ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
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Ciência e conhecimento
E ste capítulo, que se dedica à ciência e ao conhecimento, foi dividido em quatro
seções. Na primeira seção, apresentam-se os tipos de conhecimento, desde o po-
pular ou de senso comum, passando pelo artístico, religioso, filosófico, até o científico,
técnico e tecnológico. Na segunda seção, voltada ao conceito de ciência, distinguem-se
características do conhecimento em ciências formais e factuais. Na terceira seção,
relacionada à dimensão epistemológica da ciência, discutem-se a origem, a essência e
a possibilidade do conhecimento, bem como a noção de verdade e os modos de saber
em ciência. Na última seção, trata-se da relação entre fatos e teorias, desde as noções
de fatos e fenômenos, passando pelas noções de leis, conceitos, construtos e teorias,
até a noção de quadros teóricos referenciais.
1.1 Conhecimento
Definição. Por conhecimento define-se o conjunto de competências e habilidades
obtidas pela experiência ou pela educação e decorrentes de processos complexos de
percepção, aprendizagem, comunicação, associação e raciocínio, que permite ao sujei-
to a compreensão teórica ou prática de seres, objetos, fatos ou fenômenos e a ação
reflexiva com finalidade específica diante de uma demanda ou problema da realidade.1
Elementos. O ato de conhecer implica três elementos: o cognoscente ou sujeito
do conhecimento, o cognoscível ou objeto do conhecimento e a relação necessária
do cognoscente com o cognoscível. O cognoscente é o indivíduo que possui a capaci-
dade intelectiva e racional de conhecer. O cognoscível é aquilo que é passível de ser
conhecido e desafia a inteligência e a racionalidade do sujeito. A relação do sujeito
cognoscente com o objeto cognoscível é a condição que permite o conhecimento do
objeto pelo sujeito.
Para Aranha e Martins (1999, p. 48), “o conhecimento é o ato ou o processo pelo
qual o sujeito se coloca no mundo e com ele estabelece uma ligação.” Deste modo,
conforme Barros e Lehfeld (1990, p. 9), o conhecimento não se constitui como “uma
1 A palavra ‘conhecimento’ provém do verbo latino cognoscere, significando “conhecer pela experiência”, “aprender” ou “saber”. Mais
remotamente, provém do substantivo grego γνwσις [gnósis], significando “investigação” ou “conhecimento” (origem comum de palavras
como ‘ciência’, ‘cognição’, ‘gnose’ e ‘noção’).
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Fábio José Rauen
mera expressão de imagens cognitivas, mas é, antes, uma coexistência do sujeito
com o objeto numa dada realidade; é o sujeito cognoscente envolvido com o mundo
cognoscível.”
Observe-se um bebê que percebe sua imagem em um espelho pela primeira vez.
Neste momento singular em que o espelho tornou-se conhecido para o bebê, pelo menos
em sua função básica de refletir sua imagem, houve uma transformação da realidade.
Neste processo, o bebê, sujeito cognoscente, modificou sua realidade, estabelecendo
uma relação cognitiva com o espelho, objeto cognoscível.
Apropriação. Segundo Luckesi et alii (2003, p. 137-138), o sujeito pode apropriar-
se do conhecimento de forma direta ou indireta. Na apropriação ou experiência direta
ou imediata, o sujeito opera com e sobre a realidade. Na apropriação ou experiência
indireta ou mediata, a apropriação do conhecimento é mediada por outro sujeito ou por
artefatos culturais produzidos por este outro sujeito e que dispensam a interação direta
com o objeto (este livro, por exemplo).
Outra forma de pôr esta questão é afirmar ser possível apropriar-se do conhe-
cimento de modo sensível ou de modo intelectual. O conhecimento sensível, mais
básico, provém da percepção sensorial do sujeito. O conhecimento intelectual, mais
complexo, provém da capacidade que têm os seres humanos de operar racionalmente
com objetos abstratos.
1.1.1 Tipos de conhecimento
Fragmentação. Weil, D’Ambrósio e Crema (1993, p. 17-19) argumentam que a
dissociação sujeito/objeto rompeu com uma suposta fase predisciplinar, caracterizada
por um equilíbrio entre as funções de sensação, sentimento, razão e intuição, tais como
descritas por Jung (1991). Para os autores, esta dissociação fez com que o conheci-
mento se fragmentasse em quatro ramos disciplinares: arte, religião, filosofia e ciência.
A figura a seguir apresenta a matriz de fragmentação dos autores, tomando-se a
liberdade de colocar no seu centro, em vez do conhecimento predisciplinar proposto
por eles, o conhecimento popular, uma vez que, neste tipo de conhecimento, o sujeito
apreende o objeto de modo espontâneo e integrado. Veja-se:
Figura 1 – Matriz da fragmentação de conhecimentos
Filosofia
Razão Intuição
Senso
Ciência Religião
Comum
Filosofia Sentimento
Arte
Fonte: Adaptado de Weil, D’Ambrósio e Crema, 1993, p. 17.
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Arte. Conforme a figura, a arte posiciona-se entre a sensação e o sentimento. Esta
figuração quer indicar que prevalece na arte a atribuição de sentimentos (gosto ou prazer
estético) a artefatos culturais que afetam os sentidos (a visão, como na pintura; a audi-
ção, como na música; a cinestesia, como na dança; entre outros). Isto não implica que
se ignorem na produção artística aspectos intuitivos (a inspiração que move a obra de
arte) ou aspectos racionais (por exemplo, o rigor de métrica e rima na poesia parnasiana).
Religião. A religião posiciona-se entre a intuição e o sentimento. Neste tipo de co-
nhecimento, prevalece a inspiração e a intuição (os dogmas religiosos são supostamente
inspirados pelo contato direto de alguns indivíduos com as divindades), e o conhecimento
é validado pelo sentimento de fé. Também aqui não se nega o papel dos fundamen-
tos racionais da existência divina (a teologia cristã é um conhecimento sistemático, por
exemplo) nem a necessidade de manifestações sensíveis (imagens, templos, ritos, entre
outras).
Filosofia. A filosofia, por sua vez, posiciona-se entre a intuição e a razão. A filosofia
sustenta-se sobre argumentos racionais, cuja origem não é atribuída a divindades, mas
à própria intuição humana. Este tipo de conhecimento não é verificável (visto que não se
pauta pela experiência sensorial), e o uso da razão minimiza a intervenção dos sentimen-
tos.
Ciência. Por fim, a ciência posiciona-se entre a razão e a sensação. Prevalece no
conhecimento científico a busca racional de explicações explícitas, objetivas e formadoras
de uma teoria orgânica, além da comparação constante destas explicações com dados
sensórios (retorno constante à experiência empírica). A intuição e o sentimento, sempre
contingentes, são colocados em segundo plano ou negados.
Vejam-se os tipos de conhecimento mais detidamente.
1.1.2 Conhecimento popular
Definição. Por conhecimento popular, acidental, comum, empírico, espontâneo,
ordinário, tácito, vulgar ou senso comum define-se o conjunto de comportamentos,
costumes, hábitos, normas e tradições que se adquirem no trato direto com a realidade,
o “viver-e-aprender”, ou no trato indireto, a partir da experiência de outra pessoa, o
“ouvir-e-aprender”, geralmente de difícil formalização ou explicação em função de ser
próprio das habilidades e competências dos indivíduos, o know-how.
Exemplos. Quando o bebê deu-se conta da existência do espelho, ao ver sua imagem
refletida nele, pouco lhe interessaram as leis físicas envolvidas no processo de reflexão de
imagens (qual a natureza da luz, por exemplo). Por experiência sensorial direta, ele sim-
plesmente conheceu a função básica do espelho, refletir imagens, e se contentou com isto.
Eis outros exemplos de conhecimento popular. O conhecimento da pessoa comum
para andar de bicicleta ou atravessar a rua. O conhecimento de um pescador sobre que
ondas contêm peixes. O toque pessoal do tempero da cozinheira experiente. A noção da
mudança do tempo pelo observar das nuvens. O conhecimento de indígenas sobre plantas
e animais da floresta.
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Fontes. Conforme Laville e Dionne (1999, p. 17-22), as fontes do conhecimento
popular são a intuição e a tradição.
Por intuição define-se a percepção imediata que dispensa o uso da razão. Apesar de
ser útil para as necessidades cotidianas, a percepção imediata pode fundamentar opiniões
discutíveis, estereótipos e preconceitos e construir obstáculos para o saber científico, por
se tratar de um conhecimento repleto de falhas e lacunas.
Uma vez que se admite a pertinência de um saber, mesmo que incompleto, organi-
zam-se instituições sociais para sua manutenção e difusão, onde atuam autoridades do
conhecimento. Como nem todos os indivíduos de uma comunidade podem organizar sa-
beres espontâneos úteis, eles se contentam com saberes prontos determinados por estas
autoridades (sacerdotes, bruxos, xamãs, professores, instrutores, entre outras) dentro das
instituições de tradição (igrejas, escolas, institutos, entre outras). Dizem os autores: “o
valor do saber imposto repousa, portanto, em nosso consentimento em recebê-lo, e esse
consentimento repousa, por sua vez, na confiança que temos naqueles que o veiculam.”
Características. O conhecimento popular é limitado, impreciso, informal, por vezes
incoerente e arbitrário. Trata-se de um conhecimento utilitarista, fragmentado, prático e
válido somente para um indivíduo e seus interesses pessoais.
Conforme Ander-Egg (1978, p. 13-14), o conhecimento popular é superficial, sensi-
tivo, subjetivo, assistemático e acrítico. O conhecimento é superficial, porque a experi-
ência do sujeito, “eu vi”, ou o relato da experiência de outras pessoas, “me disseram”,
é suficiente como critério de aferição da verdade. Ele é sensitivo, porque decorre de
estados mentais do indivíduo. É subjetivo, porque as explicações são fruto da experiência
individual. É assistemático, porque é espontâneo e não visa a uma teoria organizadora do
conhecimento. Por fim, o conhecimento popular é acrítico, porque não há preocupação
com o exercício da crítica de outros pesquisadores para validá-lo.
Para Lakatos e Marconi (1986, p. 20), o conhecimento popular é:
a) valorativo, pois se fundamenta em estados de ânimo, e as emoções e os valores
do sujeito impregnam o objeto conhecido;
b) reflexivo, embora se ressalte que, com um tipo de conhecimento restrito à fami-
liaridade com os objetos, não se possa obter uma teoria geral;
c) assistemático, pois se trata de uma organização particular das experiências do
sujeito, e não de uma sistematização das ideias para se produzir uma formulação
geral que explique os fenômenos, fato que dificulta sua transmissão;
d) verificável, no sentido de que se limita e diz respeito ao cotidiano; e
e) falível e inexato, pois o sujeito se conforma com a aparência e com o que ouviu
dizer a respeito dos objetos.
Segundo Rosas (2003), o critério de verdade para o conhecimento popular é a cultura
ética e moral, e a tradição cultural é a sua condição de objetivação. Para o autor, a
relação sujeito/objeto é de ordem interpessoal, e a ideologia se estabelece pelos discursos
dominantes e pelos poderes estabelecidos.
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1.1.3 Conhecimento artístico
Definição. Por conhecimento artístico define-se o conjunto de comportamentos,
costumes, hábitos, normas e tradições obtido da relação subjetiva do sujeito com um
objeto tratado por este sujeito como um artefato cultural passível de ser belo, harmô-
nico ou prazeroso por suas características estéticas.2
Características. O conhecimento artístico decorre de uma combinação especial
de intuição e emoção. Trata-se de uma intuição emocional que transfere ao objeto
de arte o prazer estético, ou seja, é uma interpretação marcada pela sensibilidade.
Neste sentido, criadores e observadores estão empenhados em aspectos emocionais,
e não racionais, tanto na elaboração como na recepção destes artefatos. Para Oliveira
Netto (2005, p. 5), “a preocupação do artista não é com o tema, mas com o modo de
tratá-lo.”
Conforme Heerdt e Leonel (2006, p. 30), “a arte combina a habilidade desen-
volvida no trabalho (prática) com a imaginação (criação). Qualquer que seja sua
forma de expressão, cada obra de arte é sempre perceptível com identidade própria,
dando-lhe também componentes de manifestação dos sentimentos humanos.”
O conhecimento artístico é:
a) valorativo, pois se fundamenta no senso estético que distingue o belo, o har-
mônico e o prazeroso do feio, do desarmônico e do não prazeroso;
b) intuitivo, pois a obra de arte emerge do fluxo de inspiração de seu produtor;
c) assistemático, pois não há como prever em detalhes como ocorre a criação ou
a recepção do objeto de arte, muito embora se possam transmitir tradições de
criação e de recepção;
d) não verificável, pois, embora a obra de arte possa ser copiada, sua criação e
sua recepção é algo único e não repetível; e
e) infalível e de exatidão inaplicável, pois o objeto de arte simplesmente é o que
é e agrada como agrada.
Segundo Rosas (2003), o critério de verdade no conhecimento artístico, se é
que se aplica, é o da estética, e sua objetivação decorre do gosto. A metodologia
é subjetiva, e a relação sujeito/objeto é de ordem pessoal, englobando a percepção
criadora de artistas e intérpretes e a sensibilidade receptiva de contempladores ou
observadores.
1.1.4 Conhecimento religioso
Definição. Por conhecimento religioso ou teológico define-se o conjunto de
comportamentos, costumes, hábitos, normas e tradições obtido pela aceitação de
2 A palavra ‘arte’ provém do substantivo latino artem (nominativo ars), significando “habilidade artesanal”. A origem mais remota é o
sânscrito, significando “capacidade de transformar, moldar ou ajustar a matéria”. Em sua acepção mais ampla, a ars latina e a Kunst
germânica traduzem a ideia de perícia ou habilidade adquirida pelo paciente exercício e voltada para um fim estético, ético ou utilitário.
A partir do século XVII, a palavra vai se especificando para as destrezas criativas, separando-se das destrezas técnicas ou artesanais.
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dogmas revelados por inspiração sobre a origem, o significado, a finalidade e o
destino do universo como produto da obra de um criador divino.3
Origem. O conhecimento religioso decorre de um conjunto de lacunas relacio-
nadas com angústias e medos próprios de seres conscientes, as quais não foram
respondidas por outras formas de conhecimento. O medo da morte. A finitude da
vida. O vazio existencial. Os vários tipos de sofrimento e trauma. Para dar conta
destas questões, o homem projetou explicações mágicas e mitológicas que, passo
a passo, desenvolveram-se nas mais diversas religiões e seitas modernas.
Conhecimento mágico. Conforme o conhecimento mágico ou miraculoso, os
seres humanos atribuem a causa da consecução de um evento à deliberação de
um indivíduo, seja por si mesmo, seja através de artefatos que permitam mobilizar
intervenções sobrenaturais. O alfinetar de um boneco gerando dores no indivíduo
que este boneco representa. O despacho de umbanda ou candomblé. A fé na inter-
venção de santos ou espíritos. A torcida com os olhos, após uma tacada no golfe.
Conforme Alves (1981, p. 12), “a crença na magia, como a crença no milagre,
nasce da visão de um universo no qual os desejos e as emoções podem alterar os
fatos.”
Conhecimento mítico. O conhecimento mítico é aquele obtido da explicação
dos fenômenos naturais e humanos por meio de seres, histórias ou representações
sobrenaturais ou fantásticas. O mito de Aquiles. Os doze trabalhos de Hércules.
O martelo de Thor. A peregrinação dos judeus no deserto e a abertura do Mar
Vermelho. As diversas cosmologias de povos indígenas. São exemplos de mitifica-
ção moderna as representações ideológicas de personalidades políticas, artísticas
e desportivas. O mito de Tiradentes (mártir da República) ou de Getúlio Vargas
(defensor do povo). A imagem de líderes como Stálin, Hitler, Mao Tsé-Tung ou Fidel
Castro. O fascínio de artistas como Elvis Presley, John Lennon ou Michael Jackson,
ou de desportistas como Ayrton Senna, Pelé ou Maradona.
Características. Embora o conhecimento religioso se fundamente na fé, usa-
se o raciocínio dedutivo para sustentá-la, de modo que a realidade universal dá
sentido a realidades particulares. Por exemplo, se todo o universo foi criado por
Deus e o ser humano é parte do universo, então o ser humano foi criado por Deus.
Conforme as religiões, a verdade divina pode ser revelada aos seres humanos
por inspiração. O homem não precisa compreender estes dogmas, apenas aceitá-los
por fé e ser fiel àqueles que os professam como intermediários da vontade divina.
Conforme Lakatos e Marconi (1986, p. 21), o conhecimento religioso é:
a) valorativo, pois se apoia em doutrinas que contêm proposições sagradas
para aqueles que nelas creem (dá-se crédito àquilo que se valoriza);
3 A palavra ‘religião’ provém do substantivo latino religionem (nominativo religio), significando “respeito por aquilo que é sagrado” ou “reve-
rência aos deuses”. De acordo com De natura Deorum, de Cícero (106-43 AC), esta palavra deriva-se do verbo latino relegare, significando
“considerar cuidadosamente” ou “ler de novo”, de re-, significando “novo”, e legere, significando “ler”. A etimologia mais popular, embora
discutível, aponta para o verbo latino religare, significando “o restabelecimento do vínculo entre humanos e deuses”.
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b) intuitivo, pois é revelado pelo sobrenatural por inspiração;
c) infalível, pois, sendo reveladas pelo divino, as afirmações são indiscutíveis e
exatas por definição;
d) sistemático, pois dá conta da origem, do significado, da finalidade e do destino
do mundo como obra de um criador divino; e
e) não verificável, pois as evidências são sustentadas pela crença.
Segundo Rosas (2003), o critério de verdade para o conhecimento religioso é a fé,
e a sua objetivação dá-se pelo dogmatismo, pela doutrina e pelo proselitismo (conquis-
ta de novos adeptos). O método de obtenção deste conhecimento é a experiência pes-
soal, e a relação sujeito/objeto é de ordem suprapessoal, pois “a revelação do sagrado
se manifesta (revela) sobrenaturalmente ao profano, através do rito (dramatização do
mito, ou seja, da liturgia religiosa).”
1.1.5 Conhecimento filosófico
Definição. Por conhecimento filosófico define-se o conjunto de competências e
habilidades que se obtêm da análise racional e metódica de um problema com os
recursos exclusivos da mente humana.4
Superação. A filosofia, em essência, surge da desconfiança da validade das ex-
plicações mágicas e supersticiosas advindas da tradição e do senso comum. Segundo
Chauí (2002, p. 59-60), o conhecimento filosófico tem origem na tentativa humana
de superar quatro comportamentos: a ilusão que decorre da aparência das coisas, as
emoções que decorrem de paixões e sentimentos, a crença que decorre da religião e o
êxtase místico que decorre da extrapolação dos estados conscientes.
Espelhamento. Com o conhecimento filosófico, pode-se refletir sobre o mais
geral e elaborar uma compreensão unificada e unificante da realidade. O objetivo
do fazer filosófico são as ideias, e não as relações materiais. Trata-se de uma
busca que parte do material para o universal, através de um método racional, em
vez de experimental. Deste modo, com o conhecimento filosófico, constrói-se uma
forma especulativa de ver o mundo.5 Logo, o conhecimento filosófico é um saber
elaborado através do exercício exclusivo do pensamento, que visa a espelhar a
realidade.
Características. Conforme Aranha e Martins (1999), a reflexão filosófica é radical,
rigorosa e integral, motivo pelo qual visa a analisar, de forma sistemática, metódica e
planejada, todos os ângulos e aspectos de um problema até suas raízes mais profun-
das. Por este motivo, Leonel e Motta (2007, p. 25) destacam que a reflexão e a con-
cepção filosófica implicam usar o poder da razão para pensar e falar ordenadamente
sobre as coisas.
4 A palavra ‘filosofia’ provém do substantivo grego Φιλοσοφία [philosophía], significando “amor à sabedoria”. A palavra é composta de
duas outras: Φιλοσ [philos], significando “amigo de”, “amante de”, “afeiçoado a” ou “que gosta de”, e σοφία [sophía], significando
“sabedoria”, “saber”, “ciência” ou “conhecimento”.
5 A palavra ‘especulação’ provém do substantivo latino especulum, significando “espelho”.
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Para Lakatos e Marconi (1986, p. 20-21), o conhecimento filosófico é:
a) valorativo, pois parte de hipóteses experienciais que não podem ser submeti-
das à experimentação;
b) não verificável, pois seus enunciados não podem ser confirmados ou refutados
empiricamente;
c) racional, pois a filosofia consiste num conjunto de enunciados logicamente
correlacionados;
d) sistemático, pois seus enunciados visam a representar a realidade de modo
coerente, para apreendê-la em sua totalidade; e
e) infalível e exato, pois seus enunciados não são submetidos ao teste decisivo da
observação ou da experimentação.
Conforme Rosas (2003), o critério de verdade no conhecimento filosófico é a razão,
e a objetivação do conhecimento dá-se, dialeticamente, pelo discurso, motivo pelo qual
a metodologia empregada é a razão discursiva. Neste tipo de conhecimento, a relação
sujeito/objeto é de ordem transpessoal. “O mundo se manifesta pelos fenômenos e é
dizível através do logos.”
1.1.6 Conhecimento científico
Definição. Por conhecimento científico define-se, segundo Köche (1984, p. 17), o
conjunto de competências e habilidades que, fruto da investigação científica, “surge não
apenas da necessidade de encontrar soluções para os problemas de ordem prática da vida
diária, característica esta do conhecimento ordinário, mas do desejo de fornecer explica-
ções sistemáticas que possam ser testadas e criticadas através de provas empíricas.”6
Características. A ciência surgiu somente no Renascimento como uma nova forma
de pensar a realidade, em decorrência da desconfiança das explicações advindas tanto
da tradição como da especulação filosófica. Nesta nova postura, o homem preocupa-se
com a observação, a experimentação e a mensuração de fatos para, posteriormente,
lidar com a sua interpretação. A reflexão da imagem do bebê no espelho, por exemplo,
não pode ser reduzida ao mero fato de que o espelho reflete a imagem para constituir-
se em conhecimento científico. Neste caso, é necessário descrever como isto ocorre e
explicar quais são as leis envolvidas no processo de reflexão de imagens.
O conhecimento científico parte da identificação de um problema, uma dúvida ou
uma questão para a qual não se tem uma resposta. Passa pela avaliação da capacidade
que o conhecimento atual tem de fornecer respostas e, caso este conhecimento seja
insuficiente, pela proposição e teste de uma solução que ofereça provas objetivas,
seguras e confiáveis que permitam aceitá-la como adequada e, possivelmente, correta.
A objetividade do conhecimento científico está fundamentada em dois fatores interde-
pendentes: de um lado, a possibilidade de uma hipótese ser testada através de provas
6 A palavra ‘ciência’ provém do substantivo latino scientia, significando “conhecimento (de algo)”, com base na palavra sciens (genitivo
scientis), particípio passado do verbo scire, significando “saber” e, mais originalmente, “separar uma coisa da outra” ou “distinguir”,
sentido este que é relacionado com scindere, significando “cortar” ou “dividir” (de onde provém a palavra ‘cindir’).
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ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
factuais; de outro, a possibilidade de a comunidade científica avaliar criticamente tanto
a testagem como seus resultados, a chamada crítica intersubjetiva.
Conforme Lakatos e Marconi (1986, p. 21), o conhecimento científico é:
a) real e factual, pois lida com ocorrências e fatos manifestos;
b) contingente, pois seus enunciados têm sua veracidade ou falsidade conhecidas
através da experimentação, e não apenas pela razão, como ocorre no conheci-
mento filosófico;
c) sistemático, pois se trata de um saber ordenado logicamente, que se organiza
em um sistema de ideias, a teoria;
d) verificável, pois hipóteses que não podem ser observadas não pertencem ao
âmbito da ciência;
e) falível, pois este conhecimento não é definitivo, absoluto ou final; e
f) aproximadamente exato, pois novas proposições e o desenvolvimento de novas
técnicas podem reformular o conhecimento existente.
Conforme Rosas (2003), o critério de verdade no conhecimento científico é, por
excelência, a experimentação, e sua objetivação decorre da comprovação sistemática
de certa tese. A metodologia empregada é a da observação e, embora se admita que
a neutralidade científica seja um mito, a relação sujeito/objeto é, por ideal, de ordem
impessoal.
As características dos tipos de conhecimento podem ser resumidas no quadro apre-
sentado na página seguinte.
1.1.7 Coexistência
Vale destacar que os vários tipos de conhecimento coexistem e se complementam
num mesmo indivíduo. Uma dona de casa, na maioria das vezes, atua com base no
conhecimento popular. Isto não a impede de apreciar sua novela, orar para seu santo
de devoção, questionar o sentido da vida ou mesmo ajudar sua filha a fazer a lição
de matemática. Da mesma forma, um geneticista pode fazer parte de uma orquestra,
apresentar uma palestra na casa espírita e mergulhar em discussões sobre política ou
ética.
Por outro lado, é importante observar que o conhecimento científico nem sempre
é o mais adequado para determinada situação. O conhecimento de genética pouco é
útil para manejar uma bicicleta ou para atravessar uma avenida movimentada. Nestes
casos, o conhecimento popular é mais do que suficiente.
Além disto, concorda-se com Lakatos e Marconi (1986, p. 18), segundo as quais
é necessário reconhecer que “a ciência não é o único caminho de acesso ao conhe-
cimento e à verdade” e que “um mesmo objeto ou fenômeno [...] pode ser matéria
de observação tanto para o cientista como para o homem comum.” A diferença
entre a apreensão de um conhecimento científico ou popular decorre da forma de
observação.
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Fábio José Rauen
Figura 2 – Características dos conhecimentos popular, artístico, religioso, filosófico e científico
Tipos de Conhecimento
Características
Popular Artístico Religioso Filosófico Científico
Sensação Sentimento Intuição Razão
Funções prevalentes Todas
Sentimento Intuição Razão Sensação
Vinculação com a
Valorativa Valorativa Valorativa Valorativa Factual
realidade
Tradição Fé Observação
Origem dos dados Inspiração Razão
Experiência Inspiração Experimentação
Ocorrência Assistemática Assistemática Sistemática Sistemática Sistemática
Comprovação Verificável Inverificável Inverificável Inverificável Verificável
Eficiência Falível Infalível Infalível Infalível Falível
Aproximadamente
Precisão Inexato Não se aplica Exato Exato
Exato
Observação
Critério de verdade Cultura Estética Fé Razão
Experimentação
Tradição Dogmatismo Dialética
Objetivação Gosto Verificação
Cultural Doutrina Discursiva
Experiência Razão Observação
Metodologia Ideologias Esteticismo
Pessoal Discursiva Experimentação
Relação sujeito/objeto Interpessoal Pessoal Suprapessoal Transpessoal “Impessoal”
Fonte: Inspirado em Appolinário, 2006, p. 13, com complementações de Rosas, 2003, e reflexões inéditas do autor,
2015.
1.1.8 Ciência, tecnologia e conhecimento tecnológico
Definição. Por conhecimento tecnológico define-se o conjunto de competências
e habilidades com as quais o ser humano objetiva o domínio da natureza através da
aplicação prática e da operacionalização do conhecimento científico.7
Segundo Ortega y Gasset (1957, apud VARGAS, 1985, p. 69), em vez de ser a
adaptação do sujeito ao meio, a técnica e, mais modernamente, a tecnologia consiste
na adaptação do meio ao sujeito. Trata-se, em essência, de uma ação antes histórica
que biológica.
Histórico. É possível divisar duas fases históricas distintas do desenvolvimento
tecnológico: uma fase arcaica e uma fase científica.
As origens da tecnologia são remotas. No início, o homem construiu artefatos
que ampliaram sua relação com a natureza, utilizando-se do conhecimento de senso
comum. Com o advento da ciência, a fase arcaica foi substituída pela fase científica.
Nesta fase, a ciência passou a fornecer informações essenciais para o desenvolvimento
de novos artefatos, e os avanços tecnológicos passaram a ser coadjuvantes essen-
7 A palavra ‘técnica’ provém do adjetivo latino technicus, que provém do adjetivo grego tekhnikos, significando “de ou pertencente às
artes”, do substantivo grego τεχνη [tékhne], significando “técnica”, “arte” ou “ofício”. A palavra ‘tecnologia’, por sua vez, é composta de
τεχνη [tékhne] e λογια [logia], significando “estudo”.
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ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
ciais para novas descobertas científicas. É este processo de retroalimentação que
explica o desenvolvimento exponencial tanto da ciência como da tecnologia, bem
como a dificuldade de separá-las.
Os artefatos técnicos iniciaram-se como imitações ou prolongamentos dos ór-
gãos humanos, supostamente engendrados ao acaso e desenvolvidos por tentativa e
erro. Com o desenvolvimento de instrumentos mais sofisticados, alguns indivíduos,
os artesãos, passam a ser encarregados de seu uso mais especializado. Como o ar-
tesão precisava aprender seu ofício acompanhando o trabalho dos mais experientes,
surgem as categorias de mestres ou sacerdotes e de aprendizes ou acólitos e, mais
adiante, sociedades fechadas com seus segredos e iniciações, um conhecimento
revelado e transmitido apenas aos iniciados.
Segundo Vargas (1985, p. 19), esta é origem das téchnei gregas, que evoluíram
até a medicina hipocrática como um saber humano sobre como realizar algo: um
saber dirigido a um determinado fim prático. As artes romanas, em especial a me-
dicina e a arquitetura, não eram diferentes das gregas. Na idade média, este saber
preservou-se e desenvolveu-se com o nome latino ars (arquitetura, agricultura, artes
militares, caça, direito, medicina, navegação, entre outros).
A técnica atual sucede a téchne grega e a ars romana e passa a ser um saber fazer
assessorado por uma nova disciplina, a tecnologia, que se apoia nas teorias científicas.
Por tecnologia define-se o estudo científico dos materiais e dos processos de constru-
ção, fabricação e organização utilizados pela técnica. Conforme Barros e Lehfeld (1986,
p. 71), “há técnica para conhecer e há técnica para agir”, de modo que esta técnica de
agir é fruto do conhecimento sobre a realidade fornecido pela ciência.
Continuidade. Segundo Leonel e Motta (2007, p. 43), não há ruptura epistemo-
lógica entre ciência e técnica, mas encadeamento. Assim, a essência da tecnologia é
a sua conjugação com as teorias científicas. Esta conjugação é tão forte que não há
critério algum para se estabelecer distinção entre ciência e técnica, deixando de ter
sentido, para muitos, a separação clássica entre ciência pura, de um lado, e ciência
aplicada ou mesmo aplicações técnicas de ciência, de outro.
1.2 Conceito de ciência
Definição. Por ciência define-se um conjunto organizado e racional de conhe-
cimentos certos ou provavelmente certos, de objetos formais ou materiais delimi-
tados (dimensão epistemológica), criados ou obtidos metodicamente e passíveis de
demonstração ou de verificação (dimensão metodológica).
Para compreender a definição de ciência, é preciso observar que há duas dimen-
sões essenciais de estudo, a dimensão epistemológica e a dimensão metodológica,
e dois tipos básicos de objetos científicos, os objetos formais e os objetos materiais.
Dimensão epistemológica. Por dimensão epistemológica ou compreensiva
definem-se os aspectos contextuais e de conteúdo que permitem à ciência descrever
43
Fábio José Rauen
e explicar o mundo. O objetivo da ciência é determinar as leis gerais que regem os
eventos. O cientista acredita que, para cada fato ou fenômeno, há uma lei subja-
cente e é sua tarefa determiná-la. À ciência cabe desvendar uma espécie de ordem
oculta que se manifesta pelas características comuns aos eventos.
Dimensão metodológica. Por dimensão metodológica definem-se os aspectos
de operacionalização, isto é, como a ciência deve chegar à dimensão epistemológica
ou compreensiva. A dimensão metodológica tem a ver com os procedimentos lógi-
cos e técnicos que garantem a cientificidade da investigação.
Ciências formais. As ciências formais lidam com objetos ideais que se restrin-
gem à mente humana em nível conceitual, e não fisiológico. Trata-se dos objetos da
lógica e da matemática, por exemplo.
Ciências materiais. As ciências materiais ou ciências factuais lidam com seres,
coisas, fatos ou fenômenos e podem ser divididas em naturais e sociais. As ciências
naturais lidam com eventos puramente ligados à natureza e supostamente indepen-
dentes do homem. As ciências sociais lidam com eventos nos quais se apresenta
o trabalho social humano. Destacam-se, no primeiro caso, a física, a química, a
biologia, por exemplo; e, no segundo, o direito, a sociologia, a história, a educação,
a economia, a linguística, por exemplo.
Retomando-se a definição de ciência, o conhecimento científico pode ser certo
ou provavelmente certo. Nas ciências formais, prevalece a construção de modelos
certos, passíveis de validação ou de demonstração dedutiva. Nas ciências materiais
ou factuais, prevalece a proposição de modelos de descrição e de explicação prova-
velmente certos, passíveis de verificação ou de comprovação indutiva ou dedutiva
por outros pesquisadores (crítica intersubjetiva).
O conhecimento científico organiza-se racionalmente em sistemas logicamente
encadeados de representação de objetos homogeneamente caracterizados, as teo-
rias, a tal ponto que a refutação de uma única hipótese pode invalidar integralmente
o sistema. O conhecimento científico orienta-se por metodologias que prescrevem
normas e técnicas e definem o planejamento da investigação. Nas ciências formais,
o cientista parte de teses ou hipóteses universais que são sistematicamente analisa-
das. Nas ciências materiais ou factuais, o cientista tipicamente decompõe os fenô-
menos, método de análise, para depois integrá-los em sistemas de representações
conceituais de hipóteses e leis, através de conceitos, juízos e raciocínios, método
de síntese.
1.2.1 Conhecimento nas ciências formais
Abstração. Nas ciências formais, os cientistas lidam com objetos ideais abs-
traídos da realidade. O conceito de número decorre da abstração de conjuntos de
objetos naturais (observe-se que o sistema decimal provém da existência de dez
dedos). Por exemplo, não há noção ou conceito em si mesmo de ‘dois’ fora dos
cérebros humanos. Obviamente, pode-se operar com duas coisas quaisquer (livros,
44
ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
casas, personagens), mas não se pode adquirir um quilo, metro ou litro de ‘dois’. Isto
implica dizer que os critérios de cientificidade aplicados às ciências formais têm a ver
com sua capacidade de validação ou de demonstração, e não com sua correlação
com a realidade externa.
Um conhecimento em ciência formal precisa ser válido e demonstrável. As ci-
ências formais preocupam-se com proposições e argumentos, e não com objetos
empíricos. Os enunciados formais consistem em relações entre símbolos, e não em
relações com seres, objetos, fatos ou fenômenos. As ciências formais são suficientes
em relação aos seus conteúdos e métodos de prova e contentam-se com a lógica
para demonstrar rigorosamente seus teoremas, ao passo que as ciências factuais
dependem dos fatos. Destaque-se que a demonstração de um conhecimento formal
é sempre completa e final, enquanto a verificação de um conhecimento material
ou factual é sempre incompleta e temporária. Logo, enquanto se pode obter uma
verdade formal completa, a obtenção de uma verdade material ou factual é sempre
discutível e passível de ser contestada por novas evidências.
1.2.2 Conhecimento nas ciências materiais ou factuais
Delimitação. Uma ciência material ou factual delimita-se pela descrição e explica-
ção de objetos naturais ou sociais, com base na observação e/ou na experimentação;
pelo conjunto organizado de conhecimentos que decorre destas observações e/ou expe-
rimentações e que é passível de novas verificações ou testes; e pelos objetos delimita-
dos que permitem especificar ramos ou disciplinas deste corpo geral de conhecimento
(biologia, física, química, linguística, sociologia, história, entre outras).
Características. Para Lakatos e Marconi (1986, p. 29-39), o conhecimento
científico nas ciências factuais caracteriza-se por ser: racional, objetivo, factual,
transcendente aos fatos, analítico, claro e preciso, comunicável, verificável, depen-
dente de investigação metódica, sistemático, acumulativo, falível, geral, explicativo,
preditivo, aberto e útil.
Segue-se um resumo da exposição das autoras.8
Racionalidade. O conhecimento é racional, porque se constitui de conceitos,
juízos e raciocínios sobre objetos materiais ou factuais que se combinam para serem
geradas novas ideias, por meio de inferências lógico-dedutivas. Isto permite que
sejam organizadas as chamadas teorias, ou seja, sistemas de ideias ou conjuntos
ordenados de proposições.
Objetividade. O conhecimento é objetivo, porque visa à concordância com o
objeto. A ciência pretende a verdade material ou factual. Para verificar a adequação
de suas hipóteses aos fatos, o cientista recorre à observação e à experimentação,
que são atividades controláveis e, em certa medida, reproduzíveis.
Empirismo. O conhecimento é factual, porque o ponto de partida e de chegada
são os fatos, sejam eles naturais (brutos) ou produzidos. A rigor, o cientista usa
8 Recomenda-se, enfaticamente, a leitura da obra para aprofundamentos.
45
Fábio José Rauen
como matéria-prima os dados empíricos (enunciados factuais confirmados) que são
obtidos com base em teorias ou quadros conceituais e que realimentam estas teorias
e quadros conceituais.
Transcendência. Além disto, o conhecimento transcende os fatos. A transcendência
dos fatos ocorre quando eles são descartados, produzidos ou explicados. O cientista se-
leciona os fatos considerados relevantes, controla-os e os reproduz sempre que possível.
Ele não se limita a descrevê-los, mas os sintetiza e os compara com o que já se conhece
sobre outros fatos. Isto permite inferir conhecimento para além da experiência factual.
Analiticidade. O conhecimento é analítico, porque o cientista decompõe os fatos em to-
das as suas partes componentes para depois integrar estas partes numa síntese. Destaque-
se que os problemas e as soluções de ciência são sempre parciais.
Clareza e precisão. O conhecimento é claro e preciso em oposição à obscuridade e
à imprecisão típica do conhecimento de senso comum. Os conceitos científicos não po-
dem ser ambíguos, de modo que a ciência se esforça por criar uma linguagem própria,
em que os significados são atribuídos por regras de designação rígidas.
Comunicabilidade. O conhecimento é comunicável. A linguagem da ciência deve
ser acessível àqueles que tenham sido instruídos para entendê-la, permitindo a eles
verificar dados e hipóteses. O conhecimento científico deve ser considerado como pro-
priedade de toda a humanidade.
Verificabilidade. O conhecimento é verificável. Ele deve ser aceito, quando passa
pela observação ou pela experimentação empírica, e rejeitado, quando não passa ou é
refutado empiricamente.
Metodicidade. O conhecimento decorre de investigação metódica. A ciência
fundamenta-se em conhecimento prévio, em especial em hipóteses já corroboradas
e em leis e princípios já estabelecidos. O cientista obedece a um método preestabe-
lecido, que determina a aplicação de normas e técnicas de investigação em etapas
claramente definidas.
Sistematicidade. O conhecimento é sistemático. Ele se constitui de um sistema
de ideias correlacionadas logicamente e de relações orgânicas de ideias que compõem
o corpo de uma teoria.
Acumulabilidade. O conhecimento é acumulável, porque seu desenvolvimento
decorre da seleção contínua de conhecimentos significativos e operacionais. Assim,
novos conhecimentos podem substituir antigos quando considerados obsoletos ou
ultrapassados.
Falibilidade. O conhecimento é falível, pois não é definitivo, absoluto ou final.
Além da acumulação gradual de resultados, o progresso científico pode ocorrer por
revoluções quando o novo conhecimento põe em falência o antigo.
Generalidade. O conhecimento é geral. A ciência visa a organizar fatos singulares
em modelos gerais, procurando aspectos de uniformidade e de generalização na varie-
dade e na pluralidade dos fatos singulares.
Compreensibilidade. O conhecimento é explicativo, porque visa a compreender os
fatos em termos de leis e as leis em termos de princípios. Para o cientista, não basta
46
ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
investigar como as coisas são (dimensão descritiva), mas descobrir por que elas são
(dimensão explicativa ou explanatória).
A explicação em ciência pode ser analisada em diferentes aspectos:
a) o aspecto pragmático diz respeito às questões práticas a que a explicação
se destina. Uma explicação é pragmaticamente adequada quando serve para
algum fim determinado;
b) o aspecto semântico diz respeito à correlação com a realidade externa. Uma
explicação é semanticamente adequada quando se revela coerente com os
fatos da realidade;
c) o aspecto sintático diz respeito à consistência lógica interna. Uma explicação é
sintaticamente adequada quando é logicamente válida;
d) o aspecto ontológico diz respeito à essência da explicação. A explicação
de um fato expresso por um explicandum implica inseri-lo em um esquema
nomológico expresso pelas leis ou regras implicadas no explicans.9 O as-
pecto ontológico visa a responder dedutivamente à pergunta ‘Por que x?’.
A explicação parte da teoria mais geral, o explicans, para o fato explicado,
o explicandum;
e) o aspecto epistemológico diz respeito à pergunta ‘Que razões existem para
aceitar x?’. A explicação parte do fato a ser explicado, o explicandum, em
direção à teoria mais geral, o explicans, por meio da formulação de hipóteses;
f) o aspecto genético diz respeito à capacidade de se produzirem hipóteses e sis-
temas de hipóteses e deriva do aspecto epistemológico. A resposta às questões
‘Por que x?’ e ‘Que razões existem para aceitar x?’, sendo x o explicandum,
leva à geração de fórmulas mais gerais e abstratas, uma vez que a teoria, o
explicans, deve ser logicamente mais ampla do que o fato, o explicandum; e
g) o aspecto psicológico diz respeito à explicação como fonte de compreensão.
Preditibilidade. O conhecimento é preditivo. A ciência, com base na investigação
de fatos e no acúmulo de experiências, pretende prever ocorrências através da indução
probabilística.
Abertura. O conhecimento é aberto. Por princípio, a ciência não conhece barreiras
que limitem o conhecimento. Ela deve ser um sistema controvertido e aberto, ligado às
circunstâncias de sua época, fato que opõe a ciência ao dogmatismo.
Utilidade. O conhecimento, finalmente, é útil. A utilidade do conhecimento é uma
decorrência do modo de operação da ciência. A ciência constrói artefatos de observa-
ção e experimentação que lhe conferem um conhecimento adequado e objetivo das
coisas, conectando-a com a tecnologia.
9 Por nomologia define-se o estudo das leis que presidem os fenômenos naturais. A palavra ‘nomologia’ provém do substantivo grego
νóμος [nomos], significando “lei” ou “prescrição”, e λóγος [logos], significando “discurso”. Trata-se de um discurso sobre o uso prescri-
tivo de leis.
47
Fábio José Rauen
1.3 Ciência: dimensão epistemológica
Definição. Por epistemologia ou teoria do conhecimento define-se o ramo da filo-
sofia que trata da explicação ou da interpretação do conhecimento humano.10
Epistemologia e lógica. Cabe à lógica estudar a correção formal do pensamento,
avaliando a concordância do pensamento com ele mesmo. Trata-se da chamada con-
cordância sintática. Cabe à epistemologia estudar a verdade do pensamento, avaliando
a concordância do pensamento com os objetos. Trata-se da chamada concordância
semântica.
Com base nesta distinção, pode-se definir epistemologia como a teoria do pensa-
mento verdadeiro e pode-se definir lógica como a teoria do pensamento correto.
Nas três subseções seguintes, apresentam-se as principais correntes epistemoló-
gicas, conforme três pontos de vista: o das origens, o da essência e o da possibilidade
do conhecimento. Segue-se uma consideração mais detida da noção de verdade e dos
modos de saber nas duas subseções finais desta seção.
1.3.1 Origem do conhecimento
No que se refere à origem do conhecimento, há três posições radicais: o empiris-
mo, o racionalismo e o racionalismo crítico.
Empirismo. Por empirismo define-se a corrente filosófica que admite a exclusivi-
dade das experiências como únicas ou, pelo menos, as principais fontes das ideias. Do
ponto de vista científico, diz respeito à corrente segundo a qual as teorias científicas
devem ser baseadas na observação do mundo, em oposição à intuição ou à crença.11
Para o empirismo, a experiência sensorial é a origem única ou fundamental do
conhecimento. Todo conhecimento sintético ou elaborado é baseado na experiência. O
conhecimento só é verdadeiro quando verificado por fatos metodicamente observados
ou quando reduzido a verdades já fundadas no processo de pesquisa dos dados do real,
embora sua validade lógica possa transcender o plano dos fatos observados.
As principais características do empirismo são:
a) a inexistência de ideias inatas e a negação de conceitos abstratos;
b) a redução do conhecimento a impressões sensíveis;
c) a noção de ideias como cópias fracas das sensações;
d) a subjetividade das qualidades sensíveis;
e) a redução das relações entre ideias a associações;
f) a redução das relações causais a hábitos;
g) a limitação do conhecimento aos fenômenos; e
h) a indução como método de investigação.
10 A palavra ‘epistemologia’ compõe-se de dois substantivos gregos: πιστ μη [episteme], significando “ciência” ou “conhecimento”, e
λóγος [logos], significando “discurso”. Trata-se de um discurso sobre as fontes, a natureza e a validade do conhecimento.
11 A palavra ‘empirismo’ conecta-se com as palavras ‘empiria’ ou ‘experiência’. ‘Experiência’ deriva do substantivo latino experientia, origina-
da do adjetivo grego εμπειρισμóς [empeirikos], significando “experienciado”.
48
ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Entre os principais filósofos empiristas destacam-se, em ordem alfabética: David
Hume (1711-1776), Francis Bacon (1561-1626), George Berkeley (1685-1753), John
Locke (1632-1704) e Thomas Hobbes (1588-1679).
Racionalismo. Por racionalismo define-se a corrente que defende o papel funda-
mental da razão na cognição ou no acesso ao conhecimento, argumentando que os
fatos não são fonte de todos os conhecimentos e não oferecem condições de certeza.12
Para o racionalismo, há uma causa inteligível para a realidade, independente de
esta causa poder ser demonstrada de fato. O racionalismo é baseado nos princípios da
busca da certeza e da demonstração, sustentados por um conhecimento a priori, ou
seja, conhecimento que não provém da experiência e é elaborado somente pela razão.
Em função disto, a dedução é o método superior de investigação.
Entre os principais expoentes do racionalismo destacam-se, em ordem alfabética:
Baruch Spinoza (1632-1677), Blaise Pascal (1623-1662), Gottfried Wilhelm von Leibniz
(1646-1716) e René Descartes (1596-1650).
Kant, por sua vez, inaugura o neorracionalismo, que aceita e recusa certas afirma-
ções do empirismo e do racionalismo. Para muitos, trata-se de uma terceira via, razão
pela qual é destacada a seguir.
Racionalismo crítico. Por racionalismo crítico ou criticismo define-se a corrente que,
admitindo as formas a priori da razão, defende o argumento de que elas devem ser as-
sociadas necessariamente aos dados da experiência para que possa haver conhecimento.
Concordando com o empirismo, Immanuel Kant (1724-1804) argumenta que o
conhecimento não pode prescindir da experiência. Concordando com o racionalismo,
Kant defende que os dados experienciais só adquirem validade universal quando são
organizados pela razão. Nos seus termos: “os conceitos sem as intuições são vazios”,
e “as intuições sem os conceitos são cegas.” Assim, o conhecimento decorre da contri-
buição do sujeito cognoscente, ou seja, o real se conforma às possibilidades percepti-
vas e intelectivas dos seres humanos.
Em Crítica da razão pura (1787), Kant (2001) argumenta em favor da crença não de
um acesso total da realidade, do em si dos noúmena, mas dos fainômena. Segundo ele,
o homem constrói um conhecimento dos fenômenos captados através dos conceitos
fundamentais a priori de tempo e espaço, que são universais, absolutos, condicionan-
tes das sensações e agregados pelas categorias intelectuais, igualmente universais.
Ciência é uma forma de pensar com razão pura, que coloca o ser humano em contato
com o real fenomênico.
1.3.2 Essência do conhecimento
No que diz respeito à essência do conhecimento, há duas atitudes: a atitude realista
e a atitude idealista.
12 A palavra ‘razão’ possui duas fontes: o substantivo grego λóγος [logos] e o substantivo latino ratio. Logos provém do verbo λ γω
[legein], significando “calcular”, “contar”, “juntar” ou “reunir”. Ratio provém do verbo reor, significando “calcular”, “contar”, “juntar”,
“medir”, “reunir” ou “separar”.
49
Fábio José Rauen
Realismo. Por realismo define-se a corrente que admite a independência ontológica
da realidade, de modo que há uma realidade a ser conhecida.13
A tese fundamental do realismo é a de que há uma correlação ou adequação da
inteligência a algo que se concebe como objeto do conhecimento, de forma que o co-
nhecimento ocorre quando a inteligência se conforma com este algo que lhe é externo.
Neste caso, conhecer é sempre conhecer algo fora do indivíduo, embora não seja possível
verificar se o objeto conhecido corresponde ao objeto em si mesmo.
O realismo pode ser ingênuo, tradicional ou crítico:
a) o realismo ingênuo é aquele em que o indivíduo admite e não questiona a identi-
dade de seu conhecimento com as coisas a que sua mente se refere. Em outros
termos, o indivíduo acredita que aquilo que ele percebe diretamente equivale ao
que as coisas realmente são;
b) o realismo tradicional ou aristotélico é aquele em que o indivíduo questiona os
fundamentos do conhecimento, procurando demonstrar filosoficamente a verda-
de de suas teses; e
c) o realismo científico é aquele que admite que a realidade empírica vem sendo
explicada pela ciência, versão forte; ou que a ciência se aproxima gradualmente
de uma descrição correta da realidade, versão fraca.
Idealismo. Por idealismo define-se a corrente que reduz toda a existência ao pen-
samento, tomando como ponto de partida para a reflexão o sujeito, e não o mundo
exterior. No idealismo, as coisas não existem por si mesmas, mas na medida em que são
representadas ou pensadas. A verdade das coisas está menos nelas do que na consciência
ou mente, ou seja, no fato de serem percebidas ou pensadas.14
Podem ser identificados vários tipos de idealismo ao longo da história:
a) o idealismo transcendente de Platão é uma doutrina racionalista em que as ideias
ou arquétipos ideais representam a realidade verdadeira. As realidades sensíveis
seriam cópias imperfeitas, válidas apenas como participantes da essência e, por-
tanto, inválidas em si mesmas;
b) o idealismo metódico de Descartes é uma doutrina racionalista que suspeita
de todo o conhecimento estabelecido e parte da certeza do pensar para de-
duzir a existência do mundo material através da pressuposição da existência
de Deus;
c) o idealismo dogmático de Berkeley é uma doutrina racionalista que justifica
a realidade do mundo exterior pela existência anterior na mente divina ou na
mente humana;
d) o idealismo transcendental de Kant é uma doutrina racionalista que defen-
de que o objeto é algo que só existe em uma relação de conhecimento. Ele
13 A palavra ‘realismo’ provém do substantivo latino res, significando “coisa”, e o sufixo -ismo, de origem grega, significando “relativo a”.
14 A palavra ‘ideia’ provém do substantivo latino idea, significando “ideia” e, conforme a filosofia platônica, “arquétipo”. Mais originalmente,
a palavra provém do grego ιδ α [idea], significando “ideia prototípica” e, literalmente, “visual” ou “forma”, a partir do verbo ιδεω [idein],
significando “ver”, ειδω [eidó], significando “eu vejo”, ou ειδεα [eidea], cuja raiz é ειδοσ [eidos], significando “imagem”.
50
ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
distingue o conhecimento dos objetos, submetidos a modos especificamente
humanos de conhecer, dos objetos em si, jamais conhecidos;
e) o idealismo alemão pós-kantiano de Fichte e von Schelling é uma doutrina
racionalista que confere um sentido mais subjetivo e menos crítico às ideias de
Kant, desconsiderando a noção da coisa-em-si e tomando o real como produto
da consciência humana; e
f) o idealismo absoluto de Hegel é uma doutrina racionalista que considera a
realidade como um processo, discutindo o desenvolvimento da ideia pura (te-
se), que cria um objeto oposto a si, a natureza (antítese), e a superação desta
contradição no espírito (síntese). Este movimento ocorre na história, até que o
espírito supere dialeticamente todas as contradições.
1.3.3 Possibilidade do conhecimento
No que concerne à possibilidade do conhecimento, há duas atitudes: a atitude
dogmática e a atitude cética.
Dogmatismo. Por dogmatismo define-se a doutrina que admite serem conhecidas
verdades universais que transcendem as relações fenomenais. Nela, os dogmas expres-
sam verdades certas e indubitáveis, que não se sujeitam à revisão ou crítica.15
Ceticismo. Por ceticismo define-se a doutrina que admite não haver qualquer
certeza absoluta sobre a verdade, implicando uma atitude de questionamento per-
manente e de não admissão de fenômenos metafísicos, religiosos ou dogmáticos.
Trata-se de uma atitude constante de dúvida, provisoriedade ou desconfiança sobre
o conhecimento.16
Há dois tipos básicos de ceticismo: o filosófico e o científico. No ceticismo filosófico,
o indivíduo examina se o conhecimento e a percepção são verdadeiros ou se alguém pode
argumentar que possui um conhecimento verdadeiro. No ceticismo científico, o indivíduo
questiona a verdade de uma proposição ao testá-la através do método científico.
1.3.4 Ciência e verdade
Correção e verdade. A palavra ‘ciência’ provém do substantivo latino scientia, e
esta do verbo latino scire, significando “saber”. Por saber entende-se, tradicionalmente,
o saber certo, correto, inquestionável, verdadeiro. Trata-se de um saber oposto de um
não saber, da ausência do saber, da ignorância ou do falso saber. Ou ainda, trata-se
do oposto ao conhecimento falso, não verdadeiro, incerto e questionável. Logo, o
conceito de ciência concerne a certo tipo de conhecimento: àquele considerado correto
ou verdadeiro.
15 A palavra ‘dogma’ deriva-se do substantivo grego δóγμα [dogma], hoje δογματικóσ [dogmatikós]. Originariamente, significava “opi-
nião filosófica fundamentada em princípios” e, mais à frente, “referente a uma doutrina” ou “baseado em princípios”. O termo assume
acepção negativa de “fundamentalismo de ordem intelectual” após a publicação da obra Crítica da razão pura, de Immanuel Kant (1787).
16 A palavra ‘ceticismo’ deriva-se do verbo grego σκ πτομαι [sképtomai], significando “olhar a distância”, “examinar” ou “observar”. O
termo ‘cético’ refere-se a uma pessoa que se posiciona criticamente, apoiando-se em evidências empíricas e empregando princípios do
pensamento crítico e dos métodos científicos.
51
Fábio José Rauen
Concepções de verdade. Conforme Chauí (1995, p. 99), a concepção moderna de
verdade deriva de três fontes diferentes: da palavra grega aletheia, da palavra latina
veritas e da palavra hebraica emunah. A estas três concepções, mais recentemente,
pode-se agregar a noção de verdade pragmática.
Aletheia. Para a autora, a concepção grega, expressa pelo termo αλήθεια
[aletheia], significa algo “não oculto”, “não escondido” ou “não dissimulado”. Para os
gregos, o verdadeiro é o manifesto: aquilo que se apresenta diante dos olhos, tal como
é. Neste caso, o verdadeiro se opõe ao falso, o ψευδος [pseudos], ou seja, aquilo que
é “encoberto”, “escondido” ou “dissimulado”. Na concepção grega, a verdade é uma
qualidade presente nas próprias coisas e dependente da manifestação do real, ao passo
que o falso depende de que a verdade se esconda ou se dissimule em aparências. Em
outras palavras, se houver uma correspondência entre o enunciado e as coisas, então
o enunciado é verdadeiro.
Veritas. A concepção latina de verdade, expressa pela palavra veritas, tem a ver
com a precisão, o rigor e a exatidão como se relata um fato. A noção de verdade
refere-se à narrativa de fatos acontecidos. Um relato é verdadeiro quando a linguagem
enuncia fatos reais, e é falso quando se trata de uma mentira ou falsificação. Diz Chauí
(1995, p. 99): “As coisas e os fatos ou são reais ou imaginários; os relatos e enunciados
sobre eles é que são verdadeiros ou falsos.”
Emunah. A concepção hebraica de verdade, expressa por emunah (a palavra
‘amém’ tem a mesma origem), equivale a “confiança”. São verdadeiros aqueles que
cumprem suas promessas, são fiéis à palavra empenhada ou ao pacto realizado. Logo,
o falso é o que não é digno de confiança. “A verdade é uma crença fundada na espe-
rança e na confiança referidas ao futuro. Sua forma mais elevada é a revelação divina
e sua expressão mais perfeita é a profecia”, complementa Chauí (1995, p. 99).
Diferenças. Enquanto a concepção grega de verdade diz respeito àquilo que as
coisas são no presente, a concepção latina de verdade se refere a como as coisas
foram no pretérito, e a concepção hebraica se refere a como as coisas serão no futuro.
Quando predomina a concepção grega de verdade, a verdade está nas próprias
coisas, e o conhecimento verdadeiro provém da evidência. Para Chauí (1995, p. 100),
“o critério da verdade é a adequação do nosso intelecto à coisa ou da coisa ao nosso
intelecto.”
Quando predomina a concepção latina, a verdade decorre do rigor e da precisão da
linguagem, uma vez que ela está associada ao modo como se estabelecem os relatos.
A validade lógica dos argumentos é a marca do verdadeiro. Segundo Chauí (1995, p.
100), “o critério da verdade é dado pela coerência interna ou pela coerência lógica das
ideias e das cadeias de ideias que formam um raciocínio, coerência que depende da
obediência às regras e leis dos enunciados corretos.”
Quando predomina a concepção hebraica, a verdade depende de acordos entre pes-
quisadores que compõem uma comunidade científica. São estes acordos que definem
as convenções sobre o conhecimento verdadeiro a serem respeitados pela comunidade.
52
ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Verdade pragmática. Uma quarta concepção de verdade é a concepção pragmá-
tica ou prática. Nesta concepção, um conhecimento é verdadeiro por seus resultados
e suas aplicações práticas, sendo verificado pela experimentação e pela experiência.
Trata-se de uma verdade por evidência, como fenomenologia, linguística e pragmá-
tica. Uma crença é verdadeira se ela for verificável, útil ou funcionar objetivamente.
Segue-se a consideração de modos de saber.
1.3.5 Modos de saber
Definição. Por modos de saber definem-se as operações intelectivas de análise,
síntese, classificação e definição que, segundo Garcia (1983, p. 317-326), coexistem
com os métodos lógicos propriamente ditos, viabilizam a organização do conheci-
mento e subjazem a todas as operações cognitivas em pesquisa.
Análise. Por análise define-se a operação intelectual com a qual se decompõe
um todo e suas partes, de modo que se parte do mais complexo para o menos
complexo. A análise implica ações como discriminar, isolar, dividir, exigindo senso
de detalhe e de exatidão. No processo analítico, o indivíduo preocupa-se mais com
as diferenças entre os objetos do que com suas semelhanças ou analogias.17
Síntese. Por síntese define-se a operação intelectual com a qual se obtém, por
composição, resumo ou reunião, um todo coerente com base em elementos compo-
nentes primordiais. Trata-se do complemento lógico de análise.18
Classificação. Por classificação define-se a operação intelectual com a qual se
estabelecem relações de dependência e de hierarquia entre as partes decompostas
pela análise, de modo a distribuir seres, objetos, fatos ou fenômenos em grupos, de
acordo com semelhanças e diferenças.
Definição. Por definição define-se a operação intelectual com a qual se produz
uma proposição que visa a explicitar com exatidão a extensão e a compreensão de
um termo ou ideia. Trata-se de uma fórmula verbal através da qual se expressa a
essência de um ser, objeto, fato ou fenômeno. Ou ainda, trata-se de uma operação
lógica que exprime o conteúdo de um conceito e/ou estabelece o significado de um
termo, definindo o que a coisa é e analisando a compreensão de sua ideia.
1.4 Fatos e teorias
Mostrados alguns conceitos epistemológicos, nesta seção, apresentam-se ques-
tões que concernem à relação entre fatos e teorias numa trajetória que se inicia com
17 A palavra ‘análise’ provém do substantivo grego αν λυσις [análysis], significando “dissolução”, “afrouxamento” ou “liberação”, que, por
sua vez, provém do verbo αναλυω [analyein], significando “desatar”, “libertar”. Conforme acepção de Aristóteles, a palavra compõe-
-se de ανα [ana], significando “se” ou “ao longo de”, e λισε [lise], significando “uma flexibilização”, com base no verbo λυεω [lyein],
significando “desatar”.
18 A palavra ‘síntese’ provém do substantivo grego σ νθεσις [sýnthesis], composto de συν [syn], significando “reunião” ou “conjunção”,
e θεσις [thesis], significando “proposição formulada para ser defendida”. A rigor, provém do verbo grego συντιθεναι [syntithenai],
significando “juntar” ou “combinar”, composto de συν [syn], significando “reunião” ou “conjunção”, e τιθεναι [tithenai], significando
“pôr” ou “colocar”.
53
Fábio José Rauen
a distinção entre fatos e fenômenos, passa pela consideração de leis, conceitos e
construtos e a definição de conceito, para, em seguida, apresentar a noção mesma
de teoria.
1.4.1 Fatos e fenômenos
Realidade empírica. Por realidade define-se tudo o que existe e não decorre da
ilusão, da imaginação ou da idealização pura e simples. Os termos ‘empírico’ e ‘empiris-
mo’ referem-se ao conhecimento que se adquire pelos sentidos e/ou pela consciência.
Logo, por realidade empírica define-se tudo que existe e pode ser conhecido através
da experiência.
Experiência. Uma experiência pode ser externa ou interna. Ocorre uma experiên-
cia externa quando os sentidos corpóreos externos são acionados; ocorre uma expe-
riência interna quando a consciência é acionada, os chamados processos interiores ou
introspectivos.
Fato. Segundo Rudio (1992, p. 10), a realidade empírica se revela aos seres hu-
manos por meio de fatos. Por fato define-se qualquer coisa que existe na realidade.
São fatos um livro, sua leitura e as palavras ali escritas. Não são fatos, contudo, as
ideias contidas nas palavras, pois, segundo o autor, as ideias não existem na realidade.
O livro, as palavras contidas nele, seu leitor são fatos percebidos pela experiência
externa. O processamento mental onde palavras tornam-se ideias é um fato perceptível
pela experiência interna.
Um fato em ciência é aquilo que é. Logo, não faz sentido dizer que ele seja falso
ou verdadeiro. O que pode ser falso ou verdadeiro são as interpretações construídas
sobre os fatos. No geocentrismo, interpretava-se que o Sol girava em torno da
Terra, mas evidências posteriores levaram a interpretar que é a Terra quem gira em
torno do Sol.
Fatos humanos e naturais. Os fatos podem ser humanos ou naturais. Os fa-
tos humanos são aqueles produzidos socialmente, em determinado tempo. Eles são,
portanto, sociais e históricos. Os fatos naturais, por sua vez, podem ocorrer sem a
intervenção humana. É com base nesta distinção que se fundamenta a divisão das
ciências factuais em ciências sociais e ciências naturais.
Fatos brutos e construídos. Outra forma de colocar esta questão é a de di-
zer que os fatos podem ser brutos ou construídos. Os fatos brutos são aqueles que
simplesmente ocorrem na natureza. Os fatos construídos são aqueles que decorrem
da observação ou da intervenção humana. Deste modo, é fundamental destacar que
todos os fatos de ciência são construídos, pois o cientista os altera, seja projetando
intervenções factuais, seja meramente observando os fatos, como revelam os recentes
avanços da física quântica, por exemplo.
Fatos e fenômenos. A criação de fatos em ciência põe em evidência a distinção
entre fatos e fenômenos (há quem mesmo não os diferencie). Por fenômeno, segundo
Rudio (1992, p. 11), define-se “um fato tal como é percebido por alguém.” Com base
54
ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
nesta distinção, fatos independem da observação, e a consciência é requisito essencial
para a transformação de fatos em fenômenos.
Considerada esta distinção, pode haver fatos que não se configuram como fenô-
menos. Por exemplo, um meteorito caindo no lado invisível da Lua é um fato, mas não
é um fenômeno. Da mesma forma, um mesmo fato pode ensejar vários fenômenos.
Veja-se, por exemplo, o caso de um acidente envolvendo uma moto e um carro. Este
fato poderia ser observado por infinitas consciências, gerando infinitas interpretações.
Um médico olharia o acidente sob a óptica de sua especialidade, os feridos, os trau-
mas, as necessidades de socorro. Um advogado de uma seguradora perceberia os
dados jurídicos envolvidos na questão. E, assim por diante, uma série de indivíduos
veriam o mesmo fato de diferentes pontos de vista. Para cada um deles, o acidente é
um fenômeno diferente.
Como a ciência não visa apenas a descrever fenômenos isolados, mas estabelecer
princípios gerais capazes de explicar e prever fenômenos empíricos, gera leis, concei-
tos, construtos e teorias.
1.4.2 Leis, conceitos e construtos
Lei. Por lei define-se uma hipótese que passou por sucessivas verificações inter-
subjetivas e que resume e prevê grandes quantidades de fatos ou fenômenos. Ao se
descobrir a lei da gravidade, todos os fenômenos de queda de seres ou objetos foram
descritos e explicados por uma única regra generalizante. Além disto, por intermédio
desta regra, é possível prever todos os fenômenos de queda de seres ou objetos fu-
turos.
Regularidade. Toda lei comporta dois aspectos: a detecção de uma regularidade e
um enunciado que descreve esta regularidade. Leis podem indicar padrões de coexis-
tência e de sucessão.
No caso da coexistência, conforme Lakatos e Marconi (1986, p. 93-94), uma lei
científica é formulada a partir do seguinte esquema: “Sempre que houver a proprie-
dade A, então haverá a propriedade B.” Segue-se o exemplo das autoras: “Toda barra
de ouro tem um ponto de fusão de 1.063 ºC.” Esta lei descreve uma regularidade de
coexistência, pois fusão do ouro depende da coexistência de ouro e de uma tempera-
tura de 1.063 ºC.
No caso de sucessão, dizem as autoras, sempre que algo que tem a propriedade A
encontra-se em relação com outra coisa de certa espécie, esta terá a propriedade B.
Eis seu exemplo: “Sempre que uma pedra é jogada na água, produzirá na superfície da
mesma uma série de ondas concêntricas que se expandem de tal forma do centro à
periferia.” Trata-se, agora, de uma lei que descreve padrões de eventos.
A ciência, entretanto, não pode se conformar como mero aglomerado de leis.
Para isto, faz-se necessário um conhecimento mais abrangente, que não se limite aos
fatos e às leis, mas inclua as relações entre eles, a teoria. Um passo nesta demanda
é a elaboração de conceitos. A ciência é impossível na ausência de um sistema de
conceitos.
55
Fábio José Rauen
Conceito. Por conceito, conforme Laville e Dionne (1999, p. 91), define-se um
grupo de “representações mentais de um conjunto de realidades, em função de suas
características comuns essenciais.”19 Para Ander-Egg (1979, p. 19), conceitos são
abstrações, ou seja, construções lógicas elaboradas pelo cientista para captar ou
apreender um fato ou fenômeno por eles representado.
Segundo Lakatos e Marconi (1986, p. 99-100), o conceito corresponde a uma
abstração derivada da generalização de observações particulares. Por exemplo, “ca-
neta” é um conceito que abstrai as características genéricas comuns a todas as
canetas observadas. Um construto, por sua vez, não se correlaciona tão diretamente
aos fenômenos que representa. Por exemplo, o construto “ideologia” não se conecta
tão facilmente aos fatos.
Conceitos e construtos. Conceitos e construtos são elementos com os quais
se organizam explicações em níveis cada vez mais complexos. Para Bunge (1976,
p. 64), há, pelo menos, três níveis conceptuais: o nível do conceito simples, tal
como “burguesia”; o nível de um sistema conceptual, tal como “a burguesia é uma
classe social superior ao proletariado”; e um sistema conceptual de ordem superior,
tal como “a teoria da estratificação social.” Esta trajetória passa, portanto, pela
definição de conceitos mais simples e pela construção de sistemas conceptuais, até
a elaboração de teorias.
1.4.3 Definição de conceitos
Definição. Por definição entende-se uma proposição que visa a explicitar com
exatidão a extensão e a compreensão de um conceito. Trata-se de uma fórmula
verbal através da qual se expressa a essência de um ser, objeto, fato ou fenômeno.
Ou ainda, de uma operação lógica que exprime o conteúdo de um conceito e/ou
estabelece o significado de um termo, definindo o que a coisa é e analisando a
compreensão de sua ideia.
Extensão e compreensão. Todo conceito possui duas dimensões: a extensão e
a compreensão. Por extensão de um conceito define-se sua abrangência, ou seja, a
que fatos ou fenômenos o conceito se aplica. Por compreensão ou conteúdo de um
conceito definem-se suas especificações ou características. Conceitos mais extensos
são menos compreensivos e conceitos mais compreensivos são menos extensos.
Intensão e extensão. Por outro lado, uma definição pode ser intensional ou ex-
tensional. Uma definição intensional, por compreensão ou por intensão consiste na
remissão a um conceito genérico superordenado, conhecido ou definido, acrescido
das características distintivas que delimitam o conceito a ser definido. Uma defini-
ção extensional ou por extensão consiste na descrição de um conceito mediante a
enumeração exaustiva dos conceitos subordinados a que o conceito superordenado
se aplica.
19 A palavra ‘conceito’ provém do substantivo latino conceptum, significando “concebido”, particípio do verbo concipere, significando “conter
completamente”, “formar dentro de si”.
56
ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Descrição e estipulação. Uma definição pode ser ainda descritiva ou estipulativa.
Uma definição descritiva, denotativa, referencial ou ostensiva ocorre quando se faz
uma remissão ao ser, coisa, fato ou fenômeno representado pelo signo. Uma definição
estipulativa, lexical, nominal ou metalinguística ocorre quando se faz uma remissão a
outro signo do sistema linguístico.
Categorias e protótipos. Uma definição pode ser categórica ou prototípica. Uma
definição categórica visa a estabelecer limites excludentes para enquadrar a extensão
e a compreensão de um ser definido, de modo que este ser definido não pode ser e
não ser enquadrado na dita definição. Uma definição prototípica visa a estabelecer
um conjunto de características contra as quais determinados seres são representantes
típicos e outros são qualificados nas margens da definição, de modo que pode haver
sombras na classificação. Por exemplo, o conceito de “casa” satisfaz um conjunto de
propriedades mais ou menos difusas. Na medida em que se retiram uma ou algumas
das propriedades, é possível que determinada habitação não seja identificada como
uma casa, mas um iglu, um barco, uma cabana, uma tenda, entre outros.
Constituintes da definição. Uma definição é composta de dois elementos, o ter-
mo a ser definido ou definiendum e a sequência de palavras que o define ou definiens,
conectada por um verbo copulativo que traduz a equivalência entre definiendum e
definiens.
O definiens, por sua vez, costuma conter dois elementos: o gênero ou genus e as
diferenças ou differentiae.
Veja-se a estrutura prototípica de uma definição denotativa:
a) termo ou definiendum – ser, objeto, fato ou fenômeno a ser definido;
b) cópula – verbo ‘ser’ (‘consistir em’, ‘significar’, entre outros);
c) gênero ou genus – classe a que pertence o termo; e
d) diferenças ou differentiae – tudo aquilo que distingue a coisa representada pelo
termo de outras coisas incluídas na classe.
Esta estrutura traduz-se na seguinte formulação:
T = G+D1, D2... Dn.
Vejam-se os exemplos:
O homem (T) é um animal (G) racional (D1).
Esfera (T) é um sólido geométrico (G) formado pelo conjunto de pontos contidos
num espaço P e C (centro) (D1), em que a distância do centro ao ponto P seja
menor ou igual ao raio desta esfera, ou semelhante ao ponto C (D2).
Requisitos. Conforme Garcia (1983, p. 325-326), Fontes (2001) e Lakatos e
Marconi (1986, p. 100-102), uma definição deve apresentar os seguintes requisitos:
a) o termo definido deve pertencer ao gênero da definição. ‘Mesa é um móvel’
(correto) versus ‘Mesa é uma ferramenta’ ou ‘Mesa é uma instalação’;
57
Fábio José Rauen
b) a definição deve expressar a essência do que se define, de modo a convir
integralmente ao que se define e somente ao que se define. Uma definição
deve ser aplicada a tudo aquilo a que se refere o termo e nada mais. Logo, a
definição não pode ser elaborada, de modo a definir mais do que aquilo que
se define, incluindo outros elementos; nem pode ser elaborada, de modo a
definir menos do que aquilo que se define, excluindo partes ou exemplares
daquilo que se define. ‘O homem é um animal racional’ (correta) versus ‘O
homem é um animal bípede’ (incorreta);
c) a definição deve ser convertível para não ser incompleta ou insatisfatória.
‘O homem é um ser vivo’ não é uma definição suficiente, porque a recíproca
‘Todo ser vivo é homem’ não procede. Um cão é um ser vivo e não é um ho-
mem. ‘Um triângulo é uma figura com três lados’ é relativamente correta,
porque ‘Uma figura com três lados é um triângulo’;
d) a definição não deve ser circular, ou seja, não deve incluir o termo definido
na própria definição, tal como ‘Definir é dar uma definição’;
e) o termo (sujeito) e o gênero (predicado) devem pertencer à mesma classe
de palavra. ‘Guerra é uma disputa armada de algo entre dois grupos de in-
divíduos organizados’ (correta). ‘Guerra é quando dois grupos de indivíduos
organizados disputam algo com armas’ (incorreta);
f) a definição deve ser suficientemente breve e estar contida num só período
ou proposição predicativa afirmativa (logo, deve-se evitar a todo custo uma
definição negativa); e
g) a definição deve ser expressa em linguagem suficientemente simples e não
deve ser expressa por palavras ambíguas, obscuras ou figuradas.
Observações. Vale mencionar que a consideração de conceitos e construtos
pode trazer sérias dificuldades e limitações ao pesquisador. Por vezes, conceitos
e construtos não são facilmente traduzidos de uma língua para outra, já que se
desenvolvem a partir de experiências próprias da língua de origem, razão pela
qual se sugere, sempre que possível, ler a bibliografia na língua original. Pode
ocorrer com um neologismo (palavra nova) ou com uma palavra já existente para a
qual se atribui uma significação particularizada. Outras vezes, os termos utilizados
para exprimi-los possuem significados diversos em outros quadros de referência.
Um termo pode referir-se a fenômenos diferentes, tanto quanto termos diferentes
podem referir-se a um mesmo fenômeno. Por fim, e não menos importante, há
de se reconhecer que o significado dos conceitos e dos construtos muda com a
passagem do tempo.
1.4.4 Teorias
Definição. Por teoria define-se um modo de se organizarem os fatos, explicando-
os, estabelecendo relações e dando oportunidade de serem utilizados para previsão e
prognóstico da realidade.
58
ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Conforme Lakatos e Marconi (1986, p. 86), a teoria diz respeito à relação entre
fatos ou, em outros termos, à ordenação significativa destes fatos, consistindo em con-
ceitos, classificações, correlações, generalizações, princípios, leis, regras, teoremas,
axiomas, entre outros.20
Elaboração. Historicamente, segundo Asti Vera (1989, p. 146), há dois meios
de elaboração teórica: pela observação e pelo intermédio de axiomas. Partindo-se da
observação, trata-se do método indutivo; via axiomática, trata-se do método dedutivo.
Todavia vale mencionar que as ciências sociais necessitam, muitas vezes, de aborda-
gens alternativas, tais como aquelas fornecidas pela dialética e pela fenomenologia.
Multiplicidade. Para Laville e Dionne (1999, p. 93), o valor de uma teoria é expli-
cativo, porque fornece explicações concordantes, tiradas dos fatos que foram estuda-
dos para sua construção, além de fornecer ao pesquisador elementos de possibilidade
de estudo e de análise de fatos similares. Vale destacar que, mesmo que se encontrem
teorias simultâneas, qualquer teoria é válida, desde que não surja outra que a contra-
diga ou a invalide.
Validade. Segundo Bunge (1974, p. 131-143), a validade das teorias decorre de
um conjunto de requisitos sintáticos, semânticos, epistemológicos e metodológicos:
a) são requisitos sintáticos, a correção e a sistematicidade ou unidade conceitual.
Uma teoria é correta sintaticamente quando as proposições lógicas da teoria
são bem formadas e mutuamente coerentes. Uma teoria é sistemática quando
seus conceitos permanecem unidos, seja qual for o teste a ela aplicado;
b) são requisitos semânticos, a exatidão linguística, a interpretabilidade empírica,
a representatividade e a simplicidade. Os conceitos de uma teoria consistente
devem ser minimamente ambíguos, imprecisos e obscuros. A teoria tem de ser
interpretada e aplicável empiricamente e deve não só descrever os fenômenos,
mas representá-los, modelá-los e prevê-los da forma mais simples possível;
c) são requisitos epistemológicos, a coerência externa, o poder explanatório e
o poder de previsão. Uma teoria tem de ser coerente com o conhecimento
aceito. Ela deve resolver os problemas, explicando-os e generalizando-os (poder
de alcance e precisão), e prever ou prognosticar novos fatos. Na medida do
possível, tanto explicações quanto previsões devem ser suficientemente pro-
fundas, extensas, férteis e originais; e
d) são requisitos metodológicos, a escrutabilidade, a verificabilidade, a con-
firmabilidade e a simplicidade. Uma teoria deve ser escrutável, ou seja, os
métodos e os predicados da teoria devem sujeitar-se à investigação empírica,
à autocorreção e ao controle da ciência. Uma teoria deve ser verificável, ou
seja, devem ser possíveis eventos que possam refutar a teoria, e os enun-
ciados da teoria devem prestar-se à verificação empírica. Uma teoria tem de
20 Conforme Vargas (1985, p. 14), a origem da própria ciência está num tipo de saber teórico concebido na Grécia, no século VI AC: a
epistéme theoretiké. A palavra grega επιστεμε [epistéme] já se traduz como saber, mas os gregos a adjetivaram como θεορετικε
[theoretiké] para demarcá-lo como um saber teórico. A palavra teoria provém do grego θεωρία [theoría], derivada do verbo θεορεω
[theorein], que significa “ver”. Portanto epistéme theoretiké consiste num saber adquirido pelos olhos do espírito, capazes de descobrir a
realidade verdadeira. Deste modo, teoria liga-se ao conceito grego de verdade, αλεθεια [aletheia], ou seja, aquilo que está descoberto.
59
Fábio José Rauen
ser confirmável pela observação. Por fim, a teoria tem de ser metodologica-
mente simples, de modo que seja tecnicamente possível submetê-la a provas
empíricas.
Teorias e fatos. O fundamental na relação entre teoria e fatos é, em primeiro
lugar, observar que ambos não são opostos. Fatos e teorias estão interligados de
tal forma que não se concebe um sem o outro. Não há teoria que não se baseie em
fatos, e a compilação de fatos ao acaso não produz ciência. Em segundo lugar, é não
conceber a teoria como especulação. A teoria é um conjunto de princípios que orienta
a pesquisa e a explicação dos fatos, e os fatos são importantes, porque iniciam, refor-
mulam, rejeitam, redefinem, esclarecem, clarificam a teoria.
O valor da teoria. Deve-se ter em mente uma teoria quando se projeta uma inves-
tigação, porque a teoria oferece um sistema de conceitos. Ao organizar o conhecimen-
to, ela delimita a extensão do trabalho, fixando-o em limites mais seguros. Além disto,
a teoria resume largas extensões de conhecimento, prevendo fatos ou fenômenos a
serem levados em conta. Por fim, se não houvesse um caminho já trilhado, não haveria
noção das lacunas ou problemas do conhecimento, aquilo que precisa ser investigado.
O valor dos fatos. O pesquisador deve ter em mente os fatos quando se projeta
uma investigação, porque os fatos são os desencadeadores das teorias. Com base em
fatos, as teorias podem ser reformuladas ou até rejeitadas. Fatos redefinem e esclare-
cem teorias, bem como clarificam os conceitos que compõem as teorias.
Qual o ideal nesta relação? Algo que Waldo Vieira (1990) chama de teática, ou
seja, um equilíbrio no qual não se conceba entre elas qualquer distinção.
Conhecido, em linhas gerais, o papel da teoria, cabe destacar que toda investiga-
ção emerge dentro de um quadro teórico referencial.
1.4.5 Quadros teóricos referenciais
Definição. Por quadro teórico referencial, conforme Barros e Lehfeld (1990, p.
32-36), define-se a “linha filosófica, religiosa, política, ideológica, etc. de um autor,
pesquisador e/ou estudioso” que “serve de referência para diferenciar ou comparar o
modo de pensar das pessoas.”
Função. Um quadro teórico funciona como um pano de fundo que permite identificar
os vínculos entre a pesquisa e uma linha de pensamento. Uma pesquisa nunca se concebe
num vácuo, mas está imersa num conjunto de saberes previamente construído. Estes sa-
beres acabam por modelar o olhar do pesquisador. Ignorar estes saberes ou submeter-se
acriticamente a um quadro de referência é um sinal inequívoco de ingenuidade.
Crítica. Vale destacar que qualquer trabalho científico pode ser criticado. Entende-
se aqui que uma crítica pode colocar todas as etapas de um trabalho em crise, desde
sua concepção até a interpretação de seus resultados. Por crise define-se uma situação
ou evento em relação ao qual o indivíduo não pode deixar de tomar uma decisão.21
21 A palavra ‘crise’ provém da forma latinizada do grego κρίσις [krisis], significando “ponto de viragem em uma doença” (Hipócrates e
Galeno) e, literalmente, “juízo”, de κρινεω [krinein], significando “separar”, “decidir”, “julgar”.
60
ROTEIROS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Ou seja, diante de uma crítica, cabe ao investigador defender seus pontos de vista ou
assimilar os pontos de vista do crítico. Abster-se de responder é sempre uma atitude
perigosa, normalmente tomada como aceitação tácita da crítica.
Crítica externa e interna. Há duas espécies de crítica: a externa e a interna.
A crítica externa é sempre indevida. Ela consiste em usar um quadro referen-
cial externo àquele usado na pesquisa para criticar os procedimentos do pesquisador.
Por exemplo, se uma pesquisa usa como quadro referencial a concepção dialética de
educação de Vygotsky, trata-se de uma crítica externa utilizar-se de argumentos da
concepção biológica de Piaget para apontar defeitos de concepção, de coleta, análise
e interpretação dialética dos dados.
A crítica interna, por sua vez, é pertinente. Ela consiste em usar o quadro teórico
referencial no qual o trabalho foi elaborado para apontar problemas de concepção,
consecução e interpretação da pesquisa. No caso do exemplo, se a pesquisa se define
com base no domínio do quadro teórico de Vygotsky, uma crítica pertinente é a de-
tecção de maus empregos de seus termos teóricos ou procedimentais próprios deste
quadro teórico.
Múltiplos quadros. A lista de possibilidades de quadros teóricos é significativa-
mente ampla. Entre os quadros mais recorrentes em pesquisas sociais, por exemplo,
podem ser citados: o positivismo, o estruturalismo, o sistemismo, a dialética e a
fenomenologia.
Nesta subseção, como mera ilustração de como a escolha de um quadro refe-
rencial implica compromissos com determinados princípios filosóficos e científicos,
apresenta-se um breve resumo das principais características do quadro positivista.
Abordagem positivista. A característica básica do positivismo é a ênfase na ex-
perimentação em oposição à especulação. Para Auguste Comte (1798-1857), haveria
uma ciência unificada, compartilhando a adoção de um único método. Embora o autor
tenha adotado um empirismo relativo, aceitando alguns aspectos de racionalidade, a
corrente positivista adotou um empirismo radical, implicando a aceitação exclusiva do
método indutivo em ciência; a adoção do ponto de vista empirista; e o apelo à verifica-
ção para a validação da análise, partindo-se da observação e da descrição.
Em determinado período, o positivismo chegou a estabelecer a tese do reducio-
nismo absoluto, segundo a qual, todos os elementos que ocorrem em generalizações
podem ser reduzidos a elementos primitivos observáveis empiricamente. Tal concepção
implica que a maior parte dos conceitos da humanidade seria decomponível em um
número restrito de conceitos simples, considerados como primitivos.
Entre os principais compromissos do positivismo, destacam-se o empirismo, a
objetividade, a explicabilidade, a mensurabilidade, a experimentação, a validade e a
previsibilidade.
Uma pesquisa positivista compromete-se com o empirismo. A pesquisa parte da
percepção da realidade, conforme se ajusta aos sentidos humanos e aos aparatos
tecnológicos que expandam estes sentidos, e não da intuição racional. Isto implica
61
Fábio José Rauen
considerar que somente pela experimentação se pode medir a precisão de uma hipó-
tese e o seu poder de explicar os eventos, e somente pelo controle rígido de fatores
intervenientes é que se pode chegar à validade e à precisão da ciência.
Trata-se de uma pesquisa que se compromete com a objetividade, na medida em
que respeita o objeto de estudo. Uma pesquisa positivista admite a possibilidade de
uma descrição dos fatos independente da influência do observador e a possibilidade
de uma experimentação que reduza radicalmente a intervenção do pesquisador a um
único fator ou variável. O observador deve-se calar diante do objeto do conhecimento.
Do ponto de vista da explicação, o pesquisador se compromete a não conceber
qualquer efeito sem uma causa subjacente e a considerar a matemática como forma
ideal para mensuração da realidade. Compromete-se, enfim, com a previsibilidade do
conhecimento, razão pela qual o pesquisador deve dar conta das leis que determinam
a realidade.
Como se pode ver, a eleição por um quadro teórico referencial implica comprometi-
mentos substantivos os quais guiam a definição de todas as etapas da pesquisa, desde
a delimitação de um tema até a determinação das conclusões relevantes do trabalho.
***
Até o momento, enfatizou-se neste livro a dimensão epistemológica da ciência.
Primeiramente, o texto fez um apanhado dos tipos de conhecimento, com o objetivo de
distinguir aquele específico das ciências e das tecnologias. Uma vez conhecido o con-
ceito de ciência, destacaram-se as características do conhecimento em ciências formais
e factuais, para, em seguida, refletir sobre a origem, a essência e a possibilidade do
conhecimento, a noção de verdade e os modos de saber em ciência. Com base nestas
noções, foi possível empreender uma análise dos conceitos de fatos e teorias e de se
pensar na afiliação das pesquisas a quadros teóricos. Toda esta trajetória permite ago-
ra refletir sobre a dimensão metodológica da pesquisa, ou seja, os modos de operação
próprios do fazer científico. O segundo capítulo será dedicado a este tema.
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