- sente no arquipélago da Madeira durante todo
bo-da-madeira ou pombo-preto, Columba tro- o ano, grande parte da população migra para
caz (Heineken 1829) – Espécie endémica cuja Marrocos, onde permanece durante os meses
ocorrência está restrita à ilha da Madeira. Em- de inverno, partindo em outubro e regressan-
bora esteja frequentemente associada à flores- do em fevereiro. Alimenta-se de insetos, que
ta laurissilva, tornou-se comum observá-la em captura em pleno voo.
104 ¬ A ves

e os períodos de migração, o número de indi-


víduos encontrados no arquipélago é bastante
superior, correspondendo às aves que estão de
passagem entre os locais de nidificação, situa-
dos a norte, e os locais de alimentação, locali-
zados a sul. É uma ave com uma dieta omní-
vora, dominada por invertebrados aquáticos e
por partes de plantas.
Galeirão, Fulica atra (Linnaeus 1758) – Tal
como a galinha-d’água, a sua presença na Ma-
deira tem sido registada desde meados do
séc. xx; no entanto, a sua nidificação na ilha
da Madeira e no Porto Santo apenas foi confir-
mada em 2009. Encontra-se também em áreas
Fig. 2 – Andorinha ou andorinhão-do-mar em voo (fotografia de húmidas (foz de ribeiras, lagoas e reservatórios
Virgílio Gomes, 2004). de água) que apresentem na margem alguma
vegetação densa e bem desenvolvida, seja do
Andorinha ou andorinhão-do-mar, Apus palli- tipo herbáceo (caniços ou juncos), seja do tipo
dus brehmorum (Hartert 1901) – A informação arbóreo (salgueiros ou tamargueiras), onde
existente sobre esta espécie no arquipélago é possa esconder os seus ninhos. Durante o in-
escassa, devido à dificuldade de a distinguir do verno e os períodos de migração, o número de
Andorinhão-da-serra, embora este seja menor indivíduos encontrados no arquipélago tam-
e de cauda mais bifurcada. De forma geral, está bém é bastante superior. É facilmente identifi-
restrita às áreas de menor altitude da ilha da cável por apresentar plumagem negra, e bico e
Madeira e, em especial, às falésias costeiras, ni- placa da fronte brancos. Uma das suas caracte-
dificando em fendas de rochas, embora, por rísticas é correr na água antes de levantar voo.
vezes, seja observada em locais afastados da Alimenta-se de uma grande variedade de orga-
costa e em bandos misturados com o Ando- nismos, sobretudo de plantas.
rinhão-da-serra. Existem registos também da Calcamar, Pelagodroma marina hypoleuca (Webb,
sua presença nas ilhas Selvagens. A subespécie Berthelot and Mouquin-Tandon 1841) – Ave
A. p. brehmorum ocorre no Sul e Oeste da Euro- marinha de pequeno porte, caracterizada por
pa, em grande parte do Norte de África e nos ter patas compridas. O seu voo é peculiar, com
arquipélagos das Canárias e da Madeira. Difere balanços de lado a lado como se fosse um pên-
no comprimento da asa e na coloração da plu- dulo, batendo, por vezes, levemente com as
magem, que é ligeiramente mais clara. A sua patas na superfície da água do mar, como se
dieta é composta, essencialmente, por insetos desse pequenos saltos. Esta característica pro-
voadores de tamanho médio. vavelmente deu origem ao seu nome portu-
Galinha-d’água, Gallinula chloropus (Linnaeus guês: calcamar. Ocorre apenas nas ilhas Sel-
1758) – Uma das aves aquáticas mais comuns vagens, escavando os seus ninhos nas áreas
e versáteis que nidifica em Portugal. A sua pre- com solo arenoso. Apresenta uma população
sença na Madeira tem sido registada desde bastante numerosa, que na Selvagem Grande
meados do século passado; no entanto, a sua ronda, em 2015, os 36.000 casais. A colónia da
nidificação apenas foi confirmada na ilha da Selvagem Grande representa o limite norte
Madeira em 1999 e no Porto Santo em 2002. da sua distribuição mundial, estando presente
Ocorre em áreas húmidas, e.g. em foz de ri- entre os meses de dezembro e agosto. A subes-
beiras, em lagoas e em reservatórios de água pécie P. m. hypoleuca é endémica da Macaroné-
que apresentem na margem alguma vegetação sia, estando presente apenas nos arquipélagos
densa e bem desenvolvida. Durante o inverno da Madeira e das Canárias. Distingue-se pelo
A ves ¬ 105

tamanho, pelo seu bico mais curto e pela colo- ovo. É uma ave marinha de médio porte, que
ração mais escura do dorso cinzento e da cabe- no mar se distingue pelo facto de a parte in-
ça. Alimenta-se de pequenos camarões, peque- ferior das asas ser de cor escura, contrastando
nos peixes e plâncton, que captura através de com o peito e ventre branco, e por apresentar
mergulhos pouco profundos ou à superfície da um voo distinto, efetuando “Vs” pronuncia-
água. dos. Considerou-se que se tratava da mesma
Roque-de-castro, Hydrobates castro (Harcourt espécie que ocorre em Cabo Verde, mas estu-
1851) – A ave marinha mais pequena que ni- dos morfométricos, acústicos e genéticos con-
difica no arquipélago, sendo menor que um firmaram a sua separação, permitindo a sua
melro Turdus merula. É facilmente reconhecida classificação como espécie endémica do ar-
por apresentar plumagem quase toda negra, à quipélago da Madeira. Em 2015, a população
exceção de uma barra branca junto à cauda. no Bugio foi estimada entre 160 a 180 casais
reprodutores. Alimenta-se de peixes, crustá-
ceos (tipo camarão) e, em especial, de cefaló-
podes (lulas).
Freira-da-madeira, Pterodroma madeira (Ma-
thews 1934) – Ave endémica da ilha da Ma-
deira que nidifica apenas nos picos mais ele-
vados da mesma, entre o Pico do Areeiro e o
Pico Ruivo. É considerada a ave marinha mais
ameaçada da Europa e julgou-se extinta até
aos finais da déc. de 1960, altura em que foi
redescoberta por Paul Alexander Zino. O seu
Fig. 3 – Roque-de-castro (fotografia de Porto Santo Verde, 2015). nome inglês, Zino’s petrel, é um reconhecimen-
to ao trabalho desenvolvido por este ornitólo-
Em Portugal, nidifica nas Berlengas, nos Aço- go. Desde o período da sua redescoberta, a es-
res e na Madeira. No arquipélago da Madeira, pécie foi alvo de trabalhos de conservação, de
está presente em todas as ilhas e apresenta duas forma a recuperar o seu habitat de nidificação
populações que nidificam em períodos distin- e evitar o ataque por predadores introduzi-
tos: a população de verão, que está presente dos, tais como ratos e gatos. A sua população
entre abril e setembro, e a população de inver- foi crescendo lentamente até 2010, perío-
no, que se reproduz entre setembro e março. do em que se estimava a existência entre 65
Aproveita pequenos buracos entre pedras, fen- a 80 casais. Em agosto de 2010, um violento
das de rochas e muros de pedra para construir incêndio consumiu uma parte significativa do
os seus ninhos, que são de reduzida dimensão.
Alimenta-se exclusivamente de pequenos orga-
nismos vertebrados e invertebrados, que captu-
ra à superfície do mar.
Freira-do-bugio, Pterodroma deserta (Mathews,
1934) – Ave que nidifica apenas no Bugio,
uma das três ilhas Desertas. O seu período
reprodutor ocorre entre junho e dezembro
e os ninhos estão concentrados no planalto
sul do Bugio e em algumas zonas de escarpa
adjacente. Estes ninhos são escavados no solo
e formados por um túnel, que pode atingir
mais de um metro de profundidade, tendo no Fig. 4 – Freira-da-madeira (fotografia do Parque Natural da Ma-
final uma cavidade onde é colocado um único deira, 2008).
106 ¬ A ves

Maciço Montanhoso Central, afetando toda a no arquipélago entre os meses de fevereiro e


área de nidificação da espécie. Embora a mor- novembro. A Selvagem Grande é a ilha com
talidade de adultos tenha sido pequena (ape- maior densidade de cagarras no mundo, apre-
nas três aves), cerca de 70 % dos ninhos foram sentando, em 2015, uma população de aproxi-
destruídos. Apesar das medidas de emergên- madamente 29.540 casais. Esta espécie, restrita
cia adotadas (construção de ninhos artificiais, ao oceano Atlântico, ocorre em todo o territó-
minimização dos efeitos de erosão, entre ou- rio português e nas Canárias. No passado, foi
tras), só uma observação de médio a longo alvo de intensa caça pelo homem, em especial
prazo permitirá confirmar as consequências nas ilhas Selvagens, onde se chegaram a cap-
deste incêndio no sucesso reprodutor da es- turar entre 20.000 a 22.000 juvenis por ano,
pécie. Está presente na ilha da Madeira entre o que na época provocou um grave declínio
os meses de março e outubro. O seu nome da população. Alimenta-se essencialmente de
português deriva do facto de a sua plumagem peixe e cefalópodes.
(escura na cabeça e branca no ventre) se asse- Patagarro, estrapagado, papagarro ou boiei-
melhar ao hábito de uma freira. No entanto, ro, Puffinus puffinus (Brunnich 1764) – Ave ma-
também há histórias de pastores assustados rinha que nidifica apenas na ilha da Madeira.
que, pelo facto de a sua vocalização se asse- De forma geral, reproduz-se em ilhas e ilhéus
melhar a um uivo que só é emitido à noite, costeiros e os seus ninhos podem ser encon-
argumentam que as aves são as almas penadas trados desde o nível do mar até cerca de 700
das freiras que outrora viveram no Curral das m de altitude. No entanto, na ilha da Madei-
Freiras. É muito semelhante à freira-do-bugio ra, os seus ninhos localizam-se em vales húmi-
P. deserta, distinguindo-se por ter menores di- dos do interior associados à floresta laurissil-
mensões, bico menos robusto e plumagem da va, sendo possível encontrá-los até aos 1200 m
cabeça mais clara. Alimenta-se de pequenos de altitude. A colónia mais conhecida é a exis-
peixes, camarões e cefalópodes (lulas). tente no Parque Ecológico do Funchal, mais
Cagarra ou pardela, Calonectris borealis (Cory precisamente ao longo da Ribeira de Santa
1881) – A maior ave marinha que nidifica no Luzia, alvo de um projeto de conservação
arquipélago da Madeira, estando presente em desde 1994 e profundamente afetada pelos
todas as ilhas. De forma geral, nidifica junto da incêndios de agosto de 2010. Nidifica na Ilha
costa, em ilhéus e falésias costeiras; no entan- entre os meses de janeiro e julho, embora em
to, na ilha da Madeira, também se verifica a sua agosto e setembro se verifique a passagem de
presença em vales do interior. Está presente numerosos indivíduos oriundos das colónias

Fig. 5 – Cagarra ou pardela em voo (fotografia de Thomas Fig. 6 – Patagarro, estrapagado, papagarro ou boieiro (fotografia
Dellinger, 2010). de Virgílio Gomes, 2008).
A ves ¬ 107

localizadas no norte do Atlântico, em migra- batida no centro e norte da ilha. Durante o


ção para sul. A sua alimentação inclui peixes, inverno e os períodos de migração, o número
camarões e cefalópodes. de indivíduos encontrados na praia do Porto
Pintainho ou pintelho, Puffinus iherminieri ba- Santo é superior. Durante este período, tam-
roli (Lesson 1839) – Ave marinha de média di- bém pode ser observada na foz de ribeiras e
mensão que nidifica em todas as ilhas do ar- lagoas da ilha da Madeira. No Porto Santo, os
quipélago, construindo os seus ninhos entre registos de nidificação da espécie eram, em
pedras e em fendas de rochas. Por ser uma ave 2015, cada vez menores, o que poderia indicar
que se reproduz no período de inverno (de- uma tendência populacional negativa. A dimi-
zembro a maio), é pouco conhecida e dificil- nuição das populações foi verificada em toda
mente observada no mar. A subespécie P. i. ba- a sua área de distribuição na Europa, em espe-
roli é endémica da Macaronésia, nidificando cial devido à perturbação humana, perda de
nos arquipélagos dos Açores, da Madeira e das habitat e predação por cães e gatos. É comum
Canárias. É semelhante ao patagarro, mas de observar indivíduos isolados ou em pequenos
menores dimensões e com penas brancas em grupos em corrida na praia do Porto Santo,
volta dos olhos. A Selvagem Grande acolhe a junto à rebentação, onde se alimenta de diver-
maior colónia da espécie no arquipélago, com sos invertebrados.
cerca de 1400 casais reprodutores em 2015. Galinhola, Scolopax rusticola (Linnaeus 1758) –
As aves desta ilha não apresentam comporta- Está presente apenas na ilha da Madeira, ocor-
mento migrador, visitando a colónia ao longo rendo essencialmente nas áreas de maior alti-
de todo o ano. Alimenta-se essencialmente de tude (entre os 1200 e 1600 m) da porção oeste
pequenos peixes e cefalópodes (lulas). da ilha, onde a vegetação de altitude se carac-
Alma-negra ou anjinho, Bulweria bulwerii (Jar- teriza por ser de pequeno porte, sendo as urzes
dine & Selby 1828) – Ave de pequeno porte, o seu elemento dominante. Também está pre-
com plumagem totalmente escura e asas com- sente noutras partes da ilha, de um modo geral
pridas, que apresenta uma ampla distribuição, a altitudes superiores a 800 m e associadas a
embora no Atlântico a sua nidificação esteja habitat com vegetação arbustiva onde predo-
restrita aos arquipélagos da Macaronésia. Ni- minam as urzes e a uveira-da-serra. Embora
difica em grande número em todas as ilhas do menos frequentemente, também poderá ser
arquipélago da Madeira, destacando-se a coló- detetada em áreas florestais e áreas agrícolas.
nia das Desertas, que é considerada a maior do É uma espécie cinegética, que apresenta com-
Atlântico. Está presente entre os meses de abril portamento muito discreto, e cuja deteção
e setembro e constrói os seus ninhos entre pe- é mais facilitada no período de reprodução
dras e em fendas, muitas vezes ocupando os ni- (entre fevereiro e junho) quando, após o pôr-
nhos de pintainho. Não vocaliza em voo, emi- -do-sol, os machos fazem os seus voos exibicio-
tindo sons que se assemelham ao ladrar de um nistas e emitem a sua vocalização característica.
cão apenas quando se encontra no interior do Em 2015, a população está estimada em cerca
ninho. No mar, é facilmente identificada pelo de 350 aves. Alimenta-se predominantemente
seu voo rápido e com frequentes mudanças de de minhocas e larvas de diversos insetos, em
direção. Os estudos indicam que a sua dieta é especial de escaravelhos, mas também ingere
constituída essencialmente por plâncton, in- algum material vegetal.
cluindo ovos de peixe, cefalópodes e peixes. Gaivota ou gaivota-de-patas-amarelas, Larus
Rolinha-da-praia, Charadrius alexandrinus (Lin- michahellis atlantis (Clements 1991) – É a
naeus 1758) – Ave limícola de pequeno ta- única espécie de gaivota que nidifica no ar-
manho que nidifica apenas na ilha do Porto quipélago, estando presente em todas as ilhas.
Santo, ocorrendo ao longo da praia, em espe- Os madeirenses dão o nome de gaio ou gaivo-
cial nas áreas menos perturbadas, embora tam- to aos indivíduos novos da gaivota, os quais
bém possa ser detetada em estradas de terra se distinguem dos adultos pela plumagem
108 ¬ A ves

permitam confirmar a sua nidificação no Fun-


chal e em São Vicente. É uma ave estival nidifi-
cante, pois só está presente na Madeira duran-
te o período de reprodução (entre os meses de
abril e agosto). Nidifica na costa, em rochas e
ilhéus pouco perturbados, e alimenta-se de pe-
quenos peixes. Distingue-se do garajau-comum
Sterna hirundo por apresentar asas e dorso mais
claros, cauda mais comprida, e pelo facto de
o seu bico ser preto, apresentando a sua base
avermelhada durante o período de reprodu-
ção. Alimenta-se de pequenos peixes e de ou-
tros organismos aquáticos.
Garajau-comum, Sterna hirundo (Linnaeus
1758) – Está presente em todas as ilhas do ar-
quipélago, nidificando na costa, em rochas e
ilhéus pouco perturbados, assim como junto
Fig. 7 – Gaivota ou gaivota-de-patas-amarelas (fotografia de
Virgílio Gomes, 2018). aos portos de pesca. É considerada uma ave
estival nidificante, pois só está presente no ar-
escura, que só ao fim de três anos está subs- quipélago da Madeira durante o período de
tituída pela plumagem definitiva. Para nidi- reprodução, que ocorre entre março e outu-
ficar, tem preferência por falésias costeiras e bro. É uma ave bastante territorial, atacando
ilhéus com pouca vegetação e perturbação re- quem se aproxime dos seus ninhos. Pelo facto
duzida. Os seus efetivos populacionais estão
distribuídos fundamentalmente pelo ilhéu do
Desembarcadouro, na ilha da Madeira, pelo
ilhéu Chão, nas ilhas Desertas, e pelos ilhéus
de Cima e da Cal, no Porto Santo. A popula-
ção estimada para estas quatro colónias era,
em 2015, de aproximadamente 4000 casais re-
produtores. A subespécie L. m. atlantis é en-
démica da Macaronésia, estando presente nos
arquipélagos dos Açores, da Madeira e das Ca-
nárias. É comum ao longo de todo o litoral,
especialmente em praias, portos piscatórios e
foz de ribeiras; no entanto, também é comum
a sua presença a altitudes superiores a 1400
m. A sua alimentação é omnívora, baseada
numa série de presas animais, material vege-
tal e numa grande variedade de detritos orgâ- Fig. 8 – Garajau-comum (fotografia de Virgílio Gomes, 2007).

nicos e inorgânicos, que encontra em lixeiras,


lotas e locais de produção animal. de não ter plumagem impermeável, raramen-
Garajau-rosado, Sterna dougallii (Montagu te pousa diretamente no mar, optando por
1813) – Espécie relativamente rara, que nos pousar sobre pequenos pedaços de madeira
Açores apresenta uma das maiores colónias ou boias. Alimenta-se de pequenos peixes,
da Europa. Existem registos da sua presença crustáceos e insetos. É frequente observar-se
nas Selvagens, no Porto Santo e na Madeira, esta ave em disputa com as gaivotas pela cap-
embora os dados recolhidos até 2015 apenas tura de peixe.
A ves ¬ 109

Coruja ou coruja-das-torres, Tyto alba schmitzi Santo e na Madeira, está amplamente distribuí-
(Hartert 1900) – É a única ave de rapina no- da, ocupando praticamente todos os habitats,
turna a residir no arquipélago, nidificando nas tais como áreas abertas, áreas florestais, áreas
ilhas da Madeira, do Porto Santo e também nas agrícolas e até mesmo áreas urbanas, desde a
ilhas Desertas. Distribui-se ao longo de toda costa até aos picos mais elevados, a 1800 m de
a ilha da Madeira, entre as zonas litorais e as altitude. A subespécie B. b. harterti, que é endé-
zonas de cotas menos elevadas. As suas áreas de mica do arquipélago da Madeira, tem colora-
ocorrência estão particularmente associadas à ção castanha avermelhada, com cauda cinzen-
presença humana, ocorrendo em zonas rurais ta clara. O ventre pode ser castanho-escuro,
e urbanas, evitando normalmente as áreas flo- uniforme ou listrado, e manchado de amarelo
restadas. A subespécie T. a. schmitzi, que é en- esbranquiçado. Em 2015, a população da Ma-
démica do arquipélago da Madeira, apresenta deira e do Porto Santo foi estimada em cerca
o mesmo padrão de coloração que a sua con- de 300 aves. Apresenta uma alimentação varia-
génere continental; no entanto, é bem mais da, que inclui pequenos mamíferos (murgan-
pardacenta. A sua alimentação é composta so- hos e coelhos), assim como aves, répteis, anfí-
bretudo por pequenos roedores e, em menor bios e insetos.
escala, por morcegos, aves e insetos. Poupa, no Porto Santo conhecida por pim-
Fura-bardos ou gavião, Accipiter nisus granti pão, Upupa epops (Linnaeus 1758) – Uma das
(Sharpe 1890) – No arquipélago da Madei- aves mais fáceis de identificar, pela sua silhue-
ra, ocorre apenas na ilha da Madeira, sendo ta, a coloração alvinegra das asas, o bico com-
uma ave de rapina própria de ambientes flo- prido e curvo, e a sua poupa, que abre em se-
restais, quer sejam de laurissilva ou pinhal, de micírculo. O canto, embora em tom baixo,
preferência que apresentem um sub-bosque também é distintivo. Nidifica exclusivamente
arbustivo. Pode ainda ser observada perto de no Porto Santo; no entanto, existem registos
campos agrícolas, em áreas abertas e áreas ur- da sua presença em todas as ilhas do arquipé-
banas, que utiliza como área de caça. A subes- lago da Madeira. Ocorre essencialmente em
pécie A. n. granti ocorre apenas nos arquipé- áreas abertas e secas, de vegetação rasteira,
lagos da Madeira e das Canárias, sendo mais que apresentem núcleos arbustivos, em áreas
escura no dorso que a espécie nominal, e mais agrícolas e em campos de golfe. É sempre ob-
listrada no ventre. Esta subespécie apresenta servada isolada ou aos pares, e constrói os
também um acentuado dimorfismo sexual, seus ninhos em cavidades de árvores, montes
não só ao nível da coloração da plumagem, de pedras e ruínas. Alimenta-se de insetos e
mas também nas dimensões. Embora se saiba suas larvas.
que ocorre de forma dispersa pela Ilha, em
2015 o seu efetivo populacional não era co-
nhecido, principalmente por ser uma ave de
hábitos discretos, voo rápido e difícil observa-
ção. Alimenta-se de uma diversidade de aves,
tais como pombo-trocaz, pombo-da-rocha,
tentilhão, melro-preto, canário, entre outros
passeriformes.
Manta, Buteo buteo harterti (Swann 1919) –
Ocorre nas ilhas da Madeira e do Porto Santo.
Até 1996, também nidificava nas Desertas, mas
após a eliminação dos herbívoros, a espécie
abandonou as ilhas, não havendo, em 2015,
indícios da sua nidificação, embora seja fre-
quentemente observada nestas ilhas. No Porto Fig. 9 – Poupa ou pimpão (fotografia de Porto Santo Verde, 2015).
110 ¬ A ves

Fig. 10 – Francelho em voo (fotografia de Virgílio Gomes, 2019). Fig. 11 – Toutinegra (fotografia de Virgílio Gomes, 2015).

Francelho, Falco tinnunculus canariensis (Koenig também está amplamente distribuída, sendo
1889) – Ocorre em todas as ilhas do arquipéla- possível observá-la desde a beira-mar até aos
go, embora não existam, em 2015, registos da picos de maior altitude. No arquipélago da Ma-
sua nidificação nas Desertas e Selvagens. Pode deira, nidifica a subespécie S. a. Heineken, que
ser encontrado em praticamente todos os habi- também ocorre na Península Ibérica, no Norte
tats terrestres e a diferentes faixas altitudinais, de África e nas Canárias. Esta é marcadamente
mas procura essencialmente áreas abertas com mais escura e mais pequena. Alimenta-se, em
vegetação herbácea e arbustiva, núcleos de pi- especial, de insetos, mas também pode consu-
nhal disperso, áreas agrícolas e áreas urbanas, mir frutos e bagas.
onde facilmente pode encontrar as suas presas. Cigarrinho, Sylvia conspicillata orbitalis (Wahl-
A subespécie F. t. canariensis, que ocorre apenas berg 1854) – Ocorre nas ilhas da Madeira e
nos arquipélagos da Madeira e das Canárias, é, do Porto Santo. Na Madeira, distribui-se de
de forma geral, mais escura. A cabeça do macho forma descontínua, estando presente prefe-
apresenta um cinzento mais escuro e é mais lis- rencialmente em áreas abertas onde predomi-
trada, enquanto o dorso é castanho mais escu- nam espécies arbustivas como a Urze, a Giesta
ro e com manchas pretas maiores. O dorso da e a Carqueja, concentrando-se na parte oeste
fêmea é muito mais listrado e as penas superio- e central da Ilha. No Porto Santo, distribui-
res da cauda são de um cinzento-azulado. Ali- -se preferencialmente pela faixa litoral sul da
menta-se de murganhos, lagartixas e insetos. ilha. A subespécie S. c. orbitalis é endémica da
Toutinegra, Sylvia atricapilla heineken (Jardine Macaronésia e ocorre também nas Canárias e
1830) – Nidifica apenas nas ilhas da Madeira em Cabo Verde, caracterizando-se por ser mais
e do Porto Santo, mas a nidificação nesta últi- escura e mais colorida que a espécie nominal.
ma ilha só foi confirmada nos primeiros anos Apresenta coroa cinzenta mais escura, dorso
do séc. xxi. É uma ave relativamente comum, castanho mais escuro e asas mais acastanhadas
uma vez que apresenta uma grande adaptabi- no macho, sendo o dorso da fêmea também
lidade a locais criados pelo Homem, tais como mais escuro. A sua alimentação é predominan-
meios agrícolas, jardins e parques do interior temente insectívora, podendo, no entanto,
de cidades. Embora procure áreas arborizadas, consumir também frutos e bagas.
a sua presença na floresta laurissilva é quase Bis-bis, Regulus madeirensis (Harcourt 1851) –
nula, preferindo as zonas limítrofes à mesma É a ave mais pequena que ocorre nas ilhas
e áreas de floresta exótica. No Porto Santo, da Madeira e do Porto Santo, embora, nesta
A ves ¬ 111

arquipélagos da Madeira e das Canárias. De


forma geral, é mais pequena e a plumagem
preta dos machos é mais escura e brilhante que
a espécie nominal. A plumagem das fêmeas
também é mais escura. A sua alimentação ba-
seia-se em insetos e minhocas, capturados no
solo ou em vegetação rasteira.
Papinho, Erithacus rubecula (Linnaeus 1758) –
No arquipélago, nidifica apenas na ilha da Ma-
deira. Embora, em 2001, tenha sido verificada
a sua nidificação no Porto Santo, em 2015 não
existem registos que confirmem essa informa-
ção. Também existem registos da sua presen-
ça nas ilhas Desertas e Selvagens. É facilmente
identificado pelas faces, a garganta e o peito
Fig. 12 – Bis-bis (fotografia de Virgílio Gomes, 2005).
alaranjados. Está bem distribuído ao longo da
ilha da Madeira, ocorrendo em praticamente
última, a sua nidificação só tenha sido confir- todos os gradientes altitudinais. É uma ave soli-
mada nos começos do séc. xxi. Em 2005, foi tária e bastante territorial que, de forma geral,
reconhecida como espécie endémica. Relativa- se encontra em áreas com vegetação arbustiva
mente à espécie na qual estava anteriormente ou arbórea, compostas por espécies indígenas
incluída (R. ignicapillus), apresenta supercílio ou exóticas, tais como jardins urbanos, terre-
mais curto, coroa mais alaranjada, “ombros” nos agrícolas ou urzais, evitando, no entanto,
com amarelo mais brilhante, pescoço mais áreas muito secas. O canto, que emite duran-
acinzentado e bico mais comprido. Na Madei- te grande parte do ano, é bastante melodioso,
ra, pode ser encontrada em vários tipos de flo- permitindo a sua deteção quando se encontra
resta (indígena ou exótica) e de áreas agricul- no topo de árvores. Alimenta-se essencialmen-
tadas; no entanto, o habitat em que pode ser te de invertebrados, assim como de bagas e pe-
observada em maior número são as áreas de quenas sementes.
urzal. No Porto Santo, ocorre nas áreas mais Pardal-espanhol, em Machico conhecido por
altas da ilha, frequentando as zonas de pinhal pirata, Passer hispaniolensis (Temminck 1820) –
aí existentes. Em 2015, a sua população da Ma- Nidifica no Porto Santo e na ilha da Madeira.
deira foi estimada em 300.000 indivíduos. Ali- É a ave mais comum do Porto Santo, ocorren-
menta-se de diversos artrópodes, em especial do em toda a ilha, e facilmente se aproxima das
de afídios e pequenas aranhas. pessoas, em especial nas esplanadas do centro
Melro-preto, Turdus merula cabrerae (Hartert da cidade. Na Madeira, está restrita ao extremo
1901) – Ocorre nas ilhas da Madeira e do Porto este da Ilha, no centro da vila do Caniçal, e às
Santo, embora a nidificação nesta última ilha palmeiras existentes na Ponta de São Lourenço.
só tenha sido confirmada em 2009. Na Madei- Existem registos que indicam que, em meados
ra, está presente em quase todos os locais da do séc. xx, esta espécie era bastante comum na
Ilha, desde a beira-mar até aos picos mais ele- ilha da Madeira, não sendo conhecidas as razões
vados. A sua distribuição inclui ainda os locais para a sua posterior regressão. No Porto Santo,
com intervenção humana, tais como áreas agrí- ocorre essencialmente em áreas secas, áreas ur-
colas, núcleos urbanos, parques e jardins. No banas e áreas agrícolas. De forma geral, nidifica
Porto Santo, ocorre de forma esporádica em em colónias, aproveitando pequenas cavidades
locais que apresentem núcleos de vegetação em palmeiras e edifícios, assim como em postes
arbustiva. A subespécie T. m. cabrerae é endé- telefónicos e postes elétricos. Alimenta-se de se-
mica da Macaronésia, ocorrendo apenas nos mentes e invertebrados.
112 ¬ A ves

apresenta bico mais longo, dorso de cinzento


mais escuro, supercílio branco mais curto (re-
duzido a uma pequena risca atrás do olho) e
maior intensidade na cor do ventre amarelo
e da garganta preta. A cauda apresenta maior
quantidade de preto e a risca branca abaixo da
face é pouco distinta. Alimenta-se à base de in-
setos, que captura caminhando ou correndo
sobre o solo ou em pleno voo.
Corre-caminhos, carreiró, carreirote, melri-
nho de Nosso Senhor ou melrinho de Nossa
Senhora, no Porto Santo conhecido por bica,
Anthus berthelotii (Bolle 1862) – Espécie endé-
mica da Macaronésia, com distribuição restri-
Fig. 13 – Pardal ou pardal-da-terra (fotografia do Parque Natural ta aos arquipélagos da Madeira e das Caná-
da Madeira).
rias. Nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e
das Desertas, ocorre a subespécie A. b. madei-
Pardal ou pardal-da-terra, Petronia petronia rensis, enquanto nas Canárias e nas ilhas Sel-
madeirensis (Erlanger 1899) – Está presente vagens ocorre a subespécie A. b. berthelotii.
nas ilhas da Madeira e do Porto Santo. Em
2015, apresentava uma distribuição localiza-
da, ocupando áreas abertas com vegetação
rasteira, zonas rochosas, falésias costeiras e
meios agrícolas. Embora seja mais frequente
nas áreas costeiras, também é possível detetá-
-lo nas zonas de maior altitude da Ilha. Exis-
tem alguns registos atuais de observações da
espécie em áreas rurais humanizadas, em es-
pecial na zona oeste da Madeira. A subespé-
cie P. p. madeirensis, endémica da Macaroné-
sia, ocorre nos arquipélagos da Madeira e das
Canárias, e apresenta plumagem e riscas da
cabeça mais escuras. Alimenta-se de sementes
e insetos. Fig. 14 – Corre-caminhos, carreiró, carreirote, melrinho
Lavadeira ou lavandeira, no Porto da Cruz co- de Nosso Senhor ou melrinho de Nossa Senhora,
nhecida por papa-moscas, Motacilla cinerea sch- ou bica (fotografia do Parque Natural da Madeira, 2010).

mitzi (Tschusi 1900) – Entre os arquipélagos,


ocorre apenas na ilha da Madeira e pode ser A principal diferença entre estas duas subes-
observada na foz de ribeiras, em meio urbano, pécies é o facto de a primeira ter o bico mais
nos jardins e em locais que apresentem peque- comprido. Pode ser observada desde o nível
nos lagos e outras fontes de água, assim como do mar até às zonas mais altas, a cerca de 1800
no interior da Ilha, em áreas onde abunde a m, mas ocorre preferencialmente em áreas
floresta laurissilva e existam levadas ou ribei- rochosas e abertas, com pouca vegetação ou
ras. Também pode ser encontrada nas áreas de vegetação rasteira. O facto de andar e correr
maior altitude da Ilha, desde que existam lo- com frequência, só levantando voo quando se
cais com água corrente. Na Madeira, ocorre a sente ameaçada, está provavelmente na ori-
subespécie endémica M. c. schmitzi. Esta é mais gem do seu nome na Madeira. Alimenta-se so-
pequena que a sua congénere continental, bretudo de insetos.
A ves ¬ 113

Fig. 15 – Tentilhão (fotografia de Fig. 16 – Canário-da-terra (fotografia de


Virgílio Gomes, 2005). Virgílio Gomes, 2019).

Tentilhão, Fringilla coelebs madeirensis (Sharpe marginais de florestas ou bosques, quer sejam
1888) – Subespécie endémica que, nestes ar- indígenas ou exóticos. No Porto Santo e nas
quipélagos, ocorre apenas na ilha da Madeira. Desertas, ocupa áreas mais áridas. Alimenta-
É uma espécie comum nas áreas de laurissilva -se de sementes e de outras matérias vegetais,
e floresta exótica, mas também pode ser en- podendo ocasionalmente consumir pequenos
contrada em algumas áreas agrícolas. É uma invertebrados.
das aves mais sociáveis que ocorre na Ilha, Verdilhão, Carduelis chloris (Linnaeus 1758) –
sendo fácil a sua observação ao longo das leva- No arquipélago da Madeira, nidifica exclusi-
das e dos parques de merendas. A subespécie vamente na ilha da Madeira. Já foi considera-
F. c. maderensis distingue-se, relativamente à da uma ave rara, mas em 2015 a sua presença
sua congénere europeia, por apresentar plu- podia ser detetada ao longo de grande parte
magem mais colorida e pelo canto ser mais da Ilha. Ocorre em jardins, parques urba-
alto e mais melodioso. Ao nível da coloração nos e cemitérios, áreas de floresta exótica
da plumagem, as diferenças são mais notó- pouco densa, e em áreas agrícolas e espa-
rias no macho, que apresenta peito rosado, ços de floresta de transição perto delas. De
dorso verde acastanhado e cabeça mais azu- forma geral, está ausente do interior de gran-
lada. Alimenta-se sobretudo de sementes e de des manchas florestais, tal como a laurissil-
outras matérias vegetais, mas durante o perío- va, preferindo as áreas limítrofes. É pouco
do de reprodução consome principalmente frequente a altitudes elevadas, sendo geral-
invertebrados. mente rara acima dos 1000 m. Alimenta-se
Canário-da-terra, Serinus canaria (Linnaeus de uma grande variedade de sementes, bagas
1758) – Espécie endémica da Macaronésia, e insetos.
que ocorre nos arquipélagos dos Açores, da Pintassilgo, Carduelis carduelis parva (Tshusi
Madeira e das Canárias. Ocorre em todas as 1901) – É a ave mais colorida da avifauna do
ilhas do arquipélago, exceto nas Selvagens, e arquipélago, nidificando apenas nas ilhas da
pode ser encontrado em distintos habitats e a Madeira e do Porto Santo, embora nesta úl-
várias altitudes. No verão, em especial, apa- tima a nidificação só tenha sido confirmada
rece em alguns dos picos mais altos da ilha no começo do séc. xxi. Nas Desertas, também
da Madeira, mas, em geral, ocorre em áreas foi detetada a sua presença no ilhéu Chão e
urbanas, áreas abertas com vegetação rastei- no Bugio. Pode ser observada desde em áreas
ra ou pouco densa, áreas agrícolas e áreas à beira-mar até aos pontos mais elevados da
114 ¬ A ves

Madeira, em especial nas zonas agrícolas, em Aves introduzidas


locais abertos com vegetação rasteira onde A maior parte das espécies aqui apresenta-
predominem gramíneas e cardos, jardins, nú- das encontra-se perfeitamente naturalizada;
cleos de floresta exótica e áreas marginais de no entanto, até ao começo do séc. xxi não ti-
floresta indígena. No Porto Santo, concentra- nham sido estudados os possíveis impactos que
-se sobretudo na parte leste da ilha. A subes- as mesmas causaram na avifauna local.
pécie C. c. parva ocorre nos arquipélagos da Perdiz, Alectoris rufa hispanica (Seoane 1891) –
Macaronésia, no Sul de França, nos Pirinéus, Ave originária do Sudoeste da Europa, que
na Península Ibérica, nas ilhas Baleares e no ocorre de forma natural em Portugal, Espanha,
Norte de África, e distingue-se da subespécie França e Norte de Itália. Foi introduzida no ar-
nominal em especial por apresentar dimen- quipélago da Madeira antes de 1450. É uma es-
sões mais reduzidas, particularmente as asas pécie cinegética que ocorre apenas nas ilhas da
e a cauda. Alimenta-se de pequenas sementes, Madeira e do Porto Santo, podendo ser obser-
apresentando elevada preferência por semen- vada desde em locais próximos do mar até aos
tes de cardos. picos mais altos, em áreas abertas com algumas
Pintarroxo, Carduelis cannabina guentheri (Wol- manchas arbustivas e vegetação rasteira, que uti-
ters 1953) – Está presente nas ilhas da Madeira liza como esconderijo. De forma geral, pode ser
e do Porto Santo. É uma espécie comum nas observada em pequenos bandos de 2 a 15 indi-
falésias costeiras, embora também possa ser víduos. A subespécie A. r. hispânica, que ocorre
encontrada a altitudes superiores aos 1400 m. no Norte e Noroeste de Espanha, no Norte e
Ocorre preferencialmente em áreas abertas Centro de Portugal e na ilha da Madeira, é mais
com vegetação rasteira, dominadas por gra- escura e colorida, com garganta azul acinzenta-
míneas, mas também pode ser encontrada em da mais escura, nuca castanha mais clara, dorso
áreas agrícolas e terrenos baldios. A subespé- mais escuro e com mais preto no centro da gar-
cie L. c. guentheri é endémica do arquipélago ganta. A alimentação é variada, mas assenta so-
da Madeira e apresenta asas mais curtas e bico bretudo em material vegetal, incluindo folhas,
mais delgado. O macho é facilmente identifi- caules, sementes e frutos.
cado pela frente da cabeça e o peito averme- Pato-mandarim, Aix galericulata (Linnaeus
lhado. Alimenta-se de sementes, de pequena e 1758) – Ave originária do Leste da Ásia.
média dimensão. A sua nidificação foi confirmada em 2009 no

Fig. 17 – Pintarroxo (fotografia de Virgílio Gomes, 2010). Fig. 18 – Patos-mandarins (fotografia de Virgílio Gomes, 2010).
A ves ¬ 115

Porto Santo, sendo a única ilha do arquipé- 2009. Os seus ninhos são construídos em ca-
lago onde ocorre. Está presente em diver- vidades localizadas em árvores. A colonização
sas reservas de água, desde que as mesmas da ilha da Madeira resultou de aves domésti-
apresentem nas margens vegetação densa ou cas que escaparam ou de libertação intencio-
arbustos. Tal como ocorreu em Inglaterra e nal das mesmas. Frequenta diversos jardins e
na Europa, o estabelecimento de uma popu- parques, desde que neles estejam presentes es-
lação no Porto Santo será resultado de aves pécies de plantas tropicais de que se possa ali-
domésticas que escaparam ou de libertação mentar. Alimenta-se essencialmente de semen-
intencional das mesmas. São aves omnívoras, tes e frutos.
baseando a sua alimentação em sementes, Bico-de-lacre, Estrilda astrild (Linnaeus 1758) –
minhocas e insetos. Ave originária do continente africano, em es-
Rola-turca, Streptopelia decaocto (Frivaldszky pecial de regiões a sul do Sahara. Esta é a espé-
1838) – Espécie com ampla distribuição global, cie de ave exótica mais abundante na Madeira.
que no final do séc. xx apresentou uma rápida Supõe-se que a introdução ocorreu através de
expansão natural na Europa. Na Macaronésia, aves que escaparam de gaiola e que se estabe-
está bem estabelecida nas Canárias, onde nidi- leceram. A sua introdução na ilha do Porto
fica em todas as ilhas exceto El Hierro, mas a Santo data de 1978, enquanto na Madeira exis-
sua colonização nos arquipélagos da Madeira e tem registos desde 1986. Para nidificar utiliza
dos Açores é posterior; está amplamente distri- caniçais, canaviais, sebes (normalmente bem
buída pelo Porto Santo, sendo observada em desenvolvidas e próximas de água), matas ri-
áreas urbanas, parques e jardins, onde constrói beirinhas com denso coberto arbustivo e zonas
os seus ninhos em árvores de grande porte. Na cultivadas. Na ilha da Madeira, encontra-se em
ilha da Madeira, ocorre apenas numa peque- diversos locais próximos de ribeiras e lagoas,
na área do Caniçal, onde tem sido observada tais como Machico e Lagoa do Lugar de Baixo.
desde 2004. Também já tem sido observada Alimenta-se de sementes, mas por vezes tam-
nas Desertas e Selvagens, embora não existam bém de insetos.
registos da sua nidificação. Desconhece-se a Lugre, Carduelis sinica (Linnaeus, 1766) – Ave
origem desta população, nomeadamente se é originária do continente europeu e asiático,
resultante de um fenómeno de colonização na- que se encontra bem distribuída desde a Euro-
tural ou se tem origem em fugas ou na liber- pa Ocidental e a Rússia meridional até à costa
tação de aves de cativeiro. Esta espécie é facil- do oceano Pacífico. O lugre era considerado
mente identificada por ser do tamanho de um uma espécie acidental no arquipélago da Ma-
pombo e apresentar plumagem cinzento claro, deira, até que a sua nidificação foi confirmada
com parcial colar preto no pescoço. Alimenta- na ilha da Madeira em 2002, quando foi ob-
-se principalmente de grãos de cereais e outras servado um adulto a alimentar uma cria. Este
sementes, podendo também ingerir as partes registo ocorreu numa área de lazer situada na
verdes das plantas, invertebrados e pão. vertente sul da ilha, a cerca de 1200 m de alti-
Periquito-rabijunco, Psittacula krameri (Sco- tude, que apresenta um estrato arbóreo bem
poli, 1769) – Ave de origem africana e asiática desenvolvido, dominado por espécies intro-
que se assemelha a um periquito, mas de maio- duzidas, como pinheiros e abetos. Durante os
res dimensões, e que pode ser detetada pelos últimos anos, a espécie tem sido detetada em
seus chamamentos roucos e estridentes quan- diversos locais da Madeira, sempre em áreas
do em voo. Ocorre apenas na ilha da Madeira dominadas por coníferas e, de forma geral, em
e os primeiros registos da espécie em liberda- associação com linhas de água e pequenos ca-
de datam do ano 2000, com a observação de nais. Pelo facto de a espécie ter sido registada
aves isoladas ou em pequenos bandos. Embora no arquipélago da Madeira ao longo de vários
existam registos dispersos pela Ilha, a sua nidi- anos, a sua introdução na avifauna regional po-
ficação apenas foi confirmada no Funchal em derá ter sido um processo natural ou derivado
116 ¬ A ves

da libertação de indivíduos oriundos de cati-


veiro. A observação de aves juvenis indica que
a espécie já colonizou grande parte da ilha da
Madeira. Alimenta-se de sementes, em espe-
cial de coníferas, e, em menor quantidade, de
invertebrados.

Aves visitantes
Embora o arquipélago da Madeira esteja
fora das principais rotas migratórias segui-
das pelas aves que nidificam na Europa e mi-
gram para África, existem registos de cerca
de 337 espécies de aves visitantes que podem
ser observadas regularmente ou apenas aci-
dentalmente. Aqui são apresentadas algumas Fig. 19 – Pardela-preta em voo (fotografia de Virgílio Gomes,
das espécies cuja presença tem sido registada 2015).

anualmente, e geralmente por diversos indi-


víduos, quer em bandos, quer de forma isola- de migração, entre os meses de agosto e se-
da, em especial nas ilhas da Madeira e Porto tembro, altura em que se desloca para Sul.
Santo. Alimenta-se sobretudo de peixes, cefalópodes
Marrequinha, Anas crecca (Linnaeus 1758) – e crustáceos.
É o pato de menor dimensão oriundo do Pardela-de-barrete, Ardenna gravis (O’Reilly
continente europeu. A maior parte das aves 1818) – Ave marinha que nidifica exclusi-
permanece na Europa durante o inverno e vamente em ilhas do Atlântico Sul, a partir
apenas uma minoria migra para o Norte de das quais migra para o Atlântico Norte, onde
África. No arquipélago da Madeira, é uma grande parte da população passa o inverno
ave invernante, pois, de forma geral, só é ob- austral. Apresenta tamanho semelhante à
servada entre os meses de outubro e março. cagarra C. diomedea, embora seja um pouco
Ocorre em lagoas, reservas de água e ribei- mais pequena que esta. Apresenta um voo
ras. O macho apresenta uma plumagem rápido, alternando batimentos de asas fre-
bastante colorida, enquanto a fêmea é par- néticos com voo planado. Nos mares do ar-
dacenta. Alimenta-se preferencialmente de quipélago, é uma migradora de passagem
noite e apresenta uma dieta omnívora, em- comum, ocorrendo em elevados números
bora o consumo de sementes predomine du- no período de migração, entre os meses de
rante o inverno. agosto e setembro. Contagens realizadas no
Pardela-preta, Ardenna grisea (Gmelin 1789) – Porto Moniz, a partir de terra, registaram a
Ave marinha que nidifica em colónias locali- passagem de milhares de indivíduos em ape-
zadas nas águas frias do hemisfério sul e que nas um dia. Alimenta-se sobretudo de peixes
passa o inverno em áreas temperadas no norte e cefalópodes.
dos oceanos Atlântico e Pacífico. É mais pe- Garça-boieira, Bubulcus ibis (Linnaeus 1758) –
quena que a pardela-de-barrete Ardenna gra- É semelhante à garça-branca-pequena Egret-
vis, apresenta plumagem quase toda negra, à ta garzetta, mas distingue-se dela pelo facto de
exceção da parte inferior das asas, que é par- ter bico amarelo. Na Europa, nidifica sobre-
cialmente branca, e o seu voo assemelha-se ao tudo no Mediterrâneo. Não efetua migrações
patagarro P. puffinus. Nos mares do arquipé- de longa distância, dispersando-se por áreas
lago da Madeira, é uma migradora de passa- próximas dos locais de nidificação, de acordo
gem, ocorrendo essencialmente no período com a disponibilidade alimentar. É uma ave
A ves ¬ 117

Fig. 20 – Garça-boieira em voo (fotografia de Virgílio Gomes,


2010).

migradora de passagem no arquipélago da Ma-


deira, ocorrendo em todas as ilhas. De forma
geral, é observada solitária, embora possa ocor-
rer em bandos mistos com a garça-branca-pe-
quena. Frequenta áreas abertas com vegetação
rasteira, lagoas costeiras, ribeiras e praias. Ali-
menta-se sobretudo de insetos, embora tam-
bém procure moluscos e pequenos vertebra-
dos, tais como rãs e peixes. Fig. 21 – Garça-real (fotografia de Virgílio Gomes, 2008).
Garça-real, Ardea cinerea (Linnaeus 1758) –
Encontra-se bem distribuída pela Europa, locais com água, onde procura comida (rãs e
onde nos últimos anos do séc. xx se verificou peixes).
um incremento populacional, em especial no Garça-branca-pequena, Egretta garzetta (Lin-
noroeste e centro. Embora parte das popula- naeus 1766) – Espécie oriunda do continente
ções se concentre em algumas áreas da Euro- europeu, que ocorre de forma dispersa na Pe-
pa durante o inverno, a maior parte das po- nínsula Ibérica, em França, Itália e para leste,
pulações do Norte migra para o Mediterrâneo até ao norte da região do Cáucaso. No inver-
ou para sul do Sahara. É uma migradora regu- no, a maior parte das populações migra para
lar no arquipélago da Madeira, e ocorre em o Norte e Centro de África; no entanto, mui-
todas as ilhas. Na ilha da Madeira, é possível tas passam o inverno no Mediterrâneo euro-
observar esta ave durante quase todo o ano; peu. É um visitante regular no arquipélago da
no entanto, é durante os meses de setembro Madeira, onde ocorre em números superiores
e outubro que se observa o maior número de durante os meses de outono e inverno. A sua
indivíduos. De forma geral, os indivíduos são silhueta e cor branca tornam-na uma ave fa-
observados isolados, embora no período de cilmente reconhecida pela população. Pode
migração existam registos de bandos com 15 ser observada em portos, praias e zonas costei-
ou mais aves. Pelo facto de ser uma ave gran- ras, na foz de ribeiras, em reservas de água e
de, de pescoço e patas compridos, é facilmen- lagoas. Na ribeira de Machico e no Funchal,
te reconhecível. Pode ser encontrada em la- há árvores que servem de dormitório, no qual
goas, na foz de ribeiras, em praias e outros por vezes se concentram vários indivíduos.
118 ¬ A ves

rolinha-da-praia C. alexandrinus (que nidifica


no Porto Santo), mas é maior e o colar negro
que apresenta é completo e circunda todo o
pescoço. Usualmente, é solitária, embora possa
ser observada em pequenos bandos mistura-
dos com a rolinha-da-praia e outras limícolas.
Alimenta-se essencialmente de invertebrados
aquáticos, como crustáceos e moluscos.
Maçarico-galego, Numenius phaeopus (Linnaeus
1758) – Espécie que nidifica no Norte da Euro-
pa e da Ásia cuja característica mais marcante
é o seu bico comprido e curvo e o seu chama-
mento com sílabas repetitivas. A maior parte da
população migra para a região Afro-tropical e as
Fig. 22 – Garça-branca-pequena (fotografia de Virgílio Gomes,
ilhas no Oceano Índico. No arquipélago da Ma-
2008).
deira, ocorre essencialmente no período pré-
-nupcial (entre março e abril) e, posteriormen-
Alimenta-se sobretudo de insetos aquáticos, te, na migração pós-nupcial, que decorre entre
crustáceos e pequenos peixes, assim como de setembro e outubro, embora possam ser obser-
pequenos anfíbios e répteis. vados alguns indivíduos ao longo de todo o ano.
Tarambola-cinzenta, Pluvialis squatarola (Lin- É considerada uma migradora de passagem e in-
naeus 1758) – Nidifica no Ártico, essencial- vernante, ocorrendo com regularidade em todo
mente na Sibéria e no Alasca. Embora algumas o arquipélago, numa ampla variedade de locais,
aves invernem na Europa, a maior parte da po- onde descansa e se alimenta, tais como praias,
pulação efetua migrações de longa distância, lagoas, ribeiras e áreas abertas com vegetação
chegando até as costas da América do Sul e de rasteira. Podem ser observados indivíduos isola-
África, ao Sul da Ásia e à Austrália. É uma in- dos ou pequenos bandos, que podem reunir até
vernante que ocorre anualmente na praia do 15 aves. Alimenta-se de crustáceos, moluscos e,
Porto Santo, entre os meses de outubro e feve- por vezes, de pequenos peixes e répteis.
reiro, embora também possa ser observada em Vira-pedras ou rola-do-mar, Arenaria interpres
ribeiras e lagoas na ilha da Madeira. De forma (Linnaeus 1758) – Espécie holártica que, após
geral, é solitária, embora possam ser observa- a nidificação, migra para Marrocos, a África
dos pequenos bandos de até três indivíduos. Ocidental e o oceano Índico. É a migradora de
Alimenta-se sobretudo de insetos e outros in- passagem e invernante mais comum que ocor-
vertebrados, tais como moluscos e crustáceos. re no arquipélago da Madeira, sendo possível a
Borrelho-grande-de-coleira, Charadrius hiaticu- sua observação durante quase todo o ano, em-
la (Linnaeus 1758) – Nidifica na orla costeira bora as maiores concentrações de indivíduos
ao longo das áreas árticas e subárticas, e nas sejam registadas entre março e abril e entre se-
águas temperadas do Norte da Europa. Efetua tembro e outubro. Pode ser observada, geral-
migrações de longa distância, distribuindo-se mente em pequenos bandos, em diversos habi-
pelo Sul da Europa, Sul do continente africa- tats costeiros, tais como praias, lagoas e a foz de
no e Sudoeste da Ásia. É uma invernante que ribeiras. . É frequente observá-la a virar pedras
ocorre no arquipélago da Madeira, em espe- para capturar as presas que se encontram por
cial nas ilhas da Madeira e Porto Santo, duran- baixo. Alimenta-se de insetos, crustáceos, mo-
te os meses de outono e inverno (setembro a luscos e pequenos peixes.
março). Pode ser observada em praias, quer Pilrito-das-praias, Calidris alba (Pallas 1764) –
arenosas, quer rochosas, na foz de ribeiras e Ave originária do círculo polar ártico. As aves
em lagoas costeiras. Esta ave é semelhante à que chegam ao arquipélago da Madeira
A ves ¬ 119

de pequenos invertebrados, embora também


se alimente de matéria vegetal.
Maçarico-das-rochas, Actitis hypoleucos (Lin-
naeus 1758) – A sua área de nidificação ocupa
grande parte da Europa, desde o nível do mar
até montanhas com 4000 m de altitude, e a
maior parte da população migra para o hemis-
fério sul. É facilmente reconhecido pelo facto
de, quando pousado, estar constantemente a
abanar a cauda. No arquipélago da Madeira,
é um migrador de passagem e invernante, que
pode ser observado entre fevereiro e abril e
entre setembro e outubro. De forma geral, os
indivíduos vivem isolados, podendo ser encon-
Fig. 23 – Pilrito-das-praias (fotografia de Virgílio Gomes, 2012).
trados em habitats favoráveis, tais como a orla
costeira, lagoas, foz de ribeiras e praias. Ali-
menta-se de insetos e suas larvas, aranhas, mo-
deverão ser originárias da Sibéria, Gronelân- luscos e crustáceos e eventualmente pequenas
dia e das regiões árticas do Canadá. A maior rãs e peixes.
parte das aves migra para a América, África, Perna-verde, Tringa nebularia (Gunnerus 1767) –
Austrália e o Sul da Ásia para passar o in- As suas áreas de nidificação concentram-se na
verno. É uma ave típica de praias abertas e Europa Oriental e em áreas do norte da Escan-
amplas, onde, em geral, se move junto à re- dinávia. Embora uma parte da população in-
bentação. Também pode ser observada em verne na costa ocidental da Europa, a maior
foz de ribeiras e pequenas lagoas costeiras. parte efetua migrações trans-saharianas, che-
É uma espécie invernante, que ocorre entre gando até ao sul do equador. É uma ave inver-
os meses de novembro e fevereiro. No Porto nante, que ocorre no arquipélago da Madeira
Santo, é anualmente encontrada na praia em entre setembro e março, em especial nas ilhas
pequenos bandos de 5 a 10 indivíduos, sendo da Madeira e do Porto Santo, e que se encon-
facilmente reconhecida pela sua plumagem tra sobretudo na orla costeira, em praias, na
branca e corrida rápida. Alimenta-se sobre- foz de ribeiras, em lagoas e reservas de água.
tudo de pequenos invertebrados (moluscos, Em geral, é uma ave solitária, embora por
crustáceos e insetos) capturados na areia ou vezes sejam observados pequenos bandos de
lama. até quatro indivíduos. Alimenta-se sobretudo
Pilrito-de-peito-preto, Calidris alpina (Lin- de invertebrados aquáticos, mas também cap-
naeus 1758) – Ave originária do Norte da Eu- tura pequenos peixes.
ropa, que durante o inverno migra para Mar- Guincho-comum, Larus ridibundus (Linnaeus
rocos e a Mauritânia, permanecendo sempre 1766) – Nidifica numa grande extensão do
no hemisfério norte. No arquipélago da Ma- continente europeu, desde áreas mediterrâni-
deira, é considerada uma espécie migradora cas até ao subártico. A maior parte da popula-
de passagem e invernante, que pode ser ob- ção passa o inverno nas áreas mais quentes da
servada entre fevereiro e abril e entre setem- Europa, embora alguns indivíduos migrem ao
bro e outubro. Pode ser encontrada em lagoas, longo da costa africana até a Gâmbia. É uma
praias e na foz de ribeiras. Embora na Euro- pequena gaivota de ocorrência regular na Ma-
pa ocorra em bandos numerosos, na Madeira deira e no Porto Santo, sendo a gaivota mais
e no Porto Santo é geralmente observada em comum que inverna no arquipélago da Madei-
pequenos bandos que raramente ultrapassam ra. É uma espécie invernante que está presen-
os quatro indivíduos. Alimenta-se sobretudo te entre novembro e fevereiro, por vezes em
120 ¬ A ves

bandos numerosos, e que ocorre em diversos Falcão-peregrino, Falco peregrinus (Tunstall


locais da faixa litoral, tais como ribeiras, lagoas 1771) – Nidifica em grande parte do continen-
e portos. Quando está no arquipélago, apre- te europeu, desde as áreas mediterrânicas até
senta a plumagem não nupcial, que se carac- o ártico. A maior parte da população efetua pe-
teriza por ter uma mancha escura atrás dos quenos movimentos migratórios, exceto as po-
olhos. Alimenta-se essencialmente de insetos pulações do Norte e Nordeste da Europa que
terrestres e aquáticos, minhocas, invertebrados migram para a costa do Mediterrâneo. Apre-
marinhos e peixes. senta um voo muito rápido, caçando mediante
Gaivota-d’asa-escura, Larus fuscus (Linnaeus perseguições e voos picados. É uma migradora
1758) – Gaivota muito semelhante à gaivota- de passagem no arquipélago da Madeira, onde
-de-patas-amarelas L. m. atlantis, distinguin- ocorre de forma solitária. Pode ser observada
do-se desta principalmente por ter as asas de entre os meses de setembro e outubro, sobre-
um cinzento mais escuro. Nidifica apenas nas tudo em áreas abertas com vegetação rasteira,
costas do norte e oeste da Europa, incluindo falésias sobre o mar, áreas agrícolas e áreas ru-
áreas do subártico. A maior parte da popula- rais. A sua dieta é constituída, quase em exclu-
ção migra para áreas que incluem o Atlântico sivo, por aves, em especial pombos.
este, Mediterrâneo, Mar Negro, Mar Cáspio e Andorinha-de-fora ou andorinha-das-chami-
as costas africanas. A espécie é observada com nés, Hirundo rustica (Linnaeus 1758) – A an-
alguma regularidade no arquipélago da Ma- dorinha mais delgada que ocorre na Europa,
deira, principalmente durante os meses de nidificando ao longo de todo o continente eu-
inverno, pelo que é considerada uma espécie ropeu. É uma migradora de longo curso, que
invernante. Durante estes meses, é observada no inverno se distribui desde o Mediterrâneo
em associação aos grandes bandos de gaivo- até sul do equador. É uma espécie invernan-
ta-de-patas-amarelas, em áreas costeiras, por- te, que ocorre em todas as ilhas do arquipéla-
tos, ribeiras, lagoas, e até mesmo em lixeiras go da Madeira, entre os meses de outubro e
e locais de produção animal. Apresenta uma abril. Pode ser encontrada em diversos locais,
dieta omnívora e alimenta-se de uma grande nomeadamente em áreas abertas com vegeta-
variedade de presas animais, material vege- ção rasteira, junto a lagoas e ribeiras, e mesmo
tal, assim como diversos tipos de resíduos e em áreas urbanas. De forma geral, ocorre em
detritos. bandos que podem variar entre os 5 e os 15 in-
Fiscal ou alcaide, Catharacta skua (Brünnich divíduos. Alimenta-se quase exclusivamente de
1764) – As suas áreas de nidificação concen- insetos voadores que captura junto à superfície
tram-se na região polar ártica e as áreas de in- de planos de água ou sobre manchas de vege-
vernada restringem-se ao oceano Atlântico, tação arbustiva.
chegando à costa do Brasil e ao golfo da Guiné. Andorinha-das-casas ou andorinha-dos-beirais,
É o moleiro (ave de tamanho médio, de cor es- Delichon urbicum (Linnaeus 1758) – Nidifica ao
cura e semelhante a uma gaivota) mais comum longo de todo o continente europeu, incluin-
que ocorre nos mares do arquipélago da Ma- do áreas subárticas. As suas áreas de inverna-
deira, estando geralmente presente durante da distribuem-se desde o Mediterrâneo até as
os meses de agosto e setembro. Os pescadores áreas tropicais do continente Africano. É uma
chamam a esta ave fiscal, pelo facto de as riscas espécie invernante que ocorre em todas as
brancas que apresenta nas asas darem a ideia ilhas do arquipélago da Madeira, podendo ser
de um uniforme policial. Alimenta-se de peixe observada entre os meses de outubro e feverei-
que captura no mar e dos excessos libertados ro. Pode ser encontrada em bandos mistos com
pelos barcos de pesca, embora grande parte da a andorinha-das-chaminés H. rustica, embora
sua alimentação seja obtida através de clepto- seja menor e voe mais lentamente, e a altitudes
parasitismo, ou seja, perseguindo gaivotas para superiores a esta. Durante o dia, pode ser ob-
lhes roubar o peixe capturado. servada em busca de alimento, frequentando
A ves ¬ 121

zonas com grande abundância de insetos, e.g. entre os meses de março e abril. Ocorre essen-
junto a ribeiras e lagoas, onde captura as pre- cialmente em áreas abertas com afloramentos
sas em voo. rochosos e vegetação herbácea (desde a bei-
Laverca, Alauda arvensis (Linnaeus 1758) – É a ra-mar até aos locais de maior altitude da Ma-
cotovia (passeriforme de pequeno porte típico deira) e em áreas agrícolas. Alimenta-se essen-
de zonas áridas) mais comum e com maior dis- cialmente de insetos e outros invertebrados,
tribuição pelo continente europeu, que ocupa embora também ingira bagas.
grande parte do Norte e Leste da Europa. Faz Lavandeira-de-fora ou alvéola-branca, Mota-
pequenas migrações, deslocando-se para o Sul cilla alba (Linnaeus 1758) – Nidifica em grande
da Europa e as áreas mediterrânicas. Apresen- parte do continente europeu, desde as áreas
ta um voo característico, que se distingue pelo mediterrânicas até o círculo polar ártico. In-
facto de pairar ligeiramente antes de pousar. verna no sul do Mediterrâneo, e em áreas tro-
É uma invernante regular no arquipélago da picais e subtropicais do continente africano.
Madeira, ocorrendo entre os meses de outu- No arquipélago da Madeira, é uma espécie in-
bro e fevereiro. Pode ser encontrada em áreas vernante que está presente entre os meses de
abertas com vegetação pouco desenvolvida e outubro e abril, e ocorre numa grande diversi-
áreas mistas de matos, desde a beira-mar até dades de habitats, tais como áreas abertas com
aos picos mais elevados da ilha da Madeira, e, vegetação rasteira, zonas urbanas, orla costei-
por vezes, em terrenos agrícolas. Forma ban- ra, prados e terrenos agrícolas. De forma geral,
dos que podem atingir dezenas de indivíduos. é observada isolada ou em pequenos bandos
Apresenta uma dieta variada que inclui plan- até três indivíduos. Alimenta-se de invertebra-
tas e animais, embora folhas, grãos e sementes dos, que captura no solo, sobre vegetação ras-
sejam mais importantes no outono e inverno. teira, na superfície da água ou em pleno voo.
Rabirruivo-comum, Phoenicurus ochruros Escrevedeira-das-neves, Plectrophenax nivalis
(Gmelin 1774) – Nidifica ao longo das áreas (Linnaeus 1758) – Nenhuma outra ave terres-
mediterrânicas e das áreas com temperaturas tre apresenta uma área de nidificação tão a
amenas do continente europeu. A maior parte norte, nidificando nas ilhas do Oceano Árti-
da população europeia não efetua longas mi- co, na Gronelândia, Islândia e Noruega. A sua
grações, embora se possa deslocar até o Nor- principal área de invernada é a Europa central
deste de África. É uma ave invernante, que está e setentrional. Embora o arquipélago da Ma-
presente no arquipélago da Madeira entre os deira esteja situado a sul da sua área normal
meses de outubro e março, ocorrendo prefe- de invernada, no começo do séc. xxi tem sido
rencialmente em áreas abertas com vegetação anualmente observada nos picos mais elevados
rasteira, desde a beira-mar até aos picos mais da ilha da Madeira. Ocorre durante os meses
elevados da ilha da Madeira, assim como em de outono e inverno, em pequenos bandos de
rochas na orla costeira. De forma geral, é ob- 3 a 10 indivíduos. A sua alimentação baseia-
servada isolada, não formando bandos. A sua -se essencialmente em sementes e pequenos
dieta é dominada por pequenos invertebrados, invertebrados.
que captura no solo, frutos e bagas.
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A ves marinhas pelágicas ¬ 123

por Ernesto Schmitz em 1903, quando alguém da freira-da-madeira, que afinal não estava ex-
lhe trouxe uma ave das serras de Santo Antó- tinta e cuja nidificação viria a ser confirmada
nio, Funchal. Na altura, o próprio identificou a 16 de junho desse ano naquele local. Desde
a ave que lhe trouxeram como sendo freira-do- então e até à déc. de 1980, foram feitas visi-
-bugio (Oestrellata feae, depois designada de Pte- tas noturnas regulares à área de nidificação no
rodroma deserta), que ele sabia que nidificava no pico do Areeiro por um grupo de ornitólogos
ilhéu do Bugio, Desertas, de onde já tinha obti- amadores, que incluíam P. A. Zino, F. Zino, Ma-
do alguns exemplares. Após a saída de Ernesto nuel Biscoito, Henrique Costa Neves, Donato
Schmitz da Madeira, em 1908, pouco mais se Caires, Miguel Mendes Moreira, Edward Ger-
ouviu falar da freira-da-madeira ao ponto de, rard e Elizabeth Zino, que mais tarde constituí-
na déc. de 1950, ter sido considerada extinta. ram uma associação para a proteção da nature-
Em 1963, G. E. Maul organizou uma expedi- za denominada FCP-Freiras-Associação para a
ção científica às ilhas Selvagens. Nessa viagem, Conservação e Proteção da Natureza da Madei-
entre outros, encontravam-se C. Jouanin e F. ra, cujo papel foi crucial na salvaguarda desta
Roux do Laboratório de Ornitologia do Museu espécie.
de História Natural de Paris, como também Em 1985, numa das visitas aos locais de nidi-
P. A. Zino e seu filho Francis Zino. Estes de- ficação por F. Zino e Henrique Costa Neves, foi
senvolveram vários estudos sobre as aves do ar- encontrado apenas um ovo e roído por ratos,
quipélago, incluindo excelentes gravações das o que os alertou para uma predação muito pe-
vocalizações da freira-do-bugio. rigosa para a sobrevivência da espécie. A 12 de
Entre 1967 e 1968, P. A. Zino e os ornitólo- junho de 1986, Manuel Biscoito e F. Zino con-
gos franceses realizaram várias visitas à área seguiram apanhar uma freira-da-madeira, que
sobranceira ao Curral das Freiras para tentar foi anilhada com a anilha n.º J01150. Pesava
ouvir o chamamento da freira-da-madeira, mas 185 g e foi o primeiro indivíduo desta espécie
sem sucesso. Uma vez mais, a ideia de que as a ser anilhado.
aves estavam extintas foi lançada, mas G. E. Alan Buckle, da empresa fitofarmacêutica
Maul estava convencido de que existia uma pe- britânica ICI, e Andy Swash, do Ministério da
quena colónia ainda não descoberta, porque, Agricultura, Pescas e Alimentação do Reino
em 1941 e 1951, dois juvenis da freira-da-ma- Unido, planearam, em 1986, um sistema para
deira foram encontrados no Funchal, com cer- eliminar a predação dos ratos sobre as aves,
teza atraídos pelas luzes da cidade, e levados que consistia na colocação de veneno em cai-
para o Museu Municipal. xas de madeira feitas para o efeito, que impe-
P. A. Zino, considerando que a freira-do-bu- diam qualquer tipo de envenenamento aciden-
gio e a freira-da-madeira seriam muito seme- tal da fauna circundante. No início de 1987, a
lhantes, ao ponto de E. Schmitz não ter nota- ICI decidiu não só dar o seu know-how, como
do a diferença entre elas, decidiu, com a ajuda também financiar a compra de material de
de Campos de Andrada, da Direção dos Servi- montanha e todo o veneno necessário (Klerat,
ços Florestais, confrontar os pastores da área Brodifacoum). Desde 1987 até 2004, foi colo-
do Curral das Freiras e do Pico do Areeiro com cada uma série de caixas de veneno, fabrica-
o registo áudio da freira-do-bugio. Depois de das no Museu de História Natural do Funchal,
muitas tentativas, o pastor Lucas do Curral formando um cordão sanitário à volta dos ni-
das Freiras reconheceu os sons, e identificou- nhos. Todas as caixas eram numeradas e visi-
-os como sendo o canto das almas dos pastores tadas regularmente, anotando-se os dados de
que tinham morrido nas montanhas, no pico cada uma. Este trabalho tornou-se um dos pro-
do Cidrão. gramas de controlo de ratos mais longo e com-
Com a sugestão do local, em abril de 1969, pleto a nível mundial.
G. E. Maul, P. A. Zino e F. Zino confirmaram Em 1992, foram encontradas 10 aves mor-
os referidos sons, ouvidos à noite, como sendo tas no local de nidificação, o que na altura
124 ¬ A ves marinhas pelágicas

representava 25 % da população conhecida. desde a costa de Marrocos até aos Açores. Du-
Esta catástrofe deveu-se à predação por gatos rante a época de inverno, as aves distribuem-
assilvestrados. Imediatamente foi montado -se numa área mais vasta, que para sul inclui
um dispositivo de captura destes predadores, o Nordeste Brasileiro, Ascensão e Santa Hele-
tendo sido retirados do local uma média de 10 na e o meio do Atlântico sul, até à latitude da
gatos por ano. Namíbia.
O Serviço do Parque Natural da Madeira Em 2016, a população nidificante de frei-
(SPNM), posteriormente Instituto das Flo- ra-da-madeira não devia exceder os 70 casais,
restas e Conservação da Natureza (IFCN), IP- tendo este número sido muito afetado pela des-
-RAM, manteve o acompanhamento da colónia truição causada pelo incêndio de 2010. A espé-
de freiras da Madeira e a respetiva manuten- cie consta da Lista Vermelha da União Inter-
ção do esquema de controlo de predadores. nacional de Conservação da Natureza (UICN)
O grande incêndio florestal de 13 de agosto (2016) com o estatuto de “em perigo”. A sua
de 2010 atingiu as áreas de nidificação da frei- área de nidificação está protegida no âmbito
ra-da-madeira, destruindo tudo em volta dos da Reserva Geológica e de Vegetação de Altitu-
ninhos e matando, pelo menos, 38 juvenis e de, do Parque Natural da Madeira, criada em
4 adultos, no que se pode considerar uma das 1982, que por sua vez está integrada na Rede
maiores catástrofes conhecidas para a espécie. Natura 2000, como Zona de Proteção Especial
O SPNM iniciou, no mesmo ano, um processo (ZPE) e Zona Especial de Conservação (ZEC).
de recuperação do habitat, com a colocação de Freira-do-bugio – Esta ave, da família Proce-
ninhos artificiais e de cobertura vegetal para o llariidae, é muito próxima da freira-da-madei-
controlo da erosão. Neste ano, apenas um juve- ra, distinguindo-se essencialmente por ter um
nil foi encontrado vivo e foi anilhado. bico mais robusto, ser maior e nidificar numa
A freira-da-madeira, como todos os outros época não coincidente com a da freira-da-ma-
membros da sua família, não se encontra pre- deira. Até 2016, só se conhecia a sua nidifica-
sente todo o ano na Ilha. Os indivíduos repro- ção no ilhéu do Bugio, o mais a sul das ilhas De-
dutores regressam aos seus locais de nidificação sertas. Durante muito tempo foi considerada
em meados de março, seguidos dos pré-repro- uma subespécie de Pterodroma mollis (GOULD,
dutores. A postura tem o seu início por volta 1844) (P. mollis deserta, MATHEWS, 1934) e,
de 15 de maio, com apenas um ovo por casal. mais tarde, como sendo P. feae (SALVADORI,
O ninho é uma câmara no final de uma gale- 1899), que também nidifica em Cabo Verde.
ria escavada no solo – podendo atingir 1,5 m Posteriormente, face às diferenças morfoló-
de profundidade – em pequenos parapeitos – gicas, biológicas e genéticas, foi considerada
chamados mangas – situados nas paredes ro-
chosas de alguns picos do maciço central da
Madeira, a quase 1800 m de altitude. A eclosão
tem lugar no início de julho. Os juvenis são ali-
mentados pelos progenitores alternadamente
até estarem em condições de voar, no final de
setembro, princípios de outubro.
Com recurso à utilização de minúsculos geo-
localizadores colocados numa anilha na pata
da ave, F. Zino e colaboradores conseguiram,
em 2007, determinar as principais áreas no
oceano por onde as freiras da Madeira se dis-
tribuem. Assim, durante o período da reprodu-
ção, as aves não saem do oceano Atlântico nor-
deste, entre o Sul da Islândia e Cabo Verde e Fig. 2 – Freira-do-bugio (fotografia de Virgílio Gomes, 2017).
A ves marinhas pelágicas ¬ 125

uma espécie distinta (P. deserta) e endémica.


O primeiro registo da freira-do-bugio data de
1853, constando de dois espécimes que se en-
contram depositados no Museu da Universida-
de de Cambridge, e as primeiras observações
científicas no local de nidificação foram feitas
em 1967 e 1968, por Christian Jouanin, Francis
Roux e P. A. Zino, que publicaram o primeiro
trabalho científico sobre esta ave em 1969, ano
da redescoberta da freira-da-madeira.
A presença desta espécie nos mares da Ma-
deira para a reprodução vai desde o final de
maio até dezembro, sendo que a postura (um Fig. 3 – Alma-negra (fotografia de Porto Santo Verde, 2015).

único ovo por par e por época) tem o seu iní-


cio na segunda quinzena de julho, a eclosão cerca de 62 dias depois, ou seja, em meados
ocorre durante o mês de setembro e a saída de agosto, início de setembro. Nesta espécie,
dos juvenis dos ninhos começa no final de no- existe grande fidelidade do par e fidelidade ao
vembro e termina nos primeiros dias de janei- ninho, característica também encontrada nou-
ro. Daí até julho, as aves permanecem no ocea- tras espécies de Procellariiformes.
no, concentrando-se em áreas à volta de Cabo Trabalhos realizados com geolocalizado-
Verde e no Brasil, no nordeste e na região da res mostraram que, entre abril e setembro,
Bacia de Santos. Os ninhos são constituídos as almas negras nidificantes nas Selvagens se
por galerias escavadas no solo e concentram-se mantêm no Atlântico nordeste, essencialmen-
sobretudo no planalto sul do Bugio, a cerca de te concentradas à volta do arquipélago, entre
320-340 m de altitude. Em 2016, a população os Açores e a costa noroeste de África e desde o
nidificante do Bugio estava estimada em 150 a norte da Península Ibérica até Cabo Verde. E,
200 casais, constando a freira-do-bugio da Lista de outubro a março, ocupam o Atlântico cen-
Vermelha da UICN, com o estatuto de “vulne- tral, ao longo do meridiano 30 ° W, desde a la-
rável”. A sua área de nidificação está protegida titude de Cabo Verde até à latitude do sul do
no âmbito da Reserva Natural das Ilhas Deser- Brasil.
tas, criada em 1990 e integrada na Rede Natu- Em 2016, esta espécie constava da Lista Ver-
ra 2000, como ZPE e ZEC. melha da UICN com o estatuto de “menor
Alma-negra – Esta pequena ave da família Pro- preocupação”. Durante o período de nidifica-
cellariidae foi assinalada e descrita pela primei- ção, as suas principais ameaças são os ratos (na
ra vez na Madeira por William Jardine e Pri- Madeira e Porto Santo) e as gaivotas (nas De-
deaux Selby em 1828, com base num exemplar sertas e Selvagens), que já foram vistas a atacar
colhido na Ilha por Bulwer em 1827, e é muito almas negras em pleno voo, em noites de lua.
comum o seu avistamento no mar, entre abril e Cagarra – As cagarras, espécie pertencente à
setembro. Nidifica em todas as ilhas do arqui- família Procellariidae, nidificam em todas as
pélago, mas a sua colónia maior situa-se na Sel- ilhas do arquipélago da Madeira, mas é nas Sel-
vagem Grande (mais de 5000 pares), seguida vagens que possuem a sua colónia mais impor-
das Desertas e dos ilhéus do Porto Santo. Faz os tante e também a mais estudada. De todas as
seus ninhos em fendas rochosas e outras cavi- aves marinhas pelágicas que nidificam na Ma-
dades naturais ou artificiais, desde a beira-mar deira, é a de maior tamanho e a que efetua mi-
até altitudes de pelo menos 400 m, nas Deser- grações mais longínquas.
tas. A postura inicia-se na primeira semana de Durante mais de 100 anos, a captura de ju-
junho. O período de incubação dura cerca de venis foi feita legalmente nas ilhas Selvagens
43 dias e a saída dos juvenis dos ninhos dá-se por caçadores da Madeira, os quais matavam
126 ¬ A ves marinhas pelágicas

1971. P. A. Zino, influenciado por C. Jouanin


e F. Roux, tomou consciência, em 1963, da si-
tuação das cagarras e da insustentabilidade da
prática de caça realizada até então. Em 1967,
adquiriu ao proprietário das ilhas, Luís da
Rocha Machado, os direitos de caça, de modo
a que não se pudesse caçar durante uns anos e
assim fosse possível recuperar a depauperada
colónia de cagarras. Ao mesmo tempo, adqui-
riu um terreno na Selvagem Grande e aí cons-
truiu uma casa e uma cisterna, a qual serviu
de base para os estudos científicos que nessa
altura se iniciaram. Quatro anos mais tarde, na
iminência da aquisição das ilhas pelo Fundo
Mundial para a Natureza (WWF), o Estado por-
tuguês optou pela sua compra, transformando-
-as numa reserva natural, pondo assim termo à
possibilidade legal de se caçarem cagarras.
Fig. 4 – Cagarra ou pardela no ninho com ovo à vista Estas aves estão nas ilhas desde fevereiro-
(fotografia de Virgílio Gomes, 2010). -março a outubro-novembro. Em março e
abril, tem lugar a escolha dos ninhos e há
anualmente até 30.000 juvenis. Estes animais muitas lutas, por vezes provocando a morte
eram salgados e posteriormente vendidos na de um dos contendores. Tal como nos ou-
Madeira, em especial para as populações das tros Procellariiformes, as fêmeas desta espé-
freguesias de Machico, Santa Cruz e Caniçal. cie têm capacidade de pôr apenas um ovo
Refira-se que nada era desperdiçado nesta por ano. A postura tem início por volta do dia
caça: a penugem e as penas eram comerciali- 23 de maio e continua até meados de junho.
zadas para almofadas e edredons, o óleo do es- Ao fim de cerca de 54 dias, dá-se a eclosão
tômago era recolhido, as vísceras, a cabeça e as e, após cerca de 97 dias, os juvenis abando-
patas eram moídas para engodo para a pesca e nam os ninhos para iniciarem a sua vida no
os pescoços salgados e vendidos à parte. Este mar. Os juvenis regressam pela primeira vez
ritmo de caça, aliado à caça ilegal de adultos (a como pré-reprodutores com cerca de 5 anos e
morte de um adulto nidificante é equivalente a maturidade é atingida ao fim de 8 a 13 anos.
à de 10 juvenis), tornada possível com a moto-
rização da frota de pesca, levou a uma diminui-
ção drástica dos efetivos da colónia ao ponto
de colocar esta espécie em riscos de extinção.
Embora as cagarras tenham sido pela primei-
ra vez assinaladas no arquipélago em 1851, por
E. V. Harcourt, só a partir da expedição cien-
tífica organizada pelo Museu de História Na-
tural do Funchal (na altura Museu Municipal
do Funchal), em 1963, é que esta espécie foi
estudada sistematicamente, por C. Jouanin, F.
Roux, P. A. Zino, F. Zino e outros. Essa expe-
dição revelou-se decisiva para a conservação
das espécies de aves marinhas das Selvagens e Fig. 5 – Cagarra ou pardela (fotografia de Thomas Dellinger,
para a própria criação da reserva natural, em 2014).
A ves marinhas pelágicas ¬ 127

A sua longevidade é grande, podendo atin- conjunto do arquipélago da Madeira, este nú-
gir pelo menos 30 anos. Os adultos voltarão mero fosse superior a 45.000.
às Selvagens no início da primavera seguinte Em 2016, a cagarra constava da Lista Verme-
para nova reprodução, havendo grande fideli- lha da UICN com o estatuto de “menor preo-
dade ao parceiro e ao ninho. cupação”. Para além da proteção de que já dis-
Anualmente, e desde 1963, tem lugar a ani- punham, em 2001 as ilhas Selvagens passaram a
lhagem de juvenis nascidos no ano, em alguns integrar a Rede Natura 2000, como ZPE e ZEC.
locais de estudo na Selvagem Grande. Este Patagarro – Esta ave da família Procellariidae
esforço visa obter dados a longo prazo sobre tem nidificação confirmada apenas na ilha da
o comportamento da colónia e a biologia da Madeira, onde foi assinalada pela primeira vez
espécie, bem como contribuir para o conhe- em 1851, e, dada a inacessibilidade da maioria
cimento da sua migração. Para este último as- dos seus ninhos, é talvez a menos estudada no
peto muito tem contribuído a utilização de arquipélago. As aves começam a chegar à Ilha
emissores seguidos por satélite e geolocalizado- em meados de janeiro e a visitar os ninhos em
res. Durante a época de reprodução, os adultos fevereiro, altura em que se pode encontrar um
reprodutores deslocam-se das Selvagens para a grande número de aves pousadas no mar (jan-
costa africana, a fim de se alimentarem na área gadas), ao largo das principais ribeiras da Ma-
de afloramento que existe ao largo de Marro- deira. Já de noite, sobem os vales das ribeiras
cos. Durante o dia, e enquanto decorre a incu- mais fundas até aos ninhos que se situam nas
bação, em regra só um dos progenitores está suas cabeceiras, por vezes a 1000 m de altitu-
no ninho, enquanto o outro está no mar em de. A postura tem lugar em meados de março
alimentação. Após a eclosão, os progenitores (apenas um ovo por casal e por época) e a
vão ao ninho à vez, para alimentar os juvenis. saída dos juvenis dos ninhos dá-se entre o final
Nas Selvagens e ao contrário do que acontece de junho e o início de agosto. Em setembro,
noutras colónias, o regresso das cagarras a terra também é possível avistar patagarros no mar ao
dá-se ainda com luz do dia, criando ao final da largo da Madeira em elevado número. Trata-se,
tarde um espetáculo inigualável de milhares contudo, de aves em migração, provavelmente
de aves em voo a dirigir-se para os ninhos. Após oriundas das colónias nas ilhas Britânicas.
a reprodução, em meados de novembro, pro- Em 2016, esta espécie constava da Lista Ver-
genitores e crias abandonam as ilhas para a sua melha da UICN com o estatuto de “menor
migração anual até aos mares do Atlântico sul, preocupação”, embora se reconhecesse que a
quer para a área do mar da Prata, na Argenti- tendência populacional é decrescente. Na Ma-
na, quer para a área da corrente de Benguela. deira, o patagarro está sujeito a várias ameaças,
Alguns indivíduos chegam a dobrar o cabo da
Boa Esperança e a penetrar no oceano Índico,
até ao canal de Moçambique.
Com a criação da Reserva, a cessação da
caça e o esforço inicial de conservação em-
preendido por P. A. Zino e continuado desde
então pelo SPNM, a colónia de cagarras foi
aumentando progressivamente, também
como resultado da eliminação, em 2003, dos
coelhos e morganhos que existiam na Selva-
gem Grande, introduzidos voluntária e invo-
luntariamente pelo homem na tentativa de
colonização destas ilhas. Em 2016, calcula-
va-se que só na Selvagem Grande existissem Fig. 6 – Patagarro (fotografia de
mais de 29.000 pares reprodutores e que, no Virgílio Gomes, 2008).
128 ¬ A ves marinhas pelágicas

em particular a predação por ratos e, em al- a época de reprodução, quer na sua migração
guns locais, a colheita de juvenis para consumo anual.
humano. Na área do Parque Ecológico do Fun- Como já foi referido, esta espécie, que ocor-
chal, onde se situam alguns ninhos, foi monta- re apenas nos arquipélagos macaronésicos dos
do um esquema de controlo de ratos semelhan- Açores, Madeira, Canárias e Cabo Verde, é
te ao utilizado para a freira-da-madeira. Como pouco comum e o seu estatuto de ameaça não
todas as restantes aves marinhas pelágicas, o foi ainda avaliado pela UICN. Nas Desertas e
patagarro é suscetível de ser atraído pela ilu- nas Selvagens, encontra-se protegida pelo esta-
minação pública e com isso ficar desorientado. tuto das respetivas reservas naturais.
Assim, no final do período de reprodução, é A taxonomia das pardelas pretas e brancas
comum encontrar patagarros juvenis pousados tem sido muito discutida e é até problemáti-
no chão em áreas urbanas; se forem colocadas ca. Devido à sua aparência semelhante a Puf-
à beira-mar à noite, para evitar serem atacadas finus assimilis (pardela associada ao hemisfério
por gaivotas, têm normalmente capacidade de sul), o pintainho foi considerado uma subes-
regressar ao seu meio natural. pécie desta: Puffinus assimilis baroli. Contudo,
A título de curiosidade, refira-se que os pa- estudos genéticos revelaram que o pintainho
tagarros, quando sobem os vales das ribeiras estava mais relacionado com Puffinus lherminie-
à noite, emitem um som característico, o que ri. Em 2016, o seu estatuto não estava ainda de-
levou as pessoas que habitam nesses locais a cidido: enquanto uns autores consideravam o
traduzir onomatopeicamente o seu canto da pintainho uma espécie distinta, Puffinus baroli,
seguinte forma: “Vou para a serra vou lavado, outros consideravam-na ainda subespécie: Puf-
vou para o mar vou cagado!” finus lherminieri baroli.
Pintainho – Pertencente à família Procellarii- Calcamar – Esta pequena ave da família Hy-
dae, esta ave assinalada por E. V. Harcourt em drobatidae deve o seu nome vulgar ao facto
1851 é talvez menos comum do que se pensava de bater com as suas patas na superfície da
e, sendo uma nidificante de inverno é relativa- água, quando se está a alimentar. A subespé-
mente pouco estudada. Nidifica isoladamente cie Pelagodroma marina hypoleuca nidifica ape-
na Madeira e nos ilhéus do Porto Santo e tem nas nos arquipélagos das Canárias e da Madei-
as suas maiores colónias na Selvagem Grande e ra, sendo que na Madeira nidifica apenas nas
nas Desertas, sendo que na primeira a sua po- ilhas Selvagens, que constituem assim o limi-
pulação ronda os 2000 casais. te norte da área de nidificação desta subespé-
A época da reprodução inicia-se em novem- cie, assinalada pela primeira vez em 1895 por
bro-dezembro, com os indivíduos pré-reprodu- Ogilvie Grant. Outras cinco subespécies de Pe-
tores a visitarem os ninhos, que na Selvagem lagodroma marina são conhecidas e distribuem-
Grande estão localizados em fendas rochosas -se pelos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico,
ou no interior dos muros de pedra que lá exis- sendo a subespécie P. m. eadesorum, que nidi-
tem. Por vezes, estas aves utilizam ninhos deso- fica em Cabo Verde, a que se encontra mais
cupados de cagarras e de almas negras. É pro- próxima.
vável que o início da postura ocorra em finais Os calcamares, cuja população na Selvagem
de fevereiro e a saída dos juvenis do ninho em Grande se estima em cerca de 40.000 pares, ni-
finais de maio, início de junho. No período da dificam maioritariamente em locais específicos
reprodução, os adultos regressam a terra de do planalto, o Chão dos Calcamares e o Chão
noite e em noites escuras cantam continua- dos Caramujos. Fazem os ninhos em galerias
mente. O seu canto cessa de imediato com que escavam no solo arenoso e cujas entradas
o aparecimento da lua ou com qualquer luz ficam disfarçadas por entre a vegetação. Desta
artificial. forma, os ovos e os juvenis ficam protegidos
É provável que os pintainhos não se afastem dos predadores, nomeadamente das gaivotas e
muito dos locais de nidificação, quer durante lagartixas.
A ves marinhas pelágicas ¬ 129

Fig. 7 – Calcamar em voo (fotografia de Virgílio Gomes, 2007). Fig. 8 – Roque-de-castro em voo (fotógrafo não identificado).

Na Selvagem Pequena e no ilhéu de Fora, de- Contudo, em 2016, não existiam estimativas
vido às condições de solo muito propícias, o fiáveis do número de casais existente.
calcamar ocorre em número muito superior ao A reprodução desta espécie tem sido alvo de
da Selvagem Grande (mais de 60.000 casais) e, debate, pois já se encontraram ovos em todos
no seu conjunto, estas ilhas contêm a maior co- os meses do ano. Contudo, parece haver dois
lónia desta espécie no oceano Atlântico. picos de abundância de ovos, indiciando a
Tal como os restantes Procellariiformes, os presença de duas populações, uma nidifican-
calcamares também só põem um ovo por ano, do no inverno (novembro-dezembro) e outra
vindo a terra apenas para nidificar. Estão à no verão (junho). Os estudos de genética po-
volta das ilhas a partir de dezembro e a pos- derão lançar alguma luz sobre esta questão
tura tem lugar no final de março, princípios e eventualmente revelar a presença de duas
de abril. A eclosão dá-se entre fim de maio e entidades taxonomicamente distintas. Al-
princípios de junho e, em finais de julho, prin- guns autores colocam esta espécie no género
cípios de agosto, os juvenis abandonam a Ilha. Hydrobates.
Em setembro, já todos os calcamares iniciaram Os ninhos são, em regra, feitos em pequenos
a sua migração anual sendo possível que se des- orifícios fundos, naturais ou artificiais, incluin-
loquem, tal como as cagarras, para os mares do do ninhos abandonados de outras espécies,
Sul durante o inverno. nomeadamente calcamares e almas negras.
Em 2016, o seu estatuto de ameaça não tinha Em 2016, o seu estatuto de ameaça pela
sido avaliado pela UICN. Nas ilhas, os seus UICN foi dado como “menor preocupação”.
maiores inimigos são as gaivotas, já que, dado o Nas ilhas, a sua ameaça maior advém das gai-
estatuto de proteção das Selvagens, a perturba- votas e largatixas, tal como acontece com as
ção humana é negligenciável, desde que haja almas negras e calcamares. Também o excesso
vigilância permanente. de iluminação nas zonas urbanas litorais cons-
Roque-de-castro – O roque-de-castro é uma titui fator de ameaça.
pequena ave marinha pelágica nidificante no No começo do séc. xxi, uma outra espécie
arquipélago da Madeira e pertence à família muito semelhante ao roque-de-castro, o pai-
Hydrobatidae. A espécie foi descrita por E. V. nho de Swinhoe, Oceanodroma monorhis, foi ob-
Harcourt em 1851, com base em exemplares servada na Selvagem Grande, com todas as in-
colhidos na Madeira, daí também ser conhe- dicações de ser nidificante. Porém, não tinha
cida por painho da Madeira. É provavelmen- sido encontrada uma prova inequívoca de que
te mais comum do que parece e nidifica em tal se verificasse.
todas as ilhas do arquipélago, com as colónias Na área oceânica do arquipélago da Madei-
mais importantes nas Desertas e nas Selvagens. ra, podem ainda ser observadas, em certas
130 ¬ A vezac , M arie - A rmand P ascal d ’

épocas do ano, outras aves marinhas pelági- Avezac, Marie-Armand


cas não nidificantes. As seguintes espécies
foram já assinaladas: fulmar glacial, Fulmarus
Pascal d’
glacialis (LINNAEUS, 1761), bobo grande, Marie-Armand Pascal d’Avezac de Castera-Ma-
Calonectris diomedea (SCOPOLI, 1769), par- caya, nascido a 18 de abril de 1800, em Tarbes,
dela do Mediterrâneo, Puffinus mauretanicus França, e falecido a 14 de janeiro de 1875, foi
(LOWE, 1921), pardela preta, Puffinus griseus um notável geógrafo francês do séc. xix. Em
(GMELIN, 1789), pardela de barrete, Puffinus 1866, foi eleito membro da Academia das Ins-
gravis (O’REILLY, 1818), painho de Wilson, crições e Belas-Letras. Dedicou-se ao estudo da
Oceanites oceanicus (KUHL, 1820), painho de geografia histórica. A sua carreira foi reconhe-
cauda quadrada, Hydrobates pelagicus (LIN- cida internacionalmente quando passou pela
NAEUS, 1758), painho de Swinhoe, Oceano- vice-presidência da Sociedade Geográfica de
droma monorhis (SWINHOE, 1867), painho Londres e Frankfurt, da Sociedade Africana de
de Leach, Oceanodroma leucorhoa (VIEILLOT, Londres, da Sociedade Asiática da Grã-Breta-
1818) e painho de barriga preta, Fregetta tropi- nha e da Irlanda, etc.
ca (GOULD, 1844). A sua obra principal, intitulada Isles de l’Afri-
que, foi publicada em Paris, por Firmin Didot
Bibliog.: impressa: BANNERMAN, David A., Birds of the Atlantic Islands,
vol. 1, Edinburgh/London, Oliver & Boyd, 1963; Id., e BANNERMAN, W. Mary, Frères Éditeurs. Na introdução desta obra, o
Birds of the Atlantic Islands, vol. 2, Edinburgh/London, Oliver & Boyd, 1965; autor explica a intenção de proceder à descri-
CAMPOS, A. R., e GRANADEIRO, J. P., “Breeding biology of the white-faced
storm petrel on Selvagem Grande island, north-east Atlantic”, Waterbirds, n.º 22,
ção das ilhas que se situam entre a África e a
1999, pp. 199-206; CATRY, Paulo et al., “Aves marinhas da Selvagem Pequena América, na sequência das suas descobertas
e do ilhéu de Fora. Censos e notas, com destaque para a dieta da gaivota-de-
patas-amarelas”, Airo, n.º 20, 2010, pp. 29-35; CORREIA-FAGUNDES, Catarina
históricas. Evoca, neste sentido, o mérito dos
et al., “Additions and corrections to the 2010 checklist of the birds of Madeira estudos genoveses, bem como os descobrido-
and the Selvagens”, Boletim do Museu Municipal do Funchal, vol. 61, n.º 330,
2011, pp. 23-28; GRANADEIRO, J. P. et al., “Numbers and population trends
res portugueses e espanhóis.
of Cory’s shearwaters Calonectris diomedea at Selvagem Grande”, Waterbirds, Na primeira parte, explora a descrição geo-
n.º 29, 2006, pp. 56-60; HOYO, J. del, e COLLAR, N. J., HBW and BirdLife
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movements at sea. A preliminary analysis of datalogger results from Selvagem
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Grande”, Birding World, vol. 26, n.º 2, 2012, pp. 79-81; ZINO, Paul A., e ZINO, fere a grande influência recebida de autores
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the archipelago of Madeira”, Boletim do Museu Municipal do Funchal, vol. 38,
como Gabriel Garat e Oscar McCarthy, proce-
n.º 180, 1986, pp. 141-165; digital: CARBONERAS, C. et al., “Audubon’s de à localização geográfica das várias ilhas do
shearwater (Puffinus lherminieri)”, in HOYO, J. del et al. (orgs.), Handbook of the
arquipélago em relação a Lisboa, a Paris e aos
Birds of the World Alive, Barcelona, Lynx Ediciones, 2017: http://www.hbw.com/
species/audubons-shearwater-puffinus-lherminieri (acedido a 3 mar. 2017); The Açores, exaltando o aspeto pitoresco da ilha
IUCN Red List of Threatened Species, versão 2016-3: http://www.iucnredlist.org principal.
(acedido a 3 mar. 2017).
Quanto à sua constituição geológica, refe-
Catarina Correia-Fagundes re a formação de grandes massas basálticas,
Francis Zino assentes em terrenos de base vulcânica mais
Hugo Romano antiga, aludindo aos sismos que ocorreram
Manuel Biscoito entre 1813 e 1816. Explica a presença de
A vezac , M arie - A rmand P ascal d ’ ¬ 131

densos nevoeiros matinais e vespertinos se-


gundo a teoria do físico e químico britânico
Humphrey Davy (1778-1829), para o qual este
fenómeno se deve ao refrescamento da terra
e do mar. Menciona a beleza das cascatas for-
madas pelas ribeiras ao longo da Ilha: rio dos
Socorridos, Ribeira Brava, Ribeira da Janela.
Mas também evoca o espetáculo devastador
provocado por fortes enxurradas no Funchal,
em outubro de 1809 (trata-se provavelmente
da grande aluvião de 1803).
Considera ainda o seu clima moderado e sa-
lubre: “la sérénité de son ciel le dispute à la pu-
reté des plus beaux ciels d’Italie [a serenidade
do céu compete com a pureza dos mais belos
céus de Itália]” (AVEZAC, 1848, 106). Sobre a
vegetação, refere que contrasta com a zoologia,
a qual não comporta senão um pequeno nú-
mero de espécies, fazendo-o concordar com o
Marie-Armand Pascal d’Avezac, 1875
viajante e autor britânico T. E. Bowdich (1791- (BNF, fotografia de Carl Reutlinger).
1824). Assim, enaltece a sua riqueza e beleza,
já celebradas em Os Lusíadas: “Elle semble être
le point de réunion des végétations les plus di- Elogia a rara habilidade madeirense em su-
fférentes, et pourrait devenir le plus magnifi- perar os acidentes do terreno em ordem à
que jardin botanique expérimental du monde construção de vias de comunicação, como pon-
entier [parece ser o ponto de convergência de tes, estradas e canais.
múltiplas espécies vegetais e poderia tornar-se Identifica o arquipélago como parte inte-
um magnífico jardim botânico, sem compara- grante do reino de Portugal, registando o sis-
ção com nenhum outro]” (Id., Ibid., 107). tema administrativo dos capitães-donatários.
Relativamente à população, escreve sobre Menciona os seus principais edifícios milita-
a colonização portuguesa, bem como sobre a res, civis e religiosos, salientando o artesoado
imigração inglesa, no séc. xix, citando a evo- da catedral, em madeira de cedro, a capela
lução demográfica: de 62.000 habitantes, em dos ossos franciscana e a igreja de N.a Sr.a do
1767, passa para 100.000, em 1842; atribui ao Monte.
Porto Santo 6000 e às Desertas 600. Estabelece, Resumindo a história da Madeira, faz men-
sem justificar, um contraste entre a população ção do conhecimento árabe do arquipélago,
urbana, enfermiça, e a rural, forte e saudável. bem como dos Açores e das Canárias, referin-
Estranha o estatuto dos morgados, ou proprie- do, a este propósito, as cartas marítimas do
tários rurais, a quem a lei portuguesa concede séc. xiv, nas quais os nomes Desertas e Selva-
metade de toda a produção agrícola, os quais gens já constam. Não esquece a tradição se-
vivem dos rendimentos e se sentem desonra- gundo a qual existiria um relato da descober-
dos com o trabalho. ta fortuita da Madeira por náufragos ingleses.
Entre os produtos agrícolas, conta o milho, o Mas não omite a descoberta de João Gonçal-
trigo, a aveia, o inhame, a batata da terra, a ca- ves Zarco, reportando, para o efeito, o rela-
na-de-açúcar e a vinha, com as suas variedades. to, em língua francesa, de Francisco Alcofo-
Restringe a produção manufatureira à trans- rado, membro da sua tripulação, dirigido ao
formação dos produtos agrícolas, salientando infante D. Henrique, senhor do arquipélago,
a exportação do seu afamado vinho. sendo a sua jurisdição espiritual atribuída à
132 ¬ A via ç ã o

Ordem de Cristo. Cita também outra fonte


sobre a colonização da Madeira: a Historia
Insulana das Ilhas a Portugal Sujeitas no Ocea-
no Ocidental, do historiador açoriano António
Cordeiro (1641-1722), que refere detalhes
sobre Bartolomeu Perestrelo, Tristão Vaz e
outros capitães-donatários.
Termina o seu estudo sobre a Madeira de-
nunciando o apagamento da individualidade
própria do arquipélago pelos governos colo-
niais de Lisboa.

Obras de Marie-Armand Pascal d’Avezac: Isles de l’Afrique (1848).

Bibliog.: ALCOFORADO, François, Relation Historique de la Découvert de l’Isle


de Madère, Paris, Louis Billaine/Claude Barbin, 1671; Angra do Heroísmo, s.l.,
Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1981; AVEZAC, Marie-Armand Fig. 2 – Gago Coutinho, Sacadura Cabral e Ortins Bettencourt
Pascal d’, Isles de l’Afrique, Paris, Firmin Didot Frères Éditeurs, 1848; BOWDICH, na baía do Funchal, 22 de março de 1921 (ABM, Perestrellos
Thomas Edward, Excursions in Madeira and Porto Santo during the Autumn of Photographos).
1823, London, George Whittaker, 1825; CORDEIRO, António, Historia Insulana
das Ilhas a Portugal Sujeitas no Oceano Ocidental, Lisboa, Imprensa de António
Pedroso Galvão, 1717; DAVY, Humphry, Consolations in Travel; or the Last Days
avião Bréguet 14 A/2, o qual estava equipado
of a Philosopher, 4.ª ed., London, John Murray, 1838.
com dois indicadores de velocidade, um con-
António Moniz ta-rotações, um termómetro e três bússolas.
Além disto, foram instalados tanques suple-
mentares para cobrir os 900 km que separam
Aviação Lisboa do Funchal. Tanto o avião como os pi-
lotos faziam parte do Grupo de Esquadrilhas
Desde cedo, a ilha da Madeira tornou-se um de Aviação República. O plano, elaborado
ponto de referência para os entusiastas da avia- em segredo, consistia em aterrar no Paul da
ção. Tal deveu-se tanto à posição geográfica da Serra. Porém, devido ao nevoeiro que se fazia
Ilha, no meio do oceano, colocando-a na rota sentir, não chegaram a encontrar o arquipé-
do Atlântico Sul, como ao conhecido carácter lago, tendo amarado após 8 horas e 22 minu-
turístico da Ilha em si. tos de voo perto do navio inglês Gambia River,
A primeira tentativa de ligação aérea de que os localizou a 35º norte e 13º oeste, e a
Lisboa (Amadora) à Madeira deu-se a 18 de cerca de 500 km de Lisboa.
outubro de 1920 por Brito Pais e Sarmen- Foi pela posição estratégica da Ilha que a 22
to de Beires. Para o efeito, utilizaram um de março de 1921 se deu a primeira passagem
de uma aeronave pelo arquipélago, aquando
da travessia do Atlântico Sul entre Lisboa e o
Rio de Janeiro para comemorar os 100 anos de
independência do Brasil. O hidroavião, um Fe-
lixtowe F-3, comandado por Sacadura Cabral,
com Gago Coutinho como observador e mais
dois tripulantes, descolou de Lisboa com des-
tino à Madeira, tendo aterrado no Porto do
Funchal.
A passagem seguinte de uma aeronave deu-
-se a bordo de um hidroavião Fokker T.III
Fig. 1 – Breguet Br.14-A2 denominado “cavaleiro negro”, usado na
tentativa de ligação Amadora-Madeira a 18 de outubro de 1920
W n.º 25, batizado Infante de Sagres, numa ten-
(SANTOS, Ex-OGMA, 17 mar. 2009). tativa de ligação entre Lisboa, Funchal, Ponta
A via ç ã o ¬ 133

Delgada e, novamente, Lisboa, pelas mãos de A 1 de outubro de 1958, a ARTOP – Aero


dois pilotos da aviação naval, os tenentes Mo- Topográfica Lda. volta a estabelecer a liga-
reira de Campos e Neves Ferreira, acompanha- ção entre a Madeira e Lisboa através dos seus
dos pelo mecânico João Bastos. Ao fim de 9 dois hidroaviões Glenn L. Martin PBM 5 Mari-
horas, já perto do Funchal, depararam-se com ner com capacidade para 50 passageiros cada.
intenso nevoeiro. Ao mesmo tempo, o motor Estas aeronaves foram batizadas de Madeira e
apresentava sintomas de sobreaquecimento, Porto Santo, respetivamente. As viagens tinham
pelo que tiveram de amarar perto do Porto uma frequência trissemanal, às quartas-feiras,
Santo. Foram encontrados na manhã seguinte sextas-feiras e aos domingos, com ida e volta
por uma embarcação de pesca de Santa Cruz, no mesmo dia, e com um tempo máximo de
a cerca de 13 km de terra. 3 horas entre cada trajeto. A viagem de ida e
Durante a Revolta da Farinha, em abril de volta tinha o custo de 2.340$00, havendo pre-
1931, a Marinha enviou diversos navios com o ços especiais para estudantes e a possibilidade
intuito de suprimir a revolta, incluindo o car- de pagamento em prestações.
gueiro Cubango. Este, além de uma força de de- A 9 de novembro de 1958, o hidroavião da
sembarque da Marinha e da artilharia do Exér- ARTOP Porto Santo, a realizar a sua primeira
cito, dispunha também de três hidroaviões viagem para a Madeira, vê-se forçado a amarar
CAMS 37.ª da Aviação Naval, transformando o no Oceano Atlântico, a 180 milhas do Cabo de
Cubango no primeiro “porta-aviões” português. São Vicente. Os destroços da aeronave nunca
O uso destas aeronaves teve um papel fulcral foram encontrados, tendo este acidente levado
no controlo da revolta, tendo estas efectua- ao encerramento da operação, devido às con-
do 100 horas de voo em missões de reconhe- dições de segurança a que era levada a cabo.
cimento, ataque ao solo e ações psicológicas No entanto, a 30 de dezembro do mesmo ano,
(lançamento de panfletos). o governo anunciou que uma nova empresa
Ainda na déc. de 30, em 1935, passaram ligaria o continente à Madeira. Chamar-se-ia
pela baía do Funchal um grupo de hidroa- Aerovia Aquila, que contaria com capitais da
viões Junkers K-43W da Aeronáutica Naval Aquila Airways. Porém, devido a dificuldades
que realizavam a viagem Lisboa-Funchal-Pon- financeiras o projeto não se materializou.
ta Delgada-Horta-Ponta Delgada-Funchal-Por- Por esta altura, já os aeroportos do Porto
to Santo-Lisboa. Santo e de Santa Cruz estavam a ser construí-
O início dos voos comerciais deu-se no final dos, tendo o primeiro aberto em 1960 e o se-
dos anos 40. Em 1949, a Aquila Airways efetua- gundo poucos anos depois, em 1964. A cons-
va a ligação da Ilha a Southampton, Lisboa e trução destas infraestruturas fez com que a
Las Palmas com hidroaviões quadrimotores aviação no arquipélago desse um grande salto,
Shorts Solent. quer quantitativamente quer qualitativamen-
te, com a maior segurança e o maior confor-
to e número de passageiros que os aviões de
terra permitiram. A TAP começou desde logo
a operar para a Madeira com aviões quadri-hé-
lice Lockheed Super Constellation. Em 1967,
a companhia de bandeira portuguesa come-
ça a operar a linha Lisboa-Funchal com aviões
Boeing B-727.
Em 1973, dá-se o primeiro acidente no ae-
roporto de Santa Catarina. Um avião Caravel-
le 10R da companhia charter espanhola Aviaco
Fig. 3 – Short Silent S-45A Solent da Aquila Airways
na baía do Funchal (“ARTOP...”,
despenhou-se perto do aeroporto da Madeira
Restos de Colecção, 16 abr. 2012). quando se preparava para aterrar. Morreram
134 ¬ A vifauna

os três tripulantes, que vinham apoiar um e, por fim, em 1992, pilotagem, em parceria
avião com uma avaria. As causas deste acidente com o Aeroclube de Torres Vedras. A par-
nunca foram bem apuradas. É, porém, a 19 de tir de 1995, chegaram as aeronaves que fa-
novembro de 1977 que se dá o infame aciden- riam parte da frota do aeroclube, um Cess-
te de um Boeing 727-200 da TAP, o Sacadura na FTB 337 e um Havilland Canada DHC-1
Cabral. O avião, que provinha de Bruxelas via Chipmunk, ambos cedidos pela Força Aérea
Lisboa, tentava aterrar pela 3.ª vez na pista 24 Portuguesa. No séc. xxi, esta instituição dá
do aeroporto de Santa Catarina. Após a apro- formação na área de pilotagem, parapente e
ximação, o avião aterrou muito para além do asa-delta, sendo a sua frota composta por um
normal, entrou em aquaplanagem e saiu pela Piper PA-28 e um Socata TB-10.
cabeceira da pista, que tinha um desnível de
Bibliog.: impressa: FORÇA AÉREA PORTUGUESA, A Aviação na Madeira,
algumas dezenas de metros em relação à estra- Lisboa, By the Book, 2010; Revista da Armada, n.º 476, 2013; digital:
da, partindo-se em dois. Como consequência, “ARTOP – Aero Topográfica, Lda.”, Restos de Colecção, 16 abr. 2012: http://
restosdecoleccao.blogspot.com/2012/04/artop-aero-topografica-lda.html
a TAP deixou de operar o modelo 727 da série
(acedido a 11 dez. 2020); PINTO, Duarte Fernandes, “Ilha da Madeira – Câmara
200 para a Madeira, passando apenas a operar de Lobos”, A Terceira Dimensão, 9 set. 2010: http://portugalfotografiaaerea.
o 727-100, 5 m mais curto, e foi feito o primei- blogspot.com/2010/09/ilha-da-madeira-camara-de-lobos.html (acedido a 11
dez. 2020); SANTOS, José F., “Aviões da AM-Breguet Br.14-A2”, Ex-OGMA, 17
ro aumento da pista de Santa Catarina, de 1600 mar. 2009: https://ex-ogma.blogspot.com/2009/03/avioes-da-am-breguet-
para 1800 m. A nova extensão da pista possibi- br14-a2.html (acedido a 11 dez. 2020).

litou a primeira passagem de um wide-body jet Manuel Faria


pela Madeira, um B767-200 da Braathens.
Os primeiros passos com vista à criação de
um aeroclube foram dados, primeiro, por Avifauna
Paul Alexander Zino e, posteriormente, por
um antigo mecânico da Força Aérea e pro- As aves são animais vertebrados com o corpo
fessor da Escola Gonçalves Zarco, João Ma- coberto de penas; possuem bico e membros
nuel Farinha, o qual iniciou a angariação de anteriores transformados em asas.
sócios em 1978. Esta iniciativa culminou com Tem sido grande o interesse manifestado por
a constituição legal do clube, a 14 de feve- numerosos naturalistas e investigadores pela
reiro de 1980. O aeroclube começou então avifauna do arquipélago da Madeira e do ar-
a divulgar a prática da atividade aeronáuti- quipélago das Selvagens. No entanto, tendo
ca e para-aeronáutica, iniciando uma série em conta esse facto, a bibliografia existente
de atividades como aeromodelismo, parasai- tem ficado um pouco aquém do esperado. Na
ling, asa-delta (com participações em cam- realidade, faltam estudos de ecologia, de siste-
peonatos nacionais e mundiais), parapente mática e de outros aspetos biológicos. As pri-
meiras referências às aves da Madeira são de
Ca’ da Mosto (1455) e de Frutuoso (1590),
às quais se acrescentam, bastantes anos mais
tarde, as de Sloane (1707), em que são apre-
sentadas pequenas listas de aves observadas.
Em 1851, surge a primeira lista, propriamente
dita, de aves do arquipélago da Madeira, ela-
borada por Harcourt. Do séc. xix, há ainda a
referir o trabalho de Hartwig, “Die Voegel der
Madeira Inselgruppe” (1891). Na transição do
séc. xix para o séc. xx, surgem vários trabalhos
do P.e Ernesto Schmitz, provavelmente um dos
estudiosos que mais contribuiu para o conhe-
Fig. 4 – Socata TB-10 Tobago do Aeroclube da Madeira (PINTO,
A Terceira Dimensão, 9 set. 2010). cimento da avifauna madeirense. Já em pleno
A vifauna ¬ 135

séc. xx, foram vários os trabalhos publicados, Madeira, publicado em 1997 pela Associação
entre os quais se destaca o livro, em quatro vo- dos Amigos do Parque Ecológico do Funchal,
lumes, escrito por David Bannerman e Wini- da autoria de Duarte Câmara, e A Conservação e
fred Mary Bannerman, intitulado Birds of the Gestão das Aves do Arquipélago da Madeira, publi-
Atlantic Islands; esta obra, dedicada à avifauna cado pelo Parque Natural da Madeira (PNM)
da Macaronésia, aborda as aves das ilhas Selva- em 1999, da autoria de Paulo Oliveira). Vários
gens no primeiro volume (de 1963 e da auto- outros trabalhos foram publicados na segun-
ria de David Bannerman apenas) e as aves das da metade do séc. xx e nos inícios do séc. xxi
ilhas da Madeira, Desertas e do Porto Santo (e.g., o artigo “Birds of the archipelago of Ma-
no segundo volume (de 1965); ultrapassa, de deira and the Selvagens. New records and che-
longe, em termos de conteúdo, os trabalhos cklist”, publicado por Francis Zino, Manuel
anteriores, que consistiam essencialmente em Biscoito e Paul Alexander Zino e pelos seus co-
listas de aves e em referências a locais de obser- laboradores, em 1995, que veio atualizar a lista
vação; nela, além da listagem das espécies ni- das aves nidificantes de Bernstrom, de 1957).
dificantes e visitantes ocasionais, são incluídos Esta lista, por sua vez, é atualizada, em 2010,
aspetos relevantes referentes à distribuição, à num trabalho de Hugo Romano, Catarina Cor-
taxonomia e à ecologia. Após este trabalho de reia-Fagundes, Francis Zino e Manuel Biscoito.
referência, aumentou o número de publica- Importante é também o livro Aves do Arquipé-
ções sobre aves (e de autores nesta área), os lago da Madeira, de Manuel Biscoito e Francis
quais abordam vários aspetos da biologia, do Zino, publicado em 2002. The EBCC Atlas of Eu-
comportamento, da distribuição, da taxono- ropean Breeding Birds (Atlas das Aves Nidificantes
mia e da conservação das aves no arquipélago na Europa), publicado em 1997 pelo European
da Madeira (e.g., o Guia de Campo das Aves do Bird Census Council, referia as aves dos arqui-
Parque Ecológico do Funchal e do Arquipélago da pélagos da Madeira e Selvagens. Em 2011, o

Fig. 1 – Vertebrados da Madeira, vol. 1 (1948), de Alberto Artur Fig. 2 – Aves do Arquipélago da Madeira (2002), de Manuel
Sarmento. Biscoito e Francis Zino.
136 ¬ A vifauna

ornitólogo Garcia-del-Rey publicou o livro Field são ainda pouco conhecidos. Com um compri-
Guide to the Birds of Macaronesia. Azores, Madei- mento total entre 32 e 34 cm e envergadura
ra, Canary Islands, Cape Verde, relevante para o entre 80 e 86 cm, é mais pequena, mais leve, e
conhecimento e a divulgação da avifauna ma- possui bico e asas menores do que a freira-do-
caronésica. Outro livro a referir é o da autoria -bugio. É uma ave com bico curto, grosso e es-
de Tony Clarke, intitulado Birds of the Atlantic curo. É cinzento-escura no dorso e mais clara
Islands, publicado em 2006. Existe uma pági- na fronte. Em voo, nota-se que a região ven-
na na Internet, Atlas das Aves do Arquipélago da tral é clara e os bordos da cauda são escuros.
Madeira, que é mantida pelo Serviço do PNM e A cauda é clara. As asas formam um V pronun-
pela Sociedade Portuguesa para o Estudo das ciado e a parte inferior e interna das asas é es-
Aves. cura. Isto diferencia-a de outras aves, exceto da
O número de espécies de aves nidifican- freira-do-bugio (Pterodroma deserta).
tes nos arquipélagos da Madeira e Selvagens Nidifica essencialmente no maciço monta-
ronda as quatro dezenas, mas, se considerar- nhoso central da Madeira, uma zona de prote-
mos as espécies migradoras e as ocasionais, o ção especial (ZPE) integrada na Rede Natura
número ultrapassa as 300 espécies. Destacam- 2000. Chega a esta zona normalmente em fe-
se quatro espécies pelo seu carácter endémico: vereiro ou março; entre março e abril, limpa
Pterodroma madeira, Pterodroma deserta, Columba o ninho, volta em seguida ao mar, e só depois
trocaz e Regulus madeirensis. retorna para fazer a postura – este fenómeno
As aves marinhas são, nalguns casos, difíceis é designado por êxodo pré-postura. Um único
de observar junto à costa durante o dia. Geral- ovo é posto em maio, em túneis geralmente
mente, aproximam-se da costa ao anoitecer e não retilíneos com mais de 1 m de compri-
durante a nidificação, sendo que pelo menos mento, construídos em solo fofo nas encostas
um dos progenitores está escondido no ninho escarpadas dos picos mais altos. Nesta espécie,
durante este período. Durante a sua evolução, os machos e as fêmeas alternam na incubação.
estas aves escolheram ilhas como locais de ni- Deixa o ninho em setembro ou outubro.
dificação por não existirem predadores nelas. As crias nascidas nesse ano só atingem a ma-
Com a chegada do Homem a muitas destas turidade ao fim de seis anos. O efetivo é muito
ilhas, chegaram também com ele vários preda- baixo – 60 a 75 casais reprodutores (de acordo
dores, entre os quais se destacam as ratazanas com o Atlas das Aves do Arquipélago da Madei-
e os murganhos. Desde então, são inúmeras as ra) –, tendo eventualmente ocorrido alguma
espécies e populações de aves marinhas que redução do mesmo aquando dos incêndios de
enfrentam o perigo de extinção. As aves mari- 2012. É uma das aves mais ameaçadas de extin-
nhas mais comuns nos arquipélagos da Madei- ção, tendo o estatuto de conservação “em pe-
ra e das Selvagens são: rigo” (nos termos da União Internacional para
Freira-da-madeira (Pterodroma madeira (Ma- a Conservação da Natureza (IUCN), de setem-
thews, 1934)) – Também conhecida como alma- bro de 2012). Têm sido realizados vários esfor-
-penada do-cidrão, devido aos sons que emite, ços com vista à proteção da ave – Alexander
semelhantes a uivos, inclui-se na família Proce- Zino e João Gouveia, juntamente com Gun-
llariidae, ordem Procellariiformes. É muito pa- ther Maul e Francis Zino, deram os primeiros
recida com a freira-do-bugio e com o gongon passos neste sentido com o Freira Conserva-
das ilhas de Cabo Verde. É uma ave endémi- tion Project. Programas LIFE e outros projetos
ca da ilha da Madeira e encontra-se em perigo têm decorrido e envolvido a recuperação do
de extinção. Já o P.e Ernesto Schmitz referia a habitat, a eliminação de vertebrados exóticos
sua presença na Ilha em 1903; no entanto, pos- (gatos, ratos, coelhos) e a compra de terrenos
teriormente, e durante muito tempo, foi dada nos picos mais altos. As principais ameaças à
como extinta, sendo “redescoberta” em mea- sobrevivência da freira-da-madeira são a preda-
dos do séc. xx. Vários aspetos da sua biologia ção de ovos e de juvenis pelos gatos e ratos e
A vifauna ¬ 137

a destruição do coberto vegetal pelos herbívo-


ros introduzidos (que leva à erosão dos solos
e, consequentemente, à redução da área po-
tencialmente apropriada à construção dos ni-
nhos). No passado, os colecionadores de ovos
e de aves constituíam uma ameaça de peso.
A ave consta do anexo i da diretiva “Aves” e
do anexo ii da Convenção de Berna. O seu ha-
bitat consta do anexo i da diretiva “Habitats”.
O local onde nidifica está inserido no PNM e
é uma zona da Rede Natura 2000. Apesar dos
avanços no conhecimento da espécie, muito
há ainda por conhecer, nomeadamente sobre
a distribuição espacial da ave ao longo do ano,
principalmente no outono e no inverno.
Freira-do-bugio (Pterodroma deserta (Mathews,
1934)) – Ave da família Procellariidae, ordem
Procellariiformes. Nidifica apenas nas Desertas
(na ilha do Bugio e, possivelmente, na extre-
midade sul da Deserta Grande). É muito se-
melhante à freira-da-madeira. Tem entre 33 Fig. 3 – “Medidas urgentes para a recuperação
da Freira do Bugio Pterodroma feae e do seu habitat”,
e 36 cm de comprimento total e entre 86 e
Projeto SOS Freira do Bugio, ilhas Desertas, 2017.
94 cm de envergadura. É cinzento-escura no
dorso e mais clara na região ventral e na fron-
te. Em voo, as asas formam um V pronunciado espécies distintas, Pterodroma feae e Pterodroma
e nota-se que a parte inferior e interna das asas deserta. Segundo o Atlas das Aves das Aves do Ar-
é escura – isto diferencia-a de outras aves, ex- quipélago da Madeira, existirão entre 160 e 180
ceto da freira-da-madeira. Nidifica entre junho casais reprodutores e a população é aparen-
e dezembro, em ninhos escavados no solo, for- temente estável. Este número é muito baixo.
mando túneis não retilíneos, alguns com mais Tendo em conta a área muito reduzida de nidi-
de 2 m; ocasionalmente, pode nidificar em ca- ficação (<20 km2 numa única localização), esta
vidades nas rochas ou em zonas com pedras ave é, provavelmente, tal como a freira-da-ma-
soltas. Outrora, as populações nidificantes da deira, uma das espécies que apresenta maior
ilha do Bugio e de algumas ilhas de Cabo Verde risco de extinção na Macaronésia e na Europa.
(Santo Antão, São Nicolau, Santiago e Fogo) O estatuto de conservação é “vulnerável”, de
eram incluídas na mesma espécie (Pterodroma acordo com o Livro Vermelho dos Vertebrados de
feae); durante anos, considerou-se existirem Portugal. As principais ameaças à sobrevivência
duas subespécies, a Pterodroma feae feae, nidifi- da espécie são, além da reduzida área de nidifi-
cando em Cabo Verde, e a Pterodroma feae deser- cação, a degradação do habitat e a perturbação
ta, no Bugio. Em 2009, no âmbito do Projeto das aves por animais introduzidos (como os
LIFE SOS Freira-do-Bugio, foram realizados es- murganhos, as cabras e os coelhos). O aumen-
tudos, utilizando marcadores genéticos mole- to da população de cagarra poderá constituir
culares, que demonstraram não haver indícios um perigo (dado que esta espécie poderá com-
de cruzamento entre as formas do Bugio e de petir com a freira-do-bugio pelos lugares de ni-
Cabo Verde e que a distância genética conse- dificação), bem como a poluição em alto mar.
guia ser maior do que a existente entre alguns Até à criação da Reserva Natural das Desertas
pares de outras espécies definidas. Por isto, em 1990, a captura ilegal constituía um risco
as duas formas passaram a ser consideradas significativo. Após esta data, as ameaças a esta
138 ¬ A vifauna

espécie têm sido progressivamente debeladas 50 cm de comprimento total, sendo a ave ma-
pelo Serviço do PNM por meio de programas rinha de maior porte dos arquipélagos da Ma-
específicos focados na conservação da espécie deira e das Selvagens, e é facilmente identifi-
e do seu habitat. Em 2006, foi iniciado o Pro- cável pelo seu voo rápido e planado, rente às
jeto SOS Freira-do-Bugio, do Programa LIFE­ ondas. As asas longas diferenciam-na da gaivo-
‑Natureza, que envolveu, entre outras tarefas, ta; outra característica que a diferencia de ou-
a retirada dos herbívoros introduzidos e a co- tras aves marinhas que nidificam nestes arqui-
locação de ninhos artificiais. A ave consta do pélagos é a cor amarela do seu bico. Esta ave é
anexo ii da Convenção de Berna e do anexo i branca nas superfícies inferiores e acastanhada
da diretiva “Aves”. O local onde nidifica é re- nas superiores.
serva integral e é uma zona da Rede Natura Nidifica em cavidades de rochas e por baixo
2000. Tal como acontece no caso da freira-da- de grandes pedras, nas falésias rochosas ou nos
-madeira, apesar dos avanços no conhecimen- planaltos; nas ilhas Selvagens, nidifica também
to da espécie, muito há ainda por saber acerca no solo, entre a vegetação rasteira. A postura
dela (designadamente sobre a sua distribuição compreende apenas um ovo, do qual eclode
espacial ao longo do ano, principalmente no uma ave que só atingirá a maturidade ao fim de
outono e no inverno). nove anos. Entre dezembro e fevereiro encon-
Cagarra ou pardela-de-bico-amarelo (Calonec- tra-se no hemisfério Sul, perto da costa nordes-
tris diomedea borealis (Cory, 1881)) – Em algu- te do Brasil. Segundo o Atlas das Aves do Arqui-
mas obras, como no já mencionado Field Guide pélago da Madeira existem, no mínimo, 40.000
to the Birds of Macaronesia, de Eduardo Garcia- indivíduos, amplamente concentrados nas
-del-Rey, e na base de dados Avibase, disponí- ilhas Selvagens (38.000 indivíduos). Embora
vel online, há uma alteração de nome, sendo não seja considerada uma ave ameaçada, a cap-
considerada como Calonectris borealis. Inclui-se tura ilegal, a destruição do habitat e a predação
na família Procellariidae e na ordem Procella- por gatos e ratos constituem fatores limitantes
riiformes. É a ave marinha mais avistada entre da espécie. De acordo com o Livro Vermelho e a
março e novembro nos mares do arquipélago IUCN, o seu estatuto é “pouco preocupante”.
da Madeira e do arquipélago das Selvagens, ni- Na Madeira, alguns locais de nidificação da ca-
dificando em todas as suas ilhas. Tem cerca de garra estão em áreas do PNM e são zonas da
Rede Natura 2000. Esta ave faz parte do anexo
i da diretiva “Aves” e do anexo ii da Conven-
ção de Berna. Durante muito tempo, a cagarra
foi caçada, principalmente nas ilhas Desertas e
nas Selvagens; segundo o Elucidário Madeirense,
eram capturados, por homens de São Gonçalo
e do Caniço, cerca de 18.000 indivíduos por
ano nas Selvagens. A cagarra era salgada e le-
vada para a Madeira para ser vendida às classes
mais desfavorecidas; as suas penas eram utiliza-
das sobretudo no fabrico de colchões. A última
expedição para a captura de cagarra nas ilhas
Selvagens partiu do Funchal a 15 de setembro
de 1967. A caça à cagarra foi proibida.
Patagarro (Puffinus puffinus puffinus (Brunnich,
1764), ou simplesmente Puffinus puffinus
(Brunnich, 1764)) – Também conhecido como
Fig. 4 – Cagarra ou pardela (fotografia de Thomas Dellinger,
fura-bucho, pardela-sombria, estapagado, pa-
2010). pagarro e boieiro; alguns destes nomes são
A vifauna ¬ 139

designações onomatopeicas, que imitam os


sons característicos desta ave. Pertence à famí-
lia Procellariidae, ordem Procellariiformes.
Distribui-se pelos arquipélagos da Madeira,
das Canárias e dos Açores, ilhas Britânicas,
costa da Bretanha, Islândia e ilhas Faroé. No
arquipélago da Madeira, o patagarro nidifi-
ca apenas na ilha da Madeira, em particular
nas encostas da ribeira de Santa Luzia, mas
também noutras regiões do interior, em vales
profundos, em zonas húmidas e cobertas de
vegetação, podendo atingir altitudes muito
elevadas. O patagarro é negro no dorso e
branco nas partes ventrais; o seu bico é longo,
preto e direito.
O patagarro é frequentemente confundi-
do com o pintainho (Puffinus baroli), diferin- Fig. 5 – Patagarro (fotografia de José Jesus, 2014).
do dele pela plumagem preta da cabeça, que
desce até abaixo dos olhos (a pelagem que ro- da familia Procellariidae, ordem Procellarii-
deia os olhos do pintainho é branca). formes. É uma ave endémica da Macaroné-
Normalmente, o patagarro chega à ilha da sia, sendo que nos arquipélagos da Madeira
Madeira em fevereiro ou março, altura em que e das Selvagens nidifica nas ilhas da Madei-
começa a escavar e a limpar as tocas (chegan- ra, do Porto Santo, Desertas e Selvagens. Tem
do estas a ter mais de 1 m de comprimento). patas azuis, dorso muito escuro e ventre claro.
Às vezes, mal chega, parte novamente (êxodo O pintainho poderá ser confundido com o pa-
pré-postura). Julga-se que o principal objetivo tagarro; no entanto, diferencia-se dele pelo
deste comportamento é a acumulação de re- facto de a plumagem preta da cabeça não ro-
servas para os períodos de incubação do ovo, dear os olhos e por estes serem no pintainho
alternados, entre macho e fêmea, de quatro mais pequenos. O voo caracteriza-se por bati-
ou cinco dias de jejum. Por regra, parte em mentos frequentes das asas. Nidifica entre ja-
agosto. neiro e junho, em cavidades de rochas, ou por
Segundo o Atlas das Aves do Arquipélago da Ma- baixo de pedras soltas, nas falésias de peque-
deira, existirão entre 2500 e 10.000 indivíduos. nas ilhas e ilhéus. Geralmente, está presente
Um dos perigos para o patagarro é a predação na área durante quase todo o ano, não se afas-
por ratos e gatos. No passado, a captura e a tando muito dos locais de nidificação. Ocorre
perseguição ilegais representavam uma amea- em maior número nas ilhas Selvagens (estima-
ça importante. Segundo a crença popular, era -se que haja mais de 2000 casais) e em muito
uma ave de mau agoiro: haveria uma morte menor número nas ilhas da Madeira, do Porto
entre os moradores de uma habitação sempre Santo e Desertas. O seu estatuto de conserva-
que um patagarro pousasse sobre ela. Alguns ção é “vulnerável” no arquipélago da Madei-
locais onde esta subespécie ocorre fazem parte ra. A predação por espécies introduzidas pelo
de zonas da Rede Natura 2000 e do PNM. Al- Homem poderá representar a principal amea-
guns dos habitats constam do anexo i da dire- ça à sua sobrevivência; no entanto, em alguns
tiva “Habitats”; a ave está no anexo ii da Con- dos locais onde existe (e.g., nas Selvagens) essa
venção de Berna. ameaça foi debelada pela erradicação de verte-
Pintainho (Puffinus baroli (Bonaparte, 1857)) – brados introduzidos. A proteção do pintainho
Considerado por alguns cientistas como a su- é garantida pelo facto de ocorrer em áreas de
bespécie Puffinus assimilis baroli, é uma ave reserva integral e da Rede Natura 2000 e por
140 ¬ A vifauna

estar sob vigilância permanente nas ilhas De- Procellariiformes. A nível mundial, distribui-
sertas e Selvagens. Esta ave consta do anexo i -se entre as regiões tropicais do Pacífico e do
da diretiva “Aves” e do anexo ii da Convenção Atlântico, ocupando áreas como o arquipélago
de Berna. da Madeira, o arquipélago das Selvagens e ou-
Alma-negra (Bulweria bulwerii (Jardine & Selby, tros arquipélagos da Macaronésia, as ilhas de
1828)) – Ave da família Procellariidae, ordem Ascensão e de Santa Helena, os arquipélagos
Procellariiformes, apresenta uma ampla distri- das Galápagos e do Havai. Trata-se de uma ave
buição mundial, ocorrendo desde a Macaro- de pequeno porte, de coloração negra e com
nésia ao Havai. Na Macaronésia, nidifica nos uma faixa branca no uropígio, sendo a cauda
arquipélagos da Madeira, das Selvagens, dos ligeiramente bifurcada. No arquipélago da Ma-
Açores, das Canárias e de Cabo Verde. Trata-se deira, existem duas populações com tempos de
da ave marinha de menor porte do arquipéla- nidificação diferentes (verão e inverno) e este
go da Madeira. Completamente negra e com facto poderá corresponder à coexistência de
asas pontiagudas (de grande envergadura em duas espécies, a exemplo do que acontece nos
relação ao tamanho do corpo), apresenta um Açores. No arquipélago dos Açores, o grupo
voo rápido e planado. Entre abril e setembro, que nidifica no verão tem a designação de Hy-
nidifica em pequenas ilhas, ilhéus e falésias cos- drobates monteiroi (Bolton et al., 2008), sendo
teiras. A postura consiste em apenas num ovo, que o outro se denomina Hydrobates castro.
que é posto no chão, em buracos no solo ou A população total nos arquipélagos da Madei-
em cavidades nas rochas, por baixo de grandes ra e das Selvagens poderá ser superior a 10.000
pedras e em muros artificiais. Nas ilhas Deser- indivíduos. A postura (de um ovo), em ninhos,
tas e Selvagens, existem mais de 10.000 casais, é efetuada em pequenas ilhas, ilhéus e falésias
sendo provavelmente as Desertas o lugar com costeiras e muros de pedra artificiais; nas Selva-
a maior concentração mundial de indivíduos gens, o roque-de-castro utiliza também ninhos
(no entanto, pouco se sabe sobre o número de calcamar abandonados. As principais amea-
de aves que poderá ocorrer na Madeira e em ças à sobrevivência da espécie são a iluminação
Porto Santo). Antes dos programas de recupe- artificial existente ao longo a costa (principal-
ração de habitats das Desertas e Selvagens, os mente na ilha da Madeira), a predação por ani-
ratos constituíam um sério perigo para a sobre- mais exóticos (como os ratos) e a perda do ha-
vivência da espécie, assim como a captura de bitat em algumas áreas da sua ocorrência. Boa
juvenis para servirem como isco (prática entre- parte da área em que ocorre é reserva integral
tanto extinta). Os ratos, os gatos e as gaivotas e corresponde a zonas da Rede Natura 2000.
constituem ameaças em algumas áreas não su- A espécie está incluída no anexo i da diretiva
jeitas a programas de recuperação. Já em finais “Aves” e anexo ii da Convenção de Berna.
do séc. xx, inícios do séc. xxi, uma ameaça, Calcamar (Pelagodroma marina hypoleuca (Webb,
a formiga-argentina, cresceu e começou a tor- Berthelot & Mouquin-Tandon, 1841)) – Esta
nar-se preocupante, principalmente nas Deser- ave, da família Hydrobatidae, ordem Procella-
tas. A elevada pressão turística, a degradação riiformes, é uma subespécie endémica da Ma-
do habitat e a erosão dos solos constituem tam- caronésia e ocorre no arquipélago das Caná-
bém importantes fatores de risco. O maior nú- rias e no arquipélago das Selvagens (as ilhas
mero de aves que ocorre e nidifica no arqui- Selvagens constituem o extremo norte da sua
pélago da Madeira concentra-se em zonas de distribuição geográfica). É a ave que nidifica
reserva integral e da Rede Natura 2000. Esta em maior número no arquipélago das Selva-
espécie consta do anexo i da diretiva “Aves” e gens, fazendo-o na primavera, em ninhos pro-
anexo ii da Convenção de Berna. fundos escavados no solo. Chega geralmente
Roque-de-castro, paínho-da-madeira, roqui- após o fim do inverno, abandonando as ilhas
nho ou angelito (Hydrobates castro (Harcout, entre junho e agosto. A postura é constituí-
1851)) – Ave da família Hydrobatidae, ordem da por um ovo apenas. Trata-se de uma ave
A vifauna ¬ 141

de pequeno porte com o dorso muito escuro


e ventre claro. A plumagem do topo superior
da cabeça é escura; já as penas em redor dos
olhos são brancas, apresentando uma marca li-
near escura “transversal” ao olho. As patas são
amarelas e longas. O seu nome deve-se ao seu
voo característico (a ave parece calcar o mar).
O efetivo populacional deverá ser superior
a 36.000 indivíduos na Selvagem Grande e a
25.000 na Selvagem Pequena, o que represen-
ta a quase totalidade da população europeia da
espécie. No passado, antes da recuperação dos
habitats terrestres da Selvagem Grande, que
incluiu a erradicação dos murganhos e coe-
lhos, a predação pelos ratinhos constituía uma
ameaça muito importante à sobrevivência da
Fig. 6 – Pombo-trocaz (fotografia de Carlos Góis-Marques, 2015).
espécie. As áreas de nidificação no arquipéla-
go são reservas integrais e constituem zonas da
Rede Natura 2000. A ave consta do anexo i da maior área de distribuição no passado.
diretiva “Aves” e do anexo ii da Convenção de A sua dieta é muito variada, consistindo em
Berna. partes de pelo menos 40 espécies de plantas
Apesar da sua abundância e da sua importân- (e.g., bagas de loureiro e de til, agrião selva-
cia, as aves marinhas são muito menos observa- gem) e ainda em várias plantas cultivadas (e.g.,
das durante o dia do que as aves terrestres. Efe- couves). O facto de várias sementes se mante-
tivamente, quem está nas ilhas da Madeira e do rem viáveis, i.e., com capacidade germinativa,
Porto Santo observa muito mais aves terrestres após passarem pelo trato digestivo sugere uma
do que marinhas. Entre as aves terrestres, des- ação importante do pombo na dispersão de
tacam-se as seguintes: plantas. Esta espécie nidifica durante todo o
Pombo-trocaz ou pombo-da-madeira (Columba ano, sobretudo em alturas em que há alimento
trocaz Heineken, 1829) – Trata-se de uma ave da suficiente no período entre março e junho. No
família Columbidae, ordem Columbiformes, ninho, camuflado ou escondido numa laje de
endémica da Madeira. De aspeto corpulento, uma rocha ou numa árvore, é posto geralmen-
tem entre 38 e 45 cm de comprimento, sendo te um ovo por casal. Em 2009, existiam entre
maior do que pombo-das-rochas. É facilmente 8500 e 10.000 indivíduos. Em 2005, o estatuto
identificável pela cor cinzento-azulada, tendo de conservação desta espécie era “vulnerável”,
o peito tons de cor de vinho, bico vermelho- de acordo com o Livro Vermelho dos Vertebrados
-vivo, patas de cor carmim (com dedos bastan- de Portugal; no entanto, como em 2011 foi con-
te compridos) e barra clara na cauda (visível firmada a diminuição do grau de ameaça, o es-
à distância). As penas do pescoço apresentam tatuto de conservação passou a “pouco preo-
um brilho metálico esverdeado. A fêmea é li- cupante”. O envenenamento, a captura ilegal
geiramente mais pequena e menos corpulenta e a destruição do habitat da laurissilva consti-
do que o macho. Tem como espécies próximas tuem riscos para a sua sobrevivência. Esta es-
a Columba junoniae, a Columba bollii (ambas das pécie foi caçada legalmente até 1989, ano a
ilhas Canárias) e a Columba palumbus (Europa). partir do qual passou a ter proteção integral.
Habita essencialmente a laurissilva, mas desce De acordo com o relato da obra Ilhas de Zargo,
com frequência até aos campos agrícolas, onde a espécie era, no passado, vendida no merca-
provoca grandes danos. Fósseis encontrados do, sendo a sua carne de excelente qualida-
na Ponta de São Lourenço sugerem que tinha de. O Instituto das Florestas e Conservação da
142 ¬ A vifauna

Natureza realiza sessões de abate com o obje-


tivo do controle populacional, pois de vez em
quando a população aumenta de tal forma que
se torna uma praga nos campos agrícolas. Do
ponto de vista da proteção, a espécie consta do
anexo i da diretiva “Aves” (ao abrigo desta di-
retiva, o seu habitat, a laurissilva, foi proposto
para zona de proteção especial (ZPE)). Gran-
de parte da sua área de distribuição está incluí-
da nas reservas naturais integrais e parciais do
PNM e abrange sítios da Rede Natura 2000.
O pombo-trocaz foi espécie-alvo de dois proje-
tos LIFE: “Medidas para a Gestão e Conserva-
ção da Floresta Laurissilva da Madeira” e “Re-
cuperação de Espécies e Habitats Prioritários
da Madeira”.
Pombo-claro ou pombo-torcaz (Columba palum-
bus maderensis Tschusi, 1904) – É uma subespé-
cie endémica que é dada como extinta. Ainda
existia no início do séc. xx, tendo o P.e Ernst
Schmitz capturado alguns indivíduos. Habita-
va as montanhas da Madeira, onde fazia ninho
nas árvores. Era semelhante às populações eu- Fig. 7 – Cartaz com bis-bis do mestrado em Ecoturismo da
ropeias da espécie, Columba palumbus, mas um Univ. da Madeira, 2018.

pouco mais escura dorsalmente e com a man-


cha púrpura do peito maior. Uma das causas em zonas de floresta indígena, mista e exóti-
de extinção terá sido a caça intensa. ca, por vezes em terrenos agrícolas ou áreas ru-
Pombo-bravo (Columba livia atlantis Banner- rais; mas é mais comum em zonas de urzais. De
mann, 1931). acordo com o Atlas das Aves do Arquipélago da
Galinhola (Scolopax rusticola Linnaeus, 1758). Madeira, a população deverá exceder os 10.000
Codorniz (Coturnix coturnix confisa Hartert, indivíduos. Nidifica em arbustos, em ninhos
1917). formados por musgo e líquenes, geralmente
Bis-bis (Regulus madeirensis Harcourt, 1851) – nos meses de maio e junho. É essencialmen-
Trata-se de uma ave da família Regulidae, te insectívora. Esta ave consta do anexo ii da
ordem Passeriformes. É endémica da ilha da Convenção de Berna; algumas das áreas onde
Madeira. Existem dúvidas sobre a sua presen- ocorre são zonas da Rede Natura 2000 e/ou
ça e nidificação no Porto Santo. É a ave nidi- do PNM.
ficante mais pequena do arquipélago da Ma- Pardal-da-terra (Petronia petronia madeirensis
deira, medindo aproximadamente 8,5 cm de (Erlanger, 1899)) – É uma ave da família Passe-
comprimento total. É facilmente identificável ridae, ordem Passeriformes. Petronia petronia pe-
pelo tamanho, mas também por ter cabeça lis- tronia é a designação atribuída por alguns cien-
tada e pelo seu trino característico (nota aguda tistas à subespécie na Madeira. Em razão desta
e curta, repetida várias vezes). O macho tem a indefinição de nomes, discute-se o seu estatuto
lista da cabeça alaranjada, ao passo que a da de subespécie endémica da Macaronésia (Ma-
fêmea é amarela. Habita essencialmente áreas deira, Porto Santo e Canárias). Tendo entre
de maior altitude. Na costa Norte, onde pare- 15 e 17 cm de comprimento, esta ave apresen-
ce ser mais abundante, pode ser encontrada ta cabeça larga e bico relativamente grosso. É
a altitudes menores; aparece com frequência de plumagem pardo-acastanhada, com regiões
A vifauna ¬ 143

segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados de Por-


tugal. Lamentavelmente, desconhece-se o seu
verdadeiro estatuto taxonómico, assim como
vários aspetos da sua biologia, e não existe um
plano de conservação dirigido a esta ave. A sua
proteção é garantida pelo facto de algumas das
áreas onde ocorre estarem incluídas no PNM e
em áreas da Rede Natura 2000. A ave consta do
anexo ii da Convenção de Berna.
Pardal-espanhol (Passer hispaniolensis hipa-
niolensis (Temminck 1820)) – Trata-se de uma
ave da família Passeridae, ordem Passerifor-
mes. A subespécie ocorre no Sul da Europa,
no Norte de África, nas Canárias e em Cabo
Fig. 8 – Pardal-da-terra (fotografia de José Jesus, 2014).
Verde. Nas ilhas da Madeira e do Porto Santo,
tem uma distribuição descontínua, vivendo
em grupos. Prefere os habitats humanizados
de castanho e branco-sujo no corpo, exibin- (jardins, praças urbanas, zonas agrícolas) e as
do uma mancha amarela debaixo da garganta áreas onde se misturam campos abandonados
(observável em especial nos machos). Obser- com vegetação rasteira. Esta ave apresenta di-
vam-se também listas escuras na zona da cabe- morfismo sexual: o macho tem cabeça casta-
ça e manchas brancas nas penas exteriores da nha, com partes laterais inferiores brancas e
cauda, bem visíveis durante o voo, as quais lhe com a parte anterior do pescoço e peito ne-
são características. Outrora abundante, nos co- gros, enquanto a fêmea é de coloração mais
meços do séc. xxi está representada por uma discreta, mais ou menos uniforme e castanha.
população muito reduzida (entre 250 e 2500 O seu comprimento total situa-se entre os 14 e
aves, de acordo com o Atlas das Aves do Arquipé- os 16 cm. Entre o final do séc. xx e os começos
lago da Madeira). Mesmo em pequeno número, do séc. xxi, a população de pardal-espanhol
avistam-se alguns bandos, nomeadamente nas decresceu significativamente na ilha da Ma-
freguesias dos Prazeres e da Ponta do Pargo e deira; no entanto, o Porto Santo manteve uma
na ilha do Porto Santo. Distribui-se por áreas população numerosa, que deve superar larga-
abertas com vegetação rasteira, zonas rochosas, mente a estimativa de 250 a 2500 indivíduos do
falésias sobre o mar e áreas cultivadas, sendo Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira.
mais frequente nas regiões costeiras e nalguns Corre-caminhos (Anthus berthelotii madeirensis
pontos mais altos das ilhas. Nidifica entre os Hartert, 1905) – De acordo com o Elucidário
meses de fevereiro e junho. Alimenta-se essen- Madeirense, é também chamado carreiró, car-
cialmente de sementes e insetos. Devido à sua reirote, melrinho de Nosso Senhor, melrinho
dieta, esta ave poderá ter tido um impacto ne- de Nossa Senhora, em certos locais da Madei-
gativo sobre os campos agrícolas (ao nível dos ra, e pode ser conhecido por bica, no Porto
grãos) – foi por este motivo que algumas câma- Santo. É uma subespécie da família Motacil-
ras tentaram combater a espécie. Assim, todos lidae, ordem Passeriformes, endémica das
os anos, a Câmara Municipal do Porto Santo ilhas da Madeira, do Porto Santo e Desertas.
obrigava cada chefe de família a apresentar 25 Nas Selvagens, ocorre a subespécie Anthus
cabeças de pardal durante o mês de junho. Es- berthelotii bertheloti Bolle, 1962, que também
tima-se que as principais ameaças sobre esta se encontra nas Canárias. A subespécie An-
subespécie sejam a competição com outras es- thus berthelotii maderensis tem um bico mais
pécies (como o pardal-espanhol) e a preda- longo do que a subespécie típica das Caná-
ção. O estatuto de conservação é “vulnerável”, rias e Selvagens; no entanto, a sua plumagem
144 ¬ A vifauna

Fig. 9 – Corre-caminhos Fig. 10 – Lavandeira


(fotografia do Parque Natural da Madeira, 2008). (fotografia de José Jesus, 2014).

é muito semelhante à daquela. Na Madeira, “esguia”, pelo peito amarelo e pelo movi-
é mais frequente na Ponta de São Louren- mento característico, vertical e cadenciado,
ço, no Pico do Arieiro e na Ponta do Pargo, da cauda, quando a ave está assente no solo.
facto que se deve à sua preferência por terre- Apresenta um voo ondulado acompanhado
nos secos e por zonas com vegetação rasteira, de chamamento agudo e metálico. Tem entre
desde a costa às cotas mais elevadas. Nas Sel- 17 e 20 cm de comprimento total e encontra-
vagens, a subespécie Anthus berthelotii bertheloti -se sobretudo na proximidade de cursos de
ocorre essencialmente nos locais de planalto, água e de poços, desde cotas mais baixas até
e menos nas falésias. zonas de maior altitude. Põe entre três e cinco
O corre-caminhos nidifica no chão, no ou- ovos em ninho construído em cavidades de
tono e na primavera, e é facilmente iden- paredes ou barrancos. Diferencia-se das ou-
tificável pelo seu comportamento. Costu- tras formas da espécie por ter o dorso mais
ma correr e faz voos curtos, facto que está escuro. Segundo o Atlas das Aves do Arquipé-
na origem do seu nome vulgar. Em voo no- lago da Madeira, o efetivo populacional situa-
tam-se as retrizes externas brancas. A popu- -se entre os 2500 e os 10.000 indivíduos. Boa
lação de Anthus berthelotii madeirensis situa-se parte da população ocorre em sítios da Rede
entre as 2500 e as 10.000 aves e parece está- Natura 2000 e do PNM, o que lhe confere al-
vel. Faz ninho no solo, entre fevereiro e agos- guma proteção. A espécie consta do anexo ii
to, pondo cerca de quatro ovos. A população da Convenção de Berna.
existente nas Selvagens é considerada “vul- Papinho (Erithacus rubecula rubecula (Lin-
nerável” devido ao número reduzido de indi- naeus, 1758)) – É uma subespécie da famí-
víduos que a constitui. lia Muscicapidae, ordem Passeriformes, que
Ambas as subespécies podem ocorrer em se distribui por Marrocos, pelos Açores, pelo
áreas de reserva integral e parcial do PNM e Oeste das Canárias, pela ilha da Madeira e
em zonas da Rede Natura 2000. A espécie cons- pela ilha do Porto Santo (onde é rara). Na Ma-
ta do anexo ii da Convenção de Berna. deira, pode ocorrer desde a beira-mar até aos
Lavandeira (Motacilla cinerea schmitzi (Tschu- 1700 m de altitude. É facilmente identificável
si, 1900)) – De acordo com a obra Elucidário pelo seu peito ruivo. O adulto é castanho no
Madeirense, era chamada papamoscas em cer- dorso e castanho-claro no abdómen e nos flan-
tos locais do Porto da Cruz. É uma subespé- cos; os juvenis são claros com peito mancha-
cie endémica do arquipélago da Madeira, da do. Mede entre 12,5 e 14 cm de comprimento
família Motacillidae, ordem Passeriformes. total. A ave tem um canto melodioso. Ocorre
Ocorre na Madeira e no Porto Santo. Esta essencialmente em zonas de floresta indígena,
ave é facilmente identificável pela sua forma floresta exótica, floresta de transição, urzais,
A vifauna ¬ 145

áreas agrícolas e jardins urbanos. Alimenta-se


de insetos, caracóis e minhocas. Nidifica em ar-
bustos, entre março e julho, pondo dois ou três
ovos (raramente quatro ou cinco). O efetivo
populacional deverá ser superior a 10.000 in-
divíduos, segundo o Atlas das Aves do Arquipéla-
go da Madeira. Algumas zonas onde ocorre são
áreas da Rede Natura 2000 e do PNM. Consta
do anexo ii da Convenção de Berna.
Melro-preto (Turdus merula cabrerae Hartert,
1901) – Subespécie endémica da Macaroné-
Fig. 11 – Melro-preto (fotografia
sia da família Turdidae, ordem Passerifor- de Virgílio Gomes, 2003).
mes. Distribui-se pela Madeira, pelo Porto
Santo (onde é rara) e pelas Canárias (existe
em algumas ilhas). É facilmente identificá- Sylvidae, ordem Passeriformes. Mede cerca de
vel pelo seu tamanho – é o maior passerifor- 12 a 13 cm de comprimento total e tem dimor-
me nidificante (tendo entre 19 e 23,5 cm de fismo sexual (a fêmea tem, em geral, uma to-
comprimento total) –, pelo seu bico (amare- nalidade mais acastanhada, sendo efetivamen-
lo no macho e acastanhado na fêmea) e pela te castanha na cabeça e no dorso, e o macho
sua coloração (o macho é uniformemente tem cabeça cinzenta, garganta esbranquiçada,
preto e a fêmea é castanho-escura com algu- abdómen claro e rosado e dorso castanho).
mas manchas). Encontra-se por toda a ilha As formas da subespécie da ilha Madeira são
da Madeira, numa grande variedade de habi- mais escuras do que as das Canárias. O cigar-
tats, desde áreas de floresta indígena, floresta rinho ocorre em núcleos espalhados pela ilha
exótica, até zonas urbanas e áreas de cultivo. da Madeira, em zonas arbustivas densas com
É muito rara nas áreas secas com vegetação pouca perturbação humana. No Porto Santo, é
rasteira do litoral. Nidifica em pequenas ár- frequente em áreas com alguma vegetação ar-
vores, bananeiras, jardins e campos agríco- bustiva, mas também em terreno aberto. O efe-
las. A postura ocorre geralmente em maio e tivo desta subespécie “tímida” ou pouco cons-
junho; a época de reprodução pode esten- pícua rondará os 2500 indivíduos (no entanto,
der-se entre janeiro e agosto. Alimenta-se de esta estimativa deve ser considerada com al-
minhocas, insetos, bagas e sementes. O efeti- guma reserva por faltarem estudos sobre esta
vo populacional da Madeira poderá exceder ave). A população de cigarrinhos do arquipé-
as 10.000 aves. Algumas áreas do seu habitat lago da Madeira, embora apresente um estatu-
estão incluídas em zonas de reserva integral to de conservação “vulnerável”, não é alvo de
e parcial do PNM e em áreas da Rede Natura medidas de conservação. Alguns dos locais em
2000. O melro-preto da Madeira consta do que ocorre são sítios da Rede Natura 2000 e do
anexo ii da diretiva “Aves” e do anexo iii da PNM. A espécie consta do anexo ii da Conven-
Convenção de Berna. ção de Berna.
Cigarrinho (Sylvia conspicillata orbitalis (Wahl- Toutinegra (Sylvia atricapilla heinecken (Jar-
berg 1854)) – Sylvia conspicillata bella (Tschusi, dine, 1830)) – Trata-se de uma ave da famí-
1901) é outro nome científico dado à subes- lia Sylvidae, ordem Passeriformes. É uma su-
pécie (caído em desuso). Alguns cientistas bespécie que ocorre nas ilhas da Madeira, do
atribuíram-lhe o nome de Curruca conspicilla- Porto Santo, Canárias e em algumas zonas da
ta orbitalis. Há dúvidas sobre se constitui uma península Ibérica (principalmente no Sudoes-
subespécie endémica da Macaronésia. Ocorre te). Possui um típico barrete – preto nos ma-
nas ilhas da Madeira e do Porto Santo, nas Ca- chos e vermelho-escuro (ou acastanhado) nas
nárias e em Cabo Verde. É uma ave da família fêmeas –, sendo também possível encontrar
146 ¬ A vifauna

algumas aves melânicas em que a cor preta do sendo castanho-clara no peito e na região ven-
barrete do macho desce abaixo da nuca (pelo tral. Existe apenas na ilha da Madeira, sendo
que recebem, em alguns locais, a denomina- observada em toda a sua extensão, exceto a
ção de toutinegras de capelo). O comprimen- mais baixa altitude. É frequente em zonas ar-
to total no adulto varia entre 13,5 e 15 cm. borizadas, com vegetação indígena ou exótica,
Pode ser observada em vários habitats (áreas em áreas agrícolas e rurais habitadas e em re-
com arbustos densos, clareiras, zonas florestais giões com vegetação arbustiva ou mesmo ras-
de transição e jardins), sendo rara na laurissil- teira; também se observa com regularidade em
va. Não ultrapassa os 1400 m de altitude, sendo zonas de merenda (onde “petisca” os restos de
pouco frequente a partir dos 800 m. De acordo comida deixados pelas pessoas). Alimenta-se
com o Atlas das Aves do Arquipélagos do Madei- de sementes e insetos. De acordo com o Atlas
ra, deverão existir mais de 10.000 indivíduos. das Aves do Arquipélago da Madeira, a população
Entre março e junho, constrói o seu ninho é numerosa (superior a 100.000 indivíduos).
nos ramos das árvores e nos arbustos e põe até Algumas das áreas em que ocorre pertencem
cinco ovos. No passado, devido aos seus dotes à Rede Natura 2000 e ao PNM. Faz parte do
canoros (o típico “tac-tac”), eram capturadas anexo iii da Convenção de Berna. Tal como
e aprisionadas em gaiolas; nos começos do acontece relativamente a outras aves do arqui-
séc. xxi, esta prática está proibida. Algumas pélago da Madeira, são necessários estudos
áreas onde ocorre são zonas da Rede Natura para conhecê-la melhor.
2000 e do PNM, o que confere alguma prote- Canário-da-terra ou canário (Serinus canaria
ção à subespécie. A espécie consta do anexo ii (Linnaeus, 1758)) – É um endemismo maca-
da Convenção de Berna. ronésico da família Fringillidae, ordem Pas-
Tentilhão (Fringilla coelebs maderensis (Shar- seriformes. Tem entre 12,5 e 13,5 cm de com-
pe, 1888)) – Trata-se de uma subespécie per- primento. Apresenta dimorfismo sexual: os
tencente à família Fringillidae, ordem Passeri- machos são mais coloridos e têm cores mais
formes, endémica da ilha da Madeira. Tendo vivas – são mais amarelados – e definidas do
entre 14 e 16 cm, possui faixas alares e parte ex- que as fêmeas, que são mais discretas (têm
terna da cauda brancas. O dimorfismo sexual cores menos vivas e mais acastanhadas). Distri-
é evidente: os machos são mais vistosos, têm to- bui-se pelas ilhas da Madeira, do Porto Santo
nalidades mais vivas (o peito é rosado ou cor e Desertas. É também encontrada nos arqui-
de tijolo, o dorso verde-acastanhado e a cabe- pélagos dos Açores e das Canárias. O habitat
ça azulada); a fêmea é menos colorida, tendo da espécie é variado, compreendendo zonas
geralmente tonalidade verde-acastanhada e rurais agrícolas, jardins, áreas urbanas, zonas

Fig. 12 – Tentilhão macho (fotografia de José Jesus, 2016). Fig. 13 – Canário-da-terra fêmea (fotografia de José Jesus, 2011).
A vifauna ¬ 147

com vegetação rasteira ou arbustiva. Pode ser


observada desde o nível do mar, nas proximi-
dades da zona entremarés, como é frequente
nas Desertas, até aos picos mais elevados da
ilha da Madeira. É frequente observar-se ban-
dos de canários; de acordo com o Atlas das Aves
do Arquipélago da Madeira, o efetivo populacio-
nal deverá ser superior a 10.000 indivíduos.
A nidificação inicia-se em janeiro (ou feverei-
ro) e a época prolonga-se provavelmente até
junho. Num ano, pode fazer duas ou três pos-
turas. O seu canto é melodioso e muito varia-
do. Algumas áreas de ocorrência e de nidifica- Fig. 14 – Pintassilgos (fotografia do Parque Natural, Ponta do
ção estão incluídas em zonas da Rede Natura e Pargo, 2010).
do PNM. A espécie consta do anexo iii da Con-
venção de Berna. Aparentemente, desloca-se pintarroxo tem o nome científico de Linaria
entre as várias regiões de uma mesma ilha, o cannabina guentheri. Subespécie endémica do
que leva à ocorrência de flutuações locais. arquipélago da Madeira, pertence à família
Pintassilgo (Carduelis carduelis parva Tschusi, Fringillidae, ordem Passeriformes. Esta ave
1901) – Esta ave, da família Fringillidae, ordem mede entre 12,5 e 14 cm de comprimento
Passeriformes, distribui-se pelas ilhas da Madei- total e tem uma cauda relativamente compri-
ra e do Porto Santo, pelos Açores, pelas Caná- da e bico curto, cinzento. Nesta subespécie,
rias, pela península Ibérica, pela região ociden- ocorre dimorfismo sexual: o macho apresen-
tal do Mediterrâneo e pelo Noroeste de África. É ta peito e fronte avermelhados, nuca cinza e
inconfundível pela sua coloração, tendo cabeça dorso de um castanho homogéneo; a fêmea é
vermelha (ao redor dos olhos e do bico), negra e de coloração mais discreta, tendo uma tonali-
branca. Possui uma barra alar amarela e larga nas dade mais acastanhada do que o macho. Ha-
asas pretas. A cauda é preta com manchas bran- bita em áreas com vegetação rasteira ou com
cas. Não tem dimorfismo sexual e o seu compri- poucos arbustos (onde predominam as gra-
mento total varia entre os 12 e os 13,5 cm. Os ju- míneas e as compostas), em terrenos cultiva-
venis são mais discretos, sem mancha facial. Pode dos, jardins e outras áreas humanizadas, tanto
ser encontrada desde a beira-mar até às grandes em zonas de baixa como de elevada altitude.
altitudes, em áreas cultivadas, abertas ou com ve- Pode ser observada em bandos igualmente
getação rasteira, com gramíneas e compostas, formados por canários e pintassilgos. As esti-
em jardins, na floresta exótica e indígena degra- mativas indicam a existência de 2500 a 10.000
dada. Devido à forma como usa o habitat, sofre indivíduos, de acordo com o Atlas das Aves do
grandes flutuações a nível local, verificando-se Arquipélago da Madeira. Boa parte dos indiví-
uma forte sazonalidade. Pode formar bandos e duos desta subespécie relativamente pouco
a sua população na Região Autónoma da Madei- conhecida ocorre em áreas da Rede Natura
ra situa-se entre os 2500 e os 10.000 indivíduos. 2000 e do PNM. A ave faz parte do anexo ii da
No passado, esta ave era capturada e mantida em Convenção de Berna.
gaiolas; no entanto, nos começos do séc. xxi esta Verdilhão (Chloris chloris (Linnaeus, 1758)) –
prática está proibida. Alguns habitats onde ocor- Tem sido muitas vezes referido que o verdi-
re estão incluídos em sítios da Rede Natura 2000 lhão da Madeira pertence à subespécie Chloris
e em áreas do PNM. A ave consta do anexo ii da chloris aurantiiventri (Cabanis, 1850). Trata-
Convenção de Berna. -se de uma ave da família Fringillidae, ordem
Pintarroxo (Carduelis cannabina guentheri Passeriformes. A espécie distribui-se pelo Sul
Wolters, 1953) – Na base de dados Avibase, o da Europa e pelo Norte de África, tendo sido
148 ¬ A vifauna

introduzida em vários outros locais (e.g., Aço-


res, Nova Zelândia, Sul da Austrália e Argen-
tina). Não se sabe se terá sido introduzida no
arquipélago da Madeira, tendo-se conheci-
mento de que aí nidifica a partir da déc. de 60
do séc. xx, exclusivamente na ilha da Madei-
ra. Aparece em áreas de floresta exótica pouco
densa, em regiões marginais de floresta, perto
de áreas de cultivo, ou em zonas abertas com
arbustos, eventualmente em áreas urbanas,
em parques e jardins. Esta ave amarelo-esver-
deada tem entre 14 e 16 cm de comprimen-
to total; o corpo, a cabeça e o bico são mais
robustos do que os de espécies que lhe são
próximas. Há dimorfismo sexual: a fêmea tem
uma coloração bastante mais discreta do que
Fig. 15 – Poupa em voo (fotografia de Virgílio Gomes, 2004).
o macho. De acordo com o Atlas das Aves do
Arquipélago da Madeira, a população deverá ser
superior a 2500 indivíduos. Tem-se pouco co- Noroeste de África e pela Ásia. Vive em áreas
nhecimento do modo como a espécie ocorre secas, com vegetação rasteira herbácea ou ar-
no arquipélago da Madeira. bustiva pouco densa, e em zonas agrícolas. É
Lugre (Carduelis spinus (Linnaeus, 1758)) – inconfundível pela sua silhueta e pelo padrão
É-lhe também atribuído o nome científico de preto e branco das asas, pelo bico comprido e
Spinus spinus (Linnaeus, 1758). É uma ave da curvo e pela crista bastante evidente, mesmo
família Fringillidae, ordem Passeriformes. En- quando em voo. Tem um comprimento total
contra-se na região paleártica, nomeadamen- que varia entre os 25 e os 29 cm. Segundo o
te entre a Europa Ocidental e a Rússia Meri- Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira, existem
dional, até à costa do Oceano Pacífico. Só em entre 250 e 2500 indivíduos. Alimenta-se de in-
2002 foi confirmada a sua nidificação na Ma- vertebrados, como insetos e minhocas. Ocorre
deira, e desde então tem-se assistido a um in- em algumas áreas da Rede Natura 2000.
cremento do efetivo populacional, sendo fre- Andorinhão-da-serra, andorinha-da-serra ou
quente observá-la na região do Poiso e na dos andorinha (Apus unicolor (Jardine, 1830)) – Tra-
Estanquinhos (Paúl da Serra), entre outras. ta-se de uma ave da família Apodidae, ordem
Este fringilídeo, que mede entre 11 e 12,5 cm Apodiformes, endémica da Macaronésia, ocor-
de comprimento total, distingue-se pelas suas rendo na ilha do Porto Santo, na ilha da Ma-
asas escuras, com marcas branco-amareladas, e deira e nas ilhas Canárias. Nidifica em falésias,
pelos lados da cauda, amarelos essencialmente a qualquer altitude. É observada sobretudo no
na base (como no verdilhão). A coroa e o ba- verão. A maioria dos indivíduos parece migrar,
bete são pretos. Tem cabeça pequena e cauda no inverno, para o Norte de África. Esta ave,
curta. medindo entre 14 e 15 cm de comprimento
Poupa (Upupa epops Linnaeus, 1758) – Trata- total e tendo coloração negra, apresenta um
-se provavelmente da subespécie Upupa epops voo rápido bastante característico e uma si-
epops. É uma ave da família Upupidae, ordem lhueta em meia-lua (por analogia com fases da
Upupiformes. No arquipélago da Madeira, é lua, parece um quarto crescente ou um quar-
frequente no Porto Santo e ocasional na ilha to minguante). Come essencialmente inse-
da Madeira (onde ocorre principalmente na tos, pelo que o uso de inseticidas pode cons-
Ponta de São Lourenço) e nas ilhas Deser- tituir uma ameaça para a espécie. Distingue-se
tas. A espécie distribui-se pela Europa, pelo de Apus pallidus por ter uma coloração mais
A vifauna ¬ 149

homogénea e escura. Ocorre em vários locais, arquipélago deixa de ser tida como endémica,
incluindo em áreas da Rede Natura 2000 e do havendo que considerar as populações ociden-
PNM. A espécie consta do anexo ii da Con- tais da região paleártica e da África Ociden-
venção de Berna. Segundo o Atlas das Aves do tal como constituintes da mesma subespécie
Arquipélago da Madeira, existem entre 2500 e (Buteo buteo buteo). Independentemente das
10.000 indivíduos. dúvidas taxonómicas quanto ao estatuto da
Andorinhão ou andorinha-do-mar (Apus pal- manta, esta é a maior das aves de rapina que ni-
lidus brehmorum Hartert, 1901) – Trata-se de dificam no arquipélago da Madeira, tendo um
uma ave da família Apodidae, ordem Apodi- comprimento total que poderá superar os 50
formes, que ocorre nas ilhas da Madeira e do cm e uma envergadura que poderá chegar aos
Porto Santo e também em algumas ilhas das 130 cm. É frequente observá-la voando, com
Canárias, podendo ser igualmente observada batimentos de asa lentos, ou planando em cír-
nas costas da Europa Meridional (entre a pe- culos, aproveitando as correntes matinais de ar
nínsula Ibérica e a Turquia) e no Norte de Áfri- ascendente (pode também efetuar voos curtos
ca. Com um comprimento total que varia entre e picados). Ocorre em vários habitats: falésias
os 16 e os 18 cm, distingue-se do andorinhão- costeiras e interiores, zonas com pouca vege-
-da-serra (Apus unicolor) por ser um pouco tação rasteira, áreas florestais indígenas e exó-
maior do que ele, pela mancha clara na gar- ticas, áreas agrícolas e suburbanas. A parte su-
ganta e pela sua coloração menos homogénea. perior do corpo é geralmente castanho-escura;
No inverno, parece migrar para regiões situa- o peito é uniformemente castanho-escuro, lis-
das a sul do Saara. Embora haja algum desco- tado ou manchado de creme-amarelado. Em
nhecimento quanto à sua distribuição e abun- voo, as asas mostram cinco rémiges primárias
dância, sabe-se que esta ave ocorre em vários soltas (que parecem dedos) e manchas cla-
habitats, desde falésias e ilhéus (onde nidifica) ras e orlas escuras na parte inferior. A cauda
a zonas de interior, entre as quais as regiões de é relativamente curta e a cabeça de pequena
montanha, áreas rurais ou áreas suburbanas. É dimensão. Esta ave alimenta-se de roedores,
menos abundante do que a Apus unicolor. coelhos, algumas aves (como a perdiz), lagar-
A exemplo do que acontece noutras ilhas tixas e insetos. Nidifica a média ou elevada al-
oceânicas, as aves de rapina estão representa- titude, em precipícios e em árvores de grande
das por um baixo número de espécies, quan- porte. A construção do ninho começa em feve-
do comparado com o existente em áreas con- reiro ou março. Os pintos deixam o ninho nos
tinentais com características semelhantes. No meses de julho e agosto. Segundo o Atlas das
arquipélago da Madeira e no arquipélago das Aves do Arquipélago da Madeira, a população é
Selvagens, nidificam a manta, o francelho, o superior a 2500 indivíduos, essencialmente lo-
fura-bardos e a coruja-das-torres. calizados na ilha da Madeira. No entanto, em
Manta – Alguns madeirenses conhecem-na 2006 a Sociedade Portuguesa para o Estudo
como milhafre. Trata-se de uma ave da famí- das Aves tinha uma estimativa distinta (cerca
lia Accipitridae, ordem Accipitriformes. Du- de 300 aves nas ilhas da Madeira e do Porto
rante muito tempo, foi considerada como a Santo). As ameaças que pairam sobre a manta
subespécie Buteo buteo harterti Swan, 1919; no são o envenenamento secundário por pestici-
entanto, é considerada por alguns cientistas das, a captura e o abate ilegais. No passado, era
como Buteo buteo buteo (Linnaeus, 1758). Se perseguida e caçada, pelo facto de predar gali-
considerarmos esta ave de rapina como Buteo nhas (e outras aves domésticas) e coelhos.
buteo harterti, podemos afirmar que a subespé- Parte da sua área de ocorrência está incluída
cie ocorre nas ilhas da Madeira, do Porto Santo em zonas da Rede Natura 2000 e em algumas
e Desertas, sendo endémica do arquipélago da regiões com estatuto de reserva integral e par-
Madeira. No entanto, se considerarmos a ave cial do PNM. A ave consta do anexo i da di-
como Buteo buteo buteo, então a população do retiva “Aves” e do anexo iii da Convenção de
150 ¬ A vifauna

Berna. A manta desapareceu das Desertas em


1996, provavelmente vítima de envenenamen-
to secundário, por predação de coelhos enve-
nenados. De facto, nessa altura decorria o pro-
jeto Recuperação dos Habitats Terrestres da
Deserta Grande, que envolvia a erradicação de
coelhos através do envenenamento. No entan-
to, posteriormente foram feitos alguns avista-
mentos da manta nas Desertas.
Francelho (Falco tinnunculus canariensis (Koe-
nig, 1980)) – Na Madeira, há pessoas que os
chamam de milhafres. Ave da família Falconi-
Fig. 16 – Francelho (fotografia de
dae, ordem Falconiformes, é uma subespécie Virgílio Gomes, 2008).
endémica da Macaronésia que ocorre sobretu-
do nas ilhas da Madeira, do Porto Santo e Ca- principais (a qual, por sua vez, depende do ha-
nárias. Na Madeira e no Porto Santo, podemos bitat). Come essencialmente roedores, lagarti-
observar francelhos desde o nível do mar até às xas, insetos e pequenas aves. Põe quatro a seis
altas montanhas, em diversos habitats (como ovos em buracos ou fendas de escarpas rocho-
falésias, espaços urbanos e suburbanos, zonas sas. A estimativa do efetivo varia entre 2500 e
florestais, superfícies com pouca vegetação 10.000 indivíduos, de acordo com o Atlas das
ou com vegetação rasteira, e áreas agrícolas). Aves do Arquipélago da Madeira. As principais
É a ave de rapina nidificante mais abundante ameaças à sobrevivência do francelho são o
e a mais pequena do arquipélago da Madeira, envenenamento secundário por pesticidas e
facilmente identificável em voo pelas suas lon- a perseguição humana (e.g., por meio da cap-
gas asas, pontiagudas e arqueadas em forma tura ilegal). Parte da região da ocorrência da
de foice, e pela sua longa cauda, assim como espécie está incluída em zonas que integram
pelo seu típico “peneirar”, ou seja, pelo bater a Rede Natura 2000 e em algumas áreas com
de asas em voo sem deslocamento (o chama- estatuto de reserva integral e parcial do PNM.
do “parado no ar”). No geral, possui dorso e A ave consta do anexo i da diretiva “Aves” e do
região ventral malhados; porém, as fêmeas, anexo iii da Convenção de Berna. No passado,
de maior porte, são castanhas na parte supe- a caça a estas aves era uma realidade habitual:
rior e têm listas escuras na cabeça, possuindo o povo temia-as, pois predavam os pintos de ga-
cauda listada e dorso mais malhado do que o linha que andavam à solta.
do macho; o macho tem cabeça e cauda cin- Fura-bardos (Accipiter nisus granti Sharpe,
zentas, uma barra preta subterminal na cauda, 1890) – Ave da família Accipitridae, ordem
parte inferior de tonalidade acastanhada e Accipitriformes. No arquipélago da Madeira,
clara e asas escuras nas extremidades. O com- ocorre apenas na ilha da Madeira, com uma
primento total dos indivíduos da espécie varia distribuição dispersa. Esta subespécie maca-
entre 31 e 37 cm e a envergadura entre 68 e ronésica também ocorre nas Canárias. A es-
78 cm. O francelho é mais pequeno e mais pécie a que pertence, Accipiter nisus, é conhe-
escuro do que os seus congéneres europeus. cida como gavião no continente português e
Devido ao projeto Recuperação dos Habita- tem vasta distribuição europeia. Por ter há-
ts Terrestres da Deserta Grande, e a exemplo bitos discretos, é difícil de observar. Esta ave
do que aconteceu com a manta, o francelho habita áreas florestais densas (exóticas ou in-
desapareceu da Deserta Grande em 1996, mas dígenas), mas também pode ser observada
voltou a ser posteriormente detetado na Deser- em campos agrícolas. Nidifica nas árvores.
ta Grande e no Bugio. A sua dieta é variada e Apresenta um porte intermédio entre o do
condicionada pela disponibilidade das presas francelho e o da manta e asas arredondadas e
A vifauna ¬ 151

Porto Santo e Desertas. É a única ave de ra-


pina noturna que nidifica no arquipélago da
Madeira, sendo facilmente identificada pela
sua silhueta durante o voo, pelo disco facial
conspícuo e pelo chamamento agudo e estri-
dente. Mede entre 33 e 39 cm de comprimen-
to e tem entre 80 e 95 cm de envergadura.
Apresenta um corpo relativamente delgado,
asas para o longo e patas compridas. Embora
seja mais escura do que as outras formas da
espécie, apresenta uma significativa variação
na sua coloração, sendo mais invulgar ter apa-
Fig. 17 – Fura-bardos ou gavião (fotografia do Parque Natural
da Madeira/Diário de Notícias). rência clara. A face é pálida, em forma de co-
ração, e os olhos são rodeados de penas escu-
relativamente curtas. A fêmea é maior e mais ras. Ocorre em vários tipos de habitat, desde
acinzentada do que o macho, tendo o peito zonas urbanas a áreas de floresta com clarei-
e abdómen listados; o macho apresenta tons ras, desde o litoral aos vales profundos do in-
rosa no peito e no abdómen, cor cinza-azu- terior. Nidifica essencialmente entre abril e
lada no dorso e barras finas e avermelhadas junho, em falésias costeiras e interiores. A co-
na parte inferior do corpo; ambos os sexos ruja alimenta-se essencialmente de roedores,
têm corpo estreito, pernas longas e cauda insetos e, eventualmente, de algumas peque-
comprida. É a ave de rapina menos conhe- nas aves. De acordo com o Atlas das Aves do
cida do arquipélago madeirense, pelo que Arquipélago da Madeira, o seu efetivo situa-se
qualquer apreciação a seu respeito deve ser entre os 2500 e os 10.000 indivíduos. Embo-
considerada com o devido cuidado. O Eluci- ra esta subespécie não conheça sérias amea-
dário Madeirense refere que é “indígena mas ças à sua sobrevivência, a poluição do am-
pouco frequente, não tendo sido menciona- biente por pesticidas, a perseguição e o abate
da na lista de Harcourt” (SILVA e MENESES, ilegal, bem como as crenças e as superstições
1978, II, 158). Contudo, segundo o Atlas das em torno dela (são consideradas por muitos
Aves do Arquipélago da Madeira, existem entre como aves de mau agoiro – segundo a crença,
1000 e 2500 fura-bardos. As principais amea- sempre que uma delas passa por cima de uma
ças à sobrevivência da subespécie são a caça casa, algo de mau irá acontecer, e.g., o faleci-
(o abate ilegal) e a destruição do habitat por mento de uma pessoa), constituem sem dú-
incêndios e corte de árvores. Parte da área vida potenciais riscos para ela. No passado, o
de ocorrência da subespécie está incluída maior perigo era a perseguição pelas pessoas
em sítios da Rede Natura 2000 e em algu- que consideravam as corujas animais de mau
mas zonas com estatuto de reserva integral agoiro (a passagem de uma destas aves sobre
e parcial do PNM. A ave consta do anexo i uma casa indicava que alguém iria falecer em
da diretiva “Aves” e do anexo iii da Conven- breve). Esta ave consta do anexo ii da Con-
ção de Berna. O projeto LIFE Fura-Bardos, venção de Berna e ocorre em muitas áreas do
compreendendo os anos de 2013 a 2017, tem PNM e da Rede Natura 2000. Devido ao proje-
como fito a conservação da espécie e dos ha- to Recuperação dos Habitats Terrestres da De-
bitats em que ocorre. serta Grande, a coruja desapareceu da Deser-
Coruja ou coruja-das-torres (Tyto alba schmit- ta Grande em 1996 (tal como aconteceu com
zi (Hartert, 1900)) – Trata-se de uma ave da a Manta e o francelho). Posteriormente, vol-
família Tytonidae, ordem Strigiformes. É uma tou, porém, a ser detetada.
subespécie endémica do arquipélago da Ma- Gaivota ou gaivota-de-patas-amarelas (Larus mi-
deira, ocorrendo nas ilhas da Madeira, do chahellis michahellis Naumann, 1840) – “Gaio”
152 ¬ A vifauna

casais é superior a 3900; nas Selvagens, não


ultrapassa os 30. As populações desta gaivota
têm crescido devido à sua associação com o
Homem. Excetuando nas Selvagens, não está
ameaçada.
Garajau ou garajau-rosado ou gaivina-rosada
(Sterna dougallii dougallii Montagu, 1813) – Tra-
ta-se de uma ave da família Sternidae, ordem
Charadriiformes. Ocorre nas ilhas da Madeira,
do Porto Santo, Selvagens, no arquipélago dos
Açores, na Europa, na América do Norte, nas
Índias Ocidentais e em África. O seu habitat
Fig. 18 – Gaivotas ou gaivotas-de-patas-amarelas (fotografia de preferido são as falésias localizadas a baixa al-
Virgílio Gomes, 2008). titude e os ilhéus situados em zonas remotas.
Esta ave possui o peito ligeiramente rosado na
ou “gaivoto” são os nomes atribuídos aos in- primavera, bico de ponta preta; quando pou-
divíduos juvenis, que se distinguem dos adul- sada, as penas da cauda ultrapassam as asas
tos pela plumagem escura. Trata-se de uma estendidas para trás. Nidifica essencialmente
ave da família Laridae, ordem Charadriifor- na Ponta de São Lourenço, nas Selvagens, nos
mes. A atribuição de nome científico a estas ilhéus rochosos ou arenosos dos arquipélagos
gaivotas tem sido polémica, e a sua classifi- da Madeira e das Selvagens, e longe da pertur-
cação tem variado ao longo do tempo. De bação humana. Provavelmente, as principais
todo o modo, vamos considerar que as gaivo- ameaças à sua sobrevivência são a destruição
tas do arquipélago da Madeira e do arquipé- do seu habitat e os predadores introduzidos.
lago das Selvagens pertencem à subespécie Quanto ao estatuto de conservação, a popula-
Larus michahellis michahellis. Esta ave ocorre ção regional desta subespécie é “vulnerável”;
nas várias ilhas dos dois arquipélagos, em apesar desta classificação, não há qualquer
todo o tipo de terreno próximo do mar, em programa de conservação dirigido à espécie.
locais desabitados, falésias costeiras, zonas A sua proteção é conferida pelo facto de algu-
de lixeiras e de despejos de resíduos orgâ- mas zonas em que ocorre constarem de áreas
nicos e perto de áreas de descarregamento da Rede Natura 2000 e do PNM. A ave encon-
de peixe (lotas). As áreas preferenciais de ni- tra-se no anexo i da diretiva “Aves” e anexo ii
dificação são o ilhéu dos Desembarcadouros da Convenção de Berna.
e o ilhéu de Fora. A postura, até três ovos, Garajau ou gaivina (Sterna hirundo hirundo Lin-
dá-se nos meses de abril e maio. Esta gaivo- naeus, 1758) – Trata-se de uma ave da família
ta caracteriza-se por ser branca. O dorso e a Sternidae, ordem Charadriiformes. Ocorre em
parte superior da asa são cinzentos (com um todas as ilhas do arquipélago da Madeira e do
pouco de cor branca na extremidade da asa). arquipélago das Selvagens, com maior incidên-
As patas são amarelas. O anel orbital é ver- cia nas zonas costeiras, a baixa altitude, e em
melho e há uma mancha vermelha no bico. pequenos ilhéus, onde nidifica. Na Selvagem
Esta ave alimenta-se de grande variedade de Pequena e no ilhéu de Fora nidifica em praias
presas, como peixes (muitos obtidos nos des- de areia. Nestes arquipélagos, ocorre essencial-
perdícios da pesca, pelo que é considerada mente entre os meses de março e setembro, em
oportunista em termos de dieta), microma- colónias de dimensão reduzida. Com um com-
míferos, aves marinhas, passeriformes, e de primento total entre os 34 e os 37 cm e uma
lixo orgânico, etc. Segundo o Atlas das Aves envergadura entre os 70 e os 80 cm, o bico é
do Arquipélago da Madeira, nas ilhas da Madei- vermelho e robusto e o peito é branco. Distin-
ra, do Porto Santo e Desertas o número de gue-se do garajau-rosado, entre outros aspetos,
A vifauna ¬ 153

total, facilmente identificável pela plumagem


em tons de castanho, azulado e preto, fronte
vermelha – tal como o bico, de ponta amarela
– e patas claras e esverdeadas. A parte inferior
da cauda é branca. Os dedos são bastante com-
pridos. É omnívora, tendo uma dieta à base de
plantas aquáticas e suplementada com peque-
nos animais e ovos de outras aves. Existem pou-
cos indivíduos na Madeira e no Porto Santo,
provavelmente menos de 50. Essencialmente
pelo reduzido efetivo, mas também pelo baixo
número de potenciais locais de nidificação no
Fig. 19 – Garajaus ou gaivinas (fotografia de Virgílio arquipélago da Madeira, a espécie apresenta o
Gomes, 2008). estatuto “em perigo”, de acordo com o Livro
Vermelho dos Vertebrados de Portugal na sua edi-
pelo facto de, quando pousada, a sua cauda ção de 2005.
não ultrapassar a ponta das asas compridas e Galeirão-comum (Fulica atra Linnaeus, 1758) –
estreitas. Esta ave de patas curtas alimenta-se É uma ave da família Rallidae, ordem Gruifor-
essencialmente de pequenos peixes, crustá- mes. A espécie distribui-se pelas regiões pa-
ceos e insetos. Segundo o Atlas das Aves do Ar- leártica, indo-malaia e australo-asiática. No
quipélago da Madeira, existirão entre 250 e 2500 arquipélago da Madeira, nidifica, pelo menos,
aves. As principais ameaças à sua sobrevivência na lagoa do Lugar de Baixo, na Foz da Ribei-
são a ocupação, a alteração e a destruição do ra do Faial e no Porto Santo. É uma ave de 36
litoral. Segundo o Livro Vermelho dos Vertebrados a 42 cm de comprimento total e é facilmente
de Portugal, de 2005, tem o estatuto de conser- identificável pelo bico e placa da fronte bran-
vação “vulnerável”. Esta ave ocorre e nidifica cos e pelo corpo largo de cor cinzenta fuligino-
em áreas do PNM e em áreas da Rede Natura sa (parece preta). A cauda é curta e pequena
2000. Encontra-se no anexo i da diretiva “Aves” e a cabeça arredondada e preta. No arquipéla-
e no anexo ii da Convenção de Berna. go da Madeira, o habitat disponível escasseia
Galinha-de-água (Gallinula chloropus (Lin- e é geralmente intervencionado pelo homem,
naeus, 1758)) – Trata-se provavelmente da su- pelo que o efetivo populacional deverá ser
bespécie Gallinula chloropus chloropus. É uma muito reduzido.
ave da família Rallidae, ordem Gruiformes. Há ainda a referir a nidificação frequente
Esta espécie ocorre na Europa, na Ásia, na Áfri- da rolinha-da-praia ou borrelho-de-coleira-in-
ca e na América. Na Macaronésia, podemos terrompida (Charadrius alexandrinus Linnaeus,
observá-la nos Açores, na Madeira, nas Caná- 1758) no Porto Santo, onde a espécie tem o
rias e em Cabo Verde. No arquipélago da Ma-
deira, a ave nidifica nas ilhas da Madeira e do
Porto Santo. O habitat desta ave inclui char-
cos e lagoas com vegetação densa nas margens,
e ela pode ser ocasionalmente vista na foz de
algumas ribeiras. Podemos observá-la na lagoa
do Lugar de Baixo (ilha da Madeira), na lagoa
do Dragoal e na lagoa da Serra de Dentro (ilha
do Porto Santo). Também poderá ser obser-
vada noutras massas de água com caracterís-
ticas semelhantes às anteriores. Ave de médio
porte, com cerca de 37 cm de comprimento Fig. 20 – Galeirão-comum (fotografia de José Jesus, 2014).
154 ¬ A vifauna

estatuto “em perigo”. As construções sobre Para prevenir possíveis impactos graves, seria
dunas e a circulação de veículos sobre elas necessário o controlo destas aves e, eventual-
constituem as principais ameaças. mente, a sua erradicação.
Outra ave nidificante do arquipélago da Ma- Outras aves nidificantes, presumivelmente
deira, não referida acima, considerada na lis- introduzidas pelo Homem, são o bico-de-lacre
tagem de Romano e colegas de 2010 (mas não (Estrilda astrild Linnaeus, 1758), o pato-mudo
considerada noutras fontes, como o Atlas das (Cairina moschata Linnaeus, 1758) e o periqui-
Aves do Arquipélago da Madeira), é o pato-real to-de-colar (Psittacula krameri (Scopoli, 1769)).
(Anas platyrhynchus Linnaeus, 1758). Há ainda outras espécies, possivelmente intro-
Há algumas espécies nidificantes ocasionais, duzidas, cuja nidificação na ilha da Madeira
como é o caso do garajau-escuro (Onychoprion não está confirmada, como a caturra (Nymphi-
fuscatus (Linnaeus, 1766)) e do pato manda- cus hollandicus (Kerr, 1792)) e o papagaio-do-se-
rim (Aix galericulata Linnaeus, 1758). negal (Poicephalus senegalus (Linnaeus, 1766)).
Rola-turca (Streptopelia decaocto (Frivaldszky, Muitas espécies de aves foram introduzidas
1838)) – Trata-se de uma ave da família Colum- para a caça, mas algumas foram depois dadas
bidae, ordem Columbiformes. Provavelmen- como extintas, como é o caso da galinha-d’An-
te introduzida no arquipélago da Madeira, a gola (Numida meleagris (Linnaeus, 1758)), da
espécie é originária do subcontinente india- perdiz-moura (Alectoris barbara (Bonnaterre,
no. Ocorre nas regiões paleárticas ocidental e 1792)), do faisão (Phasianus colchicus Linnaeus,
oriental. O primeiro registo de nidificação na 1758) e do pavão (Pavo cristatus Linnaeus, 1758).
ilha da Madeira (na Ponta de São Lourenço) Outras espécies, de que existem referências,
data de 2009. É uma ave de média dimensão, de encontram-se extintas no meio selvagem do ar-
31 a 34 cm de comprimento total, e elegante. quipélago da Madeira. Têm sido encontradas e
A cauda é longa. A plumagem é pálida; no en- descritas espécies fósseis, especialmente encon-
tanto, existe uma barra preta estreita, delinea- tradas nas dunas da Piedade e no Porto Santo,
da a branco, nos lados do pescoço. Alimenta-se tais como o mocho Otus mauli Rando et al., 2012,
essencialmente de matéria vegetal, como grãos. o ralídeo, Rallus lowei Alcover et al., 2015, uma es-
Foram já registados casos de nidificação de pécie robusta que possuía asas pequenas e não
outra espécie do género, a rola-comum (Strep- voava, ambas encontradas na ilha da Madeira, e o
topelia turtur), possivelmente também introdu- Rallus adolfocaesaris Alcover et al., 2015, uma espé-
zida pelo Homem. Não se conhecem os efei- cie menos robusta do que a anterior e encontra-
tos da introdução destas duas espécies de rolas. da na ilha do Porto Santo. Muitas outras espécies

Fig. 21 – Pato-mudo Fig. 22 – Frango-de-água comum, também galinha-de-água ou


(fotografia de José Jesus, 2011). galinhola (fotografia de Virgílio Gomes, 2018).
A vifauna ¬ 155

fósseis das dunas da Piedade e do Porto Santo Nome científico Nome vulgar
poderão estar por descobrir ou descrever. PROCELLARIDAE
A organização BirdLife International tem Fulmarus glacialis Fulmar-glacial
Pterodroma mollis Freira* **
um programa cujo objetivo é identificar, pro- Calonectris diomedea diomedea Cagarra
teger e gerir uma rede de áreas relevantes para Calonectris edwardsii Cagarra
a viabilidade, a longo prazo, de populações na- Puffinus gravis Pardela-de-barrete
turais de aves, mediante critérios estabelecidos Puffinus griseus Pardela-preta
Puffinius mauretanicus Pardela-do-mediterrâneo
internacionalmente. Estas áreas recebem a de- HYDROBATIDAE
signação de Important Bird and Biodiversity Oceanites oceanicus Casquilho ou painho-de-wilson
Areas [Áreas Importantes para as Aves e Biodi- Hydrobates pelagicus Painho-de-cauda-quadrada**
versidade] (IBAs). As IBAs do arquipélago da Hydrobates leucorhoa Painho-de-cauda-forcada
Hydrobates monorhis Painho-de-swinhoe**
Madeira e as principais espécies em cada uma PHAETHONTIDAE
delas encontram-se a seguir referidas: Phaethon aethereus Rabijunco
Laurissilva (código: PT083, área: 15.242 ha): FREGATIDAE
alma-negra, cagarra, fura-bardos, pombo-tro- Fregata magnificens Fragata-comum*
SULIDAE
caz, andorinhão-da-serra e canário-da-terra.
Morus bassanus Ganso-patola
Maciço montanhoso oriental (código: Sula leucogaster Alcatraz
PT084, área: 3411 ha): freira-da-madeira, fura- Phalacrocorax carbo Corvo-marinho
-bardos, pombo-trocaz, andorinhão-da-serra e Phalacrocorax aristotelis Galheta
corre-caminhos. ARDEIDAE
Bataurus stellaris Abetouro
Ilhas Desertas (código: PT085, área: 1384 ha): Nycticorax nycticorax Goraz
freira-do-bugio, alma-negra, cagarra, pintainho, Bubulcus ibis Carraceiro
roquinho, andorinhão-da-serra, corre-cami- Egretta garzetta Garça-branca
nhos e canário-da-terra. Egretta gularis Garça-dos-recifes
Ixobrychus minutus Garçote
Ilhas Selvagens (código: PT086, área: 265 ha): Ardeola ralloides Papa-ratos
alma-negra, cagarra, pintainho, calcamar, ro- Ardea alba Garça-branca-grande
quinho, corre-caminhos. Ardea cinerea Garça-real
Ponta de São Lourenço (código: PT087, área: Ardea purpurea Garça-vermelha
Butorides virescens Garça-verde
321 ha): alma-negra, pintainho, roquinho, gai- CICONIIDAE
vina-rosada, gaivina, andorinhão-da-serra, caná- Ciconia nigra Cegonha-preta
rio-da-terra e corre-caminhos. Ciconia ciconia Cegonha-branca
Ponta do Pargo (código: PT088, área: 1161 Plegadis falcinellus Ibis-preto
Platalea leucorodia Colhereiro
ha): roquinho, fura-bardos, andorinhão-da-ser-
ANATIDAE
ra, corre-caminhos e canário-da-terra. Mergus merganser Merganso-grande*
Ilhéus do Porto Santo (código: PT089, área: Mergus serrator Merganso-de-poupa
204 ha): pintainho, andorinhão-da-serra, corre- Anser fabalis Ganso-campestre
Anser brachyrhynchus Ganso-de-bico-curto
-caminhos, canário-da-terra.
Anser albifrons Ganso-de-testa-branca
Porto Santo-Oeste (código: PT090, área: 929 Anser anser Ganso-bravo
ha): roquinho, gaivina, gaivina-rosada, andori- Tadorna ferruginea Pato-ferrugíneo
nhão-da-serra, corre-caminhos, canário-da-terra. Tadorna tadorna Tadorna
Branta bernicla Ganso-de-faces-negras
Anas americana Piadeira-americana
Nome científico Nome vulgar Anas carolinensis Marrequinha-americana
GAVIIDAE Anas penelope Piadeira Anas crecca
Gavia immer Mobelha-grande Anas platyrhynchus Pato-real
Gavia arctica Mobelha-ártica* Anas acuta Arrábio
POPICIPEDIDAE Anas clypeata Pato-colhereiro
Tachybaptus ruficollis Mergulhão-pequeno Anas discors Pato-d’asa-azul
Podiceps nigricollis Cagarraz Anas querquedula Marreco
Podiceps auritus Mergulhão-de-pescoço-castanho Anas strepera Frisada
156 ¬ A vifauna

Nome científico Nome vulgar Nome científico Nome vulgar


Aix sponsa Pato-carolino HAEMATOPODIDAE
Marmaronetta angustirostris Pardilheira Haematopus ostralegus Ostraceiro
Aythya ferina Zarro Haematopus moquini Ostraceiro-preto
Aythya collaris Caturro RECURVIROSTRIDAE
Aythia fuligula Negrinha Himantopus himantopus Pernilongo
Aythya marila Negrelho Recurvirostra avosetta Alfaiate
Clangula hyemalis Pato-rabilongo BURHINIDAE
Melanitta nigra Negrola
Burhinus oedicnemus Alcaravão
Melanitta perspicillata Negrola-de-lunetas
GLAREOLIDAE
Bucephala clangula Olho-dourado
Cursorius cursor Corredeira
Cygnus olor Cisne-branco
Glareola pratincola Perdiz-do-mar
ACCIPITRIDAE
CHARADRIIDAE
Pernis apivorus Bútio-vespeiro
Charadrius dubius curonicus Borrelho-pequeno-de-coleira**
Milvus migrans Milhafre-preto
Charadrius hiaticula Borrelho-grande-de-coleira
Milvus milvus Milhafre-real
Charadrius vociferus Borrelho-de-coleira-dupla
Neophron percnopterus Britango
Charadrius morinellus Borrelho-ruivo
Circus cyaneus Tartaranhão-azulado
Charadrius semipalmatus Borrelho-semipalmado
Circus pygargus Águia-caçadeira
Pluvialis apricaria Tarambola-dourada
Circus aeruginosus Águia-sapeira
Pluvialis dominica Tarambola-dourada-pequena
Hieraaetus pennatus Águia-calçada
Pluvialis fulva Tarambola-dourada-siberiana
Aquila fasciatus Águia-de-bonelli*
Pluvialis squatarola Tarambola-cinzenta
Buteo rufinus Bútio-mourisco
Vanellus vanellus Abibe
Buteo lagopus Bútio-patudo
SCOLOPACIDAE
PANDIONIDAE
Calidris acuminata Pilrito-acuminado
Pandion haliaetus Águia-pesqueira
Calidris canutus Seixoeira
FALCONIDAE Calidris alba Pilrito-das-praias
Falco naumanni Francelho Calidris pusilla Pilrito-rasteirinho
Falco tinnunculus tinnunculus Peneireiro Calidris mauri Pilrito-miúdo
Falco columbarius Esmerilhão Calidris minuta Pilrito-pequeno
Falco subbuteo Ógea Calidris fuscicollis Pilrito-de-sobre-branco
Falco eleonorae Falcão-da-rainha
Calidris melanotos Pilrito-de-colete
Falco peregrinus Falcão-peregrino
Calidris ferruginea Pilrito-de-bico-comprido
Falco pelegrinoides Falcão-tagarote
Calidris maritima Pilrito-escuro
Falco rusticolus Falcão-gerifalte*
Calidris alpina alpina Pilrito-comum
Falco vespertinus Falcão-de-pés-vermelhos
Calidris alpina schinzii Pilrito-do-báltico
PHASIANIDAE Calidris temminckii Pilrito-de-temminck
Coturnix coturnix coturnix Codorniz Philomachus pugnax Combatente
RALLIDAE Lymnocryptes minimus Narceja-galega
Rallus aquaticus Frango-d’água-europeu Galinago delicata Narceja-de-wilson
Porzana carolina Franga-d´água-americana Gallinago gallinago Narceja
Porzana porzana Franga-d’água-malhada Gallinago media Narceja-real
Porzana parva Franga-d’água-bastarda Limnodromus sp. Maçarico-de-bico-curto*
Porzana pusilla Franga-d’água-pequena Limosa limosa Milherango
Porzana carolina Franga-d’água-americana Limosa lapponica Fuselo
Gallinula angulata Galinha-d’água-pequena Numenius phaeopus phaeopus Maçarico-galego
Fulica americana Galeirão-americano Numenius arquata Maçarico-real
Limnocorax flavirostra Franga-d’água-preta Numenius hudsonicus Maçarico-de-bico-torto
Crex crex Codornizão Bartramia longicauda Maçarico-do-campo
Porphyrula alleni Caimão-pequeno Tryngites subruficollis Pilrito-canela
Tringa erythropus Perna-vermelha-bastardo
Porphyrula martinica Caimão-americano
Tringa totanus Perna-vermelha
Porphyrio alleni Caimão-de-allen
Tringa stagnatilis Perna-verde-fino
Porphyrio porphyrio Caimão
Tringa solitaria Maçarico-solitário
GRUIDAE Tringa nebularia Perna-verde
Grus grus Grou Tringa flavipes Perna-amarela-pequeno
OTIDIDAE Tringa ochropus Maçarico-bique-bique
Tetrax tetrax Sisão Tringa glareola Maçarico-de-dorso-malhado
A vifauna ¬ 157

Nome científico Nome vulgar Nome científico Nome vulgar


Actitis hypoleucos Maçarico-das-rochas CAPRIMULGIDAE
Actitis macularius Maçarico-pintado Caprimulgus europaeus Noitibó-cinzento
Arenaria interpres Rola-do-mar Caprimulgus ruficollis Noitibó-de-nuca-vermelha
Phalaropus tricolor Pisa-n’água APODIDAE
Phalaropus lobatus Falaropo-de-bico-fino Apus apus Andorinhão-preto
Phalaropus fulicarius Falaropo-de-bico-grosso Apus affinis Andorinhão-real
STERCORARIIDAE Trachymarptis melba Andorinhão-pequeno
Stercorarius maccormicki Moleiro-do-sul ALCEDINIDAE
Stercorarius pomarinus Moleiro-do-ártico
Alcedo athis Guarda-rios
Stercorarius parasiticus Moleiro-pequeno
MEROPIDAE
Stercorarius longicaudus Moleiro-rabilongo
Merops apiaster Abelharuco
Stercorarius skua Alcaide
Merops persicus Abelharuco-de-garganta-vermelha
LARIDAE
CORACIIDAE
Ichthyaetus audouinii Gaivota-de-audouin
Coracias garrulus Rolieiro
Ichthyaetus ichthyaetus Gaivotão-de-cabeça-preta
Ichthyaetus melanocephalus Gaivota-de-cabeça-preta PICIDAE
Leucophaeus atricilla Guincho-americano Jynx torquilla Torcicolo
Leucophaeus pipixcan Gaivota-de-franklin ALAUDIDAE
Hydrocoloeus minutus Gaivota-pequena Melanocorypha calandra Calhandra-real
Xema sabini Gaivota-de-sabine Calandrella brachydactyla Calhandrinha
Chroicocephalus ridibundus Guincho-comum Calandrella rufescens Calhandrinha-das-marismas
Chroicocephalus philadelphia Gaivota-de-bonaparte Alauda arvensis Laverca
Larus delawarensis Gaivota-de-bico-riscado Lullula arborea Cotovia-pequena
Larus canus Famego HIRUNDINIDAE
Larus fuscus Gaivota-de-asa-escura Riparia riparia Andorinha-das-barreiras
Larus argentatus Gaivota-prateada Ptyonoprogne rupestris Andorinha-das-rochas
Larus glaucoides Gaivota-branca Hirundo rustica Andorinha-das-chaminés
Larus hyperboreus Gaivotão-branco Cecropis daurica Andorinha-dáurica
Larus marinus Gaivotão-real Delichon urbicon Andorinha-dos-beirais
Larus smithsonianus Gaivota-prateada-americana Petrochelidon pyrrhonota Andorinha-de-dorso-acanelado
Rissa tridactyla Gaivota-tridáctila MOTACILLIDAE
STERNIDAE Anthus campestris Petinha-dos-campos
Gelochelidon nilotica Gaivina-de-bico-preto Anthus trivialis Petinha-das-árvores
Hydroprogne caspia Garajau-grande Anthus pratensis Petinha-dos-prados
Thalasseus sandvicensis Garajau Anthus cervinus Petinha-de-garganta-ruiva
Sterna paradisaea Gaivina-do-ártico Motacilla flava flava Alvéola-amarela
Sterna albifrons Chilreta Motacilla flava iberiae Alvéola-amarela
Chlidonias hybrida Gaivina-dos-pauis Motacilla alba alba Alvéola-branca
Chlidonias niger Gaivina-preta Motacilla yarrelli Alvéola-de-yarrell
Chlidonias leucopterus Gaivina-de-asa-branca Motacilla thunbergi Alvéola-de-cabeça-escura
Onychoprion fuscatus Andorinha-do-mar-escura ** Motacilla cinereocapilla Alvéola-de-cabeça-cinzenta
ALCIDAE TROGLODYTIDAE
Alle alle Torda-miúda Troglodytes troglodytes Carriça
Fratercula arctica Papagaio-do-mar TURDIDAE
COLUMBIDAE Hylocichla mustelina Tordo-dos-bosques
Columba oenas Pombo-bravo Turdus atrogularis Tordo-preto
Columba palumbus palumbus Pombo-torcaz Turdus torquatus alpestris Melro-de-colar
Streptopelia turtur turtur Rola-brava** Turdus ruficollis Tordo-de-garganta-ruiva
Spilopelia senegalensis Rola-do-senegal Turdus pilaris Tordo-zornal
CUCULIDAE Turdus philomelos Tordo-pinto
Clamator glandarius Cuco-rabilongo Turdus iliacus Tordo-ruivo
Cuculus canorus Cuco Turdus viscivorus Tordoveia
TYTONIDAE/STRIGIDAE SYLVIDAE
Otus scops Mocho-de-orelhas Sylvia cantillans Toutinegra-de-bigodes
Asio flammeus Coruja-do-nabal Sylvia melanocephala Toutinegra-dos-valados
Asio otus Bufo-pequeno Sylvia hortensis Toutinegra-real
Strix aluco Coruja-do-mato Sylvia curruca Papa-amoras-cinzento
158 ¬ A vifauna

Nome científico Nome vulgar Nome científico Nome vulgar


Sylvia communis Papa-amoras Sturnus roseus Estorninho-rosado
Sylvia borin Toutinegra-das-figueiras Acridotheres tristis Mainato
PHYLLOSCOPIDAE Lamprotornis chalybaeus Estorninho-grande-d’orelha-azul
Phylloscopus inornatus Felosa-listada
PASSERIDAE
Phylloscopus plumbeitarsus Felosa-verde-listada
Phylloscopus bonelli Felosa-de-papo-branco Passer domesticus Pardal
Phylloscopus sibilatrix Felosa-assobiadeira PLOCEIIDAE
Phylloscopus collybita Felosa-comum Euplectes afer Bispo-de-coroa-amarela
Phylloscopus trochilus Felosa-musical Euplectes hordeaceus Bispo-de-coroa-vermelha*
Phylloscopus ibericus PRUNELLIDAE
ACROCEPHALIDAE
Prunella modularis Ferreirinha-comum
Acrocephalus schoenobaenus Felosa-dos-juncos
FRINGILLIDAE
Acrocephalus palustris Felosa-palustre
Acrocephalus scirpaceus Rouxinol-dos-caniços Fringilla montifringilla Tentilhão-montês
Acrocephalus arundinaceus Rouxinol-grande-dos-caniços Serinus serinus Milheirinha
Hippolais pallida Felosa-pálida Loxia curvirrostra Cruza-bico
Hippolais icterina Felosa-amarela
Loxia pytyopsittacus Cruza-bico-papagaio
Hippolais polyglotta Felosa-poliglota
Iduna opaca Felosa-pálida Coccothraustes coccothraustes Bico-grossudo
Iduna pallida Felosa-pálida PARULIDAE
LOCUSTELLIDAE Dendroica petechia Mariquita-dos-mangais
Locustella fluviatilis Felosa-fluvial Setophaga ruticilla
Locustella naevia Cigarrinha-malhada EMBERIZIDAE
CISTICOLIDAE
Emberiza hortulana Sombria
Cisticola juncidis Fuinha-dos-juncos
Emberiza schoeniclus Escrevedeira-dos-caniços
MUSCICAPIDAE
CALCARIIDAE
Muscicapa striata Taralhão-cinzento
Plectrophenax nivalis Escrevedeira-das-neves
Ficedula parva Papa-moscas-real
Ficedula hypoleuca Papa-moscas
Saxicola rubetra Cartaxo-nortenho Fig. 23 – Tabela das aves não nidificantes no arquipélago da
Saxicola rubicola Cartaxo-comum Madeira e no arquipélago das Selvagens, a qual inclui aves raras,
excecionais, visitantes ocasionais e migradoras, inclusive espécies
Saxicola torquata Cartaxo
com apenas um registo.
Phoenicurus ochruros Rabirruivo
Phoenicurus phoenicurus Rabirruivo-de-testa-branca * Registos dúbios ou não confirmados.
Oenanthe isabellina Chasco-isabel ** Possibilidade/indícios de nidificação.
Oenanthe oenanthe oenanthe Chasco-cinzento
Oenanthe oenanthe leucorhoa Chasco-cinzento
Oenanthe deserti Chasco-do-deserto Bibliog.: impressa: ALCOVER, Josep et al., “Five new extinct species of rails
Cercotrichas galactotes Rouxinol-do-mato (Aves: Gruiformes: Rallidae) from the Macaronesian islands (north Atlantic
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A zenhas e moinhos ¬ 159

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(north Atlantic ocean)”, Zootaxa, n.º 3182, 2012, pp. 29-42; ROMANO, Hugo
et al., “Birds of the archipelagos of Madeira and the Selvagens II. New records tas vezes, procura-se juntar no mesmo espaço
and checklist update (1995-2010)”, Boletim do Museu Municipal do Funchal, o processo de moenda do cereal e da cana,
vol. 60, 2010, pp. 5-44; SARMENTO, Alberto A., Vertebrados da Madeira.
Mamíferos – Aves – Répteis – Batráquios, vol. 1, Funchal, JGDAF, 1948; SILVA, criando-se um mecanismo de dupla utiliza-
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, ção. Aliás, existe na ilha uma situação particu-
3 vols., Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978; SLOANE,
Hans, A Voyage to the Islands Madera, Barbados, Nieves, St. Christophers and
lar de que há testemunho: estruturas de dupla
Jamaica, with the Natural History of the Herbs and Trees, Four-Footed Beasts, funcionalidade que atuam, em simultâneo, na
Fishes, Birds, Insects, Reptiles & c. of the Last of Those Islands, vol. i, London, B. M.,
1707; SVENSSON, Lars et al., Colins Bird Guide. The Most Complete Guide to the
moenda do cereal e da cana. O Museu Etno-
Birds of Britain and Europe, 2.ª ed., London, Harper Collins, 2009; ZINO, Francis gráfico preserva uma estrutura destas, que terá
et al., “Birds of the archipelago of Madeira and the Selvagens. New records and
funcionado ainda no séc. xx. Fora da Madeira,
checklist”, Boletim do Museu Municipal do Funchal, vol. 47, 1995, pp. 61-100;
digital: Atlas das Aves do Arquipélago da Madeira: http://www.atlasdasaves.
netmadeira.com (acedido a 2 jun. 2014); Avibase: http://avibase.bsc-eoc.org/
avibase.jsp?lang=PT&pg=home (acedido a 1 maio 2015); BirdLife International:
http://www.birdlife.org (acedido a 25 maio 2014); GILL, Frank, e DONSKER,
David (eds.), IOC World Bird List (v 6.3), 2016: http://www.worldbirdnames.
org (acedido a 22 jul. 2016); Projecto SOS Freira-do-Bugio: http://www.
sosfreiradobugio.pt (acedido a 9 maio 2016).

José Jesus

Azenhas e moinhos
Os cereais assumem um papel fundamental
na dieta alimentar das populações e, por isso,
estão presentes nos primórdios da criação da
sociedade, tal como as estruturas necessárias
para a sua produção e posterior transforma-
ção em farinha e pão. Em torno do moinho
e do forno, estabeleceu-se uma teia de rela-
ções socioeconómicas, sob o olhar atento do
capitão do donatário, que é quem dispõe do
monopólio destes meios para seu usufruto,
mediante a contrapartida da meia maquia,
i.e., a medida do cereal que fazia o paga-
mento ao moleiro por cada alqueire de ce-
real moído, como forma de pagamento pelo Fig. 1 – Antigo moinho de água da Calheta, reconstrução
serviço de moagem. Até 1821, a renda dos de c. 1800 (fotografia de José Lemos Silva, 2010).
160 ¬ A zenhas e moinhos

encontramos mecanismos semelhantes no es- Machico). Já quanto à designação toponímica


tado de Santa Catarina, no Brasil, onde a es- de azenha, esta aparece na Calheta e em Câma-
trutura, que segue o mesmo princípio, atua ra de Lobos (em Jesus Maria José).
na moenda da cana e preparação da farinha Este importante fator da economia cerealí-
de mandioca. Situações iguais à Madeira só se fera era monopólio exclusivo dos capitães do
encontram na ilha da Jamaica, onde a falta de donatário. A partir de 26 de setembro de 1433,
água obriga à construção de moinhos de vento, o infante D. Henrique recebeu das mãos de
como no Porto Santo, onde é visível uma dupla D. Duarte a posse vitalícia das ilhas da Madei-
utilização da força motriz do vento para movi- ra, Porto Santo e Deserta. Tal como estava pre-
mentar a pedra do moinho dos cereais e dos ceituado na primeira doação de 1433, o infan-
cilindros que trituram a cana. te D. Henrique tinha poder para proceder à
A falta de água no Porto Santo impediu, divisão das terras das ilhas e distribui-las como
assim, a utilização das azenhas, havendo ne- entendesse, estando apenas limitado aos direi-
cessidade de recurso aos moinhos movidos tos adquiridos resultantes da intervenção da
pelo vento, cuja primeira referência conheci- coroa. É o caso de João Gonçalves Zarco e Tris-
da é de 1791, no sítio das Matas, propriedade tão Vaz, os primeiros obreiros do reconheci-
da câmara municipal. Para 1901, referem-se mento das ilhas. Eles receberam, em nome do
23 moinhos, mas, em 1903, só estavam ativos infante, o encargo de coordenarem as tarefas
7 moinhos de vento no Porto Santo, sendo o de povoamento dos novos espaços. Tornam-se,
panorama, em 1925, o seguinte: 2 na Ponta da por isso, em capitães que representam o do-
Calheta, 6 no Campo de Baixo, 3 no Campo de natário, ficando conhecidos como capitães do
Cima, 1 na Fontinha, 7 nas Matas, 2 nas Lom- donatário.
bas, 1 na Vila, 3 na Serra de Fora e 6 na Ca- O documento que estabelece juridicamente
macha. Existe referência ao facto de também esta situação não surge em simultâneo para as
terem existido moinhos de dupla moenda no três áreas, pois entre elas existem alguns anos
Porto Santo, uma para trigo e outra para a ce- de diferença. Primeiro, foi Tristão Vaz quem,
vada. Gaspar Frutuoso, em finais do séc. xvi, a 8 de maio de 1440, recebeu o governo das
refere a existência de atafonas (engenho mo- terras entre o Caniço e a Ponta de Tristão, que
vido por animais) no Funchal, dentro da forta- ficou conhecida como a capitania de Machi-
leza de S. Lourenço: “não lhe faltam atafonas, co. Aqui se estabeleceram os mecanismos de
fornos e celeiros para recolher os mantimen- intervenção dos interessados e se preludiou
tos, e ricos aposentos” (FRUTUOSO, 1979, uma nova estrutura de poder. Assim, Tristão
111). O mesmo também deveria acontecer no Vaz exercia o governo em nome do infante de
Porto Santo, mas não chegou até nós qualquer acordo com a alçada determinada e tinha di-
referência documental. reito, por isso, a privilégios de fruição própria.
A toponímia regista, de forma evidente, a Destes, destacamos o monopólio dos moinhos,
presença desta estrutura industrial. Assim, exceto nos braçais, e o monopólio de fornos de
temos topónimos identificados como moinhos: poia, exceto fornalha para uso próprio.
no Funchal, o Beco e Largo dos Moinhos, no A última carta a ser lavrada foi a de João Gon-
Estreito da Calheta e Santa Cruz, o Lombo dos çalves Zarco, a 1 de novembro de 1450. Nela
Moinhos. Deveremos ainda assinalar, no âmbi- são copiadas as recomendações das duas an-
to dos Moleiros, os seguintes topónimos: Tra- teriores, surgindo já com os acrescentos supra
vessa dos Moleiros (Funchal), Lombo do Mo- referidos. Assim, em carta ou em instruções di-
leiro (Serra de Água), sítio (Arco da Calheta, rigidas pelo infante D. Henrique a João Gon-
Fajã da Ovelha, Paul do Mar, Faial, Machico, çalves Zarco se diz: “mandar a João Afonso que
Porto Moniz, Ribeira Brava, Santa Cruz, Porto repare outra mó e se faça um moinho de água
da Cruz, Madalena do Mar), Ribeira (Ponta segundo o de Tomar” (VIEIRA, 1994, 112).
do Pargo), Rua dos Moinhos (Ponta Delgada, Afirma-se que foi o Caniço, fora do Funchal, o
A zenhas e moinhos ¬ 161

primeiro lugar onde se construiu um moinho,


existindo ainda ali um sítio que tem o nome
de Azenha.
Na carta de 8 de maio de 1440 a Tristão Vaz,
refere-se: “Outro sim me praz que o dito Tris-
tão haja para si todos os moinhos de pão, que
houver em a parte da dita Ilha, de que assim
lhe dou carrego, e que ninguém não faça aí
moinhos somente ele ou quem lhe aprouver e
em isto se não entenda mó de braço, que a faça
quem quiser, não moendo a outrem nem ata-
fona, se não ele e a quem lhe aprouver. E me
praz que todos os fornos de pão em que houver
poia sejam seus porém não embargue a quem
quiser fazer fornalha, para o seu pão, que a Fig. 2 – Moinho de vento do Porto Santo, c. 1890
(arquivo particular).
faça e não para outro nenhum” (Id., Ibid., 103).
Desde o início que surgiram problemas
quanto ao funcionamento dos moinhos. Daí as sebe assim que o vento e a chuva vos faz min-
insistentes reclamações do povo, e as constan- gua vossas farinhas e isso mesmo más pedras e
tes intervenções do município e do senhorio. maus moleiros”. Além disso, não provia os en-
Assim, em 1461, D. Fernando determina “que genhos necessários, “porque não têm moinhos
o dito capitão faça os ditos seus moinhos do em todas as partes de seu termo dá lugar a al-
Funchal de guisa que o povo que em eles moer gumas pessoas de seu termo que as façam com
não receba perda por vento nem per chuva condição que lhes paguem trinta alqueires de
e tenham tais pedras que sejam proveitosas e trigo e deles mais e menos e dos outros que
boas e ponha tais moleiros que deem ao povoo não têm moinhos em que moíam”. Daí a de-
seu direito [...] e quanto aos moinhos feitos no terminação do Infante D. Fernando para que
termo do Funchal de que o dito capitão leva o capitão “faça os ditos seus moinhos do Fun-
a renda aqueles que pagam maquia, mande chal de pedra ou de madeira cobertos de telha,
que quaisquer moinhos que assim forem fei- feitos de tal guisa que o povo que neles moer
tos pelo termo, paguem ao dito capitão sua não receba perda por vento nem por chuva,
renda, segundo se com ele haverem e os que e tenham tais pedras que sejam proveitosas e
neles moerem que pagam a seu dono maquia boas e ponha tais moleiros que deem ao povo
não sejam teúdos nem paguem ao dito capitão seu direito e não lhe dando sejam teúdos de
coisa alguma. E se o dito capitão lhe prouver lhe pagar a perda que lhe fizer”. Mais deter-
dar a todos moendas em abastança que então mina que nos moinhos do termo do Funchal
leve a maquia do que se moer em eles, segun- “paguem ao dito Capitão a renda segundo se
do se faz nos outros moinhos do Funchal” com ele haverem e os que nela moerem que
(MELLO, 1972, XV, 17). pagam a seu dono maquia não são teúdos nem
Em resposta aos apontamentos dos morado- paguem ao dito Capitão coisa alguma”. O di-
res, o Infante D. Fernando esclarece ainda os reito do capitão à maquia só acontecerá quan-
compromissos do capitão quanto aos moinhos. do “prouver dar a todos moendas em abastan-
Assim, o capitão tinha o exclusivo na constru- ça, que então leve maquia do que se moer em
ção destes engenhos de moenda, sendo obri- eles, segundo se fez nos outros moinhos do
gado a “dar moendas em abastança e moinhos Funchal” (Id., Ibid., 17).
bons e proveitosos e levar de maquia de xiii al- Os capitães não prescindiam da meia ma-
queires um”, mas aqueles que existiam confor- quia, embora quase sempre não cumpris-
me reclamação dos moradores eram “feitos de sem com as suas obrigações de apresentar os
162 ¬ A zenhas e moinhos

moinhos em condições, de terem moleiros das moendas. Pelo desempenho do cargo, ti-
habilitados e cumpridores do seu papel. Em nham direito a 800 réis e um alqueire de pão
1490, o senhorio da ilha, D. Manuel, insiste em por semana, pagos pelo rendeiro. Eram obri-
que as normas que regem os moinhos e a ação gados a fazer toda a sua vida no moinho, per-
dos moleiros sejam as mesmas que as do reino. manecendo aí dia e noite. Mesmo ao sábado,
Ao mesmo tempo, referem-se os moinhos que era obrigatória a sua presença, para receber o
vão construir: “No Funchal que se reparem trigo até à meia-noite e fazer boas farinhas e
bem os moinhos que agora são feitos e que lhe pouco farelo. A sua ausência do moinho era
ponham pedras grandes e que façam mais no punida com a multa de 200 cruzados. O mo-
dito logo do Funchal dois moinhos bons de pe- leiro estava, ainda, proibido de dar alimento
dras grandes e alvas” (Id., 1973, vol. xvi, 239). a quem quer que fosse e as mulheres não po-
Temos a informação da existência de moinhos diam recolher farinha.
suficientes em Câmara de Lobos Ribeira Brava, No caso da Ponta de Sol, a nomeação do mo-
Ponta do Sol, Calheta, apenas deverá ser feito leiro para os dois moinhos da vila e o da Ma-
um no Caniço o dito capitão. dalena do Mar era feita pela vereação, depen-
A meia maquia dos moinhos foi uma impor- dendo a sua permanência no cargo do bom
tante riqueza dos capitães do donatário, de ou mau serviço prestado. Assim, João Figuei-
forma que Manuel Thomás afirmava, na Insula- ra, por servir mal e ser prepotente, foi desti-
na, que “De seus moinhos, a maior usura/pois tuído do cargo. Em 1681, porque as queixas
para sempre os terem bem pagados” (THO- do povo contra os moleiros se avolumaram,
MÁS, 1635, 467). Em 1752, esta renda de toda surgindo acusações de roubo e dano nas fa-
a ilha valia 3.020$393 réis. rinhas, foi-lhes dada ordem de prisão, sendo
Associado aos moinhos estará, a partir de substituídos por outros. Vários foram também
1635, um donativo para as despesas da guerra, os conflitos surgidos entre o rendeiro dos
no valor de 200.000 cruzados, que correspon- moinhos, nomeado pelo capitão para supe-
derá a uma maquia por alqueire de trigo. rintender a arrecadação dos seus direitos, e
Os moleiros eram providos pelo rendeiro dos os vereadores, em virtude de aquele procurar
moinhos, uma vez que este era um direito do intervir nos moinhos e dispor dos moleiros a
capitão do donatário, a quem cumpria apre- seu bel-prazer. Em 1600, e.g., foi o dito rendei-
sentar fiança e prestar juramento perante a ve- ro surpreendido pela vereação e intimado a
reação, responsabilizando-se pelo bom serviço não frequentar os moinhos mais do que uma
vez por dia, entendendo-se a sua presença
como prejudicial ao povo. Alguns anos mais
tarde, em 1627, foi mesmo admoestado, desta
feita porque retirara do moinho de baixo o
moleiro, o que era prejudicial aos interesses
do concelho.
A partir das posturas do Funchal do séc. xvi,
é possível reconstituiu e estabelecer as limita-
ções que caracterizavam o ambiente quotidia-
no dos moinhos, que, sendo locais de grande
afluência de gentes, eram um dos mais des-
tacados espaços de sociabilidade, razão pela
qual estavam sujeitos a normas de conduta
rigorosas.
Havia o moleiro e o maquieiro. O primei-
Fig. 3 – Moinho de água junto ao curral, litografia de Frank Dillon,
ro era examinado pela Câmara e só podia
Londres, 1850 (coleção particular). moer depois de ter prestado juramento e feito
A zenhas e moinhos ¬ 163

fiança; caso contrário, ele e o rendeiro sujeita- por que não haja dúvida isso a registar e pesar
vam-se a uma pena de 1000 réis de cadeia. Para no peso quando o levar em grão e o trouxer
além disso, não podia ser mudado da função em farinha e achando que o leve doutra ma-
sem autorização da Câmara. O maquieiro era neira ou maior quantia do que se a provisão
ajuramentado na câmara e tinha a obrigação requere, pagarão 500 réis” (Ibid.).
de o fazer de forma correta, de modo que nem A subtração dolosa do produto, cereal, fari-
o capitão, nem o povo fossem “constrangidos nha ou farelo, parece ter sido um problema,
a moer mais do que convém” tudo isto, com o tendo em conta as limitações impostas. Assim,
objetivo de “se fazer verdade e farinhas hones- para impedir que isso acontecesse, instituiu-se
tas e boas” (ABM, Câmara Municipal do Fun- que “nenhum moleiro criará porcos, galinhas,
chal, Livro de Posturas, fls. 25-30v.). adens, patos, nem outra ave nem cão, nem
O moleiro devia dedicar-se em exclusivo ao coisas semelhantes”. Depois, as mulheres dos
ofício, estando impedido de ter outra qual- moleiros, mancebas ou criados, não serão car-
quer “granjearia”, como “vinhas” ou “herda- reteiras, sob pena de 500 réis; e as carreteiras
des de renda”, estando o incumprimento su- farão seu caminho direito ao levar ou trazer do
jeito à pena de 10.000 réis pagos da cadeia. pão dos moinhos para casa de seus donos, e
Ainda são estabelecidas regras quanto à forma serão obrigadas levá-lo ao peso, sob pena de
de solucionar a questão das perdas na quan- 500 réis” (Ibid.).
tidade da farinha, de forma a não prejudicar Ainda em 1725, continua a recomendar-se es-
o povo. Assim, todo aquele que “danar fari- peciais cuidados para evitar os furtos por parte
nha ou der menos farinha do trigo que rece- de criados e escravos ou carreteiras, as vendei-
beu pagará o dano a seu dono”. À terceira vez ras, porque estes de forma dolosa compravam
que isto suceda, para além das penas estabe- as farinhas aos moços, escravos e outros, que
lecidas, “será envergonhado e posto na Pico- faziam este serviço de transporte do moinho
ta”. Além do mais, o moleiro, jurado na câ- e, de forma insistente, furtavam parte ao seu
mara, não podia ter ajudante “nem lhe moerá dono. O moleiro era responsável por qualquer
outra pessoa, salvo se a Câmara der licença perda que acontecesse na farinha, sendo obri-
por algum justo respeito que será estando o gado a restituí-la. Deste modo, os moleiros, sob
moleiro doente ou impedido para não poder pena de 200 réis, deveriam ter medidas de al-
trabalhar” (Ibid.). queire e meio alqueire, maquia e meia maquia,
O moinho era um espaço importante na so- afiladas pelo afilador.
ciabilidade das localidades, pelo que se assistia Em 1851, as posturas sobre os moleiros man-
diariamente a ajuntamentos de pessoas. Daí o têm a mesma vigilância, como se pode verifi-
estabelecimento de algumas regras de conduta car pelas da Ponta de Sol. Assim, continua a
social entre os diversos sexos, estando vedado ser obrigatória a licença da Câmara e acrescen-
às mulheres e, de forma especial, às “mancebas ta-se que o moleiro não pode ser portador de
dos moleiros nos moinhos onde estiver o mari- qualquer moléstia. Nessa data, surgem regras
do ou barregão” (Ibid.). para o processo da moenda: “é proibido aos
A mulher do moleiro estava, assim, limitada moleiros, o moera picadura, sem terem pri-
no acesso a este espaço, só estando autorizada meiro limpado o moinho com cereais seus,
a levar a comida ao marido nas horas devidas: trigo ou outro qualquer grão alheio, sob pena
“às horas devidas a mulher do moleiro leve de de 1500 reis, metade para o Concelho e outra
comer ao marido”. Procurando-se evitar qual- metade para o denunciante, além da indem-
quer iniciativa de furto de cereais ou farinha, nização à parte prejudicada. Por outro lado,
esta não podia ser encontrada no moinho do o moleiro que falsificar a faúlha de qualquer
seu marido “com farinha nem trigo, somente grão, misturando-lhe a de outro de diferente
com o que levar de sua casa para sua provisão espécie, ou trocando o grão de melhor quali-
que de força há de ser moído nos moinhos e dade pelo de pior, ou que não der o peso ou
164 ¬ A zenhas e moinhos

medida a seu dono, incorrerá


na pena de 2000 réis para a des-
pesa do concelho, além da in-
demnização à parte queixosa”
(RIBEIRO, 1993, 168).
O peso também devia ser
cuidado pois “todo o moleiro
será obrigado a ter no peso,
convém a saber, na casa dele,
farinha posta no caixão que
para isso lhe assinará o pe-
sador, no qual estará o seu
nome, e terá quantidade que
abaste para o pesador refa-
zer a falta da farinha que se
achar menos nos sacos ou al-
cofas, vasos, em que vier ao
peso, e não se achando pa- Fig. 4 – Moinho de água do Monte, gravura de Heitor através de fotografia,
Lisboa, c. 1890 (ABM, Arquivos Particulares).
gará por cada vez 200 réis”.
Ainda, “terão as moeguas afi-
ladas de alqueire e meio alqueire e de dois o epicentro de toda a sociabilidade e ativida-
e três e do mais que nelas couber, afiladas de dos espaços urbano e rural. Desta forma,
pelo afilador da cidade, e assim maquia e o sítio dos moinhos, onde se enfileiravam ao
meia maquia, sob pena de 200 réis” (ABM, longo da Ribeira de Santa Luzia os moinhos
Câmara Municipal do Funchal, Livro de Postu- do capitão, na periferia da vila, depois cidade,
ras, fls. 25-30v.). Especial atenção merecem, ganhava um desusado movimento. Sobre estes,
assim, as medidas e pesos, devendo o molei- refere Gaspar Frutuoso, em finais do séc. xvi:
ro facultar a quem o pretender o peso do “fora da cidade, estão seis casas de moinhos,
grão e da farinha. Quanto às “moegas, quar- que moem com a levada com que todos os en-
ta e maquia que pelo menos são obrigados a genhos, atrás ditos, se servem, que são cinco
ter todos os moinhos, deverão ser aferidas e por todos e estão abaixo deles ao longo desta
revistas no tempo marcado pela Câmara, sob ribeira, que se chama de Santa Luzia, como já
pena de mil réis para as despesas do Conce- disse” (FRUTUOSO, 1979, 116).
lho” (Ibid.). Em 1882, estas estruturas chamam a atenção
Recomenda-se ao moleiro que não deve “ter dos estrangeiros, de modo que Ellen Taylor
em roda da pedra do moinho isso a que cha- afirma: “Há moinhos de água para os cereais
mam caimbus, portanto é permitido a toda a em toda ilha os quais funcionam bem e, na
pessoa varrer toda a farinha produzida do seu maioria dos casos são extremamente pitores-
grão principalmente quando assistir a moenda cos” (TAYLOR, 1882, 80).
e que não queira fazer pesar a mesma farinha” O primeiro inventário destas unidades é de
(Ibid.). 1863, registando-se em toda a ilha 369. Em
1900, referem-se 350 azenhas e, em 1911, ape-
nas 292. Note-se que, nesta época, começa-
Dos moinhos e azenhas ram a aparecer os moinhos a vapor: em 1890,
No Funchal, a ribeira de Santa Luzia é a atra- são registadas 3 fábricas de moagem (Com-
ção principal em termos de atividade humana, panhia Madeirense de Moagem a Vapor, Fá-
parecendo que tudo gravita em torno dela. São brica Carlos José Zino, Empresa Funchalense
os engenhos de açúcar e os moinhos de cereais de Moagem). Em 1900, são 3 fábricas (Blandy
A zevedo , Á lvaro R odrigues de ¬ 165

Brothers & C.ª, Azevedo Santos & C.ª, Antó- de Azevedo. Casou-se com Maria Justina, de
nio Giorgi & C.ª), sendo registadas mais 3 em quem teve geração.
1907 (Companhia Madeirense de Moagem a Concluiu o curso de Direito, em 1849, na
Vapor, Carlos José Zino, Empreza Funchalen- Univ. de Coimbra e foi para Lisboa, onde re-
se de Moagem, Lda.). Na déc.de 30 do séc. xx, sidiu durante cerca de seis anos. Seguiu poste-
a intervenção governamental para a regulação riormente para a ilha da Madeira, onde exer-
do sector moageiro gerou um movimento po- ceu funções de professor, ocupando uma vaga
pular que ficou conhecido como a revolta da através de concurso público. Anteriormente,
farinha e que foi a antecâmara da chamada Re- tinha tentado um lugar na magistratura judi-
volta da Madeira. cial, mas não teve sucesso. Alguns anos mais
tarde, na introdução do livro Esboço Crítico-Li-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Livro de Posturas,
fls. 25-30v.; impressa: BAPTISTA, Arthur José, Breves Considerações sobre a tterário (1866), explicava a razão pela qual não
Indústria de Moagem em Portugal, Lisboa, s.n., 1908; BRANCO, Jorge de Freitas, tinha conseguido aquele emprego e se consi-
Camponeses da Madeira. As Bases Materiais do Quotidiano no Arquipélago
(1750-1900), Lisboa, Dom Quixote, 1987; CAMACHO, Rui et al., “Os moinhos de derava injustiçado.
água da Madeira. I – Concelho de Santa Cruz”, Xarabanda, n.º 2, 1992, pp. 28- No Liceu do Funchal, teve a seu cargo a ca-
32; CÂMARA, Benedita, A Economia da Madeira (1850-1914), Lisboa, Imprensa
de Ciências Sociais, 2002; FRUTUOSO, Gaspar, Livro Segundo das Saudades da
deira de Oratória, Poética e Literatura, que
Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1979; GUIMARÃES, regeu durante 26 anos. Também no mesmo
Sílvia, “Moinhos de água no concelho de São Vicente”, Xarabanda, n.º 7, 1995,
pp. 41-42; Informações para a Estatística Industrial Publicadas pela Repartição de
Liceu, foi professor de Português e Recitação
Pesos e Medidas. Distritos de Leiria e Funchal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1863; e fez parte, como sócio e secretário, da Associa-
MELLO, Luís Francisco de, “Tombo 1.º do Registo Geral da Câmara Municipal
do Funchal”, Arquivo Histórico da Madeira, vols. xv-xvi, 1972-1973; NÓBREGA,
ção de Conferências, inaugurada a 9 de maio
Manuel, “Moagem do cereal”, Girão, vol. 1, n.º 1, 1988, pp. 21-24; OLIVEIRA, de 1856, com a finalidade de promover o de-
Ernesto Veiga de et al., Moinhos de Vento. Açores e Porto Santo, Lisboa, Centro
senvolvimento dos princípios da educação po-
de Estudos de Etnologia Peninsular, 1965; RIBEIRO, João Adriano, Ponta de
Sol. Subsídios para a História do Concelho, Ponta do Sol, Câmara Municipal de pular e de elaborar uma discussão com vista
Ponta do Sol, 1993; Id., “A rua dos Moinhos no século xviii”, Margem 2, n.º 2, à escolha dos melhores métodos de ensino.
dez. 1995, pp. 15-24; Id. et al., Moinhos e Águas do Concelho de Santa Cruz,
Santa Cruz, Câmara Municipal de Santa Cruz, 1995; RÜDT, Käte, “Madeira. A Associação de Conferências era composta
Estudo linguístico-etnográfico”, Boletim de Filologia, vol. v, n.os 1-5, 1937-1938, por professores do ensino público e particular
pp. 59­‑91 e 289-349; SANTOS, Rui, “Um velho moinho”, Jornal da Madeira,
23 out. 1993; SOUSA, Élvio, Duarte Martins, Arqueologia na Área Urbana de da capital do distrito da Madeira.
Machico. Leituras do Quotidiano nos Séculos XV, XVI e XVII, Dissertação de Em 1856, por ocasião da epidemia de cóle-
Mestrado em História Regional e Local apresentada à Universidade de Lisboa,
Lisboa, texto policopiado, 2003; TAYLOR, Ellen, Madeira Its Scenery and how ra (cólera-mórbus), que se propagou na Ilha,
to See It, London, Edward Stanford, 1882; TOMÁS, Manuel, Insulana, Amberes, causando uma elevada taxa mortalidade, pres-
Caza de loam Mevrsio Impressor, 1635; VIEIRA, Alberto, “Anexo documental”, in
O Infante e as Ilhas, Funchal, CEHA, 1994.
tou relevantes serviços no desempenho do
cargo de administrador do concelho do Fun-
† Alberto Vieira
chal. A 24 de julho
de 1856, escrevia no
Azevedo, Álvaro Rodrigues de periódico A Discussão,
revelando as medidas
Álvaro Rodrigues de Azevedo foi advogado, tomadas pela Câma-
professor, político, jornalista, escritor e histo- ra Municipal que, no
riador. Nasceu em Vila Franca de Xira, a 20 de sentido de tentar com-
março de 1825, e faleceu em Lisboa, a 6 de ja- bater a epidemia, con-
neiro de 1898, dois meses antes de completar cedeu 150$000 reis
73 anos. Apesar de ter nascido no continente, mensais para que o
viveu na Madeira durante muitos anos e consi-
derava a Ilha a sua pátria adotiva. Chamava-se
José Rodrigues de Azevedo, mas terá mudado
de nome quando ingressou na universidade. Fig. 1 – As Saudades da Terra
(reed. 2007), de Gaspar Frutuo-
Era filho de António Plácido de Azevedo, na- so (anot. Álvaro Rodrigues de
tural de Benavente, e de Maria Amélia Ribeiro Azevedo).
166 ¬ A zevedo , Á lvaro R odrigues de

administrador do concelho estabelecesse uma um estudo histórico intitulado “A Casa em que


sopa económica, a ser distribuída, uma vez por Christovão Colombo Habitou na Ilha da Ma-
dia, aos mais necessitados. Referia ainda que deira”, identificando e descrevendo a casa de
medidas idênticas tinham extinguido a cólera Cristóvão Colombo no Funchal. Álvaro Rodri-
em algumas regiões continentais. Mencionan- gues de Azevedo é autor de uma vasta obra, de
do nomes de personalidades e respetivos do- temas diversos. Ainda na juventude, escreveu
nativos para a causa, reforçava a ideia da im- um drama sob o título Miguel de Vasconcelos,
portância da alimentação no combate daquele que não chegou a ser editado. No entanto, este
flagelo e considerava que os mais afetados pela texto originou uma polémica na imprensa, em
doença eram geralmente pobres, pois a princi- 1852, nos n.os 2924, 2927 e 2942 da Revolução
pal causa do seu desenvolvimento era a fome de Setembro, com o bibliógrafo e publicista, Ino-
e a miséria. cêncio Francisco da Silva, autor do Diccionario
Foi procurador à Junta Geral e membro do Bibliográphico Portuguez (1858). Na nota biblio-
conselho de distrito e da comissão administra- gráfica elaborada a Álvaro Rodrigues de Aze-
tiva da Santa Casa da Misericórdia do Funchal, vedo no referido Dicionário, Inocêncio Fran-
tendo recusado, em 1870, o cargo de secretá- cisco da Silva afirma que terá confundido uma
rio-geral do distrito e a comenda da Conceição. crítica desfavorável a outro texto com o mesmo
Foi ainda membro do Partido Reformista, par- título de Miguel de Vasconcelos, mas de outro
ticipando ativamente na política madeirense e autor, que terá lido nas Memórias do Conservató-
revelando aspirações liberais, sobretudo num rio Real de Lisboa, tomo II, 1843, p. 114. Tendo
período agitado da vida local, iniciado em 1868. conhecimento do texto escrito por Azevedo,
Como jornalista, Álvaro Rodrigues de Aze-
vedo colaborou na imprensa periódica madei-
rense, sendo redator nos jornais A Discussão,
A Madeira, A Madeira Liberal, O Oriente do Fun-
chal e Revista Judicial, e tendo redigido também
alguns artigos no Diário de Notícias da Madeira.
Publicou ainda o Almanak para a Ilha da Madei-
ra para os anos de 1867 e de 1868.
Os artigos publicados na imprensa foram de
natureza variada, desde folhetins e artigos de
crítica literária até assuntos de interesse social,
relacionados com a vida no arquipélago e com
o quotidiano dos madeirenses. Em janeiro de
1856, no periódico A Discussão, inicia a publi-
cação de um artigo de crítica literária, sob o tí-
tulo “Bosquejo Histórico da Literatura Clássica
Grega, Latina e Portuguesa, por A. Cardoso B.
de Figueiredo”. Este texto saiu, naquele jornal,
nos n.os 50, 51, 53 e 55, entre janeiro e março
de 1856. Em 1866, edita um estudo em volu-
me, intitulado Esboço Crítico-Litterário (do Bosque-
jo Histórico da Literatura Clássica, Grega, Latina e
Portuguesa do Sr. A. Cardoso Borges de Figueiredo),
no qual menciona o seu primeiro artigo crítico
à obra daquele autor.
No Diário de Notícias da Madeira, em 1877, Fig. 2 – Romanceiro do Archipelago da Madeira (1880), coligido
nos n.os 181 a 183, publicou, como folhetim, por Álvaro Rodrigues de Azevedo.
A zevedo , Á lvaro R odrigues de ¬ 167

que este lhe havia dado a ler, anos antes, julgou Machico, na Câmara Eclesiástica, na Câma-
tratar-se do mesmo texto, pois tinham o título ra Militar e no cabido da Sé. Também foram
idêntico, mas apenas um foi publicado nas Me- relevantes os textos que reuniu de cronistas
mórias do Conservatório, tendo outro ficado em como Zurara, João de Barros e Damião de
arquivo. Este equívoco terá desencadeando a Góis, e os manuscritos do P.e Netto. Teófilo
referida controvérsia, suscitando uma troca de Braga, seu amigo, com quem se correspon-
correspondência entre ambos, através da im- dia, teve uma grande influência no seu pen-
prensa periódica. samento e na sua escrita, sendo através deste
Nas suas produções literárias encontram-se, que tomou contacto com a teoria da história
entre outros, A Familia do Demerarista. Drama em positivista, em voga na época. Contou ainda
um Acto (1859), uma crítica de costumes ma- com a colaboração de João Joaquim de Frei-
deirenses, e Curso Elementar de Recitação, Philolo- tas, bibliotecário da Câmara do Funchal, que
gia e Redacçao (1869), no qual pretende desen- o ajudou nos trabalhos de revisão textual.
volver competências de produção linguística. Apesar de todas as dificuldades que teve de
Como escritor e historiador, produziu im- ultrapassar, e da obra inédita que deu à es-
portantes trabalhos sobre o arquipélago da tampa, em 1873, não obteve o devido valor e
Madeira. O seu legado mais importante para reconhecimento por parte dos seus coevos.
a historiografia madeirense foi a publicação Só muitos anos mais tarde é que o seu traba-
do manuscrito As Saudades da Terra (1873), lho foi valorizado pelos eruditos madeiren-
redigido por Gaspar Frutuoso, em 1590, na ses. Na verdade, esta obra pioneira na his-
ilha de S. Miguel, Açores. Álvaro Rodrigues toriografia insular abriu caminho para que
de Azevedo redigiu 30 notas que acrescen- outros madeirenses começassem a interessar-
tou ao manuscrito, na parte que diz respeito -se pelo estudo da sua história, do seu passa-
à Madeira, com o intuito de esclarecer alguns do e das suas raízes. As suas anotações cons-
pontos da história do arquipélago. O traba- tituíram uma fonte importante para outros
lho de investigação, de pesquisas e de con- estudiosos, sobretudo para os intelectuais
sultas em livros, manuscritos ou outras fon- da primeira metade do séc. xx e para os ho-
tes, que empreendeu para a elaboração das mens da chamada Geração do Cenáculo, que
anotações presentes na edição de As Saudades recorreram com frequência às investigações
da Terra (1873) contribuiu para o desenvolvi- do seu antecessor. Antes do trabalho feito
mento do seu gosto pelo estudo da história nas anotações de Álvaro Rodrigues de Azeve-
da Madeira. Segundo Alberto Vieira, Álvaro do, os estudos relativos à história do arquipé-
Rodrigues de Azevedo “poderá ser conside- lago eram muito vagos, circunscrevendo-se a
rado o pioneiro da historiografia hodierna breves notas e estudos.
na ilha. O seu trabalho publicado em anota- A sua obra teve, assim, um grande impac-
ção a As Saudades da Terra, em 1873, é mode- to em estudiosos como, entre outros, Alber-
lar e surge como uma peça-chave para todos to Artur Sarmento, [só usamos títulos quan-
os que se debruçam sobre a história da ilha” do o contexto o justifica] Fernando Augusto
(VIEIRA, 2007, 13). Álvaro Rodrigues de Aze- da Silva, Eduardo Pereira, Visconde do Porto
vedo confessou que teve muitas dificulda- da Cruz, sendo mesmo uma base de referência
des na elaboração destas notas, que foi um para a elaboração de obras como o Elucidário
processo moroso, fruto de muito trabalho Madeirense (1921). De facto, são muitas as refe-
de investigação, de dia, e de escrita, à noite, rências aos apontamentos e ao nome de Álva-
acumulado com a sua profissão. A obra, en- ro Rodrigues de Azevedo nos três volumes que
cetada em meados de 1870, demorou cerca compõem o Elucidário, tendo os seus autores
de três anos a completar. Os trabalhos de in- confessado que “são as Saudades da Terra, e
vestigação foram feitos nos arquivos da Ilha, sobretudo as suas valiosas e abundantes notas,
nas Câmaras do Funchal, de Santa Cruz e de o mais rico, copioso e seguro repositório de
168 ¬ A zevedo , A mélia A ugusta de

elementos que possuímos para a história do com o seu nome, a “Rua Álvaro Rodrigues de
nosso arquipélago” (SILVA e MENESES, 1998, Azevedo”. Na Madeira, além da reedição das
II, 126). Neste sentido, também outros auto- suas notas, em 2007, não houve, até 2016, qual-
res terão consultado e referenciado as notas a quer homenagem a este homem que se empe-
Saudades da Terra, entre os quais o Visconde do nhou pelo progresso da Ilha.
Porto da Cruz, na elaboração dos três volumes
Obras de Álvaro Rodrigues de Azevedo: O Comunismo. Discurso Proferido na
de Notas e Comentários para a História Literária da Aula de Practica Forense da Univ. de Coimbra, em que Se Expõe e Combate Esta
Madeira (1949-1953). Doutrina (1848); O Livro d’Um Democrata (1848); A Familia do Demerarista.
Drama em Um Acto (1859); Esboço Crítico-Litterário (1866); Curso Elementar de
Ainda relativamente à história da Madeira,
Recitação, Philologia e Redacçao (1869); Corografia do Arquipélago da Madeira
Álvaro Rodrigues de Azevedo foi o autor de (1873); As Saudades da Terra. Pelo Doutor Gaspar Fructuoso. História das Ilhas
uma série de artigos, nomeadamente, “Ma- do Porto-Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens. Manuscripto do Século XVI
Annotado por Alvaro Rodrigues de Azevedo (1873); “A casa em que Christovão
chico”, “Machim”, “Madeira” e “Maçonaria na Colombo habitou na ilha da Madeira” (1877); Romanceiro do Archipelago
Madeira”, publicados em 1882 no Dicionário da Madeira (1880); Benavente. Estudo Histórico-Descritivo, Obra Póstuma,
Continuada e Editada por Ruy d’Azevedo (1926).
Universal Português Ilustrado, dirigido por Fer-
nandes Costa. Bibliog.: A. A., “Crítica literária. Bosquejo historico da literatura classica grega,
latina e portuguesa, por A. Cardoso B. de Figueiredo”, A Discussão, 31 jan.
Em 1880, trouxe à luz da publicidade o Ro- 1856; 7 fev. 1856; 21 fev. 1856; 6 mar. 1856; 26 jun. 1856; 24 jul. 1856; CLODE,
manceiro do Arquipélago da Madeira, um volume Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal,
Caixa Económica do Funchal, 1983; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da
de 514 páginas, resultado das suas recolhas da Terra. História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot.
tradição oral em diversas freguesias da Madeira Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500
Anos, 2007; MARINO, Luís, Musa Insular: Poetas da Madeira, Funchal, Eco
e do Porto Santo, para o qual terão contribuí- do Funchal, 1959; PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários
do as influências de Teófilo Braga. As compo- para a História Literária da Madeira, 3 vols., Funchal, Câmara Municipal
do Funchal, 1949-1953; SILVA, António Carvalho, “Apontamentos sobre
sições foram classificadas por géneros, a saber, gramáticas madeirenses (1)”, Islenha, n.º 18, jan.-jun. 1996, pp. 101-109; Id.,
“Histórias”, “Contos” e “Jogos”, os quais, por “Apontamentos sobre gramáticas madeirenses (2)”, Islenha, n.º 19, jul.-dez.
1996, pp. 159-170; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
sua vez, foram divididos em espécies. Nas “His- de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; SILVA, Inocêncio
tórias”, Álvaro Rodrigues de Azevedo incluiu Francisco da, Diccionario Bibliographico Portuguez, vol. 1, Lisboa, INCM, 1858;
VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António Aragão de, Madeira. Investigação
as seguintes espécies: “Romances ao divino”;
Bibliográfica, 3 vols., Funchal, DRAC, 1981-1984.
“Romances profanos”; “Xácaras” e “Casos”. No
género “Contos”, incluiu as seguintes espécies: Sílvia G. Gomes
“Contos de fadas”; “Contos alegóricos”; “Con-
tos de meninos”; “Lengas-lengas” e “Perlen-
gas infantis”. Finalmente, no género “Jogos”,
Azevedo, Amélia Augusta de
contemplou os “Jogos pueris” e os “Jogos de
adultos”. Terá coligido, igualmente, elementos Amélia Augusta de Azevedo foi uma musicólo-
para a elaboração do cancioneiro, que, porém, ga e executante madeirense que se tornou co-
não chegou a publicar. nhecida não só no meio artístico nacional, mas
No ano seguinte à publicação do Romanceiro, também em França, onde várias composições
em janeiro de 1881, já jubilado, mas desiludido suas foram editadas.
com a ingratidão dos madeirenses pelo seu tra- Filha de António Pedro de Azevedo, nas-
balho dedicado à cultura e ao progresso da Ilha, ceu no Funchal em 1840. Nessa cidade, cedo
acabou por retirar-se para Lisboa, onde fixou se evidenciou pela interpretação de peças em
residência até ao fim da sua vida. Deixou uma machete e braga. O reconhecimento das suas
coleção de apontamentos avulsos sobre a his- qualidades fez com que se mudasse para Lis-
tória, o romanceiro e o cancioneiro da Madei- boa, onde, a 4 de julho de 1873, se inscreveu
ra, que foi coligindo ao longo do tempo que ali como aluna externa no Conservatório Nacio-
passou, os quais foram adquiridos pela Bibliote- nal, instituição em que haveria de prestar pro-
ca Nacional de Lisboa, após a sua morte. vas de Rudimentos de Teoria Musical e Sol-
No distrito de Lisboa, concelho de Oeiras fejo. Embora seja certo que se apresentou ao
e freguesia de Paço de Arcos, existe uma rua exame da primeira das disciplinas, no qual foi
A zevedo , A mérico O lavo C orreia de ¬ 169

Bomtempo, Francisco António Norberto dos


Santos e Luís de Freitas Branco, que, nos finais
do séc. xix e princípios do xx, foram influen-
ciadas pelo poeta nacional. Esta circunstância
aponta para que a sua publicação tenha ocor-
rido em 1880, ano das Comemorações dos 400
anos da Morte de Camões, ou em 1881.
“Le regret” traz apensa a indicação de opus
23, o que indicia uma produção da autora de
pelo menos mais 22 obras. Por outro lado, há
que registar que “Paris russophile” foi apresen-
tada no Concours Internacionale de Musique
no Trocadéro, onde foi premiada com um se-
Fortaleza de S. João Batista do Funchal, copiada por Amélia gundo lugar e uma menção honrosa.
Augusta de Azevedo, c. 1869-1870 (DSIE, Gabinete de Estudos
Arqueológicos de Engenharia Militar).
Em 1898, o Diário Popular noticiava que, em
concerto, com já algumas dezenas de anos, a
Imperatriz Sissi apreciara bastante a execução
aprovada, não consta que tenha comparecido em machete, tocado por Amélia Azevedo.
ao da segunda. Quanto aos últimos anos de vida da artista e ao
Partiu depois para Paris, em data que não é local da sua morte, em 1913, as informações são
possível precisar. O Elucidário Madeirense refe- vagas, embora se saiba que também se dedicou à
re-a atuando em concertos em Lião depois de fotografia, pelo menos no Funchal, como consta
1885. Ainda em França, Amélia Azevedo terá, dos arquivos do seu pai, o Gen. António Pedro
possivelmente, continuado a fazer a sua for- de Azevedo (1812-1889), na Direção do Serviço
mação musical no Conservatoire Nacionale de de Infraestruturas do Exército, em Lisboa.
Musique et Déclamacion, desta vez em piano.
Bibliog.: impressa: PINTO, Rui Magno, “Amélia Augusta de Azevedo”, in
Para além de intérprete virtuosa, a artista foi ESTEIREIRO, Paulo (coord.), 50 Histórias de Músicos na Madeira, Funchal,
também compositora, sendo conhecidas algu- Associação de Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística,
2008, pp. 15-16; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
mas das suas obras, designadamente “Recorda-
de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984; digital: ESTEIREIRO,
ções de Cintra”, “Alma minha”, “Le regret” e Paulo, “Semilha ou batata e braguinha ou cavaquinho”, Linkedin, 22 fev. 2016:
https://pt.linkedin.com/pulse/sevilha-ou-batata-e-braguinha-cavaquinho-
“Paris russophile”. As duas primeiras peças, uma
paulo-esteireiro (acedido a 9 maio 2018); MACEDO, L. S. Ascensão de, Da Voz
polca mazurca e uma obra para canto e piano à Pluma. Escritoras e Património Documental de Autoria Feminina de Madeira,
com letra de Luís de Camões, respetivamente, Açores, Canárias e Cabo Verde. Guia Biobibliográfico, Ribeira Brava, ed. do
Autor, 2013: https://estuwdogeral.sib.uc.pt/handle/10316/44055 (acedido a
foram publicadas em Lisboa. As outras, uma 9 maio 2018).
valsa e um galope, ambas para piano, foram edi- Cristina Trindade
tadas em Paris. Apesar de as duas últimas com- L. S. Ascensão de Macedo
posições se encontrarem assinadas por Amélie
A. d’Azevedo, a certeza da estada de Amélia Aze-
vedo em França, na déc. de 1880, e a semelhan- Azevedo, Américo Olavo
ça do nome autorizam a conclusão de que se Correia de
trata da mesma pessoa, corroborada ainda pelo
seu registo como aluna do Conservatoire Nacio- Nasceu a 15 de dezembro de 1882, no Fun-
nale de Musique, de Constant Pierre, onde o chal, e faleceu a 8 de fevereiro de 1927. Filho
seu nome figura com a grafia afrancesada. de Carlos Olavo Correia de Azevedo e de Maria
O facto de “Alma minha” ser uma música ins- Adelaide Cabral, era também irmão de Carlos
pirada pelos versos de Camões permite integrá- Olavo (1881-1858), figura igualmente desta-
-la no conjunto de obras de vários autores por- cável da Revolução republicana. Foi militar
tugueses, entre os quais figuram João Domingos de carreira, tendo concluído a formação na
170 ¬ A zevedo , A mérico O lavo C orreia de

Fig. 1 – Cap. Américo Olavo Correia de Azevedo, c. 1916 (BNP, Fig. 2 – Na Grande Guerra (1917-1918) (reed. 2017),
Espólio Bernardino Machado). de Américo Olavo.

Escola do Exército em 1904. Paralelamente, Académica Republicana e aos jornais diários a


também cursou Direito. Marselhesa e Liberdade. Em 1901, ingressou na
A ação de Américo Olavo enquanto oficial maçonaria, e o seu nome aparece sempre asso-
do Exército da arma de Infantaria dá-se com ciado ao movimento dos Jovens Turcos, de que
o posto de capitão das tropas portuguesas que também faziam parte Álvaro Poppe, Sá Cardo-
se bateram na Primeira Guerra Mundial (1914- so, Álvaro de Castro e Hélder Ribeiro.
1918), em que se destacou a Batalha de La Lys, Pelo seu envolvimento nas conspirações re-
a 9 de abril de 1918. Acabou por ficar prisio- publicanas, que se seguiram à ditadura fran-
neiro dos alemães durante cerca de oito meses. quista e que se prolongaram até à Implanta-
Pelos atos de bravura praticados em com- ção da República, teve cargos de destaque no
bate, recebeu várias condecorações militares. gabinete do ministro da Guerra Correia Bar-
Destacam-se a Torre Espada, sendo o primei- reto e foi eleito, em 1911, deputado da Cons-
ro militar a receber esta distinção, a Cruz de tituinte. Desempenhou funções como depu-
Guerra, a Legião de Honra de França, a co- tado até 1925.
menda de Avis, o oficialato de S. Tiago de Es- Entre 8 de março e 6 de julho de 1924, foi
pada, a medalha comemorativa das campanhas ministro da Guerra do Governo de Álvaro de
do Exército português na Flandres, a medalha Castro. O seu mandato ficou marcado pela re-
da vitória e a medalha de prata do comporta- volta dos oficiais aviadores, ocorrida em junho.
mento exemplar. Durante o golpe republicano contra a Ditadu-
Américo Olavo também desenvolveu, desde ra Militar, instituída a 28 de maio de 1926, o
muito cedo, atividades políticas e de cidadania. qual se desenrolou de 3 a 10 de fevereiro de
Em 1900, juntamente com outros companhei- 1927, foi assassinado em casa por uma força de
ros de estudos, esteve ligado à fundação da Liga sapadores dos caminhos de ferro.
A zevedo , A nt ó nio B on de S ousa S chiappa de ¬ 171

A personalidade de Américo Olavo fica de pasto para os animais que, de forma asselva-
ainda ligada às letras, nomeadamente a par- jada e desregrada, se alimentavam em zonas ser-
tir da sua experiência bélica. Foi o autor do ranas. Deste modo, o coberto florestal indígena
livro memorialista Na Grande Guerra (1919). foi bastante afetado e delapidado na ilha da Ma-
Em coautoria com Chagas Franco, publicou deira, chegando mesmo a desaparecer na ilha
uma coletânea de contos a que deu o nome do Porto Santo. A falta de técnicos e de pessoas
Dentro da Vida (1909). conhecedoras da flora e da floresta madeiren-
se, bem como das consequências da sua devasta-
Obras de Américo Olavo Correia de Azevedo: Dentro da Vida (1909)
(coautoria); Na Grande Guerra (1919).
ção, fez com que esta situação se perpetuasse e
Bibliog.: impressa: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses.
agravasse durante séculos. A situação na ilha do
Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; OLAVO, Américo, Porto Santo ainda era mais grave, piorando con-
Na Grande Guerra (1917-1918), Viseu/Lisboa, Quartzo/Direcção de História e
sideravelmente em meados do séc. xviii e le-
Cultura Militar, 2017; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional da Educação e vando quase à completa desertificação da Ilha.
Cultura, 1978; digital: “Américo Olavo”, Projecto Vercial, s.d.: http://alfarrabio. O conhecimento e os principais estudos sobre a
di.uminho.pt/vercial/olavo2.htm (acedido a 12 dez. 2018); Instituto de História
Contemporânea: http://ihc.fcsh.unl.pt/pt/recursos/biografias/item/4452- floresta madeirense pertenciam, nessa época, a
poppe-%C3%A1lvaro-1879-1972 (acedido a 2 maio 2015). naturalistas estrangeiros que, por diversos mo-
Carlos Maduro tivos, passavam na Madeira ou iam até esse ar-
quipélago atraídos pela riqueza da sua flora e
fauna e dos inúmeros endemismos existentes.
Azevedo, António Bon de Sousa Segundo Rui Carita, os naturalistas estrangeiros
Schiappa de que mais se evidenciaram na época com traba-
lhos de divulgação da fauna e flora desse terri-
Regente florestal de formação, desempenhou tório foram o reverendo inglês Thomas Lowe,
importantes funções silvícolas no distrito que preparou os álbuns com que a Madeira
do Funchal nos finais do séc. xix e início do
séc. xx.
Nasceu em Lisboa em 1870, no seio de uma
família distinta, sendo o seu avô materno o
Ten.-Gen. Pedro Paulo Ferreira de Sousa, pri-
meiro barão de Pernes. Foi para a ilha da Ma-
deira em finais do séc. xix, onde casou com
uma madeirense, filha de José António de Al-
mada, passando a viver no Funchal.
Desempenhou um importante papel na área
florestal, tanto na ilha da Madeira como na
ilha do Porto Santo. Na primeira, foi respon-
sável pela preservação das manchas de flores-
ta natural que se encontravam ameaçadas na
época; na segunda, foi responsável pelos pri-
meiros trabalhos de reflorestação daquele es-
paço, que estava há séculos desprovido de um
coberto florestal.
Fruto da riqueza existente na floresta indí-
gena da Madeira e do Porto Santo, iniciou-se,
após a descoberta destas ilhas, um processo de
delapidação do coberto florestal existente com
os objetivos de exploração de madeira e carvão, Fig. 1 – António Bon de Sousa Schiappa de Azevedo, c. 1910 (ABM,
implementação de áreas agrícolas e constituição Photographia Vicente).
172 ¬ A zevedo , A nt ó nio P edro de

participou na célebre exposição internacional


de Londres, em 1851, e que forneceu as infor-
mações a Charles Darwin, e o padre alemão Er-
nesto Schmitz, que, tendo-se radicado no Fun-
chal em 1874, depois se naturalizou português
e foi o fundador do primeiro museu de história
natural da Madeira.
A crescente importância que a floresta ia
adquirindo, assente no seu papel imprescin-
dível na captação da água, quer de regra,
quer de consumo, e na sustentação dos solos,
levou, desde os meados do séc. xix, à criação
de departamentos governamentais que se
debruçaram sobre os trabalhos de reflores-
tação e preservação da floresta das ilhas da
Madeira e Porto Santo. Nos finais desse sécu-
lo, a Madeira passou a possuir técnicos por-
tugueses habilitados nessa área, sendo o mais
notável o regente florestal António Bon de
Sousa Schiappa de Azevedo, que focou a sua Fig. 2 – Busto de Schiappa de Azevedo, bronze de Delfim Maya,
1957, pico Castelo, Porto Santo (arquivo particular).
ação principalmente na ilha do Porto Santo.
A erosão e desertificação nesta ilha era de tal
forma grave que Schiappa de Azedo, esco- Castelo em homenagem ao trabalho efetua-
lhendo o cume do pico Castelo para iniciar, do no combate à desertificação e à refloresta-
em 1921, o seu trabalho de reflorestação, ção naquela ilha. A estátua foi inaugurada em
teve que armar o terreno e constituir mu- julho de 1957.
retes em pedra para suporte e sustentação António Bon de Sousa Schiappa de Azevedo
da pouca terra que existia na encosta, con- faleceu no Funchal a 17 de dezembro de 1926.
seguindo assim solo e condições para plan- Bibliog.: impressa: CLODE, Luiz Peter, Registo Genealógico das Famílias Que
tar árvores. Tratou-se de uma obra notável, Passaram à Madeira, Funchal, Tip. Comercial, 1952; NEVES, Henrique, “Porto
Santo. A vegetação primitiva, presente e futura”, Islenha, n.º 6, jan.-jun. 1990,
visível no terço superior da encosta do pico. pp. 117-123; PEREIRA, Eduardo C. N., Ilhas de Zargo, 4.ª ed., vol. i, Funchal,
Para este trabalho, Schiappa de Azevedo uti- Câmara Municipal do Funchal, 1989; digital: CARITA, Rui, “A laurissilva da
Madeira, Património Natural UNESCO”, SILBOARTE – Seminário sobre Itinerarios
lizou nas suas plantações essencialmente o Artísticos del Patrimonio Cultural en la Macaronesia, 2006: http://www.
Cupressus macrocarpa e o Pinus radiata. Após silbogomero.com.es/multimedia/0001/0001/dir_k5b/ruicarita.pdf (acedido a
2 nov. 2015).
a sua morte, o seu trabalho foi continuado,
tendo-se arborizado a parte alta do pico Cas- Manuel António Marques Madama
telo utilizando a metodologia de plantação de Sousa Filipe
por si desenvolvida.
Na ilha da Madeira, os frondosos Cupressus
macrocarpa que se encontram na ribeira das Azevedo, António Pedro de
Cales junto àquela que se tornaria a estrada Os militares representaram um importante
regional n.º 103 foram mandados plantar tam- papel na vida madeirense, da mesma forma
bém por Schiappa de Azevedo, tendo infeliz- que alguns militares madeirenses também
mente algumas destas árvores sido afetadas o representaram a nível nacional, tendo sido o
de forma irreversível pelo grande incêndio de seu desempenho nas obras públicas e na infor-
2010, que devastou toda aquela zona. mação da decisão política, através da cartogra-
António Bon de Sousa Schiappa de Azevedo fia e da informação, dos contributos mais notá-
possui uma estátua com o seu busto no pico veis nos meados do séc. xix. As obras públicas
A zevedo , A nt ó nio P edro de ¬ 173

Fig. 1 – Abono de António Pedro de Azevedo para seguir para a Madeira, paço de Sintra (7 set. 1848) (AHM, Processos Individuais).

da Madeira dessa época vão ser marcadas por que no Funchal, em 1834, era confirmado pelo
três engenheiros militares: Manuel José Júlio cônsul Henry Veich (c. 1770-1857).
Guerra (1801-1869), cuja atuação não terá O futuro engenheiro viria a completar o
sido particularmente notável, Tibério Augusto curso em 1837, sendo promovido a tenente
Blanc (c. 1810-1875) e António Pedro de Aze- a 5 de setembro desse ano. Estagiaria no con-
vedo (1812-1889), que, pelo contrário, deixa- tinente até finais de 1840, chegaria a capitão
ram uma obra verdadeiramente notável, e que a 22 de fevereiro do ano seguinte e seria en-
se viriam, entretanto, a desentender aberta e viado de novo para a Madeira, então como
violentamente. Em princípio, não estavam em responsável pelo estabelecimento das linhas
causa assuntos técnicos e profissionais entre telegráficas. Logo nesse ano de 1841, percor-
estes dois engenheiros, mas sim filiações ou re toda a linha de costa da ilha, périplo de
amizades políticas e partidárias. que resulta o Reconhecimento Militar da Ilha da
António Pedro de Azevedo nascera em Cami- Madeira, com as plantas das principais vilas
nha a 9 de fevereiro de 1812 e assentou praça a e linhas de fortificação, Reconhecimento que
4 de setembro de 1826, apenas com 14 anos de ainda repetiria, ampliado, em 1860. No ano
idade, sendo promovido a alferes a 9 de julho seguinte, trabalharia com o coronel Alexan-
de 1827 e entrando no ano seguinte para a Aca- der Thomas Emeric Vidal (1792-1863) e ou-
demia Real de Fortificação, Artilharia e Dese- tros oficiais do vapor de guerra inglês Styx no
nho. As alterações políticas dos anos seguintes levantamento das cartas geo-hidrográficas do
levaram-no a interromper os estudos, prestan- arquipélago da Madeira, sucessivamente pu-
do uma comissão de serviço em Elvas e sendo blicadas em Londres nos anos seguintes e, de-
colocado na Madeira em 1830, integrando, pois, em Lisboa, em 1877, a do Porto Santo,
depois, as forças absolutistas da reocupação do em 1879, a da Madeira, e em 1886, a das De-
Porto Santo, a 29 de maio de 1832, quando se sertas, quando António Pedro de Azevedo era
procedeu, de novo, à aclamação de D. Miguel. já general reformado.
Talvez por isso, nunca deixou de fazer constar Os primeiros trabalhos de António Pedro
nos seus documentos que desde estudante so- de Azevedo seriam geo-hidrográficos e geo-
frera represálias devido às suas ideias liberais, o désicos, por vezes com complexas memórias
174 ¬ A zevedo , A nt ó nio P edro de

Fig. 3 – Planta da levada do Rabaçal (9 out. 1845) (DSIE, Gabinete


de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar).

em comissão de serviço civil, como encarrega-


do da direção das obras públicas civis do distri-
to, ou seja, passara para a dependência direta
do governador civil. Entretanto, com o afasta-
mento de Júlio Ribeiro Guerra, passara o capi-
tão António Pedro de Azevedo a chefiar o Co-
Fig. 2 – Questão entre Tibério Blanc e António Pedro de Azevedo mando da Engenharia da 9.ª Divisão Militar,
(22 mar. 1848) (AHM, Processos Individuais). pelo que entendeu dever Tibério Blanc, embo-
ra mais velho, dar-lhe conhecimento dos traba-
descritivas, como as que acompanharam os lhos em que andava. A questão entre os dois,
seus levantamentos geodésicos, algumas com por certo de carácter político, chegou a Lisboa
interessantes descrições botânicas, contando- e teve como despacho a suspensão de ambos,
-se por muitas dezenas as plantas, alçados e em 31 de março de 1848, nomeando-se mesmo
cortes que chegaram aos nossos dias e, inclu- um capitão engenheiro, de nome Cunha, para
sivamente, a planta da casa e quinta que ad- substituir ambos, como consta no processo ar-
quirira na rua do Vale Formoso, no Funchal. quivado no Arquivo Histórico Militar.
Casara-se, entretanto, na Madeira, com Maria A suspensão acabou por não ter efeito com
Rosa Bernes, sendo pai de Elisa Azevedo de a chegada do governador José Silvestre Ribeiro
Meneses, que se casou depois com o médico a Lisboa, no mês de junho, e ambos se manti-
Antero Drumond de Meneses (1830-1916), veram em serviço na Madeira nos anos seguin-
filho de Sérvulo Drumond de Meneses (1802­ tes. Durante o governo de José Silvestre Ribei-
‑1867); Antero e Elisa foram pais do natura- ro, Tibério Blanc desenvolvera uma enorme
lista Carlos Azevedo de Meneses (1863-1928), atividade, visitando toda a ilha, especialmente
coautor do Elucidário Madeirense, que refere as antigas levadas, dando parecer sobre os me-
como data de nascimento de António Pedro lhoramentos a efetuar e das novas obras a em-
de Azevedo 7 de fevereiro de 1814, embora a preender. Ao mesmo tempo, ficava no Funchal
que consta nas suas folhas de matrícula mili- o capitão António Pedro de Azevedo, trabalhan-
tar seja 9 de fevereiro de 1812. do em São Lourenço e, por certo, em estreita re-
As desavenças entre Tibério Blanc e António lação com Sérvulo Drumond de Meneses (1802-
Pedro de Azevedo datavam de, pelo menos, os 1867), mais tarde, em 1862, seu compadre.
inícios de 1848. Tibério Blanc fora nomeado Os problemas entre os dois engenheiros agu-
por despacho régio de 23 de janeiro de 1839, dizam-se decididamente após a oficialização da
A zevedo , A nt ó nio P edro de ¬ 175

direção das obras públicas distritais, ocorrida divulgada nos periódicos locais, especialmente
em 1852, na sequência da criação, em Lisboa, em A Ordem (Funchal, 25 set., 13 nov., 4 e 18
do Ministério das Obras Públicas, Comércio dez. 1852), que representava então uma certa
e Indústria, em 28 de agosto desse ano, pelo ala esquerda da regeneração.
também engenheiro militar António Maria O Ministério das Obras Públicas, Comércio e
Fontes Pereira de Melo (1819-1887). À fren- Indústria, em Lisboa, no entanto, parece não
te da repartição do Funchal foi colocado Ti- ter entendido assim a situação, passando a en-
bério Blanc, que já em 27 de julho de 1847 carregar logo António Pedro de Azevedo de vá-
fora encarregado da inspeção geral e superior rios projetos na área das obras públicas e de-
das obras da Junta Geral e que estava há mais terminando a Tibério Blanc que entregasse o
tempo na Madeira, embora, mais velho, não projeto final das obras da levada do Rabaçal.
fosse hierarquicamente mais antigo. Nessa sequência, em fevereiro de 1853, exo-
A época corresponde a uma nova inflexão nerava Tibério Blanc do cargo da direção das
política da regeneração, proclamando-se o Obras Públicas, indicando que deveria entre-
Maj. António Pedro de Azevedo adversário po- gar a comissão a António Pedro de Azevedo.
lítico do anterior governador José Silvestre Ri- A passagem dos diversos materiais e, especial-
beiro, considerado localmente pelos “novos mente, o arquivo das obras públicas do distri-
regeneradores” como pouco dialogante e até to levantou inúmeros problemas, patentes em
autoritário. Com a nova situação, e não tendo vários ofícios trocados entre o Governo Civil e
sido nomeado como diretor geral das obras o Ministério.
públicas do distrito, António Pedro de Azeve- A atividade do Maj. António Pedro de Azeve-
do consegue ser nomeado inspetor das mes- do na área da cartografia foi verdadeiramen-
mas obras, escrevendo então a Tibério Blanc te notável, a ele se ficando a dever uma exce-
a comunicar-lhe as suas novas funções, solici- cional coleção de plantas das diversas vilas e
tando-lhe vários elementos sobre as obras do lugares da ilha da Madeira, referentes, essen-
Rabaçal e, inclusivamente, alojamento no local cialmente, à fortificação, mas também ao ur-
para proceder à inspeção das mesmas, ofícios banismo, constituindo o mais importante con-
depois divulgados nos periódicos do Funchal. junto iconográfico dos meados do séc. xix
As notícias das desavenças entre os dois en- legado à posteridade. A sua atividade como
genheiros só poderiam chegar aos periódicos engenheiro construtor, no entanto, conheceu
do Funchal através do Maj. António Pedro de vários percalços. A 3 de outubro de 1853, e.g.,
Azevedo, mesmo os protestos pelo atraso com a ponte do Porto da Cruz, após ter-lhe sido
que decorria a inspeção à levada do Rabaçal, retirado o “simples”, ruiu, o mesmo vindo a
a primeira a efetuar-se àquela obra, uma das acontecer, no mês seguinte, à ponte da vila de
mais importantes obras públicas da Madeira. São Vicente, que por pouco não vitimava 15
A questão arrastou-se pelos meses de outubro dos trabalhadores que aí se encontravam. Tal-
e novembro de 1852, embora Tibério Blanc ti- vez por isso, já a 31 de outubro, o visconde de
vesse logo colocado toda a obra à disposição de Fornos de Algodres suspendia o Maj. Azevedo
António Pedro de Azevedo, inclusivamente os das suas funções de diretor interino das Obras
serviços do apontador-geral, José Maria Passos. Públicas.
Os resultados acabaram por revelar que tudo O correspondente do periódico A Ordem em
se encontrava a decorrer conforme os proje- São Vicente, que geralmente defendia Tibério
tos inicialmente definidos, havendo perfeita Blanc, perante o acidente não deixa de relem-
consonância entre os trabalhos desenvolvidos brar a atuação do anterior engenheiro, que se
pelo Maj. Tibério Blanc e a inspeção efetuada não poupava a incómodos e fadigas, expon-
pelo Maj. António Pedro de Azevedo, como do-se muitas vezes a perigos eminentes, como
consta na carta do apontador-geral José Maria quando “mandou abrir a estrada do Passo
Passos, de 20 de novembro desse mesmo ano, da Areia, e deu princípio à da Rocha para o
176 ¬ A zevedo , A nt ó nio P edro de

Fig. 4 – Planta das Fortificações da Ilha da Madeira em 1855 (DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar).

Seixal”, só para que as obras não sofressem Pontinha, de outubro de 1847. Parece, assim,
algum inconveniente, do qual resultasse pre- que nos mais de 10 anos em que António
juízo público e à Fazenda (A Ordem, 8 out., 5 e Pedro de Azevedo esteve à frente daquele ar-
26 nov. e 3 dez. 1853). quivo se não apagou o antagonismo cultivado
O Maj. António Pedro de Azevedo havia de se na Madeira em relação a Tibério Blanc.
retirar para Lisboa em meados de 1865, onde
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivos Particulares, Doação Rui Carita, plantas
Tibério Blanc também já se encontrava, mas várias; Ibid., Diplomas; Ibid., Governo Civil, liv. 6, fl. 91v.; liv. 135, fl. 187; liv. 421;
conheceria uma outra carreira política. Co- AHM, Processos Individuais, cx. 842, Cunha; cx. 965, proc. 593-3, António
Pedro de Azevedo; DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia
ronel por dec. de 9 de agosto de 1865, pouco
Militar, António Pedro de Azevedo, Reconhecimento Militar da Ilha da Madeira,
depois de chegar ao continente seria nomea- Memória de 1841, 1344, 1A/12A/16 e 1345-43; 1860, 2772, 1A/12A/16; impressa:
do chefe de gabinete do ministro da Guerra, a CARITA, Rui (colab. Álvaro Vieira Simões), Arquitectura Militar da Madeira dos
Sécs. XVI a XIX, catálogo de exposição patente no Teatro Municipal do Funchal
18 de novembro de 1869, e, com essa nomea- por ocasião das comemorações nacionais do Dia de Portugal, de Camões e
ção, seria general um mês depois, a 13 de de- das Comunidades, 10 jun. 1981, Funchal, Zona Militar da Madeira, 1981; Id.,
Arquitectura Militar da Madeira. Séculos XVI a XIX, catálogo de exposição
zembro. Passaria ainda a diretor do arquivo da patente na Fundação Calouste Gulbenkian, 1982, Lisboa, FCG, 1982; Id., Paulo
Engenharia Militar, reformando-se a 31 de de- Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira, Funchal, DRAC, 1982; Id.,
História da Madeira, vols. vi-vii, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 2003
zembro de 1878, mas mantendo-se à frente do e 2008; Documentos para a História das Cortes Gerais, t. vi, Lisboa, Imprensa
arquivo e preparando a edição das suas cartas Nacional, 1889; MENEZES, Sérvulo Drumond de, Collecção de Documentos
Relativos á Construção da Ponte do Ribeiro Seco, Funchal, Typ. L. Vianna Junior,
geográficas do arquipélago. Faleceria em Lis- 1848; Id., Uma Época Administrativa da Madeira e Porto Santo a contar do Dia 7
boa, a 10 de agosto de 1889. de Outubro de 1846, 2 vols., Funchal, Typ. Nacional, 1849-1850; A Ordem, Funchal,
25 set. 1852; 13 nov. 1852; 4 dez. 1852; 18 dez. 1852; 8 out. 1853; 5 nov. 1853;
Nos arquivos da Engenharia Militar, constam 26 nov. 1853; 3 dez. 1853; SANTOS, Rui, “Um capitão de engenheiros (Tibério
quase uma centena de trabalhos assinados e Augusto Blanc, Santarém, 1810?; m. 1875)”, Jornal da Madeira, 25 dez. 1991; 5 jan.
1992; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
determinados por António Pedro de Azevedo,
Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VITERBO, Sousa, Diccionário Histórico
incluindo as plantas da levada do Rabaçal, mas e Documental dos Arquitectos, Engenheiros e Construtores Portugueses, 1899-1922,
reedição fac-símile, 3 vols., Lisboa, INCM, 1988.
nenhum com a assinatura de Tibério Augusto
Blanc, salvo um mapa de gastos da estrada da Rui Carita
A zevedo , C arlos O lavo C orreia de ( J únior ) ¬ 177

Azevedo, Carlos Olavo residir na R. Couraça de Lisboa, n.º 55, numa


casa que arrendara com Alberto Xavier, um
Correia de (Júnior) amigo que, referindo-se aos tempos de Coim-
Advogado, escritor, jornalista e político portu- bra, descreveu Carlos como alguém “atraente
guês, Carlos Olavo Correia de Azevedo Júnior pela exuberância de temperamento e pela viva-
nasceu na cidade do Funchal, às 02.45 h do cidade de espírito” (XAVIER, 1963, 12). Nessa
dia 7 de julho de 1880, tendo sido batizado a 4 mesma residência, habitaram José Montês e
do mês seguinte, na igreja paroquial de Santa Ramada Curto.
Maria Maior, templo onde já os seus pais Car- O envolvimento de Carlos Olavo na greve
los Olavo Correia de Azevedo e Maria Adelai- académica de 1907 acabou por ditar a sua ex-
de Cabral haviam contraído matrimónio, a 15 pulsão da Universidade, por um período de
de junho de 1878. Nascido no seio de uma fa- dois anos. Seria preso por tentar, juntamente
mília nobre madeirense, foi neto paterno de com outros colegas que também foram puni-
Fernando Correia de Azevedo e de Senhori- dos, forçar a entrada nas aulas. Meses depois,
nha de Velosa, neto materno de António Fer- foi amnistiado, tendo obtido o diploma, a 27
reira Cabral e de Maria Augusta de Freitas Mar- de julho de 1908, com a nota final de suficien-
tins, e também bisneto, pela parte paterna, de te, com 14 valores.
Domingos Olavo Correia de Azevedo (1799- Regressado a Lisboa, exerceu advocacia até
1855), magistrado que fora administrador-ge- à data da sua morte, ocorrida a 16 de novem-
ral da Madeira e que pertencera ao Conselho bro de 1958. Distinto advogado, com a cédula
de Sua Majestade, a Rainha D. Maria II. Carlos profissional n.º 1154, teve o seu primeiro escri-
Olavo teve dois irmãos: Mauro (1879-1970) e tório na R. de São Julião, transferindo-se, mais
Américo (1882-1927). tarde, para a R. Nova do Almada, n.os 18-20. Na
Foi um homem de baixa estatura (1,556 m), Ordem dos Advogados, fez parte do primei-
de cabelo castanho-escuro, de olhos da mesma ro Conselho Distrital de Lisboa, eleito na As-
tonalidade, de rosto redondo, e de boca e de sembleia realizada a 2 de junho de 1927. No
nariz regulares. Casou-se com Vera de Vascon- triénio 1930-1932, foi vogal do referido órgão,
celos de Bettencourt e tornou-se pai de Maria alcançando a presidência em 1942-1944. Inte-
de Bettencourt Rebelo de Beneducci, um ape- grou ainda a comissão redatora do Boletim da
lido que adveio do casamento desta com Pierre Ordem dos Advogados, cujo primeiro número foi
de Beneducci. dado à estampa em 1931. Nos últimos 10 anos
Desde cedo, demonstrou interesse por ques- da sua vida, foi vogal do Conselho Superior da
tões literárias e políticas. Em 1900, sendo estu- Ordem, o mais alto organismo da instituição.
dante na Escola Politécnica de Lisboa, fundou, Em 1910, foi nomeado secretário-geral do Go-
com outros alunos, a Liga Académica Repu- verno Civil de Lisboa, cargo que manteve até
blicana e os diários A Liberdade e A Marselhesa, 1945. Como membro do Partido Republicano
extintos por ordem do Juízo de Instrução Cri- Português, foi eleito deputado, em 1911, à As-
minal de Lisboa. No ano seguinte, foi iniciado sembleia Nacional Constituinte pelo círculo do
como maçon na loja Montanha, com o nome Funchal, o que sucedeu novamente em 1915,
de Saint-Just, vindo, mais tarde, a pertencer em 1919, em 1921 e em 1922. Nos anos 20,
às lojas Justiça e Acácia (1929). Em 1903, in- aquando da cisão do Partido Republicano Por-
gressou na Faculdade de Direito da Univ. de tuguês, acompanhou Álvaro de Castro, aderin-
Coimbra, urbe onde fundou um Centro Repu- do ao Partido Republicano de Reconstituição
blicano Académico, a 28 de janeiro de 1906. Nacional, e tornou-se líder parlamentar duran-
Na cidade do Mondego, começou por viver te o período em que aquele chefiou o Governo.
em pensões: em 1903-1904, residia na R. do Durante a Primeira Guerra Mundial (1914­
Cotovelo, n.º 14, e, no ano letivo seguinte, na ‑1918), integrou o Corpo Expedicionário Por-
R. da Trindade, n.º 25. Em 1905-1906, passou a tuguês, como alferes miliciano de artilharia,
178 ¬ A zevedo , C arlos O lavo C orreia de ( J únior )

tendo partido para a Flandres Jornal d’Um Prisioneiro de Guerra


na Alemanha (1918) (1919),
a 16 de maio de 1917. Dado de Carlos Olavo.
como desaparecido a 9 de
abril de 1918, na fatídica ba-
talha de La Lys, foi feito pri-
sioneiro pelos alemães, sendo do Padre José Agostinho de Ma-
conduzido, numa primei- cedo; João das Regras, Juriscon-
ra fase, para o campo de pri- sulto e Homem de Estado; A Vida
sioneiros de Rastatt e, poste- Amargurada de Filinto Elísio,
riormente, para o de Bresen. que dedicou a sua filha Maria
Sobre o infortúnio do cati- de Beneducci; e Homens, Fan-
veiro, que partilhou com seu tasmas e Bonecos. Ficou por
irmão Américo, capitão de in- publicar A Vida Aventurosa de
fantaria, escreveu Jornal d’Um Bocage, uma obra em que tra-
Prisioneiro de Guerra na Alema- balhou durante alguns anos.
nha, obra dada à estampa em Foi igualmente diretor políti-
1919. Conseguiria regressar a Portugal, por via co do jornal A Victória, órgão do Partido de Ál-
terrestre, chegando a Lisboa a 6 de fevereiro varo de Castro, e colaborou em diversos perió-
desse ano. Pela bravura evidenciada na supra- dicos, e.g.: Primeiro de Janeiro, Diário de Lisboa,
mencionada batalha, permanecendo no seu e Revista da Ordem dos Advogados. Tendo o seu
posto apesar de já não ter munições, recebeu a mérito literário sido reconhecido, foi conde-
medalha da Cruz de Guerra, de 3.ª classe. corado com o grau de oficial de Santiago de
Durante o Estado Novo, foi acusado de não Espada.
estar devidamente integrado nas doutrinas e Carlos Olavo de Azevedo encontra-se sepul-
nos processos que regiam o regime, tendo sido tado no cemitério dos Prazeres, em Lisboa,
considerado um funcionário público (secretá- onde a 17 de novembro de 1958, pelas 16.30
rio-geral do Governo Civil de Lisboa) de pouca h, teve lugar o seu funeral. Na cerimónia fúne-
confiança, uma suspeita que resultara de um bre, compareceram personalidades distintas,
auto de averiguação instaurado após um episó- designadamente o madeirense Pedro Góis Pita
dio ocorrido a 1 de dezembro de 1936, na sua (1891-1974), bastonário da Ordem dos Advo-
casa em Oliveira do Conde, concelho de Car- gados (1957-1959), o Prof. Inocêncio Galvão
regal do Sal, onde fora passar o dia em com- Teles (1917-2010), diretor da Faculdade de Di-
panhia de dois amigos de longa data, Alberto reito da Univ. de Lisboa, e Martin Blake, dire-
Xavier e Xavier da Silva. Procurado por uma tor do Instituto Britânico.
comissão cujo fim era angariar donativos para
os nacionalistas espanhóis, recusou contribuir. Obras de Carlos Olavo Correia de Azevedo Júnior: Jornal d’Um Prisioneiro
de Guerra na Alemanha (1919); A Vida Turbulenta do Padre José Agostinho de
Não só os motivos apresentados para a recu- Macedo (1939); João das Regras, Jurisconsulto e Homem de Estado (1941); A Vida
sa, mas também a intervenção oral de um dos Amargurada de Filinto Elísio (1945); Homens, Fantasmas e Bonecos (1954).

seus amigos, Xavier da Silva, acabaram por ori- Bibliog.: manuscrita: ABM, Registos Paroquiais, Santa Maria Maior, Batismos,
ginar uma denúncia. Se bem que Carlos tenha liv. 2098, fls. 39v.-40; Ibid., Registos Paroquiais, Santa Maria Maior, Casamentos,
liv. 2130, fls. 13-13v.; AHM, Livro de Matrícula do Pessoal, Registo das Praças
conseguido manter o seu cargo, Xavier aca- do 2.º Batalhão (1901-1905), liv. 47, doc. 957, Carlos Olavo Correia de Azevedo
bou por ser preso, acusado de professar ideias Júnior; Ibid., Portugal e Campanhas na Europa, Boletins Individuais de
Militares do CEP 1914/1918, Oficiais, cx. 6, Carlos Olavo Correia de Azevedo;
comunistas. ANTT, Secretaria Geral da Presidência do Conselho de Ministros, Gabinete
Além da advocacia e da política, destacou-se do Presidente, cx. 10, proc. 302/5, n.º 9; impressa: Annuário da Universidade
de Coimbra, anos letivos de 1903-1904 a 1908-1909, Coimbra, Imprensa
no campo das letras. Foi autor de vários livros, da Universidade, 1903-1909; CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de
tendo publicado, além do atrás mencionado Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983;
“Dr. Carlos Olavo”, Diário de Notícias, Funchal, 17 nov. 1958, p. 8; DUARTE,
Jornal d’um Prisioneiro de Guerra na Alemanha, António Paulo, “Azevedo, Carlos Olavo Correia de”, in ROLLO, Maria Fernanda
também as seguintes obras: A Vida Turbulenta (coord.), Dicionário de História da I República e do Republicanismo, vol. i,
A zevedo , D omingos O lavo C orreia de ¬ 179

Lisboa, Assembleia da República, 2013, pp. 343-344; “O funeral do Dr. Carlos


Olavo”, Diário de Lisboa, 17 nov. 1958, pp. 8, 11; LISBOA, Eugénio (coord.),
Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, vol. iii, Lisboa, Europa-América,
1994; MARQUES, A. H. de Oliveira, Dicionário de Maçonaria Portuguesa, vol. i,
Lisboa, Delta, 1986; Id., Parlamentares e Ministros da 1.ª República (1910-1926),
Lisboa, Assembleia da República, 2000; NOGUEIRA, João Paulo, “Carlos Olavo,
um deputado nas trincheiras. Reflexões sobre a Grande Guerra e a República”,
in Portugal, 1914-1916. Da Paz à Guerra. Actas do XXIII Colóquio de História
Militar, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2015, pp. 595-611;
REGO, Maria João de Figueiroa, O Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos
Advogados, Lisboa, Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados,
2010; SILVA, António de Mattos e, Anuário da Nobreza de Portugal, ano iii, t.
iii, Lisboa, DisLivro Histórica, 2006; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional
de Turismo e Cultura, 1998; XAVIER, Alberto, História da Greve Académica de
1907, Coimbra, Coimbra Editora, 1963; digital: FREITAS, João Abel de, “Carlos Fig. 1 – Pecunia madeirensis, x réis, 1842 (coleção particular).
Olavo, figura republicana madeirense”, Diário de Notícias, Funchal, 28 fev. 2016:
http://www.dnoticias.pt/impressa/diario/opiniao/571311-carlos-olavo-figura-
republicana-madeirense (acedido a 23 maio 2016).
mês de outubro de 1835, o seguinte governa-
Ricardo Pessa de Oliveira
dor civil, o 1.º conde de Carvalhal (1778-1837),
nomeou um conselho provisório da provín-
Azevedo, Domingos Olavo cia, constituído pelos nomes que iriam fazer
Correia de carreira no Funchal nos anos seguintes: João
Agostinho Jérvis de Atouguia, secretário-geral,
Domingos Olavo Correia de Azevedo nasceu Domingos Olavo Correia de Azevedo, depois
no Funchal, a 29 de agosto de 1799, e foi filho também secretário-geral e governador civil, e
de Matias Correia de Azevedo, natural da fre- Filipe Joaquim Acciauoli Júnior (uma situação
guesia da Sé, e de Antónia da Costa do Monte. confirmada por Lisboa, a 10 de fevereiro se-
Estudou na Univ. de Coimbra, onde se salien- guinte). A 15 de dezembro de 1835, o conde
tou pelas suas ideias liberais, chegando a ser de Carvalhal abdicou dos seus ordenados a
preso na Sala dos Capelos daquela universi- favor do governo civil, para as “urgências do
dade, em 1824, no motim ocorrido por oca- Estado” (ABM Governo Civil, liv. 93, fl. 153v.),
sião do regresso a Portugal do infante D. Mi- tal como os ministros haviam feito em Lisboa
guel (1802-1866). Após completar o seu curso (embora esses só houvessem abdicado de me-
em Coimbra, em 1825, regressou ao Funchal, tade dos seus salários), e, a 10 de fevereiro de
onde começou a advogar, tendo-se casado, a 29 1836, o novo secretário-geral do governo civil,
de setembro de 1834, com Maria Cândida de João Agostinho Jérvis de Atouguia, começou a
Oliveira (c. 1825-1887), viúva do comerciante assinar a documentação. O conde de Carvalhal
e proprietário Francisco de Oliveira. retirar-se-ia para a sua quinta do Palheiro Fer-
Com a chegada do primeiro governador libe- reiro, aí falecendo a 11 de novembro do ano
ral ao Funchal, então sob a designação de pre- seguinte.
feito, o Ten.-Cor. Luís da Silva Mouzinho de Al- O jovem Domingos Olavo Correia de Aze-
buquerque (1792-1846) tornou-se um dos seus vedo, em setembro de 1838, assumiria o lugar
principais apoios, sendo nomeado, a 3 de feve- de secretário da Comissão da Fazenda Pública,
reiro de 1835, juiz da levada do Pisão, na fre- presidida pelo contador da Fazenda, Francisco
guesia do Monte, onde possuía propriedades, Correia Herédia (1793-1880), depois deputa-
e, em abril do mesmo ano, juiz de fora interi- do e avô do visconde da Ribeira Brava (1852-
no do Funchal. A 3 de outubro desse ano de 1918), uma das importantes figuras políticas
1835, recebeu também uma nomeação régia dos finais do séc. xix e inícios do séc. xx. Aque-
como juiz de distrito de 1.ª instância do julga- la Comissão incluía ainda o secretário da Al-
do ocidental da província da ilha da Madeira fândega, Roberto Leal (c. 1790-c. 1850), e José
e do Porto Santo, ocupando depois o lugar de Joaquim da Trindade. Em setembro desse ano,
presidente da Câmara do Funchal. No final do devido às alterações governamentais ocorridas
180 ¬ A zevedo , D omingos O lavo C orreia de

em Lisboa, ainda seria necessário preencher (1792­‑1863), então elevado a barão de Lorde-
um lugar de senador, para o qual foi elei- lo. O barão, no entanto, pediu a exoneração
to João Gualberto de Oliveira (1788-1852), e passado pouco tempo, e o governo começou a
também os vários lugares de deputados, para ser assegurado pelo 13.º morgado do Caniço,
que foram eleitos como deputados substitutos Aires de Ornelas e Vasconcelos (1779-1852),
Domingos Olavo Correia de Azevedo e o Cón. como administrador-geral interino, a partir de
Gregório Nazianzeno de Medina e Vasconce- 2 de janeiro de 1841. Aires de Ornelas, contu-
los (1788-1858). Em novas eleições, seria eleito do, pediria igualmente a exoneração, alvitran-
ainda nesse ano, dado ter havido novas vagas, do dificuldades económicas, sendo o lugar en-
Daniel de Ornelas e Vasconcelos (1800-1878), tregue a Domingos Olavo Correia de Azevedo.
o futuro barão de S. Pedro, para uma vaga de Domingos Olavo Correia de Azevedo ocupou
senador, e Domingos Olavo Correia de Azeve- a posição de deputado substituto nas eleições
do, novamente para deputado substituto. seguintes, e, por decreto de 26 de fevereiro de
Data do governo de Gamboa e Liz a rees- 1841, foi nomeado administrador-geral do dis-
truturação da oficina impressora até então trito, lugar de que tomou posse a 2 de abril do
montada nas instalações de S. Lourenço, de- mesmo ano, conforme a portaria de 29 desse
pois transferida para o extinto Convento de mesmo mês. Data do governo de Olavo Cor-
São Francisco, com acesso pela porta da R. de reia de Azevedo a instalação da Junta de 1842,
São Francisco. A 24 de fevereiro de 1838, aque- reformulada pelo decreto de 8 de março nesse
le administrador-geral mandava distribuir um ano, a partir do qual passou a contar com sala
aviso que fora impresso nas novas instalações, própria em S. Lourenço, horário e dias esta-
informando que a Tipografia Nacional estava belecidos para as reuniões, tendo já o admi-
apta a imprimir quaisquer “obras de particu- nistrador-geral participado nas assembleias
lares, em qualquer língua, por preços cómo- preparatórias anteriores. Os procuradores à
dos e taxados para as obras grandes” (ABM, Al- Junta Geral começaram, a partir de 30 de abril
fândega do Funchal, liv. 675, Aviso de 24 fev. desse ano, a reunir-se em S. Lourenço todos
1838). O aviso apresentava também uma tabela os sábados não feriados, pelo meio-dia, passan-
de preços e informava que as obras em línguas do as reuniões a ter atas a partir de 9 de maio
estrangeiras, de que não existissem tradutores desse ano. Data desse ano a primeira emissão
oficiais, teriam de ser acrescidas dessa despesa. de uma moeda para circular na Madeira, a pe-
Divulgavam-se assim os impressos para as várias cunia madeirensis, com o valor facial de X réis,
cerimónias oficiais, com espaços em branco uma emissão devida ao então ministro Conde
para se acrescentar, em manuscrito, o evento e de Tojal que se repetiria nos anos seguintes,
o horário. A 30 de maio, já o então presidente embora tais emissões nunca chegassem para as
da Câmara do Funchal, Sérvulo Drumond de necessidades de circulação monetária da praça
Meneses, através de impresso, convidou as res- do Funchal.
tantes autoridades do Funchal para mais um Te Conta o Elucidário Madeirense que o início do
Deum na Catedral, “pelas 11 da manhã” do dia governo de Domingos Olavo Correia de Aze-
5 de junho pelo aniversário da “nossa Restaura- vedo foi marcado por um interessante episó-
ção” (Ibid., Alfândega do Funchal, liv. 675, con- dio de afirmação da soberania nacional. Nos
vites de 30 maio e 2 abr. 1838), e em 1840 o começos de 1841, o patacho britânico Bernar-
presidente seguinte, Domingos Olavo Correia da teria sido encontrado a fazer contrabando
de Azevedo, fez um convite idêntico, então nas águas da Madeira; obrigado a entrar no
para o Te Deum comemorativo da “Restaura- porto do Funchal pela fiscalização marítima,
ção do Governo Legítimo” (Ibid., Alfândega do foi apreendido e, posteriormente, vendido em
Funchal, liv. 675, 25 maio 1840). hasta pública, de acordo com as leis aduaneiras
A administração-geral veio a ser ocupada e internacionais. Pouco tempo depois, a 8 de
depois pelo Brig. José da Fonseca e Gouveia agosto desse ano, entrou na baía da cidade o
A zevedo , D omingos O lavo C orreia de ¬ 181

navio de guerra Savage, comandado pelo Ten.


Bowquer, que, em nome do Alm. Alexander
George Woodford (1782-1870), o comandan-
te das forças britânicas de Gibraltar, exigiu a
imediata entrega do Bernarda, com a ameaça
de exercer represálias, se não fosse pronta-
mente atendido. O administrador-geral recu-
sou terminantemente aceder à entrega, tendo
a sua posição sido depois louvada pelo Gover-
no de Lisboa. O Elucidário refere ainda que o
Gen. John Adams Dix (1798-1879), que esteve
no Funchal entre 12 de novembro de 1842 e
17 de março de 1843, tendo sido governador
de Nova Iorque, entre 1873 e 1875, fez as mais
elogiosas referências ao Gov. Domingos Olavo,
na sua obra A Winter in Madeira and a Summer
in Spain and Florence, editada em 1850, dando-o
como natural da Madeira, algo que os autores
em causa achavam não ser exato (uma dúvida
que o Eng.º Peter Clode desfez, entretanto).
Os finais de 1842 foram marcados na Ma-
deira por mais um terrível desastre ecológico:
a aluvião de 24 de outubro, que, embora não
atingindo os efeitos catastróficos da congéne-
re de 9 de outubro de 1803, com um quantita-
tivo de 600 mortos ocorridos por toda a costa
sul da Ilha, não deixou, mais uma vez, de ar-
rasar casas e fazendas, lançando muita gente
na mais precária situação económica. Além
das terríveis inundações do dia 24, um grande
temporal varreu a baía do Funchal dois dias
depois, chegando as vagas a atingir a esplana- Fig. 2 – House of Colombus, gravura publicada por John Adams
da da fortaleza do Ilhéu. Perderam-se 10 ou Dix (DIX, 1853).

11 embarcações, algumas de grande porte.


Contra os arrifes de Santa Catarina foram lan- auxílio a Lisboa, enumerando alguns dos prin-
çados o bergantim americano Creole e a escu- cipais prejuízos, entre os quais a perda de
na inglesa Wave e, sobre o calhau da praia das muita documentação da Alfândega do Fun-
Fontes, quase em frente a S. Lourenço, foram chal, “com imenso prejuízo ocasionado pela
igualmente lançados o patacho ou o brigue- aluvião” (ABM, Governo Civil, liv. 93, fl. 17),
-escuna português Novo Beijinho, do mestre pelo que, segundo o ofício para o deputa-
Joaquim Trindade, do qual se perderam três do Lourenço José Moniz (1789-1857), a 7 de
tripulantes, e o bergantim inglês Dart, do mes- março do seguinte ano de 1843, foi solicitada a
tre John Avith. O triste espetáculo do Dart e redução das pautas da Alfândega. Pediu-se au-
do Novo Beijinho, lançados na praia do Fun- xílio igualmente ao antigo prefeito Luís Mou-
chal, ficaria para sempre registado em várias zinho de Albuquerque, então diretor-geral das
aguarelas da época. Obras Públicas. A situação levou à constitui-
O administrador-geral oficiou de imedia- ção de uma Comissão Central de Auxílio para
to aos deputados da Madeira para pedirem tentar minimizar os efeitos da catástrofe, que
182 ¬ A zevedo , D omingos O lavo C orreia de

Fig. 3 – Wrecks of the Dart & Novo Beijinho, desenho a aguarela de Emily Geneviève Smith (26 out. 1842) (Museu Quinta das Cruzes).

começou a reunir-se em S. Lourenço, a partir Funchal. A 12 de novembro, e devido ao al-


de 27 de abril de 1843, e cujas reuniões se pro- vará régio de 1 de outubro desse ano, foram
longaram até 2 de junho de 1844. A essas as- nomeados, como substitutos para a adminis-
sembleias também compareceram várias vezes tração do concelho do Funchal, Sérvulo Dru-
os principais comerciantes ingleses, como João mond de Meneses (1802-1867), António João
Blandy (1783-1855) e Diogo Selbey, na altura de França e António Joaquim da Câmara Mes-
cônsul inglês na Ilha, que conseguiram reu- quita, sendo exonerados os anteriores: João
nir três contos de réis para apoio das vítimas. Agostinho Perry da Câmara, Filipe Joaquim
Através desses contactos e dos da Associação Ferreira Ferro e Telésforo José Inocêncio Ca-
Comercial do Funchal, ter-se-iam igualmente macho. Em dezembro, aconteceu a substitui-
conseguido outros apoios, especialmente da ção do administrador, cargo que passou para
Câmara de Auxílio de Lisboa, presidida pelo João Crisóstomo Pereira Uzel, sendo exonera-
marquês do Faial (1818-1864) e pelo bispo do Manuel Santana e Vasconcelos (1798-1851).
eleito do Porto, assim como dos distritos dos No entanto, um mês depois, no final de janeiro
Açores. Em abril de 1843, começavam a che- de 1843, “usando da faculdade concedida pelo
gar as doações, e em 17 de julho, a informação art. 245 do Código Administrativo” (Ibid., Go-
de que a subscrição realizada no continente verno Civil, liv. 93, fl. 100), o Gov. Domingos
rendera 600 patacões brasileiros, tendo depois Olavo Correia de Azevedo nomeava Valentim
chegado em setembro mais seis contos de réis Mendonça Drumond interinamente para subs-
provenientes dos Açores. tituto da administração do Concelho, visto que
Os últimos meses de 1842 foram dedicados o lugar se encontrava vago devido à nomeação
à reestruturação dos quadros diretivos da Ma- de Sérvulo Drumond de Meneses para vogal da
deira que se encontravam estabelecidos no comissão do distrito.
A zevedo , D omingos O lavo C orreia de ¬ 183

Nos inícios de 1842, entretanto, tinham de guerra Douro, mas “sem qualquer indicação
ocorrido novas alterações no continente, do seu destino ou pena” (Ibid., Governo Civil,
sendo dissolvidas as Cortes, por decreto de 10 liv. 643, fl. 117), que foram então enviados para
de fevereiro, e declarada em vigor, novamen- a fortaleza de S. João do Pico. Os presos regres-
te, a antiga Carta de 1826, algo que veio mais sariam ao continente no patacho Zarco, em de-
uma vez a ser celebrado no Funchal por um zembro desse ano, novamente sem indicações
Te Deum, a 27 de fevereiro, em “ação de gra- especiais, pelo que nem se sabe sequer quem
ças pelo plausível motivo de se achar em vigor seriam, voltando o governador a escrever para
a Carta Constitucional de 1826” (ABM, Alfân- Lisboa a pedir indicação da rubrica orçamen-
dega do Funchal, liv. 676, convite impresso). tal onde deveria indexar a despesa de 150$000
Por decreto da data de dissolução das Cortes e réis que fizera com o transporte dos mesmos
pelo decreto de 5 de março, foram marcadas “presos políticos” (Ibid., Governo Civil, liv. 643,
novas eleições, que vieram a ocorrer em junho fl. 118).
desse ano. Foram então eleitos Luís Vicente de Terminada a agitada legislatura de 1842 a
Afonseca (1803-1878), Bartolomeu dos Márti- 1844 em Lisboa, o decreto de 25 de abril de
res Dias e Sousa (1806-1882), João da Câma- 1845 ordenou uma reunião das assembleias
ra Leme Carvalhal Esmeraldo (1831-1888) e eleitorais, que ocorreria em agosto do ano se-
o futuro conselheiro Francisco Correia Heré- guinte. Nessa altura, a Madeira confrontou-se
dia, mantendo o administrador-geral o lugar com a diminuição de quatro para três depu-
de deputado substituto. tados, devido à atenção atribuída ao censo de
Nos inícios de 1844, rebentavam, entretan- 1840, ignorando-se o mais recente, que era
to, novos pronunciamentos militares, em Tor- do ano anterior. Conforme se queixa a então
res Novas e em Almeida, e, embora as eleições Junta de 1842, num documento que o gover-
de 1845 viessem a dar um folgado triunfo aos nador transcreve para o Ministério do Reino,
apoiantes de Costa Cabral (1803-1889), foram- o decreto entrara em linha de conta com um
-lhes apontadas as maiores irregularidades. Por quantitativo de 25.040 fogos correspondentes
essa altura, o administrador-geral do distrito, ao ano de 1840, que equivalia a três deputa-
Domingos Olavo Correia de Azevedo, escre- dos, e não com o de 26.106 fogos, que era o
via para o Governo de Lisboa a congratular-se número relativo a 1844, correspondendo aos
por haver “sido superada a revolta que, inicia- quatro deputados que o distrito até então ele-
da em Torres Novas, terminara em Almeida” gia. Mas a queixa acabou por não ser aceite em
(ABM, Governo Civil, liv. 643, fl. 84) e a infor- Lisboa, tendo sido eleitos somente três depu-
mar que não tinha havido na Madeira quais- tados: de novo, Lourenço José Moniz, Luís Vi-
quer mudanças por esse motivo; e, embora, no cente de Afonseca e Bartolomeu dos Mártires
aspeto político, corresse tudo bem na Madeira, Dias e Sousa.
também alertava, mais uma vez, para a possi- No Minho, entretanto, rebentava a chamada
bilidade de acontecer um confronto grave no revolta da Maria da Fonte e, na sua sequência,
campo religioso, conforme ele próprio vinha foi montada uma junta governativa em Trás-
sublinhando há muitos meses, sem que tivesse -os-Montes, a que se seguiu a Junta do Supre-
obtido qualquer resposta ou diretiva de Lisboa mo Governo do Porto, enquanto o Governo
para poder enfrentar ou delimitar a situação. de Costa Cabral caía. Para o novo Governo,
Em causa, estavam as atividades proselitistas foi chamado o duque de Palmela (1781-1850),
do reverendo Robert Reid Kalley (1809-1888), que, para a pasta do Reino, convidou mais
que teriam depois profundas repercussões na- uma vez o antigo prefeito da Madeira, Luís
cionais e internacionais. da Silva Mouzinho de Albuquerque. O Gover-
A 23 de maio de 1844, o governador infor- no de Lisboa empreendeu então uma série de
mava da chegada ao Funchal, em abril desse recuos, suspendeu as leis da saúde pública e
ano, de 10 presos políticos, vindos no brigue da reforma tributária, e exonerou uma série
184 ¬ A zevedo , J aime B oaventura de

de quadros superiores, entendidos como fa- combatentes e inclusivamente prisioneiros na


zendo parte do anterior sistema. Entre os sus- Primeira Guerra Mundial, após a batalha de La
pensos, estava o governador civil do distrito do Liz, de 9 de abril de 1918.
Funchal, Domingos Olavo Correia de Azevedo,
Obras de Domingos Olavo Correia de Azevedo: Projecto de Regulamento para
suspenso por ordem de 30 de junho de 1846, a Santa Casa da Misericórdia e Seu Hospital (1871).
tendo o lugar sido entregue ao juiz da Câma-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Alfândega do Funchal, livs. 675-676; Ibid.,
ra do Funchal, Valentim de Freitas Leal, que Governo Civil, livs. 6, 93, 153, 192, 421 e 643-654; ANTT, Chancelaria de
começou a ocupá-lo como governador civil in- D. Maria II, liv. 4; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. vii, Funchal,
Secretaria Regional da Educação/Universidade da Madeira, 2008; CLODE, Luiz
terino, tomando posse a 13 de julho seguinte.
Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Olavo Correia de Azevedo começara como ad- Económica do Funchal, 1983; DIX, John Adams, A Winter in Madeira and
A Summer in Spain and Florence, 3.ª ed., New York, D. Appleton & Company,
ministrador-geral e acabaria assim como gover-
1853; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
nador civil. Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998.
Domingos Olavo Correia de Azevedo, que Rui Carita
fora lançado nas lides políticas pelo prefeito
Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, veio
a ser demitido pelo mesmo, então como mi-
Azevedo, Jaime Boaventura de
nistro do Reino, sinal absoluto de que a vida
política em Lisboa, e também, com certeza, no Jaime Boaventura de Azevedo (1887-1944) nas-
Funchal, não se encontrava estável. Mouzinho ceu no Funchal mas muito novo viajou para
de Albuquerque haveria de falecer em comba- Lisboa, onde fixou residência.
te, em dezembro de 1846, durante a revolta da Licenciou-se em 1916 em Agronomia, foi res-
Patuleia; o governador do Funchal já antes se ponsável pela reconstrução do Horto de Quí-
tinha apercebido da possibilidade de conflitos, mica Agrícola, e integrou o Instituto Superior
pois apresentara a sua demissão pouco tempo de Agronomia, onde foi docente das discipli-
antes, alegando razões de doença. Olavo Cor- nas de Química Geral e Análise e de Química
reia de Azevedo haveria de se retirar quase de Agrícola, esta última, a partir de 1929.
imediato para Lisboa e não regressou ao Fun- Ao longo da sua carreira, desenvolveu inves-
chal; no entanto, ocupou depois durante mui- tigação na área da análise química agrária, que
tos anos, como deputado substituto, o lugar de era indispensável para o cálculo da adubação.
representante da Madeira nas Cortes, devido Não desenvolveu de forma direta a divulgação
às inúmeras alterações sequentes pelos deputa- dos adubos em Portugal, mas contribuiu para
dos efetivos eleitos. o estudo científico destas substâncias.
O trabalho Projecto de Regulamento para a A sua investigação surgiu no momento do
Santa Casa da Misericórdia e seu Hospital, que início do fabrico de superfosfatos em Portugal
elaborara no Funchal, em 1844, e enviara para e do começo da comercialização de diversos
Lisboa, viria a ser impresso somente em 1871, adubos minerais elementares, que estavam a
depois de ter falecido em Lisboa, a 9 de março ser importados.
de 1855. Entre os descendentes de Domingos Boaventura de Azevedo criou o Curso de
Olavo Correia de Azevedo, contam-se Carlos Aperfeiçoamento de Química destinado a en-
Olavo Correia de Azevedo (1881-1958), que genheiros agrónomos que exerciam a sua ati-
fora deputado pela Madeira nas eleições de vidade no campo químico da investigação
1911 e de 1915, o irmão Américo Olavo Cor- agronómica, cujo principal objetivo seria o
reia de Azevedo (1881-1927), também depu- de intensificar os conhecimentos de análise
tado pela Madeira, nas eleições de 1918, que química.
depois de ter sido ministro da Guerra, faleceu Os seus estudos permaneceram no mundo
na revolta de 8 de fevereiro de 1927, e também académico através das suas publicações: em
Mauro Olavo Correia de Azevedo (1879-1970); 1933, publicou Apontamentos da Cadeira de Quí-
foram os aguerridos republicanos, bem como mica Agrícola, o primeiro conjunto de textos de
A zevedo , J o ã o da C osta de A ta í de e ¬ 185

apoio aos seus alunos, onde contempla vários


tópicos, desde a matéria orgânica do solo à fer-
tilização e adubos químicos; em 1939, foi divul-
gada a obra Nitreiras sem Moscas. Outros ensaios
estavam a ser preparados; contudo, o faleci-
mento de Boaventura em 1944, aos 56 anos,
impossibilitou a sua publicação.
Jaime Boaventura de Azevedo teve, ao longo
da sua vida de docente e engenheiro agróno-
mo, o objetivo de educar as novas gerações
para o desenvolvimento agrário, principal-
mente na região portuguesa.

Obras de Jaime Boaventura de Azevedo: Apontamentos da Cadeira de


Química Agrícola (1936); Nitreiras sem Moscas (1939).

Bibliog.: “A descoberta dos adubos minerais e a sua divulgação em Portugal”,


Revista de Ciências Agrárias, vol. 36, n.º 1, 2013, pp. 104-122; PORTO DA CRUZ,
Visconde do, Notas & Comentários da História Literária da Madeira, vol. iii,
Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1953.
Armas dos Costas do Thesouro da Nobreza de Portugal (1783),
de Manuel de Santo António e Silva (ANTT, Casa Real..., liv. 16).
Joana Pinto Salvador Costa

25 de janeiro de 1700, o regulamento de sal-


Azevedo, João da Costa vas que tinha sido enviado ao seu antecessor e
de Ataíde e que, entretanto, não teria sido registado. O re-
gimento começa por referir a obrigatoriedade
João da Costa de Ataíde e Azevedo Coutinho de salvas, mesmo em relação às embarcações
(c. 1650-1704), de seu nome completo, era inglesas e francesas, “que por vezes não usam”
filho de Gonçalo da Costa Coutinho – que ser- esse tipo de cumprimento. Responder-se-ia
vira na armada da Costa e tinha participado na com igual número de salvas aos navios de ca-
fatídica armada de D. Manuel de Meneses, de pitanias reais, com menos uma aos navios al-
1637 – e de D. Isabel de Ataíde e Azevedo, filha mirantes e com menos duas aos restantes. Aos
única e herdeira de D. João de Ataíde e Azeve- navios suecos e dinamarqueses, que não salva-
do, capitão de cavalos e comissário da cavalaria vam com números certos, “pois tanto salvam
da província do Alentejo. O novo governador com um tiro, como com quatro ou seis” (ABM,
tinha sido capitão de Infantaria dos familiares Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral,
de Lisboa e depois do terço da Armada. Teve t. 7, fl. 245v.), responder-se-ia sempre, mas com
patente de governador e capitão-general da menos um tiro, caso salvassem com vários.
ilha da Madeira a 1 de março de 1701, toman- As boas relações entre os governadores e os
do menagem a 6 de abril e posse, no Funchal, bispos do Funchal eram essenciais para o fun-
a 12 de junho desse mesmo ano, substituindo cionamento geral das instituições insulares,
o mestre de campo dos auxiliares de Lisboa, como aliás referira um alto funcionário da
D. António Jorge de Melo (c. 1645-1703). corte de Lisboa, que pensamos ter sido Antó-
Nesta época, um dos principias assuntos de nio de Freitas Branco (1639-c. 1700), madei-
preocupação dos governadores – e que foi um rense e desembargador da Casa da Suplicação,
dos especificamente regulados – era o das sal- quando o anterior governador, António José de
vas, face ao aumento quase exponencial de ar- Melo, solicitara informações “de como se devia
madas de outras nacionalidades no porto do portar o governador [...], para fazer bem a sua
Funchal. Nesse quadro, quando o novo gover- obrigação, e dos interesses que tinha”. Espe-
nador veio para a Ilha, trouxe, com data de cificava o informador que o novo governador
186 ¬ A zevedo , J o ã o da C osta de A ta í de e

deveria, logo à chegada, visitar o bispo, com Lourenço”, salão de que não temos qualquer
quem, em princípio, deveria manter as melho- outra informação, “e uma conspiração que in-
res relações possíveis, pois nisso “consiste todo tentaram fazer os soldados”, “tentando tirar a
o sossego da terra e a sua quietação” (BNP, Co- vida” (ABM, Câmara Municipal do Funchal,
leção Pombalina, cód. 526, fls. 275-282). De- Registo Geral, t. 7, fl. 245v.) ao governador e
veria mesmo haver uma específica atenção a ao juiz de fora da câmara, então António de
tudo o que se relacionasse com o prelado dio- Macedo Velho. No atentado ao governador
cesano, não permitindo que na sua presença teria estado envolvido o capitão de artilharia
se murmurasse a seu respeito e, no caso de isso António Nunes, que imediatamente a seguir
acontecer, deveria repreender-se asperamente à sedição se ausentou do Funchal, tal como o
quem o tivesse feito. provedor da Alfândega. Por causa desta sedi-
Acontece, porém, que terá havido alguma ção, deslocou-se ao Funchal, com poderes ex-
desarmonia entre estas duas autoridades e, cecionais, o desembargador Diogo Salter de
tendo o bispo, D. José de Sousa Castelo Bran- Macedo (1654-c. 1730), com provisão passada
co (1654-1740), solicitado que o governador em Lisboa, a 7 de janeiro de 1704, que se apre-
colocasse homens da milícia das companhias sentou na Madeira a 9 de junho desse ano. Em
de ordenanças do Funchal às suas ordens, prol da correção das suas averiguações, dever-
João da Costa de Ataíde recusou-se a aceder -se-ia fazer sair da cidade o governador, João
ao pedido e, depois de enviar o assunto ao Rei da Costa de Ataíde, “em distância de dez lé-
D. Pedro II (1648-1706), teve o seu apoio ex- guas, para que não fosse, com a sua presença
presso em alvará régio, emitido a 15 de janeiro e poder, assistindo” às averiguações, interferir
de 1703. As posições devem ter-se extremado nas mesmas. Nas ordens do desembargador,
e para isso deverá ter contribuído o arcediago vinha expresso: “e na mesma embarcação em
da Sé do Funchal, António Correia de Betten- que fores tirar esta devassa, voltará o provedor
court (1664-1725), sucessivamente promovido da fazenda Manuel Mexia, por não ser conve-
por este prelado e irmão do cronista Henrique niente que fique na Ilha depois da vossa chega-
Henriques de Noronha (1667-1730). da, para se não dar tempo a negociações, e por
Assim se explica a defesa do bispo e, acrescen- ser o dito Provedor da Fazenda envolvido em
te-se, do irmão, que levou Noronha a escrever mais suspeições” (Ibid.).
que, em 1703, D. José de Castelo Branco, “em As questões em causa terão tido uma signifi-
razão do ofício de bom Pastor, teve algumas cativa gravidade e envolvido também o bispo,
dissensões com o governador João da Costa de pois ficou escrito no regimento do desembar-
Ataíde e com o provedor da fazenda real, o de- gador: “E a queixa contra o Bispo deverá ser
sembargador Manuel Mexia Galvão, de cujos queimada, para dela não ficar nada, nem me-
procedimentos se queixou a el-rei D. Pedro II”. mória, e disso deverá ser dado conhecimen-
O Rei enviou então um sindicante ao Funchal, to ao Bispo, para o mesmo saber como o Rei
“para que chamando o dito Provedor à Câma- e as suas Justiças tratam semelhantes casos”
ra, lhe estranhara corretivamente os seus pro- – o que não foi aquilo que Henrique Henri-
cedimentos, fazendo-o assim saber ao dito Pre- ques de Noronha acabou por escrever. Neste
lado. Tudo consta da provisão passada a sete de caso, havia ainda queixas contra a família No-
janeiro de 1704” (NORONHA, 1996, 127-128). ronha, a que pertencia o arcediago, e contra
Ora, o que consta da provisão datada de 7 de a família do vigário-geral da Diocese, e ainda
janeiro de 1704 não é, contudo, isso – e envol- se encontrava envolvido o juiz de fora da câ-
ve inclusive algo mais grave: os Noronha pas- mara do Funchal, “a quem [os soldados] fize-
sam a estar explicitamente envolvidos nos que- ram uma sátira difamatória” (Ibid.). Os auto-
sitos a serem investigados pelo desembargador. res do Elucidário Madeirense seguem de perto
Em finais de 1703 terá havido uma sedi- as opiniões de Noronha, embora não deixan-
ção “no salão da Índia da fortaleza de S. do de salientar ter sido este bispo “estrénuo
A zevedo , M aximiliano E ugénio de ¬ 187

defensor dos privilégios e regalias de que go- Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral,
tombo 7; ANTT, Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 16, Manuel de Santo
zava a Igreja” (SILVA e MENESES, 1998, I, António e Silva, Thesouro da Nobreza de Portugal, 1783; BNP, Coleção
260). Sobre o governador limitam-se a dar a Pombalina, cód. 526; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vols. iii-
iv, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1992 e 1996; COSTA, António
sua posse e falecimento. Carvalho da, Corografia Portugueza e Descripçam Topografica do Famoso Reyno
As ordens dirigidas ao desembargador e de Portugal, com as Noticias das Fundações das Cidades, Villas, & Lugares,
Que Contem; Varões Illustres, Genealogias das Familias Nobres, Fundações de
corregedor Salter de Macedo foram passadas Conventos, Catalogos dos Bispos, Antiguidades, Maravilhas da Natureza, Edificios,
em janeiro, mas o mesmo só se apresentou & Outras Curiosas Observaçoens, t. 2, Lisboa, Officina de Valentim da Costa
Deslandes, 1708; NORONHA, Henrique Henriques de, Memórias Seculares e
na Ilha em junho, pelo que desconhecemos
Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal na Ilha da
totalmente o que teria conseguido averiguar. Madeira, Funchal, CEHA, 1996; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos
Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VERÍSSIMO,
Entretanto, já tinha falecido no Funchal o
Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal,
Gov. João da Costa Ataíde, a 8 de março, e DRAC, 2000.
já tinha tomado posse Duarte Sodré Pereira Rui Carita
(1666-1738). O novo governador tinha sido
nomeado em novembro de 1703, “havendo
respeito a desobrigar” João da Costa de Ataí- Azevedo, Maximiliano
de, referindo-se os merecimentos dos ante- Eugénio de
riores serviços e ainda “por [ser] quem ele
é”, conforme vem expresso na carta paten- Nascido no Funchal a 16 de fevereiro de 1850,
te de Sodré Pereira (ABM, Câmara Munici- faleceu em Lisboa a 4 de dezembro de 1911.
pal do Funchal, Registo Geral, t. 7, fls. 233- Mais conhecido por Maximiliano d’Azeve-
253v.), parecendo que em Lisboa ainda se do (com os pseudónimos de Alberto de Ma-
não havia tido notícia da sedição. No entan- galhães, Silvestre, Zélio e Max), foi coronel
to, o Gov. Duarte Sodré Pereira demorou-se no Exército Português, distinguindo-se como
algum tempo em Lisboa, decerto por ques- autor de diversas obras de carácter histórico
tões oficiais, pois só em março de 1704 foi e de peças teatrais, jornalista e crítico da arte
nomeado para o Conselho de Estado, che- dramática.
gando ao Funchal quando o anterior gover- Filho de António Pedro de Azevedo e de Te-
nador já tinha falecido. resa Rosa Bernes, foi afilhado de batismo do
O Gov. João da Costa de Ataíde foi sepultado príncipe Maximilian von Eichstätt, duque de
na igreja do Colégio da Companhia de Jesus, Leuchtenberg e príncipe de Eichstaedt, o qual,
como aconteceu sempre que um governador na altura do seu nascimento, se encontrava na
faleceu no Funchal e “foram depois levados os ilha da Madeira. Concluiu os estudos secundá-
seus ossos a Lisboa” (NORONHA, Ibid., 58). rios no Liceu Nacional do Funchal, frequentou
Não se casou nem deixou descendência, su- os estudos prepara-
cedendo na casa de seus pais o irmão Gaspar tórios da Escola Po-
da Costa de Ataíde, sucessivamente capitão litécnica em Lisboa,
de mar e guerra, sargento-mor de batalha, fis- ingressou depois na
cal da Armada, alcaide-mor de Sortelha, que Escola do Exército
tinha passado à Índia em 1701, por capitão- e terminou o curso
-mor das naus daquele Estado, mas não cons- de Artilharia em
tando também descendência do mesmo. Duas 1875.
das irmãs foram freiras em S.ta Clara de Lisboa, Iniciou a carrei-
outra morreu ainda jovem e D. Leonor Maria ra de oficial de ar-
de Ataíde casou-se com Sebastião de Carva- tilharia como 2.º te-
lho e Melo (c. 1625-1719), sendo avó do futu- nente em Santarém
ro ministro Sebastião José de Carvalho e Melo
Fig. 1 – Maximiliano
(1699-1782), sucessivamente conde de Oeiras Eugénio de Azevedo
e marquês de Pombal. (O Occidente, 20 dez. 1911).
188 ¬ A zevedo , M aximiliano E ugénio de

e na Companhia de Artilharia n.º 1 aquartela- Arte Dramática e foi comissário do Governo


da na cidade da Horta, nos Açores, onde foi junto do Teatro D. Maria Pia em Lisboa, tendo
promovido a tenente em 1878. Casou-se aí, gerido ainda a companhia Teatro Normal de
em 1879, com Valentina Morisson, manten- Lisboa no final da sua vida.
do-se na ilha do Faial até 1881, ano em que A sua escrita e as suas traduções eram fei-
foi transferido para Lisboa. Construiu na ca- tas, por vezes, em colaboração com outros au-
pital o resto da sua carreira, chegando a capi- tores. Inez de Castro (1894) é a sua obra mais
tão em 1884, a major em 1897, a tenente-co- popularizada, drama estreado com enorme
ronel em 1903 e a coronel do Regimento de sucesso no teatro do Príncipe Real em 1894,
Artilharia n.º 12 em 1911, posição que detin- por contrariar os moldes da geração românti-
ha quando faleceu. ca e acentuar as caracterizações psicológicas
Aquando da sua morte, a revista Brasil-Por- das personagens, articuladas com a realidade
tugal dedicou a este seu assíduo colaborador, social e política do quadro histórico em que
com um relato sentido da celebração fúnebre, se moviam, imiscuídas nos seus conflitos sen-
uma saudosa secção elogiosa, em que descre- timentais e com episódios de acentuado melo-
via o coronel de artilharia e o escritor dramáti- dramatismo. Trata-se de um drama em cinco
co de espírito culto como oficial de uma arma atos, representado depois em Matosinhos,
científica dos mais ilustrados, autor de uns que inclui um parecer do censor de 1953,
contos militares que tiveram muita voga. Acres- classificando a peça para maiores de 13 anos,
centou a mesma revista que o escritor viajou com respetiva apreciação.
muito e que durante alguns anos foi secretário No âmbito militar, foi várias vezes nomeado
de Latino Coelho, cujo convívio grandemente para missões culturais, entre as quais a organi-
contribuiu para a ilustração que tinha, desta- zação da biblioteca e do arquivo do Ministério
cando ainda a sua colaboração em numerosos da Guerra (1890), tendo sido também vogal da
jornais e revistas, o cargo de gerente do Teatro comissão encarregue de elaborar a história da
D. Maria II, a infinidade de peças que deixou, artilharia em Portugal (1893). Consequente-
principalmente traduções, que escolhia a pri- mente, à semelhança do seu pai, veio a colabo-
mor de entre as melhores obras literárias eu- rar na elaboração de Documentos para a História
ropeias, a sua inteligência e o seu carácter sem das Cortes Geraes da Nação (1883/1891), um con-
mácula. Todavia, terá sido “no teatro que mais junto de relatos e contos artísticos e elucidati-
deixou vincados os traços da sua individualida- vos da situação histórica do país.
de”, conhecendo como poucos a “alma popu- Idóneo jornalista, foi também redator do Jor-
lar” (“Maximiliano de Azevedo”, Brasil-Portu- nal da Noite entre 1882 e 1884, estando a sua
gal, 16 dez.1911, 343). extensa produção escrita igualmente espelha-
Intelectual e pensador, uniu a sua carreira da em diversos periódicos como Discussão (na
militar a várias atividades culturais realizadas redação, a convite de Pinheiro Chagas), O Oc-
no contexto militar e na sociedade civil, com cidente. Revista Illustrada de Portugal e do Estran-
destaque para trabalhos no âmbito da histo- geiro, Jornal do Domingo e Atlântico. Colaborou
riografia, da arquivística militar e da imprensa, ainda na Revista das Ciências Militares e nas re-
a par da redação de vários jornais. Maximilia- vistas Brasil-Portugal e Serões.
no constou também na lista de colaboradores Coadjuvou, com Latino Coelho, durante
do número prospeto do periódico Tiro Civil mais de 10 anos, a preparação da História Políti-
(1895-1903). ca e Militar de Portugal, desde Fins do Século XVIII
Com pendor para a escrita e a crítica dramá- até 1834 (três volumes publicados entre 1874 e
ticas, e para a tradução de textos dramáticos, 1891), colaboração que se iniciou na déc. de
tendo um vasto conhecimento da história tea- 1880 e se estendeu por vários anos. Na função
tral nas suas vertentes literária e artística, jun- de sócio correspondente nacional do Institu-
tou-se ao conjunto de vogais do Conselho de to de Coimbra, viajando pela Europa, entre os
A zevedo , M aximiliano E ugénio de ¬ 189

anos de 1889 e 1900, redigiu notas e aponta- Fig. 2 – Em Campanha e


no Quartel, Contos e Narrativas
mentos, apresentando longos e exaustivos rela- Militares (1900),
tórios dessas viagens. de Maximiliano de Azevedo.
No âmbito da sua vasta obra, destaca-se Em
Campanha e no Quartel (Lisboa, 1900), conjunto
de 15 contos e narrativas de índole militar com
significado histórico, entre as quais se salienta
“A execução dos martyres da patria” (contada e Henrique Lopes de
por um soldado), ilustrada com reproduções Mendonça.
a preto e branco e belíssimas aguarelas da au- Foi corresponden-
toria de P. Marinho, bem como a coletânea de te nacional do Insti-
contos Histórias das Ilhas. Reminiscências dos Aço- tuto de Coimbra em
res e da Madeira (Lisboa, 1899). Esta última re- 1898, autor da Enci-
flete a experiência insulana do autor nos ar- clopédia do Comerciante
quipélagos da Madeira e dos Açores, na época e do Industrial e ainda
um sucesso editorial. Trata-se de uma agradá- diretor da revista A Nossa Pátria. Na revista
vel e bem-humorada recolha de pequenos con- Brasil-Portugal podemos ver anunciada a co-
tos sobre os arquipélagos portugueses, na qual laboração de Maximiliano de Azevedo na
se consegue sentir, em cada história, a cor das peça Sá da Bandeira e os Dois Patacos. A revis-
ilhas e o carácter dos ilhéus. Destacam-se, neste ta Serões (dez. 1911) acolheu também uma
contexto, as seguintes narrativas: “O casamen- publicação do autor, desta vez sob o pseu-
to do veterano” (Terceira), “Os filhos do frade” dónimo de Alfredo Guimarães, com o texto
(Madeira), “O primeiro desengano” (Madei- “O jornal do mar” (duas vinhetas e oito ilus-
ra), “Alegria do mar” (Faial), “A lampreia” (São trações). Além destes, traduziu e apresentou
Miguel), “Mau homem” (Terceira), “A licença Consciência dos Filhos, drama em quatro atos
do domingo” (São Miguel), “O contrabando” por Gustave Dévore, como anuncia a revis-
(Faial), “Piloto” (Faial), “Na vindima” (Pico), ta Serões no seu número de maio-junho 1903.
“O jantar do general” (Madeira), “O apren- A produção e a tradução de várias obras tea-
diz de barbeiro” (Pico), “A alemã” (Madeira), trais valeram-lhe a presença no Diccionario Bi-
“O marraxo” (Porto Santo), “O pai do Jacin- bliographico de Inocêncio Francisco da Silva,
to” (Madeira), “A folga” (Faial), “O paiol” (São continuado por Brito Aranha.
Miguel), “As feiticeiras” (São Miguel) e “Mary” Em Serões (1904), é-nos dada a conhecer
(Madeira). outra publicação de Maximiliano de Azeve-
Escreveu ainda, em coautoria com Gervá- do: Em Casa do Filho, comédia em um ato sobre
sio Lobato, O Rapto de Um Noivo, comédia costumes madeirenses, datada de 1905. No nú-
em um ato representada no Teatro D. Maria mero seguinte, em 1905, é-nos apresentado o
II e que trouxe um novo vigor à dramatur- início do seu extenso texto intitulado “Emilia
gia nacional, destacando-se, a par dos ilus- Adelaide: Recordações de Theatro”, em 13 pá-
tres D. João da Câmara, Eduardo Schwalb- ginas e 16 ilustrações, que fixa memórias da
ch, Marcelino Mesquita, Henrique Lopes talentosa atriz esquecida que representava pa-
de Mendonça, Lino d’Assunção, Ernesto da péis masculinos e que, na opinião do autor,
Silva, António Enes, Lorjó Tavares, Abel Bo- seria a segunda melhor atriz portuguesa.
telho e Alberto Braga, aficionados nacionais O seu discurso dedicado ao marquês de Pom-
da escrita dramatúrgica. Participou ainda bal, recitado em forma de composição superior
como júri de admissão ao conservatório da no Teatro Valenciano, no sarau literário-musi-
famosa e genial atriz Maria de Matos, junta- cal de 8 de maio de 1882, reflete o espírito ele-
mente com Eduardo Schwalbch, D. João da vado deste escritor que, numa longa compo-
Câmara, Júlio Dantas, Carlos Malheiro Dias sição poética, antecedida de uma dedicatória
190 ¬ A zevedo , M aximiliano E ugénio de

intitulada “Aos meus amigos”, na qual justifica do Estado-Maior e vice-presidente), Jaime Lei-
a sua modesta publicação e alude ao seu apre- tão de Castro (coronel de artilharia), Adelino
ço pelo marquês, nos diz: “I. De joelhos heróis! Augusto da Fonseca Lage (tenente e tesourei-
Baixai a fronte altiva,/Que passa triunfante, ro), João Severo da Cunha (major de enge-
aureolada e viva/A sombra de outro herói! – a nharia), Guilherme Luís dos Santos Ferreira
lusitana gloria/Que há um século morreu para (major de infantaria), Cristóvão Ayres de Ma-
viver na História./[...] É justo que façais dupla galhães Sepúlveda (tenente-coronel de infan-
consagração:/Ao génio da Epopeia e ao génio taria), Luís Henrique Pacheco Simões (capitão
da Instrução!” de infantaria) e José Justino Teixeira Botelho
Ernesto do Canto, no seu artigo “O Gremio (capitão e secretário).
Litterario” (1882), atribui a Maximiliano de Raul Brandão publica, em 1914, o registo de
Azevedo o discurso sobre Garrett proferido no cariz histórico intitulado A Conspiração de 1817,
sarau realizado pelo Grémio a 10 de junho de em memória de Maximiliano de Azevedo.
1880, nas comemorações do tricentenário de
Obras de Maximiliano Eugénio de Azevedo: O Amor; Os Anos da Menina;
Camões. O Às de Paus; A Ave Agoureira; Os Beijos do Diabo; O Capitão de Bandidos;
Num dos momentos sensíveis da sua vida, em Capricho de Sogra; Causa Célebre; Cinto e Bordão; Condecorado; Contos e
Bordão; O Convento do Diabo; Crime das Picoas; O Demónio dos Mares;
maio de 1885, aquando do falecimento do seu
O Diário do Governo; Os Dois Órfãos; Duas Crianças; Educação Errada;
grande amigo Gervásio Lobato, Maximiliano Engaiolado; Entre a Vítima e o Carrasco; O Epílogo; O Epílogo, por força!;
de Azevedo fez parte obrigatória da comissão A Feiticeira; Os Filhos do Capitão Grant; Frou-Frou; A Galdéria; Gostos não
Se Discutem; O Homem das 16 Mulheres; Um Homem Sério; Homenagem ao
de homenagem à memória do ilustre escritor, Marquês de Pombal (pseud. Alberto de Magalhães); A Honra; Ideias de Mme.
com enfáticas dedicatórias. Aubry; O Incêndio do Lugre Atlântico; Os Jesuítas; João José; Lua Cheia; Luis XI
e os Senhores Feudais; A Mãe da Minha Mulher; Marchas e Estacionamentos
Em 1909, o dramaturgo coordenou, com (colab. Artur Perdigão); Margarida do Monte; Marido Ó; Maridos e Amantes;
D. João da Câmara, José António de Freitas e Maridos Que Choram; A Mendiga; O Mestre de Obras; A Moda; Naná; No
Dia do Noivado; Um Pai da Pátria; Paulo; Paulo e Virginia; A Pesca Milagrosa;
Raul Brandão, O Livro das Creanças Portuguezas Prisioneiro da Palavra; Purgatório de Casados; Ralham as Comadres; Rapto
e Brazileiras. Ainda com Raul Brandão e João da de Um Navio; O Romance de Uma Actriz; Rosinha do Castelo; Santos de Casa;
O Sargento de 5 de Linha; O Segredo do Padre; A Sereia; Sozinha; As Surpresas
Câmara, elaborou, em 1903 e 1904, o compên- do Divórcio; Susana; Templo de Salomão; Tiro das Bocas de Fogo; A Tosca;
dio Livro de Leitura para as Escolas de Instrução Veteranos e Galuchos; Vida Curada; As Vitimas do Folhetim; Zefa; Inez de
Castro (1894); Histórias das Ilhas. Reminiscências dos Açores e da Madeira
Primária, destinado à 1.ª e 4.ª classes, aprovado (1899); Em Campanha e no Quartel (1900); “Sá da Bandeira e… os dois
pelo ministro e pela comissão técnica, tendo patacos” (colab. Ribeiro Carvalho) (1903); Em Casa do Filho (1905); “O jornal
do mar” (pseud. Alfredo Guimarães) (1911).
sido considerado o modelo de manual perfei-
to idealizado pelo Governo, sendo visto como Bibliog.: impressa: ANDRADE, Adriano Guerra, Dicionário de Pseudónimos
e Iniciais de Escritores Portugueses, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1999; Boletim
um manual inovador no panorama nacional das Bibliothecas, ano 9, n.º 13, 1908; BRANDÃO, Raul, A Conspiração
de então, como o considerou João de Barros, de 1817. Quem Matou Gomes Freire, Porto, Typ. da Empresa Literária e
Typographica, 1914; CANTO, Ernesto do, “O Gremio Litterario”, Archivo
diretor-geral na altura, por acreditar no senti- dos Açores, vol. vi, n.º 49, 1882; CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico
do patriótico e moral que o manual transmi- de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal,
1983; Diário do Governo, n.º 41, 22 nov. 1910; “Maximiliano d’Azevedo”,
tia. Com os mesmos autores, Maximiliano de Brasil-Portugal, n.º 310, 16 dez. 1911, p. 343; O Occidente, 20 dez. 1911;
Azevedo organizou Patria Portugueza em 1906, PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História
Literária da Madeira, 3 vols., Funchal, Câmara Municipal do Funchal,
destinado aos alunos das escolas de instrução
1949-1953; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
primária. Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1965;
Dois anos antes da sua morte, em 1909, os SILVA, Inocêncio F., Dicionário Bibliographico Portuguez, 2.ª ed., vol. xvii,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1973; “Variedades”, Serões, n.º 19, maio-jun.
conhecimentos fecundos nas áreas bélicas e 1903, pp. 1-8; n.º 24, 1904; n.º 78, dez. 1911; digital: CORREIA, Rita, “Brasil-
literárias valeram-lhe a nomeação para inte- Portugal”, Hemeroteca Digital, 29 abr. 2009: http://hemerotecadigital.
cm-lisboa.pt/FichasHistoricas/BrasilPortugal.pdf (acedido a 17 mar.
grar a comissão que desenvolveu o programa 2020); Id., “Occidente (O). Revista Illustrada de Portugal e do Estrangeiro”,
para as comemorações da Guerra Peninsular, Hemeroteca Digital, 16 mar. 2012: http://hemerotecadigital.cm-lisboa.
pt/FichasHistoricas/Ocidente.pdf (acedido a 17 mar. 2020); Id., “Serões.
com a participação de todas as bibliotecas do Revista Mensal Illustrada”, Hemeroteca Digital, 24 abr. 2012: http://
país, juntamente com João Carlos Rodrigues hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/FichasHistoricas/Seroes.pdf (acedido a 17
mar. 2020).
da Costa (general e presidente da comissão),
Alfredo Pereira Taveira de Magalhães (coronel Helena Paula F. S. Borges
A zulejaria ¬ 191

Azulejaria
A utilização do azulejo em Portugal é uma
herança da cultura islâmica, mas face ao seu
baixo custo e às suas capacidades de requali-
ficação arquitetónica, como a higienização
dos espaços muito concorridos, em especial
das igrejas e capelas, assumiu-se rapidamen-
te como um elemento essencial de decoração
e, depois, também de catequização. O azulejo
transcende assim a sua função utilitária de re-
vestimento de chãos e paredes nos edifícios re-
ligiosos e civis, transformando-se num impor-
tante suporte do imaginário estético português
e passando aos espaços públicos urbanos. Com
Fig. 2 – Azulejos mudéjares do antigo Convento da Piedade, Sevi-
as suas diferentes características, desde as pos- lha, c. 1520 (sacristia da igreja matriz de Santa Cruz).
sibilidades de uma rápida lavagem, à reflexão
da luz ambiente, à possibilidade de ampliar
visualmente os espaços e de lhes dar infinitas variantes cromáticas, o azulejo veio a assumir-
-se como uma das produções mais originais da
cultura portuguesa.
As ilhas atlânticas, infelizmente, não possuem
terrenos capazes de fornecer bons materiais
para cerâmica, mas, tal como na generalidade
do espaço português, a Madeira é depositária
de um acervo notável de azulejaria, cobrindo
toda a história desta atividade no nosso país,
desde os sécs. xv e xvi à atualidade. Acresce
ainda o facto de terem chegado até nós com

Fig. 1 – Azulejos mudéjares, Sevilha (?), c. 1514 (coruchéu da Sé Fig. 3 – Azulejos ditos “pisanos”, Lisboa, c. 1580 (chão da capela
do Funchal). de S. Gonçalo do Convento de S.ta Clara do Funchal).
192 ¬ A zulejaria

revestimento de azulejaria sevilhana os coros cerâmicos mudéjares o Convento de S. Fran-


do Convento de S.ta Clara, os dois únicos pa- cisco do Funchal, tendo sido recuperadas vá-
vimentos completos dos princípios do séc. xvi rias losetas e outros fragmentos nas escava-
no quadro nacional, tal como a única pia ba- ções de 2004, nos entulhos da área do solar
tismal daquelas oficinas andaluzas de tradição de D. Mécia, por certo desse antigo convento.
islâmica que chegou aos nossos dias e que se O demolido Convento da Piedade de S.ta Cruz
encontra ainda em utilização. também possuía este tipo de revestimento,
Sob a especial influência do rei D. Manuel, encontrando-se parte desses azulejos aplica-
que visitou pessoalmente Sevilha em 1498, mas dos na sacristia da matriz do Salvador, outros
dentro de uma tradição já vigente no território no Museu Quinta das Cruzes e na coleção Fre-
continental, terão sido muito avultadas as im- derico de Freitas, provenientes das escavações
portações de azulejaria hispano-mourisca, so- arqueológicas de emergência realizadas em
bretudo nos inícios do séc. xvi. Diversificada 1960 pelo Dr. António Aragão (1924-2008),
a esmaltagem e a utilização com a colocação quando da construção na área do aeroporto
de azulejos em paredes, emolduramentos vá- de Santa Catarina.
rios, tetos e coberturas, terá vindo para a ilha Num curto espaço de tempo, e ainda nos
uma grande quantidade e variedade destes ma- meados do séc. xvi, as oficinas de Lisboa pro-
teriais, infelizmente deslocados e retirados nas duziam também azulejos designados por “ma-
contínuas obras de adaptação dos edifícios ao jólica”, de muito boa qualidade, a avaliar pelos
longo dos tempos, mas muitos deles também grandes painéis policromos assinados por
posteriormente reaproveitados em outros es- Francisco de Matos, artista, por certo, flamen-
paços e funções. go, ativo na déc. de 80. Por essa data, teriam
Entre os vários edifícios decorados com azu- vindo também azulejos desse tipo para a Ma-
lejos hispano-mouriscos, poderemos citar o deira, subsistindo alguns na Capela de S. Gon-
coruchéu da torre sineira da sé do Funchal, çalo de Amarante do Convento de S.ta Clara,
por determinação expressa de D. Manuel, em aplicados no chão, e existindo igualmente
1514, que sobre o pedido de informação de exemplares na coleção Frederico de Freitas.
como deveria ser rematado, respondeu que Também por esses anos, foram aplicados azu-
deveria ser de ladrilho e não de madeira, lejos monocromáticos portugueses no chão da
apresentando por fora azulejos, e assim che- pequena Capela de N. S.ª Senhora do Faial, na
gou aos nossos dias. Para além do Conven- encosta de Santa Maria Maior, então da família
to de S.ta Clara, que referimos acima, igual- Lomelino e, em 1601, quando se recolocou a
mente possuiria, por certo, revestimentos grimpa da torre da Sé, derrubada no temporal
de 28 de dezembro de 1591, igualmente se uti-
lizaram azulejos monocromáticos, repetindo,
sumariamente, o desenho geral da colocação
dos mudéjares aplicados por 1514.
Os finais do séc. xvi e os inícios do xvii
marcaram o começo da grande produção de
faiança azul-e-branca pelas oficinas da área
de Lisboa. A faiança é uma forma de cerâmi-
ca branca, de massa menos rica em caulino
do que a porcelana e associada a argilas mais
plásticas, mas também mais porosas, necessi-
tando assim de ser vidrada para o uso domés-
tico. Os modelos utilizados foram os da porce-
Fig. 4 – Barra de azulejos com “nagas” ou “nagiras”, Lisboa,
lana chinesa, que em breve passavam também
c. 1630 (nave da igreja do Convento de S.ta Clara do Funchal). aos azulejos.
A zulejaria ¬ 193

Os primeiros anos do séc. xvii devem ter co- de parede, não apresentando especiais cuida-
nhecido uma especial necessidade de revesti- dos decorativos. No entanto, começaram nes-
mentos cerâmicos para várias igrejas, para que tes anos a ocorrer alterações de gosto, espe-
isso tivesse sido assumido pela Fazenda Real, cialmente fruto dos contactos com o Oriente.
responsável pelo equipamento das mesmas. Nesse quadro, quando o Convento de S.ta Clara
Nesse quadro, entre 1620 e 1630, vieram do encomendou novos painéis policromos em Lis-
continente alguns milhares de azulejos pseu- boa, teve algumas dificuldades na sua coloca-
doenxaquetados azuis e brancos para constituí- ção, dados os motivos utilizados serem muito
rem painéis, tal como barras de anjinhos com pouco próprios para um convento de freiras
albarradas e outras, que decoram ainda hoje as clarissas. A barra em questão, e provavelmente
paredes da Capela de N. S.ª de Lourdes da Sé os demais painéis que não chegaram até nós,
do Funchal, o coro alto e o coruchéu da torre apresentava motivos inspirados nas tradições
do Convento de S.ta Clara, toda a nave da ma- indianas, como “nagas” ou “nagiras”, de seios
triz de S. Pedro e a cruz sobre a entrada do nus e corpo de serpente, que acabou colocada
recolhimento do Bom Jesus, subsistindo ainda no remate junto ao teto da igreja, totalmente
este tipo de azulejos em rodapés das matrizes fora do alcance de qualquer observador.
de S.ta Luzia e da Calheta, e ainda na torre da Os azulejos do séc. xvii inspiraram-se depois
matriz de S. Jorge. nos têxteis orientais, formando complexos ta-
A originalidade destes azulejos de padrão é petes, assim designados porque o efeito de-
imitarem os chamados painéis de caixilho ou corativo obtido pela repetição ritmada do pa-
painéis enxaquetados, que utilizavam várias drão utilizado se assemelhava ao dos brocados
peças de diferentes tamanhos através da pintu- ornamentais ricos, que ainda hoje preenchem
ra a azul-cobalto do engobe branco de esmalte muitas das igrejas da Madeira, acompanhan-
estanífero mas em azulejos únicos, dentro da do e realçando os elementos arquitetónicos,
tradição do alicatado islâmico. Se as barras que emoldurando retábulos e pinturas. Pontual-
os acompanham são muitos comuns no conti- mente, como nas capelas do transepto da igre-
nente, deste tipo de azulejos não se conhecem ja do Colégio, apresentam mesmo imaginária
exemplares, em princípio, fora da Madeira, religiosa, mas parece ser o único caso que che-
pelo que deduzimos ser uma encomenda algo gou até nós. Alguns conjuntos envolvem vários
retrógrada da Fazenda Régia do Funchal. azulejos diferentes, como na igreja do Conven-
Salvo casos pontuais como este, até os iní- to de S.ta Clara, que apresenta o “padrão Mar-
cios do séc. xvii, na generalidade, os azulejos vila” o mais complexo, com 12 x 12 azulejos.
eram entendidos como simples revestimentos Estes complexos painéis acompanham os do
chamado “padrão Santa Clara”, mais simples e
comum a quase todos os conventos de clarissas
portugueses, daí lhe advindo o nome.
Os painéis mais comuns na madeira desta
época são os de “massarocas” e de “camélias”,
nas suas várias versões, comuns por todo o ter-
ritório português, incluindo ainda o Brasil,
Cabo Verde, etc., mas pontualmente houve en-
comendas especiais, como a que cobria as pa-
redes da demolida igreja de N. S.ª de Guadalu-
pe, no Porto da Cruz, de um padrão dos finais
do séc. xvii que não se conhece fora da Madei-
ra. Subsistem, entretanto, alguns azulejos deste
Fig. 5 – Tapete de azulejos padrão Santa Clara, Lisboa, c. 1635
padrão no salão paroquial da atual igreja do
(nave da igreja do Convento de S.ta Clara do Funchal). Porto da Cruz.
194 ¬ A zulejaria

painéis das paredes da entrada e do coro com


anjos músicos, datáveis de 1730 a 1735, até por-
que, poucos anos depois, o mestre Policarpo
deve ter pintado os óleos do Martírio de S.ta Qui-
téria desta mesma igreja e os azulejos da capela
da Santa, sob o coro.
Outras oficinas poderiam ter trabalhado
para a Madeira, como a de Teotónio dos San-
tos, cujos trabalhos, por vezes, se assemelham
com os de outras oficinas, dada a circulação
de artífices entre essas várias oficinas. Encon-
tram-se ainda obras atribuíveis às oficinas de
Bartolomeu Antunes (1685-1753) e de Nico-
lau de Freitas (1703-1765), aos quais se pode-
riam atribuir os trabalhos da Capela do Am-
paro e da sala da Confraria do Santíssimo da
Fig. 6 – Anunciação, painel de azulejos da oficina de Bartolomeu Sé (1731-1735), enviados de Lisboa em 1732.
Antunes, c. 1731 (capela do Amparo da Sé do Funchal). Desta oficina também devem ser os azulejos
da matriz da Lombada da Ponta do Sol, exis-
Os finais do séc. xvii marcam a passagem do tindo deste último mestre o único exemplar
gosto da decoração da porcelana chinesa para assinado e datado conhecido: o registo de
o azulejo, que desde os inícios do século era N.ª Sr.ª do Carmo colocado nas traseiras da
comum na faiança de uso doméstico e outra, igreja do recolhimento do Bom Jesus, “Nico-
como eram os canudos de farmácia, etc. Nas- lau de Freitas fez em 1744”.
cem assim os azulejos historiados, que passam Da mesma época também devem ser os azu-
a preencher as paredes das igrejas e capelas lejos da sacristia da igreja do Colégio, tal como
com as principais cenas da vida dos oragos. os da sala da Confraria do Santíssimo da Sé
A primeira oficina a desenvolver este tipo com cenas bucólicas e profanas, sendo os do
de temática teria sido a de Gabriel del Barco colégio de uma outra oficina. A curiosidade
(m. antes de 1708), que deu início ao ciclo é o aparecimento, especialmente nas paredes
dos “grandes mestres”. Desta oficina pode ser das sacristias da Madeira, mas também nas do
o conjunto de painéis da vida de S.to António Brasil, de cenas não religiosas e até galantes,
da Capela das Angústias, na atual Qt. Vigia, ou de caça, como no colégio do Funchal. Esta
de cerca de 1690, embora sejam azulejos não situação só parece explicável para as sacristias,
assinados, e, com maiores reservas, os painéis tal como para as salas das confrarias, por serem
da Capela da Nazaré, em São Martinho, no locais para reuniões fora do âmbito da igreja,
Funchal, que poderiam ter sido executados para celebração de contratos, etc., demarcan-
em colaboração com a oficina inicial de Antó- do-se assim do espaço sagrado que são os inte-
nio de Oliveira Bernardes. riores das igrejas.
A Ilha possui ainda exemplares dos trabalhos De uma oficina ainda não identificada são
das grandes oficinas de Lisboa do séc. xviii, da os magníficos painéis da varanda do anti-
chamada época de apogeu dos “grandes mes- go paço episcopal, representando as virtu-
tres” e do reinado de D. João V, oficinas dirigi- des teologais: Fé, Esperança e Caridade, de
das pelos mestres António Oliveira Bernardes muito boa execução e que deveriam estar en-
(m. 1732) e seu filho Policarpo Oliveira Ber- comendados, senão mesmo colocados, entre
nardes (m. 1778), responsáveis, provavelmen- 1760 e 1765. Dos finais do século, entre ou-
te, pelas grandes urnas com versículos do Apo- tros conjuntos de azulejos neoclássicos, ainda
calipse da igreja do Colégio do Funchal, pelos subsiste na varanda da atual quinta Vigia uma
A zulejaria ¬ 195

as legendas em francês, foi encomenda, por


certo, do comerciante e cônsul francês no
Funchal, Nicolau de La Tuillerie, que habitou
por esses anos nessa quinta.
Nos meados do séc. xviii também se divul-
gou o azulejo como equipamento público e
religioso, como é o caso da divulgação das Al-
minhas, registos destinados a solicitar orações
pelas almas do purgatório, mas também mais
utilitário. O primeiro caso que detetámos foi
a encomenda pela Misericórdia do Funchal
de azulejos para identificarem os prédios que
pagavam foro na cidade, encomendados em
1787, no que foi seguida por outras associa-
ções, como foi o caso, pelo menos, da Confra-
ria do Rosário da Sé do Funchal, de que resta
um azulejo na rua dos Tanoeiros.
O interesse pelos azulejos não esmoreceu ao
longo do séc. xix, como prova a encomenda
Fig. 7 – Fábula do gato e os dois pardais de La Fontaine, Francisco do vigário do Monte, P.e Francisco José Rodri-
de Paula e Oliveira (atr.), Real Fábrica do Rato, c. 1790 (Qt. Vigia, gues de Almada, em 1884, e cujos rodapés com
Funchal).
o seu nome, data e símbolos religiosos se en-
contram na igreja matriz e em várias capelas da
coleção das fábulas de Esopo, copiada de gra-
freguesia. Também não esmoreceu ao longo
vuras francesas e executada na Real Fábri-
do séc. xx, como é patente na recolha feita
ca da Louça ao Rato pelo pintor Francisco
nas décs. de 30 e 40 pelo Dr. Mário Perestre-
de Paula e Oliveira (c. 1760-c. 1820), pelos
lo de França do Nascimento (1870-1941) para
anos de 1790. Dado manter, inclusivamente,
a sua casa de família, edifício revivalista e ao
gosto da época, onde se encontra hoje a sede
da Cruz Vermelha Portuguesa do Funchal. Tal
situação manteve-se nos edifícios civis, como
na reformulação do edifício da CMF, em 1940,
ou nas paredes do novo Tribunal do Funchal,
em 1962. O mesmo não aconteceu no séc. xxi,
continuando-se a revestir os interiores das igre-
jas e mesmo de edifícios civis com azulejos.
Ao longo do séc. xx, ainda se incentivou o
gosto pelos registos religiosos em azulejos, es-
pecialmente após a célebre viagem da imagem
peregrina de N.ª Sr.ª de Fátima, em 1948, cos-
tume que se manteve nas viagens seguintes,
como na ocorrida em 2010. Idêntico gosto
se divulgou em algumas autarquias no equi-
pamento de sinalética urbana, identificando
ruas, praças e edifícios.
Proveniente de todo este espólio geral, pe-
Fig. 8 – Alminhas, Lisboa, c. 1790 (claustro do Convento
riodicamente desmontado por obras várias e
de S.ta Clara do Funchal). reformulações de gosto, veio o Dr. Frederico
196 ¬ A zulejaria

Fig. 10 – Casa dos Azulejos da Casa-Museu Frederico de Freitas,


Maria João Cardoso, 1999, Funchal (arquivo particular).

os azulejos portugueses nos Açores e na Madei-


ra, trabalho depois revisto em parte pelo Dr.
Rafael Calado (1937-2006), em 1999, dentro
da montagem museográfica desta coleção, en-
tretanto legada à Região e nesse ano aberta ao
público na Casa dos Azulejos.
Bibliog.: CALADO, Rafael Salinas, Azulejaria na Madeira & na Colecção da
Casa-Museu Frederico de Freitas, Funchal, DRAC, 1999; CARITA, Rui, História
da Madeira, 7 vols., Funchal, Secretaria Regional da Educação, Juventude e
Emprego, 1986-2008; Id., “A pompa e o aparato das sacristias da expansão”,
Oceanos, n.os 36-37, 1998-1999, pp. 114-124; FERREIRA, Manuel Juvenal Pita,
Fig. 9 – Imagem peregrina de Fátima, c. 1948 (igreja matriz da
A Sé do Funchal, Funchal, JGDAF, 1963; FREITAS, Paulo de, “Azulejaria na
Ribeira Brava). Madeira”, Islenha, n.º 4, jan.-jun. 1989, pp. 25-29; GUERRA, Jorge Valdemar,
“O Convento de Nª. Sª. da Piedade de Santa Cruz. Subsídios para a sua história”,
Islenha, n.º 20, jan.-jun. 1997, pp. 125-156; LIZARDO, João, “Arte mudéjar na
de Freitas (1894-1978) a reunir no Funchal um Madeira. A pia baptismal da matriz da Ponta do Sol”, Atlântico, n.º 18, 1989,
pp. 149-152; Obras de Referência dos Museus da Madeira, 500 de História de Um
acervo notável de azulejos hispano-mouriscos e Arquipélago, catálogo de exposição comissariada por Francisco Clode de Sousa,
portugueses, mas também de origem estrangei- e patente na Galeria de Pintura do Rei D. Luís, Palácio Nacional da Ajuda, 21
nov. 2009-28 fev. 2010, Funchal, DRAC, 2009; SAINZ-TRUEVA, José de (coord.),
ra, como holandeses, persas, turcos, ingleses, Convento de Santa Clara do Funchal, Madeira – Roteiro, Funchal, DRAC,
chineses, etc., de grande ecletismo estético. Foi 2000; SIMÕES, João Miguel dos Santos, Azulejaria Portuguesa nos Açores e na
Madeira, Lisboa, FCG, 1963.
com o seu apoio que o Eng.º João António dos
Santos Simões (1907-1972), em 1963, estudou Rui Carita
Bb

Baamas Multicultural History Society of Ontario, 1990, pp. 42-60; Id., “A emigração
madeirense na segunda metade do século xix”, in Emigração e Imigração
em Portugal, Lisboa, Fragmentos, 1993, pp. 108-144; Id., “As migrações e os
Independentes desde 1973, as Baamas são um Descobrimentos”, in Imigração e Emigração nas Ilhas, Funchal, CEHA, 2001,
pp. 27-62; Id., A Vinha e o Vinho na História da Madeira. Séculos XV a XX,
país com mais de 3000 ilhas e ilhéus, tendo
Funchal, CEHA, 2003.
como capital Nassau, na ilha de Nova Provi-
† Alberto Vieira
dência. Foi na ilha de Guanahani (batizada
como San Salvador) que desembarcou Cristó-
vão Colombo, em 1492.
O processo de ocupação destas ilhas foi de-
Baía
morado, devendo assinalar-se desde o séc. xvii A presença madeirense no território brasileiro
o interesse dos Ingleses. Assim, em 1648, ocor- afirma-se de acordo com o desenvolvimento e
reu a fixação de um grupo originário das Ber- importância que assumem os portos e os ter-
mudas na ilha de Eleutéria e, pouco tempo ritórios que os envolvem. Se, no primeiro mo-
depois, de outro na ilha de Nova Providência. mento, esta é notada em Santos, alarga-se, de-
Em 1670, Charles II concedeu as ilhas, em re- pois, a outras regiões do litoral, como a Baía de
gime de aluguer, aos lords proprietários das Todos os Santos e Recife em Pernambuco. Em
Carolinas. todos os lugares onde o açúcar assumiu impor-
A partir desta presença britânica, na segunda tância na economia e na valorização dos espa-
metade do séc. xvii, assinalam-se relações co- ços, é notória a intervenção de madeirenses,
merciais entre a Madeira e este grupo de ilhas, tendo em conta que a eles está associada tanto
baseadas no fornecimento de vinho madei- a cana-de-açúcar, como a tecnologia adequada
rense. Sabemos do consumo de vinho nestas para o fabrico do açúcar. Baltasar de Aragão e
ilhas, sem que existam registos da exportação Sousa (1564-1613), fidalgo madeirense, é do-
rumo a este destino, mas a chegada aqui pode- cumentado como dono de engenho.
ria acontecer por via indireta, através de outras Se, no séc. xv, a Madeira se apresentava
Antilhas inglesas. como uma dádiva da natureza para os primei-
ros europeus, o Brasil será a compensação
Bibliog.: Boletim do Arquivo Regional da Madeira. Série Índices dos Passaportes.
1871-1915, 2 vols., Funchal, Arquivo Regional da Madeira, 2000; PITA, Gabriel,
dos deuses para o trabalho hercúleo dos ma-
A Freguesia dos Canhas. Um Contributo para a Sua História, Canhas, Junta de deirenses no lançamento da cultura açucarei-
Freguesia dos Canhas, 2003; VIEIRA, Alberto, “Emigration from the portuguese
islands in the second half of the nineteenth century. The case of Madeira”, in
ra no mundo atlântico. A cultura dá duas co-
HIGGS, David (org.), Portuguese Migration in Global Perspective, Toronto, The lheitas e espaços chãos, fora da proximidade
184 ¬ Baía

Fig. 1 – Planta da Restituicao da Bahia, João Teixeira Albernaz, o Velho, 1631 (Biblioteca Itamaraty, Rio de Janeiro, Brasil).

dos abismos, para produzir açúcar. Daí a forma uma estrutura diferente para o espaço atlân-
rápida como tudo aconteceu e a necessidade tico, definida pelas capitanias. Foi a 8 de maio
de encontrar soluções técnicas capazes de ace- de 1440 que o infante D. Henrique lançou a
lerar o processo de fabrico do açúcar, corres- base da nova estrutura, ao conceder a Tristão
pondendo à abundância das colheitas de cana. Vaz a carta de capitão de Machico. A partir daí,
Sucedeu assim em Santos, como na Baía ou Re- ficou definido o novo sistema institucional que
cife. E em todos os lugares mantém-se o rasto deu corpo ao governo português no Atlântico,
da presença madeirense. tanto nas ilhas como na costa brasileira. Sem
É notória a intervenção dos madeirenses dúvida que o facto mais significativo desta es-
na Baía, e as ligações deste porto ao Funchal trutura institucional deriva de a Madeira ter
foram também uma constante ao longo da his- servido de modelo referencial para o seu deli-
tória do Brasil. A Baía foi um porto de apoio à neamento no espaço atlântico.
navegação oceânica e, entre 1553 a 1763, a sede O monarca insiste, nas cartas de doação de
do poder administrativo da colónia brasileira. capitanias posteriores, na fidelidade ao sistema
Mas existem, ainda, outros vínculos que re- traçado para a Madeira. Assim o comprovam
forçaram esta ligação com a Baía. A Madei- idênticas cartas concedidas aos novos capitães
ra foi, nos alvores do séc. xv, a primeira ex- das ilhas dos Açores e Cabo Verde. O mesmo su-
periência de ocupação dos portugueses em cede com a estrutura institucional que chegou
que se ensaiaram produtos, técnicas e estru- a S. Tomé e ao Brasil. Na montagem da estru-
turas institucionais. Tudo isto foi usado, em tura de poder municipal, sabemos das ligações
larga escala, noutras ilhas e no litoral africano à Madeira e do uso dos regimentos e ordens
e americano. Assim, o Funchal tornou-se uma régias que haviam sido dadas para o Funchal.
escala obrigatória nas ligações da Baía com a A Madeira foi, assim, a referência institucional,
capital do império. No quadro político insti- e, em caso de dúvida ou omissão, a resposta
tucional, o sistema madeirense apresentava vinha célere da coroa a recomendar-se seguir
Baía ¬ 185

o padrão madeirense. Assim, ao provedor da


Fazenda na Baía, Pedro de Goes, D. João III de-
termina o treslado dos regimentos da Madeira
“da maneira que ele dever ser feito e como o
é o provedor da minha fazenda na Ilha da Ma-
deira” (SANTOS, 1999, 7).
Mas sem dúvida o fator mais importante nas
ligações com a Baía estava nas ligações comer-
ciais, por força da intromissão dos madeirenses
no comércio do açúcar brasileiro e de escravos
de Angola. Podemos assinalar um quase per-
feito circuito de triangulação entre três eixos
atlânticos.
O açúcar da Baía no Funchal surge como ma-
téria-prima para assegurar a promissora indús-
Fig. 2 – Câmara Municipal e cadeia de São Salvador
tria das conservas de fruta, suprindo as carên- da Baía de Todos-os-Santos, Luís Dias, 1550 e seguintes, Brasil
cias que havia dela na ilha. É o açúcar baiano (arquivo particular).
e o vinho da ilha que alimentam esta rede de
negócios que perdurou no tempo. A Madeira, decidido reclamar junto da coroa a aplicação
que até à primeira metade do séc. xvi havia plena de tal proibição. Desde 1596, foi eviden-
sido um dos principais mercados do açúcar do te uma ativa intervenção das autoridades locais
Atlântico, cede lugar a outros (Canárias, São na defesa do açúcar de produção local, prova
Tomé, Brasil e Antilhas). Deste modo, as rotas evidente de que se promovia esta cultura. Em
divergiam para novos mercados, colocando a janeiro daquele ano, os vereadores proibiram
ilha numa posição difícil: os canaviais foram António Mendes de descarregar o açúcar de
abandonados na sua quase totalidade, fazen- Baltazar Dias. Passados três anos, o mesmo sur-
do perigar a manutenção da importante in- giu com outra carga de açúcar da Baía, sendo
dústria de conservas e doces; o porto funcha- obrigado a seguir para o seu porto de destino
lense perdeu a animação que o caracterizara sem proceder a qualquer descarga. O não aca-
noutras épocas. A solução possível para debe- tamento das ordens do município implicava a
lar esta crise foi o recurso ao açúcar brasilei- pena de 200 cruzados e um ano de degredo.
ro, usado no consumo interno ou como ani- Esta situação repetiu-se com outros navios nos
mador das relações com o mercado europeu. anos subsequentes, até 1611: Brás Fernandes
Por isso, os contactos com os portos brasileiros Silveira, em 1597; António Lopes, Pedro Fer-
adquiriram uma importância fundamental nas nandes, o Grande, e Manuel Pires, em 1603;
rotas comerciais madeirenses do Atlântico Sul. Pero Fernandes e Manuel Fernandes, em 1606;
Ainda, as ilhas funcionaram, no período de e Manuel Rodrigues, em 1611.
1609 a 1621, como ponto de apoio nas ligações Após a Restauração da Independência de
com o Brasil e o Rio da Prata. Isto acontecia, Portugal, o comércio com o Brasil foi alvo de
de forma direta, ou indireta, através de Ango- múltiplas regulamentações. Primeiro, foi a
la, São Tomé, Cabo Verde ou Costa da Guiné. criação do monopólio do comércio com o Bra-
O comércio do açúcar do Brasil, por impe- sil através da companhia criada para o efeito;
rativos da própria coroa ou por solicitação dos depois, o estabelecimento do sistema de com-
madeirenses, foi alvo de frequentes limitações. boios para maior segurança da navegação.
Assim, em 1591, ficou proibida a descarga do A esta situação, estabelecida em 1649, ressal-
açúcar brasileiro no porto do Funchal, medi- va-se o caso particular da Madeira e dos Aço-
da que não produziu qualquer efeito, pois, res, que, a partir de 1650, passaram a poder en-
em vereação de 17 de outubro de 1596, foi viar, isoladamente, dois navios com capacidade
186 ¬ Baía

para 300 pipas com os produtos da terra que toda a discrição, conforme recomendava o
seriam trocados por tabaco, açúcar e madeiras. Conselho da Fazenda, mediante as licenças, e
Mais tarde, ficou estabelecido que os mesmos a sua entrega deveria ser feita de forma a favo-
não podiam suplantar as 500 caixas de açúcar. recer todos os mercadores da ilha. Para estes
No séc. xviii, o movimento comercial am- navios havia uma escrituração à parte na Alfân-
plia-se, não obstante as insistentes recomenda- dega do Funchal. No período de 1727 a 1799,
ções para o respeito da norma limitadora do num total de 184 navios identificados, 42 são
volume destas trocas, estabelecida no século an- provenientes da Baía.
terior. Nesta centúria, conseguimos reunir 117 No quadro dos produtos envolvidos neste co-
licenças para o período de 1736 a 1775. As au- mércio, o Brasil, a partir de finais do séc. xvi,
torizações eram concedidas pelo governador foi o principal mercado para o vinho Madeira,
exclusivamente aos mercadores madeirenses. que era trocado por açúcar. Para o período de
Destes, merecem a nossa atenção Bento Fer- 1572 a 1695, das 1997 pipas exportadas, 197
reira, Francisco Luís Vasconcelos e Francisco foram para a Baía. O preço de venda à chegada
Teodoro, pelo número de licenças consegui- ao mercado de destino tem a ver com os custos
das. Por determinação de 1664, os navios pa- fixos para o transporte, os tributos que onera-
gavam um donativo de 50.000 réis, existindo, vam a saída da Madeira e a entrada no merca-
no Funchal, um comissário dos comboios que do consumidor, a que se deveriam adicionar as
procedia à arrecadação dos referidos direitos: inevitáveis perdas estimadas em cerca de 10%.
em 1676, era Diogo Fernandes Branco quem Mesmo assim, o lucro era elevado. Em 1650,
os administrava. De acordo com as recomen- numa pipa de vinho, que à saída do Funchal
dações do Conselho da Fazenda, a arrecada- tinha o valor de 10$000 réis e à chegada à Baía
ção dos direitos de entrada do açúcar do Brasil de 40$000 réis, o lucro representava 60% do
era lançada em livro próprio. Foi a partir de al- capital investido.
guns destes dados e de outros soltos, reunidos Nos sécs. xvii e xviii, o açúcar do Brasil teve
na documentação, que procurámos avaliar a um lugar importante na economia madeiren-
real importância das relações comerciais entre se, não apenas por apoiar as indústrias de con-
a Madeira e o Brasil, assentes, predominante- servas e casca, mas, fundamentalmente, pelo
mente, no açúcar. Para o período de 1650 a ativo movimento de reexportação. A déc. de 80
1691, identificámos 39 navios provenientes da do séc. xviii marca o início da quebra desse
Baía, Rio de Janeiro, Pernambuco e Maranhão comércio, a qual teve repercussões evidentes
com mais de 10.722 caixas de açúcar. Da Baía, no negócio de casca e conservas da ilha. Assim,
houve 17 navios, que transportaram 2489 arro- em 1779, o governador João Gonçalves da Câ-
bas e 29 caixas de açúcar. A partir da Baía, Rio mara refere que o comércio da casca na ilha
de Janeiro ou Recife chegava o açúcar, farinha estava quase extinto.
de pau e mel. Neste circuito de escoamento e comércio do
Facto de particular interesse é a participação açúcar brasileiro é evidente a intervenção de
das comunidades da Companhia de Jesus da madeirenses e açorianos. As ilhas tinham para
Baía, Rio de Janeiro e Maranhão no comércio, oferecer vinho ou vinagre para o abastecimen-
que, usufruindo do privilégio de isenção dos to do mercado brasileiro, sendo compensadas
direitos, também colocavam o açúcar das suas com o acesso ao rendoso comércio do açúcar,
fazendas no mercado madeirense. Eles condu- tabaco e pau-brasil. A este se acrescenta o aces-
ziram à ilha 82 caixas de açúcar, sendo 65 da so ao tráfico negreiro, cobrindo um circuito
Baía. de triangulação que ligava o Funchal à costa
A Madeira tinha autorização para realizar co- africana e ao Brasil. Para isso, os madeirenses
mércio direto com duas embarcações que es- criaram a sua própria rede de negócios, com
tavam autorizadas apenas a uma viagem anual. compatrícios fixos em Angola e no Brasil. Um
Este movimento das embarcações fazia-se com exemplo disso é o mercador Diogo Fernandes
Baía ¬ 187

perdura no séc. xix, pois temos registos da ex-


portação em 1801, e continua após a indepen-
dência, com novos dados de saída para os anos
de 1843 a 1849. Se sinalizarmos apenas o movi-
mento de navios, vamos encontrar, para o pe-
ríodo de 1727 a 1802, nestas ligações da Madei-
ra com o Brasil, uma presença significativa de
embarcações, uma vez que, num total de 288
navios, 93 foram para a Baía, que constituiu o
principal destino. Já no retorno, em 233 na-
vios, a Baía volta a estar em posição destacada
com 85 embarcações. Ora isto releva a impor-
tância deste porto no comércio com a Madei-
ra, situação que persiste desde o séc. xvi.
Diogo Fernandes surge-nos neste circuito
como o interlocutor direto dos mercadores
das praças de Lisboa (no caso Manuel Mar-
tins Medina), Londres, Rochela ou Bordéus,
satisfazendo a sua solicitação de vinho e deri-
vados do açúcar a troco de manufaturas, uma
vez que o dinheiro e as letras de câmbio rara-
mente encontravam destinatário na ilha. A par
disso, manteve a sua rede de negócios apoiado
Fig. 3 – Armário caixa de açúcar do Brasil proveniente do Conven- em alguns mercadores de Lisboa e nas princi-
to de S.ta Clara, c. 1620 (Museu Quinta das Cruzes).
pais cidades brasileiras. São múltiplas as opera-
ções comerciais registadas na sua documenta-
Branco. A sua atividade incidia, preferencial- ção epistolar. À primeira vista, parece-nos que
mente, na exportação de vinho para Angola, se especializou em duas atividades paralelas:
onde o trocava por escravos que ia vender ao o comércio de vinho para Angola e Brasil, e
Brasil em troca de açúcar. O circuito de trian- o de açúcar e derivados para adoçar os man-
gulação fechava-se com a chegada das naus à jares dos repastos da mesa europeia. Brasil e
ilha, vergadas sob o peso das caixas de açúcar Angola assumem nas suas operações comer-
ou rolos de tabaco. A partir daqui, iniciava-se ciais um lugar de relevo. Para o ano de 1652,
outro processo de transformação do açúcar são assinalados dois navios no comércio com a
para fabrico de casca ou conservas. Esta era Baía. O vinho era um dos produtos mais solici-
uma tarefa caseira, que ocupava muitas mulhe- tados para a contrapartida madeirense, tendo
res na cidade e arredores. na Baía o principal destinatário. Deste modo,
Há um envolvimento direto dos madeirenses para os anos de 1642 a 1655 (corresponden-
na atividade comercial em torno da Baía, onde do apenas aos anos de 1642, 1649 a 1651 e
adquirem fortuna, como sucedeu com Fran- 1655), há notícia do envio de 184.000 pipas de
cisco Fernandes. Os mercadores madeirenses, vinho. Para o período de 1572 a 1695, as re-
como Diogo Fernandes Branco, coordenavam ferências a este produto são assíduas. As ativi-
todo o processo de acordo com as encomen- dades comerciais da ilha com este porto tive-
das que recebiam, uma vez que o produto, de- ram continuidade ao longo dos tempos. Neste
pois de laborado, deveria ter rápido escoamen- comércio também se destacam os mercadores
to. Os principais portos de destino situavam-se William Bolton e João de Saldanha Albuquer-
no norte da Europa: Londres, Saint-Malo, que, quando da sua permanência na ilha como
Hamburgo, Rochela, Bordéus. Esta atividade governador.
188 ¬ Baía

A presença dos madeirenses no Brasil não


se resume à cultura e comércio do açúcar.
Também outras motivações conduzem-nos à
Baía de Todos os Santos. No campo religioso,
foram para a Baía Fr. Gregório Baptista, Gon-
çalo de Gouveia Serpa e D. Pedro Fernandes
Sardinha (o primeiro bispo nomeado para
a Diocese da Baía, a primeira do Brasil, em
1551). No plano institucional, Duarte Moniz
de Menezes, que, em 1560, era alcaide da
Baía. No plano militar, a defesa daquele espa-
ço contou com a participação ativa dos madei-
renses, nomeadamente quando da ocupação
holandesa em 1624.
Foi com algum alarme que os madeiren-
ses receberam no Funchal a notícia da toma-
da da Baía pelos holandeses, a 25 de julho de
1624. De imediato, os insulares organizam-se
para defender esta e as demais possessões, de
forma a salvaguardar os interesses comerciais.
O capitão Manoel de Azevedo, que comanda
uma das quatro companhias do terço de Fran-
cisco de Figueiroa para o Recife com a missão
de expulsar os holandeses, havia servido já no
Fig. 4 – Registo de azulejos com navio de longo curso, Bartolomeu
Rio de Janeiro, Baía e Pernambuco. Há ainda Antunes, 1740 a 1745 (igreja da Boa Viagem da Baía, Brasil).
a assinalar a ação de outro madeirense, Ma-
nuel Dias de Andrade, que combateu pela res-
tauração da Baía. A despesa deste serviço é co- A ligação permanente que se estabelece
berta pela Provedoria da Fazenda no Funchal entre os portos do Funchal e da Baía favoreceu
com o dinheiro reservado para a fortificação a emigração para esta região brasileira até ao
da ilha. No regresso à ilha, muitos receberam séc. xx. O Brasil foi uma terra de promissão
tenças pelos serviços prestados. Heitor Nunes para os madeirenses e, ao longo da história, os
Berenguer, filho de Cristóvão Berenguer, rece- madeirenses tiveram sempre a porta aberta e
beu a comenda e o hábito da Ordem de Cristo, a via facilitada. De 1852 a 1889, emigraram 10
que depois ficou para o seu filho Belchior, e madeirenses. Para o período de 1872 a 1915,
40$000 réis de pensão pelos serviços prestados os livros de passaportes disponíveis testemu-
na Baía e Pernambuco. nham 84 pedidos de emigração para a cidade
O facto de a Baía ser um primeiro porto de da Baía, sendo que a maioria (87 %) ocorreu
ancoragem após a saída de Lisboa fazia com nos anos de 1897-1898.
que muitas embarcações que se dirigiam para Neste trânsito de pessoas entre os dois portos,
sul ali aportassem, muitas vezes à procura de também se verificam escravos africanos chega-
refresco. Foi o que aconteceu, em 1756, com dos ou naturais da Baía que aparecem no Fun-
o navio Nossa Senhora da Conceição e Porto chal. Em 1758, Miguel Brum, negro, natural da
Seguro, de que eram capitão e mestre Custó- Mina, casa-se com Suplicia Maria, negra, tam-
dio Francisco e Feliciano Velho Oldemberg, bém da Mina, a qual já havia sido batizada na
o qual, transportando 85 casais da Madei- Baía. No mesmo ano, José dos Santos, negro,
ra, naufragou a 26 de abril, no sítio do Rio natural da Baía, casa-se com Maria Francisca
Joanes. do Rosário de Bissau. Em 1762, Mateus Borges
B aiardo , L uiz J osé ¬ 189

de Carvalho, negro da Baía, casa-se com Maria


da Silva, negra liberta de Angola. Em 1823, há
notícia de um lojeiro, conhecido como “o mu-
latinho Simão”, natural da Baía, no Funchal.
A Baía também funcionou como porto de de-
gredo para algumas penas a que estavam sujei-
tos os madeirenses. Em 1768, e.g., o mercador
António de Sousa foi deportado para a Baía
“por jogar e dar casa a jogos proibidos e livres
de malícia”(apud CARITA, 1999, 251).
A história do espaço atlântico constrói-se a
partir do séc. xvi, baseada nesta teia de rela-
ções entre as margens e os portos que definem
a vida e importância deste mundo. A Madeira,
por ter sido a primeira área de ocupação efec-
tiva no Atlântico, é uma referência constante
neste quadro de relações institucionais.

Bibliog.: BARROS, Neli P., Os Deputados Brasileiros nas Primeiras Constituintes


e a Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 2002; Boletim do Arquivo Regional da
Madeira. Série Índices dos Passaportes. 1871-1915, 2 vols., Funchal, Arquivo
Regional da Madeira, 2000; BRAGA, Isabel Drumond, “Madeirenses no Brasil.
O contributo das fontes inquisitoriais”, Islenha, n.º 29, jul.-dez. 2001, pp. 44-
54; O Brasil e as Ilhas. Actas do Colóquio Internacional, Funchal, CEHA, 2000;
CARITA, Rui, História da Madeira, vol. v, Funchal, Secretaria Regional da
Educação, 1999; FERRAZ, Maria de Lourdes de Freitas, “Emigração madeirense
para o Brasil no século xviii”, Islenha, n.º 2, jan.-jun. 1988, pp. 88-101; FREITAS,
Nelly de, Des Vignes aux Caféiers. Étude Socio-Économique et Statistique sur Historia Verdadeira dos Acontecimentos da Ilha da Madeira...
l’Émigration de l’Archipel de Madère vers São Paulo à la Fin du XIXe Siècle, (1821), de Sebastião José Xavier Botelho.
Funchal, CEHA, 2015; GOUVEIA, David Ferreira de, “A manufactura açucareira
madeirense (1420-1550). Influência madeirense na expansão e transmissão
da tecnologia açucareira”, Atlântico, n.º 10, 1987, pp. 115-131; Imigração e
Emigração nas Ilhas, Funchal, CEHA, 2001; OLIVEIRA, Maria Júlia, Fidalgos- (1765-1828), Governador do Bispado do Fun-
Mercadores no Século XVIII. Duarte Sodré Pereira, Lisboa, INCM, 1992; REBELO, chal entre 1811 e 1821. A proclamação, na
Helena, “Madeira. A caminho do Brasil”, Xarabanda, n.º 16, 2007, pp. 64-73;
SALDANHA, António Vasconcelos, As Capitanias. O Regime Senhorial na
Madeira, da revolução liberal de agosto de
Expansão Ultramarina, Funchal, CEHA, 1992; SANTOS, Maria Licínia Fernandes 1820 – embora feita tardiamente, sob pressão
dos, Os Madeirenses na Colonização do Brasil, Funchal, CEHA, 1999; SOUSA,
João José Abreu de, “Notas sobre as relações comerciais entre a Madeira e o
popular, a 28 de janeiro de 1821 – ocasionou
Brasil no século xviii”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 9, n.º 39, 1969, um conflito entre frei Joaquim Ataíde e Se-
pp. 43-44; Id., Movimento do Porto do Funchal e a Conjuntura da Madeira de
1727 a 1810. Alguns Aspectos, Funchal, DRAC, 1989; VIEIRA, Alberto (coord.),
bastião José Xavier Botelho (1768-1840), Ca-
A Madeira e o Brasil. Colectânea de Estudos, Funchal, CEHA, 2004; Id., “Madeira. pitão-General da Madeira (1819-1824), sendo
Um cais de permanentes chegadas e partidas”, Anuário do Centro de Estudos de
este acusado de estar por detrás duma conju-
História do Atlântico, n.º 2, 2010, pp. 1004-1153; Id., “O contrabando na Madeira
e o espaço atlântico”, Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, ra contrarrevolucionária. Xavier Botelho es-
n.º 4, 2012, pp. 9-65. creveu, em sua defesa, a História Verdadeira dos
† Alberto Vieira Acontecimentos da Ilha da Madeira, depois do Me-
morável Dia 28 de Janeiro, Escrita por Ordem Cro-
nológica, à qual respondeu Luiz Baiardo, com
Baiardo, Luiz José Carta Escrita a Um Sujeito da Província da Ilha
Luiz José Baiardo nasceu a 30 de abril de da Madeira… O Teatro Grande, no Funchal,
1775, não sendo certo se na Madeira, se em foi alvo de tumultos populares em que frei
Portugal continental. Foi escritor, dramatur- Joaquim Ataíde e Xavier Botelho mediram
go, tradutor de obras teatrais, escrivão do forças. Os opúsculos do Capitão-General e de
Juízo Eclesiástico do Funchal e secretário par- Luiz Baiardo são peças importantes, embora
ticular de frei Joaquim de Menezes e Ataíde não suficientes, para reconstituir a situação
190 ¬ B aker , C harlotte A lice

político-social que se viveu na Madeira, na


sequência imediata da queda da monarquia
absoluta.
Alguns autores colocam a hipótese de algu-
mas das peças teatrais publicadas por Luiz Baiar-
do terem sido escritas por frei Joaquim Ataíde.
Faleceu em data incerta, em Lisboa, onde re-
sidia desde 1821.

Obras de Luiz José Baiardo: Carta Escripta a Hum Sugeito da Provincia


da Ilha da Madeira ou o Lundum dos Bordões, Que Tocou Sebastiaõ Xavier
Botelho, com Variações Compostas por Luiz José Baiardo. Em Desforra das
Invectivas Que contra Elle Escreveo o Dito Botelho na Sua Historia Verdadeira
dos Acontecimentos da Ilha da Madeira, depois do Memoravel Dia 28 de Janeiro,
Escripta por Ordem Chronologica (1821).

Bibliog.: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. vi, Funchal, Secretaria Regional
de Educação, Juventude e Emprego, 2003; GUERRA, Jorge Valdemar, “A Casa da
Ópera do Funchal”, Islenha, n.º 11, jul.-dez. 1992, pp. 113-149; PORTO DA CRUZ,
Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. ii,
Funchal, Câmara Municipal do Funchal, s.d.; SILVA, Fernando Augusto da, e
MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Câmara
Municipal do Funchal, 1965.

Gabriel Pita

Baker, Charlotte Alice


Charlotte Alice Baker, mais conhecida por Alice A Summer in the Azores, with a Glimpse of Madeira (1882),
de C. Alice Baker.
Baker, foi uma professora, jornalista, historia-
dora e escritora norte-americana nascida em
Springfield, Massachusetts, a 11 de abril de 1833 Alice Baker foi uma das principais apoian-
e falecida a 22 de maio de 1909, em Boston, no tes ligadas à fundação do Franklin County Pu-
mesmo estado. Oriunda de famílias abastadas blic Hospital and School of Nursing, estando
pelo lado materno, Alice Baker era filha de Ma- envolvida em diversos eventos de angariação
tthew Bridge e Catharine Baker. de fundos para a implementação deste hospi-
Nos anos 40 do séc. xix, frequentou a Escola tal e para outras instituições sociais carencia-
Misses Stone, em Greenfield, e posteriormen- das. A sua residência em Deerfield, The Frary
te a Academia de Deerfield, em Massachusetts. House, acolheu inúmeros eventos solidários.
Em 1851-1864, Baker foi nomeada professora Alice Baker travou uma longa e distinta ami-
assistente em Chicago e Illinois. Após o encer- zade com a professora, fotógrafa, autora e in-
ramento da Escola, em 1864, regressa a Cam- vestigadora Emma Lewis Coleman (1853-1942)
bridge, em Middlesex, para exercer cuidados e com Susan Minot Lane, professora e pintora,
e prestar assistência à sua mãe. É nesse contex- com quem residiu, periodicamente, em The
to de domesticidade que Alice Baker começa a Frary House. Aliás, é acompanhada por estas
sua produção escrita. Escreveu recensões crí- duas amigas que Alice Baker faz a viagem aos
ticas de livros e produziu artigos para jornais Açores e à Madeira, em 1879, dando posterior-
e revistas sobre arte, literatura e botânica, ex- mente origem ao diário de viagem A Summer in
pressando um particular interesse sobre ques- the Azores, with a Glimpse of Madeira, publicado
tões históricas. Alice Baker escreveu e publicou em 1882.
igualmente uma série especialmente dedicada Em 1897, publica a obra True Stories of New
a crianças, intitulada Pictures from French and En- England Captives Carried to Canada during the
glish History. Old French and Indian Wars. Este livro é fruto
B alan ç a comercial ¬ 191

de uma compilação de 13 artigos sobre cativos Memphis entre 1873 e 1879, ainda que o navio
americanos, cujo paradeiro era desconhecido, tenha partido de New Bedford.
e resulta de uma investigação profunda de re- Durante a sua estadia na Ilha, entre os dias
gistos históricos do séc. xviii, acompanhada de 12 e 16 de setembro, partindo em seguida no-
visitas frequentes a locais e investigação de mis- vamente para os Açores, Alice Baker visitou
sões índias do início do período colonial em essencialmente o Funchal, com particular in-
Nova Inglaterra. Após a publicação e o êxito teresse os lugares de culto religioso, como as
da obra, e pela sua especialidade em história igrejas de Santa Clara, da Sé e a de Nossa Se-
da Nova Inglaterra, Alice Baker foi convidada a nhora do Monte. Ao longo da sua breve visita,
integrar a Sociedade Histórica de Nova Iorque, deu voz à efervescência e ao frenesim citadi-
Montreal e Cambridge. Alice Baker era igual- no, às levadas, à natureza e às paisagens subli-
mente membro da Pocumtuck Valley Memo- mes. Salienta: “The city of Funchal shows more
rial Association. signs of wealth and comfort than any we have
Baker fez-se acompanhar por Coleman nou- seen in the other islands [A cidade do Funchal
tras viagens que fez, nomeadamente ao Que- exibe mais sinais de riqueza e conforto do que
beque, aquando da investigação que deu ori- quaisquer outros que tenhamos visto noutras
gem ao livro True Stories of New England Captives ilhas]” (BAKER, 1882, 142). Destaca a cidade
Carried to Canada during the Old French and In- pitoresca que é o Funchal e a aparência de um
dian Wars (1897), com o objetivo de ilustrar as certo desenvolvimento e riqueza que se des-
suas obras. Emma Coleman terminou inclusive vanece à medida que se afasta do coração da
a obra Epitaphs in the Old Burying-Ground at Deer- cidade.
field (1924), publicada postumamente à morte Alice Baker faleceu a 11 de abril de 1909 em
de Baker. Boston, Massachusetts. Há registo de que esta-
Os dois títulos menos conhecidos da autoria ria a preparar um novo livro intitulado Gleanin-
de Alice Baker são Old Abe, War Eagle of Wiscon- gs from New England and Canadian Archives Con-
sin (1904), uma conferência proferida no Old cerning Captives in the Old Wars, que nunca viu a
South Meeting House, em Boston, a 22 de feve- luz da publicação.
reiro de 1879, sobre a águia mascote do 8.º Re-
gimento de Infantaria Voluntário de Wisconsin Obras de Charlotte Alice Baker: A Summer in the Azores, with a Glimpse
of Madeira (1882); True Stories of New England Captives Carried to Canada
na Guerra Civil Americana e símbolo da arma- during the Old French and Indian Wars (1897); Old Abe, War Eagle of Wisconsin
da norte-americana, e Books as Tools for Children (1904); Books as Tools for Children (1908); Epitaphs in the Old Burying-Ground at
Deerfield (1924) (coautoria).
(1908), um breve artigo compilado em livro que
expõe, de forma concisa, uma reflexão sobre a Bibliog.: BAKER, Charlotte Alice, A Summer in the Azores, with a Glimpse of
Madeira, Boston/New York, Lee and Shepard Publishers/Charles T. Dillingham,
leitura e a aprendizagem nas crianças. 1882; The Biographical Cyclopaedia of American Women, vol. 2, New York,
O diário A Summer in the Azores, with a Glimpse Halvord Publishing Company, 1926; HIGGINS, Thomas L. et al., Images of
America. Baystate Franklin Medical Center, Charleston, Arcadia Publishing,
of Madeira surge na sequência de uma viagem 2016; SCANLON, Jennifer, e COSNER, Shaaron, American Women Historians,
de Alice Baker aos Açores, realizando uma 1700’s-1990’s. A Biographical Dictionary, Westport, Greenwood Press, 1996.

breve passagem pela Madeira. Esta produção


Fernanda de Castro
diarística é dedicada, com grande afeição, a S.
M. L. e E. L. C., iniciais de Susan Minot Lane
e Emma Lewis Coleman, melhores amigas, co- Balança comercial
legas e companheiras de longa data. A sua vi-
sita à Madeira restringe-se a escassos dias. Em- A balança comercial é a balança de pagamen-
bora tenha chegado ao porto do Funchal a 9 tos no quadro das relações externas, i.e., o deve
de setembro de 1879, apenas desembarcou e haver nas relações comerciais que se estabe-
no dia 12, após uma quarentena obrigatória a lecem entre a ilha da Madeira e os vários es-
bordo devido a uma epidemia de febre-amare- paços com que mantém contactos comerciais.
la que dizimou a maior parte da população de É um fenómeno complexo e que, muitas vezes,
192 ¬ B alan ç a comercial

esses saldos com a exatidão e retidão a que a


contabilidade obriga. Quanto às alfândegas da
Ilha, resta a documentação relativa à do Fun-
chal, muito incompleta: os documentos reco-
lhidos no séc. xix, até ao ano de 1834 foram
depositados em Lisboa, no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo; a documentação posterior a
esta data, até 1970, recolhida entre 1951 e 1975,
foi depositada no Arquivo Regional e Bibliote-
ca Pública da Madeira. Faltam os livros dos con-
tadores da Provedoria da Fazenda, os registos
completos da Alfândega. No caso da despesa,
são de significativa importância os orçamentos
do Estado, a partir de 1834, que, embora estives-
sem já estabelecidos na Constituição liberal de
1822, só tiveram execução a partir daquela data.
Fig. 1 – Pátio interior da Alfândega do Funchal, c. 1940 (ABM,
Perestrellos Photographos).
Os dados estatísticos são posteriores, uma vez
que só a partir de 1875 temos informação ofi-
cial, através do Anuário Estatístico. Mesmo assim,
se torna de difícil quantificação. A primeira em muitos casos, é manifesta a falta de rigor e
questão a equacionar prende-se com a dispo- continuidade nas séries de dados estatísticos
nibilidade e veracidade dos dados alfandegá- que se seguem.
rios e com a possibilidade de estes não retrata- A isto, deveremos juntar outras realidades
rem com verdade o sistema de relações. Assim, muito comuns nos espaços insulares, que se
a isenção da dízima dos produtos exportados prendem com o contrabando de mercadorias
ou enviados do continente português fazia proibidas e o descaminho dos direitos. A infor-
com que as receitas alfandegárias se conservas- mação sobre estas atividades ilícitas surge no
sem muitas vezes em Lisboa e não na Ilha, não séc. xv e mantém-se nos posteriores, demons-
obstante serem produtos a ela destinados ou trando serem muito comuns nas ilhas. Esta
saídos de lá, com destino a diferentes merca- terá sido uma forma usual dos insulares se fur-
dos estrangeiros. O açúcar, uma das importan- tarem aos excessivos direitos que penalizavam
tes receitas do séc. xv e princípios da centúria alguns produtos de importação e exportação;
seguinte, estava envolvido maioritariamente era também um modo de combate ao regime
neste quadro. Daí a dificuldade em analisar, de de monopólio de produção e venda de alguns
forma clara, a receita das importações e expor- produtos, como o sal, o tabaco, a urzela e o
tações, e muitas das disparidades que se verifi- sabão. Para alguns produtos com peso especial
cam com frequência quando se pretende com- nas exportações, é possível estabelecer uma es-
parar o quadro da produção local do açúcar timativa das situações de descaminho aos di-
com o das exportações. Além de dificultar o reitos, através de análises comparadas entre os
estabelecimento, de forma correta, da balan- valores da produção e consumo, e os da expor-
ça de pagamentos entre a Madeira e o conti- tação. Assim, nas ilhas, algumas mercadorias,
nente, esta situação também dificulta a visão como o sal, o sabão e a urzela, que estavam su-
de outros mercados europeus, uma vez que jeitos ao regime de monopólio de produção e
a maioria dos produtos da Ilha se destinava à comércio, foram alvo de múltiplas situações de
reexportação. contrabando, que, muitas vezes, superaria um
Existem ainda outras dificuldades, algumas in- quarto do total das transações.
superáveis, nomeadamente a falta de documen- Há um fator determinante a ter em conta na
tação contabilística que permita estabelecer balança de pagamentos, que se prende com a
B alan ç a comercial ¬ 193

Fig. 2 – Conhecimento de embarque no brigue Especulador de duas pipas de vinho Madeira com destino a São Petersburgo de João Fran-
cisco de Oliveira, Funchal (28 abr. 1824) (coleção particular).

tendência dos madeirenses para a monocultu- garça, ganga, guingão, linho, lona, lustrina,
ra, o que levou alguns a afirmarem que o pro- laia, lapim, melânia, morim, holanda, holandi-
cesso económico do arquipélago se processou lha, pelúcia, ratina, ruão, sarja, seda, cetim, sar-
por ciclos de produtos económicos. gelim, serafina, tafetá, talagarça, veludo) e de
A economia da Ilha havia-se orientado para produtos acabados (meias, cobertores, botões
a monocultura com interesse mercantil desde variados, damasco, colchas, barbas de baleia,
finais do séc. xv, que a conduziu a uma de- botas e botins, camisas, camisolas, casacas, ja-
pendência extrema do mercado externo. quetas, capotes, calças, chapéus, lenços, luvas),
Com a afirmação do vinho, abriu-se o cami- fumos para luto, chapéus de sol, castiçais, ca-
nho para o domínio dos Ingleses, que cedo deiras, canapés, camilhas, cómodas e outras
passaram a controlar a circulação mercan- peças de mobiliário, carros, seges, cavalos e
til, dominando os circuitos abastecedores de chicotes para bestas, munições para tiro e caça,
trigo e milho americano e de manufaturas eu- bocetas, cofres, descalçadores, estanhos e co-
ropeias a troco do vinho. O total controlo da bres lavrados, malas e baús, escovas, espelhos
esfera mercantil fazia com que o lucro fosse e frasqueiras. Juntavam-se ainda objetos de
elevado. Mas a fragilidade da economia ma- higiene e limpeza, como sabões e sabonetes,
deirense é uma evidência histórica, sendo re- pedra-ume e anil; objetos de uso doméstico,
sultado da insistente aposta num produto de como agulhas, ferros para engomar, panelas de
exportação. O vinho passou a assumir uma ferro e frigideiras, alvaiada, brochas, garrafas,
posição cimeira nas exportações desde a déc. garrafões e boiões, e aprestos vários para na-
de 70 do séc. xvi. vios, como mastros, vergas, cordas, amarras e
Em 1811, segundo uma listagem feita na Al- moitões. Acresce ainda um lote de produtos de
fândega para a cobrança dos direitos de impor- uso industrial, como carvão de pedra, antimó-
tação, a Inglaterra fornecia uma variedade de nio, aço, chumbo, folha de flandres, enxofre,
tecidos em bruto (algodão, brim, baeta, bom- arame, breu e zarcão, cal, cabelo para estofos,
bazina, bretanha, bertanjil, camelão, crepe, graxa, lacre, grude, gesso, pás, pregos, lâmi-
cassa, colchas, cambraia, casimira, duquesa, nas, navalhas, limas, lixas de papel e óleo de
duraque, estofo, estamenha, escumilha, fus- linhaça. Por fim, aparecem os pianos, as cartas
tão, fio de lã e de algodão, florentina, filó, de jogar, os cachimbos, os rabos de urso e os
194 ¬ B alan ç a comercial

galões de ouro para militares, e ainda os gan- A necessidade de abastecimento de cereais


chos para espadins. foi um dos principais incentivos à manuten-
A tendência para a monocultura condicio- ção das relações interinsulares, que foram uma
nou a economia madeirense, marcando a de- constante no período em causa. Em qualquer
pendência do mercado externo, uma vez que a dos momentos, o Mediterrâneo atlântico não
Ilha necessitava dele para a colocação do açú- foi autossuficiente, carecendo da importação
car e para se abastecer de produtos alimenta- dos mercados europeu ou americano. O últi-
res (carne, pescado, legumes, cereais, azeite, mo tornou-se uma realidade no decurso dos
sal) e de artefactos (ferro, telha, barro, panos, sécs. xviii e xix, funcionando para a Madei-
linho, etc.). Giulio Landi, cerca de 1530, re- ra como contrapartida ao vinho. No período
tratava com grande acuidade a ambiência do que decorreu entre 1727 e 1810, entraram
burgo funchalense. Ali chegavam frequente- no porto do Funchal 4297 embarcações com
mente mercadores de países muito distantes, cereais ou farinha, sendo 2053 (48 %) prove-
como Itália, França, Flandres, Inglaterra, assim nientes da América do Norte, 799 (19 %) de
como da península Ibérica, com os produtos Inglaterra e 687 dos Açores (16 %). A Madeira
referidos, e dela levavam aqueles de que a Ilha fazia depender a subsistência do vinho.
era produtora, como açúcar e vinho, por lá A sujeição madeirense em relação ao merca-
haver em grande abundância. O mesmo autor do externo para assegurar a subsistência das
referia que a Madeira se abastecia de cereais populações foi constante, tendo perdurado até
nas ilhas vizinhas, e que o vinho era vendido ao início do séc. xxi. Implicava, por isso, um
a mercadores que o levavam para a penínsu- peso considerável das importações que, mui-
la Ibérica e para outros países setentrionais. tas vezes, se refletia, de forma desfavorável,
Já em 1567 Pompeo Arditi observava que o co- nas balanças de comércio da Ilha. Na Madei-
mércio baseado no açúcar, nas conservas e nos ra, a situação foi de total dependência das sea-
vinhos era abundante, e que a Ilha tinha de as- ras dos outros. Em 1625, a produção local dava
segurar a sua subsistência com os cereais oriun- apenas para quatro meses, aumentando, em
dos das Canárias e dos Açores. 1662 e 1696, para seis meses. No decurso do
A questão do trigo foi uma dominante da his- séc. xviii, a porção reduziu-se drasticamente,
tória da metrópole e das ilhas, tendo sido, no bastando, em 1777, para apenas três meses, o
decurso do séc. xix, uma das questões que in- que veio agravar a dependência externa de ce-
cendiou o debate político. A luta pelo pão foi reais. O Norte da Europa e a América do Norte
uma constante da história insular e de modo foram os principais mercados, sendo o sistema
particular da Madeira, sendo provocada pela de trocas ativado pelo vinho. Para o período
desarticulação entre o movimento demográfi- de 1784 a 1786, é possível estabelecer uma re-
co e a economia de subsistência. A aposta pre- lação entre os valores da importação de bens
ferencial estava nos produtos de exportação, alimentares e os de saída de vinhos. A situação
com grande solicitação no mercado. A inces- era favorável à Madeira, mas eram os Ingleses
sante luta pelo pão ateou, em todo o proces- que arrecadavam lucros, mercê da política de
so histórico, o relacionamento entre as ilhas. adiantamentos de manufaturas e mantimentos.
O tráfico interinsular assentou fundamental- Os Açores, em aliança com as Canárias, tive-
mente na redistribuição dos meios de subsis- ram, no decurso do séc. xvi, a missão de supri-
tência. Daqui resultou a complementaridade, mento das necessidades frumentárias da Ilha,
que se tornou mais evidente nos primórdios da perdendo-a a favor do novo mercado conquis-
criação das sociedades insulares que nos mo- tado com o comércio do vinho. No período de
mentos posteriores. Nesta lógica, definiram-se 1510 a 1640, as ilhas acudiram com 69 % do ce-
os circuitos interinsulares, e ganhou forma a real consumido no Funchal, assumindo os Aço-
escala das ilhas num circuito que enlaçava o res uma posição dominante, com 55 %, fican-
chamado Mediterrâneo atlântico. do a Europa numa posição inferior, com 28 %.
B alan ç a comercial ¬ 195

A situação mudou no decurso do séc. xix, com


a revolução dos hábitos alimentares nas ilhas.
O milho assumiu grande protagonismo, asso-
ciando-se depois à batata. A crise de fome de
1847 foi provocada pela falta do tubérculo, ata-
cado pela doença.
No decurso do séc. xvii, o vinho teve de par-
tilhar a sua posição com a casquinha, mas o
séc. xviii anunciou-se como a época de afirma-
ção definitiva do vinho. A Câmara, em represen-
tação de 1833, dava conta de que o vinho havia
sido, nos sécs. xvii e xviii, a única fonte de re-
ceita, dependendo dele o progresso da econo-
mia e a felicidade do povo. Vários testemunhos
confirmam a situação. Em 1669, o cônsul fran-
cês dizia que o negócio principal da Ilha consis-
tia em vinhos. A posição foi reforçada, em 1722,
ao afirmar-se que o negócio não consistia mais
que em vinhos e aguardentes. Em 1768, James
Cook não hesitou em afirmar que o único ar-
tigo de comércio que a Madeira produzia era
o vinho. Em 1777, persistia esta ideia de que Fig. 3 – Pilar de Banger, 1798 (fotografia de João Anacleto
Rodrigues, c. 1900, edição do Bazar do Povo, Funchal).
o vinho era a principal e total riqueza da Ilha,
produzindo-se entre 109.000 e 112.000 pipas de
vinho anualmente, mas tal ainda não assegurava Talvez por isso a política das pautas do prin-
um equilíbrio vantajoso à Ilha, por esta depen- cípio do séc. xix tenha substituído esta troca
der da introdução de tudo quanto necessitava direta por dinheiro, o que não surtiu efeito.
para a sua subsistência, que, por isso, excedia As pautas de 1837 e 1839 vão precisamente no
a exportação. É este o principal problema para sentido de afetar essa entrada de produtos es-
a economia do arquipélago: a necessidade de trangeiros, onerando-os com taxas adicionais.
importar tudo ou quase tudo a troco do vinho, A reação madeirense não se fez esperar, rei-
pendendo sempre a balança de pagamentos a vindicando uma situação especial quanto ao
favor do estrangeiro, o que significava que toda vinho, à aguardente e aos cereais.
a riqueza gerada era entregue aos forasteiros, Aos estrangeiros, nomeadamente aos Ingle-
nomeadamente aos Ingleses. Tudo aquilo de ses e Americanos, estava reservado o comércio
que a Ilha necessitava era trazido pelos navios de importação e distribuição por grosso de ví-
estrangeiros, que juntavam o comércio de im- veres. Antes da independência da América, a
portação de manufaturas e comestíveis à expor- Madeira recebia da Inglaterra manufaturas,
tação de vinho. A situação foi ainda agravada artigos de luxo e farinhas, e do outro lado do
pela existência de uma troca desigual. Perante Atlântico, farinhas e madeira para pipas. Em
tais condições, a balança de pagamentos com a 1786, a produção cerealífera local cifrava-se
Inglaterra foi sempre deficitária. em 5093 moios, que apenas davam para o sus-
O quadro das relações com a metrópole é pa- tento da população durante quatro meses, o
recido, pois os dados das importações e expor- que obrigou à importação, entre 1783 e 1786,
tações que temos para as relações comerciais de 9386 moios de cereais e de uma média
com os arquipélagos da Madeira e dos Açores anual de 13.870 barris de farinha. Daqui resul-
são igualmente negativos para os anos de 1799 tou a situação deficitária do comércio da Ilha,
a 1820. em razão da diferença entre as entradas e as
196 ¬ B alan ç a comercial

saídas, e de o vinho ser a única moeda de troca, deplorável de não terem os habitantes de que
segundo se dizia em 1799. O inglês J. Banger vivam, nem que vendam, ou troquem no comér-
tinha, em finais do séc. xviii, o privilégio do cio interno, vista a inação exterior. Porquanto
negócio das farinhas americanas, mas, em a lavoura, os frutos de pão, legumes, e carnes
1795, com a crise de fome, o Erário Régio pro- de forma alguma chegam a sustentação dos três
curou contrariar esta situação. A Junta da Real meses, todo o mais fornecimento é introduzi-
Fazenda do Funchal notava, em fevereiro de do pelos estrangeiros a troco de vinhos, e não
1776, que a conjuntura não era favorável: “Ha- tendo este saída, também a entrada daquele é
vendo-se já em premeditadas considerações da nenhuma, e por consequência nem letras para
Junta praticado a instante e temível situação, a se suprirem de Lisboa onde não há géneros per-
que estava reduzida a exportação, extração dos mutáveis... Estão as casas ricas de vinho, pobres
vinhos desta ilha na falta do qual, por contribuir de sustento e de alimento” (ANTT, Provedoria e
de a base de todo o viver dela, lhe ficam inferio- Junta…, liv. 942, fls. 13-15).
res e frustradas todas as especulativas e práticas Em 1822, a casa de J. H. March, cônsul ame-
advertidas no aumento da cultura, manufaturas ricano, foi acusada por Casado Giraldes de
e giro mercantil, e consequentemente inativo o ser detentora do monopólio das farinhas. Em
comércio, no qual se presente se conhece a gra- 1827, o Gov. José Lúcio Travassos Valdez dava
víssima decadência, nenhum giro e a abundan- conta das alterações produzidas no mercado do
te colheita de vinhos, que nem se pode navegar, vinho da Madeira a partir de 1815.
por estar as impedindo nas terras de seu con- Por tudo isto, a Madeira foi historicamente
sumo maior, quais são nos domínios britânicos, um espaço gerador de riqueza, que, contudo,
pela civil comoção, ou rebelião deles, nem se quase só lhe serviu para acudir, e mal, à sub-
mover o comércio interior na ilha, e chegando sistência. Muita riqueza foi arrancada à terra
seus habitadores, que os tem em seus armazéns pelos madeirenses, mas apenas fez enriquecer
e adegas ao ponto mais pungente de se repu- o senhorio, a Coroa e os estrangeiros.
tarem de pobres; porque procedendo com gé- A Madeira manteve, desde meados do
neros de primeira necessidade e sustento e não séc. xv, um comércio assíduo com o reino, ati-
lhes continuando com este socorro por lhe não vado pela oferta de madeiras, urzela, trigo e,
aceitarem o pagamento em vinho pela falta de depois, açúcar e vinho. O movimento alargou-
ordem que tinham para a sua extração e não ha- se às cidades nórdicas e mediterrânicas, com o
vendo na terra géneros de permutação interior, aparecimento de estrangeiros interessados no
nem dos estrangeiros pela falta de retorno, [...] comércio do açúcar. A evolução das trocas foi
não tendo a ilha para seu sustento frutos mais rápida e lucrativa para os forasteiros, pelo que,
para três meses que a tanto chega a inércia dele. em 1493, a Fazenda Real lançou uma imposi-
Fornecem pelo único e assaz avultado, que tem ção sobre o movimento do porto da cidade do
em vinho para troca cuja extração se acha aba- Funchal para a despesa da construção da cerca
tida e aniquilada, sem outro recurso, que não e dos muros. Da dedução de um vintém sobre
seja a de espera sem vindas, que não, nem pode a tonelagem, tirou-se o rendimento de 100.000
haver sem aquele... qual o de uma necessidade reais, e quanto ao 1 % sobre as mercadorias,
nunca vista na ilha, que tendo por princípio a arrecadaram-se 250 reais. Foi com base nisto
falta de introdução de víveres tinha por fim a que, em 1508, D. Manuel justificou a elevação
consternação e falta pública”. Em dezembro, do Funchal à categoria de cidade: “Tem cres-
a situação da exportação do vinho era de ver- cido em muito grande população e como nela
dadeira catástrofe: “Senhor a consternação em vivem muitos fidalgos cavaleiros e pessoas hon-
que se achava esta ilha sem ter para exportar os radas e de grandes fazendas pelas quais e pelo
seus vinhos, que não tendo consumo senão nas grande trato da dita ilha” (VIEIRA, 2003, 331).
terras anglicas, e achando-se substado pela re- Múltiplas razões fizeram com que o Fun-
volução da América, e tem chegado ao ponto chal se afirmasse, no séc. xviii, como centro
B alan ç a comercial ¬ 197

das transformações sociopolíticas operadas de


ambos os lados do oceano. As ilhas foram pro-
tagonistas, concorrendo para isso vários fato-
res, como a presença da comunidade inglesa
num importante eixo da afirmação colonial e
marítima. A vinculação ao Império Britânico
é evidente no quotidiano e no devir histórico
madeirenses dos sécs. xviii e xix. Os Ingleses
não dispensavam os portos e os vinhos insula-
res na estratégia colonial. As suas leis de nave-
gação de1660 e 1665, corroboradas pelos trata-
dos de amizade, como o de Methuen (1703),
abriram caminho para que as ilhas entrassem
na órbita da influência in­glesa. Aos poucos, a
comunidade ganhou uma posição, por vezes
incomodativa, na sociedade madeirense. A fei-
toria inglesa é uma realidade insofismável no
séc. xviii.
Os Ingleses foram os únicos estrangeiros que
conseguiram assumir uma posição privilegiada
na sociedade madeirense, criando um mundo
à parte e funcionando com instituições pró-
prias. Tinham privilégios exorbitantes, o con- Fig. 4 – Afonso Costa e a Questão Hinton no Parlamento
trolo quase total da economia da Ilha e usu- de Lisboa, bilhete-postal de Francisco Valença, c. 1910
(coleção particular).
fruíam da sua riqueza: “Os lucros provenientes
desta ilha são, indubitavelmente, mais conside-
ráveis para a Grã-bretanha do que para a sua 415). Assinale-se que, no decurso do séc. xix,
Terra mãe (Portugal), como consequência do os réditos arrecadados com a exportação do
comércio realizado entre elas e da feitoria bri- vinho eram elevados e, durante muito tempo,
tânica aí estabelecida e que consiste, presen- dominaram o total das exportações.
temente, em mais de vinte casas comerciais e Em 1813, com um embarque de menos de
cujas fortunas adquiridas se centram na Grã- 20.000 pipas de vinho, os lucros da Alfândega
-bretanha. As outras nações pouco disputam foram elevados, representando 89,6 % da re-
aos Ingleses neste seu comércio com a Madei- ceita. Passado mais de um século, o vinho per-
ra. Mesmo os Portugueses que tentaram com- deu importância, mas continuou a pesar na ba-
petir com eles, raramente prosperaram por lança das exportações com 43,2 %, perdendo
terem, como se supõe, menos conhecimen- na economia interna para a manteiga.
to comercial assim como também, provavel- No sentido de criar condições para que o
mente, um capital e crédito mais pequenos e Funchal se transformasse num importante
menos ligações com estrangeiros. Os comer- porto oceânico de apoio à navegação, tornava-
ciantes Britânicos controlam, para seu interes- -se necessária, para além da construção de um
se, os cultivadores de vinha, fornecendo-lhes porto adequado às exigências das novas embar-
de antemão tudo o que eles necessitam, nos in- cações, a definição de um conjunto de meios
tervalos da vindima e nas estações mais baixas. que facilitasse a oferta competitiva de serviços,
Os seus negócios com os habitantes portugue- nomeadamente o abastecimento de carvão,
ses do Funchal também devem ser intensos; ex- através de medidas fiscais menos penalizadoras
cetuando este facto, parecem não existir mui- da sua importação e exportação. Para o perío-
tas relações sociais entre eles” (VIEIRA, 2003, do de 1889 a 1914, o carvão assumiu um peso
198 ¬ B alan ç a comercial

significativo na balança das importações. Por cana sacarina; assistiu à derrocada da indústria
carta de lei de 27 de maio de 1843, o carvão de dos bordados; vê decrescer o valor dos lacti-
pedra deixou de ser taxado à entrada. cínios; compra pão e roupa, desequilibrando
A partir de meados do séc. xix, a política sempre a sua balança; paga ao estado tributos
de favorecimento da cultura da cana sacarina que, contrariamente ao que era de prever, ul-
obrigou a um conjunto específico de medidas trapassam o limite dos sacrifícios exigidos ao
aduaneiras protetoras da produção madeiren- continente. Nesta Economia empobrecida só
se, as quais favoreceram o principal engenho duas coisas aumentaram: população e impos-
de produção pertencente à família Hinton. To- tos” (VIEIRA, 2014, 628-629).
davia, a partir dos primórdios do séc. xx, foi As pautas aduaneiras foram um importante
insistente a política no sentido de criar me- mecanismo de represália político-económica,
canismos que favorecessem a autossuficiência como regulador da balança de pagamentos,
da Ilha, medida que foi reforçada no Estado mas que na Ilha nunca surtiu efeito. Pelo dec.
Novo. A grande aposta estava na definição de 14, de 20 de abril de 1832, fez-se a reforma da
um regime de policultura, capaz de garantir pauta aduaneira, a que se seguiu outra, pelo
uma estabilidade económica à principal rique- dec. de 10 de janeiro de 1837. A partir desta
za da Ilha, que continuava a ser a exploração data, a pauta passou a ser geral para todo o
agrícola. Em primeiro lugar, procurou-se asse- país, deixando de existir as pautas específicas
gurar o necessário equilíbrio entre as culturas para cada alfândega. Mesmo assim, em 1843,
de subsistência e de mercado, para que as pri- um decreto permitiu um privilégio especial
meiras pudessem suprir, o mais possível, as ne- para a Madeira, melhor dizendo para os Ingle-
cessidades das populações. Depois, no quadro ses, ao conceder uma redução de cerca de 50
das culturas de exportação, promoveu-se uma % nos direitos de entrada e saída. Esta lei de
diversificação, de acordo com as solicitações exceção foi acolhida na Ilha e em Inglaterra
do mercado. com regozijo.
As guerras mundiais tiveram um efeito ne- A 28 de dezembro de 1852, foi criada uma
fasto na economia madeirense, arrastando a nova comissão para as pautas aduaneiras que
maioria da população para um estado de ex- suprimiu a Comissão Permanente e a Comis-
trema carência. O porto parou, e a cidade per- são Revisora. Uma nova pauta aduaneira foi
deu quase todo o movimento que tinha. Além aprovada por dec. de 31 de dezembro de 1852.
disso, os madeirenses, porque dependiam do É nítida uma intenção livre-cambista, mas a ne-
exterior para quase tudo o que precisavam cessidade de receita impediu que se avançasse
para a sua subsistência, estiveram sujeitos a um mais. A 22 de dezembro de 1856, como resulta-
regime de racionamento de produtos, que, do dos estudos desta comissão, foi aprovada a
em muitas situações, conduziu à fome. O Gov. nova pauta aduaneira, seguindo-se outras, a 18
civil José Nosolini, em relatório enviado ao mi- de dezembro de 1861 e a 10 de maio de 1892.
nistro do Interior dando conta desta situação, Com a instauração do regime republicano, in-
perguntava-se: “E a economia madeirense tem troduziram-se alterações na cobrança dos di-
reservas que lhe permitam suportar esta in- reitos, por força da desvalorização da moeda
tensa sangria?”. A resposta é imediata: “A Ma- e da Primeira Guerra Mundial, ficando deter-
deira vive de há muito, ou melhor, agoniza de minado, pelo dec. 41.333, de 18 de abril de
há muito que importa dominar de vez”. Mais 1918, que os direitos de importação deveriam
adiante, é claro quanto ao quadro negro da ser pagos em ouro. Criaram-se, desta forma, di-
Ilha: “A Madeira esvai-se irremediavelmente. ficuldades à exportação, assim como à entrada
As suas riquezas diminuem dia a dia. As pou- de mercadorias. Por outro lado, o dec. 4682,
cas reservas são diária e metodicamente drena- de 27 de abril de 1918, estabeleceu sobreta-
das para fora da sua economia. [...] A Madeira xas relativas à importação de diversas merca-
perde no vinho; sofreu o prejuízo enorme da dorias. Esta oneração fiscal das importações
B alan ç a comercial ¬ 199

continuou, pois, por dec. 6263, de 2 de dezem- que o diferencial entre as entradas e as saídas
bro de 1919, em que foram duplicados todos foi aumentando consideravelmente. Este cres-
os direitos e sobretaxas de importação esta- cimento foi impulsionado pelos níveis de de-
belecidos em 1918, permanecendo a exigên- senvolvimento que a Região foi ganhando, e
cia, em ouro, de apenas metade do valor. Por que necessitaram de ser nutridos. No ano 1976,
outro lado, ainda, o dec. 1193, de 31 de agosto o somatório das entradas e importações na Re-
de 1920, determinou que o quantitativo inte- gião foi de 16,948 milhões de euros, sendo as
gral dos direitos e sobretaxas fosse exigido em saídas e as exportações de 4,851 milhões de
ouro. Pelo dec. 8747, de 31 de março de 1923, euros. O saldo para esse ano foi de -12,097 mi-
foi aprovada nova pauta aduaneira em que são lhões de euros, enquanto a taxa de cobertura,
abolidas algumas sobretaxas. Este decreto, re- que representa o quociente das saídas e das en-
visto pela lei 1668, de 9 de setembro de 1924, tradas, foi de 17,3 %.
não gerou consensos. Esta era uma forma de No ano seguinte, o saldo ganhava maior ex-
regularizar o comércio externo no pós-Primei- pressão com uma variação de 50,4 % em re-
ra Guerra Mundial. Com o regime da Ditadura lação ao ano anterior, cifrando-se em -48,230
Militar, ocorreu uma reforma da pauta, através milhões de euros, com a taxa de cobertura a
do dec. 17.823, de 31 de dezembro de 1929, diminuir para 16,7 %. Nos anos 1978 e 1979,
que era já a expressão plena dessa mudança as entradas e as importações voltaram a au-
das conjunturas política e económica mun- mentar em maior proporção que as saídas
diais. Todavia, as medidas protecionistas con- e as exportações, fixando o saldo em -27,032
tinuaram a marcar presença, como se poderá milhões de euros e -38,092 milhões de euros,
verificar pelo dec. 20.935, de 26 de fevereiro respetivamente.
de 1932, que impõe um adicional de 20 % aos Durante a déc. de 80, a tendência foi a de
direitos de importação, e pelo dec. 24.115, de aumento anual do diferencial entre as entra-
29 de junho de 1934, pelo qual foi estabeleci- das e as importações, e as saídas e as exporta-
do o regime de proteção de bandeira ao serem ções, com exceção de 1984, em que o saldo foi
taxadas, através de um adicional de 13,5 %, as de -109,479 milhões de euros, quando no ano
mercadorias exportadas em navios estrangei- anterior a variável tomou o valor de -112,864
ros. Já o dec.-lei 30.252, de 30 de dezembro de milhões de euros. Em 1990, o saldo ascendeu
1939, duplicou o valor dos direitos de exporta- aos -364,258 milhões de euros, resultantes do
ção específicos e fez incidir 2,5 % sobre a taxa facto das entradas, em conjunto com as im-
dos direitos de exportação ad valorem. Esta si- portações, terem sido de 406,002 milhões de
tuação perdurou até 1947. euros, e as saídas, juntamente com as expor-
A balança comercial é um indicador que tra- tações, terem ficado pelos 41,744 milhões de
duz a diferença entre as exportações e as im- euros, cerca de 10 % das entradas.
portações de bens e serviços de uma dada re- Cabe destacar que, ao analisar com uma
gião. A Região Autónoma da Madeira (RAM), maior especificidade os valores acima apresen-
pelas limitações associadas à sua insularidade tados, a estrutura das entradas na RAM é ca-
e pelos escassos recursos de que dispõe, apre- racterizada pela predominância do comércio
senta um saldo entre o somatório das saídas e estabelecido com o continente e com a Região
das exportações e o conjunto das entradas e Autónoma dos Açores, em comparação com
das importações negativo. Na realidade, quan- aquele que se desenvolveu com países tercei-
do é considerada esta variável, verifica-se que a ros. Tome-se como exemplo o ano de 1976, em
quase totalidade do consumo da RAM advém que as entradas de produtos e serviços prove-
do exterior, sendo remetido um valor muito nientes dos Açores e do território continental
mais baixo. foram de 13,477 milhões de euros, enquanto
Ao analisarmos os dados disponibilizados re- as importações se fixaram em 3,471 milhões
ferentes ao comércio com o exterior, notamos de euros. Assim sendo, enquanto o mercado
200 ¬ B alan ç a comercial

nacional representava 79,5 % das entradas to- variação negativa das importações foi superior,
tais, as importações representavam 20,5 %. Em de 43,7 %, permitindo o aumento da taxa de
1991, esta realidade era ainda mais realçada, cobertura.
na medida em que as entradas do mercado Quando analisada a estrutura das importa-
nacional ascenderam aos 387,427 milhões de ções da RAM, verifica-se que embora, nos anos
euros, totalizando 87,2 % do total de entradas, de 1993 e 1994, as importações extra-UE te-
sendo que as importações, de 56,974 milhões nham sido superiores às importações intra-UE,
de euros, representaram 12,8 %. a partir de 1995, houve um aprofundamento
Não obstante o volume de entradas ser su- das relações comerciais entre países perten-
perior ao de importações, cabe destacar que, centes à UE e a Região, na medida em que as
no que se refere ao comércio internacional, a importações intra-UE ultrapassaram significati-
RAM apresentou, durante um longo período, vamente as extra-UE. Tome-se como exemplo
um decréscimo na taxa de cobertura, sendo o facto de, no ano 2012, para um volume de
cada vez maior a sua dependência em relação importações que ascendia aos 173,882 milhões
aos países terceiros. Se, em 1976, as exporta- de euros, 157,466 milhões de euros, cerca de
ções cobriam em 70,5 % as importações, em 90,6 %, constituírem importações de países
1991, a taxa de cobertura diminuiu para 67,4 pertencentes à UE. Dentro do leque de países
%. Em 2010, a diminuição foi ainda mais no- que fazem parte da União, os mercados que
tável, tendo em conta que as exportações co- representam a principal fonte das importações
briam em 37,0 % as importações. da RAM são a Espanha, que, para 2012, re-
Todavia, e não obstante a tendência da di- presentou 69,131 milhões de euros; a França,
minuição da taxa de cobertura, cabe destacar com 58,792 milhões de euros, e a Itália, com
que, a partir de 2011, se verificou um revés na- 7,166 milhões de euros. Em suma, estes três
quilo que se constatava até essa data. Isto por- países representavam 85,7 % das importações
que, com variações anuais tendencialmente intracomunitárias.
negativas para as importações e tendencial- A estrutura apresentada anteriormente re-
mente positivas para as exportações, os anos presenta um conjunto de alterações que se
de 2011 e 2012 apresentaram taxas de cobertu- verificou ao longo dos anos e que lhe conce-
ra de 52,4 % e 83,5 %, respetivamente, sendo deu a ordenação que atualmente apresenta, já
que, para 2013, os resultados provisórios indi- que em 1988, os países pertencentes à União,
cavam que as exportações cobriam 85 % das e com maior peso nas importações da RAM,
importações. eram: o Reino Unido, com 6,448 milhões de
Relativamente aos dados verificados nestes euros; a França, com 5,270 milhões de euros, e
últimos anos, é notável que, em 2011, o au- os Países Baixos, com 4,243 milhões de euros.
mento significativo da taxa de cobertura tenha Estes três mercados constituíam 57,2 % das im-
sido ocasionado em grande parte pela diminui- portações intra-UE.
ção abrupta das importações, já que as mesmas No que a exportações diz respeito, o mercado
apresentaram uma variação anual negativa de europeu e o mercado africano foram assumin-
24,6 %, tendo sido verificado um aumento das do grande relevo, tendo o segundo, em 2011,
exportações, na ordem dos 6,8 %, se compara- ultrapassado o primeiro, já que as exportações
das com as do ano anterior. Por outro lado, o para o continente africano se situaram nos
ano de 2012 revelou-se um marco importante 30,415 milhões de euros. Os países africanos
no que a exportações diz respeito, já que, se de língua oficial portuguesa, particularmen-
em 2011 o valor das mesmas era de 62,330 mi- te Angola, foram os mercados mais importan-
lhões de euros, no ano seguinte aumentaram tes em África. Em contrapartida, para o conti-
para 145,06, um crescimento na ordem dos nente europeu, as expedições foram de 25,171
132,7 %. Apesar de os dados de 2013 indica- milhões de euros, sendo que os países da UE,
rem uma queda de 42,7 % nas exportações, a com 24,432 milhões de euros, representaram a
B aldy , J osé M aria ¬ 201

quase totalidade das exportações para a Euro- Luís de Brito, “A Madeira e a Rússia”, Atlântico, n.º 4, 1985, pp. 298-305; LOJA,
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Historicamente, o mercado europeu consti- História da Madeira, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1990, pp. 67-98; OLIVEIRA, Aurélio, “A Madeira
tuiu a principal zona económica de destino das
nas linhas de comércio do Atlântico”, in Actas do III Colóquio Internacional de
exportações da RAM. Tome-se como exemplo História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993, pp. 917-931; PEREIRA, Fernando
o facto de, em 1988, as exportações da Região Jasmins, Estudos de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1991; RIBEIRO, J.
Adriano, “A casquinha na rota das navegações do Atlântico norte nos séculos
terem sido de 27,162 milhões de euros, dos xvii e xviii”, in Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira,
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Região dispõe e com a capacidade de produ- cuarto del siglo xvii. Una aproximación a su realidad historica”, in Actas do I
ção nela instalada. Em 2012, 31,7 % das impor- Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. ii, Funchal, DRAC, 1990,
pp. 816-843; SERRÃO, Joel, “Em torno da economia madeirense de 1550 a 1640”,
tações foram relativas ao grupo de produtos
Das Artes e da História da Madeira, vol. 1, n.º 1, 1950, pp. 21-23; Id., “Sobre o
onde se incluem os veículos e outro material ‘trigo das ilhas’ nos sécs. xv e xvi”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 1,
de transporte. Em segundo lugar, surgem os n.º 2, 1950, pp. 1-6; Id., “Rendimento das alfândegas do arquipélago da Madeira
(1581-1587)”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 1, n.º 5, 1951, pp. 1-5;
metais comuns, a representar, com os 31,434 vol. 1, n.º 6, 1951, pp. 14-18; SILBERT, Albert, Uma Encruzilhada do Atlântico.
milhões de euros, 18,1 % das importações, apa- Madeira (1640-1820), Funchal, CEHA, 1997; SILVA, José Manuel Azevedo e,
“A navegação e comércio vistos do Funchal, nos finais do século xvii”, in Actas
recendo de seguida os produtos agrícolas, com do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993;
17,3 %. Relativamente às exportações, e apesar Id., A Madeira e a Construção do Mundo Atlântico (Séculos XV-XVII), 2 vols.,
Funchal, CEHA, 1995; SOUSA, João José de, “O porto do Funchal no séc. xviii.
da importância relativa que têm assumido cer- Alguns aspectos”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 6, n.º 36, 1966, pp. 20-
tos grupos de produtos em determinados anos, 24; Id., “O porto do Funchal e a economia da Madeira no século xviii”, Das
Artes e da História da Madeira, vol. 7, n.º 37, 1967, pp. 63-80; Id., “Notas sobre
e.g. o de veículos e outro material de transpor-
as relações comerciais entre a Madeira e o Brasil no século xviii”, Das Artes e
te, que em 2012 representou 39,6 % das im- da História da Madeira, vol. 7, n.º 39, 1968, pp. 43-44; VASCONCELOS, Cláudia
portações, os produtos agrícolas e alimentares Câmara et al., Madeira. Reflexões sobre o Desenvolvimento, Funchal, s.n., 2005;
VIEIRA, Alberto, O Comércio Inter-Insular nos Séculos XV e XVI. Madeira, Açores
revelam-se como aqueles que estatisticamente e Canárias, Funchal, CEHA, 1987; Id., “O arquipélago da Madeira no quadro
têm mantido alguma estabilidade na sua signi- da economia europeia e atlântica”, in Documentos Congresuales. Economía e
Insularidad (Siglos XIV-XX), t. 1, La Laguna, Universidad de La Laguna, 2007,
ficância nas exportações regionais. pp. 261-287; Id., O Deve e o Haver das Finanças da Madeira, Funchal, CEHA,
2014; digital: “Série retrospectiva do comércio internacional. 1976-2013”,
Legislação: decretos: n.º 14, de 20 abr. 1832; 10 jan. 1837; 20 mar. 1841; 31 Direção Regional de Estatística da Madeira, s.d.: http://estatistica.gov-madeira.
dez. 1852; 22 dez. 1856; 23 ago. 1860; 18 dez. 1861; 25 jan. 1871; 6 jul. 1882; 14 pt/index.php/download-now/economica/comercio-pt/comercio-internacional-
dez. 1882; 17 dez. 1885; 22 set. 1887; 10 maio 1892; n.º 8471, de 27 mar. 1923; pt/comerciointernacional-quadros-pt/completa/finish/518-completas/2762-
n.º 8747, de 31 mar. 1923; n.º 17.823, de 31 dez. 1929; n.os 37.444 e 37.445, de 9 comercio-internacional-de-bens-na-regiao-autonoma-da-madeira-1976-2013
jun. 1949; decretos-lei: n.º 37.977, de 21 set. 1950; n.º 42.656, de 18 nov. 1956; (acedido a 1 fev. 2015).
n.º 42.785, de 31 dez. 1959; n.º 43.295, de 5 nov. 1960; n.º 56/76, de 22 jan.;
n.º 193/76, de 16 mar.; n.º 225-F/76, de 31 mar.; n.º 426/76, de 1 jun.; n.º 729/76, † Alberto Vieira
de 14 out.; n.º 102/78, de 23 maio; n.º 149-A/78, de 19 jun.; n.º 204-A/80, de
28 jun.; n.º 6/81, de 24 jan.; n.º 200/82, de 21 maio; n.º 201/82, de 21 maio; Sérgio Rodrigues
n.º 389/87, de 31 dez.; n.º 19/92, de 19 fev; leis: n.º 2/78, de 17 jan.

Bibliog.: manuscrita: ANTT, Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal,


liv. 942, Livro de Registo de Assentos Ordinários, 1775-1805; impressa: CABRERA,
Manuel Lobo, “Canarias, Madeira y el zumaque”, Islenha, n.º 1, jul.-dez.
Baldy, José Maria
1987, pp. 13-18; CÂMARA, Benedita, A Economia da Madeira (1850-1914),
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2002; CÂMARA, Paulo Perestrelo da, O Brig. José Maria Baldy nasceu em Lisboa, a
Breve Notícia sobre a Ilha da Madeira…, Lisboa, Typ. da Academia de Bellas 16 de maio de 1800, sendo filho do compositor
Artes, 1841; COSME, João dos Santos Ramalho, “Subsídios para a história
do movimento comercial do porto do Funchal (1675-1688)”, in Actas do III
João José Baldy (1770-1816), de uma família de
Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993, pp. 383­ origem italiana, que fora mestre-capela das sés
‑388; FERRAZ, Maria de Lourdes de Freitas, “O vinho da Madeira no século
xviii. Produção e mercados internacionais”, in Actas do I Colóquio Internacional
da Guarda e de Faro e que, à data do nasci-
de História da Madeira, vol. ii, Funchal, DRAC, 1990, pp. 935-965; GOMES, José mento do filho, era 2.º mestre da Real Capela
202 ¬ B aldy , J osé M aria

da Bemposta. José Maria entrou na Academia


de Fortificação e Desenho em 1816, sendo 2.º
tenente em 1822 e 1.º tenente em 1823, tendo
feito o tirocínio em Elvas. Em 1825, obteve li-
cença para cursar Matemática em Coimbra,
mas adiou os estudos para ir defender a causa
liberal. Serviu na divisão constitucional de
Coimbra e foi depois pronunciado em devas-
sa pelo corregedor absolutista daquela cidade,
mas foi-lhe reformulada a pronúncia em 29 de
janeiro de 1830, por falta da necessária prova,
ficando, porém, sujeito à vigilância das auto-
ridades competentes e às medidas de preven-
ção e cautela que parecessem necessárias para
a conservação da tranquilidade e da segurança
públicas. Já não se encontrava então em Coim-
bra há mais de um ano, tendo emigrado para a
Galiza com as tropas liberais, passando a Ingla-
terra e depois aos Açores, onde desembarcou
na ilha Terceira em março de 1829.
Após o triunfo das forças liberais, voltou a
Coimbra, onde concluiu os estudos e obteve
capelo gratuito por bom aproveitamento. Em
1837, começa a lecionar na Univ. de Coim-
Fig. 1 – José Maria Baldy, retrato a óleo, c. 1870
bra, atingindo o lugar de lente em 1844. Es-
(sede da Cruz Vermelha Portuguesa, Lisboa).
teve, assim, afastado do Exército até 21 de se-
tembro de 1846, quando foi nomeado chefe
do Estado-Maior do Comando Geral de Arti- meados de 1858, optou-se pela nomeação de
lharia, com o posto de general, pedindo a exo- um dos oficiais presentes na Madeira para go-
neração de lente em 1851. Passou então pelos vernador civil interino, com o intuito de evi-
lugares de comandante militar das praças de tar a repetição da transferência de pessoal que
Elvas e da ilha Terceira, nos Açores, sendo ocasionara o desastre de 1856. A escolha recaiu
nomeado, a 6 de março de 1858, comandan- no Brig. Eng.º José Maria Baldy, que mandou
te militar e diretor das Obras Públicas da Ma- proceder às eleições, nas quais, entre os habi-
deira, lugar de que tomou posse a 26 de abril tuais deputados da Madeira, foi eleito o ante-
seguinte. O Brig. Baldy terá acompanhado as rior governador, o Brig. António Rogério Gro-
várias obras civis e militares em curso e, como micho Couceiro (1807-1862), que, tendo sido
antigo lente da Univ. de Coimbra, protegeu as igualmente eleito pelo distrito da sua naturali-
aulas militares de Caçadores 12 no Funchal, dade, o de Portalegre, pois nascera em Elvas,
onde chegou a lecionar, tal como já fizera na teve de optar por esse círculo.
ilha Terceira, quando aí tinha sido governador Foi o Brig. José Maria Baldy, como gover-
militar. nador interino, que determinou para o Fun-
A situação em Lisboa, ao longo dos anos de chal as festas referentes ao casamento real
1857 e 1858, era semelhante à que se vivera na de D. Pedro V (1837-1861) e de D. Estefânia
Madeira com a epidemia de cólera em 1856, (1837-1859), ocorridas em Lisboa a 18 de maio
sendo o mal que afligia a capital uma febre- de 1858, determinadas para 17, 18 e 19 de
-amarela, que causou, só naquela cidade, 5000 junho, contando o governador com o patriotis-
mortos. Com o aproximar das eleições de mo do povo e com o sentimento de afeição de
B aldy , J osé M aria ¬ 203

Em 1858, seguindo o exemplo do seu ante-


cessor, o Brig. João Maria Baldy informava, a
30 de julho, as administrações dos concelhos
de Câmara de Lobos e da Ponta do Sol da sua
próxima visita às repartições dessas adminis-
trações. No entanto, no final do ano, a 30 de
novembro, o governador voltava a informar
Câmara de Lobos da sua próxima visita, pare-
cendo assim que não fora possível efetuá-la no
verão. O ano de 1859 foi marcado em todo o
país pelos trabalhos de implantação do novo
sistema de pesos e medidas, de base decimal,
determinado pelo dec. de 20 de junho do ano
anterior, começando primeiro com o sistema
métrico e depois com os restantes. A implan-
tação do novo sistema envolveu uma marcação
de prazos para a transferência de um sistema
para outro, programada para um período de
10 anos, e, mesmo com a circulação de inspe-
tores nacionais para a sua implantação e fisca-
lização, surgiram problemas. O governo sabia
os problemas que a transição iria colocar, pois
tal havia já causado problemas noutros países
europeus, e não se enganara.
Fig. 2 – Collecção de Listas Que Contem os Nomes das Pessoas,
Que Ficarão Pronunciadas nas Devassas, e Summarios (1833),
de Pedro da Fonseca Serrão Veloso.

que todos tinham dado provas. A 8 de outubro,


entrava no porto do Funchal o infante D. Luís
(1838-1889), o primeiro membro direto da fa-
mília real portuguesa a visitar a Ilha. O infante
foi na corveta Bartolomeu Dias, de que era co-
mandante, levando em conserva a canhoneira
Sagres. O infante demorou-se 20 dias na Madei-
ra, participando em festas várias dadas pela no-
breza local, mas só a 19 de outubro acedeu a
participar numa cerimónia oficial em S. Lou-
renço, por ocasião da instalação da Sociedade
Auxiliar Primária da Ilha da Madeira. Dormiu
quase sempre a bordo da corveta Bartolomeu
Dias, salvo na sua visita ao Rabaçal, tendo
então pernoitado na Ponta do Sol, no Lugar
de Baixo, na residência do comerciante Antó-
nio Giorgi, em cuja coutada tinha caçado. Na
véspera da sua partida e em agradecimento à
forma como havia sido recebido, ofereceu uma Fig. 3 – Informação de que o Brig. José Maria Baldy fora
nomeado governador civil do Funchal por dec. de 21 de abril,
receção em S. Lourenço, saindo para Lisboa a António Maria Fontes Pereira de Melo (30 abr. 1859)
27 de outubro. (AHM, Processos Individuais).
204 ¬ B aleia , ca ç a à

A nomeação do Brig. José Maria Baldy como de Listas Que Contem os Nomes das Pessoas, Que Ficarão Pronunciadas nas
Devassas, e Summarios: a Que Mandou Proceder o Governo Usurpador depois da
governador civil do Funchal só veio a ser feita Heroica Contra-Revolução, Que Arrebentou na mui Nobre e Leal Cidade do Porto
pelo dec. de 20 de abril de 1859, tomando em 16 de Maio de 1828, Porto, Typ. de Viúva Alves Ribeiro & Filho, 1833.

posse a 21 de maio seguinte, como participou


Rui Carita
às administrações dos concelhos. Ter-se-ia co-
locado em Lisboa a hipótese da acumulação
do lugar de governador civil com o de militar,
Baleia, caça à
o que levou a troca de correspondência sobre
o assunto, largamente documentada no seu A primeira referência à presença de baleias nas
processo individual militar, mas a 20 de maio águas da Madeira é de 1595 e diz respeito a um
já se informava que fora somente nomeado animal observado no porto do Funchal. Nos sé-
como governador civil, pelo que era necessá- culos seguintes, são poucos os registos de ba-
rio preencher a vaga de governador militar. leias na Madeira, com algumas referências de
A 16 de dezembro, o Gov. José Maria Baldy animais que deram à costa ou foram encontra-
enviava uma circular para marcação das elei- dos mortos a flutuar.
ções para deputados, segundo o dec. de 28 de A caça à baleia parecia ser uma atividade
novembro e a carta de lei de 23 de novembro local esporádica, atestada pela quase ausência
de 1859, que determinava as eleições para as de referências à captura destes animais até ao
Cortes Gerais para o dia 26 de janeiro seguin- séc. xx, apesar de a sua presença estar confir-
te. A 30 de dezembro, informava, igualmen- mada nestas águas, e.g. através da referência à
te por circular, de “que tendo de se deslocar área de caça à baleia a oeste da Madeira nos
a Portugal” (ABM, Governo Civil do Funchal, logbooks dos navios baleeiros americanos du-
liv. 8, fls. 126v.-127), entregava, interinamente, rante o séc. xix, designada por vezes de Steen
o Governo civil ao secretário-geral, Joaquim ground. Entretanto, em 1741, Nicolau Soares
Pedro Quintela (1801-1869), 2.º conde de Far- tentou iniciar a caça à baleia na Madeira, pe-
robo, depois também governador civil. Pelo dido que foi recusado pelo Rei D. João V, pois
seu processo individual militar, sabemos que tinha atribuído o monopólio da baleação no
pedira exoneração e que a mesma lhe foi con- reino às armações baleeiras do Brasil. A Madei-
cedida a 1 de fevereiro de 1860, pelo que a sua ra nunca foi grandemente influenciada pela
deslocação ao continente foi, por certo, para atividade baleeira desenvolvida por outros
pressionar a mesma exoneração. países, contrariamente aos Açores, que nos
Em 1861, já como par do reino, foi convida-
do para a Pasta da Guerra, mas declinou o con-
vite, sendo nomeado inspetor-geral do Arsenal
do Exército, do que veio também a pedir es-
cusa, sendo então promovido ao posto de ma-
rechal de campo e a comandante militar de
Coimbra. Desde 6 de agosto de 1866 que era
presidente da Cruz Vermelha Portuguesa, fale-
cendo em Coimbra, a 4 de setembro de 1870.
Regista o Elucidário Madeirense que, apesar do
curto período do seu governo, deixou hon-
rosas tradições na administração superior do
distrito.
Bibliog.: manuscrita: ABM, Alfândega do Funchal, liv. 678, of. 611, 27 abr. 1858;
of. 620, 18 out. 1858; Ibid., Governo Civil, liv. 8, fls. 82v., 91, 96, 104, 126v.-127;
AHM, Processos Individuais, cxs. 807 e 1839, José Maria Baldy; impressa: SILVA,
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, Fig. 1 – Reboque para esquartejar uma baleia, Caniçal ou Porto
3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VELOSO, Pedro da Fonseca Serrão, Collecção Moniz, c. 1950 (arquivo particular).
B aleia , ca ç a à ¬ 205

sécs. xviii e xix foram visitados regularmen-


te por navios baleeiros norte-americanos à pro-
cura de cachalotes e aí recrutavam tripulantes
para as suas caçadas em alto mar. É possível
que para tal tenha contribuído uma menor
presença de baleias na Madeira, mas também
o facto de o clima e os primeiros colonizadores
(principalmente agricultores) terem propicia-
do o crescimento da economia do arquipéla-
go, assente, sobretudo, na atividade agrícola,
como atestam os ciclos da cana do açúcar e do
vinho. O sucesso da economia terrestre prova-
velmente não incentivou o aparecimento de
atividades alternativas no mar, de maior risco
empresarial.
Foi apenas nos anos 30 do séc. xx que vol- Fig. 2 – Esquartejamento de uma baleia no forte do Negrito, ilha
tou a ser considerada a possibilidade de se ca- Terceira, Açores (fotografia de João Anacleto Rodrigues, c. 1900,
edição do Bazar do Povo, Funchal).
çarem baleias na Madeira. Os protagonistas do
início da caça à baleia foram Simplício dos Pas-
sos Gouveia e Francisco Marcelino dos Reis. com boa cobertura do mar para maximizar a
O primeiro era oficial a bordo dos navios da localização das baleias. Com a confirmação da
Empresa Insulana de Navegação e o segundo presença de cachalotes (a espécie de baleia de
negociante de óleo de cachalote e sócio em al- interesse para a atividade) ao largo do Porto
gumas fábricas de baleias nos Açores; conhece- Moniz, Pedro Cymbron enviou dos Açores, em
ram-se nas viagens que ambos realizavam entre agosto desse ano, as primeiras baleeiras e res-
o continente, a Madeira e os Açores. Em 1935, petivas tripulações. Estes homens traziam con-
Simplício dos Passos Gouveia tornou-se pilo- sigo o conhecimento secular das técnicas ar-
to de barra do porto do Funchal e, nas con- tesanais da caça à baleia herdadas dos yankees,
versas tidas com Francisco Marcelino dos Reis dos povos indígenas norte-americanos e dos
quando este passava pela Madeira, questionou- bascos, que engenhosamente adaptaram à rea-
-se sobre o porquê de não existir baleação na lidade das ilhas açorianas. A sua arte e técni-
Madeira. Na sequência dessas conversas, o pi- ca baseavam-se na deteção de baleias, especial-
loto Gouveia perguntou junto de pescadores e mente cachalotes, a partir de pontos altos na
arrais das embarcações de cabotagem se viam costa, seguido da sua perseguição, caça e abate
com regularidade baleias, e assim confirmou a com arpões e lanças utilizando pequenos botes
sua presença nas águas da Madeira. Mais tarde, em madeira, propulsionados à vela e a remos.
Francisco Marcelino dos Reis envolveu Pedro O atraso da capitania do porto do Funchal
Cymbron, sócio-gerente da União das Arma- na concessão das licenças necessárias impediu
ções Baleeiras de São Miguel, e despertou o o começo da caça à baleia em 1940. Em con-
seu interesse ao ponto de este fazer uma via- sequência, nesse ano os vigias apenas recolhe-
gem exploratória à Madeira em 1938 para ava- ram dados estatísticos de avistamentos de ca-
liar as potencialidades da atividade. chalotes e foram construídas as instalações,
Em junho de 1940, iniciou-se na Madeira o designadas pelos baleeiros de “traiól”, para
empreendimento da baleação, com a vinda do desmanche e derretimento do óleo.
primeiro vigia dos Açores com o apoio local Os dois primeiros cachalotes foram captura-
do piloto Gouveia. Foram estabelecidas ini- dos a 2 de fevereiro de 1941 ao largo do Porto
cialmente duas vigias, uma no Porto Moniz e Moniz. Esses animais foram inicialmente des-
outra em Machico, em pontos altos na costa manchados no calhau das Pedras Vermelhas,
206 ¬ B aleia , ca ç a à

na Ribeira da Janela, costa norte da Madeira. décadas de atividade, o mandador foi Luís
No entanto, as árduas condições de trabalho, Reis, oriundo da freguesia das Capelas, na ilha
devidas, sobretudo, ao mar agreste, forçaram de São Miguel (Açores), e substituído, até ao
a construção de novas instalações na costa Sul, fim da atividade, por seu filho, Eleutério Reis.
mais abrigada dos ventos e do mar. Assim, a O crescimento da baleação na Madeira de-
partir de 1942, a maioria das baleias passou a veu-se, não apenas à disponibilidade de ca-
ser desmanchada no calhau do Garajau. Tam- chalotes nestas águas, mas também à pronta
bém foi montado um traiól no Porto Santo, em aprendizagem dos novos vigias e baleeiros –
1944, mas que nunca chegou a operar. de naturalidade madeirense – que no convívio
Nos primeiros anos, a atividade foi desen- com os experientes baleeiros do arquipélago
volvida com um alvará provisório atribuído vizinho forjaram o seu saber. A rápida adapta-
formalmente pelo Estado português a Pedro ção dos homens locais a esta nova faina per-
Cymbron. Este dispunha dos equipamentos e mitiu que em 1944 todos os vigias e a grande
dos homens com a experiência para começar a maioria das tripulações das baleeiras fossem
atividade e contava com o apoio logístico local madeirenses.
e o conhecimento das lides do mar do piloto Com o sucesso dos primeiros anos da ativi-
Gouveia. Em 1940, constituiu seu irmão José dade, foi criada a 2 de dezembro de 1944 a
Cymbron, funcionário da Alfândega do Fun- Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira,
chal, procurador para gerir e administrar a ati- Lda. (EBAM). Assinaram a escritura de consti-
vidade na Madeira. tuição da empresa Pedro de Chaves Cymbron
Três anos após o início da atividade, já exis- Borges de Sousa, José de Chaves Cymbron Bor-
tiam nove baleeiras a caçar, apoiadas por qua- ges de Sousa, Simplício dos Passos Gouveia e
tro lanchas. Estas baleeiras operavam a partir Francisco Marcelino dos Reis, com os segundo
do Porto Moniz, Funchal e Garajau, e caçavam e terceiro outorgantes a tornarem-se sócios-ge-
cachalotes sob a coordenação de um respon- rentes da EBAM. A partir de 1946, a concessão
sável, chamado mandador. Nas primeiras duas exclusiva da atividade baleeira inicialmente
atribuída pelo Estado português a Pedro Cym-
bron foi entregue à EBAM, que a viu ser reno-
vada sucessivamente até 1981.
As primeiras vigias foram construções em
madeira com telhado em chapa ondulada
de fibrocimento. Estas vigias foram construí-
das pela armação baleeira de Pedro Cymbron
entre 1940 e 1943. Eram um total de oito na
Madeira, designadamente em Porto Moniz,
São Jorge, Caniçal, Machico, Garajau, São Mar-
tinho, Ponta do Sol e Ponta do Pargo, e uma no
Porto Santo. Entretanto, a capitania do Porto
do Funchal iniciou em 1943, em plena Segun-
da Guerra Mundial, a construção de uma rede
de vigias na ilha da Madeira, no Porto Santo e
nas Desertas para controlar visualmente o trá-
fego marítimo e aéreo na costa, especialmente
de navios e submarinos dos países beligeran-
tes que pudessem constituir uma ameaça mi-
litar ao arquipélago. Estas vigias, em menor
Fig. 3 – Vigia da Ribeira Brava, c. 1940 (fotografia de José Lemos
número, foram construídas integralmente em
Silva, 2014). betão, e algumas ao lado das vigias das baleias
B aleia , ca ç a à ¬ 207

Fig. 4 – Interior do Museu da Baleia do Caniçal, 1989 e 2011 (arquivo particular).

existentes. Com o fim da guerra as vigias da ca- temperatura e pressão de vapor extraíam com
pitania do Porto do Funchal foram entregues maior eficácia e qualidade o óleo do toucinho
à EBAM, substituindo as vigias em madeira e dos cachalotes. Com estes equipamentos, tam-
expandindo a rede que passou a cobrir todas bém foram ensaiadas as primeiras experiências
as costas do arquipélago. de produção de farinhas de baleia. Mas o in-
O sucesso inicial da caça ao cachalote fomen- vestimento na capacidade de processamento
tou novos investimentos. Na sequência dos in- das baleias não terminou aí. Em 1949, iniciou-
vestimentos nos meios de caça, também foram -se a construção da fábrica de processamento
melhorados os meios de comunicação e de ex- dos produtos da baleia, no Caniçal. A fábrica
tração dos produtos das baleias. Nos primei- iniciou o seu funcionamento dois anos mais
ros anos, as comunicações entre as vigias e as tarde, coincidindo com o fim do desmanche
baleeiras eram rudimentares e pouco eficien- nos restantes locais. A partir de então, o Ca-
tes – utilizavam-se lençóis brancos ou sinais de niçal tornou-se no centro da caça à baleia na
fumo. No entanto, a deterioração da visibili- Madeira.
dade, provocada por frequentes neblinas, ra- Os anos 50 trouxeram inovação e maior di-
pidamente afetava essas comunicações visuais, namismo a esta atividade, com avanços no fa-
constituindo um problema crucial que limi- brico das baleeiras, que passaram a ser cons-
tava o crescimento da atividade. Aproveitan- truídas em contraplacado marítimo e onde os
do a disponibilidade de excedentes militares motores a gasolina substituíram os remos e as
norte-americanos da Segunda Grande Guerra, velas como força propulsora.
foram comprados pela EBAM rádios-telefones Além disso, foi nesta época que a EBAM alar-
para estabelecer-se uma rede de comunicações gou, experimentalmente, a caça às grandes ba-
sem fio que ligava as vigias entre si e também as leias de barbas. A captura destes animais exigia
embarcações no mar. meios diferentes dos utilizados para os cacha-
Inicialmente, o óleo dos cachalotes era ex- lotes. Para tal, foram contratados dois navios
traído recorrendo a caldeiros alimentados a baleeiros, o HVAL I, de pavilhão norueguês, e
fogo directo, um método rudimentar e pouco o baleeiro Persistência, pertencente à Empresa
eficiente. A partir de 1947, passaram a utilizar- Francisco Marcelino dos Reis, Lda., que ope-
-se autoclaves nas instalações do Garajau. Estes rava na costa portuguesa continental. Mais
equipamentos funcionavam como grandes pa- tarde, o baleeiro Persistência foi adquirido pela
nelas de pressão, que recorrendo à elevada EBAM para a função de rebocador. Os navios
208 ¬ B anana

baleeiros eram capazes de dar perseguição a foram adaptadas, no sentido de corresponder


estes velozes animais e estavam equipados com cada vez mais às exigências do mercado, fazen-
um canhão à proa. No entanto, a experiência do da Ilha um espaço pioneiro na afirmação
não foi bem-sucedida, com poucas baleias de deste fruto na Europa. De entre estas, devere-
barbas caçadas. Assim, a atividade da caça à ba- mos salientar a chamadas banana ouro e ba-
leia acabou por se centrar numa única espécie, nana prata, que aparecem em muitas quintas
o cachalote, dada a sua abundância e facilida- e jardins, e que estão presentes no imaginário
de de captura. dos habitantes, cujos frutos são muito aprecia-
A partir de meados dos anos 60, a atividade dos, mas com características que não permi-
baleeira foi diminuindo na Madeira, primeiro tem uma comercialização alargada.
com a redução da frota baleeira e depois com Nos começos do séc. xxi, a bananeira é uma
a sua suspensão temporária em 1968, em vir- cultura muito presente na vertente Sul e en-
tude da diminuição na procura dos produtos contra o seu espaço ideal ao nível do mar, po-
do cachalote, o que a tornou economicamente dendo desenvolver-se em terrenos até aos 200
inviável. A partir dos anos 70, os desafios eco- m de altitude. É aí que a Ilha apresenta as con-
nómicos à baleação na Madeira persistiram e dições apropriadas para esta cultura, devendo-
foram ampliados com o aparecimento do mo- -se salientar a fama alcançada pela Madalena
vimento cívico internacional para a defesa das do Mar e pela Fajã do Mar na produção e qua-
baleias, que contribuiu decisivamente para a lidade deste fruto. Podemos considerar como
interdição por alguns países ocidentais da co- áreas de cultivo: Funchal, Ponta de Sol, Câmara
mercialização dos produtos destes animais, al-
guns dos quais tradicionais compradores dos
produtos da baleação madeirense. Assim, em
outubro de 1981, a Empresa Baleeira do Arqui-
pélago da Madeira encerrou voluntariamente
a sua operação.
Bibliog.: CYMBRON, Albano, A Fase Industrial da Baleação Micaelense
(1936-1970), Horta, Observatório do Mar dos Açores, 2011; FIGUEIREDO,
José Mousinho, Introdução ao Estudo da Indústria Baleeira Insular, Lajes do
Pico, Museu dos Baleeiros, 1996; RIBEIRO, João Adriano, “A pesca da baleia na
Madeira”, História, n.º 139, abr. 1991, pp. 22-27; SARMENTO, Alberto Artur,
Mamíferos do Arquipélago da Madeira, Funchal, JGDAF, 1936; Id., Vertebrados
da Madeira, 2.ª ed., vol. i, Funchal, JGDAF, 1948; SOULAIRE, Jacques, A la
recherche de Moby Dick, Paris, Hachette, 1959; Id., Le Grand Cachalot. Histoire
Chronologique de la Chasse au Cachalot, t. iii, Paris, SPM, 2007; TOWNSEND,
Charles Haskins, “The distribution of certain whales as shown by logbook
records of american whaleships”, Zoologica, vol. 19, n.º 1, 1935, pp. 1-50.

Luís Freitas

Banana
A banana é o fruto da bananeira, uma planta
herbácea da família Musaceae (género Musa).
Originária do Sudeste da Ásia, aparece na Ma-
deira no séc. xvi. A chamada bananeira anã
(Musa nana L.) chegou à Madeira provenien-
te de Demerara, entre 1840 e 1843. Antes
disso, existia na Ilha a chamada bananeira
da terra (Musa sapientum L.). Outras varieda-
des foram surgindo ao longo dos tempos ou Fig. 1 – Cacho de bananas (fotografia de Bernardes Franco, 2019).
B anana ¬ 209

Fig. 2 – Bomboteiros no porto do Funchal (arquivo particular, c. 1925 a 1930).

de Lobos, Calheta, Ribeira Brava, Santa Cruz folha depressa se rompem até ficarem em fran-
e Machico. O Funchal, que foi durante muito ja de cada banda da haste. Do centro da planta
tempo a sua principal área de produção, aca- nasce um talo nodoso, semelhante a uma es-
bou por perder essa importância, por força da pinha dorsal, que se encurva e suporta os fru-
pressão da construção imobiliária. tos num cacho de cinquenta a sessenta, muito
É a partir do séc. xvii que a informação sobre parecidos com salsichas pequenas, na forma,
este fruto se torna mais abundante, nomeada- a princípio de tom verde-escuro mas que vão
mente pela voz dos estrangeiros que ficam des- amarelecendo ao amadurecer. No fim do talo
lumbrados com o seu exotismo. Em 1689, John está a flor, que faz lembrar um coração de vi-
Ovington define-a como o fruto proibido. Ro- tela. As folhas e hastes são de um verde páli-
bert Wilson, em obra publicada em 1806, ape- do delicado. O fruto, substancial e doce, mas
sar de se referir a expedições realizadas entre um tanto insípido. Há várias espécies, algumas
1764 e 1789, enaltece as capacidades de adap- maiores do que outras, e a mais apreciada é
tação do solo madeirense a todo o tipo de cul- uma, pequena, chamada banana de prata. Não
turas e árvores de fruto, incluindo aí as bana- existe estação própria das bananas; produzem-
nas. O Rev. Robert Walsh (1772-1852), que -se em toda a roda do ano. Há uma variedade
esteve na Madeira entre 1828 e 1829, refere, que não dá fruto, apenas uma linda flor escar-
entre os frutos, a banana. A paisagem servida late” (FRANÇA, 1970, 147).
de bananeiras nos jardins deslumbra Wortley Foi a Madeira que trouxe à Europa a ba-
em 1854. nana, como outros frutos do chamado novo
Uma das descrições mais pormenorizadas da mundo, contribuindo para a sua generaliza-
bananeira é a apresentada por Isabella de Fran- ção no gosto e na dieta diária dos europeus.
ça, em 1853: “A própria bananeira é das mais Desde 1848 que esta banana chegava a merca-
curiosas. Cresce com um caule nu, da gros- dos externos, como Londres e Liverpool, mas a
sura de uma perna humana, até sete ou oito sua importância na economia madeirense era
pés de altura, e aí divide-se em vários ramos, ainda diminuta, uma vez que o deputado Lou-
cada um com uma folha só, de seis ou sete pés renço José Moniz, em 1850, refere que as tro-
de comprido e cerca de catorze polegadas de cas com o exterior se haviam reduzido 100 %,
largo, e uma haste grossa no meio; os lados da ficando por umas bagatelas de fruta banana.
210 ¬ B anana

A obra de James Yate Johnson (1820-1900) A Primeira Guerra Mundial gerou inúmeras
testemunha, para 1883, a exportação de ba- dificuldades em termos do mercado externo
nana, que representava já 13,2 %. Diz-se que, do arquipélago, refletindo-se nas exportações
em 1893, Sissi (1837-1898), depois de desem- e no abastecimento de bens de subsistência.
barcar no cais, desapareceu alguns momentos Perante isso, o Governo Civil decidiu criar li-
para ir à pastelaria Felisberta comer bananas à mitações à saída de banana, de forma a prover
mão. Desta forma, a banana é um atrativo para o mercado local. Em 1911, a Madeira exporta-
muitos dos visitantes, daí a sua assídua referên- va 550.000 kg de banana, subindo para 619.790
cia nos textos e guias de viagem. kg no ano imediato. Sabemos pela imprensa
A banana começou a adquirir importância que, nos anos de 1918 e 1919, a escassez de ba-
na economia de exportação da Ilha a partir da nana na praça funchalense era evidente, levan-
déc. de 80 do séc. xix, com os portos ingleses. do à intervenção das autoridades para contro-
É, aliás, na Inglaterra que se consolida o merca- lar o seu comércio local e de exportação para
do estrangeiro da banana madeirense, a que se Lisboa. Assim, em abril de 1918, fez-se sentir
associa, a partir de 1904, o de Hamburgo. Ainda a sua falta nos locais de venda, surgindo, en-
em 1895, afirma-se que este produto é o mais tretanto, a informação de que tinha chega-
bem remunerado e de mais fácil mercado na Eu- do a Lisboa banana no valor de 15 contos, de
ropa. Assim, em 1904, seguiram para Hambur- contrabando. Em agosto de 1918, o governa-
go 185 grades com banana, e, no ano seguinte, dor autorizou a exportação de 100 grades, ao
182 gigos de banana para Londres, sendo 132 mesmo tempo que determinou a criação de
em nome de Leacock & Co. Mas aquilo que pa- um depósito aberto para a sua venda, com um
recia ser uma abertura promissora do mercado lote de 500 kg. A 3 de dezembro de 1919, os ex-
britânico cedo se revelou uma dificuldade, com portadores criaram outro depósito para venda
a concorrência da banana doutros mercados. de banana num barracão nos paços do conce-
As Canárias começaram a apostar nesta cultu- lho. A 21 de dezembro, face à escassez de pão,
ra de exportação a partir de 1882, e a América refere-se a disponibilidade de 300 kg de bana-
Central começou a ter presença visível na Euro- na para venda a sete centavos o quilo. A medi-
pa desde 1896. Mas foi no séc. xx que se conso- da proibitiva de exportação repetiu-se em 6 de
lidaram estes mercados abastecedores, atuando abril de 1920, e sabemos que cada passageiro
de forma concorrente com a Madeira: a Jamaica apenas estava autorizado a transportar consigo
e a Costa Rica a partir de 1907, juntando-se-lhes um cacho de bananas.
as Canárias em 1911. A banana fazia parte da oferta de produtos
Um dos problemas da exportação da bana- regionais que os bomboteiros faziam chegar
na prendia-se com o processo de embalagem, aos navios, tendo sempre clientes para o fruto
de forma a que o fruto não perdesse qualida- desconhecido e apetitoso. Para evitar excessos,
de. Esta questão já se colocava em 1888 e con- um edital do governador civil, de 27 de maio
tinuou no tempo. Em 1907, os cachos eram en- de 1920, determinava que a sua venda a bordo
volvidos em algodão em rama e embalados em só podia acontecer quando em perfeito estado
caixas ou grades, que se ajustavam às dimensões de maturação. Pensava-se fundamentalmente
do cacho. Este processo fazia aumentar os cus- na ação dos bomboteiros que tinham, neste
tos da fase de circulação do produto. Daí busca- produto regional, uma grande aposta para as
rem-se alternativas, com o recurso à palha seca suas vendas a bordo, abastecendo-se nos de-
dos cereais e mesmo da bananeira. Ao mesmo pósitos do Grémio de Exportadores de Frutas
tempo, procurou-se criar condições para que a e Produtores Hortícolas da Ilha da Madeira
banana madeirense mantivesse a sua qualidade (GEFPHIM) a partir de 1935.
em termos de aspeto, aroma, sabor, riqueza sa- Passados os anos da guerra, a banana da Ma-
carina e digestibilidade, fatores de valorização deira continuou em expansão, mas aquilo com
face à competição de outros mercados. que os madeirenses não contavam era com a
B anana ¬ 211

valorização exponencial de novos mercados


abastecedores da Europa. A vantagem da pro-
ximidade da Ilha ao mercado consumidor eu-
ropeu perdeu-se face aos custos baixos das
produções africana e sul-americana, que lhes
permitia apresentar preços muito competiti-
vos. É a mesma dinâmica competitiva que se
verificou no séc. xvi com o açúcar, cuja quali-
dade não tinha condições para competir face
aos preços. Esta nova dinâmica do mercado do
açúcar apareceu, de forma clara, na déc. de 20,
no período de expansão que se seguiu à Pri-
meira Guerra Mundial. Desta forma, Pio Cor-
reia comentaria, em 1926, que a bananeira
era, na altura, a planta fruteira mais importan-
te do Mundo, pois era a única que era objeto
de comércio marítimo. Aqui como noutras si-
tuações, a generalização dos mercados produ-
tores faz com que a Madeira perca capacidades
de competição no mercado europeu, apesar
de ter sido pioneira na sua generalização nos
mercados inglês e alemão.
Em 1927, o marquês de Jácome Corrêa afir-
mava que a Ilha consumia 1/3 da sua produ-
ção de bananas, exportando anualmente cerca Fig. 3 – A Banana É Um Alimento São, bilhete-postal de
de um milhão de frutos anualmente, o que sig- Mário Costa, c. 1950, Grémio das Frutas da Madeira (coleção
particular).
nifica que tudo corria muito bem nesta altura.
A 30 de setembro desse ano, a comissão admi-
nistrativa da Câmara Municipal de Câmara de A demanda pela banana acompanha, de
Lobos deliberou aplicar, de novo, o imposto perto, as mudanças na economia do arquipéla-
sobre a banana e outros produtos agrícolas, o go, que levam a que o fruto tenha um lugar des-
que motivou, a 4 de novembro, uma manifesta- tacado nas exportações para a Europa. Neste
ção no Estreito, nos paços do concelho. contexto, destaque-se o já referido GEFPHIM,
Em 1928, surgiu a companhia The Ocean Is- criado pelo dec. n.º 25.463, de 5 de junho de
lands Fruit & Co Ltd, que teve uma ação impor- 1935 para estabelecer a supervisão da cultura
tante na valorização do sector, nomeadamen- e do comércio desta fruta, e que, em colabo-
te nas exportações para o estrangeiro. Desta ração com o Grémio da Lavoura do Funchal,
forma, das 1700 t, em 1926, passou-se para tinha a missão de defender os interesses da
2530 t, em 1929. Neste último ano, Peres Tran- agricultura madeirense. Em 1935, foi criado
coso dava conta de que a banana representa- o Sindicato dos Produtores de Fruta que, em
va um rendimento de 3500 contos, o que cor- 1946, deu lugar à Cooperativa Agrícola de Pro-
respondia a 5,5 % das produções da Ilha. No dutores de Fruta da Madeira (CAPFM).
seguinte, informava-se que a exportação tinha No início dos anos 70 do séc. xx, face à crise
sido de 5000 t. Em 1932, A. Samler Brown re- existente, manifestava-se grande interesse dos
feriu a exportação de bananas, e outros mais expedidores de banana em selecionarem o
deram conta da importância deste produto nas produto, enquanto os responsáveis políticos fa-
exportações da Ilha, em que partilham espaço lavam na reconversão e na reforma das menta-
nos barcos para Londres. lidades do agricultor, uma vez que a economia
212 ¬ B anana

regional, em geral, e as famílias, em particular, evidenciam que o seu consumo se havia gene-
estavam seriamente ameaçadas. Entretanto, vá- ralizado no país em 1973, e não se ficava ape-
rias empresas surgiram no mercado regional nas pelos grandes centros. Assim, de uma ex-
para se dedicarem à comercialização de ba- portação de 15.779.282 kg, 2.483.523 kg foram
nana. A delegação da Junta Nacional das Fru- enviados para os Açores, 13.294.309 kg para o
tas foi criada a 5 de junho de 1935, por dec. continente, e 1250 kg como mantimento para
n.º 25.464, para promover a fruticultura, com navios estrangeiros. Dos 13.294.309 kg que
especial atenção à cultura e ao comércio da ba- chegavam a Lisboa ou Aveiro, 10.369.083 kg
nana. Desde a déc. de 30 que se manifesta no- eram distribuídos por todo o país. Até 1953,
tória a valorização da fruticultura e horticultu- a Madeira fornecia em exclusivo o mercado
ra por força da sua exportação, com demanda continental, surgindo, neste ano, a banana de
em diversos países europeus, no continente e Cabo Verde e, em 1959, a de Angola.
nos Açores. De acordo com o aviso de 16 de Ao problema do transporte da banana, asso-
abril de 1939, o GEFPHIM cobrava uma taxa ciava-se o do seu manuseamento em Lisboa,
de $02 por cada kg de banana exportado para que fazia com que houvesse uma perda elevada
Inglaterra. A 31 de dezembro de 1973, o Gré- de produto e da sua qualidade. Tardava a dis-
mio tinha 28 sócios em nome individual e 39 ponibilização dos barcos, e as condições de ar-
sócios de associações, sociedades e empresas. mazenamento das bananas, no Funchal e à sua
A partir de 1938, é notório que a Ilha produ- chegada a Lisboa, não eram as melhores, che-
zia excedentes hortícolas e frutícolas, que ex- gando ao consumidor em condições impró-
portava para o continente português e alguns prias para consumo. Esta reclamação terá voz
países europeus, como Inglaterra, Irlanda, Bél- no deputado Agostinho Cardoso, que aponta-
gica, Alemanha, Itália, e ainda para África e va, em 1964, perdas na ordem dos 15 %. Por
para os Açores. Com a Segunda Guerra Mun- isso, havia que tomar medidas urgentes.
dial, de novo se fecharam os mercados euro- A partir de 1955, a banana africana, de Ango-
peus, mas manteve-se o português. A impren- la e Cabo Verde, passou a ser uma real ameaça
sa fazia eco da ausência dos vapores da Union à madeirense, o que se confirma em pleno a
Castle Line, a partir de setembro de 1939. Em partir de 1960. Mesmo assim, esta não perdeu
1940, as exportações de produtos frutícolas e valor económico nas exportações, permane-
hortícolas representavam 3960 contos, 6 % do cendo em terceiro lugar em 1960, com 100.000
total da receita entrada na Ilha. Neste grupo, a contos, passando para 90.000 contos em 1964.
banana representava já um valor significativo, Os anos 60 marcam uma fase decisiva na
com mais de 99 %. evolução do mercado da banana da Madeira.
Terminada a guerra, tudo voltou ao que era A garantia da sua continuidade implicava que
antes, com a Madeira a recuperar os seus mer- se apurassem os padrões de qualidade face à
cados. Em setembro de 1945, a Madeira recla- concorrência de outros mercados, sendo fun-
mou um navio-fruteiro para permitir o escoa- damental a publicação, em 21 de novembro de
mento da banana, uma vez que o Funchalense 1964, da port. 20.923, que regulava o comér-
não permitia a sua total saída. Em 1964, para cio interno da banana da Madeira. A discipli-
uma exportação de 23.557 t, é calculada uma na no processo de apanha, na circulação, no
perda de 3532 t. armazenamento e na venda da banana impli-
O Grémio Funchalense dispunha, em Por- cava novas regras, de forma a garantir a qua-
tugal continental, de duas delegações/centros lidade do produto quando chegasse às mãos
de reexpedição de banana, um em Lisboa e do consumidor, competindo ao GEFPHIM e à
outro em Aveiro. O de Lisboa começou a fun- Junta Nacional das Frutas a missão de fiscalizar
cionar em maio de 1936, enquanto o de Aveiro o cumprimento destas regras.
só em 1969. Os dados da reexpedição da ba- Em 1966, alcançou-se o pico da produção
nana da Madeira a partir de ambos os centros madeirense, ganhando esta cultura terreno em
B anana ¬ 213

relação à cana sacarina. As exportações atingi- Nesta época, os principais mercados eram
ram os 32.178.551 kg, mas o continente portu- o continente português, com 13.294.509 kg,
guês contava com mais 11.683.516 kg de bana- e os Açores, com apenas 2.483.523 kg. Neste
na de Angola e Cabo Verde. Alberto Araújo, mesmo ano, Lisboa recebeu 64.278.167 kg
na Assembleia Nacional, afirmava que a bana- de banana de Angola e 1.283.455 kg de Cabo
na era uma importante riqueza económica da Verde. Tornavam-se cada vez mais evidentes os
Ilha, ocupando o quarto lugar depois dos bor- efeitos da concorrência da banana da África
dados, vinhos e vimes. Entretanto, em Angola, portuguesa. Assim, o envio da banana madei-
a produção e exportação começavam a organi- rense decresceu 3.390.611 kg, enquanto o da
zar-se, surgindo uma sociedade anónima, em de Angola subiu 11.926.466 kg.
1967, que terá repercussões no mercado conti- Embora a Madeira tenha sido pioneira na
nental, em prejuízo da Madeira. O ano de 1969 oferta de banana ao mercado europeu, cedo
foi bom para esta cultura, mas redobraram as perdeu importância em relação aos demais
reclamações dos deputados madeirenses face mercados abastecedores. Em 1950, a produção
à concorrência da banana africana e à neces- era de 20.000 t, e a exportação para o conti-
sidade de criar um sistema adequado de trans- nente, a Inglaterra e a França chegava até aos
porte e armazenamento para o abastecimento 500.000 cachos. Passados cinco anos, a Ilha
do principal mercado, o continente português. produzia mais de 20.000 t, das quais 91 % se
A par disso, a Madeira debatia-se com um pro- destinavam ao continente português e ape-
blema: a banana apresentava-se no mercado nas 0,3 % ao externo, não alcançando as 80 t.
europeu como o fruto mais caro do mundo. Os mercados estrangeiros, em 1955, eram a In-
A solução passava pelos armazéns de amadure- glaterra, Irlanda e Itália. Paulatinamente, a ba-
cimento em Lisboa, que surgiram em 1966, e nana da Madeira, devido aos condicionalismos
pelo alívio das taxas e encargos que oneravam
a banana madeirense. Com a port. 23.979, de
21 de março de 1969, foi determinada a per-
centagem do quantitativo da expedição de ba-
nana em pencas, da ilha da Madeira para o
continente, a embarcar em cada semana.
Alguns dados disponíveis sobre a evolução
do volume das exportações da banana eviden-
ciam esta quebra acentuada. Assim, em 1969,
foram exportados 32.862.396 kg, em 1970,
29.319.955 kg, no ano imediato, 25.079.821 kg,
seguindo-se uma queda abrupta, em 1972, com
17.996.479 kg, e, em 1973, com 15.779.282 kg.
O relatório do GEFPHIM referente a 1973
elucida-nos sobre a forma de intervenção da
instituição e a situação do mercado da bana-
na madeirense. Recorde-se que, nesse ano, a
port. 571/73, de 20 de agosto, alterou a port.
de 1969 quanto à forma de distribuição da ba-
nana da Madeira. Embora naquele relatório
sejam referidos outros produtos, como os aba-
cates, as anonas, os tomates, a batata e a ce-
bola, quase toda a atenção está voltada para a
banana, central na atividade do Grémio, com Fig. 4 – Bilhete-postal do Grémio das Frutas da Madeira, c. 1970
15.779.282 kg. (coleção particular).
214 ¬ B anana

do mercado, afirmou-se como um produto medidas para a defesa e promoção da banana.


para o mercado nacional, situação que aca- Apenas em 1985, pelo dec.-lei 503/85 e pelo
bou por sair reforçada a partir de 1974, com dec. reg. 83/85, de 30 de dezembro, o Gover-
a desestruturação da economia das ex-colónias no legislou no sentido de definir uma orga-
portuguesas, nomeadamente de Angola, que nização nacional de mercado para a banana,
se afirmara como o principal concorrente da determinando normas e centros de recolha,
Madeira no mercado nacional. acondicionamento e amadurecimento. Pela
O período pós-25 de Abril de 1974, com o pro- port. n.º 113/88, de 27 de outubro, foi criada
cesso autonómico, permitiu repensar os rumos a marca, denominada Pérola, destinada a pro-
da atividade agrícola. A aposta das autoridades mover a qualidade da banana da Madeira. De
dirigiu-se a uma agricultura assente na varie- acordo com a port. 582/90, de 24 de julho, o
dade de culturas. A partir de 1976, o processo contingente de exportação de banana para o
autonómico contribuiu para uma mudança ra- continente era estabelecido em despacho con-
dical no panorama socioeconómico madeiren- junto do ministro da República para a Madeira
se, em que o vinho e a banana concorriam na e do Ministério do Comércio e Turismo, sendo
produção e nas exportações. A perda da posi- de 4000 t no mês de outubro, a que se acres-
ção favorável da banana no mercado continen- centou mais 1000 t para o mês de dezembro.
tal levou à sua desvalorização a favor do vinho, As mesmas entidades, a partir de 1992, pas-
que assumiu uma posição dominante nas ex- saram também, pela port. 44-A/92, de 30 de
portações, tornando-se um dos principais fato- maio, a fixar o preço de referência da banana
res de animação da economia da Madeira. Por a importar pelo continente.
outro lado, a principal aposta, em termos de No último quartel do séc. xx, a banana ga-
cultivo, esteve virada para as culturas da bana- nhou uma grande importância no mercado
na e vinha, que mereceram diversos incentivos mundial, sendo de salientar, no chamado mer-
financeiros. cado da zona dólar (Equador, Costa Rica, Hon-
Uma das tentativas para resolver a crise da ba- duras, Colômbia e Panamá), o papel das empre-
nana madeirense foi a criação, a 14 de abril de sas norte-americanas United Brands Company,
1974, do Armazém Regulador do Comércio de Standard Fruit Company e Del Monte Corpora-
Banana A.C.E. Em 1975, a CAPFM desligou-se, tion. A Europa é uma grande consumidora de
passando a atuar individualmente. Foram sur- banana, tendo à cabeça a Alemanha, que não
gindo cooperativas e sociedades dedicadas ao tem na sua retaguarda qualquer espaço de pro-
comércio de banana, que, em julho de 1986, dução desta fruta. As questões colocam-se com
eram já 11: Armazém Regulador, CAPFM, Eu- a França, Portugal e a Espanha. Em 1979, a
rofrutas, Lda, Solfrutas, cooperativas Vitória e França começou a reclamar uma Organização
Laurencinha, Frumadeira, Banana Santa, Pon- Comum de Mercado (OCM) para a banana,
tassolense, Cooproban e a da Palmeira. Em o que foi alcançado a 13 de fevereiro de 1993,
agosto de 1988, o Armazém Regulador tinha com a oposição da Alemanha, Bélgica e Holan-
como associadas as seguintes empresas: Fru- da. Esta OCM atribuiu uma série de garantias e
boa, Frutama, Irmãos Fernandes, José Fernan- instrumentos de apoio para salvaguardar as re-
des & Irmãos, Henriques & Soares, Panagro, giões produtoras de banana da União Europeia,
Sebal, Soeba e Tiago & Filhos. Num estudo nomeadamente através do Fundo Europeu de
realizado pelo Centro de Estudos e Assistência Orientação e Garantia Agrícola – Garantia que
em Marketing e Economia – Mário Baptista, salvaguardou a produção de banana das regiões
Lda., em 1992, apontava-se a reunião do sector europeias. Em 1994, o acordo do Tribunal de
como forma de solucionar os problemas. Justiça da União Europeia contra a reclamação
Em 1979, por port. 126/79, de 20 de março, da Alemanha e a revisão da OCM funcionaram
foram ratificadas as normativas de 1969 e como fator positivo para as regiões produtoras,
1973. Ao mesmo tempo, foram tomadas várias garantindo mesmo a sua expansão.
B anana ¬ 215

O regulamento da CEE n.º 404/93, do Con- 23.601 t em 1994; e um outro, de crescimen-


selho de 13 de fevereiro, instituiu a OCM no to, que se inicia em 1996, em que a produ-
sector das bananas (OCM-Banana). Ficaram ção de banana rondava as 23.357 t, e conclui
determinados uma quota de 40.000 t para a em 1998, no qual a produção era de 28.618 t.
Madeira e mecanismos de apoio financeiro, o Curiosamente, 1995 revelou-se um ano que
que não impediu dificuldades no sector. Assim, quebrou as tendências, pois inicialmente po-
a produção da Madeira, em 1988, era de der-se-ia anuir que as 32.703 t produzidas se-
44.000 t, subindo para 50.000 t, em 1990; mas riam um sinal do início de um período de
em 1994 desce para 30.000 t e, em 2000, para crescimento contínuo, pois verificou-se um
20.000 t, atingindo, em 2012, as 16.500 t. En- aumento de produção de banana que ascen-
tretanto, pelo dec. leg. regional n.º 6/2011/M, dia aos 38,6 %, quando comparada com a
de 15 de março, foi criado o Sistema de Certi- do ano imediatamente anterior; todavia, em
ficação de Origem Garantida dos Produtos da 1996, verificou-se uma queda no valor da pro-
Região Autónoma da Madeira e a marca Pro- dução muito significativa, de cerca de 28,6 %,
duto da Madeira, que inclui a chamada banana com apenas 23.357 t.
da Madeira. No período compreendido entre 1999 e
No início do séc. xxi, a manutenção do sec- 2013, verificaram-se taxas de crescimento
tor dependia destas condições especiais e da anual positivas em 2000, 2002, 2003, 2006,
intervenção do Governo regional, através 2007, 2008, 2010 e 2012, com taxas de 4,2 %;
da Empresa de Gestão do Sector da Banana 6,0 %; 0,1 %; 10,5 %; 9,3 %; 9,7 %; 7,9 % e
(GESBA), cuja missão principal era a recolha 9,4 %. Embora esta informação possa repre-
da banana da madeira no produtor, passando sentar, em primeira instância, um período po-
pela classificação, a certificação, o embalamen- sitivo para a produção da cultura em apreço,
to e a preparação para a sua distribuição e o cabe destacar que, apesar do referenciado an-
seu comércio. teriormente, nos anos nos quais se verificou
Entre 1976 e 1990, verificaram-se diversas al- um decréscimo da produção, comparativa-
terações. Em 1976, a área ocupada pela cultura mente ao ano anterior, o valor percentual foi
da banana ascendia aos 1000 ha, sendo a pro- tendencialmente mais elevado do que as taxas
dução de cerca de 23702 t. Nos anos seguintes, positivas representantes dos anos de cresci-
a evolução foi tendencialmente positiva no que mento. A queda da produção chegou a ron-
concerne à produção anual de banana, à exce- dar os 33,9 % em 2005, em que a produção foi
ção de 1981, com 32.260 t, menos 3,7 % que de 13.737 t, valor muito abaixo das 20.773 t
o valor verificado no ano anterior; 1988, em produzidas em 2004.
que se verificou um decréscimo de 2,4 %, com A alusão anterior é ainda mais notável se se
48.738 t; e 1989, em que a diminuição foi de comparar a produção de 2013, com um valor
6,7 %, e a produção se fixou nas 45.476 t. de 16.174 t, com a de 1999, em que a produção
Apesar das alterações verificadas anterior- foi de 21049 t, o que significa uma queda de
mente, convém ressaltar o facto de a evolução 23,2 % entre os dois períodos.
também se ter revelado na relação entre a área No que diz respeito à comercialização
de cultivo e a produção total de banana. En- deste produto, os dados fornecidos, que não
quanto, em 1976, 1 ha produzia, em média, incluem a banana exportada fora do âm-
cerca de 24 t de banana, em 1990, produzia bito da atividade da empresa responsável
aproximadamente 39 t. pela gestão da comercialização da banana, a
Entre 1991 e 1998, é possível identificar GESBA, Lda, permitem concluir que houve
dois períodos: um que se inicia em 1991 e fi- uma inversão quanto às categorias mais
naliza em 1994, em que se verificou uma ten- comercializadas.
dência de decréscimo anual, pois os valores Em 1998, das cercas de 29.000 t comer-
de produção foram de 39.000 t em 1991 e de cializadas, posicionava-se no topo a banana
216 ¬ B ananeira

de segunda categoria, com 15.119 t, repre- Company, 1927; ROCHE, J., The International Banana Trade, Cambridge,
Woodhead Publishing Ltd, 1998; RODRÍGUEZ, F. J., “Oligopolio y comercio
sentando 52,8 % do total. Para o mesmo internacional. Una aplicación al mercado europeo del plátano”, Revista
ano, foram comercializadas 7342 t de bana- de la Economía Aplicada, vol. 4, n.º 10, 1996, pp. 93-111; SILVA, Fernando
Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols.,
na de categoria extra e 6156 t de banana de Funchal, DRAC, 1978; SOUZA, António Teixeira de, “Sobre a banana da ilha
primeira, representando 25,7 % e 21,5 %, da Madeira”, Revista Agronómica, vol. 23, t. 3, 1945, pp. 248-279; TAÑO, G.
González, “Regimen de importacion de plátanos en la Comunidad Economica
respetivamente. Europeia”, Canarias Agraria, n.º 21, 1993, pp. 52-56; TAYLOR, T. G., “Evolution
Todavia, esta realidade alterou-se ao longo of the banana multinationals”, in JOSLING, T. E., e TAYLOR, T. G. (orgs.),
Banana Wars. The Anatomy of a Trade Dispute, Wallingford, Centre for
do tempo. Em 2004, a quantidade de bana- Agriculture and Biosciences International, 2003, pp. 67-96; VIEIRA, Alberto,
na de categoria extra comercializada já ultra- “Açúcar, vinho e banana. Três percursos semelhantes”, Diário de Notícias,
Funchal, 27 ago. 1991; Id., O Deve e o Haver das Finanças da Madeira. Finanças
passava a quantidade de banana de segunda
Públicas e Fiscalidade na Madeira nos Séculos XV a XXI, Funchal, CEHA, 2013;
categoria. WILHELM, Eberhard Axel, “Wein und Bananen. Vinho e Bananas (1935).
Em 2013, das 15.403 t de banana comer- Um livro de Arnold Rehm sobre a Madeira e as Canárias”, Girão, vol. ii, n.º 4,
ago. 2007, pp. 137-144; WILSON, Robert, Voyages of Discoveries around the
cializadas, 9020 t eram de banana de catego- World. Comprehending Authentic and Interesting Accounts of Countries never
ria extra, 3256 t eram de banana de segunda before Explored, vol. i, London, James Cundee, 1806; YÁNEZ, H. Dominguez,
Situación del Sector Platanero de Madera. 1995, s.l., Consejeria de Agricultura,
e 3126 de banana de primeira categoria. Para Pescas y Alimentacion del Gobierno de Canarias, 1996; YÁNEZ, Juan Sebastián
cada categoria, os valores percentuais alte- Nuñez, El Mercado Mundial de Plátanos y las Empresas Productoras en
Canarias. 1870-2000, Santa Cruz de Tenerife, Instituto de Estudios Canarios/
ravam a ordem estabelecida em 1998, com a Asociación de Organizaciones de Productores de Platanos de Canarias, 2005;
banana de categoria extra a ter um peso de digital: “Série retrospetiva das estatísticas da agricultura e pesca (1976-
2013)”, Direção Regional de Estatística da Madeira, s.d.: http://estatistica.
58,6 %, a banana de segunda categoria a re- gov-madeira.pt/index.php/download-now/economica/agricultura-floresta-
presentar 21,1 % da banana comercializada, e e-pesca/prod-veg-prd-animal-pesca-pt/prod-vegetal-serie-pt/serie-longa/
finish/516-serie-longa/1345-serie-retrospetiva-das-estatisticas-da-agricultura-
a banana de primeira a ter uma importância e-pesca-1976-2013 (acedido a 15 dez. 2014).
relativa de 20,3 %.
† Alberto Vieira
Bibliog.: impressa: BROWN, A. Samler, Brown’s Madeira, Canary Islands and
Sérgio Rodrigues
Azores, 14.ª ed. rev., London, Simpkin, Marshall Ltd, 1932; BUCHELI, M., The
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Stanford University, 2001; CÂMARA, Benedita, A Economia da Madeira
(1850-1914), Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2002; CÂMARA, Leandro Bananeira
Aguiar, Fruticultura Subtropical na Ilha da Madeira, Relatório final do curso de
engenheiro agrónomo apresentado à Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, A bananeira produzida na Madeira pertence
texto policopiado, 1955; CORRÊA, Jácome, A Ilha da Madeira. Impressões à família das Musaceae, género Musa e espécie
e Notas Archeologicas, Ruraes, Artísticas e Sociaes, Coimbra, Imprensa da
Universidade, 1927; CORREIA, M. Pio, Dicionário de Plantas Úteis do Brasil, 6 Musa acuminata Colla., que tem como centro
vols., Brasília, Ministério da Agricultura, 1984; FAWCETT, W., The Banana. Its de origem a China meridional. É uma plan-
Cultivation, Distribution and Commercial Uses, London, Duckworth and Co.,
1913; FRANÇA, Isabella de, Jornal de Uma Visita à Madeira e a Portugal. 1853-
ta herbácea de grande porte, provida de um
1854, Funchal, JGDAF, 1970; GENRE, V., “Les enjeux du marché mondial de la pseudotronco constituído pelo conjunto rígi-
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e ampliada, Funchal, Tip. Funchal, 1939; GUYOMARD, H. et al., “Impact of tas em espiral, e apertada sobre um pequeno
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international trade, and welfare”, Journal of Policy Modeling, vol. 21, n.º 5,
eixo. As raízes são muito fasciculadas, carnu-
1999, pp. 619-631; GUYOMARD, H. et al., An Assessment of the New (April das, frágeis e superficiais. Os entrenós que se-
2001) Banana Import Regime in the European Union, s.l., Institut National
param as folhas são extremamente curtos. Nes-
de la Recherche Agronomique, 2001; JOHNSON, James Yate, Madeira. Its
Climate and Scenery, 3.ª ed., London, Dulau & Co., 1885; MAILLARD, J. C., tes e na base das folhas, localizam-se os gomos,
Le Marché Internationale de la Banane. Étude Geographique d’Un Système que, em condições favoráveis, originam o de-
Comercial, Bordeaux, Presses Universitaires de Bordeaux, 1991; MARRERO,
Luís Miguel Perez, “Evolucíon de las técnicas y sistemas de embalage en senvolvimento de novas plantas, conhecidos
los comercios del plátano”, Islenha, n.º 16, jan.-jun. 1995, pp. 102-107; na Madeira por “filhos” ou “canhotas”. Uma
NATIVIDADE, J. Vieira, Fomento da Fruticultura na Madeira, Alcobaça, Junta
Nacional das Frutas/Grémio dos Exportadores de Frutas e de Produtos vez que as plantas de valor comercial não pro-
Hortícolas da Ilha da Madeira, 1947; ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES duzem semente, a planta assegura assim a sua
UNIDAS PARA LA AGRICULTURA Y LA ALIMENTACIÓN, La Economia
Mundial del Banano, 1970-1984. Estructura, Desempeño y Perspectivas, Roma, multiplicação. A bananeira, que, durante um
Organización de las Naciones Unidas para la Agricultura y la Alimentación, certo período, se limita a emitir um número
1986; Id., The World Banana Economy. 1970-1984, Rome, Food and Agriculture
Organization of the United Nations, 1986; REYNOLDS, P. K., The Banana. Its
variável de folhas, diferencia posteriormente,
History, Cultivation and Place among Staple Foods, Boston, Houghoton Mifflin a partir do meristema apical, um escape floral,
B ananeira ¬ 217

Fig. 1 – Bananeiras, Lugar de Baixo (fotografia de Bernardes Franco, 2018).

o qual origina uma inflorescência terminal bananeiras têm-se quase completamente natu-
complexa, com múltiplas brácteas, onde se de- ralizado na Madeira; a sua vegetação é tão de-
senvolvem os frutos comestíveis. A banana da senvolvida, e os frutos tão copiosos, perfeitos e
Madeira (o fruto) pertence ao grupo AAA – saborosos como nos lugares donde são indíge-
cultivares triploides originárias de Musa acu- nas” (CASTELO DE PAIVA, 1855, 8).
minata, subgrupo Cavandish, e caracteriza-se Os primeiros tipos de bananeiras que chega-
por ser uma baga (em rigor, uma pseudobaga) ram à Ilha e que aí se cultivavam eram a ba-
alongada, mais ou menos cilíndrica, com ex- naneira da terra (Musa sapientum L.), talvez
tremidade apical arredondada. A sua superfí- a primeira a ser cultivada, e a bananeira pla-
cie é lisa e adquire uma coloração amarelada tina (Musa acuminata Colla × Musa balbisiana
durante a maturação do fruto. Colla.). Todavia, no séc. xx não há vestígios
A presença de bananeiras na Madeira é dessas variedades. Outras variedades foram in-
muito antiga, de acordo com várias fontes bi- troduzidas e cultivadas na Madeira, algumas
bliográficas. No Elucidário Madeirense afirma-se hoje quase totalmente desconhecidas, como
que esta cultura “já existia na ilha em 1552, pois a bananeira maçã, a bananeira de senhora, a
que dela fala Nichols, viajante inglês que esteve bananeira roxa, a bananeira de ouro, a bana-
aqui naquele ano” (SILVA, e MENESES, 1998, neira de macaco, a bananeira brasileira e a ba-
I, 230), numa provável referência à Musa x sa- naneira de prata. Já Augusto da Silva e Azeve-
pientum L. e não à Musa acuminata Colla., infor- do de Meneses referem que “a bananeira da
mação corroborada por Henriques de Gouveia terra é hoje raríssima na Madeira, e o mesmo
(1939). De igual modo, Hans Sloane, médico se pode dizer acerca da bananeira ‘plantina’
e naturalista inglês que visitou o Funchal em (Musa paradisiaca), cujos frutos muito grandes
1687, faz referência à presença de bananeiras se comem fritos ou cozidos. A bananeira de
na Ilha. Mais se refere que, em 1855, o barão frutos roxos, a bananeira maçã e a bananeira
de Castelo de Paiva, encarregado pelo Gover- de senhora são variedades da Musa sapientum,
no e enviado à Madeira para implementar o es- que se não têm vulgarizado” (SILVA, e MENE-
tudo do estado da ilha da Madeira, referiu: “as SES, 1998, I, 231). Apenas a bananeira de prata
218 ¬ B ananeira

e a bananeira anã permaneceram em cultura bananeira dura, em média, cerca de 12 a 14


entre os sécs. xix e xxi. A bananeira de prata meses, desde o crescimento da planta até ao
começou a ser cultivada na Madeira pelos fins corte do cacho de bananas. Salvo muito raras
do segundo quartel do séc. xix, sendo facil- exceções, cada bananeira produz apenas um
mente reconhecida pela sua altura, que atinge cacho de fruta, que, em média, pesa cerca de
os três a 4 m, pelos cachos pequenos, e pela 25 a 30 kg. A cultura da bananeira é exigente
acidez dos seus frutos, possuindo o inconve- no que respeita a água, necessitando que o seu
niente agronómico de estes se desprenderem cultivo seja efetuado numa zona que disponha
com facilidade do eixo, o que limita a sua apti- de um bom sistema de irrigação. O sistema de
dão para a exportação. rega mais comumente utilizado na Madeira é o
No começo do séc. xxi, na Madeira, as prin- alagamento, com água que percorre os canais
cipais produções são constituídas pelas seguin- de irrigação – as levadas – até chegar aos terre-
tes variedades: bananeira anã (ou pequena nos, alagando-os por completo. Os investimen-
anã), bananeira robusta, bananeira gal e bana- tos no sector na bananicultura feitos no final
neira grande anã. A bananeira anã, que corres- do séc. xx conduziram à adoção de sistemas de
ponde à cultura com maior representatividade irrigação mais eficiente no controlo e poupan-
e importância económica da ilha da Madeira, ça da água, como são os sistemas de rega gota a
é uma cultura de fácil cultivo e de baixo porte, gota e os de microaspersão.
o que a torna menos suscetível aos prejuízos Durante a déc. de 20 do séc. xx, a conjugação
provocados pelo vento. A bananeira anã pare- das limitações oficiais impostas à produção de
ce ter sido introduzida na região no início da cana sacarina e do incremento das expedições
déc. de 40 do séc. xix, provavelmente prove- de banana promoveram a implantação, em
niente de Demarara, na Guiana, daí ter sido 1928, no Funchal, da Companhia The Oceans
inicialmente também conhecida como bana- Insland Fruit & C.ª, Lda., que visou expandir
neira de Demarara. A cultura da bananeira na as expedições de banana, mas, em simultâ-
Região encontra as condições ideais de produ- neo, estimulou os agricultores a produzirem,
ção até aos 200 a 250 m de altitude na costa ensinou métodos de amanho mais modernos,
sul da Madeira. O desenvolvimento de uma e implantou campos experimentais. Todavia,

Fig. 2 – Bananeiras, Madalena do Mar (fotografia de Bernardes Franco, 2019).


B ananeira ¬ 219

durante este período até 1934, os exportado- 1911, a Madeira exportou 550.000 kg de ba-
res madeirenses sofreram grandes prejuízos nanas, 493.990 kg em 1912, e 619.790 kg em
com o comércio, especialmente devido à uma 1913. Refere o mesmo autor que, à data da edi-
forte concorrência sem controlo, a rivalidades ção do seu livro, o consumo local de banana
nas empresas de navegação e a uma política de era diminuto, e que a generalidade da produ-
descontos impostas pelos recetores desta fruta. ção seria exportada, servindo o excedente para
Visando regularizar o mercado e a produção, abastecer os navios que faziam escala no porto
bem como uma maior regularização das expe- do Funchal.
dições, mas especialmente a definição de pre- No decorrer da Primeira Guerra Mundial,
ços mínimos de compra ao produtor, foi cria- a produção regional aumentou ligeiramente,
do, em 1935, o Grémio dos Exportadores de passando de cerca de 600 para 800 t anuais,
Fruta e Produtos Hortícolas da Ilha da Madei- quantidades que se mantiveram em crescendo
ra, um organismo cooperativo que se manteve gradual no pós-guerra, tendo sido remetidas,
em funcionamento até 1975. Com o fim do Es- em 1925, 1200 t de banana para o mercado na-
tado Novo, foram criadas cooperativas que vi- cional. Já durante a Segunda Guerra Mundial,
saram a agregação das produções e das suas ex- a expedição da banana limitou-se ao mercado
pedições, das quais se destacam a Cooperativa continental, expedição essa que foi aumentan-
Agrícola dos Produtores de Frutas da Madeira, do gradualmente entre 1940 e 1966, como re-
CRL e a Cooperativa de Produtores de Bana- sultado de um maior número de plantações e,
na da Madeira, CRL. Já em 2008, e na tentati- simultaneamente, da procura. No que concer-
va de ultrapassar graves problemas financeiros ne às exportações, estas foram sempre muito
das cooperativas, através da implementação de diminutas e a preços pouco estimulantes, só
uma reestruturação que tornasse sustentável o tendo algum significado entre 1953 e 1955, pe-
sector da banana, o Governo Regional da Ma- ríodo temporal no qual ocorreram expedições
deira criou a Empresa de Gestão do Setor da para a Alemanha, a Dinamarca, a Grécia, a In-
Banana, Lda. (GESBA). Em 2016, a GESBA re- glaterra, a Irlanda, a Itália e Marrocos.
cebia a produção dos cerca de 2900 bananicul- Durante um largo período, a Madeira foi a
tores, e a banana produzida destinava-se a ser principal região fornecedora de bananas do
comercializada na Região e em Portugal con- mercado nacional, mas, em 1953, Cabo Verde
tinental, representando cotas de mercado na iniciou as remessas para o mercado conti-
ordem dos 15 % e dos 85 %, respetivamente. nental, que foram gradualmente aumentan-
A banana da Madeira adquiriu elevada no- do, passando de 2500 t em 1960 para cerca
toriedade e uma imagem bem definida junto de 5324 t em 1970. Nesta última data, Angola
dos consumidores, resultando da combina- passou também a ser fornecedora deste fruto,
ção de parâmetros tais como sabor, aroma, as- transformando-se, em cerca de 10 anos, num
peto, tamanho e conservação. Todavia, e ape- concorrente sério à banana da Madeira, uma
sar de produzida há longa data na Madeira, o vez que passou de cerca de 1 t em 1960 para
seu comércio, especialmente a expedição para cerca de 34.787 t uma década depois, resulta-
Portugal continental, só começou, verdadeira- do proveniente de um forte investimento em
mente, com a viragem do séc. xx. Apesar de novas plantações naquele território ultramari-
ter sido a partir da Madeira que a Europa co- no. Em igual período, a Madeira produziu para
nheceu este fruto, já em 1848 decorriam pe- expedição cerca de 25.357 t e 28.953 t, respe-
quenas exportações de banana para Portugal tivamente, sendo a produção de banana na
continental, para Londres e Liverpool, embora Madeira em 1970 de cerca de 36.000 t anuais.
ainda sem relevância económica. Assim, e se- A concorrência das bananas provenientes de
gundo Henriques de Gouveia (1939), a ativida- outras províncias ultramarinas teve impacto
de começou a deter um carácter mais formal e sobre o consumidor nacional, que, à data, pre-
comercial apenas a partir de 1910, já que, em feria a banana africana, especialmente devido
220 ¬ B ananeira

aos aspetos da qualidade do fruto, ao seu ta-


manho, à sua cor e ao seu poder de conserva-
ção. O problema começava a avizinhar-se de tal
modo gravoso para a economia regional que a
Comissão de Planeamento da Região da Ma-
deira (CPRM) assinala que “a Madeira, dada
a sua condição de único fornecedor do mer-
cado que durante largos anos disfrutou, […]
descurou, por vezes, os aspetos fundamentais
da qualidade. O próprio produtor dificilmen-
te admitia uma seleção, mesmo que pouco ri-
gorosa, certo como estava de que toda a fruta
se vendia, quer fosse de boa ou má qualidade”
(COMISSÃO DE PLANEAMENTO DA RE-
GIÃO DA MADEIRA, 1971, 10).
Em 1976, após a Revolução de Abril, a pro-
Fig. 3 – Recomendado pela Mãe Dolores, campanha Banana da
dução de banana da Madeira decresceu sig-
Madeira, 2016.
nificativamente, fixando-se em 23.702 t nesse
ano, valores que se mantiveram baixos du-
rante o final da déc. de 70. Com a viragem da 150 ha, em Câmara de Lobos, com 126 ha, e
década, a produção de banana na Ilha foi au- na Calheta, com 91 ha.
mentando significativamente, pelo que, em A área dedicada à produção deste fruto re-
1989, a produção deste fruto foi de 45.476 duziu-se substancialmente ao longo dos últi-
t, quase o dobro do registado uma década mos 40 anos do séc. xx. Pela análise efetuada
antes, grande parte graças ao significativo in- pela CPRM, em 1971, a área de bananais era
cremento de novas áreas dedicadas à produ- de 1300 ha. Já através da Análise da Série Retros-
ção. Contudo, na déc. de 90, iniciou-se um petiva das Estatísticas da Agricultura e Pesca 1976-
processo de redução dos terrenos destinados 2014, pode constatar-se que, em 1976, a área
à produção de banana, com notório impac- dedicada a esta produção era de 1000 ha, au-
to ao nível da produção anual, pelo que, em mentando em 1980 para 1250 ha. Todavia, ao
1998, a quantidade de banana produzida foi longo da déc. de 90, as áreas registaram uma
de apenas 28.618 t. O aumento da especu- progressiva diminuição, já que, no início deste
lação imobiliária e o incremento do investi- século, no ano 2000, apenas foram recensea-
mento na rede viária na Madeira continuou dos cerca de 895 ha, cenário que se manteve
a fazer-se sentir ao longo de todo o início do ao longo da década seguinte, registando-se, em
séc. xxi, durante o qual as áreas mais planas 2009, uma área total de apenas 699 ha de ba-
e de cotas mais baixas foram especialmente nanal. A partir dessa data, esbateu-se a redução
urbanizadas. Uma vez que são estes os ha- das áreas de produção de banana, tendo ocor-
bitats preferenciais para a cultura de bana- rido mesmo um ligeiro aumento ao longo dos
neira, verificou-se um acréscimo de pressão anos seguintes – de facto, em 2014, registaram-
imobiliária sobre as áreas dedicadas a esta -se 736 ha de bananal na Madeira. As flutua-
cultura, pelo que, em 2009, 696 ha de bana- ções anteriormente referidas ao nível das áreas
nais produziram apenas cerca de 14.651 t. produtivas de bananeiras refletiram-se, obvia-
Segundo o recenseamento agrícola de 2009, mente, na produção anual do fruto. Assim, em
à data existiam cerca de 4066 explorações de 1976, a produção de banana foi de 23.702 t, au-
bananeiras numa área total de 696 ha, tendo mentando em 1980 para 33.508 t. A redução
os bananais maior predomínio no Funchal, das áreas na déc. de 90 promoveu a diminui-
com cerca de 189 ha, na Ponta do Sol, com ção da produção, pelo que, em 2000, apenas
B ananeira ¬ 221

exterior anormal, e isentas de qualquer odor


e sabor estranho.
A norma classifica, igualmente, a banana em
três categorias: extra, categoria i (cat. i) e cate-
goria ii (cat. ii). A banana extra é de qualidade
superior, não devendo o fruto apresentar de-
feitos, com exceção de alterações superficiais
muito ligeiras que não excedam, no total, 1 cm2
da superfície do fruto e desde que não preju-
diquem o aspeto geral da penca, a sua qualida-
de, a sua conservação ou a sua apresentação na
embalagem. A banana de cat. i é de boa quali-
dade, podendo, no entanto, o fruto apresentar
ligeiros defeitos, desde que não prejudiquem
o aspeto geral da penca, a sua qualidade, a sua
conservação ou a sua apresentação na emba-
lagem, tais como um ligeiro defeito na forma,
um ligeiro defeito na epiderme resultante da
fricção e que estes não excedam 2 cm2, já que
os defeitos nunca podem afetar a polpa do
fruto. A cat. ii inclui bananas que não podem
ser incluídas nas categorias anteriores, mas
que correspondem às características mínimas
Fig. 4 – Dolores Aveiro na campanha Banana da Madeira, 2016. definidas, podendo ser admitidos alguns defei-
tos, desde que as bananas mantenham as suas
características essenciais de qualidade, conser-
foram registadas cerca de 21.925 t, cenário que vação e apresentação, tais como um defeito na
se manteve ao longo da década seguinte, pelo forma, um defeito na epiderme resultante da
que, em 2009, se registou a menor produção fricção ou raspagem e que não excedam 4 cm2,
de todas as observadas retrospetivamente com que nunca podem afetar a polpa do fruto. Se-
cerca de 14.651 t de bananas. A partir dessa gundo a análise da Série Retrospetiva das Estatís-
data, o cenário inverteu-se, registando-se a pro- ticas da Agricultura e Pesca 1976-2014, verifica-se
dução de cerca 19.079 t de banana da Madeira que a qualidade das bananas processadas foi
em 2014. aumentando. Assim, em 1998, de 28.618 t, ape-
De acordo com o regulamento da Comuni- nas foram processadas cerca de 7342 t como
dade Europeia n.º 2257/94, as bananas que categoria extra, perfazendo aproximadamente
se destinem à venda ao consumidor no esta- 26 % do total (22 % cat. i e 53 % cat. ii). Em
do fresco devem respeitar um conjunto de 2005, foram processadas 13.083 t de banana,
normas de qualidade. Com base no mesmo das quais 4862 t foram classificadas como extra
regulamento, as bananas devem respeitar as (37 % do total de extra, 21 % cat. i e 41 %
seguintes características mínimas de comercia- cat. ii). Já em 2014, foram processadas pelos
lização – estarem verdes, inteiras, firmes, sãs, centros de processamento da GESBA cerca de
limpas, praticamente isentas de parasitas, pra- 18.170 t, das quais cerca de 11.124 t foram clas-
ticamente isentas de ataques de parasitas, com sificadas como extra, perfazendo uma percen-
o pedúnculo intacto, despistiladas, isentas de tagem de extra de cerca de 61 % (19 % cat. i e
malformações, praticamente isentas de con- 19 % cat. ii).
tusões, praticamente isentas de danos devidos No começo do séc. xxi, a banana continua a
a baixas temperaturas, isentas de humidade ser o principal fruto de exportação da Madeira,
222 ¬ B ancos e casas bancárias

apesar das flutuações, constituindo um dos pi- ou em produtos. O Funchal ou Las Palmas
lares fundamentais da economia agrária regio- surgiram, no séc. xvi, como importantes pra-
nal, a par da vinha e da cana sacarina. Segun- ças bancárias, situando-se ao nível das de Me-
do a Análise da Série Retrospetiva das Estatísticas dina del Campo e de Valência. Os genoveses
da Agricultura e Pesca 1976-2014, as expedições detinham aí a maior parte do movimento de
de banana para o mercado nacional são uma cédulas. A letra de câmbio teve uma importân-
constante realidade, tendo apresentado um cia igual nas transações comerciais com o ex-
forte decréscimo de 1995 até à primeira déca- terior. Este meio de pagamento ativou o trato
da do séc. xxi e, posteriormente, uma ligeira do açúcar, sendo usual nas trocas com o reino,
tendência de crescimento. nomeadamente com Lisboa. A existência de
uma importante comunidade de italianos
Bibliog.: CASTELO DE PAIVA, Barão de, Relatório do Barão do Castelo de
Paiva, Encarregado pelo Governo de Estudar o Estado da Ilha da Madeira
e de flamengos, ligada ao comércio do açú-
sob as Relações Agrícola e Económica, Lisboa, Imprensa Nacional, 1855; car com as principais praças europeias, con-
COMISSÃO DE PLANEAMENTO DA REGIÃO DA MADEIRA, Trabalhos
tribuiu para a generalização desta forma de
Preparatórios do IV Plano de Fomento, Relatório do Grupo de Trabalho da
Lavoura, Funchal, s.n., 1971; DANIELLS, Jeff et al., Musalogue. A Catalogue of pagamento. Os florentinos, experientes nas
Musa Germplasm. Diversity in the Genus Musa, Montpellier, International transações financeiras, surgiram também com
Network for the Improvement of Banana and Plantain, 2001; GOUVEIA, Vicente
Henriques de, A Banana. Fruto de Todo o Ano, Alimento-Medicamento, Funchal, grande evidência, sendo particularmente im-
Tip. Funchal, 1939; LEÇA, Joaquim, Agricultando, Agricultando, Funchal, ed. do portantes as ações de Feducho Lamoroto e de
Autor, 2011; MABBERLEY, D. J., The Plant-Book. A Portable Dictionary of the
Vascular Plants, Cambridge, Cambridge University Press, 1997; Recenseamento Francisco Lape. Neste contexto, verificou-se
Agrícola de 2009. Região Autónoma da Madeira, Funchal, Direção Regional de a presença de destacadas sociedades comer-
Estatística, 2011; RIBEIRO, L., A Cultura da Bananeira (Musa acuminata Colla,
AAA) na Região Autónoma da Madeira, Trabalho apresentado à Universidade ciais europeias, que substabeleciam as tarefas
de Évora para conclusão de licenciatura, Évora, texto policopiado, 1992; Série a desempenhar em familiares ou concidadãos
Retrospetiva das Estatísticas da Agricultura e Pesca 1976-2014. Região Autónoma
da Madeira, Funchal, Direção Regional de Estatística, Funchal, 2015; SILVA,
com o estatuto de societários, de agentes ou
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, de procuradores. Os Welsers, e.g., tinham um
3 vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998; SLOANE,
H., A Voyage to the Islands Madera, Barbados, Nieves, S. Christophers and
feitor em Lisboa (Lucas Rem) e vários agen-
Jamaica, vol. 2, London, s.n., 1725; TELES, Diana Cristina Silva Côrte, Estudo tes substabelecidos no Funchal e em La Palma.
das Potencialidades de Conversão da Cultura da Bananeira para o Modo
A forma mais divulgada de associação e de
de Produção Biológico, Situação Atual e Perspetivas Futuras, Dissertação de
Mestrado em Segurança Alimentar e Saúde Pública apresentada ao Instituto alargamento da rede de negócios foi a com-
Superior de Ciências da Saúde Egas Moniz, Almada, texto policopiado, 2010.
panhia ou sociedade comercial, nas suas di-
Cláudia Dias Ferreira versas modalidades. Estas definiam-se, de um
modo geral, pelo seu carácter familiar, pela
eventualidade da sua ação e por uma compo-
Bancos e casas bancárias sição variada de intervenientes, que investiam
o seu capital ou o seu trabalho. Tratava-se, ge-
O facto de a Madeira, por força da importância ralmente, de empresas familiares, que se ser-
do açúcar, ter assumido uma grande prepon- viam dos laços de parentesco para assegurar
derância no comércio mediterrâneo-europeu, a permanência da sua ação, a solidariedade e
a partir do último quartel do séc. xv, e de ter a comunhão de interesses. Quando tal se tor-
atraído as atenções das sociedades comerciais nava impossível, recorria-se aos compatrícios
conduziu a que as práticas bancárias chegas- avizinhados nas principais praças. Esta última
sem cedo à Ilha. forma surgiu, com frequência, na Madeira.
As dificuldades do sistema monetário, uma O relacionamento dos intervenientes nestas
situação comum na Madeira, não implicaram sociedades fazia-se de acordo com o investi-
apenas o recurso à troca produto a produto, mento na empresa: capital e trabalho. Quan-
mas, de igual modo, a procura de outras for- do um dos societários apenas intervinha com o
mas de pagamento substitutivas da moeda, seu trabalho, poderia ser definido como agen-
então em voga na Europa: a carta ou letra de te ou feitor. Quando esses laços eram de menor
câmbio e o trespasse de dívidas em dinheiro dimensão, surgia o procurador, que, mediante
B ancos e casas bancárias ¬ 223

Fig. 1 – Antigo Banco Nacional Ultramarino, 1925-1926, depois Caixa Geral de Depósitos, Funchal (fotografia de Bernardes Franco, 2015).

um documento notarial, atuava sobre a fazen- sob esta forma, houve Baptista Morelli, B. Mar-
da do seu parceiro no mercado local, cobran- chioni, Welser, Claaes, Charles Correa, Pero de
do, por isso, uma determinada percentagem. Ayala, e Pero de Mimença.
Ambas as situações apareceram com grande Na déc. de 90 do séc. xv, o açúcar madeiren-
evidência na praça funchalense, enquanto nas se sofreu uma quebra nos preços, não por falta
Canárias se afirmou, com muita acuidade, a de procura, mas por excesso de oferta da praça
segunda. funchalense. Os madeirenses reclamaram em
A rede de negócios funchalense, em tomo do vários sentidos e clamaram por medidas da
trato do açúcar, foi criada e incentivada pelo Coroa. A 12 de outubro de 1496, D. Manuel
mercador estrangeiro, alemão ou italiano, que respondeu “vimos uma carta com certos ca-
aí apartou depois da reconfortante e vantajo- pítulos e apontamentos que nos enviastes em
sa escala em Lisboa; ele dominou as principais que nos declaras os danos e perdas que tendes
sociedades intervenientes no comércio açuca- recebidas por razão dos contratos e dempres-
reiro, não obstante ter morada fixa em Lisboa, tidos e vendas dante mão que se em essa Ilha
Flandres ou Génova; o seu domínio atingiu fazem nos quais entram muitas onzenas donde
não só as sociedades criadas no exterior com se seguem grandes demandas de maneira que
intervenção na Ilha, mas também o grupo de essa Ilha está em caminho para se perder pe-
agentes ou feitores e procuradores substabele- dindo-nos por mercê que defendêssemos que
cidos no Funchal. A escolha destes é criteriosa; tais contratos se não fizessem e que não hou-
primeiro os familiares, depois os compatrícios vesse um estrangeiro” (MELO, 1973, 350).
enraizados na sociedade e, só depois, os madei- Foram dadas várias orientações no sentido de
renses ou nacionais. Entre as principais casas atalhar as situações e de procurar estabelecer
intervenientes no trato açucareiro madeirense a regularidade das operações comerciais, dos
224 ¬ B ancos e casas bancárias

empréstimos e das vendas, sem dano para os deste modo, pelo facto de os britânicos terem
intervenientes. criado na Ilha uma importante praça bancária,
A moeda e os usuais meios de pagamento que, muitas vezes, se entrelaçava com as de-
são um fator importante e ativador do movi- mais operações do império, de forma especial
mento de troca. Aliás, o progresso da atividade do Brasil.
comercial depende, em última instância, da si- Apenas no séc. xix surgiram notícias dos
tuação monetária e das condições de crédito. primeiros bancos, tal como hoje se entende.
No caso concreto da Madeira, onde se afirma- Até então, não se divisava semelhante situa-
ria uma economia colonial, o instrumento de ção e as operações bancárias eram oferecidas,
troca teria uma ação primordial na estrutura no caso dos empréstimos, pelas confrarias,
económica insular. A moeda e os seus substi- pelas misericórdias e por alguns particulares,
tutos foram, ainda, necessários para a compra mas sempre numa postura de medo, tendo
de manufaturas de importação e aquisição dos em conta a posição declarada da Igreja, que
bens essenciais de que a sociedade insular ca- fazia guerra à usura e às onzenas. Assinale-se
recia, pois os produtos dominantes não perfa- que, nas constituições sinodais do Funchal,
ziam nem contrabalançavam essa entrada. de 1578, 1597, 1615 e 1695, não há qualquer
A situação monetária das ilhas não se apre- condenação a estas. Mas, já em 1725, o bispo
sentava diferente, pois em todas era dominante afirmava que “achei [...] muitas usuras e on-
a falta do metal amoedável e da sua circulação. zenas que são transcendentes por toda a Ilha”
Esta foi, assim, a característica dominante da (TRINDADE, 2012, 17). Esta atividade foi,
sociedade insular, que condicionou, de modo assim, denunciada nas visitações de S. Jorge,
vincado, as operações financeiras e contribuiu em 1727, como nas de Ponta Delgada, em
para o entorpecimento das relações de troca. 1733. A sua denúncia foi insistente por parte
Esta questão tornou necessária a criação de da Igreja. Pela insistência dos prelados nas vi-
novas formas de pagamento e condicionou o sitações ao espaço rural contra esta prática,
aparecimento de novos instrumentos de troca. pode-se afirmar que esta foi generalizada em
Assim, ter-se-ia generalizado, nestas ilhas, o pa- todo o arquipélago, apontando-se assidua-
gamento em géneros, a troca produto a pro- mente como alvos desta prática os senhorios
duto e, em circuitos mais amplos, o crédito, a e os ingleses. A situação do Porto Santo leva-
letra de câmbio e o trespasse de dívidas. ria a coroa a intervir, em 1770, apesar de não
Embora não haja factos que corroborem ter como controlar a posição e postura ingle-
e documentos que atestem a importância da sa, que assumiu um protagonismo desusado
praça financeira madeirense, é necessário con- nos sécs. xviii e xix, de tal forma que, em
siderar o volume das operações comerciais 1873, Álvaro Rodrigues de Azevedo referia a
em jogo nesta altura e a circunstância de, na “leonina usura”. E assim era, pois, em 1791, o
Madeira, atuarem alguns dos mercadores e al- ajudante Manuel Figueira de Ornelas cobrava
gumas das sociedades europeias mais impor- juros de 20 %. Desta forma, o Alf. Nicolau da
tantes, que fizeram com que as suas práticas Ponte foi condenado “visto ser pouco liso nos
bancárias atingissem a Ilha. Mais tarde, a partir seus contratos, e querer enriquecer-se à custa
de meados da centúria seiscentista, com a for- e chupando o sangue dos pobres” (TRINDA-
mação da feitoria britânica, a atividade bancá- DE, 1999, 154).
ria assumiu uma nova dimensão, com o predo- A usura, tão generalizada em toda a Ilha,
mínio da letra de crédito, como se constata na levou a Igreja a assumir uma posição protecio-
correspondência comercial de Diogo Fernan- nista até ao séc. xix, através das confrarias, das
des Branco ou de William Bolton. misericórdias, dos colégios (o caso dos Jesuítas
Nesta época, a presença da comunidade bri- do Funchal), e dos conventos, como o de S.ta
tânica conferiu outra perspetiva às operações Clara, intervindo com uma política de emprés-
comerciais e bancárias. A Madeira beneficiaria, timos, a juros adequados.
B ancos e casas bancárias ¬ 225

As misericórdias faziam empréstimos a todos Manuel de Melo. Aí se relata o caso de um ma-


os que delas se socorressem, menos aqueles deirense que, pretendendo emigrar para o
que fossem irmãos, embora tenham existido Brasil, pedira emprestado 50$00 réis a um co-
casos que demonstram o não cumprimento merciante inglês, que, em vez do dinheiro, lhe
desta orientação do compromisso. A Miseri- entregou um lote de tecidos, que, vendidos,
córdia recebia dinheiro, ao qual pagava 5 % dariam de lucro o dinheiro que queria. Como
de juros ao ano e, com este, fazia emprésti- não vendeu, apelou ao dito mercador que os
mo no valor de 6,4 %. O referido dinheiro era consignara, que aceitou recebê-los aos preços
entregue com condicionantes quanto ao em- que comprara em Londres. Conclusão: o ma-
préstimo, que raramente eram tidas em conta. deirense acabou por gastar 200$00, mesmo
Assim, Joseph Ferreira Pazes entregou o seu sem sair da Ilha.
dinheiro, mediante condições a juro: “doa aos No séc. xviii, insistiu-se na usura dos adelos
ditos pobres deste Hospital a quantia de du- de Gaula e Santa Cruz, que percorriam toda a
zentos e sessenta e cinco mil réis, os quais logo Ilha, inclusive o Porto Santo, e acabavam por
entregou em moedas de prata corrente nesta estabelecer muitas dívidas com os agricultores.
Ilha que eles administradores contaram e lhe Na mesma época, insistiu-se também, acima de
deram quitação; cuja doação faz com tal condi- tudo, no hábito comum da troca direta e dos
ção e declaração que serão obrigados os ditos adiantamentos da venda dos mercadores bri-
pobres por seus administradores a porem logo tânicos na compra do vinho na Ilha. Por outro
a sobredita quantia a juro, em mão de pessoas lado, a abertura que a comunidade britânica
da segunda condição que bem pagam os juros, fazia ao mercado financeiro e aos bancos lon-
e para isso sejam pessoas ricas e abonadas, por drinos fazia com que esse fosse o meio mais
nenhum modo se darão os ditos duzentos e usual, afirmando o deputado Domingos Ma-
sessenta e cinco mil réis a juro a outras qual- laquias de Aguiar Pires Ferreira (conhecido
quer pessoas e também se não dará a clérigo como o Giraldes) que eram os “richaços” (ri-
algum; e que dos juros dos ditos duzentos e ses- caços) que guardavam o seu dinheiro nos ban-
senta e cinco mil réis serão obrigados os ditos cos em Londres. Certamente, por conta disso,
pobres por seus administradores pagarem a ele as instituições que serviam de bancos atuavam
doador, durante a sua vida, o juro de cinco por junto das populações, como forma de comba-
cento da sobredita quantia, pagos aos quartéis ter a usura de alguns usurários locais. Estava
juntamente com os oito mil cruzados, que ele neste grupo João de Carvalhal Esmeraldo.
tem doado na primeira doação, abatendo-se e A primeira proposta, no sentido de criação
tirando-se dez tostões” (AMORIM, 2011, 240). de um banco local, data de 1824. Em ofício
A entrada do Convento de S.ta Clara deve-se para Joaquim José Monteiro Torres, ministro
ao facto de a instituição ter sido obrigada, a da Marinha, José Joaquim de Almeida e Araújo
partir de 1660, a assegurar a sua manutenção, Corrêa de Lacerda apresentaram a necessida-
procurando, assim, todos os meios ao seu al- de da criação de um banco local de “desconto
cance para o conseguir. Deste modo, houve, a e depósito”, como solução para a crise da agri-
partir de 1673, empréstimos a juros de 5 % e cultura. Também uma representação dos Pro-
mesmo de 6,25 %. De 1874, encontra-se uma prietários e Negociantes da Madeira, de 9 de
referência à usura de 12 a 24 %. Na seguran- julho de 1824, insistiu na ideia, afirmando que
ça das dívidas, os devedores hipotecavam pro- pretendiam “um Banco, não usurário, mas pa-
priedades rústicas e urbanas, objetos de ouro e triótico e benéfico ocorrerá à maior parte dos
prata, ou, então, apresentavam fiador. males que sofremos. Ele ministrará fundos ao
Os ingleses foram os principais agiotas da negociante cauteloso, ao especulador pruden-
usura na Ilha, de forma que ficou testemu- te, ao ativo e inteligente proprietário para o
nho disso no livro A Arte de Furtar, publicado melhor aumento de suas terras, para promo-
em 1625, e que tem sido atribuído a Francisco ver prados artificiais e o plantio de arvoredos
226 ¬ B ancos e casas bancárias

para a construção d’ edifícios e navios; para se


afrontar aos estabelecimentos custosos e indis-
pensáveis à criação e conservação dos gados; à
abertura d’ estradas; e construção de pontes e
canais ou levadas; autorizando ou regulando V.
Ex.ª o que deverão pagar os que para eles ou d’
eles se servirem, e finalmente aos empreende-
dores espertos e hábeis para estabelecerem fá-
bricas e manufaturas. Um Banco promovendo
a indústria e assistindo à atividade individual
em todas as classes, sexos e idade aumentará
de necessidade o valor das propriedades rurais
e urbanas e cortará pela raiz a insaciável usura,
os excessivos criminosos lucros, arrancados ao
cidadão oprimido, que à custa de pesados sa-
crifícios quer remir a sua opinião ou sacrifício.
Um Banco, finalmente, que distribuindo com
igual prudência e segurança capitais modera-
dos pelos cidadãos industriosos, evitará o cú-
mulo das riquezas em poucos capitalistas e fe-
licitará cento de famílias procurando-lhes uma
decente mediocridade, que só faz a base da in-
dependência, da moral e da harmonia das fa- Fig. 2 – O Público e o Privado na História da Madeira, vol. i (1996),
mílias e dos povos” (ALMEIDA, 1907, 208, nº. coordenação de Alberto Vieira.
9783).
Em 1834, o jornal Imparcial apresentou uma comissão administrativa da Santa Casa da Mi-
nova proposta de projeto de regulamento para sericórdia do Funchal mantinha empenho na
uma instituição bancária, seguindo-se outra, criação de um banco de crédito agrícola, de
em A Ordem, (no n.º 145), de 1854. No entanto, forma a oficializar uma situação que já existia
só no último quartel se começou a desenhar a nesta instituição através da Caixa dos Órfãos,
importância da instituição bancária na Madei- que emprestava dinheiro ao juro de 5 %. En-
ra. E este período inicial, tal como, depois, na tretanto, surgiu o Banco Comercial do Fun-
déc. de 30 do séc. xx, foi marcado pelas piores chal, a 1 de junho de 1874, com estatutos de
razões, e.g., pela falência de algumas institui- 25 de abril deste ano a que estavam associados
ções, o que causaria, na sociedade madeirense, António Caetano Aragão, Carlos de Bianchi,
uma suspeita sobre os bancos e as casas bancá- João de Salles Caldeira, José Paulo dos Santos,
rias. As dificuldades sentidas por muitas famí- Manuel Figueira de Chaves, Manuel Inísio da
lias e empresas nessa fatídica déc. de 30 perdu- Costa Lira, Severiano Alberto de Freitas Ferraz,
raram no tempo e foi perpetuada por algumas e William Hinton. Porém, não foi fácil a ativi-
gerações. dade desta instituição, acabando por falir em
Em 1875, começou a funcionar o Banco de 1887.
Portugal no Funchal, sob a gerência do nego- Em 1879, João da Câmara Leme defendeu a
ciante João José Rodrigues Leitão. A agência ideia de um banco de crédito agrícola como
do Banco de Portugal, no Funchal, enfren- solução para os problemas que envolviam a
tou dificuldades, com a falência do seu res- agricultura, atuando com mecanismo financei-
ponsável, o comerciante João José Rodrigues ro da sua reabilitação.
Leitão, em 1878, recebendo os credores ape- Em 1922, Fernando Augusto da Silva retra-
nas 50 % dos créditos. Entretanto, em 1873, a tava assim o panorama bancário na região:
B ancos e casas bancárias ¬ 227

“As casas bancárias estabelecidas agora no Fun- levaram a uma corrida desenfreada dos po-
chal são as de Blandy Brothers & C.ª, Henrique pulares ao levantamento das suas economias.
Figueira da Silva, Reid Castro & C.ª, Rocha Ma- Os boatos eram anónimos, mas facilmente
chado & C.ª, e Sardinha & C.ª. Estas casas que identificáveis, sabendo-se do interesse de al-
realizam as operações bancarias exigidas pelo gumas famílias estrangeiras, com interesses na
comércio do Funchal, e ainda outras, estão atividade bancária e em sectores industriais fi-
todas em estado bastante próspero, devido à nanciados por esta casa. Por outro lado, se se
sua excelente administração e à confiança de tiver em conta que os dois principais beneficiá-
que gozam no mercado, como para os elevados rios da venda em hasta pública do património
juros, que eram de 12 a 15 %, podendo mesmo do banco foram as famílias Blandy e Hinton,
chegar aos 24 % ao ano” (SILVA e MENESES, não se estará longe de fazer sair do anonima-
1978, I, 116-117). to os principais orquestradores da situação que
Já para a déc. de 30, houve notícias de di- levou à falência do Banco Figueira e do Banco
versas instituições bancárias locais e nacionais Sardinha e que teve um efeito negativo na ati-
com intervenção no crédito. Assim, são conhe- vidade bancária da Ilha, nos anos imediatos,
cidas 4 agências de bancos nacionais – Bancos tendo a maioria da população perdido as suas
de Portugal (1878) e Nacional Ultramarino economias por não aceitar os bancos públicos
(1919), Companhia de Credito Predial Portu- e por preferir a esteira das camas ou um outro
guês, Banco Espírito Santo – e 11 casas ban- sítio que considerava mais seguro.
cárias com sede no Funchal – Reid, Castro & Para esta situação, também se apontam cul-
Co., Rocha Machado & Co., Teixeira Macha- pas ao Governo (sendo então ministro das Fi-
do & Co., Rodrigues Simão & Co., Sardinha nanças Oliveira Salazar) por não ter tomado
& Co., Henrique Figueira da Silva, Blandy & qualquer medida para evitar esta situação de
Co., Banco Madeira (1920), A. Adida & Co., falência, pois, em 1929, havia assumido uma
Rodrigues & Irmão Co., Teixeira & Machado atitude diferente com a casa bancária de Hen-
C.ª. De entre estas, destacava-se a casa bancária rique Tota. Mas, se tivermos em conta as faci-
com o nome do seu proprietário, Henrique Fi- lidades que algumas destas famílias inglesas,
gueira Sardinha (1868-1945), mais conhecida beneficiadas com as falências, tinham junto do
por Banco Sardinha, que se havia populariza- Governo da República, não será difícil de adi-
do, tendo uma importante carteira de depósi- vinhar o porquê desta atitude.
tos e de empréstimos, no valor de um milhão A falência destas duas casas bancárias, Sardi-
de libras esterlinas, a um grupo significativo nha e Figueira, abalou a economia madeirense
de empresas madeirenses. A Casa Bancária de da déc. de 30, uma vez que ambas representa-
Henrique Figueira da Silva, ou Banco Figuei- vam 75 % dos depósitos e empréstimos da Ilha.
ra, surgiu em 1898, com instalações na R. dos Com a ida do património destas casas bancá-
Murças. Esta casa dominava os financiamen- rias à praça pública, a família Hinton arrema-
tos ao comércio e à indústria da Ilha, sendo de tou o seu rival, a Fábrica de S. Filipe, e a famí-
destacar a sua ação nos sectores das moagens e lia Blandy, as moagens e muitos dos prédios do
dos engenhos de açúcar e de aguardente com Funchal. Por outro lado, a casa bancária desta
a Fábrica de S. Filipe. última família foi uma das mais favorecidas
Normalmente, aponta-se a situação ocorrida com a situação do sistema de depósitos e crédi-
em 20 de novembro de 1930 como um efeito tos bancários.
retardatário da quinta-feira negra de Nova Ior- A solução da crise bancária madeirense, mais
que, de 24 de outubro de 1929. Mas, ao nível apregoada na altura, era a da fusão. Esta ideia
da sociedade madeirense, a maioria dos teste- colhia a concordância dos responsáveis dos
munhos apontam para um turbilhão de boa- bancos da Madeira, Sardinha e Henriques e
tos lançados anonimamente na cidade que Irmão e C.ª, e foi aceite pelo Gov. Artur Almei-
apontavam a falta de liquidez desta casa e que da Cabaço, que, por sua vez, fez a proposta a
228 ¬ B ancos e casas bancárias

Salazar, contando com a participação do Go- Só em 1920, surgiu o Banco da Madeira,


verno, no capital social do banco fundido, com que faliu com a depressão económica de 1929
o montante de 15.000 contos. O ministro das e que foi reconstituído e fundido com a casa
Finanças, porém, recusou liminarmente, pro- bancária Sardinha e C.ª e Rodrigues, Irmão e
pondo a constituição de um banco regional C.ª, em 1933.
“que absorva os estabelecimentos existentes de O Banco da Madeira, fundado em abril de
feição local” (FREITAS, 2014, 68). Este autor 1920, só viu os seus estatutos aprovados no
falou num grupo de personalidades madeiren- ano seguinte, tendo como sócios algumas so-
ses que, porventura, teriam influenciado a po- ciedades comerciais como a Viúva de Romano
sição de Salazar, mas sem as enumerar. Gomes e Filhos, Luís Gomes da Conceição e
Esta ideia da constituição de um banco regio- F. F. Ferraz e Companhia Ld.ª, e também algu-
nal vem de longa data, pelo menos do início mas personalidades madeirenses de renome.
do séc. xix, quando o Governo recomendou Arrancou com o capital social de 2000 contos
ao Gov. e Cap.-Gen. da Madeira José Manuel e criou uma filial em Lisboa, a 17 de fevereiro
da Câmara “a criação duma Caixa de Crédi- de 1923, tendo, em janeiro do ano seguinte,
to na Madeira”, não existindo, nesta altura, aumentado o capital social de 4000 para 6000
qualquer banco formalmente constituído em contos. A filial de Lisboa prosperou numa
Portugal. fase inicial mas, a certa altura, sofreu denún-
cias na Inspeção do Comércio Bancário, por
má gestão e uso fraudulento de dinheiros, por
parte dos gestores aí colocados (Manuel Jorge
Pinto Correia e Carlos da Silva Barros) e ne-
gócios feitos sem conhecimento da Assembleia
do Banco. No entanto, uma inspeção levada a
cabo por peritos do Comércio Bancário não
chegou a qualquer conclusão, tendo os visados
se mantido nos cargos que ocupavam e alguns
deles transitado para o novo Banco da Madeira
depois da fusão.
A crise económica de finais da déc. de 20,
na Madeira, agravada com a suspensão de pa-
gamentos das casas bancárias, Henrique F. da
Silva e Sardinha e C.ª, e o encerramento da
Reid, Castro e C.ª juntamente com a Revolu-
ção da Farinha, seguida da Revolta da Madei-
ra, geraram preocupação em alguns políticos
madeirenses que se movimentaram nos meios
nacional e local, no sentido de encontrar
uma solução para a crise bancária: e a solução
apontada era a liquidação da casa Henrique
F. da Silva e a fusão dos outros três bancos.
No entanto, os depositantes da Casa Sardi-
nha continuaram sem poder aceder aos seus
depósitos, devido à continuada falta de liqui-
dez do banco fundido, e só o Estado poderia
ajudar, intervindo, porque a reconstituição
Fig. 3 – Banco de Portugal no Funchal, projeto de Edmundo
dos bancos feita sem este apoio poderia gerar
Tavares, 1940 (fotografia de Bernardes Franco, 2015). uma crise maior. Contudo, Salazar apenas
B ancos e casas bancárias ¬ 229

incentivou a fusão dos três bancos, sem inter-


venção do Estado.
Assim, a 12 de setembro de 1933, por dec.-lei
n.º 23.026, foi instituído o novo Banco da Ma-
deira, mercê da fusão dos três bancos referidos,
com o capital social de 10.000.000$00 “e consti-
tuído pelo excedente do ativo de cada um dos
bancos alvo de fusão e do que ainda for neces-
sário para completá-lo, deduzido proporcional-
mente de depósitos e débitos comuns do atual
Banco da Madeira e do Banco Sardinha” (Id.,
Ibid., 107). O decreto autorizou o Banco da
Madeira a emitir, logo após a sua constituição
definitiva, até 15.000.000$00 de obrigações,
preferenciais de 500$00 cada, de forma a pro-
ver as dificuldades que surgiriam com a falta
ou a fraca liquidez do banco. Os valores apu-
rados pela comissão de avaliação aos bancos
fundidos foram os seguintes: como excedente
do ativo do Banco da Madeira, 1.672.800$00;
Casa Sardinha, 333.300$00; e Rodrigues e
Irmão, 420.220$00. As ações da Casa Sardinha
de 500$00 foram reavaliadas a 33$00, e as do
Banco da Madeira de 100$00 foram revalida- Fig. 4 – Banco da Madeira, projeto de Raul Chorão Ramalho,
das a 20$00. O conselho de administração do 1966 a1968 (arquivo particular).

banco ficou constituído por um elemento in-


dicado por cada banco falido: Leonel G. Luís tinha ligações económicas a quase todos os sec-
(Banco da Madeira), António Bettencourt Sar- tores comerciais da Ilha e ainda mantinha liga-
dinha (Banco Sardinha) e Juvenal Araújo (Ro- ções com o exterior, em termos de exportação
drigues e Irmão e C.ª) e presidido pelo comis- e importação, designadamente com o merca-
sário do Governo, Eduardo Paquete. do inglês que lhe trouxe proventos económi-
Nos primeiros anos da sua existência, este cos importantes para se abalançar no negócio
banco continuou com as mesmas dificuldades, bancário, trazendo-lhe maior sustentabilidade
tendo-se pensado também na sua liquidação. e marcando uma posição de realce no finan-
Para esta situação, contribuiu o facto da exces- ciamento económico e no mercado cambial,
siva avaliação dos ativos dos bancos fundidos; no qual apostou grandemente. Os sócios eram
só com os apoios concedidos pelo Estado o John Ernest Blandy, Charles Maurice Blandy,
banco foi-se equilibrando até à sua total revita- Richard Rober Faber e Dudley Oliveira Davies.
lização, que aconteceu após a Segunda Guerra Só o primeiro e o último residiam na Madeira
Mundial. Na déc. de 1960, o movimento ban- e a sociedade tinha, por objeto, o comércio em
cário fusionista levou a que este se incorporas- geral. A 29 de novembro de 1924, alteraram
se no Banco Lisboa e Açores, rentabilizando o os seus estatutos, com o objetivo de reduzir o
negócio. capital social em 50.000 libras e de especificar
A casa bancária Blandy Brothers constituiu- a distribuição do capital, ficando ao primeiro
-se a 29 de novembro de 1920, com o capi- sócio 39 %, ao segundo, 28 %, ao terceiro 22
tal social de 550.000 libras esterlinas, através %, e ao quarto 11 % do capital. A 4 de junho
de uma família inglesa radicada na Madei- de 1925, foi dissolvida a sociedade Blandy Bro-
ra, desde o início do séc. xix. A firma Blandy thers e C.ª, de nome coletivo, e transformada
230 ¬ B ancos e casas bancárias

em sociedade limitada por quotas. A casa Blan-


dy resistiu à crise de 1929, que levou à falên-
cia das outras casas bancárias na Madeira, a par
da Rodrigues e Irmão, possivelmente devido às
suas raízes e à forte ligação ao exterior, bene-
ficiando da compra de cambiais que viriam a
ser importantes para o investimento no comér-
cio e na indústria madeirense. Para o seu êxito,
contribuiu, ainda, a compra em hasta pública
da moagem de cereais da Fábrica de S. Filipe,
pertencente a Henrique Figueira da Silva, am-
pliando a sua influência no mercado da moa-
gem local, arrematando muitos outros prédios
provenientes de falências e comprando lotes
de vinho Madeira. Diz-nos J. A. Freitas que este
grupo “cresceu e fortificou-se no meio da tur-
bulência da praça do Funchal, porque dispu-
nha de liquidez e, assim, a foi aplicando nos
negócios que, nas condições existentes, podia
fazer, segundo opções por si definidas no sen-
tido de consolidar os negócios do grupo” (Id., Fig. 5 – Caderneta da casa bancária de Henrique Figueira da Silva,
Ibid., 121). A casa Blandy ocupava a terceira 1929 (coleção particular de Ana de Jesus Gonçalves).

posição, em termos de depósitos existentes,


com 9344 contos, em 1931, e 8199, em 1932. detido um grande prestígio e irradiado con-
O dec.-lei n.º 41.403, de 27 de novembro de fiança nos seus depositantes. No final de 1930,
1957, que pretendia regular o sistema bancá- tinha 71.678 contos de depósitos que corres-
rio português, obrigou os estabelecimentos es- pondiam a 9.403 depositantes. Foi a maior casa
peciais de crédito a praticar, em exclusivo, o bancária da Madeira nesta época. Até mesmo
exercício da atividade bancária. O grupo Blan- as caixas económicas faziam aqui os seus depó-
dy, reunido em assembleia-geral, a 26 de maio sitos para usufruírem dos altos juros que esta
de 1958, decidiu constituir uma nova socieda- casa praticava, assim como os emigrantes ma-
de por quotas, transitando para a nova socieda- deirenses. Esta casa suspendeu os pagamentos
de o ativo bancário, incluindo os bens imóveis. a 19 de novembro de 1930, sendo nomeado,
A nova empresa assumiu a designação de Blan- dois dias depois, como comissário do Gover-
dy Brothers (Banqueiros) Ld.ª, com o capital no no banco, o madeirense Eduardo Paquete.
de 10.000.000$00, dividido em quatro quotas, Pouco tempo depois, transitava para a casa Sar-
sendo 8.700.000$00 pertença de Blandy Bro- dinha e C.ª, sucedendo-lhe Óscar Baltasar Gon-
thers (Banqueiros) Ld.ª, 100.000$00 de Blan- çalves, logo em janeiro de 1931, que exerceu as
dy Brothers e Companhia Limited de Londres, funções até 4 de maio de 1931. Os presidentes
100.000$00 de Peter Graham Blandy, e os res- das comissões liquidatárias deste banco tam-
tantes 100.000$00 de John Reeder Blandy. Em bém tiveram a mesma sorte e foram sendo no-
1968, esta sociedade incorporou-se no Banco meados e substituídos com frequência. Em ou-
Espírito Santo e Comercial de Lisboa. tubro de 1933, já eram cinco: Juvenal Araújo,
A casa bancária Henrique Figueira da Silva Brás Alves, Martins Costa, Gonçalves da Silva, e
foi coletada como cambista em 1902 e como o juiz Carlos Henriques da Silva e Sousa, o que
banqueiro, em 1910, não se sabendo ao certo provocou grande instabilidade nos cargos, difi-
a data da sua fundação. Foi uma casa próspe- cultando a sua gestão. Diz-nos J. A. Freitas que
ra até a deflação económica de 1929, tendo “o desmantelamento de Henrique Figueira da
B ancos e casas bancárias ¬ 231

Silva tornou-se um acontecimento sem retorno uma forma corrente em todas as casas bancá-
e de efeitos muito nefastos na economia da Ma- rias e perguntou porque se deveria então pe-
deira e dos seus depositantes, de longe a maior nalizar apenas esta com a falência e recuperar
casa bancária” (Id., Ibid., 126). Este autor apre- as outras. Parece ter havido muitos interesses
senta, como exemplo, o montante do valor dos apostados no desmantelamento desta casa ban-
seus depósitos que correspondiam, ao tempo cária, o que, ligado à má gestão do banco, fa-
da falência, ao dobro de todos os outros ban- cilitou a vida dos pretendentes, cometendo-se
cos a trabalhar na Madeira. O banco foi liqui- um gravíssimo erro com consequências nefas-
dado por via administrativa através do dec. tas para a economia da Madeira, pois não fazia
n.º 20.316, de 16 de setembro de 1931, sem sentido reorganizar a banca madeirense, dei-
prerrogativas ou a possibilidade de poder re- xando de fora o maior banco da época. Lem-
constituir-se, mesmo após o relatório da comis- bre-se ainda que, na Madeira, a situação ban-
são liquidatária de 31 de dezembro de 1931, cária era muito frágil, com exceção para a casa
onde se refere um ativo de 87.033.509$00, su- Blandy, ficando no ar muitas suspeições.
perior ao passivo de 77.861.344$00. A comis- A casa bancária Reid, Castro e C.ª foi funda-
são liquidatária requereu a falência desta casa da por Henrique Vieira de Castro, oriundo do
bancária a 19 de novembro de 1931, no tribu- Porto e colocado, no Funchal, como delega-
nal judicial do Funchal. A falência foi decreta- do do Banco de Portugal, fixando residência
da por uma votação de 2 votos contra 1. O ban- na Madeira, a partir de 1893. Tendo enrique-
queiro recorreu da sentença para o Tribunal cido, fundou a casa bancária com esse nome
da Relação de Lisboa, em março de 1935, o entre outras empresas ligadas aos vários ramos
qual revogou a sentença do tribunal do Fun- económicos da Ilha. A casa bancária foi cons-
chal, com o argumento de que, para a decla- tituída como sociedade por quotas, em 1905,
ração de falência, não bastava a suspensão de
pagamentos: “a falência decorre da relação
ativo/passivo do estabelecimento e, neste caso,
o ativo é superior” (Id., Ibid., 128). A comissão
liquidatária voltaria a recorrer para o Supremo
Tribunal que confirmou a decisão da Relação,
indicando que, quando esta casa bancária sus-
pendeu os pagamentos, não se encontrava em
situação de falência. No entanto, apesar des-
tes reveses, a comissão liquidatária continuava
a desfazer-se dos bens do banco em hasta pú-
blica e em vendas diretas. João Abel de Freitas
diz que esta falência foi “um grande imbróglio
de consequências nefastas para a economia da
Madeira que serviu determinados interesses e
com largos prejuízos para os depositantes” (Id.,
Ibid., 128). Este autor insinuou que esta falên-
cia fora incentivada por terceiros e por forças
e interesses que apostaram na sua liquidação e
que contou com jogos de influência junto de
Salazar para que o fim fosse este. Havia ainda
outra tese que defendia a falência, apontando
“para uma certa maquilhagem da escrita como
argumento para a falência” (Id., Ibid., 130). Fig. 6 – Caricatura sobre a falência do Reid, Castro & Co.
Opinou o autor referido que esta era, então, (Re-Nhau-Nhau, 12 dez. 1931).
232 ¬ B ancos e casas bancárias

sob o nome de Reid, Castro e Companhia Ld.ª, comissário do Governo, o que aconteceu a 15
com o capital de 60.000$00 réis e com os sócios de dezembro desse ano, tendo recaído a esco-
William James Reid, Alfred Eduard Reid, Hen- lha em Nuno de Vasconcelos Porto, a quem
rique Vieira de Castro, Abraham Adida, viscon- foi retirada a autorização para o exercício da
de de Cacongo, Alfred L. Jones, e Eduardo A. indústria bancária, por portaria de 18 de maio
Cunha. A 29 de maio de 1912, a empresa foi de 1932, com a sua imediata liquidação. A co-
vendida a William James Reid, Alfred Eduard missão liquidatária, nomeada a 13 de junho
Reid, Henrique Vieira de Castro e Abraham desse ano, foi constituída por Juvenal Raimun-
Adida, e transformada em sociedade comercial do de Vasconcelos, que representava os sócios,
em nome coletivo, de responsabilidade ilimi- e José Quirino de Castro, que representava
tada. A 17 de junho do mesmo ano, o capital os credores, tomando posse no dia 23 desse
social foi aumentado para 100.000$00 réis, dis- mês. Esta comissão não conseguiu cumprir o
tribuídos entre eles da seguinte forma: William seu trabalho dentro do prazo previsto, em es-
e Alfred Reid com 25 contos cada, Henrique pecial devido à situação de grave crise finan-
Vieira de Castro com 40 contos, e Abraham ceira da praça do Funchal, sendo prorrogado
Adida com 10 contos, tendo Henrique Vieira o seu prazo até ao dia 20 de janeiro de 1934.
de Castro sido nomeado gerente, com o venci- No entanto, o processo de liquidação desta
mento anual de 1.080.000$00 réis e 10 % nos sociedade só se encerrou a 12 de agosto de
lucros líquidos quando superiores a 8 % do ca- 1944, após a aprovação das contas de liquida-
pital social da sociedade. Era um vencimento ção, sendo apresentado um relatório à Inspe-
simbólico. A partir daqui, surgiu a casa bancá- ção do Comércio Bancário e resultando daqui
ria propriamente dita, já que a sociedade pas- elevados prejuízos para os credores comuns,
sou a ter por objetivo as transações bancárias. cerca de 324, que perderam tudo, no valor de
Em junho de 1925, com a morte de Abraham 14.990.137$00. Sardinha e C.ª, com um crédi-
Adida e, em 1927, com a de Henrique Vieira to de 1.760.714$00, recuperou 1.045.900$00,
de Castro, o pacto social foi alterado para re- e Luís da Rocha Machado, com um crédito de
gisto das quotas em nome dos herdeiros, em 650.072$00, recuperou 200.000$00. A realiza-
virtude do dec. n.º 10.634, de 20 de março de ção da venda do património imobiliário (15
1925, o que fez com que esta casa bancária soli- prédios rústicos e urbanos) pouco rendeu e a
citasse, a 10 de junho desse ano, a sua inscrição venda em hasta pública das águas foi pouco
no registo das instituições de crédito. Este pro- transparente, tendo garantido um valor muito
cesso demorou, por não corresponder a todas abaixo de real.
as regras do referido diploma, ficando apenas A casa bancária Rocha Machado teve em
concluído em 1930, com o depósito obrigató- Luís da Rocha Machado, um açoriano, emi-
rio na Caixa Geral de Depósitos e com a apre- grante no Brasil e radicado na Madeira, como
sentação da guia do pagamento do registo no funcionário da casa Blandy, o seu proprietário.
valor de 523$00. A partir de 1890, deixou a casa Blandy e de-
Depois da morte de Henrique Vieira de Cas- dicou-se a vários negócios. Não há muita in-
tro, o banco perdeu algum fulgor, devido à formação disponível sobre esta casa bancária,
falta de experiência empresarial dos herdei- sabendo-se que ela se antecipou aos aconteci-
ros, acusando um atraso, a partir de janeiro mentos económicos dos finais da déc. de 1920,
de 1931, e originando muitas queixas junto da na Madeira, fundindo-se, a 10 de outubro de
Inspeção do Comércio Bancário e do Comissá- 1928, com Cupertino de Miranda e Irmão, Ld.ª
rio do Governo, na fase de liquidação. e com o Banco Económico Português, dando
A partir de 7 de dezembro de 1931, foi co- origem ao Banco do Comércio e do Ultramar,
municada à Inspeção do Comércio Bancário que também sofreu um processo de liquida-
e ao ministro das Finanças a suspensão de ção, realizado em setembro de 1932. No capi-
pagamentos, aguardando-se a nomeação do tal social deste banco, participaram algumas
B ancos e casas bancárias ¬ 233

casas de crédito como a Bernardino Correia


e C.ª, Marques Seixas e C.ª, Sá Leitão e C.ª,
Matos Vaz e C.ª, Martins Lourenço Aparício, e
José Simões Coelho.
A casa bancária Rodrigues, Irmão e C.ª foi
constituída a 19 de abril de 1922, no Funchal,
e teve, como sócios fundadores, Henrique
Augusto Rodrigues, Alfredo Guilherme Ro-
drigues, João Anacleto Rodrigues, Francisco
Roberto Câmara, Juvenal de Araújo, e Fran-
cisco Leão de Faria. Era quase uma sociedade
familiar, composta por pessoas que detinham
outros interesses económicos na praça fi-
nanceira do Funchal, entre eles o comercial,
como era o caso do Bazar do Povo. Tinha um
capital social de 750.000$00, repartido entre
os irmãos Rodrigues, com uma quota igual a
cada um de 200.000$00 e de 50.000$00 aos
restantes três. Esta sociedade requereu à Ins-
peção do Comércio Bancário o seu registo
como banqueiros a 9 de junho de 1925. Em
1926, entrou um novo sócio, Alfredo Campa-
nella, em substituição de Francisco Leão de Fig. 7 – Caricatura sobre as comissões liquidatárias dos bancos
(Re-Nhau-Nhau, 17 mar. 1931).
Faria. O ativo desta casa bancária, a 31 de de-
zembro de 1932, ascendia a 6.662.635$00; os
depósitos à ordem e a prazo, nesta data, to- A casa bancária Sardinha e C.ª foi constituída
talizavam cerca de 2117 contos e os credores a 29 de dezembro de 1920, no Funchal. Os seus
cerca de 2200 contos. O capital próprio era sócios constituintes foram Manuel Bettencourt
inferior a 800 contos. Juntamente com a casa Sardinha e Leonardo Bettencourt Sardinha;
bancária Blandy Brothers, ela constituiu uma este último fora emigrante em Demerara e de-
das exceções à crise bancária ocorrida na Ma- tinha uma avultada fortuna que, depois, inves-
deira, após a queda da Bolsa de Nova Iorque tiu na Madeira em vários negócios, entre eles
de 1929; foi cumprindo a legislação em vigor, o bancário. Esta casa bancária assumiu a forma
nunca necessitando de intervenção estatal. jurídica de sociedade comercial em nome cole-
Devido à influência política de alguns dos tivo, com o objeto de realizar operações bancá-
seus sócios, nomeadamente Juvenal de Araú- rias e outro tipo de negócios. A sociedade tinha
jo, conseguiu posicionar-se estrategicamente um capital social de 400.000$00, entre esse ca-
para integrar a fusão bancária, ocorrida com pital 80.000$00 do ativo líquido da sociedade
a falência dos outros bancos, integrando o Sardinha e Companhia, entretanto dissolvida,
novo Banco da Madeira, constituído com o e o restante subscrito pelos dois sócios. Com a
apoio do Estado. Juvenal de Araújo ocupa- morte de Manuel Bettencourt Sardinha, que era
ria uma posição de destaque dentro do novo o gerente, a gestão foi assegurada por Leonardo
banco, sendo nomeado membro efetivo do Bettencourt Sardinha, que passou a ser o único
conselho de administração. Com a constitui- sócio e gerente, pelo conteúdo de uma das cláu-
ção do novo Banco da Madeira, encerrou-se a sulas da escritura de constituição da sociedade
atividade da casa bancária Rodrigues, Irmão e que determinava que, aquando da morte de
C.ª, sendo o único dos três incorporados que um dos sócios, o outro continuaria no negó-
tinha cessado pagamentos. cio, pagando aos herdeiros do sócio falecido a
234 ¬ B ancos e casas bancárias

parte correspondente, em prestações semestrais Santo, o Banco Pinto e Sotto Mayor, o Banco
de igual valor, cada uma com um juro de 6 % Fonsecas e Burnay, o Montepio Geral, o Banco
ao ano, no prazo de 6 anos a contar do dia do Português do Atlântico, o Banco Português de
óbito. A crise de 1929 e o número exagerado de Investimento, o Banco BIC, e a Caixa Econó-
casas bancárias fizeram com que o sector estag- mica do Funchal (este foi um banco de raiz
nasse; a instabilidade instalou-se nas casas ban- madeirense, que passou por algumas dificulda-
cárias e algumas abriram falência. A casa ban- des, após o 25 de Abril, tendo-se transformado
cária Sardinha e C.ª suspendeu os pagamentos no Banco Internacional do Funchal). Com a
a 21 de novembro de 1931. A 3 de janeiro de expansão económica e financeira proporcio-
1932, Eduardo Paquete foi nomeado comissá- nada pelas novas condições económicas saídas
rio do Governo junto deste banco. A casa ban- da Revolução de 1974, proliferam novas filiais
cária Sardinha e C.ª reconstituiu-se sob o nome de bancos nacionais e estrangeiros.
de Banco Sardinha, por dec. de 30 de abril de Tendo em consideração as publicações do
1931, com o apoio do Banco de Portugal e da Instituto Nacional de Estatística e da Direção
Caixa Geral de Depósitos, contando com uma Regional de Estatística da Madeira (DREM),
grande tolerância por parte de Salazar na sua é possível verificar o comportamento mais re-
reconstituição. Esta passou a sociedade anóni- cente de um conjunto de variáveis relaciona-
ma, a 21 de maio de 1931, sob a designação de das com a atividade da Banca.
Banco Sardinha “sendo os primeiros outorgan- Desde o ano 1998, o número de estabeleci-
tes da escritura de mudança os sócios da casa mentos bancários demonstrou uma evolução
Sardinha e Companhia e os segundos outor- como que a dois ritmos, sendo que foi verifi-
gantes, todas as pessoas, na generalidade credo- cado um período inicial favorável e, posterior-
res, que subscreveram o aumento de capital em mente, um outro no qual as variáveis apre-
3.000 contos” (Id., Ibid., 173). Neste aumento sentavam um certo ressentimento no sector,
de capital, 7 pessoas subscreveram 50.000$00 e seguramente pela própria crise financeira que
23 outras subscreveram ações entre 45.000$00 e assolou o mundo e provocou efeitos colaterais
10.000$00; no entanto, a desconfiança face à re- na Região. Para o ano 1998, o número de esta-
constituição das casas bancárias era muito gran- belecimentos de bancos e de caixas económi-
de e levou a uma corrida aos levantamentos e à cas na RAM era de 133, representando cerca
exigência de reembolsos dos créditos por com- de 2,6 % do total de estabelecimentos a nível
pleto, havendo necessidade de recorrer a novas nacional. No ano 2000, o número de estabele-
moratórias. Prorrogaram-se os prazos, mesmo cimentos ascendia a 150 na Região, com uma
após a sua transformação em banco, e a suspen- proporção de 3,0 % comparativamente ao nú-
são de pagamentos foi-se consolidando com in- mero de estabelecimentos em Portugal con-
demnizações tardias, com muitos processos ju- tinental. Esta proporção foi tendencialmen-
diciários e com sucessivas prorrogações. Esta te aumentando, embora o valor mais elevado
era a segunda maior casa bancária da Madeira tenha sido o de 3,2 %, que se constatou nos
da época, em número de depósitos. No seu pro- anos 2001, 2002 e 2007, onde o número de es-
cesso de liquidação, ela foi alvo de alguns pro- tabelecimentos na Madeira era de 156, 156 e
cessos polémicos e judiciais com alguns dos de- 171, respetivamente.
vedores, entre eles, Tiago Matias de Aguiar, F. F. Todavia, foi no ano 2009 que se verificou
Ferraz e C.ª Ld.ª que mostraram discordância o número mais elevado de estabelecimentos
quanto à forma de liquidação dos seus créditos. na Região, com 182, quando Portugal tinha
Entretanto, com o cimentar da sustentabili- 5877 estabelecimentos bancários e caixas eco-
dade económica e financeira do Estado Novo, nómicas. De notar que, a partir do ano 2010,
filiais de outros bancos nacionais foram apare- inclusive, verificou-se uma queda no número
cendo na praça financeira do Funchal, como daqueles. Queda essa que não foi um fenóme-
a Caixa Geral de Depósitos, o Banco Espírito no único da Região, mas também de todo o
B ancos e casas bancárias ¬ 235

território nacional, embora seja de interesse ano 2013 apresentassem um número de fun-
ressaltar que a diminuição do número de es- cionários novamente inferior ao ano imediata-
tabelecimentos foi mais acentuada na Madei- mente anterior, fixando-se em 842.
ra, pois, ao se verificar a proporção do núme- Os dados apresentados anteriormente
ro de estabelecimentos bancários regionais no podem ser analisados efetuando induções
número de estabelecimentos bancários nacio- sobre os motivos que provocaram esta diminui-
nais para o ano 2013, o valor ficou pelos 2,8 %, ção de pessoal ao serviço, apoiadas, eventual-
um valor percentual inferior ao verificado em mente, no argumento da melhor utilização e
anos anteriores, comparável com aqueles que otimização dos serviços. Todavia, cabe destacar
se verificavam nos últimos anos da déc. de 90 que, a partir do ano 2008, o sistema bancário
do séc. xx. se ressentiu, fundamentalmente, pela crise fi-
No ano 2010, o número de estabelecimen- nanceira despoletada.
tos passou para os 178, diminuindo no ano se- Este fenómeno não se fez sentir unicamente
guinte para 169. No ano 2012, verificou-se uma em território regional, mas também no espaço
nova queda para 157, sendo que, no ano 2013, nacional, porque, se se comparar a proporção
foram encerrados 10 estabelecimentos bancá- do pessoal ao serviço em bancos e em caixas
rios, passando a RAM a contar com apenas 147. económicas na RAM relativamente ao pessoal
Outra forma de se analisar a evolução do sec- ao serviço nas instituições de todo o país, veri-
tor é através do número de pessoas ao servi- fica-se que, apesar de ter havido algumas alte-
ço nesses mesmos estabelecimentos. No ano rações pontuais, o valor percentual se manteve
1998, o número de funcionários do sector nos 1,6 %.
bancário cifrava-se nos 946, sendo que a par- Uma publicação de 2014 do periódico Econó-
tir desse ano verificou-se uma diminuição que mico constatava o encerramento de um núme-
faria com que, no ano 2001, o número fosse de ro elevado de agências bancárias nesse mesmo
851 pessoas. No entanto, a partir do ano 2002 ano. Segundo a mesma, os bancos com maior
e até o ano 2004, constatou-se um crescimento, presença em Portugal fecharam 200 balcões
no qual, no ano 2002, o sector bancário conta- em território nacional no ano 2014. Na publi-
va com 922 colaboradores, passando para 945, cação, o encerramento de balcões e o despe-
no ano seguinte, e para 1098, em 2004. dimento de colaboradores são explicados não
A partir do ano 2005, voltou a verificar-se só pelas exigências efetuadas pelas autorida-
uma tendência caracterizada pela diminuição des europeias, após ter-se intervencionado um
do pessoal ao serviço, muito embora, no triénio conjunto de instituições bancárias, mas tam-
2008-2010, o número tenha superado o milhar bém pelos prejuízos verificados no sector que
de pessoas. A partir do ano 2011, o número de- obrigaram a elaborar planos de reestruturação
caiu, fazendo com que os dados referentes ao assentes parcialmente nestas medidas.

Fig. 8 – Calendário da Caixa Económica do Funchal para 1983 Fig. 9 – Calendário da Caixa Económica do Funchal para 1984 e
(coleção particular). 1985 (coleção particular).
236 ¬ B ancos e casas bancárias

Outro dado de elevado interesse, relaciona- economia, determinados dados da DREM re-
do com o número de terminais multibanco na velam que, a 31 de dezembro de 2013, a per-
Região, permite-nos concluir que foi verifica- centagem de devedores face ao total da popu-
do um crescimento importante daqueles entre lação adulta residente na RAM era de 51,1 %,
o ano 1997 e o ano 2013. Enquanto, no ano valor inferior ao verificado no território na-
1997, o número de terminais na RAM era de cional (52,9 %). Cabe destacar de igual forma
98, no ano 2013 o número ascendia aos 327. que cerca de 1 em cada 4 adultos residentes
Neste intervalo de tempo, apenas foram veri- na RAM tinha um empréstimo à habitação,
ficadas diminuições anuais no ano 2011, mo- e para 43,2 % foi concedido um empréstimo
mento em que o número caiu para 344, quan- para consumo e para outros fins, empréstimo
do em 2010 o número de terminais era de 347, esse que, a 31 de dezembro de 2013, ainda es-
e no ano 2013, altura em que se verificou uma tava em dívida.
diminuição de 18 terminais multibanco. Rela-
Bibliog.: impressa: ALMEIDA, Eduardo Castro e, Archivo da Marinha e
tivamente a esta variável, é possível verificar,
Ultramar. Inventário. Madeira e Porto Santo, Coimbra, Imprensa de Coimbra,
de igual forma, que, entre o ano 1997 e o ano 1907; AMORIM, Inês, “Dar e haver na Época Moderna. Entre a filantropia
2013, a distribuição concelhia desses mesmos e a dependência creditícia – especificidades insulares?”, Anuário do Centro
de Estudos de História do Atlântico, n.º 3, 2011, pp. 229-243; ARAGÃO,
terminais sofreu alterações, destacando-se a António, A Madeira Vista por Estrangeiros (1455-1700), Funchal, DRAC, 1981;
descentralização dos terminais no concelho do CORREIA, Liliana Martins, A Família Blandy. Economia e Cultura. Século
XIX, Dissertação de Mestrado em Cultura e Literatura Anglo-Americanas
Funchal: no ano 1997, localizavam-se ali 61,2 % apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2005;
do número total, um valor que diminuiu para FARIA, Cláudia, Phelps. Percurso de Uma Família Britânica na Madeira
de Oitocentos, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008;
55,7 % no ano 2013. Não obstante, apesar de FREITAS, João Abel, Salazar na Crise da Banca Madeirense. Uma Teia de
ter havido um aumento da proporção de ter- Muitos Nós, Lisboa, Colibri, 2014; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da
minais nos restantes concelhos que não a ca- Terra. História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens,
anot. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Typ. Funchalense, 1873;
pital da RAM, verificou-se uma diminuição da GOMES, Eduarda, O Convento da Encarnação do Funchal. Subsídio para
mesma em concelhos como: a Calheta, onde a Sua História. 1660-1777, Funchal, CEHA, 1995; JARDIM, Maria Dina dos
Ramos, A Santa Casa da Misericórdia do Funchal. Século XVIII. Subsídios
a relação passou de 6,1 % para 3,1 %, entre para a Sua História, Funchal, CEHA, 1996; LAINS, Pedro, História da Caixa
o ano 1997 e 2013; o Porto Moniz, onde, no Geral de Depósitos. 1910-1974, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2008;
MELO, Luís de Sousa, “Tombo 1º do Registo Geral da Câmara Municipal do
ano 1997, os terminais multibanco representa- Funchal. 1ª parte”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. xvii, 1973; Re-Nhau-
vam 2,0 % do total regional, e, no ano 2013, Nhau, 17 mar. e 12 dez. 1931; RODRIGUES, Elisabete, Os Cossart. Uma
Família Inglesa na Madeira Oitocentista, Funchal, CEHA, 2013; RODRIGUES,
um valor inferior situado nos 1,8 %; a Ribeira
Paulo, A Madeira entre 1820 e 1842. Relações de Poder e Influência Britânica,
Brava e São Vicente, que, no ano 1997, repre- Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008; SANTOS, Eugénio,
sentavam 5,1 % e 4,1 %, e, no ano 2013, 4,0 % “A sociedade madeirense da época moderna. Alguns indicadores”, in Actas
do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. ii, Funchal, Governo
e 1,8 %, respetivamente. Regional da Madeira, 1990, pp. 1212-1224; SILVA, Fernando Augusto da, e
O número de operações efetuadas em termi- MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal DRAC,
1978; SILVA, Maria Júlia de Oliveira e, Fidalgos-Mercadores no Século XVIII.
nais multibanco também aumentou significa- Duarte Sodré Pereira, Lisboa, INCM, 1992; SIMON, André Louis, The Bolton
tivamente, quase que quadruplicando entre o Letters. The Letters of An English Merchant in Madeira. 1695-1714, London,
T. W. Laurie, Ltd., 1928; TRINDADE, Ana Cristina Machado, A Moral e o
ano 1997, ano no qual o número de operações
Pecado Público na Madeira na Segunda Metade do Século XVIII, Funchal,
foi de 5411 milhões. No ano 2013, foram regis- CEHA, 1999; Id., “Plantar Nova Christandade”. Um Desígnio Jacobeu para
tadas 21.010 milhões de operações em território a Diocese do Funchal. D. Frei Manuel Coutinho. 1725-1741, Funchal, DRAC,
2012; VALÉRIO, Nuno (coord.), História do Sistema Bancário Português,
regional. Os números alteraram-se de tal forma Lisboa, Banco de Portugal, 2006; VIEIRA, Alberto (coord.), O Público e o
que uma análise à caracterização desses mesmos Privado na História da Madeira, vol. i, Funchal, CEHA, 1996; digital: “Pessoal
ao serviço (n.º) nos estabelecimentos de bancos e caixas económicas
movimentos permite constatar a dinâmica veri- por localização geográfica (NUTS – 2002). Anual”, Instituto Nacional de
ficada. Tome-se como exemplo o ano de 1997, Estatística, s.d.: http://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_
indicadores&indOcorrCod=0000226&contexto=bd&selTab=tab2 (acedido a
no concelho de Porto Moniz, onde o número 22 dez. 2014).
de operações efetuadas foi de 23.000, sendo
apenas de 19.000 no concelho da Ponta do Sol. † Alberto Vieira
Sendo uma das principais funções das ins- Emanuel Janes
tituições bancárias a concessão de crédito à Sérgio Rodrigues
B anda d ’ A lém ¬ 237

Banda d’Além
O grupo de música tradicional madeirense
Banda d’Além iniciou a sua atividade em 1995,
no Funchal, sendo o seu mentor o professor,
músico e compositor Mário André Rosado.
O grupo tem como objetivo principal a divul-
gação das músicas tradicionais da Madeira e do
Porto Santo.
A banda surgiu na sequência de um projeto
extracurricular da Escola Secundária de Fran-
cisco Franco, dinamizado pelo Prof. Mário
André, que tinha como propósito a valorização
da música tradicional madeirense. Na base da
escolha do nome do grupo esteve a existência
de diversos locais na Madeira com a denomi-
nação de Banda d’Além e também o intuito de
olhar para além do passado em busca da tradi-
ção e de projetá-la para o futuro, atualizando-a
e reinventando-a.
Com um reportório fortemente ligado às raí-
Fig. 1 – Prof. Mário André, mentor do grupo musical Banda
zes populares, o agrupamento tem contribuí- d’Além, 2011 (Banda d’Além – Facebook).
do, ao longo da sua existência, para a recolha,
preservação e divulgação das músicas tradicio- deslocações à Venezuela, em 2008 e 2011, onde
nais do arquipélago da Madeira. As interpreta- foram atuar no Centro Português de Caracas,
ções do grupo assentam, sobretudo, numa har- primeiro no âmbito das comemorações dos 50
monia vocal e instrumental, com maior relevo anos do Centro e dos 500 anos da cidade do
para os cordofones tradicionais madeirenses Funchal e depois para participar no espetácu-
(viola de arame, braguinha e rajão). Estes são lo comemorativo do Dia da Região Autónoma
complementados pelas teclas, percussão, ban- da Madeira e das Comunidades Madeirenses.
dolim, viola, violino, acordeão e flauta. Além Em 2012, integraram o programa de encerra-
das escolhas musicais baseadas no cancioneiro mento da VIII Feira Tradicional Arte na Ilha,
madeirense, o grupo evidencia um estilo parti- em Meira, Galiza, e em 2014 viajaram até aos
cular ao recriar composições tradicionais e ao Estados Unidos da América, onde realizaram
dar voz a poetas contemporâneos. algumas atuações.
No seu historial, a Banda d’Além regista a Ao longo da sua carreira, o grupo tem sido
participação em eventos culturais distintos, promovido nos vários meios da comunicação
realizados no arquipélago madeirense, como social, quer na imprensa, em diversos perió-
o Festival Raízes do Atlântico, o Festival de dicos, quer na internet, na rádio ou na televi-
Arte Camachense, a Semana Gastronómica de são. Dentre os vários programas televisivos
Machico, a Semana do Mar do Porto Moniz, em que participaram, destacam-se os progra-
a Feira do Livro do Funchal e a Festa das Vin- mas «Atlântida», «Noites de Verão» e «Festa
dimas, entre muitos outros, incluindo os típi- da Flor», por serem transmitidos por diversos
cos arraiais madeirenses. Do seu roteiro fazem canais da RTP, incluindo o canal RTP Interna-
parte, igualmente, apresentações públicas cional, sendo esta uma forma de aproximar os
fora da Região, em vários locais do continen- muitos emigrantes espalhados pelo mundo da
te, no arquipélago dos Açores e também fora música popular madeirense e das suas raízes
do país. A nível internacional, destacam-se as culturais.
238 ¬ B andas filarm ó nicas

Outra vertente da atividade da banda é a sua


integração em programas de animação em
hotéis do Funchal, o que lhe tem permitido
promover o seu trabalho junto de turistas de
várias nacionalidades e, simultaneamente, con-
tribuir para a divulgação, junto de um públi-
co mais diversificado, de uma parte da cultura
madeirense.
Bibliog.: impressa: “Banda d’Além brilhou no ‘Vivamúsica’”, Diário de Notícias,
Funchal, 10 abr. 1998, p. 22; “Banda d,Além dá espectáculo na sexta-feira, Dia
da RAM, na Venezuela”, Diário de Notícias, Funchal, 29 jun. 2011, p. 25; “Banda
d’Além no Porto Santo”, Jornal da Madeira, 11 ago. 2000, p. 10; DRUMOND,
Orlando, “Festa das vindimas com cartaz reforçado”, Diário de Notícias,
Funchal, 3 set. 2014, p. 6; GOUVEIA, Odília, “Banda d’Além no seu melhor”,
Jornal da Madeira, 27 jul. 2005, p. 13; MARQUES, João Maurício, “Antologia
da música tradicional madeirense”, Revista Xarabanda, n.º 12, 2.º sem. 1997,
Fig. 2 – Grupo musical Banda d’Além em estúdio para a gravação pp. 64-66; MENDES, Sílvio, “Reinventar e actualizar a tradição. Objectivo dos
do CD Ausência, 2014 (Banda d’Além – Facebook). Banda d’Além”, Olhar. Jornal da Madeira, 10 dez. 2005, pp. 20-21; P. H., “Semana
gastronómica fecha com Mário André”, Diário de Notícias, Funchal, 8 ago. 2010,
p. 30; Id., “Disco dos Banda d’Além homenageia ‘Raízes’”, Diário de Notícias,
Funchal, 12 jul. 2011, p. 23; Id., “Música diversa enriquece ‘Art’Camacha 2011’”,
Na sua atividade, a Banda d’Além conta com Diário de Notícias, Funchal, 9 ago. 2011, p. 23; “P. Moniz ‘pisca o olho’ com
a edição de quatro discos, que perpetuam a quatro dias de festa”, Diário de Notícias, Funchal, 18 jun. 2010, p. 6; SALVADOR,
José, “Banda d’Além estreia-se com álbum”, Diário de Notícias, Funchal, 18 nov.
contribuição do grupo na promoção da mú- 1997, p. 26; digital: Banda d’ Além – Facebook: https://www.facebook.com/
sica tradicional madeirense. Em 1997, lançam bandadalem (acedido a 30 jan. 2015); “Projetos Banda d’Além. Entrevista a
Mário André no programa ‘Acerte e Ganhe’ do PEF”, Cantinho da Madeira,
o primeiro álbum, intitulado Foram-se os Ho-
28 ago. 2014: http://cantinhodamadeira.pt/index.php/podcast/entrevistas/
mens ao Mar, que junta textos poéticos da tra- item/369-projetos-banda-d-alem (acedido a 30 abr. 2015).
dição oral da Madeira e de Irene Lucília An-
Sílvia G. Gomes
drade com músicas de Mário André, de Jorge
Maggiore e de Décio Abreu. No ano seguinte,
dois temas retirados daquele álbum, «Rajão» e Bandas filarmónicas
«Os Escravos», vêm integrar a primeira antolo-
O aparecimento das bandas filarmónicas na
gia de música tradicional madeirense, organi-
Madeira dá-se na segunda metade do séc. xix.
zada pela editora Almasud Records e pela As-
A Filarmónica dos Artistas Funchalenses (pri-
sociação Xarabanda, com o apoio do pavilhão
meira denominação para a atual Banda Mu-
da Madeira para a Expo 98. Em 2001, surge
nicipal do Funchal) surge em 1850. O século
Ementes, Vai-se Cantando, o segundo álbum, que
tinha começado com uma guerra e posterior
inclui 14 temas do cancioneiro tradicional do
ocupação da ilha da Madeira pelas tropas in-
arquipélago da Madeira. O terceiro registo
glesas. Nesse período conturbado das invasões
do grupo, intitulado Raízes, lançado em 2011,
francesas, os grandes contingentes militares
reúne composições diversificadas da tradição,
não dispensavam as fanfarras nos seus longos
de autores madeirenses e outras da própria
desfiles e na inevitável ordem unida. A presen-
Banda d’Além. O disco inclui uma valsa, com-
ça do exército inglês no Funchal, entre 1801 e
posição de Drumond de Vasconcelos, datada
do séc. xix, temas do músico Max e dos irmãos
Freitas e composições tradicionais. Em 2014,
lançam o quarto álbum, cujo título, Ausência,
alude à emigração, numa referência simbólica
à ausência dos conterrâneos, numa época em
que o país assiste a uma enorme saída de por-
tugueses, que procuram noutros países melho- Fig. 1 – Banda dos Artistas Funchalenses, fundada em 1850
res condições de vida. (fotografia de Rui Camacho).
B andas filarm ó nicas ¬ 239

1814, vai dar a conhecer aos madeirenses um e o da festa, estariam doravante com acompa-
certo tipo de banda, que será posteriormente nhamento musical adequado: marcha grave e
desenvolvida em Portugal continental, primei- música religiosa, por um lado, e, por outro, um
ro na Banda da Armada e depois nos batalhões repertório que passaria do pasodoble à marcha
e regimentos de infantaria espalhados pelo portuguesa e outras melodias popularizadas,
país. Este formato musical, que integrava sopro primeiro pelo teatro de revista e num segundo
e percussão, tem uma primeira localização, Lis- momento pela rádio e disco.
boa, e um propósito, a reformulação da Ma- Os contratos para estes eventos designa-
rinha Portuguesa e das restantes forças. Será vam-se de contrato a seco ou de contrato a
sobretudo a partir de 1828, com a presença da comer. No primeiro, a coletividade musical
Banda do Regimento e da Banda do Batalhão, levava o seu próprio cozinheiro, que faria as
que os ouvidos dos madeirenses se concentra- refeições necessárias às expensas da direção.
rão nos desfiles e concertos ao ar livre destas No segundo caso, a banda ganharia menos
novas formações musicais. dinheiro, uma vez que o festeiro descontava
O modelo, a formação e direção das bandas nas refeições por ele cedidas. A banda come-
civis iria ser decalcado das congéneres milita- çava a sua prestação musical pela manhã, logo
res, sendo os seus mestres contratados pelas depois da missa, indo depois tocar à casa do
mais importantes sociedades musicais madei- festeiro. A banda podia também ir de porta
renses. Assim aconteceu com a Banda Muni- em porta, acompanhada pelo festeiro e mor-
cipal do Funchal (1850), a Banda Municipal domos. Existem episódios em que os músicos
de Câmara de Lobos (1872) e a Banda Distri- contavam centenas de hinos tocados, pois era
tal do Funchal (1872), as três mais antigas for- necessário tocar para todos os que tinham
mações que durante muito tempo disputavam contribuído para a festa. A meio da tarde, ser-
entre si não só aspetos de rivalidade mas os via-se o almoço, geralmente espetada, bata-
talentosos mestres militares, únicos ao tempo tas com atum ou caldeirada de bacalhau. Ao
no saber musical específico para este tipo de princípio da noite iniciava-se a festa que du-
agrupamento. rava até à meia-noite. No dia seguinte, a pro-
O séc. xix iria ver nascer muitas bandas cissão era o momento mais alto da prestação
tanto no Funchal como no mundo rural, algu- musical, seguindo-se uma atuação ao longo
mas de vida curta, das quais a história se resu- da tarde e noite.
me a uma ou duas atuações, registadas pelos
diários de então. No entanto, é, sem dúvida ne-
nhuma, fora do Funchal que o fenómeno das
bandas ganha expressão. Primeiro no Paul do
Mar (1874), depois na Ponta do Sol (1882) se-
guindo-se Faial (1895), Santa Cruz e Machico
(1896). Centrando a sua atividade à volta da
escola de música, as bandas ganharam a sim-
patia das populações e a convivência fácil com
a comunidade, que as prestigiaram apoiando-
-as na compra de instrumentos ou contratan-
do os serviços musicais para as diversas festas
tradicionais ao longo do calendário, fonte de
receitas para manter os ativos, tanto os músi-
cos como os mestres. O arraial madeirense, na
sua ideia chave de partilha do profano e do sa-
grado, encontraria na banda de música o seu Fig. 2 – Filarmónica Recreio dos Lavradores, Câmara de Lobos,
perfeito aliado. Dois momentos, o da procissão 10 de agosto de 1894 (arquivo da revista Girão).
240 ¬ B andas filarm ó nicas

Os contratos não eram escritos. Cabia ao fes- experiência da filarmónica a única da sua vida
teiro escolher uma banda da sua preferência, artística. Nas décs. de 30 e 40 do séc. xx, o fato
a banda da festa, podendo convidar mais uma da banda era para o instrumentista o único
ou até várias outras bandas, as bandas convi- que possuía, tal como os próprios sapatos, ser-
dadas. No adro da igreja eram colocados dois vindo estes para ocasiões solenes. Conta-se que
coretos: o da direita o era da banda da festa e o esse foi um dos motivos para nas décadas se-
outro, o da banda convidada. Quando existiam guintes as fardas das filarmónicas madeirenses
mais bandas, os coretos espalhavam-se pelos ar- terem várias cores, nomeadamente o doura-
redores do recinto do arraial. A banda da festa do, em riscas nas calças ou casaco. O propósito
seguia na frente da procissão e a banda con- era simples: evitar a utilização do fato fora da
vidada atrás. Os mestres das bandas, também atividade musical. Eram tempos de miséria a
angariadores de serviços musicais, tentavam a todos os níveis, mas que, apesar de tudo, servi-
todo o custo que a sua banda fosse a banda da ram para muitos dos executantes aprenderem
festa, a banda principal, o que era visto com a ler, escrever e contar, já que cabia também
prestígio. esse papel às próprias bandas.
No mundo hierarquizado das filarmónicas Destaca-se nos registos o concelho de Santa-
só a direção e eventualmente o mestre sabe- na, que reunia três filarmónicas: Banda Filar-
riam o valor exato do contrato. Os músicos mónica do Faial (1895), Banda Municipal de
não recebiam todos por igual, existindo a de- Santana (1926) e Banda Escola de N. S.ª de Fá-
signação de partes, meias partes e quartos de tima do Arco de São Jorge (1933). A atividade
parte, contemplando a antiguidade dos exe- da escola da banda variava conforme os mes-
cutantes, mas nunca revelando o montan- tres, o seu saber, a sua persistência e o seu ca-
te final pelo serviço musical. O fardamento risma. No entanto, há um traço geral quanto
era fornecido pela banda, assim como o ins- ao modo de operacionalizar o estudo e ensaio:
trumento, existindo casos em que o próprio duas vezes por semana para acompanhamen-
executante adquiria à banda, em prestações, tos e contra cantos, duas vezes para canto (so-
tanto o fardamento como o instrumento. listas) e duas vezes ensaio geral, significando,
A entrada para a filarmónica dava-se por volta em termos de dias de semana, uma ação que
dos 15 anos, aprendendo o jovem primeiro se desenrolava de segunda a sábado. As bandas
o solfejo e só mais à frente tomando contato filarmónicas foram também das primeiras so-
com o instrumento. ciedades recreativas que reuniram executantes
Nas bandas estudadas, verificou-se uma masculinos de nível socioeconómico e cultural
longa permanência dos instrumentistas. Até mais humilde.
25 de abril de 1974, era frequente os músi- A formação, mas sobretudo a continuação da
cos tocarem até aos 70 anos de idade, sendo a atividade, gerava muitos problemas e mesmo
obstáculos. O fardamento, os instrumentos, o
mestre de música e os músicos, bem como a
casa de ensaio, careciam de uma capacidade
organizativa, que passava pelas quotas dos só-
cios e beneméritos, de modo a suprir as des-
pesas contratadas. Isso mesmo se pode en-
tender quando em 1913 surgiu a Federação
das Filarmónicas, numa tentativa de apoio às
coletividades.
Desde 1850, com o aparecimento da primei-
ra banda civil, a Sociedade dos Artistas Madei-
Fig. 3 – Banda Nova de Câmara de Lobos, 11 de outubro de 1998
renses, se conjugava nos concertos públicos, na
(fotografia de Rui Camacho). Pç. da Constituição e na Pç. Académica, a já
B andas filarm ó nicas ¬ 241

citada banda e a Banda do Regimento, entre constituição de agremiação de sopros. Outros


outras formações marciais nacionais e estran- casos existiram de pouca duração, ou que sim-
geiras, que estando de passagem pela Madeira plesmente não passaram do solfejo inicial.
se disponibilizavam a tocar num gesto de cor- No mundo rural madeirense, estas bandas,
tesia. O fenómeno, aos poucos, estendeu-se às como a do Paul do Mar e Faial, tinham pouco
vilas e freguesias do sul da ilha, como Câmara mais de 13 elementos, sendo necessário refor-
de Lobos, Santa Cruz e Machico, incentivado çá-las com elementos vindos do Funchal ou de
pela colocação de coretos nos centros históri- Câmara de Lobos. Estes músicos disponíveis
cos das localidades. A organização das socieda- eram na sua maioria militares das bandas exis-
des musicais remetia-se para os estatutos, onde tentes na Madeira. Esta prática persistiu até de-
se plasmavam os direitos e deveres do mestre, pois do 25 de abril de 1974. A falta de registos
dos aprendizes e executantes. por parte das bandas leva-nos a recorrer aos
As normas de comportamento, em geral se- diários da época para auscultar a sua presen-
vero, decalcavam-se do modelo militar e im- ça e importância na comunidade e sociedade
punham restrições e coimas. Em resumo, o do seu tempo. Na verdade, o trabalho profí-
dever de assiduidade, pontualidade e respeito cuo de vários investigadores tem trazido novos
à banda, sem esquecer a obediência ao chefe. dados sobre a constituição destas sociedades.
A disseminação das bandas pelo restante espa- Ainda no séc. xix, e no norte da Madeira, sur-
ço a sul foi rápida, potenciado pela maior den- giu, por cerca de 1875, a Filarmónica União
sidade populacional, facilidade de transportes de S. Jorge, regida pelo mestre Francisco Ri-
terrestres e marítimos e desenvolvimento so- beiro, músico militar, responsável pela Banda
cioeconómico. Do Paul do Mar até Machico, as Regimental. Outro caso, de grande atividade
sociedades musicais iriam deixar a sua marca musical, mas de poucos e incompletos docu-
até ao fim do séc. xix. Esta, revelar-se-ia não mentos, tem lugar no concelho de Santa Cruz.
só no domínio dos sopros, como também nas Uma primeira fundação da Filarmónica União
orquestras características (com cordofones tra- Santacruzense, por volta de 1877, que se iria
dicionais), nas orquestras de palheta ao estilo dividir em 1906 por desentendimentos entre
italiano (com instrumentos da família do ban- músicos, passando a ser conhecidas pela popu-
dolim e viola dedilhada) e nos pequenos con- lação como Banda do Sr. Ângelo e Banda do
juntos de música religiosa e festiva, que atua- Sr. Franco, tendo este último sido um dos fun-
vam nas igrejas, constituídos, para além das dadores da Banda Municipal de Santa Cruz em
vozes humanas, por violino, violoncelo, flau- 1922. Também no concelho da Calheta exis-
ta transversal e órgão. Era frequente também tiu a tentativa de criação de uma banda, na
os mestres das filarmónicas serem convidados déc. de 50 do séc. xx, pela mão do regente e
a dirigir estes pequenos núcleos musicais ou a músico militar Raúl Serrão, que não chegou a
fazer arranjos para os seus instrumentos. atuar. Outras formações de curta duração sur-
A par do padre e do professor primário, o gem aqui e ali nas várias investigações, e.g. a Fi-
mestre da banda, pelos seus conhecimentos larmónica Recreio União Comercial em 1898,
musicais ou patente militar (sargento, tenente, a Filarmónica Recreio Lusitano e a Filarmóni-
capitão), assumia nestes contextos sociais uma ca Recreio Artístico do Campanário, ambas
importância acrescida. Por toda a ilha, a pre- na primeira década do séc. xx. A constituição
sença das bandas fazia-se notar no dia da festa deste tipo de agrupamento chegou também
da paróquia, entusiasmando as forças vivas dos aos Bombeiros Voluntários do Funchal, Polí-
concelhos a constituir a sua própria banda. cia de Segurança Pública e Escola das Artes e
Com a exceção histórica do Porto Moniz e de Ofícios, sendo no caso desta última constituída
São Vicente, por alguns motivos já atrás formu- apenas por alunos internos. Algumas bandas ti-
lados, mas também pelo fenómeno da emigra- nham patrono ou mecenas, referindo na sua
ção, não se conhecem dados de tentativa ou designação tal facto.
242 ¬ B andas filarm ó nicas

foi o caso da Sociedade Fraternal e Recreati-


va de S.ta Cruz, uma sociedade de concertos
com estatutos e contabilidade organizada, em
atividade por volta de 1886. Destacou-se ainda
como orquestrador e educador, fez muitos ar-
ranjos para diferentes configurações artísticas
e lançou muitos apontamentos para ajudar na
formação individual dos executantes, quer de
sopro, quer de cordas. Entre as suas compo-
sições, destacam-se os hinos, a música sacra e
música de dança com que pontuava nos salões
do concelho, com orquestras dirigidas por si.
Ao longo do séc. xx, foram muitos os nomes
mencionados em vários trabalhos de investiga-
ção musicológica. O mestre Francisco da Silva,
Fig. 4 – Filarmónica da Sociedade da Levada, Hotel Monte Palace, de Câmara de Lobos, orientou por mais de 50
1927 (ABM, Arquivos Particulares). anos a Banda Municipal de Câmara de Lobos,
revelando-se no seu tempo como um dos úni-
A Filarmónica Restauração da Ponta do Sol cos mestres civis. Desenvolveu a sua atividade
ficou conhecida como príncipe D’Oldembur- entre 1916 e 1966. Em Machico, José da Costa
go, como reconhecimento ao tenente-general Miranda (1908-1987) salientou-se enquan-
do exército russo que por cá viveu durante dois to mestre da Banda Municipal de Machico,
anos, ficando conhecido pela sua filantropia. organista e compositor. O seu nome é muito
A Filarmónica D. Carlos I, depois Banda Muni- conhecido no meio filarmónico, sendo o seu
cipal de Machico, adotaria esta nomenclatura trabalho reconhecido na sua extensa composi-
em homenagem ao monarca português, pos- ção musical, que inclui marchas graves, hinos
suindo título de autorização para tal designa- e repertório ligeiro para banda, sem esque-
ção, passado pelo rei. Também a Filarmónica cer a música sacra, que apresentava durante
Artístico Madeirense (depois Banda Distrital anos na igreja de Machico onde, para além
do Funchal) se designava de Real Filarmóni- de organista, dirigia o coro. Da Ponta do Sol
ca Artístico Madeirense, em 1908, por diploma para o Brasil, onde foi primeiro conhecido,
passado pelo já citado rei. deve ser referido o mestre Moisés Alves Pita
Na vida das diferentes coletividades, muitas (1922-2002). Depois de muitos anos na Banda
personalidades se distinguiram, entre presi- da Ponta do Sol como executante e uma pas-
dentes e benfeitores, mas um lugar de relevo sagem pela Academia de Música da Madeira,
tem de ser dado aos mestres, pois deles de- partiu para o Brasil em 1950. Do seu currícu-
pendia a própria atividade da banda, na sua lo, consta o cargo de mestre e presidente da
preparação e apresentação pública. Ainda no Banda de Niterói, membro da bancada exami-
séc. xix, o destaque vai para Anselmo Ser- nadora de carteiras profissionais, cidadão ho-
rão, natural de Câmara de Lobos (1846-1922). norário do Estado do Rio de Janeiro, Ordem
Compositor multifacetado, foi também mestre de Benemerência de Portugal e medalha de
da Banda dos Artistas Funchalenses e regente Honra e Mérito. As suas composições alcança-
de orquestras de igreja, uma das quais no Es- ram, tanto no Brasil como em Portugal, um
treito. É o autor do hino da Banda Municipal grande reconhecimento artístico. Apresentou
de Câmara de Lobos. Ângelo Álvares de Frei- algumas das suas obras em Lisboa, dirigindo a
tas, natural de Santa Cruz, surge como outro Banda de Música da Força Aérea em 1987, por
dos compositores, regentes e fundadores de altura da condecoração recebida da Secretaria
núcleos musicais de grande evidência, como de Estado da Emigração.
B andas filarm ó nicas ¬ 243

Num leque mais alargado, ao longo das décs. época. A filarmónica apresentava-se com 40 fi-
de 50 e 70 do séc. xx, no que diz respeito a di- guras, exibindo também um novo fardamento.
reção e composição para banda, o destaque vai O nível do repertório apresentado foi tema de
para João Ornelas Abreu, Raul Serrão, João Fi- análise pela imprensa. O maestro foi elogiado
gueira Quintal e Abel Teixeira Mendes, sendo pelo rumo em que direcionava a coletividade
os últimos três músicos militares de carreira musical, colocando-a num novo ciclo e pata-
que receberam uma sólida formação e que a mar de qualidade.
souberam reverter nas bandas civis por onde A atividade das bandas centrava-se em três
passaram. grandes áreas: a escola de música, a festa tradi-
A presença das bandas nas festas tradicionais, cional madeirense (os arraiais) e os concertos
nos concertos públicos patrocinados pelo go- públicos. Nem todas as formações conseguiam
vernador ou Câmara colocou em evidência esta o pleno nessas linhas mestras. De entre o leque
subcultura musical, tornando-se já na primeira das filarmónicas madeirenses, a Banda Muni-
década do séc. xx um incontornável ativo cultu- cipal do Funchal, a Banda Distrital do Fun-
ral. Em 1909, num intercâmbio com as vizinhas chal, a Banda Municipal de Câmara de Lobos
canárias, deslocou-se à ilha de Tenerife a Filar- e a Banda Recreio Camponês são as mais ati-
mónica Artístico Madeirense (atual Banda Dis- vas, atendendo a um período continuado pelas
trital do Funchal) para uma série de concertos e décs. de 30, 40 e 50 do séc. xx. As bandas vi-
animações. Seria a primeira vez que uma banda viam, sem margem para dúvida, do dinheiro
madeirense saía em digressão, neste caso para ganho pelos serviços prestados nas principais
uma atuação na Festa de Maio de Santa Cruz de festas da ilha, entre elas as do Estreito da Calhe-
Tenerife. O acontecimento foi muito relatado ta, Monte, São Pedro da Ribeira Brava, Ponta
nos jornais da época e gerou um grande entu- Delgada, Loreto e Santo António, que chega-
siasmo por parte da população. Em 1913, outra vam em certos anos a solicitar 5 a 7 bandas
formação, a Banda dos Artistas Funchalenses de música. Estas festividades foram potencia-
(atual Banda Municipal do Funchal), teve igual das pelo forte contributo dos emigrantes que
privilégio na participação das mencionadas fes- se encontravam no Brasil, Curaçau, Venezuela
tas em Tenerife. Fica também registado para a e África do Sul, atingindo o pique da procura
história o facto de nessa digressão se ter toca- das formações musicais nas décs. de 50 e 60 do
do, pela primeira vez, o hino republicano portu- século passado.
guês no estrangeiro, o qual é atribuído até hoje Enquanto atividade interna, dirigida a só-
apenas a esta banda madeirense. cios e familiares, as filarmónicas madeirenses
A Banda dos Artistas Funchalenses seria a apostavam em bailes e festas por altura do Car-
protagonista durante décadas de um envolvi- naval e Santos Populares. Desenvolveram-se
mento e aprofundamento musical e artístico,
devido ao seu maestro e diretor musical, o ca-
pitão Gustavo Augusto Coelho, uma persona-
lidade que marcaria também o mundo filar-
mónico madeirense, enquanto referência por
causa da qualidade no desempenho do seu ofí-
cio como maestro, compositor e professor. Em
1927, ainda no posto de tenente do exército,
orientou a Banda dos Artistas Funchalenses na
célebre digressão aos Açores, vencendo a gran-
de dificuldade de entrosamento entre as ilhas
portuguesas. E, mais uma vez, pela originalida-
de de tal evento, esta filarmónica alcançou um Fig. 5 – Banda da Camacha, 16 de setembro de 1994
grande sucesso, testemunhado pelos jornais da (fotografia de Rui Camacho).
244 ¬ B andeiras

também grupos de teatro amador e coros que maioria civis, com cursos de instrumentos, e
entrelaçavam vários espetáculos anunciados na levarem métodos específicos para cada instru-
imprensa diária, alguns incluindo número de mento e naipe da banda, o que não acontecia
variedades, fado, teatro de revista e até proje- antes, pois tudo se concentrava no mestre (que
ção de filmes. Destacou-se neste tipo de festa, era geralmente um músico militar que ensina-
patrocinado em exclusivo pela banda, o carna- va todos os instrumentos).
val da Banda Distrital do Funchal. Este, realiza- Outra formação que marcou o mundo das
do ao estilo brasileiro, reunia toda a formação bandas filarmónicas madeirenses foi a Banda
numa troupe musical, com um enredo apropria- Orquestral de Câmara de Lobos – Os Infantes.
do. A festa começava com o percurso da Pon- Nesta, o instrumentário vulgar de uma banda
tinha até ao cais da cidade, como se a banda foi acrescentado de bateria, piano, baixo elétri-
viesse de fora. Todos os anos havia um ou dois co e guitarra elétrica. As suas atuações, ao con-
trajes diferentes, e a música, ao estilo brasilei- trário das outras bandas, requeriam um palco,
ro, era enviada para um dos membros da dire- já não um coreto. Também o serviço musical
ção, o Sr. Brazão, que, sendo brasileiro, tinha de acompanhamento à procissão era executa-
inúmeros contactos com escolas de samba ca- do por uma parte da banda, pressupondo dois
riocas. Essa ligação permitia tocar todo o tipo tipos de ensaio, um para espetáculo e outro
de repertório recente, uma grande vantagem que atendia ao tradicional arraial insular.
perante as congéneres que se limitavam a tocar O fenómeno das bandas ressurgiu nos anos
temas antigos. O Funchal aderia em massa ao 90, com a Banda Juvenil do Gabinete de Apoio
carnaval dos “guerrilhas”, o nome pelo qual à Expressão Musical e Dramática, relançando
eram conhecidos pela população. Para além nas camadas mais novas o gosto pelos instru-
do concerto no Jardim Municipal do Funchal, mentos de sopro. Um ponto alto destas forma-
uma série de bailes animavam a sede da banda, ções é a apresentação musical no Encontro de
acompanhados por uma formação musical Bandas que se realiza anualmente na Ribeira
criada no seu seio, que se designava Orques- Brava, no qual têm sido homenageados músi-
tra Brilhante. Os bailes iam pela noite dentro, cos e mestres que marcaram a história das filar-
até às quatro horas da manhã, com uma auto- mónicas madeirenses.
rização especial do governador civil da Madei-
Bibliog.: MORAIS, Manuel (coord.), A Madeira e a Música, Funchal, Empresa
ra. Seguia-se um périplo pelos hotéis da cidade Municipal Funchal 500 Anos, 2008; SARDINHA, Vítor, e CAMACHO, Rui, Rostos
para animação dos turistas. Os músicos atua- e Traços das Bandas Filarmónicas Madeirenses, Funchal, DRAC/Associação
Musical e Cultural Xarabanda, 2001.
vam de forma graciosa, sendo todo o dinheiro
arrecadado para o cofre da coletividade, que Vítor Sardinha
via assim uma nova forma de financiamento
para compra de instrumentos e fardamento.
Até 25 de abril de 1974, o movimento artísti-
Bandeiras
co das filarmónicas esteve em expansão, quer
pelo número de elementos, quer pelas solici- A bandeira é o símbolo visual definido classi-
tações para atuar. Por esta altura, também as camente como representativo de um Estado
bandas começaram a admitir executantes femi- soberano, um país ou uma região, um muni-
ninos, sendo a Banda Paroquial da Camacha a cípio ou uma freguesia, uma organização so-
primeira a fazê-lo com a admissão de seis ele- cial, civil, profissional ou religiosa, tal como de
mentos, em 1971. Esta banda difere de todas as toda e qualquer entidade constituída, como
outras, uma vez que nasceu dentro de uma pa- teria sido o caso das famílias dos capitães-dona-
róquia fomentada pelo seu mentor, o P.e Marti- tários insulares e das dos principais terratenen-
nho. Após a Revolução de Abril, muitas altera- tes, com capacidade para levantar forças milita-
ções se iriam dar, a mais importante das quais res e obrigação de o fazer. Desde a constituição
foi o facto de os mestres passarem a ser na sua do Império Romano que as legiões utilizavam
B andeiras ¬ 245

Fig. 1 – Bandeira da Câmara Municipal do Funchal, 1834 e 1850


(Salão Nobre da Câmara Municipal do Funchal).

estandartes, de forma a serem facilmente re-


conhecidas; na Idade Média, muito provavel-
mente por influência islâmica, difundiu-se o
uso de um panos hasteados num estandarte, Fig. 2 – Bandeira da Ordem de Cristo, Festival Colombo, Porto
com as cores e os sinais identificativos da força Santo, 2016 (arquivo particular).

militar a que dizia respeito. A mais antiga regu-


lamentação da utilização de bandeiras de que de poucos anos antes (1450-1451) a instituição
dispomos é a que consta de Siete Partidas [Sete do município do Funchal, tal como muito pro-
Partidas] do rei Afonso X, o Sábio (1252-1284), vavelmente dos de Machico e do Porto Santo.
onde são especificadas as diferenças entre o Só mais tardiamente há referências de tanto os
estandarte privativo de um príncipe, os pen- Câmara, capitães do Funchal, como as sedes
dões dos seus servidores – os vários comandan- dos municípios da Madeira terem utilizado
tes militares –, dispostos hierarquicamente, e símbolos heráldicos próprios, como bandeira
as flâmulas, os guiões, os galhardetes, etc., de e selo de armas.
cada força militar. Mesmo com as complexas Data do “primeiro dia de junho” de 1472 a
modificações advindas da constituição dos Es- primeira referência, feita pela vereação cama-
tados modernos, os procedimentos definidos rária, ao “selo do capitão”, então João Gonçal-
na Idade Média continuarão a estar em uso ves da Câmara (1414-1501): o procurador do
até ao séc. xxi; deste modo, as bandeiras obe- Concelho mencionou que o povo se queixava
decem a uma determinação precisa quanto à de que João Gonçalves da Câmara levava 20 réis
forma, às cores e à maneira de as hastear. pela utilização do selo, “e que todos ficaram de
As primeiras bandeiras que apareceram na lho fazer saber por que os levava e que razão
Madeira terão sido as da Ordem de Cristo. dava” (COSTA, 1995, 35). Como era o capitão
O descobrimento oficial da região foi deter- quem presidia ao Concelho, embora então re-
minado na sequência do descerco de Ceuta, presentado pelo irmão mais novo, fica sem se
estando deste encarregados os escudeiros do saber se se tratava do selo pessoal dele, se do da
Infante D. Henrique, administrador daquela Câmara, se, inclusivamente, do da Ordem de
ordem militar. Como o povoamento das ilhas Cristo. Em 1461, o Infante D. Fernando (1433-
atlânticas foi especialmente feito para servir de 1470), ao assumir a administração da Ordem,
apoio às praças do Norte de África, as primei- como resposta a um pedido da Ilha comunicou
ras forças militares que seguiram da Madeira que iria enviar, “nos primeiros navios” que fos-
com esse propósito levavam por certo a bandei- sem para a Madeira, “dois selos, um de minhas
ra da Ordem de Cristo. Data de 1460 a conces- armas, com que serão seladas as coisas da justi-
são de armas próprias a João Gonçalves Zarco e ça e que a meu serviço pertencerem”, e outro,
246 ¬ B andeiras

do Corpo de Deus, mandaram fazer-se quatro


bandeiras, tendo representadas as armas reais
de um lado e, do outro, as da cidade, muito
possivelmente pintadas de forma semelhante
ao modo como em 1760 as viria a pintar Antó-
nio Vila Vicêncio (c. 1720-1794) na nova igreja
camarária de S. Tiago Menor, posteriormente
igreja matriz de S.ta M.ª Maior (já sem a ima-
gem do orago).
Fig. 3 – Baú de bandeiras, 1550-1620 (Convento de S.ta Clara do Desde meados do séc. xvi que a Câmara pos-
Funchal). suía alferes de bandeira e, nos finais desse sé-
culo, ocupava esse posto Lourenço da Gama
com os “sinais que me apraz que esse Concelho Pereira, por certo familiar do Dr. António da
traga e [por] isso mesmo vos mandarei a ban- Gama da Pereira (1520-1604), desembarga-
deira dos ditos sinais” (MELO, 1972, 15, 19). dor do paço e seu contemporâneo. O alferes
Aparentemente, 10 anos depois só existia um de bandeira do Funchal, depois mamposteiro-
selo, na posse do capitão. -mor dos cativos, viria a ter problemas com o
Com a subida ao trono de D. Manuel (1469- sexto bispo do Funchal, D. Jerónimo Barreto
1521), enviou-se carta para a Madeira em ou- (1543-1589), sobre o lugar da bandeira da Câ-
tubro de 1495, com ordem para que se levan- mara na procissão de Corpo de Deus, ocorrida
tassem na Ilha “bandeiras e pendões” em seu a 5 de junho de 1582; o alferes obteve sentença
nome (Id., Ibid., 1973, 16, 313-314). Contudo, favorável a 24 de dezembro desse ano, certa-
somente em 1498 há uma vaga alusão a uma mente por influência do desembargador junto
eventual bandeira, mandada executar pela Câ- de Lisboa. Em 1624, o licenciado Francisco de
mara do Funchal para a procissão do Corpo de Spínola foi nomeado alferes de bandeira; a 28
Deus. Refere o documento de pagamento ao de abril de 1627, preencheria o lugar de mam-
pintor Martim Lopes que o mesmo recebera posteiro-mor dos cativos.
400 réis por ter pintado a “gaiola”, a armação Refere o Elucidário Madeirense que, até à pro-
que abrigava o Santíssimo Sacramento nessa clamação da Constituição de 1834, a bandei-
procissão, a qual fora pintada com as quinas ra da Câmara do Funchal era branca, tendo
de Portugal de um lado e, do outro, com a “di- de um lado as armas reais e, do outro, as da
visa da Ilha” em cor azul (ABM, Câmara Mu- cidade. Por essa data a bandeira já não era
nicipal do Funchal, Avulsos, cx. 4, doc. 484). conduzida por alferes, mas pelo procurador
Ora, a Ilha fora integrada na Coroa portuguesa do Concelho, que, em exéquias e aclamações
em 1497, passando a usar as armas reais, pelo de monarcas, ia a cavalo, seguido de dois cria-
que, por “divisa”, parece dever entender-se a dos a pé, levando a haste do estandarte sobre
denominação “Vila do Funchal” (MELO, Ibid., o ombro direito. Isabella de França (1795-
1974, 18, 363-364), certamente acompanhan- 1880), ao descrever as exéquias de D. Maria
do as armas da Câmara. II (1819-1853), a 26 de janeiro de 1854, refe-
Mais tarde, no auto do voto de 24 de janei- re que levou a bandeira Nuno de Freitas Lo-
ro de 1523, a Câmara decidiu que fosse pinta- melino (1820-1880) – morgado das Cruzes e
da “na Câmara”, supõe-se que no edifício, “e então “vereador fiscal” do Funchal, o “único a
na bandeira e selo da cidade” a imagem de S. cavalo” –, a qual estava coberta de crepes, tal
Tiago Menor, então eleito padroeiro do Fun- como a montada, com quatro longas fitas “a
chal, tal como na bandeira de Lisboa figurava [em] cujas pontas pegavam outros tantos ho-
S. Vicente (ABM, Câmara Municipal do Fun- mens” (FRANÇA, 1970, 179).
chal, Registo Geral, tombo 1, fls. 358-359v.). Segundo os autores do Elucidário Madeirense,
Em 1550, aquando da preparação da procissão nessas exéquias ter-se-ia usado anteriormente
B andeiras ¬ 247

uma bandeira preta (com Fig. 4 – Bandeira da Santa Casa


da Misericórdia do Funchal,
as armas reais de um lado fundada em 1508.
e as municipais do outro),
a qual deixara entretanto
de aparecer, colocando-se parecer da Associação dos
antes crepes sobre a ban- Arqueólogos Portugueses.
deira branca da cidade. Em O aparecimento das ban-
1815, a vereação da Câmara deiras militares terá sido
mandara fazer, em Lisboa, mais tardio. Tudo leva a
um novo estandarte, orçado crer que date de 1540, ou
em 524$000 réis, dos quais de pouco depois, o hastea-
174$000 seriam pagos pelos mento da primeira bandei-
vereadores. No entanto, ra na fortaleza do Funchal,
nova deliberação camarária quando foi nomeado pes-
fez com que o estandarte, soal para a sua guarda e,
entretanto chegado, fosse em seguida, um condestá-
integralmente pago pelas vel. Supõe-se ter ali existido
verbas do Concelho. Com uma bandeira real, paga a
a implantação do Governo expensas da Fazenda régia,
constitucional, a cor dos como ocorria no território
panos passou a ser o azul e o branco; foi prova- continental e nos restantes domínios ultrama-
velmente nessa altura que o brasão começou a rinos, mas não se conhece qualquer documen-
ser ladeado por um ramo de videira e outro de tação a esse respeito. Somente a 27 de feverei-
cana-de-açúcar. ro de 1567, após o saque corsário de outubro
Conhece-se a bandeira da Câmara do Fun- de 1566, com o envio de Mateus Fernandes III
chal da primeira metade do séc. xix, borda- (c. 1520-1597) para a Ilha, o cardeal D. Henri-
da, entre outras senhoras, por D. Ana Mas- que disponibilizou uma verba de 400$000 réis
carenhas de Ataíde, mulher do prefeito da para a fortificação, mandando que o recebe-
Madeira, o Cor. Luís da Silva Mouzinho de Al- dor desse dinheiro fizesse uma bandeira para
buquerque (1792-1847), nos inícios de 1835; o baluarte.
este lavor foi depois remontado durante a vi- Nos anos seguintes, com a constituição das
gência do conselheiro José Silvestre Ribeiro diversas forças militares, como as permanentes
(1828-1901) como governador civil e, muito
provavelmente, em anos posteriores. Ao con-
trário do que acontece com a Câmara do Fun-
chal, pouca ou nenhuma informação se pos-
sui sobre as bandeiras – e sobre os brasões de
armas – das restantes Câmaras Municipais,
dada a escassez da documentação. O governo
liberal tentou sensibilizar as Câmaras Muni-
cipais no sentido de registarem as bandeiras
municipais e os respetivos elementos heráldi-
cos, sem especial sucesso. Os ordenamentos
heráldicos municipais e corporativos foram
alvo de uma grande reforma durante o Estado
Novo, iniciada em 1930; neste âmbito, a apro-
vação dos diversos elementos heráldicos pas- Fig. 5 – Bandeiras das confrarias da matriz de Machico, 2012
sou a ter que submeter-se obrigatoriamente ao (arquivo particular).
248 ¬ B andeiras

Infelizmente, desta época só se possui um


elemento iconográfico local em que aparece
uma bandeira. Trata-se de uma tela datável de
1616, assinada com o monograma LA por um
pintor local não identificado; a tela está coloca-
da no teto da capela do Corpo Santo no Fun-
chal; nela, representa-se uma nau portuguesa,
com as armas entalhadas e pintadas no castelo
de popa, cujo mastro grande – ou mastro real
– tem uma enorme bandeira com as armas pes-
soais de D. Filipe II.
Os desenhos das fortalezas do Funchal da
Fig. 6 – Bandeiras de várias confrarias na cerimónia do Corpo de
Deus no Estádio dos Barreiros, Funchal (fotografia de Bernardes autoria de Bartolomeu João (c. 1590-1658),
Franco, 2014). datáveis de 1654, não apresentam qualquer
bandeira, nem sequer qualquer mastro para
e as de ordenanças, deve ter-se exponencia- colocação da mesma. Segundo o Livro das
do a divulgação das bandeiras, sendo mesmo Fortificações, de 1724, nos inícios do séc. xvii
“bandeira” a designação de uma força mili- praticamente todas as fortalezas do Funchal
tar em movimento ou em exercício. Data de possuíam uma bandeira “com as armas reais”,
10 de junho de 1582 o primeiro “alardo gene- “com seu mastro e corda, e caixa em que se re-
ral” [“alardo geral”] determinado pelo conde colhe”, umas vezes de “crepe nova”, outras de
de Lançarote, D. Agostinho de Herrera y Rojas “filete”; os fortes e redutos dos arredores da
(1537-1598) – repetido a 8 de julho –, com re- cidade e de fora dela não possuíam bandeira,
vista às “bandeiras do Funchal”, envolvendo salvo o forte da Graça de Santa Cruz, que pos-
aproximadamente 2.000 homens (AGS, Guer- suía “uma bandeira de veludo com as armas
ra y Marina, leg. 127, doc. 42), entre Portu- reais pintadas”, e o do Amparo de Machico,
gueses, Castelhanos, canários e Tudescos, o que possuía uma “de panículo”, também com
qual teria constituído a prova da aprovação as armas pintadas. Nos inícios do século se-
geral do comando militar da Ilha pelo conde guinte, com a ocupação do Funchal por for-
de Lançarote. Desconhece-se, no entanto, que ças inglesas, as bandeiras reais portuguesas
bandeiras apresentariam as várias forças: se as foram arreadas e hasteadas as inglesas, facto
chegadas de Lisboa deveriam levar bandeiras documentado em algumas aguarelas (AHM,
portuguesas, as enviadas de Sevilha dificilmen- 47.ª Sec., doc. 16750).
te as teriam, muito menos as das Canárias, for- Nos sécs. xix e xx, a heráldica militar foi alvo
ças pessoais do conde de Lançarote. de um especial cuidado, passando todas as uni-
A força de ordenanças deslocada para a área dades a possuir as bandeiras reais e, posterior-
do Gorgulho, face à aproximação de 13 naus mente, as nacionais, com o listel identificativo
holandesas, entre 4 e 15 de novembro de 1600, da respetiva unidade, assim como com outros
parece ter possuído uma bandeira. De facto, elementos (divisas e gritos de guerra, condeco-
nas certidões camarárias passadas ao Cap. de rações, etc.). Mereceram ainda particular aten-
arcabuzeiros Francisco Vieira de Abreu, consta ção os guiões das unidades inferiores e, depois,
que serviu com “uma companhia de gente da as flâmulas e os galhardetes dos comandantes
cidade, à sua custa, com dois tambores, com militares, cuja disposição começou a ser legis-
pífaro e uma bandeira” (ABM, Câmara Muni- lada pelo Exército em 1969, e pela Armada em
cipal do Funchal, tombo 3, fls. 25v.-26). Tratan- 1972. No séc. xx, foram muitas vezes os gabi-
do-se de uma força de ordenanças, paga pelo netes de heráldica militar, especialmente os do
referido capitão, não deveria, em princípio, Exército, que apoiaram as Câmaras Municipais
levar a bandeira real. e outras entidades oficiais.
B andeiras ¬ 249

A utilização de bandeiras com as cores e os


elementos heráldicos de determinadas famí-
lias tem sido comum na Madeira, especialmen-
te em algumas das chamadas quintas madei-
renses, o mesmo se passando com corporações
várias, associações profissionais, desportivas,
etc., tendo a regulamentação sobre o aspeto
das bandeiras das associações corporativas sido
aplicada pela primeira vez pela Fundação Na-
cional para a Alegria no Trabalho, vulgarmen-
te designada por FNAT.
A Igreja cultivou o uso de bandeiras, primei-
ramente das da Ordem de Cristo, mas depois
de outras. Como consequência, o Rei D. Ma-
nuel, tendo enviado um pregador e tesourei-
ro à Ilha, especificava, em carta de julho de
1515, sobre os peditórios para a “santa Cru-
zada” – “por serviço de Deus e exaltação da
sua santa fé na conquista e guerra de África
contra os mouros” –, que nas várias cerimó-
nias e procissões levaria a cruz da Cruzada a
pessoa que era “costume levar a bandeira do
anjo-custódio” (MELO, 1974, 18, 572). Nos
anos seguintes, são inúmeras as questões pro- Fig. 7 – Bandeira da Região Autónoma da Madeira, 1978 (fotogra-
fia de José Lemos Silva, 2010).
tocolares a propósito das bandeiras (quer as
canónicas e as dos oragos, quer as dos ofícios)
e pendões nas procissões, tanto entre a Câma- habitualmente a bandeira ostentava campo
ra e as corporações eclesiásticas, como entre azul, com uma pala de ouro carregada com as
aquela e as confrarias; no entanto, apenas se cinco quinas de Portugal, continuando a apa-
conhecem bandeiras e pendões religiosos do recer pela Ilha após a instituição da primei-
séc. xx. Os lugares cimeiros das confrarias ra Assembleia Regional e a tomada de posse
eram muito disputados, e quase sempre que do Primeiro Governo Regional da Madeira
tomavam posse novas mesas eram mandadas (GRM), a 1 de outubro de 1976.
pintar novas bandeiras. A 7 de março de 1978, após alguma polémi-
O processo de conquista da autonomia fez ca, a Assembleia Regional aprovava um proje-
equacionar a criação da bandeira da RAM. to de decreto regional para as insígnias pró-
Os arquipélagos insulares assumiram algu- prias da Região, o brasão de armas, o selo e a
ma visibilidade política com o aparecimen- bandeira, publicado no Diário da República de
to de movimentos independentistas, como a 11 de agosto; a 1 de novembro, as bandeiras
Frente de Libertação do Arquipélago da Ma- passariam a ser içadas nos edifícios do GRM e
deira (FLAMA), que teve a Frente de Liber- das Câmaras Municipais. O brasão de armas da
tação dos Açores como parceira, com a qual, RAM passou a ostentar campo azul com uma
por via de regra, se articulou. Data do verão pala de ouro carregada com a Cruz de Cristo,
“quente” de 1975 o aparecimento, um pouco formulação igualmente utilizada para a ban-
por toda a Ilha, da bandeira da Madeira cria- deira, num arranjo semelhante ao utilizado
da pela FLAMA, pintada clandestinamente pela clandestina FLAMA, que optara, no en-
nas paredes, mas também arvorada em luga- tanto, pela utilização das quinas de Portugal;
res emblemáticos. Embora com várias versões, a Região preferiu, diferentemente, explicitar a
250 ¬ B andini , A ngelo M aria

relação com as suas origens, i.e., à Ordem de de humanistas, de forma sistemática e deta-
Cristo. Estas insígnias seriam discutidas na ge- lhada, dando provas dos factos históricos, co-
neralidade a 26 de julho e aprovadas dois dias letando dados biográficos e fazendo estudos
depois; a respetiva regulamentação seria publi- filológicos sobre as edições de textos e das cor-
cada a 12 de setembro. respondências dos autores. Neste leque de tra-
balhos, está incluída Vita e Lettere di Amerigo Ves-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Avulsos, cxs. 2
e 4; Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombos 1 e 3; Ibid.,
pucci, Gentiluomo Fiorentino, Raccolte e Illustrate
Câmara Municipal do Funchal, Vereações, livs. 1550 e 1627; Ibid., Governo dall’Abate Angelo Maria Bandini (Vida e Cartas
Civil, cód. 418, Livro da Carga das Fortificações, 1724; AGS, Guerra y Marina, leg.
de Américo Vespúcio, Cavalheiro Florentino, Recolhi-
127; AHM, 47.ª sec., doc. 16.750; ANTT, Cabido da Sé do Funchal, Avulsos, mç. 4;
impressa: 30 Anos de Autonomia. 1976-2006, Funchal, Assembleia Legislativa das e Ilustradas pelo Abade Angelo Maria Bandini),
da Madeira, 2009; ALEXANDRE, Paulo Jorge Morais, A Heráldica do Exército na publicada em Florença, em 1745, na Stamperia
República Portuguesa no Século XX, Dissertação de Doutoramento em História
da Arte apresentada à Universidade de Coimbra, Coimbra, texto policopiado, all’Insegna di Apollo.
2009; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. iii, Funchal, Secretaria Regional Na obra Vita e Lettere di Amerigo Vespucci, teve
da Educação, 1991; COSTA, José Pereira da, Vereações da Câmara Municipal
do Funchal. Século XV, Funchal, CEHA, 1995; FRANÇA, Isabella de, Jornal de o mérito de dar atenção, pela primeira vez,
Uma Visita à Madeira e a Portugal. 1853-1854, anot. Cabral do Nascimento e ao humanista florentino Vespúcio, abrindo
João dos Santos Simões, Funchal, JGDAF, 1970; LANGHANS, F. P. de Almeida,
Heráldica, Ciência de Temas Vivos, 2 vols., Lisboa, Fundação Nacional para a um debate animado e acabando por estabele-
Alegria no Trabalho, 1966; MELO, Luís de Sousa (ed. lit.), Tombo 1.º do Registo cer Stanislao Canovai como uma fonte “muito
Geral da Câmara Municipal do Funchal, vols. 15-18, Funchal, JGDAF, 1972-1974;
NORONHA, Henrique Henriques de, Nobiliário Genealógico das Famílias Que
louvável”, na medida em que confirmou a au-
Passarão a Viver a Esta Ilha d’a Madeira depois do Seu Descobrimento, Que toria das cartas de Vespucci, disponibilizan-
Foi no Ano de 1420, São Paulo, Revista Genealógica Brasileira, 1948; SILVA,
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3
do aos estudiosos documentos fundamentais
vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998.

Rui Carita

Bandini, Angelo Maria


Nasceu em Florença, a 25 de setembro 1726 e
morreu em 1803, em Fiesole, onde hoje há um
museu em sua homenagem. Sacerdote e dire-
tor de importantes bibliotecas florentinas, teve
inúmeros compromissos académicos e foi um
dos principais estudiosos italianos e europeus.
Frequentou a escola pública dos Jesuítas em
Florença e a Univ. de Pisa. Colaborou com a re-
vista Le Novelle Letterarie (As Notícias Literárias),
da qual veio a ser diretor. Em 1748, mudou-se
para Roma, onde decidiu abraçar o sacerdó-
cio. Regressado a Florença, foi nomeado dire-
tor da Biblioteca Marucelliana, em 1752, e da
Biblioteca Laurenziana, em 1756. Em ambos
os casos, aumentou o prestígio das institui-
ções, especialmente graças aos catálogos mo-
numentais que compilou: o Catalogus Codicum
Manuscriptorum Graecorum Latinorum Italicorum
Bibliotecae Medicea Laurentianae (1764-1788) e
o Biblioteca Leopoldina Laurenziana (1791-93),
apreciados pela riqueza e precisão das infor- Angelo Maria Bandini, gravura publicada como guarda em
mações reunidas. Narrou diversas vidas e obras De Obelisco Augusti (1750).
B aptista , G reg ó rio ¬ 251

sobre algumas viagens e passagens pela Madei-


ra deste explorador. Os trânsitos pela Madeira
foram centrais no debate histórico e científi-
co moderno sobre a questão da longitude, que
foi resolvida pelos cientistas europeus das gera-
ções posteriores.
Bibliog.: CANOVAI, Stanislao, Viaggi di Amerigo Vespucci con la Vita, l’Elogio e
la Dissertazione Giustificativa di Questo Celebre Navigatore, Firenze, Dai torchi di
Attilio Tofani, 1832; MAZZUCCHELLI, Giam Maria, Gli Scrittori d’Italia, Brescia,
Bossini Editore, 1758; ROSA, Mario, Dizionario Biografico degli Italiani, vol. 18,
Roma, Istituto dell’Enciclopedia Italiana, 1963.

Valeria Biagi

Baptista, Gregório
Fr. Gregório Baptista nasceu no Funchal em
data que, apesar de desconhecida, se pode si-
tuar nos finais do séc. xvi.
Alguns dados relativos ao seu percurso
podem depreender-se pela leitura do proces-
so de inquirição de apuramento da limpeza
de sangue apresentado, em 1623, ao Tribunal
do Santo Ofício, a cujo serviço desejava ser
Fig. 1 – Primeira Parte dos Sermoens das Domingas de Todo o
admitido.
Anno Quadruplicados (1629), de Fr. Gregório Baptista.
Segundo esse documento, Fr. Gregório Bap-
tista afirmava ser filho de Francisco Medina e
Isabel Dias. O seu avô paterno era Pedro Medi- de ter origem judaica, a qual, mesmo que pro-
na. Pelo lado materno, era neto de Pedro Dias vavelmente infundada, bastou para que a de-
e Simoa Lopes, naturais da freguesia da Sé. cisão dos inquisidores fosse desfavorável ao
A vida deste escritor madeirense foi marca- frade, determinando a anulação do processo.
da por um percurso algo itinerante. Mudou No fim da vida, homenageando a Ordem
de hábito religioso três vezes e nunca se fixou que o acolheu na juventude, Fr. Gregório Bap-
num local específico, como é atestado pelas tista voltou a vestir o hábito franciscano no Al-
testemunhas do processo do Santo Ofício, que garve, regressando ao ensino das Escrituras
indicam que Fr. Gregório Baptista foi pregador como lente no Convento de S.ta Maria de Jesus,
na Ponta de Sol, ilha da Madeira, tendo depois também conhecido por Convento de S. Fran-
viajado até às ilhas dos Açores e de Lançarote. cisco de Xabregas, onde ocupou o lugar de
Sabe-se que iniciou a vida religiosa, ainda examinador das três ordens militares. Diogo
muito jovem, na Ordem Seráfica, na província Barbosa Machado refere que o frade morreu
da Catalunha. Contudo, ao tempo do referi- na Catalunha depois de 1640.
do processo, Fr. Gregório Baptista professava Fr. Gregório Baptista é considerado um dos
na Ordem de S. Bento, na qual ingressou na autores madeirenses mais prolíferos do seu
Baía, no Brasil, nela tendo desempenhado as tempo, tendo as suas obras sido traduzidas
funções de professor. Ficou conhecido entre os para castelhano e italiano. Conhecem-se al-
seus pares como bom pregador, homem de le- gumas das que foram publicadas entre 1621
tras e mestre em teologia. e 1638: Annotationes in Caput XIII. Sacrosancti
A admissão de Fr. Gregório Baptista ao servi- Christi Evangelii secundùm Joannem (Conimbri-
ço do Santo Ofício foi impedida pela suspeita cae, apud Nicolaum Carvalho, 1621); Sermão
252 ¬ B arbosa , A nt ó nio J osé

estruturada e não eivada dos exageros concep-


tistas”, associada à “clarividência das ideias e jus-
teza de uma linguagem simples e convicta, rica
de imagens” (BORGES et al., 1987, 40).

Obras de Gregório Baptista: Terceira das Domingas post Pascha. Quarta


das Domingas post Pentecosten; Annotationes in Caput XIII. Sacrosancti Christi
Evangelii secundùm Joannem (1621); Sermão Pregado na Santa Caza da
Misericórdia de Coimbra na I. 6. Feira de Quaresma no Annoo de 1621 (1621);
Completas da Vida de Christo Contadas à Harpa da Cruz por Elle Mesmo com
Discursos Predicáveis para as Tardes de Quaresma, e para as Festas da Cruz,
de Nossa Senhora, e do Glorioso S. Joaõ Bautista (1623); Primeira Parte dos
Sermoens das Domingas de Todo o Anno Quadruplicadas (1629); Annotationum
in Evangelia Totius Anni tam Dominicarum, Quam Festivitatum (1638).

Bibliog.: manuscrita: ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral,


Habilitações, mç. 4, doc. 66, Gregório; impressa: BORGES, Ángela et al.,
Antologia Literária, Madeira. Sécs. XVII e XVII, Funchal, Secretaria Regional
da Educação, 1987; MACHADO, Diogo Barbosa, Biblioteca Lusitânia, t. ii,
Coimbra, Atlântica, 1966; NORONHA, Henrique Henriques de, Memórias
Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal
da Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1996; PORTO DA CRUZ, Visconde do,
Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. iii, Funchal,
Câmara Municipal do Funchal, 1953; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional
da Educação e Cultura, 1978; SILVA, Inocêncio Francisco da, Diccionario
Bibliographico Portuguez. Estudos Applicaveis a Portugal e ao Brasil, Lisboa,
INCM, 1859-1972; VENTURA, António, A Carbonária em Portugal. 1897-1910,
Lisboa, Livros Horizonte, 2004.

Carlos Barradas
Fig. 2 – Completas da Vida de Christo... (1623), de Fr. Gregório
Baptista.

Barbosa, António José


Pregado na Santa Caza da Misericórdia de Coim-
bra na I. 6. Feira de Quaresma no Annoo de 1621 Machetista, compositor, arranjador, professor
(Coimbra, por Nicolao Carvalho, 1621); Pri- de machete e cantor da Sé, António José Bar-
meira Parte dos Sermoens das Domingas de todo o bosa nasceu a 7 de maio de 1822, na freguesia
Anno Quadruplicados (Lisboa, por Antonio Al- de Santa Luzia, vindo a falecer a 19 de janeiro
vres, 1629); Terceira das Domingas post Pascha. de 1899, “na casa da sua residência à rua da
Quarta das Domingas post Pentecosten; Completas Carreira desta freguesia de São Pedro, Conce-
da Vida de Christo Contadas à Harpa da Cruz por lho e Diocese do Funchal” (ABM, Paróquias,
Elle Mesmo com Discursos Predicáveis para as Tardes Santa Luzia, 1822, liv. 157, fl. 36; ABM, Paró-
de Quaresma, e para as Festas da Cruz, de Nossa Se- quias, São Pedro, 1899, liv. 6835, fls. 3-3v.).
nhora, e do Glorioso S. Joaõ Bautista (Lisboa, por A primeira menção a António José Barbo-
Pedro Crasbeeck, Impressor del Rey, 1623). sa como professor de machete encontra-se
Esta obra, em particular, foi traduzida para no livro da inglesa Ellen M. Taylor (c. 1842-
castelhano por Fr. Hernando Camargo, frade 1907), publicado em Londres, em 1882: “Tea-
agostiniano, para italiano por Pedro Borde, chers. […] Machête, Snr. Barboza, 600rs. the
para os dialetos de Perpinhão por Luiz Roure hour [Professores. [...] Machete, Senhor Bar-
(1633) e para leonês por Lourenço Arnaud. bosa, 600 réis à hora]” (TAYLOR, 1882, 28).
Em relação ao estilo e à qualidade da produ- O seu nome volta a ser citado neste guia tu-
ção literária de Fr. Gregório Baptista, sublinhe-se rístico, quando a autora, numa carta envia-
o conhecimento profundo das Sagradas Escritu- da para Londres, em 1881, escreve que uma
ras, bem como uma prosa assente nas estruturas amiga, a senhora “D – [...] now she is very
clássicas com “uma linguagem perfeitamente much occupied in learning the machète with
B arbosa , A nt ó nio J osé ¬ 253

Senhor Barboza. We got a very full-toned little (fl. 1841-1875) é outro compositor machetis-
instrument in the Carreira [D [...] anda muito ta incluído nesta compilação, designadamente
ocupada em aprender a tocar machete com com três danças (“Waltz by C. D. de Vasconce-
o senhor [António José] Barbosa. Temos na llos”, “Marcha n.º 1 composta por C. D. de Vas-
[R. da] Carreira um pequeno instrumento de concellos” e “Clara polka”). Neste manuscrito,
sonoridade bem cheia]” (Id., Ibid., 230). Nos quase todos os títulos estão em inglês, embora
inícios da déc. de 20 do séc. xx, o seu nome é também haja alguns em português. Destes, uns
de novo mencionado: “Houve no Funchal al- têm tradução para inglês e outros, escritos ori-
guns professores de braguinha, entre eles [...] ginalmente em língua inglesa, apresentam-se
António José Barbosa” (SILVA e MENESES, traduzidos para português.
1984, I, 167). Também Carlos M. Santos o cita Será que estes Princípios, seguramente escri-
como “afamado compositor, cantor de igreja e tos com fins pedagógicos, foram usados por
professôr” de machete (SANTOS, 1938, 35). António José Barbosa para dar lições de ma-
Desde pelo menos a déc. de 30 do séc. xx chete a algumas das senhoras inglesas com
que temos notícia da existência de um método quem privou?
pedagógico para machete da autoria do nosso Outra questão sobre estes Principios para Ma-
machetista, intitulado Principios para Mache- chete prende-se com a datação da sua cópia.
te, Arranjado por A. J. Barboza. Nesta coletânea No frontispício, lê-se que foi escrito no “Fxal
manuscrita, depositada no arquivo da Associa- Madeira”, mas não foi acrescentada qualquer
ção Musical e Cultural Xarabanda, do Funchal, data. De acordo com os compositores aqui in-
foram copiadas 44 peças para o machete ma- cluídos, bem como com os tipos de letra em-
deirense a solo. O manuscrito começa com um pregues na sua feitura, a sua cópia deve ter tido
diagrama do braço do machete (quatro cor- lugar por volta de 1870.
das, afinadas, do grave para o agudo, ré3-sol3-si- É através do seu assento de óbito que ficamos
3
-ré4, divididas por 17 trastes), seguido de um a saber que António José Barbosa era, além de
grupo de exercícios técnicos (“Escala natural”, machetista, também “músico cantor da Sé Ca-
“Escala cromática”, “Salto de 3as”, “Salto de 3as tedral”, tendo sido “sepultado em jazigo no
unidas” e “Notas ligadas”). A partir destes exer- cemitério público das Angustias” (ABM, Paró-
cícios (onde foram anotadas dedilhações da quias, São Pedro, liv. 6835, 1899, fls. 3-3v.).
mão esquerda), inicia-se a cópia de um reper-
tório muito rico e variado para o machete ma- Bibliog.: manuscrita: ABM, Paróquias, Santa Luzia, liv. 157, 1822, fl. 36; Ibid.,
Paróquias, São Pedro, liv. 6835, 1899, fls. 3-3v.; impressa: BARBOSA, António
deirense oitocentista (MORAIS, 2011, 26-28). José, “Os princípios para machete”, Xarabanda, n.º 18, 2010, pp. 106-124;
Na sua maioria, foram grafadas as típicas dan- ESTEIREIRO, Paulo (coord.), 50 Histórias de Músicos na Madeira, Funchal,
Associação de Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística,
ças de salão oitocentistas (valsas, marchas, pol-
2008; MORAIS, Manuel, António José Barbosa (1822-1899). Princípios para
cas, quadrilhas, contradanças e galopes), mas Machete, texto não publicado; Id., “Achegas para a história da música na
também encontramos canções (inglesas, esco- Madeira (c. 1584-c. 1897). Os instrumentos populares de corda dedilhada
na Madeira”, in MORAIS, Manuel (coord.), A Madeira e a Música. Estudos (c.
cesas, alemãs e espanholas), hinos (religiosos 1508-c. 1974), Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008, pp. 20-97;
e patrióticos) e árias de ópera, todos arranja- Id., “O machete madeirense”, in ESTEIREIRO, Paulo (coord.), 5 Olhares sobre
o Património Musical Madeirense, Funchal, Associação Musical e Cultural
dos por António José Barbosa. Dos composi- Xarabanda/Associação dos Amigos do Gabinete Coordenador de Educação
tores escolhidos, destacamos os nomes de J. Artística, 2011, pp. 21-37; SANTOS, Carlos M., Tocares e Cantares da Ilha,
Funchal, ed. do Autor, 1938; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos
Strauss, V. Bellini, F. Kücken, D. J. dos Santos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984; TAYLOR,
(ESTEIREIRO, 2008, 1-3), entre outros. Como Ellen M., Madeira. Its Scenery, and how to See It. With Letters of a Year’s
Residence, and Lists of the Trees, Flowers, Ferns and Seaweeds, London, Edward
compositor, Barbosa está representado por
Stanford, 1882.
três danças: duas valsas (“Waltz amante esque-
cida by A. J. Barboza/The ladie that neglects Fontes áudio: O Machete Madeirense no Século XIX, CD-ROM+áudio, Funchal,
Gabinete Coordenador de Educação Artística, 2009; Sarau Musical no Funchal,
her lover” e “Waltz não te importes by A. J. Bar- CD-ROM+áudio, Funchal, Gabinete Coordenador de Educação Artística, 2011.
boza”) e uma polca (“Polka descahida by A. J.
Barboza”). Cândido Drumond de Vasconcelos Manuel Morais
254 ¬ B arbosa , D aniel M aria V ieira

Barbosa, Daniel Maria Vieira


Nasceu no Porto, a 13 de julho de 1908, onde
estudou, vindo a licenciar-se em Engenha-
ria Civil pela Faculdade de Engenharia da
Univ. do Porto em 1935, completando a sua
formação com pontuais estágios em centros
universitários europeus. Em 1936 já se encon-
trava a trabalhar para a Direção Técnica da Ad-
ministração dos Portos do Douro e de Leixões,
como engenheiro-adjunto, e no ano seguin-
te integrou o corpo docente da Faculdade de
Engenharia da Univ. do Porto, primeiramen-
te como assistente e, em 1941, como profes-
sor auxiliar. Jovem quadro tecnocrata do Esta-
do Novo, manteve, por certo, estreita relação
com o presidente da Associação Industrial Por-
tuense, o também Eng.º Mário de Sousa Dru-
mond Borges (1896-1988), natural da Ponta
do Sol e na presidência daquela associação
desde 1937. Mário Borges entrara como depu-
tado na IV Legislatura da Assembleia Nacional,
Daniel Maria Vieira Barbosa, c. 1949 (AHP).
de 1942 a 1945, e mantivera também estreitos
contatos com a Associação Comercial do Fun-
chal, tendo esta e a congénere Industrial Por- tendo o movimento marítimo diminuído dras-
tuense sido as únicas que resistiram ao centra- ticamente. Acontecia ainda que a maioria dos
lismo corporativista do Estado Novo. vapores que escalavam o Funchal, geralmente,
O Eng.º Daniel Maria Vieira Barbosa veio a ser nem recebia carga, dado virem com as taras
nomeado governador civil do Funchal a 12 de preenchidas, como se queixava constante-
março de 1945, não chegando a estar na Madei- mente a Associação, havendo dificuldade de
ra dois anos, profundamente discretos como a moeda circulante, de abastecimentos vários,
época impunha, e iniciando a partir de então etc., tendo sido nessa área que se processou o
uma interessante carreira política no quadro do trabalho do governador. Nos meados de 1945,
Estado Novo. Presidia à Junta Geral João Abel já no quadro do pós-Guerra, procedia-se à re-
de Freitas (1893-1948), então presidente da visão constitucional (lei n.º 2009, de 17 de se-
União Nacional local, que lhe haveria de suce- tembro) e nos finais desse ano, perante alguma
der no Governo civil e à Associação Comercial pressão interna, Oliveira Salazar (1889-1970)
do Funchal, uma direção constituída por Juve- permitia também que se procedesse a eleições
nal Henriques de Araújo (1892-1976), então de- democráticas, autorizando-se a apresentação
putado em Lisboa, tendo como vice-presidente da oposição às urnas. No entanto, as persegui-
Luís da Rocha Machado (1890-1973) e como se- ções desenvolvidas e as dificuldades colocadas
cretários Júlio Paulo Cunha Santos (1900-1975) aos possíveis candidatos levaram a oposição,
e José Figueira Júnior (1902-1970). Foi com quase à boca das urnas, a desistir, deixando a
estas duas instituições e os seus quadros direti- porta aberta para a reeleição de Óscar Carmo-
vos, essencialmente, que se processou o discreto na (1869-1951).
trabalho do novo governador. Um dos primeiros trabalhos do governador
A situação do comércio do Funchal durante a foi fazer, ou acompanhar, as alterações pontuais
Segunda Grande Guerra tinha sido desastrosa, do Estado Novo nos seus candidatos da União
B arbosa , P edro C orrea ¬ 255

Nacional, nos finais de 1945, que são também Barbosa, Pedro Correa
pontualmente visíveis na distrital do Funchal.
Assim, em vez de Juvenal de Araújo apresen- Cónego da Sé do Funchal e vigário-geral do
tou-se às urnas o irmão, Alberto Henriques mesmo bispado, nasceu na cidade do Funchal.
de Araújo (1893-1997), que, entre outros car- Era filho de José Barbosa, homem que vivia das
gos, era secretário permanente da Associação suas fazendas, um estanqueiro que serviu de
Comercial e diretor do Diário de Notícias, pro- feitor dos contratadores do tabaco na ilha da
priedade da empresa Blandy Brothers. Como Madeira, natural da freguesia de Santa Maria
número dois manteve-se Álvaro Favila Vieira Madalena, em Lisboa, e de sua mulher Maria
(1902-1963) e em substituição de Luís Vieira Correa, natural da freguesia da Madalena do
de Castro (1898-1954), demasiado envolvido Mar, na ilha da Madeira. Era neto paterno de
nos primórdios do Estado Novo, apresentou-se Duarte Barbosa, um fanqueiro, e de Maria Fer-
o madeirense Gabriel Maurício Teixeira (1897- reira, que haviam morado em Lisboa, na rua
1973), então governador de Macau, que seria dos Fanqueiros, artéria onde ficavam localiza-
depois nomeado governador-geral de Moçam- das as lojas que vendiam roupas provenientes
bique, casado com Maria João Kopke Vieira de de fora do Reino. Pela via materna, era neto de
Castro, prima do deputado substituído. Jacinto de Freitas da Silva, um homem nobre,
Daniel Barbosa cessou funções a 27 de feve- dos principais do Funchal, e de uma mulher
reiro de 1947, sendo nomeado para o substi- com quem aquele mantivera um relaciona-
tuir, a 8 de março seguinte, João Abel de Freitas. mento ilícito, chamada Domingas Rodrigues.
A nomeação de Daniel Barbosa para ministro Pese ser filha natural, a mãe de Pedro Correa
da Economia é, no entanto, logo de 4 de feve- Barbosa foi criada por Jacinto de Freitas da
reiro de 1947, função que desempenhou até Silva “de portas a dentro”, o que lhe permitiu
16 de outubro de 1948 e onde ficou conheci- adquirir o mesmo estatuto do progenitor, que
do como “o Daniel das farturas”, dado ter vivido acabou por a legitimar e dotar.
uma época de abrandamento do sistema do ra- Na déc. de 70 do séc. xvii, foi estudar para
cionamento da economia de guerra. Nesse ano a Univ. de Coimbra, onde, a 1 de outubro de
ascenderia ao lugar de catedrático na Univ. do 1673, efetuou uma matrícula em Instituta.
Porto, mas em 1952, transferia-se para o Insti- No ano seguinte, matriculou-se em Cânones.
tuto Superior Técnico da Univ. Técnica de Lis- Alcançou o bacharelato nessa área do saber
boa, que chefiou, como professor catedrático a 11 de julho de 1678, e a formatura a 16 de
de ensino da Economia. Manteria, entretanto, maio de 1679, tendo sido em ambos os atos
o lugar de deputado na Assembleia Nacional, aprovado nemine discrepante, classificação que
entre 1949 e 1957, voltando a ocupar uma pasta implicou a unanimidade por parte do júri, mas
ministerial, então a da Indústria e Energia, em que não esclarece sobre as suas capacidades in-
1974, no último elenco governativo de Marce- telectuais. Existe informação de que, na cida-
lo Caetano (1906-1980) e na sequência de go- de do Mondego, mas também na do Funchal,
vernador do Banco de Fomento Nacional, lugar serviu na Irmandade dos Terceiros de S. Fran-
que ocupava desde 1965. Faleceu em Cascais, cisco. A devoção ao dito patriarca levou-o, mais
em 12 de maio de 1986. tarde, a consagrar-lhe uma ermida que man-
dou edificar, dotar e ornar na sua quinta do
Bibliog.: BARBOSA, Daniel Maria Vieira, Na Pasta da Economia. Discursos,
Pico, freguesia de São Pedro, no Funchal, tem-
Declarações e Súmulas das Conferências com a Imprensa, Lisboa, Portugália,
1948; Junta Geral do Distrito do Funchal, 2 vols., Funchal, DRAC, 2016; ROSAS, plo que recebeu autorização para celebrar os
Fernando et al., Daniel Barbosa, Salazar e Caetano. Correspondência Política, ofícios divinos em dezembro de 1697.
Lisboa, Círculo de Leitores, 2002; digital: MALTEZ, José Adelino, “Barbosa, Daniel
Maria Vieira (1909-1986)”, Repertório Português de Ciência Política. República, D. Fr. José de Santa Maria Saldanha, bispo do
2004: http://maltez.info/respublica/topicos/aaletrab/barbosa,_daniel.htm Funchal (1690-1696), fê-lo cónego meio pre-
(acedido a 15 maio 2017).
bendado na Sé da sua Diocese, não obstante
Rui Carita recair sobre a sua família fama de cristã-novice.
256 ¬ B arbosa , P edro C orrea

Aliás, em 1647, o rumor já havia sido levantado mais tarde, um sobrinho homónimo e uma so-
em relação a seu pai, quando aquele pretende- brinha-neta tivessem conseguido habilitar-se
ra ocupar a escrivania da Câmara do Funchal, pelo Santo Ofício, o primeiro para obter a fa-
o que apenas conseguiu depois de recorrer ao miliatura e a segunda para celebrar matrimó-
Desembargo do Paço. O mesmo prelado dio- nio com um familiar do Tribunal da Fé.
cesano designou-o vigário-geral do bispado, o Pedro Correa Barbosa foi ainda professor
que, mais uma vez, motivou os seus inimigos a de Cânones e examinador sinodal do bispa-
publicitar a sua suposta impureza de sangue, do funchalense. A propósito, recorde-se que,
por intermédio de pasquins. É de notar que em 1695, o antístite daquela Diocese convocou
esse importante cargo, que já desempenha- um sínodo diocesano, no qual foram promul-
va em dezembro de 1694, lhe proporcionava gadas algumas constituições sobre a disciplina
largos proventos (segundo relatório ad limina eclesiástica, mas que, dada a sua transferência
de 1693, a renda em dinheiro do vigário-geral para a Diocese do Porto, acabaram por não ser
era de 37 ducados de câmara), o que natural- impressas.
mente intensificou o ódio dos seus contrários. Segundo Diogo Barbosa Machado, autor da
Para tentar colocar cobro à infâmia, recorreu famosa Biblioteca Lusitana, Pedro Correa Bar-
à Casa da Suplicação, correição do cível de bosa foi um pregador insigne. Sem prejuízo,
Lisboa, tendo conseguido obter justificação conhece-se apenas um sermão impresso da sua
de genere, sobre a limpeza do seu sangue, em autoria, pregado a 13 de junho de 1697, na
fevereiro de 1699. Como seria expetável, tais festa de S.to António, texto que foi dado à es-
rumores, ainda que falsos, persistiram. Porém, tampa em Lisboa, na oficina de Miguel Deslan-
esses rumores não impossibilitaram que, anos des, em 1699, com o título Sermaõ Panegyrico na
Solemnissima, & Anniversaria festa, que o Reveren-
do Cabido da Santa Sè do Funchal da Ilha da Ma-
deira, faz na tarde do dia oitavo do Corpo de Deos.
Faleceu a 3 de fevereiro de 1709, tendo sido
sepultado na capela maior da Sé do Funchal,
no jazigo dos padres capitulares. Fez testamen-
to, aprovado pelo tabelião Filipe Rodrigues
Cunha, em que instituiu por seu herdeiro uni-
versal António Correa Barbosa, seu irmão, dei-
xando-lhe os seus bens em vínculo de morgado
com obrigação de, anualmente, no dia em que
fosse celebrada a festividade de Nossa Senho-
ra do Amparo na Sé do Funchal, dotar uma
órfã com 20.000 réis e mandar dizer uma missa
por sua alma. Deixou ainda 30.000 réis aos re-
ligiosos de S. Francisco da cidade do Funchal;
20.000 réis à fábrica da Sé; e 4000 réis para os
pobres do hospital daquela urbe.

Bibliog.: manuscrita: ABM, Registos Paroquiais, Sé, Óbitos, liv. 9, fl. 128v.;
ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 12, n.º 13; Ibid., Tribunal do Santo
Ofício, Conselho Geral, Habilitações, mç. 10, doc. 202, Gaspar; mç. 31, doc.
563, Pedro; AUC, Atos e Graus, vol. 43, IV-1.ª D-1-1-43, fls. 48v. (1677-1678)
e 33 (1678-1679); Ibid., Matrículas, vol. 16, IV-1.ª D-1-3-24, fl. 107v.; vol. 17,
IV-1.ª D-1-3-25, fls. 17v., 24, 51v., 53; vol. 18, IV-1.ª D-1-3-26, fls. 82 e 104v.;
impressa: BARBOSA, Pedro Correa, Sermaõ Panegyrico na Solemnissima, &
Anniversaria Festa, Que o Reverendo Cabido da Santa Sè do Funchal da Ilha
Sermão Panegyrico na Solemnissima, & Anniversaria Festa… da Madeira, Faz na Tarde do Dia Oitavo do Corpo de Deos, Lisboa, Oficina de
(1699), de Pedro Correa Barbosa. Miguel Deslandes, 1699; MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana,
B arreto , A ngelino de S ousa ( I ) ¬ 257

Historica, Critica, e Chronologica, Coimbra, Atlântida Editora, 1966; NORONHA, de grande pobreza na capital, e estes dois aspe-
Henrique Henriques de, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição
da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1996; tos da sua vivência assumem-se como elemen-
SILVA, Fernando Augusto da, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, tos indispensáveis à sua definição enquanto
vol. 1, Funchal, Tip. O Jornal, 1946; Id., e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998;
pessoa: a vontade de estar próximo dos jovens,
SILVA, Inocêncio Francisco da, Dicionário Bibliográfico Português, Lisboa, mas também dos mais pobres, e estes dois inte-
INCM, 1973; TRINDADE, Ana Cristina M., e TEIXEIRA, Dulce Manuela Maia R.,
O Auditório Eclesiástico da Diocese do Funchal. Regimento e Espólio Documental
resses muito seus acompanhá-lo-iam até ao fim
do Século XVII, Funchal, Instituto Superior de Administração e Línguas, 2003. da sua vida.
Desvinculado da Companhia de Jesus em
Ricardo Pessa de Oliveira
1952, permanece em Lisboa, mas agora para
se dedicar a uma obra social, a Caridade, aí
Barreto, Angelino de Sousa (I) exercendo, durante 14 anos, o seu múnus
sacerdotal.
Angelino de Sousa Barreto foi um padre ma- Em 1964, retorna ao Funchal, onde retoma
deirense nascido a 1 de janeiro de 1905, no as suas funções docentes, desta vez no Liceu de
Porto Moniz, sendo filho de um casal compos- Jaime Moniz e na Escola do Magistério, estan-
to por João Fernandes de Sousa Barreto e Cris- do encarregado de ensinar latim, português e
tina Rosa Jardim, igualmente naturais daquela religião e moral.
freguesia. Depois de ter sido aluno do Semi- Sempre fiel aos seus ideais de apoio aos
nário do Funchal até ao 2.º ano do curso, dali desfavorecidos, fundou a Casa do Pobre, que
seguiu para Roma, onde se licenciou em Teo- chega a dispor de uma sede física, no canto do
logia, na Univ. Gregoriana, e se ordenou em Muro, a qual foi, posteriormente, transforma-
1930. Pretendendo continuar a estudar, ma- da em jardim de infância e entregue às Irmãs
triculou-se depois em Direito Canónico, mas a Missionárias de Maria.
morte do Cón. Manuel Gomes Jardim, profes- Em outubro de 1974, no contexto revolu-
sor no Seminário do Funchal, exigiu o seu re- cionário que então se vivia, foi convocado pelo
gresso à Madeira para ocupar o lugar entretan- bispo D. Francisco Santana para lançar o Mo-
to vago, pelo que não lhe foi possível concluir vimento Jovens Cristãos da Madeira, causa que
o novo curso que iniciara. abraçou com o entusiasmo de sempre, tendo
Em outubro de 1933, estreava-se como do- igualmente fundado o Molijó – Movimento
cente na Madeira proferindo a oração de sa- de Libertação dos Jovens, comprometido com
piência no Seminário da Encarnação que aca- a luta contra os consumos de álcool e drogas.
bava de ser devolvido à Diocese depois do Em simultâneo, era capelão da cadeia dos Vi-
“sequestro” do edifício pelas forças da Primei- veiros e do Lar dos Velhinhos, no Lazareto.
ra República. Igualmente indigitado arcipreste do Funchal,
Após alguns anos em que lecionou teologia não descurava o acompanhamento da juventu-
e latim no Seminário decidiu, em 1943, en- de e, pouco tempo antes de morrer, já doen-
trar na Companhia de Jesus, na qual militou te, ainda se deslocou a Taizé, na companhia de
até 1952. Nesse período, durante o qual viveu 300 jovens, assessorado pelo P.e Felício, como
em Lisboa, entregou-se também a várias ativi- assistente dos jovens cristãos. Em 1979, tornou-
dades, entre as quais se contam a de reitor da -se diretor do Centro Académico.
igreja dos Santos Doze Apóstolos e a de cola- Outra faceta da sua vida era a de escritor,
borador da Obra de Assistência à Juventude condição em que publicou os opúsculos Beato
Pobre, tendo ainda sido secretário da Socie- Nuno Álvares Pereira, e Vocação Missionária de
dade da Independência. A par destas ocupa- Portugal e Deus. Reflexões sobre a Vida, enquanto
ções, o P.e Barreto mantinha-se como docente, colaborava com o Jornal da Madeira.
tendo dado aulas de religião e moral nos liceus Haveria de falecer em 1985, em Joanesbur-
Passos Manuel e Gil Vicente. Muitas vezes, no go, onde se encontrava de visita a familiares,
fim das aulas, levava os alunos a visitar zonas acometido por um acidente vascular cerebral.
258 ¬ B arreto , A ngelino de S ousa ( I I )

Obras de Angelino de Sousa Barreto: Beato Nuno Álvares Pereira (s.d.); Irlanda, e depois em Salamanca, em Espanha,
Vocação Missionária de Portugal e Deus. Reflexões sobre a Vida (s.d.).
em 1964. Entretanto, foi ordenado sacerdo-
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX te pelo cardeal Cerejeira, na igreja do Colé-
e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; Jornal da Madeira, 29 out.
1985, p. 3. gio de S. João de Brito, a 1 de julho de 1962,
celebrando a missa nova na Madeira, em São
Cristina Trindade Roque (para onde fora residir em criança), a
5 de agosto deste mesmo ano. Foi professor
no Instituto Nun’Álvares, em 1964-65, no Co-
Barreto, Angelino de Sousa (II) légio Apostólico da Imaculada Conceição, em
Cernache, Coimbra, em 1965-1969, e, final-
Angelino de Sousa Barreto nasceu a 13 de no-
mente, na Faculdade de Filosofia da Univ. Ca-
vembro de 1931, no sítio da Ribeirinha, fregue-
tólica, em Braga, em 1969-1970. Neste último
sia e concelho do Porto Moniz, filho de Ma-
ano, passou a exercer o cargo de secretário da
nuel Fernandes de Sousa Barreto e de Luísa
Língua Portuguesa na Cúria geral, em Roma,
Fernandes de Sousa Barreto.
onde era também assistente espiritual dos es-
Fez o ensino secundário na Escola Apostólica
cuteiros. Estava, entretanto, a preparar a tese
de Macieira de Cambra, em Vale de Cambra,
de doutoramento sobre a filosofia marxista e,
de 1943 a 1948, iniciando o noviciado na Com-
segundo o diretor da Faculdade de Filosofia
panhia de Jesus a 7 de setembro daquele últi-
de Braga, Júlio Fragata, havia planos para vol-
mo ano, no Convento de S.ta Marinha da Costa,
tar a Portugal, para a lecionação nesta mesma
em Guimarães, e cursando Humanidades, de
faculdade.
1950 a 1953; seguiram-se os estudos filosóficos
Faleceu no Hospital Umberto I, em Ancona,
na Pontifícia Faculdade de Filosofia de Braga,
na sequência dum acidente de viação em Ca-
depois Faculdade de Filosofia da Univ. Católi-
podarco, arredores de Roma, a 25 de julho de
ca, de 1953 a 1956. De 1956 a 1959, foi prefeito
1978.
e professor no Instituto Nun’Álvares, também
L’Osservatore Romano, edição semanal em por-
designado de Colégio das Caldinhas, em Santo
tuguês, dedicou-lhe, a 30 de julho de 1978, um
Tirso. Iniciou o estudo da Teologia em Frank-
extenso artigo em que são relevados os seus
furt, na Alemanha, terminando em Dublin, na
dotes intelectuais e espirituais. É também de
salientar o testemunho do P.e Júlio Fragata, no
Jornal da Madeira, de 10 de setembro de 1978, à
página 8, onde pode ler-se: “Conheci o P.e An-
gelino há cerca de 25 anos. Já nessa altura me
impressionou a sua juventude. Na delicadeza
das suas maneiras, ocultava-se a generosidade
profunda; na serenidade da sua atuação, a fi-
neza da entrega ao Senhor; na limpidez do seu
olhar, o esplendor de Deus; e, na simplicida-
de do seu modo de ser, a fidelidade ao apelo
de Cristo: ‘se não vos tornardes como crianças,
não entrareis no reino dos Céus’. Não é fre-
quente encontrar jovens para quem tudo isto
seja realidade, embora passageira. Continuei
a lidar com o P.e Angelino, no decurso destes
anos, nalgumas épocas com assiduidade. Tive
o gosto de verificar sempre que estas primei-
P.e Angelino de Sousa Barreto (“Faleceu o P.e Dr. Angelino...”, JM,
ras impressões, longe de se desvanecerem,
26 jul. 1978, 3). se consolidavam, adquirindo nele um aspeto
B arreto , J er ó nimo ¬ 259

progressivamente adulto e desenvolvendo- exemplares de história


-se em novas tonalidades: respeitador, fazia-se natural para o Museu
respeitar; atencioso, atraía a consideração de de História Natural do
todos; extremamente dedicado, nada conside- Seminário, sendo mais
rava seu, nem sequer o próprio tempo que es- tarde nomeado diretor
tava prioritariamente ao serviço dos que dele do mesmo museu, pela
precisavam; bem informado e clarividente, o ida do P.e Schmitz para
seu conselho era sempre calmo e delicado mas Jerusalém, em 1908.
eficaz; aberto sem precipitação e firme sem im- A sua especial área de
posições, chocava em profundidade sem ferir, interesse eram os líque-
manifestando uma vida psíquica e espiritual- nes e os fungos madei-
mente equilibrada” (“A morte do...”, Jornal da renses, de que colheu
Madeira, 10 set. 1978, 8). um grande número;
estes espécimes foram
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX
e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; “Faleceu o P.e Dr. Angelino
depois estudados por
Barreto S. J.”, Jornal da Madeira, 26 jul. 1978, p. 3; “A morte do P.e Dr. Angelino especialistas interna-
Barreto, S. J.”, Jornal da Madeira, 10 set. 1978, pp. 8-9.
cionais, especialmente P.e Jaime de Gouveia Barreto
Gabriel Pita da Univ. de Saragoça. como capelão do Corpo
Expedicionário Português,
Foi sócio da Sociedade Lisboa, 1916 (ABM, Arqui-
de Ciências Naturais vos Particulares).
daquela cidade.
Barreto, Jaime de Gouveia
Recebeu as honras do canonicato a 24 de ou-
Nasceu na freguesia de Porto Moniz a 13 de tubro de 1936 e, pouco tempo depois, foi dis-
maio de 1887, sendo filho de Jesuíno João Bar- tinguido com as insígnias de monsenhor. No
reto e de Juliana Augusta de Gouveia. Tirou pontificado de Pio XII, foi distinguido com
o curso no Seminário Episcopal do Funchal, as honras de prelado doméstico de Sua Santi-
recebendo ordens de presbítero a 16 de ja- dade. Em 1943, ainda foi nomeado arcipreste
neiro de 1910. Fora nomeado capelão da Sé do distrito eclesiástico do Funchal, falecendo
do Funchal em 1906 e, em 1910, altaneiro da nesta cidade, a 12 de julho de 1963.
mesma Sé. Foi coadjutor das freguesias de São
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX
Pedro, em 1913, e de Santa Maria Maior, em e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; SILVA, Fernando Augusto
1914. Com a entrada de Portugal na Primei- da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
DRAC, 1998.
ra Guerra Mundial, foi um dos cinco padres
Rui Carita
madeirenses chamados para frequentar a esco-
la de oficiais milicianos em Lisboa, tendo sido
nomeado alferes-capelão do Corpo Expedicio-
Barreto, Jerónimo
nário Português em França, para onde partiu
a 23 de maio de 1918 e de onde regressou em Por volta do ano de 1544 nascia, no Porto, o
junho de 1919. futuro bispo do Funchal D. Jerónimo Barre-
Terminada a assistência religiosa e militar em to, filho de Gaspar Nunes Barreto, senhor dos
França, voltou à Madeira, sendo nomeado vice- coutos de Freiriz e Penegote, e Isabel Cardoso.
-reitor do Seminário do Funchal em 1919. Em Pelo lado paterno, era sobrinho de três distin-
1936, era elevado a reitor efetivo do mesmo tos membros da Companhia de Jesus, a saber,
Seminário, cargo que exerceu até 1956. Desde D. João Nunes Barreto, patriarca da Etiópia,
muito novo que tinha mostrado uma especial o padre Belchior Nunes Barreto, que desen-
predileção pela história natural. Coadjuvou volveu ação missionária na China e no Japão,
o padre missionário alemão Ernesto Schmitz e ainda Afonso Barreto, teólogo e pregador,
(1845-1922) na preparação e determinação de que acabou os seus dias no Colégio de Santo
260 ¬ B arreto , J er ó nimo

Atendendo ao reforço da atenção que o re-


centemente terminado Concílio de Trento
votara à formação dos titulares das mitras,
aquela habilitação era insuficiente para que
se efetivasse o provimento episcopal que, em
1573, o Rei pretendia fazer na pessoa de D. Je-
rónimo, e essa circunstância levou a que o fu-
turo bispo do Funchal tivesse de se sujeitar,
em janeiro do mesmo ano, a um exame reali-
zado por quatro doutores da Univ. de Coim-
bra, os quais o deram como apto para o exer-
cício do cargo para o qual estava indigitado.
A frequência da universidade como fator pre-
ferencial para o desempenho de funções epis-
copais tinha, de facto, durante o reinado de
D. Sebastião, assumido uma importância até
então nunca vista e é uma das razões que ex-
plica, nesta fase, a prevalência de prelados
originários do clero secular sobre os oriundos
das fileiras das Ordens, uma vez que a forma-
Fig. 1 – D. Jerónimo Barreto, óleo de c. 1790 (Cabido da Sé do
ção destes últimos ocorria, muitas vezes, den-
Funchal). tro dos seus próprios institutos, à margem da
instituição universitária.
Antão. Esta forte ligação familiar aos Jesuítas A necessidade de se submeter àquele exame
acabou por desempenhar um papel de grande especial não foi, contudo, a única singularida-
importância na sua carreira, na medida em lhe de que ocorreu a D. Jerónimo no caminho de
permitiu gozar da proteção dos madeirenses e acesso à Diocese do Funchal, pois, pelo facto
igualmente Jesuítas Martim Gonçalves da Câ- de ter apenas 29 anos à data da sua nomeação,
mara, escrivão da puridade de D. Sebastião, e em vez dos 30 requeridos para o exercício do
seu irmão Luís Gonçalves da Câmara, confes- cargo, teve de esperar por uma dispensa papal
sor do Rei, que usaram da sua influência junto que o habilitasse para o efeito, e, talvez por
do monarca para o aconselhar na opção por isso, só veio a deslocar-se para a Ilha em 1574,
D. Jerónimo para a diocese madeirense. Os ir- onde desembarcou a 30 de outubro, sendo fes-
mãos Câmara, com efeito, embora longe de tivamente recebido por uma população que
competirem com o cardeal D. Henrique em há 13 anos, desde a partida de D. Fr. Jorge de
matéria de influência na área dos provimen- Lemos, não fora honrada pela presença de um
tos episcopais, não estiveram, contudo, com- antístite.
pletamente isentos de responsabilidade nesta Chegado à Madeira, e apesar de, segun-
matéria, e a indicação do nome de D. Jeróni- do Frutuoso, o bispado ainda estar “na boa
mo para a mitra funchalense é disso mesmo ordem” em que o tinha deixado D. Fr. Jorge de
um exemplo. Lemos (FRUTUOSO, 2008, 226), não demo-
A presença da Companhia de Jesus fez-se rou o novo prelado a encontrar matéria que
sentir logo junto do jovem membro da famí- requeresse intervenção episcopal, o que, no
lia Barreto, o qual optou por fazer a sua for- caso vertente, se traduzia, e.g., na falta de um
mação académica no Colégio das Artes, em texto constitucional que, incorporando as de-
Coimbra, instituição que, a partir de 1555, terminações tridentinas, permitisse governar
passara para a tutela dos Jesuítas, e na qual a Diocese de acordo com as necessidades da
alcançou o grau de bacharel em Cânones. nova conjuntura. Assim, e uma vez que estava
B arreto , J er ó nimo ¬ 261

ingerência abusiva da Igreja em prerrogativas


seculares e o poder central acabou por lhe dar
razão, conforme se pode ver nas anotações às
Saudades da Terra, onde Álvaro Rodrigues de
Azevedo expressamente declara que a Coroa
ordenou o não cumprimento de parte do texto
(FRUTUOSO, 2008, 570-572).
À margem da contestação, mandou o pre-
lado imprimir, a expensas suas, as Constituições
Synodaes do Bispado do Funchal, Feitas e Ordena-
das por D. Jeronymo Barreto, Bispo do Dito Bispado,
e em 1585 foi o texto publicado pela primeira
vez.
Imbuído do espírito de Trento, que, par do
aumento das qualificações dos titulares das mi-
tras, pugnava também por uma efetiva melho-
ria da formação intelectual do clero, e dando
seguimento a uma questão já levantada em
tempo de D. Fr. Jorge de Lemos, tinha D. Je-
rónimo, ainda antes de sair do reino, decidido
concretizar o projeto do Seminário. Desconhe-
cendo o paradeiro do documento que instituía
aquele estabelecimento de ensino, solicitara
ao Rei nova via da carta régia e, de posse da
Fig. 2 – Título Primeiro e Único da Santa Fé Católica das Constitui- autorização, tratou, depois de chegado à Dio-
ções Sinodais do Bispado do Funchal (1585).
cese, de dar os passos necessários à materiali-
zação do desígnio. Para esse efeito, mandou
na posse das competências académicas para arrendar umas casas, perto, ao que se supõe,
tal, empreendeu D. Jerónimo a tarefa de redi- não só dos seus próprios aposentos, mas tam-
gir umas constituições que foram publicamen- bém do colégio dos Jesuítas, nas quais fez ins-
te apresentadas em sínodo reunido na catedral talar os primeiros 10 alunos. Com esta medida,
a 18 outubro de 1578, dia em que se cumpriam dava D. Jerónimo início ao funcionamento do
62 anos da sagração daquela Sé. Aproveitando programa de estudos que visava dotar o clero
a excepcional latitude com que a Coroa por- madeirense das competências que o concílio
tuguesa recebeu os decretos conciliares, bem reputava necessárias a um mais cabal e com-
como o momento histórico em que se come- petente desempenho da função dos pastores
çavam a materializar estratégias de confessio- de almas, contribuindo para que os fiéis ma-
nalização e disciplinamento social que faziam deirenses passassem a ser mais eficientemente
dos bispos e da burocratização peças centrais acompanhados.
de uma movimento simultaneamente político A conformidade da ação do prelado com os
e religioso, o prelado redigiu um documento preceitos conciliares, atestada, de resto, por
que não só normalizava uma série de proce- umas anónimas Memorias Sobre a Creação e Aug-
dimentos na Diocese, como ainda, no ponto mento do Estado Eccleziastico na Ilha da Madeira
17 do texto constitucional, alargava os limi- que afirmam ter sido este bispo “um grande
tes da jurisdição eclesiástica a um ponto que e vigilante executor do Concílio Tridentino”
a edilidade funchalense considerou inaceitá- (ARM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal,
vel. Assim, o senado camarário não tardou a doc. 273, fl. 36), continua a poder constatar-
apresentar queixa daquilo que reputava como se na frequência com que visitou o bispado, o
262 ¬ B arreto , J er ó nimo

que, segundo as referidas Memórias, fazia pes-


soalmente todos os anos, para “conhecer a suas
ovelhas, e elas a ele” (Ibid., fl. 35). Embora não
tenham subsistido vestígios que documentem
este programa visitacional, a opinião de Gas-
par Frutuoso, exarada em Saudades da Terra, dá
o bispo como protetor dos virtuosos e castiga-
dor dos viciosos, procurando extirpar do bis-
pado o pecado público e libertar o território
dos vícios promotores de escândalo, o que ob-
viamente corresponde àquilo que se espera de
um bispo seguidor dos preceitos conciliares no
cumprimento das funções de visitação (FRU-
TUOSO, 2008, 228).
A atenção à educação do clero e a prática as-
sídua das visitas são apenas dois dos vários as-
pectos que documentam a identificação deste
prelado com o ideário tridentino. Frutuoso,
que foi seu contemporâneo, acrescenta àque-
les atributos de bispo pastor, que Trento não
criou, mas claramente reforçou, outro conjun- Fig. 3 – Armas de D. Jerónimo Barreto nas Constituições Sinodais
do Bispado do Funchal (1579).
to de características que tornam D. Jerónimo
Barreto um exemplar representante do novo
modelo episcopal, capaz de orgulhar D. Fr. e, particularmente, à da macrocefálica cida-
Bartolomeu dos Mártires, de quem recebera de do Funchal, que em três freguesias – Nossa
ordens sacras, e que logo lhe vaticinara grande Senhora do Calhau, S. Pedro e Sé – concen-
futuro como “prelado da igreja de Deus” (NO- trava 75 % da população urbana, o bispo deci-
RONHA, 1993, 94). De entre os traços que a diu redimensionar a rede paroquial, no senti-
seu respeito Gaspar Frutuoso salienta, encon- do de ajustar a prestação de serviços religiosos
tram-se dá-lo como “pai” que tratava todos com às novas necessidades do tempo. Assim, conse-
mansidão e caridade, ser assíduo nos ofícios di- guiu que, por alvará de 3 de março de 1579,
vinos, amigo de socorrer os pobres, com quem fossem criadas as freguesias de S. Roque e de
gastava não só da sua renda, mas até do seu pa- S. Martinho, que agrupavam a população su-
trimónio, protetor dos clérigos castos e hones- burbana da freguesia de S. Pedro, entretanto
tos, dono de uma casa sem pompa, com trato extinta. Os habitantes remanescentes, os da
e serviço “muito chão”, e tão convicto dos ca- zona urbana da freguesia desaparecida, volta-
minhos que trilhava que, sendo uma ocasião ram a integrar o conjunto dos fiéis da Sé, cujo
avisado sobre os perigos que corria ao tomar corpo de clérigos se viu, portanto, sobrecar-
posições contra os poderosos da terra, declara- regado. Este novo problema exigia, também,
ra dar por isso, e de boa vontade, a vida (FRU- solução e D. Jerónimo procurou encontrá-la
TUOSO, 2008, 227). não só numa reforçada configuração do qua-
Considerando, ainda, que uma das funções dro de pessoal eclesiástico que prestava servi-
dos bispos é estarem atentos à satisfação das ços na Catedral, mas também no reajustamen-
necessidades espirituais dos fiéis, D. Jeróni- to dos valores recebidos pelos cónegos e outros
mo entendeu que a configuração paroquial membros do clero catedralício. Assim, o corpo
da cidade do Funchal não era a que mais se de pessoal afeto à Sé foi enriquecido com um
adequava à realização daquele propósito. altareiro, “ministro subalterno do tesoureiro
Atento à evolução demográfica da Madeira mor”, dois capelães cantores, e dois cónegos
B arreto , J er ó nimo ¬ 263

meio prebendados, cujo ordenado foi buscar que Fortunato de Almeida chega mesmo a as-
à extinção de quatro benefícios pré-existentes: sumir a sua pertença aos quadros dos inacianos
um em Machico, outro na Ribeira Brava, um quando acrescenta (num resumo que apresen-
terceiro em São Jorge e o último nas Achadas ta dos bispos do Funchal a seguir ao nome de
da Cruz (NORONHA, 1993, 97; SILVA, 1946, cada prelado) “da Companhia de Jesus”: erro
115). A escolha destas localidades para serem que é logo acompanhado de outro, em que o
privadas dos benefícios referidos prende-se, dá como irmão de D. João Nunes Barreto, do
também, com alterações demográficas sofri- qual era o bispo, como se viu, apenas sobrinho
das, as quais, por razões diversas, implicaram a (ALMEIDA, 1968, II, 698).
redução da população residente, o que veio a Um dos aspectos, porém, em que a posição
permitir o redimensionamento da rede de as- de D. Jerónimo Barreto se afastava da dos pa-
sistência eclesiástica. No quadro desses ajusta- dres da Companhia encontra-se na adesão que
mentos, foi ainda em tempo deste prelado que o bispo claramente manifestou ao partido de
se criaram duas novas paróquias, a saber: a dos Filipe II de Espanha na crise dinástica de 1580.
Canhas e a do Porto da Cruz, instituídas por al- De facto, a assunção do apoio do prelado às
vará régio, a primeira a 30 de janeiro de 1577 pretensões castelhanas ao trono de Portugal
e a segunda a 20 de setembro do mesmo ano. contrasta com a neutralidade com que a Com-
Como forma de compensar o acréscimo de tra- panhia procurava seguir o evoluir da crise, a
balho que as novas fronteiras da freguesia da qual se pode, eventualmente, atribuir ao facto
Sé acarretaram ao cabido, foram os ordenados de, na Ordem, militarem contingentes de por-
dos cónegos aumentados em 6000 reais para tugueses e espanhóis.
cada um e complementados com mais 5000 No arquipélago da Madeira, havia-se cons-
réis anuais para as missas de vigílias, advento e tituído um forte movimento de apoio às pre-
quaresma, conforme se vê em alvará de D. Se- tensões de D. António, prior do Crato, o qual
bastião de 26 de setembro de 1577. incorporava a presença de alguns eclesiásticos,
A forte ligação à Companhia de Jesus, que designadamente o deão, D. Francisco Henri-
desde muito cedo acompanhara a pessoa de ques, e isso implicava, por parte do bispo, uma
D. Jerónimo Barreto, continuou a fazer-se definição quanto à sua posição no seio do con-
sentir ao longo do seu episcopado madeiren- flito. Alinhando com a maior parte do clero
se. Com efeito, logo depois do desembarque madeirense, que se perfilava no apoio à causa
na Ilha, escolheu o prelado o colégio dos Je- castelhana, o bispo do Funchal “não disfarça-
suítas para sua primeira morada no Funchal, va” a sua preferência e essa atitude rapidamen-
enquanto se não arranjavam aposentos para a te redundou em seu proveito (SARMENTO,
sua instalação definitiva, e disso mesmo dava 1946, I, 164). De acordo com José Pedro Paiva,
conta para Roma o reitor do colégio, Manuel os serviços prodigalizados por prelados à causa
Sequeira, o qual, em novembro de 1574, se espanhola foram de grande relevância para o
regozijava com a chegada do novo prelado, destino de quem os prestou, chegando mesmo
considerando-o grande amigo da Companhia. a ser recompensados com promoções “estron-
Esse mesmo reitor, em nova carta enviada para dosas” (PAIVA, 2006, 375). Foi este o caso de
Roma a 28 de janeiro de 1575, afirmava que D. Jerónimo Barreto, que, após 12 anos à fren-
o bispo amava a Companhia com “estranhado te dos destinos da Diocese do Funchal, se viu al-
afeto”, visitava o colégio com grande frequên- candorado à posição de bispo do Algarve, cuja
cia, aconselhava-se com os seus padres e “tama- mitra foi ocupar em 1585, ou seja, no mesmo
nha parte lhes entregava de seu ofício que bem ano em que deixou vago o lugar na Madeira.
declarava querer ser e parecer todo nosso” Já a caminho da ocupação das novas funções,
(CARITA, 1991, II, 124). A identificação de teve D. Jerónimo Barreto ocasião de escrever
D. Jerónimo Barreto com o ideário da Com- ao cabido do Funchal uma carta onde se des-
panhia foi, de facto, de tão grande magnitude, pedia, manifestando o amor que o clero e a
264 ¬ B arreto , M anuel A gostinho

Ilha lhe mereciam, e declarando que, se não


mostrara mais esse sentimento, no tempo que
durara a prelazia, isso se ficava a dever a serem
os prelados obrigados a ter mão “nos efeitos do
amor que tem a seus súbditos por razão da au-
toridade que lhes é necessária para o governo
e bem das Almas”. Cessada, então, essa obri-
gação, manifestava o bispo vontade de conti-
nuar a servir a todos e a cada um dos seus dio-
cesanos, recomendando ainda ao cabido que,
na administração do território, tivesse “aquela
prudência, conformidade e ordem que de tais
pessoas se requer”, o que demonstra que, ape-
sar de definitivamente afastado da condução
dos destinos dos fiéis madeirenses, mantinha
em relação a eles um conjunto de preocupa-
ções que só o honravam (DGARQ, CSF, mç. 9,
doc. 9).
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc.
273, fls. 35-36; doc. 283, fl. 10; ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 9, doc. 9;
impressa: ALMEIDA, Fortunato, História da Igreja em Portugal, 2.ª ed., vol. ii,
Coimbra, Livraria Civilização, 1968; BARRETO, Jerónimo, Constituições Sinodais
Fig. 1 – D. Manuel Agostinho Barreto, óleo de Alberto Sousa,
do Bispado do Funchal, Lisboa, António Ribeiro Impressor, 1585; CARITA, Rui,
História da Madeira, vol. ii, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1991;
1934 (Cabido da Sé do Funchal).
FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. História das Ilhas do Porto Santo,
Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal,
Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008; NORONHA, Henrique Henriques sendo frequentemente escolhido para os ser-
de, Memorias Seculares e Ecclesiasticas para a Composição da Historia da Diocese
do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, s.n., 1993; PAIVA, José Pedro, Os Bispos
mões mais solenes e as festas de maior relevo.
de Portugal e do Império. 1495-1777, Coimbra, Imprensa da Universidade de Em crescendo de notoriedade, não tardou que
Coimbra, 2006; SARMENTO, Alberto Artur, Ensaios Históricos da Minha Terra
o bispo de Lamego o convidasse para trabalhar
(Ilha da Madeira), vol. i, Funchal, JGDAF, 1946; SILVA, Fernando Augusto,
Subsídios para a História da Diocese do Funchal, Funchal, s.n., 1946. na sua Diocese onde, a partir de 1864, veio a
desempenhar funções de docente no Seminá-
Cristina Trindade
rio e depois, sucessivamente, de cónego, vigá-
rio-geral, provisor e governador do bispado,
continuando a sua “palavra fácil e pensamento
Barreto, Manuel Agostinho
claro, conciso e profundo” a atrair as atenções
Manuel Agostinho Barreto nasceu a 7 de de- (COELHO, 2015, 1). Em reconhecimento dos
zembro de 1835, em Coentral Grande, locali- seus extraordinários dotes e serviços, Roma fez
dade situada em Castanheira de Pera, distrito dele prelado doméstico de Sua Santidade, uma
de Leiria. Os seus pais, José Agostinho Barre- das dignidades que se abrigam debaixo da de-
to e Maria Barreto, velaram por que rumasse a signação genérica de monsenhor.
Coimbra, depois de completada a instrução bá- Em 1877, e contrariando as expetativas de
sica, para frequentar o seminário, de onde pas- Agostinho de Ornelas Vasconcelos, irmão
sou à universidade, na qual, em 1858, concluiu de D. Aires de Ornelas Vasconcelos, anterior
licenciatura em Teologia. Teria começado a bispo do Funchal que, em carta de 22 de abril
carreira de presbítero na sua terra, de onde de 1874 informava o irmão de que, depois de
depois voltou a Coimbra, passando daí para o ouvidos os ministros do reino, se dava como
Porto, levado pela fama que os seus dotes de sucessor na mitra funchalense o arcebispo de
oratória e escrita já lhe iam granjeando. No Mitilene ou o bispo de Cabo Verde, Manuel
Porto, cedo se notabilizou como pregador, Agostinho Barreto acabou por ser designado
B arreto , M anuel A gostinho ¬ 265

prelado para o arquipélago madeirense. Con- ausência de pastor” se tinha feito sentir “talvez
firmado em 29 de setembro de 1876, foi sagra- como em parte nenhuma”, (COELHO, 2015,
do bispo na basílica da Estrela, em Lisboa, a 4 2), a frequência com que publicava pastorais,
de fevereiro de 1877, e rapidamente se deslo- as visitas à Diocese, o empenho em diversos
cou para a Madeira, onde entrou solenemente projetos, contristavam, porém, uma parte da
a 25 do mesmo mês de fevereiro. população da Madeira. Em 1881, Frederico
Pouco tempo depois de chegar, a 2 de março, Pinto Coelho publicava um opúsculo designa-
tornava pública a primeira das muitas pastorais do O Sudario Negro ou Apontamentos para a Bio-
que produziu, na qual fazia a sua apresenta- graphia de D. Manuel Agostinho Barreto, Bispo do
ção aos diocesanos e deixava já algumas pistas Funchal, obra onde se compendiavam, contra o
para os valores que orientariam o seu episco- bispo, uma série de irregularidades cometidas,
pado, designadamente algum ultramontanis- ou por ele diretamente ou por uns missioná-
mo, expresso na exaltação que fazia da figura rios que tinha levado para pregar na Diocese
do Papa: “Veneração e amor, caríssimos filhos, e a quem se atribuíam os mais escuros desíg-
respeito e submissão à pessoa e à voz infalível nios. O bispo via-se acusado de fazer, ou man-
de Pedro, representada e escutada em Pio IX” dar fazer, comércio com catecismos, bentinhos
(BARRETO, 7 abr. 1877, 305). e outros itens semelhantes, de favorecer a dela-
Dois dias depois desta publicação, suicidou- ção do segredo da confissão, de obrigar o clero
se, no Funchal, um jovem artista, Coutinho a frequentar formação no Seminário, a fim de
Gorjão, cujo enterramento se fez no cemité- se inteirar dos pecados de cada pároco ou cura,
rio das Angústias com licença da Câmara Mu- e, até, de ter tido comportamentos menos pró-
nicipal, depois de o bispo ter proibido a sua prios na Diocese de Lamego dos quais teriam
sepultura em solo consagrado. Tendo o facto resultado filhos. Esta obra, bastante mal in-
chegado ao conhecimento do prelado, este de tencionada e claramente parcial, foi de pron-
imediato interditou o cemitério e, sem perda to contestada pelo Cón. António Aires Pache-
de tempo, assumiu, do púlpito da Sé, uma vi- co, que lhe respondeu com o Sudario Negro no
gorosa posição contra o senado funchalense, Banco dos Reos, bem como por um autor de La-
que lhe granjeou, com certeza, alguns inimi- mego que fez sair um folheto intitulado O Ex-
gos, designadamente entre os liberais. O estré- celentíssimo e Reverendíssimo Bispo do Funchal De-
pito desta polémica ouviu-se logo na imprensa sagravado pelos Lamecenses, com data de abril de
madeirense e não só, pois até no Porto, na se- 1882, no qual se reafirmava a honra do prelado
quência destes acontecimentos, surgiu um fo- e até dos próprios habitantes de Lamego.
lheto intitulado A Sepultura Eclesiástica e os Suici- Polémicas à parte, D. Manuel Agostinho Bar-
das, que pretendia responder à crítica posição reto foi prosseguindo, na Diocese, com a sua
localmente assumida pelo periódico A Lei. ação pastoral, da qual há que destacar o em-
A reforçar as palavras acesas com que comen- penho que pôs na reestruturação do Seminá-
tou o sucedido em sermão na Sé, D. Manuel rio do Funchal. Tendo chegado à Madeira em
Agostinho Barreto publicou uma admoestação fevereiro de 1877, logo em outubro do ano se-
pastoral, na qual verberava o suicídio e conde- guinte a sua intervenção no Seminário se tor-
nava, sem rebuços, todos os seus praticantes. nava visível através da reforma que empreen-
À semelhança da pastoral anterior e de várias deu, e que passou pela criação de um ciclo de
posteriores, também este texto teve honras de estudos preparatórios, pelo aumento do nú-
publicação na imprensa nacional, pois foi di- mero de alunos internos e pela remodelação
vulgado pelo periódico Bem Público – um jornal do espaço. Nesta obra, pôde D. Manuel Agos-
católico que se publicou em Lisboa entre 1857 tinho contar com a ajuda de um Alemão, o
e 1877 – a 14 de abril de 1877. padre Ernst Schmitz, a quem foram entregues,
A ação destemida do prelado, a forma como além da direção do estabelecimento, funções
pretendia reganhar um rebanho no qual “a docentes e de modernização curricular, a qual
266 ¬ B arreto , M anuel A gostinho

se materializou, em parte, pela criação de um Congregação das Franciscanas de Maria que


museu de zoologia de renome, assessorado por Mary Jane haveria posteriormente de fundar,
um gabinete de física, matérias bastante distin- na medida em que, no desempenho daquelas
tas daquelas que se costumavam ministrar em tarefas, a jovem Jane terá tomado consciência
escolas de formação sacerdotal. A coadjuvar das profundas necessidades de formação hu-
este padre, instalaram-se outros, também pro- mana e espiritual de que enfermava a popula-
venientes da congregação da Missão, os chama- ção madeirense.
dos Lazaristas, sendo toda esta equipa, no seu Outro dos aspectos notáveis do episcopado
conjunto, a responsável pela transformação do de D. Manuel Agostinho Barreto foi a produ-
Seminário do Funchal numa escola responsá- ção de pastorais, textos que profusamente pu-
vel pelo “alto nível” que caracterizou o clero blicou e onde se condensa o pensamento reli-
madeirense na primeira metade do séc. xx, no gioso do antístite. Quase todas se encontram
dizer de D. Maurílio Gouveia, arcebispo eméri- transcritas no Livro do Registo de Provimentos e
to de Évora (COELHO, 2015, 4). Visitações Pastorais da freguesia de Ponta Delgada
Em prol do seminário, financiaria ainda o (1862-1910) e foram estudadas por Francis-
prelado, em grande parte a expensas suas, pois co Senra Coelho, em artigo dedicado à figura
aqui gastou os réditos de uma generosa heran- deste bispo. De acordo com este autor, o an-
ça que recebera, a construção de um edifício tístite demonstra uma escrita excelente e um
de raiz na cerca do antigo Convento da Encar- pensamento profundo e claro, sendo possí-
nação. Esta construção, ainda que não intei- vel elencar, a partir dos textos, os eixos à volta
ramente pronta, começou a ser ocupada em dos quais se desenvolvia a sua atitude pastoral.
1909, mas, logo em 1910, as forças da recém- Assim, a primeira carta, publicada a 15 de abril
-implantada República haveriam de a confis- de 1877, salienta a dificuldade de conduzir um
car, retirando-lhe a possibilidade da formação rebanho indócil, apela à união entre os capi-
de clérigos. No edifício, passou a funcionar a tulares e à do cabido com o demais clero e a
Escola de Belas Artes até 1933, altura em que população, recomenda um comportamento
voltou a ser um seminário. Em 1974, na Revo- exemplar para os eclesiásticos, apela ao ensi-
lução de Abril, o Seminário foi ocupado para no da doutrina, salienta a importância da for-
nele se instalar a Escola Preparatória Bartolo- mação no seminário e releva o papel da ciên-
meu Perestrelo, que ali funcionou até 2004. cia naquele contexto. Dirigindo-se, depois, à
Outra figura com origens no estrangeiro, sociedade civil, relembra as responsabilidades
que igualmente se notabilizou em ações reli- dos pais de família na construção de lares cris-
giosas na Madeira no tempo do episcopado tãos bem formados, sublinhando o que por
de D. Manuel Agostinho Barreto, foi a madre todos deve ser evitado, por mau e pernicioso –
Mary Jane Wilson, protestante convertida ao o teatro e o jornalismo. No tocante às restantes
catolicismo que se tornou colaboradora pró- autoridades insulares, a sua preocupação vai
xima do bispo na obra das escolas paroquiais para a necessidade de colaboração com as ins-
fundadas por sua iniciativa. Estes estabeleci- tâncias religiosas e para a atitude de interajuda
mentos de ensino, designados como Escoli- que deve regulamentar as suas relações com os
nhas de S. Francisco de Sales, espalharam-se poderes da Igreja, e termina solicitando que se
pela Ilha, com particular incidência em Machi- reze pela Coroa portuguesa, ao mesmo tempo
co, no Santo da Serra, em Santana, no Arco de que reafirma a sua fidelidade ao rei, D. Luís.
São Jorge e no Porto Moniz, e, além de alfa- Na segunda carta, que saiu à luz a 2 de feverei-
betizar, também ensinavam catequese, contri- ro, na preparação para a Quaresma de 1878,
buindo, assim, para o desígnio de cativar para D. Manuel Agostinho Barreto propunha aos
o catolicismo as crianças de tenra idade. Nesta seus párocos uma reflexão sobre o valor dos
função, colaborou de perto a madre Wilson e sacramentos, em particular o do batismo, acer-
nela poderá ter estado o gérmen da criação da ca do qual deixava instruções para se poder
B arreto , M anuel A gostinho ¬ 267

inquirir, a posteriori, da validade do sacramen-


to quando ministrado por parteiras, nos casos
em que surgissem dúvidas. Passava, a seguir,
para os preceitos da confissão e a obrigação da
renovação anual das licenças para a sua práti-
ca, advertia para o uso de uma linguagem in-
teligível nas pregações, solicitava cuidado nas
horas de celebrar missa, a fim de que nenhum
freguês dela ficasse privado por permanentes
alterações de horário, e terminava com uma
chamada de atenção para assuntos do quoti-
diano das paróquia, como seja o levar viático
aos moribundos, e a preparação das crianças
para a primeira comunhão e dos noivos para
o casamento.
Nestas, como noutras pastorais subsequen- Fig. 2 – Residência e capela da Penha de França, reconstrução
tes, D. Manuel Agostinho Barreto mostrava-se de c. 1770 e seguintes (fotografia de Virgílio Gomes, 2004).

conservador e preocupava-se com a reafirma-


ção dos valores tradicionais da Igreja, ameaça- acompanhados do antístite, poderiam ser utili-
dos pelos turbulentos tempos de liberalismo e zados para, à semelhança do soldado que não
anticlericalismo que a sociedade atravessava. pode “defender a pátria sem se adestrar”, ad-
Em visita que pessoalmente efetuou a Ponta quirir utensílios a usar no combate à perda dos
Delgada, em 21 de agosto de 1878, o bispo fez valores cristãos (ARM, APEF, doc. 412, fl. 118).
registar no livro de provimentos algumas in- Outra das áreas em que se destacou D. Ma-
dicações que desde há muito tempo tinham nuel Agostinho Barreto foi o combate à maço-
deixado de figurar em tais documentos. Re- naria, que seria, no dizer de Eduardo Pereira
comendava, então, o prelado ao povo da fre- “o maior obstáculo da época à ação religiosa
guesia que dedicasse um particular cuidado na Madeira”, o que lhe terá valido a colocação
ao cumprimento da devoção ao apostolado de um engenho explosivo na sua residência, na
da oração, instituição recente da responsabili- Penha de França, a 28 de março de 1890 (PE-
dade de um dos missionários de que se tinha REIRA, 1968, II, 454). Este bispo tinha, com
feito acompanhar desde o reino – o P.e Tomás efeito, optado por usar permanentemente a re-
Vital, precisamente uma das personagens mais sidência da Penha, mais discreta, mais austera
atacadas no Sudario Negro. Solicitava ao pároco e mais afastada do centro da cidade, onde vivia
que não se esquecesse de tocar o sino três vezes com algum ascetismo, sendo a sua vida consi-
ao dia, para chamar à oração, que ensinasse derada “modesta e despida de todo o apara-
frequentemente doutrina, que pugnasse pelo to” (SILVA e MENESES, 1984, I, 130). Apesar
correto comportamento dos fregueses dentro deste esforço por alguma reclusão, a atividade
da igreja, elogiando o estado de asseio em que do prelado não deixava de despertar a conside-
a encontrara, e, finalmente, censurava a ausên- ração de muitos dos seus pares, pelo que che-
cia de algumas circulares do livro de registos gou a ser convidado para patriarca de Lisboa, o
paroquial. Este é um bom exemplo da forma que, porém, se não chegou a concretizar.
de operacionalização do conteúdo das pasto- Considerado, por muitos como um dos
rais que o bispo ia difundindo localmente, de “maiores prelados de Portugal” (PEREIRA,
forma adequada à vivência de cada paróquia. 1968, 454), D. Manuel Agostinho Barreto fa-
Outra estratégia de aproximação entre o bispo leceu no Funchal, após 34 anos de episcopa-
e o clero era a promoção anual de retiros es- do, a 26 de junho de 1911, muito desgostoso
pirituais de sacerdotes no Seminário, os quais, com o destino final do “seu” seminário, que
268 ¬ B arreto , R em í gio A nt ó nio G il S p í nola

a república encerrara. Os seus restos mortais Humanitária dos Bombeiros Voluntários do


foram sepultados no cemitério das Angústias Funchal, a primeira corporação desta natureza
mas, por determinações testamentárias, cinco existente neste distrito, fundada no ano ante-
anos após o falecimento, os seus ossos foram rior em sessão camarária de 24 de setembro.
colocados numa urna e definitivamente enter- Em março, é promovido a aspirante na hie-
rados no adro da capela da Penha de França. rarquia daquela organização e é colocado na
guarnição do carro de material. É um dos só-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 412;
impressa: ALMEIDA, José Fortunato de, História da Igreja em Portugal, vol. iii, cios fundadores desta importante corporação.
Barcelos, Livraria Civilização, 1970; BARRETO, Manuel Agostinho, “Pastoral”, Nos anos letivos de 1891/1892 e 1899/1900,
Bem Público, 7 abr. 1877, pp. 305-306; Id., “Admoestação pastoral”, Bem Público,
14 abr. 1877, pp. 313-314; Id. “Pastoral”, Bem Público, 12 maio 1877, pp. 345- frequenta a Univ. de Coimbra, onde é colega
348; Id., “Pastoral”, Bem Público, 26 maio 1877, pp. 361-363; CARITA, Rui, de importantes republicanos como António
História da Madeira, vol. vii, Funchal, DRAC, 2008; COELHO, Frederico Pinto,
O Sudario Negro ou Apontamentos para a Biographia de D. Manuel Agostinho
José de Almeida e Afonso Costa e aí se forma
Barreto Bispo do Funchal, Funchal, Typ. Funchalense, 1881; O Excelentíssimo e bacharel em Direito. Nestes anos, conhece Er-
Reverendíssimo Bispo do Funchal Desagravado pelos Lamecenses, Lamego, s.n.,
1882; GOMES, Fátima Freitas, “Agostinho de Ornelas Vasconcelos. O morgado
melinda Augusta de Jesus, natural do Luso,
liberal e a decisão criativa”, Islenha, n.º 21, jul.-dez. 1997, pp. 79-109; PEREIRA, concelho da Mealhada, Diocese de Coimbra,
Eduardo C. N., Ilhas de Zargo, 3.ª ed., vol. ii, Funchal, Câmara Municipal do
Funchal, 1968; SILVA, António Ribeiro Marques da, Apontamentos sobre o
com quem vai para a Madeira. Tem 36 anos
Quotidiano Madeirense (1750-1900), Lisboa, Caminho, 1994; SILVA, Fernando quando se casa, na freguesia da Sé, a 4 de no-
Augusto da, Diocese do Funchal. Sinopse Cronológica, Funchal, Tip. Esperança,
vembro de 1905. Nesta data, o casal tem dois
1945; Id., e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
DRAC, 1984. filhos, nascidos em Coimbra nos anos dos seus
Cristina Trindade estudos, que legitima. Residem, então, à rua
Rui Carita dos Ferreiros.
Exerce advocacia no distrito do Funchal e
notariado neste concelho (entre 1900 e 1927),
Barreto, Remígio António Gil e nos de São Vicente (entre 1928 e 1943) e
Spínola Ponta do Sol (entre 1933 e 1954).
Remígio Barreto participa ativamente na po-
Remígio António Gil Spínola Barreto nasce a lítica local. Ainda em tempo de Monarquia
24 de fevereiro de 1869 no concelho de Santa Constitucional, nas eleições de 1 de novem-
Cruz, ilha da Madeira, e é o primeiro filho do bro de 1908 para os órgãos administrativos, em
morgado António Sebastião Spínola Ferreira que regeneradores e progressistas coligados,
de Carvalho Barreto e de Guilhermina Augus- com vista à vitória sobre o Partido Republica-
ta da Silva Barreto, mora- no, vencem por todo o país, é um dos procura-
dores à calçada de São Gil, dores monárquicos eleitos à Junta Geral pelo
no mesmo concelho. concelho de Santa Cruz, tomando posse a 30
Fez os estudos secundá- de novembro para o tempo que falta do triénio
rios no Liceu do Funchal. de 1908-1910.
Ainda jovem estudante, Iniciada a República, torna-se diretor do bis-
demonstrou ser um espíri- semanário O Liberal, órgão de imprensa do
to participativo, pois, a 16 Partido Democrático (Partido Republicano
de fevereiro de 1889, com Português de Afonso Costa), que inicia a sua
a idade de 19 anos, está publicação a 1 de maio de 1913. Este periódi-
alistado na Associação co, publicado aos domingos e quintas-feiras, é
composto e impresso na tipografia Brado do
Oeste, na Ponta do Sol, e sofre alguns períodos
de interregno sob sua direção.
Com a República instituída, Remígio Barre-
Remígio António Gil Spínola Barreto
em uniforme dos bombeiros, c. 1889
to, do Partido Democrático, vem a ser vogal
(ABM, Photographia Vicente). efetivo da comissão administrativa da Junta
B arreto , R em í gio A nt ó nio G il S p í nola ¬ 269

Geral, nomeada por decreto de 10 de feverei- volta a ser presidente, mas este seu mandato
ro de 1913. será interrompido pelo movimento revolucio-
A 1 de maio deste mesmo ano, é nomeado nário sidonista, que interrompe os trabalhos
para governador substituto, pelo governador de todos os organismos administrativos no
civil Ernesto Sá Cardoso, na mesma data em país. O retorno dos democráticos ao governo
que o Partido Democrático da Madeira inicia colocá-lo-á de novo na presidência da Junta
a sua atividade. Toma posse deste lugar a 10 Geral. Após as eleições administrativas de 25
deste mesmo mês e ocupá-lo-á até ao início do de maio de 1919 para o triénio de 1920-1922,
consulado de Pimenta de Castro, em janeiro volta a ser escolhido presidente entre os seus
de 1915. pares a 16 de junho daquele ano, na reunião
A nova ordem republicana será regulamenta- de constituição da mesma.
da, ao nível das administrações, pela lei n.º 88, A sua vida política mudará de rumo numa das
de 7 de agosto de 1913, e as primeiras eleições divisões entre republicanos. Em 30 de maio de
diretas para os corpos administrativos reali- 1920, encontra-se no grupo que constitui a co-
zam-se a 1 de novembro, mantendo-se no go- missão política do novo Partido Republicano
verno a maioria democrática. Os procuradores de Reconstituição Nacional, também chamado
eleitos à Junta Geral do Funchal serão alguns Reconstituinte, criado em reunião realizada na
dos vogais da anterior comissão administrativa, Quinta do Jasmineiro a 30 de maio de 1920.
entre os quais se vai integrar, a partir de 1 de No exercício da sua cidadania, por diversas
maio de 1914, Remígio Barreto, que vem a ser vezes representa e preside na freguesia e con-
o segundo presidente deste organismo, logo celho de Santa Cruz a assembleias eleitorais
após o período conturbado do consulado de primárias do distrito.
Pimenta de Castro. Em 2 de janeiro de 1963, à beira de fazer
Nas eleições gerais para deputados e senado- os 94 anos, falece na sua residência à calçada
res do Congresso da República de 13 de junho de São Gil, freguesia de Santa Cruz, saindo da
de 1915, é eleito senador pelo Partido De- capela privativa do solar para o cemitério do
mocrático, juntamente com o general Daniel mesmo concelho. O Diário de Notícias da Ma-
Telo Simões Soares e Vasco Gonçalves Mar- deira e O Jornal lembram-no como “madeiren-
ques. Nesta altura, deixa a direção política de se entusiasta, possuidor de um forte sentimen-
O Liberal. to regionalista”, muito dedicado aos problemas
As questões político-partidárias agravam-se da terra, à qual presta “valiosos serviços” e,
no final de 1915 e início de 1916, sobretudo com maior interesse e muito carinho, aos pro-
a partir de 9 de março, com a entrada de Por- blemas do concelho onde nasceu (DN, 3 jan.
tugal na Primeira Guerra Mundial. A instabili- 1963, 1 e 6; OJ, 3 jan. 1963, 1 e 8).
dade instala-se na administração pública por
Bibliog.: manuscrita: ABM, Associação Humanitária dos Bombeiros
todo o país, refletindo-se também na Junta Voluntários do Funchal, liv. 31, fl. 38; Ibid., Governo Civil do Funchal, Alvarás,
Geral, onde muitas sessões não se realizam por liv. 82; Ibid., Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, Secretaria, Atas
da Junta Geral, livs. 193 (1902-1914) e 2246 (1914-1919); Ibid., Junta Geral
falta de quorum. Apesar destes factos, este de-
do Distrito Autónomo do Funchal, Secretaria, Atas das Sessões da Comissão
mocrático manter-se-á no cargo, que sofre vá- Executiva/Administrativa, livs. 2255-2261; Ibid., Registos Paroquiais, Santa
rias interrupções. As eleições administrativas Cruz, Batismos, liv. 2496-A; Ibid., Registos Paroquiais, Sé, Casamentos, liv. 6445-
A; impressa: Anuário da Universidade de Coimbra (anos letivos 1891/1892
marcadas para novembro de 1916, destinadas à a 1899/1900), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1892-1900; CLODE, Luiz
constituição dos novos corpos administrativos Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; Collecção Official de Legislação Portuguesa. Anno
para o triénio de 1917-1919, são adiadas sem de 1906, Lisboa, Imprensa Nacional, 1907; “A eleição de domingo”, Correio da
qualquer previsão de agendamento, em conse- Tarde, 19 out. 1908, p. 1; “As eleições”, Diário de Notícias, Funchal, 13 jun. 1915,
p. 2; GOMES, Fátima Freitas, e VERÍSSIMO, Nelson, A Madeira e o Sidonismo,
quência de Portugal ter entrado na guerra, e Funchal, DRAC, 1983; “Junta Geral do Distrito do Funchal/Edital”, Diário de
só se realizam a 18 de novembro de 1917, para Notícias, Funchal, 28 dez. 1916, p. 3; “Junta Geral do Funchal”, Diário de Notícias,
Funchal, 1 maio 1913, p. 1; “O liberal”, Diário de Notícias, Funchal, 1 maio 1913,
o triénio de 1918-1920. Remígio Barreto está p. 2; “O liberal”, Diário de Notícias, Funchal, 3 maio 1913, p. 2; MARTINS, Teresa
entre os procuradores eleitos à Junta Geral e Florença, O Movimento Republicano na Madeira. 1882-1913, Funchal, CEHA,
270 ¬ B arroco

2004; “O movimento revolucionário em Portugal”, Diário de Notícias, Funchal,


23 dez. 1917, p. 1; “Na Quinta do Jasmineiro”, Diário de Notícias, Funchal, 1
jun. 1920, p. 3; “O novo governo”, Diário de Notícias, Funchal, 11 dez. 1917,
p. 1; “Obituário”, Diário de Notícias, Funchal, 3 jan. 1963, pp. 1 e 6; “Obituário”,
Jornal da Madeira, 3 jan. 1963, pp. 1 e 8; “A que vimos”, O Liberal, 1 maio 1913,
p. 1; “Registos. Dr. Remígio Barreto”, O Liberal, 11 maio 1913, p. 1; “Resultado
das eleições gerais de deputados e senadores pelo círculo n.º 43 (Funchal)
realizadas no dia 13 de junho de 1915”, Diário de Notícias, Funchal, 14 jun. 1915,
p. 2; SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vol. xi, Santarém, Verbo,
1989; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, 3 vols., Funchal, JGDAF, 1965; “Telegrama”, Diário de Notícias,
Funchal, 3 nov. 1908, p. 1; “Telegrama. O novo ministério”, Diário de Notícias,
Funchal, 12 dez. 1917, p. 1.

Maria de Fátima Vieira de Abreu

Barroco
O barroco é considerado o estilo corresponden-
te ao Absolutismo e à Contrarreforma, muitas
vezes identificado com a ascensão da Compa-
nhia de Jesus, distinguindo-se por um esplen-
dor exuberante, um certo exagero da forma e
um quase “horror ao vazio”, sendo tudo meto-
dicamente preenchido. Embora o barroco seja
uma continuação natural do anterior Renas-
cimento, compartilhando os movimentos um
grande interesse pela arte da Antiguidade Clás-
sica, as interpretações são diferentes e ainda
Fig. 1 – Nossa Senhora dos Anjos, oficina portuguesa ou brasilei-
mais os resultados finais. Enquanto no Renas- ra, c. 1740, proveniente do antigo recolhimento do Carmo (Mu-
cimento o tratamento das temáticas se pauta seu de Arte Sacra do Funchal).
pela moderação, pela economia formal, pela
austeridade, pelo equilíbrio e pela harmonia, e.g., mas quase nada chegou à contemporanei-
o tratamento barroco de temas idênticos mos- dade, perdendo-se continuamente no espaço
tra um novo dinamismo: contrastes mais for- de uma a duas gerações. Nesse quadro, foi so-
tes, maior dramaticidade, exuberância e realis- mente na área da devoção religiosa que algo se
mo, com uma tendência pelo decorativo, além preservou, tendo sido, aliás, e de uma forma
de manifestar uma tensão entre o gosto pela geral, a Igreja a única instituição que soube,
materialidade opulenta e as demandas de uma quis ou conseguiu preservar verdadeiramente
vida espiritual. o seu património.
O movimento barroco abarcou toda a socie- O período barroco corresponde a todo um
dade e as formas de comunicação, como a poe- novo tipo de vida e de espiritualidade desen-
sia e o teatro, tendo ganho um muito especial volvido pela Contrarreforma católica que não
lugar junto das classes dirigentes nas formas de pode ser entendido se não for enquadrado
vestir, nas joias, no mobiliário, etc., mas muito numa nova forma de entender o mundo, o
difícil de medir e perspetivar numa sociedade homem e Deus. Ao longo do séc. xvii, a Igre-
de grande mobilidade como sempre foi a ma- ja conquistou uma presença quase absoluta no
deirense. Desta época, ficaram alguns registos quotidiano, desde o nascimento até muito para
de inventário das principais famílias, com ex- além da morte, devido à complexa criação de
cecionais quantidades de mobiliário de diversa toda uma sequência de estados para o alcance
proveniência, desde a Europa até ao Oriente, da vida eterna. A Igreja acompanha, assim, o
de tapeçarias, de peças de aparato e de joias, homem no atestamento da sua existência legal
B arroco ¬ 271

através do batismo, administra-lhe depois os espetacular de jogos de luz e de cores, de


sacramentos que marcam as várias etapas de efeitos de movimento e de toda uma encena-
crescimento, promove a normalização dos seus ção que pretendia envolver emocionalmente
comportamentos e controla os desvios – ins- o espectador e afirmar o poder eclesiástico.
truindo e apoiando a coesão social e propor- O domínio visual foi sucessivamente sendo
cionando um espaço de asilo com apertadas ocupado pela talha dourada e pelos retábulos
restrições à entrada das justiças seculares (VE- trabalhados como um todo quase arquitetóni-
RÍSSIMO, 2000, 37) – para lhe proporcionar, co, nos quais a pintura e a escultura passam a
finalmente, o acesso à vida eterna, mediante fazer parte de um projeto único, o que dará
uma série de sufrágios por sua alma, através de depois origem à “arte total”, aliando talha,
missas, “enquanto o mundo for mundo”, como
referem muitos testamentos.
Não houve, logicamente, nem a Igreja algu-
ma vez o poderia admitir, um corte com o an-
terior período do Renascimento, no qual as
qualidades de moderação da imagem, da eco-
nomia formal, da austeridade, do equilíbrio e
da harmonia eram as mais procuradas, ainda
que progressivamente tudo fosse ganhando
um maior dinamismo, contrastes mais fortes,
maior dramaticidade, exuberância, realismo,
impacto visual e riqueza, dentro de uma certa
pompa e circunstância cultivadas na época.
De certa forma, vai produzir-se toda uma nova
imagem, gradativamente mais ilustrativa e tam-
bém decorativa, do que se entendia ser o ver-
dadeiro caminho para Deus.
O modelo seguido vai ser o da “Roma dos
papas”, como era já patente na sé do Funchal,
no monumental retábulo da Ascensão de Fer-
não Gomes (1548-1612), que parte de um mo-
delo romano dos inícios do séc. xvi, vincan-
do o apelo aos sentidos e às cores. O caminho
para o barroco não foi, entretanto, linear, pas-
sando por uma fase de transição caracterizada
por uma certa contenção e austeridade, pri-
meiramente designada maneirismo e, depois,
protobarroco, na qual se começa a anunciar já
toda uma nova forma de representação da cha-
mada Contrarreforma, entrando-se, depois,
nos absolutos excessos de decoração com es-
paços se encontram quase totalmente ocupa-
dos por pinturas, talhas e azulejos, sendo tudo
preenchido com os mais diversos motivos.
É neste quadro que se compreende o novo
cerimonial religioso, o aumento das devoções,
Fig. 2 – Retábulo de S.to António da Sé do Funchal,
das representações dos santos e dos seus mila- oficina de Manuel Pereira de Almeida, 1697 (fotografia de
gres, com toda uma procura de exuberância Bernardes Franco, 2016).
272 ¬ B arroco

Fig. 3 – Interior da igreja de São Jorge, 1751 (fotografia de Bernardes Franco, 2016).

pintura, escultura, azulejos, pratas e têxteis. de Noronha (1667-1730), uma das poucas per-
Tal é-nos confirmado nos documentos da sonalidades de que, até ao séc. xviii, conhe-
época, embora muitos desses aspetos não te- cemos um retrato, enumeraria em várias pági-
nham chegado aos nossos dias, especialmente nas a “Memória dos Santos que são protetores
no que se refere à quantidade de cortinados, desta Diocese; Relíquias, Santuários e Imagens
sedas, tapetes e tapeçarias, dada a reorganiza- milagrosas dela” nas suas Memórias Seculares e
ção e a depuração dos espaços ocorridas de- Eclesiásticas (1722), encomendada pela Real
pois nos sécs. xix e xx. Academia da História.
Assim, não foi por acaso que o bispo D. frei A dinamização desta nova maneira de enten-
Lourenço de Távora (1566-1629) pretendeu, der o espaço e de cativar a atenção do espeta-
na sua entrada solene na sé do Funchal, fazê- dor deve ter entrado na Madeira pela mão da
-lo a cavalo e sob pálio, o que para um frade Companhia de Jesus, que determinou, a par-
capuchinho é hoje, no mínimo, insólito, tendo tir dos seus principais colégios, a constituição
sido contrariado pelo gabinete régio filipino. de uma arquitetura quase própria, tal como
Este prelado desenvolveu depois um intenso de oficinas de pintura, de escultura e de talha
programa em prol da incentivação das celebra- que fizeram depois circular desenhos do que
ções das festas dos santos e proclamou como ali se fazia e gravuras dos temas a utilizar. Pe-
milagroso o caso da visão de uma das filhas de rante o erguer da monumental igreja do colé-
Zarco, à frente da qual a imagem de Cristo do gio do Funchal, cuja primeira pedra foi lança-
Convento de S. Francisco do Funchal despren- da em 1629 e que, por cerca de 1631, já teria as
dera um dos braços da cruz. Neste novo quadro, paredes levantadas, sendo da década seguinte
nos inícios do séc. xviii, Henrique Henriques a montagem dos enormes retábulos de talha
B arroco ¬ 273

dourada, o cabido da sé não poderia ter ficado talha vazada de trabalho mais minucioso, den-
parado. tro do gosto rococó. A mesma equipa proce-
Terá sido, assim, nessa sequência que os res- deu, entretanto, ao trabalho de reformulação
ponsáveis da sé do Funchal chamaram o imagi- da capela do Santíssimo da sé, depois executa-
nário Manuel Pereira (c. 1604-1679), responsá- do por uma ampla equipa de escultores e enta-
vel pelos trabalhos de talha da igreja do Colégio lhadores. Nos meados do século, proceder-se-
dos Jesuítas. Os trabalhos do novo camarim da -ia, ainda, à redefinição do conjunto de altares
sé do Funchal foram entregues àquela oficina, da nova igreja matriz de S. Jorge, porventura
decorrendo entre 1648 e 1652, seguindo-se,
entre 1660 e 1670, o coroamento dos arcos das
capelas colaterais, embora talvez sem o contri-
buto do mestre principal. A mesma oficina foi,
em 1677, responsável pelo retábulo do Bom
Jesus, o qual ainda foi reformulado pelo seu
sobrinho Manuel Pereira de Almeida (c. 1630-
c. 1710), que, em 1697, seria também respon-
sável pelo novo retábulo de S.to António. A sé
do Funchal entrava, então, no tratamento glo-
bal das suas máquinas retabulares, massiva e
predominantemente douradas, fazendo a tran-
sição do maneirismo para o barroco, apelida-
do na Ilha de “barroco nacional”, na procura
de “uma eficácia da imagem” anunciada na se-
quência do Concílio de Trento, em meados do
séc. xvi, e executada no séc. xvii.
Num curto espaço de tempo, o exemplo era
seguido pelas restantes igrejas matrizes, que
reformulam totalmente os espaços das suas ca-
pelas-mores, a que se seguem os das naves e
demais capelas paroquiais e privadas. O exem-
plo da constituição de obras totais e dinâmi-
cas, como o conjunto da igreja do colégio do
Funchal, seria seguido por outras instituições,
como o recolhimento do Carmo onde, por
volta de 1686, se levanta o mais monumental
conjunto tumular da região, encomendado em
Lisboa à oficina de Luís Nunes Tinoco (1642-
1719), seguindo-se, pouco depois, a monta-
gem do magistral retábulo e a encomenda, em
Lisboa, à oficina de Bento Coelho da Silveira
(1617-1708) da tela da Imaculada.
O formulário barroco dominaria, ainda, a
matriz de S. Pedro do Funchal com a altera-
ção da capela do Santíssimo por volta de 1660,
que seria novamente modificada no século se-
guinte, datando da déc. de 40 a encomenda do
novo retábulo-mor, já anunciando o final do Fig. 4 – Capela do Santíssimo da Sé, oficina de Agostinho José
período barroco através da utilização de uma Marques, 1769 a 1772 (fotografia de Bernardes Franco, 2016).
274 ¬ B arroco

Fig. 5 – Sacristia da igreja do Colégio do Funchal, reforma de c. 1720 (fotografia de Bernardes Franco, 2017).

o mais homogéneo trabalho da transição do na sacristia da sé, mas nunca chegou a ser aca-
apogeu do barroco para o rococó, dentro do bado, tal como aconteceu um pouco por toda
espírito da “obra total”, no qual a talha do al- a Ilha, salvaguardando, claro, as capacidades
tar-mor se prolonga pelas paredes da capela, económicas das paróquias, que dificilmente
servindo de moldura às pinturas, e o teto se poderiam ombrear com a poderosa Compa-
apresenta totalmente pintado. nhia de Jesus ou com a sé do Funchal.
Seria, no entanto, nas sacristias, especial-
mente na da igreja do Colégio, um dos conjun- Bibliog.: CARITA, Rui, História da Madeira, vols. iii-v, Funchal, Secretaria
Regional da Educação, 1993-1999; Id., “A nobreza da Madeira nos inícios do
tos mais conseguidos da região, que o sentido séc. xviii. O inventário de bens do capitão-cabo Pedro de Faria e Abreu”,
de “obra total” assumiria a sua máxima expres- Islenha, n.º 31, jul.-dez. 2002, pp. 46-54; Id., Colégio dos Jesuítas do Funchal,
Funchal, Associação Académica da Universidade da Madeira, 2013; Id.,
são de luxo e de ostentação: desde o maravi-
A Igreja Nova de São Jorge, Ilha da Madeira, Funchal, DRAC/Associação dos
lhoso armário paramenteiro de alçado enta- Amigos de S. Jorge, 2013; FARIA, Higino, “A função das artes decorativas na
lhado e preenchido com os principais milagres construção do barroco da capela da Lombada dos Esmeraldos. Esplendor e
fé”, Islenha, n.º 54, jan.-jun. 2014, pp. 55-88; FREITAS, Eugénio de Andrea da
dos santos da companhia, até aos armários de Cunha e, “Inventário de uma fidalga madeirense no século xviii”, Das Artes e da
parede, com molduras de mármores embuti- História da Madeira, vol. 6, 1939, pp. 71-73; LADEIRA, Paulo Jesus, A Talha e a
Pintura Rococó no Arquipélago da Madeira (1760-1820), Funchal, CEHA, 2009;
das, tudo ainda emoldurado por azulejos, e, LAMEIRA, Francisco et al., Retábulos na Diocese do Funchal, Faro, Universidade
por fim, o conjunto coberto por teto pintado do Algarve, 2014; RODRIGUES, Rita, “Manuel Pereira, entalhador e imaginário
madeirense do século xvii, e os circuitos de divulgação de modelos para as
com “brutescos” a envolverem o símbolo do periferias”, Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, n.º 2, 2010,
orago. O modelo foi, pouco depois, copiado pp. 229-325; Id., A Pintura Proto-Barroca e Barroca no Arquipélago da Madeira,
B arros , J o ã o H igino de ¬ 275

entre 1646 e 1750. A Eficácia da Imagem, 2 vols., Dissertação de Doutoramento Santos, Abel Rocha Gouveia e Domingos Reis,
em Estudos Interculturais apresentada à Universidade da Madeira, Funchal,
texto policopiado, 2012; SANTA CLARA, Isabel, Das Coisas Visíveis às Invisíveis. um romance intitulado Uma Tragédia na Ma-
Contributos para o Estudo da Pintura Maneirista na Ilha da Madeira (1540-1620), deira, editado no Funchal em 1910. A poesia
2 vols., Dissertação de Doutoramento em História da Arte da Época Moderna
apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2004;
também o cativava, como se pode constatar
SERRÃO, Vítor, “O barroco”, in História da Arte em Portugal, vol. iv, Lisboa, pelo facto de Luís Marino o ter incluído no
Presença, 2003; TOMÁS, Manuel, Insulana, Amberes, Ioam Mevrsio Impressor,
1635; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século
conjunto de poetas madeirenses descritos na
XVII, Funchal, DRAC, 2000. Musa Insular, com uma poesia intitulada “Duas
Marias”.
Rui Carita
Dedicou-se, de igual modo, ao jornalismo
madeirense, fazendo parte, ainda jovem, da re-
Barros, João Higino de dação do Diário Popular e tendo dirigido, pos-
teriormente, o Comércio do Funchal. Colaborou
Foi um funcionário público, comerciante, jor- no Jornal da Madeira e no Diário de Notícias, es-
nalista e escritor madeirense, nascido na fre- crevendo ainda para o Almanaque Ilustrado do
guesia do Estreito de Câmara de Lobos a 11 de Diário da Madeira (1913) e para o Almanaque da
janeiro de 1883, filho de Isabel Augusta de Bar- Madeira (1915).
ros e de Francisco António de Barros, sendo le- João Higino de Barros assumiu uma posi-
gitimado pelo matrimónio de ambos, em 20 de ção de relevo como presidente da Direção da
outubro de 1908. João Higino de Barros casou- Banda Municipal do Funchal, também conhe-
se por duas vezes, a primeira em 9 de fevereiro cida por Banda dos Artistas Funchalenses, du-
de 1901 com Maria Augusta de Gouveia, nas- rante 10 anos. Nesse período, trabalhou com
cendo deste casamento um filho, e a segunda probidade e zelo para que esta banda atingisse
vez, já viúvo, com Rosa Brígida de Vasconcelos, elevados patamares de qualidade, o que conse-
em São Pedro, a 7 de Setembro de 1907, união guiu graças à preciosa colaboração do talento-
da qual nasceram duas filhas. so maestro capitão Gustavo Coelho, tornando
Sobre a sua infância pouco se sabe, embora a a Banda Municipal do Funchal uma das me-
notícia da sua morte refira que João Higino de lhores a nível nacional. Partiu de sua iniciati-
Barros “veio muito novo para o Funchal” (DN, va um dos pontos altos de consagração dessa
12 maio 1917, 2). Ainda que não se saiba tam- banda, que, pela primeira vez da sua história,
bém onde estudou, temos conhecimento, con- saiu da Ilha em digressão: a 10 de outubro de
tudo, de que principiou a carreira profissional 1927, a Banda partiu no Lima rumo aos Aço-
como fiscal dos produtos agrícolas, tendo tran- res, acompanhada por um grupo de excursio-
sitado para a empresa comercial Giorgi & C.ª, nistas, tendo regressado à ilha da Madeira a 23
onde demonstrou probidade durante as suas de outubro de 1927, momento assinalado por
funções e ocupou um papel de relevo. Sabe-se uma receção apoteótica no cais do Funchal.
que, aquando da dissolução da Companha de Por ocasião desta visita aos Açores, João Higi-
Tabacos da Madeira, possuía ações comerciais no de Barros compôs uma canção intitulada
nesta empresa. À data da sua morte, João Higi- “Homenagem a São Miguel”, com música de
no de Barros desempenhava as funções de ge- Gustavo Coelho.
rente técnico da Sociedade Mercantil Insular Desta viagem e do sucesso artístico da banda,
Lda. João Higino de Barros dirá, quando entrevis-
Durante o curto governo de Sidónio Pais, de tado pelo Diário de Notícias, que “O sucesso ar-
8 de dezembro de 1917 a 14 de dezembro de tístico excedeu toda a nossa expetativa. Tanto
1918, João Higino de Barros fez parte da co- o grupo dramático como a banda, agradaram
missão administrativa da Câmara Municipal do absolutamente e foram delirantemente aplau-
Funchal. didos” (DN, 25 out. 1927, 2).
Cultivou o gosto pelas letras, escrevendo, em Em 1930, abandonou o cargo que ocupa-
colaboração com Albino de Menezes, Baptista va na Banda Municipal do Funchal de forma
276 ¬ B arrow , J ohn

litigiosa, tendo, nesse mesmo ano, iniciado um


ato judicial de arresto dos bens da mesma, por
causa da dívida que reclamava, relativa aos seus
anos de serviço. Sobre este momento dramáti-
co na vida, João Higino de Barros, no sentido
de esclarecer a opinião pública funchalense,
escreveu em 1931 um pequeno opúsculo inti-
tulado Dez Anos nos “Artistas”.
João Higino de Barros morreu em 11 de
maio de 1941, de forma repentina, na sua re-
sidência. A notícia da sua morte provocou a
consternação e a incredulidade geral, escre-
vendo o Diário de Notícias que “a brutalidade
da notícia produziu como é natural, um cho-
que violento, especialmente em todos aqueles
que privavam com o Sr. João Higino de Barros,
tendo tido a ocasião de apreciar as suas quali-
dades de verdadeiro homem de bem” (DN, 12
maio 1941, 2). Foi sepultado no cemitério das
Angústias, e durante o seu funeral foi acom- Fig. 1 – Sir John Barrow, óleo de c. 1830 (Ministry of Defence Art
Collection, Londres).
panhado pela Banda Municipal e pela Banda
Distrital do Funchal, tendo estas colocado, nas
suas sedes, o estandarte a meia haste. a documentação daquela missão, a qual foi de-
pois publicada.
Bibliog.: manuscrita: ABM, Paróquia de Santa Luzia, liv. 6495, fl. 2; Ibid.,
Paróquia de São Pedro, liv. 6827A, fl. 64; Ibid., Paróquia do Estreito de Câmara Após o retorno da embaixada em 1794, Bar-
de Lobos, liv. 3325A, fl. 10; impressa: BARROS, João Higino, Dez Anos nos row foi consultor do governo britânico em
“Artistas”, Funchal, Tip. Sport do Funchal, 1931; CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-
Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do
diversos assuntos relacionados com a China
Funchal, 1983; Diário de Notícias, 7 out. 1927; 11 out. 1927; 25 out. 1927; 12 e, em 1797, já como secretário particular de
maio 1941; 13 maio 1941; MARINO, Luís, Musa Insular: Poetas da Madeira,
Funchal, Eco do Funchal, 1959.
lorde Macartney, partiu com o mesmo em mis-
são para a recém-adquirida colónia do cabo da
Carlos Barradas Boa Esperança. Decidiu então estabelecer-se
na África do Sul, casando-se em 1800 e com-
prando, inclusivamente, uma casa na Cidade
Barrow, John
do Cabo. No entanto, a entrega da colónia, em
Nascido na aldeia de Dragley Beck, na fregue- 1802, alterou o projeto, levando-o a regressar a
sia de Ulverston, em 1764, John Barrow seguiu Inglaterra, onde acabou por ser nomeado, em
depois para o Lancashire, trabalhando, muito 1804, segundo secretário do Almirantado pelo
novo, numa fundição de ferro em Liverpool visconde Melville (1756-1823); ocupou este
e, posteriormente, já com cerca de 20 anos, cargo durante 40 anos, sendo sucessivamente
como professor de Matemática numa escola reconduzido ao longo de 11 direções e apenas
particular em Greenwich. Teve como aluno o suspenso no período de 1806-1807, durante a
filho de sir George Leonard Staunton (1737- vigência de um Governo liberal em Inglaterra.
1801), botânico da East Indian Company, que Alguns anos depois da edição da documen-
o integrou na primeira embaixada britânica à tação oficial da viagem de sir George Leonard
China, em 1792-94, liderada por lorde George Staunton à China, em 1797, Barrow edita-
Macartney (1737-1806). John Barrow adquiriu ria, em 1804, outros elementos recolhidos na
então bons conhecimentos da língua chinesa, mesma viagem, essencialmente sobre a China;
contribuindo, inclusivamente, com dados para em 1806, para além dos seus trabalhos sobre a
B arrow , J ohn ¬ 277

África do Sul, publicaria também a sua própria


descrição da sua viagem inicial, a que anexou
então outros elementos que recolhera, entre-
tanto, na África do Sul, com o título Viagem à
Cochinchina, onde se encontra a descrição da
passagem pela Madeira. Adquirira, entretanto,
uma boa prática de desenho e também conhe-
cimentos de botânica, que deu à estampa em
várias obras. O pequeno apontamento que faz
da passagem pela Madeira apresenta dois de-
senhos da sua autoria, então litografados, mas
não fornece especiais dados respeitantes à bo-
tânica. O seu texto foi traduzido e publicado
no Heraldo da Madeira, nos n.os 290 a 292 e 297
a 298, provavelmente pelo Ten.-Cor. Alberto Fig. 2 – Porto do Funchal, litografia de T. Cadell e W. Davies (BAR-
Artur Sarmento (1878-1953), pois uns anos de- ROW, 1806, 3).

pois (em 1952) voltou a publicá-lo.


John Barrow escreve, acerca da sua chega- John Barrow esteve somente alguns dias no
da ao Funchal, que “com o alvorecer, gradual- Funchal, mas visitou a Sé, o hospital da Mise-
mente se vão dissipando os nevoeiros e o de- ricórdia e os conventos de Santa Clara e de S.
senrolar do panorama é cheio de atrativos para Francisco. Queixa-se, entretanto, de que “varas
um estrangeiro, pela variação do colorido e da de porcos atraídos pelo engodo dos montu-
novidade. Na límpida baía vem mirar-se a cida- ros vagueavam em liberdade pelas ruas”, o que
de, escoante pela encosta, amparada aos lados causava dificuldades aos estrangeiros, tanto
por íngremes e escabrosas rochas vulcânicas, e mais que os suínos se arrogavam de franca fa-
a contrastar singularmente com a branca casa- miliaridade, dando, não raro, uma focinhada
ria e a ridente vegetação que vai trepando ao no transeunte a título de saudação. A cidade
mais alto da montanha. Destacam-se, a cavalei- do Funchal tinha poucas habitações boas, no
ro, pelos socalcos do aclive, igrejas e capelas, vi- seu entender, e essas pertenciam aos vários ne-
vendas e conventos, bizarramente dispostas, e gociantes ingleses que estavam estabelecidos
casinhas minúsculas, perdidas à distância. A es- com negócios de vinho. Eram casas bastante
pelhante baía coalhada de embarcações, os espaçosas, mas que não ofereciam a comodida-
pequenos barcos dormentes na praia, o gran- de e conforto desejados. Escreve que as casas
de ilhéu, lavado da maresia e montado de ca- eram cobertas por telhas, sendo reforçadas por
nhões dão ao conjunto um aspeto soberbo e “pedras escuras, em contrapeso até aos beirais,
grandioso” (SARMENTO, 1952, III, 131-132). para impedir o escorregamento e neutralizar,
O porto do Funchal estava assim coalhado até certo ponto, a violência do vento que às
de embarcações e era dominado pelo “gran- vezes as faz bailar” (Id., Ibid., 132-133).
de ilhéu”, “montado de canhões”, que dava ao O autor refere a utilização de odres feitos
conjunto “um aspeto soberbo e grandioso”. Era de pele de cabra para o transporte de vinho, a
considerado um bom ancoradouro e encontra- preparação do coiro branco para o calçado, o
va-se abrigado em quase todo o tempo, mas, fabrico das lãs grosseiras para os barretes e os
salienta o autor, tornava-se perigoso “quando tecidos de linho para o vestuário. Anota que os
sopra o rijo vento do sul”, citando a ocorrên- homens vestiam camisa de linho ou de algo-
cia com o Hindostan, naufragado numa dessas dão, calças de cotim e usavam um barrete azul
situações, enquanto o comandante Makintosh ou encarnado, mas não refere o pormenor
estava em terra, “sem o poder ir socorrer” e dos altos espigões dos barretes que impressio-
toda a tripulação perecera (Id., Ibid., 133). naram a maioria dos viajantes, especialmente
278 ¬ B atalh ã o de V oluntários

alemães. As mulheres do campo, na ceifa e fundadores, com sir John Franklin (1786-1847)
no mato, vestiam apenas camisa, saia e barre- e Francis Beaufort (1774-1857), da Royal Geo-
te com um lenço atado à cabeça, enquanto as graphical Society. Recebeu, em 1821, o grau
senhoras e donzelas invariavelmente trajavam académico da Univ. de Edimburgo e, em 1835,
de preto, com um capucho cobrindo a cabe- foi agraciado com o título de barão, por indi-
ça. Contrariamente aos costumes dos outros cação do ministro sir Robert Peel (1788-1850).
países, onde os pedintes se apresentavam com Nos últimos anos da sua vida, dedicou-se a es-
“aparência que imprime compaixão, aqui os crever as suas memórias, somente publicadas
pobres usavam o seu melhor fato na missão de em 2009, e a fomentar as viagens científicas no
mendigar, tendo observado um de cabeleira e Ártico, ação que iniciara como secretário per-
espadim” (Id., Ibid., 133). manente do Almirantado, tendo ficado vários
A descrição da ilha da Madeira não é assim acidentes geográficos dessa área com o seu
especialmente importante, embora apresente nome. Morreu em 1848.
uma pequena ilustração do porto do Funchal;
Obras de John Barrow: Travels in China. Containing Descriptions, Observations,
mas inclui uma litografia inédita da capela dos and Comparisons, Made and Collected in the Course of a Short Residence at the
ossos do Convento de S. Francisco do Funchal, Imperial Palace of Yuen-Min-Yuen, and on a Subsequent Journey through the
Country from Pekin to Canton (1804); A Voyage to Cochinchina in the Years 1792
depois copiada noutras publicações.
and 1793, Containing a General View of the Valuable Productions and the Political
A viagem de John Barrow integrou-se na Importance of This Flourishing Kingdom (1806); An Auto-Biographical Memoir of
época de afirmação do domínio da navegação Sir John Barrow, Bart, Late of the Admiralty, Including Reflections, Observations,
and Reminiscences at Home and abroad, from Early Life to Advanced Age (2009).
atlântica, que levaria ao grande conflito das
Guerras Napoleónicas. Como secretário per- Bibliog.: BARROW, John, A Voyage to Cochinchina in the Years 1792 and
1793, Containing a General View of the Valuable Productions and the Political
manente do Almirantado britânico, Barrow Importance of This Flourishing Kingdom, London, T. Cadell and W. Davies in
ficou com a fama de ter sido o proponente da the Strand, 1806; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. vii, Funchal, Secretaria
Regional da Educação/Universidade da Madeira, 2008; SARMENTO, Alberto
ilha de Santa Helena como local de exílio para Artur, Ensaios Históricos da Minha Terra. Ilha da Madeira, 2.ª ed., 3 vols., Funchal,
Napoleão Bonaparte (1769-1821) após a der- JGDAF, 1952; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; STAUNTON, George
rota na batalha Waterloo, em 1815. Foi mem- Leonard, An Authentic Account of an Embassy from the King of Great Britain to
bro do Raleigh Club, fundado por sir Joseph the Emperor of China Including Cursory Observations Made, and Information
Obtained in Travelling through That Anciente Empire; together with a Relation of
Banks (1743-1820) em 1788 e, depois, um dos the Voyage Undertaken on the Occasion of His Majesty’s Ship The Lion, and the
Ship Hndostan, in the East India Company’s Service, to the Yellow Sea and Gulf
of Pekin, as well as of Their Return to Europe; Taken chiefly from the Papers of His
Excellency the Earl of Macartney, Sir Erasmus Gower, and of Other Gentlemen in
the Several Departments of the Embassy, 3 vols., London, W. Bulmer & Co. for
G. Nicol, 1797; WILHEM, Eberhard Axel, “Os madeirenses na visão de alguns
germânicos. O seu aspecto e carácter e a sua maneira de viver (I) (1825 a 1860)”,
Xarabanda, n.º 7, 1995, pp. 2-13.

Rui Carita

Batalhão de Voluntários
A formação dos Batalhões de Voluntários en-
quadra-se na complexa situação de confron-
to entre liberais e absolutistas no contexto da
guerra civil portuguesa de 1828-1834. A pri-
meira força foi determinada pelo Gov. José
Lúcio Travassos Valdês (1787-1862), futuro
conde do Bonfim, por portaria de 28 de junho
de 1828, com denominação de Batalhão de Vo-
luntários Reais de D. Pedro IV, composto por
Fig. 3 – Capela dos ossos do Convento de S. Francisco do Funchal,
litografia de T. Cadell e W. Davies (BARROW, 1806, 37). seis companhias de 100 praças cada e dotado
B atalh ã o de V oluntários ¬ 279

entretanto de algumas armas e munições, in-


clusivamente vindas posteriormente de Lon-
dres. O comando foi depois entregue ao major
do Real Corpo de Engenheiros, Jerónimo Mar-
tins Salgado, uma vez que na sua formação
estava a cargo do futuro conde de Carvalhal
(1778-1837), naquela altura sem condições de
saúde para o assumir. Como alferes da 1.ª com-
panhia tinha-se alistado um dos filhos do go-
vernador, José Bento Travassos Valdês (1814-
1881), depois 2.º conde, então com 14 anos,
com carta patente de 16 de julho de 1828, logo
pouco tempo depois da portaria que determi-
nou a formação do batalhão.
Anexa ao batalhão alguns dias depois de este
ser formado e por portaria de 8 de julho, tinha
sido igualmente criada a Companhia de Volun-
tários de Cavalaria, comandada pelo Cap. João
José de Bettencourt e Freitas. Teria então cerca
de 64 voluntários, metade dos quais devida-
mente equipados e montados, mas à custa dos
próprios, tendo conseguido também receber
armamento de Londres. No entanto, eram vo-
luntários e o seu rendimento militar seria sem- Fig. 1 – Voluntário real de milícias a cavalo, desenho à pena
de c. 1822 (AHM).
pre condicionado. Neste conjunto, havia ainda
a contar 26 peças, entre as quais alguns obuses
de calibre grosso, que se encontravam “em par- Camacho. Tinha um efetivo oficial de cerca
que” no trem de São Lourenço. de 850 praças, reduzidas então a 200, 100 das
À data, a população da Madeira não exce- quais recrutas. Restava ainda a velha e estro-
dia os 110.000 habitantes e, militarmente, di- piada companhia do regimento de Artilha-
vidia-se em três regimentos de milícias: mal ria 2, com quartel no Algarve, que fora para
armados, mal equipados e sem qualquer dis- a Madeira com a alçada de 1823. Teria então
ciplina. Olhando ainda para o conde de Car- 68 artilheiros comandados pelo Maj. Joaquim
valhal como seu coronel, embora há muito a Guilherme da Costa. As guarnições das forta-
seu pedido afastado, dadas as já precárias con- lezas, salvo as do Funchal, que ainda faziam
dições de saúde, o regimento do Funchal pos- exercícios, embora envolvessem quase 1000
suía ainda algum fardamento e armamento. homens dispersos por mais de 26 fortes e re-
Era então comandado pelo Ten.-Cor. Valen- dutos, com 220 bocas de fogo, também não
tim de Freitas Leal (1790-1879). O regimen- ofereciam qualquer garantia, pois tratava-se
to da Calheta era comandado pelo Cor. João de milícias sem qualquer preparação militar
Agostinho de Figueiroa e Albuquerque e o ou ideológica, pelo que ao primeiro tiro de-
de São Vicente pelo Cor. João Lício de Lagos bandariam, como veio a acontecer.
de Teixeira de Vilhena, ambos sem qualquer Conforme previsto pelo governador, a 25
força senão a vagamente dissuasória. O bata- de junho de 1828 aparecia em frente ao
lhão do Funchal, misto de infantaria e artilha- porto do Funchal a fragata realista Princesa
ria, era então comandado pelo Cor. Francis- Real, transportando a bordo o novo governa-
co Manuel Patrone, recentemente regressado dor e capitão-general, capitão de mar e guer-
à ilha, e pelo Ten.-Cor. António Fernandes ra José Maria Monteiro, assim como um novo
280 ¬ B atalh ã o de V oluntários

corregedor para a comarca e demais magis- Machico e, avançando para o Funchal, bene-
trados de uma alçada de Justiça, munidos de ficiaram do rebentamento do paiol do forte
poderes discricionários, como havia aconteci- do Porto Novo, onde se haviam concentrado
do em 1823. O Gov. Travassos Valdês enviou a os principais meios de defesa, que lhes abriu
bordo um emissário comunicando o estado de o caminho para a cidade, não tendo havido
espírito na ilha, que se oporia a qualquer de- qualquer outra força que especialmente as
sembarque e intimando a fragata à saída ime- enfrentasse.
diata das águas da Madeira. De imediato, o go- No regime seguinte, absolutista, determi-
vernador enviou ordens a todas as tropas de nou o Gov. José Maria Monteiro, a 6 de se-
1.ª e 2.ª linhas, assim como ao sargento-mor do tembro de 1828, o alistamento para um corpo
Funchal e aos comandantes dos fortes e redu- de Voluntários Realistas Urbanos da Madeira,
tos da linha costeira, para fazerem face à situa- com um major comandante e quatro compa-
ção. No mês seguinte, chegava nova esquadra nhias, devendo cada uma ter 1 tenente, 1 al-
“realista” e o governador preparava a defesa feres, 10 sargentos, 1 furriel, 2 cabos, 2 pra-
da ilha, essencialmente com base no Batalhão ças anspeçadas e 52 soldados. Com data de 1
de Voluntários, que, segundo o governador do de setembro, já tinha nomeado o tenente de
Porto Santo, o Brig. João José da Cunha Fidié Artilharia Policarpo António Teives para co-
(c. 1790-1856), teria 600 homens. As forças do mandar os Voluntários, que seria graduado
Rei D. Miguel haveriam de desembarcar em em major, “atendendo à reconhecida honra
e fidelidade” do mesmo (ABM, Governo Civil,
798, fl. 35v.). Segundo os ofícios do seguinte
governador, D. Álvaro da Costa de Sousa de
Macedo (1789-1835), para o conde de Basto,
de 30 de agosto e 9 de setembro de 1831, esse
corpo só chegara a ter uma companhia, em-
bora para o mesmo o governador reclamasse
os privilégios e regalias concedidos aos volun-
tários do reino pelo decreto de 26 de setem-
bro de 1828. À data, era capitão e comandan-
te dos Realistas Urbanos Pedro Agostinho
Teixeira de Vasconcelos, que a 8 de novembro
de 1831 requeria para si e para os seus oficiais
subalternos a honra de usar “a medalha de
ouro com a Efígie Real” de D. Miguel (AHU,
Madeira e Porto Santo, docs. 11955 e 11956).
Com a chegada das forças constitucionais de
D. Pedro IV, em julho de 1834, não se registou
sequer qualquer movimento deste corpo de
voluntários realistas urbanos.
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivos Particulares; Ibid., Câmara Municipal
do Funchal, Registo Geral, tombo 6; Ibid., Governo Civil, livs. 178, 192 e 798;
AHU, Madeira e Porto Santo, docs. 10.723-10.724, 10.787-10.788, 11.955-11.956
e 12.817; impressa: CARITA, Rui, Paulo Dias de Almeida, Tenente Coronel do
Real Corpo de Engenheiros, e a Sua Descrição da Ilha da Madeira de 1817/1827,
Funchal, DRAC, 1982; Id., História da Madeira, vol. v, Funchal, Secretaria
Regional de Educação, Juventude e Emprego, 2003; FREITAS, Lourenço de,
“A Batalha das Voltas”, Islenha, n.º 13, jul.-dez. 1993, pp. 138-150; SILVA,
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3
Fig. 2 – Patente de alferes dos Voluntários Reais de D. Pedro IV vols., Funchal, DRAC, 1998.
para José Bento Travassos Valdês, Funchal, 16 de julho de 1828
(ABM, Arquivos Particulares). Rui Carita
B atistas ¬ 281

Batistas Todavia, só a partir do séc. xviii os batistas


começaram a ter uma presença relevante no
As primeiras comunidades batistas em Portugal Novo Mundo, nomeadamente nas colónias do
nasceram entre o último quartel do séc. xix e Sul do território. Herdeiras dos princípios ge-
os princípios do séc. xx, na cidade do Porto, néricos fundamentais consagrados na Reforma
através de trabalhos de evangelização entre protestante do séc. xvi, as igrejas batistas rara-
cidadãos portugueses de homens como o bri- mente reclamaram para si uma identidade ti-
tânico Joseph Charles Jones (1848-1928), o picamente luterana ou reformada, preferindo
português Jerónimo Teixeira de Sousa (1868?- exaltar valores e exemplos da chamada Refor-
1928?), que havia emigrado para o Brasil, o ca- ma radical ou anabatista, pelo menos no que
nadiano Reginald Young (1867-1923) e o nor- de mais distintivo este movimento teve, i.e., na
te-americano Zacarias Clay Taylor (1851-1919), rejeição do pedobatismo, privilegiando assim
missionário no Brasil. Após o primeiro período o batismo administrado apenas a adultos, com
de implementação, estas comunidades forma- base na sua confissão de fé pessoal.
ram-se enquanto igrejas, de uma forma mais A despeito do enorme espetro doutrinal
consistente, no primeiro quartel do séc. xx, es- que tem caracterizado os batistas ao longo
palhando-se pelo Norte e Centro do país, che- de quatro séculos, que permite enquadrar
gando a Lisboa em 1922. as suas comunidades em vertentes teológicas
Todavia, para se conhecer a origem da fé ba- aparentemente tão distantes umas das outras
tista é necessário recuar ao séc. xvii, quando quanto calvinismo, arminianismo, sabatismo
uma comunidade com cerca de 40 britânicos ou mesmo unitarismo, pode-se identificar um
não conformistas, liderada por John Smyth (c. conjunto de princípios relativamente unifor-
1570-1612) e Thomas Helwys (1550-1616), re- mes em todas estas igrejas. Em primeiro lugar,
fugiados em Amesterdão, Holanda, por razões o princípio que ficou consagrado na Reforma
de perseguição religiosa na sua nação de ori- protestante como Sola Scriptura, que os batis-
gem, renunciou ao batismo na Igreja de In- tas geralmente vertem para a afirmação ca-
glaterra, tomando novo sinal de acordo com tequética de que “as Sagradas Escrituras são
o rito anabatista, por volta de 1608. É, porém, a única regra de fé e prática”. Em segundo
de regresso a solo inglês que os grupos batis- lugar, o conceito de que a “verdadeira igre-
tas, com simpatia de separatistas e puritanos, ja” é constituída apenas pelos crentes que já
se começaram a disseminar ainda ao longo da fizeram a sua afirmação de fé pessoal, razão
primeira metade desse mesmo século. A pri- pela qual é rejeitado o pedobatismo. Em ter-
meira comunidade batista em Londres ter-se-á ceiro lugar, a convicção muito firme, à seme-
formado, em 1612, após o retorno de Helwys lhança dos ensinos dos grandes reformadores
e de alguns dos seus seguidores, dando ori- magisteriais, mas também dos anabatistas, de
gem aos chamados “batistas gerais”, de ten- que todos os crentes são sacerdotes, não ha-
dência arminiana. Em 1638, surgem registos vendo assim um ofício clerical stricto sensu e,
de uma comunidade calvinista, cujos membros consequentemente, uma herança ou sucessão
são denominados “batistas particulares”. Esti- apostólica reservada a apenas alguns desses
ma-se que, em 1660, já existissem cerca de 300 fiéis. Como legado da sua influência congre-
comunidades locais batistas, apenas em Ingla- gacionalista, os batistas creem ainda na total
terra, tanto “gerais” como “particulares”, não autonomia e independência das comunida-
agrupadas entre si nem constituindo qualquer des locais, não estando, por isso, sujeitos a ne-
corpo eclesiástico centralizado. Ao mesmo nhuma autoridade episcopal, sinodal ou de
tempo, na América do Norte anglo-saxónica, outra natureza, de âmbito nacional e muito
assistia-se ao despontar do protestantismo pu- menos supranacional. Finalmente, os batistas
ritano com toda a sua diversidade, em muito são fervorosos adeptos da liberdade religiosa
devido às perseguições religiosas na Europa. e da separação do Estado das igrejas. Mas é a
282 ¬ B atistas

diversidade que constitui a mais importante de Santa Cruz do Rio Pardo, Brasil, onde tra-
marca de água destas igrejas. balharam entre 1972 e 1975. Edgar Potter, com
Em Portugal, ao longo do séc. xx, o trabalho formação na área da construção civil, conheceu
batista foi ganhando dimensão, abrangendo as o trabalho batista em Portugal através do antigo
principais cidades do território nacional, con- padre católico António Gonçalves Pires, que, na
tribuindo para tal a constituição de associações déc. de 70 do séc. xx, era pastor em São Paulo,
de cooperação, geralmente apoiadas por juntas Brasil. Após saber da ida dos missionários Fran-
missionárias estrangeiras. Apesar disso, a Madei- cisco António e Márcia Venturini Souza para os
ra nunca foi um território considerado relevan- Açores e da ausência de trabalho na Madeira,
te para o trabalho missionário batista em Portu- em 1975, Potter preparou-se para ir para esta
gal. Ao contrário dos Açores, onde terá existido região. Com o apoio de igrejas locais e de cren-
um pequeno e fugaz trabalho por volta de 1912, tes batistas, o casal instalou-se, em 1976, em
ressurgido em 1974, o arquipélago da Madei- Santa Cruz, onde, no ano seguinte, inaugurou
ra só conhecerá a primeira igreja batista nos fi- a Missão Baptista. De forma a poder sustentar
nais dos anos 1970. Antes disso, houve contac- financeiramente o trabalho, Edgar Potter lecio-
tos com alguns pastores batistas do continente, nou Inglês e dedicou-se a realizar traduções de
sobretudo com João Jorge de Oliveira (1883- inglês para português. O casal abriu ainda uma
1958), chegando mesmo este a visitar a Ilha em livraria e, mais tarde, entre 2001 e 2013, Potter
1911 e 1912, e com João Gomes Loja (?-?), natu- assumiu o cargo de cônsul dos EUA no Funchal.
ral da Madeira, pastor da Igreja Baptista Portu- Em 1980, pela primeira vez na Região, a igre-
guesa de Cambridge, Massachusetts, nos EUA, ja realizou batismos: um dos filhos do casal e
que esteve na Madeira em 1924, colaborando uma jovem madeirense. A Igreja Baptista de
com a Missão Metodista Episcopal ali instalada. Santa Cruz viria a ser organizada a 31 de ja-
Mas é apenas em 1976 que chegam à Madeira neiro de 1981, com seis membros, realizando,
os primeiros missionários batistas, de nacionali- logo na semana seguinte, mais um culto de
dade norte-americana, Edgar R. Potter e Abigail batismos. Foi a 1 de dezembro de 1982 que
Louise Potter, como enviados da Igreja Batista esta igreja abriu o primeiro lugar de culto no
Funchal, mais precisamen-
te na Choupana, de onde
se mudou, em 1984, para a
R. das Murças. Em 1985, a
igreja mudou a sua desig-
nação para Igreja Baptista
do Funchal e abandonou,
no ano seguinte, a vila
de Santa Cruz. Em 1987,
foi inaugurado um novo
lugar de culto no Funchal,
na posteriormente deno-
minada R. Silvestre Quin-
tino de Freitas, mais no
centro da cidade, num es-
paço destinado a garagem
e que foi substituído, em
2004, por um novo edifí-
cio, construído proposi-
tadamente para instalar a
Igreja Batista do Funchal (R. Quintino de Freitas) (fotografia de Bernardes Franco, 2020). igreja.
B azenga , G il ¬ 283

Desde a sua fundação, o trabalho iniciado Press, 2010; Voz da Madeira, ano iv, n.º 39, set. 1911; ano v, n.º 50, ago. 1912;
ano v, n.º 53, nov. 1912; ano xii, n.º 132, abr. 1924; ano xii, n.º 133, maio
pelos missionários Potter não tem tido uma li- 1924; ano xii, n.º 134, jun. 1924; digital: Igreja Baptista do Funchal: www.
gação formal com qualquer organização batista funchalbaptistchurch.com (acedido a 17 jun. 2020); Voz Baptista Madeirense:
http://vozbaptistamadeirense.blogspot.com (acedido a 25 jan. 2021).
portuguesa, mantendo, contudo, uma coope-
ração pontual com outras igrejas portuguesas Fontes orais: POTTER, Edgar, entrevistado por Rúben Baptista de Oliveira, 1
abr. 2015 [registo na posse do autor].
e com a Convenção Baptista Portuguesa. De
resto, a presença deste casal foi, ao longo dos Rúben Baptista de Oliveira
anos, relativamente discreta, sendo pouco co-
nhecida para a larga maioria dos batistas por-
tugueses. O Semeador Baptista, principal e mais
Bazenga, Gil
antigo órgão do movimento em Portugal em Gil França Bazenga nasceu em 1933, no Fun-
publicação, ao invés do que acontecia com o chal, e faleceu em 2013. Nos anos 50, frequen-
trabalho nos Açores, não fará mais do que bre- tou o curso de Arquitetura na Escola Supe-
ves referências a esta comunidade funchalen- rior de Belas Artes do Porto e nas décs. de 60
se, mencionando por duas ou três ocasiões a e 70 viveu em Moçambique, onde foi docente
presença de um trabalho naquela cidade. e onde dinamizou várias atividades culturais,
Na déc. de 80 do séc. xx, a Igreja Baptista do destacando-se o desempenho na coordenação
Funchal teve um programa de rádio, que emi- do Auditório e Galeria de Arte da Cidade da
tiu durante dois anos, e manteve como fonte Beira e do Centro de Cultura e Arte da Beira.
de divulgação do seu trabalho um blogue na Em finais dos anos 70, regressa ao Funchal,
Internet intitulado Voz Baptista Madeirense. No onde conclui, no Instituto Superior de Artes
início do séc. xxi, continuava ainda presente Plásticas da Madeira (ISAPM), o curso de Artes
nas redes sociais. Plásticas, na sua variante de Escultura.
Em 2016, Edgar Potter anunciou o regres- Escultor de formação, Bazenga destacou-se
so ao seu país de origem, exatamente 40 anos também enquanto docente de Artes Visuais,
após a chegada da família à Região. Para o tendo pertencido ao quadro de professores
substituir na liderança da igreja, foi escolhi- da Escola Secundária de Francisco Franco, no
do José Carlos Ribeiro Gonçalves, natural do Funchal. Para além da sua atividade como do-
Porto, que para o efeito foi constituído pastor. cente, desenvolveu uma prática contínua espe-
A Igreja Baptista do Funchal tem cerca de cializada na área da cerâmica, explorando com
45 membros e realiza serviço de culto aos do- rigor e criatividade diversas possibilidades téc-
mingos, em línguas inglesa, russa e portugue- nicas desta linguagem. Neste contexto, foi um
sa, tendo uma assistência conjunta de 70 a 80 dos protagonistas da intensa movimentação
pessoas. Mantém igualmente ativo o projeto cultural e artística ocorrida no Funchal nos
“A Porta” que procura transmitir o evangelho anos 80, tendo participado em diversas exposi-
a crianças, adolescente e jovens da ilha da Ma- ções coletivas, das quais se destacam as mostras
deira. Dinamizado pelo casal Ismael e Vânia promovidas pelo ISAPM, a primeira das quais
Luzia, membros da igreja, o projeto leva a na própria galeria do ISAPM, em 1981; outra
cabo diversas atividades como clubes bíblicos, no Museu de Arte Sacra do Funchal, em 1983;
megaclubes, retiros e acampamentos, aliando e outras duas novamente na galeria do ISAPM,
uma componente lúdica ao ensino centrado em 1984 e 1989.
na Bíblia. Ainda em 1982, fez parte da Exposição de
Artistas Madeirenses que teve lugar no Salão
Bibliog.: impressa: BRIGGS, John, “The english baptists”, in DOWLEY, Tim Nobre do Teatro Municipal Baltazar Dias; uma
(ed.), Eerdmans’ Handbook to the History of Christianity, Grand Rapids,
mostra de pintura, escultura e cerâmica onde
Eerdmans, 1987; FAIRCLOTH, Samuel D., Esboço da História dos Baptistas.
Súmula do Livro “A History of the Baptists” por Roberto G. Torbet, Ph. D., Gil Bazenga partilhou o espaço com a pin-
Leiria, Vida Nova, 1959; FELIZARDO, Herlânder, História dos Baptistas em tora Alice Sousa e o escultor Franco Fernan-
Portugal, Lisboa, Centro Baptista de Publicações, 1995; JOHNSON, Robert E.,
A Global Introduction to Baptist Churches, Cambridge, Cambridge University des, colegas que o acompanharam ao longo
284 ¬ B azenga , G il

e pequenos painéis cerâmicos. No que diz res-


peito a obras de maior envergadura, patentes
em espaços públicos, destaca-se o painel cerâ-
mico do Mercado da Penteada, no Funchal,
realizado em coautoria com Celso Caires, em
1988. Este painel é composto por um conjun-
to de azulejos desenhados por Caires, acompa-
nhados por um conjunto de peças quadrangu-
lares em volume, texturizadas e sem figuração,
da responsabilidade de Bazenga. Trata-se de
uma composição dinâmica e ao mesmo tempo
equilibrada, que 30 anos mais tarde se encon-
trava em bom estado de conservação. Outra
peça de relevo, também criada em coautoria,
desta vez com o escultor Franco Fernandes, é o
painel de título Água Viva, realizado em 1993,
que se encontra nas instalações do Clube Naval
do Funchal. Neste caso, foi realizada uma com-
posição à volta da representação do nu femini-
no de carácter mitológico, acompanhado por
Cerâmica vidrada, Gil Bazenga, 1998. desenvolvimentos abstratizantes de rico colori-
do e inspiração orgânica, elementos caracterís-
da sua carreira, expondo em conjunto e rea- ticos dos trabalhos do autor que assina a pintu-
lizando trabalhos em coautoria. São de salien- ra deste painel.
tar ainda outras coletivas desta década: a ex- Podem ser encontradas outras intervenções
posição na galeria da Secretaria Regional de do escultor em espaços visitáveis, nomeada-
Turismo e Cultura (SRTC), com Alice Sousa mente no interior da Escola Secundária Fran-
e Luís Amado, em 1985; a coletiva itinerante cisco Franco, no Colégio de Santa Teresinha e
ISAPM/85 – 30 Anos do Ensino Superior Ar- no Hotel Éden Mar. Para espaços exteriores,
tístico na Madeira, do mesmo ano; a Exposição Bazenga executou um painel para o antigo
Colectiva de Artes Plásticas patente na Escola Complexo Balnear do Lido, o qual, após remo-
Secundária Francisco Franco; e a I Mostra da delação, foi retirado.
Circul’Arte – Associação de Artistas Plásticos Ainda nos anos 90, o autor participou em vá-
da Madeira, integrada na Feira de Arte Marca rias mostras no Funchal, expondo novamente
Madeira 87, no Teatro Municipal Baltazar Dias. com Alice Sousa, na Galeria da SRTC (1991);
Fora da Região, Gil Bazenga mostrou o seu tra- com Marcos Milewsky, no mesmo espaço
balho na coletiva 24 Artistas Madeirenses nos (1995); na coletiva Marca Madeira/97; no Ma-
Açores, na cidade de Ponta Delgada, em 1983; deira Tecnopolo (1997); e na coletiva Na Torre
na coletiva Panorâmica – Arte & Cultura, na do Tempo, na Galeria de Arte Francisco Fran-
Galeria do Casino Estoril, em 1985; e na expo- co (1999). Já entrado o novo século, voltou a
sição Olhares Atlânticos – Mostra de artes da expor com Alice Sousa numa mostra intitulada
Madeira, realizada na Biblioteca Nacional de À Tarde, em Frente, na Galeria de Arte Francis-
Lisboa, em 1991. co Franco (2002).
Para além da criação de objetos cerâmicos, Em 2012, foi organizada uma exposição re-
quer numa versão mais experimental e escultó- trospetiva intitulada Cerâmica. Magia do Fogo.
rica, quer numa versão mais tradicional, de que Retrospetiva na Casa de Cultura de Santana.
são exemplos objetos como pratos ou potes, o Nesta mostra, a única individual apurada por
escultor realizou também esculturas de parede esta investigação, pôde ser vista a diversidade
B eatriz de P ortugal ¬ 285

de experiências realizadas e os diferentes tipos dos quais somente cinco chegaram à idade
de objetos criados por Gil Bazenga, destacan- adulta: D. João de Viseu (1448-1472), falecido
do-se uma clara influência estética com raí- sem descendência; D. Diogo de Viseu (1451-
zes num modernismo de carácter orgânico e 1484), depois assassinado por seu primo e
abstratizante, onde se salienta uma forte pre- cunhado D. João II, em 1484, dado que, no
sença de um cromatismo brilhante e de fortes mínimo, mantinha contactos com a corte de
contrastes, compensado por algumas peças de Castela e Aragão; a Rainha D. Leonor, mulher
pendor mais térreo e brutalista. de D. João II; D. Isabel de Viseu (1459-1521),
depois duquesa de Bragança, tendo o mari-
Bibliog.: VALENTE, António Carlos Jardim, As Artes Plásticas na Madeira
(1910-1990). Conjunturas, Factos e Protagonistas do Panorama Artístico Regional
do, entretanto, sido sentenciado em Évora,
no Século XX, Dissertação de Mestrado em História da Arte apresentada à a 21 de junho de 1483; e o Rei D. Manuel.
Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 1999.
O irmão mais velho de D. Beatriz, D. Diogo
Carlos Valente (1425-1443), faleceu prematuramente e a irmã
D. Isabel (1428-1496) casou-se com João II de
Castela (1405-1454), sendo mãe de Isabel, a
Católica.
Beatriz de Portugal
Não se encontra especialmente estudada
A duquesa D. Beatriz exerceu ao longo da a influência do infante D. João dentro da di-
sua vida uma intensa atividade política, por nastia de Avis, apagada pela quase omnipo-
vezes pouco avaliada, intervindo na direção da tência e presença de seu irmão D. Henrique
Ordem de Cristo, de que foi por largo tempo (1394-1460), a quem quase sempre se opôs e
administradora, muito provavelmente ainda por quem, também quase sempre, foi derro-
no tempo do infante D. Fernando e, decidi- tado. Foi Mestre da Ordem de Santiago e 3.º
damente, após o falecimento do mesmo, em
1470. Posteriormente, como tia da Rainha de
Castela, Isabel, a Católica (1451-1504), e como
sogra do Rei D. João II (1455-1495), desempe-
nhou um papel determinante na aproxima-
ção das coroas de Portugal, Castela e Aragão,
mas, na sequência dos acontecimentos, viria a
perder o genro e, depois, o filho mais velho.
O projeto acordado com a sobrinha, no entan-
to, manter-se-ia e, com uma determinação no-
tável e, por certo, com o apoio da filha, a Rai-
nha D. Leonor (1458-1525), colocaria depois
no trono de Portugal o filho mais novo D. Ma-
nuel (1469-1521).
D. Beatriz era filha do infante D. João (1400-
1442), mestre da Ordem de Santiago e 3.º con-
destável de Portugal, e de sua meia sobrinha
D. Isabel de Barcelos (1402-1465), tendo nas-
cido provavelmente em Barcelos ou em Alcá-
cer do Sal, por volta de 1420. Educada entre
a administração da Ordem de Santiago e a
casa de Barcelos, D. Beatriz veio a casar-se,
em 1447, com seu primo D. Fernando (1433-
1470), duque de Viseu e filho do Rei D. Duar- Fig. 1 – Infanta D. Beatriz de Portugal, óleo de 1678
te (1391-1438), tendo o casal tido nove filhos, (Museu Regional de Beja).
286 ¬ B eatriz de P ortugal

condestável do reino, sucedendo a D. Nuno perante as da Ordem de Cristo, essencialmen-


Álvares Pereira (1360-1431), e, quando lhe te interiores e rurais, ressalta de imediato uma
foi pedido, por seu irmão D. Duarte, o pare- maior vocação de Santiago para a futura ex-
cer sobre as guerras do Norte de África, votou pansão; no entanto, D. Henrique iria desmen-
contra a infeliz empresa de Tânger, com sóli- tir essa hipotética vocação. Mais tarde, foi a
das razões de prudência, e perdeu. Consuma- filha do infante D. João, a duquesa D. Beatriz,
do o desastre e reunidas as cortes de Leiria, que concretizou com vontade férrea a vocação
para tratar do resgate do infante D. Fernan- expansionista marítima da Ordem de Cristo
do (1402-1443), votou pelo seu resgate a qual- na época de D. Afonso V, o qual se encontrava
quer preço, mesmo à custa da entrega da praça muito mais virado para a ocupação do Norte
de Ceuta e foi igualmente vencido, não con- de África, e, depois, do próprio país, colocan-
seguindo salvar o irmão. Não espanta assim do à sua frente o filho, o futuro Rei D. Manuel.
que, nas questões da menoridade de D. Afon- A infanta D. Beatriz, título que logo usou
so V (1432-1481), tomasse o partido do infan- após a morte do marido, teve a tutoria oficial
te D. Pedro (1392-1449), o que não deve ter dos filhos por delegação e mercê de D. Afon-
deixado de, uma vez mais, reacender as suas so V, em carta datada de Lisboa, de 10 de ou-
desinteligências com D. Henrique. Tomando tubro de 1470. O papa Sisto IV (1414-1484)
em consideração as possessões da Ordem de outorgou-lhe essa tutoria oficialmente, e a go-
Santiago, maioritariamente na orla costeira, vernação da Ordem de Cristo pelo breve Super
caríssimo, de 19 de junho de 1475, que dirigiu
à duquesa. O Rei comunicou para a Madeira,
de Alenquer, a 16 de outubro de 1470, que
como fizera mercê da “Ilha de juro e herda-
de” ao irmão, com o seu falecimento, “a infan-
ta, minha muito prezada irmã”, iria mandar
tomar posse da Ilha através de Gonçalo Godi-
nho, “seu cavaleiro”, em nome de D. João, seu
filho, “duque de Viseu e de Beja, senhor da Co-
vilhã e de Moura, meu muito amado sobrinho”
(ABM, Câmara Municipal do Funchal, RG, t.
1, fl. 3). A 18 de outubro seguinte, também a
infanta, em carta enviada de Setúbal, dava co-
nhecimento do envio de Gonçalo Godinho
para a tomada de posse, para tal munido de
um seu regimento.
A administração da infanta e duquesa cedo
se fez sentir. A 27 de junho de 1471, preten-
dendo a Câmara do Funchal eleger novos ve-
readores, solicitou a opinião de D. Beatriz
sobre a constituição das futuras listas e quais
“os que se lançavam fora da Câmara e dos que
são escusos por alvarás” (COSTA, 1995, 19).
A situação conheceu alguma crispação no Fun-
chal ao longo de dezembro, com o pedido de
pareceres a alguns dos notáveis locais, como os
genros de Zarco (c. 1390-1471), recentemen-
Fig. 2 – Carta da infanta D. Beatriz informando a tomada de
posse, Setúbal, 18 de outubro de 1470 (ABM, Câmara Municipal
te falecido, Martim Mendes de Vasconcelos e
do Funchal, Registo Geral, tombo 1). Diogo Afonso de Aguiar, mas também a Diogo
B eatriz de P ortugal ¬ 287

de Teive, Mendo Afonso, João Afonso Mealhei- aos pedidos de escusa, tendo o infante respon-
ro, João Gomes, o Trovador e, inclusivamente, dido nos seus apontamentos de 7 de novembro
ao 2.º filho de Zarco, Rui Gonçalves da Câmara de 1466 que “os alvarás que tenho dado são
(1430-1497), depois capitão da ilha de S. Mi- tão poucos que os não entendo brigar em ne-
guel, nos Açores. A 1 de novembro, entretanto, nhuma maneira” (MELO, 1972, 36-37). Tinha
já tinha ordenado D. Beatriz, através de carta faltado assim alguma coragem ao infante, em
trazida depois de Lisboa por Álvaro Eanes, es- 1466, que sobrou à sua viúva, em 1471. O con-
cudeiro do duque D. Diogo, que todos os cha- flito acabou por ser dirimido, em consonância
mados homens bons servissem nos pelouros com as disposições da duquesa, e, em sessão
de oficiais dos concelhos, anulando quaisquer realizada a 5 de fevereiro, a convocatória se-
alvarás anteriores que eventualmente possuís- guinte a todos os homens bons do Funchal já
sem. Do encargo, apenas se escusava o conta- previa uma multa de 5$000 reais a quem se não
dor Diogo Afonso. apresentasse. Os recalcitrantes haviam sido
A carta da infanta foi presente à vereação derrotados pela sombra da duquesa.
realizada a 31 de janeiro do ano seguinte de Pouco depois, em finais desse mês de janei-
1472, à qual, para além do capitão João Gon- ro, tendo conhecimento de que o bispo de
çalves da Câmara (1414-1501), assistiram seus Tânger, D. Nuno de Aguiar, em princípio na-
irmãos, os fidalgos Rodrigo Gonçalves e Gar- tural da Madeira, tentava integrar a Ilha na
cia Rodrigues, bem como Diogo de Teive, Ro- sua diocese e, inclusivamente, visitar canoni-
drigo Lopes, Pero Lourenço, Mendo Afonso, camente a mesma, a infanta, em coordenação
Pero Álvares, escudeiros, Gonçalo Anes, escri- com o vigário de Tomar, sede da Ordem Cristo,
vão, João Preto, escrivão, Afonso Lopes, tabe- opôs-se terminantemente. Esse monge cister-
lião, João do Porto, sapateiro, Antão Gonçal- ciense acompanhara D. Afonso V às jornadas
ves, João do Porto, barbeiro, Pero Gonçalves, de África, tendo estado presente nas tomadas
Gonçalo Jara, João de Sintra, sapateiros, e mui- de Arzila e Tânger, vindo assim a ser apresen-
tos outros, levantando-se vários protestos, dado tado como bispo dessa nova diocese em 1468.
cancelarem-se privilégios considerados adqui- Não havendo limites perfeitamente definidos,
ridos. A voz do escudeiro Rui Lopes, que de- o novo bispo tentou englobar na sua diocese a
tinha um alvará emitido pelo infante D. Fer- população das ilhas atlânticas portuguesas, as-
nando e confirmado pela duquesa, conforme sunto que, de imediato, requereu para Roma,
referiu, expressava a indignação sentida pelos sendo atendido pelo Papa Paulo II (1417-
atingidos, como Mendo Afonso, que invocou 1471), por breve de 28 de fevereiro de 1468.
também possuir um alvará emitido pelo infan- A posição de D. Nuno de Aguiar era de
te D. Henrique, confirmado posteriormente certa forma lógica, quer pela posição geográ-
pelos infantes D. Fernando e D. Beatriz. Rui fica da nova Diocese, quer pelo povoamento
Lopes acusou então Álvaro Eanes, embora ci- dos arquipélagos atlânticos, feito na sequência
tando-o como seu amigo, de não ter defendi- da conquista de Ceuta. Por outro lado, havia
do os seus interesses, como era seu dever, tra- ainda que considerar o papel das ilhas em rela-
zendo para a ilha uma decisão contida numa ção a todo o Norte de África, verdadeiro teatro
“carta de mulher” (Id., Ibid., 29). Na vereação de operações, especialmente da Madeira, onde
de 3 de fevereiro o assunto voltaria à discussão, quase todos os mancebos, principalmente no-
e Rui Lopes, fora de si, esgrimiu ainda outras bres, iam cumprir, passe a expressão, o serviço
razões, essas pessoais, pois que vindo a ser elei- militar. Assim, existindo já a Diocese de Ceuta,
to para qualquer dos lugares camarários, como correspondente ao território marroquino me-
obrigado, “nunca havia de servir bem em ne- diterrâneo, ao criar-se uma nova diocese por-
nhuma cousa” (Id., Ibid., 31). tuguesa para o território atlântico, a mesma
Acrescente-se que, em vida de D. Fernando, deveria logicamente englobar as novas ilhas aí
o concelho já se havia queixado relativamente povoadas pelos portugueses.
288 ¬ B eatriz de P ortugal

A petição do bispo de Tânger era, no entan- enviar o contador Luís de Atouguia, que fora
to, entendida pela Ordem de Cristo como inva- guarda-roupa do infante, para superintender
lidada pelas doações conseguidas pelo infante ao assunto, o que haveria de fazer dois meses
D. Henrique, não se tendo tomado, de imedia- depois, com “carta de crença” de 23 de maio e
to, quaisquer providências de que se saiba. Mas como contador do duque seu filho na ilha da
a situação viria a alterar-se em 1472, quando o Madeira (Id., Ibid., 67-69).
bispo resolveu visitar a Madeira. Assim, a infan- Os anos seguintes foram de guerra com Cas-
ta D. Beatriz, como tutora de seu filho D. João tela, cujas armadas chegam a assediar a Madei-
e, portanto, como administradora da Ordem ra, para o que as gentes da Ilha se apressaram
de Cristo, opôs-se à visita do prelado que se in- a apoiar as armadas montadas por D. Afonso
titulava “bispo das ilhas”, enviando carta aos ca- V, esforço que o Rei agradece a 7 de agosto
pitães “e a todos os juízes e justiças oficiais”, or- de 1473. Nessa sequência, viriam os morado-
denando “que não deixem entrar em esta ilha res a solicitar a D. Beatriz a construção de uma
nenhum bispo”, “nem alguma outra pessoa” fortaleza, uma pretensão a que a duquesa, em
por sua licença ou representação (Id., Ibid., 58- carta datada de Bragança, de 20 de fevereiro
60). Esta ordem tem a data de 21 de janeiro de 1476, se escusa por ir onerar a sua Fazenda,
de 1472 e acompanhava uma outra do vigário ao momento sobrecarregada com outras des-
de Tomar, o “Dom Prior e Comendador mor pesas. A altura não podia ser pior, pois o infan-
de Requerimento”, então frei Pedro Vaz, em te D. João de Portugal casara-se, em 1471, com
que recomendava “que não usurpe ninguém a D. Leonor, filha da infanta, e tivera um filho
Jurisdição Espiritual destas ilhas”, carta envia- em 1475, como a jovem princesa comunicou
da também à Câmara Municipal do Funchal, à ilha da Madeira. O Rei D. Afonso V, entre-
tendo estado ambas presentes na vereação de 2 tanto, entregara a regência ao futuro D. João
de junho desse ano. A carta em nome do prior II e invadira Castela para defender as preten-
de Tomar exorta mesmo a população a que sões ao trono de sua sobrinha D. Joana (1462-
não se agaste, pois “cedo, com o favor divino, 1530), a Beltraneja, e, em janeiro de 1476, o
esperava el-Rei, nosso Senhor, criar bispo da futuro D. João II entregara, por sua vez, a re-
mesma Ordem na ilha” (Id., Ibid.). gência à jovem mulher e invadira igualmente
No final desse ano, falecendo o duque Castela em apoio do pai, ocorrendo a desastro-
D. João, envia a infanta à Ilha o seu contador sa batalha de Toro a 2 de março desse ano. Por
Diogo Afonso para tomar posse da mesma em essa razão se encontrava a infanta D. Beatriz,
nome do novo duque D. Diogo. A partir de mãe da Rainha regente, com a mesma em Bra-
então, a administração da Ilha seria acompa- gança, pelo que a situação era muito delicada
nhada com a presença de um contador, Luís para decidir assuntos sobre obras de fortifica-
de Atouguia, que se manteria depois, inclusiva- ção na Madeira.
mente com o duque D. Manuel. A infanta in- A dimensão política da infanta D. Beatriz à
terfere, entretanto, nos mais diversos campos, época é revelada na sua presença no conselho
quando, e.g., os moradores acusavam os es- régio, reunido no Porto, em agosto desse ano
trangeiros vindos do continente de prejudicar de 1476, nas vésperas da partida de D. Afonso
o comércio, solicitando a sua expulsão: uma V para França, em busca do auxílio de Luís XI
posição que encontrara eco durante a gestão (1423-1483), tentando reverter o desastre de
de D. Fernando. Não foi essa a posição da du- Toro, sendo a única figura feminina presente.
quesa, que entendeu que a economia da Ilha Era a primeira guerra luso-castelhana depois
se iria ressentir e assim o fez saber, através de do início dos Descobrimentos e logo as novas
carta datada de Beja, a 15 de março de 1473, áreas sob a influência portuguesa foram envol-
recomendando “alguma temperança, que seja vidas no conflito. A Rainha Isabel de Castela
para bem da terra e a eles de não tanto agra- pretendia retomar a política de seu pai, o Rei
vo”. Face à situação, informa ainda que iria João II (1406-1454), que sempre se opusera
B eatriz de P ortugal ¬ 289

ao avanço das caravelas portuguesas ao longo O tratado viria a ser depois assinado em Alcá-
da costa da Guiné, ao contrário de seu irmão çovas, a 4 de setembro de 1479, por D. Afonso
Henrique IV (1454-1474), que nunca se inte- V e pelo príncipe D. João II, confirmado por
ressara especialmente pelo assunto. Por isso, Isabel, a Católica, em Trujillo, a 27 do referi-
várias armadas castelhanas foram enviadas à do mês, e ratificado em Toledo, por Fernan-
Guiné, na tentativa de controlar a região da do e Isabel, a 6 de março de 1480. Depois, foi
Mina. Os navios castelhanos atacaram pelo D. Beatriz quem reuniu em Moura, nas céle-
menos as ilhas de Porto Santo e de Santiago, bres Terçarias, D. Joana – a Excelente Senhora
em Cabo Verde. O interesse de Isabel pelo em Portugal, mas a Beltraneja em Castela – e
Atlântico colocava em causa os domínios da os infantes de Portugal e de Castela: o seu neto
Ordem de Cristo, pelo que, no campo das D. Afonso (1475-1491) e a sua sobrinha-neta
moedas de troca, quando a diplomacia fosse D. Isabel (1470-1498), confiados à sua guarda
chamada a sarar as feridas da guerra, teria na e educação. Os infantes eram assim os reféns
administradora daquela Ordem uma das pri- que ambos os reinos entregavam como penho-
meiras interessadas. A guerra luso-castelhana res da paz; D. Beatriz entregava igualmente
foi decisiva para a recomposição do mapa po- um dos seus filhos, alternadamente D. Diogo e
lítico peninsular, unindo as coroas de Castela D. Manuel, que também permaneceram como
e de Aragão, pois Isabel, a Católica, era casada reféns em Castela. Em agosto de 1481, era in-
com Fernando de Aragão (1452-1516); quan- clusivamente comunicado para a Madeira, em
do o conflito caiu num impasse, com a abdi- carta expedida de Moura, que algumas ques-
cação de D. Afonso V, em 1477, embora só tões então levadas pelo procurador Duarte Pes-
efetiva alguns anos depois e sendo o governo tana, dado o duque D. Diogo e também a in-
partilhado com o futuro D. João II, foi D. Bea- fanta estarem de partida para Castela, teriam
triz quem representou Portugal no encontro de ser adiadas.
que veio a decidir os termos da paz entre os A administração da Ordem de Cristo havia-
reinos ibéricos. -se consolidado decididamente no quadro do
A Rainha Isabel de Castela era filha da ho- Atlântico, reformulando mesmo a inicial divi-
mónima D. Isabel, irmã de D. Beatriz, o que são das capitanias no arquipélago dos Açores.
as colocou numa posição de maior proximida- Durante o governo das ilhas por D. Fernando
de pessoal para tentarem resolver o conflito. (1461-1470), a atenção da administração da
Em meados de março de 1479, D. Beatriz, se- Ordem de Cristo concentrara-se sobretudo no
guida por um pequeníssimo séquito, cruzou a desenvolvimento económico da ilha da Madei-
fronteira luso-castelhana em Segura e dirigiu- ra e no início do povoamento da ilha de Santia-
-se para Alcântara, onde era esperada pela so- go, no arquipélago de Cabo Verde. D. Beatriz
brinha, em situação idêntica, numa povoação distinguiu-se pela atenção especial que prestou
próxima da fronteira portuguesa, sem ter um às ilhas dos Açores, tendo promovido a troca
exército a protegê-la. As conversações duraram do capitão de S. Miguel, que passou a ser Rui
cerca de uma semana e no final conseguiu-se Gonçalves da Câmara, 2.º filho de Zarco, que
um acordo, que é conhecido nos seus termos adquiriu a capitania, iniciando uma dinâmica
gerais: Portugal reconhecia a realeza de Isa- totalmente diferente e tendo dividido a ilha
bel e comprometia-se a impedir que Joana, a Terceira em duas capitanias.
Beltraneja, continuasse a ser pretendente ao O impulso que veio a imprimir à Madeira
trono castelhano; Castela ficava com o direito também foi notório, pressionando ao cum-
de conquistar o arquipélago das Canárias, mas primento da justiça, para o que estabeleceu
reconhecia o direito de Portugal sobre os ar- prazos e coimas dos testamentos e resíduos e,
quipélagos dos Açores, da Madeira e de Cabo muito especialmente, a instituição de postos
Verde, tal como sobre a costa da Guiné a partir alfandegários, a fim de as mercadorias carre-
do paralelo das Canárias. gadas e descarregadas poderem ser realmente
290 ¬ B eatriz de P ortugal

avaliadas, controlando todo o movimento dos II comunique que “outorgara ao duque, meu
navios, e para que se pudessem conhecer e muito amado e presado primo”, o que perten-
arrecadar os respetivos direitos, sedeando- cera ao seu falecido irmão (Id., Ibid., 140-141)
-se um posto no Funchal e outro na capitania e só a 10 de janeiro seguinte, de Montemor-o-
de Machico. Deve-se também à administração -Novo, escreva a comunicar ter feito mercê das
de D. Beatriz a determinação de 25 de junho ilhas ao duque de Beja, “meu muito presado
de 1481, indicando que os procuradores dos e amado primo, o qual temos por filho” (Id.,
mesteres fossem recebidos na Câmara quando Ibid., 144-145). A partir de então, parece ter
fossem requerer, devendo ser “acatados com sido discreta a ação de D. Beatriz, mas apoian-
honra”, tendo-se acrescentado à margem, no do por certo o seu último filho, D. Manuel, na
registo camarário, que até então “os meste- governação.
res não vinham às vereações e requeriam de Quando seu neto, o príncipe D. Afonso, mor-
fora” (Id., Ibid., 114). Dois anos depois, a 21 reu de acidente em Santarém, em 1491, D. Bea-
de dezembro de 1483, seria o duque D. Diogo triz congregou as forças da sua casa com o apoio
a determinar a instituição no Funchal da casa da filha, D. Leonor, para defender os direitos de
dos 24 mesteres “para requererem pelo povo D. Manuel à sucessão de D. João II. Viveu os últi-
miúdo” (Id., Ibid., 134-135). mos anos da sua vida em regra retirada em Beja,
Um dos principais problemas destes anos, no embora saibamos que, e.g., no Natal de 1500 es-
entanto, foi o pedido de 1.200.000 réis feito tava em Lisboa, tendo participado nos festejos
à Madeira por D. Afonso V a 17 de agosto de organizados por D. Manuel I, o mesmo acon-
1478, para as despesas de guerra com Caste- tecendo em 1502. A 6 de junho desse ano, na
la, que colocou em polvorosa os moradores. alcáçova real de São Jorge, em Lisboa, nasceu
No ano seguinte, a 25 de julho, será o prínci- o príncipe D. João (1502-1557), futuro D. João
pe D. João a insistir na contribuição, então de- III, que teve depois como padrinho o doge de
signada como peita e já só de 1.000.000, com Veneza, o célebre Leonardo Loredan (1436-
o pormenor de a carta se encontrar registada 1521), representado pelo seu embaixador em
como do “Rei D. João”, embora no texto se Lisboa e, como madrinhas, sua tia D. Leonor,
referira sempre “a mim e meu filho”, ou seja, viúva de D. João II, e sua avó D. Beatriz, duque-
D. Afonso V e o futuro D. João II. Os morado- sa de Beja. Segundo a tradição, teriam sido as
res ainda tentaram junto da infanta, que tra- rainhas velhas a encomendar o depois célebre
tam por “Muito alta e muito excelente princesa Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, da au-
e muito virtuosa senhora”, escusar-se ao paga- toria de Gil Vicente, que foi representado pelo
mento (Id., Ibid., 96-98); depois foram mesmo próprio, a 7 de junho, uma terça-feira, na câma-
procuradores ao reino, a infanta tentou aliviar ra da Rainha D. Maria, espetáculo a que assistiu
a contribuição, mas uma grande parte acabou o Rei, as madrinhas e a duquesa viúva D. Leo-
por ser paga. nor de Bragança, para além de outros elemen-
D. Beatriz assistiu depois à execução de seu tos da corte.
genro, o duque de Bragança, em 1483, e ao as- D. Beatriz veio a falecer no seu convento de
sassinato de seu filho D. Diogo, a 27 de agosto Beja, a 30 de setembro de 1506, onde, já sob
de 1484, que D. João II comunicou à Madeira sua tutela, se haviam formado 10 anos antes as
logo a 28 se agosto, enviando Gil Eanes, cava- primeiras freiras que, idas da ilha da Madeira,
leiro, especialmente para explicar o que se pas- regressariam depois ao Funchal para fundar o
sara. A 13 de setembro, já era o duque D. Ma- Convento de S.ta Clara.
nuel a assumir a administração do ducado de
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Avulsos, mç. 1, doc.
Beja e Viseu, escrevendo de Setúbal para a Ilha, 12; Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 1; AGS, Patronato
para que lhe enviassem os assuntos que estives- Real, n.º 4089, leg. 49, doc. 44; ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, liv. 312;
Ibid., Chancelaria de D. Afonso V, liv. 21; Ibid., Gavetas, gaveta 17, mç. 6, doc.
sem pendentes da vigência de sua mãe e do fa- 16; Ibid., Leitura Nova, liv. 3 de místicos, 1516; impressa: Arquivo Histórico
lecido, embora só a 26 de novembro D. João da Madeira, vol. xv, 1972; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. i, Funchal,
B eckett, S amuel ¬ 291

Secretaria Regional da Educação, 1999; COSTA, João Paulo Oliveira e, D. Manuel


I. Um Príncipe do Renascimento, Lisboa, Temas e Debates, 2007; COSTA, José
Pereira da, Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Século XV, Funchal,
CEHA, 1995; DÁVILA, Maria Barreto, A Mulher dos Descobrimentos. D. Beatriz,
Infanta de Portugal, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2019; FERREIRA, Manuel Juvenal
Pita, A Sé do Funchal, Funchal, JGDAF, 1963; FONSECA, Luís Adão da, D. João II,
Lisboa, Temas e Debates, 2007; GOMES, Saul António, D. Afonso V o Africano,
Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; LOPES, Sebastiana, O Infante D. Fernando e
a Nobreza Fundiária de Serpa e Moura (1453-1470), Beja, Câmara Municipal
de Beja, 2003; MARTINS, Maria Odete Sequeira, D. Brites. Uma Mulher da
Casa de Avis, Matosinhos, Quidnovi, 2009; MENDONÇA, Manuela, “Sinais de
solidariedade no processo de (re)construção do Estado nos finais do século xv.
A acção de D. Brites, duquesa de Viseu”, Iacobus, n.os 13-14, 2002, pp. 193-212.

Rui Carita

Beckett, Samuel
Nasceu em Dublin, em 1906, morreu em Paris,
em 1989, e viveu uma temporada no arquipéla-
go da Madeira, entre 1968 e 1969. O dramatur-
go e escritor irlandês chegou ao Funchal a 2 de
dezembro de 1968, mas mudou-se logo depois
para a ilha do Porto Santo, permanecendo aí
até meados de fevereiro de 1969.
Deste período madeirense de Samuel Beckett,
é conhecida correspondência diversa, que, além
do interesse biográfico inerente – pois, para
alargar e completar o conhecimento dos gran- Fig. 1 – Damned to Fame. The Life of Samuel Beckett (1996), de
des homens, publicam-se-lhes as cartas, todos os James Knowlson.

papéis íntimos e até as contas do alfaiate, dizia


Eça de Queirós –, apresenta um valor testemu- sob a janela do seu quarto na Vila Marina, se-
nhal e documental ímpar sobre o ambiente ur- guindo para o mercado dos lavradores. Na
bano do Funchal e a vivência no Porto Santo mesma data, afiançava ao amigo pintor Henri
naquele tempo. Hayden que o Funchal era uma cidade ainda
Samuel Beckett contava 62 anos quando, mais ruidosa do que Paris, enxameada de táxis
como tantos outros desde o séc. xix, procurou e densa de edificações, encavalitadas pela en-
a Madeira pela fama do seu suposto clima pro- costa acima. E, apesar do mau tempo, a cidade
filático e terapêutico, ideal para os que sofrem efervescia, entregue ao formigueiro dos adven-
de patologias de âmbito respiratório. Mas o bu- tícios preparativos da festa natalícia.
lício e o barulho rodoviário do Funchal, e so- Enclausurado no hotel pela borrasca, vendo
bretudo o mau tempo e a humidade extrema, que o Funchal não lhe proporcionaria o am-
não lhe facultaram a tranquilidade esperada. biente e o bem-estar que procurava, Samuel
Numa carta de 5 de dezembro de 1968 en- Beckett decide partir logo que possível para
viada a Barbara Bray, tradutora, crítica literá- o Porto Santo; a Ilha Dourada tinha-lhe sido
ria e amiga chegada, começa por dar nota do recomendada – talvez por Luís Jardim, agen-
seu desagrado e compara a cidade do Funchal te de turismo na Madeira – como sendo um
a um buraco sombrio e sinistro, emparedado pouco mais quente e seca. No caso de não
pelas vertentes montanhosas, onde se precipi- haver condições para ali permanecer, segui-
tava em vagas uma chuva grossa; ao amanhe- ria para o Algarve ou para Cascais, no início
cer, camiões com bananas, aves e hortaliças do ano novo. Na carta de 11 de dezembro de
atravessavam a roncar a estrada Monumental, 1968, anuncia a Barbara Bray a partida para
292 ¬ B eckett, S amuel

o Porto Santo, fugindo assim à cidade do Nesta quadra do ano, o Hotel Porto Santo
Funchal, que descrevia outra vez a traços de acolhia poucos hóspedes – apenas alguns Ale-
chumbo, tomada por um excesso de automó- mães se deixavam ficar, pelo conforto do meio
veis fumarentos e ruidosos, cheirando a gaso- inverno meridiano. Apesar da monotonia, Sa-
lina, com chuva, vento e frio, a neve nos picos, muel Beckett sentia-se bem e foi adiando a
sob um céu pesado. partida.
Na circunstância descrita, a impressão pes- Com o sol de janeiro, pode experimentar-se
soal que Samuel Beckett retém e que nos dei- uma ilusão de primavera na Ilha Dourada. E, na
xou do Funchal é, pois, bastante negativa, na delícia de uma hora dessas, Samuel Beckett não
perspetiva de quem esperava encontrar du- esconde o seu fascínio pelo Porto Santo: numa
rante o inverno um local pacato e de clima carta do dia 28, confidencia a Barbara Bray que
ameno para uma temporada de restabeleci- esta pequena ilha seria o sítio ideal para se pas-
mento da saúde. sar com simplicidade e harmonia os derradei-
Samuel Beckett aterrou na Ilha Dourada ros dias da vida, numa casita chã de frente para
a 12 de dezembro de 1968 e instalou-se no o mar, com um quintal em redor. E, com certo
Hotel Porto Santo – então o único alojamento humor, acrescenta que só tinha pena que não
turístico moderno, inaugurado poucos anos houvesse dentistas por ali – até aos anos 80, os
antes, em 1962. Num postal telegráfico para habitantes do Porto Santo consumiam a água
Barbara Bray, mostra-se muito satisfeito com a salobra das nascentes da ilha e por isso os seus
quietude e ambiência da pequena ilha, o sos- dentes adquiriam uma aparência acastanhada
sego do hotel, que dava para a praia esplên- resultante da acentuada oxidação.
dida, o clima suave. O Porto Santo agradou a Samuel Beckett deixou o Porto Santo a 14
Samuel Beckett desde o primeiro momento. de fevereiro de 1969, num voo da TAP para
O isolamento da ilha mantinha-o afastado do Lisboa. Deteve-se em Cascais durante duas se-
mundo – correio, só três vezes por semana; manas e regressou a Paris a 2 de março. Nesse
jornais, os que a tripulação da TAP deixava no mesmo ano, ser-lhe-ia atribuído o Prémio
hotel. Passava os dias tranquilamente, entre Nobel da Literatura. Esta passagem e perma-
caminhadas pela praia e, mais raramente, pas- nência de Samuel Beckett em Portugal é re-
seios à vila, a uma distância de uns 10 minutos ferida, designadamente, na biografia de refe-
a pé. Uma vez por outra, uma breve incursão rência Damned to Fame. The Life of Samuel Beckett
ao interior insular, ou à Camacha, no Norte. (1996), de James Knowlson.
A falta de estradas condicionava as deambu- Grande parte da correspondência de Samuel
lações. Impressionava-o a aridez da paisagem Beckett está depositada na Beckett Internatio-
ilhoa. nal Foundation, na Univ. de Reading; no Harry
Ransom Humanities Research Center e no Tri-
nity College da Univ. de Dublin (caso das car-
tas a Barbara Bray referidas); na Irish Literary
Library, Emory University, Austin, Texas; e na
John J. Burns Library, Boston College, Massa-
chusetts. Nestes arquivos, encontram-se tam-
bém postais ilustrados do Porto Santo, com vis-
tas da Foto Perestrellos, alguns endereçados ao
seu editor, Robert Pinget. A Beckett Founda-
tion/Cambridge University Press, em parceria
com várias instituições universitárias, começou
a publicar sistematicamente, em 2009, a corres-
pondência de Samuel Beckett, mas as cartas re-
Fig. 2 – Porto Santo, bilhete-postal (Foto Perestrellos, c. 1950). metidas do Porto Santo, designadamente para
B ello , A nastácio ( pseud . ) ¬ 293

Barbara Bray e Henry Heiden, permaneciam


inéditas em 2016, altura em que estava previs-
ta a sua inclusão no volume iv da coleção The
Letters of Samuel Beckett. O acesso ao conteúdo
destes manuscritos foi obtido graças à gene-
rosidade do diretor da Beckett International
Foundation, Mark Nixon, e ao envolvimento
de David Murray e Jennie Wadley, Ingleses resi-
dentes no Porto Santo.
Bibliog.: KNOWLSON, James, Damned to Fame. The Life of Samuel Beckett, New
York, Simon & Schuster, 1996.

José Campinho

Bello,
Anastácio
(pseud.)
Nasceu no sítio dos
Arrifes, freguesia de
São Pedro, Funchal, Fig. 2 – Retrato de desconhecido, desenho de Anastácio Bello,
a 11 de maio de 1868, 1902 (coleção particular).

filho de Cândido da
Câmara, nascido na Fig. 1 – Fotografia do passa- Tirou passaporte para o Rio de Janeiro em
freguesia da Sé, e de porte de Manuel Anastácio 10 de julho de 1920, mas desconhecem-se por-
da Silva (Anastácio Bello
Rosa da Silva, nascida [pseud.]), 1920 (arquivo par- menores da sua estada nesta cidade.
na vila e concelho de ticular). São referência da sua obra os retratos do rei
São Vicente. D. Carlos de Bragança e da rainha D. Maria
Casou com Leocádia Bello Perestrelo a 14 de Amélia de Orleães, assim como o conjunto de
junho de 1888 na freguesia da Sé, filha de João retratos de presidentes da CMF, datados do final
Perestrelo e de Catarina da Silva Perestrelo, na- do séc. xix e princípio do séc. xx, pertencentes
turais da ilha do Porto Santo. O casal teve dois ao espólio do Teatro Baltazar Dias do Funchal.
filhos: Álvaro, nascido a 17 de setembro de Faleceu com 69 anos, vítima de cancro na
1889, e Maria, nascida a 24 de março de 1894, laringe, no Asilo dos Velhinhos, à Calçada de
ambos da freguesia de São Pedro, Funchal. Santa Clara em São Pedro a 14 de janeiro de
Este desenhador a crayon, artista de mérito 1938, onde esteve recolhido no último ano de
comprovado pela sua técnica inconfundível, vida, tendo sido sepultado no Cemitério das
foi um dos alunos fundadores da extinta Esco- Angústias. Apesar de o seu percurso de vida ser
la Industrial Josefa d’Óbidos, no Funchal, pos- pouco conhecido, a obra de Anastácio Bello
teriormente designada Escola de Desenho In- está presente na casa de muitas famílias bur-
dustrial de António Augusto de Aguiar, na qual guesas da época, perpetuando os seus ances-
esteve entre 1889 e 1893, tendo privado com o trais em expressivos retratos, de grande forma-
pintor retratista espanhol Manuel de la Cuadra to, desenhados a lápis de carvão.
y Estévez (1835-1903), que aí lecionou.
Bibliog.: manuscrita: ABM, Passaporte n.º 2849, cx. 23, cap. 4610-07-1920; Ibid.,
Através do Diário de Notícias da Madeira (12 Registos Paroquiais, Óbitos, liv. 278, doc. 12, 1938; Ibid., Registos Paroquiais, São
maio 1897), temos conhecimento de que viveu Pedro, Batismos, liv. 1372, 1868, fl. 34; liv. 1394, 1890, fl. 49v.; liv. 6795, 1895, fl. 10;
Ibid., Registos Paroquiais, Sé, Casamentos, liv. 1324, 1888, fl. 16; impressa: Diário
alguns anos nos Açores, onde lecionou a disci- de Notícias, Funchal, 12 maio 1897; 4 jan. 1938.
plina de desenho na Escola Industrial Gonçalo
Teresa Margarida Lopes Brazão
Álvares Cabral, em Ponta Delgada. Cupertino da Câmara
294 ¬ B eneden , C harles van

Belo, João Fradesso (I) Belo, João Fradesso (II)


Professor de música, organista e compositor, Funcionário público, professor particular
João Fradesso Belo nasceu em Vila Viçosa, e poeta, João Fradesso Belo nasceu em São
em Portugal continental, em 1799, e residiu Pedro, no Funchal, em 1864, e faleceu na casa
durante vários anos no Funchal, na Madeira, de sua residência, com 39 anos, a 5 de novem-
considerando-se filho adotivo desta ilha. Fa- bro de 1901.
leceu com 62 anos no Funchal, na freguesia Os seus pais eram João Fradesso Belo e Victo-
de São Pedro, a 15 de maio de 1861. rina Osório de Fradesso, casados em São Pedro
Era filho de Agostinho Martins e de Ana a 2 de maio de 1874.
Joaquina Belo, e neto, da parte do pai, de Casou-se na Sé do Funchal, a 17 de novem-
Bento Martins e de Rita Joaquina e, da parte bro de 1892, com Elisa Amélia de Freitas, filha
da mãe, de Manuel Xavier Belo e de Filipa de João de Freitas da Câmara e de Elvira de
Maria. Jesus, de quem teve dois filhos: Gabriel Frades-
Casou-se com Cláudia Maria Rosa Frades- so Belo, batizado na paróquia da Sé do Fun-
so, da ilha de São Jorge, no arquipélago dos chal a 2 de dezembro de 1894, e Alice Frades-
Açores, de quem teve quatro filhos: João Fra- so Belo, batizada na mesma paróquia a 18 de
desso Belo Júnior, batizado a 4 de novembro março de 1897.
de 1814, na paróquia de São Pedro, e que Colaborou em vários jornais da ilha da Ma-
se casou na mesma paróquia, a 2 de maio deira, onde deixou alguns poemas dignos de
de 1874, com Vitória Osório de Meneses, na- apreciação.
tural de Câmara de Lobos, filha de Manuel
Roiz Serrão e de Vitorina de Mendonça e Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e
XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983.
Meneses, ambos naturais também de Câma-
ra de Lobos; Carlota Fradesso Belo, batiza- António José Borges
da a 21 de outubro de 1815 na paróquia de
Serra de Água; Joaquim Fradesso Belo, ba-
tizado a 22 de abril de 1818 na paróquia de
Beneden, Charles van
São Pedro; e Carolina Fradesso Belo, batiza-
da a 8 de julho de 1819 também na paróquia Nasceu na Bélgica, a 4 de julho de 1854, e fa-
de São Pedro. leceu no mesmo país, em dezembro de 1929.
João Fradesso Belo estudou no Seminá- Fixou-se no Funchal, estabelecendo mora-
rio Patriarcal, foi discípulo de Fr. José Mar- dia no arquipélago durante muitos anos, na
ques e mestre de capela da Sé Catedral do Qt. dos Cedros, em Santo António e, em fins
Funchal, cargo que, pode-se afirmar, de um do séc. xix, na ilha do Porto Santo. Contraiu
modo geral, os mestres de capela da Sé acu- matrimónio na Madeira com D. Isabel Cons-
mularam com o de professor de música no tança, filha da 3.ª viscondessa e 1.ª condessa
Seminário do Funchal. Deixou ainda várias de Torre Bela (D. Filomena Gabriela Correia
produções musicais de apreciável valor e co- Brandão Henriques de Noronha, em títulos de
laborou em vários jornais da ilha da Madei- Correias e Uzeis, e de Russel Manners Gordon,
ra, havendo registo de algumas composições 1.º conde de Torre Bela, pelo seu casamento,
poéticas de elevado quilate. em título de Gordon), de quem não teve filhos.
Apesar de ser um súbdito belga, o barão
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e
XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; Grande Enciclopédia Portuguesa
Charles van Beneden considerava afetuosa-
e Brasileira, Lisboa/Rio de Janeiro, Ed. Enciclopédia, s.d.; SILVA, Fernando mente a Madeira como a sua terra adotiva.
Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols.,
Apreciado como distinto escritor no país
Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978.
de origem, era famoso pelos seus conheci-
António José Borges mentos de literatura. Publicou várias obras,
B enefic ê ncia ¬ 295

(1908); La Peste de Trigalet. Tragi-Comédie en Trois Actes et Quatre Tableaux


(1908); Pendant Dix-Sept Ans (1911); L’Empire de Belzébuth (1920).

Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e


XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; SILVA, Fernando Augusto da, e
MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria
Regional da Educação e Cultura, 1978; VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António
Aragão de, Madeira. Investigação Bibliográfica, vol. i, Funchal, Centro de Apoio
de Ciências Históricas, 1981.

António José Borges

Beneficência
A assistência social teve diversas formas de
expressão ao longo da história: caridade, fi-
lantropia, benemerência, assistência e polí-
tica social. A Igreja define a caridade como
uma forma de apoio aos necessitados, mas, no
séc. iv, o Imperador Juliano refere uma forma
de intervenção social não cristã que ficou co-
nhecida como filantropia. Nos sécs. xix e xx,
esta ganhou uma nova expressão com o mu-
tualismo e a assistência social.
É a Constituição republicana de 1911 que de-
fine e obriga o Estado à responsabilização pela
assistência pública, levando à criação do Fundo
Qt. dos Cedros, estudo de Max Römer, 1924 (coleção de João
Nacional de Assistência. Contudo, a plenitude
Pedro Ferraz, Funchal). desta função social do Estado só será definida
com o Governo da Ditadura Militar, saído da
Revolução de 1926. Desta forma, num primei-
nomeadamente Au Nord-Ouest de l’Afrique. Ma-
ro momento, o sistema assistencial e de bene-
dère, les Îles Canaries, le Maroc, em Bruxelas, em
ficência é de iniciativa privada, tendo a Igreja
1882.
Católica um papel fundamental no seu incen-
Colaborador na revista belga La Jeune Wallo-
tivo e na sua manutenção.
nie, publicou a interessante narrativa Voyage aux
No entanto, as principais reformas do sis-
Îles Salvages, que ocupa 50 páginas da mesma
tema de segurança social acontecem a partir
revista e que vem acompanhada de excelentes
de 1929: o dec. 16.667, de 27 de março, cria a
gravuras. Há quem afirme que nas comédias
Caixa Nacional de Aposentações e a Caixa Na-
deste autor Les Titularisés e Le Mariagicide se
cional de Previdência, que unem todos os pro-
encontram incarnadas em várias personagens
cessos de aposentação e reforma. Em 1934, é
algumas pessoas conhecidas na sociedade fun-
constituído o Montepio dos Servidores do Es-
chalense (SILVA e MENESES, 1978, 264).
tado, que atribui pensões de sobrevivência aos
Existe um estudo bibliográfico de 1911 sobre
herdeiros dos funcionários públicos. Relativa-
Charles van Beneden (Etude Bibliographique
mente aos demais trabalhadores, foi aprovado
sur Charles van Beneden), da autoria de Joseph
o estatuto do Trabalho Nacional, pela lei 1884,
Chot, com 116 páginas, publicado em Bruxelas
de 6 de março de 1935, que institui o seguro na
pela Dechenne.
doença. Neste mesmo ano, foi criada a Caixa
Obras de Charles van Beneden: Au Nord-Ouest de l’Afrique. Madère, les Îles
Nacional de Pensões. As reformas concluem-se
Canaries, le Maroc (1882); Entre Névropathes (1888); Généalogie (1891); Le com a criação, em 1942, do abono de família e,
Mariagicide. Comédie Humaine en Cinq Actes et Six Tableaux (1898); Michel
Côme (1899); Les Titularisés (1902); Une Interview au Transformisme (1905);
em 1965, da Assistência na Doença aos Servi-
Attale. Tragédie en 5 Actes (1908); Clara Camacho (1908); La Floche du Soldad dores do Estado.
296 ¬ B enefic ê ncia

Na Madeira, onde o cristianismo está pre- ficou conhecido como o Hospital de S.ta Isa-
sente desde o séc. xv, as diversas instituições bel. As obras prolongaram-se entre 1685 e
que surgem têm relação com a caridade. 1688. Em 1695, estava já definitivamente ins-
Assim, temos múltiplas iniciativas particulares talado o novo hospital, uma vez que se proce-
de mercearias, confrarias e misericórdias, que deu à venda das antigas instalações. Os Ingle-
se associam nesta função assistencial. ses instalaram aí, em 1807, a sua enfermaria.
As suas instalações foram também utilizadas
para os cursos de Medicina da Escola Médico
Hospitais e outras instituições de saúde Cirúrgica, sucessora da Aula Médico-Cirúrgi-
Em 1459, João Gonçalves Zarco doou um ca do Funchal. Perante um início do séc. xix
chão junto à capela de S. Paulo para a cons- marcado por diversas epidemias, que causa-
trução de um hospital. Funcionou durante ram elevada mortandade e colocaram a neces-
cerca de 15 anos. Temos ainda referências a sidade de um adequado desenvolvimento dos
outros três hospitais de iniciativa particular: o serviços de saúde, surgiu, em 1816, a Aula Mé-
de Gonçalo Eanes Velosa, para agasalhar po- dico-Cirúrgica do Funchal, que pretendia dar
bres e enfermos, autorizado, em 1469, pelo um salto qualitativo nos cuidados de saúde.
infante D. Fernando; o de Pero Vaz de Alcofo- Esta Aula funcionou apenas até 1821, sendo
rado, referido em 1471; e o de Duarte Pesta- retomada em 1836, já sob a forma de Escola
na, mencionado em vereação de 1486. Cons- Médico Cirúrgica. A vida da Escola foi atribu-
tança Rodrigues, mulher de João Gonçalves lada, pela conjuntura política liberal. Mesmo
Zarco, deixou, por testamento de 1484, cinco assim, funcionou até 11 de dezembro de 1910
casas térreas, que funcionaram como mercea- e formou 240 médicos.
rias para albergar cinco pessoas idosas. No decurso do séc. xix, eram evidentes as
A partir de finais do séc. xv, o sistema assis- ações de filantropismo da comunidade britâ-
tencial foi alvo de uma reforma, por interven- nica na Ilha, que iam da ajuda para acudir a si-
ção papal. Assim, em 1485, o Papa Inocêncio tuações de fome, à construção de pontes e es-
VIII recomendou que os pequenos hospitais tradas. E mesmo hospitais, como sucedeu, em
fossem anexados aos maiores. De acordo com 1823, com uma dádiva da firma Phelps Page
este espírito, a Coroa aprovou, em 1498, o & Co. para o Hospital do Funchal. “A filan-
“compromisso” do Hospital de Lisboa, que tropia dos Srs. Phelps Page & Co. negociantes
veio a congregar todos os demais aí existen- Britânicos desta Praça, já tão proclamada por
tes. O mesmo princípio foi seguido em todas muitos, e repetidos atos de beneficência, que
as vilas do reino, por autorização papal de 23 lhes tem granjeado um nome distinto entre
de outubro de 1501, reforçada por carta régia nossos Concidadãos, acaba de dar outro tes-
de 1507. temunho da cordialidade com que cada vez
Na Madeira, foi D. Manuel quem tomou a mais se esclarecem. Apenas souberam de um
iniciativa, sendo favorável à construção do Facultativo do Hospital as necessidades deste
Novo Hospital no chão de Bartolomeu de respeitável estabelecimento, eles mandaram
Marchena. vir de Inglaterra 100 cobertores, que ofere-
O primeiro hospital da Misericórdia funcio- ceram para uso do mesmo Hospital. A Mesa
nou na zona de Nossa Senhora do Calhau, no Administradora tem-lhes significado sua gra-
espaço onde hoje existe a rua com o topóni- tidão, e nós nos apressamos a anunciar tão
mo de Hospital Velho. Este passou, a partir de generosa ação para que ninguém possa igno-
1514, para a alçada da Misericórdia do Fun- rar o quanto apreciamos com os bons, ações
chal. As condições precárias oferecidas por tão recomendáveis” (O Patriota Funchalense, 21
estas instalações obrigaram à sua transferên- maio 1823, 4).
cia, no séc. xvii, para o novo hospital man- Ainda nessa centúria, registe-se o surgi-
dado construir junto do terreiro da Sé, que mento de um outro serviço. Em 1844, foram
B enefic ê ncia ¬ 297

registados, na Madeira, vários focos de in- estabelecimento de um sanatório, que come-


feção. O procurador e médico Dr. Pita pro- çou a construir-se nos Marmeleiros. Todavia,
pôs à Junta Geral a criação de uma institui- o Governo português, por pressão britânica,
ção vacínica, com ramificações em todas as foi forçado a rescindir, em 1909, a concessão.
freguesias da Ilha. Esta proposta foi discutida O imóvel passou a cumprir semelhante fun-
na reunião de 19 de junho de 1844, em que ção em 1931, altura em que foram transferi-
o autor da mesma explicou as vantagens da dos para aí o Hospital de S.ta Isabel e a Mi-
sua instituição. A Junta, em harmonia com as sericórdia, ficando o edifício que ocupavam
ideias do Dr. Pita, deliberou autorizar o go- reservado para a instalação dos serviços da
vernador civil a estabelecer no Funchal uma Junta Geral.
instituição vacínica, com delegados em todas
as vilas da província, fazendo os regulamen-
tos necessários, sendo pagas pelo cofre do
Confrarias e misericórdias
distrito as despesas que pudesse exigir a re- As confrarias assumiram-se como associa-
ferida instituição. A 26 de julho de 1848, este ções de solidariedade social e espiritual dos
assunto voltou à reunião da Junta Geral do irmãos, recrutados de acordo com a situação
Distrito, que reconhecia a grande utilidade socioprofissional ou a devoção a um determi-
da Instituição Vacínica, chegando, contudo, nado santo patrono.
à conclusão de que não poderia continuar a Destacam-se as misericórdias, instituições
suportar os seus custos. seculares, que vêm dos tempos medievais, que
Na Madeira, merece também referência se converteram numa ação organizada com o
um facto particular ligado à assistência hos- objetivo de ajudar as classes mais desfavore-
pitalar. Nos sécs. xviii e xix, a Ilha, devido às cidas. Aparecem primeiro em Florença, em
suas condições climáticas, atuou como hospi- 1244, por ação de S. Pedro Mártir, chegan-
tal de cura da tísica pulmonar, atraindo des- do a Portugal no reinado de D. João II. Na
tacadas personalidades europeias. Existiram Madeira, refira-se o surgimento de misericór-
alguns projetos para a criação destas infraes- dias no Funchal (1507) e, depois, em Machi-
truturas, como, em 1903, o projeto alemão de co (1529), na Calheta (1535), em Santa Cruz

Fig. 1 – Santa Casa da Misericórdia do Funchal, c. 1925 (arquivo particular).


298 ¬ B enefic ê ncia

(1520) e no Porto Santo (1767). Nas confra- mesa, na forma do seu antigo compromisso,
rias ligadas às misericórdias, os irmãos tinham e que lhe fosse aplicada legislação particular
assegurada a assistência hospitalar e espiri- e privilégios iguais aos concedidos pelo Go-
tual. Estas instituições viveram sempre com verno à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
grandes dificuldades, agravadas em meados e ao Hospital de S. José. Nesse ano, a Junta
do séc. xix, devido às circunstâncias econó- Geral pediu ao Governo autorização para dis-
micas em que se encontrava o distrito. por dos rendimentos das extintas confrarias
Em 1839, a Junta Geral do Distrito deu a favor do Asilo de Mendicidade e do Hospi-
grande destaque nas suas reuniões aos pro- tal da Santa Casa da Misericórdia do Funchal.
blemas relacionados com as confrarias e mi- O Governo concedeu a aplicação dos rendi-
sericórdias, e propôs a criação de um asilo de mentos e bens próprios das extintas confra-
mendicidade. A 18 de julho desse ano, foi de- rias de Nossa Senhora da Piedade, dos Reis
cidido, ao abrigo dos arts. 6.º e 10.º do dec. de Magos e das Almas ao Asilo e ao Hospital da
21 de outubro de 1836, pedir à Administra- Misericórdia. O governador civil solicitou à
ção Geral esclarecimentos sobre as confrarias Junta Geral a criação de um rendimento fixo
extintas no distrito e o montante dos bens ja- para estes estabelecimentos, dando ao pouco
centes de cada uma, quais as que tinham so- que restava dos socorros públicos uma aplica-
bras dos seus rendimentos e o montante des- ção mais conforme com a sua instituição. Esta
sas sobras para ser aplicado em beneficência, medida foi atendida pelo Governo, por alvará
sendo nomeada uma comissão para analisar régio de 13 de março de 1855.
esta questão e apresentar um parecer sobre a O Governo central, através de portaria do
mesma. A 30 de julho de 1839, foi proposto Ministério do Reino de 28 de abril de 1855,
que, face ao estado lastimável de miséria e de mandou o governador civil proceder à refor-
completa ruína da Santa Casa da Misericór- ma do Compromisso da Misericórdia, em con-
dia do Funchal e ao abandono em que se en- formidade com a port. de 3 de abril de 1852.
contravam os presos na cadeia, as sobras dos A 28 de novembro de 1864, Manuel José
rendimentos das confrarias existentes dessem Vieira Júnior foi encarregado de examinar
entrada na tesouraria da Santa Casa da Miseri- o estado de decadência da Misericórdia e do
córdia do Funchal, como subsídio para encar- Hospital do Funchal, e de indicar as medidas
gos dessa instituição, assim como a criação de necessárias para a resolução desse problema.
uma caixa de socorro para os pobres que se Em 1868, as misericórdias de Machico, Santa
achavam encarcerados. A partir desta caixa, Cruz e Calheta não possuíam os meios neces-
deviam ser asseguradas as despesas com a sus- sários para satisfazer as despesas do tratamen-
tentação e o vestuário, a limpeza e os reparos to gratuito dos doentes dos seus concelhos,
das prisões. tendo estes que se deslocar para o efeito ao
O procurador à Junta Geral, Cón. José Joa- Hospital da Santa Casa da Misericórdia do
quim de Sá, na reunião de 4 de maio de 1854, Funchal.
apresentou uma proposta para que a Miseri-
córdia pudesse fazer lotarias, cedendo o Go-
verno, a favor do mesmo estabelecimento, os
Asilo de Mendicidade do Funchal
5 % que delas recebia, propondo ainda a sus- Em 1844, o governador civil do distrito, reco-
pensão das execuções fiscais para todas as dí- nhecendo as vantagens do estabelecimento,
vidas contraídas até 1852. Na reunião de dia no Funchal, dum asilo de mendicidade, pedia
12 desse mês, o mesmo procurador apresen- à Junta Geral o seu apoio e concorrência com
tou outro projeto, aprovado por unanimida- as sobras dos rendimentos das extintas con-
de, para que a Junta pedisse ao Governo que a frarias, sem prejuízo da sua antiga aplicação
Santa Casa da Misericórdia do Funchal passas- para o Hospital da Misericórdia do Funchal.
se a ser administrada por um provedor e uma A 8 de junho de 1844, a Junta Geral aprovou
B enefic ê ncia ¬ 299

a constituição dum asilo de mendicidade, dei- o distrito. Mas não tinha fundos próprios.
xando à sua disposição a soma proveniente Os meios extraordinários de que se lançava
dos rendimentos das extintas confrarias, que mão (bazares, espetáculos, rendimentos de
seria aplicada na Misericórdia do Funchal e confrarias extintas, etc.) eram insuficientes
no Asilo de Mendicidade. Foi também de- para a sua manutenção. As comparticipações
cidido que parte destes rendimentos seria de beneméritos eram quase irrisórias. A Junta
usada para a construção de uma enfermaria Geral contribuía com os meios que podia.
de mendigos e inválidos que padecessem de A solução era a de que as câmaras votassem
moléstias, disformes, cegos, surdos e velhos uma lei de dotação ao Asilo de Mendicida-
decrépitos. de e Órfãos do Funchal, a exemplo do que
O Asilo de Mendicidade do Funchal foi acontecia em outros distritos. Além destas su-
então criado em 1847, depois da grave crise gestões, a Junta decidiu autorizar o chefe do
agrícola e comercial por que passou o distrito distrito a aplicar neste estabelecimento todos
nos anos de 1846 e 1847, cabendo tal feito ao os rendimentos pertencentes às extintas con-
governador civil da Madeira, José Silvestre Ri- frarias, recomendando que este usasse todos
beiro (1846-1852). os meios ao seu alcance para obrigar todos os
Em 1856, houve uma epidemia de cólera, devedores ao cofre dos socorros públicos a pa-
que vitimou muitos madeirenses, deixando garem as suas dívidas para que fossem aplica-
muitas crianças na orfandade e desamparadas, das no Asilo e na Santa Casa da Misericórdia
para as quais era necessário procurar abrigo. do Funchal.
O governador civil de então decidiu adaptar A 6 de julho de 1863, o Cón. Filipe José
algumas dependências do extinto Convento Nunes propunha que a Junta Geral solicitas-
de S. Francisco, instalando ali um asilo des- se ao Governo uma lei de dotação ao Asilo
tinado exclusivamente a crianças, ficando a de Mendicidade e Órfãos desse distrito, sem
sua direção a cargo do Asilo de Mendicidade, o que tinha necessariamente de fechar-se a
que, devido à falta de recursos para mantê- porta. Dois dias depois, apresentou, por parte
-los separados, os uniu, em 1862, no Asilo de da comissão do Asilo de Mendicidade e Ór-
Mendicidade e Órfãos. Este estabelecimento fãos, o seu parecer, recomendando ao gover-
pio não tinha bens próprios e vivia exclusi- nador civil que empregasse todos os meios ao
vamente da caridade pública, o que lhe cau-
sava problemas em tempos de crise, pondo-
-se em causa por várias vezes a sua existência.
O governador civil Jacinto António Perdigão
(1863-1868) empenhou-se na defesa desta ins-
tituição de caridade, organizando e aprovan-
do os seus estatutos, e obrigando a Câmara
Municipal do Funchal a pagar-lhe uma dívi-
da de cinco contos de réis de que o Asilo era
credor, constituindo com este dinheiro o seu
fundo permanente.
No entanto, o Asilo lutou sempre contra
muitas dificuldades, que iam sendo ultrapas-
sadas com a comparticipação da Junta, das câ-
maras municipais e do governo. Existia apenas
um estabelecimento destes para uma popula-
ção de mais de 100.000 habitantes. Por estas
Fig. 2 – Abrigo de Nossa Senhora da Conceição, antigo Asilo de
razões, a conservação dum estabelecimen- Mendicidade e Órfãos de 1850, Av. do Infante, Funchal (arquivo
to deste género era de suma utilidade para particular).
300 ¬ B enefic ê ncia

seu alcance para obrigar todos os devedores


ao cofre dos socorros públicos a pagar as dívi-
das, cumprindo as condições a que se tinham
obrigado perante o Governo Civil, pagando o
capital e os juros. Pedia também ao Governo
que as obras não se realizassem com o dinhei-
ro dos pobres. Sugeria ainda que o Governo
comprasse inscrições no valor dos cinco con-
tos de réis que devia ao cofre das pensões da
Companhia dos Trabalhos Braçais da Alfânde-
ga e que o rendimento dessas inscrições fosse
aplicado à dotação dos asilos, com a obriga-
ção de serem socorridos em suas casas, pelos
mesmos asilos, os trabalhadores da Alfândega
que ficassem inválidos.
O relatório do Governo Civil, apresenta-
do à Junta em 1869, congratulava-se com os
progressos do Asilo e chamava a atenção da
Junta para a crescente mendicidade nas ruas
da cidade, entendendo-se como mais corre-
to deslocar os mendigos para o concelho da
sua residência e impedir que recorressem à
caridade pública os que não carecessem de so-
correr-se dela, procedendo-se à matrícula de
todos os mendigos que esmolava. Determina- Fig. 3 – Caridade, oficina de Bartolomeu Antunes e Nicolau de
Freitas, c. 1730 (igreja da Lombada dos Esmeraldos, Ponta do Sol).
va ainda a criação, em todos os concelhos, de
comissões permanentes que se incumbissem
de obter nas suas localidades donativos em aos sete anos de idade. Devido às constantes
benefício do Asilo. crises que afetaram a Madeira, as câmaras, por
Em março de 1873, a questão volta a ser a não terem fundos, deixaram de poder cum-
mesma. Pedia-se ao Governo para que fosse prir com esse preceito, sendo necessário tomar
concedido um subsídio de 50.000 réis men- providências para evitar o descalabro neste ser-
sais ao Asilo de Mendicidade e Órfãos do Fun- viço fundamental para a comunidade.
chal, pagos pelo cofre central do distrito. No No início do Liberalismo, devido às dificul-
ano seguinte, propunha-se ao Governo que, dades, as câmaras deixaram de remunerar as
de acordo com as leis de 12 de dezembro de amas que cuidavam dos expostos, ficando em
1844 e de 30 de junho de 1860, isentasse de dívida para com elas durante muitos anos,
todo o imposto os estabelecimentos de carida- e deixando de cumprir a lei de 7 de outu-
de, asilos e misericórdias. bro de 1837, que as obrigava a pagar. Havia
a consciência pública da enorme dívida das
câmaras às amas e da impossibilidade em
Expostos que se encontravam os municípios de faze-
Os expostos também constituíam uma preo- rem esse pagamento. A Junta Geral entendia
cupação para os governantes madeirenses. que devia proporcionar às câmaras os meios
Segundo as Ordenações Manuelinas de 1521, necessários para a regularização do serviço
competia às câmaras municipais suportar o de amas, de forma a assegurar aos expostos
custo do sustento e da educação das crianças um bom tratamento. A port. de 17 de dezem-
abandonadas, nos respetivos concelhos, até bro de 1840 dava preferência ao pagamento
B enefic ê ncia ¬ 301

da dívida às amas dos expostos em relação a No final do ano de 1857, o número de ex-
todas as outras despesas municipais, impon- postos em todo o distrito era de 972 (dois anos
do que os pagamentos atrasados fossem fei- antes, ordenara-se às câmaras que colocassem
tos num curto espaço de tempo, em presta- um cognome aos expostos no ato do batismo,
ções mensais. a fim de melhor serem conhecidos no recen-
Em 1854, pelas contas relativas à sustentação seamento), e a despesa com a sua sustentação
dos expostos, sabe-se que as câmaras do distri- atingiu 12.385.910 réis, a qual foi distribuí-
to deviam às amas, até 31 de março desse ano, da pelas câmaras municipais, através de quo-
a quantia de 18.379.232 réis. A Junta Geral en- tas calculadas segundo a receita de cada uma
tendia que era urgente criar uma receita es- no decurso desse ano. Da falta de meios com
pecífica para fazer face a esta despesa, suge- que lutavam as câmaras municipais, resultava
rindo a criação dum imposto sobre o mel e os que as amas dos expostos eram credoras de
figos importados, mas, reconhecendo os pro- 37.145.475 réis, quantia que dificilmente seria
blemas que causaria à comercialização desses amortizada sem o lançamento de uma derra-
produtos, decidiu solicitar ao Governo um ma para este fim.
auxílio extraordinário para pagamento da- Em 1863, o Cón. Filipe José Nunes, que
quela dívida, comprometendo-se as câmaras, fazia parte da comissão dos expostos, consi-
a partir dali, a cumprir o integral pagamento derava que as rendas do concelho do Funchal
anual desta despesa. Para impedir o progressi- eram, na sua quase totalidade, consumidas
vo aumento de expostos, cuja despesa poderia pelos expostos. Solicitava que se determinasse
absorver a maior parte dos rendimentos das que as câmaras municipais, sempre que fosse
câmaras, recomendava uma vigilância aperta- possível, fizessem com que os expostos fossem
da sobre as mulheres solteiras em estado de criados por amas domiciliadas no mesmo con-
gravidez, para que fossem obrigadas não só celho e não por amas que residissem noutros
a apresentar os filhos como a criá-los. Para a concelhos. Desse modo, seria mais fácil não
regular sustentação dos expostos, a comissão só evitar alguns abusos, mas também fiscalizar
administrativa entendia que devia manter-se a o bem-estar dos expostos.
deliberação da Junta de 18 de junho de 1845, A 11 de julho desse ano, a verba de 8850.000
a qual estabelecia que as câmaras concorres- réis, proposta no orçamento e aprovada para
sem para a caixa dos expostos com uma quota sustentação dos expostos a cargo das câmaras
proporcional à sua receita. municipais do distrito, foi distribuída na pro-
Em 1855, na apresentação do seu relatório, porção das contas da receita das referidas câ-
o governador civil informava a Junta de que maras no ano civil de 1862.
tinham sido adotadas medidas para normali-
zar a administração dos expostos. No entan- CONCELHOS RECEITAS QUOTA

to, esta situação parecia insolúvel. Em 1858, Funchal 24.980.431 5.592.715


assumia-se que as dívidas das câmaras às amas Santa Cruz 1.939.703 434.267
dos expostos eram demasiado avultadas, não Machico 1.670.592 374.018
lhes sendo possível acertar as contas, mesmo Santana 772.788 173.014
que recorressem à criação de novos impostos São Vicente 1.035.005 231.720
e novas derramas, que, nesse momento, eram Porto do Moniz 664.714 148.818
considerados incompatíveis com a miséria da Calheta 1.614.325 361.420
população. Muitas amas, a quem as câmaras Ponta do Sol 3.162.820 708.103
deviam avultadas quantias, querendo emigrar, Câmara de Lobos 2.620.950 586.787
abdicavam da totalidade da dívida para pode- Porto Santo 1.068.137 239.138
rem receber uma parte, mas as câmaras não Totais 39.529.465 8.850.000
podiam aceitar tais propostas por lhes ser im- Fig. 4 – Tabela das quotas dos concelhos para os expostos em
pedido por lei essa faculdade. 1862 (em réis) (relatório da Junta Geral do Distrito).
302 ¬ B enefic ê ncia

A verba de 3.581.160 réis, destinada à amor- CONCELHOS RECEITAS QUOTA


tização da dívida das câmaras relativa à criação
Santana 851.740 126.000
dos expostos, foi, pela mesma forma e propor-
São Vicente 733.450 110.000
ção, distribuída por elas, como mostra a tabela
seguinte. Porto do Moniz 845,890 116.000
Calheta 2.134.000 320.000

CONCELHOS DÍVIDA QUOTA Ponta do Sol 4.235.310 660.000

Funchal 24.980.431 2.263.099 Câmara de Lobos 1.407.430 210.000

Santa Cruz 1.939.703 175.726 Porto Santo 727.000 106.000


Totais 45.924.730 6.850.000
Machico 1.670.592 157.346
Santana 772.788 70.010 Fig. 6 – Tabela das quotas dos concelhos para os expostos em
1864 (em réis) (relatório da Junta Geral do Distrito).
São Vicente 1.035.005 93.765
Porto do Moniz 664.714 60.219 A verba destinada à amortização da dívida das
Calheta 1.614.325 146.249 câmaras relacionada com a criação dos expostos
foi, pela mesma forma e na devida proporção,
Ponta do Sol 3.162.820 286.535
distribuída pelas câmaras do modo seguinte:
Câmara de Lobos 2.620.950 237.444
Porto Santo 1.068.137 96.767
CONCELHOS DÍVIDA QUOTA
Totais 39.529.465 3.581.160
Funchal 27.561.600 2.756.160
Fig. 5 – Tabela do subsídio da Junta Geral para a amortização da Santa Cruz 2.289.045 2.28.904
dívida relativa à criação dos expostos em 1862 (relatório da Junta
Geral do Distrito). Machico 839.645 83.964

Santana 149.755 14.975


A 7 de dezembro de 1864, a Junta Geral, sob
proposta do governador civil, tomou a decisão São Vicente 293.090 29.309
de criar, no Governo Civil, uma repartição cen- Porto do Moniz - -
tral, a cujo cargo ficava exclusivamente o ser-
Calheta 2.704.180 270.418
viço dos expostos e dos estabelecimentos pios
e de beneficência do distrito, exercendo uma Ponta do Sol 1.014.300 101.430
assídua e ativa fiscalização da administração Câmara de Lobos 1.091.715 109.171
dos mesmos serviços, de forma a poder dimi-
Porto Santo - -
nuir a despesa com a sustentação das crianças
enjeitadas. Fig. 7 – Tabela do subsídio da Junta Geral para a amortização
Em 1864, a verba de 6850$000 réis, propos- da dívida relativa à criação dos expostos em 1864
ta no orçamento e aprovada para a sustenta- (relatório da Junta Geral do Distrito).

ção dos expostos a cargo das câmaras munici-


pais do distrito, foi distribuída na proporção A partir de 1865, o serviço de expostos dei-
das contas de receita das respetivas câmaras no xou de ser municipal para passar a ser distri-
último ano económico, como demonstra a ta- tal, e a partir desse ano, as contas desse serviço
bela seguinte. deviam ser apresentadas ao respetivo tribunal,
tendo a administração dos expostos melhorado
CONCELHOS RECEITAS QUOTA sensivelmente. O governador civil dava conta
Funchal 310.041.030 4.618.000 da melhoria da situação dos expostos, tendo
o seu número baixado de 657, em 1863, para
Santa Cruz 2.034.590 298.000
527, em 1865. O número médio de exposições
Machico 1916.290 286.000
nos seis anos decorridos entre 1857 e 1862 foi
B enefic ê ncia ¬ 303

de cerca de 171. A despesa média anual, em No início do ano de 1873, existiam, em


cada um dos anos do referido período, foi de todo o distrito, 222 expostos (104 do sexo
10.090.389 réis. Em 30 de junho de 1865, o nú- masculino e 118 do sexo feminino), tendo
mero de expostos em criação estava reduzido a sido de 2.713.785 réis a despesa com a sua
456. O número de crianças expostas em todo o sustentação. No ano seguinte, existiam 227
ano foi de 83, das quais 18 foram entregues aos expostos (109 do sexo masculino e 118 do
pais, ficando por isso reduzidas a 65. sexo feminino), tendo-se mantido a mesma
Durante o mesmo ano, foram contabiliza- verba para a sua manutenção. A mortalida-
das 48 mortes, ou seja, 1 em cada 12 expos- de, nos anos de 1871 e 1872, foi de 25, e nos
tos faleceu. A despesa, em todo o ano, foi de de 1872 e 1873, de 14.
5.804.780 réis, incluindo a verba destinada aos Em 1873, a epidemia de varíola causou 1007
subsídios às mães pobres. Estes números eram vítimas, sendo a primeira infância a mais afeta-
considerados a recompensa pelo trabalho de- da; nos concelhos da Ponta do Sol e de Câmara
senvolvido neste campo. Os estabelecimentos de Lobos, onde existiam mais de 2/3 dos ex-
de beneficência melhoraram também sensivel- postos, a epidemia fez 209 vítimas. Foi diminu-
mente nas suas condições económicas e no seu to o número de casos fatais havidos nos expos-
regime interno, devido aos esforços e ao zelo tos devido à eficácia da vacina preventiva dessa
das administrações a que estavam confiados. doença.
Os resultados foram surpreendentes. Em No orçamento do distrito para os anos de
1865, o governador civil constatava que a des- 1874 e 1875, previa-se que as câmaras munici-
pesa com o serviço dos expostos tinha sido de pais contribuíssem para a sustentação dos ex-
5.390.080 réis, e no projeto de orçamento para postos, em 1875, com um total de 3.486.000
o ano de 1866, a previsão era de 5.100.000 réis. réis.
No entanto, as dívidas às amas continuavam
sem solução à vista. Em outubro de 1869, foi
enviado à Junta Geral um requerimento de vá-
Mutualismo
rias amas, pedindo que lhes mandasse pagar Nos sécs. xix e xx, a assistência e a solidarie-
os ordenados vencidos há três anos. Em 1868 e dade ganham novas formas de manifestação
1873, as quotas para o serviço de expostos fica- laicas, através do mutualismo, que tem diver-
ram assim distribuídas: sas formas de expressão, por meio de asso-
ciações de socorros mútuos, de associações
CONCELHOS QUOTA DE 1868 QUOTA DE 1873 mutualistas, que contemplam grupos socio-
Funchal 2.367.800 1.649.000 profissionais ou apenas aqueles que manifes-
tam o desejo de se apoiar mutuamente, assu-
Santa Cruz 253.000 212.000
mindo uma atitude laica e substituindo-se ao
Machico 343.500 205.000 Estado, que só virá a assumir esta posição de
Santana 321.700 202.000 proteção social muito mais tarde. Relativa-
São Vicente 210.000 187.500 mente a estas instituições, destaque-se a cria-
ção, em 1840, por um grupo de funcionários
Porto do Moniz 245.000 96.600
do Estado, do Montepio dos Empregados do
Calheta 286.500 277.900 Estado.
Ponta do Sol 297.400 235.000 Ainda em termos de associações de cariz fi-
Câmara de Lobos 287.500 171.000 lantrópico, neste caso com a finalidade de
apoiar e promover o ensino, existiam a Socie-
Porto Santo 138.600 103.000
dade Auxiliadora da Instrução Primária (19
Totais 4.751.000 3.339.000
out. 1858), a Associação Académica do Fun-
Fig. 8 – Tabela das quotas dos concelhos para os expostos chal (1 nov. 1884); a Associação de Protecção
em 1868 e 1873 (em réis) (relatório da Junta Geral do Distrito). e Instrução do Sexo Feminino Funchalense
304 ¬ B enefic ê ncia

(1878); a Associação Filantrópica dos Estudan- No início do séc. xx, o Hospital do Funchal,
tes do Funchal (13 maio 1892); e a Assistência que desde há vários anos caminhava em pro-
Protectora dos Estudantes Pobres (1907). Jun- gressiva decadência, começava a levantar-se
tava-se ainda a Sociedade Filantrópica Acadé- dia a dia do abatimento em que jazia, e dimi-
mica (23 dez. 1849), fundada pelo madeirense nuíam as dificuldades penosíssimas que lhe
Feliciano Augusto de Bento Correia, quando eram já quase vida normal. O Asilo de Men-
estudava Direito em Coimbra. dicidade tinha melhorado sucessivamente, de-
Em 1863, a população do distrito em idade vido ao empenho dos poderes do distrito e às
própria para receber a instrução primária não verbas que ali tinham sido investidas. As maio-
excederia muito as 6000 almas. A frequência, res dificuldades encontradas advinham da falta
em 1862, fora de 2704 indivíduos, distribuídos de estatutos aprovados que dessem vida legal.
do seguinte modo: 1341 nas escolas municipais A administração das confrarias continuava
e 620 nas particulares. Dos 2704 alunos, 1113 atestando a necessidade de acudir-lhe com al-
pertenciam ao sexo feminino. Constatava-se guma providência que habilitasse esses estabe-
que, havia poucos anos, apenas existia uma es- lecimentos a satisfazerem melhor os fins da sua
cola régia para o sexo feminino em todo o dis- instituição e a produzirem o bem que se espe-
trito. Nessa altura, a educação da mulher era rava deles.
completamente descurada pelo homem. Nesse Em 1913, já com a república implantada no
ano, já contava o distrito com nove escolas ré- país, a Junta Geral, atenta à questão social, de-
gias para o sexo feminino e algumas outras cidiu auxiliar diferentes instituições de solida-
particulares. A Junta, entusiasmada com estes riedade social com um subsídio anual, caben-
números, ia criando escolas mais próximas das do à Santa Casa da Misericórdia do Funchal e
populações. ao Asilo de Mendicidade 1.000.000 réis, aos ór-
Os únicos meios considerados eficazes para fãos do Funchal, 800.000 réis, ao Auxílio Ma-
combater e cortar pela raiz a mendicida- ternal, 300.000 réis, à Assistência de Crianças
de eram a difusão da instrução, a generaliza- Fracas, 300.000 réis. Foi ainda decidido pedir
ção dos princípios económicos, disseminados ao Governo a dispensa da contribuição de
pelas massas, revestidos com a linguagem pró- 1500$000 réis para o fundo especial de bene-
pria e a elas acessível, e o amor pela religião. ficência, que em nada aproveitava ao distrito,
Assim sendo, a Junta Geral tentou, pelos meios devendo essa verba reverter para benefício do
ao seu alcance, divulgar entre a população as Hospital Civil, para tratamento de tuberculo-
vantagens da instrução pública, embora reco- sos indigentes. A 15 de maio de 1916, foi deci-
nhecesse que o quadro de dificuldades não dido subsidiar a sopa económica com a quan-
fosse propício ao desenvolvimento da escolari- tia de 200.000 réis, e a Assistência Protectora
dade, mesmo tendo as estatísticas da época re- dos Estudantes Pobres com igual verba.
velado alguns progressos. O número de escolas A Junta Geral comparticipou apoios à bene-
era então muito limitado, e o acesso a elas era ficência, em 1915, com cerca de 30.000.000
muito difícil. réis, e, no ano seguinte, com uma verba seme-
Relativamente a um outro sector, o dos bor- lhante, distribuída pelo Manicómio Câmara
dados, entre finais do séc. xix e meados do se- Pestana, expostos e desvalidos, Asilo dos Ve-
guinte, este era um dos que espelhava maiores lhinhos, Sopa Económica, Assistência Protec-
carências, que só vieram a ser contempladas tora dos Estudantes Pobres, Vítimas dos Tem-
pela Caixa de Previdência a partir de 1946. To- porais na Ribeira da Janela. A Junta mantinha
davia, para atender à pobreza das bordadeiras, ainda 20 alunos pobres na Escola de Utilidades
surgiram formas de apoio social. Em 1894, sur- e Belas Artes, e também no posto de desinfe-
giu a Sociedade José Júlio Rodrigues de Pro- ção, fornecendo gratuitamente aos pobres col-
tecção das Bordadeiras e, em 1907, as casas de chões, enxergões e roupa de cama, entre ou-
bordados criaram uma caixa de socorro. tros materiais.
B ens da I greja ¬ 305

Esta política assistencial do Estado na Ma- Bens da Igreja


deira ganha expressão em algumas das classes
profissionais mais desfavorecidas, como os pes- Seguindo o padrão de heterogeneidade que
cadores, com a criação das casas dos pescado- caracteriza a Igreja, os seus bens revestem,
res do Paul do Mar e da Madalena do Mar, e igualmente, múltiplas formas, montantes e ca-
da assistência médica em Câmara de Lobos, tegorias, o que os torna difíceis de contabilizar,
Paul do Mar (1944), Funchal (1952), Caniçal e logo, de estudar. A Igreja madeirense padece
(1954), etc. de similar inconveniente, ao qual se deve aliar
a quase ausência de estudos específicos. Exce-
Estatutos: Estatuto da Congregação de Nossa Senhora da Soledade, Funchal,
tua-se o verbete “Bens” da autoria de Fernan-
1857; Estatuto da Associação de Beneficência do Funchal, Funchal, 1862, 1872 e
1979; Estatuto da Sociedade Humanitária do Funchal, Funchal, 1863; Estatuto do Jasmins Pereira (PEREIRA, 1991, 325-349)
da Associação Catholica do Funchal com o Regulamento para a Execução dos e os capítulos dedicados à economia das ins-
Art.ºs 4.º e 48.º, Funchal, 1874 e 1876; Estatuto da Sociedade Cooperativa de
Consumo e Credito do Funchal, Funchal, 1875; Estatuto da Companhia de Seguros tituições religiosas. A quase impraticabilidade
Madeirense, Funchal, 1877; Estatuto da Associação Madeirense Promotora do do estudo reside na multiplicidade dos bens,
Bem Publico e do Auxilio Mútuo, Funchal, 1878; Estatuto da Confraria de S. Paulo
Erecta na Capela do Mesmo Nome, Funchal, 1880; Estatuto da Sociedade de quer do clero secular, quer do regular, como
Socorros Mútuos Denominada Associação de Beneficência do Funchal, Funchal, das diversas instituições para-religiosas de ca-
1888; Estatuto da Associação Protectora dos Pobres, Funchal, 1889; Estatuto da
Associação Philantropica dos Estudantes Funchalenses, Madeira, 1892; Estatuto rácter assistencial, de que são exemplo as con-
da Associação de Socorros Mutuos “4 de Setembro de 1862”, Lisboa, 1895; frarias, as Misericórdias e os hospitais, ou as
Estatuto da Associação de Classe dos Industriais Madeirenses, Funchal, 1901;
Estatuto da Associação de Socorros Mútuos do Monte Pio Marítimo Funchalense,
instituições de ensino, como colégios e semi-
Funchal, 1902; Estatuto da Associação de Soccorros Mutuos do Sexo Feminino nários, além das comendas, das Ordens Milita-
do Funchal “15 de Setembro de 1901”, Funchal, 1902; Estatuto da Associação
de Beneficência Auxilio Maternal do Funchal, Funchal, 1903; Estatuto da Caixa
res e da Inquisição. Nessa tentativa de estudar
Económica Districtal Funchalense, Funchal, 1904; Estatuto da Associação de os bens da Igreja madeirense numa perspetiva
Socorros Mutuos Monte Pio Madeirense, Funchal, 1905; Estatuto da Associação
de Soccorros Mutuos Reforma dos Operarios Madeirenses, Funchal, 1905;
Estatuto da Associaçao de Soccorros Mutuos “4 de Setembro de 1862”, Funchal,
1907; Estatuto da Companhia de Seguros Garantia Funchalense, Funchal, 1907;
Estatuto da Associação Assistencia a Creanças Fracas, Funchal, 1908; Estatuto da
Associação de Soccorros Mutuos Monte Pio Madeirense e da Caixa Economica
Adjunta, Funchal, 1913.

Compromissos: Compromisso da Confraria da Misericordia, Funchal, 1631, 1906


e 1942; Compromisso da Confraria de N. Senhora da Graça, Orago da Parochial
Igreja da Freguesia do Estreito de Câmara de Lobos, Lisboa, 1829; Compromisso
da Confraria de Nossa Senhora do Monte do Carmo Estabelecida na Igreja do
Mesmo Nome, Funchal, 1890; Compromisso da Confraria do Escapulario e Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, do Funchal, Funchal, 1894;
Compromisso da Confraria de Nossa Senhora do Rosário Erecta na Freguesia de
S. Vicente, Funchal, 1902; Compromisso da Confraria do Santissimo Sacramento
da Freguesia de Santa Luzia, Funchal, 1910; Compromisso da Confraria do S.
S. Sacramento da Freguesia do Caniço, 1902; Compromisso da Santa Casa da
Misericórdia do Funchal, Funchal, 1927.

Regimentos: Regimento ou Regulamento do Hospital Real de Santa Isabel da


Cidade do Funchal Ilha da Madeira, Sendo Provedor da Mesma Santa Casa o
Excellentissimo [...] D. Fr. Joaquim de Menezes Attaide. Anno de 1816, Confirmado
por Provisão Régia de 19 de Outubro de 1819; Regimento do Hospital Real de
Santa Isabel da Cidade do Funchal [...] Sendo Provedor D. Fr. Joaquim de Menezes
e Athaide, Lisboa, 1819; Regimento do Hospital Nacional e Real de Sancta Isabel
da Cidade do Funchal, Provincia da Madeira. Anno de 1834, Funchal, 1840;
Regimento do Hospital Nacional e Real de Santa Isabel da Cidade do Funchal,
Funchal, 1840.

Regulamentos: Regulamento Interno do Hospital da Santa Casa da Misericordia


do Funchal, Funchal, 1907; Regulamento Interno da Santa Casa da Misericórdia
do Funchal, Funchal, 1928.

Bibliog.: O Patriota Funchalense, 21 maio 1823.

Fig. 1 – Mandato de pagamento da côngrua para o vigário da


† Alberto Vieira
igreja de S.ta Beatriz de Água de Pena na ilha da Madeira, Lisboa,
Emanuel Janes 20 de julho de 1530 (ANTT, Corpo Cronológico).
306 ¬ B ens da I greja

histórica, será imprescindível atentar tanto incumbências que a possibilidade de cobrarem


aos de raiz como aos móveis, e igualmente aos os direitos eclesiásticos acarretava, mormente
rendimentos auferidos ao longo dos séculos e em relação aos preceitos económicos. Só esse
transversalmente às instituições referidas. facto explica a persistência dos pedidos de au-
torização efetuados pelo bispo à Mesa da Cons-
ciência e Ordens e ao monarca, pois a bula Pro
Clero secular Excellenti Proemientia, fundadora do bispado do
A Ordem de Cristo marcou indelevelmente a Funchal em 1514, extinguiu de jure as prerro-
história da Igreja madeirense. Apesar de se tra- gativas da Ordem no arquipélago. Todavia, de
tar de um período de relativa curta duração, a facto, o monarca, que sempre fez questão de
doação, a 26 de setembro de 1433, de todo o se intitular governador e perpétuo administra-
governo espiritual das ilhas da Madeira, Porto dor da Ordem, foi invariavelmente consultado
Santo e Desertas a essa instituição senhorial, quando havia necessidade de se dispensar fun-
pelo monarca D. Duarte, irá definir toda a in- dos para a administração do culto.
teração entre a coroa e a mitra funchalense Eram encargos temporais da Ordem de Cris-
nos tempos seguintes. Este apanágio garantia to a manutenção do culto católico e a susten-
à Ordem, além de amplos poderes decisórios tação dos seus ministros. O primeiro referia-se
sobre a administração eclesiástica do arquipé- à construção e conservação dos templos e à
lago, a cobrança do dízimo. Porém, o direito de compra ou doação das alfaias litúrgicas neces-
coleta e a jurisdição recebida obrigava a diver- sárias ao culto, enquanto o segundo consistia
sos encargos, tanto espirituais como temporais. na atribuição das côngruas. Apesar de ser con-
O dízimo, imposto eclesiástico de um décimo siderada uma competência exclusiva dos fiéis,
que recaía sobre o trabalho e sobre os produ- que deveriam utilizar as verbas provenientes
tos produzidos, colhidos e comercializados, de doações e de peditórios públicos, a edifica-
era a parcela que “Deus para si reservou, dos ção das igrejas recebeu regularmente a com-
bens que deu ao povo”, como definem as Cons- participação estadual. A catedral funchalense
tituições Sinodais (BARRETO, 1585, 134). Toda- é exemplo disso. Após a doação do “campo do
via, D. Manuel I, simultaneamente grão-mestre Duque”, em 1485, D. Manuel canalizou diversos
da Ordem de Cristo e monarca da coroa portu- fundos, como a renda da imposição do vinho
guesa, de forma a legitimar a cobrança do dízi- ou a metade das penas pecuniárias devidas à
mo, tornou, em 1497, as ilhas Ordem e ao senhorio, para a
“realengas”. Desde esse mo- construção da nova igreja. De
mento, e principalmente após igual modo, a coroa despen-
1515, ano em que se outorga- deu, a título de exemplo, em
ram forais às vilas do Funchal, 1690, 2.231.600 réis [“réis”
Calheta, Machico, Ponta do é a designação do real após
Sol e Santa Cruz, os dízimos 1581] para a construção da
sobre os cereais (trigo, ceva- igreja paroquial da Ponta do
da, milho e centeio), vinho, Pargo e, em 1744, 7.980.000
gado, animais domésticos e réis para a do Faial, e desem-
seus derivados (leite, quei- bolsou, em 1688, 900.000 réis
jo, manteiga, ovos e lã), pes- para as obras de reparação
cado, hortaliças, fruta, cera e da igreja de N. S.ª do Monte.
mel passaram a ser cobrados Porém, em algumas situações,
pela Fazenda Régia. Os con-
dicionalismos que a Ordem Fig. 2 – Lampadário de prata
da Sé do Funchal, c. 1590 (Museu
de Cristo impôs à Igreja se- de Arte Sacra do Funchal) (fotografia
cular madeirense advêm das de Pedro Clode de Sousa, 2005).
B ens da I greja ¬ 307

ao que parece, a coroa auxiliou construindo


ou conservando somente a capela-mor, deixan-
do o corpo daa igreja a cargo dos fiéis. Assim
aconteceu em 1688, pagando a Fazenda Régia
345.000 réis pela capela-mor da igreja do Porto
da Cruz, e em 1754, gastando 2.400.000 réis na
capela-mor da igreja de S. Jorge. Além dessas
contribuições esporádicas, D. Manuel estipu-
lou, desde 1487, a doação de 5000 reais anuais
para a compra de ornamentos, alfaias litúrgi-
cas ou pequenas reparações.
Ao considerar os bens de raiz da Igreja, as
casas dos párocos necessitam de ser referencia- Fig. 3 – Título dos foros de juro das confrarias da matriz do Cani-
ço, 1733 (fotografia de Fábio Correia, 2006).
das, ainda que pouco se saiba sobre elas. Tra-
tando-se de um meio necessário aos ministros
para a administração do culto, principalmente rendiam anualmente 30.000 réis, ou seja, 14 %
após a obrigatoriedade tridentina de o pároco das receitas da fábrica desse ano. Porém, se o
residir na paróquia onde exerce funções, deve- património imobiliário não produzia a maio-
ria ser obrigação da Ordem de Cristo a cons- ria dos rendimentos do clero secular e a arte
trução dessas casas. Todavia, terá sido quase sacra e as alfaias não traziam proventos regu-
sempre o povo, ou mesmo o pároco, a despen- lamente, pois normalmente eram reaprovei-
der os gastos para a edificação. Assim aconte- tadas e não vendidas, o clero secular subsistia
ceu em São Martinho, no final do séc. xvi. Nas através dos rendimentos que auferia pelo seu
visitações pastorais a esta paróquia, em 1588, trabalho.
D. Luís de Figueiredo de Lemos referiu que a No que concerne às rendas auferidas, é ne-
casa do pároco tinha sido construída no adro cessário distinguir entre as receitas dos cléri-
da igreja, prejudicando as procissões que aí de- gos seculares e as das suas igrejas. O principal
veriam ocorrer. De modo a solucionar o pro- provento dos clérigos resultava da côngrua re-
blema, incitava aos fregueses a que doassem cebida. Todavia, para estes alcançarem os car-
uma porção de terreno defronte da igreja para gos de maior valor necessitavam ascender a
que o pároco fizesse a sua casa. No ano se- clérigos de ordens sacras – subdiáconos, diáco-
guinte, o visitador informou que o pároco não nos ou presbíteros –, o que implicava possuir
construiu a casa, apesar de já possuir o terre- uma renda prévia. Segundo as Constituições Si-
no, pedindo que os fiéis o ajudassem por a sua nodais, em 1585, aos aspirantes a ordens sacras
renda ser diminuta. exigia-se a posse de um património, pessoal
Contrariamente ao que sucedeu no continen- e a título perpétuo, no valor anual de 10.000
te, a Igreja madeirense não foi dotada de bens réis, para que se pudessem autossustentar, evi-
patrimoniais que assegurassem a sua subsistên- tando os trabalhos impróprios e a mendicida-
cia. Isto, porém, não significa que não possuís- de, ofensivas à dignidade clerical. Porém, por
se propriedades, mas que estas foram poucas esse valor não bastar, devido ao incremento do
e que delas não se auferia grandes rendimen- preço dos produtos e ao decréscimo da produ-
tos. A existência desse património é compro- tividade das propriedades, D. Luís Figueiredo
vada pelas Constituições Sinodais de 1585. Nelas de Lemos aumentou o valor para 16.000 réis
se estabelecia que cada pároco deveria man- em 1597. Este rendimento não poderia ser dis-
ter um tombo de propriedades da fábrica da solvido ou doado sem a autorização episcopal,
igreja e que era obrigado a explorá-las, direta- devendo somar-se o valor da côngrua e outros
mente ou através do seu aforamento. Foi assim rendimentos para se conhecer integralmente
com as sete casas foreiras à fábrica da Sé, que o valor do vencimento clerical.
308 ¬ B ens da I greja

A côngrua consistia num estipêndio pago beneficial. De igual modo, alguns dos cargos
pela Fazenda Régia que correspondia à com- da Sé recebiam perpetuamente o seu venci-
pensação atribuída à clerezia pelos serviços mento. Assim acontecia com as dignidades, os
espirituais. Esse vencimento, estipulado pelo cónegos, os meios-cónegos e o mestre da cape-
monarca sob proposta do bispo, era pago em la. Os cónegos começaram por receber 12.000
dinheiro ou de forma mista, entre numerá- reais, sendo aumentados até receberem 60.000
rio e géneros, e variava consoante os serviços réis em 1595. Os outros elementos da Sé, como
ou cargos exercidos, o lugar do exercício das o sacristão, o sineiro, o escrivão, o organista, o
funções e, desde 1572, o número de paroquia- pregador, os capelães, os curas, o subchantre,
nos. A primeira informação relativa às côn- os moços do coro, o altareiro, o porteiro e o
gruas data de 1485 e informa que D. Manuel aljubeiro, recebiam a sua côngrua durante o
definiu para o vigário do Funchal 50.000 reais ano ou anos que serviam, podendo ser substi-
anuais, para o de Machico 20.000 reais e para tuídos caso o bispo ou o cabido pretendessem.
cada um dos nove raçoeiros nessas localidades A título de exemplo, sabe-se que, em 1736, os
8000 reais. Já em 1490, D. Manuel I atribuiu ao dois curas da Sé receberam, cada um, um moio
vigário do Funchal, Fr. Nuno Cão, 3000 reais, e 36 alqueires de trigo, sete pipas, 17 almudes
três moios de trigo, duas pipas de vinho, doze e duas canadas de vinho. Já cada um dos 10 ca-
cabritos, doze frangos, duas arrobas de açúcar pelães, no mesmo período, recebeu 8700 réis,
e 2/3 do pé-de-altar. Para os sécs. xvi e xvii, os um moio e 23 alqueires de trigo e três pipas
documentos relativos aos pagamentos dos clé- de vinho. Ao analisar-se as côngruas em valor
rigos, presentes no Corpo Cronológico ou no monetário apercebemo-nos de que, a partir
fundo do Cabido da Sé do Funchal na Torre do do séc. xvii, o seu valor baixou bruscamente,
Tombo, são abundantes. Fernando Jasmins Pe- como demonstram as tabelas apresentadas por
reira estudou em profundidade este tema, pu- Fernando Jasmins Pereira. Essa quebra é justi-
blicando a maioria dos valores das côngruas e a ficada pelo pedido dos capitulares ao monarca
sua evolução. É conveniente distinguir as côn- para lhes modificar as côngruas, adotando-se
gruas dos clérigos das igrejas paroquiais das do o modelo da Diocese de Angra, onde os ven-
clero catedralício. Sabe-se que este último pos- cimentos recebidos correspondiam a 2/3 em
suía os rendimentos mais elevados. O bispo trigo e vinho e o restante em dinheiro, com
recebia a maior côngrua da ilha. Quando a a equivalência de 6000 réis por cada moio de
mitra foi constituída, a côngrua ficou estabele- trigo e 3000 réis por pipa de vinho.
cida em 200.000 reais, sendo constantemente Os eclesiásticos que serviam nas paróquias
acrescentada até valer 1200 réis, 10 moios de recebiam igualmente os seus rendimentos pro-
trigo e 5 de cevada em 1603. Porém, em 1673, venientes da Fazenda Régia. Analogamente
com D. Gabriel de Almeida, os rendimentos ao ocorrido na Sé, estes receberiam perpetua-
foram alterados, fixando-se o vencimento em mente a côngrua caso fossem párocos, benefi-
266.600 réis, 49 moios e 26 alqueires de trigo, ciados ou tesoureiros, ou consoante o período
2,5 moios de cevada e 101 pipas e 9 almudes dos seus ofícios se fossem curas ou organistas.
de vinho. Além destas quantias, o bispo rece- Critérios de isolamento ditaram as diferen-
bia ainda ajudas de custo para pagar a deslo- ças entre os vencimentos dos párocos. Porém,
cação ao bispado, a realização de visitações, desde 1572, e até 1577, aplicou-se a mesma me-
a expedição de bulas e breves papais, os ven- dida que à diocese angrense – ainda que neste
cimentos ao provisor do bispado e ao vigário- caso tenha sido feita por carta geral –, unifor-
-geral e para despender em esmolas. Em 1736, mizando os vencimentos dos párocos consoan-
D. Fr. Manuel Coutinho recebeu 100.000 réis te o número de paroquianos. Os presbíteros
para pagar aos oficiais e 160.000 para esmolas. que cuidassem de menos de 100 fiéis recebe-
É de notar que esta côngrua era vitalícia por riam 20.000 réis, enquanto nas paróquias que
o bispado ser um cargo inserido no sistema continham entre 100 e 200 crentes os párocos
B ens da I greja ¬ 309

auferiam 25.000 réis e os que tivessem mais


de 200 paroquianos a seu cargo arrecadavam
34.000 réis (Ibid., 336). E também estes viram
os seus rendimentos comutados em géneros.
Para o pagamento das côngruas, o bispo ou o
cabido escolhiam um prioste, que poderia ser
clérigo ou leigo, que era encarregado de distri-
buir os valores devidos a cada eclesiástico. Este
valor era pago pela Fazenda Régia, através dos
almoxarifados da ilha. O dinheiro era dividido
em três parcelas para ser pago aos quartéis do
ano, enquanto os géneros eram solvidos pelos
recebedores dos diversos sítios de onde se reco-
lhia o dízimo e entregues por estes aos sacerdo-
tes nas alturas das colheitas. Mas os atrasos nos Fig. 4 – Cura, seminarista e vigário, litografia Priests in Different
pagamentos, mormente do trigo e do vinho, Atires, Londres, 1821 (ABM, Arquivos Particulares).
foram constantes. Observe-se que, em 1626, o
cabido e a clerezia se queixavam da falta de pa- Régia despendia no arquipélago da Madei-
gamentos pontuais, devendo a Fazenda Régia ra (MIRANDA, 1994, 167). Nos anos e sécu-
cerca de 91 moios e 45 alqueires de trigo e 203 los seguintes, deveriam corresponder a muito
pipas de vinho desde 1614. mais. Porém, é difícil avaliar se as côngruas e
Além das côngruas, os clérigos recebiam ou- os restantes rendimentos serão avultados para
tros rendimentos. Por exemplo, os párocos e a sociedade em questão. É verdade que, efe-
os beneficiados das colegiadas auferiam parte tuando-se determinadas comparações, como
do pé-de-altar, um rendimento pago pelos fiéis fez Azevedo e Silva, comparando a côngrua
pelo cumprimento de serviços como batizados, do bispo do Funchal, em 1594 – 600.000 réis,
casamentos e enterros. Outro rendimento des- 10 moios de trigo e 5 de cevada – com o ven-
tinado somente aos párocos correspondia à gra- cimento de 20.000 réis anuais de um médico,
tificação pela realização das Missas dos Infantes, se constata uma grande discrepância. Todavia,
no valor de 3000 réis anuais. Tratava-se do rendi- não nos esqueçamos de que os rendimentos
mento destinado por D. Manuel I para memória eram muitas vezes pagos com atraso, de que
do infante D. Henrique, sendo inicialmente de nem todos os clérigos recebiam tão avultada
seis marcos de prata, mas sete para Fr. Nuno Cão quantia e de que falta correlacionar os preços
para que organizasse a realização das missas, aos dos produtos e os dados do consumo médio,
sábados, em todas as paróquias da ilha. Outros diário ou anual, da população.
eclesiásticos recebiam pela prestação desse ser- Os rendimentos das igrejas são administra-
viço. Por exemplo, o cónego penitenciário rece- dos pelas suas fábricas e pelos funcionários que
bia 20.000 réis, além da sua côngrua, pela presta- nelas exercem os seus ofícios, como é o caso do
ção desde serviço; o escrivão da visitação de São fabriqueiro, do tesoureiro e do escrivão. Estas
Martinho, em 1588, recebeu 200 réis pelo seu administravam os fundos para a conservação
serviço; e certamente que os clérigos extravagan- do templo, a compra de alfaias e ornamentos,
tes, por não possuírem nenhuma côngrua, eram além da organização das cerimónias inerentes
recompensados pelos possuidores de capelas e ao culto. A sua renda teve uma proveniência
ermidas que lhes pagavam pelas missas oficiadas heterogénea. A maioria provinha da doação
ou, num regime mais recorrente, recebiam ca- anual de 5000 réis da Fazenda Régia, destinada
pelanias que os sustentavam. por D. Manuel I, valor ao qual se deverá somar
Em 1581, estas despesas correspondiam a diversas outras doações destinadas à compra
39 % dos gastos em dinheiro que a Fazenda de ornamentos, alfaias, sinos e a consertos
310 ¬ B ens da I greja

necessários. Além destes valores, as fábricas ad- nos conventos de S.ta Clara, no Convento da
ministravam as oblatas, doações e esmolas dos Encarnação e no Colégio dos Jesuítas, que pos-
fiéis, o dinheiro resultante da venda de sepul- suíam uma base económica distinta.
turas e capelas, os foros dos bens de raiz, os Os conventos franciscanos femininos foram
juros do dinheiro emprestado e o dinheiro de- todos constituídos através das rendas outorga-
vido pelos fiéis, para pagamento de sufrágios das pelos seus fundadores. Essa dotação inicial,
pelas almas e pelas penas pecuniárias impos- fundamental para a construção do cenóbio e
tas por eclesiásticos. Esporadicamente, as fá- das suas dependências, poderia ser efetuada
bricas lucravam com a venda de ornamentos em numerário ou em património que pudes-
ou alfaias danificados ou excedentes e com o se, rapidamente, dar os proventos necessários à
dinheiro que não era pago aos clérigos, por edificação. A título de exemplo, os fundadores
motivos da sua vacatura ou por faltas no servi- do Convento das Mercês, Gaspar Berenguer de
ço destes (SILVA, 1995, I, 538). Já em 1691, a Andrade e Isabel de França Andrade, sua mu-
receita da fábrica da Sé ascendeu aos 209.687 lher, dotaram-no com 160.000 réis anuais desde
réis, compondo este valor os 40.000 réis da 1654. Já o cónego Henrique Calaça de Vivei-
doação anual da Fazenda Régia, dos foros das ros, em 1645, dotou o cenóbio da Encarnação
casas, das sepulturas, da venda de vinho, ceva- com quatro propriedades urbanas e 24 rústicas.
da e centeio, de ofertas em dinheiro e de ou- O Convento de S.ta Clara teve o patronato de
tras proveniências (Ibid., 539). João Gonçalves da Câmara, segundo capitão do
O liberalismo, ao contrário do ocorrido com donatário no Funchal, e o apoio de D. Manuel,
o clero regular, não gerou especiais modifica- grão-mestre da Ordem de Cristo, que incitou os
ções nos rendimentos do clero secular, dimi- oficiais camarários a auxiliarem nas obras ini-
nuindo ligeiramente as côngruas, mas atuali- ciais do Convento, pois “has freyrasque em elle
zando-as posteriormente. Todavia, a Primeira amde emtrar nom am de seer estramgeyras mas
República eliminou as doações à Igreja e subs- filhas e paremtas dos primcipaees da terra”. Foi
tituiu por pensões o regime de côngruas, que Gonçalves da Câmara que dotou o Convento de
regressou com a implementação do Estado uma das suas mais rentáveis e famosas proprie-
Novo, embora noutro quadro. dades, o “curral grande” ou “Curral das Freiras”
(FONTOURA, 2000, 97).
Os dotes de entrada das noviças ou de senho-
Clero regular ras que se recolhiam no cenóbio auxiliaram
Ao contrário do clero secular, as duas ordens re-
ligiosas instaladas no arquipélago madeirense –
franciscana e jesuíta – foram acumuladoras de
bens de raiz, destacando-se, ao longo do Antigo
Regime, como importantes instâncias económi-
cas das ilhas. Todavia, esta situação não é gene-
ralizada. Os conventos masculinos franciscanos
e o Convento feminino das Mercês foram de-
dicados a ordens de extrema observância, cum-
prindo rigorosamente o seu voto de pobreza e
não acumulando bens além do estritamente ne-
cessário para subsistirem e efetuarem os ofícios
religiosos. Assim, viveram da pequena horta ou
cerca existente no interior das muralhas do con-
vento, das esmolas dos fiéis, de doações de pe-
quena monta ou da venda de produtos por estes Fig. 5 – Convento de S. Francisco do Funchal com as suas hortas,
produzidos. No entanto, é necessário atentar pormenor da planta do Funchal de c. 1567 (BNB).
B ens da I greja ¬ 311

nessa acumulação de bens patrimoniais. Veja- O pagamento desenrolava-se em três fases: nos
-se, e.g., o caso seguinte: Emília de Santiago, primeiros três anos, o colono não pagava ou
quando, nos inícios do séc. xvii, se recolheu entregava uma galinha; nos três seguintes, era-
ao Convento de S.ta Clara, deixou testamenta- -lhe cobrado 1/3 da produção; nos últimos
do que doava dois cerrados de canas, perto da anos, pagaria metade da produção. Mas é de
levada de Santa Luzia, avaliados em 305.000 notar que nem todas as propriedades eram co-
réis, um terreno de vinha na serra, estimado locadas a render. Por exemplo, o Convento da
em 100.000 réis e o seu escravo, Pedro, ao Con- Encarnação deixava algumas terras em baldio
vento (SILVA, 1995, II, 933). destinadas à pastorícia.
Porém, nem todas as propriedades foram ad- Os rendimentos que os conventos auferiam
quiridas por doação. As propriedades que os provinham de múltiplas origens. As mercês ré-
Jesuítas possuíam foram todas compradas e, gias foram deveras importantes para alguns con-
através de criteriosa administração, largamen- ventos. Já se referiu a importância que o Con-
te rentabilizadas. Em 1577, a quinta do Pico vento de S.ta Clara tinha para D. Manuel I, ao
do Cardo foi vendida aos padres por 100.000 ponto de este incitar a Câmara a apoiar a sua
reais, além dos 30.000 reais anuais que o con- construção. Também o Convento das Mercês re-
trato estipulava que se desse ao antigo proprie- cebeu o auxílio da Coroa. D. Luísa de Gusmão,
tário até este falecer. No ano seguinte, compra- rainha regente, doou 16.000 réis anuais ao Con-
ram diversas casas a Garcia Homem de Sousa; vento; D. João V outorgou 40.000 réis e D. José
em 1595, adquiriram a quinta Grande; e, em ofereceu uma arroba de cera anual para as fes-
1600, obtiveram a quinta dos Frias. tividades em honra do seu santo homónimo.
Assim, o património imóvel pertencente ao Também os Jesuítas foram bafejados pela mercê
clero regular era múltiplo e em avultado nú- régia, pois em 1569 receberam uma dotação
mero, distinguindo-se em três parcelas: o cenó- de 600.000 reais. Porém, em 1594, decidiu-se
bio – o complexo habitacional e laboral destes que esse valor deveria ser retirado dos dízimos
clérigos –, as propriedades rústicas e os prédios da Ribeira Brava, cobrando-se também dos dí-
urbanos, que explorava. O Convento de S.ta zimos do Campanário, Tabua e Serra de Água.
Clara totalizou as 104 propriedades rurais além E se esse valor estava inicialmente estimado em
de diversas casas na cidade do Funchal. Para 600.000 reais, no triénio de 1759-1761 o mon-
o Convento da Encarnação, Eduarda Gomes tante recolhido foi de 17.011.650 réis.
contabilizou 11 propriedades urbanas e 66 rús- Os dotes de entrada eram uma das prin-
ticas. Já o colégio dos Jesuítas chegou a possuir cipais rendas dos conventos. Em S.ta Clara, o
28 propriedades rurais. dote estava fixado em 300.000 reais, enquan-
No que concerne à exploração destes bens, to na Encarnação era de 400.000 réis, 300.000
sabe-se que a cerca ou a horta eram explora- para a compra de bens e colocação a juros e
das pela própria comunidade conventual e 100.000 para as obras do convento. Porém,
pelos seus serventuários. Os prédios urbanos por diversas vezes esse valor foi ultrapassado, e,
eram arrendados ou vendidos. Já as proprie- não raras vezes, as professas legavam todos os
dades rústicas eram exploradas em regime de seus bens aos cenóbios. Assim aconteceu com
meação, o que significa que o convento cedia Francisca de Carvalho, que, em 1620, entrou
o domínio útil da terra mediante o pagamen- com um dote avaliado em 800.000 réis, entre
to de uma renda ou foro. Essa era paga nor- dinheiro e propriedades, no Convento de S.ta
malmente em dinheiro ou em géneros. João Clara (SILVA, 1995, II, 932-934). No Convento
José Abreu de Sousa estudou os contratos cele- das Mercês, onde a regra proibia a acumula-
brados pelo Convento de S.ta Clara, detetando ção de bens, os dotes das noviças eram colo-
que estes eram na sua maioria de arrendamen- cados a render, através do juro a 5 ou a 6,25
to de 9 ou 18 anos, ainda que existam alguns %. O rendimento proveniente era aplicado
exemplos de contratos enfitêuticos perpétuos. nas despesas da igreja e do culto divino e, caso
312 ¬ B ens da I greja

outros elementos do clero, em géneros e em


numerário, algumas regulares e outras incer-
tas, das quais é muito difícil de contabilizar a
importância para a economia do cenóbio.
Em 1759, a Companhia de Jesus foi extinta.
Compilou-se uma lista de bens e transferiram-
-nos para a Fazenda Régia, enquanto a igreja e
as capelas permaneceram nas mãos da diocese.
O liberalismo, pela lei de 28 de maio de 1834,
decretou igualmente a extinção dos restantes
conventos. Os masculinos foram logo dissol-
Fig. 6 – Fé, Esperança e Caridade, painéis de azulejos vidos, enquanto os femininos só podiam ser
de oficina de Lisboa, c. 1760, varanda da torre do antigo paço
extintos após a morte da última irmã, ficando
episcopal, hoje Museu de Arte Sacra do Funchal
(fotografia de Virgílio Gomes, 2014). proibida a entrada de novas professas. Os seus
bens passaram para a mão do Estado e, na
houvesse excedente, era destinado a colmatar maior parte, foram vendidos em hasta pública,
determinadas necessidades da comunidade. embora mais tarde se devolvessem alguns des-
Em 1764, este convento tinha 116 contratos de ses espaços a outras ordens religiosas e a dioce-
empréstimo, que lhe rendiam 765.470 réis de se tivesse, inclusivamente, recuperado outros.
juros, além dos 15.309.400 réis emprestados.
No Convento da Encarnação, o valor dos juros
auferido em 1666 foi de 8.114.900 réis e, nos
Instituições pararreligiosas
meados do séc. xviii, o Convento de S.ta Clara As instituições pararreligiosas são organismos
recolheu 1.302.178 réis só em juros. que não pertencem à Igreja mas que pelas
Os conventos também recebiam importân- suas ações, pelos elementos integrantes, ou
cias elevadas das suas propriedades aforadas. por serem tuteladas pela Igreja ou por cléri-
Por exemplo, o Convento de S.ta Clara rece- gos, devem ser abordadas. Refira-se somente
beu, em 1644, 1.168.521 réis, 2567 alqueires de os casos da Misericórdia do Funchal e de algu-
trigo, 129 galinhas, 2 coelhos e 25,5 arráteis de mas confrarias.
linho, valores que ascenderam, em 1687, para Os bens de raiz da Santa Casa da Misericór-
2.038.920 réis, 2444 alqueires de trigo, 154 ga- dia do Funchal advinham de doações de parti-
linhas e 4 arráteis de linho. Em 1676, o Con- culares em troca de serviços religiosos, como
vento da Encarnação recebeu das suas proprie- a instituição de capelanias ou missas para su-
dades 1.837.658 réis. Já os Jesuítas auferiam, frágio da alma, com a obrigação perpétua de
das suas fazendas, entre 1759 e 1761, 4.878.650 missas e outras obras pias. Os prédios urbanos
réis. Receberam igualmente foros de fazendas eram, na sua maioria, casas térreas, na cida-
associadas às capelas da sua igreja, avaliados de do Funchal, ainda que se conheça algumas
em 4.939.500 réis. que eram sobradadas, possuindo uma loja no
As capelas e os legados pios também tra- piso térreo. Somente quando apresentavam
ziam alguns rendimentos para os conventos. algum problema de rentabilidade é que se rea-
Em 1598, no Convento de S.ta Clara, o valor lizavam contratos de arrendamento ou ven-
dos legados ascendia aos 47.600 réis. Deixa- das, pois o normal seria efetuar um contrato
vam dinheiro e géneros, como o caso do Dr. enfitêutico do prédio. Nos finais do séc. xviii,
José Ferreira Pazes, que deixou para o Conven- por acórdão da Mesa, de 28 de março de 1783,
to das Mercês 70 canadas de azeite, além de os prédios urbanos pertencentes à Misericór-
cera, vinho e 5000 réis para ornar o altar de S.to dia foram etiquetados com azulejos; em março
António, antes de 1764. Além destas rendas, de 1787, concluiu-se a inventariação, colocan-
os conventos recebiam esmolas dos fiéis e de do-se perto de 250 azulejos. Aos começos do
B ens da I greja ¬ 313

valores muito inconstantes. Por exemplo, o pe-


ditório pela cidade, em 1673, rendeu à Confra-
ria do Santíssimo Sacramento 15.375 réis. Já
entre 1768 e 1772 a Confraria das Almas rece-
beu somente três esmolas no valor de 2400, 900
e 100 réis, enquanto a Confraria de S. Jorge,
entre 1745 e 1767, registava regularmente
quantias entre os 6250 e os 17.550 réis. As quo-
tas, para as confrarias que as instituíram, eram
pagas anualmente pelos associados. Os valores
deveriam variar consoante as confrarias, e nas
que possuíam outros tipos de rendimentos, po-
deria nem existir quota. Sabe-se que, em 1745,
61 dos confrades de S. Jorge pagaram 500 réis
cada um; em 1747, as quotas aumentaram para
os 36.600 réis. Os associados também pagavam
Fig. 7 – Azulejo da casa foreira à Misericórdia do Funchal, 1784 um valor de entrada na confraria, de modo a
(Museu Quinta das Cruzes). que se assegurasse o sufrágio pela sua alma, que
variava entre os 300 e os 600 réis consoante as
séc. xxi só chegaram cerca de três azulejos no confrarias. Além destes valores, os confrades
sítio original. Além destes prédios urbanos, a das confrarias profissionais deveriam requerer
Misericórdia possuía mais de 20 propriedades a sua examinação. As confrarias passavam então
rústicas, que arrendava, obtendo diversos foros certificados que confirmavam que o proposto
daí provenientes. a exame estava apto a executar o ofício. Cada
As confrarias adquiriam os seus bens imóveis exame, com o custo de 600 réis para a confraria
de forma análoga. Normalmente estes chega- de S. Jorge, era pago pelo proposto e somava-se
vam às mãos das confrarias por legados pios, nas receitas das instituições.
fossem eles expressos de forma testamentária Os juros de 5 % sobre os empréstimos eram
ou doações em vida. O rol das “Capelas e Obri- também rendimentos de grande importância.
gações da Confraria do Senhor Bom Jesus da Estes correspondiam a 41 % das receitas em
Sé”, datado de 1768, atesta que a esta confra- dinheiro que a Misericórdia do Funchal rece-
ria tinham sido doadas casas, chãos, lojas ou os beu. Porém, apesar de a Misericórdia ser uma
foros desses bens. Já a confraria do Bom Jesus, instituição procurada para o crédito, esta asse-
da Sé, possuía cinco fazendas, onde se cultiva- gurava-se de que os credores podiam pagar o
va trigo, vinha, árvores de fruto e inhame, cuja empréstimo, fosse hipotecando bens próprios
posse lhe tinha sido transmitida por um testa- ou apresentando fiador credível.
mento. Não se conhecem muitos exemplos de A Misericórdia era administradora de diver-
escambos ou de compra de propriedades, não sas capelas às quais estavam consignados di-
querendo isso dizer que não tenham existido. versos bens legados pelos seus instituidores,
As restantes rendas das confrarias e das Mise- que geravam distintos proventos. Por exem-
ricórdias eram de vária índole, embora muitas plo, entre 1683 e 1691, a capela instituída por
confrarias só possuíssem dois tipos de rendi- Maria Brandão acusou despesas no valor de
mentos: esmolas e quotas dos associados. As es- 1.842.149 réis, porém, as suas receitas foram
molas eram recolhidas através de uma caixa de 5.278.709 réis; ou seja, a capela era três
pequena situada em cada altar ou através de pe- vezes mais rentável. Às capelas estavam asso-
ditórios efetuados pelos mordomos das confra- ciados diversos foros provenientes de bens pa-
rias ou por pessoas por estes pagos, que percor- trimoniais. E os bens de raiz da Misericórdia,
riam a cidade e o campo. Todavia, estes eram aforados, também geravam rendimentos. Em
314 ¬ B ens da I greja

1700, a Misericórdia recebeu 370.323 réis das encadernação encareciam o produto. Assim se
suas propriedades rústicas. Já os valores recebi- justifica que, ao extinguir-se o Colégio dos Je-
dos em géneros eram vendidos no dia da festa suítas, se tenha efetuado um inventário dos li-
do santo padroeiro. vros existentes na sua biblioteca.
Também constituíam receitas das confra- Os bens móveis das confrarias baseavam-se
rias os laudémios. Estes consistiam no imposto essencialmente em alfaias litúrgicas. Estas se-
sobre a transferência de propriedade, e, apesar riam na sua maioria compradas, ou reaprovei-
de rentáveis, não eram regulares. Um outro ren- tadas de peças mais antigas e estragadas, ainda
dimento da Misericórdia era proveniente dos que algumas fossem doadas, tanto no caso das
enterramentos. Representando 5 % das recei- confrarias como nos conventos e nas igrejas
tas, consistia no dinheiro angariado pela venda seculares. A celebração do culto divino a isso
das sepulturas na igreja da Misericórdia, que era obrigava. Observe-se que, em 1670, a confraria
depois utilizado para amparar os pobres. do Santíssimo Sacramento do Funchal possuía
um sacrário e um retábulo de Jesus Cristo, dois
lampadários de prata, quatro castiçais de prata
Bens móveis grandes, dois cálices, um turíbulo, além de
Muito se poderia escrever sobre o património cinco peças de ornamento branco, um frontal,
móvel das instituições referidas anteriormente. um pano do sepulcro, quatro alvas e outros ob-
Poder-se-ia, para algumas delas elaborar listas jetos necessários à correta celebração da missa.
do espólio que as igrejas, os conventos e os alta- Se algum destes objetos foi doado, sabe-se que
res de algumas confrarias possuíram. Alguns au- as mordomas da confraria compraram os qua-
tores já as elaboraram, publicando róis feitos no tro castiçais de prata por 46.860 réis.
passado ou estudando as peças. Assim o fizeram
Pita Ferreira para a sé ou Nídia Estreia para as
confrarias da sé, além de muitos outros. Os bens
móveis da Igreja madeirense consistiam, grosso
modo, em obras de arte sacra e em alfaias litúrgi-
cas e ornamentos. As primeiras, além da função
de embelezamento, tinham um papel catequéti-
co muito importante, guardando-se as segundas
para a celebração dos ofícios divinos.
Estes bens chegavam à Igreja e às instituições
pararreligiosas por doação ou por compra.
Quando por doação, eram de particulares mas
também da coroa. São exemplo disso, as diver-
sas peças – como uma cruz peitoral de cristal
com engastes de ouro – e os tecidos doados
por morte do bispo D. Fr. Gabriel de Almeida à
fábrica da Sé, em 1674 e as vestimentas doadas
por D. Manuel às igrejas madeirenses. As fá-
bricas paroquiais também despendiam verbas
na compra de bens móveis. A do Porto Santo,
em 1593, necessitou de adquirir uma lâmpada
de vidro para a capela-mor, e um novo missal,
no início do século seguinte. Os livros devem
também ser considerados bens e peças de arte,
pois a qualidade dos materiais utilizados e a Fig. 8 – Lampadários da capela do Santíssimo da Sé, João da Silva
técnica necessária para a escrita, iluminura e Esteves, 1767.
B enzoni , G irolamo ¬ 315

Algumas destas peças resistiram aos efeitos


do tempo, encontrando-se nos locais de ori-
gem ou tendo sido transferidas para o Museu
de Arte Sacra, grande recetáculo de arte reli-
giosa, quando em meados do séc. xx organizou
diversos catálogos de arte e subsequentemente
se resguardou no antigo Paço Episcopal, con-
vertido em museu.
Os bens da Igreja foram heterogéneos devi-
do à sua múltipla proveniência, mas também
devido à sua diversa índole. E foi esta heteroge-
neidade que permitiu que o clero madeirense
subsistisse ao longo dos séculos.

Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, mf. 685,


doc. 68; Ibid., Registos Paroquiais, São Martinho, liv. 9122; AHU, Madeira e
Porto Santo, cx. 1, docs. 1-3; ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 15, doc. 38;
mç. 20, doc. 28; impressa: Arquivo Histórico da Madeira, vols. xv-xix, 1972-
1990; BARRETO, Jerónimo, Constituições Synodaes do Bispado do Funchal,
Feytas e Ordenadas por Dom Ieronymo Barreto, Bispo do Dito Bispado, Lisboa,
António Ribeiro Impressor, 1585; CARITA, Rui, “A Igreja da Madeira na expansão
portuguesa”, in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, vol. i,
Funchal, CEHA, 1986, pp. 325-343; Id., O Colégio dos Jesuítas do Funchal, 2
vols., Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1987; Id., História da Madeira,
vols. i-iv, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1991-1996; COSTA, Bruno
Abreu da, O Estado Eclesiástico na Madeira. O Provimento de Benefícios (Séculos
XV-XVII), Dissertação de Mestrado em História apresentada à Universidade
de Coimbra, Coimbra, texto policopiado, 2013; ESTREIA, Nídia M. C. B. M.,
As Confrarias do Cabido da Sé do Funchal, Funchal, CEHA, 2002; FONTOURA,
Otília Rodrigues, As Clarissas na Madeira. Uma Presença de 500 Anos, Funchal, La Historia del Mondo Nuovo di M. Girolamo Benzoni Milanese.
CEHA, 2000; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. História das Ilhas do La Qual Tratta dell’Isole & Mari Nuovamente Ritrovati
Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues de Azevedo, & delle Nuove Città da Lui Proprio Vedute, per Acqua & per Terra
Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2007; GOMES, Eduarda M. in Quattordeci Anni (1572), de Girolamo Benzoni.
de S., O Convento da Encarnação do Funchal. Subsídios para a Sua História
(1660-1777), Funchal, CEHA, 1995; MIRANDA, Susana Münch, “Para a história
da estrutura eclesiástica da ilha da Madeira (segunda metade do século xvi). primeiro para o Haiti e, depois, para Cuba, em
Côngruas, paróquias e paroquianos”, in Actas do III Colóquio Internacional de
História da Madeira, Funchal, CEHA, 1993, pp. 541-555; Id., A Fazenda Real na
1544. Em seguida, viajou para o Panamá, Peru
Ilha da Madeira. Segunda Metade do Século XVI, Funchal, CEHA, 1994; PEREIRA, e Nicarágua. Em 1556, durante a viagem de re-
Eduardo C. N., Ilhas de Zargo, 4.ª ed., 2 vols., Funchal, Câmara Municipal do
gresso a Milão, passou pela Madeira, sobre a qual
Funchal, 1989; PEREIRA, Fernando Jasmins, Documentos sobre a Madeira no
Século XVI Existentes no Corpo Cronológico, Lisboa, Arquivo Nacional da Torre escreveu na obra La Historia del Mondo Nuovo di
do Tombo, 1990; Id., “Bens eclesiásticos. Diocese do Funchal”, in PEREIRA, M. Girolamo Benzoni Milanese, publicada em Ve-
Fernando Jasmins, Estudos sobre a História da Madeira, Funchal, CEHA, 1991,
pp. 325-349; SILVA, José Manuel Azevedo e, A Madeira e a Construção do neza por F. Rampazetto, em 1565, e republicada
Mundo Atlântico (Séculos XV-XVII), 2 vols., Funchal, CEHA, 1995; SOUSA, João em 1572, novamente em Veneza (a pedido dos
José Abreu de, O Convento de Santa Clara do Funchal, Funchal, Secretaria
Regional do Turismo, Cultura e Emigração, 1991; VERÍSSIMO, Nelson, Relações irmãos Pietro e Francesco Tini), numa segunda
de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000. edição que apresenta muitas variantes.
Bruno Abreu Costa A obra que Benzoni deixou está dividida em
três livros ricos em digressões: o primeiro livro
narra a história da descoberta da América e
Benzoni, Girolamo defende o espírito italiano e o conhecimen-
to do mar de Cristóvão Colombo, dando no-
Girolamo Benzoni nasceu em Milão, numa famí- tícias da sua vida na Madeira. Benzoni afirma
lia de condições humildes, em 1519; não se sabe que foi justamente navegando nas águas por-
a data da sua morte. Aos 22 anos, deixou a cidade tuguesas que Colombo “observou com muita
natal para chegar a Espanha, fazendo posterior- diligência, que em certas épocas do ano, al-
mente uma viagem que, das Canárias, o levou guns ventos sopravam de Oeste [...] e sabendo
316 ¬ B eresford , W illiam C arr

que não poderiam vir de outro lugar que da Beresford, William Carr
terra [...] decidiu tentar a viagem” (BENZONI,
1572, 12). No segundo livro, trata do comér- Nascido na Irlanda, em 1768, tinha 39 anos
cio de escravos, enquanto no terceiro se centra e era brigadeiro-general quando tomou for-
na conquista do Peru por Pizarro. O estilo é malmente a Madeira para a Coroa britânica,
moderno, embora às vezes um pouco simples; a 26 de dezembro de 1807, com a assinatura
os momentos de particular vivacidade resul- da capitulação. No ano anterior, participara no
tam de queixas contra os espanhóis e das expe- equívoco que fora a expedição a Buenos Aires
riências diretas que despertaram emoções for- (onde foi feito prisioneiro).
tes no autor. Pela utilização que faz das obras Entrou no Exército britânico em 1785, pelo
de outros autores, La Historia del Mondo Nuovo que, em 1807, tinha já uma vasta experiência
foi, no passado, considerada plágio e injusta- militar e de combate, desde o Cerco de Toulon
mente subestimada pelos estudiosos contem-
porâneos, que acusaram Benzoni de má pre-
paração científica. No entanto, o trabalho teve
muita fama, tanto na Itália como no exterior,
razão pela qual foram feitas 32 edições.
Em relação à Madeira e a Colombo, Benzo-
ni recorreu, no primeiro livro, a várias fontes
da sua época, incluindo o tratado Delle Naviga-
tioni et Viaggi (3 vols., 1550-1606), de Giovanni
Battista Ramusio, e a Historia de las Nuevas In-
dias Occidentales (1560), do espanhol Francisco
Lopez de Gomara. Em três páginas de conteú-
do interessante, Benzoni relata que, de acordo
com algumas fontes, Colombo, “já marinhei- William Carr Beresford, óleo sobre papel de sir William Beechey,
ro”, teria tido notícias do novo mundo através 1830 (National Portrait Gallery, Londres).
de um navegador que “fazia comércio nas ilhas
Canárias e Madeira” (Id., Ibid., 11). De acordo (em 1793) até à captura da cidade do Cabo da
com outras fontes, o mesmo navegador, chega- Boa Esperança (onde comandou uma briga-
do à Madeira, tinha ficado em casa de Colom- da), em 1806, passando pela expedição envia-
bo “onde lhe contou da viagem feita e as novas da em Egito (entre 1801-1803).
terras que tinha visto para que […] as colocasse Depois da missão na Madeira, serviu com
nos mapas, que comprava, e levava muitos para John Moore na península (1808-1809). De
fora; e no caso de morrer, deixava-lhe o traçado, resto, a atividade em Portugal do futuro conde
e o que sabia das novas terras” (Id., Ibid.). de Trancoso, marquês de Campo Maior e
duque de Elvas é conhecida. O que muitas
Obras de Girolamo Benzoni: La Historia del Mondo Nuovo di M. Girolamo vezes a historiografia portuguesa e estrangei-
Benzoni Milanese. La Qual Tratta dell’Isole & Mari Nuovamente Ritrovati & delle
Nuove Città da Lui Proprio Vedute, per Acqua & per Terra in Quattordeci Anni ra esquece é o seu desempenho como gover-
(1565). nador-general da Madeira, entre dezembro de
Bibliog.: BENZONI, Girolamo, La Historia del Mondo Nuovo di M. Girolamo 1807 e abril de 1808, em nome de Jorge III,
Benzoni Milanese. La Qual Tratta dell’Isole & Mari Nuovamente Ritrovati & delle onde começou a adotar, nas forças locais, al-
Nuove Città da Lui Proprio Vedute, per Acqua & per Terra in Quattordeci Anni,
Venezia, Pietro e Francesco Tini, 1572; Dizionario Biografico degli Italiani, vol. 8, gumas das iniciativas que depois tentou imple-
Roma, Istituto dell’Enciclopedia Italiana, 1966; FRACCACRETA, Augusto, Alcune mentar no Exército português.
Osservazioni su l’Historia del Mondo Nuovo di G. Benzoni, Roma, Tip. Terme,
1939; MAZZUCHELLI, Giammaria, Gli Scrittori d’Italia, vol. ii, pt. ii, Brescia, Saiu do Funchal em finais de agosto de 1808.
Giambatista Bossini, 1760; ROMEO, Rosario, Le Scoperte Americane nella Foi promovido a general em 1825. Terá morri-
Coscienza Italiana del Cinquecento, Roma/Bari, Laterza, 1989.
do em 1854.
Valeria Biagi Paulo Miguel Rodrigues
B ermudas ¬ 317

Bermudas
Grupo de ilhas no Atlântico, próximas dos Es-
tados Unidos da América, sob dependência da
Grã­‑Bretanha. O grupo é constituído por 150
pequenas ilhas, ilhéus e rochedos. A designa-
ção tem origem em Juan Bermúdez que as en-
controu na primeira década do séc. xvi. Foi
ocupado pelos Ingleses em 1609, mas só em
1684 assumiu o estatuto de colónia.
As ligações das Bermudas à Madeira ganham
importância a partir do séc. xvii, quando os
britânicos estabeleceram, no Funchal, um
centro de apoio à navegação oceânica para
as suas colónias. A legislação promulgada por
Cromwell em 1660 estabelece condições espe-
ciais para o relacionamento do porto madei-
rense com as colónias britânicas. Note-se que,
em julho de 1698, os governadores de Barba-
dos, São Cristóvão e Bermuda fizeram escala
no Funchal, onde permaneceram oito dias.
Estas ilhas da América Central podem ser
consideradas um mercado e uma área de na-
vegação muito intensa em termos inter-regio-
nais. Apesar de, muitas vezes, os passageiros/ East Broadway Bermuda, bilhete-postal de c. 1900
(coleção particular).
emigrantes e os produtos não terem como des-
tino um determinado porto, esse acaba por se
tornar o seu destino final, havendo um meca- Madeira, sendo os primeiros trabalhadores
nismo de redistribuição interna, que escapa ao madeirenses levados para essa colónia. Em-
investigador que apenas faz a leitura da infor- bora não tenha tido sucesso, esse projeto terá
mação documental desde o ponto de partida. sido o princípio da emigração madeirense
A política comercial britânica, a partir do para este destino, que ganhou importância a
séc. xvii, favoreceu o comércio do vinho Ma- partir da déc. de 40 do séc. xix. O registo de
deira para as colónias britânicas. Desta forma, passaportes para o período de 1872 a 1910 re-
as Bermudas receberão vinho e aguardente da fere alguns pedidos de madeirenses com a in-
Ilha em condições muito favoráveis, em troca tenção de viajar para este destino. O primei-
de trigo, milho, óleo e tabaco. Há, ainda, a re- ro registo é de João Gonçalves Cabral, que
ferência à importação de 16 escravos. A 8 de manifestou esse desejo em 1890. Mas, antes
agosto de 1728, aportou ao Funchal a balandra disso, já muitos madeirenses tinham partido
Vitória, oriunda das Bermudas com destino a nesta direção, sem que se tenha o registo na
Barbados, que transportava trigo, farinha, óleo documentação.
e tabaco; a 5 de novembro, aportou no mesmo Note-se ainda que Arthur Raleigh Blandy
porto, com destino às Bermudas, a balandra Cossart, oficial do Exército Britânico ligado
Isabel, propriedade de Bristol Brown, das Ber- a importantes famílias inglesas residentes na
mudas, que fazia a rota da Terra Nova trans- Ilha, prestou serviço nas Bermudas, em 1896.
portando bacalhau. Por fim, assinala-se o naufrágio, nas Achadas
Em 1747, houve a ideia de criar nas Ber- da Cruz, do iate americano Varuna, de Eugene
mudas um vinhedo com castas oriundas da Higgins, que teve lugar em 16 de novembro de
318 ¬ B ernardes , L í lia

1909; a embarcação saíra das Bermudas a 7 de


novembro do mesmo ano, tendo como desti-
no o Funchal. Em torno deste naufrágio criou­
‑se uma lenda da caça ao tesouro, pois corria
que o proprietário da embarcação, que era mi-
lionário, teria perdido um riquíssimo colar de
pérolas.

Bibliog.: ARMITAGE, David, e BRADDICK, Michael J. (orgs.), The British Atlantic


World. 1500-1800, 2.ª ed., Hampshire, Palgrave Macmillan, 2009; Boletim do
Arquivo Regional da Madeira. Série Índice dos Passaportes. 1871-1915. 2 vols.,
Funchal, Arquivo Regional da Madeira, 2000; JOHNSON, Howard, The Bahamas
from Slavery to Servitude, 1783-1933, Gainesville, University Press of Florida,
1996; MUDD, Patricia Marirea, “Bermudians of portuguese descent”, The
Bermudian Magazine, ed. especial, maio 1992; PETIT, Eduarda M. S. Gomes,
A Madeira na Primeira Metade de Setecentos, Funchal, CEHA, 2009; TUCKER,
Terry, Bermuda. Today and yesterday. 1503-1980s, London, R. Hale, 1983; VIEIRA,
Alberto, “Emigration from the portuguese islands in the second half of the
nineteenth century. The case of Madeira”, in HIGGS, David (org.), Portuguese Fig. 1 – Lília Bernardes, janeiro de 2015 (arquivo particular).
Migration in Global Perspective, Toronto, The Multicultural History Society of
Ontario, 1990, pp. 42-60; Id., “A emigração madeirense na segunda metade do
século xix”, in Emigração e Imigração em Portugal, Lisboa, Fragmentos, 1993,
pp. 108-144; Id., “As migrações e os Descobrimentos”, in Imigração e Emigração No departamento da direção de coordena-
nas Ilhas, Funchal, CEHA, 2001, pp. 27-62; Id., A Vinha e o Vinho na História da ção dos CTT na Madeira, integrou o gabine-
Madeira. Séculos XV a XX, Funchal, CEHA, 2003.
te comercial e de marketing, tendo orientado,
† Alberto Vieira mais tarde, o gabinete de comunicação, docu-
mentação e informação. Participou ainda na
equipa do projeto de implementação da rede
Bernardes, Lília de televisão por cabo na Madeira – TV cabo
madeirense.
Lília João Bernardes de Freitas nasceu na fre- Neste período, começou a escrever pontual-
guesia de São Pedro, no Funchal, a 5 de março mente para o Diário de Notícias da Madeira, pri-
de 1956, filha de João Clímaco de Freitas, origi- meiro com um artigo de opinião no suplemen-
nário da mesma cidade, e de Adelaide da Con- to, depois, na revista de domingo do mesmo
ceição Bernardes de Freitas, natural de Bragan- jornal, com artigos sobre temas ambientais,
ça. Casou, em 1976, com João José Magalhães como “Lobos-marinhos nas ilhas desertas. A úl-
Ferreira, com quem teve uma filha. Em 1986, o tima morada”.
casamento foi dissolvido, consumando-se o di- Com este tipo de trabalhos, tomou contac-
vórcio por decisão judicial de 12 de fevereiro. to e gosto pelo jornalismo. Numa entrevista
Moradora na Est. Monumental, n.º 346, em publicada no Diário de Notícias a 6 de outubro
São Martinho, no Funchal, Lília Bernardes fre- de 2010, Lília Bernardes declarou: “Comecei
quentou o Liceu Jaime Moniz e, bastante mais nesta profissão pelas palavras minhas. Passei
tarde, licenciou-se em Comunicação, Cultura depois pela reportagem, ficando-me o gosto
e Organizações pela Univ. da Madeira, tendo pelo contar histórias de gente, pessoas com
depois realizado a pós-graduação em Guer- vidas, fotografadas, ainda, a preto e branco.
ra de Informação/Competetitive Intelligence Portanto há um lado afetivo que nunca pode-
pela Academia Militar. Em termos de formação rei esquecer.” (OLIVEIRA, DN, 6 out. 2010, 2).
profissional, frequentou o curso intensivo de Em 1993, decidiu optar definitivamente pelo
Segurança e Defesa ministrado pelo Instituto jornalismo quando passou a ser corresponden-
de Defesa Nacional. te permanente do Diário de Notícias de Lisboa
Aos 19 anos, Bernardes iniciou a carreira na Madeira, atividade que manteve até 2014.
profissional na empresa então designada Cor- Escreveu a amiga e jornalista Fernanda
reios e Telecomunicações de Portugal (CTT). Câncio no obituário “Dela ficou o som dos
B ernardes , L í lia ¬ 319

pássaros”, que foi publicado na edição ele- João Abel de Freitas”, testemunhando a autora
trónica de 28 de abril de 2016 do Diário de Notí- que “Apresentarei o livro tal como o li, ou me-
cias de Lisboa, jornal “para o qual reportou das lhor, tal como o vivi” (168). Na segunda publi-
ilhas [...], numa frente de resistência ao jardi- cação, escreveu “Uma história de amor”.
nismo que lhe valeu [...] ser denominada em Numa altura em que os direitos das mulhe-
2012 pelo PSD regional […] como ‘inimiga da res se consolidavam por todo o país, também
Madeira’” (CÂNCIO, DN, 28 abr. 2016). Lília na Madeira movimentos mais ou menos femi-
Bernardes não cedeu nunca ao que conside- nistas se afirmavam. Era importante debater
rava serem tentativas de condicionamento da questões relacionadas com a mulher. Esse foi o
liberdade dos jornalistas. A pressão política era principal propósito da realização, no Funchal,
tanta que o Diário de Notícias de Lisboa optou de um congresso internacional sobre o tema.
por abrir uma delegação oficial no Funchal, Neste encontro, participou como intervenien-
em 1995, para que a jornalista ficasse mais te Lília Bernardes.
protegida. No seguimento da mesma temática, mas no
Lília Bernardes é um nome de referên- Jornal da Madeira, a jornalista publicou uma en-
cia no jornalismo madeirense do final do trevista à escritora Helena Marques com o tí-
séc. xx. Ao longo da carreira, cobriu para o tulo “É difícil imaginar um país onde não se
Diário de Notícias de Lisboa grandes aconteci- podia escrever”, na qual as questões da liberda-
mentos, como o julgamento do P.e Frederico de feminina estão bem vincadas.
Cunha e a morte de vários jovens trabalha- Ao longo da sua carreira, além do Diá-
dores na obra da abertura do túnel rodoviá- rio de Notícias de Lisboa, Lília Bernardes rea-
rio para o Curral das Freiras, no concelho lizou trabalhos para O Público e o Observador,
de Câmara de Lobos, tendo igualmente re- passou pela rádio TSF-Madeira, onde fazia
latado atos eleitorais para todos os órgãos de
poder. Acompanhou, por várias vezes, visitas
oficiais de presidentes da República e do Go-
verno regional. Escreveu sobre temas algu-
mas vezes polémicos na área cultural, como
“A cultura na Madeira. Que política é segui-
da?”; um texto no qual abordou o lobby gay
no sector cultural; e “Repensar a escultura
madeirense”, onde questionou o conjunto
escultórico da Ilha. Ainda no âmbito da cul-
tura, a jornalista escreveu sobre a importân-
cia de preservar a história da Madeira atra-
vés do “Photografia Museu ‘Vicentes’. Foram
os primeiros”. Para o público nacional, Lília
Bernardes alertava o país para questões so-
ciais regionais, como a decadência de ativi-
dades económicas tradicionais, entre elas o
bordado Madeira, uma “espécie” em vias de
extinção. Publicou diversas entrevistas, como
a de Alberto João Jardim com o título “Con-
fesso-me uma vez por ano e sou absolvido”.
Num âmbito mais científico, a jornalista tam-
bém colaborou com revistas especializadas,
como a Islenha e Margem 2. Na primeira, edi-
tou o artigo “A Revolta do Leite, Madeira 1936 de Fig. 2 – Cartaz da peça As Criadas, Funchal, 1986.
320 ¬ B ernardes , L í lia

comentário político, pela RDP-Madeira, onde No filme Até amanhã Mário, de Solveig Nor-
participou na radionovela de grande sucesso dlund, estreado em 1994, interpretou o papel
“Neto herói”, nos anos 80, e pela RTP-Madeira, de mãe do protagonista. O filme sobre a vida
apresentando programas como “Conversas sol- de um rapaz que pedia esmolas assumiu par-
tas”, “Histórias que a vida conta”, “Tem a pala- ticular relevância por ter surgido na altura do
vra”, “Parlamento” e “Negócios em dia”, entre polémico processo de abuso sexual de meno-
outros. Foi coautora, com o companheiro João res em que as vítimas eram “os meninos das
Abel de Freitas e Raimundo Narciso, do blo- caixinhas”, crianças de Câmara de Lobos que
gue Puxa Palavra, no qual essencialmente es- pediam dinheiro aos turistas no Funchal. Lília
crevia opinião. Bernardes dedicou-se a este processo não só
Lília Bernardes integrou o núcleo fundador do ponto de vista profissional, como jornalis-
do Teatro Experimental do Funchal em 1975. ta, mas também pessoal. Colaborou de forma
Desde cedo, esteve ligada ao teatro, quer como decisiva na orientação dos familiares das ví-
atriz, na peça As Criadas, de Jean Genet, ence- timas para seguirem com um processo judi-
nada por Eduardo Luiz, quer como dramatur- cial. O seu empenho resultou na condena-
ga. Em 1996, escreveu Soprou Vento de Leste, peça ção de um cidadão belga ao pagamento de
que estreou no Teatro Municipal Baltazar Dias indemnizações.
e esteve em itinerância até 2006. Antes, em Ao longo de uma carreira de jornalista de
1989, escreveu Um Dia em Cada Ano, dando ori- mais de duas décadas, foi processada 10 vezes,
gem a um teledramático realizado por Paulo mas nunca perdeu nenhum processo. Aban-
Valente para a RTP-Madeira. Ainda no mesmo donou o jornalismo quando foi incluída num
ano, uma versão continuada desse texto es- despedimento coletivo no Diário de Notícias de
treou no Festival de Teatro Madeirense, pro- Lisboa, que a deixou profundamente magoa-
movido pelo INATEL, na Camacha, com o tí- da pela forma como foi tratada. Seguiu em
tulo “Gente”. frente, até ao fim da vida, a trabalhar como
Mulher com gosto pelas coisas da cultura, adjunta, para a área da comunicação, do pre-
Lília Bernardes passou também pelo cinema. sidente do Governo regional da Madeira, Mi-
guel Albuquerque, sucessor de Jardim no Go-
verno e no PSD.
Chegou a dizer que “Nunca pensei entrar
aqui [Qt. Vigia, de onde chegou a ser expul-
sa por Alberto João Jardim] todos os dias, ser
este o meu local de trabalho. O que é que ele
[Alberto João] há de pensar?” (CÂNCIO, DN,
28 abr. 2016).
A morte da jornalista surpreendeu pessoas de
todos os quadrantes, que manifestaram gran-
de pesar, como, e.g., Marcelo Rebelo de Sousa,
Presidente da República. Em memória de Lília
Bernardes, tanto na Assembleia da República
como na Assembleia Legislativa da Madeira, fe-
z-se um minuto de silêncio, e nesta foram apro-
vados votos de pesar apresentados por várias
forças partidárias. Todos lhe reconhecem cora-
gem e integridade pessoal e profissional.
No Dia da Região Autónoma da Madeira e
Fig. 3 – Fotografia promocional de Até amanhã Mário, de Solveig
das Comunidades Madeirenses de 2016, foi
Nordlund, Funchal, 1994 (arquivo particular). agraciada, a título póstumo, com a insígnia
B ernes , fam í lia ¬ 321

autonómica de valor, atribuída pelo Governo


social­‑democrata de Albuquerque.
Lília Bernardes morreu no Hospital Dr. Nélio
Mendonça, no Funchal, a 27 de abril de 2016,
vítima de doença prolongada. Foi sepultada no
cemitério de Nossa Senhora das Angústias, em
São Martinho.
Bibliog.: manuscrita: Conservatória do Registo Civil do Funchal, assento de
nascimento n.º 2291/2015; impressa: BERNARDES, Lília, “Lobos marinhos nas
ilhas Desertas. A última morada”, Revista Diário, 18 out. 1992, pp. 5-8; Id., “É
difícil imaginar um país onde não se podia escrever. Helena Marques”, Jornal
da Madeira, 25 abr. 1994, pp. 22-23; Id., “Photografia – Museu ‘Vicentes’. Foram
os primeiros”, Revista Diário de Notícias, Funchal, 19 mar. 1995, pp. 13-15; Id.,
“Repensar a escultura madeirense”, Revista Diário de Notícias, Funchal, 7 maio
1995, pp. 15-17; Id., “Bordados da Madeira. Uma espécie em vias de extinção”,
Notícias Magazine, Lisboa, 5 maio 1996, pp. 32-38; Id., “Confesso-me uma vez
por ano e sou absolvido. Alberto João Jardim”, Notícias Magazine, Lisboa, 5 maio
1996, pp. 32-38; Id., “Uma história de amor”, Margem 2, n.º 5, dez. 1996, p. 60; Id.,
“A cultura na Madeira. Que política é seguida?”, Diário de Notícias, Funchal, 26
set. 1998, p. 21; Id., “A Revolta do Leite. Madeira 1936 de João Abel de Freitas”,
Islenha, n.º 49, jul.-dez. 2011, pp. 168-172; CAMACHO, Paulo, “A mulher em
debate para igualar o homem”, Diário de Notícias, Funchal, 4 maio 1993, p. 3;
OLIVEIRA, Ricardo Miguel, “Bem informados para bem informar”, Diário de
Notícias, Funchal, 6 out. 2010, p. 2; digital: CÂNCIO, Fernanda, “Lília Bernardes.
‘Dela ficou o som dos pássaros’”, Diário de Notícias, 28 abr. 2016: https://www.
dn.pt/media/interior/lilia-bernardes-dela-ficou-o-som-dos-passaros-5147168.
html (acedido a 16 ago. 2018); Jornal Oficial da Região Autónoma da Madeira,
sér. i, n.º 107, 20 jun. 2016: http://joram.madeira.gov.pt/joram/1serie/Ano%20
de%202016/ISerie-107-2016-06-20.pdf (acedido a 16 ago. 2018); “Lília
Bernardes”, Funchal Noticias, s.d.: https://funchalnoticias.net/tag/lilia-bernardes/
(acedido a 16 ago. 2018); “Lilia Bernardes”, IMDb, s.d.: https://www.imdb.com/
name/nm0076434/?ref_=tt_cl_t9 (acedido a 16 ago. 2018); LUIZ, Eduardo,
“Associação Teatro Experimental do Funchal”, Aprender Madeira, 4 out. 2016:
http://aprenderamadeira.net/associacao-teatro-experimental-do-funchal/
(acedido a 16 ago. 2018); “Morte de Lília Bernardes gera surpresa e emoção”, Fig. 1 – Imaculada Conceição, óleo de Luís Bernes, pormenor do
Diário de Notícias, 28 abr. 2016: http://www.dnoticias.pt/impressa/hemeroteca/ teto da igreja matriz da Ponta do Sol, 1918 (arquivo particular).
diario-de-noticias/583960-morte-de-lilia-bernardes-gera-surpresa-e-emocao-
MHDN583960 (acedido a 16 ago. 2018).

“segundo os entendidos, [as pinturas] apresen-


António José Macedo Ferreira
tam uma ou outra vacilação e por vezes revelam
falta de escola […] o que se explica […] tendo
vivido sempre afastado dos grandes mestres”
Bernes, família
(“Artistas Madeirenses”, 25 out. 1936, 1).
O pintor Luís António Bernes era neto do co- Luís Bernes, além dos trabalhos in loco em
merciante José Maria Bernes e filho de António tetos, laborava no ateliê de gravura Vicentes,
José Bernes, professor e compositor de música na R. da Carreira, onde deverá ter aprendido o
para piano, que casou em 1851 e faleceu em ofício, sendo também apontados diversos locais
1880. Era natural da freguesia de Santa Maria em ruas do Funchal onde instalou a sua oficina,
Maior (n. 1865), contraiu matrimónio por duas um deles a sua casa.
vezes, primeiro com Silvina Augusta Bernes e Em 1892 matricula-se na Escola Industrial do
por óbito desta com Maria Adelaide Gomes. Fa- Funchal, no curso noturno de Desenho Orna-
leceu em 1936, referindo-se neste ano que, na mental, que concluiu em 1897. Apresenta-se
Madeira, na gravura “ninguém o igualou no como gravador, serviço que publicitava com o
nosso meio – depois do grande Vicente Gomes de pintura decorativa (1905), executando tra-
da Silva –, como na pintura a óleo” (“Luiz Antó- balhos jornalísticos publicitários, e.g., um para
nio Bernes”, DM, 23 out. 1936, 1) e comparan- o Bazar do Povo, em 1913. No Diário da Madeira
do-o com Henrique Franco e Alfredo Miguéis: e na Revista Madeirense existem, respetivamente,
322 ¬ B ernes , fam í lia

um e cinco retratos em gravura assinados – Serra de Água realizou dois quadros, referin-
“Bispo do Funchal, D. António Manuel Pereira” do-se na comunicação social que ia em breve
(DM, 7 mar. 1915, 1) “Major José Maria de Gou- dar início aos trabalhos de pintura ornamen-
veia” (Revista Madeirense, 3 fev. 1901, 81), “Padre tal. Por esta altura afirmava-se que como pin-
João Maurício Henriques” (Revista Madeirense, tor não há “ninguém aí que o não conheça ou
29 dez. 1901, 42), “Conde de Canavial” (Revista ao menos que não tenha ouvido falar do seu
Madeirense, 23 fev. 1902, 97), “Almeida Garret” nome” (“Artistas Madeirenses…”, DM, 14 fev.
(Revista Madeirense, 08 jun. 1902, 217), “Conse- 1914, 1). Em 1915, nas obras realizadas na igre-
lheiro Carlos Maria de Vasconcelos Sobral” (Re- ja do Jardim do Mar, em parceria com o pintor
vista Madeirense, 06 jul. 1902, 248) –, entre ou- João Firmino Fernandes, executou a pintura
tros que lhe são atribuídos pela semelhança de dos altares e marmoreados no coro, de orna-
traço, destacando-se ainda algumas paisagens mentação e figurativa nos tetos, assinando João
ao gosto romântico: “Ponte Monumental no Firmino o painel central. Para esta igreja pinta,
Funchal” (Revista Madeirense, 20 abr. 1902, 166), em 1923, três quadros, um da Ceia de Cristo
“Capela de São Vicente” (Revista Madeirense, 04 para o altar do Santíssimo e dois para as pa-
maio 1902, 188), “Ponte Nova no Funchal” (Re- redes laterais. Em 1918, na igreja da Ponta do
vista Madeirense, 29 jun. 1902, 244). Sol, realizou a pintura do teto onde represen-
De sua autoria são conhecidas diversas pintu- tou e assinou diversas cenas de Nossa Senhora
ras em tela a óleo e tetos, ornamentos e dou- da Luz. No ano seguinte, aquando das inter-
ramentos para diversos templos na Madeira. venções na igreja do Curral das Freiras, pinta
As pinturas dos tetos das igrejas de São Pedro para o altar-mor um painel do Anjo da Guarda,
e de São Martinho, ambas no Funchal, alusivas podendo ser-lhe atribuído o outro painel da
a São Pedro, são os dois primeiros trabalhos co- mesma temática. Em 1920, pintou um quadro
nhecidos, datam de 1900 e estão assinados. Na alegórico para a capela batismal da igreja pa-
igreja de São Sebastião, em Câmara de Lobos, roquial de São Vicente, aquando dos marmo-
Luís Bernes tem uma pintura assinada no teto reados executados em estilo gótico pelo pintor
do subcoro. Na capela de N.ª Sr.ª da Conceição, José Zeferino Nunes, e trabalhou no teto da
em Câmara de Lobos, pintou, em 1908, o teto igreja de São Brás, no Arco da Calheta, onde
e restaurou/repintou alguns quadros do pintor são visíveis vários estilos pictóricos nos painéis,
Nicolau Ferreira, de finais do séc. xviii, assinan- assinando Luís Bernes os de Nossa Senhora da
do o painel Fuga para o Egito. Nas obras realiza- Boa Hora, São Brás e Nossa Senhora da Con-
das em igrejas, nas décs. de 10 a 30 do séc. xx, ceição. Entre 1920 e abril de 1922, realizaram-
é comum a realização de obras de pintura em -se diversas obras de melhoramento na igreja
tetos, em simultâneo com a pintura de novas da Camacha, entre as quais a pintura do coro e
telas figurativas (cópias) ou restauro/repinte de do teto, onde constam nove painéis. Os traba-
antigas, das que se encontravam em mau esta- lhos de pintura foram dirigidos por Luís Ber-
do, assinando por vezes as pinturas intervencio- nes, que assinou, coadjuvado por João Firmino
nadas; por vezes em simultâneo construíam-se Fernandes e contando no final com a partici-
novos retábulos em talha. pação na pintura decorativa da oficina de pin-
Para a igreja de N.ª S.ª da Graça, no Estreito tura Cirilo (José Zeferino Nunes) & Velosa. Em
de Câmara de Lobos, Luís Bernes (re?)pinta, 1921, a equipa de Luís Bernes, João Firmino
em 1910, o teto da capela-mor; em 1909/1910 e José Joaquim Mendonça pintaram o teto do
repinta e pinta telas para a capela-mor: a Anun- salão grande do edifício onde funcionou o Se-
ciação, a Visitação, a Ceia em Casa de Emaús, um minário e depois a Escola Preparatória de Bar-
jarrão com flores, a Eucaristia e, em 1913, pinta tolomeu Perestrelo.
um retábulo para o altar-mor. Ficou encarre- Nestes anos são executadas muitas obras. Por
gue, neste ano, da pintura dos tetos das salas exemplo, entre 1922 e 1924, na igreja da Fajã
do palácio de São Lourenço, e para a igreja da da Ovelha, são realizados sob sua direção e com
B ernes , fam í lia ¬ 323

participação do pintor José Zeferino Nunes os


trabalhos de pintura decorativa, entre outros
melhoramentos. Esta parceria realizou, em
1923, a pintura do teto de uma capela no sítio
das Amoreiras, no Arco da Calheta; em 1922,
a pintura e decoração da igreja de Santo Antó-
nio da Serra; e em 1921/1924, o mesmo tipo
de trabalho para a igreja de Santo António no
Funchal. Nesta última, procedeu-se ao restauro
e douramento da talha das paredes laterais e do
retábulo da capela-mor, à execução das pinturas
ornamentais nas bocas dos arcos das capelas, à
pintura e decoração do coro da igreja, dos tetos
da capela-mor e da nave; alguns quadros da via-
-sacra foram restaurados, outros substituídos
por novos e as pinturas das paredes laterais da Fig. 2 – Paisagem da Camacha, óleo de Luís Bernes, c. 1930
(coleção particular, Santo António, Funchal).
capela-mor foram igualmente substituídas por
novas, estas realizadas por Luís Bernes. Finali-
zada esta obra, Luís Bernes difundiu o orago Senhora da Conceição está presente na cape-
da igreja através de uma série de duas estampas la homónima em Câmara de Lobos; na capela-
realizadas em xilogravura. Refira-se que José Ze- -mor da igreja de Nossa Senhora da Graça, no
ferino Nunes, filho do pintor Cyrilo Nunes (m. Estreito de Câmara de Lobos; na igreja da Ca-
1917), que executou diversos trabalhos de pin- macha – aqui representadas nas bordas cenas
tura durante longos anos na Madeira, também alusivas ao Antigo e Novo Testamento; e o Ima-
era diplomado com o curso da Escola Industrial culado Coração de Maria na igreja de Santo
do Funchal. António (Funchal). Outras vezes, pintava ao
Aquando do bombardeamento por um sub- centro o orago da igreja, como fez com S.to An-
marino alemão durante a I Grande Guerra, foi tónio na capela-mor da igreja de Santo Antó-
destruída parte do teto da igreja do Convento nio, com Nossa Senhora do Rosário (Jardim do
de S.ta Clara. Em 1923, afirmava-se na imprensa Mar), com S. Pedro (Funchal) e com Nossa Se-
escrita que Luís Bernes ia dar começo à pintura nhora da Luz (Ponta do Sol).
de um retábulo a imitar a Imaculada Conceição Luís Bernes estruturava os tetos de forma si-
de Murilo, destinado ao altar-mor da igreja; no métrica em filas ao longo da nave, onde dis-
entanto, o quadro lá existente é de 1930 e da punha vários painéis em forma de medalhões
autoria do pintor madeirense Alfredo Miguéis. retangulares ou ovais com recortes e preenchi-
Luís Bernes tinha uma predileção por pintar dos com pinturas alusivas ao orago do templo.
Nossa Senhora, principalmente da Conceição, Os espaços entre os painéis de cenas religiosas
inspirada/copiada em Murilo. Em 1919, re- eram intercalados por gradeamentos deixando
feria-se a propósito da pintura de uma cópia transparecer fundos azulados e criando uma
que “primorosamente executou, conservando, ilusão de profundidade. No intercalamento dos
quase absolutamente, a modelação, transpa- painéis, representava ainda cartelas adornadas
rências e toda a beleza de colorido do quadro com motivos sobretudo em forma de “C”, ins-
original [a par de outras telas] todas revelado- pirados e conjugados com elementos vegetais e
ras dum corretíssimo desenho e dum grande florais, concheados e grotescos, numa boa com-
escrúpulo de factura que todas fazem honra às binação de contraste de cores intensas como os
faculdades plásticas desse modesto mas habilís- cinzas, ocres, os azuis e os laranjas.
simo pintor” (“Pintura artística”, DM, 11 out. Além destes trabalhos de tetos e quadros,
1919, 1). Nos tetos, a representação de Nossa Luís Bernes realizou outras pinturas a óleo,
324 ¬ B ernes , fam í lia

Fig. 3 – Notícia do falecimento Dos sete filhos de Luís António Bernes, qua-
do pintor Luís António Bernes
(DN, 23 out. 1936, 3).
tro continuaram o ofício, nomeadamente Alfre-
do Pedro, Luís António, Alberto e Leontina.
Quanto ao pintor Alberto Bernes (n. 1905),
que expôs na Livraria desconhecemos referências aos seus trabalhos.
Popular, nas montras De Luís Bernes Júnior (n. 1909) sabemos que
do Golden Gate e da era gravador da casa Leacock e morava no cami-
Casa Santa Teresinha, nho do Palheiro. Leontina Bernes (n. 1892, m.
na R. da Carreira: uma antes de 1936) desenvolvia o ofício no Hospício
“cópia dum quadro ho- da Imperatriz D. Amélia (1915) e com seu pai
landês do seculo xvi” no ateliê da Photografia Vicentes (1916), reali-
que representa “um zando variados trabalhos: pintura decorativa em
grupo de quatro indi- vidro e bandejas; flores em cetim e seda; tabule-
víduos em volta duma tas de luxo; envernizamento de mapas; doura-
pipa que se esboroa de dos e prateados em igrejas; gravuras em chapas
velha, todos eles com aspectos de quem passa de latão, ouro ou prata; conserto e encarne de
o tempo no gasto de fumo e álcool e ao fundo, imagens, tendo sido responsável em 1927 pelo
bem nítido, destaca-se um outro grupo em encarne da imagem do orago da capela de São
preparativos d’uma refeição” (1914) (“Artis- João Batista da Ribeira. Segundo a imprensa,
tas madeirenses…”, DM, 14 fev. 1914, 1); uma em 1923 Leontina Bernes já tinha o seu nome
cópia do quadro de João Gonçalves Zarco, ligado a importantes trabalhos de decoração.
existente no palácio de S. Lourenço, que foi ri- Alfredo Bernes (n. 1911) foi o que mais se
fado para angariar dinheiro a favor dos pobres destacou. Morava na R. das Maravilhas, n.º 12,
da freguesia do Monte; um quadro represen- e em 1924 publicitava os seus trabalhos na área
tando a chegada da “caravela” de Gonçalves da pintura em casas e estabelecimentos. Como
Zarco à Madeira (rifado no valor de 300$00 gravador, estudou na Escola Industrial do Fun-
por ocasião do V centenário da descoberta da chal no biénio letivo de 1929/1931 o curso de
Madeira); uma Virgem das Graças “destacada Aperfeiçoamento, frequentando a disciplina
d’um fundo de nuvens de tempestade, a sur- de Desenho Geral (1.º e 2.º anos), que con-
gir sobre a cidade do Funchal” […] deixando cluiu com 15 valores.
ver através dum rasgo de nuvens o molhe da Comparada com as obras de seu pai, a sua pro-
Pontinha.” (1917) (“Quadro a óleo”, DM, 11 dução pictórica revela uma paleta menos rica e
jan. 1917, 2); dois quadros, um representan- mais ingénua. Foi autor de tetos e quadros, pin-
do a Ponta dos Corvos, no Seixal, e o outro a tando em diversas igrejas, caso dos tetos na igre-
caravela supracitada (1925) e um quadro que ja paroquial da Madalena do Mar, onde assinou
“representa um veleiro americano, tendo nas os dois painéis centrais que representam cenas
proximidades uma baleeira tripulada por três de Maria Madalena, o Lava-Pés e Noli Me Tangere;
rudes marinheiros, tendo um deles, nos bra- na igreja paroquial de Ponta Delgada, em parce-
ços, a venerada imagem do Senhor dos Mila- ria com os pintores António Gouveia e João Sil-
gres, de Machico, por eles encontrada no alto vino, foi responsável pela pintura dos tetos das
mar, após o aluvião que assolou a Madeira” capelas principal e duas laterais, e por quadros
em 1803 (1928) e que se encontra na capela para as mesmas, tendo assinado alguns (1932);
dos Milagres em Machico (“Quadro artístico”, foi autor dos tetos e quadros para a igreja da fre-
DN Madeira, 21 nov. 1928, 1). Realizou ainda guesia de Boaventura (1933); o teto da capela-
a pintura do estandarte da Câmara Municipal -mor representando Deus Pai, Cristo Ressuscitado
do Funchal (1914) e uma aguarela que ser- e Custódia com a Hóstia (1952) e o teto da nave
viu de reclame da Escola de Utilidades e Belas da igreja paroquial do Curral das Freiras, onde
Artes da Madeira (1916). assina o painel central de Nossa Senhora do
B erredo , A nt ó nio P ereira de ¬ 325

Livramento envolta de nuvens sobre uma repre- da Madeira, 13 jul. 1913, p. 2; “Trabalhos de pintura”, Diário de Notícias, Funchal,
15 mar. 1922, p. 1; “Vida artística. Mais uma tela de Luiz Bernes”, O Progresso,
sentação do Curral das Freiras (1952); realizou 14 jan. 1917; “Vida artística. Trabalhos de pintura”, Diário de Notícias, Funchal,
a decoração da igreja nova de São Martinho, no 8 abr. 1923, p. 1.

Funchal, em parceria com João Silvino João e Paulo Ladeira


Henrique Afonso Costa, assinando os três pin-
tores o painel central em 1957. Além da pintura Berredo, António Pereira de
sacra, também efetuava retratos: em 1939, e.g., O reinado de Filipe II (1527-1598) foi marca-
pintou um quadro a óleo do Presidente da Re- do, na sua última fase, pelo desastre da Inven-
pública Óscar Carmona. cível Armada, funesto acontecimento que dei-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Registos Notariais, Notário Lacerda, liv. 3260, fls.
xou profundas marcas na Península Ibérica e
44-47v.; liv. 884, fls. 60-62v.; Ibid., Registos Paroquiais, Santa Luzia, Casamentos, comprometeu ainda mais a manutenção e a
liv. 165, 1851, fls. 53v.-54; Ibid., Registos Paroquiais, Santa Maria Maior, Batismos,
defesa do Império português, então em franco
liv. 2083, 1865, fls. 24v.-25; Ibid., Registos Paroquiais, São Pedro, Casamentos,
liv. 6826A, 1908, fl. 87; Arquivo da Escola Secundária Francisco Franco, declínio. O Rei, ainda príncipe, tinha-se casado
liv. de matrículas n.º 11, p. 555; liv. de matrículas n.º 12, p. 219; impressa: em 1553 em Inglaterra, mas, com o falecimen-
“Alberto Bernes Pintor”, Diário de Notícias, Funchal, 20 jan. 1924, p. 4; “Artistas
madeirenses”, Diário da Madeira, 25 out. 1936, p. 1; “Artistas madeirenses”, to da Rainha Maria Túdor (1516-1558), não foi
Diário de Notícias, Funchal, 28 maio 1939, p. 2; “Artistas madeirenses. Dois possível juntar as duas Coroas. A situação reli-
valiosos trabalhos: um de esculptura e outro de pintura”, Diário da Madeira,
14 fev. 1914, p. 1; “Artistas madeirenses. Gonsalves Zarco em tela”, Diário
giosa da Inglaterra era uma profunda afronta
da Madeira, 18 ago. 1916, p. 1; “Bispo do Funchal. Uma data festiva”, Diário ao catolicismo hermético da Península Ibérica,
da Madeira, 7 mar. 1915, p. 1; CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de
Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983;
pelo que Filipe II queria, a todo o custo, re-
“O Diário da Madeira na Camacha”, Diário da Madeira, 17 abr. 1920, p. 2; presentar a voz e o poder capazes de abater o
“Doença repentina”, Diário de Notícias, Funchal, 15 ago. 1936, p. 3; “Egreja da
foco protestante que ali se instalara e preten-
Camacha. Trabalhos de pintura”, Correio da Madeira, 26 ago. 1920, p. 2; “Egreja
da Quinta Grande. Pintura no altar mór e tecto”, Diário da Madeira, 7 jul. 1914, dia difundir-se. Essas razões, bem como a atua-
p. 1; “Egreja do Jardim do Mar”, Diário da Madeira, 10 dez. 1915, p. 1; “Escola de ção dos corsários ingleses, principalmente de
Utilidades e Bellas Artes”, Diário da Madeira, 3 ago. 1916, p. 1; “Funerais”, Diário
da Madeira, 24 out. 1936, p. 2; “Igreja da Camacha”, Diário de Notícias, Funchal, Francis Drake (1540-1596) e de John Hawkins
23 fev. 1922, p. 1; “Igreja da Camacha”, Diário de Notícias, Funchal, 20 abr. 1922, (1532-1595), que constantemente atacavam a
p. 1; “Igreja da Fajã da Ovelha”, Diário de Notícias, Funchal, 25 fev. 1922, p. 1;
“Igreja da Fajã da Ovelha”, Diário de Notícias, Funchal, 9 jan. 1924, p. 3; “Igreja
de Gaula”, Diário da Madeira, 24 out. 1933, p. 1; “Igreja de Santa Clara”, O Jornal,
1 maio 1930; “Igreja de Santo António”, Correio da Madeira, 16 dez. 1922,
p. 1; “Igreja de Santo António”, Diário de Notícias, Funchal, 15 jan. 1924, p. 1;
“Igreja do Caniço”, Diário da Madeira, 3 jun. 1927, p. 2; “Igreja do Santo da
Serra”, Diário de Notícias, Funchal, 19 abr. 1922, p. 4; “Igrejas da Diocese”, Diário
da Madeira, 13 jan. 1920, p. 1; “Leontina Bernes”, Correio da Madeira, 28 jan.
1923, p. 3; “Luiz António Bernes”, Diário da Madeira, 23 out. 1936, p. 1; “Luiz
Antonio Bernes”, Diário de Notícias, Funchal, 23 out. 1936, p. 4; “Melhoramentos
numa igreja”, Diário de Notícias, Funchal, 31 jan. 1922, p. 1; “Os mortos. Cyrillo
Nunes”, Diário da Madeira, 18 mar. 1917, p. 2; “Na Boaventura. Capela do
S. C. de Maria”, Diário da Madeira, 26 maio 1927, p. 3; “Na oficina d’um artista.
Uma obra digna de apreciação”, Diário da Madeira, 23 ago. 1915, p. 1; “No Arco
da Calheta. Nova capela”, Correio da Madeira, 10 jun. 1923, p. 1; “Palácio de
S. Lourenço”, Diário de Notícias, Funchal, 31 jul. 1913, p. 1; “Pintura”, Diário da
Madeira, 12 out. 1916, p. 2; “Pintura artística”, Diário da Madeira, 11 out. 1919,
p. 1; “Pintura de imagens”, Diário da Madeira, 5 dez. 1915, p. 2; “Quadro a óleo”,
Correio da Madeira, 18 jan. 1923, p. 1; “Quadro a óleo de Luiz Bernes”, Diário da
Madeira, 18 jul. 1916, p. 2; “O quadro a óleo de Luiz Bernes”, Diário da Madeira,
30 set. 1916, p. 1; “Quadro a óleo. Exposição”, Diário da Madeira, 11 jan. 1917,
p. 2; “Quadro artístico”, Diário de Notícias, Funchal, 21 nov. 1928, p. 1; “Quadros
a óleo”, Diário de Notícias, Funchal, 8 mar. 1925, p. 1; “Retábulo”, Diário de
Notícias, Funchal, 1 ago. 1913, p. 1; Revista Madeirense, 3 fev. 1901, p. 81; 29
dez. 1901, p. 42; 23 fev. 1902, p. 97; 20 abr. 1902, p. 166; 4 maio 1902, p. 188;
8 jun. 1902, p. 217; 29 jun. 1902, p. 244; 6 jul. 1902, p. 248; SAINZ-TRUEVA, José
de, “Tectos madeirenses armoriados. Achegas para um brasonário insular”,
Islenha, n.º 1, jul.-dez. 1988, pp. 105-124; Id., “Presença de Nicolau Ferreira
um pintor madeirense do séc. xviii na vila de Câmara de Lobos”, Girão, n.º 5,
2.º sem. 1990, pp. 201-203; SILVA, Fernando Augusto da, A Freguesia de Santo
António. Alguns Subsídios para a Sua História, Funchal, ed. do Autor, 1929; Fig. 1 – Armas dos Berredos do Thesouro da Nobreza de Portugal
Id., e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, (1783), de Fr. Manuel de Santo António Silva (ANTT, Casa Real...,
Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1998; “Trabalhos de pintura”, Diário liv. 16).
326 ¬ B erredo , A nt ó nio P ereira de

navegação portuguesa e espanhola no Atlânti- da Madeira, escreveu Artur Alberto Sarmento


co e ambas as faixas costeiras do mesmo ocea- (1878-1953) que D. Francisco Manuel de Melo
no, levavam a que a Inglaterra fosse uma das (1608-1666), descendente de Zarco, nas suas
preocupações da Coroa filipina. Aumentava o Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa (1660),
poderio naval inglês e o refúgio de D. António, refere a participação do galeão S. Filipe, com 28
prior do Crato (1531-1595), em Inglaterra, a peças de artilharia, nesta Armada, sob o coman-
partir de 1585, que ainda aumentavam mais os dado de Manuel Dias de Andrade (1580-1638),
receios da Coroa filipina. Por outro lado, o su- que foi depois mestre-de-campo, aditando que
plício infligido à Rainha católica Maria Stuart a guarnição era composta por grande número
da Escócia (1542-1587), que a Rainha Isabel de madeirenses. Referia ainda este autor que
(1558-1603) mandou executar a 8 de feverei- muitos nobres da Ilha embarcaram na Armada,
ro de 1587, deu ao Monarca ibérico o pretexto como António Gonçalves da Câmara, filho de
final para uma intervenção alargada contra o João Fogaça de Eça (c. 1550‑c. 1620), que fora
poderio britânico. governador da Madeira, mas que não tinha os
Neste quadro, o Rei organizou a mais pode- seus nomes tão presentes como desejava (SAR-
rosa Armada do séc. xvi, crendo-a invencível, MENTO, 1946, 177). No entanto, a ação do
mas à qual o destino, e não só, reservou um es- S. Filipe e de Manuel Dias de Andrade refere-se
trondoso fracasso. Em maio de 1588, concen- ao desastre da Armada portuguesa de D. Manuel
trou-se em Lisboa uma Armada que possuía de Meneses (c. 1540­‑1628), relatado na “Epaná-
130 naus, cujo comando foi entregue ao duque fora Trágica” de 1627 (MELO, 1660, 153-272).
de Medina-Sidónia (1550-1615), que não tinha Não conhecemos diretamente as implicações
grande experiência marítima, encontrando-se deste desastre na Madeira. No entanto, uma
nos restantes postos de comando nobres sem informação dos livros do cabido da Sé atesta o
quaisquer conhecimentos de guerra naval. facto de se ter passado por um mau momento na
A Armada largou a 27 de maio de 1588, com Ilha. Assim, em 1589, ordenou o bispo D. Luís
nevoeiro e mau tempo, para o canal da Man- Figueiredo de Lemos (1544-1608) a transferên-
cha, onde defrontou uma Armada inglesa mais cia “desta cidade para a serra, de toda a prata e
ligeira e com navios muito mais manobráveis. demais ornamentos da Sé, por esperar a chega-
Na noite de 6 para 7 de agosto, após uma se- da dos ingleses que tinham ido a Lisboa. E foi a
mana de desgaste, os ingleses, aproveitando prata para Nossa Senhora do Monte e por não
ventos fortes e desfavoráveis para os grandes parecer estar segura, a tornaram a trazer aqui e
galeões ibéricos, lançaram uma série de peque- foi para o Estreito de Câmara de Lobos com os
nas embarcações carregadas de combustível ditos ornamentos. E depois para a vila da Calhe-
inflamado. Esta ação obrigou os principais na- ta em seis arcas encoiradas e dali se tornou a tra-
vios da Armada ibérica a dispersar e provocou zer. E se despendeu em tudo com as bestas, car-
incêndios noutros, fracionando todo o con- retos, fretes e outras despesas com a ida e a vinda
junto. Aproveitando a situação, os pequenos e e conserto das arcas ao todo” 3$495 reis (ANTT,
rápidos navios ingleses infligiram uma memo- Cabido da Sé do Funchal, liv. 6, fl. 178v.).
rável derrota à dita Invencível Armada. O cro- Desta Armada de triste memória, foi para a
nista Pero Roiz Soares, em Lisboa, refere que Madeira o novo Gov. António Pereira de Ber-
“desta maneira se perdeu tão grande máquina, redo (c. 1550-c. 1614), que tinha ficado cativo
sem se salvar quase nada, nem dela tornar ga- em Alcácer Quibir e participara depois na “ar-
leão, nau, nem navio, nem coisa que prestasse” mada da perdição, onde fora cabo de dez ga-
(SERRÃO, 1979, 36-37). leras” (NORONHA, 1996, 49). Este experiente
A Madeira concorreu com pessoal para esta militar tinha prestado serviço como fronteiro
aventura, embora não haja na documentação em Tânger, onde estava em 1573, quando ali
madeirense coeva dados sobre a mesma partici- perdeu a vida o Cap. Rui de Sousa de Carvalho
pação. Em Ensaios Históricos da Minha Terra: Ilha e ele uma vista, sendo depois comendador de
B erredo , A nt ó nio P ereira de ¬ 327

Fig. 2 – A Invencível Armada, 1588, óleo de c. 1700 (National Maritime Museum, Londres).

Arganil e da Castanheira, na Ordem de Cris- do Funchal, Registo Geral, tombo 3, fl. 183v.),
to. Era filho de António Lopes Homem e de sendo o registo da provisão do capitão geral na
Maria Pereira, sua mulher, sendo o pai figura Provedoria da Fazenda da mesma data. As coi-
próxima do secretário Miguel de Moura (1538­ sas não lhe correriam muito bem no Funchal,
‑1600), que viria depois a integrar o Conselho como largamente se haveria de queixar para
de Regência (1593-1598) e que sucedeu ao car- Lisboa a 29 de abril de 1592. Primeiro, todos
deal e arquiduque Alberto de Áustria (1559­ os seus haveres tinham sido tomados por cor-
‑1621) quando este saiu para se tornar gover- sários, daí que os 2000 cruzados com que fora
nador dos Países Baixos. Não descortinámos, dotado para o Governo não lhe tenham che-
no entanto, os ascendentes familiares aos quais gado para as despesas. Depois, chegado à for-
foi buscar o apelido Berredo. taleza, descobriu que os soldados do presídio
António Pereira de Berredo assumiu Gover- não eram pagos há mais de um ano, acabando
no da ilha da Madeira por patente de 30 de de- por fazer face às suas necessidades com roubos
zembro de 1590, tomando posse a 21 de agosto à população, pelo que pouco lhe obedeciam.
do seguinte ano de 1591. A carta vem transcri- Nesse aspeto, acabavam por ter a cobertura do
ta com a data de posse na Câmara Municipal Cap. João Carrião Pardo, situação a que a frou-
do Funchal, como “Carta de El-Rei Nosso Se- xidão do desembargador António de Melo,
nhor a Esta Camara sobre o Geral Antonio Pe- que tomara posse a 17 de agosto de 1591 e que
reira”, informando: “Eu mando ora Antonio desempenhava igualmente as funções de pro-
Pereira do meu concelho para ora me servir vedor da Fazenda, não ajudava.
de geral dessa Ilha e superintendente das coi- O governador, que já então não gozava de
sas da guerra dela” (ABM, Câmara Municipal muito boa saúde, o que também se passava
328 ¬ B erredo , A nt ó nio P ereira de

com sua mulher, Mariana de Portugal, quei- não acedessem aos seus pedidos. O governa-
xava-se amargamente para Lisboa da situação dor recusou-se a negociar, com base na gente
do presídio, dos capitães castelhanos e por- do Porto Santo, que se encontrava em armas,
tugueses. Refere numa carta que, em todo o pronta a defender a ilha, e por ter sido in-
tempo que fora militar, “não houve algum que formado de que essas naus inglesas deveriam
me perdesse o respeito e que hoje, sem funda- fazer parte dos navios de Francis Drake e do
mento, me têm assim maltratado” (ANTT, Ga- conde de Cumberland (1558-1605), que em
vetas, xx, mç. 15, doc. 104), e que se sentia tão 1589 saqueara a vila Horta nos Açores e que
desconsiderado, que temia francamente o fu- António Pereira conhecia da Invencível Arma-
turo. Cita então um fidalgo recentemente che- da. A carta termina por, mais uma vez, solicitar
gado ao Funchal, Simão de Atouguia (1552-?), a “mercê de licença para me poder ir a minha
neto de João Fernandes de Amil e sobrinho de casa” (Ibid.), no que não foi atendido.
Manuel de Amil, tesoureiro das fortificações e A 5 de setembro do mesmo ano de 1592,
depois escrivão de guerra, com quem já teria o governador voltou a escrever para Lisboa,
tido problemas em Tânger, e o próprio capitão dando conta da maneira como se resolvera o
castelhano João Carrião. Deste capitão, diz o assunto dos corsários ingleses no Porto Santo
governador que tinha sofrido “alguns desatina- e das aquisições de pólvora e de mosquetes.
dos termos e muitas desordens, a que se com A pólvora destinava-se aos exercícios de barrei-
brevidade não acudira, seriam causa de muitos ra efetuados todos os domingos e controlados
males”. E acrescenta: “Este capitão não entrou pelo governador, sargento-mor e capitães en-
nesta fortaleza, nem tratou de mim em coisa tertenidos, ou seja, sem comando de compa-
alguma e confesso a Vossa Majestade, que me nhia. Nesta carta, descreve alguns incidentes
receio dele pela grande natureza que tem de ocorridos na Madalena do Mar, onde se fizera
fazer conluios e folgar com novidades” (Ibid.). um exercício de fogo de barreira a 28 de agos-
Por outro lado, dava as melhores referências to. O governador tinha ido acompanhado de
do tenente do presídio, Luís de Benevides, em- Lisboa pelo Cap. Pero de Faria, adjunto para
bora com a situação vigente dos pagamentos assuntos militares que, na Madalena, tinha ten-
pouco o pudesse ajudar. Em face da situação, tado prender os vários negligentes do serviço
o governador propõe nesta carta “que destas de vigias e alardos. Os populares tinham então
duas companhias se fizesse uma só, e sendo apedrejado o Cap. Pero de Faria e um dos seus
assim, nesta fortaleza se podiam alojar, e seria criados, o qual “feriram muito mal, de cima
menos gasto, e os donos das casas que ora ser- dumas rochas, onde se fizeram fortes” (ANTT,
vem de quartel receberiam nisso grande esmo- Gavetas, xx, mç. 15, doc. 105). Esta carta dá
la e mercê” (Ibid.). ainda parte do movimento de navios no mar da
Nesta carta, o governador conta também o Madeira, com a passagem de vários navios do
sucedido com a Armada que se deslocava para porto de Marselha, que tinham ido comerciar
a Índia e que incluía o célebre galeão S. Panta- açúcar em Cabo de Gué e que haviam informa-
leão. Os navios tinham passado na Madeira um do da presença de cerca de 12 navios ingleses
pouco dispersos, o que levou a que uma urca também nesse comércio. O governador tinha
fosse tomada por três navios ingleses. Na urca, apresado, a 23 de agosto, um desses navios de
seguia Gaspar de Figueiredo, ouvidor-geral da Marselha, uma setia, barco comprido, afilado
Índia, que os corsários colocaram em terra, na de boca aberta, de velas e remos, extremamen-
ilha do Porto Santo. Os corsários tinham ten- te rápido. Para que não pudesse sair do porto,
tado negociar com o governador da Madeira apreendera-lhe as três velas grandes, pensando
a vida do ouvidor e do mestre dessa urca, tal que assim não se poderia fazer ao mar.
como as mercadorias e a restante gente que Apesar dos pedidos, Lisboa manteve o go-
seguia no navio, ameaçando levar tudo para vernador e as duas companhias do presídio.
o Norte de África (Berberia, como se cita) se Assim, D. António Pereira, como começa a
B erredo , A nt ó nio P ereira de ¬ 329

ser referido, teve de reformular a Junta Mili- Jerónimo Lopes; João Carrilho, de Aguilar de
tar criada pelo conde de Lançarote, D. Agus- Campo; João de Gambôa, natural de Escoitia,
tín de Herrera y Rojas (1537-1598), também no reino de Biscaia, Guipúscua; João Rodri-
chamada sala de Governo, dividindo-a ao meio gues, de Badajoz; e Pedro Sans, todos da com-
e só reunindo com dois capitães de cada vez. panhia de Luís de Benevides. Da companhia
Este órgão era formado pelos quatro capitães do Cap. João Carrião Pardo, foram envolvidos
das ordenanças, para além do comandante da os soldados Afonso Gomes de Segóvia; Fran-
guarnição da fortaleza, nessa altura o Cap. Luís cisco Ortiz; Miguel Fernandes; Diogo Lopez,
de Benevides, dada a saída em finais de 1588, mosqueteiro, natural de Valladolid, e Roque
ou princípios de 1589, do Cap. Juan de Aran- de Penafiel, também de Valhadolid. No entan-
da. Este órgão não tinha sido muito desenvol- to, tratou-se tudo de pequenos delitos incluí-
vido por Tristão Vaz da Veiga (1537-1604), se dos nas preposições, geralmente denunciados
é que este alguma vez o reuniu. Efetivamente, por camaradas da mesma companhia, que al-
parece que teria tido razões para isso, pois com guns – como Belchior Simões – nem confessa-
o novo governador estes elementos acabaram ram, acabando todos por ver os seus processos
por se envolver em intrigas várias, que incluí- despachados no Funchal.
ram o próprio D. António Pereira e que leva- Passando em revista estes processos, ressal-
ram a uma alçada do licenciado Pero de Alfa- ta, essencialmente, o isolamento então vivido
ro, e depois a outra, presente no Funchal a 29 por esses soldados do presídio castelhano e
de agosto de 1594, presidida por Miguel de La até uma certa má vontade contra os mesmos
Plaza. A primeira alçada derivou de queixas e por parte da população civil. O principal pro-
arbitrariedades dos capitães castelhanos com cesso envolve o soldado Pedro Sans, já citado,
os pagamentos recebidos pela Fazenda, mas a e uma série de companheiros. Em linhas ge-
segunda deve ter-se deslocado à Ilha também rais, estando alguns soldados na igreja do Co-
motivada pelo escândalo causado pela visitação légio, no Funchal, a assistir a uma prédica do
de 1592, que envolvera alguns dos militares da P.e Lopo de Castanheta, aliás escrivão da visi-
guarnição castelhana, embora por razões que tação, estes murmuraram ao ouvir o pregador
posteriormente seriam consideradas ridículas. referir que os soldados eram maus porque ha-
O Funchal foi visitado pela primeira vez por viam feito mal a Jesus. Teriam então murmu-
um oficial do Santo Ofício, Jerónimo Teixeira rado os soldados que maus eram os soldados
Cabral (c. 1540-1614), depois bispo de Angra romanos, pois eles, castelhanos, eram cristãos
e, sucessivamente, de Miranda e de Lamego, e bons, e nunca fariam mal a Jesus. Tal bas-
visitação que ocorreu em 1591. A visitação en- tou para de imediato serem presos no aljube
volveu um prolongado processo contra os cris- da Sé. No complicado processo que se seguiu,
tãos-novos e acabou por envolver também um foram chamadas, ou apareceram a depor, as
quantitativo populacional importante, prin- mais diversas pessoas, algumas das quais, para
cipalmente do Funchal. Assim, acabaram por além de se identificarem, quase não disseram
se ver envolvidos com a Inquisição muitos dos mais nada. Depuseram alguns dos assistentes
militares do presídio castelhano estacionado à cerimónia, como os ourives de ouro Pedro
na fortaleza de S. Lourenço, inclusivamen- Gonçalves de Negro, cristão-novo, e Manuel
te alguns dos oficiais superiores, como o Ten. Fernandes, cristão velho, o ourives de prata
Alonso de Segura, natural de Castelo Branco, Salvador Rodriguez, de 33 anos, e o alfaiate
da companhia do Cap. Luís de Benevides, e Simão Gonçalves, entre outros. O processo
o próprio Cap. João Carrião Pardo, da outra acabou por ser despachado no Funchal e por
companhia. Nesta visitação, foram ainda en- não levar a especiais penas.
volvidos os soldados Alonso de Vila Real, na- Outro processo, praticamente só envolven-
tural de Castro Monte; Belchior Simões; Fran- do soldados do presídio, roda à volta de uma
cisco de Velasco; Garcia Sanches, das Astúrias; partida de dados, jogada na casa da guarda da
330 ¬ B erredo , A nt ó nio P ereira de

fortaleza Velha, em meados de 1591. O solda- janeiro de 1592 e sancionado por mandado
do Francisco Velasco, cansado de não ter sorte do Cap.-Gen. João da Silva. Ora o quantitati-
aos dados, disse num determinado momento, vo é francamente elevado para ser um simples
na febre do jogo, que renegaria a sua fé se não soldo, devendo tratar-se de uma obra de em-
tivesse sorte na jogada seguinte. Não teve. Isso preitada e envolver mesmo aquisições impor-
bastou para ser acusado do crime de proposi- tantes de material. A família Bocarro foi uma
ção herética, ou seja, renegação da fé, pelos das principais famílias de fundidores portu-
seus camaradas de jogo e para dar origem a gueses, tendo tido o seu expoente máximo
mais uma série de processos. em Manuel Tavares Bocarro (at. 1625­‑1652),
A notícia da partida do inquisidor foi dada na fundição de Macau. Descendente de vá-
pelo governador em carta de 29 de abril de rias gerações de fundidores, o seu avô mater-
1592. O visitador Jerónimo Teixeira partira no, o fundidor Francisco Dias, era irmão de
a 18 desse mês numa nau escocesa, viagem João Dias e tio de Baltazar Gomes e António
“bem negociada, da qual o capitão ficou aqui Gomes Feo, todos fundidores de artilharia
em terra, e é homem conhecido, segundo me nos inícios e meados do séc. xvi. Este Antó-
dizem, e o preço foi muito moderado porque nio Bocarro, a ser membro da mesma família,
foi de caminho fazer sua viagem” (ANTT, Ga- em princípio ter-se-ia deslocado ao Funchal
vetas, xx, mç. 15, doc. 106). em finais do 1591 para preparar a fundição
Com os pedidos do governador e os casos de S. Lourenço, que sabemos a laborar alguns
da Inquisição, que não devem ter deixado de anos depois, embora, tanto quanto temos co-
pesar nas preocupações de Lisboa e Madrid, ou nhecimento, esta não tenha chegado a fundir
com as alçadas que se deslocaram nesses anos à bocas de fogo.
Madeira, voltou-se a tentar colocar em ordem O Gov. D. António Lopes Pereira de Berre-
os pagamentos das companhias do presídio do do, como também depois aparece referido, en-
Funchal. Aparecem a receber os quantitativos, tregou o Governo a 20 de abril de 1595, data
em Lisboa, a condessa da Calheta, Maria de em que tomou posse o novo Gov. Diogo de
Alencastre, na menoridade do filho, Fernan- Azambuja de Melo (c. 1530-1599). António Pe-
do Martins Mascarenhas, mas que não seria o reira, que, em 1592, no Funchal, se queixava
então bispo do Algarve (1548-1628) – que não de falta de saúde e desejava voltar para a sua
era menor –, e Rui Dias da Câmara (c. 1542­ casa no continente, ainda assumiria o lugar de
‑c. 1600), seu primo por afinidade. As letras de capitão de Tânger, em agosto de 1599, substi-
câmbio foram passadas por João de Valdaves- tuindo Aires de Saldanha (1542-1605), que foi
so Aldamar para Jerónimo de Aranda, pagador nomeado vice-rei da Índia, lugar que ocupou
do exército. No ano seguinte, 1593, há man- até setembro de 1605, quando foi substituído
dados do Cap.-Gen. João da Silva (1528-1601), por Nuno de Mendonça (c. 1560-c. 1633). Em
4.º conde de Portalegre, para Jerónimo de 1613, foi também enviado a Marrocos como
Aranda fazer diversos pagamentos, nomeada- inspetor das fortificações e com instruções
mente ao Sarg.-mor Pedro Borges de Sousa e para reformar parte das mesmas, intento lo-
a António Bocarro. Nestes anos, há igualmen- calmente muito pouco aceite. Teria ainda sido
te registo de pagamentos pontuais a diversos nomeado para a Índia com o governo da parte
soldados que devem ter acabado o seu servi- do Sul, a primeira sucessão do Estado e outras
ço na Madeira. Encontrámos elementos sobre mercês, mas nada aceitou, dada a avançada
Diogo de Naba, Garcia de Gusmão, que, por- idade. Deve ter falecido em 1614.
que culpado duma morte, não teve direito a
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral,
soldo algum, e Fernando de Torres. tombos 2-3; AGS, Guerra y Marina, leg. 238; ANTT, Cabido da Sé do Funchal, liv.
Um dos pagamentos mais interessantes foi 6; Ibid., Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 16, Manuel de Santo António e Silva,
Thesouro da Nobreza de Portugal, 1783; Ibid., Corpo Cronológico, pt. ii, mçs. 239,
o que se fez a António Bocarro, de 1.600$000, 261-263, 267 e 269; Ibid., Gavetas, gaveta 20, mç. 15; Ibid., Provedoria e Junta da
recebido por Manuel Bocarro a 8 de Real Fazenda do Funchal, liv. 694; Ibid., Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
B ettencourt, A nt ó nio J o ã o de F ran ç a ¬ 331

Lisboa, liv. 790, procs. individuais 1595, 2149, 9683 e 10.975; impressa: CARITA, Rita Telo de Meneses. Tendo cursado o Liceu
Rui, História da Madeira, vol. ii, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1991;
MELO, Francisco Manuel de, Epanaphoras de Varia Historia Portuguesa. A el Rey do Funchal, inscreveu-se na Faculdade de Teo-
Nosso Senhor D. Afonso VI, em Cinco Relaçoens de Sucessos Pertencentes a Este logia da Univ. de Coimbra, em 6 de outubro de
Reyno, Que Contem Negocios Publicos, Politicos, Amorosos, Belicos, Triunfantes,
Lisboa, Officina de Henrique Valente Oliveira, 1660; NORONHA, Henrique
1854, onde se doutorou e recebeu o capelo a
Henriques de, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História 27 de julho de 1862.
da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1996; SALGADO,
Augusto, e VAZ, João Pedro, Invencível Armada 1588. A Participação Portuguesa,
Apesar de se ter distinguido durante os seus
Lisboa, Tribuna da História, 2002; SARMENTO, Alberto Artur, Ensaios Históricos anos de estudo na universidade, apenas em
da Minha Terra. Ilha da Madeira, 3 vols., Funchal, JGDAF, 1946-1951; SERRÃO,
1872 viria a concorrer para lente de Teolo-
Joaquim Veríssimo, História de Portugal, vol. iv, Lisboa, Verbo, 1979.
gia, tendo competido, nessa ocasião, com Luís
Rui Carita Maria da Silva Ramos e alcançado o primeiro
lugar. Tornou-se no primeiro madeirense a
reger a cadeira de Teologia na Univ. de Coim-
Bettencourt, Anastácio Moniz de bra depois da reforma pombalina. Publicou
então o estudo que o distinguiu, Verdade Philo-
Nasceu no Funchal e faleceu na ilha Terceira,
sophica do Mysterio da Encarnação, de que se fize-
nos Açores, onde residiu durante largos anos.
ram duas edições sucessivas.
Desconhecem-se as datas do seu nascimento e
Os anos que se seguiram foram de uma
do seu falecimento.
grande atividade. Foi professor de Teologia
Casou-se em 1808, na freguesia de S. Pedro,
no Seminário de Coimbra e lecionou Histó-
no Funchal, com Ana Jacinta de Bettencourt
ria e Hebraico no liceu coimbrão. Pertenceu
Pita. Um dos seus filhos foi Nicolau António
a várias sociedades científicas e ao Instituto
de Bettencourt.
de Coimbra, de que foi segundo vice-secretá-
Era médico e possuía o grau de bacharel
rio. Foi o fundador e um dos principais reda-
em Cânones pela Univ. de Coimbra. A 18 de
tores da Revista de Theologia, com grande pro-
maio de 1801, foi nomeado professor substitu-
jeção no seu tempo. Enfim, foi um dos mais
to das cadeiras de Retórica e de Filosofia, que
ativos e zelosos provedores da Santa Casa da
na altura havia no Funchal, e, a 30 de março de
Misericórdia de Coimbra, cargo que ocupou
1803, professor da cadeira de Filosofia Racio-
em 1877.
nal. Pouco tempo depois, foi viver para a ilha
Como outros professores da faculdade teoló-
Terceira.
gica coimbrã, o lente madeirense foi um acér-
Dedicou-se ainda à poesia, escrevendo com-
rimo defensor do tomismo e um opositor às
posições que, apesar de manifestarem as in-
novas filosofias oitocentistas: o materialismo, o
fluências próprias da época, afirmam um estilo
positivismo, o ateísmo e o evolucionismo.
original.
António João de França Bettencourt viria a
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e falecer em Coimbra, a 29 de outubro de 1882,
XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; PORTO DA CRUZ, Visconde com 55 anos.
do, Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. i, Funchal,
Câmara Municipal do Funchal, 1949; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional Obras de António João de França Bettencourt: Verdade Philosophica do
da Educação e Cultura, 1978. Mysterio da Encarnação (1872); “O atheismo dos nossos dias” (1877-1878);
“Catholicismo” (1877-1878); “O christianismo e a crítica” (1877-1878).

António José Borges Bibliog.: impressa: AZEVEDO, Carlos A. M., “L’insegnalento nella Facoltà
di Teologia di Coimbra nel contesto europeo del secolo xix”, in CLEMENTE,
Manuel et al., A Igreja e o Clero Português no Contexto Europeu, Lisboa,
Universidade Católica Portuguesa, 2005, pp. 295-306; FIGUEIRA, Maria F. Reis,
Bettencourt, António João de “A Faculdade de Teologia perante o materialismo (1861-1905)”, Revista de
História das Ideias, vol. 1, 1977, pp. 205-235; LOPES, Maria Antónia, “Provedores
França e escrivães da Misericórdia de Coimbra de 1700 a 1910. Elites e fontes de
poder”, Revista Portuguesa de História, t. xxxvi, 2002-2003, pp. 203­‑274;
António João de França Bettencourt nasceu na PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária
da Madeira, vol. 1, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1949; RODRIGUES,
Calheta, em 19 de outubro de 1827, filho de Manuel Augusto, “Problemática religiosa em Portugal no século xix, no
António João de França Bettencourt e de Ana contexto europeu”, Análise Social, vol. xvi, n.os 61-62, 1980, pp. 407­‑428; SILVA,
332 ¬ B ettencourt, E dmundo de

Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, do 1º Salão dos Independentes, por Campos de Fi-
3 vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998; digital:
FERREIRA, Licínia Rodrigues, Sócios do Instituto de Coimbra (1852-1978), gueiredo, na Breve Antologia de Poesia Moderna
Coimbra, s.n., 2015: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/21258/3/ e, por João Carlos, no Cancioneiro de Coimbra.
Lista%20de%20s%c3%b3cios_2015.pdf (acedido a 24 abr. 2018); “Presidentes e
direção”, Universidade de Coimbra, s.d.: www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/
O seu estro refletiu-se ainda na Gacete Literaria
Textos/instituto/presidentes (acedido a 24 abr. 2018). de Madrid, bem como noutras revistas estran-
geiras, tendo sido incluído por Vitorino Nemé-
Porfírio Pinto
sio e Carlos Queirós noutras antologias.
Em 1930, rompeu definitivamente com o
movimento presencista, no que foi secundado
Bettencourt, Carlos Cristóvão por Branquinho da Fonseca e Miguel Torga,
da Câmara Leme Escórcio de por achar que os presencistas se haviam de-
ä Cristóvão, Carlos (nome literário) mitido da defesa de valores sociais e políticos
pelos quais sempre se batera, e ainda por dese-
jar seguir um caminho novo, eminentemente
moderno. Recusou-se, também por isso, a cola-
Bettencourt, Edmundo de
borar na revista dissidente Sinal, mantendo-se,
De seu nome completo Edmundo Alberto de a partir de então, à margem de grupos literá-
Bettencourt (Funchal, 7 de agosto de 1899-Lis- rios, deixando igualmente de cantar e gravar
boa, 1 de fevereiro de 1973), revelou-se como discos, e fixando-se definitivamente em Lisboa.
poeta quando era ainda aluno do Liceu do Republicano, laico e anarquista convic-
Funchal, tendo publicado o primeiro poema to, pautava a sua vida pela vivência de ideais,
(sonetilho) no Diário de Notícias. Findo o curso tendo sempre recusado servir-se da política
liceal, partiu em 1918, com 19 anos, para Lis- para benefício pessoal. Repudiava abertamen-
boa, onde, por pouco tempo, frequentou a Fa- te o salazarismo, tendo sido perseguido, sobre-
culdade de Direito da Univ. de Lisboa, transfe- tudo quando, por altura da Segunda Guerra
rindo-se, mais tarde, para a de Coimbra, cidade Mundial, apôs a assinatura num abaixo-assi-
da sua sagração como poeta-cantor, mas sem nado de reivindicação sindical. Era então tra-
chegar a licenciar-se. balhador na Comissão Reguladora do Comér-
Colaborador assíduo da imprensa insular e cio de Metais, na capital. Exerceu ainda outras
continental, destacou-se como membro funda- profissões, a última das quais foi a de delegado
dor da revista presença (1927), tendo-se-lhe jun- de propaganda médica.
tado mais tarde Casais Montei- Por haver, nos seus tempos
ro e Miguel Torga. Conhecida de Coimbra, ousado cantar
também como Folha de Arte e “Samaritana”, de Álvaro Leal,
Cultura, congregou um mo- foi altamente atacado pela
vimento vanguardista, digno hierarquia da Igreja Católica,
herdeiro do Orpheu. Edmun- mas debalde, pois a sua voz
do de Bettencourt colabo- de “rouxinol da Madeira” ou
rou também noutras impor- “bicho canoro” (como era co-
tantes revistas, com destaque nhecido) celebrizou para sem-
para Bysâncio, Vértice, Ocidente pre esta canção.
e Seara Nova. Foi incluído por Publicou em vida quatro li-
António Pedro no Cancioneiro vros de poesia, nos quais reu-
niu poemas de vários anos,
a saber: O Momento e a Legen-
da (1917-1930); Rede Invisível
Fig. 1 – Edmundo de Bettencourt, c. 1950
(ABM, Arquivo Particular
(1930-1933), que Herberto
de José de Sainz-Trueva). Helder muito elogiou; Poemas
B ettencourt, E dmundo de ¬ 333

afastamento dos meios literários, mais cedo


teria sido reconhecido como o grande poeta
que efetivamente foi.
Revelou-se também um exímio intérpre-
te da canção de Coimbra, que revolucionou,
e de canções populares, ombreando com An-
tónio Menano, Paradela de Oliveira e Arman-
do Góis, entre outros. Foi na república do Fun-
chal, em Coimbra, que estilizou a arte canora,
acompanhado, à guitarra, por Artur Paredes,
mestre neste desempenho. Com ele e António
Menano, realizou digressões a Espanha, atuan-
do em Valhadolid, Salamanca e Madrid, e ao
Brasil. Teve um retumbante êxito. Gravou na
altura muitos discos, que lhe renderam bom
dinheiro. Entusiasmado com o seu estro, o
maestro Fernando Lopes Graça transformou
o seu poema “Liberdade” num canto heroico.
Foi elogiado por Manuel Alegre e Zeca Afonso,
que o considerou o maior cantor de fados de
sempre e precursor da canção de intervenção
em Portugal.
Fig. 2 – Revista Presença, n.º 5 (4 jun. 1927). Edmundo de Bettencourt foi ainda crítico
de cinema, tendo tentado introduzir, em Por-
tugal, a fotografia experimental, no que foi
Surdos (1934-1940) e Ligação (1936-1962). Anos pioneiro.
mais tarde, em 1963, o poeta Herberto Helder,
de quem se tornou grande amigo e com o qual
participou nas tertúlias dos cafés Gelo, Royal e
Montanha, reuniu a sua poesia toda sob o títu-
lo Poemas de Edmundo de Bettencourt, prefaciou-a
e fê-la publicar pela Portugália Editora, na co-
leção Poetas de hoje. Por sua vez, a Assírio &
Alvim, em 1981, procedeu a uma reedição de
Poemas Surdos, livro no qual o poeta revela a sua
faceta surrealizante.
Herberto Helder considerou-o, com toda
a justiça, uma das mais importantes vozes do
modernismo português, bem como precursor
do surrealismo em Portugal. João de Brito Câ-
mara, outro poeta “madeirense” próximo da
presença, na importante entrevista que lhe fez
para a separata literária do semanário Eco do
Funchal, em 1944, aquando de uma breve pas-
sagem pela Madeira, levou-o a discorrer sobre
a modernidade, afirmando-se então Betten-
court como um poeta 100 % moderno. Não Fig. 3 – Fados de Coimbra (1984), de Edmundo de Bettencourt
fora a sua natural timidez e o seu progressivo (EMI-Valentim de Carvalho).
334 ¬ B ettencourt, E miliano A ugusto

Pelo seu alto valor como poeta-cantor, me- Era membro da Associação dos Arquitectos
receu as caricaturas que dele fizeram vários Civis e Arqueólogos Portugueses, e da Asso-
artistas. Em 1999, aquando do centenário do ciação dos Engenheiros Civis Portugueses. Foi
seu nascimento, o Governo regional da Ma- um dos membros fundadores da Sociedade de
deira homenageou-o com uma sessão pública Geografia de Lisboa, em 1875.
e a colocação de uma placa de metal na casa Publicou vários livros e mapas, entre os quais:
onde nasceu, à R. dos Murças, no Funchal. Dicionário Corográfico Português; Atlas Pecuário de
No mesmo ano, a então Direção Regional dos Portugal; Memória sobre a Descoberta das Ilhas de
Assuntos Culturais editou, em parceria com a Porto Santo e Madeira (1418-1419); Descobrimentos.
Assírio & Alvim, a sua obra completa, Poemas Guerras e Conquistas dos Portugueses em Terras do
de Edmundo de Bettencourt, bem como o livro de Ultramar nos Séculos XV e XVI; e Noções de Choro-
António Nunes, intitulado No Rasto de Edmun- graphia de Portugal. Seguidas da Carta Geographica
do de Bettencourt. Uma Voz para a Modernidade. do Continente e de Um Planispherio onde Se Indica a
Pela mesma altura, publicaram-se alguns estu- Posição Geographica das Possessões Portuguezas.
dos, mormente na revista Islenha, sobre a sua Na Memória sobre a Descoberta das Ilhas de Porto
poesia. Santo e Madeira (1418-1419), Emiliano Betten-
Obras de Edmundo Bettencourt: O Momento e a Legenda (1930); Rede
court defende a prioridade portuguesa na des-
Invisível (1933); Poemas Surdos (1940); “Liberdade” (1946); Ligação (1962); coberta do arquipélago da Madeira, refutando
Poemas de Edmundo de Bettencourt (1963).
o inglês Major, que, no livro The Life of Prin-
Bibliog.: ABREU, Paula, “Edmundo de Bettencourt. Poesia e voz da Madeira
ce Henry of Portugal, toma como verdadeira a
no fado de Coimbra”, Olhar. Jornal da Madeira, 8 dez. 2007, pp. 8-9; CLODE,
Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, lenda de Machim e a enquadra na descrição da
Caixa Económica do Funchal, 1983; DIONÍSIO, Fátima Pitta, “Edmundo de
Bettencourt. O vigor surrealizante de Poemas Surdos em ‘Balada dos lobos e
a virgem’”, Islenha, n.º 24, jan.-jun. 1999, pp. 23-26; “Inéditos de Edmundo de
Bettencourt”, Atlântico, n.º 2, 1985, pp. 136-137; MARINO, Luís, Musa Insular:
Poetas da Madeira, Funchal, Eco do Funchal, 1959; NEMÉSIO, Vitorino, “Se bem
me lembro… Edmundo de Bettencourt”, Islenha, n.º 24, jan.-jun. 1999, pp. 27­
‑30; NUNES, António, No Rasto de Edmundo de Bettencourt. Uma Voz para a
Modernidade, Funchal, DRAC, 1999; Id., “Aproximações ao espólio fotográfico
de Edmundo de Bettencourt”, Islenha, n.º 34, jan.-jun. 2004, pp. 58-64; PEREIRA,
Teresa, “Bettencourt e a Presença”, Islenha, n.º 24, jan.-jun. 1999, pp. 13-21; Id.,
“Edmundo de Bettencourt”, Saber, n.º 8, jun. 2004, pp. 24-25; presença, n.º 5, 4
jun. 1927; ROCHA, Luís, “Edmundo de Bettencourt. A voz silenciosa”, revista
do Diário de Notícias, 8-14 ago. 1999, pp. 13-16; SEIXO, Maria Alzira, “A ventura
do canto em Edmundo de Bettencourt”, Islenha, n.º 24, jan.-jun. 1999, pp. 5-12;
SILVA, Margarida Macedo, “Lembrar Edmundo de Bettencourt”, Islenha, n.º 15,
jul.-dez. 1994, pp. 46-48; TEIXEIRA, Mónica, “Edmundo de Bettencourt entre a
vanguarda e a tradição”, Islenha, n.º 16, jan.-jun. 1995, pp. 43-48; Id., Tendências
da Literatura na Ilha da Madeira nos Séculos XIX e XX, Funchal, DRAC, 2005;
VERÍSSIMO, Nelson, “Samaritana”, Diário de Notícias, Funchal, 29 jan. 1995,
pp. 70-72.

Fátima Pitta Dionísio

Bettencourt, Emiliano Augusto


Nasceu em Lisboa, a 12 de novembro de
1825.
Arquiteto do corpo auxiliar de engenharia
civil, trabalhou como desenhador de primei-
ra classe, na Repartição Técnica do Ministério
das Obras Públicas, e foi autor de várias cartas
geográficas e do projeto do mercado de Santa
Clara, na freguesia de São Vicente de Fora, em Memória sobre a Descoberta das Ilhas de Porto Santo e Madeira
Lisboa, aprovado em 1876. (1418-1419) (1875), de Emiliano Augusto Bettencourt.
B ettencourt, N icolau A nastácio ¬ 335

descoberta feita pelos cronistas portugueses da Em 1825, matriculou-se


época. A argumentação de Bettencourt apoia- na Univ. de Coimbra, no
-se na discrepância das três versões da lenda, curso de Filosofia, para
divulgada por António Galvão, Valentim Fer- aceder depois a Medici-
nandes e Francisco Manuel de Melo, na data na. No entanto, em 1827,
posterior da mesma em relação ao descobri- interrompeu os estudos,
mento oficial, 1418-1419, alegando também para participar na luta li-
que o facto de a Madeira já constar em mapas beral contra o absolutismo
de 1317 e 1351 não prova nada, já que eram instalado por D. Miguel,
vulgares esses “adicionamentos” “sem ideia de integrando-se no Batalhão
falsificação”, porque “no xv século, época das Académico, comandado
principais descobertas, carta alguma poderia por António José de Sousa Cons. Nicolau Anastá-
cio Bettencourt,
andar em dia com o rápido progresso destes Manuel de Menezes Seve- óleo de c. 1870 (coleção
feitos e que por consequência estes adiciona- rim de Noronha, conde particular Açores).
mentos eram então uma necessidade tanto de Vila Flor, mais tarde,
mais instante na ocasião, quanto mais prejudi- duque da Terceira.
cial para a História; porque sendo todas essas Teve de emigrar para a Inglaterra, em 1828,
cartas manuscritas, podiam nelas admitir-se onde se juntou ao exército liberal que desem-
muitas inserções nos espaços claros, sem deixa- barcou na ilha Terceira, nos Açores, a 14 de
rem vestígios de terem sido retocadas ou acres- fevereiro do ano seguinte, integrado no Bata-
centadas” (BETTENCOURT, 1875, 22). lhão de Voluntários da Rainha. Participou no
Faleceu em Lisboa, a 5 de junho de 1886. desembarque de Mindelo, sob as ordens de
D. Pedro, a 8 de julho de 1832, e na Batalha da
Obras de Emiliano Augusto Bettencourt: Atlas Pecuário de Portugal (1870);
Dicionário Corográfico Português (1870); Memória sobre a Descoberta das
Serra do Pilar, no Porto, a 13 de agosto desse
Ilhas de Porto Santo e Madeira (1418-1419) (1875); Descobrimentos. Guerras e mesmo ano, num destacamento de voluntá-
Conquistas dos Portugueses em Terras do Ultramar nos Séculos XV e XVI (1881­
rios, com José Estêvão Magalhães, futuro depu-
‑1882); Noções de Chorographia de Portugal. Seguidas da Carta Geographica
do Continente e de Um Planispherio onde Se Indica a Posição Geographica das tado setembrista, e José Silvestre Ribeiro, futu-
Possessões Portuguezas (1889). ro governador civil da Madeira, entre outros.
Bibliog.: BETTENCOURT, Emiliano Augusto, Memória sobre a Descoberta das Após o triunfo do liberalismo, em 1834, de-
Ilhas de Porto Santo e Madeira (1418-1419), Porto, Tip. Comércio do Porto,
sempenhou o cargo de secretário-geral da
1875; CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX,
Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983. Prefeitura de Angra do Heroísmo, até 1836,
Gabriel Pita e depois de Ponta Delgada, nos Açores, vindo
mais tarde a ser governador civil deste últi-
mo distrito. Transitou, no mesmo cargo, para
Bettencourt, J. d’Almada (pseud.)
Aveiro, em 1843, e para Angra do Heroísmo,
ä Rosa, Manuel Ferreira no ano seguinte, tendo aqui fundado a Caixa
Económica da Santa Casa da Misericórdia de
Bettencourt, Matilde Isabel de Angra e o Asilo da Infância Desvalida (depois,
Santana e Vasconcelos Moniz de Lar do Livramento), empenhando-se no ensi-
no, nomeadamente na organização do liceu.
ä Nogueiras, viscondessa das
Em 1853, foi eleito deputado, pelo Partido
Regenerador, pelo círculo da Horta, mas re-
nunciou ao mandato, não chegando a tomar
Bettencourt, Nicolau Anastácio
posse. Os últimos cargos que exerceu foram
Nasceu no Funchal, na freguesia de São Pedro, os de governador civil de Aveiro (1854-1859) e
a 7 de fevereiro de 1810, filho do médico Anas- de Portalegre (1859-1862), tendo-se aposenta-
tácio Moniz de Bettencourt e de Ana Jacinta de do a 30 de julho de 1862, quando ocupava este
Bettencourt Pita. último posto.
336 ¬ B í blia

Colaborou com vários jornais, em prosa e É da máxima importância para os cristãos,


poesia, sobretudo com o jornal do Grémio Li- e também para os judeus, acreditar que Deus
terário de Angra. Publicou, em 1848, sem nome falou aos homens, um Deus pessoal iniciou um
do autor, uma coleção de vários escritos admi- diálogo, devendo os homens ouvir as suas pala-
nistrativos e, em 1857, Exposição dos Factos Que Se vras e responder.
Deram no Distrito de Angra do Heroísmo Relativos à As palavras de Deus são revelação e o Homem
Exportação de Cereais no Presente Ano Agrícola. responde a Deus com a fé. A fé bíblica é mais
Era conselheiro da Casa Real e comendador importante do que propostas intelectuais, é
das ordens de Cristo e da Conceição. uma obediência a um Deus pessoal. Deus re-
Faleceu a 7 de março de 1874 em Angra vela-se a si próprio, depois revela a sua vontade
do Heroísmo, onde fixara residência após a e intenção. A revelação divina é destinada ao
aposentação. maior bem de todos os homens e mulheres.
Deus revelou-se ao Homem ordenando-lhe
Obras de Nicolau Anastácio Bettencourt: Exposição dos Factos Que Se Deram
no Distrito de Angra do Heroísmo Relativos à Exportação de Cereais no Presente
ações. A Abraão mandou-lhe que saísse da sua
Ano Agrícola (1857). terra. Depois, Deus revela-se falando através
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e
dos seus servos, os patriarcas, reis e profetas, e,
XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; SILVA, Fernando Augusto da, finalmente, manda-lhes escrever, e desta forma
e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Câmara
possuímos as Escrituras Sagradas, cujo autor é
Municipal do Funchal, 1965; SOUSA, Paulo Silveira e, “Bettencourt, Nicolau
Anastácio de (1810-1874)”, in MÓNICA, Maria Filomena (dir.), Dicionário o Espírito Santo, que se serviu de homens, lín-
Biográfico Parlamentar (1834-1910), vol. i, Lisboa, Assembleia da República/
guas e estilos para comunicar uma mensagem
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 2005, p. 382.
de salvação para toda a humanidade.
Gabriel Pita Toda a Escritura é inspirada, mas nem toda é
revelada, ela descreve as reações dos homens,
a sua fé ou falta dela. No Concílio de Trento
Bíblia
(1545-1553), houve dificuldade em traçar uma
Na Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Re- linha comum entre as tradições que faziam
velação Divina, o Concílio Vaticano II escreve: parte dos usos antigos na Igreja e a revelação
“As palavras reveladas por Deus, que se encon- feita por Jesus Cristo. No Concílio Vaticano II,
tram escritas e manifestas na Sagrada Escritu- havia já um grande progresso, devido à refle-
ra, foram redigidas por inspiração do Espírito xão e estudo dos teólogos, biblistas e historia-
Santo. Com efeito, a Santa Mãe Igreja, por fé dores, embora nem todas as questões ficassem
apostólica, tem como sa- resolvidas.
grados e canónicos os li- A regra da fé não pode
vros inteiros do Antigo ser medida pela Igreja, ela
e Novo Testamento com pode e deve desenvolvê-
todas as suas partes, por- -la e ensiná-la, mas não a
que escritos por inspira- pode falsificar. Um texto
ção do Espírito Santo (cf. escrito necessita de ser in-
Jo. 20, 31; 2 Tim. 3, 16; 2 terpretado e comentado
Pd. 1, 19-21; 3, 15-16), têm ao longo dos séculos. Para
Deus por autor e como tais responder às questões e
foram confiados à própria perguntas que surgem ao
Igreja” (CONCÍLIO VATI- longo das várias gerações
CANO II, 1965, 11). sem cair em erros, a Sa-
grada Escritura precisa do
magistério da Igreja, que
Fig. 1 – Bíblia ilustrada
conta com a presença do
(Editorial Universus, 1957 a 1970). espírito de Jesus Cristo,
B í blia ¬ 337

Fig. 2 – Dei Verbum, Constituição Dogmática sobre a Revelação Fig. 3 – Biblia Sacra Vulgatae Editionis (1598).
Divina (2011).

que prometeu assistir os seus apóstolos envian- escritura, e já se encontra na própria Bíblia,
do o Espírito Santo. quando nela se está a querer referir o Anti-
O texto da Dei Verbum dá grande importância go Testamento. Em relação à ressurreição de
à Sagrada Escritura, à tradição e ao magistério Jesus, S. João escreve: “Acreditaram na Escri-
da Igreja. As três funções, em conjunto, são ne- tura e nas palavras que Jesus tinha dito” (Jo 2,
cessárias para a vida da comunidade cristã. 22). S. Paulo, ao falar da lei dada aos hebreus,
Nos arts. 22 e 25, o Concílio insiste com os escreve: “A Escritura encerrou tudo debaixo
fiéis para que leiam e meditem a palavra de do pecado” (Gl 3, 22).
Deus contida na Bíblia, tendo em conta a tra- A Bíblia, sendo a palavra de Deus, não pode
dição e o magistério. A palavra de Deus foi con- ser interpretada sem ser relacionada com o
fiada à Igreja, está escrita numa linguagem hu- modo de pensar dos homens nos diversos pe-
mana, Deus serviu-se dos escritores inspirados ríodos da história humana. A ciência bíbli-
para nos transmitir as palavras que Ele inspi- ca, através de critérios científicos, procede
rou através do Espírito Santo e protege-nos do a uma interpretação das comunidades que
erro através do magistério da Igreja. a receberam e, em parte, colaboraram na sua
formação, como acontece nos Evangelhos.
A Bíblia, portanto, sendo palavra de Deus,
Vulgata serve-se do modo de pensar e do ambiente
A Bíblia é o conjunto dos livros do Antigo e dos homens.
Novo Testamento, ela mostra-nos a ação de O Antigo Testamento foi escrito na língua
Deus na história humana da salvação. A pala- hebraica e grega, o Novo Testamento foi escri-
vra “bíblia” vem do grego e significa livro ou to em grego. O texto que acompanhou a Igreja
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entre os anos 1927-1930. Seguiram-se depois


outras traduções dos textos originais, ainda
usadas em Portugal e no Brasil no séc. xxi.
A mais conhecida é a Bíblia de Jerusalém, de
origem francesa e traduzida por grupos de es-
pecialistas na Sagrada Escritura.
A Vulgata, escrita em latim, era conheci-
da pelos que conheciam esta língua, princi-
palmente padres e estudiosos das universida-
des. Na Idade Média, os pregadores citavam
os pontos principais da Bíblia nos sermões
e nas catequeses; nas igrejas, os fiéis viam as
pinturas destas cenas, principalmente as do
Natal, da Quaresma, da Paixão, da Páscoa e
do Pentecostes – raramente viam cenas do
Fig. 4 – Bíblia, Liber Genesis Hebraice Beresith (1576), Veneza Antigo Testamento. Esta forma de passar co-
(BGUC). nhecimentos chamava-se Biblia pauperum (Bí-
blia dos pobres). Nestas pinturas, entravam
latina desde S. Jerónimo (sécs. iv e v) é conhe- também cenas dos chamados livros apócrifos,
cido por Vulgata, mas desde o princípio que que, para terem autoridade, eram atribuídas
apareceram traduções sírias, coptas, árabes, a apóstolos.
etiópicas, arménias e geórgicas.
No séc. xv, os monges de Alcobaça tradu-
ziram alguns livros da Bíblia para português,
Franciscanos e Bíblia
mas só muito mais tarde, no séc. xviii, aparece Os padres franciscanos acompanharam os po-
a tradução completa, feita por António Pereira voadores portugueses desde os primeiros dias
de Figueiredo, da Congregação do Oratório, da sua chegada à Madeira, eram essenciais
sendo publicada em Lisboa entre os anos 1778­ para se poder celebrar a missa, administrar os
‑1781. Apareceram depois outras traduções, sacramentos e educar os fiéis na fé católica.
feitas principalmente por igrejas protestantes. Os primeiros povoadores já eram cristãos, co-
Uma outra tradução da Vulgata, difundida em nheciam as narrações bíblicas, catequizaram os
Portugal e no Brasil, foi feita por Matos Soares, seus filhos, compraram pinturas para colocar
nas igrejas, capelas, oratórios e suas casas. Só
os Portugueses mais cultos, que conheciam o
latim, é que podiam ler, consultar ou ter aces-
so, mesmo que indireto, à Bíblia, tendo em
conta que a missa também era celebrada em
latim, assim como os sacramentos, até ao Con-
cílio Vaticano II, no séc. xx.
Entre os Franciscanos, houve um português,
nascido em Lisboa, chamado Fernando. Estu-
dou em Coimbra, onde ensinavam professo-
res muito capacitados, pois recebiam a sua
formação teológica na Univ. de Paris. Quando
os Franciscanos chegaram a Portugal, vindos
da Itália, ainda no tempo de S. Francisco, este
Fig. 5 – S. Jerónimo, Marinus van Reymerswaelle (atr.),
c. 1521 a 1540, do antigo Convento da Encarnação do Funchal
jovem padre tomou o hábito franciscano e re-
(Museu de Arte Sacra do Funchal). cebeu o nome de António. Devido à doença
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que o atacou em Marrocos, onde fora evan-


gelizar os mouros, teve que voltar para Por-
tugal, viagem durante a qual foi levado por
uma tempestade para o mar Mediterrâneo,
até chegar à Sicília, na Itália. Dirigiu-se para
Assis, numa altura em que os Franciscanos es-
tavam reunidos com S. Francisco num capí-
tulo geral, chamado das Esteiras (1221). Foi
colocado num eremitério em Montepaolo,
perto de Forli, junto a uns religiosos que de-
sejavam que lhes celebrasse a missa, já que era
o único religioso padre. Aprofundou o conhe-
cimento da Sagrada Escritura com o estudo e
a oração que realizou e S. Francisco permitiu
que ele ensinasse nas universidades e pregas-
se a palavra de Deus. António foi muito caris-
mático no seu tempo, escreveu o livro Os Ser-
mões, com temas para os Franciscanos lerem,
meditarem e prepararem as suas pregações,
foi convidado a ir a Roma falar com o Papa e
com os cardeais, e diz-se que os seus conhe-
cimentos da Bíblia causaram tanta admiração
que o Papa lhe chamou “arca do Testamento”.
A tradição explica o significado desta designa-
ção dizendo que, se por acaso e desgraça se
perdessem os livros da Bíblia, António seria
capaz de os reproduzir por completo. A ico-
nografia representa S.to António com o Meni-
no Jesus nos braços sobre um livro que repre-
senta a Sagrada Escritura.
Os Franciscanos mais cultos que foram en-
viados para a Madeira com os povoadores por-
tugueses conheciam a Sagrada Escritura e re-
zavam o Breviário em latim, e alguns irmãos
que não eram sacerdotes sabiam todos os sal-
mos de cor, para em conjunto rezarem o ofí-
cio divino.
Apesar de o povo cristão não ter nessa época
do séc. xv nenhuma tradução da Bíblia, ti-
nham mais conhecimentos da Sagrada Escritu-
ra do que muitos cristãos atuais, que nunca a
leram, ou que leram somente alguns livros do
Novo Testamento. Felizmente, no séc. xxi, e
principalmente após o Concílio Vaticano II, a
Bíblia encontra-se em quase todas as casas de
cristãos, alguns começaram a lê-la e a medi-
tá-la, e a palavra de Deus tornou-se alimento Fig. 6 – S.to António, oficina de Diogo de Contreiras (?), c. 1550
espiritual. (Convento de S.ta Clara do Funchal).
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De Jesus aos evangelhos aos pobres” (Lc 4, 18-21). A citação evoca o


profeta Isaías, que, por sua vez, desenvolve a
No séc. i, em toda a bacia do Mediterrâneo noção de evangelizar: “como são belos sobre
oriental, em Roma, capital do Império, em al- os montes os pés do que anuncia a boa nova
gumas terras da Ásia Menor e Norte de Áfri- [evangelizar], traz a paz, anuncia a felicidade
ca, em algumas regiões vizinhas dos rios Tigre [evangelizar], traz a salvação” (Is 52, 7).
e Eufrates, começou a aparecer uma religião Evangelizar designa, na pregação dos apósto-
nova que, devido ao nome do seu fundador, los, algo mais do que a mensagem oral de Jesus.
Cristo, toma o nome de cristã. No primeiro Envolvia toda a sua vida, os seus sofrimentos, a
quartel do séc. ii, os grandes escritores roma- sua morte, a sua ressurreição, a vinda do Espíri-
nos, Tácito, Suetónio, Plínio, o Jovem, atestam to Santo. Os apóstolos deviam anunciar “tudo
conhecer este movimento que o escritor judeu o que ele tinha feito e o que tinha ensinado”
Flávio Josefo recorda nos seus livros. (At 1, 1). Jesus era não somente o objeto, mas
Josefo, que esteve presente na tomada de Je- também o sujeito da pregação, porque era
rusalém, no ano 70, refere-se ao fundador desta nele que se manifestava o poder de Deus, que
religião com termos honrosos, apesar de Jesus obriga os que o ouvem a acreditar ou então a
ter sido condenado à crucifixão, fala também escandalizar-se (cf. Mt 11, 5ss.; Mc 6, 3).
de João Batista e de Tiago, primo de Jesus. O es- Na literatura bíblica, evangelizar diz respeito
critor Plínio nota que este movimento tinha ao anúncio alegre de Deus, a sua palavra rea-
chegado à Bitínia cerca do ano 112, e Minúcio liza o que proclama, o Antigo Testamento diz
Fundano, procônsul na Ásia (atual Turquia), respeito ao futuro, às realidades messiânicas.
institui processos contra os cristãos. Antes do Os apóstolos e a Igreja das origens escolhe-
ano 160, o livrinho chamado Didaké ou Dida- ram, entre as palavras e as ações de Jesus, as
ché, as cartas de Inácio de Antioquia (m. 110) e que eram mais apropriadas para o dar a conhe-
a primeira carta aos Coríntios de Clemente Ro- cer. Quando a pregação tomou a forma escrita,
mano (cerca do ano 96) atestam a fé e a espiri- a palavra “evangelho” começou a designar os
tualidade de uma comunidade que se alimenta próprios escritos.
espiritualmente da fé em Jesus Cristo. No livro Didaché, o termo “evangelho” pa-
Além destes escritores que estabelecem uma rece referir-se aos escritos e não à mensagem
relação com a nova fé, existem diversos livros propriamente dita dos ensinamentos de Jesus.
sacros do Novo Testamento, que vão desde o S. Justino (m. 165) refere-se às memórias dos
ano 50 ao ano 95, sendo, portanto, anterio- apóstolos que foram escritas usando o termo
res a todos estes testemunhos de escritores “evangelhos”. Embora houvesse quatro es-
romanos. critos dos evangelhos, a catequese apostólica
Entre a morte de Jesus, cerca do ano 30 da era uma só, assim como a fé em Jesus Cristo.
nossa era, e os escritos do Novo Testamen- O simbolismo dos quatro animais que repre-
to, decorreu um período de pregação oral. sentam os evangelistas é tirado do profeta Eze-
O Evangelho foi anunciado de viva voz antes quiel (cf. Ez 1, 5-14). A aplicação é muito an-
de os textos serem fixados por escrito. tiga: o homem é Mateus, o leão é Marcos, o
O substantivo “evangelho” e o verbo “evan- vitelo é Lucas e a águia é João.
gelizar” significam boa notícia, nova e alegre
mensagem. Durante o período apostólico, este
termo nunca foi usado como título de um livro.
Evangelho oral e escrito
A mensagem de Jesus, antes de ser escrita, foi Entre a ascensão de Jesus ao Céu e a publica-
pregada, anunciada, ouvida. Antes de ser livro, ção do primeiro evangelho, a mensagem foi
o Evangelho foi palavra. transmitida à comunidade cristã sob a forma
Na sinagoga de Nazaré, Jesus diz: “O Espírito oral, confiada aos apóstolos (cf. Mc 16, 15)
do Senhor enviou-me a anunciar a Boa Nova e aos ministros da palavra (cf. Lc 1, 2), em
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conformidade com o mandato de Jesus (cf. At inaugurado com a doutrina, os milagres, a


6, 4; Rm 10, 17). morte e a ressurreição de Jesus. Este conteú-
O berço do cristianismo, como do Evange- do encontra-se nas cartas de S. Paulo, o pri-
lho, foi a comunidade de Jerusalém, vivifica- meiro a deixar textos escritos, e no livro dos
da pelo Espírito Santo no dia de Pentecostes, Atos dos Apóstolos. A catequese ou primeiro
com a presença de Maria, Mãe de Jesus. Daqui anúncio (kérygma) era adaptada aos ouvintes
se espalhou a mensagem pelos povos: Judeia, e às circunstâncias, importando se eram ju-
Samaria, Galileia, Fenícia, Chipre, Antioquia deus ou pagãos, catecúmenos ou cristãos. Em
da Síria, Norte de África, Ásia Menor, Grécia alguns textos bíblicos, encontramos as for-
e Roma. mas e esquemas de pregação adotadas. Por
Os Atos dos Apóstolos informam-nos desta exemplo, nos Atos, no discurso de S. Pedro
evangelização que teve como principal missio- (cf. At 2, 22ss.); no discurso de Estêvão (cf. At
nário o apóstolo dos gentios, S. Paulo. Os cren- 7, 2-53); do diácono Filipe (cf. At 8, 30-33);
tes aderiam “à doutrina dos apóstolos e perse- de S. Paulo, em Antioquia da Pisídia (cf. At
veravam nela” (At 2, 42). Entre os doze, Pedro 13, 16-41); na pregação de S. Pedro em casa
goza de uma autoridade e prestígio especial, de Cornélio (cf. At 10, 34-43); no discurso de
ele toma as iniciativas e fala em nome de todos S. Paulo em Atenas, no Areópago (cf. At 17,
(cf. At 1, 15; 2, 14; 4, 8, etc.). 21-31); no discurso de despedida em Mileto
Paulo, após a sua conversão e estadia na Ará- (cf. At 20, 18-35). Neste esquema ou quadro
bia, vem a Jerusalém para encontrar Pedro, geral, simples e ágil, encontra-se o testemu-
passando com ele quinze dias (cf. Gl 1, 18). nho da Boa Nova, onde se poderiam colocar
O cristianismo partiu dos doze apóstolos e outras unidades didáticas que nos dão o mo-
de Jerusalém, a cidade da revelação divina. delo das catequeses. S. Lucas, no livro dos
Não aparecem nas fontes comunidades inde- Atos, mostra a Teófilo a razão do seu livro:
pendentes, democráticas, sem relação com os “escrever-te de um modo ordenado […] para
apóstolos; os contactos das novas comunidades que verifiques a solidez dos ensinamentos
com a Igreja mãe de Jerusalém são frequentes que recebestes” (Lc 1, 4).
(cf. At 11, 27ss.; 15, 2; 1Cor 16, 3; 2Cor 8, 14). É provável que, antes dos evangelhos escri-
A autoridade eclesiástica controlava a ex- tos, houvesse recolha de textos escritos para
pansão da comunidade e interessava-se pela ajudar a pregação. O estilo oral, comum entre
fiel transmissão das tradições. Paulo insiste os semitas e documentado entre o povo judeu,
na ideia desta transmissão, quer quando fala era constituído de maneira a gravar-se na me-
da ressurreição de Jesus: “transmito-vos aqui- mória e a impressionar o coração dos ouvin-
lo que recebi” (1Cor 15, 3); quer quando fala tes. S. Mateus escreve: “Quando Jesus revelou
da eucaristia: “Porque eu recebi do Senhor o estes discursos, estavam as multidões admira-
que também vos ensinei” (1Cor 11, 23). Antes das com a sua doutrina” (Mt 7, 28).
de morrer, pede ao seu discípulo Timóteo para A escolha dos temas da catequese correspon-
confiar aquilo que ouviu a “homens de con- dia às situações e exigências concretas das co-
fiança”, os quais deviam estar em condições de munidades a que se dirigiam os pregadores da
por sua vez o transmitir a outros (2Tm 2, 2). Boa Nova. Nos discursos aos judeus, era ne-
S. Policarpo, bispo de Esmirna, falava da cessário apresentar o Senhor como o Messias
sua relação com o discípulo S. João e com os anunciado pelos profetas do Antigo Testamen-
outros discípulos que tinham visto o Senhor, to. Já os gentios ignoravam esta espera do Sal-
recordava também as palavras e as coisas que vador prometido a Israel, a eles mostrando-se
tinha ouvido contar a respeito de Jesus, os mi- como Jesus passou fazendo o bem e curando
lagres e ensinamentos, etc. todos aqueles que tinham caído no poder do
Quanto ao conteúdo da mensagem dos demónio (cf. At 10, 38). Com a narração dos
apóstolos, o centro é o Reino de Deus, milagres, mostra-se o poder de Jesus sobre a
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natureza, os demónios e a morte: expulsa os evangelhos escritos, estes nasceram, quando


demónios (cf. Mc 5, 1-15), ressuscita os mortos ela resplandecia de juventude e beleza […]
(cf. Mc 5, 35-42), multiplica os pães (cf. Mc 6, O que Jesus Cristo estabelecera neste mundo
38-44), anda sobre as águas do lago (cf. Mc 6, não era uma escola filosófica, uma academia
47-50). de literatos, um cenáculo escolhido de inves-
O mais importante não era mostrar o lugar tigadores de textos, uma religião de pergami-
histórico onde Jesus falou ou operou milagres, nhos e de filólogos, mas uma sociedade viva,
mas o que Ele tinha ensinado e feito para a sal- fundada sobre lugares vivos da caridade e da
vação das pessoas. A preocupação dos pregado- autoridade” (Id., Ibid., 1-16).
res era levar a mensagem de salvação adaptada
da melhor forma e em conformidade com a
vida quotidiana dos ouvintes.
Comissão Bíblica
A celebração da eucaristia deu lugar a um Em 1902, o Papa Leão XIII criou uma comis-
conhecimento e desenvolvimento da narra- são para promover os estudos bíblicos e tam-
ção da paixão, morte e ressurreição de Jesus, bém para proteger a Bíblia dos erros. A Comis-
como aconteceu com S. Paulo aos Coríntios são incluía cardeais e consultores escolhidos
(cf. 1Cor 11, 23). A liturgia da comunidade entre os melhores estudiosos da Bíblia dessa
cristã deixa algumas marcas na futura cons- época. Em 1904, o Papa Pio X concede à Co-
tituição escrita dos evangelhos. O mais im- missão a faculdade de examinar os candidatos
portante é reconhecer que os quatro evange- que se preparavam para receber graus acadé-
lhos nasceram na Igreja, para a Igreja e são micos em Sagrada Escritura, tanto mais que al-
da Igreja; o seu valor perene está ligado à fé e guns seriam professores nos seminários. A au-
à vida da Igreja; são o espelho de uma prega- toridade da Comissão Bíblica aumentou de tal
ção e de uma vida, antes de serem um escri- forma que os seus decretos chegaram a ter a
to. Foram uma vivência que deixou marcas e mesma autoridade que os decretos das congre-
testemunhos de uma comunidade dos tempos gações romanas.
apostólicos.
Os evangelhos são diversos da historiogra-
fia científica ou retórica, embora conservem
factos históricos. Eles são fundamentados na-
quilo que os apóstolos ouviram e viram do Se-
nhor Jesus, sobre o que a Igreja viveu, acre-
ditou e testemunhou com uma finalidade
religiosa e salvífica, o que os leva a proclamar
a presença e a divindade de Jesus Cristo Salva-
dor. Jesus é uma figura histórica, por isso, os
escritos assumem também um carácter histó-
rico. Tratam da história de uma comunidade
viva e salvífica que apela à fé. Podemos afir-
mar, com Huby, que “A Igreja é a esposa de
Jesus Cristo, os evangelhos são as suas joias,
o tesouro que conserva com amor vigilante”
(HUBY, 1954, 1-10).
A Igreja existiu antes dos evangelhos, o es-
pírito antes da letra, a religião da autoridade
antes da religião de um livro, por mais subli-
me que seja. Como diz o autor anteriormen-
te citado, “A Igreja não é fundada sobre os Fig. 7 – Papa Leão XIII, Roma, 1878 (arquivo particular).
B í blia ¬ 343

A Comissão foi instituída no momento em Bíblia e povo cristão


que os protestantes tinham alcançado um alto
nível no estudo bíblico e influenciavam os es- De uma forma geral, podemos dizer que o
tudos bíblicos dos católicos. Era a época do povo cristão, até há poucos anos, não tinha
modernismo, entre os anos 1905-1915. As res- acesso aos livros da Bíblia. Estava escrita em
postas da Comissão diziam respeito aos perigos latim, só os bispos, padres, professores ou lei-
para a fé típicos deste período. gos cultos a estudavam e conheciam; até para
Quando os estudos dos exegetas católicos quem dominava o latim se tornava de difí-
atingiram maturidade e capacidade para dis- cil acesso, uma vez que não havia bíblias para
tinguir as opiniões prováveis das seguras, a comprar. O povo judeu sabia ler e escrever de
Comissão, mais do que tratar da correção de forma a poder consultar o Antigo Testamen-
erros, começou a encorajar o trabalho cien- to. No Templo de Jerusalém, havia textos para
tífico dos estudiosos católicos. As universida- consulta. Em cada sinagoga dispersa pela terra
des católicas, o Pontifício Instituto Bíblico, de Israel, conservava-se um rolo da Bíblia, que
em Roma, e, a mais antiga, a École Biblique, era lido nas reuniões, aos sábados, nas festas e
em Jerusalém, tinham já produzido grandes em outras ocasiões. É provável que, nas zonas
exegetas, como Lagrange, Roland de Vaux, mais abastadas, houvesse um outro exemplar
na arqueologia bíblica, Linet, nas cartas de S. da Bíblia; tendo em conta que um pergaminho
Paulo, Agostinho Bea, sj, mais tarde cardeal, era muito caro, nos lugares pobres e peque-
Martini, sj, insigne arcebispo e cardeal de nos, era unicamente a sinagoga que possuía
Milão, que desenvolveu livros e textos bíbli- um exemplar, que podia ser consultado pelos
cos para retiros e meditações conhecidos em fiéis. O texto era em hebraico, mesmo quando
todo o mundo. a língua falada era o aramaico.
Quando, nos anos 50 e 60, se estudava em O povo cristão conhecia a Bíblia através das
Roma, ou em Jerusalém, podia perceber-se leituras, homilias, catequeses e missas, e via
que a Comissão Bíblica era raramente cita- muitas cenas pintadas em igrejas e capelas,
da, apenas o sendo para mostrar que a Igreja também possuía em suas casas imagens em ma-
sempre guardou com amor e carinho a pala- deira ou barro, ou então gravadas e impressas
vra de Deus e a defendeu de perigos e erros em pergaminho ou papel. Os grandes ciclos
que poderiam ser difundidos também nas es- litúrgicos – Advento, Natal, Quaresma, com
colas católicas. A Igreja ama os seus fiéis, ali- as procissões dos Passos e vias-sacras, Semana
menta-os com a eucaristia e a palavra de Deus, Santa, Páscoa, com a procissão da Ressurrei-
quer preservar o estudo científico não só de ção, do Espírito Santo, com as visitas às casas
erros, mas também de hipóteses de trabalho dos paroquianos – eram ensinados na cateque-
que podem ser tomadas como certezas entre se e as cenas bíblicas decoravam as paredes ou
os fiéis, indica os perigos a que um exegeta altares das igrejas ou capelas. Havia muita de-
católico não se deve expor, mesmo quando voção aos santos padroeiros, cujas vidas e mila-
procura aprofundar uma verdade da fé. Com gres se conheciam através de sermões, festas,
o Concílio Vaticano II e a Constituição Dei Ver- procissões e pinturas ou imagens que estavam
bum, o estudo científico da Sagrada Escritura colocadas nos altares e nas próprias casas.
continua, e a Comissão pode até rever e ex- Como a escola era deficiente e só atingia
plicitar melhor as decisões que foram toma- uma parte da população, as imagens e pinturas
das numa determinada época, quando não se belas e incisivas constituíam o que, como já se
tinha ainda estudos científicos próprios para havia adiantado, se chamava a Biblia pauperum
dirimir algumas questões, embora continuem (Bíblia dos pobres). No séc. xxi, com tantas tra-
sempre a surgir ao longo dos tempos proble- duções, preços acessíveis, e sendo até ofereci-
mas de interpretação, de crítica textual e lite- da por ocasião dos sacramentos, não podemos
rária, etc. afirmar que a Bíblia seja lida em proporção.
344 ¬ B í blia

representados, para conhecer a importância


que os nossos antepassados davam ao conheci-
mento da Sagrada Escritura.
O santoral, com pinturas, esculturas, ima-
gens de santos e, principalmente, de Nossa Se-
nhora, ocupa uma parte central e elucidativa
da piedade popular e da catequese e pregação
que era ministrada aos cristãos.
Em relação à Bíblia, há uma profunda di-
ferença entre católicos e protestantes, prin-
cipalmente após a revolta de Lutero contra
a Igreja de Roma. Lutero traduziu a Bíblia
para alemão, trabalho considerado pioneiro
e obra de arte. Mas não foi apenas nos tem-
pos da Reforma protestante que a Bíblia foi
Fig. 8 – Santoral do cadeiral sul da Sé do Funchal, c. 1514 (foto- descurada na catequese e até na pregação.
grafia de Virgílio Gomes, 2014).
Havia um certo receio de que os católicos les-
sem a Bíblia como faziam os protestantes, a
Pelo contrário, é pouco consultada; o Antigo interpretassem cada um a seu modo, provo-
Testamento é ainda mais desconhecido que cando ainda mais divisões na Igreja. Para a
o Novo e necessita de uma introdução antes aprovação da Bíblia católica era necessário in-
da leitura, o que se manifesta ainda mais ne- troduções e notas, o que de facto é muito útil
cessário em alguns livros. O Novo Testamento, e ajuda a compreender o lugar onde o texto
além dos temas dos grandes ciclos litúrgicos e nasceu, que influência sofreu e qual o senti-
de algumas partes dos Atos dos Apóstolos, tam- do autêntico das palavras do escrito original.
bém não é muito conhecido. Quanto às car- Como já foi dito, a primeira tradução com-
tas e ao Apocalipse, os textos são conhecidos, pleta da Bíblia apareceu tarde, no séc. xviii,
em parte, por via da liturgia, mas só algumas mas não provocou uma corrida dos fiéis à sua
cenas. Após o Concílio Vaticano II, devido à ca- posse e leitura. Se muitos a compraram, pou-
tequese e aos cursos bíblicos, a situação modifi- cos a leram e meditaram.
cou-se, mas não ainda de forma suficiente. Paul Claudel, grande poeta francês, conver-
Antes, os livros de teologia dogmática para tido na Catedral de Notre Dame, em Paris, na
provar a doutrina apresentavam os argumen- noite de Natal, escrevia, em 1948, referindo-se
tos da autoridade da Igreja, que era depois ao povo francês, que sempre teve um contacto
confirmada com alguns textos da Sagrada Es- com a Bíblia superior, e.g., ao do povo portu-
critura. Depois, pelo contrário, a primazia é guês, que o respeito que os católicos devota-
dada à Sagrada Escritura e só depois à autori- vam à Bíblia não tinha fim, o que era notório,
dade da Igreja e patrologia. sobretudo, no seu afastamento relativamente à
Sagrada Escritura. O Concílio Vaticano II dimi-
nuiu esta distância, a maioria dos cristãos pas-
Bíblia dos pobres saram a possuir uma Bíblia em casa. Ao mesmo
Entrando em nossas igrejas e capelas, encon- tempo, a catequese, a liturgia, as homilias, a
tramos magníficas pinturas, esculturas, minia- pastoral e a espiritualidade passaram a servir-se
turas e reproduções das mais belas obras do ainda mais da palavra de Deus para fundamen-
génio humano, principalmente sobre os ciclos tar a doutrina cristã.
natalício, quaresmal e pascal. É um tema inte- Devemos ter em conta que para aceder a
ressante de estudo rever nos retábulos e pin- um texto bíblico, na sua vertente divina e hu-
turas das igrejas e capelas os temas bíblicos mana, histórica e eterna, é necessário possuir
B í blia ¬ 345

uma certa formação histórica, literária e teoló- No Novo Testamento, o termo “palavra” apa-
gica, caso contrário, corre-se o perigo de assu- rece poucas vezes em S. Mateus e S. Marcos, sig-
mir uma posição fundamentalista, que é o que nificando o evangelho proclamado por Jesus
acontece com tantos movimentos religiosos rí- (cf. Mc 2, 2; Mt 13, 18); em S. Lucas e nos Atos
gidos, ou então de considerar a Bíblia como dos Apóstolos, a palavra indica também o evan-
obra literária, inferior à literatura clássica do gelho pregado por Jesus (cf. Lc 5, 1; 4, 32).
seu tempo. Assim aconteceu com o grande S. Lucas usa muitas vezes a expressão “palavra
Doutor da Igreja S.to Agostinho, antes da sua de Deus” para designar o Evangelho. O traba-
conversão, na cidade de Milão. O espiritualis- lho dos apóstolos é o ministério da palavra.
mo vago, que extrai do texto aplicações gené- Nos escritos de S. Paulo, o termo “palavra” in-
ricas sem precisar o sentido real, pode colocar dica geralmente o Evangelho (cf. 1Cor 14, 36;
na palavra de Deus os próprios sentimentos, Gl 6, 6). Paulo chama-lhe “palavra de Deus”,
emoções, o que se deseja e não o que Deus “palavra de Cristo”, que é revelada por meio
quer dizer-nos com o texto inspirado. da pregação (cf. Tt 1, 3), que é o objetivo da
A palavra de Deus incarnou num homem catequese (cf. Gl 6, 6). A fé vem da escrita e a
da nossa raça, Jesus de Nazaré, mas também escrita vem da pregação da palavra.
numa história concreta, num território limita- Nas outras cartas apostólicas e livros do Novo
do do Médio Oriente, num contexto preciso, Testamento, o termo “palavra” também é indi-
santificado por Deus com sinais da revelação cativo de evangelho (cf. Hb 13, 7), de palavra
divina e da nossa salvação. de Deus (cf. 1Pd 1, 23). A palavra é uma se-
Na língua grega, há uma palavra sobre a qual mente imortal, ela faz com que o fiel renasça
temos que refletir, “hermenêutica”, que signi- de novo (cf. 1Pd 1, 23). Na carta aos Hebreus,
fica interpretação. Quando aplicada à Bíblia, é uma espada de dois gumes, é a espada do Es-
significa que o Espírito Santo, segundo escreve pírito Santo (cf. Hb 4, 12).
S. João, “nos ensinará todas as coisas e recorda- Nos escritos de S. João, o termo “palavra” não
rá tudo aquilo que foi dito na Revelação” (Jo é indicativo de evangelho, mas das palavras do
14, 26). próprio Jesus Cristo, ou então das palavras do
Pai pronunciadas por Jesus. Quando Jesus fala
da “minha palavra” (Jo 5, 24), esta não é sua,
A Bíblia, palavra de Deus mas do Pai (cf. Jo 8, 55). O Pai ordena o que
Os judeus, como outros povos na Antiguida- Jesus deve dizer.
de, acreditavam que a palavra falada era uma No prólogo, S. João refere-se ao que os após-
realidade com um poder especial. As palavras tolos ouviram, viram, contemplaram e tocaram
tinham força nas alianças, nos matrimónios, com as mãos, “a palavra da vida” (1Jo 1, 1-3).
nos contratos. Os hebreus usavam a palavra Neste mesmo prólogo (cf. 1Jo 1, 1-14), Jesus é
para indicar uma realidade, aquilo a que nós identificado com o Pai (cf. 1Jo 1, 1), é a vida da
chamamos coisa. comunidade (cf. 1Jo 1, 4-10), é luz que traz a
No Antigo Testamento, a palavra de Deus re- vida (cf. 1Jo 1, 4ss.).
fere-se geralmente à palavra pronunciada pelos Não é fruto da especulação grega, nem do
profetas. Deus põe as suas palavras na boca do filósofo Filão o lugar onde S. João foi beber a
profeta (cf. Jr 23, 16-28). Jeremias recebe a pa- teologia e o fundamento da palavra de Deus.
lavra de Deus na boca, Ezequiel come o rolo A sua base encontra-se na Bíblia.
no qual estava escrita essa mesma palavra de
Deus. O texto diz que a palavra se “cumpre”,
“vem”, “realiza” o que significa, “cria” (Gn 1; Is
Concílio de Trento e Sagrada Escritura
40, 26). No livro do Deuteronómio, a lei escri- O Concílio de Trento reuniu-se no Norte da
ta é palavra de Deus (cf. Dt 4, 13), é a vida de Itália, em Tirol, nesse tempo território inde-
Israel (cf. Dt 32, 47). pendente, entre os anos 1545-1563. Teve 25
346 ¬ B í blia

sessões. Procurou responder aos problemas e Quando terminou o Concílio de Trento, que
doutrina que a Reforma de Martinho Lutero procurou educar e defender os cristãos das
tinha trazido à Igreja, havia 28 anos, no centro teses extremistas de Lutero, assinaram as atas
da Europa. Quando o Concílio se reuniu, Lu- 217 padres conciliares, de 15 nações diferen-
tero já estava muito velho, tendo morrido um tes. Portugal teve sempre uma forte participa-
ano mais tarde, mas os outros reformadores, ção, principalmente no último período, com o
na Suíça, ainda estavam vivos e ativos. B.º Fr. Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de
No primeiro período do Concílio, os padres Braga.
trataram de Sagrada Escritura e Tradição. Era o Os reis portugueses protegeram e favorece-
maior problema, ao qual se devia dar uma res- ram a participação de bispos no Concílio e, de-
posta. O Concílio colocou a Bíblia no mesmo pois, a aplicação das orientações do Concílio
plano da Tradição. Afirmou que a tradução da nas dioceses. Um dos resultados práticos foi a
Vulgata em latim era suficiente para qualquer construção de seminários para a formação de
discussão dogmática e que só o Magistério da sacerdotes, o que, na Madeira, em relação ao
Igreja tinha o direito de interpretar as Escritu- ensino, ficou a cargo dos padres jesuítas.
ras. O Concílio admitiu no cânone bíblico os A Madeira forneceu à Companhia de Jesus
livros chamados deuterocanónicos. Estes de- homens de grande valor espiritual e intelec-
cretos provocaram uma divisão na cristandade, tual, distinguindo-se entre eles Leão Hen-
católicos dum lado, protestantes do outro (val- riques, natural da Ponta do Sol, e Manuel
denses, de Pedro Valdo, anabatistas, luteranos, Álvares, da Ribeira Brava, autor da célebre
presbiterianos, de Calvino); a grande divisão A Gramática Latina do Pe. Manuel Álvares, que
dos ortodoxos acontecera em 1504. teve diversas edições na Europa, Ásia e Brasil.
Em 1540, foi fundada a Companhia de Jesus, O bispo D. Jerónimo Barreto, com o auxílio
por S.to Inácio de Loiola, para através do es- dos padres da Companhia de Jesus, instalou
tudo e criação de universidades se tornar um um seminário para a educação e formação do
instrumento de defesa da doutrina da Igreja. clero. O Seminário abriu as suas portas a 20 de
A Univ. Gregoriana, em Roma, e, mais tarde, o setembro de 1566.
Pontifício Instituto Bíblico, na mesma cidade, A 18 de março de 1570, chegaram ao Fun-
formaram o ambiente intelectual e científico chal os padres Manuel de Sequeira, reitor do
de grande parte dos bispos, professores e pa- Colégio, Pedro Quaresma, professor de teolo-
dres da Igreja Católica. gia moral, e Belchior de Oliveira, para desem-
penhar funções religiosas, o diácono Vasco Ba-
tista, professor de latim e retórica, e mais dois
religiosos. No seu Colégio, ensinavam lógica e
retórica, correspondendo a um curso intensi-
vo de humanidades. Com a abertura do Colé-
gio, os cursos funcionavam nas aulas do pátio,
dependência do mesmo edifício. Com a ex-
pulsão dos Jesuítas pelo Marquês de Pombal,
os padres permaneceram um ano presos no
Funchal, e a 16 de julho de 1760 tomaram o
barco para Lisboa. Nos estudos, ministravam-
-se aulas de teologia e a Sagrada Escritura ser-
via para provar a doutrina da Igreja. Quanto à
Bíblia dos pobres, na pintura e escultura, re-
presentam-se cenas da paixão, morte e ressur-
Fig. 9 – Última sessão do Concílio de Trento, 1563 a 1575, óleo de
reição de Jesus, da via-sacra e do evangelho da
c. 1633 (Museu Diocesano Tridentino, Trento). Infância.
B í blia ¬ 347

Fig. 10 – Anunciação, pormenor do retábulo do altar‑mor da Sé do Funchal, c. 1514 (fotografia de Bernardes Franco, 2015).
348 ¬ B í blia

Fig. 11 – Descida da Cruz, pormenor do retábulo do altar‑mor da Sé do Funchal, c. 1514 (fotografia de Bernardes Franco, 2015).
B í blia ¬ 349

Se considerarmos as pinturas nos retábulos Escritura, tudo isto é pouco, tendo em conta
das igrejas da Diocese, notamos que elas encer- o Novo Testamento, e muito pouco, tendo em
ram três ciclos: um dedicado à paixão, morte e conta o Antigo. Embora nas pregações os ora-
ressurreição de Jesus, outro ao tempo natalício dores sacros citem mais algumas cenas, temos
e um outro à eucaristia. O retábulo que me- de confessar que a Sagrada Escritura não era
lhor representa esta divisão é o da Sé do Fun- muito conhecida dos cristãos, sendo mais ma-
chal, mandado construir pelo Rei D. Manuel. nuseada pelos protestantes. A autoridade da
O Antigo Testamento é pouco representado. Igreja regulava as questões disputadas pelos
Prefere-se, geralmente, o Novo Testamento, protestantes, embora nas universidades os
embora para a oração fossem usados os sal- mestres, e, no caso da Madeira, os Jesuítas,
mos, na reza do Ofício, com pausas no meio fossem competentes nestes assuntos. A Bíblia
e no fim do versículo. O Natal influenciou a dos pobres, pintura e escultura, não era sufi-
representação da Árvore de Jessé, por causa da ciente para um conhecimento da Bíblia. A de-
ascendência de Jesus, que encontramos numa voção aos santos, tanto aos populares como
magnífica pintura no Convento de S.ta Clara, aos patronos, tinha um peso muito maior. Sob
na igreja de Machico, na talha do altar do Sa- este aspeto, o Concílio de Trento não con-
grado Coração de Jesus, etc. seguiu colocar a Bíblia na mão dos cristãos,
As pinturas do retábulo da Sé, mandado mesmo defendendo a integridade e validade
pintar pelo Rei D. Manuel I, são atribuídas da Vulgata.
ao pintor flamengo Francisco Henriques ou
ao Mestre da Lourinhã. Na parte superior,
colocava-se habitualmente a escultura do Se-
Traduções da Bíblia em português
nhor Crucificado; ao lado do nicho, apresen- O povo judeu guardou como tesouro precioso
ta-se a oração de Jesus no Horto e o Senhor os livros sagrados conservados no rolo da Sa-
com a cruz às costas; do lado oposto, a desci- grada Escritura. Os textos encontrados nas gru-
da da cruz e a ressurreição. No repartimento tas do Qumran por Roland de Vaux, da École
do centro, temos a anunciação do Senhor e Biblique de Jerusalém, e o magnífico texto de
o nascimento de Jesus; na parte central, a Se- Isaías conservado no Museu de Jerusalém são
nhora da Assunção; e, do outro lado, a vinda relíquias que o tempo não consumiu. O povo
do Espírito Santo e a assunção de Nossa Se- hebreu não só conservou como leu a Bíblia,
nhora ao Céu. No terceiro repartimento, foi não precisando de traduzi-la, mesmo quan-
colocado o sacrifício de Melquisedec e a ins- do a língua falada era o aramaico. Os meni-
tituição da eucaristia; do lado oposto, o mila- nos judeus, que desde os quatro anos de idade
gre do sacrifício de S. Gregório e a recolha do aprendiam a ler os rolos da Lei, eram acompa-
maná no deserto. nhados de traduções vernáculas quando nasci-
No altar do Senhor Jesus, o retábulo apresen- dos e educados no estrangeiro, como aconte-
ta O Encontro de São Joaquim com Santa Ana, nar- ceu com Saulo, na cidade de Tarso, o futuro
rado num livro apócrifo, A Fuga para o Egito, S. Paulo. Jesus recebeu o texto bíblico como
A Circuncisão e a Adoração dos Magos, sendo era lido nas sinagogas e no Templo.
estes dois quadros do pintor flamengo Coxie. O Novo Testamento, antes de ser escrito, foi
No altar de S.to António, o retábulo representa anunciado pelos apóstolos e missionários, so-
S. Jerónimo e S. Lourenço, e, do pintor Coxie, bressaindo entre eles Paulo de Tarso, que nos
A Vocação de São Mateus e Os Estigmas de São deixou nas suas cartas os primeiros textos inspi-
Francisco. rados do Novo Testamento, escritos em grego.
Todas as igrejas paroquiais têm os quadros A Escritura Sagrada foi escrita em hebraico,
da via-sacra, sendo esta devoção muito popu- aramaico e grego. O latim, língua do Império
lar durante a Quaresma e Semana Santa. Para Romano, conheceu a Bíblia através da Vetus
obter um conhecimento geral da Sagrada Latina e da Vulgata, traduzida por S. Jerónimo.
350 ¬ B í blia

As igrejas orientais serviam-se de traduções nas torturados e decapitados. Apesar de tudo, o


suas línguas (siríaca, copta, arménia, georgia- desejo de ler e conhecer a Bíblia continuava
na, etíope, gótica, eslava) desde os sécs. iii a v. inalterado. Em 1199, o Papa Inocêncio III criti-
A Bíblia foi transcrita em magníficos per- cou a Diocese de Metz, admitindo que o desejo
gaminhos, chegou aos países que receberam de compreender as Divinas Escrituras era coisa
o cristianismo em latim e só as pessoas letra- boa e desejável, mas condenava o facto de se
das da Igreja tinham a possibilidade de a ler. “explica-las às escondidas e prega-las uns aos
O povo cristão conhecia a Bíblia através da outros”. Dizia que a profundidade da Escritura
liturgia, das catequeses, dos sermões, dos co- Divina era tal que não se chegava a penetrar
mentários dos Padres da Igreja, das pinturas, nela, “não só os iletrados mas nem sequer os
das iluminuras e dos salmos, de que se servia inteligentes e doutos” (BERGER, 1884).
para a oração. Algumas traduções da Bíblia apareceram
“Traduzir é trair”, diziam os antigos. Traduzir em francês, como a de S. Luís IX, traduzida
é já interpretar, e as traduções refletem visões do latim em 1226, pedida pela Rainha Branca
particulares, por vezes apaixonadas, que gru- de Castela, para educar o seu filho Luís. Ape-
pos dissidentes da Igreja explicam a seu favor, sar disso, os cristãos franceses não liam a Bí-
originando divisões e perigos para a vida de fé blia, uma vez que tal era proibido pelo clero.
das comunidades. Neste sentido, o magistério A grande tradução da Bíblia de Jerusalém ad-
da Igreja intervinha e, para defender a uni- quiriu tal renome e autoridade que foi tradu-
dade de fé na Igreja, não favorecia as tradu- zida em português, espanhol, italiano, inglês,
ções. Entretanto, os espíritos sedentos de Deus alemão, etc., entre 1947 e 1955.
queriam poder ler a Escritura Sagrada na sua O povo inglês sempre teve um carinho muito
totalidade. especial, em todos os tempos, pela Bíblia. No
O amor à palavra e a sua defesa exigiam, séc. vii, o bispo S. Beda Venerável explicava
assim se pensava, que ela não fosse exposta nas aos anglo-saxões as histórias bíblicas. Tornou-
línguas vivas, e julgou-se melhor proibir as suas -se célebre a versão completa do Novo Testa-
traduções, para conservar intacto o conteúdo mento do padre católico William Tyndale,
da mensagem divina salvífica, velando-o para feita a partir do texto original, que está na base
que não fosse alterado. Ao longo dos séculos, das futuras versões inglesas, incluindo a King
encontramos vários atos condenáveis: foguei- James Version. Tyndale fugiu da Inglaterra, foi
ras a consumir milhares de exemplares da Bí- perseguido na Europa, cortaram-lhe a cabeça
blia; tradutores a serem também queimados, e depois foi queimado (1536). A King James
Version influenciou a língua inglesa moderna,
é uma autêntica obra literária. Em 1970, pu-
blicou-se a sua nova versão inglesa católica nos
Estados Unidos da América, The New Ameri-
can Bible.
Os alemães têm uma tradução da Sagrada
Escritura em língua gótica desde o séc. iv, co-
nhecida como Bíblia de Wulfile. A tradução
mais célebre é a de Martinho Lutero, pelas
consequências que teve na Reforma protestan-
te. A tradução completa é de 1534. Lutero usa
uma linguagem poética, musical e popular, tra-
ta-se de uma verdadeira obra literária em ale-
mão. Em 1997, em linguagem acessível, apare-
Fig. 12 – Bíblia de Cantuária, ou Bíblia de Lyghifield, c. 1300, ceu a Bíblia da Boa Nova, resultado da colabo-
França ou Inglaterra (Catedral de Cantuária). ração entre evangélicos e católicos.
B í blia ¬ 351

Em Espanha, até meados do séc. xii, a Bíblia


era lida em latim, embora os judeus da penín-
sula lessem o rolo do Antigo Testamento em
hebraico; só mais tarde é que a Bíblia foi tradu-
zida para as línguas vernáculas. Tanto em Espa-
nha como em Portugal, encontram-se bíblias
medievais romanceadas. É célebre a Bíblia de
Alba, iluminada com texto, glosas e miniatu-
ras, fruto da colaboração entre judeus e cris-
tãos. As heresias dos albigenses, cátaros e val-
denses, que insistiam na leitura da Bíblia em
língua vulgar, levou a Inquisição a queimar pu-
blicamente tais versões da Bíblia, sendo proibi-
da a leitura da Sagrada Escritura em vernácu-
lo, para não expor a perigos a vida espiritual
dos cristãos. Os judeus, por seu lado, continua-
ram a ler o texto hebraico nas suas reuniões e
Fig. 13 – Bíblia de Alba ou Bíblia de Arragel, 1420 a 1430 (Funda-
sinagogas. ção da Casa de Alba, Madrid).
No Concílio de Trento, os bispos espanhóis
e seus teólogos consideravam perigoso ler a Bí-
blia sem que alguém explicasse o seu sentido, Vulgata os evangelhos, os Atos dos Apóstolos,
opinião que não era partilhada pelos bispos as epístolas de S. Paulo e o Livro das Horas,
alemães, italianos e franceses. Em 1559, devido com os salmos. Os monges de Alcobaça tradu-
ao pedido da Inquisição, o Índice de Paulo VI ziram o texto bíblico em língua portuguesa.
retirava de circulação as bíblias traduzidas, os Os grandes escritores, Gil Vicente e Camões,
sermões, os tratados, as orações ou os manus- ilustraram as suas obras com citações bíblicas.
critos que tratassem da Sagrada Escritura e até As traduções em língua castelhana atrasa-
os livros com citações bíblicas eram proibidos. ram a tradução em português. Entretanto, nos
As traduções, impressões, publicações, posse sécs. xvi e xvii, os estudos da Bíblia foram
e leitura da Bíblia em qualquer língua vulgar abundantes nas universidades de Coimbra e
não eram permitidas. Luís de Granada, de ori- Évora. A primeira tradução da Bíblia em Por-
gem judia, lamentou os exageros destas proibi- tuguês, incompleta, pois não continha os livros
ções, que provocavam a ignorância da palavra chamados deuterocanónicos, foi a de João Fer-
de Deus entre o povo cristão. No séc. xx, uma reira Annes de Almeida (1628-1691), mem-
das melhores traduções da Bíblia em espanhol bro da Igreja Calvinista Reformada, realizada
é a de Alonso Skökel, sj, e Jan Mateos, sendo o quando vivia na colónia holandesa das Índias
primeiro um dos mais renomados professores Orientais (1642). Esta Bíblia foi impressa num
do Instituto Bíblico de Roma. só volume em 1819. No séc. xvii, era proibida
As traduções da Bíblia em português são tar- a tradução da Bíblia em português, mas como
dias; infelizmente, a leitura da Bíblia era rara o tradutor era protestante, não se sentia vin-
entre os leigos; no séc. xx e xxi, mesmo com culado à legislação católica. Dela foram feitas
tantas, boas e acessíveis traduções, isso ainda 2000 edições, atingindo 150 milhões de exem-
continua a acontecer. Nos sécs. xv e xvi, não plares impressos. Tal número mostra o desejo
havia uma tradução da Bíblia em Portugal, in- e a fome do povo cristão de conhecer a palavra
cluindo a Madeira. Os letrados, bispos e padres de Deus. Ela serviu também para expandir a
liam a Bíblia em latim. Em 1942, quem entra- língua portuguesa no Oriente. Como provinha
va no seminário recebia a Vulgata, em latim. de um protestante, a Igreja Católica não rece-
D. João I (1433) mandou traduzir a partir da beu esta tradução.
352 ¬ B í blia

Entre 1725 e 1797, apareceu a tradução de O documento pontifício de Pio XII aos exe-
António Pereira de Figueiredo, da Congrega- getas católicos Divino Afflante Spiritu (1943) en-
ção do Oratório, teólogo da confiança do Mar- corajou o estudo, a tradução e o ensino da Sa-
quês de Pombal. Esta tradução foi editada num grada Escritura.
só volume em 1821. A tradução é feita com Luiz Gonzaga da Fonseca, professor do Pon-
base na Vulgata, tem mérito literário, foi edita- tifício Instituto Bíblico e diretor espiritual do
da por católicos e protestantes. Nesta altura, o Pontifício Colégio Português, fez uma revisão
ambiente já era mais favorável à tradução e pu- do texto de Matos Soares, que foi editada num
blicação da Bíblia; embora com grande atraso só volume em 1956.
em relação a outros países da Europa, a Bíblia No Brasil, também começaram a ser publica-
acaba por também ser publicada integralmen- das Bíblias em português. Merece menção a Bí-
te em português. blia Sagrada, traduzida pelos Franciscanos de
Desde então, apareceram outras traduções Petrópolis (1950-1982). Seguiram-se depois a
de partes da Bíblia, assim como resumos da Tradução Ecuménica da Bíblia (1994) e a Bí-
história bíblica ou narrativas do Velho e Novo blia de Jerusalém (2002).
Testamento. A tradução do Pontifício Instituto Bíblico de
Teve grande difusão entre nós a Bíblia Sa- Roma, dirigida por Vaccari, foi traduzida e pu-
grada, traduzida por Matos Soares, da Diocese blicada pelas Paulinas (São Paulo, 1967; Lis-
do Porto, a partir da Vulgata e publicada pelas boa, 1978).
Paulinas (Lisboa, 1942). De 1957 a 1970, a Editora Universus publi-
cou a Bíblia Ilustrada, com lâminas a cores.
Foi a primeira tradução portuguesa dos textos
originais. Os Franciscanos capuchinhos, atra-
vés da Difusora Bíblica, têm publicado diversas
edições da Bíblia desde 1962. A Difusora Bíbli-
ca editou a Boa Nova, tradução interconfessio-
nal de biblistas católicos e protestantes a partir
do texto original.
Em 1980, a Difusora Bíblica publicou uma
nova tradução a partir dos textos originais.
Em Portugal, a Conferência Episcopal Portu-
guesa encomendou e patrocinou a tradução
da Bíblia para a liturgia e catequese, que foi
assumida pelos biblistas da Associação Bíblica
Portuguesa.
No princípio do séc. xix, a Bíblia estava tra-
duzida em 78 línguas, no princípio do séc. xxi,
em mais de 2426 línguas das 6500 que se jul-
gam existir no mundo. Nenhum outro livro foi
tão traduzido como a Bíblia. Deus, segundo o
autor da epístola aos Hebreus, “tendo falado
outrora muitas vezes e de muitos modos aos
nossos pais pelos profetas, nestes dias que são
os últimos, falou-nos por meio de Seu Filho, a
quem constituiu herdeiro de tudo, por Quem
criou o mundo” (Hb 1, 1-2).
A 12 de outubro de 1838, chegou ao Fun-
Fig. 14 – Vulgata (1791), de António Pereira de Figueiredo. chal Robert Kalley, nascido na Escócia a 6 de
B í blia ¬ 353

setembro de 1809. Era um homem profunda-


mente religioso, protestante, com uns laivos de
proselitismo. Como médico era um homem de
grande talento e dotado de uma grande capa-
cidade de falar e captar as multidões. Segundo
alguns críticos, era um fanático, um pregador
e propagandista incansável, que não deixa-
va grande espaço a opiniões diversas da sua.
Criou um ambiente desfavorável entre os ca-
tólicos madeirenses e um problema grave ao
bispo diocesano. No princípio, dedicou-se ao
exercício gratuito da clínica, como forma de
ajudar os doentes pobres, criando simpatia
entre a sociedade madeirense pela sua filan-
tropia. Passado algum tempo, a sua proverbial
caridade tornou-se uma terrível propaganda
de ideias religiosas. Retornando à Inglaterra,
ligou-se a dirigentes de sociedades bíblicas que
atacavam os católicos.
Ao regressar à Madeira, com espírito sectá-
rio, aumentou a sua propaganda anticatólica,
num ambiente em que as pessoas pouco sa-
biam de Sagrada Escritura. Os Jesuítas tinham Fig. 15 – Uma Exposição de Factos (1843), de Robert Reid Kalley.

saído do Funchal em 1760, deixando os fiéis


católicos madeirenses sem um válido interlo- médico em toda a casa, que, tendo fugido, en-
cutor ou defensor contra as ideias de Kalley. controu refúgio em lugar seguro, evitando ser
Os ânimos inflamaram-se e um grupo de ma- linchado.
deirenses queria atacar a casa do protestante, O cônsul inglês aconselhou-o a deixar a Ma-
que estava cercada pela polícia. A reação que deira. Vestido de mulher, foi conduzido a uma
se seguiu provocou tumultos e as autoridades praia onde o esperava um navio inglês, deixan-
locais intervieram por causa da paz e da ordem, do a Ilha definitivamente. Dirigiu-se aos Esta-
de forma a evitar cenas degradantes e até mor- dos Unidos da América, tendo chamado para
tes. Kalley era cidadão britânico, pelo que era junto de si alguns madeirenses que tinham
preciso agir com cautela e prudência. Apesar aderido à sua pregação e doutrina.
de prometer terminar com a propaganda re- Este facto desagradável, numa época em que
ligiosa e com a agressão ao catolicismo, dizen- ainda não se falava de espírito ecuménico, deu
do que pregaria apenas aos estrangeiros resi- lugar a que os jornais do tempo e alguns folhetos
dentes na Madeira, não cumpriu e os ânimos se referissem a Kalley, tanto no Funchal como
continuavam exaltados. A polícia vigiava conti- em Londres (cf. An Account of the Recent Persecu-
nuamente a casa de Kalley para evitar as piores tions in Madeira, in a Letter to a Friend (1844)).
consequências da ira dos populares. O médico
continuava a exercer a sua missão benéfica a
favor dos doentes, distribuindo medicamentos Ecumenismo na Madeira
grátis e esmolas aos pobres. Fernando Portal, dos Padres da Missão, que na
Certa vez, a casa foi cercada por uma mul- Madeira procurou a cura da tuberculose, en-
tidão de populares, de tal maneira que a po- controu-se aí com lord Halifax (que acompa-
lícia não a podia conter. Cometeram-se exa- nhava um seu filho atacado pelo mesmo mal),
geros, arrombaram-se portas e procurou-se o testemunhando, por isso, a grandeza espiritual
354 ¬ B í blia

desse anglicano. Nos seus longos passeios em (1821-1838). Em 1864, era bispo D. Patrício
comum, falaram da unidade da Igreja. Quan- Xavier de Moura (1859-1872), que governou a
do seguiram para a Europa, encontraram-se Diocese durante 13 anos, tendo adquirido uma
com o cardeal Mercier, arcebispo de Malines. importante biblioteca sobre teologia, Sagrada
Surgiram conversações e estudos destes encon- Escritura, direito canónico e outros temas, a
tros que o Espírito Santo, no Concílio Vaticano partir de livros provenientes de conventos ex-
II, inspirou os padres conciliares a defender, tintos em Portugal, como o de Alcobaça, e do
votando estes a favor do Decreto Unitatis Redinte- Mosteiro da Ordem dos Eremitas de São Paulo,
gratio sobre o Ecumenismo, aprovado a 21 de no- em Lisboa.
vembro de 1964. O bispo D. Patrício lutou pela integridade
A comunidade anglicana, notável pela sua to- da fé e procurou elevar o nível moral do clero.
lerância, respeita a fé católica dos madeiren- A aquisição destes livros talvez tivesse essa fina-
ses, e é também respeitada em toda a Diocese. lidade, num tempo em que a política tornou o
Após o Concílio, tem estabelecido as melhores seu episcopado turbulento, com perseguições
relações com os bispos diocesanos, a começar dentro do próprio presbitério. Indicou como
por D. Teodoro de Faria. O seu templo, aberto seu sucessor D. Aires de Ornelas (1872-1874),
ao público em 1822, continua a receber a co- primeiro bispo madeirense, natural da Dioce-
munidade anglicana que vive na Madeira e os se, que, não obstante a sua conduta irrepreen-
turistas que nos visitam. sível e qualidades de governo, só dirigiu a Dio-
Há outra comunidade, de rito escocês, com cese durante dois anos, devido às intrigas de
templo no Funchal a receber os fiéis da igreja liberais e maçónicos.
luterana, o que evidencia que a Madeira está Entre os volumes adquiridos, há vários co-
aberta ao verdadeiro ecumenismo. A pastora mentários da Sagrada Escritura: Biblia Sacra,
Ilse Berardo, luterana, é convidada pelos cató- edição da Vulgata, reconhecida pelos Papas
licos para encontros de estudo e oração, sendo Xisto V e Clemente VIII, publicada em Vene-
as suas alocuções e dissertações respeitadas e za em 1749, com 28 volumes; Commentarius
admiradas devido ao seu espírito ecuménico, Litteralis in Omnes Libros Veteris et Novi Testa-
bíblico e científico. menti, mais antiga, de Augustin Calmet, obra
No séc. xxi, todos estes cristãos se servem da escrita em francês pelo autor e depois tra-
Sagrada Escritura nos atos religiosos. E, no mês duzida para latim, sendo esta a versão exis-
de janeiro, reúnem-se em oração pela unidade tente, publicada em Veneza em 1667, em 8
das igrejas, num espírito de devoção e respeito volumes; Sacra Biblia, obra publicada em Ve-
pelas diversas confissões religiosas. neza em 1747 (são quatro volumes, que per-
No decreto sobre o ecumenismo, pode ler-se: tenciam à Ordem dos Eremitas de S. Paulo,
“todos na Igreja, segundo o ofício designado a passando a ser propriedade do Seminário do
cada um, quer nas várias formas de vida espi- Funchal em 1864; segundo estes exemplares
ritual e da disciplina, quer na diversidade dos memoráveis, a mesma terá sido antes impres-
ritos litúrgicos, até mesmo na elaboração teo- sa em Antuérpia, em 1615); Commentariorum
lógica da verdade revelada, embora mantendo et Disputa, de Bento Pereira Valentini, jesuí-
a unidade nas coisas necessárias, conservam a ta, publicado em Lion no ano de 1599 (per-
devida liberdade; em tudo, porém respeitem a tencia à livraria do Mosteiro de Alcobaça);
caridade” (PAULO VI, 1964, 4). relacionada com o apóstolo S. Paulo, temos a
obra Commentarium in Omnes B. Pauli Apostoli
et Septem Canonicas Aliorum Apostolorum Epis-
Bibliotecas dos mosteiros tulas, de Liberto Fromondo, publicada em
Em Portugal, as ordens religiosas foram ex- Lovaina em 1661.
tintas em 1834, era então bispo do Funchal Entre todos estes volumes, tem um valor
D. Francisco José Rodrigues de Andrade inestimável a Bíblia Hebraica, escrita em
B í blia ¬ 355

hebreu, com tradução em latim, sob o texto dificultavam a vida aos seminários em Portu-
hebraico, de Pagnini Lucensis, publicada em gal, encontrando-se muitos deles encerrados
Antuérpia, na oficina de Cristóvão Plantini, por falta de meios de subsistência.
em 1684. Com a nomeação de D. Manuel Agostinho
Com a extinção das ordens religiosas, as Barreto (1876-1911), um dos bispos que rege-
suas bibliotecas foram vendidas e dispersas, neraram a Diocese, foi colocado à frente do Se-
chegando ao Funchal centenas, talvez milha- minário um padre religioso alemão, o P.e Ernst
res, de volumes encadernados, uns com títu- Johann Schmitz, que conseguiu formar um
los dourados e outros com capas em pergami- escol de sacerdotes, de onde provieram bispos,
nho branco. cientistas, músicos, professores, e enviou para
As estantes que continham estes volumes estudar em Roma alguns alunos – um deles no-
estavam dispostas ao longo de uma sala de meado reitor do Pontifício Colégio Português,
aulas do Seminário da Encarnação. O lugar D. Teodósio Clemente de Gouveia, mais tarde
era o menos indicado: os alunos dos primei- cardeal e arcebispo de Lourenço Marques, de-
ros anos divertiam-se a abrir livros e rasgar pois Maputo.
páginas com figuras, antes de os professo- A tradição de estudar a Sagrada Escritu-
res chegarem para dar as aulas. Além disso, ra, enviar alunos para Roma e enriquecer a
a traça e a formiga-branca atacaram alguns biblioteca do Seminário continuou com o
volumes, que foram queimados no pátio de bispo D. António Manuel Pereira Ribeiro
recreio do mesmo Seminário. O cónego Ful- (1914-1957).
gêncio, que estudara teologia em Roma, con- Quando as universidades católicas quise-
denava estas fogueiras, num tempo em que ram aprofundar o estudo da Bíblia, que nessa
estes livros ainda eram consultados pelos alu- época era estudada e ensinada cientificamen-
nos que discursavam nas sessões académicas. te pelos protestantes, o dominicano francês
Com a abertura do Seminário na R. do Jas- M. J. Lagrange fundou em Jerusalém a École
mineiro, a biblioteca foi transferida para este Biblique et Archéologique Française. Passa-
edifício. Ainda são recordadas as consultas do muito pouco tempo, a École tornou-se co-
que os alunos de teologia realizavam para os nhecida no mundo científico. Os livros de La-
trabalhos a apresentar aos professores. Após grange tiveram uma larga difusão. A Diocese
a Revolução dos Cravos e a ocupação do Se- do Funchal procurou atualizar-se comprando
minário da Encarnação, a pupila dos olhos do todas as obras que publicava na Editora Gabal-
bispo D. Manuel Agostinho Barreto, a biblio- da, em Paris. No séc. xxi, conservam-se na bi-
teca foi levada para o paço episcopal, ocupan- blioteca da Cúria diocesana os seguintes livros
do as paredes do salão nobre. Por fim, com a de Lagrange: Évangile selon Saint Luc (1927),
construção do novo edifício da Cúria dioce- Évangile selon Saint Marc (1929), Évangile selon
sana pelo Bispo D. Teodoro, os livros foram Saint Matthieu (1927), L’évangile de Jésus Christ
colocados na biblioteca do arquivo, onde se (1929), Évangile selon Saint Jean (1927), Saint
encontram atualmente. Infelizmente, alguns Paul, Épître aux Galates (1926); Saint Paul, Épître
livros desapareceram, como o grande comen- aux Romains (1922), M. Loisy et le Modernisme
tário ao evangelho de S. Mateus do exegeta (1932).
jesuíta flamengo Cornelius a Lapide (1567- Fazem parte do recheio desta biblioteca os
1637), um dos volumes mais atraentes e dou- comentários do Antigo e Novo Testamento de
rados, que se encontrava em boas condições José Knabenbauer, sj, livros publicados desde
de conservação. 1907 até 1923.
Louvamos os bispos que apreciaram e com- As aquisições continuaram, porque a Diocese
praram estes livros, numa época em que li- enviava alunos para Roma para estudar a Sagra-
berais e maçónicos dominavam e exerciam da Escritura, além de teologia, filosofia, direi-
uma ação repressiva sobre a religião católica e to, história eclesiástica, moral e música sacra.
356 ¬ B í blia

Foram professores de Sagrada Escritura no Se- As semanas bíblicas eram organizadas pelas
minário do Funchal e formados em Roma no religiosas quando recebiam convites dos pá-
Pontifício Instituto Bíblico José Maurício de rocos para proceder à sua organização, que
Freitas (1952), Teodoro de Faria (1962-1966), abrangia a celebração da eucaristia quotidia-
Emanuel Eleutério de Ornelas, José Tolentino na, visitas aos doentes nas paróquias, cateque-
Calaça de Mendonça, Tony Vítor de Sousa (em ses a crianças e adolescentes, convites ao bispo
Paris) e José Ornelas Carvalho, dehoniano e e a professores de Sagrada Escritura para fa-
professor na Univ. Católica. zerem as homilias, que naturalmente eram
As aulas de teologia e Sagrada Escritura na sobre temas bíblicos. Por fim, preparavam um
Diocese exigiam que os bispos diocesanos en- encerramento mui festivo, com um cortejo de
contrassem professores competentes, envian- figuras bíblicas, vestindo trajes da época, se-
do jovens sacerdotes a estudar em Roma nas guindo-se a eucaristia dominical, sempre com
universidades pontifícias para esse efeito, al- muita participação da comunidade cristã. Du-
guns dos quais mais tarde foram chamados ao rante a semana, montavam na paróquia uma
episcopado. Sem aulas no Seminário Maior, a exposição com livros sobre a Sagrada Escritu-
Diocese não prepara professores, chamando ra e a piedade cristã, que os participantes po-
do continente padres e bispos para a atuali- diam adquirir.
zação de sacerdotes e leigos. A longo prazo, a Estas semanas realizavam-se durante todo
Diocese fica empobrecida. Embora com os alu- o ano e atingiram quase todas as paróquias.
nos a estudar na Univ. Católica, nenhum deles As duas religiosas que organizavam a sema-
se especializa no ramo de ciência teológica e na tornaram-se muito conhecidas e respeita-
bíblica. das na Madeira, pedindo a ajuda e participa-
A Diocese do Funchal tinha encontrado um ção de muitos fiéis, homens e mulheres, que
equilíbrio quando os alunos frequentavam dois se comprometiam com muito gosto em todos
anos de teologia no Funchal e outros quatro os serviços e organização. Délia Moreira Lopes
na Univ. Católica, em Lisboa. Durante o epis- e Maria Rosa Gonçalves Dias exerceram estes
copado do bispo D. Teodoro de Faria, houve cursos bíblicos com competência, generosida-
sempre alunos a estudar em Roma e, durante de e dedicação durante vários anos, deixando
21 anos, também em Paris. Uma diocese isola- marcas profundas na comunidade cristã e um
da no Atlântico como a Madeira precisa de ter grande amor à Sagrada Escritura.
membros do clero preparados para responder
a perguntas e refutar objeções e erros que se
levantam em todas as épocas, sem ter de recor-
Com a Bíblia na mão
rer a cada momento a técnicos ou professores Os homens visitaram as terras da Bíblia em
do continente. todos os tempos, tanto no tempo do Antigo
como no do Novo Testamento. A própria Bí-
blia fixou as datas das grandes festividades, al-
Filhas de São Paulo e semanas bíblicas turas em que o povo judeu devia subir até ao
Por ocasião do Concílio Vaticano II, em 1974, Templo de Jerusalém, a casa de Deus: Páscoa,
as Irmãs Paulinas abriram no Funchal uma li- Pentecostes e Tabernáculos. Jesus, com a sua
vraria com livros religiosos, principalmente família, subia a Jerusalém cantando os salmos
bíblias e temas bíblicos. Foi uma realização das ascensões, como fazem ainda, no séc. xxi,
feliz, as religiosas empenharam-se não ape- os peregrinos.
nas na venda de livros, mas também na orga- No ano 70 da nossa era, com a destruição do
nização de semanas bíblicas em quase todas Templo pelo imperador Tito, o povo judeu foi
as paróquias da Diocese, além dos programas disperso, mas Jerusalém, com os cristãos bizan-
religiosos na rádio, que eram do agrado da tinos, tornou-se de novo centro de oração e
população. peregrinações; os desertos e lugares íngremes
B í blia ¬ 357

foram ocupados por eremitas e contemplati- Benoit, exegeta de renome internacional,


vos que deixaram restos arqueológicos, alguns um dos professores mais ilustres da École,
ainda habitados e que tanto admiramos. No dizia que os estudiosos da Bíblia do cen-
séc. vii, com as invasões dos maometanos, estes tro da Europa deveriam visitar e estudar
lugares santos foram ocupados, e alguns des- no Médio Oriente; conhecendo o ambien-
truídos, mas as peregrinações, mesmo diminu- te onde nasceu a Bíblia (sitz im leben), em
tas, continuaram. contacto com a geografia e as tradições que
No séc. xi, com os cruzados, Jerusalém foi ainda no séc. xxi se mantêm nas popula-
de novo retomada pelos cristãos, mas os exér- ções, principalmente de origem árabe, que
citos árabes dirigidos por grandes conquista- conservaram os nomes bíblicos dos lugares
dores, como Saladino, expulsaram os cristãos e costumes ancestrais, mudariam muitas das
e reocuparam de novo a Terra Santa; apesar suas opiniões.
disso, as peregrinações continuaram, com A organização turística moderna permitiu
muitos perigos e perdas de vidas. Em 1220, que as peregrinações se tornassem frequentes
em Damieta (Egito), a permissão dada a S. e seguras, diminuindo os perigos das viagens,
Francisco pelo sultão Melek al Kamel autori- devorando as distâncias com os voos aéreos.
zava-o, bem como aos Franciscanos, a visitar Ao mesmo tempo, a hotelaria preparou-se con-
os lugares santos sem pagar a taxa dos pere- dignamente para receber inúmeros visitantes,
grinos, o que acabou por ter como resulta- sem preços excessivos, exigindo segurança e
do a permanência dos filhos de S. Francis- tempos de paz.
co, que nunca mais abandonaram Jerusalém Os professores dominicanos da cidade
nem a terra de Israel. Esta circunstância faci- santa, além de bons mestres e religiosos de
lita a conservação dos santuários e a receção intensa piedade, incutem nos seus alunos um
de peregrinos, que, no séc. xxi, atingem um grande amor ao Livro Santo e uma familiari-
elevadíssimo número, contando que reine dade com a terra de Israel, com frequentes vi-
um clima de paz entre israelitas e muçulma- sitas e, no fim do período escolar, um estudo
nos. Os Franciscanos participam ainda em das viagens de S. Paulo na Turquia, durante
numerosas escavações arqueológicas, além 31 dias, com saída e entrada em Jerusalém.
de ensinar a Sagrada Escritura em Jerusa- Com o Concílio Vaticano II e após a Constitui-
lém. As dificuldades e constrangimentos são ção Dei Verbum, numa época em que a Sagrada
um contínuo para os peregrinos, mas estes Escritura começou a ser difundida, conheci-
enfrentam qualquer obstáculo para visitar a da e amada, o povo cristão começou a possuir
terra escolhida por Deus para a Revelação do e manusear a Bíblia, a meditá-la, a participar
seu plano salvífico. em cursos, semanas de estudos, conferências,
Lagrange, dominicano francês, homem de etc., de maneira que a palavra de Deus se tor-
grande visão e amor à Bíblia, concebeu um nou alimento da vida cristã. Provavelmente,
plano para o estudo da palavra de Deus no esta dinâmica é que deu origem ao aumento
próprio lugar escolhido pelo Senhor para se do número de pedidos para visitar os lugares
revelar aos homens. Numa época em que os santos.
protestantes estudavam cientificamente a Bí- Anualmente, são vários os grupos de pere-
blia, e para que os católicos se apressassem a grinos que vão até à Terra Santa e aos países
fazer o mesmo, fundou a École Biblique de Je- relacionados com a Bíblia, como a Jordânia, o
rusalém, com a Revue Biblique, que tinha como Egito, o Sinai, a Síria, o Líbano, a Turquia, a
objetivo difundir as novas aquisições exegéti- Tunísia, a Geórgia, a Arménia e, em particular,
cas, históricas e arqueológicas, e os textos sa- o Iraque e o Irão. O entusiasmo, interesse e en-
grados traduzidos, para a língua francesa, canto pela Bíblia penetrou no espírito de tan-
das línguas originais – hebraico, aramaico e tos sacerdotes, religiosas e cristãos leigos que
grego. são muitos aqueles que são acompanhados aos
358 ¬ B í blia

lugares santos desde a Madeira, do continente Há uma grande conclusão a tirar quando se
e do estrangeiro. coloca Jesus Cristo no centro da nossa vida: es-
Nos vários grupos, cria-se sempre um am- tamos em comunhão com Ele. Com a sua pa-
biente de comunidade viva, todas as pessoas lavra, tudo se torna possível. Na Terra Santa, a
se ajudam umas às outras, sabendo sorrir pe- Bíblia nunca saía das nossas mãos, e na Diocese
rante algumas situações menos agradáveis, não pode sair das nossas vidas, para contempla-
participando na eucaristia diária, na oração ção e deleite interior.
comunitária, na reza do terço, na leitura dos
textos bíblicos, na visita aos lugares históricos;
vive-se um ambiente de sã alegria e de louvor
Renovamento Bíblico
a Deus pela graça da visita da revelação divina
na Diocese do Funchal
à Terra. Antes do Concílio, quando o Seminário Dio-
Alguns dos peregrinos participam mais de cesano recebeu os sacerdotes formados em
uma vez nesta experiência espiritual, que revi- Roma, no Pontifício Colégio Português, a Dio-
vem sempre quando na missa se lê a Bíblia ou cese viu com grande satisfação um renova-
quando se servem dela para a oração particu- mento espiritual e cultural, que correspondia
lar ou para contemplar a palavra de Deus. Por a uma aspiração antiga e satisfazia o pedido
exemplo, uma das figuras bíblicas que se apre- que o Papa Pio XII fizera aos bispos portugue-
senta para tema de meditação é a do apósto- ses, na visita ad limina, para que enviassem ao
lo Paulo, tanto em Jerusalém, quando foi deti- menos dois alunos de cada diocese a hospeda-
do no Templo, como em Cesareia, onde esteve rem-se no Colégio de Via Banco Santo Spirito,
preso até ser enviado para Roma. edifício magnífico do arquiteto Júlio Romano.
Paulo orientou todas as suas energias para Em 1975, foram enviados do Funchal dois
servir exclusivamente Jesus Cristo e o evange- jovens sacerdotes, Maurílio Jorge Quintal de
lho: “Ai de mim se não evangeliza” (1Cor 9, Gouveia e Teodoro de Faria, o primeiro para
17). Este apóstolo é caracterizado pelo seu estudar teologia e o segundo a Sagrada Escritu-
universalismo, tema importante para os par- ra, devendo, entretanto, estudar também teo-
ticipantes nas peregrinações que vivem numa logia, para obter a licenciatura e matricular-se
diocese onde se misturam povos e confissões no Instituto Bíblico. No ano seguinte, foram
religiosas, como, e.g., a Madeira, terra de tu- seguidos por Abel Augusto da Silva, que foi es-
rismo, onde se encontram visitantes que per- tudar história eclesiástica e arte cristã, e Arnal-
correm serras, vales, levadas e abismos, e que do Rufino da Silva, que se dedicou ao estuda
necessitam por vezes de auxílio, que entram da música sacra.
nas igrejas e participam nas festas, mesmo nas O bispo diocesano era então D. David de
religiosas. Sousa, ofm, também formado na Sagrada Es-
Nesta Diocese, temos de respirar universa- critura. Em 1962, a 11 de outubro, começou o
lidade e ecumenismo; como Paulo, é preciso Concílio Vaticano II, cuja preparação se inicia-
“fazer tudo a todos” (1Cor 9, 22). A vida do ra quando os quatro professores e educadores
apóstolo foi uma contínua luta contra as difi- do Seminário ainda estudavam em Roma e o
culdades: “perigos nos rios, perigos de bandi- P.e Teodoro em Jerusalém.
dos, perigos dos nacionais, perigo dos pagãos, A Ação Católica estava então florescente.
perigos na cidade, perigos no deserto, peri- As paróquias renovaram-se com o início dos
gos no mar, perigos nos falsos irmãos” (2Cor Cursos de Cristandade, com a presença e par-
11, 26ss.). Tudo isto sofreu o apóstolo porque ticipação assídua de leigos apostólicos, des-
“o amor de Cristo nos impele […] para que temidos na forma como apresentavam ex-
os que vivem não vivam para si mesmos, mas ternamente a sua fé. O desejo de saber mais
para aquele que morreu e ressuscitou por eles” teologia, Sagrada Escritura e também história
(2Cor 5, 14). da Igreja destes cristãos, alguns convertidos
B í blia ¬ 359

recentemente, levou os professores do Seminá-


rio a programar aulas semanais, geralmente ao
fim de semana, para estes leigos e para todos
os que as desejassem frequentar, e encheram
uma grande sala do Colégio de S.ta Teresinha,
das Irmãs Vitorianas. O interesse suscitado
pelos leigos foi um momento de grande rique-
za espiritual. O entusiasmo por conhecer me-
lhor a Bíblia, a palavra de Deus, levou as Irmãs
Vitorianas a pedir ao seu capelão, Teodoro de
Faria, para lhes ministrar um pequeno curso
de Sagrada Escritura, num tempo em que as
religiosas eram numerosas e até jovens, algu-
mas das quais se preparando para serem en-
viadas para Moçambique como missionárias.
A irmã encarregada da formação espiritual e
cultural destas religiosas organizou as aulas ao
Fig. 16 – Concílio Vaticano II, Roma, 1962 (arquivo particular).
domingo, após a eucaristia da manhã, havendo
dezenas de religiosas interessadas em melhor
conhecer a palavra de Deus. Quotidiano. Dizia-se, com certo humor, que “as
Nesta época, o Movimento dos Cursos de águas do Reno desaguavam no Tibre”, na cida-
Cristandade reunia muitos membros ativos e de de Roma.
apostólicos, formados por professores, médi- Foram tempos muito belos e de grande valor
cos, advogados e muitos operários que, entre para o futuro da igreja diocesana, num momen-
si, se tratavam por irmãos, como nas primiti- to em que o comunismo amordaçava e oprimia
vas comunidades cristãs. O interesse era muito grande parte dos países do Norte da Europa,
grande e o estudo fazia parte do chamado tripé confiando no triunfo do ateísmo. Os alunos do
(oração, ação e estudo), sendo o mais descura- Seminário Diocesano sentiam que a prepara-
do. Os temas sobre a Bíblia foram saudados e ção para o sacerdócio era feita com métodos
recebidos por todos como necessários e prio- novos, abertura dos espíritos, responsabilida-
ritários. Todas as semanas, numa sala junto à de pessoal, seriedade nos estudos, investigação
igreja do Colégio dos antigos Jesuítas, alugada científica, abertura à Igreja universal. Surgiu
pelos estudantes, os membros do secretariado então, o que é normal, uma certa inquietação
estudavam a Sagrada Escritura, descobrindo entre os sacerdotes e cónegos mais idosos, que
e agradecendo o tesouro que o Senhor Jesus diziam: “Então vai tudo mudar? Deixaremos de
lhes oferecia cada semana. vestir a batina quando andarmos pelas ruas?
Entretanto, chegavam as notícias do Concílio Esperaremos pelo que dirá o Concílio”.
Vaticano II, as questões levantadas, a abertura Durante quatro belos anos, ou seja, durante
de espírito e a simpatia do Papa João XXIII, o tempo que durou o Concílio, havia uma co-
bem como as diferenças entre os dois grupos municação contagiante do amor pela palavra
respeitantes à Europa Central e Sul do conti- de Deus aos alunos e leigos que assistiam aos
nente, com visões divergentes mas não antagó- diversos cursos de Sagrada Escritura. Tempos
nicas, que durante quatro anos seriam debati- diversos dos atuais, numa altura em que a tele-
das nas diversas sessões do Concílio e depois visão ainda era a preto e branco e a Internet era
comentadas entre nós com entusiasmo e aber- completamente desconhecida. Era o tempo ri-
tura de espírito – tanto mais que, normalmen- sonho da rádio, através da qual se transmitia o
te, os professores do Seminário seguiam as terço do Santíssimo Rosário, a missa e os coló-
notícias pela leitura de L’Osservatore Romano quios sobre a palavra de Deus.
360 ¬ B í blia

Cerca de duas décadas depois, encontra-


vam-se ainda na Diocese muitos dos antigos
militantes da Ação Católica e dos Cursos de
Cristandade, que, devido à nova situação cria-
da pelos partidos políticos, se encontravam à
espera de quem os reconhecesse como leigos
organizados. De facto, a Revolução dos Cra-
vos desorganizou os grandes movimentos,
que perderam os seus membros. A Juventude
Operária Católica, outrora tão forte e atraen-
te para os jovens, estava desfeita e desapare-
ceu em pouco tempo.
Surgiu então um novo movimento juvenil,
o Jovens Cristãos da Madeira (JCM), fun-
dado pelo bispo D. Francisco Santana, que
agregou muitos jovens, mas sem a organiza-
ção eficiente e disciplinada da Ação Católi-
ca. Com um novo assistente eclesiástico e ca-
rismático, mas muito doente, o P.e Felício, o
JCM congregou centenas de jovens que parti-
lhavam da espiritualidade de Taizé (França), Fig. 17 – Madeira, do Atlântico aos Confins da Terra, exposição
que visitaram algumas vezes. O JCM, enquan- comemorativa dos 500 anos da Diocese, projeto e organização de
Luiza e Francisco Clode de Sousa, Museu de Arte Sacra do Fun-
to teve bons líderes, conseguiu uma forte in- chal, 2014 e 2018.
fluência entre a juventude madeirense, de-
caindo depois, embora, no séc. xxi, conserve
ainda um pequeno número ativo, formado Estas semanas de estudo e oração não foram
por antigos membros. interrompidas até ao jubileu dos 500 anos da
As Semanas Bíblicas, organizadas pelas criação da Diocese pelo Papa Leão X, em
Irmãs Paulinas, vieram colmatar as deficiên- 1514. Neste ano, o tema foi de grande impor-
cias a nível dos cursos de Sagrada Escritura. tância para a Igreja: “Bíblia, evangelho da fa-
A Diocese refloresceu de novo com o servi- mília. Ser família, hoje, na Igreja e no mundo”.
ço bíblico ministrado nas diversas paróquias Através destes cursos, o livro da Sagrada Escri-
por estas irmãs. Recorde-se o entusiasmo tura entrou praticamente em todos os lares
e dedicação das irmãs Délia e Rosa. Entre- dos madeirenses, não como um ornamento
tanto, os padres capuchinhos iniciaram em ou objecto de arte que não se toca para não
Fátima semanas de estudo sobre a Sagrada estragar, mas como algo que é para uso quo-
Escritura, dedicadas às diversas dioceses por- tidiano, para uma leitura breve em família ou
tuguesas. Algumas religiosas e vários leigos para a meditação individual. Esta é a menta-
madeirenses também participaram, mas em lidade e a prática que é apresentada, embora
número muito reduzido. Felizmente, os pa- conheçamos as reticências que o nosso povo
dres capuchinhos decidiram vir ao Funchal tem em ler. Estes exercícios também ajudam
realizar esses mesmos cursos, embora tives- as pessoas a familiarizar-se com outros livros,
sem de ser mais reduzidos. Era no Convento opúsculos ou até músicas referentes à Bíblia,
de S.ta Clara que eles se desenrolavam, com à sua geografia e ao seu mundo. A história
grande recetividade dos cristãos madeiren- demonstra que, geralmente, se chega a Jesus
ses, que pediam sempre ao bispo diocesano passando pela Igreja.
para celebrar a eucaristia e, por vezes, tam- O jubileu dos 500 anos da criação da Dioce-
bém para expor um tema. se deve permitir-nos dizer, como o apóstolo
B ibliotecas ¬ 361

S. Paulo ao seu discípulo Tito: “Tu, porém, Bibliotecas


ensina o que está conforme com a sã dou-
trina [...] Sê tu mesmo um modelo de boas As primeiras bibliotecas de que temos notí-
obras em tudo, na pureza da doutrina, na cia na Madeira estão intimamente ligadas às
dignidade, na palavra sã e irrepreensível” (Tt instituições de ensino, estando estas, por sua
2, 6-8). vez, dependentes da religião e Igreja Católicas
e situadas em espaços como o da Sé, as gran-
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Milano, Mondadori, 2000; SCHAMA, S., A História dos Judeus, Lisboa, Círculo
de Leitores, 2014; SILVA, Fernando Augusto da, Subsídios para a História
da Diocese do Funchal, Funchal, Tip. O Jornal, 1946; Id., e MENESES, Carlos
Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; SMART,
J. D., The Interpretation of Scripture, Philadelphia, Westminster Press, 1961;
STENDAHL, K., The Scrolls and the New Testament, New York, Harpers, 1957;
VAUX, R. de, Ancient Israel. Its Life and Institutions, New York, McGraw Hill,
1961; VAZ, A. S., “Depois das antigas traduções da Bíblia”, Didaskalia, vol. xliv,
fasc. 1, 2014, pp. 57-103; WIKENHAUSER, A., New Testament Introduction,
New York, Herder and Herder, 1938.

Teodoro de Faria Fig. 1 – Livros em biblioteca (fotografia de Bernardes Franco, 2019).


362 ¬ B ibliotecas

a expressão desse domínio. Em 1759, por ordem Colégio dos Jesuítas (com ou sem os Jesuítas),
do Marquês de Pombal, são reformadas as or- do Seminário e dos conventos existentes assu-
dens religiosas e concretiza-se a expulsão dos Je- mido papéis determinantes nesse contexto. De
suítas, seguindo-se a confiscação dos seus bens, acordo com o Elucidário Madeirense, os acervos
depois integrados na Fazenda Régia. Nesta se- das bibliotecas (livrarias) dos conventos, extin-
quência de factos marcantes da era pombalina, tos por decreto de 28 de maio de 1834, foram
as escolas anexas às ordens religiosas e as que incorporados na Biblioteca Municipal do Fun-
seguiam a doutrina e o método jesuíticos tive- chal (BMF) em 1863.
ram, paulatinamente, de aderir ao ideário pom- A instituição do ensino superior ocorreu na
balino e iluminista. Refere a mesma autora que, Madeira no séc. xix, através da antiga Esco-
em 1772, ao criar um novo imposto – o Subsídio la Médico-Cirúrgica do Funchal, fundada em
Literário –, no reino e nas ilhas dos Açores e da 1816 (mas só oficialmente criada em 1836, ini-
Madeira, o Marquês de Pombal pretendia atin- ciando atividade no ano seguinte) e encerrada
gir o objetivo de anular o poder do ensino dos em 1910. Localizada no antigo Colégio dos Je-
Jesuítas e transferi-lo para a competência do Es- suítas, a sua biblioteca era rica, constituída por
tado. O imposto começa a ser cobrado em 1775, “mais de duas mil obras”, que foram depois
financiando as aulas de Ler, de Escrever e de transferidas para a BMF (COSTA et al., 1992,
Contar, de Gramática Latina, de Língua Grega, 21). O perfil do seu acervo diz respeito à ges-
de Retórica e de Filosofia, que, com o devir do tão hospitalar, anatomia, farmacologia, cirur-
tempo, são lecionadas na igreja de São João gia e mais assuntos relacionados com a saúde, a
Evangelista do Colégio do Funchal e, em 1789, medicina, as curandices e outros, tendo muitos
passam a acumular com as aulas do Seminário. destes livros sido oferecidos pelo Dr. Nathaniel
As cadeiras de Ler, de Escrever e de Contar são Lister, médico inglês.
também lecionadas em Santa Cruz, São Vicen- Os regimes liberal e republicano deram ên-
te, Machico, Porto Santo, Calheta, Campanário, fase à instrução escolar, mas, regra geral, privi-
Ribeira Brava e Ponta do Sol. As cadeiras men- legiaram o livro único, pelo que as bibliotecas
cionadas e lecionadas eram acompanhadas das escolares eram desnecessárias.
bibliografias adequadas, tendo as bibliotecas do Em 1819, Joseph Phelps, comerciante de ori-
gem britânica que se fixou na Madeira e cons-
truiu a firma vinícola Phelps Page & Co., de-
dicou-se, também, a promover a instrução dos
madeirenses, criando a Escola Lancasteriana,
com o apoio de sua mulher, Elisabeth Phelps.
A Ir. Mary Wilson, que chegou à ilha da Madeira
em 1881, como enfermeira de uma doente bri-
tânica, dedicou-se posteriormente à catequese
das crianças, aos doentes e à educação da juven-
tude, formando, nos finais do séc. xix e princí-
pios do séc. xx, várias escolas no Porto Santo,
no Arco de São Jorge, em Santana, no Santo da
Serra, em Machico e em Câmara de Lobos. Em
1838, o médico Robert Kalley dedicou-se ao en-
sino primário, atividade que manteve durante
os 10 anos seguintes. É presumível que estas es-
colas, cujo método de ensino não se identificava
com o método nacional, tivessem beneficiado
Fig. 2 – Biblioteca da sala do Cabido da Sé do Funchal, 1734 e
de pequenos fundos documentais para apoiar a
seguintes (arquivo particular). aprendizagem dos alunos.
B ibliotecas ¬ 363

correspondência entre o ensino, o sector em-


presarial e o funcionalismo público, em que a
linha de montagem não exigia inovação e criati-
vidade. Neste contexto, não fazia sentido o Esta-
do empenhar-se e investir nas bibliotecas escola-
res e voltadas para a cidadania, tanto mais que a
Fundação Calouste Gulbenkian desempenhava
o papel de Ministério da Cultura, e antes dela as
bibliotecas conventuais e dos seminários, como
já referido, cumpriam a função da promoção
do livro, da leitura e do conhecimento.
Com a instauração do regime democrático,
em 1974, e com a conquista da autonomia re-
gional, em 1976, o ensino e a aprendizagem
Fig. 3 – Sala de leitura do Arquivo Regional e Biblioteca Pública abrem-se a novas teorias e novos modelos já
da Madeira, Funchal (arquivo particular).
praticados na maioria dos países europeus e
noutros cantos do mundo. Refiram-se alguns
O Elucidário Madeirense refere a existência da momentos mais relevantes deste processo,
Biblioteca do Seminário Episcopal, cujo acer- como o novo quadro legislativo sobre o ensi-
vo era constituído por obras de Teologia, origi- no, assente na lei n.º 46/86 – Lei de Bases do
nárias na sua maior parte, a partir de 1788, do Sistema Educativo, em que a biblioteca esco-
então recém-extinto Colégio dos Jesuítas. lar passa a preencher um espaço central, com
valor, ocupando o segundo lugar no capítulo
dos recursos educativos. Outros diplomas se
Bibliotecas escolares lhe seguem, e, em 2005, a nova versão consoli-
As bibliotecas escolares do séc. xx foram o espe- dada, a lei n.º 49/2005, de 30 de agosto, man-
lho da realidade do ensino e da aprendizagem tém a mesma posição das bibliotecas escolares
no país. Numa escola que privilegiava a memó- como recursos educativos privilegiados, a exi-
ria, em que o professor omnipotente e enciclo- girem especial atenção. Associam-se-lhes o Ma-
pédico debitava as aulas e os alunos escreviam nifesto da Biblioteca Escolar, de 1999, atualizado
os apontamentos/palavras ditas pelo professor, sucessivamente, e as Directrizes para Bibliotecas
as bibliotecas escolares não faziam grande senti- Escolares, de 2006, documentos publicados pela
do, constituindo o livro único, os apontamentos IFLA/UNESCO, com o primeiro a definir a bi-
e as sebentas o acervo destas. E se nalgumas es- blioteca escolar como um recurso que fornece
colas existiam bibliotecas, estas eram o elo mais informação, permite a construção do conheci-
fraco da gestão escolar, uma vez que beneficia- mento e desenvolve nos alunos competências
vam de um espaço inadequado, ficando, regra que servirão para a aprendizagem ao longo da
geral, ancoradas num vão de escada ou numa vida e da cidadania. Para além destes, existem
sala imprópria e exígua, sem pessoal adequado; diversos documentos vinculativos internacio-
raramente possuíam máquina fotocopiadora (os nais e nacionais, bem como inúmeras institui-
alunos utilizavam a máquina fotocopiadora de ções, que se dedicam à investigação e ao estudo
outros serviços) e o professor responsável pela da nova biblioteca escolar, considerando-a im-
biblioteca era, regra geral, um professor que portante para que crianças, jovens e adolescen-
sofria de problemas de saúde (não podia ouvir tes desenvolvam o gosto pela leitura e a ima-
ruídos nem levantar-se, porque as maleitas da ginação. Em Portugal, a Rede de Bibliotecas
doença não o permitiam). Aos alunos, era-lhes Escolares (RBE), lançada em 1996, e o Plano
exigido somente que reproduzissem as ideias, Nacional de Leitura são, igualmente, projetos
os conceitos e o saber do professor. Existia uma que devem ser considerados relevantes.
364 ¬ B ibliotecas

Com a introdução destas novas medidas, a De entre as inúmeras bibliotecas escolares da


realidade do ensino altera-se radicalmente: o Região (veja-se o portal do Arquivo Regional e
professor passa a ser considerado um agente Biblioteca Pública da Madeira (ABM), o Órgão
educativo com novas competências (orienta- Coordenador do Programa da RBE na RAM, e
dor, professor, investigador, monitor) e o aluno o portal da Secretaria Regional da Educação
um agente ativo que, mantendo a função me- e Recursos Humanos (SRERH)), salientam-se
mória, procura também outras competências duas, pré e pós-autonomia: a do então Liceu
(aprender, comunicar, conhecer, partilhar, ser), Jaime Moniz e a da Escola Industrial e Comer-
recorrendo, para o efeito, a informação na bi- cial do Funchal.
blioteca, nas mediatecas escolares e nas bases de
dados que correm nas redes virtuais. As biblio- Biblioteca da Escola Secundária
tecas escolares passam, assim, a ser o coração Jaime Moniz
da escola, um “direito irrenunciável” (ITURBE, O antigo Liceu do Funchal data originalmente
1998, 11), sendo através delas que a informação de 12 de setembro de 1837, tendo dado origem,
de apoio ao ensino corre transversalmente na em 1919, ao Liceu Jaime Moniz. Mudou diver-
escola. A literatura e os projetos curriculares e sas vezes de instalações, mas o edifício onde
educativos valorizam o papel do professor bi- existia no começo do séc. xxi foi inaugurado
bliotecário e do bibliotecário escolar, que, em a 28 de maio de 1946 e compreendia a biblio-
conjunto, orientam o aluno no processo de pes- teca escolar, sendo, portanto, uma construção
quisa da informação e na metodologia a apli- do Estado Novo. Em 1980, passa a designar-se
car nos seus trabalhos individuais ou em grupo, Escola Secundária Jaime Moniz. A biblioteca
anulando o “aluno Wikipédia”. A informação e da Escola Jaime Moniz situa-se no 3.º andar da
o conhecimento passam a ser as máquinas inor- Escola Secundária Jaime Moniz. Foi herdeira
gânicas e imateriais que vieram substituir as má- do espólio do Liceu do Funchal, que incluía
quinas da linha de montagem. Nasce o aluno e o livro antigo e deu origem ao fundo antigo,
o trabalhador do conhecimento. Tal como refe- composto por um total de 632 monografias, de
re Jean Piaget, o conhecimento não é estático, que se destaca uma obra de Ovídio datada de
é construído através de um processo que está 1725 e intitulada Metamorphoseon Libri XV: Ex-
sempre em devir. Lev Vygotsky defende que os purgati. O acervo da biblioteca do antigo Liceu
alunos constroem o conhecimento individual- constitui um espólio que caracterizou o ensino
mente e em simultâneo com os outros. A educa- no arquipélago e as interações sociais e cultu-
ção deixa de ser monocultural e linear e privile- rais relevantes durante os sécs. xix e xx, tendo
gia a educação intercultural. Jürgen Habermas sido, por razões de conservação, colocado à
propõe a razão crítica, argumentativa, reflexiva, guarda do ABM, através de um protocolo cele-
prática e teórica, em lugar da razão acrítica e brado entre as duas instituições.
estática. Esta literatura e legislação simbolizam Com o advento das tecnologias da informa-
uma visão pró-ativa e regeneradora para a bi- ção e comunicação (TIC), a biblioteca moder-
blioteca escolar, que colabora na nova aprendi- nizou-se, aderindo ao programa PORBASE
zagem, centrada no aluno, sendo para ele que (Base Nacional de Dados Bibliográficos) e
tudo e todos convergem. beneficiando das redes computacionais para
A Região Autónoma da Madeira (RAM) for- acesso à Internet. Em 2015, encontravam-se
mou os seus assistentes especialistas no âmbito registados 37.867 títulos na base de dados, e
das bibliotecas, e em 2006/2007 foi criada na estavam referenciados 55.478 nos livros de re-
UMa a pós-graduação em Ciências Documen- gistos da biblioteca, havendo ainda espólio por
tais (Arquivo, Biblioteca e Documentação), indexar. A biblioteca integrava também uma
com o intuito de formar o número suficiente hemeroteca e uma coleção de jornais. Conti-
de bibliotecários para garantir a modernização nuamente enriquecida com a doação de livros
das suas bibliotecas. por parte dos professores, destacavam-se as
B ibliotecas ¬ 365

a sua arquitetura obedece ao ideário político


e educativo desse período. A 11 de janeiro de
1979, o Governo Regional da Madeira (GRM)
decreta que a escola deverá ter como patrono
uma figura ilustre da região, passando a cha-
mar-se Escola Secundária de Francisco Franco,
em homenagem ao escultor madeirense.
Construída igualmente em 1958, a ampla bi-
blioteca desta escola tinha, em 2015, um acer-
vo de cerca de 12.000 unidades documentais,
700 revistas e 600 unidades de material não
livro (MNL) (DVD, CD áudio e CD-ROM),
cujo perfil estava virado para o apoio ao ensino
e à aprendizagem. A Sala Dr. Vasco Mendes,
Fig. 4 – Biblioteca da Escola Secundária Jaime Moniz, Funchal criada em homenagem à memória desse anti-
(arquivo particular). go professor da escola, valorizou o acervo e as
atividades letivas: as obras aqui expostas cons-
doações efetuadas pelos familiares da Dr.ª Mar- tituem o espólio do antigo docente e da sua
garina Morna e do Dr. Jorge Pestana, antigos família, que, através da filha, Maria da Luz S.
professores da escola, que contribuíram para Pereira Mendes, doou este acervo à biblioteca.
o enriquecimento da biblioteca. Quer o fundo A escola não se alheou do paradigma infor-
antigo, quer o fundo geral podem ser consulta- mático, que favoreceu naturalmente a bibliote-
dos no site do ABM. ca, permitindo a coabitação dos dois ambien-
O universo de utilizadores da biblioteca é tes: o clássico e o neomoderno. Contava com
constituído por alunos, professores e funcioná- uma ampla sala de leitura, uma videoteca, uma
rios da escola, investigadores e alunos do ensi- mediateca, uma ludoteca e um polo cultural,
no secundário em geral, que têm ao seu dispor onde se realizavam diversas atividades, dentre
vários serviços. Assim, nas primeiras décs. do as quais se destacavam o espaço de leitura, re-
séc. xxi, para além da consulta e do empréstimo citais de poesia, debates e encontros culturais.
de livros, a biblioteca facultava apoio pedagógi- Aqui, os professores podiam também lecionar
co aos alunos na realização de trabalhos de pes- as suas aulas, uma vez que se tratava de um es-
quisa, promovia concursos nos âmbitos da lei- paço integrado na biblioteca, beneficiando da
tura e da escrita, com a colaboração do ABM e utilização de fontes impressas e eletrónicas.
de outras entidades, e organizava conferências. De acordo com as normas gerais de utiliza-
Promovia ainda outros momentos de aprendi- ção, os alunos podiam realizar as seguintes ati-
zagem, com a colaboração de professores e alu- vidades: pesquisar em documento livro (papel)
nos, sobre conteúdos programáticos e realizava ou documento virtual (Internet); estudar; fo-
exposições variadas e outras atividades ligadas tocopiar documentos consultados; requisitar
ao quotidiano escolar. Os recursos humanos livros para leitura domiciliária; ler a imprensa
eram todos qualificados e a coordenação da bi- diária regional; consultar revistas de especiali-
blioteca era da responsabilidade de professores. dade; digitalizar documentos; visionar filmes e
jogar. Para o tratamento técnico da informa-
Biblioteca da Escola Secundária
ção, a Classificação Decimal Universal (CDU)
de Francisco Franco
era o único instrumento utilizado para o siste-
A Escola Secundária de Francisco Franco foi ma de cotagem, permitindo distribuir o acervo
construída em 1958, sendo então denomina- em regime misto no acesso às estantes.
da Escola Industrial e Comercial do Funchal. Esta era a única biblioteca escolar que, em
É uma construção do Estado Novo, pelo que 2015, tinha no seu quadro de pessoal não
366 ¬ B ibliotecas

docente um técnico superior com formação Baú de Leitura


pós-graduada na área das ciências documentais, O Baú de Leitura foi um projeto escolar im-
três assistentes técnicos com formação no âmbi- plementado na RAM em 2001, cujo objetivo
to de biblioteca e documentação, e dois profes- principal era promover hábitos de leitura e
sores coordenadores. A informação corria trans- de escrita junto dos alunos de todos os níveis
versalmente na escola através do seu site oficial. de ensino. Cada escola possuía um baú de li-
vros que, mensalmente, ia de escola em escola,
Restantes bibliotecas escolares:
sendo alvo de atividades de animação da lei-
pós-autonomia
tura durante a permanência em cada escola.
Segundo informação proveniente da Secretaria Juntamente com os livros, um kit com propos-
Regional de Educação (SER), entre 2012 e 2013 tas lúdicas concebido por cada dinamizador
existiam na RAM os seguintes totais de estabele- permitia a partilha de atividades; este kit tinha
cimentos de ensino, distribuídos pelos níveis de como missão implementar o gosto pela leitura
escolaridade em vigor: no ensino público, 142, nas crianças e nos jovens e promover o inter-
e no ensino privado, 65. A maioria destes esta- câmbio entre bibliotecas escolares.
belecimentos de ensino foi construída depois Todos os estabelecimentos de ensino público
de 1976. Sobre estes, pode afirmar-se o seguin- e privado do pré-escolar, do 1.º, 2.º, 3.º ciclos e
te, para o período indicado: 1) Todas as escolas do secundário podiam beneficiar deste proje-
do ensino público dos 2.º e 3.º ciclos e secun- to, razão pela qual algumas escolas do pré-es-
dárias, sem exceção, beneficiavam de bibliote- colar, os infantários, as creches e as EB1 não
cas escolares; 2) Todas as escolas do ensino bá- possuíam bibliotecas escolares tecnicamente
sico do 1.º ciclo, as creches, os estabelecimentos organizadas. Contudo, o projeto podia ser di-
de ensino pré-escolar e os infantários possuíam namizado pelos animadores socioculturais de
uma sala (se não no próprio espaço, pelo menos biblioteca, professores, educadores de infân-
em espaço anexo), que dava origem à ludoteca, cia e técnicos bibliotecários, que desenvolviam
com materiais diversos que contribuíam para diversas atividades de natureza lúdica relacio-
desenvolver e compreender a leitura, a imagi- nadas com o livro, das quais se mencionam
nação e o desenvolvimento de competências as mais frequentes: tertúlias literárias, ativida-
cognitivas das crianças e dos jovens, com ativi- des de escrita criativa, investigação temática,
dades que iam desde a promoção da leitura à
realização de trabalhos lúdicos e manuais, no-
meadamente palestras com o apoio de um ani-
mador de biblioteca, que assegurava entre duas
a três horas de atividades semanais com todas as
turmas da escola. Este cenário era semelhante
ao ensino particular. No entanto, não se trata-
va, tecnicamente, de bibliotecas, dado que não
estavam organizadas de acordo com os princí-
pios das ciências documentais e tecnológicas; 3)
Os estabelecimentos de ensino beneficiavam de
rede computacional, que se estendia à bibliote-
ca escolar ou aos espaços anexos; 4) As biblio-
tecas escolares, tecnicamente assumidas como
bibliotecas, beneficiavam de pessoal qualificado
no domínio das ciências documentais; eram ge-
ridas por uma equipa de professores coordena-
dores, que faziam interagir o programa da bi- Fig. 5 – Logótipo do projeto Baú de Leitura,
blioteca com os curricula. Secretaria Regional da Educação, 2001.
B ibliotecas ¬ 367

dramatizações, gincanas, concursos, visitas de lançando sementes que cresceram nas crianças
estudo, intercâmbios culturais, atividades de que tiveram acesso às bibliotecas O Jardim e às
expressão artística e plástica, visionamento de suas atividades informativa e formativa. Para
filmes, audição de histórias, encontro de escri- Margarida Silva, a leitura promovia o pensa-
tores e comemorações de efemérides. mento, a reflexão, o espírito crítico e a metacog-
A sede de coordenação do projeto situava- nição, princípios orientadores da nova escola,
se na Escola Básica e Secundária da Calheta, na qual as bibliotecas deveriam funcionar como
sob a tutela da SREHR. No caso do 1.º ciclo/ autênticos laboratórios dessa aprendizagem.
PE, o Baú de Leitura era coordenado por um Criada em 1979, a RBIJ é resultado da ausência
coordenador geral e pelos coordenadores con- das bibliotecas escolares, tanto mais que, à data,
celhios. Ao nível das escolas do 2.º e 3.º ciclos e a RAM não beneficiava de uma rede suficiente
do secundário, o projeto era coordenado por de infraestrutura escolar. Assim, as bibliotecas
duas coordenadoras gerais. infantojuvenis O Jardim foram bibliotecas esco-
lares criadas fora do espaço físico da escola, que
Bibliotecas infantojuvenis. O Jardim se mantiveram ao longo de cerca de 16 anos.
e a Biblioteca de Educação Permanente Existiu um projeto para a criação de uma bi-
A Árvore blioteca infantojuvenil O Jardim na ilha de Je-
A 5 de maio de 1979, foi inaugurada no con- rsey, mas que nunca foi concretizado. A RBIJ
celho do Funchal a biblioteca infantil, sendo teve o seu termo entre 1993 e 1995, tendo o
esta a primeira biblioteca da Rede de Bibliote- seu acervo sido incorporado nas bibliotecas
cas Infantojuvenis (RBIJ) O Jardim, designação das escolas então construídas. Na fig. 6 apre-
que a passa a identificar a partir de 1982. Já a 31 senta-se uma tabela com as bibliotecas que
de março do mesmo ano havia sido inaugura- constituíram a rede infantojuvenil O Jardim.
do um atelier de leitura infantil e lançada uma As bibliotecas da rede O Jardim tinham uma
experiência museológica de campo que esteve agenda de formação exigente e planificada, que
na génese da referida rede de bibliotecas. Maria envolvia docentes do ensino primário, estagiá-
Margarida Macedo Silva foi a fundadora e di- rios(as) do Magistério Primário, educadoras de
retora deste projeto. Profissional competente, infância e de outros níveis de escolaridade, bem
inovadora e criativa, construiu uma obra muito como discentes da Escola de Magistério Primá-
avançada para uma realidade ainda atrasada do rio. Apresentam-se alguns exemplos das agen-
ponto de vista dos hábitos de leitura e culturais, das de trabalho da RBIJ O Jardim e da Biblioteca

Localização Local Data de criação

Qt. das Angústias, R. Imperatriz D. Amélia, 21 5 maio 1979


Funchal Hospital Cruz de Carvalho
S.d.
(a biblioteca funcionava na sala de pediatria)
Porto Santo Casa do Povo 19 nov. 1979
São Martinho Escola Básica de São Martinho 1 ago. 1980
Curaçau Curaçau (Antilhas Holandesas) 1 out. 1980
Campanário Casa do Povo 31 nov. 1980
Santo António Posto Clínico 15 nov. 1980
Ponta do Pargo - 30 ago. 1982
Ribeira Brava Câmara Municipal da Ribeira Brava 5 jan. 1983
Gaula Sala da igreja de N.a S.ra da Luz 1986

Fig. 6 – Tabela das bibliotecas que constituíram O Jardim (SILVA, 1999; FREITAS, 2015).
368 ¬ B ibliotecas

A Árvore, de que falaremos adiante: criação de aprendizagem dos futuros professores do en-
clubes de leitura, dedicados a escritores portu- sino primário. Totalizava 4.193 unidades do-
gueses; momentos de poesia e musicais; encon- cumentais, de acordo com o livro de regis-
tros com a Região, seguidos de debate; criação tos, sendo o pedagogo Jean Piaget o autor de
do projeto Fazendo Artes na Alfabetização, com eleição.
recurso à linguagem dos cartazes, à confeção de
grelhas para enriquecimento de vocabulário, à
utilização da “roda de palavras” e do teatro de
Biblioteca da Escola Superior de Educação
bonecas, passando pela construção e organiza- A Escola Superior de Educação, criada a 12 de
ção de ficheiros de alfabetização e ficheiros de novembro de 1985, funcionou no antigo Colé-
leitores; iniciação de leitores na investigação li- gio dos Jesuítas, tendo a sua biblioteca herda-
terária e jornalística; criação de uma oficina de do o acervo da biblioteca da antiga Escola do
artesanato e de bonecos e realização de teatro Magistério Primário, que totalizou 4.175 unida-
de mesa para conhecer Gil Vicente; exposições; des documentais, de acordo com o livro de re-
e a criação do Museu do Livro Escolar, passan- gisto. A sua extinção ocorreu em 1989, através
do por debates com autores madeirenses. No do dec.-lei n.º 391/89, de 9 de novembro, e o
que diz respeito à educação permanente, refere seu acervo foi integrado na Biblioteca da UMa.
Margarida Silva que “os meses de férias foram
os mais produtivos, e estamos certos de que
preenchendo tempos livres, sob este aspeto in- Biblioteca da Universidade da Madeira
formal, abrimos pistas à juventude madeirense A Biblioteca da Universidade da Madeira
para uma Educação Permanente” (SILVA, 1999, (UMa) foi fundada aquando da criação da
123). As atividades eram executadas com a par- mesma Universidade, em 1988, pelo dec.-lei
ticipação dos bibliotecários como animadores, n.º 319-A, de 13 de setembro desse ano. Cor-
trabalhando em grupo. respondia a um espaço físico lacónico cujo
Porém, a RBIJ O Jardim tornou-se insufi- acervo era constituído pelos acervos das esco-
ciente para os utentes de uma faixa etária su- las que estiveram na génese da Universidade: o
perior, pelo que em 1982 é criada a Biblioteca da Escola do Magistério Primário (com 4.193
de Educação Permanente A Árvore, que fun- unidades documentais), o da Escola Superior
cionou paredes meias com O Jardim de Santo de Educação (com 4.175) e o das extensões
António, numa linha interdisciplinar e de par- universitárias (cujo acervo totalizava 4.020 uni-
tilha entre a escola e a comunidade, como re- dades). O acervo era orientado para os âmbi-
fere Margarida Silva: “Se ‘O Jardim’ Biblioteca tos científicos das Ciências da Educação e das
Infantil é um complemento da Escola (não o Políticas de Ensino e da Aprendizagem, num
seu substituto), a ‘A Árvore’, Centro de Edu- total de cerca de 12.378 unidades documen-
cação Permanente, não substitui os cursos de tais, e encontrava-se verdadeiramente desatua-
alfabetização, apenas constitui uma forte mo- lizado e empobrecido face às novas teorias que
tivação fazendo a ligação Escola-Comunidade” emergiam nos referidos domínios científicos,
(Id., Ibid., 37-38). A biblioteca A Árvore seguiu não satisfazendo as necessidades informacio-
os conceitos da UNESCO no que diz respeito nais dos cursos que iam sendo desenhados e
à Educação Permanente, depois designada por consolidados na nova estrutura de ensino su-
“educação ao longo da vida”. perior. Além disso, os recursos humanos afetos
à biblioteca eram reduzidos, com horários des-
contínuos, desadaptados aos diplomas laborais
Biblioteca da Escola do Magistério Primário
em vigor e destituídos de qualificações, carac-
Criada em 1943, a Biblioteca da Escola do terísticas que deram origem a uma biblioteca
Magistério Primário era constituída por um doméstica, empírica, personalizada e estagna-
acervo cujo perfil convergia para o ensino e da cientificamente.
B ibliotecas ¬ 369

Em 1992-1993, ano em que a Biblioteca da Arquivo. Com o lema: “Informar para formar
UMa integrou recursos humanos qualifica- rumo à cognição, à criação do conhecimento”,
dos, surgiu um novo lema, baseado na máxima a entrada no séc. xxi conduziu à criação de
“Transformar tudo e todos”. Formar e recon- uma biblioteca verdadeiramente científica, em
verter recursos humanos, atualizar o acervo, que os acervos (documental e digital) se foram
disponibilizá-lo em regime de livre acesso e construindo em interação com os professores
tratá-lo, em termos técnicos e informáticos, de e investigadores da academia, relação que re-
acordo com normas internacionais que permi- presentou o ícone de uma nova cultura orga-
tissem a transferência da informação sem obs- nizacional e informacional, onde todos par-
táculos – o que culminou com a construção do ticipavam e assumiam a responsabilidade da
catálogo informatizado, através do programa adequação dos acervos aos curricula lecionados
Mini Micro CDS/ISIS (PORBASE) –, aceder à na UMa e ao ideal europeu, razão pela qual
Internet (em 1993), desenvolver as figuras do se lhe associou o acervo do Centro de Docu-
empréstimo domiciliário e do EIB (Emprésti- mentação Europeia (CDE). A reestruturação
mo Inter-Bibliotecas, nacional e internacional do lema reforçou a implementação de uma ati-
– foi aberto um canal com The British Library) tude informacional orientada para a academia
e cooperar com a Biblioteca Nacional de Por- e exógena a ela, i.e., tanto para o utilizador in-
tugal (BNP), com vista a alimentar o catálogo terno, como para o externo.
bibliográfico nacional (PORBASE) e integrá- Em 2014, o acervo documental, em supor-
-lo no universo dos seus cooperantes, foram os te papel, totalizava 121.216 unidades docu-
objetivos que alimentaram a nova visão, con- mentais, distribuído pelas seguintes coleções:
cretizados com sucesso. A transformação foi 59.000 monografias; 27.842 fascículos de pu-
acompanhada pelo Grupo de Docentes para a blicações periódicas; 6612 MNL (cassetes,
Biblioteca, e esta recebeu a designação de Cen- disquetes, CD-ROM e DVD); 3822 trabalhos
tro de Documentação e Informação. académicos (dissertações de mestrado e teses
A partir de setembro de 1997, quando a Bi- de doutoramento); 6552 monografias CDE;
blioteca da UMa beneficiou de um espaço físi- 16.038 publicações periódicas CDE e 1350
co mais adequado no edifício universitário do MNL CDE – total adquirido por via da com-
Campus da Penteada, ao desenvolvimento cien- pra e raramente por via da oferta; e a coleção
tífico, técnico e cultural que contribuiu para o digital, que continha milhares de documentos
inevitável progresso da tríade ensino/apren- digitais de carácter científico.
dizagem/investigação correspondeu um novo Os utilizadores da biblioteca eram constituí-
lema: “Integrar e flexibilizar tudo e todos”. dos maioritariamente pelos elementos da aca-
Atualizar as metodologias documental e infor- demia, concretamente pelos utilizadores in-
mática, modernizar a sala de leitura, dotando-a ternos: alunos, professores, investigadores e
de rede local e de computadores que permitis- funcionários. Estimava-se em cerca de 3000 os
sem ao utilizador realizar as suas pesquisas, agi- utilizadores inscritos na unidade de biblioteca,
lizar processos documentais e assegurar uma número que correspondia à população da aca-
abordagem mais flexível com o utilizador inter- demia. Simultaneamente, a biblioteca estava
no e a abertura à sociedade civil foram metas aberta a utilizadores externos, distribuídos es-
atingidas com êxito. sencialmente por investigadores, mestrandos,
A biblioteca assumiu várias designações, em doutorandos e população em geral, que pro-
conformidade com as alterações dos seus esta- curava neste sector informação científica, em
tutos: Centro de Documentação e Informação, particular a digital e o serviço de EIB, para de-
em 1993; Serviços de Documentação e Infor- senvolver os seus trabalhos de investigação.
mação, em 1996; Sector de Documentação e Em 2013, a Biblioteca da UMa contava com
Arquivo, Unidade de Documentação Arquivo, 11 profissionais qualificados no âmbito das
em 2008; e, em 2013, Unidade de Biblioteca e ciências documentais: um doutorado neste
370 ¬ B ibliotecas

âmbito; um mestre no âmbito da gestão do assente em princípios que privilegiam a divul-


marketing; um técnico superior bibliotecário; gação do conhecimento científico produzido
três assistentes especialistas qualificados, com nas universidades, à escala global, e através da
o curso de biblioteca, arquivo e documenta- Internet, de acordo com o movimento inter-
ção; dois assistentes administrativos; e três as- nacional conhecido por Open Acess Initiati-
sistentes operacionais. O apoio informático ve (OAI), ou Acesso Livre ao Conhecimento
era fornecido pelos serviços informáticos da (AL), ou Open Access (OA), que se concreti-
UMa. Nos anos anteriores, diversos alunos ha- za na disponibilização livre na Internet de có-
viam tido funções na biblioteca, tendo dois pias gratuitas da produção cientifica avaliada
deles, da área da engenharia informática, fica- por pares (peer-reviewed), bem como de relató-
do nos quadros de pessoal. rios técnicos, dissertações de mestrado, teses
A adesão às bases de dados científicas, tais de doutoramento e outros documentos de
como a Web of Knowledge, ocorreu em 2002; trabalho. Em síntese, os documentos existen-
à Biblioteca do Conhecimento Online (B-On), tes no DigitUMa tornaram-se passiveis de ser
que contém cerca de 17.500 títulos de publica- pesquisados e consultados a nível nacional no
ções periódicas de reconhecido mérito científi- RCAAP e a nível europeu no OpenAIRE. Deste
co internacional, em 2006; à Plataforma DeGóis modo, a europeização/internacionalização/
e às bases de dados científicas SPORTDiscus e webização da UMa foi afirmada à escala global,
JSTOR, em 2009. A Biblioteca aderiu ao proje- através do depósito dos conteúdos científicos
to de acesso aberto comunitário (Digital Reposi- produzidos pelos professores/investigadores,
tory Infrastructure Vision for European Resear- discentes e funcionários da UMa.
ch (DRIVER), depois OpenAIRE) também em Até 2006, os recursos documentais foram tec-
2009, com o Repositório Institucional da UMa nicamente tratados no ambiente PORBASE 5,
(designado DigitUMa), em maio de 2010; ao adquirido à BNP. Este software tornou-se inade-
Repositório Científico de Acesso Aberto de Por- quado, uma vez que não era interoperável com
tugal (RCAAP), também em 2010; e o acesso à os softwares da UMa, atrasando as mais diver-
eLibraryUSA, em 2013. Os diversos links dire- sas exigências qualitativas da gestão organiza-
cionados para os catálogos e bases de dados na- cional da informação. Nesse ano, a Biblioteca
cionais e internacionais eram as mais proemi- passou a beneficiar de uma plataforma infor-
nentes bases de dados do acervo digital. mática integrada, interoperativa e escalável,
Em maio de 2010, o DigitUMa foi integra- adquirida com o apoio de fundos comunitá-
do no RCAAP, sustentado pelos princípios do rios, expressão máxima da sua webização. Dois
Open Access Initiative, contando com cente- softwares constituíram a referida plataforma: o
nas de milhares de documentos científicos (di- Aleph, responsável pela gestão integrada da
gitais) produzidos nas academias portuguesas. documentação e que interage com os diversos
Constituído pelos repositórios ou bibliotecas interfaces existentes na academia, deu origem
digitais das universidades públicas portugue- ao catálogo informatizado e integrado, conhe-
sas, e na qualidade de repositório nacional, o cido por BibUMa. O segundo software, designa-
RCAAP seguiu as diretrizes técnicas do proje- do por Digitool, foi o responsável pela gestão
to DRIVER, depois assumido por OpenAIRE, de conteúdos académicos ou científicos, tendo
repositório europeu fundado pela Comissão desenvolvido o DigitUMa. Em maio de 2010, o
Europeia que tem como principal objetivo a Digitool foi substituído pelo software DSPACE,
reunião num só acesso livre de toda a produ- em regime de open source. Os softwares utilizados
ção científica europeia, alimentada pelos re- são idênticos aos das bibliotecas universitárias
positórios nacionais e/ou institucionais. O pa- portuguesas e de inúmeras bibliotecas univer-
radigma clássico de comunicar a investigação, sitárias internacionais, permitindo a adesão da
um modelo contraditório, moroso, caro e in- Biblioteca da UMa ao grupo USE.pt, grupo no
dividualista, deu origem a outro paradigma, qual as bibliotecas universitárias portuguesas
B ibliotecas ¬ 371

têm assento. Em 2015, a FCCN/FCT (Funda- pelos utilizadores na Sala de Leitura desen-
ção para a Computação Científica Nacional, da volveu a interação entre as fontes eletrónicas
Fundação para a Ciência e a Tecnologia) era e as fontes impressas. Podemos concluir que a
a fundação portuguesa que reunia as biblio- Unidade de Biblioteca estava em condições de
tecas portuguesas, entre as quais a Biblioteca acompanhar o progresso científico promovi-
da UMa, concretizando projetos avançados no do na UMa e de atuar como espaço transversal
âmbito das TIC, da política do OAI em 2002 e de informação científica, técnica e cultural na
de programas financeiros europeus, entre ou- academia, sendo um dos epicentros da Univer-
tros, e projetando as bibliotecas universitárias sidade e uma biblioteca científica na RAM. Era
portuguesas à escala global. Enquanto a POR- igualmente uma porta aberta para o exterior
BASE, sediada na BNP, projetou, em 1993, a e para a sociedade científica. Essa era a con-
biblioteca para Portugal, o OAI, em 2002, e a tribuição da Biblioteca da UMa para a RAM e
FCCN/FCT e a USE.pt, em 2013, projetaram- para a sociedade de economias de informação
-na para o mundo webizado. e do conhecimento, sustentadas pelos funda-
A Biblioteca oferecia os seguintes serviços: téc- mentos filosóficos da razão comunicativa, ar-
nicos, digital (gestão das bases de dados) e de gumentativa e crítica de Jürgen Habermas.
referência (incluindo a gestão do catalogo, o
atendimento, a sala de leitura, os empréstimos,
o marketing documental – que compreendia a
Biblioteca do Centro de Estudos
formação de utilizadores nas unidades curri-
de História do Atlântico
culares e na própria Biblioteca, uma formação As instalações do Centro de Estudos de His-
muito solicitada pelos docentes, uma vez que in- tória do Atlântico (CEHA), situadas na R. das
cide no Processo de Pesquisa de Informação no Mercês, no Funchal, desde 1 de outubro de
catálogo e nas bases de dados mais relevantes; 2009, permitiram oferecer serviços à popula-
visitas de estudo de alunos das mais diversas es- ção madeirense, bem como aos estudiosos na-
colas da RAM e de grupos de cidadãos; a rea- cionais e estrangeiros que visitam este Centro.
lização de um workshop anual; lançamentos de A biblioteca do CEHA tem fundos documen-
livros; diversos seminários; e agenda cultural). tais próprios, que se formaram através do in-
Os empréstimos (domiciliário, permanente tercâmbio com diversas instituições. Em 2013,
e interbibliotecas) eram realizados pelo ser- contava com um total de 1121 livros e 111 pu-
viço de referência, juntamente com o serviço blicações periódicas, enquanto a biblioteca de
digital. Todos os documentos podiam ser ob- Alberto Vieira, fundo documental doado ao
jeto de empréstimo, com exceção das publica- Centro em 2010, registava um total de 4846 li-
ções periódicas e das obras de referência, po- vros e 317 publicações periódicas.
dendo também o utilizador externo beneficiar A biblioteca e o fundo documental de Alber-
do empréstimo domiciliário. Os produtos que to Vieira contemplavam bibliografia especiali-
a Biblioteca disponibilizava eram os seguintes: zada sobre a história da Madeira e demais ilhas
BibUMa, DigitUMa, B-On, Web of Knowled- do mundo, com especial destaque para o espa-
ge, RCAAP, OpenAire, a eLibraryUSA, ColCat ço Atlântico (Madeira, Açores, Canárias, Cabo
(Catálogo Coletivo, que permite a pesquisa in- Verde, São Tomé e Santa Catarina), com fun-
tegrada), PORBASE, Facebook e Webpage, que dos especiais, em diversas línguas, sobre a his-
ofereciam aos membros da academia inúmera tória da escravatura, da ciência e técnica, da
informação científica, técnica e cultural. autonomia, do açúcar e do vinho.
Se em 1992-1993, a Biblioteca beneficiou da Em 2015, previa-se que a biblioteca do
ligação à rede computacional, que permitiu o CEHA não tardasse a ficar totalmente disponí-
acesso à Internet; em 2006, a rede sem fios ex- vel em formato digital; parte do acervo de his-
pandiu-se na UMa, em particular na Biblioteca. tória da Madeira já se encontrava disponível.
A fácil usabilidade dos computadores portáteis O CEHA disponibilizava ainda um conjunto de
372 ¬ B ibliotecas

publicações para empréstimo domiciliário, no Documentação, vertente de Biblioteconomia,


total de 653 títulos. O acesso ao catálogo fazia- e um funcionário do Conservatório, que zelava
-se através do ABM. pela abertura do espaço.

Biblioteca do Conservatório Biblioteca da Direção de Serviços de


– Escola das Artes Eng.º Luiz Peter Clode Educação Artística e Multimédia (DSEAM)
A biblioteca do Conservatório – Escola das Criada em setembro de 2004, a biblioteca da
Artes Eng.º Luiz Peter Clode localiza-se no Direção de Serviços de Educação Artística e
1.º andar do edifício do Conservatório. A ava- Multimédia (DSEAM) tinha um total de acer-
liar pelo registo no livro de tombo, o livro vo em papel de cerca de 22.000 documentos,
mais antigo nela depositado datava de maio de dos quais aproximadamente 18.500 já estavam,
1957, embora se encontrassem diversos exem- em 2015, catalogados em Catwin e disponibili-
plares integrados com datas anteriores, sem zados na rede PORBASE (cooperante efetivo)
que se soubesse exatamente quando. Presume- e no seu site.
-se, assim, que a Biblioteca foi criada por volta Com aproximadamente 250 utilizadores re-
de 1957, tendo tido o primeiro funcionário gistados, os principais utentes eram os profes-
com a categoria de bibliotecário/catalogador sores, educadores, investigadores e colaborado-
em 1978. res da própria DSEAM e alunos universitários.
Em 2015, esta biblioteca não dispunha de Os serviços que oferecia à comunidade eram:
acervo em suporte digital. O catálogo foi con- documentação especializada em música (teo-
cebido no programa Access da Microsoft, mas ria e prática), educação e artes, embora tives-
estava nesta data a ser construído no ambiente se um catálogo razoável nas áreas de literatura,
PORBASE, com o apoio do ABM. Teria 4859 ciências sociais e história; biblioteca online (ca-
obras em geral e 5787 partituras, algumas do tálogo), onde se incluíam aproximadamente
séc. xix. O seu acervo fazia desta biblioteca 4000 documentos digitais; e portal de recursos
uma biblioteca escolar e simultaneamente uma digital, incluindo os mesmos 4000 documentos
biblioteca especializada em obras musicais. (disponibilizados em Pacwin, mas também no
Os seus utilizadores eram os alunos, profes- Portal de Recursos Educação Artística).
sores e funcionários do Conservatório, encar- A biblioteca contava com pessoal com forma-
regados de educação e outros familiares dos ções de curta duração na BN e no Arquivo Re-
alunos. A Biblioteca estava também aberta à gional da Madeira (ARM); um dos colaborado-
comunidade em geral, sendo frequentada por res tinha realizado um estágio no Centro de
leitores (por vezes estrangeiros) que necessi- Estudos Musicológicos da BN. Em 2015, esta
tavam de consultar partituras, utilizadores da equipa era coordenada pelo Dr. Paulo Estei-
UMa e outros interessados em música. reiro, que também estagiara no Centro de Es-
Segundo o site do Conservatório, anexa à bi- tudos Musicológicos, em contexto curricular
blioteca, funcionava a mediateca, que dispu- da Univ. Nova de Lisboa, e frequentara várias
nha de 8700 CD, 59 DVD, 50 vídeos e cerca de ações de formação na BN, nas áreas da indexa-
3000 LP, aquisições feitas pela escola e através ção, catalogação e Catwin.
de doações de particulares, das quais uma das A biblioteca tinha o maior número de docu-
mais valiosas foi a de John Ranalow. A sala pos- mentação musical manuscrita (partituras) cata-
suía uma aparelhagem áudio, que permitia aos logada na Madeira (4400 partituras históricas).
alunos a audição e gravação de música, e de As partituras históricas madeirenses estavam or-
uma televisão, para visionamento de documen- ganizadas em aproximadamente 15 coleções,
tários musicais. de acordo com a sua proveniência. A biblioteca
A biblioteca contava com uma responsá- tinha partituras de bandas filarmónicas, orques-
vel, mestre em Ciências da Informação e tras e grupos de bandolins, orquestras de salão
B ibliotecas ¬ 373

e de igreja, música vocal sacra variada, música áreas das ciências do mar, concretamente eco-
para piano, música para viola, etc. Para além logia costeira e ictiologia.
disso, dispunha também de um extenso acervo A partir de 1933, o segundo núcleo docu-
na área do vídeo e áudio (CD). mental formou a Biblioteca do Museu de His-
tória Natural do Funchal, que está em contac-
to permanente com outras bibliotecas, centros
Centro de Informação e Documentação de documentação de universidades e outras ins-
O Centro de Informação e Documentação tituições científicas em todo o mundo, com o
(CID), integrado, em 2015, no Departamento objetivo de trocar e divulgar informações, enri-
de Ciência e Recursos Naturais da Câmara Mu- quecendo assim o seu património cultural cien-
nicipal do Funchal (CMF), era composto por tífico. O engrandecimento do acervo documen-
dois núcleos documentais: a Biblioteca Profes- tal desta biblioteca efetuava-se de três formas:
sor Luiz Saldanha da Estação de Biologia Ma- compra, oferta e permuta. Esta última era feita
rinha do Funchal, e a Biblioteca do Museu de através da edição de duas publicações científi-
História Natural do Funchal (MHNF). cas, o Boletim do Museu Municipal do Funchal e o
A Biblioteca Professor Luiz Saldanha da Es- Suplemento do Boletim do Museu Municipal do Fun-
tação de Biologia Marinha do Funchal deve a chal, que contêm trabalhos científicos de grande
sua designação à figura deste professor e ocea- relevo nas diversas áreas da história natural da
nógrafo de prestígio internacional, que doou à Macaronésia. Para além destes, publicava ainda
Biblioteca o seu espólio científico, para servir a revista Bocagiana, destinada não só à descrição
de apoio à investigação. Foi criada a 28 de se- de espécies novas, mas também à divulgação
tembro de 1999, integrada na Estação de Bio- de artigos carenciados de publicação urgente.
logia Marinha do Funchal. Estas revistas eram distribuídas gratuitamente a
Encontravam-se depositados na Biblioteca diversas instituições de investigação científica,
Professor Luiz Saldanha três espólios ou acer- universidades e bibliotecas a nível mundial.
vos de elevada relevância para a comunidade Em 2015, os utilizadores do CID eram essen-
científica, a saber: o espólio Professor Gün- cialmente estudantes do nível secundário e su-
ther Edmund Maul, com- perior, docentes e investi-
posto por monografias (al- gadores. O acesso era livre,
gumas delas com uma certa podendo os utilizadores (in-
raridade), revistas, corres- ternos e externos) consultar
pondência científica, rela- as bibliotecas de acordo com
tos de viagens, manuscritos, a área de interesse, quer na
etc., alargando-se a todas as Biblioteca da Estação Bio-
áreas da história natural; o logia Marinha do Funchal,
espólio Professor Luiz Viei- quer na Biblioteca do MHNF.
ra Caldas Saldanha, com- O total do acervo do CID
posto por monografias, correspondia, nesta altura,
revistas, correspondência a aproximadamente 13.000
científica, desenhos, pos- documentos (monografias,
tais, etc. (grande parte do revistas e MNL). Para além
espólio cobre as áreas da do suporte em papel, o Cen-
biologia marinha, oceano- tro assegurava ainda o aces-
grafia e ictiologia); e o es- so eletrónico em suporte
pólio Professor Doutor Ar-
mando Almeida, composto
essencialmente por traba- Fig. 7 – Biblioteca do Museu Municipal
lhos científicos abrangendo do Funchal (arquivo particular).
374 ¬ B ibliotecas

digital. Duas bases de dados permitiam o acesso do património documental e propor a edi-
aos documentais digitais: Prisma (módulo de ca- ção e difusão de publicações com interesse
talogação e gestão de monografias e de publica- para a ALRAM e as que respeitam à história
ções em série) e Procite/Endnote. O CID facul- do Parlamento, em estreita colaboração com
tava o acesso à informação de carácter científico o Departamento de Relações Externas e para a
e técnico da Biblioteca da Estação de Biologia Comunicação Social; g) gerir o acervo e o fun-
Marinha do Funchal, nas áreas, em particular, cionamento da biblioteca da ALRAM; h) or-
da biologia marinha, oceanografia e pesca, e da ganizar e assegurar a manutenção do Arquivo
Biblioteca do MHNF nas restantes áreas, como Histórico-Parlamentar e o arquivo corrente de
biologia terrestre, história natural da Macaroné- todos os serviços da ALRAM.
sia e geologia. Estimava-se que muito em breve O seu acervo era, nesta data, constituído pela
o Centro estaria disponível para prestar o ser- produção documental que resulta das ativida-
viço de empréstimo interbibliotecas. Contava des legislativas, por coleções de monografias,
com acesso eletrónico à informação científica publicações periódicas e bases de dados, cujos
em linha, ou através de suporte digital, e a con- perfis se adequam às atividades parlamentares.
sulta do catálogo bibliográfico. O Centro de Documentação beneficiava de
O CID beneficiava de recursos humanos qua- pessoal qualificado, conferindo qualidade ao
lificados no âmbito das ciências documentais. tratamento e à disseminação da informação le-
gislativa e parlamentar.

Centro de Documentação
da Assembleia Legislativa Administrações pública e local,
da Região Autónoma da Madeira os laboratórios e os museus
O Centro de Documentação da Assembleia Nas Secretarias Regionais do GRM existiam,
Legislativa da Região Autónoma da Madei- em 2015, centros de documentação e informa-
ra (ALRAM) foi criado, em simultâneo com ção que beneficiavam de núcleos documentais
o edifício da Assembleia, a 4 de dezembro de ao serviço dos seus funcionários.
1987, designando-se, à época, biblioteca da As-
sembleia Legislativa Regional. Em 2015, era
composto por dois sectores – o arquivo e a bi-
blioteca, de acordo com a estrutura orgânica
da ALRAM – e assumia a designação de Cen-
tro de Documentação, ao qual competia: a) re-
colher, organizar, tratar, armazenar e difundir
a informação nacional e estrangeira nas várias
áreas do conhecimento; b) produzir e difundir
cadernos de informação, ou outros produtos,
adequados aos temas em apreciação nos vários
órgãos da ALRAM; c) recolher, selecionar, tra-
tar e conservar todos os documentos referen-
tes aos deputados e a atos e factos da ALRAM;
d) recolher, registar, catalogar, indexar e zelar
pela conservação de todas as espécies do espó-
lio documental da ALRAM; e) prestar informa-
ções sobre a bibliografia e documentação exis-
tentes no acervo e facultar o respetivo acesso,
nos termos do regulamento interno; f) promo- Fig. 8 – Biblioteca da Assembleia Regional, 1987, Funchal
ver e colaborar em atividades de divulgação (arquivo particular).
B ibliotecas ¬ 375

Os laboratórios existentes na RAM, que têm europeias, quer em suporte papel, quer em su-
assegurado estudos relevantes para a Região porte digital, através das bases de dados que a
(a saber: o Laboratório Regional de Engenharia UE colocava ao dispor do cidadão.
Civil, o Laboratório de Metrologia da Madeira
Dr. José Agostinho Gomes Pereira de Gouveia,
o Laboratório de Saúde Pública, o Laboratório
Centro de Informação Europe Direct
Regional de Controlo de Qualidade da Água, A RAM beneficiava de um Centro de Informa-
entre outros), bem como os museus e o Jardim ção Europe Direct Madeira (CIED Madeira),
Botânico da Madeira, beneficiavam, nesta data, criado em 2013 e localizado no Edifício Casa
de bibliotecas, algumas com núcleos documen- da Cultura, na freguesia de Câmara de Lobos.
tais antigos, ricos e variados, que apoiavam e O Centro dependia hierarquicamente da re-
valorizavam as atividades dos seus funcionários presentação da Comissão Europeia em Por-
que se dedicavam à investigação. tugal e destinava-se à população em geral. Re-
lativamente ao seu acervo, contava com 196
unidades, em atualização em 2015, distribuídas
Centro de Documentação Europeia por: 103 publicações; 27 revistas/newsletters; 46
O Centro de Documentação Europeia (CDE) panfletos/brochuras; e 20 cartazes/posters.
(específico e não completo) foi alojado na Era objetivo do CIED Madeira prestar um
Biblioteca da UMa em 1995, altura em que a serviço de proximidade adaptado às necessi-
Universidade se lançou a uma candidatura co- dades locais/regionais, permitindo ao públi-
munitária para a sua aquisição. A UMa forne- co em geral obter informações, orientações,
ceu o espaço físico, o pessoal qualificado e as assistência e respostas a perguntas sobre a UE
ferramentas informáticas, desde o hardware ao no que respeita ao seu funcionamento, prio-
software, enquanto a UE, através da Comissão ridades, legislação, políticas, programas e pos-
Europeia e da representação da Comissão Eu- sibilidades de financiamento, mas também, e
ropeia em Portugal, forneceu o acervo docu- fundamentalmente, aos seus direitos enquan-
mental, quer em suporte papel, quer em su- to cidadãos europeus. O Centro disponibili-
porte digital. zava igualmente na sua sede um conjunto de
O Centro tinha por objetivo divulgar o ideá- publicações sobre as mais diversas temáticas de
rio comunitário junto da academia, razão intervenção da UE.
pela qual se realizavam eventos e inúmeras ex- O CIED Madeira organizava sessões infor-
posições nesse âmbito. Em 2015, o seu acervo mativas para o público em geral, e em particu-
estava estimado em 23.940 unidades (cujas re- lar para as escolas da área de abrangência do
ferências se encontravam no catálogo da Bi- Centro e para alunos das diversas faixas etárias.
blioteca da UMa), distribuído pelas seguintes Nestas sessões, eram tratados temas de interes-
tipologias documentais: 6552 monografias, se que iam ao encontro de possíveis necessi-
16.038 fascículos de publicações periódicas, dades de informação sobre a UE, de carácter
1359 unidades de MNL. Estavam também dis- mais geral ou mais específico, consoante os
poníveis milhares de documentos digitais, objetivos da ação. As apresentações para o pú-
que podiam ser acedidos através do portal da blico escolar tentavam, através de jogos e da
Europa. distribuição de material publicado pela UE, es-
timular o interesse para as questões europeias.

Biblioteca de Assuntos Europeus


– Casa da Europa da Madeira Biblioteca da Direção Regional
Integrada na Casa da Europa da Madeira, o
de Juventude e Desporto
seu acervo era constituído por publicações de O Ponto Jovem, nome pelo qual foi designada
carácter específico relacionadas com questões a biblioteca da Direção Regional de Juventude
376 ¬ B ibliotecas

e Desporto (DRJD), foi criado a 15 de março Teatroteca Fernando Augusto


de 2013 na sequência da integração do sector
Inaugurada a 30 de novembro de 2005, a Tea-
da juventude na DRJD, criada pelo dec. reg.
troteca Fernando Augusto – Biblioteca de Tea-
regional n.º 14/2012/M, de 26 de junho. Este
tro, no Funchal, reunia o espólio recolhido
espaço já tinha tido outras denominações, su-
pelo TEF Companhia de Teatro (Teatro Expe-
cessivamente alteradas de acordo com as res-
truturações orgânicas dos serviços. rimental do Funchal), e a biblioteca de teatro
Sendo o grosso dos seus utilizadores os jo- de Élvio Camacho, com cerca de 1500 livros
vens e o público em geral, a biblioteca ofere- do acervo pessoal do encenador e dramaturgo
cia os seguintes serviços à comunidade: espa- Fernando Augusto, doado ao ator. A Teatrote-
ço para consulta e leitura de documentação; ca estava aberta a todos os leitores, artistas e
espaço multimédia (Loja de Juventude), onde grupos de teatro interessados na matéria.
os utilizadores tinham ao seu dispor a rede
sem fios gratuita, 12 postos com computadores Biblioteca John dos Passos
e posto braile equipado com linha e impres-
sora braile, para utilizadores invisuais; espa- O Centro Cultural John dos Passos foi inaugu-
ço para utili­zação de equipamento informáti- rado em setembro de 2004, na Ponta do Sol,
co pelo utilizador; espaço para realização de contando com duas secções ou unidades docu-
trabalhos individuais e/ou em grupo; balcão mentais: a Biblioteca John dos Passos e a Sala
de informação, no qual eram prestados os se- Dr. John Randolph dos Passos (reservados).
guintes serviços: prestação de informações em Compostas, em 2015, por cerca de 5500 livros,
áreas de interesse juvenil; divulgação de ativi- estas duas secções/unidades documentais ti-
dades, eventos e classificados de interesse ju- nham um catálogo presencial.
venil; obtenção e renovação do Cartão Jovem; A Biblioteca era de acesso livre e o seu fundo
e o Ponto Oficial de bookcrossing. Além destes documental variado, quer a nível temático,
serviços, a biblioteca facultava igualmente à co- quer a nível da nacionalidade dos autores, não
munidade o acesso aos conteúdos em supor- sendo composto apenas pelas obras de John
te digital disponibilizados na Internet, através dos Passos, mas também por bibliografia es-
dos postos existentes no espaço, bem como aos trangeira, nacional e regional (monografias,
conteúdos em suporte papel, disponíveis no publicações periódicas, cartazes e material
local para consulta presencial. multimédia). Contudo, o acervo mais impor-
O total do acervo em suporte papel era, em tante encontrava-se na sala de reservados e reu-
2015, de cerca de 1500 títulos. A coleção de nia a obra deste escritor norte-americano de
monografias estava distribuída pelos seguintes ascendência madeirense, traduzida em 18 lín-
assuntos: ciências sociais; desporto; geografia; guas, e ainda alguns estudos sobre a sua vida
história (da arte, do mundo, de Portugal e da e obra. De acesso restrito, esta sala era reser-
Madeira); literatura (infantil, juvenil e portu- vada aos estudiosos que pretendessem pesqui-
guesa); e obras de referência para consulta sar e investigar a vida e obra do escritor, que,
(dicionários e enciclopédias). A coleção de em português, contava com traduções de oito
publicações periódicas era constituída pelos dos seus livros: Três Soldados; Manhattan Trans-
seguintes títulos: Jornal da Madeira; Revista De- fer; Paralelo 42; 1919; Dinheiro Graúdo; Aventu-
mografia Federada; Revista Flor de Lis; Revista Isle- ras de um Jovem; Fadado para Vencer; Os Melhores
nha; agendas culturais de diversos municípios Tempos: uma Biografia não Oficial e Portugal: Três
do país; e revistas em braile (Visão, Visão Júnior Séculos de Expansão e Descobrimentos.
e Ativa). A Biblioteca John dos Passos possuía, à data,
Os recursos humanos afetos à Biblioteca os seguintes serviços: serviço de referência; ser-
eram constituídos, nesta data, por duas técni- viço de apoio à investigação (referente à vida e
cas de biblioteca e documentação. obra de John dos Passos); serviços educativos;
B ibliotecas ¬ 377

Condes de Castro Guimarães, em Cascais, que


tinha por objetivo cobrir o território nacional
e arquipelágico com as bibliotecas circulan-
tes. Contudo, foi em 1958 que a FCG criou o
Serviço de Bibliotecas Itinerantes (SBI), pelo
mesmo Branquinho da Fonseca, que permane-
ceu no SBI até 1974, ano da sua morte. Nesse
ano, foram colocadas em circulação 15 biblio-
tecas itinerantes na região de Lisboa e litoral.
Portugal vivia uma conjuntura politicamen-
te desmotivada para a promoção da leitura, do
livro, do ensino e da aprendizagem, privilégio
dos segmentos populacionais mais abastados
de então. Era difícil promover a leitura junto
das populações isoladas e pobres e reduzir os
índices de incultura e de analfabetismo que ca-
racterizavam o país, incluindo a população do
arquipélago da Madeira. A solução passou pela
utilização de serviços móveis, ou seja, pela uti-
lização de uma carrinha, que transportava os
núcleos documentais das bibliotecas itineran-
tes, com cerca de 2000 livros, em estantes de
regime de acesso aberto, privilegiando a figu-
ra do empréstimo domiciliário e a gratuitidade
Fig. 9 – Biblioteca do Centro Cultural John dos Passos, 2008, do mesmo e levando mais longe as ideias e o
Ponta do Sol (arquivo particular).
saber. As estantes destas carrinhas tinham a se-
guinte disposição: as prateleiras de baixo esta-
serviço de empréstimo; e serviço de fotocópias. vam reservadas aos livros infantis; as do meio à
Para além de prestar serviço à camada estudan- literatura, ficção e biografias; e as de cima aos
til, servia também docentes, investigadores e livros menos pedidos (filosofia, poesia e ciên-
população em geral. cias). Nelas trabalhavam dois funcionários: o
Ao longo do ano, realizavam-se diversas ati- auxiliar e o encarregado e responsável pela
vidades dirigidas aos alunos das escolas do biblioteca.
concelho da Ponta do Sol, tais como: a hora A FCG criou parcerias com as autarquias, no
do conto; peddy-papers; visitas guiadas em por- sentido de partilha das obrigações: o forneci-
tuguês e inglês; exposições temáticas; seminá- mento do acervo bibliográfico, o biblio-car-
rios; conferências; celebração de efemérides; e ro, o pagamento dos honorários do pessoal, o
elaboração de material didático, entre outras combustível, as despesas de manutenção e con-
atividades. servação e outras ficavam a expensas da FCG,
enquanto as autarquias concediam instalações
para o depósito dos livros e contribuíam com
Bibliotecas itinerantes e fixas
despesas pontuais, ou seja, o apoio logístico.
da Fundação Calouste Gulbenkian
As bibliotecas itinerantes não satisfaziam as
As bibliotecas itinerantes da Fundação Calous- exigências de utilizadores mais letrados, com
te Gulbenkian (FCG) surgiram em 1953 com grau mais elevado de exigência intelectual e
a criação (da iniciativa de Branquinho da Fon- cultural, pelo que foi necessário complemen-
seca, bibliotecário-arquivista e escritor) de tá-las, na déc. de 60, com outra tipologia de
uma biblioteca circulante no Museu-Biblioteca biblioteca: as fixas.
378 ¬ B ibliotecas

Em 1963, a Madeira beneficiou da primei- (1988) e a Biblioteca Municipal Calouste Gul-


ra biblioteca itinerante, com sede no Funchal. benkian – Nazaré (1989). Assim, de acordo
No arquivo da FCG, não existe documentação com as diferentes tipologias, a FCG criou no
sobre a criação e a extinção da maior parte Arquipélago da Madeira um total de: 3 biblio-
das bibliotecas que fizeram parte das redes tecas itinerantes; 11 bibliotecas fixas; e diversos
de bibliotecas criadas pela Fundação. Contu- postos de leitura nos bairros e complexos so-
do, através das datas-limite da documentação ciais acima referidos.
existente e do livro publicado pela FCG no seu É de destacar a Biblioteca Fixa n.º 48, no
25.º aniversário, em 1983, bem como do Bole- Funchal, inaugurada a 10 de julho de 1964
tim Cultural, n.º 2 de 1984, deduz-se a existên- (data que não está de acordo com a data do
cia no arquipélago das bibliotecas itinerantes quadro fornecido pela FCG, que refere 1961),
constantes na fig. 10. que estava localizada no edifício da CMF, onde
Na déc. de 70 do séc. xx, o projeto do SBI permaneceu até 1985. Até 1987, a Biblioteca
tornou-se insustentável no âmbito da gestão fi- funcionou provisoriamente no Teatro Munici-
nanceira da FCG, e em 1972 a Fundação che- pal Baltazar Dias. De 1987 a 1995, mudou de
gou a tentar concluir a rede de bibliotecas iti- instalações para o edifício da R. Elias Garcia.
nerantes e fixas, ideia reforçada após o 25 de Após este período, regressou ao Teatro Mu-
Abril de 1974. Contudo, entre 1981 e 1996, nicipal Baltazar Dias até 2011, ano em que a
David Mourão Ferreira deu novo impulso à documentação começou a ser incorporada na
animação da leitura e à difusão literária e cul- BMF e na nova Biblioteca de Santo António do
tural, privilegiando atividades que garantissem Funchal.
maior rentabilidade intelectual e cultural: ex- A promoção do livro e da leitura através da
posições, debates, encontros com autores, lei- rede de bibliotecas itinerantes, e mais tarde
tura de contos e poesia, lançamento de livros das bibliotecas fixas, durante o regime salaza-
e de novos autores, entre outras atividades. rista foi uma iniciativa arrojada mas coeren-
O SBI foi reestruturado e, em 1983, passou a te, que transformou a FCG no “Ministério da
designar-se Serviço de Bibliotecas Itinerantes Cultura” português, que incluía o arquipéla-
e Fixas da FCG (SBIF). O arquipélago da Ma- go da Madeira. As bibliotecas itinerantes não
deira passou então a contar com as bibliotecas transportavam somente livros, mas promo-
fixas elencadas na fig. 11. viam a leitura, o nascimento de ideias e do
A estas, acrescentamos ainda os postos de saber, motivando a aprendizagem da leitura
leitura criados nos bairros sociais: a Bibliote- em muitos cidadãos iletrados. As bibliotecas
ca Municipal Calouste Gulbenkian – Penteada fixas funcionaram como bibliotecas públicas,

BIBLIOTECAS ITINERANTES NA MADEIRA

Código Data Data Código referência Âmbito cronológico do


Concelho
identificativo de criação de extinção do processo de arquivo processo de arquivo

1983/08/25-
Funchal BI049 1963 1983? PT FCG FCG:SBAL-S010-P0015
2000/11/21

1986/11/25-
Ponta do Sol BI061 196? 1983? PT FCG FCG:SBAL-S010-P0001
2002/10/08

1983/08/25-
São Vicente BI050 196? 1983? PT FCG FCG:SBAL-S010-P0006
1999/11/22

Fig. 10 – Tabela com dados sobre as bibliotecas itinerantes FCG na Madeira (dados fornecidos pela Biblioteca de Arte
e pelo Arquivo da FCG) (FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, 1983; FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN e
SERVIÇO DE BIBLIOTECAS ITINERANTES E FIXAS, 1984).
B ibliotecas ¬ 379

BIBLIOTECAS ITINERANTES NA MADEIRA

Código Data Data Código referência Âmbito cronológico


Concelho
identificativo de criação de extinção do processo de arquivo do processo de arquivo

1980 (ou PT FCG


Calheta BF075 2002/11/13 1964//04/17-2002/11/13
1973)/09/30 FCG:SBAL-S002-P0029

Câmara PT FCG
BF012 1980/01/10 2002/11/13 1979/05/08-2002/11/13
de Lobos FCG:SBAL-S002-P0006

PT FCG
Funchal BF048 1961 2002/11/13 1961/04/24-2002/11/13
FCG:SBAL-S002-P0100

PT FCG
Machico BF074 1964/09/14 2002/11/13 1963/09/16-2002/11/13
FCG:SBAL-S002-P0108

Ponta do PT FCG
BF077 1963 2002/11/13 1963/09/25-2002/11/13
Sol FCG:SBAL-S002-P0104

Porto PT FCG FCG.


BF083 1964? 2002? 1964/08/10-2002/07/19
Moniz SBAL-S002-P0007

PT FCG
Porto Santo BF078 1964/12/05 2002/11/13 1963/01/16-2002/11/13
FCG:SBAL-S002-P0058

Ribeira PT FCG
BF082 1964/09/30 2002 1964/09/21-2001/12/10
Brava FCG:SBAL-S002-P0062

PT FCG
Santa Cruz BF073 Julho 1964 2002/11/13 1964/05/21-2002/11/13
FCG:SBAL-S002-P0039

PT FCG
Santana BF076 1964? 2002/11/13 1964/06/08-2002/11/13
FCG:SBAL-S002-P0053

PT FCG
São Vicente BF175 1978/01/22 2002 1990/01/03-2002/08/22
FCG:SBAL-S002-P0002

Fig. 11 – Tabela com dados sobre as bibliotecas fixas FCG na Madeira (dados fornecidos pela Biblioteca de Arte
e pelo Arquivo da FCG) (FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, 1983 e FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN e
SERVIÇO DE BIBLIOTECAS ITINERANTES E FIXAS, 1984).

tendo como público-alvo o cidadão mais le- completamente extinto. O acervo das biblio-
trado que procurava informação e conheci- tecas fixas foi integrado nas bibliotecas mu-
mento. Em suma, as bibliotecas da FCG pro- nicipais que foram sendo criadas em todos os
moveram uma verdadeira revolução cultural, municípios.
uma vez que tudo é transportável, incluído o
conhecimento.
Em 1987, o Programa Nacional de Leitura
Biblioteca do Hospital Dr. Nélio Mendonça
Pública, que tinha por objetivo criar e desen- A biblioteca do Hospital Dr. Nélio Mendonça,
volver bibliotecas públicas modernas e ade- no Funchal, surgiu três anos após a inaugura-
quadas às linhas orientadoras do Manifesto ção do Hospital, em 1976, e ficou localizada no
da UNESCO sobre as Bibliotecas Públicas, piso 0 do mesmo. Tratava-se de uma bibliote-
terá debilitado o serviço e objetivos do SBIF ca tradicional especializada na área da Saúde,
da FCG. Contudo, em 1993, este é reestrutu- tendo como principal objetivo auxiliar o traba-
rado e adaptado à nova temporalidade, pas- lho de pesquisa dos profissionais de saúde da
sando a designar-se Serviço de Bibliotecas instituição e servir um vasto leque de utentes:
e Apoio à Leitura (SBAL), que em 2002 foi médicos, enfermeiros, investigadores, técnicos
380 ¬ B ibliotecas

de saúde, alunos de pré e pós-graduação em Biblioteca Pública Regional da Madeira


Medicina e Enfermagem, administradores e
A pintora Sara Maria de Portugal da Silveira
gestores hospitalares.
Henriques de Freitas foi fundadora e primeira
Até 2013, esta biblioteca disponibilizava os
diretora da então sala de documentação con-
seguintes serviços: leitura e empréstimo; refe-
temporânea, inaugurada em 1979, no edifí-
rência e pesquisa de informação; difusão de in-
cio seria posteriormente instalada igualmen-
formação; e sala multimédia. Integrada no es-
te a Direção Regional dos Assuntos Culturais
paço da biblioteca, existia uma sala polivalente
(DRAC), com o objetivo de prestar apoio edu-
destinada a conferências, reuniões e cerimó-
cativo às extensões universitárias criadas na
nias oficiais, entre outros eventos.
RAM com o processo da autonomia.
Eram competências da Biblioteca: apoiar
Em 2003, foi instituída oficialmente a
proativamente todas as especialidades do Ser-
Biblioteca Pública Regional da Madeira
viço de Saúde da RAM, E.P.E (SESARAM);
(BPRM), sucedendo à biblioteca de docu-
promover uma maior acessibilidade à infor-
mentação contemporânea, pelo dec. reg. re-
mação, apoiando e formando o utilizador;
gional n.º 14/2003/M, de 23 de maio (Orgâ-
cooperar em redes e projetos através de mé-
nica da SRTC). Alicerce conceptual da BPRM
todos e tecnologias de informação utilizados
foi o conjunto de disposições legais que a tor-
universalmente pela biblioteconomia; gerir naram beneficiária do depósito obrigatório
aquisições e atualizações dos recursos biblio- de todas as obras publicadas no país, nomea-
gráficos, preferencialmente eletrónicos (bases damente por força do dec.-lei n.º 74/82, de
de dados, ejournals, ebooks); promover uma cor- 3 de março.
reta política de aquisições de recursos biblio- Esta instituição fez inicialmente parte da
gráficos para o SESARAM, procedendo à ava- DRAC, passando, a 19 de junho de 2007, para
liação de propostas de aquisição, avaliando a a tutela da Secretaria Regional de Educação
pertinência dos recursos e fazendo prospeção e Cultura (SREC), onde se manteve até 2011.
de mercado de fornecedores, para obtenção A 9 de novembro desse ano, mudou novamen-
da melhor relação custo/qualidade; e apoiar e te para a tutela do Turismo, com a nova de-
promover a produção científica e a divulgação signação de Secretaria Regional da Cultura,
da informação. Turismo e Transportes (SRCTT). Em 2009, a
À data, o seu acervo bibliográfico era com- BPRM comemorou 30 anos de serviço públi-
posto por: obras de referência (cerca de 50 co, instituindo o dia 26 de outubro como seu
exemplares); monografias (cerca de 200 li- dia. Por força da port. n.º 50/2016, de 19 de
vros); e publicações periódicas, na sua maio- fevereiro, que define a orgânica da Direção
ria técnicas e científicas (mais de 200 títulos de Regional da Cultura, a BPRM e o ARM foram
revistas registados online). A partir de 2009, a fundidos numa só entidade, que passou a ser
Biblioteca adquiriu maioritariamente publica- designada por Arquivo Regional e Biblioteca
ções periódicas com acesso online, que, desde Pública da Madeira (ABM).
2013, disponibilizou juntamente com o acesso O ABM – a Biblioteca – foi criado como um
à base de dados online. espaço com diferentes ambientes e acervos,
A Biblioteca contava com pessoal qualifica- espaço de cultura, conhecimento, lazer e in-
do: gestão e coordenação da Biblioteca: dire- formação, aberto a todos os cidadãos. Tinha
tor do serviço de formação e investigação do por objetivos: tratar, conservar e divulgar os
SESARAM, E.P.E.; responsabilidade técnica seus diferentes acervos de cultura, nomea-
da Biblioteca: técnico superior do SESARAM, damente o acervo bibliográfico do Depósito
E.P.E.; assistente Técnica com formação na Legal; preservar e divulgar a língua e cultu-
área das bibliotecas; assistente técnica de apoio ra portuguesas a diferentes públicos; e pro-
administrativo à Biblioteca. mover o livro, a leitura, a informação e o
B ibliotecas ¬ 381

conhecimento. Com o objetivo de ser a mais


completa biblioteca da RAM, tinha como va-
lores: inovação, transparência, ética, respon-
sabilidade e melhoria contínua; equidade no
tratamento, abertura e disponibilidade à di-
ferença; adequação e rapidez de resposta; e
cultura de projetos.
O ABM – a Biblioteca – era, na RAM, a ins-
tituição pública empenhada na conservação
do património documental, o que advém do
estatuto de recetora do Depósito Legal, que
lhe permite receber da BNP pelo menos um
Fig. 12 – Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira,
exemplar de todas as publicações editadas Funchal (arquivo particular).
em Portugal, acrescentando-lhe a caracterís-
tica de pró-especializada em diversas áreas
temáticas. O facto de ser beneficiária do De- CD-ROM; fundo local – memória local e cole-
pósito Legal potenciou a sua missão e alar- tiva da RAM.
gou os seus objetivos, especialmente peran- A aquisição dos documentos era feita prin-
te a RAM e os madeirenses, na preservação cipalmente através do Depósito Legal, mas
da sua história, língua e cultura. Foi a partir também por compra ou por oferta de parti-
de 1982 que a Biblioteca se constituiu mais culares e instituições da administração pú-
fortemente como fonte de informação cien- blica. Destes, destacava-se a biblioteca Mário
tífica e técnica e assumiu definitivamente o Sardinha, pelo valor e a raridade das espécies
seu perfil patrimonial, com a responsabilida- bibliográficas, assim como as bibliotecas da
de de preservar e divulgar a produção docu- escritora Carmo Rodrigues e de Fátima Dio-
mental de origem intelectual, nacional e re- nísio e Avelino Costa, e a biblioteca António
gional. A Biblioteca era também depositária Montes, acervo importante por integrar um
do acervo bibliográfico da biblioteca da Es- número considerável de títulos que comple-
cola Secundária Jaime Moniz, disponibiliza- taram as coleções anteriores à criação da Bi-
do online em catálogo para consulta através blioteca. A maior doação particular foi a da
da colaboração do ABM. biblioteca Rebelo Quintal (2013). António
Relativamente ao seu acervo, estima-se que, Rebelo Quintal (1931-2013) reuniu, ao longo
em 2015, o total fosse de mais de 294.405 do- de anos, milhares de livros e revistas, consti-
cumentos, com um crescimento anual de 10%: tuindo principalmente uma grande biblioteca
192.649 exemplares de monografias (corres- jurídica, considerada por muitos a melhor da
pondentes a 172.676 títulos) e 121.729 exem- RAM e provavelmente uma das melhores do
plares de publicações periódicas (corres- país. Alguns dos referidos documentos foram
pondentes a 4088 títulos). A maior parte dos oferecidos por distintas personalidades, mas a
fundos documentais era contemporânea e ge- maior parte foi adquirida em livrarias nacio-
neralista, embora possuísse algumas coleções nais e estrangeiras.
de obras mais antigas. Os fundos documentais O ABM é o órgão coordenador da Rede
eram: fundo geral – monografias e periódicos; de Bibliotecas Públicas da RAM, pelo dec.
reservados – livros raros, primeiras edições, leg. regional n.º 15/2002/M, de 22 de agos-
documentos em mau estado de conservação; to, e pelo dec. reg. n.º 10/2002/M, de 13 de
iconográfico – mapas, cartazes, postais; carto- março, e é o órgão coordenador do Progra-
grafia – mapas, séries cartográficas, atlas; lei- ma da Rede de Bibliotecas Escolares, de acor-
tura para deficientes visuais – recursos brai- do com o Programa da RBE (Gabinete RBE
le e recursos áudio; multimédia – DVD, CD, do Ministério da Cultura). Até à instalação
382 ¬ B ibliotecas

e ao desenvolvimento de bibliotecas munici- novembro de 2004. O passo seguinte consis-


pais no âmbito da Rede Regional de Bibliote- tiu na assinatura de um protocolo de inten-
cas Públicas (RRBP), a então BPRM disponi- ções entre os municípios com as candidaturas
bilizou às escolas de todos os graus de ensino aprovadas, a DRAC e o IPLB, protocolo exi-
da Região consultoria técnica nas áreas de ar- gido pelo Instituto de Fundos Comunitários
quitetura (no caso de escolas em construção (IFC) para aprovar as candidaturas das autar-
ou com áreas em reconstrução e adaptação), quias a financiamento comunitário. Os proto-
mobiliário, fundos documentais e tratamento colos de intenções foram celebrados a 8 de
técnico documental. novembro de 2006, exceto no caso de Machi-
co, assinado a 8 de março de 2007. Relativa-
mente ao investimento a realizar, foi definido
Rede regional de bibliotecas públicas que a comparticipação do IPLB seria de 30 %
(RRBP) (em todas a rubricas: obra, equipamento, fun-
A 24 de fevereiro de 2002, foi celebrado um dos documentais e informatização) dos custos
protocolo entre o Instituto Português do Livro e definidos como elegíveis e que o IFC teria a
das Bibliotecas (IPLB) e a Direção Regional dos comparticipação de 70 %.
Assuntos Culturais (DRAC), da Secretaria Re- A Biblioteca Municipal de Machico foi inau-
gional de Turismo e Cultura (SRTC) da RAM, gurada a 3 de março de 2008 e a Biblioteca Mu-
no sentido de estabelecer a cooperação técnica nicipal de Câmara de Lobos a 3 de maio de
e financeira entre estas entidades para a conce- 2009. O processo de candidatura da BMF foi
ção e o desenvolvimento de uma rede de biblio- encerrado por inviabilidade de reabilitação ou
tecas públicas na Região e, assim, concretizar a construção de um novo espaço. O Porto Moniz
extensão da Rede Nacional de Bibliotecas Públi- não pôde avançar com a construção do edifí-
cas à Madeira, num total de 11 concelhos. cio por falta de verbas.
A rede regional de bibliotecas públicas Ao abrigo do protocolo DRAC/municípios,
(RRBP) da RAM foi criada pelo dec. leg. re- a BPRM continuou a prestar apoio especializa-
gional n.º 15/2002/M, de 13 de agosto, do na área da biblioteconomia aos municípios
e regulamentada pelo dec. leg. regional que o solicitem.
n.º 10/2003/M. Entretanto, fruto do trabalho
conjunto entre o IPLB e a DRAC, foi defini-
do um programa-base destinado a regular e
Biblioteca de Culturas Estrangeiras
orientar as candidaturas dos municípios, que Integrada no ABM, e tutelada pela DRAC
foi apresentado oficialmente a 3 de novem- desde 2011, a Biblioteca de Culturas Estrangei-
bro de 2003, data que correspondeu à aber- ras constituiu-se uma instituição pública regio-
tura do período para a apresentação das can- nal que conta com o apoio das embaixadas dos
didaturas por parte dos municípios. Foram países representados.
cinco os municípios a apresentar candida- O projeto para esta biblioteca tinha o intuito
tura: Funchal, Machico, Câmara de Lobos, de proporcionar, especialmente aos estudan-
Porto Moniz e São Vicente, tendo sido sele- tes, uma informação mais profunda e de fácil
cionados os quatro primeiros. No caso de Ma- acesso a outras culturas. A recetividade e o en-
chico, a obra das novas instalações da biblio- volvimento dos consulados e das embaixadas
teca já se encontrava concluída, pelo que não revelaram excelentes resultados.
seria comparticipada pelo IPLB: o município Criada em 1987, na sequência da doação
concorreria apenas a apoios para aquisição de de uma coleção de livros pelo Governo da Ve-
mobiliário e equipamento, fundos documen- nezuela à RAM, a Biblioteca marcou o início de
tais e informatização. As quatro candidaturas um espaço que iria envolver outros países num
aprovadas foram homologadas pelo secre- projeto posteriormente denominado Bibliote-
tário regional do Turismo e Cultura a 11 de ca de Culturas Estrangeiras, o qual foi aprovado
B ibliotecas ¬ 383

em 1993, tendo recebido, desde então, perso- Drumond de Meneses, ocupando à época
nalidades de destaque na área da política, das uma sala na CMF. A 19 de setembro de 1929,
letras, da história, das ciências e das artes. a Biblioteca muda de instalações para o pa-
Com um acervo que resulta essencialmente lácio de S. Pedro, no Funchal. Em agosto de
de doações, englobava, em 2015, várias salas de 2009, muda novamente de instalações, desta
leitura: as salas Simón Bolívar, American Cul- feita para um piso do Edifício 2000, situado
ture Corner, Zwanayo, Sir Winston Churchill, na Av. Calouste Gulbenkian, sem que tivesse
France, Deutschland e Italia. Além dos livros beneficiado do programa da RRBP da RAM.
em língua estrangeira das salas mencionadas, Dos seus bibliotecários mais importantes até
a Biblioteca possuía também uma vasta cole- 2015, merecem destaque Carlos Azevedo de
ção de livros em russo, norueguês, finlandês Meneses, que trabalhou na Biblioteca até à
e sueco. Do seu acervo faziam parte monogra- sua morte, aos 65 anos, e Adolfo César de No-
fias, publicações periódicas, material multimé- ronha, mais tarde nomeado diretor, o grande
dia e cartazes pertencentes às diversas salas de impulsionador não só da biblioteca, mas tam-
leitura, e com informação cultural, histórica e bém do museu.
literária dos diferentes países representados. Os recursos humanos da BMF possuíam,
A Biblioteca tinha como principais objetivos em 2015, qualificações adequadas ao desem-
promover ações de carácter cultural, tendo em penho documental e tecnológico. Assim,
vista a divulgação das culturas dos países repre- além de organizar, preservar, conservar e
sentados. Deste modo, pretendia alargar a ou- divulgar a herança pública que constitui o
tras culturas um valor acrescido à cultura da acervo desta biblioteca, a BMF tinha como
RAM, educar e informar, proporcionando tam- missão: facilitar o acesso à informação de
bém, especialmente aos estudantes, um profun- forma igualitária e democrática; ser um su-
do e fácil acesso a informação de outras cultu- porte para a educação e investigação quer a
ras. Todos os núcleos existentes na Biblioteca nível individual, quer a nível de instituições;
abrangiam as diversas áreas do conhecimento, oferecer meios e serviços destinados a satis-
tendo cada sala o seu catálogo organizado se- fazer as necessidades individuais, educativas
gundo autor/título/assunto, seguindo as nor- e de investigação dos utilizadores; fornecer a
mas da CDU e da Dewey Decimal Classification. informação de forma célere e eficaz, recor-
Embora a Biblioteca fosse na sua maioria rendo para o efeito às TIC; e cooperar, sem-
consultada por estrangeiros, residentes ou vi- pre que possível, com outras organizações.
sitantes da RAM, os seus leitores eram também As atividades mais relevantes para os muníci-
alunos e professores de escolas (1.º, 2.º e 3.º ci- pes passavam pela Hora do Conto, e as con-
clos e secundário), estudantes universitários, ferências e visitas guiadas à BMF.
das áreas de línguas e culturas estrangeiras, e O seu acervo contava, a esta data, com
o leitor madeirense. A Biblioteca dispunha de cerca de 300.000 obras, algumas do séc. xix,
vários serviços: leitura presencial; empréstimo incidindo sobre a história, geografia, biolo-
domiciliário; serviço de referência e informa- gia e outras vertentes do conhecimento re-
ção; acesso à Internet; relações públicas e dina- lativas à ilha da Madeira. Quanto aos perió-
mização cultural; serviço de fotocópias; acesso dicos, possuía 95 títulos de jornais regionais
ao catálogo presencial e online e ao fundo de desde 1821, dentre os quais se destacavam
documentos reservados. A Aurora Litteraria, A Chronica, A Cruz: Sema-
nário Catholico, A Discussão e O Patriota Fun-
chalense. Havia coleções que se destacavam: a
Biblioteca Municipal do Funchal coleção Hinton; as coleções de William e Al-
A 13 de janeiro de 1838, foi criada a Bibliote- fredo Reid; a coleção de obras sobre a ilha da
ca Municipal do Funchal (BMF) por delibera- Madeira; e a coleção do historiador Joel Ser-
ção camarária, sob a presidência de Sérvulo rão. Na coleção digital, incluía-se o Diário de
384 ¬ B ibliotecas

Notícias desde 1900 a 1922, cerca de 300 di- obras nas diversas áreas do saber, contava com
gitalizações de monografias da temática Ma- uma área de leitura/estudo, equipada com li-
deira e outras que se encontravam em mau gação sem fios.
estado de conservação.
Segundo o Elucidário Madeirense, a BMF
incluiria no seu acervo a coleção da Escola
Biblioteca Municipal de Câmara de Lobos
Médico-Cirúrgica do Funchal; ao longo dos A Biblioteca Municipal de Câmara de Lobos,
anos, todavia, esta coleção dispersou-se e em uma biblioteca pública, municipal, do tipo
2015 a Biblioteca ainda não a reunira na glo- BM2, possuía em 2015 dois polos de leitura:
balidade. Beneficiou do acervo da biblioteca um no Estreito de Câmara de Lobos e outro
fixa da FCG n.º 48, do Funchal, cujo acer- no Curral das Freiras.
vo foi incorporado na BMF e na Biblioteca Desde meados da déc. de 60 até 1980, Câ-
de Santo António do Funchal. A BMF tinha mara de Lobos recebeu com periodicidade
sob a sua alçada as bibliotecas dos bairros da mensal a biblioteca itinerante da FCG. Numa
Penteada, inaugurada em 1988, e da Naza- parceria entre a FCG e a Câmara Municipal
ré, em 1989, que pertenceram à FCG, e a bi- (a FCG fornecia os equipamentos e materiais
blioteca de Santo António, inaugurada a 6 de e a Câmara os recursos humanos e o espaço), a
julho de 2013. 1 de outubro de 1980 abriu a biblioteca fixa
A BMF foi depositária de uma coleção ver- n.º 12, no Lg. do Poço, mudando de instala-
dadeiramente madeirense, rica e heterogénea, ções, em 2004, para a Casa da Cultura de Câ-
quer em monografias, quer em jornais (pos- mara de Lobos. As negociações com o ex-IPLB
suindo, e.g., um título de um jornal insular da- para a instalação de uma nova biblioteca, vira-
tado de 1821, após a revolução liberal). da para o futuro e para a comunidade, resulta-
ram na inauguração, a 3 de maio de 2009, da
nova Biblioteca, o único projeto de raiz apro-
Biblioteca Municipal da Calheta vado na RAM no âmbito da Rede Nacional de
Inaugurada em 1996, a Biblioteca Municipal Bibliotecas Públicas. Este novo espaço passou a
da Calheta – Casa das Mudas foi construída ser a base da rede de bibliotecas do concelho e
tendo por base a biblioteca fixa n.º 75 da FCG, a base técnica, orientada para a uniformização
Casa da Cultura, instalada na Calheta desde dos serviços e para a informatização de todos
1973 (a FCG refere a data de 1980) até 2002, os dados referentes ao fundo documental a
ano em que se torna uma unidade orgânica da nível central, que, posteriormente, se distribui
Câmara Municipal da Calheta, beneficiando pelos polos do Estreito de Câmara de Lobos
do apoio e do empenho financeiro desta.
A Biblioteca é constituída por três polos de
leitura, assim distribuídos: polo do Arco da Ca-
lheta (1991), depois designado por Biblioteca
Municipal do Arco da Calheta; polo do Paul do
Mar (2001), depois designado por Biblioteca
Municipal do Paul do Mar; e polo do Jardim
do Mar (2002), depois designado por Bibliote-
ca Municipal do Jardim do Mar.
Em 2015, o seu acervo em suporte papel esta-
va estimado em 9000 obras e o MNL era cons-
tituído por 76 DVD, 7 jogos e 2 CD. Os serviços
e os produtos prestados eram disponibilizados
aos utilizadores pelo bibliotecário, dentro do Fig. 13 – Biblioteca Municipal de Câmara de Lobos,
espaço da Biblioteca. Para além da oferta de projeto da Arqt. Joana Rodrigues, 2004 (arquivo particular).
B ibliotecas ¬ 385

(que começou, de igual modo, como uma bi- Biblioteca Municipal da Ponta do Sol
blioteca fixa da FCG, em 1982, e passou para
um novo edifício em 2006) e do Curral das Criada em 1963 a partir da biblioteca fixa
Freiras (aberto em 2010). n.º 77 da FCG, cujo acervo absorveu, a Biblio-
A rede de bibliotecas do concelho de Câma- teca Municipal da Ponta do Sol era um servi-
ra de Lobos possuía, em 2015, mais de 35.000 ço público que tinha por finalidade facilitar o
documentos em papel, cerca de 500 documen- acesso à cultura, à informação, à educação e ao
tos sonoros, mais 1500 documentos audiovi- lazer, contribuindo para elevar o nível cultural
suais e 200 CD-ROM. e a qualidade de vida dos madeirenses.
Como centro de recursos educativos, a Bi-
blioteca tem como principais objetivos: estimu-
Biblioteca Municipal de Machico lar o gosto pela leitura e fomentar a compreen-
Em 1964, com o apoio da FCG, foi instalada são do mundo; criar condições para a fruição
uma biblioteca nos paços do concelho da Câ- da criação literária, científica e artística, pro-
mara Municipal de Machico, no salão do 1.º porcionando o desenvolvimento da capacida-
andar. A 14 de setembro de 1964, foi inaugu- de crítica do indivíduo; conservar, valorizar,
rada a biblioteca fixa n.º 74 da FCG, embora promover e difundir o património escrito, em
a biblioteca itinerante da FCG de São Vicen- especial o respeitante ao fundo local, o qual irá
te servisse, também, a população deste conce- contribuir para o reforço da identidade cultu-
lho. Anos passados, e para responder às neces- ral da região; e difundir documentação e infor-
sidades dos leitores, a Biblioteca foi transferida mação útil e atualizada, em diversos suportes e
para uma maior área da Câmara. Assim, a 3 de relativa às várias áreas do saber, satisfazendo,
março de 2008 é inaugurada a Biblioteca Mu- assim, as necessidades dos utilizadores e dos di-
nicipal de Machico no Edifício Fórum Machi- ferentes grupos sociais.
co, passando a contar com um espaço digno
ao serviço de toda a comunidade. O municí-
Biblioteca Municipal do Porto Moniz
pio concorreu ao programa da RRBP (IPLP/
DRAC) apenas para apoios à aquisição de mo- A Biblioteca Municipal do Porto Moniz foi
biliário e equipamento, fundos documentais e inaugurada a 22 de julho de 1988 e instalada
informatização. na sede da Câmara Municipal, no rés-do-chão.
Em 2015, a Biblioteca disponibilizava cerca Anteriormente, ocupava um espaço no edifício
de 18.500 livros para todas as idades, distri- onde estava instalada a antiga Câmara. O mu-
buídos em regime de livre acesso às estantes. nicípio de Porto Moniz beneficiou da biblio-
Existia uma coleção de livros que se encontra- teca fixa n.º 83 da FCG, instalada por volta de
va resguardada, cujo interesse residia sobre- 1964, que foi a base da Biblioteca Municipal,
tudo na área da literatura e dos estudos lite- que contou com o apoio financeiro da Câma-
rários portugueses, que exigia um pedido de ra; esta candidatou-se ao programa da RRBP,
pesquisa aos técnicos. Para além dos livros, mas não foi possível avançar com a construção
a Biblioteca contava também com MNL, em do edifício por falta de verbas.
particular CD de todo o género de música, fil- Em 2015, o seu acervo estava estimado num
mes vários e CD-ROM (num total de cerca de total de 10.474 volumes, sendo composto por
50 unidades), sobre muitas áreas do conhe- monografias e revistas que se enquadravam no
cimento, promovendo aos munícipes o em- perfil do utilizador do município. O emprésti-
préstimo domiciliário, serviços de fotocópias, mo de livros, a leitura de revistas, o apoio aos
digitalização de documentos, atividades de leitores e a existência de terminais informáti-
promoção de leitura, entre outros. Em 2013, cos com ligação à Internet eram os principais
foi inaugurada uma extensão desta Biblioteca serviços e produtos que a Biblioteca oferecia à
no Museu da Baleia. comunidade de utilizadores.
386 ¬ B ibliotecas

Biblioteca Municipal do Porto Santo Biblioteca Municipal


de Santa Cruz
A Biblioteca Municipal do Porto Santo teve a
sua génese na biblioteca da FCG n.º 78, criada A Biblioteca Municipal de Santa Cruz teve por
em 1960 (data que não está de acordo com a base a biblioteca fixa n.º 73 da FCG, a segunda
data fornecida pela FCG; 1964 é a data mais biblioteca fixa de que a Madeira beneficiou e a
provável) e desativada em 2003, e esteve insta- primeira num concelho rural, inaugurada em
lada, de 1960 a 1990, no rés-do-chão da Câma- julho de 1964 e instalada no edifício do Tri-
ra Municipal do Porto Santo. Em 1990, passou bunal, tendo mudado de espaço físico diversas
outro edifício da Câmara até 1994, ano em que vezes. Em 1991, com o apoio da Câmara Muni-
transita para um antigo quartel do exército, cipal de Santa Cruz, e não do programa finan-
até 1998. Neste ano, regressa ao segundo espa- ceiro da Rede de Leitura Pública, foi inaugu-
ço da Câmara Municipal, que não foi construí- rado um edifício para a Biblioteca na Qt. do
do de raiz, nem beneficiou do apoio financei- Revoredo.
ro da RRBP, mas apenas do apoio financeiro Em 2015, a Biblioteca prestava um serviço
camarário. inteiramente gratuito, com livre acesso às es-
A Biblioteca dispunha, em 2015, um acervo tantes, quer para leitura presencial, quer domi-
em papel de 23.545 exemplares, distribuído ciliária, e tinha ao dispor dos utilizadores um
por monografias, publicações periódicas, ví- considerável fundo bibliográfico, constituído
deos, CD-ROM e DVD. Não possuía catálogo por livros e diários regionais, entre outros, esti-
online, mas promovia as leituras domiciliárias mado em cerca de 20.000 unidades. Em 2000,
e presenciais. Para além disso, realizava even- a FCG entregou a biblioteca à Câmara Munici-
tos culturais, tais como: hora do conto; pales- pal, aumentando o seu acervo.
tras e conferências; lançamento de livros; con- As suas instalações incluíam, à data, a rece-
cursos, entre outros. Os seus utilizadores eram ção, uma sala infantojuvenil, duas salas abertas
sobretudo turistas, alguns investigadores e ao público adulto e ainda um anfiteatro ao ar
estudantes livre, espaços que convidavam à leitura e à rea-
lização de eventos.

Biblioteca Municipal
da Ribeira Brava Biblioteca Municipal de Santana
A Biblioteca Municipal da Ribeira Brava teve A Biblioteca Municipal de Santana teve a sua
a sua génese na biblioteca fixa da FCG n.º 82, génese na biblioteca fixa da FCG n.º 76, fun-
inaugurada a 30 de setembro de 1964 e desa- dada por volta de 1964 e desativada em 2010,
tivada em 2003. A construção da Biblioteca foi cujo acervo foi incorporado na Biblioteca com
possível graças à sensibilidade para as questões o empenho financeiro da Câmara Municipal
da cultura e da literacia dos representantes au- de Santana. Em 1997, o edifício da Câmara foi
tárquicos. Totalmente remodelada e inaugura- alvo de um projeto de ampliação, que não be-
da a 20 de novembro de 2001, a Biblioteca Mu- neficiou do programa financeiro da Rede de
nicipal possuía em 2015 um acervo de obras Leitura Pública, e se revelou uma obra de cariz
e documentos em suporte papel no total de moderno, que incluiu a construção do salão
15.694, disponível a todos os munícipes. nobre e da Biblioteca Municipal; esta última
Os serviços que prestava aos leitores eram: começou a funcionar, em janeiro de 2010, nas
leitura de monografias e das publicações de instalações da Casa da Cultura de Santana.
diários e jornais; acesso a computadores e rede O seu acervo era constituído, em 2015, por
sem fios; exposições e atividades culturais de documentos em suporte papel, e estimado em
apoio à educação e promoção do desenvolvi- 18.000 títulos, distribuídos por monografias,
mento cultural do concelho. publicações periódicas e MNL.
B ibliotecas ¬ 387

Biblioteca Municipal de São Vicente apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2005;
HABERMAS, Jürgen, Théorie de l’Agir Communicationnel: pour Une Critique de la
Raison Fonctionnaliste, vol. 2, Paris, Fayard, 1987; ITURBE, Kepa Osorio (coord.),
Inaugurada em 1986, a Biblioteca Municipal La Biblioteca Escolar: Un Derecho Irrenunciable, Madrid, Asociación Española de
de São Vicente ocupou um espaço no edifício Amigos del Libro Infantil y Juvenil, D.L., 1998; MENDONÇA, Alice Maria Justa
Ferreira, A Problemática do Insucesso Escolar: a Escolaridade Obrigatória no
da Câmara Municipal de São Vicente, sendo Arquipélago da Madeira em Finais do Século XX (1994-2000), Dissertação de
um serviço cultural da Câmara que não bene- Doutoramento em Sociologia da Educação apresentada à Universidade da
Madeira, Funchal, texto policopiado, 2006; PIAGET, Jean, Psicologia e
ficiou do programa financeiro da Rede de Lei- Epistemologia: para Uma Teoria do Conhecimento, 3.ª ed., Lisboa, Dom Quixote,
tura Pública. Nasceu da biblioteca itinerante 1977; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978; SILVA,
BI50 e da biblioteca fixa FCG n.º 175, designa- Maria Iolanda Pereira da, A Biblioteca Escolar e as TIC: Modelo para Novas
da Biblioteca Municipal Calouste Gulbenkian Aprendizagens. Estudo de Caso em Três Escolas Secundárias da Região Autónoma
da Madeira 2005/2006, Dissertação de Doutoramento em Ciências da
de São Vicente, inaugurada a 22 de janeiro Informação apresentada à Universidad Complutense de Madrid, Madrid, texto
de 1987 e desativada em 2002. A FCG doou os policopiado, 2008; SILVA, Maria Margarida Macedo, A Sementeira do Livro,
Barcelos, ed. do Autor, 1999; SOUSA, Jesus Maria Angélica Fernandes, La
seus acervos ao município, ou seja, à Biblioteca Dimension Personelle dans la Formation des Enseignants de l’Enseignement de
Municipal, que em 2013 contava com um total Base du 1er Cycle à Madère, Dissertação de Doutoramento em Ciências da
Educação apresentada à Université de Caen, Caen, texto policopiado, 1995;
de 21.998 unidades em suporte papel e 12.724
digital: ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DA REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA,
unidades em suporte digital. Estrutura Orgânica da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira,
A Biblioteca disponibilizava diversos servi- s.d.: http://www.alram.pt/images/stories/II.LEGISLATIVA/ESTRUTURA.
ORGANICA.ALRAM/Estrutura.Organica.da.ALRAM.pdf (acedido a 10 out.
ços e produtos aos munícipes: a consulta de 2015); Biblioteca da Direção de Serviços de Educação Artística e Multimédia:
um vasto número de documentos, impressos http://bibliotecadseam.madeira-edu.pt e http://www.recursosonline.org
(acedidos a 10 out. 2015); Biblioteca da Direção Regional de Juventude e
e multimédia, para além de empréstimo do- Desporto/Ponto Jovem: http://www02.madeira-edu.pt/drjd/juventude/
miciliário, quer de livros quer de documen- tabid/218/ctl/Read/mid/913/InformacaoId/2071/UnidadeOrganicaId/4/
Default.aspx (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca da Escola Secundária de
tos audiovisuais, e serviço grátis de fotocópias. Francisco Franco: http://escolas.madeira-edu.pt/esffranco/Escola/
Disponibilizava ainda outros apoios, nomeada- Servi%C3%A7os/Biblioteca/tabid/14821/Default.aspx (acedido a 10 out. 2015);
Biblioteca da Escola Secundária Jaime Moniz: http://www.jaimemoniz.com
mente: serviço na área da animação cultural, (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca da Universidade da Madeira: http://uda.
procurando dar respostas às necessidades de uma.pt, http://www3.uma.pt/Sectores/SDA/index.php?menu_item=2 e http://
europedirect.aigmadeira.com (acedidos a 10 out. 2015); Biblioteca de Assuntos
informação, cultura, lazer e educação a todos Europeus – Casa da Europa da Madeira: http://www.visitmadeira.pt/pt-pt/o-
os munícipes; aconselhamento à leitura e que-fazer/eventos/pesquisa/biblioteca-de-assuntos-europeus--casa-da-europa-
na-madeira (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca de Culturas Estrangeiras: http://
apoio a trabalhos escolares, apoiando também,
www.bprmadeira.org/site/index.php/noticias/448-catalogo-biblioteca-cultura-
quando solicitadas, as bibliotecas escolares. estrangeiras (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca do Centro Cultural John dos
Passos: http://cultura.madeira-edu.pt/ccjdp/OCentroCultural/Biblioteca/
No concelho de São Vicente, ficavam situa-
tabid/910/language/pt-PT/Default.aspx (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca do
das a Biblioteca Municipal de Boaventura, per- Centro de Estudos de História do Atlântico: http://ceha.gov-madeira.pt/CEHA/
tencente à Casa do Povo de Boaventura, e a biblioteca (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca do Conservatório – Escola das
Artes Eng.º Luiz Peter Clode: http://www.conservatorioescoladasartes.com/site/
Biblioteca Municipal da Ponta Delgada, per- index.php?pagina=biblio (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca Municipal da
tencente à Casa do Povo da Ponta Delgada, Calheta: http://www.cmcalheta.pt/pt/viver/equipamentos/bibliotecas (acedido
a 10 out. 2015); Biblioteca Municipal da Ponta do Sol: http://www.cm-
servindo ambas as respetivas populações locais. pontadosol.pt/biblioteca-municipal (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca
Municipal da Ribeira Brava: http://www.cm-ribeirabrava.pt/index
php?lang=pt&s=directorio&pid=177&title=biblioteca_&ppid=142 (acedido a
Bibliog.: impressa: CALIXTO, José António, A Biblioteca Escolar e a Sociedade 10 out. 2015); Biblioteca Municipal de Câmara de Lobos: http://www.cm-
da Informação, Lisboa, Caminho, 1996; COSTA, José Pereira et al., Assistência camaradelobos.pt/Default.aspx?ID=1151#.VhumcCugs2w (acedido a
Médico-Social na Madeira e a Escola Médico-Cirúrgica do Funchal, Funchal, 10 out. 2015); Biblioteca Municipal de Machico: www.cm-machico.pt/view-
Secretaria Regional do Turismo, Cultura e Emigração, 1992; FERNANDES, equipamento.php?publicacao_id=971 (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca
Margarida Ramires, Mudança e Inovação na Pós-Modernidade: Perspectivas Municipal de Santa Cruz: http://cultura.madeira-edu.pt/agendacultural/
Curriculares, Porto, Porto Editora, 2000; FINO, Carlos Manuel Nogueira, Novas Bibliotecas/BibliotecaMunicipaldeSantaCruz/tabid/885/language/pt-PT/
Tecnologias, Cognição e Cultura: Um Estudo no Primeiro Ciclo do Ensino Básico, Default.aspx (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca Municipal de Santana: http://
Dissertação de Doutoramento em Educação apresentada à Universidade de www.cm-santana.com/pt/areas-de-atuacao/cultura/biblioteca (acedido a
Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 2000; Id., “Vygotsky e a Zona de 10 out. 2015); Biblioteca Municipal de São Vicente: http://www.cm-saovicente.
Desenvolvimento Proximal (ZDP): três implicações pedagógicas”, Revista pt/?page_id=274 (acedido a 10 out. 2015); Biblioteca Municipal do Funchal:
Portuguesa de Educação, vol. 14, n.º 2, 2001, pp. 273-291; FUNDAÇÃO http://bmfunchal.blogs.sapo.pt e http://www.cm-funchal.pt/index.
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Oitocentos, Dissertação de Mestrado em Cultura e Literatura Anglo-Americanas Centro de Informação e Documentação: http://www.cm-funchal.pt/ciencia/
388 ¬ B iddle , A nthony J oseph D rexel

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‑Geral do Livro e das Bibliotecas, 1994: http://www.dglb.pt/sites/DGLB/
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SECRETARIA REGIONAL DA EDUCAÇÃO E RECURSOS HUMANOS, DIREÇÃO
REGIONAL DE PLANEAMENTO, RECURSOS E INFRAESTRUTURAS, Anuário
2011: Estatísticas da Educação e do Desporto (2010/2011), 2012: http://www02.
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InformacaoId/1900/UnidadeOrganicaId/1/Default.aspx (acedido a
10 out. 2015); Teatroteca Fernando Augusto: http://cultura.madeira-edu.pt/
agendacultural/Bibliotecas/TeatroTecaFernandoAugusto/tabid/897/language/
pt-PT/Default.aspx (acedido a 10 out. 2015).

Fontes orais: FREITAS, Maria Jaime, entrevistada por Iolanda Silva


[comunicação pessoal], Funchal, 2015. Fig. 1 – Anthony Joseph Drexel Biddle, janeiro de 1918
(Library of Congress, Washington).
Iolanda Silva

Dedicou parte dos seus projetos pessoais à


Biddle, Anthony Joseph Drexel escrita, trabalhando em diversos periódicos
em Filadélfia como repórter e também em jor-
Anthony Joseph Drexel Biddle nasceu a 1 de nais humorísticos. Fundou uma editora com o
outubro de 1874, em Filadélfia, cidade do es- seu nome, a Drexel Biddle Publishing House,
tado da Pensilvânia, nos EUA, vindo a falecer a onde publicou alguns dos seus trabalhos. Para
27 de maio de 1948, na sua cidade natal. além do supramencionado manual de comba-
Oriundo de uma família de banqueiros abas- te, escreveu romances, histórias para crianças,
tados da aristocracia de Filadélfia, Anthony Bid- relatos de viagens e uma autobiografia. A vida
dle herdou uma fortuna considerável, o que lhe de Anthony Biddle foi romanceada por Kyle
possibilitou concretizar uma série de projetos Crichton, tendo posteriormente sido realizado
pessoais e lhe granjeou a fama de excêntrico. um filme musical, no qual o próprio Walt Dis-
Cultivou o gosto pelos desportos de comba- ney trabalhou, intitulado The Happiest Millio-
te, sendo considerado um dos grandes entu- naire (1967).
siastas do boxe amador nos EUA. Foi também Anthony Biddle pertenceu a diversas institui-
pioneiro em técnicas de combate militar corpo ções científicas de Filadélfia, de acordo com o
a corpo, tendo sido um dos responsáveis pela modo como o próprio se apresenta nos seus li-
introdução desta metodologia de treino de vros, sendo sócio da Sociedade Americana de
combate nas diversas esferas militares america- Arqueologia e Numismática, membro da So-
nas, tendo publicado um livro/manual sobre a ciedade Geográfica de Filadélfia e do Depar-
matéria. Combateu na Primeira Grande Guer- tamento de Arqueologia e Paleontologia da
ra, sendo promovido ao lugar de tenente-coro- Univ. de Pensilvânia. A sua vida ilustre não im-
nel pelos serviços do Exército americano. pressionou Fernando Augusto da Silva, que, na
B iddle , A nthony J oseph D rexel ¬ 389

entrada que lhe dedica no seu Elucidário Ma- deles, o autor americano
deirense, rejeita algumas das observações que discorre sobre as mais
o autor americano escreveu sobre a ilha da variadas temáticas, sem
Madeira. apresentar uma organi-
Sem citar particularmente alguma passagem zação digna desse nome.
dos livros de Anthony Biddle, Fernando Augus- Por exemplo, no segun-
to da Silva destaca o segundo título que aquele do artigo, tanto discorre
escreveu, The Land of the Wine, o único que leu sobre a influência ingle-
com alguma atenção e interesse, não pela quali- sa na Ilha, como descre-
dade da obra, mas sim pela “série de erros e de ve o clima ou os vários
dislates que contém”. Acrescenta ainda, lançan- “distritos” rurais. Este
do uma crítica pessoal assaz irónica, num regis- livro apresenta-se em
to pouco usual na sua escrita, que o “Sr. Biddle”, todos os aspetos como
já que se apresentava como sócio de três insti- um registo de impres-
tuições científicas americanas, deveria também sões de viagens. A estru-
pertencer a “alguma das muitas sociedades de tura do vol. ii, publicado
temperança do seu país”, porque, assim, “talvez em 1899, que nos é apre-
Fig. 2 – The Madeira
tivesse produzido obra mais honesta e exata do sentada por Biddle, não Islands (1896),
que aquela que ousou publicar sobra a nossa coincide com a organi- de Drexel Biddle.
Ilha” (SILVA e MENESES, 1984, I, 152). zação em “artigos” cons-
Sabe-se com relativa certeza que Anthony Bi- tante no vol. i, estando divido em quatro partes,
ddle residiu com a família na ilha da Madei- com numeração iniciada na 4.ª parte, sendo a
ra entre 1889 e 1891, onde ficou hospedado última a 7.ª parte. Apesar da incoerência, Bid-
no Hotel Miles Carmo, como o próprio indi- dle constrói um formato esquematizado, coin-
ca. Durante esta estadia na Ilha, Anthony Bid- cidente com uma ideia de descrição científica
dle estabeleceu contactos com as autoridades das várias temáticas abordadas. De facto, este
comerciais madeirenses, como se depreende volume recria na estrutura e na forma os dois
pelo facto de se apresentar, no vol. ii de The volumes precedentes de The Land of the Wine.
Madeira Islands, como “Delegado, com espe- No prefácio de The Land of the Wine, Anthony
cial nomeação, da Associação Comercial do Biddle elucida que os dois volumes, ambos pu-
Funchal”, para o Congresso Internacional de blicados em 1901, foram preparados durante 12
Comércio, em Filadélfia (EUA), em 1899, e vi- anos, pretendendo que estas obras sejam, por
ce-presidente para a Madeira do conselho con- um lado, livros de referência e de estudo, para
sultivo do Museu Comercial da Madeira (BID- consulta de estudantes, com tabelas e índex de
DLE, 1896-1899, II, 5). referência e, por outro, um livro lúdico que
As duas obras escritas por Anthony Biddle, narra a experiência de viagem, de aventura e
The Madeira Islands e The Land of the Wine, di- descoberta, ao gosto dos amantes de literatura
vididas em dois volumes, foram o resultado da de viagem, apresentando pistas e informações
sua inesgotável curiosidade sobre a Ilha e os essenciais para quem quiser descobrir a ilha da
madeirenses; como o próprio escreveu: “Every- Madeira. Os 2 volumes estão divididos em 7 par-
thing is curious [é tudo muito curioso]” (Id., tes contendo um total de 28 capítulos. O início
Ibid., I, 1). Os volumes estão profusamente ilus- de cada parágrafo é seguido de um pequeno tí-
trados com mapas, fotografias e desenhos. tulo sobre o tema estudado. No vol. i, a 1.ª parte
No vol. i do livro The Madeira Islands, An- é dedicada à história da Ilha, a 2.ª parte é sobre a
thony Biddle ensaia em traços gerais muitos viagem e os locais turísticos, a 3.ª parte é dedica-
dos temas que irá depois reescrever e aprofun- da à geografia e à geologia, sendo acompanha-
dar no livro The Land of the Wine, dividindo as do por um prefácio e um posfácio. Os temas tra-
suas impressões em oito artigos. Em cada um tados no vol. ii são, por ordem, os madeirenses,
390 ¬ B iddle , A nthony J oseph D rexel

as suas características, religião, leis e Fig. 3 – The Land of the Wine (1901), 2 vols.,
de Drexel Biddle.
os seus costumes, a flora, as vinhas
e os vinhos, e por fim, a fauna.
Uma leitura atenta aos quatro vo- descreve os lavradores madeirenses,
lumes editados por Anthony Bidd- apesar de os considerar simples e es-
le revela certas opiniões que pro- túpidos, enaltece as qualidades de
vavelmente estarão na origem da bons trabalhadores, poupados e de-
reação crítica de Fernando Augus- votos. Se o avistamento da natureza
to da Silva a estas obras. A título luxuriante madeirense provoca em
exemplificativo, Anthony Biddle, Biddle maravilhamento e admiração
ao falar sobre as feições dos ma- durante o dia, o mesmo acontece du-
deirenses, refere que regra geral rante a noite madeirense, tendo o es-
eram de compleição negra, consi- critor dedicado um parágrafo à des-
derando que não são verdadeiros Portugueses, crição romântica da sensação de beleza estranha
sobretudo os de classe mais baixa, por terem que provocam no viajante as noites de luar, e,
sangue africano, uma vez que, depois da aboli- do mesmo modo aquelas em que o céu escuro
ção da escravatura, os escravos se haviam mis- e limpo releva os astros, escrevendo que estes se
turado com os europeus. Acrescenta, ainda, a mostram ao olhar mais resplandecentes do que
este propósito, que os madeirenses têm uma em qualquer outra parte do mundo. Percebe-se
mistura de sangue mouro, muito graças à pira- também o cuidado em Anthony Biddle apren-
taria que havia nas águas do Mediterrâneo e do der um pouco de português aquando da sua es-
Atlântico, e ao facto de muitos desses piratas se tadia na Ilha, percetível quando descreve a va-
terem fixado na Ilha. Outra afirmação duvido- riedade dos frutos e produtos hortícolas, e tem
sa de Anthony Biddle acerca dos madeirenses a preocupação em registar os nomes em dupla
é que os ilhéus se sentem indignados quando grafia, apresentando a palavra em português e
são considerados portugueses, pois os madei- em inglês.
renses têm uma ardente admiração pelos Ame- Os escritos sobre a Madeira de Anthony Dra-
ricanos, havendo entre eles a ideia de que os xel Biddle, pela sua abrangência temática, ape-
Americanos desejam anexar a Ilha porque pre- sar de não terem merecido a consideração do in-
cisam da sua ajuda. Sobre este assunto, An- signe autor do Elucidário Madeirense, constituem
thony Biddle explica que, se alguém pergun- um interessante, embora por vezes caricato, do-
tar a um madeirense de inteligência mediana cumento de literatura de viagem de um alegre
o que pensa sobre a América, este responderá milionário americano, reveladora da crescen-
com toda a convicção que a anexação da Ilha te influência da riqueza americana no mundo,
por parte dos Americanos está planeada, ape- que se reflete em alguns espaços mais peque-
nas esperando uma boa oportunidade para li- nos, como acontece com a ilha da Madeira.
bertar os madeirenses do jugo monárquico.
Obras de Anthony Joseph Drexel Biddle: The Madeira Islands (1896-1899); The
Por outro lado, Anthony Biddle manifesta Land of the Wine. Being An Account of the Madeira Islands at the Beginning of the
uma genuína afeição e maravilhamento pela Twentieth Century and from a New Point of Vue (1901).

Ilha, referindo que a aproximação à cidade do Bibliog.: BIDDLE, Anthony Joseph Drexel, The Madeira Islands, 2 vols.,
Philadelphia, Drexel Biddle Publisher, 1896-1899; Id., The Land of the Wine. Being
Funchal revela “the most sublimely grand and An Account of the Madeira Islands at the Beginning of the Twentieth Century and
beautiful sights probably to be found in the from a New Point of View, 2 vols., Philadelphia, Drexel Biddle Publisher, 1901;
LEONARD, John W. (org.), Who’s Who in America. A Biographical Dictionary
world [provavelmente uma das paisagens mais of Notable Living Men and Women of the United States. 1901-1902, Chicago, A.
grandiosas e sublimes do mundo]” (BIDDLE, N. Marquis Publishers, 1901; SILVA, A. Marques da, “Visitantes estrangeiros na
Madeira. Uma tradição de violência. O tipo físico e o carácter do madeirense”,
1896-1899, I, 40). Atlântico, n.º 1, 1985, pp. 20-53; Id., Passaram pela Madeira, Funchal, Empresa
O autor americano enaltece a beleza e os Municipal Funchal 500 Anos, 2008; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984.
cuidados que os madeirenses têm com os jar-
dins, sejam eles públicos ou privados. Quando Carlos Barradas
B ilhardice ¬ 391

Bilhardice
O estudo do regionalismo madeirense “bilhar-
dice” tem como escopo a sua individualização
em relação a outros termos que a língua portu-
guesa oferece e que poderiam aparecer como
sinónimos deste regionalismo sem qualquer
diferenciação semântica. A riqueza semântica
do termo “bilhardice” obrigará a testes vários
no eixo paradigmático e no eixo sintagmáti-
co, consoante a nomenclatura de Ferdinand
Saussure. A semântica deste termo é mais sus-
tentada em conhecimentos pragmáticos re-
sultantes da sua realização em concreto, da
experiência própria de sujeito falante do por-
tuguês madeirense e da sustentação ideológi-
ca em diferentes campos científicos, mais ou
menos implícitos, nomeadamente da linguísti-
ca, da semântica, da psicologia, da sociologia
e de outros ramos gnosiológicos, incluindo o
da filosofia. Com efeito, a consulta de dicio-
nários e enciclopédias da língua portuguesa
revela que este vocábulo não regista nenhu- Fig. 1 – Camponeses conversando no alto da serra, aguarela de
viajante britânico, 1860 (Casa-Museu Frederico de Freitas).
ma entrada nessas obras. Exceção a esta situa-
ção é o Dicionário Priberam da Língua Portugue-
sa (DPLP), online, que o regista como tendo o e informações acerca de um termo, o recurso
mesmo significado de “bisbilhotice”. A Gran- a exemplos construídos em situações possíveis
de Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, autorida- de comunicação de fala foi a base essencial do
de científica de reconhecido prestígio, na sua estudo deste regionalismo. Em tal situação,
edição de 1936, registava uma entrada de um este trabalho não pôde contar com o registo
termo cognato de “bilhardice” e definia assim sistemático do termo “bilhardice” em dicioná-
“bilhardeira”: “o mesmo que mexeriqueira, in- rios ou enciclopédias, que costumam reivindi-
trigante, na ilha da Madeira; ordinária ou de car para si a objetividade, como se se situassem
fraco valor moral em Évora. Em Beja, mulher acima das determinações socio­‑históricas em
de mau génio”. Já nas últimas edições, entre que um vocábulo surge e é usado, quando é
1998 e 1999, o termo deixa de aparecer. A sua certo que as definições de um verbete, em di-
formação morfológica fez uso das potenciali- cionários e enciclopédias, podem trazer implí-
dades do sistema aplicadas à forma, tendo­‑se o citas perspetivas ideológicas e culturais, mesmo
sujeito falante, por intuição linguística, limita- que possam não ter sido objeto de um ato re-
do a acrescentar ao radical adjetival “bilhard­‑” flexivo. Contudo, esse obstáculo tornou­‑se um
o sufixo “­‑ice”, que se junta a adjetivos para for- desafio e determinou o método da pesquisa e
mar nomes, como em sovin­‑ + ice > sovinice ou da elaboração do mesmo, partindo da consul-
tol­‑ + ice > tolice. ta de trabalhos já efetuados sobre o mesmo as-
Assim, sem grandes meios de consulta do sunto, os quais tiveram e anotaram as mesmas
ponto de vista de dicionários ou enciclopé- dificuldades, mas cujos autores têm o conheci-
dias que registassem o verbete do regionalis- mento da realidade da língua em contexto, do
mo “bilhardice”, i.e., aquilo a que a lexicogra- contexto sociocultural madeirense, da língua
fia designa o conjunto de aceções, exemplos portuguesa tal como é falada na Madeira e do
392 ¬ B ilhardice

uso muito peculiar do termo “bilhardice” pela e na versão online da edição de 1913 do Novo
população da região. Com efeito, as diferentes Diccionário da Língua Portuguesa de Cândido de
aceções de um termo resultam também daqui- Figueiredo encontram­‑se duas entradas para
lo a que Saussure chama “realidade da língua”, o verbo “bilhardar” e uma para “bilhardeiro”:
ou seja, da relação do sujeito com os signos “Bilhardar, 1 v. i. Dar duas vezes na bola com o
que usa, porque a compreensão do signo lin- taco ou tocar duas bolas ao mesmo tempo, no
guístico e a sua realização se dão num deter- jogo do bilhar. (Fr. billarder); bilhardar, 2 v. i.
minado contexto sociocultural e, nesse contex- Jogar a bilharda. Pop. Vadiar”. “Bilhardeiro, m.
to, ele adquire uma significação que vai para Jogador de bilharda. Vadio, garoto”. O termo
além da mera equivalência de significantes ins- “bilhardice” também não se encontra neste di-
critos na paradigmática da sinonímia, o que cionário, facto já observado por outros auto-
implica a variação de valores de acordo com res, que, por sua vez, citam outros: “A palavra
a realidade sociocultural em que se movimen- bilhardice é um termo regional para as palavras
ta o sujeito falante, pois cada palavra de uma bisbilhotice, mexerico, coscuvilhice. O que a
linha sintagmática se relaciona com as entida- torna interessante, de facto, é tratar­‑se de um
des no sintagma, mas igualmente com outras regionalismo, e ser usada, frequentemente, em
que são suscetíveis de o substituir na coluna detrimento das anteriores. Curiosamente, não
paradigmática. Para além disso, os dicioná- constitui entrada de dicionários e é apenas refe-
rios e enciclopédias são produto de autores rida como ‘falso testemunho, alveiosia. Aquelas ra-
que são fruto de contextos socioculturais que parigas não faze m senão bilhardar’” (BARBEI-
os condicionam e lhes proporcionam o ma- TO, “Para a Compreensão…”). Note­‑se que o
terial necessário para o seu trabalho, em que trecho da citação colocado em itálico tem por
um exemplo ilustrativo pode ser, exatamen- autor Jaime Vieira dos Santos, em “Vocabulá-
te, este excurso sobre o termo “bilhardice”. rio do Dialecto Madeirense”, artigo publicado
Já o uso do verbo “bilhardar” e de “bilhardei- na Revista de Portugal. Em Palavras d’Aquintro-
ro” pode anotar­‑se no DPLP (“Bilhardar: Picar dia, de Ana Cristina de Figueiredo, o termo
duas vezes a bola com o taco. Picar duas bolas aparece registado com várias aceções: “Ato de
ao mesmo tempo quando estão juntas. Jogar a conversar animadamente (Cavaqueira). ‘Aque-
bilharda. Regionalismo, o mesmo que bisbilho- las parecem duas comadres: sempre na bilhar-
tar”; “Bilhardeiro: Jogador de bilharda. Man- dice!’” ou “ação de comentar a vida alheia e de
drião, calaceiro. O mesmo que bisbilhoteiro”), arranjar intrigas ou mexerico sobre a vida de
outrem (alcovitice, bisbilhotice, coscuvilhice,
mexerico)” (FIGUEIREDO, 2011, 104­‑105).
Interessante será referir o que diz sobre “bi-
lhardice” David Pinto Correia: “Quanto à ‘bi-
lhardice’, termo felicíssimo exclusivamente
madeirense, que sintetiza, com os seus pró-
ximos ‘bilhardeiro’ e ‘bilhardeira’ e ‘bilhar-
dar’ (interessante será verificar que este verbo
quase só se conjuga no infinitivo ou em formas
perifrásticas), e com uma sonoridade bem ex-
pressiva, muito do que outras palavras de sen-
tido próximo (como, e.g., ‘intriga’, ‘bisbilhoti-
ce’, ‘mexeriquice’) não conseguem exprimir:
a sua complexidade semântica integra a prin-
cipal significação de ‘difundir uma situação’,
Fig. 2 – Conversa de rua, pormenor da litografia
mormente ‘reservada’, ‘que não era necessa-
Franciscan Convent, de Frank Dillon, Funchal, 1850. riamente divulgável’, ou mesmo ‘que devia ser
B ilhardice ¬ 393

mantida em segredo’, mas também a de uma eram os mais fracos, ou senão mais fracos, os
crítica velada ou de reprovação ao ato em si, menos compensados socialmente” (Id., Ibid.).
ao mesmo tempo que contém muito de ironia, Neste jogo social, a autora observa a mudança
e de caracterização de tal prática como lúdica que a liberdade política e cultural veio a ter na
(como se se quisesse indicar que ‘é um dizer mudança das mentalidades: “A liberdade ten-
por dizer’, ‘divulgar por divulgar’, sem procu- deu a desmontar esta coisa toda, graças a Deus.
rar consequências graves para o que é divulga- Foram inúmeras as personagens desmascara-
do ou sobretudo para quem é posto em causa das, e hoje fala­‑se das pessoas doutra maneira.
pela divulgação, o que está longe de ser verda- Parecia que a mentalidade dos madeirenses es-
de), uma espécie de hábito atavicamente gra- tava a crescer. O número de pessoas aumentou,
tuito, inofensivo” (CORREIA, 1999, 25). Esta e deixou de ter o mesmo impacto saber que
longa citação justifica­‑se não só pela autori- a dona Sílvia do monte andava a encontrar­‑se
dade científica do autor, mas, sobretudo, por com o senhor Silva da zona velha. Porque nin-
colmatar a ausência já anotada do termo em guém os conhece. E também hoje as pessoas
dicionários académicos, na medida em que a assumem muito mais o que fazem, e não tem
sua riqueza semântica serve de fonte autoriza- graça nenhuma falar de coisas que as próprias
da para este verbete. Pela mesma linha do ca- pessoas assumem”. E afirma, nessa sua aborda-
rácter lúdico­‑narrativo para aqueles que prati- gem sociocultural da liberdade, que “A ilite-
cam a “bilhardice” envereda Teresa Brazão, ao racia do estado novo alimentava a bilhardice.
dizer que “A bilhardice é o curioso e permanen- Por isso, agora, temos de investir mais em cul-
te hábito que têm as pessoas, de saber porme- tura. Só assim a sociedade ficará melhor, para
nores acerca daquilo que não lhes diz respeito, todos vivermos confortavelmente nela, com a
especialmente quando se trata da vida alheia. tão propagada qualidade de vida” (Id., Ibid.).
De cultivar e fazer crescer desmesuradamen- Este excurso de Teresa Brazão revela­‑se bastan-
te esses pormenores, que acabam tão maio- te pertinente neste verbete, uma vez que a au-
res quão enorme o desejo dos seus insaciáveis tora, ao situar socioculturalmente a “bilhardi-
criadores […] A Madeira, meio pequeno, que, ce” num meio pequeno e ao perspetivá­‑la em
apesar de tudo, já não é assim tão pequeno, outras vertentes, nomeadamente a político­
foi, desde tempos imemoriais, solo fértil para ‑cultural, confere a esta característica um
o cultivo de tal hábito social” (BRAZÃO, 2005, cunho marcadamente regional, pela impor-
68). A autora não deixa, contudo, de notar não tância que ela assume na sociedade madeiren-
só o jogo social que está por detrás da sua práti- se em todos os extratos socioculturais; ou seja,
ca em favor de elementos mais bem situados na fica aqui claro não se tratar de uma característi-
esfera social, mas igualmente os efeitos que tal ca exclusivamente popular, como, por vezes, se
pode provocar nos alvos da “bilhardice”, que, possa pensar ou dizer. O conhecimento desta
nesse caso, seriam mais frágeis na hierarquia realidade contribui para o enriquecimento da
social, ou a desigualdade entre o homem e a semântica do vocábulo “bilhardice” e, de certo
mulher: “Era mesmo assim. Na mesma medida modo, ajuda a preencher a lacuna que deriva
em que se exageravam e chafurdavam os de- da sua ausência sistemática em dicionários e
feitos de alguns, exaltava­‑se e engrandecia­‑se a enciclopédias.
virtude de outros. Esses outros alimentavam a No estudo de um determinado regionalis-
bilhardice, porque ela lhes era favorável. Quan- mo, a primeira questão que se coloca é a de
to mais mal se dissesse dos outros, mais bem se saber se existem palavras no idioma que pos-
diria deles próprios, numa espécie de equação sam substituir, com propriedade ou total equi-
matemática ou regra dos termos da lógica aris- valência, esse regionalismo. E logo aqui de-
totélica. Assim, as suas poses, estudadíssimas e paramos com a questão da sinonímia. Outra
refinadíssimas, refletiam a sua enorme embora é a de saber se a palavra em questão cumpre
só aparente virtude. […] As principais vítimas uma função que nenhuma outra cumpre para
394 ¬ B ilhardice

os sujeitos falantes dessa região. Posta assim a não se esgota em nenhuma delas em particu-
questão, o madeirensismo “bilhardice” pode lar). O signo “bilhardice”, que não designa um
ser comparado com outros termos que lhe são objeto, uma realidade física, tangível, mas uma
correlatos na língua portuguesa, como “coscu- realidade fisicamente intangível, só pode ser
vilhice”, “mexerico”, “bisbilhotice”, “intriga”, entendido ligando­‑o à realidade exterior que
“alcovitice” ou até mesmo “fofoca”, que, note­ lhe deu origem, em correlação com uma lin-
‑se, nos remete mais para o português brasi- guagem interior traduzida em imagens men-
leiro, pois não provém do português lusitano tais que não se ativam de forma reflexiva, mas
e tem etimologia africana, mais propriamen- de forma inconsciente e automática, o que re-
te da língua banta. Apesar de os dicionários mete não só para o campo da psicologia, da
darem de “fofoca” o sinónimo “mexerico”, esse sociologia, da cultura, do folclore, dos hábi-
termo não deixa de ter um contexto de signifi- tos, da geografia e do meio, mas também para
cação que, não obstante a etimologia africana, uma fronteira que define o que é ser madei-
tem ressonância nitidamente brasileira. Assim, rense. Nessa perspetiva, o madeirensismo “bi-
ao ouvir o termo “fofoca”, um europeu tende lhardice” não é suscetível de ser substituído
a evocar de forma espontânea contextos exó- por outros termos que se reivindiquem como
ticos, aquilo a que Sartre chama o “estado de seus sinónimos sem que isso tenha um custo
consciência”, que implica uma espécie de inér- de esvaziamento mental, do ponto de vista cul-
cia, de passividade reflexiva ao ouvir um deter- tural, em quem ouve e em quem fala, no caso
minado signo face à realidade que ele desig- de falantes madeirenses, perdendo­‑se o con-
na. Assim, se é certo que pode haver múltiplos texto sociocultural de uma mundividência que
sinónimos para o termo “fofoca”, tantos quan- só pode ser traduzida por este termo enquan-
tos aqueles que nos devolve um bom dicioná- to regionalismo compósito de uma realidade
rio, a verdade é que nenhum deles ecoará me- cultural. Esteja o sujeito falante na Madeira ou
lhor no nosso imaginário como significativo de em qualquer parte do mundo, a “bilhardice”
um ambiente brasileiro. evoca a ida à igreja, os arraiais em seu redor, a
O que fica dito acerca do brasileirismo “fo- conversa entre vizinhas, ou vizinhos, a aldeia, a
foca” aplica­‑se, com a mesma propriedade, rua, o bairro, a cidade e o campo, enfim, a Ma-
ao madeirensismo “bilhardice”. O uso de um deira e as suas duas ilhas.
signo provoca uma atitude de consciência que Ou seja, a relação necessária do uso de um
integra esse signo numa estrutura mental que signo com determinado contexto habita no
não depende de um objeto particular (o signo sujeito falante em função de uma opção que
“árvore” é o universal de todas as árvores, mas lhe é imposta por um contexto sociocultural.
A opção do sujeito falante pelo termo “bilhardi-
ce”, nesse caso, deriva de ele julgar que é o que
melhor traduz a realidade que quer transmitir.
Pode haver a tentação de o argumento do nível
sociocultural do falante explicar o uso deste
termo em detrimento de outros que poderiam
ser tomados como sinónimos e com a mesma
eficácia, contudo, tal não se verifica, pois
observa­‑se o seu uso por indivíduos de diferen-
tes extratos sociais. Também quando à questão
diafásica, a opção ou não por este termo não
difere da que é feita por qualquer outro que se
apresente como sinónimo, e.g., em situação so-
Fig. 3 – Conversa na praia do Calhau, pormenor da litografia
lene, onde não se fala de coscuvilhice e termos
The Governor’s House, de Frank Dillon, Funchal, 1850. equivalentes; e se, após o ato solene, houver
B ilhardice ¬ 395

cavaqueira, o termo “bilhardice”, mesmo nos e a sua prática só pode ser entendida em meios
salões dos diferentes fora regionais – políticos, geográficos pequenos, em que todos se co-
culturais, sociais –, antepor­‑se­‑á a outros toma- nhecem. O mais importante, contudo, é que
dos como equivalentes. Resta a variação dia- não é possível criar uma rede de sinónimos
tópica, e é nela que devemos prosseguir, visto do mesmo campo semântico, visto que o vocá-
tratar­‑se de um regionalismo. Sobre a questão bulo se estende em várias linhas significativas.
da relação intrínseca entre o significante e o Perguntar­‑se­‑á se nos casos exemplificados o
significado no interior do signo, ressalvando termo “bilhardice” poderia ser substituído por
a voluntária construção pleonástica da frase, e outras palavras no campo da sinonímia. A res-
se o significado de um signo é assumido como posta é “não”, uma vez que, entre os sujeitos
representação mental coletiva de um ente, ser falantes, se dá ao termo “bilhardice” um signi-
concreto ou abstrato, aduz­‑se que um signo não ficado de acordo com as circunstâncias, o que
pode subsistir, ontologicamente, numa espécie é relevante, porque os significados chegam a
de mundo platónico das ideias sem uma neces- cair no campo da antonímia. Retenham­‑se,
sária ligação a um referente exterior a si, que é além dos exemplos já dados, mais dois: “Maria
a razão da sua existência. As situações em con- é uma pessoa a quem se pode fazer uma bilhar-
creto do uso da palavra remetem para a sua ri- dice!”: aqui, o sinónimo é “confidência”, clara-
queza semântica e negam qualquer sinonímia mente antónimo de “coscuvilhice”, a ideia de
simplificada. Tal implica considerar, para além que Maria é discreta. “Helena andou a fazer bi-
do nome abstrato “bilhardice”, o verbo “bilhar- lhardices sobre Maria”: aqui, o termo “bilhardi-
dar” e o adjetivo “bilhardeiro” (incluindo a sua ce” é sinónimo de “coscuvilhice”, veiculando a
forma correspondente ao grau aumentativo, ideia de que Helena é indiscreta. Ou ainda ou-
“bilhardão”), classes morfológicas importan- tros casos, desta vez ilustrativos dos vários sen-
tes para um quadro semântico variado destes tidos do nome “bilhardice”: “Não me venhas
termos. Vejamos casos concretos de aplicação: com bilhardices, que eu já te conheço, gostas
“Olhe, venho aqui fazer­‑lhe uma bilhardice”. é de espalhar confusão!”: aqui, significa intri-
Nesta enunciação, estão pressupostas a cum- ga e origem de conflito. “Aquelas três estão há
plicidade entre os dois sujeitos falantes, a con- mais de duas horas numa bilhardice pegada!”:
fiança e a proximidade, quer humanas, quer aqui, o termo adquire o sentido de cavaqueira,
geográficas, tipo porta com porta, no aspeto conversa, sem qualquer tipo de insinuação ou
espacial. Que significará, então, aqui “bilhar- acusação.
dice”? Confidência, segredo, maledicência ou Para completar este excurso argumentativo
não, dependendo do conteúdo. Imaginemos e afastar de vez a hipótese de sinonímia abso-
vários exemplos: “– Olhe, venho aqui fazer­‑lhe luta de “bilhardice” com outros vocábulos da
uma bilhardice. Sabe que Maria tem um aman- nossa língua, aduzo, em defesa da diferencia-
te?! – Não me diga! E ela que se tinha por me- ção deste vocábulo em relação a termos que
lhor que as outras!”: aqui, o caso é nitidamente se apresentam como sinónimos, outros exem-
de conversa de maldizer. “– Olhe, venho aqui plos: com dois adjetivos da mesma família:
fazer­‑lhe uma bilhardice. Sabia que Maria tem “António é um bilhardeiro. Contei­‑lhe um se-
um tumor? – Ah, coitada da rapariga, tão nova, gredo e logo espalhou por todo o lado!”: An-
com filhos pra criar!”: aqui, o caso é de solida- tónio, aqui, é um indivíduo que não merece
riedade, uma confidência, em que a “bilhardi- confiança. “Maria é um bilhardão! Ouve aqui e
ce” implica uma obrigação solidária, em que conta acolá e, ainda por cima, distorce tudo!”:
todos sabem de uma triste realidade que mere- Maria, além de coscuvilheira, é enredadeira e,
ce discrição, pelo menos perante Maria, e todos subentende­‑se, mentirosa. Outro exemplo, em
têm o dever de passar a ser compassivos com que o significado muda radicalmente, com re-
ela. Como se vê, a imagem mental do signo “bi- curso ao verbo “bilhardar”: “Estás a bilhardar,
lhardice” varia de acordo com as circunstâncias, eu não disse nada disso!”: neste caso, a mentira
396 ¬ B ilhardice

é a base da significação. Como se pode infe- hora em que é designado: “estrela da manhã”
rir destes exemplos de vocábulos cognatos de ou “estrela da tarde”. Ou seja, a representação
“bilhardice”, cada palavra é o centro de uma subjetiva do signo linguístico “estrela” muda
gramática de interpretação da vivência huma- de acordo com o contexto e com a sua vivên-
na em cada lugar e em cada circunstância, e cia. Por sua vez, enquanto o signo saussuriano
há que concluir que os madeirenses procura- é uma imagem universal e objetiva, apreendida
ram novas palavras por necessidade de traduzir coletivamente, ao sinal (o signo de Saussure,
aquilo que mais nenhuma comunidade viveu. recorde­‑se) Frege associa outra componente:
Por isso, a palavra “bilhardice” pode ser sinóni- a representação que o sujeito falante associa a
mo de outras palavras, mas essoutras palavras esse sinal, e que é inteiramente subjetiva. Entre
não traduzem exatamente aquilo que os ma- o signo de Saussure e o sinal de Frege não há
deirenses viveram. diferença quanto à universalidade e à repre-
Vejamos, a propósito deste assunto, a teoria sentação de uma imagem apreendida coletiva-
de Gottlob Frege, esclarecendo, porém, a prio- mente. A questão está em que, para Frege, a
ri, a nomenclatura deste autor com a equivalen- representação mental associada ao sinal é in-
te terminologia saussuriana: o sinal ou nome teiramente subjetiva.
próprio é equivalente a signo; a referência ou Não é fácil encontrar na língua portuguesa
realidade designada é o referente saussuriano; um termo que traduza, com a mesma eficácia e
o significado é o mesmo que em Saussure (sig- fidelidade, a realidade sociológica madeirense
nificado). Como é que a relação no interior veiculada pelo termo “bilhardice”, até porque
do sinal ou nome próprio, em Frege, estabe- ela mesma, como vimos nos exemplos expos-
lece a ligação entre a referência (que é reali- tos ao longo deste excurso, tem uma plurali-
dade designada) e o significado, ou seja, qual dade semântica que difere de acordo com o
é a diferença entre o significado em Saussure sintagma em que se insere. Convém ler, para
e em Gottlob Frege, se ambos usam o mesmo estabelecer um paralelo de situação, o seguin-
termo? É que em Saussure tudo se passa no in- te texto sobre a palavra “saudade”: “Saudade é
terior do signo, que é um universal abstrato, substantivo abstrato, tão abstrato que só existe
mas em Frege o significado é o modo como na língua portuguesa. Os outros idiomas têm
o referente, físico ou abstrato, se realiza na dificuldade em traduzi­‑la ou atribuir­‑lhe um
mente do sujeito falante: aquilo que cada um significado preciso: ‘Te extraño’ (castelhano),
pensa ou sente ao ouvir um signo, seja ele qual ‘J’ai [du] regret [de]’ (francês) e ‘Ich vermis-
for, é determinado pela sua experiência subje- se dish’ (alemão). No inglês têm­‑se várias ten-
tiva, como adiante veremos. No caso em estu- tativas: ‘homesickness’ (equivalente a saudade
do, a mesma realidade pode ser designada por de casa ou do país), ‘longing’ e ‘to miss’ (sen-
um sujeito falante não madeirense por outro tir falta de uma pessoa), e ‘nostalgia’ (nostal-
termo que não “bilhardice”; já para um sujei- gia do passado, da infância). Mas todas essas
to falante madeirense, a imagem da realidade expressões estrangeiras não definem o senti-
contextual que ele pretende transmitir a outro mento luso­‑brasileiro de saudade. São apenas
sujeito madeirense só tem uma representação tentativas de determinar esse sentimento que
mental adequada se for designada pela pala- sentem os povos de cultura portuguesa. Assim,
vra “bilhardice”. Para corroborar esta ideia, essa palavra ‘saudade’ não é apenas um obs-
recorro­‑me do exemplo clássico de Frege, que táculo ou uma incompatibilidade da lingua-
vai mais longe, ao defender que a mesma re- gem, mas antes, e principalmente, uma carac-
ferência pode, inclusive, ter significados dife- terística cultural daqueles que falam a língua
rentes em função do contexto em que é dita. portuguesa” (LESSA, “O Mito da Palavra Sau-
O planeta Vénus não deixa de ser o mesmo dade”). Donde se deduz que “bilhardice” está
em qualquer altura do dia, mas o ato elocutó- para o falar madeirense como “saudade” está
rio ganha semânticas diferentes consoante a para a língua portuguesa, no sentido em que
B iodiversidade ¬ 397

nenhuma delas, no seu âmbito, encontra um Bibliog.: impressa: ALLEAU, René, A Ciência dos Símbolos, Lisboa, Edições 70,
2001; ARON, Raymond, As Etapas do Pensamento Sociológico, Lisboa, Dom
sinónimo que a possa traduzir absolutamente. Quixote, 2010; ASCENÇÃO, Rui et al., “As tabernas”, Xarabanda, vol. 3, jan.­-
Explanada na sua polivalência semântica e, ao ‑jun. 1993, pp. 35­‑40; BASÍLIO, Cecília, e BASÍLIA, Rita, A Palavra, Realidade
Interdimensional. Uma Leitura de M. A. K. Halliday, Porto de Mós, Diferença,
mesmo tempo, na sua singularidade, e mesmo 1999; BENVENISTE, Émile, Problemas de Linguística Geral, vol. i, Campinas,
reconhecendo que o termo “bilhardice” se Universidade Estadual de Campinas, 1991; “Bilhardice”, in Grande Enciclopédia
Portuguesa e Brasileira, vol. 3, Lisboa/Rio de Janeiro, Ed. Enciclopédia, 1936,
integra na categoria de regionalismo, podia p. 712; BLEICHER, Josef, Hermenêutica Contemporânea, Lisboa, Edições 70, 1992;
acontecer que adquirisse um estatuto idêntico BRAZÃO, Teresa, “A bilhardice”, in FIGUEIREDO, Fernando et al. (orgs.), Crónica
Madeirense (1900­‑2006), Porto, Campo das Letras, 2007, pp. 282­‑284; CAIRES,
ao de outros termos que também não são con-
Marta, e GOUVEIA, Sérgio, “A inveja e a ‘bilhardice’ das terras pequenas”,
siderados como parte da norma padrão, no- Diário de Notícias, Funchal, 18 fev. 2002, p. 8; CARVALHO, José G. Herculano,
Teoria da Linguagem, vol. i, Coimbra, Coimbra Editora, 1984; CORREIA, João
meadamente os brasileirismos, como é o caso
David Pinto, “Memória e identidade insulares”, in LUZ, Carlos et al., Aguarelas
de “fofoca”, mas que nem por isso deixam de de Carlos Luz, Funchal, DRAC, 1999, pp. 13­‑26; CUNHA, Celso, e CINTRA, Luís
ser usados correntemente como se o fossem. Filipe Lindley, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa, João Sá da
Costa, 1984; Dicionário Houaiss, Lisboa, Temas e Debates, 2005; ECO, Umberto,
Para que a riqueza cultural, psicológica, lin- Tratado Geral de Semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1980; FIGUEIREDO, Ana
guística, sociológica e humana de “bilhardi- Cristina, Palavras d’Aquintrodia (Estudos sobre Regionalismos Madeirenses),
Lisboa, Fonte da Palavra, 2011; FIGUEIREDO, Cândido de, Novo Diccionário
ce” se tornasse comum ao mundo da lusofo- da Língua Portuguesa, Lisboa, A. M. Teixeira Porto/Typ. da Empresa Litteraria,
nia, como aconteceu, nos começos do séc. xxi, 1913; FOUCAULT, Michel, As Palavras e as Coisas, Lisboa, Edições 70, 1998;
FRANCO, José Eduardo (dir.), Cultura Madeirense. Temas e Problemas, Porto,
com alguns brasileirismos, veiculados, nomea- Campo das Letras, 2008; FREGE, Gottlob, Lógica e Filosofia da Linguagem, São
damente, pelas telenovelas produzidas no Bra- Paulo, Cultrix/Universidade de São Paulo, 1978; FREITAS, Alfredo Vieira, Era
Uma Vez… na Madeira. Lendas, Contos e Tradições da Nossa Terra, Funchal, ed.
sil, seria necessário que houvesse a mesma in- do Autor, 1964; Id., O Amor no Folclore Madeirense, Funchal, Junta de Freguesia
tensidade de produção mediático­‑cultural do de Gaula, 1988; MONTEIRO, Manuela, Dicionário de Biografias, Porto, Porto
Editora, 2001; PERES, João Andrade, e MÓIA, Telmo, Áreas Críticas da Língua
lado lusitano, sobretudo no rincão madeiren- Portuguesa, 2.ª ed., Lisboa, Caminho, 1995; PESTANA, César A., A Madeira.
se, que existe do lado brasileiro. Cultura e Paisagem, Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1985;
PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária
Se uma mesma palavra tem um sentido geral
da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1953; SANTOS,
e abstrato e, todavia, tem em cada sujeito falan- Jaime Vieira dos, “Vocabulário do dialecto madeirense”, Revista de Portugal,
Série A, Língua Portuguesa, vol. viii, 1945­‑1947, pp. 61­‑64, 145­‑149 e 208­‑211;
te uma representação mental que é subjetiva,
SARTRE, Jean­‑Paul, L’Imaginaire, Saint­‑Amand, Gallimard, 1940; SAUSSURE,
o que acontece quando estamos perante um Ferdinand, Curso de Linguística Geral, São Paulo, Cultrix, 1970; SILVA, António
signo diferente, como “bilhardice”, oriundo Marques da, Linguagem Popular da Madeira, Funchal, DRAC, 2013; SILVA, João
Henrique, Essa Coisa Que Nos Olha no Espelho, Porto, Universidade Católica
de uma determinada região, no contexto mais Portuguesa, 1998; TODOROV, Tzvetan, Poética, Lisboa, Teorema, 1993; digital:
geral da língua portuguesa? Já vimos isso com BARBEITO, Ricardo, “Para a compreensão da bilhardice”, Ricardo Barbeito, s.d.:
http://www.ricardobarbeito.com/Para_a_compreensao_da_bilhardice.pdf
o signo “árvore” ou outro signo qualquer: o (acedido a 22 jul. 2016); Dicionário Priberam: http://www.priberam.pt/DLPO/
que pensa cada um quando o profere ou quan- (acedido a 22 jul. 2016); LESSA, Luísa, “O mito da palavra saudade”, Gosto de
Ler, História e Literatura, s.d.: http://www.gostodeler.com.br/materia/19056/o_
do o ouve está dependente da experiência sub- mito_da_palavra_saudade.html (acedido a 22 jul. 2016); REBELO, Helena,
jetiva. O signo “bilhardice” obteve, desde há “A arte de criar palavras ou de ‘bilhar’ à ‘bilhardice’”, A_Bilhardice/Arte Pública/
Happening_Instalação/Avenida Arriaga Salão Nobre do Teatro Municipal
muito, um significado que é geral e abstrato Baltazar Dias, 23 jan. 2009: http://a­‑bilhardice.blogspot.pt/ (acedido a 22 jul.
no contexto cultural madeirense, que deriva 2016); RODRIGUES, Fábio della Paschoa, “O arbitrário do signo, o sentido e a
referência”, Universidade Estadual de Campinas, s.d.: http://www.unicamp.br/iel/
da vivência de uma comunidade e que se con- site/alunos/publicacoes/textos/a00001.htm (acedido a 22 jul. 2016).
cretiza em cada ato de fala particular, como re-
sultado da memória, da experiência e da vivên- Miguel Luís da Fonseca
cia do falante, as quais conferem a essa palavra
uma representação mental, segundo a tese de
Frege. É esta referência ao mundo real, à pró- Biodiversidade
pria vida dos sujeitos falantes, que justifica a
diferença que, de facto, existe entre o termo Em 1985, durante a preparação de um fórum
“bilhardice” e os vocábulos que se apresentam sobre a diversidade biológica, Walter G. Rosen
como seus sinónimos na nossa língua. A bilhar- utilizou pela primeira vez a palavra “biodiver-
dice é, portanto, um conceito cuja amplitude sidade”, mais tarde popularizada a partir da
semântica não encontra paralelo em qualquer publicação da mesma por E. O. Wilson nas
outro termo da língua portuguesa. atas desse fórum. Inicialmente, o conceito de
398 ¬ B iodiversidade

diversidade biológica estava associado ao nú- de que fazem parte, incluindo ainda a diversi-
mero de espécies que habitavam um determi- dade dentro de espécies, entre espécies e de
nado espaço geográfico. No entanto, com o ecossistemas.
passar do tempo, este conceito foi sendo al- Nos começos do séc. xxi, estavam identifica-
terado no sentido de incorporar outros aspe- das nos arquipélagos da Madeira e das Selva-
tos, tais como a abundância dessas espécies no gens mais de 7500 espécies e subespécies ter-
ambiente e a variação entre os organismos da restres, das quais cerca de 1500 são endémicas
mesma espécie. Posteriormente, a noção de desta região. Do total de espécies conhecidas,
diversidade biológica procurou referir e inte- 42 % pertencem a fungos e plantas, 58 % cor-
grar toda a variedade e variabilidade que pos- respondem a animais, sendo a maioria destes
samos encontrar em organismos vivos e nos pertencente ao grupo dos invertebrados, com
ambientes nos quais estão inseridos. “Biodi- destaque para os moluscos e os artrópodes. No
versidade”, sinónimo de “diversidade biológi- contexto biogeográfico da Macaronésia, a ilha
ca”, de acordo com o texto elaborado na Con- da Madeira destaca­‑se por ser a segunda ilha
venção sobre Diversidade Biológica, assinado mais rica em número de taxa nos arquipélagos
durante a Conferência das Nações Unidas atlânticos dos Açores, da Madeira, das Selva-
sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, gens, das Canárias e de Cabo Verde, apenas ul-
realizada no Rio de Janeiro em 1992, consis- trapassada pela ilha de Tenerife, no arquipéla-
te na variabilidade de organismos vivos de go das Canárias. No entanto, a ilha de Tenerife
todas as origens, compreendendo os ecossiste- é muito maior do que a da Madeira, o que nos
mas terrestres, marinhos e outros ecossistemas leva a afirmar que a Madeira é claramente um
aquáticos, bem como os complexos ecológicos hotspot de biodiversidade. A fauna e a flora ter-
restres indígenas dos arquipélagos da Macaro-
nésia apresentam uma grande afinidade com
as espécies existentes nos continentes europeu
e africano. No caso concreto dos arquipélagos
da Madeira e das Selvagens, as espécies indí-
genas têm essencialmente afinidades com a re-
gião mediterrânica, com a península Ibérica
e com o Norte de África. De acordo com José
Jesus et al., a maioria das espécies da Macaroné-
sia terá dispersado para estas ilhas no Miocéni-
co e Pleistocénico, aquando da glaciação e da
desertificação do Norte de África, que levou a
extinções massivas e à migração e dispersão de
muitas espécies de animais e de plantas. Devi-
do ao isolamento, estas ilhas atlânticas são de
extrema importância para a compreensão de
muitos processos de natureza evolutiva e eco-
lógica, nomeadamente a especiação, i.e., a for-
mação de novas espécies, mais concretamente
os endemismos. É por esta razão que cerca de
20 % das espécies terrestres identificadas para
os arquipélagos da Madeira e das Selvagens são
endémicas.
A biodiversidade marinha dos arquipélagos
Fig. 1 – Aspeto da diversidade biológica
da Madeira e das Selvagens, tal como a terres-
(fotografia de Bernardes Franco, 2015). tre, apresenta afinidades predominantemente
B iodiversidade ¬ 399

europeias e mediterrânicas, além de possuir al- essencialmente às dificuldades técnicas e aos


guns elementos anfiatlânticos e mesmo de ou- elevados custos financeiros necessários ao de-
tros oceanos, em particular ao nível da fauna senvolvimento da investigação marinha. Não
profunda. No entanto, o grau de especiação obstante, já foram assinalados milhares de es-
das espécies neste ambiente é muito inferior pécies marinhas na região. A flora marinha é
ao do meio terrestre, tendo em conta que o um grupo de organismos extremamente im-
mar é um meio contínuo, onde o isolamento portantes para o equilíbrio dos ecossistemas
é praticamente inexistente, explicando deste marinhos, contribuindo para elevar a biodi-
modo que existam apenas alguns endemismos versidade destes, pois, para além de produ-
macaronésicos, não se conhecendo, até aos pri- zirem oxigénio, estão na base da cadeia ali-
meiros anos do séc. xxi, nenhuma espécie ma- mentar. Já foram assinaladas na Madeira e nas
rinha endémica para os arquipélagos da Ma- Selvagens mais de 350 espécies de algas mari-
deira e das Selvagens. Como o mar é um meio nhas e uma espécie de planta fanerogâmica
contínuo, muito mais homogéneo do que o marinha. Relativamente aos vertebrados mari-
meio terrestre, a natureza e a intensidade dos nhos, já foram assinaladas nas águas do arqui-
fatores ambientais variam com a profundida- pélago da Madeira 19 espécies de mamíferos
de, com a distância à costa, etc., combinando­ marinhos, das quais 18 pertencem à ordem
‑se para criar uma série de zonas com carac- Cetácea e uma espécie (o lobo-marinho) à
terísticas próprias, povoadas por formas de ordem Carnívora. As aves marinhas pelágicas
vida igualmente bem adaptadas às condições estão representadas por oito espécies nidifi-
de cada zona. A distribuição das comunidades cantes, das quais duas são endémicas. Das sete
marinhas, mais concretamente as de natureza espécies de tartarugas marinhas existentes em
bentónica, é determinada de acordo com os todo o mundo, cinco estão assinaladas no ar-
diferentes graus de adaptação dos organismos quipélago da Madeira. A maioria dos peixes
que as compõem, relativamente aos fatores identificados pertence à categoria dos peixes
ecológicos abióticos a que estão sujeitos, como ósseos, existindo mais de 600 espécies. Quan-
a humectação, a iluminação, a temperatura, a to aos peixes cartilagíneos, mais conhecidos
salinidade, o movimento das águas, a quantida-
de de oxigénio e de matéria orgânica e ainda o
tipo de substrato, para além da pressão. Muitos
destes fatores, como a luz, a temperatura e o
movimento da água do mar, variam em função
da profundidade. Para além dos fatores abióti-
cos a que os organismos estão sujeitos, existem
ainda outros fatores que condicionam a sua
distribuição – os fatores bióticos – devido às
múltiplas interações existentes entre os diver-
sos organismos num determinado nicho ecoló-
gico. A distribuição da biodiversidade marinha
dos arquipélagos da Madeira e das Selvagens,
tendo em conta que a pouca distância da costa
se atingem profundidades bastante elevadas,
devido à natureza geológica destas ilhas, é for-
temente condicionada pelos fatores abióticos,
tais como a luz e a profundidade.
De uma forma geral, o conhecimento
da biodiversidade marinha é muito infe- Fig. 2 – Manta, Buteo buteo harterti (Swann, 1919)
rior ao da biodiversidade terrestre, devido (fotografia de Virgílio Gomes, 2020).
400 ¬ B iogeografia

por tubarões e raias, já foram assinaladas 67 biológicas, destacando­‑se Thomas Pennant,


espécies diferentes. Os invertebrados mari- George­‑Louis Leclerc (conde de Buffon),
nhos ocupam sem dúvida o grupo de animais Carolus von Linnaeus, Joseph Banks (que vi-
com maior número de espécies assinaladas. sitou a Madeira em 1768, a bordo do Endea-
Assim, estão contabilizadas na Madeira e nas vor, comandado por James Cook) e Georg
Selvagens 215 espécies de crustáceos decápo- Forster (outro visitante da Madeira, acom-
des, 27 de crustáceos cirrípedes e 750 espécies panhando a segunda viagem de James Cook,
de moluscos. Muitos outros filos de inverte- em 1772). Estes autores, por seu lado, cons-
brados podem ser encontrados nestes arqui- tituem certamente uma influência para Ale-
pélagos, mas, em 2016, o número de espécies xander von Humboldt (que não visitou a Ma-
ainda não se encontrava contabilizado. deira, mas Tenerife), autor crucial na forma
como a distribuição dos seres vivos, sobretu-
Bibliog.: impressa: ARAÚJO, Ricardo, e WIRTZ, Peter, “The decapod
crustaceans of Madeira island. An annotated checklist”, Spixiana, vol. 38, n.º 2,
do das plantas e dos tipos de vegetação, pas-
2015, pp. 205­‑218; ARAÚJO, Ricardo et al., Eco­‑Parque Marinho do Funchal, sou a ser explicada, bem como na interpre-
Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 2006; BISCOITO, Manuel, e ABREU,
tação biogeográfica da diversidade biológica,
António Domingos, Os Mares, Funchal, Edicarte, 1998; BORGES, Paulo A. V.
et al., A List of the Terrestrial Fungi, Flora and Fauna of Madeira and Selvagens tendo tido uma influência decisiva em todo o
Archipelagos. Listagem dos Fungos, Flora e Fauna Terrestres dos Arquipélagos séc. xix (e posteriormente).
da Madeira e Selvagens, Funchal/Angra do Heroísmo, Direção Regional do
Ambiente da Madeira/Universidade dos Açores, 2008; FREITAS, Luís et al., A análise da diversidade insular e os novos
Mamíferos Marinhos do Mar do Arquipélago da Madeira, Funchal, Direção dados resultantes das suas viagens são aspetos
Regional do Ambiente, 2002; JESUS, José et al., Vertebrados Terrestres dos
Arquipélagos da Madeira e Selvagens. Répteis e Mamíferos, Funchal, Direção fundamentais da influência de Humbolt no
Regional do Ambiente, 2009; ROMANO, Hugo et al., “Birds of the archipelagos posterior desenvolvimento da produção cien-
of Madeira and the Selvagens. II – Checklist update and new records”, Boletim
do Museu Municipal do Funchal, vol. 60, n.º 326, 2010, pp. 5­‑44; SEGERS, Willy tífica de Charles Darwin, que, embora não
et al., Marine Molluscs of Madeira, Zwijndrecht, Snoeck Publishers, 2009; tenha visitado a ilha da Madeira, nela encon-
WIRTZ, Peter et al., “Cirripedia of Madeira”, Helgoland Marine Research, vol. 60,
n.º 3, 2006, pp. 207­‑212; digital: FRANCO, José Luís de Andrade, “O conceito
trou, através de dados publicados ou de infor-
de biodiversidade e a história da biologia da conservação. Da preservação da mação em primeira mão enviada por outros
wilderness à conservação da biodiversidade”, História (São Paulo), vol. 32, n.º 2,
jul.­‑dez. 2013, pp. 21­‑48: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext
naturalistas, muita da informação crucial para
&pid=S0101­‑90742013000200003&lng=en&nrm=iso (acedido a 19 fev. 2017). a elaboração de Origin of the Species. De facto,
a maioria dos múltiplos exemplos biológicos
Manuel Biscoito citados por Darwin na referida obra, sobretu-
Ricardo Araújo
do no que diz respeito a insetos, teve origem
em Thomas Wollaston, naturalista residente na
Biogeografia Madeira. Mas pertence a Alfred Russel Walla-
ce, com a sua obra Island Life, o maior marco
As ilhas possuem um longo historial e uma im- na biogeografia de ilhas do séc. xix, sendo
portância considerável no que concerne ao de- considerado, por muitos autores, o fundador
senvolvimento das ciências biológicas. É difícil deste campo de estudo da biologia. O título
apontar uma paternidade histórica relativa- original da sua obra, Island Life, or, The Pheno-
mente ao reconhecimento da relevância bio- mena and Causes of Insular Faunas and Floras, in-
lógica das ilhas, mas não existem dúvidas de cluding a Revision and Ateempted Solution of the
que a comunicação, em 1880, na Sociedade Li- Problem of Geological Climates, pode considerar­
neana, de sir Joseph Dalton Hooker, “Insular ‑se uma primeira formulação da biogeografia
floras”, foi um marco crucial na definição das insular como campo científico. Tal como suge-
ilhas como modelos biológicos. re Lawrence R. Heaney na introdução que, em
Tal como refere R. J. Berry no seu estu- 2013, fez à referida obra, as preocupações cien-
do “Hooker and islands” (2009), existe uma tíficas de Wallace correspondiam com clareza
linha ininterrupta de naturalistas que, desde ao cerne do que posteriormente se designou
o séc. xviii, contribuiu para revelar o interes- por “biogeografia de ilhas” ou “biogeografia
se do estudo das ilhas no âmbito das ciências insular”, i.e., por que razão está a presença de
B iogeografia ¬ 401

espécies distintas, bem como as suas filogenias, são ecorregiões. O estudo da distribuição es-
ligada de forma tão clara à geografia e, parti- pacial de táxones designa­‑se por “corologia”;
cularmente, por que motivo existem nas ilhas tratando­‑se de ecossistemas, formações vege-
espécies tão peculiares? tais ou biomas, usa­‑se a designação “sincoro-
No séc. xx, são fundamentais os trabalhos logia”. As unidades de diferente categoria da
e as contribuições de muitos autores, com corologia ou sincorologia são designadas phy-
destaque para Julian Huxley, Charles Elton e tochorion, no singular, e phytochoria, no plural.
Sherwin Carlquist, cujas publicações acerca Os diferentes sistemas de classificação bio-
das formas de crescimento de plantas, nomea- geográfica constituem um sistema hierárqui-
damente tipos de crescimento secundário, in- co composto por unidades de generalidade e
cluem muitos exemplos da flora da Madeira. dimensão decrescentes, que são o reino, a re-
Com o advento de estudos moleculares e a pos- gião, a província, o sector, o distrito, o comple-
sibilidade de esclarecer relações filogenéticas, xo paisagístico ou tesselar e a tessela. Esta últi-
são cruciais as contribuições de Peter Grant e ma é o phytochorion elementar e caracteriza­‑se
de Tod F. Stuessy. por ser uma porção de território ambiental-
Tal como referem Robert J. Whittaker e José mente uniforme que contém apenas um tipo
María Fernández­‑Palacios, na obra Island Bio- de ecossistema.
geography (2007), a simplicidade relativa dos sis- O arquipélago da Madeira possui uma gran-
temas biológicos insulares transforma as ilhas de originalidade biogeográfica devido não
em laboratórios biológicos em que o controlo só ao grande número de plantas endémicas,
dos fatores, sendo mais simples, permite si- mas também à composição original dos seus
multaneamente uma melhor interpretação e o ecossistemas naturais. As razões desta distinção
teste de hipóteses biológicas. relativamente aos territórios continentais
Num sentido restrito, a biogeografia é a ciên- europeus, africanos e americanos, que partilha
cia que tem por objeto a distribuição espacial com os outros arquipélagos da Macaronésia,
dos seres vivos na Terra. Numa perspetiva mais são de natureza paleobiogeográfica, geológica
abrangente, as teorias biogeográficas anali- e histórica. No seu conjunto, os arquipélagos
sam os fatores ecológicos, climáticos, geológi- da Macaronésia (Açores, Madeira, Selvagens,
cos, evolutivos e paleoecológicos (e paleonto- Canárias e Cabo Verde) possuem graus, maio-
lógicos) que estão na origem da distribuição res ou menores, de semelhança entre si. A ve-
dos organismos, dos ecossistemas ou biomas getação da Macaronésia, e do arquipélago da
da Terra. Devido ao carácter relativamente Madeira em particular, tem sido interpretada
fixo da vegetação, por comparação com o das como uma relíquia da vegetação do Terciário
populações animais, e à correspondência que que existiu em torno do oceano arcaico Tethys
tem com o clima e a geologia, utilizam­‑se com (que unia os oceanos Atlântico e Índico, estan-
vantagem os ecossistemas vegetais como base do na origem do mar Mediterrâneo). A vege-
para a divisão da Terra em bio ou ecorregiões tação florestal tethysiana seria dominada por
relativamente estáveis. Num sentido restrito, florestas mesofíticas de carácter subtropical,
trata­‑se, portanto, de fitogeografia, ou geogra- com árvores de folhas largas, brilhantes e per-
fia das plantas. sistentes, e designada por Geoflora, sendo domi-
As unidades territoriais podem caracterizar­ nada por famílias como as lauráceas, celastrá-
‑se através da distribuição de um ou vários táxo- ceas, oleáceas, mirsináceas e ramnáceas (que
nes (família, género, espécie), que, achando­‑se correspondem a uma laurissilva). Significativa-
exclusivamente num dado território, o carac- mente, a vegetação florestal zonal da Madeira
terizam univocamente como biorregião uni- e das Canárias é dominada por lauráceas (Lau-
forme e de características exclusivas. Por ana- rus novocanariensis, Apollonias barbujana, Ocotea
logia, fazendo uso de ecossistemas ao invés de foetens e Persea indica) e, secundariamente, por
apenas táxones, as unidades biogeográficas oleáceas (Picconia excelsa) ou outras famílias
402 ¬ B iogeografia

Fig. 1 – Aspeto geral da laurissilva madeirense (fotografia de Bernardes Franco, 2015).

tropicais, como as mirsináceas (Heberdenia ex- medida, a flora tropical tethysiana em latitu-
celsa). Nas áreas continentais em torno do Te- des relativamente elevadas. A partir do refe-
thys, vários eventos ambientais violentos e de rido remanescente tethysiano e de plantas en-
escala global, ligados à dinâmica tectónica alpi- tretanto chegadas de áreas continentais, por
na e ao surgimento do clima mediterrânico du- via de dispersão de longa distância (zoocoria),
rante o Terciário Médio e Tardio (Miocénico iniciou­‑se um intenso processo de especiação,
principalmente), deram origem a uma disrup- descrito como “radiação adaptativa”, que foi fa-
ção dramática da vegetação e ao aparecimento cilitado pelo isolamento insular e pela ausência
de novas pressões evolutivas. Nas áreas conti- de herbívoros (cuja introdução pelo Homem
nentais, surgiu também a oportunidade global é a causa de extinções massivas em ambientes
para o estabelecimento de novas floras através insulares, sendo até considerada a primeira
de vias migratórias leste­‑oeste e norte­‑sul, no- causa de extinções em ilhas). Surgiram assim
meadamente da flora estepária neomediterrâ- inúmeros táxones de plantas neoendémicas
nica com origem na Eurásia e da flora cadu- (endemismos recentes), que coexistem com
cifólia vinda das regiões circumárticas (flora os paleoendemismos herdados da vegetação
artoterciária). terciária, ainda que estes últimos possam ter
As ilhas da Macaronésia não foram afetadas chegado à ilha da Madeira de forma faseada,
significativamente por estes fenómenos, aos em resultado da presença de uma ilha muito
quais, nos continentes, acresceram ainda, du- mais antiga como é o Porto Santo, num pro-
rante o Pleistoceno, as sucessivas vagas de ci- cesso denominado de “stepping­‑stone”, através
clos glaciares, que corresponderam a extinções de outras paleoilhas que constituíram a deno-
de ecossistemas e floras, sobretudo durante os minada “paleo­‑Macaronésia”. No estudo “A re-
períodos frios e secos. Assim, a Macaronésia construction of palaeo­‑Macaronesia, with parti-
reteve (e serviu-lhe de refúgio), em grande cular reference to the long­‑term biogeography
B iogeografia ¬ 403

of the Atlantic island laurel forests” (2011), é Muitos destes neoendemismos correspon-
descrita a importância biogeográfica da “paleo­ dem ao chamado “síndrome lenhoso insular”
‑Macaronésia”, nomeadamente nas laurissilvas. e exibem rosetas de folhas nos extremos dis-
Os elementos florísticos neoendémicos mais tais dos caules (caulirrosuladas) e inflorescên-
notáveis da Macaronésia, em particular do ar- cias ramificadas em forma de candelabro. No
quipélago da Madeira, são elementos lenho- passado, alguns autores tomaram este grupo
sos (com crescimento secundário anómalo na fisionómico de plantas como uma herança ar-
maior parte dos casos, como demonstra, em di- caica da floresta terciária (paleoendemismos),
versos estudos, Sherwin Carlquist) pertencen- mas estudos moleculares têm revelado tratar­
tes a grupos taxonómicos que correspondem ‑se de neoendemismos com origem em eventos
normalmente a plantas herbáceas em áreas de dispersão raros ou mesmo únicos e recen-
continentais, entre os quais se encontram tes com origem em antepassados continentais,
os antepassados dos endemismos insulares. tal como já referido. Outros grupos de plantas
Refira­‑se, a este propósito, que os processos não florestais e que exibem carácter lenhoso
de retrocolonização, i.e., o regresso, por assim são os matagais altos paleomediterrânicos ter-
dizer, de plantas com hábito lenhoso insular a mófilos dominados por plantas de folhas rijas e
territórios continentais, são incomuns, mas in- coriáceas (e.g., Olea maderensis e Syderoxylon mir-
cluem Convolvulus fernandesii, endemismo por- mulans) ou de folhas e caules suculentos (e.g.,
tuguês do cabo Espichel que teve origem em Euphorbia piscatoria e Dracaena draco). Este tipo
Convululus massonii, endemismo da Madeira. de vegetação tem afinidade com um elemento
Assim, são frequentes ou específicos da Ma- florístico designado por Rand flora, de distri-
caronésia e, consequentemente, também do buição circum­‑mediterrânica, da periferia do
arquipélago da Madeira vários géneros, sub- continente africano e da península Arábica, e
géneros, secções (divisões dos subgéneros) de características subtropicais xéricas e semi-
ou espécies exclusivas de um arquipélago ou desérticas, e sem afinidade com a flora mais
grupo de arquipélagos. No extremo territorial continental africana e europeia.
oposto, existem espécies endémicas apenas de De forma resumida, a vegetação da Madei-
uma ilha ou até de um único rochedo. ra deve a sua grande originalidade à combi-
Os táxones mais característicos e ricos em en- nação de seis elementos paleobiogeográficos
demismos são: asteráceas (Tolpis, Sonchus, Peri- principais: flora florestal subtropical terciária
callis), boragináceas (Echium) e campanuláceas (árvores e ptéridofitos [fetos]); flora neoen-
(Musschia na Madeira, Azorina nos Açores, Ca- démica de hábito lenhoso insular (Echium,
narina nas Canárias e Campanula nas Canárias Isoplexis, Musschia e Euphorbia); flora lenhosa
e em Cabo Verde). Exclusivamente endémi- paleomediterrânica suculenta e esclerofila xé-
cos da Madeira, para além do já citado Muss- rica (e.g., no género Olea e Maytenus, e nas es-
chia, refiram­‑se, entre os mais notáveis, Moni- pécies da subsecção Macaronesicae do género
zia, Melanoselinum (apiáceas), Sinapidendron Euphorbia); vestígios de flora continental euro­
(brassicáceas) e Chamaemeles (rosáceas). Ou- ‑siberiana temperada (Sorbus maderensis); flora
tros grupos, como Aeonium, Plantago, Sideritis e neomediterrânica continental (Sideritis, Micro-
Euphorbia (subsecção Macaronesicae), possuem meria e Lavandula); e flora antropogénica, i.e.,
inúmeros endemismos exclusivos ou partilha- introduzida pelo Homem.
dos com outras áreas da Macaronésia. Alguns O arquipélago da Madeira é comummente
géneros, como Apollonias e Pittosporum, têm os incluído na região macaronésica. O termo “ma-
seus únicos representantes fora dos trópicos na caronésia”, de origem grega (significa “ilhas
Macaronésia. Assim, notavelmente, Pittosppo- afortunadas”), é também muitas vezes usado no
rum coriaceum, endémico da Madeira, é o único sentido de região biogeográfica, i.e., da hierar-
representante do género em todo o reino ho- quia de phytocoria em que a Madeira se inclui.
lártico (Eurásia e América do Norte). É relevante referir dois modelos. O primeiro,
404 ¬ B iogeografia

de base florística, enfatiza a unidade biogeo- exceção da porção montanhosa da Madeira,


gráfica da Macaronésia pela partilha de táxo- que é temperada), pelo que pertencem à região
nes entre os diferentes arquipélagos, ao nível mediterrânica do reino holártico; e Cabo Verde
genérico, infragenérico e ainda de algumas es- é de macrobioclima tropical, pelo que se inclui
pécies. Note­‑se ainda que, ao nível específico, no reino paleotropical. Outro argumento apre-
a maioria das espécies partilhadas pela Madei- sentado no referido estudo de 2017 é o de que
ra com outros arquipélagos é escassa, exceção cada um dos arquipélagos ou conjunto de ar-
feita, talvez, para o arquipélago das Canárias. quipélagos possui muito maior afinidade com-
Por outro lado, existem noutros arquipélagos posicional, funcional e paleobiogeográfica dos
outras plantas taxonomicamente próximas (do seus tipos de vegetação (ecossistemas) com as
mesmo género ou grupo de espécies: secção ou unidades até ao nível de reino onde se inserem
subsecção) que ocupam nichos ecológicos aná- do que entre si, na Macaronésia. Assim, a Ma-
logos e têm fisionomia e função ecológica pró- caronésia, segundo este mesmo estudo, não é
ximas. Estas espécies dizem­‑se “vicariantes”. uma unidade biogeográfica, mas sim uma uni-
A unidade taxonómica da Macaronésia dade geográfica informal.
baseia­‑se, portanto, não na partilha das mes- Como tal, a posição da Madeira, de acordo
mas espécies, mas tão-só na partilha de inú- com os dois sistemas, é a seguinte:
meras espécies vicariantes. Analogamente, os
tipos de vegetação dominados por espécies A. L. Takhtajan (1986):
vicariantes designam­‑se por “vegetação sinvi- 1) Reino holártico
cariante”. São exemplo as comunidades de a) Região macaronésica (província ma-
Euphorbia piscatoria madeirenses e as comuni- deirense, província açoreana, provín-
dades de Euphorbiae das Canárias (e.g., E. regis­ cia Canárias e província Cabo Verde)
‑jubae e E. atropurpurea).
Assim, a classificação de A. L. Takhtajan des- S. Rivas­‑Martínez et al. (2017):
crita na obra Floristic Regions of the World (1986) 2) Reino holártico
considera o arquipélago da Madeira como a) Região euro­‑siberiana (Europa tempe-
constituindo a província madeirense da re- rada e boreal e Ibéria ocidental)
gião macaronésica, por sua vez pertencente ao i) Sub­‑região atlântica­‑central euro-
reino holártico, a par das regiões mediterrâni- peia (Europa temperada oceânica
ca, euro­‑siberiana, circumboreal, leste­‑asiática, e subcontinental)
norte­‑americana, madreana (Califórnia e Mé- (1) Província açoreana
xico) e saro­‑arábica. b) Região mediterrânica
Por seu turno, nas classificações apresentadas i) Sub­‑região canário­‑madeirense
por S. Rivas­‑Martínez, juntamente com outros (1) Província madeirense (sector
autores, nos estudos “Biogeography of Spain Madeira, sector Porto Santo e
and Portugal, preliminary typological synopsis” sector Desertas)
(2014) e “Geobotanical survey of Cabo Verde is- (2) Província Canária
lands (West Africa)” (2017), as diferenças eco- (a) Subprovíncia Canária
lógicas na vegetação zonal, ao nível dos biomas Oriental
e do macrobioclima, são consideradas mais re- (i) Sector lanzarotense
levantes para a distribuição das unidades bio- (1) Distrito Selvagens
geográficas por diferentes regiões de reinos 3) Reino paleotropical (velho mundo
distintos. Cite­‑se apenas que, em termos de ma- tropical) + Sub­‑reino afrotropical
crobioclima, os Açores são de clima tempera- (África tropical)
do, pelo que pertencem à região euro­‑siberiana a) Região Sara tropical (deserto
do reino holártico; a Madeira e as Canárias são tropical do Sara)
maioritariamente de clima mediterrânico (com (1) Província cabo­‑verdiana
B iogeografia ¬ 405

É certo que a diversidade


taxonómica num espaço insu-
lar decorre de fatores enun-
ciados por R. H. MacArthur e
E. O. Wilson, em 1967, na sua
obra The Theory of Island Biogeo-
graphy, em que demonstram
que a diversidade depende da
taxa de extinção, da emigração,
da dimensão e, indiretamente,
da distância a outros espaços
(nomeadamente continentes),
através da sua Teoria do Equi-
líbrio da Biogeografia de Ilhas.
Em 2008, Robert J. Whittaker,
K. A. Triantis e R. J. Ladle de-
senvolveram modelos explicati-
vos da diversidade insular mais
complexos, denominando­‑se General Dyna- Fig. 2 – Mapa de ombrotipos da ilha da Madeira
(MESQUITA et al., 2007, 330).
mic Theory ou General Dynamic Model, co-
nhecido por GDM. Nele se incorporam aspe-
tos cruciais da dinâmica de uma ilha, à escala do fator climático, mas pelo efeito continua-
evolutiva, e se integram os processos geológi- do da competição com outras plantas ou for-
cos, bem como as consequências na evolução mações vegetais, com melhores adaptações ao
temporal do isolamento, da área, da altitude, clima desse local.
da topografia e do dinamismo destes sobre as A classificação bioclimática da Terra de
taxas de imigração, especiação e extinção. S. Rivas­‑Martínez é um sistema de classificação
Sendo certo que a diversidade associada a de bioclimas baseado no conhecimento de al-
um espaço insular pode e deve ser explicada guns índices de cálculo aritmético simples, a
pelo dinamismo dos fatores isolamento, altitu- partir de parâmetros climáticos de uso corren-
de, topografia e área sobre as taxas de extinção te. O índice de continentalidade é uma me-
e imigração, é também certo que a distribuição dida das amplitudes térmicas anuais. Permite
arquipelágica ou altitudinal de taxa e ecossiste- distinguir os climas oceânicos, que estão asso-
mas responde de forma unívoca às característi- ciados a massas de ar húmido cuja temperatu-
cas do biótopo. Neste aspeto, a bioclimatologia ra varia pouco, dos climas continentais, que,
debruça­‑se sobre as condições de temperatura, pelo contrário, estão associados a massas de ar
precipitação e outros parâmetros climáticos seco e têm grandes contrastes térmicos, entre
que, condicionando o desenvolvimento das o dia e a noite e entre as estações quente e fria.
plantas, determinam a sua distribuição geográ- Relativamente ao índice de termicidade, este
fica. Assim, o estabelecimento de uma classifi- traduz as limitações que a temperatura impõe
cação bioclimática implica o reconhecimento ao desenvolvimento vegetativo, por ser muito
de áreas uniformes no que respeita às caracte- elevada ou muito baixa. Os danos causados
rísticas climáticas determinantes para as plan- por temperaturas demasiado altas são os desar-
tas e que, consequentemente, têm também ele- ranjos metabólicos das células e o aumento da
mentos florísticos e faunísticos característicos. transpiração, o que pode levar à desidratação
Note­‑se que os limites de distribuição de cada da planta. A exposição a temperaturas dema-
espécie, ou das comunidades vegetais, são ge- siado baixas provoca também a desregulação
ralmente determinados não pela ação direta do metabolismo celular e a formação de gelo
406 ¬ B iogeografia

nos tecidos, o que causa a morte celular. Por úl- com exceção das cotas mais elevadas), medi-
timo, os índices ombrotérmicos procuram tra- terrânico xérico hiperoceânico (apenas numa
duzir a disponibilidade de água no solo para estreita faixa junto ao mar) e temperado hipe-
as plantas, combinando dados de precipitação roceânico (nas cotas mais altas da encosta sul
e de temperatura (total anual ou dos dois, três e na maior parte da encosta norte). Adicional-
e quatro meses mais secos, de modo a conside- mente, em cada bioclima reconhecem­‑se inter-
rar também medidas da severidade da secura valos – termotipos e ombrotipos –, com base,
do verão). Estes índices assumem que uma de- respetivamente, nos valores do índice de ter-
terminada quantidade de chuva é mais eficaz- micidade compensado e no índice ombrotér­
mente aproveitada pelas plantas se a tempera- mico. Na Madeira, ocorrem os termotipos in-
tura for baixa, uma vez que, nestas condições, framediterrânico (mais quente, ao longo da
as perdas de água da chuva por evaporação di- costa sul), termomediterrânico e mesomedi-
reta e por transpiração são menores. As plantas terrânico, e ainda infratemperado, termotem-
têm mecanismos que lhes permitem manter o perado, mesotemperado e supratemperado
seu conteúdo em água, mesmo em situações (este último apenas nos picos mais altos). E os
de seca, embora dentro de certos limites. ombrotipos seco, sub­‑húmido, húmido, hiper­
Este sistema de classificação considera cinco ‑húmido e ultra­‑hiper­‑húmido.
macrobioclimas, dois dos quais estão represen- O reconhecimento de tipos bioclimáticos
tados na Madeira: o mediterrânico e o tempe- e a sua espacialização em cartografia consti-
rado. O macrobioclima mediterrânico é ca- tuem uma ferramenta fundamental para a car-
racterizado por um período seco de verão de, tografia de vegetação potencial, uma vez que,
pelo menos, dois meses; o temperado é um em contexto insular, o clima é determinante.
clima fresco, sem secura estival. Estas unida- Na Madeira, “observa­‑se que as condições de
des, por sua vez, subdividem­‑se em bioclimas, solo são bastante homogéneas […] uma vez
reconhecendo­‑se, no território em análise, os que os solos se formam a partir de materiais
tipos mediterrânico pluviestacional hiperoceâ- semelhantes em praticamente toda a ilha […].
nico (que abrange quase toda a encosta sul, Por outro lado, a correlação entre andares de
vegetação e clima é particular-
mente elevada nos territórios
insulares que, como a Madeira,
apresentam um relevo bastan-
te simples” (MESQUITA et al.,
2007, 331­‑332). Para cada uma
das séries de vegetação que se
reconhece ocorrerem na ilha
da Madeira, e tendo em conta
o conhecimento que existe
acerca da ecologia das mesmas,
é possível determinar quais as
combinações de tipos biocli-
máticos que lhe correspondem
e assim mapear a sua área de
ocorrência.
Na cartografia de séries de ve-
getação, as unidades represen-
tadas correspondem às condi-
Fig. 3 – Mapa de termotipos da ilha da Madeira
ções médias de habitat de cada
(MESQUITA et al., 2007, 329). local, referindo­‑se à vegetação
B iogeografia ¬ 407

zonal, i.e., àquela que corresponde às condi-


ções médias de cada local. Uma série de ve-
getação é constituída pelo conjunto das vá-
rias comunidades que podem ocorrer nesse
local – bosque, matagal, mato baixo, arrelva-
do vivaz e prado anual. Estes mapas não forne-
cem informação relativa às espécies que exis-
tem, de facto, em determinado local, mas sim
acerca da potencialidade do território, o que
permite, e.g., escolher as espécies que estão
mais bem­‑adaptadas às condições desse local
e, como tal, mais aptas para aí se desenvolve-
rem plenamente. Este tipo de informação é
essencial para fundamentar um ordenamento
do território com base em critérios de susten-
tabilidade ambiental, assim como para aplicar
em projetos de enquadramento paisagístico de
grandes obras, recuperação de áreas degrada-
das e planeamento e gestão florestal.
A questão central na biogeografia das ilhas
macaronésicas tem sido não só o debate acer-
ca da verdadeira ocorrência de uma região bio-
geográfica (com resultados contrastantes entre
diversos modelos biológicos e aproximações),
mas também a necessidade de explicar os di-
ferentes níveis de diversidade encontrados nos
diversos arquipélagos. De facto, no que respeita
Fig. 4 – Expressão cartográfica do modelo biogeográfico da Maca-
à diversidade florística, os Açores e Cabo Verde ronésia (baseada em RIVAS-MARTÍNEZ et al., 2017).
possuem uma taxa reduzida de endemicidade,
ao contrário da Madeira e das Canárias. O de-
nominado “Azores diversity enigma” tem sido Spermatophyta) dos arquipélagos da Madeira e
explicado de forma distinta por diversos auto- das Selvagens” (2008), relacionam a complexi-
res. K. A. Triantis, juntamente com outros au- dade topográfica com diferentes graus de con-
tores, em estudo de 2012, explica as diferenças servação (quanto maior a complexidade, maior
arquipelágicas de padrões de diversidade com a conservação), postulando uma destruição hu-
base em variáveis biogeográficas, argumentan- mana seletiva dos ecossistemas, relacionada
do que a juventude do arquipélago dos Açores com uma topografia e orografia mais simples
implicaria uma homogeneidade ecológica e nos Açores (e em Cabo Verde).
dos habitats e, consequentemente, uma menor
biodiversidade. M. A. Carine e H. Schaefer, no Bibliog.: impressa: BERRY, R. J., “Hooker and islands”, Biological Journal of the
Linnean Society, vol. 96, 2009, pp. 462­‑481; CAPELO, J. et al., “Guia da excursão
estudo “The Azores diversity enigma. Why are geobotânica dos V Encontros ALFA 2004 à ilha da Madeira”, in CAPELO, J.
there so few azorean endemic flowering plants (ed.), A Paisagem Vegetal da Ilha da Madeira, Quercetea, vol. 6, 2004, pp. 5­‑59;
CAPELO, J. et al., “Biologia e ecologia das florestas das ilhas. Madeira”, in SILVA, J.
and why are they so widespread?” (2010), re- (ed.), Árvores e Florestas de Portugal, vol. 6, Lisboa, Público/Fundação Luso­
lacionam os mesmos padrões com diferentes ‑Americana para o Desenvolvimento/Liga para a Protecção da Natureza, 2007,
pp. 81­‑134; CARINE, M. A., e SCHAEFER, H., “The Azores diversity enigma.
taxas de esforço no que respeita à descrição Why are there so few azorean endemic flowering plants and why are they so
taxonómica, e não com fatores biogeográ- widespread?”, Journal of Biogeography, vol. 37, n.º 1, 2010, pp. 77­‑89; CARINE,
M. A. et al., “Relationships of the Macaronesian and Mediterranean floras.
ficos. Já R. Jardim e M. Menezes de Sequei- Molecular evidence for multiple colonizations into Macaronesia and back­
ra, em “As plantas vasculares (Pteridophyta e ‑colonization of the continent in Convolvulus (Convolvulaceae)”, American
408 ¬ B iologia marinha

Journal of Botany, vol. 91, n.º 7, 2004, pp. 1070­‑1085; FERNÁNDEZ­‑PALACIOS, no ambiente e não em taxonomia. Essa se-
José María et al., “A reconstruction of palaeo­‑Macaronesia, with particular
reference to the long­‑term biogeography of the Atlantic island laurel forests”, paração é tradicionalmente efetuada somen-
Journal of Biogeography, vol. 38, 2011, pp. 226­‑246; GÓIS­‑MARQUES, C. et al., te no domínio marítimo, já que quase nunca
“Inventory and review of the Mio­‑Pleistocene São Jorge flora (Madeira island,
Portugal). Palaeoecological and biogeographical implications”, Journal of
se refere o seu contraponto lógico, que seria
Systematic Palaeontology, vol. 16, n.º 2, 2017, pp. 159­‑177; HEANEY, Lawrence R., a biologia terreste. No entanto, é necessário
“Introduction and commentary”, in WALLACE, Alfred Russel, Island Life, or, The
Phenomena and Causes of Insular Faunas and Floras, including a Revision and
compreender que a maioria das disciplinas
Ateempted Solution of the Problem of Geological Climates, Chicago/London, biológicas se pode aplicar­aos organismos ma-
The University of Chicago Press, 2013, pp. xi­‑lxxi; JARDIM, R., e SEQUEIRA,
rinhos, como sejam a ecologia, a genética, o
M. Menezes de, “As plantas vasculares (Pteridophyta e Spermatophyta) dos
arquipélagos da Madeira e das Selvagens”, in BORGES, P. A. V. et al. (eds.), A List comportamento, a fisiologia, etc., sendo que
of the Terrestrial Fungi, Flora and Fauna of Madeira and Selvagens Archipelagos,
a biologia marinha abrange todas estas áreas.
Funchal/Angra do Heroísmo, Direcção Regional do Ambiente da Madeira/
Universidade dos Açores, 2008, pp. 157­‑178; MACARTHUR, R. H., e WILSON, O mar ocupa cerca de 71 % da superfície
E. O., The Theory of Island Biogeography, New Jersey, Princeton University terrestre. No entanto, a verdadeira dimen-
Press, 1967; MÉDAIL, F., e QUÉZEL, P., “The phytogeographical significance of
S. W. Morocco compared to the Canary islands”, Plant Ecology, vol. 140, 1999, são do mar enquanto habitat é tridimensio-
pp. 221­‑244; MESQUITA, S., “Subsistemas da estrutura ecológica nacional. nal, pelo que, ao contrário dos habitats terres-
Vegetação”, in MAGALHÃES, M. R. (coord.), Estrutura Ecológica Nacional.
Uma Proposta de Delimitação e Regulamentação, Lisboa, Centro de Estudos tres, que são essencialmente bidimensionais,
de Arquitectura Paisagista “Professor Caldeira Cabral”/Instituto Superior de a área marítima total de 361.900.000 km2 cor-
Agronomia Press, 2013, pp. 105­‑120; MESQUITA, S., et al., “Distribuição das
principais manchas florestais”, in SILVA, J. (ed.), Árvores e Florestas de Portugal, responde a um volume de 1.335.000.000 km3,
vol. 6, Lisboa, Público/Fundação Luso­‑Americana para o Desenvolvimento/ com uma profundidade média de 3688 m e
Liga para a Protecção da Natureza, 2007, pp. 323­‑335; RIVAS­‑MARTÍNEZ, S.,
“Les étages bioclimatiques de la végetation de la péninsule Ibérique”, Anales
uma profundidade máxima de 10.803 m.
del Jardín Botánico de Madrid, vol. 37, n.º 2, 1981, pp. 251­‑268; RIVAS­ A água dos oceanos representa 97 % do total
‑MARTÍNEZ, S., et al., “Las comunidades vegetales de la isla de Tenerife (islas
Canarias)”, Itinera Geobotanica, vol. 7, 1993, pp. 169­‑374; RIVAS­‑MARTÍNEZ, S.
de água no nosso planeta. Todo este volume é
et al., “Biogeography of Spain and Portugal, preliminary typological synopsis”, habitado e representa o maior habitat interco-
International Journal of Geobotanical Research, vol. 4, 2014, pp. 1­‑64; RIVAS­
nectado do nosso planeta.
‑MARTÍNEZ, S. et al., “Geobotanical survey of Cabo Verde islands (West
Africa)”, International Journal of Geobotanical Research, vol. 7, 2017, pp. 1­‑103; É geralmente aceite que a biodiversidade
SCHMITHÜSEN, J., Allgemeine Vegetationsgeographie, vol. 4, Berlin, Dritte
marinha é muito inferior à terrestre,
Auflage, 1968; SILVA, A. R. Pinto da, e TELES, A. N., “Convolvulus fernandesii
Pinto da Silva et Teles, um notavel endemismo portugues de origem estimando­‑se que o mar contenha somen-
macaronesica”, Boletim da Sociedade Broteriana, sér. 2, vol. 54, 1981, pp. 233­ te cerca de 2 % do total de espécies, pesem
‑237; TAKHTAJAN, A. L., Floristic Regions of the World, Berkeley, University
of California Press, 1986; TRIANTIS, K. A. et al., “The island species­‑area embora a imensidão do habitat disponível e o
relationship. Biology and statistics”, Journal of Biogeography, vol. 39, n.º 2, facto de a vida se ter originado no mar e, con-
2012, pp. 215­‑231; VARGAS, P., “Are Macaronesian islands refugia of relict
plant lineages? A molecular survey”, in WEISS, Steven, e FERRAND, Nuno sequentemente, o tempo evolutivo disponível
(eds.), Phylogeography of Southern European Refugia, New York, Springer, ser muito mais longo do que em terra, poden-
2007, pp. 297­‑314; WHITTAKER, Robert J., e FERNÁNDEZ­‑PALACIOS, José
María, Island Biogeography, 2.ª ed., Oxford, Oxford University Press, 2007;
do pressupor­‑se que a diversidade fosse maior.
WHITTAKER, Robert J. et al., “A general dynamic theory of oceanic island No entanto, o mar alberga uma maior diversi-
biogeography”, Journal of Biogeography, vol. 35, n.º 6, 2008, pp. 977­‑994; digital:
KONDRASKOV, P. et al., “Biogeography of Mediterranean hotspot biodiversity.
dade de taxa mais elevados: 43 filos são mari-
Re­‑evaluating the ‘Tertiary relict’ hypothesis of Macaronesian laurel forests”, nhos e 90 % de todas as classes são marinhas,
PLoS ONE, 2015: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.
pone.0132091#abstract0 (acedido a 26 dez. 2018); Worldwide Bioclimatic
enquanto em terra essa diversidade é muito
Classification System: www.globalbioclimatics.org (acedido a 22 jan. 2019). menor (28 filos). Estão descritas cerca de
300.000 espécies marinhas, o que representa
Jorge Capelo
cerca de 16 % do total de espécies descritas.
Miguel Sequeira
A diversidade marinha não se encontra dis-
Sandra Mesquita
tribuída no mar de forma equitativa, existin-
do padrões. Os maiores repositórios de espé-
Biologia marinha cies marinhas são os recifes de coral e o mar
profundo, devido à enormidade da área que
A biologia marinha é a ciência que estuda a ocupam. Em termos de diversidade espacial,
vida nos mares, os organismos e as relações existem gradientes: (1) um gradiente latitu-
entre si e com o ambiente marinho. Trata­ dinal com uma maior diversidade em áreas
‑se de uma divisão dos organismos baseada tropicais; (2) um gradiente longitudinal com
B iologia marinha ¬ 409

uma diversidade que se reduz de oeste para


leste ao longo dos trópicos nos oceanos Atlân-
tico e Pacífico; e (3) um gradiente de profun-
didade com menor biodiversidade em zonas
profundas. A variabilidade espacial da diver-
sidade marinha segue dois padrões distintos:
(1) diversidade costeira com um máximo no
Pacífico Ocidental e (2) diversidade oceâni-
ca com máximos em bandas latitudinais mé-
dias em cada bacia hemisférica oceânica à
volta dos 30° de latitude. A Madeira situa­‑se adaptado de Castro 2013

nesta última banda, estando portanto, inseri-


Fig. 1 – Principais habitats dos oceanos, em função da distância
da nos denominados hotspots de diversidade
da costa e da profundidade.
oceânica.
O ambiente marinho é tradicionalmente
subdividido em função da distância de terra, com profundidades médias de 5400 m. A sua
da profundidade do mar e de se tratar da co- plataforma insular é reduzida, e os declives
luna de água ou dos fundos. A área da coluna são acentuados, pelo que a poucas centenas
de água é denominada “domínio pelágico”, de metros da costa o mar já atinge grandes
enquanto os fundos são “domínio bentóni- profundidades. Este facto é também essen-
co”. Em função da profundidade, distinguem­ cialmente responsável pela falta de praias de
‑se as camadas epi­‑, meso­‑, bati­‑, abisso­‑ e ha- areia nas costas madeirenses, que são geral-
dalpelágicas, e os fundos têm terminologia mente escarpadas e abruptas.
correspondente. A camada de água que con- Em biologia marinha, como em qualquer
segue ser penetrada pela luz solar denomina­ disciplina ecológica, os seres vivos são afeta-
‑se “zona eufótica”. dos por fatores abióticos, i.e., físicos, como a
Os continentes prolongam­‑se mar adentro, temperatura, a salinidade ou as correntes, e
numa área denominada “plataforma conti- por fatores bióticos, i.e., as outras espécies.
nental”, que termina com o declive continen-
tal. Essa área que geologicamente faz parte
dos continentes é designada por “zona ne-
rítica”; a restante área marinha denomina­
‑se “zona oceânica”. Ilhas oceânicas não têm
plataforma continental, pelo que se fala em
“plataforma insular”. A zona das marés, ou
intertidal, é subdividida em zonas que dife-
rem de acordo com o tempo de submersão
e emersão. Começa com a zona dos salpicos,
denominada “supralitoral”, passando à zona
da variação das marés, designada por “médio-
litoral” e terminando com a zona permanen-
temente submersa, denominada “sublitoral”.

O mar da Madeira Fig. 2 – Classificações usuais da zona litoral marinha e sua


correspondência à amplitude de marés na Região Autónoma da
As ilhas que compõem o arquipélago da Ma- Madeira (PMVM – preia-mar da maré viva média; PMMM – preia-
-mar da maré morta média; NMM – nível médio do mar;
deira são ilhas oceânicas de origem vulcâni- BMMM – baixa-mar da maré morta média; BMVM – baixa-mar da
ca e erguem­‑se da planície abissal da Madeira maré viva média).
410 ¬ B iologia marinha

Reveem­‑se aqui alguns dos fatores abióticos, Origina assim correntes diversas ao longo das
primeiro, para depois se abordar os habitats e costas, incluindo levantamentos localizados.
as comunidades bióticas. Por exemplo, na costa sul da ilha da Madeira,
a direção predominante da corrente costeira
é de oeste para este.
Fatores abióticos A ondulação é gerada pela ação dos ventos
O arquipélago da Madeira situa­‑se na latitu- ao passarem sobre a superfície da água. Essas
de de 32­‑33º N. Esta é uma zona de calma- ondas são desviadas progressivamente em re-
rias, situada entre as zonas dos ventos de oeste lação ao vento que as originou devido à ação
(30­‑60º N) e a zona dos ventos alísios de nor- da rotação da Terra. Na Madeira, existe uma
deste (0­‑30º N). No entanto, são os ventos predominância de ventos alísios de nordeste,
alísios de nordeste que exercem a influên- gerando uma ondulação contínua que emba-
cia predominante, atuando sobre o mar e in- te nas costas destas ilhas, com uma média de
fluenciando as correntes superficiais. Estas 350 ondas por hora. A ondulação é geralmen-
correntes de superfície na área do arquipéla- te mais acentuada na costa norte da ilha, es-
go da Madeira têm predominantemente uma tando a costa sul a sotavento protegida pelas
direção a sudeste. Inserem­‑se num sistema montanhas. A ondulação é frequentemen-
de correntes denominadas “giro oceânico do te fraca ou moderada, com rumos predomi-
Atlântico Norte“. Tradicionalmente, este giro nantes de noroeste a nordeste na costa norte
é descrito como iniciando-se com a corrente e sudoeste a sudeste na costa sul. Os tempo-
do golfo que se origina no golfo do México, rais ocasionais procedentes de sudoeste são
acompanha o continente americano e atraves- os que maiores estragos ocasionam nas costas
sa o Atlântico Norte, de sudoeste a nordeste. da Madeira, especialmente na costa sul, já que
Um pouco a sudoeste dos Açores, subdivide­ essa ondulação não é quebrada pela barreira
‑se em dois braços: a corrente do Atlântico protetora constituída pela ilha da Madeira e
Norte, que vai banhar o Norte do continente pelas ilhas Desertas.
europeu, e a corrente dos Açores, que poste- No arquipélago da Madeira e das Selvagens,
riormente se designa por “corrente de Portu- as marés são do tipo semidiurno regular, com
gal” junto à costa continental portuguesa, e duas preia­‑mares e duas baixa­‑mares em cada
“corrente das Canárias”, mais ao largo. Este dia lunar. A maior amplitude de maré viva é
sistema de correntes sofre um natural alarga- de 2,74 m. Em todo o arquipélago, os máxi-
mento e enfraquecimento com a sua migra- mos e os mínimos das marés ocorrem quase
ção para este da bacia oceânica, girando gra- em simultâneo, sendo as amplitudes também
dualmente no sentido sudeste. Estas correntes aproximadamente iguais. Os valores teóricos
acabam por se integrar nas correntes subtro- das preia­‑mares e baixa­‑mares de águas vivas
pical e equatorial do Norte que voltam a atra- e mortas apresentam­‑se na fig. 5 e servem de
vessar a bacia oceânica em direção a oeste pontos de referência para a zonação da área
para fechar o giro. São as correntes dos Aço- litoral.
res e das Canárias com direção sudeste que A temperatura da água do mar na zona
influenciam o arquipélago da Madeira. A cor- do arquipélago da Madeira é fortemente in-
rente dos Açores subdivide­‑se a sul dos Açores fluenciada pelo efeito da corrente das Caná-
em dois braços: o superior, meandrando em rias com um aporte de água relativamente
direção ao golfo de Cádis, e o inferior, pas- fria. O valor médio é de 19,5 °C, variando
sando através da Madeira em direção às Ca- entre 16 e 26 °C, de acordo com a boia on-
nárias, variando ainda de forma sazonal, pas- dógrafo do Instituto Hidrográfico situada
sando mais perto da Madeira de inverno que na costa sul da Madeira, gerida pela Admi-
de verão. Esta corrente, ao embater nas pla- nistração dos Portos da Região Autónoma
taformas das ilhas, é desviada pelas mesmas. da Madeira, ou com dados aferidos através
B iologia marinha ¬ 411

Fig. 3 - Gráfico da ondulação indicando a altura significativa e a direção da ondulação para as três boias ondógrafo do Instituto Hidrográ-
fico fundeadas no Funchal, no Caniçal e no Porto Santo. A ondulação prevalecente é condicionada pela localização da boia. No Funchal,
observa­-se, de forma clara, que ondas maiores correspondentes aos temporais vêm de direções sudoeste.

de satélite. A temperatura diminui com o au- Kaufmann e Manuela Maranhão determinou


mento da profundidade. A termoclina, i.e., que a salinidade das águas costeiras variou
o gradiente de temperatura mais acentua- entre 36,8 e 38,0 ppt.
do que separa as massas de água superficiais Relativamente aos nutrientes, aqueles com-
mais quentes das massas inferiores, varia de postos químicos que variam em função dos
profundidade ao longo das épocas do ano, processos biológicos e que servem de sus-
num padrão típico de mares temperados. No tento aos organismos autotróficos na base
outono e no inverno, essa termoclina é pra- das cadeias alimentares, no mar trata­‑se
ticamente inexistente, formando­‑se duran-
te a primavera e o verão. De facto, no verão
são mensuráveis duas termoclinas: uma pelos
40 m de profundidade, outra pelos 100 m.
O facto de os ventos e as correntes preva-
lecentes virem de nordeste cria uma zona
mais quente do lado de sotavento durante os
meses de verão.
A salinidade e a temperatura definem a
densidade das massas de água e são caracte-
rísticas destas. Na Madeira, as águas de su-
perfície têm uma salinidade média de 36,7
ppt (36,7 g de sal por cada quilo de água).
Com o aumento da profundidade, a salinida-
de tende a diminuir, caracterizando a massa
de água do Atlântico Norte com temperatu-
ras de 2­‑4 ºC e salinidades de 34,9 ppt. Rele-
vante é ainda o núcleo de águas mediterrâ-
neas nas profundidades de 900­‑1200 m com
Fig. 4 - Gráfico da temperatura de superfície (sea surface tem-
temperaturas (aproximadamente 12 ºC) e perature [SST]) da Madeira com base em dados recolhidos pela
salinidades (36,5 ppt) bem superiores, zona boia ondógrafo do Instituto Hidrográfico fundeada frente ao
em que se efetua a pesca do peixe­‑espada­ Funchal e gerida pela Administração dos Portos da Região Autó-
noma da Madeira, SA. Os dados usados abrangem o período de
‑preto. Um estudo, de 2012, de Manfred 1996-2011.
412 ¬ B iologia marinha

essencialmente de nitratos (NO3­‑), fosfatos (diretiva do Conselho das Comunidades Eu-


(PO43­‑) e silicatos (SiO2), fundamentais ropeias n.º 92/43/EEC, de 21 maio; dec.­‑lei
para a produção primária. A Madeira está n.º 140/99, de 24 abr.). Esta listagem tem
situada distante das costas continentais de uma forte preponderância de habitats terres-
onde a maioria dos nutrientes provém, daí o tres e é claramente insuficiente para abranger
mar ser essencialmente oligotrófico, conten- a diversidade de habitats marinhos existentes.
do concentrações muito baixas de nutrien- Poucos habitats aplicáveis ou equiparáveis ao
tes, inferiores a 1 μM nas águas superficiais. domínio marinho existente na Madeira cons-
Somente a nível localizado é que seriam de tam dessa diretiva.
esperar níveis mais elevados, essencialmente Na Madeira, habitats importantes e amea-
devido ao aporte através das águas das ribei- çados são as pradarias da planta fanerogâmi-
ras, como de facto foi determinado no estu- ca Cymodocea nodosa. Estas pradarias poderão
do já referido de Manfred Kaufmann e Ma- ser equiparadas ao habitat prioritário 1120
nuela Maranhão. (bancos de Posidonia), tendo uma composi-
ção faunística semelhante a estas. O habitat é
ameaçado pela sedimentação com terras, pela
Espécies e habitats construção costeira, especialmente de mo-
Em termos biogeográficos, a Madeira situa­ lhes, pela emissão de águas residuais e por al-
‑se na província marinha Lusitana e, dentro gumas modalidades de pesca.
desta, na ecorregião dos “Açores, Canárias, Devido à orografia acidentada e à predomi-
Madeira” (SPALDING et al., 2007). Tradicio- nância de falésias nas costas do arquipélago,
nalmente, tem­‑se definido esta área como os fundos rochosos têm uma expressão im-
pertencente à região marinha da Macaro- portante. No entanto, o declive acentuado faz
nésia, com alguns autores a incluir também com que a sua extensão seja reduzida. Estas
Cabo Verde. No entanto, com base em dados áreas, tanto no circa­‑ como no infralitoral, são
biogeográficos concretos, esse uso foi desa- importantíssimas em termos de diversidade
conselhado, propondo­‑se o termo “Webbne- e produtividade biológica e estão ameaçadas
sia” para a ecorregião marinha da Madeira, por vários fatores antropogénicos, entre os
das Selvagens e das Canárias (FREITAS et al., quais se destacam a construção costeira, a se-
2019). dimentação com detritos terrígenos e a emis-
O meio marinho da Madeira tem sido rela- são de águas residuais.
tivamente bem estudado a nível taxonómico, Um importante habitat infralitoral são os
embora não em todos os grupos. No entanto, fundos de “maërl”, constituídos por algas do
existem poucas publicações que descrevam género Lithothamnion que crescem em forma
as biocenoses e comunidades bentónicas lito- de rodólitos, i.e., em forma de esferas soltas,
rais. Nenhum estudo compara a variação geo- e que cobrem o fundo em grandes áreas da
gráfica nas diferentes costas do arquipélago Madeira e do Porto Santo. Uma das áreas
ou retrata as diferenças existentes em função deste habitat foi protegida com a criação do
do grau de exposição ao mar. Essa lacuna foi Parque Natural Marinho do Cabo Girão, em
em parte abordada no âmbito dos planos de 2017. Outros habitats importantes incluem as
ordenamento da orla costeira. O último ma- praias de calhau rolado e as raras praias de
peamento exaustivo de habitats e espécies cos- areia no supra­‑ e médiolitoral. Enclaves como
teiras publicado foi efetuado por Cláudia Ri- as cavernas no sublitoral e as poças intertidais
beiro e Pedro Neves em 2020. são raros e, como tal, fortemente ameaçados
A Diretiva Habitats nomeia, no seu Anexo por atividades humanas. A sua elevada diversi-
BI, os “tipos de habitats naturais de interes- dade e a fauna e flora específicas fazem deles
se comunitário cuja conservação exige a de- importantes componentes para a conservação
signação de zonas especiais de conservação” do meio marinho.
B iologia marinha ¬ 413

Ao nível do mar profundo, têm sido feitas regionais, assim como a promoção e me-
prospeções regulares tendo como alvo espé- lhoria do acesso a estes recursos. Em 1988,
cies específicas, especialmente as que têm po- estabeleceu­‑se a Univ. da Madeira, que, a par-
tencial pesqueiro, no âmbito do projeto PES- tir de 1992, integrou docentes e investigado-
CPROF. O projeto Madeira Mar Profundo, res da área marinha. A partir desta data, mais
promovido pela Direção Regional do Orde- instituições se juntaram, com relevo para o
namento do Território e Ambiente, já obteve Centro de Maricultura da Calheta, o Museu
dados inovadores neste âmbito. da Baleia, o Observatório Oceânico da Ma-
Os montes submarinos que se situam na deira, o Centro Interdisciplinar de Investi-
Zona Económica Exclusiva da Madeira e que gação Marinha e Ambiental da Madeira e o
se inserem no complexo geológico Madeira­ MARE – Centro de Ciências do Mar e do Am-
‑Tore (entre o território do continente e a biente da Madeira. A área tem apresentado
ilha da Madeira) são também um habitat im- bastante dinamismo e visibilidade científica.
portante, tendo sido alvo de prospeção no
âmbito do projeto Biometore.
Legislação: diretiva do Conselho das Comunidades Europeias n.º 92/43/
Várias áreas marinhas encontram­‑se protegi- EEC, de 21 maio; dec.­‑lei n.º 140/99, de 24 abr.; resolução da Presidência do
das, como a Reserva Natural das Ilhas Deser- Governo Regional n.º 699/2016, de 17 out.; dec. leg. regional n.º 4/2017/M,
de 30 jan.
tas, a Reserva Natural das Ilhas Selvagens e a
Rede de Áreas Marinhas Protegidas do Porto Bibliog.: impressa: ALVES, F. et al., “Local benthic assemblages in
shallow rocky reefs find refuge in a marine protected area at Madeira
Santo. Foram ainda criados o Parque Mari- Island”, Journal of Coastal Conservation, vol. 23, n.º 2, 2019, pp. 373­‑383;
nho do Cabo Girão, em 2016, e o Parque Na- ALVES, J. M. R. et al., “Dynamics and oceanic response of the Madeira
tural Marinho da Ponta do Pargo, em 2018. tip­‑jets”, Quarterly Journal of the Royal Meteorological Society, vol. 146,
n.º 732, 2020, pp. 3048­‑3063; AUGIER, H., “Première contribution à
Também foi aprovada a inclusão do Sítio de l’étude et à la cartographie des biocénoses marines benthiques de l’île de
Importância Comunitária “Sítio Cetáceos da Madère”, Boletim do Museu Municipal do Funchal, vol. 37, 1985, pp. 86­
‑129; BIANCHI, C. N. et al., “Sublittoral epibenthic communities around
Madeira”. Áreas protegidas contribuem ativa- Funchal (Island of Madeira, NE Atlantic)”, Boletim do Museu Municipal
mente para um aumento da biodiversidade. do Funchal, sup. 5, 1996, pp. 59­‑80; BRIGGS, J. C., “Species diversity: land
and sea compared”, Systematic Biology, vol. 43, n.º 1, 1994, pp. 130­‑135;
Id., Global Biogeography. Developments in Palaeontology and Stratigraphy,
vol. 14, Amsterdam/New York, Elsevier, 1995; CABIOC’H, J., “Un fond de
Investigação maërl de l’archipel de Madère et son peuplement végétal”, Bulletin de
la Société Phycologique de France, vol. 19, 1974, pp. 74­‑82; CALDEIRA, R.
Historicamente, a investigação em biologia M. A., e LEKOU, S., Madeira, Um Oásis no Atlântico. Uma Introdução aos
Estudos Oceanográficos no Arquipélago da Madeira, Funchal, Direcção
marinha existe desde o séc. xix. Na Madeira,
Regional de Formação Profissional, 2000; CALDEIRA, R. M. A. et al., “Sea­
vários organismos têm­‑se dedicado à inves- ‑surface signatures of the island mass effect phenomena around Madeira
tigação em biologia marinha. A mais antiga Island, Northeast Atlantic”, Remote Sensing of Environment, vol. 80, n.º 2,
2002, pp. 336­‑360; FREITAS, R. et al., “Restructuring of the ‘Macaronesia’
instituição com investigação contínua nesta biogeographic unit: a marine multi­‑taxon biogeographical approach”,
área é o Museu Municipal do Funchal, fun- Scientific Reports, vol. 9, 2019; GESTOSO, I. et al., “Marine protected
communities against biological invasions: a case study from an offshore
dado em 1929 como Museu de Ciências Na- island”, Marine Pollution Bulletin, vol. 119, n.º 1, 2017, pp. 72­‑80; GUIDETTI,
turais, sob proposta de Adolfo César de No- P., e BUSSOTTI, S., “Effects of seagrass canopy removal on fish in shallow
Mediterranean seagrass (Cymodocea nodosa and Zostera noltii) meadows:
ronha. Foi no âmbito desta instituição que a local­‑scale approach”, Marine Biology, vol. 140, 2002, pp. 445­‑453;
investigadores como Günther E. Maul fize- INSTITUTO HIDROGRÁFICO, Roteiro do Arquipélago da Madeira e Ilhas
Selvagens, 2.ª ed., Lisboa, Marinha Portuguesa – Instituto Hidrográfico,
ram a sua carreira. O Museu Municipal do
1979; INSTITUTO NACIONAL DE INVESTIGAÇÃO DAS PESCAS, Programa
Funchal publica também as únicas revistas de Apoio às Pescas na Madeira. IV Cruzeiro de Reconhecimento de Pesca
científicas dedicadas a esta área desde 1945: e Oceanografia 020390582, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação das
Pescas, 1984; JOHNSON, J., e STEVENS, I., “A fine resolution model of the
Boletim Museu Municipal do Funchal e Bocagia- eastern North Atlantic between the Azores, the Canary Islands and the
na. A segunda instituição na área aplicada foi Gibraltar strait”, Deep Sea Research, vol. 47, 2000, pp. 875­‑899; KAUFMANN,
M., e MARANHÃO, M., GESMAR (Gestão Sustentável dos Recursos
a Direção Regional das Pescas, integrada na Marinhos): Relatório Final do Projeto. PCT 2007­‑2013 GESMAR (MAC/2/
Secretaria Regional de Agricultura e Pescas C068), Funchal, Universidade da Madeira, 2012; LEDOYER, M., “Aperçu sur
la faune vagile de quelques biotopes de l’archipel de Madère. Comparaison
do Governo regional, cuja função é a reco- avec les biotopes méditerranéens homologues”, Arquivos do Museu Bocage,
lha de informação estatística sobre as pescas vol. 1, n.º 19, 1967, pp. 415­‑424; LONGHURST, A. R., Ecological Geography
414 ¬ B lanchard , P ierre

of the Sea, 2.ª ed., Amsterdam/Boston, Academic Press, 2007; MARTINS, Le Trésor des Enfants: Divisé en Trois Parties. La
A. et al., “Sea surface temperature (AVHRR, MODIS) and ocean colour
(MODIS) seasonal and interannual variability in the Macaronesian islands Morale, la Vertu, la Civilité, com tradução por-
of Azores, Madeira, and Canaries”, Remote Sensing of the Ocean, Sea Ice, tuguesa, que em 1879 já ia na 36ª edição; e Le
and Large Water Regions, 6743, proc. SPIE – The International Society
for Optical Engineering, 2007, pp. A1­‑15; NEVES, P. et al., Resultados do
Voyageur de la Jeunesse dans les Quatre Parties du
Programa de Monitorização da Biodiversidade Marinha dos Habitats Monde. Ouvrage Élémentaire, em seis volumes.
Naturais e Artificiais Subtidais na Ilha do Porto Santo. Relatório Científico
CORDECA, Funchal, Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e
Também deste último texto foram muitas as
Ambiental da Madeira, 2018; PENMAN, H. L., “The water cycle”, Scientific edições, contando­‑se numa década cerca de
American, vol. 223, n.º 3, 1970, pp. 98­‑108; REAKA­‑KUDLA, M. L., “The
quatro. A divulgação dos conhecimentos que
global biodiversity of coral reefs: a comparison with rain forests”, in REAKA­
‑KUDLA, M. L. et al. (eds.), Biodiversity II: Understanding and Protecting Our transmitia foi por isso muito vasta, servindo
Biological Resources, Washington, DC, Joseph Henry Press, 1997, pp. 83­
durante largos anos para a educação dos jo-
‑108; RIBEIRO, C., e NEVES, P., “Habitat mapping of Cabo Girão Marine
Park (Madeira island): a tool for conservation and management”, Journal vens franceses.
of Coastal Conservation, vol. 24, n.º 2, 2020; SALA, E., e KNOWLTON, N., No quarto volume desta última obra, Blan-
“Global marine biodiversity trends”, Annual Review of Environment and
Resources, vol. 31, n.º 1, 2006, pp. 93­‑122; SCHÄFER, S. et al., “Lost and chard começa a viagem no Indostão, passa
found: a new hope for the seagrass Cymodocea nodosa in the marine pela Pérsia, pelas Arábias, por algumas ilhas
ecosystem of a subtropical Atlantic Island”, Regional Studies in Marine
Science, vol. 41, 2021; SPALDING, M. D. et al., “Marine ecoregions of the do Mediterrâneo, pelas ilhas da Ásia, pela
world: a bioregionalization of coastal and shelf areas”, BioScience, vol. 57, África, pela Abissínia, pelo que denomina
n.º 7, 2007, pp. 573­‑583; STRAMMA, L., e SIEDLER, G., “Seasonal changes
in the North Atlantic subtropical gyre”, Journal of Geophysical Research: “Estados Barbáricos” ou “Barbárie” (nos quais
Oceans, vol. 93, n.º C7, 1988, pp. 8111­‑8118; TITTENSOR, D. P. et al., “Global inclui Tripoli, Tunísia, Argélia, o Império de
patterns and predictors of marine biodiversity across taxa”, Nature, vol. 466,
n.º 7310, 2010, pp. 1098­‑1101; TROMM, R., Oceanografia Sísmica da Planície
Marrocos e Biledulgerid), pelo Sahara e, final-
Abissal do Arquipélago da Madeira, Dissertação de Mestrado em Ciências mente, do grande deserto chega às “Ilhas da
Geofísicas (Geofísica Interna) apresentada à Universidade de Lisboa, Lisboa,
texto policopiado, 2017; digital: EAKINS, B. W., e SHARMAN, G. F., Volumes
Madeira”, com as quais fecha o tomo (BLAN-
of the World’s Oceans from ETOPO1, 2010: https://www.ngdc.noaa.gov/mgg/ CHARD, 1818, 438).
global/etopo1_ocean_volumes.html (acedido a 10 jan. 2021); WIRTZ, P., The
O autor transmite o que considera ser a in-
Fauna of Madeira. A List of the Species Lists, 2014: https://www.researchgate.
net/profile/Peter­‑Wirtz/publication/261992435_The_Fauna_of_Madeira_ formação mais pertinente sobre o arquipé-
Island_­‑_a_list_of_the_species_lists/data/0c96053624861e6e27000000/
lago: a constituição e dimensão das ilhas; a
FAUNMAD.doc.
história do descobrimento e a caracterização
Thomas Dellinger da sua economia. Apesar de se enganar na
data da descoberta, provavelmente fruto de
uma gralha, situando assim a chegada dos
Blanchard, Pierre Portugueses em 1519, Blanchard parece co-
nhecer bem a bibliografia sobre as ilhas. Re-
Autor, editor e educador, Pierre Blanchard fere o incêndio no início do povoamento, a
nasceu em Dammartin em 1772 e faleceu em forte arborização e fertilidade dos terrenos
Angers em 1856. Dedicou­‑se às letras desde e o papel da cana­‑de­‑açúcar na economia
cedo, publicando os primeiros textos no pe- da ilha e na difusão desta cultura no Brasil.
ríodo da Revolução Francesa com os pseudó- Considera o açúcar da Madeira muito bom e
nimos Platon Blanchard e P. B**. Em 1800, afirma que deixa na boca um odor de violeta,
inaugurou em Paris uma instituição para jo- forte e agradável. Em relação ao vinho, afir-
vens. Estabeleceu­‑se como livreiro em 1809, ma que a cultura da vinha ultrapassou as es-
a fim de comercializar e divulgar as obras de peranças dos cultivadores, produzindo­‑se na
educação de sua autoria. Trabalhou em asso- ilha da Madeira diversos vinhos que estão a
ciação com Alexis Eymery entre 1811 e 1812. par dos melhores que existem, sendo os seus
Em 1834, passou a outro editor a licença da nomes Madeira, Malvasia e Alicante. A Ma-
livraria. deira, segundo o autor, exportava cerca de
Dedicou­‑se à escrita de textos de teor didáti- 20.000 barricas por ano para as colónias oci-
co, tendo como principal finalidade a educa- dentais e para os Barbados.
ção das crianças e dos jovens. No conjunto da Além do açúcar e do vinho, a Ilha era famosa
sua obra, destacam­‑se Les Accidents de l’Enfance; pela comercialização do mel, da cera, do couro
B lanc , T ibério A ugusto ¬ 415

carácter superlativo, em comparação com


outros lugares e produtos. O autor repete,
assim, os topoi da fertilidade e da excelência
ligados à Madeira e o deslumbre do europeu
continental.

Obras de Pierre Blanchard: Le Voyageur de la Jeunesse dans les Quatre Parties


du Monde. Ouvrage Élémentaire (1804); Les Accidents de l’Enfance, Présentés
dans des Petites Historiettes, Propres à Détourner les Enfants des Actions Que Leur
Seraient Nuisibles (1813); Le Trésor des Enfants. Divisé en Trois Parties. La Morale,
la Vertu, la Civilité (1814).

Bibliog.: BLANCHARD, Pierre, Le Voyageur de la Jeunesse dans les Quatre Parties


du Monde. Ouvrage Élémentaire, 5.ª ed., Paris, Le Prieur­‑Libraire, 1818.

Luísa M. Antunes Paolinelli

Blanc, Tibério Augusto


Tibério Augusto Blanc nasceu em Santarém,
cerca de 1810, entrando para o Real Colé-
gio Militar em 1822, onde foi inscrito com
o número 34 e já se não encontra registado
com os últimos apelidos. Terminado o curso,
ingressou como cadete, a 9 de setembro de
1828, na Real Academia de Fortificação, Ar-
tilharia e Desenho, onde “foi o primeiro em
Le Voyageur de la Jeunesse dans les Quatre Parties du Monde
todos os exames” (SANTOS, 1991). Seria de-
(5.ª ed., 1818), de Pierre Blanchard.
pois promovido a 2.º tenente, a 24 de julho
de 1833, e a 1.º tenente, a 5 de setembro de
e de frutas frescas e tratadas. Estas últimas, em 1837, sendo colocado nesse mês na ilha da
compotas, são consideradas das melhores do Madeira. Fixou residência no Funchal, na rua
mundo, tendo um excecional odor, especial- de Santa Maria, onde veio a conhecer a futu-
mente as de laranja e de limão. ra esposa, Marta Carolina de Abreu Rego, da
Segundo o autor, os bosques têm muita caça, família dos capitães de Ponta Delgada, com
como javalis e outros animais selvagens, não quem se casou a 16 de fevereiro de 1838. Pas-
existindo nenhum animal venenoso. As casas, sou depois a residir na antiga rua das Portas
no meio das vinhas e das plantações, criam um Novas, atual rua do Carmo, e, depois, junto à
efeito “encantador”, e a única cidade da Madei- ponte do Ribeiro Seco, quando foi colocado
ra, “Fonchal”, situa­‑se na costa sul, “essa bela à frente daquelas obras.
encosta”, numa grande baía (Id., Ibid., 440). Tibério Augusto Blanc parece ter ido para a
Porto Santo é referido como uma ilha peque- Madeira a pedido do administrador­‑geral An-
na, e as outras apenas como rochedos estéreis, tónio Gambôa e Liz (1778­‑1870) e, provavel-
sem importância. mente, por indicação do futuro barão de Lor-
Blanchard, de forma resumida, dá aos seus delo, que fora nomeado para o Funchal, em
jovens leitores uma imagem da Madeira como 1835, embora só se tenha aí apresentado em
um lugar agradável (um locus amoenus), sim- setembro de 1838. Tibério Blanc casar­‑se­‑ia
ples, mas de uma grande riqueza, baseada no Funchal em fevereiro de 1838 e, em abril
nos produtos da terra. A descrição da Ilha e do ano seguinte, nascer­‑lhe­‑ia uma filha, da
do que exporta é pautada pelo elogio e pelo qual, em agosto, foram padrinhos de batismo
416 ¬ B lanc , T ibério A ugusto

Machico e orçamentar os reparos necessários,


assim como igualmente o estado das muralhas
da ribeira daquela vila, indicando os melho-
ramentos urgentes de que necessitava, “visto
recear­‑se qualquer desastre” (ABM, Governo
Civil, liv. 132, fls. 104 e 131v.), o que viria a
acontecer dois anos depois, com uma nova e
destrutiva aluvião.
Nesse ano de 1840 ainda veio a ser encarre-
gado de vistoriar se os cemitérios de Machi-
co, Água de Pena, Santo António da Serra e
Caniçal estavam de acordo com as determina-
ções dos decretos de 21 de setembro e de 8 de
outubro de 1835, vindo, no final desse ano,
a vistoriar também um terreno em Machico,
no sentido de avaliar se tinha condições para
servir de cemitério àquela vila, embora a sua
autorização para ser destacado para o servi-
ço do Governo Civil só tivesse vindo no ano
seguinte. Em 1841, o Ten. Tibério Blanc pro-
cedeu à medição das águas da levada do Fura-
do e orçamentou os reparos de que a mesma
necessitava, vindo a ser o trabalho das levadas
um dos aspetos mais relevantes da sua ativida-
de na Madeira.
No final de 1842, face à importante alu-
vião, era chamado à Comissão Central de
Auxílio, encarregada de avaliar os trabalhos
Fig. 1 – Planta e Perfil da Muralha no Caes da Pontinha, c. 1835 a serem feitos. Nas reuniões e na presença
(DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos..., 1346-1A-12-15). do então administrador­‑geral, o Dr. Domin-
gos Olavo Correia de Azevedo (1799­‑1855),
estavam presentes os engenheiros militares
os barões de Lordelo, José da Fonseca e Gou- da ilha: o então novo diretor das obras públi-
veia, administrador­‑geral do Funchal, e Maria cas, Manuel José Júlio Guerra (1801­‑1869),
Leopoldina, sua esposa, demonstrando as e os engenheiros Tibério Augusto Blanc,
boas relações que mantinha com as mais altas António Pedro de Azevedo (1812­‑1889), re-
autoridades do distrito. centemente regressado à Madeira, e o velho
Tibério Blanc terá ido para a Madeira traba- e experiente Vicente de Paula Teixeira (c.
lhar na canalização das ribeiras do Funchal, 1790­‑c. 1850), como representante das obras
monumental obra que fora iniciada pelo bri- camarárias do Funchal. A aluvião ocorrera a
gadeiro Oudinot em 1804, após a aluvião do 24 de outubro desse ano, tendo sido despacha-
ano anterior. Integrou assim a comissão no- do para o Funchal, a 26 de novembro, o então
meada para superintender na inspeção e di- Maj. Manuel José Júlio Guerra, experiente mi-
reção dos trabalhos de limpeza das ribeiras da litar liberal, com larga folha de serviço nos Aço-
cidade em 1839 e, no mesmo ano, ainda foi res, no Porto, no Algarve e em Setúbal, mas,
encarregado do conserto da igreja de S. Lou- em princípio, sem as capacidades científicas
renço da Camacha. Em 1840 seria encarrega- dos outros dois engenheiros na altura também
do de verificar o estado da igreja matriz de presentes na ilha. A sua colocação à frente das
B lanc , T ibério A ugusto ¬ 417

Fig. 2 – Estragos da Aluvião de 1842, cópia de 1844 (DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos..., 1340-1A-12-15).

obras públicas não deve ter agradado a Tibério Em fins de 1846, já o conselheiro José Silves-
Blanc, que, até certo ponto, se apaga nos anos tre Ribeiro (1807­‑1891) iniciara as consultas
seguintes, assim como a António Pedro de Aze- sobre o modo de levar a efeito a obra da ponte
vedo, que pouco tempo depois volta para o projetada pelo seu antecessor, Luís da Silva
continente, embora regressasse, também em Mouzinho de Albuquerque (1792­‑1847), mas
pouco tempo, à Madeira. só em 1848 se pôde dar começo aos trabalhos,
Entre as mais importantes obras públicas da depois de o conselheiro ter obtido a promessa
Madeira dos meados do séc. xix, encontram­ de donativos que chegassem para satisfazer a
‑se a ponte do Ribeiro Seco, a Estrada Mo- quarta parte das despesas em que haviam sido
numental para Câmara de Lobos e as várias orçados os trabalhos. A arrematação das obras
pontes para tal construídas, assim como a le- da ponte teve lugar a 27 de fevereiro de 1848,
vada do Rabaçal. Este conjunto de obras teve e, a 6 de março seguinte, começaram os tra-
a direção do Eng.º Tibério Augusto Blanc e, balhos, tendo pouco antes o governador aber-
dados os interesses políticos e económicos to uma subscrição para os gastos da ponte. Em
que envolveu, foi objeto de ampla discussão junho desse ano, José Silvestre Ribeiro partiria
nos periódicos da época. Não lograram assim de licença para o continente, não deixando de,
estes trabalhos, durante a sua execução, face antes de partir, louvar Tibério Blanc pelos tra-
aos sucessivos encargos que todos tiveram e balhos já desenvolvidos na ponte e no traçado
que quase duplicaram os orçamentos iniciais, da futura Estrada Monumental.
a larga aceitação que viriam a conhecer após As obras da ponte do Ribeiro Seco foram
a sua conclusão. arrematadas pela quantia de quase 6 contos
418 ¬ B lanc , T ibério A ugusto

de réis, sendo arrematantes o mestre de obras desse ano se deslocara a Santa Cruz para esco-
José Pereira e seus sócios António Joaquim lher o terreno para o futuro cemitério. No ano
Marques Basto, João António Bianchi e Fran- seguinte, continuaria os seus trabalhos e, inclusi-
cisco Luís Pereira. Os trabalhos ficaram aca- vamente, responderia, por indicação também do
bados em fevereiro de 1849, altura em que Gov. José Silvestre Ribeiro, aos quesitos apresen-
Tibério Blanc comunicou ao governador civil tados pela Câmara Municipal do Funchal sobre
interino, Sérvulo Drumond de Meneses (1802­ a iluminação a gás da cidade.
‑1867), em ofício de 5 de dezembro do mesmo O problema mais grave viria a ocorrer, en-
ano, estar concluída a grandiosa obra, com tretanto, em relação à levada do Rabaçal.
toda a “solidez e perfeição” requeridas, tendo O Eng.º Tibério Blanc fora colocado em agos-
o governador interino louvado a forma como to de 1848 à frente dos trabalhos da cons-
tinha “dirigido a execução do plano que ha- trução da levada, cujos primeiros estudos
bilmente traçara da mesma obra”. Mais tarde, datavam dos meados do século anterior, de
toda a documentação respeitante à obra seria outubro de 1768, do tempo do sargento­‑mor
publicada em volume independente, integra- Francisco de Alincourt (1733­‑1816), do aju-
da nas várias obras respeitantes à atuação da dante Salustiano da Costa (c. 1745­‑c. 1820)
administração de José Silvestre Ribeiro (ME- e do Gov. João António de Sá Pereira (1719­
NEZES, 1848). ‑1804). Os trabalhos de perfuração do im-
Tibério Blanc, talvez para poder acompa- portante túnel decorreram nos dois anos se-
nhar mais de perto a obra da Estrada Monu- guintes, comunicando o engenheiro, a 5 de
mental, tinha adquirido um terreno junto à novembro de 1850, em ofício escrito do lugar
ponte do Ribeiro Seco, onde fizera construir do Rabaçal, a finalização daquela fase dos tra-
uma residência. Assim, em breve era atacado balhos. No mesmo documento dava ainda
pelo jornal O Archivista, insinuando­‑se que na conta de ter informado os vigários da Calheta,
execução dessa casa se servira dos materiais Estreito, Prazeres, Fajã da Ovelha e Ponta do
do Estado destinados à Estrada Monumen- Pargo, localidades que mais tarde haveriam de
tal. Face às insinuações, o engenheiro enviou beneficiar dos trabalhos em curso. Acrescen-
um ofício ao governador dando conta do an- tava também que encarregara os portadores
damento dos trabalhos e, ao mesmo tempo, das cartas de, nos adros das respetivas igrejas,
demonstrando que nada de censurável havia darem girândolas de foguetes pela consuma-
feito. Acrescentava ainda que resolvera entre- ção do importante túnel de ligação das partes
tanto vender a dita casa e regressar à que ad- norte e sul do monte das Estrebarias.
quirira anteriormente, em setembro de 1848, As questões entre Tibério Blanc e Antó-
no Salto de Cavalo. O Archivista viria a publi- nio Pedro de Azevedo, no entanto, datavam
car os esclarecimentos de Tibério Blanc, mas de, pelo menos, os inícios de 1848. Tibério
acrescentaria que, apesar de tudo, o enge- Blanc fora nomeado por despacho régio de
nheiro deveria de futuro fazer a sua residên- 23 de janeiro de 1839, em comissão de servi-
cia um pouco mais afastada das obras que ço civil, encarregado da direção das obras pú-
dirigia. blicas civis do distrito, ou seja, passara para a
O incidente não deve ter afetado a ação e acei- dependência direta do governador civil. Ora,
tação institucional de Tibério Blanc, que desde com o afastamento de Júlio Ribeiro Guerra,
1850 integrava a direção da Sociedade Agríco- passara o Cap. António Pedro de Azevedo a
la Madeirense, composta por quase 30 pessoas, chefiar o Comando da Engenharia da 9.ª Divi-
dando nesse ano orçamento para umas obras são Militar, pelo que entendeu dever Tibério
a executar na cadeia da cidade para a constru- Blanc dar­‑lhe conhecimento dos trabalhos em
ção de uma lareira e respetiva chaminé, a fim que andava. A questão entre os dois chegou
de evitar que os presos fizessem lume ao longo a Lisboa e teve como despacho a suspensão
dos muros, provocando fumos. Também no final de ambos a 31 de março desse ano de 1848,
B lanc , T ibério A ugusto ¬ 419

nomeando­‑se mesmo um capitão engenhei- Fontes Pereira de Melo, Tibério Augusto


ro, de nome Cunha, para substituí­‑los, como Blanc foi mantido à frente das obras públi-
consta do processo arquivado no Arquivo His- cas do distrito do Funchal, situação que se
tórico Militar. A suspensão acabou por não conservou na vigência do novo governador, o
ter efeito, com a chegada de José Silvestre Ri- visconde de Fornos de Algodres, João Maria
beiro a Lisboa, no mês de junho, e ambos se de Abreu Castelo Branco Cardoso e Melo
mantiveram em serviço na Madeira nos anos (1789­‑1878). As obras da levada do Rabaçal
seguintes. continuavam, entretanto, com a abertura de
No Governo de José Silvestre Ribeiro, em novo túnel, o das Levadinhas, para aumen-
meados de 1849, ainda se havia iniciado um tar o caudal das águas. A época correspon-
interessante trabalho, que era o de classificar de a uma nova inflexão política da regenera-
as várias acessibilidades, atribuindo­‑se depois ção, proclamando­‑se o Maj. António Pedro
as responsabilidades de conservação às várias de Azevedo adversário político do anterior
autoridades concelhias e distritais. A iniciati- governador, José Silvestre Ribeiro, conside-
va começou pela publicação de um edital con- rado localmente pelos “novos regenerado-
vocando a Junta Geral para a discussão de um res” pouco dialogante e até autoritário. Com
projeto sobre as estradas, apelando­‑se à parti- a nova situação, e não tendo sido nomeado
cipação dos cidadãos interessados no assunto. diretor­‑geral das obras públicas do distrito,
A junta veio a nomear uma comissão para a António Pedro de Azevedo consegue ser no-
elaboração de um Projeto para as Estradas e Ca- meado inspetor das mesmas obras, oficiando
minhos da Ilha da Madeira e do Porto Santo, que então a Tibério Blanc a comunicar­‑lhe as suas
propôs então a sua classificação em estradas, novas funções, solicitando­‑lhe vários elemen-
caminhos do concelho, caminhos vizinhais e tos sobre as obras do Rabaçal e alojamento
caminhos rurais, propondo ainda a constitui- no local para proceder à sua inspeção.
ção de uma Junta das Estradas e de um inspe- O assunto foi acompanhado pelos perió-
tor das estradas. O trabalho foi publicado na dicos do Funchal, que protestavam contra
tipografia do palácio de S. Lourenço, mas pa- o atraso com que decorria a inspeção, a
rece que as contingências políticas posteriores primeira a efetuar­‑se àquela obra, uma das
o deixaram cair no esquecimento. mais importantes obras públicas da Madei-
O Eng.º Tibério Blanc desenvolveu uma es- ra, chegando a alvitrar­‑se não estar o Maj.
pantosa atividade durante o Governo de José António Pedro de Azevedo a cumprir ca-
Silvestre Ribeiro, visitando toda a ilha e, espe- balmente as suas funções, colocando­‑se
cialmente, as antigas levadas, dando parecer mesmo a hipótese de não ter sido a pessoa
sobre os melhoramentos a efetuar e as novas certa para proceder à inspeção. A questão
obras a empreender nas mesmas. Em outu- arrastou­‑se pelos meses de outubro e no-
bro de 1848, receberia na levada do Rabaçal vembro de 1852, embora Tibério Blanc ti-
o então tenente de engenharia António Maria vesse logo colocado toda a obra à disposição
Fontes Pereira de Melo, que chegou no ber- de António Pedro de Azevedo, incluindo os
gantim Mariana, a caminho de Cabo Verde, serviços do apontador­‑geral, José Maria Pas-
tal como em meados de 1849 receberia o sos. Os resultados acabaram por revelar que
príncipe Maximiliano de Beauharnais (1817­ tudo estava a decorrer conforme os proje-
‑1852), duque de Leuchtenberg e irmão da ex­ tos iniciais definiam, havendo perfeita con-
‑imperatriz do Brasil, D. Maria Amélia de Bra- sonância entre os trabalhos desenvolvidos
gança (1812­‑1873), que muito apreciou aquele pelo Maj. Tibério Blanc e a inspeção efe-
empreendimento, vindo a contribuir moneta- tuada pelo Maj. António Pedro de Azevedo,
riamente para o mesmo. como consta na carta de 20 de novembro do
Com a montagem do novo Ministério das apontador­‑geral (A Ordem, 25 set., 13 nov., 4
Obras Públicas, Comércio e Indústria de e 18 dez. 1852).
420 ¬ B lanc , T ibério A ugusto

finais de março de 1853, com a entrega do


relatório e do inventário do arquivo, assim
como com a resposta taxativa do administra-
dor do Funchal de desconhecer se o Maj. Ti-
bério Blanc se recusara a entregar o arqui-
vo em causa e dizendo que a elaboração do
inventário final levara algum tempo a entre-
gar por causa da acumulação de serviço no
Funchal.
Tibério Augusto Blanc acabou por ser des-
tacado para diretor das obras públicas de
Ponta Delgada, nos Açores, entendendo Fon-
tes Pereira de Melo que, dado existirem dois
engenheiros no Funchal, e não havendo ne-
nhum nos Açores, um deveria seguir para
ali. A ordem para um dos oficiais engenhei-
ros da Madeira passar a São Miguel foi assi-
Fig. 3 – Planta Topografica da Levada do Rabaçal: nada a 31 de outubro de 1853, mas sobre o
Galeria Aberta até 9 d’Outubro de 1845 (DSIE, Gabinete ofício o ministro dos Negócios da Guerra in-
de Estudos Arqueológicos..., 1346-1A-12-15).
formou que já a 14 de outubro se determinara
o envio para os Açores do Maj. Tibério Augus-
O Ministério das Obras Públicas, Comércio to Blanc. A sua atuação nos Açores deve ter
e Indústria, em Lisboa, no entanto, parece sido bem aceite, pois a 19 de janeiro de 1861
não ter entendido assim a situação, passando era nomeado inspetor­‑geral das obras públi-
a encarregar logo António Pedro de Azevedo cas dos Açores e do Funchal.
de vários projetos na área das obras públi- Tibério Blanc optara, entretanto, por se ra-
cas e determinando a Tibério Blanc que en- dicar definitivamente no continente, indo em
tregasse o projeto final das obras da levada 1854 à Madeira recolher a família, embarcan-
do Rabaçal. Na sequência disso, em fevereiro do então para Lisboa no Galgo, acompanha-
de 1853, exonerava Tibério Blanc do cargo do da esposa, da mãe, de três filhas, de uma
da direção das obras públicas, indicando irmã e da criada. No entanto, não teria sido
que deveria entregar a comissão a António impunemente que passara 17 anos ao servi-
Pedro de Azevedo. A passagem dos diversos ço das obras públicas da Madeira, e, nos anos
materiais, especialmente o arquivo, levantou seguintes, regressaria pontualmente ao Fun-
inúmeros problemas, patentes em vários ofí- chal para a assinatura de uma escritura com
cios trocados entre o Governo Civil e o Mi- o 2.º conde de Carvalhal (1831­‑1888) e Nuno
nistério. O visconde de Fornos de Algodres de Freitas Lomelino (1820­‑1880), em 1858,
encarregou de superintender à passagem subscrevendo uma sociedade para execução
de funções o administrador do concelho do de uma levada em Boaventura destinada a
Funchal, e, face à dispersão dos materiais regar a Ponta Delgada, altura em que vende
pelas várias frentes de obras, os arquivos de algumas propriedades que ainda possuía na
plantas e projetos levaram imenso tempo a Madeira. Voltaria ainda em 1860 e em 1862,
ser entregues. neste último ano como inspetor das obras pú-
O assunto levou à intervenção do Ministé- blicas, altura em que publica um artigo defen-
rio, que questionava se Tibério Blanc se re- dendo a sua obra da levada nova do Rabaçal,
cusava a entregar o arquivo, como se dedu- então atacada pelo jornal Voz do Povo. Volta-
zia dos ofícios de António Pedro de Azevedo. ria ainda em 1866 e 1867, desta última vez
O problema só se encontrava encerrado nos para vistoriar aspetos da construção de uma
B lanc , T ibério A ugusto ¬ 421

Fig. 4 – Mappa Demonstrativo da Despeza Feita com Jornaes e Materiaes Gastos na Obra da Pontinha: desde 19 de Abril ate 29 d’Outubro
de 1847 (DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos..., 1321-2-22A-109).

“docka” no porto do Funchal, assim como em da Pontinha ou dos estragos da aluvião de


1873 e 1875, quando a sua saúde já se encon- 1842, só escaparam porque não estão assina-
trava bastante abalada, acabando por falecer das. Inclusivamente desapareceu quase todo
em Lisboa em setembro desse último ano. o conteúdo do seu processo individual nos
O Maj. António Pedro de Azevedo teria arquivos de pessoal do Exército, só dali cons-
idêntico percurso, também se retirando para tando seis documentos soltos provenientes
Lisboa em meados de 1865, onde foi promo- de outros fundos.
vido a general a 13 de dezembro de 1869,
passando depois a diretor do arquivo da En- Bibliog.: manuscrita: ABM, Administração do Concelho do Funchal, liv. 319,
genharia. Reformado a 31 de dezembro de fls. 71 e 72v.; Ibid., Alfândega do Funchal, liv. 677; Ibid., Governo Civil, liv. 6,
fls. 3­‑3v.; liv. 54, fl. 101v.; liv. 97, fl. 175v.; liv. 111, fls. 22­‑23v.; liv. 132, fls. 40­
1878, manteve­‑se à frente daquele arqui- ‑40v., 89, 104, 130 e 131v.; liv. 135, fls. 145v. e 150; liv. 153, Actas; liv. 526, fl. 41;
vo até falecer em Lisboa, a 10 de agosto de liv. 633, fls. 6 e 8v.; liv. 653, fl. 14v.; Ibid., Registos Paroquiais, Sé, Batismos,
liv. 282, fl. 243; AHM, Processos Individuais, cx. 798, José Júlio Guerra; cx. 842,
1889. Salvo melhor opinião, a ele se deve não Tibério Augusto Blanc; cx. 965, proc. 593­‑3, António Pedro de Azevedo; DSIE,
ter ficado uma única planta assinada por Ti- Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar, 1310, 1311, 1321­‑2­
‑22A­‑109, 1340­‑1A­‑12­‑15, 1346­‑1A­‑12­‑15; impressa: O Archivista, 9 out. 1851;
bério Blanc nos arquivos militares, das inú- CARITA, Rui, História da Madeira, vol. vii, Funchal, Secretaria Regional da
meras que do Funchal para ali foram envia- Educação, 2008; MENEZES, Sérvulo Drummond de, Collecção de Documentos
Relativos á Construção da Ponte do Ribeiro Seco, Funchal, Typ. L. Vianna Junior,
das ao logo de quase 20 anos. 1848; Id., Uma Epoca Administrativa da Madeira e Porto Santo a Contar do
O único documento assinado por Tibé- Dia 7 de Outubro de 1846, 2 vols., Funchal, Typ. Nacional, 1849­‑1850; SANTOS,
Rui, “Um capitão de engenheiros (Tibério Augusto Blanc, Santarém, 1810?; m.
rio Blanc que resta é um mapa de gastos das 1875)”, Jornal da Madeira, 25 dez. 1991, 5 jan. 1992; SILVA, Fernando Augusto
obras da Pontinha, de outubro de 1847, e, se da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
DRAC, 1998.
restam algumas plantas da sua autoria, como
as da fortaleza do Ilhéu, do forte de S. José Rui Carita
422 ¬ B landy , fam í lia e casa comercial

Blandy, família e casa comercial


Estamos perante uma família e casa comercial
que, nos últimos anos, tem despertado desusa-
do interesse na sociedade madeirense. É uma
entre muitas e muitas famílias inglesas que, no
decurso do séc. xix, se fixaram na Madeira, na
mira do comércio do vinho Madeira, e que, ra-
pidamente, acabaram por adquirir um lugar
proeminente na economia do arquipélago. Sa-
bemos que, de acordo com a tradição inglesa,
a afirmação destas casas comerciais prima por
uma política global de intervenção, capaz de es-
tabelecer uma cadeia própria que atinja a vida
económica e financeira no seu todo, sendo ser-
vida quase sempre de um órgão ao nível da co-
municação social. A tradição manteve­‑se na
Madeira e talvez tenha sido a razão da origem
da sua continuidade no arquipélago, ao con-
trário de outras, que, por apostarem preferen-
cialmente num sector, acabaram por perder Fig. 1 – Ex-líbris de John Blandy, 1791 (ed. c. 1910).
protagonismo e ter de sair.
Nos últimos anos, a referida casa comercial
e família tem merecido algum interesse edi- se tece da melhor forma. Os ingleses, onde
torial. Fizeram­‑se estudos monográficos, com quer que se fixem e afirmem, nunca estarão
teses académicas, e publicaram­‑se livros. Qual- isentos de controvérsia, e a Madeira não será
quer um destes livros, e outros que se publica- uma exceção.
ram sobre a Madeira nos sécs. xix e xx, traz A leitura do livro de Marcus Binney, em con-
informação e dados que, em muitos aspetos, fronto com a tese de mestrado de Liliana Cor-
evidenciam, de forma mais clara, o protagonis- reia (2005) sobre a mesma família no séc. xix,
mo desta família, dando conta dos múltiplos permite um duplo olhar sobre a sua presen-
pontos positivos, bem como dos negativos, da ça e importância. De um lado, apresenta­‑se
sua intervenção. Mas felizmente a História não a saga quase mítica desta família na Ilha. Do
é um tribunal, tão­‑pouco os historiadores po- outro, surgem­‑nos as referências que permi-
derão assumir o papel de acusadores ou defen- tem descobrir a sua forma de intervenção e
sores desses protagonistas. esclarecer como atingiu a dimensão que teve
Um dos textos mais recentes sobre a família e legou aos seus descendentes.
Blandy é de Marcus Binney (2011). Não é um O recurso ao estudo de Liliana Correia
romance, e está também longe de ser a histó- permite­‑nos o inventário de algumas das situa-
ria completa da presença desta família na Ilha. ções que contribuíram para o crescimento do
O autor reuniu factos, testemunhos, poucos património fundiário dos Blandys. Entre 1844
documentos, e procurou tecer uma biografia e 1850, foram 16 os casos, no Santo da Serra,
da família em forma de panegírico. Por pouco, de moradores que, em dificuldades por per-
a história da Madeira dos últimos 200 anos tencerem ao movimento protestante do Rev.
teria apenas um protagonista, uma família no Kaley, foram obrigados a emigrar, entregando
centro de tudo. Felizmente que a história da o seu património a John Blandy (1783-1855).
Madeira é outra realidade, muitas vezes negra, Depois, entre 1878 e 1907, são sinalizados 74
em que a presença desta família nem sempre novos atos notariais em que são partes Richard
B landy , fam í lia e casa comercial ¬ 423

mas também alertar para alguns perigos. Por


vezes, a falta de cuidado leva a que se tirem
algumas conclusões precipitadas quanto à di-
mensão e papel de uma empresa através dos
registos notariais. Junto com o número de
operações notariais, deverá ter­‑se em conta
não só os valores em jogo, como o tipo de
relação que o ato público denuncia entre as
duas partes. Não foi por acaso que muitos
dos estudiosos e utilizadores das fontes nota-
riais insistiram em inúmeras recomendações
sobre a forma de uso e tratamento deste tipo
de fontes no discurso histórico. Desta forma,
um discurso histórico credível deverá ter em
conta a necessidade de questionar a autenti-
cidade e a fiabilidade das fontes e dos seus
informantes, como também de equacionar a
representatividade das informações recolhi-
das e a sua suficiência para o motivo que nos
ocupa.
Fig. 2 – The Blandys of Madeira. 1811-2011 (2011), de Marcus Neste quadro de atuação, deveremos assi-
Binney. nalar a família Blandy, que, de forma rápida,
entre o período que medeia o último quartel
Ridpath Blandy e John Burden Blandy, na sua do séc. xix e as três primeiras décadas do se-
maioria favoráveis à firma ou família Blandy. guinte, conseguiu reunir um património assi-
De novo, dívidas e situações de incumprimen- nalável na cidade e no espaço rural. O facto de
to de empréstimos levam à perda dos bens hi- deterem uma posição hegemónica na econo-
potecados. De igual modo, a compra da Qt. do mia da Ilha – abarcando as suas atividades, o
Palheiro Ferreiro, em 1885, resulta de uma si- comércio, a navegação e as finanças – permitiu­
tuação de hipoteca em que era parte interes- ‑lhes aproveitarem­‑se da situação de crise para
sada também a família Blandy. Já antes havia aumentar o património fundiário, quer urba-
acontecido o mesmo com a quinta de João no quer rural.
Bruno Accioly, em Santa Luzia, que, a 15 de A propósito, convém referir que esta ampla
janeiro de 1824, foi adquirida por João Blandy, forma de intervenção da Casa Blandy na so-
na sequência de uma execução fiscal da Junta ciedade não indicia uma intenção benemérita
da Real Fazenda do Funchal por falta de pa- ou social dos ingleses, mas enquadra­‑se numa
gamento de impostos. A situação repete­‑se nos estratégia comum a esta comunidade de co-
anos 20 e 30 com a crise bancária e económica merciantes, que atuam em simultâneo como
que serviu de impulso às Revoltas da Farinha e exportadores, atacadistas, revendedores, ban-
da Madeira. Desta forma, poderemos dizer que queiros e seguradores. O modelo acontece
esta outra face da moeda ainda está por escla- tanto na Madeira como nos Estados Unidos da
recer devidamente. Só então será possível po- América, nos sécs. xviii e xix. Partindo desta
sicionar nos pratos da balança o deve e haver estratégia da Casa/firma Blandy, claramente
desta família e de muitas outras que fizeram da definida no último quartel do séc. xix, consi-
Ilha o centro dos seus negócios, a sua Ilha do deramos que seria importante rastrear qual a
tesouro. situação para o séc. xx, nomeadamente no pe-
Queremos realçar a importância da docu- ríodo conturbado que se viveu, por força das
mentação notarial no estudo das empresas, guerras e da crise financeira mundial que teve
424 ¬ B landy , fam í lia e casa comercial

grande impacto na Ilha, com a falência de di- acima de tudo, o acervo privado de cartas co-
versas casas bancárias. merciais e demais livros da contabilidade das
Boatos e testemunhos apontam quase sem- empresas, que sabemos existirem para esta fa-
pre o dedo acusador à firma Blandy pela situa- mília e que já tivemos oportunidade de manu-
ção criada com a falência das casas bancárias. sear, são fundamentais para o estudo no do-
Neste quadro, por falta de documentos oficiais mínio da chamada história empresarial, que,
e na ausência de informações na imprensa da entre nós, ainda não alcançou adeptos. As car-
época, vimos nos livros notariais uma possibili- tas comerciais obedecem a uma lógica, uma
dade de encontrar algum rastro dessa denún- vez que são um instrumento fundamental da
cia, entretanto ainda por provar. Foi por isso atividade comercial entre distintos mercadores
que, no quadro dos estudos que coordenamos e seus agentes. Muitas vezes, o sucesso deste
sobre a economia e influência das comuni- sistema de circulação de produtos depende
dades estrangeiras, solicitámos a participação da forma expedita com que as mesmas circu-
de José Luís de Sousa para proceder ao levan- lam e chegam ao destinatário. A sua utilização
tamento de todos os atos notariais em que a na construção da História tem sido múltipla,
firma Blandy participou, durante o período buscando­‑se os dados que inferem sobre as
de 1910 a 1974, no sentido de perceber a sua mercadorias em troca, os portos de destino e
forma de atuação face à realidade socioeconó- os meios de pagamento, mas raras vezes se olha
mica do período em questão. para estas de outra forma, na busca da intimi-
No estudo destas empresas, é fundamental dade e vivências dos seus interlocutores.
o recurso aos arquivos privados, quando estão Em 1980, no quadro dos estudos que tínha-
disponíveis ou o seu acesso facilitado. Neste mos em curso, quisemos proceder a um levan-
caso, os atos tombados nos registos notariais e, tamento da documentação empresarial ligada
ao sector do vinho a partir do achado da do-
cumentação de algumas das empresas que se
haviam associado para dar origem à Madeira
Wine Association (MWA), hoje Madeira Wine
Company (MWC). Com as facilidades conce-
didas pela sua direção, procedemos à orga-
nização dos referidos arquivos, com o fito de
procedermos, na época, à sua microfilmagem
para, num futuro, podermos realizar um estu-
do mais abrangente da história do vinho que
incidisse sobre o vinho Madeira. Entretanto,
faltou entendimento a quem de direito para
que esta missão se concretizasse, e parte sig-
nificativa deste espólio acabou desmantelado.
O que sobrou está disponível no museu da
MWC, nas Adegas de S. Francisco (ASF).
Não podemos esquecer que a história da Ma-
deira, a partir de meados do séc. xvii, embo-
ra a sua presença seja anterior, não pode ser
entendida sem esta comunidade, que assume
um papel dominante no comércio do vinho,
na navegação e demais sectores económicos
da sociedade madeirense. Muitos, porque fa-
ziam do negócio do vinho a sua principal ativi-
Fig. 3 – Charles Ridpath Blandy, c. 1875 (Arquivo Cossart). dade e fonte de lucro, partiram com as crises
B landy , fam í lia e casa comercial ¬ 425

de 1852 e 1872. Outros aproveitaram­‑se desta déc. de 30, passa a intervir na hotelaria, com
e de outras crises para reforçar posições e ga- a compra do Hotel Reids, que foi vendido em
nhar dimensão económica. Na verdade, foram 1996, mas a sua situação saiu reforçada neste
os momentos de crise da economia madeiren- sector, em 2000, com o Porto Bay Group, que
se que deram a vantagem para esta afirmação se expande para o Brasil (2007) e para o Algar-
da casa comercial. Foi assim na segunda me- ve (2008).
tade do séc. xix, com a crise do comércio do Foi no negócio do vinho que John Blan-
vinho, bem como na déc. de 30, com a crise dy consolidou os seus negócios na Ilha e fez
bancária. erguer o império que a casa hoje detém. Em
A tradição aponta a presença de John Blan- 1811, começou a negociar vinhos, adquirindo
dy desde 1807, como furriel das forças do Gen. rapidamente uma posição destacada no sector
Beresford. Entretanto, Emmanuel Berk encon- das exportações. Um facto curioso sucedeu em
trou, em agosto de 2006, uma carta de apresen- 1816, com a entrada de duas vasilhas com 92
tação datada de 23 de dezembro de 1807 e diri- garrafas de vinho do Porto, pedidas por John
gida à firma Newton, Gordon, Murdoch & Co. Blandy para curar uma moléstia da mulher.
em que se revela a vinda deste súbdito de Sua Nos dados das exportações de 1823, sabemos
Majestade para a Ilha a fim de cuidar da sua que exportou 10 pipas, subindo para 152, em
saúde, oferecendo os seus préstimos para um 1824. Os principais destinos foram Londres,
qualquer emprego de contabilidade. É mais Índia, Jamaica, Demerara, Baltimore e Fila-
um entre muitos britânicos que a Madeira aco- délfia. Foi o seu filho, Charles Ridpath Blan-
lhe em busca dos efeitos benfazejos do clima dy (1812­‑1879), que assumiu a gerência da
na cura de doenças e que acaba por se fixar e Casa em 1855, quem deu o golpe de mestre,
fazer vida na Ilha. ao avançar com um investimento na compra
Blandy Brothers Lda., popularmente conhe- dos stocks de vinhos velhos existentes em diver-
cida como a Casa Blandy, é a cara visível, em sas casas da Ilha. Foi precisamente no ano que
termos comerciais, da família Blandy no ar- assumiu esta direção que comprou a Qt. do Pa-
quipélago. Começou com os vinhos em 1811 lheiro Ferreiro, propriedade do conde de Car-
e, como todas as famílias inglesas, alargou o valhal, que havia sido penhorada por dívidas à
ramo de negócios a todos os sectores da ativi- Fazenda Real. Com isto construiu uma reserva
dade comercial, com particular incidência na que se manteve até à atualidade como o maior
navegação marítima, em 1862, como agente, património vínico do arquipélago e que pro-
em 1878, como abastecedora de água e car- piciou às futuras gerações, nomeadamente no
vão aos navios, em 1855, como interventora período das crises resultantes do oídio, mas
na cabotagem marítima, em 1897, e, ainda, na acima de tudo da filoxera, em 1872, dar con-
construção naval, em 1896. O leque das suas tinuidade e importância à casa de vinhos. Esta
atividades alarga­‑se depois à água, através da política teve continuidade com o filho, John
chamada “levada Blandy”, e ao abastecimento Burden Blandy (1839­‑1912), que assumiu a di-
doméstico de água, à moagem dos cereais, em reção da casa em 1878.
1930 [?], aos fornos de cal, em 1945, e mesmo As ASF, no Funchal, onde hoje se encontra a
à imprensa, com o Diário de Notícias, a partir da Blandy’s Wine Lodge, foram adquiridas à Câ-
déc. de 30 do séc. xx. Está também assinalada mara Municipal do Funchal depois de 1836, al-
como banqueira, a partir de 1880, mas a Casa tura em que foram expropriadas à família ma-
Bancária Blandy Brothers [banqueiros] Lda. deirense de Pedro Jorge Monteiro e do cônsul
só começou em 1923, estando associada à crise francês Nicolau de La Tuelliére, casado com
bancária que aconteceu em 1931, partilhan- uma filha do primeiro, uma família historica-
do, com a Casa Hinton, o património ligado mente ligada aos vinhos e com grande poder
ao banco de Henrique Figueira da Silva, vendi- neste comércio no decurso da segunda metade
do em hasta pública por insolvência. Ainda na do séc. xviii, mas que agora estava falida.
426 ¬ B landy , fam í lia e casa comercial

A Casa envolveu­‑se no comércio com o vinho & Filhos, Luís Gomes da Conceição & Filhos
americano. Em 1863, Charles Blandy, em carta (1863), Miles Madeira Lda., F. F. Ferraz &
a Jefferson Davis, presidente dos Estados Con- Cia. e T. T. da Câmara Lomelino (1820). Cos-
federados, reclamava o pagamento dos danos sart Gordon & Co. Lda. (1745) foi o último a
causados com a perda de mercadoria provoca- juntar­‑se ao grupo, em 1953. A partir de 31 de
da pelo afundamento do barco Lauraetta pelo dezembro de 1981, a firma alterou a designa-
barco Alabama. Nos primeiros anos do séc. xx, ção para MWC. Iniciou­‑se aqui uma nova fase
a firma Blandy Brothers & Co. ocupava o se- que levou a que a família Blandy assumisse,
gundo lugar, depois da Cossart Gordon & Co., em 1979, uma posição maioritária. A partir de
no conjunto das firmas estrangeiras exporta- 1989, partilhou o património com a família Sy-
doras de vinho Madeira. mington, que adquiriu o controlo da empresa,
A 9 de agosto de 1913, foi constituída, por es- situação que acabou por se reverter em 2011.
critura notarial, a firma MWA, reunindo algu- Em setembro de 2000, foi atribuída à MWC
mas empresas ligadas ao comércio de vinhos: a certificação de qualidade na produção, pela
Harry Hinton, Blandy Madeira Lda. (1811), norma ISO 9001. Na R. de S. Francisco per-
John Frothingham Welsh, Cunha e Co. Lda. e manecem os antigos armazéns que foram da
Henriques & Câmara, a que aderiram, depois, firma Blandy, como espaço museológico e de
Donaldson e Krohn Brothers. É a consequên- provas, enquanto no Lg. Severiano Ferraz se
cia inevitável da crise do mercado do vinho, instalou todo o espaço de vinificação e engar-
nos princípios do século, agravada, nos anos rafamento, com o recurso às mais modernas
imediatos, com as guerras mundiais. Passa- tecnologias. É aqui que podemos ainda encon-
dos 12 anos, ganhou nova dimensão, passan- trar em funcionamento as estufas de madeira
do a ocupar as instalações da firma Blandy no e cimento.
centro do Funchal, as ASF, e a contar com a A família também assumiu uma posição
adesão de outras casas comerciais: Abudarham destacada nas moagens, a partir de 1900,

Fig. 4 – Armazéns Blandy, Passeio Público, gravura de Henry Vizetelli, 1880 (coleção particular).
B landy , fam í lia e casa comercial ¬ 427

mantendo­‑a até a atualidade. Aliás, refere­‑se


que a chamada Revolta da Farinha, que ocor-
reu em fevereiro de 1931, está relacionada com
esta moagem, acusada de querer monopolizar
o sistema, pela forma como a legislação tra-
tou de regulamentar o sector moageiro, com
a publicação, a 26 de janeiro de 1931, do dec.
19.273, conhecido como o “decreto da fome”,
que criava o regime de monopólio controla-
do por um grupo de proprietários das fábricas
de moagens, entre os quais a família Blandy,
conhecidos como “os moageiros”. A partir de
1930, a família Blandy, com serviço de moa-
gem, associa­‑se à Companhia Insular de Moi-
Fig. 5 – Fichas Blandy, c. 1940 (Museu da Madeira Wine).
nhos (CIM), criada a 1 de maio de 1929, por
iniciativa de um grupo de nove empresários li-
gados ao sector da panificação. Daí que a CIM intervinha ativamente e com assiduidade nas
tivesse sido um dos principais alvos da revolta e suas reuniões. A família Blandy é um caso evi-
do assalto dos populares, por materializar esta dente desta realidade. Aliás, a comunidade era
tendência monopolista. muito unida e tinha reuniões periódicas na de-
À família também se atribuem várias inicia- fesa dos seus interesses. John Blandy integrou
tivas, entre as quais a importação do gado la- a direção em 1839, enquanto Charles Ripath
nígero de Inglaterra, a construção da primei- Blandy entrou­em 1843, na qualidade de te-
ra fábrica de manteiga, tal como a importação soureiro, situação que manteve até 1956, uma
do relógio da Achada [Camacha]. Este reló- vez que no ano seguinte assumiu o cargo de
gio veio diretamente de Liverpool para a torre presidente.
construída de propósito por Michael Gra- Um dos episódios mais propalados desta
bham, em 1896, na sua Qt. da Camacha. Casa prende­‑se com a passagem de Napoleão
Devemos acrescentar, ainda, para além da Bonaparte pelo Funchal, a caminho de Santa
casa bancária, a existência, em termos finan- Helena, quando o cônsul inglês quis presen-
ceiros, de mecanismos de atuação que foram tear o imperador deposto com vinho Madeira,
usuais por falta de dinheiro circulante e que que este não bebeu. Desta forma, após a sua
permitiram situações de favorecimento. Por
um lado, tivemos diversas formas de emprés-
timo em produtos, sob caução da colheita do
vinho em setembro, que permitia aos ingle-
ses uma situação privilegiada na relação com
os produtores de vinho. Depois, o recurso a fi-
chas, sob a forma de papel ou metal, neste caso
imitando mesmo as moedas, que substituíam
as moedas de menor valor. As fichas Blandy
eram muito populares e tinham aceitação, não
só na Casa Blandy, como em muitas casas co-
merciais da cidade.
No decurso do séc. xix, a comunidade in-
glesa residente na Madeira era muito inter-
ventiva na vida local. Assim, tanto controla- Fig. 6 – Armazéns Blandy na Penha de França, 1940 a 1950
va a direção da Associação Comercial, como (bilhete-postal Perestrellos) (coleção particular).
428 ¬ B loco de E squerda

morte, Henry Veitch solicitou, em 1822, a de- elementos da UDP Madeira e da União do
volução do vinho, vendendo-o depois à Blandy Povo da Madeira (UPM), que desde 1974 e
Brothers, que o engarrafou, em 1840, na con- 1975 vinham mostrando uma interessante
dição de vinho velho e da roda. Churchill, de representação eleitoral para uma formação
férias no Funchal, em 1950, foi presenteado dada como de extrema­‑esquerda, logo funda-
com uma destas garrafas do vinho que o de- mentalmente vocacionada para a luta de rua
posto imperador não bebeu. e não para eleições democráticas. O mesmo
caminho, aliás, viria a trilhar o Bloco de Es-
Bibliog.: BINNEY, Marcus, The Blandys of Madeira. 1811­‑2011, London, Frances
Lincoln, 2011; BLANDY, G. (org.), The Bolton Letters. The Letters of An English
querda (BE), mas mais de 20 anos depois do
Merchant in Madeira, vol. ii, Funchal, s.n., 1960; CLODE, Luiz Peter, Algumas que fizera a UDP Madeira. Esta nova plata-
Famílias Inglesas Que Passaram a Esta Ilha, Funchal, Tip. Comercial, 1950;
forma não invalidou que continuassem, no
CORREIA, Liliana Martins, A Família Blandy. Economia e Cultura. Século XIX,
Dissertação de Mestrado em Cultura e Literatura Anglo­‑Americanas terreno, a existir elementos arvorados em
apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2005; representantes das anteriores formações
COSSART, Noel, Madeira, the Island Vineyard, London, Christie’s Wine
Publications, 1984; GREGORY, Desmond, The Beneficient Usurpers. A History of revolucionárias.
the British in Madeira, London, Associated University Presses, 1988; HANCOCK, As ideias marxistas entraram em Portugal
David, Citizens of the World. London Merchants and the Integration of the British
Atlantic Community. 1735­‑1785, Cambridge, Cambridge University Press, 1997; no final do séc. xix e nos inícios do séc. xx,
Id., Oceans of Wine. Madeira and the Emergence of American Trade and Taste, embora só algum tempo depois apareçam na
Yale, Yale University Press, 2009; MINCHINTON, Walter, “Britain and Madeira
to 1914”, in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, Madeira, através de panfletos, provavelmen-
CEHA, 1986, pp. 498­‑523; Id., “British residents and their problems in Madeira te produzidos noutro lugar. Nos meados do
before 1815”, in Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira,
Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
séc. xx aparecem no meio universitário com
Portugueses, 1990, pp. 477­‑492; OLIVEIRA, Maria João, “O varadouro de S. outro cariz, inspiradas nos conflitos e debates
Tiago”, Xarabanda, vol. 10, 1996, pp. 45­‑52; SAINZ­‑TRUEVA, José de, “Quinta
do Palheiro Ferreiro”, Atlântico, n.º 15, 1988, pp. 222­‑232; SOUSA, José Luís
do Maio de 1968, em França, mas através de
de, A Dialéctica da Blandy Brothers & Companhia Limitada na Economia da formações que mudavam constantemente de
Madeira [1920­‑1974], Funchal, ed. do Autor, 2012; VASCONCELOS, Mota de,
nome, de fugaz existência e linguagem pan-
Almanaque para o Desportista Madeirense, Ano de 1945, Funchal, Tip. Comércio
do Funchal, 1945; VIEIRA, Alberto, “A propósito de contratos e quebra de fletária, pelo que dificilmente registáveis pela
contratos dos registos notariais na história e da história das empresas”, in
História. Com o (re)aparecimento do semaná-
Anuário 2012, Funchal, CEHA, 2012, pp. 358­‑401; VIZETELLY, Henry, Facts about
Port and Madeira. With Notices of the Wine Vintaged around Lisbon and the rio Comércio do Funchal, em 1966, uma certa ju-
Wines of Tenerife, London, Ward Loch and Co., 1880. ventude intelectual de formação universitária
† Alberto Vieira e não só, pois que um dos suportes deste sema-
nário foi o trabalho voluntário da Juventude
Operária Católica (JOC), gravitou à volta da-
quela publicação, organizando tertúlias e for-
Bloco de Esquerda
necendo e editando material.
Esta formação política nasceu em 1999, es- Das primeiras formações de extrema­
sencialmente a partir da direção nacional da ‑esquerda do pós­‑25 de Abril, a UPM nasceu
União Democrática Popular (UDP), de inde- assim de elementos ligados ao Comércio do Fun-
pendentes e de outros elementos de esquer- chal, ao Centro de Cultura Operária e ao pro-
da ou de extrema­‑esquerda, fessorado da Ilha, desenvol-
como o Partido Socialista Revo- vendo com forças populares,
lucionário (PSR) e o movimen- de longe, a mais ativa e rei-
to Política XXI. Os contactos vi- vindicativa campanha da con-
nham do ano anterior, e o ideal turbada época. Apresentou­‑se
comum que levou à fusão foi a pela primeira vez num comí-
defesa do socialismo em liber- cio no Pavilhão Gimnodes-
dade, a crítica às experiências portivo do Funchal, em junho
soviéticas e outras ao socialismo de 1974, e promoveu, logo a
dito real. Nesta nova formação,
entraram depois igualmente os Fig. 1 – Logótipo do Bloco de Esquerda.
B loco de E squerda ¬ 429

1 de agosto, um primeiro comício no jardim Em Lisboa, entretanto, a 16 de dezembro


municipal contra a não aplicação da lei do salá- de 1974, a partir de três grupos marxistas­
rio mínimo na Madeira, determinada no ante- ‑leninistas, fundava­‑se a UDP, que teve o seu
rior mês de maio, tendo mesmo avançado para primeiro congresso a 9 de maio de 1975, de-
o edifício da antiga Junta Geral, onde decorria finindo uma linha ideológica genericamente
uma reunião para ponderar a aplicação dessa tida por maoísta e o regime da Albânia como
medida, dando origem a graves alterações da o de eleição no Leste Europeu. Já tinham sido
ordem pública e, depois, a inúmeros comuni- elementos da UDP mesclados com os da UPM
cados. Elementos desta formação, sempre mais a entrar nas manifestações de abril de 1975, e,
ou menos mesclada com outros elementos, es- quando se convocaram as primeiras eleições
tiveram envolvidos na manifestação de 3 para para a Assembleia Regional da Madeira, para
4 de outubro de 1974, no molhe da Pontinha, 27 de junho de 1976, já só apareceu a concor-
contra a presença do iate Apollo, dado então rer a UDP, que viria a eleger dois deputados.
como ligado à CIA. A presença desta formação seria praticamen-
Alguns dias depois, a 30 de outubro, um te contínua no Parlamento regional, conquis-
grupo de estudantes e professores do Liceu tando um pequeno eleitorado de agricultores
Jaime Moniz, com elementos que haviam par- e trabalhadores do sector do artesanato, tendo
ticipado nos pronunciamentos anteriores, em- tido em Paulo Martinho Martins (1953­‑2014) o
bora, em princípio, nem todos dados como afe- seu principal dirigente regional. Paulo Martins
tos à UPM, decidiu ocupar as instalações vazias apresentaria a sua renúncia de deputado na ses-
do antigo seminário, que o bispo D. Francisco são de 8 de outubro de 2002 da Assembleia Le-
Santana (1924­‑1982) mandara encerrar, até se gislativa Regional por motivos de saúde, e, para
definirem as relações do Estado e da Igreja a surpresa do presidente da mesa, após o anún-
propósito do ensino religioso. O bispo, avisado cio e o elogio traçado ao então decano dos de-
a tempo, encerrara­‑se no edifício, ficando ali putados madeirenses, com 25 anos de casa, sem
fechado durante todo o dia e obrigando à in- figura regimental adequada, todos os restantes
tervenção das forças armadas, mas acabou por grupos parlamentares pediram a palavra e tece-
concordar em alugar o edifício à Junta Geral, ram os maiores elogios à sua atuação.
que lá instalou a Escola Básica Bartolomeu Pe- Ao contrário do que se passou no continen-
restrelo. Em princípios de abril de 1975, orga- te, onde o BE foi constituído também por uma
nizou ainda a UPM, com produtores e traba-
lhadores ligados à plantação da cana­‑de­‑açúcar,
uma memorável manifestação, que tentou, in-
clusivamente à força, a entrada no palácio de
S. Lourenço.
A UPM, com as suas teses marxistas­‑leninistas­
‑maoistas, a fragmentação e a radicalização das
diferentes fações ideológicas no interior do Co-
mércio do Funchal, rompendo com a linha de
esquerda moderada até aí prosseguida por Vi-
cente Jorge Silva, conseguiu assumir uma certa
preponderância e, num curto prazo, eliminou
as restantes fações, tornando o semanário no
seu porta­‑voz. Mais tarde, a comissão de tra-
balhadores saneou os elementos maoistas da
UPM, tentando outra sustentabilidade para
o jornal, mas o mesmo veio a encerrar algum Fig. 2 – Bancada da União Democrática Popular, 1985
tempo depois. (ABM, Arquivos Particulares).
430 ¬ B oa imprensa

série de pessoas oriundas de organizações de empreendido desde essa época até ao presen-
génese trotskista, na Madeira o BE foi consti- te da recensão.
tuído essencialmente por marxistas, leninistas A análise da “boa imprensa” madeirense é
e estalinistas provenientes da UDP. feita no contexto de uma sociedade munida da
A UDP Madeira levou algum tempo a passar “utensilagem mental” (para usar a expressão
a usar a designação de BE, surgida em 1999, de Fernand Braudel) que nos conferem o Con-
ainda não usando essa sigla nas eleições de cílio Vaticano II e todas as correntes de pensa-
2000, mas já o fazendo nas eleições de 2004. mento que atravessaram os séculos referidos e
Nas eleições de 2011, o BE Madeira não con- mesmo o séc. xxi. Na verdade, temos de ter
seguiu eleger nenhum deputado, mas a 29 de em conta que a “boa imprensa” formula como
março de 2015 já conseguiu dois, e, a 4 de ou- objetivo a doutrinação da sociedade, através
tubro desse ano, conseguiria mesmo eleger um de uma normatização, que inclui uma deter-
deputado pela Madeira para a Assembleia da minada conceção de família e do seu papel na
República. sociedade. Este trabalho foi feito, justamente,
no momento em que o sínodo dos bispos, pa-
Bibliog.: AZEREDO, Carlos de, Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império,
Porto, Civilização, 2004; CALISTO, Luís, Achas na Autonomia, Viagem ao
tamar eclesiástico anterior a um concílio, aca-
Interior da FLAMA, Funchal, Diário de Notícias, 1996; GOUVEIA, Gregório, bava de se realizar­em Roma, sob o múnus do
Madeira, Tradições Autonomistas e Revolução dos Cravos, Funchal, O Liberal,
Papa Francisco, em torno do tema da famí-
2002; SILVA, Vicente Jorge, O Comércio do Funchal e a Autonomia, Lisboa,
Viver a Madeira, 2006. lia, cujos cânones clássicos continuam a ser os
mesmos: família monogâmica, casamento para
Rui Carita
toda a vida, sem a existência do divórcio, que
continua a ser vedado no direito canónico,
mas constantemente efetivado após uma vida
Boa imprensa
conjugal que, ab initio, se quis até que a morte
Na Madeira, durante todo o séc. xix e até ao separasse os membros do casal.
primeiro quartel do séc. xx, a imprensa ca- Esta realidade levanta novos desafios à Igre-
tólica, chamada “boa imprensa”, permite­‑nos ja Católica, nomeadamente quanto à confis-
analisar o discurso normativo segundo os câ- são e absolvição, bem como quanto à comu-
nones do catolicismo, face a um mundo euro- nhão dos divorciados e recasados, i.e., face às
peu em transformação em todos os sectores, leis civis. Outro desafio, não menos atual, é
nomeadamente nos campos filosófico e ideo- o da união conjugal de indivíduos do mesmo
lógico, o que, obviamente, terá reflexos pro- sexo, questão que esse sínodo episcopal não
fundos de natureza teológica. Se é um facto se absteve de debater, tal como a questão do
histórico que a autoridade da Igreja Católica batismo de crianças de pais solteiros ou sepa-
e do papa já havia sido contestada pela Refor- rados. A Igreja Católica sempre foi apontada
ma Protestante de Lutero e Calvino, no início como uma instituição a quem fogem os tem-
do séc. xvi, enquanto, no interior do cristia- pos hodiernos de cada época, na medida em
nismo, a sua essência não era questionada, o que a sua visão do tempo nem sempre coinci-
período em análise é o tempo em que a pró- de, segundo os seus críticos, com aquela que é
pria autoridade das religiões reveladas, não a visão atualíssima, mas sempre efémera, visto
apenas o cristianismo, mas igualmente o ju- que cada moda é sempre sufocada pela vaga
daísmo e o islamismo, começa a ser equacio- sucessiva, dentro do ciclo ininterrupto que
nada e até refutada. Vista a questão a partir cada época tem para oferecer. A esta ideia,
do séc. xxi, é possível uma outra panorâmi- a Igreja sempre contrapôs a dos valores eter-
ca do que então aconteceu, pois, sempre que nos. Esta mutação constante dos tempos, ge-
se analisa uma determinada época do passa- radora de insegurança, teria como alternativa,
do, parte­‑se da perspetiva cultural do momen- numa visão conservadora ou clássica, confor-
to em que essa análise é feita e do percurso me a perspetiva, a segurança ontológica do
B oa imprensa ¬ 431

lar, com os papéis bem definidos, com o mo- imprensa” não se limitava à esfera estrita do
delo do homem, como pai e chefe de família, religioso, dos sacramentos, das verdades da fé,
e o da mulher, como esposa e mãe, no qua- como primeira instância do catolicismo. Antes
dro completo de uma relação tendencialmen- ambicionava oferecer uma identidade de vida
te procriadora, em que os filhos encontravam cujas bases estivessem fundadas sobre o catoli-
o tal universo seguro face à insegurança do cismo. A normatização da vida terrena e a re-
mundo exterior. A este mundo interior da fa- lação do Homem com o Alto através da Igreja
mília, a Igreja oferecia, no espaço exterior, têm marcos ao longo dos séculos. Com efeito,
uma simbologia religiosa em que se incluía a desde os fins da Idade Média, podemos desta-
devoção mariana, o culto dos santos, com o car três momentos marcantes na construção da
seu lado sacro e profano, as procissões e ro- identidade católica como norma, com o Concí-
marias e a exigência da penitência para poder lio de Trento (1545­‑1563), o primeiro Concílio
participar, de forma plena, no sacramento Vaticano (1869­‑1870) e o Concílio Vaticano II
essencial da transubstanciação eucarística. (1962­‑1965).
É assim, neste cenário, que a barca de Pedro Tudo isso levanta a questão dos novos desa-
atravessa as vagas dos tempos: a família e o lar, fios e valores com que a Igreja se vê confron-
a comunidade católica, com as datas simbóli- tada, sobretudo desde o séc. xviii. É nessa
cas do calendário litúrgico, com dias consa- encruzilhada da História que é convocado o
grados aos santos, a par dos feriados públicos, Concílio Vaticano II, em 1961, pela bula papal
que mudam ao sabor dos regimes. Humanae Salutis, de João XXIII, concluído
A manutenção do universo católico, que vive- já no pontificado de Paulo VI. Este Concí-
ria a pairar acima da incontingência dos tem- lio, em contraste com os anteriores da histó-
pos, tinha de ombrear com uma imprensa que ria da Igreja, que, muitas vezes, significaram
não partilhava dos valores pregados pela Igre- um maior enclausuramento da Igreja Católi-
ja, a “má imprensa”, os quais não só divergiam ca face ao mundo, tem uma natureza diversa,
dos da “boa imprensa” como os combatiam de abertura ao mundo, o que representou, se-
sistematicamente. Era um combate recípro- gundo algumas leituras, o fim do complexo de
co: cada adversário considerava que o outro fortaleza em que a Igreja tendeu a fechar­‑se
mantinha uma posição ilegítima, sendo que depois da Idade Média.
ambos os lados estavam convencidos de que No tempo medieval, a Igreja confundia­‑se
eram detentores de uma crença que, metafí- com o próprio mundo conhecido dos católi-
sica e/ou religiosa, se propunha salvar a hu- cos, em grande medida o mundo europeu.
manidade, numa linha utópica e salvífica que Mas, se os três concílios referidos são marcos
remonta à Antiguidade clássica grega. A “boa na história do catolicismo, a doutrina de nor-
imprensa” pretendia ser, e declarava­‑se, o ba- matização da vida dos católicos levada a cabo
luarte dos valores face a um mundo que se dis- pela Igreja, mesmo no plano secular, sempre
solvia nas correntes que queriam substituir a existiu, desde os seus primórdios, e isso traduz­
crença em Deus pela crença na ciência, nas ‑se no facto de ter havido 21 concílios ao longo
ideologias que tinham a mesma estrutura te- destes mais de 2000 anos. A questão é saber se
leológica, como o marxismo, mas que, em vez essa normatização coincide com a mensagem
de situar a salvação na outra vida, queriam uma de Cristo, que aceitava o mundo na sua diver-
sociedade perfeita neste mundo. Contra isso, sidade, como se vê quando conta a parábola
a “boa imprensa” tinha uma missão: desejava do samaritano, ou quando convive com a mu-
abarcar todos os aspetos da vida, não apenas a lher adúltera, ou com o cobrador de impostos,
religião, mas igualmente a arte, a literatura, a porque a todos quer imbuir do seu amor. Ou
própria ciência, criando uma cosmovisão que seja, Cristo inclui na sua mensagem a alteri-
pretendia dispensar a “imprensa má” e condu- dade, o outro que é recusado, constantemen-
zir o rebanho nos caminhos de Deus. A “boa te, por sectores fundamentalistas nas diversas
432 ¬ B oa imprensa

culturas. A atitude da recusa torna­‑se um obs- sua existência, e inclui não apenas a questão
táculo à comunhão universal. ideológica e política dos seus membros, mas
A interpretação das igrejas cristãs da dou- também a polémica da masculinização da dou-
trina de Cristo é suscetível de ser alterada ao trina, que, nos primeiros séculos, teria levado
longo dos séculos, isso provam­‑no vários fac- à ascendência de uma perspetiva esvaziada do
tos. Basta ver que, ainda no séc. xxi, algumas papel da mulher. Nesse processo, incluir­‑se­‑ia a
igrejas cristãs consideram autênticos, e, por- postergação de um hipotético evangelho apó-
tanto, de inspiração divina, livros que as outras crifo atribuído a Maria Madalena, cuja lideran-
principais igrejas cristãs não aceitam. A Igre- ça incomodaria os apóstolos. Se o documento
ja Ortodoxa da Etiópia reconhece o Pastor de é real, a sua autoria fica por confirmar. Con-
Hermas e os Atos de Paulo; a Igreja Apostóli- tudo, do ponto de vista simbólico, significa a
ca Arménia ora aceita a Terceira Epístola aos existência de dois modelos de Igreja paralelos,
Coríntios, ora não a inclui entre os livros ca- um quase estático e outro dinâmico, capaz de
nónicos do Novo Testamento; a mesma Igre- atribuir à mulher um estatuto idêntico ao do
ja não incluía na sua Bíblia o Apocalipse até homem.
1200. Já a Bíblia copta, adotada pela Igreja do O Concílio Vaticano II questiona esse des-
Egito, continua a incluir as duas epístolas de fasamento temporal e revela, no seio da Igre-
Clemente. Poder­‑se­‑á arguir que estas igrejas ja, aquilo que tinha vindo a ser ocultado, pelo
não comungam da mesma perspetiva doutri- menos desde o séc. xix: a multipolaridade de
nal que a Igreja de Roma. Por um lado, todas identidades sociais e políticas que faziam a sua
estas igrejas cristãs, sem incluir as designadas própria leitura da doutrina, até então oficiali-
igrejas protestantes, se consideram lídimas zada numa versão essencialmente conservado-
intérpretes da doutrina de Cristo; por outro, ra e normalmente veiculada pela “boa impren-
temos o exemplo do Apocalipse, que, duran- sa”, que, sob a capa da normatização, oferecia
te muito tempo, não foi considerado autênti- e impunha uma certa visão do mundo dentro
co pela própria Igreja Católica. Isto alerta­‑nos, da própria Igreja Católica, apresentando­‑se
desde logo, para duas coisas: primeira, a Igreja como sendo a desta. Ao abrir­‑se à sua plurali-
não é uma instituição estática e imune ao es- dade interna, a Igreja abria­‑se ao mundo como
pírito do tempo, como alguns, dentro e extra um todo, mas na sua heterogeneidade. É óbvio
muros, julgam; segunda, é preciso saber ler na que essa abertura expunha a Igreja aos ventos
doutrina o que ela contém de marca do eter- da mudança e a confrontava com a sua própria
no, do divino ou do humano. Qual a impor- unidade. A dialética social, que sempre existira
tância destes factos? Revelar que a análise das no interior da Igreja, tornava­‑a agora vulnerá-
opções culturais, ideológicas e religiosas deve vel e suscetível de ver a sua unidade abalada,
passar pelo conhecimento de que nem sequer uma unidade que, tantas vezes, sufocara o pro-
o sagrado da mesma confissão, neste caso o cesso dinâmico inerente a qualquer instituição
cristianismo, chega, necessariamente, ao esta- humana, ainda que se reivindicando, natural-
tuto de universal nas suas diferentes igrejas, o mente, de natureza divina. Era agora a vez de
que deve prevenir os fiéis contra uma aceita- as forças progressistas quererem impor a sua
ção cega de crenças e convicções, obrigando­ visão da doutrina. O equilíbrio entre os dife-
‑os a precaver­‑se contra os fundamentalismos e rentes sectores no seio da Igreja, que tinham li-
a uma incessante busca do que é, efetivamen- gações ao exterior, revelava­‑se, portanto, muito
te, de natureza universal. complexo. Afinal, não é a isso que se assiste, ou
A busca da síntese de um corpo por natureza seja, às várias tentativas de apropriação secto-
plural como é o corpo da Igreja será perma- rial do carisma do Papa Francisco na sua liga-
nente. A pluralidade sociológica da Igreja é a ção com o mundo?
origem da tensão permanente no seu seio, o Desde aquele instante em que o univer-
que, aliás, se verifica desde os primórdios da so emergiu da incubação em que sempre se
B oa imprensa ¬ 433

mantivera, a natureza iniciou o seu processo e semelhança, que não quer dizer igualdade
infindável de se auto­‑organizar, ainda antes absoluta, isso não signifique que não tenha o
de o ser pensante ter a veleidade de repetir, direito de querer caminhar em direção ao ab-
ele mesmo, o gesto inicial do fiat lux, tenha ele soluto, num processo hegeliano do espírito em
aqui o sentido literal ou literário da passagem busca de si mesmo.
do caos à ordem natural das coisas, porque é A República, de Platão, A Cidade de Deus, de
disso mesmo que se trata; em cada momento S.to Agostinho, A Cidade do Sol, de Campanella,
e em todos os tempos, há que reorganizar, re- a Utopia, de Thomas More, todas estas obras
fundar e ordenar os elementos que se disper- são proposições de arquétipos de sociedades
sam caoticamente se não forem absorvidos e perfeitas a construir na Terra, tal como a pro-
submetidos a um sistema que lhes dê a ordem posta marxista de uma sociedade sem classes,
necessária. Todas as tentativas que, ao longo onde não haveria mais exploração do Homem
dos séculos, se propuseram e nos propuseram a pelo Homem; ao contrário do que acontece
construção de uma sociedade perfeita têm em numa sociedade capitalista, em que o Homem
si duas ideias propulsoras: o mundo está uma é o lobo do próprio Homem, a igualdade seria
desordem; é preciso ordená­‑lo. E uma estrutu- perfeita. Todos estes modelos defendem a har-
ra imanente: a do momento do fiat lux, em sen- monia entre os homens e são compatíveis com
tido teológico e/ou científico, que supere as o “amai­‑vos uns aos outros” de Cristo, só que
trevas. Ao querer repetir esse momento inaudi- Ele, que era filho de Deus, segundo os cristãos,
to e irreproduzível em termos absolutos, os ho- ainda assim, não teve a veleidade de querer pro-
mens sempre quiseram reservar para si o papel por um sistema, político ou mesmo teológico,
do demiurgo. E, concomitantemente, sempre perfeito – “o meu Reino não é deste Mundo”
tenderam do politeísmo para o monoteísmo, (Jo 18, 36). Mas ninguém o levou a sério e foi
i.e., não só quiseram repetir o instante da cria- crucificado, e note­‑se que não é metáfora, como
ção, como sempre quiseram ser únicos no sis- pode parecer neste (con)texto, mas facto his-
tema que propunham, porque esta é a nature- tórico que todos aceitam. Já aqueles modelos
za das coisas: se o modelo de sociedade que se eram e são todos deste mundo e pronunciam­
propõe é aquele que melhor a serve, por que ‑se sobre os aspetos da vida humana.
razão se haveria de discutir outro modelo que A propósito do chocolate, proveniente da
concorra com ele? E, a partir daí, entendiam América Central, e que aparece na Europa no
que o seu modelo estaria para o já existente, final do séc. xvi, José Tolentino de Mendonça
no tempo ou na avaliação do que é proposto, lembra uma questão teológica e religiosa: o uso
como a luz está para as trevas. E é neste ins- do chocolate quebra ou não a lei do jejum no
tante que começa a recusa do outro. Qualquer tempo da Quaresma? Uns defendem que sim
modelo filosófico, cultural ou religioso traz no e outros que não, pois, se é alimento quando
seu ADN a ideia de proposta e a ideia de recu- sólido, violando o jejum, já diluído em água,
sa. Se essa tensão não for superada, através de torna­‑se bebida. Afirma Tolentino de Mendon-
um processo dialógico, essa recusa mútua trará ça: “a questão de fundo não é tanto o choco-
a rutura a qualquer sociedade, exatamente o late em si quanto o que ele representa: o con-
oposto do que propõe cada um dos vários mo- fronto de modos de interpretar o mundo. De
delos. Mas não haverá legitimidade em cada um lado, perfila­‑se uma posição ascética de ru-
um dos modelos? Enquanto proposta, opção tura; de outro, expressa­‑se um entendimento
e direito à recusa do modelo alternativo, sim; do valor do mundo e da criação” (MENDON-
enquanto recusa do conhecimento do outro, ÇA, Revista Expresso, 6 set. 2014, 8). Portanto,
do direito à existência do outro e do diálogo nada fica de fora dos sistemas de valores que
com ele, não. E não, porque o Homem não é se outorguem o papel de ordenadores de uma
Deus, mesmo que, aceitando o princípio teo- sociedade, com autoridade para se pronunciar
lógico de que tenha sido feito à sua imagem sobre o que existe ou sobre o que aparece.
434 ¬ B oa imprensa

O catolicismo é um dos vários sistemas de va- Essa autocaracterização teria ainda como in-
lores que se propõem às sociedades. E afirma­ tenção não dar oportunidade a que a leitura
‑se não apenas no aspeto religioso, mas igual- de outras publicações, nos vários campos do
mente na representação cultural e normativa saber, induzisse outros valores incompatíveis
que pretende para a sociedade em que se inse- com o modelo de sociedade que a “boa im-
re, sem descurar a questão política. Na socieda- prensa” pretendia incutir na Madeira. Assim,
de madeirense, isso é visível na imprensa católi- a doutrinação era multidisciplinar, mesmo que
ca, a chamada “boa imprensa”; boa justamente partisse do campo religioso.
porque, segundo a própria, veiculava os valo- Neste jornal, na edição de 6 de dezembro
res bons e deles fazia eco e múnus doutrinário. de 1879, o artigo de fundo era precisamente
Esse modelo de sociedade manteve­‑se em todo “A penitência”, começando por falar sobre a
o séc. xix, até ao Concílio Vaticano II, em que forma de proceder dos apóstolos: “Se quiser-
o diálogo ecuménico veio instituir uma nova mos mais uma prova da maneira de proceder
relação com as outras confissões religiosas e, dos Apóstolos, abramos mais uma vez a Escritu-
assim, alterar o conceito de alteridade, desde ra” (Religião e Progresso, 6 dez. 1879, 1). E conta
sempre presente na cultura ocidental. Que a o artigo o caso de um homem de nome Simão
imprensa católica não se confinava nem se pre- que havia sido convertido pelo apóstolo Filipe
tendia confinar ao carácter religioso di­‑lo logo, e a forma como reagiu ao ver o poder dos após-
inclusive, a denominação de alguns periódi- tolos: “Tempos depois do batismo deste con-
cos. Em 1879, circulava na imprensa regional verso, vendo ele que pela imposição das mãos
um jornal que se intitulava Religião e Progresso, dos Apóstolos sobre a cabeça dos novos con-
que já no nome traz implícita a mensagem de vertidos, descia sobre eles o Espírito Santo,
que a religião não era incompatível com o pro- pretendeu comprar este poder. Simão pensa-
gresso, ideia, a de progresso, muito divulgada va naturalmente que lhe seria de muita van-
desde o Iluminismo, em que havia a difusão da tagem alcançar este poder; porque, exercido,
crença de que a razão vinha ocupar o lugar de lhe seria bem rendoso” (Ibid.). A questão teo-
Deus na vida do Homem, que se acentua com lógica é saber como é que Simão seria perdoa-
as doutrinas filosóficas materialistas; estávamos do desta iniquidade. E aqui levanta­‑se uma
então nas vésperas do auge das teorias marxis- polémica entre catolicismo e protestantismo:
tas, que vieram a sustentar a Revolução de Ou- “Se a fé somente é o que justifica o homem,
tubro (1917), ano em que do Céu desciam as bastar­‑lhe­‑á recordar os artigos que o apósto-
anunciadas aparições de Fátima. lo S. Filipe lhe havia ensinado antes do batis-
O jornal Religião e Progresso, como se pode ler mo”, diz o articulista, e prossegue: “Não foi
na sua capa, autodefinia­‑se como “jornal reli- isso, porém, o que lhe prescreveu São Pedro.
gioso, litterário, politico e scientifico”, na gra- Terminantemente lhe disse: Poenitentiam age ab
fia da época e antes da reforma ortográfica hac nequitia tua: faze penitência dessa malda-
radical de 1911, o que significa que este perió- de” (Ibid.). E, neste ponto, afirma: “Creio que
dico, embora declarando­‑se, desde logo, reli- o Protestantismo não negará a um Apóstolo, o
gioso, bem como mostrando ao que vinha, não conhecimento daquilo que é necessário para
deixa de dizer que cobria vários campos do a remissão dos pecados” (Ibid.). E prossegue
saber, dispensando, assim, outras publicações lembrando: “Simão era crente: Tunc et ipse cre-
que se apresentassem como literárias, políticas dit: mas, se apesar da fé de Simão, o apóstolo
ou científicas, porque ali tudo podia ser en- obrigou­‑o a fazer penitência […] que devemos
contrado. Intenção que se percebe muito bem, concluir? Que não é somente a fé que justifi-
porque, se o objetivo era a normatividade, essa ca o homem, mas sim acompanhada da peni-
normatividade devia abranger todos os aspe- tência, a qual é absolutamente necessária para
tos da vida em sociedade e não podia deixar­‑se a justificação, e que, por consequência, é erro
ultrapassar nem ser considerada ultrapassada. considerá­‑la inútil” (Ibid.).
B oa imprensa ¬ 435

Este é um ponto crucial num órgão da im- ordena que seja a todos: omni creatura; man-
prensa católica, uma vez que a penitência e o dando perdoar os pecados, deixa ao juízo dos
perdão do pecado são um dogma essencial ao Apóstolas [sic] o julgar se os homens têm ou
catolicismo e um poder inalienável sobre os não arrependimento” (Ibid.). Portanto, o arti-
crentes, a quem não bastava ter fé para lhes culista, “C.”, como ele assina, “deixa ao juízo
serem perdoados os pecados, questão que o dos Apóstolos” (Ibid.), que são homens, não só
autor do artigo levanta: “Se isto assim é, se a perdoar, mas decidir se há arrependimento ou
penitência é necessária para a remissão dos não da parte do pecador, o que pode perfeita-
pecados, como é possível que Jesus Cristo qui- mente ser subjetivo, pelo que se trata de um
sesse dizer [ou seja, tivesse dito]: pregai o Evan- poder discricionário e terrível para um crente.
gelho; os pecados serão perdoados àqueles que acredi- O papel da “boa imprensa” fica clarifica-
tarem?! Serão perdoados pela fé, sem a penitência?! do quando compaginado com escritos que
Por acaso, pode a Escritura estar em desacor- se lhe opõem e denunciam os seus objetivos.
do com Jesus Cristo? Não, por certo” (Ibid.). É preciso notar que a missão da “boa impren-
E, finalmente, o articulista chega ao pomo da sa” não tem fronteiras, é uma estratégia que co-
discórdia: “Se há desacordo, é porque a inter- nheceu divulgação por todo o mundo católi-
pretação do Protestantismo é errada; atribui à co, inclusive com legislação que não escondia
Escritura o que ela não diz. Tira dela o que lhe o seu objetivo. Nos finais de 1841, o Governo
apraz e não o que lá se acha” (Ibid.). Portanto, prussiano aprovava um decreto em que con-
a posição do protestantismo sobre a questão da siderava oficialmente hostil qualquer publica-
importância da fé na salvação do Homem só ção que o mesmo poder público considerasse
pode resultar de uma má interpretação da Es- ofensivo à religião. Acontece que o mesmo de-
critura. E de falta de senso: “Apelemos para o creto censório revela que, na conceção ideoló-
bom senso. Quem será que ouvindo estas pa- gica dos seus autores, religião e política se con-
lavras – os pecados serão perdoados àqueles a quem fundiam – deliberadamente ou não, visto que
os perdoardes, serão retidos àqueles a quem os reti- poderiam confundir religião e política sem a
verdes – entenderá o seguinte: os pecados serão intenção de o fazer. Sendo ambas conservado-
perdoados àqueles que acreditarem, serão retidos ras, não podia nenhuma delas, nem a fé nem a
àqueles que não acreditarem?!” (Ibid.). política, ser, de modo algum, progressista.
Então, qual é o ponto essencial para o qual Contra este sincretismo levantavam­‑se vozes
o articulista pretende chamar a atenção, além por todo o lado. A 5 de maio de 1842, no dia do
da discórdia na interpretação e da atribui- seu 24.º aniversário, Karl Marx estreia­‑se com
ção de falta de senso ao protestantismo? É o o seu primeiro trabalho jornalístico, justamen-
poder do sacerdote de perdoar os pecados, te com um artigo que era uma verdadeira de-
sem o qual não há salvação. Esse poder desa- claração de guerra a essa nova lei do Governo
pareceria se bastasse a fé do crente: “Jesus Cris- da Prússia e, assim, à “boa imprensa” prussiana.
to não sujeita o perdão dos pecados à fé, mas O artigo foi escrito no novel periódico Rheinis-
sim ao poder que confere aos Apóstolos: mitto che Zeitung, o qual, justamente à luz do decreto
vos… quorum remiseritis, quorum retinueritis pec- referido, veio a ser alvo de censura e finalmente
cata” (Ibid.); portanto, o poder de perdoar ou encerrado. Marx procura desconstruir os argu-
de não perdoar, de reter ou de não reter, “se- mentos do decreto, que, no seu entendimen-
gundo se verificarem ou não certas condições” to, era absurdo, recorrendo, com eloquência e
(Ibid.). O Evangelho e a sua pregação abran- acutilância, à literatura, mas de uma forma có-
gem todos, mas o perdão não: “Mandando pre- mica e sarcástica, procurando demonstrar que
gar o Evangelho, ordena que seja a todos: omni o decreto acabaria por provocar consequências
creatura; mandando perdoar pecados, não or- contrárias aos seus objetivos: “A liberdade faz
dena que seja a todos: quorum retinueritis. […] [de tal modo] parte da essência do homem que
Jesus Cristo mandando pregar o Evangelho até os seus oponentes a implementam quando
436 ¬ B oa imprensa

combatem a sua realidade; querem apropriar impondo a sua visão do mundo a toda a socie-
para si mesmos, como o ornamento mais pre- dade. Marx estava longe de imaginar – ou será
cioso, aquilo que rejeitaram como ornamento que imagina? – que, em seu nome, a “boa im-
da natureza humana” (MARX, Rheinische Zei- prensa”, católica, haveria de ser proibida em
tung, 5 maio 1842, 1). E depois procura de- países e regimes que se reclamaram da sua dou-
monstrar que ninguém logra combater a liber- trina. Ou melhor, que a “boa imprensa”, nesses
dade em si mesma, mas a liberdade do outro: regimes, passaria a ser aquela que veiculava a
“Nenhum homem combate a liberdade; quan- ou uma nova versão oficial, contraposta à antiga
do muito combate a liberdade de outros. Assim, versão oficial conservadora que a antiga “boa
toda a liberdade existiu sempre num momento imprensa”, a católica, veiculava. A “boa impren-
como um privilégio especial e noutro como um sa”, então, passara a ser a imprensa progressis-
direito universal. A questão tem agora um signi- ta. Este é um ponto que não pode ser torneado
ficado consistente, pela primeira vez. A questão em todas as suas latitudes e azimutes aqui.
não é se a liberdade de imprensa deve existir, Este jornal prussiano, contudo, não terá be-
pois ela existe sempre. A questão é se a liberda- neficiado daquela intimidade de que goza a
de de imprensa é um privilégio de indivíduos imprensa regional, que tem como característi-
particulares ou um privilégio da mente huma- cas a proximidade e a familiaridade, como assi-
na” (Id., Ibid., 1). Essa era a questão essencial: nala António Rego, num artigo justamente in-
a liberdade de imprensa existe sempre para titulado “A dignidade da imprensa regional”.
quem tem toda a liberdade de defender as suas A imprensa regional fala aos crentes quase fa-
ideias, se elas forem permitidas pelo poder, miliarmente. Como assinala o mesmo prela-
mas não existe para aqueles que possam defen- do, são os “jornais regionais uma espécie de
der ideias que o poder, qualquer que ele seja, reserva ecológica da imprensa”, sendo consti-
não consente. Por isso, Marx afirma nesse ar- tuídos por “defeitos dos pequenos espaços cir-
tigo: “A censura não abole a luta [entre “boa culares onde as narrativas da aldeia falam mais
imprensa” e “má imprensa”], fá­‑la unilateral, de pessoas que de ideias. Ou das ideias de ape-
converte uma luta aberta numa luta escondi- nas algumas pessoas” (REGO, Ecclesia, 13 fev.
da, converte a luta sobre princípios numa luta 2007). Ora, o autor não deixa de assinalar tam-
de princípios sem poder contra um poder sem bém – não obstante relevar o papel da Igreja
princípios. A verdadeira censura, baseada na na criação da imprensa regional e no seu
própria essência da liberdade de imprensa, é a desenvolvimento, correspondendo ao apelo
crítica. […] A censura é a crítica como mono- da Igreja universal – que a mesma imprensa re-
pólio de poder” (Id., Ibid., 1). gional, no “nosso país surgiu, na linha da boa
A análise de Marx do decreto do Governo da imprensa”, desde diários, semanários e mensá-
Prússia toca no ponto essencial da questão: o rios, “que faziam circular as ideias nas dioceses
decreto não abole a luta entre a “boa impren- e nas aldeias mais longínquas” (Id., Ibid.). Não
sa” e a “má imprensa”, apenas a oculta. O que deixa de se queixar da desconfiança com que
é que Marx critica e denuncia? Que as duas im- o poder político olhou para este “vaivém de in-
prensas não possam pelejar em campo aberto formações” (Id., Ibid.), certamente um poder
e que a uma seja dada a luz do dia, a “boa im- político que não se revia nos valores veiculados
prensa”, enquanto a outra, a “má imprensa”, pela “boa imprensa”, ou que até talvez fosse vi-
se tem de esconder para existir e criticar aque- sado como sendo um poder que estava do lado
la. Esse é o âmago da questão: que as duas não oposto ao desses valores.
possam ser legítimas e que não possam consi- Na dicotomia política entre esquerda e direi-
derar mutuamente “má imprensa” a levada a ta, o poder político que olhava de soslaio para
cabo pela posição oponente e “boa impren- a “boa imprensa” tenderia a ser identificado
sa” a própria. E, sobretudo, critica que ambas com a esquerda, ao passo que a direita políti-
ambicionem viver sozinhas, sem concorrência, ca, cultural e sociológica, não se sentia visada,
B oa imprensa ¬ 437

antes representada e identificada com a “boa conservadores, cada um dos sectores, pois bem
imprensa”. Rego, contudo, reconhecido como sabemos que essa “utensilagem mental” nem
cidadão do mundo por todos, não procede a sempre corresponde à realidade política nas di-
essa dicotomia fácil e simplista, limitando­‑se ferentes épocas e latitudes. Não é verdade que
a assinalar, a propósito do porte pago (uma a implantação da República no Brasil se deveu
forma de apoio à imprensa regional), que as a um ato culturalmente de esquerda – visto no
flutuações do poder, sob o pretexto de apoiar séc. xxi assim – da princesa Isabel, que aboliu
os órgãos de imprensa mais fortes, deixam cair a escravatura? E que os democratas america-
os mais pequenos. A generosidade da ideia, nos, de esquerda em termos europeus, no Sul
contudo, trazia no bojo o propósito de “favo- dos Estados Unidos, eram esclavagistas, e que
recer a criação de alternativas a uma impren- os republicanos, considerados conservadores,
sa cristã já existente por outra que, com mais eram favoráveis à abolição da escravatura?
apoios oficiais, autárquicos e nacionais refletis- Em qualquer caso, o que se nota é um pro-
se a voz dos donos” (Id., Ibid.). selitismo em função da posição religiosa, po-
Este artigo de António Rego não deixa de lítica ou ideológica de cada um, que se pode
ser simétrico, e até parece redarguir, quan- revelar quer pela afirmação dos seus princí-
to ao lugar donde parte, de defensor da “boa pios, quer pelo combate aos princípios alhei-
imprensa”, ao de Karl Marx de 5 de maio de ros. É óbvio que, nos sectores e territórios em
1842, contra o decreto prussiano de finais de que uma determinada crença ou ideologia é
1841, já antes referido, em que Karl Marx se maioritária ou tem o privilégio da exclusivida-
insurge contra o decreto por, na prática, de- de, sendo proibidas as outras correntes ideo-
fender os valores veiculados pela “boa impren- lógicas ou religiosas, não é preciso combater
sa”. E nessa posição simétrica à do artigo de a posição oposta nem se afirmar contra ela.
Marx, Rego queixa­‑se da forma como estava a Nos casos em que as correntes minoritárias são
ser usado o apoio à imprensa, nomeadamente consentidas, estas têm tendência para se afir-
através do apoio ao porte pago, para dificultar mar, desde logo, perante a corrente dominan-
a vida da “boa imprensa”, que, normalmente, te. No caso da Madeira, em que o catolicismo
tinha dimensão local ou regional, em favor de sempre foi maioritário, era normal que alguns
uma imprensa de maior dimensão, mas que, órgãos de comunicação se afirmassem em fun-
na prática, já não partilhava os valores da “boa ção dele, procurando demarcar­‑se nessa afir-
imprensa”, ou seja, que já não era prosélita mação identitária, como é o caso, no séc. xix,
como a “boa imprensa”, mas, pior ainda, no da Revista Histórica do Proselitismo Anti­‑Católico,
seu ver, era de um outro proselitismo, porque dirigida por Robert Reid Kalley, cujo título não
laica e aparentemente neutra, portanto, mais deixa margem para dúvidas.
difícil de combater. Voltando à questão do artigo publicado no
Ambos os autores eram, em termos absolu- jornal Religião e Progresso, a sua importância não
tos, i.e., quando não enquadrados em secto- podia ser maior no contexto da “boa impren-
res ditos conservadores ou progressistas, de sa”. Por um lado, versava sobre a penitência e
direita ou de esquerda, rigorosamente equipo- o poder consequente de perdoar; por outro,
lentes na defesa de um determinado tipo de sobre a polémica explícita com o protestantis-
empresa em desfavor de outro, posição cuja mo, que entende que basta a fé, sem os atos,
legitimidade não pode ser contestada enquan- segundo o artigo ali publicado. Subtilmente,
to não propugnar, objetivamente, a extinção e pode ainda dar­‑se a entender que os não cató-
a perseguição ao outro tipo de imprensa. Ao licos não têm salvação, uma vez que o poder de
mesmo tempo, o esquema cultural com que perdoar está reservado aos apóstolos, confor-
se encara os dois lados não pode, a não ser me lhes foi conferido por Cristo, ou seja, aos sa-
em termos epistemológicos, situar à esquer- cerdotes, e que, sem esse perdão, ninguém po-
da ou à direita, em termos de progressistas ou deria ter salvação. Querer­‑se­‑á lançar anátema
438 ¬ B oa imprensa

maior sobre os pecadores que não têm aces- a eliminação física dos não católicos, mesmo
so livre a esse perdão? Aos pecadores que não sendo crentes do mesmo Deus, pelas foguei-
se arrependiam, desde logo, aos protestantes, ras da Inquisição, senão por se ser o outro
imediatamente a seguir! E aos que não parti- em relação ao conceito de sociedade que a
lhassem dos valores veiculados pelo catolicis- maioria defende e, nessa sociedade, ao con-
mo? Aos que não liam a imprensa que os veicu- ceito que ela pretende impor da própria ideia
lava? Aos que, concretamente, não liam aquele de Deus? “A cultura ocidental, erigida sob a
jornal? Estas são as questões que se levantam. égide da ontologia grega, historicamente rele-
Depois, outro artigo do mesmo jornal, que gou o outro em sua alteridade ao esquecimen-
também se intitulava político, fala de um ato to, numa supremacia do ser que justificou as
eleitoral. Penariam, também eternamente, cruzadas, a colonização, a escravidão, os regi-
os que não partilhassem das ideias políticas mes totalitários como o fascismo e o nazismo,
que o jornal veiculava, porque, se há um sis- entre outros […]. A modernidade fundada
tema de valores, ele não se esgota na religião, no racionalismo de Descartes, voltada para a
antes estende­‑se a todos os campos, inclusive ideia da perfeição e das verdades inatas (divi-
aos da política, ou seja, também os eleitores, nas), sem a perspetiva da existência do outro,
por certo, não escapariam à retenção da absol- dará luz ao eu gestado no Ocidente desde Pla-
vição. Mera especulação intelectual do leitor, tão” (ESTEVAM, 2008, 275). Essa recusa do
inferência ilegítima do que ali não está? Não outro manifesta­‑se na religião, não só entre
estão as deduções no campo da doutrina po- as religiões, mas dentro das próprias religiões
lítica, mas estão, claramente, as posologias da e das suas diferentes correntes. No cristianis-
doutrina religiosa católica para os males do mo, verificamos as guerras permanentes entre
mundo. Sem perdão não há remissão. católicos e protestantes, na Irlanda do Norte.
Não sendo este um tratado de teologia, im- No islamismo, entre sunitas, xiitas, waabami-
portava aqui perceber o conceito de peca- tas, em que cada seita se considera verdadeiro
do. Pecado é a ausência do bem; é a ausência intérprete do pensamento do profeta.
de Deus que origina o mal. O Diabo não é, A designação de “boa imprensa” traz con-
como pareceu ser em certas correntes ultra- sigo uma valoração implícita decorrente do
montanas, o outro lado de Deus, o seu oposto adjetivo “bom”. Ao autor de um artigo de di-
equivalente, porque, então, dessa equivalên- cionário ou de enciclopédia põe­‑se a mesma
cia de duas potências poderia, numa oposi- questão que se coloca ao sociólogo, que é a de
ção de contrários, caminhar­‑se para uma sín- saber se deve analisar os factos e as instituições
tese hegeliana de superação dessa dicotomia. sem emitir juízes de valor sobre os mesmos.
Sendo Deus aquele que é, “Eu sou aquele No caso da análise da “boa imprensa”, ou seja,
que é” (Ex 3, 14), o Diabo existe, neste caso, da imprensa católica, deverá o autor do texto
como alegoria do mal, como aquele que não limitar­‑se a observar, abstendo­‑se de ajuizar,
é. O mal tende, numa homologia perigosa e mesmo que veja nela valores morais que possa
de equipolência, a ser aquele que não é como considerar essenciais numa sociedade; situá­
nós, ou seja, o outro de nós mesmos, problema ‑los num determinado tempo e lugar ou admi-
que subsiste na cultura ocidental desde que tir que os valores que ela veicula são comuns a
ela existiu. Ora, se o Diabo, como ausência do outros credos religiosos, cristãos ou não? A re-
bem, deve ser extirpado, então o outro – que flexão não tem de ter uma resposta explícita,
é aquele que não é como eu (sou) – tende, mas não podia deixar de ser feita. Em qualquer
primeiro culturalmente e depois em situa- circunstância, o enquadramento de um facto
ções de afirmação radical de sistemas absolu- no seu tempo e na linha do tempo deve ser a
tos que a si mesmo se consideram perfeitos, resposta para a sua compreensão, o que, assim,
a ser eliminado fisicamente, porque perturba obvia a apologia ou a condenação, que não lhe
a ordem instituída. Como é que se entende é exigida. Tem sido essa a linha que segue este
B oa imprensa ¬ 439

artigo: entender a boa imprensa no interstício nação. Claro que esta é uma adaptação ilegíti-
de vários tempos e correntes doutrinárias. ma, porque o articulista transmite o sentimen-
O jornal Pregador Imparcial da Verdade, da Jus- to de parte da nação, que não pode ser tomada
tiça e da Lei, na sua edição de 6 de dezembro de como representante do espírito nacional, que
1823, em tom grandiloquente, anunciava, num é o todo e não a parte. Assim é, quer viva a
artigo intitulado “Alemanha”, que o governo nação em monarquia ou em república, sendo
daquele país tinha dado ordens severas contra que a igualdade, que, em teoria, a república
as sociedades secretas, visando a maçonaria: implica, deveria ser ainda mais impeditiva de
“todo aquele que aspirar aos Empregos, tanto que isso acontecesse, ou seja, de que os cida-
civis como eclesiásticos, está obrigado, para dãos fossem privados de pertencer a institui-
ser admitido aos exames, a apresentar certi- ções públicas por não professarem uma ou
dões de Polícia, que façam fé, de não ser parte outra religião, ou por, professando­‑a, perten-
em nenhuma destas associações, e deve ter­‑se cerem a uma ala progressista ou conservadora
muito em vista que se verifique esta condição, desse credo religioso. Nem mesmo a natureza
mormente quando se tratar de prover os lu- do regime, ao tempo monárquico, poderia ser
gares de ensino público”. O “pregador impar- respaldo para defender tal iniquidade. Não é
cial da verdade” não só publica como incenti- a natureza do regime, monárquico ou repu-
va a que a medida se propague: “Publiquem­‑se blicano, que determina a justeza das leis, que
pois em todas as Nações os quadros de todas as devem consagrar o sentido da justiça, que é an-
Lojas” (“Alemanha”, Pregador Imparcial da Ver- terior às leis positivas universalmente aceites:
dade, da Justiça e da Lei, 6 dez. 1823, 1). “Dizer que não há nada justo a não ser o que
Segundo o espírito do articulista, a publica- ordenam ou proíbem as leis positivas é dizer
ção das listas dos maçónicos resulta da obri- que antes de ser traçado o círculo nem todos
gação de servir o bem público. As instituições os seus raios eram iguais” (ARON, 2010, 57).
não podem ser dominadas por indivíduos que Avisado será, porém, que, se a justeza não for
possam contaminá­‑las. Se as instituições resul- consagrada nas leis positivas, estas sejam feitas
tam de um conjunto de circunstâncias, segun- ou refeitas até consagrarem a justeza, sob pena
do Montesquieu, podemos concluir que as que de cair uma sociedade na arbitrariedade do
existem são as melhores possíveis, porque re- juízo individual. De facto, não se pode conside-
sultam de uma determinada influência social. rar válidos critérios cujos efeitos sejam a exclu-
Portanto, impor­‑se­‑ia saber o que é necessário são de uma parte da sociedade, mas sim aque-
fazer para se atingir os objetivos desejados da les critérios ou leis que, anotando as diferenças
melhor forma possível. Ora, segundo o articu- de uma determinada realidade social ou polí-
lista, atingir da melhor forma possível os inte- tica, ou religiosa, sejam capazes de garantir o
resses sociais de uma instituição é varrer dela respeito por essas diferenças. Ora, o que diz o
os indivíduos que, pertencendo a uma associa- articulista é que a lei a aplicar deve considerar
ção secreta, como a maçonaria, se supõe não válidos para integrar as instituições públicas os
poderem ter direito a ser titulares das mesmas cidadãos que não tenham pertença a organis-
instituições; inversamente, obviamente, para o mos de carácter secreto.
articulista, estes titulares deveriam ser portado- Essa recusa do outro enquanto indivíduo
res dos valores que eram veiculados pela “boa que não partilha dos mesmos valores é um fe-
imprensa”. nómeno resultante da vida em sociedade, por-
Poder­‑se­‑ia concluir, talvez por extensão ile- que o Homem, no seu estado natural, i.e., ante-
gítima, que o articulista do Pregador Impar- rior ao estado de vida em sociedade, vive “uma
cial da Verdade concordava com a máxima de verdadeira paz, pelo menos um estado alheio à
Montesquieu segundo a qual “a legislação re- distinção paz­‑guerra” (Id., Ibid., 58). Esta atitu-
sultou do espírito de uma nação”, devendo de resulta, segundo Montesquieu, da vida em
as leis­‑comando submeter­‑se ao espírito da sociedade, ao contrário do que pensa Hobbes,
440 ¬ B oa imprensa

para quem o Homem vive, naturalmente, em verificar e comparar a finalidade imanente das
estado de guerra permanente contra o seu se- atitudes humanas com as do autor daquele ar-
melhante. Trata­‑se de uma diferença antagóni- tigo e, sobretudo, o momento histórico em
ca: segundo Hobbes, o Homem é um ser por que aquele é escrito.
natureza inimigo do Homem, sendo esta ini- Há, com efeito, dois aspetos culturais clara-
mizade intrínseca ao estado de natureza, ao mente identificáveis no jornal. Por um lado,
passo que, para Montesquieu, o conflito é um esta atitude da “boa imprensa” de recusar
fenómeno social, não sendo possível regres- tudo o que saia dos cânones da doutrina ca-
sar à pureza do Homem no estado de nature- tólica, atitude que tem um contexto histórico­
za, antes de viver em coletividade, estado que ‑cultural. Antes de mais, convém esclarecer que
é agora apenas imaginável. Como concebeu a existência da “boa imprensa” é em si mesma
Jean­‑Jacques Rosseau, há necessidade de supe- uma prova de que o tempo da afirmação in-
rar o conflito em sociedade através da aceita- questionável da autoridade teológica já passa-
ção do outro, referindo-se portanto à questão ra. O aparecimento da “boa imprensa” coinci-
da alteridade na cultura ocidental. Esse equilí- de com a necessidade de reafirmar e manter
brio social só pode ser conseguido através da a unidade da mensagem católica, num tempo
constatação de que a ordem social é, por regra, em que outro tipo de autoridade começava a
heterogénea, e a liberdade de todos não pode surgir e abalava a autoridade teológica. Passara
senão resultar da inclusão social de todos os o tempo em que as autoridades política e reli-
membros de uma sociedade. giosa coincidiam e juntas formavam a autori-
Hobbes defende um poder absoluto, de dade universal. O tempo histórico da socieda-
forma a resolver o conflito social de perma- de europeia nos princípios do séc. xix haveria
nente guerra. Neste ponto, o articulista coin- de conhecer profundas alterações. Se o poder
cide com Hobbes e não com Cristo, ao defen- político era afirmado pela força das armas, o
der que os maçónicos, ou pedreiros­‑livres, não poder religioso era firmado pelo poder teoló-
devem ter acesso a certos empregos, nomea- gico sustentado na infalibilidade papal. É nesse
damente ao ensino público, e que as polícias contexto que o Concílio Vaticano I proclama a
deveriam imprimir as listas dos seus membros infalibilidade papal, dogma da teologia católi-
– se não as fizessem, é “porque apareceriam ca que confere ao papa o dom de definir a in-
talvez marcados com este ferrete o Duque, o terpretação e clarificação certas em matéria de
Marquês, o Conde, o Cavalheiro, o Magistra- fé e moral, na medida em que ele, em comu-
do, o Frade, o Clérigo” (“Alemanha”, Pregador nhão com o Sagrado Magistério, o faz no gozo
Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei, 6 dez. da assistência sobrenatural do Espírito Santo,
1823, 1) –, e acrescenta que não poderia haver ficando, por isso, imune a todo o erro. A fun-
mal em tal coisa, porque sabiam da existência ção de Magistério da Igreja é múnus do papa e
da lei. dos bispos em comunhão com ele.
Se o autor de um artigo se deve dispensar do Auguste Comte assevera que o início do
papel de julgar as instituições, não deve eximir­ séc. xix assiste ao fim de um tipo de socieda-
‑se ao dever de fornecer todos os dados a quem de que teve origem na Idade Média, em que o
o deve fazer: ao leitor. A equação dos dados poder se caracteriza por ser teológico e militar.
num artigo deve permitir ao leitor desempe- Esses poderes, teológico e militar, partilhavam
nhar o papel de julgar ou de aferir. Se aqui a a supremacia, numa sociedade claramente
atitude do articulista do texto “Alemanha” de- marcada pela hierarquia eclesiástica e militar.
riva da sua ideia de organização da sociedade e A sociedade que dá supremacia a esses poderes
dos valores que defende, essa atitude deve ser está em vias de ceder o lugar a um outro tipo, a
confrontada com o que pensam sobre a ques- sociedade científica: “A sociedade que nasce é
tão da organização social os grandes pensado- científica no mesmo sentido em que a socieda-
res de correntes diversas. Assim, será possível de que morre era teológica” (ARON, 2010, 59).
B oa imprensa ¬ 441

Segundo Comte, a forma de pensar dos tem- da sociologia. Nenhum facto devia ser enten-
pos passados, a dos teólogos, estava a ser substi- dido isoladamente, sobretudo a partir de uma
tuída pela forma de pensar dos sábios. A socie- ciência como a biologia. Já não bastava analisar
dade do início do século tinha agora uma nova os fenómenos per se, mas integrados epistemo-
categoria social que lhe fornecia a base intelec- logicamente. As ciências já não podem ser pu-
tual e moral, que era a dos sábios, que herda- ramente analíticas, mas devem ter carácter sin-
vam o poder espiritual dos padres, passavam a tético, o que origina a conceção sociológica da
ditar o novo modelo de pensar e eram a nova unidade histórica. Ora, não se pode entender
fonte das ideias que serviam a nova ordem so- a sociologia como se ela fosse uma ciência de
cial; ao mesmo tempo, os industriais haviam natureza inorgânica de carácter analítico. Tal
de substituir os militares. Nesta nova ordem, a como a biologia, que não pode explicar um
força militar desapareceria e os detentores da órgão ou uma função sem o integrar anatomi-
nova sociedade exerciam o poder pelo pensa- camente, não se pode compreender um acon-
mento científico, e não pela força. tecimento, por mais relevante, sem o situar na
Analisando a nova sociedade que despontava, sincronia, i.e., no seu tempo, e na corrente dia-
Auguste Comte conclui que a reforma social a crónica, ou seja, sem conhecer os seus antece-
que se assistia implicaria uma reforma intelec- dentes e, eventualmente, estabelecer, prospeti-
tual, e isso só se faria com a síntese da ciência vamente, eventuais desenvolvimentos futuros.
e de uma política positiva. Neste cenário, em Um cientista não pode cortar uma parte
que o poder teológico cede o passo aos sá- do organismo para saber como ele funciona.
bios (a nova classe intelectual proposta por Pode deter­‑se, epistemologicamente, sobre
Comte), é natural que a “boa imprensa” sinta ele, mas só o pode explicar no todo, porque
a necessidade de reafirmar o modelo de socie- estamos a falar da vida e não da morte. Essa
dade e de família proposto pela doutrina ca- inserção do elemento no todo da biologia
tólica, que se confronta, ainda por cima com transfere­‑se para a sociologia, em que o todo
perturbações sociais derivadas das contradi- tem primazia sobre o elemento. Segundo
ções de uma sociedade em crise de mudan- Comte, “Não compreendemos a situação da
ça. São vários os modelos que se confrontam. religião […] numa sociedade particular, se
O modelo proposto por Comte visa superar as não considerarmos o todo dessa sociedade”
contradições sociais resultantes do confronto (Id., Ibid., 86). Não é possível compreender o
entre a ordem antiga, teológica e militar, e a papel da “boa imprensa” sem conhecer a evo-
nova ordem, científica e social. Ao lado destes lução histórica da sociedade no seu todo e a
dois modelos, surge o grande doutrinador da própria evolução e reinterpretação da dou-
revolução, Karl Marx. Montesquieu, por sua trina da Igreja à luz do evangelho, é certo,
vez, defende a doutrina das instituições livres. mas também à luz da sua adaptação constan-
Em confronto com estes três modelos, temos o te à sociedade do seu tempo, o que contra-
modelo proposto pela “boa imprensa”, para a diz a ideia comum de que a Igreja Católica
qual as verdades são eternas, imutáveis e indis- não é capaz de introduzir no seu seio dinâ-
cutíveis, e, desde o Vaticano I, reforçadas com micas vivas capazes de a reatualizarem – o es-
a infalibilidade papal, que, obviamente, é uma tudo dos 21 consílios da sua história milenar
resposta à nova autoridade – científica – que certamente elucida este ponto. A Igreja po-
surge. Como contestar o que existe por inspi- derá sempre ser acusada de estar mais preo-
ração divina, através do Espírito Santo? Além cupada em manter o statu quo ante do que
de querer divulgar esse modelo à sociedade, a a autoridade incontestável do seu Magistério
missão da “boa imprensa” visa reforçar a unida- na pessoa do papa, mas nunca de ignorar a
de interna da Igreja. passagem do tempo, elemento fundamental
A sociedade tinha de ser vista no seu todo do porvir, uma vez que olha os tempos que
para ser compreendida, e esse era o objetivo passam com a sabedoria do tempo eterno de
442 ¬ B oa imprensa

que é detentora, não apenas enquanto insti- Tanto Comte como Marx pretendem uma
tuição, mas também enquanto representante nova forma de organização do poder tem-
do Verbo, tal como se proclama. poral, i.e., do poder político, mas, enquanto
Enquanto a “boa imprensa” propõe a práti- Marx propõe a revolução, os positivistas de
ca da doutrina cristã na Terra para ganhar o Augusto Comte acreditam que o poder tem-
Paraíso, o positivismo advoga o progresso hu- poral pode ser reformado pelo poder espiri-
mano com base nos avanços da ciência – eti- tual, o que seria levado a cabo pelos sábios e
mologicamente, scientia, note­‑se, porque é filósofos, que teriam o mesmo papel que cabe-
aqui importante, como meio para a trans- ria aos padres na idade teológica, segundo a
formação da humanidade. Já o marxismo sua conceção: “O poder espiritual deve regrar
propõe­‑se construir uma sociedade justa os sentimentos dos homens, uni­‑los em vista
através da dialética que afirma ser imanente de um trabalho comum” (ARON, 2010, 97).
a uma sociedade dividida em classes. Assim, Para os marxistas, não só todas as estruturas
as três correntes de pensamento convergem do velho poder devem ruir pela força da re-
em dois aspetos: a scientia, a ciência, e o seu volução, como o papel de construir uma so-
carácter teleológico. Pela ciência, o conheci- ciedade nova competia às vanguardas revo-
mento da verdade, a “boa imprensa” promete lucionárias, quais sacerdotes de uma nova
ao crente o alcance do Céu; com o progresso metafísica revolucionária.
da ciência, podemos alcançar o progresso A “boa imprensa” segue a linha que defende
ilimitado da humanidade, defendem os po- que o poder de transformar o coração dos ho-
sitivistas; com a ciência da sua circunstân- mens deve continuar a ser da Igreja e do seu
cia e conhecendo os limites da sua vontade Magistério – sacerdotes, bispos e papa –, cuja
no momento da sua escolha – “Os homens autoridade advém da verdade que lhe(s) ins-
fazem sua própria história, mas não a fazem pira o Espírito Santo, fonte da renovação cons-
segundo sua livre vontade; em circunstâncias tante da Igreja, cabendo a esta espalhar, desde
escolhidas por eles próprios, mas nas circuns- o tempo de Cristo, a conversão interior dos ho-
tâncias imediatamente encontradas, dadas mens e da humanidade. Para a “boa impren-
e transmitidas pelo passado” (FRANKLIM, sa”, o catolicismo era a verdadeira religião da
2018, 204) –, o Homem construirá a grande humanidade, e a Igreja, católica por natureza,
síntese final, que é a sociedade sem classes. i.e., universal, tinha o direito e o dever de di-
Assim, as três correntes caminham para um vulgar a sua mensagem através dos meios de
fim previsível, o Paraíso, sendo que, enquan- comunicação ao seu dispor.
to a “boa imprensa”, i.e., a religião católica, Os positivistas, por seu lado, propunham­
nos propõe vencer as agruras deste mundo ‑se instituir a sua religião da humanidade,
com o Paraíso no outro, o positivismo e o uma nova religião, de que as religiões do
marxismo propõem­‑se construir um outro passado eram apenas formas provisórias,
mundo ainda neste mundo. Perante isto, é procurando no sobrenatural e nos deuses
de concluir – con[s]ciência certa – que, se aquilo que devia ser procurado no cerne da
não desistirem da sua caminhada, ainda que própria humanidade, cuja unidade moral e
por percursos diversos e até divergentes, hão humana era o ser supremo de si mesma. À
de encontrar­‑se todos às portas de uma Nova escolástica de Tomás de Aquino e dos Padres
Jerusalém, e também nesse caso serão venci- da Igreja, que tanto tinham influenciado e
das as fronteiras entre este mundo e o outro: fundamentado o catolicismo, Comte con-
“Vi um novo céu e uma nova terra, porque o trapunha a filosofia positivista como fun-
primeiro céu e a primeira terra desaparece- damento da sua nova religião. Embora po-
ram, e o mar já não existia. Vi a cidade santa, sitivista, esta nova religião não dispensava,
a Nova Jerusalém, que descia do céu de junto todavia, os seus templos e capelas, e até um
de Deus” (Ap 21, 1­‑2). novo calendário, o calendário positivista,
B oa imprensa ¬ 443

composto por 13 meses de 28 dias, com base para o descanso, tal como os católicos têm o
no calendário lunar, e tinha como ideal o al- domingo; ou os momentos diários de oração
truísmo, palavra criada por Comte. e meditação, no caso dos muçulmanos. Os ri-
Em síntese espontânea: em que é que diver- tuais e implicações culturais de um calendá-
ge o espírito semântico do amor ao próximo rio religioso não deixam de ser reivindicados
de Cristo do altruísmo de Comte e da igualda- pela “boa imprensa”, numa reafirmação dos
de de Karl Marx? O que sabemos, porque ob- valores católicos face ao movimento de secu-
servamos a passagem do tempo e do que ele larização da sociedade, que vinha já dos sé-
deixa prevalecer, é que o poder espiritual que culos passados: “a rivalidade medieval entre o
subsiste é exercido pelas igrejas do passado papado e o império, a Reforma protestante,
ou pelo poder de ideólogos, e não pelos ver- o século das Luzes, para citar apenas as eta-
dadeiros sábios ou filósofos, como idealizava pas principais da secularização das sociedades
Comte na sua nova religião. Se Comte preten- europeias” (BINDÉ, 2006, 35­‑36). Essa secu-
dia uma desvalorização dos conflitos ideoló- larização tem ainda outros momentos impor-
gicos e do poder temporal, i.e., do poder po- tantes na crescente secularização, como a Re-
lítico, ambição comum aos doutrinadores da volução Tecnológica, sobretudo no séc. xix,
“boa imprensa”, a verdade é que, no séc. xx, e a crescente urbanização da sociedade, o
a Europa e o mundo sucumbiram por duas que leva “à ‘perda do centro’, isto é, a disso-
vezes a esses conflitos que tiveram por base a lução das tradições comuns e das crenças nos
questão ideológica e que fizeram perecer mi- mesmos valores, seja do ponto de vista reli-
lhões de seres humanos. Comte preferia a des- gioso, seja do ponto de vista ideológico” (Id.,
valorização do conflito ideológico e do poder Ibid., 37). Esse movimento de secularização
da hierarquia temporal e uma ascendência do tem assim um largo rastro. Alguns, nomeada-
poder espiritual dos sábios sobre a organiza- mente os arautos da “boa imprensa”, queriam
ção social, mas isso está longe de ser uma rea- impedi­‑lo; outros, que o observavam e não o
lidade: “Provavelmente os homens preferem desejavam, nada lamentavam, como Nietzs-
sempre o que os divide ao que os une. Prova- che ou Spengler, para os quais significava o
velmente cada sociedade é obrigada a insistir crepúsculo do Ocidente, esquecendo, como
no que tem de particular e não nos traços co- lembra Vattimo, que o crepúsculo, ou “alpar-
muns que compartilha com todas as socieda- dinho”, no dizer madeirense, “não é apenas
des” (Id., Ibid., 98). o declínio do Sol no poente, mas aquela luz
As ideias e os valores que, numa sociedade, lenta e insegura que anuncia uma nova auro-
são, subtilmente, insinuados por uma deter- ra” (Id., Ibid.). A “boa imprensa” não deixava
minada doutrina religiosa, ou por uma cor- de estar atenta a esse movimento da seculariza-
rente ideológica ou cultural, têm uma eficácia ção. Num artigo de 11 de dezembro de 1909,
muitas vezes maior do que aqueles que são ex- no jornal Brado d’Oeste, defendia­‑se o descan-
plicitamente expostos. Quando os revolucio- so semanal e criticava­‑se o seu incumprimen-
nários franceses mudaram o calendário grego- to: “um abuso que não deve continuar” (“Des-
riano por um calendário próprio, ou quando canço semana”, Brado d’Oeste, 11 dez. 1909, 1).
os positivistas pretenderam impor o seu calen- Aqui a questão era a do trabalho e a do direito
dário, sabiam que isso era uma forma de incu- ao descanso semanal, mas a questão das datas
tir os valores simbólicos que esse calendário importantes do calendário litúrgico e dos va-
implicava. No séc. xxi, em países maioritaria- lores da família era uma constante neste bisse-
mente católicos, como o nosso, é frequente manário da imprensa católica. No próprio dia
determinadas confissões religiosas minoritá- 25 de dezembro, dia de Natal, no editorial do
rias reivindicarem a legitimidade de lhes ser Brado d’Oeste, o editorialista escreve: “Veem­
concedido o dia de guarda da sua religião, ‑se ali cumpridos oráculos e profecias” (Brado
e.g., no caso de judeus e adventistas, o sábado, d’Oeste, 25 dez. 1909, 1).
444 ¬ B oa imprensa

A profecia era a concretização do que tinha exata do sentido da grande narrativa da hu-
sido anunciado no passado sobre o futuro, e manidade. Assim, as ideologias, as religiões,
assim se fundem a lembrança do passado e a as culturas, as civilizações, são manifestações
espera do futuro, numa espécie de plenitu- parcelares da humanidade, na medida em que
de do ser, situado naquilo a que Derrida de- não a representam no seu todo, mas nenhuma
signa por “logocentrismo”, na medida em que delas deve ser extinta violentamente, porque
essa plenitude se situa na realidade ontológi- isso seria decepar algumas das formas em que
ca do ser, para além da circunstância do ente o espírito humano se manifesta. O mesmo não
no tempo dividido da existência humana, a di- acontece quando uma determinada civilização
mensão temporal da existência humana. Nessa se transforma ou se deixa absorver, paulatina-
realidade “logocêntrica”, o Homem ultrapas- mente, por outra, porque, na verdade, ela não
saria a sua dimensão socio­‑político­‑religioso­ desaparece, a não ser superficialmente, antes
‑cultural, situando­‑se no plano ontológico, em passa a estar incluída no âmago da cultura em
que se dissolvem as diferentes visões do mundo. que foi absorvida, que deixa de ser o que era,
Isso não significa que essa realidade ontológi- na medida em que, ao absorvê­‑la, se deixou
ca seja conseguida à custa do fim das civiliza- também absorver.
ções, mas que todas elas saberiam situar­‑se e Os factos não têm sentido quando conside-
compreender­‑se como uma das várias manifes- rados individualmente, ganhando-o apenas
tações do ser na sua plenitude, como condição quando integrados no percurso dos aconte-
para a unidade da humanidade na sua plura- cimentos. Na sua dupla dimensão, a História
lidade. Assim, a “boa imprensa” não deixaria atende à realidade dos factos que se vão ins-
de ser entendida como uma das faces da reali- crevendo na linha do tempo (a res gestae), ao
dade, na afirmação dos seus valores, como um passo que é o relato desses factos, a narrativa
dos contributos inalienáveis na afirmação da (rerum gestarum), que lhe confere sentido e ra-
unidade do ser. Mesmo que ela e os que se de- cionalidade. Esse é o papel da “boa imprensa”:
finiam contra ela se considerassem, recíproca atribuir uma dimensão transcendente àquilo
e simultaneamente, como representantes úni- que, no quotidiano, não tem significado que
cos da verdade, excluindo a outra parte, esse o ultrapasse. Se a um facto não for conferida
antagonismo só reforçaria o vitalismo de cada dimensão transcendente, ele esgota­‑se por
um, o que significa dizer que só os fazia andar si mesmo. Se, porém, ele for compreendido
mais depressa, na senda de uma visão teleoló- numa dimensão mais vasta que o ultrapassa, tal
gica da realidade. circunstância dá­‑lhe uma dimensão simbólica.
Todas as manifestações religiosas, culturais O nascimento de um menino numa gruta é um
e civilizacionais participam, numa perspetiva facto da natureza humana. Mas, se a interpre-
hegeliana, da caminhada do Espírito sobre a tação desse acontecimento for determinante
Terra até à realização da consciência da razão na marca da humanidade, ele sobreleva o quo-
na sua plenitude final, mas é normal que ne- tidiano da sua realização.
nhuma delas, ou nem todas elas, tenha a noção Quando o articulista do editorial Brado d’Oes-
do papel insubstituível e único que cada uma te, no já citado artigo sobre o Natal, afirma
protagoniza e de que ele não é exclusivo na que se completam “ali os multiplicados votos
consecução da plenitude da humanidade. Se a de milhares de gerações, sonhos dourados de
História, na visão kantiana, corresponde à rea- homens e promessas infalíveis de um Deus”, e
lização dos planos secretos da natureza, é na- que “Um passado calamitoso e sombrio termi-
tural que os seus protagonistas, muitos deles, na ali” e “um futuro de venturas brilhantes dali
não tenham a noção exata do seu papel no se desenrola”, acrescentando que a partir “Do
grande drama humano. Não se pode, desse recinto tenebroso de uma gruta raia uma auro-
modo, pedir a todos e a cada um que, além de ra de duração eterna”, está não só a proceder
saberem de cor o seu papel, tenham a ciência à inscrição de um facto localizado no “recinto
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tenebroso de uma gruta”, numa leitura provi- e a coletividade” (ARON, 2010, 114). Mas há,
dencial da História, mas, igualmente, a proce- desde logo, uma diferença radical, ou seja, de
der à interpretação do facto de acordo com a raiz: enquanto o articulista concebe a unidade
característica linear e judaico­‑cristã do tempo. do Homem pela intervenção do transcenden-
A “duração eterna” de que fala não funciona te, a unidade preconizada pelo positivismo é
apenas para o futuro, a partir do momento em uma unidade imanente. Se é certo que desde
que a esperança se realiza, mas absorve, igual- o séc. xix todas as doutrinas sociológicas pro-
mente, o passado em que essa esperança nas- põem que se passe do pensamento à ação, ou
ceu e sobreviveu no coração de “milhares de da ciência à política, enquanto fundador de
gerações”. Dá­‑se assim a unidade do ser, e o uma nova religião, a religião da humanidade,
“caos do passado recua”. A igualdade dá­‑se ali o positivismo desvaloriza o económico e o polí-
pelo “efeito […] edificante, admirável e pro- tico em favor da ciência e da moral, e não acre-
digioso […] do Natal do Homem­‑Deus”, por- dita que seja através da mudança do regime ou
que “O escravo sacode e despedaça as algemas; da constituição que o Homem ponha termo às
o senhor […] curva a cerviz; a mulher procla- convulsões da sociedade. Comte inscreve­‑se na
ma os seus direitos; o pobre, o desgraçado, linha de Kant, que acreditava no papel da na-
reconhecem alfim que são criaturas de Deus; tureza na marcha inexorável do tempo, e de
a religião transforma e humaniza o homem” Hegel, na espiral ascensional do espírito. Para
(Brado d’Oeste, 25 dez. 1909, 1). O efeito mi- Kant, Hegel e Comte, o tempo é o grande se-
raculoso da igualdade entre o escravo, o se- nhor da História.
nhor, a mulher e o pobre, que se reconhecem Comte admite que apenas o tempo fará pas-
como criaturas de Deus, é alcançado por esse sar das sociedades fragmentadas e injustas pas-
Homem­‑Menino­‑Deus. sadas e atuais às sociedades reconciliadas do
Ao proceder a essa leitura, a “boa imprensa”, futuro, mas acredita que o esforço dos homens
na sua ânsia de absorver a realidade da vida, de boa vontade, aliado ao sentido inexorável
supera­‑se a si mesma e eleva à ontologia do ser da evolução, pode ser mais ou menos longo:
aquilo que, em princípio, é um facto da vida “Na duração e nas modalidades da evolução,
quotidiana dos entes. Mesmo aqueles que não em si própria inevitável, exprime­‑se a parte de
concordam com a leitura transcendente da- liberdade reservada aos homens”. Comte não
quele facto não podem negar que essa leitura é profeta da violência revolucionária, como
é uma leitura universal e não facciosa da rea- Marx, mas acredita que os seres humanos têm
lidade. Ao proceder assim, qualquer religião uma “margem de modificabilidade da fatalida-
exerce um movimento ascendente em relação de” (Id., Ibid., 115). Tal como o cristianismo, o
a si mesma e em relação à realidade concre- positivismo e o marxismo têm subjacente uma
ta, que é, por natureza, fragmentada e caótica, estrutura teleológica e acreditam num aper-
logrando a unidade. Essa consecução da uni- feiçoamento crescente da humanidade. Ou
dade não é, portanto, incompatível com a di- entra a revolução, ou a reforma, que são ou da
versidade religiosa, embora não seja esse, con- sociedade ou do indivíduo. Tanto o positivis-
sabidamente, o pensamento ou o sentimento mo como o cristianismo repudiam o recurso
do articulista. à violência como forma de atingir uma socie-
Augusto Comte pensou a unidade da espé- dade justa. Já Comte e Marx partilham a ideia
cie humana através da constância da sua natu- de que a única transformação social possível é
reza essencial, que podia observar, contudo, aquela que implica o fim do pensamento teoló-
através da diversidade das instituições históri- gico, com a diferença de que o primeiro é apo-
cas no plano social. Na sua conceção, “a afir- logista do pensamento reformador pela ciên-
mação da unidade humana […] implica uma cia e o segundo pela revolução.
certa conceção do homem, da sua natureza, A relação entre as conceções religiosas e os
da sua vocação e da relação entre o indivíduo comportamentos económicos é vista por Max
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Weber como uma das causas das transforma- pelos movimentos de translação ou de rotação
ções económicas das sociedades, na medida em da Terra ou do retorno das estações, em que
que uma determinada interpretação do protes- tudo recomeça, deu­‑nos uma ideia de renova-
tantismo vai favorecer a criação do sistema ca- ção que se foi inscrevendo na nossa cultura oci-
pitalista, fundamentada na conformidade, in- dental e que o próprio folclore absorveu – “a
telectual ou espiritual, entre o espírito da ética primavera vai e volta sempre”, diz uma canção
protestante – ou de uma certa ética protestan- do folclore madeirense –, como se o tempo se
te – e o espírito do capitalismo. A tese de Max estivesse a renovar ciclicamente. Na conceção
Weber é que há uma adequação significativa do tempo ciclo, o passado não tem o peso que
entre o espírito do capitalismo e o espírito do advém de se julgar que afeta as futuras civili-
protestantismo: “A ética protestante a que Max zações e não há a inscrição da ideia de futuro,
Weber se refere é, essencialmente, a conceção porque o tempo é encarado como algo que se
calvinista” (Id., Ibid.), segundo a qual Deus pre- renova incessantemente.
destinou cada ser humano para a salvação ou O judaísmo, ao anunciar a vinda de um Mes-
para a condenação; portanto, o Homem não sias, vem instituir, pela primeira vez, uma ideia
pode, pelas suas obras, alterar a decisão divina, de futuro, um futuro de luz e esperança, que o
de antemão fixada. Mas, pelo menos, é conce- cristianismo há de confirmar mais tarde, com
bível uma outra interpretação. Segundo Max o nascimento de Cristo, mas, sobretudo, com a
Weber, é através do trabalho que “certas seitas sua ressurreição, provando que o futuro mes-
calvinistas acabam por descobrir no êxito tem- siânico e salvífico tinha sentido. Essa ideia de
poral, eventualmente no sucesso económico, a futuro mantém­‑se com a parúsia, a segunda
prova da escolha de Deus” (Id., Ibid.). Assim, vinda de Cristo. Essa esperança no futuro ini-
o trabalho seria a melhor forma para ultra- cia a ideia de tempo linear, porque incute nos
passar a dúvida na própria salvação e obter a povos o sentimento de caminhada em direção
certeza da graça, sendo também por isso a me- a algo, a um tempo em que a realização plena
lhor forma de ultrapassar a angústia religiosa. do Homem acontecerá. Essa conceção de ca-
A “boa imprensa” reconhece ao trabalho o seu minhada para um fim imbuiu ainda as ideolo-
papel de transformador do mundo e o facto gias de matriz materialista, como o marxismo,
de ser um fator do progresso. No editorial do o que significa que o futuro se transformou em
periódico Brado d’Oeste de 15 de dezembro de tempo de utopia, fosse qual fosse a doutrina,
1909, o articulista afirma, convictamente, o seu religiosa, política, ou filosófica: o judaísmo, à
“relevante e grandioso papel […] no seio das espera do Messias; o cristianismo, em que a
sociedades de todos os tempos. […] O que promessa de uma recompensa no Céu anula a
seria, sem ele, finalmente, do desenvolvimen- própria ideia de morte definitiva do Homem,
to, do progresso? […] Ele é a mola propulsora enquanto ser espiritual; o positivismo, com a
de todo o progresso, de toda a civilização, de sua religião da humanidade; o materialismo
toda a felicidade” (Id., Ibid.). O trabalho é visto marxista, com a promessa de uma sociedade
como forma de combater o ócio e de afirmar sem classes e igualitária, em que a luta contra a
um valor moral. De um modo ou de outro, ca- exploração ganha um sentido de futuro.
tólicos e protestantes são levados a agir, embo- Quer o cristianismo quer o marxismo criam
ra uns para se salvar e outros para ver o sinal no Homem o desejo de futuro, porque é lá
da salvação. que se situa ou a salvação ou a utopia, a cren-
A nossa conceção de tempo linear provém ça numa sociedade em que, em qualquer caso,
da cultura judaico­‑cristã, que veio substituir a haverá o reconhecimento de que todos os ho-
ideia do “eterno retorno” herdada das antigas mens são iguais, o que o cristianismo reconhe-
civilizações euroasiáticas, nomeadamente da ce à partida (mas que só é possível quando o
antiga Babilónia, ou ameríndias, maia e hindu. Homem se insere no projeto de salvação) e
Essa cosmologia do tempo, que nos é dada o marxismo visa garantir, desde que todos os
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cidadãos desencadeiem um processo de luta tempo real da Internet. A crise financeira tem
contra as desigualdades. O cristianismo impli- como um dos seus principais fatores a ques-
ca uma consciência moral e o reconhecimento tão do tempo, com resultados catastróficos a
do outro, ao passo que o marxismo exige uma nível social, económico e humano: “a urgên-
ética de entrega a uma luta contra a explora- cia desorganiza a estrutura do tempo e retira
ção, em nome desse futuro. Ambas as doutri- a legitimidade à utopia” (BINDÉ, 2006, 421).
nas, a cristã e a marxista, são imbuídas de coe- Enquanto no passado era costume o Homem
são ideológica sólida, porque conduzem os sacrificar o presente em nome do futuro dos
seus sequazes em nome desse futuro. Essa coe- seus descendentes, o Homem do séc. xxi pa-
são, todavia, só é possível quando há convicção rece estar a sacrificar as futuras gerações em
e adesão profunda a essa ideia de porvir; só a nome do presente, como se o tempo, de re-
convicção garante a longa espera, quiçá espe- pente, houvesse sido abolido, como se o pre-
ra sem fim, pela realização dessa expectativa, sente estivesse a fazer um saque ao futuro, gas-
sob pena de a própria doutrina se fragmentar tando todos os recursos conseguidos ao longo
e originar a deserção dos seus prosélitos. Tal- de várias gerações e ameaçando não só o bem­
vez isso explique o desmoronamento dos regi- ‑estar das futuras gerações, mas também o
mes políticos que se ergueram com base nessa próprio equilíbrio do planeta e, por via disso,
expectativa utópica. Enquanto o ideal do so- a própria vida humana. Cansado de se projetar
cialismo nunca foi atingido (ao fim de longas no futuro, lugar da promessa não cumprida, o
décadas pôde observar­‑se isso), as religiões per- ser humano, como se sentisse que tinha caído
manecem coesas, apesar das vicissitudes (a es- num logro, quer o futuro com urgência. Aliás,
perança no Paraíso ultraterreno nunca foi des- é frequente observarmos frases publicitárias
mentida). Essas utopias, nomeadamente as de que anunciam que “o futuro é já hoje!”. Com
cariz ideológico e filosófico, iniciaram­‑se com a chegada do cristianismo, a noção de tempo
o Iluminismo, prosseguiram com o racionalis- linear, baseada no facto único da morte – e res-
mo e o positivismo e tiveram uma versão imi- surreição – de Cristo, fez a sua aparição: a ideia
nentemente ideológica com o materialismo de temporalidade linear que preside à conce-
marxista – construído, note­‑se, a partir do idea- ção de A Cidade de Deus, de S.to Agostinho: “No
lismo hegeliano e da sua dialética –, ao longo momento da queda do Império Romano […]
dos sécs. xviii e xix, com o marxismo a fazer Santo Agostinho ilumina a história do ponto
prova da sua eficácia ao longo de quase todo o de vista transcendente, a partir da Cidade de
séc. xx. Mas essas ainda eram épocas em que Deus; a distinção entre as duas cidades vai re-
o tempo se projetava à la longue; o tempo das gular, a partir daí, o modelo cristão da tempo-
longas viagens de barco e de comboio e em ralidade” (RUSS, 1997, 54). S.to Agostinho, em
que a própria vida amorosa tinha o seu tempo A Cidade de Deus, afirma que “O Cristo morreu
de espera e de consumação. Ao invés, os tem- uma vez pelos nossos pecados e, depois de res-
pos que correm não se compadecem com tão suscitado, nunca mais morrerá”.
longa espera. De repente, todos fomos toma- Para que a atual geração não faça um saque
dos pelo carácter imediato das realizações hu- sem fundo sobre o futuro dos vindouros e estes
manas. Todas as atividades humanas, mesmo as não nos cobrem o que estamos a fazer com o
de carácter pessoal, foram atingidas pela fuga- tempo que é nosso, e que é sempre irreversí-
cidade do tempo, em que tudo se deve reali- vel, terá de haver um contrato geracional, um
zar já. Normalmente, o afeto e o amor preci- pacto do tempo, em que possa haver um in-
sam de tempo para ser profundos. Se olharmos vestimento no presente com efeitos imediatos,
para os transportes e para os meios de comu- mas com consequências positivas para as gera-
nicação, vemos que foram tomados pela ur- ções futuras. Só com base nesse equilíbrio, na
gência; da mesma forma, a carta, o diário, o gestão criteriosa do tempo, é que é possível re-
telégrafo, foram ultrapassados pela ligação em colocar o mesmo tempo nos carris da História
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e retomar o comboio da viagem com todas as Um programa que implique uma nova
carruagens, do passado, do presente e do fu- moral implica uma ligação entre a doutrina
turo, de forma a que os passageiros dos dife- e a prática. Desse ponto de vista, o cristianis-
rentes tempos não se sintam desconfortáveis mo vem representar uma verdadeira revolu-
porque os passageiros das outras carruagens ção, não só porque modificou a nossa ideia
invadiram o seu espaço­‑tempo. Nessa perspeti- de Deus, como também da sua relação com o
va, poderemos pedir uma concessão de tempo Homem. Os deuses antigos imanentes à natu-
ao futuro, para que não fiquemos sufocados reza são substituídos por um Deus transcen-
pela ditadura da urgência. Esse contrato gera- dente, que, não obstante a sua natureza trans-
cional deve abranger todos aqueles que, cren- cendente – mistério da Encarnação –, se faz
tes ou ateus, católicos ou protestantes, cristãos homem: “Cristo, o Homem­‑Deus, aliança de
ou muçulmanos, entendem que é preciso, para Carne e de Luz, estabelece uma ponte entre
usar a expressão de Jérôme Bindé, “alargar a o homem e o Absoluto: ele garante uma me-
comunidade ética” que acha que é necessário diação entre as duas ordens e, pelo seu sacrifí-
estabelecer compromisso com o futuro, tendo cio, resgata a humanidade. É a Boa Nova que
a noção de que as decisões que tomarmos hoje se anuncia” (RUSS, 1997, 51). E, paradoxal-
não podem ser apenas na expectativa do bem­ mente, é através do seu corpo, o corpo que no
‑estar individual de cada um, dos resultados Homem é sede do pecado, que Cristo vai salvar
financeiros a apresentar ao fim do trimestre, a humanidade em queda e reerguê­‑la, como
dos resultados eleitorais de uma nova eleição, se o Homem recuperasse, de novo, o ser: “o
mas que terão consequências a longa prazo: homem só é homem na medida em que des-
“O reforço das capacidades de antecipação e perta para o ser” (DURAND, 1996, 295); ao
de prospetiva é portanto uma prioridade para Homem é­‑lhe devolvida, de novo, a dignidade
os governos, as organizações internacionais, as de se ver como um ser livre. É essa condição
instituições científicas, o sector privado, os in- de Homem livre que a “boa imprensa” destaca,
tervenientes da sociedade e para cada um de ilibando Deus da existência do mal, visto que
nós” (BINDÉ, 2006, 422). o Deus do catolicismo, ao contrário do Deus
Este é o tempo em que à cultura do instan- do calvinismo, não decide de antemão a sorte
tâneo temos de responder com a cultura do do Homem, antes lhe confere a responsabili-
compromisso, para que as decisões que foram dade e a liberdade de começar de novo. Camus
tomadas no passado possam ser salvas, desde compara o Homem a Sísifo, que empurra o ro-
que integradas num projeto de futuro. Não chedo, suportando o seu fardo desde sempre,
haverá futuro se todos nos deixarmos envolver mas com a grandeza e a dignidade de quem
por interesses que se deixam consumir pela nunca cessa de o fazer. Camus, contudo, fala
recompensa imediata. A cultura de compro- de um mundo sem Deus e sem a eternidade.
misso dos melhores será a melhor forma de A “boa imprensa”, por sua vez, transmite a es-
a todos envolver. Temos todos de nos empe- perança de uma luz que oferece a eternidade
nhar no futuro a partir das lições do passa- da salvação. Será feliz o Homem que procu-
do. Se nos detivermos todos a olhar, contem- ra dar sentido a um mundo que parece estar
plativamente, o passado, ficaremos divididos. submerso no absurdo e na ausência de senti-
Se, porém, estivermos cientes do nosso pas- do? – “A própria luta na direção do cume basta
sado comum, empenhar­‑nos­‑emos coletiva- para encher o coração de um homem. Temos
mente, seremos capazes de construir o futu- de imaginar que Sísifo era feliz” (Id., Ibid, 297).
ro de que necessitamos, para que o horizonte O humanismo que impregnou várias corren-
não se afaste de nós porque não o pensamos tes do pensamento do séc. xx, incluindo o hu-
bem. Como dizia Pascal, “esforcemo­‑nos para manismo marxista, desde Mounier a Gide e a
pensar bem: é este o princípio da moral” (Id., Sartre, não deixou de (re)colocar o Homem
Ibid., 424). no centro da História, onde ele, aliás, já estava
B oa imprensa ¬ 449

desde o momento em que foi chamado a cons- “Entre os termos mundial e universal existe uma
truir o seu destino, “assim na Terra como no analogia enganadora. A universalidade é a dos
Céu”, onde, ainda assim, se cumpre a vonta- direitos do homem, das liberdades, da cultura,
de de Deus. E não é assim desde o suspiro no da democracia. A mundialização é a das técni-
Calvário, em que Cristo pede o afastamento do cas, do mercado, do turismo, da informação”
cálix do sofrimento? Contudo, Ele diz: “faça­‑se (BINDÉ, 2006, 49). E depois chama a atenção
a Sua vontade” (Lc 22, 42), a de Deus. Por um para as dinâmicas de ambas, defendendo a tese
breve momento, Cristo colocou­‑se diante do de que a mundialização ganhou uma dinâmi-
instante eterno, a escolha entre beber o cálix ca irreversível, ao passo que a universalidade
até ao fim e fazer a vontade de Deus ou fazer o estaria em recuo ou até em vias de desapare-
mais fácil, olhando só para o presente. Afinal, cer. Assim, verificamos que, num momento em
que vontade prevaleceu, a de Cristo Homem que os avanços tecnológicos poderiam ser um
ou a de (Cristo) Deus? O que houve foi uma meio de divulgar valores como os direitos do
coincidência entre a vontade de Deus Pai e a Homem, a liberdade, a cultura, a democracia,
de Deus Filho, et bien sûr: Cristo escolheu, vo- o amor ao próximo, valores inseparáveis da
luntariamente, a liberdade de não cair, e com Modernidade ocidental, os mesmos podem re-
Ele o Homem, no abismo do nada. Parecia, cuar em função do predomínio, em potência,
assim, estar a dar uma resposta, com vinte sécu- das técnicas do mercado, que, afinal, mesmo
los de antecedência, ao humanismo ateu, que nesse campo, podem falhar, por falta de uma
era fundamentalmente niilista, segundo os ética que as sustente, como a crise que se veri-
proponentes do existencialismo cristão, como fica acentuada na passagem do séc. xx para o
Gabriel Marcel, Emmanuel Mounier, Jacques séc. xxi veio confirmar. Será possível afirmar,
Maritain, entre outros, que também, à sua ma- a esta distância, que, ainda no dealbar do
neira, procuravam a síntese das várias dialéticas séc. xix, a “boa imprensa” já teria a noção de
do séc. xx, entre o ateísmo e o sagrado, a liber- que a secularização da sociedade em curso não
dade da renúncia humana e a transcendência teria, afinal, força suficiente para se impor em
divina. Superando essas angústias existenciais termos definitivos? O que aconteceu, afinal, à
que a reflexão sobre a morte traz, a “boa im- nova religião da humanidade, com os seus tem-
prensa” apresentava a imagem da sobrevivên- plos e os seus sábios e filósofos, representantes
cia contra a ideia de morte. Era necessário dessa nova espiritualidade? Tiveram sucesso os
reconstruir o compromisso entre os desafios anunciadores de uma nova ética capaz de subs-
que se colocam ao cristão no dia a dia e o ho- tituir a moral cristã que era propagada pela
rizonte que a vinda de Cristo representou para “boa imprensa”? Com efeito, haveríamos de as-
nós. A “boa imprensa” tem no seu sintagma o sistir, desde o início do séc. xix até ao princí-
adjetivo “boa”, que a demarca da restante im- pio do séc. xxi, a um movimento de seculariza-
prensa, mas isso não significa necessariamente ção dupla, ou com duas fases. Numa primeira
que ela não tenha como objetivo último a di- fase, Auguste Comte enuncia a lei dos três esta-
vulgação de uma mensagem e de uma doutri- dos, que correspondem ao longo percurso da
na que se considera universais – “Ide por todo história humana. Este pensador afirma que a
o mundo, pregai o evangelho a toda criatura” humanidade viveu o estado teológico, em que
(Mc 16, 15) – e que a si mesma se atribua uma Deus está presente em tudo, seguido do estado
missão cujo limite é atingir o pleno da divulga- metafísico, em que a ignorância da realidade
ção dos valores da mensagem, que é a do amor ou a falta de crença num Deus todo-poderoso
ao outro, que é o próximo. Esta dimensão uni- leva a pensar que há relações misteriosas entre
versal da mensagem, que decorre das palavras todas as coisas e entre estas e os espíritos. Em
do próprio Cristo, teria condições de futuro? face disso, para inaugurar uma segunda fase,
Estabelecendo uma distinção entre mundializa- Comte estabelece o estado positivo, em que a
ção e universalidade, Jean Baudrillard afirma: humanidade, finalmente liberta da presença
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de qualquer crença e guiada pelo espírito cien- má’”, no dizer de Jean Baudrillard, que afir-
tífico, busca o conhecimento absoluto e subs- ma ainda que “O universal era uma cultura da
titui toda a influência teológica pela observa- transcendência, da reflexão do tema e do con-
ção dos factos científicos. Comte, porém, não ceito, uma cultura com três dimensões, a do
advoga o fim do culto, apenas a substituição espaço, do real e da representação. O espaço
do culto de Deus, que substitui pelo culto do virtual é o do ecrã, da rede, da imanência, do
“Grande Ser” hipostasiado, por ser “o conjun- numérico” (BINDÉ, 2006, 49). Ou seja, a trans-
to dos seres passados, futuros e presentes que cendência era comum a todas as doutrinas, fos-
concorrem livremente para o aperfeiçoamen- sem elas a da utopia marxista, do espírito de
to da ordem universal” (COMTE, 1983, 30). Hegel, do positivismo de Comte ou a propa-
Comte não só substitui o culto de Deus pelo do gada pela “boa imprensa”, porque todas eram
“Grande Ser”, como defende que “O culto dos detentoras de valores que consideravam uni-
homens verdadeiramente superiores forma versais. Desde o séc. xviii, procuravam­‑se suce-
uma parte essencial do culto da Humanidade. dâneos ou sucessores para o Deus dos cristãos:
Mesmo durante a vida objetiva, cada um deles razão, natureza, História, progresso, Homem,
constitui uma personificação do Grande Ser. Iluminismo e a própria Europa, como utopia,
Todavia, esta representação exige que sejam que nós vamos vendo soçobrar como distopia,
idealmente afastadas as graves imperfeições essa Europa onde nasce o humanismo que lhe
que, muitas vezes, alteram as melhores natu- dá a base cultural: “O humanismo está ligado a
rezas” (Id., Ibid., 63). Em rigor, o positivismo uma Europa que tem a vocação do Universal e
de Comte deixa de crer em Deus para passar a que encarna ‘uma grande república divida em
crer na ciência e na humanidade. Se o “Gran- vários Estados’ (Voltaire)” (RUSS, 1997, 180).
de Ser” é tão abstrato como o Deus da religião, O cristianismo era colocado em causa no seu
o positivismo de Comte pode fazer desapare- todo, “tanto o Deus dos católicos como o de
cer o Deus que a “boa imprensa” defende, esse Calvino, processo global e não singular que in-
Deus que se fez homem e, depois de morto flamava os espíritos” (Id., Ibid., 181).
e sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, para A “boa imprensa” nasce, assim, num contex-
logo o reencarnar no “Grande Ser”, o ser de to em que nem sequer era o catolicismo que
toda a humanidade; tal como Deus encarnou se contestava, mas sim a própria ideia de Deus,
em Cristo, também o “Grande Ser”, além de se um Deus cuja existência não se podia provar.
concretizar em “o conjunto dos seres passados, É certo que a “boa imprensa”, de tendência
futuros e presentes”, pode ser personificado, proselitista, e tantas vezes de natureza local,
durante a vida, por cada um desses homens su- poderia, muitas vezes, julgar que se tratava de
periores e sábios que passam a ser a nova auto- uma guerra inter­‑religiosa, mas a questão era
ridade moral na nova sociedade. muito mais funda e muito mais vasta: era a pró-
No séc. xx, como se sabe, os positivistas pria ideia da morte de Deus que se prenuncia-
nunca conseguiram que a superioridade ética va desde o Iluminismo e que é posta em julga-
desses seres prevalecesse sobre o poder tempo- mento, com a natureza a constituir­‑se como o
ral. Este é o momento em que se dá a morte fundamento de uma religião natural desde os
das crenças em entidades superiores, sejam inícios do séc. xviii.
elas Deus, o “Grande Ser” ou as grandes uto- Jean Meslier, eclesiástico e ateu, afirma, em
pias, todas elas teleologicamente dirigidas para testamento publicado por Voltaire, que o cris-
um tempo de plena afirmação da humanida- tianismo não era uma instituição divina e con-
de. Fosse qual fosse a natureza e o percurso trariava as leis da natureza. Seguem­‑se, na sua
da participação do singular no universal, por esteira, “Voltaire, Montesquieu, Helvétius e,
transcendência ou imanência, a perda desse de um modo geral, os Filósofos que, sem rea-
carácter universal levou “à exterminação de lizar estudos de exegese, censuram ao cristia-
todos os nossos valores, o que é uma ‘morte nismo o facto de exigir demasiado à razão,
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que não admite nem milagres, nem revelação, menos intransigentes contra aqueles que não
nem sobrenatural […]. Apenas no seio da Na- aceitavam os novos projetos de sociedade que
tureza e da Razão, paradigmas fundamentais eles propunham, sobretudo quando se tratou
do pensamento da Aufklarüng, existe uma de as levar ou tentar levar à prática. Como re-
crença válida” (Id., Ibid., 182). Contra os livros construir, então, a universalidade dos valores
sagrados e a revelação, ergue­‑se, em pleno, a a partir das crenças monoteístas, deístas ou
ratio, o dinamismo religioso da Aufklarüng, utópicas, no tempo da relativização de todos
“uma força universal que não pode reduzir­‑se os valores ou, segundo os niilistas, já sem
às representações singulares da fé. Pois o sé- valores, de que estavam imbuídos todas
culo xviii, embora critique a lei revelada, aqueles doutrinas, que, crentes ou ateias,
também faz o alargamento da ideia de Deus tinham sentido teleológico e de caminhada
[…] Confúcio situa­‑se ao lado de Cristo” (Id., para uma sociedade humana perfeita, algures
Ibid., 184). Esta posição filosófica de conceber no devir histórico ou teológico? Fará sentido
um (novo) Deus como ser supremo através da colocar essa questão no âmbito deste artigo
razão e não por revelação divina dos textos sobre a “boa imprensa”? Esse é o desafio que
sagrados (Talmude, Bíblia ou Alcorão), e a se nos coloca como forma de volver ao univer-
que se convencionou chamar deísmo, alas- sal, onde todas as formas de expressão se
trou por toda a Europa. Ter­‑se­‑ia esta religião podem encontrar, não um universal por abs-
deísta baseado na natureza e na razão e não tração, situado acima do mundo real, mas ob-
na revelação? Ter­‑se­‑ia libertado da “tirania” tido com a inclusão de cada um, ou seja, de
da crença e da fé, de que era acusada a velha todos. Quando o Deus dos cristãos nos manda
Igreja? – “Ao mesmo tempo que o respeito amar o próximo, Ele exemplifica pela ação.
dos homens pela Igreja se desmorona, o Jesus come com os publicanos e pecadores: “E
deísmo impõe­‑se e o culto do Ser Supremo, sucedeu que, estando ele em casa, à mesa,
caro a Robespierre e à Revolução Francesa, muitos publicanos e pecadores vieram e toma-
não está longe. Como esquecer esse culto deís- ram lugar com Jesus e seus discípulos”
ta, instituído pelo decreto de 7 de maio de (Mt 9, 10). Quando criticado, Jesus redar-
1974? Robespierre, influenciado por Rous- guiu: “Os sãos não precisam de médico, e sim
seau, rejeita as tendências ateístas dos segui- os doentes. Ide, porém, e aprendei o que isto
dores de Herbert e contrapõe­‑lhes a religião significa: misericórdia e não holocaustos (Mt,
natural e o reconhecimento do Ser Supremo” 12, 13). Note­‑se que, nesta passagem do Evan-
(Id., Ibid., 185­‑186), isto por um lado; por gelho de Mateus, a palavra “holocaustos” apa-
outro, ao “Grande Ser” da religião positivista, rece algumas vezes em lugar da palavra “sacri-
Comte advoga o culto, mas não via como boas fício”, o que, em termos práticos, conduz ao
as dúvidas sobre a sua existência. Ou seja, os mesmo resultado, visto que o sacrifício impli-
apóstolos das novas correntes deístas eram tão cava a imolação pelo fogo e o significado da
dogmáticos quanto os das religiões reveladas, palavra “holocausto” é, etimologicamente,
e os ateus, que não criam nem numas nem holo (todo) e kausto (queimado), palavra his-
noutras, sentiam o fenómeno da rejeição. toricamente sugestiva, sabendo que o Holo-
Os sacerdotes dos novos credos, tal como os causto, que está historicamente próximo do
fautores da “boa imprensa”, estavam imbuí- séc. xxi, significou a recusa completa da alte-
dos de proselitismo em toda a semântica da ridade. Ora, uma cultura de liberdade admite
palavra, procurando fazer o apostolado das o outro como essencial ao todo. Só podemos
suas ideias, como qualquer prosélito, que, chegar ao universal pela inclusão de todos, o
além de convertido, se porta de forma sectá- que significa incluir um por um, até atingir
ria, i.e., como membro de uma seita. Por sua essa universalidade. Não se pode amar o uni-
vez, os partidários das novas utopias materia- versal nem ele existe se se excluir uma parte
listas dos sécs. xix e xx não se mostrariam de si. Repare­‑se no que diz Hannah Arendt,
452 ¬ B oa imprensa

citada por Hélé Béji, ao ser acusada de não indivíduo moderno sofre as suas consequên-
gostar o bastante dos judeus, a propósito do cias, nessa forma de escravidão moderna a
processo de Eichmann: “Esse povo já só acre- que os médicos chamam stress, vítima de ser o
dita em si mesmo? Que espera ganhar com seu próprio senhor […] compreendemos que
isso? Não tenho qualquer amor ao povo judeu, a necessidade de identidade tenha destronado
nem aos povos alemão, francês, ou america- a liberdade” (Id., Ibid., 58). Esses valores hipos-
no, nem à classe operária. A única espécie de tasiados foram erguidos em nome da liberda-
amor em que acredito é no amor das pessoas. de contra o obscurantismo religioso, mas o
Esse amor pelos judeus, uma vez que eu pró- que se verifica é que o Homem moderno se
pria sou judia, é suspeito” (BINDÉ, 2006, 60). perdeu num “individualismo que é uma ideo-
O que Arendt nos explica é que amar um logia de massas e já não uma singularidade
povo é amar um universal abstrato, tal como criadora” (Id., Ibid.). Perguntamo­‑nos: qual
amar a classe operária; só acredita no amor dos dois é mais livre: o homem individualista
das pessoas, de cada pessoa, seja ela do subsumido nas massas anónimas ou o homem
proletariado ou de outra classe social, ou seja a quem era dado o dom de dialogar, intima-
de que nacionalidade for, como o bom sama- mente, com o seu Deus, esse Deus que se sa-
ritano, que era estrangeiro: “o pertencer a crificara por ele, segundo a doutrina cristã di-
uma mesma cultura ou a uma mesma religião vulgada pela “boa imprensa”? Béji afirma que
não é uma garantia de tolerância ou de felici- “um dos sinais mais desumanos da cultura é a
dade política, porque não é a ligação cultural separação do religioso e do espiritual”. Afinal,
que faz a ligação política, mas antes a ligação não era esse o caminho, o da liberdade, que
civil”, como afirma Hélé Béji (Id., Ibid., 59). se iniciara desde o Iluminismo? No séc. xxi, o
Tomando a diferença conceptual entre reli- Homem está só perante a multidão, e, nas
gioso e espiritual, a propósito do diálogo de redes sociais, tem milhares de amigos virtuais,
culturas, Béji afirma que a reivindicação da mas sem a convivialidade de outrora. No jor-
identidade, quando é feita à custa da univer- nal A Verdade de 5 de fevereiro de 1916, num
salidade, está eivada de uma violência de na- artigo intitulado “Miasmas d’alma”, com o
tureza religiosa, no sentido da crença vivida subtítulo “Estudo psycologico”, o articulista
como tirania, e não da espiritualidade e da li- escreve: “a vida é uma tragédia escrita por
berdade de pensamento. O que é que sobrele- Deus e representada no Teatro do Universo…
va na “boa imprensa”: a espiritualidade ou a Nela se identificam em biliões de atores os gé-
tirania da crença religiosa? O que ali estava à neros de carácter disfarçadas pela ação da
superfície era, de facto, a tirania da crença. peça ou pelas exigências do enredo. […]
Contra essa tirania, e em nome da liberdade, Subiu o pano. […] Principia a representar­‑se
vão revoltar­‑se a civilização e a razão, mas logo a Vida, peça d’um só ato […] Que grandes
estabelecem novas tiranias, usando a mesma atores tem a tragédia escrita por Deus. […]
nomenclatura, o que é natural, como filhas Que génios! Com que arte alguns represen-
dessa primeira crença. Só que nessa aparente tam o papel de honestos! […] Ao entrarem,
tirania da crença propagandeada pela “boa porém, no camarim que é o seu lar, passam a
imprensa” germinava também a liberdade da esponja pela face, e ficam o que eram: hipó-
sua contestação, o que era perfeitamente critas, falsos, aventureiros do destino. Outros
plausível, numa doutrina provinda de quem, abraçam a religião, tudo perdoam, tudo es-
como Jesus, não escolhia as companhias para quecem, amam os seus inimigos, se levam
comer. “Quando olhamos os esquemas de ci- uma bofetada na face direita entregam como
vilização (Ciência, Razão, Progresso, Repúbli- Cristo a face esquerda, aconselham a essência
ca, Moral e outras ‘entidades com maiúsculas do bem, guiam os fracos, choram a desdita
em estado de prostração’, segundo a expres- dos seus irmãos, mas finda a cena, recolhem a
são de Marcel Gaucher), verificamos que o bastidores, passam a esponja e lá ficam, no
B oa imprensa ¬ 453

que são: covardes, intriguistas de escada, espe- ver, no postulado ético da responsabilidade”
culadores e párias! Que exuberante é o Tea- (Id., Ibid., 40). Essa ética da responsabilidade
tro do Universo!”. Que questão se poderá co- deve ser exercida na busca e no exercício de
locar ao artigo escrito por quem acredita em valores absolutos, como a verdade, o bem, o
Deus quanto ao seu sentido? Como pode esse sagrado, a beleza, valores intemporais e inde-
Deus, origem do bem, encher o mundo destas pendentes da História, englobados numa
personagens que “representam o papel de ho- ética cuja consumação tornaria o mundo este-
nestos”, “hipócritas, falsos, aventureiros do ticamente harmonioso, o que contribuiria
destino”, ou que “abraçam a religião, tudo para a ressurreição de Deus, ou do bem abso-
perdoam, tudo esquecem, amam os seus ini- luto, como ideal a atingir em cada circunstân-
migos”, “aconselham a essência do bem”, para cia, sabendo habitar o tempo e o lugar.
depois, tendo recolhido aos bastidores, se re- Existe, a um tempo, a marca do efémero e do
velarem “intriguistas de escada, especulado- eterno. Quando a “boa imprensa” se concede
res e párias!”? Pode Deus ser o autor do “Tea- o direito de divulgar os valores em que acredi-
tro do Universo” com este tipo de personagens? ta e exclui o próximo por divergências confes-
Ou o autor entrou em contradição com a dou- sionais, ela comporta­‑se como qualquer poder
trina que divulga? Coloca­‑se aqui a questão da temporal, para o qual o que mais conta é a auto-
teodiceia, da justificação racional de Deus e ridade, e menos a revelação de que a doutrina
da sua coexistência com o mal, aporia da cul- cristã é filha. Mas quando, e apesar disso, ela é
tura ocidental e da cultura oriental. “O teólo- genuinamente crente nos valores que propaga,
go contemporâneo Maurice Zundel dizia, então, torna­‑se num espaço de diálogo e supe-
com alguma ironia, que, se o mal existisse ra os muros do poder profano, literalmente o
realmente, Deus seria a sua primeira vítima, poder que está além e acima das barreiras que
quase fazendo suas as célebres palavras de dividem. Qualquer corrente ideológica, reli-
Stendhal, segundo as quais a única desculpa giosa ou filosófica que se coloca nas margens
de Deus em face do mal e do sofrimento só do universal e recusa o diálogo adquire carac-
poderia ser a Sua inexistência” (CORREIA, terísticas que a confundem com qualquer cor-
2006, 35). Contudo, o editorialista, católico, rente fundamentalista e, a breve trecho, acaba
não poderia ter subentendido essa ideia de por perder a possibilidade de construir o es-
que Deus, autor do teatro da vida, seria o res- paço em que todos se devem encontrar. Essa
ponsável do mal provocado pelas persona- recusa torna o conflito inevitável. Um cenário
gens da vida no palco do mundo, numa pará- que não tem de ser imaginado, seja quando
frase vicentina. O que ele critica é justamente se pensa nas fogueiras da Inquisição, seja nos
que o mal exista, não por vontade de Deus, campos de concentração de todos os lugares e
mas por ação das personagens, que são, na azimutes ou no apogeu da recusa da alteridade
realidade, a humanidade. Trata­‑se da questão que foi a Segunda Guerra Mundial, onde, em
essencial do Homem colocado perante a res- nome de ideologias absolutas que se considera-
ponsabilidade de construir o seu destino, se- vam prenhes de razão, não se concedeu lugar
gundo o seu livre­‑arbítrio e uma ética da res- ao espaço de diálogo e se cedeu o passo à lou-
ponsabilidade que não deixa ficar a teodiceia cura do desumano, de onde a justiça se afastou
desarmada perante esta questão: “a teodiceia ou foi afastada violentamente.
não ficou sem recursos. Com efeito, é possível Emmanuel Levinas exprime a exigência do
surpreender vários modelos teóricos que visam nosso tempo ao afirmar que a justiça só é jus-
mostrar que não existe qualquer incompatibi- tiça numa sociedade onde não exista distinção
lidade lógica entre a existência de Deus e o entre próximos e afastados, mas também onde
problema do mal”, tendo como base “o para- exista a impossibilidade de passar ao largo do
digma que é invocado por vários filósofos teís- mais próximo. No caso da “boa imprensa”, ela
tas contemporâneos e que se funda, a meu revela a sua visão do mundo, mas, na sua visão
454 ¬ B ocage , J osé V icente B arbosa du

singular, não deixa de especular, quer dizer, ver o rosto de Cristo em cada ser humano,
de espelhar o universal, visto que o singular situando­‑se a frase na semântica do religioso
não deixa de ser uma face do poliedro, que é ou da metáfora, conforme a queira entender o
universal. E, descendo até ao mais local, a im- leitor, senhor último da palavra.
prensa católica madeirense teceu as linhas do Bibliog.: impressa: “A penitência”, Religião e Progresso, 6 dez. 1879, p. 1;
universal na sua diocese, até à mais humilde “Alemanha”, Pregador Imparcial da Verdade, da Justiça e da Lei, 6 dez. 1823,
pp. 1­‑2; ALLEAU, René, A Ciência dos Símbolos, Lisboa, Edições 70, 1976;
capela do mais recôndito lugarejo, no esconso ARON, Raymond, As Etapas do Pensamento Sociológico, 9.ª ed., Alfragide, Dom
do mais remoto cabeço. Afinal, aquilo que no Quixote, 2010; AZEVEDO, Joaquim, e RAMOS, José, Inventário da Imprensa
Católica Portuguesa entre 1820 e 1910, Lisboa, Centro de Estudos de História
séc. xxi se considera universal é o que se divul-
Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, 1991; BINDÉ, Jérôme, Para
ga em todo o globo a partir de um determina- onde Vão os Valores?, Lisboa, Instituto Piaget, 2006; Brado d’Oeste, 25 dez.
1909, p. 1; COMTE, Os Pensadores, São Paulo, Victor Civita, 1983; CORREIA,
do local. Aquilo que é local em cada momen-
Carlos João, “Questões de teodiceia na cultura ocidental”, Philosophica, n.º 27,
to está apenas à espera de uma oportunidade abr. 2006, pp. 35­‑52; “Descanço semana”, Brado d’Oeste, 11 dez. 1909, p. 1;
de ascensão a partir do monte das Oliveiras. DURAND, Campos do Imaginário, Lisboa, Instituto Piaget, 1996; ESTEVAM, José
Geraldo, “O reconhecimento da alteridade como possibilidade de construção
Não dizemos nós que as Sagradas Escrituras de um novo paradigma na cultura ocidental em Joel Birman e Emmanuel
não podem ser tomadas à letra? Todo o texto Lévinas”, Horizonte, vol. 6, n.º 12, jun. 2008, pp. 169­‑179; LÉNINE, V. I., O Que
É o Marxismo, Lisboa, Estampa, 1976; MARTINS, Manuela Brito, Mediae Valia,
religioso é metafórico, e todo o texto literário Porto, Fundação Eng. António de Almeida, 1992; MARX, Karl, “Debatten über
carece de uma exegese, como se fora religioso, preßfreiheit und publikation der landständischen verhandlungen”, Rheinische
Zeitung, 5 maio 1842; MENDONÇA, Tolentino de, “Religião e chocolate”,
e só assim ele pode atravessar a passagem do Revista Expresso, 6 set. 2014; “Miasmas d’alma. Estudo psycologico”, A Verdade,
tempo e ser atual em todas as épocas. Nenhum 5 fev. 1916; NIETZSCHE, Friedrich, Ecce Homo, Lisboa, Europa­‑América, 2001;
PASCOAES, Teixeira de, Arte de Ser Português, 2.ª ed., Lisboa, Guide, 1993;
universal, que deve ser o objetivo de toda a ma- RUSS, Jacqueline, A Aventura do Pensamento Europeu: Uma História das Ideias
nifestação humana, se pode construir quando Ocidentais, Lisboa, Terramar, 1997; digital: FRANKLIN, Rúben Maciel, “Da
revolução, a modernidade e o progresso: a emergência da filosofia da história
não vemos em cada instante o sinal do eterno. em Kant, Hegel e Marx”, Revista de Teoria da História, n.º 6, dez. 2011, pp. 203­
A espiritualidade é saber ver o universal no sin- ‑229: https://www.revistas.ufg.br/teoria/article/view/28984/16153 (acedido
a 21 jul. 2018); “On freedom of the press”, Marxists Internet Archive: https://
gular. Se se diz que o amante vê o ser que ama
www.marxists.org/archive/marx/works/1842/free­‑press/index.htm (acedido
em todo o lado, e que se não virmos a verdade a 14 nov. 2018); REGO, António, “A dignidade da imprensa regional”, Ecclesia,
13 fev. 2007: http://www.agencia.ecclesia.pt/noticias/editorial/a­‑dignidade­
naquilo que é diferente é porque não estamos
‑da­‑imprensa­‑regional/ (acedido a 21 jul. 2018); RIBAS, Ana Cláudia, “A boa
suficientemente apaixonados, por não termos imprensa, a política e a família: os discursos normatizantes no jornal O Apóstolo
para Leyla os mesmos olhos de Majnun, então (1929­‑1959)”, Revista Espaço Plural, n.º 24, 2011, pp. 96­‑106: http://e­‑revista.
unioeste.br/index.php/espacoplural/article/view/7240/5312 (acedido a 21 jul.
é porque temos um longo caminho a percor- 2018); SILVEIRA, Diego Omar, “A peleja pela ‘boa imprensa’: reflexões sobre os
rer entre o amor do ser singular que julgamos jornais da Igreja, a romanização dos costumes e a identidade católica no Brasil”,
9.º Encontro Nacional de História da Mídia, 30 maio­‑1 jun. 2013: http://www.
amar – pessoa, pátria, cultura, língua – até po- ufrgs.br/alcar/encontros­‑nacionais­‑1/encontros­‑nacionais/9o­‑encontro­‑2013/
dermos ver essa pessoa, essa pátria, essa cultura artigos/gt­‑historia­‑da­‑midia­‑impressa/a­‑peleja­‑pela­‑201cboa­‑imprensa201d­
‑reflexoes­‑sobre­‑os­‑jornais­‑da­‑igreja­‑a­‑romanizacao­‑dos­‑costumes­‑e­‑a­
e essa língua em todas as pessoas, pátrias, cul- ‑identidade­‑catolica­‑no­‑brasil (acedido a 21 jul. 2018).
turas e línguas, e então, e só então, estaremos
verdadeiramente apaixonados, porque atingi- Miguel Luís da Fonseca
mos o patamar do amor universal induzido a
partir do singular e a ele volvendo em cada di- Bocage, José Vicente Barbosa du
verso ser e em todos os seres.
A verdade é pura, branca e una, mas a sua José Vicente Barbosa du Bocage (1823­‑1907)
singularidade constrói­‑se a partir da pluralida- formou­‑se em Medicina na Univ. de Coimbra,
de que a forma, pois o branco é a síntese das foi lente de Zoologia na Escola Politécnica de
sete cores do arco­‑íris, o símbolo da aliança Lisboa e, posteriormente, foi nomeado dire-
entre o transcendente e o imanente. Ou seja, a tor da secção de Zoologia do Museu Nacio-
exclusão de qualquer uma das sete cores torna- nal de Lisboa. Como naturalista, é conhecido
ria impossível a unidade traduzida pelo bran- sobretudo pelos seus trabalhos em taxonomia
co. Assim, o universalismo só o pode ser se in- africana. Foi cofundador da Sociedade de
tegrar todos os matizes em que se realiza e que Geografia de Lisboa e sócio da Academia Real
o realizam. Ou, por outras palavras, é possível das Ciências e da London Zoological Society.
B ocage , J osé V icente B arbosa du ¬ 455

Além de naturalista, Barbosa du Bocage este-


ve também envolvido na política, chegando a
ser deputado pelo Partido Regenerador e res-
ponsável pelo Ministério dos Negócios Estran-
geiros, entre 1883 e 1886 e, novamente, em
1890.
Nasceu no Funchal a 2 de maio de 1823, se-
gundo filho de João José Barbosa du Bocage,
primo do famoso poeta português Manuel
Maria Barbosa du Bocage (1765­‑1805), e de Jo-
sefa Teresa Ferreira Pestana, irmã do Gen. José
Ferreira Pestana (1795­‑1885), lente da Univ. de
Coimbra, que, devido às suas ideias liberais, foi
enviado para o desterro em Angola, tendo con-
seguido fugir para o Rio de Janeiro em 1829.
Por esta mesma razão, a família de José Vicente
Barbosa du Bocage foi obrigada a sair do Fun-
chal e fugiu para o Rio de Janeiro em 1830,
onde o seu pai ajudou o cunhado, o Gen. Pes-
tana, no colégio que este tinha posto em an-
damento nesta cidade. Foi aqui que o irmão
mais velho de José Vicente morreu ainda em
José Vicente Barbosa du Bocage, gravura de P. Marinho,
criança. Só após D. Miguel abdicar do trono O Ocidente, 1907, a partir de fotografia de João Francisco
é que a família Bocage voltou para a Madeira, Camacho, 1906.
em 1834, onde José Vicente Barbosa du Boca-
ge acabaria os estudos no Liceu do Funchal.
Em 1839, foi enviado para o continen- Em 1857, com base no estudo das cole-
te para realizar os estudos superiores na ções zoológicas existentes em Portugal, Bar-
Univ. de Coimbra, onde, em 1846, obteve o bosa du Bocage publica o seu primeiro es-
grau de bacharel em Medicina. Alistou­‑se no tudo científico: Memoria sobre a Cabra Montês
Batalhão Académico nas lutas contra as tropas da Serra do Gerês, Apresentada e Lida à Primeira
do Mar. Saldanha, que acabariam com a Con- Classe da Academia Real das Ciências. Em 1858,
venção de Gramido, e, depois de um perío- as coleções que faziam parte do Museu da
do na Madeira, decidiu voltar ao continente, Academia em Lisboa passam a ser da tutela
onde começou a trabalhar como facultativo da Escola Politécnica, e, em 1862, é formado
no Hospital de S. José, em Lisboa. Em 1849, por decreto­‑lei o Museu Nacional de Lisboa,
foi nomeado lente substituto da Escola Poli- com base nestas coleções. O Museu Nacional
técnica de Lisboa, ficando encarregado das era composto por duas secções: a secção zoo-
cadeiras de Anatomia Comparada, Zoologia e lógica e a secção mineralógica. Barbosa du
Introdução à História Natural. Após a morte Bocage é nomeado diretor da primeira sec-
do lente proprietário, Francisco de Assis de ção, reforçando assim a sua dedicação total
Carvalho (1789­‑1851), Barbosa du Bocage ao melhoramento e estudo destas coleções.
fica com a efetividade e assume, também, o O seu projeto era tornar estas coleções sig-
papel de mediador entre a coordenação das nificativas e relevantes, não só a nível na-
coleções da Academia das Ciências e a Escola cional, mas também a nível internacional,
Politécnica, começando então a sua carreira dedicando­‑se, sobretudo, a melhorar a co-
como proeminente zoólogo. Em 1851, aos 28 leção dos espécimenes de fauna portugue-
anos, casa com Teresa Morato Roma. sa, inclusivamente das regiões ultramarinas.
456 ¬ B ocage , J osé V icente B arbosa du

Em 1859, pede autorização para fazer uma Nos seus últimos anos de vida, continuou
viagem pela Europa e visitar outros museus, com os seus estudos sobre a fauna portuguesa
a fim de estabelecer colaborações, aprender e ainda publicou, em 1903, a Contribution à la
como outras instituições semelhantes organi- Faune des Quatre Îles du Golfe de Guinée, embo-
zavam as suas coleções e, também, adquirir ra já tivesse ficado cego. Nesse mesmo ano, foi
mais espécimenes que ajudassem a melho- homenageado com a medalha de honra da So-
rar e completar as coleções portuguesas. Bar- ciedade de Geografia, numa sessão presidida
bosa du Bocage estabelece, assim, as linhas pelo Rei D. Carlos. Em 1905, a secção de Zoo-
orientadoras do museu: aumentar a diversi- logia do Museu Nacional de Lisboa foi nomea-
dade de exemplares de determinados gru- da Museu José Vicente Barbosa du Bocage em
pos taxonómicos que melhor representem a sua honra.
fauna portuguesa continental e das posses- Entre a sua vasta produção científica,
sões do ultramar. Em 1863, publica a lista dos contam­‑se as diversas instruções práticas que
mamíferos e répteis de Portugal na Revue et escrevera no Museu Nacional de Lisboa sobre
Magasin Zoologie de Paris, e em 1866 funda o como preparar e organizar coleções zoológi-
Jornal de Sciencias Mathematicas, Physicas e Na- cas. Estas instruções eram um conjunto de re-
turaes no seio da Academia das Ciências, tam- gras com o intuito de disciplinar os viajantes
bém com a finalidade de o intercambiar com e investigadores sobre como recolher e enviar
revistas periódicas de outros museus e insti- exemplares de modo sistematizado ao museu.
tuições científicas. Estes manuais foram enviados não só aos dife-
Barbosa du Bocage é nomeado membro rentes museus portugueses, mas também aos
do Conselho Superior de Instrução Pública museus localizados nas regiões do ultramar.
em 1866, cargo que ocupará até à dissolução Um exemplar destas instruções encontra­
deste Conselho. Em 1875, é nomeado vice­ ‑se, inclusivamente, no Catalogue of Books and
‑presidente da Academia Real das Ciências, Manuscripts publicado no British Museum de
tendo ocupado um lugar distinto na comis- Londres em 1903.
são central permanente de Geografia, sendo José Vicente Barbosa du Bocage recebeu inú-
depois nomeado presidente da Sociedade de meras honras e condecorações: Grã­‑Cruz das
Geografia de Lisboa. Em 1877, publica Orni- ordens de S. Tiago e do Mérito Naval, de Espa-
thologie d’Angola e, nesse mesmo ano, parte nha, e de Francisco José, de Áustria; comenda-
de Lisboa para África na expedição de Serpa dor das ordens da Rosa, do Brasil, e de Isabel
Pinto, Capelo e Ivens. Esta expedição tinha a Católica, de Espanha, e oficial da Legião de
como objetivos explorar as regiões entre An- Honra, de França. Tem o seu nome numa ave-
gola e Moçambique, assim como estudar as nida em Lisboa (Av. Barbosa du Bocage), na
bacias hidrográficas de Zaire e Zambeze. Em zona do Campo Pequeno. Morreu em Lisboa,
1879, Barbosa du Bocage é eleito deputado a 3 de novembro de 1907.
da nação e faz parte das comissões de Instru-
ção Pública, Saúde e Negócios Estrangeiros e Obras de José Vicente Barbosa du Bocage: Memoria sobre a Cabra Montês
da Serra do Gerês, Apresentada e Lida à Primeira Classe da Academia Real das
do Ultramar. Em 1881, reforma­‑se como lente Ciências (1857); Ornithologie d’Angola (1877); Contribution à la Faune des Quatre
proprietário e toma posse como par do Reino Îles du Golfe de Guinée (1903).

em janeiro de 1882. Enquanto ministro dos


Bibliog.: impressa: MADRUGA, Catarina, José Vicente Barbosa du Bocage
Negócios Estrangeiros, foi responsável por (1823­‑1907). A Construção de Uma Persona Científica, Dissertação de Mestrado
negociações importantes, como a do trata- em História e Filosofia das Ciências apresentada à Universidade de Lisboa,
Lisboa, texto policopiado, 2002; O Ocidente, 1907; digital: PEREIRA, Esteves,
do de 1884 com Inglaterra sobre o domínio e RODRIGUES, Guilherme (ed.), Portugal. Dicionário Histórico, Corográfico,
territorial do Zaire e as negociações com Ale- Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico, Lisboa, João Romano
Torres, 1904-1915: http://www.arqnet.pt/dicionario/00002n.html (acedido a 15
manha e França sobre a disputa das margens
mar. 2018).
do Congo, nomeadamente a preparação do
Mapa Cor­‑de­‑Rosa. Pamela Puppo
B oletins ¬ 457

Boletins
Raphael Bluteau, no seu Vocabulário Portuguez
& Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, da-
tado do séc. xviii, mais especificamente no
vol. ii, dá uma definição de “boletim” como
sendo um “recado militar por escrito”, e refere,
a esse propósito, duas citações em que o termo
é empregado em contextos militares. A primei-
ra, da autoria de Brito, é de uma obra intitu-
lada Guerra no Brasil, em que, num contexto
de uma batalha, um “tambor” (mensageiro),
na presença de um general, lhe deu um papel,
em cuja margem estava escrito “boletim”, no
qual havia uma mensagem dos soldados. A se-
gunda citação faz menção do uso do termo por
Francisco Manuel de Melo na obra Epanáfora
Triunfante. Nesta, o autor escreve que o gene-
ral da Armada Portuguesa, aproveitando a dis-
córdia do lado inimigo, ordenou que “se pas-
sassem, e repartissem Boletins, escritos nas três
línguas de Holanda, Inglaterra, e França; em
que se convidasse em prémio, e liberdade aos
soldados, que se reduzissem a nosso partido” Fig. 1 – Arquivo Histórico da Madeira (1990).
(MELO, 2007, 513). Noutra página, percebe­
‑se que os “boletins” ordenados pelo general
da Armada tiveram o efeito pretendido, uma deu “o grande surto da imprensa política e no-
vez que, nas palavras do mesmo autor, acaba- ticiosa”, no contexto resultante da primeira in-
ram “passando­‑se aos Portugueses muitos dos vasão francesa e do esforço empreendido pelas
soldados estrangeiros” (Id., Ibid., 523). autoridades portuguesas em “desenvolver uma
Depreendemos destas citações que o bole- atividade de propaganda” (TENGARRINHA,
tim, na sua significação original, era um escri- 2013, 161). A imprensa então surgida era pa-
to militar, utilizado para a troca de mensagens trocinada tanto pelo governo como pela inicia-
entre as altas patentes do Exército com infor- tiva privada, e ajudou a constituir o primeiro
mação militar para os soldados. grande “espaço público de debate político” em
O Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa Portugal. Este espaço era, apesar de tudo, limi-
elucida que o termo “boletim” é originário do tado e circunscrito aos interesses nacionais e
italiano “bolletino” ou “bulletin”, diminutivo do governo, estando a liberdade de imprensa
de “bolleto/boleto”, que teve origem no étimo fortemente cerceada, sendo proibida qualquer
latino bŭlla, explicando que este termo serve reação contra o Governo português ou mani-
para designar “um escrito breve, dado por festação a favor dos ideais liberais.
competente autoridade, com certo fim”, indi- Foi este o contexto em que apareceu, pela
cando, como anteriormente referimos, que foi Impressão Régia, o Boletim, impresso em Lis-
Francisco Manuel de Melo quem no séc. xvii boa, que segundo Tengarrinha era “de carác-
utilizou pela primeira vez o termo na língua ter noticioso”, não havendo mais informação
portuguesa (MACHADO, 1995, 445). sobre esta folha informativa. Atendendo ao
José Tengarrinha explica que foi no princípio aparecimento deste Boletim, será muito pro-
do séc. xix, mais precisamente em 1809, que se vavelmente no princípio do séc. xix que o
458 ¬ B oletins

boletim, enquanto documento de exclusiva na- Açores e Madeira, no Brasil e até nas provín-
tureza militar e informativa, passa a servir tam- cias ultramarinas”, recomendando que fosse
bém os interesses do Estado e a consequente realizado um esforço para que estas publica-
esfera dos assuntos públicos. ções tivessem uma maior circulação, propon-
A Memoria ácerca das Imprensas do Governo, do o envio de exemplares para várias bibliote-
Obras Subsidiadas pelo Estado, Bibliothecas, Archi- cas (Id., Ibid., 18).
vos, Boletins das Provincias Ultramarinas Periodi- Atendendo às palavras de Travassos Valdez,
cos e Livros Publicados no Ultramar, Bibliographia é provável que a ideia de editar uma folha no-
Ultramarina, da autoria de Lúcio Travassos Val- ticiosa oficial do Estado em Portugal tenha
dez, lança algumas luzes sobre a legislação e origem no ultramar, com a suprarreferida ne-
impressão dos Boletins subsidiados pelo Esta- cessidade de as autoridades governamentais
do, ainda que o autor se limite a analisar os consolidarem e fomentarem a influência e o
boletins publicados no ultramar. Lúcio Travas- poder em terras longínquas que estavam a ser
sos Valdez elucida que foi graças aos esforços colonizadas, dando a conhecer e, ao mesmo
do visconde de Sá da Bandeira e de António tempo, a promover o trabalho realizado nas
Manuel Lopes Vieira de Castro que foi intro- colónias, garantindo assim, por meio do bole-
duzida a imprensa nas províncias ultramari- tim, a presença e a autoridade, bem como uma
nas, designadamente através do decreto da aproximação à população que procurava colo-
reforma administrativa do ultramar de 7 de de- nizar aquelas terras, que podia ser mais facil-
zembro de 1836, que ordenava que em todas mente ignorada. É curioso notar que o termo
as referidas províncias se imprimisse um Bole- “boletim” aparece, precisamente, citado no
tim Official, que devia conter “as ordens, peças, contexto de guerra no império ultramarino
oficiais, e tudo o mais que fosse do interesse português, na reconquista de Pernambuco, no
público” (VALDEZ, 1880, 13). As dificuldades Brasil.
de execução desta determinação, que levou 15 Na ilha da Madeira, o primeiro boletim a
anos a acontecer em Moçambique e quase 20 ser editado por um órgão oficial data de 1847,
em São Tomé, explicam que se volte a subli- da responsabilidade da Junta Governativa do
nhar a necessidade de se publicar um Boletim Distrito do Funchal, fruto do contexto revolu-
Official conforme consta da lei 1 de dezembro cionário que então Portugal vivia. Na sequên-
de 1875. cia dos levantamentos da Revolta da Maria da
As disposições do decreto de 1836 deter- Fonte contra as reformas de Costa Cabral, e da
minavam que a redação do Boletim era da Patuleia, revolta originada no Porto que levou
responsabilidade do secretário do governo. ao pronunciamento da Junta do Porto e à guer-
Outra determinação de 14 de fevereiro de ra civil, o país ficou dividido entre cartistas, por
1855 dispunha sobre a regulação e os moldes um lado, e a aliança paradoxal dos setembris-
nos quais os boletins deveriam ser redigidos, tas e dos absolutistas, por outro. A Madeira,
ordenando que fossem publicados documen- neste contexto, tal como outras zonas do país,
tos históricos importantes existentes nos res- aderiu, a 29 de abril de 1847, à Revolta da Pa-
petivos arquivos. tuleia, liderada por um grupo de revolucioná-
Os boletins ultramarinos tornaram­‑se textos rios que formou uma junta governativa, tendo
importantes pelos conteúdos neles publica- substituído o então governador da Madeira
dos, tais como, nas palavras de Valdez, “docu- José Silvestre Ribeiro. Este boletim intitulava­
mentos valiosos, descrições de países, roteiros ‑se, à semelhança dos boletins publicados nas
de viagem, histórias, estatísticas, tratados, etc.” colónias ultramarinas, Boletim Official. Não se
(Id., Ibid., 16). sabendo a data da edição do primeiro núme-
Travassos Valdez assinala, ainda, que os bo- ro, pensamos que foi muito pouco tempo de-
letins do governo são em geral “pouco conhe- pois do pronunciamento da Junta Governati-
cidos no continente do reino, nas ilhas dos va do Funchal, já que o segundo número data
B oletins ¬ 459

de 3 de maio de 1847. Como apontou Álvaro


Rodrigues de Azevedo, nas Notas e Comentários,
alguns dos números do Boletim Official vinham
sem título e publicavam uma ata ou uma de-
claração ao povo pela Junta Governativa. De
uma maneira geral, o Boletim Official vinha edi-
tado com uma parte oficial, na qual anunciava
as exonerações, nomeações e declarações do
conselho que presidia a Junta, e uma secção
não oficial, que noticiava o estado dos aconte-
cimentos da revolução em que Portugal se en-
contrava. Este boletim era editado no palácio
de S. Lourenço.
O Boletim Official foi substituído pela folha in-
formativa O Funchalense, quando os desenvolvi-
mentos da Revolta da Patuleia se precipitavam
para o fim, resultando na consequente extin-
ção da Junta Governativa do Funchal, que o
mantinha como órgão oficial dos revoltosos e Fig. 2 – Boletim Official do Governo Geral de Cabo-Verde
com os mesmos conteúdos noticiados pelo Bo- (organização de Sérvulo de Paula de Medina e Vasconcelos), n.º 1
(1842).
letim Official. De facto, seria editada uma série
de publicações de carácter semioficial e oficial
do Governo ou publicados na tipografia ofi- informativa aparecia explícita numa subtil
cial do Governo madeirense, situada no palá- nota em parêntesis, na primeira página, refe-
cio de S. Lourenço. Apesar de algumas vezes rente ao interesse público da informação por
não serem sempre claros os limites entre o bo- ela prestada – “Publicação d’Interesse Público”
letim e um periódico, é pertinente referir pelo (Semanario Official, 6 maio 1854, 1).
menos as folhas informativas oficiais e semiofi- Em 1862, na imprensa madeirense, viria a
ciais a que Álvaro Rodrigues de Azevedo alude nascer mais uma folha informativa apresentan-
nas Notas e Comentários às Saudades da Terra rela- do a designação de “boletim”: Boletim Official
tivas à imprensa madeirense. Segundo o anota- do Districto Administrativo do Funchal, um órgão
dor de Saudades da Terra, em 1850 surgia o Ar- de pleno direito do poder central madeiren-
chivista, órgão semioficial que era editado pela se, tendo o primeiro número vindo a público
imprensa do governo no palácio de S. Louren- a 1 de março de 1862. A intenção por parte da
ço. Em 1852, surgiu A Ordem, que substituiu o Administração do Distrito do Funchal ao pu-
Archivista como órgão oficial. blicar o órgão oficial, à semelhança de outras
Em 1854, tendo como diretor Januário Jus- folhas informativas oficiais, era pôr “ao alcan-
tiniano de Nóbrega, apareceu O Semanario Of- ce do público a sequência dos seus atos gover-
ficial, editado na tipografia oficial do governo nativos”, e, neste sentido, nas suas páginas, a
no palácio de S. Lourenço, o qual tinha por par das “peças oficiais recebidas pelo governo
objeto de publicação os “atos mais salientes e civil”, constariam “artigos de utilidade públi-
interessantes não só da administração local, ca”, que “inspirem aos Funchalenses o desejo
como do corpo legislativo e governo da me- de melhorar a agricultura e outras indústrias”,
trópole, em relação às necessidades do Dis- excluindo assim das suas páginas a “política
trito do Funchal”, razão pela qual, ainda que geral e local” (Boletim Official do Districto Admi-
não ostentando oficialmente a designação de nistrativo do Funchal, 1 mar. 1862, 1).
“boletim”, cumpria na prática as funções da- Depois dos boletins oficiais patrocinados
quele tipo de periódico. A vocação desta folha pelo governo, o primeiro periódico que se
460 ¬ B oletins

encontrou nos arquivos madeirenses como profissional de funcionários judiciais, escri-


“órgão” de uma identidade privada foi a folha vães e tabeliães da comarca do Funchal. Este
impressa pela Associação Madeirense Promo- boletim servia exclusivamente o propósito es-
tora do Bem Público e de Auxílio Mútuo, or- pecial, como explicam os diretores, “de escla-
ganização fundada por João da Câmara Leme recer qualquer ponto duvidoso sobre a ordem
Homem de Vasconcelos, intitulada O Districto e fórmula do processo civil; e bem assim sobre
do Funchal, tendo o primeiro número surgido direito, para cujo fim se socorreram aos no-
a 24 de maio de 1877. A publicação desta folha bres jurisconsultos, advogados neste juízo,
informativa revelava os ideais fundadores da os quais se prestaram dispensar o seu valio-
agremiação que representava, tendo a linha so auxílio”, acrescentando que este boletim
editorial a missão de, por um lado, informar era alheio a qualquer polémica associada a
o público dos “negócios de interesse geral” jornais de índole política (Boletim Judicial, 22
e, por outro, de uma maneira mais concreta, nov. 1877, 1). Foi publicado entre 22 de no-
numa linha informativa/educacional, publicar vembro de 1877 e 11 de abril de 1878, num
um conjunto de textos “originais”, no qual se total de 25 números.
incluíam “excertos e traduções de escritos que Nos finais do séc. xix, surge no panorama da
parecem mais próprios para espalhar noções, imprensa madeirense um boletim de vocação
das mais úteis, sobre instrução, indústria, agri- religiosa patrocinado pela Diocese do Funchal,
cultura, comércio” (O Districto do Funchal, 24 sendo muito provavelmente o primeiro bole-
maio 1877, 1). tim de cariz religioso, intitulado Boletim Mensal
Nesse mesmo ano, mais precisamente a 22 Diocesano da Obra de S. Francisco de Sales, órgão
de novembro de 1877, foi publicado o primei- da Obra de S. Francisco de Sales. Depreende­
ro número do Boletim Judicial, pela agremiação ‑se dos exemplares números 32­‑33 de agosto
e setembro de 1896 que a publicação já tinha
três anos, sendo que o primeiro número terá
surgido na imprensa madeirense em julho/
agosto de 1893, ano em que a Obra de S. Fran-
cisco de Sales terá sido fundada na ilha da Ma-
deira, tendo continuado a sua publicação até
1900. O boletim tinha como subtítulo Para De-
fesa e Conservação da Fé na Diocese do Funchal e
pela assiduidade da publicação, terá sido um
dos boletins com maior circulação nos finais
do séc. xix na Ilha. Na viragem para o séc. xx,
este boletim é integrado conjuntamente com
o Domingo Catholico (1890) na Quizena Religiosa
da Ilha da Madeira, órgão do bispado, da Liga
pela Santificação do Domingo e da Obra de S.
Francisco de Sales.
Foi a partir do séc. xx que na ilha da Madei-
ra se assistiu a uma disseminação deste formato
informativo na sociedade e na imprensa, sur-
gindo boletins de vária índole, patrocinados
tanto por órgãos governativos, nomeadamente
a nível do poder central e local, como por asso-
ciações culturais, religiosas, militares, desporti-
Fig. 3 – Boletim da Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal
vas, científicas e educativas, empresas privadas,
(1955). movimentos de índole política, etc.
B oletins ¬ 461

Se alguns destes boletins tiveram uma pre- Dos boletins relativos às instituições despor-
sença significativa e assídua resultante da im- tivas, temos conhecimento de um, quinzenal,
portância e força das instituições que os patro- do Club Sport Marítimo, editado em 1952 por
cinavam, outros nem tanto, circunscrevendo a Manuel Rodrigues Gouveia.
sua publicação a um curto espaço de tempo. Da parte de algumas escolas madeirenses
Entre os boletins de maior peso, contam­‑se partiu a iniciativa de publicar um boletim,
as folhas editadas pelos órgãos governativos re- como aconteceu, e.g., com o Boletim Biblio-
lativos ao poder central, entre os quais se des- gráfico, Escola Secundária Francisco Franco, edi-
taca o boletim editado pela Junta Geral do Dis- tado por esta escola secundária, em 1982; o
trito Autónomo do Funchal entre janeiro de Gente Nova, boletim mensal da Escola Salesia-
1953 e novembro de 1974, tendo sido publica- na de Artes e Ofícios dirigido pelo P.e David
do mensalmente. No primeiro número pode Bernardo, em 2003; e o Ideias Vivas, da Esco-
ler­‑se que a Junta Geral, ao editar o boletim, la de Santana B+S Bispo D. Manuel Ferreira
tinha por objetivo estreitar o contacto com Cabral.
os madeirenses e informá­‑los sobre a vida ad- No que aos boletins de carácter eclesiástico/
ministrativa da Junta Geral do Funchal, para religioso diz respeito, contam­‑se algumas pu-
assim “sentir os seus anseios e dar realização às blicações madeirenses sob a égide da Diocese
suas aspirações” (Boletim da Junta Geral do Distri- do Funchal, que tiveram, no início do séc. xx,
to do Funchal, 1953, 1). Este boletim tinha um assídua publicação e continuidade. Como já
suplemento dedicado à agricultura, publicado mencionámos anteriormente, foi editado o
entre 1958 e 1974. Quinzena Religiosa da Ilha da Madeira, sendo o
Em anos mais recentes, foram publicados al- primeiro número datado de 1 de janeiro de
guns boletins que partiram da iniciativa das se- 1901 e o último de 15 de janeiro de 1912.
cretarias regionais, e.g., o boletim da Direção
Regional do Trabalho, editado em 1982, sendo
relançado novamente em 2003 um boletim in-
titulado Prios. Em 2000, a Secretaria Regional
da Educação editou também o seu primeiro
boletim, exemplo seguido, também, pela vice­
‑presidência do Governo regional, iniciando
a publicação de um boletim informativo em
2006.
Relativos ao poder local, a partir dos finais
do séc. xx, as diversas câmaras municipais da
ilha da Madeira, e inclusive algumas das suas
freguesias, iniciaram a publicação de boletins,
o que muito contribuiu para a popularização
deste formato no espaço público dos municí-
pios. Apenas para mencionar alguns, pela sua
regular publicação, destaque-se o Boletim da Câ-
mara Municipal do Funchal, lançado em 1985, o
Boletim Municipal de Santa Cruz, em 1987, o Bole-
tim Municipal de Câmara de Lobos e o Boletim Mu-
nicipal de São Vicente, em 1995. De entre as jun-
tas de freguesia madeirenses que publicaram
boletins, destacam­‑se a Junta de Freguesia do
Porto da Cruz, em 1989, e a Junta de Freguesia Fig. 4 – Boletim da Direcção Geral dos Edificios e Monumentos
de Santa Maria Maior, em 1993. Nacionais, n.º 84 (jun. 1956).
462 ¬ B oletins

Nesse mesmo ano, a 1 de março de 1912, Algumas paróquias também editaram os seus
foi editado o Boletim Ecclesiastico da Madeira, boletins, como aconteceu, e.g., com o bole-
sendo o diretor, proprietário e editor o P.e M. tim da paróquia de Santo António, que tinha
F. Camacho, e estando a redação e a admi- como diretor e editor o P.e Fernando Augus-
nistração a cargo da Câmara Eclesiástica do to da Silva e se publicou entre 8 de março de
Funchal, tendo sido impresso na Typografia 1914 e 22 de fevereiro de 1915, tendo um total
Camões. O primeiro número deste boletim de 24 números, ou, ainda, o boletim da paró-
inicia­‑se com uma exortação do cónego da quia de Santa Maria Maior, intitulado O Sino de
Sé do Funchal e vigário capitular da Dioce- Santa Maria.
se em sede vacante, António Manuel Pereira Ainda no âmbito eclesiástico, surgiu a edi-
Ribeiro, apelando ao ânimo dos fiéis que “so- ção de publicações associadas a congregações
frem” com “os atentados cometidos contra a e causas religiosas, de que são exemplo o bo-
nossa sacrossanta [sic] Religião, as persegui- letim trimestral dedicado a Mary Jane Wilson,
ções movidas contra a santa Madre Igreja e os intitulado A Boa Mãe – Irmã Maria de S. Fran-
seus ministros” (Boletim Ecclesiastico da Madei- cisco Wilson, que ainda se publica, e o bole-
ra, 1 mar. 1912, 2). A edição deste boletim foi tim consagrado à causa da beatificação da M.e
uma resposta da Diocese do Funchal às con- Virgínia Brites da Paixão, intitulado Boletim
sequências da implantação do regime repu- da Madre Virgínia: Mensageira do Imaculado Cora-
blicano em Portugal, nomeadamente à lei da ção de Maria, iniciado em 2008.
separação do Estado e da Igreja, que deixou Com presença assídua no panorama edito-
a Diocese e os padres numa “tristíssima situa- rial madeirense, encontravam­‑se os boletins
ção” (Ibid., 6). Ao mesmo tempo, há neste bo- dedicados aos assuntos agrícolas e agropecuá-
letim uma intenção de aproximar e de unir os rios. Sendo a agricultura um tema de suma
fiéis aos seus párocos e à Diocese, num tempo importância para os madeirenses, base da
conturbado que a Igreja então vivia, aconse- economia e sustento de muitas famílias, os bo-
lhando o Cón. António Manuel Pereira Ribei- letins dos órgãos governativos incluíam uma
ro aos párocos a leitura do boletim “à estação secção dedicada à agricultura, expondo os de-
da missa conventual” (Ibid., 7). Este boletim safios e informação útil aos agricultores. Nos
tinha uma periodicidade mensal, e a sua pu- inícios do séc. xx, surgiu o mais antigo bole-
blicação teve a sua última edição em 1919. tim dedicado em exclusivo à temática agrícola
Outro boletim diocesano que se destacou publicado na Madeira, já se encontrando em
foi A Vida Diocesana, boletim da Diocese do circulação um boletim agrícola a nível nacio-
Funchal, propriedade da Empresa da Vida nal da responsabilidade da Direção Geral da
Diocesana. A sua publicação foi iniciada a Agricultura.
3 de junho de 1921, e tinha como diretor Com efeito, a 17 de fevereiro de 1924 foi edi-
e editor o Cón. Dr. Manuel Gomes Jardim, tado o Boletim Agrícola, folha informativa da Es-
estando a administração a cargo da Câmara tação Agrária do Funchal, com periodicidade
Eclesiástica, sendo impresso nas oficinas ti- quinzenal, dirigida pelo engenheiro agróno-
pográficas de O Correio da Madeira. A Dioce- mo Dr. Aurélio Botelho Moniz, que teve a últi-
se do Funchal seguia assim o modelo adota- ma edição a 1 de maio desse mesmo ano.
do por “todas as Dioceses bem organizadas”, Outro boletim que achamos de relevo men-
publicando também o seu boletim oficial, cionar neste âmbito, e por todo o contexto que
sendo este boletim a “voz autorizada” que lhe está associado, e que reporta à Revolta do
une hierarquicamente os milhares de cris- Leite, é o boletim da Junta dos Lacticínios da
tãos madeirenses à Diocese (A Vida Diocesa- Madeira, intitulado Boletim de Informação e Publi-
na, 3 jun. 1921, 1). Existem no Arquivo Re- cidade, editado entre 1938 e 1953. Este boletim
gional da Madeira exemplares deste boletim pretendia ser um espaço de análise e estudo
até 1 de fevereiro de 1925. sobre os problemas e desafios que a indústria
B oletins ¬ 463

de lacticínios madeirense enfrentava, integra-


da na missão para a qual a Junta de Lacticínios
fora criada, a da coordenação e modernização
do sector industrial agropecuário na Madeira.
Algumas associações de cariz comercial e
empresas adotaram também o boletim como
forma de divulgação das suas atividades, tendo
também estes periódicos relativa expressão no
meio editorial madeirense. A título de exem-
plo, a Associação Comercial do Funchal, ins-
tituição fundada em 1836, publica o Boletim
Comercial da Madeira, em novembro de 1929,
sendo esta folha lançada mensalmente. Do
mesmo modo, a Associação Comercial e In-
dustrial do Funchal regista também a autoria
do boletim informativo editado entre 1982 e
1998.
Em agosto de 1923, integrado no movimen-
to monárquico madeirense, foi publicado o Bo-
letim do Centro Monárquico da Madeira, editado
pela associação do mesmo nome, sendo sus-
penso em novembro do mesmo ano, quando
contava apenas com dois números. Este bole-
tim assumia uma vocação propagandística da Fig. 5 – Boletim Infantil do Museu Quinta das Cruzes, n.º 10 [2020).
causa monárquica e informava os seus sócios
e simpatizantes das suas atividades e projetos,
bem como, numa altura em que as monarquias ciências seja na das letras, adotaram o boletim
europeias entravam em declínio face aos ideais como canal de divulgação da sua produção
republicanos, do estado “geral da ideia monár- científica.
quica, quer em Portugal, quer no Estrangeiro” Um dos boletins mais emblemáticos de uma
(Boletim Monárquico da Madeira, ago. 1923, 1). das mais antigas e respeitadas instituições ma-
Das associações culturais, nomeadamen- deirenses, o Arquivo Histórico da Madeira,
te dos núcleos museológicos, foram editados lançou em março de 1931 o primeiro número
boletins que em muito contribuíram para a daquela que já foi considerada a mais impor-
divulgação e promoção destes espaços. Entre tante revista madeirense sobre investigação e
os boletins editados, destacamos o Boletim da divulgação histórica, o Boletim do Arquivo His-
Casa­‑Museu Dr. Horácio Bento de Gouveia, edita- tórico da Madeira. Era então diretor do Arqui-
do em 1998, e o Boletim Museu Quinta das Cru- vo Histórico da Madeira João Cabral do Nas-
zes, que veio a lume em 2004, o qual teve uma cimento, e secretário Álvaro Manso, sendo o
versão para crianças lançada em 2008. De igual boletim editado pela Câmara Municipal do
modo, a Associação Cultural Encontros da Eira Funchal, com o curioso subtítulo Revista Tri-
lançou um boletim comemorativo dos seus 11 mestral Ilustrada. Este boletim nasceu das de-
anos de existência, intitulado Associação Cultu- liberações da comissão administrativa da Câ-
ral Encontros da Eira: Uso e Costumes da RAM, Bo- mara Municipal do Funchal, que na sessão de
letim de Aniversário: 11 Anos a Recolher e a Divul- 10 de março de 1931 deu o aval para a criação
gar a Tradição Musical da Madeira. de uma revista de carácter histórico, sendo
Do mesmo modo, as instituições madei- uma resposta, segundo os redatores, à “velha
renses de vocação científica, seja na área das aspiração de alguns dos nossos conterrâneos”,
464 ¬ B oletins

tendo em Álvaro Rodrigues de Azevedo e Fer- a compreensão por parte dessas mesmas ins-
nando Augusto da Silva os principais arau- tituições de que, mais do que ser um edifício
tos da necessidade de criar uma “revista em em pedra, uma determinada instituição existe
que sejam transcritos documentos inéditos de porque tem capacidade de fazer chegar as suas
valor histórico (e onde também se publica- ideias e valores à sociedade.
riam artigos de carácter arqueológico e artís-
Boletins: ACIF – Boletim da Associação Comercial e Industrial do Funchal,
tico)” (Arquivo Histórico da Madeira, 1931, 2).
1982­‑1998; O Archivista, 7 dez. 1850­‑27 dez. 1850; Arquivo Histórico da
Este Boletim tem a particularidade de ser ante- Madeira: Boletim do Arquivo Distrital do Funchal, 1931­‑1939; 1949­‑1951; 1958­
rior à instalação do próprio Arquivo Histórico ‑1960; 1962; 1964; 1972­‑1974; 1990; 2013; Assicom – Boletim (Associação dos
Industriais de Construção da Madeira), 1980; Associação Cultural Encontros
da Madeira. da Eira: Uso e Costumes da RAM, 2008; Biodiversidade e Natureza, 2015­‑2016;
Sob a égide do Museu Municipal do Funchal A Boa Mãe: Irmã Maria de S. Francisco Wilson, Boletim Trimestral, 1989­‑2018;
Boletim Agrícola, 2003; Boletim Bibliográfico [da] Escola Secundária Francisco
(História Natural), foi publicado um boletim Franco, 1982; Boletim Climatológico do Funchal, Observatório do Infante D. Luís,
de vocação científica de estudo da fauna mari- 1939­‑1945; Boletim Comercial da Madeira, 1929­‑1930; Boletim da Casa­‑Museu
Dr. Horácio Bento de Gouveia, 1998­‑2007; Boletim da Junta Geral do Distrito
nha madeirense, tendo o seu primeiro número Autónomo do Funchal, 1953­‑1973; 1974; Boletim da Madre Virgínia: Mensageira
vindo a lume em agosto de 1945, editado pela do Imaculado Coração da Madeira, 2008; Boletim de Informação dos Centros
de Abastecimento Agrícola da Madeira, 1999­‑2005; Boletim de Informação e
Câmara Municipal do Funchal. Este boletim Publicidade, 1938; 1940; 1950­‑1952; 1954; Boletim do CEN, 1995­‑1997; 1999;
constituiu um importante meio de divulgação Boletim do Centro Monarquico da Madeira, ago. 1923­‑nov. 1923; Boletim do
Clube Filatélico da Madeira, 1965; Boletim do Districto Administrativo do Funchal,
do conhecimento natural e da biodiversidade 1 mar. 1862­‑19 dez. 1863; Boletim do Museu Municipal do Funchal, 1945;
do mar da Madeira. 1956­‑1970; 1972­‑1976; 1980; 1982­‑1996; 1999­‑2000; 2002­‑2006; 2008­‑2009;
Boletim Ecclesiastico da Madeira, 1 mar. 1912-1 fev. 1918; Boletim Informativo,
No âmbito das artes plásticas, em maio de
2000; Boletim Informativo – Antral – da Delegação Autónoma da Madeira,
1979 surge o Boletim do Instituto Superior de Artes 1983; Boletim Informativo da Câmara Municipal da Calheta, 2002; Boletim
Plásticas da Madeira, tendo como diretor e re- Informativo da Direcção Regional do Trabalho, 1982; Boletim Informativo da
Junta de Freguesia de Santo António, 1995; Boletim Informativo da Sociedade de
dator António Gorjão, na redação Isabel Santa Desenvolvimento da Madeira, 1998­‑1999; Boletim Informativo da Universidade
Clara e na orientação gráfica Maurício Fernan- da Madeira, jul. 2005­‑mar. 2009; Boletim Informativo da ZMM, 2006; Boletim
Informativo O Curioso, 1999­‑2004; Boletim Judicial, Orgão dos Empregados
des e Tolentino de Nóbrega. A edição deste bo- Judiciaes da Ilha da Madeira, 22 nov. 1877­‑11 maio 1878; Boletim Mensal das
letim no meio editorial madeirense pelo Ins- Observações Meteorológicas no Arquipélago da Madeira, 1934­‑1978; Boletim
Mensal Diocesano da Obra de S. Francisco de Sales: para Defeza e Conservação
tituto Superior de Artes Plásticas da Madeira da Fé na Diocese do Funchal, 1896­‑1900; Boletim Municipal da Câmara
assumia vários objetivos, quer na sua compo- Municipal da Ponta de Sol, 2009; Boletim Municipal da Câmara Municipal
de Câmara de Lobos, 1995­‑1998; 2000­‑2003; 2007­‑2010; Boletim Municipal
nente pedagógica, quer como meio de divulga- da Câmara Municipal do Funchal, 1985­‑1993; Boletim Paroquial de Santa
ção das atividades, ao mesmo tempo que, num Luzia, 1992­‑1996; Boletim Semanal: Delegação Regional da Madeira Banco de
Portugal, 1985; Bolletim Official, 20 ago. 1846­‑15 maio 1847; Buzico: Boletim da
sentido mais lato, se configurava como uma re-
Comunidade Educativa de S. Vicente, 2008; 2010­‑2011; O Camacheiro: Boletim
vista de cultura. Informativo da Casa do Povo da Camacha, 2003; Centro de Estudos de História
Desde os fins do séc. xix e até aos nossos do Atlântico (CEHA): Boletim Informativo, 1998; 2001; 2004; 2006; Conservação
e Natureza: Boletim Informativo do Serviço do Parque Natural da Madeira,
dias, o boletim conquistou um espaço impor- 2006­‑2010; 2012­‑2013; O Corvo: Boletim Informativo da Câmara Municipal de
tante na forma como as diversas instituições, São Vicente, 1993; 1995­‑2001; CRIMA – Boletim Semanal Centro Regional de
Informação Mercados Agrícolas, 1988­‑2001; Dar Vida aos Anos: Boletim dos
tanto públicas como privadas, comunicam Ginásios da Câmara Municipal do Funchal, 2003; O Districto do Funchal, 24 maio
com um determinado público, respondendo 1877­‑24 mar. 1878; O Domingo Catholico, fev. 1885­‑dez. 1889; Educação Especial,
1984; Espaço Arte: Boletim do Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira,
às exigências de uma sociedade em constante 1979­‑1981; 1987­‑1990; O Funchalense, 3 maio 1847­‑27 jun. 1847; A Gaivota:
procura por informação especializada e per- Boletim Escolar, 2000; Gente Nova: Boletim Mensal da Escola Salesiana de Artes
e Ofícios, 2002­‑2004; Ideias Vivas, Clube de Jornalismo, Boletim, 2002­‑2003;
sonalizada. Com o advento da era digital, os 2009­‑2011; O Jovem: Boletim Interno da Juventude Evangélica da Madeira, s.d.;
boletins renascem sob a forma anglo­‑saxónica O Marítimo: Boletim Quinzenal do Club Sport Marítimo, 1952; Museu Quinta das
Cruzes: Boletim, 2004; 2006; 2008; 2010; 2012; Museu Quinta das Cruzes: Boletim
da newsletter, mantendo em tudo a função
Infantil, 2008; 2010; Notícias Horários: Boletim Informativo, 2004; A Ordem, 5
original. jan. 1852­‑1 set. 1860; Parochia de Santo Antonio do Funchal, 1914­‑1915; Porto
Os boletins anteriormente descritos mos- Santo: Boletim Municipal, 2000; PRIO: Boletim Informativo, 2003; Protecção Civil:
Boletim, 2010; A Quinzena Religiosa, 1 jan. 1901­‑15 jan. 1912; Rotary Clube do
tram, por um lado, no particular contexto da Funchal: Boletim Mensal, 2005; 2008; Semanário Official, 6 maio 1854­‑15 fev.
ilha da Madeira, o pioneirismo comunicacio- 1860; O Sino de Santa Maria: Boletim Paroquial de Santa Maria Maior, s.d.;
Sorveira: Boletim Informativo do Parque Ecológico do Funchal, jul./ago. 2003­‑jun.
nal entre as mais variadas instituições e um 2008; Suplemento Agrícola do Boletim Distrital, 1958­‑1974; Vice­‑Presidência:
determinado público, e, por outro, também Boletim Informativo, 2006; Vida Diocesana, 1 jul. 1921­‑abr./jun. 1925.
B olton , W illiam ¬ 465

Bibliog.: Arquivo Histórico da Madeira, 1931, 1951; BLUTEAU, Rafael,


Vocabulário Portuguez & Latino, Aulico, Anatomico, Architectonico, vol. ii,
Coimbra, Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1728; Boletim da Direcção
Geral dos Edificios e Monumentos Nacionais, n.º 84, jun. 1956; Boletim da Junta
Geral do Distrito do Funchal, 1953; 1955; Boletim Ecclesiastico da Madeira, 1
mar. 1912; Boletim Infantil do Museu Quinta das Cruzes, n.º 10, 2020; Boletim
Judicial, 22 nov. 1877; Boletim Monárquico da Madeira, ago. 1923; Boletim
Official do Districto Administrativo do Funchal, 1 mar. 1862; Boletim Official do
Governo Geral de Cabo­‑Verde, n.º 1, 1842; O Districto do Funchal, 24 maio 1877;
FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. História das Ilhas do Porto Santo,
Madeira, Desertas e Selvagens, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos,
2007; MACHADO, José Pedro, Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa,
3.ª ed., vol. i, Lisboa, Livros Horizonte, 1995; MELO, Francisco Manuel de,
Epanáforas de Vária História Portuguesa, Coimbra, Centro de Linguística Geral e
Aplicada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2007; Semanário
Oficial, 6 maio 1854; TENGARRINHA, José, Nova História da Imprensa
Portuguesa. Das Origens a 1865, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores,
2013; VALDEZ, Lúcio Travassos, Memoria ácerca das Impressas do Governo,
Obras Subsidiadas pelo Estado, Bibliothecas, Arquivos, Boletins das Provinvias
Ultramarinas, Periodicos e Livros Publicados no Ultramar, Bibliographia
Ultramarina, Lisboa, Typ. Lisbonense, 1880; A Vida Diocesana, 3 jun. 1921.

Carlos Barradas

Bolton, William
William Bolton (c. 1650­‑1750) foi um comer-
ciante de Warwickshire que, beneficiando de
uma lei britânica de 1663 cujo objetivo era
aumentar o capital proveniente do comércio The Bolton Letters. The Letters of An English Merchant in Madeira,
vol. II (1976), edição de John Blandy.
com as colónias, se transferiu para a Madeira
por volta de 1695, onde se instalou como co-
merciante e banqueiro. As cartas de William Bolton são considera-
Desde a sua chegada à Ilha, e nos 20 anos das pelos historiadores muito importantes
em que aí permanecerá, William Bolton man- como documentos primários para o conheci-
tém uma constante correspondência com os mento do comércio atlântico e da economia
seus associados em Londres, Robert, William e da Madeira, mas também para o quotidiano
Gyles Heysham. Escritas entre 1695 e 1714, as da época, do qual o autor dava conta. Richard
cartas originais foram depositadas na Kenneth W. Clement afirma que o conteúdo da corres-
Spencer Research Library da Univ. do Kansas, pondência é fundamental para a investigação,
nos EUA. Em 1928, André L. Simon, fundador já que constitui um testemunho não só para a
e presidente da Wine & Food Society, publicou história económica do arquipélago, mas tam-
em Londres parte do acervo, com o título The bém dos “day­‑to­‑day details of political news,
Bolton Letters: The Letters of An English Merchant naval movements, and trade gossip [pormeno-
in Madeira, 1695­‑1714. Simon planeava publi- res das notícias políticas do dia a dia, da ati-
car dois volumes, mas deu à estampa apenas o vidade naval e dos mexericos do comércio]”
primeiro, que inclui as cartas datadas de 1695 (CLEMENT, 1989, 196). As cartas de Bolton
a 1700. Em 1960, Graham Blandy fez uma edi- são também importantes para o estudo da cul-
ção a stencil do restante conjunto de cartas, que tura do vinho, sendo citadas no livro do presti-
compreende o período de 1701 a 1714. Alguns giado enólogo inglês Richard Mayson, Madeira:
pequenos excertos das cartas do volume editado The Islands and Their Wines, pelas informações
por André L. Simon foram traduzidos e publica- sobre a qualidade e quantidade das colheitas
dos por António Marques da Silva, em Passaram em diferentes anos (MAYSON, 2015, 7). Falta,
pela Madeira, em 2008. no entanto, como sublinha Clement, uma
466 ¬ B ombardeamentos , P rimeira G uerra M undial

edição crítica e académica da totalidade das ao qual se podem ainda juntar os momentos
cartas. O estudioso aconselha também a leitu- em que se registou ou houve apenas notícia da
ra cruzada com o Letter­‑Book de Daniel Prior, atividade dos U­‑boats no mar do arquipélago,
capitão do brigue Abigail, de Boston, que na com todas as consequências, políticas e milita-
déc. de 1790 se dedicou ao comércio no Atlân- res, que daí resultaram.
tico, podendo os investigadores, assim, adqui- A canhoneira francesa La Surprise, em serviço
rir uma imagem mais completa e documenta- de escolta, e o vapor Dácia, usado na reparação
da do comércio que unia a Europa à América. de cabos submarinos, chegaram a 3 de dezem-
Bolton dá conta de um comércio florescente bro de 1916, pelas 8.30 h, provenientes de Gi-
que passava pela Madeira: o vinho seguia da braltar. A missão do Dácia era desviar para Brest
Ilha para as Índias Ocidentais, para as colónias o cabo alemão da América do Sul. No Funchal,
americanas, a Inglaterra e a Irlanda, sendo já se encontrava então o vapor armado francês
também na Ilha abastecidos os navios com pro- Kanguroo, desde 24 de novembro, proveniente
dutos alimentares frescos e manufaturados; de de Bordéus e utilizado para o transporte e para
Inglaterra, chegavam o trigo e os produtos de a reparação de submersíveis. Seguindo­‑os, e à
lã, seda e algodão, o mobiliário e produtos ma- sua espera, estava o U­‑38, sob o comando do
nufaturados; da Irlanda, provinham a carne e Cap.­‑Ten. Max Valentiner.
os lacticínios; da Terra Nova, o peixe; de Bos- A primeira explosão deu­‑se cerca de 30 mi-
ton e Nova Iorque, o óleo de baleia e as ma- nutos depois de o Dácia e a Surprise terem fun-
deiras; da Virgínia e das Carolinas, o arroz e o deado, em frente ao cais. A canhoneira foi a
milho; das Índias Ocidentais, o açúcar.
É igualmente interessante a rivalidade exis-
tente entre os comerciantes ingleses, de que
dá conta, chegando mesmo Bolton a ser preso
por problemas criados pelos seus rivais (SILVA,
2008, 43­‑47).

Obras de William Bolton: The Bolton Letters. The Letters of An English Merchant
in Madeira. 1695­‑1714 (2 vols., 1928 e 1960).

Bibliog.: CLEMENT, Richard W., “Manuscript resources for the study of


portuguese history in the Kenneth Spencer Research Library, University of
Kansas”, Mediterranean Studies, vol. 1, 1989, pp. 191­‑202; MAYSON, Richard,
Madeira. The Islands and Their Wines, Oxford, Infinite Ideas Limited, 2015;
SILVA, António Marques da (ed. lit.), Passaram pela Madeira, Textos de Autores
Anglo­‑Saxónicos Que Visitaram a Ilha (1687­‑2000), Funchal, Empresa Municipal
Funchal 500 Anos, 2008.

Luísa M. Antunes Paolinelli

Bombardeamentos, Primeira
Guerra Mundial
Durante a Primeira Guerra Mundial, a baía e
a cidade do Funchal foram atingidas por dois
bombardeamentos realizados por submarinos
alemães: o primeiro ocorreu na manhã de 3 de
dezembro, pelo U38; o segundo, na manhã de
12 de dezembro de 1917, pelo U156. O Fun-
chal foi o único espaço português no hemisfé-
Fig. 1 – Ataque do submarino alemão ao porto do Funchal
rio norte a sofrer um ataque de tal dimensão, a 3 de dezembro de 1916 (Ilustração Portugueza, jan. 1917).
B ombardeamentos , P rimeira G uerra M undial ¬ 467

primeira a ser atingida e come- Fig. 2 – Afundamento do SS Dácia, 3 de


dezembro de 1916 (bilhete-postal Peres-
çou logo a submergir. A confu- trellos) (coleção particular).
são que se gerou não permi-
tiu que se tivesse percebido o
que estava a suceder. Como a mais de 50 granadas, que a dis-
Surprise foi atingida no paiol, tância e a agitação marítima
deduziu­‑se que a deflagra- terão impedido de atingir os
ção fora acidental. Junto à ca- alvos com precisão, pois em
nhoneira, encontrava­‑se uma nenhum deles se registaram
barca de abastecimento, da danos significativos.
Firma Blandy, que se afundou. A resposta da artilharia ter-
O Kanguroo, fundeado em restre, mesmo sem a qualida-
frente ao Mercado do Peixe, de pretendida, foi suficien-
foi atingido por um segundo te para afastar o submarino,
torpedo, cinco minutos de- obrigando­‑o a colocar­‑se numa
pois, adornando para estibor- posição de onde os disparos
do. Só após esta explosão se eram menos certeiros. Sur-
percebeu que era um ataque. preendidas pelo ataque, as for-
O U­‑38 passou ao largo, pela ças de defesa sofreram diver-
popa do Kanguroo, e, com o seu terceiro tor- sos reveses, não só devido à má qualidade dos
pedo, atingiu o Dácia, fundeado em frente ao apetrechos, à lentidão e ao reduzido alcance
Campo Almirante Reis, fazendo­‑o submergir. do tiro, mas também devido à circunstância de
Tudo se passou entre os 200 e 400 m da praia, se tratar de um submarino, unidade contra a
e a única resposta foram os 25 disparos efetua- qual nenhum dos artilheiros alguma vez dispa-
dos pelo Kanguroo, antes de adornar. Ao largo, rara. Por outro lado, se as peças de 8 tinham
encontrava­‑se uma barca dos EUA, a Eleonor H. um tiro pouco certeiro, as de 15 eram impró-
Percy, e, na Pontinha, várias embarcações pe- prias para alvos móveis. Assim, quando o sub-
quenas. Nenhuma delas foi atingida. marino se colocou ao largo, a defesa tornou­
O objetivo do U­‑38 era afundar o Dácia e a ‑se obsoleta. Aliás, o Com. Ricardo Martinho
sua escolta. A presença, inesperada, do Kangu- de Andrade mandou suster o fogo, procuran-
roo condicionou a abordagem, mas a sequência do induzir o submarino a aproximar­‑se, mas tal
dos torpedeamentos comprova como tudo foi não sucedeu.
facilmente ultrapassado, com rapidez e eficá- Apesar de tudo, logo que se percebeu o
cia, algo que também se deve alargar aos dispa- que estava a suceder, as peças de S. Tiago e
ros sobre a cidade. da Qt. Vigia abriram fogo, disparando 18 e 34
A este respeito, o U­‑38 também mostrou ter vezes, respetivamente. Na Qt. Vigia, uma das
alvos definidos, sendo evidente que o Cap. Va- peças explodiu, ficando fora de serviço e pro-
lentiner possuía informações detalhadas sobre vocando alguns feridos. Ambas as baterias se
a sua localização. Este facto também nos ajuda queixaram do mau funcionamento das cula-
a negar a ideia (defendida na época) de que o tras e do rebentamento de muitas granadas à
submarino não teria atacado os alvos terrestres boca dos obuses. A causa era simples: as muni-
se as baterias não tivessem ripostado. Embora ções estavam carregadas havia alguns anos e,
não sendo estes os seus alvos principais, a ver- para além disso, encontravam­‑se expostas à hu-
dade é que os disparos efetuados a quatro mi- midade, pois o paiol no forte de S. Tiago ficava
lhas, com uma peça de 105 mm, de tiro rápi- quase paredes­‑meias com o mar.
do, visaram a amarração do cabo submarino, a Convém também esclarecer que a peça Krupp,
central elétrica, a bateria da Qt. Vigia e o forte desembarcada em agosto, ainda não tinha sido
de S. Tiago (onde estavam as defesas). Foram montada, por falta de financiamento. Por
468 ¬ B ombardeamentos , P rimeira G uerra M undial

Fig. 3 – Boias dos navios Kanguroo e SS Dácia e da canhoneira Surprise, afundados no Funchal a 3 de dezembro de 1916
(Museu da Liga dos Combatentes).

causa deste atraso, que ainda mais se eviden- Depois, vindo de oeste, surgiu o Mariano de
ciou devido ao bombardeamento, verificou­‑se Carvalho, que começou a ripostar a 700 m. Esta
uma acesa polémica entre os capitães de ar- ação concertada contribuiu para que o subma-
tilharia e os do porto. O assunto chegou aos rino se afastasse.
periódicos e a peça acabou por ser montada As baterias (Qts. Vigia, das Neves e S. Tiago)
ainda em dezembro de 1916. não participaram no confronto, justificando­‑se
Cumprida a missão, o U­‑38 rumou para o comandante militar, mais tarde, com a dis-
Leste, tendo sido visto na Ponta de S. Louren- tância a que se encontrava o submarino e com
ço, quando seguia em direção ao Porto Santo. a proximidade a que dele estavam os vapores
Toda a operação durou cerca de duas horas e portugueses. A conhecida imprecisão de tiro
cifrou­‑se na morte de 34 tripulantes da Surprise, e a escuridão que ainda se verificava também
de 5 carregadores de carvão e de 1 emprega- contribuíram para aquela opção.
do da firma Blandy. Em terra, os feridos (dois Na cidade, os alvos foram o cabo submarino,
praças e um sargento) resultaram do incidente a estação de TSF (contígua ao Convento de
que se referiu com uma das peças da Qt. Vigia. S.ta Clara), o palácio de S. Lourenço, as plata-
Os prejuízos nos edifícios não foram signifi- formas de artilharia e o forte de S. Tiago. Ape-
cativos, e apenas a estação do cabo poderia ter sar de tudo, nenhum dos alvos foi seriamen-
sido gravemente atingida, se não tivesse sido te danificado, e as consequências mais graves
protegida por uma casa alta, que ficava à sua foram a morte de cinco civis, os vários feridos
frente, onde embateu um dos projéteis. e o pânico generalizado. Pela relativa preci-
O segundo bombardeamento, a 12 de de- são do tiro, aumentaram as suspeitas de que os
zembro, foi substancialmente diferente do submarinos alemães estariam a receber infor-
primeiro. Começou mais cedo, pelas 6.20 h, e mações provenientes da Ilha.
visou apenas alvos terrestres. A ação só demo- Logo após o bombardeamento de 1917,
rou 30 minutos, e o U­‑156, sob o comando do foi proibida a iluminação noturna, o que se
Cap.­‑Ten. Konrad Gansser, usou peças de cali- manteve até ao fim da guerra, e nomeado
bre 120 e 150 mm de tiro rápido. um novo governador civil, Carlos José Bara-
O submarino foi avistado em frente ao forte ta Pinto Feio. Em Lisboa, foi criada uma co-
de S. Tiago, por pescadores, a duas léguas de missão com o objetivo de apresentar uma
distância de terra. Dado o alerta, ainda assim, proposta para a remodelação da defesa das
quando o Dekade I iniciou a perseguição, já o ilhas. Para o Funchal, foi enviada, entretanto,
submarino efetuara entre 40 a 50 disparos. uma companhia de artilharia de guarnição.
B ombardeiros ¬ 469

Contudo, um pouco à semelhança do que Ainda assim, tentou­‑se delinear uma aproxi-
sucedera em 1916, a maior consequência do mação da Madeira aos EUA e com ela a cons-
bombardeamento foi ter apressado o pedido trução de um novo paradigma militar, que re-
de ajuda aos EUA, por intermédio do agen- presentava o início do fim da multissecular
te consular na Madeira, Humberto dos Pas- inserção do arquipélago na esfera de influên-
sos Freitas, que solicitou ao chefe da divisão cia britânica. Depois, em tempo de crise, re-
naval norte­‑americana, estacionada nos Aço- gressaram, como já sucedera no passado, a
res, o envio de um destroyer para a defesa do aposta no aumento da produção da cana saca-
porto. O pedido não foi atendido de imedia- rina e, com o fim da guerra, o desenvolvimento
to, mas, passados dois meses, foi destacada da indústria turística. Por último, com as crises,
uma canhoneira da marinha americana para regressou também o debate sobre a questão da
patrulhar as águas madeirenses. Firmou­‑se de- autonomia insular, que se iria prolongar pela
pois um acordo para o estacionamento da re- déc. de 20.
ferida unidade no Funchal, a fim de levantar
o espírito da população. Ao mesmo tempo, Bibliog.: FOURNIER, António, “Max Valentiner e a síndrome de von Richthofen”,
Islenha, n.º 48, jan.­‑jun. 2011, pp. 121­‑132; GIBSON, R. H., Histoire de la Guerre
solicitou­‑se ao Governo de Lisboa a presen- Sous­‑Marine 1914­‑1918, Paris, Payot, 1932; GIBSON, R. H., e PRENDERGAST,
ça de um caça­‑minas. Na prática, contudo, Maurice, The German Submarine War 1914­‑1918, Annopolis, Naval Institute
Press, 2003; HALPERN, Paul G., A Naval History of World War I, Annapolis,
pouco ou nada se concretizou. Naval Institute, 1994; Ilustração Portugueza, jan. 1917; RODRIGUES, Paulo
Miguel, “A ilha da Madeira durante a Grande Guerra (1914­‑1918). Tópicos de
política e defesa”, Nação e Defesa, n.º 139, 2014, pp. 64­‑83; TARRANT, V. E., The
U­‑Boat Offensive 1914­‑1945, New York, Sterling, 1989; WILHELM, Eberhard Axel,
“O ataque de um submarino alemão ao porto do Funchal, em 1916”, Islenha,
n.º 48, jan.­‑jun. 2011, pp. 97­‑120.

Paulo Miguel Rodrigues

Bombardeiros
Nos sécs. xv e xvi, a artilharia era servida por
artífices especialmente contratados, que mui-
tas vezes eram também fundidores e constru-
tores e, localmente, tinham outras profissões.
Depois de separadas as funções, foi estabele-
cido um número fixo de bombardeiros, aqui-
lo a que posteriormente se chamaria “os efeti-
vos”, que eram examinados e depois inscritos
Fig. 4 – Capela-mor da igreja de S.ta Clara, alvo do como bombardeiros da Nómina. A instituição
bombardeamento do submarino alemão, 12 de dezembro de
1917 (bilhete-postal Perestrellos) (coleção particular). da Nómina dos Bombardeiros de Lisboa, ou
seja, a criação de uma lista nominal (donde a
designação) com 100 elementos, todos “nossos
naturais e moradores nesta cidade de Lisboa”
(ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo
Geral, tombo 7, fls. 36­‑37), data de 1515 e terá
sido uma organização extensiva ao Funchal,
embora só tenha sido registada bastante mais
tarde, num treslado do séc. xvii. Como era
apanágio das corporações à época, a Nómina
Fig. 5 – Estilhaço de granada do submarino alemão
também tinha um santo padroeiro, neste caso
lançada sobre o Funchal a 12 de dezembro de 1917
(Museu Militar da Madeira). S.ta Bárbara, santa evocada em caso de trovoada
470 ¬ B ombardeiros

e pelos que trabalhavam com artifícios pirotéc- havia no reino, é possível que não tenha che-
nicos, como os artilheiros, engenheiros e ar- gado sozinho. No entanto, nominalmente, o
quitetos militares. Esta organização manteve­ primeiro bombardeiro referido na Madeira
‑se mesmo depois de 1675, quando a função é Álvaro Afonso, que, em novembro de 1551,
passou para o foro exclusivamente militar e os surge na documentação da Santa Casa da Mi-
bombardeiros passaram a soldados regulares, sericórdia do Funchal como “condestabre dos
designados por “artilheiros”. bombardeiros do castelo e fortaleza desta cida-
O primeiro bombardeiro de que temos co- de” (ABM, Misericórdia do Funchal, liv. 710,
nhecimento na Ilha terá sido o moço de câma- fl. 226v.). Mais tarde, refere­‑se que, sobre o or-
ra do capitão do Funchal, Jerónimo Cabreira, denado inicial de 8$000 réis, tendo em conta
nomeado, em 1542, para guardar o baluarte, o tempo que tinha já servido de bombardeiro
ou seja, a futura fortaleza do Funchal, nessa e a certidão do capitão-donatário do Funchal,
data em construção, depois denominada de lhe eram acrescentados mais 4$000 anuais. Em
S. Lourenço. É possível que tenha havido ou- 1561, existe referência ao contrato de mais um
tros bombardeiros na Ilha, dado que os pri- bombardeiro, em princípio fora da Nómina,
meiros privilégios dos artilheiros têm a data que só mais tarde foi instituída no Funchal:
de 1515 e as bocas­de­fogo para a fortaleza vie- Fernão da Costa. Em 1566, chegado de Lisboa,
ram em 1529. Dada a qualidade do material, foi nomeado condestável da fortaleza Gonça-
referido posteriormente como do melhor que lo Fernandes, que Gaspar Frutuoso refere, du-
rante o ataque dos corsários desse mesmo ano,
como «português, já entrado em anos, grande
bombardeiro». Veio a morrer nesse mesmo ata-
que, «com o seu bota­‑fogo na mão» (FRUTUO-
SO, 1968, 329), não lhe tendo o governador
deixado fazer fogo sobre os navios quando os
mesmos passaram ao alcance das suas peças na
baía do Funchal.
Gonçalo Fernandes surge em meados de
1566, com um alvará datado de 20 de junho
desse ano, registado na Alfândega, com a mis-
são de levantar a Nómina do Funchal, com oito
bombardeiros, que deveriam então ser os pró-
prios guardas da Alfândega do Funchal. O con-
destável teria de ordenado 24$000 réis, haven-
do igual ordenado para a Nómina, logo 3$000
réis para cada homem, a que acrescentava o
ordenado de 12$000 que já recebiam como
guardas da Alfândega. Os guardas da Alfânde-
ga terão sido examinados como bombardeiros
pelo condestável (supõe­‑se assim que já teriam
alguma instrução rudimentar nesta área) e
aprovados pelo 5.º capitão do Funchal, Simão
Gonçalves da Câmara (1512­‑1580), ausente em
Lisboa nesta data e substituído por seu tio, Fran-
cisco Gonçalves da Câmara (c. 1510­‑c. 1586).
Mantém­‑se assim o espírito com que foi deter-
Fig. 1 – Trons, ou bombardas, montados em reparo
com mantelete, c. 1475; pormenor da tapeçaria do cerco
minada, em Lisboa, a construção da fortaleza
de Arzila (Colegiada de Pastrana, Espanha). do Funchal: proteção à Fazenda Régia, sendo o
B ombardeiros ¬ 471

nómina não deve ter chegado a ser implanta-


da, pois com o ataque francês de 1566 tudo foi
repensado e ampliado. E dizemos que esta nó-
mina não deve ter sido implantada porque os
vários cronistas referem a presença do condes-
tável Gonçalo Fernandes nas muralhas da for-
taleza durante o ataque, e não a de qualquer
bombardeiro ou guarda da alfândega. Quase
até aos finais do séc. xvi não conhecemos paga-
mentos a estes homens.
Esta época não deve ter, assim, reunido as
condições necessárias para a instituição da nó-
mina, e só com a implantação do regimento
de fortificação de 1572 e a vinda dos artilhei-
ros alemães com o conde de Lançarote volta-
rá a haver referências a este assunto. Assim, a
nomeação do bombardeiro Martim Fernandes
para o lugar de condestável de Gonçalo Fernan-
des, morto no ataque francês de 1566, só foi efe-
tuada 20 anos depois, a 27 de janeiro de 1586.
O assunto dos bombardeiros volta a constar
na documentação através de uma carta de Fili-
pe II, de junho de 1596, em que ordenava que
do dinheiro da fortificação se pagasse aos qua-
Fig. 2 – S.ta Bárbara, padroeira dos bombardeiros, 1680
tro capitães da Ilha, bem como aos três bom-
(Diocese do Funchal).
bardeiros. Desta forma, recebendo os capitães
80 mil réis cada e os bombardeiros 36 mil réis,
provimento de bombardeiros da fortaleza feito a despesa era de 428 mil réis cada ano, “pelo
com os guardas da Alfândega. No entanto, no que ainda fica muito para a fortificação”, como
mesmo ano de 1566, e no mesmo dia, 20 de mandou escrever o rei (ABM, Câmara Munici-
junho, chegou novo regimento para a Nómina pal do Funchal, Avulsos, mç. 2, docs. 236 e 237).
dos Bombardeiros do Funchal, também sobre Mas isto não seria bem verdade, pois que a situa-
a forma de alvará. Alargou­‑se o âmbito da Nó- ção económica das cortes de Lisboa e Madrid
mina para 12 bombardeiros, eleitos (é o termo então já não era brilhante, nem a da Alfândega
empregue) entre os moradores da cidade e os do Funchal, pelo que o governador mandou o
mais hábeis neste campo, que seriam depois sargento­‑mor, Roque Borges de Sousa (c. 1550­
instruídos pelo condestável, com barreira men- ‑1610), à Câmara para explicar a situação, com-
sal, ou seja, exercício de fogo real. O número parecendo à sessão de 23 de setembro de 1596,
oficial mantinha­‑se em oito, sendo os restan- na qual os vereadores, embora concordando
tes destinados à reserva. Os bombardeiros da com ele, informaram que «escreveriam a Sua
Nómina teriam um ordenado de 15$000 réis e Majestade sobre isso» (ABM, Câmara Municipal
gozariam dos privilégios dos bombardeiros da do Funchal, Vereações, liv. 1312, fl. 60v.). Não
corte, instituídos por D. Manuel em 1515. Não se resolvendo a situação, os vereadores voltaram
sendo possível comparar os dois alvarás, pois o a reunir­‑se no ano seguinte, por causa da ne-
de 1515 é o treslado do de Lisboa, pensa­‑se que cessidade de verbas, e o governador deslocou­‑se
os 12 bombardeiros eleitos, depois de exami- pessoalmente à Câmara a fim de pedir dinheiro
nados, iriam entrando nas vagas deixadas pelos para os assuntos da defesa, sem que nada se re-
oito guardas da Alfândega. Entretanto, esta solvesse mais uma vez.
472 ¬ B ombardeiros

Pelo Livro de Receita e Despesa da Fortifi- entanto, a 14 de dezembro de 1642, o rei de-
cação, dos finais do séc. xvi e inícios do xvii, terminava ao governador que fizesse “assentar
percebe­‑se as dificuldades com as verbas (ABM, na dita companhia uma praça de bombardei-
Câmara Municipal do Funchal, n/cat., Receita e ro, a João Amorim, com soldo diário de $050
Despesa da Fortificação. 1600 a 1611). A priorida- réis, entrando no número dos 100 homens de
de foi para a construção dos muros frente ao que se compunha a mesma companhia” (BNP,
mar, junto à fortaleza Nova, e as verbas que res- IGRAPRFF, fl. 11), voltando­‑se assim à desig-
taram quase se limitaram aos encargos fixos, nação de “bombardeiro”. Curiosamente, algu-
pagos em quartéis, onde se mencionam os três mas das nomeações nesta época aparecem re-
bombardeiros do Funchal: Miguel Fernandes, gistadas na chancelaria da Ordem de Cristo e
Estêvão Álvares e Gaspar Rodrigues, receben- sem correspondência nos registos da Fazenda
do 1$000 réis cada um. Estes pagamentos não do Funchal. Entre os nomeados, regista­‑se Ma-
tinham data fixa, podendo mesmo atrasar­‑se nuel Soares (Pinheiro), com carta de condestá-
um ano ou mais e, devido a outras dificulda- vel da fortaleza Nova da Praia, por certo a de S.
des, ser pagos anualmente, como aconteceu Filipe, da praça do Pelourinho, com data de 22
em 1604 com João Gonçalves, bombardeiro da de março; José Pires, para bombardeiro da vila
Calheta, ou com os três bombardeiros de Ma- de Machico, com carta de 23 de abril; António
chico, pela mesma data. As dificuldades eco- de Sousa Maciel, para condestável da ilha da
nómicas e a falta de liquidez contínua dos di- Madeira, com carta de 6 de julho; Pedro Ro-
nheiros da Alfândega do Funchal levaram a drigues, com carta da praça de bombardeiro
disciplinar os pagamentos dos bombardeiros da fortaleza de S. Lourenço, com data de 3 de
contratados, aumentando os ordenados pagos agosto, todos de 1641; e Domingos Francisco,
em géneros, mormente com vinho. Foi assim para artilheiro da mesma fortaleza, com carta
o caso dos bombardeiros Manuel Fernandes e de 9 de agosto de 1642.
Jerónimo Gonçalves de Sousa, tanoeiro, entre Nos anos seguintes, foram preenchidos e
1632 e 1634, que, dado o falecimento dos bom- atualizados os lugares e as situações dos bom-
bardeiros Afonseca Rodrigues, Fernandes Coe- bardeiros e artilheiros da Madeira. Por exem-
lho e Domingos Fernandes, o “Sábio”, este últi- plo, em 1647, a carta de bombardeiro da for-
mo carpinteiro, passaram a ser abonados com taleza de S. Lourenço de Simão Gonçalves
uma pipa de vinho em vez de com quantia de Florença, com 36$000 réis ao ano, refere que
3$000 réis, que até aí tinham recebido os bom- servia no lugar há 20 anos e que o mesmo es-
bardeiros anteriores. tava vago pelo falecimento de seu pai, António
A reformulação da situação dos bombardei- Gonçalves Florença; em 1648, o provimento de
ros, civis de profissões várias, que pontualmen- Inácio Luís, tanoeiro, do ofício de bombardei-
te exerciam essa função, apa- ro era dotado com 3$000 réis
rece a partir de 1640, com a ao ano, e a praça de bombar-
aclamação de D. João IV e a deiro de S. Lourenço, de Ma-
progressiva e lenta constitui- nuel de Lima, que entretan-
ção dos novos corpos milita- to tinha falecido, era a praça
res permanentes. A primeira ocupada por António Mendes,
ordem régia deu­‑se logo a 15 com 3$000 réis de ordenado.
de setembro de 1641, com a Em 1648, os artilheiros da Ma-
reforma da companhia do pre- deira ainda registavam na Câ-
sídio e com a indicação de que mara Municipal do Funchal
se provessem as fortalezas “dos
necessários artilheiros, para Fig. 3 – Bala, ou pelouro de ferro,
sécs. xvi/xviii, emparedada em
serem todos pagos à maneira S. Lourenço e recuperada nas obras de
das fortalezas do reino”. No 1992 (Museu Militar da Madeira).
B ombardeiros ¬ 473

os antigos privilégios dos bombardeiros por- então fora condestável dos bombardeiros do
tugueses outorgados por D. Manuel em 1515, Funchal.
sinal da vigência dos privilégios em questão e Nos inícios do séc. xviii, e.g., regista-se na “fé
do seu possível usufruto ao nível da organiza- de ofício” do artilheiro Inácio Miranda que era
ção camarária. natural da cidade do Funchal e que fora da for-
No último quartel do séc. xvii, funcionando taleza de S. Lourenço, servindo “nesta ilha da
a fortaleza do Ilhéu como registo do porto do Madeira em praça de bombardeiro e artilheiro
Funchal, com a obrigação de salvar os navios na fortaleza de N. S.ª da Conceição do Ilhéu, na
de guerra que entravam, esta teve de ser inde- do Pico e em S. Lourenço, 36 anos, 5 meses e 17
pendentemente artilhada, deixando assim de dias começados ao 1.º de janeiro do dito ano de
depender de S. Lourenço. Com o aumento do 1674”, em que fora provido posto de artilheiro
movimento do porto, as despesas em pólvora com um soldo de 3$000 réis pelo Gov. Diogo de
aumentaram, assistindo­‑se a um contínuo pe- Mendonça Furtado, “até 17 de junho de 1700,
dido de provisões desde 1675 até 1689. Perante dia antecedente ao do seu falecimento” (Ibid.,
este esforço suplementar pedido aos artilhei- liv. 971, fls. 22v­‑23). Esta “fé de ofício” fora pe-
ros do Ilhéu e de S. Lourenço, o rei concedeu­ dida pelo seu filho a 7 de dezembro de 1735.
‑lhes um suplemento de “meio tostão por dia, Alguns anos mais tarde, em 1738, houve tam-
na forma como são os soldados pagos do dito bém a “fé de ofício” de Benedito dos Ramos,
castelo de S. Lourenço” (ANTT, JPRFF, liv. 966, condestável do forte de N.a S.ra da Penha de
fls. 4­‑4v.). A designação de “bombardeiro” França. O condestável tinha servido 31 anos, 4
manteve­‑se até ao início do séc. xviii, como de- meses e 8 dias, dos quais 12 anos, 10 meses e
monstra a nomeação do Cap. António Nunes 16 dias como praça de artilheiro e o restante
como capitão da artilharia da ilha da Madei- tempo como condestável. Encontrava­‑se colo-
ra, em setembro de 1689, referindo­‑se que até cado no forte do Ilhéu desde 12 de outubro de

Fig. 4 – Trom,
ou bombarda,
montado em
reparo com
rodas, c. 1475;
pormenor da
tapeçaria do
cerco de Arzila
(Colegiada
de Pastrana,
Espanha).
474 ¬ B ombeiros

1707, provido com 3$000 réis de soldo, sendo


depois transferido como condestável para a
Penha de França. Nos anos seguintes, a desig-
nação «bombardeiro» desapareceu progressi-
vamente, integrando­‑se os artilheiros nas forças
regulares regionais, mas mantendo­‑se ambas as
designações até meados do séc. xviii.
No Mapa do Presídio Militar Pago da Dita Ilha;
do das Milícias da Ordenança Que a Guarnecem;
das Suas Fortalezas; Armas; Munições e Apetrecho,
enviado pelo Gov. Manuel de Saldanha de Al-
buquerque (1712­‑1771), em 1754, ainda sur-
gem referidos nas 16 fortalezas da capitania do
Funchal e nas 7 da de Machico 11 condestá-
veis, 24 artilheiros e 14 bombardeiros, como
“presídio pago da Ilha”, sendo assim a maioria
dos fortes, que o mapa não distingue, citando­
‑se tudo como “fortalezas com capitães, cabos
e redutos” (AHU, Madeira, doc. 48), preenchi-
dos por elementos das ordenanças. Em 1771,
no mapa dos encargos financeiros do pessoal
militar, para além dos diversos quadros e dos
condestáveis das fortalezas da Ilha, consta
ainda um total de 438$000 réis, corresponden- Fig. 1 – 100 Anos dos Bombeiros Municipais,
24 de Setembro de 1888-1988 (1988), de Rui Carita.
tes aos 50 réis por dia de todos os artilheiros
de S. Lourenço e do Ilhéu, e mais 262$800 de
acrescentamento. exigir­‑lhes mais, colocando­‑os em operações de
resgate de grande risco na montanha, de salva-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Avulsos, mç. 2,
docs. 236­‑237; Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, Tombo Velho, mento a náufragos e em situações de catástrofe,
tombos 1­‑3 e 7; Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Vereações, livs. 1312 e com as derrocadas, chuvas intensas e aluviões.
1313, fls. 40v. e 44; Ibid., Misericórdia do Funchal, liv. 710; Ibid., Receita e Despesa
da Fortificação, 1600 a 1611, n/ catalog.; AHTC, Erário Régio, liv. 3574; AHU, A configuração da ilha da Madeira, marca-
Madeira e Porto Santo, doc. 48; ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, liv. 36; da por escarpas muito íngremes, coloca diver-
Ibid., Corpo Cronológico, pt. ii, mç. 157, doc. 68; Ibid., Provedoria e Junta da
Real Fazenda do Funchal, livs. 964, 965-966, 968, 971 e 980; BNP, Reservados, sas situações de risco para as populações que
cód. 8391, Index Geral do Registo da Antiga Provedoria da Real Fazenda; assentaram casa à beira do abismo. Estas con-
impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vols. i e iii, Funchal, Secretaria
Regional da Educação, 1999 e 1991; Id., Arquitectura Militar na Madeira.
dições particulares da Ilha obrigam a um es-
Séculos XV a XVII, Lisboa/Funchal, s.n., 1998; Fortaleza-Palácio de São Lourenço, forço redobrado por parte destes profissionais.
catálogo da exposição permanente da Fortaleza­‑Palácio de S. Lourenço,
Funchal/Lisboa, Zona Militar da Madeira, 1994; FRUTUOSO, Gaspar, Livro
Reforçam­‑se os cuidados relativos aos perigos
Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta da orografia traiçoeira, por força do número
Delgada, 1968; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense
do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.
de visitantes, que aproveitam os momentos
de lazer para os passeios a pé nas levadas e na
Rui Carita
montanha, e as missões de resgate, de mortos
ou vivos, locais ou turistas, que caem nos di-
versos precipícios sobranceiros aos caminhos
Bombeiros florestais ou nas levadas, o que também acon-
O combate aos incêndios, no meio rural ou tece com frequência. Esta diversidade de servi-
urbano, é o principal objetivo da sua ação. ços obriga ao apetrechamento de material e de
Os bombeiros surgiram com esta missão, con- viaturas, que devem estar de acordo com as exi-
tudo, ao longo do tempo, a sociedade passou a gências da sociedade atual. As ambulâncias e
B ombeiros ¬ 475

automacas prestam um inestimável serviço de através dele que o europeu purificou a terra
transporte de doentes, enquanto os carros de e a ilha, afugentou o mal, abriu clareiras para
desencarceramento atuam, com frequência, assentar morada e lançar as sementes à terra.
nos desastres de viação, uma das principais tra- Alguns textos dizem­‑nos que este primeiro in-
gédias dos dias de hoje. cêndio durou sete anos, mas nada há que possa
Também apelidados de “soldados da paz”, em abonar em favor de tamanha durabilidade das
oposição aos que intervêm apenas no campo chamas. Na hipótese de o fogo ter ardido sete
de batalha, os bombeiros são uma presença anos, sem ter em conta a época das chuvas, não
imprescindível para a sociedade, como garan- teria sobrado floresta e as madeiras não assumi-
te da nossa salvaguarda em face da ameaça de riam o valor económico que detiveram nos pri-
incêndios, catástrofes e de situações que acon- meiros anos de ocupação e exploração econó-
tecem cada vez mais no quotidiano. Eles são mica. A imagem do incêndio duradouro, que
a nossa “boia de salvação” onde o perigo está afugentou os espíritos do mal e enriqueceu a
sempre à espreita. Por tudo isto, e pela forma terra de cinzas para a primeira lavra, deve ser
de intervenção desinteressada, são merece- entendida como uma figura de estilo, com o
dores do seu reconhecimento e valorização. fim de evidenciar a dimensão e o efeito aterra-
Os bombeiros são o exemplo da dedicação ao dor resultante das primeiras fogueiras. O fogo,
outro. Para eles, o combate está na defesa do porém, assumiu um papel benéfico, tendo espa-
homem e dos seus haveres contra os efeitos de- ço livre para avançar no terreno. Foi assim que
voradores do fogo e o impacto das catástrofes, se abriu caminho à humanização do espaço.
atuando sempre na linha da frente de combate As queimadas eram uma prática comum dos
aos incêndios, no resgate de mortos e feridos, europeus no processo de arroteamento das
no socorro a náufragos e no apoio em caso terras. É daí que vem, certamente, o nome das
de catástrofe natural, quer sejam voluntários, Queimadas, em Santana. E na Ilha, não obs-
quer sejam profissionais. tante os efeitos do primeiro fogo, o agricultor
Os sécs. xix e xx madeirenses foram mar- não abandonou esta prática. Em 1466, passa-
cados pelas aluviões que devastaram a cidade dos 46 anos sobre o início da ocupação, ainda
do Funchal e demais populações ribeirinhas, se faziam queimadas para abrir novas áreas de
sinónimo de destruição, tragédia e muito tra- cultivo, contudo, o duque D. Fernando impe-
balho para voluntários e, depois, no séc. xx, diu tal prática, ordenando que este serviço pas-
bombeiros. A partir de 1929, a intervenção sasse a ser feito a machado. Foi também esta
dos bombeiros faz­‑se notar com as as aluviões e preocupação que levou a população rural, a
cheias que, sucessivamente, ocorreram na Ilha viver maioritariamente em casas de palha, a
entre 1901 e 2010. Por outro lado, a História separar o espaço da cozinha do resto da casa.
assinala, de forma evidente, os efeitos devasta- O mesmo infante recomendava, em 1482, ao
dores do fogo. A sua descoberta pelo Homem Senado do Funchal o cumprimento da proi-
revolucionou o modo de vida e veio a colocá­ bição de “se tirarem abelheiras com fogo na
‑lo perante um novo perigo e a necessidade de serra” (MELO, 1973, 242­‑244), tendo em conta
o combater. O poder do fogo foi, desde muito a destruição dos incêndios que daí poderiam
cedo, ritualizado, e a ele se liga uma persisten- resultar. A situação continuou, e, em 1493,
te tradição, de que são exemplo as fogueiras D. Manuel acusava a vereação do Funchal de
de S. João, assumindo uma dimensão mágica e desleixo no cumprimento dos regimentos
dominando o imaginário humano. O fogo as- sobre os fogos. Contudo, a teimosia era mais
sume, deste modo, um papel fundamental na forte que a prevenção, pelo que, ainda hoje,
história da ilha da Madeira. muitos dos incêndios que acontecem por toda
Os primórdios da ocupação da Ilha associam­ a Ilha são fruto das queimadas agrícolas.
‑se ao fogo, e foi através do seu poder que ela Outro foco e origem dos incêndios na flo-
ofereceu aos europeus o açúcar e o vinho. Foi resta era resultado da ação dos carvoeiros.
476 ¬ B ombeiros

Fig. 2 – Grande incêndio na área de São Gonçalo e Palheiro Ferreiro, a 19 de julho de 2012 (fotografia de Virgílio Gomes).

Estes, por força da necessidade de carvão para de entender que o perigo estava sempre à es-
venderem na cidade, acendiam fogueiras que preita. Desde 1461 que se nota especial aten-
depois escapavam ao seu controlo. A primei- ção à defesa do Funchal contra incêndios.
ra vítima terá sido o próprio João Gonçal- Assim, determina­‑se que os engenhos sejam
ves Zarco, traído por uma mudança de vento cobertos de telha e recomenda­‑se o mesmo
que fez com que o fogo atingisse a sua casa, para as casas da rua dos Mercadores. Mas em
refugiando­‑se, com a família, nas águas do 1493 este trabalho ainda não tinha sido feito,
oceano. Os municípios consideravam­os car- de forma que as casas de cobertura de palha
voeiros quase sempre os responsáveis pelos se arrastam no tempo, sendo interminável,
fogos que se ateavam na serra. Um deles, em desde o séc. xv, o conjunto de regulamentos,
1919, causou o maior incêndio de que há me- ordenações e posturas sobre o assunto. A 9
mória na Ilha, depois do primeiro que abriu a de março de 1490, o donatário recomendava:
porta aos europeus no séc. xv. “tanto que se viir fogo que se presuma que
A imagem aterrorizadora e destrutiva do es em lugar de dapno da povoaçam que mays
fogo obrigou as autoridades a definir medi- perto estever repicaram logo e yram la o juyz
das no sentido de controlar as fogueiras, bem e o allcayde e seus homens e alguüs outros
como os materiais de construção das casas que pareça que abastaram pera o apagar [...]
dos diversos aglomerados populacionais. e achando qualquer pesoa ou pesoas culpadas
Esta preocupação incidia mais nos núcleos no dito caso ou emdicios por que se presu-
de povoamento, cujas construções eram fei- ma ellas o poerem os premderam logo e [...]
tas de materiais inflamáveis, que, desse modo, se dem grandes pennas aos sobreditos asy nos
eram focos fáceis de incêndios. Se tivermos corpos como nas fazendas segundo a calidade
em conta que as primeiras casas construídas das pesoas e o dapno que ho dito foguo fezer”
na Ilha eram de palha e madeira, fácil será (MELO, 1972, 242).
B ombeiros ¬ 477

Fig. 3 – Grande incêndio no Funchal em agosto de 2016, Monte (arquivo particular).

A luta incessante das autoridades madeiren- em memória do sucedido, ficaram conhecidas


ses poderá resumir­‑se a duas situações: preser- como as ruas da Queimada de Cima e de Baixo.
vação daquilo que existe, através de medidas Antes disso, em 1566, a invasão dos franceses,
limitativas do abate de árvores, e recuperação que saquearam impunemente a cidade, causou
desse coberto florestal, através de uma polí- diversos incêndios em edifícios, nomeadamen-
tica de reflorestação das zonas ermas ou em te igrejas, provocados de forma intencional.
abate. Neste contexto, assumem um papel Atitude idêntica tinham os corsários argelinos
destacado em cada município o alcaide e o quando, a partir do séc. xvii, atacavam a ilha
meirinho da serra. do Porto Santo, chegando o fogo aos templos e
Mas a floresta tinha um papel de grande re- aos espaços públicos onde se encontrava a do-
levo na economia da Ilha. Os habitantes come- cumentação. Semelhante postura, de apagar
çavam por limpar o terreno através de um in- a memória documental, desta feita tributária,
cêndio, após o que lançavam a semente à terra. pelo fogo, acontece no séc. xx, com as revoltas
A sucessão das queimadas levou a Coroa a pro- de 1936 em Machico e na Ribeira Brava, suce-
curar obstar a esta situação, mas, ainda assim, dendo o mesmo, em 1948, em São Vicente.
ficaram para a História os grandes incêndios Dominado num primeiro momento pelas
de 1807, 1910 e 1919, todos provocados por casas palhaças, o Funchal poderá ser conside-
mão humana. rado um verdadeiro barril de pólvora. Deste
Já em 1593 está documentado um fogo do modo, no sentido de conseguir a salvaguarda
céu, que causou elevados danos na cidade e no dos haveres e a segurança dos funchalenses,
manto florestal. Desta situação resultou a de- a Coroa e o município apostaram na cober-
signação das ruas das Queimadas, no Funchal, tura das casas com telha. As posturas muni-
onde se queimaram muitas casas: o fogo alas- cipais evidenciaram esta insistente preocupa-
trou aos quarteirões acima da Sé, cujas ruas, ção das autoridades, estabelecendo medidas
478 ¬ B ombeiros

de controlo das fogueiras feitas no campo e de vinho do próprio e de outros comercian-


penas severas para os infratores. O combate tes, foi palco das chamas, acudindo os Bom-
aos incêndios era uma preocupação do mu- beiros Voluntários do Funchal com duas bom-
nicípio, que, por todos os meios, condenava bas e toda a corporação. Um fogo como este,
os prevaricadores. Em 1472, João Rodrigues de grandes proporções, mobilizava sempre a
de Santa Cruz foi condenado por fogo posto corporação de bombeiros, que contava com o
nas serras. A fiscalização estava a cargo do juiz apoio de uma força militar da polícia. As au-
dos danos e meirinho da serra, cargo criado toridades e uma multidão de curiosos eram
em 1480. também uma presença assídua nestes trágicos
O desenvolvimento económico da Ilha não eventos. O mesmo sucedeu pelas 23.50 h do
prescindiu do fogo, assumindo este, aliás, um dia 25 de novembro de 1916, quando o fogo
papel fundamental nos seus momentos áureos. se descontrolou na casa de destilação da fábri-
Nos sécs. xv e xvi, com o açúcar, tivemos a pro- ca Hinton & Sons. O combate foi feito com a
liferação das fornalhas e, mais tarde, desde fi- bomba do próprio engenho e com outras dos
nais do séc. xviii, das estufas para cozer os vi- bombeiros, que prontamente ocorreram.
nhos. A cidade estava assim cercada pelo fogo, O quotidiano da urbe nunca prescindiu do
que não raras vezes era um perigo para pessoas uso do fogo, tão necessário para a alimenta-
e haveres. No decurso do séc. xix, são constan- ção como para algumas indústrias, onde se in-
tes os incêndios resultantes das fornalhas, das cluem, entre outras, as padarias, as forjas, as
estufas de vinho e doutras situações. O facto de oficinas de tanoaria e as olarias. O fogo está
estas proliferarem pela cidade anexas às lojas presente em todo o lado e o perigo espreita
de vinho gerou alguma apreensão. Contra isto a qualquer momento, não perdoando qual-
manifestaram­‑se os mercadores de vinho, ale- quer distração. O processo de urbanização e
gando os poucos casos acontecidos. Em 1803, de afirmação das cidades fez com que o peri-
os comerciantes contrapunham à pretensão go do fogo fosse permanente. Contudo, tar-
de encerrar as estufas da cidade o seguinte: dou muito até que se definisse uma política
“O fundamento com que se impugna a exis- de extinção dos fogos. É certo que na Antigui-
tência das estufas na Cidade, é o do perigo dos dade existiam as vigias noturnas para alertar
incêndios, e o do dano terrível, que causam os e combater o fogo. Na Madeira, temos, desde
fumos do carvão à saúde dos povos. [...] A pri- o início, funcionários nomeados pelo muni-
meira estufa levantada nesta ilha, se fabricou cípio encarregues de vigiar as terras e alertar
no ano de 1794 e 1795, e depois dela, se levan- para a presença do fogo. Quando este apare-
taram sucessivamente muitas outras, que todas cia, dava­‑se o alerta e todos eram chamados a
têm trabalhado até os últimos meses passados. combatê­‑lo. Em 1925, são referenciadas qua-
Em todo o decurso de tão longo, e dilatado tro estações de bombeiros: a central, na rua
tempo, assim mesmo sendo tantas, só se tem 5 de Outubro; a de S. Paulo, no largo Ribeiro
sabido de 3 ligeiras ameaças de fogo, o qual Real; a do Teatro; e a das Torneiras, na rua
instantaneamente se apagou, e extinguia, sem Bela de São Tiago.
contudo nem os vizinhos, nem o proprietário O combate aos incêndios foi, durante muito
da estufa, sofrerem mais consequente prejuí- tempo, uma tarefa comum a que estavam obri-
zo” (VIEIRA, 2003, 238­‑239). De maneira que, gados todos os cidadãos, que acudiam ao repi-
a 7 de maio de 1804, foram novamente per- car dos sinos do campanário da igreja. Assim
mitidas as estufas dentro e fora da cidade do o determinava um regimento de 1480 onde se
Funchal. dizia que, após o repicar dos sinos, deveriam
A história da Madeira regista inúmeros in- acudir o juiz, o alcaide e homens do lugar. En-
cêndios. Pelas 4 h da madrugada do dia 15 de quanto os últimos combatiam o fogo, os pri-
dezembro de 1898, a estufa do conde de Cana- meiros averiguavam as causas e investigavam a
vial, à rua 5 de Junho, onde coziam 300 pipas autoria. Os principais meios de alarme e sinais
B ombeiros ¬ 479

de manobra eram dados pelo sino da igreja, si- considerado ineficaz perante a constância e
renes e foguetes. No caso do Funchal, havia­‑se proporções dos incêndios que se atearam na
estabelecido um sistema de sinais para avisar a cidade. A imprensa, ao mesmo tempo que re-
deflagração de um incêndio, através dos sinos latava o sucedido, clamava por medidas no sen-
da catedral. Para as freguesias da cidade, havia tido de o município constituir uma companhia
um conjunto de badaladas que avisava da exis- de bombeiros, como era sua atribuição. A 19
tência de fogo, uso que desapareceu em finais de agosto de 1886, o administrador do conce-
do séc. xix. lho, solicitado pelo governador civil, interpe-
Desta forma, os incêndios são uma presen- lou a vereação sobre a necessidade de organi-
ça constante na história da Madeira, ficando zar um serviço de incêndios. Foi assim que, em
registada a memória daqueles que mais se evi- 1898, surgiu a Associação dos Bombeiros Vo-
denciaram. Até ao aparecimento das primei- luntários do Funchal.
ras corporações de bombeiros, em finais do O alargamento do serviço de bombeiros aos
séc. xix, devemos registar incêndios todos os demais municípios não se cumpriu de acordo
anos a partir de 1883, com frequência no es- com as determinações oficiais. O primeiro mu-
paço urbano, em oficinas, armazéns, padarias, nicípio fora do Funchal a dispor de um serviço
lojas, mercearias e igrejas, e outros que defla- de bombeiros foi o de Santa Cruz, em 1932,
graram nas serras em 1419 e em 1919, 1946, por iniciativa de Joaquim Vasconcelos de Gou-
1949, 1951 e 1953. Estes últimos aconteceram veia. Machico só teve igual serviço em 1948,
com alguma irregularidade até à déc. de 90 do
séc. xx, tornando­‑se, a partir de então, uma
presença constante durante o período estival.
A definição de medidas para o combate aos
incêndios em Portugal está documentada a
partir de 1395, altura em que D. João I atri-
bui esta função aos municípios, compromis-
so que se manteve até à revolução liberal sob
o arbítrio destes. Pelo decreto de 16 de maio
de 1832 determinou­‑se que esta passaria a ser
uma função a cargo do provedor do concelho,
ficando mais tarde, de acordo com o código
administrativo de 1842, o serviço de preven-
ção de incêndios, inundações e naufrágios de-
pendente do administrador do concelho. Fi-
nalmente, em 1867, os municípios passaram
as competências respeitantes ao socorro para
a extinção dos incêndios e inundações. Foi de
acordo com esta orientação que, na Câmara,
um dos vereadores passou a assumir o pelouro
dos incêndios, sendo o primeiro no Funchal,
o Dr. José Joaquim de Freitas. Nesta época,
o serviço de incêndios era ainda incipiente,
contudo, estavam disponíveis várias bombas
de particulares e de instituições que acudiam
em caso de incêndio, sendo de destacar as da
Casa Blandy, do engenho do Hinton e da Al-
fândega. O município era também detentor Fig. 4 – Inauguração dos Serviços de Incêndios do Funchal,
de uma bomba de incêndio, mas o serviço era a 7 de abril de 1889 (ABM).
480 ¬ B ombeiros

com a primeira bomba portátil, uma oferta nunca oferecer as condições adequadas de
do Conselho Nacional de Incêndios. Depois apoio à navegação, sendo que até à construção
disso, só o município da Ponta de Sol montou, do porto muitos foram os naufrágios de em-
em 1960, o serviço de bombeiros voluntários. barcações que, a partir de finais do séc. xix,
Em 1968, o município de São Vicente aponta passaram a contar com o serviço de socorros
a necessidade de criação de uma companhia a náufragos dos bombeiros. A partir de 1926,
de bombeiros, mas a falta de meios financei- esta missão foi atribuída à Associação de Bom-
ros impede­‑o de concretizar o desejo, de forma beiros Voluntários Madeirenses. O serviço dos
que o concelho só terá uma companhia de bombeiros alargou­‑se, também, ao apoio aos
bombeiros em 1994. A cobertura integral dos feridos de manifestações e revoltas, como suce-
municípios da Ilha apenas ficaria completa nos deu entre abril e maio de 1931, com a célebre
finais do séc. xx. Revolta da Madeira.
O serviço a prestar pelos bombeiros não se Até ao aparecimento da imprensa madeiren-
resumia apenas a apagar incêndios, incidindo se, no séc. xix, com o primeiro jornal, o Patrio-
também no socorro a náufragos e no apoio em ta Funchalense, publicado a 1 de julho de 1821,
caso de calamidade. As aluviões que fustigavam não existe um registo completo dos incêndios
a Ilha na época invernal foram um dos princi- que deflagraram no espaço urbanizado e flo-
pais motivos e preocupações, bem como uma restado. No largo período de mais de três sé-
evidência, do prestimoso serviço dos bombei- culos, ficou apenas o registo de dois grandes
ros, a partir de finais do séc. xix. Os sécs. xix incêndios, já referidos: o primeiro, para abrir
e xx foram pautados por diversas aluviões que caminho aos povoados, seguindo­‑se o fogo do
espalharam o terror e a morte em toda a Ilha, céu, em 1593. O séc. xvii revela­‑nos os incên-
mas de forma especial nas localidades assen- dios no palácio de S. Lourenço, em 1699, e no
tes no leito das ribeiras. Por outro lado, deve- paço episcopal. Para o séc. xviii, ficou apenas
mos ter em conta o facto de a baía do Funchal o registo do incêndio no Teatro Grande, que

Fig. 5 – Carro dos Serviços de Incêndios da Câmara Municipal do Funchal, c. 1890 (ABM, Câmara Municipal do Funchal,
Bombeiros Municipais do Funchal, 2627, 3).
B ombeiros ¬ 481

privou os madeirenses da representação tea- à revolta popular: todos os cidadãos devem


tral em finais da centúria. A partir do séc. xix, protestar contra as autoridades competentes
a imprensa foi porta­‑voz dos difusos incên- pela negligência com que tratam a segurança
dios que deflagraram na Ilha, sendo possível e propriedade destes. Esta reclamação foi ouvi-
acompanhar os registos daqueles que assumi- da pela vereação, que, em 1837, adquire a pri-
ram maior dimensão e dano, juntamente com meira bomba contra incêndios, e, no sentido
aqueles de que apenas ficou o temor. Estas de disciplinar estes serviços, é referido que, em
notícias eram acompanhadas de comentários 1856, o governador civil, o Brig. António Rogé-
apelando a medidas por parte das autoridades rio Gromicho Couceiro, pretendia criar uma
municipais. companhia de bombeiros.
A 15 de setembro de 1821, o Patriota Funcha- Os acontecimentos trágicos da déc. de 70 do
lense, aproveitando a oportunidade do relato séc. xix tornaram inevitável a criação da pri-
de um incêndio, comenta a atitude de deslei- meira companhia de bombeiros voluntários.
xo das autoridades. Com efeito, a 9 do mesmo A 12 de maio de 1876, uma forte tempestade
mês, incendiara­‑se uma casa na rua do Colé- fez naufragar a escuna inglesa Asprey, sendo
gio, sendo o alerta dado pelo toque dos sinos, complicado o socorro prestado por falta de um
a que acudiu toda a população. Tudo funcio- serviço de socorro a náufragos. A 20 de agosto
nou como previsto, menos as duas bombas de de 1878, um pavoroso incêndio deflagrou na
apagar os incêndios, ditas “da nação” (VIEI- firma J. Payne & Son. Acudiram as cinco bom-
RA, 2001, 26). A solução passava quase sem- bas existentes – as do município, as de Seve-
pre pela prontidão dos populares e, na cida- riano Ferraz, as de Henrique Camacho e as de
de, pelo apoio dado pelas bombas dos ingleses, Hinton – e muitos voluntários, mais tarde lou-
nomeadamente as da Casa Newton Gordon & vados pelo governador. Mais uma vez, foi notí-
Cia. A situação repete­‑se noutro incêndio noti- cia a falta de equipamento e de pessoal instruí-
ciado a 20 de dezembro de 1821, apelando­‑se do para este serviço. O governador civil, que

Fig. 6 – Inauguração da bomba a vapor no Jardim Municipal,


1900 (ABM).
482 ¬ B ombeiros

havia presenciado o facto, decidiu assim, a 23 A Companhia dos Bombeiros Voluntários


de agosto, nomear uma comissão para proce- do Funchal foi fundada em sessão camarária
der à instalação de uma companhia de bombei- de 24 de setembro de 1888 e o seu regulamen-
ros voluntários, porém, demorou muito tempo to aprovado em sessão de 4 de abril de 1889.
até que se procedesse à sua instalação. Em Neste mesmo ano, a corporação criou uma
1881, referia a imprensa o empenho na cria- banda filarmónica. O alvará de 25 de novem-
ção de duas companhias, sendo uma de muni- bro de 1926 aprova os estatutos desta corpora-
cipais e a outra de voluntários. Entretanto, os ção. Os Bombeiros Voluntários tinham como
incêndios sucediam­‑se com uma frequência as- finalidade “prestar socorros aos habitantes
sustadora. Contudo, é só em 1883 que a Câma- do Funchal e arredores, por ocasião de in-
ra estabelece um salário mensal de 6$000 réis cêndios ou de outras calamidades, tais como:
para Manuel de Gouveia Caramujo, capataz da inundações, desabamentos, terramotos, e ou-
bomba de incêndio. tras a que possam ser aplicados os elementos
De acordo com o código administrativo, de que a Associação dispuser” (VIEIRA, 2001,
competia aos municípios organizar os serviços 109). A Associação era composta por quatro
de extinção dos incêndios. Foi no seguimen- classes de sócios: ativos, auxiliares, honorários
to desta medida que o município do Funchal e protetores. Foi o incêndio ocorrido a 20 de
pôde dispor, em 1887, de um vereador com agosto de 1878 na firma J. Payne & San, na
o pelouro dos incêndios. O Dr. José Joaquim rua da Alfândega, que motivou a fundação da
de Freitas, o primeiro a assumir tais funções, primeira guarnição de bombeiros. De facto,
apresentou à vereação do dia 10 de março de passados três dias, a 23 de agosto de 1878, o
1887 um projeto de regulamento para este governador civil, Afonso de Castro, nomeou
serviço. Todavia, só no ano imediato se avan- uma comissão para a organização de uma
çou com a desejada companhia de bombeiros. Companhia de Bombeiros Voluntários, com-
A 26 de julho, a vereação convidou todos os posta por vários cidadãos. Em sessão de 30 de
funchalenses a alistarem­‑se como candidatos agosto de 1883, a Câmara Municipal do Fun-
a bombeiros voluntários. Finalmente, a 24 de chal deliberou comprar em Inglaterra uma es-
setembro, a Câmara, presidida pelo visconde cada e uma mangueira.
de Ribeiro Real, aprovou o regulamento e pro- Só em fevereiro de 1889 os Bombeiros Volun-
cedeu à instalação da Companhia de Bombei- tários tiveram o seu primeiro uniforme. A pri-
ros Voluntários do Funchal. A nova corporação meira ordem de serviço registada em livro data
teve comando a partir de 17 de fevereiro de de 18 de março de 1889 e refere­‑se ao estabe-
1889, sendo 1.º e 2.º comandantes, respetiva- lecimento da preferência de comando dos pri-
mente, António Augusto Nunes de Paiva e Al- meiros e segundos patrões, bem como à cons-
fredo César de Oliveira e Coito. A instalação da tituição das guarnições das diversas máquinas:
corporação e treino dos bombeiros aconteceu carro de material n.º 1 e bombas n.ºs 1, 2 e 3.
nos primeiros meses de 1889, sendo a primeira Para instruir os primeiros bombeiros, deslocou­
prova de fogo o incêndio de 27 de março no ‑se até à Madeira Luís da Terra Pereira Viana,
Hotel Ride Carmo. As três bombas da corpora- bombeiro voluntário da cidade do Porto, que,
ção estavam distribuídas pela cidade. De acor- juntamente com o governador civil, D. João de
do com o mesmo espírito, surge a 2 de abril Alarcão Velasques Osório, e o major do Exér-
de 1889 a primeira companhia de seguros con- cito em comissão nas Obras Públicas, Randolfo
tra incêndios, designada Alliança Madeirense, R. Correia Mendes, foi nomeado comandante
junto da intervenção de destacadas personali- honorário a 4 de abril de 1889. A Companhia
dades, como o Dr. Manuel José Vieira e José dos Bombeiros Voluntários também muito
Leite Monteiro. A segunda companhia madei- deveu ao empenho do vereador da Câmara do
rense, a Garantia Funchalense, surge a 6 de ja- Funchal, Dr. José Joaquim de Freitas, seu sócio
neiro de 1907. fundador e honorário.
B ombeiros ¬ 483

A serviçal e obstinada atuação dos Bombei-


ros Voluntários tem merecido distinções e lou-
vores por parte das diversas instituições. Assim,
a Câmara do Funchal, em sessão de 15 de de-
zembro de 1898, tece um elogio e louvor pela
forma como atuara no incêndio que deflagrou
nessa madrugada nas estufas do conde de Ca-
navial; a Associação é agraciada com o grau de
oficial da Ordem Militar de Cristo, a 5 de ou-
tubro de 1928; e o decreto­‑lei de 6 de novem-
bro de 1928 considera­‑a instituição de utilida-
de pública, atendendo aos relevantes serviços
prestados à sociedade.
Ao longo do tempo, sucederam­‑se os incên-
dios em casas particulares, edifícios públicos,
no hospital e nos engenhos de açúcar. Perante
esta situação, foi necessário continuar a apos-
tar na melhoria do serviço, através da aqui-
sição de novo equipamento. As autoridades
socorreram­‑se, então, de um adicional de 5 %
lançado sobre todos os impostos municipais
cobrados pela Alfândega, assim como de dádi-
vas particulares.
Os incêndios de 1926, num prédio da Casa
Blandy e no estabelecimento de géneros ali-
Fig. 7 – Vicente Gomes da Silva Júnior fardado de bombeiro
mentares por atacado de José Paulo Fernan- municipal, 9 de abril de 1889 (ABM, Photographia Vicente, sem
des, levaram a que o Diário de Notícias (DN) número).
reclamasse, a 10 de setembro desse ano, um
melhor serviço: “Não temos uma corporação conta das motivações: “Em virtude dos suces-
de bombeiros que pela sua organização consti- sos a que deu origem o último incêndio ocor-
tua uma garantia séria contra os riscos do fogo rido nesta cidade […], um grupo de conduto-
[...]. Precisamos ter um corpo de bombeiros res profissionais de automóveis resolveu lançar
que represente para toda a população do Fun- as bases para uma Corporação de Bombeiros
chal um penhor de garantia contra os riscos Voluntários com sede nesta cidade” (Id., Ibid.,
de incêndios” (VIEIRA, 2001, 40). O combate 41). A 5 de novembro de 1926, no dia imedia-
aos incêndios era considerado algo desastroso, to à Assembleia Geral, os proponentes da ideia
pelo que tudo poderia acontecer. Na verdade, comunicaram à Câmara a sua criação, esperan-
tudo aconteceu com o incêndio num prédio à do poder contar com o seu apoio para o ar-
rua do Phelps, em meados de outubro de 1926. ranque do projeto. O presidente da comissão
O grito de reclamação do DN ecoou junto das administrativa da Câmara, o Cor. Luís Correia
autoridades, conduzindo à necessária infor- Acciaiuoli de Menezes, colocou à disposição o
mação do serviço de incêndios. Deste modo, material da Câmara para os treinos. Os Estatu-
um grupo chefiado pelo Maj. João Carlos de tos foram aprovados pelo governador civil, a 24
Vasconcelos, o primeiro comandante, criou os de novembro 1926, data de oficialização da As-
Bombeiros Voluntários Madeirenses. Em carta sociação e marco oficial para a evocação anual.
publicada no mesmo jornal, os iniciadores A preparação dos bombeiros foi também tida
do projeto (Jaime da Gama, António Alberto em conta pelos dirigentes dos “Voluntários” e
Melim e Remígio Francisco de Araújo) davam pelo município. Deste modo, em novembro de
484 ¬ B ombeiros

Este clamor levou a uma onda de solidariedade


que permitiu a aquisição de um novo pronto­
‑socorro, benzido em cerimónia pública que
decorreu no palácio de S. Lourenço, a 28 de
maio de 1935. A geminação, em 1986, com os
voluntários da cidade alemã de Leichelingen,
por iniciativa do Com. Werdert Widen, contri-
buiu para o salto qualitativo da corporação.
Na preparação dos bombeiros, ficou célebre
o “esqueleto municipal”, situado no Campo
da Barca, no local onde depois se ergueu o
edifício do Governo Regional da Madeira.
Esta infraestrutura de apoio à formação dos
bombeiros foi considerada um marco para as
diversas gerações de bombeiros do séc. xx.
Também para a História ficou o exercício rea-
lizado pela Secção de Socorros a Náufragos,
a 30 de abril de 1961, entre a Qt. Vigia e a
Pontinha.
A publicação O Bombeiro, uma iniciativa de
Alberto Malho e Vasco Florentino Campos,
foi o porta­‑voz na Ilha dos interesses e ideais
dos soldados da paz madeirenses. Em 1961, os
seus promotores tiveram a ideia de fundar um
museu, com o apoio da Câmara Municipal do
Fig. 8 – Diogo Sarsfield, 30 de abril de 1889 (ABM, Funchal, o qual só viria a ser criado em 1967
Photographia Vicente, chapa n.º 4958).
por Vasco Florentino Campos, tendo inaugura-
do a 21 de maio desse ano. Uma das raridades
1930, deslocou­‑se ao Funchal António Rodri- aí expostas era a primeira bomba que chegou à
gues, chefe­‑instrutor dos Bombeiros Munici- Ilha em 1889 e que, desde 1932, estava ao servi-
pais de Lisboa. O exercício final, que decorreu ço dos bombeiros de Santa Cruz. O museu foi
a 21 de dezembro, contou com a presença das posteriormente desativado, sendo os materiais
autoridades. A 3 de julho de 1931, os “Volun- depositados em armazém.
tários” receberam a primeira motobomba, que
trabalhava com duas ampulhetas com um jato
de 30 a 35 cm, chegando este aos 45 m de altu-
Impostos
ra apenas com uma ampulheta. O imposto para o serviço de incêndios, tal
O reconhecimento dos serviços prestados como o seu nome indica, era um imposto de-
pelos voluntários não merecia a necessária re- dicado a financiar os serviços de incêndios.
tribuição financeira para atender às inadiáveis Criado pelo decreto­‑lei n.º 288/79, de 9 de
despesas da corporação. Deste modo, em junho dezembro de 1979, consistia numa taxa sobre
de 1934, chegou­‑se ao cúmulo de a corporação os prémios de seguro de incêndios, transpor-
não dispor de dinheiro para pagar o telefone. te de mercadorias pesadas e seguros agrícolas
Veja­‑se, a este respeito, o protesto de Alfredo e pecuários para o usufruto do Serviço Nacio-
Camacho no DN: “Há que respeitar aqueles nal de Bombeiros (SNB), passando a integrar
que num alevantado gesto de abnegação sacri- o antigo imposto para o serviço de incêndios,
ficam a vida pela vida do próximo e, dia e noite, criado em 1949. Pela lei n.º 101/89, de 29 de
velam pelos nossos interesses” (Id., Ibid., 45). dezembro de 1989, o governo foi autorizado
B ombeiros ¬ 485

0,5 % e 13 %. A parte lançada e cobrada, di-


retamente, pela Câmara incidia, mediante
a taxa de $50 por cada $1000, sobre o valor
matricial dos prédios urbanos não seguros.
Este imposto foi abolido pelo art. 42.º da lei
n.º 2/88, de 26 de janeiro de 1988, passando a
estar integrado no imposto para o SNB.

Proteção civil
A proteção civil começa na déc. de 30 do
séc. xx, altura em que surgiu, em Paris, a Orga-
nização Internacional de Proteção Civil. A sua
consolidação dá­‑se em 1935, com um conjun-
to de medidas implementadas pela Sociedade
das Nações, e depois, em 1950, com o apareci-
mento da Associação de Proteção Civil, que em
1958 ganha dimensão internacional. Em Por-
tugal, a sua organização torna­‑se uma realida-
de após a Segunda Guerra Mundial, pelo que
desde 1958 existe a Organização Nacional da
Defesa Civil do Território.
A partir de 1970, a chamada Defesa Civil dá
lugar à Proteção Civil, o que acontece na Ma-
deira a 30 de junho de 2009, passando a orga-
Fig. 9 – O Bombeiro Madeirense e a Sua História (1963),
de Vasco F. Campos e Alberto Malho.
nismo de cúpula que superintende todos os
serviços de proteção e socorro aos cidadãos
nas diversas vertentes. Esta situação atual re-
a legislar no sentido do alargamento da base sulta da evolução correspondente do serviço
tributável do imposto para o SNB, de forma a criado a 17 de fevereiro de 1982, conheci-
harmonizar a respetiva base tributável, com a do como Serviço Regional de Proteção Civil
do extinto imposto, para o serviço de incên- da Madeira, que funcionava na dependência
dios e, ainda, para os prémios de seguro de direta da Presidência do Governo Regional,
transporte de mercadorias perigosas, incluin- tendo passado, desde 9 novembro de 1988,
do o seguro de carga e o das viaturas especi- para a Secretaria Regional da Administração
ficamente destinadas a este tipo de transpor- Pública. Em 1992, transita para a Secretaria
te. De acordo com o Código Administrativo, Regional dos Assuntos Sociais. A partir de 30
a matéria coletável é constituída pelo valor de março de 2006, com a criação do Serviço
patrimonial dos prédios não seguros, pela di- Regional de Proteção Civil e Bombeiros da
ferença entre o valor tributável dos prédios, Madeira, todos os sectores que pertenciam ao
se este for superior, e o valor pelo qual estes Serviço Regional de Proteção Civil da Madei-
se encontram seguros contra incêndios, pelo ra passam a integrar este serviço de coordena-
valor determinado para os estabelecimentos ção de proteção civil e de socorro. Finalmen-
comerciais ou industriais não seguros e pela te, a 30 de junho de 2009, foi criado o Serviço
diferença entre o valor determinado para os Regional de Proteção Civil, IP­‑RAM, com o
estabelecimentos comerciais ou industriais e consequente Regime Jurídico do Sistema de
o valor pelo qual estes se encontram seguros Proteção Civil da Região Autónoma da Madei-
contra incêndios. A taxa aplicável varia entre ra (RAM).
486 ¬ B ombeiros

Fig. 10 – Quartel dos Bombeiros Voluntários da Calheta (fotografia de Bernardes Franco, 2018).

Todos os municípios dispõem atualmente Santana, fundada a 8 de dezembro de 1974;


de uma corporação de bombeiros munici- e Associação de Bombeiros Voluntários de
pais, e todos os concelhos da RAM dispõem São Vicente e Porto Moniz, fundada a 3 de
de corporações de bombeiros voluntários, fa- junho de 1994.
zendo com que o serviço esteja presente em
toda a Ilha. Apenas o Funchal dispõe de uma Bibliog.: ALMEIDA, Paulo Dias de, “Descrição da ilha da Madeira”, in
segunda corporação de bombeiros munici- CARITA, Rui, Paulo Dias de Almeida. Tenente Coronel do Real Corpo de
Engenheiros e a Sua Descrição da Ilha da Madeira de 1817­‑1827, Funchal,
pais. Assim, temos as seguintes corporações: DRAC, 1982, pp. 51­‑83; ANDRADE, Eduardo de Campos, Repovoamento
Associação Humanitária de Bombeiros Vo- Florestal no Arquipélago da Madeira (1952­‑1975), Lisboa, Direção­‑Geral das
Florestas, 1990; BANKOFF, Greg et al., Flammable Cities. Urban Conflagration
luntários da Calheta, fundada a 21 de maio and the Making of the Modern World, Madison, University of Wisconsin
de 1992; Associação Humanitária Bombeiros Press, 2012; BRANCO, Jorge Freitas, Camponeses da Madeira. As Bases
Materiais do Quotidiano no Arquipélago (1750­‑1900), Lisboa, Dom Quixote,
Voluntários de Câmara de Lobos, fundada a 1987; CAMACHO, João Henriques, Notas para o Estudo da Rearborização da
13 de agosto de 1949 e desativada após o 25 Ilha da Madeira, Dissertação inaugural apresentada ao Conselho Escolar para
complemento do curso de engenheiro­‑silvicultor, Lisboa, texto policopiado,
de Abril, só voltando a funcionar a partir de
1920; CÂMARA, Paulo Perestrelo da, Breve Noticia sobre a Ilha da Madeira
12 de julho de 1991, com a inauguração das ou Memorias sobre a Sua Geographia, Historia, Geologia, Topographia,
Agricultura, Commercio, etc., Lisboa, Typ. da Academia das Bellas Artes, 1841;
novas instalações; Associação de Bombeiros
CARITA, Rui, 100 Anos dos Bombeiros Municipais, 24 de Setembro de 1888­
Municipais de Machico, fundada em 1960, ‑1988, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1988; CRUZ, Francisco Ignacio
mas só devidamente dinamizada pelo muni- dos Santos, Memoria sobre os Differentes Meios de Atalhar os Incendios, de
Salvar as Pessoas, e os Objectos delles Ameaçados, e de os Prevenir Quanto
cípio a partir de 1968; Associação de Bombei- Possivel, etc., Lisboa, Academia de Sciencias de Lisboa, 1850; FÉLIX, José
ros Voluntários do Porto Santo; Associação Ricardo, Bombeiros Municipais de Machico. 50 Anos de História, Machico,
Câmara Municipal de Machico, 2010; FONTVIEILLE, Jean, “A lenda de
de Bombeiros Voluntários da Ribeira Brava, Machim. Une découverte bibliographique à la Bibliothèque­‑Musée du Palais
fundada a 21 de dezembro de 1986; Associa- de Bragance à Vila Viçosa (Portugal), in Actas do Congresso Internacional
de História dos Descobrimentos, vol. iii, Lisboa, Comissão Executiva das
ção de Bombeiros Municipais de Santa Cruz, Comemorações do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, 1961,
que serve o aeroporto desde a sua inaugu- pp. 197­‑238; MELO, Luís Francisco de Sousa, “Tombo primeiro do Registo
Geral da Câmara Municipal do Funchal. Primeira parte”, Arquivo Histórico
ração, a 8 de julho de 1964; Associação Hu- da Madeira, vols. xv­‑xviii, 1972­‑1974; NASCIMENTO, João Cabral do, “De
manitária de Bombeiros Voluntários de rebus pluribus: casas foreiras. Um diário de incêndios e um caderno de factos
B ombote e bomboteiros ¬ 487

históricos: ainda Torriani. Colecção de documentos: parque na cidade: eram conhecidos como bamboteiros/bombo-
conferências culturais: estampas da Madeira: arquivo distrital: publicações
recebidas”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. iv, n.º 2, 1935, pp. 125­‑128; teiros, uma figura que está presente no quo-
NATIVIDADE, J. Vieira, Madeira. A Epopeia Rural, Funchal, JGDAF, 1954; tidiano do porto e do movimento dos navios
SEQUEIRA, Manuel Braz, Opusculo de Propaganda. Argumento a favor da
Arborização Obrigatória das Serras da Ilha da Madeira, Funchal, s.n., 1913;
que o escalavam. Maria Lamas refere­‑a, em
SILVA, Fernando Augusto da, Dicionário Corográfico do Arquipélago da 1956, como “bombota”.
Madeira, Funchal, ed. do Autor, 1934; Id., O Revestimento Florestal do
Arquipélago da Madeira, Funchal, s.n., 1946; VIEIRA, Alberto, Os Bombeiros
Semelhante atividade existia no porto de Las
Voluntários Madeirense. Breves Apontamentos Históricos, Funchal, Associação Palmas, sendo conhecida como “cambullón”,
dos Bombeiros Voluntários Madeirenses, 2001; Id., A Vinha e o Vinho na
e os que se dedicavam a ela conhecidos como
História da Madeira. Séculos XV­‑XX, Funchal, CEHA, 2003.
“cambulloneros”. Não obstante alguns aponta-
† Alberto Vieira rem a origem portuguesa da palavra, que terá
chegado aí a partir da Madeira, hoje sabemos
que a palavra “cambullón” é uma deturpação
Bombote e bomboteiros da expressão inglesa “come buy on” (em por-
tuguês: “vem comprar”).
Do inglês “bumboat”, que define as peque- O bombote é um dos aspetos característi-
nas embarcações que proviam, de forma di- cos do quotidiano da baía do Funchal, tendo
reta, os barcos que escalavam os portos com como principal assento a zona dos pescadores
objetos e produtos da região. Em Singapu- e barqueiros, nas praias de São Lázaro. Aí vara-
ra, e.g., são sinónimo dos táxis aquáticos. No vam as embarcações e se situavam as arrecada-
linguajar madeirense, a atividade é apresen- ções, perto do calhau. No mundo e quotidiano
tada como o “bambote”, i.e., uma pequena do mar funchalense, está sempre presente a fi-
embarcação a remos que estava autorizada a gura do bomboteiro, que, não obstante estar
aproximar­‑se das embarcações que aportavam documentada apenas a partir do séc. xviii,
ao Funchal e aí proceder à venda direta dos deverá existir desde que, na baía funchalen-
produtos regionais. Na expressão popular, se, lançaram âncora as primeiras caravelas ou
os homens que se dedicavam a esta atividade naus em busca de refresco.

Fig. 1 – Funchal from the Bay, litografia de Andrew Picken, 1840 (coleção particular).
488 ¬ B ombote e bomboteiros

O burburinho que se regista em algumas fo- exercessem a atividade. No bombote, mistu-


tografias dos anos 40 e 50 do séc. xx deveria rava-se o pequeno comércio e o contrabando,
acontecer já no séc. xv – um amontoado de ca- nos pequenos barcos usados para a condução
noas, cheias de diversos refrescos, abeirando­ dos passageiros a bordo dos navios ancorados
‑se das embarcações, cuja altura do calado era na baía do Funchal, ou especificamente prepa-
menor que a dos navios, prontas a vender todo rados para o efeito, e que eram alugados aos
o tipo de produtos que a Ilha tinha para ofe- seus proprietários. Vendiam­‑se bordados, mó-
recer. É certo que os chamados “refrescos por veis de vimes, frutas, vegetais, postais ilustra-
grosso” eram contratados pelos comandantes dos, aves e diversos souvenirs.
das embarcações com os seus representantes e Sabemos que a atividade dos bomboteiros no
contratadores, assim como as embarcações ao porto do Funchal é muito antiga, mas, até ao
serviço da Coroa, que tinham um serviço de presente, não descortinámos quando terá co-
refresco contratado pelos funcionários da Fa- meçado. Os dados mais antigos apontam para
zenda da Coroa na Ilha, mas a cada um dos o séc. xviii, altura em que o vice­‑cônsul in-
marinheiros ou passageiros sempre fazia falta glês, Robert Cock, se queixava da exploração
algum produto que a Ilha e os seus bombo- de que eram vítimas os marinheiros britânicos.
teiros ou barqueiros estavam disponíveis para Por outro lado, parece que a sua insistência e
oferecer. presença era considerada inoportuna, sendo
Nos sécs. xv e xvi, não se chamavam “bom- corridos, por vezes, com baldes de água quen-
boteiros”, tendo sido certamente designados te e tiros. Idêntica atitude desfavorável tinham
como tal pelos Ingleses quando, a partir da as autoridades alfandegárias, que quase sem-
déc. de 60 do séc. xvi, começaram a acudir, pre associam esta gente do pequeno comércio
com frequência, à baía do Funchal para re- ao contrabando, pelo que, em 1775, a Junta
fresco e carga de vinho. Nesta primeira época, da Real Fazenda se vê­obrigada a tomar medi-
serão simplesmente definidos como barquei- das, no sentido de evitar esta atividade parale-
ros e gente do mar, que os barcos de passagem la. Assim, decide pôr em ação uma pragmática
sempre atraíam para qualquer serviço ou co- de 1749 que proibia os vendedores a retalho
mércio que assegurasse o seu ganha­‑pão. e um alvará de 1765 que determina, de forma
A atividade do bombote estava legalizada perentória, que fossem queimadas as peque-
pela Alfândega do Funchal através de uma li- nas embarcações, conhecidas como “catraios”,
cença que possibilitava que os bomboteiros que enxameavam a baía à espera de vender
produtos locais ou estavam prontas a recetar
qualquer tipo de contrabando. Facto curioso é
que, nesta época, ainda não eram conhecidos
como “bomboteiros” e estavam mais associados
ao contrabando.
A designação deverá ter começado apenas
no séc. xix. E apenas em 1844, no periódico
O Defensor, de 6 de abril, colhemos a expres-
são “ir no bombote”, que significa o ato de ir
a bordo dos navios ancorados no porto vender
fruta. A 28 de março de 1844, foram julgados
e condenados Francisco de Andrade, o Russo,
e José Fernandes Castro, o Lage, pela morte
de um marinheiro do barco de guerra inglês
Megera. Este episódio terá acontecido às 20 h
Fig. 2 – Bomboteiros no porto do Funchal, Henry Bachelor
do dia 29 de janeiro, quando foram contac-
Turnbull, 7 de dezembro de 1904 (coleção Phil Moir, Inglaterra). tados para conduzir a bordo o soldado. Pelo
B ombote e bomboteiros ¬ 489

facto de este não querer pagar a viagem, deci- haver o incómodo do desembarque em terra.
diu o Lage fazer justiça por suas próprias mãos, Certamente que, quando o Funchal, nos anos
matando­‑o. É a partir do processo que decor- 60, ficou servido de um porto adequado ao
reu, e que foi transcrito no referido jornal, que embarque e desembarque de passageiros, esta
sabemos da importância da atividade, sendo atividade perdeu importância e teve de con-
este o registo documental mais antigo que correr com idênticas situações de venda em
temos da prática do bombote. Sabemos, aliás, terra seca, feita com melhores condições de se-
que, em 1920, os bomboteiros podiam com- gurança para quem as exercia. Atente­‑se que,
prar banana aos produtores ou no depósito em 1957, estavam registados na Alfândega 171
para venderem a bordo. Nesta época, é nítida bomboteiros, e, após 1964, com a inauguração
a preocupação das autoridades quanto à venda do novo porto artificial, estes começam a per-
deste fruto, chegando­‑se a fiscalizar o seu esta- der importância numérica, nomeadamente na
do de maturação para venda ao público. Desta década seguinte. Com o novo porto em pleno
forma, vemos em edital, publicado a 28 de de- funcionamento, a baía do Funchal perdeu
zembro de 1920 no Diário de Notícias, que a todo o movimento a que estava sujeita diaria-
venda a bordo pelos bomboteiros só poderia mente, aquando da chegada de um navio.
ser feita no perfeito estado de maturação. De acordo com um edital do capitão do porto
Ao contrário destas vozes, a maioria das im- de 30 de maio de 1920, era elevado o número
pressões que se colhem em textos de visitan- de embarcações registadas ao serviço do porto:
tes é muito favorável a este grupo de agentes barcos de bombote, de pesca do Funchal, de
do pequeno comércio flutuante, que facilita- pesca de costa, de carga e passageiros de costa
vam a compra dos chamados “souvenirs”, sem e de bagagem, de passageiros, de rocega e de

Fig. 3 – Bomboteiros com vimes no porto do Funchal, bilhete-postal, c. 1930 (coleção Melim Mendes).
490 ¬ B ombote e bomboteiros

lenha. Em 1914, temos referência ao registo de bomboteiros poderiam continuar a trabalhar.


537 embarcações de pesca e de 519 dedicadas O mesmo sucedia quando chegava qualquer
a outros serviços, como o bombote, carga, des- navio; caso o comandante o permitisse, pode-
carga e passageiros. No sentido de disciplinar riam fazer as suas vendas.
a atividade, o presente edital estabelece que Sabemos, por aviso publicado no Diário de
os barcos do bombote devem varar no calhau, Notícias a 14 de setembro de 1905, que os arrais
junto ao teatro­‑circo, na direção da ribeira de e donos dos barcos denominados bombote n.os
S. João. Para além disso, estes barcos deveriam 41, 209, 263, 573, 847, 2310, 2326, 2493, 2630,
ostentar o respetivo número em tabuleta preta, 2781 e 2802 tinham sido intimados a compa-
pregada na parte mais alta do capelo da proa. recer perante o administrador do concelho
No mesmo edital, são determinadas várias por infração ao regulamento. A 8 de agosto
regras sobre o exercício da atividade do bom- de 1907, outro aviso diz­‑nos que os bombotei-
boteiro. Assim, este só poderia aproximar­ ros n.os 119, 839, 847, 2654 e 2781 tinham sido
‑se do navio depois de receber o sinal favorá- multados por terem atracado ao vapor da mala
vel da guarda do barco do registo. Ao mesmo real inglesa antes da visita da Alfândega. A 31
tempo, estabelecem­‑se regras para a decência de maio de 1920, um grupo de 10 bombotei-
do vestuário, assim como outras impeditivas ros publicou, no Diário de Notícias, um aviso em
de qualquer atividade de contrabando, como defesa da sua honra, repudiando afirmações
o contacto com outras embarcações que não do Diário da Madeira, que os acusava de comér-
as do bombote e com os navios ancorados, ou cio ilícito ou contrabando. A 13 de abril de
o transporte para bordo de qualquer bebida 1923, o senador madeirense Procópio de Frei-
sem a licença da Alfândega. Por norma, a ati- tas explicava perante o Senado da República
vidade do bombote terminava ao sol­‑posto e a que recebera informação de que a Alfândega
embarcação deveria varar no calhau antes do estabelecera uma ordem de serviço para ata-
anoitecer. Todavia, se o capitão autorizasse, os lhar “várias irregularidades e faltas de respeito

Fig. 4 – Bomboteiros com vimes no porto do Funchal, Franz Grasser, Kraft durch Freude, 1936 a 1939 (Deutsche Fotothek).
B ombote e bomboteiros ¬ 491

pelas autoridades fiscais e marítimas e desman-


dos, praticados pelos bomboteiros, que são os
vendilhões que vão a bordo dos navios” (AHP,
Diário, n.º 29, 13 abr. 1923).
A 24 de dezembro de 1929, a Direção­‑Geral
das Alfândegas regulamentou, pelo dec.
n.º 17790, o exercício da atividade de venda a
bordo de artigos regionais e tradicionais por-
tugueses. De acordo com esta regulamentação,
todos os que pretendessem dedicar­‑se à venda
a bordo deveriam, para além desta licença,
estar munidos da cédula de inscrição marí-
tima, nos termos do dec. n.º 15335, de 21 de
março de 1928. A licença de venda era passa-
da pela alfândega da área do porto, enquanto
Fig. 5 – Bomboteiros no porto do Funchal, 1954 (coleção não
a cédula marítima estava a cargo da capitania identificada).
deste. Desta forma, na déc. de 30, os bombotei-
ros deveriam estar munidos de ambas as licen-
A aparição do novo molhe parece ter matado
ças. A Alfândega do Funchal dispõe do livro de
os bomboteiros. Entretanto, o Re­‑nhau­‑nhau de
registo destas licenças.
10 de novembro de 1967 e de 13 de janeiro de
A atividade destes homens não está devida-
1968 diz­‑nos que, com o novo porto, os bom-
mente definida na legislação e instituições
boteiros foram impedidos de entrar no molhe
oficiais. Dos documentos que tivemos opor-
e subir a bordo dos barcos, ficando privados do
tunidade de consultar, encontramos cédulas
seu trabalho e ganha­‑pão.
marítimas passadas pela Alfândega em 1932,
Ainda hoje encontramos resquícios desta
em que a categoria profissional é definida
atividade, e alguns bomboteiros persistem em
como “vendilhão”. Já na mesma autorização
mantê-la, agora em modo de venda ambulan-
passada pela capitania do porto, em 1983, era
te, à saída da nova gare do porto do Funchal.
definida como “bomboteiro”, enquanto em
Os expositores e os souvenirs só são montados
documento da Direção Regional de Comércio
em dia em que há barco ancorado no porto, o
e Indústria é definida como “vendedor ambu-
que não acontece diariamente, como noutros
lante [marítimo]”.
tempos.
De acordo com os dados disponíveis, pode-
mos assinalar os seguintes produtos de venda: Bibliog.: FARIA, Cláudia, e ALVES, Graça, “Atividades sócio­‑poéticas.
artefactos regionais, artigos de ourivesaria, arti- O bombote, a mergulhança”, Anuário 2013, 2013, pp. 261­‑279; FRANÇA, João,
Mar e Céu por Companheiros, Lisboa, O Século, 1979; GOUVEIA, Horácio Bento,
gos e fruta, rendas e bordados, câmbios, flores, Lágrimas Correndo Mundo, Coimbra, Coimbra Editora, 1959; LAMAS, Maria,
jornais, metais preciosos, postais ilustrados da Arquipélago da Madeira. Maravilha Atlântica, Funchal, Eco do Funchal, 1956;
MARSH, A., Holiday Wanderings in Madeira, London, Sampson Low, Marston
Madeira e propaganda de vinhos madeirenses. & Co., 1892; NEPOMUCENO, Rui Firmino, A Madeira Vista por Escritores
O período posterior à Segunda Guerra Mun- Portugueses (Séculos XIX e XX), Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos,
2008; SANABRIA, Juan Medina, Isleta Puerto de la Luz. Raíces, Las Palmas de
dial foi florescente nesta atividade, que come- Gran Canaria, Gráficas Yeray, 1996; SILVA, António Marques da, Passaram
çou a perder importância a partir da inaugura- pela Madeira, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008; SILVA,
Elisabete, “Bomboteirismo. A arte de uma profissão”, Xarabanda, n.º 4, 1993,
ção da última fase das obras do porto, em 1964. pp. 13­‑14; SILVA, Iolanda (coord.), A Madeira e o Turismo. Pequeno Esboço
Em colóquio sobre o turismo realizado a 31 Histórico, Funchal, DRAC, 1985; SIMÕES, Álvaro et al., Transportes na Madeira,
Funchal, DRAC, 2002; SOUSA, João José Abreu de, O Movimento do Porto do
de dezembro de 1965, foram feitas recomen-
Funchal e a Conjuntura da Madeira de 1727 a 1810. Alguns Aspectos, Funchal,
dações no sentido da salvaguarda e valoriza- DRAC, 1989; Id., “O porto do Funchal no século xviii. Alguns aspectos”,
Das Artes e da História da Madeira, n.º 36, 1996, pp. 20­‑24; VIEIRA, Alberto,
ção desta atividade, tendo em conta os servi-
“A Madeira e o contrabando no espaço atlântico”, Anuário 2012, 2012, pp. 9­‑16.
ços prestados ao turismo. Mas a atividade havia
entrado definitivamente na fase de agonia. † Alberto Vieira
492 ¬ B onaparte , N apole ã o

Bonaparte, Napoleão
O conhecido líder militar, estratega e político,
que se destacou durante as chamadas guerras
da Revolução Francesa, coroado imperador
com o título de Napoleão I, esteve em 1804
(até 1814, e depois, durante um breve perío-
do – dos famosos Cem Dias –, em 1815) liga-
do à Madeira em dupla perspetiva: por um
lado, no quadro dos interesses expansionis-
tas e imperiais da França, durante as Guerras
Napoleónicas e também no início da Guerra
Peninsular; por outro, pelo facto de ele pró-
prio ter estado durante dois dias estacionado
na baía do Funchal, na segunda quinzena de
agosto de 1815, a bordo do HMS Northumber-
land, feito prisioneiro e a caminho do seu exí-
lio definitivo, na ilha de Santa Helena. Esta foi,
aliás, a única vez em que o Imperador esteve
efetivamente em território português – neste
caso, mais precisamente, em águas portugue-
sas. Uma vida, note­‑se, que parece ter sido de-
terminada por espaços insulares: nasceu na
Córsega, nunca conseguiu invadir uma ilha (a
Grã­‑Bretanha), esteve preso em Elba e acabou
exilado em Santa Helena.
Existindo publicados milhares de páginas a
respeito de Napoleão, entre as quais se podem
destacar – para além dos clássicos de Norvins
(1827), Thiers (1845­‑1862), Michelet (1875),
Fig. 1 – Napoleão Bonaparte, Jacques-Louis David, 1812 (National
Bainville (1931) e Madelin (1937­‑1948) – as vá- Gallery of Art, Washington).
rias obras de Jean Tulard (1988, 1997, 2006 e
2015), assim como as posteriores de Paul John-
son (2002), Andrew Roberts (2014), Charles na Madeira, em julho de 1801, aí permanecen-
Esdaile (2007), afigura­‑se­‑nos de todo desne- do até janeiro de 1802, concretizando assim
cessário desenvolver aqui uma apresentação de a primeira ocupação britânica, por receio de
cariz biográfico, daí a opção por um texto que que a (cedência da) Ilha pudesse fazer parte
tenha por objeto exclusivo as supra referidas de um entendimento ou acordo secreto entre
ligações à Madeira. Portugal e a França.
Neste sentido, a primeira associação dos inte- O segundo momento, bastante mais agudo,
resses da França napoleónica à Madeira deu­‑se mas na sua génese até muito semelhante ao pri-
no âmbito e na sequência da Guerra das La- meiro, deu­‑se em 1807, quando, na sequência
ranjas (maio­‑ junho de 1801), quando, peran- da nova viragem da França para a península e
te a eventual ameaça aos interesses britânicos para Portugal, com o envio e a presença efetiva
no espaço peninsular e, em particular, àque- de tropas napoleónicas no terreno continental,
les que estavam relacionados com Portugal, as a Ilha foi tomada pelos Britânicos, em dezem-
forças britânicas, lideradas pelo Gen. William bro, desta vez na sequência da primeira invasão
Henry Clinton (1769­‑1846), desembarcaram francesa (liderada por Junot) e da fuga da corte
B onaparte , N apole ã o ¬ 493

portuguesa para o Brasil. Também em 1807 se


receavam os interesses da França napoleóni-
ca a respeito da importante posição geoestra-
tégica da Madeira. Esta tomada, que implicou
a perda de soberania portuguesa sobre a Ilha,
transformou­‑se em segunda ocupação britâni-
ca, em março­‑abril de 1808, quando ficou claro
que a Coroa portuguesa se iria opor à presença
das tropas napoleónicas em território continen-
tal e, por acréscimo, também na Madeira. Nesta
conjuntura, a soberania foi devolvida à Coroa
portuguesa, mantendo os Britânicos o coman-
do militar (até outubro de 1814).
Por fim, a efetiva passagem de Napoleão pela
Fig. 2 – Transferência de Napoleão da Bellerophon para
Madeira (onde chegou a 22 de agosto), inte- a Northumberland, em Plymouth, agosto de 1815; óleo de John
grado numa divisão naval formada por três James Chalon (National Maritime Museum, Londres).

naus de linha, entre estas o já mencionado


HMS Northumberland, a bordo do qual seguia J. R. Glover (secretário do Alm. Cockburn); dos
o ex­‑Imperador, que fundeou na baía do Fun- Diários do próprio almirante (1888); das memó-
chal na noite de 24 de agosto de 1815, sob o co- rias do barão de Gourgaud (Sainte­‑Hélène, Jour-
mando do Alm. George Cockburn. Da divisão nal Inédit de 1815 à 1818, 1899); das memórias
naval faziam ainda parte três fragatas e seis bri- da condessa de Montholon (Souvenirs de Sainte­
gues. A nau que transportava Bonaparte tinha ‑Hélène (1815­‑1816), 1901), assim como do seu
ordens para não ancorar em porto algum, pelo marido, o general conde de Montholon (Récits
que na verdade andou quase sempre à vela. de la Captivité de l’Empereur Napoléon à Sainte Hé-
A estadia ficou depois associada, inclusive, a lène, 1847). Para um levantamento das diversas
alguns aspetos lendários. Desde logo ao mau fontes a respeito da viagem de Bonaparte, veja­
tempo que terá provocado, com um agudo ‑se o primeiro volume da obra de Octave Aubry
vento leste e a consequente forte vaga de calor, Sainte­‑Hélène, 1941.
neste caso também acompanhada de poeiras Na chegada à baía, a comunicação com terra
provenientes da costa africana, com efeitos ne- não se revelou fácil, quer pelas habituais medi-
fastos em algumas culturas, em particular na das de segurança, quer pela situação meteoroló-
vinícola; passando pelas moedas de ouro com gica, de vento forte. O Northumberland recebeu a
que teriam sido pagos os seus pedidos para terra
e que mais tarde Henry Veitch teria colocado
nos alicerces da igreja britânica; terminando na
pipa de vinho da Madeira oferecida pelos co-
merciantes locais, que o Imperador nunca terá
bebido por temer estar o vinho envenenado.
Sobre a viagem, temos o clássico texto do
conde de Las Cases, Memorial de Santa Helena
(original de 1822­‑1823, revisto e reeditado ao
longo dos sécs. xix e xx), o qual, aliás, contri-
buiu sobremaneira para a criação e projeção do
mito napoleónico e do bonapartismo, enquanto
corrente do pensamento político. Este testemu-
nho pode ainda ser cruzado com o de outros in-
tervenientes na viagem, como são os casos de M. Fig. 3 – Napoleão de ouro, xx francos, 1811 (coleção particular).
494 ¬ B onaparte , N apole ã o

Fig. 4 – Napoleão em Santa Helena, aguarela de Franz Joseph Sandmann, c. 1820 (coleção Château de Malmaison, Rueil-Malmaison, França).

visita do cônsul britânico, Henry Veitch (o único Joinville. Seguia, por ordem do Rei Luís Filipe,
autorizado a subir a bordo), e toda a esquadra para a ilha de Santa Helena, de onde ia resga-
reforçou os seus aprovisionamentos (com gado, tar o corpo do antigo imperador, retirando­‑o
outros animais, água e víveres, como legumes e do vale dos Gerânios e levando­‑o para França
frutas, tendo Las Cases reservado os seus elogios (onde, em 1861, seria definitivamente deposi-
para as uvas e os figos madeirenses). Sabe­‑se que tado em Les Invalides).
Bonaparte pediu ao Alm. Cockburn para enco- A passagem desta comitiva (em 1840), assim
mendar alguns livros na Madeira, ilha a respei- como a da anterior, do próprio Napoleão (em
to da qual também inquiriu, quer aquele almi- 1815), foi romanceada e interligada pelo es-
rante, quer em especial o cônsul Veitch, quando critor madeirense João dos Reis Gomes (1869­
com ele privou a bordo, pretendendo receber ‑1950) em O Anel do Imperador, obra publicada
informações sobre a sua história, os seus habi- no Funchal em 1934.
tantes e as suas produções. Bibliog.: BAINVILLE, Jacques, Napoléon, Paris, Arthème Fayard, 1931; CÂMARA,
Os relatos de Glover e de Cockburn coinci- Paulo Perestrelo da, Breve Notícia sobre a Ilha da Madeira, Lisboa, A. das Bellas
Artes, 1841; ESDAILE, Charles, Napoleon’s Wars. An International History.
dem na afirmação de que ao fazer perguntas 1803­‑1815, London, Allen Lane, 2007; JOHNSON, Paul, Napoleon, London,
sobre as diversas ilhas do Atlântico Bonapar- Weidenfeld & Nicolson, 2002; MADELIN, Louis, Histoire du Consulat et de
l’Empire, 16 vols., Paris, Hachette, 1937­‑1953; MARCHAND, Louis­‑Joseph, In
te revelara uma ignorância que para aqueles Napoleon’s Shadow. Being the First English Language Edition of the Complete
era espantosa, por afirmar não saber a quem Memoirs of Louis­‑Joseph Marchand, Valet and Friend of the Emperor. 1811­‑1821,
San Francisco, Proctor Jones Pub. Co., 1998; NORVINS, Jacques Marquet de
pertenciam.
Montbreton de, Histoire de Napoléon, Paris, Ambroise Dupont, 1827; ROBERTS,
No relato que remeteu para o Foreign Offi- Andrew, Napoleon. A Life, London, s.n., 2014; RODRIGUES, Paulo, A Política e
ce em finais de agosto, o cônsul Veitch afirma as Questões Militares na Madeira. O Período das Guerras Napoleónicas, Funchal,
CEHA, 1999; Id., “O Anel do Imperador (1934), de João dos Reis Gomes, entre
que Bonaparte parecia estar conciliado com a a história e a ficção. Napoleão e a Madeira”, Carnets, Invasions & Évasions. La
sua situação. France et Nous; Nous et la France, n.º especial, outono­‑inverno, 2011­‑2012,
pp. 81­‑97; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
O Northumberland fez­‑se à vela a 25 de agos- Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984; THIERS, Adolphe, Histoire
to, com destino a Santa Helena, onde chegou du Consulat et l’Empire Faisant Suite à l’Histoire de la Révolution Française,
Paris, s.n., 1845­‑1862; TULARD, Jean (dir.), Dictionnaire Napoléon, Paris, Fayard,
a 13 de setembro; o antigo Imperador morreu 1988; Id., Napoléon. Le Pouvoir, la Nation, la Légende, Paris, Librairie Générale
nessa ilha a 5 de maio de 1821. Française, 1997; Id., Napoléon. Les Grands Moments d’Un Destin, Paris, Fayard,
2006; Id., Le Monde selon Napoléon, Paris, Tallandier, 2015; VENTURA, António,
Em 1840, passados 19 anos sobre a morte “Prefácio. Napoleão e a Madeira”, in RODRIGUES, Paulo Miguel, A Política e as
de Bonaparte e 25 desde a sua passagem pelo Questões Militares na Madeira. O Período das Guerras Napoleónicas, Funchal,
CEHA, 1999, pp. 15­‑19.
Funchal, fundeou na baía a fragata france-
sa Belle Poule, sob o comando do príncipe de Paulo Miguel Rodrigues
B ordadeiras ¬ 495

Bonfim, 1.º barão e 1.º conde do


Ö Valdez, José Lúcio Travassos

Bordadeiras
Na Madeira, a atividade de bordar remonta,
com certeza, aos tempos do povoamento, uma
vez que era praticada no continente português,
de onde era oriunda a maioria dos povoadores.
Até meados do séc. xix, bordava­‑se por três ra-
zões principais: as senhoras da nobreza, por re-
creação e necessidade de preencher o tempo,
uma vez que nada as obrigava a fazê­‑lo, e as
mulheres de escalões sociais inferiores para os Fig. 1 – Bordadeiras da Madeira, aguarela de Max Römer,
c. 1945 (coleção de Edward Kassab).
seus próprios dotes de casamento ou por en-
comenda. Este mester não se podia conside-
rar uma profissão propriamente dita, uma vez passou a ser frequentada por jovens madeiren-
que ninguém se dedicava a ele a tempo inteiro, ses, que, pela primeira vez, faziam uma forma-
podendo, nos casos em que havia encomen- ção mais estruturada naquela arte. Esta inicia-
das, receber­‑se alguma recompensa financei- tiva abriu às jovens possibilidades de evolução
ra, ainda que essa atividade não fosse a única técnica, e o resultado deste progresso foi mos-
ocupação das mulheres que a praticavam. trado numa exposição no palácio de S. Lou-
Ser­bordadeira é um ofício duro, meticuloso, renço, organizada, em 1850, pelo governador
lento, que requer grande precisão, bons olhos para apresentar o melhor da produção regio-
e umas costas resistentes, porque a posição em nal. Esta mostra foi inaugurada em abril, mês
que se executa o bordado penaliza o corpo, e que registava a maior concentração de estran-
os rendimentos que permite nunca correspon- geiros, e a estratégia resultou, pois na Grande
dem aos verdadeiros tempo e esforço que lhe Exposição Mundial de 1851, em Londres, o
são dedicados. Mesmo assim, o bordado ocu- bordado foi exposto e deu nas vistas, o que
pou, durante séculos, um lugar importante no seria determinante para o seu futuro. A partir
quotidiano das mulheres madeirenses. desse momento, o mercado alargou­‑se a uma
Porém, a situação alterou­‑se na déc. de 40 escala internacional, e o bordado começou a
do séc. xix, quando uma jovem inglesa tomou conquistar apreciadores em diversas partes
uma iniciativa que mudou definitivamente do mundo, o que fomentou um outro tipo de
este cenário. Trata‑se de miss Elizabeth Phelps, produção, mais voltada para maiores consu-
mais conhecida por Bella, precisamente para mos. Esta diferença veio autorizar, até certo
a distinguir da mãe, Elizabeth, que, por outras ponto, que o bordado passasse a ser encarado
razões, era também uma senhora importante como uma ocupação profissional e fosse pra-
dessa época, pois em conjunto com o marido, ticado para além das horas vagas que anterior-
Joseph, era fundadora da escola lancasteria- mente se lhe dedicavam.
na. Bella, filha de um casal empreendedor e Além de devedor da intervenção inglesa no
abastado graças a negócios com vinhos, her- seu sistema de produção, o bordado da Ma-
dou dos pais o espírito destemido e decidiu deira é também tributário da presença de Ale-
fundar no Funchal uma escola de bordar que mães, que, a partir dos fins do séc. xix, irão
se aventurou na importação de tipos de pon- participar de forma significativa no sector.
tos não praticados ainda na Madeira. A escola Assim, alguns súbditos germânicos chegados
496 ¬ B ordadeiras

à Ilha por razões de saúde acabaram por se in-


teressar pelo assunto. Na viragem do século, 8
das 10 casas de bordados eram alemãs. A mu-
dança de “tutela” no sector fez­‑se acompa-
nhar de outras alterações que segmentaram
o processo de produção, aproximando­‑o mais
daquilo que eram as exigências trazidas pela
industrialização em curso. Surgiram, assim,
novas profissões que passaram a integrar o
processo de trabalho: desenhadores, estam-
padores, intermediários entre as bordadeiras
domésticas e as lojas de bordados, e ainda as
bordadeiras de fábrica, completamente dedi-
cadas à profissão. Os Alemães introduziram
ainda o uso do papel vegetal (sobre o qual se
faziam os desenhos), as máquinas de picotar,
a estampagem em série e até outros tecidos
e linhas. Em consequência destas alterações,
o número de bordadeiras disparou. Das 1029
referenciadas em 1863, localizadas sobretudo
no Funchal e em Câmara de Lobos, passou­
‑se para 32.000 em 1906, já espalhadas por
todos os concelhos, e para 60.000 em 1950, o Fig. 3 – Bordadeira de campo com familiar junto de casa
de colmo, bilhete-postal de 1950 (coleção particular).
que representava 21,2 % da população total.
A Primeira Guerra Mundial, contudo, abalou
os alicerces da presença germânica na Madei- aumentar, passando então para cerca de 100,
ra. O lugar dos Alemães no sector dos borda- registadas em 1923.
dos foi ocupado pelos Sírios, com os quais o Entretanto, outras modificações iam ocor-
número de casas de bordados continuou a rendo, nomeadamente a do reconhecimento
do trabalho duro, paciente e mal remunerado
das bordadeiras. Em 1894, José Júlio Rodrigues
criou a Sociedade de Proteção das Bordadei-
ras, e, em 1907, as casas de bordados alemãs
estabeleceram uma Caixa de Socorros para
as suas empregadas. Em 1935, foi fundado o
Grémio dos Industriais de Bordado, que dis-
ponibilizou àquelas profissionais novas esco-
las de bordado, protegeu a atividade com um
selo de garantia de qualidade e disponibili-
zou, em 1961, 30 moradias para as profissio-
nais e as suas famílias. A verdadeira dignifica-
ção profissional da classe, porém, só surgiu em
1976, com a fundação do Sindicato Livre dos
Trabalhadores da Indústria de Bordados, Ta-
peçarias, Têxteis e Artesanato da Região Autó-
noma da Madeira, instituição que lutou pelos
Fig. 2 – Bordadeiras de campo (fotografia de Wilhelm Tobien,
direitos das suas associadas e conseguiu obter
1933, publicada em The National Geographic Magazine, jul. 1934). para elas o aumento de ordenado, subsídio de
B ordado ¬ 497

desemprego e melhor acesso à segurança so- os principais do bordado Madeira, como a


cial, entre outros benefícios. base de outros por derivação ou conjugação.
A execução era feita pelo próprio criador em
Bibliog.: impressa: GARRIDO, Georgina da Conceição Branco, Dos Conventos
ao Economuseu, Patrício & Gouveia, Lda. – Fábrica de Bordados, Dissertação
materiais produzidos localmente, como fios e
de Mestrado em Museologia apresentada à Universidade Lusófona de panos de linho e de lã de cor natural ou cla-
Humanidades e Tecnologias, Lisboa, texto policopiado, 2015; GOMES, Márcia
reados. O saber­‑fazer era passado de geração
Cristina Sousa, O Bordado Madeira. Preservação de Uma Técnica Artesanal,
Projeto final de Mestrado em Design de Moda apresentado à Universidade em geração.
de Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 2019; KLUT, Ana Teresa de Macedo, O importante papel da Igreja na Região fez
Economuseu Casa de Bordados, Dissertação de Mestrado em Museologia
apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, Lisboa, surgir diversos locais de culto no sul da Ilha, e
texto policopiado, 2003; digital: VIEIRA, Alberto, O Bordado da Madeira, os claustros dos conventos femininos eram por
Funchal, CEHA, 2004: https://www.academia.edu/23162436/O_BORDADO_
MADEIRA (acedido a 25 mar. 2021). excelência lugares de produção de bordado
para decorar vestes sacerdotais e alfaias litúr-
Cristina Trindade
gicas, produzindo­‑se designadamente toalhas
de altar, alvas e outros artigos em tecido. O ele-
Bordado gante desenho utilizado era inspirado na eu-
caristia, na flora local ou em alfaias litúrgicas
O bordado Madeira faz parte do panorama da
arte têxtil nacional e é o resultado de inúme-
ras influências que convergiram para o arqui-
pélago desde o seu povoamento, no decorrer
dos diversos ciclos económicos por que passou,
factos que encaminharam para o arquipélago
forasteiros provenientes de todo o mundo, os
quais para aí levaram conhecimentos, objetos e
hábitos de outras sociedades que contribuíram
para a formação de uma cultura local, que se
expressou, ao nível artístico e técnico, na cria-
ção de uma linguagem própria reconhecida
mundialmente como sendo de grande quali-
dade, o bordado.
Inicialmente, bordava­‑se no seio das famílias,
e raras eram as peças que saíam desse meio.
Bordava­‑se para fruição própria, para promo-
ver encontros, pela necessidade de bem­‑vestir,
para presentear alguém, para realizar enxo-
vais de casamento ou de batizado. O desenho
do bordado era riscado a carvão diretamente
sobre o tecido. Tinha uma composição sim-
plista de motivos espontâneos, livres, ordena-
dos com ou sem simetria, que eram distribuí-
dos em arco, círculo, espirais ou filas em que se
utilizavam pontos, com mais ou menos relevo,
da classe dos bastidos – como o ponto corda,
cordão, pé ou pau e grilhão –, que contorna-
vam os elementos, preenchiam e construíam
caules, ou da classe dos caseados – como pon-
tos de remate em forma de nó para acabamen-
Fig. 1 – Vestido de manhã, bordado Madeira, c. 1887 (Museu do
tos de bainhas. Estes pontos são considerados Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira).
498 ¬ B ordado

vindas de diversas partes do mundo para orna- das indústrias caseiras e apoiaram o ensino fe-
mentar os locais de culto, e.g., as pinturas rea- minino, que se desenvolvia na Região por in-
lizadas por artistas renascentistas, italianos e tervenção de entidades públicas e privadas.
flamengos, que também criavam e projetavam As encomendas foram surgindo e as vendas au-
desenhos para serem bordados, aplicados na mentaram, mas grande parte dos artigos saía
criação de rendas e retratados nas suas obras. da Região clandestinamente. O desenho pas-
A execução era feita pelas religiosas e por me- sou a ser preestabelecido, personalizado e a
ninas das classes mais abastadas que com elas obedecer a padrões relacionados entre si, geo-
aprendiam a arte do saber­‑fazer. Bordava­‑se métricos, florais, monogramas, isolados, repe-
com materiais produzidos na Região ou ad- tidos, em arco, com simetria ou não, impres-
quiridos, no Funchal, a mercadores. Os fios de sos no tecido através de carimbos em madeira
ouro e prata eram utilizados, bem como o fio de superfície plana ou em rolo com pigmento
de seda aplicado a ponto matiz sem urdidura, preto ou azul, geralmente na origem da enco-
que conseguia dar efeitos harmoniosos de cor menda, mas também na Região. A execução
e desenho aplicados sobre o pano, que poderia era feita por bordadeiras locais, nas suas casas,
ser o linho, o morim (tecido leve de algodão), seguindo as instruções de pontos, das diferen-
a cambraia (só depois do início do séc. xvi), a tes classes, que vinham sendo introduzidos na
seda (depois do séc. xvii) ou o damasco. Estes Região por professoras chegadas da Europa,
locais de culto eram procurados por aqueles que os ensinavam através do método lancaste-
que visitavam a Ilha, e através deles os magnífi- riano, no sentido de obter padrões coerentes e
cos trabalhos foram sendo divulgados. leves, de acordo com o que se vinha realizando
A industrialização com início em Inglater- na Europa. Na classe dos bastidos, eram já co-
ra e alargada ao resto da Europa, ao longo do nhecidos, para além dos pontos de contorno,
séc. xix, democratizou o bordado, que se di- as folhas fechadas feitas a ponto chão ou com
fundiu no seio de uma sociedade burguesa de urdidura, os garanitos, as viúvas, as solteirinhas
consumo, em ascensão e cosmopolita. O bor- e o pesponto. A classe dos caseados passou a
dado a branco e as rendas como símbolo de ter, para além do caseado simples liso, outras
pureza, leveza, higiene, honestidade e status configurações, como a forma de unha, curva,
entraram na moda divulgada por revistas de es- bico ou misto. Na classe dos abertos, que per-
pecialidade, em conformidade com o gosto das mitem transparências, através do recorte no
novas correntes artísticas do neoclássico e do tecido, e o respetivo rebordo urdido de liga-
romantismo. Os estrangeiros presentes na Re- ção entre elementos a ponto caseado e/ou
gião reconheceram o trabalho magnífico das ponto cordão, eram conhecidos o ilhó aberto
bordadeiras locais, promoveram o incremento de forma circular, o ilhó aberto de grega de
forma oval, a folha aberta, a cavaca circular
com aberturas recortadas, as estrelas e as rose-
tas de cinco ou sete pontas abertas e com um
garanito ao centro. Na classe dos arrendados,
que também permitiam transparências, através
da retirada de fios do tecido, na vertical e na
horizontal, e das aberturas presas com linha de
bordar, encontramos o crivo ou óculo de rede,
a cruzinha, o olho de passarinho, a latadinha,
o ponto ana e o ponto escada. Na classe dos
diversos, para além do ponto matiz, houve a
adaptação de pontos a várias finalidades, em
Fig. 2 – Livro de desenhos de bordados, c. 1945
que encontramos o ponto richelieu e o oficial,
(coleção de Bordal, Bordados da Madeira, Lda.). com aparência próxima à renda, tal como o
B ordado ¬ 499

ponto filet, o pesponto ou ponto de areia, uti-


lizado no preenchimento de superfícies lisas
e sombreamento de tecidos, o ponto francês
ou ponto Paris, o remendo, o aplique, o som-
bra ou revés, que, todos eles, envolvem mais
do que um tecido, e o ponto chão, sem relevo,
também feito na oblíqua. Os materiais utiliza-
dos no bordado a branco eram o linho, o algo-
dão e a cambraia – muitos deles oriundos de
países industrializados ou das suas respetivas
colónias –, e as linhas eram geralmente de cor
branca. Os bordados e as rendas eram aplica-
dos em barras, florões decorativos, debruados
e franzidos sobre tecido de diversos padrões e
cores que compunham o vestuário (vestidos,
camisas, capas, roupa interior e familiar, aná-
guas, golas, punhos, etc.) ou os acessórios (len-
ços de mão, chapéus e carteiras).
Do último quartel do séc. xix até à Primei- Fig. 3 – Desenhador de bordado da Madeira Art Hand
Embroidery, 1916 (ABM, Perestrellos Photographos).
ra Grande Guerra, a Região assistiu a uma re-
volução na forma de trabalhar o bordado, fun-
área de acostagem que fornecia carvão para
damental e decisiva para o sector passar a ser
as embarcações e tinha uma aura de exotismo
considerado indústria, não quanto à forma de
que interessava à moda da época. Alguns in-
executar o bordado, mas quanto à organização,
dustriais europeus criaram filiais das suas em-
ao número de profissões que definiu, à dimen-
presas na Região, conhecida por produzir arti-
são atingida e à forma como organizou a cida-
gos de grande qualidade feitos à mão e a baixo
de e envolveu a Região. O bordado passou a ser
mais aberto e arejado, confortável e luxuoso,
muito ao gosto francês e à moda da belle époque.
A evolução da ciência permitiu a descoberta de
novos pigmentos, utilizados na indústria têxtil
para tingimento de panos, novos produtos quí-
micos para a lavagem de tecidos e outros ma-
teriais que revolucionaram a produção têxtil.
O bordado manual diferenciou­‑se do executa-
do à máquina e foi valorizado por movimentos,
contrários à indústria, que defendiam os obje-
tos criados artesanalmente. O turismo de com-
pras e os grandes armazéns de luxo da Europa e
dos EUA divulgaram os artigos, e o turismo tera-
pêutico da Região revelou que o sector era um
elemento diferenciador de uma cultura.
A evolução nos transportes facilitou as des-
locações e a distribuição da mercadoria. A Re-
gião estava nas rotas internacionais de navios
que ligavam os países europeus às suas coló-
Fig. 4 – Compassos e esquadro para pantógrafo
nias em África, na Ásia e na América, e o Fun- de indústria do bordado Madeira, c. 1930 (coleção de Bordal,
chal passou a ter um porto com uma grande Bordados da Madeira, Lda.).
500 ¬ B ordado

custo. Esses industriais organizaram e desen-


volveram o sector no sentido de aumentar e
acelerar o processo produtivo, de manter a
qualidade, de alargar a oferta e de aumentar
as exportações. O bordado foi alargado à de-
coração. Foram criadas condições que favore-
ceram a importação de tecidos de algodão e
a exportação de bordado para países de lín-
gua alemã, que dominaram o sector de 1890
a 1914. O número de bordadeiras na Região
passou de 1029 para 32.000 (de 1862 a 1906).
Esses industriais procuravam inspiração nas
suas viagens e nas coleções de tecidos antigos,
percebiam as tendências da época e tinham de-
senhadores permanentes que alteravam, cria-
vam e registavam os seus próprios padrões, fa-
zendo moldes, livros, catálogos e amostras dos
pontos de bordado e dos tecidos utilizados.
Introduziram formas que garantiram a quali-
dade do desenho através da arte de desenhar
em papel vegetal; trouxeram máquinas de pi-
cotar e um processo em série de estampagem;
garantiram também a qualidade do bordado,
criando escolas nas suas fábricas para a prática
de diversos pontos; valorizaram o ponto som-
breado a negro, o ponto matiz, e as rendas em
ponto de veneza, valencienes, nadelspitze, bil-
ros. Faziam­‑se bordados com linhas francesas
Fig. 5 – Corante anil, azul-ultramarino, para a indústria
e inglesas, de seda, de ouro e prata, com linha do bordado Madeira, c. 1920 (coleção de Bordal, Bordados da
branca e linha azul e cru sobre linho branco. Madeira, Lda.).
Introduziram o linho de cor crua bordado a
linha castanha e foi reforçado o gosto por teci- industrial para ministrar cursos de três anos
dos de algodão, musselina, piquet, seda, cetim para debuxador de bordados, reservados aos
e veludo. Os tecidos vinham diretamente do empregados da indústria de bordados.
produtor para a Região – linhos, cambraia de Depois de 1914, os industriais de língua alemã
linho, algodões e organdis da Suíça, da Irlan- foram afastados da Região. Outros, chegados
da, de Inglaterra e de Portugal. Produziam­‑se dos EUA, tomaram o seu lugar e associaram­‑se
em grandes quantidades lenços de mão com a locais que vinham a tomar posição no sector
20, 23 e 30 cm, golas, peitos e costados de ca- no sentido de continuar a produção e garantir
misa, vestidos, casacos, coletes, aventais, ren- o fornecimento ao mercado norte­‑americano,
das e bordados para aplicar em vestidos de se- uma vez que a Europa tinha paralisado devi-
nhora, toucas, carteiras, babetes, toalhas de do ao seu envolvimento na guerra. Muitos des-
mão, toalhas de mesa até 225 cm, guardana- ses industriais tinham sede na 5.ª Avenida, em
pos de 35, 40, 45, 55 e 60 cm, naperons de di- Nova Iorque, tendo adotado os EUA como re-
versas formas e tamanhos, e conjuntos decora- sidência, mas, na sua maioria, eram originários
tivos de diversas dimensões. ou descendentes de europeus e de estados e
A importância do sector levou à criação no países árabes. Reuniram esforços para reduzir
Funchal, em 1893, de uma escola de desenho custos e aumentar a produção, diminuíram a
B ordado , comércio do ¬ 501

alteraram­‑se e simplificaram­‑se desenhos, in-


troduziram-se linhas de diversas cores e recu-
peraram-se antigas técnicas de bordar. Depois
da Segunda Grande Guerra, a Região passou
a confecionar roupa de criança e pontas de
lenço, anteriormente produzidas na Ásia para
o mercado europeu e norte­‑americano.
Desde o último quartel do séc. xx, apesar dos
esforços, o sector tem vindo a decrescer, sendo
que o número de fábricas e de locais de co-
mércio de bordado não chega a uma dezena, e
o número de bordadeiras de casa é apenas de
algumas centenas, o que se explica pela aber-
tura ao mercado asiático, pelo fim do modelo
cooperativista, pelo fim das barreiras alfande-
gárias, pela introdução da moeda única euro-
peia e pela pandemia causada pelo vírus SARS­
‑CoV­‑2 em 2020­‑2022.

Bibliog.: FELGUEIRAS, Margarida Louro, e MENEZES, Maria Cristina (orgs.),


Rogério Fernandes. Questionar a Sociedade, Interrogar a História, (Re)Pensar a
Educação, Porto, Afrontamento, 2004; FERNANDES, Rogério, Os Caminhos do
ABC. Sociedade Portuguesa e Ensino das Primeiras Letras: do Pombalismo a 1820,
Porto, Porto Editora, 1994; GARRIDO, Georgina, Dos Conventos ao Economuseu,
Patrício & Gouveia Lda – Fábrica de Bordados, Lisboa, Edições Universitárias
Lusófonas, 2016.

Georgina Garrido

Fig. 6 – Curvímetro para medir os pontos na indústria Bordado, comércio do


do bordado Madeira, c. 1960 (coleção de Bordal, Bordados
da Madeira, Lda.). O bordado é uma das marcas da identidade co-
mercial madeirense a partir do séc. xix. O pro-
quantidade de linha utilizada no bordado, alar- duto afirmou­‑se como bordado da Madeira e
garam a sua utilização à roupa de cama e intro- adquiriu fama e importância pela qualidade
duziram novos desenhos e novos modelos de do trabalho. De facto, há tendência para consi-
roupa. O mercado cresceu, e o Funchal passou derar a história do bordado da região quase só
a ter mais de uma centena de casas associadas a partir do séc. xix, ignorando a tradição que
ao sector e cerca de 60.000 bordadeiras de casa. sempre existiu, desde os inícios do povoamen-
No final da déc. de 20, a expansão foi per- to da Ilha. A valorização do papel de Ms. Phelps
turbada. A passagem do domínio da economia é pertinente apenas na afirmação do bordado
mundial de Inglaterra para os EUA causou insta- da Ilha e na criação de condições para a sua
bilidade, e o crush da Bolsa de Nova Iorque, em exportação para Inglaterra. Felizmente, foram
1929, arrastou os EUA para uma das piores cri- feitos diversos estudos que permitiram esclare-
ses da História e, com ele, a economia mundial. cer a situação e dar conta do contributo de ou-
Com a instalação do regime político do Es- tras comunidades, como a alemã, para a evolu-
tado Novo em Portugal, empreendeu­‑se a re- ção tecnológica do produto, ou a síria, no que
gulamentação e desburocratização do sec- diz respeito ao comércio do mesmo.
tor do bordado, na tentativa de melhorá­‑lo. Os Ingleses e a iniciativa dessa jovem britâ-
Renovaram­‑se artigos, alargaram­‑se mercados, nica permitiram, realmente, abrir uma via de
502 ¬ B ordado , comércio do

exportação e de valorização do bordado da destacando o bordado, especialmente expor-


Madeira no mercado inglês. Mas não podemos tado por firmas alemãs. E, no ano imediato,
esquecer, depois, o aporte alemão, em termos Meyer notou que as raparigas e mulheres se
de técnicas e de definição de outros mercados dedicavam ao bordado.
tão promissores como o inglês, a que apenas Na verdade, podemos afirmar que foi com o
as guerras mundiais vieram pôr um travão. impulso destas duas comunidades que o bor-
A Sr.ª Auguste Werlich, que esteve na Madei- dado, considerado um produto para uso e con-
ra entre 17 de novembro de 1854 e 4 de julho sumo caseiro, passou a assumir uma dimensão
de 1855, deu especial relevo ao bordado, que relevante na economia familiar dos madeiren-
considerava rico e magnífico. Estas fontes es- ses e da Ilha, por força da grande procura e va-
trangeiras afirmam que as madeirenses são ex- lorização por parte dos estrangeiros, facto que
celentes bordadeiras de branco. Em 1857, o obrigou a uma profunda transformação de há-
Prof. Schacht referia­‑se à mulher madeirense bitos, nomeadamente com o aparecimento das
das classes baixas como indolente mas exímia casas de bordados e dos exportadores especia-
na arte de bordar, pois apresentava bordados lizados no seu comércio.
finos de toda a espécie. Já em 1864, o médi- Recorde­‑se que antes de o forasteiro oi-
co Rodolfo Schultze ficou impressionado com tocentista descobrir o bordado madeirense
o movimento de chegada de navios ao porto ele já existia na Ilha, mantendo­‑se reserva-
do Funchal, onde os estrangeiros compravam do ao consumo familiar e à atividade caseira.
obras de vimes, bordados, trabalho de croché Bordava­‑se para fruição própria ou para pre-
e flores artificiais para presentear familiares sentear familiares e amigos. Para a donzela, a
e amigos. Em 1909, Boedecker ficou maravi- tradição do enxoval de casamento era, muitas
lhado com os produtos da indústria caseira, vezes, o motivo de tão paciente dedicação ao

Fig. 1 – Bordadeiras de campo em São Jorge, c. 1890 (ABM, Perestrellos Photographos).


B ordado , comércio do ¬ 503

trabalho da agulha. Raras eram as peças que 1956, com breve referência histórica ao borda-
saíam do circuito familiar. Estávamos perante do, bem como em As Mulheres do meu País, de
um bordado ancestral que seguia uma tradi- 1948, onde presta homenagem à bordadeira
ção familiar, adequando­‑se a novas formas e madeirense.
ao gosto do seu criador, que era também o O madeirense Horácio Bento de Gouveia de-
executor. A segunda metade do séc. xix foi dicou um dos seus romances do quotidiano da
o momento de viragem desta realidade, com Ilha à vida da bordadeira. Trata­‑se de Lágrimas
o estabelecimento de regras e padrões para a Correndo Mundo, de 1959, que pode ser consi-
produção do produto. derado um livro de homenagem à bordadei-
A partir de meados de Oitocentos, o bor- ra madeirense da primeira metade do séc. xx.
dado da Madeira passou a ser uma referên- O convívio com a vida difícil das bordadeiras
cia assídua nos roteiros turísticos e nos diários de Ponta Delgada da freguesia do concelho
de viagem. Mesmo assim, em 1901, Ellen M. de São Vicente levou­‑o a concluir que as peças
Taylor refere a ignorância que existia sobre o de bordado são “lágrimas que correm mundo,
superior trabalho realizado na Ilha pelas bor- transformadas em regalo dos olhos por mãos
dadeiras. Todavia, isto não era impedimento pacientes de ignoradas artistas”.
para que as exportações fossem elevadas, che- Calvet de Magalhães, no magistral texto Bor-
gando às 25 toneladas. Ainda no mesmo ano, o dados e Rendas de Portugal, de 1963, dedica largo
norte­‑americano Anthony J. Drexel Biddle afir- espaço aos segredos do bordado da Madeira.
mava que a Madeira era famosa pelo bordado, Com efeito, a fama e importância desta tradi-
ocupando esta indústria o sexo feminino, na ção mantiveram­‑se na déc. de 60, tendo o bor-
cidade e no campo. O trabalho de Ms. Phelps dado continuado a despertar a atenção dos
na promoção desta atividade, a partir de 1856, visitantes. A exaltação da arte do bordado e
é motivo de orgulho para os Britânicos. do paciente labor das bordadeiras surgiu no-
A imagem de grandes toalhas de bordado, as- vamente num testemunho literário português
soalhadas no porto pelos bomboteiros, foi uma em 1969, na obra de A. Lopes Oliveira Arquipé-
referência do quotidiano do porto. Com efeito, lago da Madeira, Epopeia Humana.
os bomboteiros aparecem associados ao comér- Na história do bordado não devemos esque-
cio no porto, fazendo um mostrador sobre o cer a sua ligação direta ao vestuário. Com efei-
mar com as toalhas bordadas; de resto, a forma to, desde o momento em que o homem sen-
delicada da exposição destas mesmas toalhas tiu a necessidade de cobrir o corpo, surgiram
nas casas de bordados era algo que impressio- os tecidos elaborados com diversos produtos e
nava qualquer um. De 1932 a 1933, Ferreira de com o recurso a técnicas de confeção com apli-
Castro ficou cativo da beleza dos bordados e da cações de bordado. Na Madeira, as formas de
imagem bucólica das bordadeiras, visível em vestir obedeceram ao padrão dos locais de ori-
toda a Ilha. O romance Eternidade, publicado gem dos colonos e às disponibilidades do meio
em 1933, é o testemunho disso. O mesmo acon- e mercado. Cultivou­‑se o linho, e o pastoreio
teceu depois, noutro texto de viagens do autor, de ovelhas foi uma atividade significativa pelo
Pequenos Mundos e Velhas Civilizações, de 1937. fornecimento de lã para a indumentária local.
Para António Montês, em Terras de Portugal, De acordo com um relatório da indústria da
obra publicada em 1939, o mais comovente Madeira, em 1862 existiam 559 teares de linho
da visita à Ilha foram os ajuntamentos de mu- e lã. A maior incidência ocorria em Santana
lheres a bordar. Também Luís Chaves faz uma e na Calheta, com 160 e 165 teares, respetiva-
exaltação do bordado madeirense no volume mente. No Funchal, a concentração de teares
A Arte Popular em Portugal. Ilhas Adjacentes e Ul- era menor, pois o porto abria­‑lhe a possibilida-
tramar, de 1968. E Maria Lamas deixou­‑nos um de de acesso aos panos de importação.
verdadeiro poema à terra de exílios, em Ar- Desde o séc. xv que a Coroa promoveu,
quipélago da Madeira. Maravilha Atlântica, de sem sucesso, a cultura da seda. A animação
504 ¬ B ordado , comércio do

determinavam que a nobreza e os homens da


governança não podiam usar botões bordados.
As leis sumptuárias, ao atacarem as peças de
vestuário bordadas, evidenciam que esta era
uma tradição comum a todo o reino e que
abrangia muitas das peças de vestuário mascu-
lino (camisas, calções, etc.) e feminino (saia,
colete, manto, capa, etc.).
O séc. xix iniciou uma mudança no modo
de vestir marcada pela simplicidade e pelo as-
peto prático da indumentária, bem como uma
tendência para a uniformização do vestuário,
através da imposição da moda vinda de França,
mas que apenas conquistou adeptos entre as
classes abastadas, uma vez que o traje popular
Fig. 2 – Bomboteiros no porto do Funchal com bordados,
1954 (coleção não identificada). continuava a manter as mesmas cores e formas.
E o bordado é uma presença constante nestas
peças de vestuário, dando um toque de beleza,
comercial provocada pelo comércio do açúcar principalmente ao traje domingueiro.
e do vinho atraiu os vendedores de tecidos da A partir de meados de Oitocentos, o apare-
Flandres e de Inglaterra. A riqueza propiciada cimento das casas de bordados e o interesse
por ambos os produtos conduziu a que o luxo cada vez maior por parte dos estrangeiros (no-
chegasse também à Ilha, sendo as sedas, os bro- meadamente Ingleses, Alemães, Norte­‑Amer-
cados e as peças ricamente bordadas bens com icanos e Sírios) pelas peças bordadas condu-
presença regular na casa das principais famí- ziram à passagem do processo artesanal de
lias madeirenses. Temos, em 1566, um teste- fabrico do bordado para o industrial. A partir
munho desta opulência, com o assalto francês de então, foram os clientes a definir o tipo de
à cidade. Segundo Gaspar Frutuoso, em relato encomendas, cabendo às casas a função de dis-
de finais da centúria, o saque foi valioso, pois ciplinar o trabalho, as técnicas e os materiais.
a cidade estava “mui rica de muitos açúcares e Assim, o bordado deixou de ser de livre cria-
vinhos e os moradores prósperos, com muitas ção da bordadeira, entrando num processo de
alfaias e ricos enxovais, muito pacífica e abas- laboração que começava com o traçado das li-
tada, sem temor nem receio do mal que não nhas e os desenhos ajustados à solicitação do
cuidavam” (FRUTUOSO, 1919, 227). E nestes mercado ou da exigente clientela. A criação
ricos enxovais estarão muitas peças bordadas. passou para a mão do desenhador, ficando a
A Coroa interveio no sentido de travar a forma final dependente da maestria das mãos
ostentação no vestuário, pelo que, em 1686, da bordadeira. Por ser um trabalho eminente-
D. Pedro fez publicar uma pragmática contra mente feminino, a concretização ocorria em
tal ostentação. O principal alvo eram “todos casa, de forma a poder conjugar­‑se a azáfama
os bordados que chamam de seda”, que não doméstica diária com o trabalho da agulha.
podiam levar prata ou ouro, e “todas as ren- O bordado foi a tábua de salvação do madei-
das que se chamam bordados” (VIEIRA, 2006, rense face à difícil situação da agricultura da
86). Já em 1749, D. João V condescendeu com Ilha, desde meados do séc. xix. A crise da viti-
algumas peças de vestuário bordadas, nomea- cultura obrigou à procura de formas de sobrevi-
damente roupa branca bordada de branco ou vência alternativas, de que o bordar será exem-
de cores, bordada no reino ou nos seus do- plo. O quotidiano da Ilha transformou­‑se e a
mínios, não de outra manufactura. Em 1780, mulher prendeu­‑se cada vez mais à casa , sendo
as leis sumptuárias no concelho de Machico que o ato de bordar acontecia no ambiente
B ordado , comércio do ¬ 505

familiar. Deste modo, no meio rural, o contac-


to entre a bordadeira e as casas fazia­‑se através
dos agentes e caixeiros que percorriam todas
as localidades à descoberta das ágeis mãos ca-
pazes de dar forma e relevo aos desenhos es-
tampados nas peças de linho e cambraia.
Na cidade do Funchal, as casas de vinhos
cederam lugar às dos bordados e a animação
comercial transferiu­‑se para novos cenários e
arruamentos. No porto, os passageiros dos na-
vios, nomeadamente dos chamados “vapores
do Cabo”, passaram a ser assediados por minús-
culas embarcações onde os bomboteiros exi-
biam as toalhas bordadas. O séc. xx anunciou­
‑se como uma nova época de prosperidade, sob
o signo do bordado. Mas depois adveio a difi- Fig. 3 – Great Exhibition of the Works of Industry of All Nations,
culdade, com as guerras mundiais. Perderam­ Londres, 1851; litografia de Dickinson Brothers, Londres, 1854.

‑se mercados, encerraram­‑se muitas das casas,


saíram as bordadeiras e aumentou a concor- em pano com polidos lavores. Daqui resulta
rência do bordado de outras regiões, nomea- que o bordado da Madeira se manteve por
damente a oriental. Mesmo assim, o bordado muito tempo no segredo das arcas das cria-
manteve­‑se na economia local, confirmando­ doras. Era trabalho de inestimável valor, pelo
‑se, juntamente com o vinho, como marca in- que não podia ser vendido, sendo apenas de
delével da Madeira. usufruto familiar, prenda de enxoval ou lega-
do por morte. Durante muito tempo, o borda-
do foi considerado um produto não vendável,
Bordado caseiro e industrial
saindo raramente do circuito familiar.
Tal como afirmámos, o bordado está presente Note­‑se que os estrangeiros que escreveram
na Ilha desde os primitivos tempos da ocupa- sobre a Ilha até meados do séc. xix não fizeram
ção. A tradição de bordar do local de origem referência ao bordado. Aquilo que mais lhes
dos povoadores acompanhou­‑os na travessia chamava a atenção eram as flores artificiais fei-
atlântica e instalou­‑se no novo espaço. Assim, tas pelas freiras do Convento de S.ta Clara. No
borda­‑se na Ilha desde o início do povoamen- relato das três viagens de James Cook (1768,
to. Bordava­‑se em linho, algodão, seda e or- 1772 e 1776) não surge qualquer indicação
gandi, para se fazer toalhas de mesa, peças de- sobre o bordado, mas sim sobre as ditas flores.
corativas, jogos de cama e peças de vestuário, E sabemos que nos conventos femininos, como
nomeadamente feminino. A leitura de alguns o de S.ta Clara, o bordado ocupava as freiras
testamentos revela que muitas daquelas peças nos momentos de lazer; todavia, a maioria dos
de vestuário passavam de pais para filhos não estrangeiros de então apenas se detinha nas
apenas pelo valor sentimental, mas também flores artificiais e na doçaria.
pela raridade e riqueza do bordado. Até meados do séc. xix não existem referên-
O mais antigo testemunho sobre o bordado cias à venda ou à exportação do bordado da
madeirense surge nos finais do séc. xvi, no Madeira. E, já o dissemos, nas diversas descri-
volume das Saudades da Terra que Gaspar Fru- ções das atividades artesanais não é mencio-
tuoso dedicou à Madeira. A propósito do ca- nado o bordado, como se poderá constatar
samento de Isabel de Abreu, da Calheta, com na memória de 1822 de João Pedro Drumond
António Gonçalves, o autor refere que as mu- (GUERRA, 1993) ou no livro publicado por
lheres da Ilha eram extremadas na perfeição Paulo Perestrelo da Câmara em 1841.
506 ¬ B ordado , comércio do

incentivo aos expositores, distribuíram­‑se me-


dalhas e louvores; no sector dos bordados e
lavores, foram atribuídas duas medalhas para
premiar os bordados brancos de Luísa e Caro-
lina Teives.
O interesse britânico por esta exposição foi
enorme, recebendo a Madeira um convite para
estar presente em Londres na exposição uni-
versal que decorreu no ano seguinte. Mais uma
vez, sob o impulso do governador civil José Sil-
vestre Ribeiro, a Madeira apresentou um “rico
bordado feito pela senhora Breciano” (Id.,
Ibid., 366) com reprodução de flores da Madei-
ra, flores de penas das freiras do Convento de
S.ta Clara.
Ambas as exposições foram um marco deci-
Fig. 4 – Funcionários da zona de lavagens, Casa J. A. Teixeira,
sivo na afirmação do bordado nos mercados
c. 1935 (ABM, Perestrellos Photographos).
local e londrino, abrindo uma nova via de co-
mércio. O primeiro registo referenciado das
A exposição das indústrias madeirenses que exportações é de 1849 e dá conta do envio para
decorreu no palácio de S. Lourenço, a par- Lisboa de “esguião de Linho bordado” (VIEI-
tir de 1 de abril de 1850, revelou o bordado RA, 2006, 33), mas foi nas exportações para o
como mercadoria salvadora da economia fa- mercado britânico, a partir de 1854, que come-
miliar. Desde então, procedeu­‑se ao seu apro- çou a delinear­‑se o primeiro e promissor mer-
veitamento capitalista, assumindo­‑se as peças cado para o bordado da Madeira.
bordadas como um produto de grande renta- Para o mercado londrino, as primeiras ex-
bilidade económica. A exposição em causa foi portações aconteceram por iniciativa da já
organizada pelo governador civil José Silvestre referida Ms. Elizabeth Phelps, filha de Jose-
Ribeiro, com o objetivo de promover junto dos ph Phelps, um destacado mercador de vinhos
madeirenses e visitantes as diversas indústrias que se havia instalado no Funchal nos finais
e artesanato do arquipélago. A escolha do mês do séc. xviii. Foi ela a responsável pela propa-
de abril deveu­‑se ao facto de ser o mês em que ganda do bordado madeirense junto de algu-
havia maior número de estrangeiros na Ilha. mas famílias, tendo também uma ativa inter-
O sucesso da iniciativa revelou­‑se, em parte, na venção no ensino do trabalho da agulha. Em
valorização comercial das obras de artesanato meados de Oitocentos, juntamente com ou-
expostas, nomeadamente o bordado. tras senhoras funchalenses, Ms. Phelps criou
Graças ao empenho pessoal do governador, uma escola lancasteriana feminina. Aqui, para
a exposição foi um êxito e a mais completa além do ensino básico, sem recurso à palma-
amostra das potencialidades socioeconómicas tória, ensinava­‑se as jovens a trabalhar com a
do arquipélago. No caso dos bordados, o re- agulha. O ensino das técnicas do bordado in-
latório sobre a exposição não podia ser mais glês influenciou de forma decisiva o bordado
elogioso: “bordados em seda a matiz com da Madeira nos primeiros anos, de tal forma
guarnições de froco, de mastro, e de ouro, em que Émile Bayard afirmava que este era conhe-
diferentes quadros, tudo feito com muito as- cido como bordado inglês.
seio e beleza. Bordados de passe em filó, bem A afirmação do mercado britânico justificava­
acabados e de bom gosto” (MENEZES, 1850, ‑se pela sua ancestral ligação e influência na re-
388). Referem­‑se também bordados bran- gião. A presença e assiduidade dos Ingleses re-
cos diversos de qualidade. Como forma de sultava de diversas circunstâncias. Na segunda
B ordado , comércio do ¬ 507

metade do séc. xviii, a Madeira assumira um intermediários. Robert e Frank Wilkinson


outro papel, com a revelação da Ilha como es- foram os primeiros estrangeiros envolvidos
tância para o turismo terapêutico, mercê das neste negócio. As relações comerciais com a
então consideradas qualidades profiláticas do Madeira eram assíduas desde o séc. xvii, fruto
clima na cura da tuberculose, o que cativou da ligação madeirense ao processo de afir-
novos forasteiros. mação colonial britânica, que teve no porto
A tísica propiciou, ao longo do séc. xix, o do Funchal um dos seus centros de apoio
convívio com poetas, escritores, políticos e no Atlântico. A presença de ingleses era fre-
aristocratas. Não obstante a polémica causa- quente no Funchal, e a sua atividade alargava­
da em torno das possibilidades deste sistema ‑se a todos os produtos com valor mercantil,
de cura, a Ilha permaneceu, por muito tempo, pelo que os Britânicos foram os primeiros a
como local de acolhimento de doentes, sendo interessar­‑se pelo comércio do bordado.
considerada a primeira e principal estância Esta valorização do bordado como mercado-
de cura e convalescença do velho continente. ria de exportação teve implicações diretas no
A presença cada vez mais assídua de doentes processo de fabrico. Assinale­‑se a necessida-
provocou a necessidade de criação de infraes- de de recrutamento de cada vez mais mão de­
truturas de apoio, como sanatórios, hospeda- obra, de forma a atender às solicitações. Assim,
gens e agentes que serviam de intermediários em 1862, temos mais de 1000 bordadeiras em
entre os forasteiros e os proprietários de tais toda a Ilha.
espaços de acolhimento. De facto, as moder- Paulatinamente, o bordado conquistou
nas viagens de recreio davam os primeiros pas- novos mercados, fruto da divulgação que fize-
sos, e foi como corolário desse facto que se ram os Britânicos, nomeadamente nos roteiros
estabeleceram as primeiras infraestruturas ho- e na literatura de viagens. A fama ultrapassou
teleiras e que o turismo passou a ser uma ati- as fronteiras e chegou à Alemanha. As primei-
vidade organizada com uma função relevante ras peças de bordado foram para aí conduzidas
na economia da Ilha.
A partir de meados do séc. xix, os visitantes
ingleses começaram a dar atenção ao bordado.
Assim, entre 1853 e 1854, Isabella de França,
no diário da visita que fez à Ilha, dá conta, de
forma clara, da presença do bordado na indu-
mentária madeirense. Na romagem de Santo
António da Serra, em outubro, observou um
homem com casaca azul “recamada de magní-
ficos bordados a ouro” (FRANÇA, 1970, 132).
Do vestuário feminino, destacou um corpe-
te “de fustão amarelo ou material semelhante
muito bem bordado a ponto branco” (Id., Ibid.,
120). E na inevitável visita a Maria Clementi-
na, no Convento de S.ta Clara, desperta­‑lhe de
novo a atenção o bordado da camisa: “tinha
um peitilho franzido em volta do pescoço, de
cassa tão fina e clara que mostrava a extremi-
dade bordada da camisa a despontar por baixo
[...]. Na mão sustinha um lenço bordado, da
mesma casa (Id., Ibid., 70).
À medida que o produto foi ganhando im- Fig. 5 – Bordadeiras, painel de azulejos da antiga Associação
portância e procura em Inglaterra, surgiram Comercial do Funchal da Av. Arriaga, 1932.
508 ¬ B ordado , comércio do

em 1881, por iniciativa de Otto von Streit, que Como referimos, os Alemães intervieram no
havia fixado morada no Funchal no ano ante- comércio do bordado a partir da déc. de 80 do
rior, na busca da cura para a tísica pulmonar. séc. xix, fazendo­‑o entrar no circuito interna-
Foi o início da intervenção alemã no sector, cional através do porto franco de Hamburgo.
realidade que perdurou até 1916, ano em que A Casa Grande de Otto Von Streit começou
Portugal entrou na Primeira Guerra Mundial. por enviar os bordados em bruto para Ham-
A intervenção dos industriais e comerciantes burgo, onde eram depois preparados para a
alemães foi um marco importante na história exportação, com destino aos EUA, facultando­
do bordado madeirense. A partir da déc. de 80, ‑lhes um fácil controlo dos ciclos produtivo e
provocou uma verdadeira revolução no proces- comercial. Assim, se por qualquer motivo o tra-
so de fabrico do bordado. A primeira alteração balho das bordadeiras não satisfizesse os seus
ocorreu ao nível dos tecidos e linhas. A linha interesses, procuravam mão de obra em outros
azul, usada até então, foi substituída pela bran- mercados, uma vez que eram detentores dos
ca. Ao mesmo tempo, introduziu­‑se uma nova padrões usados.
técnica de aplicação direta dos desenhos sobre Não obstante a animosidade britânica, os
o tecido, acabando­‑se com os desenhos alinha- Alemães conseguiram firmar uma posição de
vados por baixo. Assim, os desenhos, que até destaque no comércio do bordado entre 1890
então eram criação das bordadeiras, passaram e 1914. A sua hegemonia tornou­‑se notória a
a ser feitos e estampados no tecido por outrem partir de 1895, altura em que a Alemanha rece-
antes de serem entregues às mesmas. Para fa- beu 33.173 kg de bordados contra os 2751 kg
cilitar o processo, introduziram­‑se as máqui- de Inglaterra. Note­‑se que estes valores não re-
nas de picotar. A técnica obrigou ao estabele- fletem a realidade das exportações, uma vez
cimento de casas comerciais no Funchal com a que estavam excluídos os bordados enviados
função de procederem ao trabalho de prepa- para o porto franco de Hamburgo, um dos
ração e à distribuição do tecido e linhas pelas principais destinos do produto.
bordadeiras. Junto destas atuavam os caixeiros, A consolidação da presença da comunida-
que procediam à distribuição dos panos pelas de alemã neste comércio só foi possível com a
bordadeiras, recolhendo­‑os depois já borda- presença de um influente grupo, diretamente
dos. A tarefa de acabamento, lavagem, engo- implicado no fabrico e exportação do borda-
mar e embalar dos bordados estava reservada à do. Em 1912, o negócio era assegurado por seis
casa, que tinha sede no Funchal. casas: Wilhelm Marum, Georg Wartenberg, R.
A cada vez maior procura de bordado impli- Kretzschomar, Otto von Streit, Dutting & Gaa,
cou as necessárias inovações técnicas devidas Wolflenstein & Horwitz. A saída dos Alemães,
aos Alemães, o aumento da mão­de­obra no em 1916, foi compensada pela chegada dos Sí-
bordado e o aperfeiçoamen- rios, que rapidamente, e até
to da rede de agentes de dis- 1925, dominaram o borda-
tribuição e recolha. O facto do madeirense. Depois, foi
de os panos a bordar serem o mercado norte­‑americano,
apresentados às bordadeiras que desde 1910 vinha adqui-
já estampados com os dese- rindo importância, a domi-
nhos facilitou a adesão de nar as exportações.
muitas mulheres a esta ativi- A declaração de guerra
dade, que podia ser partilha- da Alemanha a Portugal em
da com os afazeres da vida 1916 e a pronta resposta de
diária. Portugal, com a criação da
Intendência do Inimigo,
Fig. 6 – Casa de Bordados (2017),
por decreto de 4 de maio
de Teresa Klut. do mesmo ano, levaram ao
B ordado , comércio do ¬ 509

arresto dos bens dos Alemães e à sua deporta- saída. Ao mesmo tempo, sucederam­‑se entra-
ção para os Açores, na Terceira. Esta situação ves em alguns mercados; e.g., a Inglaterra esta-
foi duplamente prejudicial para a Ilha, pois a beleceu, em 1917, a proibição de importação
fuga dos Alemães não os impediu de prosse- do bordado da Madeira, sendo secundada, no
guir com o comércio de bordado, apenas des- ano imediato, pelos EUA.
viando a atenção para novos mercados, de mão­ Com a Primeira Guerra Mundial, tivemos
de obra barata. O afrontamento das comuni- a saída dos Alemães, como referimos, e a sua
dades britânica e alemã deverá ter pesado na substituição pelos Sírios, que vieram consoli-
pronta fuga dos Alemães. Ainda em 1916, deu­ dar as exportações para o mercado americano,
‑se o primeiro bombardeamento alemão à ci- a principal esperança da indústria do bordado
dade do Funchal, em dezembro, ocorrendo da Madeira à data. Porém, a partir de 1924, o
o segundo no ano seguinte e naquele mesmo peso das pautas aduaneiras levou à saída dos
mês. Tudo isto conduziu a um ambiente de Sírios, que entregaram as casas aos madeiren-
hostilidade à comunidade alemã. ses, passando estes a controlar o sector. Nos
Os primeiros anos do séc. xx foram ainda anos seguintes, manteve­‑se o número elevado
marcados pela concorrência desenfreada. In- de empresas do ramo.
ternamente, ela envolveu os industriais rela- O movimento autonomista dos anos 20
cionados com o fabrico e comércio do borda- manteve­‑se atento aos bordados e, nos seus pla-
do; externamente, a Madeira teve de competir nos, dedicava espaço ao debate e defesa desse
com os mercados produtores da Boémia, Alsá- produto regional, que continuava a ser con-
cia, Irlanda e Suíça. No caso da Suíça, o pro- siderado uma indústria fundamental, quanto
cesso de mecanização em curso desde a déc. mais não fosse para a preservação da identida-
de 60 do séc. xix trazia vantagens acrescidas, de madeirense. O governo da Ditadura, saído
uma vez que reduzia drasticamente os custos da Revolta de 28 de maio de 1926, estabeleceu
de produção. A única garantia para a Madeira algumas medidas de apoio a esta atividade. A 9
continuava a ser os custos baixos da sua mão de setembro de 1926, permitiu a importação
de­obra, aspeto que permitia manter a produ- de tecidos de seda e linho para o bordado, em
ção local competitiva. As inovações tecnológi- regime de drawback. A mesma medida alargou­
cas no sentido da mecanização do processo de ‑se, em 1928, aos fios de tecido.
fabrico do bordado, ocorridas a partir da se- Em 1929, o golpe fatal da economia norte­
gunda metade do séc. xix, não impediram a ‑americana, com o crush da Bolsa de Nova Ior-
Madeira de manter a procura do bordado, não que a arrastar os EUA para uma das piores cri-
só pela qualidade do trabalho, mas, acima de ses da História, riscou este destino do mapa
tudo, pelo referido custo da mão de­obra. das exportações. Entretanto, a crise do merca-
do norte­‑americano foi contrabalançada com a
valorização do mercado brasileiro, que se man-
Crise do bordado teve até 1956.
A situação da economia mundial durante a pri- Mas os anos 30 foram muito complicados
meira metade do séc. xx, marcada pelas duas para a sociedade madeirense e para a sobre-
guerras mundiais, condicionou o comércio do vivência do bordado. Deste modo, o governo
mercado do bordado. A guerra isolou a Madei- saído da Revolta da Madeira, a 4 de abril de
ra, impedindo­‑a de contactar com os merca- 1931, procurou intervir na salvaguarda do sec-
dos fornecedores de matéria­‑prima e consumi- tor, abrindo uma linha de crédito de mil contos
dores de bordado. Pior do que isso foi a crise a favor da indústria, logo a 20 de abril seguin-
económica que lhe andou associada e que con- te. Em 1935, o bordado continuava a ser um
dicionou o poder de compra dos potenciais sector sob a vigilância e especial proteção do
clientes. E, como o bordado era considera- governo, tal como refere Salazar em carta es-
do um produto caro, não era fácil encontrar crita ao Dr. João Abel de Freitas, presidente da
510 ¬ B ordado , comércio do

perdido e que dificilmente retornaria aos tem-


pos dourados do princípio da centúria.
Nos anos 60, surgiram novas dificuldades,
provocadas pela instabilidade económica dos
principais mercados à data: EUA, África do Sul
e Rodésia. A tudo isto havia que juntar a con-
corrência dos bordados feitos à mão, prove-
nientes da China, Filipinas, Tailândia e Coreia,
e daqueles feitos à máquina, oriundos da Suíça
e de Hong Kong.
O 25 de Abril de 1974 aconteceu num dos
momentos mais difíceis da história do bordado
da Madeira, implicando a necessidade de uma
redobrada atenção pelo Executivo regional.
Em 1977, foi criado o Instituto do Bordado
e Tapeçarias e Artesanato da Madeira, com o
objetivo de intervir no sentido da valorização,
preservação e promoção do artesanato madei-
rense. Das atividades deste organismo, destaca­
‑se a criação da marca Bordado da Madeira, do
Núcleo Museológico do Bordado e do Centro
de Moda e Design.
Fig. 7 – A crise do bordado,
capa do Re-Nhau-Nhau (22 ago. 1931).
Casas de bordados
Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. O comércio do bordado da Madeira foi mar-
Assim, à criação do Grémio dos Industriais do cado, ao longo dos últimos 150 anos, por uma
Bordado da Madeira, em 1935, juntou­‑se, no elevada instabilidade que denuncia a fragili-
ano imediato, a isenção de direitos de impor- dade da indústria no mercado mundial. Para
tação e das imposições locais sobre a matéria­ isso contribuiu não só a conjuntura interna-
‑prima necessária ao bordado. cional, mas também a precariedade das casas
Nos anos 40, de novo, a guerra provocou de bordados criadas por estrangeiros, desig-
redobradas dificuldades ao sector e à econo- nadamente ingleses, alemães e sírios. A cada
mia familiar, uma vez que as mulheres estavam grupo correspondeu uma forma de interven-
quase por completo entregues ao bordado e ção e mercados distintos, como referimos
os homens ao vime. A emigração para o Brasil, antes.
Venezuela, África do Sul e Austrália, por esses A partir de 1890 tivemos a afirmação das casas
anos, veio a dar o golpe mortal na indústria. de bordados em detrimento dos exportadores.
Primeiro saíram os homens, deixando todos os A diferença estava em que estes se limitavam
afazeres do casal a cargo da mulher, que pas- a adquirir o bordado às bordadeiras, enquan-
sou a dispor de menos tempo para bordar. De- to as casas passaram a intervir diretamente no
pois, a restante família, que se foi juntar àque- processo produtivo, dando às bordadeiras o te-
le, fazendo diminuir drasticamente a mão­de­ cido já com os desenhos estampados. Para isso,
obra disponível. Orlando Ribeiro refere, a pro- montaram uma rede de agentes em toda a Ilha
pósito, a concorrência dos mercados e borda- que procedia à distribuição dos panos e depois
do das Canárias e das Filipinas. No período os recolhia, já bordados.
pós­‑guerra, tudo fazia indicar que o comércio A ideia das casas de bordados surgiu com os
do bordado da Madeira estava definitivamente Alemães. No primeiro quartel do séc. xx, são
B ordado , comércio do ¬ 511

referenciadas as seguintes: A. J. Fróes, Casa Bra-


dwil, Casa Grande, Casa Hougas, Casa Maru,
Casa Suíça, Companhia Portuguesa de Bor-
dados, H. C. Payne, Hamú, José Clemente da
Silva, Mallouk Bros, M. R. Silva Diniz, Wagner,
Schinitzer, União Madeirense de Bordados e
Casa Americana. Na déc. de 40, Orlando Ri-
beiro refere a atividade de 91 casas empenha-
das no comércio e exportação do produto. Em
1953, um relatório do Grémio anota a existên-
cia de 103, mas sucede que 61 delas não ultra-
passavam os 50 contos de exportações mensais,
sendo estabelecimentos de pequena dimen-
são. Apenas 12 casas faturavam mensalmente
mais de 7000 contos. Em 1969, são referencia-
das 88 casas de bordados.
A política de associação e classe do Estado
Novo também atingiu a indústria dos borda-
dos. Assim, pelo dec.-lei n.º 25643, de 20 de
julho de 1935, foi criado o referido Grémio
dos Industriais de Bordados da Madeira, com
a missão de orientar a indústria no campo da
produção e comércio. Tal como enuncia um Fig. 8 – Bordadeiras da Madeira Embroidery Co., 1911
folheto publicitário deste organismo, em 1958, (ABM, Perestrellos Photographos).
a defesa dos interesses do sector estava assegu-
rada, pois o Grémio não deixaria que se repe- mínimos da mão­de­obra, baseados numa uni-
tissem na sua vigência as crises periódicas que dade de medida conhecida como “pontos in-
antes tanto afligiram a economia da indústria dustriais”. Entre 1935 e 1958, houve uma valo-
e os seus trabalhadores. rização significativa do trabalho da bordadeira,
Em 1936, com a portaria n.º 8337, foi esta- passando­‑se dos 35 centavos por 100 pontos
belecida uma taxa sobre o valor das exporta- para 24$20. Esta melhoria atingiu também as
ções e das vendas locais para acudir às despesas 750 operárias das casas de bordados, que, em
da agremiação. Foi com os fundos resultantes 1935, recebiam entre 3$00 a 6$00 de salário e
desta taxa que se construiu a sede do Grémio, logo passaram a auferir entre 11$00 e 20$00.
o atual edifício do Instituto do Vinho e do Bor- A criação, a 1 de março de 1937, do Sindi-
dado da Madeira, inaugurado nos anos 50. cato dos Trabalhadores da Indústria de Borda-
O Grémio dispunha de armazéns para a reser- dos da Madeira foi também favorável à valori-
va de tecidos e linhas para abastecer o sector, zação do trabalho da bordadeira. Anos mais
situação ainda hoje garantida no mesmo edifí- tarde, em 1974, a agremiação sindical passou a
cio. Merece referência o trabalho do industrial chamar­‑se Sindicato Livre da Indústria de Bor-
Luís de Sousa (1895­‑1971) à frente da institui- dados da Madeira, integrando no seu seio tam-
ção, pelas suas diversas iniciativas de defesa e bém as bordadeiras domésticas.
promoção dos bordados. A missão do Grémio dos Industriais de Bor-
O Grémio, para além da função reguladora, dados da Madeira estava definida no seu bo-
atuava no sentido da defesa do bordado, pro- letim de propaganda do seguinte modo: “À
movendo o ensino do bordar às jovens, com indústria de bordados cumpria, naturalmen-
as escolas criadas em Câmara de Lobos e Ma- te, como atividade integrada na organização
chico. Ao mesmo tempo, estabeleceu os preços corporativa, ordenar a produção, valorizar
512 ¬ B ordado , comércio do

objetivos fazia parte a aposta na criação de novos


produtos com recurso às tecnologias de ponta.
A partir daqui, abriu­‑se uma nova oportunidade
para o sector do bordado. Hoje é evidente que
o bordado da Madeira conquistou um lugar na
moda, tendo surgido vários estilistas da região
a apostar, com sucesso, na utilização do mesmo
no vestuário, algo que não é novo e que está
bem documentado na história do arquipélago,
em alguns registos escritos e imagens.

Bordadeiras
Em todos os momentos da história do bordado,
a referência mais comum é ao labor da borda-
deira. É ela que, com mãos de fada, dá o toque
de beleza aos pontos do bordado. A sua destre-
za, dedicação e sacrifício são motivo de cons-
tante panegírico e admiração por todos os que
descobriram o bordado. Preservou­‑se na Ilha a
tradição ancestral de bordar e, antes que, em
Fig. 9 – Funcionários da indústria do bordado Madeira, c. 1930 meados do séc. xix, interviessem os estrangei-
(ABM, Perestrellos Photographos).
ros a dominar o circuito de produção, foi a bor-
dadeira quem criou os desenhos e quem tão
o trabalho, conferir novos direitos aos traba- graciosamente os esculpiu à linha sobre o pano.
lhadores, defender a qualidade dos produtos, O labor incansável da bordadeira, em longas
possibilitar a criação de novos mercados de noites, está testemunhado nas peças bordadas
consumo, dignificar o comércio e promover a que encantam os naturais e os visitantes, embe-
expansão das vendas”. Ainda na senda da ação lezam quem as veste, engrandecem as receções
do Grémio, criou­‑se a obrigatoriedade do selo e os repastos e enriquecem o aconchego dos
de garantia do bordado, por decreto-lei, a 8 de lençóis e travesseiros. A marca indelével do seu
dezembro de 1938. trabalho está presente em todo o lado.
O 25 de Abril de 1974 destronou o regime e É já imagem de bilhete­‑postal o quadro típi-
as estruturas económicas criadas pelo Estado co da bordadeira sentada em frente do casebre
Novo consideradas seu sustentáculo. Os gré- que a abriga durante a noite. Foi um quadro
mios deram lugar às associações, surgindo, no frequentemente mantido na retina dos visitan-
caso do bordado da Madeira, a Associação dos tes, desde finais do séc. xix. A este trabalho iso-
Produtores do Bordado, Tapeçarias e Artesa- lado somou­‑se outra imagem, a dos grupos de
nato e Obra de Vimes da Madeira. Depois, o mulheres que se juntavam à beira de caminhos
Instituto do Bordado e Tapeçaria do Artesana- e atalhos. Em toda a Ilha, eram habituais estes
to da Madeira, por decreto regional, em 1977, ajuntamentos de mulheres casadas, donzelas,
veio a atribuir uma nova dinâmica e interven- idosas e crianças, cujas mãos bordavam, mas o
ção do Governo regional no sector. A defesa seu pensamento estava no quotidiano próprio
da qualidade do bordado continuou a ser uma e alheio. Bordava­‑se, mas também se conversa-
aposta, definindo­‑se o uso do selo holográfico, va sobre a vida de uns e de outros.
a partir de 2000, para evitar falsificações. Podemos afirmar que o bordado é o testemu-
A aposta na inovação levou o Governo regio- nho da arte da mulher madeirense e também
nal a criar o Centro de Moda e Design, de cujos das suas dificuldades quotidianas, uma vez que
B ordado , comércio do ¬ 513

bordava não por prazer, mas


por necessidade, de forma
a garantir o magro susten-
to da casa. A sobrevivência
do bordado continua, ainda
hoje, a depender do seu pa-
ciente labor. A bordadeira
tinha a liberdade de esco-
lher os tecidos, linhas e pa-
drões a bordar. Concluído o
trabalho, calcorreava a cida-
de ou ia de porta em porta a
oferecer o lavor por uns ma-
gros tostões, algo que garan-
tisse a sua sobrevivência e a
da família. Muitos estrangei-
ros que foram cativados por
estas autênticas obras de arte
testemunharam­‑no, referin-
do que era neste contexto
que se encontrava o melhor
bordado feito na Ilha. Fig. 10 – Bordadeira da Madeira, aguarela de Max Römer, c. 1945
As exigências das exporta- (coleção de Edward Kassab).
ções conduziram ao apareci-
mento de novos agentes no ramo, implicando distribuição e recolha organizada pelas casas
uma mudança radical na confeção do produ- comerciais. O norte da Ilha não assumia ainda
to. Como antes apontámos, a bordadeira per- qualquer importância nesta atividade.
deu o controlo do processo, passando a atuar O período que decorre da segunda metade
como mera executante do bordado sobre teci- do séc. xix até meados do seguinte foi marca-
dos já estampados por outrem. Em troca, rece- do por um movimento ascendente de mão de
bia uma magra recompensa, contabilizada em obra feminina, indispensável para a afirmação
pontos. do bordado. O relatório das indústrias feito
Note­‑se que, embora o trabalho da bordadei- por Vitorino Santos para o ano de 1906, em
ra seja ancestral, a primeira referência ao nú- plena época de afirmação da indústria, eviden-
mero de mulheres dedicadas à atividade surge cia esta realidade, apresentando um total de
só em 1863, no relatório de Francisco de Paula 32.000 bordadeiras, quando, em 1862, eram
Campos e Oliveira sobre as indústrias do arqui- apenas 1029. O Funchal e Câmara de Lobos,
pélago durante o ano de 1862. Neste documen- com 58 %, continuavam a dominar, mas as
to já se considera o bordado “uma indústria bordadeiras estavam presentes em todos os
caseira muito importante” que ocupava 1029 concelhos.
mulheres em toda a Ilha. Não obstante esta ser Para o resto do séc. xx, os dados de que
uma atividade doméstica usual, era na cidade e dispomos sobre o número de bordadeiras
nas freguesias vizinhas do recinto urbano que são avulsos. Diz­‑nos Orlando Ribeiro, em
se notava uma maior incidência de bordadei- 1949, citando um relatório de 1940, que
ras. Com efeito, o Funchal e Câmara de Lobos eram 50.000 as bordadeiras rurais; estas,
totalizavam mais de 97 % do total. Isto resul- junto com as da cidade e as empregadas das
tava, certamente, da proximidade do local de lojas, faziam elevar a mão de obra ligada ao
venda e de ainda não estar montada a rede de bordado para 70.000. Note­‑se que o número
514 ¬ B ordado , comércio do

Este número inclui todos os profissionais ne-


cessários para a última fase do processo de pre-
paração do bordado a exportar e todos os que
se ocupavam da preparação dos desenhos e te-
cidos a entregar às bordadeiras. Isto significa
que a instalação e o pleno funcionamento das
casas de bordados aconteceram apenas a partir
da déc. de 60 do séc. xix.
A técnica de produção de bordado que foi
imposta pelos Alemães, a partir da déc. de 80
do séc. xix, retirou à bordadeira o domínio ex-
clusivo do processo de fabrico. Entrou­‑se num
ciclo de produção que passou a ter diversos
atores, como os desenhadores, estampadores,
agentes, verificadoras e engomadeiras. Ao lado
Fig. 11 – Bordadeiras e encarregado ou aprendiz da Madeira da bordadeira caseira, surgiu a profissional
Embroidery Co., 1911 (ABM, Perestrellos Photographos). que trabalhava nas casas de bordados. A estas
juntaram­‑se ainda outros trabalhadores inter-
mais alto se registou em 1950, com a presen- venientes no processo. Todavia, este grupo era
ça de 60.000 mulheres dedicadas ao borda- diminuto. Em 1922, eram 2500, que trabalha-
do, o que representava 21,2 % da popula- vam nas 70 casas, enquanto em 1968 as 88 casas
ção. A informação disponível diz­‑nos que o empregavam apenas 450 e estavam servidas de
valor médio de bordadeiras era de cerca de 1500 agentes. De entre estes, devemos notar a
30.000. Os dados de 1983 apontavam para figura do debuxador de bordados, aquele que
33.000, e, no primeiro ano do novo milénio, criava o esboço para estampar os tecidos, des-
o valor rondava apenas 6000. tacando, e.g., Cesário João Nunes, Carlos Hen-
A distribuição geográfica das bordadeiras, riques Menezes Cabral, Alírio Sequeira Nunes,
nas décs. de 70 e 80 do séc. xx, demonstra Gastão Faria Dinis e Carlos Maximiliano de
uma mudança na configuração geográfica do- Menezes Cabral.
minante em épocas anteriores, com o Funchal Um dos aspetos que chamam a atenção de
e Câmara de Lobos a perderem em favor de todos os que descrevem esta indústria e elo-
concelhos como a Ribeira Brava e Machico. giam o trabalho primoroso das bordadeiras é
Em plena euforia da indústria do bordado, o baixo preço da sua atividade. Já em 1863 a
que ocupava mais de 30.000 mulheres, o apa- bordadeira era, de entre todas as ocupações
recimento de epidemias como a colera morbus, femininas, a trabalhadora mais mal paga: 100
em 1911, teve reflexos evidentes na indústria. réis no Funchal, enquanto as demais recebiam
Em 1910, a despesa com a mão­de­obra fora salários médios superiores a 300 réis.
de 760.000$00, descendo, no ano imediato, Nos anos 20, a concorrência feroz de novos
para 480.000$00, o que reflete uma diminui- mercados fez reverter o ónus da situação
ção acentuada da mão­de obra disponível, uma para a bordadeira. As autoridades, conscien-
vez que não se assinalou qualquer alteração no tes desta realidade, ordenaram o estabeleci-
valor dos pontos pagos, tão-pouco houve uma mento de uma comissão, em 1929, para estu-
quebra da procura. dar a possibilidade do aumento do preço do
No primeiro registo da mão de­obra relacio- trabalho da bordadeira através da fixação de
nada com o bordado, em 1862, surgem apenas um preço mínimo. A tudo isto juntava­‑se a ne-
dados sobre as bordadeiras, mas, em 1906, elas cessidade de as socorrer na doença e invali-
são já diferenciadas dos demais trabalhadores dez, cabendo destacar o pioneirismo das casas
das casas de bordados, que eram então 2000. alemãs, que criaram, em 1907, uma caixa de
B ordado , comércio do ¬ 515

socorros para o pessoal que trabalhava nos e subdesenvolvimento conduziram à forte pres-
seus estabelecimentos. são da emigração, nomeadamente nos anos 50
A persistência de um pagamento baixo do e 60. Muitos madeirenses saíram rumo ao Bra-
trabalho da bordadeira de casa evidencia uma sil, Venezuela e África do Sul, em busca de me-
exploração do trabalho feminino. A razão da lhores condições de vida, primeiro os homens
resignação da bordadeira resultava do facto e depois os restantes elementos do núcleo fa-
de este ser um trabalho executado nos interva- miliar, como comentámos antes. A todo o lado
los das lides caseiras ou nas longas noites, não onde chegou a mulher madeirense chegou
sendo, em muitos casos, uma atividade que as também o bordado. A arte e tradição do bor-
ocupasse o dia inteiro. Os centavos dos pontos dado são­‑lhe inseparáveis. No caso do Brasil, é
eram sempre bem­‑vindos. Em 1952, os 47.252 conhecido o facto de, nos anos 50, existir um
contos contemplavam mais de 50.000 famílias apelo e promoção da imigração de bordadeiras
em toda a Ilha, o que representava 18 % do madeirenses. No Rio de Janeiro, São Paulo, San-
total da população. tos e Ceará, é notória a presença do bordado
A proteção e o apoio aos profissionais do sec- madeirense. No morro de São Bento, em San-
tor aconteceram já em 1894, com a criação da tos, o bordado já não tem a qualidade dos anos
Sociedade José Júlio Rodrigues de Proteção às 60 e está em vias de desaparecimento. Todavia,
Bordadeiras Madeirenses, associação de bene- em Itapajé, no Ceará, em Fortaleza, mantém­‑se
ficência sobre a qual pouco se sabe. A partir vivo. Aqui, a cidade é conhecida como a capital
de dezembro de 1907, como se disse, a inicia- do bordado, que é uma das suas principais ati-
tiva coube às casas alemãs. Nesta data, as casas vidades económicas. Na Venezuela, os testemu-
Wilhelm Marum, R. Kretzchan e George War- nhos de muitas das mulheres madeirenses que
tenberg criaram uma caixa de socorros para os saíram da Ilha nos anos 50 revelam que não
cerca de dois mil trabalhadores que emprega- se perdeu o hábito de bordar, havendo casos
vam. Todos passaram a usufruir de assistência em que se enviaram as peças desde o Funchal,
médica e de medicamentos gratuitos, sendo os devolvendo­‑as depois já bordadas.
fundos para a manutenção deste serviço resul- A homenagem à atividade da bordadeira,
tantes do desconto mensal de 50 réis por tra- insistentemente louvada por todos os que co-
balhador feito por cada casa. O alargamento nheceram o seu trabalho, só aconteceu a 30 de
deste sistema de proteção social só sucedeu junho de 1986, com a inauguração da estátua
a partir de 1946, com a criação da Caixa de do escultor Anjos Teixeira nos jardins do então
Previdência. Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesana-
O Grémio dos Industriais dos Bordados, que, to da Madeira.
como vimos, foi fundado em 1935, teve tam-
bém uma ação de relevo no apoio ao sector e
às bordadeiras. Em 1961, criaram­‑se escolas in-
Técnicas e materiais
fantis em Câmara de Lobos e Machico que per- Tal como notámos antes, a segunda metade
mitiram o ensino do trabalho da agulha a mais do séc. xix foi marcada por profundas alte-
de 691 crianças. Atente­‑se a que, já em 1914, rações nas técnicas usadas no bordado, bem
o Colégio Lisbonense ensinava as técnicas dos como nos tecidos e nos padrões bordados, que
diversos pontos do bordado nos lavores femi- foram ajustados aos padrões mais solicitados
ninos. E, mais tarde, em 1961, as bordadeiras pelos mercados de destino do produto. Primei-
foram apoiadas através da construção de um ro os Ingleses, através de Ms. Phelps, e, depois,
bairro residencial com 30 moradias. os Alemães deram o contributo mais significa-
O séc. xx foi marcado pela dispersão dos ma- tivo para a revolução do bordado e a afirmação
deirenses por diversos destinos de acolhimen- deste no mercado externo.
to. A crise e as dificuldades provocadas pelas Os tecidos mais comuns para bordar eram o
guerras mundiais e pela situação de abandono algodão de cassa, a cambraia, o linho e a seda
516 ¬ B ordado , comércio do

seda matiz e de “passe em filó”(uma espécie de


renda) e brancos.
A maior parte dos tecidos para bordar era de
importação. De Inglaterra e da Holanda che-
gava o linho, enquanto da Alemanha vinha
o algodão. A presença deste algodão foi pro-
movida de forma clara, a partir de 1897, pelo
Governo alemão, através do sistema aduanei-
ro conhecido como drawback, i.e., os tecidos
de algodão que saíam do país e retornavam
valorizados com o bordado para depois serem
reexportados estavam isentos de direitos. Esta
situação persistiu até 1906, quando a generali-
zação do uso do linho importado de Inglaterra
levou as autoridades alemãs a aumentarem os
direitos que oneravam os bordados de linho, a
partir de 1 de março.
Nesta época, os direitos cobrados na Alfân-
dega do Funchal sobre os bordados de algodão
e linho eram motivo de polémica, apelando­‑se
à intervenção do governo no sentido de uma
redução dos direitos sobre os panos importa-
dos para bordar, apontando­‑se inclusive a ne-
cessidade de seguir o exemplo da Alemanha e
o seu sistema de drawback. A atitude do Gover-
no português foi sempre de agravamento, de
modo que as dificuldades sentidas nos anos 60
resultam de medidas aduaneiras prejudiciais.
Em 1967, o bordado da Madeira não beneficia-
va das regalias da Associação Europeia de Livre
Comércio (EFTA) se o tecido não fosse expedi-
do de um Estado membro, sendo assim tribu-
tado com as taxas da pauta mínima dos tecidos
sem obra, estabelecida em 1953.
Fig. 12 – Roda de fiar, roca e fuso, c. 1940 (coleção de Bordal, No séc. xx, as mais significativas alterações
Bordados da Madeira, Lda.).
resultaram da utilização da linha castanha e
do uso do linho cru, operando­‑se uma simpli-
natural, sendo aplicada a linha branca baça e ficação na forma de bordar trazida pelos Ale-
raramente a azul e vermelha. O bordado em mães. A partir do momento em que o bordado
algodão e seda foi promovido pelos Alemães, passou a ser feito por encomenda e o processo
que também apostaram na linha branca. Mas a de fabrico comandado pelas casas, as mudan-
introdução do bordado em seda é considerado ças foram evidentes em todos os sentidos. Ms.
um contributo da Sr.ª Counis. Quanto ao teci- Phelps trouxe os motivos do bordado inglês,
do usado, temos algumas referências de 1849 como os ilhós e as cavacas. Depois, nos anos
a dar nota de que se terá enviado para Lisboa 20 do séc. xx, a crise do sector levou os indus-
bordados em esguião de linho. E, no ano ime- triais a buscarem uma saída, o que resultou
diato, na exposição organizada pelo Governo numa adequação ao bordado de outras regiões
Civil, há peças de bordado apresentadas em europeias. Deste modo, o bordado começou
B orge , O scar F redrik ¬ 517

a apresentar­‑se como uma mistura do francês duas exposições”, Atlântico, n.º 8, 1986, pp. 245­‑257; CLODE, Luiza, e BRAZÃO,
Teresa, Bordados­‑Madeira. 1850­‑1930, Funchal, DRAC, 1987; DIONÍSIO, Fátima
(com o richelieu), suíço e veneziano. Note­‑se Pitta, “Lágrimas correndo mundo. O bordado madeirense como dor e como
que os Italianos, nos anos 50, impuseram os arte”, Islenha, n.º 30, jan.­‑jun. 2002, pp. 107­‑109; FERREIRA, Duarte Nuno
Fernandes, “Bordadeiras de Câmara de Lobos. Honra, espaço e bordado”,
seus desenhos. Aqui foi notória a aproximação Xarabanda, n.º 1, maio 1992, pp. 12­‑14; FRANÇA, Isabella de, Jornal de Uma
dos diversos motivos bordados às tendências ar- Visita à Madeira e a Portugal (1853­‑1854), Funchal, JGDAF, 1970; FRUTUOSO,
Gaspar, Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural
tísticas dominantes, como a art nouveau e déco. de Ponta Delgada, 1979; GONÇALVES, Manuel, As Raparigas dos Bordados,
Desde então, até começos do séc. xxi, tem­‑se Funchal, s.n., 1902; GOUVEIA, Horácio Bento, Lágrimas Correndo Mundo,
Coimbra, Coimbra Editora, 1959; GUERRA, Jorge Valdemar, “Uma memória
mantido este tipo, subordinado a uma criado-
de 1822 do funchalense João Pedro Drumond”, Islenha, n.º 12, jan.­‑jun. 1993,
ra arte de imaginação. Neste processo de trans- pp. 181­‑208; Indústria de Bordados da Madeira, Funchal, Grémio dos Industriais
de Bordados da Madeira, 1958; KLUT, Teresa, “Economuseu Casa de Bordados.
formação do bordado madeirense ocorrido no
Para um projecto de museologia dedicado ao bordado da Madeira”, Islenha,
séc. xx enquadra­‑se a policromia dos trabalhos n.º 43, jul.­‑dez. 2008, pp. 185­‑198; Id., Casa de Bordados, Funchal, DRAC, 2017;
feita por apelo dos mercados consumidores. LIMA, Fernando de Castro Pires de (dir.), A Arte Popular em Portugal, Ilhas
Adjacentes e Ultramar, vol. 1, Lisboa, Verbo, 1968; LIMA, Rui de Abreu de,
O bordado exportado para Inglaterra come- O Bordado Tradicional Português, Lisboa, Instituto do Emprego e Formação
çou por consistir apenas em tiras de pano bor- Profissional, 1994; LUCENA, Vasco, “Os bordados da Madeira”, in BARREIRA,
João (dir.), Arte Portuguesa. As Artes Decorativas, vol. 2, Lisboa, Excelsior, s.d.,
dadas que, já no destino, eram aplicadas sobre pp. 285­‑297; “Madeira”, Modas e Bordados, ano xx, n.º 1146, 24 jan. 1934;
as peças de roupa de vestir ou de cama. MAGALHÃES, M. M. de Calvet, A Bordadeira, Lisboa, Secretariado Nacional
de Informação, s.d.; Id., Bordados e Rendas de Portugal, Lisboa, Direcção­‑Geral
O bordado da Madeira, perante as dificulda- do Ensino Primário, 1963; MATOS, Maria Izilda Santos de, “Costura batalhar.
des evidentes de um mercado limitado e exi- O cotidiano de trabalho e de luta feminino. São Paulo (1900­‑1930)”, Textos de
História, vol. 8, n.os 1­‑2, 2000, pp. 269­‑284; MENEZES, Sérvulo Drumond de, Uma
gente, não agonizou. Pelo contrário, soube Época Administrativa da Madeira e Porto Santo, vol. 2, Funchal, Typ. Nacional,
vencer as dificuldades, diversificando as saídas 1850; NASCIMENTO, Francisco Ribeiro do, Bordados da Madeira nos Morros de
Santos, Santos, Prefeitura Municipal, 1992; The National Geographic Magazine,
económicas e ajustando­‑se às exigências dos jul. 1934; Re­‑Nhau­‑Nhau, 22 ago. 1931; SANTOS, Teresa Catarina, O Bordado
clientes. A inovação esteve sempre presente na Madeira. O Processo Criativo do Bordado Madeirense, Dissertação de Mestrado
em Museologia apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e
história do bordado, em especial a partir dos
Tecnologias, Lisboa, texto policopiado, 2005; SANTOS, Victorino José dos
anos 80 do séc. xx. Esta situação continuou Santos, “Indústrias madeirenses bordados, artefactos de verga e embutidos”,
até aos dias de hoje, e as novas tecnologias e Boletim do Trabalho Industrial, n.º 5, 1906, pp. 3­‑29; SILVA, A. Marques da,
“Industrias caseiras da Madeira. O bordado”, Mensário das Casas do Povo,
o design entraram no sector como uma tábua n.º 126, 1956, p. 22; SILVA, Elisabete, “Bomboteirismo. A arte de uma profissão”,
salvadora da tradição de bordar no novo milé- Xarabanda, n.º 4, 1993, pp. 13­‑14; SOLEDADE, Maria da, Os Bordados da
Madeira. Viagem numa Fábrica de Bordados, Funchal, Eco do Funchal, 1957;
nio. Em todo este processo foi fundamental o VIEIRA, Alberto, “Ofícios e artesãos na história da Madeira”, Xarabanda, n.º 13,
trabalho e a paciência da bordadeira anónima, 2000­‑2001, pp. 3­‑9; Id., O Bordado da Madeira, Funchal, Bordal, 2006; WALTER,
Carolyn, e HOLMAN, Kathy, The Embroidery of Madeira, New York, Union
a peça fundamental do universo em questão, Square Press, 1987; WILHELM, Eberhard, “Estrangeiros na Madeira. João Wetzler
mas a que menos dele fruiu. industrial de bordados, antiquário e doador duma colecção de pratas”, Islenha,
n.º 2, jan.­‑jun. 1988, pp. 69­‑76; Id., “As casas alemãs de bordados entre 1880
A História regista dois produtos que, ontem e 1916 e a família Shnitzer”, Islenha, n.º 7, jul.­‑dez. 1990, pp. 52­‑60; Id., “João
como hoje, são a imagem de marca do arqui- Wetzler. Vendendo bordados e antiguidades, um refugiado judeu fez fortuna na
ilha da Madeira”, Revista de Estudos Judaicos, n.º 3, 1996, pp. 83­‑92.
pélago: o vinho e o bordado. Eles correram
mundo e foram, e continuam a ser, produtos de † Alberto Vieira
grande interesse económico que sempre deram
aos estrangeiros a mais elevada maquia e ao ma-
deirense uma magra esmola. O bordado pode Borge, Oscar Fredrik
muito bem ser entendido como uma obra de
arte, mas aqui o artista é anónimo, tanto o dese- Biólogo limnologista e político ativo no movi-
nhador, que traça de forma primorosa os moti- mento operário sueco, nasceu a 21 de janeiro
vos florais e a composição, como a bordadeira, de 1862 em Estocolmo e faleceu nessa cidade
que dá forma e relevo ao traço dele. a 4 de janeiro de 1938. Estudou em Estocol-
mo e Uppsala, onde se doutorou em 1895. Par-
Bibliog.: ARAÚJO, Ana Lídia Pereira Garanito, “Memórias bordadas”, Girão,
n.º 3, 2006, pp. 58­‑60; CÂMARA, Benedita, A Economia da Madeira (1850­‑1914),
ticipou na expedição à Patagónia organizada
Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2002; CÂMARA, Paulo Perestrelo da, pelo antropólogo sueco Erland Nordenskiöld
Noticia sobre a Ilha da Madeira, Lisboa, Typ. da A. das Bellas Artes, 1841;
CLODE, Luiza, “Bordados. Indústria caseira”, Das Artes e da História da
em 1899. Foi membro do conselho da cidade
Madeira, vol. 8, n.º 38, ano xviii, s.d., pp. 31­‑40; Id., “Madeira. A propósito de de Estocolmo e deputado no Parlamento pelo
518 ¬ B orges , J o ã o G on ç alves

seus mergulhos no Lido, pelo tempo que per-


manecia imerso. Foi pioneiro na caça subma-
rina na Madeira, tendo ganhado o primeiro
lugar no primeiro concurso desta modalidade
organizado pelo Clube Naval do Funchal, no
Paul do Mar, a 27 de setembro de 1953. Foi
também pioneiro no mergulho com escafan-
dro autónomo, tendo acompanhado a equipa
do Com. Cousteau durante a sua visita à Ma-
deira em agosto de 1956. Em julho de 1966,
acompanhou também os mergulhos do batis-
cafo francês Archimède na Madeira, tendo pro-
movido uma conferência proferida no Fun-
chal pelo Com. Georges Houot e pelo Eng.º
Henri­‑Germain Delauze, responsáveis pelo
batiscafo.
Oscar Fredrik Borge, c. 1925 (arquivo particular). No plano associativo, pertenceu aos cor-
pos dirigentes do Clube Naval do Funchal
Partido Social Democrata Sueco. Fez parte da desde 1962 até 1988, tendo sido comodo-
direção da Biblioteca Pública de Estocolmo. ro, vice­‑presidente e presidente da respetiva
Como biólogo, destacou­‑se no estudo das Assembleia­‑Geral.
algas de água doce, tendo em 1911 publica- O entusiasmo pelo mar levou­‑o a interessar­
do um pequeno trabalho sobre as algas de ‑se pela colónia de lobos-marinhos, Monachus
água doce colhidas na Madeira por Carl Lind- monachus, das ilhas Desertas, que nos anos 80
man em 1885, no qual estão referidas nove do séc. xx estiveram muito perto da extinção.
espécies, cinco de algas verdes e quatro de Fruto deste interesse e das suas observações,
cianobactérias. participou na 1.ª Conferência Internacional
sobre o Lobo-Marinho, realizada em Rodes em
Obras de Oscar Fredrik Borge: Australische Süsswasserchlorophyceen (1896);
Algologische Notizen. 7. Süsswasseralgen aus Madeira (1911); Die von Dr. A.
Löfgren in Sao Paulo gesamelten Süsswasseralgen (1918).

Bibliog.: BORGE, Oscar, “Algologische notizen. 6­‑7”, Botaniska Notiser, vol. 2,


1911, pp. 197­‑207; WESTRIN, T., Nordisk Familjebok. Konversationslexikon
och Realencyklopedi, Trettiofjärde Bandet I. Ö­‑Öyslebö, sup. AA­‑Cambon,
Stockholm, 1922.

Manuel Biscoito

Borges, João Gonçalves


João Borges nasceu a 22 de setembro de 1922
na freguesia do Monte, concelho do Funchal,
e faleceu nesta cidade a 26 de novembro de
2008. Empresário, desportista náutico e gover-
nante, destacou­‑se sobretudo nos sectores do
turismo e do mar.
A sua paixão pelo mar veio de muito novo,
quando, sendo asmático, encontrou no mar Fig. 1 – João Gonçalves Borges, “Mr. Madeira”, c. 2000
alívio para a sua maleita. Ficaram célebres os (fotografia de Paulo Camacho).
B orges , J o ã o G on ç alves ¬ 519

1978. Nesta apresentou uma comunicação in-


titulada “The monk seals of Madeira”, na qual
deu conta da situação precária em que estes
mamíferos marinhos se encontravam. Efetuou
também várias deslocações às ilhas Selvagens,
na companhia do seu amigo Paul Alexander
Zino, tendo colaborado nos estudos sobre as
aves marinhas realizados por este ornitólogo
amador.
A sua capacidade de comunicação, as suas
áreas de interesse e a fluência em línguas es-
trangeiras fizeram de João Borges um relações­
‑públicas nato, levando­‑o a contactar com inú-
meras personalidades que visitaram a Madeira.
Em 1953, o realizador de cinema John Hous-
ton deslocou­‑se à Ilha para realizar algumas
cenas do seu filme Moby Dick, tirando partido
da existência, nessa época, de atividade baleei-
ra. João Borges participa no filme, vestindo a
pele de uma baleia branca.
Na sua qualidade de “homem dos sete ofí-
cios”, João Borges foi também um técnico de
precisão muito conceituado, tendo fundado a
relojoaria Big Ben em 1947, na então recen- Fig. 2 – Esboço para caricatura de João Gonçalves Borges,
Paulo Sá Brás, 1979 (ABM, Arquivos Particulares).
temente aberta Av. de Zarco. Na sua oficina,
reparou muitos equipamentos náuticos de pre-
cisão, não só de desportistas locais, como tam- primeira conferência de imprensa dada pelas
bém de iatistas que escalaram a Madeira. Esta novas autoridades no Funchal.
sua aptidão levou­‑o a ser cronometrista de mui- Já na Direção Regional de Turismo, foi no-
tas provas náuticas, entre elas a Regata Oceâ- meado em 1981 diretor dos serviços de pro-
nica Lisboa­‑Madeira, cuja primeira edição teve moção, relações públicas e publicidade, e re-
lugar em 1950. cebeu nesse ano o Golden Helm, galardão
O seu talento para os contactos pessoais atribuído pela Associação Internacional de
conduziu­‑o inevitavelmente ao sector do turis- Relações Públicas. A 10 de janeiro de 1984, foi
mo. Assim, em 1969, ingressa na Delegação de nomeado diretor regional de Turismo, cargo
Turismo da Madeira, ao lado de José Ribeiro de que ocupou até à sua aposentação, em 1992.
Andrade e António Bettencourt da Câmara, fi- A 18 de maio de 1986, o Governo Regional
cando responsável pelos sectores da promoção da Madeira atribuiu­‑lhe a Medalha de Ouro
e das relações públicas. Torna­‑se assim o pri- de Mérito Turístico, e em 1987 recebeu a Me-
meiro promotor oficial do turismo da Madei- dalha de Mérito Turístico instituída pela As-
ra, cargo que desempenhará por muitos anos e sociação Portuguesa das Agências de Viagem
que o levará aos principais países de onde são e Turismo, no decurso do seu XIII Congres-
originários os turistas que visitam a Ilha. so, em Marraquexe. Aquando da sua aposen-
Na sequência da Revolução de 25 de abril de tação, os diretores dos centros de turismo de
1974, foi nomeado membro do Gabinete de Portugal, reunidos no Funchal, homenagea-
Informação, situado no palácio de S. Louren- ram João Borges oferecendo­‑lhe uma placa
ço, e encarregado de dar informações aos jor- na qual se lê a seguinte inscrição: “Ao ilustre
nalistas estrangeiros presentes, assessorando a embaixador da Madeira em todo o mundo,
520 ¬ B orges , V asco

João Gonçalves Borges, como homenagem Madeira, pois a correspondência da Associa-


pelos relevantes serviços prestados ao turis- ção Comercial do Funchal nos meses seguin-
mo português”. A 10 de junho de 1993, foi tes, sobre o racionamento de bens de primeira
agraciado com o grau de comendador da necessidade, já era dirigida ao Maj. José Vicen-
Ordem de Mérito pelo Presidente da Repú- te de Freitas (1869­‑1952), como governador
blica, Mário Soares. substituto. A situação também era muito com-
João Borges foi casado com Deirdre Mary plicada em Lisboa, inclusivamente nas várias
Isabella Shanks Borges, de quem teve dois fações do Partido Republicano, prevalecen-
filhos. do uma linha mais dura onde militava Ribei-
ra Brava, sendo Vasco Borges substituído pelo
Obras de João Gonçalves Borges: “The monk seals of Madeira” (1978).
filho do antigo visconde, Sebastião de Heré-
Bibliog.: impressa: CAIRES, Victor, e FERNANDES, Catanho, 50 Anos de dia (1876­‑1958), que, nomeado em dezembro
História do Clube Naval do Funchal, Funchal, Clube Naval do Funchal, 2002;
CUNHA, António et al., Histórias do Mar e do Naval, Funchal, O Liberal,
desse mesmo ano, tomou posse a 8 de janei-
2013; digital: CAMACHO, Paulo Silva, “João Borges. Mr. Madeira: a vida a ro seguinte, mas também para um curto man-
promover”, Biografias da Madeira, 12 mar. 2012: http://biografiasmadeira.
dato. Porém, em Lisboa, “Madame Vasco Bor-
blogspot.pt/2011/08/joao­‑borges.html (acedido a 6 de mar. 2017).
ges” ainda conseguiu angariar donativos para a
Manuel Biscoito “Sopa Económica” do Funchal, depois conhe-
cida como “Sopa do Cardoso”, numa vitalidade
verdadeiramente notável, donativos que dão
Borges, Vasco entrada na Associação Comercial em março de
1915 (CARITA, 2002, 67).
Nascido em Lisboa, a 23 de setembro de A fação mais conservadora do Partido Re-
1882, licenciou­‑se em Direito pela Faculda- publicano, onde militava Vasco Borges, viria
de de Direito da Univ. de Coimbra, deven- a reforçar depois a sua posição política,
do ter estabelecido, logo como estudante e aproximando­‑se do Maj. Sidónio Pais (1872­
naquela cidade, ou em Lisboa, entre 1904 e ‑1918). Embora Sidónio tenha sido assassi-
1905, quando se fixou como advogado, re- nado a 14 de dezembro de 1918, tal como o
lações estreitas com os membros do Partido antigo visconde, a 16 de outubro do mesmo
Republicano Português. Com 32 anos, nas ano, em 1920, Vasco Borges integrou, como
vésperas da Primeira Grande Guerra, foi no- ministro da Instrução Pública, o Governo
meado governador civil do Funchal. A sua do Cor. António Maria Baptista (1866­‑1920);
nomeação foi determinada pelo dec. de 4 de em 1922, como ministro do Comércio e Co-
abril de 1914, tomando posse municações, o Governo do
deste cargo a 27 do mesmo Cor. Carlos Henrique da Silva
mês, tendo sido recebido no Maia Pinto (1866­‑1932); tam-
cais regional pelo presidente bém em 1922, como ministro
da Junta Geral, Gen. Daniel do Trabalho, os dois governos
Telo Simões Soares (1864­ do Eng.º António Maria da
‑1938), e pelo deputado Silva (1872­‑1950); em 1925,
Francisco Correia de Herédia como ministro dos Negó-
(1852­‑1918), antigo visconde cios Estrangeiros, o Governo
da Ribeira Brava. de Domingos Leite Pereira
O governador deve ter fi- (1882­‑1956); e, entre 1925 e
cado muito pouco tempo na 1926, como ministro dos Ne-
gócios Estrangeiros, o 4.º Go-
verno de António Maria da
Fig. 1 – Vasco Borges como deputado,
Silva, derrubado pelo golpe
c. 1936 (AHP). de 28 de maio desse ano, que
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 521

Fig. 2 – Chegada de Vasco Borges ao Funchal, sendo recebido pelo Gen. Simões Soares e pelo deputado Ribeira Brava, 1914
(Ilustração Portugueza, 1 jun. 1914, 703).

implantou uma ditadura e conduziu ao Esta- Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998;
digital: “Vasco Borges”, App Parlamento, s.d.: http://app.parlamento.pt/
do Novo. PublicacoesOnLine/DeputadosAN_1935­‑1974/html/pdf/b/borges_vasco.pdf
A posição política de Vasco Borges transitou (acedido a 10 maio 2018); “Vasco Borges”, Grão­‑Mestre das Ordens Honoríficas
Portuguesas, s.d.: http://www.ordens.presidencia.pt/?idc=153 (acedido a 10
então de uma ativa participação governativa maio 2018).
na Primeira República para o grupo dos ele-
Rui Carita
mentos apoiantes do Estado Novo, onde era
apontado como um dos confidentes de An-
tónio de Oliveira Salazar (1889­‑1970), como Botelho, Sebastião Xavier
descrito na sua nota biográfica parlamen-
tar, em relação à então Assembleia Nacional, A 15 de junho de 1818, foi nomeado gover-
onde esteve como deputado na Primeira e Se- nador e capitão general da Madeira o juiz de-
gunda Legislaturas, entre 1935 e 1942. Nesta sembargador Sebastião Xavier Botelho, que
nota, constam as suas participações como mi- chegou ao Funchal a 12 de maio do ano se-
nistro nos vários governos da Primeira Re- guinte e tomou posse três dias depois na Câ-
pública, mas não a sua passagem pelo lugar mara Municipal do Funchal, como era hábito.
de governador civil do Funchal. Foi feito co- O novo governador embarcara em Lisboa a 27
mendador da Ordem Militar de Cristo a 28 de de abril na fragata Vénus, mas ficou no Tejo du-
junho de 1919, elevado à Grã­‑Cruz da mesma rante oito dias “por causa dos ventos duros e
Ordem a 2 de dezembro de 1924 e faleceu em contrários, só se fazendo à vela” a 6 de maio,
Lisboa a 19 de novembro de 1942. pelo que só chegou “às sete horas da tarde” do
dia 12 de maio ao Funchal, como informou
Bibliog.: impressa: Ilustração Portugueza, 1 jun. 1914; MELLO, Luís de Sousa,
dois dias depois (ABM, Governo Civil, liv. 202,
e CARITA, Rui, Associação Comercial e Industrial do Funchal. Esboço Histórico
(1836­‑1933), Funchal, Edicarte, 2002; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, fls. 105v.­‑106).
522 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier

Fig. 1 – Provável retrato de Sebastião Xavier Botelho, oficina


de Joaquim Leonardo da Rocha (atr.), c. 1820 (fotografia
de Bernardes Franco, São Lourenço, 2015).

Nessa fragata, e com o anterior Gov. Flo-


rêncio Correia de Melo (1766­‑1834), regres-
saria a Lisboa o embaixador António Salda-
nha da Gama (1778­‑1839), depois conde do Fig. 2 – Entrada do Gov. Sebastião Xavier Botelho
e da mulher para a Confraria da Soledade, março de 1820
Porto Santo, que obtivera um ano de licen- (ABM, Governo Civil, liv. 235).
ça depois da sua estadia em São Petersburgo,
recolhendo­‑se em casa dos sogros, na Ribeira
Brava, aguardando a chegada da Vénus desde o pai nunca chegou a casar, havia conseguido
os finais do ano anterior. O ministro D. Miguel um largo reconhecimento, principalmente
Pereira Forjaz (1769­‑1827) escrevera­‑lhe várias no campo da jurisprudência. Bacharel pela
vezes a solicitar o seu regresso para se encon- Univ. de Coimbra, tinha sido juiz de direito da
trar com o conde de Palmela (1781­‑1850), mas Casa de Bragança e desembargador da Relação
ele escusara­‑se pela falta de segurança das em- do Porto. Durante as campanhas peninsulares,
barcações e do mar, entre a Madeira e Lisboa, tinha sido juiz privativo do Comissariado Bri-
infestado de “corsários insolventes” (ANTT, tânico e inspetor­‑geral dos Transportes, pelo
Arquivos de Pessoas Singulares…, cartas de 14 menos em 1811, passando depois ao Rio de Ja-
dez. 1818, 12 e 25 jan. 1819). neiro, onde desempenhou as funções de depu-
O novo governador era filho natural do Ten.­ tado fiscal das Juntas dos Arsenais, Fábricas e
‑Cor. Tomás João Xavier Botelho, comandan- Fundições do Brasil, de inspetor dos Teatros e
te do 2.º Regimento de Infantaria do Minho, de desembargador da Casa da Suplicação, de
por sua vez filho dos 4.ºs condes de São Miguel, onde saiu para o Governo da Madeira. Dota-
tendo nascido em Viana do Castelo, ou Lisboa, do de rara inteligência e ilustração, imprimiu
a 8 março de 1768. Tratava­‑se de uma personali- um ritmo totalmente diferente ao governo da
dade invulgar e que, embora filho natural, pois Ilha e, principalmente, à fortaleza e palácio de
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 523

S. Lourenço, que passaria a desempenhar um para o Rio de Janeiro. Profundo conhecedor


papel e a ter uma visibilidade bastante diferen- de teatro, escreveu algumas peças que foram
tes do que até então tinha acontecido. representadas para subsidiar a reabertura do
Teatro Grande. Mais tarde, ainda tentará criar
uma lotaria, embora a anterior, levada a efeito
Início de funções pelo Gov. José Manuel da Câmara (c. 1760­‑c.
No final de maio de 1819, apenas 15 dias de- 1825), não tivesse dado resultado, ficando por
pois de tomar posse, já tinha traçado – e deu­‑o vender grande parte dos bilhetes.
a conhecer, em ofícios, ao conde de Arcos e a Em relação aos comandos militares, ficou
Tomás Vila Nova de Portugal, respetivamente sem saber o que deveria fazer com os oficiais
ministros da Marinha e Ultramar e do Reino, que tinham vindo com os governadores ante-
no Rio de Janeiro – um panorama geral sobre riores e haviam ficado na Madeira, como era o
a realidade insular, os seus problemas e aque- caso de Luís de Melo Correia, sobrinho do go-
las que eram, na sua perspetiva, as áreas prio- vernador anterior, e de Miguel Seabra da Silva
ritárias de intervenção. As suas observações, Beltrão, que casara com uma filha de Henrique
apesar do seu carácter subjetivo (por razões Correia de Vilhena Henriques (1769­‑c. 1830),
diversas, que vão do preconceito à simples ig- irmão do conde de Torre Bela (1768­‑1821),
norância, e que resultam, em parte, do pouco militares que se mantinham como sendo do
tempo de que dispusera para conhecer o es- Exército de Portugal e não integrados nas for-
paço e as pessoas), permitem­‑nos, no entanto, ças da Ilha. Por outro lado, em relação à com-
apresentar um quadro genérico da Ilha, que posição do Batalhão de Artilharia, esse aspeto
considerava poder “melhorar muito”, à entra- poderia ter outro interesse. O Batalhão era to-
da da déc. de 20. Para Botelho, os madeiren- talmente constituído “por naturais deste país
ses eram “naturalmente hábeis para as artes e e filhos de colonos”, pelo que na perturbação
para as ciências”, embora “faltos de estímulos”, ocorrida no ano anterior “se tinha acomoda-
vivendo alguns deles na “ociosidade”, de onde do àquele tumulto”. Acrescia que, “no exame”
entendia resultarem as “desarmonias das fa- que se fizera “às mãos ocultas que semearam a
mílias, os ditos vagos, as palavras indecentes, discórdia”, as mesmas “ficaram soltas”, e, como
e certas liberdades”. Tudo isto considerava, no o assunto continuava de pé, era muito possí-
entanto, “ser suscetível de remédio”, bastando vel que se voltasse a atear, “e para se extinguir
para tal pôr em observância as leis de polícia ou reprimir cabalmente”, carecia “de misturar
e tratar de abrir um teatro, para os “entreter e com a força de filhos da terra, outra força es-
distrair” (RODRIGUES, 2008, 787). tranha que os possa conter” (ABM, Governo
No seu novo cargo, começou por contactar Civil, liv. 202, fls. 117­‑117v., 119).
com os seus serviços e com os comandos mili- Sobre a Junta da Fazenda e a sua orgânica,
tares e por percorrer a fortificação do Funchal, o governador informou que “a administração
mandando elaborar um estudo sobre o estado da Junta se acha em bom estado, o Erário com
das fortalezas e das forças que as guarneciam. crédito e a contabilidade exata”. No entanto,
Um dos problemas que imediatamente o aler- teria detetado “alguma irregularidade no siste-
taram foi a proliferação dos “abusos, relaxa- ma”, fruto do aglomerado de ordens e “por-
ções e uma facilidade mal entendida nos man- tarias singulares”, que logicamente não con-
cebos ociosos e de nenhuma educação”, pelo duziam a “um resultado metódico”. O sistema
que mandou “pôr em observância as Leis de poderia melhorar se o rei autorizasse a execu-
Polícia”, que pouco depois mandaria publicar ção de “um projeto de Finanças relativo a esta
em edital (AHU, Madeira, doc. 4746), embo- Capitania” (AHU, Madeira, doc. 4624). Esse
ra, e ao mesmo tempo, começasse também a projeto permitiria resolver de imediato pelo
“trabalhar para abrir o Teatro para os distrair” menos três questões: 1. a consulta sobre a pos-
(Ibid., Madeira, doc. 4656), como comunicou sibilidade do cultivo e exportação de urzela,
524 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier

Fig. 3 – Vista do antigo Colégio dos Jesuítas, Edward Hawke Locker, julho de 1805 (ABM, Arquivos Particulares).

tendo em conta que a Coroa só autorizava que área. Por exemplo, com a morte do bacharel
tal se fizesse em Cabo Verde; 2. a anuência ao José Julião de França e Vasconcelos, proprietá-
requerimento, de janeiro de 1817, para que se rio do ofício de juiz dos órfãos de Machico, o
proibisse a entrada de rum e de outras bebidas governador mandou perguntar como havia de
espirituosas; 3. a compra dos vinhos que se pre- proceder para o preencher. Em julho de 1819,
tendia efetuar por conta da Fazenda Real, com tinham­‑se apresentado o novo juiz de fora, Luís
o objetivo de os vender em Londres, para en- Ribeiro de Sousa Saraiva, e o novo corregedor,
contrar um meio alternativo de financiamento Luís Gomes de Sousa Teles, ambos chegados à
da Coroa (pretensão que remontava a dezem- Ilha sem carta régia de nomeação devidamen-
bro 1818). te assinada. Embora lhes tenha dado posse do
Detetara igualmente um atraso na arrecada- lugar, não deixou de insistir várias vezes nas
ção, na ordem dos “quatrocentos contos, o que dificuldades que causavam incorreções desse
provém dos muitos devedores falidos”. Achava género. O anterior juiz e corregedor, Manuel
assim que “arrecadar com execuções vivas este Caetano de Almada e Albuquerque, tinha se-
débito” seria “um sistema destrutivo dos habi- guido para o Rio de Janeiro a 16 de janeiro de
tantes da Ilha, cujos cabedais têm diminuído 1817, aliás com muito boa informação do ante-
progressivamente”. O melhor sistema seria pro- rior governador, pelo que Sebastião Xavier Bo-
ceder a “consignações módicas, conciliando os telho optou por lhes dar posse do lugar, dado
interesses da Fazenda Real com os dos habitan- que a falta das autoridades superiores dessa
tes desta Capitania” (Ibid., Madeira, doc. 4624). área era altamente gravosa para a Ilha.
Como jurista que era, deu também, logo Pouco tempo depois, haveria de alvitrar para
de início, especial atenção aos assuntos dessa o Rio de Janeiro que se aplicasse na Junta do
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 525

Crime ou Junta das Justiças da Madeira a lei de Quanto à organização administrativa insular,
15 de novembro de 1810, que instituía e enqua- para além de fortes críticas ao desempenho
drava idêntico órgão nos Açores. Uma das suas dos poderes locais, Sebastião Xavier Botelho
principais preocupações foi o sustentáculo eco- advogou, em 1821, a necessidade de rever a di-
nómico desse órgão, que assentava no dinhei- visão do território, algo que acabaria por acon-
ro das condenações, de que era depositário Joa- tecer após 1834/1835. A este respeito, convém
quim Coelho de Meireles. Foi com base nesta não esquecer que Xavier Botelho era apenas
Junta que, em setembro, Xavier Botelho difun- o segundo governador a não ter de lidar com
diu as novas instruções sobre o Registo do Porto a presença militar britânica e com tudo o que
e que, no ano seguinte, ainda ampliava as ins- esta trouxera, social, política e economicamen-
truções de polícia com 22 artigos sobre os pro- te, desde a divisão de poderes imposta (entre
cedimentos a observar na chegada das embar- 1807 e 1814) até ao relacionamento, relativa-
cações, nas visitas aos navios e no controlo dos mente próximo, que os comandantes milita-
passaportes. Como governador e jurista, igual- res britânicos haviam fomentado com os natu-
mente se interessou por um assunto que até rais da Ilha e os poderes locais, alheando­‑se,
então, embora objeto de reparos, não havia en- frequentes vezes, das autoridades insulares
contrado solução: os honorários dos oficiais de (governador, corregedor e juntas). Quanto
justiça da Ilha. No quadro da Junta das Justiças às acusações que fez contra os poderes locais
mandou então reunir, em meados de novembro e os seus “abusos”, “violências” e “extorsões”,
de 1820, todos os advogados do Funchal, nessa apesar de estarem, por vezes, baseadas em re-
altura 16, para se tentar encontrar um consenso latos de terceiros ou resultarem de uma análi-
com vista à unificação das suas remunerações. se superficial ou intuitiva de alguns casos, para
A 22 desse mês de novembro surgia então um além de serem fruto dos próprios interesses de
regulamento provisional com vista à regulamen- consolidação do poder do novo governador, a
tação dos salários dos oficiais de justiça da Ilha. verdade é que se apontavam práticas em rela-
A situação eclesiástica também lhe mereceu ção às quais as queixas já eram antigas. O que
juridicamente algumas reservas. Desde a che- então estava em causa seria uma das constan-
gada à Ilha do bispo de Meliapor e eleito de tes da primeira metade do séc. xix na Madei-
Elvas, D. Fr. Joaquim de Meneses e Ataíde (1765­ ra, como o foi no reino: a (elevada) corrupção
‑1821), que a situação era delicada, tendo havi- nas estruturas administrativas (centrais, insula-
do, pelo menos inicialmente, uma franca oposi- res ou locais), que ia desde a simples cobran-
ção do cabido ao novo administrador diocesano. ça indevida de custos, taxas e emolumentos até
Embora alguns cónegos não merecessem, por ao desvio de fundos e à gestão fraudulenta dos
vezes, muita confiança, como já informara o an- recursos existentes, passando pelo benefício e
terior governador, Xavier Botelho colocava algu- usufruto de um conjunto de facilidades e de
mas dúvidas em relação à prisão do Cón. Gregó- privilégios que a lei não previa.
rio Rodrigues de Abreu, às ordens do prelado.
O cónego teria insultado o bispo e outros cóne-
gos da Sé, apelidando­‑os de pedreiros­‑livres. Em
Visita de reconhecimento à Ilha
causa estaria a recente alteração dos estatutos do Logo nestes primeiros meses do seu governo,
cabido da Sé, feita pelo administrador diocesa- Sebastião Xavier Botelho resolveu visitar toda
no e onde o mesmo assumia um novo papel na a Ilha, saindo em finais de agosto do Funchal,
área da nomeação dos cónegos. Não só por o pelo Oeste, e pensando levar nessa volta cerca
bispo eleito de Elvas não ser bispo do Funchal, de 20 dias, assunto que comunicou para o Rio
mas somente administrador diocesano, como de Janeiro. O governador fez­‑se acompanhar
por todo o desenrolar do processo, Xavier Bote- pelo Brig. Jorge Frederico Lecor (c. 1775­
lho levantou algumas dúvidas em relação à juris- ‑1822) e pelo Ten.­‑Cor. Paulo Dias de Almei-
dição eclesiástica do Funchal. da (c. 1778­‑1832), saindo do Funchal a 20
526 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier

Fig. 4 – Planta da Costa e Vila de Santa Cruz, Paulo Dias de Almeida, 1820 (DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia
Militar, 3546-II-3-31-43).

de agosto e enviando da Calheta, a 27 desse em meados desse século, com os trabalhos


mês, as primeiras impressões. Tinham visto dos capitães de engenheiros Tibério Augusto
“a fortificação, milícias, igrejas, estradas, cul- Blanc (c. 1810­‑1875) e António Pedro de Aze-
tura, águas, ribeiras, levadas e o estado de es- vedo (1812­‑1889), chegando a obra a ser visita-
pírito público” (ABM, Governo Civil, liv. 202, da em 1848 pelo Eng.º António Maria Fontes
fls. 122v.­‑124v.). Pensavam então atravessar a Pereira de Melo (1819­‑1887), depois chefe de
Ilha em direção à costa norte e ao Porto do governo. O Gov. Xavier Botelho estava de re-
Moniz, fazendo o trajeto pela “serra e pas- gresso ao Funchal a 7 de setembro, depois de
sando à vila de S. Vicente, cabeça das terras ter dado a volta à Ilha, ouvindo as queixas e re-
que ficam a esse lado da Ilha, para observar presentações dos povos.
as nascentes de águas chamadas Rabaçal, que Com a visita à Ilha, foram afloradas inúme-
aproveitadas e bem dirigidas repararão as ter- ras ideias, como a depois estrada central, mas
ras, que se abandonaram ou cultivam mal por o seu curto governo e os reflexos da Revolução
muito áridas” e que assim diminuiriam “as do Porto, entre os finais de 1820 e os inícios
desavenças dos lavradores, que contínuo su- de 1821, não lhe permitiram muito mais mar-
cedem por esse objeto” (Ibid., Governo Civil, gem de manobra. Também sobre as câmaras
liv. 202, fls. 122v.­‑124v.). rurais, onde detetou inúmeras irregularidades,
O problema das fontes do Rabaçal era muito não foi possível ir além do elenco das mesmas.
antigo e já tinha sido levantado, em meados do Ainda escreveu que, para melhor se observar o
século anterior, pelo Gov. António de Sá Perei- sistema municipal, havia de “se reduzir os ter-
ra (1731­‑1813), que enviara aí o Eng.º Fran- mos e os concelhos da ilha da Madeira”, pois
cisco de Alincourt (1733­‑1816) para estudar o quando os mesmos tinham sido determinados
assunto. O Governo do Rio de Janeiro pediu estavam corretos, mas então a realidade era
informações a esse respeito no ano seguinte, outra, “pela extinção de algumas povoações, ca-
mas o assunto só veio a ter desenvolvimento beças de Termos”, havendo assim necessidade
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 527

da “ereção de outras novas” câmaras (Ibid., Go-


verno Civil, liv. 202, fls. 130­‑131), porém, não
se passou da equação do problema.
Outra das suas preocupações foi o estado sa-
nitário da Ilha: por um lado, o das forças milita-
res da Madeira, que exigiam um outro hospital
que não o da Misericórdia, e, por outro, o pró-
prio Hospital da Santa Casa, que não oferecia já
as condições necessárias de salubridade, dado
o local em que se encontrava. Em janeiro de
1820, o governador oficiava para Lisboa sobre
o hospital que se pretendia para o Batalhão e,
no mesmo dia, sobre a mudança do Hospital da
Misericórdia para o velho Convento da Encar-
nação, passando a funcionar no antigo edifício
o celeiro público, que tinha ficado em projeto.
No antigo edifício da Misericórdia, dada a sua
centralidade, podiam ainda ficar a funcionar as
aulas públicas. O governador achava não haver
condições no atual edifício, “construído no cen-
tro do Passeio Público” e “amargurando (os pas-
santes) com o espetáculo miserável dos doentes
e expondo­‑os à infeção com o ar menos puro”,
para além de que a situação das órfãs “expostas
aos olhos da mocidade ociosa” (Ibid., Governo
Civil, liv. 202, fls. 151­‑153v.) também não era a
mais conveniente. Acrescia ainda que era igual-
mente necessário pensar num novo lazareto, as-
sunto que fora determinado pelo alvará de 22
Fig. 5 – Projeto da Estrada Central ao Norte da Ilha, Paulo Dias de
de janeiro de 1810, mas que ainda não encon- Almeida, 1820 e 1828 (DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos
trara solução. de Engenharia Militar, 1337-1A-12-15).
No início de março, ainda voltaria ao assun-
to, acusando o anterior bispo, D. Luís Rodri-
gues Vilares (c. 1740­‑1810), pela sua demora Mais tarde, o governador viria a saber que o
em Lisboa, de não ter executado as ordens que novo vigário diocesano também tinha recebi-
tinha para a transferência das freiras da Encar- do ordem para a transferência das freiras, mas
nação para Santa Clara. Acontecia ainda que escondera o documento.
“as suas moléstias haviam de sobremaneira
afrouxado o seu espírito na última época do
seu episcopado, pelo que só tivera tempo de Defesas da ilha da Madeira
se preparar para morrer”. Por tudo isso e pela Nesse mês de setembro de 1819, Xavier Bote-
“rebeldia, desobediência e relaxação das reli- lho enviava para o Rio de Janeiro uma série de
giosas, a anexação se tornava urgente”. Acres- relatórios sobre o que tinha observado, mas
centava ainda que as freiras tinham contraído acrescentados com as impressões que tinha
imensas dívidas, que tinham dificuldade em trocado com os dois oficiais que o acompa-
pagar, mas que mantinham um “trato sucessivo nharam, assim como com outras informações
de novos empréstimos para se poderem man- que tinha solicitado no Funchal. A 20 de se-
ter” (Ibid., Governo Civil, liv. 202, fls. 158­‑159). tembro de 1819, escrevia ao conde dos Arcos
528 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier

Fig. 6 – Planta da Costa do Caniço, Paulo Dias de Almeida, 1820 (DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos de Engenharia Militar,
3546-II-3-31-43).

(1771­‑1828) referindo que “em roda da Ilha, Ilhéu de que se falava há anos, com a monta-
por mal­‑entendido sistema de fortificação gem de dois paióis, assim como a execução de
haviam­‑se mandado estabelecer uma, 2, ou um outro, fora da mesma e junto à fortaleza do
mais peças de diversos calibres no cume das Pico de São João, o depois paiol geral, mandan-
montanhas que ladeiam as povoações. É de do medir o terreno pelo então Ten.­‑Cor. Joa-
notar que a ilha da Madeira é uma grande quim Casado Geraldes (c. 1785­‑1845) e apro-
montanha [...]. As peças estão ferrugentas, vando a nomeação do comandante, o major
sem nenhum reparo, sem nenhuma fortifica- de milícias José Joaquim de Freitas e Abreu.
ção e já condenadas por inúteis” (Ibid., Gover- Nessa altura, alterava também o sistema de re-
no Civil, liv. 202, fls. 130ss.). Havia assim que gisto do porto com base na fortaleza do Ilhéu.
repensar a defesa das povoações ao longo das Tinha havido problemas com um navio britâ-
costas da Ilha, pois havia “a possibilidade dos nico, o Tortouse, no tempo de Florêncio José
piratas insurgentes fazerem alguma tentativa Correia de Melo, dado se encontrar estabele-
sobre os gados e mantimentos daquelas povoa- cido que as embarcações não podiam ancorar
ções” (AHU, Madeira, doc. 4697). Face a essa durante a noite, “disparando o Ilhéu um tiro
situação, acionou imediatamente a revisão da seco, repetindo outro com bala e não cessando
fortificação da Ilha, e um ano depois estavam o fogo até eles obedecerem”. No entanto, essa
em obras os fortes da costa do Funchal até Ma- determinação não se observava com os navios
chico. Destes trabalhos, na área do Caniço, de guerra, “que levantam como e quando lhes
Porto Novo e Santa Cruz, deixou­‑nos Paulo convém”. Não concordando com o sistema, o
Dias de Almeida uma série de mapas e dese- governador estabeleceu “uma barca, para em
nhos muito pormenorizados. lugar dos tiros, avisar as embarcações de noite
Em junho de 1819, já Sebastião Xavier Bo- que não podiam entrar no porto” (Ibid., Go-
telho acionara os trabalhos da fortaleza do verno Civil, liv. 202, fls. 117, 127­‑128v.). Como
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 529

anteriormente, essa determinação continuava ao pedido, embora não se opusesse à hipótese.


a não se aplicar aos navios de guerra. No final do ofício, referia que sobre os corsá-
Igualmente a este governador se devem os rios de Buenos Aires de momento não tinha
novos estudos sobre o porto do Funchal, nessa especiais informações a dar.
época pensado para nascer nas baixas da forta- No ano seguinte, os corsários insurgentes
leza de S. Tiago, e a montagem de “um trapi- rondavam inclusivamente a baía do Funchal e
che” em frente às “casas da Alfândega” (Ibid., podiam ser observados da fortaleza de S. Lou-
Governo Civil, liv. 723, fl. 239v.) para varar renço, conseguindo o governador a presença
pequenas embarcações, local depois conhe- de um bergantim de guerra português para
cido como Cabrestante. Com as dificuldades lhes dar caça. Sebastião Xavier Botelho tinha
do inverno, as embarcações de cabotagem en- mesmo recebido informação do cônsul portu-
calhavam na praia de calhau, partindo­‑se ou guês nas Canárias, Laureano José de Vasconce-
danificando­‑se e perdendo as cargas. Estuda- los, sobre o apresamento do brigue português
dos os fundos e a sua consistência, foi acordada Providência, comandado pelo Ten. Nicolau
a área em frente à Alfândega como a mais apta Atanázio da Cruz Pagone. Em 1820, esteve ao
para receber um pontão de madeira, amovível serviço da Madeira o bergantim Infante D. Mi-
e capaz desse serviço. guel, de que era comandante o Cap. D. Fran-
Os problemas marítimos continuaram a cisco de Sousa Coutinho. Em abril, receava­‑se
pontuar esta época, mantendo­‑se a presença que os corsários esperassem a nau da Índia S.
dos corsários insurgentes das Américas, as- Francisco Xavier nos mares da Madeira, assim
sunto que preocupava igualmente os restan- como se temia pelo destino do correio do Rio
tes arquipélagos do Atlântico. Em setembro de Janeiro, aguardado há mais de um mês e
de 1819, o governador da Madeira respon- de que não havia notícias. Mas, para desespe-
dia a um pedido de António Perich, governa- ro de Sebastião Xavier Botelho, o bergantim
dor de Cabo Verde, que o mesmo fizera para nunca chegou ao contacto com os referencia-
o envio de casais pobres da ilha da Madeira, dos corsários insurgentes. Entretanto, com os
que tivessem alguns conhecimentos de agri- acontecimentos políticos ocorridos no Porto, o
cultura, para povoamento da ilha de São Vi- bergantim Infante D. Miguel acabaria por ficar
cente. O governador escusou­‑se a dar resposta retido em Lisboa

Figs. 7 e 8 – Alçado e planta dos redutos dos Reis Magos e de S. Marcos, Paulo Dias de Almeida, Caniço, 1820 (AHMOP, Madeira 1820).
530 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier

Um nobre de corte que pautou a sua atuação como governador na


no palácio de S. Lourenço defesa do que entendia por legalidade.
Foi assim que, logo após ter tomado posse,
O Gov. Sebastião Xavier Botelho era descen-
com certo espanto, constatou o tratamento de
dente do conde de São Miguel, D. Álvaro
Majestade dado à Junta da Agricultura, “mas
Xavier Botelho de Távora (1708­‑1789), que
sem lei, nem ordem régia” (ABM, Governo
fora governador da Madeira em meados do
Civil, liv. 202, fl. 118v.), pelo que solicitou um
séc. xviii, de onde passara para governador
parecer à corte sobre o que devia fazer perante
de Goiás, no Brasil. Acresce que desenvolve-
tão inusitado uso. Nesse quadro, deve registar­
ra já uma certa atividade como escritor teatral,
‑se também o seu interesse na revisão das paten-
tendo sido um dos mais apreciados escritores
tes dos cônsules acreditados na praça do Fun-
do seu tempo e de quem Alexandre Hercula-
chal, principalmente dos Estados Unidos, mas
no de Carvalho Araújo (1810­‑1877), aquando
também das restantes nações, pelo que, saindo
da sua morte, escreveu e proferiu no Conserva-
do Funchal, só se voltariam a registar patentes
tório Real de Lisboa um elogio histórico. Ocu-
consulares em março 1823. Em julho de 1819,
pando o lugar de um dos seus antepassados,
chegava à Madeira a notícia de ter nascido a
embora filho natural, não deixou, talvez por
primeira filha legítima do infante D. Pedro
isso, de procurar honrar o lugar de governa-
de Alcântara (1798­‑1834), futuro D. Pedro IV,
dor com a pompa e circunstância requeridas.
D. Maria da Glória (1819­‑1853), princesa da
Casou com D. Teresa Maria Antónia Álvares
Beira e futura Rainha D. Maria II. De imediato
Fernandes de Carvalho, natural de Condeixa,
o governador aproveitou a oportunidade para
com quem viajou para a Ilha, e quando, a 12
celebrar o acontecimento com festas várias, a
de março de 1820, entrou com a esposa para
que associou ainda um especial indulto pelo
irmão da Confraria da Soledade do Conven-
acontecimento. Os festejos duraram três dias e
to de S. Francisco do Funchal, forneceu o seu
encerraram com um importante baile no palá-
brasão de armas de Botelho e Távora encima-
cio de S. Lourenço, a 25 desse mês.
do por uma coroa de sete pérolas, a que não
Ao longo de todo o seu governo, sucederam­
teria, por certo, direito e que nem heraldica-
‑se as festas e receções em S. Lourenço, levando
mente existe. Não admiram assim os seus escri-
a que, logo nesse ano de 1819, Sebastião Xavier
tos teatrais, a forma como organizou a sua vida
Botelho pedisse que os seus vencimentos fossem
social no Funchal, tal como todo o rigor por
pagos tendo em conta a “depreciação da moeda
da Madeira”. Alegava que tinha imensas despe-
sas de representação, “a que continuamente
o obrigavam as visitas dos navios estrangeiros”
(AHU, Madeira, doc. 4685), o que não deixava
de ser verdade, mas as contínuas festas que dava
em S. Lourenço também deviam onerar bastan-
te a sua estadia. O ordenado do governador da
Madeira era até então de 4000$00 réis anuais
e mais 1 conto para despesas particulares, pas-
sando, a partir de 6 de agosto desse ano, para
6 contos, mas entrando nesse “assentamento” o
anterior conto de réis, “que cessava” (ABM, Go-
verno Civil, liv. 723, fls. 68v.­‑69).
No ano seguinte, o governador iria ainda mais
longe e, a 25 de maio, informava a maneira
Fig. 9 – Pormenor da entrada do governador para
a Confraria da Soledade com armas com coroa de conde, março
como festejara o aniversário de D. João VI (1767­
de 1820 (ABM, Governo Civil, liv. 235). ‑1826) e o retrato que mandara executar para
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 531

esta cerimónia, ainda hoje patente na sala de au-


diências do palácio, pintado por Leonardo Joa-
quim da Rocha (1756­‑1825). À tarde, o governa-
dor mandara formar o Batalhão de Artilharia e o
Regimento de Milícias do Funchal no Campo da
Barca, recentemente arranjado pela Câmara Mu-
nicipal do Funchal e então especialmente prepa-
rado para o efeito, tendo havido salvas e revista.
À noite, houve receção no palácio, com cerca de
600 convidados, que desfilaram perante “a ima-
gem de Sua Majestade” (Ibid., Governo Civil,
liv. 201, fls. 188­‑189). A cerimónia teve música,
dança e poesia, após o que foram postas mesas
para 200 pessoas de cada vez, que se revezaram
por três vezes, e se seguiu um baile. Fig. 10 – Retrato de D. João VI, Joaquim Leonardo da Rocha,
c. 1820 (palácio de S. Lourenço, 2017).
Para o aniversário real, o governador manda-
ra construir “uma barraca de pau, com madei-
ra bruta, e que cortava o pátio em dois” (AHU, de Freitas e Meneses, que teria espalhado a seu
Madeira, doc. 5018). A construção nasceria respeito coisas menos corretas, difamando­‑o
na atual sala de entrada do palácio e ocuparia e atribuindo­‑lhe atitudes e posições “falsas e
grande parte do pátio. No piso superior, servi- indecorosas” (Ibid., Governo Civil, liv. 723,
ria de sala de jantar para grandes receções e, fls. 346v.­‑347v.).
no inferior, para arrecadações várias para ape- As relações agravavam­‑se, não só por causa
trechos militares. Graças à informação de Xa- da propensão para festas, celebrações públi-
vier Botelho sobre esta obra, ficámos com a pri- cas e outras comemorações do género, que o
meira descrição da articulação do palácio, com comendador considerava exageradas em Xa-
as quatro salas de receção que desde então vier Botelho, mas, acima de tudo, pela alega-
subsistem. O Gov. Sebastião Xavier Botelho en- da utilização que este fazia de tais momentos
viou a planta ao rei, por certo feita por Paulo para atingir fins políticos e particulares. Sendo
Dias de Almeida ou Vicente de Paula Teixeira certo que estas celebrações eram uma prática
(1785­‑1855), explicando que, embora se tives- habitual, em particular nos aniversários nata-
se ocupado o pátio, o mesmo já não era preci- lícios, para além daqueles que tinham um ca-
so, porque a fortaleza estava desguarnecida de rácter religioso, na verdade, Sebastião Xavier
artilharia e o Batalhão aquartelado no Colégio, Botelho, pelo empenho, teor dos relatos, des-
que fora dos Jesuítas. Pedia assim a aprovação crição dos festejos e até por um ou outro efe-
expressa do rei para a obra. O tempo, no en- tivo exagero festivo comprovado, deu mostras
tanto, acabou por fazer desaparecer a barraca de pretender transmitir uma imagem de união
de pau, tendo o Gov. D. Manuel de Portugal e comunhão total entre a Ilha, a Coroa e a
e Castro (1787­‑1854) ordenado a sua demoli- corte brasileira, isto numa conjuntura política
ção em dezembro de 1824, não só “pela sua muito complexa e volátil, a todos os níveis, que
inutilidade, mas pela próxima e total ruína que passava também pela gradual oposição das eli-
ameaça” (ABM, Governo Civil, liv. 797, fl. 27). tes locais e insulares à política por ele seguida.
Este espírito de comemorações e festas não Nesse quadro, viria a casar, no Funchal, a
agradaria a toda a gente, comentando­‑se, por 24 de junho de 1821, a sua filha primogénita,
certo, no Funchal as festas e a vida social de Se- D. Teresa Xavier Botelho (1807­‑c. 1850), com
bastião Xavier Botelho em S. Lourenço. A 2 de João Francisco da Câmara Leme de Carvalhal
agosto de 1820, o governador mandava o juiz Esmeraldo de Atouguia Bettencourt Sá Macha-
de fora ouvir o comendador João Bettencourt do (c. 1800­‑1843), sobrinho do 1.º conde de
532 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier

Carvalhal (1778­‑1837). João Francisco de Car- duas juntas, do Porto e de Lisboa, num curto
valhal tivera alvará de moço fidalgo durante o espaço de tempo, a 27 de outubro iniciavam­
Governo de Sebastião Xavier Botelho e seria de- ‑se os trabalhos para a convocação das futuras
pois senador e deputado pela Madeira. O futu- Cortes Constituintes, nomeando­‑se uma Junta
ro 2.º conde de Carvalhal (1831­‑1888) era assim Provisória Preparatória das Cortes, para a qual
neto de Sebastião Xavier Botelho, ao qual have- foi convocado também o comerciante Luís
ria de suceder também como par do Reino. Monteiro.
As notícias do que se estava a passar no con-
tinente só chegaram à Madeira em meados do
Pronunciamento liberal de 1820 mês de setembro. Um navio inglês que se di-
A 24 de agosto de 1820, na Pç. de Santo Oví- rigia de Londres para o Rio de Janeiro levou
deo, no Porto, um grupo de militares e intelec- as proclamações dos rebeldes e dos governado-
tuais ligados ao Sinédrio, aos quais não eram res do Reino. Um dos passageiros era Joaquim
estranhas as lojas maçónicas, proclamou a ne- Inácio de Andrade Carreiro, sargento­‑mor
cessidade de instalação de uma junta gover- de caçadores do Regimento de Lisboa, e um
nativa que restaurasse as antigas liberdades e outro era um comerciante que vinha de Lon-
propiciasse o reencontro do rei com a nação. dres. O comerciante recebera as informações
O pronunciamento, realizado em nome do por carta do seu correspondente em Lisboa,
rei, que, instalado no Rio de Janeiro, o desco- um negociante inglês, pelo que as proclama-
nhecia, foi impulsionado pela vitória das for- ções do Porto vinham naquela língua, embora
ças constitucionais espanholas, lideradas por a dos governadores do Reino viesse já em por-
Rafael de Riego (1784­‑1823), que em janeiro tuguês e impressa. O governador teve acesso à
desse ano tinham forçado Fernando VII (1784­ documentação através do sargento­‑mor e ime-
‑1833) a repor “La Pepa”, a Constituição de diatamente a mandou traduzir e transmitir à
Cádis. Graças à ausência do Gen. William Be- corte no Rio de Janeiro, acrescentando: “Aqui
resford (1768­‑1854), nessa altura no Rio de Ja- nada consta por navios que tenham chegado
neiro, em breve o pronunciamento se estendia dos portos de Portugal e foi esta a primeira
a Lisboa, a 15 de setembro, onde igualmente notícia a semelhante respeito” (Ibid., Governo
se formava uma junta ou governo interino de Civil, liv. 204, fls. 11, 13­‑13v.).
que fazia parte o comerciante madeirense Luís A notícia foi depois confirmada pelo bergan-
Monteiro, como representante do alto comér- tim escuna português Providência, que entrou
cio lisbonense. Depois de acordado entre as no porto do Funchal a 25 de setembro e já

Fig. 11 – Letra Emitida na Ilha da Madeira para Pagamento ao Conde de Palmela em Londres; Keir Brothers, Madeira,
4 de março de 1824 (coleção de Adelino Adrião Melo Caravela).
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 533

trazia cartas e gazetas, voltando Sebastião Xa- do governador de “não ter feito cargo algum
vier Botelho a informar o conde dos Arcos dos da comunicação do Governo Intruso estabele-
acontecimentos, acrescentando que os mes- cido em Lisboa” (ABM, Governo Civil, liv. 200,
mos não haviam produzido nenhuma sensação fls. 95v.­‑96). No mesmo dia, também se escre-
nem comoção popular, pelo que a população via sobre as notícias enviadas da Madeira acer-
se conservava indiferente a eles. Mesmo assim, ca dos acontecimentos no Porto e em Lisboa,
tinha adotado as necessárias providências para referindo “a indiferença com que os habitan-
evitar qualquer alteração da ordem pública na tes da Ilha haviam olhado” para tais aconteci-
Ilha e que se preparasse qualquer movimento mentos, louvando os “reconhecidos talentos
de adesão. Relata que a Revolta do Porto tam- do governador” (Ibid., Governo Civil, liv. 200,
bém se estendera a Lisboa, mas que unanime- fls. 96­‑97) e a sua atitude de distanciamen-
mente foram juradas a manutenção da religião to em relação aos pronunciamentos. Curio-
católica, a conservação da Casa de Bragança e samente, estes ofícios só viriam a chegar ao
a obediência e a fidelidade ao rei, ao trono e Funchal muito tempo depois, em março de
às leis. Ficara assim subsistindo a administra- 1821, quando a situação já se havia alterado
ção de todos os ramos do Estado com os mes- completamente.
mos funcionários, magistrados, leis e as mes- Por meados de novembro de 1820, escalou o
mas formas, tudo em nome do rei e debaixo porto do Funchal o conde de Palmela, em via-
da mesma bandeira. Não se alterara o sistema gem de Londres para o Rio de Janeiro, onde
judicial e conservou­‑se a ordem geralmente há muito era esperado, reunindo­‑se então
estabelecida. com o governador, o qual lhe volta transmitir
Sebastião Xavier Botelho não cortara a co- a informação de que na Madeira a ordem era
municação com Lisboa, pois isso acarretaria completa e não se receava qualquer perturba-
terríveis consequências para a vida do arquipé- ção. Claro que a situação não era real, desa-
lago, que dependia de Lisboa em vários aspe- gradando profundamente aos partidários dos
tos administrativos, e não só, assunto que volta- pronunciamentos do Porto e de Lisboa a po-
ria a referir a 24 de janeiro do ano seguinte. De sição do governador, pelo que já tinham apa-
qualquer forma, reforçara o controlo das en- recido afixados uns pasquins nas paredes das
tradas e saídas do porto da cidade do Funchal, ruas mais centrais da cidade incitando o povo à
aspeto de que encarregara o Cor. António Re- revolta e, consequentemente, à violência, para
belo Palhares, e mandara o Brig. Frederico que a Madeira se pronunciasse favoravelmen-
Lecor rever toda a fortificação dos arredores. te em relação ao que se passava em Portugal
Nos finais de setembro, o Gov. Xavier Bote- continental. Depois de trocar impressões com
lho recebeu pelo correio o Infante D. Sebastião, o conde de Palmela, o governador desvaloriza-
a comunicação oficial do Governo Provisó- va a situação, informando que, como em toda a
rio, assinada pelo secretário barão de Molelos parte, havia mal­‑intencionados que se aprovei-
(1779­‑1852), acerca da nova ordem de coisas tam das circunstâncias e que também tinha re-
políticas que se tinham dado no país. Caute- cebido cartas anónimas contra o Governo e os
losamente, o governador voltou a transmitir magistrados, pedindo reformas na administra-
tudo para o Rio de Janeiro, mantendo as mais ção das coisas públicas, etc. No entanto, essas
sérias reservas em relação a esses acontecimen- ações não tinham produzido nenhum efeito,
tos “do governo intruso de Portugal” (AHU, tendo encarregado o então corregedor, Luís
Madeira, docs. 6185­‑6187) e esperando uma Gomes de Sousa Teles, e o juiz de fora, José
posição oficial de D. João VI. Ribeiro de Sousa Saraiva, de tentarem localizar
A notícia enviada do Funchal teria chegado os autores dos pasquins.
ao Rio de Janeiro em meados de novembro, O governador, contudo, tinha mandado or-
pois nessa data a corte informaria a “concor- ganizar rondas noturnas civis e militares, em-
dância de Sua Majestade” em relação à atitude bora dentro da maior discrição, sem aparato,
534 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier

como refere. Convocara os principais qua- desejam um sistema de melhoramento debai-


dros militares, que lhe haviam assegurado xo da vontade de El Rei Nosso Senhor” (Ibid.,
que tanto no Batalhão de Artilharia como nos Madeira, docs. 6240­‑6241). Assim, se, por um
Regimentos de Milícias a situação era tranqui- lado, como governador e jurista, não podia
la, todos aguardando a decisão real. Sebastião condescender com a situação de insurreição,
Xavier Botelho preconizava assim uma políti- mesmo levada a efeito em nome do rei e da
ca maleável e sem grande coação. Havia que Coroa, por outro, não perdeu a oportunidade
ter em conta o interesse de Inglaterra por de acionar algumas medidas que entendia, até
tudo o que se passava na Madeira, mas lem- certo ponto, desanuviarem a situação. Estava,
brava que ainda existia um certo descontenta- porém, perfeitamente consciente de que esta-
mento entre os colonos, que dois anos antes va a ultrapassar as suas competências, como foi
se haviam recusado a pagar as meias das pro- o caso de não ter imediatamente cortado as li-
duções dos terrenos. Ora, como muitos dos gações com Lisboa, o da suspensão unilateral
soldados e milicianos eram oriundos das po- da décima funerária e o da sisa das benfeito-
pulações rurais, era uma situação a ter sempre rias. Por isso, a 16 de janeiro de 1821, voltava a
em linha de conta. escrever para o conde dos Arcos, mais uma vez
Em face da situação, o governador adiantou­ expondo as razões da suspensão dos impostos
‑se e optou mesmo por fazer um edital em que em causa, num longo ofício sobre o comércio
suspendia dois dos impostos mais discutidos: a dos vinhos da Ilha e os excessivos tributos que
décima funerária e as sisas “do que eles cha- pagavam os agricultores.
mam aqui benfeitorias”, que é “sumo gravame Não nos restam hoje dúvidas da tentativa
aos lavradores e de nenhum proveito para a de distanciamento de Sebastião Xavier Bote-
Fazenda Real”. Calculava que não renderiam lho em relação aos revoltosos de Lisboa e do
anualmente 600$000 réis líquidos e eram de Porto, assim como, depois, aos liberais mais
“enormes custas” para “esta miserável gente” ortodoxos, embora se viesse a intitular liberal.
(AHU, Madeira, doc. 6194). Ciente do que es- Também na Madeira a sua posição foi sempre
tava a fazer, colocava mesmo em causa o seu intransigentemente legalista. Nesse quadro,
procedimento, mas confessava ser o que julga- enquanto não houve comunicação da corte do
va correto, pelo que acrescentava: “se há de- Rio de Janeiro sobre a posição de D. João VI
sacertos na conduta que tenho seguido, virão relativamente aos acontecimentos de Lisboa
das minhas poucas luzes”, mas “nunca da fi- e Porto, não autorizou qualquer manifestação
delidade do meu coração” (Ibid., Madeira, ou alteração ao que estava estabelecido.
doc. 6195). O governador, ao longo destes meses, teria
Em meados do mês seguinte, o governador pressionado os comandos superiores militares
volta a enviar para o Rio de Janeiro o seu ponto para apoiarem a sua posição, enviando para o
de situação na Ilha, insistindo que a tranquili- conde dos Arcos, no Rio de Janeiro, sucessivas
dade continuava e voltando a enumerar as vá- representações das forças militares a pedir a
rias ações desenvolvidas. No entanto, não deixa sua recondução. No entanto, não se manifesta-
de salientar que, não obstante o povo madei- ram as câmaras ou outras forças civis. Em janei-
rense ser considerado pacífico, reconhecia­‑se ro de 1821, a situação continuava tensa, mas
que “nas circunstâncias atuais de miséria nesta o governador, a 22 desse mês, não deixou de
Ilha”, com “a pouca produção dos vinhos, a di- comemorar mais um aniversário real com a so-
ficuldade de os exportar e vender, os tributos lenidade, a pompa e o aparato que achava que
que lhe sobrevieram” e que estavam na disposi- o acontecimento merecia e como havia feito
ção de não pagar “as obras fabris introduzidas anteriormente, encerrando não com baile em
de países estrangeiros por muito menor preço, S. Lourenço, mas com uma récita levada a efei-
e os abusos que sempre acontecem em todas as to por militares do Batalhão de Artilharia, no
coisas, têm, a meu ver, entristecido os ânimos e Teatro do Bom Gosto.
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 535

Pronunciamento de 28 de janeiro de 1821 está fazendo em Lisboa, ordenando que assim


no Funchal se faça constar” (ABM, Governo Civil, liv. 200,
Somente a partir de 23 de janeiro de 1821, pe- fls. 104­‑104v.). Ora, nessa altura, a 27 de feve-
rante a chegada do correio Leopoldina com as reiro, já há mais de um mês que a Madeira ade-
notícias e as gazetas de Lisboa e de Londres co- rira à causa constitucional.
municando que, no Rio de Janeiro, D. João VI O pronunciamento veio a ocorrer no dia se-
reconhecia o novo estado de coisas e o princí- guinte, a 28 de janeiro de 1821, pelas 10 h,
pio do sistema representativo, Sebastião Xavier afluindo uma enorme multidão ao Lg. da For-
Botelho reconheceu também oficialmente a si- taleza e ao passeio público, a que se juntou a
tuação. Como refere ao conde dos Arcos, as no- tropa da guarnição da cidade, calculando­‑se
tícias das gazetas de Lisboa, que eram confor- que se teriam juntado perto de 7000 pessoas.
mes às de Londres, anunciavam que D. João VI O governador mandou logo chamar o juiz de
ou o infante D. Pedro viriam a Lisboa, pelo fora, o juiz do povo e as autoridades militares
menos para aprovação da futura Constituição. da guarnição, acabando por receber uma de-
Nestes finais de janeiro de 1821, o governa- legação de liberais portadora de uma repre-
dor adivinhava perfeitamente o que se estaria sentação, inclusivamente assinada por parte
a passar no Rio de Janeiro, onde a confusão dos mais altos quadros militares da guarnição,
era completa em relação à posição a tomar por elementos do clero, funcionários, etc., acaban-
D. João VI. Aliás, só no final do mês seguinte, do por assomar à guarita da fortaleza sobre o
e após a tomada de posse do novo ministro da passeio público, posteriormente Av. Arriaga, e
Marinha e Ultramar, o Alm. Joaquim José Mon- daí dar igualmente, com o público presente,
teiro Torres (1761­‑1826?), com a comunicação vivas ao rei, às futuras Cortes, à futura Cons-
da sua nomeação, se expedia o aviso de que tituição e ao Governo Supremo do Reino. Se-
“Sua Majestade aprovava a Constituição que se bastião Xavier Botelho, o seu estado­‑maior e

Fig. 12 – Pronunciamento de 28 de janeiro de 1821 no Funchal, João José do Nascimento, c. 1821 (Museu Quinta das Cruzes, n.º invent.
2345 MQC).
536 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier

as entidades presentes dirigiram­‑se, em segui- tanta prudência e melindre” (Ibid., Governo


da, para a Sé, onde se cantou um solene Te Civil, liv. 194, fls. 2­‑2v.). Em breve se publica-
Deum com a assistência do cabido e de muitos vam folhetos contra Sebastião Xavier Botelho
membros do clero, dirigindo­‑se depois para em Londres, a que o governador responde-
os paços do concelho, então junto à Sé, e ali ria depois em Lisboa e a que responderia o
se lavrando um auto, que foi assinado por um meirinho eclesiástico, apoiante do prelado,
número ainda mais considerável de cidadãos, também em Lisboa. Com as várias alterações
envolvendo muitas pessoas que não haviam da situação política, o prelado viria mesmo a
assinado a inicial representação. ser nomeado par do Reino em 1826, tal como
O ex­‑bispo eleito de Elvas, D. Fr. Joaquim também aconteceria a Sebastião Xavier Bote-
de Meneses e Ataíde, no entanto, não assi- lho. No entanto, nos anos seguintes, ter­‑se­‑ia
nou, vindo depois a envolver­‑se numa série assustado com as perseguições miguelistas e
de problemas complicados, intitulando­‑se ar- viria a fugir para Gibraltar em 1828, aí fale-
cebispo, querendo ser aclamado governador cendo de peste, a 5 de novembro desse ano.
e entrando à socapa no palácio, pressionan- Nos dois dias imediatos ao pronunciamento
do a reconstrução da demolida capela de S. do Funchal, estabeleceram­‑se ainda as comu-
Sebastião e acabando por ter de ser afastado nicações a fazer para o Rio de Janeiro e para
da Ilha. Como o governador escreveu para a Lisboa, enviando­‑se ali uma delegação, o que
corte, “em matéria tão grave, não podia deci- foi saudado pelas Cortes, dado ter sido a pri-
dir” sozinho, pelo que convocou toda a ofi- meira adesão efetiva fora do território conti-
cialidade do Funchal, o vigário capitular, o nental. Com o juramento a 28 de janeiro e
corregedor, o juiz de fora, “nobreza, comér- a saída de uma delegação para Lisboa para
cio e advogados”, todos concordando “unani- apresentar em seu nome e no da Ilha a ade-
memente na saída do bispo” (Ibid., Governo são à nova situação, e, por outro lado, com
Civil, liv. 723, fls. 411­‑412), assunto que se co- os louvores das Cortes e da Regência à posi-
municou ao mesmo. ção tomada pela Madeira, Xavier Botelho viu­
Aprontou­‑se então uma embarcação, a es- ‑se confrontado com a difícil situação de se
cuna Andorinha, colocada à disposição pelo encontrar sob a tutela de dois governos: um
1.º conde de Carvalhal, fez­‑se­‑lhe “a matu- no Rio de Janeiro, a largos meses de distân-
lagem” e o governador enviou uma guarda cia e a cujas diretivas em tempo útil não tinha
de honra “e uma força que julguei necessá- acesso, e outro em Lisboa, a poucos dias de
ria para conter qualquer efervescência po- viagem, mas que pressentia que num breve
pular”. O bispo ainda manifestou “algumas lapso de tempo lhe seria hostil. Acrescia que a
dúvidas e protestos”, mas embarcou pelas movimentação política da Ilha o ultrapassava
18 h desse dia, “com geral satisfação e tanto em determinados aspetos, pelo que optou por
os espíritos se manifestaram contra ele, que acionar as eleições dos deputados pela Madei-
em menos de quatro horas se aprontou tudo ra para as Cortes Constituintes, aspeto que até
e saiu com todas as honras” (Ibid., Governo então, por lapso das mesmas Cortes, não se
Civil, liv. 202, fls. 36­‑39v.). Para o acompanhar, encontrava previsto.
enviou­‑se o Ten.­‑Cor. José Caetano César de Perante o evoluir da situação, Sebastião Xa-
Freitas e o Cap. Jacinto Feliciano de Olivei- vier Botelho mandou abrir no seu gabinete
ra, comunicando­‑se a situação ao Governo do novos livros de registo de correspondência,
Reino e ao governador do Porto Santo. nos quais se passou a registar a correspondên-
Quase de imediato, a regência, em Lisboa, cia enviada e recebida de Lisboa, livros que
aprovava o procedimento de Sebastião Xavier entregou à responsabilidade do 2.º oficial An-
Botelho “a respeito do Arcebispo bispo de tónio Jacinto Freitas. A partir de 28 de março,
Elvas”, louvando mesmo “a prudência e cir- passou assim a corresponder­‑se também
cunspeção que V. Ex.ª houve em negócio de com as duas novas entidades governativas:
B otelho , S ebasti ã o X avier ¬ 537

as Cortes e a Regência, não deixando, con- Botelho e se preparava para o remover, como
tudo, de referir sempre para Lisboa a figura na verdade acabou por acontecer um mês de-
tutelar de D. João VI, das mãos do qual rece- pois. Um dos motivos – eventualmente o ca-
bera o Governo da Ilha. Com um certo des- talisador – teve que ver com o facto de o go-
fasamento, continuou também a manter cor- vernador se opor ao envio de tropas do reino
respondência com a corte do Rio de Janeiro. para o Funchal, algo que, na perspetiva dos
Em breve recebia as Bases da nova Constitui- poderes da metrópole, se temia que pudesse
ção política, que tinham sido aprovadas a 9 de estar ligado à (receada) intenção de D. João
março e logo enviadas para todo o país para VI (ou do príncipe regente D. Pedro) tentar
serem juradas, cuja receção prudentemente desembarcar na Ilha antes de jurar as Bases
não acusou de imediato para o Rio de Janei- da Constituição, algo completamente inacei-
ro, mas acataria depois a ordem da Regência tável, como é evidente, pela ameaça concreta
para mandar proceder ao seu juramento. A 26 que poderia representar para a manutenção
de março de 1821, tinham sido eleitos depu- política do poder instituído no reino.
tados da Madeira às Constituintes, que quase A 17 maio de 1821, as Cortes Gerais e as
logo seguiram para Lisboa. Constituintes optavam pelo afastamento do
governador da Madeira, nomeando para o
substituir D. Rodrigo António de Melo, que
Final do Governo de seria porém retardado algumas semanas em
Sebastião Xavier Botelho Lisboa para se oficializar a alteração do títu-
A situação na Ilha entretanto complicava­‑se lo, que passou a ser somente “governador da
e assim se manteria ao longo do período li- ilha da Madeira”, desaparecendo assim a de-
beral, tendo inclusivamente aparecido um signação de “capitão­‑general”. O novo gover-
panfleto impresso, em maio de 1821, con- nador saiu de Lisboa apenas a 11 de junho, e
tra o governador, o que era uma novidade. só chegaria ao Funchal na noite de 25 desse
Tinham também ocorrido mais alguns pro- mês, com 14 dias de viagem, o que não era
blemas com o padre (e também advogado) normal. Por acordo com Sebastião Xavier Bo-
Dr. Crisóstomo Spínola de Macedo, o que já telho, que desconhecia a nomeação de um
era um hábito e continuaria a sê­‑lo. Teriam sucessor, aguardou até ao dia seguinte para
vindo umas cartas do continente dirigidas ao desembarcar, tomando posse a 30 de junho,
P.e Crisóstomo que, por engano ou de propó- nos paços do concelho, e, do Governo da Ilha
sito, o juiz de fora tinha mandado abrir, o que a 2 de julho, tendo o ex­‑governador regressa-
motivou um processo movido pelo advogado do na mesma fragata, cinco dias depois.
em questão. Também chegara a informação O desembargador Sebastião Xavier Botelho
ao governador de que tinha sido suspenso o ainda seria nomeado, a 23 de junho de 1824,
juiz dos órfãos, Dr. José Julião de França e governador de Moçambique, cargo que deteve
Vasconcelos, que servia aquele ofício desde até 1829, e depois governador dos Açores e de
outubro de 1807, suspensão efetuada pelos Angola, mas não chegou a tomar posse, alegan-
juízes ordinários de Machico e São Vicente, do, para a escusa, o facto de não ser militar de
“sem que de tal procedimento me dessem carreira. Foi então encarregado de negócios
parte” (Ibid., Governo Civil, liv. 195, fls. 41v.­ da delegação portuguesa em Paris e, ao abri-
‑42v.), como escreve Xavier Botelho. Tendo­ go desta função, recebeu vários adiantamentos
‑se averiguado o que se passava, chegou­‑se à pagos pela Junta da Fazenda da Madeira (em
conclusão de que a base jurídica tinha sido março de 1835, estava registado como devedor
dada pelo P.e Crisóstomo. de 1750$00 réis). Mais tarde, foi também mem-
Por todas estas e outras razões, já desde o bro da Regência do Brasil, tendo sido nomea-
final de abril corria o rumor de que o Reino do par do Reino a 4 de janeiro de 1836. Regres-
perdera a confiança em Sebastião Xavier sando a Portugal continental, conservou­‑se
538 ¬ B otelho , S ebasti ã o X avier

mais ou menos alheio às agi- Fig. 13 – Memoria Estatistica sobre os


Dominios Portuguezes na Africa Oriental
tações políticas do país du- (1835), de Sebastião Xavier Botelho.
rante o Governo absoluto,
entregando­‑se então à sua
memória estatística e a outros
trabalhos literários, tendo
sido um notável poeta e escri- se viesse a intitular liberal,
tor do seu tempo. manteve sempre um gran-
Deixou uma extensa e di- de afastamento dos liberais
versificada produção literária, mais ortodoxos, mas tam-
em prosa e poesia, campo em bém, depois, dos absolutis-
que foi prolífico e entre cujos tas de D. Miguel, pelo que
títulos publicados se podem granjeou fortes críticas de
destacar Historia Verdadeira dos ambos os lados. No entanto,
Acontecimentos da Ilha da Ma- as suas posições mereceram
deira depois do Memoravel Dia sempre o maior respeito de
28 de Janeiro, Escrita por Ordem todos os sectores, e não foi
Chronologica […] para Destruir Hum Libello Famo- por acaso que o seu elogio fúnebre foi assu-
so Impresso em Londres por Hum Cidadão Funcha- mido por Alexandre Herculano.
lense… (1821), Resumo para Servir de Introdução
à Memoria Estatistica sobre os Dominios Portugue- Obras de Sebastião Xavier Botelho: Zulmira; Inês de Castro (1816); Historia
Verdadeira dos Acontecimentos da Ilha da Madeira depois do Memoravel Dia
zes na Africa Oriental (1834), Memoria Estatisti- 28 de Janeiro, Escrita por Ordem Chronologica […] para Destruir Hum Libello
ca sobre os Dominios Portuguezes na Africa Orien- Famoso Impresso em Londres por Hum Cidadão Funchalense… (1821); Resumo
para Servir de Introdução à Memoria Estatistica sobre os Dominios Portuguezes
tal (1835) ou Escravatura, Beneficios Que Podem na Africa Oriental (1834); Memoria Estatistica sobre os Dominios Portuguezes
Provir às Nossas Possessões d’Africa da Prohibição na Africa Oriental (1835); Escravatura, Beneficios Que Podem Provir às Nossas
Possessões d’Africa da Prohibição daquelle Trafico (1840).
Daquelle Trafico (1840). Foi tradutor de, entre
outros, Metastasio, Racine e Voltaire. Faleceu Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações, liv. 1368,
fls. 135v., 159, 174v., 181; Ibid., Confrarias, liv. 235; Ibid., Governo Civil, liv. 194,
em Lisboa, a 21 de maio de 1840. fls. 2­‑2v. e 9­‑11; liv. 195, fls. 24­‑29, 33­‑36v. e 41v.­‑42v.; liv. 200, fls. 32, 79, 83­‑83v.,
Escreveu duas peças de teatro, Inês de Cas- 95v.­‑97, 104­‑104v. e 192v.; liv. 201, fls. 188­‑189; liv. 202, fls. 36­‑39v., 47, 102­‑102v.,
117­‑117v., 118v.­‑129, 130­‑131, 137­‑138, 151­‑153v., 158­‑159, 175­‑176, 185­‑186,
tro e Zulmira, ambas representadas, e tra- 195, 256v.­‑258v. e 310; liv. 204, fls. 11, 13­‑13v; liv. 235; liv. 723, fls. 68v.­‑69, 238,
duziu várias outras, algumas das quais tam- 239v., 248v., 323v., 346v.­‑347v., 379­‑379v., 381­‑381v., 399v.­‑400v., 406­‑408v. e
411­‑412; liv. 797, fl. 27; AHM, 1.ª div., 14.ª sec., mç. 16, doc. 52; AHMOP, Madeira
bém representadas, tendo imprimido uma 1820; AHU, Madeira, docs. 4609­‑4616, 4624, 4656­‑4658, 4685, 4697, 4746,
nova vida ao teatro no Rio de Janeiro, tal 4912­‑4913, 4951, 4991­‑4992, 4997­‑4998, 5014, 5018, 6175­‑6176, 6185­‑6187,
6194­‑6195, 6240­‑6241, 6271 e 6347­‑6356; ANTT, Arquivos de Pessoas Singulares,
como fez no Funchal. Como nobre de corte, António Saldanha da Gama, Vária, cartas de 14 dez. 1818, 12 e 25 jan. 1819;
transformou o palácio de S. Lourenço num DSIE, Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar, 1337­‑1A­‑12­‑15,
3546­‑II­‑3­‑31­‑43, 3546­‑III­‑3­‑31­‑43, 3941 I­‑III, 1A­‑12­‑15; impressa: BAIARDO,
centro de receção social, onde fez obras e
Luís José, Carta Escripta a Hum Sugeito da Provincia da Ilha da Madeira, ou o
que decorou com pinturas, o que não dei- Lundum dos Bordões, Que Tocou Sebastião Xavier Botelho…, Lisboa, Officina
xou de lhe trazer alguns problemas. Face ao de Antonio Rodrigues Galhardo, 1821; BOTELHO, Sebastião Xavier, Historia
Verdadeira dos Acontecimentos da Ilha da Madeira depois do Memoravel Dia
pronunciamento liberal em Portugal, en- 28 de Janeiro, Escrita por Ordem Chronologica por Sebastiaõ José Xavier Botelho,
saiou uma tentativa de distanciamento em e Comprovada com Testemunhas da Melhor Fé por Seus Empregos, Jerarquia e
Independencia; para Destruir Hum Libello Famoso Impresso em Londres por Hum
relação aos revoltosos de Lisboa e do Porto, Cidadão Funchalense, Que sem Pejo Urdio a Seu Bel Prazer Aquelle Tecido de
os quais, porém, após a parcial concordân- Calumnias, o Qual Precede Esta Historia…, Lisboa, Officina de Antonio Rodrigues
Galhardo, 1821; Id., Carta ao Duque de Bragança, Dom Pedro IV, Londres, Taylor,
cia da corte do Rio de Janeiro, se viu obri- 1833; Id., Reflexões Politicas em Julho de 1834, Lisboa, Imprensa Nevesiana, 1834;
gado a aceitar, enviando uma delegação à Id., Resumo para Servir de Introdução à Memoria Estatistica sobre os Dominios
Portuguezes na Africa Oriental, Lisboa, Imprensa Nacional, 1834; Id., Elogio ao
Regência, em Lisboa, e determinando de- Duque da Terceira, Lisboa, Tip. Nacional, 1835; Id., Memoria Estatistica sobre os
pois a eleição dos deputados da Madeira Dominios Portuguezes na Africa Oriental, Lisboa, Typ. de José Baptista Morando,
1835; Id., Segunda Parte da Memoria Estatistica sobre os Dominios Portuguezes
para as Cortes Constituintes. Veio a tornar­ na Africa Oriental Contendo a Resposta à Crítica Feita à Dita Memoria, e
‑se um escritor de certa nomeada e, embora Inserta na Revista de Edimburgo n<o> 130 de Janeiro de 1837, Lisboa, Typ. de
B owdich , T homas E dward ¬ 539

A. J. C. da Cruz, 1837; Id., Escravatura, Beneficios Que Podem Provir às Nossas


Possessões d’Africa da Prohibição daquelle Trafico, Lisboa, Imprensa Nacional,
1840; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. vi, Funchal, Secretaria Regional
da Educação, 2003; Diário das Cortes Gerais, Constituintes e Extraordinárias
da Nação Portuguesa, 7 vols., Lisboa, Imprensa Nacional, 1822; GUERRA,
Jorge Valdemar, “A Casa da Ópera do Funchal. Breve memória”, Islenha, n.º 11,
jul.­‑dez. 1992, pp. 113­‑149; HERCULANO, Alexandre, “Elogio histórico do
sócio Sebastião Xavier Botelho pelo sócio Alexandre Herculano”, in Memórias
do Conservatório Real de Lisboa, vol. ii, Lisboa, Conservatório Real de Lisboa,
1850, pp. 25­‑34; LOJA, António (coord.), “Um bispo reaccionário”, Atlântico,
n.º 8, 1986, pp. 313­‑317; Id., “Instruções aos deputados”, Atlântico, n.º 10, 1987,
pp. 153­‑158; PEREIRA, João Manuel Esteves, e RODRIGUES, Guilherme
(eds.), Portugal. Diccionario Histórico, Chorographico, Heraldico, Biographico,
Bibliographico, Numismático e Artístico, vol. vii, Lisboa, João Romano
Torres, 1915; Relação Circunstanciada do Modo com Que Se Desenvolveu, Se
Promoveu e Se Proclamou a Constituição na Ilha da Madeira no Memorável Dia
28 de Janeiro de 1821, Lisboa, Typ. Rollandiana, 1821; RODRIGUES, Paulo Miguel,
A Madeira entre 1820 e 1842. Relações de Poder e Influência Britânica, Funchal,
Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008; SORIANO, Simão da Luz,
História da Guerra Civil e do Estabelecimento do Governo Parlamentar em
Portugal (1777­‑1834), 3 t., Lisboa, Imprensa Nacional, 1879­‑1880; “Xavier Botelho
(Sebastião)”, in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, vol. 37, Lisboa/Rio
de Janeiro, Ed. Enciclopédia, s.d., pp. 72­‑73.

Paulo Miguel Rodrigues


Rui Carita

Bowdich, Thomas Edward Fig. 1 – Thomas Edward Bowdich, litografia de James Thomson,
1834 (National Galleries of Scotland, Escócia).
Thomas Edward Bowdich, escritor e viajan-
te inglês, nasceu em Bristol a 20 de junho de
1791 e faleceu em Banjul, capital da Gâmbia, a barão Georges Cuvier, assim como de Alexan-
10 de janeiro de 1824. der von Humboldt e outros eminentes sábios,
Na sua juventude estudou em escolas pú- que o receberam muito bem e o ajudaram na
blicas em Bristol, demonstrando maior incli- consolidação da sua cultura científica. Durante
nação para as letras do que para as ciências. a sua estada em Paris publicou diversos traba-
Inicialmente, pensou seguir advocacia, mas lhos científicos, incluindo de história natural.
seu pai, fabricante de chapéus e comercian- Ficou famoso o seu ensaio sobre as supersti-
te, colocou­‑o como sócio na firma. Em 1813, ções, os costumes e as artes comuns aos Egíp-
casou­‑se com Sarah Wallis, com a qual parti- cios, Abissínios e Asantes, que constitui o pri-
lhava o interesse pela natureza, as viagens e a meiro grande estudo da cultura e história da
aventura. Inscreveu­‑se ainda em Oxford, mas África Ocidental.
não concluiu os estudos aí. Em 1814, conse- Em 1822, viajou com a mulher para Lisboa,
guiu um lugar de escriturário na Royal Afri- onde esteve pouco mais de um mês, consultan-
can Company e partiu para a cidade de Cabo do aí arquivos públicos e privados e escreven-
Corso, no Gana. Em 1816, integrou uma mis- do um trabalho sobre as descobertas dos Por-
são, que acabou por chefiar, ao Império Asan- tugueses em Angola e Moçambique que viria a
te, na Costa do Ouro, tendo obtido um acordo ser publicado em 1824.
com o rei no qual se assegurava a paz e se pre- De Lisboa seguiu para o Funchal, onde che-
servavam os interesses ingleses na região. gou a 14 de outubro de 1822. Permaneceu na
Regressado a Inglaterra em 1818, Bowdich Madeira um ano, tendo sido hóspede do co-
denunciou a corrupção e a ineficiência na merciante e cônsul inglês Henry Veitch. Efe-
Royal African Company. Mudou­‑se, dois anos tuou várias viagens pela Ilha, visitando também
depois, para Paris, onde estudou matemática, Porto Santo. Durante esta estadia, efetuou ob-
física e história natural. Aí tornou­‑se íntimo do servações meteorológicas, assim como colheitas
540 ¬ B owdich , T homas E dward

de plantas e animais. Observou os costumes da


população e anotou as suas impressões sobre a
política e a sociedade madeirenses. Todas estas
observações ficaram registadas numa obra cuja
publicação se deveu à sua mulher, a qual tam-
bém a ilustrou, sendo editada em 1825, um ano
após a sua morte. Este trabalho inclui também
listagens, ou simples referências, de plantas,
insetos, moluscos, aves e peixes. Neste último
caso, incluiu a descrição original do chicharro,
Seriola picturata, posteriormente chamado Tra-
churus picturatus, com a respetiva ilustração, da
autoria de sua mulher. Neste trabalho, Bowdich
denota um grande interesse pelas medições de
temperatura, pressão, humidade relativa e alti-
tude durante as suas excursões pela Madeira,
uma característica que lhe foi sem dúvida in-
cutida por Humboldt durante a sua estada em
Paris. Embora a obra seja detalhada na descri-
ção e até ilustração de aspetos da geologia da
Madeira e do Porto Santo, Bowdich não soube, Fig. 3 – Excursions in Madeira and Porto Santo during the Autumn
contudo, interpretá­‑los e determinar a origem of 1823 (1825), de Thomas Edward Bowdich e Sarah Bowdich.
das ilhas, negando a sua origem vulcânica sub-
marina. Contudo, esta e outras incorreções não
Bowdich, a mulher e os três filhos deixaram
desmerecem o valor desta obra, pela riqueza e
a Madeira a 26 de outubro de 1823, num bri-
diversidade de observações registadas, não só
gue americano, em direção a Cabo Verde, dada
de âmbito natural, mas também cultural, social
a inexistência de navios com destino à Serra
e político da Madeira do primeiro quartel do
Leoa, o objetivo desta sua terceira viagem a Áfri-
séc. xix.
ca. Em Cabo Verde, onde chegou por volta de
10 de novembro, fez observações idênticas às
que tinha feito na Madeira na ilha da Boavis-
ta, onde permaneceu algumas semanas. Visitou
ainda a ilha de Santiago durante um dia, tendo
prosseguido para Banjul, à época Bathurst, na
Gâmbia, onde chegou no início de dezembro
de 1823. Aí iniciou de imediato um trabalho de
colheita de plantas e animais e o levantamento
topográfico da foz do rio Gâmbia.
Atacado pelo paludismo, viria a morrer a 10
de janeiro de 1824. Sarah Bowdich e os três fi-
lhos regressaram a Inglaterra, e um ano depois
da morte do marido foi publicado o livro sobre
a sua derradeira viagem a África.

Obras de Thomas Edward Bowdich: Mission from Cape Coast Castle to


Ashantee, with a Statistical Account of that Kingdom, and Geographical Notices
of Other Parts of the Interior of Africa (1819); Essay on the Superstitions, Customs,
Fig. 2 – Costumes da Madeira, gravura de Sarah Bowdich, 1825 and Arts Common to the Ancient Egyptians, Abyssinians, and Ashantees (1821);
(coleção particular). An Introduction to the Ornithology of Cuvier (1821); Elements of Conchology
B raga , A nt ó nio A lfredo de S anta C atarina ¬ 541

Including the Fossil Genera and the Animals (1822); An Account of the Discoveries sem margem para dúvidas, o seu compromisso
of the Portuguese in the Interior of Angola and Mozambique (1824); Excursions in político para com o liberalismo.
Madeira and Porto Santo […] (1825) (coautoria).
O regresso de D. Miguel ao trono e a reim­
Bibliog.: impressa: BOWDICH, Thomas E., e BOWDICH, Sarah, Excursions in
plantação do Absolutismo em 1828 voltaram a
Madeira and Porto Santo during the Autumn of 1823, while on His Third Voyage
to Africa to Which Is Added by Mrs Bowdich a Narrative of the Continuance of causar dissabores a Santa Catarina Braga, que
the Voyage to Its Completion, together with the Subsequent Occurrences from Mr. se refere a esse período afirmando ter traba-
Bowdich’s Arrival in Africa to the Period of His Death. A Description of the English
Settlements on the River Gambia. Appendix: Containing Zoological and Botanical lhado “incessantemente, adido à legação por-
Descriptions and Translations from the Arabic, London, Whittaker, 1825; digital: tuguesa, nos tempos mais arriscados e mais
WESTBY­‑GIBSON, John, “Bowdich, Thomas Edward (1791(?)­‑1824)”, Oxford
Dictionary of National Biography, Oxford, Oxford University Press, 2004: http:// calamitosos” que flagelavam os súbditos da
www.oxforddnb.com/view/article/3027 (acedido a 6 mar. 2017). rainha “nos mundos ambos” (CARDOZO e
Manuel Biscoito COUTINHO, 1849, I, 7), e nesta situação se
manteve até ao regresso a Portugal, em 1834.
De novo no reino, foi “despachado Cóne-
Braga, António Alfredo de Santa go da Sé Metropolitana da Extremadura” (Id.,
Ibid.) e, perto do fim desse ano de 1834, envia-
Catarina
do para a Madeira na qualidade de governa-
António Alfredo de Santa Catarina Braga foi dor do bispado, cargo que assumiu por decre-
um frade franciscano, pertencente ao Con- to de 7 de novembro.
vento de S.to António do Vale da Piedade, no Chegado ao seu destino, Santa Catarina
Porto, nascido na mesma cidade em data in- Braga envolveu­‑se muito rapidamente numa
certa, mas situável nos fins do séc. xviii. ação polémica que visava extinguir uma de-
Em 1806, e segundo palavras do próprio, foi voção antiga e muito enraizada na população
“promovido ao magistério público”, tendo le- madeirense, sobretudo entre os moradores
cionado Filosofia Racional, Moral e Teologia de Câmara de Lobos, que consistia na vene-
Dogmática até 1819 na instituição em que pro- ração prestada a Fr. Pedro da Guarda, um
fessara. Adepto dos ideais liberais, abandonou franciscano dos primórdios do povoamen-
o convento e a Ordem Seráfica em 1820, pas- to que o povo considerava santo. Atenden-
sando a clérigo secular, condição em que foi do a que, de facto, o processo de beatificação
colocado como pároco na Abadia de S. Salva- do frade nunca se completara, não obstante
dor da Aveleda, da qual saiu “como vítima das
vicissitudes políticas de 1823” (CARDOZO e
COUTINHO, 1849, I, 6), rumo ao desterro
em Cabo Verde.
Dali partiu, em 1826, para o Brasil, onde
teve a honra de “ser o primeiro eclesiástico
português chamado ao real serviço de Sua
Majestade, a Rainha” (Id., Ibid.). Nessa corte,
pronunciou, a 30 de outubro do ano da che-
gada, um sermão por ocasião do “solene jura-
mento dos súbditos portugueses ali residentes
à carta constitucional da Monarquia Portu-
guesa”. O texto dessa “Oração”, publicado no
Porto em 1827, está eivado de louvores à nova
situação política, e nele abundam referências
à “Sublime CARTA”, ao “Magnífico Libertador
da Monarquia Portuguesa”, D. Pedro IV, e ao
“Santo Código” (BRAGA, 1827, 6­‑7), nome por Convento de S. Bernardino, em Câmara de Lobos, litografia de
que designa a Constituição, demonstrando, Luís Bernes, 1898 (Semana Ilustrada, n.º 28, 1898).
542 ¬ B raga , A nt ó nio A lfredo de S anta C atarina

alguns esforços desenvolvidos nesse sentido em que anunciava a distribuição de bíblias em


em tempo anterior, o governador do bispado língua vulgar de acordo com a versão do ilumi-
entendeu não estarem reunidas as condições nista António Pereira de Figueiredo, o orato-
devidas ao culto e, em devassa extraordiná- riano que durante 18 anos se tinha entregado
ria realizada a 2 de junho de 1835, mandou a essa laboriosa tarefa de tradução.
destruir os vestígios da presença do santo Dois anos mais tarde, em 1838, a 26 de
servo de Deus, como também era conhecido março, Santa Catarina Braga publicava nova
Fr. Pedro da Guarda. carta pastoral, agora para abordar o momen-
Segundo noticia a Flor do Oceano, que trans- toso assunto dos enterramentos nos cemité-
creve na íntegra o texto da devassa, Santa Ca- rios recentemente criados, para que se pu-
tarina Braga ordenou a abertura da capela do desse acabar com a prática da sepultura nas
extinto Convento de S. Bernardino, onde es- igrejas e nos adros, vista como insalubre e ul-
tavam as relíquias do religioso, e, por ter visto trapassada. A medida impunha­‑se, pois, ape-
que no retábulo da parte superior do altar “es- sar de a primeira legislação naquele sentido
tava pintada a Efígie de um Religioso Leigo datar de 1835, a aceitação fora difícil e, em
ornada de emblemas característicos da Santi- certas zonas do país, impossível, pelo que
dade quando esta é Canonicamente reconhe- era mister insistir. Nesse documento, além
cida” (Flor do Oceano, 21 jun. 1835, 1­‑2), man- de advogar os inúmeros benefícios advin-
dou que a pintura se desfizesse, sendo raspada dos da nova solução, Santa Catarina Braga
de modo a que ninguém mais a visse nem reco- ainda apontava as condições em que a re-
nhecesse. Quanto à imagem e a uns restos de cente portaria, que reiterava os propósitos
tecidos que se conservavam em homenagem, do dec. de 21 de setembro de 1835, tinha de
o seu destino foi o fogo, sendo de imediato ali ser cumprida: logo que os cemitérios dos lu-
queimados. A semelhança desta atitude com gares estivessem prontos e benzidos, deixa-
um auto de fé, a publicação de uma provisão, va de se aceitar que os enterros se fizessem
logo no dia seguinte, a proibir toda a espécie nas igrejas, independentemente dos desejos
de culto ao frade, cominando penas severas e do estatuto social dos falecidos. No fim do
aos eclesiásticos que não obedecessem, e a in- texto, assinalava­‑se que, no Funchal, as de-
tempestiva rutura que impôs à velha crença terminações tinham efeito nas quatro fre-
das populações concitaram grande animosi- guesias da cidade – Sé, Socorro, São Pedro
dade contra o Cón. Braga e marcaram­‑lhe, de e Santa Luzia – logo que fosse benzido o ce-
certo modo, o exercício do cargo. mitério das Angústias, mandado construir
Apesar deste começo atribulado, Santa Cata- pela Câmara Municipal. Este cemitério, com
rina Braga nunca desistiu de se assumir como efeito, estava a ser ultimado, e as suas obras
um liberal fervoroso, e algumas das suas ações concluíam­‑se em maio de 1838, tendo sido
seguintes disso dão cabal testemunho. Assim, benzido pelo próprio governador do bispa-
depois de um alerta lançado a 28 de agosto de do a 8 de julho, em cerimónia revestida do
1835 sobre os perigos e dificuldades da emi- “maior brilho e imponência” (SILVA e ME-
gração para Demerara, no ano seguinte, em NESES, 1984, I, 70).
junho, o governador do bispado apelava aos Para além deste lado mais progressista de
pais de família para que se vacinassem, e aos António Alfredo de Santa Catarina Braga, ou-
filhos, contra as bexigas, e, na exortação pas- tros registos da sua passagem pelo Funchal
toral dedicada a este assunto, alertava para as mostram um governador do bispado também
vantagens do procedimento, pedindo aos pá- comprometido com tarefas mais tradicionais,
rocos para informarem o povo dos lugares, como a que diz respeito, e.g., às penas que atri-
dos tempos e dos peritos encarregados da ino- buiu a um casal que havia cometido incesto e
culação. Em 1836, a 18 de dezembro, era a vez que foi condenado a assistir à missa conven-
de o governador emitir um mandado pastoral tual à porta da igreja, cada prevaricador com
B raga , A nt ó nio A lfredo de S anta C atarina ¬ 543

a sua vela acesa, acrescido de outras punições do novo governo liberal”. A isto acrescenta-
só para o homem: varrer a igreja e a sacristia va que o cónego não cumpria a abstinência,
todos os sábados durante dois meses e deitar “dizendo aos criados que lhe preparassem ga-
água benta nas pias. Outros registos mostram linha nos dias de jejum”. Sempre de acordo
o cónego a cumprir o seu programa visita- com a mesma fonte, Santa Catarina Braga re-
cional e a atuar sobre a geografia paroquial, comendava aos criados que comessem peixe,
mandando, e.g., anexar a freguesia de Água de embora para ele devessem preparar a dita
Pena à recém­‑criada paróquia de Santo Antó- ave, uma vez que pretendia “deitar a bênção a
nio da Serra (13 de junho de 1836). esta galinha e ela fica logo convertida em tai-
A 26 de março de 1840, António Alfredo nha”. Estes não seriam os únicos pecados do
de Santa Catarina Braga cessou as suas fun- governador do bispado, dado que, chegado a
ções no Funchal, destinando­‑se essa exone- Lisboa, se teria entregado a vários negócios,
ração, que o próprio considera “muito hon- entre os quais o de uma fábrica de manteiga e
rosa”, a permitir­‑lhe restabelecer as forças depois o de uma de papel. Acompanhando as
físicas e morais, embora depois comente que memórias do criado, o cónego, já velho, aca-
“via declinar a estação favorável sem poder baria por se retirar para a casa de um parente
aproveitá­‑la”. Referia­‑se o cónego à sua indigi- na Covilhã, onde ficara entrevado, ainda que
tação para o bispado de Bragança, que se via se mantivesse “muito amigo de mulheres”, as
compelido a declinar, uma vez que, embora quais mandaria que lhe passassem à frente e
nunca se tivesse recusado a cumprir o serviço “como não podia fazer outra coisa, acenava­
da Igreja e do Estado, sentia estarem os seus ‑lhes com o dedo indicador que era o único
“dias adiantados e debilitada em extremo” a que podia mover” (Revista do Arquivo…, 2016,
sua saúde para “ir afrontar o inverno iminen- 306, mç. 1, doc. 61).
te, em um dos países [sic] mais rigorosos do Estas apreciações, bastante preconceituosas,
Norte de Portugal”, tanto mais que havia “re- são feitas sobre um homem a quem Inocên-
sidido por mais de dezassete anos em regiões cio Francisco da Silva, no seu Dicionário Biblio-
nimiamente áridas, ou abrasadas por um sol gráfico, se refere afirmando que teve carta de
ardente”. Por isso, suplicava humildemente à pregador régio e foi condecorado com o grau
rainha que se dignasse escusá­‑lo “desta nova de cavaleiro das ordens de Cristo e de Nossa
comissão”, a qual não podia “desempenhar Senhora da Conceição, e que ainda considera
satisfatoriamente” (CARDOZO e COUTINHO, ter “gozado por muitos anos dos créditos de
1849, I, 7) insigne orador sagrado” (SILVA, 1858, I, 70).
Sem que se saiba exatamente como o cóne-
Obras de António Alfredo de Santa Catarina Braga: Oração Recitada na
go acabou os seus dias, um documento curioso Igreja de S. Francisco de Paula da Corte do Rio de Janeiro, por ocasião do Solemne
e muito parcial da autoria do P.e Teodoro João Juramento dos Súbditos Portuguezes ali Residentes, à Carta Constitucional da
Monarquia Portugueza, em 30 de Outubro de 1826 (1827).
Henriques dá para isso algumas explicações,
que devem, no entanto, ser lidas com reserva, Bibliog.: manuscrita: ACDF, cx. 45, docs. 32­‑33 e 148.3; impressa: BRAGA,
António Alfredo de Santa Catarina, Oração Recitada na Igreja de S. Francisco de
dado o enviesamento da prosa. Diz o P.e Teo-
Paula da Corte do Rio de Janeiro, por ocasião do Solemne Juramento dos Súbditos
doro Henriques ter tido conhecimento do des- Portuguezes ali Residentes, à Carta Constitucional da Monarquia Portugueza, em
30 de Outubro de 1826, Porto, Imprensa do Gandra, 1827; CARDOZO, Francisco
tino de Santa Catarina Braga através do teste-
de Sales Gomes, e COUTINHO, Francisco Jozé (orgs.), Miscellanea ou Collecção
munho de um criado do cónego, que sobre Curiosa de Varios Escriptos Religiosos, Civis, Políticos, Moraes e Literários de
ele tinha opinião muito desfavorável, uma vez Diversos Authores, a Principiar pel’os do Insigne e Eloquente Orador Fr. Antonio
Alfredo de Santa Catharina Braga, Egresso do Exctinto Convento de S. Antonio
que o acusava de ser de “muito mau génio e do Valle da Piedade no Porto, t. i, Porto, Typ. Commercial, 1849; Flor do Oceano,
de mau coração”, pois “parecia não dormir 21 jun. 1835; Revista do Arquivo Histórico da Madeira, vol. xxiii, 2016; Semana
Ilustrada, n.º 28, 1898; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
para pensar em fazer mal ao próximo”. O dito de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984; SILVA, Francisco
criado tinha outras razões para não estimar o Inocêncio, Diccionario Biobibliogaphico Portuguez, Applicaveis a Portugal e ao
Brasil, ts. i e viii, Lisboa, Imprensa Nacional, 1858.
cónego, uma das quais era ter sido preso às
suas ordens, por “lhe constar que falava mal Cristina Trindade
544 ¬ B raga , T e ó filo de

Braga, Teófilo de
Filho de Joaquim Manuel Fernandes Braga e
Maria José Albuquerque, aristocratas liberais
açorianos, nasceu em Ponta Delgada, ilha
de São Miguel, Açores, a 24 de fevereiro de
1843.
Começou a atividade literária ainda muito
jovem, na tipografia A Ilha, colaborando nos
periódicos açorianos O Meteoro e O Santel-
mo. Cessados os estudos em Ponta Delgada,
matricula­‑se em Direito na Univ. de Coim-
bra, vindo a doutorar­‑se em 1868. Toma parte
na célebre polémica Questão Coimbrã com
o texto Teocracias Literárias, colocando­‑se
ao lado de Antero de Quental e opondo­‑se,
assim, a António Feliciano Castilho. Em 1872,
foi admitido como lente na cátedra de Litera-
turas Modernas no Curso Superior de Letras,
cargo disputado por Manuel Pinheiro Chagas
e Luciano Cordeiro.
Teófilo de Braga torna­‑se uma das figuras
mais respeitadas nos círculos intelectuais da Teófilo de Braga enquanto Presidente da República, 1915 (Estúdio
António Novais).
segunda metade do séc. xix e inícios do xx
em Portugal. Trabalhador incansável, escritor
prolífero, deixou uma vasta obra multidisci- República, e o segundo, a 14 de maio de 1915,
plinar, tanto a nível literário como científico, quando substitui na Presidência da Repúbli-
reveladora do seu génio brilhante e determi- ca Manuel de Arriaga, após um levantamento
nado. Como escritor, destacou­‑se na poesia, militar, tornando­‑se o segundo presidente da
no conto fantástico e no romance histórico, República Portuguesa.
realizando também algumas traduções. En- Relativamente à Madeira, Teófilo de Braga
quanto académico, dedicou­‑se aos estudos li- consagra o segundo capítulo do livro Poetas
terários, à história da literatura, à filosofia e à Palacianos aos poetas madeirenses presentes
etnografia, sendo um precursor dos estudos no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
sociológicos em Portugal. O seu pensamen- Este capítulo aparece transcrito por Álvaro
to científico estava imbuído da doutrina po- Rodrigues de Azevedo nas suas anotações no
sitivista de Auguste Comte, da qual Teófilo de livro Saudades da Terra, de Gaspar Frutuoso
Braga foi arauto em Portugal, dirigindo, em (1873). Teófilo de Braga refere, assim, auto-
parceria com Júlio de Matos, a revista O Posi- res como Manoel de Noronha, Tristão Teixei-
tivismo (1878­‑1882), órgão de divulgação da ra das Damas, João Gonçalves e Pero Correia,
filosofia positivista. observando que estes constituem uma escola
Dedicou­‑se à política, em particular à poética madeirense que germinou no tempo
causa republicana, mais intensamente entre do Rei D. Duarte. O insigne académico inti-
1870 e 1890, atingindo a sua carreira políti- tula tal escola “Ciclo Poético da Ilha da Ma-
ca dois pontos altos: o primeiro momento, a deira”, defendendo que esta foi influenciada
5 de outubro de 1910, na ressaca do sucesso pela poesia aragonesa, com impressões da tra-
da revolução republicana, sendo nomeado dição lendária inglesa denunciadas pela lenda
para a presidência do Governo Provisório da de Machim e Ana de Arfet, e que constituiu
B ranco , J o ã o de F reitas ¬ 545

um ramo diferente dos poetas palacianos do do Romantismo em Portugal (1880); História do Romantismo em Portugal.
Ideia Geral do Romantismo. Garrett – Herculano – Castilho (1880); Os Homens
continente do reino presentes no Cancioneiro d’hoje (1880); Origens Poéticas do Christianismo (1880); Dissolução do Systema
Geral. Monarchico­‑Representativo (1881); Memórias de Paulina. Episódio do Séc. XVII
(1881); Camões. A Tipografia e as Ciências do Século (1882); Systema de Sociologia
Contudo, o anotador de Saudades da Terra, (1884); Curso de Historia da Literatura Portugueza (1885); O Mandato Imperativo
Álvaro Rodrigues de Azevedo, faz alguns repa- (1887); As Lendas Christãs (1892); As Modernas Ideias na Litteratura Portugueza
(1892); A Tipografia e as Ciências do Século XVI (1892); Historia da Universidade
ros às ideias de Teófilo de Braga, escrevendo de Coimbra nas Suas Relações com a Instrução Publica Portugueza (1892­‑1902);
que “o grupo dos poetas madeirenses deste Dom Francisco Lemos e a Reforma da Universidade de Coimbra (1894); A Pátria
Portugueza. O Território e a Raça (1894); Sá de Miranda e a Eschola Italiana
período não constitui ciclo distinto, é apenas (1896); Bernardim Ribeiro e o Bucolismo (1897); O Baptismo das Náos. Poemeto
ramo do ciclo continental, porque não tem (1898); Eschola de Gil Vicente e Desenvolvimento do Teatro Nacional (1898);
Obra Posthuma (1898); Arcádia Lusitana. Garção, Quita, Figueiredo, Diniz (1899);
tipo próprio” (FRUTUOSO, 1873, 173). Não Mais Mundos. Poemeto Comemorando o IV Centenario do Descobrimento do
obstante, Teófilo de Braga tem o mérito de Brazil (1900); Sobre as Estampas ou Gravuras nos Livros Populares Portuguezes
(séc. xx); Camões e o Sentimento Nacional (1901); Eça de Queiroz e a Sua Obra
lançar as bases de uma historiografia literária (1901); Quarenta Anos de Vida Litteraria: 1860­‑1900. Cartas… (1902); Garrett e o
madeirense. Romantismo (1903); Alma Portugueza. Viriatho, Narrativa Epo­‑Historica (1904);
Frei Gil de Santarem. Lenda Faustiana da Primeira Renascença (1905); Garret e os
Apesar de tal desacordo, Teófilo de Braga
Dramas Românticos (1905); Quem Foi o Auctor do Segundo Don Quixote? (1905);
manterá com Álvaro Rodrigues de Azevedo Spinosa. Conferência Philosophica e Histórica (1905); Joaquim Silvestre Serrão e
a Música Religiosa em Portugal (1906); Romanceiro Geral Portuguez. Romances
correspondência e amizade. No seu livro Qua-
Heroicos, Novellascos e de Aventuras (1906­‑1909); Alma Portugueza. Gomes Freire,
renta Anos de Vida Literária (1860­‑1900) (1902), Drama Histórico (1907); Camões. Época e Vida (1907); Historia da Literatura
Portugueza (1909­‑1914); O Martyr da Inquisição Portugueza Antonio José da Silva
podemos ler um total de 12 cartas, com datas
(1910); Discursos sobre a Constituição Política da República Portugueza (1911);
compreendidas entre 1861 e 1880, enviadas Stoicismo Divino por Joaquim de Araújo (1912); Tristão, o Enamorado. Quadros
por Álvaro Rodrigues de Azevedo. Do conteú- de Conjunto do Romanceiro Popular Português (1914); Camilo Castelo Branco.
Esboço Biográfico (1916); Os Dois Naufrágios de Camões (1916); Gil Vicente
do das cartas, destaca­‑se a influência e inspi- Ourives e Gil Vicente Poeta (1916); Os Seiscentistas (1916); Os Amores de Camões.
ração que Teófilo de Braga exerceu em Álvaro Commentario Biográfico (1917); João de Deus. Escorço Biográfico (1930).

Rodrigues de Azevedo, nomeadamente na sua Bibliog.: impressa: BASTOS, Teixeira, Theophilo Braga e a Sua Obra, Porto,
recolha etnográfica e folclórica dos contos e Lugan & Genelioux, Successores, 1892; BRAGA, Teófilo de, Poetas Palacianos,
Porto, Imprensa Portugueza, 1872; Id., Quarenta Anos de Vida Literária (1860­
cantigas populares da ilha da Madeira, que ‑1900), Lisboa, J. A. Rodrigues e C.ª, 1915; CARREIRO, José Bruno (org.), A Vida
originou o livro Romanceiro do Arquipélago da de Teófilo Braga. Resumo Cronológico, Coimbra, s.n., 1955; CIDADE, Hernâni,
Doutor Teófilo Braga. As Directrizes da Sua Obra de História Literária, Lisboa,
Madeira (1880). Ao mesmo tempo, pela leitu- Imprensa Nacional, 1935; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. História
ra das missivas, acompanhamos o processo de das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues
de Azevedo, Funchal, Typ. Funchalense, 1873; Romanceiro do Arquipélago da
elaboração do livro por Álvaro Rodrigues de Madeira, Funchal, Typ. Voz do Povo, 1880; digital: “Braga (Joaquim Teófilo
Azevedo, as reflexões, as dúvidas e os constan- Fernandes)”, O Portal da História, s.d.: http://www.arqnet.pt/dicionario/
bragateofilo.html (acedido a 30 jun. 2015); “Teófilo Braga”, Infopédia, s.d.:
tes pedidos de orientação a Teófilo de Braga. http://www.infopedia.pt/$teofilo­‑braga (acedido a 30 jun. 2015); “Teófilo
Teófilo de Braga morre em Lisboa a 28 de Braga”, Presidência da República Portuguesa, s.d.: http://www.presidencia.
pt/?idc=13&idi=37 (acedido a 30 jun. 2015).
janeiro de 1924.
Carlos Barradas
Obras de Teófilo de Braga: Contos Tradicionais do Povo Portuguez. Com um
Estudo sobre a Novelística Geral e Notas Comparativas (s.d.); Gomes Freire de
Andrade (séc. xix); Na Tomada de Jerusalem. Às Nações Alliadas, Comemorando
o Feito das Tropas Oritannicas e dos Contígentes Francezes e Italianos (séc. xix);
Folhas Verdes (1859); Tempestades Sonoras (1864); Visão dos Tempos (1864);
Branco, Alfredo António
Contos Fantásticos (1865); As Theocracias Litterarias (1865); A Ondina do de Castro Teles de Meneses de
Lago (1866); Camões e Os Lusíadas. Estudo Crítico Publicado por Ocasião do
Tricentenário (1867); Cancioneiro e Romanceiro Geral Portuguez. Confecção e
Vasconcelos de Bettencourt
Estudos (1867); Historia da Poesia Popular Portugueza. Ciclos Épicos (1867);
Caracteristicas dos Actos Comerciais (1868); Floresta de Vários Romances (1868);
de Freitas
História do Direito Portuguez. Os Foraes (1868); Theses Escolhidas de Direito Ö Porto da Cruz, visconde do
(1868); Torrentes. Últimos Versos (1869); História do Teatro Portuguez (1870­‑1871);
Epopêas da Raça Mosárabe (1871); Historia dos Quinhentistas (1871); Poetas
Palacianos (1872); Historia das Novellas Portuguezas de Cavalleria de Amadis
de Gaula (1873); Historia de Camões (1873); Manual da História da Litteratura
Portugueza. Desde as Suas Origens até ao Presente (1875); Bocage. Sua Vida e Branco, João de Freitas
Época Litteraria (1876); Traços Geraes de Philosophia Positiva. Comprovados pelas
Descobertas Scientificas Modernas (1877); Historia Universal. Esboço de Sociologia Médico, músico, naturalista e escritor madei-
Descriptiva (1878­‑1882); Theoria da Historia Litteraria Portuguesa. Da Aspiração
Revolucionaria e a Sua Disciplina Democrática (1879); Camões. Drama Histórico
rense, nasceu no Funchal a 5 de agosto de
em 5 Actos (1880); Historia das Ideias Republicanas em Portugal (1880); História 1854. Estudou na Faculdade de Medicina da
546 ¬ B ranco , J o ã o S oares

Univ. de Coimbra, tendo sido um aluno bri- no Teatro Ginásio, em Lisboa, tendo estas
lhante. Completou os seus estudos em In- peças ficado em cartaz durante alguns anos.
glaterra, tendo­‑se relacionado, em Londres, Traduziu e adaptou obras de dramaturgos no-
com os intelectuais mais importantes e de ruegueses, suecos, dinamarqueses e alemães
maior evidência da época. Porém, as artes praticamente desconhecidos em Portugal,
interessavam­‑no mais do que a medicina, no- e.g., Casa de Bonecas e Os Esteios da Sociedade, de
meadamente a música, a literatura e o teatro, Ibsen, Os Penedos do Inferno, de Blumenthal;
áreas onde se destacou. O Fim de Sodoma, de Suderman, e Uma Falên-
Em França, na Alemanha e na Áustria, apro- cia, de Bijorson.
fundou os seus conhecimentos musicais, quer Colaborou em revistas literárias em Por-
ao nível da interpretação – tocava piano, tugal e no estrangeiro, tendo para tal con-
órgão, cravo e violoncelo –, quer ao nível da tribuído o facto de dominar várias línguas,
composição, tendo­‑se debruçado sobre o es- sendo “considerado, mesmo no estrangei-
tudo da composição dos grandes mestres. No ro, como um dos mais poliglotas, pois fala-
campo literário, especializou­‑se na história da va, lia e escrevia corretamente oito línguas,
literatura dos povos nórdicos. Na Noruega, além do português”, afirma o sobrinho, o vis-
onde viveu algum tempo, dedicou­‑se ao estu- conde do Porto da Cruz, num artigo sobre o
do da obra do dramaturgo Henrik Ibsen, que tio (PORTO DA CRUZ, 1950, 40) onde rei-
conheceu pessoalmente. tera a influência que João de Freitas Branco
Regressado a Portugal, João de Freitas Bran- exercia sobre os sobrinhos, que, graças à sua
co fixou­‑se em Lisboa. A sua casa tornou­‑se orientação, se notabilizaram: Luís de Frei-
um centro de encontro e reunião dos mais tas Branco (professor e compositor), o mes-
distintos intelectuais e artistas do país e do tre Pedro de Freitas Branco e o visconde do
estrangeiro. Através dele, ficaram conheci- Porto da Cruz.
das em Portugal as obras de Rudyard Kipling,
Obras de João de Freitas Branco: A Aranha d’Ouro; Califa; Doutor Micróbio;
Maeterlink, Bijorson, entre outros. Trouxe
Festa de Inauguração; José do Egipto; O Homem das Mangas; Os Doidos com
para Portugal a escola ibseniana, uma corren- Juízo; Os Inocentes.
te moderna que veio revolucionar o teatro: Bibliog.: CARITA, Rui, e MELO, Luís Francisco de Sousa, 100 Anos do Teatro
“O teatro ibseniano, grandemente filosófico e Municipal “Baltazar Dias”, Funchal, s.n., 1988; PORTO DA CRUZ, Visconde do,
“Dr. João de Freitas Branco”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 1, n.º 4,
esmerilhador da alma humana, reclama para
nov.­‑dez. 1950; Id., Notas & Comentários para a História Literária da Madeira,
seu entendimento alta contenção de espírito, 2 vols., Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1951; SILVA, Ernesto da, Theatro
entrechoque de ideias que têm de depurar­‑se Livre & Arte Social, Lisboa, Typ. do Commercio, 1902.

por si mesmas na consciência individual e, im- Graça Maria Nóbrega Alves


portando por isso um singular esforço de ce-
rebração, de prever é que não encontre fácil
albergue na razão e na emotividade de uma
Branco, João Soares
raça essencialmente amante da linha e da cor João Soares Branco nasceu em Alcácer do Sal
e absolutamente despida – em sua expressão em 1863. Tendo­‑se envolvido, como outros
coletiva – do utilíssimo desejo de penetração militares, no Partido Progressista, veio a ser
à essência das cousas e dos factos” (SILVA, nomeado para governador civil do Funchal,
1902, 6). por dec. de janeiro de 1906, lugar de que
João de Freitas Branco escreveu algumas tomou posse a 30 desse mês; porém, a 22 de
obras para teatro que tiveram grande aceita- maio seguinte, era exonerado pelo novo go-
ção junto do público – O Homem das Mangas, verno do Partido Regenerador, voltando ao
Festa de Inauguração, A Aranha d’Ouro, Califa, Funchal, pela terceira vez, José Ribeiro da
Os Inocentes, entre outras. Contudo, foi a crí- Cunha (1854­‑1915), que tomou posse como
tica incisiva das comédias Os Doidos com Juízo, governador civil a 29 desse mês. O Maj. João
José do Egipto e Doutor Micróbio que fez sensação Soares Branco, no entanto, manteve contactos
B ranco , M aria T ereza C astro L eal de F reitas ¬ 547

dos complexos arranjos no interior dos parti-


dos, juntamente com José Ribeiro da Cunha,
tendo sido ambos eleitos. Soares Branco não
teria, entretanto, tomado assento nas Cortes,
pois a sua ficha não se encontra nos arquivos
da Assembleia da República. Foi ministro da
Fazenda no curto Governo do Gen. Sebastião
Custódio de Sousa Teles (1847­‑1921), entre 11
de abril e 14 de maio de 1909, e no seguinte,
de Francisco António da Veiga Beirão (1841­
‑1916), de 11 de abril de 1909 a 26 de junho
de 1910.
Em 1915, daria à estampa os artigos publi-
cados por vários autores no periódico O Paiz,
sobre a nova Questão Hinton, ou seja, o com-
plexo monopólio sacarino da Madeira, assunto
que atravessara toda a sua gestão no Ministério
das Fazenda e um dos que levaram à queda do
Fig. 1 – Maj. João Soares Branco, c. 1909 (ACMF,
Secretaria-Geral do Ministério das Finanças). Governo.
O antigo governador civil do Funchal faleceu
na Madeira e interessou­‑se por vários assun- em Lisboa, em abril de 1929.
tos, concorrendo pelo círculo do Funchal
Bibliog.: BRANCO, João Soares, A Nova Questão Hinton. Artigos Publicados
nas eleições de 5 de abril de 1908, dentro no Jornal “O Paiz” Um Amigo da Madeira, Lisboa, Typ. do Annuario Comercial,
1915; CRUZ, Mário Pinho da (coord.), Dos Secretários de Estado dos Negócios
da Fazenda aos Ministros das Finanças (1788­‑2006). Uma Iconografia, Lisboa,
Secretaria­‑Geral do Ministério das Finanças e da Administração Pública, 2006;
SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998.

Rui Carita

Branco, Maria Tereza Castro Leal


de Freitas
Natural do Funchal, era filha de Luís Vicente
de Freitas Branco e de Ana Augusta Leal de
Freitas Branco, e irmã do escritor Alfredo de
Freitas Branco, visconde do Porto da Cruz.
Recebeu, segundo afirma Luís Marino, uma
formação esmerada, tendo estudado em Ingla-
terra e Itália e possuindo “grande cultura lite-
rária e artística” (MARINO, s.d., fl. 51).
Foi presidente da Liga Católica Feminina em
1856 e dedicou­‑se a diversas causas caritativas.
Colaborou na imprensa periódica, por vezes
com o pseudónimo de Sarete, com artigos em
Revista Esperança, O Jornal, O Jornal da Madeira
e Diário de Notícias. Dirigiu, em 1950, a “Pági-
Fig. 2 – A Nova Questão Hinton (1915), de João Soares Branco. na feminina”, de O Jornal, tratando de assuntos
548 ¬ B rand ã o , G aspar A fonso da C osta

religiosos e relativos ao papel da mulher na designado prior da igreja de S. Paio de Gou-


sociedade. veia, lugar de que abdicou em favor de um
Proferiu várias conferências sobre religião irmão, em 1739, para, em 1742, se tornar do-
e sociedade, colaborando ativamente na vida cente substituto de Instituta, na universidade,
cultural da época. Colaborou com sua mãe e tendo assumido a titularidade da posição em
sua irmã Maria do Carmo na Liga da Ação So- 1743. Enquanto residente em Coimbra, foi,
cial Cristã e na Juventude Católica Feminina, igualmente, desembargador da mesa episco-
organizando conferências e eventos de carác- pal daquela diocese. Em 1748, viria a ocupar o
ter caritativo. Morreu em 1965 lugar de prelado da patriarcal, que naquela al-
tura se configurava como “um viveiro de can-
Obras de Maria Tereza Castro Leal de Freitas Branco: “Juventude Católica
Feminina” (1929); “Acção de mulheres” (1950); “Cristo­‑Rei. Abertura do novo didatos ao episcopado” (PAIVA, 2006, 532).
ano social da Acção Católica” (1956); “O lactário ou a assistência a crianças D. Gaspar Afonso Brandão possuía predi-
pobres e fracas” (1957).
cados que o recomendavam, à luz dos novos
Bibliog.: MARINO, Luís, “Branco, Maria Tereza de Castro Teles de Menezes Leal
de Freitas”, in Panorama Literário do Arquipélago da Madeira, vol. 2, texto não
critérios de provimento episcopal determina-
publicado, fl. 51. dos pelo Marquês de Pombal, para ascender
Cristina Trindade à qualidade de bispo. Com efeito, durante o
Luísa M. Antunes Paolinelli consulado pombalino, e mercê das alterações
que então se imprimiram em largos sectores
da vida em Portugal, os pressupostos para a
Brandão, Gaspar Afonso da Costa ocupação de uma mitra sofreram alguns ajus-
tamentos, dentro dos quais cabia uma pes-
A 18 de dezembro de 1703, Gaspar Afonso soa com o perfil de Gaspar Afonso da Costa
da Costa Brandão (1703­‑1784) batizava­‑se em Brandão. Em primeiro lugar, queriam­‑se,
Águeda, cidade onde nasceu. O seu registo agora, pessoas oriundas de famílias de boa
de batismo não deixa margem para dúvidas linhagem, mas sem ligações àquela nobreza
quanto ao lugar do seu nascimento, invali-
dando o que, durante muito tempo, se afir-
mou, quando era dado como natural de Vila
Cova de Sub­‑Avô, terra de seu pai. Era filho
de Bento de Figueiredo Brandão e de Dona
Ângela Josefa da Fonseca Pinto Serra, “gente
principal” da terra e que vivia segundo a “lei
da nobreza”, como declaram as testemunhas
chamadas a pronunciar­‑se na sua habilitação
de genere (PAIVA, 2001, 46), pelo que tinha
raízes na nobreza provincial. Ainda criança,
mudou­‑se, na companhia dos pais, para Vila
Cova de Sub­‑Avô, localidade que só aban-
donou quando foi viver para Coimbra, para
prosseguir os estudos universitários. Con-
cluída a licenciatura em Leis, acabaria por se
doutorar em 1726. Somente depois de com-
pletada a sua formação académica decidiu en-
veredar pela vida eclesiástica, tendo recebido
a prima tonsura e ordens menores em setem-
bro de 1729 e as restantes ordens sacras a par-
tir de maio de 1731. Após ter­‑se tornado sa- Fig. 1 – D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, 17.º bispo do
cerdote do hábito de S. Pedro, D. Gaspar foi Funchal, oficina continental, c. 1757 (Cabido da Sé do Funchal).
B rand ã o , G aspar A fonso da C osta ¬ 549

tradicional que o marquês pretendia afastar com um bico mui comprido”. Como resulta-
dos centros de decisão. Em segundo, cada do destas informações, muito se esforçou o
vez mais se procurava para o lugar de prelado bispo por reconduzir as irmãs ao uso do burel
gente com estudos superiores e com provas das Clarissas, do que resultou uma revolta de
dadas no desempenho de funções importan- 45 freiras, cujos elementos mais recalcitrantes
tes, como eram, neste caso, o magistério uni- acabaram por ser enclausurados e, em casos
versitário, o lugar de desembargador da mesa extremos, excomungados (PEREIRA, 1993,
episcopal e a posição na patriarcal. Em ter- 48). Nos outros conventos de clarissas, a situa-
ceiro lugar, finalmente, o ministro do Reino ção não era muito diferente. Para o das Mer-
preferia gente madura e que comungasse da cês, o que se ofereceu ao P.e Alásio afirmar foi
visão que subscrevia quanto ao lugar e fun- que as freiras tinham caído em “tal relaxação
ções que à Igreja deviam estar destinados no […] que apenas tinham o nome e a mortalha
emergente mundo das Luzes. A maturidade, de religiosas e alguns atos externos de pieda-
no caso de Gaspar Afonso, era­‑lhe dada pela de”. Esta situação verificava­‑se igualmente em
própria idade, pois, quando foi chamado para Santa Clara, onde só após o retiro de 1764 a
bispo do Funchal, contava já 53 anos. Quanto grande maioria decidiu obedecer ao prelado
à sua adequação à mundividência pombalina, e conformar o hábito com o preconizado pela
o tempo se encarregaria de demonstrar que, regra (Id., Ibid., 48­‑49).
também neste caso particular, o Marquês não Como resultado dos relatos produzidos pelos
se enganara. dois missionários na sua estadia de 10 anos no
Assim, e por se encontrar há três anos vaga a Funchal, o bispo foi encarregado, extraordina-
Diocese do Funchal, D. José I chamou Gaspar riamente, de visitar e reformar todos os con-
Afonso da Costa Brandão para lhe entregar a ventos e recolhimentos da cidade, o que lhe
responsabilidade daquele bispado, opção rati- trouxe inúmeros problemas, oposições e resis-
ficada pela bula Apostolatus Officium, de 20 de tências que ele se foi esforçando por resolver
junho de 1756. A sagração episcopal ocorreu
no ano seguinte, o qual também registou a en-
trada solene do novo bispo no Funchal, a 5 de
agosto.
No decurso da preparação para se encar-
regar da Diocese, D. Gaspar Brandão enten-
deu necessário fazer­‑se acompanhar de dois
sacerdotes vicentinos, os padres J. Alásio e
José dos Reis, a quem incumbiu de usar os
púlpitos na cidade, de fazer pregações evan-
gélicas em diversas paróquias e de visitar os
conventos em relação aos quais se suspeitasse
de forte abrandamento no cumprimento das
regras da respetiva ordem. Os registos que
esses sacerdotes deixaram da sua ação nos
conventos vieram, de facto, confirmar que
a prática quotidiana intramuros se afastara
muito dos ideais da vida em reclusão e que
esta mereceu dos padres observações pouco
abonatórias. Assim, em relação ao Convento
da Encarnação, afirmaram eles que as freiras
“traziam véus de seda veiados de pano fino, Fig. 2 – Cruzeiro da Missão dos Padres Vicentinos, c. 1760
e ornavam a testa (pouco juízo havia nela!) (igreja matriz de Santa Cruz).
550 ¬ B rand ã o , G aspar A fonso da C osta

e que configuram um dos aspetos difíceis do membros, onde quer que se encontrassem,
seu episcopado. Como consequência desta ati- a posterior dissolução das comunidades e o
vidade visitacional, adotou­‑se um conjunto de fim das suas atividades de ensino. Paralela-
medidas novas, umas de carácter disciplinar e mente, avisaram­‑se os bispos das diversas dio-
outras relativas a aspetos administrativos, no- ceses de que deveriam emitir pastorais que
meadamente relacionados com a admissão de sublinhassem a intervenção dos Jesuítas no
noviços, a qual foi restringida e passou a ser atentado contra D. José.
alvo de mais criteriosa seleção. Devidamente informado, D. Gaspar Afonso
Poucos meses depois de ter chegado ao Fun- da Costa Brandão não perdeu tempo e, a 29 de
chal, entre fevereiro de 1758 e maio de 1759, maio do mesmo ano, apanhando de surpresa
D. Afonso Brandão viu­‑se encarregado de assu- os jesuítas do Funchal, mandou cercar­‑lhes o
mir o governo militar do arquipélago, por au- colégio por tropas ao serviço do governador.
sência do Gov. Manuel Saldanha e Albuquer- Logo de seguida, a 27 de junho de 1759,
que. Ainda no exercício das suas funções como fez publicar a primeira das pastorais contra a
governador, o bispo informava o ministro de Companhia de Jesus, na qual se afirmava que,
Estado Tomé Joaquim de Corte­‑Real terem “fazendo­‑se público neste nosso bispado”, em
chegado ao seu conhecimento uns documen- fevereiro anterior, a sentença do Tribunal da
tos relativos aos “excessos e maquinações” dos Inconfidência, que dava conta do atentado
jesuítas portugueses e espanhóis contra o Tra- contra o rei, e que, na mesma sentença, “se
tado dos Limites, na América do Sul, com data declaravam corréus daquela execranda con-
de 1750, o que começava a configurar os enor- juração os Religiosos pervertidos da Sagrada
mes problemas que se avizinhavam, tendo no Companhia de Jesus, usando estes de doutrina
centro a Companhia de Jesus (CARITA, 1996, falsa e escandalosa com que se fomentou aque-
401). le horroroso atentado”, se impediam, por isso,
De facto, e tomando como pretexto o com- os referidos religiosos do “Ministério de pre-
portamento dos Jesuítas em terras do Brasil, o gar e confessar nesta nossa diocese” (ACDF, cx.
Marquês de Pombal decidira pôr em marcha 45, doc. 25). Mais adiante, acrescentava que se
um plano para diminuir ou, mesmo, extin- mandava a todos os súbditos que “não admi-
guir o domínio que os padres da Companhia tam nem ensinem, nem deem apenso ou cre-
exerciam não só no ultramar, mas mesmo dulidade alguma às doutrinas e proposições
no reino, onde eram senhores do ensino e acima referidas”.
muito próximos da corte, na qual tinham A 4 de julho de 1760, o monarca enviava uma
vindo a desempenhar papéis de precetores missiva em que informava ter mandado sus-
de infantes e de confessores de membros da pender “com os regulares da mesma Compa-
família real. nhia compreendidos naquele infame e escan-
Uma das estratégias seguidas para desacre- daloso atentado […] as demonstrações a que
ditar os Jesuítas em Portugal continental foi como Rei […] me achava necessitado”, igual-
a de os associar aos motins que, no Porto, mente ordenando que “fossem obstados até
se tinham levantado contra a implantação da aqueles procedimentos de que se não devem
Companhia Real dos Vinhos do Porto (em dispensar”, dado que se fazia indispensável
fevereiro de 1758), a que se seguiram a ex- não dilatar por mais tempo “a indefetível defe-
pulsão da corte dos padres da Companhia, sa em que devo sustentar o meu Real decoro”,
queixas para Roma criticando­‑lhes a condu- sendo que nada mais lhe restava senão deter-
ta e, finalmente, a implicação dos mesmos minar que “os sobreditos regulares corrompi-
no atentado contra D. José I, a 3 de setem- dos” fossem considerados como “notórios Re-
bro de 1758. Em consequência desta acusa- beldes, Traidores, Adversários e Agressores”
ção, foi determinado o sequestro dos bens e fossem “pronta e efectivamente extermina-
da Companhia, o enclausuramento dos seus dos, desnaturalizados, proscritos e expulsos de
B rand ã o , G aspar A fonso da C osta ¬ 551

todos os meus Reinos e Domínios”. Na sequên- junho de 1760, embarcados para Lisboa sem
cia desta missiva, o bispo voltou a publicar uma levarem mais que os hábitos que vestiam.
nova pastoral (ACDF, cx. 45., doc. 25). Mas a produção de pastorais deste bispo não
O documento, com data de 3 de setembro se confinou aos textos veementes que produ-
de 1760, torna manifesto que, “Desejando Nós ziu contra a Companhia de Jesus. Outras preo-
com a mais eficaz diligência satisfazer a obriga- cupações lhe ocupavam o espírito e justifica-
ção de fiel vassalo de Sua Majestade na pronta vam que, a 16 de agosto de 1765, publicasse
execução dos seus invioláveis mandados”, era nova pastoral destinada a extirpar o pecado
fundamental para o prelado exortar os ecle- da usura. A 24 de julho de 1768 tornou públi-
siásticos e seculares do arquipélago a que “com co um texto longo, virado sobretudo para o
o mais ardente zelo e fidelidade hajam de tri- clero, em que alertava para a importância de
butar uma exata obediência ao nosso Augustís- os eclesiásticos não terem em suas casas mulhe-
simo Monarca […], reconhecendo todos que res abaixo dos 50 anos, de não se dedicarem
na obediência, amor e fidelidade ao Soberano a negócios de nenhuma espécie, de insistirem
[…] consiste a saúde da República, a conserva- no ensino da doutrina, de virem examinar­‑se
ção da união […] e a felicidade da Monarquia” regularmente para confessores, extravagantes
(ACDF, cx, 45, doc. 26). incluídos, e de fazerem retiros anuais, entre
A total e plena aceitação de todas as ins- outras recomendações. Para a emissão destas
truções dimanadas do reino demonstra bem diretivas poderá ter contribuído um ofício do
como D. Afonso Brandão tinha sido uma atila- Corr. Francisco Moreira de Matos ao Gov. Sá
da escolha do Marquês, o qual não viu, assim, Pereira, no qual, em relação ao clero, afirmava
as suas expectativas minimamente defraudadas que padres existiam em abundância, mas con-
na Madeira – como, de resto, foi sublinhado fessores muito poucos, a ponto de serem ne-
por José Pedro Paiva, quando dá conta de um cessários “valimentos para qualquer pessoa de
episódio em que o bispo do Funchal se dirigiu menor condição poder gozar deste sacramen-
ao ministro, a 21 de março de 1759, reportan- to, tudo nascido da falta de sacerdotes apro-
do haver recebido uma missiva do monarca, a vados que, pela sua ignorância, só dizem com
qual logo havia mandado cumprir, referindo verdade Domine non sum dignus” (AHU, Madei-
depois que o mesmo “invariavelmente farei ob- ra, cx. 1, doc. 288).
servar e tudo o mais que for serviço de sua Ma- A forma relativamente autoritária como
jestade” (PAIVA, 2001, 50). D. Gaspar Brandão abordava os problemas es-
Depois de um ano de prisão, os 18 jesuítas teve na origem de alguns diferendos que lhe
que se encontravam cercados foram, a 16 de ensombraram o episcopado. Assim, por se ter

Fig. 3 – Assinatura de D. Gaspar Afonso da Costa Brandão, 1761 (Cabido da Sé do Funchal).


552 ¬ B rand ã o , J o ã o A ntonino da A scens ã o de P aiva de F aria L eite

envolvido na prisão, aparentemente indevida, disposição para que se soltasse o advogado,


de um cónego, Francisco Eleutério Tavares, foi sem que, ao mesmo tempo, se condenasse o
obrigado pelo rei a libertá­‑lo. Num outro caso, vigário-geral.
que determinou o encarceramento de um ad- Foi, ainda, durante este episcopado que se
vogado que defendera o cónego, contou com assinalaram os primeiros pedreiros-livres na
o apoio do Gov. António de Sá Pereira, seu Madeira, designadamente Francisco de Alin-
amigo, mas incorreu na ira do irmão do advo- court, Bartolomeu Andrieux e o madeirense
gado, que chegou a apodar o prelado de “men- Aires de Ornelas Frazão, escrivão da Alfânde-
tecapto”, o que igualmente lhe valeu o cárcere ga. Embora já referenciados como maçons, a
(CARITA, 1996, 387). verdadeira perseguição a esta organização virá
Outra situação geradora de atritos entre o a registar­‑se já debaixo da autoridade do bispo
bispo e a Coroa prendeu­‑se com o conflito seguinte, D. José da Costa Torres.
sobre quem tinha jurisdição para confirmar os Cansado, idoso e doente, acusando, com cer-
compromissos das confrarias. O rei, por pro- teza, o desgaste que lhe provocara o exercí-
visão de 17 de novembro de 1766, e invocan- cio de um poder que o levara a ser enxovalha-
do o seu estatuto de governador da Ordem de do por observações como a de “mentecapto”,
Cristo, exigiu que lhe fossem enviados os es- ainda que equilibradas por outras que o con-
tatutos, ao que o bispo se opôs, alegando pos- sideravam muito capaz, D. Gaspar Afonso da
suir ele próprio as competências para esse efei- Costa Brandão decidiu ir ao continente, mais
to. O rei não desistiu, e as confrarias acabaram concretamente às Caldas da Rainha, buscar re-
por se submeter à vontade do monarca, o que médio para os seus males. Não o encontrando,
constituiu uma desautorização da autoridade porém, regressou à Madeira, onde veio a fale-
episcopal. cer a 14 de janeiro de 1784, tendo sido sepulta-
Em 1777, com a morte de D. José e o afas- do na capela­‑mor da Sé.
tamento do Marquês de Pombal, o Gov. Sá
Bibliog.: manuscrita: ACDF, cx. 45, docs. 25­‑27 e 29; AHU, Madeira, cx. 1,
Pereira viu­‑se obrigado a regressar a Lisboa, doc. 288; cx. 2, doc. 74; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. iv,
sendo substituído por D. João Gonçalves da Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1996; FRANCO, José Eduardo,
“O ‘terramoto’ pombalino e a ‘desjuitização’ de Portugal”, Lusitania Sacra,
Câmara, debaixo de cujo exercício se assistiu
2.ª sér., n.º 18, 2006, pp. 147-218; GRAÇA, Serafim Gabriel Soares da, “O bispo
a mais um episódio espoletado pela prisão, do Funchal D. Afonso Gaspar da Costa Brandão”, Arquivo do Distrito de Aveiro,
às ordens do juízo eclesiástico, de um bacha- vol. xxxiii, 1967, sep.; PAIVA, José Pedro, “Os novos prelados diocesanos
nomeados no consulado pombalino”, Penélope, n.º 25, 2001, pp. 41­‑63;
rel, advogado no Funchal e responsável pela Id., Os Bispos de Portugal e do Império. 1495­‑1777, Coimbra, Imprensa da
emissão de um parecer que versava assun- Universidade de Coimbra, 2006; PEREIRA, José António Correia, S. Francisco de
Assis na Madeira. História, Lendas, Tradições, Braga, Franciscana, 1993; SILVA,
tos da Igreja. Tal atitude foi entendida como Fernando Augusto, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, Funchal,
“ofensa grave” ao vigário-geral, pelo que a pri- s.n., 1946.

são se manteve. Este diferendo deu origem à Cristina Trindade


troca de várias missivas entre o governador, o Rui Carita
bispo e a corte, tendo as queixas do governa-
dor para Lisboa dado origem a uma vigorosa
reprimenda da parte de “um ministro velho Brandão, João Antonino da
com alguma experiência do mundo” (Mar-
Ascensão de Paiva de Faria Leite
tinho de Melo e Castro), que lhe assegurava
haver na Ilha “um Bispo respeitável, não só Nascido em Braga, a 10 de maio de 1877, era
pela qualidade de Prelado, mas pelas suas vir- filho de João Alexandre de Paiva Leite de
tudes e provecta idade” (AHU, Madeira, cx.2, Faria Brandão (1845­‑1884) e da sua segun-
doc. 74), pelo que devia deixar correr os as- da mulher, Adelaide Maria José Raio (1844­
suntos pelos canais já determinados e não in- ‑1885), natural do Brasil e filha do célebre fi-
sistir nas queixas contra o antístite. O assunto nanceiro Miguel José Raio (1814­‑1875), que
acabou por se encerrar com uma salomónica ali fizera fortuna e, mais tarde, remodelou em
B rand ã o , J o ã o A ntonino da A scens ã o de P aiva de F aria L eite ¬ 553

Braga o palácio que veio a ter o seu nome e Ornelas, que, ao longo desse ano, inclusiva-
foi o 1.º visconde de S. Lázaro. Tendo­‑se ca- mente, se retirou para a sua Qt. das Almas, na
sado, a 1 de maio de 1905, com D. Teresa de Camacha, perto do Funchal.
Jesus Maria José de Sousa e Holstein Beck A gestão política de João Antonino Leite
(1880­‑c. 1909), filha de D. Tomás de Sousa Brandão foi quase notável, dado o complexo
e Holstein Beck (1839­‑1887), 1.º marquês de período vivido, quase passando despercebido e
Sesimbra, que fora governador civil do Fun- conseguindo sobreviver ao longo de dois anos,
chal entre 1868 e 1869, tornou­‑se, assim, o que para a época foi excecional. Manteve­‑se,
cunhado do conselheiro Aires de Ornelas e assim, com o Governo de Artur Campos Henri-
Vasconcelos (1866­‑1930), também casado ques (1853­‑1922), dado como próximo da ala
com uma filha do falecido marquês de Sesim- conservadora dos regeneradores, do Gen. Se-
bra. Com a demissão do Governo do Cons. bastião de Sousa Teles (1847­‑1921), governo
João Franco (1885­‑1929), que integrara Aires que só durou 33 dias, e de Venceslau de Lima
de Ornelas, após o assassinato do Rei D. Car- (1858­‑1919). Parece já não ter ido para o Fun-
los (1863­‑1908) e do príncipe D. Luís Filipe chal com a esposa, cuja data de falecimento se
(1887­‑1908), foi constituído um “governo de desconhece, casando­‑se segunda vez, a 11 de
aclamação”, ou seja, com o acordo de todos setembro de 1909, com Maria Vera de Castel­
os partidos, naquele momento, chefiado pelo branco Machado (1885­‑1972), filha de um
Alm. Francisco Ferreira do Amaral (1844­ conhecido médico e polemista do Funchal,
‑1923), que tomou posse a 4 de fevereiro de Dr. Vicente Cândido Machado (1855­‑1911), e
1908. Foi este governo que, a 22 de fevereiro de sua mulher, Maria Gabriela de Castelbran-
seguinte, nomeou João Antonino Leite Bran- co. Veio a ser substituído como governador
dão 47.º governador civil do Funchal, quase civil, a 11 de janeiro de 1910, com o gover-
com certeza por indicação do Cons. Aires de no progressista de Francisco da Veiga Beirão

Fig. 1 – Palácio do Raio, projeto de 1754-1755 e seguintes (Santa Casa da Misericórdia de Braga).
554 ¬ B rand ã o , P edro de L ima

de S.ta Ana, que o célebre Duarte Brandão,


judeu sefardita de origem inglesa e cristão­
‑novo em Portugal, instituíra no Convento
do Carmo de Lisboa, no tempo de D. João II
(1455­‑1595). Escreveu­‑se, mais tarde, que Fer-
nando de Lima Brandão e a mulher teriam
mesmo pretendido fundar um novo conven-
to carmelita e que, convidado para ocupar o
lugar de vice­‑rei da Índia, Fernando de Lima,
por modéstia, não aceitara.
O futuro governador da Madeira, como filho
segundo, tinha sido capitão de cavalos na pro-
víncia do Alentejo. Teve patente do governo
da Ilha a 29 de maio de 1683, de que tomou
menagem em Lisboa, a 23 de março do ano
Fig. 2 – Interior do palácio do Raio, reposição de 2005
(Santa Casa da Misericórdia de Braga). seguinte, e posse no Funchal, a 18 de abril,
perante o anterior governador, João da Costa
de Brito (c. 1630­‑c. 1700). A sua passagem
(1841­‑1916), que tomara posse a 22 de dezem- pelo governo da Madeira foi o mais discre-
bro anterior, por Afonso de Melo Pinto Velo- ta possível, provavelmente por ter estado no
so (1878­‑1968), membro daquele partido, que Funchal, no ano anterior, o desembargador
pouco tempo estaria no lugar, mas que como Domingos de Matos Cerveira, em sindicância
sidonista ao mesmo voltaria depois. João Anto-
nino Leite Brandão faleceu em Braga, a 15 de
dezembro de 1975.

Bibliog.: impressa: BARROS, Fátima, “A Quinta das Almas ou Quinta


Ornelas na Camacha”, Islenha, n.º 21, jul.­‑dez. 1997, pp. 110­‑115; CLODE, Luiz
Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos
Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; digital:
MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA, Governadores Civis. 1835­‑2008,
Lisboa, Divisão de Documentação e Arquivo, 2008: http://gov­‑civil­‑Lisboa.ivisa.
com/portal2010/images/arquivo/ficheiros/GovernadoresCivis_1835_2008.pdf
(acedido a 13 maio 2018).

Rui Carita

Brandão, Pedro de Lima


Pedro de Lima Brandão, nascido cerca de
1640, era o segundo filho de Fernando de
Lima Brandão (c. 1610­‑1662), comendador
de São Veríssimo de Lagares, e de sua mulher,
Mariana de Noronha e Meneses, filha de An-
tónio de Alcáçova Carneiro e neta, ou bisne-
ta, do célebre secretário Pedro de Alcáçova
Carneiro (c. 1510­‑c. 1590), conde de Idanha,
ou das Idanhas. Os pais do futuro governa-
dor sempre viveram algo afastados da corte e Fig. 1 – Armas dos descendentes de Duarte Brandão (ANTT, Casa
muito envolvidos na administração da capela Real..., liv. 20, fl. 18v.).
B rand ã o , R aul G ermano ¬ 555

à Fazenda do Funchal, e Fig. 2 – Historia Genealogica da Casa


Real Portugueza, t. xii, pt. I (1747),
pelos problemas que teria de António Caetano de Sousa.
havido com o Ten.­‑Gen. Iná-
cio da Câmara Leme (1630­
‑1694), mas, essencialmente,
pelo espírito do próprio go-
vernador, que na documen- que passou depois a um ramo
tação, inclusivamente, apare- lateral. Faleceu em Lisboa,
ce quase que somente como sendo conselheiro de Guer-
Pedro de Lima, talvez para se ra, em 1718.
demarcar da origem sefardita
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do
de seu tetravô. Funchal, Registo Geral, tombo 7, 1672­‑1720; Ibid.,
Pedro de Lima Brandão en- Câmara Municipal do Funchal, Vereações, liv. 1339,
1690­‑1694; ANTT, Casa Real, Cartório da Nobreza,
tregou o controlo das com- liv. 20, António Godinho, Livro da Nobreza e
panhias de ordenanças ao te- Perfeiçam das Armas, séc. xvi, fl. 18v.; impressa:
NORONHA, Henrique Henriques de, Memórias
nente-general. Encarregou-o,
Seculares e Eclesiásticas para a Composição da
igualmente, de proceder à re- História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira,
senha geral das armas da Coroa entregues aos Funchal, CEHA, 1996; SANTA ANNA, Joseph Pereira de, Chronica dos Carmelitas
da Antiga e Regular Observância, Lisboa, Herdeiros de António Pedroso Galrão,
capitães, dando conhecimento ao Conselho 1745; SOUSA, António Caetano de, Historia Genealogica da Casa Real
de Guerra, a 20 de fevereiro de 1687, do esta- Portugueza, t. xii, pt. i, Lisboa, Oficina Sylviana, 1747; VERÍSSIMO, Nelson,
Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.
do das mesmas.
As suas relações com o novo bispo do Rui Carita
Funchal, D. Estêvão Brioso de Figueiredo
(c. 1620­‑1689), que aliás recebeu na cidade,
Brandão, Raul Germano
a 17 de abril de 1685, também teriam sido o
mais cordatas possível. O bispo fora transfe- Nascido no Porto a 12 de março de 1897, Raul
rido de Pernambuco, onde fora o primeiro Germano Brandão frequentou o curso de Le-
prelado, para o Funchal, dados os inúmeros tras da Univ. de Coimbra, mas acabaria por
problemas que ali enfrentara, chegando a sua enveredar pela carreira militar por influência
residência a sofrer fogos cruzados de arcabuz dos pais. Sem vocação para o Exército, seriam
advindos de rixas locais. Mas a sua saúde esta- as letras o seu grande legado. Escreveu nume-
va já muito abalada, acabando por se retirar rosos artigos em jornais e revistas e publicou
para o continente, onde faleceu. contos, impressões de viagem, peças de teatro
O governador entregou o bastão, a 13 de e ensaios históricos, entre os quais se podem
abril de 1688, a D. Lourenço de Almada (1645­ destacar: Impressões e Paisagens (1890); A Farsa
‑1729), retirando­‑se para Lisboa. Em junho de (1903); Os Pobres (1906); Húmus (1917); Memó-
1690, os oficiais da Câmara do Funchal pro- rias (1919­‑1933); Os Pescadores (1923); O Gebo
testaram por o juiz de fora ter sido encarre- e a Sombra, O Rei Imaginário, O Doido e a Morte
gado de tirar residência ao ex­‑governador, ar- (1923); As Ilhas Desconhecidas (1926); O Avejão
gumentando que havia muitos meses que o (1929); Pobre de Pedir (1931).
mesmo, alegando doença, fora escusado do Óscar Lopes e António José Saraiva realçam
cargo na Câmara e substituído pelo vereador que “o aspeto mais importante da obra de
mais velho; logo, se não podia ser juiz de fora Raul Brandão é a sua dor de consciência pe-
da Câmara, também não podia tirar residên- rante a humanidade explorada” (SARAIVA e
cia ao ex­‑governador. LOPES, 1987, 1035). Esta é uma característi-
Pedro de Lima Brandão não se casou. ca transversal à sua obra e que também se faz
Dedicou­‑se, em Lisboa, a reformar a capela presente no livro de viagens As Ilhas Desconhe-
de S.ta Ana do Convento do Carmo, capela cidas, no qual o autor narra uma viagem que
556 ¬ B rand ã o , R aul G ermano

passado o “primeiro entusiasmo”, declara:


“Vejo tudo a frio. Esta ilha é um cenário e
pouco mais – um cenário deslumbrante com
pretensões a vida sem realidade e despre-
zo absoluto por tudo o que lhe não cheira
a inglês. Letreiros em inglês, tabuletas em
inglês e tudo preparado e maquinado para
inglês ver e abrir a bolsa. Eles saem dos pa-
quetes – e logo o Funchal se arma como um
teatro” (Id., Ibid., 194 e 195).
É “a frio” que conclui que os negócios do
turismo, do álcool e do açúcar degradaram
o povo e enriqueceram apenas alguns. A sua
visão humanista leva­‑o a afirmar que, com o
teatro “para inglês ver”, “lucraram os nego-
ciantes e os hoteleiros”, enquanto “cada vez
se cava mais funda a separação entre as clas-
Fig. 1 – Raul Brandão (arquivo particular).
ses chamadas superiores e as outras”. “O vilão,
que antigamente passava com papas de milho
fez aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, três vezes por dia e dormia feliz com toda a
descrevendo com mestria a paisagem, mas tam-
bém a solitária e ímpar condição insular. Nesta
obra, a par do deslumbre que sente perante a
paisagem madeirense, Brandão mostra­‑se sen-
sível à vida difícil que marca o quotidiano dos
madeirenses.
No capítulo “Visão da Madeira”, Raul Bran-
dão escreve: “Nunca mais me esqueceu a
manhã virginal da Madeira, as cores que iam
do cinzento ao doirado, do doirado ao azul­
‑índigo – nem a montanha entreaberta saindo
do mar diante de mim, a escorrer azul e verde”
(BRANDÃO, 2011, 179). Mas o deslumbramen-
to pela Ilha, que nasce com a observação da
paisagem marítima, não ignora as dificuldades
adivinhadas na própria orografia: “Acentua­
‑se a dureza, as chapadas, as ravinas, os cortes
perpendiculares e cor de ferro, adivinha­‑se o
drama que deve ter sido este parto, cheio de
convulsões e de desmoronamentos, quando o
grande cataclismo dilacerou e desmembrou
o continente submerso, deixando patentes,
neste resto, feridas que ainda hoje sangram”
(Id., Ibid., 180).
Nas páginas seguintes, Raul Brandão, fas-
cinado pela paisagem da Ilha, narra os seus
passeios, descrevendo o declive, as cores,
as vistas dos picos mais altos. No entanto, Fig. 2 – As Ilhas Desconhecidas (1926), de Raul Brandão.
B rand ã o , R aul G ermano ¬ 557

família num buraco térreo, é hoje um alcoó- Seria um dos elementos do cenáculo portuen-
lico inveterado, que até desaprendeu de rir” se responsáveis pela elaboração do opúsculo
(Id., Ibid., 197). Diz mesmo que o álcool nem Os Nephelibatas (1892), manifesto em prol da
as mulheres deixou de fora, as quais “acom- arte moderna e pastiche decadentista. O esteti-
panham o homem no grogue e dão às crian- cismo e o ludismo decadente e libertário foram
ças de mama chuchas de álcool”. Apesar das conceções que compartilhou com outras vozes
suas descrições impressionistas, descrevendo suas contemporâneas, como as de António
paisagens como quem pinta um quadro, não Nobre, Alberto de Oliveira, Júlio Brandão, Jus-
deixa de fazer um retrato amargo das gentes tino de Montalvão e D. João de Castro.
que vivem na Ilha, como se a paisagem tivesse Depois da fase “nefelibata” e do artificialis-
contaminado o destino dos homens e das mu- mo dândi, Raul Brandão transitou para uma
lheres. Um destino anunciado logo ao avistar fase de responsabilização ética, na qual fun-
a Ilha, onde, “a cada momento que passa, mais daria a sua sensibilidade estética. Os textos
alto e mais escuro se me afigura o paredão que publicados no Correio da Manhã teriam um
nos interceta o mundo. Só há uma vaga clari- elevado sentido ético­‑social, refletindo sobre
dade para o lado do mar; o resto é negrume um mundo em crise de valores. As questões
alcantilado e monstruoso colaborando com a sociais e religiosas podem ser encontradas em
espessura da névoa e o indistinto da noite. É o obras como História d’um Palhaço (1896), en-
homem, subvertido, duas vezes isolado entre quanto o naturalismo se espelha em Impressões
a montanha e o mar. É uma alma. E essa pe- e Paisagens (1890).
quenina luz humilde chega a ser para mim ex- Parte integrante da sua obra é também o ca-
traordinária de grandeza: é uma estrela que tastrofismo finissecular de pendor apocalíp-
me faz cismar” (Id., Ibid., 181). tico, acompanhado pela reivindicação da ne-
Todo o relato desta viagem à Madeira surge, cessidade de uma revolução humanitarista,
assim, entre o encanto que a Ilha provoca, presente em obras como Húmus, Memórias e
com as suas paisagens e o seu clima ameno, O Pobre de Pedir.
e a fria e real descrição das condições de vida As suas narrativas de viagens, onde se incluem
das populações. A narrativa de viagem oscila as obras Os Pescadores e As Ilhas Desconhecidas,
entre o poema inspirado pela natureza e o ca- anteriormente mencionada, são verdadeiros
rácter de reportagem crítica da realidade, ex- quadros de paisagem ao jeito impressionista
primindo o significado que o mar e a terra en- de quem pinta.
cerram na condição insular. O próprio Raul Faleceu a 5 de dezembro de 1930, em Lisboa.
Brandão reconhece, no início do livro, que
Obras de Raul Germano Brandão: Impressões e Paisagens (1890); História
este “é feito de notas de viagem, quase sem re- d’Um Palhaço (1896); A Farsa (1903); Os Pobres (1906); Húmus (1917);
toques”, embora amplie um ou outro quadro, Memórias (1919­‑1933); Os Pescadores (1923); Teatro. O Gebo e a Sombra, o Rei
Imaginário, o Doido e a Morte (1923); As Ilhas Desconhecidas (1926); O Avejão
sem tirar a frescura das primeiras impressões.
(1929); Pobre de Pedir (1931).
“Não poder eu pintar com palavras alguns dos
Bibliog.: impressa: BRANDÃO, Raul, As Ilhas Desconhecidas. Notas e
sítios mais pitorescos das ilhas, despertando
Paisagens, pref. António Machado Pires, Ponta Delgada, Artes e Letras, 2009;
nos leitores o desejo de os verem com os seus Id., As Ilhas Desconhecidas. Notas e Paisagens, Lisboa, Quetzal, 2011;
próprios olhos!…” (Id., Ibid., 10). O que se NEPOMUCENO, Rui Firmino Faria, A Madeira Vista por Escritores Portugueses
(Séculos XIX e XX), Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008;
segue, contudo, é um quadro perfeito de uma PIRES, António Machado, O Essencial sobre Raul Brandão, Lisboa, INCM, 1997;
época, pintado por um viajante que recusa a SARAIVA, António José, e LOPES, Óscar, História da Literatura Portuguesa,
Porto, Porto Editora, 1987; digital: REYNAUD, Maria João, “Raul Brandão e
mera descrição impressionista, para traçar um Vitorino Nemésio. Afinidades espirituais e estéticas”, Revista da Faculdade
retrato crítico que não é esbatido pela poesia de Letras. Línguas e Literaturas, vol. xviii, 2001, pp. 221­‑230: http://ler.letras.
up.pt/uploads/ficheiros/3032.pdf (acedido a 26 jul. 2016); VIÇOSO, Vítor,
da paisagem. “Raul Brandão”, Camões. Instituto de Cooperação e da Língua, s.d.: http://
Raul Brandão integrou a Geração de 90 cvc.instituto­‑camoes.pt/seculo­‑xx/raul­‑brandao­‑35424.html#.Vz3rWfkrLIU
(acedido a 26 jul. 2016).
(séc. xix), a qual foi influenciada pela estética
decadentista­‑simbolista de matriz parisiense. Raquel Gonçalves
558 ¬ B rasil

Brasil de ida, dado o regime de ventos e a navega-


ção em arco no Atlântico.
As ligações da Madeira ao futuro Brasil No séc. xvi, foram os lavradores e mestres de
prendem­‑se com as primeiras viagens do açúcar; depois, os soldados que defenderam a
séc. xv, os reconhecimentos preparatórios Baía e o Nordeste e contribuíram para expul-
do Tratado de Tordesilhas e o início da ocu- sar os Holandeses, para libertar o Maranhão,
pação da colónia, e mantiveram­‑se como em 1642, o que foi obra de António Teixeira
uma constante ao longo do tempo, enquan- Melo, enquanto em Pernambuco a resistência
to duraram as navegações à vela. Gentes e ao Holandês foi organizada, desde 1645, por
produtos materializaram assim as ligações do João Fernandes Vieira. Também a defesa da
Funchal com toda a costa atlântica da Amé- soberania lusíada foi conseguida com o envio
rica do Sul, desde a foz do rio Amazonas até de companhias de soldados a partir da Ilha.
Santa Catarina e à Colónia do Sacramento, Assim, temos: em 1631, de João de Freitas da
posteriormente território do Uruguai. A Ma- Silva, uma companhia de 100 homens à sua
deira foi uma ponte para o Brasil, assim custa, e, em 1632, de Francisco de Bettencourt
como do Brasil para a Europa, não apenas e Sá. Em 1646, Francisco Figueiroa comandou
como centro de contrabando, como insistem um terço militar custeado por si próprio. Ou-
as autoridades desde o séc. xvi, mas, essen- tros madeirenses se notabilizaram nestas cam-
cialmente, como porto de escala nas viagens panhas, como Manuel Dias de Andrade, Tris-
tão de França e Zenóbio Acciaioli. O envio de
militares continuou a partir do último quartel
do séc. xvii, para o Maranhão, Rio de Janei-
ro e Santa Catarina, com sucessivas levas mili-
tares, pois quase todos os novos governadores
do Brasil desses séculos, passando pela Madei-
ra, levavam daí uma companhia e, mais tarde,
também grupos de casais para o povoamen-
to das terras do Sul, e.g., no último quartel do
séc. xix, o povo do meio rural para as plan-
tações paulistas e do interior do Rio de Janei-
ro. O séc. xx deu continuidade ao fenómeno
migratório, contribuindo para isso as dificul-
dades ligadas às duas guerras mundiais. Por
força destas circunstâncias, manteve­‑se um vín-
culo quase permanente entre a Ilha e o Brasil,
uma atitude materializada no reconhecimento
e quase veneração de muita da classe política e
intelectual brasileira, que não se esqueceu da
Madeira.
Desta forma, são mútuas as influências, que se
estendem desde a prática de cultos e tradições
religiosas madeirenses no Brasil, como as do
Espírito Santo, quase sempre mais madeiren-
ses que açorianas, até ao tão popularizado jogo
do bicho, que persiste em ambos os lados do
Atlântico. Também se vislumbram nos topóni-
mos subsistentes na Madeira, como Lombo do
Fig. 1 – “Terra do Brasil”, Luís Teixeira, c. 1587 (BA, ms. 51-IV-38). Brasil (Calheta), levada do Brasileiro (Porto
B rasil ¬ 559

Fig. 2 – Edifício Minas Gerais da Pç. do Infante (Foto Figueiras, 1950).

Moniz), Furna do Brasil (Porto da Cruz), Sítio como o célebre sociólogo e antropólogo Gil-
da Brasileira (São Gonçalo, Funchal), chácara berto Freyre (1900­‑1987) – que visitou a Ilha,
Brasil (Colégio Missionário, Funchal) e assim em 1952, para conhecer a sua realidade e al-
sucessivamente. Na Ilha e no Brasil, existem guns testemunhos da sua ancestral ligação ao
testemunhos reconhecendo esse intercâmbio, Brasil –, que definia de forma clara esse rela-
como é o caso do monumento ao libertador de cionamento: “A irmã mais velha do Brasil é
Pernambuco, João Fernandes Vieira, no Fun- o que foi verdadeiramente a Madeira. E irmã
chal, que também existe no Brasil, e do monu- que se extremou em termos de mãe para com
mento aos casais ilhéus, em Portalegre, no Sul a terra bárbara que as artes dos seus homens
do Brasil. [...] concorreram para transformar rápida e so-
Esse interesse manteve­‑se no séc. xx, com lidamente em nova Lusitânia” (FREYRE, 1952,
o ensaio da viagem aérea de Gago Coutinho 440­‑446, 448­‑449).
(1869­‑1959) e Sacadura Cabral (1881­‑1924) Às culturas e técnicas de transformação a elas
ao Brasil, em 1922, realizado no ano anterior adjacentes juntam­‑se as formas de povoamen-
entre o continente e a Madeira. Em 1930, to, governação e administração, inicialmen-
Júlio Prestes de Albuquerque (1882­‑1946), te com as capitanias e depois com as institui-
o presidente eleito do Brasil, que não toma- ções seguintes, pois a Coroa determinou que
ria posse, pois, entretanto, veio a ser instalada as primeiras estruturas de administração pe-
uma ditadura, foi recebido pelo governador riférica seguissem o modelo e a legislação es-
da Madeira, o Cor. José Maria de Freitas (1879­ tabelecidos para a Madeira. O sistema institu-
‑c. 1950), no palácio de S. Lourenço. O histo- cional madeirense apresentava uma estrutura
riador Afrânio Peixoto (1876­‑1947) afirmava, peculiar, definida pelas capitanias, de amplas
em 1936, que a Madeira fora um entreposto liberdades e isenções, que funcionavam como
e uma estância de passagem para o Brasil, tal atrativos para o povoamento, assim como meio
560 ¬ B rasil

primeira diocese dos novos territórios ultrama-


rinos, que não os do Norte de África, nasceu
no Funchal, em 1514, e incluía o Brasil no seu
imenso território. Após a fundação da Diocese
da Baía, em 1551, o regime de bens e toda a
estrutura desenhada através da Ordem de Cris-
to para o Funchal foram passados a Terras de
Vera Cruz.
As relações insulares com o Brasil estão pa-
tentes nas propostas de envio de colonizado-
res para lá, feitas por João de Melo da Câmara,
então na ilha de São Miguel, nos Açores, que
resumia, em 1532, de uma forma perspicaz,
o protagonismo madeirense na abertura de
novas fronteiras no espaço atlântico, fazendo
notar que o seu bisavô João Gonçalves Zarco
(1390­‑1471) povoara a ilha da Madeira, o seu
avô Rui Gonçalves da Câmara (1430­‑1496),
desde 1474, a de São Miguel e o seu tio Antão
Rodrigues da Câmara, “o Mulato”, a de São
Tomé. A família era assim portadora de uma
longa e vasta experiência, dando o aval neces-
sário à proposta e abrindo perspetivas para a
sua iniciativa no Brasil.
Uma das principais contribuições madeiren-
ses para a construção do Brasil, no entanto,
terá sido a safra açucareira. Desde 1515 que a
Coroa solicitava os bons ofícios de alguém que
Fig. 3 – “Terras de engenho e fazendas de Olinda”, 1586 a 1587 pudesse erguer ali o primeiro engenho. Em
(BA, ms. 51-IV-38). 1530, o novo governador de São Vicente, Mar-
tim Afonso de Sousa (c. 1490­‑1564), terá pas-
para a sua afirmação. O modelo foi seguido sado pela Madeira, levando consigo socas de
para as ilhas dos Açores, de Cabo Verde e de cana e alguns técnicos capazes de erguer novos
São Tomé e Príncipe, chegando, a 16 de feve- engenhos. Destes, referem­‑se Paulo Dias Ador-
reiro de 1504, à ilha que ficaria para a história no e António e Pedro Leme, que construíram,
como Fernão de Noronha. Depois, seguiram­ em 1534, o primeiro engenho de açúcar na
‑se as chamadas capitanias hereditárias da faixa ilha de São Vicente (Santos), como atestam as
atlântica e interior. escavações arqueológicas no chamado enge-
A partir da Madeira, ficou assim definido o nho do Governador, o primeiro que terá sido
sistema institucional que deu corpo ao Gover- construído por carpinteiros madeirenses no
no português nos primórdios do Atlântico in- Brasil. A cultura expandiu­‑se, entretanto, para
sular e brasileiro. O monarca insistia, nas cartas norte, e na Baía temos também informação
de doação de capitanias posteriores, na fideli- de que terá sido um outro madeirense, João
dade ao sistema traçado para a Madeira, refe- Velosa, em 1555, a construir o primeiro enge-
rindo, inclusivamente, que, em caso de dúvida nho, ao qual se seguiram Francisco de Araújo
ou omissão, se devia aplicar o padrão madei- e Gonçalo Rodrigues.
rense. O mesmo haveria de se seguir com toda Este movimento de migração de mão de
a estrutura da administração religiosa, pois a obra especializada acentuou­‑se na segunda
B rasil ¬ 561

metade do séc. xvi, por força das dificulda- “libertador” de Pernambuco, Manuel Luís, de
des da cultura em solo madeirense. O Brasil, Jacinto de Freitas da Silva, de Egas Moniz e de
nomeadamente Pernambuco, passou a ser a Francisco Berenguer de Andrade.
terra de promissão para muitos. Os dados, Foi a partir dos meados e até finais do
embora avulsos, evidenciam a presença dos séc. xvi que se estabeleceram estes vínculos
madeirenses em todas as capitanias onde che- económicos com a Madeira, continuados atra-
gou o açúcar, como purgadores, carpinteiros, vés do trato ilegal de açúcar para o Funchal e
mestres, mas também como senhores de en- para o mercado europeu, com a designação
genhos. Muitos arrastaram consigo as famí- da “Madeira”. Este movimento seguia as ances-
lias, algumas das quais se notabilizaram. Em trais ligações entre os que, do outro lado do
1579, referia­‑se que Manuel Luís, mestre de Atlântico, viam florescer a cultura e aqueles
açúcar, que exercera o ofício na Ilha, estava que, na Ilha, ficavam sem os seus benefícios.
então em Pernambuco. Muitos outros man- Veja­‑se, e.g., o caso de Cristóvão Roiz de Câma-
tinham contactos com a Ilha, nomeadamen- ra de Lobos, que, em 1599, declara ter crédito
te quanto ao comércio de açúcar, como foi o em três mestres de açúcar de Pernambuco, de
caso de Francisco Álvares e João Roiz. Deste cerca de 100.000 réis de uma companhia que
modo, em Pernambuco e na Baía, entre os ofi- teve com Francisco Roiz e Francisco Gonçal-
ciais e proprietários de engenho encontram­ ves. Nos anos seguintes, ainda há referência a
‑se madeirenses, sendo de salientar que al- António de Sá de Albuquerque, em Itamaracá,
guns se tornaram importantes proprietários, a João de Souto, na Paraíba, e a carpinteiros de
como foram os casos de Mem de Sá, de João engenho, como Luís e Pedro Góis, na Paraíba,
Fernandes Vieira (1596­‑1681) e, depois, do e assim sucessivamente.

Fig. 4 – Pão de Açúcar do Rio de Janeiro Fig. 5 – Nau de Rui Melo da Câmara da armada da Índia de 1559
(arquivo particular, 2019). (ACL).
562 ¬ B rasil

O açúcar foi, sem dúvida, um dos principais A situação do mercado açucareiro atlânti-
móbeis da atividade, quer nas ilhas, quer no co alterou­‑se profundamente ao longo dos
Brasil. A par disso, o relacionamento com os sécs. xvi e xvii, com uma maior capacidade
portos nórdicos facilitou uma maior permeabi- concorrencial por parte das grandes fazendas
lidade às ideias protestantes, o que gerou inú- sul­‑americanas, pelo que o açúcar insular es-
meros cuidados por parte do clero e do Santo tava irremediavelmente perdido. Os canaviais
Ofício. A incidência do comércio da Madeira foram desaparecendo paulatinamente das ter-
no açúcar, no pastel e no vinho conduziu ao ras madeirenses e dando lugar aos vinhedos.
estabelecimento de contactos assíduos com os As autoridades ainda tentaram colmatar a si-
portos da Flandres e de Inglaterra, com a pre- tuação, no sentido de evitar a concorrência do
sença ali de uma importante comunidade co- açúcar sul­‑americano e, especialmente, do das
mercial com ligações à Madeira e ao Brasil, o colónias espanholas, como sucedeu em 1647.
que avolumou as preocupações dos inquisido- O comerciante de origem inglesa Richarte Pi-
res do Santo Ofício. queforte vendera um escravo, oficial de açúca-
As ligações da comunidade judaica ao Bra- res, a um mercador francês, que o pretendia
sil surgem por força das perseguições que no conduzir a São Cristóvão. A Coroa entendia
reino se moveram contra a mesma e que terão que a saída não deveria ser autorizada e que
levado à sua passagem para a Ilha e, daí, para o escravo deveria ser adquirido e embarcado
o outro lado do Atlântico. A Madeira e o Brasil para o Rio de Janeiro às ordens do provedor da
pareciam atuar como terras francas e de pre- Fazenda, para aí então ser vendido.
tensa tolerância religiosa, permitindo que a
comunidade judaica estabelecesse uma larga
teia de negócios, com especial destaque para
a ligação à cidade de Recife. A comunidade ju-
daica já tinha assumido um papel de destaque
no processo dos Descobrimentos portugueses,
e a judeus foram atribuídas responsabilidades
na definição das rotas comerciais que ligavam
o Atlântico então descoberto aos mercados do
Norte da Europa. Por sua iniciativa, estabele-
ceram uma rede familiar de negócios que foi
um dos principais suportes da rede comercial
resultante dos Descobrimentos. Desde a Ma-
deira, com o incremento do açúcar, que a sua
presença é evidente. Nem a criação do Tribu-
nal da Inquisição os demoveu desta atividade.
Note­‑se que, à medida que as intervenções do
Tribunal da Inquisição de Lisboa nos novos es-
paços atlânticos se ampliavam, os judeus iam
avançando para novos destinos ou refugiavam­
‑se nas praças do Norte da Europa, mas sem
perder o vínculo aos mercados e espaços de
origem. Certamente que a criação dos colégios
dos Jesuítas no Funchal, em Angra e em Ponta
Delgada, bem como as visitas do Santo Ofício
realizadas em 1575, 1591 e 1618­‑1621, con-
tribuiu para afastar a comunidade para Cabo Fig. 6 – Retábulo-mor da Catedral Basílica de São Salvador da
Verde e, depois, para o Brasil. Baía, antiga igreja do Colégio, 1665 a 1679 (arquivo particular).
B rasil ¬ 563

No séc. xvii, o grosso das exportações de


açúcar a partir da Ilha tinha origem no Brasil:
em 1620, do açúcar exportado, 23.560 arrobas
eram provenientes do Brasil e 1992 da Madei-
ra; em 1650, surgem só 83 caixas do Brasil e 111
arrobas da Madeira. Para o período de 1650 a
1691, identificam­‑se 53 navios provenientes da
Baía, do Rio de Janeiro, de Pernambuco, da
Paraíba, do Pará e do Maranhão, que conduzi-
ram ao Funchal mais de 10.000 caixas de açú-
car. O açúcar do Brasil assumiu um lugar im-
portante na economia madeirense, não apenas
por apoiar as indústrias de conserva e casca,
mas, fundamentalmente, pelo ativo movimen-
to de reexportação.
A conjuntura da déc. de 40 do séc. xvii foi
marcada por certo incremento da cultura, sem
necessidade de recurso a medidas protecionis-
tas, uma vez que o mercado do Nordeste Bra-
sileiro se encontrava sob controlo holandês.
Com isso, fechou­‑se a rota do açúcar brasileiro:
a correspondência do comerciante Diogo Fer-
nandes Branco (filho) (c. 1636­‑1683) referia a
ausência destes navios entre 1649 e 1650. Neste
último ano, dizia­‑se que havia 18 anos que o
pau­‑brasil e o açúcar não chegavam de Pernam-
buco, mas, em 1657, já os lavradores se queixa-
vam que o contrato estabelecido com os mer-
cadores não se cumpria. Perante tudo isto, os Fig. 7 – João Fernandes Vieira, Univ. de Pernambuco, 2000
canaviais voltaram a estar verdejantes. Segun- (arquivo particular).

do Diogo Fernandes Branco, o ano de 1649 foi


de grande produção, apesar de a mesma não sempre ativo, conservando a Madeira, fora do
ter sido suficiente para cobrir as necessidades monopólio das companhias, vigente até 1808,
da indústria de conservas, tendo­‑se importado o privilégio de enviar anualmente duas embar-
açúcar, em outubro, de Cabo Verde. Sucede, cações, abrindo, segundo alguns, uma porta ao
porém, que as levadas estavam abandonadas contrabando de açúcar, ouro e outros produ-
e faltavam engenhos para moer a cana. Deste tos do Brasil na baía do Funchal. Este privilé-
modo, a intervenção das autoridades foi no gio está documentado em 1664, 1736 e 1739,
sentido de promover a cultura através de uma sendo derrogado em 1748, mas retornando em
política de incentivos, materializada nos apoios 1758. Com esta rota, que se impunha para dar
à reconstrução dos engenhos. Este conjunto de saída ao vinho da Ilha e, em momentos diver-
medidas culmina, em 1688, com a redução dos sos, para o retorno do açúcar, tornou­‑se neces-
direitos que oneravam a produção, passando sária regulamentação, como forma de impedir
de um quinto para um oitavo. o contrabando nos dois sentidos. Assim, em
Nos sécs. xviii e xix, as ligações comerciais 1736, os navios foram limitados à capacidade
das ilhas mantêm­‑se, suportadas na oferta de de 500 caixas de porte cada um. Além disso,
vinho e vinagre, mantendo­‑se o retorno de açú- a fiscalização do ato de descarga era rigorosa.
car e aguardente. O comércio com o Brasil foi Em 1748, este privilégio de fazer seguir dois
564 ¬ B rasil

navios foi alargado, permitindo o envio de qua- Apenas a conjuntura da segunda metade
tro embarcações. do séc. xix permitiu o retorno à plantação de
Sem dúvida que os principais móbeis para cana­‑de­‑açúcar. Mas foram efémeras as tenta-
estas relações comerciais foram os produtos tivas para a sua produção, e, mesmo assim, só
que cada um oferecia. Desde muito cedo, o possíveis mediante uma política protecionista.
Brasil consumia o vinho da Madeira, que tam- Os canaviais perderam a sua função de produ-
bém mantinha ali uma tradição de vinho de tores de açúcar, o ouro branco dos insulares,
missa, pelo facto de não avinagrar. São conhe- mas, em contrapartida, favoreceram uma pro-
cidos pedidos de vinho com este objetivo, em dução alternativa de mel e aguardente. Já não
1575, para a Companhia de Jesus, na Baía. se fala do ouro branco das ilhas, mas sim do
Exportavam­‑se ainda vinagre e aguardente. Em rum ou aguardente e do mel, os herdeiros da
1717, António Cordeiro afirmava que o vinho cultura na Madeira, nas Canárias e em Cabo
saía continuamente para o Brasil e para Ango- Verde.
la, enriquecendo muito toda a Ilha. Esta tradi- A emigração dos sécs. xix e xx revela outro
ção do vinho perdurou no tempo, juntando­‑se, lado desta ancestral ligação da Madeira ao Bra-
no séc. xx, à do bordado. sil. O Funchal foi, durante muito tempo, para
muitas companhias com origem na Europa,
uma ponte nas rotas de navegação com desti-
no ao Brasil, favorecendo desta forma a saída
de madeirenses. Antes disso, algumas das rotas
e alguns dos comboios do comércio do Brasil
já incluíam a escala na Madeira, como sucedeu
em 1643, a 21 de abril de 1655 e a 27 de maio
de 1747. Certamente que um dos objetivos era
o abastecimento de vinho, que se sabe ter ocor-
rido na primeira data.
Para além desta condição favorável do porto
do Funchal na rota da emigração atlântica, de-
vemos considerar a questão dos sistemas de
contrato, que se vulgarizaram na segunda me-
tade do séc. xix e fizeram com que muitos ma-
deirenses fossem atraídos para as plantações de
café no Brasil. A oferta da viagem e de alguns
meios de apoio iniciais era muito aliciante para
a maioria destes madeirenses, que se encontra-
vam numa terra em quase total abandono e em
que as culturas pouco rendiam além da subsis-
tência. A partir dos portos de Belém, do Rio de
Janeiro e de Santos, entraram no Brasil, apenas
entre 1886 e 1899, 13.606 madeirenses, núme-
ro que aumentaria para 15.017 contabilizando­
‑se os clandestinos. Destes, 4335 foram para o
estado de São Paulo. Embora com maior in-
cidência em Araraquara, na capital e em Ri-
beirão Preto, a sua distribuição atingiu diver-
sos locais do estado. É de salientar que apenas
Fig. 8 – Guarita do forte dos Louros de Diogo Fernandes Branco,
115 (2,65 %) ficaram em Santos, o porto de
1645 e seguintes (fotografia de José Lemos Silva, 2005). chegada. Dos referidos 13.606 que chegaram
B rasil ¬ 565

Fig. 9 – Plano de Santa Catarina, José Correia Rangel, 1786 (AHM).

ao Brasil, 9192 tinham contrato e 8527 eram aconteceu. Identificados por um escrivão que
subvencionados. se deslocara à embarcação, a sua presença ra-
A saída da Casa Real para o Rio de Janeiro e pidamente foi comunicada ao governador,
a ocupação do arquipélago pelas forças ingle- António Manuel de Noronha, que, sem saber
sas criaram uma situação especial em relação bem o que fazer, decidiu ouvir um conselho
à Madeira, permitindo o estabelecimento de de magistrados e ainda o capitão do navio e
uma via de comunicação direta entre as autori- o cônsul inglês. Depois de muita discussão, a
dades do arquipélago e a corte, nomeadamen- maioria optou por deixar seguir o navio em
te da Junta da Fazenda. paz, assim se resolvendo uma questão que se
A vinda do rei, D. João VI, para Portugal, poderia ter transformado num incidente di-
como consequência da Revolução Liberal, plomático envolvendo Portugueses e Ingleses.
ocorrida em 1820, esteve na origem de um epi- Outros dois deputados de Pernambuco regres-
sódio que envolveu a Madeira e uns deputados saram em março de 1823, com a mesma esca-
brasileiros que tinham participado na Assem- la, mas sem qualquer alvoroço. Proclamada a
bleia Constituinte. Já depois de reunida a re- independência do Brasil, os deputados madei-
ferida Assembleia em 1821, à qual tinham as- renses foram dos primeiros a reclamar o reatar
sistido, alguns destes deputados, imbuídos de das relações com o novo reino, em intervenção
um espírito autonomista, recusaram aceitar e de João Francisco de Oliveira, a 10 de fevereiro
jurar a Constituição de 1822, que propunha a de 1823.
manutenção da ligação entre os dois reinos, Nos princípios do séc. xix, a ida da Coroa
com um ascendente de Portugal sobre o Bra- portuguesa para o Rio de Janeiro favoreceu
sil. Os deputados dissidentes, temendo pela novas correntes migratórias. No entanto, foi,
sua segurança, conseguiram evadir­‑se para sem dúvida, no período conturbado da Revo-
Inglaterra, donde embarcaram com destino lução Liberal que o Brasil se transformou no
ao Brasil. O navio em que viajavam fez, como principal refúgio dos perseguidos políticos.
era habitual, escala na Madeira, e os deputa- As alçadas de 1823 e 1828 forçaram o exílio
dos mantiveram­‑se discretamente a bordo, na de muitos madeirenses empenhados na ativi-
esperança de passar despercebidos, o que não dade política do momento. Muitos deles eram
566 ¬ B rasil

e permaneceu no Rio de Janeiro, onde foi de-


pois vice­‑cônsul português, tendo também per-
tencido à Beneficência Portuguesa do Rio; o
seu filho, Patrício Moniz (1820­‑1898), foi teólo-
go e pregador renomado, muitas vezes compa-
rado ao P.e António Vieira.
Com a passagem da corte da Baía para o Rio
de Janeiro, ainda foi solicitada à Madeira nova
colaboração, então no calcetamento da nova
capital do império, até porque tal não podia ser
solicitado a Lisboa, ocupada pelos Franceses.
A Ilha enviou várias levas de calceteiros para o
Rio de Janeiro, de que conhecemos, inclusiva-
mente, os nomes. Estes calceteiros foram os au-
tores dos célebres calçadões, que não são, no
entanto, os que ficaram depois famosos, pois
a cidade conheceu um fulgurante desenvolvi-
mento nos anos seguintes, transformando­‑se,
Fig. 10 – Armário baixo de caixa de açúcar, oficina madeirense, posteriormente, numa das maiores metrópoles
c. 1620 (Museu Quinta das Cruzes, n.º invent. 845 MQC).
da América Latina.
Uma família do Campanário assumiu um
figuras destacadas, com formação jurídica e lugar de destaque em São Paulo: a Gonçalves
gosto pela escrita. Para o ano de 1828, pode- de Andrade. Francisco Justino Gonçalves de
mos referir o caso de Alexandre Luís da Cunha Andrade foi conselheiro e professor da Facul-
(m. 1852), António Gil Gomes (1803­‑1868), dade de Direito da Univ. de São Paulo; P.e Ja-
Rafael Coelho Machado (n. 1814), P.e Caetano cinto Manuel Gonçalves de Andrade foi vigário
Alberto Soares (1790­‑1867), José Vicente Bar- de São José da Paraíba e deputado entre 1862
bosa du Bocage (1823­‑1907), depois ministro e 1869; João Jacinto Gonçalves de Andrade foi
em Lisboa, P.e João Manuel de Freitas Branco cónego e professor da Faculdade de Direito da
(1773­‑1821) e Francisco João Moniz (m. 1848). Univ. de São Paulo; Joaquim Manuel Gonçal-
Aqui ficam apenas alguns registos: P.e Caetano ves Andrade foi vice­‑presidente da província
Alberto Soares, que fora deputado em 1826 e e arcediago de São Paulo; e Manuel Joaquim
que, em 1828, saiu para o Brasil, onde foi advo- Gonçalves Andrade (1767­‑1847) foi deputado
gado da Casa Real; D. Mateus de Abreu Pereira provincial, governador e bispo de São Paulo.
(1756­‑1824), bispo de São Paulo entre 1797 e De entre os emigrantes madeirenses que ga-
1824, que teve uma ação relevante na indepen- nharam importância no Brasil, não podemos
dência do Brasil; Joaquim de Oliveira Álvares esquecer Francisco Eduardo Alves Viana, um
(1776­‑1835), um militar que atingiu o posto de próspero comerciante do Rio de Janeiro, que
marechal e que comandou os artilheiros volun- foi um dos fundadores do Gabinete Português
tários de São Paulo que, em 1816, estiveram na de Leitura, em 1837, com José Marcelino da
batalha que derrotou o Gen. José Gervásio Arti- Rocha Cabral.
gas (1764­‑1850), em Montevideu; Pedro Antó- Por outro lado, as ilhas não ficaram imunes
nio João Lessa (1774­‑1856), natural da Madale- às influências brasileiras. Estas evidenciam­‑se
na do Mar e deputado; o Cón. Jerónimo Alves tanto na arquitetura, com as chácaras, como
da Silva Pinheiro (1770­‑1861), que assinava as nas artes decorativas, com o recurso às madeiras
suas crónicas no Patriota Funchalense, preso, aca- brasileiras (jacarandá, sicupira) no mobiliário
bou por fugir para a Baía, onde esteve até 1834; religioso e profano. As madeiras das caixas que
Francisco João Moniz (m. 1848) partiu em 1828 transportaram o açúcar, predominantemente
B rasil ¬ 567

de um determinado mogno mais leve, porque pluribus. Os Gonçalves de Andrade no Brasil: ‘Saudades da Terra’, quanto
custava ser visconde”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. viii, n.º 2, 1950, pp. 119­
reutilizadas, quer na Madeira quer nos Açores, ‑120; Id., “João Fernandes Vieira e o problema da sua biografia”, Arquivo Histórico
deram mesmo origem à designação de mobiliá- da Madeira, vol. viii, n.º 1, 1950, pp. 71­‑80; NUNES, Naidea, “Os caminhos da
palavra ‘garapa’. Brasil, Cabo Verde e Madeira”, in Livro de Comunicações do
rio “caixa­‑de­‑açúcar”, reaproveitando­‑se, algu- Colóquio “Caminhos do Mar”, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 2001,
mas vezes, quase toda a estrutura da caixa, com pp. 175­‑186; PEREIRA, Jaime Azevedo, “O valeroso Lucideno”, Atlântico, n.º 17,
1989, pp. 62­‑71; PIAZZA, Walter F., “A grande migração açoriana de 1748­‑56”, in
os seus malhetes em “cauda­‑de­‑andorinha” à Memorial de Luís da Silva Ribeiro, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da
mostra, sendo então as portadas almofadadas, Educação e Cultura, 1982; Id., “Madeirenses no povoamento de Santa Catarina
(Brasil) século xviii”, in Actas do I Colóquio Internacional de História da Madeira,
as prateleiras interiores, etc., executadas com vol. ii, Funchal, DRAC, 1990, pp. 1268­‑1286; Id., A Epopeia Açórico­‑Madeirense
outras madeiras entendidas como mais “ricas”, (1746­‑1756), Funchal, CEHA, 1999; RAU, Virgínia et al., “Dados sobre a
emigração madeirense para o Brasil no século xviii”, in Actas do Colóquio
como o jacarandá ou a sicupira, já acima cita- Internacional de Estudos Luso­‑Brasileiros, Coimbra, s.n., 1965, pp. 495­‑505;
das. Estes armários estão presentes em mui- REBELO, Helena, “Madeira. A caminho do Brasil”, Xarabanda, n.º 16, 2005­‑2006,
pp. 64­‑73; SALDANHA, António Vasconcelos, As Capitanias. O Regime Senhorial
tos dos museus madeirenses e em coleções
na Expansão Ultramarina, Funchal, CEHA, 1992; SANTOS, Maria Licínia
particulares. Fernandes dos, Os Madeirenses na Colonização do Brasil, Funchal, CEHA, 1999;
SILVA, António Dinis da Cruz e, “Ode a João Fernandes Vieira, restaurador de
Bibliog.: manuscrita: BA, ms. 51­‑IV­‑38, Luís Teixeira, Roteiro de Todos os Sinais, Pernambuco”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 5, 1951, pp. 28­‑31;
1587; impressa: Actas da III Semana de Estudos de Cultura Açoriana e SILVEIRA, Enzo, A Ilha da Madeira nos Destinos do Brasil e de Portugal, Funchal,
Catarinense, Ponta Delgada, Universidade dos Açores, 1993; Actas do II JGDAF, 1956; Id., “José Adorno, o madeirense que foi um dos maiores vultos da
Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal, Comissão Nacional colonização no Brasil”, Diário Popular, 11 abr. 1978, p. 123; SOUSA, Francisco de
para as Comemorações dos Descobrimentos, 1993; BARROSO, Vera Lúcia Vasconcellos e, “A Companhia Geral do Comércio do Brasil e a ilha da Madeira”,
Maciel (org.), Presença Açoriana em Santo António da Patrulha e no Rio Grande Islenha, n.º 6, jan.­‑jun. 1990, pp. 9­‑10; Id., “A primeira frota da Companhia Geral
do Sul, Porto Alegre, Edições Est, 1997; BELO, Raimundo, “A emigração açoriana do Comércio do Estado do Brasil”, Islenha, n.º 8, jan.­‑jun. 1991, pp. 55­‑56; Id.,
para o Brasil”, Boletim do Instituto Histórico Ilha Terceira, vol. v, 1947, pp. 165­ “O general João Rodrigues de Vasconcelos (2.º conde de Castelo Melhor)
‑176; BOITEUX, Lucas Alexandre, “Açorianos e madeirenses em Santa Catarina”, governador geral do Estado do Brasil. Suas acções na Companhia Geral do
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 219, 1953, pp. 122­‑169; Comércio do Brasil e no Governo geral do referido Estado”, Islenha, n.º 35,
BRAGA, Isabel Drumond, “Madeirenses no Brasil. O contributo das fontes jul.­‑dez. 2004, pp. 158­‑162; SOUSA, João José Abreu de, “Notas sobre as relações
inquisitoriais”, Islenha, n.º 29, jul.­‑dez. 2001, pp. 44­‑54; EVERAERT, John G., “Les comerciais entre a Madeira e o Brasil no século xviii”, Das Artes e da História da
Lem, alias Leme. Une dynastie marchande d’origine flamande au service de Madeira, vol. 9, n.º 39, 1969, pp. 43­‑44; Id., “Emigração madeirense nos
l’éxpansion portugaise”, in Actas do III Colóquio Internacional de História da séculos xv a xvii”, Atlântico, n.º 1, 1985, pp. 46­‑53; Id., O Movimento do Porto do
Madeira, Funchal, CEHA, 1993, pp. 817­‑838; FERRAZ, Maria de Lourdes de Funchal e a Conjuntura da Madeira de 1727 a 1810. Alguns Aspectos, Funchal,
Freitas, “Emigração madeirense para o Brasil no século xviii”, Islenha, n.º 2, DRAC, 1989; STELLA, Roseli Santaella, “Integração do Brasil no comércio das
jan.­‑jun. 1988, pp. 88­‑101; FREITAS, Delly de, Des Vignes aux Caféiers. Étude ilhas atlânticas durante a união peninsular”, in História das Ilhas Atlânticas
Socio­‑Economique et Statistique sur l’Emigration de l’Archipel de Madère vers São (Actas da Sessão de Arquivos do IV Colóquio Internacional de História das Ilhas
Paulo à la Fin du XIXe Siècle, Paris, Université Paris­‑Sorbonne, 2013; FREYRE, Atlânticas), vol. i, Funchal, CEHA, 1997, pp. 303­‑319; VERÍSSIMO, Nelson, “Dois
Gilberto, Aventura e Rotina, 2.ª ed., Rio de Janeiro, José Olympio, 1952; madeirenses, bispos de São Paulo”, Diário de Notícias, revista, 30 ago. 1998; Id.,
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pp. 5­‑12; GONÇALVES, Ernesto, “Os madeirenses na Restauração de Portugal”, VERLINDEN, Charles, “Les origines coloniales de la civilization atlantique.
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açucareira madeirense (1420­‑1550). Influência madeirense na expansão e Baconière/Albin Michel, 1966; VIEIRA, Alberto, Os Escravos no Arquipélago da
transmissão da tecnologia açucareira”, Atlântico, n.º 10, 1987, pp. 115­‑131; Madeira. Séculos XV a XVII, Funchal, CEHA, 1991; Id., “A emigração madeirense
GOUVEIA, Horácio Bento de, “Aspectos da emigração madeirense para o Brasil na segunda metade do século xix”, in Emigração e Imigração em Portugal,
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ilhéus à fixação do ‘uti possidetis’”, in Anais do Primeiro Congresso de História oceânicas, os Descobrimentos e o Brasil”, in ZEFERINO, Augusto César (org.),
Catarinense, vol. ii, Florianópolis, Imprensa Oficial, 1950; MAGALHÃES, Basílio Anais do VII Colóquio Internacional de História das Ilhas Atlânticas – 2003 e do
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Pesquisa Histórica, n.º 10, 1995, pp. 23­‑42; MENESES, Manuel de Sousa, atlântico”, Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, n.º 4, 2012,
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“Colonização do Brasil por madeirenses”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. v, Cultural Português, 1979.
n.º 1, 1937, pp. 49­‑54; Id., “A colaboração de Vieira na restauração do Brasil”,
Arquivo Histórico da Madeira, vol. vii, n.º 3, 1949, pp. 156­‑162; Id., “De rebus † Alberto Vieira
568 ¬ B ras õ es de armas

Brasões de armas
A descrição e o estudo dos brasões de armas
ou escudos encontra­‑se a cargo da heráldica,
ciência muito complexa e com uma linguagem
que escapa à maioria das pessoas não iniciadas
nesse tipo de estudos. As origens da heráldica
remontam aos tempos da Idade Média, em que
era imperativo distinguir os participantes nas
batalhas e nos torneios, pelo que havia a neces-
sidade de utilizar bandeiras ou estandartes re-
conhecíveis a uma certa distância e, depois, de
recorrer a outros elementos facilmente reco-
nhecíveis a menor distância. A diferenciação
era definida pelo soberano através da atribui-
ção de determinadas cores e de outros elemen-
tos identificativos a serem pintados nos escudos
dos seus principais servidores. A complexida-
de progressiva da corte portuguesa, entre os
finais do séc. xv e os inícios do xvi, levou à
nomeação de um rei de armas, que tinha por
função organizar o arquivo dos brasões atribuí-
dos e equacionar os novos, a atribuir, propon- Fig. 1 – Armas da família Câmara, c. 1460 e 1525
(ANTT, Casa Real..., liv. 20).
do quem os deveria possuir, juntamente com
as cores e as peças que deveriam figurar nos
respetivos escudos. Os primeiros brasões con- os elementos definidores dos brasões de armas
sistiam essencialmente numa cor, depois de- iniciais foram o escudo, o paquife e o virol e o
finida como sendo um esmalte ou um metal, timbre. Progressivamente, anexaram­‑se inúme-
este último quando se tratava de ouro ou de ros outros, como os tenentes ou suportes do
prata. Quase ao mesmo tempo, foi colocado escudo, os coronéis de nobreza, por vezes im-
sobre esse fundo, que em heráldica se designa propriamente designados por “coroas” (só se
“campo”, um animal ou uma parte do mesmo, devem assim nomear quando reais), os listéis
ou até outra figuração, nomeada “peça” e iden- com motes, divisas, lemas e gritos de guerra,
tificativa da personalidade em questão ou da terrados, etc.
família. Este elemento, ou um outro, era ainda A passagem de toda esta linguagem e figu-
geralmente colocado sobre o elmo, constituin- ração para a Madeira não foi direta. Com efei-
do o chamado “timbre”. Acresce que, para os to, o aparente isolamento da sociedade insu-
torneios medievais e outros exercícios milita- lar propiciou, senão algumas inovações, pelo
res, as cores utilizadas nos esmaltes e nos me- menos alguns abusos. Num contexto geral, o
tais eram ainda aplicadas nas vestes, definindo­ primeiro degrau de nobreza era constituído
‑se também assim, heraldicamente, o paquife, pelos escudeiros, como o nome indica, aqueles
herdeiro dos antigos mantos vestidos pelos ca- que levavam os escudos dos cavaleiros, sendo
valeiros, e o virol, formado por um entrelaça- recrutados entre os pajens e tendo, na Idade
do, em princípio, feito com os mesmos teci- Média, entre 7 e 14 anos. Conforme o seu de-
dos, com uma das cores do esmalte do escudo sempenho e, inclusivamente, a sua posterior
e com uma outra de um dos metais, e colocado prestação em combate, ao atingir a idade adul-
sobre o elmo, lembrando o torçal que defen- ta, entre os 18 e os 20 anos, podiam ser arma-
dia o cavaleiro dos golpes de espada. Portanto, dos cavaleiros, ascendendo assim ao degrau de
B ras õ es de armas ¬ 569

João Gonçalves da Câmara (1414­‑1501) pare-


cem ter utilizado o respetivo brasão de armas,
pois estes não constam nas lápides sepulcrais
de ambos, na capela­‑mor da igreja de S.ta Clara
do Funchal. Em 1452, o primeiro capitão do
Funchal terá solicitado, a D. Afonso V, quatro
pequenos fidalgos para casarem com as suas fi-
lhas, uma vez que a Madeira era “terra nova”,
não havendo “com quem pudessem casar, se-
gundo o merecimento de suas pessoas”. Segun-
do escreveu Gaspar Frutuoso, repetindo quase
literalmente o que o Cón. Jerónimo Dias Leite
lhe mandara da Madeira, resultou destes casa-
mentos “a mais ilustre e nobre geração da Ilha”
(FRUTUOSO, 1968, 217).
Ao que sabemos, nenhum dos genros de
Zarco possuía brasão de armas e, embora fos-
sem fidalgos, não eram primogénitos. Mas,
num curto espaço de tempo, os mesmos ou
os seus descendentes assumiram escudos com
as armas plenas dos seus antepassados. Assim
aconteceu com Martim Mendes de Vasconce-
Fig. 2 – Arca tumular de Martim Mendes de Vasconcelos, c. 1493 los (c. 1432­‑c. 1493), que casou com Helena
(igreja do Convento de S.ta Clara do Funchal).
Gonçalves da Câmara, “matrona de tanta vir-
tude que se justifica falar­‑lhe muitas vezes o
nobilitação seguinte. Sendo alguns escudeiros crucifixo milagroso de S. Francisco do Fun-
de origem fidalga, porventura teriam já direito chal”, como escreveu Henriques de Noronha
a possuir um brasão de armas próprias. Aque- (NORONHA, 1948, 518), numa alusão ao mi-
les que eram armados cavaleiros, em princípio, lagre ocorrido a 26 de dezembro de 1482, que
e num futuro mais ou menos próximo, seriam depois foi mandado certificar e publicar pelo
dotados com brasão de armas. Caso o cavalei- bispo D. frei Lourenço de Távora (1566­‑1618),
ro tivesse o pai ainda vivo, e porque o brasão por alvará episcopal de 24 de outubro de 1615.
de armas era pessoal, este seria acrescido de Com efeito, Martim Mendes de Vasconcelos
uma brica ou diferença, geralmente colocada era um terceiro filho, e o seu pai e homónimo
no cantão direito do chefe, ou seja, no canto não era, quase certamente, o representante
superior direito do portador, dado a leitura de dos “Vasconcelos de Portugal”, como veio a re-
um brasão ser feita na perspetiva do utilizador ferir depois, de modo abusivo, o mesmo Hen-
e não do observador. riques de Noronha (Id., Ibid.). Porém, as armas
A organização do povoamento da Madei- que mandou lavrar no seu túmulo, ainda hoje
ra, até aos meados do séc. xv, inviabilizou um existente na igreja de S.ta Clara do Funchal, são
pouco esta organização, que era a que vigorava as da principal linha dessa família.
no continente do reino. João Gonçalves Zarco O mesmo terá acontecido com os restantes
(c. 1395­‑c. 1471), e.g., embora tenha sido arma- genros de Zarco, embora não tenha chegado
do cavaleiro, em princípio em Ceuta, antes de até nós nenhum exemplar dos seus brasões de
ser enviado na missão de que resultou o des- armas iniciais: Diogo Afonso de Aguiar, que
cobrimento da Madeira, só veio a ser agracia- casou com Isabel Gonçalves da Câmara e que
do com brasão de armas a 4 de julho de 1460. se terá fixado em São Martinho do Funchal,
Tanto quanto se sabe, nem ele nem o filho sendo sepultado no Convento de S. Francisco;
570 ¬ B ras õ es de armas

existiam armas de família, mas não temos mui-


tas referências da sua utilização nessa época,
muito menos naquela ilha, onde só se desloca-
va pontualmente. Bartolomeu Perestrelo foi o
primeiro a ter carta de doação da sua capitania,
passada a 1 de novembro de 1446, o que pare-
ce indiciar uma condição social mais elevada,
tal como indicam os dois casamentos que con-
traiu no continente, sempre com famílias de
elevada qualidade social. A sua descendência
veio a entroncar­‑se na dos capitães de Machico
e, depois, também na dos capitães do Funchal.
Dentro dos arranjos matrimoniais da emer-
gente nobreza madeirense, o segundo capi-
tão do Funchal, João Gonçalves da Câmara,
começou por casar com uma cunhada, Isa-
bel Homem, filha de João Homem de Sousa e
irmã de Garcia Homem de Sousa. Não houve
geração desta união, e, falecida D. Isabel, o se-
gundo capitão voltou a casar, então em Ceuta,
com D. Maria de Noronha, filha de D. João
Henriques e D. Beatriz de Mirabel. D. Beatriz
foi depois dada como fidalga aragonesa e o seu
Fig. 3 – Armas da família Perestrelo, c. 1525 (ANTT, Casa
Real..., liv. 20). marido como filho segundo de D. Diogo Hen-
riques, bastardo do infante D. Afonso de No-
ronha, conde de Gijón e filho de D. Henrique
Diogo Cabral (c. 1432­‑1496), que desposou II de Castela. Os descendentes daquele casa-
Beatriz Gonçalves da Câmara e era o irmão mento vieram a optar quase todos pelo apelido
mais novo do senhor de Belmonte e, em prin- Noronha, salvo o primogénito, que, por deter-
cípio, tio do futuro Alm. Pedro Álvares Cabral, minação real e para poder aceder à capitania
fixando­‑se o casal em Vale de Amores, na Ca- do Funchal, teve de voltar a usar o apelido an-
lheta, e sendo aí sepultado; Garcia Homem terior, Câmara de Lobos, ficando assim Simão
de Sousa, que seria filho de João Homem de Gonçalves da Câmara (1463­‑1530).
Sousa e que “se entendia ser” neto de Pedro A partir de meados do séc. xv, os principais
Homem, um dos “doze de Inglaterra” (Id., filhos­‑família da Madeira passaram a comba-
Ibid., 329), que contraiu matrimónio com Ca- ter no Norte de África, no quadro do serviço
tarina Gonçalves da Câmara e veio a levantar a régio, recompondo­‑se assim, de certa forma,
chamada torre do Capitão, a Santo Amaro do o quadro medieval de nobilitação. Ao mesmo
Funchal. Não consta qualquer carta de brasão tempo, estabeleceu­‑se uma rede de casamentos
de armas destes parentes de Zarco. de primos cruzados entre as principais famílias
Também não possuímos informações con- terratenentes da Ilha, até para a manutenção
cretas sobre as armas dos capitães de Machi- do património fundiário. E muitas dessas famí-
co, sendo o primeiro capitão, inicialmente, lias passaram a enviar os seus filhos para serem
quase apenas designado por Tristão ou Tristão educados na corte de Lisboa, primeiro como
da Ilha e tendo o seu filho e segundo capitão pajens, em seguida como escudeiros, vindo de-
usado o apelido da mãe, sendo assim Tristão pois estes indivíduos, geralmente, a ser referi-
Vaz Teixeira. O capitão do Porto Santo, Bar- dos como tendo sido educados no paço. Nos
tolomeu Perestrelo, possuiria já brasão, pois finais de Quatrocentos, no entanto, emergiu
B ras õ es de armas ¬ 571

também na Madeira uma nova sociedade de


escudeiros, mas agora nobilitados pelo serviço
régio da Fazenda e da Justiça, que, logicamen-
te, não tinham acesso a brasão de armas.
As dificuldades iniciais do registo dos brasões
de armas ficaram logo patentes nas insígnias
dos Câmara de Lobos atribuídas a João Gon-
çalves Zarco e seus descendentes. Nelas deve-
riam figurar dois lobos­‑marinhos afrontando
uma torre, porém, ao serem executadas, na
corte de Lisboa, por alguém que nunca terá
visto tal animal, no lugar dele foram repre-
sentados dois lobos continentais, espécie que
nunca existiu na Madeira, mas que passou a ser
a utilizada por todos os descendentes de Zarco,
nomeadamente o bispo de Lamego D. Manuel
de Noronha (c. 1491­‑1569) e depois, de forma
plena, os vários ramos da família, especialmen-
te o açoriano, dos condes da Ribeira Grande
(embora, neste caso, com o campo do escudo
em negro).
As armas que parecem ter sido seguida-
mente atribuídas a um residente da Madei-
Fig. 5 – Armas de João Esmeraldo (ANTT, Casa Real..., liv. 20).
ra foram as de António Leme, desta feita

por D. Afonso V, a 2 de novembro de 1475


e por intercedência do príncipe D. João, de-
vido à sua participação na tomada de Arzila
e de Tânger, para onde foi enviado pelo pai,
Martim Leme de Bruges, da Flandres. A carta
de armas refere, inclusivamente, que, embo-
ra “da parte de seu pai pudesse trazer armas
com diferença”, D. Afonso V lhe atribuía
armas “sem diferença alguma” e como “chefe
delas” (ANTT, Leitura Nova, Místicos, liv. 3,
fl. 15). Trata­‑se de uma distinção excecional,
somente compreensível à luz de um conjun-
to de serviços muito importantes prestados à
Coroa pelo seu destinatário, incluindo, certa-
mente, os das navegações executadas a cargo
do futuro D. João II. António Leme, nos finais
da déc. de 70, encontrava­‑se radicado na vila
do Funchal, fornecendo informações a Cristó-
vão Colombo sobre a existência de terras para
ocidente. Em março de 1485, apareceu na Câ-
mara como um dos homens­‑bons do conce-
Fig. 4 – Armas de António Leme, c. 1509 (ANTT, Casa
lho e, em agosto, foi citado como cavaleiro e
Real..., liv. 19). morador na mesma vila, passando a assumir
572 ¬ B ras õ es de armas

os negócios da família, dado o falecimento do terceiro capitão do Funchal, tomando assento


irmão, Martim Leme, que tinha negócios na na Ponta do Sol. Desta família notabilizou­‑se
Madeira, pelo menos, desde agosto de 1481 o padre jesuíta D. Leão Henriques (c. 1515­
e usava também armas plenas em Portugal. ‑1589), que fora criado em Lisboa, em casa de
A partir de outubro, passou a surgir como ve- seu tio D. Fernando Henriques, e veio a ser o
reador ao lado do também navegador Álvaro primeiro reitor do Colégio do Espírito Santo,
de Ornelas, sendo de abril de 1489 a última Univ. de Évora, confessor do cardeal D. Henri-
referência que temos da sua atividade nesse que, ao longo de 24 anos, e, depois, seu testa-
cargo e da sua presença no Funchal. menteiro. Uma pedra de armas desta família,
De 20 de fevereiro de 1485 são as armas dos meados do séc. xvii, encontra­‑se hoje na
de João Fernandes do Arco, filho do segun- casa do Pé do Pico, em Câmara de Lobos, pro-
do casamento de Fernão Dias de Andrada e priedade da família Henriques de Gouveia.
que adquirira as propriedades de seu irmão, Entre os finais do séc. xv e os inícios do xvi,
Diogo Fernandes de Andrada, que regressa- devem ter sido atribuídas, ou pelo menos con-
ra a Castela, no Arco da Calheta. As armas firmadas, várias cartas de armas, cuja docu-
em questão, com um sagitário em campo de mentação porém não perdurou. Tiveram carta
ouro, encontram­‑se registadas tanto no Livro de brasão, muito provavelmente, Álvaro de
do Armeiro­‑Mor, de João de Cró, de 1509, como
no Livro da Nobreza e da Perfeição das Armas, de
António Godinho, elaborado depois, entre
1521 e 1541, com o pormenor de estar o sa-
gitário virado para a direita neste e para a es-
querda no outro. Parece que nenhum ramo
dos seus descendentes voltou a utilizar estas
armas, não as reivindicando, até porque pas-
saram a usar o apelido Abreu. Com efeito,
João Fernandes do Arco (c. 1450­‑1527) casou
com Beatriz de Abreu, e deste matrimónio
houve 13 descendentes, todos conhecidos
pelo apelido Abreu. Os filhos distinguiram­‑se
no Norte de África, inclusivamente acompa-
nhando o pai, passando depois à Índia, onde
António de Abreu ganhou uma notável re-
putação. A maioria da descendência masculi-
na passou assim à Índia e, depois, ao Brasil,
tendo poucos fixado residência na Madei-
ra. As filhas entraram para as principais fa-
mílias madeirenses, mas não só, pois Beatriz
de Abreu, homónima de sua mãe, casou com
Bartolomeu de Paiva, vindo a ser ama­‑de­‑leite
do futuro D. João III e uma das principais fi-
guras da corte de D. Manuel I, pelo que o ma-
rido passou a ser conhecido como “o Amo”.
Uma outra filha de João Fernandes do Arco,
D. Joana de Abreu, veio a casar, por volta de
1510, com D. João Henriques, segundo filho
de D. Fernando Henriques, senhor das Al- Fig. 6 – Lápide tumular de Álvaro de Ornelas e de Branca de
cáçovas, e de D. Filipa de Noronha, filha do Abreu, 1526 (Sé do Funchal).
B ras õ es de armas ¬ 573

Ornelas, o Velho, pois o filho, Álvaro de Orne-


las Saavedra, requereu e recebeu nova carta de
armas, como as que usavam seu pai e avô, em
1513; ainda consultámos o documento original
na Qt. das Almas, encontrando­‑se atualmen-
te com os descendentes, em Paris. O referido
Livro do Armeiro­‑Mor, de João de Cró, já regista
este brasão, e a magnífica laje sepulcral de Álva-
ro de Ornelas Saavedra, em calcário­‑brecha da
serra da Arrábida, com as suas armas esculpidas
em baixo­‑relevo, já existiria na Sé do Funchal,
onde ainda hoje se encontra, por volta de 1515
e 1526, como se infere dos codicilos do seu tes-
tamento, de mão comum com a sua segunda
mulher, D. Branca Fernandes de Abreu.
Mais tarde, também recebeu carta de armas Fig. 7 – Armas de João de Freitas, Flandres, 1533
(capela-mor da igreja matriz de Santa Cruz).
o flamengo João Esmeraldo, com data de 1520
e depois registada no Livro da Perfeiçam das
Armas, de António Godinho, elaborado entre infante D. João. Em julho de 1486, João de Frei-
1521 e 1541. Este códice regista uma série de tas representou, com mestre Batista, os pro-
brasões de armas que não constam do livro de prietários de Santa Cruz numa reunião ocor-
João de Cró, que aliás simplifica a emblemáti- rida no Funchal; a partir de março de 1496,
ca, não registando os timbres, e apresenta tam- surge na documentação como homem­‑bom
bém o dos Câmara de Lobos, na mesma página de Machico, em abril, como vereador, e, em
do de João Esmeraldo, o dos Perestrelo e o de maio, como juiz. Desconhecemos a sua carta
João Fernandes do Arco, entre outros. João Es- de armas, como afirmámos, mas conhecemos
meraldo havia casado com Joana Gonçalves da o pedido que fez para ser enterrado com a sua
Câmara, filha de Martim Mendes de Vasconce- mulher, Guiomar de Lordelo, na capela da ma-
los e de Helena Gonçalves da Câmara, e, en- triz do Salvador de Santa Cruz, de cuja constru-
viuvando, casou com Águeda de Abreu, filha ção fora encarregado, em 1500. Esse pedido foi
de João Fernandes do Arco, vindo a falecer em deferido a 19 de setembro de 1533, atendendo
1536. No entanto, a sua laje tumular não tem ao dinheiro que gastara na igreja “e à qualida-
brasão de armas, mas sim o seu retrato e da de da sua pessoa” (NORONHA, Ibid., 283­‑284).
sua segunda mulher, que terá mandado fazer a A laje tumular veio da Flandres, e o brasão de
peça na Flandres. armas que exibe deve ser o mais interessante
Entre as cartas de brasão mais antigas que que hoje existe dessa época, caracterizando­‑o
não chegaram até nós, estará a de Gonçalo de uma grande qualidade formal, com cinco es-
Freitas, filho do tesoureiro do infante D. João, trelas de seis pontas e utilizando como timbre
mestre da Ordem de Santiago, que se mudou uma estrela idêntica entre duas asas, marcando
para a Madeira com o filho, João de Freitas, na a diferença para os Freitas do continente, que
sequência do assassinato do duque de Viseu, utilizavam como timbre duas garras de leão se-
em Setúbal, por D. João II, a 28 de agosto de gurando uma flecha.
1484, e a cuja casa então pertenciam. Fixaram­ Com a importância económica da cultura
‑se na área de Santa Cruz, na capitania de Ma- açucareira, inúmeros comerciantes italianos,
chico, e, muito provavelmente, a eles se deve a flamengos e de outras origens tiveram igual-
determinação da instalação da alfândega ducal mente carta de brasão, nos inícios do séc. xvi,
naquele local, decidida anteriormente, em embora a maioria das armas atribuídas não fi-
1477, pela infanta D. Beatriz, filha do falecido gure nos livros de João de Cró e de António
574 ¬ B ras õ es de armas

Godinho, dado serem, em princípio, versões quadro, construindo algumas das famílias em
de armas que apresentaram como pertencen- causa as suas capelas, assumiram, pura e sim-
tes às suas famílias de origem. Provavelmente, plesmente, as armas que entenderam. O exem-
esse será o caso dos Bettencourt, Berenguer, plo mais evidente será o dos túmulos parietais
Catanho, Drumond ou Escórcio, Florença, Lo- da igreja do Carmo do Funchal, onde António
melino, Salvago, Spínola, Teive, Valdavesso e de Carvalhal Esmeraldo, casado com Maria
outros. Existem algumas arcas tumulares des- Brandão, usou as armas plenas dos Câmara,
tas famílias de origem estrangeira, e.g., na ma- e os seus cunhados, no túmulo em frente, as
triz de Santa Cruz, igreja de S. Salvador, mas, dos Brandões do continente, embora a famí-
infelizmente, os brasões iniciais foram apaga- lia fosse proveniente de lavradores da Ribeira
dos. O principal panteão insular destas famí- Brava.
lias terá sido o Convento de S. Francisco do Existe um certo vazio de documentação
Funchal, mas as constantes obras a que foi sobre a atribuição de cartas de armas ao longo
sendo sujeito e a sua própria demolição, nos desse século e mesmo do xviii. Mas a atividade
finais do séc. xix, levaram a que se tivesse per- conheceu novo incentivo nos finais da última
dido quase todo esse património. centúria e propagou­‑se exponencialmente ao
Ao longo do séc. xvii, as principais famílias longo de Oitocentos, justificando­‑se, sobretu-
madeirenses ganharam um novo ascenden- do, enquanto retribuição de serviços políticos,
te social, principalmente advindo da sua par- com a correspondente componente económi-
ticipação na expansão ultramarina ibérica e ca, deixando de ser apenas um retrato da an-
do seu desempenho na América Latina. Neste tiga fidalguia. Divulgaram­‑se então armas de
costados com as representações das armas dos
avós, quando não dos bisavós, trisavós, ou ou-
tros, inclusivamente, pelo nome, e nem sem-
pre pertencendo a essas linhagens. Em pouco
tempo, o cartório de nobreza da corte de Lis-
boa abandonaria a relação com os anteriores
elementos heráldicos de identificação, passan-
do a emitir as chamadas armas novas, quase
nada relacionadas com o pensamento subja-
cente às do passado. De facto, esta nova cultura
desenvolveu­‑se um pouco por toda a Europa,
em especial na Alemanha.
A questão das mercês novas foi objeto de vá-
rios trabalhos, mostrando, inclusivamente, a
incongruência de algumas das soluções apon-
tadas. Se algumas armas novas dificilmente en-
contrariam enquadramento na heráldica tra-
dicional, outras há em relação às quais não se
compreende a opção tomada. Na primeira si-
tuação, encontra­‑se, e.g., o caso de João Rodri-
gues Leitão (1843­‑1925), que, tendo tido larga
atividade comercial em Cabinda e conseguin-
do estabelecer muito boas relações na área, foi
um dos responsáveis pelo reconhecimento da
presença portuguesa naquele território pelos
Fig. 8 – Túmulo de António de Carvalhal Esmeraldo e de Maria
membros da Conferência de Berlim, em 1883.
Brandão, 1686 (capela-mor da igreja do Carmo do Funchal). Sendo agraciado com o título de visconde de
B ras õ es de armas ¬ 575

Fig. 9 – Armas do conde do Canavial cuja família chegou a deter o


em rótulo comercial, c. 1890
(coleção particular).
palacete da R. do Esmeraldo,
através da firma Gordon and
Duff, e em cujo logradouro
chegou a funcionar o primei-
ro cemitério britânico.
Cacongo, em 1900, houve Relativamente à heráldica
que encontrar elementos eclesiástica, o seu uso não se
algos abstratos para as armas deve ter estendido de ime-
que lhe eram atribuídas: diato à Madeira. Os Francis-
campo de prata com três fai- canos, que forneceram os
xas vermelhas carregadas primeiros quadros eclesiás-
com flores­‑de­‑lis, tendo como ticos durante as décadas ini-
tenentes ou suportes um leão ciais do povoamento, não
e um grifo. Por sua vez, uma eram propensos a esse tipo
das soluções pouco felizes, e de ostentação, e os primeiros
logo no título escolhido, foi vigários paroquiais, nomea-
a encontrada para o viscon- dos pela Ordem de Cristo e
de e depois conde do Cana- que não provinham especial-
vial, João da Câmara Leme mente da nobreza senhorial
Homem de Vasconcelos (1829­‑1902), a quem portuguesa, também não. Os primeiros bis-
se atribuiu um escudo partido, tendo, num pos da Diocese do Funchal não se deslocaram
lado, uma figura de mulher vestida de azul, sen- pessoalmente ao território, pelo que, até aos
tada num rochedo sobre o mar, com um ramo meados do séc. xvi, não terá havido heráldica
de videira e um pão­‑de­‑açúcar em cada mão, eclesiástica na Madeira. O primeiro prelado a
em alusão à ilha da Madeira, e, no outro, uma viajar até à Ilha, D. João Lobo (?­‑1542), bispo
mão de prata com uma pena de oiro, numa ale- titular de Tânger e com armas atribuídas por
goria às suas imensas publicações, não se tendo D. Manuel I, não parece ter tido especiais cui-
optado pelos elementos das inúmeras famílias dados nesse campo, não tendo ficado qual-
de que descendia, o que é um paradoxo. quer referência sobre o tema na sua passagem
A partir dos meados do séc. xviii, e depois pela Madeira, em meados de 1508.
no xix, foram ainda utilizados inúmeros bra-
sões de armas pelos elementos da feitoria bri-
tânica radicada no Funchal, especialmente em
ex­‑líbris e em sepulturas do cemitério britâni-
co, mostrando todas uma certa economia de
meios e contenção, e que não eram comuns
na Europa coeva. O brasão mais antigo será
o de James Murdoch (1744­‑1806), seguindo­
‑se o de Thomas Holloway (1751­‑1816), o de
William Mills (1794­‑1834) e os de outros tan-
tos. Entre os abundantes ex­‑líbris, podemos
citar os de Robert Page (1775­‑1829), com as
armas circundadas pelas insígnias da Ordem
Militar da Torre e Espada, de que era somen-
te titular honorário, por despacho do Rio de
Janeiro, de 15 de novembro de 1817, ou refe- Fig. 10 – Ex-líbris com as armas de Robert Page, c. 1790 (coleção
rir os de James Charles Duff, de cerca de 1860, particular).
576 ¬ B ras õ es de armas

A base da heráldica eclesiástica comunga das surgiu uma mitra a substituir o galero, poden-
normas que regem o desenho geral dos bra- do figurar sob ela uma cruz episcopal e um bá-
sões, embora nela se use, prioritariamente, a culo cruzados.
forma oval para o escudo, diferenciando­‑se Os elementos do alto clero sempre assumi-
assim, em especial, nos ornamentos exteriores, ram armas próprias, em especial após a di-
seguindo os cânones e disposições da Igreja. vulgação das normas do Concílio de Trento,
Com efeito, não utiliza o conjunto elmo, pa- ganhando elas um sentido quase pessoal e
quife e virol, identificativo do exercício da fun- afastando­‑se das regras específicas da heráldica
ção militar, mas sim o galero, chapéu eclesiás- familiar, nomeadamente com o uso de brica e
tico por excelência, descendente dos chapéus de diferenças. Se tal aspeto ainda aparece em
de abas largas dos peregrinos, sendo a hierar- 1509, quando João de Cró representa as armas
quia definida pela ordem de borlas do mesmo. do bispo D. João Lobo, marcando as armas dos
Pontualmente, podem usar coronéis de nobre- Lobo com um castelo de ouro como diferença,
za, como aconteceu com o 11.º bispo do Fun- por certo em alusão à praça­‑forte de Tânger,
chal, D. Fr. António Teles da Silva (c. 1610­ o mesmo não sucede depois na maioria das
‑1682), que se fez sepultar com coronel de armas eclesiásticas, que assumem a diferença
conde, título que nunca teve. Mais tarde, sob somente nos ornatos. Assim fez o bispo de La-
o galero, apareceu uma cruz episcopal e, por mego D. Manuel de Noronha (c. 1491­‑1569),
vezes, um báculo; depois, ao longo do séc. xx, empregando as armas plenas dos Câmara,

Fig. 11 – Lápide tumular de D. Fr. António Teles da Silva, Fig. 12 – Lápide tumular de D. Manuel de Noronha, bispo de Lamego,
c. 1682 (capela-mor da Sé do Funchal). mas como arcebispo, 1569 (capela dos claustros da Sé de Lamego).
B ras õ es de armas ¬ 577

usadas pelo pai, Simão Gonçalves da Câma-


ra (1463­‑1530) e pelo irmão mais velho, João
Gonçalves da Câmara (III) (1489­‑1536). O seu
isolamento em Lamego e o facto de ter esta-
do em Roma levaram a que se intitulasse ca-
mareiro secreto do Papa Leão X (1475­‑1521),
fazendo­‑se enterrar sob laje sepulcral com qua-
tro ordens de borlas, insígnias de arcebispo
que nunca foi.
Determinadas liberdades ocorreram, de-
pois, com outros prelados do Funchal. Por
exemplo, D. Luís Figueiredo de Lemos (1544­
‑1608) assumiu as armas dos apelidos dos Figs. 13 e 14 – Brasões de armas de D. António Carrilho, 2007,
e de D. Nuno Brás, 2011 (Catedral do Funchal).
quatro avós, da ilha de Santa Maria, Açores:
Velho, Figueiredo, Cabral e Lemos. Como
pormenor, nas várias representações das suas era muito sensível aos aspetos heráldicos, em-
armas, mandou carregar as dos Figueiredo bora ele próprio utilizasse selo com armas,
com uma merleta, que na Madeira era usada pois só um número muito reduzido de retra-
pelos Leme, de origem flamenga. Esta dife- tos apresenta brasão de armas. Nos retratos
rença, em princípio identificativa do prela- dos bispos mais antigos, tal só acontece no de
do Leme, manteve­‑se, no entanto, no quartel D. Luís Figueiredo de Lemos, talvez porque
dos Figueiredo, quando mandou, num outro as respetivas armas se encontram na fachada
quartel, lavrar as armas dos Lemos, como apa- da sua capela de S. Luís, no paço episcopal e
recem na sua lápide tumular. na sua lápide sepulcral. No entanto, não figu-
Não se encontram levantados os brasões de ram armas no retrato de D. frei António Teles
armas dos bispos do Funchal, salvo a partir dos da Silva (c. 1620­‑1682), que as havia manda-
meados do séc. xix, pelo que os iniciais terão do gravar na sua lápide tumular, na capela­‑mor
de ser apurados a partir dos selos de armas dos da Sé do Funchal, inclusivamente, encimadas
primeiros prelados. Não constam, inclusiva- por coronel de 11 pérolas, atributo dos con-
mente, da maior parte dos retratos mandados des. Esse espírito algo laico da sociedade ma-
pintar para a sala do cabido da Sé do Funchal, deirense parece ter sido corrente em muita da
a partir de 1790, em princípio. Assim aconte- sociedade madeirense nos finais do séc. xviii,
ce com o de D. Jerónimo Barreto (1543­‑1589), pois, tendo sido pintados também os retratos
que utilizou as armas dos Barreto na impressão de alguns antigos governadores e capitães­
das Constituições Synodaes de 1579, mas que não ‑generais para o palácio de S. Lourenço, tam-
figura com elas no retrato que lhe mandaram bém ali existem poucos brasões de armas, o
pintar, muito depois. No entanto, tal não se ve- que é algo surpreendente, quando verificamos
rifica no retrato do seu sucessor, D. Luís Figuei- que todos os governadores, até ao liberalismo,
redo de Lemos, que, tendo também mandado eram obrigatoriamente oriundos da nobre-
imprimir as suas insígnias nas Extravagantes, za de corte, pelo que eram todos portadores
em 1601, surge com elas representado. de armas pessoais. Com efeito, recorreram a
Os retratos dos bispos do Funchal parecem elas para autenticar a correspondência oficial,
ter tido início com o de D. Gaspar Afonso da tendo passado a fazê­‑lo, depois, para a corres-
Costa Brandão (1703­‑1784), que o terá man- pondência governamental da Madeira, com o
dado pintar em Lisboa, por volta de 1757. Na selo das armas reais.
sequência deste, e usando­‑o vagamente como A heráldica estendeu­‑se também às ordens
modelo, depois, foram sendo pintados os dos religiosas, embora os exemplares existentes na
prelados anteriores. Parece que o cabido não Madeira sejam, em princípio, bastantes tardios.
578 ¬ B ras õ es de armas

mas, até ao momento, e nas escavações arqueo-


lógicas realizadas nessas áreas, embora haja mi-
lhares de fragmentos de faiança exumada, nada
parece ter sido detetado. Nas coleções do paço
episcopal, no entanto, existe uma bilha ou pote
de faiança com as armas de fé dos Franciscanos
que a tradição aponta como sendo proveniente
do convento do Funchal.
Das restantes ordens religiosas, somente co-
nhecemos as armas de fé dos Carmelitas, na
fachada da igreja do recolhimento do Carmo,
que devem ser dos finais do séc. xviii, perío-
do em que toda a fachada da igreja foi remo-
delada. Os Jesuítas nunca usaram armas de fé
propriamente ditas, somente uma espécie de
emblemática, que, aliás, copiaram do francis-
cano S. Bernardino de Siena: o trigrama cristo-
lógico IHS, que significa Jesum Habemus Socium
(“temos Jesus como companheiro”), coloca-
do sobre um sol, como aparece na fachada da
Fig. 15 – Pote de faiança com as armas de fé dos Franciscanos,
igreja de S. João Evangelista do Funchal, logo
c. 1650 (paço episcopal do Funchal) (fotografia de Virgílio Gomes,
1995). abaixo das armas reais. Este símbolo ou mono-
grama aparece, por vezes, acompanhado da le-
genda Ad Maiorem Dei Gloriam (“para a maior
Quase todos os edifícios foram da responsa- glória de Deus”), surgindo invertida, no teto
bilidade da Fazenda Régia, pelo que tanto o da mesma igreja, em princípio, para ser lida do
paço episcopal, datável de 1610, como o Co- alto pelo Pai e não pelos filhos que demandam
légio dos Jesuítas do Funchal, cujo elemento o interior do templo. Existem mais duas pe-
heráldico mais antigo, a antiga porta da cerca dras com este símbolo ou emblema, uma delas
da R. dos Ferreiros, está datado de 1619, os- numa situação muito interessante: na porta do
tentam as armas reais. Chegaram até nós algu- paço episcopal do Funchal, no acesso à antiga
mas armas de fé dos Franciscanos, entre elas a cerca, depois Lg. do Município. O facto de este
pedra de armas do antigo convento do Funchal, bloco do paço ter sido mandado edificar pelo
datável de cerca de 1750 e hoje no jardim mu- bispo jacobeu D. João do Nascimento (c. 1690­
nicipal, associada às armas reais, indicativo de ‑1753), que professara no Convento francisca-
que a campanha de obras em causa fora paga no de Varatojo e dirigira pessoalmente parte
pela Fazenda Régia; ou, e.g., as armas existentes das obras do novo corpo edificado, levanta a
no Convento de S. Bernardino de Câmara de hipótese de ter sido o próprio prelado a man-
Lobos, provavelmente da campanha de 1763. dar colocar ali aquele emblema, precisamen-
A pedra de armas similar que está no portal da te quase perante a fachada da igreja dos Jesuí-
entrada do Convento de S.ta Clara, datável, tal- tas, recuperando assim, para os Franciscanos, a
vez, de data próxima a 1770, poder ter vindo do sua antiga simbologia. A outra pedra hoje exis-
demolido convento masculino do Funchal, pois tente está no pequeno jardim do pátio da As-
dali também vieram outros elementos, designa- sembleia Legislativa e foi encontrada na inter-
damente painéis de azulejos. É ainda possível venção de reabilitação ali efetuada, em 1990,
que tenha existido, como é vulgar no continen- podendo ter vindo de obras realizadas no edi-
te, loiça conventual decorada com armas religio- fício do Colégio dos Jesuítas pela antiga Fazen-
sas, em S. Francisco do Funchal e em S.ta Clara, da Régia.
B ras õ es de armas ¬ 579

Fig. 16 – Armas reais do antigo edifício da Câmara do Funchal, 1820 (Museu Quinta das Cruzes) (fotografia de Bernardes Franco, 2017).
580 ¬ B ras õ es de armas

As ilhas da Madeira e do Porto Santo pos- pelo Arqt. Ventura Terra, e o brasão recolheu,
suem uma quantidade apreciável de brasões de então, ao palácio de S. Pedro, onde se previa
armas reais portuguesas, uma vez que a grande organizar um museu regional.
maioria do património edificado, militar, civil O Funchal deve ter tido armas próprias ainda
e religioso, foi construída sob a responsabili- no séc. xv, porém, só conhecemos exemplares
dade da Fazenda Régia. Tal é o caso da Sé do da centúria seguinte. O mais antigo, em prin-
Funchal e, depois, do baluarte de S. Lourenço cípio, é o que está gravado na campainha de
e demais fortificações militares. Mas, também, prata da Câmara, que serviria para chamar um
da maior parte das igrejas matrizes, cujos edi- empregado, e.g., ou para mandar entrar os pe-
fícios eram incumbência régia, acontecendo o ticionários, e que se encontra datado de 1584.
mesmo com o respetivo recheio, encontrando­ Apresenta cinco pães de açúcar dispostos em
‑se brasões de armas reais em grande parte dos cruz e ladeados por duas canas­‑de­‑açúcar. Mais
retábulos das suas capelas­‑mores. O mesmo se tarde, o poeta e intérprete dos navios estran-
verifica em outros edifícios: referimos antes o geiros Manuel Tomás (1585­‑1665), na sua In-
do paço episcopal, mas poderíamos apontar sulana, de 1635, refere cinco formas de açúcar,
ainda os das misericórdias insulares. Este aspe- “cor de fogo”, colocadas num campo de prata
to transitou, igualmente, para os edifícios das e rodeadas por duas canas­‑de­‑açúcar (TOMÁS,
câmaras municipais, parte dos quais levanta- 1635, 128), o que repete Henrique Henriques
dos também com verbas da Fazenda Régia, le- de Noronha, em 1722 (NORONHA, 1996, 43).
vando a que as armas reais rematassem grande As armas do Funchal voltam a surgir numa
número deles, inclusivamente o da Câmara do salva de prata dos inícios do séc. xvii, neste
Funchal, onde figurariam, juntamente com as caso encimadas por uma cruz de Cristo, e num
armas da cidade, na fachada ou no interior. areeiro de tinteiro do mesmo período.
Do antigo edifício do Lg. da Sé que perten- No séc. xviii, começam a aparecer infor-
cera à casa comercial de D. Guiomar, onde a mações sobre o facto de se usar também um
Câmara do Funchal se instalou, nos últimos ramo de videira nas armas da cidade do Fun-
anos do séc. xviii, subsiste um importante bra- chal, existindo uma pedra de armas, hoje no
são de armas nacional, assente em esfera armi- núcleo museológico da Prç. Colombo, com a
lar, datável, assim, de data próxima a 1819 ou data de 1758, onde já não figuram as formas
1820, quando se criou o Reino Unido de Por- de açúcar, mas pães, estando o escudo ladeado
tugal, Brasil e Algarves. O imóvel foi demoli- por uma cana e um ramo de videira e as armas
do em 1916, dentro da reforma programada encimadas por coronel de nobreza. Sendo os
pães­de­açúcar representados em prata, não
poderiam, heraldicamente, assentar igualmen-
te em prata, devendo datar dessa época a defi-
nição do campo do escudo em verde, pelo que
tanto a cana­‑de­‑açúcar como o ramo de videi-
ra passaram para o enquadramento do escudo.
A partir de então, começou a vigorar, assim,
campo verde, com cinco pães de açúcar de
prata ladeados por uma cana­‑de­‑açúcar e um
ramo de videira, embora com pequenas varian-
tes, pois podem aparecer duas canas­‑de­‑açúcar
e as armas podem apresentar­‑se com coronel
de nobreza e com coroa real.
Na segunda metade do séc. xix, entre 1860 e
Fig. 17 – Armas da Câmara do Funchal, 1758 (Museu
1862, foi editada, por Inácio de Vilhena Barbo-
A Cidade do Açúcar, Funchal). sa, a vasta obra As Cidades e Villas da Monarchia
B ras õ es de armas ¬ 581

Portugueza Que Teem Brasão d’Armas, onde as


armas do Funchal aparecem ladeadas por uma
cana­‑de­‑açúcar e um ramo de videira. Nesta
publicação, figuram, igualmente, as armas da
vila do Porto Santo, ostentando um dragoeiro,
mas não as das restantes vilas madeirenses. Este
conjunto de brasões teve reedição, em 1881,
com um outro emolduramento, mas só conhe-
cemos os dos referidos locais do arquipélago.
A configuração das armas do Funchal
manteve­‑se até à proposta do heraldista Afon-
so de Ornelas Cisneiros (1880­‑1944), que as-
sinava por vezes “Affonso Dornellas”. Nos iní-
cios da déc. de 30 do séc. xx, ele bateu­‑se pela
reforma da heráldica municipal, conseguindo
fazer aprovar, em 1935, armas novas para a Câ-
mara Municipal do Funchal, bem ao gosto dito
tradicionalista do Estado Novo. As armas man-
tiveram o campo verde, mas os pães de açúcar
passaram a ouro e foram avivados com um es-
piralado a púrpura, cor do domínio eclesiásti-
co, em memória do protagonismo da Diocese Fig. 18 – Armas novas da Câmara do Funchal, 1940
(Faiança Battistini, escadas da Câmara do Funchal).
do Funchal nos Descobrimentos; foram ainda
acrescentados quatro cachos de uvas de sua
cor, carregados com as quinas de Portugal, tor- as obras correram pela Fazenda Régia, aspeto
nando o conjunto, à primeira vista, perfeita- que referenciámos antes.
mente irreconhecível. A grande reforma da heráldica municipal
Não possuímos qualquer referência sobre as iniciou­‑se com a circular de 14 abril de 1930 da
primeiras armas municipais de Machico, Santa Direção­‑geral da Administração Pública, que,
Cruz, Calheta, Ponta do Sol e Porto Santo, tentando regularizar a situação, obrigava as co-
sendo certo que todas as tiveram, pelo menos, missões administrativas das câmaras municipais
na época manuelina. Tem havido alguma con- a legalizar os brasões segundo o parecer com-
fusão com as armas de Machico, que são dadas, pulsório da secção de heráldica da Associação
nos meados do séc. xx, como tendo tido a es- dos Arqueólogos Portugueses. A situação do
fera armilar manuelina, o que seria inviável, estabelecimento de selo, armas e bandeira de
na medida em que um brasão de armas é uma cada localidade veio a integrar, inclusivamen-
forma de identificar uma entidade pessoal ou te, através do dec. 31.095, de 31 de dezembro
coletiva e um rei não poderia ter os elementos de 1940, o Código Administrativo, através dos
das suas armas individuais a identificar uma câ- artigos 14 e 48. Data desses anos a instituição
mara municipal. O mesmo se passa com a Câ- do coroamento dos escudos municipais com
mara de Santa Cruz, que por vezes alega serem coronéis de torres aparentes, hierarquizadas
suas as armas reais que encimam a porta do entre as cidades e as vilas com cinco e quatro
edifício municipal, o que também não é possí- torres, o que foi alargado às juntas de fregue-
vel. Os Paços do Concelho do Porto Santo são sia, em 1991, com três. Entretanto, também na
igualmente encimados pelas armas reais, mas Região Autónoma da Madeira (RAM) se pro-
elas indicam apenas que o edifício foi feito cedeu a reforma idêntica, parte da qual assu-
pelo mestre das obras reais, Domingos Rodri- mida pelas autarquias, como aconteceu na vila
gues Martins (c. 1710­‑1781), em 1774, e que de São Vicente, onde se aprovou uma raridade
582 ¬ B ras õ es de armas

heráldicos foram utilizados por instituições


de ensino, como a Escola Afonso Domingues,
em 1889, que veio a dar origem à Escola In-
dustrial e Comercial do Funchal, e, em 1989,
a Univ. da Madeira (UMa).
Data dos meados e finais do séc. xix o apa-
recimento, na Madeira, de um esboço de he-
ráldica corporativa, assumida, entre outros,
pelas sociedades agrícolas e, depois, pelos gré-
mios, sindicatos e diversas associações. Com o
advento do Estado Novo, o assunto veio a ser
encarado noutros moldes, solicitando­‑se pro-
Figs. 19 e 20 – Selo da Alfândega do Funchal, c. 1550
postas a essas instituições, mas, na maior parte
(Museu A Cidade do Açúcar, Funchal). das vezes, impondo­‑se as soluções finais. Tal
ocorreu nas associações mais caras ao gover-
iconográfica, com o orago a empunhar uma no, designadamente nas casas do povo e dos
grelha em vez de uma embarcação. pescadores, conhecendo­‑se o brasão da Casa
Outras entidades terão tido armas, como é do Povo de Santo António, no Funchal, e o
o caso da Alfândega do Funchal e, provavel- brasão da Camacha, em Santa Cruz, ambos
mente, de Santa Cruz, conhecendo­‑se dois apresentados em Lisboa na Exposição de He-
selos de chumbo daquela, datáveis de 1520 a ráldica do Trabalho, por altura dos festejos do
1550, exumados nas escavações arqueológicas 20.º aniversário da Fundação Nacional para a
na Pç. Colombo, em 1989, com a esfera armi- Alegria no Trabalho (FNAT). No ano seguin-
lar envolta pela legenda “Alfândega do Fun- te, Franz Paul de Almeida Langhans editou
chal”, com o pormenor de estar rematada por o Manual de Heráldica Corporativa, onde figu-
um pequeno escudete com as quinas de Por- ra ainda o da Casa dos Pescadores do Fun-
tugal e, do outro lado, ter as armas reais com chal. No catálogo da exposição dos 20 anos
coroa aberta. Pontualmente, os elementos da FNAT, o organizador da mesma, Mário de
Albuquerque, ao apresentar o brasão da Casa
do Povo da Camacha, comenta ter sido dei-
xado em branco o brasão da Câmara Munici-
pal de Santa Cruz por o concelho “não as ter
ordenadas e aprovadas” (ALBUQUERQUE,
1955, 114).
As unidades militares não terão usado bra-
sões de armas próprios até ao séc. xx, deven-
do ter­‑se limitado a utilizar bandeiras com as
armas reais e com uma legenda da unidade em
questão. O mesmo não se terá passado com as
unidades de ocupação britânicas, nos inícios
do século anterior, de que se exumaram, nas
escavações de emergência de 1992, efetuadas
no pátio dos estudantes do antigo quartel do
Colégio dos Jesuítas, alguns botões de farda,
indicativos de terem distintivos próprios, pelo
menos os correspondentes aos uniformes de
Fig. 21 – Guião da Companhia de Caçadores de Diu, antigo Estado
Português da Índia, do Batalhão Independente do Funchal, 1959
artilharia. Ao longo desse século, as unida-
(Núcleo Museológico do Regimento de Guarnição N.º 3). des portuguesas destacadas para a Madeira
B ras õ es de armas ¬ 583

depois, e a respetiva regulamentação foi pu-


blicada a 12 de setembro. Estas armas foram
completadas, depois, por proposta de dois his-
toriadores locais, decidindo­‑se a utilização do
elmo de “boca­‑de­‑sapo”, geralmente atribuído
a D. João I e existente no Museu Militar de Lis-
boa, dado ter sido este rei quem determinou o
povoamento do arquipélago. No entanto, em
rigor, esse elmo será, muito mais provavelmen-
te, aquele que veio do mosteiro da Batalha,
em 1901, e que se encontrava no túmulo de
D. João II. Assim, o elmo de ouro apresenta­
‑se de frente e forrado a vermelho. Como tim-
bre, optou­‑se por uma esfera armilar, pela sua
ligação aos Descobrimentos e a D. Manuel I,
existindo este elemento em inúmeros edifí-
cios públicos do Funchal. Como suportes, dois
lobos­‑marinhos, vivos e de sua cor, simbolizan-
do a homenagem da Região aos únicos gran-
Fig. 22 – Brasão de armas da Região Autónoma da Madeira, 1990 des mamíferos encontrados quando da che-
(Reitoria da Univ. da Madeira).
gada dos primeiros povoadores. Como divisa,
inicialmente, foi proposto o seguinte fragmen-
parecem ter utilizado somente uma emblemá- to de Os Lusíadas alusivo à Madeira: “Das que
tica com o número da força em causa, algaris- nós povoámos a primeira” (CARITA e SAINZ­
mos que foram ficando registados na calçada ‑TRUEVA, 1990, 103­‑107). Porém, nos inícios
da antiga parada do mesmo quartel do Colé- do ano seguinte, em reunião de Governo,
gio, hoje integrada na Reitoria da UMa. veio a decidir­‑se pelo verso “Das ilhas as mais
Data das décs. de 80 e 90 a reforma geral he- belas e livres” (Decreto Legislativo Regional
ráldica do Exército, passando as unidades mi- n.º 11/91/M, de 24 de abril).
litares da Madeira a possuir brasão de armas
próprio. Estas armas foram sendo adaptadas ao Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivos Particulares, Cartas Patentes, n/
catalog.; Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Avulsos, mçs. 2 e 4; Ibid., Câmara
longo das várias reformas das forças em causa. Municipal do Funchal, Registo Geral, tombos 1 e 3; Ibid., Fundo Ornelas e
A reforma estendeu­‑se, entretanto, às restantes Vasconcelos, cx. 33; Ibid., Juízo de Resíduos e Capelas, cx. 11; ANTT, Casa Real,
Cartório da Nobreza, liv. 20, António Godinho, Livro da Nobreza e Perfeiçam
forças militares da Marinha e da Força Aérea e, das Armas, séc. xvi; Ibid., Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 19, João de Cró,
depois, ao Comando­‑Chefe das Forças Arma- Livro do Armeiro­‑Mor, 1509; Ibid., Leitura Nova, livs. 2­‑3 de místicos; Ibid.,
Ministério do Reino, mç. 498; impressa: ALBUQUERQUE, Mário de, Brasonário
das da RAM, tal como à Companhia Indepen- Corporativo na Exposição de Heráldica do Trabalho. XX Aniversário da F.N.A.T.,
dente da Guarda Fiscal e ao Comando da Polí- Lisboa, Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, 1955; ARAGÃO, António,
As Armas da Cidade do Funchal no Curso da Sua História, Funchal, DRAC, 1984;
cia de Segurança Pública. BARBOSA, Inácio de Vilhena, As Cidades e Villas da Monarchia Portugueza Que
O assumir de armas próprias pela RAM foi Teem Brasão d’Armas, 3 vols., Lisboa, Tip. do Panorama, 1860­‑1862; BARRETO,
Jerónimo, Constituições Synodaes do Bispado do Funchal, Feitas & Ordenadas
feito de forma consistente, em 1991, quando
por D. Ieronymo Barreto, Bispo do Dito Bispado, Lisboa, António Ribeiro, 1585;
a Região completou as armas do seu brasão. CARITA, Rui, Museu da Cidade do Funchal, Funchal, Câmara Municipal do
O arquipélago tinha constituído os seus sím- Funchal, 1986; Id., Escavações nas Casas de João Esmeraldo – Cristóvão Colombo,
catálogo de exposição patente no Teatro Municipal do Funchal, dez. 1989,
bolos próprios numa relação direta com as Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1989; Id. (org.), O Pátio dos Estudantes
suas origens, assentando a bandeira e o escudo do Colégio dos Jesuítas do Funchal. A Nova Entrada da Universidade da Madeira,
Funchal, Lourenço Simões & Reis, 2001; Id., 30 Anos de Autonomia. 1976­‑2006,
em campo azul, uma pala de ouro e a mesma Funchal, Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, 2008; Id.,
carregada com a cruz da Ordem de Cristo. e SAINZ­‑TRUEVA, “O brasão de armas da Região Autónoma da Madeira.
Proposta para o seu completamento”, Islenha, n.º 6, jan.­‑jun. 1990, pp. 103­‑107;
As insígnias foram discutidas, na generalida- COSTA, José Pereira da, Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Século XV,
de, a 26 de julho, sendo aprovadas dois dias Funchal, CEHA, 1995; CRÓ, João de, Livro do Armeiro­‑Mor, Lisboa, Academia
584 ¬ B rassey , A nna

Portuguesa da História/Inapa, 2000; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. (1895­‑1900), de quem teve cinco filhos. A famí-
História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro
Rodrigues de Azevedo, Funchal, Typ. Funchalense, 1873; GODINHO, António, lia Brassey viveu em Beauport Park, Hastings, e
Livro da Nobreza e Perfeiçam das Armas, Lisboa, Inapa, 1986; Heráldica. Ciência em Normanhurst, Catsfield, Sussex, tendo ini-
de Temas Vivos, 2 vols., Lisboa, Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho,
1966; LANGHANS, Franz Paul de Almeida, Manual de Heráldica Corporativa, Lisboa,
ciado as suas viagens à descoberta do mundo
Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, 1956; LEMOS, Luís Figueiredo em 1869. As viagens da família Brassey estavam
de, Constituições Synodaes do Bispado do Funchal. Com as Extravagantes
novamente Impressas por Mandado de Dom Luis Figueiredo de Lemos, Lisboa,
intimamente ligadas ao Império colonial Inglês,
Pedro de Crasbeeck, 1601; MORAIS­‑ALEXANDRE, Paulo Jorge, “A formação da na medida em que eram frequentemente pedi-
heráldica do Exército no Estado Novo”, Congresso de Heráldica Militar, Lisboa,
dos a Thomas Brassey, como membro do Parla-
Academia Portuguesa de Heráldica, 2000, pp. 9­‑16; Id., A Heráldica do Exército
na República Portuguesa no Século XX, Dissertação de Doutoramento em mento, estudos e investigações profundas in loco
História apresentada à Universidade de Coimbra, Coimbra, texto policopiado,
sobre as culturas e as economias de outros paí-
2009; NÓBREGA, Artur Vaz­‑Osório da, Compêndio Português de História
de Família, Lisboa, Mediatexto, 2003; NORONHA, Henrique Henriques de, ses. É neste contexto que Annie Brassey inicia a
Nobiliário Genealógico das Famílias Que Passarão a Viver a Esta Ilha da Madeira sua produção literária de viagem, como simples
depois do Seu Descobrimento, Que Foi no Ano de 1420, São Paulo, Revista
Genealógica Brasileira, 1948; SAINZ­‑TRUEVA, José de, “Heráldica inglesa no ‘Old relatos e entradas de diário com o intuito de in-
Burial Ground’”, Atlântico, n.º 1, 1985, pp. 60­‑64; Id., “Igrejas, casas, fortalezas e formar a sua família.
capelas brasonadas da ilha da Madeira e Porto Santo”, Atlântico, n.º 11, 1987,
pp. 182­‑196; Id., “Tectos madeirenses armoriados. Achegas para um brasonário A família Brassey realizou uma viagem à volta
insular”, Islenha n.º 1, jul.­‑dez. 1987, pp. 111­‑124; Id., “Brevíssima memória do mundo, com duração de um ano, com parti-
sobre as armas dos Monizes e Perestrelos”, Islenha, n.º 5, jul.­‑dez. 1989, pp. 89­
‑93; Id., “Tectos madeirenses armoriados, continuando um inventário”, Islenha, da e chegada a Inglaterra, a bordo do seu yacht
n.º 6, jan.­‑jun. 1990, pp. 75­‑81; Id., “Heráldica de prestígio em rótulos de vinho privado Sunbeam, alcunha pela qual era conhe-
Madeira”, Islenha, n.º 9, jul.­‑dez. 1991, pp. 62­‑69; Id., “Heráldica de apelidos
estrangeiros na ilha da Madeira”, Islenha, n.º 18, jan.­‑jun. 1996, pp. 110­‑121; Id.,
cida uma das filhas de Annie Brassey que fale-
“Heráldica em iconografia relacionada com a Madeira”, Islenha, n.º 24, jan.­‑jun. ceu precocemente. É esta viagem familiar de
1999, pp. 57­‑70; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998, TOMÁS, Manuel,
descoberta do mundo e dos horizontes que dá
Insulana, Amberes, Caza de Ioam Mevrsio Impressor, 1635; VALDEZ, Ruy Dique
Travassos, Cartas de Brasão Modernas (1872­‑1910). Complemento do Arquivo
Heráldico­‑Genealógico do Visconde Sanches de Baêna, Porto, Livraria Fernando
Machado, 1935.

Rui Carita

Brassey, Anna
A baronesa Anna Brassey, mais conhecida
por Annie Brassey, nasceu a 7 de outubro de
1839, em Londres, e faleceu a 14 de setem-
bro de 1887, entre a Austrália e a Indonésia.
Descendente de uma família abastada ligada
ao comércio do vinho, Annie Brassey era filha
de John Allnutt e de Elizabeth Harriet Burne-
tt. Foi escritora, fotógrafa amadora e viajante,
sobejamente conhecida pelos seus relatos e
diários de viagem. Órfã de mãe precocemen-
te e educada em casa, cedo Annie Brassey ga-
nhou grande afeição pela leitura, as línguas e
a botânica.
Aos 21 anos, a 9 de outubro de 1860, contraiu
matrimónio na igreja de Saint George, em Lon-
dres, com o barão Thomas Brassey, filiado no
Partido Liberal, membro do Parlamento inglês Fig. 1 – Lady Anna Brassey (“Annie”), fotografia animada, 1866
e governador do estado da Victoria, Austrália (Hastings Museum & Art Gallery, Inglaterra).
B rassey , A nna ¬ 585

origem ao seu livro de maior sucesso editorial,


publicado em 1878, A Voyage in the “Sunbeam”.
Our Home on the Ocean for Eleven Months, que foi
traduzido em diversas línguas e teve mais de
vinte edições.
Além de A Voyage in the “Sunbeam”, Annie
Brassey escreveu outros diários de viagem, no-
meadamente The Flight of the “Meteor” (1869),
A Cruise on the Eöthen (1872), Sunshine and
Storm in the East (1880), In the Trades, the Tro-
pics, and the Roaring Forties (1885) e The Last
Voyage (publicado postumamente e editado
pela sua amiga Mary Ann Broome, em 1889),
diário que relata a derradeira e infrutífera via-
gem realizada em 1886, com destino à Índia
e com o objetivo de buscar novos ares para
Fig. 2 – A Voyage in the “Sunbeam”. Our Home on the Ocean for
revigorar a saúde. Esteve igualmente envolvi- Eleven Months (1878), de Anna Brassey.
da em trabalhos litográficos para o livro Tahi-
ti: a Series of Photographs (1882), da autoria de
Henry Stuart­‑Wortley. ano, é condecorada pelo último rei do Hawaii,
Annie Brassey viajava sempre com toda a sua Kalakaua, com a Real Ordem de Kapiolani,
família, aproveitando as viagens para fugir dos pelo seu contributo para a descrição e difusão
ares londrinos, impiedosamente frios e polu- de conhecimentos relativos ao reino. Annie
tos, que lhe afetavam frequentemente a saúde. Brassey não só escreveu sobre destinos, povos
Nos seus jornais de viagem, descreve, ilustra e culturas, como também recorreu a outros
e documenta com grande detalhe e minúcia meios, como a fotografia, como forma de do-
os lugares por onde passa, não menosprezan- cumentar o outro. Ainda que apenas amadora,
do na sua narrativa os costumes e as culturas era dotada de um olhar profundamente obser-
dos povos. Com a sua lente, capta paisagens, vador, metódico, histórico e curioso, recolhen-
jardins, a natureza, estradas, pessoas, hábitos, do ao longo dos anos um riquíssimo espólio
locais de interesse político, institucional e in- fotográfico, etnográfico, geológico, botânico e
telectual, arquitetura e arte. Manifesta especial arqueológico.
interesse pelas paisagens, as fortificações britâ- Na sua vasta coleção fotográfica, é possível
nicas espalhadas por todo o Império inglês, a encontrar mais de 5000 fotografias de diver-
vida colonial, as plantas exóticas e os indíge- sos locais por onde passou com a família, no-
nas, nativos e animais. meadamente o Egito, Jerusalém, Síria, Malta
Em 1873, Annie Brassey torna­‑se membro (a bordo do navio Meteor, em 1869), Cana-
efetivo da Photographic Society of London, dá e Estados Unidos da América (no navio
realizando diversas exposições nos anos 80 do Eöthen, em 1872). No Sunbeam, navegou para
séc. xix. O seu espólio encontra­‑se maioritaria- destinos como a Noruega e todo o Círcu-
mente na Biblioteca de Huntington, em San lo Polar Ártico (1874); países do Mediter-
Marino, Califórnia, e na Biblioteca de Has- râneo e Turquia (1874­‑1875/1878); à volta
ting, Inglaterra. Era igualmente reconhecida do mundo (1876­‑1877); Egito, Índias Oci-
pelo seu trabalho caritativo e filantrópico na dentais, Bermudas, Jamaica, Açores (1883);
St. John Ambulance Association, instituição Noruega, Escandinávia (1885, na compa-
dedicada a ensinar e prestar primeiros socor- nhia do primeiro­‑ministro inglês William
ros. Em 1881, é nomeada dame chevalière da Ewart Gladstone); e Índia, África e Austrália
Ordem de St. John of Jerusalem e, no mesmo (1886­‑1887).
586 ¬ B rassey , A nna

Annie Brassey visitou Portugal, incluindo os bananeiras, as figueiras, as vinhas e as pitores-


Açores e a Madeira. Percorreu Lisboa, Sintra, cas levadas madeirenses. Não se limita a fazer
Monserrate, Belém, Porto, Viseu e Santa Cruz uma descrição do que vê, mas recorre igual-
das Flores, nos Açores. Já a sua passagem pela mente a referências históricas e a lendas ma-
Madeira foi mais prolongada. Visitou­‑a por deirenses, como a de Roberto Machim e Ana
duas vezes: a primeira, em 1876­‑1877, numa d’Arfet, mencionando a descoberta da Madei-
visita de apenas quatro dias, que se encontra ra, as invasões francesas e os milagres de Nossa
narrada em A Voyage in the “Sunbeam”, e a se- Senhora do Monte. Na Ilha, contacta com fa-
gunda, em 1883, durante cerca de dez dias, mílias ilustres da sociedade, como os Blandy,
narrada em In the Trades, the Tropics, and the os Reid, os Grabham, os Hinton e os Acciaio-
Roaring Forties. Celebrou na Madeira não só o li. Deixou um legado composto por cativantes
seu 44.º aniversário, mas também o 23.º ani- narrações da vida no desconhecido, incluindo
versário de casamento. Da Ilha, conheceu o descrições da vida a bordo, fotografias e arte-
Funchal, onde visitou o Cemitério Britânico, factos de destinos distantes.
a ribeira dos Socorridos, o Til, Monte, Cam- Annie Brassey sofria de bronquite cróni-
panário, Rabaçal, Penha d’Águia, Porto da ca, tendo uma saúde frágil desde a infância.
Cruz, Machico, Caniçal, Curral das Freiras, Contraiu malária na viagem à Síria, em 1869,
pico Ruivo, Câmara de Lobos, cabo Girão, Ca- tendo­‑se a sua saúde deteriorado considera-
lheta, Vinte Cinco Fontes, Palheiro Ferreiro, velmente. Faleceu a 14 de setembro de 1887,
Camacha, Águas Mansas, Caminho do Meio, vítima de malária, a bordo do navio em que
pico do Poiso, Ribeiro Frio, Santana, Faial, viajava, ao largo da Austrália e da Indonésia,
Lamaceiros, São Jorge, entre outros pontos quando se dirigia para a ilha Maurícia. O seu
de passagem. corpo foi sepultado no mar, ao largo de Ma-
A escritora dá conta da vegetação madei- caçar, na Indonésia, deixando um grande sen-
rense, classificando­‑a como luxuriante e exó- timento de consternação em terra. À época
tica. Hospedada no Hotel de Santa Clara, pro- do seu falecimento, foram publicadas, na im-
priedade da família Reid, descreve a beleza prensa, diversas homenagens e memórias do
das magnólias, azálias e buganvílias que en- seu espírito beneficente, sendo considerada
volvem a cidade do Funchal, mencionando as uma das mais prolíficas escritoras de relatos
de viagem do mundo: “Yet no lady has died
recently whose decease has caused so general
a regret as Lady Brassey [De entre as senho-
ras recentemente falecidas, a que causou mais
pena em todos foi lady Brasset]” (Hastings, 22
out. 1887, 7). “The lady of the House has died
far off on distant seas,/It took place on board
the Sunbeam, the yacht which was her pride,/
with her husband and children all weeping by
her side./[…] And many a church bell tower
the mournful news doth tell,/But none rand
out so sadly as did the Sunbeam bell [A senhora
da Casa morreu longe em mares distantes,/a
bordo do Sunbeam, o iate que era o seu orgu-
lho,/com o marido e os filhos chorando a seu
lado./[…] E se as fúnebres notícias soaram em
muitas torres de igreja,/Em nenhuma tocaram
Figs. 3 e 4 – In the Trades, the Tropics, & the Roaring Forties (1885),
mais tristes que o sino do Sunbeam]” (Hastings,
de Anna Brassey. 15 out. 1887, 6).
B reyner , F rancisco M anuel de M elo ¬ 587

Obras de Anna Brassey: The Flight of the “Meteor” (1869); A Cruise on the
“Eöthen” (1872); A Voyage in the “Sunbeam”. Our Home on the Ocean for Eleven
Months (1878); Sunshine and Storm in the East (1880); In the Trades, the Tropics,
& the Roaring Forties (1885); The Last Voyage (1889).

Bibliog.: “Death of lady Brassey”, Faringdon Advertiser and Vale of the White
Horse Gazette, 15 out. 1887, p. 5; “Lady Brassey”, Hastings and St. Leonards
Observer, 15 out. 1887, p. 6; MARSHALL, Edward Henry, “Brassey, Anna”,
in LEE, Sidney, Dictionary of National Biography, London, Smith, Elder &
Co, 1901, pp. 261­‑262; “A metropolitan tribute”, Hastings and St. Leonards
Observer, 22 out. 1887, p. 7; MICKELWRIGHT, Nancy, A Victorian Traveler in
the Middle East. The Photography and Travel Writing of Lady Annie Brassey,
Burlington/Vermont, Ashgate, 2003.
O Tempo (5 out. 1912).
Fernanda de Castro

Tipografia do Trabalho e União. O primeiro


Brazão, Manuel de Sousa número veio a lume a 5 de outubro de 1912 e
o último a 29 de novembro de 1918. Sousa Bra-
Nasceu a 21 de abril de 1884, na freguesia de São
zão deixou o cargo de diretor a 13 setembro de
Vicente, e faleceu a 21 de dezembro de 1923.
1913, sucedendo­‑lhe Adolfo Brazão.
Filho de Daniel de Sousa Brazão e de Luísa Cân-
No n.º 100 do jornal, de 17 de setembro de
dida Oliveira de Sousa Brazão, frequentou o
1913, é registado o seguinte na coluna de notas
Liceu do Funchal e a Escola do Exército.
soltas: “O tenente Sousa Brazão, que se encon-
Foi militar de carreira, ingressou no Exér-
tra doente, deixou a direção deste jornal por
cito a 12 de agosto de 1903, sendo promovido
terem­‑no transferido para a inspeção dos servi-
a alferes cinco anos depois, a 15 de novembro
ços administrativos da 5.ª Divisão Militar. Não
de 1908. A 20 de setembro de 1916, ascendeu a
deixará, porém, ‘O Tempo’ de publicar­‑se, ver-
capitão, posto militar pelo qual veio a ficar co-
berando, talvez em termos mais violentos que
nhecido. Os serviços prestados no Exército de-
a disciplina militar não permitia…” (O Tempo,
correram na ilha de São Tomé, tendo também
17 set. 1913, 1).
feito parte das expedições militares ao Sul de
Angola e a Moçambique, no quadro da Primei- Bibliog.: impressa: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses.
ra Guerra Mundial (1914­‑1918). Pelos serviços Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; O Tempo, 5
out. 1912; 17 set. 1913; digital: Arquivo Histórico Militar: http://arqhist.exercito.
prestados, recebeu várias condecorações mili- pt/germil/details?id=79070 (acedido a 2 maio 2015).
tares: medalha de prata da classe de Comporta-
Carlos Maduro
mento Exemplar, em reconhecimento por 15
anos de serviço militar efetivo, sem qualquer
punição disciplinar ou criminal; Bons Serviços
Breyner, Francisco
com letra C; oficialato de Avis e Cristo, e meda-
lhas da Vitória e do Exército Português com a
Manuel de Melo
legenda Sul de Angola e Moçambique. Nascido em Lisboa no seio de uma importan-
Paralelamente, Sousa Brazão desenvolveu te família aristocrática, a 27 de julho de 1837,
atividades políticas enquanto militante da desde cedo revelou especial interesse pela bo-
União Republicana, liderada por Brito Cama- tânica. Terá sido esse interesse que levou o pri-
cho, tendo sido eleito deputado da Nação na meiro gabinete do açoriano António José de
sessão legislativa de 10 de julho de 1921, pelo Ávila (1807­‑1881), já conde de Ávila, do grupo
círculo eleitoral da Madeira, local onde foi o fusionista, participado por regeneradores e
fundador deste partido. históricos, dois dias depois de tomar posse, a
Do seu interesse pela vida pública, regista­‑se nomeá­‑lo 16.º governador civil do Funchal, a
ainda o jornalismo, nomeadamente através da 16 de janeiro de 1868. Acabaria por não tomar
fundação e direção do jornal O Tempo, um bis- o lugar, pois a 25 do mesmo mês e ano era exo-
semanário da tarde publicado no Funchal, na nerado e nomeado para o cargo o Maj. D. João
588 ¬ B rinquedos e jogos populares

dos Vencidos da Vida, ao lado de Ramalho Or-


tigão (1836­‑1915), Guerra Junqueiro (1850­
‑1923), Eça de Queiroz (1845­‑1900) e outros.
Faleceu em Lisboa, a 19 de abril de 1903.

Bibliog.: manuscrita: AHM, Processos Individuais, João, 6­‑19 (docs. n.n.);


impressa: ORTIGÃO, Ramalho, O Conde de Ficalho (Retrato Íntimo), Lisboa,
Aillaud, 1919; digital: MINISTÉRIO DA ADMINISTRAÇÃO INTERNA,
Governadores Civis. 1835­‑2008, Lisboa, Divisão de Documentação e Arquivo,
2008: http://gov­‑civil­‑Lisboa.ivisa.com/portal2010/images/arquivo/ficheiros/
GovernadoresCivis_1835_2008.pdf (acedido a 14 maio 2018).

Rui Carita

Brinquedos e jogos populares


Alguns brinquedos e jogos praticados na Ma-
deira resultam da evolução ou adaptação de
outros já existentes. Neste texto dar­‑se­‑á re-
levo àqueles que, pela sua frequência e por
utilizarem materiais da Ilha, são tidos como
madeirenses.
No início do séc. xx, as crianças brincavam
“ao gigante, às escondidas, ao ferrolhinho, à ber-
linda” (TERESA, 1922, 31, 144, 192, 193, 295).
Na déc. de 1950, ainda era frequente ver as me-
Francisco Manuel de Melo Breyner, conde de Ficalho, c. 1885 ninas a bordar folhas de begónia ou de couve,
(arquivo do antigo Museu Botânico de Lisboa).
usando como agulha um pico de tabaibeira ou
de roseira, ou mesmo as agulhas pontiagudas
Frederico da Câmara Leme (1821­‑1878), mem-
bro dos fusionistas e depois do Partido Popu-
lar, “dada a desistência do coronel Francisco
de Mello Breyner” (AHM, Proc. Ind. João,
6­‑19). Câmara Leme teve de abandonar este
cargo pouco depois, pois a 9 de setembro
já era nomeado para o mesmo D. Tomaz de
Sousa e Holstein Beck, marquês de Sesimbra
(1839­‑1887), 14.º filho do duque de Palmela
(1781­‑1850).
Francisco Manuel de Melo Breyner viria a
fundar, em 1878, o Jardim Botânico de Lisboa,
com seu amigo e professor João de Andrade
Corvo (1824­‑1890), que estivera na Madeira
em 1853, encarregado pela Academia Real das
Ciências de estudar a doença da vinha. Como
neto da marquesa de Ficalho, D. Eugénia Mau-
rícia de Almeida Portugal (1784­‑1859), Fran-
cisco de Melo Breyner veio a ser elevado, em
1893, a 4.º conde de Ficalho, nome por que Fig. 1 – O Brinquedo dos Nossos Avós (1986),
passou à História, integrando o célebre grupo catálogo de Gilberta Paula Caires et al.
B rinquedos e jogos populares ¬ 589

de pinheiro, para picotarem desenhos, imitan-


do os bordados das mães, ou a tecer cordel num
carro de linhas vazio, onde se espetavam qua-
tro pequenos pregos de cabeça rebatida. Por
sua vez, os rapazes entretinham­‑se construindo
e guiando carros feitos de cana­‑vieira (Arundo
donax L.) e arame, mais ou menos elaborados,
com travões e velocidade, dependendo da habi-
lidade do artista construtor, ou correndo atrás
de um arco de ferro retirado de pipas velhas, to-
cado por um gancho de ferro ou de arame, ou
apenas por um pau. Podíamos, também, vê­‑los
a hastear joeiras com formas geométricas bem
delineadas, salientadas pelas cores garridas do
papel de seda, que ganhavam brilho ao sol dos
dias de primavera e verão.
As meninas brincavam ainda “às casinhas”,
que eram sempre ornamentadas com flores sil-
vestres e preenchidas com mobiliário feito de
materiais naturais, nomeadamente cestinhos
de erva milhã, uma erva da família das gramí-
neas, ou relógios do fruto de bico­‑de­‑cegonha Figs. 2 e 3 – Rocas com apito em prata para brinquedo
de criança, Espanha, c. 1770, e Inglaterra, c. 1830
(Erodium cicutarium), e “ao pai e à mãe”, brin- (Museu Quinta das Cruzes, Doação Wetzler).
cadeira na qual os filhos eram representados
por bonecas feitas de trapos, de carolos de ma-
çarocas ou mesmo de uma pedra mais oval, jogador, deveriam fazê­‑lo chegar ao adversário,
quase sempre envoltas em folhas de couve ou que o receberia com os seus paus e repetiria o
vinha a fazer de lençol. Os rapazes mais novos gesto anterior, mantendo o arco no ar o maior
puxavam pequenas latas de sardinha vazias, às tempo possível. Julgamos ser este um verdadei-
quais atavam um cordel, imaginando carroças ro jogo madeirense, quer pelo material utiliza-
que carregavam com bolotas ou frutos pecos do, quer pelo facto de não o vermos referen-
caídos das árvores. Os mais velhos divertiam­ ciado em outros locais.
‑se deslizando em “carros de se arrastar”, que Frequente era, também, ver os rapazes ou
iam desde tábuas rasas que untavam com cebo, mesmo os homens a jogarem “às damas”, de 12
para melhor escorregarem nas ladeiras, a car- ou 21, escarranchados nos muros das estradas,
ros mais elaborados, utilizando, muitas vezes, onde riscavam, com cacos de telha de barro,
caixas de sabão cedidas pelos merceeiros da lo- os tabuleiros onde moviam as peças, também
calidade. Uns e outros passavam horas a fazer elas de pequenos pedaços de telha, arredonda-
bolas de sabão, utilizando um tubo de cana­ dos por fricção em paredes ásperas ou mesmo
‑vieira ou mesmo o caule das folhas de abo- no chão. De barro eram também as cinco pe-
boreira ou pepineleira (Sechium edule) molha- drinhas com as quais jogavam as meninas, com
do em água de sabão azul, treinando, assim, espantosa habilidade, o jogo do mesmo nome.
a subtileza do sopro para ver quem conseguia Mais tarde, essas pedrinhas foram substituídas
fazer a maior bola. Jogavam também “às gra- por berlindes de vidro, ou mesmo de ferro, ce-
ças” com um pequeno arco feito de vime, com didos pelas oficinas de automóveis, os quais
cerca de 30 cm de diâmetro, e dois paus, tam- introduziram uma variante no jogo, ressaltan-
bém de vime e de idêntica medida, que, en- do depois de atirados ao ar e antes de serem
fiados no arco e por extensão dos braços do recolhidos.
590 ¬ B rinquedos e jogos populares

Fig. 4 – Menina com cesto em miniatura, Funchal, 1894 (ABM, Fig. 5 – Menino a cavalo, Funchal, 1906 (ABM, Photographia
Photographia Vicente, 9470). Vicente, 9590).

As experiências rítmico­‑sonoras eram reali- serem apanhados no local onde a água mudava
zadas através das cantigas de roda e de outras de dono. Para matar lagartixas, não faltavam as
brincadeiras cantadas, com pífaros, assobios e “laçadas”, feitas da conhecida “erva rija”, e, para
num­‑nuns feitos de cana­‑vieira, ou mesmo so- treinar a pontaria, lá estavam as “forquilhas”
prando as flores cor de laranja da trepadeira (fisgas) aproveitando os galhos bifurcados das
bignónia (Bignónia venusta ker­‑Gawl), tão co- árvores e os restos de borracha (visgos) das câ-
nhecida na Região por “gaitinhas do Natal”, ou maras de­ar. As lutas de peões de madeira, feitos
percutindo o “grilinho” de casca de noz, que por artesãos da localidade, aconteciam quando
não podia faltar na época do “pão por Deus” o “sono” do peão não era suficientemente de-
(1 de novembro), ou ainda pelo saltar à corda morado, de modo a permitir que o seu dono
ao som de lengalengas como “A rainha dos o passasse, habilidosamente, do chão para a
mares” ou “Dois cavalinhos a saltar à corda”. palma da sua mão. Por castigo, era o brinque-
Outros jogos eram ainda praticados pela ju- do colocado no chão e sujeito às “bicadas” dos
ventude madeirense, sobretudo nas tardes de outros peões, podendo ser destruído. Sentir­‑se
domingo, nos adros das igrejas, nas eiras ou “gigante” a passear sobre umas andas, andadei-
mesmo nas estradas, já que o movimento auto- ras ou andilhas era passatempo também muito
móvel era reduzido. Assim, também se faziam do gosto da rapaziada. Estas eram feitas a partir
brincos de cereja, cestinhos de giesta, colares de varas às quais se pregavam transversalmente,
de flores silvestres e barquinhos de casca de pi- a alturas variadas do chão (20 a 30 cm ou mais),
nheiro para viajarem nas levadas, sobretudo nas duas pequenas tábuas, ou mesmo duas latas de
horas de “giro” (forma de regadio madeirense folha vazias, sobre as quais se apoiavam os pés.
que permite que a água de rega passe perio- As mãos, essas, agarravam­‑se às varas e, em equi-
dicamente por vários regantes, os heréus), até líbrio, lá se fazia a caminhada.
B rinquedos e jogos populares ¬ 591

Nas escolas brincava­‑se ainda à “mãe camba- do outro, geralmente em Sábado de Aleluia
da”, à “correia”, à “pilhagem”, ao “lenço”, ao ou Domingo de Páscoa, um saco de amên-
“lume”, à “condessa”, à “mamã dá licença”, às doas, chocolates ou outra guloseima própria
“infusas”, aos “cabritinhos”, à “roda”, às “es- da época.
condidas”, ao “ferrolhinho” e à “1, 2, 3, meia­
Berlinda
‑lua”, entre outros. Ter destreza no atirar e apa-
Os jogadores ficam, geralmente, em fila ou em
nhar do ringue e ser ágil e certeiro no jogo da
roda, sendo que um deles é destacado para
“matança” eram garantia de prestígio entre a
ficar “na berlinda” (em evidência). Outro ele-
criançada.
mento recolhe, em segredo, opiniões acerca
Para saber quem iniciaria os jogos ou esco-
daquele que está na berlinda e, perante todos,
lheria as equipas, “dava­‑se a letra”, usando len-
apresenta­‑as. O jogador que está na berlinda
galengas e cantilenas que eram ditas por um
escolhe uma das opiniões apresentadas e aque-
elemento, ritmadamente, tocando em cada
le que a tiver proferido ocupa o seu lugar.
um dos restantes. O elemento que coincidia
com o terminar da lengalenga era o iniciador Damas de 12
ou responsável pelo desenrolar do jogo. Utilizando um caco de barro, risca­‑se o tabulei-
Vejamos como se executam alguns destes ro da dama no chão. Numa das extremidades
jogos, tendo como referência a revista Folclo- colocam­‑se doze pedras vermelhas (pedaços
re de julho de 1997, que apresenta uma reco- de telha) e, na outra extremidade, doze pedras
lha de jogos populares madeirenses, e o livro pretas (pequenos seixos basálticos), dando­‑se
Brinquedos Tradicionais Cantados, Trava Línguas início ao jogo.
e Lengalengas (BRAZÃO, 1985). Regras: as pedras só podem mover­‑se para a
frente e lateralmente, deslocando­‑se de casa
em casa, não podendo saltar por cima de uma
Jogos casa, exceto para “comer” a pedra adversária;
podem ser “comidas” várias pedras de uma só
Da vassourinha, do pisca­‑pisca, do fogo, do
vez, se entre elas houver um intervalo de uma
anel, do farelo, da corda ou puxar do cabo, do
só casa; quando uma pedra consegue atingir
cabrito, do corre, corre sapatinhos, do inhame,
o ponto A fig. 6 toma o nome de “dama”; a
dos botões, da vela, dos riscos, do rête­‑rête, das
“dama” pode mover­‑se em todas as direções
argolas, passa volante, do relógio, gato pintado,
e saltar quantas casas quiser; caso haja uma
da sapatinha, da barraquinha, das prendas, do
pedra em condições de ser vencida e o jogador
quinau, do cabritinho, a malha, a cabra­‑cega e
não o faça, será penalizado com a perda de três
bicho burro, da manhã, do anelinho, os pauzi-
pedras (assopro); vencerá o jogador que con-
nhos ou espadinha, a bilhardeira, belamente,
seguir vencer as pedras todas ao adversário.
a berlinda, a paredinha, damas de 12 ou 21,
a rolha, a pilhagem, meia­‑lua, do lume, mamã A
dá licença, matança, correia ou café com leite.
Belamente
É um jogo praticado por crianças, jovens ou
adultos durante a quadra da Quaresma. É joga-
do aos pares. Os elementos participantes com-
binam os dias e as horas em que devem “dar
o belamente”. Nos momentos combinados, os
jogadores devem cumprimentar­‑se dizendo a
palavra “belamente”, tentando cada um ser o
primeiro a proferi­‑la e, dessa forma, ganhar A
um ponto. O que ganhar mais pontos recebe Fig. 6 – Damas de 12.
592 ¬ B rinquedos e jogos populares

Damas de 21 Infusas
É uma variante das damas de 12, apresentan- Os jogadores agrupam­‑se em trios e colocam­
do pequenas alterações: utilizam­‑se 21 pedras ‑se lado a lado, atrás de uma linha. Em cada
em vez de 12; considera­‑se dama quando uma trio um elemento coloca­‑se de cócoras, com
pedra alcança um dos pontos A, B, ou C as mãos dadas debaixo das pernas e a boca
cheia de água, imitando uma infusa. Os ou-
tros dois elementos seguram, um de cada lado,
as asas da “infusa”. A um sinal dado tentam
A B C transportá­‑la até um local previamente combi-
nado. Ganham os trios que conseguirem alcan-
çar o local sem que a infusa perca, pelo cami-
nho, a água ou as asas.

Jogo do lume
Desenham­‑se no chão vários círculos, sempre
um a menos em relação ao número de jogado-
res. Dentro de cada círculo coloca­‑se um joga-
dor. O jogador que fica sem círculo dirige­‑se a
um dos outros e pergunta: – A vizinha dá­‑me
lume? Responde­‑lhe o colega, apontando para
outro: – Acolá fumega! Neste momento, todos
os jogadores trocam de lugar, enquanto o joga-
dor que estava de fora tenta ocupar um dos cír-
culos vazios. O elemento que ficar sem círculo
irá pedir lume.

A matança
Dois grupos de jogadores com o mesmo nú-
C B A mero de elementos colocam­‑se frente a fren-
te, separados por uma linha que não pode ser
Fig. 7 – Damas de 21. ultrapassada. Escolhe­‑se a equipa que deverá
iniciar o jogo e todos os elementos se distri-
buem pelos seus campos. O capitão da equipa
Gigante ou reizinho escolhida tenta atingir, com uma bola, um ele-
De um número ilimitado de jogadores escolhe­ mento da equipa adversária.
‑se um para ser o “gigante”. Os restantes esco- Quando algum jogador é atingido, sem ter
lhem, em segredo, um fruto para ser adivinha- conseguido apanhar a bola, fica “morto” e vai
do pelo gigante, segundo as características que colocar­‑se atrás do grupo adversário, que fica
lhe hão de ser fornecidas. O grupo dirige­‑se na posse da bola. O jogo recomeça e cada
ao gigante e um porta­‑voz diz: – Senhor gigan- equipa tenta apanhar a bola para atingir os
te, comemos um fruto do seu quintal. Quando adversários ou passá­‑la, taticamente, aos seus
está verde é… Quando está maduro é… (re- elementos “mortos”, que estão mais próxi-
ferem as respetivas características). O gigante mos do adversário, para que os possam atingir.
tenta adivinhar, tendo direito a três tentativas. Ganha a equipa que primeiro conseguir matar
Se consegue, corre atrás dos companheiros, todos os elementos da equipa adversária ou
que tentam refugiar­‑se num lugar defeso, pre- aquela que conseguir manter o maior núme-
viamente combinado; se algum é apanhado, ro de elementos vivos num período de tempo
passa a ser o gigante. predeterminado.
B rinquedos e jogos populares ¬ 593

A pardinha jogadas e ganha o jogador que primeiro al-


Neste jogo utilizam­‑se moedas ou caricas. cançar seis pontos.
Toma­‑se um ponto como referência, e.g., uma
parede, um degrau, etc. A uma certa distância
marca­‑se o ponto de onde cada jogador, um A pilhagem
por um, lançará as caricas ou moedas. O obje- É tirado à sorte um elemento para “apilhar”
tivo do jogo é atirar a moeda com precisão, de (apanhar). Os jogadores dispersam­‑se pelo es-
modo que fique o mais perto possível da pa- paço e o jogador que “apilha” tenta tocar um
rede. Quem o conseguir marcará um ponto. dos companheiros que, por sua vez, se tentam
Se alguma das moedas atiradas bater noutra esquivar. Se algum jogador é tocado, invertem­
atirada anteriormente, a jogada é considera- ‑se os papéis, passando o apanhador a fugitivo
da nula e deverá ser repetida. Repetem­‑se as e vice­‑versa.

Vejamos agora alguns jogos que integram canções ou cantilenas:

Café com leite

Movimento: as crianças dispõem­‑se em roda, e saltam, alternadamente, para a direita e para


de mãos dadas, e deslocam­‑se durante as duas a esquerda, enquanto cantam “ó i, ó ai”. Logo
quadras em sentido contrário aos ponteiros do de seguida, dão uma volta completa sobre si
relógio. Ao chegar a “ponto real”, param vira- mesmas, dando três pequenos saltos a pés jun-
das para o centro, com as mãos nos quadris, tos enquanto cantam “ó zi­‑gue, zi­‑gue zai”.

Dois cavalinhos
594 ¬ B rinquedos e jogos populares

Movimento: duas crianças “dão a corda”, “1, 2, 3”, para de novo recomeçarem com
enquanto outras duas (o Pedro e o Paulo) a entrada do que saiu. O jogo prossegue
saltam cantando a canção. Previamente já até que algum perca. A canção é também
combinaram quem é o Pedro e quem é o cantada pelas crianças que aguardam a
Paulo e fazem como a letra indica. Cantam sua vez de saltar.

Rainha dos mares

Movimento: duas crianças “dão corda” tal como a própria letra da canção indi-
enquanto uma terceira canta saltando. ca. Canta “1, 2, 3”, para de novo recome-
Ao dizer que deita o lenço à água, atira çar. Só deixará o jogo quando perder, i.e.,
ao chão um lenço, ou qualquer obje- quando se embaraçar na corda ou não
to, substituindo­‑o, e depois recolhe­‑o, conseguir apanhar o lenço.

São Guiné

2. São Guiné, São Guiné 3. São Guiné, São Guiné


Quantas terras tem maré Quantas terras tem maré
Venha o rei de Portugal Venha o rei de Portugal
Que nos faça assentar. Que nos faça já deitar.

Movimento: as crianças fazem uma roda indica, todas as crianças se ajoelham, sen-
simples de mãos dadas, balançando os bra- tam, deitam, de novo se sentam, ajoelham
ços enquanto cantam. Tal como a letra e levantam.
B rinquedos e jogos populares ¬ 595

O meu ganha­‑pão

Movimento: as crianças formam uma roda alternada e desencontradamente, para a


simples de pares que se desloca de mãos direita e para a esquerda, durante os dois
dadas, no sentido contrário aos ponteiros primeiros versos; nos dois últimos versos,
do relógio, durante os dois primeiros ver- agarram­‑se, metendo alternadamente o
sos; largam as mãos durante o terceiro e braço direito e o esquerdo no par e dando
quarto versos, para fazerem com o braço uma volta completa.
do lado de fora o gesto do homem peque-
Ao acabar a volta, o rapaz fica atrás da
nino, e levantam­‑no de seguida, fazendo
rapariga e ambos, virados para o centro e
com os dedos a referência a meio tostão.
de mãos dadas, “espreitam” em sentidos
No primeiro e segundo versos da segun-
contrários durante os dois primeiros ver-
da quadra, param para fazer com o braço
esquerdo e direito, alternadamente, a re- sos, com pequena deslocação lateral, indo
ferência “um vintém... o outro para pão”. a rapariga para a direita e o rapaz para a
Seguem na roda nos dois últimos versos, le- esquerda; ao bisar, em “fadigas”, a rapariga
vantando os braços e abanando as mãos in- fica à esquerda do rapaz. Nos dois últimos
dicando “o resto”. versos, saltitam para o centro com extensão
Ao iniciar­‑se a terceira quadra, os pares anterior alternada das pernas. Ao bisar, a
agarram­‑se pela cintura, inclinando­‑se, rapariga passa para a direita.
596 ¬ B rinquedos e jogos populares

Galinha pintada

2. Já me deram pelo bico 3. Já me deram pelas asas


Uma casa em Machico Um fogareiro de brasas
Com isso não me contento Com isso não me contento
Xô galinha lá p’ra dentro. Xô galinha lá p’ra dentro.

Refrão 4. Já me deram pelo pescoço


Dlim, dlim, dlim, dlão Uma saca de tremoço
Tenho um realejo Com isso não me contento
Que me ganha o queijo Xô galinha lá p’ra dentro.
Tenho um violão
Que me ganha o pão.
5. Ja me deram p’la moela
Uma saca de canela
Com isso não me contento
Xô galinha lá p’ra dentro.

6. Ja me deram pelas patas


Uma saca de batatas
Com isso não me contento
Xô galinha lá p’ra dentro.

Movimento: durante as quadras, as crianças Bibliog.: AMADO, João da Silva, Função Educativa dos Brinquedos Tradicionais
deslocam­‑se em roda, de mãos dadas, saltitan- Populares, Coimbra, ed. do Autor, 1992; BRAZÃO, Maria Lígia Lopes,
Brinquedos Tradicionais Cantados, Lisboa, O Livro, 1985; CABRAL, António,
do alternadamente com o pé esquerdo/direi- Jogos Populares Infantis, Porto, Domingos Barreira, 1991; CAIRES, Gilberta
to. Durante o estribilho, que se canta entre Paula et al. (orgs.), O Brinquedo dos Nossos Avós, catálogo de exposição
patente no Teatro Municipal (festas do fim do ano de 1985), Funchal, DRAC,
cada quadra, param para fazer os gestos sugeri- 1986; SECRETARIA REGIONAL DE AGRICULTURA E PESCAS, Folclore. 24
dos pela letra da canção. Horas a Bailar, Funchal, Secretaria Regional de Agricultura e Pescas, 1997;
SOLE, Maria de Borja, O Jogo Infantil, Lisboa, Instituto de Apoio à
Criança, 1992; TERESA, Maria Francisca, Em Casa da Avó na Ilha da Madeira,
Lisboa, Livraria Clássica, 1922.

Lígia Brazão
B ri ó fitos ¬ 597

Briófitos
As ilhas oceânicas são geralmente pequenos
afloramentos nos oceanos, mas de grande im-
portância para o conhecimento de muitos pro-
cessos evolutivos e ecológicos. Devido ao seu
isolamento geográfico, a evolução de plantas
e de animais com características particulares é
favorecida, compreendendo por isso um ele-
vado número de espécies únicas. Adicional-
mente, os diferentes níveis altitudinais que
ocorrem frequentemente nas ilhas oceânicas
vulcânicas resultam numa menor capacidade
de as espécies poderem aumentar os seus li-
mites de distribuição, tornando­‑as mais vulne-
ráveis a alterações nas condições ambientais,
comparativamente com as áreas continentais.
A biodiversidade é essencial para o funciona-
mento dos ecossistemas, e são vários os estu-
dos que demonstram uma correlação positiva
entre a riqueza de espécies num ecossistema
e a sua produtividade, estabilidade e sustenta-
Fig. 1 – Briófitos Endémicos da Madeira (2001), de Susana
bilidade. Admite­‑se que as alterações climáti-
Fontinha et al.
cas estão já a conduzir à perda diferencial de
populações em zonas marginais quentes da
sua área de distribuição, o que é agravado pela uma área aproximada de 828 km2 e cerca de
alteração e fragmentação dos habitats, contri- 256 km de costa, o que representa 1% da su-
buindo para o empobrecimento dos ecossis- perfície do país. Embora de pequena dimen-
temas. A fragmentação reduz a probabilidade são a uma escala nacional, e ainda menor a
de dispersão e fixação das espécies, bem como nível mundial, a Madeira comtempla uma ele-
o aparecimento ou o reforço de outras popu- vada diversidade biológica. As ilhas da Madei-
lações com diferente variabilidade genética e ra, de Porto Santo, Desertas e Selvagens, bem
capacidade de adaptação a condições ambien- como as restantes ilhas atlânticas que consti-
tais distintas. Na Madeira, é expectável que as tuem o arquipélago das Canárias, incluem­‑se
alterações climáticas afetem os ecossistemas e, no hotspot de biodiversidade do Mediterrâneo,
portanto, a biodiversidade de todos os grupos e a ilha da Madeira salienta­‑se como a segun-
taxonómicos, o que terá impactos ainda pouco da mais rica em termos de biodiversidade para
quantificados e imprevisíveis. briófitos entre os arquipélagos da Macaroné-
A região da Madeira, constituída pelos arqui- sia, sendo apenas suplantada pela ilha de Tene-
pélagos da Madeira e das Selvagens, fica loca- rife, nas Canárias, a qual é consideravelmente
lizada no oceano Atlântico, na intersecção dos maior.
Neotrópicos, Paleotrópicos, América do Norte Os briófitos são plantas simples, mas de gran-
e Europa, sendo composta por vários conjun- de importância ecológica, desempenhando
tos de ilhas vulcânicas. As Selvagens constituem um papel pioneiro nos ecossistemas terrestres.
o território mais meridional de Portugal, e na São muito sensíveis às alterações ambientais,
ilha da Madeira encontramos uma das maiores entre elas a destruição dos habitats, as altera-
elevações do país (Pico Ruivo, 1862 m de altitu- ções climáticas e a poluição, daí serem frequen-
de). Na sua totalidade, estas ilhas apresentam temente utilizados como bioindicadores. São o
598 ¬ B ri ó fitos

segundo maior grupo de plantas terrestres, e região do maciço montanhoso central, quer
também o mais antigo, sendo conhecidos fós- nas zonas costeiras, igualmente com grande
seis desde o Devónico Superior. Estas plantas, diversidade e abundância de espécies, embora
que não apresentam nem verdadeiras raízes, integrando comunidades distintas de briófitos.
nem caules e folhas, nem um verdadeiro siste- Apesar de a flora de briófitos das zonas costei-
ma de vasos condutores, encontram­‑se ampla- ras ser menos abundante e diversa, ela integra
mente distribuídas na Madeira, desde as zonas um elenco de espécies únicas, como endemis-
costeiras expostas, muito próximas do nível do mos e espécies com afinidades com a região
mar, até às regiões montanhosas, apresentan- mediterrânica.
do estratégias e ciclos de vida completamente Foi no final do séc. xviii, em 1787, com Fors-
adaptados às diferentes características de cada ter, e no início do séc. xix, em 1825, com Bow-
um desses habitats. Deste modo, o conhecimen- dich, que se efetuaram as primeiras coleções
to da diversidade, das afinidades biogeográfi- de briófitos na Madeira e as primeiras publica-
cas e do estado de conservação dos briófitos da ções sobre este tema. Porém, foi só no início
Madeira é de elevada importância, podendo do séc. xx que vários botânicos e naturalistas,
vir a ser utilizado para prever as consequências com base em numerosas saídas de campo, in-
das alterações ambientais nos seus ecossiste- tensificaram as publicações acerca da brioflo-
mas. Adicionalmente, aprofundar o conheci- ra da Madeira. Entre eles, são de salientar os
mento sobre este grupo de plantas contribuirá trabalhos de Luisier e de Persson, entre 1907
para o fomento da sua proteção. e 1956, que podemos considerar os verdadei-
Entre os ecossistemas presentes nesta ilha, ros promotores da briologia no arquipélago da
destaca­‑se a floresta laurissilva, considera- Madeira. São de destacar ainda, nesse perío-
da uma das florestas perenes laurifólias mais do, as prospeções de Barreto nas décs. de 30 a
bem preservadas da Macaronésia e onde ocor- 50, as de Een, que colheu principalmente com
re uma grande diversidade de briófitos. Tam- Persson, e ainda as de Nóbrega, que se inicia-
bém se destacam outros ecossistemas, quer na ram na déc. de 40 do mesmo século, em co-
laboração com Persson ou com Luisier, e que
prosseguiram para além desse período.
A primeira listagem dos musgos e hepáticas
da Madeira deve­‑se a Geheeb & Herzog em
1910. São ainda de realçar os trabalhos desen-
volvidos por Hübschmann em 1971, por Sjö-
gren em 1975 e por Eggers em 1982 – que
publicou uma distribuição detalhada dos brió-
fitos em todos os arquipélagos da Macaroné-
sia –, bem como o trabalho de Koppe & Düll
em 1986. Deve­‑se a Nóbrega o desenvolvimen-
to de um intenso trabalho de prospeção, iden-
tificação e colheita de briófitos na Madeira,
que originou as grandes coleções de MADS
(Museu de História Natural do Seminário
do Funchal) e, mais recentemente, de MADJ
(Jardim Botânico da Madeira). Na déc. de 80,
assistiu­‑se a uma notória intensificação dos es-
tudos de briologia na Madeira. Tal incremento
deve­‑se a Cecília Sérgio, entre 1980 e 1995, o
Fig. 2 – Os Briófitos da Laurissilva da Madeira. Guia de
Algumas Espécies. The Bryophytes of Laurisilva. Guide to Some
qual esteve associado a diversas colaborações,
Species (2006), de Susana Fontinha et al. entre elas com a World Wild Fund (WWF) e
B ri ó fitos ¬ 599

com a European Committee for the Conserva- todos os ecossistemas terrestres, naturais e hu-
tion of Bryophytes (ECCB), que culminaram manizados, desde as zonas costeiras mais ári-
com a publicação do primeiro catálogo anota- das, como são as Selvagens, até aos picos das
do dos briófitos da Madeira e de uma listagem montanhas mais altas, na ilha da Madeira. Mas
de espécies para os arquipélagos da Madeira e é na floresta laurissilva do til, principalmente
Selvagens. Desenvolveu­‑se ainda a coleção de entre os 700 e os 1300 m de altitude, na verten-
briófitos da Madeira em LISU (Museu Nacio- te norte da Ilha, que os briófitos existem em
nal de História Natural e da Ciência da Univer- maior abundância, diversidade e incidência de
sidade de Lisboa – Jardim Botânico). Também espécies endémicas. Dados recentes indicam
neste período intensificaram­‑se as prospeções que, na Madeira, 58 % da biodiversidade ter-
na Madeira por botânicos portugueses e es- restre corresponde aos animais, ficando em se-
trangeiros e efetuaram­‑se numerosas novas gundo lugar os fungos e as plantas, que repre-
adições para a flora deste arquipélago, tendo sentam os 42 % restantes. Os briófitos estão,
sido descritas novas espécies para a ciência. por sua vez, representados com cerca de 7 %
Salientam­‑se as investigações desenvolvidas por da biodiversidade total. Com base na revisão
Sim­‑Sim (a partir de 1989) e Fontinha (a par- de material, e com os resultados de colheitas e
tir de 1990), bem como a publicação da flora publicações recentes, é possível indicar, para a
de musgos pleurocárpicos da Madeira por He- Madeira, um total de 538 taxa de briófitos, dos
denäs em 1992. Mais recentemente, e no âmbi- quais 6 são antocerotas, 172 são hepáticas e 360
to de vários projetos de investigação envolven- são musgos. Os taxa endémicos (considerando
do investigadores nacionais da Univ. de Lisboa, os endemismos da Madeira e da Macaronésia)
representam cerca de 7% da totalidade dos
da Univ. da Madeira, do Parque Natural da Ma-
taxa. Os briófitos endémicos da Madeira com-
deira e do Jardim Botânico da Madeira e in-
preendem 11 musgos, um dos quais do género
vestigadores estrangeiros, os estudos acerca
Nobregaea, também endémico e monoespecífi-
da diversidade de briófitos do arquipélago da
co (N. latinervis), e 4 hepáticas, uma delas Ric-
Madeira têm abordado aspetos relacionados
cia atlantica, o único briófito endémico comum
com a origem e afinidades biogeográficas e vi-
a todas as ilhas desta região. É ainda de salien-
sado a caracterização ecológica das diferentes
tar a família Echinodiaceae, a única endémica da
comunidades, abrangendo diferentes ecossis-
Macaronésia e Europa, com uma maior inci-
temas (desde a floresta laurissilva da Madeira
dência de endemismos na Madeira.
até às comunidades ripárias e de zonas costei-
Nas zonas costeiras da Madeira pode ser en-
ras, quer da ilha da Madeira, quer das restantes
contrada uma comunidade de briófitos muito
ilhas do arquipélago). Deste modo, tem sido
típica, que se desenvolve em rochas e solos ex-
possível incrementar e atualizar as coleções de
postos e que contém espécies com afinidades
MADJ e de LISU com a inclusão anual de cen- mediterrânicas e com estratégias de vida muito
tenas de espécimes, permitindo ainda a prepa- particulares. Aí, este tipo de ambiente está res-
ração de duplicados de espécies representati- trito à encosta sul da Ilha e ocupa uma área re-
vas da brioflora madeirense. lativamente pequena. Porto Santo, Desertas e
Selvagens são caracterizados por uma elevada
Riqueza florística ocorrência de ambientes secos e expostos, com
elevada influência oceânica, e os briófitos que
A flora de briófitos da Madeira é muito rica aqui podem ser encontrados apresentam ca-
em número de espécies, tendo em considera- racterísticas morfológicas que correspondem a
ção a dimensão reduzida da região, bem como adaptações que lhes permitem colonizar e so-
os impactos de origem antropogénica que breviver em condições extremas. Desenvolvem
ocorreram desde a colonização. Nesta região, frequentemente ciclos de vida curtos ou efé-
os briófitos estão presentes praticamente em meros de modo a beneficiarem ao máximo das
600 ¬ B ri ó fitos

zonas costeiras) está presentemente bastante


fragmentada, dado que se estabeleceram mui-
tas zonas agrícolas em socalcos e plantações de
espécies exóticas nesta área, onde as condições
climáticas e a orografia são favoráveis. Neste
tipo de habitat podem ser encontradas, com
alguma frequência, mesmo em locais altera-
dos pelo Homem, Bartramia stricta, Dialytrichia
mucronata, Homalothecium sericeum, Kindbergia
praelonga, Oxyrrhynchium hians, Trichostomum
brachydontium e Timmiella barbuloides, entre os
musgos, e Fossombronia angulosa, Frullania azori-
ca, Heteroscyphus denticulatus, Marchantia poly-
morpha, Riccardia chamedryfolia e Targionia hypo-
phylla, entre as hepáticas.
É na Madeira que atualmente pode ser en-
contrada a maior e mais bem preservada man-
cha de floresta laurissilva da Macaronésia. Esta
caracteriza­‑se por uma humidade atmosférica
elevada e constante ao longo do ano, a qual fa-
vorece o desenvolvimento de uma comunidade
de briófitos muito diversificada. Nesta floresta,
os briófitos colonizam diferentes micro­‑habitats
e formam uma componente significativa do
biota, por vezes cobrindo quase 100 % do tron-
co e ramos das árvores ou em taludes húmidos.
Na floresta, os briófitos têm um papel funda-
mental na interceção dos nevoeiros, favorecen-
Fig. 3 – Os Briófitos das Zonas Costeiras da Madeira. Guia
de Algumas Espécies. The Bryophytes of Coastal Area of Madeira. do a transformação das minúsculas gotículas
Guide to Some Species (2011), de Susana Fontinha et al. de água em precipitação útil. Algumas hepá-
ticas, nomeadamente as pertencentes aos gé-
chuvas e se protegerem das elevadas tempera- neros Frullania, Radula e Lejeunea, têm adapta-
turas do período estival. Entre as espécies mais ções para minimizar a perda de água, tais como
frequentes neste tipo de habitat, podemos re- a diferenciação de lobos ventrais em forma de
ferir, para as hepáticas e antocerotas, Anthoce- bolsas, que funcionam como sacos aquíferos.
ros agrestis, Fossombronia caespitiformis, Plagiochas- As hepáticas dos géneros Plagiochila, Scapania e
ma rupestre e Riccia subbifurca e, para os musgos, Porella apresentam o arranjo dos lobos em ca-
Bryum canariense, Ptychomitrium nigrescens, Tor- nais, formando sistemas capilares que servem
tella flavovirens, Tortula muralis e Trichostomum para conduzir a água entre os lobos e entre os
brachydontium. lobos e os caulóides.
As áreas mésicas na zona inferior da Ilha são Entre as espécies dominantes e mais fre-
principalmente caracterizadas por formações quentes da floresta laurissilva do til, destacam­
termófilas e mediterrânicas que constituem ‑se Andoa berthelothiana, Fissidens serrulatus,
a transição para a floresta de laurissilva do til Isothecium prolixum, Leucobryum juniperoideum
(Clethro arboreae­‑Ocoteo foetentis sigmetum). A ve- e Tetrastichium virens, entre os musgos, e Di-
getação natural deste nível altitudinal inter- plophyllum albicans, Drepanolejeunea hamati-
médio (Laurissilva Mediterrânica do Barbusa- folia, Frullania spp. (F. teneriffae, F. tamarisci,
no, entre a floresta laurissilva sensu stricto e as F. microphylla), Harpalejeunea molleri, Lejeunea
B ri ó fitos ¬ 601

spp. (e.g., L. amacerina, L. flava subsp. moorei,


L. eckloniana), Lophocolea bidentata, Metzgeria
furcata, Microlejeunea ulicina, Plagiochila bifaria,
Plagiochila stricta, Porella canariensis, Radula
carringtonii, Radula lindenbergiana e Saccogyna
viticulosa, entre as hepáticas.
As formações de Erica/urzes estão geralmen-
te presentes em encostas bastante inclinadas
e expostas, de solos pobres em nutrientes e
pouco espessos, sendo caracterizadas por va-
riações climáticas acentuadas e por uma maior
continentalidade relativamente à floresta lau-
rissilva s.l. Trata­‑se de uma formação que ocor-
re principalmente acima dos 1400 m e onde as
formações de E. arborea se tornam dominantes. Fig. 4 – Musgos (briófita stricto sensu), hepáticas (briófita
lato sensu), licófitas do género Selaginella, pteridófitas e outras
A composição da flora de briófitos é bastante espécies junto a uma levada, Ribeiro Frio (fotografia
distinta da que se pode observar na floresta de Virgílio Gomes, 2008, e descrição de Paulo Perneta, 2020).
laurissilva do til, sendo caracterizada por for-
mações de Scapanio gracilis­‑Dicranetum scottia-
numerosas ribeiras de regime torrencial com
ni. Assim, além de Scapania gracilis e de Dicra-
um desnível muito elevado entre as zonas de
num canariense, os musgos mais comuns neste
nascente e a zona da foz, originadas maiorita-
tipo de comunidade são Atrichum undulatum,
riamente na zona do planalto superior. Como
Hypnum cupressiforme, Pogonatum aloides, Poly-
resultado do desenvolvimento urbano e do in-
trichum commune, P. juniperinum e Pseudosclero-
cremento das atividades turísticas e práticas
podium purum, e as hepáticas dominantes são
agrícolas, tem­‑se verificado um aumento no
Drepanolejeunea hamatifolia, Frullania teneriffae,
consumo de água, resultando num decréscimo
Lejeunea lamacerina, Microlejeunea ulicina, Plagio-
dos fluxos nos cursos naturais de água, bem
chila exigua e Plagiochila punctacta.
como num declínio na qualidade das águas, a
Os habitats de montanha no arquipélago da
qual poderá ser agravada pelos efeitos das alte-
Madeira estão restritos a uma pequena área
rações climáticas.
da ilha principal, acima dos 1650 m, onde do-
minam a vegetação herbácea e comunidades
de arbustos de pequeno porte, quase com au-
sência total de árvores. Este é provavelmente
um dos habitats mais ameaçados na Madeira,
devido essencialmente a incêndios e derro-
cadas, à presença de espécies invasoras e aos
cenários de alterações climáticas. Os briófi-
tos mais comuns estão restritos a um pequeno
grupo de taxa, em que se salientam Andreaea
spp., Antitrichia curtipendula, Campylopus pilifer,
Grimmia spp., Isothecium prolixum, Ptychomitrium
polyphyllum e Racomitrium spp., entre os mus-
gos, e Frullania tamarisci, Marsupella emarginata
e Scapania compacta, entre as hepáticas.
Os habitats aquáticos, na Madeira, são repre- Fig. 5 – Musgos e líquenes, entre os quais Usnea sp.,
desenvolvendo-se sobre uma lapa numa zona ripária no interior
sentados por cascatas, levadas, paredes verti- da laurissilva madeirense, Ribeiro Frio (fotografia de Virgílio
cais com queda constante de água e, ainda, por Gomes, 2009, e descrição de Paulo Perneta, 2020).
602 ¬ B ri ó fitos

Neste tipo de habitat, podem ser encontra- que a flora de briófitos da Madeira, além de in-
das, com maior frequência e maior área de co- cluir taxa relíquia, paleoendemismos com afi-
bertura, espécies de briófitos como Atrichum nidades com a flora tropical que se extinguiu
androgynum, Brachythecium rivulare, Didymodon na Europa, apresenta ainda afinidades com
insulanus, Fissidens spp. (F. sublineaefolius, F. as- a flora da região mediterrânica e com a flora
plenioides, F. taxifolius var. pallidicaulis), Fontina- africana e neotropical.
lis antipyretica, Hygroamblystegium fluviatile, Lep- Salienta­‑se novamente a floresta laurissilva,
todictyum riparium, Philonotis rigida, Plagiomnium que é caracterizada por albergar uma flora de
undulatum, P. undulatum var. madeirense, Rhyn- origem terciária que desapareceu da região
chostegium riparioides, Rhizomnium punctatum e mediterrânica durante as glaciações do Pleis-
Thamnobryum alopecurum, entre os musgos, tocénico e a desertificação do Norte de África,
e Lunularia cruciata, Scapania undulata e Cono- sendo o habitat por excelência da família Echi-
cephalum conicum, entre as hepáticas. nodiaceae, a única endémica da Europa, com
um único género, Echinodium. De acordo com
o conceito de refúgio, os endemismos da Ma-
Padrões biogeográficos caronésia devem ser considerados paleoende-
Admite­‑se que a Macaronésia representou um mismos, e as espécies de briófitos atuais desta
refúgio para muitas espécies de plantas desde floresta deveriam revelar afinidades biogeográ-
o início da era Cenozoica, a qual compreendeu ficas com a Europa atlântica e com a península
um longo período de glaciações que conduziu Ibérica, dadas a proximidade geográfica e as
a uma elevada redução na área de distribui- condições climáticas atuais.
ção das florestas tropicais e boreotropicais que Durante a última década, os estudos desen-
cobriam grande parte da superfície terrestre. volvidos revelaram uma origem biogeográfica
Os arquipélagos que constituem esta região muito mais diversificada para a brioflora da
são os locais onde sobreviveu a flora subtro- Macaronésia do que a que é explicada ape-
pical que se extinguiu da Europa continen- nas pela hipótese de uma flora relíquia. De
tal, por isso considerada uma flora paleoen- facto, a flora de briófitos da Macaronésia, e
démica. Diversas investigações desenvolvidas em particular da Madeira, tem revelado afini-
ao longo da última década têm demonstrado dades tanto com os neotrópicos e paleotrópi-
cos, como com a Europa. Em alguns casos, os
eventos de dispersão terão sido seguidos por
uma especiação in situ, tendo conduzido a uma
combinação de neoendemismos e de paleoen-
demismos na brioflora da Macaronésia.
Em contraste com os elevados níveis de en-
demismos e o vasto conhecimento acerca dos
processos de radiação que ocorreram nas an-
giospérmicas da Macaronésia, são poucos os
géneros de briófitos que incluem mais de uma
espécie endémica da Macaronésia. Podemos re-
ferir, como exemplo, três géneros monoespecí-
ficos (Andoa, Hedenasiastrum e Nobregaea) e cinco
géneros (Echinodium, Leucodon, Rhynchostegiella,
Tetrastichium e Thamnobryum) com dois a três en-
demismos. Os avanços recentes sobre a origem
e evolução das espécies de briófitos endémi-
Fig. 6 – Filídeos de musgos e hepáticas sobre a rica camada
de húmus da floresta laurissilva, Ribeiro Frio (fotografia
cas têm revelado a ocorrência de taxa com ori-
de Virgílio Gomes, 2008, e descrição de Paulo Perneta, 2020). gem ancestral a par de outros com uma origem
B ri ó fitos ¬ 603

mais recente, os neoendemismos, com origens Conservação


geográficas distintas. Na mesma família podem
ocorrer simultaneamente paleo­‑ e neoendemis- As elevadas alterações na composição da ve-
mos. Por exemplo, com base em dados mole- getação e no uso do solo que ocorreram na
culares, foi possível concluir que o musgo Hede- Madeira nos últimos 40 anos devem­‑se prin-
nasiastrum percurrens pode ser considerado uma cipalmente ao desenvolvimento urbano e tu-
espécie relíquia anterior à formação da Macaro- rístico. De facto, o desenvolvimento turístico
nésia, com cerca de 40 Ma, enquanto Rhynchos- tem resultado numa forte pressão nas áreas
tegiella spp. terá evoluído mais recentemente, há costeiras. Por outro lado, o desenvolvimento
cerca de 8­‑1 Ma. Também para o musgo endé- urbanístico, a agricultura, a exploração dos
mico, Leucodon treleasei, se admite uma origem recursos hídricos e a gestão florestal foram
recente, a partir de antepassados do continen- os principais responsáveis pela introdução e
te norte­‑americano. Pelo contrário, Echinodium expansão de espécies exóticas e invasoras nas
pode representar um grupo muito antigo que zonas de média altitude, conduzindo ao desa-
presentemente inclui apenas três espécies, todas parecimento ou degradação de grandes áreas
elas endémicas da Macaronésia, sendo uma ex- de vegetação natural.
clusiva da Madeira. Por seu lado, tanto Homa- Nas zonas elevadas da Madeira, as ativida-
lothecium mandonii, característico da laurissilva, des pastorícias, principalmente em zonas de
como Alophosia azorica, uma espécie de musgo Ericáceas, resultaram na degradação da vege-
de ocorrência pouco comum em zonas muito tação e dos respetivos habitats em muitos lo-
elevadas da Madeira, mas comum nos Açores, cais. As atividades de origem antropogénica
podem ser considerados exemplos de paleoen- também conduziram a um aumento da ocor-
demismos. De igual modo, para alguns grupos rência de fogos e à fragmentação dos habitats,
de hepáticas frequentes na floresta de laurissil- com um impacto cumulativo na integridade
va, foram observadas afinidades biogeográficas da vegetação natural.
distintas, nomeadamente para o género Plagio- As investigações desenvolvidas durante os
chila, em que se verificou uma forte influência últimos 20 anos permitiram aprofundar o co-
neotropical na brioflora da Madeira, bem como nhecimento acerca da brioflora da Madeira,
para o género Radula, onde ocorrem espécies facilitando assim a aplicação dos critérios da
com afinidades neotropicais e com a Europa
atlântica, para além das espécies endémicas,
como R. jonesii.
Contudo, muito ainda resta por esclarecer
acerca da origem e afinidades da flora de brió-
fitos de alguns ecossistemas, como os ecossis-
temas costeiros e de alta montanha. Nos am-
bientes costeiros existe uma nítida dominância
de espécies de briófitos com afinidades me-
diterrânicas e africanas, e nos habitats de alta
montanha ainda existe um grande desconheci-
mento acerca das afinidades biogeográficas da
brioflora.
Dados recentes, com base em modelos de
nicho ecológico, suportam ainda o papel
de refúgio climático que a Macaronésia tem
desempenhado, mas que se encontra forte-
Fig. 7 – Musgos e líquenes desenvolvendo-se em rocha vulcânica,
mente ameaçado como resultado das altera- em ambiente ripário, Baixa de Santana (fotografia de Santana
ções climáticas em curso. Madeira Biosfera, 2017, e descrição de Paulo Perneta, 2020).
604 ¬ B ri ó fitos

União Internacional para a Conservação da das Desertas, embora ocorra em Porto Santo,
Natureza e dos Recursos Naturais (IUCN) numa zona onde a pressão humana é bastan-
para os arquipélagos da Madeira e das Selva- te mais elevada. Também é considerada Vulne-
gens. A aplicação dos critérios da IUCN, re- rável Riccia atlantica, uma hepática endémica
centemente adaptados para as ilhas, tornou com uma área de distribuição restrita, que se
possível a quantificação de taxa ameaçados desenvolve em solos pobres de zonas expostas,
nestes arquipélagos (24 %) e nos seus diferen- muitas vezes próximos de declives ou escarpas.
tes tipos de habitats. Tal avaliação representa Nas zonas de Laurissilva Mediterrânica do
assim um importante contributo para a identi- Barbusano, presentemente muito alteradas,
ficação dos briófitos e das áreas com priorida- apenas em alguns vales fechados e próximo
de para a conservação, ao mesmo tempo que de linhas de ribeiros podem ainda ser encon-
dá indicação acerca dos habitats e taxa cujo co- trados restos da flora de briófitos caracterís-
nhecimento necessita de ser aprofundado. tica desta formação. Fissidens ovatifolius é um
Na Lista Vermelha dos briófitos dos arqui- dos musgos que se encontra muito ameaçado,
pélagos da Madeira e Selvagens estão assina- principalmente devido às atividades de ori-
lados 127 taxa (cerca de 24 % da brioflora), gem antropogénica, bem como aos desliza-
sendo que, especificamente, 5 (1 %) estão Cri- mentos de terras.
ticamente em Perigo (CR), 22 (4 %) em Peri- Embora a maior e mais bem preservada área
go (EN) e 100 (19 %) são considerados Vul- de laurissilva da Macaronésia possa ser encon-
neráveis (VU). Considerando os endemismos trada na Madeira, existem várias ameaças que
da Madeira e da Macaronésia, 13 estão incluí- devem ser consideradas, entre elas o impacto
dos numa categoria de ameaça (58 %). Um das atividades turísticas e a invasão de espécies
número relativamente elevado de taxa (62) exóticas. Neste habitat, observa­‑se uma elevada
está na categoria dos Quase Ameaçados (NT) ocorrência de espécies endémicas (c. 39 %) e
(12 %), a qual inclui alguns dos taxa endémi- ameaçadas (c. 3 8%), o que por si só revela a
cos. Os taxa não ameaçados ou Pouco Preocu- importância da manutenção da biodiversidade
pantes (LC) representam 49 % da brioflora desta floresta e da sua gestão adequada.
da Madeira (263 briófitos), e 15 % incluem­‑se Aphanolejeunea azorica, Cololejeunea shaeferi,
na categoria Informação Insuficiente (DD). Lejeunea canariensis, Porella inaequalis, Tyliman-
Os dados obtidos indicam duas espécies de thus madeirensis e Echinodium spinosum (um
briófitos endémicas da Madeira como Extin- musgo referido no Anexo II da Diretiva) são
tas (EX) (Fissidens microstictus e Nobregaea lati- exemplos de espécies endémicas ameaçadas,
nervis) e duas espécies como Regionalmente as quais se encontram presentemente restri-
Extintas (RE) (Brachymenium philonotula e Fis- tas às áreas de laurissilva mais bem conserva-
sidens fontanus). das. Também nos bordos da floresta de Eri-
Existe um número significativo de briófitos cáceas é possível encontrar algumas espécies
dos habitats costeiros e de baixa altitude que exclusivas ameaçadas, entre elas a hepática
se encontra ameaçado, como resultado da Plagiochila spinulosa e o musgo Rhytidiadelphus
perda de habitat, devido, principalmente, à ex- loreus. A destruição da vegetação como conse-
pansão urbana e à atividade turística, aliadas quência dos fogos e do pastoreio, principal-
à pequena área deste tipo de habitat. Entre os mente no passado, tem sido a principal causa
taxa ameaçados, salientamos os musgos Acau- de ameaça para este habitat, resultando no
lon muticum e Acaulon triquetrum, ambos com declínio da sua qualidade e das populações
o ciclo de vida anual e uma área de ocorrên- de briófitos, cujo desenvolvimento estava de-
cia restrita à zona da Ponta de São Lourenço. pendente do ensombramento fornecido pela
Por seu lado, Frullania sergiae é uma hepática flora vascular.
endémica da Madeira, com uma área de dis- É nas zonas de grande altitude da Madeira
tribuição muito restrita na zona mais elevada que existem mais espécies ameaçadas (48 %),
B ri ó fitos ¬ 605

o que se deve em parte à pequena área deste ecológicos (e.g., são abrigo para insetos e au-
habitat, mas também à ocorrência, nas últi- xiliam no controlo da erosão). O valor econó-
mas décadas, de fogos e de pastoreio, os quais mico dos briófitos encontra­‑se ainda subesti-
terão contribuído para a destruição signifi- mado, dado que em muitas regiões, incluindo
cativa e para o declínio da área de ocupação a região da Madeira, não são considerados
dos briófitos. Por exemplo, espécies como An- parte essencial e integrante do capital natu-
dreaea flexuosa subsp. luisieri, A. heinemannii ral. Um passo importante tomado em sentido
subsp. heinemannii, A. rupestre, Anacolia webbi e contrário seria a avaliação dos serviços ecoló-
Schistidium strictum existem na Madeira acima gicos providenciada pelos briófitos em dife-
dos 1500 m, apresentando por isso uma área rentes habitats e a definição de áreas impor-
de distribuição limitada. Consequentemen- tantes para a conservação de briófitos com
te, a influência antropogénica nos habitats base nos resultados da Lista Vermelha.
de grande altitude da Madeira, bem como as Será então importante fazer a identifica-
atuais projeções dos efeitos causados pelas al- ção de hotspots para os briófitos, especialmen-
terações climáticas, representa novos desafios te com base nos taxa que constam na Lista
à sobrevivência destas espécies. Vermelha, contribuindo deste modo para a
Salientamos algumas espécies endémicas definição de microrreservas e para ações de
da Madeira, como a Bryoxiphium madeirense, conservação e de gestão especificamente dire-
cujo desenvolvimento está altamente depen- cionadas para a sustentabilidade dessas áreas.
dente da manutenção da qualidade e quan- De acordo com os resultados obtidos na
tidade de água do habitat. Esta espécie de Lista Vermelha, Montado dos Pessegueiros,
musgo possui uma ecologia muito particu- Ponta de São Lourenço, pico do Areeiro, pico
lar, estando restrita a paredes rochosas ver- Ruivo, Fanal, Ribeiro Frio/Fajã da Nogueira
ticais com escorrência de água permanen- e Encumeada/parte superior do Vale de Boa-
te. Em 2010, durante um dos incêndios, um ventura são as áreas mais adequadas para a
fogo atingiu uma das maiores populações de implementação destas medidas.
B. madeirense, a qual ficou reduzida a menos Para uma área pequena como é a Madei-
de metade. Outro exemplo de um endemis- ra, a diversidade da brioflora é de facto ex-
mo madeirense é o musgo Thamnobryum fer- tremamente elevada. Em comparação com o
nandesii, que se desenvolve em habitats per- território continental e com as Canárias, re-
manentemente molhados (rochas e quedas giões igualmente com elevada biodiversidade
de água até cerca de 1000 m, principalmente mas com áreas bastante maiores, a Madeira
na parte central da ilha da Madeira). Por fim, salienta­‑se com um hotspot de diversidade de
lembramos ainda o musgo Rhamphidium pur- briófitos no Atlântico Norte.
puratum, que se encontra presentemente na Apesar do enorme avanço na informação
categoria dos Quase Ameaçados (NT) e que disponível sobre este grupo taxonómico nos
é considerado uma espécie vulnerável nas Ca- arquipélagos da Madeira e das Selvagens
nárias, pelo que as suas populações requerem que se verificou nas últimas décadas, existem
atenção especial. ainda áreas de conhecimento que devem ser
A conservação dos briófitos é sem dúvida um exploradas e que contribuirão seguramente
tema crucial, uma vez que este grupo taxonó- para uma gestão mais eficiente dos recursos
mico tem um papel fundamental no funcio- naturais.
namento dos ecossistemas, estando envolvido
nos ciclos do carbono e de outros nutrientes, Bibliog.: CAPELO, Jorge et al., “Guia da excursão geobotânica dos
V Encontros ALFA 2004 à ilha da Madeira”, Quercetea, vol. 6, 2004, pp. 5­‑45;
nomeadamente na fixação de azoto em as- FONTINHA, Susana et al., Os Briófitos Endémicos da Madeira, Funchal,
sociação com cianobactérias. Podem formar Secretaria Regional do Ambiente e Recursos Naturais, 2001; FONTINHA,
Susana et al., Os Briófitos da Laurissilva da Madeira. Guia de Algumas
extensos tapetes em diversos ecossistemas, Espécies/The Bryophytes of Laurisilva. Guide to Some Species, Lisboa,
influenciando por isso numerosos processos Secretaria Regional do Ambiente e dos Recursos Naturais/
606 ¬ B rito , J o ã o da C osta de

Fundação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, 2006; Id.,


Os Briófitos das Zonas Costeiras da Madeira. Guia de Algumas Espécies.
The Bryophytes of Coastal Area of Madeira. Guide to Some Species, Lisboa,
FCT, 2011; HALLINGBÄCK, Tomas et al., “Guidelines for application of
the revised IUCN threat categories to bryophytes”, Lindbergia, vol. 23,
1998, pp. 6­‑12; HEDENÄS, Lars, “Flora of madeiran Pleurocarpous Mosses
(Isobryales, Hypnobryales, Hookeriales)”, Bryophytorum Bibliothca, vol. 44,
1992, pp. 1­‑165; KÜRSCHNER, Harald et al., “New data on bryophytes
from the ilhas Desertas (Madeira archipelago)”, Nova Hedwigia, vol. 87,
n.os 3­‑4, 2007, pp. 529­‑543; LUÍS, Leena et al., “Bryofloritic evaluation of
the ecological status of Madeiran streams. Towards the implementation
of the european water framework directive in Macaronesia”, Nova
Hedwigia, vol. 96, n.os 1­‑2, 2013, pp. 181­‑204; SÉRGIO, Cecília, e SIM­‑SIM,
Manuela, “Andreaea flexuosa R. Brown bis subsp. luisieri Sérgio et Sim­
‑Sim (Andreaeaceae), a new taxon from Madeira island”, Cryptogamie
Bryologie, vol. 33, n.º 3, 2012, pp. 271­‑277; SÉRGIO, Cecília et al., “Evaluation
of the status of the bryophyte flora of Madeira with reference to endemic
and threatened european species”, Biological Conservation, vol. 59, 1992,
pp. 223­‑231; SÉRGIO, Cecília et al., Annotated Catalogue of Madeiran
Bryophytes, sup. Boletim do Museu Municipal do Funchal, vol. 10, 2006;
SIM­‑SIM, Manuela et al., “A new Frullania species (subg. Frullania) from
Deserta Grande, Madeira archipelago, Frullania sergiae sp. nov”, Nova
Hedwigia, vol. 71, n.os 1­‑2, 2000, pp. 185­‑193; Id., “The Selvagens islands
bryoflora and its relation with islands of the Madeira and Canary islands
archipelagos”, Nova Hedwigia Beiheft, vol. 138, 2010, pp. 187­‑199; SIM­‑SIM,
Manuela et al., “The genus Plagiochila (Dumort.) Dumort. (Plagiochilaceae,
Hepaticophytina) in Madeira archipelago. Molecular relationships,
ecology, and biogeographic affinities”, Nova Hedwigia, vol. 81, n.os 3­‑4, 2005,
pp. 449­‑462; SIM­‑SIM, Manuela et al., “New data on the status of threatened
bryophytes of Madeira”, Journal of Bryology, vol. 30, 2008, pp. 226­‑228;
SIM­‑SIM, Manuela et al., “Epiphytic bryophyte diversity on Madeira island.
Armas da família Brito (ANTT, Casa Real..., liv. 19, fl. 63).
Effects of tree species on bryophyte species richness and composition”,
Bryologist, vol. 114, n.º 1, 2011, pp. 142­‑154; SIM­‑SIM, Manuela et al.,
“Bryophyte conservation on a North Atlantic hotspot. Threatened
bryophytes in Madeira and Selvagens archipelagos (Portugal)”, Systematics A rapidez da tomada de menagem e, ainda
and Biodiversity, vol. 12, n.º 3, 2014, pp. 315­‑330; STECH, Michael et al.,
mais, o curto lapso de tempo entre esta e a
“Explaining the ‘anomalous’ distribution of Echinodium Jur. (Bryopsida).
Independent evolution in Macaronesia and Australasia”, Organisms Diversity posse, no Funchal, quando, por vezes, tal leva-
and Evolution, vol. 8, 2008, pp. 282­‑292. va vários meses, só podem ser entendidos pela
Maria Manuela Sim­‑Sim presença na Madeira do bispo D. Fr. António
Teles da Silva (c. 1620­‑1682), membro da casa
dos condes de Tarouca e com uma muito espe-
Brito, João da Costa de cial audiência na corte de D. Pedro II (1648­
‑1706). O bispo preparava então um pomposo
Os dados familiares disponíveis sobre o sínodo, que esteve para ocorrer no ano ante-
Gov. João da Costa de Brito são os coligidos rior, mas que se adiou para 8 de julho 1680.
pelo genealogista Henrique Henriques de No- D. Fr. António Teles da Silva teria tido um di-
ronha (1667­‑1730), que, por certo, o conheceu ferendo com a Câmara do Funchal pelas pre-
pessoalmente no Funchal. Regista este autor cedências protocolares na procissão de Corpus
que João da Costa de Brito, nascido cerca de Christi: a Câmara entendia que devia ocupar o
1630, havia servido com satisfação nas guerras lugar que se seguia ao do bispo e este conside-
do Brasil e nas da Aclamação, tendo sido go- rava que, logo após a sua pessoa, teria de estar
vernador da praça de Peniche, de onde passou o caudatário, figura que, como o nome indica,
ao governo da Madeira, por patente de 2 de fe- tinha por missão segurar as vestes episcopais,
vereiro de 1680. Tomara menagem em Lisboa, convicção partilhada pelo rei, que apoiou o
a 2 de abril desse ano, e, logo no dia 10 desse bispo. D. Fr. António Teles da Silva faleceu, no
mês, tomou posse no Funchal, na presença do Funchal, a 14 de fevereiro de 1682, tendo sido
anterior governador, Alexandre de Moura de sepultado no pavimento da capela­‑mor da Sé
Albuquerque (c. 1620­‑1681), que completara catedral. Ao seu funeral terá já assistido o go-
o seu triénio. vernador. Após a morte deste prelado, houve
B rito , J o ã o da C osta de ¬ 607

três anos de sé vagante (1682­‑1685), já não Durante o Governo de João da Costa de Brito,
tendo sido este governador a receber o novo ocorreram alguns problemas na capitania de
bispo do Funchal. Machico. Em outubro de 1681, e.g., o juiz ordi-
João da Costa de Brito prestou especial nário de Machico, Filipe Moniz Barreto, reali-
atenção às obras de fortificação do Funchal, zou mais uma diligência na costa norte, então
em especial da muralha da frente mar, que, a vistoria das ribeiras de São Jorge e do Faial,
em novembro de 1681, ainda estavam por para inventariar os bens do concelho. A delibe-
acabar. O Conselho de Guerra, a 24 de no- ração camarária, no entanto, suscitou a revol-
vembro desse ano, apreciou uma carta do go- ta dos moradores do Faial, que, amotinados,
vernador na qual informava faltarem somen- prenderam o juiz e deslocaram­‑se à cidade do
te 29 varas (cerca de 54 m) de muro “para Funchal para o entregarem ao governador,
se fechar a cidade”, os quais julgava pode- como registam as vereações a 6 de dezembro
rem concluir­‑se no verão seguinte, apesar desse ano. Também os cortes de madeira na-
de considerar muito limitada a consignação quela capitania levantaram problemas, envol-
que tinha para a fortificação (ANTT, Conse- vendo o ouvidor da capitania e o provedor da
lho de Guerra, Consultas, cx. 11, mç. 40A, Fazenda, tendo o assunto sido presente ao go-
n.n.). A obra, no entanto, tardou ainda mais vernador. Nessa sequência, o provedor da Fa-
de 10 anos, tendo o Gov. Lourenço de Alma- zenda, Ambrósio Vieira de Andrade, apresen-
da (1645­‑1729) recebido ordem, no início de tou as ordens régias a esse respeito, enviadas
abril de 1688, para dar continuidade à mura- ao príncipe regente a 25 de setembro de 1680.
lha, “a qual o governador João da Costa de A resposta, dada a 20 de fevereiro de 1682, de-
Brito deixou quase em defesa” (ANTT, Mi- terminava que as devassas sobre os cortes de
nistério do Reino, Decretos, mç. 8, n.º 13). madeira e esmoutadas pertenciam à jurisdição
Seria aquele governador a encerrar, em 1689, do provedor, devendo o ouvidor suspender a
esse troço com o portão dos Varadouros. sua atuação nessa área.
João da Costa de Brito deve ter percor- Este e outros assuntos levaram ao envio de
rido, pelo menos, a costa sul da Madeira, uma alçada ao Funchal, com o desembarga-
interessando­‑se pela sua defesa, pois o pro- dor Domingos de Matos Cerveira, em janei-
vimento para vigia e facheiro de António da ro de 1683, especialmente para sindicar os
Gama foi assinado em Machico, a 5 de agos- assuntos da Provedoria da Fazenda, o que
to de 1681. Refere o provimento que, como levou, depois, à deslocação do provedor a Lis-
do pico do Facho, em Machico, se descobria boa para explicar a situação, mas pouco se
o mar e se viam “as partes mais solícitas e de teria apurado contra o mesmo, pois voltou ao
investidas” dos mouros, designação dos piratas seu lugar. Cerca de um ano depois, a 29 de
das costas de Argel e, nessa época, também de maio de 1684, João da Costa de Brito entre-
Marrocos, especialmente da área de Salé, era o gou o bastão ao novo governador, Pedro de
sítio ideal para se dar sinal de “prevenção das Lima Brandão (c. 1640­‑1718), e, passando a
partes mais retiradas do povoado” (ANTT, Pro- Lisboa, faleceu, cerca de 1700, no Conselho
vedoria…, liv. 966, fl. 213). Este governador da Junta do Comércio.
não terá delegado parte das funções militares
no Ten.­‑Gen. Inácio da Câmara Leme (1630­ Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal de Machico, Vereações, liv. 107;
Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombo 7, 1672­‑1720; ANTT,
‑1694), assunto que percorreu todos esses anos, Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 19, João do Cró, Livro do Armeiro­‑Mor, 1509,
recebendo ordem, de 30 de abril de 1683, com fl. 63; Ibid., Conselho de Guerra, Consultas, cx. 11, mç. 40A, n.n.; Ibid., Ministério
do Reino, Decretos, mç. 8; Ibid., Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal,
várias considerações sobre a relação que deve- livs. 396, 966; impressa: NORONHA, Henrique Henriques de, Memórias
ria ter com o mesmo e com a recomendação Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal na
Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1996; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na
de que colocasse à sua porta a guarda a que Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.
tinha direito, mas que lhe era recusada sob vá-
rios pretextos. Rui Carita
608 ¬ B rito , Óscar S p í nola de

Brito, Óscar Spínola de municipal de saúde. Foi ainda perito médico


do Tribunal Judicial da Comarca do Funchal,
Nasceu a 21 de agosto de 1909, na freguesia de 1958 a 1965, pediatra da ex­‑Caixa de Pre-
da Sé, Funchal, filho de Manuel Alexandre vidência do Distrito Autónomo do Funchal,
de Brito e de D. Amélia da Conceição. Em desde o início da sua criação, em 1945, diri-
julho de 1941, casou com D. Cecília Maria giu a consulta de Tuberculose Infantil do Dis-
Lucas Rodrigues Spínola de Brito, tendo tido pensário do Instituto Nacional de Assistência
dois filhos: Maria Manuela Rodrigues Spíno- aos Tuberculosos, foi pediatra do Preventó-
la de Brito e Teófilo Manuel Rodrigues Spí- rio de S.ta Isabel, diretor clínico do Hospital
nola de Brito. Pediátrico da Fundação Cecília Zino e inte-
Cumpriu o ensino liceal no, então, Liceu grou o corpo clínico de diversas instituições
Jaime Moniz, no Funchal. No final do curso madeirenses, tendo colaborado muito ativa-
liceal, ingressou no curso de Medicina, na Fa- mente em programas de proteção materno­
culdade de Medicina da Univ. de Coimbra, ‑infantil da Madeira e com o Centro de Edu-
tendo depois transitado para a Faculdade de cação Especial.
Medicina da Univ. de Lisboa, onde se licen- Desenvolveu, além do seu desempenho pro-
ciou a 15 de novembro de 1935. Especializou­ fissional enquanto médico pediatra, uma con-
‑se em Pediatria e em Medicina Sanitária. siderável e muito apreciada intervenção cívica
Seguiu toda a sua carreira de médico na Ma- na sociedade madeirense, visível, entre outras
deira, tendo exercido múltiplas funções. Em participações, nos órgãos de comunicação so-
1940, foi nomeado médico municipal do con- cial da região. Notabilizando­‑se pelo conteúdo
celho do Funchal, tendo, a partir dessa data, claro e pela abrangência das suas intervenções,
dirigido a consulta de Pediatria no serviço o Dr. Óscar Spínola de Brito não só revelou um
sentido pedagógico da prática da medicina,
como também, e dada a amplitude dos seus in-
teresses e da sua cultura, se notabilizou como
um sabedor e um homem social.
Como forma de reconhecimento público da
RAM pela sua dedicação e mérito profissional,
a 13 de dezembro de 1985 foi inaugurado o
Centro de Saúde Dr. Óscar Spínola de Brito,
que tem oferecido, ao longo da sua existência,
um serviço de referência na área da saúde fa-
miliar. Em 1995, o Dr. Óscar Spínola de Brito
foi agraciado pelo Presidente da República
com o título de comendador da Ordem do Mé-
rito, vendo, desta forma, a sua ação tornar­‑se
um exemplo, de modo particular para a RAM,
e de modo geral para Portugal.
Faleceu a 23 de fevereiro de 1999.

Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e


XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; PERDIGÃO, Carlos, “Centro de
Saúde Dr. Óscar de Brito, 10 anos de medicina familiar”, Islenha Médica, n.º 1,
jul.­‑set. 1995, pp. 18­‑20.

Fontes orais: BARRETO, Manuela Silva, entrevistada por Carla Ferreira


[comunicação pessoal]; BRITO, Teófilo de, entrevistado por Carla Ferreira
Óscar Spínola de Brito condecorado pelo Presidente [comunicação pessoal].
da República, 1995 (fotografia cedida pelo seu filho,
Teófilo Spínola de Brito). Carla Ferreira
B rjullov , K arl ¬ 609

Brjullov, Karl
Karl Pawlowitsch Brjullov nasceu em São Peters­
burgo, a 12 de dezembro de 1799, sendo filho
do pintor e decorador Pavel Bryullov, de ori-
gem francesa, ligado à Academia Real de Belas-
-Artes, onde seus filhos Karl e Alexander (1798­
‑1877) estudaram entre 1809 e 1821. Os dois
irmãos foram depois bolseiros em Roma, entre
1823 e 1835, viajando por quase toda a Itália
e regressando ambos à Rússia, onde entraram
para professores da Academia Imperial das
Artes. Alexander havia­‑se dedicado à arquite-
tura, mas o protagonismo era então de Karl,
como pintor, embora também fosse dado como
arquiteto, especialmente após o seu trabalho
final e monumental como bolseiro, O Último
Dia de Pompeia (1832­‑1833), que lhe granjeou
renome internacional, tendo sido exposto em Fig. 1 – Autorretrato de Karl Brjullov, 1838
Roma e Milão. Karl Brjullov, como também (Galeria Tretyakov de Moscovo).
surge mencionado, teria sido o primeiro pin-
tor russo a ter reconhecimento internacional, quadro de apreciáveis dimensões e ainda pin-
marcando a passagem do classicismo para o tado em Itália.
romantismo. Tornou­‑se assim num dos artistas Karl Brjullov teria alguns contactos com a
preferidos da alta nobreza russa, executando família imperial russa, tendo retratado a grã­
uma série de retratos já decididamente român- ‑duquesa em 1837, embora o retrato tivesse fi-
ticos, mas de grande espontaneidade e perspi- cado por um esboço a óleo, e tendo­‑lhe sido
cácia psicológica, especialmente em aguarela, encomendada pelo czar a decoração da cúpula
também a óleo e em grande formato.
A presidência da Academia Real, entretanto,
foi entregue ao príncipe Maximiliano de Leu-
chtenberg (1817­‑1852), que em julho de 1839
se tinha casado com a grã­‑duquesa Maria Nico-
laevna da Rússia (1819­‑1876), filha do Impera-
dor Nicolau I. Entre os irmãos do príncipe Ma-
ximiliano, estavam a ex­‑Imperatriz D. Amélia
de Leuchtenberg (1812­‑1873), casada em agos-
to de 1829 com o Imperador D. Pedro I do Bra-
sil, a Rainha Josefina de Leuchtenberg (1807­
‑1876), casada com o Rei Óscar I da Suécia, e o
príncipe Augusto de Beauharnais (1810­‑1835),
que se casara com a Rainha D. Maria II, na Sé
de Lisboa, a 26 de janeiro de 1835, mas que
havia falecido inopinadamente, a 28 de março
seguinte, com uma angina. Terá sido, em prin-
cípio, no contexto das ligações familiares do
príncipe Maximiliano que Brjullov pintou, Fig. 2 – Vista da fortaleza do Pico, Karl Brjullov, 1850
em 1834, a Morte de Inês de Castro, igualmente (Galeria Tretyakov de Moscovo).
610 ¬ B rjullov , K arl

da Catedral de S.to Isaac, em São Petersburgo, outro trabalho onde, para além do duque, fi-
obra que não acabou. Atacado, entretanto, guram o príncipe e cientista Pyotr Romanovich
por tuberculose, Karl foi aconselhado a pas- Bagration (1818­‑1876), a princesa Anna Alek-
sar algum tempo na Madeira, para onde partiu seyevna Martynova Bagration (1824­‑1885), sua
em meados de 1849, aí se demorando cerca de mulher, o casal Eugène Mussart e Ye. I. Mus-
nove meses, tendo sido assistido pelo Dr. Antó- sart, M. I. Zheleznov, N. A. Lukashevich, o mé-
nio Alves da Silva (1822­‑1854), médico que se dico Alves da Silva e o próprio Karl Brjullov,
formara na Univ. de Coimbra (interrompera como grupo de turistas em passeio pela Madei-
o curso em 1846, dadas as convulsões políticas ra, utilizando um carro de bois e uma rede, e
desse ano, vindo a apresentar o trabalho final encontrando­‑se ainda acompanhantes a cavalo.
na Univ. de Paris, em dezembro de 1848). Alves “Sua alteza sereníssima”, o duque de Leuch-
da Silva deve ter entrado pouco depois para tenberg, tinha chegado à Madeira na fragata
professor da Escola Médico­‑cirúrgica do Fun- russa Kamtchatka, a 23 de agosto de 1849, mas
chal, tendo tido nomeação de lente e demons- esta ficou de quarentena e os passageiros só de-
trador de Anatomia por dec. de 11 de março sembarcaram no dia 27. O príncipe instalou­‑se
de 1850. na Qt. das Angústias, depois Qt. Vigia, com a sua
Não sabemos se Karl Brjullov chegou sozinho comitiva, constituída pelo príncipe Pyotr Bra-
à Madeira, mas durante os cerca de nove meses gation, na correspondência dado como Pierre
que aí passou continuou a pintar, inclusivamen- Bagratin, o conde de Ojarowski, o Cap. Pau-
te obras de alguma dimensão, assim como tra- chine, o secretário, Eugène Mussar, o médico,
balhos incontornáveis no seu legado artístico. S. Fisher, e 15 criados (SILVA e MENESES, II,
Neste grupo de obras, encontra­‑se o retrato do 1998, 234­‑235). O príncipe foi visita habitual
duque Leuchtenberg, o mais divulgado desta do Gov. José Silvestre Ribeiro (1807­‑1891) em
alta figura da aristocracia europeia, anos de- S. Lourenço, sendo, inclusivamente, padrinho
pois reproduzido em gravura, assim como um do primeiro filho do Cap. Eng.º António Pedro

Fig. 3 – Turistas russos em carro de bois e rede, Karl Brjullov, 1850 (coleção particular).
B rjullov , K arl ¬ 611

de Azevedo (1812­‑1889). O príncipe visitou os


pontos de maior interesse da Ilha, como as fon-
tes e levada do Rabaçal, onde foi recebido por
Tibério Augusto Blanc (c. 1810­‑1875), vários
concelhos e, inclusivamente, a ilha do Porto
Santo, assim como as Canárias, sempre apoia-
do pelo Cons. José Silvestre Ribeiro, que foi es-
crevendo às várias autoridades, inclusivamente
a José Crosa, cônsul português em Canárias.
O príncipe saiu da Madeira na fragata russa
Pallas, a 23 de abril de 1850, na qual visitara,
nos dois meses anteriores, o Porto Santo e as
Canárias. Desconhecemos se na mesma fragata
também seguia Karl Brjullov, que saiu da Ma-
deira nesse mês de abril, ou no mês seguinte,
embora depois seguisse para Itália, enquanto o
duque de Leuchtenberg havia seguido para São
Petersburgo. Karl veio a falecer em Manziana, Fig. 4 – Apontamento aguarelado da fortaleza do Pico,
Karl Brjullov, 1850 (coleção particular).
nos arredores de Roma, a 23 de julho de 1852,
e o duque, igualmente tuberculoso, razão por
da Madeira e se encontra no Museu Quinta das
que também se deslocara à Madeira, em São
Cruzes. Alves da Silva morreu muito novo, aos
Petersburgo, a 1 de novembro do mesmo ano.
31 anos, também vítima de uma tuberculose
Da estadia de Karl Brjullov na Madeira fica-
pulmonar, muito provavelmente contaminado
ram mais trabalhos, como uma pequena agua-
por um dos seus doentes.
rela da fortaleza do Pico, apanhando as mar-
A memória dos nove meses do pintor russo
gens da ribeira de São João, com uma senhora
na Madeira, e da importante comunidade russa
em palanquim, um mendigo, uma junta de
que passou esses meses no Funchal, e que ele
bois transportando pipas, etc. A mais interes-
pintou, representativa da época do turismo te-
sante obra, no entanto, é um pequeno óleo
rapêutico e do romantismo, foi enaltecida em
também da fortaleza do Pico, em violentos tons
conferências realizadas no Funchal, com a pre-
de vermelho, ultrapassando assim a época do
sença de especialistas nacionais e russos, in-
romantismo e apontando para épocas seguin-
cluindo o embaixador russo em Portugal, Oleg
tes, mais expressionistas. Este óleo foi oferecido
Belous, culminando na inauguração, a 20 de se-
pelo autor ao seu médico do Funchal, passando
tembro de 2013, de um busto deste pintor, da
depois a João dos Lemos Gomes (1906­‑1996).
autoria de Luís Paixão, no jardim municipal da
Localizado pelos especialistas da galeria esta-
cidade do Funchal.
tal Tretyakov, de Moscovo, depositária de parte
da obra deste artista, veio a ser adquirido pela Bibliog.: manuscrita: ABM, Alfândega do Funchal, vol. 677; Ibid., Governo
Civil, vols. 7, 93 e 97; impressa: “Brjullov, Karl Pavlovic”, in Enciclopedia Italiana
mesma em 2000. Na Madeira, realizou ainda Treccani, vol. i, apêndice, Roma, Istituto Giovanni Trecani, 1938; CARITA,
os retratos a cavalo do secretário Eugène Mus- Rui, História da Madeira, vol. vii, Funchal, Secretaria Regional da Educação/
Universidade da Madeira, 2008; CLODE, Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de
sar e de sua esposa, dos seus mais conhecidos Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983;
e reproduzidos trabalhos, tal como o pequeno LEONTYEVA, Galina, Karl Briullov. The Painter of Russian Romanticism (Great
Painters), London, Parkstone Press Ltd., 1997; SILVA, Fernando Augusto da, e
retrato da princesa Bagration e o de M. Abaz,
MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC,
provavelmente um viajante russo que se encon- 1998; digital: CAZZOLA, Piero, “Karl Brjullov, eccelso pittore russo a Roma
trava nessa altura na Ilha. Sabe-se que havia nell’Ottocento”, Strenna dei Romanisti, 2003: http://archive.is/8xwKH (acedido a
13 jun. 2018); SILVA, Rui Gonçalves da, “Karl Briullov”, Rui Gonçalves da Silva, 1
pintado também o retrato do seu médico pes- set. 2013: http://www.ruigoncalvessilva.com/arte/­‑karl­‑briullov­‑­‑­‑pintor­‑russo­
soal, o Dr. António Alves da Silva, o qual foi, ‑na­‑madeira (acedido a 10 abr. 2015).

entretanto, adquirido pela Região Autónoma Rui Carita


612 ¬ B ruxaria

Bruxaria de animais, em tributo ao que mais importa-


va – a carne dos grandes herbívoros.
A prática de convocar o além para dar sentido À medida que a sedentarização se instalava,
à vida quotidiana das gentes, e de remeter para estes primitivos intercessores foram evoluin-
esse mesmo além os pedidos de uma humani- do para uma classe social cada vez mais pode-
dade que, entregue a si própria, sentia que não rosa e organizada, o clero, que monopolizava
se bastava, é tão antiga quanto a própria huma- a relação com o divino, com esse mundo do
nidade. Em tempos de recoletores/caçadores, sobrenatural cujas boas graças era preciso, in-
do seio de tribos que dependiam grandemen- cessantemente, convocar. A chefiar a plêiade
te da caça para a sobrevivência, a necessida- de deuses responsáveis pelos mais diversos as-
de de apelar por bons resultados justificou a petos da vida da humanidade, surge, numa
emergência de personagens a quem se atribuía fase inicial, a figura da grande deusa – a deusa
a função da mediação entre este mundo e o mãe, que zela pela fertilidade dos solos e a gra-
outro, as quais foram instituindo rituais de in- videz das mulheres, dois fenómenos centrais
vocação das forças sobrenaturais (os deuses), para a reprodução das sociedades. A acompa-
paramentadas com chifres e vestidas de peles nhar o processo em que o homem – ser mas-
culino – vai encontrando estratégias para re-
forçar o seu próprio poder perante esse mal
compreendido universo feminino, o reino dos
Céus vai, também, alterando a sua configu-
ração, e a figura da deusa mãe empalidece a
favor das famílias celestiais: o pai, a mãe e o
filho, que lideram panteões de deuses e deusas
mais ou menos vastos.
O aparecimento do cristianismo, religião
que sempre se afirmou monoteísta, operou­‑se
num contexto que o forçou a competir com os
cultos já instalados, obrigando­‑o a adotar algu-
mas das crenças em vigor, designadamente a
que implicava a valorização das figuras da mãe
e do filho – a Virgem e Jesus –, embora, em si-
multâneo, fosse lutando por vencer outras prá-
ticas coevas que mantinham universos politeís-
tas e pontuados de cerimónias estranhas aos
olhos da sua doutrina. De entre as estratégias
escolhidas para o combate às práticas conde-
nadas, podem contar­‑se a da demonização dos
primitivos sacerdotes, cujos atributos – chifres
e pés de cabra – passam a caracterizar o Diabo
cristão, e a da marginalização de uma figura
feminina demasiado poderosa, capaz de curar,
mas também de prejudicar, e até de matar: a
bruxa, ou feiticeira.
Porque os primeiros séculos foram de afir-
mação, de evangelização e de cativação de se-
guidores, o cristianismo primitivo não podia
Fig. 1 – Cartaz do seminário Aqui Há Madeira – O Diabo,
as Bruxas e as Superstições Madeirenses (Museu de Imprensa,
ser particularmente rigoroso com os que se
31 de janeiro de 2020). dedicavam a práticas menos ortodoxas, e foi,
B ruxaria ¬ 613

portanto, tolerando a coexistência de invoca-


ções marginais, transformadas em supersti-
ções, que povoavam o imaginário dos povos
pagãos europeus – celtas, eslavos, germânicos
e bálticos. Apesar disso, a existência de perso-
nagens, sobretudo mulheres, que se arroga-
vam poderes de curar, interagir com os mor-
tos, adivinhar, promover amores ou desamores
e transformar pessoas em animais foi sempre
olhada com desconfiança, quer pela Bíblia,
que já condenava as incantationes, quer pelos
romanos, que também atacavam a incantatrix, e
esse estado de espírito em relação a tais figuras
será transportado para realidades subsequen-
tes, nas quais se verão apelidadas de bruxas ou
de feiticeiras, tornando­‑se objeto de punição
mais ou menos violenta.
A tolerância que caracterizou os primeiros
tempos do cristianismo foi­‑se, porém, desva-
necendo com a maior aceitação do credo e
com o surgimento de movimentos dissidentes
no seu seio, os quais obrigavam a um maior
rigor na observação das práticas. Assim, e
para o caso de Portugal, os primeiros sinais
desta mudança de atitude entreveem­‑se nas
conclusões de um sínodo realizado em Braga
em 1281, onde se condena sem rebuços a prá- Fig. 2 – Marta Diabo, aguarela de António Martins
(de Almeida), Funchal, c. 1700, enviada como denúncia
tica de artes mágicas ou adivinhações. Este à Inquisição de Lisboa a 10 de agosto de 1701 (ANTT, Tribunal
cunho proibitivo continua plasmado nos tex- do Santo Ofício..., liv. 922, fl. 735). Fotografia de Rita Rodrigues.
tos de diversas constituições sinodais, entre
as quais se contam as primeiras produzidas excomunhão, prisão e exposição pública à
no bispado do Funchal, publicadas em 1585. porta da igreja, mecanismo que, por via do
Afirma, então, esse documento, no seu título exemplo, se pretendia fortemente dissuasor.
26, dedicado aos “feiticeiros e benzedeiros”, A vigilância a exercer sobre este tipo de de-
que “mui abominável é a reprovável arte de litos estava confiada aos párocos das fregue-
feitiçaria, adivinhações e agouros de que al- sias, que, se lhes não conseguissem pôr cobro,
gumas pessoas em grande ofensa de Nosso Se- os deveriam reportar ao bispo, a fim de não
nhor usam em diversas maneiras, usurpando passarem impunes. Sede privilegiada de pros-
para si o que somente é de Deus” (BARRE- peção destas culpas eram as visitações, que se
TO, 1585, 154­‑155), considerando­‑se aqui in- verificavam todos os anos, ou em anos alter-
fringido o primeiro mandamento que postula nados, às paróquias, as quais eram precedidas
o amor a Deus sobre todas as coisas. Proíbe­ da leitura de um edital no qual se sumaria-
‑se, ainda, a todos, o uso de pedras de ara e vam as culpas a averiguar e que trazia elenca-
corporais – ingredientes comuns da supersti- das, em lugar de destaque, as culpas que di-
ção –, bem como a invocação de espíritos dia- ziam respeito às superstições e práticas afins.
bólicos e o fazerem­‑se “encantadores, adivi- Assim, logo no início, rezava o edital que se
nhadores ou agoureiros” (Id., Ibid.), sob pena devia denunciar a existência de qualquer pes-
de serem multados pecuniariamente, ou com soa que “tenha pacto com o demónio ou que
614 ¬ B ruxaria

use de invocação dele, ou de arte nigromân- Aquilo que aconteceu, e que de tal modo mar-
tica, ou de qualquer superstição ou seja para cou o porvir que os naturais do Porto Santo
adivinhar ou desligar ou para quaisquer efei- ficaram conhecidos por “profetas”, foi que um
tos, por feiticeira ou bruxa, ou para as sobre- tal Fernão Nunes e a sua sobrinha entrevada,
ditas coisas de favor ou ajuda” (TRINDADE, Filipa Nunes, conseguiram, em 1532, “enga-
1999, 200). nados pelo espírito mau”, convencer os habi-
Lido todo o documento, dava­‑se, então, iní- tantes da ilha de que eram dotados de poderes
cio à parte espiritual da visita, a chamada “de- sobrenaturais que lhes permitiam prever o fu-
vassa”, de que ficaram registos que permitem turo e adivinhar os pecados de cada um (FRU-
averiguar a incidência deste tipo de práticas TUOSO, 2008, 55­‑61). Crédulos, população e
no arquipélago. Dessa prospeção se conclui clero entraram em pânico, desdobrando­‑se em
que, neste âmbito, o comportamento mais fre- rezas e orações para esconjurar o demónio que
quente era o que dizia respeito às curas supers- agia por intermédio do casal possuído. Esta en-
ticiosas, consideradas condenáveis na medida cenação apenas se desvendou por intervenção
em que implicavam o recurso a orações pro- do Corr. João Afonseca, que, chamado à pres-
nunciadas em circunstâncias de tempo, lugar e sa da Madeira, se deslocou à ilha e prendeu os
postura não sancionadas pela Igreja. De entre vigaristas, os quais foram expiar as culpas para
as maleitas que se procuravam curar, avultam, a porta da Sé de Évora, onde ficaram expostos
a larga distância das demais, as que derivavam “em uma escada, cada um com sua carocha de
do mau­‑olhado, seguidas do mal de aberto, papel com letras que diziam ‘Profetas do Porto
patologia já do foro da luxação, ou da rotura Santo’ […] ela vestida e ele nu da cintura para
muscular. Os curandeiros, ou, mais frequente- cima” (Id., Ibid., 61).
mente, as curandeiras, eram pessoas que não A persistência destes comportamentos pode
exigiam pagamento pelo serviço prestado, o também testemunhar­‑se a partir das denúncias
qual envolvia procedimentos que perduraram feitas ao Tribunal do Santo Ofício, nas duas vi-
e que passavam pelo uso de azeite e água, ou sitas que o mesmo realizou à Madeira, em 1591
pelo mais analógico método de coser um nove- e 1619, nas quais foram arrolados por práticas
lo de linha por nove vezes, o que supostamen- de feitiçaria 7 e 13 casos, respetivamente. Do
te induziria a reparação do músculo afetado. conjunto das denúncias e das condenações efe-
Outros pecados que também se encontram re- tuadas, cumpre sublinhar que todas as implica-
ferenciados nas visitações, embora de forma das são mulheres, o que vem claramente refor-
muito mais esparsa, reportam a ações de feitiça- çar a dominância do feminino neste universo
ria ou bruxaria, aqui entendidas como modos desviante. São, com efeito, sempre mulheres
de convocar o além para provocar o bem do as que praticam, beneficiam e encomendam
cliente ou o mal de alguém que se quer pre- os serviços, que nestes casos específicos se cen-
judicar. Aquilo que distingue um curandeiro tram na coscinomância – a adivinhação, atra-
de um bruxo ou feiticeiro é o pagamento que vés do uso de uma peneira –, na localização de
os últimos exigem e a possibilidade de as in- pessoas ausentes e na previsão do futuro.
vocações realizadas se destinarem a provocar São, também, femininas as figuras que po-
prejuízo a terceiros, situação que nunca se põe voam o imaginário insular de bruxas que se
quando se consulta um curandeiro. colocam às costas de homens incautos que se
Apesar do empenho, continuado e persisten- deixam teletransportar, levando­‑as onde pre-
te, desde sempre colocado pela Igreja na re- tendem, e regressam sem saber como, ou as
pressão destes comportamentos, a verdade é que se recusam a morrer sem ter passado o
que eles se identificam desde muito cedo na “novelo”, entidade indefinida, mas que corpo-
história do povo madeirense, sendo, talvez, riza os saberes e os poderes daquela que está
o caso dos “profetas do Porto Santo” um dos de partida. Desse mesmo imaginário fazem,
mais remotos exemplos que se podem arrolar. ainda, parte histórias de galinhas e cabras que
B uch , C hristian L eopold von ¬ 615

se transformam em mulheres, de luzes que se


entreveem ao longe e se presume serem bru-
xas que se vão reunir com o Diabo, de furnas
onde habitam demónios, de roupas cortadas
por ação maléficas e de crianças por batizar
cujo sangue foi sugado.
As crenças ancestrais em feiticeiras, curan-
deiros e demónios mantinham­‑se ainda no co-
meço do séc. xxi, e a prová­‑lo estão publica-
ções que ainda elencam as orações que se hão
de pronunciar para curar patologias diversas,
de que são exemplos as publicadas na revista
Xarabanda (n.os 1 e 2) ou as que constam de
uma obra de 2013 que, ao tratar de Plantas e
Seus Usos Tradicionais, compendia, num dos
seus capítulos, um conjunto de práticas tera-
pêuticas alternativas, bem como as rezas que
se hão­de dizer para lhes potenciar os efeitos.

Bibliog.: manuscrita: ANTT, Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,


liv. 922, fl. 735; impressa: BARRETO, Jerónimo, Constituições Synodaes do
Bispado do Funchal, Feitas e Ordenadas por D. Jeronymo Barreto, Bispo do Dito
Bispado, Lisboa, António Ribeiro Impressor, 1585; FREITAS, Alfredo Vieira de,
Era Uma Vez…na Madeira. Lendas, Contos e Tradições da Nossa Terra, 2.ª ed.,
Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1984; FREITAS, Fátima, e
MATEUS, Graça, Plantas e Seus Usos Tradicionais, Funchal, Serviço do Parque
Natural da Madeira, 2013; MOTA, Conceição, “Rezas tradicionais”, Xarabanda,
n.º 1, maio 1992, pp. 17­‑21; Id., “Rezas tradicionais”, Xarabanda, n.º 2, nov.
1992, pp. 43­‑45; PAIVA, José Pedro, Bruxaria e Superstição num País sem Caça
às Bruxas (1600­‑1774), 2.ª ed., Lisboa, Notícias Editorial, 2002; TRINDADE, Ana Christian Leopold von Buch, gravura de c. 1860
Cristina Machado, A Moral e o Pecado Público na Madeira na Segunda Metade (BNF, SG portrait 10059).
do Século XVIII, Funchal, CEHA, 1999.

Cristina Trindade No campo da mineralogia, conta­‑se a sua obra


Versuch einer Mineralogischen Beschreibung von
Landeck (Breslau, 1797), traduzida para fran-
Buch, Christian Leopold von cês (1805) e inglês (1810), seguida dos estudos
sobre a Silésia, Entwurf einer Geognostischen Bes-
Christian Leopold von Buch, filho de Adolf chreibung von Schlesien (1802). A observação da
Friedrich von Buch II, barão de Gehmers- erupção vulcânica do Vesúvio, em 1805, feita
dorf, e de Charlotte von Arnien­‑Suckow, nas- com Humboldt e Gay Lussac, permitiu­‑lhe corri-
ceu em Stolpe an der Order, Brandenburg, gir interpretações erróneas sobre o vulcanismo.
Prússia (1774), e faleceu em Berlim (1853). O resultado das suas viagens geológicas origi-
Foi um proeminente geólogo e paleontólogo nou a obra Geognostische Beobachtungen auf Rei-
e dedicou­‑se ao estudo do vulcanismo, dos fós- sen durch Deutschland und Italien (Berlim, 1802­
seis e da definição do sistema jurássico. Fez a ‑1809). Na Escandinávia, pôde obter os dados
escola secundária em Freiberg, Saxónia, e fre- que lhe permitiram publicar Reise durch Norwe-
quentou as universidades de Halle e Göttingen. gen und Lappland (Berlim, 1810).
Foi considerado por Humbolt o melhor geó- Em 1815, na companhia do botânico norue-
logo do seu tempo e, em 1842, recebeu a me- guês Christian Smith, visitou as ilhas Canárias,
dalha Wollaston, o mais importante prémio cuja origem vulcânica constituiu o ponto de
concedido pela Sociedade de Geologia de partida para o estudo da sua atividade sísmi-
Londres. ca, atestada na obra Physicalische Beschreibung
616 ¬ B udismo

der Canarischen (Berlim, 1825), na qual mani- Budismo


festa a convicção de que estas e outras ilhas
atlânticas estiveram na base de um continen- O Buda histórico, Siddhartha Gautama, era co-
te pre­existente. Nesta viagem, de Londres às nhecido como Shakyamuni (de “Sakya”, país
Canárias, teve oportunidade de visitar a Madei- dos sakyas, e “muni”, sábio) e terá nascido no
ra em abril de 1811, na companhia de outro séc. vi a.C., num reino situado entre a Índia e
norueguês, Chetien Smith, descrevendo o des- o Nepal. A palavra “buda” deriva dos termos
lumbramento sentido perante a vegetação des- sânscritos “boud”, que significa “totalmente
conhecida que contemplava: “après une heu- desperto do sono da ignorância”, e “dha”, eclo-
reuse traversée, nous mîmes pied à terre le 21 são perfeita da potencialidade fundamental, ou
avril à Funchal dans l’île de Madère. Nous res- “bodhisattva”, ser iluminado (de “bodhi”, ilumi-
tâmes douze jours sur cette île fortunée, occu- nado, e “sattva”, ser). O budismo refere­‑se a um
pés à faire de petites courses sur les montagnes estado de consciência plena ou presença amo-
et à étudier, en tant que pût le permettre la rosa para com toda a existência, beneficiando
pluie qui tomba continuellement pendant todos os seres sencientes. Este estado, que nos
notre séjour, la végétation nouvelle, et pour começos do séc. xxi recebeu a denominação
nous inconnue, qui se développait sous nos de estado de mindfullness ou “atenção plena”,
yeux [após uma travessia sem incidentes, puse- foi neste período muito preconizado como téc-
mos pé em terra a 21 de abril, no Funchal, ilha nica de meditação com efeitos terapêuticos. No
da Madeira. Permanecemos 12 dias nesta ilha entanto, no budismo, não se trata de um esta-
afortunada, fazendo pequenas excursões pelas do momentâneo, mas sim de um estado perma-
montanhas e estudando, tanto quanto nos per- nente do ser com um objetivo espiritual.
mitiu a chuva, que não parou de cair duran- O budismo surgiu dentro do hinduísmo ou
te toda a nossa estadia, a vegetação nova, para bramanismo (religião em que o conhecimen-
nós desconhecida, que se apresentava diante to sagrado dos sacerdotes brâmanes passava de
dos nossos olhos]” (BUCH, 1836, 1). Nesta pai para filho) e tornou­‑se uma religião que,
obra, insere a lista de plantas da Madeira, orga- desde então, é um caminho para a superação
nizada pelo botânico britânico Robert Brown, do sofrimento e a autorrealização ou desen-
resultante da sua visita à Ilha em 1802. volvimento da perfeita potencialidade huma-
Segundo o Elucidário Madeirense, “é de Ro- na. Não contempla a existência de um deus
bert Brown, e não de Leopold von Buch, o tra- criador, como as outras religiões, mas de um
balho intitulado Vermzeichniss der auf Madeira grande mestre, Buda, pelo que, não é teísta.
Wiedwachsenden Pflanzen, que quase todos atri- Trata­‑se do caminho da libertação, através do
buem a este último autor, por razão de ter sido conhecimento do dharma (princípio de respei-
incluído na obra que publicou, em 1825, sob o to pelas leis sagradas da natureza, ação corre-
título de Physicalische Beschreibung de Canarishen ta no mundo, sabedoria) ou autorrealização.
Inseln” (SILVA e MENESES, 1978, I, 341). É aqui que encontramos o principal ponto de
Obras de Christian Leopold von Buch: Versuch einer Mineralogischen
contacto com o yoga e o hinduísmo.
Beschreibung von Landeck (1797); Entwurf einer Geognostischen Beschreibung Os ensinamentos de Buda são chamados
von Schlesien (1802); Geognostische Beobachtungen auf Reisen durch
Dhammapada, “o caminho da retidão”. Por
Deutschland und Italien (1802­‑1809); Reise durch Norwegen und Lappland
(1810); Narrative of An Expedition to Explore the River Zaire, usually, Called the isso, a essência do conhecimento alcançado e
Congo, in South Africa in 1816, under the Direction of Captain J. K. Tuckey (1818)
transmitido por Buda resume­‑se nas seguin-
(coautoria); Physicalische Beschreibung de Canarishen Inseln (1825); Psysicalische
Beschreibung der Canarischen (1825); Îles Canaries (1836). tes palavras: “Vós sois o vosso próprio mestre,
Bibliog.: BUCH, Léopold de, Îles Canaries, Paris, F. G. Levrault, Librairie Éditeur, tudo assenta sobre os vossos ombros, tudo de-
1836; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário pende de vós”. Deste modo, o nobre caminho
Madeirense, vol. 1, Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978;
VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António Aragão, Madeira. Investigação da verdade, para a superação do sofrimento
Bibliográfica, vol. ii, Funchal, Centro de Apoio de Ciências Históricas, 1984. humano, é composto por oito preceitos: visão
António Moniz correta, intenção correta, fala correta, ação
B udismo ¬ 617

autênticas presentes em Portugal, apoiar as


suas atividades, bem como exercer e promover
a prática dos seus ensinamentos. A fundação da
UBP, a 24 de junho de 1997, resultou da união
de vários grupos do budismo zen e do budismo
tibetano que faziam yoga e meditação em Por-
tugal. A UBP organizou a primeira conferência
budista na Madeira a 22 de novembro de 1998,
passando a visitar com frequência a região ora-
dores e mestres para darem ensinamentos bu-
distas. A delegação da UBP da Madeira foi cria-
da a 27 de abril de 1999, tendo como sede a
sala G do n.º 26 da R. das Mercês. No ano se-
guinte, Tulku Pema Rinpoche, na sua visita a
Portugal, visitou pela primeira vez a Madeira,
tendo­‑se deslocado novamente à Ilha em 2009
Fig. 1 – Logótipo do Centro Budista da Madeira, c. 2015. e em 2012, a convite da delegação da UBP da
Madeira, tal como muitos outros mestres bu-
correta, viver corretamente, esforço correto, distas. A 19 de novembro de 2010, chegou à
atenção correta e concentração correta ou Madeira a Exposição de Relíquias do Buda e
plena atenção. de Outros Grandes Mestres Budistas. A delega-
A expansão dos ensinamentos de Buda na ção da Madeira da UBP tem promovido, entre
Ásia ocorreu a partir da Índia para o Nepal, outras atividades, palestras, ensinamentos e re-
Tibete (donde provém o Dalai Lama reinan- tiros com vários mestres budistas.
te em 2016: “Dalai”, oceano, e “Lama”, mes-
tre – oceano de sabedoria) e outros países
asiáticos, adquirindo métodos e estilos dife-
rentes em cada cultura, o que originou dife-
rentes tradições religiosas, sem comprometer,
todavia, os seus valores essenciais. Assim, da
história do budismo no Ocidente do séc. xx
fazem parte várias tradições budistas, como
o budismo zen e, sobretudo, o budismo tibe-
tano, cujos primeiros rinpoche (palavra do ti-
betano que significa “precioso”, título que se
junta ao nome de um grande mestre) foram
Kalu Rinpoche (que estabeleceu vários cen-
tros do dharma na Europa) e, posteriormen-
te, Dudjom Rinpoche, que foi para França
juntamente com a família de Kangyur Rinpo-
che (entretanto falecido), nomeadamente a
viúva, Amalá, que faleceu em Portugal (para
onde tinha ido ensinar o budismo), em 1973,
e o filho mais velho, Tulku Pema Rinpoche, a
quem se deve a grande divulgação do budis-
mo tibetano em Portugal.
A União Budista Portuguesa (UBP) foi fun- Fig. 2 – Cartaz de atividade do Centro Budista da Madeira,
dada para reunir todas as tradições budistas 5 de setembro de 2020.
618 ¬ B ulas

Na Madeira, existe uma delegação do Cen- Bibliog.: impressa: DALAI LAMA, A Sabedoria para Viver. Dalai Lama em
Portugal, Lisboa, Ésquilo, 2007; KAY, David N., Tibetan and Zen Buddhism in
tro de Apoio ao Sem­‑Abrigo (CASA), de ins- Britain. Transplantation, Development and Adaptation, London/New York,
piração budista, desde outubro de 2007 (um Routledge Curzon, 2004; KHARISHNANDA, Yogi, O Evangelho de Buda.
Transcrito dos Pitakas, as Escrituras Sagradas do Budismo, São Paulo,
mês depois de esta associação ter começado a Pensamento, 2004; RICARD, Matthieu et al., O Budismo e a Natureza da Mente,
sua atividade em Lisboa, a 22 de setembro de Lisboa, Mundos Paralelos, 2005; RINPOCHE, Sogyal, O Livro Tibetano da Vida
e da Morte, Lisboa, Prefácio, 2001; SILVA, Georges da, e HOMENKO, Rita,
2007, no último dia de ensinamentos do Dalai Budismo, Psicologia do Autoconhecimento. O Caminho da Correta Compreensão,
Lama em Portugal, em que Tulku Pema Ri- São Paulo, Pensamento, 2001; TEIXEIRA, António Coelho, “Estudos. História
do budismo em Portugal e da União Budista Portuguesa”, Revista Lusófona de
nopoche distribuiu comida e roupas aos sem­
Ciência das Religiões, ano vi, n.º 11, 2007, pp. 225­‑244; digital: Fundação Kangyur
‑abrigo), como forma de contribuir para ate- Rinpoche: http://www.krfportugal.org/pt/mestres.php (acedido a 11 ago. 2016).
nuar o sofrimento dos mais pobres e para o Naidea Nunes
bem­‑estar de todos os seres. Na Madeira, em
finais de 2015, a associação tinha já 250 vo-
luntários, no Funchal, Calheta, Ponta do Sol Bulas
e Santa Cruz. Nas diferentes delegações da As cartas papais do Arquivo Histórico da Dio-
CASA, a chamada “Casa Amiga” – espalha- cese do Funchal (AHDF) incluem bulas do bis-
da por muitos outros países da Europa e do pado e do arcebispado, bulas e transuntos de
mundo – vai também semanalmente à residên- bulas de confirmação dos bispos, tendo por
cia das pessoas desfavorecidas levar um cabaz vezes agregados papéis referentes à sagração e
de alimentos. Também a associação ecologista posse destes, bem como um “Sumário” da Bula
Mother Earth, outro projeto de Tulku Pema da Cruzada, pertencentes quer ao Arquivo do
Rinpoche para proteger o planeta, ou “mãe” Bispado, quer ao do Cabido da Sé. Algumas
Terra, está na Madeira desde 2014, tendo sido bulas foram identificadas por Orlando de Frei-
criada em Portugal a organização internacio- tas Morna e microfilmadas pelo Arquivo Regio-
nal Protector of Life, a 30 de maio de 2012, nal da Madeira (ABM) em 1998, outras pode-
com o propósito de libertação de um milhão rão integrar o Arquivo dos Bispos.
de vidas de animais por ano. Entre 2010 e 2014, tiveram início a pesqui-
Outra linha de orientação do budismo que sa e o tratamento sistemáticos destas bulas,
existiu na Madeira foi a Nova Tradição Kadam- sendo identificadas oito bulas propriamen-
pa, do inglês New Kadampa Tradition (NKT), te ditas (sete das quais lamentavelmente des-
introduzida na Ilha em 2002. Esta linha do pojadas dos selos pendentes). A exemplo de
budismo surgiu em Inglaterra nos anos 80 do quantos publicaram as principais bulas do
séc. xx e tem o seu principal centro no Noroes- Funchal – D. António Caetano de Sousa, Luís
te de Inglaterra, onde se encontra o Kadam- Augusto Rebelo da Silva, Ricardo Augusto de
pa World Peace Temple. Foi em maio de 1991 Sequeira, Fernando Augusto da Silva, Charles­
que Geshe Kelsang Gyatso deu o nome de NKT ‑Martial de Witte, Manuel Juvenal Pita Ferrei-
a esta orientação budista que segue a doutri- ra –, Orlando de Freitas Morna e Maria da
na dos seus livros. Na Madeira, a Nova Tradi- Cunha Paredes pesquisaram e transcreveram
ção Kadampa teve um centro de meditação de- bulas e transuntos de bulas, certidões e tresla-
nominado Centro Avalokiteshvara (Buda da dos destas lançados em livros de registo, elabo-
Compaixão), que oferecia aulas de meditação rando, respetivamente, traduções e sumários.
e organizou várias atividades de âmbito espiri-
tual, como retiros espirituais budistas e ensina-
Bulas do bispado e do arcebispado
mentos de mestres budistas do NKT. Terminou
(1514­‑1551)
as suas atividades no verão de 2008.
No começo do séc. xxi, havia 400 milhões Todas datadas de 12 de junho de 1514, a Pro
de budistas espalhados pelo mundo, nas suas Excellenti Praeeminentia, carta de fundação da
diversas tradições, sendo o budismo a quarta Diocese do Funchal, a Gratiae Divinae Prae-
grande religião mundial. mium (dirigida ao rei) e a Hodie Ecclesiae Nostrae
B ulas ¬ 619

Circunspectio de 8 de julho de 1539 comprovam


a criação do arcebispado, tendo esta última
bula, aliás, sido trasladada [1586] no tombo do
Cabido da Sé como Bulla da Erecção e Confirma-
ção de Metropolitana e Primâs do Oriente à Jgreja do
Funchal. As transferências de jurisdição do es-
piritual deste arquipélago, as alterações da sua
organização eclesiástica, serviram um plano de
afirmação do poder régio que “degenerou” em
“absorvente” centralização administrativa, com
resultados catastróficos para as ilhas da Madei-
ra (AZEVEDO, 1873, 313­‑314). O recém­‑criado
arcebispado foi desmembrado pela bula Gregis
Dominici (5 de agosto de 1536) e extinto pela
Super Universas Orbis Ecclesias (1551), de que o
AHDF conserva um transunto em forma pro-
bante cujo selo foi cortado.

Fig. 1 – As Bulas de Criação da Diocese do Funchal (2015), Bulas dos bispos


texto latino, trad. e notas de Orlando Moisés de Freitas Morna.
Teve a Diocese, até 2015, um arcebispo e
32 bispos. Encontram-se no AHDF a bula
Funchalensis (ao Cabido da Sé) foram entre- de D. Diogo Pinheiro já referida, bulas de
gues ao Arquivo Nacional da Torre do Tombo D. Luís de Figueiredo (duas), D. Lourenço de
(ANTT). Só a bula Hodie Ecclesiae Funchalensis, Távora (duas) e de D. António Teles da Silva
comunicando ao clero a nomeação do primei- (uma), bem como transuntos das de D. João
ro bispo, ficou na posse do AHDF. O Arquivo do Nascimento, D. João Joaquim Bernardino
Secreto do Vaticano (ASV) tem o registo da de Brito, D. Francisco José Rodrigues de An-
bula Aequum Reputamus de ereção do arcebispa- drade e D. José Xavier da Cerveira e Sousa.
do e o das bulas do arcebispo D. Martinho de Não se encontraram quaisquer bulas de
Portugal, cuja data (3 de novembro de 1534) D. Fernando de Távora (1570­‑1573), D. Je-
e emissão foram questionadas. Não obstante, rónimo Barreto (1574­‑1585), D. Jerónimo
uma cédula consistorial de 31 de janeiro de Fernando (1618­‑1650) ou D. Luis Rodrigues
1533 endereçada ao Governo português (no Vilares (1797­‑1810), não obstante estas terem
ANTT) e os termos da bula Romani Pontificis sido guardadas no arquivo secreto da Câmara

Fig. 2 – Transunto da bula Apostulatus Officium, do Papa Pio IX, provendo a D. Manuel Martins Manso no bispado do Funchal,
20 de maio de 1850 (ANTT, Bulas, mç. 60, n.º 8).
620 ¬ B ulas

Eclesiástica, conforme anotado à margem de nomeadamente o abade do mosteiro benedi-


um livro de registo. tino de Santa Cruz, em Fonte Avelana, o qual,
A coleção Bulas do ANTT tem as cartas ad desde o séc. xii, tinha direitos reconhecidos
regem confirmando diversos prelados funcha- pelos bispos de Fermo sobre algumas igrejas
lenses. D. Joaquim de Menezes e Ataíde, no- da diocese. De todas as bulas do AHDF, só esta
meado vigário apostólico em 1810 por breve conserva a «bolla» de chumbo que servia para
do núncio D. Lourenço de Calepio, arcebispo validar o documento e cerrar o pergaminho
de Nisibi, sofreu pertinaz oposição de mem- que, meticulosamente dobrado, compunha o
bros do Cabido e nunca foi provido bispo, ape- seu próprio invólucro, pequeno e resistente.
sar dos importantes serviços que prestou – con-
feriu novos estatutos à Sé, concluídos em 1814, Summario da Bulla da Santa Cruzada
e um moderno e completíssimo regulamento Concedida pelo
ao hospital da Misericórdia do Funchal. As car- Santíssimo Padre Leão XIII
tas papais formalizando a investidura episcopal Documento impresso e assinado em 1899 pelo
atestam que a Santa Sé confirmava o eclesiásti- comissário e executor geral da bula, António,
co nomeado pelo soberano em razão das suas bispo de Betsaida, concede a Manuel Gomes
virtudes e competências, autorizando­‑o a re- Pestana – pela oferta de 40 réis para as igrejas
ceber a sagração de qualquer bispo “em graça mais pobres da monarquia e para os seminá-
e comunhão” com a Igreja e remetendo­‑lhe a rios dedicados a formar o clero, consagrado à
fórmula do juramento de fidelidade a prestar propagação do evangelho – a indulgência ple-
ao papa, como pode ler­‑se, e.g., na bula Cum nária dispensada por bula de Leão XIII (21
Nos pridem, dirigida, a 3 de junho de 1740, ao de maio de 1898) ao rei, aos seus súbditos e
bispo eleito, D. frei João do Nascimento, que aos fiéis moradores nos seus reinos: este papa,
governou de 1741 a 1753. O juramento e a pro- como os seus antecessores, estimulava a cola-
fissão de Fé Católica do “eleito” eram enviados boração de Portugal no esforço missionário.
para Roma, com uma informação da sua vida e Para alcançar as graças prometidas na bula, de-
costumes e outra acerca da igreja a que ele era viam os fiéis dar a esmola taxada e receber o
candidato. Em contrapartida, o papa exortava Summario “com seus nomes nele escritos, e de
autoridades, clero e povo diocesanos a que lhe outro modo lhes não valerá”, ao que se chama-
obedecessem com reverência, sob pena de ra- va “tomar a bula”, ou “tomar o sumário”. Man-
tificação da sentença por ele proferida contra dava o santo padre que os pregadores da bula,
os rebeldes. aprovados pelo ordinário do lugar, nada pro-
pusessem além do expresso na mesma e que
Bula de Fermo não obrigassem, apenas exortassem, os fiéis a
concorrer com suas esmolas.
José António Segurado e Campos traduziu
uma bula datada de 16 de novembro de 1569
que em nada diz respeito à Madeira e cuja pre- Documentação complementar
sença no arquivo diocesano é ainda um misté- Existe documentação complementar no AHDF,
rio. Segundo aquele latinista, neste documen- no Arquivo do Cabido da Sé do Funchal, no
to do tipo DIGNVM Pio V impõe a Lorenzo ABM, no ANTT e no Arquivo Histórico Ultra-
Lenzi, bispo de Fermo, o universitário Giovan- marino. D. Teodoro de Faria (bispo do Fun-
ni da Gasparis para administrador das capelas chal entre 1982 e 2007) ofereceu ao AHDF
de S.ta Maria dos Anjos e de S. João Evangelis- imagens digitais de diversos documentos do
ta na igreja paroquial de Lapedona (Castrum ASV relacionados com as bulas dos bispos.
Lapidone). Poderá ter existido um litígio entre
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal; ACDF,
o candidato favorecido pelo pontífice e ou- Arquivo do Bispado, Bulas do Bispado e dos Bispos; Ibid., Arquivo do Bispado,
tros apresentados por patronos diferentes, Registo Geral da Câmara Eclesiástica; Ibid., Arquivo do Cabido da Sé,
B ulwer , J ames ¬ 621

Tombo, liv. 104; ANTT, Bulas, mç. 60, n.º 8; Ibid., Cabido da Sé do Funchal;
impressa: BRUNET, Jean­‑Louis, Le Parfait Notaire Apostolique et Procureur
des Officialitez, Contenant les Regles et les Formules de Toute Sorte d’Actes
Ecclesiastiques…, Paris, Claude Robustel, 1730; As Bulas de Criação da Diocese
do Funchal, texto latino, trad. e notas de Orlando Moisés de Freitas Morna,
Funchal, Região Autónoma da Madeira, 2015; FERREIRA, Manuel Juvenal Pita,
A Sé do Funchal, Funchal, JGDAF, 1963; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades
da Terra. Historia das Ilhas do Porto­‑Sancto, Madeira, Desertas e Selvagens,
Funchal, Typ. Funchalense, 1873; MORNA, Orlando de Freitas, e PAREDES,
Maria da Cunha, Bulário Funchalense I. Sumários, Transcrições e Traduções das
Bulas de Criação do Bispado, do Arcebispado e dos Bispos (1514­‑2007), texto
não publicado; SILVA, Fernando Augusto da, Subsídios para a História da
Diocese do Funchal, vol. 1, Funchal, s.n., 1946; Id., e MENESES, Carlos Azevedo
de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; WITTE, D. Charles­
‑Martial de, “Les bulles d’érection de la province ecclésiastique de Funchal”,
Arquivo Histórico da Madeira, vol. xiii, 1962­‑1963, pp. 79­‑136.

Maria Favila Vieira da Cunha Paredes

Bulwer, James
O reverendo inglês James Bulwer nasceu em
Aylsham, Norfolk, a 21 de março de 1794, fa-
lecendo em Blickling a 11 de junho de 1879.
Tendo estudado no Colégio de Jesus, em Cam-
bridge, onde obteve o grau de mestre em 1823,
teve lições de pintura com John Sell Cotman
Fig. 1 – Rev. James Bulwer, Frederick Sandys, 1858
(1784­‑1842), tornando­‑se depois naturalista e
(National Gallery of Canada).
membro da Linnean Society. Estabeleceu con-
tactos com outros naturalistas e especializou­‑se
em moluscos, deslocando­‑se por duas vezes à desenhos de Portugal continental e da Madei-
Madeira, onde efetuou desenhos que seriam, ra. Foi igualmente antiquário, estando na base
dois anos depois, passados a litografia em Lon- da recolha da Norfolk Collection, iniciada
dres e que constituem alguns dos mais antigos pelo seu professor e amigo John Sell Cotman.
elementos iconográficos das ilhas da Madeira e Trabalhou também como arquiteto na adapta-
do Porto Santo. ção da prior’s door da Catedral de Ely, em Cam-
James Bulwer ordenara­‑se diácono em 1818 bridgeshire, em que se reconhece a influência
e padre anglicano em 1822, tornando­‑se cura de Johan Ruskin e dos pré­‑rafaelitas.
da paróquia de Booterstown, em Dublin, no Das suas estadas na Madeira – na primavera
ano seguinte. Passou depois para Bristol, em de 1825, nos finais desse ano e nos inícios de
1831, e para a capela de St. James, em Pica- 1826, esta última com Alfred Lyall, que fora
dilly, em 1833. Deixou Londres em 1839, re- acompanhar a sua irmã doente – resulta o seu
gressando a Norfolk, onde ocupou os lugares trabalho Views in the Island of Madeira, litogra-
de cura em Blickling e, depois, em Hunworth. fado por William Westall (1781­‑1850) e outros
Passou, entretanto, alguns invernos em Portu- e editado em Londres, em 1827. Na mesma al-
gal continental, em Espanha e na ilha da Ma- tura, Alfred Lyall editou Rambles in Madeira,
deira. Enquanto esteve na Ilha, contou com a and in Portugal, publicado em 1827 e 1828, tra-
companhia do seu amigo naturalista, filósofo e balho que deve ter realizado, de certa forma,
também reverendo Alfred Lyall (1796­‑1865), e com o reverendo anglicano, pela maneira
juntos estudaram a fauna marinha da Região. como se completam, contendo várias referên-
Embora amador, tornou­‑se um pintor agua- cias um ao outro. O álbum de James Bulwer
relista de certa nomeada, entre o romantis- apresenta 26 paisagens urbanas e naturais do
mo e o naturalismo, editando alguns dos seus arquipélago e mais 3 pequenas vinhetas, sendo
622 ¬ B ulwer , J ames

Fig. 2 – Views in the Madeiras, Executed marinhas que ali nidificavam.


on Stone by Messes, Westall, Nicholson,
Harding, Nash, Villeneuve Gauci, &c. &c.
É muito provável que tenha
after Drawing Made from Nature by the sido nessa altura que colheu
Revd. James Bulwer (1827), de James um exemplar de alma­‑negra,
Bulwer.
que mais tarde, em 1828, foi
descrito por William Jardine e
Prideaux John Selby, em sua
dedicado ao cônsul George honra, como Procellaria bulwe-
Sttodart (1795­‑c. 1860), ao rii, depois designado Bulweria
qual agradece a gentileza e bulwerii (Bulwer’s petrel, em in-
amabilidade dispensadas nas glês). Este holótipo foi depo-
suas estadas. O autor explica sitado na coleção de aves do
que procurou ser fiel à reali- Museu de História Natural de
dade e, como critério de exe- Tring, em Inglaterra.
cução dos desenhos, apresen- Com bons conhecimentos
tar mais os aspetos notáveis nas áreas da arquitetura e da
das localidades do que os seus paisagem humanizada, James
atrativos pitorescos. Nos pequenos textos que Bulwer soube captar aspetos importantes da
acompanham as litografias, faz ainda sumárias Madeira e do Porto Santo, sendo seus os mais
apreciações sobre as mesmas e remete para as antigos registos iconográficos da ilha do Porto
edições de Lyall quanto aos aspetos mais glo- Santo, mas também da Calheta, do Curral das
bais, e.g., o clima. Freiras e de Santa Cruz, destacando­‑se o re-
Na viagem que fez à Madeira na primavera gisto que fez do pelourinho desta última vila
de 1825, Bulwer deslocou­‑se à Deserta Grande, como um dos poucos que se conhece. Dese-
onde pernoitou, tendo contacto com as aves nhou também a vila de Machico, entre outros

Fig. 3 – Porto Santo, cidade, litografia de desenho do Rev. James Bulwer (BULWER, 1827).
B usk , G eorge ¬ 623

lugares, tornando­‑se os seus desenhos impres- Unido, primeiro na Dr. Hartley’s School, em
cindíveis para o estudo da arquitetura, do ur- Yorkshire, e, depois, na Royal College of Sur-
banismo e dos aspetos singulares das paisagens geons, em Londres. Como médico, contri-
regionais. Com a dispersão da sua coleção par- buiu para o conhecimento de diferentes epi-
ticular, ainda não foi possível localizar qual- demias. Em 1838, e.g., publicou, juntamente
quer dos trabalhos originais feitos por Bulwer com o seu colega George Budd, um relatório
na Madeira. sobre 20 casos de cólera (Report of Twenty Cases
James Bulwer, enquanto pároco da capela de of Malignant Cholera that Occurred in the Sea-
Saint James, em Piccadilly, Londres, esteve pre- men’s Hospital­‑Ship) e escreveu relatórios para
sente na coroação da Rainha Vitória, em 1838, a SHS sobre outras doenças, como o escorbuto
e, no ano seguinte, deixou Londres com desti- e a varíola. Também no campo da parasitolo-
no ao condado de Norfolk, onde exerceu o seu gia, fez valiosas descobertas, tendo, em 1843,
magistério em diversas paróquias. Foi casado descrito 14 vermes parasitários do duodeno.
com Eliza Redfoord, com quem teve três filhos Estes trematodes foram depois chamados Fas-
e uma filha. ciolopsis buski em sua honra. As suas aportações
nesta área tornaram­‑no tão conhecido que,
Bibliog.: BULWER, James, Views in the Madeiras, Executed on Stone by Messes,
Westall, Nicholson, Harding, Nash, Villeneuve Gauci, &c. &c. after Drawing numa carta a Charles Darwin de 1863, Joseph
Made from Nature by the Revd. James Bulwer, London, C. & J. Rivington, 1827; Hooker descreve Busk como “o cérebro mais
BURY, Stephen, Benezit Dictionary of British Graphic Artists and Illustrators,
New York, Oxford University Press, 2012; CAMACHO, Ana Margarida fértil que conheço em tudo o que diz respeito
Sottomayor Araújo, “James Bulwer”, in Obras de Referência dos Museus da ao estômago” (“George Busk”, Darwin Corres-
Madeira. 500 Anos de História de Um Arquipélago, catálogo de exposição
comissariada por Francisco Clode de Sousa, e patente na Galeria de Pintura
pondence…), facto que levou Darwin a escrever­
do Rei D. Luís, Palácio Nacional da Ajuda, 21 nov. 2009­‑28 fev. 2010, Funchal, ‑lhe para pedir conselho sobre os seus próprios
DRAC, 2009, pp. 372­‑377; LYALL, Alfred, Rambles in Madeira, and in Portugal
in the Early Part of M.DCCC.XXVI with An Appendix of Details, Illustrative
sintomas gástricos. Darwin também escrevera
of the Health, Climate, Produce and Civil History of the Island, London, C. & a Busk para pedir a sua opinião sobre outros
J. Rivington, 1827; MEARNES, Barbara, e MEARNES, Richard, Biographies
for Birdwatchers. The Lives of Those Commemorated in Western Palearctic
assuntos, nomeadamente se haveria alguma re-
Bird Names, London, Academic Press, 1988; NASCIMENTO, João Cabral lação entre a cor do cabelo e a suscetibilidade
do, Estampas Antigas da Madeira, Funchal, Club Rotário do Funchal, 1935;
às doenças tropicais nos soldados britânicos, e
SAINZ­‑TRUEVA, José de (org.), Viagens na Madeira Romântica, catálogo
de exposição comissariada por José de Sainz­‑Trueva, e patente no Teatro sobre a evolução dos Bryozoa. Em 1864, Busk,
Municipal do Funchal, dez. 1988­‑jan. 1989, Funchal, DRAC, 1988; SOUSA, na altura membro do conselho da Royal Socie-
Francisco Clode de, “Aparências e permanências”, in Estampas, Aguarelas e
Desenhos da Madeira Romântica, catálogo de exposição patente na Casa- ty, foi um dos que persuadiram a Sociedade a
-Museu Frederico de Freitas, jul.­‑dez. 1988, Funchal, DRAC, 1988, pp. 15­‑38. outorgar a Darwin a medalha Copley, a con-
Manuel Biscoito decoração de maior prestígio no domínio das
Rui Carita ciências.
Durante a sua vida, especialmente após a
Busk, George sua reforma da SHS, em 1855, George Busk
dedicou­‑se ao estudo dos Bryozoa (ou Poly-
George Busk, cirurgião e naturalista, trabalhou zoa). Embora não haja registos de ter estado
durante 25 anos para a Seamen’s Hospital So- alguma vez na Madeira, recebeu muitas amos-
ciety (SHS), em Greenwich, Reino Unido, e tras de Bryozoa desta ilha enviadas por James
fez importantes contribuições para os campos Yate Johnson (1820­‑1900) e fez uma contri-
da epidemiologia e da parasitologia. Como na- buição importante para o seu conhecimento,
turalista, estudou os invertebrados marinhos descrevendo no total – como se referiu – 45
do filo Bryozoa e descreveu 45 espécies com espécies nos vários artigos que publicou no
base nos exemplares fornecidos por James Quarterly Journal of Microscopical Science: “Zoo-
Y. Johnson. phytology”, “On some Madeiran Polyzoa”, e
Busk nasceu a 12 de agosto de 1807, filho “Catalogue of the Polyzoa, collected by J. Y.
de colonos ingleses, em São Petersburgo, Rús- Johnson, Esq. at Madeira in the years 1859 and
sia. Completou todos os seus estudos no Reino 1860”, tendo a sua coleção sido depositada no
624 ¬ B usk , G eorge

Museu de História Natural de Londres. Um Society, em 1846, da Royal Society, em 1850,


novo género de Bryozoa, Buskia, foi­‑lhe dedi- da Zoological Society, em 1856, e da Geologi-
cado por Alder, em 1856. cal Society, em 1859. Recebeu a medalha Real,
George Busk também se interessou pela em 1871, a medalha Lyell, em 1878, e a meda-
paleontologia. Traduziu o trabalho no qual lha Wollaston, em 1885.
Shaaffhausen descrevia os restos de esqueletos Faleceu na sua residência em Londres, a 10
humanos descobertos no vale de Neander (“o de agosto de 1886.
homem de Neandertal”) e, em 1863, viajou
Obras de George Busk: Report of Twenty Cases of Malignant Cholera That
até Gibraltar para visitar a caverna onde tinha
Occurred in the Seamen’s Hospital­‑Ship (1838) (coautoria); “Zoophytology”
sido descoberto, em 1848, o primeiro crânio (1858); “On some madeiran polyzoa” (1858­‑1859); “Catalogue of the polyzoa,
adulto de Neandertal. Foi o responsável por collected by J. Y. Johnson, Esq. at Madeira in the years 1859 and 1860” (1860­
‑1861); “Pithecoid priscan man from Gibraltar” (1864).
levar para Londres este “crânio de Gibraltar”,
publicando o resultado das suas observações Bibliog.: impressa: COOK, Gordon, “George Busk, FRS (1807­‑1886). Surgeon,
zoologist, parasitologist and palaeontologist”, Transactions of the Royal
em 1864, no The Reader, com o título “Pithe- Society of Tropical Medicine and Hygiene, n.º 90, 1996, pp. 715­‑716; FRIDAY,
coid priscan man from Gibraltar”. Adrian, “George Busk”, in PEARN, Alison (org.), A Voyage round the World,
Cambridge, Cambridge University Press, 2009, p. 67; SILVA, Fernando Augusto
Casou­‑se, em 1843, com uma prima direita, da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
Ellen, de quem teve duas filhas. Foi membro Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978; digital: “Busk, George (1807­
‑1886)”, Plarr’s Lives of the Fellows Online, The Royal College of Surgeons of
de muitas sociedades científicas e ganhou vá- England, 2006: http://livesonline.rcseng.ac.uk/biogs/E000197b.htm (acedido a
rios reconhecimentos. Por exemplo, foi um 8 set. 2016); “George Busk”, Darwin Correspondence Project, s.d.: https://www.
darwinproject.ac.uk/george­‑busk (acedido a 8 set. 2016).
dos fundadores da Microscopical Society,
em 1839, foi nomeado membro da Linnean Pamela Puppo
C
c

Cabaço, Artur de Almeida do cargo de governador civil do distrito do


Funchal o coronel de Infantaria n.º 13, José
Nascido em 1881, Artur de Almeida Cabaço Maria de Freitas, e nomear o Cap. Artur de Al-
foi um militar português que desempenhou as meida Cabaço.
funções de governador civil do distrito do Fun- O Diário de Notícias apresentava em breves
chal, entre 9 de fevereiro de 1931 e 20 de de- pontos uma biografia de Artur A. Cabaço,
zembro de 1933. classificando­‑o como “um dos oficiais mais dis-
No decorrer dos levantamentos populares ciplinadores e distintos” da unidade que há três
ocorridos entre 4 e 9 de fevereiro de 1931, anos então comandava, apresentando, assim,
que ficaram conhecidos como a Revolta da Fa- uma “longa e brilhante folha de serviços”, nos
rinha, em protesto contra o famigerado dec. quais ocupou “vários cargos de responsabili-
n.º 19.273, de 26 de janeiro de 1931, António dade”, nomeadamente o de comissário de po-
Oliveira Salazar envia para a ilha da Madeira lícia de Macau, bem como a benéfica ação na
o coronel de Infantaria Feliciano António da
Silva Leal, nomeado pelo dec. n.º 19.316, de
9 de fevereiro de 1931, delegado especial das
ilhas adjacentes, concedendo­‑lhe poderes ili-
mitados. Silva Leal chegara à ilha da Madeira
apoiado pela Companhia de Caçadores 5, co-
mandada pelo Cap. Artur de Almeida Cabaço,
tendo chegado ao Funchal na manhã de 9 de
fevereiro de 1931, no vapor Pedro Gomes.
A Unidade de Caçadores 5 era compos-
ta, segundo o Diário de Notícias, por 120 pra-
ças e coadjuvada pelo Ten. Sílvio Pelico, pelo
Ten. Camões e pelo tenente­‑médico Saave-
dra, com uma secção de metralhadoras n.º 1,
com 40 praças e 2 sargentos, comandada pelo
Alf. Ferreira e Sacadura.
Chegada do Cap. Artur de Almeida Cabaço e do Cor. Silva Leal,
As primeiras medidas tomadas por Silva Leal, delegado especial do Governo, março de 1931, Funchal
enquanto delegado especial, foram exonerar (arquivo de Faria Paulino).
626 ¬ C abedo , J o ã o O ctávio da C osta

“pacificação de Timor” (“Os ultimos aconte- regional, a notícia do pedido de exoneração


cimentos…”, DN, 11 fev. 1931, 1­‑2). O Estado do Cap. Artur A. Cabaço foi acompanhada por
Novo quis recompensar esses serviços com a textos assaz laudatórios que exaltavam a sua be-
atribuição da experiência na “missão pacifica- néfica ação enquanto governador civil “num
dora” de que ambos estavam incumbidos, por dos períodos mais difíceis da vida madeiren-
Salazar, na ilha da Madeira. No discurso de se” (“Governador civil do Funchal…”, DN, 23
posse, Artur A. Cabaço, num “tom de simpli- dez. 1933, 1). Tanto o Diário de Notícias como
cidade e sinceridade”, assinalava que aceitara O Jornal eram unânimes em elevar as suas qua-
o cargo atendendo à “necessidade do momen- lidades enquanto governante estudioso e aten-
to”, sem chamar para si quaisquer “preten- to da difícil realidade madeirense, tendo reali-
sões”, pois toda a sua carreira era a de um mili- zado, segundo O Jornal, “relatórios e trabalhos
tar. Terminou o discurso dirigindo­‑se ao então extensos sobre muitas das mais importantes
secretário­‑geral, António Joaquim Cautela Jú- questões da Madeira, que, se não podem vir a
nior, referindo que esperava deste não apenas a lume pela sua especial natureza, ficarão porém
mera lealdade que a hierarquia exigia (Ibid., 2). constituindo, nas estações superiores, uma va-
Na manhã de 4 de abril de 1931, um mês liosa documentação” (“Governador civil do
depois da Revolta da Farinha, que levou o Funchal”, O Jornal, 23 dez. 1933, 1). O Diário de
Cap. Artur A. Cabaço à Madeira, a Compa- Notícias publicava ao lado do texto de homena-
nhia 5, que o próprio comandara, iniciava um gem a fotografia do Cap. Artur A. Cabaço, lem-
movimento revolucionário, que ficou para a brando que durante o período de governação
História como a Revolta da Madeira, ou tam- não esquecera as classes mais desprotegidas,
bém como a Revolta dos Deportados, por ter devotando­‑lhes “particular carinho” (“Gover-
sido liderada na sua maioria por militares expa- nador civil do Funchal…”, DN, 23 dez. 1933, 1).
triados. O Cap. Artur A. Cabaço, juntamente Ainda na vigência do seu cargo de governa-
com Silva Leal, José Mara de Freitas e outros dor do distrito do Funchal, o Ministério do In-
oficiais que não alinharam com os revoltosos, terior viria a propor a concessão da comenda
permaneceu preso, primeiramente, na prisão da Ordem Militar de Cristo. Artur A. Cabaço
do Lazareto, tendo sido transferido para o pa- viria a falecer em 1955.
lácio de S. Lourenço e voltando novamente
Bibliog.: manuscrita: ANTT, Ministério do Interior, Gabinete do Ministro, mç. 459,
para a prisão do Lazareto, onde permaneceu pt. 21/81; impressa: “Governador civil do Funchal”, O Jornal, 23 dez. 1933, p. 1;
até ao fim da Revolta, a 2 de maio de 1931. “Governador civil do Funchal, capitão Almeida Cabaço”, Diário de Notícias,
Funchal, 23 dez. 1933, p. 1; “O pronunciamento militar da Madeira”, Diário de
Com o epílogo da Revolta, o Cap. Artur A.
Notícias, Funchal, 3 maio 1931, pp. 1­‑2; “Os últimos acontecimentos”, Diário de
Cabaço retomou de imediato as funções de go- Notícias, Funchal, 8 abr. 1931, pp. 1­‑3; “Os ultimos acontecimentos no Funchal”,
vernador civil, tendo emitido uma nota oficio- Diário de Notícias, Funchal, 11 fev. 1931, pp. 1­‑2.

sa, às 14.00 h do dia 2 de maio de 1931, ape- Carlos Barradas


lando a todos os funchalenses para que, com
a mais absoluta urgência, a cidade retomasse a
normalidade, prosseguindo assim cada um nos Cabedo, João Octávio da Costa
seus ofícios e ocupações e, deste modo, “traba-
lhando para o progresso desta linda Madeira Nasceu no Funchal, na freguesia de Santa
e para o engrandecimento da Pátria e da Re- Luzia, a 2 de agosto de 1885, filho do Alf. João
pública Portuguesa”, furtando­‑se de qualquer Augusto da Costa Cabedo, natural de Angra do
manifestação pública (“O pronunciamento mi- Heroísmo (aposentado no posto de tenente­
litar da Madeira”, DN, 3 maio 1931, 2). ‑coronel), e de Matilde Amélia Fernandes Ca-
O Cap. Artur A. Cabaço pediu a demissão do bedo, natural do Funchal, tendo sido batiza-
cargo de governador civil a 20 de dezembro de do a 12 de setembro desse mesmo ano. Casou
1933, tendo sido nomeado para o substituir An- com Madalena Cuibem Jardim, a 2 de agosto
tónio Correia Caldeira Coelho. Na imprensa de 1906, na igreja paroquial de S.ta Luzia.
C abedo , M aria D ulcelinda da C osta de ¬ 627

Notícia do falecimento de João Octávio da Costa Cabedo (Ilustração Portugueza, 12 fev. 1912, 205).

Concluído o ensino secundário no Liceu Na- menor, João da Costa Cabedo, que só então foi
cional do Funchal, matriculou­‑se em Direito perfilhado, uma pensão anual de 360$000 réis,
na Univ. de Coimbra, onde foi aluno de Afon- até atingir os 21 anos.
so Costa, passando a participar nos comícios Bibliog.: manuscrita: ABM, Registos Paroquiais, Santa Luzia, Batismos,
do Partido Republicano nos finais do regime liv. 1491, 1885, fl. 42v.; Ibid., Registos Paroquiais, Santa Luzia, Casamentos,
liv. 6500 A, 1906, fl. 10v.; impressa: “Os acontecimentos da Moita. Uma
monárquico. Abandonou, entretanto, Direito, cena de selvagens. A morte do madeirense João Octávio da Costa Cabedo”,
acabando por matricular­‑se no Curso Superior O Povo, 8 fev. 1912, p. 1; Actas da Câmara de Deputados, sessão de 14 maio
1913; “Administrador linchado”, Diário de Notícias, Funchal, 3 fev. 1912, p. 1;
de Letras, em Lisboa. “Agredido à machadada. A morte dum nosso patrício”, Diário de Notícias,
Com apenas 17 anos, foi diretor interino do Funchal, 9 fev. 1912, p. 1; “O atentado da Moita”, Ilustração Portugueza,
12 fev. 1912, p. 205; “O caso da Moita. Todos os réus foram condenados a
jornal O Direito, do Funchal, e colaborou com penas maiores”, Diário de Notícias, Funchal, 17 maio 1912, p. 3; CLODE, Luiz
vários jornais, nomeadamente o Rebate, O Povo Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; “Crónica fúnebre. Costa Cabedo”, O Povo,
e o Jornal dos Açores. Após o triunfo da repú- 2 fev. 1912, p. 2; “É preso o suposto agressor do administrador da Moita”,
blica, a 5 de outubro de 1910, colaborou, com Diário de Notícias, Funchal, 13 fev. 1912, p. 2; “Pensão”, Diário de Notícias,
Funchal, 21 maio 1912, p. 1; A República nos Concelhos da Margem Sul. Actas
temas políticos, com o jornal O Povo de Aveiro
do Colóquio, Moita, Câmara Municipal da Moita, 2011.
e foi um dos redatores do Intransigente, onde
Gabriel Pita
usou o pseudónimo de João Claro.
Faleceu no Hospital de S. José, a 5 de feve-
reiro de 1912, na sequência de um linchamen- Cabedo, Maria Dulcelinda da
to perpetrado, na madrugada do dia 1 de fe- Costa de
vereiro, por trabalhadores rurais em greve, na
Moita, distrito de Setúbal, onde era adminis- Filha do oficial do Exército Maj. João Augusto
trador do concelho, por se ter recusado a li- da Costa Cabedo e de Matilde Amélia Fernan-
bertar alguns dos grevistas que estavam presos. des Cabedo, e neta de um dos heróis do Min-
Após a sua morte, foi concedida ao seu filho delo, Maximiliano Cabedo, a escritora nasceu
628 ¬ C abedo , M aria D ulcelinda da C osta de

jornalista, colaborador em diversas publica-


ções periódicas e cronista, com o pseudóni-
mo João Claro, sob o qual escrevia “Carteira
de um exótico”, rubrica publicada no Intransi-
gente, e o tio António de Cabedo, poeta e autor
de Cacholetas Literárias. Não admira, assim, que
Maria de Cabedo também se tenha interessado
pela literatura, tendo publicado o livro Phan-
tasias e Realidades, coleção de crónicas escritas
para o Diário da Madeira, com prefácio de Alfre-
do Pimenta, e vários artigos literários em perió-
dicos, nomeadamente na Crónica Feminina, na
Eva (na qual assinava como Ivete), no Diário
de Notícias (Funchal) (ocupando­‑se da rubri-
ca “No meu caderno”, dedicada aos bons en-
sinamentos e à doutrina) e no Novo Almanaque
de Lembranças Luso­‑Brasileiro. Neste assina, em
1932, dois textos sobre a Madeira: “A ilha da
Fig. 1 – Maria de Cabedo, cliché Perestrelo, 1927 Madeira e as suas fontes de água pura”, em que
(Ilustração Portugueza, 16 out. 1927, 21). pinta um retrato idílico da Ilha, e “Um poeta
madeirense desconhecido”, sobre João Severi-
em Santa Luzia, no Funchal, a 3 de julho de no de Bettencourt Jardim, barão do Jardim e
1890, e faleceu, em Lisboa, em 1968. Casou­ Torre. A autora aproveita este último para la-
‑se com Nuno Catarino Cardoso (1887­‑1969), mentar os poetas “perdidos por entre a turba!
escritor cabo­‑verdiano, a 4 de maio de 1931, A alma portuguesa cheia de ternura e de so-
em Lisboa. Segundo o editor do Novo Almana- nhos nunca se cansa de expandir­‑se em suaves
que de Lembranças Luso­‑Brasileiro, Maria de Ca- harmonias” (CABEDO, 1932, 370).
bedo descendia de Hugo Capeto, o primeiro Maria de Cabedo fez diversas conferências
rei da dinastia dos Capetos, que sucedeu à ca- em lugares de grande destaque, como o Teatro
rolíngia, em França, reino do qual é oriunda Politeama, em Lisboa, e nos Colóquios Olissi-
a família que mais tarde se fixou em Espanha, pianos. O editor do Almanaque afirma que se
no seu solar nas montanhas de Oviedo, e, de- dedicava com afinco à escrita, tendo prepara-
pois, veio para Portugal. O primeiro membro do um livro de viagens sobre França, Suíça e
da família a vir para o reino teria sido, segun- Itália, uma novela intitulada À Procura do Infini-
do o mesmo autor, Diogo Pais de Cabedo, to (de que publica um excerto na revista Portu-
que acompanhou o filho de João I, o infante gal Feminino, dirigida por Maria Amélia Teixei-
D. Pedro. Pela bisavó, Diogo de Cabedo des- ra, publicação que reunia textos de escritoras
cendia de nobres franceses, os Chermont, pelo e poetisas tão prestigiadas como Teresa Leitão
que usava no seu ex­‑líbris o escudo desta famí- de Barros, Fernanda de Castro e Florbela Es-
lia. O brasão da família de Maria de Cabedo é panca), de que se desconhece a edição, e um
constituído por um fundo azul, tendo, de um livro de crónicas.
dos lados, três flores­‑de­‑lis douradas e uma cal- Phantasias e Realidades é constituído por 26
deira e, do outro, uma bandeira vermelha com capítulos, correspondentes a 26 textos de di-
dois crescentes. O escudo é encimado por uma versos estilos e temáticas, nas quais se incluem,
flor­‑de­‑lis. como mais recorrentes, a morte, o amor e a
A família de Maria de Cabedo tinha vários religiosidade. Alfredo Pimenta salienta o es-
membros ligados às letras, contando­‑se entre pírito multifacetado da autora, as “tintas festi-
eles o irmão, João Octávio de Costa Cabedo, vas”, as frases sonoras, a “alma estruturalmente
C abedo , M aria D ulcelinda da C osta de ¬ 629

emotiva, servida por uma imaginação exube-


rante”, o espírito culto, nascido e criado “num
meio quase cosmopolita como o do Funchal”,
que sabe impor a sua personalidade. Talvez o
maior elogio que faz ao livro se prenda com
a inexistência dos “processos lastimáveis” (que
não explica) comuns a muitos exemplares de
literatura feminina, interessando pela delica-
deza do estilo (PIMENTA, 1927, 12­‑13).
Além dos textos de teor amoroso ou religioso,
em que, na descrição de lugares e ambientes,
opta por traços impressionistas (“Que me tem
dito a paisagem, a luz, a cor? – Imenso e nada
Fig. 2 – Novo Almanach de Lembranças Luso Brasileiro, 1932.
afinal – impressões, de tantas, vão a enevoar­‑se
em doçura sem nome” (CABEDO, 1927, 87)) e
tons líricos, a escritora inclui igualmente notas no qual, a propósito da biblioteca Utile Dulci,
sobre as mulheres, a sua educação e a situação existente no Funchal, lamenta a pouca pro-
que as senhoras vivem na Madeira. No texto cura da mesma por parte das mulheres, que
“Chronica feminina”, ainda que julgue difícil desviam a atenção para outras coisas e, “rene-
as generalizações, já que cada ser é diferente gando o alimento espiritual” (Id., Ibid., 167),
por causa da educação, do temperamento e acabam por se revolver numa ignorância que
do meio envolvente, acredita que na mulher provoca pena na autora.
o que vence é a sua parte emotiva, o coração. Às elegantes e gentis, boas bailarinas e conver-
Ainda que este não anule o uso da razão, tem sadoras, falta­‑lhes, segundo Maria de Cabedo,
sempre a vitória do seu lado, e é isso que carac-
teriza a sensibilidade do ser feminino.
A autora volta a tratar da mulher quando, no
texto “Conversar”, descreve a época de turismo
na Madeira, com as “touristes, que alegram a
nossa terra, espalhando risos, esquissando ges-
tos” (Id., Ibid., 122), “very smart, num fundo de
paisagem acolhedora” (Id., Ibid., 123). A com-
paração entre as estrangeiras e as nativas faz
as madeirenses parecerem feias e ridículas,
pela excessiva pretensão da maquilhagem e
das roupas, arranjando­‑se como “poupées demi­
‑mondaines” (as senhoras que, no séc. xix, em
França, eram sustentadas pelos amantes ricos),
em contraste com a frescura e inocência das
europeias. Maria de Cabedo aproveita para cri-
ticar a coquetterie e a falta de gosto artístico, con-
siderando que as mulheres são como cartazes
do seu interior, devendo, por isso, cultivar os
talentos e o espírito e mostrar­‑se com simpli-
cidade: “Le monde marche, mas certas mulheres
parecem ainda estagnadas no charco de uma
vaidade tola” (Id., Ibid., 134). Este pensamento
é coerente com o que escreve em “Ler”, texto Fig. 3 – Olisipo (jul. 1963).
630 ¬ C abido

o espírito, pois deixam­‑se levar pelo enfeite, valiosa capela desconhecida do grande públi-
pelo encanto ilusório, pelos atavios. No fundo, co”, que saiu em separata e voltou a ser publi-
a escritora denuncia a falta de investimento in- cado em 1970.
telectual, de leitura e dos conhecimentos que
Obras de Maria Dulcelinda da Costa de Cabedo: À Procura do Infinito (s.d.);
se conseguem através dela, criticando os pre- Phantasias e Realidade (1927); “A ilha da Madeira e as suas fontes de água pura”
conceitos que ainda existem em relação à mu- (1932); “Um poeta madeirense desconhecido” (1932); “Uma valiosa capela
desconhecida do grande público” (1963).
lher letrada, ao afirmar que não é a leitura que
perverte, desequilibra ou desorienta, muito Bibliog.: impressa: CABEDO, Maria de, Phantasias e Realidade, Lisboa,
Aillaud/Bertrand, 1927; Id., “Um poeta madeirense desconhecido”, Novo
menos os livros escolhidos da Utile Dulci. Em
Almanach Luso­Brasileiro, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1932, pp. 369­
relação ao acervo desta biblioteca, lamenta a ‑370; CARDOSO, Maria de Cabedo, “Uma valiosa capela desconhecida do
falta de livros em português, considerando, no grande público”, Olisipo, ano xxvi, n.º 103, jul. 1963, pp. 142­‑147; CLODE,
Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal,
entanto, que entre os livros de estudo se en- Caixa Económica do Funchal, 1983; “D. Maria de Cabedo”, Novo Almanaque
contram obras essenciais: L’Éducation de la Vo- de Lembranças Luso­‑Brasileiro, Lisboa, Parceira António Maria Pereira, 1931;
Ilustração Portugueza, 16 out. 1927; PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas
lonté, de Payot, e La Femme de demain, de Étien- & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara
ne Lamy. A leitura desta última é aconselhada Municipal do Funchal, 1953; digital: MACEDO, L. S. Ascensão de, Da Voz à
Pluma. Escritoras e Património Documental de Autoria Feminina de Madeira,
a todas as meninas da sua terra, pois nela se Açores, Canárias e Cabo Verde. Guia Biobibliográfico, Ribeira Brava, ed. do
explica que a educação da mulher data de tem- Autor, 2013: file:///C:/Users/MariaJos%C3%A9/Downloads/Da_Voz_a_Pluma_
Escritoras_e_patrimonio_d%20(2).pdf (acedido a 5 dez. 2017).
pos remotos e que o seu valor e talento não é
uma inovação do feminismo. Luísa M. Antunes Paolinelli
A educação feminina é, na sua opinião, de
grande importância, pelo que não se coíbe de
criticar as mulheres que não aproveitam para
Cabido
alargar os horizontes e a possibilidade de se O cabido é um órgão colegial que, inicialmen-
educarem e serem cooperadoras do homem te, tinha por funções assegurar o serviço reli-
nas ciências modernas e na resolução dos pro- gioso da sé ou igreja a que pertencia, não só
blemas sociais. A educação não significa a re- a celebração das missas, mas também, prin-
cusa da mulher em ser calma, doce e deten- cipalmente, a Liturgia das Horas, tendo, en-
tora de especial compreensão espiritual, mas tretanto, alargado a sua função ao aconselha-
a conjugação dos atributos femininos com o mento do bispo ou do seu vigário­‑geral. Este
conhecimento.
De tom poético e de natureza delicada, os
textos de Maria de Cabedo caracterizam­‑se por
breves impressões e apontamentos de lugares
e de sentimentos. Apesar de não deixar de de-
monstrar uma certa ironia, principalmente
quando se refere a um determinado mundo
feminino, mais preocupado com a aparência
e com a vida mundana do que com o cultivo
do espírito, a autora investe principalmente
nas descrições de paisagem e na forma como o
efeito do espaço da Ilha se inscreve no espírito.
As narrativas curtas têm como temática peque-
nos episódios e centram­‑se na efemeridade da
vida, no amor e na espiritualidade.
A autora publicou ainda um artigo na revista
Olisipo, em 1963, que assinou como D. Maria
de Cabedo Cardoso, da Academia Literária Fe- Fig. 1 – Selo do cabido da Sé do Funchal, 1590 (ABM,
minina do Rio Grande do Sul, intitulado “Uma Arquivo do Paço Episcopal).
C abido ¬ 631

órgão é formado por elementos eclesiásticos, A 20 de março de 1513, D. Manuel I deter-


ligados por uma “regra” devido à qual são de- minara o regimento a observar nas eleições
signados como cónegos, num número máximo dos beneficiados da Sé, ou seja, dos futuros
de cinco dignidades. No Funchal, chegaram a cónegos, extensivo às restantes igrejas colegia-
existir 21 elementos: deão, arcediago, arcipres- das. Os candidatos teriam de ser “clérigos de
tes, chantre e mestre­‑escola, podendo haver bom exemplo e de vida honesta, e que saibam
um tesoureiro­‑mor e devendo ter, na generali- algum latim, e que o tempo em que se opu-
dade, os ofícios de teologal, penitenciário, se- serem para entrar nas ditas rações da Sé, sir-
cretário e fabriqueiro, dependendo dos cabi- vam na dita Sé”, devendo ainda, para além das
dos e das épocas. O cabido, seja catedralício “sobreditas qualidades”, ser “filhos de homens
ou colegial, é obrigado a ter estatutos próprios, de bem, naturais da terra”. Conforme fossem
estabelecidos e aprovados em reunião capitu- vagando os lugares, determinava­‑se ao vigário
lar e, posteriormente, aprovados pelo prelado que elaborasse “um rol” dos mesmos e, aparta-
diocesano. dos “em cabido no coro da sé, com os raçoei-
Deve datar de 1508 a organização da futura ros que forem de ordens sacras”, o futuro deão
Diocese do Funchal, após a sagração do edifí- lhes daria “juramento dos Santos Evangelhos,
cio da nova igreja, ainda em construção, quan- que bem e verdadeiramente deem seus votos
do foi recebida a ordem de D. Manuel (1469­ àqueles que mais aptos e pertencentes lhes pa-
‑1521) para se iniciar a construção do novo recerem para entrar”. A eleição deveria ocor-
hospital da Misericórdia no bairro de Santa rer a “três vozes”, e “àquele que sair a mais
Maria Maior. Nesse ano, ainda não se celebra- vozes” se passaria carta assinada e selada “com
vam aí os ofícios divinos, mas já se configura- o selo da Ordem” de Cristo, que passou depois
va uma nova estrutura eclesiástica, pois, a 28 a ser o selo do cabido, pois a Sé ainda não es-
de agosto de 1508, o Rei prometia criar mais tava instituída, enviando­‑se­‑lhe para obter uma
quatro beneficiados no Funchal, para “com- confirmação, com a data da eleição, relativa-
plemento dos doze” que haveria de ter a futura mente às pessoas que tinham votado e à razão
Sé, acrescentando que, “por mais honra e eno- por que vagara o lugar (Ibid., Tombo Velho,
brecimento da dita cidade, me apraz que tanto fls. 310­‑310v.).
que a igreja for acabada e para ela mudarem os O Rei D. João III ainda revogaria a forma de
ofícios divinos” (ABM, Câmara Municipal do apresentação dos futuros cónegos, determi-
Funchal, tombo 1, fls. 280­‑281) lhe assentava nando por alvará régio, em 1545, que “revo-
tal acrescento de beneficiados, o que veio de- go e hei em todo revogado” o conteúdo desse
pois a acontecer. regimento, porque “quando os tais benefícios
Com a elevação da então “igreja principal” a vagarem eu apresentarei a eles quem me bem
sé da Diocese, em 1514, passou o antigo vigário parecer sem intervir vossa eleição” (FERREI-
de Santa Maria Maior a deão do cabido, sendo RA, 1963, 355­‑357). Porém, nos anos seguin-
este constituído pelos anteriores doze benefi- tes, o costume manteve­‑se, por certo, pois o
ciados, então promovidos a cónegos. A bula de cabido sempre fez eleições internas e possuía
criação do bispado instituiu assim quatro dig- acórdãos e resoluções desde 1525. Assim, só
nidades: o deão, então Fr. Nuno Cão (c. 1460­ chegariam ao Rei os nomes propostos inter-
‑1530), o arcediago, João Álvares, o chantre, namente pelo cabido, até pela pouca ou ne-
João Rodrigues Bório, e o tesoureiro­‑mor, João nhuma presença do prelado na sua cátedra
Fernandes, assim como um cabido com 12 có- do Funchal. Mais tarde, instituiu­‑se por regi-
negos: João Dias, Gonçalo de Matos, Gonçalo mento interno, embora indo sempre os nomes
Martins, Vicente Gonçalves, João Esteves, Álva- à confirmação régia através da Mesa da Cons-
ro Lopes, Francisco Mendes, Amador Lopes, ciência e Ordens. Com a sequente nomeação
Baltazar Mourato, Lucas Álvares, Antão Borges dos bispos da Diocese, foram sendo colocados
e Diogo Fernandes. eclesiásticos da sua confiança como principais
632 ¬ C abido

dignidades, passando muitos depois ao cabido; por provisão régia de 25 de janeiro de 1594.
no entanto, a maioria seria, num curto espa- O número de ofícios e de capelães ainda cres-
ço de tempo, de “filhos de homens de bem, ceria nos anos seguintes, constituindo o cabi-
naturais da terra”, como se escrevera em 1513 do da Sé do Funchal – até porque muitas vezes
(ABM, Tombo Velho, fl. 310). em sé vacante – um corpo político, económico
Nos anos seguintes, o quadro de ministros e social que atravessará a história da Madeira.
da Sé foi sendo aumentado, tendo o primeiro No cabido, foram tendo assento os filhos se-
bispo, D. Diogo Pinheiro (c. 1450­‑1525), cria- gundos das principais famílias insulares, re-
do o lugar de mestre­‑escola, mencionado em presentando, a par e em estreita colaboração
1514, mas só dotado em 1527. Com o segun- com o senado da vizinha Câmara Municipal do
do bispo, D. Martinho de Portugal (c. 1485­ Funchal, os seus interesses e opondo­‑se, por
‑1547), e a elevação do Funchal a arcebispado, vezes terminantemente, aos poderes enviados
em 1536, foi a Sé dotada de quatro “cape- pelo continente do reino. A Câmara situava­‑se
lães de sobrepeliz” e de dois cónegos meios­ então nas traseiras da Sé, e nela tinham assen-
‑prebendados (BNP, Índice…, fls. 66­‑66v.). to, muitas vezes, os morgados representantes
O cabido seria ainda dotado de açougue pró- dessas famílias, que seriam, se não os irmãos,
prio, assunto evocado na carta de D. Manuel pelo menos os parentes mais próximos dos vá-
de 2 de dezembro de 1521, mas só efetivado rios cónegos.
Nos primeiros tempos, e enquanto os pri-
meiros prelados não se deslocaram à sua
diocese, o governo eclesiástico foi assegura-
do por vigários­‑gerais, por vezes já como có-
negos do Funchal, competindo aos mesmos
cónegos, com poucas exceções, as visitações
anuais a quase todas freguesias, exarando os
seus provimentos e mantendo não só uma
uniformização de procedimentos, como tam-
bém um amplo e profundo quadro de gover-
nação, intervindo no quotidiano e corrigindo
e disciplinando os aspetos mais particulares
dos paroquianos, como nenhuma entidade
governativa alguma vez conseguiu. As primei-
ras visitações decorreram com delegados do
bispo e do arcebispo do Funchal enviados do
continente, mas, com a obrigação de residên-
cia na sua diocese determinada pelo Concílio
de Trento, na maior parte dos casos, após a
tomada de posse, os prelados efetuavam pes-
soalmente uma visitação, delegavam as se-
guintes no cabido e também, em casos pon-
tuais, nos vigários das principais freguesias.
Pouco tempo depois, retiravam­‑se para o con-
tinente, alegando doença ou conseguindo
transferência para outra diocese e entregan-
do o governo ao deão e ao cabido. Contam­‑se
quase pelos dedos de uma mão os prelados
Fig. 2 – Edifício do cabido da Sé do Funchal, reconstrução de 1734
que, até ao séc. xx, faleceram na Diocese do
(projeto de Diogo Filipe Garcês) (arquivo particular). Funchal.
C abido ¬ 633

O cabido, entretanto, era ainda o órgão que


substituía o bispo em caso de falecimento, até
à posse do novo, sendo então a diocese go-
vernada pelo deão, em nome do mesmo ca-
bido. Após os tristes acontecimentos de 1642
– os tumultos ocorridos após a aclamação de
D. João IV (1604­‑1656), que chegaram ao assas-
sinato de corregedores régios –, o bispo D. Je-
rónimo Fernando (c. 1590­‑1650) retirava­‑se
para Lisboa a breve trecho. Falecido o prelado
em 1650, dadas as dificuldades de apresenta-
ção de bispos pela corte portuguesa em Roma,
o Funchal só renovou o prelado em 1671, che-
gando a ocorrer uma sedição, em 1668, em
princípio liderada pelo deão, em que o gover-
nador foi preso e enviado para o continente.
O novo bispo do Funchal, D. frei Gabriel de
Almeida (c. 1710­‑1674), começou por tomar
posse da Sé do Funchal pelo Cón. António
Valente de Sampaio, que se apresentou no
cabido a 24 de julho de 1671 com as bulas
apostólicas, lavrando­‑se auto. Este foi assi-
nado pelo arcediago licenciado Simão Gon-
çalves Cidrão, pelo tesoureiro­‑mor António
Gonçalves de Almeida, pelo mestre­‑escola An- Fig. 3 – Eleições para tesoureiro do cabido da Sé do Funchal,
sendo escrivão o Cón. Jerónimo Dias Leite, sacrista da Sé,
tónio Spranger Rocha, pelos cónegos Gaspar 25 de setembro de 1576 (ANTT, Cabido da Sé do Funchal,
da Cunha, António de Vasconcelos, Inácio liv. 2, fl. 129v.).
Spranger Bazilir, Manuel Ribeiro Neto, Ma-
nuel Pereira da Silva, João de Saldanha, teó- (Ibid., fls. 32ss.), embora o padre comissário de
logo da sé, Manuel da Câmara da Silva, Ama- S. Francisco se tenha colocado ao lado dos dois
dor Simões de Vasconcelos, Pedro de Castro, frades. Os franciscanos acabaram mesmo por
Marcos Freitas, António Veloso de Lira e An- ser proibidos de confessar e pregar em toda a
tónio Valente de Sampaio, e pelos cónegos de Diocese. O prelado veio a falecer a 12 de junho
meia­prebenda Salvador Pacheco de Andra- de 1674, mas não o assunto, e, tendo a Dio-
de e Gregório Coelho de Medina. Refere­‑se, cese conhecido um novo bispo, D. António
ainda, que se encontravam enfermo “o reve- Teles da Silva (c. 1620­‑1682), também falecido
rendo deão” Pedro Moreira e “fora da cidade no Funchal, a 16 de janeiro de 1684, quase 10
o reverendo chantre” (ANTT, Cabido da Sé anos depois do incidente com os franciscanos,
do Funchal, liv. 3, fls. 31­‑31v.). e perante novos desacatos, “se juntaram os ca-
O prelado haveria de chegar ao Funchal a 4 pitulares ao som de campa tangida” para, mais
de março do ano seguinte, mas teria um curto uma vez, proibirem os frades franciscanos de
e tribulado episcopado, tendo surgido desinte- pregar no púlpito da Sé (Ibid., fls. 47ss.).
ligências com os frades franciscanos que pre- O cabido conheceu então um novo incre-
gavam na Sé, o que lhe abreviou a existência. mento com a presença do Cón. António Lopes
Dois frades franciscanos envolveram­‑se em de Andrada (1640­‑c. 1700), que, em 1677,
despiques na Sé, “desonrando­‑se” mutuamen- D. frei Teles da Silva enviou a Roma para dar a
te no púlpito, o que levou o bispo a publicar obediência ad limina apostolorum ao Papa Ino-
um decreto, datado de 22 de outubro de 1672 cêncio XI, depois das faustosas cerimónias
634 ¬ C abido

Fig. 4 – Lápide sepulcral do que se arrastou ao longo de anos,


Cón. António Lopes de Andrada, 1704
(Sé do Funchal).
discutindo­‑se se teriam ou não
voz no cabido, como interfe-
riam no cerimonial, se teriam ou
para o concílio que fez reunir não direito de murça com cape-
em 1680, encontrando­‑se, pela lo, etc., questões que somente
primeira vez, um nobre de corte foram resolvidas em 1628, pelo
à frente da Diocese do Funchal. bispo D. Jerónimo Fernando (c.
Nos anos seguintes, os cónegos 1590­‑1650). O assunto foi trata-
da Sé aparecem, inclusivamen- do pelo Cón. e vigário­‑geral Ma-
te, ligados ao tráfego internacio- nuel Ribeiro Neto (c. 1610­‑1681)
nal atlântico, dando aval à fama sob o título Alegação sobre as Meias
que a maioria possuía de liga- Conezias do Funchal, trabalho edi-
ção aos comerciantes cristãos­ tado em Lisboa, em 1660, um
‑novos da Baía, com relações sinal do interesse que havia des-
com comerciantes de Amester- pertado no meio da jurisprudên-
dão, como o chantre Domin- cia eclesiástica.
gos de Andrade e Alvarenga e o As questões de salvaguarda do
Cón. António Lopes de Andra- prestígio social dos elementos
da, e a vários comerciantes in- do cabido surgem logo em 1584,
gleses, entre outros, tendo­‑se verificado que o na sequência das constituições de D. Jerónimo
último cónego era irmão do administrador da Barreto (1543­‑1589) e da implantação da orga-
Companhia Real da Guiné e Cacheu, o Cap. nização tridentina. As constituições foram pu-
Gaspar de Andrada (1642­‑c. 1700), que já fora blicamente apresentadas em sínodo reunido
administrador do comboio no Funchal. na Catedral, a 18 outubro de 1578, dia em que
A prosperidade do comércio madeirense na se comemorava a sagração da Sé. Nesse qua-
época e o protagonismo do Cón. António Lopes dro, o cabido deliberou que não fossem dali
de Andrada, filho do almoxarife Diogo Lopes em diante “a uma solenidade de confraria, fora
de Andrada e de Inácia Pereira, cristã­‑nova, le- das da Sé, sem que pelo caminho se dessem
varam mesmo a que se tentasse colmatar as difi- dois mil réis, fora a esmola da missa e dos mi-
culdades do pagamento do clero de Cabo Verde nistros que se vestem para ela, que será o que
com as sobras da Fazenda do Funchal. Em 1676, somente costumam dar” (ANTT, Cabido da Sé
a pedido do bispo de Cabo Verde, D. frei Antó- do Funchal, liv. 2, fls. 151v.­‑152). Conscientes
nio Dionísio, foi concedido àquela diocese que da exigência de preservação da sua imagem,
se pudessem pagar as suas ordinárias dos sobe- por ac. de 2 de julho de 1678, voltavam a deter-
jos das rendas da Alfândega da Madeira, uma minar não participar em funerais de pessoas de
vez que não podiam ser pagas pelos rendimen- qualquer estado, qualidade ou preeminência e
tos do comércio de Cabo Verde, uma situação outros serviços ou funções exteriores à Sé. Re-
que se repetiu, entre 1684 e 1695, com o seguin- ferem, inclusivamente, que tudo isso era para
te bispo, D. frei Vitoriano do Porto. “guardarem o decoro, e estimação devida às
Em meados do séc. xvii, a Sé atingia o seu suas pessoas, e a autoridade de que os Sagrados
máximo esplendor de pessoal, com cinco dig- Cânones e Sua Santidade lhes encomendam”.
nidades: deão, arcediago, chantre, tesoureiro Em relação aos funerais, alegam também que
e mestre­‑escola, assim como um cabido consti- padeciam de incómodos de calor e chuva, es-
tuído por 12 cónegos, onde entrava um teolo- peras por irmandades e outros inconvenientes
gal e mais quatro meios­‑cónegos, ou cónegos (Ibid., liv. 3, fls. 39­‑40).
de meia prebenda. A indefinição do estatuto Estas e outras atitudes levaram o reverendo
dos cónegos de meia prebenda foi um assunto anglicano John Ovington (1653­‑1731), que
C abido ¬ 635

esteve na Madeira em abril de 1689, a caminho


de Surrat, a tecer uma série de comentários
sobre o Funchal e os madeirenses, que publi-
caria em Londres, em 1696. É dele a referência
de que os cónegos eram homens corpulentos e
indolentes, e que até atrasavam o relógio da Sé
para se levantarem uma hora mais tarde para
as orações da manhã. Tendo em consideração
que este reverendo anglicano tece complica-
das e raivosas opiniões sobre os padres jesuí-
tas, caracterizando­‑os como pessoas de grande
“incapacidade cultural, facilmente denunciada
na sua ignorância, tão grande, que apenas um
em três com quem conversei, compreendia o
latim” (ARAGÃO, 1981, 204), dificilmente se
podem validar as suas afirmações.
Nos finais do séc. xvii, o bispo D. frei José de
Santa Maria, nascido Saldanha (c. 1650­‑1708)
e que viria a falecer como bispo do Porto, en-
viou para Roma, por carta, o relatório da visita
ad sacra limina, com data de 16 de setembro de Fig. 5 – D. Fr. José de Santa Maria (c. 1650-1708),
nascido Saldanha (ANTT).
1693. Começa o relatório com o bispo a lamen-
tar não poder mandar um cónego à Santa Sé,
por serem “as rendas muito ténues e haverem como eram as confrarias, quase todas também
grandes perigos de mar e corsários”, passando, sob supervisão do cabido, 1 porteiro de maça,
logo de seguida, a uma descrição relativamen- 1 sineiro e, inclusivamente, 1 perreiro (NORO-
te pormenorizada do bispado. Por ela se fica NHA, 1996, 150).
a saber o quadro de servidores da Sé: 5 digni- Ainda segundo Noronha, o cabido da Cate-
dades, 12 prebendados, 4 meios­‑prebendados, dral do Funchal usava por armas uma cruz epis-
1 sub chantre, 20 capelães, sendo um deles copal, apresentada como sendo a da “milícia
mestre de cerimónias, 2 curas, 1 sacristão, 1 al- de Cristo, de que usam por armas os prelados
tareiro, 1 organista, 1 mestre de capela, 6 me- de Tomar”, com uma inscrição que os prelados
ninos de coro, 1 porteiro da maça e 1 sineiro, ultramarinos antigamente traziam, demons-
num total de 47 ministros (ABM, Arquivo do trando, no entanto, uma diferença na orla do
Paço Episcopal do Funchal, doc. 60). escudo: “Do Cabido da Sé do Funchal e assim o
O conjunto de ministros da Sé por volta de foram continuando até hoje”. Todos os capitu-
1720, segundo Henrique Henriques de Noro- lares tinham obrigação de coro, na capela­‑mor,
nha (1667­‑1730), cuja família sempre teve, ao tal como as suas semanas de missas. Na primei-
longo do Antigo Regime, pelo menos um ele- ra instância, nenhum podia ter estatuto sem re-
mento no cabido da Sé, para além das digni- sidir primeiro seis meses, e, se obtivessem uma
dades, dos cónegos e meios­‑cónegos, ainda in- promoção na mesma Sé, então só três meses.
cluía 1 penitenciário, criado na sequência das Nos dias em que as dignidades diziam a “missa
diretivas do Concílio de Trento, 1 sub chantre, da festa”, eram obrigados os cónegos a dizer
1 mestre de cerimónias, 1 mestre de capela, os evangelhos, e os meios­‑cónegos as epístolas.
10 capelães de sobrepeliz, 1 tesoureiro­‑menor, Nas “festas da obrigação”, assim como nas mis-
1 altaneiro, 1 organista e 2 curas. Do pessoal sas pontificais, eram obrigadas as dignidades
em serviço da Sé, ainda constavam 6 moços de aos evangelhos e os cónegos às epístolas, “mas
coro, vários sacristães afetos a outras estruturas, por pauta e escolha do prelado”. A Catedral
636 ¬ C abido

social do cabido, mas, ao longo do séc. xix,


ainda é muito importante e interessante a
sua ação, não tendo ficado, e.g., na época ab-
solutista quase nenhum cónego na Ilha, pois
eram quase todos de feição liberal. Em mea-
dos do séc. xviii, o termo “cabido” estendia­‑se
às várias colegiadas das matrizes, assim pare-
cendo em alguns dos compromissos de con-
frarias, como no da Confraria do Corpo Santo
do Funchal, de 1745, onde se refere que, nos
oitavários dos defuntos, se deveria fazer um
ofício de nove lições, com suas vésperas, “na
nossa igreja, pelo prior do cabido da fregue-
sia” (ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Fun-
chal, Compromisso..., cap. 3.º, § 1.º).
Os membros do cabido da Sé integraram
quase sempre as listas concorrentes às várias
eleições madeirenses a partir da segunda me-
tade do séc. xix, como as de 1879, onde foi
eleito o Cón. Alfredo César de Oliveira (1840­
‑1908), fundador e diretor do Diário de Notícias,
pelo círculo do Funchal, e o Cón. Feliciano
João Teixeira (1842­‑1896), pelo da Ponta do
Sol, tendo a Madeira ficado a dever a este últi-
mo a recuperação da cruz processional da Sé,
que estava para integrar o Museu Nacional de
Belas Artes. Já nos inícios do séc. xx, uma nova
Fig. 6 – Antigo reposteiro do cabido da Sé do Funchal, c. 1720
(igreja do Colégio).
figura do cabido da Sé, onde fora escrivão da
câmara eclesiástica, viria a ter uma larga proje-
ção: o Cón. António Homem de Gouveia (1869­
mantinha, desde o tempo em que fora arcebis- ‑1961), tal como, no Estado Novo, o Cón. Agos-
pado, algumas prorrogativas somente permiti- tinho Gonçalves Gomes (1912­‑2002).
das às metropolitanas, entre as quais o uso de Com as diretivas emanadas na sequência
seis maças, de estolão e de os capitulares for- do Concílio Vaticano II, por carta apostólica
rarem as murças de vermelho, “singularidade de 6 de agosto de 1966, o Papa Paulo VI pro-
que não tem muitos” (Id., Ibid., 150­‑152). mulgou as normas para aplicação do Conce-
O séc. xviii marcou um longo braço de lho Presbiteral, “constituído por um senado
ferro entre os membros do cabido e os bispos de padres destinado a ajudar no seu governo
jacobeus, destacando­‑se especialmente D. frei o bispo de cada diocese” (PEREIRA, II, 1967,
Manuel Coutinho (1673­‑1742), que decidida- 442). A nova diretiva seria implantada no
mente coloca à frente deste órgão elementos Funchal pelo bispo D. João António da Silva
da sua inteira confiança e, ao mesmo tempo, Saraiva (1923­‑1976), logo a 7 de março de
reforma toda a área de serviço do cabido com 1967, designando a constituição do seu con-
a construção de um importante edifício, que selho presbiteral, primeiro com elementos de
permaneceu um marco da sua passagem pela sua nomeação e, depois, acrescido de outros
Diocese. A centralização do poder régio ao elementos escolhidos pelo próprio clero da
longo dos anos seguintes foi limitando pro- Diocese, que se reuniu pela primeira vez a 20
gressivamente o papel político, económico e de abril de 1967.
C abo submarino ¬ 637

Fig. 7 – Sala de reuniões do cabido da Sé, c. 1743 a 1800 (arquivo particular).

O cabido da Sé, que chegara a ter 21 capitu- Composição da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, antigamente
Primaz de Todas as Conquistas, Distribuída na Forma do Systema da Academia
lares e se reduzira a 12 desde a Concordata de Real da História Portuguesa, Anno de 1722, Funchal, CEHA, 1996; SILVA,
1940, embora não fosse extinto e mantendo per- Fernando Augusto da, Subsídios para a História da Diocese do Funchal, Funchal,
s.n., 1946; Id., e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols.,
sonalidade própria, viu reduzida uma grande Funchal, DRAC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade
parte do seu anterior papel, relativamente à re- Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.

presentatividade do conselho presbiteral, apre- Rui Carita


sentando outro âmbito de consulta e, ao mesmo
tempo, outra dinâmica. Embora em muitas dio- Cabo submarino
ceses fosse autorizada a manutenção do cabi-
A posição da Madeira, no caminho para Áfri-
do com o antigo papel institucional, como na
ca e América, fez com que assumisse uma fun-
Diocese do Funchal, a sua função tornou­‑se es-
ção primordial na rede de cabos submarinos.
sencialmente de diferenciação hierárquica na
Foi a partir da Ilha que se fizeram, em 1874,
organização eclesiástica, e a sua ação bastante
as primeiras ligações transatlânticas. Todavia,
diminuta, em relação ao que já fora.
o incremento deste meio, em princípios do
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, séc. xx, veio a confirmar o porto da Horta
Compromisso da Confraria do Glorioso S. Frei Pedro Gonçalves Telmo, (Faial, Açores) como o principal eixo do ema-
vulgarmente Chamada do Corpo Santo, Funchal, 1745 (n/ catalog.); Ibid.,
Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 60; Ibid., Câmara Municipal do ranhado de cabos que estabeleciam as ligações
Funchal, Registo Geral, tombos 1 e 3, e tombo velho; ANTT, Avulsos, mç. 7; entre o continente americano e a Europa: para
Ibid., Cabido da Sé do Funchal, livs. 1­‑4; BNP, reservados, cód. 8391, Índice
do Registo da Provedoria da Real Fazenda do Funchal; impressa: ARAGÃO, o período entre 1893 e 1928 estão registados
António (coord. e notas), A Madeira Vista por Estrangeiros. 1455­‑1700, 15 cabos que aí amarravam.
Funchal, DRAC, 1982; CARITA, Rui, A Sé do Funchal. 1514­‑2014, Funchal,
DRAC, 2015; FERREIRA, Manuel Juvenal Pita, A Sé do Funchal, Funchal, JGDAF,
A ideia do cabo submarino havia sido sugeri-
1963; GUERRA, Jorge Valdemar, e BARROS, Fátima, Rol dos Judeus e Seus da em 1795, pelo catalão Salvat, numa comu-
Descendentes, Funchal, DRAC, 2003; NETO, Manuel Ribeiro, “Allegaçam sobre
as meas conezias do Funchal”, in Três Allegações de Direito, Lisboa, s.n., 1660;
nicação sobre o uso da corrente elétrica para
NORONHA, Henrique Henriques de, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a transmissão à distância, apresentada à Real
638 ¬ C abo submarino

A ligação entre a Madeira e São Vicente foi


realizada pelo vapor Hibernia, ficando concluí-
da a 11 de março de 1874, altura em que foram
trocados telegramas entre a Câmara de São Vi-
cente e a sua congénere no Funchal. Em janeiro
de 1876, rebentou o cabo no percurso de Lisboa
ao Funchal, o que levou a companhia a propor
o lançamento de outro, concretizado em 1882,
mas com o dobro dos circuitos. O lançamento
do cabo esteve a cargo de William Thomson,
que casara com Ann Blandy, filha de Richard
Blandy, a 24 de junho de 1874.
Assim, a partir de 1874, a Madeira ficou liga-
da ao continente com um meio de comunica-
ção que fazia com que as notícias chegassem de
forma célere, para serem atempadamente publi-
cadas na imprensa local, permitindo aos madei-
renses ter uma via mais rápida de comunicação
com as instituições e autoridades, de maneira a
Fig. 1 – Antigo edifício da Madeira Eastern Telegraph Company, que a sua voz se fizesse sentir também de forma
Calç. de Santa Clara (arquivo particular). célere. No decurso da déc. de 80, foi insisten-
te o recurso a este meio, designadamente por
Academia de Ciências e Artes de Barcelona. parte da Associação de Comércio Funchalense,
Três anos mais tarde, era lançado, em Madrid, das câmaras municipais e das associações, para
o primeiro circuito, com 44 km, mas só a partir fazer chegar a sua voz e as suas reclamações aos
da déc. de 40 da centúria seguinte este meio ministérios ou ao Parlamento. O telegrama era,
ganhou novo incremento. Para tal, terá contri- assim, um instrumento de reivindicação, com-
buído o facto de o português José de Almeida bate e afirmação da presença dos madeirenses
ter trazido da Malásia para a Europa a gutta­ na metrópole. Talvez por isso, em 1921, o go-
‑percha, apresentada, em 1843, na Royal Asiatic vernador civil Acácio Augusto Correia Pinto
Society de Londres. Este produto passou a ser queixava­‑se da falta de dinheiro para enviar
utilizado como isolador dos cabos submarinos qualquer telegrama, uma vez que a sua expedi-
a partir de 1845. ção era feita a pronto pagamento.
O período que se sucedeu foi marcado por Entretanto, a ligação dos Açores a Lisboa só
múltiplos lançamentos do cabo e pela cria- veio a acontecer em 1892. Porém, em 1879, já
ção de companhias para a sua exploração. Em se refere­a possibilidade de uma ligação entre
1856, surgiu a Atlantic Telegraph Company, e, Lisboa, Madeira e a ilha de São Miguel. Depois,
em 1873, a Brazilian Submarine Telegraph Co., a 17 de fevereiro de 1882, foi autorizado o con-
esta última responsável pelo lançamento e ex- trato sem concurso público para o lançamento
ploração de um circuito entre Portugal e o Bra- de um cabo submarino entre Lisboa, Açores e
sil, com passagem pelo Funchal e São Vicente América, passando pela ilha da Madeira. A par-
(Cabo Verde). A imersão do cabo começou a 28 tir de 1889, a companhia de exploração do
de agosto de 1873, sendo executada pelo vapor cabo passou a chamar­‑se Western Telegraph, e
inglês Seins. A 19 de março de 1874 estava con- foi ela a responsável pelo lançamento de um
cluída a ligação com o Funchal, estabelecendo­ novo cabo, em 1901. A 21 de setembro, foi as-
‑se de imediato a prestação do serviço público. sinado um outro contrato com a Eastern Tele-
O contrato para a exploração deste cabo foi as- graph Company para um cabo submarino que
sinado a 2 de novembro de 1872. iria ligar a Inglaterra à África do Sul.
C abo submarino ¬ 639

Fig. 2 – Estação telegráfica do Mindelo, em Cabo Verde, bilhete-postal enviado por Geo W. Worsell Esq, 1905
(antiga coleção Nellie Worsell, da Casa Cory/Johan Cunha, Funchal).

A instalação de cabos submarinos nos espa- especiais de segurança do recinto pela polí-
ços insulares atlânticos, a partir da déc. de 70 cia cívica. As piores previsões confirmaram­
do séc. xix, revela mais um papel importante ‑se quando, a 3 de dezembro de 1916 e a 12
atribuído aos espaços insulares na conexão da de dezembro de 1917, os submarinos alemães
Europa com a América e África. Na Madeira, bombardearam de forma relâmpago a cidade
São Vicente e Faial estabeleceram­‑se instala- do Funchal, tendo em linha de mira a estação
ções de apoio à amarração dos diversos cabos de S.ta Clara (as bombas acabaram por cair no
que foram servidas por funcionários das com- Convento).
panhias envolvidas, muitas das quais prove- A afirmação do cabo submarino como um
nientes dos países proprietários. Rapidamente meio privilegiado de comunicação com o ex-
se criou, em cada uma das ilhas, a comunida- terior foi efémera. A concorrência da telegra-
de dos cabos submarinos, que estabeleceu e fia sem fios, mercê dos progressos técnicos ge-
manteve ligações diretas com a comunidade rados por Marconi, e a afirmação do correio
residente. Assim, na Madeira, eram frequen- aéreo, associados à Depressão de 1929, condu-
tes os convívios com os locais, despertando ziram a que aqueloutro meio se tornasse obso-
esse grupo estrangeiro a atenção de todos. leto e com elevados custos, dando lugar a uma
Acrescente­‑se que a eles se deve a prática de complexa rede de telegrafia sem fios. Este foi
diversas modalidades desportivas, como o fute- o primeiro passo para um rápido enlace de
bol e o críquete. todo o mundo, conseguido em pleno na atua-
A estação do cabo nas proximidades do lidade, com a geração dos satélites. Não obs-
Convento de S.ta Clara era alvo da atenção tante as primeiras experiências de rádio serem
de todos. Com a Primeira Guerra Mundial, de 1825, foi em finais do séc. xix, com Gui-
tornou­‑se um centro nevrálgico, em termos lherme Marconi, que se deram os grandes pro-
de circulação de informações, que impor- gressos na transmissão pela telegrafia sem fios.
tava salvaguardar. Desta forma, a partir de Com efeito, foi em 1896, após um ano de expe-
março de 1916, foram estabelecidas medidas riências, que o mesmo registou a patente, em
640 ¬ C abo submarino

Londres, criando a Wireless Telegraph Com- ao aparecimento de um novo meio alternati-


pany no ano imediato. vo, o satélite, em 1982. Durante este período,
A Madeira começava a ficar ligada de diver- as estações trabalharam apenas algumas horas
sas formas aos continentes vizinhos. Assim, em por dia, de modo a não se perder a soberania
1947, foi estabelecido um novo cabo entre Gi- das frequências.
braltar e o Funchal; em 1960, um outro amar- A substituição deste cabo teve lugar com
rou no Lazareto e, finalmente, em 1972, foi o lançamento de dois novos em fibra ótica:
inaugurada uma nova geração de cabos por o Euráfrica e o Sat­‑2. O primeiro estabeleceu
iniciativa da Marconi. A companhia inglesa do a ligação entre o continente, França e Mar-
cabo submarino havia encerrado oficialmente rocos, passando pela Madeira, enquanto o
as suas instalações a 31 de dezembro de 1970. segundo se estendeu até à Cidade do Cabo.
Desde o verão de 1971, ficou estabelecido O desmantelamento do CAM­‑1 (continente,
que a Madeira ficaria servida de um novo cabo Açores, Madeira) ocorreu pelas 11 horas do
submarino, capaz de atender às solicitações dia 29 de junho de 1993. O cabo submarino
dos madeirenses, substituindo assim o anti- de sistema analógico, ao fim de 21 anos de
go e abandonado cabo dos Ingleses. As obras serviço, passava à história, dando lugar à tec-
iniciaram­‑se em dezembro de 1971 e, a 11 de nologia digital. A sua entrada em funciona-
maio do ano seguinte, deu­‑se início ao lança- mento contribuiu para uma melhoria signifi-
mento do cabo submarino, que seria inaugura- cativa das comunicações com o exterior, uma
do a 2 de setembro. Este, com 160 circuitos te- vez que, aos seis circuitos de rádio existentes,
lefónicos, abriu novas possibilidades às ligações vieram juntar­‑se os 120 do cabo. O crescimen-
com o exterior e à disponibilização de novos to destes circuitos duplicou com a estação
serviços, como o telex. Em 1980, esta oferta de terrena de satélites, atingindo, na atualida-
serviços foi ampliada para 144 canais, com a ins- de, com os novos cabos submarinos, mais de
talação de um sistema duplicado de vias. Com 15.000 circuitos. Entretanto, concretizou­‑se o
esta nova linha de comunicação, a Marconi não Euráfrica, cujo acordo de construção e ma-
desmantelou as estações de telegrafia sem fios nutenção foi assinado a 3 de julho de 1989,
do Garajau e Caniçal, mantendo­‑as no ativo, com participação francesa, marroquina e
como reserva para qualquer eventualidade, até portuguesa. Este cabo substituiu o Tágide, o

Fig. 3 – Jogo de futebol, no antigo Campo de D. Carlos, entre elementos do futuro Marítimo e da Madeira Eastern Telegraph Company,
1909 ou 1910 (antigo arquivo do Marítimo/Campo Almirante Reis).
C abo V erde ¬ 641

Amite, o Atlas e o CAM­‑1, estabelecendo uma Cabo Verde


ligação entre Saint Hilaire de Riez (França),
Sesimbra, Funchal e Casablanca. A 28 de se- O descobrimento das ilhas de Cabo Verde
tembro de 1992, abriu­‑se esta via, fornecendo integrou­‑se no processo gradual de explo-
aos utentes um amplo leque de serviços de ração do litoral africano iniciado com o po-
telecomunicações. voamento da ilha da Madeira e levado a cabo
Vale a pena destacar o Sat­‑1, inaugurado a pelos navegadores ao serviço de Portugal,
18 de fevereiro de 1969, que se estendia ao que, a partir de 1434, começara a afastar­‑se
longo de 10.787 km, ligando a Cidade do Cabo da política de pirataria pura, passando a pri-
a Lisboa, com amarrações em Ascensão, Cabo vilegiar outro tipo de contactos e de instala-
Verde e Canárias: tinha capacidade para 360 ção. Embora os navegadores portugueses te-
canais e atingiu, em 1978, o limite da sua uti- nham chegado à costa da Guiné em 1444, o
lização, pelo que se tornou necessário lançar tipo de navegação dos primeiros navios portu-
um novo cabo, o Sat­‑2, que surgiu em sua subs- gueses, as barcas, que navegavam à bolina e à
tituição. Este cabo de fibra ótica liga o conti- vista da costa, não lhes permitia aventurarem­
nente à Madeira, Canárias e África do Sul, tem ‑se no mar alto. Assim, só cerca de 15 anos de-
uma extensão de 9000 km e capacidade para pois, quando aqueles navegadores já haviam
15.000 circuitos bidirecionais e 30 canais de te- entrado no golfo da Guiné e atingido a Serra
levisão. A 8 de março de 1990, foi assinado um Leoa, numa viagem de retorno, por certo já
acordo de intenção, subscrito pela Companhia
Portuguesa Rádio Marconi, Correios e Teleco-
municações de África do Sul, France Telecom,
Telefónica de Espanha, British Telecom, Bun-
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Fig. 1 – Pormenor das ilhas atlânticas na carta do Atlântico Norte,
† Alberto Vieira Lopo Homem e Reineis (atr.), 1519 (2.ª carta de atlas Miller da BNF).
642 ¬ C abo V erde

em caravela, é que encontraram acidental- Segundo veio a escrever Diogo Gomes, rei-
mente algumas das ilhas do arquipélago de vindicando o descobrimento das ilhas de Cabo
Cabo Verde. Verde para si, as ilhas haviam sido avistadas por
A descoberta das ilhas de Santiago, de Maio, ele e por António da Noli, cada um em sua ca-
do Fogo, da Boavista e do Sal, em finais de 1459 ravela, depois de dois dias e meio de viagem a
ou, mais provavelmente, em 1460, foi reivindica- partir do rio dos Barbacins. Decidindo ambos
da por três navegadores: os italianos Luís de Ca- aproximar­‑se, como a caravela de Diogo Gomes
damosto (1432­‑1488) e António da Noli (1415­ era mais veleira, ele teria chegado primeiro,
‑1497) e Diogo Gomes (c. 1402­‑1420­‑c. 1502), reconhecendo uma praia de areia branca que
almoxarife de Sintra. O descobridor teria sido lhe pareceu um bom porto, onde fundeou, se-
António da Noli, na companhia do qual teria guido por António da Noli. Diogo Gomes in-
navegado Cadamosto; este, no entanto, escre- sistiu em ir a terra primeiro e, tendo realiza-
vendo depois sobre essa e outras viagens, cha- do a sua intenção e não tendo visto qualquer
mou a si os louros da exploração. Nos finais de sinal de vida humana, nomeou a nova terra
1461 ou inícios de 1462, em nova viagem, o na- “ilha de Santiago”, a qual “assim se chama até
vegador Diogo Afonso (c. 1390­‑1498), conta- hoje” (GODINHO, I, 1982, 93­‑94). Regressan-
dor da ilha da Madeira e escudeiro do infante do a Portugal, passaram pela ilha da Madeira,
D. Henrique (1394­‑1460), teria avistado as ilhas mas uma tempestade arrastou­‑os depois para
Brava, de São Nicolau, de Santa Luzia, de Santo os Açores. António da Noli permaneceu algum
Antão, de São Vicente e os ilhéus Raso e Bran- tempo na Madeira, mas, aproveitando vento
co. Segundo os relatos da época, as ilhas esta- favorável, chegou depois a Portugal antes de
vam desertas, não havendo qualquer indício Diogo Gomes e pediu a capitania da ilha de
de presença humana, como depois também es- Santiago a el­‑rei, tendo­‑a recebido e conserva-
creveu Cadamosto: “não se encontrando nelas do até morrer.
senão pombos e aves de estranhas sortes, e A defesa da tese de um povoamento ante-
grande pescaria de peixe” (MARQUES, sup. I, rior assenta em vagas informações do navega-
1988, 232­‑233). dor Duarte Pacheco Pereira (1460­‑1533), que

Fig. 2 – Terraços dos Carvoeiros, ilha de São Nicolau (fotografia do projeto CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005).
C abo V erde ¬ 643

esteve em Cabo Verde várias vezes nos finais do


séc. xv, e na notícia divulgada por um autor
anónimo nos finais do séc. xviii: “Esta ilha [de
Santiago] se achou já habitada de muitos ho-
mens pretos, que, por tradição, se dizia terem
procedido de um rei Jalofo, que, por causa de
uma sublevação, tinha fugido do seu país com
toda a família a buscar refúgio, em uma canoa,
na costa do continente do mesmo Cabo Verde.
Mas porque foi acometido de uma veemente
tempestade de vento leste, que são frequentes
nesta costa desde maio até outubro, o ímpeto
dos ventos fez aportar a canoa nesta ilha” (No-
tícia Corográfica…, 1784, 125).
A ilha de Santiago foi dividida em duas capi-
tanias: uma a sul, com sede na Ribeira Grande,
e outra a norte, centrada em Alcatrazes, tendo
a primeira sido entregue a António da Noli e
a segunda a Diogo Afonso, que participara no
descobrimento das ilhas de Barlavento. A do-
cumentação conhecida é no entanto bastante
tardia, de 1497, de uma altura em que D. Ma-
nuel I (1469­‑1521) já era rei; porém, refere Fig. 3 – Pelourinho da Cidade Velha, 1512 a 1520, ilha de Santiago
(fotografia de Jorge Bruno, 2010).
documentos anteriores, de 1485, em relação a
Diogo Afonso, e do mesmo ano de 1497, relati-
vamente a António da Noli. e nos Açores, recorrendo­‑se, inclusivamente, a
A ocupação efetiva do arquipélago, que co- degredados, depois, com “as liberdades e fran-
meçara pela ilha de Santiago, em 1462, com quezas” da carta de 12 de junho de 1466, as coi-
o infante D. Fernando (1433­‑1470), conheceu sas mudaram substancialmente (ANTT, Chan-
muitas dificuldades devido ao seu afastamento celaria D. Afonso V, liv. 14, fl. 104). Tendo­‑se
do reino e por não dispor das condições na- permitido aos residentes de Santiago comer-
turais de clima e de temperatura para um po- ciarem diretamente com a vizinha costa afri-
voamento europeu. Por outro lado, o processo cana, a ilha tornou­‑se bastante mais apetecí-
de povoamento com gente das costas africanas vel; com efeito, a partir dessa data, passaram
também se ressentiu das condições insulares a poder resgatar com os seus navios na costa
cabo­‑verdianas, pois aquela população estava da Guiné até ao limite da pequena ilha de Ar-
habituada a outro tipo de clima e de vegetação. guim, pertencente à Mauritânia nos princípios
Ao contrário da Madeira, com um magnífico do séc. xxi. O rei concedeu ainda aos morado-
revestimento florestal que, inclusivamente, le- res a isenção do pagamento da dízima dos pro-
vara à reformulação das embarcações portu- dutos das suas herdades e dos direitos comer-
guesas, então dotadas de outra envergadura e ciais, pelo que podiam efetuar ligações diretas
melhores mastros, e contrariamente aos Aço- com as costas africanas, tal como com os portos
res, com enormes potencialidades para a agri- europeus, transformando Santiago numa base
cultura, Cabo Verde, logo de início, apresen- avançada do comércio africano.
tou limitações. A situação mudou em 1469, quando D. Afon-
Se, nos primeiros anos, houve uma forte di- so V (1432­‑1481) concedeu a Fernão Gomes
ficuldade em colocar povoadores na ilha de o direito exclusivo de comerciar no golfo da
Santiago, como, aliás, aconteceu na Madeira Guiné, mediante o pagamento de uma verba
644 ¬ C abo V erde

fixa e a obrigação de continuar as viagens de de uma vida tão afastada do reino, o almo-
exploração naquela costa. A concessão de xarife recebia o dobro da quantia geralmen-
1469, entretanto, entrava em conflito com a te paga, cabendo­‑lhe a cobrança dos direitos
efetuada aos residentes em Santiago, tendo o reais, o arrendamento dos bens da Coroa e o
rei sanado o litígio através da carta régia de pagamento das despesas públicas, pelo que,
1472 que alterou por completo a concedida pouco depois, foi criado o cargo de escrivão
em 1466: os habitantes de Santiago podiam co- do almoxarifado.
merciar, mas só entre Arguim e a Serra Leoa, Com o aumento do povoamento, houve que
restringindo­‑se esse comércio às produções lo- proceder à ampliação do quadro dos funcio-
cais: “senão aquelas que eles de suas novida- nários, assim como à sua diversificação pelas
des e colheitas da dita ilha houverem; porque capitanias e pelas ilhas. Teria, entretanto, sido
essas tais somente queremos e mandamos que criado outro almoxarifado, na parte dos Alca-
lá possam levar se quiserem e outras algumas trazes de Santiago, e também, nos inícios do
não” (ANTT, Livro das Ilhas, fls. 2v.­‑4). séc. xvi, um feitor dos algodões do Fogo. A Fa-
Os capitães das ilhas de Cabo Verde ter­‑se­ zenda régia passou a dispor então de almoxa-
‑ão deslocado poucas vezes às suas capitanias, rifes, de escrivães, de contadores e de feitores.
salvo os primeiros, que aí teriam estado pon- Do mesmo modo, desenvolveu­‑se a organiza-
tualmente e de passagem, mas, em breve, mui- ção da Justiça, estabelecendo­‑se o cargo de cor-
tos delegariam as suas funções em familiares regedor, que teria um escrivão ou um meiri-
mais ou menos afastados, ou, por falecimento, nho, e os capitães, entretanto, acabariam por
nos descendentes ou em quem com os mes- nomear ouvidores, dado não estarem nas suas
mos casasse. Com a progressiva passagem das capitanias. Os processos assemelhavam­‑se aos
ilhas para a Coroa, houve que proceder à no- da ilha da Madeira. Esta crescente proliferação
meação de funcionários régios para arrecadar de funcionários, se, por um lado, demonstra a
os impostos, tendo­‑se referenciado, logo nos necessidade de dotar o arquipélago das estru-
primeiros anos, por volta de 1471, um almoxa- turas administrativas essenciais ao seu funcio-
rife das ilhas, então Diogo Lopes, com assen- namento, à semelhança do reino e da Madeira,
to na ilha de Santiago. Devido às dificuldades por outro, aponta já o crescimento dos privilé-
gios e das regalias de uma determinada classe
não produtiva, num complexo quadro ultra-
marino, muito separado do principal centro
de decisão. O funcionamento futuro da admi-
nistração colonial portuguesa enfermou dessa
complexa burocratização, que, progressiva-
mente, deixaria de ter o suporte populacional
e económico necessário para o seu sustento.
A ligação do povoamento de Cabo Verde à
Madeira é patente ainda na enorme quanti-
dade de topónimos semelhantes nos dois ar-
quipélagos – semelhanças que se encontram
também nos Açores e nas Canárias –, indican-
do a contínua circulação entre estes arquipéla-
gos, determinada pelo regime de ventos e de
correntes que, quase obrigatoriamente, pelo
menos na viagem de ida, levava as embarca-
ções dos sécs. xv e xvi a escalarem a Madeira
Fig. 4 – Interior da igreja de São Domingos de Alcatrazes, 1470 e
para chegarem a Cabo Verde, como acontece-
seguintes, ilha de Santiago (fotografia de Jorge Bruno, 2010). ra no caso das caravelas de António da Noli,
C abo V erde ¬ 645

Fig. 5 – Olifante com as armas reais de Portugal, 1495-1525 (antiga coleção de Filipe II, Museu Nacional de Artes Decorativas de Madrid).

de Diogo Gomes e de Diogo Afonso, contador portuguesas e sob a designação de “olifantes”,


da ilha da Madeira. Aqui eram reabastecidas se dispersaram pelos grandes museus da Eu-
com água, frescos e pessoal, sendo muitos os ropa e da América.
elementos radicados na Ilha que acompanha- Nos finais do séc. xv, ou, mais provavelmen-
ram essas viagens, como Álvaro Fernandes, so- te, nos inícios do xvi, teria sido exportada para
brinho de Zarco, que participou na exploração Cabo Verde a tecnologia açucareira madeiren-
da embocadura do Senegal e da área continen- se, que, no entanto, só muito pontualmente,
tal de Cabo Verde, e que daria depois nome e especificamente nas ilhas de Santo Antão e
ao arquipélago. Em 1446, e.g., teria participado de Santiago, se mostrou minimamente rentá-
na expedição de Lançarote de Lagos e, no ano vel. As técnicas de humanização da paisagem
seguinte, dirigiu a expedição que ultrapassou seguiram igualmente para estas ilhas, com os
aquele cabo e terá atingido a célebre ilha de poios e as levadas, subsistindo nelas ainda a
Goreia. produção de aguardente e de rum, denomina-
Quase todos os navegadores acima referidos do “grogue”, em princípio por influência in-
e envolvidos no descobrimento daquelas ilhas glesa, através de técnicas artesanais, com a uti-
de Cabo Verde escalaram a ilha da Madeira à lização de trapiches, em tudo semelhantes aos
ida ou à vinda. Acresce que a concessão, feita utilizados na ilha da Madeira nos meados do
a Fernão Gomes, do comércio e da explora- séc. xvi. Nos meados do séc. xviii, dever­‑se­‑á
ção das costas da Guiné assentava no reabas- ter popularizado, entretanto, a confeção da be-
tecimento em trigo das armadas na Madeira, bida à base de grogue denominada “ponche”,
tendo estimulado a instalação de vários co- que inclui limão e açúcar, semelhante à pon-
merciantes nacionais e estrangeiros na praça cha da ilha da Madeira, denunciando assim a
do Funchal. Quase de imediato, a sua ativida- mesma raiz.
de estendeu­‑se a outras áreas, como foi o caso Ao equacionarem­‑se as estruturas adminis-
dos irmãos Boa Viagem, dos quais resta o to- trativas e institucionais, o modelo seguido foi o
pónimo da rua, antigamente atrás da igreja de utilizado no arquipélago madeirense, e, quan-
N.ª S.ra do Calhau e junto ao demolido primei- do, em 1514, se instituiu o bispado do Funchal,
ro hospital da Misericórdia do Funchal, deno- as ilhas de Cabo Verde estavam incluídas no
minada nos princípios do séc. xxi R. do Hos- mesmo, aliás como todos os novos territórios
pital Velho. Martim Enes Boa Viagem surge portugueses dos Descobrimentos. Em 1527,
na Câmara do Funchal como mercador, liga- já havia sido nomeado almoxarife da Ribei-
do ao contrato do trigo para a Costa da Guiné ra Grande, na ilha de Santiago, o madeirense
e aos contratos de açúcar, e Fernão Nunes Lopo Aires, embora não tivesse chegado a ocu-
Boa Viagem, em junho de 1470, era o feitor par o lugar. Nesse quadro, em 1562, a Madei-
dos dentes de elefante do infante D. Fernan- ra conseguia carta régia para a importação de
do, os quais, esculpidos com as armas reais escravos dos rios da Guiné e de Cabo Verde,
646 ¬ C abo V erde

em que seguiam frutas, conservas de varejo e


marmelada, incentivando a conclusão de que
se trocavam couros de Cabo Verde por frutas e
conservas da Madeira.

Comércio esclavagista
A partir dos meados do séc. xvi, entretanto,
Cabo Verde configurou­‑se como um importan-
te centro de distribuição de escravos no qua-
dro geral do Atlântico e, mais especificamente,
para o grande mercado que passara a ser o bra-
sileiro. Face às limitações impostas por Lisboa,
que sempre pretendeu centralizar ali todo esse
comércio, as ilhas atlânticas estabeleceram um
Fig. 6 – Trapiche do engenho do Paul de Santo Antão (fotografia
circuito próprio, onde Cabo Verde e a Madei-
do projeto CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005). ra funcionaram como centros de circulação e
de distribuição, circuito esse que deve ainda
por dois anos, controlados a partir daquele ar- ter prosperado com a União Ibérica, embora
quipélago, por especial mercê aos lavradores então alargado ao arquipélago das Canárias,
dos açúcares madeirenses. A autorização era que, face às alterações políticas, imediatamen-
dada alegando­‑se que se fazia tal para atenuar te começou dali a importar escravos, forne-
as grandes despesas com as diárias dos traba- cendo em troca vinho, em concorrência com
lhadores e dos homens de soldada. A mercê o da Madeira. O comércio com Cabo Verde
foi prorrogada, tendo havido nova licença em mantinha­‑se na Ilha, no entanto, com os pro-
1567, então por cinco anos, devendo os es- dutos anteriores, como era o caso da cera, lar-
cravos ser transportados em navios armados gamente referida nos livros de despesa da Sé
à custa dos madeirenses, que teriam conduzi- do Funchal entre os finais do séc. xvi e os iní-
do para a Ilha 150 escravos – então denomina- cios do xvii.
dos “peças”, embora a designação nem sempre Desde os meados do séc. xvi que as ilhas
tenha equivalido a um indivíduo –, destinando­ atlânticas se configuraram como interpostos
‑se 100 para o Funchal e 50 para a Calheta. da guerra de corso que varreu o Atlântico e
Desde os finais do séc. xv, com os dentes de onde participaram pilotos conhecedores das
elefante, e os inícios do xvi, com o comércio rotas e das ilhas, incluindo alguns provavel-
de couros, e.g., foram estabelecidas rotas co- mente naturais da Madeira, como foi o caso de
merciais que ligavam a ilha de Santiago à da Manuel Serradas, que articulou a sua ação em
Madeira. A 23 de julho de 1523, aportou no Cabo Verde com John Hawkins (1532­‑1595) e
Funchal um navio proveniente de Santiago, do com Francis Drake (c. 1540­‑1596). Nesse qua-
qual desembarcaram cerca de 3300 peles de dro, procedeu­‑se à fortificação da capital de
cabra e 22 arrobas de sebo. Além destas peles, Cabo Verde, então a cidade da Ribeira Gran-
estavam a bordo mais 1100 destinadas a Lis- de (chamada, nos inícios do séc. xxi, Cidade
boa, em obediência a ordens dali emanadas. Velha), para onde foi enviado o Cap. Gaspar
À primeira vista, este navio devia ser um dos Luís de Melo, que integrara as forças envia-
da rota Santiago­‑Lisboa; todavia, escalou a Ma- das para a Madeira por Filipe II (1527­‑1598)
deira para descarregar o excesso de peles de e, em outubro de 1583, entregara a D. Francés
cabra, proibido por lei de entrar em Lisboa. de Alava y Belmonte (1518/19­‑1586) dois dese-
Cerca de três meses mais tarde, a 30 de outu- nhos das defesas do Funchal. Para Cabo Verde
bro, partiu do Funchal para Santiago um navio seguiu também o fortificador João Nunes, e
C abo V erde ¬ 647

Fig. 7 – Fortaleza real de S. Filipe, Cidade Velha (fotografia do projeto CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005).

os projetos elaborados por ambos foram pre- Cabo Verde “a buscar remédio para o mal da
sentes na corte de Madrid, a 12 de julho de lepra”, mas ali viria a “passar a melhor vida” em
1586, tendo começado a construção por volta 1665 (SILVA e MENESES, I, 1998, 252­‑253).
de 1588, quando começaram a ser cobradas as Os meados do séc. xvii levaram à consti-
verbas para a construção. O projeto da forta- tuição da Companhia Geral do Comércio do
leza de S. Filipe, na Cidade Velha, não se afas- Brasil, com base na ação do P.e António Vieira
ta assim dos congéneres levantados por essa (1608­‑1697) e nas suas ligações com os cristãos­
época no Funchal e, depois, em Setúbal, de- ‑novos, estabelecendo­‑se assim uma vasta rede
monstrando que se manteve toda uma idêntica comercial em que entravam os cristãos­‑novos
política de defesa da União Ibérica, com circu- de Pernambuco e do Maranhão, no Brasil; de
lação de plantas e de técnicos sob o controlo São Miguel, nos Açores; do porto de Viana, no
da Provedoria das Obras de Lisboa. reino; de Amesterdão, na Holanda; do Fun-
Nos primeiros anos do povoamento de Cabo chal, na Madeira; e da Ribeira Grande, na ilha
Verde, o clima daquelas ilhas era tido como de Santiago de Cabo Verde. O célebre prega-
muito saudável, dado aliar alguma secura dor jesuíta tinha circulado pelos arquipélagos
com áreas mais temperadas. No entanto, essa atlânticos, conhecendo assim os circuitos em
fama começou a apagar­‑se muito rapidamente, questão e as vantagens de um controlo centra-
tornando­‑se habitual considerar aquele arqui- lizado. A Companhia ficou com alguns mono-
pélago como francamente insalubre e propício pólios, mas, dada a tradição de contrabando
a várias doenças. Pontualmente, entretanto, a do porto do Funchal, dificilmente este mo-
inicial fama era reavivada, e, entre outros, veio nopólio teria sido cumprido aqui. A situação
a procurar aquele arquipélago o pregador e ainda continuaria problemática quando esta
cónego do Funchal P.e Francisco de Castro (c. Companhia passou a pessoa coletiva e se ligou
1600­‑1665), que fora também pároco de Santo ao comboio, administrado localmente por um
António do Funchal. Segundo o presbítero delegado, e também durante a altura em que
Diogo Barbosa Machado (1682­‑1772), o céle- a Madeira passou a ter autorização para asso-
bre pregador madeirense procurara as ilhas de ciar à mesma, primeiro, dois e, depois, quatro
648 ¬ C abo V erde

navios. O mesmo se passou, por certo, em Os navios partiam de Lisboa e estacionavam no


Cabo Verde. porto do Funchal, onde aguardavam a incor-
Em relação à Madeira, estes anos foram de poração de navios de outros portos, seguindo
certo incremento no comércio com o Brasil, depois na rota de Cabo Verde e, daí, para o
nomeadamente com base na parceria de João Brasil. Com o aumento do tráfego no porto do
Fernandes Vieira (1613­‑1681) e do mercador Funchal, foi criado o lugar de comissário dos
Diogo Fernandes Branco, especialmente inte- comboios, cargo de nomeação régia, por três
ressado no comércio esclavagista. A Compa- anos, que foi ocupado por Diogo Fernandes
nhia Geral do Comércio do Brasil foi fundada Branco e, em 1673, pelo Cap. Gaspar de An-
em 1649, à frente de cuja primeira viagem se drada (1642­‑c. 1700), que voltaria a ocupá­‑lo
colocou o 2.º conde de Castelo Melhor, João em 1677, tendo passado depois o irmão deste,
Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1595­‑1658), o Cón. António Lopes de Andrada (1640­
herdeiro do condado da Calheta e recém­ ‑1704), a destacar­‑se progressivamente no pa-
‑nomeado governador­‑geral do Brasil. O co- norama económico insular e atlântico.
mércio com o Brasil começou a ser organizado Em 1675, foi fundada a Companhia de Ca-
nestes anos através do chamado comboio marí- cheu, tendo como administrador o Cap. Gas-
timo, oferecendo assim uma maior segurança. par de Andrada, que, a 19 de maio de 1676, viu

Fig. 8 – Mapa da costa de África e dos arquipélagos atlânticos, Arnold Colom, Amesterdão, 1690 (cart. digital, Instituto
Açoriano de Cultura).
C abo V erde ¬ 649

os seus privilégios confirmados por seis anos.


Tinha o direito de tráfico na costa da Guiné
e no arquipélago de Cabo Verde, assim como
de comércio de escravos para a Europa, para
os domínios portugueses ultramarinos e, inclu-
sivamente, para a América espanhola. A Com-
panhia tinha assim a escravatura como primei-
ra ocupação e, 15 anos mais tarde, viria a ser
refundada com a designação de Companhia
de Cacheu e Cabo Verde. Entrando, entretan-
to, em concorrência com os armadores cabo­
‑verdianos, não teve qualquer apoio especial
naquele arquipélago, acabando os seus privi-
légios por não ser prorrogados no séc. xviii.
Foi extinta temporariamente, mas voltaria a
ser implantada noutros moldes, pelo gabinete
pombalino.
As alfândegas das ilhas eram constantemen-
te criticadas por fazerem contrabando com o
Brasil, como sucedeu a 24 de julho de 1709,
insistindo­‑se no assunto a 27 de janeiro de
1712. Os madeirenses e os açorianos consegui-
ram, a 29 de julho de 1715, uma ordem régia
dirigida ao provedor­‑mor do estado do Brasil
em que se determinava que essas restrições
não abrangiam os frutos e os géneros produzi-
dos nos Açores e na Madeira, bastando somen-
te provar terem sido despachados nas respeti-
vas alfândegas. Pouco depois, em 1724, surge
uma referência a problemas com carregamen-
tos madeirenses, sugerindo a existência de mo- Fig. 9 – Lápide sepulcral do bispo D. Fr. António
de São Dionísio, igreja do Rosário da Cidade Velha
vimentos, em princípio, pouco legais. Assim,
(fotografia de Konstantim Richter, 2005).
Caetano da Costa, morador na ilha da Madei-
ra, requereu justiça nessa data, por lhe terem
sequestrado um carregamento no Rio de Janei- toalhas e outras alfaias religiosas de que essas
ro, alegando que o seu bergantim se dirigia a dioceses tinham necessidade. Em 1676, e a pe-
Cabo Verde e que o tinham obrigado a alterar dido do bispo de Cabo Verde, D. Fr. António
a rota para se deslocar ao Brasil. de São Dionísio (c. 1610­‑1684), foi concedido
A prosperidade do comércio madeirense àquela Diocese que se pudessem pagar as suas
levou, entretanto, a que se tentasse mesmo col- ordinárias a partir dos sobejos das rendas da
matar as dificuldades do pagamento do clero Alfândega da Madeira, uma vez que não po-
de Cabo Verde com as sobras da Fazenda do diam ser pagas pelos rendimentos do comér-
Funchal. A Diocese da Ribeira Grande tinha cio de Cabo Verde.
sido desmembrada da grande Arquidiocese do Os pagamentos na Madeira devem ter conhe-
Funchal nos meados da primeira metade do cido dificuldades, pelo que o bispo de Cabo
séc. xvi, e, já ao longo desse século, a Sé do Verde passou procuração ao Cón. António
Funchal apoiara as suas congéneres de Cabo Lopes de Andrada, irmão de Gaspar de Andra-
Verde e de São Tomé, enviando sanguinhos, da, para o mesmo tentar receber esse dinheiro,
650 ¬ C abo V erde

o mesmo fazendo os cónegos, vigários e curas. comércio os três arquipélagos atlânticos, mas,
O assunto, no entanto, arrastou­‑se pelos anos na centúria de Setecentos, seria o valor comer-
de 1684 a 1695, mesmo após o falecimento cial da urzela a impor­‑se. A relevância econó-
do bispo de Cabo Verde, passando para o se- mica da urzela fundamenta a resolução régia
guinte, D. Fr. Vitoriano do Porto (1651­‑1705), de 9 de julho de 1739, que estabeleceu a sua
também dado como Vitoriano Portuense, mas comercialização em regime de monopólio.
não sabemos se alguma vez conseguiram ser O novo contrato abrangia as ilhas dos Açores,
pagos nesta época pela Provedoria da Fazen- Madeira e Cabo Verde e reunia os interesses
da do Funchal. Nos inícios do século seguinte, dos conselhos da Fazenda e Ultramarino. Na
no entanto, quando era bispo de Cabo Verde o génese desta determinação, entrava a extração
jacobeu D. Fr. José de Santa Maria Jesus (1670­ efetuada pelos Ingleses, principalmente nos
‑1736) e tesoureiro da Sé de Cabo Verde Ma- Açores e em Cabo Verde, passando, então, a
nuel Leitão Manuel, surgiram de novo registos representar contrapartidas para a Coroa por-
de documentação sobre esse assunto, inclusi- tuguesa. O soberano prescrevia a arrematação
vamente depois da morte do prelado, estan- trienal no Conselho Ultramarino e estipulava
do a Ribeira Grande em sede vacante. Assim, a exclusividade na compra e na exportação da
em princípio, só teria havido pagamentos ao urzela em terras de donatários, de câmaras ou
clero de Cabo Verde no triénio de 1736 a 1738, mesmo de particulares. O contrato proibia o
quando era almoxarife do Funchal Francisco aproveitamento individual ou coletivo dos bal-
Rodrigues Baptista e tesoureiro Félix de Azeve- dios que, à data da arrematação, produzissem
do, altura em que se mencionam 426$000 para urzela e isentava os arrematantes do pagamen-
os vigários de Cabo Verde. to de taxas aduaneiras nos portos do reino.
Nos sécs. xvi e xvii, a exportação do pastel Para prevenir fraudes, os arrematantes podiam
para o Norte da Europa gerara uma conjun- nomear conservador, meirinho e feitor em
tura de certa prosperidade, entrando nesse cada um dos arquipélagos.
A tinturaria utilizando a urzela, o drago, o
pastel e outros materiais encontra­‑se intima-
mente ligada à tecelagem e parece não ter
sido uma grande atividade na Madeira, fican-
do, até muito perto do princípio do séc. xxi,
como uma atividade de carácter exclusivamen-
te artesanal e caseiro. No Funchal, teria fun-
cionado, ao longo do séc. xvi e até ao xviii,
nas margens da ribeira de Santa Luzia, na área
denominada Tintureira, cujas muralhas esta-
vam continuamente em obras. Nos finais do
séc. xvii, a 19 de janeiro de 1684, não haveria
mesmo nenhum oficial de tinturaria, solicitan-
do Maria de Sousa, viúva que “ficara, por morte
de seu marido, com três filhos, passando mui-
tas misérias e necessidades”, que lhe fosse pas-
sada carta do dito ofício e autorização para que
pagasse a respetiva fiança, “na forma do estilo”.
A vereação mandou que apresentasse “umas
meias, que se disse, tingisse de preto e, por es-
tarmos informados de que fazia bem o ofício
Fig. 10 – Dragoeiros do Cachaço, ilha de São Nicolau (fotografia
de tintureira e não haver outro oficial nesta ci-
do projeto CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005). dade”, foi­‑lhe passada “carta de examinação” e
C abo V erde ¬ 651

a autorização para “usar do dito ofício de tin-


tureira” (ABM, Câmara Municipal do Funchal,
tombo 8, fls. 77­‑77v.). Pelo contrário, em Cabo
Verde, sempre foi uma atividade de grande di-
vulgação com algum valor comercial e tradicio-
nal, dentro da denominada panaria, dos panu
di terra e pano d’obra bicho, patentes, em 2015,
nos museus portugueses e cabo­‑verdianos.
Dos inícios do séc. xviii, possuímos um livro
de registo alfandegário, com o título Os Es-
cravos Vindos do Brasil, a partir do qual vemos
que todo o comércio com a baía da Guiné e
com Angola, dados os ventos alísios e a conse-
quente navegação em arco, passava pelo Brasil.
Possuímos a listagem dos escravos importados
Fig. 11 – Aguada na Praia, litografia de Alexis Noel, 1871 (AHU).
entre 1718 e 1721, contabilizados num livro da
Fazenda, por determinação do Prov. José de
Sequeira (c. 1640­‑1715), e escriturados pelo
Cap. Pedro de Faria e Abreu, escrivão da Mesa estratos economicamente mais desfavoreci-
Grande que, por estar ocupado no serviço de dos da população madeirense, um registo no-
Sua Majestade, deu comissão ao escrivão dos tarial de 1786 revela que Pedro António, de
autos e da Fazenda, António Rodrigues da Câmara de Lobos, então preso, vendeu meta-
Silva. Este livro regista, a 13 de abril desse ano de de um certo conjunto de benfeitorias na
de 1718, a chegada da embarcação Nossa Senho- Palmeira, reservando a outra metade para os
ra do Bom Sucesso e Nazaré, de que era mestre seus filhos: João Rodrigues, que tinha sido re-
Sebastião de Abreu, proveniente do Rio de Ja- crutado para o Rio Grande do Sul, no Brasil;
neiro, transportando pau de jacarandá e dois António Gonçalves, “que foi desta ilha com os
escravos, um “moleque e uma moleca”, avalia- ingleses e não se sabe para onde”; e Manuel
dos em 100$000 réis. A 24 de outubro, levava António, “que anda embarcado e fez viagem
mais dois “moleques pequenos”, avaliados em para Cabo Verde” (ABM, Registos Notariais,
50$000 réis e destinados ao Cón. Bartolomeu liv. 2246, fl. 122). A circulação era extensiva a
de Brito e Abreu, citando­‑se que pagaram “os outros estratos populacionais e, inclusivamen-
10 % da lei”. Em 1719, a 20 de junho, chegou te, às novas ideias políticas, como se queixou,
um escravo para o Cap. António Correia Hen- nos finais do século, o Gov. João António de Sá
riques Lomelino, depois para o condestável Pereira (1719­‑1804). Uma das suas lutas como
Benedito dos Ramos, etc., custando, então, um governador foi a tentativa de encerrar as lojas
escravo adulto cerca de 60$000 a 90$000 réis, maçónicas do Funchal, de onde provinham
uma escrava 40$000, e os moleques, entre 30 queixas e representações contra o seu governo
e 50$000 reis (ANTT, Provedoria…, liv. 1510). iluminista e centralizador, lojas que acusa de
criarem um amplo movimento maçónico que
já se havia alargado ao continente e, então,
Degredo e colónias penais também às ilhas dos Açores e de Cabo Verde.
A ligação entre os arquipélagos atlânticos As penas de degredo determinadas na Ma-
fortalece­‑se ao longo do séc. xviii, então com deira ao longo do séc. xviii designavam ge-
o predomínio da navegação britânica, que uti- ralmente Angola como destino, colónia que
lizou os portos insulares para recrutamento, se pretendia povoar com população europeia,
quase sempre ilegal, de marítimos. Apresen- mas, nos inícios do xix, a prioridade parece
tando uma pálida ideia da situação geral dos ter passado para Cabo Verde, com especial
652 ¬ C abo V erde

incidência nos processos disciplinares mili- Sebastião Xavier Botelho (1768­‑1840) respon-
tares, depois maçónicos e, finalmente, políti- dia a um pedido de António Perich, gover-
cos. Um dos processos, e.g., envolveu o soldado nador de Cabo Verde, sobre um outro que o
Teodoro Moniz Bettencourt, obrigado a assen- mesmo fizera para o envio de “casais pobres”
tar praça no Batalhão de Artilharia do Funchal, da ilha da Madeira, que tivessem alguns co-
“por causa do seu péssimo comportamento” e nhecimentos de agricultura, para o povoamen-
por se “entregar ao ócio, não fazendo senão in- to da ilha de São Vicente. O governador, no
sultar de palavras as pessoas e famílias que en- início do seu governo e numa altura politica-
contrava na rua ou nos caminhos”, pelo que foi mente instável, escusa­‑se a dar uma resposta
depois condenado a degredo para Cabo Verde. ao pedido, embora não se opusesse à hipóte-
O Gov. Pedro Fagundes Bacelar de Antas e Me- se. O ofício abordava igualmente o problema
neses (c. 1760­‑1813) teve, entretanto, notícia dos corsários de Buenos Aires, que interferiam
de que o mesmo fugira para a corte no Brasil, na navegação portuguesa e espanhola dessa
acabando por solicitar àquela “que lhe fosse época, acrescentando também que, naquele
aplicado o merecido castigo”. O assunto teria momento, não tinha informações especiais a
envolvido também o Maj.­‑Gen. Robert Mead, dar (Ibid., fls. 257v.­‑258).
pois, quase na mesma altura, também este es- Alguns anos depois, a alçada absolutista en-
crevia para a corte pedindo ao 5.º conde das viada à Madeira cumpriria o desejo manifes-
Galveias, D. João de Almeida de Melo e Castro tado pelo Governo de Cabo Verde, enviando
(1756­‑1814), o julgamento e a condenação do para ali dezenas de elementos. Nesta alçada,
mesmo soldado (ABM, Governo Civil, liv. 203, foi sentenciado o tabelião e poeta Francisco de
fls. 179­‑179v.; AHU, Madeira..., docs. 2568, Paula Medina e Vasconcelos (1768­‑1824), con-
2571 e 2861­‑2867). denado em oito anos de degredo para Angola,
No quadro geral destes contactos, em se- depois comutados para Cabo Verde, com inabi-
tembro de 1819, o governador da Madeira lidade para os ofícios de Justiça e da Fazenda, e

Fig. 12 – Mergulhança no porto do Mindelo, bilhete-postal enviado por Geo W. Worsell Esq, 1905 (antiga coleção Nellie Worsell,
da Casa Cory/Johan Cunha, Funchal).
C abo V erde ¬ 653

multado em 50$000 mil réis, tal como o oficial


da Alfândega António Rodrigues Pereira, cas-
tigado com dois anos de degredo também em
Cabo Verde. A sentença estendeu­‑se aos capi-
tães de ordenanças Joaquim Melchior Gonçal-
ves, punido com quatro anos de degredo nas
mesmas ilhas e 200$000 réis, e Nicolau Gonçal-
ves Henriques, irmão do anterior, com um ano
de degredo, mas no Porto Santo, e 50$000 réis;
ao morgado e Cap. António João Favila, com
10 anos em Cabo Verde e 400$000 réis; a Ter-
tuliano Turíbio de Freitas, com seis anos de de-
gredo nas ilhas de Cabo Verde e 100$000 réis;
a Vicente Ferreira Esmeraldo, com seis meses
em Cabo Verde e 100$000 réis; entre outros.
O célebre poeta e liberal madeirense Fran-
cisco de Paula Medina e Vasconcelos acabou
os seus dias na cidade da Praia, em 1824, dei-
xando descendência e encontrando­‑se o seu
nome ainda ligado, através da viúva de seu
filho Sérvulo Drummond Medina e Vasconce-
los (1828­‑1854), a um dos maiores poetas cabo­
‑verdianos, Eugénio de Paula Tavares (1864­
‑1930), um dos primeiros poetas a cultivar o
crioulo e a promovê­‑lo pela poesia. O futuro
poeta cabo­‑verdiano nasceu na ilha Brava e,
Fig. 13 – “Badinha”, D. Eugénia Martins de Vera Cruz Medina
tendo a mãe falecido de parto, veio a ser criado e Vasconcelos, com cadeira de vime da ilha da Madeira, ilha
pela madrinha, Maria Eugénia de Vera Cruz Brava, c. 1875 (Casa Museu Eugénio Tavares, Vila Nova Sintra).

Medina e Vasconcelos, viúva do escritor Sérvu-


lo Medina e Vasconcelos e filha do médico José Porto do Judeu, onde desempenhou funções
Martins de Vera Cruz (1828­‑1920), diplomado paroquiais e se dedicou à instrução, fundando
pela Escola Médico­‑Cirúrgica do Funchal, pre- duas escolas. Restabelecido o Governo consti-
sidente da Câmara Municipal da ilha do Sal tucional, foi nomeado governador do bispado
e, depois, da Brava. Da família da madrinha, de Cabo Verde, em 1835, o que lhe terá cria-
a quem chamava “Badinha” e que sempre tra- do algumas inimizades. Com o restabelecimen-
tou como mãe, recebeu a educação liberal e to das relações com a Santa Sé, veio a ser, em
romântica, e nos inícios do séc. xx, quando se 1841, apresentado bispo daquela diocese, mas
dedicou ao jornalismo, já revelava o seu sonho só em 1844 se deslocou a Lisboa para receber
de autonomia para Cabo Verde. a ordenação. Regressou a Cabo Verde em fe-
Dos inúmeros liberais exilados para Cabo vereiro de 1847, mas o cabido recusou­‑lhe a
Verde, fez parte o P.e João Henrique Moniz posse, e o governador, sem o termo de posse
(c. 1790­‑1847), cuja integração final não foi oficial, também o não reconheceu como pre-
porém a melhor. Formado em Cânones pela lado. Faleceria a 1 de julho seguinte, vítima
Univ. de Coimbra, foi ordenado presbítero por de uma febre, rumorejando­‑se que havia sido
volta de 1820, acabando por se ver envolvido envenenado.
na célebre alçada que foi à Madeira em 1828, Desse enorme conjunto de liberais exila-
sendo enviado para Lisboa e, daí, deportado dos em Cabo Verde no início do Liberalismo,
para Cabo Verde. Residiu na ilha Brava, no a Madeira recebeu depois o Cón. Alfredo de
654 ¬ C abo V erde

Santa Catarina Braga (c. 1780­‑c. 1845), natu- também vividas, conseguiu ainda enviar um car-
ral do Porto, como administrador do bispado regamento de 10.000 libras de bolachas e de fa-
do Funchal. Quase duas décadas depois, como rinhas, embarcadas em novembro num brigue
bispo do Funchal, foi apresentado o anterior americano. Em todas as cartas, no entanto, não
bispo de Cabo Verde, D. Patrício Xavier de deixava de expressar o seu “ardente desejo de
Moura (c. 1795­‑1872), que não teve, todavia, chegarem notícias sobre a destruição dos ini-
um episcopado feliz. Já tinha idade avançada migos” do Rei D. Miguel (ABM, Governo Civil,
e teria aguentado um difícil governo na Dioce- liv. 192, fls. 112­‑113 e 123v.­‑125; AHU, Madei-
se de Cabo Verde, a tal ponto que preferiu es- ra..., 12096­‑12097), o que continuava a não se
tabelecer residência na pequena ilha do Fogo verificar, e também de exprimir esse desejo aos
e, depois, na de São Nicolau, em vez de na de cônsules em causa, abertamente liberais. Aliás,
Santiago. Alegando motivos de saúde, conse- o irmão, pouco tempo depois, a 8 de setembro
guiu ser transferido para o Funchal. Confirma- de 1833, ao ter conhecimento das alterações em
do por Pio IX em abril de 1859, tomou posse, Lisboa, mandou reunir uma junta governativa
por procuração, a 28 de maio e entrou no Fun- na cidade da Praia e retirou­‑se para a Gâmbia.
chal a 26 de agosto seguinte. Faria a sua en- Acrescente­‑se, no entanto, que em momen-
trada solene na Sé do Funchal a 18 de setem- tos de dificuldade também o arquipélago de
bro de 1859, algo que já não se enquadraria Cabo Verde ajudou a Madeira, como na catás-
na época, devendo ter­‑lhe acarretado depois trofe do oídio, em 1853. O então governador
vários problemas. visconde de Fornos de Algodres, João Maria de
Ao longo do séc. xix, as ligações entre os Abreu Castelo Branco (1789­‑1878), chegou a
dois arquipélagos manter­‑se­‑iam, até pela pro- pedir auxílio aos descendentes de madeirenses
ximidade de alguns dos quadros diretivos, na América do Norte e à Associação Comer-
como foi o caso do último governador absolu- cial de Pernambuco, no Brasil, assim como por
tista da Madeira, D. Álvaro da Costa de Macedo todo o território português. O auxílio de Per-
(1789­‑1835), cujo irmão mais novo, D. Duarte nambuco chegaria em novembro desse ano,
da Costa de Sousa de Macedo, era governador­ sob a forma de dinheiro obtido em subscrição
‑geral das ilhas de Cabo Verde. No final do verão pública, tendo­‑se agradecido então a Joaquim
de 1832, e.g., as principais preocupações do go- Baptista Moreira, cônsul de Portugal naquela
vernador da Madeira estavam relacionadas com região. A situação teria sido tão grave, que até
o apoio ao irmão, a braços com uma das maio- do arquipélago de Cabo Verde, que não pou-
res secas da história daquelas ilhas. O governa- cas vezes tinha sido auxiliado pela Madeira nas
dor da Madeira procurou este apoio junto do suas cíclicas e constantes crises de subsistên-
cônsul português em Londres, do inglês e do cia – como, aliás, acontecera dois anos antes,
espanhol na Madeira, e, dentro das dificuldades quando houve uma crise de fome na ilha de
São Vicente e o Gov. José Silvestre Ribeiro
(1807­‑1891) enviou barris de farinha e garrafas
com óleo, organizando depois uma subscrição
pública –, vieram auxílios, que o governador
mandou distribuir no concelho de Machico e
no do Porto Santo, como referem os anais da-
quele município.
No contexto dos estreitos contactos entre
os dois arquipélagos, especificamente a 10 de
setembro de 1848, o então jovem tenente de
Engenharia António Maria Fontes Pereira de
Fig. 14 – Inscrição da antiga Alfândega do Mindelo,
1858 a 1860 (fotografia do projeto CHRONOS/Univ. da
Melo (1819­‑1887) chegou à Madeira no ber-
Madeira, 2005). gantim Mariana e seguiu para Cabo Verde, a 26
C abo V erde ¬ 655

do mesmo mês, indo ocupar o lugar de ajudan- um acontecimento do qual toda a imprensa da
te às ordens do pai, então governador­‑geral. capital se ocupou.
O engenheiro prontificou­‑se, nos 15 dias que Pouco tempo depois, surge a extraordinária
permaneceu na Ilha, a visitar as obras da leva- melhoria das comunicações que iria aproximar
da do Rabaçal com o antigo colega, o também ainda mais os dois arquipélagos: o telégrafo
tenente de engenheiros Tibério Augusto Blanc submarino. Este sistema foi instalado na Madei-
(c. 1810­‑1875). Em 1863, outro engenheiro mi- ra em 1874 e, pelo contrato estabelecido com a
litar, Januário Correia de Almeida (1829­‑1901), Brazilian Telegraph Company, ligou a Madeira
depois de desempenhar o cargo de diretor das ao continente, sendo o centro de controlo em
obras públicas de Cabo Verde, entre 1857 e Carcavelos, junto de Lisboa. Entre 1883 e 1884,
1860, seria nomeado governador da Madeira. ainda seria lançado novo cabo submarino. Esta
Entretanto, outros madeirenses se radicavam companhia seria substituída pela Western Tele-
em Cabo Verde, de que o nome mais impor- graph Company em 1900, já quando se tinha
tante deverá ter sido o de Pedro Maria Gon- estabelecido na Madeira a Eastern Telegraph
çalves de Freitas (1839­‑1915), depois visconde Company, passando assim os cabos de ligação
Gonçalves de Freitas, que, ali pontualmente ra- da Inglaterra ao Brasil e à África do Sul pelo
dicado como advogado, representou aquele ar- Funchal e pela cidade de Mindelo, na ilha de
quipélago como deputado nas Cortes e defen- São Vicente, em Cabo Verde. Este aspeto ligou
deu a abolição da escravatura, o que constituiu ainda mais a Madeira àquele arquipélago, cir-
culando, desde os finais do séc. xix e inícios
do xx, muitos dos funcionários destas compa-
nhias entre o Funchal e a cidade do Mindelo.
Existe, inclusivamente, um conjunto de álbuns
de bilhetes­‑postais enviados por um desses fun-
cionários, George W. Worsell Esq., entre 1904
e 1906, quando prestava serviço na estação te-
legráfica inglesa, para a mulher, Nellie Worsell,
da Casa Cory, no Funchal.
Nos inícios da República, mantiveram­‑se os
contactos e mesmo os apoios, como no caso do
contrato de pessoal para as obras públicas, nas
cíclicas crises de fome por que passou o arqui-
pélago de Cabo Verde. Com o alargamento das

Fig. 15 – Capitania de São Vicente, bilhete-postal enviado Fig. 16 – Reabilitação do Comando do Tarrafal
por Geo W. Worsell Esq, 1905 (antiga coleção Nellie Worsell, de São Nicolau, 1932 (fotografia do projeto
da Casa Cory/Johan Cunha, Funchal). CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005).
656 ¬ C abo V erde

boa parte dos implicados na Revolta da Madei-


ra, de 1931. Se a maior parte dos deportados ha-
veria de regressar à Madeira e ao continente, os
jovens tenentes que tinham sido os rostos mais
conhecidos no início daquele pronunciamen-
to militar, o médico Manuel Ferreira Camões
(1898­‑1968) e Manuel Sílvio Pélico de Olivei-
ra Neto (1900­‑1955/60), optariam depois por
ficar na ilha de São Nicolau, em Cabo Verde.
Os deportados começaram por ficar instalados
no antigo seminário­‑liceu da cidade da Ribei-
ra Grande de São Nicolau e, ainda em 1931,
foram deslocados para uma colónia penal, que
os próprios haveriam de construir, designada
por Comando do Tarrafal. Ali haveriam de fale-
cer alguns dos deportados políticos, como José
Loureiro Rabaça (1886­‑1952) e outros, sepulta-
Fig. 17 – Campa de Manuel Ferreira Camões, 1968, cemitério
dos no cemitério da Assomada. A colónia penal
da Assomada da Ribeira Grande de São Nicolau (fotografia de São Nicolau foi desativada, em 1936, com a
do projeto CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005). construção da nova Colónia Penal do Tarrafal,
na ilha de Santiago, mas uma parte dos detidos
competências da Junta Agrícola à rede viária, ficou por São Nicolau.
em 1915, e.g., foram contratados trabalhadores O ex­‑Ten. médico Manuel Ferreira Camões
naquele arquipélago, e dos mesmos ficou a de- regressaria a Portugal, em 1952, mas acabaria
signação de Caminho dos Pretos para a estrada por voltar a São Nicolau, onde possuía família
então construída na freguesia do Monte. e era uma verdadeira referência de resistência
Ao longo do séc. xx, a Madeira e Cabo Verde política, pois durante anos se opusera ao recru-
manteriam os mesmos contactos, com o acres- tamento de pessoal para as roças de São Tomé
cento de para ali ter sido deportada, e.g., uma e Príncipe, conseguindo, mediante atestados
médicos e outras pressões, salvaguardar mui-
tos dos jovens daquela ilha. Encontra­‑se enter-
rado no cemitério da Tabuca, na Assomada,
frente à Ribeira Brava, e a casa em que habitou
na encosta tornou­‑se uma referência local. Do
mesmo modo, o ex­‑Ten. Sílvio Pélico de Olivei-
ra Neto faz parte da memória local, tendo es-
tado na base da reestruturação das pescas e da
montagem de uma fábrica de conservas, que
se diz construída com pessoal ido da ilha da
Madeira.

Independência
Depois da independência de Cabo Verde e da
constituição das suas instituições democráti-
cas, que foram apontadas como um exemplo
Fig. 18 – Capa do CD Curso de História e Cultura de Cabo Verde,
nos novos países africanos, na abertura do
2008 (projeto CHRONOS/Univ. da Madeira). séc. xxi reativaram­‑se os antigos contactos,
C abral , G uilherme R ead ¬ 657

estabelecendo­‑se parcerias políticas, económi- pessoal de D. Pedro IV de Portugal, William


cas e culturais, não só com os países europeus, Harding Read.
mas especialmente com os arquipélagos atlân- Fez os estudos liceais em São Miguel, obten-
ticos, através dos programas europeus inter­ do, posteriormente, a nacionalidade portugue-
‑regionais e outros. Vários especialistas madei- sa, adotando o sobrenome do cunhado, Antó-
renses foram chamados para dar o seu parecer nio Bernardo da Costa Cabral, futuro conde
sobre trabalhos de reabilitação patrimonial e de Tomar e uma das figuras mais destacadas
escavações arqueológicas na Cidade Velha e do Liberalismo em Portugal, que casara com a
em Alcatrazes, tendo­‑se estabelecido diversos irmã, Louise Read.
programas de cooperação também nas áreas A relação de Guilherme Read Cabral com a
culturais. ilha da Madeira estabeleceu­‑se tanto ao nível
profissional, ocupando o lugar de diretor da
Bibliog.: manuscrita: ABM, Alfândega do Funchal, liv. 677; Ibid., Câmara
Municipal do Funchal, Avulsos, mç. 2; Ibid., Câmara Municipal do Funchal, Alfândega do Funchal, como literário, tendo
Registo Geral, tombos 7­‑8; Ibid., Governo Civil, livs. 192­‑193 e 203; Ibid., escrito sobre a Ilha.
Registos Notariais, liv. 2246; AGS, Guerra y Marinha, MP XIX; Ibid., Secretarias
Provinciales, liv. 1550; AHM, Direção de Justiça e Disciplina, 1­‑433 e 1­‑448; Foi a 23 de abril de 1892 que o Funchal re-
AHU, Baía, docs. 8131, 8133 e 8135; Ibid., Madeira e Porto Santo, docs. 1­‑3, cebeu a notícia da nomeação de Guilherme
2568, 2571, 2861­‑2867, 12.096­‑12.097; Ibid., Papéis Avulsos, 1724; ANTT,
Cabido da Sé do Funchal, liv. 7; Ibid., Chancelaria de D. Afonso V, livs. 14 e
Read Cabral, comendador e 1.º oficial das
31; Ibid., Chancelaria de D. Filipe I, liv. 19; Ibid., Chancelaria de D. Manuel I, alfândegas, para chefe da delegação aduaneira
liv. 29; Ibid., Leitura Nova, Livro das Ilhas; Ibid., Provedoria e Junta da Real
Fazenda do Funchal, liv. 1510; Ibid., Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de
funchalense. O Diário de Notícias, com palavras
Lisboa, procs. 17.291 e 17.621; impressa: ALBUQUERQUE, Luís de, e SANTOS, elogiosas, apontava não só os méritos profissio-
Maria Emília Madeira (coords.), História Geral de Cabo Verde, 2.ª ed., 3 vols.,
Lisboa/Praia, Instituto de Investigação Científica Tropical/Instituto Nacional
nais, como também os de escritor: “O sr. Read
de Investigação Cultural, 2001; Arquivo Histórico da Madeira, vol. xv, 1972; Cabral, além de ser um funcionário ilustrado
BARROS, Vítor, Campos de Concentração em Cabo Verde, Coimbra, Imprensa
e digno, é escritor primoroso. Numa das suas
da Universidade, 2009; CABRAL, José J., Caminho(s) Que Trilharam, Lisboa,
Ecos da História, 2014; CARITA, Rui, História da Madeira, vols. vi­‑vii, Funchal, obras literárias, s. ex.ª faz as mais lisonjeiras re-
Secretaria Regional da Educação, 2003­‑2008; COSTA, José Pereira da, Vereações ferências a esta ilha” (“Delegação aduaneira”,
da Câmara Municipal do Funchal, vol. i, Funchal, CEHA, 1995; GODINHO,
Vitorino de Magalhães, Documentos para a Expansão Portuguesa, 3 vols., DN, 23 abr. 1892, 1). A notícia prossegue com
Lisboa, Gleba, s.d.; Id., Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 2.ª ed., 4 vols.,
Lisboa, Presença, 1982­‑1984; MARQUES, João Martins da Silva, Descobrimentos
Portugueses, 2.ª ed., 3 vols., Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica,
1988; Notícia Corográfica e Cronológica do Bispado de Cabo Verde. 1784, Lisboa,
Instituto Cabo­‑Verdiano do Livro, 1985; SANTANA, Elisa Torres, “El comercio
gran canario con Cabo Verde a princípios del siglo xvii”, in Actas do II Colóquio
Internacional de História da Madeira, Funchal, CEHA, 1989, pp. 761­‑778; SILVA,
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense,
3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VIEIRA, Alberto, e RIBEIRO, José Adriano, Anais
do Município do Porto Santo, Porto Santo, Câmara Municipal do Porto Santo,
1989; digital: CARITA, Rui, História e Cultura de Cabo Verde, CD, Funchal,
Universidade da Madeira, 2008.

Rui Carita

Cabral, Guilherme Read


Guilherme Read Cabral, de nome de nasci-
mento William Read Cabral Júnior, nasceu
em Portsmouth, Inglaterra, pensa­‑se que no
ano de 1821, filho de John Harding Read.
Chegou a Ponta Delgada, nos Açores, ainda
na primeira infância, com o pai e a irmã, Lou-
ise Mitchell Read. Por morte do pai, Guilher-
me Read Cabral e a irmã foram educados pelo
tio, o então cônsul inglês nos Açores e amigo Fig. 1 – Guilherme Read Cabral, litografia (Álbum Açoriano, c. 1850).
658 ¬ C abral , G uilherme R ead

palavras que mostram um claro voto de con- deixando assim de ter o estatuto de delegação
fiança e reconhecimento das competências de do círculo aduaneiro do Sul.
Guilherme Read Cabral nas funções para que A poucas semanas de Read Cabral partir
fora nomeado: “estamos convencidos de que para os Açores, mais precisamente a 5 de se-
há de desempenhar­‑se superiormente da sua tembro de 1893, a imprensa madeirense noti-
importante comissão de serviço” (Ibid., 1). ciava uma grande destruição nas ilhas do Pico,
Guilherme Read Cabral desembarcou no de São Jorge e do Faial, provocada por um
Funchal a 8 de maio de 1892, vindo de Lis- ciclone a 28 de agosto de 1893. Logo no dia
boa, no vapor Portugal, tomando posse como seguinte, Guilherme Cabral, açoriano de co-
diretor da Alfândega no dia seguinte, a 9 de ração, organizava uma comissão, com outros
maio de 1892. A notícia da sua tomada de dois conterrâneos, Gabriel Samora Moniz e
posse pelo Diário de Notícias surgia acompa- Narciso Xavier de Andrade, no sentido de an-
nhada por uma extensa nota biográfica que gariar donativos a favor das vítimas do ciclone.
atestava “a inteligência e as aptidões do fun- Esta comissão conseguiu angariar, segundo o
cionário distinto e honrado” (“Alfandega do Diário de Notícias, um total de “trezentos e ses-
Funchal”, DN, 10 maio 1892, 1). Sobre a nota, senta e tantos mil reis” (“Cyclone dos Açores”,
ficava bem claro para os madeirenses que DN, 22 set. 1893, 2).
Read Cabral realizara toda a sua carreira pro- Nos 16 meses em que esteve na ilha da Ma-
fissional na área da fiscalização alfandegária. deira, Read Cabral confirmou a boa impres-
Começou, precisamente, em Ponta Delgada, são que causara com a notícia da sua vinda na
no cargo de guarda­‑mor da Alfândega, o que
lhe valeu, pelos valorosos serviços, a condeco-
ração da Ordem de Torre e Espada e o título
de comendador. Ascendeu à 1.ª categoria de
oficial das alfândegas, tendo depois assumi-
do o cargo de diretor da Alfândega de Ponta
Delgada, sendo um dos responsáveis pela im-
plementação da Alfândega na Horta, na ilha
do Faial. Foi diretor da 1.ª repartição da Al-
fândega de Lisboa, tendo realizado melhora-
mentos na fiscalização dos vinhos. Neste sen-
tido, os anos de serviço de Read Cabral, os
cargos relevantes para o qual fora nomeado,
bem como alguns estudos inéditos sobre fis-
calidade que publicou, tornavam­‑no um dos
primeiros especialistas sobre a matéria em
Portugal.
Guilherme Read Cabral ocupou o cargo de
diretor da Alfândega do Funchal durante 16
meses, entre 9 de maio de 1892 e 21/22 de
setembro de 1893, altura em que foi nomea-
do para o cargo de governador civil do distri-
to da Horta, tendo sido substituído por Carlos
Sobral.
Pouco tempo depois de ter assumido o cargo,
a 11 de maio de 1892, a imprensa noticiava que
a Alfândega do Funchal, depois da reforma
geral das alfândegas, voltaria a ser autónoma, Fig. 2 – Angela Santa Clara (1895), de Guilherme Read Cabral.
C abral , G uilherme R ead ¬ 659

sociedade funchalense de então, como com- O Diário de Notícias anunciava, em primeira


provam as palavras do Diário de Notícias ao in- mão, a 13 de março de 1895, que estava a im-
formar sobre a sua partida para a ilha do Faial: primir no Funchal um romance histórico, da
“Sentimos deveras a partida de tão bom amigo autoria de Read Cabral, inspirado num acon-
e distinto funcionário; e fazemos votos para tecimento “galante” ocorrido no Convento de
que tenha feliz viagem” (“Partida”, DN, 22 set. S.ta Clara (“Angela de Santa Clara”, DN, 13 mar.
1893, 2). 1895, 2). A 20 de abril de 1895, em primeira
A admiração era mútua, pois já Read Ca- página e coluna, o Diário de Notícias publicava a
bral, na faceta de “mavioso poeta e distinto es- apreciação crítica das 144 páginas impressas, a
critor”, tinha escrito sobre a ilha da Madeira, que tivera acesso, não havendo, ainda, a edição
referindo­‑se a esta e aos seus habitantes com final. O romance era recebido com louvor pelo
“generosidade e distinção”, conforme escreveu referido periódico, adjetivando­‑o de “excelen-
o Diário de Notícias (“Alfandega do Funchal”, te, honesto e instrutivo”. Angela Santa Clara era,
DN, 10 maio 1892, 1). Na verdade, os madei- assim, uma obra com uma linguagem “fluen-
renses letrados e os órgãos de informação co- te e correta”, que prenderia a atenção do lei-
nheciam relativamente bem a sua obra, haven- tor “desde a primeira à última folha”. Quan-
do já notícia das suas publicações antes de este to ao enredo, o Diário de Notícias classificava­‑o
ter chegado à Ilha. de “simples”, sem “as peripécias absurdas, os
Durante a sua estada, Read Cabral publicou lances inverosímeis da escola rocambolesca, as
um poema épico em folhetim, datado de 10 divagações fastidiosas no campo naturalista ou
de outubro de 1892, intitulado Colombo, no filosófico”. Era, por isso, de qualidade superior
contexto das celebrações do IV Centenário da a obra de Read Cabral, pois, “tanto na forma
Descoberta da América, dedicando a obra ao como na ideia, o romance é honesto e moral,
então governador da ilha da Madeira, Luís do sem deixar de ser patético e dramático, como
Canto e Castro Merens de Távora. O poema todos os quadros das grandes paixões huma-
épico narra a descoberta da América por Co- nas”, e, por ter nas suas páginas “certa cor local
lombo, exaltando a ligação do descobridor madeirense”, seria prezado pelos leitores ma-
genovês à Casa Perestrelo e às ilhas do Porto deirenses (“Angela de Santa Clara”, DN, 20 abr.
Santo e da Madeira, sua boa “madrasta”, onde 1895, 1). Um excerto da obra de Read Cabral
o “génio” de Colombo floresceu (CABRAL, viria a ser publicado pelo Diário de Notícias a 1
1892, 6). de maio de 1895.
Passados dois anos, em 1895, Read Cabral O P.e Fernando Augusto da Silva, ao referir­
viria novamente a publicar dois livros na Ilha. ‑se ao romance de Read Cabral no verbete que
A primeira obra a ser editada intitula­‑se Ange- consagra ao autor, em que, erroneamente, o
la Santa Clara, um romance histórico dedicado chama de “Henrique”, escreveu que é uma
ao povo madeirense, em resposta e reconhe- obra de “pura ficção”, contendo em si “mui-
cimento à generosidade com que os madei- tos anacronismos e várias inexatidões históri-
renses replicaram à subscrição organizada por cas” (SILVA e MENESES, 1998, 181), crítica
Read Cabral para apoiar as vítimas do ciclone que poderá, eventualmente, estar associada ao
ocorrido a 28 de agosto de 1893. O romance conteúdo do texto, revelador de uma faceta do
narra a história de amor entre a bela Ângela comportamento de uma freira que não podia
de Ornelas e o militar inglês sir George Glen- deixar de desagradar ao padre que Fernando
dover, no contexto das Guerras Napoleónicas e Augusto da Silva era.
das duas ocupações da Madeira pelos Ingleses, Nesse mesmo ano, meses depois da publica-
no qual o autor descreve episódios lendários e, ção da obra Angela Santa Clara, Read Cabral vol-
também, históricos da ilha da Madeira, a histó- taria a editar um pequeno livro intitulado Um
ria de Machim e Ana de Arfet ou o ataque dos Novo Mundo, um romance científico ou, como
corsários huguenotes franceses. hoje classificamos, de ficção científica, na linha
660 ¬ C abral , J úlio F erreira

Clara, Excerpto”, Diário de Notícias, Funchal, 1 maio 1895, p. 1; “Antilia ou a


ilha das Sete Cidades”, Diário de Notícias, Funchal, 8 dez. 1897, p. 1; 11 dez.
1897, p. 1; CABRAL, Guilherme Read, Colombo, Funchal, s.n., 1892; Id., Angela
Santa Clara, Funchal, Typ. Esperança, 1895; Id., Um Novo Mundo, Funchal,
Typ. Esperança, 1895; “Cyclone dos Açores”, Diário de Notícias, Funchal, 22
set. 1893, p. 2; “Delegação aduaneira”, Diário de Notícias, Funchal, 23 abr. 1892,
p. 1; Diário de Notícias, Funchal, 9 jul. 1879; “Necrologia”, Diário de Notícias,
Funchal, 23 jun. 1897, p. 2; “Partida”, Diário de Notícias, Funchal, 22 set. 1893,
p. 2; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1998;
digital: “Cabral, Guilherme Read”, Enciclopédia Açoriana, s.d.: http://www.
culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/Default.aspx?id=431 (acedido a 30
nov. 2018).

Carlos Barradas

Cabral, João Read da Costa


Bacharel e político português, filho do
1.º conde de Tomar, António Bernardo da
Costa Cabral, e de Louise Mitchell Read da
Costa Cabral, sendo irmão do 2.º conde de
Tomar, António Bernardo da Costa Cabral.
Foi nomeado em meados de junho ou julho
de 1879 para o cargo de governador civil do
Funchal, lugar que não aceitou, segundo noti-
Fig. 3 – Um Novo Mundo (1895), de Guilherme Read Cabral. ciava o Diário de Notícias de 9 de julho de 1879.
O mesmo jornal, a 23 de julho seguinte, voltaria
a confirmar que João Read da Costa Cabral efe-
dos romances escritos por Júlio Verne, e que tivamente não tomaria posse como governador
foi, provavelmente, uma das primeiras obras civil. Para o lugar de João Read da Costa Cabral
deste género a ser publicada na Ilha. A história foi nomeado João da Câmara Leme Homem de
conta o fantástico encontro entre um cientista Vasconcelos, futuro visconde do Canavial.
terrestre e uma mulher que habita o centro da
Terra, e a descoberta de um novo mundo, uma Bibliog.: Diário de Notícias, Funchal, 9 jul. 1879; 23 jul. 1879; 8 ago. 1879.
espécie de paraíso perdido. Carlos Barradas
Guilherme Read Cabral viria a falecer a 18 de
junho de 1897, em Ponta Delgada. Na Madei-
ra, a sua morte só foi noticiada a 23 de junho Cabral, Júlio Ferreira
de 1897, evocando a memória do “distinto ca-
Político e empresário madeirense, nascido no
valeiro” que, pelas “qualidades de coração e in-
Funchal a 26 de setembro de 1869, filho de
teligência”, era acarinhado por todos (“Necro-
António Ferreira Cabral e de Maria Augusta
logia”, DN, 23 jun. 1897, 2). No final do ano de
Ferreira. Contraiu matrimónio com Maria Es-
1897, a 8 e 11 de dezembro, o Diário de Notícias
meraldo da Câmara Leme Cabral, sem deixar
publicava ainda em folhetim um texto da auto-
geração.
ria de Read Cabral, “Antilia ou a ilha das Sete
Terá realizado os estudos liceais no Funchal.
Cidades”, uma meditação sobre a existência da
Ingressou, nos finais do séc. xix, na Escola
lendária ilha de Antília.
Médico­‑Cirúrgica de Lisboa, como compro-
Obras de Guilherme Read Cabral: Colombo (1892); Angela Santa Clara (1895); va o requerimento da autoria de Júlio Cabral
Um Novo Mundo (1895); Antilia ou a Ilha das Sete Cidades (1897).
de 27 de março de 1900. No mesmo, pedia
Bibliog.: impressa: “Alfandega do Funchal”, Diário de Notícias, Funchal,
uma redução da pena de expulsão por dois
10 maio 1892, p. 1; 11 maio 1892, p. 1; “Angela de Santa Clara”, Diário de
Notícias, Funchal, 13 mar. 1895, p. 2; 20 abr. 1895, p. 1; “Angela de Santa anos, por tempo já cumprido, solicitação que
C abral , J úlio F erreira ¬ 661

foi alvo do parecer do então procurador­‑geral 1924, 1), prometendo ficar alheio a questões
da Coroa e Fazenda, António Cândido Ribei- partidárias.
ro da Costa. A expulsão de Júlio Ferreira Ca- Desempenhou as funções de governador
bral da Escola Médico­‑Cirúrgica de Lisboa durante nove meses, terminando o manda-
terá tido origem num desentendimento grave to a 20 de setembro de 1924. Em vésperas
com um dos professores, impedindo­‑o assim da sua exoneração do cargo de governador
de prosseguir os estudos. civil, chegava ao Funchal a notícia da imposi-
Desempenhou os primeiros cargos públicos ção do dec. n.º 10.046/1924 do Governo por-
no concelho de Machico, tendo sido nomea- tuguês à Madeira, com a taxa de navegação,
do administrador do concelho a 5 de novem- pondo em causa os interesses económicos dos
bro de 1910 e exonerado a 20 de dezembro de madeirenses.
1913, embora tenha sido posteriormente no- Júlio Ferreira Cabral faleceu a 23 de setem-
meado várias vezes para esta posição. Foi elei- bro de 1930 na vila de Machico, com 61 anos,
to, também, presidente da Câmara Municipal tendo sido sepultado no jazigo de família no
de Machico, em data desconhecida. cemitério das Angústias. À data da morte, de-
Júlio Ferreira Cabral atingiu o auge da car- sempenhava as funções de oficial de registo
reira política ao ser nomeado pelo então mi- civil da Conservatória de Machico.
nistro do Interior, Sá Cardoso, por despacho
datado de 5 de janeiro de 1924, para o lugar Bibliog.: manuscrita: ABM, Conservatória de Machico, Óbitos, liv. 1395,
fl. 84v., proc. 168; Ibid., Registos Paroquiais, Sé, Batismos, liv. 1271, fls. 33v.­‑34;
de governador civil do distrito do Funchal, AHPGR, Procuradoria­‑Geral da República, Registo de Pareceres e Informações
em substituição do Gen. Simões Soares, to- para o Ministério do Reino, doc. 88, 27 mar. 1900, fls. 49v.­‑53v.; ANTT,
Ministério do Interior, Decretos, mç. 250, cx. 69; impressa: CLODE, Luiz
mando posse três dias depois. No discur- Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
so inaugural, Júlio Cabral prometia um de- Económica do Funchal, 1983; “Júlio Ferreira Cabral”, Diário de Notícias,
Funchal, 25 set. 1930, p. 2; “Novo governador civil do Funchal”, Diário de
sempenho no cargo “orientado na máxima Notícias, Funchal, 9 jan. 1924, p. 1; “A taxa de navegação”, Diário de Notícias,
imparcialidade e da máxima independên- Funchal, 19 set. 1924, p. 1.

cia” (“Novo governador civil…”, DN, 9 jan. Carlos Barradas

Minuta do requerimento de Júlio Ferreira Cabral, 27 de março de 1900 (AHPGR, Procuradoria-Geral da República...,
doc. 88, 27 mar. 1900, fl. 49v.).
662 ¬ C abral , M anuel F erreira

Cabral, Manuel Ferreira salientar que também ensinou na Escola In-


dustrial do Funchal e no Liceu Jaime Moniz,
D. Manuel Ferreira Cabral foi o 10.º prela- onde lecionou entre 1953 e outubro de 1956,
do a nascer em solo madeirense, ainda que sendo ainda nomeado vice­‑reitor do Semi-
tenha exercido as suas funções episcopais em nário do Funchal. A partir de 1958, e na se-
territórios distantes da sua terra quência da criação do Seminá-
natal, pois foi bispo da Beira, rio Maior do Funchal, por ação
em Moçambique, e bispo auxi- de D. David de Sousa, foi convi-
liar de Braga por duas vezes. dado para o lugar de vice­‑reitor
Nascido no sítio do Cedro da nova instituição. Aceitan-
Gordo, na freguesia de São do o desempenho das funções
Roque do Faial, a 10 de feve- que lhe eram propostas, em
reiro de 1918, era filho de Ma- breve (1961) assumiria o cargo
nuel Ferreira Cabral e de Ale- de reitor desse mesmo Seminá-
xandrina de Freitas. Depois rio. A sua carreira académica
de completada a sua formação prosseguiu, nos inícios da déc.
eclesiástica no Seminário do de 60, com a realização de um
Funchal, aí se tornou profes- doutoramento em Direito Ca-
sor, sendo, segundo os seus alu- Fig. 2 – Cálice de D. Manuel nónico na Univ. Gregoriana de
nos, de destacar a forma “dedi- Ferreira Cabral, c. 1965, Roma, findo o qual regressou à
cada e eficiente” que escolheu paróquia de São Roque do Faial Diocese do Funchal para aí se
(fotografia de Pedro Clode, 2015).
para dar as suas aulas (“Morreu tornar vice­‑vigário­‑geral e secre-
D. Manuel...”, JM, 13 dez. 1981, 1). Ainda a tário diocesano para a catequese. Em para-
propósito da sua carreira docente, cumpre lelo, mantinha­‑se como reitor do Seminário
Maior do Funchal, acumulando ainda todas
as funções referidas com a de administrador
do Jornal da Madeira.
O percurso eclesiástico tinha sido, por seu
turno, iniciado em 1939, com a receção de
ordens menores, a que se seguiram a de sub-
diácono, em setembro de 1940, a de diácono,
assumida em agosto de 1941, terminando o
percurso a 28 de fevereiro de 1942, quando
se tornou presbítero.
A 21 de janeiro de 1965, Paulo VI nomeou­
‑o bispo auxiliar da Arquidiocese de Braga e,
a 25 de março do mesmo ano, recebeu, na Sé
do Funchal, a sua ordenação episcopal, em
cerimónia que pela primeira vez se realizou
na catedral insular.
Dois anos depois, em 1967, foi indigitado
bispo da Beira, em Moçambique, lugar onde
se manteve por quatro anos, regressando,
de seguida, ao lugar que anteriormente ocu-
para – o de bispo auxiliar de Braga. Entre
1972 e 1981, ano em que morreu, D. Manuel
Fig. 1 – D. Manuel Ferreira Cabral, Braga, 1965
Ferreira Cabral foi, ainda, bispo titular de
(arquivos da Arquidiocese de Braga). Dume.
C abral , M anuel J oaquim M onteiro ¬ 663

Estando já muito doente, foi distinguido


pelo Papa Paulo VI com o envio de uma bên-
ção apostólica, onde o Sumo Pontífice in-
dicava estar a rezar “para que na luz da es-
perança e com o sofrimento redentor possa
serena, resignada e meritoriamente a pro-
vação” (“Morreu D. Manuel...”, JM, 13 dez.
1981, 4). Faleceu em Braga a 12 de dezem-
bro de 1981.
Bibliog.: “Morreu D. Manuel Ferreira Cabral”, Diário de Notícias, 13 dez. 1981,
pp. 1 e 13; “Morreu D. Manuel Ferreira Cabral”, Jornal da Madeira, 13 dez. 1981,
pp. 1 e 4.

Cristina Trindade

Cabral, Manuel Joaquim


Monteiro Fig. 1 – Escalas e Estudos para Machete Arranjados por Manoel
Joaquim Monteiro Cabral, c. 1850 (coleção de Manuel Morais).
Machetista, violista, arranjador, professor e co-
letor, Manuel Joaquim Monteiro Cabral nas- afinação do machete madeirense oitocentista,
ceu a 23 de novembro de 1807 na freguesia de seguem­‑se dois exercícios (“Escala natural”,
Santa Luzia. Casou a 27 de abril de 1850, na “Escala cromática”), precedidos por um diagra-
igreja de Nossa Senhora do Monte, com Rosa ma do braço do machete (quatro cordas, afina-
Perpétua Nunes, natural da freguesia de Santa das, do grave para o agudo, ré3­‑sol3­‑si3­‑ré4, divi-
Maria Maior. Desta união nasceu, a 20 de abril didas por 17 trastes); a este diagrama juntam­‑se
de 1864, uma filha que recebeu o nome de mais seis exercícios técnicos, todos com as res-
Maria, “filha legítima e primeira deste nome de petivas dedilhações da mão esquerda (“Salto
Manuel Joaquim Monteiro Cabral, músico, [...] de 3as”, “Salto de 3as unidas”, “Notas ligadas”,
e de Dona Rosa Perpétua Cabral” (ABM, Paró- “Notas soltas”, “Trinado”, “Notas ligadas”).
quia de Santa Luzia..., liv. 1470, fls. 17­‑17v.). Caso raro nestes pequenos métodos é a inclu-
A primeira menção a Manuel Joaquim Mon- são de “Acordes em cadência nos tons mais
teiro Cabral como músico, desta feita como usuais (C. maior, A. menor, G. maior, E. menor,
violista, data de 1846, quando figura no arran- D. maior, B. menor, A. maior, F# menor, E.
jo das partes de viola para acompanhar os ori- maior, C# menor, F. maior, D. menor, B. maior,
ginais para machete solo compostos por Cân- G. menor e E. maior, C. menor, A. maior e F.
dido Drumond de Vasconcelos. Ainda como menor)”. Neste pequeno método, juntam­‑se
violista, o seu nome surge numa coletânea ma- ainda cinco peças recreativas, nomeadamente
nuscrita madeirense oitocentista para viola, “Waltz”, “Dança camponeza”, “Galope”, “Rule
como autor de uma peça a solo intitulada britannia” e “God save the king”. Este peque-
“Polka mazurka arranjada por M[anuel] J[oa- no sistema surge com um título mais alarga-
quim] M[onteiro] Cabral”. do – Escalas e Estudos para Machete Arranjados
Como machetista, arranjador e professor, Ma- por Manoel Joaquim Monteiro Cabral – a abrir a
nuel Joaquim Monteiro Cabral tem uma obra maior coletânea manuscrita que conhecemos
imensa, muito mais extensa e variada do que a deste autor. Com arranjos deste machetista,
do seu conterrâneo António José Barbosa. esta compilação contém ainda muitas peças a
Comecemos por mencionar e analisar os Es- solo, sobretudo de compositores ingleses, bem
tudos para Machete Arranjados por Manuel Joa- como as típicas danças de salão oitocentistas
quim Monteiro Cabral, obra escrita com fins di- (valsas, polcas, quadrilhas, marchas, contra-
dáticos. Depois de ter referido a tradicional danças, galopes, cotilhão e passo dobre). Além
664 ¬ C abral , W illiam R ead ( J únior )

deste repertório escrito para se tocar o instru- por volta de 1860, para canto (soprano), acom-
mento a solo, vamos também aqui encontrar panhados por um ou dois machetes: Sou Meni-
exemplos de peças arranjadas para dois ma- na Inocente (o Papão); Diga Senhora Viuva; Huma
chetes afinados ao uníssono: o primeiro ma- Velha Tinha Um Gato; Rubros Fiambres e Menina
chete toca a parte solista, enquanto o segundo não Sejas Tola.
acompanha com simples acordes. Não temos quaisquer dúvidas de que todas
Em qualquer das coletâneas conhecidas, estas coletâneas manuscritas, quer na forma de
mesmo em peças oriundas da Madeira, o seu “princípios para o instrumento”, quer em com-
nome nunca aparece como compositor, mas pilação de um repertório muito variado, se desti-
só como arranjador. Ainda que o machetista navam ao estudo do machete por parte de “mui-
António José Barbosa distribua a letra sobre o tos dos estrangeiros que outrora aportavam à
pentagrama em só duas peças, Monteiro Ca- Madeira” (SILVA e MENESES, 1984, I, 167).
bral estende este procedimento a um número Manuel Joaquim Monteiro Cabral faleceu
muito alargado de canções com texto em in- a 16 de outubro de 1882, na freguesia da Sé,
glês, permitindo, deste modo, a sua execução, “de idade de setenta e cinco anos, casado com
que poderá ser cantada pelo mesmo tocador Dona Rosa Perpétua Cabral [...]. Não fez tes-
ou por outro intérprete. tamento e deixou uma filha. Foi sepultado no
Outra faceta que vamos encontrar em Ma- cemitério público das Angústias em campa
nuel Joaquim Monteiro Cabral é a de coletor particular” (ABM, Paróquia da Sé..., liv. 1352,
de cinco romances madeirenses arranjados, fls. 18v.­‑19).
Nos inícios da déc. de 20 do séc. xx, o seu
nome era ainda mencionado como professor
de braguinha: “Houve no Funchal alguns pro-
fessores de braguinha, entre eles Manuel [Joa-
quim Monteiro] Cabral” (SILVA e MENESES,
1984, I, 167).
Bibliog.: manuscrita: ABM, Registos Paroquiais, Nossa Senhora do Monte,
Casamentos, liv. 191, fls. 130­‑131v.; Ibid., Registos Paroquiais, Santa Luzia,
Batismos, liv. 1470, fls. 17­‑17v.; Ibid., Registos Paroquiais, Sé, Óbitos, liv. 1352,
fls. 18v.­‑19; CABRAL, Manuel Joaquim Monteiro, Compilação Manuscrita
para Machete, Encadernada, Constituída por 59 Folhas de Papel, c. 1860
(manuscrito na posse de Manuel Morais); impressa: AZEVEDO, Álvaro
Rodrigues de, Romanceiro do Archipelago da Madeira, Funchal, Typ. Voz
do Povo, 1880; KING, John, “Um método desconhecido para o machete
madeirense”, in MORAIS, Manuel (coord.), A Madeira e a Música. Estudos
(c. 1508­‑c. 1974), Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008,
pp. 589­‑602; Id., “O machete madeirense”, in ESTEIREIRO, Paulo (coord.), 5
Olhares sobre o Património Musical Madeirense, Funchal, Associação Musical
e Cultural Xarabanda/Associação dos Amigos do Gabinete Coordenador de
Educação Artística, 2011, pp. 21­‑37; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984;
VASCONCELOS, Cândido Drumond, e MORAIS, Manuel, Coleção de Peças
para Machete, 1846. Collection of Pieces for Machete, 1846, estudo e revisão
Manuel Morais, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2003.

Fontes áudio: O Machete Madeirense no Século XIX, CD­‑ROM+áudio,


Funchal, Gabinete Coordenador de Educação Artística, 2009; Música para
Viola/Music for Classical Guitar, CD­‑ROM+áudio, Funchal, DRAC, 2012;
Sarau Musical no Funchal, CD­‑ROM+áudio, Funchal, Gabinete Coordenador
de Educação Artística, 2011.

Manuel Morais

Cabral, William Read (Júnior)


Fig. 2 – Avô com viola e neta com machete, bilhete-postal
animado, Bazar do Povo, c. 1890 (coleção particular). Ö Cabral, Guilherme Read
C acongo , visconde de ¬ 665

Cacongo, visconde de
João Rodrigues Leitão, nascido em Ponte da
Barca, em 1843, fixou­‑se no Funchal, aos 10
anos, com o tio, João José Rodrigues Leitão,
um financeiro do Norte de Portugal. Cresceu
naquela cidade, ali fez os seus estudos e dali se-
guiu, em 1861, para África, ao serviço da casa
bancária do tio. Esteve então nas províncias de
Luanda, Zaire e, depois, em Landara, Cacon-
go, i.e., na margem oposta do rio Congo, onde
adquiriu uma fortuna e estabeleceu uma série
de boas relações com os régulos locais.
Tendo conhecimento de que a França preten-
dia estender a sua influência desde a colónia
do Gabão até às margens do Congo, ocupan-
do, inclusivamente, o Luango e a Ponta Negra,
conseguiu que o governador­‑geral de Ango-
la, o Cons. Ferreira do Amaral, enviasse, em Fig. 1 – Visconde de Cacongo, Funchal, c. 1900 (ABM,
Photographia Vicente).
1883, a corveta Rainha de Portugal, comanda-
da pelo Cap.­‑Ten. Guilherme de Brito Capelo,
ocupando­‑se assim os territórios de Cacongo e igualmente interesses. Estabelecendo­‑se no
Massabi. A sua presença e as suas relações nessa Funchal, Pedro Leitão ocupou o lugar de vice­
área levaram à aceitação da presença portugue- ‑cônsul do Brasil na Ilha.
sa, alegação depois apresentada pelos delega- O visconde de Cacongo administrou, a partir
dos portugueses na Conferência Internacional do Funchal, os seus interesses em África e no
de Berlim, sustentando que esse território era
português desde 1883, tendo sido aceite.
O trabalho de João Rodrigues Leitão seria
de imediato reconhecido em Lisboa, nos mea-
dos de 1884, tendo sido agraciado com o título
de visconde de Cacongo, por decreto e carta
régia de 1 de agosto desse ano, e carta de bra-
são de armas, mercê nova, por alvará de 24 de
novembro de 1900 e carta de 22 de dezembro
do mesmo ano.
O visconde era casado com uma prima,
D. Fermina Maria Rodrigues Leitão (c. 1845­
‑c. 1925), e os interesses da sua casa comercial
em África ficaram, entretanto, a cargo do filho
de ambos, João José Rodrigues Leitão Júnior.
Falecido precocemente João José, aos 23 anos,
a 17 de setembro de 1898, em Landana, Ca-
binda, passaram os interesses gerais da famí-
lia para o sobrinho, Carlos Ernesto Rodrigues
Leitão (1878­‑1958), filho de Pedro Petropolita-
no Rodrigues Leitão (1852­‑1904), nascido em Fig. 2 – Viscondessa de Cacongo, Funchal, c. 1900 (ABM,
Petrópolis, no Brasil, onde a família possuía Photographia Vicente).
666 ¬ C acongo , visconde de

Brasil, seguindo de perto a economia do distri- um vasto projeto de sanatórios marítimos e


to e associando­‑se aos vários empreendimentos de altitude, alguns exclusivamente destinados
em curso, como foi o caso do caminho de ferro a doentes ricos. Estas instituições foram logo
do Monte, de que foi um dos acionistas ini- dotadas dos anexos indispensáveis de jardins e
ciais, colaborando depois na fundação do Ma- parques, assim como de outros, destinados à
nicómio Câmara Pestana e na construção do população de menos recursos e que funciona-
cais, que viria a ter o seu nome. Tendo fixado vam como contrapartida da futura sociedade.
residência na Qt. Mãe dos Homens, em Santa O projeto foi aprovado pelo Governo portu-
Maria Maior, colaborou também com a Câ- guês, mediante parecer da comissão executi-
mara do Funchal na construção de várias das va da Assistência Nacional aos Tuberculosos, e
acessibilidades, vindo a edilidade a dar o seu teria tido apoio da Rainha D. Amélia, amiga
nome igualmente à estrada que percorre toda pessoal do príncipe alemão.
a meia­‑encosta alta daquele bairro, tal como, A 22 de setembro de 1903, o príncipe Hohen-
depois, à escola básica ali instalada. lohe chegou ao Funchal com uma vasta comi-
Os viscondes de Cacongo viriam a receber, tiva alemã e portuguesa, sendo ali recebidos
no Funchal, D. Carlos (1863­‑1908) e D. Amélia por, entre outros, o comendador Manuel Gon-
(1865­‑1951), inclusivamente, a 23 de junho de çalves (1867­‑1919), um dos administradores da
1901, na sua Qt. do Pomar, à Choupana, onde Companhia do Caminho­de Ferro do Monte, e
foi servido um almoço. Foi na sequência da vi- os viscondes de Cacongo, saindo da Madeira a
sita régia à Madeira que se devem ter reunido 3 de outubro seguinte.
as condições para que o príncipe alemão Fre- No ano imediato, chegou uma nova comi-
derick Charles de Holenlohe Oehringen, em tiva, com o importante financeiro Ernest Ho-
1903, se propusesse levar a efeito, na Madeira, fmann, um dos nomes do mundo das finanças

Fig. 3 – Rainha D. Amélia e Rei D. Carlos com a viscondessa de Cacongo, Qt. do Pomar, Monte, 23 de junho de 1901
(ABM, Visconde de Vale Paraíso).
C acongo , visconde de ¬ 667

de Berlim, que, dentro de um igualmente


curto espaço de tempo, passou a liderar um
importante projeto de turismo terapêutico,
com a construção de várias unidades hospita-
lares, como foram o Hospital dos Marmeleiros,
o “sanatório popular” e o Sanatório de Santa-
na, igualmente no Monte, já para classes mais
abastadas.
Os problemas da Companhia dos Sanatórios
ocorreram com a aquisição das quintas Lam-
bert, Vigia, Pavão e Bianchi (duas das quais
logo obtidas), praticamente as mesmas que vie-
ram a dar lugar ao futuro Casino Park Hotel
(1970). No entanto, os Ingleses inviabilizaram
o projeto, com a residência do médico inglês
Ronald Eduardo Stuart Krohn (1867/1868­
‑1916) na Qt. Pavão, que cedeu os seus direitos
aos Blandy. O empreendimento, que já avança-
va para outras vertentes, como as facilidades de
navegação para o Funchal, prevendo a instala-
ção de um depósito de carvão de pedra não só
para os navios que iam servir os hotéis e sana- Fig. 4 – Orchestrophone, Limonaire Frères, Paris, 1900
tórios como para a restante navegação, ficou (Museu Quinta das Cruzes, n.º invent. 1977 MQC).
assim gorado, e o Governo português teve de
pagar uma pesada indemnização à companhia
alemã por não ter assegurado as facilidades ini- dos Limonaire Frères, executado em Paris, em
cialmente contratadas. 1900, e que foi adquirido para o Museu Quinta
O visconde de Cacongo parece ter­‑se logo das Cruzes, em 1978, onde, depois de restaura-
demarcado do projeto dos sanatórios, tendo a do entre 2004 e 2006, se encontra patente e a
responsabilidade sido atribuída, pelos jornais tocar, quase sem se ouvir fora do jardim.
da época, ao comendador Manuel Gonçalves. A família recolhia­‑se na quinta do Caminho
Ainda mais se deve ter resguardado quando, do Meio. Inclusivamente, deixou de sair para
nos inícios de 1908, foram assassinados, em Lis- assistir aos serviços religiosos, mantendo um
boa, o Rei D. Carlos e o príncipe real D. Luís capelão privativo, o que então era já algo raro,
Filipe, na sequência dos escândalos da questão o jovem P.e Eduardo Clemente Nunes Pereira
dos sanatórios da Madeira e dos adiantamen- (1887­‑1976), depois autor de várias obras lite-
tos da Casa Real, que levaram a que fosse ins- rárias de carácter histórico, como Ilhas de Zargo
talada uma ditadura liderada por João Franco. (1939).
Praticamente não existem notícias sobre o O visconde de Cacongo, como outros elemen-
visconde de Cacongo nesses anos, salvo as re- tos da sociedade madeirense, já em 1901 se de-
lativas à encomenda a Francisco Franco (1885­ marcara do caminho que levava a monarquia
‑1955), em 1913, de um busto seu para colo- portuguesa, recusando a elevação a conde, por
car no jardim, a algumas ações filantrópicas e à considerar não fazer sentido. O mesmo teriam
existência, na sua Qt. da Mãe dos Homens, no feito John Burden Blandy (1841­‑1912), face
Caminho do Meio, de um “potente realejo, que ao escândalo do Ultimato britânico de 11 de
quando tocava se fazia em quase todo o Fun- janeiro de 1890, alvitrando que ficaria muito
chal” (CALDEIRA, 1964, 172), o que era um mais honrado se recebesse uma aguarela de
exagero. Tratava­‑se do célebre orchestrophone D. Carlos, e o comendador Manuel José Vieira
668 ¬ C adamosto , L u í s

(1836­‑1912), então administrador do conse- Bibliog.: CALDEIRA, Abel Marques, O Funchal no Primeiro Quartel do
Século XX, 1900­‑1925, Funchal, Eco do Funchal, 1964; CARITA, Rui, História da
lho, que somente aceitou a grã­‑cruz da Ordem Madeira, vol. vii, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 2008; CLODE, Luiz
de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; Diário da Madeira, 5 abr. 1918; SAINZ­‑TRUEVA,
dado achar muito dispendioso aceitar um títu- José de, “Quinta Mãe dos Homens”, Atlântico, n.º 17, 1989, pp. 5­‑16; A Sentinela,
lo nobiliárquico. 23 jun. 1918; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson,
Os monárquicos funchalenses reapareceram, “A questão dos sanatórios da Madeira”, Islenha, n.º 6, jan.­‑jun. 1990, pp. 124­‑144.
entretanto, com a instalação da República Nova
de Sidónio Pais. O primeiro encontro de mo- Rui Carita
nárquicos no quadro da nova situação realizou­
‑se nos inícios de abril de 1918, no palácio Torre
Cadamosto, Luís
Bela, à R. dos Ferreiros. Entre os seus promo-
tores, destacavam­‑se o visconde de Cacongo, o Luís Cadamosto (Alvise Da Mosto) foi um ex-
Cons. José Leite Monteiro (1841­‑1920), Júlio plorador, navegador e escritor italiano. Nasci-
Paulo de Freitas (1863­‑1946), Pedro José Lome- do em Veneza em 1429, morreu em 1483, dei-
lino (1864­‑1930), Rui Bettencourt da Câmara xando aos descendentes um relato das suas
(1874­‑1946), Henrique Augusto Vieira de Cas- viagens, desenvolvimento de uma série de
tro (1869­‑1926), Manuel Perestrelo Favila Vieira notas tomadas durante a viagem e redigidas
(1875­‑1923), entre outros. As conclusões foram talvez depois do seu regresso a Veneza. Os geó-
dar o voto a Sidónio Pais e “contribuir para a grafos e os homens de cultura da época apre-
constituição de maiorias que apoiem um Gover- ciaram de imediato os testemunhos nele con-
no de ordem, reservando­‑se uma representação tidos pela fidelidade das observações, fonte
afirmativa do seu prestígio” (Diário da Madeira, 5 preciosa para os estudos sobre as descobertas
abr. 1918). Desta reunião teria saído o apoio aos geográficas, e, em particular, por causa das in-
nomes propostos por Lisboa, em que constavam formações sobre a Madeira.
dois madeirenses de franco relevo, um da mo- Devido a dificuldades familiares, e em busca
narquia e outro da nova situação vigente, o an- de honras e riquezas, em 1454 Cadamosto em-
tigo ministro da monarquia Aires de Ornelas de barcou num navio da Flandres, desembarcan-
Vasconcelos (1866­‑1930), então lugar­‑tenente do no cabo de São Vicente, no lugar de retiro
de D. Manuel II no exílio, e o Maj. José Vicen- de D. Henrique, o infante de Sagres, ou Na-
te de Freitas (1892­‑1952), anterior governador vegador, o qual demonstrou por ele um vivo
civil do Funchal, e os elementos acordados com interesse. Cadamosto era um exímio conhe-
as estruturas continentais: Duarte Melo Ponce cedor de especiarias, e D. Henrique procura-
de Carvalho, e, como senadores, Alberto Cor- va um navegador capaz de contribuir para as
reia Pinto de Almeida e Adolfo Augusto Bap- novas explorações.
tista Ramires. Salvo os dois primeiros, todos os Tendo partido a 22 de março de 1455, Ca-
restantes eram desconhecidos na Madeira, pelo damosto chegou primeiro ao Porto Santo.
que A Sentinela, que na Ponta do Sol substituíra A ilha é descrita como um pequeno lugar se-
A Época, entretanto apreendida, escreveu que se guro, sem porto, mas protegida dos ventos,
tinham elegido senadores e deputados “todos rica e abundante em carne bovina e outras es-
eles independentes... dos eleitores, que nem de pécies animais. É eficaz a descrição que faz de
nome conheciam tão ilustre gente nova” (A Sen- um delicioso fruto semelhante às cerejas, mas
tinela, 23 jun. 1918). de cor amarela. Cadamosto deixa transparecer
O visconde de Cacongo não assistiu, no en- o seu envolvimento ao narrar seja aquilo que
tanto, ao reajustamento da situação política ele mesmo viu e constatou, seja o que lhe foi
por que se haviam batido os monárquicos e os reportado. Ao autor interessam em particular
católicos, iniciada com o 28 de Maio de 1926, os nomes: a ilha do Porto Santo, assim chama-
pois falecera no ano anterior, a 15 de junho, da porque descoberta no dia de Todos os San-
no Funchal. tos; a ilha da Madeira, ou “ilha dos lenhos”,
C adeirais ¬ 669

as narrativas que os compõem, as descrições do


Porto Santo e da Madeira são as mais comple-
tas e têm detalhes fascinantes. As ricas infor-
mações de Cadamosto oferecem ao leitor um
atraente testemunho dos lugares e da vida de
navegadores e comerciantes que se aventura-
vam por novas rotas e novas terras. Cadamosto
foi sensível ao aspeto da pluridimensionalida-
de da experiência humana: nas suas anotações
prevalecem a curiosidade e um agudo sentido
de observação.

Bibliog.: Annuario Geografico Italiano, Bologna, Libreria Rusconi, 1845.

Caterina Arcangelo

Cadeirais
Os cadeirais eram um complemento impor-
tante das grandes igrejas conventuais e das
Palácio Ca’ da Mosto, reforma de c. 1300, em Veneza, onde catedrais, onde o clero beneficiado e o cabi-
nasceu Luís Cadamosto (arquivo particular). do oficiavam em conjunto os serviços religio-
sos. Geralmente composto por duas fileiras de
cadeiras em cada lado, de acordo com a hie-
por causa das grandes árvores às quais se teve rarquia dos monges e dos clérigos, o cadeiral
que lançar fogo para que houvesse extensão apresenta quase sempre uma elevação dos es-
de terra para lavrar. A descrição da Madeira, paldares das cadeiras da fila posterior que
à qual Cadamosto chegou, por sua vez, a 28 compõe as paredes laterais do coro, com cada
de março, é especialmente sugestiva. A Ilha, assento a apresentar apoios para os braços e
constituída por quatro capitanias principais uma divisória para os assentos contíguos. O as-
(Machico, Santa­Cruz, Funchal e Câmara de sento pode ser recolhido na generalidade, de
Lobos) surge­‑lhe como uma terra montanhosa modo a permitir a permanência de joelhos ou
como a Sicília, mas fertilíssima, rica de água e em pé, possuindo na parte inferior um apoio,
de vinhas. Entre as árvores, destaca o cedro e o a misericórdia, que possibilita algum repouso
teixo, muito bonito e de cor róseo­‑encarnada. nas permanências de pé nas longas celebra-
As casas são despojadas de qualquer fausto, ções litúrgicas.
e os habitantes notabilizam­‑se pela tempe- A utilização dos cadeirais nos coros estendeu­
rança – quase como os antigos Germanos de ‑se igualmente aos conventos, como os das
Tácito. Clarissas, a maioria das vezes dois, em anda-
Os relatos de Cadamosto, traduzidos para res sobrepostos de acordo com a hierarquia
latim, alemão, francês, inglês e português, apa- dentro dos conventos, tal como se estendeu
receram pela primeira vez na obra Paesi nuova- às igrejas colegiadas, ou seja, onde havia um
mente Ritrovati et Novo Mondo da Alberico Vesputio certo número de clérigos, e que, à semelhan-
Florentino Intitolato, de Francanzio da Montal- ça das catedrais, celebravam ofícios religio-
boddo, publicado em Vicenza, em 1507; nas sos em conjunto. Na Idade Média, os cadei-
obras de Simone Gryaneus (1532), e no volu- rais das catedrais envolviam o presbitério, ou
me 1 da obra de Giovanni Battista Ramusio, in- capela­‑mor, fechando­‑se aos fiéis. Nos inícios
titulado Delle Navigationi et Viaggi (1550). Entre do séc. xvi passaram para os compartimentos
670 ¬ C adeirais

e, depois, os irmãos a iam assinar, evitando­‑se


assim a assinatura das atas em cima dos altares,
como se recomendava inúmeras vezes nas visi-
tações. Na transição do séc. xviii para o xix,
e com a centralização do governo eclesiástico,
a maioria das confrarias foi progressivamente
afastada das suas capelas iniciais, que passaram
para o controlo da autoridade eclesiástica, pas-
sando as reuniões a decorrer, por vezes, em ins-
talações anexas à igreja. Os cadeirais das con-
frarias passaram então para as paredes da nave,
junto às entradas e logo abaixo do coro, assen-
tes em consolas, de onde os confrades assis-
tiam aos ofícios religiosos, demarcando assim a
sua condição social da dos restantes fregueses.
Fig. 1 – Coro de cima do Convento de S.ta Clara do Funchal,
c. 1500 e seguintes (arquivo particular).
O primeiro cadeiral levantado na ilha da
Madeira deve ter sido o do coro de cima do
Convento de S.ta Clara, nos últimos anos do
laterais dessas capelas e, depois, para cima das séc. xv ou nos primeiros do séc. xvi, dado
entradas das igrejas, como quase todos os que que as freiras ocuparam as suas instalações
chegaram aos nossos dias. no Funchal entre os finais de 1496 e os iní-
Com a instalação das confrarias nas grandes cios de 1497, estando já prontas desde o ano
igrejas, foram também levantados cadeirais anterior, só aguardando a sua chegada do
nas suas capelas, onde os membros da confra- continente. O coro de cima apresenta uma
ria assistiam aos ofícios divinos em destaque e ordem de cadeiras separadas por pilastras oi-
faziam as reuniões. Nos sécs. xvii e xviii, foi tavadas e bancos amovíveis com misericórdias
introduzida uma mesa nos cadeirais das con- não esculpidas, assentes em estrado de ma-
frarias, onde o escrivão fazia a ata das reuniões deira e chão revestido por azulejos sevilhanos

Fig. 2 – Coro de baixo do Convento de S.ta Clara do Funchal, c. 1500 e seguintes, cadeiral reformado em 1736 (arquivo particular).
C adeirais ¬ 671

mudéjares, relevados e vidrados com óxido O cadeiral do Funchal foi, entretanto, “repa-
de cobre verde­‑escuro. O coro de baixo apre- rado” em 1587 e 1588, como consequência da
senta igualmente chão semelhante, mas com implantação das diretivas de Trento, na vigên-
diversos tipos de azulejos mudéjares, tendo cia do bispo D. Luís de Figueiredo de Lemos
sido o cadeiral reformulado por volta de (1544­‑1608), altura em que foi desmanchada
1736, data inscrita na cadeira da madre vigá- a fiada de cadeiras frente ao altar­‑mor. Nessas
ria da casa. obras foram colocados uns “topos de canta-
Também deveriam ter tido cadeirais seme- ria” nos degraus da capela­‑mor e, no ano se-
lhantes os restantes conventos femininos do guinte, aberta a porta para a capela do Ampa-
Funchal, embora o das Mercês só tivesse um ro e retiradas “umas cadeiras do coro, que não
coro, tal como os conventos de S. Francisco, serviam”, embora se refira que se guardaram
do Funchal, de S. Bernardino, de Câmara de então numa das arrecadações da cerca da Sé
Lobos, ou da Piedade, de Santa Cruz, mas (FERREIRA, 1963, 249).
nada desses chegou até nós, mesmo na forma O cadeiral do Funchal é composto hoje por
de outra informação documental. Os peque- duas ordens de cadeiras: uma superior, com 11
nos conventos da Ribeira Brava e da Calhe- cadeiras altas de cada lado para os capitulares,
ta, dado o escasso número de irmãos, pro- e outra inferior, com oito cadeiras, que se des-
vavelmente não devem ter tido este tipo de tinava aos capelães, sendo o acesso à ordem su-
mobiliário. perior feito pelos espaços entre as segundas e
O cadeiral da Sé do Funchal é o exemplar terceiras cadeiras inferiores de ambos os lados.
mais notável da sua época em Portugal e o A ordem superior possui sobrecéu, dossel ou
único que se encontra no local original. Du- guarda­‑voz e espaldar com santoral, com as pri-
rante a montagem, esteve para ser colocado meiras cadeiras superiores destacadas, sendo
sobre a porta principal, em 1515, a pedido da a do lado do Evangelho destinada a ser ocu-
Câmara Municipal do Funchal, mas entretan- pada pelo deão e a do lado da Epístola, pelo
to o Rei D. Manuel mudou de ideias e não se
cumpriu a ordem, muito provavelmente por-
que o cadeiral já devia estar a ser instalado na
capela­‑mor e a sua remoção significaria custos
acrescidos, pois muito raramente aquele rei re-
cuou em relação às suas ordens.
Tendo sido projetado no gabinete régio, em
Lisboa, onde trabalhava D. Diogo Pinheiro (c.
1437­‑1525), bispo do Funchal, o conjunto de
cadeiral, altar e retábulo da Sé fechava­‑se, por
certo, ao corpo da igreja, como também de-
terminara, em princípio, D. Manuel na carta
de janeiro de 1517. Deveria possuir em fren-
te ao retábulo, na parede com que se fechava
ao transepto, uma cadeira especial destinada
ao bispo do Funchal, assim como deveria en-
cerrar junto aos degraus de acesso ao retábu-
lo com outras duas cadeiras ligeiramente mais
altas e destacadas, destinadas ao rei e à rainha,
no caso de se deslocarem à Madeira, como
teria acontecido com os cadeirais de Tomar,
de Alcobaça e em quase todos os castelhanos Fig. 3 – Cadeiral e santoral da capela-mor da Sé do Funchal,
e aragoneses. c. 1514 (arquivo particular).
672 ¬ C adeirais

arcediago, a que se seguiam o chantre e o te- decorre nos locais mais escondidos, como nas
soureiro. As cadeiras dos capelães apresentam altas gárgulas medievais de algumas catedrais,
espaldar com um pequeno friso de talha já de quase fora do alcance visual do transeunte
feição renascentista, utilizando como sobrecéu e fora do local sagrado que é o templo, mas
e guarda­‑voz o parapeito da estante superior interpenetrando­‑se com a iconografia de cariz
dos cónegos. sacro no seu interior. A sua apresentação no
As cadeiras são dotadas de braçais superio- interior dos templos ocorre somente nos cadei-
res, onde os elementos do cabido e os capelães rais e, mais especificamente, nas misericórdias,
apoiavam os braços nas longas leituras feitas de dado o facto de ficarem escondidas, acrescido
pé, os quais, nos mais complexos cadeirais de do próprio uso privado a que se destinavam,
Espanha, também aparecem com elementos explicando assim em grande parte a aceitação
decorativos, sendo os do Funchal mais simples. do cariz tão licencioso e profano de algumas
Todo o conjunto é rematado por um baldaqui- dessas representações.
no entalhado, que esconde o guarda­‑voz, com
as divisórias das cadeiras marcadas superior-
mente por flechas entalhadas. Os espaldares
da ordem superior do cadeiral do Funchal são
decorados com nichos cobertos por baldaqui-
nos também finamente entalhados abrigando
imagens em baixo­‑relevo dos principais santos,
apóstolos e profetas, na sequência dos antigos
santorais ou repositórios de devoções.
A mensagem da Igreja Triunfante ocupa assim
o local mais destacado do coroamento superior,
comunicando diretamente ao espectador o sen-
tido da religiosidade através das representações
das suas figuras cimeiras. Entretanto, nos espa-
ços mais baixos e menos visíveis, aparece uma
série de elementos escultóricos mais ou menos
dissonantes, com referências aos bestiários me-
dievais e à marginália, muito comum nos congé-
neres europeus. No cadeiral do Funchal, essas
referências aparecem logo em algumas das mí-
sulas do santoral, sem especial relação com as
grandes figuras representadas superiormente,
nos pomos dos espaldares das cadeiras inferio-
res, nas paciências dos apoios das mãos e, nem
sempre visíveis, nas misericórdias.
Os cadeirais de coro medievais devem ser
os locais em que a decoração melhor espelha
o cariz estremado e contraditório da realida-
de religiosa e social dessa época, como vários
autores têm referido. Na sua decoração con-
fluem pacificamente o sagrado e o profano, o
erudito e o popular, o quotidiano e a lenda,
numa série de referências históricas ances-
trais a que não falta algum sentido de humor. Fig. 4 – Cadeiral da colegiada da igreja matriz de São Pedro do
Esta tradição desenvolve­‑se na marginália que Funchal, Manuel Pereira (atr.), 1633 (arquivo particular).
C adeirais ¬ 673

O cadeiral do Funchal apresenta ainda uma


série de representações que parecem remeter
para o quotidiano local, como a de um cam-
ponês a pisar as uvas, a de outro a encher um
tonel, a de homens transportando borrachos
e bebendo, etc. Estas figurações nascem dos
tradicionais trabalhos dos meses, mas revelam
aqui uma preocupação quase documental que
se sobrepõe aos modelos divulgados pelas gra-
vuras, que serviram, por certo, como matriz
para muitas das esculturas. No Funchal, entre-
tanto, parece haver uma maior abundância de
referências aos escravos negros, representados
a tocar tambor ou a apanhar cocos ou bana-
nas, tal como uma relativa abundância de ma-
cacos e outros animais exóticos, como um ca-
maleão, que ligam e documentam a instituição
da “igreja grande” como sede da diocese dos
Descobrimentos portugueses.
A autoria da complexa máquina retabular e
do cadeiral do Funchal tem sido atribuída à
parceria de Machim Fernandes com o “carpin- Fig. 5 – Cadeiral da colegiada da igreja matriz de Machico,
reforma de c. 1790 (arquivo particular).
teiro de Tomar” João do Tojal, de momento a
hipótese mais viável e plausível. O mestre Ma-
chim fora recrutado em Toledo e executara al- eruditas, como a representação de um rinoce-
terações no cadeiral da igreja de S.ta Cruz de ronte como braço de uma das cadeiras, indis-
Coimbra; em fevereiro de 1513, estava à frente cutivelmente inspirado na célebre gravura de
da oficina que executava várias obras na igre- Albrecht Dürer, editada pela primeira vez em
ja matriz de S. João Batista de Tomar, entre as 1515, tal como a de um elefante.
quais a talha para o cadeiral dos cónegos. Em Ao contrário do cadeiral da Sé, no entanto,
novembro seguinte, a obra estava pronta e, em o de S. Pedro é uma obra já tridentina, “con-
fevereiro de 1514, o Rei D. Manuel deslocava­ trarreformista”, bastante contida e sem vestí-
‑se a Tomar para ver pessoalmente os trabalhos. gios do cariz licencioso e pícaro do congéne-
Entre 1514 e 1519, não existe documentação re levantado haveria cento e poucos anos antes
sobre os trabalhos ou presença destes mestres na Catedral. Tudo leva a crer que os modelos
em Portugal, tudo levando a crer que Machim utilizados foram objeto de apertado contro-
Fernandes e João de Tojal teriam sido contrata- lo por parte dos eclesiásticos, entre os quais,
dos para a montagem do retábulo e execução muito provavelmente, figurava o futuro ad-
do cadeiral da “igreja nova” do Funchal. ministrador do bispado, o “todo­‑poderoso”
Ao longo do séc. xvi, devem ter tido cadei- deão Dr. Pedro Moreira (c. 1600­‑1674), natu-
rais as várias igrejas matrizes com colegiada, ral da Ponta do Sol e então beneficiado naque-
mas só chegou aos nossos dias o cadeiral da la igreja. A autoria do cadeiral parece apontar
matriz de S. Pedro do Funchal, datado por car- para o entalhador Manuel Pereira (c. 1605­
tela maneirista numas das misericórdias com ‑1679), que teria oficina na freguesia de São
“Anno 1633”. Este cadeiral não deixou qual- Pedro, integrando com o título de “imaginá-
quer rasto na documentação que temos con- rio”, e.g., a Confraria das Almas da Igreja de S.
sultado até ao momento, mas é uma obra in- Pedro, onde foi eleito mordomo em 1630 e, de
sular cimeira, que inclui referências bastante novo, em 1632, em conjunto com importantes
674 ¬ C adeirais

Fig. 6 – Cadeiral do Santíssimo da igreja matriz da Calheta, c. 1770 (fotografia de Bernardes Franco, 2017).

proprietários locais e o P.e Pedro Moreira, be- neoclássica, polidos e com contidos aponta-
neficiado daquela igreja, pelo que já era de- mentos de talha dourada, no início das naves
cididamente um elemento de grande recorte das igrejas matrizes, como subsistem em inú-
local. Assim, encontrando­‑se nessa época em meras igrejas da região, costume que perdurou
construção o cadeiral do coro daquela igreja, até aos inícios do séc. xx, período dos mais re-
datado numa das misericórdias de 1633, de centes, já somente polidos ou pintados.
certeza que Manuel Pereira fazia parte da equi- A situação, no entanto, nem sempre foi li-
pa que o entalhava. near, e, pelos finais do séc. xviii, a matriz de
Entre os finais do séc. xviii e meados do xix, N.ª Sr.a da Conceição de Machico voltou a repor
processaram­‑se profundas alterações na orga- o cadeiral da colegiada na capela­‑mor, como
nização religiosa, primeiro com a centralização se fazia até aos primeiros anos do séc. xvi.
régia, que de certa forma restringiu a atividade Os altos alçados apresentam­‑se pintados com
das confrarias, depois com a centralização do um santoral atribuível à oficina de Nicolau Fer-
poder eclesiástico, que levou o bispo D. José da reira e encimados por sobrecéu, sobre o qual,
Costa Torres (1741­‑1813), entre outras ações, de um lado, assentam o órgão e, do outro, uma
a extinguir as confrarias das antigas irmanda- tribuna. A Confraria do Santíssimo da Sé, em
des de ofícios da Sé do Funchal, por provisão 1806, também mandava renovar a antiga mesa
episcopal de 18 de abril de 1792, alegando a dos confrades, ou seja, o cadeiral onde faziam
sua “irregular ou nula administração”, passan- as suas reuniões e assistiam, em destaque, às
do os seus documentos e receitas para a fábri- cerimónias religiosas, dado que estava “inteira-
ca da Sé, que se encarregou do cumprimento mente indecente, pela sua antiguidade e gros-
das respetivas obrigações pias. Ficavam assim seria” (FERREIRA, 1963, 313). Foi então cons-
somente as irmandades do Santíssimo e as dos truída uma nova estrutura sob a direção do
oragos das igrejas matrizes, ainda que muitas mestre Manuel Fernandes (Id., Ibid.) ao gosto
tenham resistido durante mais algum tempo. neoclássico da época, com painéis de madeira
Deve datar, assim, desses finais do séc. xviii a embutidos representando vasos com flores, re-
colocação dos cadeirais da confraria do Santís- tirado para o Museu de Arte Sacra nos inícios
simo e dos do orago da freguesia, já de feição de 1970.
C adernos I lha ¬ 675

Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral,


tombo 1, fl. 315v.; ANTT, Cabido da Sé do Funchal, Avulsos, mç. 6, n.º 1;
Ibid., Ministério das Finanças, Conventos Extintos, Funchal, cx. 2076;
impressa: BRAGA, Maria Manuela Correia, “Apontamentos acerca do
cadeiral”, Monumentos, n.º 19, 2003, pp. 56­‑63; CARITA, Rui, “Cadeiral da
Sé do Funchal”, dossiê de Invenire, n.º 9, jul.­‑dez. 2014, pp. 30­‑39; COSTA,
José Pereira da, Vereações da Câmara Municipal do Funchal. Século XV,
Funchal, CEHA, 1995; FERREIRA, Manuel Juvenal Pita, A Sé do Funchal,
Funchal, JGDAF, 1963; LADEIRA, Paulo Jesus, A Talha e a Pintura Rococó
no Arquipélago da Madeira (1760­‑1820), Funchal, CEHA, 2009; MOREIRA,
Rafael, “Os autores do retábulo e cadeiral (1514­‑1516)”, Monumentos, n.º 19,
2003, pp. 64­‑65; NORONHA, Henrique Henriques de, Memórias Seculares e
Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do Funchal na Ilha da
Madeira, antigamente Primaz de Todas as Conquistas, Distribuída na forma
do Sysrema da Academia Real da História Portuguesa. Anno de 1722, Funchal,
CEHA, 1997; RODRIGUES, Rita, “Manuel Pereira, entalhador e imaginário
madeirense do século xvii, e os circuitos de divulgação de modelos para
as periferias”, Anuário do Centro de Estudos de História do Atlântico, 2010,
pp. 229­‑325; digital: BRAGA, Maria Manuela Correia, “A marginália
satírica nos cadeirais do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do
Funchal”, Medievalista, 2005: http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/
MEDIEVALISTA1/medievalista­‑marginalia.htm (acedido a 19 fev. 2015).

Rui Carita

Cadernos Ilha
Coleção de 11 títulos de 8 autores, fundada
e dirigida por José António Gonçalves, entre
1988 e 2001. Inaugura­‑a com 20 Textos para
Falar de Mim (Poemas de 1970­‑1985), qual “Lita- Fig. 1 – 20 Textos para Falar de Mim (1988), de José António de
nia insular”, título do derradeiro poema, em Freitas Gonçalves (Cadernos Ilha n.º 1).

que desagua o geral discurso da Ilha (originá-


rio da, escrito no e sobre “o dorso” da Ilha), céus mais infinitos”. Numa lírica de minúscu-
e este projeto editorial: “não sinto nunca a las e verso branco libérrimo – assumida pelo
necessidade de escrever/um poema magnífi- octeto –, é nesta coletânea que, ainda assim,
co/como o silêncio/dum crepúsculo lento// há visos de rima. No geral, não há rasgos for-
creio que isto causa apreensão a qualquer ar- mais a assinalar.
tista/mas a obra urge surgir sem apetrechos Na página 2, explica­‑se a iniciativa, “fruto da
decorativos, branca e nua/como uma ninfa constatação da imperiosidade de criação de
em pântanos indescortináveis/e distribuir­‑se um espaço literário aberto e responsável, inte-
simples e concreta – um sorriso breve –/num grado porém no espírito que presidiu aos ali-
rosto claro de mulher/ou como o pão fresco cerces do Movimento ILHA: afirmação cultural
e saboroso/sobre a mesa/que bem o conhece do âmago dos contornos que definem a insula-
e o espera//só assim será possível a conquista ridade como tema criativo”. Os volumes Ilha 1
de espaços transparentes/na penumbra dos e Ilha 2 eram de 1975 e 1979; os seguintes, de
quotidianos aflitos e possessivos/e as manhãs 1991, 1994, 2008: significava isso a necessida-
possuirão aquela luz da novidade e da espe- de de outra experiência, por autor, e não em
rança/que apenas os barcos aprenderam a grupo? Não só: temendo a asfixia de assunto
trazer até aos rebordos verdes/– trespassados em parcos cultores ilhéus, J. A. Gonçalves inau-
pela monotonia ecoante do mar rasgando as gura, antes do último título, e com título seu,
rochas –/da ilha infatigavelmente prostrada Noites de Insónia (1998), a Coleção Livros de
no centro dos horizontes/aguardando certa- Cordel, extensiva aos que, também continen-
mente a chegada da gaivota calada e serena/ tais, não tinham forçosamente afinidades ele-
para em cada voo erguer o grito do mar sob os tivas com o arquipélago. Agora, impõe­‑se uma
676 ¬ C adernos I lha

“temática insular” de autóctones ou residen- momentos fortes (“Cena domingueira”, “Bor-


tes, com preferência pela poesia, que será ex- dadeira”, “Meu avô José”, “Fragmento”, “Gosto
clusiva, e avança­‑se “derrotando o alheamento de cereja madura”), revisita lugares­‑chave do
e sufocando lacunas – limando o calhau com turismo (cabo Girão, Porto Santo): “De que
a força do mar, ali mesmo, sempre presente divindade te alimentas/fantástica goela escan-
como uma fronteira”. carada para os céus?/Falta­‑te o mar, sobram­‑te
Além de convidar artistas locais para a mistérios/e o assombro perene permanece em
ilustração da capa e de prefaciar quatro teu vale/prenhe de lendas e verde.//[…]Pe-
dos partícipes, outra preocupação anima- quena e rendida, observo­‑te/frémito de medo
va J. A. Gonçalves: a lembrança post mortem, e êxtase/e das flores do rochedo onde me
e justo reconhecimento, de A. J. Vieira de agarro/faço um ramo agreste em oferenda/
Freitas (1940­‑1982) e Jorge Freitas (1921­ aos deuses deste lugar” (“Curral das Freiras”).
‑1960), com, respetivamente, 14 Poemas Iné- A Mão Que Amansa os Frutos (n.º 4, 1990), de
ditos (n.º 2, 1988) e Alguns Poemas Insulares e Irene Lucília Andrade, é um eurítmico péri-
Outros Textos (n.º 7, 1995). Daquele, atento plo em 26 etapas regulares: “Longos caminhos
ao social entre laivos surrealizantes, já Ilha 3 percorri/curvos (que é como eu gosto dos ca-
(1991) se quisera “homenagem póstuma”, minhos)/e descansei à sombra do silêncio/
com outros inéditos, cujo roteiro sensacio- atrás de ocultos encontros”. Nomear os frutos
nista de lugares nos adentrava no fenómeno é conjugar os elementos (em particular, terra
ilhéu como estádio mais vasto da condição e água) – discreta metáfora para cantar, após
humana. Este interviera em edições coletivas genesíacas reminiscências ou a “luz grega” de
entre 1952 e 1958, tendo lançado a expen- setembro, a reedificada Pasárgada que o poeta
sas suas Alguns Poemas Insulares (1954), tão­ em si variamente colhe e acarinha. Essa eurit-
‑somente seis, de sabor marinho e parca ori- mia volta, contudo, num alfabeto incomple-
ginalidade; agora, acrescem 34 outros textos to e solar, apesar de dor, dúvida e protesto se
desde 1946 retirados de espólio mais largo. insinuarem.
A soltura da voz, livre, sem peias vocabulares, Antologia Verde (Poemas, 1973­‑1979; n.º 5,
mantém­‑se viva, refrescante, quer na reitera- 1991), no nome completo José António de
da reflexão sobre o fazer poético, quer nas as- Freitas Gonçalves, é a primeira antologia deste,
sociações insólitas e lições de vida deste velho desde o coletivo Movimento até ao título esgo-
companheiro de Herberto Helder e Carlos tado A Crista de Neptuno. Se há poetas de anto-
Camacho, em Poemas Bestiais (1954). Veja­‑se logia – no que isso representa de balanço re-
“Calcanhar d’Aquiles”, anúncio de exercícios gular e revisão de impurezas, fazendo­‑se novo
por outros articulados nas décadas seguintes: rosto –, J. A. Gonçalves é um deles, na sua per-
“Sagitário feriu/o calcanhar do mundo/e manente inquietação. Explicita­‑se, logo, assu-
homero e virgílio/escreveram os lusíadas/que mida “homenagem à ilha, fonte primeira da
luís vaz camões/escrupulosamente assinou./ imagética que à palavra deu cor. É também a
Então, judas comprou uma guita/por trinta assunção da verdura – roupagem indisfarçá-
dinheiros/e içou a humanidade/ao infini- vel no corpo dos poemas escritos na juventu-
to”. Ou estoutro: “Li hoje um poeta/Daque- de – que alimenta os textos coligidos […]”.
les que fazem versos,/Só versos./Que estúpi- Mais consistente, e coerente, será Aventura na
do animal./E pensarmos nós/Que há tanta Casa dos Livros (n.º 10, 2000). A par do discurso
besta desta/Em Portugal”. à volta do “livro” (índice, biblioteca, guia, lom-
Dalila Teles Veras, emigrada desde 1957 em bada e outros vocábulos da respetiva semânti-
São Paulo, onde Madeira: Do Vinho à Saudade ca), que não deixa de ser o desenvolvimento
(n.º 3, 1989) teve segunda edição (1997), re- de um conceito resumido ao génesis de outro
lembra a atividade vinícola, ou “via profana em mundo – o universo da criação literária –, em
cinco atos”, e, a par de evocações de gentes e que o sujeito também descansa ao sétimo dia
C adernos I lha ¬ 677

coleção –, onde o poema “Destino” enuncia


a preocupação crescente com o lugar, glosa-
do em ilha, calhau, funcho, meada e tear do
destino.
Falta referir os números 6, 8 e 9: Carlos No-
gueira Fino, Contemplação do Olhar (1992); São
Moniz Gouveia, Cartas para Um Tenente (1996);
e Teresa Souto, Um Olhar além de Mim (1998).
Aqui, é um tropel de sensações – “volúpia
antiga” não isenta de interrogações – em es-
treia que aguarda confirmação. Na também
estreante São Moniz Gouveia (assina, hoje,
Laura Moniz), as várias frentes (caso de “W.
B. Yeats e Batman numa banheira”) denun-
ciam dispersão e aleatório atrás de um moti-
vo firme em índices de sensualidade: um corpo
feito sentidos, cuja consumação vencesse angús-
tias e mágoa: “queria que fosses/um primei-
ro sentido do orgasmo/fome de sexo perma-
nente/que se curva à luz solar/e eu manto
de veludo quente/ruído de lágrimas/trans-
pirada em gargalhadas/por toda a tua pele”
Fig. 2 – Esquivas São as Aves. Poemas (2001), de José António
Gonçalves (Cadernos Ilha n.º 11). (“Simbiose”).
O continental Carlos Nogueira Fino há
muito conquistara outra pátria. No primei-
(ver segundo poema), e pese, ainda, algum ro de 71 sketches, vislumbra­‑se argumento de
tom imperativo, os velhos encavalgamentos uma existência: “pátria pode ser a transparên-
vão­‑se reduzindo a inflexões menos sonoras e, cia/do chão onde se enxerta a alma/no mais
esbatido esse galope, impõe­‑se “retrato breve”, puro perfume do silêncio//onde se acendem
com diluição metafórica, fixando instantes, as íntimas janelas/que se abrem para as árvo-
“crónica citadina”, poetas e músicos, amigos. res”. Na irrupção de dícticos (os demonstrati-
Sobrevém o desejo de uma sintaxe, de maiús- vos “este”, “esta”, a par de mais raros “aqui”,
culas e pontuação correntes, pulverizadas ou “agora”) e interlocução dirigida a uma segun-
ausentes na produção anterior. Encerrando da pessoa – na participação de Ilha 4 (1994),
uma coleção decerto desigual, com sacrifício ressalta um tom imperativo (“vem”, “assente-
inclusive financeiro de J. A. Gonçalves, Esqui- mos”) –, percebe­‑se o espírito do lugar, convi-
vas São as Aves (n.º 11, 2001) está discretamen- dando à contemplação de paisagens interiores.
te invadido de pequenos desaires, maus augú-
rios, vazio crescente… O verso é mais rápido, Bibliog.: ANDRADE, Irene Lucília, A Mão Que Amansa os Frutos, Funchal, s.n.,
1990; FINO, Carlos Nogueira, Contemplação do Olhar, Funchal, José António
fechando em desconforto, quando não desin- Gonçalves/Grafimadeira, 1992; FREITAS, A. J. Vieira de, 14 Poemas Inéditos,
teresse. E outra é, enfim, a “Ilha dilacerada”: Funchal, José António Gonçalves, 1988; FREITAS, Jorge, Alguns Poemas Insulares,
Funchal, s.n., 1995; GONÇALVES, José António Freitas, 20 Textos para Falar de
“Tenho uma ilha dilacerada nas mãos/desfeita Mim, Funchal, José António Gonçalves, 1988; Id., Antologia Verde, Funchal, José
em bocados de terra quente e viva/explodin- António Gonçalves, 1991; Id., Aventura na Casa do Livros, Funchal, Correio da
Madeira, 2000; Id., Esquivas São as Aves. Poemas, Funchal, Correio da Madeira,
do o seu verde pelos meus dedos.//[…]//É 2001; GOUVEIA, São Moniz, Cartas para Um Tenente, Funchal, Correio da
uma ilha dilacerada por ausências/com me- Madeira, 1996; SOUTO, Teresa, Um Olhar além de Mim, Funchal, Correio da
Madeira, 2000; VERAS, Dalila Teles, Madeira. Do Vinho à Saudade, Funchal, José
mórias de vinhos e de açúcares/na sua madei- António Gonçalves, 1989.
ra carcomida pelo tempo.” Deve ser lido com
As Sombras no Arvoredo (2004) – início de outra Ernesto Rodrigues
678 ¬ C adet, M aria R ita C ola ç o C hiappe

Cadet, Maria Rita Colaço


Chiappe
Maria Rita Colaço Chiappe Cadet (1836­‑1885)
foi provavelmente adotada por Maria Madale-
na Chiappe Colaço e Barnabé Martins de Pan-
corvo; com efeito, a futura escritora, poetisa e
dramaturga foi exposta na Roda da Santa Casa
de Lisboa em 1836. Foi professora primária,
ensinou francês, dirigiu um colégio feminino
na capital e foi gerente da editora Lallement et
Frères. Casou­‑se com João Baptista dos Santos
Cadet, em 1857.
Antes do casamento, já tinha publicado di-
versas composições poéticas, tendo contri-
buído, entre outros, em 1852, para o jornal Fig. 1 – Maria Rita Colaço Chiappe Cadet, gravura a partir
de fotografia, c. 1880 (coleção particular).
A Beneficência, dirigido por Antónia Pusich.
Dedicou­‑se à tradução e à colaboração em di-
versos periódicos, entre os quais O Almanaque era amiga e a quem dedica, em 1870, a poesia
de Senhoras e o Jornal das Damas. Fez também “Horas vespertinas – No album da excellentis-
letras para composições musicais, como a que sima senhora viscondessa das Nogueiras (Me-
escreveu para a banda militar do mestre de ditação)” (provavelmente escrita no álbum de
música de D. Luís, Manoel Inocêncio Libera- poesias que a viscondessa teria e no qual reco-
to, incluída no Cancioneiro de Músicas Populares lheria as suas composições e as das amigas), pu-
(NEVES, 1895, 166­‑167). A preocupação com blicado em Sorrisos e Lágrimas, teve certamente
a educação leva­‑a a publicar, em 1880, Flores da grande influência no desenvolvimento intelec-
Infância, Contos e Poesias Morais Dedicados à Mo- tual e artístico de Maria Rita Chiappe Cadet.
cidade Portuguesa, obra que foi considerada de De facto, a partir do seu regresso a Lisboa, vai
utilidade para uso das escolas em Portugal e dedicar­‑se de forma continuada à escrita para
no Brasil. As suas obras no campo da literatu- crianças, aliando o intuito pedagógico ao in-
ra infantil, quer contos, quer peças de teatro, centivo à leitura e à sua fruição.
fazem da escritora uma das precursoras da li- A Ilha e a sua paisagem marcam a autora de
teratura infantojuvenil moderna. Uma delas, forma profunda, como demonstra no poema
O Lunch na Quinta – Comédia em Um Acto, publi- “Canto à ilha da Madeira – Ao chegar”: a
cada em 1884, é dedicada à viscondessa da Ri-
beira Brava, D. Joana Gil de Borja de Meneses
e Macedo, que dirigiu na Madeira a Delegação
da Cruzada das Mulheres, e aos seus filhos.
A escritora tem uma ligação profunda à
Madeira, onde viveu de 1870 a 1875, tendo
privado com a viscondessa das Nogueiras,
D. Matilde Isabel de Santana e Vasconce-
los Moniz de Betencourt, autora de Diálogos
entre Uma Avó e Sua Neta – Para Uso das Creanças
(1862), adotado pelo Conselho de Instrução a
nível nacional, poetisa reconhecida e intelec-
tual atenta à importância da educação femi-
nina. O convívio com a viscondessa, de quem Fig. 2 – Os Contos da Mamã (1883), de Maria Rita Chiappe Cadet.
C aetano , J o ã o V ieira ¬ 679

Madeira surge no horizonte como uma “náia- Bibliog.: impressa: CADET, Rita Chiappe, Sorrisos e Lágrimas. Poesias
de D. Maria Rita Chiappe Cadet, Lisboa, Typ. Lallemand Frères, 1875; Id.,
de encantada” (CADET, 1875, 75), formosa, Os Contos da Mamã, Lisboa, Marie François Lallemant, 1883; MACEDO, L. S.
verde, florida, e, como a ilha dos amores, en- Ascensão de, Da Voz à Pluma. Escritoras e Património Documental de Autoria
Feminina de Madeira, Açores, Canárias e Cabo Verde do Século XVI até ao
feitiça quem a vê. Numa verdadeira paródia do Século XX. Guia Biobibliográfico, Ribeira Brava, ed. do Autor, 2013; NEVES,
poema do brasileiro Gonçalves Dias, “Canção César, e CAMPOS, Gualdino de, Cancioneiro de Músicas Populares Contendo
Letra e Música de Canções, Serenatas, Chulas, Danças, Descantes, Cantigas dos
do exílio”, que refere os primores do Brasil e o Campos e das Ruas, Fados, Romances, Hymnos Nacionaes, Cantos Patrióticos,
canto do sabiá, pedindo a Deus que não o leve Cânticos Religiosos de Origem Popular, Cânticos Litúrgicos Popularisados,
Canções Políticas, Cantilenas, Cantos Marítimos, etc. e Cançonetas Estrangeiras
antes de voltar para o Brasil, Cadet escreve: Vulgarisadas em Portugal, vol. 2, Porto, César, Campos e Cia., 1895; digital:
“As aves que ouço em torno/têm mais suave CASTRO, Andreia, “Maria Rita Chiappe Cadet”, Associação Portuguesa de
Mulheres Cientistas/Portuguese Association of Women in Science, s.d.: http://
encanto,/têm notas como um pranto/[…]//
debategraph.org/Details.aspx?nid=425342 (acedido a 6 mar. 2017).
[…] Oh! Eu quisera sempre,/n’esta ilha, sozi-
nha,/o cantar da avezinha/ouvir até morrer” Luísa M. Antunes Paolinelli
(Id., Ibid., 76). A poetisa repete, à semelhança
dos autores continentais e estrangeiros, o topos
edénico da Madeira e o motivo do deslumbre, Caetano, João Vieira
ligando, igualmente, a Ilha, pela sua natureza, Sacerdote, jornalista, escritor e político sem-
à aproximação privilegiada do indivíduo à pro- pre defensor dos princípios do Estado Novo,
vidência e à fé. nasceu na freguesia de Santa Cruz a 11 de de-
O poema “Adeus à Madeira” (Id., Ibid., 114­ zembro de 1883, sendo filho de João Vieira
‑115), de 1871, revela o carinho que, entretan- Caetano e de Maria Rosa Vieira Caetano. Fa-
to, desenvolvera pela Ilha, tratada de forma leceu na Ponta do Sol a 25 de janeiro de 1967.
personificada como uma companheira, e o Foi ordenado presbítero a 9 de junho de
medo de não voltar. Deixara no Funchal tam- 1906, tendo estudado no Seminário de Nossa
bém várias amigas, a quem dedicou poemas na Senhora do Bom Despacho. Nomeado pelo
imprensa periódica, incluídos depois em Sorri- prelado diocesano a 1 de maio de 1907, foi
sos e Lágrimas, como Maria J. Morão Pinheiro e coadjutor da paróquia de Santa Cruz. A 18 de
Teresa da Cunha Menezes. dezembro de 1913, passou a coadjutor da fre-
Na Madeira, contribuiu para a imprensa pe- guesia da Ponta do Sol, e, a 14 de agosto de
riódica, como é o caso de O Direito, com diver-
sas composições poéticas, como as elencadas
por Laureano de Macedo (MACEDO, 2013,
369): “Que pensas?” (11 fev. 1871); “Charité”
(18 fev. 1871); “O canto do segador” (25 fev.
1871); “Saudades” (04 mar. 1871); “Resigna­‑te”
(18 mar. 1871). Participou, igualmente, em re-
citais de poesia, como atesta o poema “Carida-
de”, publicado em Sorrisos e Lágrimas (CADET,
1875, 94­‑99), com a indicação de que foi reci-
tado num concerto a favor do Asilo de Mendi-
cidade da cidade do Funchal.

Obras de Maria Rita Chiappe Cadet: Hymno de S. M. el Rei D. Luiz I. Composto


para a Sua Acclamação Poesia de D. Maria Rita Chiappe Cadet. Musica de Manoel
Innocencio Liberato dos Santos, Mestre de Sua Magestade (1862); Versos (1870);
“O canto do segador” (1871); “Charité” (1871); “Que pensas?” (1871); “Resigna­‑te”
(1871); “Saudades” (1871); Sorrisos e Lágrimas. Poesias de D. Maria Rita Chiappe
Cadet (1875); Flores da Infância. Contos e Poesias Moraes Dedicados a Mocidade
Portuguesa (1880); Caprichos do Luizinho (1883); Os Contos da Mamã (1883);
A Mascarada Infantil (1883); A Boneca (1884); As Fadas Improvisadas (1884);
O Lunch na Quinta (1884); O Primeiro Baile (1884); O Segredo de Helena (1884);
O Último Dia de Férias (1884); A Preguiça e a Mentira (1885). P.e João Vieira Caetano, c. 1925 (arquivo particular).
680 ¬ C aires , Ângela

1924, foi nomeado vice­‑vigário do Estreito da jornalismo, pleno de bom senso e elevação na
Calheta. Desde 5 de fevereiro de 1930 até à abordagem aos assuntos, mas também corajoso
data do seu falecimento, foi pároco da igreja nas suas posições.
da Ponta do Sol.
Obras de João Vieira Caetano: Da Choça ao Solar (1917); “Da Madeira e não
Fundou o Patronato da Ponta do Sol, que dos Açores” (1948­‑1949).
muito acarinhava, e o Governo, reconhecendo Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses.
os seus méritos, agraciou­‑o, pouco tempo antes Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; Grande Enciclopédia
Portuguesa e Brasileira, Lisboa/Rio de Janeiro, Ed. Enciclopédia, s.d.; MARINO,
do seu falecimento, com o grau de comenda- Luís, Musa Insular: Poetas da Madeira, Funchal, Eco do Funchal, 1959;
dor da Ordem de Benemerência. PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária
da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1949; VIEIRA, Gilda
Sacerdote com uma cultura assinalável, escri- França, e FREITAS, António Aragão de, Madeira. Investigação Bibliográfica, vol. i,
tor, poeta – de que é exemplo a poesia “A pri- Funchal, Centro de Apoio de Ciência Históricas, 1981.
meira missa”, composta a 4 de setembro de 1941 António José Borges
para o Congresso de Machico e recitada na ses-
são solene por Ângela Leal Fernandes – e jor-
nalista de reconhecido mérito, de linguagem
Caiado, João de (pseud.)
fluente e acessível a um vasto público de leito- Ö Nascimento, João Cabral do
res, foi colaborador assíduo dos jornais da Ma-
deira, nomeadamente do Jornal, do Correio da Caires, Ângela
Tarde e da Revista Esperança. Neles publicou ar-
tigos doutrinais muito apreciados. Maria Ângela Moreira de Caires, nascida no
Foi fundador do semanário Brado do Oeste, que Funchal a 31 de agosto de 1939, foi uma es-
se publicou na Ponta do Sol, tornando­‑se dire- critora, jornalista e copywriter. Era filha de
tor e redator principal, e sustentou algumas po- José Jacinto de Caires, professor de Inglês
lémicas na imprensa, que muito interessaram e jornalista, e de Maria Teresa Moreira de
aos leitores da Madeira. Neste periódico, publi- Caires. Casou com Emanuel José Pinto Fer-
cou em fascículos, em 1917, um romance histó- nandes em 1959, tendo­‑se divorciado a 28 de
rico com o título Da Choça ao Solar, com motivos junho de 1976.
madeirenses e que narra um episódio passado É uma figura que cedo se começa a evidenciar
na vila da Ponta do Sol em tempos mais recua- no mundo da escrita. Desde nova que
dos, voltando a ser publicado, em segunda edi-
ção, pela Editorial Eco do Funchal, em 1957,
com prefácio do P.e Joaquim Plácido Pereira.
Assinou alguns dos seus magníficos artigos,
de prosa firme e substancial, apenas com as ini-
ciais “P. C.”.
Além da sua vasta cultura literária, é autor de
uma importante súmula de trabalhos de inves-
tigação histórica respeitante ao arquipélago da
Madeira, de que constitui exemplo “Da Madei-
ra e não dos Açores”, publicado em Das Artes e
da História da Madeira, no Funchal (1948­‑1949).
A sua personalidade foi destacada no Eco do
Funchal, que refere a amplitude do seu reco-
nhecimento, pois o P.e João Vieira Caetano foi
soldado, poeta inspirado e jornalista de gran-
de respeito, salientando­‑se também pela beleza
dos seus textos e pelo profundo conhecimen-
to dos assuntos que abordou. Um mestre do Fig. 1 – Ângela Caires, 2005 (Sindicato dos Jornalistas).
C aires , Ângela ¬ 681

demonstra essa apetência, con-


quistando prémios por contos
que escreve numa fase ainda
precoce da sua vida. O seu pri-
meiro texto foi publicado em
1955, com o nome “Primave-
ra e outono”, no Jornal da Mo-
cidade Portuguesa. Nesse ano,
conquistou o 2.º prémio de um
concurso de contos infantis
organizado pela revista Lusitas.
As suas principais obras in-
tegram a categoria da litera-
tura policial, surgindo a pri-
meira, O Segundo Homem, em
1957, com a qual conquista o
1.º prémio num concurso de novelas policiais, Figs. 2 e 3 – Daqui em diante só Há Dragões (1988) e O Amante da
organizado em Lisboa pela Agência Portugue- Bela Otero (1989), de Ângela Caires.

sa de Revistas, no mesmo ano. Seguem­‑se Ma-


drugada Cinzenta (1959) e Yolanda (1960), as- humanas e a felicidade. O conto “O ideal pe-
sinados pelo seu pseudónimo Sofia Madeira, regrino” foca a ambição e a avareza. Algumas
ou, em inglês, Sophie Wood. Publica, em 1964, coletâneas e antologias de contos madeirenses
a novela intitulada As Pedras Envelhecem, que contemplam a figura de Ângela Caires.
obtém o prémio de revelação do conto, insti- Como jornalista, colaborou com o Diário de
tuído pela Sociedade Portuguesa de Escrito- Lisboa, O Jornal, Sempre Fixe, O Inimigo na Visão,
res. No romance, publica Daqui em diante só Há entre outros. O conhecido jornal satírico Re­
Dragões (1988, O Amante da Bela Otero (1989) e ‑Nhau­‑Nhau, que se publicou no Funchal, tam-
o Capitão Tormenta (1990). bém teve o seu contributo. O romance Daqui
Em relação à escrita de contos, Ângela Caires em diante só Há Dragões viria a servir de influên-
tem uma vasta obra. Em 1958, obtém uma men- cia para a série televisiva O Café do Ambriz, ro-
ção honrosa do concurso do Secretariado Na- dada pela RTP.
cional de Informação pelo conto “O primeiro Ângela Caires vem a falecer a 27 de agosto de
ano de casada”. Em 1960, foi distinguida com o 2013, em Mafra, vítima de doença oncológica.
1.º prémio na modalidade, nos Jogos Florais da A sua morte foi noticiada nos diversos periódi-
Costa do Sol e do Ateneu Comercial do Funchal. cos regionais e nacionais.
O Jornal da Madeira, a 15 de outubro de 1958,
dá conta de que passará a publicar um conto Obras de Ângela Caires: “Primavera e outono” (1955); O Segundo Homem
(1957); “O empecilho” (1958); “O ideal peregrino” (1958); “O primeiro ano de
por semana da autoria de Sofia Madeira, men- casada” (1958); “O sonho branco” (1958); “O último espectáculo” (1958);
cionando o seu pseudónimo, embora sem refe- Madrugada Cinzenta (1959); Yolanda (1960); As Pedras Envelhecem (1964);
Daqui em diante só Há Dragões (1988); O Amante da Bela Otero (1989);
rir que se trata de Ângela Caires. Os contos da Capitão Tormenta (1989­‑1990).
autora versam diversos temas, como a condição Bibliog.: manuscrita: ABM, Conservatória do Registo Civil do Funchal, liv. 4022,
humana, a inevitabilidade da morte, o amor, as fls. 21­‑21v.; impressa: CAIRES, Ângela, Daqui em diante só Há Dragões, Lisboa,
Bertrand Editora, 1988; Id., O Amante da Bela Otero, Lisboa, Bertrand Editora,
preocupações com o ser humano, assim como 1989; Jornal da Madeira, 15 out. 1958; 22 out. 1958; 29 out. 1958; 5 nov. 1958;
a propensão para a reflexão sobre a vida. Em MARINO, Luís, Panorama Literário do Arquipélago da Madeira, vol. 13, texto
não publicado, fl. 76; PACHECO, Luiz, Textos Sadinos, pref. Baptista Bastos,
“O empecilho”, trata a questão da solidão, da
epitáfio Ângela Caires, Setúbal, Plurijornal, 1991; VERÍSSIMO, Nelson (org.),
velhice, do fim da vida e da falta de respeito Narrativa Literária de Autores Madeirenses. Séc. XX, Funchal, DRAC, 1990; Id.
pelos mais idosos. Já em “O último espectácu- (org.), Contos Madeirenses, Porto, Campo das Letras, 2005.

lo” e “O sonho branco”, reflete sobre as relações João Paulo Freitas


682 ¬ C aires , C elso

Caires, Celso
Celso Emílio Silva de Caires nasceu em Torres
Novas, em 1958, mas viveu sempre na Madeira.
Concluiu em 1982 o curso de Artes Plásticas,
na variante de Escultura, no Instituto Superior
de Artes Plásticas da Madeira (ISAPM). Ali de-
sempenhou funções docentes em áreas como
escultura, fotografia, desenho e design gráfico.
Foi um dos principais responsáveis, junto com
Maurício Fernandes, pela implementação da
licenciatura de Design naquele Instituto.
Fez parte da Circul’Arte, uma associação
responsável pela dinâmica artística a que o
Funchal assistiu nos anos 1980. Participou,
em 1982, na coletiva Fragmentos e, em 1984,
numa coletiva de fotografia, ambas realizadas
no Teatro Municipal Baltazar Dias (TMBD).
Também esteve representado nas seguintes co- Fig. 1 – Celso Caires, no Ateneu Café, Funchal, 2013
letivas: Sinais Convencionais, realizada na ga- (arquivo particular).
leria do ISAPM em 1986; Coleção de Inverno,
que teve lugar na galeria da Secretaria Regio- prestar provas públicas, em 1997, para o cargo
nal do Turismo e Cultura (SRTC) no mesmo de professor agregado de Belas-Artes.
ano; Cenas e Objetos, realizada na galeria da Em 1987, participou na feira de arte Marca
SRTC em 1987; Insinuações e Propostas, que Madeira, sendo colaborador e artista expositor
teve lugar no TMBD em 1988; e Situações, rea- e representando a galeria Quetzal. Também
lizada na galeria da SRTC no mesmo ano. nesse ano, participou na mostra coletiva Cir-
Fora da Região, na mesma década, apresen- cul’Arte, que teve lugar no TMBD. Em 2011,
tou trabalho em coletivas como a I Bienal de fez parte do grupo de artistas que participaram
Arte dos Açores, em 1985; a Panorâmica­‑Arte no projeto de arte pública Lonarte, realizado
e Cultura, que teve lugar na galeria do Casi- na Calheta, onde apresentou um trabalho de-
no Estoril, em 1985; Dezassete Graus Oeste, nominado Terra. Nele confronta a textura na-
realizada na galeria Altamira, de Lisboa, em tural, desenhada à mão, com a reprodução ar-
1986; Artistas Madeirenses, que teve lugar em tificial em lona, que a amplifica.
Coimbra, na galeria Cinco, em 1988; Fórum de O desenho explorado profissionalmente está
Arte Contemporânea, realizada em Lisboa em na base do seu trabalho como ilustrador e de-
1988; e Olhares Atlânticos, realizada na Biblio- signer gráfico. Destacam­‑se as suas colaborações
teca Nacional, em 1991. em projetos de autor na área editorial, nomea-
Expôs individualmente na Ilha em 1989, 1992 damente em livros de poesia, com Carlos Fino,
e 1993, sempre na galeria Funchália. Desta fase de que são exemplo os seguintes: XXII Poemas
destacam­‑se os seus trabalhos a pastel seco, que Ilhamar, editado no Funchal em 1987; Simbiose,
manifestam um grande domínio técnico e uma editado pela SRTC em 1988; e Este Cais Vertical,
simbiose entre desenho e pintura, grandemen- editado em 1990. Ilustrou e paginou o Roteiro
te influenciados pela composição e o realismo Histórico­‑Turístico da Cidade, editado em 1997, e
do instantâneo fotográfico. Contudo, são dese- fez a imagem gráfica de vários simpósios e en-
nhos onde a forma e as texturas ganham pro- contros internacionais.
tagonismo em detrimento do conteúdo des- Celso Caires experimentou e aprofundou
critivo. A sua investigação nesta área levou­‑o a outras técnicas e linguagens, e.g., a fotografia.
C aires , J o ã o de ¬ 683

desenho na Região, procurando sempre uma


síntese entre a tradição manual e as novas tec-
nologias. Disto é exemplo o blogue sobre dese-
nho e design que criou em 2008 e em que pu-
blicou até 2014, ano em que faleceu. Além de
servir como apoio às suas aulas, este recurso
online permitiu divulgar a sua investigação teó-
rica, reflexões diversas e alguns dos seus traba-
lhos práticos, constituindo um arquivo da sua
obra.
Bibliog.: impressa: BERNARDES, Lília, “Celso Caires, simbiose de cores”,
Diário de Notícias, revista, Funchal, 22 dez. 1991, p. 25; CAIRES, Celso, Jonas e a
Baleia, Funchal, Funchália, 1993; SANTA CLARA, Isabel, Celso Caires, Funchal,
Funchália, 1989; Id., Celso Caires, Funchal, Funchália, 1991; digital: CAIRES,
Celso, Desenho e Design: http://dedsign.wordpress.com (acedido a 1 nov.
2015); “Celso Caires. Entrevista – Lonarte”, Youtube, 19 mar. 2012: https://www.
youtube.com/watch?v=gSWZPj7e1gY (acedido a 1 nov. 2015).

Carlos Valente

Caires, João de
Nasceu no Funchal, em 1862, e faleceu a 18 de
dezembro de 1939, em Lisboa. Casou­‑se com
a escritora Lutgarda Guimarães de Caires, de
Fig. 2 – Do Outro Lado do Oceano, de Celso Caires, 2005
(Av. do Mar, Funchal, arquivo particular). quem teve um filho, Álvaro Guimarães de Cai-
res, médico, natural de Alcobaça.
Além de a praticar continuamente, partici- Escritor e bacharel, formado em Direito na
pou em congressos e publicou artigos sobre Univ. de Coimbra em 1889, abriu escritório em
esta área, tais como: “A introdução da fotogra- Lisboa, onde conquistou um lugar de relevo
fia – Daguerreotipia, ambrotipia e ferrotipo”, como advogado. Foi juiz de Óbidos e adminis-
um artigo editado na revista Atlântico em 1985; trador de Alcobaça.
“O mundo cativo”, editado em 1987 na revista Fundou, com Mendonça e Coito, a Socie-
Espaço Arte; e Retomar a Imagem, em 1992. Em dade de Propaganda de Portugal, tendo di-
1987, apresentou uma comunicação acerca do rigido esta agremiação sob a presidência do
ensino artístico e dos novos meios de produção Cons. Fernando de Sousa até à proclamação
de imagem no Congresso de Arte Portuguesa da República.
Contemporânea, realizado no Funchal. Cultor das letras, organizava em sua casa se-
Escultor de formação, também trabalhou rões literários muito participados, segundo
nesta área, tendo sido responsável pela me- refere Maria Luísa V. de Paiva Boléo. Colabo-
dalha comemorativa dos 15 anos da Univ. da rou nas secções literárias de diversos jornais e
Madeira e publicando, em 2012, uma reflexão revistas. Em 1909, nos Jogos Florais Hispano­
“Sobre as medalhas do escultor Ricardo Velo- ‑Portugueses de Salamanca, recebeu, com o
za”, editada na revista Islenha. Deixou ainda livro Paixão do Arcebispo, o prémio de novela.
obra de escultura pública, de que é exemplo Obras de João de Caires: Paixão do Arcebispo.

a figura alegórica em betão intitulada Do Outro Bibliog.: impressa: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses.
Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; Grande Enciclopédia
Lado do Oceano, que foi colocada em 2005 na Portuguesa e Brasileira, Lisboa/Rio de Janeiro, Ed. Enciclopédia, s.d.; digital:
Av. do Mar, no Funchal. BOLÉO, Maria Luísa de Paiva, “Lutgarda de Caires (1873­‑1935). A fundadora do
Natal dos Hospitais”, Leme, 22 dez. 2004.
Mas foi sobretudo enquanto docente que
Celso Caires contribuiu para o ensino do António José Borges
684 ¬ C ais da entrada da cidade

Cais da entrada da cidade distante do centro da cidade, como muito


acanhado. Em 1824, ensaiou­‑se um novo cais
O cais da entrada da cidade, por vezes indevi- de desembarque, então nas baixas frente à
damente designado por cais regional, nasceu fortaleza de S. Tiago, projeto da autoria do
da determinação feita, quando da passagem Brig. Francisco António Raposo e execução
pelo Funchal da princesa D. Maria Leopoldina do Ten.­‑Cor. Paulo Dias de Almeida (c. 1778­
de Áustria (1797­‑1826), em setembro de 1817, ‑1832), em cujos trabalhos se gastaram então
de que deveria ser feita “uma ponte para o có- 37 contos de réis, tendo tudo sido levado pelo
modo e decente desembarque da mesma Au- mar. A 17 de fevereiro de 1829, inclusivamen-
gusta Senhora”, assim como preparar­‑se com te, mandava­‑se retirar de S. Tiago os degraus
o devido “asseio e arranjo na Casa do Gover- de cantaria “que se destinavam ao cais que
no” instalações para a princesa (ARM, Gover- se projetara construir” para se utilizarem no
no Civil, liv. 198, fls. 33­‑34v.; AHU, Madeira e molhe do cais da Pontinha (ARM, Governo
Porto Santo, doc. 3965). Configurou­‑se, assim, Civil, liv. 798, fl. 51v.).
o arranjo do espaço frente ao palácio e forta- A oportunidade da construção de um cais
leza de S. Lourenço para a entrada solene da frente à entrada da cidade veio a surgir após
arquiduquesa de Áustria no Funchal, então pe- a aluvião de 24 de outubro de 1842. Um mês
rene, mas a partir de 1839, demolidas as portas depois, a 26 de novembro, foi despachado
e casa da Saúde, onde até então a Câmara pro- para o Funchal o então Maj. Manuel José Júlio
cedia ao controlo sanitário, foi a área transfor- Guerra (1801­‑1869), experiente militar liberal
mada em entrada de honra da cidade. com larga folha de serviço nos Açores, Porto,
O cais de desembarque do porto do Funchal Algarve e Setúbal, mas, em princípio, sem as
fora feito na base do ilhéu do forte de S. José, capacidades científicas dos outros dois enge-
em 1756, pelo Eng.º Francisco Tosi Columbi- nheiros à época também presentes na Ilha: An-
na (1701­‑c. 1770), mas não só era então muito tónio Pedro de Azevedo (1812­‑1889) e Tibério

Fig. 1 – Dezembarque de S.A.R. a Sereníssima Senhora Princeza Real Leopoldina, na Ilha da Madeira no Dia 11 de Setembro de 1817
às 4 da Tarde, aguarela de Armand Julien Palliere (coleção dos herdeiros de Alfredo Allen, Porto).
C ais da entrada da cidade ¬ 685

Augusto Blanc (c. 1810­‑1875), mas um somen- transferido para o continente, não voltando
te capitão e o outro tenente. O mais importan- à Madeira.
te e inglório trabalho de obras públicas desen- Mais tarde, em 1853, Isabella de França (1797­
volvido nestes anos pelo novo diretor das obras ‑1880) descreveria que, “perto do sítio onde
públicas, Maj. Manuel José Júlio Guerra, foi o desembarcámos, notam­‑se vestígios de um cais,
cais em frente à entrada da cidade, mas a breve planeado há já alguns anos. Nele se gastaram
trecho viria a perder­‑se, como o ensaiado nos quantias importantes e se desperdiçaram ma-
baixios de S. Tiago. teriais e trabalho que bem poderiam ter sido
A Câmara Municipal do Funchal, por reso- úteis”. A autora refere ainda que as obras, não
lução de 23 de abril de 1843, por certo após devidamente acauteladas, haviam sido pratica-
acordo com o Maj. Guerra, propunha a cons- mente desfeitas por um temporal. Acrescen-
trução de um cais de pedra em frente à en- ta ainda que “em Portugal, como na maioria
trada da cidade, votando, para isso, a verba das nações, a utilidade pública é a razão que se
de 1200$000 réis. O assunto foi presente ao alega para todas as obras; infelizmente trata­‑se
conselho do distrito a 6 de maio seguinte, fi- só de um pretexto; o primeiro objetivo reside
cando encarregado de dirigir a obra o Maj. de na glorificação pessoal, se não nos emolumen-
engenharia Manuel José Júlio Guerra, que a tos que os funcionários auferem. Nestas condi-
24 do mesmo mês solicitava um reforço de ções iniciam­‑se obras de vulto; os que as pro-
mais um conto de réis para colocar depois as jetaram deixam os seus cargos antes que elas
obras a coberto do inverno. O custo da obra terminem – e ei­‑las abandonadas, para darem
não parava de aumentar, tendo­‑se já gasto em lugar a outras, do mesmo modo superiores aos
fevereiro de 1844 mais de quatro contos de recursos do país”. As obras haviam sido planea-
réis, pedindo ainda o Maj. Guerra mais um das pelo Maj. Guerra, acrescentando a autora
reforço de 18 contos de réis, quantia que a que, “numa das efémeras revoluções que então
Câmara não via maneira de poder satisfa- desvairaram Portugal, colocou­‑se ele à frente
zer. Em sessão camarária de 6 de março de de um movimento para destituir o governa-
1844, foi colocado o assunto, surgindo uma dor e estabelecer uma junta, de que seria, é
proposta de criação de uma comissão para di-
rigir as obras do cais, entregando­‑se a presi-
dência ao Maj. Guerra, mas constituindo um
corpo com um delegado camarário, o Dr. Ma-
nuel Joaquim Moniz, os engenheiros militares
Cap. António Pedro de Azevedo e Ten. Tibé-
rio Augusto Blanc e o Eng.º camarário Vicen-
te de Paula Teixeira (1785­‑1855). A proposta
acabou por não ser aprovada superiormente,
continuando as obras sob a desastrosa dire-
ção do Maj. Guerra. Entretanto, assumindo a
direção dos destinos da Ilha a Junta de Go-
verno, na sequência das revoltas da Maria da
Fonte e da Patuleia, que afastou o Gov. José
Silvestre Ribeiro (1807­‑1891) e chegou a ter
por presidente o já então Ten.­‑Cor. Eng.º Ma-
nuel José Júlio Guerra, ainda viriam a ser des-
bloqueadas importantes verbas para as obras
do cais da entrada da cidade. Com o regres-
so do governador ao palácio de S. Lourenço, Fig. 2 – Reconstrução do cais da entrada da cidade do Funchal,
as obras pararam e o Ten.­‑Cor. Guerra seria 1889-1892 (ABM, Photographia Vicente).
686 ¬ C ais da entrada da cidade

claro, presidente”. Reconduzido o governador, moradores da zona caiarem as casas e limpa-


o Maj. Guerra fora “enviado para o continen- rem os entulhos”, assim como determinou que
te e posto a meia­‑ração. Noutro país teria sido fossem feitos alguns “trabalhos na estrada nova
fuzilado!”. Com a sua saída, as obras tinham do Ribeiro Seco, de modo a ficar perfeita e que
paralisado “e ninguém se incomodou em ga- S. M. I., possa ir até à Praia Formosa”, deter-
rantir o que estava feito, pois as honras rever- minações que de imediato foram publicadas
teriam para ele” (FRANÇA, 1970, 51­‑52). Des- nos jornais da época (A Época, 31 ago. 1851).
conhecia a atenta inglesa que o Maj. Guerra, Os portos e os cais de desembarque eram assim
colocado no polígono de Tancos, conseguiria uma constante preocupação das autoridades
ainda candidatar­‑se a deputado por Vila Nova locais. Na fase final da sua estadia na Madei-
da Barquinha e ser eleito, acabando os seus ra, ainda o encarregou José Silvestre Ribeiro,
dias como general. mais uma vez, da revisão de todos os cais da
O desenvolvimento do turismo, especialmen- Ilha. O Eng.º Tibério Blanc elaborou assim
te o terapêutico, começou a condicionar, a par- uma extensa lista dos cais que necessitavam de
tir dos inícios e meados do séc. xix, de uma obras de melhoramento e reformulação, como
forma cada vez mais determinante, a situação eram os casos do cais do Pesqueiro, na Ponta
geral da ilha da Madeira, quer económica quer do Pargo, Paul do Mar, Ponta da Galé, Ponta
social. Esse caminho encontrava­‑se já perfei- do Sol, Câmara de Lobos, Ponta da Cruz, Gor-
tamente definido na época da governação do gulho, Ponta da Oliveira, Ponta do Guindaste
Cons. José Silvestre Ribeiro, que a todo o mo- e Ponta Delgada, assim como um novo ancora-
mento evocava para as suas determinações “a douro na baía de Machico.
presença de inúmeros estrangeiros que nos vi- As décs. de 80 e 90 do séc. xix apresentaram
sitam”, etc. Na época da sua governação, espe- o progressivo aumento do turismo, já não espe-
cialmente, encontram­‑se na Ilha três das mais cificamente terapêutico, mas essencialmente de
altas figuras da aristocracia europeia: a Rainha lazer, que já começava a representar algum peso
viúva Adelaide de Inglaterra (1792­‑1849), de na economia nacional, pelo que passou a des-
origem alemã, nascida Saxe­‑Meiningen; o prín- pertar um certo interesse nas secretarias do Go-
cipe Maximiliano de Beauharnais, duque de verno de Lisboa. A repartição das obras públicas
Leuchtenberg (1817­‑1852), que seria pintado distritais conheceu mesmo algum incremento,
na Madeira por Karl Briullov (1799­‑1852); e a por ela passando os Caps. Júlio Augusto de Lei-
sua irmã, a imperatriz viúva do Brasil, D. Amé- ria (c. 1838­‑1878) e Henrique de Lima e Cunha
lia de Bragança (1812­‑1873), tendo todas essas (1843­‑1915), tendo cabido a este último os pri-
visitas sido cuidadosamente preparadas e, tam- meiros trabalhos conducentes à execução do
bém, aproveitadas para melhoramentos vários novo cais da entrada da cidade. Com o aumento
na Madeira. da circulação de passageiros no porto do Fun-
Quando da preparação da visita da impera- chal, por portaria de 17 de setembro de 1879
triz viúva D. Amélia e da sua filha, a princesa voltava a estudar­‑se, finalmente, o que fazer do
D. Maria Amélia (1831­‑1853), em agosto de amontoado de ruínas em que se transformara o
1851, e.g., um ano antes da chegada dessas se- cais da entrada da cidade. Foi então encarrega-
nhoras, determinou de imediato o governa- do do estudo o capitão de Artilharia Henrique
dor ao Eng.º Tibério Blanc “o maior desemba- de Lima e Cunha, voltando a propor­‑se a exe-
raço na construção do cais da Pontinha”, ou cução de um cais idêntico e no mesmo local,
seja, na remodelação do mesmo, “para desem- com toda uma outra solidez, claro, à frente da
barque de Sua Majestade Imperial, a Senhora entrada da cidade, proposta aprovada em Lis-
Duquesa de Bragança e filha”, recomendan- boa, a 17 de julho de 1881, mas que só avança-
do que “a obra seja executada de forma a ficar ria em 1886, quando já se encontrava aprovado
para sempre”. Aproveitou ainda para determi- o prolongamento do molhe da Pontinha através
nar ao mesmo engenheiro que mandasse “os da união dos dois ilhéus. O projeto teve ainda
C ais da entrada da cidade ¬ 687

Fig. 3 – Cais da entrada da cidade, c. 1953 (ABM, Photographia Vicente).

alterações, pelo Eng.º José Bernardo Lopes de no seu ofício de 15 de outubro de 1881, volta-
Andrade, em 1887, e veio a ser adjudicado pelos ra a chamar a atenção para as vantagens que a
Engs. franceses Fréderic Combemale, Jules Mi- baía do Funchal ganharia com a construção de
chelon e Arthur Mury, que já em 1885 haviam um cais e porto de abrigo, ação saudada pelos
conseguido a execução das obras do molhe da comerciantes do Funchal. O molhe proposto,
Pontinha. no entanto, era insatisfatório, sendo “apenas
As obras do cais regional iniciaram­‑se a 18 de um ponto de partida para a futura construção
janeiro de 1889, envolvendo um montante de de uma doca regular”, que devia completar­‑se
87.000$000 réis – vindo a ser depois reconhe- pelo seu prolongamento em direção a leste,
cido a estes empreiteiros, na ocasião do ajuste como refere a direção da Associação Comer-
de contas, vários trabalhos executados fora do cial do Funchal (A Época, 25 abr. 1884, 16 jun.
projeto inicial ajustado, ainda receberam mais e 19 out. 1885), chegando, inclusivamente, a
92.005$485 réis – e demonstrando a complexi- colapsar com o grande temporal ocorrido no
dade do projeto. A obra ficou concluída a 27 último dia de fevereiro e nos primeiros dias de
de abril de 1892, sendo recebida provisoria- março de 1892, que arruinou de forma drásti-
mente nessa data, mas a receção definitiva só ca uma grande parte da obra já feita e a des-
teve lugar a 27 de abril de 1895. Por parecer truiu quase por completo. As obras seriam re-
da Junta Consultiva das Obras Públicas, de 30 começadas em 1893, estando prontas em 1895;
de maio do mesmo ano, foram os empreiteiros porém, as condições de acostagem dos gran-
julgados quites para com o Estado de todas as des navios sempre foram deficientes nesta fase
obrigações que haviam contraído, o que consta do molhe, acabando os paquetes por ficar ao
da portaria de 10 de julho de 1895. largo e os passageiros a ser transferidos por
Ao longo destes anos, decorreram assim lancha para o cais da entrada da cidade.
igualmente as obras do molhe do porto do Assim que, até à ampliação do molhe de acos-
Funchal, cuja iniciativa se ficou a dever ao tagem, nos meados do séc. xx, para leste da for-
governador civil, António de Gouveia Osório taleza do Ilhéu, o movimento de passageiros
(1825­‑c. 1905), visconde de Vila Mendo, que, do porto do Funchal foi feito pelo cais frente à
688 ¬ C al ç ada , conde da

entrada da cidade, ou cais regional. Com o au-


mento do movimento de passageiros, impôs­‑se
o aumento deste cais, tendo a Junta Autónoma
das Obras do Porto aberto concurso para essa
realização, que terminou a 30 de outubro de
1930, sendo a construção adjudicada à casa Ne-
derlandsche Maatschappij Voor Havenwerken
pela importância de 4763.000$00 escudos.
O acrescentamento do cais seria feito pela co-
locação de cinco grandes módulos de 3337 m3,
tendo o primeiro sido colocado a 25 de junho
de 1932 e o quinto e último em janeiro de 1933.
A inauguração oficial ocorreu a 28 de maio
desse ano, data especialmente comemorada
pelo Governo da Ditadura. A importância deste
cais é patente na imensa documentação fotográ-
fica existente, que, graças aos novos meios de
comunicação, não deixa de aumentar.
O aumento da capacidade de acostagem do
molhe do porto do Funchal e, muito espe-
cialmente, o advento e a democratização dos
transportes aéreos roubaram protagonismo e
interesse ao cais em frente à entrada da cidade, Fig. 1 – Armas dos condes da Calçada, c. 1882 (Casa-Museu
Frederico de Freitas).
como aliás também à mesma. No entanto, todo
este espaço se mantém como importante zona
de lazer da cidade até aos dias de hoje, tanto abaixo do Convento de S.ta Clara, e também
para visitantes como residentes. do morgado de Gaula e de outros nos Açores.
Sua mãe era filha do morgado Bartolomeu de
Bibliog.: manuscrita: ABM, Governo Civil, livs. 198, 725 e 798; AHM, Processos
Individuais, cx. 798, Manuel José Júlio Guerra; AHU, Madeira e Porto Santo,
França Dória da Conceição, proprietário do
doc. 3965; Antigo Arquivo da ACIF­‑CCIM, atas de 27 out. 1881, 25 abr. morgado da Conceição, no Estreito da Calhe-
1884, 16 jun. e 19 out. 1885, cópias digitais; impressa: CARITA, Rui, História
ta, que o neto haveria de herdar. O conde nas-
da Madeira, vols. vi­‑vii, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 2003 e 2008;
Id., e MELLO, Luís de Sousa, Associação Comercial e Industrial do Funchal. ceu a 29 de agosto de 1812, na freguesia de
Esboço Histórico (1836­‑1933), Funchal, Edicarte, 2002; A Época, Funchal, 31 ago.
Santa Luzia, no Funchal, e casou­‑se na Sé, a 14
1851; 25 set. 1852; FRANÇA, Isabella de, Jornal de Uma Visita à Madeira e a
Portugal (1853­‑1854), anot. Cabral do Nascimento e João dos Santos Simões, de maio de 1831, com sua prima Carlota Au-
Funchal, JGDAF, 1970; LOUREIRO, Adolfo, Os Portos Marítimos de Portugal e gusta de Freitas Albuquerque (n. 1817). Esta
Ilhas Adjacentes, vol. v, pt. i, Lisboa, Imprensa Nacional, 1910; SANTOS, Rui, “Um
capitão de engenheiros (Tibério Augusto Blanc, Santarém, 1810?­‑m. 1875)”, era filha do coronel de milícias João Agosti-
Jornal da Madeira, 25 dez. 1991; 5 jan. 1992; SARMENTO, Artur Alberto, Ecos da nho de Brito Figueiroa de Freitas Albuquer-
“Maria da Fonte” na Madeira, Funchal, Tip. do Diário de Notícias, 1932; SILVA,
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, que (1793­‑1862), que também usava o nome
3 vols., Funchal, DRAC, 1998. de João Agostinho de Figueiroa Albuquerque
Rui Carita e Freitas – nome segundo o qual se mandou
pintar por volta de 1822, “em uniforme rigoro-
so” (SAINZ­‑TRUEVA, 1999, 62), por João José
Calçada, conde da do Nascimento (1784­‑c. 1850) –, e de sua mu-
Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão lher, Carlota Amália de Ornelas e Vasconcelos,
e Figueiroa era filho de Diogo de Ornelas de irmã do futuro barão de São Pedro, Daniel de
França Carvalhal Frazão e Figueiroa e de Ana Ornelas e Vasconcelos (1800­‑1878).
Emília de França Dória e Andrade. Seu pai A entrada de Diogo de Ornelas de Fran-
era proprietário da chamada Casa da Calçada, ça Carvalhal Frazão e Figueiroa para a vida
C al ç ada , conde da ¬ 689

política deve ter sido feita pelo tio de sua mu- de 1882. Nestas eleições concorreram o ad-
lher, o advogado e futuro barão de São Pedro, vogado açoriano e republicano Manuel de
senador pela Madeira na legislatura de 1838 a Arriaga (1840­‑1917), que se apresentou na
1840, lugar para que foi eleito numa vaga, em Madeira, e, por indicação do líder do Parti-
abril de 1839, e depois par do Reino, etc. Na do Regenerador e presidente do Conselho de
sua residência do Funchal, na R. dos Ferreiros, Ministros, António Maria de Fontes Pereira
onde se instalou depois a Direção Regional dos de Melo (1819­‑1887), o líder da oposição, o
Assuntos Culturais, faziam­‑se reuniões de ca- Cons. Anselmo José Braamcamp (1819­‑1885),
rácter político, pois Daniel de Ornelas passava à frente do Partido Progressista, depois de já
então mais tempo em Lisboa que no Funchal. ter sido líder do Partido Histórico. A estranha
As primeiras informações recolhidas sobre o imposição das cúpulas partidárias continen-
mesmo são sobre a sua presença no concelho tais levou a que a maior parte dos eleitores
do distrito em junho de 1851, quando, com os madeirenses, inclusivamente monárquicos
membros do senado camarário, assina uma pe- e ligados ao Partido Regenerador, colocasse
tição solicitando a D. Maria II (1819­‑1853) a abertamente a hipótese de apoiar o candida-
manutenção como governador do Cons. José to republicano. Efetivamente, estava em causa
Silvestre Ribeiro (1807­‑1891). o funcionamento do sistema parlamentar, e o
Não se lhe conhece especial filiação parti- Cons. Braamcamp havia perdido as eleições
dária, embora nas eleições de maio de 1870 pelo seu círculo, sendo importante para o
pareça ter apoiado o morgado Agostinho de parlamento a sua presença no mesmo como
Ornelas e Vasconcelos (1836­‑1901), membro deputado. Contudo, tal era um problema de
destacado do então Partido Popular, que se Lisboa, e não da Madeira.
opunha ao Fusionista. Nas contas dessas elei- Na primeira volta adivinhava­‑se já o desastre,
ções, há documentos que comprovam paga- e o Diário de Notícias, que indiciava o visconde
mentos de despesas feitas por Diogo de Or- da Calçada como apoiante da situação, escre-
nelas, os quais se encontram nos arquivos da via o seguinte: “Os regedores de paróquia que
família Ornelas e Vasconcelos. Não terá sido, trabalham ostensiva e declaradamente con-
assim, por acaso que, por decreto de 17 de ja- tra a monarquia e pelo candidato republica-
neiro e carta de 25 de fevereiro de 1871, foi no ainda não foram demitidos. Parece que o
agraciado com o título de visconde da Calçada,
em homenagem à casa secular em que vivia na
Calç. de Santa Clara, onde depois se instalou a
Casa­‑Museu Frederico de Freitas. Por essa altu-
ra, a 5 de março de 1871, o deputado Agosti-
nho de Ornelas refere numa carta enviada ao
irmão, D. Aires de Ornelas (1837­‑1880), bispo
do Funchal em maio desse ano, mas já admi-
nistrador apostólico, estar em Lisboa a tratar
de um título para o morgado Diogo Berenguer
de Freitas Neto (1812­‑1875), depois visconde
de São João.
O visconde da Calçada foi agraciado com o
título de conde a 4 de outubro desse ano, data
em que também foi oficialmente nomeado go-
vernador civil substituto, situação não muito
comum. Tomou posse desse lugar a 10 do
mesmo mês. Era governador civil substituto Fig. 2 – Fachada da Casa da Calçada, à Calç. de Santa Clara,
na altura das célebres eleições suplementares reforma de c. 1800 e seguintes (Casa-Museu Frederico de Freitas).
690 ¬ C al ç ada , conde da

sr. administrador do concelho ficou muito sa- do governador, uma vez que o juiz conselheiro
tisfeito com este serviço e que o sr. governador Tomás Nunes de Serra e Moura (c. 1840­‑1917),
civil substituto também ficou muito contente” nomeado em finais de dezembro de 1883 e que
(DN, 8 nov. 1882). Os resultados dessa primeira tomou posse nos primeiros dias de janeiro se-
volta foram comunicados a Lisboa a 13 de no- guinte, após ter organizado a coligação monár-
vembro pelo governador substituto, que conti- quica que fez frente aos candidatos republica-
nuava a assinar visconde da Calçada, do que se nos nas eleições desse ano, também se retirou
pode pensar que a informação da atribuição do para o continente. Foi, por isso, o visconde da
título de conde só foi conhecida depois, embo- Calçada, já velho, a ver­‑se na contingência de
ra Diogo de Ornelas de França Carvalhal Frazão ter de requisitar o vapor de fiscalização da Al-
e Figueiroa continuasse a utilizar, mesmo nos fândega, em agosto de 1884, para transportar
anos seguintes, somente o título de visconde. para a Ribeira Brava uma força de 20 praças
O governo de Lisboa enviou ao Funchal o que tinha como objetivo reforçar o destaca-
governador efetivo, o juiz conselheiro Antó- mento militar local face ao tumulto ali ocorri-
nio de Gouveia Osório (1825­‑1915), visconde do, que tivera como resultado sete mortos.
de Vila Mendo, que voltou a tomar posse do Nos anos seguintes, a política madeirense
lugar temporariamente, o que não impediu a foi varrida pela figura contundente e truculen-
vitória final de Manuel de Arriaga, retirando­‑se ta do visconde do Canavial (1829­‑1902), que
de novo o governador civil para Lisboa, onde levou ao levantamento popular da Parreca, tal-
então era conselheiro do Tribunal de Contas, e vez o mais importante levantamento ocorrido
entregando outra vez o governo ao visconde da no séc. xix. Perante a contestação geral, o vis-
Calçada. Foi este que depois suspendeu os di- conde do Canavial veio a apresentar a sua de-
reitos dos cereais importados, assunto que atra- missão a 26 de março de 1888, tendo o gover-
vessou a política dos anos 1883 e 1884. O vis- no sido entregue, uma vez mais, ao visconde
conde continuaria a ocupar o lugar na vigência da Calçada, pois o governador civil seguinte,
João de Alarcão (c. 1850­‑1917), embora no-
meado a 5 de abril, só tomaria posse a 8 de
maio seguinte.
Nos anos seguintes, pouco sabemos da atua-
ção política do conde da Calçada, que parece
ter­‑se retirado para a sua residência, de onde
pouco teria saído. Na visita régia de 1901, e.g.,
não é mencionado.
O interessante edifício da calçada de Santa
Clara teve obras em 1851, conforme consta no
empedrado da entrada, logo a seguir ao por-
tão gradeado com as suas armas de conde, que
usam brasão esquartelado de Ornelas (moder-
no), Carvalhal (Benfeito), Frazão e Franqui
(por França?), com timbre de Ornelas, tendo­
‑se escrito ser de uso muito antigo nesta famí-
lia, mas ignorando­‑se a quem foi concedido
(CLODE, 1983, 87). Pensa­‑se que o projeto
de reforma da casa seja do arquiteto e egiptó-
logo George Somers Clarke (1841­‑1926), que
trabalhava em parceria com John Thomas Mi-
Fig. 3 – Fachada do pátio superior da Casa da Calçada,
reforma romântica com projeto do Arqt. George Somers Clarke
cklethwaite (1843­‑1906) e que passou pela Ma-
(atr.), c. 1891 (Casa-Museu Frederico de Freitas). deira em 1890. Os trabalhos deste arquiteto
C al ç ada madeirense ¬ 691

seguiam os modelos revivalistas em uso na A calçada madeirense é muito anterior à cha-


época, mas com abundante utilização de estru- mada calçada portuguesa, dela distinta, a qual
turas de ferro fundido e pintado, tendo sido utiliza pedra facetada, de morfologia aproxi-
da sua autoria a reformulação e ampliação do madamente cúbica ou paralelepipédica, de
Reid’s Palace Hotel e da nova residência da cores preta (identificada como sendo basalto)
Qt. do Palheiro Ferreiro, já então propriedade e cinzenta­‑escura, branca ou rosada (identifica-
da família Blandy, atribuindo­‑se­‑lhe também a da como sendo calcário). A calçada portugue-
antiga residência do Santo da Serra, depois Es- sa, nacional e internacionalmente prestigiada,
talagem Serra Golf. foi criada em 1842 pelo Ten.­‑Cor. e Eng.º Eusé-
O conde da Calçada faleceria na sua resi- bio Pinheiro Furtado, quando no comando do
dência, a 18 de setembro de 1906, não tendo Batalhão de Caçadores 5, que, querendo com-
o título, dado que concedido em sua vida, sido bater o ócio dos seus soldados, os pôs a reves-
revalidado. tir a parada do quartel com pedrinhas pretas e
brancas. A calçada madeirense constitui uma
Bibliog.: manuscrita: ABM, Alfândega do Funchal, livs. 684, 685 e 686; Ibid.,
Arquivos Particulares, Família Ornelas e Vasconcelos, cx. 34, n.º 61; Ibid., autêntica referência histórica e patrimonial do
Governo Civil, liv. 651; impressa: O Archivista, 28 jun. 1851; CARITA, Rui, arquipélago e é um símbolo da geodiversida-
História da Madeira, vol. vii, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 2008;
CLODE, Luiz Peter, Descendência de D. Gonçalo Afonso D’Avis Trastâmara de litológica local, sendo por vezes confundida
Fernandes, o Máscara de Ferro Português, Funchal, DRAC, 1983; Id., Registo com a calçada portuguesa propriamente dita.
Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica
do Funchal, 1983; Diário de Notícias, Funchal, 8 nov. 1882; GOMES, Fátima
Em 2004, João Baptista Pereira Silva e Celso
Freitas, “Agostinho de Ornelas e Vasconcelos. O morgado liberal e a decisão de Sousa Figueiredo Gomes desenvolveram
criativa”, Islenha, n.º 21, jul.­‑dez. 1997, pp. 79­‑109; SAINZ­‑TRUEVA, José de,
“Heráldica em iconografia relacionada com a Madeira”, Islenha, n.º 24, jan.­‑jun.
um conjunto de investigações com os seguintes
1999, pp. 57­‑70; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, objetivos: caracterizar a pedra natural aplicada
Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998.
na calçada madeirense dos pontos de vista tex-
Rui Carita tural, petrográfico, químico, mineralógico e
físico­‑mecânico; identificar os locais de prove-
niência da pedra natural; homenagear os pro-
Calçada madeirense fissionais com um papel ativo na preservação
No séc. xvi, Gaspar Frutuoso, na sua obra Sau- do secular trabalho que envolve a aplicação
dades da Terra, trata com admiração e elogio as de pedra de seixo ou de calhau rolado, con-
“calçadas de pedra miúda” (FRUTUOSO, 1968, tribuindo desta forma para a preservação dos
II, 117). De acordo com Sainz­‑Trueva, a utiliza- ofícios tradicionais; desenvolver uma ação pe-
ção de seixos pretos e brancos na calçada ma- dagógica de divulgação da calçada madeiren-
deirense atingiria o apogeu nos sécs. xviii e se junto da população e das entidades compe-
xix. Todavia, a partir de 1950, a atividade sofre- tentes, sensibilizando­‑as para a importância da
rá um grande declínio, motivado, essencialmen- preservação desta técnica, em vez de se proce-
te, pelos seguintes fatores: desinteresse por essa der à substituição da pedra natural por outros
tradição, falta de mão de obra e de motivação materiais; valorizar o património edificado e
da existente, pouco apreço pelo ofício, baixos dignificar a arte dos trabalhos concebidos com
salários, menor disponibilidade da pedra na- pedra natural, pequena e rolada.
tural local e utilização de novos tipos de mate-
riais para pavimentação. Ainda segundo Sainz­
‑Trueva, “as severas mudanças no ‘rosto’ da Materiais e amostragem
cidade e arredores ajudaram a apagar os traços A pedra natural local, de origem vulcânica e se-
mais característicos da Madeira antiga, cada vez dimentar, potencialmente adequada à aplica-
mais confrontada com ventos do progresso, que ção na calçada madeirense, e que foi objeto da
nem sempre contemplam da melhor forma os referida investigação, foi amostrada em depó-
testemunhos de uma herança secular” (SAINZ­ sitos de praia, em pequenos afloramentos de
‑TRUEVA, 1991, 132 e 133). rocha carbonatada e em obras de recuperação
692 ¬ C al ç ada madeirense

Fig. 1 – Separação de materiais pétreos utilizando uma saranda Fig. 2 – Afloramento de calcários recifais no percurso turístico
na praia do Porto dos Frades, Serra de Fora, Porto Santo geológico da Rota da Cal, que compreende uma antiga zona
(fotografia de João Baptista, 2012). de extração de pedra (fotografia de Paulo Duarte, 2007).

de calçadas sitas nos concelhos do Funchal, de No que diz respeito às rochas carbonatadas,
Câmara de Lobos, da Ponta do Sol, de Santa identificadas como sendo calcários recifais
Cruz, de São Vicente e também na ilha do Porto marinhos, elas apresentam as cores seguintes:
Santo. Nos textos consultados e nos diálogos castanha­‑avermelhada, branca leitosa, branca
mantidos com alguns estudiosos e profissionais amarelada ou branca avermelhada. Trata­‑se de
do sector, é frequente referir­‑se serem os seixos materiais com origem no concelho de São Vi-
brancos feitos de calcário originário de Portu- cente, na ilha da Madeira (fig. 2), no ilhéu da
gal continental, tendo provavelmente servido Cal ou de Baixo e no vale da Ribeira da Serra
de lastro em navios que outrora aportavam ao de Dentro, ilha do Porto Santo. No caso dos
Funchal. Foi propósito da já mencionada in- calcários que ocorrem no afloramento do sítio
vestigação referir os locais de proveniência da dos Lameiros (à cota de 475 m), em São Vicen-
pedra natural utilizada nas calçadas. Tendo em te, eles são, essencialmente, recifais, associados
conta quer o levantamento já efetuado, quer a a tufos de cor castanha­‑avermelhada, e aglo-
extensão da sua aplicação em todo o arquipéla- merados, cujos fósseis marinhos identificados
go, admite­‑se que a pedra aplicada foi recolhi- correspondem a várias espécies de lamelibrân-
da em vários depósitos de praia das costas sul e quios, gastrópodes, equinodermes, coraliá-
norte da Madeira e do Porto Santo. rios, crustáceos e foraminíferos. Dados de geo-
Atualmente, a recolha dos materiais está res- cronologia isotópica apontam a idade de sete
tringida a depósitos de algumas praias (fig. milhões de anos (Miocénico Superior) para
1) – Formosa (Funchal), Porto Novo (Santa os calcários fossilíferos. Na segunda déc. do
Cruz), Madalena do Mar (Ponta do Sol) e Ca- séc. xxi, puderam ser observados alguns dos
lhau da Serra de Fora e Calhau da Serra de antigos depósitos de calcário recifal no sítio da
Dentro (Porto Santo) –, devidamente autori- Achada do Furtado do Barrinho, Lameiros, ao
zada pelas autoridades regionais competentes percorrer o itinerário turístico­‑geológico de-
(Secretaria Regional dos Assuntos Parlamenta- nominado Rota da Cal (fig. 2).
res e Europeus da Região Autónoma da Madei- Na ilha do Porto Santo, os calcários ocorrem
ra e capitania do Porto do Funchal). entre as cotas 0­‑165 m, correspondendo­‑lhes
A amostragem dos materiais nas praias foi idades compreendidas entre os 13,5 e os 18
feita na baixa­‑mar, por duas razões: a primeira, milhões de anos (Miocénico Inferior), tendo
porque a secção da praia é mais ampla; a se- sido neles identificados foraminíferos, celen-
gunda, porque a recolha de material é feita em trados, briozoários, equinodermes, crustáceos,
maior segurança durante a maré baixa. anelídeos e grande variedade de espécies de
C al ç ada madeirense ¬ 693

Fig. 3 – Pormenor de fóssil de alga em calhau


rolado de calcário recifal
(fotografia de João Baptista, 2010).

lamelibrânquios e de gastrópodes, i.e., nos cal-


cários figuram quase todos os grandes grupos
de invertebrados, bem como restos de seláceos
e algas coralinas. O paleontólogo Gumerzin- Fig. 4 – Pormenor da colocação de seixo
(fotografia de João Baptista, 2004).
do Silva atribui aos calcários da ilha do Porto
Santo e dos seus ilhéus uma fácies recifal edi-
ficada sob clima tropical a profundidade que não têm o mesmo significado. Efetivamente,
não devia exceder os 40 m; normalmente, este em termos técnicos e científicos, os referidos
tipo de calcários pode exibir cor branca leitosa nomes correspondem a designações que estão
e/ou cor branca amarelada. intimamente relacionadas com aspetos textu-
No Museu de História Natural do Jardim Bo- rais, i.e., com a dimensão e a forma das peças
tânico da Madeira pode ser observado um rico individuais do material pétreo.
e diversificado espólio de exemplares de fós- A escala granulométrica de Chester K. Wen-
seis marinhos originários das ilhas da Madeira tworth, utilizada em sedimentologia, estabele-
e do Porto Santo. No conjunto, destacam­‑se, ce designações e limites dimensionais para as
entre os fósseis mais representativos, lameli- partículas constituintes dos sedimentos. Nesta
brânquios, gastrópodes, equinodermes e algas escala, a designação “calhau” é aplicada à clas-
coralinas, fósseis que apresentam, na generali- se granulométrica cujos limites são 256 mm e
dade, um elevado grau de preservação, situa- 64 mm, e a designação “seixo” é aplicada à clas-
ção que permite a fácil identificação das respe- se granulométrica cujos limites são 64 mm e
tivas espécies. 4 mm. Por outro lado, o estudo morfométrico
Nos seixos e calhaus de rocha carbonatada dos materiais pétreos, i.e., o estudo das diferen-
aplicada na calçada madeirense observam­‑se tes geometrias dos calhaus e seixos aplicados na
os exo­‑esqueletos de várias espécies de fósseis calçada, permite, de acordo com a classificação
marinhos (fig. 3). de Theodor Zingg, definir que eles apresentam,
normalmente, forma oblata ou discoidal.
Os seixos e calhaus de rocha vulcânica
Aspetos texturais
apresentam­‑se lisos, polidos, entre arredonda-
A população designa vulgarmente a pedra apli- dos e bem arredondados, e a cor escura que
cada na calçada madeirense por seixo, calhau exibem é normalmente devida à patine que
ou cascalho rolado, mas, em termos técnicos e vão adquirindo ao longo do tempo, efeito da
científicos, as denominações “seixo” e “calhau” poluição e da sujidade acumulada.
694 ¬ C al ç ada madeirense

Tipologias e propriedades
No âmbito da referida investigação, a caracte-
rização petrográfica, mineralógica e química
dos materiais pétreos (calhaus e seixos) amos-
trados nas calçadas madeirenses foi realizada
no departamento de Geociências da Univ. de
Aveiro, tendo permitido o estabelecimento das
tipologias relevantes.
No que diz respeito às rochas vulcânicas, uti-
lizando a relação entre a percentagem de sílica
(SiO2) e a percentagem de alcalis (Na2O + K2O)
adotada no sistema classificativo das rochas vul- Fig. 6 – Pormenor da calçada madeirense em que se observa
cânicas proposto por Peter Francis, foi possí- a utilização de seixos inteiros e partidos pela metade
vel definir as litologias seguintes: traquibasalto, no pavimento do Prq. de Santa Catarina, Funchal
(fotografia de João Baptista, 2014).
traquiandesito e traquito, que apresentam to-
nalidades que vão desde o cinzento­‑escuro até
(SiO2) e alumina (Al2O3) variam entre 0,40
ao cinzento­‑claro; basalto, hawaiíto e represen-
% e 3,19 %. Assim sendo, os resultados ana-
tantes do grupo minor varieties, que inclui diver-
líticos obtidos permitem identificar a origem
sos tipos de rochas vulcânicas menos comuns;
do seixo e do calhau de calcário aplicados na
normalmente, estes tipos litológicos apresen-
calçada madeirense, a qual está relacionada
tam cor preta.
com rochas carbonatadas locais (calcário reci-
Os resultados da análise química obtidos
fal muito puro). De facto, as investigações rea-
por fluorescência de raios-X indicam que as
lizadas mostram que a pedra calcária aplicada
amostras estudadas de seixos ou calhaus de
foi recolhida em vários depósitos de praia das
calcário do arquipélago da Madeira apresen-
costas sul e norte das ilhas da Madeira e do
tam teores muito baixos de sílica (SiO2) e
Porto Santo (figs. 2 e 3).
de alumina (Al2O3), sempre inferiores a 200
Por sua vez, as propriedades físico­‑mecânicas
ppm. Diferentemente, no caso das amostras
dos principais tipos de pedra natural utiliza-
de calcário utilizado em calçada portuguesa
dos na calçada madeirense foram avaliadas
(técnica também presente no arquipélago da
no Laboratório de São Mamede de Infesta
Madeira), provenientes das localidades de
(Porto), afeto ao antigo Instituto Nacional de
Porto de Mós, Alcanena, Albufeira e Lagoa,
Engenharia, Tecnologia e Inovação (poste-
em Portugal continental, os teores de sílica
riormente, Laboratório Nacional de Energia
e Geologia).
A determinação da resistência ao desgaste
por abrasão em vários provetes de pedra natu-
ral foi realizada através do método de desgas-
te de Capon. Os resultados obtidos permitem
concluir que a rocha traquibasáltica é a que
apresenta menor desgaste (0,6 mm), em oposi-
ção ao calcário recifal (4,2 mm).
Se observarmos alguns pavimentos sobre os
quais há grande circulação de pessoas, verifica-
mos facilmente que a superfície superior e ex-
posta da pedra calcária se apresenta plana, ou
Fig. 5 – Calcamento e nivelamento do pavimento com calcão
seja, com maior grau de desgaste, quando com-
mecânico (fotografia de João Baptista, 2004). parada com a superfície superior e exposta da
C al ç ada madeirense ¬ 695

pedra vulcânica contiguamente aplicada, que de remover o excedente da calda de cimen-


se apresenta abaulada ou convexa. to, e, finalmente, a lavagem, a escovagem e o
varrimento.
Aplicação da calçada madeirense Para se ter noção do grau de exigência que
esta arte de pavimentação implica, marcou­‑se
A calçada madeirense é uma manifestação do
no chão, com motivo em espinha, a área de
património insular madeirense, sendo tam-
1 m2. Verificou­‑se que em cada metro quadra-
bém testemunho da atividade desenvolvida
do foram aplicados, em média, 1023 seixos.
por trabalhadores de ofícios tradicionais. Feita
Este valor é elucidativo dos milhares de seixos
na maior parte das vezes por mãos anónimas,
que foram utilizados para fazer o pavimento de
revela a sensibilidade naïve dos seus autores
calçada madeirense que existe no Jardim Mu-
(e.g., fig. 7) e é um testemunho cultural que
nicipal do Funchal. Tendo em conta a prove-
merece ser divulgado e preservado.
niência dos materiais, pode dizer­‑se que se as-
Na feitura da calçada madeirense, a aplica-
semelham a praias que foram transferidas para
ção dos materiais pétreos no terreno pode-
o espaço urbano e rural.
rá realizar­‑se diretamente sobre uma camada
Na déc. de 1960, o Arqt. Fernando Santos
de solo silto­‑argiloso (designado localmen-
Pessoa introduziu uma alteração à calçada ma-
te por “cerro”). Caso contrário, a aplicação
deirense tradicional, a variante de calçada ma-
dos materiais passa por diversas etapas: pre-
deirense com pedra partida. Trata­‑se de um
paração do fundo de caixa com aplicação de
pavimento menos escorregadio e que oferece
tout venant sobre o terreno e colocação de pó
maior atrito ao calçado, permitindo melhor
de pedra sobre o tout venant e tirada de pon-
andamento e mais conforto (fig. 6).
tos; colocação da pedra segundo o seu eixo
maior (i.e., para um sistema de eixos XYZ,
em que X representa o comprimento máxi- Motivos
mo, Y a largura máxima e Z a espessura má- A calçada madeirense pode ser construída
xima) (fig. 4); betonagem das juntas entre utilizando unicamente calhaus e seixos de ro-
as pedras, com uma mistura líquida de calda chas vulcânicas, de tonalidade cinzenta mais
de areia e cimento, numa proporção de três ou menos escura, cuja monocromia é quebra-
partes de areia para cinco de cimento; cal- da devido às diferentes orientações conferidas
camento e nivelamento do pavimento com pela disposição dos materiais (fig. 6). Quando
calcão mecânico e acabamento com maço são utilizadas rochas vulcânicas e sedimenta-
de madeira de plátano (fig. 5); colocação de res, a policromia a preto e branco apresenta
areia fina sobre o pavimento, com o objetivo uma grande diversidade de padrões e temas

Fig. 7 – Pormenor de vaso com planta Fig. 8 – Pormenor em flor ou representação do ponto richelieu,
(fotografia de João Baptista, 2007). do bordado da Madeira (fotografia de João Baptista, 2007).
696 ¬ C al ç ada madeirense

Fig. 9 – Pormenor em flor ou representação do ponto granito,


do bordado da Madeira (fotografia de João Baptista, 2007).

Fig. 10 – Motivos geométricos, religiosos e da data


geométricos e florais estilizados que orna- da pavimentação do adro da igreja de N.ª Sr.ª da Piedade,
mentam e embelezam ruas, átrios, igrejas, Porto Santo (fotografia de João Baptista, 2007).

palácios, casas, quintais e jardins (figs. 7­‑9).


Muitos dos motivos dos pontos do bordado Também nesta altura, na rua D. Carlos I, na
da Madeira – tais como oficial, bastido, chão, zona velha do Funchal, foi observada a existên-
corda, granitos e richelieu – foram aproveita- cia de diferenças cromáticas entre as argamas-
dos pelos calceteiros para serem represen- sas em algumas obras de recuperação, viu­‑se
tados na decoração da calçada madeirense. serem muito diferentes as dimensões dos sei-
O adro da igreja de S. Martinho, no Funchal, xos utilizados e serem os espaços entre pedras
é talvez o local que reúne a maior diversidade roladas – porque grandes – preenchidos por
de padrões e de motivos geométricos e florais argamassa. Nas travessas da Malta e do Redon-
estilizados, com vários pontos de bordado da do, o pavimento de calçada madeirense foi co-
Madeira. berto por tapete betuminoso.
No pavimento, predomina geralmente o ma- Na requalificação urbana que ocorreu no
terial mais abundante, i.e., calhaus e seixos de núcleo histórico de Câmara de Lobos, o an-
rochas vulcânicas, sendo apenas utilizadas ro- tigo brasão do concelho, que estava coloca-
chas sedimentares para realçar alguns aspetos do no adro da igreja de S. Sebastião, fazen-
florais, brasões de armas, monogramas, datas do parte de um tapete de pedra rolada, deu
e a cruz de Cristo (fig. 10). Os pavimentos de lugar a um pavimento de “calçada madei-
calçada madeirense apresentam pouca refle- rense” de blocos e calhaus partidos; perdeu­
xão da luz e são facilmente limpos utilizando a ‑se, assim, o único exemplo de heráldica
tradicional vassoura de urze.

Preservação
Em meados da segunda déc. do séc. xxi, a cal-
çada foi modificada e adulterada em alguns es-
paços, com a aplicação de materiais estranhos
a esta técnica e com a remoção de motivos.
A pedra rolada foi substituída por cubos e pa-
ralelepípedos de mármore e coberta por arga-
Fig. 11 – Aplicação de paralelepípedos de mármore
massas de areia, cimento e material betumino- na letra P do logograma do Hotel do Porto Santo
so, ou por alcatrão (fig. 11). (fotografia de João Baptista, 2015).
C al ç ada madeirense ¬ 697

Fig. 13 – Recuperação do pavimento em calçada madeirense


na Univ. da Madeira em julho de 2007 (fotografia de João Baptista, 2007).

Fig. 12 – Estado de degradação do pavimento


do passeio na Est. Doutor João Abel de Freitas, Funchal (GRM); os jardins de Santa Luzia, recupera-
(fotografia de João Baptista, 2015). dos em 2004 pela Câmara Municipal do Fun-
chal e pelo GRM (ao projeto, da autoria do
municipal em calçada madeirense construí- Arqt. Luís Paulo Ribeiro, foi atribuída uma
da no arquipélago, restando dela apenas re- menção honrosa na categoria de espaços ex-
gistos fotográficos. teriores de uso público, no quadro do Pré-
Noutros locais, verificou­‑se ser total o aban- mio Nacional de Arquitectura Paisagista, em
dono da calçada, como no caso dos passeios 2005); o pavimento onde está representado o
na Est. Doutor João Abel de Freitas e na Est. cronograma dos vários batalhões de Infanta-
da Boa Nova, e advir grande perigo, tanto para ria e dos Caçadores na Univ. da Madeira, re-
peões como para utilizadores de viaturas moto- cuperado por calceteiros da Câmara Munici-
rizadas, das pedras, encontrando­‑se estas soltas pal do Funchal, em 2008 (fig. 13).
entre a estrada e o passeio (fig. 12). A preservação da calçada madeirense, nas
No adro da capela de N.ª Sr.ª da Graça, na antigas quintas e jardins públicos e privados,
ilha do Porto Santo, observou­‑se a presen- casas particulares, ruas, estradas, etc., reveste­
ça de grandes manchas de cera, com origem ‑se de uma importância crucial, especialmen-
no pagamento de promessas feito por alguns te para os núcleos e zonas históricas das ilhas
fiéis (com velas) e na ausência da sua posterior da Madeira e do Porto Santo. Deste modo, a
remoção. profissão e a formação do calceteiro é impres-
O desenvolvimento das raízes das árvores de cindível para a manutenção dos referidos es-
grande porte destruiu e soergueu por vezes paços. Além disso, o património material da
o pavimento, como aconteceu na capela de calçada madeirense constitui um legado de
N.ª Sr.ª da Graça, no Instituto do Vinho da grande valor, sob os vários aspetos da sua com-
Madeira e no Hospício Princesa Dona Maria posição, da diversidade dos materiais geológi-
Amélia, carente de trabalhos de manutenção cos utilizados, com presença de fósseis mari-
regulares. nhos, e da diversidade de padrões construídos
Durante a referida investigação, teve­‑se opor- e desenhados.
tunidade de acompanhar diversas obras de re-
cuperação de antigas calçadas e de construção Bibliog.: ADAMS, A. E. et al., Atlas of Sedimentary Rocks under the Microscope,
Harlow, Longman, 1984; FRANCIS, Peter, Volcanoes. A Planetary Perspective,
de novas pavimentações. Exemplos disso são Oxford, Clarendon Press, 1993; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra.
o antigo palacete dos Zinos, posteriormen- História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro
Rodrigues de Azevedo, vol. ii, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta
te palacete do Lugar de Baixo, recupe­rado Delgada, 1968; NUNES, João Carlos, “Novos conceitos em vulcanologia.
em 2004 pelo Governo Regional da Madeira Erupções, produtos e paisagens vulcânicas”, Geonovas, n.º 16, 2002, pp. 5­‑22;
698 ¬ C aldeira , J o ã o da S ilveira

ROMARIZ, Carlos, “Notas petrográficas sobre rochas sedimentares ligado à política. Foi um dos fundadores do
portuguesas. Parte XII: calcaritos afânicos da ilha da Madeira”, Boletim do
Museu e Laboratório Mineralógico e Geológico da Faculdade de Ciências, vol. 12, Partido Social Democrata (PSD) após o 25 de
n.º 1, 1971, pp. 55­‑65; SAINZ­‑TRUEVA, J. M., “A preto e branco”, Islenha, Abril, e à data da morte era presidente do Con-
n.º 8, jan.­‑jun. 1991, pp. 129­‑135; SILVA, Gumerzindo, “Fósseis do Miocénico
marinho da ilha de Porto Santo”, Memórias e Notícias, n.º 75, 1959, pp. 47­
gresso Regional do PSD.
‑88; SILVA, João B. P., “Calçada madeirense. Bordados de pedra”, Revista Saber Muito ligado ao desporto, ao qual dedicou
Madeira, n.º 89, out. 2004, pp. 16­‑23; Id., “Calçada madeirense. Importância
do seu conhecimento, divulgação e preservação”, in SILVA, João B. P. (coord.),
um incontestável apoio, chegou a ser presiden-
Simpósio Internacional de Escultura em Pedra. SINEP 2004. 17 a 31 de Maio 2004, te do Clube Desportivo Nacional e do Club
Câmara de Lobos, Câmara Municipal de Câmara de Lobos/Madeira Rochas­
Sports Madeira. O Jornal da Madeira de 22 de
‑Divulgações Científicas e Culturais, 2004, pp. 151­‑156; Id. et al., “Natural stone
of the Madeira archipelago. Commercial types and properties”, in Eurock2002. dezembro de 1981 chega mesmo a referir que
Workshop on Volcanic Rocks, Funchal, s.n., 2002, pp. 115­‑124; WENTWORTH,
o Clube Desportivo Nacional lhe fica a dever
Chester K., “A scale of grade and class terms for clastic sediments”, The Journal
of Geology, vol. 30, n.º 5, jul.­‑ago. 1922, pp. 377­‑392; ZINGG, THeodor, Beitrag dedicação ilimitada. Ainda relacionado com o
zur Schotteranalyse, Zürich, A. G. Gebr. Leemann & Co., 1935. desporto, Luiz Peter Clode refere que António
Celso de Sousa Figueiredo Gomes Manuel de Sales Caldeira foi o precursor do
João Baptista Pereira Silva Rally da Madeira a nível europeu.
Faleceu no Funchal a 21 de dezembro de
1981, tendo sido sepultado no cemitério
Caldeira, António Manuel de de São Martinho a 22 do mesmo mês.
Sales As participações do seu falecimento no Diário
de Notícias de 22 de dezembro de 1981 incluem
António Manuel de Sales Caldeira nasceu a 27 as da família, do PSD, do grupo parlamentar
de janeiro de 1912, no Porto da Cruz. Filho de do PSD na Assembleia Legislativa Regional, do
João Pedro Sales Caldeira e de Maria Ana Lari- Conselho Distrital da Ordem dos Advogados,
ca Sales Caldeira, casou­‑se com Rita de Acácio da Assembleia Geral da Ordem dos Advogados,
Silva Oliveira de Sales Caldeira, natural de Lis- da Direção do Clube Sports Madeira e também
boa, com a qual teve três filhos: Maria Emília das funcionárias dos cabeleireiros Capucine,
Oliveira Sales Caldeira, João Pedro Sales Cal- dos quais Sales Caldeira era proprietário.
deira e Rita de Acácia Sales Caldeira. Já no Jornal da Madeira da mesma data pode
Após a conclusão do liceu, Sales Caldeira ler­‑se um artigo que evidencia as qualidades de
matriculou­‑se na Faculdade de Direito da Sales Caldeira, descrevendo­‑o como uma figu-
Univ. de Lisboa, onde se licenciou com 23 ra bastante conhecida e prestigiada da advoca-
anos. cia madeirense, sendo um homem dinâmico e
Foi subdelegado do Tribunal do Trabalho íntegro.
e posteriormente abriu banca de advogado,
Bibliog.: manuscrita: ABM, Registo de óbito de António Manuel de Sales
tendo muita clientela, primeiro na R. Gon- Caldeira, assento de óbito 1629; impressa: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio­
çalves da Câmara, de ‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do
Funchal, 1983; Diário de Notícias, Funchal, 22 dez. 1981; Jornal da Madeira, 22
onde transitou para a dez. 1981.
R. das Pretas, n.º 7, e, Cláudia Neves
depois, na R. João Ta-
vira, n.º 31­‑1.º. Além de
ter sido consultor jurí- Caldeira, João da Silveira
dico de várias empre-
sas comerciais e indus- Uma importante informação abre a entrada
triais, esteve também relativa a João da Silveira Caldeira no Elucidá-
rio Madeirense: “escassos dados possuímos para
a biografia deste madeirense” (SILVA e ME-
NESES, 1984, I, 366). Ainda assim, o Elucidá-
António Manuel de Sales
rio apresenta­‑o como um médico e investiga-
Caldeira, c. 1970 (ABM,
Arquivos Particulares). dor na área da química, nascido na Madeira
C aldeira , J o ã o da S ilveira ¬ 699

no terceiro quartel do séc. xviii, que terá sido


lente na Escola Militar do Rio de Janeiro e pro-
vedor da Casa da Moeda nessa cidade, infor-
mação que, no entanto, não nos parece corre-
ta. Confrontando estas indicações com outras,
nomeadamente com uma relação de “Irmãos
e Irmãs sepultados no Cemitério [de Catum-
bi, São Francisco de Paula, Rio de Janeiro] a
partir de 1850, em carneiros arrendados e/ou
em perpetuidade” (BARATA, Colégio Brasileiro
de Genealogia, s.d.), parece­‑nos haver uma con-
fusão entre dois homónimos – pai e filho –, na
medida em que as referências apresentadas
pelos dois documentos são similares, exceto no
local e na data de nascimento: no registo n.º 54
desta relação, há referência a um João da Sil-
veira Caldeira, filho de um outro João da Silvei-
ra Caldeira e de Bárbara Joaquina, sepultado
no cemitério de S. João Batista, no bairro de João da Silveira Caldeira, desenho a lápis a partir de óleo
Botafogo, dado como nascido a 28 de junho de de c. 1850 (antigo acervo do Museu Nacional do Rio de Janeiro).
1800, no Rio de Janeiro, e falecido na mesma
cidade, a 4 de julho de 1857, vítima de suicí- onde, juntamente com o bispo de Anemuria e
dio. Neste sentido, o pai terá nascido na Ma- Manuel de Arruda Câmara, procedeu à revisão
deira e saído para o Brasil, onde terá nascido o e publicação da obra Flora Brasiliensis, de José
filho, João da Silveira Caldeira, que veio a ser Mariano da Conceição Veloso.
uma figura importante da cultura. Em 1823, fez parte da junta de diretores de
João da Silveira Caldeira, filho portanto, era, uma escola do método de ensino mútuo para
então, médico formado pela Univ. de Edim- instruir as corporações militares. Nesse ano,
burgo, na Escócia, detentor do grau de doutor, foi nomeado diretor do Museu Imperial e Na-
com tese escrita em latim. Destacou­‑se na quí- cional e, no ano seguinte, criou o laborató-
mica, área na qual desenvolveu algumas inves- rio químico do Museu, o primeiro laborató-
tigações e trabalhos. Aperfeiçoou os seus estu- rio para análises fundado no país, do qual foi,
dos em Paris, tendo privado e aprendido com também, o primeiro diretor. O imperador,
os químicos Louis Nicolas Vauquelin (1763­ percebendo a importância deste laboratório,
‑1829) e André Laugier (1770­‑1832)e com o autorizou a compra, em Paris, de instrumen-
mineralogista René Just Haüy (1743­‑1822). Pu- tos solicitados por João da Silveira, que, deste
blicou, em 1926, a tradução anotada do Ma- modo, pôde contribuir para o desenvolvimen-
nual do Ensaiador de Vauquelin. to da investigação médica e da mineração do
Sobre a personalidade, refere Joaquim Au- Brasil, realizando, então, as primeiras análises
gusto Simões de Carvalho, na Memoria Histori- de combustíveis nacionais e de amostras de
ca da Faculdade de Philosophia: “químico muito pau­‑brasil.
apreciado […]. É autor da memória sobre o Foi durante a sua gestão que o Museu passou
ondeado metálico, publicada nos Annaes das a ser um estabelecimento consultivo, tendo,
Sciencias e Artes, e de outros trabalhos realiza- por essa época, o governo imperial incenti-
dos no laboratório químico de Paris” (SILVA e vado a participação de vários naturalistas es-
MENESES, 1984, I, 188). trangeiros, como Natterer, von Sellow e Lan-
Em Paris, foi preparador do Jardim das Plan- gsdorff, tendo este último oferecido ao Museu
tas, cargo que manteve até regressar ao Brasil, a sua própria coleção de mamíferos e aves da
700 ¬ C alheta

Europa. Durante a sua direção, o Museu rece- nos elucidam sobre outras famílias que aí se fi-
beu ainda acervos vários, nomeadamente mú- xaram. Assim testemunha Gaspar Frutuoso tal
mias, estatuetas funerárias, vasos, mãos e pés riqueza: “É esta vila tão nobre em seus mora-
mumificados de origem egípcia, bem como vá- dores, como abastada pelos muitos e baratos
rios objetos etnográficos oriundos do Pará e mantimentos que nela acham. Desta saíram
das ilhas do Pacífico. em companhia dos capitães do Funchal muitos
Na correspondência enviada para publica- e nobres cavalheiros a servir El­‑Rei à sua custa
ção, há referência a diversas pesquisas reali- os lugares de África, e nos socorros que os capi-
zadas, nomeadamente em torno da obtenção tães levaram: onde todos, além de darem mos-
do ácido cítrico puro e de zircónia pura, des- tras de suas pessoas, gastaram muito do seu,
coberta cujos créditos dividiu com o químico porque eram ricos, pelas grossas fazendas que
francês M. du Bois­‑Reymond. nesse termo há, como a do Arco, tão afamada”.
A Nova Nomenclatura Química Portuguesa, um E remata afirmando que “foi o condado do
dos primeiros compêndios de assuntos quími- Ilustríssimo Capitão Simão Gonçalves da Câ-
cos no Brasil, datada de 1825, é assinada por mara, Conde desta vila nova da Calheta” (FRU-
João da Silveira Caldeira. TUOSO, 1979, 90).
Obras de João da Silveira Caldeira: Nova Nomenclatura Química Portuguesa
Numas notas de recomendação apresentadas
(1825). em 1698 ao novo governador, António Jorge
Bibliog.: impressa: CARVALHO, Joaquim Augusto Simões, Memoria de Melo (1698­‑1701), refere­‑se que a Madei-
Historica da Faculdade de Philosophia, Coimbra, s.n., 1872; Correio do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, Tip. de Silva Porto & C., 1822­‑1823; Revista Trimestral
ra é dividida em duas capitanias: a da Calheta,
de Historia e Geographia, ou Jornal do Instituto Historico Geographico que tem como donatário o conde de Castelo
Brazileiro, n.º 5, abr. 1840; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos
Melhor, e a de Machico. Este título foi dado,
Azevedo de, Elucidário Madeirense, vol. i, Funchal, DRAC, 1984; digital:
BARATA, Carlos Eduardo de Almeida, “Cemitério Catumbi. São Francisco de segundo se explica, “por virtude do condado
Paula, Rio de Janeiro”, Colégio Brasileiro de Genealogia, s.d.: http://www.cbg. deste título” (NASCIMENTO, 1927, 59). Esta
org.br/baixar/cemiterio_catumbi_3.pdf (acedido a 17 maio 2016); “João da
Silveira Caldeira”, Universidade Federal de Juiz de Fora, s.d.: http://www.ufjf. valorização da Calheta manifesta­‑se igualmen-
br/nehc/historia­‑da­‑quimica­‑no­‑brasil­‑3/joao­‑da­‑silveira­‑caldeira (acedido te em designações como “capitania do Fun-
a 17 maio 2016).
chal” e “casa da Calheta”.
Graça Maria Nóbrega Alves
Os filhos de Zarco foram os primeiros pro-
prietários de terras. Assim, o título de conde de
Vila Nova da Calheta foi dado, a 20 de agosto
Calheta
de 1576, por D. Sebastião a Simão Gonçalves da
O concelho da Calheta deve o seu nome à Câmara (1512-1580), título que deixou de ser
configuração da sua costa. Segundo António usado com D. Luís de Vasconcellos, que pre-
Carvalho Costa, em Corografia Insulana (1713­ feriu o de 3.º conde de Castelo Melhor. O de
‑17??), “quando se descobriu, fizeram à mão Valledeamores pertenceu a Duarte Pestana de
uma calheta, de que tomou o nome a Vila, que Brito, que fora armador­‑mor de D. João II e
depois ali se povoou” (NASCIMENTO, 1949, D. Manuel e um conhecido poeta representa-
71). Paulo Dias de Almeida, em 1821, refere do no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.
uma qualidade especial deste concelho, dizen- A toponímia local espelha estas primeiras pre-
do que “É nestas freguesias que as mulheres senças. Assim, o Lombo do Doutor regista a fi-
trabalham mais que os homens. São elas que xação, em 1480, do valenciano Pedro Beren-
levam os gados ao pasto, que conduzem o gado guer; o Lombo do Atouguia deve o seu nome
à serra, que fazem o corte das lenhas, e por isso a Luís de Atouguia, fidalgo de Beja; já o sítio
são mais robustas e os homens muito acanha- dos Florenças tem origem no florentino João
dos” (CARITA, 1982, 82). Salviati.
Este lugar foi terra de gente ilustre. Para Temos ainda outros fidalgos estrangeiros
além da ligação muito forte aos capitães do do- que aí assentaram morada, como o galego
natário do Funchal, existem referências que João Fernandes de Andrade, conhecido como
C alheta ¬ 701

Fig. 1 – Vista geral da vila da Calheta


(fotografia de Bernardes Franco, 2017).

João Fernandes do Arco, por assentar morada


no Lugar do Arco. Foi ele quem recebeu de
D. João II, em 1486, a capitania de qualquer
ilha ou terra firme que descobrisse. Outro es-
trangeiro, João Polonês, recebeu terras no Es-
treito, sendo o seu filho, João de França, o fun-
dador da capela de N.ª S.ª da Graça. Refere­‑se
ainda, na Serra de Água, João Fernandes, que,
segundo alguns, será filho de D. Afonso V e
de D. Joana. Salienta­‑se ainda Diogo Perestre-
lo, quinto donatário do Porto Santo, que viveu
na vila da Calheta. Era casado com D. Maria,
filha de Gaspar Homem, que havia estabeleci-
do um morgado dos Reis Magos no Estreito da
Calheta.
No decurso do séc. xvi, muitos destes vizi-
nhos da Calheta deram uma boa parte do seu
dinheiro para apoio e defesa das praças portu-
guesas do Norte de África, como foi o caso de
Francisco de Abreu e António de Abreu, filhos
de João Fernandes do Arco. António de Abreu,

Fig. 2 – Cruz processional da igreja matriz


da Calheta, c. 1520 (exposição As Ilhas
do Ouro Branco, Encomenda Artística na
Madeira – Séculos XV a XVI, no Museu Nacional
de Arte Antiga, novembro de 2017)
(arquivo particular).
702 ¬ C alheta

depois de ter estado no Norte de África, partiu manjares de toda a sorte, como os sabem fazer
para a Índia, em 1511, com Afonso de Albu- as delicadas mulheres da ilha da Madeira”
querque, onde participou em diversas campa- (FRUTUOSO, 1979, 263). Entretanto, Águe-
nhas militares e de descoberta, sendo conside- da de Abreu, sua irmã, denunciou a situação
rado o descobridor das Molucas e o primeiro junto da Coroa, tendo vindo um desembarga-
europeu a avistar a Austrália. Em 1526, depois dor resolver o caso. Como desfecho, algumas
de ter regressado ao reino, foi nomeado capi- penas de morte e desterro, a fuga de António
tão de Malaca. Outros, como o Cap. Francis- Gonçalves para as Canárias e o recolhimento
co de Figueiroa, tiveram um papel de destaque de Isabel de Abreu no Convento de S.ta Clara.
nas guerras de restauração da Baía e Pernam- Muitos destes importantes vizinhos da Ca-
buco, no Brasil. lheta tinham propriedades ou casa na cida-
Temos ainda de recordar o episódio do rapto de. É o caso de Francisco de Abreu Florença,
de Isabel de Abreu por António Gonçalves da do Arco da Calheta, que, em 1642, tinha casas
Câmara, que tão bem relata Gaspar Frutuoso. no Funchal e terras de semeadura e gados na
D. Isabel de Abreu, viúva de João Rodrigues freguesia.
de Noronha, filho do 3.º capitão-donatário do
Funchal, Simão Gonçalves da Câmara, vivia
no Arco do Calheta. Conta Gaspar Frutuoso:
Administração
“foram feitas grandes festas e bodas, em que O município foi criado a 1 de junho de 1502,
comeram todas aquelas pessoas que os acom- sendo a sede designada Vila Nova da Calheta.
panharam. Estavam na sala primeira dos seus Até 1835, incluíam­‑se as freguesias que nesta
paços quatro potes de prata fina em quatro data deram lugar ao município do Porto Moniz.
cantos dela, que levaria cada um deles três al- A vila situava­‑se na foz da ribeira e tinha pelou-
mudes de água, com quatro púcaros de prata: rinho, documentado em 1618. Também sabe-
[...] comeram todos em baixela de prata, sem mos existirem os aposentos da alfândega local,
se entremeter no serviço coisa de barro, nem pois que, em 1520, Francisco Homem recebeu
estanho, onde se gastaram ricos e esquisitos 40.000 réis referentes ao eirado que derrubaram

Fig. 3 – Câmara Municipal da Calheta, antiga Santa Casa da Misericórdia (arquivo particular, 2008).
C alheta ¬ 703

para serventia da alfândega. Em termos ecle-


siásticos, sabemos da criação de uma ouvidoria
com jurisdição sobre a vila e o seu termo e sobre
as freguesias de Porto Moniz e Seixal.
Antes de 1502, a Calheta estava na alçada
do município do Funchal, que se representa-
va na área através dos juízes pedâneos e dos
alcaides pequenos. O signatário do lugar era
apresentado pelos calhetenses e apresentava­
‑se em vereação no Funchal para tomar posse
do cargo com dois jurados. Havia ainda os
homens­‑bons, alguns da Calheta, que se
apresentavam, muitas vezes, às reuniões da
quarta­‑feira. Estes eram assim definidos por
ordem régia, para poderem assistir à verea-
ção, e faziam parte da lista dos que poderiam Fig. 4 – Calheta, litografia aguarelada de James Bulwer, 1827
ser eleitos para os cargos municipais. A estes (ABM, Arquivos Particulares).

juntavam­‑se os oficiais ligados à safra do açú-


car, como os lealdadores e o escrivão, os rece- representação dos moradores que reivindica-
bedores e os escrivães dos quintos, que faziam vam esta situação.
parte da estrutura da comarca açucareira da A designação da freguesia do Arco da Ca-
Calheta. De acordo com ordem régia de 1461, lheta advém da configuração semicircular dos
o capitão tinha o direito de confirmar os juí- seus montes e da proximidade à freguesia da
zes da vereação eleitos, mas os oficiais da Câ- Calheta. Trata­‑se de um dos mais antigos locais
mara da Calheta recusavam­‑se a tal, tendo por de ocupação da Ilha. Aí se fixou João Fernan-
isso sido admoestados em 1624 e 1691. des Andrade, conhecido como “do Arco”, se-
No princípio do séc. xix, a Calheta continua- nhor de terras de pão e canaviais, engenho e
va a ser uma jurisdição para arrecadação de im- escravos, que instituiu uma casa vincular com
posto, existindo outras no Funchal, Ponta de capela e capelão privativo. A capela já existia
Sol, Santa Cruz, Machico, São Vicente e Porto em 1461, e temos notícia do capelão em 1472.
Santo, com escrivão e tesoureiro. No caso do No séc. xvii, ficaram famosos os pêssegos pro-
rendimento da sisa, era o segundo contribuinte, duzidos nesta freguesia, que são celebrados por
a seguir ao Funchal. Manuel Thomaz na Insulana, mas foram funda-
O município da Calheta integra as freguesias mentalmente os canaviais que deram riqueza e
do Arco da Calheta, Calheta, Estreito da Calhe- importância ao local. Alguns destes proprietá-
ta, Fajã da Ovelha, Jardim do Mar, Paul do Mar, rios, como Fernão Domingues do Arco, usaram
Ponta do Pargo e Prazeres, mas nem sempre essa riqueza para financiar viagens de explora-
foi assim. A partir de 1835, surgiu o município ção para Ocidente, antes de 1492.
do Porto Moniz, desmembrando­‑se da Calheta A freguesia da Calheta enquadra­‑se no grupo
as freguesias de Santa, Porto Moniz e Achadas de paróquias criadas nos anos que se seguiram
da Cruz. Esta situação perdurou até 1849, altu- à morte do infante D. Henrique, em 1460.
ra em que foi extinto o município e as fregue- O seu nome, segundo Giulio Landi, deve­‑se “à
sias passaram para o da Calheta. No entanto, abundância de pedrinhas que lá há, chamadas
em 1855, tem lugar a restauração do concelho calhaus pelos portugueses” (apud ARAGÃO,
do Porto Moniz. A freguesia da Ponta do Pargo 1981, 83). Desde o começo do povoamento
voltou a ser incorporada na Calheta, passando da Ilha, este local ganhou importância devi-
definitivamente para tal concelho por lei de 26 do à ligação da família de Zarco e dos povoa-
de junho de 1871, certamente em apoio de uma dores que aí se fixaram, como os já referidos
704 ¬ C alheta

Fig. 5 – Retábulo da capela de Jesus, Maria e José, Lombo do Atouguia, 1708 (fotografia de Bernardes Franco).
C alheta ¬ 705

Dr. Pedro Berenguer de Lemilhana, que deu ilha, por ter maior comarca […]. Esta Vila da
o nome ao sítio do Lombo do Doutor, e Luiz Calheta e seu termo foi o condado do Ilus-
de Atouguia, que está ligado ao Lombo do tríssimo Capitão Simão Gonçalves da Câmara,
Atouguia; João Rodrigues Mondragão, natu- Conde desta Vila Nova da Calheta, como se
ral da Biscaia; e Francisco Homem de Gouveia, dirá em seu lugar” (FRUTUOSO, 1979, 90).
juiz dos órfãos e escudeiro fidalgo, que criou A freguesia do Estreito da Calheta deverá ter
o morgadio e a capela dos Reis Magos, no Es- sido criada no princípio do séc. xv. A designa-
treito da Calheta. Recorde­‑se que o título de ção “estreito” (desfiladeiro, vale ou profundi-
conde da Calheta foi concedido a Simão Gon- dade) deve­‑se, segundo se conta, ao facto de a
çalves da Câmara por alvará de 20 de agosto de passagem para tal território ser estreita. A pri-
1576, como prémio pelos seus feitos nas praças mitiva povoação teve a sua origem numa fazen-
africanas. Em 1600, o título foi incorporado no da concedida no séc. xv ao fidalgo, natural da
condado de Castelo Melhor. Polónia, André Gonçalves de Franças. Foi o
A sua importância, derivada da produção seu filho, João de França, que fez construir a
açucareira, manifesta­‑se na profusão de ca- capela de N.ª Sr.ª da Graça, onde, depois, se
pelas (S. José, S.ta Quitéria, Jesus­‑Maria­‑José, criou e instalou a nova paróquia, sendo tam-
S. Pedro de Alcântara, N.ª Sr.ª da Piedade, S. bém a sede do morgadio que fundou em 1503.
João Batista, N.ª Sr.ª da Boa Morte, S. Fran- A freguesia da Fajã da Ovelha deve o seu
cisco Xavier, N.ª Sr.ª da Penha de França, N.ª nome, segundo a tradição, a um acontecimen-
Sr.ª da Estrela, N.ª Sr.ª da Vida, N.ª Sr.ª de to que envolveu a perda de uma ovelha. A pa-
Monserrate, Almas, N.ª Sr.ª do Bom Sucesso, róquia surgiu em 1550. A 18 de novembro de
N.ª Sr.ª da Nazaré e S.ta Catarina), bem como 1895, a freguesia das Achadas da Cruz, por ex-
na existência de um Convento de S. Francis- tinção do concelho do Porto Moniz, foi­‑lhe ane-
co e de uma misericórdia. Sobre esta fregue- xada. Esta freguesia teve um lugar de notário
sia, diz­‑nos Gaspar Frutuoso: “Neste lugar da desde 1923.
Calheta, […] se fundou a Vila, que tomou o O Jardim do Mar foi um curato dependen-
nome da Calheta, a mais fértil de todas as da te dos Prazeres ou do Paul, com criação no

Fig. 6 – Quinta Pedagógica dos Prazeres (arquivo particular).


706 ¬ C alheta

segundo quartel do séc. xviii. No séc. xix, antigamente rica de açúcar e ainda tem 2 enge-
ficou conhecido pela qualidade dos seus vi- nhos. Tem 123 fogos e 490 almas de sacramen-
nhos, das castas malvasia e sercial. O local to” (FRUTUOSO, 1979, 125). Quanto ao Arco,
apresentava­‑se como uma fajã, daí certamente Frutuoso apenas assinala os povoadores ilustres.
o nome de Paul do Mar. Aí, destacam­‑se as sali- Em 1598, diz­‑se igualmente que “No Estreito
nas dos sítios das Lagoas e Serra da Cruz. sobre a Calheta está a freguesia de Nossa Senho-
A freguesia da Ponta do Pargo terá sido cria- ra da Graça, com a ermida dos Reis Magos. Tem
da em data anterior a 1560. Sobre a origem do 154 fogos [e] 553 almas de sacramento”. Gaspar
nome, diz­‑nos muito claramente Gaspar Fru- Frutuoso nada diz em termos de fogos e popu-
tuoso: “Da Calheta passou o capitão abaixo até lação. O documento apresenta ainda a seguinte
à derradeira ponta sobre o mar, donde pare- informação: “A Fajã da Ovelha tem como igreja
ce que não há mais terra; e estando aqui, lhe principal São João Batista e 2 ermidas: São Lou-
trouxeram os do batel de Tristão e do batel de renço e Santo Amaro, no Paul, ao longo do mar.
Álvaro Afonso um peixe, que parecia pargo, de Tem esta freguesia 70 fogos e 271 pessoas de
maravilhosa grandura, e o maior que até àque- confissão. Sobre a Ponta do Pargo está a fregue-
le tempo tinham visto; por razão do qual peixe sia de São Pedro, que tem 63 fogos e 198 almas
ficou nome aquela Ponta a do Pargo. Desta de confissão” (GOMES, 1932, 34­‑35). Frutuoso,
Ponta do Pargo vira a terra para o Norte até por sua vez, apenas assinala a Ponta do Pargo,
outra ponta, que distará desta uns dizem duas, com 200 fogos.
outros três léguas” (Ibid., 90). António Carvalho Costa, em Corografia Insu-
O nome da freguesia dos Prazeres provém lana (1713­‑17??), refere a existência de 300 vi-
de uma pequena ermida dedicada a N.ª Sr.ª zinhos da paróquia. Em 1722, segundo Hen-
dos Prazeres que foi edificada nesse território riques de Noronha, o concelho da Calheta
muito antes da criação da paróquia. Esta fregue-
sia tornou­‑se independente a 18 de dezembro
de 1676, e uma nova igreja foi mandada cons-
truir pelo Conselho da Fazenda a 20 de novem-
bro de 1745. Posteriormente, foi criada a Quin-
ta Pedagógica dos Prazeres, onde se realizam
várias atividades ligadas ao mundo rural, como
a Festa da Cidra, a Bênção dos Animais, o Leilão
de Animais e a Festa de Debulha do Trigo.

População
Em 1598, um recenseamento da Ilha refere,
relativamente à Calheta, que “A vila da Calhe-
ta tem a igreja principal do Espírito Santo; um
hospital com casa da Misericórdia e tem den-
tro da freguesia 3 ermidas: Nossa Senhora da
Estrela; São Sebastião; e Corpo Santo. Tem
de fogos, como limite, 297, que contêm em si
1129 almas de sacramento” (GOMES, 1932,
32). Note­‑se que Gaspar Frutuoso refere para a
vila 400 fogos. O mesmo adianta os demais lu-
gares: “A freguesia do Arco tem a igreja prin-
cipal de São Brás e 2 ermidas: Nossa Senhora Fig. 7 – Namoro, Noivado e Casamento, Lombo do Atouguia
da Consolação e Nossa Senhora do Loreto. Foi (1991), de Maria Elisa de França Brazão.
C alheta ¬ 707

apresentava­‑se com 7775 almas e 1678 fogos, da população, que abranda com a crise de fome
servido por 16 clérigos. A situação do concelho de 1847. Assim, em 1835, temos 2781 fogos e
é ainda relatada pelo mesmo autor: “Corre a 13.133 almas, e, em 1843, 2979 fogos e 13.733
povoação estreita pela margem da Ribeira, e na almas. Para 1847, registam-se 11.522 habitantes,
parte mais interior tem a sua Paróquia, a qual para 1863, 12.360, e, para 1877, eram já 16.580.
antigamente esteve na Igreja de Nossa Senhora Em 1911, temos 20.062 habitantes, sendo 13.756
da Estrela, quando se erigiu freguesia que foi da Calheta, onde ocorreram 692 mortes.
no ano de 1461. A que hoje tem a vila é Igreja O censo de 1930 refere para a Calheta 21.960
grande// mas antiga; o seu orago é o Espírito habitantes, número que passa para 23.996 em
Santo tem Colegiada, cujos Ministros são um vi- 1940, 24.255 em 1950, 24.078 em 1960, 21.799
gário com púlpito, Cura, quatro Beneficiados, em 1970, 1505 em 1980 e 12.954 em 1990. Tenha­
Tesoureiro e Organista. [...] Tem esta vila, casa ‑se em consideração que, no período de 1955 a
de Misericórdia com muito boa Igreja, e um 1966, foram contados 616 emigrantes legais.
Hospital de Incuráveis, a que deu princípio no No séc. xvi, a Calheta foi alvo de assalto de
ano de 1535. Seu primeiro Provedor o Doutor corsários que geraram uma situação estranha
Pedro Giralte Cavalheiro Florentino que passou de convívio com a população, explicada pelo
a viver nesta parte onde casou com D. Catheri- seu alheamento relativamente ao meio urbano
na Berenguer [...]. Além deste Templo tem mui- e poder civil e militar. Esses terão, depois, se-
tas Igrejas, e ermidas no seu distrito; quais são: guido o seu destino rumo aos Açores em busca
Duas das Almas; a do Corpo Santo, a de Nossa de embarcações castelhanas vindas da América.
Senhora do Monserrate, do Bom Sucesso, da Neste contexto, temos de assinalar que tiveram
Boa morte e da Piedade, a dos Santos Cosme, morada nesta área alguns corsários importan-
e Damião, a de Santo António, de S. Francisco tes, como foi o caso de João Rodrigues Mondra-
Xavier, de S. João, de S. José, a de Jesus Maria gão. Por outro lado, este lugar da Calheta era
José, e a de Santa Catarina, situada no Lombo desprotegido em termos de fortificação militar,
do Doutor, assim chamada por ser habitação do pois só temos notícia da fortaleza de S. Jorge na
Dr. Pedro Berenguer de Leminhana [...]” (NO- vila, em 1688. Além disso, em 1570, organizou­
RONHA, 1996, 211­‑212). ‑se as companhias das ordenanças, surgindo
Como resultado das devassas realizadas, entre a Calheta como um distrito com duas compa-
1794 e 1795, pela Diocese ao concelho, temos nhias. Para o período de 1627 a 1700, registam­
disponível um registo da população. Assim, ‑se 30 destas companhias distribuídas pela vila,
para o Arco da Calheta temos, em 1795, a refe- Ponta do Pargo, Paul do Mar, Lombo da Estrela,
rência a 1977 residentes, sendo 195 menores. Lombo de Atouguia, Lombo da Azenha e Serra
Para o Estreito, em 1794, temos 1678 mora- de Água, Jardim do Mar, Fajã da Ovelha e Estrei-
dores, sendo 91 menores. Na Fajã da Ovelha, to da Calheta. Para 1688, no distrito da Calheta,
em 1794, eram 1502 os moradores, sendo 125 o serviço de defesa das ordenanças apresentava­
menores. Em 1794, na Ponta do Pargo, temos ‑se com 13 capitães, 12 alferes, 24 sargentos e
1233 e 95 menores. Para os Prazeres, eram 523, 1531 soldados. Note­‑se que depois, em 1818, o
com 35 menores. Paulo Dias de Almeida, na distrito de milícias da Calheta tinha 10 compa-
descrição que faz da Ilha em 1821, refere que nhias com 800 homens.
esta área era considerada o sétimo distrito mili- Vários documentos expressam a situação das
tar e tinha 12.658 habitantes e 2858 fogos. localidades do concelho em termos económi-
Em 1827, a Calheta encontrava-se dividida cos e populacionais, permitindo entender a sua
em dois julgados: da Calheta (Madalena do evolução. Sabemos, e.g., que a aluvião de 1803
Mar e Arco da Calheta) e Estreito da Calheta deixou a vila da Calheta muito arruinada, tendo
(Estreito, Paul do Mar, Prazeres e Fajã da Ove- sido arrasadas 30 casas, além do forte. No refe-
lha), com 11.779 habitantes. Para o período de rido documento de 1817, Paulo Dias de Almei-
1835 a 1850, nota­‑se um movimento crescente da faz­‑nos uma descrição do arquipélago e de
708 ¬ C alheta

alguns aspetos em termos militares. A partir A vila anicha­‑se na margem da ribeira, atuan-
daqui, sabemos do estado da fortificação, bem do como porta de entrada e de saída para a
como do estado dos caminhos e da dificulda- Ilha e para o mundo. Aí estava assente o poder
de de comunicação entre as freguesias. Rela- municipal, como o posto alfandegário de con-
tivamente ao Arco da Calheta, apenas assinala trolo do escoamento do açúcar, daí a concen-
como favorável o bom vinho, que se produzia tração dos engenhos nas margens das ribeiras.
em quantidade. Quanto ao Jardim e Paul do Em 1599, o madeirense Manuel Constantino
Mar, diz que são evidentes as dificuldades de refere que “é a Calheta a maior das vilas [de-
circulação e de acercar por mar. Já relativamen- verá querer dizer todo o município] da Ma-
te à Ponta do Pargo, destaca as suas riquezas deira, quer pelo grande número de cidadãos e
agrícolas. de edifícios, quer pelos núcleos de população”
(CONSTANTINO, 1930, 17).
A Calheta foi também terra de muita produ-
Economia ção de cereal, situação que perdura no tempo,
O lugar da Calheta dominou uma importan- pois, na déc. de 40 do séc. xix, a produção ron-
te área de canaviais, afirmando­‑se, desde o dava 1186 moios de trigo e 211 dos outros ce-
séc. xv, como o embarcadouro para o escoa- reais. Todavia, no Arco da Calheta, encontra-
mento do açúcar. Daqui resultou a sua valoriza- mos terras mais produtivas, nomeadamente a
ção em detrimento do alto – a Estrela –, onde Casa de João França, com 120 arrobas de açú-
João Gonçalves Zarco, o primeiro donatário, car, 3 moios de trigo e 3 pipas de vinho.
havia feito doações de terras importantes aos Por seu turno, a atividade em torno da pro-
filhos, João Gonçalves da Câmara e D. Bea- dução de gado assumia uma importância fun-
triz. Em 1502, o lugar foi elevado à categoria damental no concelho, dominado por uma im-
de vila, integrando, no seu perímetro, os mais portante área de pastos. Assinale­‑se o planalto
importantes canaviais, pelo que, em termos ad- do Paul da Serra, partilhado com os municí-
ministrativos, se cria uma comarca ligada às co- pios de São Vicente, Ponta do Sol e Calheta,
branças fiscais. cujo usufruto deu azo a motins nas três vilas,
em 1755. Ainda em 1884, os proprietários da
Calheta referem que o trigo que os do Seixal
semeavam no Fanal lhes pertencia.
As ovelhas adquirem, neste contexto, impor-
tância, graças à existência de pastos e à utili-
zação da lã. Em 1858, o concelho tem lojas de
distribuição e venda de tecidos, nomeadamen-
te Mr. W. Hayward, na Ponta do Pargo, e Mes-
srs Smith e W. Hayward, nos Prazeres. A par
disso, destaca­‑se a produção de panos no con-
celho, com matéria­‑prima local. Para além da
cultura do linho, que era importante, existe
em 1863 o registo de 1958 ovelhas que davam
a lã. O tecer do linho era muito importante no
abastecimento de tecidos, como provam os di-
versos teares existentes em 1863, sendo 78 de
linho no Estreito da Calheta, 36 na Calheta, 4
no Arco, 6 no Jardim do Mar, 19 nos Prazeres,
18 na Fajã da Ovelha e 4 no Paul do Mar.
Fig. 8 – Ovelhas da Quinta Pedagógica dos Prazeres
A comarca açucareira e município da Calhe-
(arquivo particular, 2018). ta foi, no decurso dos sécs. xv e xvi, a que teve
C alheta ¬ 709

Fig. 9 – Engenhos da Calheta, reformulação de c. 1940 e reabilitação de 2000 (fotografia de Bernardes Franco, 2010).

maior produção de açúcar, tendo sido também terras de canas, e grandes aposentos de casas e
terra de gente importante e com grandes liga- igreja e capelão. [...] Acima da Vila, pela terra
ções a João Gonçalves Zarco, capitão do Fun- dentro um quarto de légua, está o engenho
chal, bem como a gente próxima do mundo dos Cabrais e, perto dele, está outro do Dou-
açucareiro, como Leonel Rodrigues, mestre de tor da Calheta, físico, chamado mestre Gabriel.
engenho na ilha de La Palma e natural da Ma- E logo perto de uma légua da Calheta está a
deira, onde havia adquirido este estatuto em fazenda de João Rodrigues Castelhano, que
12 anos de trabalho na profissão. Em 1494, a se chamou assim por falar castelhano, sendo
maior safra situava­‑se nas partes do fundo, en- ele genovês de nação, que é grossa fazenda de
globando as comarcas da Ribeira Brava, Ponta canas com seu engenho e capelão [...]. Da fa-
de Sol e Calheta, com 64 % da produção, en- zenda deste João Rodrigues Castelhano a uma
quanto o Funchal e Câmara de Lobos tinham légua está outro engenho de Diogo de França,
apenas 16 %. Uma análise em separado das di- que teve doze filhos, nobres e ricos, boa fazen-
versas comarcas mostra que a do Funchal do- da de canas e vinhas, e águas e frutas” (FRU-
mina a produção, com 33 %, seguindo­‑se a Ca- TUOSO, 1979, 126).
lheta, com 27 %. Ao longo do tempo, persistiu, neste lugar, o
Terra de canaviais é, também, sinónimo de ofício de quintador do açúcar – que, no Jardim
terra de engenhos, que aparecem nas proximi- e no Paul do Mar, pertenceu a Mr. Smith –, a pro-
dades das ribeiras, fundamentalmente junto à var a persistência da cultura. A cultura nunca
orla costeira. Na déc. de 80 do séc. xvi, a juris- desapareceu deste concelho, de tal modo que,
dição da Calheta tinha, segundo Gaspar Fru- a partir de meados do séc. xix, as planícies que
tuoso, 10 engenhos de açúcar. Destes, o autor nos sécs. xv e xvi haviam sido locais onde me-
faz referência detalhada aos seguintes: “[A] dravam os canaviais voltaram a recebê­‑los com
Um quarto de légua desta Lombada de Gonça- igual pujança. Com o retorno da cultura, na se-
lo Fernandes está outra, que se chama Arco, ou gunda metade do séc. xix, a Calheta voltou a
Lombada do Arco, que foi de João Fernandes, ser terra de canaviais. Assim, se em 1863 são re-
irmão de Gonçalo Fernandes, fazenda tam- ferenciados apenas dois engenhos, entre 1902 e
bém muito grossa, que tem engenho, e muitas 1909 eram já sete, subindo para oito em 1912,
710 ¬ C alheta

sendo de destacar que estes produziam igual- depois, com a Firma Lopes & Duarte. Deste en-
mente aguardente. Sabemos, assim, que a cana­ genho, apenas restou a parte da fornalha e da
‑de­‑açúcar se divulgou em toda a vertente sul chaminé, integradas no jardim público da vila.
e que a Calheta foi uma das mais importantes O Hotel Saccharum ergueu­‑se precisamente
áreas de produção nesse tempo, tendo preser- nas ruínas de um dos engenhos que surgiram
vado um importante nicho da sobrevivência da no séc. xix para sustentar uma nova fase da
cultura sacarina na Ilha. agricultura açucareira madeirense. Situa­‑se no
O litoral da vila ganha importância com os litoral, numa das margens da ribeira da Serra
engenhos de água de Vicente Lopes (1894), de Água, tendo sido mandado construir em
que, em 1901, dão lugar a outros, a vapor, 1857 por Diogo de Ornelas Frazão, funcionan-
como o da firma Lopes & Duarte e, em 1908, do como fábrica de destilação de aguardente,
o de António Rodrigues Brás, de que resta- com um moinho de três cilindros e dois alam-
ram vestígios nos jardins da vila. Este engenho, biques. As despesas com a construção do edifí-
tendo surgido como fábrica de destilação de cio foram de 8000$000 réis, e a referida maqui-
aguardente, firmou sociedade, algum tempo naria do engenho de 6300$000.
O engenho que se manteve ativo na vila da
Calheta é herdeiro daquele a vapor que surgiu
em 1901. Nesse ano, o engenho já existente foi
alvo de uma profunda remodelação, com a ins-
talação de uma máquina a vapor para espre-
mer a cana, que veio substituir a que existia,
movida a água.
Relativamente à Calheta, deveremos ainda
salientar os engenhos de Luís Agostinho Hen-
riques, no Estreito da Calheta (1895), e de
Francisco João Vasconcelos, no Jardim do Mar
(1900). Ainda em 1901, surgiram novos enge-
nhos de aguardente no Estreito da Calheta,
um de D. Juliana Lopes Jardim e outro de Ti-
búrcio Justino Henriques & Ca. Finalmente,
em 1905, destaca­‑se o engenho de José Gomes
Henriques, no Paul do Mar. De acordo com o
decreto de 1954, procedeu­‑se à concentração
das diversas unidades industriais fora do Fun-
chal, em três empresas distintas: Sociedade de
Engenhos da Calheta Ltda., Companhia de En-
genhos de Machico Ltda. e Companhia de En-
genhos do Norte.

Património
O património resultante do açúcar não se con-
fina aos engenhos. Outras manifestações patri-
moniais perduraram no tempo, a começar pela
igreja matriz, construída no séc. xv. Entra­‑se por
um portal em ogiva e, perante nós, depara­‑se a
Fig. 10 – Portal da igreja matriz da Calheta, c. 1502
única nave coberta de um teto de alfarge, que
e reposição de 1609 (arquivo particular, 2000). atinge inegável beleza na capela­‑mor, dominada
C alheta ¬ 711

pelo sacrário em ébano, com incrustações de


prata. A cruz processional do séc. xvi foi oferta
do Rei D. Manuel. A pintura está representada
através de dois painéis laterais de um tríptico,
invocativos da Virgem da Anunciação e do Anjo,
que passaram a estar disponíveis no Museu de
Arte Sacra do Funchal.
Na vila, surgiu, no princípio de 1670, o orató-
rio de S. Sebastião, fundado por Pedro de Bet-
tencourt de Atouguia, que havia herdado o mor-
gado da casa de seu pai, a 13 de abril de 1654.
Em 1751, este oratório apresentava­‑se com sete
frades e três irmãos leigos.
No Estreito da Calheta, na primitiva povoação,
surgiram algumas capelas vinculadas, sendo de
destacar a dos Reis Magos, construída em cerca
de 1529 por Francisco Homem de Sousa. Nela,
causa deslumbramento o retábulo da escola fla-
menga, em madeira de carvalho policromada
e dourada, representando a Adoração dos Reis
Magos.
No Loreto, destaca­‑se a célebre capela de N.ª
Sr.ª do Loreto, local de romaria e grande devo- Fig. 11 – Imagens e Memória do Concelho da Calheta,
ção. A capela, que esteve integrada num solar, exposição na Casa das Mudas, Museu de Arte Contemporânea,
2019 (Comissão dos 600 Anos e Arquivo Regional
apresenta um alpendre sustentado por colunas e Biblioteca Pública da Madeira).
de mármore branco de origem sevilhana. No in-
terior, o teto é de alfarge.
Outros naturais tiveram lugares de destaque,
como Aleixo de Abreu do Arco, que foi médi-
Personalidades co da câmara de Filipe III de Portugal, Duar-
Como já referido, a Calheta foi terra de gente te Pestana de Brito, que foi armador­‑mor no
importante que teve uma participação muito tempo de D. João II e D. Manuel, e o P.e Crisós-
ativa no processo do descobrimento no Atlânti- tomo de Mondragão, filho de João Rodrigues
co, na defesa das praças africanas de Marrocos, Mondragão da Biscaia, que se afirmou no Vati-
na conquista do Índico e descoberta do Pacífi- cano no tempo do Papa Paulo III.
co. Estas atividades iam ao encontro do espíri- Ainda na Calheta, outros se afirmaram pela
to da época e eram uma forma de granjear o sua atividade intelectual: António da Gama Pe-
reconhecimento social e de conseguir a grati- reira (1520­‑1595), doutor nas universidades
dão da Coroa, através de novas doações ou tí- de Bolonha e Salamanca, foi desembargador
tulos. Por força disto, organizava­‑se viagens de do Paço; António de Veloso Lira (1616­‑1691)
exploração e descobrimento de novas terras, formou­‑se em Teologia na Univ. de Salamanca,
sendo solicitadas junto da Coroa as terras que sendo bispo no Funchal e deixando vários es-
se descobrissem. Arriscava­‑se a vida e a fortuna critos, de que salientamos Espelho Lusitano; An-
na defesa das praças africanas, assim como na tónio João de França Betencourt (1827­‑1882)
conquista de terras no Oriente. Foi disso exem- foi professor de Teologia na Univ. de Coimbra,
plo António de Abreu, filho de João Fernan- tendo publicado Verdade Philosophica do Mystério
des de Andrade do Arco, que esteve nas cam- da Encarnação. Outro homem das letras apare-
panhas de Afonso de Albuquerque na Índia. ceu na Ponta do Pargo: Manuel da Costa Dias
712 ¬ C alheta , condes da

(1883­‑1930), major de administração militar


que foi deputado e lente da Escola da Guerra.
Publicou Campanha contra Soult. As Subsistências
no Exército Aliado Anglo­‑Luso (1909) e Recorda-
ções da Guerra (1930). No Estreito, destacam­
‑se João de França e Andrade e Manuel Gomes
Uzel, que, viúvos, decidiram professar, chegan-
do este último a cónego da Sé do Funchal.
Bibliog.: ARAGÃO, António, A Madeira Vista por Estrangeiros, Funchal,
DRAC, 1981; Arquivo Histórico da Madeira. Índice dos Registos de Casamentos
do Concelho da Calheta (1540­‑1893), Funchal, DRAC, 2002; Arquivo Histórico
da Madeira. Série Índices dos Registos Paroquiais, vols. 1­‑16, Funchal, Arquivo
Regional da Madeira, 2000­‑2005; BRAZÃO, Maria Elisa de França, Namoro,
Noivado e Casamento, Lombo do Atouguia, Calheta, Câmara Municipal da
Calheta, 1991; Id., “O município da Calheta no século xix (1800­‑1834)”, in
O Município no Mundo Português, Funchal, CEHA, 1998, pp. 349­‑374; CARITA,
Rui, Paulo Dias de Almeida. Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros
e a Sua Descrição da Ilha da Madeira de 1817/1827, Funchal, DRAC, 1982;
CASTRO, António Manuel de, e BRAZÃO, Maria Elisa de França, Histórias com
História, Calheta, Câmara Municipal da Calheta/DRAC, 1992; CONSTANTINO,
Manuel, História da Ilha da Madeira, Funchal, Tip. do Diário da Madeira, 1930;
COSTA, Mário Jorge Martinho da et al., “Alguns aspectos de demografia
histórica através da exploração comparativa dos livros de registos paroquiais
do Estreito da Calheta. 1894­‑1902”, Islenha, n.º 49, jul.­‑dez. 2011, pp. 87­‑100;
FERREIRA, Bernardo Gomes, “Jardins do Arco da Calheta (família de John dos
Passos, escritor americano, do nosso século, de grande nomeada)”, Das Artes
e da História da Madeira, n.º 40, 1969, p. 3; FRANÇA, João, António e Isabel do
Fig. 1 – Armas de D. Manuel de Noronha, 1557, claustro da Sé
Arco da Calheta. Romance, Funchal, DRAC, 1985; FRUTUOSO, Gaspar, Livro
de Lamego (arquivo particular).
Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto Açoriano de Cultura,
1979; GOMES, José L. de Brito, “Reçençeamento dos foguos almas fregesias,
e mais igrejas que tem a ilha da Madeira, tirado pellos rois das confições, assi
em geeral como em particular”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. ii, n.º 1, do Almotacé­‑Mor. Com o seu apoio, muito
1932, pp. 28­‑35; GONÇALVES, Ernesto Marçal Martins, “João Afonso do
Estreito”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 111, n.os 17­‑18, 1954, pp. 4
provavelmente, o sobrinho Manuel de Noro-
e 44; MENDES, Duarte, Matriz Toponímica da Fajã da Ovelha, Calheta, ed. do nha (c. 1491­‑1569) partiu para Roma, onde
Autor, 2010; NASCIMENTO, João Cabral do, Os Pedreiros Livres na Inquisição
e Corographia Insulana, s.l., s.n., 1949; NORONHA, Henrique Henriques de,
terá sido ordenado, sendo depois portador
Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do capelo de cardeal para o infante D. Afon-
do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1996; RIBEIRO, João Adriano,
so (1509­‑1540), enviado pelo Papa Leão X, em
“O Calhau do Pesqueiro na Ponta do Pargo”, Margem 2, n.º 4, set. 1996,
pp. 31­‑37; Id., Calheta. Subsídios para a História da Freguesia, s.l., Calcamar, 1516, de acordo com os cronistas insulares (na
2006; SOUSA, J. J. Abreu de, “D. Isabel de Abreu e António Gonçalves da verdade, segundo parece, tal terá acontecido
Câmara”, Islenha, n.º 21, jul.­‑dez. 1997, pp. 59­‑62; TRINDADE, Cristina,
A Moral e o Pecado Público no Arquipélago da Madeira na Segunda Metade do somente em 1517). D. Manuel de Noronha foi
Século XVIII, Funchal, CEHA, 1999. bispo de Lamego em 1547, intitulando­‑se no
† Alberto Vieira final da vida “camareiro secreto” de Leão X e
mandando esculpir a sua lápide sepulcral com
Calheta, 6.º conde da as armas de arcebispo.
Os filhos de João Gonçalves da Câmara (II)
Ö Sousa, Luís da Câmara de Vasconcelos e
(1489­‑1536), quarto capitão do Funchal,
devem ter usufruído do apoio do tio bispo
de Lamego, entrando para a Companhia de
Calheta, condes da Jesus. O P.e Luís Gonçalves da Câmara (1518­
A família Câmara gozou de um certo prestígio ‑1575) tornar­‑se­‑ia uma figura notável do seu
na corte de Lisboa, nos meados do séc. xvi. tempo e, em Roma, foi escolhido pelo geral e
Tinha­‑se ali fixado o terceiro filho do segun- futuro santo Inácio de Loyola para confidente,
do capitão do Funchal, Pedro Gonçalves da Câ- tendo­‑lhe ditado as suas memórias, assunto há
mara, que casara com D. Joana de Eça, dama muito solicitado pelos padres da Companhia,
da Rainha D. Catarina, dando origem à Casa mas sempre adiado por aquele. Regressado
C alheta , condes da ¬ 713

a Portugal, seria indicado para precetor do do Funchal em relação à futura casa dos con-
jovem D. Sebastião, pelo geral Diogo Laines, des da Calheta. O conde Simão Gonçalves da
à Rainha D. Catarina, em carta de 4 de junho Câmara passará a intitular­‑se como “do Con-
de 1559. Por sua indicação, o irmão mais novo, selho de El­‑Rei Nosso Senhor, Capitão e Go-
P.e Martim Gonçalves Câmara (c. 1539­‑1613), vernador da Justiça na ilha da Madeira e na ju-
que fora o primeiro reitor da Univ. de Coim- risdição do Funchal, vedor da sua fazenda em
bra, seria depois escrivão de puridade do novo toda a ilha e na do Porto Santo, Senhor das
rei, função semelhante à de chefe de gabinete lhas Desertas, etc.” (NORONHA, 1948, 113),
de governo na atualidade. vindo os seus sucessores a incluir também o
O quinto capitão do Funchal, Simão Gon- título de alcaide­‑mor da fortaleza do Funchal,
çalves da Câmara (II) (1512­‑1580), casou que em 1576 estaria ainda em reformulação.
com D. Isabel de Mendonça (c. 1512­‑1561), O 1.º conde da Calheta só pontualmente
dama da corte da Rainha D. Catarina e que voltou à Madeira, fazendo­‑o, em princípio,
tinha vindo com esta de Castela, num ca- por causa das alterações levadas a cabo pelos
samento de corte, a 4 de outubro de 1538, padres da Companhia na aquisição dos ter-
tendo sido acompanhado pelo infante renos para o futuro colégio, vindo a falecer
D. Luís e pelo arcebispo de Lisboa, demons- no Funchal. Os seus descendentes, como no-
trando a importância da família nessa cidade. bres da corte, não voltariam à Madeira. Al-
O Cap. Simão (II) fixou­‑se definitivamente guns anos depois, em 1607, a situação conhe-
na corte em 1555, entregando o governo da ceu uma tentativa de alteração, provavelmente
capitania ao “meio­‑tio” Francisco Gonçalves
da Câmara (c. 1510­‑c. 1586). Com o saque
de corsários franceses ao Funchal, em 1566,
que assustou as cortes de Lisboa e de Madrid,
levando à intervenção de Filipe II junto do
seu embaixador em França, para que os cul-
pados fossem presos, a Madeira usufruiu de
uma particular atenção por parte da Coroa,
recebendo especialistas militares, regimentos
e verbas para o levar a cabo.
O futuro quinto capitão do Funchal tinha
já participado em várias expedições ao Norte
de África, sendo mesmo aclamado capitão
de Santa Cruz de Cabo de Guer, hoje Agadir,
em maio de 1533. Tendo acompanhado o Rei
D. Sebastião na sua primeira jornada a Áfri-
ca, em 1575, seria agraciado com o título de
conde da Calheta, algo por que os seus irmãos
jesuítas se teriam já batido junto do Rei. Aliás,
este, ao regressar de Marrocos e perante o fale-
cimento do seu precetor, o P.e Luís Gonçalves
da Câmara, chorou­‑o sentidamente, como não
havia feito pela avó D. Catarina.
A atribuição do título de conde da Calhe-
ta, a 20 de agosto de 1576, e não o de conde
do Funchal, indica já uma centralização régia
Fig. 2 – Armas dos condes da Calheta e marqueses
por parte da Coroa portuguesa e, inclusiva- de Castelo Melhor, pátio do palácio da Rosa, Pereira Cão,
mente, a independência da câmara da cidade 1904-1906 (arquivo particular).
714 ¬ C alheta , condes da

procurando­‑se explorar algum vazio de poder, casar e teve uma filha, D. Mariana de Lencastre
tendo a Câmara do Funchal, face à conjuntu- Vasconcelos e Câmara (c. 1610­‑1698). Esta, por
ra económica então vivida, pedido o regresso à sua vez, casou com o primo João Rodrigues de
Ilha do Cap. Simão Gonçalves da Câmara (III) Vasconcelos e Sousa (1593­‑1658), 2.º conde de
(1565­‑c. 1630), 3.º conde da Calheta. O Con- Castelo Melhor, e usou o título de condessa da
selho de Portugal ainda se pronunciou favora- Calheta e de Castelo Melhor, e, depois de viúva,
velmente, mas advertiu que o conde não deve- como camareira­‑mor da Rainha D. Sofia, usou
ria tornar ao Funchal enquanto aí estivessem ainda o título de marquesa de Castelo Melhor,
as tropas castelhanas do presídio de S. Louren- tendo sido uma mulher de grande prestígio,
ço, opinião que foi secundada pelo vice­‑rei de que não recusou assumir pessoalmente a defe-
Portugal, D. Pedro de Castilho, bispo de Lei- sa da praça de Monção durante as campanhas
ria, que antes fora bispo de Angra. O assunto da Aclamação.
voltaria a ser abordado em 1630, mas os con- Ao longo dos sécs. xvii e xviii, a condessa e
des da Calheta não voltariam à Madeira e, pou- marquesa de Castelo Melhor manteve os pro-
cas décadas depois, o título passava à Casa dos ventos e as prorrogativas que herdara na capi-
condes e depois marqueses de Castelo Melhor. tania do Funchal, pelo que teve de se bater em
O 1.º conde da Calheta faleceu no Funchal, tribunal com a sua irmã, D. Inês de Noronha,
a 4 de março de 1580, e o filho faleceu em Al- marquesa de Nisa por casamento com D. Vasco
meirim, em julho do mesmo ano, deixando Luís da Gama, e depois com outros primos.
um herdeiro de poucos anos de idade, Simão A condessa nomeava o ouvidor, tinha o exclu-
Gonçalves da Câmara (IV) (1565­‑c. 1630), sivo da venda de sal, o padroado do Conven-
3.º conde da Calheta, que, segundo consta, to de S.ta Clara e da mercearia de S.ta Catarina,
nunca usou o título. Este veio a contrair ma- etc., proveitos que passaram aos seus descen-
trimónio com D. Maria de Vasconcelos e Me- dentes até à extinção das capitanias, em 1766.
neses, filha do 1.º conde de Castelo Melhor, e Em meados do séc. xvii, os condes da Calheta
o seu herdeiro, João Gonçalves da Câmara (V) tinham levantado um importante palácio na en-
(1590­‑1656), usou o título de 4.º conde da Ca- costa de Belém, em Lisboa, com uma impressio-
lheta. Depois de a sua primeira mulher ter fale- nante arcaria, que se manteve nos séculos pos-
cido de parto, o 4.º conde da Calheta voltou a teriores, debruçada sobre um espelho de água.

Fig. 3 – Antigo palácio dos condes da Calheta, c. 1650, onde posteriormente se instalaram serviços do Instituto de Investigação Científica
Tropical (arquivo particular).
C alif ó rnia ¬ 715

Mais tarde, este palácio veio a ser sucessivamen- Europa e chegou também à Madeira. E parece
te ocupado por serviços do Estado: nele decor- que todos seguiram, de forma cega, o apelo,
reram os interrogatórios do processo Távora, como o testemunha um poeta madeirense:
em 1758, e foram depois instalados os arqui- “Sim, apronta o teu baú,/E, sem perda de um
vos militares; desde 1906, os serviços do Jardim momento,/Lá da bela Califórnia/Vai primeiro
Museu Agrícola Tropical, sucessor do Museu ao Sacramento” (TEIXEIRA, 1848, II, 202).
Agrícola Colonial, e, posteriormente, o Centro Um dos primeiros madeirenses a serem atraí-
de Documentação e Informação do Instituto de dos por esta corrida ao ouro é John Pereira,
Investigação Científica Tropical. que percorreu mais de 25.000 km desde Nova
Orleães até Jamestown, onde criou um impé-
Bibliog.: manuscrita: AGS, Secretarias Provinciales, liv. 1476; ANTT, Corpo
Cronológico, pt. i, 103­‑94; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. ii,
rio à custa das primeiras pepitas de ouro que
Funchal, Secretaria Regional de Educação, 1991; Id., História da Madeira, conseguiu, em 1849. Nesse mesmo ano, a no-
2.ª ed. rev. e atualizada, vol. i, Funchal, Secretaria Regional da Educação,
tícia do ouro californiano chegava à Madeira
1999; CENIVAL, Pierre de (trad. e anot.), Chronique de Santa­‑Cruz du Cap de
Gué (Agadir), Paris, Paul Geuthner, 1934; FRUTUOSO, Gaspar, Saudades da e os jornais madeirenses faziam eco da desco-
Terra, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1968; NORONHA,
berta, motivando a partida de muitos madei-
Henrique Henriques, Nobiliário Genealógico das Famílias Que Passarão a Viver
a Esta Ilha da Madeira depois do Seu Descobrimento, Que Foi no Ano de 1420, renses para tão longínquo destino. Todavia,
São Paulo, Revista Genealógica Brasileira, 1948; SILVA, Fernando Augusto a maior valorização deste espaço aconteceu a
da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
DRAC, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, “A capitoa­‑donatária”, Islenha, n.º 3, jul.­‑dez. partir da déc. de 30 do séc. xx, com emigran-
1988, pp. 74­‑90; Id., Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, tes da costa leste, nomeadamente de New Be-
Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 2000.
dford, apanhados pelos efeitos nefastos da de-
Rui Carita pressão norte­‑americana. Foi o que sucedeu,
e.g., a Pedro Prudêncio da Costa. Já a partir do
Havai, uma diversidade de madeirenses tentou
Califórnia
a sorte na costa californiana, como foi o caso
É certo que foi um português, João Rodrigues de Manuel e Francisco dos Ramos, da Serra de
Cabrilho, a primeira pessoa a desembarcar na Água, que haviam saído em 1885 com destino
baía de San Diego, em 1542, ao serviço dos ao Havai.
reis de Espanha. Mais tarde, já em 1769, surgiu
o primeiro assentamento, mas foi a partir de
1848, com a descoberta do ouro, que propria-
mente se iniciou o povoamento do território e
que a Califórnia começou a ganhar importância
como destino de emigração europeia. A corrida
ao ouro naquela região aconteceu a partir de 24
de janeiro de 1848, quando este foi encontrado,
pela primeira vez, em Sutter’s Mill.
A presença de madeirenses nesta região
não resulta de uma ligação direta à Madeira,
o que só sucedeu muito mais tarde. As primei-
ras abordagens acontecem de forma indireta,
através doutras regiões norte­‑americanas da
costa leste ou do Havai. Desta forma, no pri-
meiro momento, serão madeirenses já assentes
no continente americano que fazem a travessia
de costa a costa, e só depois chegam aqueles
que são atraídos pelos efeitos da notícia e que
levam à loucura da busca pelo ouro california- Fig. 1 – Homenagem ao Pescador do Paul do Mar, ateliê de
no. Esta notícia espalhou­‑se rapidamente na António Mendanha, 2004 (fotografia de José Lemos Silva, 2010).
716 ¬ C alif ó rnia

A pesca e a indústria atraíram muitos destes como Estado da Califórnia, Panamá e África
madeirenses a New Bedford ainda no princí- do Sul, onde enriquecem. Os velhos e os novos
pio do séc. xix, e daí foram partindo para ou- é que se dedicam às campanhas do atum” (PE-
tros destinos considerados mais promissores. REIRA, 1989, II, 125).
De entre esta mobilidade interna dos madei- No séc. xix, surgem, na imprensa madeiren-
renses nos Estados Unidos, podemos assinalar se, referências às diligências efetuadas no sen-
uma diversidade de situações, de que também tido de providenciar o transporte de comboio
podemos dar alguns exemplos. Em 1890, José para aquele destino. Assim, no Diário de Notí-
Abreu Silva parte de Nova Iorque rumo à Ca- cias de 13 de janeiro de 1886, encontramos um
lifórnia. Já António Vieira de Freitas Jr. morre anúncio de viagem de embarcações de Cardiff
aos 81 anos, a 13 de maio de 1972, na Califór- para São Francisco, na Califórnia, mas, entre
nia, depois de passar muito tempo em New Be- 1903 e 1916, encontramos anúncios de barcos
dford, onde havia chegado em 1914. para a costa leste americana, possibilitando­‑se
Neste contexto, é ainda de referir os pescado- o destino californiano por via terrestre. Toda-
res do Paul do Mar, que formaram um grupo via, nestes primeiros anos do séc. xx, é reduzi-
significativo de emigrantes nos Estados Uni- do o número de madeirenses que embarcam
dos. Muitos foram atraídos pela atividade do nesta aventura. De acordo com o registo de
mar, primeiro na costa leste e depois na costa passaportes para o período de 1875 a 1915, sa-
oeste. “São de lá os emigrantes, pescadores de bemos que só entre 1902 e 1913 foram feitos
grande nomeada, que se fixam na América do pedidos para viagens com destino à Califórnia.
Norte, sobretudo na Califórnia, e que formam Estão registados 13 casos, sendo 4 do Funchal,
uma comunidade muito abastada” (COUTI- 3 dos Canhas e 1 de cada uma das seguintes
NHO, 1962, 214). Eduardo Pereira atribui localidades fora do Funchal: Arco da Calheta,
mesmo o declínio do núcleo piscatório do Paul Estreito da Calheta, Machico, Ribeira Brava,
do Mar à emigração dos seus pescadores: “[a] Santa Cruz, Faial e Prazeres.
população deste já reduzido núcleo piscatório Por outro lado, a atestar a importância que
decresce devido à emigração dos seus mais vá- os madeirenses começam a ter nesta área,
lidos, corajosos e ativos pauleiros que deban- temos o enraizar de tradições de origem ma-
dam fascinadoramente para terras estranhas deirense, que se assume como fator de coesão
social e da sua valorização como comunidade.
Em 1913, um grupo de madeirenses radicados
em Oakland, na Califórnia, funda a Associação
Madeirense do Estado da Califórnia. Além do
mais, em 1918 e 1926, estes mesmos madeiren-
ses criam uma comissão para reunir dinheiro
para distribuir aos pobres na ilha da Madeira.
Em 1918, reuniram 420 escudos, que enviaram
para o Funchal.
Parece que esta comunidade madeirense de
Oakland adquiriu desusada importância nos
primeiros anos do séc. xx. Não há muita in-
formação sobre a forma como esta emigração
aconteceu, mas a imprensa madeirense atesta,
de forma clara, a pujança desta comunidade.
E parece existir uma ligação muito direta ao
Funchal, pois vimos muitas vezes, na impren-
Fig. 2 – Vitrina da Madeira no The Portuguese Historical Museum
sa funchalense, notícias sobre ela. Um exem-
de São José da Califórnia (arquivo particular, 2015). plo disso é o caso de Maria de Jesus Rebelo,
C alif ó rnia ¬ 717

irmã de Joaquim Franco, de Machico, que em


1916 apresenta justificação junto ao Tribunal
da Ponta do Sol para a herança dos bens do
irmão, que falecera em Oakland. Em 1918, a
imprensa refere aspetos da vida social desta co-
munidade, como foi o caso dos casamentos de
Jaime Menezes, do Porto Santo, com Bela Dru-
mond e de Nicolau Tolentino, de São Gonçalo,
com Rose Correia, descendente de madeiren-
ses de Honolulu.
Também o monumento à paz que se ergueu
em 1927 no Terreiro da Luta, por iniciativa do
P.e José Marques Jardim, teve um valioso contri-
buto financeiro destes emigrantes na Califór-
nia. E, em 1946, foi nesta comunidade que sur- Fig. 3 – The Portuguese Historical Museum, 1997, São José da
Califórnia (arquivo particular, 2018).
giu a iniciativa de reunir o dinheiro necessário
para a compra de uma ambulância para o ser-
Os madeirenses de Oakland ficaram conheci-
viço da Cruz Vermelha no Funchal.
dos pela jardinagem e floricultura, transpondo
A comunidade madeirense na Califórnia
para esta região um pouco da realidade dos jar-
apresenta, em diversos momentos, um gran-
dins floridos da Ilha. Por outro lado, no campo
de dinamismo, não só por esta constante lem-
da botânica, temos indicações que conduzem
brança e apoio aos que ficaram na Ilha, como
a uma aproximação entre a Madeira e a re-
pela ação de madeirenses de nome destacado
gião geográfica da Califórnia. Assim, registam­
na arte do espetáculo, como foram os casos de
‑se algumas espécies botânicas daí oriundas:
Max e de Nuno Lomelino Silva. O primeiro es-
palmeira­‑de­‑leque­‑da­‑califórnia (Washingtonia
teve em Oakland em 1957 e 1958, enquanto do
filifera), papoila­‑da­‑califórnia (Eschscholzia ca-
segundo temos notícia de um espetáculo em
lifornica) e cipreste­‑da­‑califórnia, ou cipreste­
1957. A comunidade dispunha também, por
‑de­‑monterey (Cupressus macrocarpa). Contudo,
iniciativa do madeirense Armando Santos, de
não sabemos se a sua rota de chegada à Madei-
um posto emissor de rádio.
ra aconteceu de forma direta ou se terão passa-
O facto de, a partir de 1919, o P.e António
do por outros destinos antes de serem planta-
de Sousa, também ele madeirense, assumir a
das na Ilha.
coordenação da paróquia de Eask Oakland
contribuiu ainda mais para essa coesão social
da comunidade. Por fim, não podemos esque-
cer o facto de João da Silva Pita, natural de São
Gonçalo, ter sido eleito, em 1918, deputado às
Cortes de Washington.
A tradição refere a importância das Festas de
S.to Amaro para os emigrantes madeirenses na
cidade de San Diego. Estas festividades, ligadas
à evocação de S.to Amaro, relacionam­‑se com a
freguesia de Santa Cruz e foram iniciadas em
1943 por Manuel da Mata Fernandes, natural
da referida freguesia, e Manuel Gonçalves, do
Paul do Mar. Estes são dois locais que muito
terão contribuído para a emigração madeiren-
se para a Califórnia nesta primeira fase. Fig. 4 – R. Cidade de Oakland, Funchal (arquivo particular, 2020).
718 ¬ C al , indústria da

O The Portuguese Historical Museum de São e os Estados Unidos da América (1776­‑1911), Mem Martins, Europa­‑América,
1991; MENDONÇA, Duarte, Da Madeira a New Bedford. Um Capítulo
José, na Califórnia, é um repositório e testemu- Ignorado da Emigração Portuguesa nos Estados Unidos da América, Funchal,
nho desta diáspora portuguesa para a costa ca- DRAC, 2007; PEREIRA, Eduardo C. N., Ilhas de Zargo, 2 vols., Funchal, Câmara
Municipal do Funchal, 1989; SILBERT, Albert, Uma Encruzilhada do Atlântico.
liforniana e faz referência a muitos insulares Madeira (1640­‑1820), Funchal, CEHA, 1997; SILVA, Fernando Augusto da, e
e madeirenses que emigraram para os Estados MENESES, Carlos Augusto de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC,
1998; SOARES, João de Nóbrega, Um Ano na América, Funchal, Typ. da
Unidos da América. Gazeta da Madeira, 1868; TEIXEIRA, J. A. Monteiro, Obras Poéticas, Funchal,
Além disso, a primeira geminação da cidade Tip. de L. Vianna Junior, 1848­‑1849; VASCONCELOS, Joaquim do Espírito
Santo Mota de, Epopeia do Emigrante Insular. Subsídios para a Sua História,
do Funchal foi com a de Oakland, no início na
Movimento para a Sua Consagração, Lisboa, ed. do Autor, 1959; VIEIRA,
déc. de 1970. Foi na sequência desse protocolo Alberto, “A emigração madeirense na segunda metade do século xix”, in
PEREIRA, Miriam Halpern et al. (coords.), Emigração/Imigração em Portugal,
que surgiram, no Funchal, as seguintes desig-
Lisboa, Fragmentos, 1993; Id., “O vinho Madeira. Valorização e importância
nações toponímicas: Trav. de Oakland, R. Ci- económico social através dos testemunhos da literatura e arte”, Douro.
dade de Oakland e impasse 1 da R. da Cidade Estudos e Documentos, vol. vii, n.º 13, 2002, pp. 155­‑172; Id., A Vinha e o Vinho
na História da Madeira. Séculos XV a XX, Funchal, CEHA, 2003; WARRIN,
de Oakland. Donald, “Um madeirense no Eldorado. John Pereira de Jamestown, Califórnia”,
in Imigração e Emigração nas Ilhas, Funchal, CEHA, 2003, pp. 201­‑214.
Bibliog.: ABREU, José Manuel de, George Day Welsh nas Relações entre a
Madeira e os Estados Unidos da América (Primeira Metade do Século XIX), † Alberto Vieira
Dissertação de Mestrado em Cultura e Literatura Anglo­‑Americanas
apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, texto policopiado, 2004;
ARQUIVO HISTÓRICO DA MADEIRA, Índices dos Passaportes. 1901­‑1915,
Funchal, DRAC/Arquivo Regional da Madeira, 2005; CALDEIRA, Susana Cal, indústria da
Catarina de Oliveira e Castro, Da Madeira para o Hawaii. A Emigração e o
Contributo Cultural Madeirense, Funchal, CEHA, 2010; COUTINHO, Fernando O desenvolvimento da indústria da cal no arqui-
António de Sousa, Cruzeiro Atlântico, Lisboa, s.n., 1962; Estatutos do Conselho
Supremo da Associação Protectora União Madeirense do Estado da Califórnia, pélago da Madeira está naturalmente depen-
Organizada a 11 de Março de 1913, Incorporada a 16 de Março de 1914, dente da disponibilidade de calcário e de com-
Oakland, Hayward Review Press, 1925; FONTES, Manuel da Costa (ed.),
Romanceiro Português do Canadá, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1979;
bustível, dado que a calcinação do carbonato
Id., Romanceiro Português dos Estados Unidos, 2 vols., Coimbra, Universidade de cálcio em fornos implica grande dispêndio
de Coimbra, 1980­‑1983; Id., e FONTES, Maria­‑João Câmara, “Sete novos
romances da ilha da Madeira”, Elo, n.os 13­‑14, 2007­‑2008, pp. 117­‑138;
de lenha e/ou carvão mineral. A matéria­‑prima
MAGALHÃES, José Calvet de, História das Relações Diplomáticas de Portugal existe no ilhéu de Baixo, ou ilhéu da Cal, no

Fig. 1 – Forno do Barrinho durante a cozedura (fotografia de Dinis Gouveia Pacheco, 2011).
C al , indústria da ¬ 719

Porto Santo e no Cascalho, em São Vicente.


A proteção do coberto florestal do arquipéla-
go, os direitos dos donatários, a divulgação do
cimento Portland e o desenvolvimento da in-
dústria química condicionaram a indústria da
cal, culminando no seu desaparecimento nas
últimas décadas do séc. xx. A importação de
pedra de cal remonta ao séc. xv. Na resposta ao
pedido de isenção de dízima sobre este produ-
to, em 1461, D. Fernando alegava tratar­‑se de
uma prerrogativa régia sobre um bem pouco
utilizado. A importação da cal volta a ser men-
cionada numa determinação de 1470 relativa
à cobertura das casas da rua dos Mercadores.
Face ao surto construtivo das últimas décadas
do séc. xv, D. Manuel isentou, em 1485, a dízi-
ma sobre a pedra durante três anos; em 1500,
já coroado rei, estendeu esta regalia à cal fabri-
cada na Madeira para as obras da igreja da Sé.
Porém, em 1519, este monarca proibiu a impor-
tação de pedra de cal e dos fornos para a cozer, Fig. 2 – Trabalhadores no forno do Barrinho
(fotografia de Dinis Gouveia Pacheco, 2011).
com o intuito de reservar a lenha para o fabri-
co de açúcar. Esta proibição pareceu vigorar du-
rante todo o séc. xvi, como se depreende da produção de cal. Adriano Ribeiro sinaliza 49
provisão régia de 7 de junho de 1600. fornos de cal no arquipélago, a maior parte
A produção e a comercialização de cal tam- dos quais em laboração nos sécs. xix e xx; to-
bém se encontram sob a alçada municipal. Já davia, nesse conjunto não figuram, e.g., um
no séc. xv a edilidade funchalense publicava forno do séc. xv, usado por Vasco Fernandes,
uma postura para punir a venda de cal sem fis- no Funchal, ou os fornos do séc. xx de Antó-
calização do almotacé. Por pregão de 1518, a nio Maria de Freitas e da Sociedade Industrial
Câmara do Funchal punia a importação de cal- de Cal (SICAL), em São Vicente.
cário com multa de 20 cruzados. Além disso, No séc. xviii, extraiu­‑se do ilhéu de Baixo
regulamentava o preço da cal e registava os pedra para cal e cantaria, para utilização na ilha
seus rendimentos em livro próprio: e.g., Pedro da Madeira, sendo que os rendimentos desta
Alvarez comercializou 18 moios de cal em extração pertenciam ao sargento­‑mor do Porto
1531, no montante de 10$600 réis, e Gonsalo Santo. Todavia, em 1769, após o seu óbito,
Annes prestou contas de 23 moios e 5 alquei- apresentou­‑se uma proposta no sentido de atri-
res de cal em 1598, cujo rendimento ascendeu buir aquela receita – que ascendia a 92$700 réis
a 11$680 réis. de média anual desde 1764 – à Câmara Munici-
A realização de obras de fortificação no pal do Porto Santo. Por fim, por carta de lei de
séc. xvii parece ter sido indissociável da explo- 13 de outubro de 1770, D. José I extinguiu a do-
ração de pedreiras calcárias no ilhéu de Baixo. nataria e procurou solucionar a crise frumentá-
Nesta centúria, surgem referências à laboração ria do Porto Santo com a reserva dos ilhéus para
de fornos de cal, designadamente em Machi- pasto comum, pelo espaço de uma década.
co e Porto da Cruz. Em 1794, remodelou­‑se O governador e capitão-general da ilha da
um forno em Porto da Cruz, para que passasse Madeira, D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho,
a funcionar a carvão de pedra, um combustí- numa informação de 1794 (relativa a um re-
vel alternativo que parece ter impulsionado a querimento para construir um forno de cal no
720 ¬ C al , indústria da

contestava a ocupação do ilhéu de Baixo por


diversos indivíduos da Madeira para dele ex-
traírem pedra calcária. Não obstante reconhe-
cer que “em tempos mais remotos se fabricava
n’esta Ilha a cal que se consumia na Província
pela falta de pedra calcária nos outros Conce-
lhos”, o texto lembrava que, em 1770, D. José
reservara aquele e outros ilhéus para criação
de gado, mas “há alguns anos perderam aque-
le pasto por que lhos matavam, e comiam os
que abusivamente ali se haviam introduzido”
(ABM, Câmara Municipal de Porto Santo, cx.
2507, capilha 1, doc. 3).
As diretrizes económicas dos governos da
monarquia constitucional corresponderam a
uma abordagem de sentido liberalizador no
Fig. 3 – Ilhéu de Baixo, ou ilhéu da Cal, Porto Santo
(fotografia de Ricardo Caldeira, 2004). que respeita às pedreiras. A maior abertura à
iniciativa privada pretendia dinamizar a ex-
Funchal), relembrou a provisão régia de 30 de ploração mineira e reduzir a intervenção do
julho de 1519. A este propósito, D. Diogo des- Estado, a qual passa a restringir­‑se quase ex-
tacou os problemas do abastecimento de ma- clusivamente a questões de natureza fiscal,
deira, da indisponibilidade de água para a agri- de lavra e de arbitragem de conflitos. Nesta
cultura e dos perigos da erosão. Assim, proibiu ordem de ideias, o proprietário do solo tinha
o uso de madeira nos fornos de cal, designa- liberdade para explorar ele próprio as pedrei-
damente em quatro fornos do Funchal, per- ras ou para ceder a sua exploração a tercei-
mitindo no entanto a utilização de carvão de ros, bastando para o efeito comunicar a sua
pedra em fornos licenciados e situados em lo- intenção ao administrador do concelho ou ao
cais ermos, devido ao calor e fumo libertados, governador civil.
nomeadamente em dois fornos de Tomé José D. Maria II, por carta de lei de 29 de março
Pereira, localizados à beira­‑mar. de 1836, autorizou as câmaras municipais dos
Uma exposição anónima aos deputados da arquipélagos dos Açores e da Madeira a pro-
Nação, presumivelmente do início do séc. xix, ceder ao lançamento de taxas para acorrerem
às suas despesas. Contudo, a medida teve ca-
rácter excecional e vigorou apenas um ano.
Assim, a 7 de novembro de 1836, a Câmara
Municipal do Porto Santo conseguiu a apro-
vação do imposto de 1$000, 800 ou 500 réis
a aplicar aos carregadores da pedra de cal do
Ilhéu, consoante a tonelagem da embarcação.
Este imposto acabou por tornar­‑se definitivo
com a carta de lei de 4 de junho de 1859, atra-
vés da qual D. Pedro V determinou a cobran-
ça de 300 réis por tonelada de pedra calcária
extraída em Porto Santo ou nos ilhéus confi-
nantes, quando transportada para a Madeira.
Os montantes arrecadados na Alfândega do
Fig. 4 – Forno de cal junto de São Lázaro, Funchal, c. 1890
Funchal constituíam parte da receita mensal
(ABM, Photographia Vicente). da Câmara Municipal do Porto Santo.
C al , indústria da ¬ 721

A exploração de pedreiras no ilhéu de Baixo


deu origem a um contencioso fiscal, pois a
junta de repartidores que elaborou a matriz
predial do Porto Santo, nos anos de 1863­‑1864,
exigiu um pagamento a D. Isabel de Ornelas
e outros industriais da cal, por decreto de 15
de dezembro de 1869. Não obstante, a Câmara
Municipal do Porto Santo registou 84 requeri-
mentos para a exploração de pedreiras no pe-
ríodo de 1896 a 1916, os quais são solicitados
por 13 indivíduos ou sociedades, com particu-
lar destaque para a firma Blandy Brothers &
Companhia. O número de registos é claramen-
te superior em 1896 (25 % do total), seguido de
1902 (15 %) e 1911 (13 %); registando-se 43 %
do período sem quaisquer ocorrências. A títu-
lo de exemplo, um contrato celebrado por 82
interessados, incluindo sociedades comerciais,
reuniu, em 1907, um conto de réis para a pes-
quisa de minas na Madeira e no Porto Santo.
A cartelização dos industriais da cal ocorre
nos primeiros anos do séc. xx. Em 1903, os de-
tentores ou arrendatários de fornos de cal no
Funchal – Blandy Brothers & Companhia, An- Fig. 5 – Forno de cal de Câmara de Lobos, reconstrução de 1875
(fotografia de José Lemos Silva, 2010).
tónio Joaquim de Freitas, Andrade & Marques,
e João Frederico Rego – acordam o frete do
caixão de pedra de cal do Porto Santo, o siste- lucros respeitavam as referidas percentagens.
ma de medida, o valor do moio ou alqueire de A venda, o arrendamento e a sublocação de
cal virgem, o tipo de sacas para entregas den- fornos de cal careciam do consentimento dos
tro ou fora da cidade, o preço dos carretos e restantes contratantes, ficando os novos indus-
a clientela de cada fornecedor. Esta associação triais obrigados a respeitar este acordo.
entre detentores ou arrendatários de fornos de O cartel da cal manteve a sua composição na
cal parece justificar o decréscimo no registo de renovação do contrato em 1904, embora com
pedreiras, sem esquecer as limitações da pró- um aditamento e precisando as condições de
pria geografia insular, a menor disponibilida- exploração das pedreiras no ilhéu de Baixo.
de de afloramentos calcários e o deflagrar da Assim, a transferência da exploração de um
Primeira Guerra Mundial, com as subsequen- forno de cal implicaria que o novo industrial
tes dificuldades de abastecimento de carvão de fosse do agrado dos demais e que respeitasse as
pedra para laboração dos fornos de cal. cláusulas contratualizadas. A fim de evitar con-
A repartição de lucros e prejuízos do cartel flitos nas pedreiras, os capatazes percorriam­
respeitava o número de fornos e a média de ‑nas semanalmente e comunicavam quaisquer
vendas nos 18 meses anteriores. Assim, 35 % irregularidades.
dos proveitos pertenciam à firma Blandy Bro- Em 1910, Manuel Gomes da Silva e Anacle-
thers & Companhia, 23 % a António Joaquim to Joaquim Telo constituíram a Sociedade das
de Freitas, 21 % à firma Andrade & Marques Quebradas, em ordem à exploração de três pe-
e 21 % a João Frederico Rego. Caso decidis- dreiras no ilhéu da Cal e do forno no largui-
sem estabelecer depósitos de venda em qual- nho de São João, no Funchal. Contudo, decor-
quer ponto da Ilha, o abastecimento e os ridos cerca de dois anos, Anacleto Joaquim Telo
722 ¬ C al , indústria da

vendeu a sua quota a Blandy Brothers & Com- Todavia, face à enorme desvalorização monetá-
panhia, William Hinton & Sons, Andrade & Fi- ria do pós­‑guerra, o dec. n.º 13.787, de 16 de
lhos, Pereira & Farinha, e António Joaquim de junho de 1927, atualizou para 15$00 o imposto
Freitas, os quais já possuíam a outra metade. da tonelada de cal e para 3$50 o da pedra cal-
A cartelização da indústria da cal resistiu ao cária, cuja cobrança passou a ser da responsa-
passar dos anos, o que justificou a formação, bilidade da Câmara Municipal do Porto Santo,
em 1913, de uma sociedade para a importação com reserva de 2 % para o Hospital da Santa
de cal de fabrico nacional ou estrangeiro. Casa da Misericórdia do Funchal. Estas taxas
A criação de fornos de cal no Campo de foram atualizadas pelo dec.­‑lei n.º 42.925, de
Baixo, em Porto Santo, e as limitações impos- 16 de abril de 1960, passando a ser de 25$00
tas à sua laboração em espaço urbano altera- por tonelada para a cal e de 6$00 para a to-
ram a taxação sobre esta matéria­‑prima. Além nelada de pedra calcária, a que acrescia uma
do imposto sobre a pedra de cal, criado no taxa intermédia sobre o carbonato de cálcio,
séc. xix, o decreto de 25 de agosto de 1919 no valor de 7$00 por tonelada.
impôs uma taxa de $00(3) por litro de cal im- Merece especial destaque a criação da Em-
portada. A Alfândega do Funchal procedeu à presa de Exploração de Cal do Porto Santo, em
cobrança deste novo imposto, cuja receita se 1920. Esta sociedade, com sede no Funchal,
destinou, em parte, à edilidade porto­‑santense. detinha um forno de cal na serra de Fora, na
ilha do Porto Santo, e uma pedreira no ilhéu
de Baixo. Em 1921, surgiu a Empresa dos Ci-
mentos do Porto Santo, a qual agregava 37
quotas e dois requerimentos de patente para
“novo cimento artificial” e “calcário artificial
para o fabrico de cal” (ABM, Registos Nota-
riais, n.º 1499, fls. 36­‑42v.). Poucos meses antes
da publicação do dec. n.º 13.787, a direção as-
sinou um contrato de arrendamento da fábrica
da Fontinha com Ralph Henry Dickson e Her-
man Koenig, válido por 10 anos.
O transporte de calcário do ilhéu de Baixo
e o de cal da ilha do Porto Santo estão docu-
mentados entre 1928 e 1974 (ABM, Câmara
Municipal do Porto Santo, n.os 246­‑251, 2028­
‑2031, 2193). Após a Segunda Guerra Mun-
dial, verificou­‑se uma quebra acentuada tanto
no número de industriais envolvidos no negó-
cio do calcário como na tonelagem de calcário
transportado para a Madeira, por oposição ao
negócio da cal, cujo auge ocorreu no início da
déc. de 1960, coincidindo com a atualização da
taxação sobre estes bens. Apesar de se ter tor-
nado esparsa, encontramos referências à ex-
portação de cal do Porto Santo para a Madeira
até meados da década seguinte. Em ciclo opos-
to, a tonelagem de carbonato de cálcio dupli-
cou nas décadas de 60 e 70 do séc. xx.
Fig. 6 – Forno de cal da praia do Porto Santo, c. 1920,
A exploração do afloramento de sedimentos
Hotel Torre Praia (arquivo particular, 2016). marinhos carbonatados de baixa profundidade
C al , indústria da ¬ 723

existente na margem norte da ribeira de São


Vicente remonta, pelo menos, ao séc. xvii.
O forno mais antigo localizar­‑se­‑ia na proximi-
dade da igreja matriz; há, ainda, referência ao
forno do Moisés, nos arredores da vila (RIBEI-
RO, 1990, 9). No séc. xx, há notícia dos fornos
de cal de João Andrade, Barrinho, Queimadi-
nha e Sociedade Industrial de Cal.
Em testamento de 1680, o P.e Francisco Pes-
tana doava a pedreira à confraria do Santíssi-
mo Sacramento, com a intenção de ajudar as
obras da igreja matriz da freguesia. No final do
séc. xix, a pedreira “apenas é explorada à crusta
de onde se extrai cal para consumo da fregue-
sia” (Inquérito…, 1888, 78). Todavia, havia quem
aventasse que a construção de uma estrada
daria tal impulso a esta indústria, que poderia
vir a abastecer­‑se toda a costa norte da Madeira
e a fornecer pedra de cal a outras localidades.
A importação de cal de outros pontos da Ilha
para as obras municipais de São Vicente parece
terminar no dealbar do séc. xx, pois encontra­
Fig. 7 – Interior do forno de cal da praia do Porto Santo, c. 1920,
‑se uma primeira alusão à existência de minas Hotel Torre Praia (arquivo particular, 2016).
em 1903. Este ano coincidiu com o requerimen-
to de João Pedro de Faria para o estabelecimen-
para a economia local. Na sequência destes re-
to de um forno de cal no sítio do Barrinho, cuja
sultados, a indústria da cal renasceu em São Vi-
propriedade passou, em 1915, para Gregório
cente, com a criação da firma SICAL. No âm-
Januário de Oliveira, João Januário de Oliveira,
bito do novo impulso dado à indústria da cal,
Manuel Nunes de Freitas, João Nunes de Freitas
em 1968 foram construídos dois armazéns na
e Manuel José de Castro Júnior.
Qt. do Calhau. Todavia, em 1974 invoca­‑se o
Em 1943, António Maria de Freitas requereu
encerramento da fábrica para desistir do abas-
licença para a construção de um armazém tér-
tecimento de água àquele prédio urbano (os
reo coberto de telha e de um forno para cozer
referidos armazéns).
pedra de cal no sítio da Queimadinha, nos La-
meiros, com a área de 10 m x 4 m. Decorridos Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal de São Vicente, n.os 13, 28,
30, 33, 173, 608; Ibid., Câmara Municipal do Porto Santo, n.os 120, 246­‑253,
cerca de três anos, Serafim de Andrade forneceu
2028­‑2031, 2193; Ibid., cx. 2507, capilha 1, doc. 3, Exposição Anónima
cal e cal virgem para as obras municipais, tendo de Habitantes da Madeira aos Deputados da Nação acerca da Posse e
solicitado licença para realizar melhoramentos Administração do Ilhéu de Baixo, primeira metade do séc. xix; Ibid., Governo
Civil do Funchal, n.os 80, 519; Ibid., Registos Notariais, n.os 1499, 2454, 2467,
no seu estabelecimento industrial, no sítio do 2976, 3046, 3072, 3174, 3299, 6250; impressa: ARAGÃO, António, Para
Cascalho. Existem registos de apenas duas pe- a História do Funchal, 2.ª ed. rev. e aum., Funchal, DRAC, 1987; Biblioteca
Digital das Ilhas. Arquivo Histórico da Madeira (1931­‑2001), Funchal, Núcleo
dreiras: uma de João Romão de Freitas e Gre- Estratégico da Sociedade de Informação/Secretaria Regional de Educação,
gório Januário de Oliveira, de 1945, e outra de 2002; COSTA, José Pereira da, Vereações da Câmara Municipal do Funchal,
Primeira Metade do Século XVI, e Apenso Vereações da Câmara de Santa Cruz,
Eduardo Mendes e João de Andrade, de 1959. 1515­‑1516, vol. ii, Funchal, CEHA, 1998; Id., Vereações da Câmara Municipal do
Em meados da déc. de 1960, o Museu e La- Funchal. Segunda Metade do Século XVI, vol. iii, Funchal, CEHA, 2002; COSTA,
Mário Alberto Nunes, “A ilha do Porto Santo em 1770”, Arquivo Histórico da
boratório Mineralógico e Geológico da Facul- Madeira, vol. x, 1958, pp. 9­‑54; Inquérito sobre a Situação Económica da Ilha da
dade de Ciências da Univ. de Lisboa analisou o Madeira e Medidas Convenientes para a Melhorar, Ordenado por Decreto de
31 de Dezembro de 1887, Lisboa, Imprensa Nacional, 1888; NUNES, João Paulo
carbonato de cálcio dos Lameiros, tendo­‑o con- Avelãs, “A indústria mineira em Portugal continental desde a consolidação do
siderado de grande qualidade e uma mais­‑valia regime liberal ao I Plano de Fomento do Estado Novo (1832­‑1953). Um esboço
724 ¬ C amacho , A ugusto da S ilva B ranco

de caracterização”, Revista Portuguesa de História, t. xxxv, 2001­‑2002, pp. 421­


‑464; PACHECO, Dinis Gouveia, “A cal e a indústria sacarina. As experiências de
João Higino Ferraz na Fábrica do Torreão (1900­‑1940)”, in O Açúcar. Paisagens,
Civilização Material e Economia (Séculos XV­‑XX), texto não publicado; RIBEIRO,
Adriano, “A indústria da cal em S. Vicente (1680­‑1903)”, Diário de Notícias,
Funchal, 14 out. 1990, p. 9; Id., “A indústria da cal em Câmara de Lobos”, Girão,
1.º sem. 1991, pp. 251­‑255; Id., A Indústria da Cal (Séculos XV­‑XX). Um Factor
de Aproximação entre as Ilhas do Porto Santo e da Madeira, Dissertação
complementar para prestação de provas de Doutoramento apresentada à
Universidade de Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 1995; RIBEIRO, João Adriano,
Porto Santo. Aspectos da Sua Economia, Porto Santo, Câmara Municipal do
Porto Santo, 1997; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo
de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; SOUSA, Élvio Duarte
Martins, “O património arquitectónico e arqueológico do ilhéu da Cal, Porto
Santo”, Ilharq, n.º 5, 2005, pp. 21­‑29.

Dinis Gouveia Pacheco

Camacho, Augusto da Silva


Branco
Advogado, juiz, primeiro­‑oficial do Governo
Civil da Madeira, chefe de gabinete do gover-
nador civil, governador substituto do Gover-
no Civil da Madeira, presidente da direção do
Clube Sports da Madeira, provedor da Santa
Casa da Misericórdia, segundo­‑secretário do
Governo Civil de Aveiro, primeiro­‑secretário
Fig. 1 – O Distrito no Código Administrativo de 1940
do Governo Civil de Ponta Delgada nos Açores, e no Estatuto dos Distritos Autónomos (2.ª ed., 1947),
governador substituto do Governo Civil dos de Augusto da Silva Branco Camacho.

Açores, secretário­‑geral do Governo Civil dos


Açores e escritor madeirense, nascido a 10 de Funchal, Correio dos Açores, Diário de Notícias, Eco
abril de 1907, na freguesia das Canhas, Ponta do Funchal, O Jornal e na Gazeta de Coimbra.
do Sol, filho de Augusto Camacho, médico e Antes de exercer funções no Governo Civil
professor, e de Elisa da Silva Branco Camacho. da Madeira, foi advogado nas comarcas do
Neto paterno de João Augusto Camacho e de Funchal e de Ponta de Sol e juiz municipal
Maria Guilhermina Camacho e materno de no julgado de São Vicente. Sendo primeiro­
António Francisco da Silva Branco e de Tere- ‑oficial do Governo Civil e chefe de gabine-
sa Augusta da Silva Branco, Augusto da Silva te do governador civil, desempenhou “com
Branco Camacho casou a 27 de novembro de muito aprumo e zelo” (DN, 24 nov. 1939, 1)
1937 com Elisa da Silva Branco Camacho, filha o cargo de governador civil interino em diver-
de José Maria Malheiro, juiz auditor, e Eugénia sas ocasiões.
das Mercês Fernandes Malheiro. Foi o 13.º presidente da direção do Clube
Augusto da Silva Branco Camacho frequen- Sports da Madeira durante o ano de 1940 e
tou a Escola Secundária Jaime Moniz, ingres- provedor da Santa Casa da Misericórdia.
sando depois na Faculdade de Direito da A 17 de janeiro de 1948, Augusto da Silva
Univ. de Coimbra no ano letivo de 1924­‑1925, Branco Camacho foi nomeado secretário­‑geral
onde se licenciou em Direito, em 1929. De do Governo Civil de Aveiro, após apresentar
volta à Madeira, abriu um escritório de advo- uma dissertação num concurso de obras públi-
cacia na vila de Ponta de Sol em 1930, ano em cas do Ministério do Interior.
que se torna colaborador do jornal Novida- Já em Ponta Delgada, Açores, ocupou as fun-
des. Haveria de colaborar ainda no Comércio do ções de primeiro­‑secretário do Governo Civil,
C amacho , A ugusto da S ilva B ranco ¬ 725

comprovam O Distrito no Código Administrati-


vo de 1940 e no Estatuto dos Distritos Autónomos
das Ilhas Adjacentes (1946), O Chefe de Estado em
Santa Maria e S. Miguel (1962), A Eleição do Chefe
do Estado e a Organização Corporativa (1962),
“Considerações sobre o Estatuto dos Distritos
Autónomos das Ilhas Adjacentes” (1965), o Es-
tatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes:
Actualizado e Anotado (1965) e O Bem Comum:
40 Anos de Administração Distrital (1926­‑1966)
(1966).
O texto “Considerações sobre o Estatuto dos
Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes”,
da autoria do Dr. Branco Camacho, pode ser
lido em Livro da III Semana de Estudos dos Aço-
res (1965) e em A Açorianidade e Autonomia:
Páginas Escolhidas (1989).
Augusto da Silva Branco Camacho faleceu a
1 de julho de 1991, aos 84 anos, na freguesia e
no concelho de Almada.

Obras de Augusto da Silva Branco Camacho: O Distrito no Código


Administrativo de 1940 e no Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas
Adjacentes (1946); Em defesa da Autonomia Administrativa das Ilhas Adjacentes
(1961); A Eleição do Chefe do Estado e a Organização Corporativa (1962); O Chefe
Fig. 2 – Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes de Estado em Santa Maria e S. Miguel (1962); “Considerações sobre o Estatuto
(2.ª ed., 1972), de Augusto da Silva Branco Camacho dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes” (1965); Estatuto dos Distritos
(coautoria de Mário Luís Jesus Carvalho). Autónomos das Ilhas Adjacentes: Actualizado e Anotado (1965); O Bem Comum:
40 Anos de Administração Distrital (1926‑1966) (1966).

Bibliog.: manuscrita: ABM, Conservatória do Registo Civil do Funchal,


a partir de fevereiro de 1950, servindo também liv. 85, fl. 449; Ibid., Registos Paroquiais, Canhas, liv. 7293, fl. 34v.; impressa:
como governador interino várias vezes. Viria, CAMACHO, Augusto Branco; “Um estudo de direito administrativo da
autoria do Dr. Augusto Branco Camacho”, Diário de Notícias, 25 nov. 1947,
todavia, a ser o secretário­‑geral do Governo pp. 1 e 4; Id., “Juventude sem rumo”, Diário de Notícias, 17 out. 1958, p. 1; Id.,
Civil nesta Região. “Sim. Bom senso”, Diário de Notícias, 22 out. 1958, p. 1; Id., “Crédito bancário”,
Diário de Notícias, 8 set. 1959, p. 1; Id., “A responsabilidade da indústria
Incentivado pelo jornalista Dr. José de Me- perante a Convenção de Estocolmo”, Diário de Notícias, 17 ago. 1960, p. 1;
deiros em 1959, escreve seis artigos sobre a au- Id., “Tema de reflexão”, Diário de Notícias, 1 out. 1960, p. 1; Id., “Novos rumos
em lacticínios”, Diário de Notícias, 23 fev. 1961, p. 1; Id., “A grande empresa
tonomia administrativa das ilhas adjacentes no na economia moderna”, Diário de Notícias, 20 maio 1961, p. 1; Id., “Do
Correio dos Açores, que acabariam por ser reu- ultramar português. A nossa razão”, Diário de Notícias, 28 dez. 1962, p. 1; Id.
e CARVALHO, Mário Luís Jesus, Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas
nidos e publicados no livro Em defesa da Auto-
Adjacentes, Ponta Delgada, Tip. Gráfica Açoriana, Lda., 1965; CLODE, Luiz
nomia Administrativa das Ilhas Adjacentes (1961). Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; CORDEIRO, Carlos et al., A Açorianidade e
No prefácio desta obra, José Almeida Pavão
Autonomia. Páginas Escolhidas, Ponta Delgada, Marinho Matos Brumarte,
Júnior, vice­‑reitor do Liceu de Ponta Delgada, 1989; “A crise da Madeira. A exportação de vinhos”, Diário de Notícias, 10 mar.
alega que o autor evidenciou uma “robusta in- 1940, p. 1; “Donativo do Sr. governador civil”, Diário de Notícias, 10 maio 1944,
p. 1; “Dr. Branco Camacho”, Diário de Notícias, 24 nov. 1939, p. 1; “Dr. Branco
teligência, aliada a uma sólida cultura jurídica Camacho”, Diário de Notícias, 25 nov. 1939, p. 2; “Dr. Branco Camacho”, Diário
que se não confinava à esfera profissional, de- de Notícias, 25 jul. 1940, p. 1; “Dr. Branco Camacho”, Diário de Notícias, 5 fev.
1948, p. 1; “Inauguração da séde do Centro n. 3 da M. P.”, Diário de Notícias, 30
nunciando uma curiosidade permanente por maio 1944, p. 1; INSTITUTO AÇORIANO DE CULTURA, Livro da III Semana
todos os problemas locais de interesse comum” de Estudos dos Açores, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada/
Instituto Açoriano de Cultura/FCG, 1961; MARINO, Luís, Panorama Literário
(CAMACHO, 1962). Não seria esta a única do Arquipélago da Madeira, vol. 2, texto não publicado, fls. 136­‑138; “Ontem
obra que prova a sabedoria e o gosto pela po- à noite”, Diário de Notícias, 5 nov. 1939, p. 1; PORTO DA CRUZ, Visconde do,
Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. iii, Funchal,
lítica e administração pública de Augusto da Câmara Municipal do Funchal, 1953; “Realiza­‑se hoje no Teatro Municipal
Silva Branco Camacho, pois igualmente o uma sessão patriotica integrada na Semana das Colonias”, Diário de Notícias, 6
726 ¬ C amacho , C arlos J osé T eodoro B aeta

maio 1944, p. 1; VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António Aragão de, Madeira. responsável pelos Serviços de Extensão Rural
Investigação Bibliográfica, vol. i, Funchal, Centro de Apoio de Ciências Históricas,
1981; digital: CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DO INSTITUTO CULTURAL DE da recém­‑criada Secretaria Regional da Agri-
PONTA DELGADA, Catálogo Bibliográfico, s.d.: http://www.icpd.pt/biblioteca/ cultura e Pescas, a 13 de abril de 1982. No ano
index.php?titulo=CAMACHO%2C+Augusto+da+Silva+Branco&sendNow=
(acedido a 4 dez. 2018); COSTA, João Carlos, “Sousa, Arthur Rodrigues”,
seguinte, a 27 de janeiro de 1983, foi nomeado
Aprender Madeira, 10 fev. 2017: http://aprenderamadeira.net/sousa­‑arthur­ para o cargo de secretário regional da Agricul-
‑rodrigues­‑de/ (acedido a 4 dez. 2018).
tura, por Alberto João Jardim.
Andreia Carol de Carvalho O Eng.º Baeta Camacho publicou vários ar-
tigos na imprensa regional e apresentou pales-
Camacho, Carlos Agapito tras na Estação Rádio Madeira sobre a produção
Ö Melo, Santiago de (pseud.) de laticínios. A 1 de novembro de 1951, reali-
zou para esta estação de rádio uma palestra in-
titulada “Breves considerações sobre o custo de
Camacho, Carlos José Teodoro produção do leite”, que viria a ser publicada no
Baeta Diário da Madeira, a 6 de novembro do mesmo
Nasceu na freguesia de São Martinho, na ilha ano. Publicou um folheto, em 1952, intitulado
da Madeira, a 2 de abril de 1925, sendo filho “Breves considerações sobre o custo de produ-
de Manuel de Avelino Camacho e de D. Ester ção do leite” e, em data que desconhecemos,
Albertina Henriques Baeta Camacho. Casou a um folheto intitulado “Algumas considerações
26 de abril de 1952 com D. Ester Conceição sobre a pasteurização das natas para o fabrico
Henriques. de manteiga”, da responsabilidade editorial da
Estudou no Liceu do Funchal e acabou o Junta de Laticínios da Madeira. O artigo “Al-
curso em 1942, ano em que entrou no Instituto guns Aspectos da Produção de Leite” foi publi-
Superior de Agronomia, em Lisboa, onde veio cado simultaneamente no Diário de Notícias e no
a concluir o curso de Engenharia Agrónoma, Jornal da Madeira, a 4 de maio de 1956. A 1 de
em novembro de 1947. Foi depois admitido a setembro de 1957, falava aos microfones da Es-
técnico de 3.ª classe, já na Região Autónoma da tação Rádio Madeira tecendo “Algumas consi-
Madeira, na Junta dos Laticínios da Madeira e, derações sobre o abastecimento de leite à cida-
em resultado destas funções, foi enviado à Escó- de.” No âmbito do programa desta estação de
cia, onde fez um estágio de dois meses na Cen- rádio, “A Rádio ao Serviço da Agricultura”, pro-
tral Leiteira de Edimburgo e visitou tudo o que feriu a palestra “Algumas considerações sobre a
tinha que ver com o Milk Marketing Board. preparação de estrumes”, que foi publicada no
Voltaria a Inglaterra, em 1955, para frequen- Diário de Notícias, a 21 de fevereiro de 1958. Pu-
tar um curso de Criação de Gado na Univ. de blicou, também, em data que desconhecemos,
Reading. A 23 de julho de 1961, foi nomeado mas pensa­‑se que durante a déc. de 50, as se-
para desempenhar funções de delegado da guintes palestras: “O leite como alimento, sua
Direção­‑Geral dos Serviços Agrícolas na Região composição, conservação e higiene”, “O leite
Autónoma da Madeira e vogal do Conselho Re- esterilizado” e “Algumas considerações sobre o
gional da Agricultura da XVI Região, e, passa- XIV Congresso Internacional de Leitaria”.
dos três dias, a 26 de julho, era indicado para O Eng.º Baeta Camacho faleceu no Funchal,
delegado da Junta Nacional das Frutas. a 23 de abril de 1996.
Em 1966, tornou­‑se representante da Direção­
‑Geral dos Serviços Agrícolas, cargo no âmbito Bibliog.: manuscrita: ABM, Conservatória do Registo Civil, Nascimentos,
liv. 607, 1925, p. 152; impressa: CLODE, Luís Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico
do qual se debruçou sobre a indústria de lati- de Madeirenses: Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983;
cínios da Madeira. Continuando a sua carreira “O Eng.º Baeta Camacho”, Diário de Notícias, Funchal, 25 jul. 1961, p. 1;
MARINO, Luís, Panorama Literário do Arquipélago da Madeira, vol. 2, texto
de engenheiro agrónomo, acabou por ser pro- não publicado, fl. 140; “Participação”, Diário de Notícias, Funchal, 24 abr.
movido ao lugar de engenheiro de 1.ª classe do 1996, p. 27; “Secretario regional da Agricultura”, Diário de Notícias, Funchal,
28 jan. 1983, p. 8.
quadro do Ministério da Agricultura e Pescas.
Já no quadro do Governo regional, tornou­‑se Sara Alves
C amacho , J o ã o F rancisco ¬ 727

Camacho, Carlos Manuel Araújo O seu contacto com a fotografia virá a dar­
‑se em Paris, para onde viajou com uma bolsa
Andrade atribuída pela ex­‑Imperatriz do Brasil, D. Amé-
Nasceu na freguesia da Sé, no Funchal, a 15 lia Beauharnais Leuchtenberg de Bragança
de fevereiro de 1926. Desconhece­‑se a data e o (1812­‑1873), que, em 1852, chegara à Madeira
local do seu falecimento. procurando alívio para a doença da sua filha.
Filho do poeta e jornalista Carlos Agapito Ca- Provavelmente por o considerar promissor, de-
macho (de seu pseudónimo Santiago de Melo) cidiu patrocinar­‑lhe formação em encaderna-
e de Maria Assunção Araújo Andrade Cama- ção. Manteve­‑se em Paris entre 1852 e 1856.
cho, frequentou o Liceu do Funchal, seguindo De regresso à Madeira, voltou ao ofício da en-
depois as pisadas de seu pai e tornando­‑se fun- cadernação, desta vez em estabelecimento pró-
cionário da filial do Banco Nacional Ultrama- prio, no n.º 10 da R. João de Tavira. Em 1860,
rino na cidade do Funchal. mudou­‑se para o Lg. da Sé e, em 1862, abriu
Foi poeta de pendor modernista, coautor uma loja dedicada à venda de papel. Em 1863,
das obras Areópago (coletânea de cinco poetas iniciou, finalmente, a atividade de fotógrafo,
da nova geração, que até à data não se tinham instalando o seu primeiro estúdio na R. Con-
revelado publicamente, a não ser Jorge de selheiro José Silvestre Ribeiro, não sem antes
Freitas, um dos colaboradores da publicação ter voltado a Paris, onde permaneceu entre
Arquipélago – os restantes quatro autores da co- julho e setembro desse mesmo ano e onde
letânea são Albino Sequeira Nunes, Carlos Ma- adquiriu todo o material necessário ao início
nuel Camacho, Paulo de Sá Brás e Adolfo Bra- da nova atividade. Uns anos depois, mudou­‑se
zão Vieira) e Poemas Bestiais, igualmente uma para a R. de São Francisco, continuando como
coletânea, na qual participa também Herberto
Helder, obra que foi alvo da censura. As duas
obras foram publicadas no Funchal. Publicou
ainda Alguns Poemas de Antecedência, também
no Funchal.
Constituem exemplo da sua arte poética os
poemas “Canto negro” e ”Intercepto”, que
Luís Marino regista em Musa Insular.

Obras de Carlos Manuel Araújo Andrade Camacho: Areópago (1952) (coautoria);


Alguns Poemas de Antecedência (1954); Poemas Bestiais (1954) (coautoria.)

Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses.


Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; MARINO, Luís, Musa
Insular: Poetas da Madeira, Funchal, Eco do Funchal, 1959; PORTO DA CRUZ,
Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. iii,
Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1949.

António José Borges

Camacho, João Francisco


Nascido no Funchal em 1833, João Francis-
co Camacho era filho de Francisco Militão
Camacho (1800­‑1868) e de Maria Helena
Pombo. A primeira ocupação que se lhe co-
nhece é a de encadernador, ofício que exercia
Fig. 1 – João Francisco Camacho, Lisboa, c. 1880 (cópia em ABM,
na oficina do pai. Arquivo Particular José de Sainz-Trueva).
728 ¬ C amacho , J o ã o F rancisco

Fig. 2 – Anúncio do ateliê de fotografia de João Francisco


Camacho em Lisboa e no Funchal, 1887 (Almanach Ilustrado
do Occidente, 1887).

fotógrafo, que se foi enriquecendo de conhe-


cimento ao viajar pelo mundo, tendo estado
em Berlim, nos Estados Unidos e em Viena,
cidade na qual participou na exposição mun-
dial de 1873 e de onde trouxe uma medalha de
mérito. A partir de 1877, começou a deslocar­
‑se frequentemente a Lisboa, para onde se
mudou definitivamente em 1878, acompanha-
do pela família, acabando por se estabelecer
no Chiado, no Hotel Gibraltar. Em 1880, con- Fig. 3 – Carte-de-visite da Photographia Camacho, Funchal,
tudo, um incêndio devastou o primeiro estú- c. 1885 (ABM, Arquivos Particulares).
dio, obrigando­‑o a mudar­‑se para a R. Nova do
Almada, onde se instalou no n.º 116. de camadas menos privilegiadas da sociedade.
A ida para Lisboa não o levou a desfazer­‑se Não limitava a sua arte, porém, a este formato,
das instalações comerciais que tinha no Fun- tendo­‑se distinguido também por fazer “cartes
chal, as quais passou primeiro para um Pinto álbum, promenades, petit portrait. Retratos de fa-
Coelho e, mais tarde, entre 1881 e 1882, para mília e ampliações – Retratos e grande coleção
as mãos de Júlio Siza, outro fotógrafo, acaban- de vistas de Lisboa, Belém, Cintra, Alcobaça e
do por ficar na posse de um alemão, Schorbell. Batalha”, conforme se pode ler num anúncio
Em 1889, decidiu finalmente desfazer­‑se do es- publicado no Almanaque Illustrado do Occidente
túdio, que vendeu a uma sociedade constituí- em 1887 (apud SAINZ­‑TRUEVA, 1995, 22).
da por Joaquim Augusto de Sousa (1853­‑1905) Em Lisboa, o fotógrafo contactou e retratou
e Augusto César dos Santos, a qual passou a “a elite da sociedade Lisbonense”, afirmação
chamar­‑se Photographia Camacho – Sucesso- que consta numa nota explicativa publicada
res Souza & Santos. pela revista O Occidente (1 de fevereiro de 1880),
Tendo tido por mestre André Disdéri (1819­ que, na ocasião, trazia a público uma gravura
‑1889), quando da estada em Paris, dele repli- de um carro de bois da Madeira, feita “segundo
cou o conceito de carte­‑de­‑visite, uma inovação uma fotografia do Sr. Camacho”, que era acom-
no campo do retrato que, pelo seu tamanho pe- panhada de um texto que o identificava como
queno (9,5 x 6 cm) e custo reduzido, “demo- “inteligente fotógrafo daquela ilha, e há tempos
cratizou” o acesso à fotografia, assim ao alcance em Lisboa” (O Occidente, 1 fev. 1880, 20 e 22).
C amacho , J o ã o F rancisco ¬ 729

De entre as figuras eminentes que João Fran-


cisco Camacho registou, deve salientar­‑se a
própria família real, com a qual privou e tra-
balhou entre 1884 e 1897, o que lhe valeu a
atribuição do título de “fotógrafo da Casa Real
portuguesa”, à semelhança do que já antes
acontecera com a Imperatriz do Brasil, que
o agraciara, por carta régia, com a atribuição
de idêntica honra, que o tornava “fotógrafo
de Sua Majestade a Imperatriz do Brasil”. Or-
gulhoso, João Francisco Camacho gravava nas
fotografias de sua autoria a representação das
armas brasileiras, bem como, por vezes, a me-
dalha que recebera em Viena. A comprovar a
proximidade que mantinha com a Casa Real
portuguesa encontra­‑se a oferta que fez ao Rei
D. Luís (1838­‑1889) de um álbum, encaderna-
do por si, com os Sketches in the Island of Madei-
ra, da autoria de Frank Dillon (1822­‑1909), um
pintor inglês que estivera na Ilha entre 1848
e 1849. A acompanhar a oferta, uma nota es-
clarecia que, ainda que ao Rei não faltassem
“recordações desta ilha” (pela qual D. Luís,
de facto, passara já duas vezes), considerava Fig. 4 – Fernando Pessoa em bebé, fotografia de João Francisco
o conjunto de estampas de grande qualidade, Camacho, Lisboa, c. 1885 (cópia em ABM, Arquivo Particular José
“representando com a maior fidelidade alguns de Sainz-Trueva).

sítios e costumes dos mais pitorescos d’esta


terra”, pelo que se atrevia a oferecê­‑lo (apud da amizade, Rafael Bordalo Pinheiro, Cal-
SAINZ­‑TRUEVA, 1995, 23). das da Rainha, 1893” (apud SAINZ­‑TRUEVA,
Muitas outras figuras importantes do seu 1995, 25).
tempo passaram também pela lente de João
Francisco Camacho, de entre as quais se
podem destacar Paul Langerhans (1847­
‑1888), cientista de renome; Serpa Pinto
(1864­‑1900), explorador; D. Aires de Orne-
las Vasconcelos (1837­‑1880), arcebispo de
Goa; Latino Coelho e Luciano Cordeiro, e.g.,
a que se juntaram outras à epoca desconheci-
das, mas que vieram a ter um grande destaque
depois, como aconteceu com Fernando Pes-
soa (1888­‑1935), a quem retratou ainda bebé,
com três anos e já um pouco mais crescido. Do
seu círculo de relações fazia ainda parte Ra-
fael Bordalo Pinheiro (1846­‑1905), que, em
sua honra, fez um prato com motivos mari-
nhos, talvez em homenagem ao ilhéu que era,
Fig. 5 – Prato Camacho, “Ao Camacho, o grande Photographo,
em cuja base inscreveu como dedicatória “Ao testemunho de amizade. Raphael Bordallo Pinheiro, Caldas da
Camacho, o grande Fotógrafo, testemunho Rainha, 1893” (Arquivo Nacional de Fotografia, Lisboa).
730 ¬ C amacho , M anuel F rancisco

João Francisco Camacho foi, também, cola- português”. Um pouco adiante, acrescentava
borador de variados periódicos – Mala da Euro- que “Camacho vinha precedido da fama dos
pa (1896­‑1897), o já referido O Occidente (1886­ seus trabalhos e conquistou logo para o seu
‑1897), Branco e Negro (1856­‑1898) e o Boletim ‘atelier’ a elite da sociedade Lisbonense. Mas
Photographico (1900­‑1902) –, que frequente- não era só o artista apreciável, mas também o
mente publicavam gravuras feitas a partir de homem de fina educação, e perfeito cavalhei-
imagens recolhidas pelo fotógrafo. O Boletim ro que cativava pelo seu trato quantos se lhe
Photographico, começado a publicar­‑se já de- aproximavam” (O Occidente, 20 nov. 1898, 263).
pois da morte do fotógrafo, ocorrida em 1898,
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivo Particular José de Sainz­‑Trueva; impressa:
ainda o recorda em 1900, quando, no seu nú- Almanach Ilustrado do Occidente, 1887; Boletim Photographico, julho de 1900;
mero 7, de julho daquele ano, mostra a Torre Obras de Referência dos Museus da Madeira, catálogo, Lisboa/Funchal, Instituto
dos Museus e da Conservação/DRAC, 2010; O Occidente, 1 fev. 1880; 20
de Belém, da autoria de João Francisco, que
nov. 1898; SAINZ­‑TRUEVA, José, “João Francisco Camacho. Notas para a sua
fez acompanhar de um texto que se lhe refe- fotobiografia”, Islenha, n.º 15, jan.­‑jun. 1995, pp. 15­‑28; digital: “João Francisco
re nestes termos: “Em tempos que a máquina Camacho”, Facebook – Museu de Fotografia da Madeira, Atelier Vicente’s, 18 ago.
2020: https://www.facebook.com/mfmvicentes/videos/jo%C3%A3o­‑francisco­
de mão não estava divulgada, foi feita pelo sau- ‑camacho/645301043055736/ (acedido a 16 abr. 2021); “João Francisco Camacho
doso mestre João F. Camacho esta fotografia (1833­‑1898)”, Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira, s.d.: https://
arquivo­‑abm.madeira.gov.pt/details?id=671364 (acedido a 16 abr. 2021).
da Torre inexcedida depois disso. A câmara
que lhe serviu era por assim dizer um caixo- Cristina Trindade
te… mas as mãos que amparam esse pequeno
caixote eram umas mãos abençoadas” (Boletim
Photographico, jul. 1900, 105­‑106).
Camacho, Manuel Francisco
A atestar a atividade intensa que desenvol- O P.e Manuel Francisco Camacho foi uma das
veu ficam as referências à sua participação em figuras marcantes do clero madeirense nos pri-
diversos certames, para além do de Viena: Ex- meiros 70 anos do séc. xx, pelo protagonismo
posição Universal de Filadélfia (1876); Exposi- que assumiu na clerezia e na vida regional.
ção Fotográfica na Casa Portuguesa, em Paris A sua presença na história da Diocese do Fun-
(1886); Exposição Nacional de Fotografia do chal foi marcante, como pároco, pregador, ad-
Porto (1886); Exposição Nacional das Indús- ministrador eclesiástico, político e homem em-
trias Fabris (1888); Exposição Internacional penhado em causas sociais, mas acima de tudo
de Paris (1892), na qual recebeu uma medalha pelo papel que assumiu entre 1924 e 1970,
de prata; e Exposição Insular e Colonial Portu- como vigário­‑geral.
guesa (1894). Filho de José Militão Rodrigues e de Maria do
Irmão do também fotógrafo Augusto Maria Monte, nasceu a 2 de agosto de 1877, na fre-
Camacho (1838­‑1927) – que, ainda que menos guesia do Curral das Freiras, onde o seu pai
conhecido, levou trabalhos seus a uma outra foi regedor durante muito tempo, e faleceu no
exposição universal, desta feita em Paris, em Funchal, a 14 de dezembro de 1970, com 93
1878, onde obteve uma medalha de prata, anos.
como consta nos cartões do seu estúdio, à Pç. Em 1897, entrou para o Seminário do Fun-
da Constituição, no Funchal, estúdio que pas- chal, ordenando­‑se presbítero a 2 de outubro
sou depois para Manuel Olim Perestrelo (1854­ de 1904. A sua atividade no serviço eclesiásti-
‑1929) –, João Francisco Camacho faleceu a 8 co paroquial teve início a 5 de março de 1904,
de novembro de 1898. A revista O Occidente, da como cura de Santa Maria Maior.
qual fora colaborador assíduo, referiu­‑se­‑lhe A 1 de outubro de 1912, num período parti-
em termos de grande admiração, lamentando cularmente difícil para a Igreja Católica, moti-
a morte de “um artista de raça”, que nascera na vado pela separação entre o Estado e a Igreja,
Madeira e cultivara a arte de Daguerre “com foi nomeado vice­‑reitor do Seminário do Fun-
tanta inteligência e conhecimento que bem chal, manifestando nesse cargo elevada pru-
lhe poderemos chamar o primeiro fotógrafo dência, aliada a uma grande firmeza.
C amacho , M anuel F rancisco ¬ 731

no Hospital da Santa Casa da Misericórdia; e,


entre 1927 e 1947, foi capelão da casa­‑mãe da
Congregação das Irmãs de Nossa Senhora das
Vitórias.
Como vigário­‑geral da Diocese, presidiu a
várias cerimónias que marcaram a política
regional até 1970, sendo ele a figura protoco-
lar, em representação do bispo, nos atos públi-
cos, nas receções, nas visitas de personalidades
nacionais e estrangeiras e nas inaugurações. Di-
rigia as missas ou bênçãos das infraestruturas.
A 16 de maio de 1956, assistiu, na Estação
Experimental da Qt. do Bom Sucesso, à ses-
são inaugural do I Curso de Férias de For-
mação Agrícola, para professores primários
e finalistas da Escola do Magistério Primário.
Ainda nesse mês, em Santa Cruz, presidiu às
cerimónias do 28 de Maio, com uma parada
da Mocidade Portuguesa, onde benzeu a ban-
Fig. 1 – Cón. Manuel Francisco Camacho, c. 1960 deira nacional. A 23 de setembro, presidiu à
(ABM, Arquivos Particulares).
missa campal do ato de entrega das terras aos

Em 1917, assumiu as funções de escrivão do


Juízo Eclesiástico, cargo que manteve até 1 de
outubro, quando foi indigitado pároco de São
Jorge. A 28 de agosto, assumiu, com o P.e Ma-
nuel Pombo Fernandes, o arciprestado de São
Jorge, que integrava as paróquias de São Jorge,
Santana, São Vicente e Porto Moniz.
A 17 de outubro de 1922, foi provido pároco
da Ponta do Sol, onde se manteve até 1924, al-
tura em que foi nomeado para funções de rele-
vo na Diocese, que marcaram a vida da mesma.
A 24 de janeiro de 1924, foi designado cónego
capitular da Sé. Por provisão de 1 de feverei-
ro desse ano, foi indicado para vigário­‑geral da
Diocese, sendo, nessa altura, elevado à digni-
dade de prelado doméstico de Sua Santidade
Pio XI, com o título de monsenhor. Na época,
acumulava as funções de juiz do Tribunal Ecle-
siástico e de reitor da igreja de S. João Baptista,
no Funchal.
A ação desenvolvida por monsenhor Cón. Ma-
nuel Francisco Camacho na Diocese foi muito
vasta e abrangeu diversos campos de ativida-
de da vida regional: entre 1907 e 1917, foi ca-
pelão da capela da Vitória, em São Martinho; Fig. 2 – Residência do Cón. Manuel Francisco Camacho,
entre 1923 e 1927, prestou assistência religiosa Calç. do Pico, Funchal, 1926 (arquivo particular).
732 ¬ C amacho , R ui

colonos da primeira lombada na Ponta Del- Até ao princípio da déc. de 70, foi uma fi-
gada, assim como à inauguração da rede de gura incontornável da sociedade madeirense,
iluminação elétrica no Santo da Serra, a 23 de que marcou a história do arquipélago pela sua
novembro. presença e intervenção em múltiplas áreas.
A 19 de maio de 1957, esteve presente na bên- Para além da sua atividade religiosa, social e
ção da igreja paroquial do Porto da Cruz. A 19 cultural, haverá a registar ainda uma breve pas-
de junho, presidiu à missa campal do regresso sagem pela política, tendo sido nomeado para
da Índia da 1.ª Companhia Independente da vogal da comissão administrativa da Câmara
Madeira, expedicionária na Índia. Municipal de Câmara de Lobos, para o triénio
Com a morte do bispo D. António Manuel de 1905­‑1907, cargo para o qual foi empossado
Pereira Ribeiro, a 22 de março de 1957, assu- a 2 de janeiro de 1905, mas cujo mandato não
miu, em nome do cabido da Sé do Funchal, as chegou a terminar.
funções de vigário capitular até à chegada do
Bibliog.: impressa: ALMEIDA, Fortunato de, História da Igreja em Portugal,
novo prelado, D. David de Sousa, a 8 de de- vol. iii, Porto/Lisboa, Livraria Civilização, 1970; Boletim da Junta Geral do
zembro de 1957. Havia estado em Lisboa a 10 Distrito Autónomo do Funchal, n.º 12, dez. 1957; CLODE, Luiz Peter, Registo
Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do
de novembro, nas cerimónias de sagração de
Funchal, 1983; Id., e FERREIRA, Manuel Juvenal de Pita, Catalogo Ilustrado da
D. David de Sousa. A saudação da sua entra- Exposição de Ourivesaria do Museu de Arte Sacra. Realizada no Convento de
da na Diocese ficou a cargo do vigário capitu- Santa Clara no Funchal em 1951, Funchal, JGDAF, 1951; PEREIRA, Eduardo
C. N., Ilhas de Zargo, 2.ª ed., 2 vols., Funchal, Câmara Municipal do Funchal,
lar, que dava conta dos tempos difíceis que o 1957; PITA, Gabriel de Jesus, “A Igreja Católica na Madeira do Liberalismo
esperavam: “os tempos atuais reclamam pasto- ao Estado Novo”, Newsletter Ceha, n.º 43, 2012, pp. 18­‑20; SILVA, Fernando
Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols.,
res que defendam a grei cristã e católica, com Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978; SILVA, Paulo
ardor e firmeza, com fé ardente, contra os Go- Sérgio Cunha da, D. António Manuel Pereira Ribeiro, Bispo do Funchal (1915­
‑1957). Igreja e Sociedade nos Inícios do Século XX no Funchal, Dissertação
lias que ameaçam conspurcar, com ensinamen- de Mestrado em Teologia apresentada à Universidade Católica Portuguesa,
tos nefastos, a doutrina pura e santa do Evan- Lisboa, texto policopiado, 2012; SOUSA, Vitor Manuel Baeta de, D. Frei
David de Sousa, Bispo do Funchal, 1957­‑1965. Igreja e Sociedade Madeirense
gelho” (Boletim..., 1957, 4). na Segunda Metade do Século XX, Dissertação de Mestrado em Teologia
Foi provedor da Santa Casa da Misericór- apresentada à Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, texto policopiado,
2015; digital: FREITAS, Manuel Pedro, “CAMACHO, Cónego Manuel
dia durante vários períodos de 1928 a 1935 e Francisco”, Câmara de Lobos. Dicionário Corográfico, s.d.: http://www.
de 1954 a 1958. A sua intervenção conduziu a concelhodecamaradelobos.com/dicionario/camacho_conego_manuel_
francisco.html (acedido a 27 dez. 2018).
que se procedesse à transferência do hospital
da Av. da Arriaga para os Marmeleiros, em no- † Alberto Vieira
vembro de 1930.
Pertenceu à comissão organizadora e execu-
tiva da Exposição de Ourivesaria Sacra, reali- Camacho, Rui
zada no Convento de S.ta Clara em setembro­
‑outubro de 1951, sendo, depois, o presidente Alfredo Rui Craveiro Camacho nasceu no Fun-
da comissão responsável pela direção do Museu chal, na freguesia de São Pedro, a 19 de junho
Diocesano de Arte Sacra, cargo que exerceu de 1936 e faleceu em Lisboa a 5 de agosto de
desde a fundação do museu até à sua morte, 2014. Era filho de Alfredo Higino Camacho, jor-
em 1970. Foi, ainda, entre 1937 e 1960, tesou- nalista e administrador do Diário de Notícias, e de
reiro da Comissão de Assistência aos Indigen- Adelina Rosa Craveiro Camacho. Casou­‑se com
tes da Madeira e assistente do clero junto da a escritora Helena Marques, a 18 de agosto de
Juventude Católica. 1958, na capela da Encarnação, tendo a boda
Aprimorou­‑se a manusear a palavra escrita sido celebrada pelo P.e Agostinho Jardim Gon-
e oral, evidenciando­‑se como pregador e co- çalves; dessa união nasceram quatro filhos.
laborador da imprensa católica funchalense, Faz no Liceu do Funchal o curso complemen-
tendo sido diretor e editor do Boletim Eclesiásti- tar de ciências, que concluiu em 1953, conti-
co do Funchal, entre 1 de março de 1912 e 1 de nuando os estudos superiores no Instituto Su-
junho de 1918. perior Técnico, em Lisboa, durante dois anos.
C amacho , S érgio V alentim ¬ 733

Em 1971, partiu para Lisboa, onde fixou resi-


dência, acompanhado da mulher e dos filhos.
Na capital, dirigiu a revista Flama entre 1971 e
1973, para além de desempenhar o cargo de
chefe de redação adjunto no Jornal do Comércio
e de ser colaborador das agências Ciesa, Latina
e Penta.
Ainda na déc. de 70, Rui Camacho ocupou
os cargos de subchefe de redação do Repúbli-
ca, de 29 maio a 15 de julho de 1975. A 25 de
agosto de 1975, conjuntamente com a antiga
direção e um grupo de redatores do jornal Re-
pública liderado por Raul Rêgo (1913­‑2002),
fundou o jornal A Luta, onde exerceu as fun-
ções de chefe de redação adjunto.
Foi chefe de redação da ANI – Agência Noti-
ciosa de Informação –, lugar em que foi incum-
bido de elaborar o projeto da ANOP, Agência
Rui Camacho e Helena Marques, Café Funchal, c. 1994
de Notícias de Portugal, futura Agência Lusa,
(fotografia de Manuel Nicolau). da qual foi chefe de redação entre 1978 e 1985.
Na televisão, na déc. de 80, ocupou o cargo
Iniciou a sua prolífera e vasta carreira de jor- de coordenador geral das redações da RTP e
nalista no Diário de Notícias da Madeira, entran- de chefe de redação da RTP – Informação 2.
do para o quadro redatorial em 1956. Em 1961, Foi, ainda, responsável pela chefia da revista
embarcou numa curta experiência jornalística Negócios e do semanário Tempo, fundado pelo
em Lisboa, trabalhando para o Diário Ilustrado, jornalista Nuno Rocha. Em 1989, foi dirigir o
regressando, tempos depois, ao Diário de Notí- Diário de Lisboa, cargo que ocupou até ao fim
cias, onde foi redator e secretário­‑geral da em- da sua publicação, em novembro de 1990.
presa, acumulando com o cargo de correspon- Na déc. de 90, desempenhou algumas fun-
dente do Diário de Lisboa, da Associated Press ções em agências internacionais, tais como a
e da Paris Match. Durante este período, conci- Marconi, a Imago e a Hill and Knowlton.
liou a vida de jornalista com a de professor do Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivo de Luís Marino, vol. 12, fls. 48. e 132; Ibid.,
ensino secundário na Escola de Hotelaria e Tu- Conservatória do Registo Comercial do Funchal, liv. 170, fls. 435­‑435v.;
impressa: Comércio do Funchal, 21 jan. 1968; 24 mar. 1968; Diário de Notícias, 1
rismo do Funchal e com a de adjunto da dire- jan. 1955; 5 fev. 1956; 19 ago. 1958; 1 nov. 1958; 25 dez. 1958; 23 maio 1959; 4 jul.
ção da Madeira Engineering. 1959; 6 jul. 1959; 2 out. 1959; 6 nov. 1959; 1 jan. 1960; Jornal da Madeira, 1 jan.
1966; 6 jul. 1971; digital: “Faleceu o jornalista Rui Camacho”, Jornal Tribuna de
No Diário de Notícias, Rui Camacho assina- Macau, 7 ago. 2014: http://jtm.com.mo/ultimas/faleceu­‑jornalista­‑rui­‑camacho/
va os artigos de diferentes formas, tais como (acedido a 24 jul. 2017); “Morreu o jornalista Rui Camacho”, Público, 5 ago. 2014:
https://www.publico.pt/2014/08/05/portugal/noticia/morreu­‑o­‑jornalista­
Craveiro Camacho, C.C, R.C e Rui Camacho,
‑rui­‑camacho­‑1665541 (acedido a 24 jul. 2017); “Rui Camacho”, Jornalistas, s.d.:
tendo alguns dos seus artigos sido publicados http://www.jornalistas.eu/?n=9282 (acedido a 24 jul. 2017).
em diferentes jornais da imprensa madeiren- Carlos Barradas
se, como o semanário Comércio do Funchal e o
Jornal de Notícias.
A 13 de fevereiro de 1969, proferiu uma con-
Camacho, Sérgio Valentim
ferência na biblioteca da Escola Industrial do Filho de José do Nascimento Camacho e de
Funchal intitulada “A imprensa como comu- Henriqueta Zeferina Nunes Camacho, nasceu
nicação de massa e os seus problemas atuais”, na freguesia de Santa Luzia, concelho de Fun-
integrada nas celebrações do V Centenário de chal, a 14 de fevereiro de 1914 e faleceu a 26
Gutenberg. de agosto de 2010, no Funchal.
734 ¬ C â mara , A lfredo B ettencourt da

Sérgio Valentim Camacho, c. 1965 Pediu a aposentação a 31 de outubro de


(arquivo da Escola Secundária
Jaime Moniz).
1979, tendo obtido a pensão definitiva de apo-
sentação a 28 de abril de 1982.
Bibliog.: Arquivo da Escola Secundária Jaime Moniz.
Foi professor agregado no Maria Francisca Teresa Sousa Lino da Silva
Liceu Nacional do Funchal, de
6 de outubro de 1942 até 1948,
foi nomeado professor efeti- Câmara, Alfredo Bettencourt da
vo do Liceu da Horta, ilha do
Faial, Açores, durante o ano le- Professor e escritor madeirense, nascido a 21
tivo de 1947/1948. de abril de 1857, na freguesia de Santa Maria
Desde o ano letivo de 1948/1949 até ao de Maior, no Funchal, filho de João Joaquim Bet­
1978/1979, exerceu as suas funções no Liceu Na- tencourt da Câmara, empregado da Adminis-
cional do Funchal. Neste estabelecimento de en- tração do Concelho, e de Alexandrina Adelaide
sino, foi diretor do 1.º ciclo no período de 1951 Bernes Bettencourt da Câmara, neto paterno
a 1954, do 2.º ciclo (3.º, 4.º e 5.º anos dos liceus) de Tristão Joaquim Bettencourt da Câmara e de
em 1955/1956 e do 3.º ciclo (6.º e 7.º anos) em Rita Genoveva Bettencourt da Câmara, e mater-
1959/1960. no de José Maria Bernes e Teresa Rosa Bernes.
Foi nomeado diretor de Instalações de Físi- Alfredo Bettencourt da Câmara foi professor
ca pela portaria de 5 de setembro de 1950 para particular da instrução primária, tendo publica-
o ano letivo de 1950/1951 (Diário do Governo, do quatro obras de pendor pedagógico destina-
n.º 223, Série II, 23 set. 1950), tendo tomado das ao ensino primário, nomeadamente Nova
posse a 30 de setembro do mesmo ano. Tabuada, Sistema Métrico Decimal e Noções de Arit-
Foi responsável pela gerência do conselho ad- mética, em 1904, Gramática Portuguesa. Em harmo-
ministrativo conjuntamente com o Dr. Paulo nia com a Reforma Ortográfica ultimamente Publica-
Ramos, o Dr. Horácio Bento de Gouveia e o da, em 1912, obra adotada nas escolas de ensino
Dr. Luís Pinto Canedo Morais, tendo sido vice­ primário, e Exercícios sobre a Conjugação dos Verbos
‑reitor no ano letivo de 1961/1962 (Diário do Go- Regulares e Irregulares I e II, em 1915.
verno, n.º 270, II Série, 19 out. 1961). O autor define Gramática Portuguesa. Em har-
Orientou o estágio de Matemática em 1978/ monia com a Reforma Ortográfica Ultimamente Pu-
/1979, para o que foi nomeado após a infor- blicada como sendo um “tratado que ensina as
mação do presidente do Conselho Diretivo de regras para falar e escrever corretamente a lín-
onde transcrevemos as seguintes linhas: “Decla- gua portuguesa” (CÂMARA, 1912, 3). Dividida
ro que o professor Sérgio Valentim Camacho, em três capítulos principais, esta obra contem-
efetivo do 8.º grupo, reúne todas as condições pla as áreas de estudo da fonologia, da mor-
para o provimento do lugar de professor orien- fologia e da sintaxe, contendo, igualmente,
tador de estágio do ramo clássico”. conhecimentos básicos sobre verbos, palavras
Do seu processo constam Polígonos de Fre- invariáveis, orações, vícios das orações, mode-
quências das classificações por período/turma e los de análise e exercícios de pontuação.
anuais, bem como os testes de avaliação dos seus Destaque­‑se o livro Nova Tabuada, Sistema
alunos. Métrico Decimal e Noções de Aritmética, delibera-
Licenciou­‑se em Ciências Matemáticas pela damente produzido para uso das escolas pri-
Univ. de Coimbra, com a classificação de 16 valo- márias e que contém toda a informação essen-
res, e obteve 14 valores no exame de Estado. cial sobre o ensino da matemática no ensino
Iniciou a sua carreira, como professor contra- primário. O seu conteúdo programático tem
tado, no Liceu Alexandre Herculano, no Porto, como temas os algarismos, as “tabuadas de
para o serviço de exames, entre 26 de junho e 30 somar, diminuir, multiplicar e dividir, unida-
de julho de 1941. des de diversas ordens e suas relações com a
C â mara , A nt ó nio B ettencourt da ¬ 735

unidade simples, unidade – número e suas es- da Câmara, tenente de Caçadores 12, e de
pécies” (CÂMARA, 1904, índice), o modo de Maria Rita Jardim da Câmara, proprietários
ler os números inteiros, a numeração romana, em São Martinho, residentes ao sítio do Ribei-
o sistema monetário, as frações ordinárias e de- ro Seco.
cimais, o sistema métrico, as medidas lineares, Filho de militar, segue a mesma carreira, ini-
de superfície, valor, capacidade e massa. ciando aos 17 anos os estudos no Real Colé-
Homem esclarecido na história e apaixona- gio Militar, onde frequenta o curso da arma
do pela literatura, Alfredo Bettencourt da Câ- de Infantaria. Assenta praça no Regimento
mara era descrito por Alfredo de Freitas Bran- de Cavalaria n.º 2 d’el­‑Rei, a 24 de julho de
co, visconde do Porto da Cruz, como sendo um 1896, onde permanece até 10 de novembro
homem “de grande cultura literária e […] um de 1899, período em que é promovido a al-
gramático distinto” (PORTO DA CRUZ, 1953, feres, tornando­‑se, por decreto desta mesma
36). Exerceu a atividade de docência no ma- data, aspirante a oficial do Regimento de In-
gistério primário privado durante muitos anos, fantaria n.º 27. Aí, será professor do 2.º curso
tendo igualmente ensinado no Colégio Lisbo- das escolas regimentais de Infantaria por pe-
nense, no Funchal. ríodos entre 1900 e 1904.
Alfredo Bettencourt da Câmara faleceu a 26 É alferes quando se casa aos 24 anos, a 31
de janeiro de 1921, aos 63 anos, na sua residên- de outubro de 1903, com Joana Sultana Abu-
cia, na R. Imperatriz Dona Amélia, no Funchal, darham, nascida no Funchal, mas registada
vítima de congestão pulmonar. Por altura da com nacionalidade francesa no vice­‑consulado
sua morte, a imprensa madeirense descreveu­‑o de França desta cidade, como seu pai e tios.
como homem dedicado, “tendo exercido o seu O matrimónio realiza­‑se na conservatória da
mister com notável proficiência e distinção” Administração do Concelho do Funchal e na
(“Os mortos”, DM, 27 jan. 1921, 2). sacristia da igreja de S. Pedro, tendo o facto de
a noiva professar o culto israelita exigido a dis-
Obras de Alfredo Bettencourt da Câmara: Nova Tabuada, Sistema Métrico
Decimal e Noções de Aritmética (1904); Gramática Portuguesa. Em harmonia pensa do impedimento mista relegionis do pre-
com a Reforma Ortográfica ultimamente Publicada (1912); Exercícios sobre a lado diocesano. A morte inesperada de Jacob
Conjugação dos Verbos Regulares e Irregulares I e II (1915).
Abudarham, pai da noiva, em setembro pode-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Conservatória do Registo Civil do Funchal,
Extrato de Registo de Óbito, liv. 1950, fl. 27v.; Ibid., Registos Paroquiais, Santa
rá ter acelerado o casamento, do qual vêm a
Maria Maior, liv. 2078, fls. 29­‑29v.; impressa: CÂMARA, Alfredo Bettencourt nascer duas filhas.
da, Nova Tabuada, Sistema Métrico Decimal e Noções de Aritmética para Uso
das Escolas Primárias, 17.ª ed., s.l., Henrique A. Rodrigues & C.a, Lda, 1904; Id.,
Gramática Portuguesa. Em harmonia com a Reforma Ortográfica ultimamente
Publicada, Funchal, Henrique A. Rodrigues & C.ª, Lda, 1912; CLODE, Luiz
Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; “Os mortos”, Diário da Madeira, 27 jan. 1921, p. 2;
PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária
da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1953; “Registo civil”,
Diário da Madeira, 28 jan. 1921, p. 1; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional
de Turismo e Cultura, 1992; VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António Aragão
de, Madeira. Investigação Bibliográfica, vol. i, Funchal, Centro de Apoio de
Ciências Históricas, 1981.
Andreia Carol de Carvalho
Fernanda de Castro

Câmara, António Bettencourt da


António Bettencourt da Câmara era natural da
freguesia de São Pedro, concelho do Funchal.
Nascido a 20 de janeiro de 1879, é o primeiro Ten.-Cor. António Bettencourt da Câmara, março de 1925
dos cinco filhos de José Joaquim Bettencourt (ABM, Photographia Vicente).
736 ¬ C â mara , A nt ó nio B ettencourt da

É promovido a tenente por decreto de 1 de família, mas só a viria a praticar a tempo in-
dezembro do último ano referido. A 27 de teiro após aposentação militar. A concentração
julho de 1908, é colocado no Regimento de In- de esforços financeiros para a consolidação
fantaria n.º 27. Por decreto de 15 de novembro de empresas leva­‑o a associar­‑se, em fevereiro
de 1911, é promovido a capitão e, a 9 de dezem- de 1908, a Max Abecassis, casado com Mary
bro de 1912, passa ao Estado­‑Maior de Infan- Abudarham, e a António Justino Henriques
taria, sendo encarregado da instrução militar de Freitas, constituindo a firma Henriques &
preparatória desta arma no distrito administra- Câmara & C.ª Ld.ª, com sede na rua dos Fer-
tivo do Funchal. Exerce o cargo de adjunto no reiros, n.º 115. A 9 de agosto de 1913, o casal
Comando Militar da Madeira a partir de 8 de Bettencourt da Câmara, através daquela firma,
maio de 1915 e é promovido a major em 1917, torna­‑se parte interessada noutra sociedade
por decreto de 27 de agosto, sendo colocado comercial constituída nesta data, denominada
no regimento de Infantaria n.º 27. Passa à si- The Madeira Wine Association Limitada.
tuação de adido quando lhe é concedida licen- Tem o posto de major quando, a 14 junho
ça ilimitada por decreto de 27 de fevereiro de de 1919, na Assembleia Geral da Associação
1919 e ascende à patente de tenente­‑coronel Comercial e Industrial do Funchal (ACIF),
por decreto de 18 de outubro de 1921. convocada para eleição de novos corpos ge-
Ao longo da carreira, recebe algumas conde- rentes, é eleito seu presidente, numa equipa
corações. Enquanto major, em março de 1918, da qual fazem parte John Ernest Blandy (vice­
é proposto pelo comandante militar da Madei- ‑presidente), José da Costa (tesoureiro), José
ra para ser agraciado com a medalha de prata Quirino de Castro, Leonídio Casimiro Cunha
da classe de Comportamento Exemplar, rece- e Charles Blandy Cossart. Esta equipa conta
bida a 1 de junho desse ano. Conta ainda com ainda, segundo o Diário de Notícias do dia se-
a medalha de ouro comemorativa das campa- guinte, com os empresários Carlos José Zino,
nhas do Exército Português, com a legenda Carlos de Almeida Fernandes e Manuel Jorge
“Funchal­‑Defesa Marítima 1916­‑1918”, atribuí- Pinto Correia. A direção tem a duração de um
da por via da lei n.º 1123, de 4 de março de ano. A 28 de junho, após tornar­‑se presiden-
1921, e com a medalha da Vitória nos termos te da ACIF, constitui, com John Frotingham
do dec. n.º 8993, de 17 de julho de 1923. Passa Welsh e Ricardo Justino Henriques de Freitas,
à situação de adido por lhe ter sido concedida a Sociedade de Bordados da Madeira, Ld.ª,
licença ilimitada em fevereiro de 1919. com sede na rua do Dr. Vieira, n.º 192, entran-
A par da sua carreira militar, é admitido, em do assim noutro ramo de negócios da praça
1901, como leitor no Gabinete de Leitura da As- madeirense. Em 1925 toma, por cedência, as
sociação Comercial do Funchal, aproximando­ quotas dos irmãos Justino Henriques, que se
‑se do mundo empresarial, meio onde se en- desligam da Madeira Wine.
volve por imperativos do falecimento de seu Com a instauração da Ditadura Militar, este
sogro. A 18 de junho de 1904, Meny Abu- tenente­‑coronel aposentado será nomeado em
darham, último filho de Jacob e, à data, único 1926, por alvará de 14 de agosto do novo go-
representante da firma Viúva Abudarham & Fi- vernador civil do distrito, Francisco Luzignam
lhos após o falecimento do pai, realiza, num de Azevedo, para fazer parte da comissão ad-
cartório da cidade, um contrato de administra- ministrativa interina da Junta Geral do Distri-
ção com António Justino Henriques de Frei- to do Funchal, que também o indigita para a
tas e o casal Bettencourt da Câmara, a quem sua presidência. São vogais efetivos desta co-
entrega “a gerência e administração de todos missão Abel Magno de Vasconcelos (capitão),
os negócios” daquela firma (ABM, 3.º Cartório Alexandre da Cunha Telles, Samuel da Con-
Notarial do Funchal, liv. 1408, fl. 66). António ceição Vieira (primeiro­‑tenente), Luís Portu-
Bettencourt, com 25 anos, estaria, aparente- gal Rodrigues dos Santos e respetivos substi-
mente, a iniciar­‑se na atividade empresarial da tutos. Este foi um período muito instável para
C â mara , A nt ó nio de C arvalhal E smeraldo e ¬ 737

os corpos administrativos. O governador civil Bibliog.: manuscrita: ABM, 1.º Cartório Notarial do Funchal, livs. 3171 e 3223;
Ibid., 3.º Cartório Notarial do Funchal, livs. 1408 e 1429; Ibid., Governo Civil
apresenta o seu pedido de exoneração a 5 de do Funchal, liv. 83, Alvarás, 1919­‑1927, fl. 175; Ibid., Junta Geral do Distrito
março de 1927; na sequência deste pedido, e Autónomo do Funchal, Secretaria, livs. 2264­‑2265, Atas das Sessões da Comissão
Executiva/Administrativa, 1925­‑1928; Ibid., Registos Paroquiais, São Pedro,
por solidariedade para com quem o nomea- Batismos, liv. 1383; Ibid., Registos Paroquiais, São Pedro, Casamentos, liv. 6821­‑A;
ra, de quem era também amigo, António Be- AHM, DIV/3/7/1620; impressa: “Associação Comercial do Funchal”, Diário
de Notícias, Funchal, 15 jun. 1919, p. 2; “Associação Comercial. Reunião da
ttencourt da Câmara apresenta idêntico pedi- assembleia geral”, Diário de Notícias, Funchal, 11 jun. 1919, p. 1; CLODE, Luiz
do, no que é acompanhado por Alexandre da Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983; “Junta Geral do Funchal”, Diário de Notícias,
Cunha Telles e Luís Portugal Rodrigues dos
Funchal, 8 mar. 1927, p. 1; MARQUES, A. H. de Oliveira, História de Portugal,
Santos. São exonerados por alvará datado de 7 Lisboa, Palas Editores, 1978; MELO, Luís de Sousa, Associação Comercial e
Industrial do Funchal. Esboço Histórico (1836­‑1933), Funchal, Edicarte, 2002;
de março, do mesmo governador, que declara
SANTOS, Rui, “O cemitério israelita do Funchal”, Islenha, n.º 10, jan.­‑jun. 1992,
terem os demissionários exercido o cargo “com pp. 125­‑164; Id., “A família Abudarham no Funchal”, Islenha, n.º 12, jan.­‑jun.
o mais acrisolado patriotismo, inexcedível zelo 1997, pp. 108­‑140; “Tenente­‑coronel António Bettencourt da Câmara”, Diário de
Notícias, Funchal, 1 set. 1927, p. 1; 31 ago. 1928, p. 1.
e comprovada competência” (ABM, Governo
Civil do Funchal, liv. 83, fl. 194v.). A represen- Maria de Fátima Vieira de Abreu
tação solicitando o regresso à Junta Geral deste
grupo, apresentada a 31 de março ao novo go- Câmara, António de Carvalhal
vernador civil e subscrita por inúmeras pessoas
Esmeraldo e
de todas as classes sociais da Ilha, não faz vol-
tar Bettencourt da Câmara à presidência da co- Nasceu na Madeira, cerca de 1662. Desconhece­
missão administrativa da Junta Geral. ‑se parte do seu percurso de vida e aponta­‑se
Vem a falecer poucos meses após a demis- como data do seu falecimento aproximada-
são deste cargo, no qual, segundo o Diário de mente 1731.
Notícias, este cidadão de “carácter impoluto” Muito pouco ou nada conhecida ficou a obra
e “finíssimo trato, lhano, afável” “nunca que- deste inspirado poeta seiscentista, com acérri-
brou a elegância mental e moral que o carac- mo interesse pelas letras. De ascendência fidal-
terizava, orientando toda a sua ação num alto ga, era filho de Simão Gonçalves da Câmara e
sentimento de justiça e de utilidade coletiva”
(DN, 1 set. 1927, 1). Um ano depois, o mesmo
periódico acrescentaria que este homem de
ação, de “inteligência lúcida e esclarecida […],
deu provas da rigidez do seu carácter e do seu
largo espírito de iniciativa pela forma como
honrou o lugar […] À sua benéfica ação ficou
devendo esta ilha valiosos e inestimáveis servi-
ços”, pelo que merece um “lugar de destaque
no alto comércio desta ilha, tendo dedicado
uma extraordinária atividade a favor do desen-
volvimento e expansão da indústria dos vinhos
da Madeira” e assumido um papel de muito re-
levo na promoção deste produto madeirense
no estrangeiro (DN, 31 ago. 1928, 1).
Ao longo da sua vida de casado, viveu, pri-
meiro, no beco de São Luís, freguesia de Santa
Luzia; em 1919, no Muro da Coelha, São
Roque; e, finalmente, na rua dos Ilhéus, n.º 29,
freguesia de São Pedro, residência onde veio a
falecer a 31 de agosto de 1927, com apenas 48 António de Carvalhal Esmeraldo e Câmara,
anos. Foi a sepultar no cemitério das Angústias. aguarela da Cithara de Aonio (BNP, cód. 11521).
738 ¬ C â mara , A nt ó nio de C arvalhal E smeraldo e

de Maria Correia, e recuperou o mesmo nome Congresso soberano,/A Lusitana, e Régia Ma-
do avô paterno, António de Carvalhal Esme- jestade.//Mas cale a minha Euterpe que se in-
raldo (casado com Jerónima Pereira). Parece fama/Em querer requintar as vossas glórias,/
ter crescido sem a presença do pai a partir de Por quem de balde sei quem vos aclama.//
1677, data em que aquele terá falecido. Da Real Academia entre as Histórias/Lá viverá
Desempenhou o cargo de vereador da Câma- eternal a vossa fama,/Por quem vão imortais
ra Municipal do Funchal (CMF) em 1727, cargo estas Memórias” (Id., Ibid.).
em que foi considerado indómito e temerário, e Com descendência dos Carvalhal, de Ponta
foi ainda fidalgo cavaleiro da Casa Real (por al- Delgada, conhecida como a corte do Norte,
vará de 1662). António Carvalhal, distinto mem- pelo facto de aí ter existido um grupo signifi-
bro dos Correias, era, por essa razão, homem cativo de famílias importantes com muitos in-
dos principais da terra, como se comprova pelo teresses fundiários, a sua ascendência remonta
desempenho do cargo de vereador e pela ocu- a Manuel Afonso Sanha, seu 5.º avô, escudeiro
pação de alguns lugares na Misericórdia do do infante D. Fernando, 2.º senhor da Ilha e
Funchal, na qual, à semelhança de muitos dos pai de D. Manuel I, que viera para a Madeira
seus colegas de vereação, foi escrivão de 1.ª con- com comissões da Fazenda do Infante, fazen-
dição em 1707, 1713, 1714, 1720 e informador do o seu assento naquela freguesia, no tempo
em 1716, circunstâncias reveladoras do prestí- de Afonso V. O seu 3.º avô, António Carvalhal,
gio social de que usufruía. Com efeito, a passa- “o das forças”, fora cavaleiro do hábito de Cris-
gem pela Misericórdia era muito significativa, to e fidalgo escudeiro, por mercê de D. Filipe I
sinónimo de elevado estatuto social, pois os 100 de Portugal e II de Castela, falecido em 1598.
irmãos de 1.ª condição que a constituíam eram Terá escolhido o pseudónimo Poeta Aónio,
recrutados entre pessoas da mais elevada estirpe segundo António Aragão, pela relação direta à
social, que precisavam de disponibilidade eco- região da Grécia antiga, a Aónia, região da Beó-
nómica e presencial para se poderem dedicar às cia, de inspiração das musas e dos deuses, tam-
funções que lhes estavam cometidas. bém cognome de Baco Hércules e Apolo; tal
Da amizade próxima com Henrique Noro- era o nome que os poetas atribuíam aos montes
nha, a quem pediu a diligência de lhe corri- Parnaso e Hélicon, onde teria vivido Áon.
gir a obra, resulta uma profunda dedicatória Julga­‑se que nunca terá saído da Ilha, local
deste a António Carvalhal nas Memórias Secula- que só por si já o inspirava, recitando os seus
res e Eclesiásticas: “Meu amigo. Estas Memórias poemas provavelmente acompanhado do som
que por obrigação dos Estatutos, se devem de- da viola. Contrariamente à ideia de que teria
dicar a El Rei, buscam primeiro na vossa corre- estado preso numa fortaleza por motivos amo-
ção, aquela decorosa emenda, com que devem rosos, a julgar por elementos autobiográficos
aparecer em público reverentes; porque sain- indiciados pelo soneto 42 da sua obra magis-
do da minha mão informes, só assim consegui- tral, Cithara de Aonio, António Carvalhal, então
ram nas vossas, pela doutrina, o carácter que vereador da cidade do Funchal, conheceu o
por minhas desmerecem. E se por voto, se ofe- cárcere em 1727, por um período aproximado
recem nas aras de uma Majestade Augusta, por de três anos, por desentendimentos político­
afetos se dedicam a uma amizade recíproca” ‑religiosos, mais concretamente por ter defron-
(NORONHA, 1996), retribuída por António tado o bispo, D. Fr. Manuel Coutinho, manifes-
Carvalhal, na página seguinte, com um soneto, tando, juntamente com seu sobrinho, António
que assina como A. A. Edo: “As Memórias da Correia Lomelino (procurador do concelho),
pátria Antiguidade/Contai Henrique e saiba o ideias contrárias às do prelado e conformes às
Tejo afano,/Se sois ArgolaLusa, Maropusula- da CMF no que respeitava às ordens e incum-
no,/Que Lípio também sois na nossa idade.// bências resultantes de um edital acerca da pro-
Para viver a par da eternidade/Grande assen- cissão do Corpo de Deus na cidade. Carvalhal
to vos deu se não me engano,/No seu Museu, e Lomelino nada mais fizeram do que acelerar
C â mara , A nt ó nio de C arvalhal E smeraldo e ¬ 739

um conflito já mais ou menos latente entre o No Catálogo de Manuscriptos da Biblioteca Pú-


bispo e o senado funchalense, representativo blica Eborense, existem alguns sonetos em por-
da elite insular, denunciador de exigências do tuguês, outro em castelhano e um epigrama em
prelado. Entretanto, e com o conhecimento latim, integrados numa compilação de poesias
e consentimento de D. João V, que demorou de vários autores, “em louvores dos sucessos glo-
cerca de três anos a pronunciar­‑se sobre este riosos, e ações heroicas, que no Estado a Índia
assunto delicado de índole regional, António fez o Ex.mo Sr. Vasco Fernandes Cesar, Vice­
Carvalhal obtém, finalmente, ordem para ser ‑Rei, e Capitão General daquele Estado: ofere-
libertado, mas o seu estado débil de saúde não cidas ao Ex.mo Sr. Luiz Cesar de Menezes pelo
lhe permitiu resistir, vindo entretanto a falecer. P. M. Fr. Francisco Xavier de Santa Tereza, Lei-
Apesar de não se ter casado, teve um des- tor de terça era a Sagrada Teologia” (RIVARA,
cendente, a 18 de outubro de 1700, o P.e Félix 1850). A Gazeta de Lisboa Occidental dá conta de
Lucas de Carvalhal Esmeraldo (que se recu- uma notícia, confirmando que houve “um cer-
sou a obedecer ao bispo na questão do exame tame Poético intitulado: Triunfo Académico,
para confessores e que veio a tornar­‑se procu- dos melhores engenhos daquele povo” na ilha
rador da Câmara, em Lisboa, representando da Madeira (Gazeta de Lisboa Occidental, 12 ago.
o senado em causas contra o prelado). Lucas 1728), reproduzida por Teófilo Braga na Arcá-
de Carvalhal foi um presbítero do hábito de dia Lusitana, onde menciona que, a 24 de maio
S. Pedro que se dedicou com desvelo à com- de 1728, nesse “Triunfo académico por ocasião
pilação, ao arquivo, à correção e aos comen- ou em obséquio dos felices casamentos dos se-
tários dos poemas de seu pai, formando um reníssimos Príncipes dos Brasis e das Astúrias foi
manuscrito de 626 páginas intitulado Cithara celebrada no palácio do governador da ilha da
de Aonio, Poema Erótico Dividido em Seis Descantes Madeira D. Filipe de Alarcão Mascarenhas, reci-
(ou assuntos, que surgem tematicamente dis- taram Epitalâmios, Epigramas latinos, Sonetos,
tribuídos em cânticos: “Requebros”, “Despre- Romances e Glosas, os seguintes personagens:
zos”, “Carinhos”, “Ciúmes”, “Delícias” e “Lá- Domingos de Sá Martins, P. António Pereira da
grimas”), que esteve durante muito tempo na Costa; F. António do Sacramento, António do
posse de António Aragão Correia (1921­‑2008), Carvalhal Esmeraldo, Fr. Manoel da Visitação,
sendo depois depositado na Biblioteca Nacio- Pedro Valente, Gregório Carlos Bettencourt,
nal. Desconhece­‑se outra obra produzida por Fr. Manoel de San Thomaz e o Dr. Agostinho de
António Carvalhal, para além de sonetos dis- Órnellas e Vasconcellos” (BRAGA, 1899). Teó-
persos. António Aragão refere a existência de filo Braga refere a existência destes textos ma-
três volumes do autor em latim e português, nuscritos no acervo da Biblioteca Nacional, nos
mas esta hipótese parece pouco provável, uma reservados da Coleção Pombalina, onde have-
vez que Félix Lucas de Carvalhal apenas refe- rá epigramas latinos, uma glosa e sonetos epi-
re na prefação (ver abaixo) que, “compondo talâmicos da autoria de António de Carvalhal
com o natural furor e com o adquirido estilo Esmeraldo.
nas Línguas Italiana, Castelhana, e na Portu- Segundo António Aragão, o manuscri-
guesa já em heroico e já em lírico Epitalâmios, to ainda desconhecido de Carvalhal, Citha-
Epicédios, Genetilíacos, Parenéticos, Epibate- ra de Aonio, foi encontrado no Convento de
rions, Panegíricos, Perpenticons, Eucarísticos, S.ta Clara. Trata­‑se, de facto, de uma precio-
Sotérias, e outras muitas obras como Festins, sidade literária, “em ótimo estado de conser-
Loas, Bailes, Folias e Entremeses; de forma vação, capa de cabedal, com lombada larga,
q. se fizesse coleção de todas as obras poéti- dourada a ouro fino, e caligrafia que se desen-
cas, que fez em vulgar, e em latim faria, sem volve sempre num desenho muito certo, claro
encarecim.to, ou dúvida alguma, três grandes e cuidado” (ARAGÃO, 1964, 34). Outra in-
volumes” (BNP, Reservados, António do Carva- formação curiosa que nos fornece é a de que,
lhal Esmeraldo, Cythara, “Prefação”). por altura do terramoto de Lisboa (1755), o
740 ¬ C â mara , A nt ó nio de C arvalhal E smeraldo e

P.e Félix Lucas de Carvalhal se encontrava re- Líricas, que eram com louvor aprovados, não
tirado num convento, conseguindo salvar­‑se, só pelos naturais, mas ainda pelos melhores
e consigo o texto, como se tivesse feito pro- Poetas Portugueses, e Latinos, que passavam
messa a seu pai, por quem nutria uma enor- desta Corte p.a aquela Ilha. Igualmente foi in-
me admiração, como o afirma no prefácio, e clinado à poesia vulgar, e ainda que a natureza
que lhe confiou a tarefa de escriba, de emen- p.ª esta o considerava, com tudo, como igno-
dar e reformar a obra, tal a confiança e crença rava os primores, e preceitos da arte, p.ª com
na sua erudição e nos seus méritos literários. a melhor arte a exercitar, se lhe fez preciso
Esse manuscrito, no qual se contam 50 sonetos aprendê­‑los, não pelas Artes métricas, ou ver-
caracteristicamente heroicos e elegíacos, cor- sificatórias […] mas sim pela Arte Poética de
rigidos, respondidos ou comentados, inicia­‑se Aristóteles, de Horácio […] como também
com um longo prefácio (“Prefação – segundo na Poetic. Aristot. de Paulo Belini, de Antó-
o original: Ao Poema Erótico intitulado Citha- nio Minturo, de Moratori, e pelas de outros,
ra de Aonio”), pela mão de Félix Lucas de Car- que todos estes, com os magistrais, e mais fa-
valhal, com mais de 100 páginas, enlaçado por migerados poetas […] se instruía na lição
notas ou reformas aconselhadas, laterais e em deles, lhe ia está dispondo, e facilmente com
rodapé, que inclui a transcrição de citações Entusiasmo, porque assim como o estudo sem
de clássicos, como Ovídio, Vergílio, Horácio, engenho não faz o poeta, assim também não
Séneca, Plauto, comparando­‑os com grandes o faz a natureza sem arte, […] porque para
poetas seus contemporâneos. Inclui poemas e conseguir está, por meio de estudo, muito
louvores de amigos dirigidos a António Carva- neste, p.ra com mais ligeiro curso alcançar a
lhal e, em nota de abertura, a dedicatória de arte por prémio” (BNP, Reservados, António
Carvalhal a Henrique Noronha Pina (Lício) e do Carvalhal Esmeraldo, Cythara, “Prefação”).
a Francisco de Vasconcelos Coutinho. Alude­‑se, nesta extensa introdução, ao facto
No longo prefácio que Lucas de Carvalhal de que António de Carvalhal fora, por diver-
Esmeraldo dedica ao pai, apoiado nos autores sas vezes, e pelos seus melhores conselheiros
clássicos e confrontando­‑o com os da época poéticos e amigos, aconselhado a publicar
que opinaram sobre a sua escrita, diz que “se estas suas composições, revestidas de talento
dá uma breve notícia de A. deste Poema, em e erudição. Contudo, recusava­‑o com os sóli-
que, para o eximir da Rigorosa censura, se de- dos fundamentos de que certamente serviria
clara o motivo, que teve p.a fazer os Sonetos, mais de descrédito do que de abono aos seus
e Razões que o precisaram a ordenar delas o sérios e adiantados anos, porque nesta obra se
mesmo Poema, em que se faz juízo Apologé- publicariam somente as verduras da sua mo-
tico sobre as palavras […], por serem sem ne- cidade, do quanto nesta fizera, tão cheias de
cessidade de novo inventadas, em q. finalm.te puerilidade, certamente considerando­‑as inca-
se pede ao sapientíssimo e erudito N. a Revi- pazes desse êxito, por poderem “ofender o pa-
são desta poética obra, e a emenda dos seus ladar com o seu amargo mel” (Id., Ibid.). Mais
defeitos, erros, e vícios, sobre os quais também adiante, surge­‑nos a informação de que Lucas
superficialm.te se toca. António de Carvalhal de Carvalhal Esmeraldo ponderou alterar o tí-
Esmeraldo, Cavaleiro da Casa de Sua Majest., tulo da obra atribuído por seu pai, alvitrando
por alvará passado no ano de 1676, […] natu- outras possibilidades, fundamentalmente com
ral da Ilha da Madeira, a versar e instruir­‑se nas receio dos censores. Contudo, a obra Chitara
Universidades, Colégios e nas Academias […], de Aonio manteve a designação original: Citha-
sabia as Línguas Francesa, Italiana, Castelha- ra de Aonio, Poema Erótico Que Compunha e Escre-
na e Portuguesa […] tinha bebido das fontes via Antonio de Carvalhal Esmeraldo, Fidalgo Ca-
da poesia as puras lições […] e os graves es- valleiro da Caza de Sua Magestade Fidellissima.
tilos das melhores Musas […], compunha António Carvalhal poderá ser recorda-
com elegância Poemas Heroicos, Elegíacas e do como o poeta aflito e perdido de amor
C â mara , A nt ó nio R osa da ¬ 741

platónico, de fina lira infeliz, mas de irrequieta Foi ordenado presbítero a 23 de setembro de
sensibilidade, autor de mui belos sonetos de ins- 1939, celebrando missa nova no dia seguinte e
piração clássica firme e elevada, bem ao tom de passando a ser conhecido como Rev. P.e Rosa.
uma Fenix Renascida ou Obras Poéticas dos Melhores Logo a partir desse ano, tornou­‑se professor e
Engenhos Portugueses. Como ele próprio se auto- prefeito do Seminário Diocesano do Funchal.
caracteriza, na dedicatória da sua Cithara, “um O sacerdote diocesano foi, a partir da déc.
fino namorado, outro verso achado em penas, de 40, vigário no Caniço (Santa Cruz). Em
se de amor perdido” (BNP, Reservados, António 1954, é­‑lhe dedicada uma publicação intitula-
do Carvalhal Esmeraldo, Cythara). O manuscri- da Versos de Homenagem ao Rev.º Padre António
to deste desconhecido e inspirado poeta ma- Rosa Câmara, da autoria de uma paroquiana
deirense, que, segundo Noronha, foi um bom anónima (M. J. C.), que, em 16 páginas e 112
poeta, em tudo constitui um marco nas mais an- quadras, relata a tristeza da perda do padre,
tigas poesias insulares barrocas, se não nas pri- que partiu para outra paróquia, o desejo do
meiras de que se tem conhecimento. seu regresso e as suas várias obras e ações na
paróquia, entre outras: alterações numa cape-
Obras de António de Carvalhal Esmeraldo e Câmara: Cithara de Aonio.
Poema Erótico Dividido em Seis Descantes.
la da Mãe de Deus (para o financiamento da
Bibliog.: manuscrita: BNP, Coleção Pombalina, Miscelâneas, n.º 126, fls. 152­
qual se editava aquele livro), organização de
‑174; Ibid., reservados, cód. 11521, António do Carvalhal Esmeraldo, Cithara concertos na casa paroquial, construção de um
de Aonio. Poema Erótico Dividido em Seis Descantes; impressa: ARAGÃO,
escritório, compra de paramentos novos, reno-
António, “António de Carvalhal Esmeraldo, Aónio. Desconhecido e inspirado
poeta madeirense que viveu na época de Seiscentos”, Das Artes e da História da vação das sacristias e do sacrário de Jesus, cons-
Madeira, vol. 6, n.º 34, 1964, pp. 33­‑35; BORGES, Ângela et al., Antologia Literária, trução de uma corredoura para o púlpito e de
Madeira. Sécs. XVII e XVIII, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1987;
BOTELHO, Sebastião José X., História Verdadeira dos Acontecimentos da Ilha da uma sede de reuniões, compra de um motor e
Madeira depois de Memorável Dia 28 de Janeiro, Escrita por Ordem Chronolgica de bancos para a igreja, construção de novos
por Sebastiaõ José Xavier Botelho e Comprovada com Testemunhos da Melhor Fé
dos Seus Empregos, Jerarquia e Independencia para Destruir Hum Libello Famoso confessionários, renovação dos passos da via­
Impresso em Londres por Hum Cidadaõ Funchelense, Lisboa, Officina de António ‑sacra e das portas de guarda­‑vento, compra de
Rodrigues Galhardo, 1821; BRAGA, Teófilo, História da Literatura Portuguesa.
Arcádia Lusitana, Lisboa, Imprensa Moderna, 1899; A Fenix Renascida ou uma figura de St. Antão (orago da freguesia) e
Obras Poeticas dos Melhores Engenhos Portuguezes, 2.ª impr. acrescentada por outra de Nossa Senhora de Fátima, renovações
Mathias Pereira da Sylva, Lisboa, Officina dos Herdeiros de Antonio Pedrozo
Galram, 1746; Gazeta de Lisboa, 21 jul. 1832; Gazeta de Lisboa Occidental, 12
nas figuras da Senhora do Livramento e de St.
ago. 1728; JARDIM, Maria Dina dos Ramos, A Santa Casa da Misericórdia do António, compra de uma figura de S. João de
Funchal. Século XVIII, Funchal, CEHA, 1996; MARINO, Luís, Musa Insular: Poetas
da Madeira, Funchal, Eco do Funchal, 1959; NORONHA, Henrique Henriques
Brito, colocação de novas árvores e de um as-
de, Nobiliário da Ilha da Madeira, São Paulo, Revista Genealógica Brasileira, sento à frente da igreja, de azulejos com repre-
1948; Id., Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da
Diocese do Funchal, na Ilha da Madeira, transcr. e notas Alberto Vieira, Funchal,
sentações do Coração de Maria e de Jesus Deus
CEHA, 1996; RIVARA, Joaquim Heliodoro da Cunha, Catálogo de Manuscriptos humanado perto da entrada da igreja e de azu-
da Biblioteca Pública Eborense, Que Comprehende a Noticia dos Codices e Papeis
lejos com a Imaculada Conceição nas fontes.
Relativos ás Cousas da America, Africa e Asia, t. i, Lisboa, Imprensa Nacional,
1850; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário A par do P.e Rosa, saíram também o P.e Cama-
Madeirense, 3 vols., Funchal, Typ. Esperança, 1965; TRINDADE, Ana Cristina cho e o P.e Alfredo.
Machado, Plantar Nova Christandade. Um Desígnio Jacobeu para a Diocese do
Funchal. O Episcopado de D. Frei Manuel Coutinho. 1725­‑1741, Dissertação de Foi ainda pároco na Ribeira Brava (de 1956 a
Doutoramento em História apresentada à Universidade da Madeira, Funchal, 1960, ano em que se dá a cisão da paróquia em
texto policopiado, 2011.
três, tendo como cura Joaquim Roque F. Dan-
Helena Paula F. S. Borges tas), em Santo António (Funchal), na Visitação
(Funchal), em São Pedro (a partir de 29 de se-
tembro de 1966), da Sagrada Família (Funchal)
Câmara, António Rosa da e em São José (desde 30 de setembro de 1969).
António Rosa da Câmara nasceu a 4 de Foi nomeado vogal da Comissão Diocesa-
setembro de 1915 na freguesia de São Pedro, na de Liturgia e Música Sacra a 6 de outubro
Funchal, filho de António Agostinho Câmara de 1967 e, no ano seguinte, a 13 de julho, foi
e de Guilhermina da Conceição Câmara. Mor- apontado como cónego honorário da Sé do
reu a 7 de fevereiro de 1982 no Funchal. Funchal. Mais tarde, mandou reconstruir a
742 ¬ C â mara de L obos

casa paroquial de S. Pedro, em mau estado de sensibilidade pela cultura popular, rural e re-
conservação. gional, já expressa na prosa jornalística.
António Rosa da Câmara faleceu aos 66 anos. É de mencionar ainda a sua tradução do
A missa de corpo presente realizou­‑se na igreja drama A Casa da Boneca, de Henrik Ibsen, que
de S. Pedro e foi celebrada pelo vigário­‑geral foi publicada na Revista Madeirense a 14 de abril
da Diocese em representação do bispo do Fun- de 1901.
chal, D. Francisco Santana, que se encontrava
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. xix e
gravemente doente e viria a morrer no mês se- xx, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983.
guinte. Atualmente, o seu corpo repousa no António Moniz
cemitério de N.ª Sr.ª das Angústias, em São
Martinho, Funchal.
Bibliog.: impressa: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Câmara de Lobos
Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; MATOS, António
Marinho, Ribeira Brava. Evangelização, Devoção e Património Cultural. Subsídios Câmara de Lobos apresenta uma ligação muito
para a História da Sua Paróquia, Funchal, Diocese do Funchal, 2003; M. J. C.,
Versos de Homenagem ao Rev.º Padre António Rosa Câmara, Ex­‑Vigário da evidente com a família do primeiro capitão do
Freguesia do Caniço, em benefício das Obras da Capela da Mãe de Deus/Funchal, Funchal e com o início da ocupação do arqui-
Funchal, Tip. Comercial, 1954; RIBEIRO, João Adriano, Arciprestado de Ribeira
Brava e Ponta do Sol, org. Diocese do Funchal, Ribeira Brava/Ponta do Sol,
pélago. O nome da baía e do lugar terá sido
Arciprestado­‑Fábrica Paroquial dos Canhas, 2012; digital: “História”, Seminário inspirado pela provável abundância de lobos­
Diocesano do Funchal, s.d.: http://www.seminariofunchal.com/historia (acedido
a 26 out. 2018).
‑marinhos (Monachus monachus) que os nave-
gadores, acompanhantes de João Gonçalves
Catarina Encarnação Pereira
Zarco, teriam visto numa furna. O topónimo
foi, depois, integrado no nome de João Gon-
çalves Zarco (c. 1390­‑1471), quando recebeu
Câmara, Cândido Álvaro
a carta de armas de 4 de julho de 1460, que
Nasceu no Porto Santo em 1867 e faleceu lhe atribuiu o apelido de “Câmara de Lobos”,
em Lisboa em 1945. Foi oficial do Exérci- embora depois os descendentes tenham usado
to, tendo ocupado os postos de tenente e ca- apenas o de “Câmara”.
pitão do Regimento de Infantaria 27. À data Diz o cronista Gaspar Frutuoso (1522-1591)
da sua morte, ocupava o posto de coronel. que “em uma rocha delgada à maneira de
Foi prosador, dedicando­‑se ao estudo do fol- ponta baixa, que entra muito no mar; e entre
clore madeirense e de outros assuntos regio- esta rocha e outra fica um braço de mar em
nais, que divulgava através das suas colabora- remanso, onde a natureza fez uma grande
ções regulares no Diário da Madeira e no Diário lapa, ao modo de câmara de pedra e rocha
do Comércio. viva. Aqui se meteram com os batéis e acharam
Também foi poeta, tendo publicado diversos tantos lobos­‑marinhos, que era um espanto; e
poemas em vários jornais madeirenses. Neste não foi pequeno refresco, e passatempo para
âmbito, foi ainda colaborador fixo da Revista a gente; porque mataram muitos deles, e tive-
Madeirense, um periódico semanal que, em 84 ram na matança muito prazer e festa. Pelo que
números vindos à estampa entre junho de 1901 o Cap. João Gonçalves deu nome a este reman-
e julho de 1902, visou dar a conhecer a litera- so Câmara de Lobos, donde tomou o apelido,
tura, o comércio, a agricultura e a indústria do […] e deste lugar tomou suas armas, que El­
arquipélago. Publicou, na secção “Artes & Le- ‑Rei lhe deu, tornando ao reino” (FRUTUO-
tras”, os poemas “Rústica: mas quem?”, “Ruí- SO, 2008, 39­‑40). Esta descrição levanta hoje
nas”, “O moinho velho”, “Santelmo”, “Joeiras”, dúvidas a alguns investigadores, pois não cons-
“Retábulo”, “Espírito gentil” e “A morte do cla- ta assim da inicial descrição de Alcoforado,
rim”. Na secção “Lira madeirense”, destaca­ “que foi a tudo presente”, e teria sido acrescen-
‑se o seu poema “A apanha da cana”. Nestes tada pelo Cón. Jerónimo Dias Leite (c. 1537­‑c.
poemas, manifestou e reforçou a sua especial 1593), mais de 150 anos depois, após ter estado
C â mara de L obos ¬ 743

Fig. 1 – Vista geral da cidade de Câmara de Lobos (fotografia de Bernardes Franco, 2017).

como capelão em Arguim, onde, aí sim, eram A proximidade deste território ao Funchal
os lobos­‑marinhos abundantes e se praticava a sempre impediu que Câmara de Lobos ganhas-
sua caça. se a importância devida em termos administra-
Para além deste episódio, deve­‑se considerar tivos, mantendo­‑se como uma periferia agríco-
que o território deste concelho foi marcado la distante do município funchalense até 1835,
pela imponência do cabo Girão, uma referên- altura em que assumiu autonomia municipal.
cia na paisagem madeirense. A designação, se- Em 1817, Paulo Dias de Almeida (c. 1778­
gundo a tradição, resultou do facto de os na- ‑1832) referia que, embora sendo “um dos lu-
vegadores, no séc. xv, ao chegarem à Ilha na gares mais bem povoados e o mais próximo
primeira viagem de reconhecimento, terem
feito o retorno ou giro ao ponto de partida.
Um dos testemunhos mais importantes foi
dado, em 1854, por Isabella de França (1797­
‑1880): “É impressionante olhar para tamanha
altura, com os penhascos vermelhos a brilhar a
luz, como se fossem os limites de um céu que
pendesse sobre outro mundo para lá do nosso.
Sucedia­‑se uma longa fila de rochas sobrancei-
ras ao mar, de altitude variável e aqui e ali apla-
nadas em manchas de vinhedos e outras cul-
turas. Havia camponeses a trabalhar em sítios
onde parecia não existir espaço para assentar
um pé; dir­‑se­‑ia que estavam colados à rocha.
Na verdade, só os poderia comparar a mos-
cas deslocando­‑se num espelho, e, no entanto,
moviam­‑se cá e lá e andavam acima e abaixo
como se tivessem o poder de sustentar­‑se no ar,
independentes de todas as leis da locomoção Fig. 2 – Cabo Girão, óleo de John Fredrick Eckersberg, 1852
humana” (FRANÇA, 1970, 90­‑91). (Museu Quinta das Cruzes).
744 ¬ C â mara de L obos

da cidade, está inteiramente sem defesa e “fazer jurisdição sobre si”. O infante D. Fernan-
muito sujeito a ser saqueado por qualquer cor- do (1433­‑1470), contudo, em sentença de 6 de
sário de pequena força” (CARITA, 1982, 60), agosto de 1468, determinou que o lugar de Câ-
provando a pouca atenção e a situação de aban- mara de Lobos deveria continuar a ser “termo
dono que persistiam em princípios do séc. xix. e jurisdição da vila do Funchal” (SILVA, 1995,
A criação do município, em 1835, porém, seria I, 661). A pretensão das populações de Câma-
um caminho para a sua valorização e rápida ra de Lobos a um estatuto concelhio só veio a
afirmação. ser concretizada pela portaria de 25 de maio
de 1835, que estabeleceu uma reestruturação
da estrutura municipal madeirense. Até então,
Concelho de Câmara de Lobos os funcionários com jurisdição para atuar na-
A separação do Funchal foi uma das mais an- quele território limitavam­‑se a juízes pedâneos,
tigas reivindicações, mas tardou a acontecer. i.e., que julgavam de pé, e, depois, a um juiz e a
A sede da capitania era muito distante, o que um alcaide do lugar, documentados a partir de
prejudicava os interesses dos moradores deste princípios do séc. xvi.
lugar, sobretudo no que tocava à justiça, “que Foi com a alteração da situação política do
lhes é grande opressão e perdimento de suas Liberalismo, com reflexos no poder local, que
fazendas”, o que vem justificar a intenção de foram criados os novos municípios de Câmara
de Lobos, Santana e Porto Moniz. De acordo
com o Elucidário Madeirense (1978), a instalação
do concelho ocorreu a 16 de outubro de 1835,
mas as investigações de Manuel Pedro de Frei-
tas conduziram à retificação desta data, estabe-
lecendo, como fundador, o dia 4 de outubro,
data de registo da primeira ata das eleições e
de juramento dos oficiais eleitos. Esta sessão
decorreu na sacristia da igreja de S. Sebastião,
em Câmara de Lobos, sendo a mesa eleitoral
presidida por João Crisóstomo Urel, vereador
da Câmara do Funchal. Por força desta circuns-
tância, o dia do concelho, que, desde 1977, era
assinalado a 16 de outubro, passou a ser cele-
brado a 4 de outubro.
Com o tempo, a sua jurisdição territorial foi
sendo alterada. A 6 de maio de 1914, a fregue-
sia do Campanário passou para a jurisdição do
concelho da Ribeira Brava, entretanto criado.
A 15 de setembro de 1994, a sede da freguesia
do Estreito de Câmara de Lobos foi elevada à
categoria de vila, e, a 3 de agosto de 1996, a
sede do concelho passou à categoria de cida-
de. O município tinha sido constituído pelas
freguesias de Câmara de Lobos, Estreito de
Câmara de Lobos, Jardim da Serra, Curral das
Freiras e Quinta Grande, que tinham estado
integradas no Funchal.
Fig. 3 – Câmara de Lobos, litografia aguarelada de Andrew Picken,
A valorização económica do espaço e a cons-
1842 (Secretaria Regional de Turismo e Cultura). ciência política dessa elite favoreceram a nova
C â mara de L obos ¬ 745

Organização do povoamento
Nos primeiros tempos do povoamento, o fu-
turo capitão do Funchal deve ter considera-
do a hipótese de estabelecer aqui a sua pri-
meira morada, sendo, depois, preterida em
favor do Funchal. Diz o cronista Gaspar Fru-
tuoso: “Chegando a um alto sobre a Câmara
de Lobos, traçou ali onde se fizesse uma igre-
ja do Espírito Santo; passando mais abaixo a
umas serras muito altas, ali traçou outra igre-
ja da Vera Cruz. E todos estes altos tomou para
seus herdeiros”. A proximidade e o crescimen-
to do Funchal conduziram à dependência de
Câmara de Lobos, cuja zona urbanizada se ca-
racterizava, segundo o cronista, como peque-
na, tendo “duzentos fogos e uma só rua princi-
Fig. 4 – Armas da antiga vila de Câmara de Lobos, teto pal e muito comprida, e, no cabo dela, a igreja,
do antigo salão nobre do palácio da Encarnação da Junta Geral,
1921 (arquivo particular). muito boa e bem consertada” (FRUTUOSO,
1968, 87 e 122).
O processo de povoamento começou a partir
realidade e a afirmação do município, pelo
da baía e foi, com o tempo, subindo a encosta
que, de acordo com recolha de Manuel Pedro
e alargando­‑se para poente. Assim, o lugar do
de Freitas (1999), a galeria de todos aqueles
Estreito de Câmara de Lobos deverá ter come-
que exerceram o cargo de presidente é maiori-
çado em 1440, com o eremitério dos Francisca-
tariamente originária das freguesias de Câma-
nos, tendo rapidamente ganhado importância,
ra de Lobos e de Estreito de Câmara de Lobos.
pois em 1460 já existia uma capelania, e a paró-
A tardia valorização da utilização dos ele-
quia terá sido criada entre 1515 e 1520.
mentos heráldicos resultou, em princípio,
A freguesia da Quinta Grande foi criada a 24
do pouco interesse que os mesmos assumiam
de julho de 1848, definindo­‑se o seu território
em termos práticos no quotidiano. Embora se
por áreas desanexadas às freguesias de Câma-
tenha documentado um vago brasão de armas
ra de Lobos e do Campanário. A 8 de feverei-
do concelho desde 1921, num dos tetos pinta-
ro de 1820, havia sido elevada à categoria de
dos do antigo salão do palácio da Encarnação
curato. A designação “Quinta Grande” é ante-
da Junta Geral, no Funchal, só em 1940, por
rior aos Jesuítas, pois em 1501 a área era já re-
ocasião da Exposição do Mundo Português, se
ferida como a Quinta do Cabo Girão, sendo
sentiu a necessidade de dispor da heráldica do
propriedade de João Gonçalves da Câmara
concelho, que foi aprovada em sessão camará-
ria de 6 de setembro de 1944, e do estandarte,
em março de 1949. Sinal desse desinteresse é
a publicação do brasão de armas somente no
Diário do Governo de 4 de janeiro de 1957 (n.º 3,
série ii). A última alteração foi de 9 de janeiro
de 1997, por força da elevação do lugar de Câ-
mara de Lobos à categoria de cidade, surgindo
as quatro torres acasteladas. Estas armas apre-
sentam dois lobos­‑marinhos, em memória do
primeiro encontro dos Portugueses com a fu-
tura Câmara de Lobos. Fig. 5 – Armas da cidade de Câmara de Lobos, 1957 e 1997.
746 ¬ C â mara de L obos

Fig. 6 – Qt. do Jardim da Serra, litografia inglesa aguarelada, c. 1850 (Casa-Museu Frederico de Freitas).

(c. 1414­‑1501), filho de Zarco, que a passou ao A capela da Vera Cruz é atribuída à família
seu filho Manuel de Noronha. Sobre esta quin- dos capitães do Funchal. Mas, certamente, o
ta, refere o cronista: “Tem esta quinta boas ter- facto de toda a área ter sido propriedade dos
ras de canas e de trigo e centeio, mas vinhas Jesuítas, entre os sécs. xvi e xviii, não deve-
poucas, por ser a terra alta, ainda que ao longo rá ser alheio à perpetuação do seu nome de
do mar tem o mesmo Luís de Noronha uma “Quinta dos Jesuítas”. Esta foi­‑lhes vendida a
fajã de grande pomar e vinhas de muito preço, 27 de abril de 1595, por Fernão Gonçalves da
e passatempo, que dá cada ano 40, 50 pipas de Câmara. Diz­‑se que o sítio da quinta era onde
malvasias. E está a ribeira dos Melões, que pa- estava situada a casa e capela dos Jesuítas. To-
rece que os há naquela parte muitos e, sobretu- davia, em 1770, depois do confisco dos bens
do, estremados, que dá também muitas canas daqueles, passou ao domínio privado, por
e, em parte, algumas vinhas” (Id., Ibid., 123). venda em hasta pública.
C â mara de L obos ¬ 747

O Curral das Freiras foi buscar o nome ao da reforma de 24 de novembro de 1960: as qua-
facto de a propriedade ter integrado o dote tro paróquias anteriores de Câmara de Lobos,
de freiras da família Câmara, quando do seu orago de S. Sebastião (1430?); a do Estreito de
ingresso no recém­‑fundado Convento de Câmara de Lobos, de Nossa Senhora da Graça
S.ta Clara. O sítio estava dedicado a pastagens (1509?); a do Curral das Freiras, de Nossa Se-
de gado, das quais as freiras do Convento pas- nhora do Livramento (17 de março de 1790); e
saram a tirar um elevado benefício em carne a da Quinta Grande, de Nossa Senhora dos Re-
e manteiga para o seu consumo diário. A tra- médios (24 de julho de 1848); e as novas cinco,
dição aponta que, em 1566, quando do assal- pela divisão de Câmara de Lobos em três paró-
to de B. de Montluc ao Funchal, as freiras se quias (Câmara de Lobos, Carmo e Santa Ce-
teriam escondido nesta sua quinta. Diz o cro- cília) e do Estreito de Câmara de Lobos em
nista Gaspar Frutuoso: “As freiras e o Cura- mais quatro (a antiga do Estreito de Câmara de
do, com alguns frades e o homem que as de- Lobos e as novas paróquias de Nossa Senhora
fendeu, enquanto isto do baluarte passou, da Encarnação; do Garachico, com invocação
saíram por entre os canaviais e se acolheram de Nossa Senhora do Bom Sucesso; e de São
e não pararam até o seu Curral, que dista bom Tiago). Quanto à paróquia da Quinta Grande,
pedaço da cidade, e, assim se foram, deixan- só seria alvo de alterações em termos de área
do tudo no mosteiro, sem salvar nenhum or- geográfica.
namento; salvo a custódia do Santíssimo Sa- Nos princípios do séc. xxi, o município era
cramento, que um padre comungou, e alguns constituído pelas freguesias civis administra-
cálices, que puderam levar nas mangas, tudo o tivas de Câmara de Lobos, Estreito de Câma-
mais foi roubado” (Id., Ibid., 345). As terras do ra de Lobos, Curral das Freiras, Quinta Gran-
Curral haviam sido doadas por João Gonçalves de e Jardim da Serra (5 de julho de 1996).
Zarco a João Ferreira, mas, em 1480, passaram,
por venda, para a posse do capitão-donatário
João Gonçalves da Câmara, que as entregou ao
Sociedade
Convento, como dote das filhas Elvira e Joana, O lugar de Câmara de Lobos começou o po-
dando assim início à posse por aquela comuni- voamento no tempo de João Gonçalves Zarco,
dade. Em termos de jurisdição paroquial, per- que ali distribuiu terras a alguns dos seus com-
tencia à freguesia de Santo António, mas, a 17 panheiros. Através dos livros de manifesto da
de março de 1790, assumiu o estatuto de paró- produção do vinho e da receita do subsídio li-
quia independente. terário, que recaía sobre o mesmo, é possível
O Jardim da Serra tem o seu nome tradicio- rastrear esta realidade e estabelecer uma ideia
nalmente ligado ao cônsul inglês Henry Veit- da elite fundiária. Recorde­‑se que a área que
ch, que ali fez construir uma quinta com um vai do Funchal ao Campanário, que inclui a
jardim, que deslumbravam todos os que ali área de Câmara de Lobos, foi dominada por
passavam, embora o Diário de Notícias de 13 de terras de morgadio. Assim, num registo para
outubro de 1903 se limite a indicar que o to- 1819­‑1834, tinham­‑se estabelecido mais 12
pónimo decorre apenas do facto de ser “um morgados em Câmara de Lobos, a acrescentar
vale de montanhas no interior que mereceu aos preexistentes. Podemos destacar os mais
este nome por força da vegetação que o reves- importantes: do visconde de Torre Bela, de
te”. A freguesia só foi criada a 5 de julho de João de Carvalhal, de Aires de Ornelas e Vas-
1996, no local da paróquia de São Tiago, cria- concelos, de João da Câmara Leme, de José
da em 1961. Ferreira, de António Ferreira, de Carlos Vicen-
Em meados do séc. xx, por iniciativa de te, de Henrique Fernandes e de Fernando da
D. David de Sousa (1957­‑1965), bispo da Dio- Câmara. Nestas terras, predominou o contrato
cese do Funchal, o arciprestado de Câmara de de colonia, sendo de assinalar que, em 1829, o
Lobos apresentou nove paróquias, resultantes número de senhorios era superior a 30, com
748 ¬ C â mara de L obos

especial realce para Pedro Santana, o visconde Vigário, Cura, quatro Beneficiados, Tesourei-
de Torre Bela, e João da Câmara. ro, e organista; compreende 390 fogos, com
O crescimento demográfico da área do con- 1820 almas […] Por cima deste lugar fica outra
celho foi atestado em diversos momentos por freguesia que chamam do Estreito de Câmara
múltiplos testemunhos, desde que Frutuoso a de Lobos, mais para o sertão; cuja paróquia é
descrevera como tendo 200 fogos. Em 1598, o da invocação de N.ª Sr.ª da Graça; tem um Vi-
“recenseamento dos fogos” diz que “no Lugar gário, e Cura; que administram os Sacramen-
de Câmara de Lobos há a igreja principal de tos a 1048 almas, em 288 casas dispersas; no
S. Sebastião e duas ermidas: N.ª Sr.ª da Con- seu distrito estão as ermidas de S. António, de
ceição, que foi a segunda igreja que nesta se N.ª Sr.ª da Encarnação, e do Socorro” (NORO-
fez, e a do Espírito Santo. Tem logo fora do NHA, 1996, 223­‑224).
lugar um mosteiro de S. Bernardino, com 10 Paulo Dias de Almeida, em princípios do
a 12 religiosos. […]. Tem este lugar 134 fogos séc. xix, referiu o lugar de Câmara de Lobos
e 510 almas de sacramento […]. No Estrei- como “sendo este um dos lugares mais bem
to sobre Câmara de Lobos está a freguesia povoados e o mais próximo da cidade […].
de Nossa Senhora da Graça, que tem 97 fogos Compreende duas freguesias com 6550 habi-
e 404 pessoas de confissão” (CARITA, 1991, tantes, 1348 fogos, 1642 pipas de vinho e 92
235 e 239). moios de trigo e centeio” (CARITA, 1982, 60
Em 1722, Henrique Henriques de Noronha e 79).
(1667­‑1730), natural deste lugar, descreveu
assim Câmara de Lobos: “No seu porto faz este
lugar uma baía, acompanhada por uma e outra
Economia e riqueza dos recursos
parte de rocha, com 170 passos de largo, a tiro Câmara de Lobos é um concelho que se di-
de mosquete pelo mar dentro, compõem­‑se vide entre o mar e a terra. As populações ri-
de uma só, mas grande rua, que principia no beirinhas, aproveitando as condições da baía,
desembarcadoiro, onde está uma boa Igreja têm­‑se dedicado à pesca, nomeadamente do
de N.ª Sr.ª da Conceição, e se termina na da peixe­‑espada. É tradição do local a indústria
Paróquia da invocação de S. Sebastião, Igreja da secagem da gata, um peixe que vem com
colegiada hoje de moderno reedificada. Tem a captura do principal. No princípio, porém,
era um local agrícola, dizendo­‑se mesmo que
ali se plantaram as primeiras videiras, a que
se seguiram os canaviais. A maior valorização
agrícola do território aconteceu, de forma par-
ticular, a partir de 1952, com a abertura da le-
vada do Norte, que possibilitou o desenvolvi-
mento de culturas de regadio. Daí que o ato
de inauguração da levada tivesse sido muito
celebrado pela população da Quinta Gran-
de, do Estreito e de Câmara de Lobos. Refere,
assim, Gaspar Frutuoso: “Tem mais dois enge-
nhos de açúcar, um, que foi de António Cor-
reia, e outro de Duarte Mendes, e muitas
canas e vinhas de boas malvasias, e muitas fru-
tas de toda sorte, e muita água”. E, encosta
acima, assinala “os pomares do Estreito, que
têm muita castanha e noz, e peros de toda
Fig. 7 – Convento de S. Bernardino depois das obras de
sorte muito doces, e vinhas e criações” (FRU-
reabilitação de 2014 a 2015 (arquivo particular). TUOSO, 1968, 120 e 122).
C â mara de L obos ¬ 749

A concorrência do açúcar das restantes segundo engenho, de Tibúrcio Justino Henri-


áreas produtoras do Atlântico, bem como a ques, preparado para aguardente e melaço. Na
peste de 1526 e a falta de mão de obra, apenas déc. de 50, assinalaram­‑se ainda outros dois.
veio a agravar a situação de queda. A tudo isto Em 1857, João Figueira Quintal construiu um
acresceu, em finais do século xvi, os efeitos no sítio do Ribeiro Real, e, no ano imediato,
do bicho sobre os canaviais, como foi testemu- Joaquim Figueira & Co. construiu o do sítio
nhado para os anos de 1593 e 1602. O último de Jesus Maria José. Na linha de fronteira, na
quartel do século foi o momento de viragem margem da ribeira dos Socorridos, que sepa-
para culturas de maior rendibilidade, como ra o município do Funchal do de Câmara de
a vinha. A documentação testemunha a mu- Lobos, construiu­‑se o engenho dos Socorridos,
dança. Assim, em 1571, Jorge Vaz, de Câmara o único que se manteve em atividade no decur-
de Lobos, declarou, em testamento, um chão so do séc. xviii, demonstrativo da persistência
que “sempre andou de canas e agora mando da cana nas proximidades. De entre os inúme-
que se ponha de malvasia para dar mais pro- ros proprietários, assinala­‑se a figura de Guio-
veito” (ABM, Juízo dos Resíduos e Capelas, mar Madalena de Sá Vilhena (1705­‑1789),
fls. 499v.­‑500v.). grande empresária, ligada, sobretudo, ao co-
Há, ainda assim, uma continuidade da cultu- mércio de vinhos. Desta estrutura vincular, no
ra açucareira nas centúrias seguintes. Em Câ- entanto, persistiu apenas a capela.
mara de Lobos verificou­‑se a presença de vá- No princípio do séc. xxi, a agricultura con-
rios engenhos, de que não restam vestígios. tinuou a assumir um papel destacado na eco-
Um dos mais antigos estava no sítio da Pal- nomia do concelho. Assim, na freguesia de
meira, erguido em 1847, por ação de Manuel Câmara de Lobos, dominou a banana, mas,
Martins e João da Silva. Na vila, mais propria- na freguesia do Estreito, tornou­‑se evidente a
mente na R. da Carreira, havia, em 1854, o viticultura, tal como a horticultura na Quinta

Fig. 8 – Vinhedos do Estreito de Câmara de Lobos, bilhete-postal de 1970 (coleção particular).


750 ¬ C â mara de L obos

Grande, no Jardim da Serra e no Curral das


Freiras.
Em 1854, Andrade Corvo (1824­‑1890)
afirmou que “o concelho de Câmara de
Lobos é um dos concelhos em que se produz
mais vinho e de melhor qualidade”. No enun-
ciado das castas disponíveis na área, refere a
sercial, a tinta­‑negra mole e a malvasia, que
dá “um vinho muito precioso, e estimado”
(CORVO, 1855, 23). Em 1884, Henri Vizete-
lly (1820­‑1894) considerou que a melhor área
para a produção de vinho na Ilha se situava
na Torre, em Câmara de Lobos. Há uma ideia
muito divulgada, entre os nacionais e os estran-
geiros, da excelência dos vinhos do concelho.
Deste modo, Eward Harcourt (1825­‑1891), em
1851, afirmou que “os melhores vinhos da Ma-
deira são produzidos nas freguesias de Câmara
de Lobos, São Martinho e São Pedro, nas par- Fig. 9 – Emblema heráldico da firma Henriques & Henriques, 1960
tes mais baixas de Santo António, no Estrei- (fotografia de José Lemos Silva, 1990).
to de Câmara de Lobos, no Campanário, em
São Roque e em São Gonçalo. As partes mais de Lobos, terra de produção de mais de 3000
altas das últimas cinco freguesias produziam pipas de vinho, então produzia apenas 100,
apenas vinhos de segunda e terceira qualidade. porque “quase todas as vinhas deterioraram­
Os melhores Malvasia e Sercial são da Fajã dos ‑se e plantou­‑se cana­‑de­‑açúcar no seu lugar”
Padres no sopé do Cabo Girão e do Paul e Jar- (Id., Ibid., 382), mas, por certo, mantiveram­‑se
dim do Mar. As parras de malvasia são as melho- as vinhas nas terras mais altas do Estreito. Esta
res para suportar um enxerto. A melhor vinha situação marcou uma viragem que conduziu à
para plantar no Sul é a verdelho, obtida tanto valorização e ao retorno da antiga cultura da
do Norte como do Curral das Freiras” (VIEI- cana­‑de­‑açúcar e, depois, no séc. xx, da bana-
RA, 1993, 362). Uma memória sobre o vinho, neira. A recuperação definitiva de muitos dos
publicada em 1851 por José Silvestre Ribeiro vinhedos só aconteceu de forma clara a partir
(1807­‑1891), reafirma a importância da área dos anos 80 do séc. xx, por incentivo do Go-
do concelho de Câmara de Lobos na produ- verno regional.
ção de muitos e bons vinhos: “O melhor vinho A ligação do concelho ao vinho é muito evi-
que a Madeira produz é a malvasia e sercial da dente. Primeiro, com os vinhedos que domi-
Fajã dos Padres. Na freguesia de Campanário, nam a paisagem; depois, com as instalações de
concelho de Câmara de Lobos [...]. Dizem que apoio da firma Barbeito de Vasconcelos e com
o bual e o verdelho de Campanário são os me- os armazéns da firma Henriques & Henriques.
lhores vinhos da Madeira; há preferência ao de No Estreito de Câmara de Lobos existiu, ainda,
Câmara de Lobos. Câmara de Lobos é a fre- a partir 17 de agosto de 1990, um armazém de
guesia que produz o melhor vinho da Madeira, vinho Madeira, propriedade da empresa Silva
exceto malvasia e sercial. A freguesia do Estrei- Vinhos Lda., que foi desativado, e apenas se
to de Câmara de Lobos, do sítio do Salão para regista um outro armazém da empresa Hen-
baixo, dá vinho igual, ou quase igual, ao de Câ- riques & Henriques. A família Henriques está
mara de Lobos” (Id., Ibid., 170). ligada aos primórdios da ocupação e ao culti-
Henri Vizetelly, em 1880, traçou o quadro vo da vinha no arquipélago. Até à déc. de 70
da Ilha após a filoxera, dizendo que Câmara do séc. xx, foi detentora de importantes terras
C â mara de L obos ¬ 751

de colonia, ocupadas com vinha, nos sítios da malvasia­‑cândida. O senhor da Ilha preten-
Torre e da Quinta Grande. A partir de 1850, dia cultivar o vinho no novo espaço. Todavia,
João Joaquim Gonçalves Henriques (1836­ nunca previu que havia de se tornar no mais
‑1895), com base nas propriedades da famí- afamado da Madeira, levando o seu nome
lia em Belém (Câmara de Lobos), instalou­‑se aos quatro cantos do mundo. Em meados do
como partidista do vinho Madeira, fornecen- séc. xv, o veneziano Luís Cadamosto (1429­
do as principais casas. Em 1913, surgiu a atual ‑1483) fazia fé nessa realidade. Aliás, em 1530,
empresa, resultado da fusão da Casa de Vinhos outro italiano, Giulio Landi (1498­‑1579), pro-
da Madeira Lda., da Belém’s Madeira Lda., da clamava que o malvasia madeirense era reputa-
Carmo Vinhos Lda., da António Eduardo Hen- do melhor do que o vinho de cândida. A fama
riques Sucrs. Lda. e da António Filipe Vinhos persistiu, sendo o malvasia o mais considera-
Lda. Em 1960, foi a vez da Freitas Martins Cal- do de todos os vinhos da Ilha. A produção foi
deira & Cia. se juntar ao grupo. A firma esteve, sempre reduzida, mas a procura foi elevada.
no princípio do séc. xxi, nas mãos dos sócios Em 1757, a produção foi de apenas 50 pipas,
A. N. Jardim, Peter Cossart e Nunes Pereira. muito disputadas pelos mercadores funcha-
Em 1992, iniciou um processo de moderniza- lenses. Ali, incluíam­‑se algumas pipas da Fajã
ção, transferindo­‑se do Funchal para o conce- dos Padres, zona que se confunde com o pró-
lho de Câmara de Lobos. Na vila, junto à ri- prio vinho. Os Jesuítas destacaram­‑se na pro-
beira do Vigário, localizavam­‑se as instalações dução de vinho, sendo acusados, em 1689, por
de vinhos, as lojas de vendas e o escritório, en-
quanto na Quinta Grande ficavam 10 ha de
vinha das diversas castas nobres e as instalações
de receção da uva, vinificação e estufa.
Na época das vindimas, o Estreito é um local
de grande atividade e animação. Neste contex-
to, assinala­‑se a primeira festa das vindimas, ce-
lebrada em 1963, que voltou a ser realizada em
1979, com grande animação, tendo continui-
dade nos anos posteriores.
Os Jesuítas foram detentores de exten-
sas áreas de vinha no Funchal e na Quin-
ta Grande. No séc. xix, a Quinta Grande foi
uma das freguesias que não foi molestada
pelos efeitos nefastos da filoxera, persistin-
do na Fajã dos Padres, de acordo com a tradi-
ção, os bacelos da primitiva casta de malvasia.
A Companhia de Jesus está ligada à Fajã dos
Padres e ao malvasia, o mais celebrado dos vi-
nhos aí produzido.
A malvasia­‑cândida manteve­‑se, por muito
tempo, a rainha das videiras, quer no Medi-
terrâneo, quer no Atlântico, tendo, por as-
sento, e.g., a Madeira e as Canárias. Na Eu-
ropa do séc. xvi, este vinho foi celebrado
por poetas e dramaturgos, e.g., por William
Shakespeare (1564­‑1616). A fama condicionou
a opção do infante D. Henrique (1394­‑1460) Fig. 10 – Fajã dos Padres, 1970 (Willy Heinzelmann/Delegação de
de recomendar aos povoadores as videiras de Turismo da Madeira).
752 ¬ C â mara de L obos

John Ovington (1653­‑1731), de quase mono-


pólio da malvasia: “Eles asseguram aqui o mo-
nopólio do malvasia do que existe em toda a
Ilha apenas uma boa e grande vinha – na dita
fajã – de que são os únicos possuidores” (ARA-
GÃO, 1981, 198).
A Qt. dos Jesuítas de Campanário, definida
como Quinta Grande, indiciava uma faixa de
terreno que ia até ao mar, contemplando a
ubérrima Fajã, isolada no litoral, cujo acesso se
fazia apenas por mar. Não há muitas informa-
ções sobre a Fajã, para além daquelas sobre o
afamado malvasia que aí se produziu. O isola-
mento do lugar e os vestígios sobre o terreno
indiciam a presença permanente de colonos,
tendo­‑se construído uma capela da invocação
de Nossa Senhora da Conceição. Apenas sa-
bemos da sua existência em 1626, quando foi
profanada por corsários, mas a construção de-
verá ser de inícios da centúria, se tivermos em
consideração a data da aquisição pelos Jesuí-
tas, em 1595. A ermida foi referida, em 1722,
por Henrique Henriques de Noronha, sendo
deixada, 40 anos depois, ao abandono, com a
expulsão e o sequestro dos bens dos Jesuítas Fig. 11 – Curral das Freiras, litografia da Madeira de Max Römer,
na Ilha. A memória material da sua presen- 1935 (coleção particular).
ça quase se apagou no tempo, tendo restado,
numa das habitações, a pia para a água benta. de Dermot Francis Bolger (1900­‑1975). Em
Aí, deveria existir uma pequena comunidade 1979, a operação foi repetida pelo então pro-
de jesuítas e de colonos, que tratavam do ama- prietário, Mário Jardim Fernandes, que en-
nho da terra, sendo certamente um local de viou um exemplar ao Instituto Gulbenkian,
veraneio dos frades, como sucedia na Qt. do para proceder à clonagem e para o plantar no
Cardo, no Funchal. As construções existentes local. Nos princípios do séc. xxi, a Fajã estava
são testemunho disso. Seguramente, os pira- rejuvenescida, e os largos e dourados cachos
tas argelinos não assaltariam um lugar ermo, de uvas regressaram ao recanto junto ao pre-
sem vivalma e sem interesse económico. O as- cipício. Recuperou­‑se a memória e a técnica
salto provocou uma devassa, pelo facto de as do afamado malvasia, ao mesmo tempo que
gentes de Câmara de Lobos, nomeadamente se redescobriu um recanto paradisíaco, refú-
os pescadores, não terem acudido ao rebate gio de locais e estrangeiros.
dos sinos. Destaca­‑se ainda a importância que assu-
Saíram os Jesuítas, mas ficou o nome na miu a cultura da banana, que conviveu com a
designação do local, Fajã dos Padres, e o in- vinha, com produtos hortícolas e com outras
teresse pelo vinho aí produzido continuou atividades, e.g., a pesca. Na verdade, o conce-
até 1920, altura em que a Fajã logrou o úl- lho de Câmara Lobos demarcou duas áreas di-
timo afamado malvasia, sobrevivendo apenas ferenciadas de atividade: a zona baixa, defini-
algumas parreiras. Em 1940, encontrou­‑se da pela vila, e o antigo ilhéu, onde dominou a
uma, de onde se retiraram bacelos que foram atividade piscatória. Por outro lado, no âmbi-
plantados em Câmara de Lobos, nas terras to da utilização dos recursos do meio, merece
C â mara de L obos ¬ 753

referência o aproveitamento da cereja do Jar- na construção dos edifícios da cidade. Desde o


dim da Serra e da castanha, da ginja e da cidra séc. xv que a exploração das pedreiras foi um
do Curral das Freiras, que, por tradição, sem- recurso importante para o concelho. Assim,
pre esteve ligado ao Funchal, por pertencer ao desde finais desse século, as obras de constru-
património do Convento de S.ta Clara desde fi- ção da Sé do Funchal alimentaram­‑se da ex-
nais do séc. xv. De notar as festividades alusi- ploração da cantaria em pedra mole do cabo
vas a estes recursos, e.g., a Festa da Cereja e a Girão. Da pedreira no Estreito, certamente do
da Castanha, destacando­‑se a primeira, por se sítio do Covão, nos sécs. xvi e xvii, “se arran-
realizar desde 1953. cou grande quantidade de pedra de cantaria
A riqueza da área do concelho era diversifi- fina, a qual se acarretou até Câmara de Lobos e
cada e muito importante para a economia da de Câmara de Lobos até ao Colégio, com gran-
Ilha. Do mar, vinha o peixe que se vendia para de trabalho e extraordinário dispêndio, e mui-
o Funchal, nomeadamente para os conventos. tas e grandes pedras e colunas, que estavam
Em terra, verificavam­‑se as disponibilidades de em Câmara de Lobos há muitos anos, e pare-
lenhas e madeiras das zonas altas, das pedrei- cia a todos impossível acarretar­‑se em barco”
ras do Estreito e do cabo Girão para a cons- (CARITA, 1987, 50).
trução de edifícios no Funchal. Juntando­‑se a Na freguesia de Câmara de Lobos, por
estas atividades, existia um forno de cal em la- força da proximidade do mar e da baía que a
boração, que se abastecia de matéria­‑prima no serve, criou­‑se também um núcleo muito im-
Porto Santo ou em São Vicente. portante de homens ligados ao mar, que atua-
A pedra explorada nas diversas pedreiras ram como barqueiros ou pescadores. Segun-
do concelho (Covão, Gimbreiros, Laurenci- do Maria Lamas (1893­‑1983), “os pescadores
nha, Palmeira, cabo Girão) era muito usada de Câmara de Lobos [eram] considerados,

Fig. 12 – Capela da Conceição e de Santelmo, Câmara de Lobos, litografia de Frank Dillon, 1850 (DILLON, 1990).
754 ¬ C â mara de L obos

desde os tempos dos Descobrimento, os prin- grandes ocasiões, como na desafronta de ofen-
cipais abastecedores da Madeira, especializa- sas que atingem alguns da sua classe, casam
dos, além disso, na pesca do espada” (LAMAS, sempre dentro do seu meio, têm o seu diale-
1956, 146). to, o seu código e o seu conceito de honra,
Por toda a Ilha, barqueiros e pescadores, que lhes dita as atitudes. Pena é o hábito de
desde o Caniçal ao Paul do Mar, estavam na esbanjar nas tabernas o ganho de dias e dias
mira dos oficiais do contrabando, pois eram de trabalho, de que resulta tanta miséria. Vêm
os interlocutores diretos e ativos deste proces- do mar com os membros lassos, o cérebro en-
so, do qual retiravam não negligenciáveis lu- torpecido, a boca a saber a sal; e a excitante
cros. Na primeira metade do séc. xix, era evi- poncha de aguardente aquece­‑lhes o sangue e
dente o conluio dos pescadores de Câmara de dá­‑lhes a sensação de se libertarem, momen-
Lobos com esta atividade, fazendo da baía do taneamente, dos barcos, das redes, das mare-
lugar um destacado centro de contrabando. sias e da penúria” (Id., Ibid., 149). No entanto,
Deste modo, em 1838, o diretor da Alfândega nem sempre a proximidade do mar e a presen-
apelava ao governador civil no sentido de se ça de uma comunidade de pescadores signifi-
estabelecer uma vigilância permanente nesta cavam uma disponibilidade de pescado, pelo
baía com oito praças. Na verdade, os terços au- que um pescador de Câmara de Lobos, certa-
xiliares e as tropas regulares de artilharia cum- mente atraído pelo melhor preço do pescado
priam também esta função de vigilância auxi- no mercado do Funchal, foi “condenado por
liar à Alfândega. não vender metade do seu peixe ao povo do
É manifesta a imagem que o lugar sempre lugar” (SILVA, 1995, 298).
transmitiu da sua ligação à pesca e ao mar. San- Nesta ligação ao mundo do mar e aos pes-
telmo, na versão portuguesa de S. Pedro Gon- cadores, aparece­‑nos associada a poncha
çalves Telmo (1190­‑1246), ou Corpo Santo, como a bebida favorita, a qual acabou por
sempre foi a invocação óbvia em momentos adquirir um estatuto de bebida regional, ser-
de tempestade. A ele se associavam as cente- vida em toda a Ilha. Segundo Maria Lamas,
lhas luminosas que apareciam nas extremida- em meados do séc. xx, o consumo e a fama
des dos mastros dos navios, provocadas pela da poncha já estavam difundidos: “Aguar-
eletricidade atmosférica. Este fenómeno ficou dente de cana, sumo de limão, água e açú-
conhecido como fogo de Santelmo. A devoção car, tudo batido com um pauzinho apropria-
ao santo ocorria com particular incidência no do que se faz rolar rapidamente, entre as
Funchal, junto ao cabo do Calhau, em Câmara palmas das mãos – é a receita da bebida cem
de Lobos e na Calheta. Nestes portos piscató- por cento madeirense a que chamam ‘pon-
rios, existiu uma capela da sua invocação, cujo cha’ ou ‘ponchinha’, um diminuitivo po-
culto era assegurado por uma confraria da res- pular de muito apreço. Bebem­‑na especial-
ponsabilidade dos mesmos pescadores. Cada mente os pescadores, é certo, mas grande
barco deveria entregar uma cotização à confra- consumo lhe dão também pastores e outros
ria, para a possibilidade de auxílio em caso de homens da montanha – nem há nada me-
naufrágio ou de morte. Todo esse apoio passou lhor para dar calor e levantar o ânimo, so-
a estar, desde 1939, centralizado na Casa dos bretudo nas friagens do Inverno […]. A de
Pescadores. Câmara de Lobos tem fama – em nenhu-
O quotidiano do ilhéu e da vila marcou, ma outra freguesia há quem saiba prepará­‑la
durante muitos anos, a imagem de Câmara como ali” (LAMAS, 1956, 149).
de Lobos. Maria Lamas descreve assim esse Outro recurso eram as madeiras e as lenhas,
mundo: “Lá do seu bairro, construído sobre que tinham uma utilização diversa no conce-
o Ilhéu e nas ruelas onde as suas habitações lho e no Funchal. Até meados do séc. xix, a
se comprimem, constituíam uma colónia fe- floresta foi um meio indispensável à sobre-
chada. Pouco expansivos, mas solidários nas vivência e às comodidades humanas, com o
C â mara de L obos ¬ 755

Fig. 13 – É Prá Poncha, Câmara de Lobos, 2010 (arquivo particular).

fornecimento de lenhas e madeiras. Em todos Apenas mais uma referência: no Estreito


os tempos, a riqueza de uma região dependeu de Câmara Lobos, houve, em princípios do
da reserva que delimitava a fronteira do es- séc. xx, uma fábrica de manteiga, propriedade
paço agrícola e humanizado. As madeiras da do médico José Sabino de Abreu (1874­‑1954).
ilha da Madeira foram muito apreciadas, no
séc. xv, na construção naval, no reino e na
Ilha. O seu uso imoderado nesta e noutras ati-
Património
vidades conduziu à paulatina desarborização Em Câmara de Lobos, Isabella de França, em
da Ilha, pelo que as autoridades concelhias 1854, visitou a igreja matriz e exaltou o con-
atuaram no sentido da defesa do parque flo- traste da pobreza do meio com a riqueza do
restal madeirense, restringindo o uso das interior do templo: “A igreja de Câmara de
madeiras a sectores essenciais da vida local. Lobos fica no extremo da vila, e, como a porta
Por outro lado, deve­‑se ter em consideração estivesse aberta, nós entrámos, em parte para
as necessidades de lenhas para o fabrico do ver o templo e em parte para escapar aos
açúcar. Na ribeira dos Socorridos, os dois en- mendigos. Neste local tão bravio, inciviliza-
genhos geravam uma atividade constante ao do, de aspeto primitivo, onde se diria só pas-
longo dela, assim descrita por Gaspar Frutuo- sar gente rude, é curioso deparar­‑se­‑nos uma
so: “toda a lenha que se gasta nos dois enge- igreja adornada de magníficas colunas de ouro
nhos que estão nela e em outros dois, que e prata, pinturas de cores brilhantes, embo-
tem Câmara de Lobos, que está perto, tra- ra, sem arte no desenho, lampadários, obra
zem por ela abaixo, que podem ser 80.000 de talha, toda a espécie de coisas inadequa-
cárregas de azémola cada ano, antes mais que das a semelhante lugarejo. Faz­‑me confusão
menos” (FRUTUOSO, 1968, 119). pensar como é que veio ter a Câmara de Lobos
756 ¬ C â mara de L obos

Fig. 14 – Altar-mor e altares colaterais da igreja matriz de S. Sebastião, reforma de c. 1700 e seguintes (fotografia de Bernardes Franco).

tanto ouro e tanta prata!” (FRANÇA, 1970, Nas diversas freguesias, criaram­‑se institui-
197). Não refere esta atenta viajante a peque- ções culturais e desportivas que desenvolveram
na capela da Conceição, sede da Confraria de um papel relevante no concelho, editando re-
São Pedro Gonçalves Telmo, ainda com vestí- vistas, como a Girão, publicada a partir de 1988,
gios da inicial capela gótico­‑renascentista, vi- e criando diversos grupos folclóricos ou festas
síveis no campanário, mas obra de completa regionais, como a da Castanha, no Curral das
reformulação barroca do início do séc. xviii, Freiras, e a da Cereja, no Jardim da Serra. No
uma das poucas campanhas de obras em edifí- centro da cidade, funciona uma biblioteca mu-
cios religiosos de que conhecemos documen- nicipal, com interessante atividade, e o Museu
talmente os autores do retábulo, neste caso a da Imprensa da Madeira.
oficina de talha de Manuel Câmara, pai e filho,
em 1723. As paredes encontram­‑se revestidas
de telas com a vida de S. Telmo, umas dos fi-
Personalidades
nais do séc. xviii e da oficina de Nicolau Fer- De entre as várias personalidades deste conce-
reira, outras dos primeiros anos do séc. xx, de lho, para além das já mencionadas, destacam­‑se,
Luís Bernes (1865­‑1936). entre outros: Jaime César de Abreu (1899­‑1967),
C â mara de L obos ¬ 757

da freguesia do Estreito de Câmara de Lobos;


Luiz Vicente de Afonseca (1803­‑1878), médi-
co do Estreito de Câmara de Lobos; António
Rodrigues de Aguiar (1932­‑1981), de Câma-
ra de Lobos, emigrante na Venezuela desde
1947, onde criou a cadeia de lojas TIA; João
Crisóstomo de Aguiar (n. 1935), economista,
nascido no sítio da Torre; P.e José Gonçalves de
Aguiar (n. 1831), doutor em Teologia, nascido
na vila de Câmara de Lobos; D. Manuel Joa-
quim Gonçalves Andrade (n. 1767), da Quinta
Grande, bispo na cidade de São Paulo, no Bra-
sil; António Joaquim Gonçalves de Andrade
(1795­‑1865), da Quinta Grande; João Isidoro
de Araújo Figueira (1859­‑1934), comercian-
te do Estreito de Câmara de Lobos; Francisco
Vieira da Silva Barradas (1821­‑1897), bacharel
formado em Direito pela Univ. de Coimbra e
proprietário, nascido no concelho de Câmara
de Lobos; João Higino de Barros (1883­‑1941),
nascido na freguesia de Câmara de Lobos; José
de Barros Sousa (1859­‑1930), magistrado, nas- Fig. 15 – Revista Girão, n.º 4 (1.º sem. 1990), direção de Manuel
Pedro S. Freitas, Grupo Desportivo do Estreito de Câmara de Lobos.
cido na freguesia de Câmara de Lobos; José
Lino da Costa (1891­‑1945), sacerdote, nasci-
do no Estreito de Lobos; João Pedro de Frei- Lobos; Luís Soares de Sousa Henriques Jú-
tas Drummond (1760­‑1825), advogado e escri- nior (m. 1939), médico pela Escola Médico­
tor, nascido em Câmara de Lobos; Agostinho ‑Cirúrgica do Funchal, nascido em Câmara de
Figueira Faria (1923­‑1980), cónego da Sé do Lobos; João Evangelista Lopes (1909­‑1967),
Funchal e orador; Francisco Figueira Ferraz sacerdote católico, nascido na freguesia de
(1861­‑1948), proprietário e comerciante, nas- Câmara de Lobos; António José de Macedo
cido no Estreito de Câmara de Lobos, sócio­ (1840­‑1912), advogado, nascido no Estrei-
‑gerente da firma F. F. Ferraz & Ca.; Francis- to de Câmara de Lobos; Eduardo Clemente
co de Araújo Figueira (m. 1914), comerciante Nunes Pereira (1887­‑1976), sacerdote, profes-
e proprietário, nascido na freguesia de Câ- sor e jornalista da vila; D. Mateus de Abreu
mara de Lobos, diretor da Companhia do Pereira (1742­‑1824), da Quinta Grande, bispo
Caminho­‑de­‑Ferro do Monte e diretor da na cidade de São Paulo, no Brasil; Eduardo
Companhia da Luz Eléctrica da Madeira; Al- Antonino Pestana (1891­‑1963), professor,
fredo Isidoro Gonçalves (1882­‑1965), comer- advogado, publicista e jornalista; Henrique
ciante, sobrinho de António Isidoro Gon- Augusto Rodrigues (1856­‑1934), proprietá-
çalves, fundador da Companhia Vinícola da rio e comerciante da freguesia de Câmara de
Madeira; João Isidoro Gonçalves (m. 1909), Lobos, coproprietário do Bazar do Povo, no
médico pela Escola Médico­‑Cirúrgica do Fun- Funchal; Anselmo Baptista de Freitas Serrão
chal; João Joaquim Henriques (1879­‑1968), (1846­‑1922), de Câmara de Lobos, regente da
proprietário e comerciante, conhecido como Filarmónica dos Artistas Funchalenses; e Er-
João de Belém, fundador da firma exporta- nesto Baptista Serrão (1893­‑1937), nascido
dora de vinhos Henriques & Henriques; João na freguesia de Câmara de Lobos, segundo­
de Sousa Henriques Júnior (m. 1959), licen- ‑sargento, músico que deixou um legado de
ciado em Matemática, nascido em Câmara de composições musicais.
758 ¬ C â mara , F ernando A ugusto

Bibliog.: manuscrita: ABM, Juízo dos Resíduos e Capelas, Testamento de 30 de Funchal, CEHA, 1999; VERÍSSIMO, Nelson, O Convento de S. Bernardino em
Maio de 1571, fls. 499v.­‑500v.; impressa: ARAGÃO, António, A Madeira Vista Câmara de Lobos. Elementos para a Sua História, Câmara de Lobos, Centro
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Almeida. Tenente Coronel do Real Corpo de Engenheiros e a Sua Descrição da germânicos”, Girão, n.º 5, 1990, pp. 185­‑195; Id., Curral das Freiras na Visão de
Ilha da Madeira de 1817/1827, Funchal, DRAC, 1982; Id., O Colégio dos Jesuítas Viajantes Estrangeiros (Séc. XIX e XX), Funchal, Calcamar, 1999.
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Madeira, vol. ii, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1991; CASTRO, José † Alberto Vieira
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Madeira e Pôrto Santo, Lisboa, Academia Real das Ciências, 1855; COSTA,
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1998; Diário de Notícias, 13 out. 1903; DILLON, Frank, Sketches in the Island Augusta da Piedade Câmara, que fixaram re-
of Madeira, reed. de Paul Alexander Zino, Porto, Litografia Nacional, 1990;
DRIVER, John, Letters from Madeira in 1834, London, Longman & Co, 1838; sidência nos Açores. Foram seus irmãos João
FRANÇA, Isabella de, Jornal de Uma Visita à Madeira e a Portugal. 1853­‑1954, Urbano Câmara Júnior e Luís Câmara, que
Funchal, JGDAF, 1970; FREITAS, Duarte Manuel Roque de, “Contributos para
uma transcrição integral do livro do tombo da igreja de Câmara de Lobos,
também se estabeleceram nos Açores. Era
1729, parte i”, Girão, vol. ii, n.º 4, 2007, pp. 29­‑39; Id., “Contributos para tio­‑avô do caricaturista açoriano Vítor Câma-
uma transcrição integral do livro do tombo da igreja de Câmara de Lobos,
1729, parte ii”, Girão, vol. ii, n.º 5, 2009, pp. 49­‑88; FREITAS, Manuel Pedro
ra, que passou pela Madeira por alturas do
S., “O município de Câmara de Lobos. A sua criação e o exercício do poder Natal de 1947.
ao longo de 164 anos”, in O Município no Mundo Português, Funchal, CEHA,
1998, pp. 403­‑414; Id., O Concelho de Câmara de Lobos e os Seus Presidentes
Augusto Câmara exerceu funções de alta res-
da Câmara (1835­‑1999), Câmara de Lobos, Câmara Municipal de Câmara ponsabilidade na Direção das Obras Públicas
de Lobos, 1999; Id., “Município de Câmara de Lobos. Criação, instalação,
da Junta Geral do Distrito Autónomo do Fun-
armas e feriado”, Girão, n.º 1, 2.º sem. 2005, pp. 7­‑24; FRUTUOSO, Gaspar,
As Saudades da Terra. História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas chal, demonstrando uma elevada aptidão para
e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Typ. Funchalense, o desenho. Era, com efeito, um exímio artis-
1873; Id., Livro Segundo das Saudades da Terra, Ponta Delgada, Instituto
Cultural de Ponta Delgada, 1968; Id., As Saudades da Terra. História das Ilhas ta decorador e cenógrafo, tendo executado vá-
do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, Funchal, Empresa Municipal rios trabalhos para o Teatro Municipal e deixa-
Funchal 500 Anos, 2008; Girão, n.º 4, 1.º sem. 1990; GOMES, J. L. de Brito,
“Reçençeamento dos foguos almas fregresas, e mais igrejas que tem a ilha da do, embora dispersa, uma obra que atesta os
Madeira tirado pellos rois das confiçois, assi em geral como em particular”, seus talentos como desenhador.
Arquivo Histórico da Madeira, vol. ii, 1932, pp. 28­‑35; GONÇALVES, João
Luís Rodrigues, Campanário. A Freguesia e Sua Gente, Campanário, Junta de Entusiasta da educação física, foi um dos
Freguesia do Campanário, 2004; LAMAS, Maria, Madeira. Maravilha Atlântica, mais antigos dirigentes do movimento des-
Funchal, Eco do Funchal, 1956; MENEZES, Sérvulo Drummond de, Uma Época
Administrativa da Madeira e Porto Santo, a contar do Dia 7 de Outubro de 1846,
portivo da Madeira. Entre 1932 e 1933, Fer-
3 vols., Funchal, Typ. Nacional, 1849­‑1852; NORONHA, Henrique Henriques de, nando Augusto Câmara foi presidente do
Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição da História da Diocese do
Funchal, Funchal, CEHA, 1996; RIBEIRO, Ana Maria et al., “A pesca em Câmara
Club Sport Marítimo, que, em 2015, contava
de Lobos”, Xarabanda, n.º 4, 1993, pp. 8­‑12; RIBEIRO, João, “Riqueza florestal com cerca de 24.000 sócios inscritos. Funda-
do concelho de Câmara de Lobos (antes da sua fundação)”, Girão, n.º 2, 1989,
pp. 62­‑63; Id., “Indústria e manufactura no concelho de Câmara de Lobos
do a 20 de setembro de 1910, a sua principal
no séc. xix”, Girão, n.º 9, 1992, pp. 431­‑435; Id., “As indústrias no concelho de modalidade é o futebol, apresentando igual-
Câmara de Lobos”, Girão, n.º 9, 1993; Id., “A actividade económica do concelho
mente as práticas do andebol, do automobi-
de Câmara de Lobos nos primórdios da sua fundação”, Girão, n.º 12, 1.º sem.
1994, pp. 31­‑40; Id., A Pedra de Cantaria na Madeira, Funchal, Calcamar, 2003; lismo, do atletismo, do basquetebol, do fut-
SANTOS, Manuela, “Notas sobre a fundação do concelho de Câmara de sal, do hóquei em patins, da patinagem, do
Lobos”, Girão, n.º 11, 1988, pp. 8­‑11; Id., “Notas sobre a freguesia do Estreito”,
Girão, n.º 14, 1990, pp. 131­‑135; Id., e FREITAS, Graça, “Notas sobre a freguesia karaté, da natação, da pesca desportiva, do
de Câmara de Lobos”, Girão, n.º 5, 1990, pp. 177­‑180; SARMENTO, Alberto tiro e do voleibol.
Artur, As Freguesias da Madeira, Funchal, Tip. do Diário de Noticias, 1932­‑1953;
Id., Corografia Elementar do Arquipélago da Madeira, 2.ª ed., Funchal, s.n., 1936; Augusto Câmara foi também um grande im-
SILVA, Fernando Augusto da, Subsídios para a História da Diocese do Funchal. pulsionador do charadismo na Madeira e co-
1425­‑1800, Funchal, s.n., 1946; Id., e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978; laborou em diversas revistas da especialida-
SILVA, José Manuel Azevedo e, A Madeira e a Construção do Mundo Atlântico de, quer em Portugal quer no estrangeiro.
(Séculos XV­‑XVII), 2 vols., Funchal, CEHA, 1995; SOUSA, João de, “Curral das
Freiras”, Girão, n.º 5, 1990, pp. 222­‑223; TRINDADE, Ana Cristina Machado,
Atentando na imprensa jornalística e em ou-
A Moral e o Pecado Público na Madeira na Segunda Metade do Século XVIII, tras publicações da Madeira e do continente,
C â mara , J aime de B arros ¬ 759

Projeto para uma montra na R. dos Ferreiros, desenho de Fernando Augusto Câmara, 18 de outubro de 1922
(fotografia de Teresa Vasconcelos, 2006).

verifica­‑se que escreveu no Diário de Notícias, no Importa referir ainda que se dedicava ao es-
Almanaque de Lembranças Luso­‑Brasileiro, no Al- tudo da filologia. Na verdade, na altura em que
manaque de Lembranças Madeirenses, no Almana- faleceu no Funchal, a 30 de junho de 1949,
que da Madeira, no Almanaque Ilustrado do Diário tinha em mãos a preparação de um dicionário
da Madeira, no Diário Popular, no Eco do Fun- de mitologia.
chal e noutros jornais do Funchal. Mais tarde,
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. xix e
dedicou a maior parte do seu tempo à leitura, xx, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; MARINO, Luís, Musa Insular:
isolando­‑se entre os seus livros, consagrando­ Poetas da Madeira, Funchal, Eco do Funchal, 1959; PORTO DA CRUZ, Visconde
do, Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. iii, Funchal,
‑lhes a sua melhor atenção. Câmara Municipal do Funchal, 1949; VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António
Entusiasmou­‑se com os primeiros Jogos Flo- Aragão de, Madeira. Investigação Bibliográfica, vol. i, Funchal, Centro de Apoio
de Ciências Históricas, 1981.
rais da Madeira e enviou para o concurso uma
composição dedicada a António Gomes, que António José Borges
também se dedicava às letras; publicou outros
poemas em jornais e revistas.
Luís Marino, na obra Musa Insular, destaca Câmara, Jaime de Barros
os poemas “Ilha dos Amores”, um soneto acrós-
tico no qual sobressai, lendo a primeira letra Nascido em São José, estado de Santa Catarina,
de cada verso ao longo do poema, a expres- no Brasil, a de 3 de julho de 1894, era filho do
são “perolado oceano”, e “Balada”, composto segundo matrimónio do escrivão de órfãos Joa-
por três sugestivas e expressivas estrofes (sex- quim Xavier de Oliveira Câmara com Anna de
tilhas), ambos com data de 1904 e publicados Carvalho Barros, sendo dado, pelos seus bió-
no Funchal. grafos brasileiros, como descendente direto,
760 ¬ C â mara , J aime de B arros

no ano anterior, e arcebispo de Belém do Pará,


por nomeação de 15 de setembro de 1941,
sendo transferido, a 3 de julho de 1943, para
a Arquidiocese do Rio de Janeiro. No consis-
tório de 18 de fevereiro de 1946, foi nomeado
cardeal pelo Papa Pio XII (1872­‑1958), com o
título dos santos Bonifácio e Aleixo, tomando
posse no dia 22 seguinte.
Entre as inúmeras atividades desenvolvidas
no seu trabalho episcopal, salienta­‑se o gran-
de apoio que deu ao estabelecimento de igre-
jas orientais no Brasil, como na ereção da pa-
róquia de São Basílio, no Rio de Janeiro, do
rito greco­‑católico melquita, em 1941, com
bispo próprio, que reunia elementos da co-
munidade síria, árabe e ortodoxa. Mais tarde,
a 14 de novembro de 1951, foi, inclusivamen-
te, designado ordinário para os fiéis de rito
oriental. No ano anterior, a 6 de novembro,
também o cardeal do Rio de Janeiro foi no-
meado ordinário militar, função em que per-
maneceu até 9 de novembro de 1963, man-
tendo, assim, importantes contactos no meio.
Nesse quadro, apoiou decididamente o Golpe
Militar de 1964, ocorrido entre 31 de março
e 1 de abril, tendo­‑se deslocado à rádio, no
primeiro dia, para louvar o patriotismo dos
militares e a religiosidade com que organiza-
vam, a partir de Juiz de Fora, a Marcha da Vi-
Fig. 1 – Papa Pio XII com D. Jaime de Barros Câmara, tória sobre o Rio de Janeiro, marcha que der-
cardeal do Rio de Janeiro, Roma, 1956 rubou, no dia seguinte, o presidente eleito,
(Arquivo da Arquidiocese do Rio de Janeiro).
João Goulart (1919­‑1976).
D. Jaime Barros Câmara tinha, entretanto,
por linha paterna, de João Gonçalves Zarco (c. aceitado como bispo auxiliar D. Helder Pessoa
1390­‑1471), embora os ascendentes do pai fos- Câmara (1909­‑1999), por certo também de as-
sem simplesmente emigrantes de Câmara de cendência insular, que ordenara naquela ci-
Lobos. Estudou em Florianópolis e no Semi- dade, a 3 de março de 1952, mas que se opôs
nário de S. Leopoldo, no Rio Grande do Sul, terminantemente ao Golpe Militar, tendo sido
sendo ordenado em 1920. Entre 1927 e 1936, afastado do Rio de Janeiro. A história da Igre-
foi reitor do Seminário N.ª Sr.ª de Lourdes ja do Brasil e da Ditadura Militar seria marca-
Azambuja­‑Brusque e do Santuário de N.ª Sr.ª da, nos anos seguintes, por estas duas figuras
do Caravaggio de Azambuja. de apelido Câmara. D. Helder foi ainda no-
A 18 de abril de 1935, foi nomeado camarei- meado arcebispo de Olinda e Recife, a 12 de
ro secreto do Papa Pio XI (1857­‑1939), passan- março de 1964, onde foi um dos fundadores
do a usar o título de monsenhor. Foi, assim, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e
sucessivamente, o primeiro bispo de Mossoró, grande defensor dos direitos humanos durante
no Rio Grande do Norte, a partir de 19 de de- todo o regime militar. Pregava uma Igreja sim-
zembro de 1935, diocese que havia sido criada ples, voltada para os pobres, e a não-violência,
C â mara , J aime S anches ¬ 761

tornando­‑se uma referência internacional. Pela de Janeiro, organizado especialmente pelo


sua atuação, recebeu diversos prémios interna- então bispo auxiliar, D. Helder Câmara, em
cionais, chegando a ser várias vezes indicado julho de 1955.
para Prémio Nobel da Paz. Tendo participado D. Jaime Barros Câmara foi agraciado, a 29
também no Concílio Vaticano II, veio a assinar, de maio de 1959, com a Grã­‑Cruz da Ordem
em Roma, o célebre Pacto das Catacumbas, a 16 Militar de Cristo de Portugal. Faleceu em 1971.
de novembro de 1965, que teve forte influên-
Bibliog.: CALLIARI, Ivo, D. Jaime Câmara. Diário do Cardeal Arcebispo do Rio
cia na teologia da libertação, o que o projetou de Janeiro, Rio de Janeiro, Léo Christiano, 1996; GUIMARÃES, Alfredo, Cardeal
ainda mais internacionalmente. Cerejeira no Brasil, Rio de Janeiro, Alba, 1935; PEREIRA, Eduardo C. N., Ilhas de
Zargo, 2 vols., Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1968.
O cardeal D. Jaime Barros Câmara mante-
ve relações próximas com o cardeal D. Ma- Rui Carita
nuel Gonçalves Cerejeira (1888­‑1977), com
quem já teria contactado na sua primeira
visita ao Brasil, em 1934, e com quem vol-
Câmara, Jaime Sanches
tou a contactar em 1946, tal como em Roma,
nas inúmeras reuniões eclesiásticas em que Nasceu no Funchal, na R. das Cruzes, freguesia
ambos participaram. Igual relação se estabe- de São Pedro, a 13 de março de 1881, e faleceu
leceu com o cardeal D. Teodósio Clemente na mesma cidade, a 24 de dezembro de 1946.
de Gouveia (1889­‑1962), presente no XXXVI Era filho de António José Câmara e de Hele-
Congresso Eucarístico Internacional do Rio na Celisa Gomes Câmara, e casou com Maria
Alice Spranger Conceição Rodrigues.
Passou a sua vida na Madeira, onde traba-
lhou como ajudante de conservador do Regis-
to Predial, exercendo também funções como
presidente da assembleia geral da Associação
de Socorros Mútuos 4 de Setembro de 1862 e
vice­‑presidente da direção do Club Sports da
Madeira.
Poeta e jornalista, Jaime Câmara era, na opi-
nião dos seus contemporâneos, um homem
de carácter inquieto e com um núcleo limita-
do de amigos. Chegou mesmo a envolver­‑se
em polémicas com outras personalidades do
meio funchalense da época, estando no cen-
tro de contendas com o jornalista Ciríaco de
Brito Nóbrega e com o escritor Gastão de Nó-
brega Pereira, depois de ter publicado Sátira
(1910) e Versos Humorísticos (1914). Também
se desentendeu com Armando Pinto Correia,
por este ter publicado no Diário de Notícias da
Madeira uma crítica literária a Fructos (1920),
o seu então recente livro de poemas. A apre-
ciação não terá agradado ao autor, dando ori-
gem a querelas entre os dois intelectuais. Entre
novembro e dezembro de 1920, Pinto Correia
fez sair cinco missivas naquele periódico, nas
Fig. 2 – D. Helder Câmara, Pernambuco, 1974
quais criticou veementemente o poeta, refu-
(Arquivo da Arquidiocese de Olinda e Recife). tadas num artigo assinado com o pseudónimo
762 ¬ C â mara , J aime S anches

Urraca Gomes e com a publica- Fig. 1 – Jaime Sanches Câmara, c. 1930


(ABM, Arquivos Particulares).
ção, no ano seguinte, de Carta
em Prosa. A polémica não ficaria
por aqui, chegando a resposta
dois meses depois deste último coordenação do P.e Fernando
texto, com o opúsculo Um Poeta Augusto da Silva.
em Frangalhos, no qual o alferes Escreveu as peças de teatro
aviltava publicamente o autor da Júnia: Episódio de Tragédia (1918),
Carta. alusiva aos tempos do Império
Jaime Câmara participou em Romano, com música de César
tertúlias do restrito grupo Artis- Santos e ilustrações de Alfredo
tas Independentes (1918­‑1933), Miguéis, que foi representada
que se reunia no café Golden no Teatro Funchalense, e Auto
Gate, do qual também faziam parte os irmãos e dos Vilões (1923). Nesta última, o poeta, inspira-
artistas Henrique e Francisco Franco, o pintor do na Madeira quinhentista, criou um original
Alfredo Migueis, o naturalista Adolfo de No- auto de Natal cuja ação se desenrola em volta
ronha e o médico João Francisco de Almada, do presépio. A obra, composta em linguagem
mas acabou por se afastar devido a discrepân- arcaica, mas de enredo simples, revela quadros
cias com os companheiros. de vida do povo madeirense, o seu falar pito-
Nas letras, dedicou­‑se essencialmente à resco, os seus cantares, as suas festas e o seu
poesia, género predominante na sua pro- forte espírito religioso. Estão, assim, reunidos
dução literária, tendo publicado na impren- na peça elementos do folclore da Madeira, dos
sa e em volume. Usando a ilha da Madeira tempos da descoberta e do povoamento, que o
como musa para compor grande parte das autor recriou e contribuiu para preservar.
suas criações, estreou­‑se em 1907, com o livro Na verdade, as suas composições literárias
Poema Antigo. Mais tarde, deu à estampa Fructos revelam interesse pela Madeira e pelo seu
(1920), Estela (1926) e Poemêtos da Ilha: Insula-
res (1929).
É o autor dos versos intitulados “Suave res-
ponso”, que figuram no Monumento aos Mortos
na Manhã de 3 de Dezembro de 1916, uma obra do
escultor Francisco Franco, inaugurada a 3 de de-
zembro de 1917 no antigo cemitério das Angús-
tias, à R. Imperatriz D. Amélia, e transferida em
1946 para o cemitério de N.ª S.ª das Angústias.
Em 1921, no Teatro Dr. Manuel de Arriaga,
foram declamados os seus poemas “A sombra”,
numa festa de homenagem à atriz Maria Matos
e “Último dia na Madeira”, na despedida da
companhia de teatro Maria Matos­‑Mendonça
de Carvalho.
Em 1922, por ocasião das comemorações
centenárias do descobrimento do arquipé-
lago, Jaime Câmara colaborou, junto com
outros intelectuais madeirenses, no opús-
culo intitulado V Centenário do Descobrimen-
to da Madeira, da responsabilidade da Co- Fig. 2 – Legenda do torso do Monumento aos Mortos na Manhã de
missão de Propaganda e Publicidade, com a 3 de Dezembro de 1916 (fotografia de José Lemos Silva, 2008).
C â mara , J o ã o A gostinho P ereira de A grela e ¬ 763

povo, destacando­‑se, neste sentido, os Ensaios das Letras, 2007; GOUVEIA, Horácio Bento de, “Um poeta esquecido, Jaime
Câmara”, Diário de Notícias, 13 dez. 1964, pp. 3­‑6; “Jayme Câmara”, Diário de
de Etnografia (1931), as crónicas De San Louren- Notícias, 25 dez. 1946, p. 8; MARINO, Luís, Musa Insular: Poetas da Madeira,
ço: Prosas do Estio e do Outono (1932) e Senho- Funchal, Eco do Funchal, 1969; PORTO DA CRUZ, Visconde do, “Das letras,
das sciencias e das artes”, Independência, n.º 3, 24 jun. 1928, p. 2; Id., Notas &
ra da Luz: Subsídios Etnográficos (1938), textos Comentários para a História Literária da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara
de teor etnográfico nos quais Jaime Câmara Municipal do Funchal, 1953; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos
Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional de
retratou o povo ilhéu. Nestas narrativas, per- Turismo e Cultura, 1998; VIEIRA, Gilda França, e FREITAS, António Aragão de,
correu diferentes lugares do arquipélago, Madeira. Investigação Bibliográfica, vol. ii, Funchal, DRAC/Centro de Apoio de
Ciências Históricas, 1984.
do campo à cidade, descrevendo paisagens e
dando a conhecer alguns costumes e tradições, Sílvia G. Gomes
como as comemorações dos santos populares
(Santo António, São João e São Pedro), entre
outros festejos e arraiais típicos, realizados em Câmara, João Agostinho Pereira
diferentes épocas do ano. Nos textos sobre a de Agrela e
vida na cidade, fez uma breve descrição de ruas
do Funchal, a origem dos seus nomes, os ser- Nasceu no Funchal, em março de 1777, e fa-
viços e os estabelecimentos comerciais ali exis- leceu na mesma cidade a 28 de fevereiro de
tentes, a vida intelectual, o futebol, o teatro e 1835. Seus pais eram João Agostinho Teles
o cinema, e demais aspetos da vida social e cul- de Meneses e Ana Francisca de Castelo Bran-
tural do meio urbano. Estes escritos permitem co e Câmara, casados a 26 de junho de 1776.
conhecer vivências da população da Madeira Não chegou a contrair matrimónio com Vi-
em épocas passadas e contribuem para preser- cência Teles de Meneses Esmeraldo, filha
var uma parte da identidade cultural madei- de Cristóvão Esmeraldo Teles e de Maria de
rense, firmando o nome do seu autor entre os Mendonça, uma vez que aquela faleceu na
intelectuais que trabalharam em prol da cultu- véspera do casamento, mas dela teve dois fi-
ra do arquipélago. lhos. Casou­‑se por procuração com Quitéria
Na sua atividade jornalística, dirigiu de 1908 Francisca Esmeraldo da Câmara, falecida a
a 1910, com António Feliciano Rodrigues, os 25 de agosto de 1856 em Santa Cruz. Tive-
três primeiros volumes do Almanach de Lem- ram três filhos: Pedro Agostinho de Agrela
branças Madeirense, nos quais publicou poemas, e Câmara, Gaspar Agostinho Pereira de Me-
biografias, informações diversas sobre a Ilha e neses e Maria Antónia, que casou com José
textos de teor etnográfico. Colaborou na im- Cupertino da Câmara.
prensa madeirense, nomeadamente no Heral- Simpatizava com as ideias liberais, tendo
do da Madeira, no Diário de Notícias, no Diário sido, por este motivo, preso em 1825 e enviado
Popular e no Diário da Madeira. Na imprensa para Lisboa, onde permaneceu um ano na fra-
nacional, foi colaborador nas revistas Ilustração gata D. Pedro e outro ano na cadeia do Limoei-
Portuguesa, Renascença, Instituto e no Almanaque ro. Regressou à Madeira somente em 1834.
Bertrand. Exerceu a função de escrivão na Câmara
Foi agraciado com o grau de oficial da Ordem do Funchal e foi sócio efetivo da Sociedade
de Santiago da Espada pelo Estado português Funchalense dos Amigos das Ciências e das
e era sócio do Instituto de Coimbra. Artes. Possuía, com efeito, a mais importante
livraria que no seu tempo houve na ilha da
Obras de Jaime Câmara: Poema Antigo (1907); Almanach de Lembranças Madeira.
Madeirense (1908­‑1910) (coautoria); Sátira (1910); Versos Humorísticos (1914);
Ao longo da vida, dedicou­‑se aos estudos lite-
Júnia. Episódio de Tragédia (1918); Fructos (1920); Carta em Prosa (1921); Auto
dos Vilões (1923); Estela (1926); Poemêtos da Ilha. Insulares (1929); Ensaios de rários e históricos, muito em especial às inves-
Etnografia (1931); De San Lourenço. Prosas do Estio e do Outono (1932); Senhora tigações genealógicas, tendo sido um escritor
da Luz. Subsídios Etnográficos (1938).
muito estimado.
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e
Teve a iniciativa de, no princípio do séc. xix,
XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; Diário de Notícias, 1920­‑1922;
FIGUEIREDO, Fernando et al., Crónica Madeirense (1900­‑2006), Porto, Campo mandar extrair a cópia de Saudades da Terra
764 ¬ C â mara , J o ã o de B rito

Pedro Agostinho Pereira de Agrela e Câma-


ra. Supõe­‑se, todavia, que o trabalho que ali
está é composto somente por apontamentos
que serviram à preparação da obra, cujo pa-
radeiro se desconhece.

Bibliog.: “Agrela e Câmara, João Pereira de”, in Grande Enciclopédia Portuguesa


e Brasileira, vol. 1, Lisboa/Rio de Janeiro, Ed. Enciclopédia, s.d., p. 587; CLODE,
Luiz Peter, Registo Bio­‑Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa
Económica do Funchal, 1983.

António José Borges

Câmara, João de Brito


João de Brito Câmara foi poeta e advogado,
colaborou com a revista Presença e apoiou, a
partir da Madeira, as candidaturas de Nor-
ton de Matos e Humberto Delgado à pre-
sidência da República. O homem que dá o
nome a uma das maiores ruas do Funchal es-
creveu vários livros de poesia e ensaios sobre
advocacia e conduziu uma das mais impor-
tantes entrevistas ao poeta Edmundo Betten-
court, publicada em capítulos durante vários
meses no suplemento literário do jornal Eco
do Funchal, sob o título “O Modernismo em
Portugal”.
João de Brito Câmara nasceu em Lisboa em
1909, mas era filho de madeirenses e, à exce-
ção dos tempos de estudante em Coimbra,
viveu sempre na Madeira. Concluiu o liceu no
Solar dos Reis Magos, ou Casa do Agrela, campanha de c. 1750, Funchal e logo depois, em 1927, inscreveu-se
Reis Magos, Caniço (fotografia de Rui A. Camacho, 2009).
em Direito na Univ. de Coimbra, onde comple-
tou o curso com 17 valores.
que veio a servir de texto à publicação que Recém-licenciado, iniciou a vida profissional
desta obra fez Álvaro Rodrigues de Azevedo como delegado do procurador da República,
em 1873. mas exerceu esta função por pouco tempo. Em
É da sua autoria uma coleção de memórias outubro de 1932, abriu o seu escritório de ad-
genealógicas, manuscrita em seis volumes vogado. Da carreira na advocacia, deixou dois
com 2276 folhas, intitulada Genealogias da livros publicados sobre dois casos comerciais.
Ilha da Madeira, que abrange quase todas as Antes de morrer, tinha em preparação um
famílias nobres madeirenses, encontrando­ livro a que deu o título de Trabalhos e Casos. Em
‑se, segundo afirmava Rui Bettencourt da 1953, foi eleito delegado da Ordem dos Advo-
Câmara, na Biblioteca Pública de Ponta gados na Madeira. João de Brito Câmara con-
Delgada, uma vez que integra o importan- siderava que as questões jurídicas na Madeira
te fundo de manuscritos que Ernesto do decorriam de “graves deficiências sociais ou da
Couto doou à mesma. Em 1873, esse ma- ineficácia dos serviços de investigação” (TEI-
nuscrito encontrava­‑se na posse do seu filho XEIRA, 2002, 299).
C â mara , J o ã o de B rito ¬ 765

Durante o regime salazarista, o advogado e


homem das letras assumiu-se como político.
Já em 1931, quando estava em Coimbra, com
o meio académico incendiado pela guerra
entre republicanos, independentes e integra-
listas, tinha sido eleito presidente da Associa-
ção Académica. Regressado à Madeira, man-
teve-se como oposicionista a Oliveira Salazar.
A 14 de abril de 1960, chegou a ser detido no
Funchal para averiguações devido às suas posi-
ções políticas. Foi libertado em julho, depois
de pagar uma fiança. O processo acabou por
ser arquivado.
Fig. 2 – Bilhete de identidade da Associação Académica
O interesse pela poesia e pelo jornalismo co- de Coimbra pertencente a João de Brito Câmara, 1931 (ABM,
meçou quando ainda era aluno do liceu, altu- Arquivos Particulares).
ra em que fundou, com Pedro Gonçalves Preto
e Nuno Rodrigues dos Santos, o quinzenário
Alma Nova, da academia do Funchal, cujos co- Nos anos 40 e 50 do séc. xx, grande parte da
laboradores eram todos alunos do liceu. O jor- vida cultural da Madeira girava em torno do
nal só teve três números, mas influenciou o jornal Eco do Funchal, fundado em 1941. O Eco
jornalismo e as letras madeirenses. Pedro Gon- foi um importante meio de divulgação de poe-
çalves Preto foi depois diretor do jornal humo- tas madeirenses, como Herberto Hélder e Flo-
rístico Re-Nhau-Nhau e João de Brito Câmara rival dos Passos. Brito Câmara foi diretor do su-
seria, além de poeta e advogado, um dinamiza- plemento literário deste jornal, o Eco Literário,
dor cultural. Enquanto delegado da Associação e foi nessa qualidade que entrevistou Edmun-
Portuguesa de Escritores na Madeira, promo- do Bettencourt.
veu saraus artísticos, exposições de arte e ins- O seu primeiro livro de poesia foi publica-
creveu muitos conterrâneos nesta associação, do em 1927, com o título Manhã e prefácio
sem olhar às simpatias políticas de cada um. de João Cabral do Nascimento. Nesse prefá-
cio louvam-se as qualidades do livro, que não
cedeu à “velharia tão espalhada entre a gente
nova que dá pelo nome de modernismo”
(CÂMARA, 1967, 21). Sublinha-se ainda a
qualidade do conteúdo, escrito por um rapaz
de 18 anos, e prevê-se que o escritor terá um
futuro auspicioso nas letras: “Por certo que
estamos em face de uma criatura que pensa:
aí labuta o gérmen de futuras especulações
filosóficas, uma alma que interroga Deus sô-
frega de conhecer o porquê das coisas e o
mistério universal em que a humanidade se
debate. Num rapaz de 18 anos, idade em que
os seus confrades fazem da poesia um diver-
tido xadrez de palavras sonoras, esta preocu-
pação mental dá-nos o direito de profetizar
para João de Brito alguma coisa mais que um
Fig. 1 – João de Brito Câmara, fotografia de c. 1940
banal futuro de versejador esperto” (CÂMA-
(ABM, Arquivos Particulares). RA, 1967, 22).
766 ¬ C â mara , J o ã o de B rito

Em Coimbra, o madeirense juntou-se ao Além de poesia de intervenção, João de


grupo de estudantes universitários fundado- Brito Câmara escreveu outros géneros literá-
res da Presença. Dois dos seus poemas foram rios. O Auto da Lenda é um poemeto que re-
publicados nesta revista, onde também es- cria a lenda de Machim, os seus amores con-
crevia Miguel Torga: “Dolência”, que está trariados e a descoberta da Madeira. Esta ideia
incluído na História da Poesia Portuguesa de terá nascido de uma conversa com o famoso
João Gaspar Simões como ícone da “Gera- médico psiquiatra Aníbal Faria, seu contem-
ção Presença”, “exprime uma dimensão in- porâneo. O poeta nunca escondeu o fascínio
trospetiva no que diz respeito a sentimentos e a paixão pela Madeira. Ao longo da vida re-
de mágoa” (TEIXEIRA, 2002, 311); e “Pai- cusou vários convites para seguir a carreira de
sagem”, que “pode ser considerado o exem- professor universitário em Coimbra, e, mais
plo da diversidade presencista”. (TEIXEIRA, tarde, também a possibilidade de ir trabalhar
2002, 313). para Curaçau.
No seu segundo livro, Relance, publicado em A sua inspiração vinha da Ilha, do mar, da
1942, nota-se a evolução do olhar de Brito Câ- terra, e quando se retirava para a casa de
mara de uma perspetiva individualista para campo na Choupana tinha esta vista da Ma-
uma perspetiva social, com nítidas influências deira. Esta casa serviu de título a um dos seus
do neorrealismo, fruto do que via passar pelo livros, Casa do Alto (1967). Era o seu refúgio e
tribunal. também o espaço onde acolhia os amigos de
passagem pela Madeira, nos quais se incluíam
personalidades importantes das letras e da po-
lítica dos anos 40 e 50. Alguns nomes destes
amigos figuram na compilação Poesias Comple-
tas, de 1967.
Este livro é uma despedida do poeta, que es-
tava doente quando o escreveu e sabia que ia
morrer. Os poemas foram dedicados a amigos
como Mário Soares, Branquinho da Fonse-
ca, Maria Lamas, Miguel Torga, entre outros.
O prefácio, de Fernando Namora, tem como
título “Um poeta da ilha da Madeira”; no seu
desenvolvimento, consolida-se a ideia de este
poeta ser “ilhéu no cerne e no timbre da sua
poesia” (CÂMARA, 1967, 10). Fernando Na-
mora, que era visita da casa da Choupana,
sublinhava no mesmo prefácio que o “mar é
uma estrada que chama o ilhéu para todos os
continentes, mas também é o fosso que o limi-
ta; por mais que esse ignoto penedo rodeado
de abismo imite e ouça o mundo, a ansieda-
de sente-se ali aprisionada” (CÂMARA, 1967,
11). Namora diz ainda sobre João de Brito Câ-
mara que este é um poeta sem grandes ousa-
dias, mas que a sua poesia mantém uma toada
única de um homem a lutar contra a tentação
de se confinar a si mesmo: “O ilhéu pode mis-
Fig. 3 – João de Brito Câmara, caricatura de Teixeira Cabral,
turar-se com as vidas que ao seu desterro arri-
1943 a 1945 (ABM, Arquivos Particulares). bam todos os dias do ano, pode sentir como
C â mara , J orge da ¬ 767

com a Má Fé Contratual e a Renúncia) (1960); Casa do Alto (1967); Poesias


Completas (1967).

Bibliog.: CÂMARA, João Brito, Poesias Completas, Coimbra, Atlântida, 1967;


CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico da Madeira. Sécs. XIX e XX, Funchal,
Caixa Económica do Funchal, 1983; TEIXEIRA, Mónica, Tendências da Literatura
na Ilha da Madeira nos Séculos XIX e XX, Funchal, CEHA, 2002; Id., Legados para
a História. Doações ao Arquivo Regional, Funchal, DRAC, 2009.

Marta Caires

Câmara, Jorge da
A opção do Conselho de Portugal em Madrid,
após os cinco anos de governo de D. Manuel
Pereira Coutinho (c. 1550-c. 1635), recaiu em
D. Jorge da Câmara, a quem chamaram “o
Poeta” (NORONHA, 1996, 50), filho natural
de Rui Gonçalves da Câmara (c. 1520-c.1590),
capitão de Barcelor, de Ormuz e capitão-mor
do mar da Índia, onde falecera. Rui Gonçalves
era o quinto filho do Cap. João Gonçalves da
Câmara (1489-1536), irmão de Simão (1512-
1580), 1.º conde da Calheta, e dos padres Luís
Fig. 4 – Auto da Lenda (1943), de João de Brito Câmara. (1518-1575) e Martim (c. 1539-1613), e cunha-
do do Alm. D. Lopo de Azevedo, que se casara
com a sua irmã D. Isabel de Vilhena. O jovem
seus os problemas alheios, mas o mar é sem-
Jorge da Câmara acompanhou o pai à Índia, aí
pre um cerco. O ambiente, por muito que a
inquietude o dilate, asfixia a solidão” (CÂMA-
RA, 1967, 11)
João de Brito Câmara morreu a 26 de de-
zembro de 1967, no primeiro dia da oitava do
Natal, antes de ver o seu último livro publi-
cado. Na entrevista concedida ao Comércio do
Funchal e publicada um ano após a sua morte,
o poeta lamentava a morte, que sabia aproxi-
mar-se, dado o seu estado de saúde: “Eu gosta-
ria de viver alguns anos mais. Creio que para
o ano que vem já não verei estas árvores. Você
não conhece ainda esta obsessão de voltar aos
lugares que são nossos e que em breve estarão
já perdidos” (TEIXEIRA, 2002, 290). Morreu
aos 59 anos, na Madeira, e deixa escrito no
poema “Resquício” o seu último desejo: “Mais
por Beleza do que por Fama/Então – Se-
nhor! – só peço que reste ao menos/Um verso
só do meu rude canto!”

Obras de João de Brito Câmara: Manhã (1927); Relance (1942); Auto da


Lenda (1943); Lei, Verdade, Justiça! (História Breve de Uma “Taluda”... Em Fig. 1 – Selo branco com as armas de Jorge da Câmara, 1605
Branco) (1950); Duma Gerência Técnica à Incompetência Absoluta (De Premeio (ABM, Mis Funchal, 41).
768 ¬ C â mara , J orge da

ganhando alguma notoriedade, e, com o seu Braga, D. Aleixo de Meneses (1559-1617), que
falecimento, veio para Portugal, onde a famí- parecia “dizer-lhes que não convém por agora
lia o deve ter acolhido e protegido, para pas- tratar desta matéria” (Id., Ibid.).
sar a ser tratado por D. Jorge, passar a usar as A corte de Lisboa, na saída de D. Manuel Pe-
armas dos Câmara – embora com uma diferen- reira e na passagem para o governo do bispo
ça: uma pequena cruz sobre a torre – e vir a ser D. Lourenço de Távora, em julho de 1614,
votado no Conselho de Estado ou no Conselho enviara uma alçada à Madeira, mas, peran-
de Portugal para governador da Madeira. te a situação encontrada pelo licenciado Ma-
A provisão de governador para D. Jorge da nuel Álvares Frausto, foi enviada nova alçada,
Câmara foi assinada a 18 de janeiro de 1614, desta vez acompanhada de forças militares e
mas a fixação do seu ordenado e o agenda- deslocando-se em transporte próprio. Veio
mento da sua menagem atrasaram a sua des- como presidente o doutor Gonçalo de Sousa,
locação para a Madeira. Entretanto, também “desembargador dos agravos”, acompanha-
a situação da justiça na Ilha se havia complica- do de alabardeiros, podendo sentenciar até
do, com as queixas da Câmara contra o gover- morte natural. Entre as várias indicações que
nador e vice-versa. O Gov. D. Manuel Pereira trazia, deveria saber das “entradas no mostei-
encontrava-se ligado à família dos Carvalhos, ro das freiras, mortes, resistências, tiradas de
provedores das obras reais, e devia ter um co- pistoletes, espingardas, cutiladas pelo rosto de
nhecimento muito apurado de gestão de obras que houvera aleijão, força feita a mulheres,
públicas, pelo que os conflitos com a Câmara roubos graves, traições e aleivosia, falsidades
do Funchal foram muitos. A edilidade funcha- de escrivães e juramentos falsos”, etc. Tinha
lense não entendia ou não queria entender os ainda como indicação sobre as devassas ante-
gastos do governador com as obras militares, riores: “Parecendo-vos que não estão bem tira-
estando em construção as fortalezas de S. João das, as queimareis” (ABM, RG, Tombo Velho,
do Pico e de Santiago, instituída a fragata de fls. 270-272).
patrulhamento dos mares do arquipélago, que Só depois da chegada desta alçada tomou
a Câmara conseguiu suspender, e a permanên- posse o Gov. D. Jorge da Câmara, porque tam-
cia no Funchal de um presídio castelhano. bém só a 4 de novembro tinha prestado mena-
Nesse quadro, com a saída pontual do Gov. gem do lugar. Tomou posse a 18 de dezembro
D. Manuel Pereira e a entrega do governo ao de 1614 e foi o primeiro a ver instituído o seu
bispo do Funchal D. Fr. Lourenço de Távo- ordenado em 600$000 réis anuais, por alvará
ra (1566-1629), sobrinho de D. Cristóvão de datado de 6 de setembro desse ano, quantitati-
Moura, já a Câmara deve ter pedido para Ma- vo que se manteve ao longo de todo o séc. xvii.
drid a saída do presídio. O governador, entre- D. Jorge da Câmara ficou à frente dos destinos
tanto, regressou ao Funchal, mas a 14 de julho da Ilha durante quatro anos, durante os quais
de 1614 conseguiu autorização para voltar ao tentou fazer frente aos problemas de defesa,
continente, tornando a entregar o governo ao mas, infelizmente, em relação ao Porto Santo,
bispo. A Câmara deve ter voltado a insistir para que aliás não dependiam diretamente dele,
Madrid, pois o despacho de D. Filipe II, do pa- com muito maus resultados.
lácio do Prado, a 18 de novembro de 1614, in- A tomada de posse do governo com um de-
forma que se murmurava na cidade contra o sembargador em serviço na Ilha levou a curto
presídio castelhano e que a Câmara escrevera prazo à incompatibilização das duas autorida-
ao vice-rei D. Pedro de Castilho (c. 1540-1615) des, queixando-se o governador disso a Ma-
para se tirar da Ilha “o presídio de soldados drid, por cartas de 8 de abril e 2 de maio de
espanhóis que nela há” (AGS, SP, liv. 1511, 1615. A primeira questão teve por base o pa-
fl. 225). O vice-rei enviara o pedido para Ma- gamento dos soldados do presídio, dado que
drid a 18 de julho, e em novembro o rei es- o desembargador Gonçalo de Sousa também
crevia ao seu sucessor, entretanto arcebispo de tinha vindo para a Ilha com forças próprias.
C â mara , J orge da ¬ 769

Os soldados que acompanharam o desembar- Em julho de 1616, cerca de 500 mouros,


gador viriam pagos de Lisboa e, sendo depois num navio de certo porte e em dois patachos,
alojados em S. Lourenço, envolveram-se em voltaram a surgir no Atlântico, em princípio
brigas com os que lá estavam, que havia muito para assaltarem as naus que regressassem da
tempo que aguardavam pagamento, acabando Índia. Malogradas as suas intenções, ataca-
por insultar, como representante do governo ram a pequena ilha de Santa Maria, nos Aço-
central, o desembargador Gonçalo de Sousa. res, saquearam-na e levaram parte da popula-
A situação foi reconhecida pela corte em Valla- ção. Permaneceram ali oito dias e levaram ao
dolid, pedindo-se informação ao Conselho da todo 222 pessoas. Na viagem para Argel, fun-
Fazenda sobre o assunto do pagamento dos dearam ao largo do Porto Santo, não desem-
soldados do presídio do Funchal. barcando e parecendo avaliar as condições
As desinteligências entre o governador e o de defesa da ilha. O governador da Madeira
desembargador, no entanto, estenderam-se a mandou ali sete navios, comandados por Ma-
outros assuntos, queixando-se D. Jorge da Câ- nuel Rodrigues Atouguia, mas não se travou
mara a D. Filipe II de Gonçalo de Sousa o ter qualquer confronto, tendo-se os Argelinos
impedido no provimento dos ofícios, o que retirado.
motivou cartas da corte de Madrid para a de O alerta foi dado a 4 de janeiro de 1617,
Lisboa, a 10 de junho, 24 de outubro e 29 de pelo capitão do presídio Bartolomeu de Oli-
novembro do mesmo ano. O novo governador veira, que compareceu na sessão camarária
deve ter tido alguma dificuldade em se impor, com um requerimento a este respeito. Contou
e o provedor da Alfândega Francisco de Andra- então que estava à “espera de inimigos pelas
de, ao enumerar as interferências dos gover- novas que tinha” (ABM, Câmara Municipal do
nadores em assuntos da Fazenda, em carta de Funchal, Vereações, liv. 1320, fls. 33) e que,
30 de agosto de 1646, menciona que D. Jorge para além das fortificações e da guarnição,
da Câmara teria chegado a invadir a Alfândega seria necessário providenciar abastecimentos.
com soldados e a ameaçar prender o provedor.
O governador conseguiu, entretanto, equili-
brar a sua situação, e, nos inícios de 1617, en-
contravam-se em obras as fortalezas de S. Lou-
renço, S. João do Pico e Santiago, sendo com
certeza difícil arranjar dinheiro para uma tão
grande atividade. Para agravar a situação, co-
meçam a surgir notícias alarmantes da saída de
corsários de Argel, que, tudo indicava, pensa-
vam deslocar-se ao arquipélago da Madeira, já
tendo saqueado povoações das ilhas Canárias.
Os corsários de Argel já tinham invadido a ilha
do Porto Santo em 1615, tendo sido desaloja-
dos por uma expedição comandada por Ma-
nuel Dias de Andrade, que, mais tarde, have-
ria de se notabilizar por serviços prestados no
Brasil. A expedição expulsou “os mouros que
a entraram”, acudindo ao mesmo tempo “às
pessoas que estavam no mato”. Também parti-
cipou nesta expedição outro militar que mais
tarde se celebrizou no Brasil: Francisco de Fi-
Fig. 2 – Xaveco marroquino do tipo utilizado nos
gueiroa, que “ajudou a desalojar dela o inimi- assédios piratas à Madeira e ao Porto Santo, maqueta de 1877
go que a ocupava” (GUERRA, 1991, 63). (Museu Naval de Paris).
770 ¬ C â mara , J orge da

Alertou também o provedor da Fazenda, An- a aquisição de 50 moios de trigo, que, não ha-
tónio Gomes, para que se tomassem as devidas vendo dinheiro, foi adquirido fiado. No entan-
cautelas. De imediato, a Câmara deve ter escri- to, ao que se saiba, nada foi na altura comuni-
to ao rei a pedir aumento de verbas para fortifi- cado ao Porto Santo ou a Machico.
cação e defesa. A resposta veio com data de 15 Devido a esta situação, o governador já ul-
de maio desse ano, aplicando-se um reforço de timara algumas obras da fortificação e apro-
5000 cruzados para acabar a muralha ao longo veitou também para remeter à Câmara algu-
do mar e aplicar no resgate dos cativos. A verba mas contas antigas. Assim, na vereação de 8
foi recolhida através de finta no ano seguinte, de julho, apresentou-se na Câmara o ajudan-
por ordem do “governador, provedor da fazen- te do sargento-mor, Jácome Caldeira, com
da e procuradores dos vinte e quatro meste- um requerimento por escrito “em que pedia
res”, na ordem dos 15.000 cruzados, “dos quais aos ditos oficiais mandassem pagar as portas
se abatem da esmola do Rei para a fortificação, desta cidade, por quanto a tinha fortificado,
5.000 cruzados, para acabar o muro frente ao e feitas as ditas portas ficava a cidade fecha-
mar” (ABM, Registo Geral, t. 3, fls. 116v.-117). da e mais forte e segura para se defender e
Perante o volume de obras em curso e a ordem ofender ao inimigo, de que tinha novas ser
de se continuar esta muralha e, com certeza, se saído”. No entanto, acrescentava o requeri-
proceder ao seu encerramento, que era o forte mento: “assim por ter feito outras provisões,
de Santiago, perguntou-se ao rei se se devia in- que não só com o dinheiro da fortificação,
terromper as obras do forte do Pico, ao que mas antes de sua casa tinha muita despesa em
se respondeu que não. Assim, continuou-se serviço de Sua Majestade, pelo que não era
igualmente a fortaleza do Pico, que a partir de bastante o dinheiro aplicado à fortificação”.
julho passou a ter já oficialmente um tenente, Curiosamente, e ao contrário da atitude assu-
com acréscimo de ordenado para lenha, água mida com o anterior governador, D. Manuel
e azeite para a casa da guarda. Pereira, os vereadores “disseram que não so-
A corte de Lisboa enviou ainda uma provi- mente as ditas portas se pagariam do terço da
são régia para que livremente pudessem de- imposição que toca a este concelho”, como
sembarcar armas sem pagarem direitos e que “com suas fazendas e pessoas acudiriam ao
as pessoas em condições de comprá-las fossem que fosse serviço de Sua Majestade” (Id., Ibid.,
obrigadas a prover-se delas. No entanto, as re- fl. 29) e segurança da cidade e dos seus mora-
quisições feitas oficialmente não foram aten- dores, acrescente-se.
didas, conforme referido na mesma provisão: Como era de esperar, nos primeiros dias de
“por ora se escusam os mosquetes que pedis” agosto desse ano de 1617, o Porto Santo sofreu
(ABM, Câmara Municipal do Funchal, Verea- um terrível saque a que quase nada escapou.
ções, liv. 1320, fl. 29). Quanto à pólvora pedi- Apanhados de surpresa, os habitantes ainda es-
da, entendia-se que a que existia nas fortalezas boçaram uma vaga resistência, organizada pelo
era suficiente. O assunto adquiriu tal relevân- sargento-mor João de Viveiros, mas acabaram
cia que, na vereação geral de 22 de julho de por ser quase todos presos. Dos cerca de 900
1617, compareceu, além do governador, o capi- habitantes da ilha, terão escapado somente 18
tão do presídio e novo bispo da Diocese, D. Je- homens e 7 mulheres, escondidos nas fráguas e
rónimo Fernando (c. 1590­‑1650). Na abertura faldas da serra. Tudo o mais foi queimado e es-
da sessão, “logo pelo dito Geral foi dito que ele tropiado pelos piratas argelinos. A história do
tivera duas cartas de Argel pelas quais era avisa- Porto Santo ficou para sempre ligada a este de-
do estarem para sair muitos navios que vinham sastre e às complexas negociações para recupe-
sobre esta ilha” (Id., Ibid., fl. 30v.). Novamente rar essa população. Na Genealogia de Henrique
se discutiu a necessidade de abastecer a forta- Henriques de Noronha, encontram-se ecos vá-
leza de S. Lourenço de trigo, para o caso de ser rios destes acontecimentos, que não pouparam
necessário recolher ali população. Assentou-se as principais famílias madeirenses, como Aires
C â mara , J orge da ¬ 771

de Ornelas de Vasconcelos, filho de Aires de


Ornelas e D. Catarina de Moura, da família
do vice-rei, “que morreu em Argel, cativo, sem
geração” (NORONHA, 1948, 425), e “Cecília
de Paiva, que estava cativa em Argel, quando
os mouros tomaram o Porto Santo, em agosto
de 1617, e lá casou com António de Mesquita,
maiorquino, também cativo” (Id., Ibid., 446), e
resgatados viveram depois na ilha da Madeira.
A 28 de agosto desse ano, o governador com-
parecia novamente na sessão geral camarária
do Funchal para comunicar a dolorosa notí-
cia, acrescentando-se que “foram ouvidas pelos
ditos mouros muitas ameaças dizendo que
o mesmo haviam de fazer a esta Ilha” (ABM,
Câmara Municipal do Funchal, Vereações, Fig. 3 – Xaveco marroquino do tipo utilizado nos assédios piratas
à Madeira e ao Porto Santo, maqueta de Carlos Montalvão, 2007
liv. 1320, fls. 33-34). Logicamente, espalhou-se (Museu Naval de Salé, Marrocos).
um grande temor por toda a cidade e não só,
pois em Machico, e.g., até ao mês de outubro,
não se realizaram as habituais vereações cama- Ilha, a achem já fortificada e tão posta em de-
rárias “por andarem todos estes tempos com as fensão, que a resistência que se fizer os desen-
armas às costas em defensão desta ilha, pelos gane de suas pretensões” (Id., Ibid., fl. 115v.).
mouros estarem à vista e tomarem a ilha do O Gov. D. Jorge da Câmara, entretanto, já
Porto Santo” (ABM, Câmara Municipal de Ma- tinha saído da Madeira, em princípio para tra-
chico, liv. 99, fl. 51), como se registou a 7 desse tar dos assuntos de defesa da Ilha em Lisboa,
mês de outubro. entregando o governo a D. Jerónimo Fernan-
No Funchal, foi então decidido acabar rapi- do, que, no despacho de Bartolomeu Arias
damente a muralha frente ao calhau, até à for- de Olivares, vem referido como “governador,
taleza de Santiago. Porém, uma vez mais, não bispo, provedor de minha fazenda e ouvidor
havia dinheiro para o efeito, recorrendo-se ao do conde-capitão da dita Ilha” (Id., Ibid.), sinal
lançamento de uma finta pelos moradores, que de que se tratava do bispo. O despacho desse
se mostraram algo renitentes nesse assunto. documento, no entanto, é já do novo governa-
No entanto, as necessidades eram muitas, e os dor, Pedro da Silva (c. 1580-1639), que toma-
receios mais ainda, solicitando-se ao rei que se ra posse a 6 de julho de 1618 e viria a falecer
fizesse uma reunião para angariação de fundos como vice-rei da Índia.
e alvitrando-se para a cobrança João de Caus,
mercador de origem francesa mas já naciona- Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal de Machico, liv. 99; Ibid.,
Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, tombos 3 e 6; Ibid., Câmara
lizado, parente do anterior vice-rei Cristóvão Municipal do Funchal, Vereações, liv. 1320; AGS, Secretarias Provinciales,
de Moura (1538-1613), entretanto falecido. liv. 1511; ANTT, Desembargo do Paço, Correspondência, liv. 2; Ibid.,
Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 397; BNP, reservados,
Dado servir de governador o então bispo do cód. 8391, Index Geral do Registo da Antiga Provedoria da Real Fazenda
Funchal, o rei determinou a reunião “na casa do Funchal; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. iii, Funchal,
Secretaria Regional da Educação, 1992; Id., A Arquitetura Militar na Madeira
da dita Câmara, ou em alguma igreja” (ABM, nos Séculos XV a XVII, Funchal/Lisboa, Universidade da Madeira, 1998;
Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral, GUERRA, Jorge Valdemar, “O saque dos argelinos à ilha do Porto Santo
em 1617”, Islenha, n.º 8, jan.-jun. 1991, pp. 57-78; NORONHA, Henrique
t. 3, fls. 117-117v.). Com a chegada a Lisboa da Henriques de, Nobiliário da Ilha da Madeira, São Paulo, Revista Genealógica
notícia do saque ao Porto Santo, foi enviado Brasileira, 1948; Id., Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição
da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA,
à ilha, em dezembro desse ano, Bartolomeu 1996; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na Sociedade Madeirense do
Arias de Olivares, com especial recomendação Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.
de que, “sucedendo cometerem os turcos essa Rui Carita
772 ¬ C â mara , J osé B ettencourt da

Câmara Leme. Estiveram ainda presentes no


Câmara, José Bettencourt da
casamento a marquesa de Niza e a baronesa da
José Bettencourt da Câmara (Matos Noronha) Conceição, entre damas e cavalheiros da mais
nasceu a 19 de abril de 1844, segundo Fernan- fina nata da sociedade funchalense de então, o
do Augusto da Silva, na Qt. do Descanso, Santa que é bem revelador do status do casal.
Luzia. Era filho de José Manuel Câmara e de A presença de José Bettencourt da Câmara
Efigénia Constança Moniz de Meneses e neto na imprensa da época coincide com o tempo
do 4.º morgado dos Alecrins, Tristão Joaquim em que foi estudante, colaborando nos perió-
Bettencourt da Câmara. dicos filiados no Liceu Nacional do Funchal,
Estudou no Liceu Nacional do Funchal entre assinando os textos como J. B. da Câmara ou
1858 e 1866, matriculando-se, primeiramente, J. B. da C.
em Latim, língua materna, Francês e História Foi colaborador do periódico literário dos
Elementar e, depois, em Geometria, Aritméti- alunos do Liceu do Funchal, O Recreio, onde
ca, Álgebra e Desenho. publicou um interessante estudo intitulado
Casou-se com Júlia de Freitas e Albuquer- “A philologia”. Neste artigo, José Bettencourt
que, a 28 de novembro de 1872, tendo nascido, da Câmara escreveu sobre as origens da filo-
como fruto do casamento, um filho, o futuro logia, os principais autores e as teorias defen-
bacharel em Direito e proprietário Rui Bet- didas por estes, evidenciando a importância
tencourt da Câmara. O casamento realizou-se desta ciência na relação com a literatura e a
na igreja do Colégio, na capela de S. Francis- cultura.
co Xavier, pertencente à família do nubente. Numa altura em que os liceus se dividiam em
Foram madrinhas do casamento Maria Telles categorias – primeira e segunda –, sendo que
da Graça e Júlia de Freitas Albuquerque e teste- apenas a primeira garantia a entrada na univer-
munhas o barão da Conceição, José Manuel da sidade, José de Bettencourt da Câmara publi-
Câmara, e o comendador D. João Frederico da cou em O Noticioso uma carta na qual discorre

Qt. do Descanso, reforma de c. 1770 e seguintes, c. 1950 (ABM, Photographia Vicente).


C â mara , J osé M anuel da ¬ 773

sobre a vantagem de o Liceu Nacional do Fun- a ventura da esposa, o futuro do filhinho queri-
chal ser elevado à primeira categoria, já que, do”. José Bettencourt da Câmara era lembrado
deste modo, facilitava aos alunos madeirenses também como filho e esposo exemplar, e como
o ingresso no ensino superior, evitando que amigo que dava os conselhos mais prudentes,
estes se deslocassem ao continente para reali- as lições mais proveitosas e ensinamentos leais,
zar exames nos liceus de primeira categoria. em que todos reconheciam o valor e “lhe admi-
Em maio de 1863, iniciou a colaboração com ravam a nobreza da sua alma, a sinceridade do
o periódico literário Archivo Litterário, apresen- coração” (O Direito, 26 abr. 1875, 1).
tando uma coluna dedicada à história da Ma- O periódico A Voz do Povo refere que o ma-
deira intitulada “Ilha da Madeira, curiosidades logrado José Bettencourt da Câmara já se sen-
históricas, 1418 a 1580”. Esta rubrica teve um tira incomodado de saúde, acrescentando
total de nove capítulos, contendo apontamen- que o jovem nutria simpatias gerais e que era
tos e comentários breves sobre a história da um mancebo talentoso (A Voz do Povo, 23 out.
Ilha. 1875, 2). A gazeta O Popular anuncia a morte
José Bettencourt da Câmara foi redator e dire- de José Bettencourt da Câmara com um ar-
tor do periódico literário O Crespúsculo conjun- tigo assinado por Pinto Coelho e intitulado
tamente com Maurício Carlos de Castelbranco “À morte do meu amigo José Bettencourt da
Manoel. Este periódico, publicado pela primei- Câmara”, no qual, num triste adeus, ressal-
ra vez a 15 de fevereiro de 1865, foi herdeiro, va as características pessoais de “Bom amigo,
segundo o próprio José Bettencourt da Câmara, bom esposo, bom cidadão”, que conquistara
dos periódicos literários O Recreio e o Archivo Li- a afeição de todos com quem privava. Pinto
tterário, sendo seu propósito colmatar a falta de Coelho lembrava a humildade e o talento do
um jornal de literatura, já que os jornais políti- seu amigo como “conhecedor profundo do
cos abundavam na imprensa regional. O perió- pátrio idioma”, ficando conhecido pelo seu
dico contou com 12 números, tendo cessado a estilo, caracterizado pelo “vigor e amenidade
publicação a 31 de julho de 1865. da linguagem”, sem nunca ter sido arrastado
Segundo Fernando Augusto da Silva e o vis- para as lutas partidárias (O Popular, 27 out.
conde do Porto da Cruz, Bettencourt da Câ- 1975, 4).
mara dedicou-se a estudos de genealogia e he-
ráldica, contribuindo com algumas notas sobre Bibliog.: manuscrita: ABM, Liceu Nacional do Funchal, 468, n.º 51, fl. 30; Ibid.,
Registos Paroquiais, Óbitos, liv. 1347, n.º 61, fl. 16; impressa: Archivo Litterario, 6
estes assuntos para Saudades da Terra. Em 1974, maio 1863; 13 maio 1863; 27 maio 1863; 3 jun. 1863; 10 jun. 1863; 17 jun. 1863;
foi eleito sócio honorário da Associação Re- 3 jul. 1863; 10 jul. 1863; 22 jul. 1863; O Crepúsculo, 15 fev. 1865; 31 jun. 1865;
O Direito, 26 out. 1875; O Noticioso, 26 nov. 1863; O Popular, 27 out. 1975;
creio Académico.
PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentários para a História Literária
José Bettencourt da Câmara morre, segundo da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1953; O Recreio, 26
nov. 1863; 28 jan. 1864; 13 jun. 1864; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES,
o registo de óbito, a 19 de outubro de 1875,
Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional
com 31 anos, em Câmara de Lobos, vindo de da Educação e Cultura, 1978; A Voz do Povo, 23 out. 1875.
viagem do Estreito da Calheta. Na altura da Carlos Barradas
sua morte, trabalhava na secretaria do Gover-
no Civil. A morte de José Bettencourt da Câ-
mara provocou uma onda de comoção, como
Câmara, José Manuel da
evidenciam alguns jornais da época. No pe-
riódico O Direito, a notícia do seu falecimento A escolha de um novo governador e capitão-
abre a primeira página com um texto intitula- -general para a Madeira, em 1800, recaiu sobre
do “Um túmulo”, que é um lamento sentido à um elemento da corte com relações na Madei-
súbita morte de um jovem cheio de futuro e ra, em princípio neto do 4.º conde da Ribeira
esperança e de um “talento tão cultivado e no Grande (1712-1757): D. José Manuel da Câma-
‘arredol doirado da manhã da vida’, quando ra (c. 1760-c. 1825), que a 21 de março desse
descortinava larga existência, quando sonhava ano recebeu “aviso de nomeação” e patente a
774 ¬ C â mara , J osé M anuel da

tomou posse, recebendo do bispo a “benga-


la de capitão-general”, como no dia seguinte
escreveu para Lisboa (ABM, Governo Civil,
liv. 198, fls. 1-1v.). O governador ficou muito
bem impressionado com o bispo, antigo pro-
fessor da Univ. de Coimbra, achando muito
agradável o seu discurso e corteses as suas ma-
neiras, opinião que ao longo da sua estadia iria
desaparecer por completo.
O Gov. José Manuel da Câmara optou por
uma certa encenação de pompa e circunstân-
cia na sua estadia no Funchal, a que não seria
estranha, por certo, a opinião do prelado que
o recebeu, e que deverá tê-lo orientado na to-
mada de posse; contudo, tal encenação não lhe
granjeou muitas simpatias. Ter tomado posse
em S. Lourenço e não na Câmara, como era cos-
tume, foi a primeira afronta que fez no início
do seu governo; e quando, mais tarde, voltou
a ultrapassar a Câmara na procissão de Corpus
Christi, o Senado juntou as duas. Nos finais de
março de 1802, perante o “despotismo do go-
vernador”, que no ano anterior se tinha coloca-
do “indevidamente” atrás do pálio “e adiante da
Fig. 1 – Entrada do Gov. José Manuel da Câmara Câmara”, “iludindo os privilégios do Senado e
para a Confraria da Soledade, 20 de fevereiro de 1801 alvarás régios”, os membros do Senado acorda-
(ABM, Governo Civil, liv. 235).
ram que o procurador do concelho informasse
o governador de que deveria “abster-se daquele
8 de maio desse ano, de que prestou juramen- procedimento para o futuro”. Nessa altura, tam-
to a 26 do mesmo mês (ABM, Governo Civil, bém deveria o procurador solicitar ao governa-
liv. 197, fl. 1). Com a necessidade de elabo- dor que enviasse à Câmara “o aviso por que Sua
ração de novas instruções para o governador, Alteza mandara que este Senado fosse dar-lhe
que devem ter tido várias versões, embora aca- posse de seu cargo ao palácio de sua residên-
bando por não se afastar muito das anteriores, cia”, a fim de ser registado na documentação ca-
enviadas a D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho marária (ABM, Câmara Municipal do Funchal,
(1726-1799), as mesmas só foram assinadas a Vereações, liv. 1356, fls. 47-48v.). O governador
17 de julho desse ano, pelo que o governador não enviou o aviso, até porque não o tinha, e no
só veio a prestar menagem a 15 de outubro e a ano seguinte mandou o juiz de fora informar
tomar posse do governo da Ilha quase no final que voltaria a pegar no pálio.
do ano, a 4 de dezembro. D. José Manuel da Câmara não assumiu re-
As honras de receção no Funchal ficaram galias de que os seus antecessores não tivessem
a cargo do bispo D. Luís Rodrigues de Vila- pontualmente usufruído, pois ao longo do sécu-
res (c. 1740-1810), que o foi receber “em um lo anterior também temos indicações de as pos-
muito decente escaler”, passando depois à for- ses terem ocorrido em S. Lourenço, mas o facto
taleza do Ilhéu e daí à cidade, visitando primei- de as ter institucionalizado de forma tão rígi-
ro a Sé do Funchal e só então se deslocando a da e pomposa não poderia ter sido bem aceite.
S. Lourenço, “palácio que lhe pareceu decen- Quando, no início do verão, se deslocou para
tissimamente arranjado”. Aí, na sala do dossel, a Qt. do Descanso, e.g., determinou o seguinte
C â mara , J osé M anuel da ¬ 775

detalhe de serviço de guarnição: “A guarda do reservas, achando terem sido feitas “exorbitan-
Quartel da Quinta, vulgarmente chamada de tes despesas” e ter sido “imprópria e mal logra-
Diogo Aires, estará pronta para fazer as conti- da” quase toda a obra “que ultimamente se fez”
nências à chegada de Sua Ex.ª o Il.mo e Ex.mo (Ibid.). Esta opinião colocou-o contra os mem-
Sr. General deste Estado e arvorará a bandeira bros do anterior governo interino, assim como
logo que o avistarem; Esta bandeira será per- contra os oficiais que mais diretamente tinham
manente e se retirará quando S. Ex.ª se reco- acompanhado as obras em causas. Nesse qua-
lha de todo para o seu palácio (S. Lourenço); dro, logo a 12 de dezembro, não tinha dúvi-
Saindo S. Ex.ª em palanquim ou qualquer outra da em solicitar a vinda de um oficial do Real
comodidade que não seja de cavalo, o sargento Corpo de Engenheiros com a patente de te-
com uma guarda de 4 homens o acompanharão nente-coronel. Alvitrou que este fosse o então
como indo de cadeirinha; A casa de campo que Cap. Pedro José Botelho, o que até ao final do
vai servir de quartel-general se denomina daqui seu mandato não conseguiria. Todo o Gover-
em diante, dos Reais Próprios” (SARMENTO, no de José Manuel da Câmara veio a ser pon-
1952, 155-156). tuado por longos braços-de-ferro, que não con-
Esta tomada de posição não deve ter agra- seguiu ultrapassar por razões várias. Mesmo
dado à antiga nobreza insular, e deve ter assim, a situação que melhor resolveu foi a da
sido nesse confronto que ocorreu o inciden- ocupação inglesa, dadas as razoáveis relações
te com Henrique Correia de Vilhena Henri- que conseguiu estabelecer com o Brig. William
ques (1769-c. 1830), irmão do futuro viscon- Henry Clinton (1769-1846) e com o Cor. Tho-
de de Torre Bela (1768-1821). O morgado não mas William Gordon.
se teria apeado do cavalo, quando passara pe- Num curto espaço de tempo, na sequência
rante o palanquim do governador no final do da chamada Guerra das Laranjas e do acordo
verão de 1803 e perto da Qt. do Descanso, pelo celebrado entre Portugal, Espanha e França,
que José Manuel da Câmara o mandou pren-
der de imediato na fortaleza do Ilhéu, a pior
prisão do Funchal. A corte de Lisboa também
não aprovou a posição do governador e, logo
que se soube da prisão, o visconde da Ana-
dia, João Rodrigues de Sá e Melo (1755-1809),
mandou libertar Henrique Correia de Vilhena.
Nos dias seguintes à sua tomada de posse, o
governador assumiu a presidência da Junta da
Fazenda; logo a 9 de dezembro, visitou a con-
tadoria, um dos assuntos que lhe tinha sido es-
pecificamente encomendado em Lisboa, pas-
sou revista às tropas e visitou as principais obras
fortificadas do Funchal, mostrando interesse
em fazer o mesmo aos restantes trabalhos dessa
área num curto espaço de tempo. A situação das
forças armadas insulares deixou-o bem impres-
sionado, parecendo-lhe não se encontrarem
no “pior pé”, mostrando mesmo “firmeza nas
suas marchas” e até alguma “regularidade de-
cente nos fogos”, como comunicou para Lisboa
(AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 1170).
Fig. 2 – British Camp, desenho, de T. W. Gordon,
As obras de fortificação entretanto levadas a do aquartelamento britânico nos Ilhéus, 6 de janeiro de 1802
cabo infelizmente mereceram-lhe as maiores (ABM, Arquivos Particulares).
776 ¬ C â mara , J osé M anuel da

que colocava em causa os interesses ingleses de transitar para o futuro quartel do colégio.
nas costas portugueses, ocorreria a primeira O comando britânico ocupou a fortaleza de S.
ocupação inglesa da Madeira. Esta ocupação Lourenço, de onde o governador foi obrigado
encontrou a Ilha sem qualquer possibilidade a sair, recolhendo-se à Qt. do Descanso, na R.
de resposta. Na hipótese de Inglaterra perder de Santa Luzia, propriedade de Diogo Aires,
o acesso aos portos do continente português onde habitualmente os governadores da Ma-
e à passagem estratégica de Gibraltar, não lhe deira passavam o verão.
restava outra alternativa senão a de recuar essa Em outubro de 1801, eram assinados os Pre-
linha de defesa, ocupando a ilha da Madeira liminares de Londres, com vista à celebração
para manter no mínimo a segurança das suas de uma paz geral entre os interesses ingle-
rotas no Atlântico. ses e franceses, pelo que já não havia justifi-
A 23 de julho de 1801, uma esquadra ingle- cação para a manutenção das chamadas tro-
sa de cinco navios de guerra apresentava-se à pas auxiliares inglesas na Madeira. Acrescia
vista do Funchal e, a 24, formava “em linha de que se somava uma série de pequenos inci-
batalha, fundeando ao longo desta capital, em dentes entre aquelas e a população local, es-
distância de tiro de espingarda, amarrando-se pecialmente alguns rapazes “que pelas ruas
por todos os lados”, como mais tarde o Gov. da cidade arremedavam os oficiais auxiliares
D. José Manuel da Câmara informou para Lis- britânicos” (RODRIGUES, 1999, 155-156),
boa (AHU, Madeira e Porto Santo, doc. 1293). o que, somado também aos elevados custos
O Cor. Clinton e o Cap. James Bowen desem- que a campanha estava a representar para o
barcaram e dirigiram-se ao palácio de S. Lou- Tesouro britânico, levou à ordem de retirada
renço, informando o governador de que, “em das forças inglesas, dada a 13 de novembro.
consequência da estreita aliança e íntima ami- No entanto, as forças britânicas só viriam a
zade que há anos tem unido as cortes de Lis- sair do Funchal em janeiro do ano seguin-
boa e Londres, desejando na presente e pe- te, mas ainda antes da celebração do Tratado
rigosa crise prestar todo socorro e auxílio”, de Amiens, assinado dois meses depois, em
mandava ocupar a Ilha por “uma esquadra de março de 1802.
suas naus de guerra”, pelo que o governador A estadia das tropas britânicas mereceu os
dispunha de duas horas para aceitar, de forma maiores elogios das autoridades locais, pelo
incondicional, a presença britânica. Estas for- menos oficialmente, e salvaguardando o bispo
ças abandonariam a Ilha assim que as ameaças da Diocese do Funchal, que se absteve nesse
internacionais se desvanecessem (ABM, Câma- aspeto. Na preparação do embarque, o patrão
ra Municipal do Funchal, Vereações, liv. 198, da ribeira, António da Silva Carvalho, recebeu
fls. 23-24). ordem, a 13 de janeiro, para mandar preparar
Perante a chegada das forças britânicas, José “todos os barcos do cabrestante prontos para
Manuel da Câmara reuniu de imediato um conduzirem a bordo dos transportes toda a ba-
conselho militar com as principais figuras in- gagem” da tropa britânica e foi avisado o vice-
sulares, salvo o bispo, o corregedor e o juiz de -cônsul inglês para fazer transportar a mesma
fora, que não se encontravam na cidade. Pe- bagagem para o calhau da praia, e que, se não
rante o isolamento da Ilha e a formação de bastassem os barcos do cabrestante, “manda-
combate da força naval britânica, não restava rá apressar os barcos das vilas que vir suficien-
outra alternativa senão aceitar as condições tes [para que] não sofra demora” o embarque
inglesas e esperar que se cumprissem as pro- (SARMENTO, 1952, 162-163). O Brig. William
messas de abandono da Madeira logo que as Clinton entregou as chaves da fortaleza de
condições internacionais o permitissem, o que S. Lourenço a 17 de janeiro, e, a 19, as tropas
aliás se cumpriu. As forças ficaram instaladas começaram a embarcar, tendo o brigadeiro-ge-
num acampamento militar na área dos ilhéus, neral apresentado as despedidas finais a 27 do
mas, com a chegada do inverno, haveriam mesmo mês.
C â mara , J osé M anuel da ¬ 777

O Brig. Gen. graduado William Clinton se- “cujos sentimentos” lhe pareciam “muito bem
guiu para Londres no Arcthusa, comandado fundados e igualmente semelhantes aos ante-
pelo Cap. Wooley, e o 1.º batalhão do 85.º re- riores procedimentos” dos seus “predecessores
gimento, a bordo da nau Ruyter e no navio de neste lugar”. O Gov. José Manuel da Câmara
transporte Calcutá, seguiu para a Jamaica, nas não duvidava, assim, da mesma, “por estar dig-
Índias Ocidentais inglesas, onde viria a servir namente persuadido de que sendo os vinhos
sob as ordens do Maj.-Gen. Nugent. William da Madeira a sua principal moeda, que tudo o
Clinton viria a servir na Suécia, depois do que que tenda a falsificá-los ou confundi-los é pre-
foi promovido a major-general, em 1808, e nas parar a sua ruína, e nesta a dos reais direitos de
campanhas da Catalunha, então com tropas V. A. R. que tanta consideração se prova serem
portuguesas, onde foi promovido a tenente- pelas avultadas remessas que tão frequente-
-general, em 1823. Em janeiro de 1827, desem- mente se dirigem ao Erário Régio dessa capi-
barcaria em Lisboa à frente das tropas inglesas tal do Reino” (ABM, Governo Civil, liv. 198,
que vieram apoiar a regência da infanta D. Isa- fls. 11v.-12).
bel Maria. As grandes dificuldades que no entanto ime-
Os primeiros meses de governo de José Ma- diatamente se lhe depararam foram as da corte
nuel da Câmara tinham sido ocupados, entre de Lisboa, que não compreenderia a situação
outros assuntos, com o problema da baldeação da Madeira, nem sequer o que tinha manda-
do vinho na praça do Funchal e com uma série do o governador executar, preocupando-se,
de denúncias relacionadas com essa área, assun- em primeiro lugar, em assegurar os seus ren-
tos que lhe haviam sido entregues em Lisboa. dimentos na Ilha. Por outro lado, localmente,
Teria comunicado o assunto à Câmara, pelo que deparou com uma burocracia governamental
a 23 de maio de 1801 recebia uma representa- instituída, principalmente por parte da Junta
ção do Senado e dos “homens bons da Casa dos da Fazenda, mas também por um certo status
24” protestando novamente contra a pretensão quo, inclusivamente com possibilidades de re-
de Domingos de Oliveira e acusando-o de no lações paralelas com a capital, o que não só lhe
porto do Funchal, “ou fora dele, misturar aque- boicotava determinadas iniciativas, como lhe
les com estes vinhos e fazê-los passar por vinhos reservava um espaço de manobra excecional-
da Madeira, com que estes se desacreditarão, mente limitado.
perdendo o seu grande preço” (AHU, Madei- Os problemas surgiram logo na implanta-
ra e Porto Santo, docs. 1203-1204). Para além ção do novo sistema militar que lhe fora de-
da representação camarária, foi também envia- terminado em Lisboa. Depois de avaliar a si-
da uma representação do cônsul inglês Carlos tuação ao longo de cinco meses, o governador
Murray, em nome dos comerciantes estrangei- propôs para a corte a nomeação dos principais
ros e nacionais radicados na Ilha. quadros para os vários distritos e para o corpo
José Manuel da Câmara responderia ao ga- de artilharia, tendo o cuidado de evitar que
binete real a 25 de maio exclusivamente sobre as propostas aumentassem as despesas da Fa-
o problema da “baldeação” do vinho do Faial, zenda Real, e cumprir o que lhe fora determi-
depreendendo-se que tudo o resto de que fora nado, de prover as faltas com elementos resi-
incumbido por D. João VI teriam sido vagas dentes. Teve mesmo o cuidado de escolher a
acusações. José Manuel da Câmara manda- data do aniversário real para a proposta e de
ra o presidente e juiz de fora da Câmara do informar que os oficiais em causa, para além
Funchal ouvir novamente a “nobreza e povo” de serem os mais aptos, se destinavam à “for-
sobre a entrada do vinho do Faial e entendia matura do Batalhão” que, “conforme as Reais
que o assunto era “sem dúvida um dos pro- Ordens”, se estava a montar (AHU, Madeira e
blemas de maior consideração e peso dos que Porto Santo, docs. 1194-1196).
me foram incumbidos antes da minha chega- Mesmo depois da primeira ocupação inglesa
da a esta Ilha”. Enviava assim nova informação, e da constatação na corte de que a organização
778 ¬ C â mara , J osé M anuel da

militar da Ilha não correspondia minimamen- a mandar prender na fortaleza de Santiago,


te às necessidades, nenhuma das propostas de em abril de 1802, e que o secretário de Esta-
nomeação feitas pelo Gov. José Manuel da Câ- do mandou libertar em setembro. A situação
mara foi aprovada. Acresce que se tratava de também não era melhor com o escrivão de-
um plano que, em geral, já havia sido sancio- putado interino, Manuel Gonçalves de Abreu.
nado e que fazia inclusivamente parte das ins- O governador chegou mesmo a escrever que,
truções que lhe tinham sido entregues ainda quanto menor fosse a sua capacidade de inter-
em Lisboa. À época, a situação da corte era de venção, menor seria a sua “responsabilidade”
tal forma inoperante – tendo-se mantido assim na ação da Junta (ABM, Governo Civil, liv. 198,
mesmo com os governadores seguintes – que, fl. 26v.), assim como que só com um “golpe de
em 1805, se pedia nova proposta sobre o assun- autoridade suprema” se poderia repor o fun-
to, quando já muito antes se tinham despacha- cionamento da mesma, pois em sua opinião os
do as diretivas gerais da organização militar. rendimentos reais estavam a ser gravemente
Perante a inoperância de Lisboa, o governa- prejudicados. O ministério ainda tentou suavi-
dor limitou-se a gerir a situação de crise vigen- zar as atitudes impulsivas do governador, atra-
te, provendo as fortalezas de reparos de arti- vés de um “brinde real” de um conto de réis,
lharia, mesmo de forma limitada, e mandou em agosto de 1802, tecendo-lhe elogios à atua-
preparar a plataforma para montar o guindas- ção e, especificamente, premiando-o pelo “au-
te do forte de S. José da Pontinha. Com a saída mento das rendas reais” apresentado na conta
das forças inglesas, tentou-se de alguma forma de 20 de fevereiro desse ano (RODRIGUES,
implantar os principais elementos estudados 1999, 185-186).
em colaboração com os comandos ingleses, Os rendimentos da ilha da Madeira apresen-
tanto na área do Funchal como em Machico tavam, com efeito, um aumento regular, que
e no Porto Santo, mas sempre muito aquém se manteria até 1815, e, face ao brinde real, o
do inicialmente previsto, por dificuldades eco- governador passou a insistir em várias obras
nómicas e de articulação com os elementos da do domínio das fortificações, sem consulta ao
Junta da Fazenda. Erário Régio, como estava obrigado, o que lhe
O governador presidia à Junta da Fazenda e valeu novas repreensões. O visconde de Ana-
logo de início tentou ter algum controlo sobre dia repreendeu-o, e.g., em setembro de 1802,
essa instituição, mas os elementos da Junta por mandar executar obras sem autorização
correspondiam-se diretamente com o Erário e o “conselho de experientes”, arriscando-se
Régio e facilmente encontravam cobertura a torná-las mais dispendiosas e, futuramente,
por parte do novo presidente desta instituição, “desnecessárias e demolíveis”, como já tinha
D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1745-1812), acontecido. A Junta da Fazenda era um órgão
conde de Linhares e secretário de Estado da colegial, pelo que o governador não podia
Fazenda. Com a saída das forças britânicas e atuar de forma unilateral, até porque “seria es-
a assinatura da Paz de Amiens, o Erário Régio tranho exemplo instituir uma nova jurisdição
passou a limitar as verbas para os aspetos ime- sobre a Junta” (ABM, Governo Civil, liv. 197,
diatos de defesa, afastado que estava, em prin- fl. 49). O próprio presidente do Erário Régio
cípio, o espectro da guerra. Assim, embora por repreendeu o governador no mês seguinte, pe-
vezes implicitamente, o presidente do Erário dindo-lhe a “atenção para as enormes despe-
Régio acabou por dar cobertura a todas as re- sas da fortificação”, assim como “o respeito que
sistências da Junta da Fazenda em relação às lhe deveriam merecer os oficiais da Fazenda”.
despesas com obras militares. Acrescentava ainda que “cairia no real desagra-
Nesse quadro, entendem-se as contínuas re- do se o não fizesse, agravando o seu procedi-
servas às ordens do governador, mormente mento, por ser praticado por um militar com
pelo contador geral interino, Inácio da Silva palavras insultantes e excessivas ameaças, sem
Carvalho Ferreira, que o governador chegou admitir resposta ou escusa” (ANTT, Provedoria
C â mara , J osé M anuel da ¬ 779

e Junta da Real Fazenda do Funchal, liv. 778, tratar da sua saúde” (AHU, Madeira e Porto
fls. 23v.-24). Santo, doc. 1173). No dia seguinte ainda escre-
Em maio de 1803, a situação internacional via sobre “a falta de ilustração do clero” da Ma-
voltou a ensombrar-se com o rompimento da deira, numa alusão muito provável à situação
Paz de Amiens, pelo que o visconde de Anadia do Colégio dos Jesuítas e das dificuldades que
não teve outra alternativa senão recomendar tinha em prover as diversas paróquias e bene-
as “medidas e preocupações de defesa” que a fícios eclesiásticos, enumerando as vagas que
situação aconselhava. Acrescentava no entan- possuía (AHU, Madeira e Porto Santo, doc.
to que, de momento e mais uma vez, a posi- 1174).
ção portuguesa era de neutralidade, “enquan- Ora, tudo leva a crer que estas cartas teriam
to for possível” (ABM, Governo Civil, liv. 197, surgido após a troca de impressões ocorrida
fl. 59), o que para a Madeira, isolada no meio com o governador, onde este, com certeza,
do Atlântico, era a pior hipótese. Nos meses trocou informações sobre a situação da Ilha,
seguintes, o governador voltou a incentivar as pois o bispo do Funchal era o número dois da
obras de fortificação e até a pensar na constru- hierarquia insular. Também terá dado conta,
ção de um novo edifício para quartel, mas uma em princípio, das instruções de que vinha in-
terrível aluvião, ocorrida a 9 de outubro desse cumbido. Mesmo que D. José Manuel da Câ-
ano, fez suspender todos os trabalhos de forti- mara não o tivesse feito diretamente, na Ilha
ficação militar. não é fácil guardar segredo. Acontece que pelo
As maiores dificuldades ocorreram com o menos dois aspetos destas instruções não po-
bispo do Funchal, D. Luís Rodrigues de Vila- diam agradar ao prelado. Primeiro, a alusão de
res. O bispo assumira o governo interino da que “debaixo do pretexto de religião” se pode-
Madeira e afastara-se inclusivamente dos res- riam violar os direitos reais e de que era ao go-
tantes membros do triunvirato, ou seja, o go- vernador que competia a inspeção das escolas
verno interino constituído após a morte do públicas (ABM, Governo Civil, liv. 197, fls. 32­
Gov. D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho (1726- ‑38); este aspeto parece ser o que levava o bispo
-1798). A posição do bispo é patente, e.g., a querer ir a Lisboa. Segundo, a ordem entre-
no livro das eleições da Confraria da Soleda- gue ao governador em Lisboa, que concedia
de do Convento de S. Francisco do Funchal, o Colégio dos Jesuítas para “celeiro público”
para onde os governadores, após a tomada de (Ibid., fl. 4v.).
posse, tradicionalmente entravam. O bispo O bispo não se deslocou a Lisboa, mas o afas-
entrou para a confraria a 12 de abril de 1779, tamento entre as duas entidades começou a
mandando exarar “bispo e governador deste definir-se aquando da chegada das forças in-
estado” com uma cartela semelhante aos res- glesas, quando D. Luís Rodrigues de Vilares se
tantes. No entanto, a 21 de abril de 1800, man- recusou a regressar ao Funchal e a participar
dava pintar na folha de rosto desse livro uma nas reuniões, arvorando-se em defensor dos
aparatosa cartela com as suas armas de fé enci- interesses da Coroa portuguesa. O afastamen-
madas por coroa de conde, intitulando-se pre- to piorou com a proposta do governador de
sidente da Confraria e, de novo, “bispo e go- cedência do Colégio para aquartelamento das
vernador deste estado” (ABM, Governo Civil, forças britânicas e continuou quando o bispo,
liv. 235, fl. 1). adiantando-se ao governador, assim que houve
Quando da chegada do novo governador e conhecimento da assinatura dos Preliminares
aos primeiros contactos, depois de o ter recebi- de Londres, a 26 de novembro de 1821, man-
do em dezembro, aparentemente muito bem, dou celebrar três dias de luminárias e um Te
a 8 de fevereiro o bispo solicitava diretamente Deum na Sé do Funchal, ao qual, por ordem do
a D. Rodrigo de Sousa Coutinho, depois de o governador, nenhum militar compareceu.
felicitar pela sua nomeação para presidente do Com a saída das forças inglesas, o governa-
Real Erário, para se deslocar a Lisboa, “para dor, que já tinha manifestado a sua vontade de
780 ¬ C â mara , J osé M anuel da

do bispo, que “as provisões inglesas tinham fi-


cado no Colégio” e com isso se “poupava à Fa-
zenda Real duzentos mil cruzados”. Sobre a ne-
cessidade do edifício para a educação do clero,
alegada pelo prelado, respondia que não sabia
se prejudicava a “educação do clero da Ilha,
que provera ao Céu fosse presentemente mais
regular” (Ibid., fls. 26v. e 31-32).
Teria sido na sequência desta questão que o
governador resolveu assumir um dos encargos
até essa época da responsabilidade da Igreja.
Com base na situação de muitas raparigas ex-
postas, “que vagueavam sem destino”, propõe
em março de 1802 a criação, também na Ilha,
de uma Real Casa Pia, onde essas raparigas pu-
dessem ser recolhidas e educadas (Ibid., fl. 29).
Fig. 3 – Quartel Militar de S. João, pormenor da planta do Funchal
de Oudinot, 1804 (IGP).
D. José Manuel da Câmara retorna o assunto
em junho desse ano, propondo que a sede da
Real Casa Pia seja na capela de S. João da Ri-
ficar com o Colégio para aquartelamento, pro- beira, e volta a escrever a este respeito em ou-
telou a entrega das chaves deste edifício, ale- tubro. Esta capela tinha sido sede do primeiro
gando a ordem que tinha para a sua utilização núcleo franciscano da Madeira e fora totalmen-
para celeiro público e o facto de ali terem fica- te reconstruída pelo conde de S. Miguel, D. Ál-
do provisões inglesas, que não haviam sido em- varo Xavier Botelho de Távora (1708-1789),
barcadas. Como entretanto a corte também não quando este ocupara o cargo de governador
tomou posição sobre o destino do edifício, a 13 da Madeira, entre 1751 e 1754, e oferecera in-
de maio de 1803 mandou oficialmente aquarte- clusivamente os painéis de azulejos da capela-
lar no Colégio o batalhão de artilharia. O bispo -mor. A capela estava entregue à paróquia de
D. Luís Rodrigues de Vilares já se havia quei- São Pedro e com os anexos ocupados por re-
xado para Lisboa de que não lhe queriam en- colhidas franciscanas leigas. Como a Casa Pia
tregar o Colégio, enviando cópias das doações era uma organização de carácter régio, à seme-
anteriores, e, embora ainda tenham mandado lhança da de Lisboa, era mais uma tentativa de
devolver-lhe as chaves do edifício, acabaria por intromissão na área até então do prelado do
não voltar para a posse da Diocese. Funchal.
Nos finais de 1801, o governador oficia- Com um certo afastamento entre as cortes
va para Lisboa que, conforme instruções que de Lisboa e de Londres, e a consequente apro-
tinha, o Colégio estava destinado para aquar- ximação à esfera de influência francesa, os co-
telamento militar e celeiro público. Tinham merciantes ingleses da Madeira começaram a
estado lá uns 15 ou 20 seminaristas, mas que movimentar-se, criando dificuldades à ação do
“aliás estavam bem no lugar em que estão, que governador. Entre as ações desenvolvidas, con-
é muito perto”. Em fevereiro seguinte, ainda ta-se uma série de reuniões efetuadas “à porta
acusava o prelado de não lhe ter dado as cha- fechada” entre o bispo e o cônsul José Prin-
ves a ele, “mas sim ao brigadeiro Clinton”, pelo gle, assim como uma série de “faltas de consi-
que não se sentia no dever de lhas entregar, deração e respeito” à pessoa do governador e
afirmando que a “renda do Seminário pelo di- ao Governo central (RODRIGUES, 1999, 191).
nheiro régio supria a do edifício” (ABM, Go- O bispo não compareceu à festa comemorativa
verno Civil, liv. 198, fls. 19v.-20). Em junho de do aniversário real, a 13 de maio, em S. Lou-
1802, voltava a insistir, perante as reclamações renço, o chamado “brinde real”, mas esteve
C â mara , J osé M anuel da ¬ 781

presente na festa com baile em casa do cônsul As questões entre a comunidade inglesa e o
britânico, por ocasião do aniversário de Jorge governador chegaram a levar à prisão de um
III de Inglaterra. Como o governador comuni- influente membro da praça comercial britâni-
cou para Lisboa, “para grande males, grandes ca, William Penfold (1776-1835), que D. José
e eficazes remédios” (AHU, Madeira e Porto Manuel da Câmara mandou inclusivamente
Santo, docs. 1355-1358), e em junho de 1803 prender no consulado britânico, em outubro
fixou-lhe residência no Santo da Serra, proibin- de 1803, por alegado desrespeito à sua autori-
do-o de entrar no Funchal, decisão revogada a dade. A decisão era tão inusitada que foi con-
22 de agosto pelo Governo de Lisboa. Em causa testada por todo o corpo consular acreditado
estariam não só as várias faltas de cortesia entre na Ilha e, inclusivamente, não teve o apoio do
as duas individualidades, mas também as reu- corregedor, José Pedro de Lemos.
niões secretas realizadas entre o bispo, o cônsul A ação do Gov. D. José Manuel da Câmara
José Pringle e outros elementos, que os infor- teve, assim, alguns aspetos difíceis, que extra-
madores do governador indicavam como ma- vasaram muito as suas competências. Logo que
çons da Madeira, informação que não se devia chegara ao Funchal, v.g., o governador planea-
afastar da verdade, pois funcionavam então no ra uma série de obras mais ou menos mega-
Funchal várias e ativas lojas maçónicas, e tanto lómanas, entre as quais uma grande praça para
o cônsul como o vice-cônsul eram membros das levantar uma estátua em bronze de D. João,
mesmas, tal como os membros das principais príncipe regente, a cavalo e sobre um pedestal,
famílias madeirenses. Entre estes, encontrava- em reconhecimento “pelos incomparáveis be-
-se Henrique Correia de Vilhena Henriques, nefícios geralmente recebidos” (ABM, Gover-
irmão do futuro visconde de Torre Bela, que o no Civil, liv. 198, fls. 30-32v.). Claro que Lisboa
governador mandara prender no verão de 1803 não se opôs à ideia, mas lembrou que naquela
e que, já em dezembro de 1791, em Lisboa, fora altura “não convém diminuir a sobra das ren-
ouvido pelo Tribunal do Santo Ofício por fre- das reais, que se remetem para o Erário”, pelo
quentar lojas maçónicas no Funchal. O gover- que a obra se deveria “depois executar com
nador acusa também o bispo de ser pedreiro- mais vagar” (Ibid., liv. 197, 28 maio 1802).
-livre, levanta-lhe um processo e alvitra mesmo Também se encontrou muitas vezes em con-
para Lisboa se, como lhe fora determinado nas fronto com a Câmara. Um dos problemas mais
instruções que recebera, não o deveria mandar graves nestes anos era a importação de “vinhos
prender e enviar para o continente. de fora”, que não poucas vezes serviam para
O bispo, no entanto, possuía também contac- “baldear” com o vinho local, prática a que o
tos em Lisboa, pelo que, em julho desse ano, o Senado camarário se opunha terminantemen-
governador da Madeira se queixava ao viscon- te. Sobre este assunto, o governador já trouxe-
de da Anadia de que o andariam a denegrir ra de Lisboa, para averiguar, queixas chegadas
na corte. Assim, só um novo “barão de Alver- à capital. O governador, no entanto, em breve
ca” poderia “decepar” o mal, mas mesmo assim também pretendia desembarcar 50 pipas de
necessitaria de apoio no ministério (Ibid., doc. vinho de Málaga, atitude a que o Senado se
1293). A referência ao antigo governador da opôs por unanimidade, demonstrando uma
Madeira, João António de Sá Pereira (1719- posição muito firme nesse âmbito.
1804), que tomara atitudes verdadeiramente Dentro desses conflitos, e perante queixa
ímpares no Funchal e para as quais sempre ti- apresentada em Lisboa pela Câmara, na ses-
vera o apoio do Marquês de Pombal, era quase são de vereação de 18 de outubro, v.g., era
perfeita, pois o barão de Alverca era tio do vis- mostrada a resposta régia. Estranhava o prín-
conde da Anadia. No entanto, o tempo não era cipe D. João que o governador “andasse a afi-
o mesmo e, principalmente, Sá Pereira nunca xar editais e ordens suas”, leia-se, a mandar
tivera o mais pequeno desentendimento com o afixá-las, com certeza, “nas portas das igrejas
então bispo do Funchal. do campo”, segundo se queixara a Câmara.
782 ¬ C â mara , J osé M anuel da

Acrescentava-se ainda que o governador não oficiou à edilidade, a 15 de janeiro de 1803,


tinha direito a “lugar e cadeira nos presbité- que deveria demolir a capela de S. Sebastião e
rios das igrejas” durante as celebrações euca- duas casas anexas, tudo propriedade camará-
rísticas e religiosas, assim como deveria devol- ria. A velha capela encontrava-se em avançado
ver as chaves e permitir livre acesso ao edifício estado de ruína, mas o Senado ter-se-ia escu-
do Colégio, o que, como sabemos, não cum- sado a cumprir a ordem, limitando-se a fazer
priu, até porque Lisboa veio a alterar essa po- transferir as imagens para a capela de Santia-
sição (ABM, Câmara Municipal do Funchal, go, igualmente propriedade camarária. Na ses-
liv. 1365, fls. 92-92v.). são de 22 de janeiro, perante novo ofício do
Em relação à Câmara, desde a sua chegada governador, os vereadores acabaram por acei-
que o governador insistia na necessidade de tar a demolição, se é que o assunto não fora
abrir um mercado de frescos no meio da cida- anteriormente acordado entre alguns dos ve-
de, não se conseguindo chegar a acordo sobre readores e o governador, alegando-se na verea-
o local. Como era seu hábito, o governador ção que o prelado já havia “transferido as ima-
gens” (Ibid., fls. 82-82v.). Na manhã seguinte, a
capela apareceu arrasada, acabando por ser o
bispo do Funchal a única entidade a protestar
contra o sucedido, pois não havia sido con-
sultado. A 27 de janeiro, o governador comu-
nicava para Lisboa o início dos trabalhos da
praça pública, que “frívolos e cansados pro-
testos” tentavam protelar, nesta “falta de polí-
cia, de que aliás não carece mesmo aldeia al-
guma do reino”. Os trabalhos de nivelamento
do solo e de construção das barracas duraram
pouco tempo, já se vendendo “na nova praça
hortaliças e algumas frutas” desde 21 de maio
(ABM, Governo Civil, liv. 198, fls. 46-46v.),
realizando-se a inauguração do mercado a 18
de junho. Em janeiro de 1821, quase 20 anos
depois e perante a aclamação na Madeira da
revolução constitucional de agosto do ano an-
terior, em reação à situação, tentou-se a re-
construção da velha capela, mas sem qualquer
sucesso. A cidade habituara-se à nova praça, e
a Câmara delimitara mesmo aquela zona para
venda de comestíveis, pressionando, em 1823,
os vendedores de pão das redondezas a trans-
ferirem-se para ali.
Não poderemos deixar de salientar que se
ficaram a dever a D. José Manuel da Câmara
os primeiros projetos para o alargamento da
cidade do Funchal para poente, a chamada
nova cidade das Angústias, assunto de que já
se falava desde os finais do século anterior e
que com o desastre da aluvião de 9 de outubro
Fig. 4 – São Sebastião, imagem flamenga, de 1520 a 1530,
que pertenceu à capela demolida em 1803
de 1803 se tornou urgente. O assunto foi logo
(Museu A Cidade do Açúcar). presente à vereação de 11 de novembro desse
C â mara , J osé M anuel da ¬ 783

e do bispo, com carta régia datada de 15 de


outubro (ABM, Governo Civil, liv. 199, fl. 5),
tendo o bispo e o governador regressado ao
continente quase em simultâneo, nos dias 10 e
11 do mesmo mês, em navios diferentes, para
que na Ilha não interferissem no trabalho do
desembargador.
A acusação do bispo e do governador veio a
ser feita pelo Desembargo do Paço, em mea-
dos de 1805, altura em que “foi tomad[o] em
madura consideração” todo o material recolhi-
do. Concluiu-se que o governador não se por-
tara bem com o bispo, mas que este também
não tivera um comportamento exemplar com
Fig. 5 – Armas da provável residência de José Manuel da Câmara o governador, tendo-o injuriado “com palavras
na Junqueira, em Lisboa, c. 1770 (palácio dos condes e depois impróprias” de um prelado, que deveria apre-
marqueses da Ribeira Grande) (arquivo particular).
sentar “mansidão e paciência evangélica do
seu pastoral carácter”. No entanto, o príncipe
ano, sob a forma de um “plano simétrico” pro- regente veio a perdoar a ambos, autorizando o
jetado para se levantar de Santa Catarina até bispo a regressar à sua Diocese, o que só viria a
ao Ribeiro Seco (ABM, Câmara Municipal do acontecer mais tarde, e concedendo ao gover-
Funchal, liv. 1365, fl. 97v.-98). Por essa altura nador a honra e mercê de ir “beijar a minha
surgiu outro projeto menos ambicioso, envol- real mão”. Futuramente, sobre este assunto de-
vendo um loteamento na área da Torrinha. veria ser “guardado perpétuo silêncio” (ABM,
O projeto das Angústias seria depois desenha- Governo Civil, liv. 199, fls. 24v.-25v.). O bispo
do pelo Brig. Reinaldo Oudinot (c. 1747-1807) só regressaria ao Funchal alguns anos depois, e
e arrastar-se-ia por todo o séc. xix e inícios do já bastante debilitado, falecendo em 1810. Em
séc. xx. Em causa estavam inúmeras e comple- 1811, D. José Manuel da Câmara ainda haveria
xas expropriações, que levaram à Câmara, em de ser indigitado para representar os interes-
sucessivas sessões, “a nobreza e o povo”, por ses portugueses em Washington, mas a situa-
vezes sob a presidência do governador ou do ção política não seria muito clara e o antigo
corregedor. governador da Madeira teria feito tudo para
Perante as dificuldades sentidas na Ilha já a se esquivar ao lugar, vindo a ocupá-lo, no ano
15 de setembro de 1802, D. José Manuel da Câ- seguinte, o célebre abade Correia da Serra
mara pedia para regressar ao reino. No entan- (1750-1723).
to, o gabinete de Lisboa optara por lhe exigir
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Vereações,
que cumprisse escrupulosamente os três anos livs. 1356 e 1365-1368; Ibid., Governo Civil, livs. 197-199 e 235; AHU, Madeira
de governo, como era hábito, não dando assim e Porto Santo, docs. 1170, 1173-1174, 1191, 1194-1196, 1203-1204, 1218-1222,
1273-1279, 1285-1308, 1355-1358, 1383-1389, 1390-1398, 1406-1408 e 1708;
azo para que quer o governador, quer o bispo ANTT, Ministério do Reino, Avulsos, mç. 498; Ibid., Provedoria e Junta da
saíssem beneficiados nas suas quezílias. O go- Real Fazenda do Funchal, liv. 778; Ibid., Tribunal do Santo Ofício, Inquisição
de Lisboa, cx. 28, proc. 85797; BNP, reservados, cód. 8022, Coleção de Ordens
vernador era informado da sua substituição a e Providências; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. vi, Funchal,
21 de novembro, com a indicação de que deve- Secretaria Regional da Educação, 2003; MARQUES, A. H. de Oliveira, História
da Maçonaria em Portugal, 3 vols., Lisboa, Presença, 1990-1997; RODRIGUES,
ria regressar na mesma fragata, a Carlota Joaqui- Paulo Miguel, A Política e as Questões Militares na Madeira. O Período das
na, onde ia o seu sucessor. O novo governador, Campanhas Napoleónicas, Funchal, CEHA, 1999; Id., Estudos sobre o Século XIX
na Madeira, Política, Economia e Migração, Funchal, Imprensa Académica, 2015;
Ascenso de Sequeira Freire (c. 1760-c. 1825), SARMENTO, Alberto Artur, Ensaios Históricos da Minha Terra. Ilha da Madeira,
foi acompanhado do juiz desembargador Joa- 3 vols., Funchal, JGDAF, 1952; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos
Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998.
quim António de Araújo para proceder a uma
“sindicância” sobre as atitudes do governador Rui Carita
784 ¬ C â mara , L u í s G on ç alves da

Câmara, Luís Gonçalves da capitão do Funchal e, a partir de 1576, conde


da Calheta – para a atribuição do título, além
Luís Gonçalves da Câmara nasceu na Madeira, da sua participação na caça às armadas de cor-
por volta de 1519, e faleceu na capital do reino, sários, foi decisiva a influência que os seus dois
em 1575. Padre da Companhia de Jesus, foi con- irmãos tinham na corte. No séc. xvi, em plena
fidente de Inácio de Loyola, confessor e prece- época de ouro da cana-de-açúcar madeirense,
tor do príncipe herdeiro, D. João Manuel, e, a família do capitão do Funchal foi alcançando
anos mais tarde, mestre, encarregado da instru- notoriedade na corte.
ção moral e intelectual do filho daquele, o Rei Da sua juventude, nada é conhecido, até
D. Sebastião, tornando-se também seu confes- ingressar, em 1535, como bolseiro do Rei
sor e o seu mais íntimo conselheiro. Privou e D. João III no Colégio de S.ta Bárbara da
correspondeu-se com importantes figuras seis- Univ. de Paris, cujo principal era o português
centistas, sendo uma personagem tenaz que re- Diogo de Gouveia, o Velho. Francisco Rodri-
colheu ódio e admiração, algo que Camões terá gues, em História da Companhia de Jesus na Assis-
até referido nos seus cantos, e cujos percurso tência a Portugal, confirma a sua naturalidade,
e legado são de uma importância indiscutível “Lodovicus Goncalve de Camara nobilis funiculen-
para a história da sua ordem e do seu país. sis dioecesis” [“Luís Gonçalves da Câmara, nobre
Era trineto de João Gonçalves Zarco, o primei- da Diocese do Funchal”], através do livro das
ro capitão do donatário do Funchal, e filho de atas reitorais da Univ. de Paris (RODRIGUES,
João Gonçalves da Câmara, quarto capitão-do- 1931-1950, I, 1, 447). No tocante à sua ida para
natário do Funchal, e de D. Leonor de Vilhena. Paris, deveremos ter em consideração a im-
Os seus avós paternos eram Simão Gonçalves da portância que a rede de parentescos nisso de-
Câmara, terceiro capitão do Funchal, e D. Joana sempenhou, numa altura em que esta cidade
Valente, filha do primeiro governador da Casa constituía um dos grandes centros de cultura
do Cível. Os seus avós maternos, de ascendência europeia. Foi na capital francesa que Inácio
nobre, eram D. João de Meneses, conde de Ta- de Loyola obteve o grau de mestre em Artes
rouca, prior do Crato e mordomo-mor dos Reis e de onde partiu, em fevereiro de 1535, sete
D. João II e D. Manuel I, e D. Joana de Vilhena. anos após chegar a Paris, rumo à sua cidade
Era primo de D. João de Menezes, outro jesuí- natal. Será, portanto, pouco provável que o
ta célebre. A vida religiosa também foi abraça- jovem Gonçalves da Câmara se tenha cruza-
da por outro dos seus irmãos, o P.e Martim Gon- do com Loyola nesse período, ao contrário da
çalves da Câmara. Era sobrinho de D. Manuel proximidade que estabeleceu com o francês
de Noronha, bispo de Lamego, e o seu irmão Pedro Fabro, o único fundador da Companhia
Simão Gonçalves da Câmara tornou-se o quinto que era padre a 20 de agosto de 1534, data de
celebração da cerimónia que esteve na génese
da futura ordem. Em 1538, Câmara prestou ju-
ramento universitário.
Após a conclusão dos seus estudos em Paris,
onde alcançou o grau de mestre, também em
Artes, regressou a Portugal, indo para a Univ. de
Coimbra. Segundo António Franco, em Ima-
gem da Virtude em o Noviciado da Companhia de
Jesus…, com a refundação da Univ. de Coimbra,
D. João III mandou regressar os Portugueses que
estudavam em Paris. Fernando Augusto da Silva
e Carlos Azevedo de Meneses, em Elucidário Ma-
Fig. 1 – Assinaturas do P.e Luís Gonçalves da Câmara, Lisboa,
deirense, e Maria Augusta Cruz, em D. Sebastião,
1573 e 1574 (ARSI, Roma, Lusitânia, 66, 63 e 111). referem que Câmara foi um dos escolhidos pelo
C â mara , L u í s G on ç alves da ¬ 785

Rei para fazer parte do corpo docente da Uni- sinal que Rodrigues interpretou como de sim-
versidade. Em 1544, reencontrou Fabro, que es- ples humildade, situação que Câmara, todavia,
tava de visita a Coimbra, a quem foi atribuída não iria reconhecer com complacência e que
a sua vocação. Depois desse encontro, Câma- seria o prefácio do confronto que iria abalar
ra retirou-se para a Vila de Coja, onde, afasta- a província portuguesa (RODRIGUES, 1931-
do de tudo e de todos, pôde realizar os exer- 1950, I, 2, 31).
cícios espirituais da Companhia. Ingressou na Em 1547, quando o madeirense era o reitor
ordem a 27 de abril de 1545, cinco anos depois do Colégio, Loyola escrevia à comunidade do
do reconhecimento papal dessa jovem congre- Mondego sobre as práticas adotadas por aque-
gação. A sua entrada ocorreu um ano após ter les estudantes, parcialmente instigadas por
sido revogado o limite de 60 professos na con- Simão Rodrigues, como anteriormente referi-
gregação, que tinha sido imposto por Paulo III do, e que estavam a chocar a comunidade e a
na bula de fundação, possibilitando assim que a comprometer a posição da ordem em Portugal.
Companhia respondesse aos apelos de novos in- Inspirados por interpretações erradas de algu-
gressos; nesse ano, começaram a chegar relatos mas passagens dos Exercícios inacianos, alguns
de práticas penitenciais estranhas por parte dos estudantes desfilavam por Coimbra carregando
estudantes do Colégio de Coimbra, parcialmen- crânios e vestidos de forma pouco séria, numa
te instigadas pelo padre provincial português, o atitude excessiva que Loyola repudiava. A carta
mestre Simão Rodrigues. do geral atesta a preocupação do líder da Com-
Gonçalves da Câmara fez o seu noviciado no panhia perante os testemunhos que chegavam
novo Colégio de Valença, onde era reitor o P.e a Roma: “Quando tal moderação está ausente,
Diogo de Miró, retornando depois para Coim- o bem é transformado em mal e a virtude em
bra, devido a uma enfermidade nos olhos. vício” (Monumenta Ignatiana…, 1903, 504).
Tendo de se deslocar a Madrid, o madeirense Em 1548, o padre madeirense parte para a
reencontra-se com o P.e Pedro Fabro, em janeiro primeira missão jesuíta em Tetuão (Marrocos),
de 1546. Regressa a Coimbra cinco dias depois pretendendo prestar ajuda espiritual aos Portu-
do encontro, que parece ter sido proveitoso, gueses e visitar os cristãos cativos, acabando por
como se depreende da carta de recomendação regressar a Lisboa, novamente devido a doen-
que ele e o seu companheiro de viagem, Gonça- ça. Francisco Rodrigues relata que, nesse ano,
lo Fernandes, receberam para entregar ao rei- nascia em Roma a intenção de substituir o pro-
tor do Colégio de Jesus. vincial português, cuja liderança não satisfazia
Em 1547, foi ordenado sacerdote e nomea- inteiramente Loyola. Desde 1545, chegavam re-
do reitor do Colégio de Coimbra, numa subida latos da província portuguesa sobre a insubor-
meteórica, substituindo o P.e Martinho de Santa dinação de alguns membros da Companhia,
Cruz, reitor quando Câmara ingressou na Com- incluindo do próprio provincial, perante as or-
panhia. Em pouco mais de dois anos, Luís Gon- dens oriundas de Roma. O P.e Simão, pela in-
çalves da Câmara ingressa na ordem e chega a coerência e pela imprudência que demonstrava
reitor de um dos seus colégios. Já no séc. xvii o ter em algumas das suas missivas – e de acordo
P.e António Franco relatava, na sua narrativa afe- com os relatos de outros padres –, estava a de-
tuosa e parcial, que Simão Rodrigues o retirou sagradar à cúpula da Companhia em Roma. A 9
do cargo de reitor, atribuindo-lhe a função de de dezembro de 1550, quando Simão Rodrigues
cozinheiro, “no qual ofício se houve, como se obteve do Rei a desejada licença para se ausen-
só para ele entrara na Companhia” (FRANCO, tar para Roma, deixou o ofício de confessor do
1930, 145). Aliás, o próprio Simão Rodrigues príncipe regente D. João ao P.e Gonçalves da Câ-
afiançava, em carta ao padre-geral da ordem, mara, nomeado pelo próprio geral, que se ocu-
que “mais se gozava e maior contentamento re- paria dessa missão até meados de 1552. O cargo
cebia em ser cozinheiro da Companhia de Jesus conferia grande destaque à ordem a que per-
do que mestre e confessor do príncipe”, num tencesse o escolhido, e é certo que o confessor e
786 ¬ C â mara , L u í s G on ç alves da

o precetor possuíam alguma influência nas de- “só de ouvir o nome do P.e Simão Rodrigues,
cisões políticas que eram tomadas. Ampliava-se, [Câmara] acendia-se de tal modo, que pare-
deste modo, uma teia de interesses que criou cia sair fora dos seus sentidos” (RODRIGUES,
muitos inimigos aos Inacianos e lhes provocou 1931-1950, I, 2, 83). Nas cartas de Câmara estão
muitos dissabores. patentes uma certa extrapolação que fez dos
No início da déc. de 50 do séc. xvi, a provín- acontecimentos, o pendor negativo que con-
cia portuguesa da Companhia viveu um perío- feriu à atuação do provincial e a interpretação
do de “grande tribulação” (RODRIGUES, 1931- fantasiosa das consequências do seu afastamen-
1950, I, 2, 10), com uma profunda cisão no seu to para a província. Nas suas palavras, os aliados
seio, a qual teve dois protagonistas: o próprio do antigo provincial sairiam da ordem ou se-
Simão Rodrigues, provincial desde 1546 e um riam expulsos, por compactuarem com as suas
dos prime patris da ordem, e Luís Gonçalves da ideias perversas. Após a expulsão de Rodrigues,
Câmara. Confrontavam-se, assim, os partidários pouco tempo passou até que o P.e Gonçalves da
de uma posição mais moderada e os adeptos de Câmara reincidisse na sua visão crítica sobre o
uma linha mais rigorosa, onde se inseria o ma- governo da província e escrevesse para Roma
deirense. O cisma instalado acabou por condu- indicando a falta de habilidade de Miró para a
zir a uma divisão interna na Companhia, pro- liderança.
longando-se durante as décadas seguintes. A 18 Em 1553, Câmara deixou Portugal, chegan-
de agosto de 1551, atendendo a um pedido de do a 23 de maio a Roma, onde executou um
D. João III, o padre valenciano Diogo Miró che- trabalho que o perpetuou na história da Com-
gou, por determinação do geral, a Coimbra, panhia. Quando se encontra com Loyola, o im-
onde se inteirou sobre a veracidade das críti- pacto é tão grande que o próprio Pedro Fabro,
cas dirigidas ao provincial. As acusações con- tão admirado pelo madeirense, parecerá, aos
tra Simão acumulavam-se e Loyola decidiu, por seus olhos, uma criança em comparação com a
fim, afastá-lo do governo da província, sendo grandiosa figura do geral. No início de dezem-
expulso do reino em 1553. Não parece haver re- bro, para esclarecer o diferendo contra Simão
gisto dos delatores e das acusações finais contra Rodrigues, Loyola estabeleceu um julgamento
o provincial, pela ausência de correspondência e nomeou Gonçalves da Câmara como um dos
conservada. No início de 1552, são remetidas acusadores. A 7 de fevereiro de 1554, foi pro-
as missivas de Loyola que depunham o provin- nunciada a sentença que ratificava a saída de
cial. Após o seu afastamento, o cargo transitou Rodrigues do reino e do cargo. O padre madei-
para Miró e Simão foi designado líder da nova rense saiu, uma vez mais, vencedor.
província de Aragão, que foi propositadamen- A ida de Câmara a Roma estava relacionada
te erigida neste contexto. Nesse período, outros com os problemas da província portuguesa,
jesuítas tornaram-se confessores das personali- conforme amplamente relatado nas várias mis-
dades mais influentes do reino, potenciando as sivas trocadas entre Roma e Portugal ao longo
tensões externas contra a província portugue- dos anos, mas Câmara acabaria por ter aí uma
sa da ordem, agravadas pela própria celeuma missão ainda mais importante. O padre funda-
interna. dor recebia vários apelos para que deixasse um
Alguns investigadores acusam Gonçalves da registo da sua vida, principalmente do período
Câmara de desacreditar Simão Rodrigues pe- anterior ao reconhecimento da ordem. O jesuí-
rante a cúpula da Companhia, o que pode ser ta madeirense acabou por ser o escolhido – se-
verificado nas críticas por si enviadas a Roma, gundo alguns relatos internos, devido à sua me-
mediante as quais pretendia que o provincial, mória prodigiosa – para o elaborar. Certamente,
para além de deixar o governo da província, preferiu-se Gonçalves da Câmara devido ao seu
abandonasse Portugal. A (alegada) estima de empenho na resolução dos problemas da pro-
outrora havia desaparecido por completo, e a víncia portuguesa e à lealdade a toda a rede de
tensão entre ambos é relatada de tal forma que, influências de que se cercava, a qual crescia. As
C â mara , L u í s G on ç alves da ¬ 787

1554. Devido à ausência de título nos vários ma-


nuscritos de Câmara, a obra ditada por Loyola
acabou por ser publicada com diferentes nomes
ao longo do tempo: Atas do P. Inácio, Feitos do P.
Inácio, Autobiografia, entre outros, sendo apenas
citada como Autobiografia por J. F. O’Connor,
em 1900. Os relatos ficaram, durante vários sé-
culos, nos segredos da ordem. Depois do último
encontro entre os dois, que teve lugar entre 20
e 22 de outubro de 1555, o madeirense deixa
Roma, e os relatos da entrevista acabam por ser
transcritos na cidade de Génova, em italiano.
Anos mais tarde, em 1566, o terceiro geral da
Companhia, Francisco de Borja, mandaria reco-
lher todos os relatos dos manuscritos inacianos,
proibindo a sua leitura e difusão, alegadamente
por estarem incompletos, e encarregou o P.e Ri-
badeneira de executar uma biografia, que aca-
bou por se traduzir numa versão em castelhano,
de estilo clássico, dos próprios originais de Câ-
mara. Entre os vários aspetos a serem investiga-
dos na biografia do madeirense, está a relação
entre a desconsideração que os seus escritos ti-
veram no governo de Borja, que se propagou
no tempo, e a fama que o cargo na corte portu-
Fig. 2 – Recuerdos Ignacianos, Memorial de Luis Gonçalves guesa lhe deu.
da Câmara (1992), de Luís Gonçalves da Câmara. Após quatro meses a desempenhar funções
de secretário, em finais de janeiro de 1555 Câ-
diligências e o comportamento de Câmara, du- mara decidiu fazer o seu próprio registo acerca
rante todo o período de crise, e a sua interven- do que entendeu ser importante para ser recor-
ção na gestão desse processo turbulento foram dado sobre o fundador, escrevendo o que seria
decisivos para impedir uma cisão profunda o Memorial de lo Que Nuestro Padre Me Responde
entre Roma e Portugal, que comprometeria até acerca de las Cosas de Casa, Començado á 26 de He-
a expansão da ordem pelos novos domínios e a nero del Año de 1555, guardado, com alto secre-
unidade e a continuidade de uma congregação tismo, durante séculos. A sua presença discre-
tão jovem. A 26 de março de 1553, por sugestão ta é mais importante do que se possa pensar.
do madeirense, Loyola escreve aquela que ficou O Memorial assume-se como uma obra ímpar,
conhecida como a “carta de obediência”, que que funciona como um precioso complemen-
selou o fim do conflito. to da biografia inaciana. A 9 de março de 1555,
Em agosto, começa a escrever a narrativa di- poucos meses após a sua decisão sobre a escri-
tada por Inácio de Loyola em três curtos perío- ta do Memorial, os trabalhos ditados por Loyola,
dos: de agosto a setembro de 1553, em março que tinham sido interrompidos, recomeçaram.
de 1555 e de setembro a outubro de 1555. Câ- A partir desse momento, o tempo de escrita
mara ouviu as memórias do fundador, fez breves de Câmara foi repartido entre a Autobiografia
apontamentos e depois ditou-os a um cronista. e o Memorial. O labor foi interrompido com a
O madeirense assumiu os papéis de confidente morte do Papa Júlio III e retomado apenas a 22
e secretário do geral da Companhia, além do de setembro. Em setembro e outubro, a narrati-
de ministro da sua casa, a partir de setembro de va da autobiografia absorveu Câmara quase por
788 ¬ C â mara , L u í s G on ç alves da

completo, devido ao ritmo acelerado imposto Câmara e Inácio de Azevedo. Ao seu regresso,
pelo fundador. Na véspera do seu regresso a o madeirense visitou vários colégios e analisou
Portugal, os relatos tinham fim. Cinco dia antes, os problemas que a Companhia, por se encon-
a 18 de outubro, o jesuíta interrompera os tra- trar “bastante desacreditada”, enfrentava nos
balhos do Memorial, retomados apenas em 1573, estudos cuja superintendência lhe fora confia-
quando se encontrava em Évora. A narrativa di- da (RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 362). As re-
tada pelo fundador representa um documento formas que conduziu pareceram produtivas, e
histórico único, de valor incalculável, sendo a acabou por desempenhar um papel importante
biografia espiritual de Loyola mais importante junto do Rei na manutenção da tutela da Com-
e a mais difundida. O método de trabalho para panhia sobre o Colégio de Jesus.
as duas obras foi distinto. Com Loyola, duran- Em 1556, a Companhia perdeu o seu geral e
te a preparação da Autobiografia, Câmara pri- idealizador, a 31 de julho, e o governo foi entre-
vou, por diversas vezes, na chamada “torre ver- gue ao vigário-geral, o P.e Diogo Laynez. A con-
melha”, onde memorizava as conversas com o gregação que elegeu o segundo geral teve início
geral; após o encontro, recolhia-se na sua cela a 19 de junho de 1558. A 9 de maio, chegaram
para ditar ao cronista o que tinha ouvido. Para a a Roma os cinco padres eleitores portugueses,
elaboração do Memorial, o madeirense registou que se juntaram ao P.e Simão Rodrigues. Entre
o que viu e ouviu na presença do próprio Iná- eles, estava Luís Gonçalves da Câmara. Os en-
cio, durante as atividades do quotidiano; poste- viados foram escolhidos, em novembro de 1556,
riormente, também ditou estes escritos ao seu na congregação provincial que foi celebrada na
secretário pessoal; o objetivo foi a execução de casa de S. Roque. O novo geral acabou eleito
um diário com o máximo possível de informa- a 2 de julho de 1558, com 13 votos dos 20 elei-
ções sobre o padre fundador, o qual foi compos- tores. Poucos dias depois, o padre madeirense
to durante pouco mais de seis meses. foi eleito para o Conselho Supremo da Ordem,
Durante a sua estadia em Roma, Gonçalves da com o cargo e o nome de assistente de Portugal.
Câmara manteve correspondência com D. João No final dos trabalhos, Câmara permaneceu em
III. O Monarca não escondeu o desejo de ver Roma. Ainda nesse ano, e no seguimento das
o madeirense de regresso a Portugal. Quando decisões tomadas pela congregação, no sentido
deixou Roma, a 23 de outubro de 1555, fez-se de organizar o governo da Companhia em “as-
acompanhar de vários jesuítas e levou consi- sistências”, Câmara foi nomeado um dos quatro
go várias cartas de recomendação. Além disso, assistentes.
Loyola atribuiu-lhe importantes prerrogativas: Em 1557, a morte do rei português deu outro
nomeou-o colateral do provincial português, rumo e outro impulso à posição de Câmara,
o castelhano Miguel de Torres, que passava mesmo que alguns autores afirmem que tais
assim a partilhar o governo da província com acontecimentos ocorreram contra a sua vonta-
o madeirense; isentou-o da obediência a qual- de. Três dias após a morte do Monarca, a Rai-
quer superior da província, respondendo ape- nha D. Catarina reuniu o Conselho e assumiu
nas ao Rei D. João III; concedeu-lhe escolher a a regência e a tutoria do futuro rei. Enquanto
casa da Companhia em que preferisse residir; o nome do aio do jovem D. Sebastião foi esco-
e deu-lhe poder para declarar e determinar lhido pacificamente, o do seu mestre, que seria
sobre a missão na Etiópia. A combinação desse o responsável pela sua instrução intelectual e
poder com o temperamento explosivo de Câ- moral, não teve a mesma sorte. Amador Rebelo,
mara acarretou muitos problemas e queixas, padre jesuíta que coadjuvou Gonçalves da Câ-
que tinham origem no provincial, referindo a mara no seu ofício e autor da Relação da Vida
natureza colérica do madeirense, e até nos seus d’El Rei D. Sebastião (1685-1700), refere que a es-
companheiros de ordem. Em 1556, um jesuíta colha, tanto do aio como do mestre, correspon-
escreveu que o governo da província estava par- deu a um desejo expresso de D. João III e muito
tido entre Miguel de Torres, Luís Gonçalves da apoiado pelo seu irmão, o cardeal D. Henrique.
C â mara , L u í s G on ç alves da ¬ 789

A 17 de abril desse ano, D. Catarina solicita ao


geral, Diogo Laynez, a dispensa do madeirense,
para que ele pudesse assumir e desempenhar
as funções para as quais fora nomeado. O rele-
vo e a preponderância que os Jesuítas ganham
ao longo do tempo, acrescidos da juventude do
instituto, irão contribuir para uma intensifica-
ção da oposição aos padres da Companhia. Em
julho de 1559, Câmara parte de Roma rumo a
Lisboa, onde só chega em dezembro. As funções
iniciam-se apenas em meados do ano seguinte,
quando o Rei já caminha para os seus sete anos.
A relação estabelecida entre o mestre e o seu
pupilo é descrita como sendo a “única afetiva-
mente normal” de que pôde gozar o príncipe,
“assumindo contornos de uma relação entre pai
e filho” (CRUZ, 2012, 81).
O contacto do mestre com o herdeiro do
trono – sempre acompanhado do seu aio,
D. Aleixo – era frequente: “Duas vezes no dia
passava lição ao rei, e lha tomava” (FRANCO,
1719, I, 49). O P.e Câmara foi coadjuvado pelo
P.e Amador Rebelo, que, além de ser o “mes-
Fig. 3 – Carta do geral Diogo Laines a recomendar o
P.e Luís Gonçalves da Câmara para tutor do príncipe D. Sebastião, tre do A. B. C.”, como ele próprio se intitula-
Roma, 4 de junho de 1559 va, assumiu o encargo da catequese. A primeira
(ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 103, doc. 94).
confissão de D. Sebastião acontece nos primei-
ros meses de trabalho de Gonçalves da Câma-
A escolha do tio-avô de D. Sebastião “recaíra ra, sendo este o seu confessor (CRUZ, 2012,
desde o início no padre Luís Gonçalves da Câ- 82). Ao longo do tempo, com o contacto diá-
mara” (CRUZ, 2012, 77), enquanto a Rainha rio, aumentava a proximidade entre o Monar-
preferiria um religioso de outra ordem. A in- ca e o seu mestre. À sua visão diminuída, pro-
fluência exercida pelo jesuíta Miguel de Tor- vavelmente devido a uma doença contraída na
res, que foi confessor da mãe de D. Sebastião, missão em Marrocos, juntavam-se vários pro-
acabou ajudando as pretensões do cardeal para blemas de saúde, que acabariam por dificultar
que a nomeação incidisse sobre o madeirense, e condicionar as deslocações diárias do mestre
mas há autores que afirmam que a Rainha “es- do Colégio de Santo Antão-o-Velho até ao paço
colheu e preferiu de própria vontade aquele da Ribeira, onde as lições tinham lugar. Os dois
religioso” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 253- jesuítas teriam autorização para tomar a refei-
254). Em pouco tempo, D. Catarina arrepen- ção intermédia no paço (o chamado “jantar”)
der-se-ia de tal decisão. e, nas deslocações da corte para outros paços
Em 1559, aquando da protelada deliberação (Boavista, Xabregas, Almeirim, Sintra, etc.), in-
dos governantes portugueses, Câmara estava, tegravam o séquito. A função do mestre do Rei
novamente, em Roma. Era certo que a presen- não teve fim na fase de instrução literária, que
ça de um jesuíta num cargo de tamanha im- terminou por volta dos 12 anos. Gonçalves da
portância dava destaque à ordem, mas também Câmara desempenhou funções até aos 20 anos
acarretava ódios e intrigas e poderia fazer sus- de D. Sebastião, tornando-se “a pessoa que mais
peitar da humildade que a Companhia pregava, intimamente o conheceu”, sendo “o suporte da
dada a influência e dado o destaque da função. constância afetiva, da confiança tranquilizadora
790 ¬ C â mara , L u í s G on ç alves da

e da dedicação inabalável” (CRUZ, 2012, 88). influência castelhana da rainha-mãe na luta pela
Porém, em 1566, o madeirense afasta-se das regência, o que também refletia a disputa, den-
funções que desempenhava, sendo substituído tro da Companhia, entre os partidários da linha
por Luís de Montoya, frade agostinho. Ainda próxima de Câmara e os seus opositores. Fran-
nesse ano, em outubro, a Madeira sofre um ata- cisco de Borja, que se tornou o terceiro geral da
que corsário francês, o que desperta no P.e Luís ordem, ainda tentou remover Câmara do cargo
Gonçalves da Câmara e no seu primo, o P.e Leão de confessor, mas sem êxito. Dentro da própria
Henriques (confessor do cardeal D. Henrique), congregação, a posição e a influência do madei-
o alegado desejo de embarcar na armada de so- rense incomodavam. A carta do jesuíta António
corro que foi enviada ao Funchal. Câmara aca- Correia ao geral retratava as intrigas do reino:
bou por não ser autorizado pelo Rei a fazê-lo, tal “Dizem que Luís Gonçalves governa, e o cardeal
como não obteve autorização para realizar ou- é seu instrumento” (ARSI, Epistolae Lusitanae,
tras deslocações que o afastariam de si. Segundo n.º 62, 274).
alguns investigadores, os irmãos Câmara desem- Em nada contribuiu para acalmar as hostes a
penhavam uma influência certeira para que D. ascensão a determinados cargos e a visibilidade
Sebastião preterisse o cardeal, na disputa que o do seu irmão, o P.e Martim Gonçalves da Câma-
tio-avô e a avó protagonizavam. ra, que foi “sacerdote do hábito de S. Pedro [e,
Após cerca de dois anos de ausência, o madei- mais tarde, jesuíta], doutor teólogo e antigo rei-
rense regressa ao cargo por insistência do Rei, tor da universidade” de Coimbra (ALMEIDA,
quando este atinge a maioridade. Os historiado- 2003, 420), além de ser uma figura afeta ao cír-
res diferem sobre o período de afastamento do culo do cardeal. Martim assumiu a liderança da
P.e Gonçalves da Câmara, em que o agostinho Mesa da Consciência (em 1564), do Desembar-
desempenhou o cargo de mestre. A sua saída go do Paço e dos restantes tribunais, além do
foi justificada, por um investigador america- cargo de escrivão de puridade (em 1569). Tam-
no, como estando relacionada com abusos se- bém foi vedor da Fazenda no Conselho Real.
xuais infligidos pelo madeirense ao jovem Rei. Com o protagonismo que Martim Gonçalves ga-
Johnson, em “Um pedófilo no palácio…”, alega nhava, muito por influência do cardeal, os âni-
que a enfermidade de que o Rei sofria, relatada mos de D. Catarina exasperaram-se, em virtude
desde 1563 e relacionada com a “expulsão de da sua crescente aversão ao poder que os ir-
pequenos cálculos renais” (CRUZ, 2012, 124), mãos Câmara ganhavam. A ascensão do madei-
e que tem nos historiadores vários diagnósticos rense nos negócios do reino era justificada, por
(espermatorreia, uretrite, infeção bálano-pre- D. Henrique, pela importância que o jovem e
pucial, crise renal, etc.), era uma doença vené- inexperiente rei tinha, fazendo-se cercar de mi-
rea, gonorreia ou clamídia (ou ambas), causa- nistros que zelassem pelos interesses do reino.
da por abusos sexuais perpetrados por Câmara, Agora, eram dois Gonçalves da Câmara. Por
que teria sido contaminado na sua ida a Marro- altura da deslocação do Rei a Coimbra, chega
cos no final da déc. de 40. Considerada como às mãos do P.e Luís Gonçalves da Câmara uma
uma versão apócrifa dos acontecimentos, não carta anónima contra si, o seu irmão e a Compa-
existem indícios credíveis que sustentem esta nhia em que se reflete toda esta celeuma, agu-
teoria, que está embrenhada e apoiada em algu- çada com as diligências em torno do casamento
mas interpretações enganosas ou parciais e en- do Rei, e em que se defrontavam vários interve-
volve contradições e erros na sua argumentação. nientes, sendo cada vez mais forte a campanha
A 20 de janeiro de 1568, quando completou de descrédito contra o madeirense. O confes-
14 anos, D. Sebastião assumiu o governo do sor privava cada vez mais com o Rei, chegan-
reino; em maio, já havia notícias da reintegra- do às três horas por sessão, o que provocava e
ção do P.e Gonçalves da Câmara como seu con- atiçava os seus críticos. Numa das deslocações
fessor, adensando o confronto entre o cardeal à Universidade, a receção pouco amistosa que
e D. Catarina, que vinha desde as acusações da o Rei recebeu, com uma forte pateada, deve-se
C â mara , L u í s G on ç alves da ¬ 791

em parte aos irmãos Câmara. Os dois madeiren- concretizados. D. Sebastião desposaria Margari-
ses eram personagens centrais na troça a D. Se- da de Valois, que tinha sido por ele recusada a
bastião, difundida nomeadamente nos pasquins mando do seu primo. Fortunato volta a referir
da cidade, em que se justificava o facto de o Rei documentação coeva, indicando que o rei por-
não contrair matrimónio com o estar abarrega- tuguês não respondeu, por conselho dos irmãos
do (amigado) com os dois irmãos. Não pode- Câmara, a três cartas sobre a mudança de pla-
mos esquecer que já há muitos anos a Univer- nos que Filipe II lhe remeteu. Além de Filipe II
sidade e a Companhia estavam envolvidas em alegar que se tinha visto forçado a dar D. Isabel
grandes disputas, que cessariam com a assinatu- ao rei de França, em prol do cristianismo, refere
ra de um contrato, em 1572. Este documento as- que se comprometeu, com o cardeal de Guise,
segurava que a Universidade pagaria uma renda em relação ao casamento de D. Sebastião com
ao Colégio das Artes, entre outras prerrogativas Margarida de Valois (CRUZ, 2012, 152-153). Tal
conseguidas para a Companhia. A intervenção ingerência, em favor do poder de Castela e do
do madeirense foi fulcral para o processo, o que Sacro Império nos negócios portugueses, pro-
terá fomentado os movimentos opositores e crí- vocou duras críticas até da Rainha D. Catarina,
ticos à sua figura. castelhana de nascimento. Quando D. Sebas-
Sobre os matrimónios falhados do Monarca, tião recusa o casamento proposto por Filipe II,
interessa dissipar a maquinação criada para cul- os inimigos do P.e Luís Gonçalves da Câmara co-
par os irmãos Câmara, difundida durante o rei- meçam a imputar-lhe a culpa pela rejeição do
nado e ampliada nos séculos seguintes. Quando Rei, esquecendo ou minimizando a intromissão
a esposa de Filipe II, Isabel de Valois, morreu, do monarca de Castela. Sobre as acusações re-
em 1568, seria natural que o Monarca desposas- cebidas, o padre madeirense responde ao geral,
se a sua cunhada, Margarida. França enviou uma recordando o que já tinha manifestado aquan-
embaixada a Madrid, mas o monarca de Castela do da sua escolha para mestre do Rei: “Dei por
mostrou-se pouco decidido no apoio à preten- escrito muitas causas, para não dever tomar este
são de Carlos IX, irmão de Margarida. Face a cargo, e uma delas era que todas as coisas que
tão reservada resposta, o rei de França buscou não fossem bem recebidas do mundo, a culpa
um enlace na corte portuguesa, o que agra- delas se daria aos que andassem junto do rei”
dou aos partidários do cardeal. A esse respeito, (ARSI, Epistolae Lusitanae, n.º 64, fls. 98-99v.).
Fortunato cita um manuscrito da Biblioteca de Ao contrário do que os seus críticos prega-
Paris: “Martim Gonçalves da Câmara, e o Mestre vam, para o jesuíta os grandes problemas en-
seu irmão, […] foram de parecer que convinha frentados pelo Rei estavam na sua política re-
muito ao reino de Portugal aquela aliança de formadora, conforme atestava a sua missiva
parentesco com França” (ALMEIDA, 2003, 421 ao geral em Roma. Tais reformas causavam ao
e 422). Tudo foi alterado quando Filipe II pediu Monarca fortes dissabores, agravados pela der-
a D. Sebastião que não aceitasse desposar a irmã radeira ameaça de D. Catarina se retirar para
do rei francês. O Rei concordou e deixou ao seu Castela, de acordo com o pedido feito pelo
primo o ónus da escolha da futura esposa. Es- seu sobrinho. O madeirense, já muito doente
tava combinado que D. Sebastião desposaria a e quase cego, referiu ao geral o seu cansaço e
arquiduquesa Isabel e Carlos IX a arquiduquesa a sua vontade de permanecer retirado no Colé-
Ana. Ambas eram filhas de Maximiliano, impe- gio de Coimbra por mais algum tempo, o que
rador do Sacro Império Romano-Germânico e teria feito, não fosse a insistência do Rei para
primo de Filipe II. A todos o arranjo pareceu que regressasse à corte. Ainda nesse ano, o jesuí-
bem e foi relatado que os irmãos Câmara con- ta Miguel Torres foi dispensado do seu ofício de
cordavam com tal perspetiva. Tudo se alteraria, confessor, alegadamente pela influência nociva
novamente, quando Filipe II decidiu desposar que Gonçalves da Câmara teve sobre ele. D. Ca-
Ana e ao rei de França era deixada a prometida tarina escreveu ao seu sobrinho, a 8 de junho de
do rei português, Isabel, sendo os matrimónios 1571, descrevendo um suposto complô que os
792 ¬ C â mara , L u í s G on ç alves da

três confessores jesuítas da corte desenvolveram futuro seria um fortíssimo crítico da presença
para criar a discórdia entre o Rei, o seu tio-avô dos irmãos Câmara na corte. Quando o P.e Fran-
e ela própria. No mesmo dia, a Rainha enviou cisco de Borja chegou a Madrid, D. Catarina
uma missiva ao Papa sobre a necessidade do ma- enviou D. Juan de Borja, embaixador espanhol
trimónio real para libertar o seu neto da sujei- em Lisboa e filho do geral, para que ele pedisse
ção aos irmãos Câmara. a Filipe II que o P.e Luís Gonçalves da Câmara
A relativa acalmia nas relações entre o neto fosse chamado pelo geral, o que o rei de Caste-
e a avó, após uma breve reaproximação, foi in- la se recusou a fazer. Já em Portugal, o P.e Borja
terrompida quando o Rei se recusou a cumprir pede paciência à Rainha e promete enviar o ma-
os seus desejos, que incluíam o afastamento dos deirense para Roma, o que nunca se chegou a
irmãos Câmara e do próprio cardeal, e quando concretizar. O padre geral só chegaria a Roma
esses pedidos vieram a público. Foi notório o a 28 de setembro de 1572 e faleceria passados
apoio de Filipe II, que escreveu à sua tia indi- três dias. Ainda durante a visita do legado papal
cando a premência em afastar Gonçalves da Câ- a Portugal, o jesuíta madeirense escreve a D. Se-
mara do Rei, sendo necessário reunir esforços bastião, reiterando o cansaço já manifestado e a
e apoiantes, entre os quais o geral e o próprio vontade de se retirar: “Parece que não me que-
Papa, para alcançar esse objetivo. rem já matar, ando, todavia, sem gosto algum,
Em 1571, a Rainha D. Catarina escreve ao ainda que trabalho pelo encobrir o mais que
Papa Pio V, atribuindo ao madeirense a culpa posso” (SERRÃO, 1987, 218).
pelo ódio generalizado à Companhia. A cola- Com a morte de Francisco de Borja, a 30 de
gem ao poder e a alegada intromissão nos as- setembro de 1572, a Rainha vê mais uma opor-
suntos políticos estão entre as críticas dirigidas tunidade para afastar, definitivamente, Câmara
aos padres inacianos, conforme é manifesto na do Rei. Se o seu jogo de influências fosse vito-
missiva da Rainha ao Papa: “Não posso deixar rioso, conseguiria que o madeirense fosse eleito
de sentir o ódio que também por esta causa têm padre-geral e rumasse, permanentemente, para
geralmente à Companhia, sendo a culpa parti- Roma. Na congregação provincial celebrada em
cular deste padre [Luís Gonçalves da Câmara]” Évora durante o mês de dezembro foi debatida
(RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 625). E a con- a antiga polémica envolvendo os primos Gonçal-
testação ao poder dos irmãos Câmara, segundo ves da Câmara e Leão Henriques: “Se conviria
alguns dos seus detratores desse período, tam- que os dois […] se depusessem o cargo de con-
bém está patente n’Os Lusíadas: “Nem Came- fessores […] o que perturbava o sossego da vida
nas, também, cuideis que cante/Quem, com há- regular, e desdizia inteiramente de nosso Institu-
bito honesto e grave, veio,/Por contentar o Rei no to” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, 388). A con-
ofício novo,/A despir e roubar o pobre povo” gregação concluiu que os confessores não de-
(VII, 85, 5-8, itálico nosso); “Nem tão-pouco veriam renunciar, ignorando as “murmurações
direi que tome tanto/Em grosso a consciência do povo ignorante ou de homens sem religião”
limpa e certa,/Que se enleve num pobre e humilde (Id., Ibid., 388). Para possível ressentimento do
manto/Onde a ambição acaso ande encoberta” P.e Gonçalves da Câmara, e desespero da Rai-
(VIII, 55, 1-4, itálico nosso). Uma interpretação nha, D. Sebastião não autoriza a ida do padre
coeva, combatida por alguns, mas que encon- jesuíta à terceira congregação geral, que elegeu
tra suporte até no séc. xxi, nomeadamente em o novo líder da ordem, apesar de o madeirense
Vítor Aguiar e Silva. ter sido um dos delegados designados para esse
Apesar de a carta da Rainha ao Sumo Pontí- efeito na congregação provincial. A posição de-
fice não ter tido o efeito esperado, o geral, seu fendida pela comitiva portuguesa, liderada pelo
amigo de infância, visitou, no final de 1571, as seu primo, o P.e Leão Henriques, na qualidade
províncias espanhola e portuguesa, também de vice-provincial, era a de que o próximo padre
movido pelos seus apelos, acompanhado do geral não fosse castelhano nem cristão-novo,
legado papal, o cardeal Alexandrino, que no numa clara oposição à eleição do P.e Juan Afonso
C â mara , L u í s G on ç alves da ¬ 793

de Polanco, homem de confiança dos três ante-


riores gerais, que se enquadrava nesse retrato.
Aliás, essa posição foi apoiada pelo Rei e pelo
seu tio-avô, que remeteram missivas nesse senti-
do ao Papa Gregório XIII, a Filipe II e à congre-
gação. A congregação geral, que reuniu 47 reli-
giosos da Companhia, acabou por ser favorável
aos desejos dos Portugueses, apoiados pelos Ita-
lianos, defensores do processo de “des-Hispani-
zación [desispanização]” (CASTRO, 2012, 199),
e elegeu o P.e Everardo Mercuriano, belga, com
27 votos, a 22 de abril de 1573.
No início de 1574, a 11 de janeiro, um acon-
tecimento perturbará e marcará o Rei: o P.e
Luís Gonçalves da Câmara, alegando motivos
de saúde e espirituais, parte para Évora, aban-
donando a corte. Alguns meses depois, Câmara
remeteu uma missiva ao geral, referindo que se Fig. 4 – Igreja do Espírito Santo, 1559 a 1573, depois integrada
no colégio jesuíta de Évora (arquivo particular, 2016).
sentira preso nos seus 14 anos de serviço a D. Se-
bastião e que já não possuía “forças espirituais
nem corporais para sofrer o cativeiro” (ARSI, Em Évora, em consonância com o pedido
Epistolae Lusitanae, n.º 65, 208). Estava-se, pois, feito pelo geral da Companhia, e também pelo
perante um homem com grandes dotes intelec- reitor do Colégio, o madeirense Manuel Álva-
tuais, descrito como feio, cego de um olho e ex- res, o P.e Gonçalves da Câmara retoma os tra-
tremamente gago, de “presença bruta” (CRUZ, balhos do Memorial, interrompido, há quase
2012, 81), e completamente esgotado. Apesar duas décadas. Conclui a sua redação por volta
dos constantes pedidos para se afastar da corte, da Festa de Pentecostes de 1574. Apesar de fisi-
nunca tal tinha sido autorizado, mas agora, logo camente afastado da corte, a sua influência não
após a eleição do novo geral, o seu desejo seria se desvaneceu com facilidade. Afinal, o jesuíta
concretizado. Outra possibilidade é a de que o Maurício Serpe, que o substituiu como confes-
afastamento do preceptor não corresponderia a sor do Rei, acompanhara o madeirense enquan-
um verdadeiro desejo seu, mas sim a uma impo- to professor de Latim e responsável pelos moços
sição por pressão da corte, em consequência de fidalgos companheiros do Rei.
desgaste, ou mesmo pelo retorno de um antigo A posição de Câmara era contrária à incur-
inimigo. Em abono desta interpretação, refira- são real em territórios africanos e coadunava-
-se um acontecimento ocorrido no ano anterior. -se com a política do cardeal D. Henrique, que
Em setembro de 1573, o P.e Simão Rodrigues, defendia que o matrimónio deveria preceder
afastado há várias décadas da província portu- qualquer campanha militar, para garantir que a
guesa, num processo em que Câmara teve um linha de sucessão do trono não ficasse compro-
papel decisivo, tinha regressado ao reino, mo- metida. Recolhido em Évora, o jesuíta desloca-
tivado e legitimado pela missão de que o novo -se ao paço da Boa Vista, em Lisboa, por ordem
geral o incumbira, no sentido de o informar do provincial, para tentar demover o Rei da sua
sobre o antigo desacordo existente na provín- incursão armada em África. Apesar das acusa-
cia. Continuavam a existir duas fações: na sua ções de controlo do P.e Gonçalves da Câmara
ala mais conservadora e rigorosa, destacava-se sobre o Monarca, o madeirense não terá suces-
a influência do padre madeirense; na outra, li- so na sua missão.
derava o P.e Manuel Rodrigues, que seria eleito Em 1574, o P.e Simão Rodrigues escreve ao
padre provincial do reino. geral, a partir de Coimbra, retratando Câmara
794 ¬ C â mara , L u í s G on ç alves da

como um homem “excessivamente caprichoso, desempenhava, numa posição que já estava


[…] eficacíssimo em suas fantasias e apreen- muito desgastada.
sões”. Se a sua vontade não fosse atendida, Em 1578, a morte de D. Sebastião e a desas-
tinha “desmaios, ânsias e dor de coração” trosa missão africana, que acarretou a perda
(RODRIGUES, 1931-1950, I, 2, 87). O tempo da independência, constituíram “um locus pa-
nunca sanaria as feridas das lutas do passado. radigmático utilizado de maneira recorrente
No mesmo ano, D. Sebastião segue para África, pela literatura antijesuítica” (FRANCO, 1996,
apesar da forte objeção da sua avó, do seu tio- 1, 121). Essa crítica foi muito alimentada pelo
-avô e do próprio Gonçalves da Câmara. O ma- poder, pelo protagonismo e pela influência
deirense ruma para Coimbra, onde o seu esta- dos irmãos Câmara. A sua influência e a sua
do de saúde se agrava. Escreve ao Rei pedindo posição na corte fomentaram o mito contra a
o seu regresso, o que acontece em novembro, Companhia, com vários autores a recorrerem à
quando o jesuíta, já em Santo Antão, recebe a narrativa que lhes atribuía parte da responsabi-
visita do Monarca. Entre as cartas enviadas a lidade (ou toda ela) pelo desastre de Alcácer-
D. Sebastião apelando ao seu retorno, nenhu- -Quibir. Essas críticas foram potenciadas pela
ma teve tanto impacto, e prova disso poderá posição de destaque de outros jesuítas que
ser o facto de a visita real acontecer no dia se- eram confessores na corte, o que, combinado
guinte à atracagem em Lisboa. com a política de apoio à Companhia, contri-
Nos meses posteriores, a sua saúde degrada- buiu para consolidar suspeitas e acusações.
-se irremediavelmente, até que, a 15 de março Para além de tudo o que o P.e Luís Gonçal-
de 1575, às 04.30 h da manhã, morre em Lis- ves da Câmara atingiu em vida, os seus escritos
boa. Um conterrâneo seu, o P.e Manuel Álva- perpetuaram e difundiram elementos únicos
res, vice-reitor do Colégio, dá a notícia da sua da biografia inaciana. A sua atuação desper-
morte a Roma. Durante os últimos meses de tou sentimentos antagónicos, nunca sendo
vida, o seu estado de saúde esteve sob os cui- indiferente aos seus companheiros, amigos e
dados do seu “companheiro inseparável”, o P.e inimigos.
Amador Rebelo.
Bibliog.: manuscrita: ANTT, Corpo Cronológico, pt. i, mç. 103, doc. 94; ARSI,
Certo é que a sua morte provocou grande Roma, Lusitânia, 66, 63 e 111; Ibid., Epistolae Lusitaniae, n.º 62, 274, 3 out.
consternação no Rei, que se fechou no quarto 1568; n.º 64, 17 set. 1570, fls. 98-99v.; n.º 65, 208, 13 jun. 1573; impressa:
ALDEN, Dauril, The Making of An Enterprise. The Society of Jesus in Portugal,
durante três dias, recusando falar. Depois, en- Its Empire, and Beyond. 1540-1750, California, Stanford University Press, 2012;
cerrou-se no Mosteiro de N.ª Sr.ª do Espinhei- ALMEIDA, Fortunato de, História de Portugal, vol. i, Lisboa, Bertrand,
2003; CÂMARA, Luís Gonçalves da, Recuerdos Ignacianos, Memorial de
ro por cerca de mais 10 dias. “Que quereis Luis Gonçalves da Câmara, Bilbao/Santander, Mensajero/Sal Terrae, 1992;
que faça, se eu não conheci outro pai nem CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, s.l., Moderna Editorial Lavores, 2000; CRUZ,
Maria Augusta Lima, D. Sebastião, Maia, Círculo de Leitores/Centro de Estudos
outra mãe, senão ao P.e Luís Gonçalves da Câ- dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2012; FRANCO, António,
mara”, terão sido, segundo o P.e António Fran- Imagem da Virtude em o Noviciado da Companhia de Jesus no Real Collegio
de Jesus de Coimbra em Portugal, t. i, Évora, Officina da Universidade de
co, as palavras com que o Rei terá exprimido Evora, 1719; Id., Ano Santo da Companhia de Jesus em Portugal, Porto, Biblioteca
o seu desgosto (FRANCO, 1930, 148). O Mo- do Apostolado da Imprensa, 1930; FRANCO, José Eduardo, O Mito dos Jesuítas.
Em Portugal, no Brasil e no Oriente (Séculos XVI a XX), vol. 1, Lisboa, Gradiva,
narca não demonstrou tamanha comoção
1996; JOHNSON, Harold B., “Um pedófilo no palácio ou o abuso sexual de
com a morte da sua mãe, nem a demonstra- el-Rei D. Sebastião de Portugal (1554-1578)”, in JOHNSON, Harold B., Dois
ria com a da avó ou a da tia, declarando, em Estudos Polémicos, Tucson, Fenestra Books, 2004, pp. 45-83; Monumenta
Ignatiana, ex Autographis vel ex Antiquioribus Exemplis Collecta, vol. 1, Matriti,
jeito de epitáfio, que “ninguém sabia quan- Typis G. Lopez del Horno, 1903; O’NEILL, Charles E., e DOMÍNGUEZ, Joaquín
to devia ao padre Luís Gonçalves da Câmara, M., Diccionario Histórico de la Compañía de Jesús, vols. 1-4, Roma, Institutum
Historicum, S. I., 2001; RODRIGUES, Francisco, História da Companhia de Jesus
senão ele só” (RODRIGUES, 1931-1950, II, 2, na Assistência a Portugal, t. i-iv, Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1931-
270-271). Em Lisboa, o Rei visitou a sepultura 1950; SERRÃO, Joaquim Veríssimo, Itinerário de el-Rei D. Sebastião (1568-1578),
Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1987; SILVA, Fernando Augusto da, e
do madeirense no Colégio de S.to Antão e as- MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria
sistiu a uma missa em sua memória. Em maio Regional de Turismo e Cultura, 1998; SILVA, Vítor Aguiar e, Dicionário de Luís de
Camões, Lisboa, Caminho, 2011.
de 1576, o seu irmão, Martim Gonçalves da
Câmara, abandonou a corte e os cargos que Luís Eduardo Nicolau
C â mara , M aria C elina de S auvayre da ¬ 795

Câmara, Mardónio (pseud.)


Ö Ribeiro, Manuel

Câmara, Maria Celina de


Sauvayre da
A escritora Maria Celina de Sauvayre da Câma-
ra, filha de João Sauvayre da Câmara e de Ma-
tilde Lúcia de Sant’Ana e Vasconcelos Moniz
de Bettencourt, nasceu no Funchal, na fregue-
sia de Santa Luzia, a 1 de setembro de 1856
e faleceu em Lisboa, em 1929. A sua data de
nascimento levantou nos estudiosos algumas
dúvidas, já que as informações fornecidas por
diversos investigadores ao longo dos tempos
não encontravam confirmação nos documen-
tos de registo da época. Autores como o viscon-
de do Porto da Cruz, Alfredo de Freitas Branco
(1890-1962), em Notas e Comentários para a His-
tória Literária da Madeira, bem como Fernando
Augusto da Silva e Carlos Meneses de Azevedo,
no volume i do Elucidário Madeirense, situam o
nascimento da escritora em 1857, indicando os
últimos a data de 1 de setembro. No entanto,
no registo paroquial dos batismos da Sé, nesse Fig. 1 – Maria Celina de Sauvayre da Câmara, fotografia
de Alexandre Camacho, Madeira, 1895 (dedicada à 3.ª condessa
ano, encontra-se apenas a informação sobre o de Vila Real) (Arquivo da Casa de Mateus, Vila Real).
nascimento, a 9 de setembro, de uma sua irmã,
Maria Matilde. Já na paróquia de São Pedro,
no ano de 1858, registou-se o batismo de Maria moderna, atenta à literatura e às artes. Neta
da Graça. Em 1864, nasce Maria das Dores, e, da escritora madeirense Matilde de Sant’Ana
em 1868, João. Matilde Olímpia, a mais nova e de Vasconcelos (1805-1888), a viscondessa
das irmãs, como surge referenciado em algu- das Nogueiras, que publicou, em 1862, Diálo-
mas notícias de jornais da época, nasce em gos entre Uma Avó e Suas Netas, escolhido pelo
1871. Tendo os pais contraído matrimónio Conselho Superior de Instrução Pública para
em 1854, e considerando a ligação privilegia- uso nas escolas, e que foi a primeira senhora
da que Maria Celina de Sauvayre da Câmara a escrever para o Almanaque Luso-Brasileiro de
tem com a avó, a viscondessa das Nogueiras, Lembranças, como se pode comprovar pelo es-
era provável que fosse uma das irmãs mais ve- tudo levado a cabo por Vania Chaves e Isabel
lhas. Encontra-se, de facto, a notícia do seu ba- Lousada (2014), Maria Celina teve o privilégio
tismo no registo paroquial de Santa Luzia, e de privar com uma das mulheres mais notáveis
não nos registos paroquiais da Sé ou de São do séc. xix da Madeira. Profunda conhecedo-
Pedro, nos quais estão lavradas as notícias dos ra das línguas inglesa e francesa, a viscondes-
batismos dos seus irmãos. sa das Nogueiras traduziu Lamartine para por-
Proveniente de uma família da aristocracia tuguês e foi autora de uma retroversão para
funchalense, cuja história se liga ao panorama francês de Eurico, O Presbítero, de Alexandre
literário e cultural da Ilha, a autora cresce num Herculano. O visconde do Porto da Cruz escre-
ambiente letrado, pautado por uma educação veu, nas suas Notas e Comentários para a História
796 ¬ C â mara , M aria C elina de S auvayre da

Literária da Madeira (vol. ii), que a viscondes- 1901, presenteia-os com Morto à Força, comédia
sa tinha sido uma das figuras mais proeminen- representada no Teatro D. Maria Pia (sala cuja
tes da intelectualidade portuguesa do séc. xix, construção tinha sido iniciada com o apoio de
atribuindo-lhe qualidades que a distinguiam João Sauvayre da Câmara, quando este fazia
no cenário literário da época. parte do executivo camarário) e cujos atores
Bulhão Pato – amigo de Jacinto Augusto de foram a própria autora e uma das irmãs, Maria
Sant’Anna e Vasconcelos, filho da escritora e das Dores, além de várias figuras da elite social
tio de Maria Celina – conta, nas suas Memó- madeirense.
rias, a visita que fez à viscondessa, referindo as Maria Celina obteve considerável notorieda-
suas qualidades precisamente como escritora: de no meio social e cultural português, como
“compunha versos, admiráveis de mimo e sen- comprovam as notícias publicadas no Diário
timento. Escrevia prosa adorável. Num meio Illustrado, de Lisboa, na secção “High-Life”, que
mais largo teria sido uma escritora de primeira dão conta dos seus passeios na avenida, do seu
ordem” (PATO, 1894, 279). No mesmo senti- iminente regresso de Jerusalém e da sua che-
do se dirigem as palavras de Alberto F. Gomes, gada do estrangeiro, a 11 de maio de 1898. No
que a considerou um espírito superior e uma Diário de Notícias, aquando do seu falecimento,
mulher pouco vulgar para a época e para o é descrita como “senhora madeirense das mais
meio, dando “exemplo de estreito contacto ilustres pelo sangue, pelo espírito, pela inteli-
com o público e de estímulo às senhoras que gência” (DNM, 28 fev. 1929, 2). Na residência
escreviam nessa época” (GOMES, 1953, 20). que tinha na capital, reunia a alta aristocracia
Responsável pela educação nas letras das portuguesa em serões que lembravam os tem-
netas, a quem dedica o volume dos Diálogos, a pos “em que ainda em Lisboa se juntavam tan-
viscondessa contribuía com composições poé- tos e tantos que marcaram em Portugal pela
ticas para os periódicos da época, não descu- sua distinção e seu talento” (Ibid.). O jornal
rando, como afirma numa das suas poesias, lembra a publicação do seu livro de impressões
o papel de educadora em prol do de poetisa. de viagem e considera a autora “invulgarmente
Esta posição explica o cuidado que teve na ins- culta” (Ibid.). De facto, a escritora não só tinha
trução das netas e a forte impressão que dei- uma educação esmerada, como também pos-
xou em Maria Celina. suía um vasto conhecimento, que adquirira
Na família da escritora não era só a avó a ter com as várias viagens que realizara pela Euro-
uma forte propensão para as letras: o tio Jacinto pa e pelo Médio Oriente.
Augusto de Sant’Anna e Vasconcelos era poeta, É à avó que Maria Celina de Sauvayre da Câ-
autor de um livro de versos prefaciado por Lati- mara dedica, lembrando “aquela que semeou
no Coelho, “com muito aplauso” (PATO, 1894, em minha alma o gérmen de todas as virtudes”
278), e fazia parte do círculo ao qual perten- (CÂMARA, 1899, i), o seu livro De Napoles a Je-
ciam, em Lisboa, Mendes Leal, A. Pedro Lopes rusalem (Diario de Viagem) – relato das lembran-
de Mendonça, José Maria d’Andrade Ferreira, ças e impressões de uma longa viagem que
Luiz de Vasconcelos, António Correia Herédia tinha levado a autora da cidade italiana de Ná-
e Bulhão Pato. Também a sua tia-avó, Maria do poles a Jerusalém (passando por Alexandria,
Monte de Sant’Ana e de Vasconcelos, irmã do Cairo e Jafa) –, com edição em Lisboa de 1899.
visconde das Nogueiras, colaborava na impren- A abertura de espírito e o gosto pela literatu-
sa, mantinha um encontro regular de letrados ra, que alarga os horizontes, especialmente das
em sua casa e dedicava-se à escrita, tendo publi- mulheres, são os traços definidores que a auto-
cado obras na área do romance histórico. ra assume como direta influência da avó. Se o
A irmã mais nova de Maria Celina, Matilde texto abre com uma dedicatória que a recorda,
Olímpia, destacou-se como compositora, poe- termina com a declaração da “saudade eter-
tisa e autora de comédia. Aquando da visita à na” (Id., Ibid., 196) que a sua figura represen-
Madeira dos Reis D. Carlos e D. Amélia, em ta, saudade esta que conduz a autora a refletir
C â mara , M aria C elina de S auvayre da ¬ 797

sobre o sentido da própria existência (“A sen- importante para a ilustração social, histórica e
sação do vácuo, da imensidade, levadas por cultural das jovens e das senhoras que se po-
uma frágil embarcação que levantou âncora!... diam permitir viajar. As mulheres começavam
A última página deste jornal que emudeceu a ganhar, assim, através das deslocações a ou-
e fechei!... A saudade eterna da minha queri- tros países – que as levavam para longe da es-
da avó!...” – Id., Ibid.), encontrando, em parte, fera da proteção familiar, parental ou mari-
resposta nos lugares com forte carga evocativa tal –, a autonomia que conduziria a uma maior
que a autora visita, como é o caso de Jerusalém. autodeterminação. Os novos espaços percor-
A ideia que a escritora madeirense conce- ridos, ao corresponderem a uma abertura de
be da viagem em De Napoles a Jerusalem, e das horizontes, que resultava no incentivo a uma
palavras que a contam e fixam na memória, é maior liberdade de espírito, potenciavam tam-
a de algo dinâmico, que permite a mudança bém uma maior capacidade feminina de inter-
do ser que viaja e do leitor que experimenta venção, como refere a autora madeirense. Esta
as impressões da deslocação através das pala- independência da mulher advinha, segundo
vras. À união da imaginação com a investiga- a escritora, da possibilidade de imaginar, ver
ção, que caracteriza as motivações da viajan- e adquirir um novo olhar sobre os valores, as
te e também da escritora, é aliado o plano da tradições, os costumes e as religiões de outros
comparação: esse plano permite as viagens povos, redimensionando a própria cultura, his-
mentais entre o espaço que ocupa e trilha e tória e mesmo o seu próprio ser. A autora não
o espaço afetivo da terra pátria, uma desloca- raro refere o exemplo de inglesas, americanas
ção em pensamento à Madeira, lugar de sauda- e holandesas, de mulheres cuja sociedade vê
de, mas igualmente de mudança, já que Maria com naturalidade que viajem para aprender e
Celina da Câmara também vê e imagina com para se divertir, ao contrário das portuguesas,
o objetivo de comunicar e aplicar à Madeira menos aventureiras e mais fechadas.
aquilo que julga ser válido. Em Jaffa, comen- Misto de diário de viagem turístico e de diá-
ta: “Os Irmãos das escolas cristãs têm aqui dois rio de peregrinação, o livro da escritora ma-
colégios para rapazes, as Irmãs de S. José da deirense, cuja narração se centra principal-
Aparição um outro para meninas. Além destes mente no Médio Oriente, deixando muito
cada rito tem as suas escolas e hospitais, nós la- pouco espaço para algumas pequenas indica-
tinos temos um muito bem montado com um ções sobre Nápoles, contém uma parte que
dispensário gratuito. (Assim tivéssemos um na fornece recomendações de viagem (melhores
Madeira!)” (Id., Ibid., 66). Com a sua morte, o agências a contratar, custos, alojamento, dura-
que considerara no seu livro como necessário ção das deslocações entre cidades, restauran-
à Ilha torna-se possível, através da doação de tes, ementas, lugares de diversão), chegando
uma das suas residências (na R. da Mouraria, a transcrever um contrato de viagem, e apon-
n.º 29) para instalação de um dispensário. tamentos sobre os monumentos, as paisagens,
A obra de Maria Celina de Sauvayre da Câ- as gentes, os costumes, bem como uma outra
mara insere-se no ambiente social e cultural em que se dedica à descrição dos espaços sim-
do séc. xix, quando a viagem começa a fazer bólicos do cristianismo e dos sentimentos que
parte do mundo da mulher, com o surgimento esses lugares provocam. Esta última parte rela-
da ideia de “tempo livre” (na segunda meta- ciona-se de forma mais evidente com o modo
de do século) e da viagem pedagógica, o grand do diário de peregrinação no interior do gé-
tour – longa viagem de “educação” e “europei- nero da literatura de viagens, ocupando-se a
zação” das camadas mais elevadas da socieda- autora da viagem espiritual que os lugares san-
de, que incluía paragens em Londres, Paris, tos permitem, percorrendo os espaços num ri-
Bruxelas, Roma –, iniciando-se, assim, o turis- tual de expiação, com a promessa de salvação.
mo feminino. O périplo pelos países mais de- Daí a referência privilegiada aos sentimentos,
senvolvidos do continente era entendido como à introspeção, ao guia dos percursos a seguir,
798 ¬ C â mara , M aria C elina de S auvayre da

de cor e movimento, em que evoca pessoas e


respetivos costumes, traços dos monumentos
e da natureza, luzes, cores e sons. Trata-se de
autênticas sinestesias que transportam os leito-
res aos lugares descritos e que permanecem na
memória de uma longa galeria de lugares. As
descrições são como bilhetes-postais animados,
imagens do olhar de Maria Celina, de uma vi-
sualidade que transporta facilmente o leitor ao
espírito do lugar.
Além dos retratos dos espaços e das gentes,
o relato contém, igualmente, uma preocupa-
ção com a mulher e a condição que esta ocupa
na sociedade, com a visão do “outro”, de cul-
tura e religião diferente, e com o diálogo pos-
sível entre Oriente e Ocidente. Pode-se consi-
derar, assim, que o texto de Maria Celina não
constitui apenas um relato, mas uma verdadei-
ra viagem de reflexão e de um aprofundar de
conhecimento, que, segundo se depreende
do que declara a autora, se quer tão dinâmico
como a própria viagem.
O texto da autora madeirense afigura-se es-
sencial para a perspetivação do ambiente li-
Fig. 2 – De Napoles a Jerusalem (Diario de Viagem) (1899), terário e cultural da Ilha, mas também portu-
de Maria Celina de Sauvayre da Câmara.
guês e europeu, pela sua modernidade e pela
voz feminina que se afirma autónoma, culta,
às leituras bíblicas ou ligadas aos lugares visi- de espírito cosmopolita. No início do séc. xxi,
tados, a orações e à possibilidade de obtenção o seu livro foi em parte objeto de um estudo
de indulgências. académico dedicado à temática mais ampla das
No entanto, com o receio de cansar o leitor impressões de viagem relacionadas com as ci-
e de afastá-lo do livro, designadamente com a dades europeias, caso da tese de doutoramen-
exposição dos dias passados nos lugares san- to de Helena de Azevedo Osório e de alguns
tos, este jornal de viagem apresenta o relato de ensaios da autoria de Luísa Marinho Antunes,
episódios do quotidiano dos companheiros de mas a sua riqueza literária e cultural merece
viagem e alojamento, não raras vezes contados uma maior divulgação e interesse científico
com recurso a um humor quase sterniano, com por parte dos estudiosos.
“notas alegres no meio das narrações as mais
Obras de Maria Celina de Sauvayre da Câmara: De Napoles a Jerusalem
sérias” (Id., Ibid., 118), fazendo uso da carica- (Diario de Viagem) (1899).
tura para traçar o perfil das várias personagens
Bibliog.: CÂMARA, Maria Celina de Sauvayre da, De Napoles a Jerusalem
que a rodeiam. Se é certo que a espiritualidade (Diario de Viagem), Lisboa, Imprensa de Libanio da Silva, 1899; CHAVES,
ganha uma presença mais preponderante na Vania et al., As Senhoras do Almanaque. Catálogo da Produção de Autoria
Feminina, Lisboa, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias
visita aos lugares santos, a autora não deixa de da Universidade de Lisboa/Biblioteca Nacional de Portugal, 2014; Diário de
continuar a fazer comentários sobre os costu- Notícias, Funchal, 28 fev. 1929; Diário Illustrado, 18 dez. 1892; 1 maio 1898;
11 maio 1898; GOMES, A. F., “Algumas notas sobre os poetas das ‘Flores
mes, a arquitetura, o espírito dos lugares e pe- da Madeira’”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 3, n.º 15, 1953, pp. 20-
quenas digressões sobre variados temas. 24; OSÓRIO, Helena de Azevedo, Impressões sobre a Arte e o Património
nas Cidades Europeias mais Visitadas por Viajantes Portugueses (Londres,
Com um ritmo vivo e com a paisagem de Madrid, Nápoles e Paris). Notas para o Estudo de Uma Sensibilidade Estética
fundo, a autora cria através da escrita quadros (1860-1910), Dissertação de Doutoramento em História da Arte apresentada
C â mara , M artim G on ç alves da ¬ 799

à Universidade de Santiago de Compostela, Santiago de Compostela, texto pela severa condenação do piloto Gaspar Cal-
policopiado, 2014; PATO, Bulhão, Memórias, Homens Políticos, t. ii, Lisboa,
Typ. da Academia Real das Sciencias, 1894; PORTO DA CRUZ, Visconde do, deira, por ter sido cúmplice do corsário Pier-
Notas & Comentários para a História Literária da Madeira, vols. ii-iii, Funchal, re-Bertrand de Montluc, cuja armada guiou
Câmara Municipal do Funchal, 1915-1953; SILVA, Fernando Augusto da,
e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
aquando do ataque de outubro de 1566.
Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978. Por volta de 1570, Martim Gonçalves da Câ-
mara, o P.e Leão Henriques, também madeiren-
Luísa M. Antunes Paolinelli
se, e o P.e Jorge Serrão, por mercê do cardeal
D. Henrique, são nomeados para o Conselho
Câmara, Martim Gonçalves da Geral da Santa Inquisição, sendo os primeiros
padres jesuítas a ocupar cargos oficiais no Tri-
Martim Gonçalves da Câmara era filho de João bunal do Santo Ofício.
Gonçalves da Câmara, 4.º capitão-donatário do A governação efetiva de D. Sebastião inicia-
Funchal, e de sua mulher, D. Leonor de Vilhe- -se em 1568, tendo como modelo uma monar-
na. Foi o quarto de um total de 12 filhos do quia administrativa, estabelecida por um Con-
casal, sendo irmão do ilustre Simão Gonçalves selho de Despacho. O Conselho de Despacho
da Câmara, o Magnífico, 5.º capitão-donatário era constituído por personalidades políticas da
do Funchal e 1.º conde da Calheta, e do padre época, que representavam uma fação nacio-
jesuíta Luís Gonçalves da Câmara, tutor e con- nalista afeta ao cardeal D. Henrique, e outro
fessor de D. Sebastião. grupo de nobres simpatizantes da Rainha viúva
Não se sabe exatamente a data de nascimen- D. Catarina de Áustria e favorável a Castela.
to de Martim Gonçalves da Câmara, mas os es- O Rei D. Sebastião, porém, acabaria por dis-
tudiosos apontam-na para cerca de 1539, não solver esta governação tripartida, procurando
havendo, igualmente, registos da sua infância.
Frequentou o Colégio das Artes, juntamente
com seu irmão Rui Gonçalves da Câmara. Com
o valimento do cardeal D. Henrique, Martim
Gonçalves da Câmara foi um dos principais
apoiantes da ordem de Inácio Loyola em Por-
tugal, ao lado de seu irmão Luís Gonçalves da
Câmara.
Recebeu benefícios de seu tio D. Manuel
de Noronha, camareiro-mor do Papa Leão X,
tendo sido nomeado cónego de Silves e pároco
de uma igreja em Penafiel e de outra em Bri-
tiande, benefícios que lhe rendiam um total de
500.000 réis.
A 31 de maio de 1538, sendo bacharel em
Teologia e mestre de Artes, é eleito para fazer
parte do conselho-mor da Univ. de Coimbra.
A influência do cardeal D. Henrique e o claro
apoio à ordem jesuíta, a 16 de junho de 1563,
promovem Martim Gonçalves da Câmara ao
cargo de reitor da Univ. de Coimbra, que acu-
mula com os cargos de presidente da Mesa de
Consciência e do Desembargo do Paço e vedor
da Fazenda do Conselho Geral. Fig. 1 – Verso do alvará régio de mantimento para o vigário
de São Pedro do Funchal, assinado pelo P.e Martim Gonçalves
Segundo Nuno Gonçalves Porto, Martim da Câmara e pelo cardeal D. Henrique, Lisboa,
Gonçalves da Câmara foi um dos responsáveis 23 de julho de 1566 (ABM, Arquivos Particulares).
800 ¬ C â mara , M artim G on ç alves da

instituir um modelo de governação própria Foram escritos vários folhetos de forte conteú-
imbuído no espírito da Contrarreforma, cen- do satírico atingindo os irmãos Câmara, desig-
tralizando a autoridade real como parte do nadamente um onde se podia ler “El-Rei nosso
desígnio divino e defensor da afirmação da senhor por fazer mercê a Luís Gonçalves, e a
cristandade pela força das armas. Neste mode- Martim Gonçalves, e aos padres da Companhia,
lo de governação, o Rei delega poderes a um há por bem de não casar estes quatro anos e
escrivão da puridade, figura equivalente a um estar com eles aberrado” (VELOSO, 1935, 131).
primeiro-ministro. Outro texto, da autoria de Simões de Castro,
Para o cargo de escrivão da puridade, pri- procurava, na mesmo toada cómica, criticar
meiramente, mantém Pedro d’Alcáçova Car- “Um mancebo sem experiência/e um velho
neiro, nobre da confiança de D. Catarina de sem saber/dois irmãos sem consciência/deita-
Áustria. No entanto, por influência de Luís ram este Reino a perder” (Id., Ibid., 42).
Gonçalves da Câmara, o Rei acabaria por co- A campanha contra os padres jesuítas Luís e
locar em 1569 Martim Gonçalves da Câmara Martim Gonçalves da Câmara lançaria um epí-
no lugar de escrivão da puridade. Com os di- teto negro à ordem. Na verdade, mais precisa-
versos cargos que assumia, Martim Gonçalves mente no séc. xviii, ao tempo do Marquês de
da Câmara exercia o seu poder livremente Pombal, e no séc. xix, durante a Revolução Li-
no reino, encarregando-se de todas as maté- beral, as vozes contrárias à ordem de Inácio de
rias de Estado. Escreve Bernardo da Cruz, na Loyola reacendiam a suposta responsabilidade
Crónica de El Rei D. Sebastião, a este propósito: dos Jesuítas na perda da independência e na
“De tal modo cresceu a autoridade de Martim consequente decadência com o reino que se
Gonçalves ante el rei, e o povo, pelo muito viu confrontado.
zelo da justiça que mostrava e diligência que A História veio a provar infundadas as acusa-
respondia aos despachos das partes, que viu ções contra os Câmara. Apesar da grande au-
quase em tudo a descarregar os cuidados nele toridade de que estes gozaram no ensinamen-
e ficar mais livre em seus honestos passatem- to de moralidade ortodoxa cristã ao Monarca,
pos” (CRUZ, 1837, 20). que influenciou a edificação do seu carácter, os
Outro cronista da época, Pero Roíz Soares, irmãos Câmara aconselharam o Rei no sentido
descreve a influência que Martim Gonçalves da de ajustar matrimónio, sendo também contrá-
Câmara detinha sobre D. Sebastião, afirmando rios aos intentos de D. Sebastião no tocante à
que “ele foi tanto na privança e mando que era campanha africana.
tudo neste tempo e nada el-Rei fazia senão o A morte de seu irmão Luís Gonçalves da Câ-
que ele queria” (SOARES, 1953, I, 13). mara, a 15 de março de 1573, acabará por ditar
Foi descrito por Henrique Henriques de No- o início da queda de Martim Gonçalves da Câ-
ronha como um homem que, apesar de priva- mara e o consequente afastamento dos negó-
do do Rei, “já mais de aproveitar do dito va- cios do reino.
limento para si, nem para os seus parentes; Em 1574, a ida do Rei D. Sebastião para
antes lhes não aceitou as nominatas do Bispo Marrocos deixou Martim Gonçalves da Câma-
de Coimbra, e a de Arcebispo de Évora” (NO- ra com plenos poderes nas decisões do reino.
RONHA, 1996, 389). Porém, desentendimentos posteriores com
A hegemonia na corte por parte dos irmãos o cardeal D. Henrique, por se recusar a ser-
Câmara agudizou os ódios dos nobres do par- vir sob o seu jugo, levariam a que deixasse o
tido de D. Catarina de Áustria. Houve uma paço para viver no Convento de S. Domingos
profusa contestação aos irmãos Câmara, que de Benfica.
foram acusados do falhanço das negociações Com o retorno do Rei D. Sebastião de Áfri-
do casamento do Rei e das atitudes e escolhas ca, Martim Gonçalves da Câmara regressa às
irresponsáveis deste que colocavam em perigo antigas funções, vendo-se, no entanto, envolvi-
a independência do reino. do em intrigas perpetradas por nobres a favor
C â mara , M artim G on ç alves da ¬ 801

Figs. 2 e 3 – Regimento dos


Quadrilheiros de Lisboa
(12 de março de 1603), de
Martim Gonçalves da Câmara
(ABM, Arquivos Particulares).

de D. Álvaro de Castro, e o
regresso de Pedro d’Alcáço-
va Carneiro à esfera de in-
fluência do Rei acabaria por
levá-lo sair do paço em maio
de 1576. Desta época surge
a história fantasiosa de que
Martim Gonçalves da Câma-
ra, numa ação prepotente,
teria humilhado sua cunha-
da D. Maria de Noronha,
viúva de Nuno Gonçalves da
Câmara, por se ter casado com um homem Morreu a 6 de outubro de 1613 e foi sepulta-
de baixa condição, e de que esta atitude pro- do na Casa Professa de S. Roque, na capela que
vocou o descontentamento e o descrédito do edificou para si.
Rei. Este relato é fantasioso, pois Martim Gon- Henrique Henriques de Noronha cita o elo-
çalves da Câmara não tinha nenhum irmão gio do Poeta de Guimarães, que escreveu: “Este
chamado Nuno, nem uma cunhada Maria de que com mil datas afluentes,/Cobra nome
Noronha.
Depois da derrota portuguesa em Alcá-
cer Quibir, no malogrado reinado do cardeal
D. Henrique, Martim Gonçalves da Câmara
ainda desempenhou funções no Conselho de
Estado. Durante a crise de sucessão, procurou
por todos os meios impedir que o reino caís-
se nas mãos da Coroa espanhola, ensaiando a
criação, com seu primo D. João Telo de Me-
nezes, de uma força de defesa do Estado para
impedir a invasão castelhana; neste sentido,
procurou que o clero exortasse o povo a que
protegesse o reino de Portugal. Primeiramen-
te, apoiou a causa dinástica de D. Catarina de
Bragança e, depois, a sucessão de D. António
Prior do Crato, participando nas cortes em
Sintra que o aclamaram como rei de Portugal.
Depois de 1580, estas ações acabariam por
despertar o ódio de Cristóvão de Moura, que
o perseguiu, prendeu e desterrou para Cas-
tela, onde permanecia em 1583. Por volta do
ano de 1595, é autorizado a voltar a Portugal
para se recolher numa das igrejas da ordem da Fig. 4 – R. do Padre Gonçalves da Câmara, Funchal
Companhia de Jesus. (arquivo particular).
802 ¬ C â mara , M atilde O l í mpia S auvayre da

real, pela largueza,/Parco só para si, e seus pa- desde criança, nos eventos musicais funcha-
rentes,/E como tal julgado da Nobreza,/Porto lenses de finais do séc. xix. Matilde Sauvayre
de altos varões, e de prudentes,/Professa nisto da Câmara dedicou-se a ambas as áreas ar-
estilo de grandeza,/Com que amizades con- tísticas – literatura e música –, bem como
servar pretende,/E alta quietação seu zelo em- ao charadismo. Apresentou-se primeiramente
preende” (NORONHA, 1996, 389). como cantora, em eventos semiprivados nos
quais participava a sua irmã Maria das Dores,
Bibliog.: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. ii, Funchal, Secretaria Regional
da Educação, 1991; CRUZ, Bernardo da, Chronica de el-Rei D. Sebastião, Lisboa,
como, e.g., os saraus em casa do médico Adria-
Impressão de Galhardo e Irmãos, 1937; LEITE, Jerónimo Dias, Descobrimento no Augusto Larica e dos viscondes de Monte
da Ilha da Madeira e Discurso da Vida e Feitos dos Capitães da Dita Ilha, Lisboa,
Belo, em janeiro de 1893. Na récita de Car-
Alfa, 1989; Memorial de Pero Roiz Soares, Coimbra, Atlântida, 1953; NORONHA,
Henrique Henriques de, Memórias Seculares e Eclesiásticas para a Composição naval realizada no palácio dos Viscondes de
da História da Diocese do Funchal na Ilha da Madeira, Funchal, CEHA, 1996; Torre Bela em fevereiro de 1893, Matilde ini-
PORTO, Nuno de Vasconcelos, “Três madeirenses nacionalistas, esboços
biográficos, Martim Gonçalves da Câmara”, Das Artes e da História da Madeira, ciou também, precocemente, a apresentação
vol. 5, n.º 25, 1957, pp. 45-53; RODRIGUES, Francisco, História da Companhia de da sua própria produção musical e dramáti-
Jesus na Assistência de Portugal, 8 vols., Porto, Livraria Apostolado da Imprensa,
1931-1950; SERRÃO, Joel (coord.), Dicionário de História de Portugal, vol. i, ca, tendo sido interpretadas algumas das suas
Lisboa/Porto, Figueirinhas, 1999; TEIXEIRA, António José, Documentação para canções que integravam a opereta lírica Cha-
a História dos Jesuítas em Portugal, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1899;
VELOSO, J. M. de Queirós, D. Sebastião. 1555-1578, Lisboa, Empresa Nacional rada (Em Quatro Sílabas) (também intitulada
da Publicidade, 1935; Id., O Interregno dos Governadores e o Breve Reinado de Charada Característica em forma de Sílaba), com-
D. António, Lisboa, Academia Portuguesa de História, 1953.
posta em coautoria com Carolina Dias de Al-
Carlos Barradas meida (?-1895). No concerto de amadores em
benefício da Casa dos Pobres Desamparados

Câmara, Matilde Olímpia


Sauvayre da
Poetisa, dramaturga, compositora, charadista,
cantora e intérprete de piano e guitarra, nas-
ceu no solar dos Viscondes de Nogueiras, na
rua da Mouraria, freguesia de São Pedro, Fun-
chal, a 23 de março de 1871, filha de João Sau-
vayre da Câmara de Vasconcelos e de Matilde
Lúcia de Santana e Vasconcelos Moniz de Be-
ttencourt e irmã (mais nova) de Maria Celina
Sauvayre da Câmara (1857-1929) e de Maria
das Dores Sauvayre da Câmara (1864-1941).
Neta da escritora, poetisa e tradutora madei-
rense Matilde Isabel de Santana e Vasconcelos
Moniz de Bettencourt, viscondessa de Noguei-
ras (1805-1888) – autora de um opúsculo inti-
tulado Diálogo de Uma Avó e Sua Neta, publicado
em 1862, escolhido pelo Conselho Superior de
Instrução Pública para uso das escolas –, com
ela terá aprendido, tal como suas irmãs, as “arts
d’agrement”, tendo recebido uma aprimorada
formação literária e artística.
Maria Celina foi uma reconhecida autora
literária. Maria das Dores dedicou-se sobretu- Fig. 1 – Matilde Olímpia Sauvayre da Câmara, Funchal, 1909
do à prática pianística, tendo-se apresentado, (ABM, Photographia Vicente).
C â mara , M atilde O l í mpia S auvayre da ¬ 803

Fig. 2 – Participantes na récita de gala Arraial Madeirense da visita régia, Teatro D. Maria Pia, 22 de junho de 1901
(Photographia Vicente, reeditada na Alemanha).

e da Associação Protetora dos Estudantes Po- repertório apresentado, tendo recebido pelo
bres, realizado a 20 de novembro de 1897 no seu excelente desempenho os encómios do
Teatro D. Maria Pia, Matilde interpretou Aca- conde de Arnoso, secretário do Rei. A primei-
nhamento (monólogo e cançonetas), peça de ra obra apresentada, a comédia Morto à Força,
sua possível autoria, bem como Parais à ta Fê- foi interpretada pela autora (no papel prin-
netre, serenata para canto e piano de Antoi- cipal), por sua irmã Maria das Dores, pelos
ne Queyriaux e Louis Gregh. A demais pro- membros da comissão organizadora barão de
dução teatral e dramático-musical de Matilde Uzel e Luís Vicente de Freitas Branco e por
Sauvayre da Câmara compreende a opere- Adelaide Pestana, Júlia Affonseca, João Teles
ta Dois Dias em Paris, estreada a 24 de junho de Menezes Cabral e Dr. João Leite Montei-
de 1901 no Teatro D. Maria Pia, a comédia ro. Arraial Madeirense, interpretado na ter-
Morto à Força e o quadro Arraial Madeirense, es- ceira parte da récita, é uma obra de carácter
treados numa récita de gala dedicada ao Rei ocasional, destinada à exibição das caracterís-
D. Carlos e à Rainha D. Amélia, realizada no ticas folclorísticas regionais à comitiva real,
mesmo teatro a 20 de junho de 1901, aquan- bem como à laúde da Rainha. O quadro com-
do da visita dos monarcas à Região. A comis- preende uma cena campestre, com “jovens
são responsável pela administração desta ré- da mais alta sociedade” em trajes de “vilão”
cita de gala, constituída pelo conde de Torre e “viloa”, com bailares e cantares, mormen-
Bela (Thomas Russel Manners Webster Gor- te “descantes ao desafio”, acompanhados por
don), o barão de Uzel (Luís Alexandre Ribei- violas e pela orquestra; danças regionais por
ro de Mendonça), Nuno Jardim e o comen- 20 pares de crianças com acompanhamento
dador Luís Vicente de Freitas Branco, terá de orquestra; e um coro dedicado à Rainha
determinado atribuir a direção do evento a D. Amélia, da autoria da biografada, inter-
Matilde Sauvayre da Câmara, à época a com- pretado por todos os intérpretes do quadro
positora diletante de maior renome no Fun- (NÓBREGA, 1901; FREITAS BRANCO, 1949­
chal. A biografada foi responsável pela auto- ‑1953, III, 89). Terá cabido exclusivamente a
ria, ensaio e interpretação da maior parte do Matilde Sauvayre da Câmara a interpretação
804 ¬ C â mara , M atilde O l í mpia S auvayre da

dos números vocais que, a par de duas obras


instrumentais, constituíram a segunda parte
desta récita. A biografada cantou L’Averse e a
Bluette C’est le Jeune Siècle. Embora o conde de
Arnoso atribua ambas as peças a Matilde Sau-
vayre da Câmara, não foram ainda identifica-
das quaisquer obras de sua autoria para canto
em língua francesa, o que sugere que se trata-
riam de obras de outros autores, como se veri-
fica com L’Averse, possivelmente a chanson de
Victorien Sardou e Louis Verney, ou a chanson
villageoise de Charles L’Expert e Jules Couplet.
Pouco mais se sabe da atividade de Matilde
Sauvayre da Câmara após 1901.
A composição para canto de Matilde Sau-
vayre da Câmara toma como fonte a sua pró-
pria produção poética, tendo sido apenas
identificadas canções em língua portugue-
sa até 2014. A sua produção para canto com
acompanhamento instrumental (caracteriza-
da pelo uso de uma estrutura com estribilho
a solo e refrão com coro) compreende O Meu
Testamento; As Últimas Flores; Serenada (Folhas
das Rosas Caídas); Alguém; Risos, Cantos, Sauda-
Fig. 3 – Matilde Olímpia Sauvayre da Câmara, Funchal, 1927
des; Cantares (É nos Olhos Que se Espelha); Sau-
(ABM, Photographia Vicente).
dades; Balada (Se Uma Estrela me Pedisses); Nu-
vens; Os Três Corações; Ilusões; Perguntas ao Luar
e Canção da Serra. Este conjunto de obras, que uma realização semiprivada, no âmbito de
parece constituir apenas parte da produção eventuais saraus realizados nas suas moradias,
da autora neste género, remanesceu em có- na freguesia do Monte, na Qt. Florença ou na
pias limpas para canto e piano. Curiosamen- vila Acácia, nas Cruzes.
te, as 12 primeiras peças (para canto e piano) Matilde Sauvayre da Câmara foi reconheci-
foram reunidas num ciclo de 12 canções para da pela sua “cultura humanística muito fora do
canto com acompanhamento de guitarra vulgar para a época” (CLODE, 1983, 182). Al-
(Canções à Viola), o que sugere que a autora fredo de Freitas Branco sublinhava o seu co-
terá apresentado este repertório acompanha- nhecimento das línguas estrangeiras e a sua
da ao piano e/ou à guitarra. Por outro lado, atenção para com as correntes literárias coevas,
a designação do mesmo ciclo como Livro I, a fazendo notar, certamente acerca da sua pro-
par com a existência de outras obras conhe- dução teatral, o seu “notável espírito de críti-
cidas, como a Canção da Serra, permite infe- ca fina e […] humorismo impregnado de uma
rir que várias outras canções terão sido com- sensibilidade artística muito curiosa” (FREI-
postas por Matilde Sauvayre da Câmara. Entre TAS BRANCO, 1949-1953, 89). Por sua vez, a
estas, figurariam possivelmente O Último Dia sua produção para canto e piano/guitarra as-
do Ano e Oração, que conhecemos apenas na severa o seu conhecimento e gosto pela pro-
sua forma poética. Não é conhecido o perío- dução musical francesa para canto da época,
do de produção ou de estreia do seu reper- sobretudo as chanson e chansonette.
tório para canto com acompanhamento, mas Matilde Sauvayre da Câmara morreu, soltei-
é crível que se tenha destinado sobretudo a ra e sem descendência, no Funchal, a 11 de
C â mara , P aulo P erestrelo da ¬ 805

dezembro de 1957. O seu espólio foi legado ao 1830 e 1833. Em 1841, seguiu para o Brasil, de
compositor e professor Jorge Croner de Vas- onde regressou em 1853. Após alguns meses
concelos, filho do seu primo, Alexandre Moniz na Europa, retornou novamente ao Rio de Ja-
de Bettencourt (1868-1945) – neto dos viscon- neiro, onde veio a falecer a 4 de fevereiro de
des de Nogueiras, professor de violino e de 1854. Em 1833, casou-se, no Funchal, na paró-
música de câmara do Conservatório Nacional quia de São Pedro, com Ana Madalena de Frei-
de Lisboa. O seu espólio musical, que ficou ao tas Lomelino, com quem teve uma filha, Maria
cuidado de Laura Moniz de Bettencourt, sobri- Augusta Perestrelo.
nha de Jorge Croner de Vasconcelos, em Oei- Na obra Diccionario Bibliographico Portuguez,
ras, Lisboa, compreende a sua produção literá- de Inocêncio Francisco da Silva, o trabalho
ria e musical, nomeadamente a sua obra para empreendido por Paulo Perestrelo da Câma-
canto e piano/guitarra e a opereta Dois Dias em ra foi destacado no volume vi, publicado em
Paris, bem como as coleções de música e teatro 1862. Inocêncio Francisco da Silva afirma,
musical de Carolina Dias de Almeida e de mú- no verbete que lhe dedica, ter conhecido e
sica da sua irmã Maria das Dores. A sua epis- convivido com Paulo Perestrelo da Câmara
tolografia está à guarda de Jacinto Moniz de entre 1830 e 1833. Pelas suas referências, Câ-
Bettencourt. mara partira para o Rio de Janeiro em 1841,
onde permaneceu até 1853, quando retor-
Bibliog.: manuscrita: ABM, 1.ª Repartição de Finanças do Funchal, Processo
de Sucessão de Matilde Sauvayre da Câmara; Arquivo da Família Bettencourt,
nou para Portugal “por conveniências de in-
Fundo Musical Matilde Sauvayre da Câmara, Espólio de Jorge Croner de teresse particular”. A sua estadia em Lisboa
Vasconcelos; impressa: “Apontamentos da viagem de Sua Magestade”, Diário
foi curta e logo regressou ao Rio de Janeiro,
de Notícias, 24 jun. 1901; BETTENCOURT, J. Moniz de, Os Bettencourt. Das
Origens Normandas à Expansão Atlântica, Lisboa, ed. do Autor, 1993; CLODE, falecendo no começo de fevereiro, quando
Luís Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa contava 44 anos.
Económica do Funchal, 1983; “Concerto”, Diário de Notícias, 18 nov. 1897, p.
2; “Espectáculos. Teatro D. Maria Pia”, Diário de Notícias, 19-20 nov. 1897, p. 3; Considerando o conjunto das obras que pu-
ESTEIREIRO, Paulo, 50 Histórias de Músicos na Madeira, Funchal, Associação de blicou, é possível observar que Paulo Perestre-
Amigos do Gabinete Coordenador de Educação Artística, 2008; Id., Emergência
e Declínio do Piano na Vida Quotidiana Madeirense (1821-1930), Dissertação lo da Câmara se dedicou ao estudo da mate-
de Doutoramento em Ciências Musicais apresentada à Universidade Nova mática e à redação de textos sobre história e
de Lisboa, Lisboa, texto policopiado, 2011; “Festa encantadora”, O Direito,
15 fev. 1893, p. 2; GOMES, Alberto F., “Algumas notas sobre os poetas das geografia de Lisboa e Portugal. As suas obras,
‘Flores da Madeira’”, Das Artes e da História da Madeira, n.º 15, 1953, p. 20; apesar de algumas imprecisões, revelam um
Nóbrega, Ciríaco de Brito, A Visita de Suas Majestades os Reis de Portugal ao
Arquipélago Madeirense. Narração das Festas, Funchal, Tip. Esperança, 1901;
autor preocupado com a história e a memória
PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas & Comentário para a História Literária do seu país, onde a ilustração ganha contor-
da Madeira, vol. iii, Funchal, Câmara Municipal do Funchal, 1949-1953; “Récita
e baile. Grande festa no palácio Torre Bela”, Diário de Notícias, 18 fev. 1893, p.
nos nítidos.
3; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; “Soirée”, Diário de Notícias, 2 fev. Obras de Paulo Perestrelo da Câmara: Grammatica das Grammaticas da
1893, p. 2; digital: ESTEIREIRO, Paulo, “Matilde Sauvayre da Câmara”, Dicionário Lingua Portuguêza; Theoria de Fracções Complexos e Proporções...; Descripcao
de Músicos na Madeira. Séculos XIX e XX, s.d.: http://www.recursosonline.org/ Geral de Lisboa em 1839, ou Ensaio Historico de Tudo Quanto Esta Capital
index.php?option=com_sobipro&pid=54&sid=77:CAMARA-Matilde-Sauvayre- Contem de mais Notável, e Sua Historia Política e Literária até o Tempo Presente
da&Itemid=0 (acedido a 21 out. 2014). (1839); Memorias sobre a Ilha da Madeira,/Breve Noticia sobre a Ilha da Madeira,
ou Memorias sobre a Sua Geographia, Historia, Geologia, Topographia,
Agricultura e Commercio (1841); Guia de Viajantes em Lisboa e Suas Vizinhaças
Rui Magno Pinto
(1845); Novo Tratado de Arithmetica Commercial, ou Desenvolvimento
Simplificado de Todas as Regras de Arithmetica Relativas ao Commercio... (1846);
Collecção de Provérbios, Adágios, Rifões, Anexins, Sentenças Moraes e Idiotismos
da Lingua Portugueza (1848); Diccionario Geographico, Historico, Politico e
Câmara, Paulo Perestrelo da Literário de Portugal e Seus Domínios... (1850); Nova Descripcao de Lisboa, dos
Seus Arredores, e de Cintra, Pena e Mafra, com Um Ensaio Histórico de Tudo Que
Esta Capital Contém de mais Notável, Ornado com Algumas Estampas (1853).
Paulo Perestrelo da Câmara nasceu na cidade
do Funchal, na ilha da Madeira, em 1810, filho Bibliog.: FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra, Funchal, Typ. Funchalense,
1873; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
do morgado Bento José Perestrelo da Câmara Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978;
e de Ana Perestrelo da Câmara. A sua história SILVA, Inocêncio Francisco da, Diccionario Bibliographico Portuguez, t. vi, Lisboa,
Imprensa Nacional, 1862.
é pouco conhecida, e as suas publicações apon-
tam para o facto de ter vivido em Lisboa, entre Paulo de Assunção
806 ¬ C aminho de ferro do M onte

Câmara, Rui Bettencourt da Caminho de ferro do Monte


Natural do Funchal, onde nasceu a 19 de abril Os meados do séc. xix mudaram progressi-
de 1874, era filho de José Bettencourt da Câ- vamente os hábitos europeus e, consequen-
mara, historiador, genealogista e jornalista, e temente, o tipo de viagens e de lazer das
de Júlia Amélia de Freitas Albuquerque. Casou- sociedades mais abastadas. Se na primeira
-se com Margarida Pimbet da Rocha Machado, metade do século o turismo na Madeira era
filha de Luís da Rocha Machado, natural dos essencialmente terapêutico, a alteração dos
Açores, e de Maria Josefina Celina Ângela Pim- hábitos trouxe algumas importantes figuras
bet, de quem teve sete filhos. da mais alta aristocracia europeia, o que foi
aproveitado para a criação de uma nova ima-
gem da Ilha. A mudança é patente, entre ou-
tros exemplos, no título do álbum de viagens
de Edward Vernon Harcourt (1825-1891),
A Sketch of Madeira, Containing Information for
the Traveller, or Invalid Visitor, com litografias
da mulher, Susan Vernon Harcourt (nascida
Susan Harriet Holroyd), editado em Londres,
em 1851, em que a primazia já é dada ao “tra-
veller”, passando o “Invalid Visitor” para se-
gundo lugar.
Os mecanismos de divulgação da Madeira,
essencialmente direcionados para os doentes,
passam, progressivamente, a salientar outros
aspetos, como um certo exotismo da paisagem,
um clima mediterrâneo em pleno Atlântico,
Dr. Rui Bettencourt da Câmara, Funchal, c. 1920
(ABM, Arquivos Particulares).
uma excelente temperatura da água do mar
e uma vida urbana altamente cosmopolita. Os
anos 80 marcam também uma outra forma de
Após o curso liceal no Funchal, formou-se visitar a Madeira, muito mais rápida, deixando
bacharel em Direito na Univ. de Coimbra. Em assim a visita de ser de meses para passar a se-
1901, foi colocado como secretário-geral do manas e, gradualmente, para somente alguns
Governo Civil de Bragança, cargo que exerceu dias, mas com um número muito maior de visi-
até 1910, data da Implantação da República. tantes, o que fez crescer uma série de serviços
de apoio a essas rápidas estadias.
No regresso à Madeira, assumiu as funções
O desenvolvimento turístico e portuário da
de sócio-gerente da casa bancária madeirense
baía do Funchal constituiu um instrumento de
Rosa Machado & C.ª.
novas políticas sociais, envolvendo grandes in-
Possuía telas e espécies bibliográficas de
vestimentos públicos e privados nas áreas dos
grande valor, revelando a sua sensibilidade para transportes, saneamento básico, redes de dis-
a cultura e o belo artístico. tribuição de água ao domicílio, iluminação pú-
Colaborou, com o pseudónimo Yur, em vá- blica e até no arranjo urbanístico da baixa da
rios jornais e revistas madeirenses. cidade. Se numa primeira fase essas obras visa-
Faleceu no Funchal, a 24 de abril de 1946. vam os turistas estrangeiros, toda a população
residente acabou por ser beneficiada, pela pro-
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e
dução de serviços, pela criação de novas opor-
XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983.
tunidades de emprego e pela mudança radical
António Moniz de toda a estrutura urbana da cidade.
C aminho de ferro do M onte ¬ 807

Fig. 1 – Vista do Funchal com a linha do caminho de ferro do Monte em construção, 1890 (ABM, Arquivos Particulares).

O projeto do caminho de ferro do Monte A ideia nasceu com António José Marques,
surge na Madeira neste quadro, como resul- natural de Lisboa, primeiro concessionário do
tado de diferentes fatores que se conjugaram empreendimento, cuja proposta foi apresenta-
entre si. Aparece para responder à necessidade da na Câmara Municipal do Funchal (CMF),
de dotar a Ilha de um transporte mais seguro, na sessão de 17 de fevereiro de 1887. O projeto
que não expusesse os seus visitantes e habitan- conheceu alguns impasses, vindo a concessão a
tes aos perigos do relevo insular, para reduzir ser assumida pelo Cap. Manuel Alexandre de
o tempo de viagem até ao Monte, para satisfa- Sousa, segundo concessionário, situação aceite
zer o anseio de querer acompanhar o progres- em sessão camarária de 24 de julho de 1890.
so ao nível dos transportes que se verificava na A Sociedade do Caminho de Ferro do Monte
Europa, para apoiar o desenvolvimento turísti- acabou por ser constituída a 17 de outubro
co, especialmente no percurso do Funchal ao desse ano, integrando, entre os principais acio-
Monte, e para satisfazer interesses económicos nistas, Luís da Rocha Machado (1848-1912),
de algumas entidades da Ilha. Sendo a fregue- o vereador municipal João Luís Henriques,
sia do Monte um local de grande afluência de Porfírio de Oliveira e o inglês Walter Hastings
residentes e forasteiros, o caminho de ferro Coward, que passaria a representar a compa-
trouxe não só a facilidade de deslocação, mas nhia em Londres.
também proporcionou às freguesias do Monte Os principais comerciantes ingleses residen-
e de Santa Luzia um crescimento urbanístico, tes na Ilha demarcaram-se do projeto, che-
pois valorizou os terrenos circundantes e pro- gando mesmo a boicotá-lo, e os grandes pro-
porcionou aos seus proprietários e investidores prietários madeirenses limitaram-se a entrar
a edificação de numerosas habitações. com pequenas quantias. No entanto, entraram
808 ¬ C aminho de ferro do M onte

locais do espaço português, como o elevador


de Santa Justa, em Lisboa, uma edificação que
ainda hoje é um dos ícones da capital, e o ele-
vador do Bom Jesus de Braga, o primeiro as-
censor do género inaugurado na península
Ibérica, ainda em funcionamento.
Após o estudo de viabilidade económica, o
sistema de comboio a utilizar na Madeira foi o
de montanha, que havia sido testado na Suíça
e assentava num tipo de linha férrea de estru-
tura de cremalheira, que servia de apoio à lo-
comotiva através de uma roda dentada situada
na parte inferior da mesma, permitindo a su-
bida íngreme de montanha, o que a energia
a vapor, por si só, não conseguia fazer. Apesar
de este tipo de solução ter surgido na Suíça, o
material fixo e circulante teve a sua proveniên-
cia na Alemanha, o que indicia a participação,
em princípio, do futuro comendador Manuel
Gonçalves (1867-1919), que posteriormente se
viria a tornar um dos elementos determinantes
no desenvolvimento do empreendimento e da
Fig. 2 – Eng.º Raoul Mesnier du Ponsard, gravura sua ligação aos capitais alemães e à futura So-
a partir de fotografia, c. 1912 (AML).
ciedade dos Casinos.

como acionistas os condes da Calçada e do Ca-


navial, Diogo de Ornelas Frazão (1812-1906)
e Dr. João Câmara Leme Homem de Vascon-
celos (1829-1902), José Júlio de Lemos (1855-
1914), Pedro Rodrigues Leitão (1852-1904),
viscondes de Vale Paraíso e de Cacongo, João
Bianchi (1862-1928) e João Rodrigues Leitão
(1843-1925), e o visconde e general da Casa
Branca, Alexandre César Mimoso (1817-1899),
entre outros. A análise da lista dos iniciais acio-
nistas, no entanto, não é de fácil leitura e inter-
pretação, pois muitas ações foram adquiridas
por interpostas pessoas, distribuídas por diver-
sos membros de uma mesma família, etc.
O empreendimento foi assumido tecnica-
mente pelo Eng.º Raoul Mesnier du Ponsard
(1849-1914), que esteve na Madeira para fazer
o reconhecimento do relevo, em janeiro de
1886, e cremos que noutras alturas que não foi
possível determinar, talvez a caminho de Mo-
çambique, onde viria a falecer. A escolha deste
Fig. 3 – Convite para a inauguração do primeiro troço do cami-
engenheiro para desenhar os contornos do nho de ferro do Monte dirigido ao comendador Guilherme Read
projeto ficou a dever-se à sua obra por vários Cabral, 15 de julho de 1893 (ABM, Alfândega do Funchal, 687).
C aminho de ferro do M onte ¬ 809

No processo de crescimento e aplicação do da CMF, através do vereador João Luís Hen-


projeto, vários sectores da sociedade madei- riques e do presidente, o visconde do Ribeiro
rense ofereceram o seu apoio à Companhia do Real (1841-1902), tendo esta adquirido 250
Caminho de Ferro do Monte (CCFM), através obrigações e enfrentado a oposição dos co-
da aquisição de ações. Foram os casos do clero, merciantes ingleses.
dos comerciantes, de instituições públicas e de Dentro da sociedade madeirense, como em
alguns estrangeiros, entre outros. Os estrangei- geral acontece sempre que novos paradig-
ros residentes na Ilha não foram muito partici- mas atingem as sociedades, as polémicas em
pativos, tendo em conta o seu poder económi- torno da construção do caminho de ferro fi-
co. Devemos, contudo, enfatizar o contributo zeram-se ouvir intensamente. De facto, a im-
de um inglês, Walter Hastings Coward, sócio prensa fez eco da luta de interesses em con-
insular de sir Herbert Hay Langham (1840- fronto: por um lado, aqueles que defendiam
1909), que se tornou o maior acionista da e lideravam o projeto, como, e.g., os direto-
Companhia, contrariando um pouco a tendên- res da CCFM; por outro, a fação contrária,
cia dos seus compatriotas. que receava ver os seus interesses beliscados
Ao nível do Governo central, o apoio não foi por um empreendimento proveniente de ini-
muito evidente, exceto na isenção de impostos ciativa privada que não a sua, como a família
que concedeu à CCFM, aquando da entrada na Blandy ou os irmãos Reid. A materialização
Alfândega do Funchal do material fixo e circu- dessa realidade foi explicitamente defendida
lante para a via-férrea. Para além disso, não nos pelas direções de órgãos da comunicação es-
foi possível encontrar qualquer tipo de apoio crita da época, o Diário de Notícias, já proprie-
ou legislação que fosse aplicável ao projeto. Na dade dos Blandy, versus O Direito e A Lucta,
Madeira, contou com o apoio da Junta Geral, que eram controlados pelos líderes que de-
que adquiriu algumas ações, e, especialmente, fendiam as posições contrárias.

Fig. 4 – Cremalheira do caminho de ferro do Monte, c. 1915 (ABM, Arquivos Particulares).


810 ¬ C aminho de ferro do M onte

Todo o processo de concessão do empreen- correspondentes a duas deliberações impor-


dimento foi alvo de alterações, nomeadamente tantes do município funchalense: 17 de feve-
o trespasse da concessão dos direitos de cons- reiro de 1887, com a celebração do contrato
trução da via-férrea de António Joaquim Mar- com a CCFM, e 22 de janeiro de 1891, com
ques para o Cap. Manuel Alexandre de Sousa. a aprovação camarária do projeto e do seu
Para tal, a CMF teve de aprovar essa altera- orçamento.
ção, impondo ao novo concessionário a data Na primeira fase de construção, foram ex-
de três meses para entregar o projeto, o que propriados 56 proprietários, numa área que ia
foi cumprido a 23 de outubro de 1890. Essas desde o Pombal até ao Monte. Na segunda, ex-
transformações envolveram a Câmara, uma vez propriaram-se mais 38, desde o Monte até ao
que tinha de analisar o pedido de trespasse e Terreiro da Luta. O início das expropriações
a sua atribuição a outros concessionários. Após deu-se a 2 de julho de 1891. Parece-nos eviden-
a constituição da CCFM, verifica-se um novo te que o traçado inicialmente projetado para o
trespasse, desta vez de Manuel Alexandre de caminho de ferro do Monte sofreu alterações
Sousa para esta nova instituição. quanto ao local do seu término. Não se sabe
A constituição da Companhia fez-se ao abri- ao certo as causas dessa mudança, motivo de
go de um capital social de 112.500$00 reis, divi- larga discussão pública à época, mas não fáceis
didos em 12.500 ações. Os acionistas obtinham hoje de ajuizar, pelo que, em vez das Laginhas,
o direito de voto nas assembleias desta institui- como constava na proposta inicial, o final do
ção, decorrente da compra das ações. O nú- troço acabou por se situar no Atalhinho. A po-
mero de votos obedecia a um regulamento re- lémica levou ao afastamento do Cap. Manuel
gistado nos estatutos da Companhia. Note-se Augusto de Sousa do posto de fiscal técnico da
que as obrigações e ações emitidas ao porta- Companhia, a 29 de agosto de 1893, e à sua
dor representavam um número significativo de substituição pelos irmãos engenheiros Adriano
votos, mas, porque os portadores compraram Augusto Trigo (1862-1906) e Aníbal Augusto
um número de títulos inferior a cinco, a soma Trigo (1865-1944).
de votos que lhes cabia não era utilizada nas No contrato inicial, a CMF concedeu o ex-
assembleias da empresa. É de realçar também clusivo da exploração da linha do Monte por
que 61,1 % das ações e 56,8 % das obrigações 99 anos à CCFM, tendo esta a obrigação de efe-
adquiridas estavam nas mãos de 39 acionistas tuar os estudos para as expropriações a reali-
integrados num conjunto de subscritores. Esta zar por parte do município, durante os anos
situação demonstra como o poder económico de 1891 e 1892. Do contrato constava, ainda,
se concentrava nas mãos de poucos, embora que a Câmara ficava obrigada a pagar 6 % do
saibamos que muitos madeirenses abastados valor das expropriações e construção da estra-
não arriscaram investir o seu capital num em- da, assim como 500$000 reis anuais durante 10
preendimento inédito na Ilha e com dimen- anos, correspondentes a 2 % do montante a
sões pouco vulgares. investir pela Companhia. No final dos 99 anos
O caminho de ferro do Monte esteve sujei- concessionados, a CMF teria o direito de ficar
to a duas fases de construção, e a execução com o património da Companhia, a estrada, o
da primeira aconteceu em duas etapas. A pri- material circulante e os imóveis, como veio a
meira delas foi inaugurada a 16 de julho de acontecer.
1893, e a segunda a 5 de agosto de 1894, tendo Outro momento importante neste proces-
o percurso atingido o Monte. A segunda fase so foi a aprovação municipal do projeto, em
foi inaugurada a 24 de julho de 1912, entre o 1891, que originou o avanço das expropria-
Monte e o Terreiro da Luta. No processo de ções nos meses seguintes, através da ação de
negociações preliminares para levar por dian- algumas personalidades camarárias que não
te a construção do caminho de ferro, para a foi possível determinar. Apenas foram iden-
primeira fase da obra, salientam-se duas datas tificados o presidente, o vice-presidente e os
C aminho de ferro do M onte ¬ 811

Fig. 5 – Funcionários e passageiros no caminho de ferro do Monte, c. 1920 (ABM, Arquivos Particulares).

vereadores da CMF na época estudada. A ação Gonçalves. São os casos das agências bancárias,
da Câmara também se estendeu à vistoria das de navegação, de carvão, tipografias, entre
obras, nomeadamente a 17 de março de 1893, outros. Todos eles, implicitamente, tanto po-
para averiguar as condições de segurança para deriam complementar o funcionamento do
a abertura da linha ao público. De facto, fize- comboio do Monte, como poderiam ser dire-
ram a vistoria o diretor das obras públicas, o tamente concorrentes.
subdelegado da saúde e os engenheiros já cita- Após a inauguração e início da exploração
dos, os irmãos Trigo, o que deve ter levado ao do caminho de ferro do Monte, cuja estação
afastamento, em agosto, do Cap. Manuel Au- principal e os escritórios da Companhia se se-
gusto de Sousa. dearam na rua do Pombal, todos os sectores da
Os sucessivos diretores da CCFM estiveram, sociedade madeirense aplaudiram esse feito.
amiudadas vezes, direta ou indiretamente im- Se estivermos perante um sentimento verídi-
plicados no confronto com outros poderes pri- co, as lutas e rivalidades anteriores teriam sido
vados instalados. Inicialmente, foi o caso de mera manobra de persuasão; caso contrário,
Luís da Rocha Machado, em confronto com não teriam passado de pura hipocrisia de al-
John Burden Blandy (1839-1912) relativamen- guns que nunca acreditaram, ou nunca quise-
te à polémica do término da linha férrea no ram, que a iniciativa privada conseguisse levar
Monte, na década de 90 do séc. xix. Posterior- a cabo o empreendimento.
mente, embora essa luta não seja tão explícita, Não se pode afirmar com precisão que o com-
ela mantém-se, dado o mesmo John B. Blandy boio foi o maior responsável pelo aumento da
oferecer um conjunto de serviços à população construção das habitações pela encosta, uma
que, em determinados sectores económicos, vez que a cidade se estendeu por toda a mon-
eram diretamente concorrentes com os do di- tanha envolvente. Contudo, deve referir-se que
retor da Companhia, o comendador Manuel os requerimentos dos cidadãos das freguesias
812 ¬ C aminho de ferro do M onte

da baía, onde, em algumas, são visíveis as obras


para a montagem da linha férrea e, depois, o
aumento do casario à sua volta.
A implementação do projeto do caminho de
ferro do Monte implicou a execução de gran-
des aterros e a construção de muros de supor-
te, muitos deles ainda hoje existentes, mas
integrados na malha urbana da cidade. A mo-
vimentação das terras dos aterros foi excessi-
va, relativamente aos suportes onde foi neces-
sário depositá-las. Ao alterar o relevo, surgiu
também a problemática das ribeiras sobre as
quais se lançaram aquedutos, pontões e pon-
tes, todos construídos com materiais prove-
nientes da Ilha. Inserida neste último caso está
a ponte sobre o ribeiro de Nossa Senhora do
Fig. 6 – Estação do Pombal, reforma de 1919-1920 e seguintes Monte, de grande valor histórico e arquitetóni-
(arquivo particular). co e que ainda hoje é utilizada para o tráfego
automóvel.
de Santa Luzia e do Monte para construção de Entre a praça da Constituição e o Pombal,
imóveis foram aumentando progressivamente existiu desde 1896 até pouco tempo antes de
de 1890 a 1913. O impacto da construção do 1915, altura em que os “ralis” foram levanta-
caminho de ferro está patente, entre outros dos, o chamado “carro americano” ou “cami-
documentos, nas sucessivas fotografias tiradas nho de ferro americano”, cujos carros eram

Fig. 7 – Viagem inaugural do segundo troço do comboio do Monte, 2 de agosto de 1894 (ABM, Arquivos Particulares).
C aminho de ferro do M onte ¬ 813

Fig. 8 – João Gonçalves Zarco, bronze de Francisco Franco (1914), restaurante do Terreiro da Luta,
aguarela de Max Römer, 1922 (Casa-Museu Frederico de Freitas).

puxados por três cavalos e se deslocavam sobre um restaurante panorâmico que era explora-
carris. Estes carros circulavam diariamente e do pela própria CCFM, com capacidade para
estabeleciam a ligação entre a referida praça e 400 clientes e considerado, então, do melhor
a rua do Pombal, onde estava, e está, a estação a nível internacional. O restaurante não dei-
do elevador do Monte. O “carro americano” xou de melhorar o seu enquadramento e de
estacionava no largo da Restauração, ao sul da cuidar da sua imagem, pelo que, em 1914, foi
praça da Constituição e junto das traseiras da encomendada para o jardim uma escultura de
fortaleza de S. Lourenço, como atestam várias um romântico e jovem Zarco a Francisco Fran-
fotografias. co (1885-1955), e, a partir de 1922, data em
Em termos de viabilidade económica, as previ- que se fixou na Madeira o aguarelista austríaco
sões não só foram atingidas, como foram supera- Max Römer (1878-1960), este, em nome e por
das, segundo o Relatório de Contas da Companhia encomenda da Mount Railway Co., cuidou lar-
relativo ao ano de 1897. Neste ano, a empresa gamente da imagem da companhia.
liquidou o seu passivo, obtendo ainda os primei- O caminho de ferro do Monte era uma via-
ros lucros resultantes da sua atividade, pelo que, -férrea de cremalheira do sistema Riggenba-
consolidada a situação, a 12 de julho de 1910, a ch. Desenvolvia-se em via única de bitola mé-
CCFM, em assembleia geral, decidiu prolongar trica, exceto nas estações do Livramento e do
o comboio até ao Terreiro da Luta. A preten- Monte, onde havia um desvio para permitir
são foi aprovada pela CMF, a 4 de agosto desse o cruzamento de comboios. As composições
ano. Cerca de dois anos depois, a 24 de julho eram formadas por uma única carruagem,
de 1912, o comboio chegava finalmente ao Ter- que era empurrada (no sentido ascendente)
reiro da Luta, a 850 m de altitude, ficando, no ou sustida (no descendente) pela locomotiva;
total, com uma extensão de 3911 m e as seguin- o peso da carruagem mantinha-a em contacto
tes paragens: Pombal, Levada de Santa Luzia, com a locomotiva, pelo que não havia neces-
Livramento, Quinta Sant’Ana (Sant’Ana), Fla- sidade de atrelagem. A companhia chegou a
mengo, Confeitaria, Atalhinho (Monte), Largo possuir cinco locomotivas, quatro construídas
da Fonte e Terreiro da Luta. pelas firmas alemãs Maschinen-Fabrick Esslin-
Na mesma data, inaugura-se na estação do Ter- gen, de Estugarda, e uma pela Schweizerische
reiro da Luta o Chalet Restaurant-Esplanade, Lokomotiv-und Maschinenfabrik, de Sitz, em
814 ¬ C aminho de ferro do M onte

Winterthur, e cinco carruagens de passagei- século, a CCFM possuía três locomotivas, uma
ros com capacidade para 60 pessoas, uma das nova e duas antigas, que, apesar de terem sido
quais se encontra hoje no Museu do Caminho sujeitas a várias reparações, ofereciam pouca
de Ferro de Berlim. Existiam ainda alguns va- segurança.
gões mais pequenos e baixos para transporte Um violento desastre ocorreu a 10 de se-
de bagagem. tembro de 1919, quando o comboio subia
A exploração do comboio do Monte não em direção ao Monte, dando-se uma explo-
foi imune às crises e conjunturas económicas são na caldeira da locomotiva, que a des-
ao nível europeu das primeiras décadas do truiu totalmente. Deste acidente resultaram
séc. xx. Foi o que aconteceu durante a Primei- quatro mortos e vários feridos, entre os 56
ra Guerra Mundial, em que o menor fluxo de passageiros que seguiam a bordo. As viagens
visitantes e a redução do abastecimento de car- foram suspensas até 1 de fevereiro do ano se-
vão foram significativos. Nesse sentido, medi- guinte. Pouco mais de 10 anos depois, a 11
das de contenção de despesas, usando menos de janeiro de 1932, ocorreu novo desastre,
carvão e menos água de refrigeração na loco- desta vez por descarrilamento.
motiva, levaram à explosão da caldeira de uma A partir de então, turistas e habitantes vira-
das locomotivas. Nos inícios de 1903, já tendo ram as costas ao caminho de ferro, consideran-
sido tornado público que algumas das locomo- do-o demasiado perigoso, e, com a concorrên-
tivas se encontravam em mau estado de fun- cia do automóvel, tal como com o deflagrar da
cionamento, foi ordenado à Companhia que Segunda Guerra Mundial, a partir de 1939, ve-
seguisse várias precauções, de forma a garantir rificou-se uma quebra muito significativa de tu-
a segurança pública. Nesses primeiros anos do ristas na Madeira, e a CCFM entrou em crise,

Fig. 9 – Desastre do comboio do Monte, setembro de 1919 (ABM, Arquivos Particulares).


C aminho de ferro do M onte ¬ 815

Fig. 10 – Madeira, Elevador do Monte, bilhete-postal animado do Bazar do Povo, c. 1905 (ABM, Arquivos Particulares).

acumulando uma grande dívida. Esse conjun- rápido e fomentar o desenvolvimento socioe-
to de fatores levou a que o governo, por dec- conómico da Ilha, tendo cada um deles dei-
-lei n.º 32724, de 29 de março de 1943, tives- xado marcas visíveis na paisagem urbana que
se mandado encerrar a linha, o que aconteceu podem bem servir de elementos iconográficos
logo em abril seguinte, vindo a CMF a abrir da cidade funchalense. O comboio ou eleva-
concurso público para vender em leilão todo o dor do Monte será sempre parte integrante da
material, desde as máquinas às vias. história da Ilha, assim como as influências por
O produto do leilão foi aplicado no paga- ele deixadas no desenvolvimento urbanístico
mento das dívidas da empresa. Parte do mate- do Funchal, na vida quotidiana de muitos ma-
rial resultante do desmantelamento, nomeada- deirenses e no imaginário de muitos dos foras-
mente os carris, foi para a sucata e parte foi teiros que nele viajaram para o idílico sítio do
utilizada pelo arrematador na reparação do Monte.
elevador do Bom Jesus, em Braga. Uma das ve- Em outubro de 2003, a CMF lançou um con-
lhas locomotivas do caminho de ferro ainda curso público internacional para a reconstru-
faria uma última viagem a 17 de maio de 1943, ção do caminho de ferro do Monte, dado cons-
pois o comerciante do Porto que comprara o tituir uma absoluta “mais-valia patrimonial”,
espólio do caminho de ferro do Monte, Fran- como referiu então o presidente da edilidade
cisco Alves de Sousa, teve a ideia de convidar (NÓBREGA, 3 out. 2003, 50). O caderno de
um grupo de amigos a acompanhá-lo numa úl- encargos, que consignava um direito de explo-
tima viagem do comboio. ração de 50 anos, pressupunha um troço em
Fazendo um paralelismo com o atual telefé- funicular entre o largo do Monte e o Terreiro
rico, que liga o centro da cidade do Funchal da Luta e uma ligação por comboio de anima-
ao Monte, podemos dizer que os objetivos de ção turística daí até ao largo das Babosas, local
ambos os empreendimentos se cruzam: apoiar de chegada do atual teleférico do Monte, bem
o turismo, dotar a cidade de um transporte como a recuperação, com materiais da época,
816 ¬ C aminho N eocatecumenal

dos edifícios de apoio que ainda subsistem.


Os constrangimentos económicos dos anos se-
guintes fizeram, entretanto, suspender a ideia
para uma melhor oportunidade.

Bibliog.: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. vii, Funchal, Secretaria Regional
da Educação/Universidade da Madeira, 2008; Id., e MELLO, Luís de Sousa,
Associação Comercial e Industrial do Funchal. Esboço Histórico (1836-1933),
Funchal, Edicarte, 2002; GOMES, Luís Valentim, O Caminho do Comboio e as
Alterações Urbanísticas do Funchal, Funchal, CEHA, 2005; HARCOURT, Edward
Vernon, A Sketch of Madeira, Containing Information for the Traveller, or Invalid
Visitor, com litografias de Susan Vernon Harcourt, London, J. Murray, 1851;
NÓBREGA, Tolentino da, “Funchal reabilita antigo caminho-de-ferro. Concurso
público a nível europeu”, Público, 3 out. 2003, p. 50; SILVA, Fernando Augusto
da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal,
Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998.

Rui Carita

Caminho Neocatecumenal
O Caminho Neocatecumenal, definido pelo
Papa João Paulo II como “itinerário de forma-
ção cristã” (JOÃO PAULO II, 1990), é uma rea-
Fig. 1 – Kiko Arguëllo (arquivo particular).
lidade eclesial dotada de personalidade jurídi-
ca pública e que tem como objetivo a iniciação
cristã, antes do batismo, ou a redescoberta da de Palomeras Altas, arredores de Madrid, na
iniciação cristã após um período de vida cris- sua maioria habitadas por ciganos, prostitutas
tã de afastamento ou de vivência pouco ativa, e ex-presidiários. Kiko Argüello atravessava,
rumo a uma fé adulta. A aprovação definitiva então, uma crise existencial; Carmen vivia en-
dos estatutos, que contemplam também as di- tusiasmada pelas novas orientações pastorais
ferenças da liturgia e da catequese, foi dada emanadas do Concílio Vaticano II. Posterior-
pelo decreto de 11 de maio de 2008 do Conse- mente, em 1970, associou-se a esta realidade o
lho Pontifício para os Leigos, após uma apro- padre italiano Mario Pezzi (1941), missionário
vação provisória, ad experimentum, concedida comboniano que, em 1992, deixou a sua con-
cinco anos antes. gregação religiosa para se dedicar inteiramen-
Através de uma espécie de retorno às primi- te ao Caminho. Este dispõe hoje de um semi-
tivas comunidades cristãs, o Caminho Neocate- nário missionário internacional, Redemptoris
cumenal pretende ser uma fuga ao anonimato Mater, situado em Roma e fundado em 1986,
e à massificação vigente em algumas assem- e de 99 outros, espalhados por vários países.
bleias paroquiais, facto agravado pela escassez Estão já a funcionar também três seminários
de clero, e uma resposta às determinações do Redemptoris Mater em Portugal: um em Lis-
Concílio Vaticano II (1962-1965) no sentido boa, um no Porto e outro em Évora. Estes semi-
de uma maior renovação do papel dos leigos nários são diocesanos e missionários, erigidos
na evangelização. O pintor espanhol Francisco pelos bispos mas custeados pelo Caminho; a
José Gomes Argüello (Kiko), nascido em Léon formação de base é a mesma de qualquer semi-
em 1939, e Carmen Hernandez, nascida perto nário diocesano, frequentando os candidatos
de Ólvega em 1931, licenciada em Química e ao sacerdócio, no caso português, a Faculda-
Teologia e ex-religiosa da Ordem das Missioná- de de Teologia da Univ. Católica Portuguesa,
rias de Cristo Jesus, foram os iniciadores desta em Lisboa. O Caminho reúne as várias comu-
nova realidade eclesial, em 1964, nas barracas nidades, de 20 a 50 membros dos dois sexos,
C aminho N eocatecumenal ¬ 817

Fig. 2 – P.e Mario Pezzi e Carmen Hernandez


na Arena de Amesterdão (arquivo particular).

integrados a partir dos 14 anos, que se formam


nas paróquias, de onde surgem equipas de ca-
tequistas itinerantes, geralmente três, que se
dirigem a outras dioceses do país ou do es-
trangeiro, acompanhadas por um padre, com
Fig. 3 – P.e Mario Pezzi na Jornada Mundial da Juventude, em 2011
a autorização do respetivo ordinário, bispo ou (arquivo particular).
superior de ordem religiosa. Tem promovi-
do convívios de bispos em diversas partes do a 14 anos, embora cada comunidade possa dis-
mundo e enviado em missão para o estrangei- por de um ritmo próprio. A primeira fase, o
ro várias famílias e jovens (missio ad gentes) com “pré-catecumenato”, é direcionada para a aqui-
a bênção papal. sição da “humildade” e decorre num período
Semanalmente, cada comunidade celebra a de quatro anos. A segunda, denominada “cate-
eucaristia numa sala anexa à igreja paroquial, cumenato”, tem a duração de seis anos e visa
com uma liturgia própria que apresenta algu- a aquisição da “simplicidade”, compreenden-
mas peculiaridades em relação ao rito latino do uma primeira iniciação à oração, a traditio
da Igreja. Os fiéis recebem a comunhão sob as ou “entrega” e a redditio symboli ou “devolução”,
duas espécies, e em pão ázimo com o formato e uma segunda iniciação à oração e respetiva
normal, sentados nos seus lugares. O altar está entrega do Pai-Nosso. Para coroar esta fase, é
normalmente colocado no centro da sala, com organizada uma peregrinação a um santuário
a assembleia sentada à volta; antes da homilia, mariano. Finalmente, a terceira fase, denomi-
são apresentados testemunhos de experiências nada “eleição”, tem como meta a aquisição do
vivenciais ou problemas pelos participantes que “louvor”, dura dois a quatro anos, terminando
desejem fazê-lo; o abraço da paz tem lugar antes com a cerimónia solene de renovação das pro-
da consagração; no final da missa, dança-se e messas do batismo na Vigília Pascal da sé respe-
canta-se à volta do altar. O batismo é adminis- tiva, na presença do bispo, e é encerrada com
trado por imersão a crianças e a adultos. Para uma peregrinação à Terra Santa. Concluída a
além da celebração da eucaristia, geralmente formação, a comunidade não se desfaz, conti-
ao sábado, a comunidade reúne-se noutro dia nuando, os que desejarem, a reunir-se sema-
da semana para ouvir a Palavra de Deus e, uma nalmente e a participar em convívios mensais e
vez por mês, encontra-se durante um domingo. em encontros nacionais e internacionais.
A formação do catecúmeno decorre em três Em 2014, existiam 25.000 comunidades neo-
fases e tem, geralmente, a duração total de 12 catecumenais em 124 países, que congregavam
818 ¬ C aminho N eocatecumenal

mais de 1.000.000 de membros, sendo a Itália o neocatecumenais espalhadas por oito paró-
país que registava o maior número, seguindo- quias: no concelho do Funchal, duas na Naza-
-se a Espanha. Em Portugal, à data, havia já 300 ré, duas na Graça (Santo António) e uma no
comunidades, dispersas por 19 das 20 dioceses Livramento; no concelho de Câmara de Lobos,
do país; a primeira foi fundada na paróquia de cinco no Estreito de Câmara de Lobos, uma no
Nossa Senhora da Penha de França, em 1968, Garachico e uma no Carmo; no concelho da
a pedido do P.e João de Brito, missionário dos Ribeira Brava, uma em São Bento (Vila); no
Sagrados Corações. concelho de Santa Cruz, uma no Caniço; e, no
O Caminho Neocatecumenal chegou à Ma- concelho de Santana, uma em São Jorge. Os
deira em outubro de 1993, tendo-se forma- responsáveis de cada comunidade da Diocese
do a primeira comunidade na paróquia de do Funchal, escolhidos por eleição, dependem
Santa Maria Maior. Esta comunidade acabou e são orientados por uma equipa de catequis-
por perder alguns elementos, sendo os res- tas itinerantes que superintendem nas comuni-
tantes transferidos para uma outra, que en- dades das regiões autónomas da Madeira e dos
tretanto se formou na paróquia da Graça, na Açores e de Cabo Verde. Esta equipa está em
freguesia de Santo António. Na Diocese do contacto com os bispos das respetivas dioce-
Funchal, existiam, em 2014, 15 comunidades ses, com quem se reúne sempre que necessário
para informar do decurso da atividade evange-
lizadora do Caminho Neocatecumenal.
O Caminho tem já proporcionado vocações
sacerdotais e religiosas em Portugal e noutros
países. Na Diocese do Funchal, esta experiên-
cia é partilhada por vários sacerdotes. Embo-
ra ainda restrito a poucas paróquias, maiorita-
riamente localizadas na costa sul, o Caminho
Neocatecumenal tem já trazido ao seio da Igre-
ja, nesta diocese como em outras, pessoas que
por uma ou outra razão viviam alheadas da sua
fé cristã, e os testemunhos que têm prestado
publicamente revelam esse reencontro com a
fé e uma maturidade e militância cristã que a
elas próprias surpreendeu.
O financiamento das grandes despesas com os
seminários e, pontualmente, com as viagens in-
ternacionais dos catequistas itinerantes provém
da fundação diocesana Sagrada Família de Na-
zaré, com duas sedes, uma em Roma e outra em
Madrid, sendo que a equipa internacional do
Caminho apenas tem o direito de se pronunciar
sobre a aplicação do fundo financeiro. O paga-
mento das despesas correntes e de deslocação
de equipas de catequistas é assegurado pela co-
munidade de origem dos catequistas e pela co-
munidade recetora, através de coletas voluntá-
rias, não havendo lugar a quotas estipuladas.

Bibliog: ARGÜELLO, Kiko, O Kerigma. Nas Barracas com os Pobres, Lisboa,


Fig. 4 – Ícone da Virgem pintado por Kiko Arguëllo A Esfera dos Livros, 2013; Id., e HERNANDEZ, Carmen, Estatutos do
(coleção particular). Caminho Neocatecumenal, Lisboa, Paulinas, 2008; BLÁZQUEZ, Ricardo,
C am õ es , L u í s de ¬ 819

Comunidades Neocatecumenais, Porto, Perpétuo Socorro, 1988;


CENTRO NEOCATECUMENALE DI ROMA, Il Cammino Neocatecumenale nei
Discorsi di Paolo VI, Giovanni Paolo II e Benedetto XVI (Pro manuscripto), 5.ª ed.,
Roma, 2011; DRAKE, Virgínia, e ARGÜELLO, Kiko, El Camino Neocatecumenal.
40 Años de Apostolado, Madrid, La Esfera de los Libros, 2009; JOÃO PAULO II,
“Oniqualvolta”, Acta Apostolicae Sedis, 82.90, 30 ago. 1990, pp. 1513-1515;
VICENTE, Andrés Fuentes, O Caminho Neocatecumenal. Uma Iniciação Cristã,
Porto, Perpétuo Socorro, 1998.

Gabriel Pita

Camões, Luís de
O nosso maior épico nacional liga-se à his-
tória das representações da Madeira ao de-
dicar uma farta oitava de Os Lusíadas a esta
Ilha, que a engrandece e a faz superar outras
ilhas famosas da Antiguidade clássica, cujos
feitos, geografia, cultura e modelos literários
se constituem, como era prática naquele deal-
bar da Modernidade, como referência deste
poeta maior do humanismo renascentista
português. Eram esses modelos clássicos refe-
rência não só para imitar, mas mais ainda para
atualizar e superar. As narrativas dos humanis-
tas portugueses, como Duarte Pacheco Perei-
ra, Fernando Oliveira, João de Barros, entre Fig. 1 – Luís de Camões, cópia do retrato de Fernão Gomes
(Lisboa, 1570 a 1573), Luís José Pereira de Resende, c. 1820
tantos outros, sobre as gestas decorrentes das
(aquisição pela Comissão Nacional para as Comemorações
viagens marítimas de descobrimento dos ca- dos Descobrimentos Portugueses) (ANTT, n.º invent. 3347).
minhos dos mares e da construção do primei-
ro império da Modernidade são atravessadas
pelo escopo de engrandecimento das realiza- quantas Vénus ama,/Antes, sendo esta sua, se
ções portuguesas por comparação com as ges- esquecera/De Cipro, Gnido, Pafos e Citera”
tas dos impérios antigos, reforçando a tese de (CAMÕES, 2018, V, 5).
que estes foram ultrapassados em muitos as- A Madeira é elevada a um estatuto superior
petos. Ora, a descrição da Madeira enquadra- ao das antigas ilhas clássicas que tinham santuá-
-se neste ideário. Camões coloca na boca de rios dedicados a Vénus, apontando a beleza, as
Vasco da Gama, ao discursar perante o rei de condições amenas, as potencialidades naturais
Melinde, precisamente uma caracterização da e a posição estratégica desta Ilha situada num
Madeira como a ilha pioneira dos Descobri- dos pontos da grande área do extremo ociden-
mentos, porque a primeira a ser oficialmen- tal do mundo conhecido até à sua descober-
te encontrada e povoada no âmbito do mo- ta. Realmente, tinha passado cerca de sécu-
vimento expansionista marítimo promovido lo e meio sobre o achamento e o povoamento
pela Coroa portuguesa e pelas suas ordens e deste arquipélago da Madeira, que garantiria
outras instituições que lhe eram afetas. Aqui a Portugal uma espécie de porto de abrigo e
citamos na íntegra essa famosa estrofe de Ca- rampa de lançamento das viagens marítimas,
mões: “Passámos a grande ilha da Madeira,/ e, ao mesmo tempo, tinha-se constituído ali
Que do muito arvoredo assi se chama,/Das uma espécie de laboratório bem-sucedido de
que nós povoámos, a primeira,/Mais céle- experimentação de novas culturas, novas téc-
bre por nome que por fama;/Mas nem por nicas e novos modelos de organização social,
ser do mundo a derradeira/Se lhe aventajam que depois foram transplantados para outros
820 ¬ C am õ es , L u í s de

pontos do território do Império Português, já timbre antijesuítico, que tinha por referência a
consolidado no tempo de Camões. A posição grelha pombalina de interpretação que sobre-
geográfica da Madeira e o sucesso de alguns valorizava a influência nefasta da Companhia
produtos agrícolas ali plantados, nomeada- de Jesus na corte portuguesa, identificou pe-
mente do açúcar e, depois, do vinho, começa- rentoriamente os Jesuítas e, em particular, dois
ram a dar a esta Ilha a celebridade que Camões irmãos madeirenses na altura muito influentes
já exalta e que mais tarde será ainda mais enfa- como o alvo privilegiado das invetivas de Luís
tizada em cognomes usados para caracterizá-la, de Camões: o padre jesuíta e amigo de Iná-
como “rainha das ilhas”, “pérola do Atlântico”, cio de Loyola Luís Gonçalves da Câmara, que
“flor do oceano” e “jardim do mundo”. tinha sido precetor do jovem Rei, e o seu irmão
Fernando Augusto da Silva dedicou um estu- Martim Gonçalves da Câmara, este padre secu-
do aprofundado ao lugar da Madeira na epo- lar e escrivão da corte, ambos filhos de João
peia camoniana, que se torna obrigatório para Gonçalves da Câmara, quarto capitão-donatá-
quem pretenda aprofundar este tema e onde rio do Funchal.
encontramos a resenha circunstanciada do de- Estas figuras relevantes do teatro político do
bate observado entre alguns estudiosos que reinado de D. Sebastião nunca são diretamen-
chegaram a defender que a descrição da Ilha te nomeadas por Camões. Por isso, as conjetu-
dos Amores patente nos cantos ix e x de Os Lu- ras dos intérpretes estão impregnadas de uma
síadas corresponderia à Madeira ou teria como natural margem de subjetividade interpretati-
modelo esta Ilha, além de dar conta da ques- va que não nos permite inferir conclusões de-
tão também problemática, que envolveu espe- finitivas. O P.e Fernando Augusto da Silva, no
cialistas em navegação, como Gago Coutinho, seu citado estudo, não dá como concluído este
de saber se a armada de Vasco da Gama teria velho debate, não arriscando optar claramen-
passado e acostado à Madeira na sua primei- te por uma das teses em equação, ou seja, ou
ra viagem. O mesmo estudioso madeirense e pela identificação dos alvos da crítica camonia-
autor do Elucidário Madeirense traz à colação as na com estes irmãos Câmara, ou pela referên-
críticas duras exaradas, em especial nas estro- cia genérica a outras personalidades influen-
fes 84 e 85 de Os Lusíadas, sobre os maus e am- tes que não estes colaboradores próximos. De
biciosos conselheiros que rodeavam o Monar- qualquer modo, Fernando Augusto da Silva
ca português D. Sebastião. A historiografia de termina o seu estudo com uma observação

Fig. 2 – Estrofe de Os Lusíadas sobre a Madeira, Prq. de Santa Catarina, Funchal (arquivo particular, 2016).
C ampos , S igfredo V entura da C osta ¬ 821

pertinente que lhe permite fazer uma inter-


rogação significativa que aqui expomos suma-
riamente. Se as invetivas cáusticas patentes nas
referidas estâncias de Os Lusíadas tivessem cla-
ramente no tempo visado os referidos conse-
lheiros madeirenses, teria o P.e Martim Gonçal-
ves da Câmara, que haveria de falecer também
numa casa da Companhia de Jesus, assumido a
iniciativa, como é sabido, de restaurar e melho-
rar a sepultura de Camões, que encontrou em
mau estado, e lhe colocar versos latinos lauda-
tórios da pena do jesuíta Matos Cardoso? Não
nos cabendo a nós aqui averiguar as intenções
que subjazem aos supracitados versos de Ca-
mões, que se tornaram objeto de longa polé-
mica, o que é importante registar é o lugar da
Fig. 1 – Cor. Sigfredo Ventura da Costa Campos, Cancela,
Madeira e dos madeirenses na chamada Bíblia 1994 (arquivo particular).
da nacionalidade que é a epopeia camoniana.
Interessa conhecer e compreender essa refe-
rência ao que ao arquipélago madeirense diz a base de instalação dos módulos cinotécnicos
respeito no quadro da chamada história das re- das Forças Paraquedistas, da Polícia do Exérci-
presentações e das interpretações ideologica- to e da Unidade Especial da Polícia de Segu-
mente condicionadas. rança Pública. Foi também o primeiro coman-
dante do Centro de Instrução do Batalhão de
Bibliog.: CAMÕES, Luís de, Os Lusíadas, vol. 17 das Obras Pioneiras da Cultura
Portuguesa, coord. José Carlos Seabra Pereira e Martinho Soares, dir. José Grupos Especiais Paraquedistas no Dondo, em
Eduardo Franco e Carlos Fiolhais, Lisboa, Círculo de Leitores, 2018; SILVA, Moçambique, que abriu, inclusivamente, à so-
Fernando Augusto, Camões e a Madeira, Funchal, ed. do Autor, 1934.
ciedade civil, e “Um dos Últimos Defensores
José Eduardo Franco do Império Português em África” (MARTINS,
2008, 2).
Camões Pequeno Sigfredo Ventura da Costa Campos finalizou
Ö Nóbrega, Francisco Álvares de a carreira militar como coronel, porém mante-
ve-se ligado ao Exército até à sua morte, sendo
presidente da mesa da assembleia da Associa-
Campos, João Francisco ção de Grupos Especiais e Grupos Especiais
de Barbosa Azevedo de Sande Para-quedistas.
Aires de Depois de deixar a vida militar, Sigfredo
Ö Ameal, João (pseud.) Costa Campos tornou-se empresário e adqui-
riu diversas empresas degradadas financeira-
mente, conseguindo restaurá-las para depois
Campos, Sigfredo Ventura da as vender. É neste contexto que, em 1981, se
Costa torna proprietário da Vinhos Justinos Henri-
Coronel, paraquedista, exportador e reativa- ques, denominada posteriormente Justino’s
dor dos mercados de vinho Madeira, nasceu a Madeira Wines, S.A.
5 de janeiro de 1930, em Lisboa. Outrora conhecido pela elevada qualidade,
Foi o primeiro militar a estudar, teorizar o vinho Madeira viu a sua comercialização de-
e publicar, em 1981, o chamado binómio clinar após a Segunda Guerra Mundial, recu-
homem/cão, assunto que vinha a ser desen- perando moderadamente na déc. de 70. No
volvido desde a déc. de 1930 e que foi depois entanto, a imagem do vinho Madeira estava
822 ¬ C ampos , S igfredo V entura da C osta

geralmente denegrida, sendo considerado um de distribuição de bebidas, o La Martiniquai-


vinho de baixa qualidade. A exportação do se, aliança que propiciou a aposta na moder-
vinho Madeira a granel possibilitava a sua adul- nização do espaço e dos equipamentos, além
teração, já que era engarrafado no país de des- da contratação de pessoal técnico qualificado,
tino, reduzindo a qualidade da bebida e, por tendo sido das primeiras empresas, se não a
seguinte, prejudicando a sua reputação. Pers- primeira, a instalar-se e a operar no complexo
picaz, Sigfredo Costa Campos constata este e industrial da Cancela. Deste modo, em 2007, a
outros problemas do mercado vinícola madei- Justino’s Madeira Wines, S.A. controlava quase
rense e decide agir a fim de reverter esta situa- 50 % da exportação de vinho Madeira da Ilha
ção. Encabeça um movimento, com o apoio para países como a Alemanha, o Brasil, a Fran-
de outros produtores, visando a proibição da ça, a Hungria, a Inglaterra, o Japão, a Repú-
venda de vinho Madeira a granel, o que alcan- blica Checa, a Rússia, entre outros onde se de-
çou em 2001. A partir desta data, o vinho Ma- gusta vinho da Justino’s Madeira Wines, S.A.
deira tornou a ser conhecido pela sua quali- A qualidade deste vinho comprova-se pelas
dade e pelo seu sabor genuíno, conseguindo dezenas de prémios que tem vindo a receber
marcar um lugar de prestígio no mercado vi- desde 2005.
nícola. No início do séc. xxi, nas palavras do Sigfredo Ventura da Costa Campos fale-
coronel, o vinho Madeira “surpreende em de- ceu aos 78 anos, a 11 de maio de 2008. Mais
gustações ao redor do mundo” (BURGOS e tarde, seria distinguido, pelo “seu trabalho
FARAH, 2007). em prol do desenvolvimento, da comunida-
Quanto ao seu papel na Justino’s Madeira de, da sociedade, da cultura, e da economia
Wines, S.A., Sigfredo Costa Campos tornou- da Região Autónoma da Madeira” (CARDO-
-se um dos maiores produtores de vinho Ma- SO, DN, 2 jul. 2008, 17), com o Cordão Au-
deira graças à sua estratégia económica: inves- tonómico de Bons Serviços, título póstumo
timento na promoção do vinho, abertura de com que foi agraciado na Cerimónia de Im-
novos mercados e expansão dos já existentes. posição Solene de Insígnias Honoríficas Ma-
Em 1993, associou-se ao maior grupo francês deirenses de 1 de julho de 2008, celebrada
no âmbito das comemorações do Dia da Re-
gião Autónoma da Madeira e das Comunida-
des Madeirenses.

Obras de Sigfredo Ventura da Costa Campos: O Cão Militar (1981).

Bibliog.: impressa: CAMPOS, Costa, O Cão Militar, Lisboa, Centro do Livro


Brasileiro, 1981; CARDOSO, Francisco José, “Orgulho no passado, confiança no
futuro”, Diário de Notícias, 2 jul. 2008, p. 17; LIDDELL, Alexander, Madeira. The
Mid-Atlantic Wine, London, Hurst & Company, 2014; RODRIGO, Morais, “CMG
Maxfredo Ventura Costa Campos”, O Desembarque, n.º 27, jun. 2017, pp. 10-17;
TOLEDO, João, “Estatuto político-administrativo ‘nem sempre foi respeitado’”,
Diário Cidade, 2 jul. 2008, p. 7; digital: BRUSTOLIN, Jackson, “Madeira Justino’s
perde Cel. Costa Campos”, QVinho, 15 maio 2008: http://www.qvinho.com.
br/variedades/noticias/madeira-justinos-perde-costa-campos/(acedido a 5
dez. 2018); BURGOS, Christian, e FARAH, Fábio, “O Madeira é melhor que
o Porto”, Adega, n.º 20, jun. 2007: https://revistaadega.uol.com.br/artigo/o-
madeira-e-melhor-que-o-porto_7136.html (acedido a 5 dez. 2018); MARTINS,
Luís Fânzeres, “Não partirá do coração de quem fica”, Portal URT, 12 maio
2018: https://www.yumpu.com/pt/document/view/50090958/coronel-
para-quedista-sigfredo-ventura-da-costa-campos-ultramar (acedido a 5 dez.
2018); “Prémios”, Justino’s Madeira Wines, 2018: http://www.justinosmadeira.
com/pages.php?page_id=142 (acedido a 5 dez. 2018); “Sigfredo Ventura da
Costa Campos”, Geneall, s.d.: https://geneall.net/pt/nome/222361/sigfredo-
ventura-da-costa-campos/ (acedido a 5 dez. 2018); “Somos os maiores
produtores de vinho da Madeira”, Mundo Português, 10 abr. 2007: https://www.
Fig. 2 – “Fine Madeira Wine Justino’s Malmsey”, mundoportugues.pt/49602/ (acedido a 5 dez. 2018).
rótulo da Justino Henriques Filhos Lda., c. 1960
(ABM, Arquivos Particulares, José de Sainz-Trueva). Andreia Carol de Carvalho
C anadá ¬ 823

Canadá
A presença portuguesa no Canadá não é uma
realidade do séc. xx, pois a História refere-nos
uma longa tradição que vincula o Português,
ilhéu ou não, a esse mundo ocidental desde a
segunda metade do séc. xv. Aliás, Jaime Cor-
tesão, com base em Bartolomeu de las Casas,
afirma perentoriamente ter sido o madeirense
Diogo de Teive, com Pedro de Velazco, quem
descobriu a Terra Nova, em 1452, na sua segun-
da viagem, e que, no regresso, terão encontrado
as ilhas das Flores e do Corvo. Por outro lado, Fig. 1 – Reprodução da Pedra de Dighton, Miguel Corte-Real,
Gaspar Frutuoso refere que, por volta de 1472, 1511; oferta dos madeirenses de Rhode Island (EUA), 2008, pro-
menade do Lido, Funchal (fotografia de José Lemos Silva, 2010).
João Vaz Corte Real teria descoberto a Terra
Nova dos Bacalhaus, numa viagem organizada
em parceria com Álvaro Martins Homem.
O cartógrafo João Vaz Dourado, no séc. xvi, portugueses. Traçado o percurso, o reconhe-
corrobora essa informação e chama “terra de cimento da costa americana prolongou-se por
João Vaz” a uma extensão da costa situada a todo o séc. xvi, partilhado por Ingleses, Fran-
norte e leste de Terra Nova. Por outro lado, ceses e Castelhanos.
o globo de Gemma Frisius, de 1537, refere, Antes de 1953, altura em que se iniciou a
entre o continente Ártico e o Canadá, o es- emigração organizada de Portugueses para o
treito dos três irmãos, numa alusão aos irmãos Canadá, já esta região estava incluída nos des-
Corte Reais. tinos dos emigrantes. A rota do bacalhau ga-
Em 1487, mais um madeirense, João Afonso nhou alguma familiaridade nestas paragens e
do Estreito, em parceria com Fernão Dulmo, conduziu à presença permanente de alguns.
está presente noutra tentativa de descoberta Os primeiros Portugueses que se fixaram no
de terra firme a ocidente. Segue-se-lhes João Canadá surgem já no séc. xvii. São eles: Jean
Fernandes, lavrador da ilha Terceira. No mapa Rodrigues e Pierre da Sylva, de Lisboa, e Mar-
de Cantino, de 1502, e no de Jorge Reinel, de tin Pierre, de Braga. O primeiro açoriano de
1519, surge a Gronelândia como a Terra do La- que há notícia, de apelido Miranda, surge em
vrador. Depois, foi a vez dos irmãos Gaspar e 1680. E o primeiro originário da Madeira é
Miguel Corte Real, em 1499 e 1502, a quem Walter Peter Leacock, que sai da Ilha em 1763
são atribuídas três viagens, sendo a terceira fa- e organiza a sua vida e família naquele país.
tídica para Gaspar Corte Real, que se perdeu; Em 1846, surge pela primeira vez na Madeira
desta viagem restaria apenas como testemu- uma perseguição oficial aos súbditos da Coroa
nho a Pedra de Dighton, em Massachussetts. britânica, pelas suas convicções religiosas. Em
Para as historiografias inglesa e canadiana, o 1842, Robert Kalley tornou-se pregador da
grande descobridor do Canadá foi John Cabot, Igreja da Escócia, arrastando centenas de po-
entre 1497 e 1498, um Italiano ao serviço de pulares do Santo da Serra e de Machico. A rea-
Henrique VII de Inglaterra. De acordo com essa ção da Igreja madeirense não se fez esperar
tradição, o barco Mathew, chefiado por John e, em janeiro de 1843, o Cón. Carlos Teles de
Cabot, aportou na Terra Nova a 24 de junho de Menezes apresentava a posição da hierarquia
1497, dois dias após a sua partida de Bristol. religiosa madeirense, definindo o movimento
Os bancos do Bacalhau da Terra Nova con- como herético. Em setembro, o pastor foi proi-
tinuaram a ser por muito tempo um domí- bido de exercer a medicina na Madeira, sendo
nio de intervenção direta dos pescadores preso a 9 de agosto de 1846 e expulso da Ilha,
824 ¬ C anadá

Fig. 2 – Férias no Monte, óleo de Martha Telles, Canadá, 1960 (coleção do Centro de Arte Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian).

e a sua residência na Qt. do Vale Formoso sa- No período de 1872 a 1915, em que está or-
queada pelos populares. ganizado o registo de passaportes, há apenas
Da perseguição movida aos seguidores do Dr. três referências de saída de madeirenses para
Kalley resultou a fuga de alguns para as Anti- o Canadá. Em 1910, surge Augusto Alberto De-
lhas e, depois, para América do Norte. Esta si- cano de Bianchi, e em 1911 João Gonçalvez e
tuação ia ao encontro dos interesses britânicos, Manuel Baeta, da Fajã da Ovelha.
uma vez que a abolição da escravatura torna- A partir da déc. de 1950, ocorre uma nova
va imprescindível o recrutamento de mão de vaga de emigração portuguesa para o Cana-
obra livre. dá, com o primeiro embarque a acontecer em
O primeiro madeirense certamente deste 1953. Candidataram-se 123 madeirenses, mas
grupo terá sido Francis Silva (1841-1920), que apenas uma centena teve franqueadas as por-
surge em Halifax, em 1861, nos registos da tas do navio grego S.S. Hellas, a 26 de maio
Igreja Batista de Hantsport. Esta situação levou desse ano. A 1 de junho, desembarcaram em
David Higgs a afirmar que Silva terá saído da Halifax, sendo depois conduzidos para To-
Ilha entre 1848 e 1849, enquadrando-o no ronto, onde foram distribuídos pelo traba-
grupo de adeptos do Rev. Kalley, perseguidos lho no campo, em Niagara Falls e na empresa
pelo Estado e pela ira dos populares. Este é R. F. Welsh, de Toronto. Nesta mesma década
considerado um dos mais ilustres portugueses emigraram mais 285 madeirenses; nos anos 60,
que aportaram ao Canadá no séc. xix. seriam 139 madeirenses, que chegariam aos
O facto de Francis Silva ter pintado sete mu- 358 na década seguinte.
rais e de este património ter sido acarinhado O Português venceu todas as resistências e
pela Nova Scotia Art Gallery, que, entre 25 de conseguiu singrar na sociedade canadiana,
março e 10 de maio de 1982, organizou uma através duma dupla orientação da sua cida-
exposição com este espólio, manteve a sua me- dania. A capacidade de realização e de sacri-
mória e o mérito da sua obra para a posterida- fício fez desta comunidade uma referência
de. É uma arte de cariz naïf que faz, segundo rara no multiculturalismo que deu origem
David Higgs, inúmeras alusões à ilha da Madei- ao Canadá.
ra. O universo insular deste pintor é dominado A 2 de junho de 1963, foi criado em Toronto
pelo mar; o basalto e as colinas íngremes da o Canadian Madeira Centre. Passavam então
Ilha também fazem parte das fixações pictóri- 10 anos sobre a chegada do primeiro grupo de
cas deste artista espoliado por força das suas madeirenses a estas paragens. O ano de 1963
crenças religiosas. é importante para a comunidade madeirense
C ana - de - a ç úcar ¬ 825

de Toronto, que cresce a olhos vistos e ganha Passaportes 1, Funchal, Arquivo Regional da Madeira, 2000; Id., Índice dos
Passaportes. 1901-1915, Série Índice dos Passaportes 2, Funchal, Arquivo
algum fulgor económico. Para trás, haviam fi- Regional da Madeira, 2005; HIGGS, David, “Francis Silver (1841-1920), ou seja,
cado os tempos de grande dificuldade; acalen- Francisco da Silva no contexto da migração portuguesa para o Canadá antes
de 1940. Arte e uma odisseia atlântica”, in Actas do II Colóquio Internacional
ta-se agora a busca das origens, através do espí- de História da Madeira, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações
rito associativo que deu forma à materialização dos Descobrimentos Portugueses, 1990, pp. 401-413; Id., Portuguese Migration
in Global Perspective, Toronto, Multicultural History Society of Ontario, 1990;
das festas populares. Para isso, adquiriu-se um OLIVEIRA, Manuel Armando, e TEIXEIRA, Carlos, Jovens Portugueses e Luso-
vasto espaço, o Madeira Park, onde terão lugar Descendentes no Canadá. Trajectórias de Inserção em Espaços Multiculturais,
Oeiras, Celta Editora, 2004; TEIXEIRA, Carlos, “The portuguese in Toronto.
as festas madeirenses, com especial destaque A community on the move”, Portuguese Studies Review, vol. 4, n.º 1, 1995,
para a de Nossa Senhora do Monte. pp. 57-75; Id., “Cultural resources and ethnic entrepreneurship. A case study
of the portuguese real estate industry in Toronto”, Canadian Geographer,
A força e a capacidade de iniciativa da Casa
n.º 42, 1998, pp. 267-281; Id., Portugueses em Toronto. Uma Comunidade
da Madeira Community Centre ficarão bem em Mudança, Angra do Heroísmo, Gabinete de Emigração e Apoio às
demonstradas nas suas múltiplas iniciativas Comunidades Açorianas, 1999; Id., e LAVIGNE, Gilles, Os Portugueses no
Canadá. Uma Bibliografia. 1953-1996, Lisboa, Direcção-Geral dos Assuntos
para reviver a terra de origem. Nesse Centro, Consulares e Comunidades Portuguesas, 1998; TEIXEIRA, Carlos, e ROSA,
existe uma sala cultural que é um verdadeiro Victor P. da (org.), The Portuguese in Canada. From the Sea to the City,
Toronto, University of Toronto Press, 2000.
recanto madeirense, onde tudo remete à Ilha.
† Alberto Vieira
A partir do processo autonómico, estabelece-
ram-se contactos com esta comunidade e pro-
moveram-se múltiplas atividades. Em 1980, o Cana-de-açúcar
bispo D. Francisco Santana, numa visita que
A cana-de-açúcar, Saccharum officinarum L., é
fez aos Estados Unidos, passou por Toronto, e,
uma gramínea (família Poaceae, tribo Andropo-
na déc. de 90, muitos intelectuais e professores
goneae) pertencente ao género Saccharum L.,
universitários participaram na Semana da Ma-
que inclui cerca de 40 espécies. O nome Saccha-
deira nessa cidade.
rum provém da palavra sânscrita “karkara” ou
Por outro lado, sabemos que, desde mea-
“carkara”. A cana-de-açúcar é, na verdade, um
dos do séc. xix, existiam relações comerciais
agregado complexo de híbridos em que se re-
com este país, sendo o Canadá um mercado
conhecem várias espécies e em que as cultivares
de consumo do bordado madeirense. Esta
atuais possuem origem híbrida, seja entre varie-
procura manteve-se pelo menos até 1923,
dades de S. officinarum, seja com outras espécies
com dados visíveis nos registos de exporta-
do género. A Saccharum officinarum terá sido
ção. Alguns dados soltos referem o nome
isolado de madeirenses rumo a este desti-
no, por razões distintas da emigração. Em
1962, Maria Adília Clode foi para Montreal,
onde constituiu família, enquanto António
José Luís dos Reis fez o doutoramento na
Univ. de Waterloo, no Canadá, e aí traba-
lhou entre 1974 e 1977. Também a pintora
madeirense Marta Teles, ou Martha Telles,
fez formação na Univ. do Quebeque e na de
McGill, de Montreal, tendo grande parte da
sua obra, com especial referência às suas raí-
zes madeirenses, sido ali produzida.
Bibliog.: ALPALHÃO, João António, e ROSA, Vítor M. P. da, A Minority in a
Changing Society. The Portuguese Communities of Quebec, Otawa, University
of Ottawa Press, 1980; ANDERSON, G. M., e HIGGS, David, A Future to
Inherit. The Portuguese Communities of Canada, Toronto, McClelland e
Stewart, 1976; ANTUNES, Conceição, O Associativismo em Toronto. Estudo
de Quatro Associações Portuguesas, Dissertação de Mestrado em Relações
Interculturais apresentada à Universidade Aberta, Lisboa, texto policopiado,
2000; BARROS, Fátima, Índice dos Passaportes. 1872-1900, Série Índice dos Fig. 1 – Cana-de-açúcar (fotografia de Bernardes Franco, 2017).
826 ¬ C ana - de - a ç úcar

domesticada provavelmente na Nova Guiné e evaporação para a obtenção de açúcar (conhe-


inicialmente utilizada como alimento animal. cida, pelo menos desde o séc. xiii, pelos Turcos
Trata-se de uma planta robusta cujos caules Otomanos). Foram os Árabes os responsáveis
(colmos) podem atingir os 3 a 6 m de altura pela expansão da cultura desta planta em todo
e diâmetros até 5 cm, possuindo folhas largas, o Mediterrâneo, incluindo a península Ibérica,
por vezes com mais de 1 m de comprimento. De pelo menos desde o séc. ix. O cultivo em Portu-
todas as plantas cultivadas pelo Homem, a ca- gal, sobretudo no Sul, está bem documentado e
na-de-açúcar é a que apresenta maior produti- parece ter abrangido áreas significativas no iní-
vidade em termos de quilocalorias por unidade cio do séc. xv.
de área. Além do seu uso como planta alimen- A cultura da cana-de-açúcar chegou à Madeira
tar, foi também desde sempre utilizada como em 1425, com origem em plantas vindas da Sicí-
planta medicinal (uso refletido no restritivo es- lia, por ordem do próprio infante D. Henrique,
pecífico “officinarum” e que também ocorre na embora alguns historiadores proponham uma
Madeira). origem ibérica a partir da região de Valência.
A primeira utilização humana da cana terá O início da cultura da cana-de-açúcar na Ilha
sido pela ingestão dos sucos da parte interna do foi marcado pela permanente intervenção da
colmo, prática que se manteve posteriormente. Coroa, do senhorio e do município nas fases
Embora não existam dados concretos quanto de cultivo, transformação e comércio (a do-
à data inicial, é certo que terá sido no Sul da cumentação oficial para o período de 1450 a
Ásia que o conteúdo líquido foi extraído pela 1550 é testemunho disso), facto que demons-
primeira vez, recorrendo a uma prensa simples, tra o interesse económico pela nova cultura.
e que este terá sido concentrado através de fer- Uma vez que o açúcar da Região era de exce-
vura. A primeira referência à palavra “açúcar” lente qualidade, destinava-se preferencialmente
surge em textos em sânscrito que localizam às cortes, tanto à nacional como às europeias.
a produção no Norte da Índia. A cultura teve Na fase da moenda da cana, utilizaram-se
uma expansão asiática até à China e, paralela- inicialmente os meios técnicos conhecidos à
mente, para o Mediterrâneo. Quando os Ára- época, mas a disponibilidade de recursos hídri-
bes levaram a cana-de-açúcar da Índia, através cos conduziu a aperfeiçoamentos, como a cria-
da Pérsia, para o Médio Oriente, a palavra tor- ção do primeiro engenho de água na Madeira,
nou-se “sakkar” ou “sukkar”. Mais tarde, quan- registado em 1452 por Diogo de Teive (escudei-
do os Gregos a introduziram na Ásia Menor, ro do infante D. Henrique, enviado por este à
tornou-se “sakchar” ou “sakcharon”. Os Roma- Madeira para edificar o primeiro engenho na
nos tomaram a palavra dos Gregos quando a es- Região). Esta cultura foi de particular relevân-
creveram como “saccharum”. Assim, através da cia para o contexto socioeconómico da Ilha,
Pérsia, a cana-de-açúcar chegou ao Egito e daí particularmente evidente nos contornos da sua
passou para a Síria, a Sicília, Marrocos, Espanha estrutura social (a escravatura), técnica (enge-
e Bizâncio. Após os europeus tomarem conhe- nho de água) e mesmo urbana.
cimento da cana-de-açúcar no período das Cru- Do açúcar consumido globalmente, cerca
zadas, a cultura entrou rapidamente nos hábitos de 80 % é produzido a partir de cana-de-açú-
alimentares da aristocracia europeia, sendo de car, amplamente cultivada em países tropicais e
995 a primeira informação relativa à entrada de subtropicais. Os restantes 20 % são produzidos
açúcar no porto de Veneza. No entanto, as pri- a partir de beterraba sacarina, que é cultivada
meiras referências europeias à cana-de-açúcar principalmente nas zonas temperadas do he-
são bastante mais antigas e resultam da expan- misfério norte.
são do império de Alexandre Magno. Tendo a cana-de-açúcar encontrado na Ma-
O uso da cana-de-açúcar evoluiu de uma uti- deira excelentes condições edafoclimáticas
lização direta para a extração do seu suco e, para a sua produção, a mesma prosperou até
posteriormente, para a sua fermentação ou meados do séc. xvi, época em que na Região se
C ana - de - a ç úcar ¬ 827

chegaram a produzir “300.000 arrobas de açú- demonstra antes uma preocupação em deixar
car” (aproximadamente 4406,4 t) (SILVA e ME- as espécies que pudessem ser utilizadas na cons-
NESES, 1998, 435). Todavia, em simultâneo, o trução de engenhos ou em assegurar que a ma-
açúcar do Brasil e das colónias espanholas co- téria-prima florestal fosse utilizada, exclusiva-
meçou a surgir em grande quantidade na Eu- mente, na produção de açúcar.
ropa. Na déc. de 1530, agravou-se a crise da Com a entrada no arquipélago do oídio
economia açucareira na Madeira, e os agricul- (a mangra, em regionalismo madeirense), que
tores foram obrigados a abandonar os cana- ataca fortemente a vinha, e tentando combater
viais e a substituí-los por vinha, especialmente a os riscos da monocultura, ocorre o ressurgimen-
partir de meados desse século. Esta explicação to da cana sacarina e esta ganha novo folgo, na
concorrencial para a redução do cultivo da ca- déc. de 1820, como uma das alternativas viáveis
na-de-açúcar é a seguida pela maior parte dos para a diversificação da produção agrícola, sur-
historiadores madeirenses. No entanto, exis- gindo, em consequência, novas áreas desta cul-
tem motivos de índole ecológica relacionados tura. Mas foi apenas com o colapso quase total
com o esgotamento ou, pelo menos, a forte re- da vinha, em meados do séc. xix (com o apa-
dução da matéria-prima florestal fundamental recimento da filoxera, que quase dizimou total-
como combustível para a evaporação da guara- mente os vinhedos madeirenses da altura), que
pa e produção de açúcar. Jason Moore descre- a cana-de-açúcar voltou a expandir-se. Inicial-
ve com detalhe as necessidades de lenha rela- mente limitada aos terrenos baixos do Sul, foi,
tivas às exportações de açúcar da Madeira nos progressivamente, abrangendo até zonas não
sécs. xv e xvi, das quais terá resultado o abate aconselhadas para a sua produção. Todavia, este
de uma grande parte da floresta pristina da Re- período de novo fulgor da cultura terminou
gião. Assim, no início do séc. xxi, parecia claro quando, entre 1882 e 1886, se deu, mais uma
que a substituição do cultivo da cana-de-açúcar vez, a quase destruição dos canaviais, em conse-
pelo da vinha se deveu antes de mais ao esgota- quência do aparecimento de uma nova doença,
mento da matéria-prima florestal e, simultanea- provocada pelo fungo Coniothyrium melasporum.
mente, dos solos, resultante da exigente cultura Mas não foram apenas os canaviais madeirenses
da cana-de-açúcar. Esta relação é suportada di- a ser afetados. De facto, desde 1880 que se veri-
retamente, e.g., pelo comentário de João de Bar- ficava a expansão da doença e consequente re-
ros: “conta que o Infante muito sentiu, e parece dução da produção em todo o mundo.
que como profecia viu esta necessidade que a Foi apenas depois de 1920 que a utilização
Ilha tem de lenha; porque dizem que manda- de novas variedades, resultantes de hibridação
va que todos plantassem matas, pelo negócio com outras espécies do género Saccharum (a no-
dos açúcares, de que a Ilha logo deu mostra gas- bilização da cana), permitiu obter não só maior
tar tanta, que era certo vir a esta necessidade” resistência a doenças como maior produção
(Da Asia..., 1778, 34). Diversos autores relatam de sacarose. A introdução de novas variedades
o cultivo progressivo de distintos territórios re- possibilitou a reconstrução dos canaviais, que,
sultantes dos Descobrimentos portugueses até à a partir de 1890, se expandiram novamente,
chegada ao Brasil, facto que também é narrado alimentando a indústria açucareira e o fabrico
nos comentários de outros cronistas dos sécs. xv de rum agrícola (que, entre os madeirenses, é
e xvi. O papel do cultivo da cana-de-açúcar na normalmente conhecido como aguardente de
destruição do coberto vegetal é bem conhecido, cana) e álcool, para além da sua aptidão forra-
tendo ocorrido na Madeira tal como em mui- geira. Este desenvolvimento manteve-se até aos
tas outras áreas do mundo para onde a cultura finais da déc. de 1930, quando a cultura chegou
se expandiu. De facto, alguns documentos do a ocupar uma área de cerca de 6500 ha, tendo
séc. xvi parecem demonstrar uma preocupação posteriormente voltado a decair, estimando-se
ecológica com o corte da floresta para combus- que, em 1952, ocupasse apenas uma superfície
tível, quando, na verdade, uma melhor leitura total de 1420 ha. Esta tendência de decréscimo
828 ¬ C ana - de - a ç úcar

Fig. 2 – Corça com cana-de-açúcar, Lg. António Nobre, Funchal, bilhete-postal animado de c. 1900
(ABM, coleção da Direção Regional dos Assuntos Culturais).

manteve-se de forma acentuada durante toda a constatar que, em 1976, a área dedicada a esta
segunda metade do séc. xx. produção era de 1290 ha, diminuindo, em
Deste facto faz referência a Comissão de Pla- 1981, para 800 ha. Até finais da déc. de 1980, ve-
neamento da Região da Madeira, que, num re- rificou-se um abaixamento substancial da área
latório de 1971, indica mesmo que “a crise da de cultivo (em 1989, os estudos registam a exis-
cana sacarina resulta principalmente dos altos tência de apenas 89 ha desta cultura em toda
custos de produção da cultura quando compa- a Região), essencialmente relacionado com o
rados com os de outras regiões com condições encerramento de diversas unidades industriais
ecológicas mais favoráveis. […] O álcool obtido de grande importância para o escoamento da
a partir da cana é também caro e a sua comer- produção, como a empresa Hinton e o enge-
cialização só é possível à custa dum preço des- nho de Machico. Efetivamente, este facto levou
favorável ao consumidor […]. A única fábrica a um colapso da cultura, por falta de vias de
de açúcar e álcool existente está desatualizada escoamento.
e, dada a constante redução verificada na pro- Para promover o cultivo da cana sacarina, o
dução, está já a trabalhar abaixo do mínimo de Governo regional, na déc. de 1990, passou a
laboração económica”. Em nota de conclusão, a garantir um preço fixo aos produtores, tendo
mesma Comissão infere que, “dos outros produ- também implementado ajudas no âmbito das
tos resultantes do aproveitamento da cana, só as ações de apoio às produções locais estabeleci-
aguardentes e o mel e, eventualmente, os sumos das no Programa de Opções Específicas para
não fermentados poderão ter alguma viabilida- o Afastamento e Insularidade da Madeira e
de económica” (COMISSÃO DE PLANEAMEN- Açores, um projeto instituído pela União Eu-
TO DA REGIÃO DA MADEIRA, 1971, 40). ropeia, através da decisão 91/315/CEE do
Através da análise da Série Retrospetiva das Esta- Conselho, de 26 de junho de 1991, estimulan-
tísticas da Agricultura e Pesca 1976-2014, pode-se do assim não só os agricultores, mas também
C ana - de - a ç úcar ¬ 829

os engenhos ainda em laboração (engenhos solar. Em 2009, contava com um total de 1114
da Calheta e do Porto da Cruz, Fábrica de Mel explorações em cerca de 114,8 ha. A produção
do Ribeiro Seco e, posteriormente, engenho estava localizada preferencialmente nos conce-
novo da Madeira). Com a viragem do século, lhos da Ponta do Sol (freguesias da Ponta do Sol
as áreas de cana-de-açúcar recuperaram ligei- e Canhas), com cerca de 29 % da área regional
ramente e, em 2001, registou-se já a existência de cana-de-açúcar e 33,19 ha; de Machico (Ma-
de cerca de 103 ha desta cultura. Esta tendên- chico e Porto da Cruz), com cerca de 28 % da
cia incremental manteve-se até ao final da série área e 31,69 ha; de Santana (Faial), com cerca
(2014), com o registo de uma área total de ca- de 14 % da área e 16,02 ha; e, finalmente, da
na-de-açúcar na ordem dos 156 ha. Calheta (Arco da Calheta, Calheta e Estreito da
As flutuações anteriormente referidas ao nível Calheta), com cerca de 8 % da área e 9,09 ha,
das áreas produtivas de cana-de-açúcar tiveram como referido no Recenseamento Agrícola de 2009.
reflexos na produção anual da cultura. Assim, A instalação do canavial é fundamental para
em 1976, a produção foi de 28.408 t, diminuin- o sucesso desta cultura, sobretudo a preparação
do, em 1981, para 21.674 t, tendo-se registado o do solo, especialmente porque as plantações de
mínimo de 2871 t já em 2000. Com o estímulo cana sacarina podem atingir, sem problemas de
ao incremento de novas áreas da cultura, na vi- maior, um tempo de vida entre os 20 e os 25
ragem para o séc. xxi, a cultura da cana regis- anos. Na Região, a plantação na costa sul deve
tou, em 2014, uma produção de cerca de 7586 t. ser realizada de finais de fevereiro até maio; a
Agronomicamente, a cana-de-açúcar encon- norte, a mesma deve ser mais serôdia, decor-
tra na Madeira as melhores condições de cultivo rendo de abril a junho, através de estacas que
na costa sul até aos 300 m de altitude e na costa devem ser divididas em propágulos de três a
norte até aos 200 m, em zonas de boa exposição quatro olhos (numa densidade de cerca de 700

Fig. 3 – Corça com cana-de-açúcar no fontanário do Torreão, c. 1890 (arquivo particular).


830 ¬ C ana - de - a ç úcar

kg/ha), dispostos no fundo de manta, com li- densidade/maior teor em sacarose (usualmen-
geira sobreposição. te refletido pelo grau Brix previsível).
As variedades usadas na Região tiveram uma O primeiro engenho para espremer cana doce
elevada variação ao longo dos tempos. Com a que existiu na Madeira foi construído em 1452,
chegada do fungo Coniothyrium melasporum, pro- mas o número de engenhos que laboraram na
moveu-se a introdução de novas variedades, mais Ilha nunca foi consensual. No estimo de 1494,
resistentes à doença, para a reconstituição dos são referenciados apenas 14 engenhos, quan-
canaviais. É o caso da “bambu” (que podia che- do noutro documento, de 1493, se dá conta da
gar em boas condições de produção até zonas existência de 80 mestres de açúcar. Edmund
mais altas) e da “yuba” (com grande resistência von Lippermann refere existirem no Funchal
à secura). Mais tarde, na déc. de 1930, devido 150 engenhos no início do séc. xvi, todavia, este
a alguns problemas ocorridos com as anterio- valor parece pouco razoável para a extensão
res, são introduzidas novas variedades, de Java, arável da Ilha e a produção dos canaviais. Em
da Austrália e da Luisiana. No começo do séc. finais do séc. xvi, Gaspar Frutuoso faz referên-
xix, após estudos efetuados para dar resposta cia a várias dezenas de engenhos, número que
às exigências das unidades industriais, a produ- contrasta com o referido por Fernando Augus-
ção de cana-de-açúcar assentou nas variedades to da Silva e Carlos Azevedo de Meneses para
“POJ-2725” e “NCO-310”, as que melhor garan- o ano de 1826, mencionando existir um único
tiam uma maior resistência ao vírus do rajado engenho em toda a Ilha. Os mesmos autores re-
ou do mosaico da folha e as que tinham maior ferem que, em 1851, havia quatro fábricas na

Fig. 4 – Transportes de cana-de-açúcar junto da Fábrica Hinton, c. 1910 (arquivo particular).


C ana - de - a ç úcar ¬ 831

Madeira e, em 1856, em toda Fig. 5 – Broas de mel de cana da Fábrica


S.to António, Funchal, 2018.
a Região, existiam 28, todas
para destilação de aguarden-
te. No início da déc. de 1860,
existiam 29, das quais cinco confeção de vários produ-
se destinavam à produção de tos da doçaria tradicional,
açúcar. Já na viragem para entre os quais se destacam
o séc. xx, o número de en- o bolo de mel de cana e as
genhos era de 49, dos quais broas de mel de cana, pro-
três manipulavam o açúcar: dutos nos quais é utilizado
os de W. Hinton, Silva Ma- como matéria-prima princi-
nique e José de Faria & Ca. pal, seguindo os modos tra-
Finalmente, à data da publi- dicionais de produção que
cação do Elucidário Madeiren- integram e distinguem o pa-
se, existiam 51 engenhos, dis- trimónio industrial e gastro-
tribuídos pelos concelhos de nómico regional.
Calheta, Câmara de Lobos, Funchal, Machico, Contudo, a Região assistiu a situações de
Ponta do Sol, Porto Moniz, Ribeira Brava, Santa adulteração dos produtos tradicionais, com a
Cruz, Santana e São Vicente. Destes, enquanto colocação no mercado de bolos e broas comer-
vigorou o regime sacarino estabelecido pela lei cializados com a indicação de bolos e broas de
de 24 de novembro de 1904 e o decreto de 11 mel, quando, na verdade, são produzidos com
de março de 1911, 49 só destilavam aguardente melaços provenientes de fora da Madeira. Para
a 26 º Cartier (destinada toda ao consumo pú- ultrapassar estas situações de concorrência
blico da Madeira), estando apenas dois autori- desleal e promover a preservação da qualida-
zados ao fabrico do açúcar e do álcool a 40 º de e genuinidade destes produtos, foram cria-
para o tratamento dos vinhos. das as marcas de certificação “Mel-de-cana da
No começo do séc. xxi, pela informação dis- Madeira”, “Bolo de mel-de-cana da Madeira” e
ponibilizada pelo Instituto do Vinho, Bordado e “Broas de mel-de-cana da Madeira” e os respe-
Artesanato da Madeira, são agentes económicos tivos selos de autenticação, através do dec.-lei.
de rum da Madeira as empresas Abel Fernandes, regional n.º 20/2006/M, de 12 de junho.
Lda., Engenho Novo da Madeira, Lda., Florenti- Por sua vez, o rum da Madeira é uma bebida
no Izildo de Gouveia Ferreira, J. Faria & Filhos, espirituosa produzida exclusivamente por fer-
Lda. e Sociedade dos Engenhos da Calheta, Lda., mentação alcoólica e destilação do sumo de ca-
que se localizam no Porto da Cruz (Machico), no na-de-açúcar regional e que apresenta as carac-
Estreito da Calheta (Calheta), em Santa Cruz, no terísticas aromáticas específicas do rum. Possui
Funchal e na Calheta, respetivamente. um teor de substâncias voláteis igual ou supe-
A cana-de-açúcar, depois de colhida, é tri- rior a 225 g/hl de álcool a 100 % vol., cumprin-
turada e esmagada para se extrair o sumo de do o estabelecido no regulamento n.º 110/2008
cana, conhecido por guarapa ou garapa. Este do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15
líquido é depois sujeito a uma tripla filtração de janeiro, que fixa as regras aplicáveis à defi-
e a uma cozedura, para evaporação da água nição, designação, apresentação e rotulagem
e produção do xarope. A fase final consiste das bebidas espirituosas, bem como as relativas
na concentração da matéria, em caldeira de à proteção das indicações geográficas de algu-
vácuo, até à obtenção dum produto estável, mas destas bebidas. O rum da Madeira também
livre de cristalização e altamente nutritivo, que se encontra reconhecido como indicação geo-
desde sempre foi utilizado pelos madeirenses, gráfica através do mesmo diploma. Para além
quer como suplemento alimentar, quer, princi- de ter uma elevada procura para consumo dire-
palmente, como ingrediente fundamental na to como aguardente nova ou como aguardente
832 ¬ C anárias

envelhecida, este rum é o ingrediente funda- FLANDRIN, Jean-Louis, e MONTANARI, Massimo, História da Alimentação,
vol. 1, Lisboa, Terramar, 1996; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra.
mental na produção da poncha da Madeira, História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro
que é o licor típico da Ilha. Rodrigues de Azevedo, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2008;
KIPLE, Kenneth, e ORNELAS, Kriemhild, The Cambridge World History of
A evolução da produção de mel de cana veri- Food, vol. i, Cambridge, Cambridge University Press, 2000; LEÇA, Joaquim,
ficada entre 2004 e 2014, considerando a quan- Agricultando, Funchal, ed. do Autor, 2011; MOORE, Jason, “Madeira, sugar,
and the conquest of nature in the ‘first’ sixteenth century. Part I: from ‘island
tidade de mel de cana expressa em litros (com of timber’ to sugar revolution, 1420-1506”, Review, vol. 32, n.º 4, 2009, pp. 345-
uma densidade de cerca de 1,4 kg/l), denota 390; Id., “Madeira, sugar, & the conquest of nature in the ‘first’ sixteenth
century. Part II: from regional crisis to commodity frontier, 1506-1530”,
algumas oscilações, mantendo-se, porém, sem- Review, vol. 33, n.º 1, 2010, pp. 1-24; PRANCE, Ghillean, e NESBITT, Mark
pre acima dos 100.000 l, apesar de, em 2005, ter (eds.), The Cultural History of Plants, New York/London, Routledge, 2005;
SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário
ocorrido uma elevada quebra (78.000 l); o má-
Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VIEIRA, Alberto, “O açúcar
ximo foi atingido em 2008, com 160.000 l. Se- na Madeira. Produção e comércio nos séculos xv e xvi”, in Actas del II
gundo os dados da Série Retrospetiva das Estatísti- Seminário Internacional Produccion y Comercio del Azucar de Caña en Epoca
Preindustrial, Motril, Diputación Provincial de Granada, 1991; Id., e CLODE,
cas da Agricultura e Pesca 1976-2014, em 2014, a Francisco, A Rota do Açúcar na Madeira, Funchal, CEHA, 1996.
produção de mel de cana foi de 118.000 l.
Cláudia Dias Ferreira
A produção de rum em litros (rum agrícola a
100 %) rondou, em 2010, os 132.000 l e, a par-
tir dessa data, apresentou uma evolução franca- Canárias
mente positiva, tendo ultrapassado os 220.000 l A presença portuguesa nas Canárias aconteceu
em 2014. preferencialmente através da Madeira, pelo
Bibliog.: BAKKER, H., Sugar Cane Cultivation and Management, New York,
facto de ter sido o primeiro espaço de ocupa-
Springer, 1999; COMISSÃO DE PLANEAMENTO DA REGIÃO DA MADEIRA, ção portuguesa, assim como um dos principais
Trabalhos Preparatórios do IV Plano de Fomento, Relatório do Grupo de
Trabalho da Lavoura, Funchal, Comissão de Planeamento da Região da
eixos do movimento de expansão de pessoas,
Madeira, 1971; Da Asia de João de Barros e de Diogo de Couto, Lisboa, produtos e técnicas no Atlântico. Os Portugue-
Regia Officina Typografica, 1778; DIREÇÃO REGIONAL DE ESTATÍSTICA,
Recenseamento Agrícola de 2009, Funchal, Direção Regional de Estatística,
ses assumiram aí um lugar de relevo, situan-
2011; Id., Série Retrospetiva das Estatísticas da Agricultura e Pesca. 1976-2014, do-se entre os principais obreiros da valoriza-
Funchal, Direção Regional de Estatística, 2015; FERRÃO, José E. Mendes,
ção económica das ilhas, como agricultores,
A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses, Lisboa, Comissão
Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992; pescadores, pedreiros, sapateiros, mareantes e

Fig. 1 – Canárias sob o Trópico de Câncer, Leonardo Turriano, 1582 a 1592 (BGUC, ms. 314).
C anárias ¬ 833

artesãos. Porque se integraram, desde o início,


de forma pacífica, deixaram marcas indeléveis
da portugalidade na sociedade das Canárias.
A verdadeira descoberta das ilhas foi obra
de Ingleses, Alemães e Franceses. Na segunda
metade do séc. xviii, a Madeira e as Canárias
assumiram um novo papel para os europeus.
O turismo desenvolveu-se em ambos os arqui-
pélagos a par da busca de soluções para a cura
da tísica pulmonar e dos estudos e trabalhos de
recolha das espécies vivas indígenas do quadro
natural, de acordo com as exigências da ciên-
cia e das instituições europeias. Esta proximi-
dade da Madeira com as Canárias manteve-se
no tempo. Ao impacto da presença portuguesa Fig. 2 – Visita à Madeira de Jerónimo Saavedra,
deveremos juntar as ligações que se sedimenta- presidente do Governo Autónomo de Canárias, 1982
(coleção de Universo de Memórias de João Carlos Abreu).
ram por força das rotas de navegação marítima
e aérea. Acresce que a entrada na Comunidade
Económica Europeia – nomeadamente com o deslocou-se ao Funchal uma companhia de
enquadramento no grupo das chamadas re- teatro e, em 1955, um grupo folclórico par-
giões ultraperiféricas – favoreceu este relacio- ticipou na Festa das Vindimas. A partir da
namento, nomeadamente através de intercâm- déc. de 60, as Canárias adquiriram um papel
bio científico e institucional. de destaque como estância de veraneio e des-
A História revelou que a complementarida- tino preferencial da viagem final dos setima-
de destes espaços insulares não é eterna e que nistas madeirenses. Inversamente, a descober-
depende quase sempre de razões conjunturais. ta da Madeira como destino turístico para as
A partir do séc. xix, os caminhos dos dois ar- populações do arquipélago vizinho ganhou
quipélagos deixaram de se cruzar e a comple- importância na déc. de 90. A par disso, estrei-
mentaridade deixou de estar presente, dando taram-se contactos em termos políticos e em-
lugar à concorrência entre os dois espaços presariais, através de várias cimeiras; procu-
pelo controlo da navegação no espaço atlân- rou-se estabelecer roteiros comuns para um
tico e pelo turismo europeu. Esta parece ter turismo insular; abriram-se caminhos para
sido uma luta inglória para os madeirenses. As um intercâmbio cultural e científico; e pre-
Canárias ganharam-na porque souberam cons- tendeu-se estabelecer uma rota de intercâm-
truir portos oceânicos e criar condições fiscais bio comercial entre os dois arquipélagos. Mas
para atrair a navegação marítima, através da quase todas estas propostas foram adiadas ou
criação do porto e da zona franca, avançando, ficaram por cumprir, por força dos condicio-
também, de forma rápida, com a aposta na na- namentos políticos e comunitários.
vegação aérea como incentivo ao crescimento O mundo insular atlântico, que se afirmou
do mercado turístico. com os diversos arquipélagos, é uma realidade a
No decurso do séc. xx, houve vários inter- partir do séc. xv e resulta da partilha feita pelos
câmbios culturais, nomeadamente com a ilha reinos peninsulares, legitimada nos tratados
de Tenerife, com a presença da Filarmónica estabelecidos para o controlo do espaço oceâ-
Artística Madeirense (1909), da Banda dos nico. A conjuntura política subjacente ao mo-
Artistas Funchalenses (1913), do grupo mu- mento inicial de ocupação do espaço atlântico
sical de Passos Freitas (1914 e 1922), do Trio e as formas de relacionamento entre as coroas
Madeirense (1931) e do Orfeão Madeirense peninsulares foram importantes na forma como
(1966 e 1971). No sentido contrário, em 1888 se estabeleceram e persistiram as conexões
834 ¬ C anárias

canário-madeirenses. No séc. xv, a vinculação incidindo preferencialmente no comércio de


da Madeira a Lanzarote filia-se na célebre dis- cereais dos mercados de Tenerife, Fuerteventu-
puta entre as coroas peninsulares pela posse das ra e Lanzarote, dado que a Madeira tinha nes-
Canárias. Já em finais do século seguinte, a rea- tas ilhas o seu principal granero de cereais. Nas
firmação e o alargamento dos contactos a todo o centúrias seguintes, o movimento continuou,
arquipélago canário foram resultado da ocupa- mas sem a mesma pujança e dimensão deste
ção da ilha da Madeira, em 1582, por D. Agustin primeiro momento. Pouco a pouco, cada um
Herrera, ato que materializou a união das co- dos arquipélagos foi definindo rumos diversos
roas peninsulares e estreitou ainda mais os laços que, em vez de propiciarem a complementari-
entre as comunidades das ilhas da Madeira e de dade, conduziram ao confronto e à concorrên-
Lanzarote. Estabeleceram-se vínculos familiares cia de produtos e serviços.
entre famílias madeirenses e alguns dos solda- O papel da Madeira neste sistema de inter-
dos das forças que o acompanharam, que aca- -relações e a importância da comunidade ma-
baram por se casar na Ilha. deirense neste arquipélago são destacados por
Dois momentos pautaram a forma de relacio- todos os autores que se têm dedicado ao tema,
namento dos arquipélagos. O primeiro permi- sendo que os inúmeros estudos realizados nos
tiu a afirmação madeirense em Lanzarote, en- últimos anos vão no sentido desta valoração. É
quanto o segundo, para além do reforço das certo que estamos perante uma presença varia-
ligações canário-madeirenses, condicionou a da de portugueses de todas as regiões do país,
presença canária no Funchal, que nunca foi mas esta familiaridade canário-madeirense foi
muito significativa. Se à componente política dominante no quadro dos relacionamentos,
se deverá conceder o mérito de abertura e in- desempenhando a Ilha um papel chave.
centivo das ligações humanas, ao fator econó- Como referenciado acima, a intervenção ma-
mico atribuir-se-á a missão de reforçar e sedi- deirense na empresa canária conduziu a uma
mentar este relacionamento. Este intercâmbio maior aproximação entre os dois arquipélagos,
só alcançou a plenitude nos sécs. xvi e xvii, ao mesmo tempo que influenciou o traçado de

Fig. 3 – Vista do porto de Arrecife, Lanzarote, Leonardo Turriano, 1582 a 1592 (BGUC, ms. 314).
C anárias ¬ 835

vias de contacto e comércio entre eles. Pela


Madeira houve, primeiro, o saque fácil de mão
de obra escrava para a safra do açúcar e, de-
pois, o recurso ao cereal e à carne, necessá-
rios à dieta alimentar do madeirense. Por seu
turno, as Canárias foram refúgio para alguns
dos primeiros conquistadores. Em 1476, com
a conquista levada a cabo por Diego de Herre-
ra, muitos colonos europeus saíram de Lanza-
rote para a Madeira ou Castela. Tenha-se em
conta que, para muitos madeirenses, as Caná-
rias foram também, desde o início, um espa-
Fig. 4 – Casas de salão canárias, c. 1900, Centro de Dia
ço de fuga. Aconteceu assim, no séc. xvi, com de Antiqua, Fuerteventura, ilhas Canárias
muitos judeus, mas também com outros con- (fotografia do projeto CHRONOS/Univ. da Madeira, 2005).
textos, como foi o caso de António Gonçalves
da Câmara, da Ribeira Brava, que, homiziado, segundo do capitão-donatário do Funchal. Ini-
se refugiou neste arquipélago. Mais tarde, nos ciava-se, assim, uma nova vida para esta família
sécs. xviii e xx, esta proximidade foi aprovei- de origem normanda que, das Canárias, pas-
tada, de novo, como trampolim para a fuga de sou à Madeira e aos Açores, relacionando-se
maçons perseguidos pela Inquisição ou de pri- aí com a principal nobreza da terra, o que lhe
sioneiros de causas políticas, como aconteceu, valeu uma posição destacada na sociedade ma-
em 1919, com um grupo de monárquicos da deirense e micaelense do séc. xvi. Os filhos de
Revolta do Monsanto, presos no Lazareto de Maciot de Bettencourt, Henrique e João, evi-
Gonçalo Aires, que, com ajuda de pescadores, denciaram-se, na época, pelos serviços presta-
da empresa João de Freitas Martins e da Agên- dos à Coroa, tendo recebido, em troca, muitos
cia Blandy, se refugiaram em Tenerife. benefícios. Henrique de Bettencourt preferiu
A corrente migratória das Canárias para a o sossego das terras da Band’Além, na Ribei-
Madeira, resultante do descontentamento ge- ra Brava, onde vivia em riquíssimos aposentos;
rado pelo processo de conquista e ocupação instituiu um morgadio e teve uma ativa inter-
do arquipélago, havia começado já em mea- venção na vida municipal e nas campanhas
dos do séc. xv, sendo arauto Maciot de Bet- africanas. Os seus descendentes destacaram-se
tencourt, que, amargurado com a evolução do na vida local e em diversas campanhas milita-
processo e em litígio com os interesses da bur- res em África, na Índia e no Brasil.
guesia de Sevilha, cedeu, em 1448, o direito Se a primeira vaga migratória traçou o rumo
de senhorio de Lanzarote ao infante D. Hen- e o destino madeirenses, a expedição pacifica-
rique, mediante avultada soma em dinheiro, dora de D. Agustin Herrera, conde de Lanzaro-
fazendas e regalias na Madeira. O sobrinho do te, em 1582, sedimentou e estreitou os contactos
conquistador de Lanzarote preferiu o sosse- entre a Madeira e as Canárias, de forma espe-
go da vila do Funchal ao governo da sua ilha. cial com a ilha de Lanzarote. O próprio conde
Foi o primeiro passo de ramificação atlântica de Lanzarote, na sua curta estadia na Ilha, foi
desta família normanda. Maciott de Betten- um dos arautos deste relacionamento, pois li-
court foi para o desterro acompanhado da sua gou-se aos Acciaioli, importante casa de merca-
filha Maria e dos seus sobrinhos Henrique e dores e terratenentes florentinos, fixada na Ilha
Gaspar; todos conseguiram uma posição de desde 1515. As hostes seguiram-lhe o exemplo,
prestígio e avultadas fazendas, mercê do rela- tendo muitos dos 300 homens do presídio cria-
cionamento matrimonial com as principais fa- do família na Ilha. No período de 1580 a 1600,
mílias da Madeira. Maria de Bettencourt, e.g., os espanhóis surgem em primeiro lugar na imi-
casou-se com Rui Gonçalves da Câmara, filho gração madeirense. O fim da união peninsular e
836 ¬ C anárias

Fig. 5 – Plano de Santa Cruz de Tenerife, Leonardo Turriano, 1582 a 1592 (BGUC, ms. 314).

o descerco, em 1640, trouxeram consigo conse- desde 1497, onde são constantes as referên-
quências funestas para tal relacionamento, com cias a portugueses com lugar de destaque na
os madeirenses residentes em Lanzarote a serem sociedade, sendo sempre referenciados em se-
alvo de represálias, sendo de referir o confisco gundo lugar. O mesmo se poderá dizer sobre a
dos bens do filho varão de Simão Acciaioli, que ilha de La Palma, onde os Portugueses marca-
se casara com a filha do conde de Lanzarote. ram uma presença muito forte, tendo a teste-
Desde muito cedo que está documenta- munhá-lo a existência de alguns registos paro-
da a presença lusíada nas ilhas Canárias, em quiais feitos em português. De acordo com uma
La Palma, Lanzarote, Tenerife e Grã-Canária, relação de 1626, a maioria destes portugueses,
tendo a Madeira como um dos principais eixos não constando da relação as ilhas de Fuerteven-
do movimento. Os Portugueses assumiram um tura, La Gomera e El Hierro, residia na ilha de
lugar de relevo, situando-se entre os principais Tenerife e era maioritariamente da ilha de São
obreiros da valorização económica das ilhas. Miguel, nos Açores. São insistentes as informa-
A tradição bélica e aventureira de alguns madei- ções que testemunham uma incidência distinta
renses levou-os a participar ativamente nas cam- deste grupo de insulares, donde se destaca uma
panhas de conquista de Tenerife, recebendo maior incidência de madeirenses para as ilhas
por isso, como recompensa, inúmeras ofertas de Lanzarote e Grã-Canária.
de terra. Daí resultou a forte presença lusíada São múltiplos os testemunhos que atestam a
nesta ilha, onde, em localidades como Icode e importância da comunidade portuguesa nas di-
Daute, surgem como o grupo maioritário. Aliás, versas ilhas. O próprio Gaspar Frutuoso, que es-
Granadilla foi fundada por Gonzalo Gonzalez creveu em finais do séc. xvi, chama a atenção
Zarco, filho de João Gonçalves Zarco, capitão- para este facto, destacando a importância desta
-donatário do Funchal. comunidade em Icod de Los Vinos em Tenerife,
A prova mais evidente da importância da co- bem como em Garafia, Santa Cruz, Tazacorte,
munidade lusíada na ilha está documentada nos San Andrés e Los Sauces, na ilha de La Palma.
Acuerdos del Cabildo de Tenerife, existentes Esta ilha foi uma das que receberam maior
C anárias ¬ 837

número de judeus fugidos às perseguições da


Inquisição portuguesa. Este aspeto particular
da presença da comunidade judaica portuguesa
em todas as ilhas das Canárias é, aliás, um dos
aspetos mais salientados pela Inquisição das Ca-
nárias, que destaca a importância desta comu-
nidade. A Madeira funcionou, assim, como um
trampolim para a fuga dos judeus portugueses
que chegaram às vizinhas Canárias, bem como a
outros espaços no Atlântico, como o Brasil.
As mudanças operadas na conjuntura políti-
ca a partir dos acontecimentos de 1640 condi-
cionaram a presença do madeirense, que, até
então, usufruía de um estatuto preferencial na
sociedade e economia lanzarotenhas, e.g., fazen-
do-o desaparecer paulatinamente do seu palco
de ação. Não sabemos se isto tem algum signifi-
cado, mas o certo é que, depois disso, os poucos
madeirenses rastreáveis na documentação pro-
curam ignorar ou apagar a sua origem, surgin-
do apenas como vizinhos, sem outra referência.
A situação coincide com o fim das trocas comer-
ciais incidindo sobre os cereais das Canárias,
pois, a partir de 1641, deixaram de aparecer no
Funchal, tendo sido substituídos pelos açoria-
Fig. 6 – Planta da ilha de La Palma, Próspero Casola, 1636
nos ou pelos provenientes dos novos mercados, (New York Public Library/MMCanárias).
como a Berbéria e a América do Norte. Não é
evidente se esta ausência do cereal das Canárias
terá sido resultado da crise da cultura cerealífe- A Madeira desfrutava de condições de pros-
ra canária ou fruto da ambiência de mútua re- peridade com uma situação preferencial de ex-
presália peninsular. portação do seu vinho para o mercado colonial
Os conflitos entre Portugal e Espanha prolon- britânico, e os madeirenses já não viam as Caná-
garam-se por algum tempo, mas com a assinatu- rias como terra de promissão, pois que as portas
ra das pazes, em Madrid, em 1668, estava aber- do mercado do outro lado do Atlântico estavam
ta a via para o restabelecimento dos contactos abertas, sem necessidade de recurso às ilhas das
inter-arquipélagos. Entretanto, Portugal havia Canárias. Mesmo assim, o movimento foi reto-
já firmado alguns compromissos com alguns mado nos dois sentidos. Assim, pode-se assina-
aliados, nomeadamente com a Inglaterra, em lar, para o séc. xviii, os casos de Manuel Alva-
1661, que estabeleciam uma forma diferente de rez Pereira, importante mercador de Lanzarote,
controlo e domínio do espaço atlântico, conso- empenhado na troca de cereais por barrilha,
lidando, assim, a hegemonia crescente dos In- assim como de Alvarez Rixo, entre 1812 e 1814.
gleses. A partir do momento em que se abrem A presença e influência portuguesa nas Ca-
os portos dos arquipélagos a uma troca mútua nárias registou-se a vários níveis da sociedade
isenta de entraves e embargos, estão criadas as e economia deste arquipélago. O movimento
condições para a mobilidade de gentes e pro- permanente de gentes portuguesas trouxe as-
dutos entre os arquipélagos. A História docu- sociado formas de falar, usos e costumes, mas
menta esta continuidade, mas não mais com a também técnicas e produtos de que as mes-
mesma pujança de momentos anteriores. mas acabaram por ser as promotoras, porque
838 ¬ C anárias

surgem também na qualidade de agricultores e Canárias na projeção da cultura às colónias cas-


operários especializados dedicados às diversas telhanas do novo mundo.
tarefas de transformação dos produtos. É evi- As Canárias são apontadas como uma das áreas
dente a associação dos madeirenses à divulga- concorrentes da Madeira, sendo o facto mais
ção das culturas do pastel, da vinha e da ca- significativo o de terem sido os próprios madei-
na-de-açúcar. O leque de atividades em que os renses a promovê-la, estando a afirmação inega-
Portugueses se empenharam é variado, indo velmente ligada à sua presença. Os incentivos à
desde o comércio às atividades produtivas liga- produção de canaviais nas ilhas de Grã-Canária
das ao sector agrícola e aos diversos ofícios. e de Tenerife permitiram que muitos madeiren-
A cana-de-açúcar, pelo alto valor económico ses abandonassem a Madeira e nelas se fixassem.
no mercado europeu-mediterrânico, foi um dos Foi no momento de crise do açúcar na Madeira
primeiros e principais produtos que a Europa que mais se notou aí a presença de madeirenses,
legou e definiu para as novas áreas de ocupa- o que prova a emigração orientada dos técnicos
ção no Atlântico. O percurso iniciou-se na Ma- ligados à cultura. As socas de cana chegaram às
deira, alargando-se depois às restantes ilhas e ao ilhas de Grã-Canária, Tenerife, La Palma e La
continente americano. Na primeira experiência Gomera, não alcançando as ilhas de Lanzarote,
além-Europa, a cana sacarina evidenciou possi- Fuerteventura e El Hierro, devido à sua esterili-
bilidades de desenvolvimento fora do habitat me- dade e, fundamentalmente, à falta de água.
diterrânico. Tal evidência catalisou os interesses Em Tenerife, a presença, nos livros de ofertas
do capital nacional e estrangei­ro, que apostou de terras, de um grupo significativo de portu-
no crescimento da cultura e do comércio. Em gueses, certamente maioritariamente da Ilha,
1483, quando o Gov. D. Pedro de Vera quis tor- tem a ver com esta situação. A crise da produção
nar produtiva a terra conquistada nas Canárias, madeirense das primeiras décadas do séc. xvi
a Madeira disponibilizou as socas de cana para refletiu-se no sistema de propriedade, tendo
que aí surgissem os canaviais e o primeiro enge- permitido um reforço dos grandes fazendeiros
nho, em 1484. Todavia, o mais significativo foi a em detrimento dos demais que abandonam as
forte presença portuguesa no processo de con- terras, certamente rumo às Canárias.
quista e adequação do novo espaço das Canárias O incremento da cultura dos canaviais em
à economia de mercado. Os portugueses, em solo madeirense obrigou a avanços tecnológicos
especial os madeirenses, surgem com frequên- significativos que, a partir das décadas finais do
cia nas ilhas, ligando-se ao processo de arrotea- séc. xv, só poderiam ser concretizados median-
mento das terras, como colonos que recebem te a disponibilidade de mais terras por proprie-
ofertas de terras na condição de trabalhadores tário de engenho, o que não seria possível na
especializados à soldada, ou de operários espe- Madeira, onde não havia mais terras para distri-
cializados que constroem os engenhos e os co- buir. Assim, abria-se uma nova possibilidade nas
locam em movimento. Alguns são trabalhado- Canárias, de tal modo que aqueles que monta-
res sazonais que procuram estas ilhas em épocas vam um engenho tinham direito a um núme-
de maior atividade agrícola. Em 1624, Miguel ro determinado de fanegadas de terra e a água,
Rodrigues, do Estreito da Calheta, faleceu num precisamente para rentabilizar o novo projeto
naufrágio quando regressava duma dessas via- tecnológico de fabrico de açúcar, que teve aqui
gens a Lanzarote. a plena concretização.
No caso de La Palma, refere-se um Leonel Ro- Uma análise sumária da carga fiscal que one-
drigues, mestre de engenho que ganhou o es- rava os agricultores madeirenses nos primeiros
tatuto em 12 anos de trabalho na Madeira. Na anos da ocupação evidencia o seu peso exces-
lista dos madeirenses referenciados no tribunal sivo sobre produtos agrícolas, como sucedeu
da Inquisição de Las Palmas, temos outros re- com o açúcar; os direitos senhoriais oneravam o
lacionados com o cultivo e safra açucareira. É açúcar em cerca de 25 %, sendo que nas Caná-
de referir, também, idêntico papel para as ilhas rias não ultrapassavam, no início, os 5,5 %. Na
C anárias ¬ 839

Grã-Canária, os impostos resumiam-se a 2,5 % britânico, por força dos tratados luso-britânicos,
do diezmo, mais 3 % ad valorem na alfândega, dando azo às situações que se seguem. Já no séc.
que foi subindo até se situar em 6 % em 1528. xv o vinho das Canárias concorria de forma di-
Nas ilhas de La Palma e Tenerife, manteve-se reta com o da Madeira no mercado britânico,
o regime de isenção fiscal aduaneira até 1522. a atestar pelas referências de Shakespeare, en-
Esta constatação do peso dos encargos sobre a quanto o vinho dos Açores só começou a con-
mesma cultura e o mesmo produto no arqui- correr a partir do séc. xvii. A grande luta foi
pélago vizinho deverá ter influenciado o forte sempre entre o malvasia da Madeira e os caldos
surto da emigração madeirense rumo ao novo de Tenerife. Da disputa pelo mercado europeu
espaço, onde os encargos fiscais eram menores passou-se ao colonial.
e maiores as possibilidades de lucro da explora- O séc. xvii foi o momento de viragem do mer-
ção, contribuindo para uma forte presença ma- cado atlântico do vinho, conseguindo a Madei-
deirense nestas ilhas, ligada à atividade agrícola. ra a preferência do mercado norte-americano
A desigual situação dos encargos fiscais e, sub- e suas colónias nas Antilhas. O vinho da Ma-
sequentemente, dos lucros da exploração agrí- deira estava na moda. Os viticultores e comer-
cola refletiu-se, de igual modo, na evolução do ciantes de Tenerife, para poderem sobreviver,
sistema de exploração económico da cultura, tiveram de se sujeitar ao fabrico de um vinho
colocando a Madeira numa posição desigual semelhante ao Madeira, ou à baldeação com o
face à concorrência de mercado. Começou de Tenerife, para, depois, o venderem com o ró-
aqui o processo de concorrência económica tulo de Madeira. O séc. xviii foi, pois, a época
entre os dois arquipélagos, que irá marcar, de de afirmação do falso e verdadeiro Madeira.
forma clara, a sua vivência a partir de meados Em princípios do séc. xvi, fala-se da malvasia
do séc. xix. Não há dados documentais que das Canárias no mercado londrino, numa po-
corroborem a ida de cepas madeirenses para as sição concorrencial com a da Madeira, mas só
Canárias, mas é muito natural que assim tenha a partir de meados da centúria o vinho adqui-
acontecido. Os testemunhos da linguística e et- riu dimensão de relevo nas exportações. Sabe-se
nografia atestam diversas similitudes em algu- ainda que, até à déc. de 30, Tenerife necessitou
mas designações e técnicas, que deverão estar de importar vinho, definindo-se medidas limita-
ligadas a esta influência de colonos madeiren- tivas da sua importação desde meados da centú-
ses. Atente-se que, em finais do séc. xviii, foi ria. Deste modo, as Canárias, a exemplo da Ma-
relevante o aporte madeirense ao processo de deira, repartem o vinho entre a velha Europa e
vinificação em Tenerife. Francisco Chacon, côn- os novos espaços de ocupação do outro lado do
sul no Funchal, remeteu, a 20 de outubro de Atlântico, como Puerto Rico, República Domi-
1786, um relatório discriminado sobre o pro- nicana e Cuba.
cesso de vinificação do vinho da Madeira. Com A partir de meados do séc. xvii, as Canárias
data provável de 1784, há outro documento, competem diretamente com a Madeira no do-
referido por Guimerá Ravina e encontrado no mínio do mercado do vinho britânico. A união
Archivo Brier Ponte Ximénez, que descreve, de peninsular não terá sido favorável ao vinho ma-
igual modo, o processo de vinificação madei- deirense, uma vez que abriu as portas do mer-
rense, mas que não está assinado. Ambos os do- cado colonial ao vinho das Canárias. A conjun-
cumentos revelam o interesse no arquipélago tura económica que se anunciou em 1640 abriu
vizinho em adequar os processos de vinificação, novas perspetivas para o malvasia da Madei-
de forma a poder concorrer em pé de igualdade ra, com o retorno da posição de privilégio no
nos mesmos mercados que o Madeira. mundo português e britânico. O seu competi-
O aspeto mais evidente que une os dois ar- dor direto era apenas o vinho dos Açores, pro-
quipélagos em torno da cultura prende-se com duzido nas ilhas da Graciosa e do Pico.
a disputa do mercado e a posição preferencial Os pactos de amizade entre as coroas de Por-
que a Madeira assumiu no mercado colonial tugal e Inglaterra sedimentaram as relações
840 ¬ C anárias

comerciais, favorecendo a oferta dos vinhos definida pelas assimetrias propiciadas pela oro-
madeirense e açoriano nas colónias britâni- grafia e o clima, mas também da proximidade
cas da América Central e do Norte, como de- e assiduidade dos contactos. O intercâmbio de
terminavam as leis da navegação, aprovadas pessoas, produtos e técnicas dominou o siste-
em 1641 por Carlos II. A situação de privilé- ma de contactos entre os arquipélagos. As re-
gio concedida ao vinho dos arquipélagos por- lações comerciais aliaram-se à presença de ma-
tugueses repercutiu-se negativamente na eco- deirenses, ao serviço do infante D. Henrique,
nomia das Canárias, tendo sido um travão ao na disputa pela posse do arquipélago e à atra-
desenvolvimento da economia vitivinícola a ção que as ilhas de Lanzarote e Tenerife exer-
partir de finais do séc. xvii. O casamento de ceram sobre os madeirenses. O Funchal foi,
Carlos II de Inglaterra com D. Catarina de Bra- por muito tempo, um porto de apoio aos con-
gança foi o prelúdio da conjuntura favorável tactos entre as Canárias e o velho continente.
aos vinhos Madeira, sendo referido por Viera Se é certo que a maioria dos contactos com os
y Clavijo como um “golpe tan feliz para la isla arquipélagos advém da posição privilegiada da
de la Madera como infausto para las Canárias Madeira, entre as Canárias e a Europa, não é
[golpe tão feliz para a ilha da Madeira como menos certo que o trato comercial resulta das
infausto para as Canárias]” (LORENZO-CÁCE- necessidades e solicitações internas, que impe-
RES, 1941, 19). A guerra de Cromwell contra lem para uma aproximação. E também da ne-
Espanha levou ao encerramento do mercado cessidade de recurso a uma nova fonte de pro-
londrino ao vinho das Canárias, no período de vimento de cereais, face à recusa dos açorianos
1655 a 1660, e ao estabelecimento de medidas a esse fornecimento, a que podemos associar
preferenciais para o das ilhas portuguesas. ainda as solicitações da comunidade portugue-
Com o fim da guerra de fronteiras entre Por- sa residente nas Canárias, de que fazia parte
tugal e Espanha e a assinatura das pazes em um grupo numeroso de madeirenses, que an-
Madrid, a 5 de janeiro de 1668, ratificadas a 13 siavam por estabelecer contactos com os locais
de fevereiro em Lisboa, restabeleceram-se os de origem.
contactos entre os dois arquipélagos. O refor- O trigo foi, sem dúvida, o principal móbil do
ço das relações é testemunhado pela presença comércio canário-madeirense. Os cereais sur-
de Bento de Figueiredo no Funchal como côn- gem como os principais ativadores e suportes
sul castelhano. Não acabaram aqui as dificulda- do sistema de trocas entre a Madeira e as Caná-
des, pois apenas com as pazes de Ultrecht, em rias. De acordo com Giulio Landi, “a ilha pro-
1713, se abriram novas perspetivas de negócio, duziria em maior quantidade se semeasse. Mas a
numa altura em que os vinhos madeirenses e ambição das riquezas faz com que os habitantes,
açorianos haviam conquistado uma posição só- descuidando-se de semear trigo, se dediquem
lida no mercado colonial e britânico. A ques- apenas ao fabrico do açúcar, pois deste tiram
tão persistiu no decurso do séc. xviii e, goradas maiores proveitos, o que explica não se colher
as iniciativas diplomáticas, houve que esperar na ilha trigo para mais de seis meses. Por isso
até 1778, quando se anunciou uma nova era há uma carestia de trigo pois em grande abun-
para o vinho da Madeira, com o livre comércio dância é importado das ilhas vizinhas” (VIEIRA,
para as Índias e a abertura do mercado norte- 1987, 104). A Madeira surge, desde finais do séc.
-americano, em consequência da independên- xv, como uma área carente de cereal, necessi-
cia proclamada em 1776. A situação reflete-se, tando de importar mais de metade do que pre-
de forma positiva, nas exportações entre 1790 cisava para o seu consumo. A garantia do abaste-
e 1814. Da parte das Canárias, há que referir a cimento interno de cereais, que havia sido uma
aportação da cochinilha, trazida em 1837 por palavra de ordem no início do povoamento da
Miguel Camacho Almeida. O comércio entre Madeira, não resistiu ao assalto das culturas eu-
as ilhas dos três arquipélagos atlânticos resul- ropeias para exportação que, em pouco tempo,
tou não só da complementaridade económica, invadiram quase todo o território arável.
C anárias ¬ 841

O arquipélago madeirense, composto ape- surge, muitas vezes, aliado a outros produtos
nas por duas ilhas, sendo uma delas de fracos como moeda de troca dos cereais. Assim, em
recursos, tinha necessariamente de assegurar 1521, Juan Pomar, mercador vizinho da Madei-
o abastecimento do exterior, socorrendo-se, ra, enviou a Juan Garcia de Lós, mercador vizi-
para tal, das ilhas vizinhas. Em 1546, dos 12.000 nho da Grã-Canária, algumas pipas de vinho.
moios consumidos, apenas um terço foi produ- E, em 1525, enviou uma pipa e um quarto de
zido localmente, sendo o restante importado vinho e um quarto de vinagre. Entretanto, em
das ilhas próximas ou da Europa. No séc. xvi, 1523, sai do Funchal o navio de Lourenço Mo-
a oferta de cereal das Canárias e dos Açores re- rais com vinte pipas de vinho para o mesmo
presentou cerca de metade das entradas. Para destino; e, finalmente, em 1563, o mercador
o caso açoriano, ele era quase todo provenien- João Nunes envia ao seu cunhado, residente
te de São Miguel e do Faial, enquanto nas Ca- nas Canárias, três pipas de vinho para que este
nárias provinha maioritariamente das ilhas de lhe envie trigo. Este comércio entre a Madeira
Lanzarote, Fuerteventura e Tenerife. A rota de e as Canárias remonta a meados do séc. xv, al-
abastecimento de cereais‚ definida em princí- tura a partir da qual a Madeira passou a receber
pios do séc. xvi, manteve-se com toda a pujan- escravos canários, carne, queijo e sebo, trato
ça até meados do século seguinte. As primeiras que não era do agrado do infante D. Fernando,
referências ao envio de trigo das Canárias para senhorio da Ilha, uma vez que recusou a solici-
a Madeira surgem em 1504, para o trigo remeti- tação dos seus naturais para isenção da dízima
do de La Palma, e em 1506, para o de Tenerife. dos produtos que daí vinham, dizendo a pro-
O comércio do cereal a partir das Canárias pósito “que tam bäo trauto e das minhas ylhas
firmou-se através da regularidade dos contac- dos Açores e tam bõo retorno averem e milhor
tos com a Madeira, sendo apenas prejudicado que de canaria se em elle quiserem emtrar”
pelos embargos temporários, enquanto o dos (VIEIRA, 1987,144), não obstante os vizinhos
Açores foi imposto pela Coroa, uma vez que do Funchal insistirem em manter os seus con-
a burguesia e a aristocracia açorianas, nomea- tactos com as Canárias. Em 1477, Nuno Caya-
damente de São Miguel, não se mostravam do, mercador madeirense, há mais de quinze
interessadas em manter esta via. O cabildo da anos ocupado nesse comércio, recebeu um sal-
Catedral de Grã-Canária queixava-se de não re- vo-conduto dos Reis Católicos para comerciar
ceber a sua parte dos dízimos, que era escoada nessas ilhas. E, em 1513, ao ser apresada na
para a Madeira, tendo ordenado, em 1532, o Grã-Canária uma caravela portuguesa que leva-
seu embargo. va a bordo um malfeitor, o regedor local receou
A rota canária impõe-se pela dominância dos represálias por parte dos madeirenses.
contactos assíduos entre os dois arquipélagos, Um dos mais importantes produtos forne-
não os impedindo as crises de produção, nem cidos pelo mercado madeirense, e que tinha
as limitações impostas pelo cabildo de Tenerife. saída fácil nas Canárias, era o sumagre, que
O cereal era o principal produto e a justifica- terá contribuído para o desenvolvimento da
ção para a permanência deste elo de ligação, indústria de curtumes na Grã-Canária. A uma
traçado em princípios do séc. xv pela comuni- primeira remessa‚ solicitada em 1569, seguiu-
dade normanda daí oriunda. -se, a partir de 1570, a intervenção da classe
A permanência desta rota implicou o alarga- mercantil neste trato. Por exemplo, em 1571,
mento das trocas comerciais entre os arquipé- Anton Solis e Juan de Cabrejas, mercadores
lagos, uma vez que ao comércio do cereal se vizinhos da Grã-Canária, criaram uma compa-
associaram outros produtos, como contraparti- nhia para comerciar o sumagre da Madeira.
da favorável às trocas. A oferta madeirense alar- E, ainda nesta década, surgiram outras compa-
gou-se à fruta verde, às liaças de vime, ao su- nhias com a mesma finalidade, o que atesta a
magre e aos panos de estopa, burel ou liteiro. importância deste produto no comércio com
Nestas relações com as ilhas Canárias, o vinho a Grã-Canária. A documentação continua a ser
842 ¬ C anárias

incompleta no testemunho deste relaciona- que a conjuntura político-institucional foi des-


mento comercial. Mesmo assim, para o perío- favorável aos relacionamentos entre os arqui-
do da primeira metade do séc. xvii, existem pélagos enquanto o conflito durou, rompen-
referências à saída de embarcações do Funchal do os contactos entre estas ilhas vizinhas, por
com destino a Lanzarote, transportando vinho, força das mútuas vindictas. Todavia, quando
sumagre, mel, tecidos, nozes, açúcar, conservas foram serenados os ânimos e levantados paula-
e marmelada. tinamente os embargos, o movimento de bar-
As Canárias ofereciam à Madeira os produ- cos, pessoas e mercadorias foi retomado, em-
tos alimentares de que esta carecia e, em troca, bora nunca mais com o anterior fôlego.
recebiam, para além do vinho e sumagre, uma A Madeira havia, entretanto, assumido um
série de artefactos de produção local ou de im- papel distinto na economia atlântica, que lhe
portação. A Madeira tinha neste arquipélago propiciava o acesso a outros mercados pro-
vizinho não só o seu celeiro, mas também o dutores de cereais, que complementavam o
seu açougue, fornecedor de gado e seus deriva- açoriano no seu abastecimento. As condições
dos, como a carne, o sebo e o queijo. Em 1527, favoráveis para o comércio com as colónias
Joana Falcão declarava, em vereação, que o seu norte-americanas propiciaram um novo mer-
marido, Joam Novo, que detinha o exclusivo cado de acesso aos cereais em troca do vinho.
da venda de carne no açougue municipal, es- Isto não significou o corte de relações comer-
tava ausente nas ilhas Canárias, onde fora bus- ciais com as Canárias, nem que a Madeira ti-
car carnes, como era hábito. Esse gado e essa vesse dispensado, de forma definitiva, o cereal
carne eram habitualmente adquiridos nas ilhas deste arquipélago, pois, à medida que as rela-
de Fuerteventura e Lanzarote. ções diplomáticas entre as duas coroas penin-
O arquipélago canário afirmou-se, desde sulares se iam normalizando, os contactos co-
princípios do século xvi, como um novo celei- merciais eram restabelecidos.
ro do Atlântico, fornecendo o excedente ne- Os escravos foram mais um produto no sis-
cessário ao abastecimento do litoral africano, tema de trocas entre a Madeira e o vizinho ar-
da costa peninsular e da ilha da Madeira. Do quipélago das Canárias, com especial relevo
trigo saído no século xvi da ilha de Tenerife, para a ilha de Lanzarote. No período de 1619
cerca de 53 % destinou-se a Portugal e à Ma- a 1643, os documentos testemunham a troca
deira, e o restante ao mercado insular canário de escravos por cereal. Tal recurso à merca-
e castelhano. O mercado peninsular totalizou doria humana nas transações com Lanzarote
69 % desse cereal, ficando apenas a parte so- resulta não só da sua disponibilidade no mer-
brante para as ilhas. O cereal exportado para cado madeirense e da sua falta na sociedade
o litoral peninsular orientava-se no sentido das lanzarotenha, mas, e acima de tudo, também
principais praças comerciais: Lisboa, Sevilha e da necessidade de assegurar uma contraparti-
Cádis. No caso de Castela, são as cidades gadi- da vantajosa à rota do comércio de cereal com
tanas as principais consumidoras do cereal ca- a ilha da Madeira. No período de 1619 a 1643,
nário destinado a Espanha. Quanto ao comér- foram remetidos 44 escravos do Funchal para
cio da cevada, o maior número de moios foi as Canárias, sendo a quase totalidade destina-
canalizado para Portugal, nomeadamente para da a Lanzarote, pois apenas um foi vendido a
o porto de Lisboa, sendo de salientar um único um vizinho da Grã-Canária. Os escravos eram
embarque de 66,5 moios de cevada para o ar- maioritariamente (73 %) de origem africana.
quipélago açoriano em 1511. Para o período de 1695 a 1714, a informa-
O ano de 1640 é apontado como o fim do ção consignada nas cartas comerciais de Diogo
relacionamento humano e comercial entre os Fernandes Branco reporta o movimento de 11
dois arquipélagos portugueses e as Canárias, barcos oriundos das Canárias contra 12 da Ma-
como consequência ou represália do fim do deira, enquanto no período de 1695 a 1700 as
domínio filipino no império lusíada. É certo cartas de William Bolton dão conta da entrada
C anárias ¬ 843

Fig. 7 – Aborígenes de Gran Canaria, Leonardo Turriano, 1582 a 1592 (BGUC, ms. 314).

de dois navios das Canárias e da saída de oito, manufaturas reexportadas, nomeadamente te-
sendo sete para Las Palmas. cidos provenientes de Londres.
O séc. xviii foi ainda um momento marcado Para o período de 1731 até 1810, são apon-
por contactos assíduos entre os dois arquipé- tadas diversas embarcações das Canárias para
lagos, mantendo-se a função abastecedora do a Madeira, das quais 127 com cereal, destacan-
celeiro das Canárias, a troco, muitas vezes, de do-se uma maior envolvência nas duas décadas

Fig. 8 – Baía da Luz de Las Palmas, Jordão da Luz Perestrello, 1912 (coleção particular, Funchal).
844 ¬ C anárias

finais do séc. xviii. Assinale-se o movimento de já haviam consolidado a sua posição de entre-
mercadorias provenientes das Canárias e Ber- posto do Atlântico para a navegação marítima
béria para este período de 1727 a 1810, em que e para o turismo.
se sublinha, de novo, a presença de cereais. A possibilidade de trazer parte da navegação
Mas o elemento mais importante a destacar é oceânica para a Madeira, como forma de au-
o facto de um grupo significativo de embarca- mentar o movimento do porto comercial, pas-
ções, 28 %, vir a lastro, i.e., sem qualquer movi- sava por medidas que favorecessem esta prefe-
mento de mercadoria associado, o que deverá rência, face às condições então oferecidas por
ser demonstrativo de que as relações comer- outros portos, como os das Canárias. Era ur-
ciais entre os dois arquipélagos deixaram de gente o estabelecimento de condições mais fa-
ser complementares e importantes. A presen- voráveis à entrada e saída no porto do Funchal,
ça do cereal, embora aqui ainda seja significa- através da construção de infraestruturas e da
tivo no movimento entre os dois arquipélagos, criação de medidas fiscais que não fossem pe-
uma vez que representa 27 % das embarcações nalizadoras, nomeadamente quanto à entrada
em movimento, não representa quase nada no e saída do carvão.
conjunto das embarcações que atracaram ao O porto do Funchal perdeu importância
Funchal com cereal, uma vez que fica apenas e movimento comercial. A situação, embora
pelos 2 %. Neste momento, o grande mercado considerada resultado das melhores condições
fornecedor da Ilha é definitivamente a Améri- oferecidas pelos portos das Canárias, não de-
ca do Norte, representando 62 % das embarca- moveu as autoridades portuguesas no sentido
ções entradas com cereais e farinhas, ficando da construção de um novo porto, do estabe-
as ilhas dos Açores com apenas 15 %. A rota lecimento de medidas favoráveis e capazes de
norte-americana do mercado do vinho madei-
rense abriu novas possibilidades de abasteci-
mento de cereais e farinhas e obrigou a altera-
ções nas relações entre as ilhas. Embora no séc.
xviii já se fizesse sentir a concorrência do mer-
cado das Canárias, por força do contrabando
de vinho, um motivo de atrito que se prolonga
pela primeira metade da centúria seguinte, o
principal fator de confronto para os dois arqui-
pélagos será a disputa pelo mercado de nave-
gação e de turismo europeus.
A Madeira é um espaço atlântico que sem-
pre apresentou uma identidade própria, mas
que nunca se livrou da concorrência de ou-
tros espaços vizinhos, como as Canárias. Na
verdade, a sua posição no mar Atlântico con-
duziu a que sempre se estabelecesse uma dis-
puta pela melhor posição no apoio à navega-
ção. Não o entendeu assim a metrópole, e as
políticas fiscais das diversas pautas e de obras
públicas não tiveram em conta esta situação
específica de disputa. Perdeu-se o porto oceâ-
nico, a zona franca, o turismo e a possibili-
dade de futuro. As principais infraestrutu-
ras, que abriram as portas deste progresso, Fig. 9 – Revendedoras, Jordão da Luz Perestrello, Funchal, 1908
tardaram, e, quando chegaram, as Canárias (coleção dos herdeiros de Joan Cunha).
C anárias ¬ 845

atrair a navegação, da criação do porto franco Ltda, entra com parte dos terrenos em Las
e da alteração das taxas alfandegárias sobre o Palmas. Assim se explica a deslocação para as
carvão. Os comerciantes e os políticos madei- Canárias do fotógrafo madeirense Jordão da
renses não conseguiram fazer vingar a política Luz Perestrello, que edita depois vários bilhe-
do porto franco, como forma de recuperação tes-postais, havendo, inclusivamente, imagens
económica do arquipélago. Nas últimas déca- identificadas como sendo das Canárias e que
das do séc. xix, a questão continuava presente mais parecem ser da Madeira, tal como depois
nos debates parlamentares, assim como na rei- de regressado aos estúdios da família no Fun-
vindicação por parte dos madeirenses, tornan- chal também aparecem edições de fotografias
do-se cada vez mais pertinente. dos Perestrellos, como de costumes, que mais
Em 1921, os efeitos nefastos da política tri- parecem daquele arquipélago.
butária niveladora eram evidentes na Madeira. Um dos aspetos mais destacados da presença
O dec. n.º 7822, de 22 de novembro, havia esta- da comunidade portuguesa nas Canárias está
belecido um imposto de comércio sobre a na- na sua capacidade de integração na sociedade
vegação em que se incluía uma taxa de entrada local, sem que se tenham perdido alguns dos
para os turistas, com o imposto especial de 20 valores da sua cultura. Esta situação é relevada
% sobre o valor das passagens e o pagamento por diversos estudiosos e é quase sempre apon-
dos direitos em libras. No entanto, o imposto tada como o fator de sucesso da presença e so-
de farolagem foi suspenso na Madeira, e as leis brevivência portuguesa na história e cultura
de 23 de abril de 1880 e de 21 de maio de 1896 das Canárias. É significativo que esta situação
definiram vantagens especiais para os vapores tivesse conduzido a casos de bilinguismo, pois
que fizessem escala no Funchal. que, em algumas comunidades, as duas línguas
Por fim, a mobilidade de gentes entre os ar- eram faladas e entendidas por ambas as partes,
quipélagos propiciou múltiplas influências no existindo mesmo casos de registos paroquiais
quotidiano que podem ser testemunhadas de escritos em português em algumas paróquias
diversas formas, nomeadamente através da to- de Tenerife, porque, na verdade, muitos dos
ponímia e da linguística. Em quase todas as clérigos eram portugueses. Esta situação do bi-
ilhas, mas de forma especial em La Palma, são linguismo nesta época acontecia também na
evidentes os portuguesismos na nomenclatu- península, com casos paradigmáticos na lite-
ra dos ofícios, utensílios e produtos a que os ratura portuguesa, como Gil Vicente, Camões,
portugueses estiveram ligados: açúcar, vinho, André e Garcia de Resende e João de Barros.
pesca, construção civil e fabrico de calçado. Por outro lado, houve casos de portugueses
Muitas das técnicas e da nomenclatura associa- de sucesso em diversas ilhas, quer na explora-
da a estas atividades estão indissociavelmente ção da terra, quer no comércio. Esta integra-
ligadas aos madeirenses e mostram, na maioria ção da comunidade portuguesa é o prelúdio
dos casos, que são de proveniência portugue- de um diálogo intercultural que tem por palco
sa, quase sempre com passagem pela Madeira. as ilhas e que está para além de todas as adver-
Para a cana-de-açúcar, foram as técnicas de re- sidades e conflitos materializados pelas coroas.
gadio, como também os engenhos de moen-
da, enquanto para a vinha são as latadas de La Bibliog.: manuscrita: BGUC, ms. 314, Leonardo Turriano, Descrittione et
Historia del Regno de l’Isole Canarie giá Dette Fortunate com il Parere delle
Palma, bem como as tipologias dos lagares. Re- Loro Fortificationi, 1592-1594 (edições 1987 e seguintes); impressa: ARMAS,
corde-se a este propósito que a Madeira forne- António Rumeu de, “El conde de Lanzarote, capitán general de la isla de la
Madera (1582-1583)”, Anuario de Estudios Atlanticos, n.º 30, 1984, pp. 404-406;
cia estas ilhas de arcos e madeira para pipas. CABRERA, Manuel Lobo, “Canarias, Madeira y el zumaque”, Islenha, n.º 1,
A situação é ainda patente na participação da jul. dez. 1987, pp. 13-18; Id., “El comércio entre Canárias y Madeira en el siglo
xvi”, in Actas do III Colóquio Internacional de História da Madeira, Funchal,
família Blandy, radicada na Madeira e com in- CEHA, 1993, pp. 623-634; CADENAS, Carlos Teixidor, “Historia de la fotografia
teresses no turismo, que na construção do ini- en Canárias y Madeira”, Gaceta de Canárias, ano iii, n.os 9-10, pp. 128-131;
CASOLA, Próspero, Visita de Las Yslas y Reyno de La Gran Canaria Hecha por
cial Santa Catalina Hotel, em 1888, pela com- Don Iñigo de Brizuela, 1636 (c.), ed. fac-símile de manuscrito da The New York
panhia The Grand Canary Island Company Public Library, Obadiach Rich Collection 94, ed. Juan Tous Meliá, Santa Cruz
846 ¬ C anavial , M aria E ugénia

de Tenerife, Museu Militar de Canarias, 2000; CASTELO-BRANCO, Fernando,


“Pirataria nas águas das Canárias-Madeira nos inícios do século xix”, in VIII
Coloquio de Historia Canario-Americana, vol. ii, Las Palmas, s.n., 1991, pp. 83-95;
CORREIA, Luísa, “Estruturas escavadas na rocha na ilha da Madeira. Algumas
hipóteses de relacionamento com o começo do povoamento”, Islenha, n.º 23,
jul.-dez. 1998, pp. 79-88; DELGADO, Juan Alvarez, “El episodio de Juan Machin
en la Madera”, Das Artes e da História da Madeira, vol. 6, n.º 31, 1961, pp. 41-62;
Id., “Juan Machin, vizcaino del siglo xv, gran figura historica de Madera y
Canarias”, Anuario de Estudios Atlanticos, n.º 7, 1961, pp. 133-213; Fotografia
e Fotógrafos Insulares. Açores, Canárias e Madeira, catálogo de exposição
patente no Museo Canario, out. 1990, Madeira/Açores/Canárias, CEHA/DRAC/
Museo Canario, 1990; HERNANDEZ, Lothar Siemens, e BARRETO, Liliana, “Los
esclavos aborigenes canarios en la isla de la Madera (1455-1505)”, Anuario
de Estudios Atlánticos, n.º 20, 1974, pp. 111-143; Id., “Descubrimiento de una
reserva de cabras canarias prehispanicas”, Aguayro, n.º 87, 1979, pp. 7-9; Id.,
“La expedicion a la Madera del conde de Lanzarote desde la perspectiva de las
fuentes madeirenses”, Anuario de Estudios Atlanticos, n.º 25, 1979, pp. 289-305;
HERNÁNDEZ, Luís Alberto Anaya, e ESPÍNDOLA, Francisco Fajardo, “Una
comunidad judeoconversa de orígen portugués a comienzos del siglo xvi, en la
isla de La Palma”, in Actas do II Colóquio Internacional de História da Madeira,
Funchal, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos
Portugueses, 1990, pp. 685-700; Id., “Relaciones de los archipiélagos de Azores y
Madera según las fuentes inquisitoriales”, in Actas do II Colóquio Internacional
de História da Madeira, Funchal, Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1990, pp. 846-877; LIZARDO, João, e GUERRA,
Luísa, “Estruturas escavadas na rocha na ilha da Madeira”, Islenha, n.º 23, jul.-dez.
1998, pp. 79-88; MELENDEZ, Santiago de Luxan, “Los soldados del presidio
de la Madera que fueron ‘desechados’ a Lanzarote en 1641. Contribución al
estudio de la coyuntura restauracionista portuguesa”, in IV Jornadas de Historia
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Portugueses en Canarias. Discurso Inaugural del Año Académico 1941-42, La
Laguna, Universidad de La Laguna, 1941; RAVINA, Agustin Guimerá, “Las islas
del vino (Madeira, Azores y Canarias)”, in Actas do I Colóquio Internacional de
História da Madeira, Funchal, DRAC, 1989, pp. 900-934; SARMENTO, Alberto
Fig. 1 – Maria Eugénia Canavial, c. 1940
Artur, Fasquias e Ripas da Madeira, Funchal, s.n., 1931; Id., Fasquias da Madeira,
(Escola Maria Eugénia de Canavial).
Funchal, Tip. do Diário de Notícias, 1935; SUAREZ, S. F. Bonnet y, “La expedición
del marqués de Lanzarote a la isla de Madera”, El Museo Canario, n.os 31-32,
jul.-dez. 1949, pp. 59-68; Id., “Familias portugesas de La Laguna”, Revista de
Historia, t. 17, n.os 93-94, 1951, pp. 111-118; Id., “Sobre la expedición del primer Leme Homem de Vasconcelos e D. Maria Amé-
marqués de Lanzarote a la isla de Madera”, Revista de Historia, t. 22, n.os 115-116,
1956, pp. 33-44; VERLINDEN, Charles, “La découverte portugaise des Canaries”, lia da Fonseca da Câmara Leme. Foi batizada,
Revue Belge de Philosophie et Histoire, vol. 36, 1958, pp. 1173-1209; Id., “Le rôle inicialmente, com o nome de Valentina, poste-
des Portugais dans l’economie canarienne au début du xvie siècle”, in Homenaje
a Elias Serra Rafols, vol. 3, La Laguna, s.n., 1970, pp. 411-423; Id., “Henri le riormente alterado para Maria Eugénia. Neta
navigateur songea-t-il a créer un ‘état’ insulaire?”, Revista Portuguesa de História, paterna de Francisco da Câmara Leme de Vas-
vol. xii, 1989, pp. 281-292; VIDAL, José Pérez, “Aportación portuguesa a la
población de Canárias”, Anuario de Estudios Atlánticos, n.º 14, 1968, pp. 41-106; concelos e de D. Carolina Augusta da Câmara
VIEIRA, Alberto, O Comércio Inter-Insular nos Séculos XV e XVI. Madeira, Açores Leme e materna do pianista Ricardo da Fonse-
e Canárias (Alguns Elementos para o Seu Estudo), Funchal, CEHA, 1987.
ca e de Ludovina Tavares da Fonseca.
† Alberto Vieira Maria Eugénia Canavial fundou a instituição
benemérita de Assistência a Crianças Fracas e
Pobres, devendo-se à sua iniciativa a fundação
Canavial, Maria Eugénia do Lactário, em 1908, do qual foi presidente, e
um pavilhão-jardim Sol, localizado inicialmen-
Maria Eugénia da Câmara Leme Homem de te na R. das Mercês, obra que visava combater
Vasconcelos, também conhecida por Maria Eu- a mendicidade e apoiar as crianças desfavore-
génia Canavial, devido ao título nobiliárquico cidas e carenciadas e que, em 1930, foi deslo-
atribuído à sua família pelo Rei D. Luís I de cado para a R. da Mouraria. Deixou a sua obra
Portugal, foi uma dama da sociedade madei- caritativa nas mãos das Irmãs da Apresentação
rense reconhecida pelos seus atos de carida- de Maria, congregação internacional que diri-
de. Nasceu na cidade do Funchal, na fregue- gia o Colégio da Apresentação de Maria, fun-
sia de São Pedro, a 17 de setembro de 1863, dado em 1926, na R. das Mercês, n.º 25, depois
filha dos condes de Canavial, João da Câmara Externato da Apresentação de Maria.
C anavial , visconde e conde do ¬ 847

Pertenceu à Congregação das Filhas de na freguesia de São Pedro. Foi sepultada no


Maria Imaculada, grupo instituído no Hospí- cemitério de Nossa Senhora das Angústias, em
cio D. Maria Amélia. Maria Eugénia Canavial São Martinho. A notícia da sua morte causou
foi presidente das Zeladoras do Apostolado da grande comoção e consternação na sociedade
Oração do Centro Paroquial de S. Pedro, fun- funchalense, pois Maria Eugénia Canavial era,
dadora e presidente da Assembleia Geral da segundo o jornalista João Luso, a “figura da
Associação Católica da Obra Internacional de mais peregrina e elevada projeção na primei-
Proteção às Raparigas na Madeira, instituição ra sociedade do Funchal […] a extinta, cujo
de solidariedade de dimensão internacional, e nome prestigiosíssimo ressoa, com o maior res-
presidente do Secretariado Feminino da Ado- peito e simpatia, entre a população desta cida-
ração do Coração de Jesus. Foi igualmente im- de, que não ignorava os invulgares e prestimo-
pulsionadora da Associação das Três Rosas do sos merecimentos de tão nobre Senhora […]
Escolhido e sócia da Associação das Damas de a sua alma generosíssima se expandia em mil
Caridade. Destaca-se a sua cooperação na Ação cuidados e carinhos, vencendo dificuldades e
Católica Portuguesa, tendo integrado a Liga suportando sacrifícios, que nunca lhe enfra-
das Senhoras da Ação Católica. queceram a sua firmeza de ânimo, no exercí-
Maria Eugénia Canavial foi agraciada com a cio magnânimo da caridade, a que se dedicou
comenda do Grande Oficialato da Ordem de durante toda a sua vida […] com o seu amoro-
Benemerência, por sugestão de Francisco Gen- so e boníssimo coração, a dar auxílio, a aconse-
til, após uma viagem deste à Madeira e uma lhar, a animar, a confortar” (LUSO, Eco do Fun-
visita ao Lactário, em setembro de 1937, tal chal, 25 jan. 1945, 1).
como, em dezembro de 1924, tinha sido agra- Maria Eugénia Canavial foi descrita pela im-
ciada com o oficialato da Ordem de Cristo e, prensa periódica da sua época como sendo
em igual mês de 1973, a título póstumo e pela uma distinta senhora benfeitora, profunda-
obra desenvolvida, com o grau de comendado- mente católica, cujos sentimentos de caridade,
ra da Ordem do Infante D. Henrique. piedade e cristandade sempre beneficiaram os
Faleceu a 21 de janeiro de 1945, aos 81 anos, mais necessitados nas instituições que geriu e
solteira, no seu solar à R. da Carreira, n.º 193, a que presidiu. Após o seu falecimento, o Lac-
tário recebeu o nome da sua fundadora: Cen-
tro Infantil e Escola do 1.º Ciclo Maria Eugénia
Canavial.
Bibliog.: manuscrita: ABM, 1.ª Repartição de Finanças do Funchal, proc.
12.562, cx. 251, cap. 12, fls. 1-1v. e 3v.-4; Ibid., Conservatória do Registo
Civil do Funchal, Registo de Óbito, liv. 310, fl. 57; Ibid., Registos Paroquiais,
São Pedro, liv. 1368, fls. 22-22v.; impressa: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-
Bibliográfico de Madeirenses. Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do
Funchal, 1983; “D. Maria Eugénia da Câmara Leme Homem de Vasconcelos
(Canavial)”, Diário de Notícias, 22 jan. 1945, p. 1; “Eco lutuoso”, Eco do Funchal,
25 jan. 1945, p. 7; LUSO, João, “D. Maria Eugénia da Câmara Leme Homem
de Vasconcelos (Canavial)”, Eco do Funchal, 25 jan. 1945, p. 1; “Participações”,
Diário de Notícias, 22 jan. 1945, p. 2; “Uma grande senhora. D. Maria Eugénia
da Câmara Leme Homem de Vasconcelos (Canavial)”, O Jornal, 23 jan. 1945,
p. 1; digital: “Entidades nacionais agraciadas com ordens portuguesas”,
Ordens Honoríficas Portuguesas: https://www.ordens.presidencia.pt/?idc=153
(acedido a 1 dez. 2020).

Andreia Carol de Carvalho


Fernanda de Castro

Canavial, visconde e conde do


Fig. 2 – Cruz de grande oficial da Ordem da Benemerência
atribuída, em setembro de 1937, a Maria Eugénia Canavial
Ö Vasconcelos, João da Câmara Leme
(Escola Maria Eugénia de Canavial). Homem de
848 ¬ C ancioneiro G eral

Cancioneiro Geral
Beneficiada por uma conjuntura extremamen-
te favorável, em que as grandes potências eu-
ropeias se deparavam com conflitos internos
e guerras entre as potências do coração do
Velho Continente, com a chegada dos Turcos
otomanos aos limites do Império Bizantino e
o início da decadência dos estados italianos
de Génova e Veneza, a nação portuguesa, com
uma paz firmada desde a ascendência da Di-
nastia de Avis, abraçou o desafio civilizacional
de conduzir o Ocidente à conquista do grande
mar oceano.
Em contacto com os grandes centros comer-
ciais do Norte da Europa (Flandres), os Estados
Italianos e a Corte Pontifícia, e com relações
permanentes com a potência ibérica, Castela,
a influência cultural não tardou a acompanhar
o crescimento económico advindo da Expan-
são pelo Norte de África até à conquista do ca-
minho marítimo para Índia, nos dois reinados
que marcaram o apogeu do Império Português
(D. João II e D. Manuel I), à época o maior do
Ocidente.
Na corte, há muito que se ansiava pela eman- Fig. 1 – Garcia de Resende (1470-1536), poeta e cronista,
cipação cultural portuguesa e pela respetiva Évora (António Paiva, 1974).

afirmação no seio da Europa. Chegam mestres


italianos, castelhanos e flamengos, atraídos pela Jerónimos, perto da praia do Restelo, local de
pujança económica da corte portuguesa e pelo partida das caravelas) que marcam os Desco-
clima de paz e de experimentalismo humanista brimentos portugueses e alia-se, assim, ao facto
que a Expansão ofereceu. Assim, além dos tex- de a nação necessitar de exibir um fundo cul-
tos filosóficos de cariz humanista que surgirão tural que a legitime perante as grandes nações
ao longo do séc. xvi, a corte, no que toca ao europeias.
cultivo das letras, começa a incentivar uma pro- Intelectual português nascido em Évora em
dução própria, que recolhe a essência poética 1470, tendo morrido na mesma cidade em
portuguesa adaptada aos ventos culturais da Eu- 1536, Garcia de Resende foi trovador, tange-
ropa. É neste contexto que surgem Garcia de dor, desenhador e entendido em arquitetu-
Resende e outros poetas palacianos – tendo o ra militar, tendo-se distinguido como poeta,
eborense a predominância inovadora, em Por- cronista, historiógrafo, músico, desenhista e
tugal, de recolher a poesia palaciana que se arquiteto. Em 1490, era moço de câmara de
cultivava na época – e que se adivinha o apa- D. João II (1455-1495) e, em 1491, passou a
recimento de vultos literários que marcaram o moço de escrivaninha (secretário particular).
mundo português, como é exemplo maior Ca- Com D. Manuel I (1469-1521), foi designa-
mões, nas vertentes épica e lírica. do secretário-tesoureiro da embaixada (12
O Cancioneiro de Resende acompanha a fi- de março de 1514) presente ao Papa Leão X
nalização da construção dos principais monu- (1475-1521) e liderada por Tristão da Cunha
mentos (coincidindo com o acabamento dos (1460-1540).
C ancioneiro G eral ¬ 849

Garcia de Resende é considerado por muitos Por se encontrar em contacto com as realida-
o criador do “Ciclo dos Castros”, por ser o autor des galaico-portuguesa e castelhana, o Cancio-
dos mais antigos poemas acerca do episódio da neiro de Resende segue os modelos castelhanos
morte de Inês de Castro, conhecidos como Tro- do Cancionero de Poetas Antiguos Que Fizo é Ordenó
vas à Morte de Inês de Castro. No entanto, obte- é Compuso é Acopiló el Judino Johan Alfon de Baena
ve o seu maior reconhecimento com o Cancio- (1445), composto por Juan Alfonso de Baena
neiro Geral, publicado em 1516, no qual reúne (c. 1375-c. 1434), o mais antigo texto deste esti-
a poesia produzida nas cortes de D. Afonso V lo em castelhano, conhecido como o Cancionei-
(1432-1481), D. João II e D. Manuel I. O pró- ro de Baena, e o Cancionero General de Muchos y Di-
logo é dedicado ao príncipe D. João (futuro versos Autores (1511), de Hernando del Castillo
D. João III) e o livro é finalizado com 48 trovas (n. em Segóvia), e nasce com o propósito de
da autoria do compilador. auxiliar a memória, lembrando as composições
Impresso em 1516 em Lisboa, na oficina de cultivadas nos serões palacianos. Assim, Garcia
Hermão de Campos, o Cancioneiro Geral é uma de Resende reuniu cerca de 1000 poemas (150
volumosa coletânea reunida e organizada por em castelhano e o restante em português) de
Garcia de Resende. Das suas páginas constam 318 autores, abrangendo desde a metade do
composições poéticas de 289 poetas portugue- séc. xv até ao início do séc. xvi. Ao contrário
ses e 29 castelhanos, pelo que é uma obra com do cancioneiro de Hernando del Castillo, os
poemas em português e em castelhano. Tem o poemas do Cancioneiro de Resende não se en-
mérito de ter sido a primeira coletânea de poe- contram organizados por temas.
sia impressa em Portugal e o principal reposi- Os temas de Resende são de natureza pala-
tório de poesia portuguesa da época. ciana, havendo ainda poesia religiosa, amoro-
sa, elegíaca e de temática épica. Entre a época
medieval e a época moderna, há uma continui-
dade com a poesia medieval, através de compo-
sições satíricas e géneros como o pranto ou a
tenção e a poética amorosa, e uma outra linha
que reflete a chegada da cultura clássica e as
influências de Petrarca e de Dante Alighie-
ri. Esta poesia é diferente da medieval, uma
vez que não é escrita para ser cantada e bai-
lada. Além do próprio autor, destacam-se aqui
nomes como os do conde de Vimioso, Sá de
Miranda, Bernardim Ribeiro, Duarte de Brito,
Diogo Brandão e João Roiz de Castel Branco.
No Cancioneiro de Resende, são-nos apresen-
tadas novas formas poéticas, vilancetes, canti-
gas, esparsas, trovas (em redondilha maior ou
menor) e ainda composições de arte maior,
além da poesia satírica e de algumas manifes-
tações elegíacas, encomiásticas, heroicas e reli-
giosas. Na compilação, os registos mais assina-
láveis são os de temática amorosa, através da
expressão casuística amorosa e das suas antino-
mias: morte/vida, cuidar/suspirar, querer/de-
sejar, ver/cegar.
Fig. 2 – Cancioneiro Geral (1516), de Garcia de Resende
Nesta panóplia de insignes vultos da litera-
(BNP, reservados, 111 A.). tura portuguesa, estão presentes alguns poetas
850 ¬ C ancioneiro G eral

madeirenses do séc. xv. Disso nos dá conta da colonização de origem flamenga, durante
Teófilo de Braga (1843-1924), que se refere, a época do açúcar. No que respeita à existên-
no seu estudo “Poetas palacianos” (1871), ao cia de um verdadeiro ciclo na Madeira, dis-
“ciclo poético da ilha da Madeira”, durante o tinto do ramo continental, é algo que não se
reinado de D. Duarte I (1391-1438), no qual in- vislumbra, quer a nível temático, quer a nível
sere os seguintes nomes que constam no Can- estrutural, fazendo estes poetas parte de um
cioneiro de Resende: João Gomes, Tristão Vaz todo nacional. Alfredo António de Castro
Teixeira (conhecido como Tristão das Damas Teles de Meneses de Vasconcelos de Betten-
e filho do 1.º capitão-donatário de Machico), court de Freitas Branco, visconde do Porto
João Gonçalves da Câmara (2.º capitão-donatá- da Cruz (1890-1962), é de opinião contrária à
rio do Funchal), Manuel de Noronha (filho de de Álvaro Rodrigues de Azevedo, afirmando,
João Gonçalves da Câmara), Pêro Correia, ou com Teófilo de Braga, que a Madeira tinha,
Pedro Correia (2.º capitão-donatário do Porto de facto, no tempo de D. Duarte I, uma esco-
Santo), Duarte de Brito (casado com uma neta la poética distinta da continental. Pela análise,
de Zarco), Rui de Sousa (igualmente casado o comentador de Saudades da Terra tem uma
com uma neta de Zarco), Rui Gomes de Grã leitura exata, pois a questão do “ciclo poético
(igualmente casado com uma neta de Zarco) e da ilha da Madeira” parece uma falsa questão,
João de Abreu (casado com uma neta de Tris- uma vez que nos poetas oriundos da Madeira
tão Vaz). O capítulo “El-Rei D. Duarte e o ciclo não se distingue uma temática ou estrutura di-
poético da Madeira” é comentado em Saudades ferentes. Provavelmente, a expressão de Teófi-
da Terra (1873) por Álvaro Rodrigues de Azeve- lo de Braga deveria remeter-nos para a origem
do (1825-1898). e não para a matéria, língua e estilo poéticos,
Segundo os comentários de Rodrigues de apesar de não ser esse o entendimento do inte-
Azevedo em Saudades da Terra, os poetas da Ma- lectual açoriano.
deira são fortemente influenciados pela esco- Álvaro Rodrigues de Azevedo considera
la aragonesa, com alguns motivos da Europa que os principais poetas madeirenses repre-
Central e do Norte, provavelmente advindos sentados no Cancioneiro são Tristão Teixeira,
João Gonçalves da Câmara,
Pedro Correia e Manuel de
Noronha.
De João Gomes, de quem
o Cancioneiro apresenta com-
posições, desconhece-se se a
sua origem é a Madeira ou o
continente português, surgin-
do citado como João Gomes
da Ilha ou João Gomes, o Tro-
vador. Casou no Funchal com
D. Guiomar Ferreira, filha de
Gonçalo Aires Ferreira, com-
panheiro de Zarco. Teve ter-
ras de sesmaria nas margens
da ribeira sua homónima. Foi
pajem do infante D. Henri-
que e faleceu em 1495. Além
das 13 composições presen-
Fig. 3 – Armas do príncipe D. João e folha inicial de “O cuydar e sospirar”
tes na disputa de “O cuydar
do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende (BNP, reservados, 111 A.). e o sospirar”, existem mais
C ancioneiro G eral ¬ 851

20 poemas subordinados ao título “De Joham


Gomez da Ylha”. De todos os poetas do deno-
minado “ciclo poético da Madeira”, o ascen-
dente de Tristão Gomes de Castro, o autor
de Argonáutica de Cavalaria, é, provavelmen-
te, o mais famoso. Como exemplo da lírica
de João Gomes, sob a rubrica “Joam Gomez
da Jlha”, apresenta-se uma estrofe em que o
tema do “cativo”, que será caro à lírica camo-
niana, é uma referência: “Eu vy no tempo pas-
sado/affir­ masse por verdade/catyuidade de
grado/ser jnteyra lyberdade/mas por çerto
meu motiuo/he contra quem se catyua,/ledo
forro sempre vyua/quem se lyura de catyuo”.
(RESENDE, 1910, I, 238).
Quanto a Tristão Vaz Teixeira (conhecido
como Tristão das Damas e filho do 1.º capitão-
-donatário de Machico), surge no Cancioneiro
com a designação “De Tristam teyxeyra capi-
tãao de Machyco”, uma vez que foi o segundo
capitão-donatário deste município. Nasceu no
continente português e morreu, provavelmen-
Fig. 4 – Prólogo do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende
te, em Machico, onde foi sepultado na capela (BNP, reservados, 111 A.).
de S. João, que mandara erigir. Ficou conhe-
cido como Tristão das Damas por ser muito
cortesão e fazer muitas composições para as Loba aberta alaranjada,/quaquy fez hũ bom
damas, além de ser eloquente no falar. De Tris- senhor,/com quyra muy bem betada,/& mays
tão das Damas, registamos os seguintes versos vestida de cor (Ibid., IV, 362). Nasceu por volta
do Cancioneiro, nos quais se nota, claramen- de 1414 e faleceu no Funchal a 25 de março
te, o seu talento com as palavras: “Da pena a de 1501, estando sepultado no Convento de
mays pequena/peroo tarde macordey,/meus S.ta Clara (do qual foi o fundador e doador da
olhos, taparuos ey./Ho menos nam sentirey/o propriedade do Curral das Freiras, como dote
que vista mays mordena.//De v’ ver ou nã v’ das filhas), perto dos degraus do altar-mor da
vendo/nam sey çerto qual quisesse,/por que igreja. Foi responsável pela continuação da co-
tal prazer ouuesse,/que nam viuesse morren- lonização iniciada por Zarco e pelo engrande-
do./Ca me vejo com tal pena,/sem me poder cimento do Funchal no ciclo do açúcar. Par-
rremediar,/que mee forçado tapar/os olhos, ticipou em várias contendas portuguesas em
por nam olhar/q vendo mays mal mordena” Marrocos.
(Ibid., II, 148-149). Sobre Manuel de Noronha, sabe-se que nas-
Outro poeta madeirense foi João Gonçal- ceu no Funchal e que era filho de João Gon-
ves da Câmara, 2.º capitão-donatário do Fun- çalves da Câmara. É mais conhecido pelos seus
chal. Era filho de João Gonçalves Zarco e tem bravos feitos nos empreendimentos militares
três composições poéticas no Cancioneiro, sob no Norte de África. Noronha apresentara-se na
a rubrica “Joam gonçalves capytão da Ilha”, corte castelhana em ceroulas, o que provocou
das quais referimos a seguinte, que visa os in- da parte dos poetas castelhanos e portugueses
sucessos amorosos de D. Francisco de Biveiro: reações distintas. Por um lado, os castelhanos
“Se sse soffrer em verão,/eu v’ tenho enculca- procuraram troçar e ridicularizar os portugue-
da/enuençam,/que vem cosyda, & talhada./ ses, através da indumentária menos própria de
852 ¬ C andomblé e umbanda

Noronha; por outro, os portugueses procura- Correa, que, segundo citação de Aida Fernan-
ram defender o reino, transmitindo a imagem des Dias (DIAS, 2003, VI, 203), parece ser na-
de uma ilha onde imperava o maravilhoso, a in- tural da Ilha, ao ser referido num verso de Gar-
genuidade e a ignorância. Assim, o ato de Ma- cia de Resende como “Fostes cá trazido d’Ilha”.
nuel de Noronha deu origem a vários ataques Dos poetas citados, nota-se uma predomi-
e contra-ataques, sendo que, no fim, o cau- nância do tema do amor, com exceção de Ma-
sador de toda esta polémica remata com um nuel de Noronha, cujas composição assente no
irónico perdão a António de Valhasco, como Cancioneiro e respetiva panóplia de respostas e
resposta a todas as afrontas de que foi alvo por contra-respostas nos dão a jocosidade poética
parte dos poetas castelhanos: “Antes que de e uma questão de defesa nacional, o que torna
chamalote/fyzera desse rryfam/çeroylas paro o “ciclo poético da Madeira” uma continuação
veram.//E mays das copras farey/outra loba das temáticas caras à lírica portuguesa da época.
de que rria,/que seja casy tam frya/coma curta
Bibliog.: ANTUNES, Luísa Marinho, “A burla às ceroulas de chamelote de
de solya,/que v’ eu ja perdoey./E assy escapa- D. Manuel de Noronha ao Cancioneiro Geral de Garcia de Resende”, Islenha,
rey/nas copras, & no rryfam/das calmas deste n.º 24, jan.-jun. 1999, pp. 31-38; BELTRAN, Vicente, “Cancioneiro de Baena”,
in LANCIANI, Giulia, e TAVANI, Giuseppe (orgs. e coords.), Dicionário da
veram” (Ibid., IV, 229).
Literatura Medieval Galega e Portuguesa, 2.ª ed., Lisboa, Caminho, 2000, pp. 126-
Quanto a Pêro Correia, ou Pedro Correia, 128; DIAS, Aida Fernanda (org.), História Crítica da Literatura Portuguesa. Idade
consta que foi o 2.º capitão-donatário do Porto Média, vol. 1, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1998; Id., Cancioneiro Geral de Garcia de
Resende. Dicionário (Comum, Onomástico e Toponímico), vol. 6, Lisboa, INCM,
Santo, cuja donataria comprou por morte do 2003; FERREIRA, Manuel Juvenal Pita, “Tristão das Damas”, Arquivo Histórico da
seu sogro, Bartolomeu Perestrelo, o 1.º capi- Madeira, vol. xi, 1959, pp. 157-171; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra.
História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro
tão-donatário daquela ilha. Quando, no entan- Rodrigues de Azevedo, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2007;
to, o filho de Bartolomeu Perestrelo atingiu a GOES, José Laurindo, “Estabelecimento e evolução do Ateneu Comercial do
Funchal”, Atlântico, n.º 2, 1985, pp. 127-133; GONÇALVES, Ernesto, “João Gomes
maioridade, a compra da donataria foi impug- da Ilha”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. xi, 1959, pp. 9-82; MAGALHÃES,
nada pelo rei. Pedro Correia foi, igualmente, Isabel Allegro de, História e Antologia da Literatura Portuguesa, Século XVI.
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, Lisboa, FCG, 1999; MENDES, Margarida
donatário da ilha Graciosa, antes de se fixar no Vieira, “Cancioneiro Geral”, in LANCIANI, Giulia, e TAVANI, Giuseppe (orgs.
Porto Santo. No Cancioneiro, está presente com e coords.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, 2.ª ed.,
Lisboa, Caminho, 2000, pp. 128-132; PORTO DA CRUZ, Visconde do, Notas
um texto de oito versos, que anotamos: “Soes & Comentários para a História Literária da Madeira, vol. 1, Funchal, Câmara
galante syngular,/& dyno de muyta fama,/ Municipal do Funchal, 1949; RESENDE, Garcia de, Cancioneiro Geral, ed.
preparada por A. J. Gonçalves Guimarães, 5 vols., Coimbra, Imprensa da
poys em tam fermosa dama/v’ soubestes em-
Universidade de Coimbra, 1910-1917; Id., Cancioneiro Geral, texto estabelecido,
preguar./Oxala vos fosse eu,/nam dyguays que pref. e anot. Álvaro Júlio da Costa Pimpão e Aida Fernanda Dias, 2 vols.,
Coimbra, Centro de Estudos Românicos/Instituto de Alta Cultura, 1973-1974;
volo disse,/que tam bem seria seu,/se mo ela
Id., Antologia do Cancioneiro Geral, sel. e introd. Maria Ema Tarracha Ferreira,
consentisse” (Ibid., IV, 81). Lisboa/São Paulo, Verbo, 2009; ROCHA, Andrée Crabbé, Garcia de Resende e
Tanto no Elucidário Madeirense como no texto o Cancioneiro Geral, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1979;
Id., “Garcia de Resende”, in LANCIANI, Giulia, e TAVANI, Giuseppe (orgs. e
de Teófilo de Braga, são apontados outros qua- coords.), Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, 2.ª ed., Lisboa,
tro poetas madeirenses com composições pre- Caminho, 2000, pp. 288-289; SARAIVA, António José, e LOPES, Óscar, História
da Literatura Portuguesa, 9.ª ed., Porto, Porto Editora, 1976; SILVA, Fernando
sentes no Cancioneiro: Duarte de Brito, Rui de Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols.,
Sousa (m. c. 1522), Rui Gomes de Grã (m. c. Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1978.

1515) e João de Abreu (m. c. 1507). Destes poe- Paulo Figueira


tas, anotamos esta composição de Rui Gomes
de Grã: “Cõ gram dor, cõ gram cuidado,/com
muy sobeja tristeza/he força fazer mandado/ Candomblé e umbanda
de vossa grande crueza./A qual sempre mal
obrando/contra nos,/nos manda partir de O candomblé é a religião afro-brasileira dos
vos,/brassamando” (Ibid., IV, 285). No Eluci- escravos africanos levados para o Brasil, que
dário Madeirense, além destes, são ainda referi- aí mantiveram algumas das tradições cultu-
dos como poetas da Madeira o conde de Ten- rais das religiões de várias partes de África,
dilha, que surge referido no Cancioneiro numa nomeadamente o culto dos orixas (termo io-
composição de Francisco da Silveira, e Manuel rubano que significa “ser sobre-humano” ou
C andomblé e umbanda ¬ 853

“Deus”) – manifestações do grande deus Olo- mantendo os mesmos fundamentos: resguar-


rum (criador de tudo) que representam as for- do e respeito. O Ketu tornou-se uma espécie
ças da natureza –, que constitui uma forma de de modelo para o conjunto das religiões dos
xamanismo. Trata-se de uma religião com uma orixás, pelo que as outras nações (assim cha-
base filosófica, mistérios, crenças e rituais es- madas por corresponderem a povos) acaba-
pecíficos: tem uma teologia própria (estudo ram por incorporar algumas das suas práticas
dos orixás, experiência da divindade e conhe- ou rituais. Foram principalmente os candom-
cimento da formação do seu mundo religio- blés baianos das nações Ketu (ioruba) e Ango-
so), uma liturgia (todos os ritos, públicos e se- la (banto) que mais se propagaram no Brasil.
cretos, existentes na religião para os iniciados, A nação banto ou Angola, dos povos do Congo
como cantos e danças) e dogmas que susten- e Angola, tinha como idioma o quimbundo,
tam a doutrina desta tradição religiosa. sendo facilmente reconhecida pela forma di-
A religião dos orixás – entendidos como en- ferente de dançar, cantar e tocar atabaques.
tidades espirituais ancestrais dos reis e das rai- Esta nação incorporou os orixás iorubanos, uti-
nhas que existiram nas terras africanas e foram lizando nomes dos inkices ou divindades ban-
levados como escravos para o Brasil – formou- tas. Existem ainda outras variantes de cultos do
-se na Baía no séc. xix, sendo parte das tra- candomblé no Brasil, mas todas têm o mesmo
dições do povo ioruba (nome do idioma) ou propósito nas suas crenças e liturgia: o equilí-
nagô, também chamado nação Ketu. A maio- brio entre os homens e as divindades como li-
ria das religiões de origem africana que se gação do mundo material com o sagrado. Por
firmaram no Brasil sofreu grande influência isso, praticamente todas as variantes seguem as
deste povo do antigo reino africano, onde mesmas determinações: iniciação, cânticos (na
surgiriam a República Popular do Benim e a linguagem original), toque de atabaques, ofe-
Nigéria. A nação Ketu é considerada a verda- rendas e sacrifícios.
deira raiz africana, enquanto a nação Ango- Tradicionalmente, esta religião afro-brasilei-
la é vista como um braço do Ketu que tornou ra vive do conhecimento dos orixás, que de-
os seus preceitos ou obrigações mais brandos, terminam as características e o destino pessoal

Ritual de prosperidade em honra de Iemanjá conduzido por Pai Nélio d’Oxalá (Tenda Espírita e Mensageiro de Oxalá),
Caniçal, 31 de dezembro de 2016 (fotografia de Funchal Notícias).
854 ¬ C andomblé e umbanda

dos crentes. O santo de proteção ou orixá da um lugar considerado sagrado, onde ocorre
cabeça (ori) é conhecido através do jogo de a gira para cultuar o orixá. O terreiro engloba
búzios feito pela mãe (iaolorixá) ou pelo pai o quarto do orixá, o salão para fazer as festas,
(babalorixá) de santo. Estes comandam as ses- cantar, exaltar e receber o orixá, etc.
sões ritualísticas com a ajuda dos seus filhos de Num terreiro de umbanda, tal como no can-
santo, iniciados ou iaôs, que têm funções espe- domblé, a gira é a entrada no recinto da mãe
cíficas no terreiro, onde se realizam os cultos e ou pai de santo, ou seja, a abertura para rece-
os religiosos recebem ou incorporam os santos ber uma entidade com o propósito de cura e
e/ou orixás que “baixam”. O barracão é a casa orientação espiritual. A umbanda (“arte de
central de um terreiro de candomblé, onde curar”, do quimbundo de Angola) é uma re-
acontecem as festividades, os rituais religiosos ligião formada dentro da cultura religiosa bra-
e as incorporações dos orixás nas pessoas ini- sileira, que sincretiza vários elementos: índios
ciadas, ao som dos tambores. Um iniciado é (indígenas ancestrais ou caboclos), negros
uma pessoa que é escolhida para ser filho ou (ancestrais pretos-velhos de África, da reli-
filha de santo, passando por anos de aprendi- gião afro-brasileira candomblé), brancos (re-
zagem sobre a religião, as músicas, os cânticos, ligião católica) e da doutrina espírita de Kar-
as folhas e ervas utilizadas nos trabalhos espiri- dec. Uma das principais diferenças em relação
tuais ou ebós, maneiras de andar, dançar e estar ao candomblé é que, na umbanda, os orixás
diante de um pai ou mãe de santo, a história não incorporam, devido à sua elevada posição
dos povos africanos e os seus eguns (espíritos), na hierarquia divina. A prática da caridade é
entre outras coisas. a característica principal deste culto, que tem
Enquanto religião, o candomblé foi muito por base o evangelho. Ao longo do tempo, a
perseguido, mas, no Brasil, a Igreja Católica umbanda passou por várias transformações e
acabou por aceitar os pais e as mães de santos criou diversas ramificações. Assim, as entida-
trajados com os seus filhos de santos. Esta re- des ou guias que cultua estão ligados a diferen-
ligião sofreu, assim, transformações ao longo tes linhas espirituais: pretos-velhos (linhagem
dos séculos: por um lado, sincretizou o seu africana), caboclos (sobretudo índios), baia-
conteúdo com a Igreja Católica; por outro, nos (também chamados Zés e marinheiros),
preservou os elementos essenciais da identida- boiadeiros, povo do Oriente, crianças (erés),
de cultural dos negros africanos escravizados exus e pombagiras, entre outros.
no Brasil. Como escravos de senhores católi- Na Madeira, existem pais de santo de um-
cos, os negros foram proibidos de cultuar a sua banda que realizaram a sua “feitura”, o “as-
religião, sendo obrigados a assistir às missas sentamento” ou “fundamento” (cerimónia ou
nos portais das igrejas. Numa tentativa de fazer ritual de iniciação) de preto-velho no Brasil
sobreviver a sua cultura, começaram a estabe- ou em Lisboa, na linhagem africana, sendo
lecer paralelos entre as suas divindades e os médiuns de incorporação que juntam o espi-
santos da Igreja Católica; num gesto de sincre- ritismo e o catolicismo, bem como a sua intui-
tismo religioso. Cada orixá tem as suas carac- ção e visão, na sua atividade. Desde agosto de
terísticas, o seu dia, a sua cor, a sua dança, os 2006, existe o Umbanda Center na Madeira,
seus instrumentos, frutas e comidas favoritas e começando a divulgação da religião e a rea-
saudações. Também há uma correspondência lização de rituais. Este centro ou terreiro de
entre os orixás e os signos do zodíaco. umbanda está ligado a uma casa de santo do
No que diz respeito à presença do candom- Rio de Janeiro e foi fundado com o seu apoio.
blé na Madeira, existem pais e mães de santo Designando-se primeiramente Tenda Espíri-
na Ilha que vieram do Brasil ou que foram ta Sete Luas, o seu nome foi depois alterado
formados no Brasil ou por brasileiros e africa- para TEMO – Umbanda Center, designação
nos no continente português. O barracão de que significa Tenda Espírita Mensageiro de
candomblé ou roça de santo/casa de santo é Oxalá – Centro de Umbanda.
C ane , irm ã s ¬ 855

A aceitação do candomblé e da umbanda Livros como The Flowers and Gardens of Japan
na Madeira revelou-se um processo lento de- (1908), The Flowers and Gardens of Madeira
vido ao preconceito oriundo do desconheci- (1909, reed. 1926) e The Canary Islands (1911)
mento destas religiões, que são conotadas ne- nasceram desta colaboração, exibindo e des-
gativamente como práticas de macumba e de crevendo paisagens, jardins luxuriantes e o
feitiçaria. quotidiano popular não só através das aguare-
las de Ella, mas também pelas minuciosas des-
Bibliog.: DIAS, Rosana de Queiroz, Os Orixás em Nossas Vidas, São Paulo,
Adonis, 2006; LIGIÉRO, Zeca, Iniciação ao Candomblé, 7.ª ed., Rio de Janeiro,
crições de Florence. O sucesso das aguarelas
Nova Era, 2002; PETROVICH, Carlos e MACHADO, Vanda, Ivê Ayó. Mitos de Ella du Cane é patente no patrocínio da
Afro-Brasileiros, Salvador/Bahia, Universidade Federal da Bahia, 2004; PRETTO,
Câmara Municipal do Funchal, que chancela
Nelson de Luca e SERPA, Luiz Felippe Perret (org.), Expressões de Sabedoria:
Educação, Vida e Saberes. Mãe Stella de Oxóssi Juvany Viana, Salvador, ambas as edições, e, nos anos seguintes, na cir-
Universidade Federal da Bahia, 2002; SALES, Nívio Ramos, A Fala dos Orixás:
culação de inúmeros bilhetes-postais dos seus
Búzios, Caídas, Significados, Leituras, Rio de Janeiro, Pallas, 2005; SARACENI,
Rubens, Código de Umbanda, São Paulo, Madras, 2004. trabalhos na ilha da Madeira. A obra de maior
sucesso editorial das irmãs Cane foi The Flowers
Naidea Nunes
and Gardens of Japan, por ser considerada um
diário de viagem ou uma espécie de diário pai-
sagístico que capta o exotismo do Oriente, ali-
Cane, irmãs
mentando o fascínio do Ocidente pelos jardins
Ella Mary du Cane, mais conhecida por Ella e pela paisagem natural japonesa.
du Cane, nasceu a 4 de junho de 1874, em Em 1895, a Rainha Vitória, admirada com
Hobart, na Tasmânia (Austrália). Florence o trabalho de Ella du Cane, adquiriu diver-
Gertrude Louisa du Cane, comummente co- sos quadros da sua autoria. As pinturas de Ella
nhecida por Florence du Cane, nasceu a 21 foram exibidas na New Society of Painters in
de maio de 1869, também na mesma cidade.
Eram dois dos cinco filhos de sir Charles du
Cane e de Georgiana Susan Copley, residen-
tes em Braxted Park, Essex, Inglaterra. Ella e
Florence eram netas de John Singleton Co-
pley, 1.º barão de Lyndhurst, e bisnetas do
pintor John Singleton Copley. Ella e Floren-
ce eram descentes, pela linhagem paterna, de
Jean du Quesne. Ella du Cane foi uma notável
aguarelista, e Florence uma exímia escritora e
designer de jardins.
Após a morte do seu pai, em Essex, Ella e Flo-
rence du Cane viajaram pelo mundo, compon-
do obras de suma importância relativamente à
flora, à fauna e aos povos dos países que visi-
taram. Antes de colaborar proficuamente com
a sua irmã, Ella du Cane ilustrou os livros The
Italian Lakes (1905), da autoria do inglês Ri-
chard Bagot, e Japan (1907), de John Finne-
more, da coleção Peeps at many Lands. Estas
produções, sob a alçada da editora Adam and
Charles Black, constituíram um impulso para
ambas realizarem as suas próprias viagens e pu-
blicarem obras conjuntas: Ella ilustrava e Flo- Fig. 1 – The Flowers and Gardens of Madeira (1909),
rence escrevia. de Florence du Cane e Ella du Cane.
856 ¬ C ane , irm ã s

Fig. 2 – Poinsettia on the Mount Road, manhãs-de-páscoa Fig. 3 – Jackaranda Tree, jacarandá da Trav. das Capuchinhas,
no caminho do Monte, Ella du Cane, 1904 (coleção particular). Ella du Cane, 1904 (coleção particular).

Water Colours, na The Fine Art Society e na Torrinhas, a Qt. da Levada, entre outros locais
Graves Gallery, em Inglaterra. Nestas galerias, de destaque no Funchal. Relembram passa-
expôs as aguarelas sobre a sua viagem com Flo- gens históricas e lendárias, desde a descober-
rence à Madeira, em 1910. ta até à lenda de Machim, e revisitam livros de
Em 1913, Ella ilustra e Florence colabora na outros viajantes, estudiosos e cientistas que vi-
obra de John Aiton Todd, intitulada The Banks sitaram e estudaram a Madeira, como Gaspar
of the Nile. Nos anos 20-30, Ella expõe e publi- Frutuoso, Ellen Taylor, Piazzi Smyth e Edward
ca um conjunto de aguarelas relativas ao Egito, Bowdick. Florence e Ella destacam a exube-
intitulado The Nile Watercolours e Egypt. Segun- rância da paisagem e das plantas que decoram
do a imprensa da época, as aguarelas de Ella as diversas quintas privadas e os jardins públi-
“radiated sunshine and their subtle colouring cos madeirenses: “By April the wistaria takes
stirs the imagination [irradiavam luz solar e a its place, and the road becomes all mauve, as
sua coloração subtil agita a imaginação]” (Bel- nowhere in the whole of Funchal are there so
fast Newsletter, 31 out. 1905, 9). many beautiful wistarias collected together; all
Ella e Florence viajaram e visitaram a Madei- along this road they seem to have been planted
ra, as Canárias, o Egito, a China, o Sri Lanca with a lavish hand [Em abril, a glicínia toma o
e o Japão, registando extensas descrições si- seu lugar e a estrada fica toda malva, em lugar
nestésicas e aguarelas. Durante a sua viagem à algum do Funchal há tantas glicínias bonitas
Madeira, as irmãs Cane visitaram o Palheiro, reunidas; ao longo de toda esta estrada elas pa-
a Camacha, o Monte, a Qt. dos Ilhéus, a Qt. recem ter sido plantadas por uma mão extrava-
Vigia, a Qt. Stanford, Santa Luzia, a Qt. do Til, gante]” (CANE, 1909, 41).
C anoniza ç ã o , processo de ¬ 857

Após as viagens, Ella dedicou-se ao mister da de 26 anos, o Papa João Paulo II proclamou
pintura e Florence ao design de jardins. Segun- cerca de 1340 beatos e 482 santos. Os papas
do a imprensa inglesa, Florence, além de des- que se lhe seguiram, Bento XVI e Francisco,
crever de forma exímia as paisagens e os locais prosseguiram esse caminho.
por onde passava, era considerada uma distinta Os santos e a santidade são identificados num
jardinista, sendo comparada a Gertrude Jekyll, movimento de baixo para cima: o povo cristão,
insigne escritora e designer de jardins britânica. reconhecendo pela intuição da fé a fama de
Ella du Cane faleceu a 25 de novembro de santidade, indica ao seu bispo, titular da pri-
1943, e Florence a 3 de julho de 1955, em Mal- meira fase do processo, e, em seguida, à Con-
don, Essex, Inglaterra. Florence du Cane legou gregação competente da Santa Sé os candida-
toda a herança ao sobrinho, o conhecido en- tos à canonização. Nem a Congregação para
genheiro naval e comandante da Marinha Real as Causas dos Santos nem o papa “inventam”
inglesa, Peter du Cane. ou “fabricam” santos. O objetivo final de uma
causa não são os beatos ou os santos, mas os
Obras de Florence Gertrude Louisa du Cane (com ilustrações de Ella Mary
du Cane): The Flowers and Gardens of Japan (1908); The Flowers and Gardens of
fiéis, que têm necessidade de que a Igreja con-
Madeira (1909); The Canary Islands (1911). tinue a propor novos modelos de santidade.
Bibliog.: BAGOT, Richard, e CANE, Ella du, The Italian Lakes, London, Adam and
Para compreender a Igreja, é necessário co-
Charles Black, 1912; Belfast Newsletter, 31 out. 1905; Bromyard News, 26 mar. nhecer os santos, que são o seu sinal e o seu
1903; CANE, Florence du, e CANE, Ella du, The Flowers and Gardens of Madeira,
fruto mais amadurecido e eloquente. Para con-
London, Adam and Charles Black, 1909; Daily Telegraph & Courier, 23 abr. 1910;
FOSTER, Joseph, The Peerage, Baronetage and Knightage of the British Empire, templar o rosto de Cristo, é preciso olhar para
Westminster, Nichols and Sons, 1881; GRIFFITHS, Mark, The Lotus Quest. In
os santos. A Igreja proclama santos em nome
Search of the Sacred Flower, London, Chatto & Windus, 2009; MACEDO, L. S.
Ascensão de, Da Voz à Pluma. Escritoras e Património Documental de Autoria daquele anúncio da santidade que a enche e
Feminina de Madeira, Açores, Canárias e Cabo Verde. Guia Biobibliográfico, a transforma em instrumento de santidade no
Ribeira Brava, ed. do Autor, 2013; Mid Sussex Times, 22 maio 1900; MILLAR,
Delia, The Victorian Watercolours and Drawings in the Collection of Her Majesty mundo.
the Queen, London, Philip Wilson, 1995; Portsmouth Evening, 25 out. 1955; Ao longo dos séculos, as causas dos santos
REDFOOT, Alison, Victorian Watercolorist Ella Mary du Cane. A Study in
Resistance and Compliance of Gender Stereotypes, the Professional Art World, sofreram uma grande evolução, não só quan-
Orientalism, and the Interpretation of Japanese Gardens for British Society, to ao método e à autoridade competente, mas
Dissertação de Mestrado em História de Arte apresentada à California State
University, Long Beach, texto policopiado, 2011; Sheffield Independent, 7 fev.
também quanto à investigação que precede a
1898; The Times, 8 jul. 1955. canonização. As causas de canonização têm
Fernanda de Castro a sua origem na vida da Igreja dos primeiros
L. S. Ascensão de Macedo tempos, na homenagem espontânea que pres-
tava aos mártires, como fruto do entusiasmo e
da veneração dos fiéis para com aqueles que
consideravam seus modelos. No tempo de paz
Canonização, processo de
iniciado no reinado de Constantino, o culto
A santidade não é um luxo de poucos, um pri- aos mártires atinge o seu esplendor e o dia
vilégio de uns tantos, mas uma meta que Deus do aniversário de martírio é celebrado solene-
propõe ao Homem, feito à sua imagem e se- mente pelos fiéis com peregrinações aos respe-
melhança, uma proposta que se torna man- tivos túmulos. Mais tarde, começa-se a tributar
damento: “Sede santos, porque Eu, o Senhor, culto também aos cristãos que se distinguiam
vosso Deus, sou santo” (Lv 19, 2). De atributo pela sua firmeza em defesa da fé, os chamados
divino, a santidade passa, assim, a ser vocação confessores – conceito posteriormente alarga-
de todo o Homem. O que a Igreja tem feito é do aos fiéis que se distinguiam pelo seu traba-
reconhecer publicamente que alguns fiéis che- lho apostólico, pelos seus escritos ou pelas suas
garam a essa santidade, ou pelo martírio que virtudes.
aceitaram, ou pelas virtudes cristãs que prati- Entre os sécs. vi e x, não se pode ainda falar
caram heroicamente. Na segunda metade do propriamente de investigação ou de proces-
séc. xx, durante o seu prolongado ministério so de canonização, nem se pode dizer que
858 ¬ C anoniza ç ã o , processo de

local, chamado beatificação, e posteriormente


a estender esse mesmo culto a toda a Igreja,
chamando-lhe canonização.
Um importante passo foi dado pela obra
do cardeal Lambertini, posteriormente Papa
Bento XIV, Sobre a Beatificação dos Servos de Deus
e Canonização dos Beatos, cujas normas estiveram
vigentes durante quase dois séculos, passando
depois para o can. 17 do Código de Direito Ca-
nónico. Existiam então os processos de auto-
ridade ordinária. Ao bispo competia a instru-
ção de três processos: 1) recolha dos escritos
do servo de Deus; 2) investigação da fama de
santidade de vida, virtudes e milagres em geral
(super fama santitate vitae, virtutum et miraculo-
rum in genere); 3) investigação da ausência de
culto. A Sagrada Congregação dos Ritos rece-
bia todo este material da diocese e procedia ao
estudo e discussão do processo sobre a fama
de santidade em geral. Existindo fundamento
Fig. 1 – Vera Effigies Fr. Petri da Guarda, gravura de c. 1760 para tal, o santo padre ordenava a publicação
(BNP, cód. 1365388).
do decreto de introdução da causa, com o qual
se procedia ao processo apostólico, que versava
haja um estudo crítico da vida e das virtudes; sobre as virtudes em particular.
há essencialmente uma avaliação da fama de Muitas causas portuguesas foram abando-
santidade e da fama de sinais, graças e mila- nadas ou esquecidas depois de realizados os
gres. A voz do povo e as peregrinações aos processos ordinários, não chegando a ser de-
sepulcros eram suficientes para que o bispo cretada a introdução da causa pelo papa. A le-
do lugar ou um sínodo decretasse o culto ao gislação introduzida no séc. xx permitiu rea-
servo de Deus. vivá-las, na qualidade de causas antigas ou
Nos inícios do séc. xii, surge o costume de históricas. Com efeito, em 1930, Pio XI insti-
convidar o papa para as canonizações locais e tuiu uma secção histórica na Sagrada Congre-
de lhe pedir a autorização para prestar o re- gação dos Ritos e, em 1939, tornou supérfluo o
ferido culto, dando origem, entre os canonis- processo apostólico paras as causas históricas.
tas, ao parecer de que só o papa podia cano- Outro passo importante foi dado pelo Papa
nizar. Em 1234, nas decretais de Gregório IX, Paulo VI com a carta apostólica Sanctitas Cla-
as canonizações são reservadas exclusivamente rior, de 18 de maio de 1969, que estabeleceu
para o pontífice romano, o que não impediu que, para as causas mais recentes, em lugar do
que continuassem a existir canonizações rea- processo ordinário e apostólico, se fizesse um
lizadas por bispos até 1588. Nesse ano, o Papa único processo de investigação ou de recolha
Sisto V cria a Sagrada Congregação dos Ritos, a de provas, instruído pelo bispo, com prévia li-
quem atribui, entre outras, competência para cença da Santa Sé. O mesmo Papa desdobrou
as causas dos santos. Com a legislação de Ur- a Sagrada Congregação dos Ritos em Sagrada
bano VIII, promulgada em 1642, foi definiti- Congregação para o Culto Divino e Sagrada
vamente retirada aos bispos qualquer faculda- Congregação para as Causas dos Santos, que,
de de conceder culto público em honra de um em 1988, com a constituição apostólica Pastor
servo de Deus. Será o próprio papa, em alguns Bonus, de João Paulo II, passa a ser designada
casos, a autorizar primeiro o culto público Congregação para as Causas dos Santos.
C anoniza ç ã o , processo de ¬ 859

O Código de Direito Canónico (CDC) de de 1983; em 36 pontos, estas Normas descre-


1983 estabelece, no seu cân. 1403, § 1, que vem o procedimento que deve ser seguido
as causas de canonização dos servos de Deus na instrução diocesana. Assim, os vários pro-
se regem por lei pontifícia peculiar, e, no § cessos (ordinário e apostólico) da legislação
2, que a estas causas se aplicam os preceitos anterior foram substituídos por uma causa
deste Código, sempre que na mesma lei se que começa com uma investigação diocesa-
remeter para o direito universal ou se tratar na, com o objetivo de recolher provas, que
de normas que, pela natureza das coisas, afe- depois são enviadas para Roma, onde decor-
tem também estas causas. Simultaneamen- re a chamada fase romana; nesta altura, tem
te à promulgação do CDC de 1983, o Santo lugar o juízo, o estudo acerca da validade ju-
Padre João Paulo II promulgou também a rídica e do mérito da causa.
constituição apostólica Divinus Perfectionis A competência para instruir uma causa é do
Magister, que entrou em vigor a 25 de janeiro bispo em cuja diocese o servo de Deus mor-
de 1983. Com o fim de assistir todos aque- reu, enquanto a competência para instruir um
les que são responsáveis pela instrução da processo sobre um possível milagre é do bispo
causa na fase diocesana, o Santo Padre con- da diocese onde ocorreu o dito milagre. Em
fiou à Congregação para as Causas dos San- circunstâncias concretas, a Congregação pode
tos o dever de publicar as normas da instru- dar a prorroga de competência. A 17 de maio
ção diocesana. Foram publicadas, assim, as de 2007, a Congregação para as Causas dos
Normas Que Devem Ser Observadas na Instrução Santos publicou a instrução Sanctorum Mater,
a Realizar pelos Bispos nas Causas dos Santos, com o objetivo de ajudar a aplicar todas as nor-
aprovadas pelo mesmo Papa a 7 de fevereiro mas existentes.

Fig. 2 – Zita e Carlos de Áustria saindo da Sé do Funchal, com o Cón. Homem de Gouveia, 8 de dezembro de 1921
(ABM, Perestrellos Photographos).
860 ¬ C anoniza ç ã o , processo de

Causas instruídas na Diocese do Funchal adoecer com um resfriado e por morrer a 1 de


abril de 1922, aos 34 anos. A 3 de outubro de
Um dos processos instruídos no Funchal foi
2004, foi beatificado pelo Papa João Paulo II.
o que levou à beatificação, a 3 de outubro de
Em 1923, o Presidente da Áustria, Guilher-
2004, do Imperador Carlos de Áustria (1887-
me Miklas, apresentou ao cardeal arcebispo
1922). Um processo histórico, entretanto um
de Viena, D. Frederico Gustavo Piffl, o pedi-
pouco esquecido, é o processo de Fr. Pedro da
do de abertura do processo de canonização
Guarda, falecido na ilha da Madeira em 1505.
do Imperador. Em 1925, tem início o processo
Outros processos de beatificação em curso em
diocesano para reunir provas e depoimentos,
2015 são os da Ir. Mary Jane Wilson, fundadora
entrevistar testemunhas e compilar uma bio-
das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das
grafia definitiva. Em 1994, a positio do servo de
Vitórias (1840-1916); da M.e Virgínia Brites da
Deus Carlos de Áustria é publicada em Roma:
Paixão (1860-1929), abadessa do Mosteiro das
detalha a vida de Carlos, contendo uma com-
Mercês; e da Ir. Maria do Monte Pereira (1897-
pleta e pormenorizada biografia, os seus escri-
1963), religiosa hospitaleira do Sagrado Cora-
tos e os testemunhos de todas as pessoas vivas
ção de Jesus.
que o conheceram; é composto por dois volu-
Beato Carlos de Áustria mes, somando mais de 2650 páginas. A 12 de
O arquiduque Carlos Francisco José nasceu abril de 2003, o Santo Padre João Paulo II pro-
a 17 de agosto de 1887, no castelo de Per- clama as virtudes heroicas do servo de Deus,
senbeug, na Áustria. Em 1911, casou-se com dando ao Imperador Carlos o título de Vene-
a princesa Zita de Bourbon-Parma. Em 1914, rável. No mesmo ano, a 20 de dezembro, um
tornou-se herdeiro do trono, por morte do ar- decreto promulgando um milagre atribuído
quiduque Francisco Ferdinando em Serajevo. ao venerável servo de Deus foi lido diante de
Em 1916, com a morte do Imperador Francis- João Paulo II. O milagre relaciona-se com uma
co José, tornou-se automaticamente impera- religiosa polaca encarregada de um hospital
dor da Áustria e rapidamente afirmou a sua no Brasil, que ficou acamada porque sofria de
vontade de acabar com os horrores da guer- graves problemas nas pernas. Foi operada al-
ra. Com o fim da guerra e o desmembramen- gumas vezes, mas sem qualquer êxito. A reli-
to do império, partiu para o exílio na Suíça e giosa rezou ao Imperador Carlos e no dia se-
depois para a ilha da Madeira, onde foi viver guinte encontrava-se completamente curada.
para uma casa sem condições, acabando por Era o passo necessário para a beatificação. Na
sequência desta cerimónia, a Liga de Oração
do Imperador Carlos continuou a promover a
causa, tendo recebido notícia de muitas graças
e milagres obtidos por intercessão do B.º Car-
los de Áustria.

Frei Pedro da Guarda


Nasceu na Guarda em 1435, sendo filho de
João Luís, tecelão de panos, e de Ângela Gon-
çalves. Com 20 anos feitos, por volta de 1455,
entrou no noviciado da vigararia observante
da província franciscana de Portugal, prova-
velmente no Convento de S.ta Cristina, perto
de Tentúgal. Concluído o noviciado, Fr. Pedro
professou como irmão leigo e dedicou-se a tra-
Fig. 3 – Descendentes e familiares do B.º Carlos de Áustria,
balhos domésticos em diversos conventos do
Funchal, 1 de abril de 2010 (Câmara Municipal do Funchal). reino durante cerca de 30 anos. Em 1485, com
C anoniza ç ã o , processo de ¬ 861

o beneplácito dos superiores, passou à ilha da


Madeira e incorporou-se no Convento de S.
Bernardino de Câmara de Lobos, onde serviu
durante 20 anos como cozinheiro, vindo a fa-
lecer a 27 de julho de 1505. Nos seus 50 anos
de vida consagrada, o dia a dia de Fr. Pedro
desenrolou-se à volta de três eixos fundamen-
tais: penitência, oração e caridade. Depois da
sua morte, logo cresceu a veneração popular a
Fr. Pedro, a quem se atribuiu a designação de
servo de Deus. O seu culto estendeu-se a toda
a Ilha, com a sua imagem colocada em todas as
igrejas, “dando-lhe culto, como o têm os san-
tos canonizados”, refere Soledade. Em 1835, o
vigário capitular do Funchal, o Cón. António
Alfredo Braga, franciscano muito influenciado
pela ideologia liberal e que considerava nefas-
to obscurantismo o culto prestado a Fr. Pedro
da Guarda, decidiu suprimir toda a devoção
popular ao santo frade e mandou queimar a
sua imagem e relíquias, sob pretexto de que
ele não tinha sido beatificado do modo expres-
so no direito canónico. Apesar deste inciden-
te, o culto ao “santo servo de Deus”, embora
sofresse abrandamento, não se extinguiu. A 18
de julho de 1905, no quarto centenário do
Fig. 4 – Fr. Pedro da Guarda, relicário, c. 1670
falecimento de Fr. Pedro, o bispo D. Manuel (paróquia de Santa Cecília).
Agostinho Barreto promoveu e presidiu a uma
reunião extraordinária do Tribunal Eclesiásti-
co do Funchal que decretou a ilegitimidade da apareceu publicado em Nápoles, em 1626,
proibição do culto de Fr. Pedro pelo vigário ca- outro processo para a beatificação do servo de
pitular em 1835. Deus. Em 1652, o deão Pedro Moreira, então
Terão sido elaborados 11 processos com vista provisor do bispado do Funchal em situação
à sua beatificação. Tudo indica que nem todos de sé vacante, elaborou outro processo com
terão seguido para Roma. O primeiro deve ter novos casos de milagres. Pelo mesmo ano, Fr.
sido aberto em 1597, aquando da trasladação Baptista de Jesus organizou dois processos, um
dos restos mortais para a igreja do convento; no Funchal e outro em Lisboa, e partiu para
provavelmente terá sido apenas uma recolha Roma para tratar pessoalmente do assunto,
de milagres. Organizou-se outro em 1620 e mas regressou à Madeira sem nada conseguir.
mais um em 1623, este último apresentado em Seguiram-se ainda mais dois processos de mi-
Roma, ao Papa Urbano VIII, que a 30 de agos- lagres para efeito de beatificação: um em Lis-
to de 1625 mandou que o bispo D. Jerónimo boa, em 1655, e o segundo no Funchal, mais
Fernando fizesse nova inquirição por autori- tardio, no tempo do bispo D. Fr. Manuel Cou-
dade apostólica. O processo pedido pelo Papa tinho (1722-1739). Os próprios reis se interes-
ficou concluído em 1628 e dele se fizeram duas saram pela beatificação de Fr. Pedro da Guar-
cópias. Uma foi para Roma e perdeu-se por da e cuidaram de garantir receitas para acorrer
descuido dos agentes, outra ficou no Funchal, aos encargos do processo. Com essa finalidade,
mas já estava incompleta em 1652. Entretanto, saíram provisões régias em 1653, 1729 e 1753
862 ¬ C anoniza ç ã o , processo de

(de D. João IV, D. João V e D. José I, respeti-


vamente), determinando que metade das con-
denações judiciais decretadas na Madeira fosse
canalizada para a beatificação do Fr. Pedro.
O último processo foi organizado no Funchal
por iniciativa de D. Manuel Agostinho Barreto,
em 1905, no quarto centenário do passamento
de Fr. Pedro da Guarda, do qual saíram publi-
cadas algumas peças em forma avulsa em 1908.
Há notícia de alguma correspondência sobre
a situação deste processo em Roma em 1912 e
1926. Neste mesmo ano, o P.e João Vieira Caeta-
no, para apoio documental do processo, escre-
veu uma monografia intitulada O Santo Servo
de Deus Frei Pedro da Guarda (1435-1505): Breve
Resumo da Sua Vida, Culto e Milagres Que Lhe
São Atribuídos, que não chegou a ser impressa.
A 24 de novembro de 1624, a Câmara Muni-
cipal da Guarda pediu a sua beatificação e, a
24 de outubro de 1905 (ano jubilar do servo
de Deus), a Câmara Municipal de Câmara de
Lobos solicitou o restabelecimento do culto
público e oficial do Santo Servo de Deus. Em
2015, o processo continuava em aberto.

Irmã Mary Jane Wilson


Fig. 5 – M.e Mary Jane Wilson, c. 1910
Nasceu em Hurryhur, Mysore, Índia, a 3 de ou- (Núcleo Museológico Madre Mary Wilson).

tubro de 1840. Seus pais, ingleses, educaram-na


na religião anglicana, que fervorosamente pra-
ticavam. Órfã na infância, foi entregue aos cui- Nossa Senhora das Vitórias, tomando o nome
dados de uma tia, em Inglaterra, que lhe pro- de Ir. Maria de S. Francisco. Em 1907, deu tes-
porcionou esmerada educação. Na juventude, temunho da sua caridade quando uma forte
foi assaltada por dúvidas relativas à sua religião, epidemia de varíola assolou a região sul da Ma-
que a aproximaram da Igreja Católica. A difi- deira. Correndo todos os perigos, a Ir. Wilson
culdade mais resistente, que dizia respeito à e suas irmãs socorreram de tal modo os doen-
presença real de Cristo na eucaristia, terá sido tes, que mereceram, na pessoa da fundadora, a
vencida graças a uma intervenção particular de condecoração Torre e Espada, que lhe foi atri-
N.ª Sr.a das Vitórias, a 30 de abril de 1873. A 11 buída pelo Rei D. Carlos. Em outubro de 1910,
de maio seguinte, recebeu, sob condição, o ba- com a revolução republicana, a Congregação
tismo católico, em Boulongne-Sur-Mer, França. foi extinta e a fundadora, depois de presa, foi
A 26 de maio de 1881, chegou à ilha da Ma- expulsa para Inglaterra. Após um ano de exílio,
deira como enfermeira de uma doente inglesa. conseguiu regressar e, no escondimento, reu-
Fixando-se no Funchal, dedicou-se à catequese niu e deu nova vida à Congregação que funda-
das crianças, aos doentes e à educação da juven- ra. A 8 de maio de 1916, recebeu a aprovação
tude, tendo instituído diversas obras a favor dos diocesana dos estatutos, e a 18 de outubro do
pobres. A 15 de janeiro de 1884, com a sua pri- mesmo ano, quando, a pedido do bispo, lança-
meira colaboradora, Amélia Amaro de Sá, fun- va as bases de um pré-seminário, faleceu piedo-
dou a Congregação das Irmãs Franciscanas de samente, aos 76 anos.
C anoniza ç ã o , processo de ¬ 863

O seu processo de beatificação e canoniza-


ção foi aberto no Funchal a 18 de agosto de
1991, com a tomada de posse dos membros
do tribunal. A fase diocesana foi encerrada a
30 de abril de 1993. Recebeu o decreto de va-
lidade jurídica a 28 de janeiro de 1994 e nesse
mesmo ano foi nomeado relator Mons. José
Luís Gutierrez. A 20 de outubro de 1997, foi
concluída a positio sobre as virtudes e a fama
de santidade, que recebeu o voto favorável da
comissão histórica a 27 de outubro. No ano
em que a diocese celebrava os seus 500 anos, a
serva de Deus Ir. Wilson foi proclamada Vene-
rável pelo santo padre. Em 2015, os seus devo-
tos imploravam com fé a sua intercessão junto
de Deus e aguardavam a realização do mila-
gre necessário para a beatificação.
Madre Virgínia Brites da Paixão
Nasceu no Lombo dos Aguiares, freguesia de
Santo António, no Funchal, a 24 de outubro
de 1860. Aos 16 anos, entrou no Mosteiro de
N.ª Sr.ª das Mercês, no Funchal, onde professou
em 1883. Aquando da Implantação da Repú-
blica, em 1910, era a abadessa do Mosteiro. Ex-
pulsas as religiosas dos seus mosteiros, a madre
Fig. 6 – M.e Virgínia Brites da Paixão e uma irmã clarissa,
recolheu à casa que fora dos seus pais, onde Santo António (?), c. 1925 (Núcleo Museológico do Convento
manteve o hábito capuchinho e teve experiên- do Lombo dos Aguiares).
cias místicas. Faleceu a 17 de janeiro de 1929.
Depois de recebido o nihil obstat da Santa Sé,
procedeu-se, na Diocese do Funchal, à abertu- A sua causa de beatificação e canonização
ra solene do processo diocesano de beatifica- teve a sua primeira sessão a 4 de março de
ção e canonização. A cerimónia decorreu na 2007, quando 39 testemunhas foram ouvidas
capela do Mosteiro de N.ª Sr.ª da Piedade, da pelo tribunal. A 11 de março, a comissão his-
Ordem de Santa Clara, em Câmara de Lobos, tórica, composta por Teresa Pereira, Ir. Pre-
a 29 de dezembro de 2006. ciosa Silvério e Ir. Natividad de Jesus, irmãs
da Ordem Hospitaleira do Sagrado Coração
Irmã Maria do Monte Pereira
de Jesus, entregou ao tribunal da causa toda
Nasceu a 10 de abril de 1897 no Funchal. a documentação escrita e a relação histórica,
Sendo catequista na sua paróquia de Santo prestando o seu depoimento. A sessão de en-
António, sentiu o chamamento vocacional e cerramento da fase diocesana ocorreu a 18 de
consagrou-se a Jesus Cristo seguindo a vida e dezembro de 2008 e o processo foi enviado
missão hospitaleira, no serviço aos doentes e para Roma.
necessitados. Viveu a sua consagração religio-
sa em oração, caridade e generosa oblação ao Bibliog.: CONGREGAÇÃO DAS CAUSAS DOS SANTOS, Normae Servandae in
Inquisitionis ab Episcopi Faciendis in Causis Sanctorum, 7 fev. 1983; Id., Sanctorum
Pai. A 18 de dezembro de 1963, consumou san- Mater, 17 maio 2007; FARIA, Teodoro de, Beato Carlos da Áustria. Os Habsburg
tamente o sacrifício da sua vida, no silêncio do na Madeira, Funchal, DRAC, 2011; GOMES, Manuel Saturino, “Religiosos e
religiosas portugueses no caminho da canonização”, Forum Canonicum, vol. vi,
seu compromisso com Deus e com a pessoa
n.º 2, jul.-dez. 2011, pp. 91-103; GONÇALVES, Marcos Fernandes, “Como se
que sofre. inicia uma causa de beatificação?”, Forum Canonicum, vol. i, n.os 1-2, jan.-dez.
864 ¬ C apelas

2006, pp. 179-187; GUTIÉRREZ, José Luis, Studi Sulle Cause di Canonizzazione, queria estabelecer a jornada de Vespúcio de
Roma, Giuffrè Editore, 2005; JOÃO PAULO II, Divinus Perfectionis Magister,
25 jan. 1983; MOREIRA, António Montes, “Evocação de frei Pedro da Guarda forma conclusiva e, em particular, decidiu exa-
no quinto centenário da sua morte”, Islenha, n.º 37, jul.-dez. 2005, pp. 26-41; minar as rotas, a fim de resolver a questão da
RIBEIRO, Abílio Pina, Irmã Wilson, Vida, Testemunhos, Cartas, Lisboa,
Congregação das Irmãs Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias, 1989;
longitude. A passagem pela Madeira era cru-
RODRIGO, Romualdo, Manuale delle Cause di Beatificazione e Canonizzazione, cial, dado que a Ilha e o arquipélago eram um
Roma, Institutum Historicum Augustinianorum Recollectorum, 2004; SILVA,
Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense,
dos pontos geográficos fundamentais, tanto
3 vols., Funchal, Secretaria Regional de Turismo e Cultura, 1998; VERAJA, para os cálculos de Canovai, como para con-
Fabijan, Commento alla Nuova Legislazione per le Cause dei Santi, Roma,
firmar a verdade histórica das várias viagens de
Congregação das Causas dos Santos, 1983.
Vespúcio.
Marcos Gonçalves
Obras de Stanislao Canovai: Elogio di Amerigo Vespucci, Che Riportò il Premio
dalla Nobile Accademia Etrusca di Cortona nel Dì 15 Ottobre dell’Anno 1788. Con
Una Dissertazione Giustificativa di Questo Celebre Navigatore (1798).
Canovai, Stanislao
Bibliog.: CORNIANI, Giambattista, I Secoli della Letteratura Italiana dopo il Suo
Stanislao Canovai nasceu a 27 de março de Risorgimento Commentario […] Continuato Fino all’Età Presente da Stefano
Ticozzi, t. ii, pt. ii, Milano, Vincenzo Ferrario, 1834; DELSEDIME, Piero, Dizionario
1740 em Florença e nesta mesma cidade mor- Biografico degli Italiani, vol. 18, Roma, Istituto dell’Enciclopedia Italiana, 1975;
reu a 17 de novembro de 1812. Foi um dos ma- POZZETTI, Pompilio, Elogio di Stanislao Canovai Scritto da Pompilio Pozzetti,
Professore Emerito e Bibliotecario nella Regia Università di Bologna, Bologna, Tip.
temáticos e físicos mais famosos do séc. xviii e de Fratelli Masi, 1812; TIRABOSCHI, Girolamo, Storia della Lettereratura Italiana,
é considerado o iniciador da corrente científi- vol. iv, Milano, Antonio Fontana, 1833.

ca que se afirmou na segunda metade deste sé- Valeria Biagi


culo, nas Escolas Pias de Toscana. A par disto,
Canovai foi considerado pelos seus contempo- Cantigas ao desafio
râneos um grande escritor, pela sua doutrina e Ö Repentismo
pelo seu estilo preciso e eloquente.
Estudou em Florença e Pisa, como iniciante
na Ordem dos Esculápios, e, em 1765, foi no-
Capelas
meado para a cátedra de Filosofia e Teologia As capelas são lugares sagrados para a Igreja
no seminário episcopal de Cortona, onde le- Católica. A sua origem confunde-se com os co-
cionou Matemática durante 15 anos. Em 1768, meços da vida cristã mais ou menos organiza-
interrompeu, por um período muito curto, o da, quando surgem várias construções em que
seu ensino em Cortona para ensinar Física Ma- os cristãos se reúnem para a oração e o culto.
temática no Colégio Real de Parma. Em segui- Consta que os primeiros lugares de reunião
da foi chamado para ensinar Hidráulica no co- dos cristãos para a celebração do culto foram
légio florentino dos Esculápios. peças da domus romana, como o tablinium ou
Publicou em Florença, com o editor Giovac- atrium, ou então uma sala qualquer. Segundo
chino Pagani, o volume Elogio di Amerigo Ve- os especialistas, é muito provável que muitas
spucci, Che Riportò il Premio dalla Nobile Accade- das igrejas posteriores fossem, originariamen-
mia Etrusca di Cortona nel Dì 15 Ottobre dell’Anno te, capelas edificadas por nobres para favore-
1788. Con Una Dissertazione Giustificativa di Que- cer os cristãos dos seus domínios no cumpri-
sto Celebre Navigatore, obra que se apresentava mento dos seus deveres religiosos. Com as
bem fundamentada e historicamente fundada. grandes construções de igrejas, aparecem pe-
Canovai confrontou códices e publicações e quenos edifícios contíguos a estas ou até inte-
discutiu as escolhas e declarações de estudio- grados no mesmo edifício, com altar e alguma
sos anteriores, como Angelo Maria Bandini. invocação particular.
A obra visava sobretudo considerar e enqua- O termo “capela” e/ou “capelania” consubs-
drar o significado cultural do empreendimen- tanciou também um significado canónico di-
to de Vespúcio num âmbito crítico e científico ferente em momentos históricos longínquos,
mais amplo e acabou por provocar um debate que não se identificava com a dimensão espi-
animado. Canovai, como eminente cientista, ritual e pastoral. Era uma entidade canónica,
C apelas ¬ 865

de muitas e variadas modalidades, que consis-


tia em um fundador atribuir perpetuamente
uma massa de bens para que, com os seus ren-
dimentos, se executassem determinados encar-
gos piedosos que, normalmente, consistiam na
celebração de missas num altar ou numa deter-
minada capela, daí o seu nome. O Código de
Direito Canónico (CDC) de 1983 contempla
essa realidade nas chamadas fundações pias,
autónomas ou não, conforme o legislado nos
cc. 1303-1310.
A instituição destes legados revigorou-se no
período medieval, no qual Jacques Le Goff
situa o início da crença no Purgatório, que está
na origem da concomitante tendência para
“um crescente apelo dos vivos em favor dos
mortos”, realizado através da celebração de
inúmeros sufrágios (MARQUES, 2000, 587).
Com efeito, desde o séc. xiv que se celebravam
as chamadas orações ou missas de S. Gregório,
constituídas por sete preces curtas e outros
tantos pai-nossos e ave-marias, tendo sido essas
cerimónias de preces vertidas em estampas re-
presentando S. Gregório, papa, a celebrar pe-
Fig. 1 – Capela de N.ª Sr.ª da Consolação, reconstrução de c. 1770,
rante um Cristo ressuscitado. Essas imagens
R. da Torrinha, Funchal (fotografia de Bernardes Franco, 2018).
tornaram-se populares e alguns exemplares so-
breviveram, como aconteceu com um que per-
tence ao políptico da Sé do Funchal (c. 1514)
ou o do alçado do arcaz da sacristia do colégio
do Funchal (c. 1640).
Esse conjunto de bens vinculados, constituí-
dos por vinhas, terras de pão ou prédios arreda-
dos, e.g., para maior facilidade de cumprimen-
to dos encargos pios, levavam, muitas vezes, à
construção de um edifício próprio para satis-
fação das missas – uma capela ou, por vezes,
uma ermida, algumas das quais foram depois,
inclusivamente, instituídas em matrizes de fre-
guesias, ficando a anterior capela no interior
da igreja. Outras, pelo contrário, mantiveram-
-se na dependência da residência do morgado,
escapando melhor à fiscalização eclesiástica.
As instituições vinculares sob forma de ca-
pelas, em Portugal, remontam igualmente à
Idade Média e foram regulamentadas pelas di-
versas Ordenações – afonsinas, manuelinas e fi-
lipinas –, o que permite, de um ponto de vista Fig. 2 – Capela dos Reis Magos, c. 1520, Estreito da Calheta
legal, distingui-las de outro tipo de vínculo, (fotografia da Direção Regional da Cultura, 2009).
866 ¬ C apelas

os morgadios. Assim, e segundo aqueles nor- as orações rezadas por um parente. Por outro
mativos, está-se em presença de um morgadio lado, possibilitava, ainda, eximir terras à posse
quando o rendimento da fundação se destina, da Igreja, na medida em que a propriedade
quase exclusivamente, ao administrador, en- que gerava os rendimentos permanecia nas
quanto para haver capela é necessário que os mãos dos instituidores, ficando disponível por
bens vinculados revertam, sobretudo, a favor morte do capelão, de modo a poder ser atri-
da realização de objetivos de carácter religio- buída a outro familiar. Para além disto, as ca-
so, como a oferta de esmolas, a sustentação de pelas eram, igualmente, formas de criar um
obras pias ou a celebração de ofícios divinos. património para os filhos segundos, que fica-
A criação deste tipo de vínculos servia uma vam deste modo na posse do rendimento da
série de propósitos, para além do já enuncia- propriedade que sobrava do custo do encar-
do resgate das almas, o que contribui para ex- go. Através das capelas podia-se, ainda, fomen-
plicar o sucesso de que se revestiu a adoção tar as ligações clientelares com ramos colate-
desta prática. Com efeito, a fundação de uma rais da família e alardear o valor do sangue,
capela apresentava uma série de vantagens, pois concediam o direito de fazer sepulturas
nomeadamente a de permitir a um eclesiásti- em lugares destacados, exibindo armas e he-
co, membro da família instituidora, que assim ráldica. Para a Igreja, as capelas tornavam-se
se tornava capelão, ganhar a vida sem ter de igualmente vantajosas, dado representarem
se submeter aos concursos para cargos bene- uma forma de rendimento continuado e pelo
ficiais, ao mesmo tempo que garantia serem facto de muitas dessas fundações estipularem
os encargos “enquanto o mundo for mundo”
ou “enquanto o mundo durar”.
Este conjunto de fatores justifica o aumento
do volume de instituições vinculares que se foi
verificando desde os tempos medievais até aos
finais do séc. xviii, altura em que a publicação
da lei de 9 de setembro de 1769, que proibia
a criação de capelas sem autorização régia, ao
mesmo tempo que exigia que, nas já fundadas,
o dispêndio com os encargos pios não fosse su-
perior a um décimo do rendimento líquido da
propriedade (exceto para os casos da Estrema-
dura e da corte), veio infligir um duro revés
àquela prática.
Muito conotada com os sectores mais ele-
vados da sociedade, pelas razões já referidas,
que favoreciam particularmente as casas mais
poderosas, a instituição das capelas não foi,
contudo, apenas usada pela nobreza, antes se
estendendo a outros estratos sociais que, mo-
vidos pelo mesmo desejo de resgatar as almas
dos parentes e ansiosos por beneficiar da ele-
vação de estatuto que tal procedimento permi-
tia, não se eximiram de, igualmente, estabele-
cer vínculos perpétuos.
Esta prática de mimetismo social encon-
Fig. 3 – Missa São Gregório, retábulo-mor da Sé do Funchal
tra-se bem referenciada por Cabral do Nasci-
(fotografia de Virgílio Gomes, 2014). mento, que refere supor muita gente que “os
C apelas ¬ 867

fundadores de morgados eram sempre pessoas


fidalgas pelo sangue, ou, pelo menos, nobres e
possuidoras de avultados haveres”, o que não
correspondia à realidade, pois “ao lado das
casas opulentas havia vínculos modestíssimos,
criados por indivíduos mecânicos ou rústicos”
(NASCIMENTO, 1935, 67). O mesmo autor
considera, ainda, ser a Madeira uma das ter-
ras portuguesas onde os vínculos existiram e
se desenvolveram em maior número, situação
que levaria D. Fr. Manuel Coutinho, bispo da
primeira metade do séc. xviii, a dizer que nos
morgadios madeirenses não havia “um palmo
de terra que não tenha […] pensão de missas”
e a considerar que a execução dos legados pios
seria um dos fatores que mais dificuldades lhe
tinha trazido no exercício do poder episcopal
(ABM, Paço Episcopal do Funchal, doc. 270,
fl. 57v.).
Fig. 4 – Capela de S.ta Catarina do Funchal, reconstrução
O estabelecimento de vínculos onerados
de c. 1680, bilhete-postal, c. 1970 (coleção particular).
com encargos pios é, na Madeira, tão antigo
como o povoamento. Isso mesmo se constata
pelo aforamento realizado por Constança Ro- Um caso muito conhecido e que cedo entra
drigues, mulher de João Gonçalves Zarco, que, na história das capelas na Madeira é o das
em 1484, já viúva, instituía uma capela com missas dos Infantes, que recorrentemente
pensão de 5000 réis anuais a favor de cinco re- surgem na documentação e provêm de uma
colhidas que tinha abrigado na mercearia de disposição testamentária do infante D. Hen-
Santa Catarina, o que também vem documen- rique, que determinou que, não só na Madei-
tar a existência de vínculos não totalmente afe- ra mas por todo o império, se celebrassem,
tos à celebração de ofícios divinos, mas desti- todos os sábados, missas para a sua salvação,
nados também a fins caritativos. Importa, no para o que legava o montante de “seis mar-
entanto, ressalvar que as merceeiras, ou seja, cos de prata” (NORONHA, 1996, 68). Em
as mulheres que recebiam a mercê de uma 1503, porém, ou porque a devoção afrouxa-
casa para viver, tinham a obrigação de rezar ra, ou por outras razões, o Papa Alexandre VI
pela alma da instituidora, pelo que a intenção mandava documento pontifício a D. Manuel
do resgate do Purgatório continuava bem pre- recordando-o da necessidade do exato cum-
sente. Outro exemplo de capela com objetivos primento do estipulado, o que mostra que o
para além dos da celebração de ofícios divinos espaço de uma geração era suficiente para
pode encontrar-se em São Martinho, onde, em fazer perigar o compromisso.
1591, um provimento regista que “o instituidor Se se olhar, agora, para o testamento do
desta capela de São Martinho deixou em cada filho de Constança Rodrigues, João Gonçal-
um ano dois mil rs em seu testamento para re- ves da Câmara, 2.º capitão do Funchal, volta
paro dela”, contribuição que, igualmente, se a encontrar-se a instituição de capelas no seu
destinava a ser paga em missas, mas que, mais sentido mais comum, ou seja, naquele que
uma vez, demonstra a diversidade das situações impõe o cumprimento de uma obrigação de
que podem subjazer à instituição (ABM, Regis- missas, neste caso diárias, pelas almas do pai,
tos Paroquiais, São Martinho, Livro de Provimen- da mãe, da mulher e da sua, para o que afe-
tos, fl. 26). tou um rendimento de 14.000 réis. Este legado
868 ¬ C apelas

testamentário tem, porém, o interesse de per- de visitações pastorais. As visitações mais an-
mitir analisar a desvalorização do valor afeto tigas de que há vestígios documentais na Ma-
às celebrações, na medida em que o testamen- deira datam de 1538 e 1541 e encontram-se
to data de 1499, ano em que o preço da missa transcritas pelo consciencioso vigário da Ma-
rondaria os 38 réis, valor que, transposto para dalena do Mar, João Leandro Afonso, que em
uns séculos mais tarde, claramente se mostra 1589, por se aperceber de que o texto estava
insuficiente; assim, e.g., em 1734, D. Fr. Manuel a ficar comprometido, resolveu copiá-las para
Coutinho publicava um edital que estipulava um livro de batismos, casamentos e óbitos, o
120 réis como valor de cada missa, mas, em que acabou por permitir que os séculos futu-
1768, o preço já era de 150 réis. Se se fizerem ros soubessem que, pelos anos 30 da centúria
as contas do legado de 14.000 réis do capitão, de Quinhentos, o cumprimento dos encargos
logo se conclui que o valor estipulado havia pios não era ainda problemático, por não fa-
muito que não chegava para cobrir as despe- zerem aqueles provimentos qualquer referên-
sas inerentes. Este é, com efeito, um problema cia ao assunto.
que cedo se põe e que ameaça o cumprimento O mesmo já não acontece a partir dos finais
das últimas vontades dos testadores, “carregan- do séc. xvi, quando, por determinação de
do a consciência” dos testamenteiros e até a do D. Jerónimo Barreto, se publicam as primei-
bispo, na medida em que também é correspon- ras Constituições Sinodais da Diocese, cujo títu-
sável pela execução dos legados. lo xxii, sobre testamentos, começa por dizer
A preocupação dos prelados com o incum- que sabia o prelado que “muitos testamentei-
primento das vontades testamentárias per- ros em grande cargo de suas consciências dei-
corre os diversos episcopados funchalenses xam de cumprir muitos testamentos e legados
e encontra-se expressa pelos bispos quase pios por muito tempo, por negligência e por
desde os primeiros registos de provimentos outras ocasiões e interesses, por cuja causa as

Fig. 5 – Teto mudéjar da capela dos Reis Magos, c. 1520, Estreito da Calheta (fotografia da Direção Regional da Cultura, 2005).
C apelas ¬ 869

Fig. 6 – Capela do Corpo Santo, c. 1470, reformulada por 1520 e 1594, Funchal (fotografia de Direção Regional da Cultura, 2018).

almas dos testadores não são socorridas com os não procurarem pelas ditas obrigações para
sufrágios”, pelo que ele, bispo, a quem sobre as distribuírem e fazerem dizer em suas igre-
isso incumbia zelar, passava a exarar as deter- jas tomando outras de esmola melhor parada.
minações convenientes à boa execução futura Pelo que mandamos ao prioste desta sé […]
das últimas vontades (Constituições Synodaes…, sob pena de um marco de prata […] que saiba
1585, 141). todas as capelas e missas da obrigação dela e
A partir do momento da publicação do texto as distribuía pelos capitulares” (DGARQ, Cabi-
sinodal, passam a abundar nos provimentos do da Sé do Funchal, mç. 33, fls. 2v.-3). Este
referências a testamentos, encargos e incum- provimento estava tão adequado à realidade
primentos, que desde esse momento se encon- que o prelado seguinte, D. Luís de Figueiredo
tram em praticamente todas as visitas realizadas Lemos, o transcreveu, quase ipsis verbis, para o
a qualquer freguesia, tornando-se, mesmo, um texto das suas Constituições Extravagantes, onde
dos temas mais recorrentemente abordados. figura na Constituição IX.
Assim, na Sé, a 15 de abril de 1588, D. Je- À semelhança do que acontecia na Sé, tam-
rónimo Barreto deixava em provisão que acha- bém nas freguesias rurais a questão do incum-
va “neste bispado muita remissão no cumpri- primento das capelas se punha com acuidade,
mento das capelas, missas e aniversários a que conforme se pode concluir dos provimentos
são os ministradores obrigados e que muita que foram sendo exarados no Seixal, em 1590
parte desta falta é por os priostes das igrejas e em 1599, na Fajã da Ovelha, em 1588, 1590,
870 ¬ C apelas

1606 e 1625, na Tabua, em 1587 e 1591, e em Estas confrarias em particular, como, de


São Martinho, em 1589, para dar apenas al- resto, as confrarias em geral, tornaram-se tam-
guns exemplos. bém fiéis depositárias de testamentos e respeti-
Os assuntos versados nestes registos vão vas obrigações pias, sendo mesmo a celebração
desde a necessidade de se arranjar um livro de missas afetas aos legados pios uma das fon-
onde fiquem tombados os encargos pios, a fim tes de rendimento confraternal, embora o cor-
de que se possam atempadamente satisfazer, rer do tempo viesse a transformar essa putativa
o abuso que clérigos e mordomos praticavam renda numa despesa incomportável.
com os preços dos sufrágios, o desleixo no seu Todas estas questões que o tempo não resol-
cumprimento e, ainda, a necessidade de se ins- via, mas, pelo contrário, agravava, levaram a
tituir uma confraria com o particular objetivo que, em 1615, outras constituições diocesanas
de velar pelas almas dos falecidos, como, de promulgadas por D. Fr. Lourenço de Távora
resto, tinha sido recomendado pelo Concílio dispusessem, no seu ponto 15, que, por saber
de Trento e se materializou na criação de con- que capelas não se cumpriam “por as proprie-
frarias das Almas dos Fiéis Defuntos. dades e bens sobre que foram instituídas ren-
Na Fajã da Ovelha, e.g., em 1588, D. Luís Fi- derem hoje tão pouco que não basta para se
gueiredo Lemos deliberava a constituição de dizerem as missas que os […] instituidores
uma confraria dos Fiéis de Deus, por ter cons- mand[e]m dizer”, decidia o prelado que os ad-
tatado a “grande necessidade que as almas dos ministradores de capelas em dificuldades não
fiéis cristãos retidas no fogo do Purgatório fossem obrigados a cumprir mais que o res-
têm dos sacrifícios e sufrágios da Igreja para peitante a dois terços dos encargos (COSTA,
que por meio deles mais facilmente se livrem” 1987, 18).
(ACDF, Fajã, Livro de Provimentos, fl. 2v.), a que Para ajudar a resolver os muitos problemas
se juntava a celebração de enterramentos sem que poderiam surgir, e surgiram, no cumpri-
a pompa devida, tudo fatores a que a referida mento dos encargos pios, desde muito cedo se
confraria poderia obviar. criou o cargo civil de juiz dos Resíduos e Ca-
pelas, que primitivamente se designava juiz
dos Resíduos e provedor de Capelas, Hospí-
cios, Albergarias, Gafarias e Órfãos da Madei-
ra, cujo titular mais antigo foi João do Porto,
seu ocupante em 1489. O conteúdo da função
era o de velar pelo cumprimento dos legados,
bem como pelo registo eficaz das proprieda-
des sobre as quais recaíam os encargos. A juris-
dição deste magistrado conflituava, por vezes,
com a da Igreja, na medida em que as duas en-
tidades tinham as mesmas preocupações em
relação a capelas, e esta circunstância determi-
nou que o desrespeito pelo instituído, primiti-
vamente tratado como caso de foro misto, pas-
sasse, depois, a ser regido pela chamada regra
da Alternativa, que estipulava que a responsa-
bilidade pelo assunto pertencia, em meses al-
ternados, ao Juízo dos Resíduos e à Igreja, per-
tencendo a esta última os meses de janeiro,
março, maio, julho, setembro e novembro.
Fig. 7 – Capela da Penha de França, reconstrução de 1683, Faial,
Esta solução híbrida não foi, no entanto, su-
Santana (fotografia de Santana Madeira Biosfera, 2015). ficiente para dirimir o contencioso, na medida
C apelas ¬ 871

Fig. 8 – Promessa na capela de N.ª Sr.ª do Faial, no Funchal, litografia de Pitt-Springett, 1843 (reedição de Paul Alexander Zino, 1991).

em que o juiz dos Resíduos, normalmente era a que “lhe dava mais peso” no governo da
homem da terra, preferia, muitas vezes, omi- Diocese, pois envolvia os “maiores”, que lhe
tir-se a criar problemas com os poderosos, o opunham “resistência e contradição”, sobretu-
que, por sua vez, conduzia ao choque entre do por não haver “Provedor que os obrigue”
as jurisdições civis e as religiosas. Para tentar (Ibid., fl. 8v.). Esta omissão do provedor levou
minimizar a tensão, em período de sé vacante, o bispo, inclusivamente, a propor ao rei, por
ocorrido entre 1721 e 1725, o então governa- carta de 22 de fevereiro de 1732, a criação de
dor do bispado, Pedro Álvares Uzel, tinha deci- um lugar “de novo” para um ministro que não
dido abdicar das prerrogativas eclesiásticas na se ocupasse de mais nada a não ser de execu-
gestão das capelas, atribuindo-as todas ao juiz ções testamentárias (Ibid., fl. 60), mas o único
dos Resíduos e provedor das Capelas. Quando resultado que obteve foi o da transferência da-
o novo bispo, D. Fr. Manuel Coutinho, tomou quelas competências do juiz dos Resíduos para
posse do bispado, foi, portanto, confrontado o juiz de fora, o qual, sem tempo para dedicar
com um incumprimento generalizado dos en- ao problema, deixou que tudo continuasse na
cargos pios, razão pela qual, em pastoral que mesma.
promulgou a 29 de setembro de 1725, muito Não admira, assim, que uma pastoral do
pouco tempo depois de chegar, já falava da ne- prelado seguinte, D. Fr. João do Nascimento,
cessidade de os párocos, dentro de um mês, re- publicada a 31 de janeiro de 1744, voltasse a
portarem os testamentos por cumprir. Segun- abordar a problemática, através do pedido en-
do se pode concluir de um longo documento dereçado a todos os administradores de cape-
com as memórias deste prelado, a questão do las para apresentarem aos respetivos párocos
incumprimento das vontades testamentárias “certidão ou sentença do Juiz dos Resíduos”
872 ¬ C apelas

dando conta do seu cumprimento até aos fi-


nais de 1743 (ACDF, cx. 45, doc. 20, fl. n.n.).
Em 1763, o corregedor da comarca queixava-
-se ao governador das arbitrariedades cometi-
das pelo juiz dos Resíduos no âmbito das suas
funções, entre as quais se contava a usurpa-
ção de muitas capelas à Coroa ou aos institui-
dores, constatáveis através da análise de uma
compilação de registos que se vinha fazendo
desde 1590. Propunha-se, de novo, a criação
de um cargo que se dedicasse apenas a este
problema, à semelhança do que já tinha tenta-
do D. Fr. Manuel Coutinho. Ainda que se des-
conheça que medidas foram tomadas a partir
desta denúncia, sabe-se que, em 1800, vieram à
luz novos abusos, desta vez praticados pelo es-
crivão dos Resíduos, que desviara em proveito
próprio verbas dos legados, para o que não he-
sitara em falsificar documentos (SILVA e ME-
NESES, 1984, II, 193).
A fundação de capelas, já atingida pela legis-
lação pombalina, acabou por desaparecer atra-
vés de uma lei liberal, de 19 de maio de 1863,
que extinguia as propriedades vinculadas. Ter-
minava, assim, uma instituição que durante sé-
culos intercedeu pelas almas do Purgatório,
gerou solidariedades, garantiu funerais con-
dignos, geriu patrimónios imensos, movimen-
tou muito dinheiro proveniente da “ganância
espiritual em forma de missas” (FERNÁNDEZ
Fig. 9 – Capela de N.ª Sr.ª da Conceição, R. da Carreira, Funchal,
TERRICABRAS, 2005, 29) e promoveu con- aguarela de Max Römer, 1928 (coleção particular).
flitos profundos entre testamenteiros e to-
madores de contas, e entre jurisdições civis e
religiosas. ou várias pessoas físicas. Deste modo, a norma
O CDC atual da Igreja Católica classifica os exclui que os institutos de vida consagrada e as
lugares sagrados em: igrejas (cc. 1214-1212), sociedades de vida apostólica possam ter este
oratórios e capelas privadas (cc. 1223-1229) e tipo de capelas. Outra diferença significativa
santuários (cc. 1230-1234). em comparação com as igrejas é que as capelas
A capela privada é definida no cân. 1226 do são lugares sagrados se forem benzidas segun-
CDC como local destinado, com licença do or- do o rito litúrgico próprio. Exclui-se para as ca-
dinário do lugar, ao culto divino, em favor de pelas e os oratórios qualquer outra utilização
uma ou mais pes­soas físicas. Este ordinário do distinta do culto, mesmo que não tenham sido
lugar é o bispo e/ou o vigário-geral. benzidas.
A capela diferencia-se de outros lugares des- Um caso particular é o das capelas privadas
tinados ao culto, como as igrejas e os oratórios, dos bispos. O direito reconhece a todos os bis-
que se destinam ao público em geral ou com pos, eleitos e eméritos, a faculdade de terem
algumas restrições; a legislação determina que uma capela privada, não sendo necessário
as capelas privadas se destinam somente a uma obter autorização eclesiástica.
C apit ã es do donatário ¬ 873

Para serem celebrados a eucaristia e outros Capitães do donatário


atos litúrgicos, é necessária a autorização do
ordinário do lugar, que pode estar incluída na Na sequência da delegação efetuada no início
licença. De notar que, no caso de ser celebra- do povoamento do arquipélago da Madeira,
da a Santa Missa com certa frequência, convém com o envio de dois escudeiros de sua Casa, e
que o lugar seja benzido, pois o cân. 932, §1, na posse da doação de D. Duarte (1391-1438),
exige um “lugar sagrado” para a celebração da o infante D. Henrique (1394-1460) trespassou,
eucaristia. Desde que se justifique, e com a de- oficialmente, parte da sua donataria aos seus
vida autorização do ordinário do lugar, poder- delegados; “oficialmente”, pois que já desde
-se-ão celebrar nesse local os mesmos atos de o início do povoamento, entre 1421 e 1425,
culto que nos oratórios. Por exemplo, a Santa os mesmos estavam instituídos daquela dele-
Missa, com conservação da reserva eucarística gação: a capitania de Machico a favor de Tris-
e exposição do Santíssimo Sacramento, e o sa- tão (c. 1395-1480), a 8 de maio de 1440; a de
cramento da penitência. Porto Santo a favor de Bartolomeu Perestre-
lo (c. 1400-1458), que fora da Casa do infante
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivo do Paço Episcopal do Funchal, doc. 270;
Ibid., Registos Paroquiais, Madalena do Mar, Mistos, liv. 1147; Ibid., São
Martinho, Livro de Provimentos, 1588-1599; ACDF, cx. 32, doc. 59; cx. 45, docs.
15 e 20; Ibid., Fajã da Ovelha, Livro dos Provimentos das Visitações da Igreja
de S. João da Fajã da Ovelha, 1588-1730; Ibid., Seixal, Visitações e Provimentos,
1590-1756; Ibid., Tabua, Livro de Provimentos de Visitações, 1587-1703;
ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 33, fls. 1-39; impressa: BARRETO,
Jerónimo, Constituições Synodaes do Bispado do Funchal, Lisboa, António
Ribeiro Impressor, 1585; COELHO, Maria de Fátima, “O instituto vincular.
Sua decadência e morte”, Análise Social, vol. xvi, n.os 61-62, 1980, pp. 111-131;
COSTA, José Pereira da, “Dominicanos bispos do Funchal e de Angra (na esteira
de frei Luís de Sousa)”, in Actas do II Encontro de História Dominicana, Porto,
Arquivo Histórico Dominicano Português, 1986, sep.; COSTA, Susana Goulart
da, “Da eternidade à historicidade. Traços das fundações pias setecentistas
na ilha de S. Miguel”, Arquipélago. História, 2.ª sér., vol. ix, 2005, pp. 309-322;
ESTREIA, Nídia Maria Carreiro Baptista Moura, As Confrarias do Cabido da Sé
do Funchal, Funchal, CEHA, 2002; FERNANDES, Paula Sofia, “Legados de missas.
Salvar a alma protegendo parentes capelães”, in SANTOS, Carlota (coord.),
Família, Espaço e Património, Porto, Centro de Investigação Transdisciplinar
«Cultura, Espaço e Memória», 2011, pp. 175-186; GARCÍA-PEÑUELA, José
María Vázquez, “Capellanía”, in OTADUY, Jorge et al. (coords.), Diccionario
General de Derecho Canónico, vol. i, Cizur Menor, Thomson Reuters Aranzadi,
2012, pp. 830-831; HESPANHA, António Manuel, História de Portugal Moderno.
Político-Institucional, Lisboa, Universidade Aberta, 1995; JARDIM, Maria Dina
dos Ramos, A Santa Casa da Misericórdia do Funchal. Século XVIII, Funchal,
CEHA, 1996; LEMOS, Luís Figueiredo de, Constituições Extravagantes do
Bispado do Funchal, Lisboa, Pedro Crasbeeck, 1601; MARQUES, João Francisco,
“A renovação das práticas devocionais”, in AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.),
História Religiosa de Portugal, vol. ii, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000, p. 564;
NASCIMENTO, João Cabral (transcr.), “Testamentos. João Gonçalves da Câmara,
2.º capitão-donatário do Funchal (1499)”, Arquivo Histórico da Madeira,
vol. iv, fasc. i, 1934, pp. 17-25; Id., “Capelas e morgados da Madeira”, Arquivo
Histórico da Madeira, vol. iv, fasc. ii, 1935, pp. 65-72; Id., “Constança Rodrigues,
a Velha, dona viúva do capitão Zarco”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. iv,
fasc. ii, 1935a, pp. 101-103; NORONHA, Henrique Henriques de, Memorias
Seculares e Ecclesiasticas para a Composição da Historia da Diocesi do Funchal,
Funchal, CEHA, 1996; Ordenações Filipinas, Lisboa, FCG, 1984; PEÑACOBA,
Ernesto, “Capilla”, in OTADUY, Jorge et al. (coords.), Diccionario General de
Derecho Canónico, vol. i, Cizur Menor, Thomson Reuters Aranzadi, 2012,
pp. 832-833; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1984; SOARES, Franquelim
Neiva, A Arquidiocese de Braga no Século XVIII, Braga, texto policopiado, 1993;
TERRICABRAS, Ignasi Fernández, “Entre ideal y realidad. Las elites eclesiásticas
y la reforma católica en la España del siglo xvi”, in MONTEIRO, Nuno G.
et al. (orgs.), Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime, Lisboa,
Imprensa de Ciências Sociais, 2005, pp. 13-45.

Cristina Trindade Fig. 1 – Infante D. Henrique, Francisco Franco, 1931, Porto Santo
Saturino Gomes (fotografia de Virgílio Gomes, 1 jul. 2018).
874 ¬ C apit ã es do donatário

D. João (1400-1442), passada a 1 de novembro para ele – um abuso em relação ao que lhe
de 1444; e a do Funchal a favor de João Gon- tinha sido dado, pois estes assuntos deveriam
çalves Zarco (c. 1390-1471), a 1 de novembro subir ao rei. O infante não alienou todos os po-
de 1450. deres, pois advertiu, de forma expressa, que os
Na primeira carta de doação a Tristão, o in- seus “mandados e correições sejam cumpridos
fante começa por referir que lhe “apraz que ele como em coisa minha própria” (Ibid.).
possa dar por suas cartas, a terra desta parte, A ressalva da morte ou talhamento de mem-
forra pelo foral da Ilha”, referindo-se, por bro, como atributo real, foi reposta nas pos-
certo, ao anterior foral de seu pai, D. João I teriores doações de D. Afonso V (1432-1481),
(1357-1433). No entanto, também refere o se- que obrigaram o infante D. Henrique a alterar,
guinte: “e o que hei de haver na dita Ilha, é inclusivamente, as doações aos seus capitães.
contido no foral que para ela mandei fazer” Ciente da ultrapassagem das prorrogativas
(BNP, Index Geral…, fls. 1v. e 119v.-120v.), de- reais do sobrinho, veio a alterar o seu testa-
duzindo-se daqui que já tinha feito, ou estava mento ao irmão do rei, o infante D. Fernando
a fazer, ainda outro. Nestes documentos, sensi- (1433-1470), que constituíra como seu herdei-
velmente iguais, o infante D. Henrique delimi- ro, e, inclusivamente, a doar ao rei algumas das
ta, com o máximo rigor possível, as áreas das ilhas dos Açores.
capitanias, indo então mais longe do que tinha Os capitães tinham direitos sobre os moi-
ido o seu irmão D. Duarte, trespassando-lhes nhos da área das suas capitanias, sobre os for-
“a jurisdição [...] do cível e do crime, ressalvan- nos de pão e sobre o sal, podiam criar um
do a morte ou talhamento de membro” (Ibid., imposto sobre as rendas já taxadas para o in-
fl. 1v.). Tristão não cumpriria devidamente o fante – era o chamado direito de redízima – e
seu papel; porém, em tais casos, o infante es- era-lhes permitido distribuir as terras das suas
tipulava que a apelação deveria ser mandada capitanias, podendo as distribuições ser consi-
deradas prescritas ao fim de cinco anos, caso
os beneficiários as não tivessem aproveitado
devidamente durante esse período. Saliente-se
que as disposições de 1425 ou 1426 eram um
pouco diferentes, sendo os terrenos reconfir-
mados aos seus utentes ao fim de um período
de ocupação de 10 anos: “E toda aquela [terra]
que nos ditos dez anos aproveitarem lhes pas-
sará, e não a outra que não aproveitarem. E pe-
dirão de novo autoridade minha [ou seja, ao
Rei D. João I] para o poderem aproveitar, e
nas madeiras, paus, lenhas, matos, arvoredos,
fontes, tornos e olhos de água, pastos, ramos e
ervagens, bagas, bolotas, glandes das árvores,
praias e costas do mar, rios e ribeiras, particu-
lar algum não terá [...]” (BNP, Index Geral…,
fls. 24-25v.).
Tratou-se aqui de um verdadeiro comunita-
rismo agrícola, na medida em que os produtos
e os meios da Ilha eram de usufruto comum,
uma forma de tentar evitar o acréscimo da ri-
Fig. 2 – Carta de doação das ilhas da Madeira, de Porto Santo queza privada, desenvolvendo as riquezas da
e Deserta do Rei D. Duarte ao infante D. Henrique
de forma vitalícia, Lisboa, 23 de setembro de 1433
terra em proveito geral. Aqui não se vislum-
(ANTT, Chancelaria de D. Duarte, liv. 1, fl. 18). brava qualquer domínio ultramarino do tipo
C apit ã es do donatário ¬ 875

feudal, como foi a posterior doação do espi-


ritual das ilhas à Ordem de Cristo, a requeri-
mento do infante D. Henrique. No reinado
de D. Duarte e, com a morte prematura deste,
na regência do infante D. Pedro (1392-1449),
as disposições irão alterar-se continuamente.
O próprio Zarco foi senhor efetivo das suas ter-
ras, a partir de 14 de fevereiro de 1454, confor-
me a escritura que mandou lavrar no Funchal,
de que conhecemos transcrições no cartório
do Convento de S.ta Clara. Nessa data, tomou
para si, para a mulher e para os seus descen-
dentes as terras de Santa Catarina e outras
no Funchal, em Câmara de Lobos, na Ribeira
Brava, etc.
Morto o infante D. Pedro na Batalha de Al-
farrobeira, em 1449, as capitanias foram con-
firmadas pelo jovem D. Afonso V, a pedido
de seu tio D. Henrique, “por os anteriores
alvarás se terem deteriorado com o tempo”
(ABM, Câmara Municipal do Funchal, Regis-
to Geral, tombo 1, fls. 128-132), razão em que
é difícil acreditar. Por outro lado, o infante
estendeu progressivamente a sua influência
Fig. 3 – Carta de doação do infante D. Henrique
mais direta sobre o arquipélago dos Açores, a Bartolomeu Perestrelo, 1 de novembro de 1446
eliminando algumas das chefias flamengas ali (ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 33, fl. 85).
colocadas por indicação de D. Pedro e deslo-
cando depois, inclusivamente, gente da Ma-
deira para aquele arquipélago. Por essa al- indissociável da manutenção daquele novo es-
tura, o povoamento da Madeira sofreu um paço português.
franco impulso, sendo as sedes das capitanias, Até finais do séc. xv, a Ilha continuou a cres-
a curto prazo, elevadas a vilas: e.g., o Funchal, cer em importância, sendo Zarco nobilita-
por volta de 1452 (embora em 1454 ainda se do por D. Afonso V, em 1460, com brasão de
refira como lugar), Machico, um pouco mais armas e apelido, então Câmara de Lobos. Já
tarde, mas por certo ainda em vida de Tris- entre 1435 e 1445, o capitão do Funchal solici-
tão, 1.º capitão-donatário, falecido em Silves tara ao rei a vinda do reino de “homens da sua
em 1470, e também, provavelmente, o Porto qualidade” (BNP, Index Geral…, fls. 24-25v.),
Santo. a fim de poder casar as suas filhas. O rei en-
As suas funções de capitães eram igualmen- viou-lhe quatro pequenos fidalgos do centro e
te de comando de homens em armas, o que do norte do país: Diogo Cabral, Diogo Afonso
à época era indissociável da função de che- de Aguiar, Garcia Homem de Sousa e Martim
fia. Tendo o povoamento da Madeira ocorri- Mendes de Vasconcelos. Mas, com a incorpora-
do no quadro da conquista e da ocupação das ção da Madeira na Coroa pelo Rei D. Manuel
praças do Norte de África, em quase todas as (1469-1521), em 1497, deixaram de existir os
principais operações ali ocorridas estiveram capitães do donatário, como até então tinham
presentes os capitães da Madeira, a começar existido, ficando os antigos capitães na mesma
pela frustrada tentativa de conquista de Tân- situação de outros senhorios continentais e
ger, em 1437. A vida da Ilha era igualmente ultramarinos: embora designados, por vezes,
876 ¬ C apitanias

por capitães-donatários, eram essencialmen- reimplantação, nomeadamente por D. Sebas-


te donatários de bens da Coroa e senhores de tião (1554-1578), com a criação da capitania de
jurisdição sobre esses territórios. Como mem- Angola, em 1571, e por Filipe III (1578-1621),
bros da nobreza portuguesa, eram capitães, e com a criação da capitania da Serra Leoa, em
as suas terras designavam-se como capitanias; 1606, mostraram que este modelo estava já
em todo o caso, não tinham funções militares fora da sua época. O processo de centralização
nas mesmas, salvo na capitania do Porto Santo, do Estado empreendido ao longo do séc. xvii,
onde a situação só muito mais tarde veio a ser embora se compadecesse com a sua existência,
definida. A situação, entretanto, não foi de dificilmente tolerava a sua proliferação.
forma alguma linear, tendo surgido fortes ten- Com a integração das donatarias na Coroa,
sões, e.g., entre o 3.º capitão do Funchal, Simão os capitães-donatários ficaram responsáveis
Gonçalves da Câmara (1463-1530), e o Rei perante a mesma pela manutenção das capi-
D. Manuel I. No entanto, embora afastados das tanias “em justiça e em direito”, como refe-
suas capitanias, os capitães manteriam impor- rem as respetivas cartas de doação (BNP, cód.
tantes interesses económicos e institucionais 8391, fls. 1v.-2v.ss., 119v.-120v.ss., 403-405ss.),
na Ilha, interferindo na organização camarária sendo os aspetos de justiça, em princípio,
e, muito especialmente, dirigindo a quase tota- os mais importantes. Saliente-se que os ca-
lidade dos ofícios de justiça. pitães-donatários não eram verdadeiramen-
te proprietários das terras das mesmas, que
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral,
tombo 1; ANTT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 33, fl. 85; Ibid., Chancelaria de
D. Duarte, liv. 1, fl. 18; Ibid., Convento de Santa Clara do Funchal, Avulsos, mç. 1;
Ibid., Manuscritos da Livraria, n.º 516; BNP, reservados, cód. 8391, Index Geral
do Registo da Antiga Junta e Provedoria da Real Fazenda do Funchal; impressa:
ALBUQUERQUE, Luís de, e VIEIRA, Alberto, O Arquipélago da Madeira no
Século XV, Funchal, DRAC, 1987; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. i,
Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1999; FERREIRA, Manuel Juvenal Pita,
O Arquipélago da Madeira, Terra do Senhor Infante, de 1420 a 1460, Funchal,
JGDAF, 1959; Id., O Infante D. Henrique e a Descoberta e Povoamento da Ilha
da Madeira, Funchal, JGDAF, 1960; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra.
História das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro
Rodrigues de Azevedo, Funchal, Empresa Municipal Funchal 500 Anos, 2007;
MARQUES, João Martins Silva, Descobrimentos Portugueses, Documentos para a
Sua História, 3 vols., Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1988;
NORONHA, Henrique Henriques de, Nobiliário da Ilha da Madeira...1700, São
Paulo, s.n., 1947; Id., Memórias Seculares e Eclesiásticas. 1722, Funchal, CEHA,
1997; SALDANHA, António Vasconcelos de, As Capitanias. O Regime Senhorial
na Expansão Ultramarina Portuguesa, Funchal, CEHA, 1992; SILVA, Fernando
Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols.,
Funchal, DRAC, 1998; SOUSA, João José de, “Capitães donatários do Funchal,
sécs. xv a xix”, Islenha, n.º 1, jul.-dez. 1987, pp. 66-85; Id., “As propriedades de
Zarco no Funchal”, Islenha, n.º 3, jul.-dez. 1988, pp. 35-45; VERÍSSIMO, Nelson,
Relações de Poder na Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.

Rui Carita

Capitanias
A instituição do regime de capitanias-dona-
tarias, ensaiado no povoamento da Madei-
ra e depois exportado para os Açores, Cabo
Verde, São Tomé e Brasil, marcou profunda-
mente a gesta dos Descobrimentos portugue-
ses. No entanto, em meados do séc. xvi, este
modelo parece ter atingido o limite do seu pe-
Fig. 1 – João Gonçalves Zarco, gravura de 1873
ríodo de duração. Assim, as tentativas da sua (FRUTUOSO, 1873).
C apitanias ¬ 877

pertenciam à Coroa, embora aí pudessem ter,


pontualmente, propriedades. Com o tempo,
as iniciais funções militares tornaram-se mera-
mente honoríficas, restringindo-se à apresen-
tação dos alcaides pequenos, com função de
policiamento, o mesmo acontecendo em re-
lação aos assuntos da Fazenda régia, pois, em-
bora os capitães-donatários em Lisboa usas-
sem o título de vedor-mor da Fazenda, essa
função há muito que passara a estar cometida
a um provedor.
As cartas de doação dos sécs. xvi e xvii eram,
geralmente, omissas relativamente à atribuição
dos ofícios, mas essa mercê foi algumas vezes
atribuída e confirmada, em documentos pró-
prios, como recompensa por certos serviços
ou pelo mérito e linhagem dos capitães-dona-
tários. Essa prorrogativa de “data dos ofícios”,
como se designava, era geralmente concedida
em uma ou duas vidas, ou seja, na vigência do
donatário e do seu sucessor, embora fosse pos-
teriormente confirmada nos sucessores. Era
este o caso da apresentação de ofícios, essen-
cialmente na área da justiça, como de alcaides,
carcereiros, escrivães vários, tabeliães, meiri-
nhos, inquiridores, contadores e distribuido-
res. A condessa da Calheta, D. Maria de Vas-
concelos, e.g., conseguiu obter para o filho e
para o neto, a 18 de agosto de 1624, a data dos
ofícios concedidos ao seu marido, 5.º capitão e
3.º conde da Calheta, Simão Gonçalves da Câ- Fig. 2 – Tristão Vaz Teixeira, Anjos Teixeira, Machico, 1971
(fotografia de Virgílio Gomes, 2008).
mara (c. 1565-c. 1620), somente em uma vida.
Tratava-se, assim, da apresentação dos ofícios
de escrivão dos órfãos do Funchal, da almota- nomeações, começando por escolher um des-
çaria, alcaidaria e imposição da cidade, de mei- cendente de João Gonçalves Zarco (c. 1390-
rinho da serra, de tabeliães do público e do -1471) a quem tinha já feito mercê da capita-
judicial dos lugares da sua jurisdição, de mei- nia de Machico: Tristão Vaz da Veiga (1537-
rinho da cidade, de inquiridores, contadores -1604). Saliente-se ainda que, logo na altura da
e distribuidores da vila da Calheta e lugares nomeação, escreveu à jovem capitoa viúva do
da capitania, assim como de juízes e oficiais da Funchal mostrando a urgência do preenchi-
vila da Calheta. mento do lugar e informando que não esque-
Na Madeira, as capitanias sofreram um rude ceria os direitos do jovem capitão-donatário,
golpe nos finais do séc. xvi com a nomeação seu filho.
de um superintendente das coisas da guerra ou Face à incapacidade dos descendentes dos
encarregado dos negócios da guerra, que tinha primeiros capitães, muito especialmente do
a função de capitão-general das capitanias do 4.º capitão, Diogo Teixeira (c. 1500-1540), dado
Funchal e de Machico. O Rei Filipe II (1527- como incapaz em 1538, a capitania de Machico
1598) teve um especialíssimo cuidado nessas foi entretanto entregue a João Simão de Sousa,
878 ¬ C apitanias

vagando depois para a Coroa na sequência da estar ligado, de alguma forma, a um certo as-
morte do 4.º capitão, em 1540, dado que não cendente militar, daí se justificando um certo
tinha descendência legal. Em 1541, D. João III alheamento, ou afastamento, do governador
fez mercê da mesma a António da Silveira, da Madeira em relação a Machico. Registam-se
que tinha sido capitão de Diu. No entanto, presenças várias dos governadores da primei-
este vendeu-a num curto espaço de tempo, em ra metade do séc. xviii nas vilas da capitania
1549, com licença e faculdade de D. João III, do Funchal, mas não nos ocorre nenhuma nas
a Francisco de Gusmão, mordomo da infanta vilas de Machico e Santa Cruz. Os ouvidores
D. Maria, para dote da sua filha, D. Luísa de das capitanias regiam-se pelas Ordenações de
Gusmão. Esta veio a casar com D. Afonso de Filipe II, especialmente pelo título lx, “Corre-
Portugal (1519-1579), 2.º conde de Vimioso, gedores das comarcas e ouvidores dos mestra-
que incorporou na Casa dos Vimioso a capita- dos e de senhores de terras”.
nia de Machico. O 2.º conde viria a falecer em A situação das capitanias do Funchal e de Ma-
Alcácer Quibir, passando então a usar o título chico, com os capitães a residirem na corte e as
o seu filho mais velho, D. Francisco de Portu- mesmas a serem regidas por ouvidores, nunca
gal (1550-1582), que viria a aderir à causa de foi extensível à capitania do Porto Santo, dada
D. António e a falecer em combate ao largo de a presença física, no arquipélago, do respetivo
Vila Franca do Campo, nos Açores. Ficando a capitão-donatário. As coisas alteraram-se algu-
capitania de Machico uma vez mais nas mãos mas vezes nos sécs. xvii e xviii, nas ocasiões
da Coroa, esta foi entregue por Filipe II a Tris- em que o donatário, por motivos vários, aban-
tão Vaz da Veiga. donou o arquipélago. Nesses casos, o próprio
O irmão mais novo dos Vimioso, D. Nuno Ál- capitão do Porto Santo nomeou um governa-
vares de Portugal (c. 1555-c. 1625), move, ainda dor durante a sua ausência e, quando tal se
em vida de Filipe II, um processo à Coroa, ale- deu compulsivamente, a nomeação foi efetua-
gando que o pai teria ficado vivo em Alcácer da pelo governador e capitão-general da Ma-
Quibir, pelo que o irmão assumira ilegalmente deira, antes da extinção das capitanias.
o título e a capitania de Machico. Assim, tendo
falecido o assumido 3.º conde, D. Francisco de
Portugal, em 1582, o irmão considera que a ca-
Capitania do Funchal
pitania não deveria ter vagado para a Coroa, A evolução desta instituição não foi de forma
pois o pai ainda poderia estar vivo algures em alguma linear, até pela diferença nos seus ren-
Marrocos. Falecido Filipe II, este longo e algo dimentos, provindos das rendas territoriais, de
bizarro processo teve seguimento, conseguin- terras e foros, da redízima e do selo, bem como
do a Casa dos Vimioso, falecido Tristão Vaz da de moinhos, serras de água, sabão e sal. Para
Veiga, em 1604, reaver a capitania. uma comparação, veja-se que, em 1653, e.g., o
Ao longo do séc. xvii, as capitanias da Ma- conde-capitão do Funchal pagou a importân-
deira encontravam-se, assim, na posse dos seus cia de 100$000 réis respeitantes ao donativo
anteriores donatários. Dada a estadia na corte para as despesas de guerra. Em 1662, as déci-
dos capitães do Funchal e de Machico – os con- mas dos dois primeiros quartéis foram orçadas
des de Castelo Melhor e os de Vimioso e, de- em 130$000 réis para a condessa da Calheta e
pois, os marqueses de Valença –, as funções de capitoa do Funchal, enquanto para o conde de
comando de tropas propriamente ditas conti- Vimioso, donatário de Machico, foram orçados
nuaram no governador e no capitão-general, em 20$000 réis. A situação económica da capi-
mas a capitania ficou como título, mantendo as tania do Porto Santo era pior. Em 1693, e.g.,
rendas, uma certa intervenção camarária e as a redízima, no valor de 76$800 réis, somente
funções judiciais. O donatário passou a fazer-se conseguia pagar o ordenado do capitão-mor
representar na sede da capitania por um ouvi- Jorge Moniz de Meneses, nomeado a 31 de ou-
dor e lugar-tenente, que, em Machico, podia tubro de 1653, e o mesmo já havia acontecido
C apitanias ¬ 879

com o anterior governador, Martim Mendes de


Vasconcelos, nomeado em 1564.
A sucessão por varonia da capitania do Fun-
chal foi interrompida em meados do séc. xvii.
O 8.º capitão do Funchal, João Gonçalves da
Câmara (c. 1600-1656), faleceu sem descen-
dência, pelo que assumiu a capitania a sua
irmã, D. Mariana de Alencastre Vasconcelos
e Câmara (c. 1605-1689), condessa de Castelo
Melhor pelo seu casamento com o conde João
Rodrigues de Vasconcelos e Sousa (1593-1658).
Já viúva, D. Mariana passou a utilizar também
o título de condessa da Calheta e, ocupando o
cargo de camareira-mor da Rainha D. Francis-
ca Isabel de Saboia (1646-1683), o de marque-
sa de Castelo Melhor, título que só viria a en-
trar nos seus descendentes muito mais tarde,
em 1766.
A futura condessa da Calheta defrontou em
tribunal os seus parentes mais próximos, pois,
tendo a capitania a natureza de bem da Coroa,
havia cabimento na sucessão para a aplicação
da Lei Mental (que permitia a reversão de tal
bem para a Coroa). Por alvará de 2 de outubro
de 1539, o Rei D. João III concedera dispen-
Fig. 3 – D. Mariana Câmara e Vasconcelos, marquesa
sa dessa lei, para efeitos de sucessão, ao 5.º ca- de Castelo Melhor, Pereira Cão, 1904 (Palácio da Rosa, Câmara
pitão da capitania do Funchal, Simão Gonçal- Municipal de Lisboa).
ves da Câmara (1512-1580), por duas vidas:
uma por morte do dito capitão, sem filho nem
outro descendente varão legítimo, e outra (ABM, Câmara Municipal do Funchal, Regis-
quando um qualquer donatário morresse sem to Geral, t. 9, fls. 95v.-99). No entanto, quase
filho nem descendente varão lídimo. O pro- imediatamente, voltam a registar-se as doações
cesso movido por D. Mariana conheceu, assim, do conde de Castelo Melhor, “confirmadas por
sentença a seu favor em 1660 e, ainda, sobres- carta assinada pela Real Mão” (Ibid., Câma-
sentença em 1677, confirmando a entrada da ra Municipal do Funchal, Registo Geral, t. 9,
capitania na Casa de Castelo Melhor. fls. 116-131v.), e as anteriores questões entre o
Com a extensão à Madeira do regimento dos corregedor e o ouvidor, então levantadas pela
corregedores das ilhas dos Açores, deu-se o pri- Casa do conde. Abria-se, assim, caminho para
meiro passo para a reforma da organização da a centralização da justiça e para a posterior ex-
justiça, à qual, no entanto, se opõe, na corte tinção das capitanias e das ouvidorias.
de Lisboa, a Casa de Castelo Melhor. Em 1747,
foi nomeado um novo juiz de fora de origem
açoriana, Miguel de Arriaga Brum da Silveira Capitania de Machico
(c. 1690-1755). Incumbido do lugar de juiz de As primeiras especificidades que se destacam
primeira instância “com predicado de correi- relativamente à capitania de Machico são o in-
ção por 3 anos”, acumulou, sucessivamente, os cumprimento da determinação de obrigato-
lugares de mamposteiro-mor dos cativos e de riedade da nomeação de um letrado para este
provedor da Fazenda dos defuntos e ausentes lugar, como existia no Funchal, e, ao mesmo
880 ¬ C apitanias

tempo, a nomeação quase preferencial de um de Santa Cruz e de Machico. Houve também


militar, acrescida da indicação diferenciada uma franca descoordenação entre as nomea-
dos cargos de ouvidor e de locotenente. Este ções do marquês de Valença (título de que
aspeto é de tal forma ressalvado que a nomea- os Vimioso passaram a usufruir) e as apre-
ção é quase sempre primeiramente relativa sentações dos ouvidores nestas décadas, aca-
a ouvidor e só depois, em alvará separado, a bando o governador da Madeira por ter de
locotenente, diferenciando-se assim perfeita- interferir nas ouvidorias, nomeando ouvi-
mente as duas. Pode, pois, depreender-se a so- dores interinos. Teria sido, provavelmente,
brevivência, em Machico, das obrigações polí- o problema das ouvidorias que levou a mais
tico-militares do capitão-donatário. Este aspeto uma alçada, desta feita de Manuel Vieira Pe-
parece igualmente explicar, até certo ponto, o drosa da Veiga, “corregedor com alçada por
quase não provimento, na primeira metade do Sua Majestade, que Deus guarde, com espe-
séc. xvii, do posto de sargento-mor das orde- cial ordem do dito Senhor em toda a ilha
nanças desta capitania. da Madeira”, que, no final de 1735, se apre-
Parece ter havido algumas dificuldades na sentava em Machico como juiz de fora. Con-
Casa dos condes de Vimioso na apresenta- forme se registou, não se faziam correições
ção dos seus ouvidores, locotenentes e ou- na Madeira desde 1684, pelo que o correge-
tros oficiais nos inícios do séc. xviii, como o dor assumiu também as funções de ouvidor
juiz dos órfãos da capitania de Machico, as- de Machico, dada a “ordem de correição às
sociado ainda às rivalidades entre as câmaras ouvidorias” que possuía, com “uma carta de
D. João V sobre os excessos que se cometiam
em várias vilas da Madeira”, vindo igualmen-
te com ordem para investigar as “arrecada-
ções dos bens dos concelhos” (ABM, Câmara
Municipal de Machico, liv. 81, fls. 472v.-480),
o que também ocorreu no Funchal.
A Casa dos Vimioso e Valença deparou-se,
entretanto, com algumas dificuldades econó-
micas logo no início do século, abdicando do
pleito sobre a capitania de Pernambuco para
poder manter o título de marquês. A situa-
ção económica não se teria equilibrado, e, tal
como o marquês de Valença não conseguiu
fazer valer os seus direitos à capitania de Ma-
chico na chancelaria régia ao longo do séc.
xviii, ainda que fosse presidente da Mesa da
Consciência e Ordens, também a vereação
camarária mostrou francas reservas em acei-
tar a nomeação de ouvidores e locotenentes
para a capitania, mesmo antes da sua extin-
ção pelo gabinete pombalino. Assim, a 1 de
janeiro de 1765, quando o ouvidor se apre-
sentou em Machico para assistir à distribui-
ção dos pelouros para o triénio seguinte, a
Câmara recusou a sua presença, o que levou
à intervenção do juiz de fora do Funchal no
Fig. 4 – D. José Miguel de Portugal e Castro, 9.º conde de Vimioso
mês seguinte. O Rei D. José I despacharia
e 5.º marquês de Valença, c. 1730 (BNP, cód. 1365388). favoravelmente o processo, comunicando à
C apitanias ¬ 881

Fig. 5 – Provável residência de Bartolomeu Perestrelo, Casa Colombo-Museu do Porto Santo (fotografia de Bernardes Franco, 2018).

Câmara de Machico: “Tenho por bem dizer- na ilha, visto que a mesma tinha governo pró-
-vos, que tendes obrado bem em não con- prio, na pessoa do seu capitão-donatário.
sentirdes, que o suplicante servisse de ouvi- Assim, toda a documentação oficial produzida
dor findo o seu tempo”. Na sequência destes em Lisboa em relação ao Governo da Madeira
acontecimentos, em setembro do mesmo foi sempre omissa em relação à ilha do Porto
ano, era admoestado o Gov. José Correia de Santo, embora alguns governadores tenham
Sá devido à “falta de seriedade e reverência proposto a Lisboa o alargamento das suas com-
com que tratara o caso do ouvidor de Ma- petências àquela capitania.
chico”, admoestação que seria transmitida à Nos inícios do séc. xvii, o Porto Santo foi
Câmara (Ibid., liv. 86, fls. 69v.-70). Não mais alvo de duas alçadas dos corregedores – pri-
voltou a haver ouvidor em Machico, apesar meiro, de António Ferreira, em 1606, e, de-
dos pedidos do governador. pois, de Simão Cardoso Cabral, em 1610 –, que
visavam averiguar as queixas dos moradores
contra o comportamento de Diogo Perestrelo
Capitania do Porto Santo Bisforte (c. 1560-1616), donatário da ilha. Na
A situação desta capitania foi ainda mais nebu- primeira vez, o governador foi afastado da ilha
losa, não só pela pobreza das suas condições e e teve ordem para se apresentar em Lisboa,
habitantes, situação que piorou consideravel- regressando, no entanto, em 1610, altura em
mente ao longo do séc. xviii, como pelo con- que a situação piora. Assim, nesse mesmo ano,
sequente abandono a que, até certo ponto, foi teve nova ordem para se apresentar em Lisboa,
votada pelos seus capitães-donatários. Em face onde ficaria seis anos, sendo perdoado a 15 de
disso, desde o séc. xvii que o governador da outubro de 1616. Desta feita, não terá regres-
Madeira nomeava governadores para o Porto sado ao Porto Santo, pois faleceu no Funchal a
Santo sempre que se verificava vazio de poder 20 de dezembro desse ano.
882 ¬ C apitanias

Afastado o Cap. Diogo Perestrelo Bisforte do desembarque normalmente (Anais do Municí-


Porto Santo, somente em abril de 1654 toma- pio do Porto Santo, 1989, 30).
ria conta da capitania o herdeiro Diogo de Bet- A capitania ainda foi revalidada no 10.º do-
tencourt Perestrelo (c. 1684), até porque, logo natário, Vitoriano Bettencourt Perestrelo, a 5
em 1617, a ilha foi devastada por piratas arge- de setembro de 1722, mas não há qualquer in-
linos, quase não tendo restado habitantes no formação sobre a sua presença no arquipéla-
seu território. Em 1606, após o primeiro afas- go. No entanto, como este donatário não vem
tamento do capitão, foi nomeado João de Or- referido no Índice da Antiga Junta e Provedoria,
nelas Rolim como locotenente, com ordena- partimos do princípio de que não se apresen-
do pago pelo donatário. Aquando do segundo tou como donatário do Porto Santo no arqui-
afastamento do Cap. Diogo Perestrelo Bisforte, pélago, pois que, para efeitos de abono, a sua
o governador da Madeira nomeou, em 1619, apresentação constaria dos registos da Fazen-
Martim Mendes de Vasconcelos como governa- da. A capitania ainda voltou a ser revalidada,
dor e capitão-mor do Porto Santo, a que se se- em 1747, em Estêvão de Bettencourt Perestre-
guiram Roque Ferreira de Vasconcelos e Jorge lo, filho de Vitoriano de Bettencourt e Vascon-
Moniz de Meneses. celos, anterior “proprietário e senhor donatá-
Nos inícios do séc. xviii, a capitania era go- rio da ilha do Porto Santo e governador dela”
vernada pelo 9.º donatário, o Cap. Estêvão (ANTT, Junta e Provedoria da Real Fazenda...,
de Bettencourt Perestrelo, que presidiu, e.g., liv. 972, fl. 217v.), então falecido, e confirmada
às eleições para a Câmara a 1 de janeiro de em 1749. A mercê do novo capitão-donatário
1705 e às sessões seguintes para eleição dos era citada como “do senhorio e governo” da
vários agentes camarários, como o alcaide e ilha do Porto Santo, “em que sucedeu a seu pai,
os almotacés. O 9.º capitão surge em funções por ser de juro e herdade” (Ibid., Junta e Pro-
em 1674, embora o seu pai, Diogo Perestrelo, vedoria da Real Fazenda..., liv. 972, fl. 230v.).
ainda fosse vivo em 1684, data em que man- Cita-se, no alvará, que era até então governa-
dou lavrar testamento. Após 12 anos de sus- dor da ilha Jorge Correia de Miranda, efetivan-
pensão, por ter deixado “entrar na dita Ilha do-se, ao mesmo tempo, a colocação do tio do
duas embarcações francesas” (Anais do Mu- novo capitão-donatário, Nicolau Bettencourt
nicípio do Porto Santo, 1989, 16), este capitão Perestrelo de Noronha, como sargento-mor do
foi restituído à sua capitania em fevereiro de Porto Santo. O governador e capitão-donatá-
1703. Em 1707, ainda se encontra no Porto rio não se deslocou de imediato para a ilha,
Santo, tendo sido “nas suas mãos” que o novo mas conseguiu logo ter acesso às redízimas.
sargento-mor, Duarte Pestana de Velosa, pres- Estêvão de Bettencourt Perestrelo tomou
tou menagem (ABM, Câmara Municipal do ainda menagem das mãos de D. José I, a 11
Porto Santo, liv. 165, fl. 31). No entanto, pe- de março de 1755, e posse no Funchal, a 4 de
rante novo desastre do assalto corsário de junho de 1757, perante o governador da Ma-
1709, no qual, mais uma vez, a população não deira, o que foi até certo ponto uma origina-
mostrou qualquer sinal de resistência, D. João lidade, pois marcou a subordinação do lugar
V mandou-o apresentar-se, sob pena de pri- de capitão-donatário do Porto Santo ao gover-
são, em Lisboa, não voltando à sua capitania. nador da Madeira. Aliás, a distância entre as
O incidente encontra-se registado como ocor- datas da carta da donatária (1747), da mena-
rido a 27 de junho de 1709, tendo desembar- gem (1755) e da posse no Funchal (1757) re-
cado na ilha várias pessoas que, transitando vela bem as dificuldades experimentadas pelo
numa barca proveniente da freguesia de São capitão-donatário para alcançar, na altura, os
Vicente e com destino ao Porto Santo, ha- “seus direitos” (Ibid., Junta e Provedoria da
viam sido aprisionadas por um navio corsá- Real Fazenda..., liv. 974, fl. 1).
rio francês. Mais uma vez, a população não É muito provável que não tenha sequer fi-
reagiu, tendo o corsário francês feito o seu xado residência no Porto Santo, pois, no ano
C apitanias ¬ 883

seguinte, a 15 de junho de 1756, em carta en- tabeliães. Para além disso, as capitanias ficavam
viada do Funchal, apresenta uma representa- reduzidas às alcaidarias-mores, sendo também
ção ao secretário de Estado Diogo Corte Real reduzidos os privilégios exclusivos “dos fornos
sobre a difícil situação da ilha do Porto Santo, de pão de poia, moendas e serrarias aos ter-
marcada pela esterilidade dos últimos anos, mos em que menos ofenderem ao direito di-
pedindo milho e farinha para acudir à fome vino, natural e das gentes, e fizessem calar aos
dos habitantes. Na sequência do relatório ela- atendíveis clamores dos habitantes das referi-
borado pelo Eng.º Francisco de Alincourt das duas ilhas” de Santa Maria e da Madeira
(1733-1816), de abril de 1769, e do edital do (Ibid.).
Gov. João António de Sá Pereira (1719-1804), O antigo capitão do Funchal ficava, essen-
citando “o ócio e a indigência dos moradores cialmente, com o título da alcaidaria-mor e a
do Porto Santo” (AHU, Madeira, docs. 355, redízima de todos os rendimentos reais da an-
356, 360-363), a situação catastrófica do Porto tiga capitania, praticamente sem encargos, o
Santo teve de ser encarada de outra forma. que significava que o que perdia em prerro-
gativas sociais ganhava em dinheiro. Ficavam
francamente reduzidos os antigos privilégios
Reformas pombalinas de venda de sal, que não podiam exceder o
Com a criação, a 2 de agosto de 1766, de um preço taxado pelas antigas doações, já citadas,
governo centralizado para os Açores cometido assim como o monopólio dos fornos de “pão
a um governador e capitão-general e a conse- de poia”, podendo os habitantes ter fornos
quente extinção das capitanias-donatarias na- particulares para o seu consumo doméstico e
quelas ilhas, o gabinete do Marquês de Pombal para “padejarem”. Viam-se igualmente redu-
nomeou dois juristas práticos nestes assuntos, zidos os antigos monopólios das moendas de
os desembargadores José Francisco Alagoa e água e das serrarias. Em contrapartida, o anti-
Bartolomeu Geraldes de Andrade, para reve- go capitão ficava com o título de marquês de
rem toda a situação dos donatários insulares e juro e herdade, duas dispensas da Lei Mental
“dos títulos dos sobreditos [...] que tiverem di- e o título de conde da Calheta para o primo-
reito para serem conservados” (BNP, cód. 341, génito. Ficavam, igualmente, para a Coroa as
fls. 339-341). Logo a 4 de setembro do mesmo fábricas de sabão branco de Lisboa e de Alma-
ano, foi elaborado, no palácio da Ajuda, um da, mas eram cedidas ao futuro marquês a Qt.
contrato de compensação ao conde de Castelo da Labruja, na Golegã, e parte dos terrenos
Melhor, que o conde registou, a 9 de setembro, da cerca de São Roque, em Lisboa, na base
no tabelião António da Silva Freire. Do proces- dos quais se veio a levantar o magnífico e céle-
so completo, seria solicitada, mais tarde, em bre palácio no qual viveu o conde da Foz, que
1785 e 1788, confirmação a D. Maria I e envia- lhe deu nome, e onde estiveram outras enti-
da documentação à Câmara do Funchal para dades e instituições, como o Secretariado Na-
respetivo registo, em 1790 e 1792. cional de Informação. Ainda no que respei-
Desta forma, a 4 de setembro de 1766, eram ta a bens patrimoniais, o marquês ficava com
incorporadas na Coroa as capitanias da Casa 10.000 cruzados anuais de juro, para consti-
de Castelo Melhor – a de Santa Maria, nos Aço- tuir um vínculo.
res, e a do Funchal, na ilha da Madeira –, ale- Nesta sequência se compreende a ordem do
gando o Rei D. José a existência de “motivos Conselho da Fazenda, de 20 de outubro do se-
justíssimos” e o “benefício da utilidade públi- guinte ano, 1767, dada ao provedor do Funchal
ca e do bem público e comum” dos seus vassa- para tomar posse “da capitania das vilas de Ma-
los. Revertiam, assim, para a Coroa as antigas chico e Santa Cruz”. O ofício da Fazenda espe-
“datas das sesmarias” e as jurisdições e nomea- cifica que a capitania se achava vaga “desde o
ções dos ouvidores, dos oficiais de justiça, da óbito do 5.º conde de Vimioso, D. Luís de Por-
Câmara, dos órfãos, das almotaçarias e dos tugal (1656), sem sucessão, em que depois sem
884 ¬ C apitanias

Fig. 6 – Palácio Foz, antigo palácio dos marqueses de Castelo Melhor, 1777 e seguintes (arquivo particular, 2020).

título se introduziu seu irmão, o 6.º conde de antigas rendas. Em 1783, conseguiu D. Afonso
Vimioso, D. Miguel de Portugal (falecido em Miguel de Portugal e Castro (1748-1802), mar-
1680), e depois muito menos, o filho natural quês de Valença, como tutor do seu filho, conde
deste, o marquês de Valença, Dom Francisco de de Vimioso (1780-1840), receber 1443$330 réis
Portugal (1679-1749), e o atual seu neto, Dom da sua antiga capitania. Saliente-se que, entre
José Miguel de Portugal (e Castro) (1709-1775), 17 de junho de 1779 e 28 de outubro de 1782,
os quais todos, não tirarão cartas, nem mercê a redízima tinha rendido 11.990$522. D. Afon-
têm para a poderem requerer”. Este ofício apro- so Miguel, sendo nomeado governador-geral
veitava ainda para solicitar que fossem revistos do Estado da Baía em 1775, conseguiu, antes
os demais bens da Coroa, não fossem encontrar- de partir, que D. Maria I o nomeasse marquês
-se em idênticas situações. Pedia-se que fossem de Valença e o confirmasse donatário da “ex-
enviadas ao Conselho as listagens desses bens tinta capitania de Machico”, com o título de
com a indicação da respetiva situação, para se conde para o herdeiro e direito aos “bens, ren-
refazer o arquivo “que se incendiou pelo terra- dimentos e direitos da extinta capitania de
moto do primeiro de novembro de mil setecen- Machico no mesmo Estado”, como especifica
tos cinquenta, e cinco” (ANTT, Junta e Prove- a Rainha (ANTT, Junta e Provedoria da Real
doria da Real Fazenda..., liv. 975, fls. 184-184v.). Fazenda..., liv. 977, fls. 97-99). O novo mar-
Em 1772, regista-se na Alfândega toda a docu- quês vice-rei ficou, assim, com mais um título
mentação respeitante à capitania de Machico, e, tal como o marquês de Castelo Melhor em
parecendo o assunto ficar encerrado. relação ao Funchal, com os rendimentos da al-
Tentando acompanhar o que fizera o mar- caidaria da antiga capitania de Machico, que,
quês de Castelo Melhor, os antigos capitães de em 1825, viriam a ser penhorados pelos seus
Machico iniciam também a reivindicação das descendentes.
C apitanias ¬ 885

Muito diferente foi a situação da capita- do ano seguinte, o próprio governador da Ma-
nia do Porto Santo, que, nestes meados do deira, António de Sá Pereira, deslocou-se à
séc. xviii, conheceu um dos piores momen- ilha, acompanhado do Corr. Francisco Morei-
tos da sua existência, ao ponto de se tentar ra de Matos e do oficial Eng.º Francisco Salus-
transferir toda a sua população para a Madei- tiano da Costa (c. 1745-c. 1820), do seu médi-
ra. Desde os inícios do séc. xviii que se vivia co, o Dr. João Joaquim Curado Calhau, e de
na ilha uma situação catastrófica marcada por 25 soldados. A Provedoria recebeu ordens para
inúmeros períodos de fome, o que tinha le- fretar o iate de Francisco Teodoro e Manuel da
vado a população a um completo imobilis- Silva Carvalho, assim como para preparar pro-
mo. Quase todos os governadores alertaram visões de biscoito e uma lista de remédios for-
Lisboa para esta situação, mas só se vieram a necida pelo médico do governador.
tomar medidas efetivas com Manuel de Salda- João António de Sá Pereira procedeu a no-
nha de Albuquerque (1712-1771) e, sobretu- meações várias no Porto Santo, a primeira das
do, com João António de Sá Pereira. quais foi a do Cap. Pedro Teles de Meneses
A capitania foi extinta por diploma de 13 como inspetor da agricultura, recebendo as
de outubro de 1770, após a morte do donatá- primeiras instruções em 1770. A nomeação
rio em Lisboa, não se coibindo o próprio Rei foi depois comunicada à Câmara do Porto
D. José I de apelidar os portossantenses de va- Santo e ao Marquês de Pombal, que a levou
dios, referindo que “os sobreditos moradores ao “Real Arbítrio”, recebendo a aprovação
cuidam em alegar genealogias para fugirem de D. José I (AHTC, Erário Régio, liv. 395,
ao trabalho” (Anais do Município do Porto Santo, fls. 306-309). Na ilha, o Gov. Sá Pereira pro-
1989, 16). Com a extinção da capitania, em cedeu ao emparcelamento dos terrenos e à
1770, foram liquidados de imediato os rendi- reorganização geral da população, assunto
mentos em atraso dos donatários, e, em maio entregue ao corregedor. Como alguns ofícios

Fig. 7 – Câmara Municipal do Porto Santo, Domingos Rodrigues Martins, 1774 (fotografia de Bernardes Franco, 24 abr. 2016).
886 ¬ C apitanias

tinham desaparecido por completo, nos finais Funchal. Explica, então, que, encontrando-se
do ano de 1770 já vários rapazes tinham sido o donatário “há anos nessa corte” (ABM, Go-
transferidos para o Funchal e entregues a vá- verno Civil, liv. 530, fls. 17-18v.), com a morte
rios oficiais, que ficaram encarregados de os do sargento-mor e governador, ficava a ilha a
ensinar. O Governo acabou por tomar a seu ser governada pela Câmara e pelo capitão mais
cargo a sua manutenção – alimentação, ves- antigo. Ora, como a ilha ainda tinha 300 ho-
tuário, alojamento e instrução –, nomeando, mens de ordenanças, deveria ter um sargento-
inclusivamente, um médico-cirurgião para os -mor e governador para o controlo geral dessa
acompanhar, ao qual também foi entregue gente. No entanto, só após a morte do dona-
um dos rapazes. Entre os ofícios que estes jo- tário e a extinção da capitania tal pedido teve
vens aprenderam, estavam os de sapateiro, al- despacho de Lisboa. A proposta da nomeação
faiate, oleiro, carpinteiro, pedreiro, ferreiro, do filho do falecido sargento-mor, Manuel da
cirurgião e sangrador. Câmara Perestrelo de Noronha, foi de 15 de
A nomeação e o trabalho do novo inspetor maio de 1782, sendo confirmada apenas a 23
da agricultura não foram, como já era habi- de setembro de 1785. Este ramo da família foi
tual neste domínio, pacíficos, pois, interferin- sendo todo nobilitado, devendo ter movido in-
do com muitos interesses, principalmente os fluências para não perder tal lugar.
dos proprietários madeirenses, o inspetor foi Este lugar passou, entretanto, a ser subordi-
acusado de inúmeras irregularidades. Assim, nado ao governador da ilha da Madeira, como
ainda que a ilha do Porto Santo tenha sido de consta das nomeações de Manuel Ferreira
imediato dotada de regimento da agricultu- Nobre Figueira, sargento-mor do Regimento
ra, datado de 13 de junho de 1771, os resul- de Milícias de Vila Real, nomeado em 1797.
tados não foram muito animadores. Em finais Efetivamente, este sargento prestou menagem
de 1774, deslocava-se ao Porto Santo o mestre de tal lugar em S. Lourenço, nas mãos do go-
das obras reais, Domingos Rodrigues Martins vernador da Madeira, a 27 de setembro desse
(c. 1710-1781), para inspecionar as fortifica- ano, e o mesmo viria a acontecer com João
ções, transformando-se, por sua decisão, o pe- Baptista Rofle, capitão-tenente da Armada, no-
queno reduto de S. José no forte que viríamos meado em 1800.
a conhecer. Entretanto, devem ter sido execu-
Bibliog.: manuscrita: ABM, Arquivos Particulares, Processo da Capitania de
tadas obras na Câmara Municipal – também Machico, n/ catalog.; Ibid., Câmara Municipal de Machico, livs. 81, 86-87, 110
elas, certamente, orientadas e dirigidas pelo e 149; Ibid., Câmara Municipal de Santa Cruz, liv. 327; Ibid., Câmara Municipal
do Funchal, Registo Geral, tombos 3, 6-9 e 13; Ibid., Câmara Municipal do
mestre Domingos Rodrigues Martins –, a ajui- Porto Santo, liv. 165; Ibid., Governo Civil, livs. 526-530; Ibid., Registos Paroquiais,
zar pelas armas que passou a ostentar, talvez li- São Pedro, Óbitos, liv. 131; AHTC, Erário Régio, liv. 395; AHU, Madeira e Porto
Santo, docs. 18, 74, 306, 355-356, 360-367 e 394-397; ANTT, Chancelaria de
geiramente anteriores às do forte de S. José. D. Filipe II, livs. 15 e 31; Ibid., Conselho de Guerra, Consultas, mçs. 14 e 124;
Também por essa altura se devem ter iniciado Ibid., Convento de Santa Clara do Funchal, Avulsos, mç. 1; Ibid., Desembargo
do Paço, mç. 1871; Ibid., Provedoria e Junta da Real Fazenda do Funchal,
outras obras, como as da casa nobre que poste- livs. 426, 958, 965A, 969-970, 972, 974-977; BNP, Coleção Pombalina, cód. 341;
riormente seria ocupada pelo tribunal, osten- Ibid., reservados, cód. 8391, Index Geral do Registo da Antiga Junta e Provedoria
da Real Fazenda do Funchal; impressa: ALBUQUERQUE, Luís de, e VIEIRA,
tando tal edifício, no lintel da entrada, a data Alberto, O Arquipélago da Madeira no Século XV, Funchal, DRAC, 1987; Anais
de 1788. do Município do Porto Santo, introd. e notas Alberto Vieira e João Adriano
Ribeiro, Porto Santo, Câmara Municipal do Porto Santo, 1989; CARITA, Rui,
O cargo de governador da ilha continuou
História da Madeira, vol. i, Funchal, Secretaria Regional da Educação, 1999;
a ser desempenhado pelo sargento-mor Ni- FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. História das Ilhas do Porto Santo,
colau Bettencourt de Noronha, tio do antigo Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues de Azevedo, Funchal, Typ.
Funchalense, 1873; Ordenações Filipinas, 3 vols., Lisboa, FCG, 1985; SALDANHA,
Cap. Nicolau Bettencourt Perestrelo, entre- António Vasconcelos de, As Capitanias. O Regime Senhorial na Expansão
tanto falecido a 9 de abril de 1768. Nessa al- Ultramarina Portuguesa, Funchal, CEHA, 1992; SILVA, Fernando Augusto da, e
MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC,
tura, o governador escreveu para Lisboa a alvi- 1998; SOUSA, João José de, “Capitães donatários do Funchal, séc. xv a xix”,
trar a nomeação do ajudante do sargento-mor Islenha, n.º 1, jul.-dez. 1987, pp. 66-85; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na
Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.
de Machico, Matias Moniz de Bettencourt,
que servia igualmente na sala do Governo do Rui Carita
C apit ã o - geral ¬ 887

Capitão-geral
Com a vigência de Filipe II no trono de Portu-
gal e as conjunturas interna e externa que se
seguiram, acrescidas, principalmente, das posi-
ções e dificuldades experimentadas pelas casas
dos Câmara e dos Vimioso, a direção geral e
superior da defesa da ilha da Madeira foi en-
tregue a um cabo de guerra, governador e ca-
pitão-geral de ambas as capitanias. Esse gover-
nador passou a ser recrutado nos quadros da
corte, por três anos, conforme os interesses
pontualmente em causa e segundo informação
do Conselho de Portugal. A função era especi-
ficamente de “geral e superintendente das coi- Sala dos Retratos dos Governadores e Capitães-Gerais
do palácio de S. Lourenço, óleos de c. 1790 e seguintes
sas da guerra de ambas as capitanias” (VERÍS- (reforma de 1942-2007) (arquivo particular).
SIMO, 2000, 133-134), ou seja, das capitanias
do Funchal e de Machico, mantendo o gover-
no militar da capitania do Porto Santo autono- A polémica tinha contornos essencialmente
mia nesse novo enquadramento. políticos, como de imediato se constata pelo
Nos finais do séc. xix e inícios do séc. xx Elucidário, cuja edição a que nos referimos é co-
houve alguma polémica sobre estas designa- memorativa dos centenários do Estado Novo,
ções e sobre a posição do Des. João Leitão, o quando se escreve que “com o domínio filipi-
primeiro a desempenhar essas funções na Ma- no terminou o governo dos Capitães-Donatá-
deira, embora sem específica carta patente rios”, quando os capitães do Funchal, que se
para tal, situação perfeitamente compreensí- tinham fixado em Lisboa desde 1550, e os con-
vel dada a época que se vivia com o início da des de Vimioso nunca se tinham deslocado a
União Ibérica e, especialmente, com a presen- Machico. O texto continua com a indicação de
ça de D. António, Prior do Crato, nos Açores, que o arquipélago tinha passado a ser “admi-
apoiado por forças navais francesas e ingle- nistrado por Governadores-Gerais, da imedia-
sas, que não pretendiam, de forma alguma, a ta nomeação do governo espanhol” (Id., Ibid.,
união de Portugal a Castela. 99), o que também não é de forma alguma cor-
Depois, igualmente surgiu polémica por reto, pois que ao tempo de Filipe II, e.g., nunca
se entender que durante a União Ibérica se se utilizou o termo “espanhol”, para além de
usou a designação de “geral” e após a Res- que os governadores da Madeira, até aos finais
tauração a de “general”, ideia que fora lança- do séc. xviii, nunca superintenderam sobre a
da por Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825- capitania do Porto Santo.
-1898), nas suas anotações às Saudades da Terra Acresce que as nomeações do período fili-
de Gaspar Frutuoso, no que foi contrariado, pino privilegiaram, inclusivamente, a descen-
depois, por Damião Peres (1889-1976), que dência de João Gonçalves Zarco, nomeando
fora professor no Liceu do Funchal, em tra- para governadores da Madeira Tristão Vaz da
balhos editados no Porto em 1924 e 1925. No Veiga (1537-1604), em 1585, bisneto de Zarco
Funchal, a posição de Álvaro Rodrigues de e filho de Diogo Vaz da Veiga e de Brites Ca-
Azevedo foi defendida por Carlos de Azeve- bral; João Fogaça de Eça (c. 1550-c. 1620),
do de Meneses (1863-1928), nas páginas do em 1603, segundo neto por varonia de João
Diário da Madeira, em artigos de setembro de Gonçalves da Câmara, 2.º capitão do Funchal
1925, “com poderosos argumentos” (SILVA e e filho de António Gonçalves da Câmara, ca-
MENESES, 1998, II, 100). çador-mor de D. João III; e Jorge da Câmara
888 ¬ C ardoso , A gostinho G abriel de J esus

(c. 1570-c. 1630), o Poeta, em 1614, neto do Regional da Educação, 1991; FRUTUOSO, Gaspar, As Saudades da Terra. História
das Ilhas do Porto Santo, Madeira, Desertas e Selvagens, anot. Álvaro Rodrigues
4.º capitão do Funchal e filho natural de Rui de Azevedo, Funchal, Typ. Funchalense, 1873; PERES, Damião, O Desembargador
Gonçalves da Câmara, que fora capitão-mor João Leitão. Primeiro Governador Geral da Madeira, Porto, Empresa Industrial
Gráfica do Porto, s.d.; Id., “O problema dos governadores gerais da Madeira”,
de Barcelor e de Ormuz, na Índia, onde fale-
Revista de Estudos Históricos, ano 2, 1925, sep.; SILVA, Fernando Augusto da, e
cera. Com a vigência da Dinastia de Bragança, MENESES, Carlos Azevedo de, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, Secretaria
somente nos finais do séc. xviii, entre 1777 e Regional de Turismo e Cultura, 1998; VERÍSSIMO, Nelson, Relações de Poder na
Sociedade Madeirense do Século XVII, Funchal, DRAC, 2000.
1781, se voltou a sentar em S. Lourenço um
Câmara: João Gonçalves da Câmara Coutinho Rui Carita
(ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Registo de
Mercês, liv. 1, fl. 293).
Deixou pois de fazer especial sentido a anti- Cardoso, Agostinho Gabriel de
ga polémica “geral” versus “general”, até por Jesus
“geral” ser uma comum abreviatura de “gene-
Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso foi um
ral”, e o que está em causa são as funções de-
médico, político e jornalista madeirense nasci-
sempenhadas. A partir dos finais do séc. xvi, o
do no Funchal a 10 de julho de 1908, filho de
governo da Madeira passou a ser entregue a um
Domingos Cardoso e de Maria Natividade de
governador e capitão-geral, ouvido o Conselho
Jesus. Casou-se com Maria Prado de Almada,
de Portugal e sendo depois nomeado pelo mo-
com quem teve dez filhos.
narca, cargo sempre entregue a um elemento
Após o ensino secundário no Funchal, fre-
português da nobreza da corte, com mais ou
quentou a Faculdade de Medicina da Univ. de
menos experiência militar, o que vai continuar
Coimbra, tendo completado os estudos na Fa-
por todo o Antigo Regime até ao Liberalismo.
culdade de Medicina da Univ. de Lisboa.
Em julho de 1607, e.g., o Conselho de Por-
Como médico pneumatologista, Agostinho
tugal apreciou os nomes propostos pelo vice-
Cardoso iniciou a sua carreira clínica no Fun-
-rei D. Pedro de Castilho, bispo de Angra, para
o governo da Madeira, tendo o conde de Sa- chal, em 1933, pondo a funcionar o Dispensá-
linas, D. Diogo da Silva e Mendonça, filho de rio Antituberculoso, então inaugurado. Como
Rui Gomes da Silva, proposto o nome do caste- médico-chefe, abriu e organizou o Sanatório
lhano D. Diogo de Carcamo, o que acabou por Dr. João Almada em 1940, procedendo, mais
não passar na votação do conselho. Os restan- tarde, à sua ampliação e reequipamento.
tes conselheiros alvitraram que não seria por Como subdelegado do Instituto Nacional de
certo bem recebido por ser castelhano, para Assistência aos Tuberculosos da Madeira, pro-
além de poder vir a favorecer o presídio cas- moveu a construção do Preventório S.ta Isabel
telhano de S. Lourenço em prejuízo dos natu- e do Centro de Diagnóstico e Profilaxia do
rais, o que não seria conveniente, pelo facto de Funchal, responsáveis pela assinalável baixa da
ser “a gente daquela ilha pouco quieta” e estar mortalidade por tuberculose.
“em parte apartada, aonde o remédio (quando Como subdelegado de saúde do Funchal,
for necessário) chegará tarde” (VERÍSSIMO, planeou e organizou o Serviço de Saúde Mu-
2000, 134). Acabou por ser nomeado D. Ma- nicipal do Funchal, com quatro postos clínicos
nuel Pereira Coutinho, que tomou posse a nas áreas suburbanas, um posto no Funchal e
22 de novembro de 1607 (ABM, Câmara Mu- um Dispensário Higiénico Infantil.
nicipal do Funchal, Registo Geral, tombo 3, Participou no Congresso Internacional de
fl. 69v.), o qual tinha sido capitão-mor das naus Gerontologia, em Washington, e no Congresso
da Índia e depois foi governador de Angola, da União Internacional contra a Tuberculose,
entre 1630 e 1635. em Nova Iorque. Foi sócio do American Colle-
ge of Chest Phisicians.
Bibliog.: manuscrita: ABM, Câmara Municipal do Funchal, Registo Geral,
tombo 3, fl. 69v.; ANTT, Chancelaria de D. Maria I, Registo de Mercês, liv. 1, Foi presidente diocesano da Juventude Es-
fl. 293; impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. ii, Funchal, Secretaria colar da Ação Católica e do Conselho Central
C ardoso , A gostinho G abriel de J esus ¬ 889

para o estabelecimento dos Estatutos de Saúde


e Assistência e da Saúde Mental, para a Pro-
teção do Funcionalismo e para a Reforma Ad-
ministrativa do Estado. Além disso, manifes-
tou abertura política no sentido de promover
os interesses da Madeira, insistindo, ainda que
sem grande sucesso, no planeamento regional,
na promoção do turismo e do desenvolvimen-
to económico e na criação de um instituto in-
dustrial e comercial.
Agostinho Cardoso foi sensível à problemá-
tica da terceira idade, numa época em que
esta temática era pouco discutida e promo-
vida. Neste sentido, foi autor do aviso pré-
vio sobre “Problemas da população idosa do
nosso país – necessidade duma política de
velhice em Portugal”, que esteve na origem
de uma comissão de estudo presidida pelo
ministro de Estado. Participou, como confe-
rencista, nas I Jornadas Sociais sobre os Pro-
blemas da Terceira Idade, organizadas, em
Lisboa, pelo Conselho Internacional de Ser-
viços Sociais.
Fig. 1 – Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso, 1961 (AHP).

das Conferências de São Vicente de Paulo, que


procurou dinamizar, tendo participado, como
conferencista, nas Jornadas Nacionais come-
morativas do Centenário da Sociedade de São
Vicente de Paulo, em Lisboa.
Como político, alinhou no ideário do Esta-
do Novo e sua estrutura organizativa. Foi mem-
bro da Legião Portuguesa, desde a sua cons-
tituição, tendo sido nomeado comandante de
lança-médico. Foi presidente da Comissão Mu-
nicipal da União Nacional, o partido único do
Estado Novo, e da Comissão Distrital, entre
1950 e 1960 – no exercício desta função, com-
bateu a candidatura do Gen. Humberto Delga-
do às eleições presidenciais (1958), apoiando a
do contra-almirante Américo Tomaz.
Entre 1969 e 1974, foi deputado da Assem-
bleia Nacional pela Madeira, tendo sido elei-
to pela União Nacional/Associação Nacional
Popular. Neste âmbito, contribuiu, com as suas
intervenções, para a discussão da Lei do Ser- Fig. 2 – “Guerra á tuberculose”, Paulo Sá Braz, 1944
viço Militar, base jurídica da Guerra Colonial, (Re-Nhau-Nhau, 20 jun. 1944).
890 ¬ C ardoso , A lfredo E rnesto de S á

Foi autor de alguns trabalhos, entre os quais


uma obra em defesa da Guerra Colonial, de
1961 (data da sua eclosão em Angola e no cha-
mado Estado Português na Índia), intitulada
A Agressão Anticolonialista a Uma Pátria Pluri-Ra-
cial, onde seguia a linha ideológica do regime
do Estado Novo; escreveu, igualmente, A Ma-
deira e o Turismo Nacional, Portugal no Mundo de
hoje e de amanhã e O Fenómeno Económico-Social
da Emigração Madeirense. Com alguns destes tra-
balhos, manifestou estar atento à problemática
social que se vivia em Portugal antes da revo-
lução de 25 de abril de 1974. A propósito da
concessão, pelo Governo Sueco, do grau de ca-
valeiro da Ordem Vasa a este cidadão madei-
rense, em razão da sua ação como médico do
Hospício D. Maria Amélia, Luiz Peter Clode
lamenta ter sido a “única condecoração que
possuía depois de tanto bem fazer a toda a po-
pulação madeirense que não escondeu a sua
gratidão com a presença por ocasião do seu en-
Fig. 1 – Cor. Alfredo Ernesto de Sá Cardoso,
terramento” (CLODE, 1983, 109). 1922 (AHP).
Agostinho Cardoso faleceu no Funchal a 16
de dezembro de 1979.
Maio de 1915, chefiou por duas vezes o Gover-
Obras de Agostinho Gabriel de Jesus Cardoso: A Agressão Anticolonialista a
Uma Pátria Pluri-Racial (1961); A Madeira e o Turismo Nacional (1964); Portugal
no, integrou o Corpo Expedicionário Portu-
no Mundo de hoje e de amanhã (1967) O Fenómeno Económico-Social da guês (CEP) e ainda voltou depois ao Governo,
Emigração Madeirense (1968).
tendo sido, assim, uma das figuras incontorná-
Bibliog.: CLODE, Luiz Peter, Registo Bio-Bibliográfico de Madeirenses. veis da Primeira República.
Sécs. XIX e XX, Funchal, Caixa Económica do Funchal, 1983; Re-Nhau-Nhau,
20 jun. 1944; TRINDADE, Cristina, “Agostinho Cardoso”, in TRINDADE, Cristina
Fez os seus estudos no Colégio Militar, na Es-
(coord.), Madeira Empreendedora. 40 Figuras Empreendedoras da Cultura cola Politécnica e na Escola do Exército, onde
Madeirense, Lisboa/Porto/Viseu/Aveiro, Edições Esgotadas, 2019, pp. 191-196.
cursou Artilharia, assentando praça em 1880 e
António Moniz sendo promovido a alferes em 1886, data em
que foi mobilizado para Angola. Fixou-se então
em Luanda, trabalhando no governo do dis-
Cardoso, Alfredo Ernesto de Sá trito, de que foi secretário, e, em 1888, ainda
ocupou o lugar de governador da fortaleza de
Alfredo Ernesto de Sá Cardoso, de seu nome São Paulo de Luanda, ano em que regressou
completo, nasceu em Lisboa, a 6 de junho de ao continente e foi promovido ao posto de te-
1864, cidade onde faleceu, a 24 de abril de nente do Exército.
1950. Militar de carreira, professor e escritor, Animado pelos ideais republicanos, filiou-se
foi um ativo membro do Partido Republicano no Partido Republicano Português e alinhou
no final da monarquia, já então maçon, toman- nas várias revoltas antimonárquicas, como na
do parte em quase todas as movimentações re- de 31 de janeiro de 1891. Dois anos depois, em
publicanas, chefiando tropas na Rotunda, no 1893, foi iniciado na maçonaria, na loja Por-
5 de Outubro de 1910, e sendo, depois, gover- tugal, com o nome simbólico de Alaíde. Mais
nador civil do Funchal, entre 1913 e 1914. Par- tarde, já como capitão, posto que alcançou
ticipando, em seguida, na Revolução de 14 de em 1900, fundaria com o também capitão de
C ardoso , A lfredo E rnesto de S á ¬ 891

Artilharia José Afonso Pala (1861-1915) e os te-


nentes Hélder dos Santos Ribeiro (1883-1973)
e o madeirense Américo Olavo Correia de Aze-
vedo (1881-1927) os Jovens Turcos da Repúbli-
ca, grupo de oficiais que se destacou em 1907
e 1908 na luta contra a monarquia. Integrou,
nessa sequência, o comité militar para a Im-
plantação da República, tendo sido um dos or-
ganizadores do plano da revolta do 5 de Ou-
tubro de 1910, com o Cap. Afonso Pala, entre
outros, comandando ambos as tropas entrin-
cheiradas na Rotunda, em Lisboa, que se ha-
veriam de desentender com o comissário naval
António Maria de Azevedo Machado dos San-
tos (1875-1921), retirando dali as suas forças
militares e deixando-lhe o comando, essencial-
mente, de elementos civis da Carbonária.
Com a Implantação da República, no Go-
verno Provisório presidido por Teófilo Braga
(1843-1924), Sá Cardoso tornou-se chefe de
gabinete do ministro da Guerra, o coronel
Fig. 2 – Maj. Sá Cardoso na varanda da Câmara Municipal de
de Artilharia António Xavier Correia Barreto Lisboa, 14 de maio de 1915 (fotografia de Joshua Benoliel, AML).
(1853-1939), com quem trabalhara na Fábrica
da Pólvora. Este Governo durou até 3 de setem-
bro de 1911. Ambos regressaram depois à Fá- além dos inúmeros periódicos locais já existen-
brica da Pólvora, tendo Sá Cardoso, nesse ano tes, inclusivamente fora do Funchal, como os
de 1911, sido promovido ao posto de major. da Ponta do Sol, a 1 de maio de 1913 apareceu
O início do ano de 1913 foi marcado pela um novo bissemanário, O Liberal, tendo como
organização das listas das eleições legislativas diretor o advogado Remígio Gil Spínola Barre-
para o Congresso da República, com duas câ- to (1869-1963) e editor e administrador o mé-
maras, integrando Sá Cardoso nesse ano a dico José Maria Ferreira. Este periódico tinha
junta consultiva do Partido Republicano Portu- instalações na R. dos Ferreiros, no Funchal.
guês, tal como a lista dos candidatos pelo distri- Apresentando-se como órgão do Partido Re-
to de Viana do Castelo. Assistiu-se então a uma publicano Português e subscrevendo, logica-
profunda fragmentação da família republi- mente, as posições do novo governador, pou-
cana e, no Funchal, o então governador civil, cos dias depois, Sá Cardoso nomeava Spínola
João Maria de Santiago Prezado (1883-1971), Barreto como governador substituto.
acabou por se ver envolvido em toda essa tur- A família republicana madeirense encon-
bulência, que varreu quase todos os distritos trava-se dividida em três tendências, quando
portugueses, sendo acusado de falta de neutra- se aproximavam as eleições suplementares de
lidade, e, alegando motivos de saúde, embora 16 de novembro de 1913: os “democráticos”,
tivesse somente 27 anos, pediu a demissão em apoiantes de Afonso Costa (1871-1937) e onde
março, sendo nomeado governador civil da se encontrava o governador, os “unionistas” e
Madeira, a 20 desse mês, o Maj. Alfredo Ernes- os “evolucionistas”. Ainda se tentaram acordos,
to de Sá Cardoso. mas o governador acabou por assumir a dire-
A situação política madeirense não iria me- ção dos republicanos democráticos, que esco-
lhorar com o novo governador civil, e a frag- lheram como candidato o engenheiro agró-
mentação dos republicanos manter-se-ia. Para nomo João da Câmara Pestana (1871-1927),
892 ¬ C ardoso , A lfredo E rnesto de S á

Fig. 3 – Governo de Sá Cardoso de 1919 (Ilustração Portuguesa, 14 jul. 1919, 34).

diretor-geral da Agricultura e irmão do fale- Guerra Mundial, tendo mesmo abandona-


cido médico bacteriologista Luís da Câmara do essas funções para integrar o CEP, onde,
Pestana (1863-1899), que haveria de ganhar as como coronel, entre 1917 e 1918, comandou
eleições, mas abdicaria do lugar, dado também a Artilharia.
ter sido eleito como senador por outro círculo. Veio, entretanto, a opor-se militarmente ao
Resolvidas as eleições, a 24 de janeiro de golpe de Sidónio Pais (1872-1918), pelo que
1914 abandonava o lugar de governador civil foi preso, mas, assassinado esse, veio a parti-
do Funchal e regressava a Lisboa, onde ocu- cipar militar e pessoalmente na ofensiva con-
paria o seu lugar de deputado. Mas, um ano tra a Monarquia do Norte e a assumir o lugar
e pouco depois, participou no movimento de presidente do Ministério, de 29 de junho
que depôs o Gen. Joaquim Pimenta de Castro de 1919 a 21 de janeiro de 1920, acumulando
(1846-1918) da presidência do Governo, pro- a pasta do Interior. Apoiante depois de Álva-
clamando, a 14 de maio de 1915, na varanda ro de Castro (1878-1928), foi um dos funda-
da Câmara Municipal de Lisboa (CML), o res- dores dos “reconstituintes”, alinhando ainda
tabelecimento da Constituição, suspensa que com os “nacionalistas” e aderindo à dissidên-
fora pelo executivo derrubado. Neste mesmo cia da Aliança Republicana. Assumiria o cargo
ano, foi reeleito deputado, tal como sucedeu de ministro do Interior no Governo de Álvaro
em 1919 e 1922. Foi também eleito, várias de Castro, de 18 de dezembro de 1923 a 6 de
vezes, presidente da Câmara de Deputados e, julho de 1924, alcançando nesse ano o posto
inclusivamente nesse cargo, foi um dos defen- de general. Com o Movimento de 28 de Maio
sores da participação de Portugal na Primeira de 1926, seria de novo preso e desterrado para
C ardoso , E dgar ¬ 893

Cabo Verde e, depois, para os Açores, de onde Foi o Eng.º Edgar Cardoso que projetou a
regressou em 1934, quando passou à reserva, primeira ampliação do aeroporto da Madei-
por ter atingido o limite de idade. Contudo, ra. A pista foi aumentada, entre 1982 e 1986,
ainda aceitou a presidência da Comissão Exe- para 1800 m e executada em vigas de betão
cutiva dos Padrões da Grande Guerra, onde prefabricadas, assentes sobre pilares de betão
tentou desenvolver alguma atividade políti- armado. Os seus estudos sobre a ampliação
ca à sombra dos antigos valores da Comissão, do aeroporto da Madeira seriam, mais tarde,
fazendo palestras na então Escola Militar, no adaptados pelo Eng.º António Segadães Tava-
Porto e em outros locais, inclusivamente pu- res para o projeto de extensão da pista, parcial-
blicadas. Sá Cardoso compreendeu, entretan- mente construída em laje sobre o mar.
to, que, com a entrada oficial no Estado Novo, Centenas de estudos e projetos de pontes, ae-
a época era outra, procedendo ao encerra- roportos, portos e grandes edifícios em todo
mento da Comissão dois anos depois, a 10 de o mundo constituem a obra do Eng.º Edgar
novembro de 1936, e publicando o relatório Cardoso.
geral da mesma Comissão (1921-1936), na ti- “O Engenheiro genial, o Professor singu-
pografia da Liga dos Combatentes, até certo lar, o investigador sem paralelo, o inventor de
ponto herdeira daquele ideário. Retirou-se prodigiosa diversidade, o artista plástico das
então da vida política ativa. pontes, o inovador incansável no domínio das
soluções, o homem invulgarmente inteligen-
Bibliog.: BRANDÃO, Pedro Ramos, e FIDALGO, António Chaves, A Maçonaria
e a Participação de Portugal na I Guerra Mundial, Lisboa, Casa das Letras, 2014;
te e humanista, o amigo de tantos que a ele
CARITA, Rui, Roteiros Republicanos. Madeira, Matosinhos, QuidNovi, 2010; recorreram, o Mestre entrou na história da
Ibid., “A Comissão dos Padrões da Grande Guerra do general Gomes da
Costa; padrões, monumentos e túmulos do Soldado Desconhecido”, in Atas
do XXVIII Colóquio de História Militar. 1916-1918: Portugal, do Armistício à
Ditadura Militar, Lisboa, Comissão Portuguesa de História Militar, 2018,
pp. 383-396; Ilustração Portuguesa, 14 jul. 1919; MARQUES, A. H. Oliveira et al.,
Parlamentares e Ministros da 1.ª República (1910-1926), Lisboa, Afrontamento,
2000; MARTINS, Teresa Florença, O Movimento Republicano na Madeira.
1882-1913, Funchal, CEHA, 2004.

Rui Carita

Cardoso, Edgar
Edgar Cardoso nasceu no Porto, a 11 de maio
de 1913. Estudou Engenharia na Faculdade
de Engenharia da Univ. do Porto. Apesar do
seu inicial interesse por Engenharia Eletro-
técnica, acabou por se formar em Engenharia
Civil, iniciando a sua carreira profissional na
Divisão de Pontes da Junta Autónoma de Es-
tradas, em Lisboa.
Integrou, em 1951, o corpo docente do Ins-
tituto Superior Técnico, como professor cate-
drático de Pontes. O próprio considerava-se
um engenheiro para idealizar e realizar, pelo
que afirmava que a sua atividade como profes-
sor era uma obrigação para com o seu país: de
ensinar o que tinha estudado ou conhecido.
Eng.º Edgar Cardoso, c. 1995 (Engenho e Arte,
Jubilou-se em 1983. João Bastos, jun. 2020).
894 ¬ C aricaturistas

Engenharia e na de Portugal do séc. xx” (SOA- Em janeiro de 1967, foi lançado num pro-
RES, 2003). grama da RTP, Lugar aos Novos, produzido
Morreu com 87 anos, em julho de 2000. A sua pelo maestro Melo Pereira. No mesmo ano,
morte foi assinalada com um voto de pesar da lançou o EP Como Um Calhau Rolado. Foi con-
Assembleia da República, que o referiu como vidado a integrar o elenco da revista Pois,
um grande português. Pois..., que estreou no Teatro Variedades,
ao Parque Mayer, em Lisboa, a 9 de dezem-
Bibliog.: Edgar Cardoso. Vida e Obra, Resende, Museu Nacional de Resende,
2006; PAULINO, Francisco Faria, e SILVA, Susana, Aeroporto da Madeira. bro de 1967. Participou como convidado no
A História de Um Sonho, Funchal, Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira/ programa de entretenimento Riso e Ritmo, da
Edicart, 2000; SOARES, Luís Lousada, Edgar Cardoso. Engenheiro Civil, Porto,
Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, 2003. RTP.
Em 1970, venceu o título de Rei da Rádio,
Ana Rita Londral
atribuído pela Rádio Antena 1. Na déc. de
1980, foi diretor artístico da discoteca Monte
Cardoso, Gabriel Carlo, mais tarde denominada Loucuras. De
Carlos Paião, gravou os temas “Tímido” e “En-
Gabriel Faustino de Abreu Cardoso é o garrafamento”. Com produção de Toy, gravou
nome de um cantor português de música li- “Viver a cantar 25 anos”. Entre os seus maiores
geira nascido no Arco de São Jorge a 15 de sucessos, merece especial destaque “Festival do
março de 1943. Era filho do maestro e fun- amor”, “Ericeira” e “Venham amigos”.
dador da banda da freguesia do Arco de São Participou em diversos festivais de música,
Jorge e irmão de Cecília Cardoso, também programas de televisão e digressões, tanto em
cantora, conhecida com vários discos grava- Portugal como no estrangeiro, designadamen-
dos. Gabriel Cardoso integrou, com outros te nos Estados Unidos e no Canadá, em espetá-
estudantes, o movimento estudantil musical culos junto das comunidades portuguesas.
gerado pela “febre dos Beatles” na déc. de 60 Morreu em Lisboa, a 8 de fevereiro de 2000.
do século xx.
Cumpriu o serviço militar em Angola, para o Discog.: Canto Estes Dias Felizes, Limão; Cigano, Vão as Nuvens Vem o Sol; De
Dia para Dia, É Inútil, Quem Manda neste Mundo É o Dinheiro, Poema a Meu
que teve de interromper os estudos em Direi- Irmão; Emigrante, Miragem; Ericeira, Custa a Crer; Eu já não Creio; Moreninha;
to. De regresso à pátria, estreia-se nos Açores, Tu Sabes, Um Certo Outono; Vamos Sorrir e Cantar, Amiga Dê Tempo ao Tempo;
Viver a Cantar 25 Anos, Sonho por Sonho; Como Um Calhau Rolado (1967);
no Teatro Micaelense, de Ponta Delgada.
Festival do Amor, ao Meu Amor (1970); Estrada Minha Verdade (1971); Oh Meu
Amor, Engarrafamento (1982); Tímido, Aleluia para o Sonho (1985).

Bibliog.: VILELA, Joana Stichini, e MROZOWSKI, Nick, LX 60. A Vida


em Lisboa nunca mais Foi a Mesma, Lisboa, Dom Quixote, 2012; digital:
“Gabriel Cardoso”, Facebook, s.d.: http://www.facebook.com/pages/
GabrielCardoso/280476458654601 (acedido a 21 jul. 2015); “Gabriel Cardoso”,
Ié-Ié, 9 fev. 2010: http://guedelhudos.blogspot.pt/2010/02/gabriel-cardoso.html
(acedido a 21 jul. 2015); “Gabriel Cardoso”, Wikipédia, s.d.: http://pt.wikipedia.
org/wiki/Gabriel_Cardoso (acedido a 24 mar. 2015).

Teresa Norton Dias

Caricaturistas
A caricatura política no âmbito da comunica-
ção social e do desenho mais ou menos hu-
morístico não ganhou especial visibilidade na
Madeira antes dos finais do séc. xix e inícios
do xx, quando no continente europeu era
prática de há muito comum. Na área das al-
Gabriel Cardoso, 1970 (single “Festival do amor”, Estúdio SIM). cunhas pessoais, na maioria das vezes nascidas
C aricaturistas ¬ 895

Fig. 1 – “Eleição do Funchal. Uma lição d’independencia”, Rafael Fig. 2 – “O grande terramoto politico”, caricatura da dissolução da
Bordalo Pinheiro, 1882 (O António Maria, 30 nov. 1882, 486). Sociedade Alemã dos Sanatórios, 1907 (A Chacota, 25 fev. 1907).

da caricatura física e social, no entanto, pare- Circulavam, no entanto, na Ilha, por certo,
ce sempre ter tido ampla divulgação, como tes- caricaturas em litografias, como é o caso das
temunharam alguns viajantes estrangeiros nos editadas por Rudolph Ackermann (1764-1834)
meados do séc. xix. A atenta inglesa Isabella de e, em especial, as desenhadas por Thomas
França (1794-1880), e.g., elenca inúmeras alcu- Rowlandson (1756-1827). Os acontecimentos
nhas na Madeira, mesmo em relação às prin- em Portugal não escaparam à sátira política
cipais famílias, dando os madeirenses como britânica da época, nomeadamente o assédio
tendo “extraordinária propensão geral para às freiras portuguesas pelos oficiais britânicos
as alcunhas” (FRANÇA, 1970, 94). A prince- (ROWLANDSON, 1811), pelo que devem ter
sa Maria Carlota de Áustria (1840-1927), pela chegado ao Funchal. Ackermann, inclusiva-
mesma época, refere que o administrador do mente, publicou A History of Madeira (1821)
concelho, então Tarquínio Torcato da Câma- com ilustrações caricaturais, dadas como fei-
ra Lomelino (1818-1888), era apelidado sem- tas por alguém há muito residente em Portu-
pre na folha local O Direito de “o paxá de três gal ou na Madeira, que pode ter sido o Ten.-
caudas” (MAXIMILIANO DE HABSBURGO e -Cor. Paulo Dias de Almeida (c. 1778-1832) ou,
CARLOTA DA BÉLGICA, 2011, 113-114). Na mais provavelmente, o Cap. Vicente de Paula
Madeira, a caricatura social e a política teriam, Teixeira de Nóbrega (c. 1790-c. 1850), mestre
assim, permanecido nas alcunhas ou apelidos das obras municipais, pois que desenhos muito
e só muito mais tarde teriam passado à repre- semelhantes acompanham as várias versões da
sentação gráfica. Descrição da Ilha da Madeira, de 1817, daquele
896 ¬ C aricaturistas

tenente-coronel, com quem sempre trabalhou se manteve na comunicação social madeiren-


Vicente de Paula. se (PINHEIRO, 30 nov. 1882, 486). O Seringa
As primeiras publicações madeirenses que copia mesmo desenhos de Bordalo Pinhei-
conhecemos que utilizaram a caricatura pare- ro, como em “Um instantâneo… do natural”,
cem ter sido A Chacota, periódico que iniciou a onde o Zé Madeirense é metido numa prensa
sua publicação a 9 de dezembro de 1906 e ter- pelas Autoridades e pelo Comércio (O Seringa,
minou a 3 de setembro do ano seguinte, tendo 10 jun. 1918), ou emparedado, como “diversos
saído 25 números, a que se seguiu O Seringa, gajos queriam fazer ao Seringa” (O Seringa, 21
entre 3 de junho de 1918 e 21 de agosto do ago. 1918).
mesmo ano. O primeiro caricaturou a situa-
ção da Sociedade dos Sanatórios, e o segundo
a crise que levou ao poder Sidónio Pais (1872-
Re-Nhau-Nhau
-1918). Tudo aponta, assim, face à curta vigên- O panorama de aceitação da caricatura po-
cia destes periódicos, para ter sido muito difícil lítica mudou bastante com o aparecimento
a introdução da publicação de caricaturas no do trissemanário humorístico Re-Nhau-Nhau
meio social madeirense. (1929-1977), porventura o periódico de mais
Os modelos gerais seguidos, tanto em O Se- longa duração do género em Portugal: 48
ringa como nos seguintes periódicos, foram os anos. O primeiro número, de perto dos finais
divulgados por Rafael Bordalo Pinheiro (1846- de 1929, ostentava um guarda obeso farda-
-1905), inclusivamente nas caricaturas respei- do, de bigode abundante, empunhando um
tantes à Madeira e à eleição de Manuel de Ar- nabo, numa caricatura da Estátua da Liberda-
riaga (1840-1917), em 1882, como deputado. de, recortando-se sobre uma cruz aureolada,
Na célebre caricatura publicada em O António num pequeno pedestal e com um cão mais ou
Maria, o artista português criou, à semelhança menos sarnento aos pés. Apresenta como títu-
do seu Zé Povinho, um Zé Madeirense com bar- lo, a partir do nabo, “donde irradia a Ordem
rete de vilão, figura que, com poucas variantes, e o Progresso!” (Re-Nhau-Nhau, 20 dez. 1929).
Poucos dias depois, o n.º 2, mais contido, apre-
sentava o Ano Velho com barrete de vilão com
o rolo dos intermináveis planos para o porto
do Funchal, planos de que o Ano Novo, logi-
camente, se demarca (Re-Nhau-Nhau, 31 dez.
1929).
O Re-Nhau-Nhau foi fundado por jovens entre
os 17 e os 24 anos, e foi dirigido por João Mi-
guel e Pedro Alberto Gonçalves Preto, que hu-
moristicamente, nos meados da déc. de 60, se
apresentava por vezes como Alberto Gonçalves
“de cor ausente”. Para as suas páginas trabalha-
ram os melhores caricaturistas madeirenses de
então, não deixando os mesmos, no entanto,
de colaborar noutros periódicos, também no
continente. Com uma equipa constituída por
elementos quase todos politicamente enfeu-
dados e alguns, por vezes, presos, desenvolve-
ram uma bem-sucedida estratégia para escapar
Fig. 3 – “Um instantaneo... do natural”. A crise de subsistências à censura, instituída precisamente pelas altu-
de 1918, representada pelo Zé Madeirense prensado
por duas senhoras, identificadas como A Brandura da Autoridade
ras da fundação do periódico, estratégia assen-
e A Especulação do Comércio (O Seringa, 10 jun. 1918). te numa certa educação e numa velada crítica
C aricaturistas ¬ 897

O Re-Nhau-Nhau veio a ser adquirido, com


o falecimento de Gonçalves Preto, pela ativa
empresária açoriana Maria da Trindade de
Mendonça (1916-1997), mas não resistiria ao
período conturbado da implantação da de-
mocracia e da autonomia. Nos inícios da déc.
de 90 voltaria a surgir, essencialmente com
o mesmo espírito, mas tendo sido alterado o
gato do cabeçalho, que ganhou outro destaque
e também uma outra agressividade, típica da
época; acrescentaria ao título, nas encaderna-
ções, A História Alegre da “Madeira Nova”, bem
indicativo de ser então bastante mais irreveren-
te. Apareceu, no entanto, de forma discreta e
quase clandestina, sendo vendido por assinatu-
ra e em fotocópias.

Caricaturistas do Re-Nhau-Nhau
O caricaturista Roberto Luís Paiva e Cunha
(1904-1966), da fundação do inicial Re-Nhau-
-Nhau, que assinava Terrique, foi o autor do
desenho do cabeçalho que celebrizou a publi-
Fig. 4 – “[O nabo] donde irradia a Ordem e o Progresso”
(Re-Nhau-Nhau, 20 dez. 1929). cação, um gato de alguma forma também ins-
pirado nos de Bordalo Pinheiro. Miniaturista e
às autoridades, mas também congratulando-se ceramista de grande sensibilidade, empregado
com a nomeação de algumas figuras para car- da casa inglesa Cable and Wireless, acabou por
gos diretivos e com o trabalho desenvolvido abandonar o grupo de trabalho inicial, com-
por outras. prometendo-se a desenhar as capas dos núme-
Ficaram assim célebres, e.g., as caricaturas de ros de aniversário do periódico. A semelhança
Fernão Ornelas (1908-1978), que, assumindo com alguns trabalhos posteriores, que, salvo
os destinos da autarquia do Funchal, em janei- na indicação das autorias, parecem da mesma
ro de 1935, somente com 27 anos, foi caricatu- mão, leva-nos a pensar que teria mantido al-
rado tomando posse de triciclo (Re-Nhau-Nhau, guma parceria com os outros elementos do
19 jan. 1935); nos anos seguintes, seria cari- grupo dos caricaturistas. O mais prolífero cari-
caturado de quase toda a forma e feitio, mas caturista, no entanto, terá sido João Ivo Ferrei-
acabou por merecer os mais rasgados elogios ra (1910-1980), que, embora tivesse somente
deste periódico no final do seu mandato, refe- a 4.ª classe, tinha uma grande capacidade in-
rindo-se, inclusivamente, a forma como tinha ventiva e uma forte motivação política, tendo
sido apresentado e colocando-o ao colo do Zé colaborado no Notícias da Madeira em maio de
Madeirense. Descreve-se então na primeira 1931, quando ocorreu a Revolta da Madeira.
folha que “Bem o merece. O Dr. Fernão Or- Outros elementos foram trabalhando para o
nelas, que já passou por esta página de varia- Re-Nhau-Nhau, como o caricaturista Abel, logo
díssimas formas, de triciclo, de automóvel, de no primeiro número, depois Mendonça Rosa,
avião, de tanque bombardeiro, etc., hoje passa que, pelo menos em 1931, colaborou também
ao colo do respetivo Zé como filho amado da com o quinzenário O Fixe, onde já tinham tra-
nossa família municipal” (Re-Nhau-Nhau, 10 balhado Gonçalves Preto, Cardoso, Ferroso,
out. 1946). Rex e outros, figuras de que dificilmente se
898 ¬ C aricaturistas

carreira de sucesso pela mão do artista brasilei-


ro radicado em Lisboa Thomaz de Mello, Tom
(1906-1990), sócio da Galeria UP. Nesta gale-
ria, a primeira galeria moderna comercial da
capital portuguesa, embora algo efémera – só
funcionou entre 1933 e 1936 –, Teixeira Cabral
passou a expor os seus trabalhos com os maio-
res artistas portugueses do seu tempo, datan-
do desses anos a colocação em quase todos os
seus trabalhos de uma pequena autocaricatu-
ra, em articulação ou não com a sua assinatura.
Seguindo as pisadas de Thomaz de Mello, que,
além da caricatura, se dedicara, a partir da fun-
dação da galeria, a uma pintura decorativa que
marcou aquela época e as suas diversas expo-
sições nacionais e internacionais, Teixeira Ca-
bral desenvolveu um estilo pessoal de enorme
poder inovador de síntese, apresentando a ca-
ricatura “com a sua arguta visão e interpreta-
ção”, num trabalho “elegante, original e inteli-
gente” (MACEDO, 1934, 3). Caricaturou assim
o meio intelectual da época, com especial des-
Fig. 5 – “Pilar de Banger que Deus haja…”, João Abel de Freitas, taque para alguns madeirenses, como o poeta
Fernando Augusto da Silva, Carlos Santos e a condessa de Torre
Bela, D. Isabel Constança Gordon Bolger; Paulo Sá Brás, 1939
Edmundo Bettencourt (1889-1973) e o Arqt.
(Re-Nhau-Nhau, 20 jun. 1939, 10). Raul Lino (1879-1974), que, não sendo natural
da Ilha, trabalhava então para a Câmara Muni-
cipal do Funchal.
conseguiram recuperar outros elementos para Por 1938, aparece a colaborar no Re-Nhau-
a história. Não teria assim sido por acaso que, -Nhau o jovem Paulo Sá Brás, que não contava
na ampliação de 1940 do Elucidário Madeirense, ainda 19 anos e cujo trabalho sobre o comen-
obra por excelência do Estado Novo, não cons- dador Harry Hinton (1859-1948), como “3.º
ta este trissemanário, já então gozando de enor- rei da Garapa” (Re-Nhau-Nhau, 8 ago. 1938),
me divulgação, tal como também se não refere teve logo honras de primeira página. Nascido
O Fixe, fundado em 1927. A caricatura era, efe- no Funchal, a 16 de setembro de 1919, deve
tivamente, à época, uma forma de arte muito ter entrado para a caricatura pela mão de
pouco amada, e o severo Fernando Augusto da João Ivo Ferreira, membro do Partido Comu-
Silva (1863-1949), autor principal do Elucidá- nista, pois que em 1936 aparecem ambos re-
rio, não deve ter apreciado ser caricaturado por feridos na Revolta das Águas da Ponta do Sol.
Paulo Sá Brás (1919-2003) a defender, de es- O seu trabalho, no entanto, iria evoluir rapi-
pingarda na mão, o Pilar de Banger (Re-Nhau- damente, tornando-o talvez o elemento de
-Nhau, 20 jun. 1939, 10). Pelas páginas do Re- maior qualidade até ao final deste trissemaná-
-Nhau-Nhau, entre 1930 e 1934, também passou rio. Esse lugar seria assumido neste periódi-
o caricaturista madeirense António Teixeira co através do especial destaque gráfico dado
Cabral (1910-1980), radicado em Lisboa desde a alguns dos seus trabalhos, como as caricatu-
os anos 20. Tinha começado a sua atividade na ras de Harry Hinton de 1939 (Re-Nhau-Nhau,
capital como caricaturista no Sempre Fixe, em 22 abr. 1939) e de 1940 (Re-Nhau-Nhau, 6 abr.
1928, seguindo-se, no início dos anos 30, uma 1940), e as de Fernão Ornelas (Re-Nhau-Nhau,
ligação ao Diário de Notícias e, a partir daí, uma 16 mar. 1940), com impressão a duas cores, o
C aricaturistas ¬ 899

Fig. 6 – Raul Lino, Teixeira Cabral, 1956 (coleção particular).


900 ¬ C aricaturistas

que para a época, e para este periódico, era 13 jun. 1974). Colaborou também na exposi-
um luxo. ção de caricaturas das festas de fim de ano de
Nos últimos anos do Re-Nhau-Nhau, Paulo Sá 1974, exposição que veio a ser encerrada com-
Brás já surge a publicar também trabalhos no pulsivamente nos primeiros dias do ano se-
célebre e refundado Comércio do Funchal (1966- guinte, dado o aparecimento de caricaturas da
-1975), e a capa que criou para a edição de 1 de Igreja madeirense. Nos anos seguintes, limita-
maio de 1974, com os ex-governantes Marcelo ria os seus trabalhos a caricaturas de um grupo
Caetano (1906-1980) e Américo Tomás (1894- restrito de amigos na Madeira, trabalhando a
-1987), “à sombra amena da bananeira” (Comér- crayon de óleo sobre cartolina, mas afastando,
cio do Funchal, 1 maio 1974), contribuiria deci- em princípio, a hipótese da sua publicação. Re-
didamente, com a equipa daquele periódico e gressaria, no entanto, nos finais da déc. de 80
a manifestação desse dia, para uma mudança com caricaturas na revista Atlântico e, na déca-
total da vida política da Madeira. Sá Brás man- da seguinte, como um dos elementos de refe-
teria a sua colaboração naquele periódico até rência da ilustração da nova versão do Re-Nhau-
ao desaparecimento do mesmo, com algumas -Nhau. Retirar-se-ia entretanto para Lisboa, aí
caricaturas notáveis à época, tais como a de An- falecendo a 3 de janeiro de 2003, mas o seu le-
tónio de Spínola (1910-1996) (Comércio, 20 jun. gado permaneceria nos anos seguintes através
1974) e as dos membros da anterior oposição do traço de Toríbio e depois de outros.
democrática da Madeira (Comércio, 20 maio, Os finais do séc. xx e os inícios do xxi pro-
piciaram o aparecimento do cartoon, desenho
humorístico mais sintético, com pequenas tiras
sequenciais e apontamentos de caricatura po-
lítica, nos principais periódicos madeirenses,
onde chegou a trabalhar pontualmente Maurí-
cio Fernandes (1951-2001), mas sem o âmbito
alargado dos anteriores periódicos de sátira po-
lítica. Na sequência do último Re-Nhau-Nhau,
apareceram também outros periódicos, como
o Garajau e, depois, o Quebra-Costas, entre ou-
tros, mas de carácter quase panfletário, cujo es-
tudo terá de esperar alguns anos de afastamen-
to para um correto enquadramento e análise.
Periódicos com caricaturas: Atlântico, n.º 20, 1989, pp. 248-249, 252-253 e 257;
A Chacota, 9 dez. 1906-3 set. 1907; Comércio do Funchal, 1 maio 1974; 20 maio
1974; 20 jun. 1974 (ed. regional); 13 jun. 1974; Re-Nhau-Nhau, 20 dez. 1929; 31
dez. 1929; 19 jan. 1935; 8 ago. 1938; 22 abr. 1939; 20 jun. 1939; 16 mar. 1940; 6
abr. 1940; out. 1946; O Seringa, 10 jun. 1918; 21 ago. 1918.

Bibliog.: O António Maria, 30 nov. 1882; CARITA, Rui, Paulo Dias de Almeida e
a Descrição da Ilha da Madeira, Funchal, DRAC, 1982; A Chacota, 25 fev. 1907;
Comércio do Funchal, 1 maio 1974; FRANÇA, Isabella de, Jornal de Uma Visita à
Madeira e a Portugal. 1853-1854, Funchal, JGDAF, 1970; GOMES, Fátima Freitas,
e VERÍSSIMO, Nelson, A Madeira e o Sidonismo, Funchal, DRAC, 1983; A History
of Madeira. With a Series of Twenty Seven Coloured Engravings Illustrative of the
Costumes, Manners, and Occupations of the Inhabitants of That Island, London,
Rudolph Ackermann, 1821; MACEDO, Diogo de, “O caricaturista Teixeira
Cabral visto pelo escultor Diogo de Macedo”, Diário de Lisboa, 30 maio 1934,
p. 3; MAXIMILIANO DE HABSBURGO, e CARLOTA DA BÉLGICA, Memórias
da Minha Vida e Um Inverno na Madeira, Lisboa, Sopa das Letras, 2011;
Re-Nhau-Nhau, 20 dez. 1929; 20 jun. 1939; ROWLANDSON, Thomas, Pastime in
Portugal or A Visit to the Nunnerys, London, Thomas Tegg, 1811; O Seringa,
10 jun. 1918; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
Fig. 7 – “Cartaz turístico, à sombra amena da bananeira”, Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998.
Marcelo Caetano e Américo Tomás na Madeira; Paulo Sá Brás,
1974 (Comércio do Funchal, 1 maio 1974). Rui Carita
C arlos I ¬ 901

Carlos I
D. Carlos I nasceu em Lisboa a 28 de setembro
de 1863. Filho primogénito do Rei D. Luís I
e da Rainha D. Maria Pia de Saboia, subiu ao
trono em 1889, tendo sido o penúltimo rei
de Portugal. Morreu a 1 de fevereiro de 1908,
quando foi atingido a tiro no Terreiro do Paço
no momento em que seguia com a família em
direção ao palácio das Necessidades.
Sete anos antes, o monarca e a mulher, a Rai-
nha D. Amélia, haviam realizado uma visita aos
arquipélagos da Madeira e dos Açores. Foi uma
deslocação histórica, pois foi a primeira gran-
de visita de Estado portuguesa do século xx.
A importância da deslocação dos monarcas
a território insular está aliás bem patente nos
relatos da imprensa da época. A visita dos sobe-
ranos à Madeira decorreu entre os dias 22 e 25
de junho de 1901, mas o assunto era já notícia
nas semanas anteriores, com os jornais a comu-
nicarem pormenores da agenda real e a vinca-
rem a importância do acontecimento para as
gentes insulares. Um dia antes da chegada do
Rei, o Diário de Notícias, na sua edição de 21
de junho de 1901, escrevia que “a viagem de
Suas Majestades às ilhas da Madeira e Açores
constitui nos dois arquipélagos o assunto pre-
dominante em torno do qual volitam, como
enxame em volta do cortiço, as discussões e
comentários do público”. O matutino explica-
va que o entusiasmo popular poderia trazer o Fig. 1 – D. Carlos I, Adolfo Rodrigues, 1895
(coleção da Câmara Municipal do Funchal).
benefício de “atrair as simpatias dos chefes de
estado para esta formosa ilha, cuja recordação
jamais se lhes olvidará”, além de ser capaz de Senhora D. Amélia, num artigo que realçava
“insuflar na monotonia da vida normal da po- a importância da deslocação oficial e o seu ca-
pulação uma atividade social e comercial, em- rácter inédito. Nessa edição, narrava-se uma
bora transitória, mas de gerais e benéficas con- cidade engalanada para corresponder à “altís-
sequências”. O texto terminava realçando que, sima honra de hospedar os Augustos Monar-
“no estrangeiro, ministros e chefes de Estados cas Portugueses”. Afinal, “pela primeira vez,
conhecem perfeitamente todas as províncias após quasi cinco séculos da sua feliz descober-
dos seus países. Bom é que isto suceda igual- ta, pelos arrojados navegantes João Gonçalves
mente na monarquia portuguesa” (DN, 21 jun. Zargo e Tristão Vaz Teixeira, recebe a Madeira
1901, 1). a inolvidável distinção da visita dos seus Reis”.
Um dia depois da chegada dos monarcas à O longo artigo não se limitava, no entanto, a
Madeira, o mesmo Diário de Notícias, na edi- ser elogioso, mas deixava bem claras as condi-
ção de 23 de junho de 1901, fazia primeira pá- ções de vida das populações e a necessidade
gina com uma gravura do Rei D. Carlos e da de estas se tornarem conhecidas para o reino:
902 ¬ C arlos I

Fig. 2 – Arco triunfal da visita régia na entrada da cidade, Vicente Gomes da Silva (filho), 22 de junho de 1901
(ABM, Photographia Vicente, cx. 292, n.º 5).

“Aqui verão Suas Majestades a exuberância fer- dirige-se diretamente ao Cons. Hintze Ribeiro,
tilíssima deste solo, a ridente paisagem destas a quem apela para fazer eco dos queixumes do
montanhas, a pureza deste céu, a amenidade povo e acabar “com a triste lenda […] da Irlan-
deste clima. […] A Flor do oceano tudo deve da Lusitana” (DN, 23 jun. 1901, 1).
à natureza e pouco ou nada à arte e proteção Pesem embora as queixas, a verdade é que
dos poderes públicos”. De qualquer modo, o todos os jornais da época relatam uma cidade
jornal destaca que o povo humilde e trabalha- transformada para receber os soberanos, que
dor recebe em festa os seus monarcas, descre- percorreram vários locais do Funchal sempre
vendo “os rodilhões de fumo das salvas de ar- seguidos por uma enorme multidão. O entu-
tilharia que saudaram as Majestades […] e os siasmo pela visita estava, aliás, bem patente
brados d’entusiasmo unânime soltados por nas primeiras páginas da imprensa. O Correio
milhares de bocas”. E acrescenta o matutino: da Tarde, que se assumia como católico e no-
“Um povo que mostra aos Reis que apesar dos ticioso, publicou mesmo, a 22 de junho de
justos motivos de queixa que tem contra os ho- 1901, “um número especial destinado a con-
mens da pública governação, do abandono e sagrar e perpetuar esta honrosa e auspiciosa
esquecimento a que tem sido condenado, sabe visita”. Em várias páginas, nas quais também
manter-se com brio, à altura dos seus créditos se reproduziam duas gravuras de D. Carlos I e
de povo hospitaleiro e amante dos seus Mo- da Rainha D. Amélia, descrevia-se que “nunca
narcas”. No artigo, refere-se a visita como uma tamanha gala esta terra viu nem tamanho en-
oportunidade para a Coroa ficar a conhecer o tusiasmo nela palpitou” (Correio da Tarde, 22
estado de abandono e atraso da terra. O artigo jun. 1901, 2).
C arlos I ¬ 903

Fig. 3 – D. Carlos e D. Amélia em carro de bois, Lg. do Chafariz, 23 de junho de 1901


(ABM, Photographia Vicente).

Mas, enquanto o povo palpitava de entusias- do poder central face às dificuldades insulares.
mo perante a inédita situação de hospedar em Disso fizeram eco os jornais, embora toda a vi-
território insular tão real presença, os jornais sita tivesse decorrido em ambiente de festa e
dos dias seguintes não perdiam a oportunidade sem qualquer reclamação ou manifestação por
para, a par do relato da visita, chamar a aten- parte do povo.
ção para as necessidades da terra e das suas gen-
tes. Novamente o Diário de Notícias, na sua edi- Bibliog.: BRANCO, Maria de Fátima Ramos, e MONGE, Maria de Jesus,
“Palácio de São Lourenço: símbolo e espelho do poder”, Islenha, n.º 50,
ção de 25 de junho de 1901, embora admitindo
jan.-jun. 2012, pp. 23-32; CARITA, Rui, A Visita do Rei D. Carlos à Companhia
que a altura festiva não era propícia para os jor- de Artilharia de Guarnição em 24 de Junho de 1901, catálogo de exposição
nais estarem a reclamar das necessidades do patente no Teatro Municipal do Funchal, Funchal, texto policopiado, 1987;
Id., “Uma mesa de embutidos madeirense”, Atlântico, n.º 17, 1989, pp. 35-38;
povo, apelava ao Cons. Hintze Ribeiro para “em Id., História da Madeira, vol. vii, Funchal, Secretaria Regional da Educação/
qualquer oportunidade, pois que lhe escasseia Universidade da Madeira, 2008; Id., “A visita régia de D. Carlos à Madeira
em 1901”, in Política Diplomática, Militar e Social do Reinado de D. Carlos no
o tempo de o fazer agora, percorrer esta ilha Centenário da Sua Morte, XVIII Colóquio de História Militar. Actas, Lisboa,
onde a par de muitas belezas naturais encontra- Comissão Portuguesa de História Militar, 2009, pp. 61-72; Id., Roteiros
Republicanos, Madeira, Lisboa/Porto, Comissão Nacional para a Celebração
ria o mais deplorável atraso de melhoramentos dos 100 Anos da República/Diário de Notícias/Jornal de Notícias, 2010;
públicos – especialmente no que respeita a es- Correio de Tarde, Funchal, 22 jun. 1901; Diário de Notícias, Funchal, 21 jun.
1901; 23 jun. 1901; 25 jun. 1901; GONÇALVES, Manuel, O Feiticeiro do Norte.
tradas e levadas de irrigação, fatores indispen- A Chegada de Suas Magestades (22 de Junho de 1901), Funchal, Tip. Livraria
sáveis de fomento agrícola, fonte primacial da Popular, 1929; NÓBREGA, Cyriaco de Brito, A Visita de Suas Majestades os
Reis de Portugal ao Archipélago Madeirense. Narração das Festas, Funchal,
riqueza d’esta ilha” (DN, 25 jun. 1901, 1). Tip. Esperança, 1901.
Fica claro que a visita do Rei D. Carlos I gerou
grandes esperanças de uma maior consciência Raquel Gonçalves
904 ¬ C arlos de Á ustria

Carlos de Áustria recebe pela primeira vez o sacramento da Re-


conciliação e entra na Irmandade de Nossa Se-
Carlos de Áustria foi beatificado a 3 de outu- nhora do Carmo, usando o escapulário até à
bro de 2004. Os seus restos mortais estão se- morte. Aos 12 anos, faz a primeira comunhão,
pultados na Igreja Paroquial de N.ª Sr.ª do e é crismado a 8 de setembro de 1900. Ainda
Monte, onde é visitado constantemente por aos 12 anos, é enviado para o Colégio benedi-
devotos, tanto madeirenses como estrangei- tino Schottengymnasium. Fala bem o inglês e
ros, especialmente da Áustria, sua terra natal. o francês, aprende o húngaro e o checo. Com
A sua comemoração litúrgica celebra-se a 21 13 anos, visita diversos países do império, to-
de outubro. Neste dia, reúnem-se numerosos mando nota dos seus problemas económicos
fiéis junto do seu túmulo a prestar-lhe home- e culturais. Visita Paris e o Louvre e parte da
nagem, cheios de reconhecimento, gratidão, França. Aos 16 anos, encontra-se em Inglater-
súplica e fé na intercessão do beato, que, ape- ra e na Alemanha. Demonstra grande facilida-
sar de ter sido rei e político, está inscrito no de em fazer amigos. Aos 18 anos, entra para o
reino dos Céus. Exército, vive numa caserna e toma parte nas
Nasceu a 17 de agosto de 1887, um sábado. refeições dos oficiais. Inscreve-se na Univ. de
Filho de Otão Francisco, sobrinho de Francis- Praga como arquiduque herdeiro, em virtude
co José, e Maria Josefa, foi batizado a 19 de da morte do filho do imperador, estudando
agosto. Foi educado sob a influência direta Direito e Ciências Sociais. Em 1905, é agra-
da mãe. Os anos da infância são “serenos e ciado pelo Imperador Francisco José com a
tranquilos” (FARIA, 2011, 20). Aos nove anos, Ordem do Tosão de Oiro, a mais alta conde-
coração da Dinastia dos Habsburgo. A morte
do pai, aos 41 anos, a 1 de novembro de 1906,
torna o jovem de 19 anos um sério pretenden-
te ao trono.
A 13 de junho de 1911, Carlos e Zita de Bour-
bon realizam os desposórios casando a 21 de
outubro seguinte. Zita é filha de Roberto de
Bourbon, duque de Parma, e de Maria Antónia
de Bragança, filha de D. Miguel, rei de Portu-
gal. Na véspera do casamento, Carlos diz a Zita:
“Agora vamos ajudar-nos mutuamente a ir para
o Céu” (Id., Ibid., 25). Nas alianças, gravam o
Sub tutum praesidium: “À tua proteção nos re-
fugiamos, Santa Mãe de Deus”. Os esposos pe-
regrinam ao Santuário mariano de Mariazelli,
dedicado à Magna Mater Austriae (“Grande Mãe
da Áustria”). Passam a lua de mel nas costas do
Adriático. Depois regressam à vida normal.
Assassinados o duque Ferdinando e sua es-
posa em Sarajevo, Carlos torna-se herdeiro do
trono. Entretanto, surge a Primeira Grande
Guerra entre as diversas nações europeias. Car-
los discorda, mas será o bode expiatório que
irá carregar a derrota, a destruição do império
e o exílio.
Fig. 1 – B.º Carlos de Áustria, reprodução a óleo de 2005
A 11 de novembro de 1916, às 21h05, fa-
(igreja do Monte, Funchal). lece Francisco José. O príncipe Lobkowicz
C arlos de Á ustria ¬ 905

Fig. 2 – Casamento de Zita de Bragança Bourbon-Parma com Carlos de Áustria, Carl Pietzner, balcão do castelo de Schwarzau, 21 de
outubro de 1911 (Arquivo Casa da Áustria, Viena).

aproxima-se de Carlos, faz-lhe o sinal da cruz vem de Londres: seguir para o Funchal, aonde
na testa e diz-lhe: “Deus abençoe Vossa Majes- chegam a 19 de novembro de 1921. Bento XV
tade” (Id., Ibid., 29). Carlos torna-se imperador comunica ao bispo para atender da melhor
aos 29 anos, e Zita imperatriz aos 24. forma o novo hóspede e ajudá-lo em tudo o
A sua preocupação é a paz: “Eu quero fazer que seja necessário. As autoridades civis têm
tudo para acabar, no mais breve tempo possí- instruções precisas. O cônsul britânico sobe a
vel, os horrores e os sacrifícios da guerra, para bordo. O bispo envia o Cón. Homem de Gou-
conceder aos meus povos as bênçãos da paz” veia a oferecer ajuda. Carlos pede apenas que
(Id., Ibid., 29), escreve no seu primeiro comu- lhe seja permitido ter em casa uma capela com
nicado. É coroado rei da Hungria, a 30 de de- o Santíssimo Sacramento, o que lhe é concedi-
zembro de 1916, na igreja de Matheus. Os paí- do. O casal imperial fica hospedado na Casa Vi-
ses em guerra anelam esmagar o império e o tória, uma dependência do Reid’s Hotel. Dois
Imperador. Maquinam a sua derrota, enquan- dias depois, recebe a visita do bispo D. Antó-
to ele quer a paz. Não aceitando o jugo da ab- nio Manuel Pereira Ribeiro, que lhe concede a
dicação das suas funções de imperador, só lhe devida licença para a capela privada e nomeia
resta a solução do caminho do exílio. seu capelão o referido Cón. Homem de Gou-
A Conferência dos Embaixadores (dos Alia- veia, que se tornará grande amigo e devoto do
dos) decide exilar o soberano. A 31 de outu- Imperador.
bro de 1921, Carlos e Zita são levados de com- Aos filhos, que ficam lá longe, é-lhes permiti-
boio para Baja, junto do Danúbio, onde são do corresponder-se com os pais. O casal impe-
confiados à autoridade do comandante da rial está sem dinheiro. Portugal concede asilo
frota inglesa. A 1 de novembro, embarcam no político, mas recusa-se a cuidar das questões de
Glowworm, navio de guerra inglês. A ordem subsistência. Os estados que sucedem à dupla
906 ¬ C arlos de Á ustria

Fig. 3 – Família imperial da Áustria no jardim Fig. 4 – Carlos de Áustria em câmara-ardente,


da Qt. do Monte, fevereiro de 1922 (ABM, Perestrellos Qt. do Monte, 3 de abril de 1922
Photographos, cx. 122, n.º 2). (ABM, Perestrellos Photographos).

monarquia, Checoslováquia, Polónia, Jugos- e não se lamenta. Todos oram pela sua saúde,
lávia e Roménia, de nada se responsabilizam colocando um altar no quarto, onde é cele-
e jamais entregam um cêntimo à família real, brada a eucaristia todos os dias. O povo asso-
que está mais pobre que Job. A venda de al- cia-se. A 26 de março, organiza uma procissão
gumas joias alivia a primeira situação. Com o para pedir a cura do Imperador, que há 12
passar do tempo, os madeirenses começam a dias está retido no leito. Ele, porém, não se la-
admirar a família real, vendo nela um modelo menta nem permite que o façam à sua frente.
de verdadeiros cristãos, frequentando a missa “Devo sofrer, para que o meu povo continue
na Catedral ou na capela da Penha de França unido de novo” (Id., Ibid., 57), afirma. Zita
e aceitando resignadamente os acontecimen- pede à Ir. Virgínia que interceda pela saúde
tos. Entretanto, os filhos vêm juntar-se aos pais, de Carlos. Depois de orar e fazer as suas peti-
agravando-se a situação económica. Luís Rocha ções, ela comunica a mensagem recebida de
Machado empresta a Qt. do Monte, sua casa de Jesus: “O Senhor não restituiria a saúde ao im-
férias junto da igreja paroquial. Fazem a mu- perador. Tinham chegado à Madeira espiões
dança. A sala é adaptada a capela. Estão felizes da Europa com a missão de assassinar o Impe-
por estarem juntos, mas ao frio e à fome, sem rador e o filho Otão. Deus queria poupar o seu
queixas nem revoltas contra o destino, confia- servo de uma morte ignominiosa, morreria
dos na Providência e cheios de esperança. Car- de morte natural” (Id., Ibid., 58). Não obstan-
los escreve nessa data: “Estou grato a Deus, por te, Zita continua a rezar. A 1 de abril, Sábado
tudo quanto me manda” (Id., Ibid., 55). Em ja- Santo, baixa a febre para volver a subir. Carlos
neiro de 1922, chega ao Funchal o P.e Zsam- diz a Zita: “Tenho dificuldade em respirar”.
boki, capelão da casa imperial, vindo propor- Paralisam as articulações. Os médicos dizem
cionar maior confiança e esperança. a Zita que é uma questão de horas. O capelão
A 14 de março, depois de uma descida ao dá-lhe o sagrado viático e expõe o Santíssimo
Funchal, Carlos confessa não se sentir bem. no seu quarto. Carlos pede a Zita que se sente
Tem uma bronquite generalizada. Os dois pul- junto dele. Ela vai estar durante quatro horas
mões estão infetados. Carlos sente-se corajoso junto do seu leito, segurando a mão de Carlos
C arlos de Á ustria ¬ 907

com a cabeça encostada ao seu ombro. Otão,


o filho mais velho, também está presente. Car-
los diz que ama a esposa e os filhos, acusando
porém estar muito cansado. Carlos entra em
agonia. Balbucia algumas palavras. Zita con-
vida-o a repousar e a pensar somente agora
no Salvador. Ainda dirige uma prece pedin-
do a sua cura, mas acrescentando “se for da
Vossa vontade” (Id., Ibid., 60). Reza ainda pela
sua família. A cabeça do exilado descai sobre
o ombro de sua esposa e exclama: “Jesus, vem,
vem” (Id., Ibid., 60). Ainda encoraja a esposa.
E murmura: “Meu Jesus, quando Tu quiseres”
(Id., Ibid., 60). Após um momento de silên-
cio profundo, suspira “Jesus” (Id., Ibid., 60) e
dá o último suspiro. A Imperatriz fecha-lhe os
olhos, coloca-lhe nas mãos o crucifixo ofere-
cido por Pio X, ajoelha-se com o filho Otão, Fig. 5 – Funeral de Carlos de Áustria saindo
ora e soluça. da Qt. do Monte a caminho da igreja, 5 de abril de 1922
(ABM, Perestrellos Photographos).
A notícia do seu falecimento rapidamente se
espalha pela Madeira e Europa. Os sinos tocam
a finados em Viena e Budapeste. O cardeal pri- “muito obrigado” (Id., Ibid., 63) em português
maz da Hungria celebra a missa de Requiem. As e seguem para a Qt. do Monte.
exéquias são marcadas para o dia 5 de abril. A cidade do Funchal promove a 27 de abril,
Na Madeira, é decretado luto: as lojas fecha- na Catedral, exéquias solenes. A Sé está repleta
das e uma multidão vinda de todas as partes de fiéis. Zita e familiares estão presentes. Pre-
da Ilha sobe ao Monte a prestar homenagem side o bispo do Funchal, e o Cón. Homem de
ao falecido imperador e a pedir-lhe graças. Na Gouveia profere a oração fúnebre. Começa a
quarta-feira, 5 de abril, pela tarde, realiza-se sua homilia com uma citação do Livro da Sa-
o funeral. Durante o percurso, encontram-se bedoria: “A sua alma era agradável ao Senhor,
muitas pessoas que se ajoelham à passagem e por isso Ele apressou-se a tirá-lo do meio da
da urna que encerra o cadáver do Imperador, maldade” (Sab 4, 14). Ao saudar a Imperatriz,
tendo os homens os chapéus na mão. Na igre- diz: “Permiti que invada o santuário da vossa
ja do Monte, é levantado um catafalco coberto dor… que avive chagas que, embora nunca ci-
de crepes, sobre o qual é colocado o ataúde, catrizem, podem lenificar… Seja-me permiti-
rodeado de seis tocheiros de prata e ornamen- do fazer votos por que um dia possamos ver
tado com muitas flores. O bispo procede à ora- venerado nos altares aquele que foi um escrí-
ção do Libera Me e à absolvição. São cantados nio de virtudes, que vós tão de perto aprecias-
responsórios. A imperatriz Zita com o filho tes” (Id., Ibid., 64). Falou do Imperador como
Otão e os arquiduques estão presentes. Proce- chefe do Exército, diplomata e político, chefe
de-se à soldagem do caixão, que termina cerca de família e crente.
das 20h. A Imperatriz Zita, seu filho Otão e ou- A ideia de beatificar o Imperador nasce na
tros membros da família imperial voltam de Madeira. Entretanto, muitos milhares de pes-
novo à igreja, assistindo à colocação do ataú- soas, na Áustria e no mundo inteiro, acreditam
de sob o altar da capela lateral, até que seja que Carlos é um santo. Em 1929, a Gebetsliga
construído o lugar definitivo na capela de S.to (Liga de Oração) recebe aprovação eclesiás-
António. A Imperatriz, juntamente com Otão tica para serem feitas orações pela canoniza-
e os filhos, despede-se da assistência com um ção do Imperador, a qual irá reunir muitos
908 ¬ C arlos de Á ustria

testemunhos de católicos que afirmam ter in- servo de Deus, exigência do processo de beati-
vocado o Imperador nas suas orações. ficação. Passados 49 anos, ou seja, a 12 de abril
A 11 de julho de 1949, o cardeal Innitzer, em de 2003, a mesma congregação apresenta o de-
Viena, assina a carta da introdução do exame creto sobre a santidade do servo de Deus, e a
para a causa da canonização de Carlos. A 3 de 20 de dezembro do mesmo ano, na presença
novembro desse ano, a Rádio Vaticana anuncia do santo padre, é promulgado o decreto sobre
oficialmente a abertura do processo de beatifi- o milagre.
cação e canonização. No Funchal, em 1952, o A 10 de maio de 2004, é dada a notícia de
bispo, D. António Manuel Pereira Ribeiro, in- que o ato de beatificação está programado
troduz também o mesmo processo. Em 1954, para o dia 3 de outubro seguinte, conjunta-
são entregues em Roma os atos do processo na mente com outros quatro servos de Deus. A 20
Congregação dos Ritos, hoje chamada Congre- de julho do mesmo ano, Mons. Piero Marini,
gação para as Causas dos Santos. arcebispo titular de Martiano e mestre das ce-
A 1 de abril de 1972, Sábado Santo, faz-se o rimónias litúrgicas pontifícias, envia uma carta
ato de reconhecimento dos restos mortais do a D. Teodoro de Faria comunicando o cerimo-
nial da beatificação do servo de Deus, Carlos
da Áustria. A 3 de outubro, a partir das 10h,
realiza-se a grande solenidade da beatificação,
presidida por João Paulo II, na presença de al-
guns cardeais, muitos bispos, familiares do Im-
perador e ainda de muito povo, incluindo os
peregrinos idos do Funchal, entre os quais se
encontra o presidente do Governo Regional
da Madeira, Dr. Alberto João Jardim, e o bispo
D. Teodoro de Faria, que é quem oficialmente
pede a beatificação. No Monte, o povo enche
toda a igreja para presenciar a cerimónia da
beatificação, transmitida pela RAI através dum
ecrã gigante.
O 21 de outubro é o dia escolhido para a
comemoração litúrgica do B.º Carlos, por ser
o dia do seu casamento. Esse dia é imediata-
mente comemorado na igreja do Monte, com
a celebração da eucaristia presidida pelo então
bispo do Funchal, com o templo repleto de
fiéis devotos. Participa também neste ato o
filho mais velho do Imperador, o arquiduque
Otão de Habsburgo. Por vez primeira se invoca
litúrgica e publicamente o B.º Carlos de Áus-
tria. A partir de então, todos os anos, a 21 de
outubro, tem sido celebrada a eucaristia dos
confessores da Fé, na igreja do Monte, junto
aos seus restos mortais, intensificando a devo-
ção ao B.º Carlos de Áustria.
Fig. 6 – Kapelle mit dem Sarkophag des Exkaisers Karl I
von Oesterreich-Ungarn. Tomb of the Ex-Kaiser Karl I, Bibliog.: FARIA, Teodoro, Beato Carlos da Áustria. Os Habsburg na Madeira,
in the Monte Church, Madeira, túmulo de Carlos de Áustria Funchal, DRAC, 2011.
na igreja do Monte, bilhete-postal de Max Römer, 1925
(coleção dos herdeiros de Joan Cunha). Manuel Gama
C arlota de Á ustria ¬ 909

Carlota de Áustria
A princesa Maria Carlota (1840-1927) era a
filha mais nova do Rei Leopoldo de Saxe-Co-
burgo (1790-1865), que a revolução de 1831
fizera eleger rei da Bélgica, e de Luísa Maria
de Orleães (1812-1850), princesa de França,
tendo nascido no castelo de Laeken, nos arre-
dores de Bruxelas, a 7 de junho de 1840. Den-
tro da política de casamentos e alianças entre as
casas reinantes europeias, chegou a colocar-se
a hipótese do príncipe e futuro Rei D. Pedro V
de Portugal (1837-1861), mas a opção foi para
o seu casamento, a 27 de julho de 1857, com o
arquiduque Ferdinando Maximiliano de Habs-
burgo-Lorena (1832-1867), futuro e malogra-
do Imperador do México, tornando-se, assim,
arquiduquesa de Áustria e, depois, Imperatriz
do México. O arquiduque fora nomeado vice-
-rei da Lombardia e de Veneza, reino depen-
dente do Império Austríaco, por pressão ou
sugestão do Rei Leopoldo da Bélgica, fixando-
-se o casal em Milão. A evolução da Guerra de
Independência de Itália, entretanto, levou à
ampliação do antigo reino da Sardenha com
a Lombardia, em meados de 1859, e ao afasta-
mento do arquiduque Maximiliano de Milão,
passando para Trieste e voltando à armada aus-
Fig. 1 – Maximiliano de Habsburgo e Carlota de Saxe-Coburgo,
tríaca, onde anteriormente prestara serviço. arquiduques de Áustria, Viena, 1857 (Arquivos Imperiais).

Frustrada viagem ao Brasil tempo com uma portuguesa, filha do visconde


A 6 de dezembro de 1859, Maximiliano e Carlo- de Torre Bela”. Nessa sequência, tinham desci-
ta, no vapor de guerra austríaco Elisabeth – em do para o Funchal em carro de cesto do Monte
homenagem à Imperatriz Sissi, Isabel de Áus- a “uma velocidade estonteante”, chegando
tria (1837-1898) –, entravam no porto do à cidade “como por encanto”. Tendo ido ao
Funchal, dando depois vários passeios pelos Hotel Milles, deram-lhe a provar “todas as es-
arredores da cidade, que o arquiduque já co- pécies de compotas da região” e frutas tropi-
nhecia. Os arquiduques, desembarcando, pas- cais da Madeira, que não lhe agradaram. Car-
saram a residir na Qt. Bianchi – designada, na lota escreveu, inclusivamente, nada existir, na
altura, como Qt. da Pontinha –, colocada à sua sua opinião, “de tão desagradável ao gosto e
disposição pelo cônsul da Áustria, Carlo de ao olfato”, salvaguardando os ananases. Acha-
Bianchi (1834-1910), espaço depois incorpora- va serem “detestáveis, como as bananas, ou
do no complexo do Casino. Uma das primeiras então espalham, como as goiabas, um odor in-
deslocações foi à Qt. do Monte, onde foram re- feto, e possuem um gosto tão horrível, que tive
cebidos por Teodósia Arabela Pollock Gordon, de engolir muitas tangerinas antes de me livrar
referida por Carlota como uma “velha ingle- dele” (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 92).
sa muito simpática, cujo filho casou há pouco Na Qt. Bianchi também já lhe tinham dado a
910 ¬ C arlota de Á ustria

Fig. 2 – Qt. Bianchi, no Funchal, Carlota de Saxe-Coburgo, 1860 (Un Hiver à Madère…, 1863).

provar outro “fruto aquoso e detestável duma levou Carlota e a sua comitiva de volta para o
passiflora a que os portugueses chamam mara- Funchal, ficando a arquiduquesa na Madeira
cujá” (Id., Ibid., 89), mas que agradou bastante nesse inverno de 1859-1860, aguardando o re-
ao marido. Mais tarde, mostrou interesse em gresso do marido do Brasil, que ocorreu a 5 de
provar cana-de-açúcar, cujo sabor achou muito março de 1860. Os arquiduques saíram da Ilha
agradável, assim como refere então “um encan- a 12 desse mesmo mês, com destino ao Adriáti-
tador costume da Ilha que consiste em lavar as co e à costa da antiga Dalmácia, que incorpora-
mãos após o jantar em taças cheias de rosas ver- va o então Império Austro-Húngaro.
melhas desfolhadas” (Id., Ibid., 96). Toda a pai-
sagem natural da Madeira, no entanto, a en-
Diário de Carlota
cantou profundamente, considerando-a “um
espetáculo tão grandioso como imponente” A arquiduquesa Carlota, tal como fez Maximi-
(Id., Ibid., 98), como se refere à vista do pico liano, veio a publicar as suas impressões da via-
Grande sobre o Curral das Freiras. As descri- gem à Madeira, tal como as do marido, anóni-
ções das quintas e dos jardins visitados são mas e com um sentido muito crítico para com
igualmente quase sempre encomiásticas. os habitantes da Ilha. O trabalho, editado em
Os arquiduques saíram do Funchal a 15 de Viena em 1863, é um diário que se inicia a 10
dezembro, com destino a Cabo Verde e ao Bra- de novembro de 1859, quando o casal embar-
sil, em viagem de estudo, chegando às Caná- ca num porto do Adriático no navio Fantaisie,
rias, ao porto de Orotava, na ilha de Tenerife, escalando depois em Pola, onde passam para o
a 17 seguinte, mas não lançando âncora, dadas vapor Elisabeth, e acaba a 25 de março de 1860,
as condições do mar. O mau tempo alterou to- quando chegam ao porto de Gravosa, na cida-
talmente o plano de viagem, assim como a au- de croata de Ragusa, que também se denomi-
tonomia do Elisabeth, que não estava prepara- na Dubrovnik. O texto, em francês, é acompa-
do para as grandes viagens atlânticas. O navio nhado por 15 litografias referentes à Madeira,
C arlota de Á ustria ¬ 911

algumas das quais a cores e fora do texto. A au- de Cádis, tecendo depois opiniões gerais sobre
toria destas parece ser de um dos membros da política e eleições, tendo consultado, inclusi-
comitiva de Carlota, que menciona algumas vamente, alguns periódicos locais, embora não
vezes no texto “o pintor” (HABSBURGO e os tendo podido ler completamente, dado não
BÉLGICA, 2011, 105), surgindo depois uma dominar a língua portuguesa, e emitindo opi-
delas assinada pelo Rev. Waldheim X. A. Wien niões que não correspondem taxativamente ao
(NASCIMENTO, 1951, 89). O historiador ita- que lá se encontrava escrito. Mais tarde, tam-
liano Cesare Cantu (1804-1895), mais tarde, ao bém refere as “tendências miguelistas dos ma-
descrever romanticamente a vida deste casal, deirenses” (Id., Ibid., 110) e que o Governo de
referirá taxativamente que Carlota ilustrou Lisboa mandara à Ilha o visconde de Atouguia
este trabalho “com estampas de sua mão” (Id., para atalhar a situação nas seguintes eleições.
Ibid., 101). O investigador Eberhard Axel Wi- O visconde, no entanto, não seria eleito, e Luís
lhelm alvitra que o pintor em questão seria o Vivente de Afonseca (1803-1878), membro do
austríaco Joseph Selleny (1824-1875) (HABS- Partido Reformista, conhecido por Popular,
BURGO e BÉLGICA, 2011, 105), citado em que não era propriamente miguelista, mante-
outras viagens financiadas por Maximiliano e ria o seu lugar de deputado. As fontes de infor-
que se encontrava no Funchal, pelo menos, em mação de Carlota de Áustria não teriam, assim,
abril de 1857, a bordo da fragata Novara; re- sido as melhores.
gressara à Europa em agosto de 1859, pelo que Ao regressar das Canárias, onde nem con-
terá acompanhado os arquiduques nesta via- seguiu desembarcar, Carlota trouxe do Eli-
gem, não tendo ficado, porém, com Carlota, sabeth – que voltou àquele arquipélago para
no Funchal. De qualquer forma, havendo um retomar a viagem para o Brasil – tudo o que
pintor na comitiva e, muito provavelmente,
também um reverendo pintor – embora a ar-
quiduquesa tivesse por certo tido lições de pin-
tura, quase obrigatórias à época na educação
de uma princesa –, na elaboração das estampas
houve vários autores, tal como depois um gra-
vador e litógrafo, que as deram à estampa.

Inverno de 1859-1860
A arquiduquesa, então com apenas 19 anos, era
uma pessoa cultivada, entendendo de botâni-
ca, e.g., e enumerando a maior parte das espé-
cies encontradas pelos seus nomes científicos,
embora na comitiva seguissem naturalistas, que
forneceram também esses dados. A geografia,
a história e a política também lhe eram familia-
res, inclusivamente com algum sentido crítico,
como quando refere que os letreiros das lojas
tinham quase sempre tradução inglesa à vista.
Acrescenta então que, “se bem que tenha vol-
tado a ficar oficialmente, em 1815, sob o domí-
nio português, a Madeira nunca deixou de ser,
de facto, uma espécie de colónia inglesa” (Id.,
Ibid., 90). A autora começa logo por se queixar Fig. 3 – Vilão da Madeira, Carlota de Saxe-Coburgo, 1860
da não existência de portos a partir de Lisboa e (Un Hiver à Madère…, 1863).
912 ¬ C arlota de Á ustria

entendeu necessário para uma longa estadia arquiduquesa ao marido, a quem quase nunca
na Qt. Bianchi. Acrescenta, entretanto, que, alude, tal como também acontece com ele.
“nos países quentes, quanto menos mobilados A descrição encerra com a informação de que
são os quartos, mais estamos à vontade”. Tinha, foi no meio de uma quadrilha, dançada com
assim, encontrado na residência “algumas boas o comandante militar, o Cor. José Herculano
poltronas, paredes caiadas, uma grande estei- Ferreira Horta, “que se abriu para mim o 1.º
ra das Índias”, entendendo “tudo muito adap- de janeiro de 1860” (Id., Ibid., 118).
tado ao clima” e que o “embelezamento das Um dos destaques deste quase diário, para
quintas torna-se, na Madeira, inteiramente su- além dos inúmeros passeios, vai para a festa
pérfluo” (Id., Ibid., 108), face à adaptação ao organizada no palácio de S. Pedro pelo 2.º
meio ambiente e à relação estabelecida com conde do Carvalhal (1831-1888). A arquidu-
a exuberância dos jardins envolventes, que quesa achou que fora “um belíssimo baile, que
nunca deixa de enaltecer. teria feito as honras a um salão de Londres
A comitiva da princesa organizou uma festa ou de Paris. Nunca se suspeitaria de que, no
de Natal, na noite de 24 para 25 de dezem- meio de uma pequena ilha do oceano, priva-
bro, com uma christbaum, escrevendo a mesma da de comunicação com o mundo civilizado,
que teria sido a primeira árvore de Natal que se pudesse ostentar tanta elegância e tão bom
se ergueu na Madeira, o que não era verdade, gosto” (Id., Ibid., 127). Acrescenta ainda que
pois há descrições anteriores (FRANÇA, 1970, a “festa foi muito animada e não faltaram os
169-170) e, por certo, dada a antiga presen- lindos trajes de gala, que faziam lembrar os
ça alemã, muitas teriam sido já montadas. No de Milão”. Ao soar da meia-noite, abriu-se de
final do mês, o cônsul da Áustria organizava repente, como por encanto, uma sala até aí
um baile pela passagem do ano, tendo os con- fechada, surgindo um toldo branco e verme-
vites sido enviados com bastante antecedência. lho decorado aos quatro cantos com bandei-
Escreve então a princesa que “os madeirenses, ras austríacas, belgas e portuguesas. Sob esse
que são muito lentos, não gostam de imprevis- toldo aguardava-os uma ceia sumptuosa, servi-
tos” (HABSBURGO e BÉLGICA, 2011, 117), da em pratos armoriados, de porcelana ingle-
daí a antecedência do envio dos convites. As sa, alguns dos quais sobreviveram: “A sala, que
críticas da princesa Carlota a este baile recaí- se prestava a este esplêndido uso, era um tea-
ram essencialmente sobre a obesidade das tro, utilizado normalmente quando das repre-
madeirenses. No intervalo das danças, o côn- sentações de sociedade às quais a aristocracia
sul Bianchi trazia duas senhoras de cada vez portuguesa se entrega com paixão”. No entan-
para as apresentar à arquiduquesa, começan- to, não deixa de voltar a referir que, “entre as
do pelas suas irmãs, a primogénita das quais, frutas que guarneciam o bufete, encontravam-
Isabel Leopoldina, casada com o advogado -se ananases da Ilha, que são muito coriáceos
Gregório Perestrelo da Câmara, por lapso ci- e não se comparam, na minha opinião, com os
tado como Francisco, tinha “sido a mais bo- que amadurecem nas estufas da Europa” (Id.,
nita das três, mas há algum tempo já, embora Ibid., 128).
ainda conserve vestígios disso”. A princesa re- A arquiduquesa foi também a uma récita
fere-se ainda à mulher do cônsul, Ana de Ve- no Teatro Esperança, a 11 de fevereiro, es-
losa Castelo Branco, afirmando que, apesar de pantando-se com o facto de haver um teatro
ser da sua idade, “porém, ultrapassa-me em público no Funchal, embora colocasse algu-
volume”, o mesmo se passando com a irmã, mas reservas. Era, “de muita boa-fé, uma mi-
“duas vezes mais gorda do que ela”. Ao apro- niatura bem proporcionada, deveras bonita
ximar-se a meia-noite, o cônsul serviu vinho no seu género. Não tem nenhum camarote,
velho da Madeira, para ser bebido “pelo ano mas à volta da sala encontravam-se duas filas
novo e pelos ausentes”, o que constitui uma de senhoras muito bem arranjadas”, não re-
das poucas, vagas e prováveis referências da sistindo, porém, a acrescentar: “algumas de
C arlota de Á ustria ¬ 913

pronunciada nutrição” (Id., Ibid., 129). Tam- com diversas bandeirinhas” (Id., Ibid., 132).
bém não deixa de referir que o público se far- Descreve ainda que na sala se viam “três re-
tou de rir com uma série de gracejos vulgares, tratos de corpo inteiro” de D. João VI (1767-
como se se tratasse de qualquer coisa superior. -1826), da mãe, D. Maria I (1734-1816), “que
A 21 de fevereiro, ainda refere o célebre jan- morreu louca”, e do avô, D. José (1714-1777),
tar de gala dado pelo conde de Farrobo (1801- “em cujo tempo reinou Pombal” (1699-1782)
-1869) e pela mulher, em S. Lourenço, desti- (Id., Ibid., 132). Os retratos em questão, salvo
nado a comemorar a sua elevação ao cargo de o de D. João VI, que permaneceu em S. Lou-
governador civil do Funchal. O jantar tinha renço, deveriam ser propriedade dos Farrobo,
sido especialmente preparado, tendo-lhe os regressando com os mesmos a Lisboa. A última
condes de Farrobo apresentado as principais opinião da arquiduquesa, embora abusiva, re-
individualidades insulares e reservando-lhe, flete algum conhecimento da situação política
na mesa, um lugar entre o bispo do Funchal, portuguesa, e a informação sobre D. Maria I
D. Patrício Xavier de Moura (c. 1800-1872), também, embora desconhecesse a autora que
e o conde governador civil. A arquiduquesa o mesmo lhe iria acontecer a si, e dentro de
mostrou-se maravilhada, escrevendo que “o poucos anos.
jantar foi magnífico. Tudo quanto se encon- Após o jantar, descreve Carlota que cantou
trava sobre a mesa, candelabros, requintados “uma pessoa jovem” – que Cabral do Nascimen-
suportes guarnecidos de confeitaria, etc., esta- to (1897-1978) e Duarte Mendonça, que pu-
va coberto por uma profusão de flores, ocul- blicou e anotou a mais recente tradução deste
tando graciosamente a riqueza metálica dos texto, identificam como a cantora Júlia de Fran-
objetos, complementados por pães de açúcar ça Neto (1825-1903) – e que o governador, “que

Fig. 4 – Sé do Funchal, Carlota de Saxe-Coburgo, 1860 (Un Hiver à Madère…, 1863).


914 ¬ C arlota de Á ustria

pertence a uma família muito musical” (Id., Ibid., verga da Madeira, “leves e cómodos” (HABS-
129), a acompanhou ao piano. Parece pouco BURGO e BÉLGICA, 2011, 142), que o mari-
provável que se tratasse da cantora Júlia de Fran- do havia adquirido a 9 de dezembro do ano
ça Neto, que teve aulas de canto em Génova e anterior, quando pensavam que iriam ambos
atuou em vários salões aristocráticos franceses, para o Brasil. Nas suas memórias, Maximiliano
regressando à Madeira em 1854. Embora a can- de Habsburgo refere ter-se deslocado no seu
tora tenha dado depois vários recitais para fins “trenó de quatro lugares à cidade para fazer vá-
de caridade, inclusivamente em S. Lourenço, rias compras: os famosos embutidos, os pontia-
tinha então já 35 anos, pelo que, tendo a atenta gudos barretes madeirenses com para-raios e
Carlota 19, crítica como se mostrou com quase cadeiras de braços feitas de vime para as nossas
todas as mulheres na Madeira, dificilmente po- varandas” (Id., Ibid., 63), numa provável alu-
deria tê-la descrito como uma jovem. são ao palácio de Miramar, em Trieste, onde
O arquiduque Maximiliano entrou no porto residiam.
do Funchal a 5 de março, mas, como vinha do
Brasil e na Baía grassava uma epidemia de fe-
bre-amarela, o navio teve de aguardar cinco
Aventura mexicana
dias de quarentena e só então os passageiros Em abril de 1864, os então Imperadores do
puderam desembarcar, tendo o arquiduque re- México voltavam a passar na Madeira. A 10
cebido uma salva de 21 tiros. Carlota já fizera de abril de 1864, o príncipe Maximiliano de
parte das suas despedidas, e, juntos, os arqui- Áustria aceitara, por indicação ou pressão de
duques ainda assistiram, das janelas do escri- Napoleão III (1808-1873), o referido cargo de
tório do cônsul, a uma procissão. Descreve a imperador, sendo logo aclamado como tal e
autora que tomaram parte na solenidade as passando, a 28 desse mês, pelo porto do Fun-
autoridades locais, como de costume, entre chal, na companhia da Imperatriz Carlota,
as quais o administrador do concelho, que, a caminho do México, onde voltariam a ser
embora tivesse como nome de batismo Tar- aclamados. Deslocaram-se a bordo da fraga-
quínio Torcato da Câmara Lomelino (1818- ta austríaca Novara, acompanhada pela fraga-
1888), a folha local O Direito apelidava sempre ta francesa Thémis, tendo-lhes sido prestadas
de “o paxá de três caudas” (Id., Ibid., 113-114, as devidas honras. Os Imperadores convida-
142). Descreve a arquiduquesa que, na manhã ram depois para jantar a bordo o governador
desse dia 11 de março de 1860, ela e o marido civil, jurisconsulto Jacinto António Perdigão, o
ainda participariam, na capela montada na Qt. bispo da Diocese, D. Patrício Xavier de Moura,
Bianchi, no batizado do filho do cônsul Car- o 2.º conde de Carvalhal, o cônsul Carlos de
los Bianchi, de que foram padrinhos; o rapaz Bianchi, António da Luz Pita (1802-1870), que
nascera a 15 de abril do ano anterior e recebe- a Imperatriz nas suas memórias refere como
ria então o nome de Ferdinando Maximiliano “o médico de maior renome na Madeira” (Id.,
Bianchi (1859-1930). Ibid., 119), e outras personalidades. O Eluci-
Os arquiduques saíram, no dia 12, da Qt. dário Madeirense refere também a presença do
Bianchi, mas antes de embarcarem ainda as- conde de Farrobo, que tinha saído da Madeira,
sistiram a um concerto de caridade no palá- em outubro 1861, para assistir ao casamento
cio do governador, na mesma sala onde fora de D. Pedro V e entregara o governo ao seu
oferecido o banquete, concerto em que parti- secretário, 3.º visconde do Andaluz (1833-c.
cipou Júlia de França Neto (“Notícias locais”, 1900), e que, sabendo da passagem dos Impe-
A Ordem, 10 mar. 1860, 3), embora Carlota radores do México pela Madeira, ali se deslo-
não a mencione, até por só terem assistido a cou para os cumprimentar.
metade dele. Acrescenta ainda a arquiduque- O casamento dos Imperadores do México
sa que o vapor estava ornamentado a preceito não terá sido perfeito, não havendo descen-
para os receber e se viam na coberta móveis de dência. Acresce que Carlota gozou de muito
C armelitas ¬ 915

pouco apoio na corte de Viena e sofreu uma Carmelitas


franca e agressiva oposição da Imperatriz Isa-
bel de Áustria, a romântica Sissi, que a teria A Ordem dos Carmelitas, de seu nome com-
acusado nas páginas do seu diário, inclusiva- pleto Ordem dos Irmãos da Bem-Aventurada
mente, de ambiciosa e de ser, em parte, respon- Virgem Maria do Monte Carmelo, nasceu a
sável por Maximiliano se ter metido “no vespei- partir da vivência de uns monges que se fixa-
ro mexicano” (HABSBURGO, 2008, 91-92). É ram no monte Carmelo, na Palestina, em fins
muito provável que assim tivesse sido, tendo a do séc. xii, no término da Terceira Cruzada
Imperatriz Carlota participado na organização (provavelmente em 1192). Esse conjunto de
do governo do marido e sendo de sua mão vá- indivíduos, entre os quais figuravam alguns
rias das minutas do Gabinete imperial, como as provavelmente leigos, acrescidos de diversos
versões da proposta Carta Constitucional, etc. cavaleiros de ordens militares, acabou por
Com o progressivo isolamento de Maximiliano se conseguir constituir como comunidade
do México, e quando Napoleão III retirou as orante entre 1206 e 1214, mediante a obten-
suas tropas do país, em 1867, o regime ficou ção de uma formula vitæ que lhe foi atribuí-
numa situação insustentável. Temendo o pior, da pelo então bispo de Jerusalém e futuro
a Imperatriz Carlota, que já escrevera a Eugé- santo, Alberto Avogadro, e com essa forma
nia de Montijo (1826-1920), mulher de Napo- de organização permaneceu no seu local de
leão III, parte para a Europa com o intuito de origem, até que, por volta de 1240, a pressão
angariar apoio para o Império mexicano junto
da França, da Áustria e da Santa Sé. A França e
a Áustria, no entanto, não estavam já em con-
dições políticas para os ajudar, e foi numa au-
diência com o Papa Pio XI (1792-1878) que a
Imperatriz subitamente começou a ter diversos
colapsos nervosos. A situação piorou decisiva-
mente ao tomar notícia do fuzilamento do ma-
rido no México, tendo sido necessário interná-
-la. Carlota passou então 60 anos confinada no
castelo de Bouchout, em Meise, Bélgica, onde
faleceu, a 18 de janeiro de 1927, com 86 anos.
Encontra-se sepultada na igreja de N.ª Sr.ª de
Laeken, perto de Bruxelas, onde se encontram
os pais.

Bibliog.: manuscrita: ABM, Registos Paroquiais, Sé, Batismos, liv. 1262,


fls. 8v.-9v.; impressa: CANTU, Cesar, Os Últimos 30 Anos (1848 a 1878), Lisboa,
Francisco Arthur da Silva, 1880; CARITA, Rui, História da Madeira, vol. viii,
Funchal, Secretaria Regional da Educação e Cultura, 2008; FRANÇA, Isabella
de, Jornal de Uma Visita à Madeira e a Portugal. 1853-1854, Funchal, JGDAF,
1970; HABSBURGO, Catalina, Sissi. A Atormentada Vida da Imperatriz Isabel,
Lisboa, A Esfera dos Livros, 2008; Un Hiver à Madère. 1859-1860, Vienne,
Impremerie I. R. de la Cour et de l’Etat, 1863; MAXIMILIANO DE HABSBURGO,
e CARLOTA DA BÉLGICA, Memórias da Minha Vida e Um Inverno na
Madeira, Lisboa, Sopa das Letras, 2011; MELLO, Luís de Sousa, “Virtuosi e
dilettanti”, Islenha, n.º 9, jul.-dez. 1991, pp. 76-80; NASCIMENTO, João Cabral
do Nascimento, “A arquiduquesa Carlota e as suas impressões de viagem”,
Arquivo Histórico da Madeira, vol. ix, 1951, pp. 98-101; “Notícias. Concerto”,
O Funchalense, 11 mar. 1860, p. 2; “Notícias locais”, A Ordem, Funchal,
10 mar. 1860, p. 3; SILVA, Fernando Augusto da, e MENESES, Carlos Azevedo de,
Elucidário Madeirense, 3 vols., Funchal, DRAC, 1998; VAZ, Fernando Meneses,
Famílias da Madeira e Porto Santo, vol. i, Funchal, JGDAF, 1964. Fig. 1 – Brasão de armas dos Carmelitas,
azulejos de oficina de Lisboa, c. 1740 (capela-mor da igreja
Rui Carita do Carmo do Funchal, 2017).
916 ¬ C armelitas

crescente do Islão a obrigou a demandar a manutenção da independência de Portugal


Europa. em relação a Castela. Esta emancipação não é
Instalados nos seus novos territórios, os alheia ao facto de o condestável Nuno Álvares
monges foram então sujeitos a algumas mo- Pereira, herói das guerras com Castela, ter de-
dificações da regra, operadas pelo Papa Ino- cidido escolher a ordem carmelita para nela
cêncio IV, em 1247, e, a partir desse momen- ingressar, para o que fundou o Convento do
to, tornam-se mendicantes, tendo igualmente Carmo, em Lisboa. É também por esta altura
sido dotados de hábito, constituído por manto que começa a usar-se a expressão “Carmelo lu-
branco e escapulário. sitano”, que serviu para assumir uma formal
A Ordem difunde-se, depois, para cidades distinção das restantes províncias peninsulares
universitárias da Europa – Oxford, Cambridge, e, mais tarde, para aprofundar a diferença que
Paris e Bolonha – e, em 1254, chega a Portu- se impunha em relação a um movimento lide-
gal, fixando-se originalmente na vila de Moura, rado por S.ta Teresa de Ávila, que, em Caste-
no Alentejo, ao mesmo tempo que se espalha- la, instituiria, um século depois, a variante dos
va também para outros territórios da Hispânia, Carmelitas Descalços.
onde vem a autonomizar-se em diversas pro- A adesão feminina à espiritualidade carme-
víncias, designadamente as de Aragão (1330), lita já vinha do séc. xiii, pois, durante essa
Catalunha (1342), Castela (1354) e Andaluzia centúria, tinham-se constituído comunida-
(1510). A individualização da província portu- des de beatas localizadas junto dos conventos
guesa deu-se em 1423, no rescaldo das guer- masculinos, de quem recebiam ajuda, ainda
ras do fim do séc. xiv que determinaram a que não estivessem dotadas de regra própria.

Fig. 2 – “Lay sisters of the Order of the Lady of Mount Carmel” (A History of Madeira, 1821).
C armelitas ¬ 917

A obtenção de estatuto autónomo só se con-


cretizará com a bula Cum Nulla, de Nicolau V,
atribuída em 1452, pela qual se institui for-
malmente o ramo feminino dos Carmelitas,
bem como um outro instituto da Ordem, que
ficou conhecido pela designação de Ordem
Terceira do Carmelo.
Será num dos conventos da nova congrega-
ção, o da Encarnação de Ávila, que entrará,
em 1535, Teresa Sánchez de Cepeda y Ahu-
mada, depois conhecida como S.ta Teresa de
Jesus ou S.ta Teresa de Ávila, mas o relaxamen-
to em que encontrou o mosteiro, contamina-
do por grande abertura ao exterior e hábitos
mundanos, desagradou-lhe, a ponto de fun-
dar ela mesma uma comunidade reformada,
dotada de uma regra bem mais restritiva que
impunha a clausura estrita, o silêncio quase
permanente, a pobreza, materializada, e.g., na
troca do calçado por sandálias – daí a desig-
nação de Descalças –, e a abstinência total do
consumo de carne.
Numa viagem que realizou, Teresa de Ávila
teve oportunidade de se encontrar com dois
religiosos italianos cujo perfil lhe pareceu o
adequado para iniciar o ramo masculino das
Descalças, e assim se constituiu a vertente mas-
culina da Ordem.
A nova Ordem, depois de ultrapassados al-
guns constrangimentos iniciais, lançou-se
num movimento de replicação de conven-
tos, primeiro em Castela e depois em Portu- Fig. 3 – Túmulo dos Gonçalves Brandão, oficina de
gal, onde os Carmelitas Descalços se instalam Luís Nunes Tinoco, 1686, recolhimento do Carmo do Funchal
(arquivo particular, 2017).
em 1581 e a partir de onde se irão propagar,
primeiro pelo continente do reino e depois
pelo Império. Assim, ao logo do séc. xvii, os tutela das Carmelitas, mas o seu rigoroso regi-
Carmelitas Descalços estendem-se, sobretudo, me alimentar exigia muito peixe, o que, por
ao Brasil, mas também aos arquipélagos atlân- estranho que pareça, a Ilha não se encontrava
ticos dos Açores e da Madeira. Neste último capaz de assegurar, pelo que se acabou por
território, pretenderam os frades fundar uma abandonar a ideia, substituindo-se a congre-
comunidade que, em 1662, se instalou na gação pela das Clarissas.
igreja de N.ª Sr.ª da Encarnação. Como, tam- A presença carmelita no Funchal, porém,
bém por esta altura, o Cón. madeirense Hen- manteve-se com o ramo masculino da congre-
rique Calaça envidava esforços para erguer gação, que, sob a direção do P.e Luís do Ro-
um convento de freiras, em cumprimento de sário Vila Nova, mandou edificar um pequeno
uma promessa feita em nome da libertação de hospício numa rua da cidade, até então cha-
Portugal do domínio espanhol, pensou-se ini- mada das Laranjeiras, mas que, graças à pre-
cialmente que esse convento poderia ficar sob sença dos frades, se passou a designar rua do
918 ¬ C armelitas

As obras da igreja estavam concluídas em


1660, e as do recolhimento, que compreen-
dia quatro celas, refeitório e cozinha, estariam
também terminadas por volta de 1682, data do
testamento de Manuel Maria Brandão, outro
dos grandes benfeitores da Ordem.
A presença dos religiosos professos sofrerá,
contudo, um rude golpe quando, em 1730, o
síndico dos Franciscanos madeirenses apresen-
ta em tribunal uma petição para que os Carme-
litas mandassem destruir uma torre de pedra
que tinham começado a erguer no seu anexo.
A argumentação dos frades seráficos assentava
no facto de reclamarem para si o exclusivo da
mendicância na Madeira, afirmando serem “os
primeiros fundadores e habitantes” e estarem
“na posse pacífica de seus conventos, esmolas e
emolumentos de que como mendicantes lhes é
lícito viver”, razões pelas quais não deveria ser
autorizado “por direito canónico introduzir-se
na terra fundações de qualquer outra religião”
(DGARQ, Cabido da Sé do Funchal, mç. 12,
doc. 36, fl. 2).
A disputa, assente em claros pressupostos
económicos, não esmoreceu mesmo quando
os Carmelitas declararam não precisar de es-
molas para sobreviver, uma vez que as missas e
Fig. 4 – Fachada da igreja do Carmo do Funchal, reforma os legados pios instituídos na sua igreja seriam
de c. 1790 e seguintes (arquivo particular, 2018). suficientes para lhes assegurar a subsistência.
Insensíveis a qualquer argumento, os Fran-
Carmo. Esta comunidade primitiva era com- ciscanos persistiram no pleito até obterem do
posta por um número reduzido de irmãos, bispo a concordância com a sua posição, ainda
normalmente apenas um residente e alguns que o prelado tenha decidido a seu favor ape-
outros de passagem. nas pelo facto de os Carmelitas não terem tido
Graças à generosidade de alguns membros o cuidado de lhe pedir licença para a edifica-
da nobreza insular – o Cap. Roque Aciaioli de ção do convento.
Vasconcelos ofereceu o terreno, e a família Apesar de falhada a tentativa de assegurar de
Brandão contribuiu largamente para a cons- forma mais permanente a sua presença na Ilha,
trução –, começou, em 1656, a erguer-se o tem- a comunidade carmelita nunca deixou de ter
plo de N.ª Sr.ª do Carmo, com o recolhimen- seguidores na Madeira, onde o culto a Nossa
to anexo. Alguns elementos destes Brandões, Senhora do Carmo enraizou profundamente.
designadamente D. Maria Brandão, que foi ca- Em 1933, o bispo D. Manuel Pereira Ribei-
sada com António Carvalhal Esmeraldo, outro ro retomou os contactos com a Ordem do
representante da mais alta nobreza insular, e Carmo, no sentido de solicitar a fundação
D. Isabel Brandão, irmã da primeira, legaram de um convento, o que foi finalmente acei-
a sua notável fortuna à igreja do Carmo, o que te, assinando-se o contrato a 7 de janeiro de
muito contribuiu para a consolidação da pre- 1946. No mesmo ano, a 4 de novembro, che-
sença da Ordem na Madeira. gavam ao Funchal os primeiros membros da
C arnaval ¬ 919

comunidade: Fr. Constâncio do Menino Jesus, Carnaval


Fr. Benigno do Menino Jesus e Fr. Aniceto do
Divino Redentor. As festas, genericamente consideradas, são
Outro exemplo da longa sobrevivência desta momentos de rutura com o quotidiano, de
devoção a Nossa Senhora do Carmo no povo celebração de um qualquer evento, de conví-
madeirense está patente no facto de duas das vio e de alguns excessos, e atravessam os tem-
paróquias criadas em 1960 pelo bispo D. David pos e espaços da história da humanidade pelo
de Sousa a terem escolhido para padroeira. menos desde o advento das sociedades agríco-
Uma dessas paróquias, situada em Câmara de las. São, também, no dizer de Bakhtin, “uma
Lobos, intitulou-se mesmo do Carmo, por se er- forma primordial, marcante, da civilização hu-
guer em terrenos que outrora tinham perten- mana” (BAKHTIN, 1987, 7), mas, apesar do
cido a Domingos Rodrigues, que aí, em 1658, muito em comum que têm, nem todas se ce-
construíra uma capela vincular com a invoca- lebram do mesmo modo, nem perseguem os
ção da Senhora do Carmo, tendo a designação mesmos fins.
passado a aplicar-se também ao local. A outra, Assim, há que distinguir entre as festas oficiais,
na Camacha, apesar de se designar do Rochão, em que os intervenientes se apresentam “com as
tem Nossa Senhora do Carmo como orago. insígnias dos seus títulos, graus e funções” (Id.,
Nos começos do séc. xxi, a Ordem do Ibid., 8), ocupando o lugar que esses atributos
Carmo na Madeira mantinha-se ativa na igreja justificam, e outras em que se verifica a existên-
mãe, onde se prodigalizava à população mis- cia de um momento de liberdade que permite a
sas, confissões e acompanhamento espiritual. abolição temporária de todas as relações hierár-
Fora deste espaço, os Carmelitas asseguram quicas, como acontece com o Carnaval.
ainda a capelania do Colégio de S.ta Teresinha
e acompanham seis comunidades do Carmo
secular, localizadas sobretudo em Câmara de
Lobos, onde se radicam as de Nossa Senhora
do Carmo, na paróquia do Carmo, a de São
Sebastião, no centro da cidade, a de Nossa
Senhora da Graça, no Estreito de Câmara de
Lobos, a de Nossa Senhora do Bom Sucesso,
no Garachico, e a de Santa Cecília, em São
Bernardino. Fora deste espaço concelhio, re-
ferência ainda para a comunidade de Nossa
Senhora dos Remédios, na Quinta Grande, lo-
calidade que já integra a circunscrição da Ri-
beira Brava.

Bibliog.: manuscrita: ANTT, Cabido da Sé do Funchal, mç. 12, doc. 36;


impressa: CARITA, Rui, História da Madeira, vol. iii, Funchal, Secretaria Regional
da Educação, 1992; GAMA, Manuel, “A partir de meados do século xiii.
Carmelitas em Portugal”, Jornal da Madeira, sup. Pedras Vivas, 18 jul. 2010;
GOMES, Jesué Pinharanda, “Carmelitas Calçados”, in FRANCO, José Eduardo
et al. (orgs.), Dicionário Histórico das Ordens e Instituições Afins em Portugal,
Lisboa, Gradiva, 2010, pp. 77-105; Id., “Carmelitas Terceiros Observantes”,
in FRANCO, José Eduardo et al. (orgs.), Dicionário Histórico das Ordens e
Instituições Afins em Portugal, Lisboa, Gradiva, 2010, pp. 100-105; Id., “O Carmelo
Lusitano”, in FRANCO, José Eduardo, e ABREU, Luís Machado (coords.), Para
a História das Ordens e Congregações Religiosas em Portugal, na Europa e no
Mundo, Lisboa, Paulinas, 2014, pp. 297-303; A History of Madeira, London, R.
Ackermann, 1821; digital: Carmelitas Descalços/Padres Carmelitas Descalços
Funchal: http://funchal.carmelitas.pt (acedido a 1 jun. 2018).
Fig. 1 – Os Dias dos Nossos Carnavais (1991),
Cristina Trindade da Direção Regional dos Assuntos Culturais.
920 ¬ C arnaval

O Carnaval ocupa, com efeito, um lugar par- momento em que se permitem abusos e libe-
ticular no conjunto das festividades que, ao ralidades como forma de preparar o período
longo dos tempos e em vários momentos do de contenção, sacrifício e jejum que se lhe
ano, unem as comunidades humanas, na me- segue – a Quaresma. Em apoio da sua tese,
dida em que se reveste de características únicas Baroja invoca a etimologia do termo, aproxi-
e particulares que autorizam que seja conside- mando-o de “carnal”, aplicado “à época do ano
rado a “mais importante das festas” por vários durante a qual se come carne, em oposição à
autores que o estudaram (SOIHET, 1999, 2). quaresma”, e de “antruejo” (correspondente
Entre as mais notáveis dessas características di- ao português “entrudo”), termo derivado do
ferenciadoras, encontra-se a da possibilidade latim introitus – usado no sentido de aquilo que
de mostrar o mundo ao contrário, permitin- introduz e precede o dito tempo quaresmal
do toda a sorte de representações invertidas: (BAROJA, 1979, 39). Esta ligação do Carnaval
os homens apresentam-se como mulheres e vi- ao cristianismo não obsta a que nele se integre
ce-versa, os pobres como ricos, as altas figuras um conjunto de elementos pagãos que a Igre-
da sociedade podem ser livremente criticadas, ja incorpora justamente para controlar, auto-
as máscaras protegem as identidades e quase rizando os excessos para melhor poder exigir
tudo é permitido. um subsequente comportamento mais virtuo-
As suas origens, sempre remotas, não reú- so e exemplar.
nem, porém, o consenso dos estudiosos, que A oficialização desta ligação foi permitida
divergem na análise dos seus primeiros con- por S. Gregório Magno, que, em 590, autori-
textos. Segundo uns, a celebração do Carnaval zou a realização de cortejos e espetáculos có-
(ainda que não com esta designação) deve pro- micos; a partir daí, o Carnaval singrou nas co-
curar-se na Antiguidade pagã, sendo detetável munidades cristãs, como se atesta, e.g., pela
no Egito, em que a mitologia a liga aos deu- permissão que cerca de 1000 anos mais tarde
ses Ísis e Osíris, em cuja homenagem as pes- o Papa Paulo II outorgou à realização de bai-
soas se reuniam para celebrar a fertilidade da les de máscaras, corridas de cavalos, carros ale-
terra. Dela constava, também, a figura de um góricos e lançamento de ovos, água e farinha,
rei sobrenatural que “permitia a realização de tudo em frente ao seu palácio, no que deveria
sonhos proibidos e ligava a festa ao sentido da ser um espetáculo que pouco se afasta dos fes-
vida e da sua transcendência”, sendo que a sua tejos de Carnaval bem mais recentes.
morte assinalava a necessária purificação dos No que toca à presença do Carnaval em
espíritos depois de um período de excessos Portugal, Guardado da Silva afirma-a logo no
(CAMARGO e BARBOSA, 2012, 8-9). Na Gré- séc. xiii, quando, no reinado de D. Afonso III,
cia e em Roma, também se encontram possí- o uso da palavra “entrudo” se aplicava ao pe-
veis antepassados do Carnaval, materializados, ríodo de três dias que antecede a Quaresma,
para o primeiro caso, nas homenagens a Zeus, enquanto o termo “Carnaval” surgiria apenas
Dionísio e outros deuses, e, para o segundo, no séc. xvi para identificar as festas que come-
nas celebrações em honra de Baco (as Baca- çavam no Dia de Reis e terminavam na Quarta-
nais), Fauno (Lupercais) ou Saturno (Satur- -Feira de Cinzas.
nais). Este conjunto de festividades partilha- Para a Madeira, porém, as referências a
va a referência à alegria, à comida, à bebida, estas festividades são escassas, afirmando José
ao sexo e à subversão do estabelecido (Baco de Sainz-Trueva que alusões específicas “aos
e Dionísio), o conflito entre o caos e a ordem primitivos Entrudos ilhéus não as encontrá-
(Fauno e Pã), e ainda o enaltecimento da agri- mos”, ainda que sejam detetáveis “quadros
cultura e da fertilidade (Saturno e Ceres). de feição burlesca e teatral” nas procissões de
Outros autores, bem representados pelo es- Corpus Christi (SAINT-TRUEVA, 1991, 19),
panhol Júlio Caro Baroja, vinculam o Carna- em cuja retaguarda pontificava o Imperador
val ao cristianismo, explicando-o como um e Rei, levado pelos carniceiros, e a serpe, da
C arnaval ¬ 921

mais favorável, adiantando que um grupo de


madeirenses tinha dado um importante con-
tributo ao evento promovendo “uma espécie
de baile de fantasia realizado com muita graça
e vivacidade”, enquanto outro grupo ridicu-
larizara com sucesso um batizado no campo
(SILVA, 2008, 107-108).
Após esta alusão ao muito típico Carnaval da
R. da Carreira, que pela primeira vez se con-
firma documentalmente, nova constatação da
existência das comemorações carnavalescas
surge em 1837, em texto endereçado ao comis-
sário da paróquia de Santa Maria Maior. O ob-
jetivo era o de garantir a segurança de um baile
de mascarados a realizar em casa do vice-cônsul
do Brasil, na R. de Santa Maria. O comissário
devia, então, tomar as providências necessárias
para garantir que “as máscaras, no seu trânsito,
não sejam insultadas, nem mesmo incomoda-
das com água”, uma vez que “os divertimentos
desta natureza, dos quais podem resultar de-
sordens, devem impreterivelmente terminar
as Avé-Marias”. Mais se indicava que, para que
se pudesse assegurar aos “cidadãos que se vão
entreter neste honesto passatempo a tranqui-
lidade a que todos temos direito”, estava o co-
Fig. 2 – Rambles in Madeira, and in Portugal in the Early Part
of MDCCCXXVI (1827).
missário autorizado a solicitar alguns soldados,
ou até oficiais de diligências da administração
(ABM, Administração do Concelho do Fun-
responsabilidade de tosadores e alfaiates, con- chal, Registo..., l. 328, fls. 6-6v.). Esta atitude
forme previsto na “Ordenança do dia de Corpo revela bem a forma pacífica e cordial com que,
de Deus” de 1483, documento que regulamen- nesta altura, se acolhiam as festas de Carnaval,
tava o cortejo (Revista do Arquivo…, XV, 1972, mas, no ano imediato, a publicação de um edi-
120-121). tal já impunha limites mais estreitos para os fes-
Para encontrarmos dados com alguma base tejos. Regulamentava, então, esse edital as ce-
documental, é preciso esperar pelo séc. xix, al- lebrações a ocorrer entre a primeira oitava da
tura em que começam a aparecer, sobretudo Páscoa e a última do Espírito Santo, solicitadas
em autores estrangeiros, alusões a festejos car- por um grupo de cidadãos que pretendia que
navalescos insulares. Nas suas Rambles in Madei- houvesse “mascaradas” naquelas datas, e, para
ra, and in Portugal, obra datada de 1827, sem as autorizar impunha-se uma série de condi-
autor identificado, mas que se costuma atribuir ções. Assim, exigia-se que os mascarados se fi-
a Alfred Lyall, este descreve em termos pouco zessem acompanhar de um “bilhete de Polícia”
entusiasmados os festejos a que assistiu na R. de apresentação obrigatória ao sargento da Po-
da Carreira, que implicaram o atirar de água e lícia, ao regedor da paróquia ou ao oficial de
farinha das janelas sobre os transeuntes, o que diligências, no caso de estes o pedirem. Esse bi-
lhe valeu ser “encharcado e empoeirado por al- lhete, intransmissível, requeria um abonador,
gumas senhoras”. Já quanto ao baile de másca- que podia ser o próprio, se tivesse 100.000 reis
ras promovido pelo cônsul inglês, tem opinião de renda; se não, a abonação teria de ser feita
922 ¬ C arnaval

de imediato e os infratores punidos com cas-


sação das licenças, multas e outros castigos
correcionais.
Para além de tudo isto, ainda se alude a três
“funções a saber – Bando – Alardo – e Enca-
misada”, alertando-se os participantes para a
obrigação de se sujeitarem ao programa an-
teriormente publicado (ABM, Administração
do Concelho do Funchal, Registo..., l. 328,
fls. 149-149v.).
Este edital revela-se um documento interes-
sante, uma vez que mostra que a ânsia de di-
vertimento dos madeirenses não fora aplacada
pela Quaresma, o que se comprova pelo facto
de o pedido da licença para as festas as reme-
ter para o dia seguinte ao fim do período de
restrição religiosa. Por outro lado, faz menção
de três formas específicas de festejos que não
costumam ser referidas: o Bando, o Alardo e
a Encamisada. Por Bando entendia-se, na ilha
Terceira, nos Açores, “figurações de chacota”
(JÚNIOR, 1953, 145), e é de crer que na Ma-
deira o significado fosse semelhante, prece-
dendo essas figurações as Encamisadas, que
por sua vez reportam a desfiles, muitas vezes
a cavalo, em que os cavaleiros se cobrem com
camisas ou capas. Já o Alardo, que ainda hoje
surge ligado ao Carnaval brasileiro, significa
uma dança dramática que mimetiza uma luta
entre cristãos e mouros. De todos estes eventos
se compunha, então, esta espécie de prolonga-
mento do Carnaval que acontecia no Funchal
Fig. 3 – Cortejo de Carnaval na R. Serpa Pinto, Funchal, 1897
(ABM, Photographia Vicente). no segundo quartel do séc. xix.
Mais para o fim do século, o Carnaval passa
a ser objeto do interesse da imprensa, que o
por alguém com aquele rendimento. A nin- transforma em notícia, como acontece, e.g.,
guém se permitia andar mascarado depois do com este apontamento publicado pelo Diá-
toque das Trindades sem autorização policial, rio de Notícias do Funchal, a 24 de fevereiro de
e também não seriam toleradas injúrias, insul- 1887, que informava que o Carnaval da últi-
tos pessoais ou arremedos a qualquer pessoa. ma terça-feira fora “muito folgazão e animado
Igualmente defesas estavam as manifestações […] muita concorrência no Teatro Esperança;
que visassem ridicularizar as instituições libe- muitas famílias em visitas de intimidade, muita
rais “que felizmente nos regem” e os objetos de bisnaga, muito pó, e para nada faltar, segun-
culto religioso; a entrada em estabelecimentos do nos dizem, houve por essas ruas grossa pan-
de venda de álcool era condenada, bem como cadaria” (SAINT-TRUEVA, 1991, 26). Celebra-
o uso de qualquer tipo de arma sem licença do no teatro, em casas de pessoas às quais se
da administração. Em caso de perturbação da faziam os famosos “assaltos”, era sobretudo na
ordem pública, o divertimento seria suspenso rua que o povo madeirense festejava a quadra,
C arnaval ¬ 923

numa zona que incluía o Lg. do Colégio, a R. pós que “mancham as toilettes” e fazem “con-
da Carreira e a de S. Francisco. Ao longo deste juntivites”. Estes eventos costumavam terminar
circuito, mas em particular na zona da R. da com baile de máscaras. No átrio do “Teatro
Carreira, decorriam, de facto, as mais rijas cele- Cannavial” ainda estavam à disposição dos fo-
brações do Carnaval, que incluíam o arremes- liões um restaurante de primeira qualidade e
so de serpentinas tanto das janelas para baixo um sortido de objetos para usos carnavalescos,
como em sentido inverso, mas também de sa- a “preços módicos” (Id., Ibid.).
quinhos com areia do Porto Santo, com grãos A par desta opção, apresentava-se também
de milho e farinha, feijão, grão, e ainda “bis- um desfile de trupes a pé e a cavalo que percor-
nagas com líquidos fedorentos” e ovos podres ria as principais ruas do Funchal, bem como
(SANTOS, 1994, 19). outros bailes de máscaras, nos clubes Recreio
O resultado deste confronto era, segundo o Musical e Recreio Instrução, aos quais se junta-
Diário de Notícias informava, em março de 1905, va, ainda, o do Sports Club, cuja receita rever-
ficar a R. da Carreira com um “aspeto verda- tia a favor do Auxílio Maternal.
deiramente desolador toda coberta dos destro- Em 1905, o administrador do concelho do
ços da batalha carnavalesca”, o que, segundo Funchal procurava disciplinar as festividades
o articulista, provava que “o carnaval nas ruas, proibindo o desfile de “mulheres de má nota”
entre nós, não é suscetível de progresso” (NÓ- que noutros Carnavais tinham tido a ousadia
BREGA, Diário de Notícias, 4 mar. 1984, 5). de percorrer as ruas da cidade de carruagem e
Para quem não apreciasse este tipo de di- lançando sacos de farinha aos espectadores do
vertimento, o Funchal disponibilizava outros, cortejo (Id., Ibid., 5).
como os que decorriam nos Teatros Maria Pia Já mais para meados do séc. xx, em 1931, a
e Canavial, onde se desenrolavam saraus musi- Associação dos Estudantes Pobres começa a fir-
cais com batalhas de flores que não incluíam mar os seus créditos como organizadora dos

Fig. 4 – Trupe de Carnaval, Funchal, 1925 (ABM, Photographia Vicente).


924 ¬ C arnaval

festejos desta quadra, sendo que na sua sede ti- licença. O lançamento de objetos restringia-se
nham lugar batalhas de confettis, que iam a par ao de sacos com “um terço de serradura e dois
com “as deslumbrantes festas carnavalescas que terços de confetti” e a chocolates, ou seja, a ar-
se realizam no Salão Parque das Cruzes”, onde tigos que não pudessem causar danos. Era ex-
se apresentavam diversas trupes de mascarados pressamente proibido o uso de máscaras que
(Tribuna da Madeira, 2003, 2.º caderno, 2). impedissem a pronta identificação dos porta-
O Estado Novo irá procurar disciplinar o dores, bem como os disfarces que se asseme-
Carnaval, cuja licenciosidade e o anonimato lhassem aos trajes das forças da ordem, ou fos-
permitido pelas máscaras lhe desagradavam, sem atentatórios da “religião, da moral e dos
pelo que em 1948 é publicado um edital da bons costumes” (Diário de Notícias, 1948, 1).
responsabilidade do Dr. João Abel de Freitas, Apesar destas ameaças à sua genuinidade, o
governador do distrito, que visava “tomar pro- Carnaval madeirense continuou a celebrar-se,
vidências sobre os folguedos”. Era, assim, limi- ainda que os folguedos da R. da Carreira en-
tada a realização de bailes e jogos às casas de trassem num declínio que os conduziu à ex-
espetáculos a isso destinadas ou a casas parti- tinção. Nas décs. de 50 e 60, e até, concreta-
culares, desde que habilitadas com a devida mente, 1974, pontificavam os Guerrilhas, um
grupo musical que recebia do Brasil letras e
músicas, se disfarçava, embarcava numa lan-
cha para saltar no cais, a fingir que estava a
chegar de longe, e a pé percorria o Funchal
tocando não só as músicas novas como o hino
que era executado frente ao palácio de S. Lou-
renço e da Câmara Municipal. Depois, ia para
os hotéis, onde animava os turistas, e, por fim,
regressava ao centro da cidade, terminando o
dia com um grande concerto no Jardim Mu-
nicipal. Esta trupe era, então, a única respon-
sável pelos festejos públicos do Carnaval na
Madeira, mas a Revolução de Abril, apesar de
ter ditado a morte dos Guerrilhas, veio trazer
uma nova dinâmica a esta época do ano.
A partir dos fins da déc. de 1970, começaram
a surgir grupos organizados por particulares,
que desfilavam pelas ruas disfarçados de flores,
catos e palhaços, e.g., muito graças ao empe-
nho e criatividade de pessoas como Artur Fer-
reira, à frente de Sonho de Um Dia, e Ângela
Figueira, que liderava a Caneca Furada. Repre-
sentavam aqueles responsáveis duas formas dis-
tintas de abordar o Carnaval. No caso de Artur
Ferreira, a originalidade era essencial, e tradu-
zia-se também no uso dos materiais disponí-
veis: corda para os cabelos, vassouras para os
chapéus. O caso da Caneca Furada já assinala-
va a tendência, que depois veio a ganhar muito
espaço, de celebrar o Carnaval muito à moda
do Brasil, surgindo grupos inspirados na Esco-
Fig. 5 – Anúncio para o Carnaval de 1957 (DN, 3 mar. 1957). la da Mangueira, do Rio de Janeiro.
C arnaval ¬ 925

Em 1980, e pela primeira vez, o Governo Manuela Aranha surge com uma proposta de
regional associa-se às celebrações e começa a um cortejo alternativo, mais vernáculo e mais
tomar forma a ideia de transformar o Carnaval genuíno – o Trapalhão, que desde então assi-
numa atração para os turistas. Segundo dizia nala a Terça-feira Gorda, trazendo a crítica so-
o então diretor regional do turismo, Ribeiro cial para as ruas, nas quais se pode, então, as-
de Andrade, as manifestações festivas tinham sistir à chamada de atenção para os problemas
sido um verdadeiro sucesso, o que deixava an- que no momento mais preocupações suscitam.
tever que “esta quadra de Entrudo vai passar a Quanto ao outro cortejo, cada vez mais identi-
ser, no futuro, um verdadeiro cartaz turístico” ficado com o seu congénere brasileiro, acon-
(GOUVEIA, 2003, 12). tece no sábado anterior, à noite, e concita as
Com efeito, o Carnaval madeirense come- atenções não só de milhares de madeirenses
çou nessa altura a ganhar uma amplitude tal que, aos poucos, foram aprendendo a apreciá-
que, em 1986, o Diário de Notícias já registava -lo, mas também de muitos turistas que juntam
que Las Palmas adiara os festejos para que não à fruição do desfile o aproveitar das temperatu-
coincidissem com os madeirenses, medida que ras amenas de que a Madeira goza no inverno.
visava não só permitir a grupos da Madeira a A tendência para a “brasilização” do corso ma-
participação em desfiles canários, mas também deirense não deixou de se acentuar, a ponto de
rentabilizar o potencial turístico do evento no séc. xxi, na noite de sábado, só se encon-
(Diário de Notícias, 1986, 1). trarem trupes vestidas de plumas e lantejoulas
Perante o acentuar da tendência para os des- que dançam ao ritmo do samba.
files madeirenses seguirem um figurino bra- Este registo, no entanto, foi crescentemente
sileiro, descaracterizando desse modo o mais garantindo o sucesso das comemorações car-
tradicional Carnaval madeirense, em 1980 navalescas no Funchal, e o êxito contagiou os

Fig. 6 – Desfile Trapalhão de Carnaval na Av. do Mar, Funchal, 28 de fevereiro de 2017 (arquivo particular).
926 ¬ C arnaval

Fig. 7 – Festa dos Compadres de Santana, fevereiro de 2018 (JM, 22 fev. 2019).

concelhos rurais, que, a pouco e pouco, foram hotéis e gerando dividendos significativos,
também começando a promover os seus pró- pelo que continua a justificar a atenção com
prios desfiles e celebrações, ainda que manten- que o Governo regional da Madeira o distin-
do um carácter mais popular, sendo justo salien- gue e apoia.
tar, neste contexto, a forma como em Santana se
Bibliog.: manuscrita: ABM, Administração do Concelho do Funchal, Registo da
vivencia a quadra. Neste concelho do nordeste Correspondência Expedida, liv. 328, fls. 6-6v. e 149-149v.; impressa: BAKHTIN,
madeirense, de facto, o Carnaval assume carac- Mikhail, A Cultura na Idade Média e no Renascimento. O Contexto de François
Rabelais, São Paulo, Hucitec, 1987; BAROJA, Julio Caro, Le Carnaval, Paris,
terísticas muito próprias, baseadas numa tradi- Gallimard, 1979; CAMARGO, Luís Octávio de Lima, e BARBOSA, Fátima Marita,
ção com mais de 50 anos – a Festa dos Compa- “Ordenança do Dia de Corpo de Deus”, Arquivo Histórico da Madeira, vol. xv,
1972, pp. 120-121; Id., “O Carnaval ancestral como contraponto do cotidiano
dres. Inicialmente de origem popular, a Festa e a sua banalização nas sociedades modernas”, Iara. Revista de Moda, Cultura e
era organizada por pessoas dos diversos sítios Arte, vol. 5, n.º 2, 2012, pp. 4-33; Diário de Notícias, Funchal, 4 fev. 1948; 3 mar.
1957; Diário de Notícias, 20 jan. 1986; DIREÇÃO REGIONAL DOS ASSUNTOS
do concelho que se reuniam para fazer o jul- CULTURAIS, Os Dias dos Nossos Carnavais, Funchal, s.n., 1991; GOUVEIA,
gamento dos compadres, ao qual eram chama- Natércia, “Outros carnavais”, Revista do Diário de Notícias, 8 mar. 2003, pp. 11-14;
Jornal da Madeira, 22 fev. 2019; LOPES, Frederico (Júnior), “As danças do
dos todos os acontecimentos e personalidades entrudo”, Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, n.º 11, 1953, pp. 143-151;
marcantes do ano anterior para serem analisa- NÓBREGA, Tolentino, “Das ‘selvagerias’ da rua da Carreira aos bailes da
alta sociedade. O Carnaval dos (bons) velhos tempos”, Diário de Notícias, 4
dos num tribunal popular, com humor e sáti-
mar. 1984, pp. 5 e 7; Rambles in Madeira, and in Portugal in the Early Part of
ra à mistura. Em 1985, a Câmara Municipal de MDCCCXXVI, London, C. & J. Rivington, 1827; SAINZ-TRUEVA, José de, “Entre
Santana chamou a si a organização do evento, máscaras”, in DIREÇÃO REGIONAL DOS ASSUNTOS CULTURAIS, Os Dias
dos Nossos Carnavais, Funchal, s.n., 1991; SANTOS, Rui, “Página de memórias.
acrescentando ao julgamento um cortejo ale- O Carnaval da rua da Carreira”, Jornal da Madeira, 15 fev. 1994, p. 19; SILVA,
górico que faz desfilar costumes e tradições tí- António Marques da, Passaram pela Madeira, Funchal, Empresa Municipal
Funchal 500 Anos, 2008; SILVA, Carlos Guardado, “História. As origens de uma
picos do concelho e transformando o Carnaval tradição antiga”, Torres Vedras, n.º 6, jan.-fev. 2012, pp. 24-25; SOIHET, Rachel,
de Santana num dos pontos altos dos festejos da “Reflexões sobre o Carnaval na historiografia. Algumas abordagens”, Tempo,
vol. 4, n.º 7, jul. 1999, pp. 1-15; Tribuna da Madeira, 2.º caderno, 2003;
quadra na Madeira. digital: “Alardo”, Danças Folclóricas, 28 fev. 2018: https://dancasfolcloricas.
Plenamente afirmado no séc. xxi como car- blogspot.com/2011/02/alardo.html (acedido a 1 mar. 2018); “Igreja. Do
Carnaval às Cinzas, uma história ligada pela Lua”, Agência Ecclesia, 12 fev. 2018:
taz turístico insular, o Carnaval tornou-se, a par http://www.agencia.ecclesia.pt/portal/igreja-do-carnaval-as-cinzas-uma-
de outras celebrações anuais, um dos momen- historia-ligada-pela-lua-2/ (acedido a 1 mar. 2018).

tos altos da animação na Madeira, esgotando Cristina Trindade


Instituições Científicas Coordenadoras

CEG – Centro de Estudos Globais e Cátedra CIPSH de Estudos Globais da Universidade Aberta

CLEPUL – FLUL – Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas IECCPMA – Instituto Europeu de Ciências
e Europeias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa da Cultura Padre Manuel Antunes

Instituições Associadas

UMa – Universidade ADEGI – Associação para o CompaRes APCA – Agência IAC – Instituto
da Madeira Desenvolvimento dos Estudos – International Society de Promoção da Açoriano de Cultura
Globais e Insulares for Iberian-Slavonic Cultura Atlântica
Studies

Projeto Aprender Madeira/Intervir +

CEG – Centro 600 Anos OLP – Observatório


de Estudos Geográficos Globalização da Língua
da Universidade de Lisboa Portuguesa

Instituição Patrocinadora Principal

Secretaria Regional de Educação, Ciência e Tecnologia da Região Autónoma da Madeira

Mecenas Associados

Pestana Hotel Group Grupo Sousa Jornal da Madeira Grupo Socicorreia

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