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1 - Poderoso e Sedutor e Namorada de Mentira

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© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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Copyrigth © 2019 Katherine J.

Fellan

Capa: Designerttennorio
Diagramação: Deborah A. Ratton
Revisão: Deborah A. Ratton
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19
de fevereiro de 1998. Nenhuma parte desta obra pode ser
utilizada ou reproduzida, seja por qual meio for, mecânico,
eletrônico, fotográfico etc., sem autorização expressa da autora.
Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos,
nomes e datas reais é mera coincidência.
ÍNDICE
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
Final
Epílogo
1

Meu telefone toca pela décima vez. Olho para cima, mas
não tenho forças para me erguer e caminhar alguns passos até
onde meu celular está. Sento-me no sofá do pequeno loft, a
única coisa que ainda me restou desse relacionamento.
Na verdade, esse loft não é meu e nem do meu perverso
ex-noivo. É alugado e foi a única coisa de que o maldito abriu
mão, já que tudo aqui foi comprado com o meu dinheiro. Eu
poderia tê-lo feito ajudar, mas teimei em morar aqui e, mais
ainda, insisti que ele mantivesse metade de seus pertences na
casa dos pais.
O telefone volta a tocar, ecoando um som agudo em
meus ouvidos. Eu me pergunto por que tive a brilhante ideia de
ligar essa porcaria. Finalmente me ergo e me arrasto até alcançar
o celular. Na tela, lê-se "Anne", minha amiga da faculdade e
uma das poucas pessoas, além dos meus pais, que me restaram
nesta vida.
Praticamente todos da minha família zombaram de mim,
riram da minha cara, e descobri, apenas vinte e dois dias depois
do "não casamento", que também havia perdido meu emprego.
Segundo uma mensagem de texto enviada pelo pilantra cujo
nome é Adam Smith, Patrícia não se sentia à vontade com a
minha presença naquele lugar.
Ela roubou meu noivo e agora tirou o meu único
emprego. O desgraçado não deu tempo para que eu encontrasse
outro lugar e fingiu que um relacionamento de quatro anos
nunca havia acontecido. Suas motivações? Não faço ideia. A
impressão que tenho é de que tudo foi uma grande mentira.
Acho que eu era um brinquedinho com que ele se cansou de
brincar.
De súbito, ideias rondam minha mente. Ideias que nunca
cogitei, nem depois de ter sido abandonada. Ele sempre quis
uma mulher sofisticada, que ostentasse bolsas caras, roupas e
joias. Uma mulher de família rica. Eu nunca fui assim, mas
Patrícia é; além de linda, claro.
Sou trazida de volta pelo barulho contínuo do celular e
decido atender a minha amiga. Talvez assim ela pare de ligar.
— Anne, não quero conversar agora, eu...
— DOIS MESES! — Afasto o aparelho do ouvido. —
Você está presa nesse apartamento há malditos DOIS MESES!
— ela berra do outro lado da linha, e não posso dizer que está
errada.
Realmente estive vegetando desde o fatídico dia em que
fui abandonada. Simplesmente não tive forças para me levantar.
Tomei banho poucas vezes e não me importei com o cheiro que
deveria estar se desprendendo de mim.
— Eu ouço bem, Anne. Não precisa gritar — sussurro,
ouvindo o que parece ser um suspiro prolongado, do outro lado
da linha.
— Você precisa reagir, Sophia. Precisa acordar. — As
lágrimas agora descem silenciosas sobre minhas faces, enquanto
pressiono com força o celular no ouvido. Não consigo
responder, mas deixo que ela fale o que preciso ouvir. — Aquele
desgraçado não merece que você sofra por ele. Patrícia não
merece que você definhe neste apartamento. — Inspiro o ar
profundamente, na tentativa de conter as lágrimas que ainda
insistem em cair.
— Eu sei que eles não merecem... — falo baixinho. —
Mas não sei como enfrentar. Não sei como fazer isso.
— Eu vou ajudar. Um passo de cada vez, faremos isso
juntas! — a determinação na voz da minha amiga me faz sorrir.

É, não tem sido fácil como eu havia pensado que seria,


mas tudo aconteceu naturalmente. Ainda não tive coragem de
frequentar festas de família, mas os poucos parentes que me
restaram me visitam e apenas lamentam o que aconteceu. Não
me afastei de todos, mas sim da maioria esmagadora de pessoas
que não queria perder a amizade do meu influente ex-noivo. O
pai dele é um senador respeitado e o filho seguiu mantendo sua
empresa milionária. Não é uma fortuna absurda, mas grande o
suficiente para que as pessoas se impressionem com sua riqueza.
Quando o conheci, através de Anne, não fiquei
impressionada com seu dinheiro e, tampouco, queria me
relacionar com ele. Sabia dos prejulgamentos que sofreria por
pertencer a uma família de classe média, por minha mãe ser uma
professora de escola pública e por meu pai ser dono de uma
pequena lanchonete.
Talvez meu desinteresse o tenha encorajado e, por isso,
ele estivesse decidido a me conquistar. Acredito que esse tenha
sido um dos requisitos que o levaram a me pedir em namoro. Eu
nunca quis morar em nenhum apartamento bancado por seu pai
ou por ele e, em comum acordo, decidimos alugar um loft em
Manhattan. O lugar é bem charmoso, mas as despesas, não.
Estou encrencada e espero receber tudo que me devem
por me demitirem da empresa sem um aviso prévio.
— Essa cara não está me agradando, Sophia. Você tem
um bom currículo e em breve vai ter um ótimo salário.
Viro o resto do suco de limão.
Estamos em um restaurante que gostamos muito de
frequentar às sextas. Este lugar é quase uma tradição para mim e
Anne.
— A empresa se recusa a pagar o que me deve.
— Entre com um processo. Eles estão errados e terão de
pagar. — Ergo as sobrancelhas, encarando minha amiga.
— Não tenho dinheiro para pagar um advogado e Adam
sabe disso. O idiota sabe que venho de família pobre. Não posso
arriscar as economias que fiz. Teria que bancar rios de dinheiro
com advogado e ainda demoraria anos para receber.
— Estou surpresa que seu dinheiro não tenha acabado!
Você já está pagando sozinha o aluguel do loft há três meses.
— Estava juntando para comprar um bom carro. Assim,
ficaria mais fácil visitar meus pais em New Jersey.
Anne me olha com desânimo.
— Desculpe — ela pede e eu estreito os olhos sem
entender a razão pela qual está me pedindo desculpas.
— Você não me deve nenhuma desculpa.
— Eu apresentei você àquele filho da puta. Agora me
sinto culpada.
— Você não sabia de nada. Ele praticamente implorou
para que você o apresentasse a mim. Estávamos em uma festa
com seus amigos e nem você imaginava que chegaríamos a
namorar.
— Isso é verdade, foi uma surpresa. Achei que ele iria
brincar com você, assim como fez com outras. Eu até avisei.
— Mas eu também queria apenas brincar com Adam.
Sabia que ele, a princípio, não estava me levando a sério.
Quando percebeu que eu também não, ele...
— Ficou de quatro por você — ela me interrompe.
— Não exagere! — brinco e ela sorri.
A comida que pedimos chega e tentamos mudar o foco
do assunto para coisas mais agradáveis. De repente, Anne olha
para um ponto específico atrás de mim e seu semblante se fecha.
— O que foi? — questiono, aflita com sua súbita
mudança.
— Droga! Não olhe agora, Adam está aqui.
— O quê? Onde? — Quando faço menção de me virar,
Anne segura minhas mãos.
— Não — sussurra. — Não faça isso. Ele está com a
Patrícia.
Enrijeço o corpo, com os olhos presos na comida, mas,
ao contrário do que eu imaginava, a garçonete os conduz
exatamente para uma mesa perto da nossa, que me dá uma vista
privilegiada dos pombinhos.
— Merda.
— Agora ferrou — ela diz e meus olhos mortais encaram
a felicidade do casal.
De repente, Patrícia mexe os cabelos loiros, curtos, e me
olha fingindo que não havia percebido minha presença aqui. Ela
fala no ouvido do agora namorado e, segundos depois, ele se
vira para me olhar. Nossos olhos não se desviam um segundo
sequer e Adam parece surpreso, mas logo sua expressão muda,
como se ele tivesse se lembrado de algo. Não suporto a cara de
pau dele e me levanto.
— O que está fazendo?
Anne parece horrorizada quando percebe que eu ando em
direção ao casal apaixonado. Adam também parece incrédulo, à
medida que me aproximo dele. Quando paro em sua frente,
minha vontade é cuspir na sua cara.
— Seja ao menos honesto e pague o que me deve. Eu
não costumava trabalhar de graça.
Ele une as sobrancelhas e o clima esquenta quando sinto
sua atual me fuzilar com os olhos. Talvez eu a fuzile primeiro.
2

— Não sei do que você está falando. — Adam não


consegue esconder o descontentamento impresso em seu rosto.
Ele passa os dedos entre os cabelos castanho-claros,
nitidamente envergonhado pela exposição negativa. Sempre
odiou isso.
— Por que está nos seguindo? — Patrícia pergunta com
um ar de deboche, mas acho que apenas eu percebo seu tom.
Adam estreita os olhos verdes, como se tivesse entendido
a situação.
— Você está nos seguindo? — sua pergunta me faz rir,
embora sem um pingo de humor.
Seu porte, relativamente alto, o torna o centro das
atenções.
— Este é um dos meus restaurantes preferidos. Achei
que você e Patrícia soubessem disso!
— Eu não sabia que você vinha para cá — ele se
defende.
— Nossa! Acho que, nos últimos anos, você esteve
ocupado demais com o trabalho. Impressionante que ainda saiba
"tanto" sobre mim — digo, não conseguindo disfarçar o tom
irônico.
— Deixe-nos em paz — Patrícia exige com um tom de
voz ríspido, mas baixo.
Os braços dela estão entrelaçados aos de Adam,
apertando-o com força, como se estivesse com medo de mim. Eu
sei que isso tudo faz parte de um teatro. Um belo teatro, que só
percebi quando soube que eles estavam juntos. Não esperaram
muito para tornar isso público.
— Liguei para o escritório e você sabe que tenho direitos
relativos ao tempo em que trabalhei. Fui responsável por vários
contratos. Só estou exigindo o que de fato é meu, nada além.
— Nada além? — ele pergunta, suas feições
demonstrando raiva. — Achei que as joias da minha mãe
bastariam.
Agora é a minha vez de olhar incrédula para o homem a
minha frente, meu rosto coberto de confusão.
— Do que está falando?
Adam ri com sarcasmo.
— Estou falando de um colar de quinze mil dólares e de
um anel de três. São pedras raríssimas. No total foram dezoito
mil dólares. Eu os deixei para você quando vi no seu closet. Não
quis chamar a polícia, querida. Apenas decidi acabar com a farsa
do casamento e ficar com alguém que não vai fingir ser honesta
ou uma donzela puritana, como você fez comigo.
— Você só pode estar brincando! — altero a voz.
Patrícia está séria, mas tenho a impressão de que vai cair
na gargalhada a qualquer momento, tamanha cara de pau.
— Não, não estou. Tudo fez sentido para mim no dia do
casamento. Você sumia todas as quartas-feiras e nunca me disse
o que fazia. Mesmo sendo questionada muitas vezes. Presumo
que esteve me traindo por aí. Por sorte, não transávamos há
algum tempo...
Suas insinuações absurdas despertam algo extremamente
ruim dentro de mim. Olho para a mesa ao lado e pego uma taça
de vinho, a primeira coisa que vi. Antes que ele possa entender
ou assimilar algo, o conteúdo é despejado bem na sua cara. Os
respingos caem em mim e em Patrícia, que se afasta
tardiamente.
— O que DIABOS você acabou de fazer? — Adam
parece revoltado agora.
— Sua desequilibrada! — Patrícia me acusa enquanto
limpa a face, tentando retirar os resíduos de vinho tinto.
Em seguida tenta limpar a cara tingida de Adam.
— Merda, Sophia! Vamos! — a voz de Anne ressoa
atrás de mim, mas não quero sair agora.
— Não terminei, Anne! — Aponto o dedo indicador em
direção à cara dele. — Esse babaca precisa saber que não sou
uma ladra! — berro, todo o restaurante, agora, está concentrado
em nós.
— Pare com isso! Nosso relacionamento ACABOU.
Será que não percebe?! — Adam rosna, cuspindo as palavras,
demonstrando agitação e incômodo com todos os olhares
voltados para nós.
Agora deixo as lágrimas rolarem livremente. Eu me
pergunto como fui capaz de gostar de um homem que nunca
soube de fato quem sou.
— Achei que você me conhecesse, Adam! Eu juro que
achei!
Seguranças do restaurante se aproximam, e na mesa onde
roubei o vinho já não há mais ninguém.
— Também pensei que a conhecia, Sophia. Não seja
ridícula. Eu poderia chamar a polícia por me agredir em público.
Poderia ferrar você agora mesmo se eu quisesse — diz em um
tom ameaçador e eu me afasto, como se suas palavras tivessem
me queimado. — Se me perseguir mais uma vez, eu chamarei a
polícia e não terei mais pena de você — ameaça, pega a mão de
Patrícia e sai, passando por mim como um trator, deixando-me
sem reação, completamente muda.
Neste momento, todos os pescoços estão voltados em
minha direção. Todos os olhares me julgando, provavelmente
imaginando que sou a “ex maluca e perseguidora”.
— Já paguei a conta, Sophia. O vinho também. Os
seguranças vão nos tirar daqui. Vamos.
Sinto as mãos da minha amiga me puxando
delicadamente pelo braço. Eu a acompanho, os seguranças logo
atrás de nós. Passamos pelas pessoas como se eu fosse algum
tipo de criminosa.
Pegamos um táxi e seguimos para minha casa em total
silêncio. Anne me ajuda a encontrar as joias e então, para minha
surpresa, elas realmente estavam lá no meu closet.
Não fui eu que trouxe isso, mas sei quem pode ter feito.
Patrícia trabalhava na empresa antes de mim, eu jamais fui sua
amiga. Posso imaginar que ela tenha sido a responsável por isso.
Nunca tive inimigos, mas ela entrou em minha casa antes do
casamento, quando fiz uma festa de despedida de solteira. Eu
sentia que não poderia deixá-la de fora, já que ela seria a única
rejeitada.

— HORA DE ACORDAR! — os berros de Anne


reverberam em todo o ambiente e fazem doer meus ouvidos.
Enfio a cabeça debaixo do travesseiro e pressiono-o
sobre mim.
— Eu te odeio! — grito, a voz abafada.
— E eu te amo. Por isso estou aqui. — Retira o
travesseiro da minha cabeça e eu me viro, encarando minha
amiga.
— Estou arrependida de ter dado as chaves do loft para
você — brinco, mas ela se ajoelha sobre minha cama, sorrindo.
— Já devolvi para o canalha aquelas malditas joias. Tudo
como você pediu. Fui à casa dele e falei muitas verdades que ele
deveria ouvir.
Inspiro o ar profundamente e me sento na cama,
ajoelhando-me de frente para ela.
— Obrigada. Eu não seria capaz de fazer isso. Espero
que ele não tenha tratado você mal.
— Tive um probleminha com a segurança, mas deu tudo
certo. Fiz por você. E não conseguiria esperar mais para contar
que aquele idiota finalmente pareceu arrependido.
— Pareceu?
— Sim. Na verdade, não disse nada a esse respeito, mas
demonstrou. Eu falei sobre seu caráter e sobre todas as vezes
que você se ausentou, nas quartas-feiras, então o deixei com cara
de arrependido. Pelo que conheço dele, presumo que ficou
surpreso.
— Você não deveria...
— Como uma pessoa que faz trabalhos voluntários todas
as quartas-feiras, cuidando de idosos em uma clínica e com o
caráter de dar inveja, seria capaz de roubar joias? Eu só o fiz
pensar nisso. E fiz o que achei que era certo! Você não merece
um pingo de desconfiança daquele imbecil.
— Obrigada. Não sei o que faria sem você. — Seguro
suas mãos.
— Eu sei. Por isso estou aqui! — ela brinca e rimos
juntas. — Okay, não é só por isso que estou aqui. Vamos para
um SPA e renovar suas roupas. Você usa apenas roupas de
senhora. Ontem no restaurante, estava usando uma saia longa,
com uma blusa de crochê. Isso é inadmissível para uma mulher
de vinte e sete anos. Você precisa se levantar. Vamos a uma
entrevista de emprego.
— Como assim? Você achou algo e não me avisou?
Ela sorri.
— Na verdade, achei um anúncio em um site. Um
poderoso executivo está em busca de uma nova secretária
particular.
— Eu nunca fui secretária — justifico, confusa.
— Sim, eu me questionei sobre isso, mas, quando vi o
salário que oferecem, decidi marcar uma entrevista para você.
Na verdade, meu pai me contou que se trata de uma das maiores
empresas de comércio eletrônico do mundo.
— Estamos falando de quanto?
— Disso. — Ela vira a tela do celular para mim.
Na imagem há um texto grande, em um famoso site de
empregos. A palavra que me chama a atenção é
"OPORTUNIDADE", em letras garrafais. Pego o aparelho de
sua mão e leio o anúncio. Os requisitos exigidos me prendem a
atenção até que leio a palavra "poliglota". Encaro Anne.
— Eu não sou poliglota. Esse cargo exige mais que
qualquer trabalho que já fiz.
Ela ri.
— Não venha com palhaçada. Sei que fala espanhol e
um pouco de italiano.
— Só — rebato. — Poliglotas falam muitas línguas.
— Você arranha alemão e francês. É só gravar algumas
frases e está tudo okay. Eles não precisam disso, Sophia. É só
colocar no currículo e está tudo certo. Não seja boba, você é
esperta e vai tirar tudo de letra.
Com apreensão, eu volto a ler a matéria e me surpreendo
mais uma vez.
— Aqui diz que o candidato precisa ser do sexo
feminino, ter um ótimo condicionamento físico, cabelos
brilhantes e usar roupas adequadas, condizentes com o alto
padrão da empresa World Inc.
Quando meus olhos encontram os da minha amiga, ela
está com as sobrancelhas arqueadas.
— É um bom motivo para irmos às compras e, claro, dar
um jeito nesse cabelo castanho, extremamente opaco. Você
emagreceu nesses últimos meses, sua pele precisa destacar seus
belos olhos azuis.
— Eu não posso.
— Você é formada em administração, fez inúmeros
cursos em várias áreas e se especializou em marketing. Sophia,
você esteve à frente de reuniões para definir estratégias da
empresa, ao lado de grandes agências de publicidade. Muitos
contratos de sucesso da empresa, nos últimos anos, eles devem a
você.
— Não exagere! — repreendo-a. — Olha só, aqui diz
que a candidata deve... — Faço um barulho com a garganta e
começo a ler: — “A candidata deverá gerir toda a agenda do
executivo, principalmente a pessoal, cuidar do café, ser pontual,
nunca ter mau hálito, não ter filhos, usar saltos, ter flexibilidade
de horários, acompanhá-lo em reuniões — ergo o dedo indicador
—, acompanhá-lo quando for exigido.”
— Faça um favor a você, Sophia. Leia a última linha.
Meus olhos pulam para o local indicado, após o enorme
texto, e eu fico boquiaberta com o salário.
— Isso é...
— Muito mais do que você recebia.
Concordo com a cabeça.
— Talvez o dobro. Mas por que eles pagam tão bem por
uma mísera secretária?
— Mísera? Você viu o que essa "mísera" secretária deve
fazer? Acho que não conheço ninguém que possui tantos
requisitos.
— Verdade. — Engulo em seco. — Talvez eu possa
arriscar. Quem sabe consiga o emprego e, talvez, nem precise
me mudar deste loft?
— Certo. Você precisa estar lá amanhã, às dez. Já enviei
tudo pelo e-mail e consegui um bom horário. Deixei para ele o
máximo de informações. Enquanto isso, vamos dar um jeito em
sua aparência. Hora de mostrar para o mundo que você pode dar
a volta por cima, minha amiga.
Pela primeira vez em meses, sinto-me realmente
confiante com as palavras de minha grande amiga.
— Eu aceito esse desafio.
3

Observo meu reflexo no espelho, depois de passar mais


de oito horas tentando encontrar as roupas, maquiagens e o corte
de cabelo perfeito. Não sei como agradecer à Anne o incentivo.
Talvez eu nunca tivesse vontade de realmente melhorar minha
aparência, se não fosse por sua insistência. Temos muito em
comum, e ambas gostamos de deixar os outros felizes.
Observando minha imagem no espelho, posso jurar que
minha amiga planejou tudo há mais tempo, para que nada saísse
errado e eu me sentisse linda. É exatamente assim que me sinto.
Meus cabelos castanhos ganharam brilho e um corte, estão mais
cheios, caindo como cascatas sobre meus ombros.
A maquiagem bem-marcada confere leveza ao meu
rosto. As sobrancelhas e o cílios estão perfeitos, mas sem
exageros. Olheiras desapareceram e o batom deixou meus lábios
ainda mais cheios.
O body azul, de manga comprida, tem um discreto
decote nas costas. A saia lápis, preta, marca minha cintura,
valorizando minhas curvas nos lugares certos.
— Você está incrível, Sophia. Estou sem palavras —
Anne elogia, posicionando-se bem atrás de mim.
Admiradas, olhamos nosso reflexo no espelho, e a única
coisa que faço é sorrir como há muitos meses não fazia.
— Acho que vou dormir com essa maquiagem — brinco
e ela amplia mais o sorriso.
— Você é linda com ou sem maquiagem, mas agora vejo
uma mulher revigorada. — Anne me vira para que eu fique de
frente para ela. — Nunca a vejo com muita maquiagem, você
está diferente. Toda essa produção realçou sua beleza e fico feliz
em saber que está gostando.
— Eu até gosto de me maquiar um pouco, mas estava
trabalhando tanto que, depois de anos, acho que relaxei com
meu visual. — Comprimo os lábios sopesando o passado
recente. — Talvez eu tenha sido a culpada por...
— Não! Você está louca, Sophia?
Quando vejo perplexidade nos olhos da minha amiga,
percebo a besteira que estava prestes a dizer.
— Eu sou uma idiota por me achar culpada das coisas
que aquele imbecil fez.
— Ainda bem! Não deixe que aquele babaca atrapalhe
sua nova fase. Você vai conseguir o emprego e não vai precisar
implorar por dinheiro a ninguém daquela empresa.
— Sim. Eu vou conseguir — afirmo mais para mim do
que para ela, observando satisfeita minha nova aparência.
Meus saltos batem no piso brilhante de mármore, no
momento em que atravesso o saguão de entrada do edifício da
World Inc., que fica na W59 Street.
Estou vestida com a mesma roupa que experimentei
ontem à noite. Sinto alguns olhares em minha direção e, mesmo
sabendo que estou bem-vestida, me sinto insegura. Essa
insegurança eu devo apenas a uma pessoa: o desgraçado do meu
ex.
Na recepção há uma elegante mulher. Seus cabelos
negros estão amarrados no topo da cabeça e ela tem um
semblante calmo, embora simpático. Está vestida com saia lápis
e blusa de seda, branca, bordada elegantemente com o logotipo
da empresa. O desenho dourado se destaca na peça maleável e
impecável.
— Este é o seu crachá, Srta. Collins. Suba para o
vigésimo andar.
— Obrigada.
Sigo as instruções da mulher e pego o elevador para o
andar indicado. As portas se abrem e eu ando batendo os saltos
sobre o corredor brilhante, onde alguns funcionários estão, de pé
como guardas, enfileirados. As mulheres usam terno e o
logotipo da empresa, sempre bordado na cor dourada, arremata
os trajes com elegância.
Elas estão me revistando, verificando minha bolsa com
uma lanterna, e eu me surpreendo com o exagero na segurança.
Afinal, é somente uma simples entrevista de emprego. A última
mulher, posicionada ao lado da porta, me entrega um cartão.
Estreito as sobrancelhas ao ler o número "129" estampado nele.
A jovem sorri com simpatia e finalmente abre a grande
porta dupla de madeira. Congelo no mesmo instante em que
visualizo uma multidão diante de mim. Presumo que há 128
pessoas em uma enorme sala de conferência. Agora consigo
entender o número que a jovem me deu. É uma senha e eu
deveria ter vindo acampar na calçada na semana passada, para
tentar ocupar o primeiro lugar da lista.
— Não pode ser verdade — sussurro, com os olhos
perplexos sobre a multidão de mulheres faladeiras.
— Senhorita, você precisa se sentar — a voz da
funcionária me chama a atenção e sou trazida de volta à
realidade.
— Desculpe. Eu vou.
Sou alvo de olhares femininos, vindos de todas as partes.
Eu me sento, mas a minha vontade é sair correndo daqui. Se há
tantas pessoas assim, alguém deve preencher todos os requisitos
e, com toda a certeza, essa pessoa não serei eu.
O relógio sofisticado e afixado na parede agora é o meu
inimigo número um. Ele mostra que são exatamente dez da
manhã. Acredito que eu seja a última, visto que não há ninguém
do lado de fora.
Um homem de cabelos brancos-marfim, que deve ter em
torno de 60 anos, surge segurando um microfone. O burburinho
baixo se esvai e o lugar fica em completo silêncio. Nem se
quisesse fugir agora, eu poderia. Respiro profundamente e me
contento em esperar. Não teria nada mais importante a fazer, a
não ser me deitar na minha cama para assistir a séries do Netflix.
É o que eu tenho feito ultimamente.
— Olá, meu nome é Jonathan Russel, sou um dos
braços- direitos da presidência desta empresa. Sou eu quem
cuida de assuntos relacionados à contratação e à demissão de
funcionários. Quero enfatizar que estamos bem surpresos com o
número de pessoas que vieram hoje. Houve um erro por parte de
um dos encarregados pela divulgação do anúncio, que foi parar
na Internet sem permissão da presidência. No entanto decidimos
organizar, já que, durante a semana passada, pessoas vieram em
horários aleatórios, atrapalhando o bom funcionamento de nossa
empresa.
Ele é muito polido e conta detalhadamente a história da
empresa desde sua fundação. Eu não imaginava que ela já estava
no mercado quando eu ainda era uma criança. Agora me dou
conta de que estou dentro de uma empresa precursora, dentre
milhares de outras nesse seguimento, no mundo.
Para facilitar a seleção e não ficarmos horas esperando, o
homem recebe uma lista com os tais números e começa a
dispensar pessoas de acordo com as senhas dadas, aquelas que
não foram aceitas pelo currículo on-line. Jonathan não está só;
está acompanhado de duas assistentes.
— Se vão dispensar sem ter tido ao menos uma conversa
pessoalmente, porque não fizeram por e-mail? — sussurro
perguntando para mim mesma.
— É provável que ele esteja analisando a aparência das
pessoas — a voz de uma mulher ao meu lado chama a minha
atenção.
Eu a observo, percebendo que ela não parece ter a idade
que foi requisitada no currículo.
— Todas enviaram fotos, não? — replico.
— Talvez não. É só prestar atenção na forma como eles
olham para as mulheres antes de dispensá-las.
— Daiana Foster — Jonathan diz e, rapidamente, a
mulher ao meu lado, com quem acabei de conversar, se levanta.
Eles a analisam e, com uma discreta troca de olhares, ele
sorri.
— Você está dispensada, querida. Sinto muito.
Ela bufa e se abaixa para pegar sua bolsa.
— Boa sorte. Acho que vai precisar.
Sorrio, mas sei que minha expressão deve ser a pior
possível.
De repente estou dentro de um jogo, sendo avaliada
física e mentalmente. Isso não pode estar acontecendo.
Em alguns minutos, a imensa sala está quase vazia, com
apenas um décimo do número de pessoas que a ocupavam
quando cheguei. Todas as que restaram são mais jovens,
algumas morenas, outras asiáticas e loiras. Todas com
maquiagens impecáveis, lindas e um provável currículo
invejável. Bom, ao menos melhores que o meu. Sei que Anne
aumentou algumas coisas, mas espero, do fundo do meu
coração, que minha amiga não tenha feito nada de mais.
Aguardo por mais de cinquenta minutos, até que a nona
entrevistada é chamada em uma sala particular. Todas voltam,
mas são conduzidas até a porta de saída. Não sei se são
dispensadas imediatamente ou se apenas as enviam para casa.
Sinto a impaciência começar a tomar conta do meu corpo.
Inclino a cabeça para trás, apoiando-a no encosto da cadeira. Por
mais que seja confortável, sinto minha bunda formigar. Imagino-
me gritando e quebrando todo o lugar, xingando todo tipo de
palavrão, pela falta de respeito com as pessoas, só por causa de
uma vaga de secretária, mas respiro fundo e me contenho.
Examino o teto cheio de lustres, onde pendem milhares
de Swarovski espetaculares, sentindo-me ansiosa e também
idiota por perder meu tempo aqui. Sou finalista de um
"concurso", chego tão perto do cargo, mas sinto que serei
dispensada como uma capa de canudinho.
— Srta. Sophia Collins?
Dou um sobressalto e me ergo; percebo que não há mais
ninguém aqui. Acho que não há mais necessidade de mostrar
meu cartão com a senha, já que eu sou a última. Dizem que os
últimos serão os primeiros e agora tenho certeza de que toda
regra tem exceção.
Com as nádegas dormentes, caminho até a mulher que
me chamou. Sou conduzida até uma sala e, quando entro,
deparo-me com o mesmo homem, aquele que fazia o discurso.
Ele está sentado atrás de uma grande mesa de madeira escura.
— Sente-se, querida. — Sorri, seus olhos explorando
cada parte do meu corpo, analisando-me minuciosamente. Não
de um jeito sexual, já que tenho a leve impressão de que ele não
joga no meu time.
Jonathan Russel aparenta ter em torno de trinta e cinco
anos, com seus cabelos branco-marfim penteados para trás.
Suponho que sejam pintados para dar um ar moderno ao visual.
Eu adoraria dizer a ele que estou ótima de pé, que minha
bunda está quadrada e dormente graças a ele, mas preciso de um
emprego, principalmente um que me garanta uma boa quantia
semanal. Quando faço o que pede, ele analisa o computador,
provavelmente diante da minha ficha.
— Impressionante. — Volta o olhar para mim.
As pequenas rugas ao redor de seus olhos tornam-se
evidentes só quando ele sorri. Eu diria que é um homem
charmoso e bonito. Tenho certeza de que já quebrou muitos
corações por aí.
— Aqui diz que você fala sete idiomas, já morou na
França e trabalhou na área de marketing como uma grande líder.
Pelo que li, você era multitarefas em uma das maiores empresas
de cosméticos do país. Formou-se em impressionantes três
faculdades, e Letras figura entre os cursos. — À medida que ele
lê sobre minhas "qualidades" em meu impressionante currículo,
meus olhos arregalam e eu paro de respirar.
Nunca morei na França, a não ser que uma viagem de
uma semana com meu ex possa contar. Acho que nunca
conseguiria falar sete idiomas. Formei-me em apenas uma
faculdade e fico abismada só em pensar que alguém seria
maluco o bastante para fazer três ou mais. Sei que existem
muitos malucos espertos por aí, mas, definitivamente, não sou
um deles.
— Como já sei tudo sobre sua formação e experiências,
adoraria fazer algumas perguntas pessoais.
— Tudo bem! — Devolvo um sorriso com o nervosismo
maldisfarçado.
— Fuma?
— Não.
— Costuma consumir bebidas alcoólicas? — sua
pergunta me faz lembrar dos últimos meses, em que me tornei
uma alcoólatra por ter sido abandonada. Meu loft fedia a álcool.
— Raramente — respondo e ele parece satisfeito com
minha mentira.
— Pratica algum esporte? Quero dizer, fez ou faz algum
tipo de exercício para manter a forma física e mental? Ioga, por
exemplo?
— Sempre. Adoro ioga. — Ele amplia ainda mais o
sorriso.
— Então eu posso dizer que é uma mulher calma,
paciente e controlada, certo? Caso seja contratada, terá de
enfrentar um chefe um pouco, eu diria, exigente. — As
perguntas, assim como seu comentário sobre meu, talvez, futuro
chefe me fazem estreitar os olhos, mas eu concordo, claro. Tudo
para conseguir o emprego.
— Meditação é o meu segredo.
— Eu percebi que você, mesmo sendo a última de nossa
vasta lista, parecia calma e relaxada.
Ergo as sobrancelhas com um belo sorriso no rosto.
— Eu estava meditando.
— Muito bem! Vamos entrar em contato. — Estende a
mão e eu a pego com um sorriso aparentemente calmo, embora
por dentro lute com o impulso de quebrar o laptop na cara
sorridente dele.
— Certo. — Lentamente eu me levanto. — Então, eu
vou esperar sua... ligação?
— Sim, querida. Pode ir. Acabou.
Concordo com a cabeça, imaginando que perdi muito
tempo e que, certamente, poderia tê-lo aproveitado, na minha
cama, assistindo ao Lúcifer.
Não sei se mato a minha amiga ou se lhe agradeço.
4

Não sei por que estou me sentindo tão mal.


Eu deveria estar dando pulos de alegria por ter,
praticamente, garantido a vaga de secretária mais disputada do
universo. Por um lado, estou torcendo para que eles não me
liguem nunca, mas, por outro, penso em um possível sentimento
de derrota e frustração. Não sei o que sentir.
Ouço o barulho da minha porta se abrindo e então vejo
minha amiga surgindo com um sorriso no rosto e segurando uma
sacola parda, do Whole Foods.
Estou no sofá, vestida com meu pijama favorito e
assistindo a séries há mais de duas horas. Eu a observo entrar e
então ela para, analisando-me.
— Vestida assim, você está parecida com a minha avó
— Anne diz e sorri. — O que foi? Aposto que conseguiu a vaga,
mas está com medo de perder suas séries favoritas, acertei?
— Muito engraçado! Estou de pijama!
— Trouxe sanduíches vegetarianos. Que tal abrir o bico
e me contar logo como foi a entrevista?
— Não sei. Estive lá ontem de manhã e ficaram de me
ligar. Ah! Acho que me esqueci de mencionar o fato de que
havia mais de cento e vinte pessoas na minha frente.
Anne arregala os olhos, visivelmente perplexa.
— Nossa! E como você sobreviveu a tudo isso? Quero
dizer, como sabe que eles podem ligar?
— Talvez pelo meu maravilhoso currículo?
Anne sorri. Sei que está orgulhosa de si mesma.
— Você deve estar louca — afirmo observando sua cara
de pau.
— Acha que peguei muito pesado? — Ela pega um
prendedor de cabelos e joga os cachos para o alto; tenho a
impressão de que não está preocupada com o que fez.
— "Pegar pesado"? Não, imagine! — Utilizo meu
melhor tom sarcástico. — Descobri que falo sete idiomas, já
morei na França e me formei em três faculdades, além dos
vários cursos, é claro! — Anne faz uma careta de desculpas. —
Eles vão investigar isso, Anne.
— É, talvez eu tenha exagerado um pouquinho.
— Um pouquinho? — Ergo-me do sofá. — UM
POUQUINHO?
— Acalme-se. Você vai se sair bem, tenho certeza. Não
precisamos de drama agora.
— Quer saber? — digo com um tom de voz baixo. —
Vou rezar para que não entrem em contato. Não quero que eles
me liguem e, se ligarem, não vou atender.
— Você não faria isso, Sophia! — Ela parece indignada.
— Eu não posso permitir.
— Então veremos! — Cruzo os braços na defensiva.
— Quer saber? — Anne deposita a sacola sobre o balcão
da cozinha. — Eu vou comer os dois sanduíches e não vou
oferecer nenhum a você. Tem salada com tofu e os melhores
molhos.
— Você não faria isso! Eu estou faminta.
— Não gosto de amigas mal-agradecidas.
Alcanço o celular que está sobre o balcão.
— Sabe o que eu vou fazer agora? Bloquear o número
daquela empresa!
Com uma expressão perplexa, Anne tenta arrancar o
telefone da minha mão, mas eu me afasto, impedindo-a.
Inesperadamente o telefone toca e eu olho para o visor,
não acreditando no que estou vendo.
— Merda, são eles! — informo apavorada, mas, antes
que eu consiga organizar os pensamentos, minha amiga toma o
aparelho da minha mão e atende. Ela me olha com um sorriso
vitorioso.
— Sophia Collins? Sim, sou eu. — Ela se passa por mim
descaradamente, enquanto tenta se desviar das minhas tentativas
fracassadas de resgatar o telefone.
— Sério? Na segunda? Claro! Estarei lá... Sem falta!
Obrigada pela oportunidade, não irei decepcionar vocês. —
Anne encerra a ligação e estende a mão para devolver meu
celular.
— O emprego é seu, anjo.
Congelo, completamente apavorada com o que ela diz.
— Não sei o que fazer, Anne! Eu não posso...
— Não se esqueça de que você também não tinha
experiência quando começou a trabalhar na empresa do idiota.
De repente, você era uma excelente funcionária, que se
transformou em uma multitarefa. Você nunca valorizou seu
talento em inovar, mudar e ajudar outras pessoas.
— Eu só tentava me empenhar, já que era namorada do
dono. Não queria que todos achassem...
— Sophia, você ajudou a criar muitas campanhas e isso
não é para qualquer um. Claro que consegue! Caso dê errado,
procure outro emprego. Você é uma batalhadora, guerreira. Vai
conseguir!
— Não sei como faz isso, mas... inferno! Você me
convenceu.
— Eu não a convenci. Apenas mostrei a realidade que
você não consegue enxergar.
Sorrimos e ela retira os sanduíches da sacola.
— Vamos comer...

Anne passou a noite no meu loft para me garantir uma


maquiagem perfeita, sem exageros. Decidi manter uma
aparência séria, fazendo um coque alto e apertado, sem um fio
fora do lugar.
Depois que cheguei à empresa, fui conduzida para outro
andar, onde me deram um uniforme praticamente igual ao de
todas as recepcionistas.
Uso uma saia lápis preta, com uma blusa de seda
maleável e de mangas compridas, os botões fechados até o
pescoço. Agora também tenho um logotipo da empresa, bordado
discretamente, na roupa. Do lado direito há um crachá preto,
com meu nome em alto relevo, branco e destacado.
Encaro meu reflexo no espelho e puxo várias respirações
profundas. Estou prestes a conhecer o meu chefe, que, muito
provavelmente, é um tirano. Suas exigências beiram a loucura,
mas com esse salário eu até poderia pensar em dançar cancã em
seu escritório, se ele mandasse.
Deveria ter pesquisado sobre ele antes de vir, mas só
pensava em nunca pegar o emprego, depois de saber que Anne
inventou tantas mentiras sobre mim. Puxo pela última vez o ar,
soprando-o com força, satisfeita com o que vejo no espelho.
Agora sou uma mulher séria, decidida, forte, determinada e...
uma grande mentirosa.
Merda! Não posso fazer isso.
— Ah, você está ótima! — Jonathan, o mesmo que me
entrevistou, está aqui comigo.
Estamos em uma sala reservada para os funcionários.
Um lugar grande como uma cafeteria, onde podemos comer. Há
também armários, sofás de descanso e banheiros, além de uma
cozinha para deixarmos o que quisermos.
— Estava vestindo o uniforme padrão da empresa.
Ele me analisa satisfeito.
— Você está perfeita para o trabalho. Eu diria que está à
altura dele. — Faz um ruído com a garganta e se aproxima de
mim. — Sophia, antes de começar a mostrar tudo que vai
precisar fazer diariamente, quero que esteja ciente de quem é seu
novo chefe. — Jonathan faz um gesto com a mão para que eu
me sente no sofá confortável.
— O Senhor Franklin Wallner é um homem correto e
tem um coração enorme. No entanto ele se afastou por
problemas sérios de saúde, e, há pouco mais de um ano, seu
filho assumiu o posto na empresa. Daniel Wallner é bem
diferente do pai e muito mais exigente. Ele não aceita alguém
menos que perfeito. Já vem trabalhando na empresa desde muito
novo, como funcionário, e sempre atuou ao lado do pai, mas,
somente há pouco tempo, ocupou o cargo de presidente. Você
estará lidando com um homem cheio de manias e
temperamental.
— Está querendo me dizer, em poucas palavras, que eu
preciso ser perfeita ou estarei na rua, certo?
Ele sorri.
— Exatamente. Já se foram três mulheres em um ano.
Espero que você possa permanecer por mais tempo.
Estreito as sobrancelhas enquanto o vejo se levantar.
— Venha, vou lhe mostrar tudo que deve fazer.

Passei as duas horas seguintes aprendendo a fazer o café


perfeito, a água com limão impecável e a organizar os livros na
estante que cobre toda a parede do escritório. Um escritório
gigante, mas com poucos móveis. Qualquer pessoa que esteja
dentro dele deve fazer um esforço para não se perder na vista
extraordinária de Manhattan, do lado de fora da imensa parede
de vidro.
Preciso ficar atenta ao telefone e atualizar a agenda de
meu chefe todos os dias. Tenho computador, tablets e um celular
com aplicativos para tudo que devo fazer no decorrer do dia,
semana e mês. Até os ternos em seu closet devem ser passados
sempre que ele precisar se trocar.
Será que terei que lavar as cuecas dele também?
Bom, o fato é que agora estou em minha mesa,
observando a infinita lista negra de pessoas e empresas que não
estão autorizadas a falar diretamente com o todo-poderoso.
Óbvio que também há a lista de pessoas ante as quais devo
chamá-lo mais rápido que um peido ou, certamente, estarei
demitida. Tudo explicado para não dar vazão a erros.
Inspiro o ar profundamente e encaro Jonathan, que
parece igualmente nervoso com a minha contratação.
— Acho que passei todas as informações necessárias e
espero que não me decepcione. Qualquer dúvida me ligue. Sua
falha é a minha falha — dito isso, ele se afasta com os olhos
presos no relógio.
— Senhor Wallner estará aqui em cinco minutos. Boa
sorte, querida.
Engulo em seco, observando-o andar pelo brilhante piso,
até alcançar o elevador. Estou no topo do imponente edifício que
abriga a DWorld Inc. Apenas a sua grande sala e outros espaços,
para reuniões privadas, ocupam todo o andar.
O silêncio sepulcral deixa-me extremamente nervosa. A
impressão é de que vou ser desmascarada a qualquer momento.
Medo. Eu sinto medo, talvez pavor. Há anos não me sentia tão
nervosa como agora.
Um ruído parecido com o trinar suave de um sino ressoa
no elevador, anunciando a chegada de alguém, que presumo ser
meu novo chefe. Endireito-me na cadeira estofada e, a alguns
metros de distância, vejo a porta do elevador se abrir lentamente.
Uma tortura para a minha querida ansiedade. Meus olhos mal
piscam, na expectativa de ver a pessoa que pode ser minha
salvação, ou o meu pior pesadelo.
Da minha mesa, observo um homem que aparenta ser
jovem demais para ser dono de um império como este. Talvez
não seja ele, mas, pela sua postura, imponente e séria, posso
apostar que sim.
O homem caminha elegantemente, atravessando o
imenso saguão ladeado por estátuas contorcidas e vasos
modernos, com flores de vários tipos. Com um celular de última
geração pressionado ao ouvido, ele nunca olha na minha
direção. Parece concentrado na ligação.
— Faça o que for preciso — diz com uma voz grave,
ameaçadora, e encerra a ligação.
Guarda o aparelho dentro do bolso interno do paletó do
terno, diga-se de passagem, muito bem-cortado, aparentemente
feito apenas para seu corpo alto e largo. Posso dizer que não há
nada fora do lugar e que ele é um homem lindo, para dizer o
mínimo.
Não. Eu não me surpreendi com sua aparência, porque,
definitivamente, “surpresa” seria pouco para definir a impressão
que causa este homem. Não sei o que minha expressão aparenta
enquanto o observo, mas seria impossível disfarçar a admiração
diante de tamanha beleza. O cabelo bem-cortado e uma barba
bem-aparada conferem-lhe um visual rústico, sedutor e muito
intimidador.
Ergo-me e sorrio de maneira simpática. Ele ainda não se
virou para me olhar. Ajeito minha roupa e, no instante em que
ele passa por mim, estendo uma mão.
— Senhor Wallner. É um imenso pra-zer...— Meu
sorriso se esvai rapidamente, enquanto o homem ignora meu
cumprimento e continua andando sem se importar.
— Meu café na minha mesa, em três minutos. — Ele
nem se deu ao trabalho de parar e já desapareceu dentro de sua
sala.
Quando Jonathan me disse que ele era exigente e
temperamental, ocultou a parte principal: ele é um grande filho
da puta.
Volto lentamente a repousar a mão na lateral do corpo e
os palavrões que quero gritar ficam presos precariamente em
minha garganta.
5

O imbecil não se preocupou em estar na sala quando


deixei o café sobre sua mesa. Fiquei aliviada de não o encontrar
depois de bater suavemente a sua porta, antes de entrar.
Internamente estou berrando todos os palavrões possíveis
e imagináveis. Já amaldiçoei até a sua última geração. Tomara
que minhas feições não estejam entregando todo o meu
desagrado em relação ao comportamento idiota do meu chefe.
Juro que estou dando o máximo para não fazer o oposto daquilo
que meu extraordinário currículo diz.
Não posso me esquecer das perguntas de Jonathan em
relação ao meu estado de espírito. Ele não disse explicitamente,
mas nas entrelinhas, quando perguntou sobre meditação e calma,
claro que estava dando dicas de que eu teria um encontro com o
próprio Lúcifer. Um Lúcifer de uma beleza única, diga-se de
passagem.
Tento me concentrar em meu trabalho, mas ainda me
sinto confusa sobre como começar. As ligações são constantes,
mas uma boa parte dessas pessoas está na lista negra e eu não
devo permitir que fale com meu chefe. Se o fizer, serei demitida
por justa causa e, por mais que eu não esteja no trabalho que
gostaria, fecho os olhos e penso no salário que salvará meus
próximos meses.
Depois de deixar toda sua agenda organizada para
amanhã, ouço mais uma vez o barulho do telefone. Atendo
imediatamente.
— Presidência, Sophia Collins falando.
— Passe para o meu marido — ouço a voz de uma
mulher mal-humorada do outro lado da linha.
Jonathan me disse que algumas mulheres poderiam ligar.
Essa deve ser a ex, pelo tom de voz.
— Com quem estou falando, por favor? — tento ser o
mais simpática possível, mesmo que internamente esteja
mandando a mulher se foder.
Ouço-a suspirar de maneira forte e percebo que está além
de aborrecida.
— Você não entendeu? Eu sou Mellissa Wallner, mulher
de Daniel Wallner. Preciso que passe a ligação agora.
— Um minuto, por favor, senhora — finjo falar com o
meu chefe para ganhar tempo e, por via das dúvidas, decido
olhar na lista negra, já que, se ela realmente fosse alguém com
que ele se importasse, estaria ligando para o seu celular ou para
algum telefone particular em sua sala.
Imediatamente, encontro seu nome, mas sem o
"Wallner". No lugar do sobrenome, está escrito a palavra "ex".
Eu sabia, mas queria ter certeza de não estar cometendo um erro
que pudesse resultar em minha demissão.
— Sinto muito, senhora, mas o Senhor Wallner está
ocupado agora e não poderá atender — utilizo um tom de voz
formal, mas calmo e baixo.
— Sua inútil! Estará demitida em dois minutos se não
passar a ligação agora! — ela berra, claramente fora de controle,
e eu preciso afastar o aparelho do ouvido.
— Tudo bem, senhora, faça como quiser. — Encerro a
ligação não me importando com suas ameaças.
Ela está na lista negra. Jonathan deixou uma advertência
sobre ela e várias outras, então apenas decido cumprir as ordens.
Por esse salário, pretendo ser fiel a cada uma delas, mesmo que,
às vezes, tenha vontade de bater a cabeça na parede mais
próxima.
No final do expediente, tive Jonathan para me ajudar
com algumas coisas que ficaram pendentes. Ele me orientou
muito bem sobre tudo que deixei de fazer hoje e que,
certamente, farei amanhã.
Agora possuo duas agendas para o meu chefe, uma
profissional e outra pessoal. A maioria dos compromissos
pessoais envolve mulheres e festas luxuosas. Percebo que ele
terá encontros com três mulheres só esta semana. Curiosamente,
duas no mesmo dia e hora. Almoços de família ficam para os
domingos, mas nem todos.
— Você está indo bem. Mellissa sempre liga na empresa
quando não consegue falar com o Senhor Wallner. Ele a odeia,
então tenha em mente que jamais poderá passar suas ligações.
Faça isso, ou, certamente, estará na rua — Jonathan me alerta
sobre a mulher maluca que ligou.
— Okay, farei com prazer.
— Amanhã, antes de vir, você deve passar na lavanderia.
Há quatro ternos lavados e passados do Senhor Wallner. Traga-
os para a empresa e os guarde no closet, da forma como foi
instruída.
— Entendido.
Ele sorri com simpatia.
— O endereço de todos os lugares em que precisa ir está
na agenda de seu novo celular, portanto não o perca. É ele quem
irá guiá-la.
— Não vou perder.
— Certo. — Jonathan se ergue. — Acho que está tudo
organizado. Continue assim e vai longe, querida! — elogia-me e
eu sorrio enquanto o observo se afastar.
Penso que, se eu continuar assim, na verdade acho que
vou enlouquecer.
Hoje corri para chegar a tempo no trabalho, com os
quatro ternos impecáveis, dentro de um táxi. Cheguei ao
escritório em tempo recorde e organizei tudo, retirando as capas
de proteção e colocando-os dentro do closet, como fui instruída.
Retornei para o meu posto o mais rápido possível, para não ter o
"prazer" de cruzar com meu chefe dentro de sua sala, mas, para
o meu alívio, ele não apareceu na parte da manhã.
Fui incumbida de organizar pastas importantes no
computador e imprimir os documentos marcados como os mais
importantes, separando-os em pastas físicas. Essa foi uma ordem
enviada por Jonathan, mas que me tomou uma boa parte do
tempo. Ele aparece para buscar o material pronto sobre minha
mesa e me observa com uma expressão agradável.
— Você fez um ótimo trabalho, Sophia. Estou gostando
de ver.
Sorrio, agradecida pelo reconhecimento.
— A reunião das três horas está confirmada — informa
como se esse compromisso fosse meu.
Abro meu e-mail e confirmo o que diz.
— Sim. Nada foi mudado.
Jonathan ergue as sobrancelhas.
— É um grupo empresarial importante da França. Então
precisamos que você anote os pontos mais importantes e faça
um relatório para ser entregue amanhã de manhã. É muito
importante que resuma tudo que for falado.
Encaro-o com uma expressão confusa e, certamente, com
receio do que ele vai dizer em seguida.
— Claro! A reunião será em... francês?
— Francês — repete minha última palavra e eu engulo
em seco. — Não se preocupe. O Senhor Wallner fala muito bem
francês. Você só tem que anotar tudo que ele pedir.
Minhas mãos começam a gelar e tremer levemente, com
o medo descomunal do que vai acontecer. Graças ao meu
invejável currículo, terei de anotar uma conversa que pode durar
horas, e tudo em francês.
— Você está bem? Parece pálida.
Tento disfarçar o pavor que provavelmente estampa meu
rosto.
— Não. Tô ótima! Eu só... só precisarei me preparar
porque há meses, talvez um ano, não falo francês e...
— Não se preocupe. Falar outro idioma é o mesmo que
andar de bicicleta, quando se aprende, não se esquece jamais.
Além do mais, você não vai falar uma palavra. O Senhor
Wallner nunca permitiria isso. Só quer alguém por perto para
que não esqueça ou perca nada importante.
Concordo lentamente com a cabeça, tentando pensar em
como sairei dessa furada. Eu posso ser demitida por ter mentido
e isso me apavora, deixando-me em pânico.

As horas passam e a única coisa que me vem à mente é


essa reunião que parece um pesadelo. Fiz meu trabalho
praticamente no automático. Há trinta minutos, meu chefe
entrou e exigiu seu café, que lhe foi entregue em seguida.
Quando coloquei a xícara sobre sua mesa, percebi que deve
haver algo muito errado comigo para que ele evite, a todo custo,
olhar em minha direção. No entanto isso não é o que mais me
perturba neste momento.
A única coisa que me deixa apavorada agora é o
conhecimento do papelão que farei ao passar por uma pessoa
patética e burra, quando todos perceberem que não falo quase
nada de francês. Será uma das minhas maiores vergonhas da
vida. Tudo isso só para garantir este emprego. Estou assustada e
perplexa comigo mesma, por ainda não ter fugido correndo
daqui.
Seguro a cabeça como se ela estivesse prestes a cair e
encaro a porta do meu chefe. Ele vai sair dali em alguns minutos
e eu preciso dar um jeito nisso; pensar em algo que me dê ao
menos uma chance de conseguir ter toda essa conversa no papel.
De repente olho para o meu celular e algo me vem à mente.
— Claro. Vou gravar toda a reunião e depois dar um
jeito de traduzir tudo — sussurro olhando para o aparelho, com
um sorriso nervoso e certa de que, talvez, isso não vá ajudar
muito. É melhor lutar que desistir e, na verdade, não tenho
escolha.
Fui instruída por Jonathan a ir para a luxuosa sala de
reuniões que fica no mesmo andar em que estamos. Enquanto
ele cuidava da tela acoplada à parede, inserindo no projetor
todos os tópicos que serão apresentados pela empresa, organizei
os copos cristalinos e os enchi de água. Adicionei papéis e
canetas em cada lugar da mesa e, depois de tudo pronto, eu me
sentei junto a ela, em uma das extremidades.
Acho que estou com dor de barriga pela tensão que sinto.
Discretamente, procuro o gravador no celular e deixo tudo
preparado para as gravações.
— Tudo pronto, querida — Jonathan diz com um olhar
analítico sobre mim. Ele sorri, mas parece pensativo enquanto
me encara. — Não fique nervosa, meu anjo.
— Está tão na cara assim?
Ele concorda acenando com a cabeça, um sorriso torto e
complacente.
— Não deveria estar fazendo isso, mas quero lhe dar
uma dica. Não grave tudo, Sophia. Grave apenas as partes
importantes, que darei um jeito de traduzir pra você.
Pisco, como se não tivesse entendido o que ele acaba de
me dizer.
— Eu não pretendo...
— Não se justifique. Finja que está anotando e tudo dará
certo. Preste atenção em tudo ao seu redor e finja estar
completamente presa ao que estiver escrevendo, seja lá o que
for. Vou ajudar, não se preocupe.
Imediatamente um alívio começa a tomar conta do meu
corpo. Jonathan sabia o tempo todo que eu não seria capaz de
fazer nada disso e eu me questiono se ele já imaginava minhas
mentiras quando me contratou.
— Obrigada — agradeço sinceramente.
— Preciso ir, eles estão chegando. Faça a sua parte e
tudo ficará bem. Faça tudo discretamente.
Concordo acenando com a cabeça e Jonathan sai.
Fico de pé, com as mãos para trás, quando todos entram
e ocupam seus lugares. Estou nos fundos e não foi difícil ser
ignorada por todos os presentes. Os minutos se passam e eu faço
certo esforço para não me perder na visão mais tentadora que é
assistir ao meu chefe falando fluentemente francês. O homem
toma conta da situação. Seu ar poderoso, intrigante, sério e
arrogante faz com que a gente o odeie desejando-o ao mesmo
tempo.
Fico atenta a tudo e, sempre que ele precisa que eu
"anote" algo, apenas aponta para o meu papel. Pressiono o botão
“gravar” discretamente, embaixo da mesa, e depois finjo
escrever sobre o que está sendo dito; nada que eu, de fato,
entenda. Na realidade, passo todo o tempo fazendo minha lista
de compras. Peço a Deus que ele não queira dar uma olhada nas
minhas anotações, ou estarei completamente ferrada.
Segui a dica de Jonathan e só gravei as partes
importantes.
Quando a reunião termina, todos parecem mais relaxados
e conversam de forma menos formal, enquanto os observo.
Internamente não sei se fico ou se desapareço, mas decido não
me mover e prefiro esperar as próximas ordens.
— Você não entendeu? — meu chefe chama a minha
atenção.
Imagino que ele tenha falado comigo em francês, mas eu
não tinha percebido, o imbecil não me olhou enquanto estava
falando.
— Desculpe! O quê?
— Preste atenção. Eles querem café. Vá buscar! — O
homem que nunca me dirige o olhar me fuzila rapidamente com
as feições duras, e eu me levanto tão rápido e desajeitada, que
faço a cadeira cair atrás de mim. Um estrondo ecoa e eu quase
entro em choque quando percebo o que fiz. Arregalo os olhos
quando noto que tenho total atenção de todos os homens da
mesa, inclusive do meu chefe.
6

Um silêncio sepulcral se instala quando minha nova


secretária derruba a cadeira onde estava sentada. O piso de
mármore colaborou para que o barulho chamasse a atenção de
todos nós. Ela se levantou tão bruscamente que esqueceu que
havia uma cadeira debaixo de sua bunda. Talvez seja a primeira
com a qual eu realmente perca meu precioso tempo; tempo que
gasto olhando-a mais atentamente do que deveria. Dessa vez, a
desastrada não tem apenas a minha atenção, mas a de todos na
sala.
— Peço perdão, senhores. Pardon... — ela se atrapalha
ao pedir desculpas em francês, mas se vira na tentativa de
alcançar a cadeira pesada e caída ao chão.
A secretária se abaixa dando-nos uma visão inesperada
de sua bunda; eu diria que é uma boa visão, mas vem no
momento errado. Sua cintura fina e seu rabo de cavalo
certamente não evocam apenas em mim, mas em todos os
empresários, pensamentos sexuais envolvendo-a nua e de quarto
sobre a mesa. Claro que já fiz isso com várias mulheres, não sou
de ferro, mas ela é uma funcionária e, geralmente, funcionárias
trazem muitos problemas. Todas se insinuam para mim o tempo
todo, embora dessa vez seja diferente. Ela aparenta um real
nervosismo, mas não descarto a possibilidade de que haja
maldade em suas atitudes. Não confio muito em mulheres e, por
essa razão, esse pequeno incidente torna-se, eu diria, diferente.
Um dos homens se levanta. Estreito os olhos quando
noto que ele vai até a minha secretária e a ajuda a erguer a
cadeira. A gentileza dele quase me comove. Se seus olhos não
estivessem sobre os seios bem-marcados na blusa branca, isso
seria verdade. Não posso negar que nela o uniforme padrão da
empresa cai muito bem, parece abraçar cada curva em todos os
lugares certos.
— Merci — ela agradece ao homem, que sorri, dizendo a
ela, em um francês sussurrado, que se cuide.
Eu conheço esse olhar. Ele quer foder a minha secretária,
assim como todos nesta mesa. De repente a mulher invisível
torna-se o centro das atenções e todos parecem esquecer a
importante reunião que tivemos.
— Merci beaucoup — ela agradece novamente e tenho a
impressão de que essas sejam as únicas palavras que sabe falar
em francês. Se não fosse pelo seu currículo, acreditaria piamente
que não fala.
A secretária nos observa envergonhada e se afasta,
desaparecendo pela porta.
— Excusez-moi, messieurs — peço desculpas por ela,
mas um dos empresários sorri.
— Não peça desculpas. Sua secretária foi uma boa
distração. Você tem muito bom gosto. Ela é linda e parece tão
pura quanto um anjo.
Encaro o homem de cabelos grisalhos, ainda mais
surpreso por ele decidir falar, em minha língua, palavras que não
condizem com um homem de negócios. Franceses não gostam
de falar inglês, mas este fez questão de expressar suas palavras
em meu idioma, apenas para me deixar ciente de que adoraria
que eu a dividisse com eles. Como se ela fosse minha
propriedade.
Minutos depois a secretária retorna com Jonathan,
trazendo xícaras de café para todos os presentes. Percebo que
ainda está nervosa. Meu assistente termina de nos servir e ela sai
da sala de reuniões, ainda atraindo olhares. Tomamos o café,
conversamos sobre o contrato que será enviado em breve e
finalmente Jonathan os acompanha para fora.
Analiso alguns papéis, organizando e guardando-os em
minha maleta.
— Senhor Wallner. — O assistente entra na sala de
reuniões agora vazia. — Perdoe a secretária. Ela está muito
envergonhada. Espero que não tenha atrapalhado a reunião.
Fecho a minha maleta, levanto-me e finalmente dou
atenção a ele.
— A reunião já havia terminado quando ela fez seu
pequeno espetáculo.
— Releve, senhor. Ela está nervosa.
— Que ela guarde o nervosismo em casa. Se isso tivesse
ocorrido no meio da reunião, vocês dois estariam na rua a esta
altura. — Passo por ele sem olhá-lo e caminho para fora da sala
de reuniões.
Meus sapatos caros batem sobre o mármore brilhante,
em direção a minha sala. Quando estou passando pela mesa da
minha nova secretária, noto que ela está de cabeça baixa,
certamente fingindo se concentrar em algo que está anotando em
seu caderno.
Confesso que evitei olhá-la todas as vezes que ela esteve
em minha presença, mas não deixei de admirar sua beleza desde
o momento em que se sentou junto a essa mesa. As câmeras de
segurança me dão esse privilégio, de estar de olho em qualquer
pessoa a hora que eu quiser. No entanto devo confessar que a
imagem dela pelas câmeras não faz jus a sua verdadeira
aparência, conforme pude analisar pessoalmente.
Ela não é nada além de um pedaço de carne, bem
suculento por sinal, do qual eu devo ficar bem longe. Transar
com funcionárias nunca é uma boa ideia. Tive péssimas
experiências, já que todas sempre misturam as coisas. Tento
evitar porque, se tenho privilégio de ter na minha cama as
mulheres mais lindas e gostosas do mundo, porque eu sairia com
a porra de uma secretária? Ela é apenas mais uma gostosa, e eu,
um homem que pode ter as modelos mais lindas, safadas atrizes
de Hollywood, e uma infinidade de mulheres que, geralmente,
são as mais desejadas do mundo.
Decido ignorá-la como sempre faço e entro na minha
sala, batendo a porta com um pouco mais de força que o
habitual.

Decidi ficar preso em meu escritório até finalizar alguns


trabalhos. Fiz uma conferência com um grupo chinês. Pedi à
secretária que não transferisse nenhuma ligação até uma hora
antes de finalizar o expediente. Quando estou prestes a me
levantar, ouço o telefone da minha mesa tocar e vejo que é o
ramal de minha secretária. Atendo:
— Sim.
— Senhor Wallner. Finalizei e adiantei alguns trabalhos,
então quero saber se eu poderia sair agora. Sei que faltam mais
de trinta minutos para o encerramento do expediente, mas... é
que eu tenho um compromisso sério e inadiável.
— A resposta é não. Mais alguma pergunta, Senhorita
Collins?
— Mas, senhor, eu...
— Deixe seus encontros amorosos para depois do
trabalho. — Irritado, bato o telefone e me levanto.
Olho para o relógio e percebo que estou em cima da hora
para um jantar que marquei com o meu pai. Alcanço o celular
sobre a mesa e pressiono o seu número. Ele atende no primeiro
toque.
— Espero que não esteja ligando para dizer que não vem
mais. Essas mulheres ainda vão matar você, filho.
— Sem mulheres por hoje, pai. Só me enrolei no
escritório. Já estou a caminho.
— Jonathan me disse que encontraram a secretária
perfeita.
— Não vejo nada de extraordinário nela.
— Parece que tem um belo currículo.
— Se está pensando que vou foder mais uma
funcionária, não se preocupe, pai. Não tenho intenção alguma de
fazer isso.
— Acho bom. Agora venha, que o jantar já está saindo.
Teremos uma visita especial.
— Visita? — questiono curiosamente.
— Até breve, filho.
Guardo alguns documentos na maleta, alcanço o paletó
do terno sobre o encosto da cadeira e saio da minha sala.
Quando fecho a porta e me viro, paro ao me deparar com uma
mulher saindo do elevador. Estreito os olhos quando reconheço
a figura magra, de cabelos negros e elegante. Melissa é uma
mulher muito bonita, mas é a última pessoa que eu desejaria ver
hoje. Seus saltos fazem barulho no piso e meus olhos a encaram
com insatisfação.
— Se você não me atende, eu venho — ela diz, sua voz
estridente.
— Como diabos você veio parar neste andar? —
pergunto com um tom de voz elevado.
Ela sorri e, rapidamente, noto seu olhar frio sobre minha
secretária, que nos observa calada.
— Já está fodendo a nova secretária? Sabe que eu
preciso de mais dinheiro. Não mande seu advogado resolver
nossos assuntos!
— Não tenho mais nenhum assunto para resolver com
você. Isso é invasão e eu exijo que saia daqui. Agora! — Meu
olhar ameaçador e minha voz controlada a deixam calada. —
Não sei como entrou, mas vai sair agora. Amanhã mesmo
conversarei com meu advogado. Você não tem o direito de
exigir mais nada!
— Está errado, preciso fazer uma cirurgia. Além do
mais, eu fui traída pelo meu marido! Tomo antidepressivos por
sua causa.
— Você sempre tomou qualquer tipo de remédios. Não
minta agora. — Olho para minha secretária, que parece sem
reação ante o espetáculo a que assiste.
— Não queria sair mais cedo? — Ela concorda com a
cabeça. — Então vá. — Desvio o olhar para minha odiosa ex. —
E você, suma daqui. — Sigo em direção aos elevadores,
ignorando a gritaria histérica. Ela tenta me seguir, mas eu a
impeço. — Vá em outro elevador, Melissa. Preso em um
cubículo com você, eu não saberia como me livrar das minhas
mãos em volta de seu pescoço. — Entro e as portas se fecham
lentamente.
Observo dois rostos me olhando com perplexidade, mas
estou pouco me ferrando.

Quando meu pai me convida para jantares, eu já sei que


tem alguma intenção em relação a minha vida. Ele gosta de dar
conselhos, mostrar como a vida seria melhor ao lado de alguém
especial e bla-bla-blá. O que sobra de romantismo em meu pai,
falta em mim. Não que ele tenha sido romântico a vida inteira.
Ficou assim quando me tornei adulto, talvez por causa da
doença grave que teve.
Ele já enfrentou o câncer e o venceu, mas, depois disso,
nunca mais foi o mesmo. Ainda que minha mãe tenha morrido
pouco tempo depois de sua recuperação, ele continua a acreditar
fielmente que devemos ter um amor para a vida toda. Perdeu o
seu amor, a pessoa que sempre esteve ao seu lado. Eu perdi a
minha mãe por causa de um infarto inesperado. Não era para
meu pai ser tão positivo sobre o amor, mas ele é. Talvez isso
seja melhor do que lamentar para sempre.
— Talvez você devesse impedir que Melissa chegue
perto de você. Fale com o nosso advogado. Tenho certeza de
que isso pode ser resolvido o mais rápido possível.
— Tomo meu vinho observando meu pai por cima da
taça. Ele é um senhor grisalho e bem mais simpático que eu. Sou
a versão mais jovem dele e consigo me ver no futuro.
— É uma boa ideia. Ela já está passando de todos os
limites.
Sentamo-nos em seu confortável sofá. Meu pai mora em
um luxuoso triplex, em frente ao Central Park. Eu deveria morar
com ele, mas não, gosto da minha privacidade, já que costumo
levar mulheres para casa. Ele não se desfaz do imóvel, ainda que
seja tão grande para um homem sozinho, e as lembranças de
minha mãe estão mais vivas do que nunca.
— A visita está um pouco atrasada. Parece que teve um
contratempo.
— Pai, você convidou uma mulher para nos fazer
companhia?
— Sim. Uma das melhores pessoas que já conheci, filho.
Tenho certeza de que você vai se encantar por ela.
— Pai, desista desse plano ridículo de tentar me casar.
Isso não vai acontecer.
Ele sorri.
— Acho que você não entendeu. Essa mulher não vai se
apaixonar por você. Até onde eu sei, tem um noivo. Só quero
que a conheça.
Solto o ar pesadamente.
— Tudo bem. Vamos conhecer a mulher de que você
tanto gosta.
— Ela é quase uma filha para mim. É a primeira vez que
vem a minha casa.
Estreito as sobrancelhas, completamente perdido.
— De onde a conhece?
— Do asilo. O meu lugar favorito. Ela faz trabalhos
voluntários incríveis por lá. Todos a amam como filha e neta.
Sabe, ela dá acalento àquelas pessoas. Ama passar o tempo ali,
ainda que não receba nada por isso. Mesmo sendo o dono, eu
interajo naquele lugar. Achei importante que você fosse
apresentado a uma das melhores pessoas que conheci. Talvez
aprenda alguma coisa com ela. — Somos interrompidos pelo
som da campainha e meu pai se levanta. — Deve ser ela. Abra a
porta e faça as honras por mim. — Um pouco impaciente, mas
feliz que meu pai tenha mais pessoas importantes em sua vida,
eu caminho até a grande porta dupla. Abro-a e então congelo,
quando meus olhos caem sobre a mulher parada do outro lado da
soleira.
Minha secretária agora está sem o uniforme da empresa e
com os cabelos soltos. Ela parece ainda mais perdida do que eu.
O medo estampa suas feições e a confusão parece querer
dominar as minhas.
— O que diabos você está...
— Sophia, que bom vê-la aqui! — meu pai me
interrompe com uma expressão feliz, enquanto se aproxima.
Encaro a mulher a minha frente, que sorri ao vê-lo.
— Senhor Franklin! Que bom vê-lo!
— Parece que meu filho está perdido. Não fique parada
aí. Entre!
Ainda confuso, afasto-me dando espaço para que ela
passe por mim. Tento recuperar o raciocínio, mas parece que o
perdi devido à perplexidade.
7

Eu não poderia recusar um pedido do Senhor Franklin,


mas confesso que, neste exato momento, sinto que meu peito
quer expulsar o coração. Como poderia imaginar que aquele
idoso que sempre encontro no asilo onde sou voluntária seria um
homem tão rico e pai do meu odioso chefe? Faço visitas
semanais àquele lugar, jogamos xadrez juntos e, ao longo dos
anos, conquistei a amizade de todos por lá. Depois que o asilo
foi vendido, Franklin apareceu. Sempre percebi, através de sua
conversa e de suas roupas, que ele era um homem abastado, mas
me assustei quando cheguei a esse endereço. Gosto dele e o vejo
como um segundo pai. Ele sempre me disse que, naquele lugar,
conseguia encontrar o equilíbrio.
— Que piada de mau gosto é essa? — meu chefe
vocifera, puxando meus pensamentos de volta.
Eu me afasto, com medo de ser esbofeteada. Acho que
ele não seria capaz de fazer isso, mas prefiro manter distância,
por via das dúvidas.
— Vocês se conhecem? — Senhor Franklin questiona
com um olhar curioso.
Tento manter a calma, mas meu coração não quer ajudar.
O constrangimento que sinto não faz o menor sentido. Como eu
poderia imaginar que Franklin era um homem tão rico e pai
desse ser desprezível? Pai do meu chefe.
— Ela é a minha nova secretária — o mais jovem dos
dois cospe as palavras.
— Sophia? — Franklin parece genuinamente surpreso.
— Então você não trabalha mais com o seu noivo?
Tento ignorar o olhar severo do meu chefe e me
concentro apenas no senhor simpático a minha frente.
— Tive alguns problemas e decidi sair. Não pude voltar
ao asilo ainda, mas eu... eu realmente estou surpresa agora!
— Oh, sinto muito, minha querida.
Inspiro o ar com força e faço o meu melhor para sorrir.
Afinal, tudo faz parte de uma terrível coincidência. Parece que o
destino está conspirando contra mim. Não é possível.
— Tudo bem. Eu... eu gosto de trabalhar para o seu filho
— minto, mas arrisco olhar para o grande homem ao meu lado.
Meu chefe ainda parece bravo, mas estreita o olhar e
ameniza a carranca.
— Não fique parada aí. Vamos para a mesa de jantar —
Franklin convoca, mas eu espero.
— Preciso fazer uma ligação. — Meu chefe mal-
humorado se afasta e caminha para longe de mim,
desaparecendo pela porta.
Sei que ele não está nada satisfeito em me encontrar aqui
e, menos ainda, em saber que sou amiga do pai dele.
— Querida, fique à vontade. Preciso conversar com meu
filho.
Concordo com a cabeça, sorrindo para o senhor que me
fita com um olhar de desculpas. Senhor Franklin parece
realmente constrangido com a situação.
— Acho melhor eu ir embora, Senhor Franklin.
— De jeito nenhum. Fique aí. Meu filho é uma pessoa
difícil de lidar, mas sei como domar a fera.
Ele sorri e caminha para fora da sala. Inspiro
profundamente, soltando o ar com força. Repito o gesto mais
algumas vezes e me sento no sofá. Uma mulher magra
e uniformizada me oferece vinho e eu decido aceitar. Acho que
não conseguiria lidar com esta situação estando totalmente
sóbria.
Passo alguns minutos sozinha até que os dois retornam.
Quando vejo a figura alta daquele homem imponente se
aproximar, ainda detecto certa insatisfação, e minha vontade é
sair correndo daqui para não voltar para o trabalho nunca mais.
No entanto não posso me dar ao luxo de fazer isso. Recebo um
bom salário e, na verdade, isso tem sido meu mantra
ultimamente. Estou quase mandando o idiota para o inferno.
— Vamos jantar, Sophia — o senhor Franklin chama
educadamente e eu sigo em silêncio, acompanhando os passos
dos dois homens calados.
A janela ao lado da mesa é grande e nos permite uma
vista incrível dos arranha-céus. Gostaria de prestar atenção na
paisagem, mas, na situação em que me encontro, não consigo
me concentrar em absolutamente nada.
Uma senhora uniformizada, de estatura baixa, cabelos
ruivos e presos nos serve o jantar. Eu me pergunto como farei
para conseguir colocar um pouco de comida na boca. Não presto
atenção no que ela serve, mas sei que é algum tipo de massa. O
silêncio parece querer me engolir, mas o Senhor Franklin
finalmente decide falar.
— Espero que esteja do seu gosto, Sophia.
— Está, sim, Senhor Franklin. Obrigada. — Tomo mais
um generoso gole do vinho e noto que meu chefe come sem ao
menos nos olhar.
Parece muito aborrecido e eu só gostaria de estar longe
daqui. Ainda consigo sentir a tensão no ar, mas, se Franklin é o
pai dele e gosta de mim, não sei por que estou tão preocupada.
Devido ao medo de perder o meu emprego? É muito provável.
— Meu filho disse que a nova secretária, que agora sei
que é você, está fazendo um excelente trabalho na empresa.
Parece que seu currículo é invejável.
Encaro o meu chefe e percebo que ele para de comer,
como se quisesse corrigir ou mandar o pai se calar. Sei que
Daniel não me elogiou, mas Franklin quer amenizar o clima
tenso que ainda paira sobre nós.
— Acho que o tempo em que trabalhei na empresa
ajudou no meu currículo.
— Você trabalhou mais no setor de publicidade, não é
mesmo?
Observo Franklin e então me vem a constatação de que
conversei muito com ele sobre minha vida em comum com meu
ex. Contei que iria me casar e cheguei a convidá-lo, mas ele não
pôde ir. Dou graças a Deus por isso. Seria um desastre se ele
soubesse que fui abandonada no altar. Mas sei que está sendo
educado em não me perguntar sobre o fracasso do meu quase
casamento.
— Era o meu forte. Adorava dar ideias sobre estratégias
publicitárias.
— Você só não me disse qual era a empresa em que
trabalhava. Adoraria saber. Você sabe, filho? — Franklin
pergunta.
O Senhor Wallner ergue as sobrancelhas e encara o pai,
sua expressão diz que não está gostando nada do assunto.
— Não. Confio no Jonathan, seu ex-assistente. Ele
cuidou de tudo.
— Um bom empresário deve ler tudo sobre seus
funcionários. Eu lhe ensinei tudo isso, filho. Aonde foram parar
os meus ensinamentos? Devemos sempre ler e aprender sobre as
pessoas com quem trabalhamos.
— Ela não trabalha comigo, pai. Essa moça sentada à
mesa é minha funcionária. Apenas uma funcionária. Por isso
pagamos Jonathan para que ele cuide dessas chatices
burocráticas. Se está tentando criar uma amizade entre mim e
ela, está perdendo seu tempo. Quando me envolvo com
mulheres, eu costumo foder...
— CHEGA! — O Senhor Franklin soca a mesa, algo
inusitado vindo de um homem tão calmo. Prendo a respiração e
observo os dois se encarando. — Você não vai tratar a minha
visita dessa maneira. Ela é sua funcionária apenas na empresa.
Aqui não. Aqui ela é a minha amiga e eu exijo que a trate com o
mínimo de respeito.
Pela primeira vez, o Senhor Daniel Wallner, meu chefe
filho da puta, parece estranhamente arrependido. Ele fecha os
olhos e os reabre como se estivesse arrependido. Olha para mim
e inspira devagar.
— Meu pai tem toda razão. Eu peço desculpas — usa um
tom de voz baixo, com uma raiva maldisfarçada.
Cheguei a um ponto em que o medo de perder o
emprego ainda é maior que qualquer vontade de mandá-lo ao
inferno, mas confesso que o que me segura é a presença do pai
dele. Não quero piorar as coisas por aqui.
— Está tudo bem, Senhor Franklin. Ele não me ofendeu.
— Não minta, Sophia. Sei que você, assim como muitos
na empresa, odeia trabalhar para o meu filho.
Eu me calo tentando pensar em uma resposta
convincente, mas nada me vem à cabeça.
— Ninguém vai demiti-la, porque aquela empresa ainda
é minha. Fique tranquila, querida. Você é uma pessoa
maravilhosa e não merece ser tratada assim.
Solto o ar que havia represado, sentindo-me mais
aliviada e satisfeita ao saber que o pai é o único que consegue,
de fato, domar o filho.
— Obrigada.
— Sei que você não sabia que eu era tão rico, mas eu só
não lhe disse antes porque, ultimamente, busco a naturalidade
nas pessoas. Quero que elas me enxerguem como eu sou, e não
pelas coisas que tenho. Você já provou que é uma pessoa de
bom coração e hoje eu queria lhe contar sobre minha vida. O
asilo também foi adquirido por mim.
— Então o senhor é o dono do asilo? — constato o óbvio
e ele sorri.
— Eu não queria que ninguém soubesse, por isso sempre
usei meu primeiro nome. Acho que lhe devo um pedido de
desculpas.
Analiso o rosto simpático do Senhor Franklin e não
resisto em retribuir o sorriso. Claro que não estou chateada por
ele ter ocultado essa informação. Talvez eu esteja mais
aborrecida por ele ser pai desse imbecil.
— Não me deve pedido algum. Está tudo bem!
— Você é uma pessoa compreensiva. Obrigado!
O restante do jantar decorreu calmamente. Tentamos
manter um diálogo, mas tudo que Franklin obteve do filho, em
resposta, foram palavras monossilábicas.
Depois do jantar, fiquei alguns minutos conversando
com o Senhor Franklin, enquanto meu chefe remexia no
aparelho celular. Está na cara que ele respeita o pai e, por essa
razão, não fala muito. Ao menos sabe valorizá-lo. Quem sabe
exista um coração no meio desse amontoado de gelo?
Tomo o restante do café e coloco a xícara sobre a mesa
de centro.
— Bom, agradeço o jantar, Senhor... Devo lhe chamar de
Senhor Wallner? — dirijo-me ao Franklin, que sorri.
— Jamais. Franklin está perfeito, Sophia.
Noto de soslaio que meu chefe deixa de mexer no
celular, para me dar atenção.
— Preciso ir — digo. — Está um pouco tarde e...
— Você está de carro? — Franklin pergunta a mim.
— Não, senhor — respondo. — Vou chamar um táxi.
— Meu filho pode levá-la para casa.
Novamente meu chefe olha o pai como se quisesse fazê-
lo engolir as palavras.
— Não será necessário, realmente posso ir de táxi. Não
quero incomodar ninguém.
— Daniel, acompanhe a moça até a casa dela.
A impressão é de que o pai está impondo, e não pedindo.
Quero que Daniel diga não.
— Seu motorista pode levá-la — meu chefe sugere, mas
seu pai parece não gostar do que ele diz.
— Eu o dispensei, teremos que acordar bem cedo
amanhã. Você leva.
— Não, senhor. Eu estou muito bem sozinha e não será
necessário...
— Tudo bem. — Meu chefe me encara. — Eu a levo.
Vamos.
Tento disfarçar o nervosismo, mas decido não complicar
as coisas. Parece que o Senhor Franklin está muito bravo com o
filho. Despeço-me de meu amigo com um abraço e saímos os
dois, eu e meu chefe, calados até o elevador. A descida até o
térreo parece uma viagem lenta e torturante. O silêncio, às vezes,
pode sufocar.
Não posso negar que o cheiro leve de seu perfume e sua
imponência me deixam ainda mais nervosa. No entanto,
também, não posso esquecer de que forma ele me enxerga. O
idiota ao meu lado me vê como uma pobre funcionária de merda
que ele poderia foder, se não a odiasse.
— O manobrista está trazendo o carro — ele informa
enquanto passamos pelo imenso saguão.
Cumprimentamos o porteiro com acenos de cabeça e
saímos para o ar fresco da noite.
O carro esportivo e caro aproxima-se da entrada e eu não
sei como conseguiu ser tão rápido. Meu chefe dá a volta e abre a
porta do passageiro. Está entediado e louco para acabar com
isso.
— Vamos logo, tenho coisas para resolver.
Fico parada, observando esse homem que age como o
idiota que sempre foi. Ele só quer se livrar de mim e eu vou
ajudá-lo.
— Não, obrigada. Prefiro pegar um táxi.
Ele parece muito surpreso agora. Meu chefe ergue as
sobrancelhas e depois estreita os olhos.
— Eu disse que a levo. Entra! — A impressão agora é de
que ele se sente desafiado por mim.
— Não vou entrar em seu carro.
— É uma ordem. Entre agora, sua...
— Você não manda em mim.
— Posso demiti-la se começar a me desafiar — o que ele
diz me faz sorrir, ainda que sem um pingo de humor.
— Não sou seu animal de estimação. Vá para o inferno,
você, seu carro e sua arrogância. Cretino!
Uma expressão perplexa estampa o rosto do meu chefe,
ou ex-chefe. Ele parece não acreditar no que ouviu. Acho que
nunca o vi tão inerte como agora. Parece congelado.
Tenho certeza de que a imagem de boba, idiota e
submissa que ele tinha de mim acabou de cair por terra. Acho
que, depois dessa, ele vai querer me ver bem longe de sua
empresa. O fato é que me segurei por muito tempo.
Que se dane o emprego.
8

Talvez algumas mulheres já tenham sido ríspidas comigo


algumas vezes, mas jamais alguém ousou me chamar de cretino
até agora. Eu deveria estar com raiva, mas não sei exatamente o
que estou sentindo. Sim, com certeza, raiva é um sentimento
muito presente em mim no momento. Confesso que ainda estou
definindo a confusão em meu cérebro, os sentimentos estão me
deixando sem reação. Eu sou um homem de negócios, um
homem que não costuma se surpreender com as pessoas, mas
agora pareço ridiculamente estranho.
Minha surpresa é tamanha que não sou capaz de me
mover ou formular qualquer frase. Eu me questiono
internamente sobre onde foi parar aquela mulher sem graça e
submissa que vi todos esses dias naquela empresa. Essa, bem
diante de mim, esteve agindo exatamente como todas as outras
de cujos nomes eu me esqueci e que demiti muito rápido. Em
vez de me dar por satisfeito, jamais gostei desse tipo de pessoa.
Talvez seja isso o que meu pai sempre tentou me dizer, só agora
eu me dou conta. Todos querem nos agradar. Ninguém ousaria
falar verdades na nossa cara, dada a possibilidade de demissão.
Sempre pensei que o mundo se curvava diante de mim.
Isso, embora fosse algo positivo para um homem como eu, era
completamente desnecessário para mim. Talvez, por isso, eu
jamais tenha conseguido me manter em um relacionamento por
muito tempo. As mulheres com que me relacionava eram
submissas demais, ou se aproximavam de mim pelo que eu
poderia dar a elas, e não pelo que de fato sou. A isso minha vida
se resumiu durante todos esses anos e era isso que meu pai
estava tentando me dizer.
Pela primeira vez eu me dou ao trabalho de olhá-la nos
olhos. Ela agora cruza os braços na defensiva e ergue o rosto,
encarando-me desafiadoramente. Jamais vi tanta sinceridade
neles como agora. Ela realmente me mandou para o inferno e me
chamou de cretino, não se importando com o que eu pudesse
fazer com sua vida. Eu teria condições de me certificar de que
ela não conseguisse emprego em lugar algum.
Pela primeira vez, eu vejo alguém sem máscaras, alguém
que não finge ser o que não é só para tentar me agradar. Ficamos
nos encarando em silêncio, mas repentinamente minha secretária
começa a caminhar para longe. Eu a observo bater os saltos com
força no chão duro e algo dentro de mim acorda; sinto-me
desafiado. Sem me dar conta, já a estou seguindo pela rua. Em
poucos segundos, eu a alcanço e, impulsivamente, a seguro pelo
braço. Ela para mostrando-se surpreendida com minha reação
inusitada. Talvez eu esteja tão surpreso quanto ela.
Seus olhos grandes e azuis parecem ainda maiores
enquanto me encaram. Não vejo medo neles, apenas desafio.
Isso me excita, principalmente quando meus olhos caem sobre
seus lábios vermelhos e convidativos.
Como pude ignorar tamanha beleza? Sim, eu sei a
resposta para essa pergunta: não é apenas a aparência de alguém
que me chama a atenção. Já tive as mulheres mais lindas na
minha cama, e essa é a primeira vez que uma, com que inclusive
nunca fiz sexo, parece me odiar. Não posso culpá-la. Afinal,
meu modo de tratar meus funcionários sempre foi rude, e eu sei
o motivo. Eu os vejo como cachorros ou robôs e os faço agir
como tais.
— O que pensa que está fazendo? — Ela puxa o braço de
volta, como se minha mão a queimasse.
Vejo certa agressividade em seu modo de agir e eu,
surpreendentemente, gosto disso. Não sei por quê, mas gosto.
— Não seja tola, já está tarde. Entre no carro.
A mulher diante de mim parece confusa agora.
— Você não prestou atenção em nada que falei? Quer
que eu repita? — A maneira atrevida com que disfere as
palavras me faz curvar os lábios em um sorriso rápido.
Não sei o que está acontecendo comigo, definitivamente.
Eu deveria ter ido embora há muito tempo, mas não consigo sair
daqui, simplesmente tenho que colocá-la dentro do carro.
— Sophia... — Ela se surpreende mais uma vez por eu
chamá-la pelo nome. — Eu ouvi perfeitamente o que disse e
mereci cada palavra. Você não é a minha funcionária agora, e
sim amiga do meu pai. Deixe-me levá-la para casa, ou terei que
lidar com a raiva dele pelo resto da vida. Ele não vai gostar nada
de saber que, além de ter sido um babaca lá dentro, eu ainda
costumo abandonar mulheres indefesas nas ruas de Nova York.
Sophia ergue as sobrancelhas e finalmente a tensão que
carregava desaparece de seu rosto.
— Acho que vou xingá-lo mais vezes... — Agora é a
minha vez de erguer as sobrancelhas. — Tudo bem. Farei isso
pelo seu pai. Ele, sim, merece todo o meu respeito. — Ela passa
por mim rapidamente e, antes que eu consiga acompanhá-la, já
se enfiou no banco do carona do meu esportivo.
Faço meu caminho de volta e assumo a direção,
acelerando pelo trânsito de Manhattan.
Não demora muito para que meu carro estacione em
frente a um prédio situado no Chelsea, em uma rua nobre da
cidade. Não moro muito longe daqui e me surpreendo que ela
viva em uma área considerada cara para uma mulher que
trabalha como secretária. No entanto, mesmo que eu tivesse
fingido desinteresse na conversa que tiveram no jantar, me
lembro de ouvi-la dizer que tinha um bom cargo na empresa do
ex. Talvez vivessem juntos aqui.
— Okay... — ela quebra o silêncio que se instalou entre
nós. — Eu... eu estou demitida, certo?
Eu a encaro. Tenho a impressão de que está um pouco
temerosa da minha resposta, mas não tira os olhos de mim. Vejo
um olhar desafiador. Parece pedir silenciosamente que eu a
demita. É isso que ela quer.
— Não. Não está.
— Tem certeza? Confesso que me segurei muito antes de
dizer tudo que disse e, pode ter certeza, eu quis dizer cada
palavra. Com todo respeito, mas não estou preocupada com a
possibilidade de ser mandada embora — o tom de voz firme me
faz erguer uma sobrancelha.
— Não tem medo de ser demitida? Parece que você tem
um alto aluguel para pagar aqui.
Ouço sua exalação e ela olha para o teto do carro como
se procurasse a resposta nele.
— Tenho um contrato para cumprir. Se eu devolver,
pago uma verdadeira fortuna de multa. Preciso ficar nele por
mais um ano.
— Isso tem relação com o seu ex? — Fico perplexo com
a minha curiosidade; de repente surge uma vontade
desconhecida de saber tudo sobre essa mulher; sobre a mulher
que me chamou de cretino e que está pouco se ferrando para a
minha vida ou para quem eu seja.
Sophia me encara com um olhar triste e é neste momento
que eu suspeito que ela ainda gosta dele.
— Tudo a ver com meu ex. Morávamos juntos aqui.
— Então ele...
— A resposta é sim. Ele me abandonou.
— Seu ex provavelmente pagava as contas e isso deve
ter sido difícil para...
— Claro que não! — ela me interrompe, perplexa. —
Dividíamos tudo! Eu fiz questão, e agora estou arcando com
minhas dívidas.
Assinto com a cabeça. Confesso que estou confuso com
essa conversa estranha e com minha repentina preocupação.
— Amanhã você pode chegar no mesmo horário —
mudo completamente o rumo da conversa e vejo que ela me
encara com surpresa, talvez decepção.
— Certo. — Sai do carro sem ao menos se despedir e eu
a observo subir as escadas que a levam até a porta do prédio.
Meus pensamentos se perdem com a visão e com os
últimos acontecimentos.
9

Não posso acreditar que, depois de ter contado tudo para


minha amiga, ela parece uma hiena, rindo enquanto rola no sofá
da minha casa. Cruzo os braços e, com as sobrancelhas erguidas,
a observo. Confesso que estou me segurando para não rir
também.
— Sophia, você não existe! Como teve coragem de dizer
tudo isso? — Ela ri mais um pouco. — Ok, ele mereceu. Mas
agora são onze horas da manhã, por que você não está
trabalhando?
Inspiro fundo antes de responder.
— Não posso ir. Eu o odeio e deixei isso claro para ele.
Não consigo ir. Terei que recorrer aos meus pais para entregar
este apartamento e não depender desse emprego. Não tenho
escolha.
— Você não foi demitida e teria que dar um prazo até
que arrumassem outra secretária. — Ela se levanta do sofá. —
Está muito atrasada. Vista-se e vá!
— Se eu for agora, ele vai me demitir pelo atraso.
— Você disse que o pai dele não vai aceitar isso. — Ela
sorri. — Que sorte a sua! Você frequenta um asilo cujo dono é o
pai do seu chefe. Isso é inacreditável.
— Sim. Franklin é um senhor muito amável. Diferente
do filho. Saiba que isso não é nenhuma sorte, Anne.
— É sorte, sim. Esse chefe babaca não vai demitir você.
Agora vá. Mostre para aquele idiota que você é uma mulher
responsável, mesmo que ele não mereça isso.
Analiso as palavras da minha amiga e percebo que ela
tem toda razão. Estou dando motivos para aquele homem pensar
que sou uma mulher irresponsável.
— Tudo bem. Eu vou, mas não aceitarei que ele seja
grosseiro comigo.
— Você nunca aceita esse tipo de coisa. Agora Vá. —
Ela me expulsa da sala, então decido correr para o quarto e me
arrumar.
Entro em meu uniforme e faço uma maquiagem em
tempo recorde. Prendo o cabelo em um rabo de cavalo e em
seguida observo, uma última vez, meu reflexo no espelho. De
repente ouço a campainha tocar e em seguida escuto vozes.
Caminho até a sala e dou de cara com Jonathan. Ele parece
aflito. Quando me vê, corre até mim e segura meus ombros.
— Você precisa voltar para o trabalho.
Anne e eu trocamos olhares.
— Eu me atrasei, mas estou indo.
— Graças a Deus! O Senhor Wallner, o pai, estava ao
telefone com o nosso chefe. Ele ameaçou o filho por você não
ter ido trabalhar hoje. Parece que está disposto a tirá-lo da
presidência caso você não volte.
Arregalo os olhos e até minha amiga parece estarrecida.
— Eu, eu não ia trabalhar, mas achei que seria ruim me
ausentar antes que vocês arranjassem alguém para me
substituir...
— Você não está entendendo. O Senhor Wallner, o dono
da empresa, quer você; e as ameaças ao filho dele são reais. Por
isso estou aqui. Estou com o carro da empresa e você vem
comigo. Claro que não era para eu ter lhe contado isso, mas é
que eu sou péssimo em guardar segredos. Ok, mentira. Acho que
você deveria saber que seu chefe arrogante precisa de você antes
que o pai dele faça algo a respeito.
— Ok.
— Vá logo, Sophia — minha amiga diz, ainda com uma
expressão abismada.

No momento em que chego ao escritório, organizo a


agenda do meu chefe. Fui alertada de que ele não saiu de dentro
da sua sala. Jonathan adiantou muitas coisas que eu deveria ter
feito na parte da manhã e eu não poderia me sentir mais grata.
De repente, o meu ramal toca, quebrando o silêncio. É o meu
chefe. Eu atendo imprimindo um tom formal na voz.
— Sim?
— Na minha sala, agora... Por favor.
Respiro fundo antes de me levantar e caminho
lentamente até a porta dele. Decido bater, mas não ouço resposta
e presumo que meu chefe não queira formalidades agora. Abro a
porta e meus olhos caem sobre ele. Está de pé, de costas para
mim, aparentemente absorto na vista incrível dos arranha-céus
de Manhattan. Aparenta ser ainda mais alto, mais poderoso,
nessa postura de homem de negócios que carrega.
Faço um barulho com a garganta, indicando que já estou
aqui.
— Sente-se — sua voz grave ordena, mas decido ficar de
pé.
Meu chefe se vira e cruza os braços, seus olhos fazendo
uma inspeção em mim. Parece diferente. Nunca o vi me olhar
por mais de dois segundos. Talvez, ontem, ele tenha feito isso,
mas agora... agora parece realmente me examinar dos pés à
cabeça.
— Você é esperta. Admito que não percebi seu jogo.
— Não estou entendendo...
Ele sorri, mas não há o mínimo de humor nele.
— Meu pai. Ele está encantado por você, Sophia. Você
frequentou o asilo, fez amizade com um dos homens mais ricos
do país e agora eu dependo de você para manter meu cargo nesta
maldita empresa.
— Ainda não estou entendendo aonde você quer chegar.
— Vou ser direto agora: quanto quer para sair da nossa
vida? Não gosto de oportunistas. Você acha mesmo que meu pai
tem condições de me tirar, a essa altura, de um cargo tão
importante?
— Eu...
— A resposta é não, Senhorita Collins. Existe o
Conselho, acionistas e muita burocracia para que ele me exonere
do cargo de diretor executivo.
— Não quero que ele faça isso. Seja mais direto, por
favor. — Meu coração agora bate mais forte, aparentemente
refletindo a raiva que sinto pelas insinuações infundadas desse
homem.
— Investiguei a porcaria do seu currículo e, pasme, você
não fez nem a metade do que realmente consta nele. Não tem os
requisitos básicos para ser a minha secretária. Forjou um
currículo e deu em cima do meu pai, um homem que poderia ser
o seu pai.
— Está insinuando que dei em cima do Sr. Franklin?
— Não. Estou afirmando. Não consigo pensar em outra
coisa, já que meu pai está encantado por você.
— Não dessa maneira, tenho certeza. Seu pai me tem
como uma filha. Passávamos horas conversando naquele asilo.
Ele me falou sobre um filho, mas nunca foi indiscreto ou contou
sobre a vida pessoal. Eu jamais soube quem ele era de fato.
— Diga o seu preço e suma daqui.
— Eu não tenho preço, seu desgraçado. Não sou uma
mercadoria para ter um preço.
— Finalmente você está mostrando a mulher atrevida
que é. Uma boca tão esperta não deveria ter ficado fechada por
tanto tempo.
— Ontem eu disse a você que não me arrependo de ter
dito aquelas coisas, mas na verdade..., sim, eu me arrependo. Eu
deveria ter mandado você enfiar o emprego bem no meio do
seu... — Somos interrompidos por batidas à porta.
Meu chefe ainda me encara. Sua expressão é confusa,
parece aturdido.
Como ele não se move, eu me apresso em abrir, e
Jonathan entra pedindo perdão com o olhar.
— Desculpe interromper, mas seu pai está me ligando
incessantemente no celular e...
— Diga a ele que estou em uma ligação urgente e que
retorno em breve — ordena sem tirar os olhos imperiosos de
cima de mim.
— Certo. Então eu vou...
Eu assinto e Jonathan sai. Meu chefe caminha
decididamente até a porta e a tranca. Ele se vira e cruza os
braços mais uma vez.
— Vamos continuar onde paramos. Você estava
ordenando que eu, vejamos, enfiasse o emprego bem no meio...
— Ele ergue as sobrancelhas, incentivando-me a concluir,
esperando que eu continue seu jogo.
Não sei se é impressão minha, mas ele parece gostar
disso. Parece se divertir com meus xingamentos.
— Você sabe muito bem aonde deve enfiar esse emprego
— digo desafiadora.
Divertimento estampa seu rosto.
— Atrevida. Boca suja... — Aproxima-se de mim, um
homem grande e imponente, um predador sobre sua presa.
Eu me afasto de costas, até me chocar contra a parede
atrás de mim. A proximidade do meu chefe envia arrepios a todo
o meu corpo. Seus olhos examinam meu rosto e, em vez de me
sentir acuada, penso em como seria ter sua língua dentro da
minha boca. Devo estar pirando, mas seu hálito mentolado faz
cócegas em meu rosto.
— Quem é você? — questiona com um tom de voz
severo.
— Sua secretária.
— Assuma que deu em cima do meu pai!
— Vá se ferrar! — minha voz é alta e bem raivosa.
Em vez de se afastar, ele segura meu queixo com força,
erguendo minha cabeça, obrigando-me a olhar para ele.
— Repita isso!
— Vá... se... — Não consigo terminar a frase, já que sua
boca, repentinamente, cola na minha.
Sinto um desejo avassalador no momento em que sua
língua separa meus lábios. O homem está fora de controle
enquanto encosta a rigidez em mim. Está duro como uma rocha,
e eu, desesperada para tê-lo dentro de mim. Uma sensação
contraditória, visto que ele quer me ver longe daqui. Mas não há
como ignorar o desejo sexual. Por mais que eu sinta raiva dele,
ainda não consigo me livrar dos seus beijos.
10

Seu beijo profundo e o grande corpo me pressionando


contra a parede extingue todo o meu bom senso e me impede de
reagir como deveria.
Eu deveria gritar, fazer um escândalo, mas estou sem
forças e tudo que faço é ceder às suas investidas. Minhas pernas
parecem gelatina, e o tremor toma conta de cada parte do meu
corpo.
Ele para de me beijar, como se ouvisse meus
pensamentos. Talvez devido à tensão em que nem eu havia
reparado, meu corpo está rijo, como se eu estivesse com medo
dele. Os olhos cristalinos me encaram e, como se tivesse
acabado de acordar de um sonho, impulsivamente, dou um tapa
em seu rosto.
Ele se afasta no mesmo instante e meus olhos se
ampliam gradativamente. Preciso mostrar a ele que não tenho
medo, mas tudo que faço é observá-lo. O homem está calado,
com a mão esquerda sobre a lateral do rosto. Parece não
acreditar no que acaba de acontecer; talvez nunca tenha sido
estapeado na vida. Reúno toda a força que possuo e tento manter
uma postura que não existe. Inspiro devagar.
— Nunca mais encoste suas mãos sujas em cima de
mim. Nunca mais se aproxime de mim. Eu não tenho medo de
você e não preciso do seu maldito emprego. — Afasto-me dele,
que permanece imóvel.
Ele apenas me observa sair da sala. Sinto seu olhar em
minha nuca. Provavelmente esperava que eu fosse fazer sexo
com ele, como uma imbecil idiota.
No instante em que fecho a porta, decido pegar minhas
coisas o mais depressa possível e, sem avisar ninguém, corro em
direção aos elevadores.

Sou acordada por um barulho incomum, algo está


vibrando sobre o criado-mudo e, só depois de alguns segundos
tentando me situar, noto que é o meu telefone. Com dificuldade,
rolo na cama até finalmente alcançar o aparelho, que volta a
tocar no momento em que meus olhos analisam o nome na tela.
Anne está me ligando e eu adoraria saber o que ela quer a essa
hora da manhã.
— Caiu da cama? O que houve? — questiono com um
tom irônico na voz.
— Você não me atendeu ontem o dia todo. Preciso saber
o que aconteceu, Sophia! Quer me matar de curiosidade?
Fecho os olhos e presumo que não conseguirei fugir dela
por muito tempo.
— Ok. Vou contar.
Conto a ela todos os detalhes, inclusive sobre o fato de
ter vindo para casa sem ao menos dar satisfação a alguém.
— Eu faria o mesmo! Como ele foi capaz de imaginar
que você está dando um golpe? Que idiota!
— Ele pensa que quero conquistar o pai dele.
— Ainda deixou aquele cretino beijar você!
— Acho que fiquei sem reação. Ele me pegou de
surpresa e, além do mais, o cretino é lindo. Isso dificultou meu
raciocínio.
— Não vou crucificar você, amiga. Ele é lindo e a
beijou. Não deixa de ser assédio, no entanto. Já pensou que ele,
talvez, não esteja de fato imaginando que você está dando em
cima do pai dele?
— Anne! Ele me acusou exatamente disso.
— Sim, mas ele também a beijou. Acho que ficou com
raiva por ter levado um puxão de orelha do pai e decidiu atacar
você.
— Ele acha que estou dando em cima do pai dele. Você
tem noção disso?
— Se realmente achasse isso, ele jamais a teria beijado.
Seu chefe gostoso está confuso e você causou isso nele. Okay,
isso ainda configura assédio, certo?
— Ele me ofendeu!
— Por isso você fez bem em ir embora. Nada justifica o
fato de ele ter sido um cretino.
— Ainda por cima, ele me ofereceu dinheiro para sumir
da vida dele.
— E depois beijou você.
— Não importa.
— Sim, eu sei. O idiota perdeu a razão. Ele deveria pedir
desculpas pelas merdas de que a acusou.
— Não quero nem as desculpas dele.
— Eu aceitaria.
— Não voltarei àquela empresa para que isso ocorra.
— Mas e o pai dele?
— Vou ligar para ele hoje mesmo e explicar tudo. Talvez
ele não pense que estou sendo ingrata.
— Você é uma boa pessoa e, como se falavam com
frequência no asilo, acho que, quando você voltar a frequentar
aquele lugar, ele irá tratá-la da mesma maneira. Ele gosta de
você, Sophia.
— Mas o filho dele, não. Não poderei voltar mais para o
mesmo asilo. Melhor eu me afastar, não quero que pensem que
estou tentando dar o golpe.
— Está certa. O que fizer eu apoio, mas, se tentar
boicotar sua vida, vou estar lá para não deixar.
— Por isso eu amo você.
— Preciso desligar agora. Depois eu passo na sua casa
para acabarmos com as frustrações. Eu levo o vinho.
— Combinado!
Desligamos e eu me enfio debaixo do edredom de novo.
Tento dormir, mas, poucos segundos depois, meu quase sono é
interrompido pelo som incessante da campainha.
Eu me ergo, visto um sobretudo e sigo em direção à
porta de entrada.
No momento em que observo o olho mágico, paraliso ao
me deparar com o meu chefe. Sim. O homem que me beijou e
pediu que eu sumisse de sua vida. Aquele que me acusou de
golpista.
A campainha continua tocando como se ele estivesse
impaciente, mas, em vez de abrir a porta, eu apenas a encaro,
como se a presença desse homem abalasse minhas estruturas.
Tudo bem que é exatamente isso que a presença dele faz, mas
nunca vou admitir isso em voz alta.
Não sei por que meu peito quer expulsar o coração
agora. Este bate ferozmente, como se eu não suportasse estar
nesta situação. O homem parece incansável e não vai desistir.
Fecho os olhos e clamo por paciência, só então decido abrir a
porta. No instante em que o faço, deparo-me com a presença
imponente e com os olhos claros do meu chefe, que me examina
dos pés à cabeça.
— Preciso falar com você — anuncia com um tom ainda
mais grave na voz.
Ele parece diferente agora, mas não sei dizer por que
exatamente. Não consigo presumir o que o trouxe aqui e por que
parece inquieto, mesmo que esteja parado, mantendo sua postura
ereta.
— Como veio parar aqui? Acho que você foi bem claro
ontem, quando ordenou que eu sumisse.
Espero que a expressão séria em meu rosto demonstre
minha insatisfação em vê-lo aqui.
Ele faz um ruído com a garganta, como se lutasse
internamente para me dizer algo.
— Você precisa voltar ao trabalho, por... favor — a
última palavra sai em um sussurro e minhas sobrancelhas se
unem quando percebo a nota de desespero em sua voz; para se
prestar a vir aqui, deve estar mesmo aflito.
No entanto não vou me rebaixar ante ele só porque
parece ainda mais lindo, cheiroso e incrível dentro desse termo
bem-cortado, que, provavelmente, foi feito somente para seu
corpo.
Acorda, Sophia. Não caia nessa armadilha. Ele deve
estar usando seu poder de sedução contra você.
— Você me expulsa. Insinua que estou tentando dar o
golpe do baú em seu pai; praticamente me chamou de
aproveitadora e mau-caráter. Acha mesmo que eu...
— Meu pai está morrendo — suas palavras me deixam
emudecida.
Observo-o confusa, finalmente percebendo, mesmo que
seja ínfimo, um traço de tristeza em seus olhos azuis.
11

Emudecida, observo, provavelmente com uma expressão


assustada, meu chefe, que agora olha para um ponto fixo atrás
de mim.
— Morrendo? — minha voz parece trazê-lo de volta de
algum lugar, de onde sua mente estava.
Ele me encara e noto o movimento em sua garganta.
Daniel está muito sério. Não. Ele está triste.
— Jonathan me contou que meu pai está com câncer.
Meus olhos se ampliam devagar.
— Meu Deus! — Fecho a boca com uma das mãos, sem
acreditar no que estou ouvindo.
— Também estou surpreso — confessa enquanto passa
por mim e entra no meu apartamento sem ser convidado.
Atordoada eu apenas o sigo e fecho a porta atrás de mim.
Meu chefe, ou ex-chefe, analisa meu loft, mas caminha em
direção à grande janela de vidro.
— Ele parece tão bem — sussurro, e Daniel se vira para
mim.
— Segundo Jonathan, meu pai ainda parece bem porque
se recusou a fazer quimioterapia há três meses, logo depois que
descobriu a doença.
— Mas o ideal não é fazer?
— É, mas, por alguma razão, ele rejeitou. Não sei o que
fazer, já que ele confidenciou isso para um funcionário.
Observo enquanto Daniel faz o caminho até meu sofá e
se senta.
Estou me perguntando por que ele veio me dar essa
notícia. Será que está me testando de alguma maneira? Não. Ele
não pode estar mentindo, não acredito que seja um ator tão bom
a ponto de demonstrar tamanha tristeza. Porém não posso
ignorar o fato de que este homem pensa que sou uma
aproveitadora.
— Por que veio me contar isso?
— Porque ele gosta de você, e você, dele.
— Eu já disse que nunca estive com o seu pai dessa
maneira que você pensa, eu jamais...
— Eu sei — ele me interrompe.
Estreito os olhos.
— Sabe? Não estou entendendo...
— Jonathan me disse tudo sobre como meu pai a
conheceu e por que faz questão de que trabalhe comigo. Ele
basicamente repetiu o que meu pai havia dito naquele jantar.
Agora vou ter que convencer meu pai a me contar, para que eu
entenda a gravidade da doença. Ainda não fui capaz de procurá-
lo, mas Jonathan já adiantou que é muito grave.
— Ainda não estou entendendo...
— Meu pai quer nos unir. Ele armou para você trabalhar
na empresa porque imaginou que eu fosse me apaixonar por
você.
— Nos unir? Como? Eu... — Encaro-o atordoada e ele
continua.
— A princípio era para ser uma vaga de emprego
normal, mas Jonathan, que trabalhou a vida inteira com meu pai,
compartilhou com ele informações sobre as mulheres que
estavam se candidatando para o cargo. A intenção do meu pai,
na verdade, era se certificar de que não fosse uma mulher jovem
demais, para que não houvesse problema. — Ele ergue as
sobrancelhas e eu entendo o que quer dizer sobre mulheres
jovens trabalhando com um sedutor como ele. — Jonathan disse
que meu pai ficou surpreso quando a viu nas fotos do currículo e
decidiu que você seria selecionada por ele, e toda a ideia de nos
unir surgiu na sua mente naquele momento. Mais de cem
candidatas, e você foi misteriosamente escolhida. Não achou
estranho?
— Meu Deus! — Meus olhos encaram um ponto fixo no
chão. — Então seu pai não sabe que você sabe sobre ele...
— Não faz ideia. Vamos conversar e eu sei que ele vai
falar quando eu o pressionar.
— O que seu pai estava pensando...
— Tudo indica que ele achou que eu iria me apaixonar
por você perdidamente. A intenção dele sempre foi me ver
casado e com filhos. Pensou que, já que gostava de você, eu iria
gostar também.
— Deus. Estou perdida depois de saber sobre tudo isso.
— Eu também fiquei.
Sento-me ao seu lado no sofá e ficamos em silêncio por
alguns minutos, os dois encarando pontos fixos na escassa
decoração da minha sala.
Franklin nunca me falou muito sobre o filho, mas, nas
poucas vezes que tocou no assunto, disse que eu iria gostar dele.
Tudo que desejou que acontecesse com Daniel só nos afastou.
— Você precisa voltar a trabalhar, por isso estou aqui.
Não dormi a noite toda pensando na forma como tratei meu pai.
Ele quer você perto de mim e eu gostaria que aceitasse isso, por
ele.
Aceno com a cabeça, concordando com o que ele diz.
— Seu pai é um ser humano maravilhoso e tudo que
estiver ao meu alcance eu farei.
— Agradeço. — Seus olhos me encaram por mais tempo
do que deveriam. — Eu... — Ele puxa uma respiração profunda.
— Eu lhe devo desculpas pelo beijo e por tê-la tratado daquela
forma. Meu pai vai ficar feliz em saber que você não deixou seu
cargo de secretária.
— Farei isso por ele — sou taxativa, deixando claro que
não é por Daniel que farei isso.
Ele acena com a cabeça e, pela primeira vez, consigo ver
seu lado humano.

Não consigo ter um pensamento coerente desde o


momento em que saí da casa daquela mulher. Eu deveria me
sentir um pouco melhor por ter tomado coragem para passar por
cima do meu orgulho. Acho que jamais fiz algo sequer
remotamente parecido.
Deveria estar orgulhoso de mim, mas não. O que me
motivou a ir até lá foi o que Jonathan me disse. O assistente foi
até a minha sala, decidido a contar sobre o real estado de saúde
da pessoa que mais amo na vida. Afirmou que Sophia foi a única
amiga do meu pai em anos, mostrando o homem de merda que
sou por ter desconfiado da integridade daquela mulher que só o
ajudou.
Não consigo imaginar minha vida sem o homem que me
ensinou a ser bem-sucedido na vida, a trabalhar duro. Parece que
tudo isso não passa de um pesadelo. Tudo mudou de repente, da
noite para o dia, e eu me vejo completamente perdido.
Não tenho forças para voltar para a empresa e decido ir
para meu apartamento. O motorista me leva em silêncio até meu
prédio e em poucos minutos já estou subindo no elevador, que
me leva até o último andar.
Depois de jogar o paletó do terno sobre o sofá, eu,
vagarosamente, caminho até o bar. Sirvo-me de uísque e sigo em
direção à janela. Admiro os arranha-céus sob meus pés. O dia
está cinza, exatamente como o meu humor.
Moro em um dos edifícios mais altos da cidade, mas
gostaria que meu pai estivesse morando aqui comigo. Só agora
me dou conta da vida errada que levei até agora. Só temos um ao
outro, mas eu sequer quis morar com ele.
A ideia de me mudar da sua casa foi minha, para que eu
pudesse fazer as minhas festas particulares sem o incomodar ou
chocar.
Meu pai é romântico à moda antiga, e eu, um tarado
incurável. Quero sexo e meu pai quer amor. Somos diferentes,
mas não posso me esquecer das coisas que ele sempre disse:
"Você é um homem romântico, só não encontrou a mulher
certa". Cada vez mais me convenço de que não existe essa
"mulher certa" e gosto de me divertir com as erradas. O que há
de mau nisso? Já me perguntei algumas vezes, como agora, se
estarei nessa vida por muito tempo ou se um dia vou enjoar de
ficar sozinho.
Minha cobertura está sempre cheia de mulheres. Sim.
Mulheres, no plural. Há alguns meses não tenho feito nada de
extravagante, mas ainda trago algumas mulheres. Todas lindas e
submissas a mim. Do jeito que gosto. Sempre prontas para me
satisfazer em todos os aspectos. Mas, depois que elas se vão, eu
noto que, de algum jeito, existe um vazio dentro de mim que eu
ainda não fui capaz de definir.
12

Já passaram duas semanas desde que meu chefe esteve


aqui me pedindo para voltar ao trabalho. Agora as coisas estão
diferentes de um jeito bom. Estou ocupando o cargo de
secretária, mas ele não me explora como fazia antes. Daniel
Wallner, meu chefe, agora está quieto. Não pede metade das
coisas que pedia e quase não o vejo na empresa. Obviamente
toda essa mudança repentina deve-se à atual situação de seu pai.
Eu não me encontrei com o Senhor Wallner, mas Jonathan me
confidenciou que Daniel ainda não conversou com o pai. O
assessor disse ter implorado para que não o fizesse, temendo
perder toda a confiança que Franklin depositou nele. Acho que,
se meu amigo escondeu isso do filho e decidiu contar para
Jonathan, deve ter um bom motivo.
Termino de guardar minhas coisas e me levanto. Hoje,
como na maioria dos outros dias, meu chefe não apareceu.
Confesso que me sinto mal por tudo que está acontecendo, e
preocupada também.
Pego minha bolsa e caminho em direção aos elevadores.
Quando a porta se abre eu me surpreendo com a visão de meu
chefe. Ele está distraído, olhando para o visor do celular, ainda
dentro do elevador. Daniel Wallner faz menção de sair, mas
interrompe os passos quando me vê. Vejo que sua barba está por
fazer, e seus olhos parecem cansados, como se ele não dormisse
há dias. Sua roupa também está um pouco desalinhada.
— Oi — cumprimento quando percebo que ele não faz
nenhum movimento.
— Oi...
— Tudo bem com você? — questiono e ele inspira o ar
pesadamente, soltando-o com força.
— Preciso que venha comigo.
Não sei se é impressão minha, mas sinto certo desespero
em sua voz.
— Precisa?
Ele acena com a cabeça, confirmando.
— Precisamos visitar meu pai e você tem que me ajudar
em uma coisa. — As portas do elevador começam a se fechar,
mas Daniel sai e me puxa pelo braço, levando-me para dentro.
— Meu Deus! O que está havendo?
— Quero que venha comigo para a casa do meu pai.
Quero que você... — ele para de falar, puxa novamente o ar,
soltando-o asperamente. — Merda! Como vou dizer isso? — A
postura do homem alto, imponente e cheio de si, dá lugar a uma
pessoa completamente perdida.
— Que tal apenas me dizer? — encorajo-o e ele,
aparentemente contrariado, concorda com a cabeça.
— Quero que finja ser minha namorada.
Meus olhos se ampliam lentamente. Confesso que não
estava esperando por isso. Minha boca se abre, mas eu o encaro
como se não acreditasse que ele está me pedindo algo tão
absurdo.
— Namorada?
— Uma namorada de mentira! Meu pai está doente, acho
que ele ficaria muito feliz se soubesse que seu plano de nos
juntar deu certo. Jonathan me deu essa ideia por telefone e eu
achei perfeita. É um modo de me desculpar por tantas merdas
que fiz, pelas decepções que dei a ele.
Estarrecida, encaro o homem que parece ansioso pela
minha resposta.
— Diga alguma coisa, por favor!
— Eu... — Somos interrompidos pelo timbre do
elevador.
A porta se abre, mas nenhum dos dois faz qualquer
movimento para sair. Há uma funcionária parada na porta,
esperando nossa saída. Ela parece curiosa por ver o patrão
falando com a secretária dentro de um elevador.
Daniel percebe que ela não se afasta e se manifesta:
— Precisamos de um pouco de privacidade aqui! — diz
rispidamente, ela entende a situação e sai quase correndo.
Volto a olhá-lo e sou tomada por um sentimento
desconhecido, que me faz responder de imediato:
— Tudo bem! Isso é meio estranho, mas faz sentido. Eu
topo!
Meu chefe fecha os olhos com alívio e quase sorri.
— Ótimo. Vamos agora! — Ele me puxa pelo braço,
praticamente me arrastando pelo saguão.
No momento em que saímos pela ampla porta de vidro,
vejo seu carro e o manobrista lhe entrega uma chave. Mesmo
com aparente pressa, meu chefe abre a porta do passageiro e eu
entro no carro imediatamente. Ele ocupa o banco do motorista,
pressiona o botão e dá vida ao motor. Logo acelera pelas ruas.

Não faço ideia de por que estamos parados na porta do


elevador do edifício do Senhor Wallner. Meu chefe parece
pensativo, mas acredito que não sabe como reagir quando vir o
pai, ciente de que ele está com uma doença grave. Ele me contou
que evitou vê-lo pessoalmente, embora se falem por telefone
todos os dias.
— Vamos agir com naturalidade — instrui e em seguida
pressiona o botão do elevador.
— Faremos o que foi combinado quando estávamos
vindo — respondo e ele concorda com a cabeça.
— Então ele vai perguntar como decidimos namorar e eu
vou responder. Deixe que eu faça isso.
Aceno enquanto entramos no elevador.
— Contaremos o que de fato aconteceu no escritório.
Desde então, não conseguimos nos afastar um do outro.
— Isso. Ao menos não estaremos mentindo
completamente. Temos que dizer que o jantar me fez conhecer
você melhor e... — As portas do elevador se abrem
repentinamente e ambos nos encaramos.
— Lembre-se de me chamar de Daniel. Eu sou seu
namorado, então não me chame de Senhor Wallner ou de Senhor
Daniel, ok?
Concordo com a cabeça.
— Daniel.
— Ótimo.
Inspiramos quase em uníssono, cada um guardando seu
nervosismo para si, e em seguida caminhamos até o apartamento
de Franklin.
Talvez isso seja uma loucura, mas é a primeira vez que
vejo Daniel tentar consertar as coisas com o pai. Ele quer vê-lo
bem, o que, de alguma forma, me comove. Eu me sinto bem
com isso.
Depois de tocarmos a campainha, esperamos
pacientemente que alguém abra a porta. Daniel avisou ao pai
que viria comigo, e essa notícia, segundo ele, deixou Franklin
bem animado.
Quando nos deixa entrar, uma das empregadas informa
que o dono da casa nos espera na sala de estar. Quando
entramos, notamos que o Senhor Wallner bebe uma taça de
vinho tinto. Parece compenetrado na leitura de um papel, que
segura em uma das mãos. Quando nos vê, não sorri de imediato,
mas logo se levanta demonstrando, com um semblante alegre,
que está feliz em nos ver juntos.
— Espero que não briguem hoje. — O Senhor Wallner
vem até mim e me abraça. Em seguida olha para o filho,
examinando-o dos pés à cabeça.
— O que diabos houve com você? Você parece um lixo!
Daniel tenta sorrir, mas falha.
— Tive alguns problemas...
— Venha, vamos nos sentar.
Fazemos exatamente o que ele pede, mas com um
diferencial; Daniel agora segura a minha mão e me conduz para
que eu me sente ao seu lado. Neste momento, seu pai estreita os
olhos, que encaram nossos dedos entrelaçados.
— Eu perdi alguma coisa aqui? — questiona o filho
enquanto se senta.
Daniel e eu nos encaramos e ele acena levemente para
mim.
— Você estava certo o tempo todo, pai.
— Certo? — O Senhor Wallner ainda parece confuso.
— Sobre esta mulher. O jantar que deu me mostrou
quem ela é. Eu pedi desculpas e...
— Espere aí... — O pai se ergue com um sorriso no
rosto. — Vocês estão juntos? Até ontem você a odiava e agora...
— Nunca a odiei. Eu me odiava por estar gostando dela.
É diferente.
— Como isso aconteceu? — Com total perplexidade, ele
se senta de volta no sofá, seus olhos atentos a tudo que o filho
diz.
— Eu a acusei no escritório e ela me mandou enfiar o
emprego naquele lugar, então...
— Não diga isso! — eu o interrompo envergonhada, já
que foi exatamente o que eu disse a ele.
Senhor Wallner ergue as sobrancelhas grisalhas, mas
logo abre um grande sorriso.
— Você fez isso?
Com uma expressão de desculpas, concordo lentamente
com a cabeça.
— Sim, senhor...
— Então, em vez de demiti-la por isso, eu a beijei.
Satisfeito com a resposta do filho, o pai sorri,
aparentemente tentando segurar uma risada.
— Então suponho que ela foi embora?
— Sim. Ela foi, como o senhor deve saber.
— Jonathan me contou.
— Eu fui até a casa dela movido por um impulso
desconhecido e... — Ele me encara. — Nós nos beijamos de
novo. Ela voltou a trabalhar e então começamos a nos ver todos
os dias, nas duas últimas semanas.
— Se estão se vendo todos os dias, por que você tem a
aparência de um indigente?
Meu coração dispara. Quero só ver como ele vai enrolar
o pai agora.
— Há dois dias, ela disse que estava apaixonada por
mim. — Arregalo os olhos tentando reprimir uma raiva
maldisfarçada. — Eu disse que ainda estávamos nos conhecendo
e então ela disse que não queria mais nada comigo. Enlouqueci e
então percebi que... — Daniel olha nos meus olhos e engole em
seco. — Descobri que não consigo ficar longe dela. Eu não pude
ir à empresa e encontrá-la. Não suportava a situação e hoje, no
fim do expediente, eu a pedi oficialmente em namoro. Eu pedi
desculpas e...
— Namoro? — o pai parece impressionado com o que o
filho acaba de dizer.
Daniel merece um prêmio por atuar tão bem. Até eu, que
sei que tudo isso não passa de uma farsa, cheguei a imaginar,
por uma fração de segundos, que ele poderia estar realmente
apaixonado.
— Filho, Sophia...
— Não precisa dizer nada, pai. Você estava certo o
tempo todo. Eu só não havia encontrado alguém diferente e
então, de repente, aqui estamos.
Os olhos do Senhor Wallner se enchem de lágrimas e
isso é apenas o gatilho para que eu me arrependa imediatamente
do que estamos fazendo. Estamos iludindo um senhor que sonha
em ver o filho casado e com filhos.
— Agora eu posso respirar aliviado, filho. Minha família
vai crescer...
— Pai. É só um namoro. Estamos na fase da descoberta
e...
— Você parece um indigente, filho. Está apaixonado.
Quem não se apaixonaria por ela? Uma mulher doce, amável e
caridosa. Ela é perfeita para você. Sophia é a mulher da sua vida,
Daniel.
De repente, sinto os braços do meu chefe me puxarem
para mais perto dele. Eu sorrio retribuindo o gesto de "carinho",
mas por dentro sinto o coração espancar o peito.
— Eu vejo isso, pai. Vejo um futuro agora. Vejo tudo
com esta mulher. — Meu chefe sorri, segura meu queixo, na
tentativa de impressionar ainda mais o pai, e me beija nos lábios;
um beijo rápido, mas o suficiente para me deixar com as pernas
enfraquecidas.
13

O percurso até meu apartamento foi silencioso. O carro


do meu namorado de mentira estaciona em frente ao meu prédio.
Ambos estamos perdidos em pensamentos. Acabamos de fazer
uma grande encenação e agora simplesmente não consigo
encontrar qualquer palavra. Estou pensando em que poderia
dizer para o homem intimidador ao meu lado. O
constrangimento que sinto por ter estado tão próxima, em
situação tão íntima com uma pessoa que mal olha para mim, traz
um certo desconforto, principalmente agora que não precisamos
mais fingir.
— Acho que seu pai não vai desconfiar de mais nada
depois desta noite — finalmente consigo dizer.
Daniel ainda segura com força o volante, observando um
ponto fixo a sua frente. Creio que ele não esteja de fato
prestando atenção em lugar algum. Certamente, está mergulhado
na lembrança dos últimos acontecimentos.
O silêncio sepulcral permanece e então decido sair. Acho
que ambos precisamos assimilar tudo o que aconteceu nas
últimas horas. Seguro a maçaneta, mas, quando estou prestes a
abrir a porta, sinto uma mão segurar meu braço.
— Espera — pede como se tivesse acordado de um
sonho, talvez de um pesadelo.
Quando nota que segura meu braço por mais tempo do
que deveria, ele o solta subitamente. Por incrível que pareça,
consigo sentir algo que ainda não sou capaz de decifrar. Tenho a
nítida impressão de que posso ver através de seus olhos agora
tristes. Deve ser difícil saber que o pai está muito doente e não
poder fazer nada para ajudar. Principalmente sendo um dos
homens mais ricos do mundo.
— Gostaria de agradecer a ajuda — ele diz, seus olhos
presos aos meus; há sinceridade neles.
— Fiz por uma boa causa. Só espero não me arrepender.
— Pretendo lhe pagar bem por isso. Meu pai está certo
de que somos namorados. Não sei por que razão, mas é o que ele
deseja. Dentro da empresa, quero que continue agindo
normalmente. Não estou lhe dando privilégios por isso, mas,
pelo que está fazendo por meu pai, não lhe darei tanto trabalho
como faria em qualquer outra situação.
— Não estou pedindo que me faça favores em troca —
ressalto e ele ergue as sobrancelhas. — Nos últimos dias, você
não tem aparecido, mas me dou por satisfeita se o senhor
realmente não me der uma tonelada de trabalho como, por
exemplo, passar seus ternos. E sim, estou fazendo isso pela
saúde do seu pai, mas não deixaria de ser um favor para o
senhor, não é mesmo? — Tomo uma lufada de ar antes de
continuar. — Não quero que me pague por isso. Não esqueça
que gosto do seu pai.
— Não vou me esquecer. — Daniel faz um movimento
com a garganta. Parece que ainda há algo o incomodando. —
Que também fique claro, Sophia... Tudo que fizemos lá na casa
do meu pai faz parte de uma grande mentira. Estamos fazendo
isso por ele e... espero que você não confunda as coisas.
Ergo as sobrancelhas pensando em sua prepotência;
como pode presumir que eu possa estar confundindo sua
declaração ou aquele beijo depois que falamos tão claramente?
— Não se preocupe. Você é o meu patrão, não sou
idiota. — Abro a porta e desta vez não há impedimentos.
Eu saio e sigo para a portaria. Quando a fecho, estreito o
olhar, confusa ao perceber que o carro do meu chefe ainda está
parado do lado de fora.

O expediente está chegando ao fim. As coisas estão bem


mais tranquilas agora. Meu chefe se tornou um homem educado
e aprendeu a dizer "por favor", sempre que me pede algo,
principalmente quando quer café. Hoje o pediu bem mais tarde
que o habitual. Não nos vimos, já que ele chegou bem cedo e se
enfiou no escritório, onde permaneceu o dia todo.
No momento em que deixei a xícara sobre sua mesa, ele
não estava lá. Provavelmente estava escondido, já que existe
outra sala, um enorme closet e um luxuoso banheiro anexos ao
escritório. Daniel poderia estar em qualquer um desses lugares.
Tive a sensação de que meu chefe está tentando me evitar a todo
custo, mas não posso negar que sinto certo alívio por isso.
Aquilo que fizemos ontem foi estranho e agora, depois de pensar
muito sobre o assunto, parece-me errado.
Quando meu chefe segurou minha cintura, ainda que eu
estivesse me sentindo constrangida com aquela situação, suas
mãos grandes causaram-me arrepios, um misto de medo e desejo
que eu não deveria sentir por um homem que, obviamente, não
está interessado em mim. Levando em conta todas as mulheres
com que ele deve ter saído nos últimos anos e o que ouço falar
da sua vida cheia de festas, eu seria a última mulher a que ele
pensaria em olhar de um jeito diferente.
Olho para o relógio preso em meu pulso e, no instante
em que me deparo com as horas, percebo que já se encerrou o
expediente. Limpo minha mesa, olho uma última vez em direção
à porta do meu chefe e me levanto.
De repente meu celular toca e, no mesmo segundo, meu
coração se torna uma britadeira. Adam, meu ex-noivo e quase
marido, está me ligando. Não consigo entender como ele ainda
tem a capacidade de me procurar. Respiro fundo, aliviada ao
notar que o aparelho parou de tocar, mas, quando começo a
caminhar em direção aos elevadores, volto a entrar em pânico.
Adam não vai desistir.
— Merda. — Quem sabe aquela mulher que o roubou de
mim tenha inventado mais alguma coisa a meu respeito e, talvez,
eu nem tenha como me defender. Melhor atender.
— Oi? — tento manter um tom cauteloso na voz.
— Oi, Sophia.
— Por que está me ligando, Adam?
Ouço-o respirar pesadamente.
— Sei que você não roubou aquelas joias...
— Jura? Como descobriu isso? — uso meu melhor tom
sarcástico.
— Patrícia disse que...
— Ah, ela confessou que levou aquelas joias para meu
apartamento só para me incriminar?
— Não. Do que você está falando? Ela disse que eu
deveria pensar sobre quem você foi para mim. Ela me fez pensar
que você as levou sem querer e, pelo tempo que a conheço, sei
que não faria algo assim...
— Nossa! Que mulher boazinha! — ironizo.
— Ok. Sei que você está chateada, é compreensível. Eu a
acusei sem ao menos levar em conta os anos em que vivemos
juntos. Quero me desculpar e faço questão de fazer seu
pagamento.
— Meu pagamento? — Mesmo que seja uma boa notícia
saber que vou receber por ter sido demitida sem justa causa, de
alguma forma ainda me sinto frustrada.
— Claro. É o seu dinheiro... — Ainda ouço sua
respiração forte. — Eu... eu sinto muito, Sophia, eu...
— Quando posso buscar meu dinheiro? — interrompo-o,
indo direto ao ponto.
— Amanhã está bem.
— Certo. Estarei na sua empresa amanhã de manhã. —
Desligo antes de me despedir, mas admito que a voz de
arrependimento de Adam me deixou um pouco chocada.
Ele sempre foi arrogante demais para se arrepender de
qualquer coisa. Será que se arrependeu de me trocar por aquela
mulher? Deixo os pensamentos de lado e saio do escritório,
tentando me preparar psicologicamente para entrar naquela
empresa; o lugar onde todos os funcionários me deram as costas.

Encaro o grande arranha-céu à minha frente e me


pergunto se foi uma boa ideia vir até aqui. Tentei ligar para
Anne, mas havia me esquecido de que ela estava na casa dos
pais, na Pensilvânia. Agora estou sozinha. Mesmo que seja por
dinheiro, estou novamente na empresa do meu ex-noivo, o
homem que me abandonou no altar. Todos os funcionários dessa
empresa eram próximos a mim até o fracassado casamento.
Acho que consegui entender o que realmente priorizavam, no
fim das contas.
Identifico-me na grande portaria e sigo para o elevador.
O percurso que eu fazia todos os dias parece estranho agora.
Quando o bip me avisa que estou no andar da empresa, respiro
fundo algumas vezes e saio da cabine.
Adam pediu que eu fosse direto para sua sala. Ele quer
entregar meu envelope pessoalmente, e eu não protestei. Talvez
esteja na hora de termos essa conversa. Algum espírito
masoquista dentro de mim quer que eu fale com ele. Deve ser
um espírito muito mau e eu vou exorcizar esse desgraçado assim
que sair desta empresa.
Agora que estou aqui, consigo erguer a cabeça e
caminhar pelos corredores onde se encontram várias mesas. Não
preciso ser advinha para saber que todos estão olhando para
mim. Finjo não me importar enquanto faço o caminho da
vergonha, o sentimento que experimento neste exato momento.
Tudo porque ouço pessoas sussurrarem pelos cantos, algumas
risadas e até mesmo, quando decido olhar para alguém,
expressões de pena. Cumprimento aqueles que me olham, mas
decido ignorar a maioria das pessoas. Decidi, em algum
momento antes de vir aqui, que o que eles pensam sobre o que
aconteceu não é mais relevante para mim, mesmo que eu sinta
vergonha agora.
A secretária me anuncia e logo pede que eu vá até a sala.
No instante em que abro a porta, deparo-me com Adam e
Patrícia, de pé, me observando. Ela parece sempre esconder uma
risada por trás da expressão dissimulada. Vê-los juntos ainda me
causa certa dor, principalmente porque, em meu íntimo,
imaginei que estaríamos sozinhos para, finalmente, colocarmos
um ponto final em nossa relação.
14

— Pela sua expressão de surpresa, parece que achou que


iria encontrar Adam sozinho, não é? — Patrícia diz, mas eu não
me deixo intimidar por ela.
— Seu namorado, ou noivo, não lhe contou?
Ela ergue uma das sobrancelhas e Adam não diz nada,
apenas assiste à discussão. Ele parece gostar disso.
— Claro que me contou! — Ela sorri com sarcasmo. —
Mas não imaginei que você tivesse a coragem de aparecer aqui.
— Por que não? Eu não fiz nada de errado! Nunca fingi
ser amiga de alguém para depois roubar o noivo dela. Nunca agi
de má-fé para conseguir as coisas que eu quero. Minha
consciência está limpa. E a sua?
— Você acha que eu fiz tudo isso? Adam me ama,
querida! Basta sair por aquela porta e olhar ao seu redor. As
pessoas estão rindo de você.
Não preciso fazer muito esforço para notar que minhas
palavras desencadearam sentimentos de raiva nessa mulher. O
problema é que as dela também me machucaram.
— Não me importo.
— Eu a chamei aqui, Patrícia — Adam intervém. —
Sophia e eu precisamos conversar — acrescenta.
Patrícia o encara como se quisesse gritar com ele, no
entanto respira fundo e força um sorriso tão falso quanto as
unhas dela.
— Tudo bem! — finge não se preocupar. Caminha em
direção à porta, mas se vira bruscamente. — Ah, querido! Não
se esqueça de que temos que nos preparar para um momento
importante desta empresa. Eu sou tão boa para você que
consegui aquele encontro, Adam. Não estrague tudo. Precisamos
continuar nos preparando. Não perca seu tempo com essa daí.
— Sei que você conseguiu, querida. Serei rápido aqui —
Adam diz.
Ela me analisa dos pés à cabeça e sai marchando para
longe.
— Não me passe nenhuma ligação, Rose — Adam pede
à secretária, enquanto pressiona um botão de seu elegante
aparelho.
— Sente-se.
Faço o que ele pede e Adam se acomoda do outro lado
da ampla mesa. Meu ex tem um grande escritório, mas nada que
se compare à empresa onde trabalho. Tudo lá é muito maior,
muito mais luxuoso, e seria impossível fazer comparações.
— Sophia, eu a chamei até aqui porque me sinto no
dever de pedir desculpas por tudo que aconteceu.
Mesmo que suas palavras tenham me atingido, eu tento
manter uma expressão indiferente.
— Acho que, apesar de tudo que nos aconteceu,
precisávamos findar nossa relação — digo tentando manter o
tom de voz normal. Não posso mentir, estar com ele me afeta de
alguma maneira. — Estou vivendo e já superei o que você me
fez... — tento enganar a mim mesma com essa afirmação.
— Não. Eu não deveria tê-la abandonado no altar, eu...
eu realmente sinto muito.
Temo que minha expressão não se mostre indiferente
agora; certamente demonstra surpresa, já que eu não esperava
essas palavras tão gentis vindas dele. Será que se arrependeu?
Mesmo que tivesse, eu não o aceitaria de volta. Pensar nessa
possibilidade traz à tona sentimentos que achei que estivessem
guardados.
— Está tudo bem? — Adam parece confuso agora, devo
parecer uma idiota.
— Sim, está. — De repente sinto lágrimas verterem
sobre minhas bochechas e só então percebo que não fui capaz de
segurá-las. Merda. O que está acontecendo comigo?
— Droga, você está chorando?
Limpo o rosto com o dorso da mão e percebo que estou
mais sensível do que deveria. Acho que tudo que vivi com esse
homem foi muito além do que eu imaginava. O homem que jurei
amar para sempre me trocou causando-me sentimentos de medo
e humilhação.
— Você se arrependeu por ter me trocado por aquela
mulher?
Adam passa os dedos, nervosamente, entre os cabelos e
puxa uma respiração profunda.
— Na verdade, eu andei pensando em tudo e confesso
que cogitei algumas vezes a possibilidade de ter cometido um
erro. Alguns sentimentos conflituosos andaram me torturando
ultimamente. Algumas vezes até senti a sua falta, mas então...
Patrícia estava lá. — Tento esconder o quanto essas palavras me
afetam e ele continua. — Não fui honesto com você, Sophia.
Patrícia e eu já estávamos tendo um... antes e... — Adam só
reforçou o óbvio.
Agora estou apenas me forçando a ser indiferente, para
evitar que mais lágrimas caiam e minha decepção seja ainda
maior. O arrependimento por vir parar aqui já me bateu com
força, mas não posso voltar atrás.
— Não me diga o óbvio, Adam. Não subestime minha
inteligência.
— Eu sei e lamento muito, muito mesmo, Sophia! Eu só
precisava dizer que sinto muito...
— Você sente, mas não pensou na dor que me causaria
ao fazer o que fez? Na humilhação que passei, diante de tantas
pessoas, ao ser trocada daquela maneira?
— Entenda, Sophia. Eu achei que você tivesse roubado
aquelas joias. Na verdade, eu até lamentei ter sido vingativo e a
abandonado no altar. Agi movido pela raiva. Você e sua família
são de origem inferior, mas eu sei que me precipitei...
— O quê? Você acabou de dizer "origem inferior"?
Adam se atrapalha e se levanta. Ele parece nervoso
agora, mas não me encara.
— Não foi o que eu quis dizer... — Ele para de falar e
decide me olhar. — Patrícia vem de uma família como a minha,
tem contatos, é uma mulher sofisticada e achei que isso
funcionaria melhor para minha vida. Não me leve a mal. — Ele
expande o peito. — A única coisa de que me arrependi foi de ter
feito as coisas movido pela raiva. Na verdade, eu desejei muito
que nosso relacionamento fosse melhor. Até pedi a você que
mudasse. — Ele me olha dos pés à cabeça. — Vejo que está
mais elegante e sofisticada agora. Muito mais linda que antes, e
isso realmente me surpreendeu...
— Então é de um enfeite que você precisa ao seu lado,
acertei?
— Droga, não! — Adam parece perdido. — Aquelas
joias foram parar dentro do seu closet. O que você queria que eu
pensasse?
Eu me ergo derrubando a cadeira atrás de mim. Não
consigo disfarçar a indignação.
— Queria que você tivesse certeza de que eu seria
incapaz de roubar. Você ainda acredita que eu tenha furtado
aquelas joias. Saiba que foi a sua noiva sofisticada quem as
enfiou em meu apartamento.
— Seja razoável, Sophia. Patrícia jamais faria algo
assim.
— Ela não faria, mas eu sim? Incoerente. Por que você
me chamou até aqui, Adam? Diga a verdade!
— Eu queria resolver essa situação de uma vez por
todas. Você fez toda aquela cena no restaurante. Fiquei com
medo de que pudesse fazer de novo, caso nos esbarrássemos em
público novamente. Quero pagar cada centavo que a empresa lhe
deve e quero selar a paz para que incidentes como aquele não
ocorram.
— Você só me chamou até aqui porque está com medo
de que eu aja como uma ciumenta maluca? Essa é a razão por
trás de tudo?
Ele exala com força.
— Sim. Não. Droga! Na verdade, eu sinto muito mesmo,
mas sim: não quero que atrapalhe meus negócios. Estou prestes
a fechar uma parceria com uma das maiores empresas do mundo
e meu nome não pode ser manchado por sua causa. Entenda
que...
— Só me dê a porra do meu dinheiro, seu desgraçado —
peço, minha voz mantém o tom baixo e controlado.
Se soubesse que por dentro eu gostaria de bater com essa
cadeira na cara dele, Adam não chegaria perto.
— Ok. Eu sinto...
— Para o inferno com o que você sente, Adam Smith. Só
quero a porra do meu dinheiro. — Meus olhos estão cheios de
lágrimas, e eu as limpo com raiva.
Respiro fundo várias vezes, enquanto o vejo buscar um
envelope. Ele se aproxima de mim e, em vez de me entregar,
joga-o sobre a mesa.
— É todo seu, faça bom proveito. — Vai até a porta e a
abre, na clara expectativa de que eu saia o mais rápido possível.
Pego o envelope e me viro. Adam parece estar com
raiva, mas não diz nada. Eu passo por ele quase correndo, não
olho para os lados e logo estou dentro do elevador, certa de que
neste lugar não há pessoas boas, só um monte de gente
preocupada com a vida alheia e em agradar o chefe.
15

O álcool ainda não faz o efeito desejado, enquanto passo


bons momentos em meu apartamento. As três mulheres diante
de mim rebolam o corpo perfeito, ao som de uma música que
nunca ouvi antes. Duas coelhinhas trazidas de Hollywood
parecem querer satisfazer todos os meus desejos. Que mulher
não estaria disposta a passar uma noite inteira desfrutando da
presença de um dos homens mais ricos do mundo?
Ainda estou longe de ficar bêbado, mas essas “coelhas”
são a grande distração da noite. Ultimamente estive ocupado
demais para me preocupar com mulheres, mas agora,
definitivamente, preciso de uma noite para tentar dissipar tudo
de ruim que escurece minha mente. Tudo de que eu não gostaria
de me lembrar quando acordar. O problema é que as coisas não
funcionam assim. A quem eu quero enganar? Não estou
pensando nessas mulheres, mesmo que eu queira. Minha cabeça
tem estado em vários lugares, menos aqui.
— Daniel? Tem uma bunda linda rebolando a sua frente
e você parece viver em outro mundo! Acorda, cara! — meu
amigo Aaron tenta se fazer ouvir através da música alta.
Faz tempo que não fazemos algo assim em meu
apartamento, mas ele sempre está disposto a participar de festas
quando envolvem mulheres.
— Cuide de suas bundas, que eu cuido das minhas —
brinco e em seguida viro meu uísque em um gole só.
Meus olhos estão presos nos movimentos contínuos da
loira que sorri balançando os enormes seios, e minha mente
tenta se esforçar para permanecer no presente.
Aaron é quase da minha altura, seus cabelos e olhos são
castanhos. Ele é do tipo atlético e, além de físicos parecidos,
temos certa tara por mulheres. Sim. “Mulheres”, no plural.
Muitas mulheres ocupando o mesmo espaço. O problema é que,
mesmo que elas sejam incríveis, uma em particular tem se
infiltrado em meus pensamentos, como uma intrusa. Ela não só
está me ferrando agora como está me irritando por estar aqui
sem ser convidada. Minha secretária tem algum segredo
escondido dentro daquelas roupas, porque não vejo nada de
especial nela, além dos lábios e um traseiro impressionante. O
fato de ela não se importar comigo e de ter sido atrevida
algumas vezes me deixa, de certa forma, intrigado. Não vou
negar que as coisas que descobri sobre sua vida e o fato de ela
realmente mostrar-se verdadeira foram o gatilho inicial para que
as coisas saíssem do controle. Porém não sou idiota. Muitas já
fizeram isso, mas, em determinado momento, as máscaras
caíram. Ninguém consegue fingir por muito tempo e em breve
terei certeza de que ela é exatamente como todas que cruzaram
meu caminho. Superficial.
— Cara, você tá muito estranho — Aaron se infiltra em
meu pensamento, mas continuo observando as mulheres
seminuas dançarem rebolando, mesmo que minha mente não
esteja nelas.
— Meu pai. Problemas de saúde — informo sem dar
maiores detalhes, mas acho que ele entendeu.
— Sério? O que houve? Ele está bem?
— Não.
Aaron é meu amigo de infância e voltou para Nova York
há pouco tempo, depois de uma longa temporada vivendo no
Canadá. Pretendo contar tudo a ele, mas não agora. Não aqui.
— Relaxa, cara. Depois eu conto.
— Então sugiro que aproveite essas bundas antes que
elas vão embora.
— Se forem embora, eu mando trazerem outras... —
Rimos, mas a risada dura poucos segundos, depois que sinto
meu celular vibrar no bolso da calça.
No instante em que vejo que é meu pai quem está
ligando, eu me levanto.
— Merda! Desliguem a porra do som! — berro enquanto
corro em direção às escadas, até alcançar meu quarto e,
finalmente, o closet, para que ele não ouça as vozes femininas.
A ligação cai quando atendo, mas retorno no mesmo
instante. Espero que não seja nada de mais.
— Filho? Por que não me atendeu? Está ocupado?
— O aparelho estava no modo silencioso. Aconteceu
alguma coisa?
— Não se preocupe. Liguei porque gostaria de lhe fazer
um pedido.
— Pedido?
— Sim. Quero que venha morar comigo, como nos
velhos tempos. Agora que parou de fazer aquelas orgias e está
namorando de verdade, poderia voltar a viver aqui? Meu
apartamento é tão grande quanto o seu e também... há uma coisa
que eu preciso lhe contar.
No momento em que o ouço pronunciar a última frase,
meu coração acelera. Meu pai não faz a menor ideia de que eu
sei muito bem sobre o que ele quer falar, mas mantenho a voz
neutra.
— Claro, pai. Amanhã conversaremos. Eu vou até aí.
— Traga a sua namorada.
— Sophia?
— Filho, a qual namorada você acha que estou me
referindo?
— Claro, pai. Força de expressão, lógico que vou levá-
la... Amanhã.
— Excelente! Espero vocês às seis da tarde, sem atrasos.
— Pode apostar... — Desligo o aparelho pensando em
como vou convidar Sophia para ir comigo até a casa do meu pai
e fazer uma nova encenação.
Não sei se vou conseguir lidar com essa farsa por muito
tempo.
16

Eu deveria saber que eles seriam muito imbecis comigo.


Agora, pensando com a razão, concluo que Adam Smith
combina perfeitamente com aquela mulher superficial. Na
cabeça dele, o coração que se dane! O que ele deseja é uma
mulher sofisticada, fútil e rica para ajudá-lo a crescer
financeiramente.
Como pude estar tão cega durante todos esses anos?
Como me deixei levar por aquelas pessoas inescrupulosas?
Eu deveria ter notado que trabalhava no meio das cobras.
Talvez não tivesse notado porque, certamente, fui uma delas. Fui
atraída por ele e depois, descartada como uma mercadoria.
Ando apressadamente pela Sétima Avenida, em direção à
estação de metrô, e tudo que vejo é uma chuva torrencial
desabando sobre mim. O tempo fechou só para combinar com o
meu terrível humor.
Tento me desviar das pessoas que se aglomeram na
calçada, mas ando apressada para chegar ao trabalho. Já estou
atrasada e, com esses saltos encharcados e a saia justa, não sei se
serei capaz de chegar a tempo. Sou incapaz de raciocinar com
essa chuva desabando sobre mim.
Acelero os passos, ultrapassando uma multidão de
pessoas e guarda-chuvas. Em determinado momento, sou
praticamente empurrada para fora da calçada. Quando tento
voltar, pulo uma poça, mas o salto fino do meu scarpin se prende
em algum buraco e se quebra. Meu pé se curva com brusquidão,
levando-me a cair desajeitadamente. Sinto uma dor aguda e um
berro involuntário ecoa de minha garganta.
— AAAI!
Não sei se torci o pé ou se quebrei, mas a dor impede que
eu me mova. A chuva fria cai impiedosamente sobre mim,
fazendo com que meu corpo estremeça e a dor fique ainda mais
insuportável.
Alguém resgata minha bolsa em algum lugar e estou
agradecida de que meu celular ainda esteja dentro dela. Pelo
meu tombo, o aparelho poderia ter voado para longe.
Penso em ligar para minha amiga, mas me recordo de
que ela ainda não está na cidade. Começo a entrar em pânico
quando algumas pessoas tentam me tirar do chão.
— Você está bem? — Dois homens e uma mulher me
ajudam a me levantar, mas sou incapaz de firmar os pés sobre o
chão.
Eles notam meu desespero e me carregam de maneira
desajeitada, mas me sentam em um banco encharcado.
Sinto uma dor ainda maior, mas tento respirar fundo para
não me desesperar.
— Você precisa ir para um hospital — um homem diz e
eu concordo com a cabeça, mas não consigo dizer nada. Apenas
tremo e faço caretas de dor.
Querem chamar uma ambulância, mas decido não
esperar. O trânsito está horrível e não quero ficar aqui debaixo
desta chuva. Não acho que tenha sofrido nada grave a ponto de
precisar dos paramédicos. Peço que me coloquem em um táxi e,
depois de longos minutos que parecem horas, já estou sendo
atendida em um hospital.

Dormi inesperadamente. Talvez toda a exaustão do dia,


aquele tombo e o cansaço, tenham contribuído para isso. Não
estou mais usando as roupas molhadas. Alguém me deu uma
cama e cobertores quentes para evitar uma hipotermia. Por sorte
já me sinto melhor, mas meu pé está imobilizado com uma
espécie de bota ortopédica. O médico disse que sofri uma
ruptura parcial dos ligamentos. Isso significa que precisarei ficar
de repouso. Isso também significa que posso perder meu único
emprego.
Decidi deixar mensagem para Jonathan sobre o ocorrido.
Ele me perguntou se eu precisava de algo, mas preferi não
aceitar qualquer ajuda, embora não saiba se serei capaz de subir
as escadas do meu prédio. O loft onde moro é caro como um
palácio, mas antigo, e sempre apresenta problemas com o
elevador. Esse é o preço que se paga por morar em Manhattan.
Começo a entrar em pânico só em pensar que terei de
voltar para a casa dos meus pais. Não quero que eles parem sua
vida para me ajudar, não seria justo.
Sentindo o desespero tomar conta de mim, eu me sento e
deixo as lágrimas caírem sobre minha face.
— Droga. Que dia de merda — sussurro ao constatar
que, se eu não tivesse ido ao escritório do Adam, não teria
passado por nada disso. Mais um ponto para aqueles filhos da
puta. — Adam, você me paga! — continuo minhas lamentações
enquanto choro, com as mãos cobrindo o rosto.
De repente, sinto uma mão apertar levemente meu
ombro.
— Não se preocupe, você vai ficar bem. — Paro de
soluçar quando a voz grave ecoa no ambiente.
Retiro a mão do rosto e encaro, perplexa, meu chefe bem
diante de mim. Daniel me encara com o que parece genuína
tristeza.
— Sinto muito... — diz e por alguma razão sinto
vergonha pela minha lamentável aparência.
— Como soube que eu estava...
— Jonathan. — Concordo com a cabeça, tentando
imaginar o motivo que o trouxe até aqui. — Meu pai soube que
você estava neste hospital e me obrigou a vir.
Ergo as sobrancelhas enquanto limpo as lágrimas com o
lençol. Claro que ele tinha que vir, afinal somos namorados de
mentira. Uma farsa que o obrigou a vir.
— Você não precisava.
— Suas roupas já foram lavadas e já estão secas. A
enfermeira irá vesti-la, não se preocupe. O motorista está nos
esperando na porta. Vamos!
— Você vai me levar para casa?
— Não. Vamos passar um tempo na casa do meu pai. É
lá que você vai se recuperar.
— Como assim? Eu tenho meu loft e...
— Como vai se virar sozinha? Acredite, meu pai faz
questão. Não o faça sair de seu apartamento para vir até aqui
convencer...
Sustentamos o olhar por alguns segundos, meus
pensamentos imaginando minha estada na cobertura do Senhor
Wallner. Não deve ser tão ruim assim. Ele tem empregados que
podem me ajudar.
— Tudo bem. Eu vou. Melhor que ir para a casa dos
meus pais. Eles trabalham fora e...
— Eu decidi ficar um tempo com ele — Daniel me
interrompe, sua expressão aparentemente confusa.
— Você vai morar com seu pai?
— Sim. Vou me mudar para lá. Já conversamos por
telefone e meus pertences já estão sendo levados.
— Seu pai piorou ou lhe contou sobre a doença?
— Ainda não, mas tudo indica que ele vai nos contar
hoje.
— Meu Deus, não sei o que dizer.
— Vou esperar no carro. A enfermeira irá ajudá-la.
Observo-o se afastar, mal acreditando no que acabei de
ouvir. Parece que nosso relacionamento de mentira está indo
longe demais.
17

A enfermeira me leva até o carro. Aparentemente não


tem pressa para se livrar de mim, já que seus olhos parecem
ímãs enquanto observam Daniel. Não é difícil compreender tal
reação. Meu chefe, ou namorado de mentirinha, é uma visão de
tirar o fôlego. Hoje está particularmente mais lindo que o
normal, talvez devido à roupa informal. Sem terno e com essa
camisa esportiva, ele aparenta ser mais jovem e ainda mais
bonito. Seus cabelos escuros e os olhos azuis parecem mais
vívidos que nunca.
— Você pode colocar sua namorada no carro? — a
enfermeira pede, e a expressão encantada desmente suas
tentativas de ser profissional.
Daniel está encostado no carro, ele ergue as
sobrancelhas, mas acena em positivo. Nós dois nos encaramos e,
aparentemente desconfortável, ele se abaixa, fazendo com que
seu cheiro inebrie minha mente. Tento ignorar sua proximidade
e o ajudo, forçando meu corpo para cima, enquanto ele desliza
um braço embaixo das minhas axilas. Sinto-me constrangida
quando outro braço envolve minhas coxas, e Daniel me ergue
com facilidade. Agora indefesa e em seus braços, pareço bem
mais leve, como se fosse uma boneca.
Meu namorado de mentira me carrega com cuidado e a
enfermeira segura a porta, enquanto ele me senta no banco
traseiro do sofisticado Cadillac Escalade. Sinto os dedos dele
deslizarem pela minha cintura e pelas pernas. Tento evitar
contato visual, mas não sei por que razão me sinto tão
constrangida. Acredito que isso se deva ao fato de ele ser um
homem imponente, lindo. Ridiculamente lindo.
Daniel fecha a porta e dá a volta, ocupando o espaço ao
meu lado. O motorista espera seu aceno. Quando é autorizado,
liga o carro, dá partida e segue pelas ruas de Nova York.

Ainda é constrangedor estar nos braços de um homem


que, se não me despreza, certamente não sonhava em ter de me
carregar e passar por isso. Ele é um empresário, um dos mais
bem-sucedidos do mundo, deveria ser imune a circunstâncias
como essa. Sem mencionar que pode ter a mulher que desejar. A
mentira levou dois quase estranhos a viverem como pessoas
íntimas e que se amam. Sei que tudo tem um importante motivo
e, por essa razão, não vou me estressar. Embora o
constrangimento exista, de ambas as partes, não posso ignorar o
cheiro inebriante que este homem exala. Eu poderia me
acostumar a isso. Sentir seus braços fortes me acomodando com
tanta facilidade contra seu corpo não desperta apenas
constrangimento, mas desejo, muito desejo. Claro que é
puramente sexual, porém eu poderia me apaixonar facilmente
por ele.
Há quanto tempo não saio com um homem? O último,
infelizmente, foi Adam, e fizemos sexo cinco dias antes do não-
casamento. A ideia era fazer com que ele sentisse falta do meu
corpo; assim a lua de mel, que nunca aconteceu, se tornaria
inesquecível. Provavelmente ele desfrutou da lua de mel com
Patrícia, enquanto eu estive vivendo o inferno; vergonha,
tristeza, raiva e medo por ter perdido o "amor da minha vida".
Como fui estúpida! Adam nunca foi o amor de ninguém.
Daniel sai do elevador me carregando firmemente e,
quando se aproxima da porta, vejo uma senhora de cabelos
escuros, vestida de branco e sorrindo em nossa direção. Ela nos
cumprimenta e dá espaço para passarmos. Com cuidado, ele me
acomoda no sofá confortável da sala de estar e finalmente dá
atenção à mulher.
— Sou a enfermeira contratada para cuidar da senhorita
Sophia. Muito prazer.
— Obrigada, não quero dar trabalho.
— Seu sogro faz questão.
— Sogro... — repito a palavra em voz alta, mas Daniel
parece me censurar silenciosamente.
— Meu pai, seu sogro — ele diz e volta a atenção para a
senhora de cabelos amarrados. — Não somos casados e ela não
está acostumada a chamá-lo assim.
A mulher sorridente apenas concorda com a cabeça.
— Não se preocupe, ela se acostumará em breve.
— Com certeza — confirmo tentando soar normal.
— Você sabe em que quarto ela vai ficar? — Daniel a
questiona, mas, quando a mulher está prestes a responder,
Franklin se aproxima.
Vejo que perdeu peso e parece um pouco mais abatido.
Seus cabelos brancos estão mais ralos e ele anda mais
lentamente que o normal.
— Meu filho, você a trouxe. — Franklin se aproxima de
mim e sorri. — Vejo que andou aprontando, não é, Senhorita
Sophia?
— Não foi meu melhor dia, mas o senhor está sendo
muito generoso ao me deixar ficar aqui por algum tempo.
— Além de namorada do meu filho, você é uma boa
amiga, Sophia. É o mínimo que eu poderia fazer. Não faz ideia
do quão boa você foi para mim naquela clínica.
— Obrigada.
— Melhor levá-la para o quarto de hóspedes. Já está
pronto?
— Como assim? Sophia é sua namorada, é claro que vão
dormir no mesmo quarto. Vocês são adultos, filho. Eu sei que já
são íntimos. Não sou idiota. Além do mais, ela pode precisar de
sua ajuda durante a noite, caso queira ir ao banheiro.
— Mas eu...— Sem argumento, Daniel se cala. Ele me
olha e, com os lábios, esboça um discreto gesto de resignação.
— Certo. Claro, pai. Eu cuido dela — dispõe-se, aparentemente
contrariado, mas o pai parece não perceber.
Franklin nos encara com uma expressão satisfeita. Seus
olhos azuis brilham de felicidade.
— Ótimo. Quero que fique aqui o tempo que precisar,
Sophia. Pode até morar aqui se quiser.
— Eu nem sei como agradecer, senhor...
— Agradeça fazendo meu filho feliz.
Daniel e eu nos olhamos. Engulo em seco, mas tento
disfarçar minha expressão nervosa. Não imaginava que o pai
estava tão entusiasmado com nossa relação de mentira como
parece agora. Se é difícil estar perto de Daniel em qualquer
ocasião, não posso imaginar como seria dormir com ele. Senhor,
me ajude.
18

Da altura vertiginosa em que estou, consigo ter uma


visão assustadoramente privilegiada dos arranha-céus de
Manhattan. A janela de vidro ocupa quase toda a extensão da
parede do quarto; o quarto mais lindo em que já estive em toda
minha vida. A decoração não é muito elaborada, só o suficiente
para adejar um toque de sofisticação no ambiente. Um ambiente
masculino e sóbrio. Jamais me imaginei sequer pisando em um
quarto tão luxuoso como este, principalmente tendo Empire
State como plano de fundo. Confesso que estou impressionada.
A casa dos pais de Adam também é grande e luxuosa,
mas certamente não se compara a essa cobertura no coração de
Manhattan. É impossível não me lembrar dos poucos momentos
em que convivi com eles; de quão idiota eu parecia enquanto
tentava impressionar sua família. Os pais de Adam sempre me
enxergaram como uma coitada.
Daniel me deixou aqui mais cedo, mas saiu tão rápido
que nem fui capaz de conversar sobre essa farsa, sobre como as
coisas chegaram a esse ponto. Eu sempre soube que Franklin
tinha grande consideração por mim, mas jamais imaginei que
esse afeto fosse tamanho, ao ponto de ele querer me ver casada
com seu filho. Na verdade, sempre tive a convicção de que
famílias ricas geralmente se unem a outras da mesma classe, e
eu sou exatamente o oposto de tudo que essas pessoas procuram.
Sempre me considerei o oposto do Adam, mas isso aqui chega a
ser um absurdo e, ao mesmo tempo, surreal para mim. Caí de
paraquedas nessa família, por causa de uma mentira. Ainda me
sinto constrangida por estar aqui, nesta vida que não me
pertence e deitada na cama de um homem com quem tenho zero
intimidade.
Agora estou medicada, sozinha e muito nervosa,
observando, da cama, essa vista e imaginando como as coisas
serão a partir de hoje. Como devo tratar meu chefe de agora em
diante? Afinal de contas, estou vivendo em sua casa como sua
namorada. Um homem que, na verdade, sempre esteve fora dos
meus limites. Até há pouco tempo estava tentando não perder
meu emprego de secretária e agora sou a namorada do meu
chefe.
Ouço duas leves batidas à porta e a enfermeira aparece
carregando uma bandeja com suco e comida. Muita comida. Ela
sorri quando percebe que estou acordada e deposita o desjejum
ao meu lado, na cama espaçosa. Sinto-me perdida no meio de
tantos travesseiros.
— Está na hora de tomar o seu remédio, querida. — Ela
me entrega o copo de suco e um comprimido.
Eu tomo e logo me ajeito para que ela encaixe a bandeja
a minha frente.
— Você deve estar faminta, não é?
— Sim. Um pouco...
De repente meu celular toca na mesinha e a enfermeira
alcança o aparelho para mim. Quando me entrega, eu vejo que
minha mãe está ligando e só então me dou conta de que não falo
com ela há mais de dois dias.
— Mãe? — atendo apreensiva.
— Filha, você está bem? Anne me contou tudo. — Meu
queixo cai, esqueci de avisá-la sobre o ocorrido, mas pelo visto
ela já sabe.
— Estou bem, mãe. Não faz muito tempo que falei com
Anne e ela já espalhou a notícia?
— Eu a pressionei, querida. Não a culpe. Estava
preocupada, você não liga há dias e, como seu aparelho estava
desligado o dia todo...
— Eu estava descansando. Não gosto de preocupar a
senhora com bobagens, mãe. Eu ia ligar amanhã.
— Sua amiga me contou que você está bem e na casa do
namorado. Como assim, filha? Por que não me contou sobre
esse tal homem com quem está saindo? Aliás, namorando.
— Porque eu estou esperando, sabe como é... Quero ver
como as coisas vão ficar entre a gente.
— Tudo bem. Você está com medo e isso é totalmente
compreensível, filha. O que Adam fez com você foi muito sério,
querida, mas acredite, a maioria dos homens não é assim.
— Você pode ter razão, vou pensar sobre isso.
— Nem o conheço e já gostei dele. Vou torcer para que
seja o seu amor. Mesmo que esse acidente tenha me assustado,
eu fico feliz em saber que está bem e que tem alguém para
cuidar de você.
— Você não faz ideia, mãe — tento disfarçar a voz
irônica.
Claro que só estou aqui por causa de uma mentira.
Daniel me atura por causa disso.
— Sua amiga me disse que ele é lindo e muito atencioso.
Não me deixe curiosa por muito tempo, está bem?
— Não vou deixar, mãe. Preciso ver se as coisas vão...
você sabe, para a frente. Diga oi para o meu pai. Sinto a falta de
vocês.
— Eu amo você, filha. Quando estiver melhor, venha nos
visitar, ou vou até aí puxar sua orelha.
— Eu vou, mãe. Amo vocês.
— Também, querida.
Despedimo-nos e então volto a atenção para o pequeno
banquete convidativo a minha frente. Meu estômago dá uma
cambalhota e só então noto que estou muito faminta.

Completamente perdida, tento me arrastar, bem no meio


de uma rua deserta, na tentativa de encontrar algum lugar que
possa aquecer meu corpo. Estou sentindo frio, muito frio. Meu
pé lateja de dor e não há ninguém por perto. Tento gritar por
ajuda, mas todas as minhas tentativas de fazer com que alguém
apareça são vãs.
O vento balança furiosamente as árvores que ladeiam a
rua onde estou. Lágrimas começam a escorrer, incessantes, pelo
meu rosto. O desespero, medo de morrer neste lugar, começa a
tomar conta de mim. Minha visão está turva por causa das
lágrimas, mas, à medida que as limpo, algo surge diante de
meus olhos. Há uma igreja logo à frente e, com muito esforço,
tento me erguer. Quando consigo, caminho em direção à
catedral e o frio parece congelar meus ossos. Com o pé mal
tocando o chão, sinto dificuldade a cada passo que dou, mas
não paro até me aproximar da enorme porta retangular. Ela
está aberta, e o lugar, escuro, mas entro mesmo assim. No
instante em que coloco os pés no piso gelado de mármore, noto
que há um tapete vermelho, e, lá no altar, velas iluminam um
casal de noivos sendo abençoados por um padre vestido todo de
preto. Um padre que se parece com o Diabo. Meu corpo
estremece ainda mais, como se estar dentro de um lugar
fechado não tivesse feito a menor diferença para mim. O vento
frio continua em todos os lugares enquanto observo o casal,
compenetrado, de costas para mim. Agora não vejo mais o
padre e não há mais ninguém além de mim e o casal. Os
tremores do meu corpo se tornam violentos e eu grito de
desespero, chamando a atenção do casal, que se vira
instantaneamente. Abraço meu corpo frio ao constatar que são
Adam e Patrícia. Estão sorrindo e debocham de mim. Peço
socorro, mas eles se beijam em vez de me ajudar. O tecido fino
não é suficiente para aplacar o frio e a dor que estou sentindo...
Sophia...
Uma voz grave e distante chama a minha atenção. É
uma voz familiar e reconfortante.
Sophia...
Ela está cada vez mais perto dos meus ouvidos.
— Acorda, acorda... Sophia.
Abro os olhos ainda sentindo tremores pelo corpo, mas,
quando vejo a expressão de preocupação estampada no rosto de
Daniel, entendo onde exatamente estou.
— Você... — Observo os olhos azuis muito perto dos
meus. — Acho que estava sonhando...
— Você está congelando. Parece que alguém ligou o ar
por engano. — Daniel, que ainda está vestido, puxa os
cobertores, envolvendo meu corpo.
Sinto uma onda de calor bem-vinda.
— Obrigada. Droga, desculpe, eu não queria acordar
você...
— Acabei de entrar no quarto, não se preocupe...
— Estou sentindo muita dor no calcanhar. Você pode me
dar o remédio que está em cima do criado-mudo?
— Claro. — Entrega-me o comprimido junto ao copo de
água.
Quando termino de tomar o medicamento, ele pega meu
copo e o deposita no mesmo lugar. Daniel enfia as mãos nos
bolsos da calça, parece distraído enquanto se aproxima da
grande janela, observando a vista através da vidraça.
Não digo nada por alguns segundos, só consigo observar
suas costas. Dei o espaço que ele queria, mas sinto que
precisamos conversar.
— Sei que estou atrapalhando e que você se sente
desconfortável em estar com sua funcionária aqui, mas...
— Não diga bobagens. — Daniel se vira e seus olhos me
encaram com intensidade. — Adam era seu noivo?
Ergo as sobrancelhas, surpresa com a pergunta.
— Sim, era. Você sabe sobre ele?
— Tudo que sei sobre esse homem meu pai disse
naquele jantar. Hoje, quando fui buscá-la no hospital, você disse
que ele iria lhe pagar. Foi ele quem causou tudo isso? Era com
ele que você estava?
Abro a boca para responder, mas confesso que não
esperava essa pergunta. Daniel cruza os braços esperando que eu
diga o que aconteceu.
19

Daniel sustenta a postura imperiosa. Sei que não estou


lidando com meu chefe agora, mas ainda sinto um frio na
barriga, principalmente quando estou sendo questionada sobre
uma situação que eu só gostaria de esquecer. Mas, por alguma
razão, quero desabafar. Falar sobre isso com alguém que não
vivenciou comigo o que passei pode ser bom. Talvez isso me
ajude a lidar com esse trauma que vem me perseguindo há
meses.
— Já que somos "namorados", talvez seja melhor saber
mais sobre sua vida. Então, ele se chama Adam, certo? Você
gritou o nome dele antes de acordar. Não sou do tipo curioso,
mas confesso que estou me perguntando o que esse homem
poderia ter feito de tão grave. Você parecia estar com medo.
— Eu gritei o nome dele? — pergunto e Daniel acena
com a cabeça, mas não diz mais nada. Ele continua na mesma
posição, esperando que eu diga alguma coisa. Imagino que meu
rosto denuncie a perplexidade. Como um ex-noivo pode ser tão
destrutivo? — Sim. Adam. Ele é o meu ex-noivo. — Inspiro e
solto o ar com todo o peso do meu estado de ânimo. — Estava
no trabalho quando ele me ligou. Queria que eu fosse à empresa
dele receber meu pagamento e disse fazer questão de me dar em
mãos.
Daniel ergue as sobrancelhas, mas em seguida senta-se
na poltrona confortável, ao lado da janela. Ele apoia os
cotovelos sobre os joelhos e seus olhos não saem de mim.
— Prossiga...
— Acho que meu lado imbecil falou mais alto e eu fui
até lá. Adam queria conversar comigo, mas...
— Vocês brigaram e ele a machucou?
— Não. Eu não estava com ele quando caí no meio da
rua. Ele... — Olho para as mãos fingindo analisá-las, mas na
verdade estou pensando em como vou dizer que sou a pessoa
mais patética do mundo. — Acho que ele estava testando minha
paciência. Meu ex-noivo me irritou. Eu só não deveria ter ido.
— Por que se separaram? — novamente me pega
desprevenida.
Daniel me analisa, aparentemente curioso, algo
incomum, principalmente tendo em conta que ele nunca deu a
mínima para mim.
— É meio ridículo dizer que... — Outra expressão
interrogativa contrai seu sobrecenho, enquanto ele espera que eu
continue. — Que fui abandonada na igreja. Ele me deixou ali.
Eu parecia uma planta esperando por ele. É isso, fui humilhada
na frente de muitos funcionários da empresa onde trabalhei,
familiares e amigos. Hoje, meses depois, ainda sou uma atração
para eles, tornei-me uma piada ambulante. É isso. Tudo por
causa do Adam e da Patrícia.
Daniel se ergue abruptamente, um vinco surge entre suas
sobrancelhas. Ele suga o ar com força, enquanto segura a nuca
com uma das mãos. Eu poderia dizer que está nervoso, mas seria
muita pretensão minha achar que está assim por minha causa.
— Você não deveria ter ido — ele me repreende.
Parece confuso, e eu estou ainda mais desconcertada
com sua atitude. Ele nem me conhece direito, mas parece bem
irritado com o que contei.
— Eu preferiria ter sido presa, comer cocô de cachorro a
ter ido àquela empresa. Você deveria ter visto a cara daquela
Patrícia, as pessoas rindo de mim e como eu me senti ridícula.
— O que ele fez quando esteve lá? — Daniel me
interrompe, aparentemente não vai desistir de saber sobre cada
detalhe da minha humilhação.
— Ele queria se certificar de que eu não o constrangeria
em público. Nós nos encontramos uma vez antes de eu começar
a trabalhar na sua empresa. Estávamos em um restaurante e eu
joguei vinho na cara dele.
Meu namorado de mentira ergue as sobrancelhas, talvez
eu tenha visto o fantasma de um sorriso, ou, quem sabe, eu
esteja vendo coisas demais.
— Resumindo, ele é um empresário e tem medo de
escândalo. Seu ex acredita que você pode manchar a carreira
dele, estou certo?
— Exatamente. Foi o que ele me disse, mas o mais
humilhante, novamente, foram suas palavras. Não sou rica ou
sofisticada como sua atual namorada, ou noiva. Ele deixou isso
bem claro. Adam sente a minha falta, mas detesta saber que sou
de origem "inferior". — Puxo uma respiração profunda. — Ele
me acusou de algo que nunca fiz.
— Eu tenho uma ex, você a conheceu aquele dia. —
Concordo com a cabeça me lembrando da louca que invadiu o
escritório aos berros. — Mas ela não costuma jogar vinho na
minha cara. Faz um pouco pior. Minha ex costuma berrar,
quebrar coisas. Ela me liga dia sim e outro também. Ela me
inferniza para que eu pague a próxima plástica e já me arrancou
uma pequena fortuna por causa do divórcio. — Daniel enfia as
mãos nos bolsos e, por incrível que pareça, eu começo a rir; não
sei se era para soar engraçado, mas estou rindo como uma idiota
pelo modo sério como ele contou.
— Você acha isso engraçado? — Daniel se aproxima,
senta-se ao meu lado na cama e sorri; pela primeira vez ele sorri
de verdade.
Tento parar fechando a boca com uma das mãos, mas
isso só me faz chorar de rir.
— Sinto muito, não queria rir. Acho que não foi sua
intenção me fazer rir. Você conseguiu ser engraçado, sabia? —
consigo dizer, mas Daniel apenas me observa, parece pensativo.
— Minha ex é maluca, posso dizer que tenho todos os
motivos para querer aquela louca bem longe de mim, mas não
acho que seja o caso do seu ex. Ele é um grande merda. Homens
como ele não merecem a atenção de uma mulher como você. —
Daniel se ergue. — Preciso de um banho. — Sai do quarto
deixando-me perplexa com o que acabou de dizer.
"Mulheres como eu", o que ele quis dizer com isso?
Ajeito-me na cama, encarando o teto e pensando em
como me sinto mais leve por ter sido capaz de desabafar sobre
Adam com Daniel. Acho que seria a última pessoa com quem eu
pensaria em desabafar sobre minha vida, mas me sinto bem de
verdade.
Não sei há quanto tempo estou mergulhada nos
pensamentos, mas sou trazida de volta quando um cheiro
agradável de sabonete invade minhas narinas. Olho para o
corredor que leva ao grande e luxuoso banheiro, vejo Daniel
caminhando de volta para o quarto. Está com uma toalha presa
aos quadris e não se preocupa com o fato de que uma quase
estranha esteja deitada em sua cama, observando-o. Ele segura o
aparelho celular analisando a tela, absorto em algo que está
lendo.
Aproveito que está concentrado nisso e dou uma boa
olhada em seu corpo. Não consigo evitar um pouco de
nervosismo ao constatar que estou diante do homem mais sexy e
lindo que já vi na vida. É difícil tentar ignorar essa vista que me
parece mais interessante que Nova York neste momento. Os
braços fortes, mas na medida certa, e o peitoral definido só
comprovam o quão bem ele cuida do corpo sem deixar de lado a
masculinidade natural.
— Perdeu alguma coisa? — De repente sou trazida de
volta e me dou conta de que tenho a atenção de Daniel.
Ele acaba de me pegar no flagra, babando, e a única
coisa que eu gostaria de fazer neste momento é me enfiar em um
buraco e não sair de lá até que a vergonha vá embora.
— Desculpe, senhor, eu...
— Pare de me chamar assim! Você é minha namorada
agora e não a porra de uma funcionária. Não estou repreendendo
você por me olhar, só estou curioso. O modo como estava me
olhando parecia bem... interessante... — Com o celular na mão,
Daniel sorri mais uma vez. — Estou tentando quebrar o gelo
entre a gente e, se você continuar a me enxergar como seu chefe,
isso não vai funcionar. Eu e você não chegaremos a lugar algum.
Precisamos fazer isso dar certo, pelo meu pai.
— Você tem toda razão. Eu... eu só não sei como agir
vendo-o assim, quase nu. Vou me esforçar para que seu pai não
desconfie de nada. Prometo.
— Ótimo. Assim podemos agir naturalmente na frente
do meu pai. Ele está prestes a nos contar sobre a doença e
precisamos nos preparar para isso.
— Claro. — Meus olhos caem involuntariamente nas
gotas de água que deslizam sobre seu abdômen definido. — Vou
tentar.
— Claro que vai. — Ele parece se divertir com o meu
jeito patético. — Melhor tentarmos dormir.
De repente Daniel se livra da toalha, fazendo com que
meu queixo caia, não literalmente. Meus olhos se fecham por
impulso, mas se abrem por curiosidade. Ele já está nu e não se
importa de se deitar ao meu lado, usando o mesmo cobertor. Ele
apaga a luz do abajur ao seu lado, e a única coisa que vejo é a
silhueta de seus ombros largos, de costas para mim.
— Você vai dormir assim?
Ele nem mexe o corpo e continua na mesma posição.
— Eu sempre durmo assim. Precisamos de intimidade
para que pareça real, lembra? Você também deveria ficar à
vontade, querida. Prometo que não vou me importar. — Sei que
ele está sendo sarcástico, mas não pensei que Daniel fosse tão,
tão, tão... sem-vergonha.
20

Abro os olhos lentamente e me deparo com Daniel. Ele


caminha, e o som dos sapatos sobre o piso se mistura ao ruído
do meu telefone, que vibra sobre o criado-mudo. Estendo o
braço e alcanço o celular, os olhos de Daniel sobre mim. É
estranho acordar aqui, e é embaraçoso me deparar com ele. Meu
coração está acelerado sem razão aparente, mas decido prestar
atenção ao nome da minha amiga, que brilha no visor. Prefiro
não atender e também não sei por que estou fazendo isso.
— Estou de saída. Precisa de algo, ou de ir ao banheiro?
— Daniel pergunta, seus olhos curiosos sobre mim.
— Não, obrigada — minto.
Daniel acena, pega sua maleta sobre a mesa, perto da
janela, e caminha até a porta. Sinto o cheiro delicioso de seu
perfume, enquanto meus olhos tentam não observar o quão
bonito ele está dentro desse terno preto. Na verdade, é muito
provável que tenha sido mesmo. É impossível saber em que
ocasião ele consegue ficar ainda mais lindo.
— Dormiu bem? — pergunta trazendo-me de volta das
profundezas do pensamento.
Daniel não faz ideia do tempo que demorei para pegar no
sono, sabendo que ele estava completamente nu ao meu lado.
— Sim, eu... sim. E você?
Ele curva os lábios, puxando-os para o canto
maliciosamente.
— Acordei com uma ereção fodida, mas, felizmente,
consegui resolver esse problema no banho. Obrigado por
perguntar — diz calmamente e sai deixando-me perplexa.
Graças a ele, agora só consigo imaginá-lo se
masturbando no banho. Preciso me distrair urgentemente e
decido retornar a ligação de Anne. É incrível como ele consegue
me deixar completamente fora do eixo.
— Finalmente! — ela atende ao primeiro toque. —
Como você está, Sophia? — minha amiga pergunta antes mesmo
de ouvir minha voz.
— Você disse para minha mãe que estou namorando e
que ele é o melhor namorado do mundo? Você está louca?
— Fiz isso para que ela não fique preocupada, afinal
você está em boas mãos. E que mãos! Você é uma vadia
sortuda!
— E você é uma louca!
— Mas ainda sou sua amiga, certo?
— Sim, você é. Infelizmente.
Ela ri e assim, neste ar de descontração, conto a Anne os
últimos eventos. Em resposta, a única coisa que consigo ouvir é
quão sortuda sou. Ela faz que eu me sinta uma idiota que caiu de
paraquedas no melhor lugar do mundo.
— Não sou sortuda. Sou uma imbecil que quase quebrou
o pé por causa do idiota do Adam, o homem que me abandonou,
lembra?
— Ouça, Sophia. Esqueça esse babaca do Adam. Não
consigo acreditar que aquele cretino fez aquilo com você, mas
olha só o que tudo isso lhe causou.
— Anne, meu chefe e eu não estamos namorando. Ele
nem sequer me deseja. É uma farsa, lembra?
— Pelo que você está me contando, essa farsa vai deixar
de ser farsa rapidinho. Vocês já se beijaram, esqueceu?
— Não, não esqueci. O problema é que não nos
beijamos, ele me beijou. Isso que sinto é apenas abstinência
sexual. Sou mulher e posso suportar...
— Lindo, pau grande, poderoso e extremamente
sedutor... Como é possível suportar?
— Quase impossível, na verdade. Mas entenda, Anne.
Ele só está nessa situação porque o pai dele gosta muito de mim.
— Sim, você já me contou sobre o pai dele. Isso me
deixa triste, mas, já que está assim, nesta situação, aproveite e
tire uma casquinha! Eu adoraria estar com a patinha machucada
e morando no quarto desse homem. Quer trocar?
— Merda. Talvez você tenha razão. Daniel não é tão
escroto como pensei e ultimamente tem me tratado bem. Ontem
desabafei sobre Adam e ele parecia genuinamente interessado,
além de bravo.
— Tá vendo? Ele pode ser lindo, mas você não é de se
jogar fora. Aliás, está longe disso. Você é linda, Sophia.
— Ele está acostumado a sair com mulheres ricas, atrizes
de Hollywood etc. Você acha mesmo que aquele homem
perderia tempo se relacionando comigo?
Um toque na porta anuncia a chegada da enfermeira. Ela
entra e eu tento parecer normal com a minha amiga.
— Okay, Anne. Quando pode trazer as minhas roupas?
— Roupas? Você mudou de assunto, sua vaca.
— Eu preciso de roupas, Anne. Você tem a chave do
meu loft. Estou usando uma camisola que a enfermeira arranjou
para mim. Se vou me tratar aqui, você precisa fazer esse grande
favor.
— Claro! Hoje à tarde, vou levar para você. É até bom,
estou curiosa sobre o homem com quem você está dormindo
sem transar.
— Okay. Okay... Espero você aqui depois do almoço.
— Acho que você não tem escolha. Vai ter que me
esperar, já que não pode andar — brinca e eu sorrio, mesmo que
ela não veja.
Despeço-me da minha amiga e dou atenção à enfermeira,
que me entrega meus remédios.
— Trouxe uma cadeira de escritório. Ela é pequena e
tem rodas. Você pode ir ao banheiro sem tocar o pé no chão.
Acho que assim se sentirá mais independente.
— Ótimo. Boa ideia! Obrigada pela ajuda.
A mulher vai até o corredor e retorna com a cadeira de
escritório. Ela a posiciona perto da cama.
— Acho que isso vai funcionar.
— Agradeço muito sua ajuda.
— Não é nada. O Senhor Wallner quer que você desça
para o almoço, pediu que eu avisasse. O Senhor Daniel vai
carregar a senhorita quando chegar, não se preocupe.
Sorrio, mas não reflito o que sinto por dentro; estou
preocupada. Sei que ele vai nos contar sobre a doença. Será
difícil para todos, principalmente para meu poderoso namorado
de mentira. O estranho é que estou me sentindo como se fizesse
parte dessa família.

Desejei estar no escritório o dia todo, principalmente


quando não tenho mais nenhuma distração por lá. Meu pai e eu
decidimos que Jonathan deve ocupar o lugar de Sophia até
pensarmos no que iremos fazer com minha namorada de
mentira. Afinal, se ela é minha namorada e eu estou "levando a
sério" esse namoro, como seria possível deixá-la trabalhar
comigo? Isso não faz sentido se eu estou "apaixonado" por ela.
Meu pai precisa acreditar nisso, já que parece tão feliz com
Sophia na casa dele. Quero dar isso a ele, principalmente quando
sei que está muito doente. É uma pena que eu ainda não possa
me aprofundar sobre sua doença, mas espero que nesse almoço
ele nos conte de uma vez e, assim, farei de tudo para que ele
fique curado o mais rápido possível.
É ridículo como minha mente sempre volta para essa
mulher. Só pensei em provocá-la, quando deveria fazer
exatamente o contrário. Confesso que me senti excitado quando
a vi me olhar daquele jeito. Acabei me lembrando do beijo no
meu escritório, esse desejo sexual me fez imaginar que ela
poderia ter me oferecido mais que isso. Aquele tapa na cara e
seus xingamentos, por incrível que pareça, despertaram outras
coisas em mim. A última mulher que imaginei na minha cama
agora ocupa a posição de minha namorada e eu não posso
ultrapassar os limites com ela. Talvez, por essa razão, eu esteja
ainda mais duro ultimamente. Sentir que Sophia pode até me
desejar, embora ela pareça lutar internamente para sentir o
contrário, me faz questionar seus reais anseios em relação a
mim. Há alguns dias, eu provavelmente não estaria me fazendo
perguntas nesse sentido. Na verdade, não estaria dando a
mínima para essa mulher. O que mudou, afinal? Agora a
enxergo como verdadeiramente é e a completa afeição que meu
pai sente por ela, mas será que é isso o que me provoca e me faz
pensar sobre sua presença em minha vida? Não sei.
Sophia poderia ter transado comigo quando lhe mostrei
que poderia, mas, em vez disso, ela me mandou para o inferno.
O que parecia ser raiva agora virou tesão maldisfarçado. Eu
brinco, mas na verdade não quero transparecer quão perturbado
estou por ter que dormir na mesma cama que ela; em se tratando
de um homem mulherengo como eu, era de se esperar que não
passasse incólume.
Meu pai pediu que eu trouxesse Sophia para o andar de
baixo, mas acabei me atrasando no escritório. Apresso-me
quando entro no apartamento e, no momento em que estou
prestes a subir as escadas, ouço vozes.
Franzo as sobrancelhas e caminho em direção ao barulho
de risadas. Quando me aproximo da sala de jantar, deparo com
Sophia e meu pai sentados à mesa, rindo de algo que ele estava
contando. Como ela veio parar aqui sem minha ajuda?
— Achei este vinho. É uma pena que você não possa
beber, Sophia — a voz grave ecoa pelo ambiente e eu me deparo
com meu amigo Aaron.
Voltando da adega particular do meu pai, ele segura uma
garrafa e parece feliz. Sophia também já se sente à vontade na
presença do meu amigo.
— Filho, finalmente! Você demorou! — meu pai diz,
trazendo-me de volta à realidade. Isso é real.
— Fala, cara. Seu pai me convidou para almoçar com
vocês. Nem pude avisar você, meu celular ficou sem bateria.
Concordo com a cabeça, coloco minha maleta sobre a
poltrona, tiro o paletó do terno e me junto a eles. Sento-me na
cadeira oposta à de Sophia, ao lado do meu pai, que ocupa a
cabeceira da grande mesa de jantar. Aaron está ao lado dela e
por alguma razão me sinto um intruso na minha própria casa.
— Que bom que todos estamos aqui. — Meu pai ergue a
taça de vinho. — Queria comunicar uma coisa, mas gostaria
muito que todos pudéssemos desfrutar essa maravilhosa refeição
antes de falarmos sério.
Meu coração dispara quando percebo que chegou a hora
de encarar a realidade. Perdi o apetite, mas não vou dizer, para
não estragar o dia dele.
— Filho, não se sinta mal por eu estar aqui. Vá em frente
e beije sua namorada.
— Eu ainda sou o seu amigo? Parece que você se
esqueceu de me contar que está namorando — Aaron diz em
tom de brincadeira e eu apenas encaro Sophia, que parece
constrangida.
Preciso beijar minha namorada com naturalidade, ou vou
passar recibo de idiota na frente do meu pai.
Eu me levanto, dou a volta ao redor da mesa e me
aproximo dela, que parece forçar um sorriso.
— Oi, querida, você se divertiu muito sem mim? —
pergunto enquanto olho para meu amigo, que nos observa com
curiosidade.
Eu me abaixo e encosto os lábios nos dela. Por algum
motivo, quero que meu amigo veja isso. Demoro mais que
deveria, mas me afasto e volto a ocupar meu lugar.
Passamos os próximos minutos dando atenção à refeição.
Quando terminamos, percebo que meu pai ergue a taça de vinho
novamente.
— Meus queridos. Eu só preciso de vocês para contar
algo importante...
Todos nós o encaramos, meu coração parece querer sair
pela boca.
— Estou mal de saúde. Estou morrendo. Daqui a alguns
meses, para ser mais preciso — anuncia, mas o sorriso que
estampa seu rosto é o que mais me chama a atenção.
Embora aparente estar bem, não vejo nenhuma razão
para entrar nesse clima que ele quer passar, se a pessoa que mais
amo nesta vida... está morrendo.
21

Estávamos esperando por este momento, mas aposto que


ninguém imaginava que seria dessa forma. O silêncio sepulcral
se instala enquanto todos encaramos, perplexos, o Senhor
Wallner. Daniel parece em estado de choque, seus olhos e o
corpo não se movem.
— Parem de me olhar assim! Eu só estou tentando ser
natural, essas coisas acontecem com pessoas vivas. — Ele toma
um gole de vinho mantendo a habitual expressão sorridente.
— Pai... Você tem noção do que acabou de nos dizer? —
Daniel se levanta, aparentemente com raiva.
— Sim. Tenho noção. Você não é mais uma criança há
anos. Percebi que estava guardando um segredo que não fará
diferença na vida de ninguém. Não quero atrasar as coisas e...
— Isso é loucura! Você parece feliz! Uma pessoa doente
não age assim.
— Quer que eu lamente e chore pelos cantos feito uma
criança? Já estou bem velho pra isso. Você também vai morrer
um dia, a diferença é que eu tenho uma data. Por que agir como
se isso não fosse acontecer? Por que fingir que a vida não passa,
quando, na verdade, acontece exatamente o contrário?
— Isso só pode ser uma brincadeira de péssimo gosto.
Por favor, diga que está brincando... — a voz de Daniel falha,
demonstrando claramente a aflição que ele está sentindo. Não
sei se fico chocada com a realidade sobre o pai dele ou com a
vulnerabilidade que Daniel está demonstrando. Por alguma
razão que desconheço, sinto vontade de abraçá-lo. Sei que ele
está tentando esconder as emoções, mas é o pai dele quem está
nos dizendo tudo isso.
— Acho que eu não deveria estar aqui — Aaron diz, a
expressão claramente triste e confusa.
— Você é amigo do meu filho há muitos anos. Seu pai
foi meu grande amigo e é claro que você deveria estar aqui.
— Merda. Eu achei que estava preparado para ouvir, mas
não. Eu não estou — Daniel diz, ainda tentando esconder os
sentimentos, mas consigo detectar o medo e a aflição em seus
olhos.
— Sente-se, filho. Eu vou contar o que tenho. Sente-se.
Com relutância, Daniel faz o que o pai pede.
— Estou com câncer de novo e tudo começou no
pulmão.
— Mas você não pareceu doente, pai.
— Infelizmente, essa doença é silenciosa. Quando
comecei a sentir sintomas mais fortes, eu já estava em um
estágio avançado. Isso foi há dois meses.
— E por que não me contou antes? Por que não está
fazendo quimioterapia? — Daniel pergunta incrédulo.
Eu e Aaron também o observamos, esperando sua
resposta.
— Eu não queria contar, mas agora acho que é o certo a
fazer. Também comecei a fazer quimioterapia há pouco tempo,
mas não suportei o tratamento. Sabia que seria inútil no estágio
em que me encontro e decidi parar. Eu me sinto melhor agora, e
nada que disser vai me fazer voltar para aquela cadeira onde eles
injetam veneno e as pessoas tentam não morrer por conta dos
efeitos colaterais.
— Mas...
— Não tem "mas". Temos a realidade. Eu quero poder
aproveitar os momentos que me sobram com minha família, sem
enjoos, alimentando-me como quiser, fazendo as coisas que
tenho vontade. Vivendo enquanto...
— Eu quero ir ao seu médico, preciso entender o que
está falando. Vamos encontrar uma solução... — Daniel diz, os
olhos brilhando por causa da emoção que insiste em esconder.
— Faça como quiser, filho. Não há solução, mas é seu
direito. O meu é não fazer nada que possa me trazer sofrimento
enquanto estiver aqui. Sem essas drogas, eu me sinto melhor.
Prefiro não as usar. Prefiro estar sóbrio se o tratamento não vai
me dar mais tempo.
— Como sabe? Talvez dê...
— Já estou em um estágio em que não se pode fazer
muita coisa, filho. Então por que sofrer se posso viver o restante
dos meus dias me sentindo melhor?
— Eu, eu não sei o que dizer — sussurro, e a mão do
Senhor Wallner cobre a minha.
Ele sorri com os olhos.
— Faça meu filho feliz.
Tento melhorar minha expressão, mas as lágrimas me
vencem mais uma vez. O amigo de Daniel observa a cena, mas
permanece calado.
— Pai... — Daniel o encara, mas se ergue de repente.
Ele tenta reprimir a emoção que quer se libertar, mas
decide sair antes que todos possamos ver. Daniel se afasta, mas
não é impedido pelo pai ou pelo amigo.
— Deixem. Ele precisa assimilar tudo — o pai diz, mas
desta vez consigo ver a tristeza que Franklin conseguiu esconder
a todo custo. Talvez o filho tenha a quem puxar.
— É melhor eu ir embora, eu... — Aaron diz, mas meu
amigo o interrompe.
— Faça companhia a Sophia. Preciso resolver algumas
coisas. — Ele se levanta e eu noto um pouco de cansaço nesse
simples movimento.
De qualquer forma ainda não consigo enxergar nele um
homem doente, prestes a morrer, como ele diz. Não consigo
entender como chegamos a este ponto.
— Claro, eu posso ficar.
— Ótimo, Sophia precisa de distração. Conversem um
pouco — sugere e em seguida se afasta.
Agora não está mais feliz ou sorridente. O homem que
parecia alegre está de cabeça baixa agora. Eu queria abraçá-lo
também.
Observamos Franklin caminhar até desaparecer do nosso
campo de visão.
— Então... — Aaron diz e eu volto a atenção para o
homem sentado ao meu lado. — Melhor irmos para o sofá, é
mais confortável.
— Muito melhor. Você pode me ajudar?
Ele sorri e logo em seguida eu me ergo. Quando Aaron
foi me buscar no quarto, hoje mais cedo, por uma fração de
segundos, pensei que fosse Daniel, até reparar em seu rosto, que
é bem diferente. Ele é muito bonito, cabelos escuros e olhos
castanhos. Um homem engraçado e bem amigável.
— Aqui está. — Ele me senta no sofá e eu agradeço sua
generosidade.
— Sophia. Então você está namorando meu amigo e eu
só descobri isso hoje! Confesso que, mesmo me sentindo à
vontade desde que cheguei, isso foi uma grande surpresa.
— Imagino. Então Daniel não lhe contou nada... mesmo?
— tento sondá-lo, mas ele realmente parece não saber sobre a
mentira.
— Na verdade, cheguei do Canadá há poucos dias e não
tivemos muito tempo para conversar. O pai dele é uma pessoa
incrível que eu não via há anos. Daniel me alertou sobre a saúde
do pai, mas fiquei muito surpreso, de qualquer forma.
— Acho que vocês precisam conversar muito. Eu
também tenho uma grande amiga e ela sabe sobre tudo que está
acontecendo em minha vida.
— Então você o conheceu como secretária? Como tudo
aconteceu?
— Não sei se ainda sou. Acho melhor você conversar
com ele. Nós, ahn... Bom, não tenho muito que contar sobre... a
gente.
Aaron franze o cenho, parece confuso com o que digo.
— Cara, algo está bem estranho aqui.
— Você vai entender quando conversar com seu amigo.
Bom, vamos falar sobre você. Então morou no Canadá? O que
fazia por lá?
— Estava cuidando de uma herança que meu pai deixou.
Meus pais são de lá, mas sempre morei aqui em Nova York.
Infelizmente, perdi meu pai há três anos e decidi ficar por lá
cuidando da empresa.
— Sinto muito pela sua perda.
Aaron mostra uma expressão de pesar, mas não diz nada.
— Então você é um empresário — mudo de assunto para
amenizar o clima tenso.
— Sim. Meu pai me deixou uma empresa de transporte
no Canadá, mas decidi morar aqui e vender a empresa que tem
sede lá.
— Assim você pode morar onde se sente melhor.
— Eu gosto daqui. Meus amigos mais antigos e parentes
mais próximos moram em Nova York. Já estava sentindo falta.
— Aaron tem um olhar intenso, mas uma expressão suave e, ao
mesmo tempo, relaxada. Gosto da forma como ele lida com
situações inusitadas.
— Eu também amo esta cidade. Não trocaria por
nenhuma outra. Gosto de poder...
— Parece que vocês se deram muito bem — a voz grave
e imperiosa de Daniel se infiltra na conversa e imediatamente
observamos meu chefe parado próximo à escada. Estávamos tão
absortos na conversa que não o ouvimos chegar.
— Meu amigo, venha se juntar a nós. — Aaron sorri,
mas Daniel continua sério.
— Venha ao escritório, agora — ele praticamente ordena
ao amigo, que se afasta e desaparece.
Daniel e eu nos encaramos. Ele está com as sobrancelhas
erguidas.
— Parece que vamos conversar a sério. Quer ir para o
quarto antes? Eu posso...
— Não, não... Estou bem. Tenho que esperar a minha
amiga, que deve estar chegando em breve.
— Tudo bem, eu vou. Se precisar de qualquer coisa...
— Não se preocupe, estou ótima.
Aaron inspira o ar profundamente e parece relutante em
me deixar sozinha. Ele se ergue.
— Até daqui a pouco, então.
— Okay — digo e ele se afasta da grande sala de estar,
até desaparecer de meu campo de visão.
Passo alguns minutos entediada, mas sou finalmente
avisada de que minha amiga chegou. Poucos minutos se passam
até ela se juntar a mim na sala de estar onde me encontro. Anne
passa pelo corredor de entrada arrastando minha mala, e eu
percebo que seus cabelos cacheados ganharam um novo tom
loiro, bem claro.
— Parece que alguém andou frequentando o cabeleireiro
— brinco e ela sorri enquanto se aproxima.
Minha amiga me abraça feliz.
— Precisava mudar o visual. Quem sabe eu encontre um
homem tão gato quanto o seu namorado?
— Eu já disse... Ele não é meu namo...
— Meu Deus — minha amiga me interrompe. — Como
você nunca me disse que estava neste lugar tão lindo? Acho que
é um dos prédios mais caros de Nova York. Aposto que está
sendo muito bem tratada.
— Você poderia imaginar isso, não é? Não posso
reclamar. Realmente, tenho sido muito bem tratada.
— Que bom, Sophia. Estou me roendo de inveja. Como
está o pé?
— Acho que em duas semanas posso voltar a andar.
— Que péssima notícia. É muito pouco tempo, tendo
como acompanhante aquele homem. Bom, queria ficar aqui
batendo papo, mas não posso ficar por muito tempo, preciso me
preparar. Sabe como é, acabei de voltar da casa dos meus pais e
vou começar em um emprego novo.
Ergo as sobrancelhas.
— Sério? Quanta novidade!
— Pois é. Também serei assistente em uma empresa
muito conhecida. Estou animada.
De repente, ouvimos vozes vindas do corredor e então
Daniel e Aaron retornam. Eles param na sala onde estou e ambas
tentamos não deixar o queixo cair com a visão de tirar o fôlego.
Os dois juntos, de pé, parecem ainda mais impressionantes do
que eu poderia imaginar.
— Essa é Anne, minha melhor amiga. — Tento me
recompor antes que eles percebam que somos duas taradas.
— Oi. — Daniel a cumprimenta, mas sua expressão
ainda é de poucos amigos.
Aaron se aproxima dela e estende a mão.
— Sou Aaron, muito prazer.
— O prazer é meu. — Minha amiga parece hipnotizada.
Aaron também não esconde certo interesse.
— Ela veio trazer minhas roupas.
— E já estou de saída.
— Faço questão de pagar o seu táxi de volta — ofereço e
ela sorri.
— Não precisa, amigas são para essas coisas.
— Também estou de saída. Se quiser uma carona... —
Aaron de repente nos interrompe.
— Não, de jeito nenhum. Você deve ter mais o que fazer.
— Sei que minha amiga está se fazendo de difícil; aposto que
por dentro está dando pulinhos de felicidade.
— Só tenho compromisso mais tarde, não se preocupe.
— Tudo bem, já que insiste. — Ela dá uma risadinha,
típico de quem está tentando esconder a euforia. — Vou aceitar,
então. — Anne me abraça. — Cuide bem... desse pé. — Ela se
aproxima do meu ouvido. — Bem devagar — Anne sussurra a
última frase e beija meu rosto.
Aaron se abaixa sem cerimônia e também me dá um
beijo no rosto.
— Foi um prazer conhecer você, Sophia. — O sorriso
nos lábios indica que ele já sabe que não sou namorada de
Daniel. — Seu namorado vai levá-la para a cama.
Concordo com a cabeça, mas não consigo dizer nada.
Aaron curva os lábios em um sorriso sedutor e se afasta. Ele dá
um tapinha nas costas do amigo e, na companhia de Anne,
caminha em direção à porta.
O silêncio parece ensurdecedor. Eu queria que Daniel
dissesse alguma coisa, mas ele cruza os braços e me observa
com uma expressão curiosa. Tudo que consigo ver agora é um
homem quebrado e confuso, mesmo que sua aparência insista
em me dizer o contrário.
22

Não sei como pude lidar com isso sem que minhas forças
se esgotassem. A indignação e o medo me paralisaram por conta
da impotência diante do problema que meu pai está enfrentando.
Sei que, com tudo que Jonathan me disse e com a confirmação
do meu pai, não há nada que eu possa fazer. Estou de mãos
atadas e me segurando, mas preciso ser forte até conseguir
assimilar o que está acontecendo. Parece que agora eu realmente
estou sentindo com mais clareza a importância que meu pai
representa em minha vida. Parece que a vida está me mostrando,
pela primeira vez, o que eu tenho feito comigo mesmo durante
anos.
Há três dias, meu pai confirmou sua doença. Fui ao
médico, que também me garantiu que não há nada que eu possa
fazer para reverter a situação. Essa confirmação me deixou tão
mal que não consegui voltar. Precisava de tempo. Tenho
dormido no quarto de hóspedes, mas chego tarde da noite. Fiz
questão de contratar um enfermeiro para ajudar Sophia e meu
pai no que precisarem. Eu só não pude ficar perto deles, é difícil
encará-los sem deixar transparecer o quanto estou transtornado.
Muitas coisas estão passando pela minha mente e,
quando vejo aquela mulher dormir na minha cama, sinto algo
que, só agora percebo, vai muito além de físico. Algo fora do
comum tem trazido um aperto e medo de que eu esteja entrando
em outro problema. Talvez eu esteja ligando Sophia à iminente
perda do meu pai. Talvez a mentira que estamos encenando
possa estar contribuindo para esse sentimento novo e estranho.
A impressão é de que, mesmo que eu tivesse tentado esconder o
que estava sentindo naquele almoço, Sophia me observava de
um modo diferente. Ela parecia sentir a mesma dor que eu, e
isso me abalou de alguma forma.
Pensei que seria mais fácil estar longe, que a distância
me traria algum alívio, mas percebi que lamentar e me afastar é
inútil. Preciso fazê-lo se sentir bem neste momento. É minha
obrigação.
Já se passaram três dias desde que saí daquele almoço,
mas tenho a sensação de que há um relógio batendo em meu
ouvido, implorando que eu me apresse. Parece que há uma voz
que grita me dizendo que não há muito tempo. No entanto sei
que meu pai não pensa assim. Não me parece preocupado, ele
sempre quis me mostrar o lado prático das coisas. Desconfio que
ele esteja psicologicamente melhor do que eu.
O aparelho toca sobre a mesa do meu escritório, tirando-
me do torpor em que me encontrava. Pressiono o botão para
atender.
— Algum problema, Jonathan?
— O senhor está em cima da hora para o jantar de
negócios com o presidente da empresa de cosméticos...
— Merda! Tinha me esquecido desse jantar.
— Posso avisar que houve um imprevisto se quiser.
— Não. Eu vou. Ligue para ele e diga que estarei lá em
torno de vinte minutos. Preciso acabar logo com isso.
— Sim. Farei a ligação agora, senhor.
Ergo-me da poltrona, pego meu celular desligado e sigo
para a porta de saída. Assim que a fecho, passo pela mesa de
Jonathan e vejo que ele está de pé me observando. Parece
preocupado.
— Senhor, seu pai ligou.
Paro imediatamente. Meu coração acelera com um
repentino medo de que meu pai esteja mal por minha causa.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não, não. Ele só está preocupado. Quer saber se você
vai ligar...
— Eu... Eu vou ligar. Avise-o, por favor.
— Vou avisar.
Aceno e, sem perceber, eu o agradeço em voz baixa.
Tenho uma sensação estranha, como se algo estivesse pesando
em minha consciência. Tratei Jonathan de forma indiferente por
toda minha vida, assim como a todos os funcionários desta
empresa, mas só agora isso está me incomodando de verdade.
Quando minha vida ganhou novos significados? Não preciso de
uma resposta, meu pai é a resposta. Estou enxergando as coisas
de uma perspectiva mais humana.
Com a cabeça a mil, eu desço até o lobby de entrada e
sigo para a rua. O manobrista já está com meu carro e
rapidamente me entrega a chave. Agradeço e ocupo o banco do
motorista. Respiro fundo e em seguida acelero pelas ruas de
Nova York.
Minutos depois já estou com o carro parado em frente ao
restaurante italiano, próximo ao edifício do meu pai. Marquei
aqui exatamente para que pudesse ir para casa mais rápido e sem
o trânsito chato. Desço do carro, entrego as chaves para o
manobrista e sigo para o restaurante. Todos me conhecem aqui e
logo alguém me conduz ao local onde meu provável parceiro de
negócios está me esperando. Aproximo-me de uma mesa grande
e redonda, o melhor lugar do restaurante, e logo sou avistado por
uma bela loira de cabelos curtos. Quando me vê, ela tenta
esconder o entusiasmo, mas sei reconhecer quando uma mulher
está atraída por mim. A loira tem as maçãs do rosto um pouco
coradas, e seus dedos não param de mexer nos cabelos, uma
compulsão um pouco irritante. Seu decote generoso é
convidativo, talvez mais do que deveria, tendo em conta que
estamos aqui para um jantar de negócios.
Aproximo-me e seu acompanhante, o homem com quem
realmente vim conversar, se levanta. Ele tem um sorriso nervoso
e tão entusiasmado quanto o de sua acompanhante. Estende a
mão para um aperto e eu retribuo. Minha expressão é controlada,
séria, mas eu o examino com curiosidade.
— Senhor Daniel Wallner, é um grande prazer conhecê-
lo, finalmente. Vou me apresentar, eu sou Adam Smith e esta é
minha noiva, Patrícia.
Eu a cumprimento com um aperto de mão, mas logo o
sobrenome dele, de que havia me esquecido, chama a minha
atenção.
— Adam Smith. Você me parece muito familiar — digo
enquanto nos sentamos.
O sommelier rapidamente nos entrega o cardápio de
bebidas e, quando fazemos nossos pedidos, se retira.
— Meu pai é um grande fã seu e do seu pai... Você deve
ter ouvido falar da minha família...
— Não, não... Parece que recentemente ouvi seu nome
em algum lugar, mas não consigo me lembrar agora onde foi —
esclareço e Adam une as sobrancelhas evidenciando certa
curiosidade.
— Claro, você deve saber sobre mim, sobre minha
empresa, por causa do contrato. Trocamos alguns telefonemas e
muitas mensagens.
— Não, parece que acabei de ligar o seu nome a alguma
conversa que tive recentemente, mas não me lembro com quem,
exatamente.
— Caso se lembre, por favor, me avise. Adoraria saber.
Tento parecer mais simpático ou menos sério, mas meu
humor não me permite. Pelo contrário, parece que há uma
nuvem negra sobre minha cabeça. O sommelier retorna com
nossas bebidas, aguardamos que nos sirva e então recobramos a
conversa.
— Trouxe a minha noiva porque imaginei que você
estaria vindo com alguém. Espero que esteja tudo bem.
— Não vejo problema algum — digo. A jovem sorri
enquanto continua com a mania irritante de mexer os cabelos. —
Infelizmente, minha namorada está se recuperando de um
acidente — informo intercalando o olhar entre ele e a loira
sedutora.
— Sinto muito... — ele diz, e eu o observo, tentando ler
o homem que pretende ser um de meus maiores parceiros.
— Não foi nada grave. Terão o prazer de conhecê-la no
próximo mês, no evento de gala beneficente, no Metropolitan
Museum. Vocês foram convidados.
— Será um enorme prazer conhecê-la. Estamos
animados para esse grande dia. Seu pai será o anfitrião da noite,
presumo. Vou adorar conhecê-lo.
— Sim, ele será. Ouvi dizer que a sua família vai doar
uma boa quantia. É verdade? — sondo.
Na realidade, não me lembro muito de seus familiares,
mas sei da história e sobre tudo relacionado a sua empresa. Ele,
assim como eu, cuida da empresa da família e quer expandir os
negócios para o mundo. Por isso está aqui, desesperado para
começar uma parceria que pode colocar sua empresa em outro
patamar. A sorte dele é que essa companhia tem um nome forte
no mercado de cosméticos, mas eu não me engano com essas
pessoas. São ambiciosos e vaidosos demais, dependem de mim
para crescer globalmente.
— Doação? Minha família? — Ele passa os dedos
nervosamente entre os cabelos. — Claro! Faremos com muito
orgulho. As crianças e os idosos precisam disso. Sei que seu pai
tem algumas clínicas em Nova York.
— Você já foi em alguma clínica de idosos? —
questiono sem saber por quê.
Na verdade, deveria me concentrar em sua empresa, nas
cláusulas dos contratos, números, mas a minha pressa para
terminar acabou dando lugar à curiosidade.
— Para ser sincero, minha namorada... — ele para de
falar quando recebe um olhar mortal da noiva, mas decide
continuar —, que se tornou minha noiva agora, Patrícia, adora
frequentar asilos e... — Ele engole em seco, sinal de uma
mentira malcontada.
Minha atenção está agora na mulher loira. Ela apoia os
cotovelos na mesa para me dar um acesso privilegiado a seus
seios arredondados. Patrícia curva os lábios vermelhos em um
sorriso provocante.
— Amo dar carinho e apoio aos idosos e crianças.
Eu a encaro por longos segundos, noto que ela
permanece focada no objetivo de me agradar. Consigo esboçar
um leve sorriso, mas logo desvio a atenção para Adam e
começamos a falar de negócios.

Estou feliz por ao menos poder encostar o pé no chão.


Fui ao médico e ele se surpreendeu com a minha melhora. Segui
à risca as ordens na primeira semana. Agora, depois de um
exame mais detalhado, ele disse que serei capaz de andar muito
em breve.
Daniel não tem me ajudado a descer as escadas há três
dias. Eu até deveria me sentir mal por estar dando trabalho, mas
não me sinto. Não fui embora porque Franklin tem passado um
tempo comigo todos os dias. Ele vem até aqui, ou almoçamos
juntos e conversamos, como fazíamos no asilo. Voltamos a
conversar sobre tantas coisas e em nenhum momento ele falou
sobre a doença. Meu amigo quer que eu fique a todo custo e
pede que eu tenha paciência com seu filho. Sinto pena de
enganar um homem tão bom, mas isso é o que o deixa feliz.
Estou sendo mimada por empregados e por um novo
enfermeiro. Servem-me comida na cama e me ajudam a descer
as escadas, mas Daniel ainda não deu as caras. Não quero me
acostumar a uma vida que não me pertence. Independentemente
de qualquer coisa, preciso ter meus pés no chão, não
literalmente; preciso entender que um dia tudo isso vai acabar.
Confesso que, quando não estou conversando com
alguém, lendo ou tentando me distrair na Internet, tenho me
sentido um pouco entediada. Às vezes falo com meus pais por
telefone e com minha amiga, que parece ainda não ter superado
o fato de não ter trocado telefones com Aaron. Ela não quer que
eu pegue o número do amigo de Daniel para ela e, de qualquer
maneira, ele ainda não voltou aqui. Além disso, eu não poderia
saber se existe reciprocidade entre eles, o que me impede de
tomar qualquer iniciativa.
Tomo minha água, mas gostaria que o líquido dentro da
taça fosse vinho. Estou observando toda a grandeza de Nova
York. Acho que essa é uma das coisas, neste apartamento, de
que eu nunca me cansaria. Simplesmente amo como esta cidade
é linda à noite.
— Podemos conversar?
Dou um sobressalto e metade da água cai em minha
camisola. Coloco a taça sobre a mesa e só então percebo que
Daniel já está próximo de mim. Ele se abaixa e me olha
intensamente nos olhos. A impressão é de que algo mudou nele,
mas não sei dizer o que é.
— Você me assustou — informo e então,
repentinamente, Daniel segura minhas mãos trêmulas.
— Você está tremendo — ele sussurra. — Não alterei a
voz, mas você se assustou mesmo assim.
Estreito o olhar. Pelo seu hálito, sei que ele estava
bebendo, mas não posso ignorar as batidas do meu coração, que
agora estão mais fortes do que nunca.
— Acho que o silêncio deste quarto colaborou para que
eu me assustasse.
Daniel analisa o tecido fino e transparente de minha
roupa, e só então me dou conta de que estou sem sutiã e
molhada.
— Você está molhada...
Tento cobrir os seios, mas noto seu olhar faminto sobre
mim, e isso me causa uma vontade quase irresistível de beijá-lo.
— Você... pode pegar uma toalha? — peço no desespero,
mas me arrependo ao vê-lo se afastar.
Ele se ergue e segue a passos largos até o banheiro. Na
volta, Daniel me entrega a toalha e eu começo a secar minha
roupa, tentando entender o porquê de não saber como agir
normalmente quando ele está tão próximo. Ele ainda me
examina de forma estranha, mas eu gosto disso, mesmo que
esteja um pouco constrangida.
— O que foi? Aconteceu alguma coisa? — pergunto,
minha voz está ofegante.
Meu coração parece entender o que está acontecendo
porque meu peito quer expulsá-lo, tamanha a força que pulsa
dentro de mim. Inesperadamente, Daniel toca meu rosto e eu
engulo em seco. Ele está me desestabilizando.
— Sophia, eu... eu quero fazer uma coisa, mas desta vez
preciso que você saiba que vou fazer.
— O quê? — sussurro, meus olhos vidrados em sua
boca.
Daniel inspira o ar profundamente.
— Quero beijar você — anuncia e, devagar, encosta o
nariz no meu.
Sinto dedos puxando minha nuca e então seus lábios
tocam os meus. Deixo escapar um suspiro quando sinto sua
língua separar meus lábios. O beijo é lento, mas se intensifica
rapidamente, como se necessitássemos disso. Sem perceber,
minhas mãos ganham vida própria e estão presas na nuca dele,
puxando-o contra meus lábios. Em segundos, o beijo se torna
áspero e forte, cheio de palavras não ditas. Não sei descrever o
que sinto agora, mas não quero que ele pare nunca mais.
23

Ele chupa meus lábios com força e eu sinto o desejo


crescer tão forte que é impossível voltar atrás. Como isso
aconteceu tão inesperadamente? Juro que, mesmo tão envolvida
por este homem como estou agora, sinto medo de que ele queira
parar tão rápido como começou, ou que se arrependa depois.
As mãos de Daniel envolvem minha cintura, puxando
meu corpo contra o dele. Não sei como, mas, de repente, sinto-o
me erguer da poltrona. Minhas pernas agora estão presas ao
redor de sua cintura, seus lábios nunca se separam dos meus. Em
algum momento, sinto minhas costas contra a superfície macia
da cama. Daniel se ajoelha entre minhas pernas e com desespero
retira sua camisa, arrancando os botões sem se incomodar por
rasgá-la. Eu o observo, completamente embevecida com a visão.
O abdômen perfeito e os braços bem-desenhados deixam-me
sem palavras. Sua beleza e o corpo másculo são de tirar o
fôlego.
Daniel se abaixa e habilmente eleva minha camisola,
retirando-a pela cabeça. Estou apenas de calcinha. Ele me
contempla da mesma maneira que eu faço com seu corpo. Suas
mãos tocam meus seios e arrepios percorrem todo o meu corpo.
— Quero você, Sophia. Nesta cama. Não consigo esperar
mais.
Eu me contraio por dentro, tamanha a excitação ao ouvi-
lo dizer essas palavras. Não me importo se ele está fazendo tudo
isso movido pelo álcool. É quase impossível impedir algo que
venho desejando há muito tempo. Acho que sempre desejei.
Apenas imaginava que homens como ele eram território
proibido para alguém como eu.
— Eu... eu quero você dentro de mim, Daniel —
sussurro.
Vejo-o suspirar de alívio. Ainda ajoelhado entre minhas
pernas, ele abre o cinto preto e os botões da calça. De repente,
Daniel se afasta da cama e fica de pé. Observa-me com desejo,
mas, sem dizer uma palavra, segue até o banheiro e desaparece
de meu campo de visão. Segundos depois retorna,
completamente nu, segurando uma camisinha em uma das mãos.
A ereção ainda está ali e ele se ajoelha entre minhas pernas
novamente. Engulo em seco, ofegante quando vejo suas mãos
retirarem minha calcinha lentamente. Ambos estamos nus, a
respiração cada vez mais errática.
Meu coração começa a acelerar mais rápido quando o
vejo se abaixar até minha abertura encharcada. Daniel me chupa
com força e gemidos involuntários começam a escapar dos meus
lábios. Levo a pélvis em direção a sua boca faminta, sua mão
espremendo meus seios enquanto ele me lambe com muita
vontade. Daniel parece saborear um banquete enquanto me
devora sem pudor algum.
Inesperadamente ele se ajoelha entre minhas pernas,
cobre a ereção com a camisinha e, sem qualquer tipo de aviso,
me penetra tão forte e profundo que sou incapaz de evitar um
gemido alto. O prazer que sinto não se compara a nenhum outro
que tive na vida.
Daniel se abaixa enquanto se move dentro de mim. Seus
olhos me encaram, a respiração áspera.
— Sophia, quero que você sinta seu gosto. Quero que
sinta quão deliciosa você é — diz e em seguida me beija, sua
língua fazendo uma dança com a minha.
Daniel se afunda cada vez mais rápido, mais forte, é
difícil tentar segurar o orgasmo. Elevo a pélvis em sua direção,
reivindicando mais dele, sentindo os tremores de sua perna.
Mais forte, mais rápido. Estou à beira de um dos meus melhores
orgasmos, simplesmente porque ele chupa meus lábios enquanto
se move freneticamente dentro de mim.
Gemo alto, enquanto cravo as unhas em sua bunda,
trazendo-o para mim em cada estocada. Chamo seu nome, peço
que ele me coma mais rápido e ele obedece ao meu pedido
desesperado.
— Eu estou... — Não consigo terminar a frase porque
sinto o orgasmo me atingir, enquanto Daniel mete cada vez mais
forte.
— Isso. Goza pra mim, Sophia... — Ele acelera com
força e urgência, na tentativa de atingir o próprio orgasmo.
Meus gritos são abafados por sua boca, que me devora
enquanto ele mete em mim.
Segundos de desespero em busca da liberação, Daniel
solta um gemido alto e grave, enquanto se afunda dentro de mim
profundamente. Ele mete algumas vezes, então para e joga o
corpo exausto sobre o meu. Ainda estamos conectados e, quando
me dou conta, me vejo plenamente preenchida, de várias formas,
como jamais imaginei que fosse possível.
Sinto seu coração acelerado, e o meu, também. Quando
se dá conta de que está sobre mim, Daniel se ergue e joga o
corpo ao lado do meu. Seu peito ainda sobe e desce
rapidamente, seus olhos encarando um ponto fixo no teto. Neste
momento, confesso que sinto certo medo de que ele tenha se
arrependido. Acho que não suportaria se Daniel me dissesse algo
remotamente parecido com isso.
De repente, ele vira o rosto para observar o meu. Nós nos
encaramos até que ele diz:
— Eu... machuquei você? Seu pé...
— Não, não. Claro que não! — digo enfática. —
Ficamos em uma posição confortável e meu pé está bem melhor.
Ele acena e em seguida se senta na cama, ficando de
costas para mim. Percebo que retira a camisinha e caminha em
direção ao banheiro. Meu coração volta a acelerar de medo e não
faço a menor ideia do porquê disso.
Daniel retorna vestido com uma cueca e para na frente da
cama. Ele parece preocupado, mas não consigo decifrar sua
expressão.
— Você toma anticoncepcional? — questiona de
repente.
— Sim, tomo há alguns anos. Por que pergunta, se usou
camisinha?
Daniel solta um suspiro de alívio e minhas sobrancelhas
estreitam de curiosidade.
— Nunca aconteceu isso antes, mas a porcaria estourou.
— Arregalo os olhos e abro ligeiramente a boca.
— Como?
— Acho que nunca estive tão desesperado para foder
alguém como fiquei com você. Não sei, mas aconteceu. Não era
para ter acontecido, mas, de alguma forma, aconteceu.
— Eu, eu... não sei o que dizer. — Sinto-me mal agora,
vejo que ele está preocupado.
Sei que esse seria um bom motivo para ele se afastar,
mas, então, inesperadamente, Daniel se deita ao meu lado e me
observa nos olhos por alguns segundos.
— Vem aqui — sussurra com os braços abertos.
Eu sorrio sentindo o ar se libertar de meus pulmões.
Deito-me apoiando a cabeça entre seu pescoço e o
ombro, sentindo sua mão apertar minha cintura, atraindo-me
para perto. Minha perna entrelaça a dele e assim permanecemos,
calados. Nenhuma palavra precisa ser dita agora, só o momento
pode ser sentido. Inalo seu cheiro e o ar que sai de sua boca faz
cócegas em meus cabelos. Ele parece inspirar meu cheiro
também.
Não sei como aconteceu, mas o sono está cada vez mais
próximo, tamanho o nível de relaxamento que estou sentindo.
24

Estico o corpo preguiçosamente, sentindo um sorriso se


abrir nos meus lábios. Abro os olhos e vejo que estou sozinha na
cama. Ele deve ter ido para a empresa e, obviamente, não o vi se
levantar. Eu estava dormindo feito uma pedra, graças a ele.
Fecho os olhos novamente e começo a me lembrar de tudo que
fizemos ontem.
Acho que não me lembro da última vez que tive uma
noite tão... tão incrível. Acho que eu não sabia o que era sentir
prazer e chegar a um verdadeiro orgasmo. Precisei estar com um
homem de verdade para descobrir que nunca havia sentido nada
remotamente parecido com isso. Se antes eu já estava
apaixonada, agora me declaro em estado de demência
temporária. Simplesmente não consigo parar de pensar em como
tudo foi incrível e em como estou perdida por aqueles olhos
azuis.
— Abra os olhos, por favor?
Paraliso ao ouvir a voz grave e perceber que Daniel
estava me observando. De onde surgiu tão de repente? Estava
me vendo agir como uma idiota, enquanto eu pensava sobre o
que fizemos ontem à noite. Abro os olhos devagar e me deparo
com toda sua grandeza de pé. Quando me refiro a sua grandeza,
quero dizer exatamente isso. Ele está segurando um copo com
água e remédios.
— Você precisa tomar isso se quiser curar seu pé. — Ele
me lança um sorriso torto e em seguida se senta ao meu lado, na
cama. Daniel não parece preocupado em se vestir, como faz
todas as manhãs para ir ao trabalho.
— Pensei que tivesse ido trabalhar. Você é um homem
cheio de compromissos.
— Pensou errado. Eu sempre acordo de pau duro. Quero
que você tome seus remédios e te foder de novo.
A naturalidade e a espontaneidade com que fala me
fazem rir.
— Você tá falando sério? Achei que ia se arrepender por
ter ficado comigo, pelo... Você sabe!
— Seja clara. Arrependido de ter te comido, você quer
dizer? — Ele sorri. — Por que eu me arrependeria de foder
minha namorada?
— Nós não somos namorados. Isso é uma farsa,
esqueceu? Você mesmo me disse que não deveríamos confundir
a farsa...
— Pareceu farsa o que fizemos ontem à noite? Você deu
a entender que estava gostando enquanto gemia em meu ouvido.
— Eu, eu quero dizer que... que você tinha bebido antes
de aparecer. Estava diferente. Sei lá... Não vou me iludir
sabendo quem você é.
Daniel cruza os braços com uma expressão curiosa.
— E quem sou eu, Sophia?
— Você é o meu chefe.
— Não, não sou mais. Acho que me esqueci de contar a
novidade: você está demitida.
Arregalo os olhos sem entender o que ele está querendo
de verdade. Este homem só pode estar brincando.
— Como você pôde? Eu topei fingir ser sua namorada e
é dessa forma que você retribui?
Impaciente, Daniel inspira o ar, soltando-o com força.
— Tome o remédio e não seja dramática.
Nós nos encaramos de forma desafiadora, mas seu olhar
mortal me diz que ele ganhou essa batalha. Contrariada, pego o
copo de sua mão e tomo os dois comprimidos de uma vez. Bebo
toda a água em um só gole e apenas agora percebo a sede que
estava sentindo.
— Você está desidratada e eu nem comecei com você.
Engulo em seco, perdida ante a intensidade de seus olhos
azuis.
Ele pega o copo vazio e o coloca sobre a mesinha ao lado
da cama. Daniel me encara, olhos predatórios passeando
descaradamente sobre meu corpo, mesmo com o lençol me
envolvendo. Isso não o impede.
— Quero você de novo. — Ele se ajoelha na cama e,
como um animal, rasteja lentamente, até se aproximar de mim.
— Quando seu nariz toca o meu, estou preparada para receber
seu beijo, mas, no momento em que ele encosta os lábios nos
meus, um barulho na porta o impede de continuar.
Ficamos como estátuas por alguns segundos.
— Alguém está chamando — sussurro em seus lábios.
Daniel ergue as sobrancelhas com minha constatação
óbvia.
— Sophia, você está aí? — a voz de Senhor Wallner
ecoa do lado de fora do quarto.
Entro em pânico.
— O que vamos fazer? — sussurro e, mais uma vez,
Daniel ergue as sobrancelhas; acho que não dou uma dentro.
— Vou abrir, pai! Um segundo! — ele exclama em voz
alta, com um sorriso pouco usual, mas muito bem-vindo. —
Somos namorados, esqueceu? — recorda e eu tento argumentar,
mas desisto quando ele se afasta.
Daniel vai até a porta vestido apenas de cueca, sem o
mínimo pudor. Quando abre, eu não vejo o Senhor Wallner, só o
filho observando o pai sem cerimônia.
— O que deu em você? Não quis trabalhar hoje? É
algum tipo de lua de mel antecipada?
— Decidi ficar em casa hoje. Sophia ainda está na cama.
Quero passar o dia com vocês, pai. O que acha?
Percebo que o Senhor Wallner demora para responder.
— Claro, filho. Vamos fazer algo divertido hoje — ele
altera a voz para conversar comigo. — Desculpe atrapalhar sua
manhã, Sophia.
— Só estávamos conversando, senhor. Eu juro — digo
na tentativa de conseguir um pouco de dignidade.
— Meu pai não é idiota, sabe o que estávamos fazendo
— Daniel me contradiz sem o mínimo de vergonha.
Eu adoraria ter um buraco onde me enfiar agora. Ainda
bem que Franklin decidiu continuar do lado de fora do quarto.
— Não se preocupe, querida. Quero que façam muitos
netinhos, mesmo que eu não esteja aqui para ver.
— Merda, pai — Daniel o repreende, mas não consigo
ver a reação de Franklin; provavelmente não se importa com a
atitude do filho.
— Estou sendo realista e não estou triste, acredite em
mim. Só quero saber se estão fazendo bebês. Quero ser avô.
— Do que está falando, pai? Ela é a minha namorada.
Não estamos pensando em...
— E eu sou um avô desesperado para ter netos.
O silêncio se instala por alguns segundos, até Daniel
decidir falar.
— Não vamos falar sobre nada hoje, ok? Daqui a pouco,
vamos descer.
— Espero vocês lá embaixo e depois quero que nos leve
ao asilo. Posso apostar que Sophia está sentindo falta de lá
também.
Daniel suaviza a expressão para o pai. Ele está muito
diferente, mas de um jeito bom, e meu medo é de que tudo isso
seja uma farsa para esconder seus verdadeiros sentimentos. Na
verdade, estou feliz com o que aconteceu, ainda que ele tenha
agido movido pelo álcool. Daniel quis ficar comigo não só
ontem à noite. Se não fosse pelo pai, estaríamos transando
agora.

Tivemos um café da manhã animado comparado ao


clima que estávamos vivendo nos últimos dias. É inacreditável a
força que tem o Senhor Wallner. Quando dizem que Deus não
nos dá mais do que possamos suportar, é difícil acreditar, mas
Franklin é a prova disso.
Parece que, ontem à noite, Daniel voltou para casa
decidido a consertar as coisas. Pelo visto, está dando muito
certo. Senhor Wallner está feliz como nunca vi, e eu, radiante
por acreditar que existe reciprocidade nessa relação maluca entre
mim e Daniel. Ele me quer, mesmo que seja sexualmente. Existe
uma química que vai muito além da minha imaginação. O
problema é tentar pensar como minha mente vai reagir quando
nos separarmos de verdade.
A bota ortopédica me ajuda a pisar, mas impede que eu
ande por muito tempo. Decido não arriscar, mesmo sabendo que
meu pé está ficando ótimo. A enfermeira vai começar o
tratamento de fisioterapia amanhã e, segundo meu médico, em
duas semanas já estarei andando normalmente.
Daniel me ajuda a descer do carro e eu sorrio ao me
deparar com uma das enfermeiras do asilo, atrás de uma cadeira
de rodas. Eu a reconheço rapidamente. Ela sorri quando me vê.
— Sophia! Que surpresa você por aqui. Não sabia que a
cadeira de rodas era para você. Disseram que era para a
namorada...— Ela olha para Daniel e pisca algumas vezes,
finalmente compreendendo a situação, no entanto tenta disfarçar
ao máximo, com sua simpatia.
— O que houve com o seu pé?
— Eu me desequilibrei na rua, mas já estou bem.
Daniel me ajuda a me sentar na cadeira de rodas, mas
percebo que sua expressão se fecha inexplicavelmente. Ele me
empurra e, no momento em que entramos, todos os funcionários
me cumprimentam com sorrisos largos. Eu retribuo da mesma
forma, não há como não me emocionar. Nos minutos seguintes,
tento dar o máximo de atenção a todos e noto Daniel me
observar, enquanto converso com alguns idosos que se lembram
de mim. Pela primeira vez, estou curiosa sobre o que pode estar
passando pela sua cabeça. Agora não estou aqui para ajudar, mas
para visitar meus amigos idosos. Todos neste lugar me
ensinaram tanto que eu não poderia ir embora sem ouvir as
mesmas histórias contadas, pela milésima vez, por essas pessoas
incríveis. Alguns minutos se passam e vejo Daniel se aproximar
de mim. Ele se senta no sofá, ao lado da minha cadeira de rodas,
e permanece por um tempo ouvindo as histórias de guerra
contadas por um senhor veterano.
— Eles gostam de você — Daniel sussurra ao meu
ouvido.
— E eu, deles — respondo e sinto sua mão segurar a
minha. — Quero que seja minha companhia no próximo mês
para um evento beneficente. Como minha namorada.
Meu peito parece querer expulsar o coração. Quando
meus olhos encontram os dele, vejo que me quer sinceramente
por perto. Por alguma razão, sinto uma imensa vontade de beijá-
lo. Gostaria de ouvir de sua boca que a mentira que vivemos nos
últimos dias tornou-se real.
25

Eu poderia dizer com toda certeza que o último mês foi o


melhor em anos. Poderia, se não fosse por um detalhe. O tempo
está passando rápido demais e não vejo como não pensar sobre
isso todos os dias. Não posso negar que Sophia tem sido uma
parte fundamental. É estranho ter que confessar isso, mas aquela
mulher está sendo importante nesse processo. Nunca estive tão
próximo ao meu pai como agora.
Depois daquele dia em que Sophia e eu fizemos sexo
pela primeira vez, nós não nos separamos mais. Temos estado
juntos com bastante frequência, nos últimos trinta dias. Seu
corpo parece um ímã quando estamos perto um do outro. Como
pude me conter durante tanto tempo depois que a conheci? O
que tenho visto nela vai muito além da beleza e, talvez, por isso
mesmo me contive. É a primeira vez que consigo conversar com
uma mulher sem me preocupar se ela vai transar comigo depois.
Entre nós tudo acontece naturalmente. Já estive casado e, poucos
dias depois da lua de mel, já não conseguia dormir no mesmo
quarto que minha ex-mulher. Em pouco tempo já havia me
arrependido de ter me casado com Melissa. Aquilo foi a coisa
mais precipitada e imbecil que já fiz.
As mulheres mais desejadas do mundo já estiveram
comigo, mas nenhuma delas trouxe essa vontade primitiva que
sinto de estar dentro dessa mulher. É bizarro porque,
obviamente, estou com medo de que meus sentimentos já
tenham ultrapassado todos os limites imagináveis. Não queria
alimentar esperanças, mas a maneira como ela lidou com os
próprios problemas e a forma como os deixou de lado para se
meter em outros despertaram algo em mim. Ela foi humilhada
por um babaca, confiou em mim para desabafar e então eu me
deparo com o idiota naquele restaurante. Não vou negar que me
surpreendi quando liguei o nome daquele homem ao ex-noivo de
Sophia. Senti raiva, mas me controlei para entender se estava
mesmo diante do sujeito que a abandonou. Com tudo que meu
pai me disse naquele jantar e com o desabafo de Sophia, não
restou nenhuma dúvida de que se trata da mesma pessoa.
Naquela mesma noite, quando percebi que a mulher que
acompanhava Adam tentava me seduzir, pensei que ela era
perfeita para ele. Consegui manter a calma durante todo o jantar
porque sabia do erro que aquele idiota havia cometido ao
abandonar uma mulher incrível no altar. Naquela mesma noite,
algo dentro de mim despertou. Na verdade, aquele dia foi um
paradoxo. Eu era um homem quando cheguei à empresa e me
transformei em outro quando fui atrás de Sophia. Eu quase não
me reconheci.
Uma voz insistia que eu seguisse minha vontade, que lhe
mostrasse quão atraente ela era. Muito mais que qualquer
mulher que eu tenha conhecido. Queria dizer muitas coisas, mas
me abstive.
O tempo todo em que estive com aquele casal, eu me
questionava sobre como uma mulher inteligente e linda como
Sophia pôde se apaixonar — a ponto de querer se casar — por
alguém tão desprezível. O problema é que não tenho
argumentos. Fiz muito pior, já que me casei com alguém que
desprezo até hoje.
— Cara. Sei que você está passando por momentos
delicados, principalmente por causa do seu pai, mas alguma
coisa me diz que não é apenas ele que tem deixado você tão fora
do ar como agora. Por acaso ouviu o que falei nos últimos cinco
minutos?
— Não ouvi porra nenhuma do que você disse —
confesso e Aaron ri.
Estamos em um pub, na Sétima Avenida. Um bar
esportivo, predominantemente masculino. Só estou aqui para me
distrair e respirar sem que meu corpo seja puxado pelo ímã
chamado Sophia.
— Achei que ela não tivesse importância na sua vida.
Não foi isso que me disse quando a conheci?
Puxo uma respiração profunda e encaro meu amigo.
— Eu me enganei — confesso deixando-o com as
sobrancelhas erguidas e a boca aberta.
Aaron não voltou para a casa do meu pai depois daquele
almoço, mas isso não o impediu de me ligar para sairmos com
mulheres.
— Então essa coisa de estar muito ocupado quando o
chamo para dividir gostosas é mesmo por causa da namorada de
mentira?
Contrariado, esfrego o rosto freneticamente com as
mãos.
— Sim. Estou desesperado. Um homem como eu, que já
saiu de um casamento de merda, não deveria estar indeciso e
com ímpetos adolescentes. O fato de entrar em meu quarto todas
as noites e encontrá-la dormindo na minha cama, de pijama com
estampa de desenhos animados, desperta a porra do meu pau. Eu
só posso estar gostando dela.
— Desenhos animados? Que merda. Você não tá
gostando porra nenhuma! Daniel, você está apaixonado por ela.
Quantas vezes chegou e encontrou belas mulheres nuas na sua
cama? Eu deveria saber que Sophia era diferente. Quando se deu
conta disso?
— Quando? Não sei... Comecei a assistir a filmes e
quase faltei a duas importantes reuniões por pura distração. Não
consigo afastar meu pau daquela mulher. Você acha que não
estou me questionando sobre isso todos os dias?
— Uau. Isso é grave — Aaron diz com pesar na voz.
— Mais uma coisa — interpelo quando percebo que ele
está emudecido. — Sophia me fez andar descalço no gramado
do Central Park... De mãos dadas.
— Puta merda! Quem diria! Um homem como você,
literalmente, caído pela ex-secretária e namorada, que nem é de
verdade!
— Sabe o que é mais estranho? É que nunca voltamos a
falar sobre como essa farsa vai acabar. Será que me tornei um
idiota vulnerável? Até onde me lembro, sempre fui um homem
decidido.
— Você é a porra de um homem vulnerável, seu pau no
cu.
— Eu tô me abrindo pela primeira vez na porra desta
vida e você age como um arrombado?
— Okay, Daniel. Okay. Sophia estava com o pé
fraturado e, pelo que sei, há uma semana anda como uma
maratonista. Você me contou que ela decidiu continuar a
fisioterapia só para garantir que nada aconteça.
— Eu insisti que ela continuasse, para me acompanhar
na festa de gala.
— E todas aquelas atrizes e modelos que fazem fila para
acompanhar você nesse evento? O que fez com elas?
— Eu nem me lembrei delas — digo e neste momento
me dou conta de que meu amigo está coberto de razão. Estou
apaixonado. Só pode ser isso. Puta merda.
— Você não quer que ela vá embora. Simples!
Respiro fundo.
— Eu e meu pai nos acostumamos à presença dela.
— Não, você está errado, meu amigo. Você e seu pau se
acostumaram à presença dela.
— Idiota. Você tem toda razão, nós três nos
acostumamos e a porra do meu pau está viciado.
— Merda. Fodeu de vez. Perdi mais um guerreiro nesse
mundo dos solteiros convictos. — Aaron ergue sua cerveja e
brinda no ar.
Eu apenas dou um gole na minha, pensando em como
minha mente está fodida agora.
— Você sabe que meu pai se recusou a fazer tratamento
e nada tem mudado sua opinião. Sophia tem dado a ele tipos
variados de suco verde e ele parece melhor, mais energizado.
Parece funcionar, mesmo que ele esteja convicto de que vai
morrer em breve.
— Sim. Parece uma brincadeira de mau gosto.
— Bom, vamos mudar de assunto. Sophia me contou que
a amiga dela parecia ter gostado de você.
— Eu poderia ter comido a amiga se eu quisesse. Perdi o
interesse. Sabe como é, gosto de mulheres difíceis.
— Você nem a conheceu e já acha que ela queria dar pra
você? Conta outra mentira. O que aconteceu?
— Pare com essa merda, Daniel. Você sabe muito bem
que isso é possível.
— Sim, não posso negar que isso seja muito possível.
Mas não acho que você esteja me contando a verdade.
— Eu não ia foder a amiga da sua namorada. Isso
poderia ficar estranho depois, em reuniões de família, seus
filhos...
— Que porra é essa de filhos de que você está falando?
— Vocês estão trepando feito coelhos.
— Ela toma pílula e eu uso preservativo.
— Se você diz.
— Isso não vai acontecer.

Hoje é o grande dia do evento no museu mais famoso de


Nova York. Daniel enviou praticamente uma loja de roupas
inteira para seu apartamento. Cabeleireiros, maquiadores e
champanhe. Eu quase não pude acreditar que ele fez tudo isso.
Minha amiga e eu estamos radiantes por estar nas mãos de
profissionais sem precisar sair de casa. Parece um sonho, mas é
real. Às vezes, esqueço que isso vai acabar, que terei que voltar
em breve para minha realidade. Mesmo que estejamos vivendo
como namorados, não conversamos sobre essa coisa que
estamos tendo ultimamente. Serei a companhia de Daniel para
uma das noites mais importantes do ano e pretendo ser sua
melhor companhia.
Senhor Wallner disse que, por causa da doença, não tem
se sentido disposto. Ele pediu ao filho que fizesse o papel de
anfitrião do evento, que contará com a presença de muitos
famosos e de toda a imprensa. Na realidade, não parecia
indisposto, mas percebi que emagreceu um pouco nos últimos
dias. De qualquer forma, está feliz em me ter aqui e em saber
que acompanharei seu filho nesse grande evento beneficente.
Não consigo entender por que ele pôs na cabeça a ideia de que
eu e seu filho seremos felizes. Tudo bem que me sinto
privilegiada por receber tanto carinho desse homem. No fundo é
o que mais desejo. Se alguém previsse isso há três meses, eu
certamente diria que a pessoa estava fora de si, mas não. Não há
como negar meus sentimentos em relação a Daniel. Ele também
demonstra gostar da minha companhia, principalmente no
último mês. É estranho saber que me sinto tão dependente da
presença desse homem na minha vida. Em alguns momentos,
pensei que ele finalmente fosse se abrir, mas Daniel sempre se
retrai e retornamos à estaca zero. De qualquer forma, estamos
nos dando muito bem e sinto algo forte quando fazemos sexo.
Na verdade, há muito tempo não faço sexo com ele. Tenho plena
convicção de que fazemos amor. Algo dentro de mim diz que
ambos percebemos isso.
— Você está linda, Sophia — minha amiga me elogia
segurando uma taça de champanhe.
Estou dentro de um longo preto, com minúsculas pedras
Swarovski em todo comprimento da cauda, que se arrasta no
chão. É frente única, mas há um decote generoso em toda a
extensão das minhas costas.
Anne está com um longo vermelho, combina com seu
cabelo loiro. Estamos no quarto, depois de horas nos preparando
para a festa de hoje à noite. O salto que uso não é tão alto, mas
confortável para os meus pés novos em folha.
— Você também está linda, Anne. Parece que Daniel
conseguiu um amigo lindo para acompanhar você.
— Aaron recusou minha companhia?
— Ele já tem uma acompanhante.
Ela sorri sem graça.
— A culpa é minha. Ele tentou me beijar no carro aquele
dia e eu o rejeitei.
— Por que fez isso? — questiono-a perplexa; Anne não é
do tipo que finge.
— Ele não disse nada. O cara confia tanto no próprio
taco que apenas segurou a minha nuca e me puxou para um
beijo. Eu não gostei da atitude e me afastei. Isso foi o suficiente
para ele me ofender. Disse que faria comigo o que estava vendo
nos meus olhos, que sabia que eu estava molhada e louca para
trepar com ele. Mandei a prepotência dele para o inferno. Disse
que ele até era bonito, mas que eu preferia beijar um
desentupidor de privada à boca dele. Acho que ele não gostou de
ouvir isso.
— Merda. Tudo faz sentido agora.
— É. Eu estava a fim, mas quando percebi que ele era
um idiota...
— Entendo, amiga. Ele é legal, mas precisava ouvir isso
de alguém.
— Espero me dar bem com esse outro amigo.
— Daniel disse que sim.
— Sei que ele está aqui! — ouço berros femininos
vindos da porta de entrada e encaro minha amiga.
— Que merda é essa? — Anne pergunta e então eu me
viro, para me deparar com uma mulher de cabelos negros e
longos que caminha em nossa direção.
— Então são vocês que vão ao evento no meu lugar?
Onde está o meu marido? — a ex-mulher maluca de Daniel
invade o apartamento e berra descontroladamente. Ela está linda,
em um belo vestido de gala verde-limão, mas sua sanidade
mental ainda continua a mesma de meses atrás. — Espere aí, eu
sei quem é você! A secretária? O idiota prefere uma secretária a
me levar?
— Como você entrou aqui? — questiono, e ela ri.
— Sempre entro na propriedade do meu sogro.
— Vamos deixar claras umas coisas: Daniel não é mais o
seu marido e eu não sou mais a secretária dele.
— Então você deve ser uma prostituta! Vocês são duas
vagabundas...
— Olha aqui, sua vadia...
Seguro o braço da minha amiga, impedindo que Anne
voe para cima da louca.
— Não faça isso, Anne. Deixe-a falar sozinha.
— Não tenho sangue de barata. Quem essa demente
pensa que sou?
— Quero que saiam desta casa, entenderam? Ela me
pertence também. É do meu sogro. Daniel ainda é meu, eu sou
sua...
— Você é o meu pior pesadelo — a voz imperiosa de
Daniel chama nossa atenção quando ele entra impecavelmente
vestido, com um black-tie que parece perfeito para seu corpo.
O rosto da mulher se suaviza quando ela o vê, e neste
momento não sei o que pensar. É tão linda e, claramente, está
obcecada pelo ex.
— Daniel, como você teve a coragem de me trocar por
essas coisas? Olhe para mim. Não é possível que não sinta nada
por mim. Com qual dessas vadias você está trepando?
Vejo que Daniel não responde e, pegos de surpresa,
nenhum de nós sabe o que fazer.
De repente a mulher pega uma jarra decorativa que fica
sobre um aparador e caminha em minha direção. Eu me afasto
de costas, tentando evitar que ela me ataque, mas seus olhos
parecem mortais.
26

Meus olhos se ampliam quando percebo que ela está


decidida a jogar o vaso em mim. Vejo que Daniel e alguns
funcionários correm com o objetivo de alcançá-la, mas, antes
que alguém consiga pensar em fazer algo, minha amiga
literalmente voa sobre a louca.
Pisco várias vezes, sem acreditar que o que vi voando
bem diante dos meus olhos não era a Mulher-Maravilha, mas
minha amiga. As duas caem no chão, o vaso se espatifa em mil
pedaços, mas Anne não sai de cima dela. Minha amiga bate na
mulher, desferindo tapas em seu rosto. Melissa tenta se defender
cobrindo as faces com as mãos, mas não consegue impedir a
raiva de Anne.
— Sua vadia! Acha mesmo que eu deixaria você atacar a
minha amiga com aquele vaso caríssimo? Provavelmente vai ter
que pagar... — Ela segura os cabelos negros impecáveis da
outra, mas é retirada por funcionários e pelo próprio Daniel.
Estou perplexa com a minha falta de reação e com a
rapidez com que a minha amiga tomou uma atitude, antes que a
louca atirasse aquilo em mim.
Depois de Anne se afastar levada pelos funcionários,
Daniel segura a ex pelo braço e a ajuda a se levantar. Quando ela
está de pé, percebo que há sangue caindo de seu supercílio.
Deve ter batido com a testa no chão ao cair. Os tapas não fariam
isso, certamente.
— Viu o que essa louca me fez, Daniel? Essas mulheres
são perigosas.
— A única pessoa perigosa aqui... é você, Melissa. —
Ele segura o cotovelo da ex. — Vamos acabar com isso de uma
vez por todas.
— Só precisamos conversar, querido. Eu, eu acho que
podemos chegar a um acordo...
— Você não conseguiu entender nada. Não faço acordos
com malucas, mas obviamente não está em seu juízo perfeito.
— O quê? — ela pergunta, os lábios trêmulos e o sangue
ainda escorrendo pelo pescoço, tingindo de vermelho seu belo
vestido.
Uma funcionária aparece com um pano úmido e lhe
entrega. De repente, o que era raiva dentro de mim transforma-
se em pena. Daniel me analisa por alguns segundos, mas volta a
atenção para a ex.
— Voltou a tomar remédios controlados? — ele a
questiona; obviamente está falando sobre problemas que
vivenciou ao lado dela enquanto casado.
— Talvez. Só preciso do meu marido de volta.
— Você precisa do meu dinheiro de volta, Melissa.
— Não. Nós pertencemos um ao outro, você sabe disso!
Será que não percebe? — sussurra ignorando minha presença.
Viro-me para minha amiga, que está sentada no sofá; ela
parece sentir dor enquanto segura a mão direita.
— O que houve? Machucou? — Aproximo-me dela.
— Meu dedo dói.
— Merda. Deixe-me ver.
Noto que seu dedo mindinho esquerdo está um pouco
inchado e peço que tragam gelo. Respiro aliviada ao perceber
que nada mais grave aconteceu. A fenda que começa no início
da coxa de Anne possibilitou que minha amiga pairasse sobre o
corpo magro de Melissa, mas ela poderia ter se cortado ou
quebrado o dedo com tantos estilhaços.
— Vou resolver esse problema, podem ir sem mim —
Daniel diz olhando-me. — Vou pedir a Simon que acompanhe
vocês duas. Chego à festa em breve.
— Anne machucou o dedo e não quero ir sem você! —
as palavras saem de minha boca antes que eu consiga impedi-
las.
Daniel suaviza a expressão e concorda com a cabeça,
olhando para minha amiga.
— Meus funcionários vão cuidar de você — diz para
Anne, que acena com um leve movimentar de cabeça.
— Você ainda vai levar essas vadias para a festa? Olhe
bem como elas me deixaram!
— A polícia já está a caminho e você vai esperar aqui —
Daniel diz, e Melissa o encara com perplexidade.
Sua mão não deixa de pressionar o pano improvisado na
testa.
— Quem chamou a polícia? Eu estou aqui como sua
mulher.
— Você está aqui como uma pessoa inconveniente. A
ambulância também está vindo para realizar todo o
procedimento de praxe. Melissa, você vai responder por isso e
me deixar em paz com a minha namorada.
— Você está me dizendo que uma delas é sua namorada?
— Sim. Aquela mulher de preto, cuja beleza não se
compara a nenhuma que já conheci. Ela é minha namorada —
suas palavras não apenas deixam Melissa emudecida, mas a mim
e Anne também. Engulo em seco, essa é a última coisa que eu
esperava ouvir dele. — A sua sorte é que este apartamento é
grande o suficiente para que meu pai não acordasse com seu
escândalo.
Esperamos cerca de uma hora até que tudo finalmente se
resolvesse e Melissa fosse levada para a delegacia. Anne ganhou
uma discreta tala no dedo, por precaução. Daniel registrou
queixa formalmente, contra a ex, mas pretende levar o processo
adiante. Ela não poderá mais se aproximar da família dele ou de
suas propriedades, mas por agora estamos satisfeitos que ela não
esteja mais por perto. O advogado dele está cuidando de tudo.
Eu não imaginava que o fato de ser rico oferecesse tantas
vantagens em relação a esse tipo de burocracia.
A luxuosa limusine, que já estava nos esperando na porta
do edifício, nos leva ao famoso Metropolitan Museum. Anne e
Simon parecem se dar bem. Eles conversam animadamente na
outra extremidade da grande limusine. O homem moreno, de
cabelos cacheados, demonstra bastante interesse em minha
amiga.
— Eu esqueci de dizer... — Daniel interrompe meus
pensamentos. Eu o encaro, esperando-o prosseguir. Ele inspira o
ar profundamente e segura a minha mão. Observo nossos dedos
entrelaçados e em seguida encaro a intensidade de seus olhos
azuis. — Você está linda — pronuncia essa simples frase, e não
consigo evitar um largo sorriso.
— Você não está nada mal. Não é de se jogar fora —
brinco e ele também sorri, mas isso dura pouco tempo; sua
expressão séria retorna de novo.
— Não é uma farsa, Sophia. Isso que estamos vivendo há
um mês, na casa do meu pai, não pode ser uma mentira — suas
palavras repentinas fazem com que meu coração quase saia pela
boca.
— Não sinto que seja, Daniel.
— Eu não quero que seja, Sophia.
Engulo em seco quando seu rosto se aproxima do meu.
Ele me dá um beijo casto e suspira com os lábios quase colados
aos meus.
— Eu queria te comer aqui dentro, mas já estamos
atrasados. Além disso, detestaria ter que borrar sua maquiagem
ou fazer uma suruba com nossos amigos — Daniel brinca e eu
solto uma risada.
— Melhor esperarmos — digo enquanto começamos a
avistar a porta do museu e a multidão de pessoas atrás de
muretas de ferro.
Repórteres estão estrategicamente posicionados e dou
graças a Deus por não estarmos no inverno. Não sei como as
pessoas conseguiriam lidar com o frio abaixo de zero aqui.
— Pronta para ser vista, como minha namorada, em
público?
— Acho que eu deveria ter feito essa pergunta.
Daniel segura meu queixo, inclinando um pouco meu
rosto.
— Eu sou o privilegiado aqui, não você. — Ele me beija
rapidamente e então o veículo para em frente à escadaria.
Segundos depois, a porta finalmente se abre. Daniel sai
primeiro e em seguida estende a mão para me ajudar a sair.
Desço do carro e tento não entrar em desespero quando uma
sequência de flashes quase me deixa cega.
Há um tapete vermelho cobrindo toda a extensão da
larga e imponente escadaria do museu. Daniel segura minha mão
firmemente e ambos subimos os degraus, cercados de fotógrafos
e repórteres de todas as emissoras de tevê.
— Senhor Daniel Wallner, por que seu pai o incumbiu
de ser o anfitrião da noite? — um repórter berra com o
microfone direcionado a meu namorado.
— Problemas de saúde — Daniel se limita a responder e
me conduz rapidamente, fugindo de perguntas sobre quem eu
sou, levando-me para longe dessas pessoas.
Assim que entramos no museu, somos direcionados para
a recepção onde muitos convidados, principalmente famosos, já
se encontram. Minha amiga Anne se junta a mim quando Daniel
precisa se afastar para subir ao palco. Somos direcionados à
mesa principal, onde Aaron já está sentado com sua
acompanhante, uma bela morena de olhos verdes. Quando me
vê, ele se ergue com um largo sorriso e se aproxima.
— Sophia. — Ele me abraça. — Daniel me contou, por
mensagem, sobre o incidente com a ex. Sinto muito que aquela
louca tenha quase estragado a noite de vocês.
— Sim. Foi muito aterrorizante, mas no fim minha
amiga me salvou e acho que quebrou o dedo por minha causa.
Aaron observa Anne ao lado de Simon e simplesmente
ignora o homem.
— Você está bem?
Ela parece surpresa com a pergunta, mas acena com a
cabeça.
— Vou sobreviver. Obrigada por perguntar.
Todos nos sentamos junto à enorme mesa redonda e
então a voz grave de Daniel ressoa em todo o ambiente. Uma luz
clara é direcionada para o palco. Ele agradece a todos os
apoiadores e doadores. Recebe alguns famosos, entre eles,
estonteantes mulheres, que falam sobre causas humanitárias.
Daniel parece ter o dom da fala e sua presença
imponente desperta a atenção de todas as pessoas,
principalmente das mulheres. Quando sai do palco, muitas
pessoas vão falar com ele, então decido pegar uma taça de
champanhe e dar uma volta.
Estou tão encantada com a arquitetura e com as
esculturas antigas que demoro alguns segundos para perceber
que alguém está me chamando. Olho para meu lado esquerdo e
avisto Adam, que me olha com uma expressão de surpresa. Ele
parece em estado de choque. Mesmo vendo-o bonito e elegante,
como todos os homens no local, sinto algo ruim. A impressão é
de que ele realmente está tentando assimilar minha presença.
— Uau! Estou sem palavras! É você mesmo? — Desce o
olhar por toda a extensão do meu corpo. — Achei que estava
enganado, mas a mulher que vi de longe, a mais linda da festa, é
realmente você. Não é irônico?
— Não sei. Eu também estou surpresa em vê-lo aqui,
Adam.
— Oh, eu fui convidado pelo próprio anfitrião. O dono
da empresa com quem farei uma incrível parceria e...
— Adam? — Patrícia surge ao seu lado, estampando um
belo sorriso falso.
Está elegante, dentro de um longo azul-turquesa. Quando
finalmente coloca os olhos em mim, seu sorriso continua, mas as
sobrancelhas se erguem, e uma expressão de deboche passa a
estampar seu rosto.
— Sophia? Não consigo acreditar que você é tão doente
a ponto de conseguir entrar em um evento grandioso como este
para estar perto do meu noivo. Você nunca vai desistir?
— Não estou aqui por causa do seu noivo. Não estou
atrás de ninguém — informo, mas ela parece não acreditar em
mim.
Patrícia ri enquanto segura uma taça de champanhe e
abraça Adam. Ela parece querer me fuzilar somente com os
olhos.
— Não duvide um segundo, querida. Se tentar fazer
escândalo, vai sair daqui tão rápido que não vai perceber que
entrou — as ameaças dela me fazem sorrir.
Pelo visto, eles não viram de quem estou acompanhada,
mas estou gostando da brincadeira.
— Patrícia, querida. Acalme-se, ela deve estar
trabalhando para alguém.
— Não seja idiota, Adam. Ela está aqui porque ainda não
superou o fato de estarmos juntos. Não superou o fato de você
tê-la abandonado, como a uma mercadoria, por minha causa.
— Você é uma louca. Eu não estou aqui por sua causa,
Adam.
Antes de qualquer um dizer alguma coisa, sinto mãos
apertarem minha cintura.
— Amor, estava procurando você por toda parte! —
Viro-me ao som da voz grave de Daniel, que só então percebe,
ou finge que só agora notou, a presença de Adam e Patrícia. —
Parece que já foram apresentados à minha namorada!
Adam e Patrícia se entreolham, mas Daniel me abraça
chamando minha atenção, levando meu corpo contra o dele.
Ele beija meu pescoço suavemente e eu me curvo, dando
total acesso aos seus beijos bem-vindos. Completamente absorta
com sua demonstração pública de carinho, eu me viro, e, sem
farsa alguma, Daniel e eu protagonizamos um beijo quase
cinematográfico, na frente de todos.
27

Fiz o melhor que pude no papel de anfitrião. Sei como


este evento é importante para meu pai, que me incumbiu a
honrosa tarefa de ocupar seu lugar. Ele não queria vir e eu
compreendo; o número de convidados presentes é grande e isso
poderia ser estressante. Meu pai está se preservando e acho que
fez a escolha certa. Sei que também se escondeu para não ser
convencido a vir, mas eu nunca faria isso com ele. Era sua
vontade que eu e Sophia viéssemos juntos. Era um plano, mas
não me importo. A única coisa que me interessa de verdade é a
saúde do meu pai e estou aliviado que ele não tenha presenciado
o escândalo de Melissa.
Tento me desvencilhar da multidão que me cerca depois
do discurso e das apresentações, que, aliás, demoraram muito
mais que o previsto. É impossível não parar para, ao menos,
cumprimentar as pessoas que vêm até mim. Algumas mulheres
com quem me relacionei no passado também tentam começar
um diálogo que envolve viagens e sexo, mas, por incrível que
pareça, não estou dando a mínima para isso. Meus olhos estão
focados na mesa onde Sophia deveria estar me esperando, ao
lado de meus amigos, mas ela não se encontra lá. Isso me
incomoda imediatamente. Ela esteve lá o tempo todo, mas agora
sumiu como em um passe de mágica.
— Onde ela se meteu? — verbalizo meu pensamento e
as palavras saem antes que eu consiga impedir.
— Ela quem? — uma das mulheres ao meu lado
questiona.
— Minha namorada!
A loira estonteante ergue as sobrancelhas, mas não dou
importância a sua expressão de surpresa. Em vez disso, meus
olhos vagueiam por todo o lugar, em busca de Sophia. Arranjo
uma desculpa ridícula, mas finalmente consigo escapar, tamanha
a ansiedade que experimento. Talvez eu nunca tenha me sentido
tão ansioso como agora.
Caminho pelo salão completamente absorto. A única
coisa que penso é na possibilidade de ela ter ido embora por
alguma razão. Tento encontrá-la até que finalmente a vejo e
paro. Sinto os pulmões liberarem o ar com alívio. No entanto
não é apenas isso que me chama a atenção. Sophia conversa com
duas pessoas e de imediato consigo identificá-las. Adam e sua
noiva parecem intrigados diante dela, exatamente como eu
esperava que estivessem.
Aproximo-me, mas noto que Adam parece hipnotizado
enquanto analisa Sophia. Isso me incomoda, mas não vou deixar
transparecer. Sei que, neste exato momento, aquele babaca está
arrependido de tê-la deixado, mas isso não é o que me importa
realmente. A única coisa que quero é que Sophia se livre do
trauma que esse filho da puta lhe causou. Eu o convidei
propositadamente, só para que Sophia perceba o lixo de pessoa
que ele é. Quero que qualquer trauma ou estresse que ele tenha
causado suma de uma vez. A minha sorte é que não preciso
fazer nenhum esforço para que isso ocorra. Ele está fazendo
tudo sozinho, desde o dia em que a deixou e passou a humilhá-
la, pelo que ela me disse, com a ajuda de todos os funcionários
da empresa dele. Não quero que isso pareça uma vingança, não
é. Só preciso mostrar a essas pessoas que o mundo pode dar
muitas voltas.
Depois de abraçá-la e puxar seu corpo contra o meu,
noto que Adam e Patrícia parecem confusos por se depararem
comigo. Devem estar se perguntando o que está acontecendo ou
se estão dentro de seu pior pesadelo. Faço questão de provar que
pesadelos podem se tornar reais em minutos.
— Amor, estava procurando você por toda parte! —
“Perplexa” não é bem o termo com que eu definiria a expressão
de Adam e de sua noiva. Eles estão em estado de choque. —
Parece que já foram apresentados à minha namorada —
continuo.
Sinto o olhar das pessoas ao nosso redor, e do casal em
frente, sobre nós. Todos nos observam como se fôssemos algum
tipo de espécie exótica. No meu caso é justificável, ninguém
jamais havia me visto distribuir demonstrações de afeto em
público. Pela primeira vez em toda a minha vida, eu não me
importo com a exposição. Protagonizamos um beijo de cinema
e, por incrível que pareça, gosto de que todos saibam que Sophia
é minha namorada. Quando, com relutância, afastamos os lábios,
eu seguro sua mandíbula e encosto a testa lentamente na dela.
— Sophia, eu nem sei mensurar quão apaixonado estou
— sussurro. — Acho que sempre estive.
Embora esteja fazendo isso para chamar a atenção do
casal que ainda parece um par de estátuas assustadas, não estou
mentindo. Este sentimento avassalador que vem me invadindo
só pode estar relacionado à paixão. Sentir falta do cheiro de
alguém todos os dias não deve ser sintoma apenas de atração
física. Eu a quero para mim e, vendo seus olhos lacrimejarem,
tenho a certeza de que nossos sentimentos são recíprocos. Se
tivéssemos combinado esta cena, Sophia poderia parecer
nervosa, e eles teriam todo o direito de deduzir que tudo não
passa de uma farsa. Entretanto eu não quis que isso parecesse
falso, simplesmente porque não é. Queria que Sophia sentisse
tudo que está sentindo agora, queria que fosse pega de surpresa
ao se deparar com o ex. Eu precisava ver sua reação e ter certeza
de que ela quer vê-lo bem longe de sua vida.
— Sophia... — de repente, Adam chama minha
namorada, e eu noto o tom de advertência em sua voz; ele a
chama como se tivesse sido traído.
Ela o observa e ambos esperamos que ele prossiga.
— Vocês dois estão realmente... juntos? — Adam ainda
tenta se convencer de que somos reais.
— Isso não pode ser. Essa mulher não é para você,
Daniel... — Patrícia altera a voz, claramente fora de controle.
— Posso saber por quê? — questiono tentando entender
até que ponto eles são capazes de chegar.
— Eu posso falar... — Sophia tenta se explicar,
provavelmente imaginando que não sei que esse cara é a porra
do ex idiota de que ela havia me falado.
— Não é você quem deve se explicar, Sophia. São eles.
— Eu os encaro esperando que digam alguma coisa.
— Ela é... — Adam está suando muito e eu estou me
divertindo por dentro, como há tempos não fazia.
— Ela é o quê, Senhor Smith? — incentivo-o, mas a
tensão paira no ar e o casal se entreolha novamente.
A mulher parece engolir em seco e, com ar decidido, dá
um passo em nossa direção. A jovem loira joga alguns fios
soltos atrás da orelha e curva os lábios sugestivamente. Ela está
tentando me seduzir de novo.
— É meio embaraçosa e estranha esta situação, Senhor
Wallner. — Patrícia começa fingindo estar calma, já que Adam
perdeu a fala. — Ela é a ex do meu noivo. Tivemos problemas
envolvendo algumas joias que foram parar misteriosamente no
apartamento dela. Acho que a presença dessa mulher aqui nos
surpreendeu, e muito.
Patrícia está claramente tentando culpar Sophia por algo
que, com certeza, minha namorada não fez. Mantém o sorriso
falso no rosto.
— Eu não peguei aquelas malditas joias e você sabe
muito bem disso — Sophia se justifica, mas eu a encaro
pedindo, silenciosamente, que não diga nada; quero cuidar deles
sem que ela precise se estressar.
— Joias? Parece que o Sr. Smith não conheceu a mulher
com quem conviveu tantos anos. Eu a conheço há pouco tempo
e já sei que Sophia seria incapaz de fazer isso. Acha mesmo que
não sei quem são vocês? — Minha expressão é séria, mas não
solto a mão de Sophia um segundo sequer.
— Desculpe ter que dizer isso — Patrícia volta a falar.
— Sophia está com você porque, provavelmente, quer se vingar
da gente. Ele a deixou no altar e isso talvez tenha gerado
sentimentos de vingança...
— Patético — interrompo-a. — Suas tentativas de
sedução também são ridículas, Senhorita Patrícia. — Volto a
atenção para Adam, que tem os olhos grudados em Sophia.
— Aposto que nem sabia que sua ex fazia trabalhos
voluntários em uma clínica para idosos. — Adam agora olha
para o nada. Está perdido em pensamentos e eu continuo. —
Não, você não sabia o que Sophia verdadeiramente fazia naquele
lugar. Ela cuidava, conversava e amparava aqueles que não
tinham com quem conversar. Você perdeu uma pessoa
extraordinária, e eu só tenho que agradecer sua falta de
inteligência. Estou feliz por Sophia ter criado um vínculo de
amizade com meu pai durante tanto tempo e mais ainda com o
fato de você nem ter se dado conta disso. Você simplesmente
não estava interessado, para minha sorte.
— O quê? Amiga do seu pai?
Adam e Patrícia parecem incrédulos.
— Se não fosse por ele e pela sua burrice de deixar uma
mulher como ela esperando na igreja, não estaríamos juntos
agora, então eu só tenho que agradecer, a você, a sua estupidez.
Agora você tem essa mulher aí.
Patrícia amplia os olhos e abre a boca exageradamente.
— O que quer dizer com isso?
— Patrícia. — Adam está com os olhos avermelhados;
certamente segura a imensa vontade de chorar, pois sabe o que
está prestes a acontecer.
— Espero que o fato de vocês estarem é... juntos não
atrapalhe as negociações. Nossas empresas... precisamos...
— Eu quero que vocês se divirtam nesta linda noite —
interrompo-o. — Depois disso desapareçam da nossa vida.
Agora a expressão de Adam se transforma. Suas narinas
estão infladas e eu acredito que esteja tentando conter as
lágrimas. Minha única certeza é de que não deve ser fácil, para
ele, lidar com o fato de ter perdido um contrato multimilionário.
Esse negócio mudaria o rumo de sua empresa para sempre.
Mudaria.
— Senhor Wallner, seria interessante refletir sobre essa
parceria. Tenho certeza de que agregaríamos muito...
— Acho que nossa conversa se encerra por aqui —
interrompo-o novamente. — Tenham uma ótima vida e até
nunca mais. — Eu encaro Sophia, que apenas observa Adam, e
ela não diz nada.
Patrícia não está diferente, mas ambos parecem tentar
engolir as lágrimas. Eles terão que engoli-las junto com sua
humilhação.
Puxo Sophia pela mão e então retornamos para a mesa
onde deveríamos estar sentados há muito tempo.
28

Não sei descrever o que senti quando estava de frente


para meu ex e aquela mulher, em uma situação tão diferente.
Confesso que, pela primeira vez, não me importei em ouvir as
acusações de Patrícia. Hoje estou ao lado de Daniel Wallner,
meu namorado. O mais incrível é que não senti absolutamente
nada quando me deparei com Adam. Ainda me pergunto se
algum dia senti alguma coisa por aquele homem. A impressão é
de que eu dependia dele psicológica e, por que não dizer,
financeiramente. Só agora me dei conta disso. Ele era o meu
noivo, mas, de alguma forma, fez que eu me sentisse dependente
em sua empresa e quando foi morar comigo naquele loft.
Daniel sabia, o tempo todo, com quem estava lidando e,
por uma grande coincidência, quase fizeram uma parceria. Por
minha causa, ele não quis fechar negócio com Adam, mas, em
nenhum momento, quis me envolver nisso. Talvez me conheça o
suficiente para presumir que eu me sentiria mal influenciando
diretamente em suas decisões na empresa. O cuidado dele ao
lidar com tudo isso me emociona.
O fato de Daniel não querer envolvimento com Adam
por minha causa deixa-me ainda mais apaixonada. Ele o
convidou e fez sua família doar uma quantia absurda, para
somente então revelar que não faria qualquer negócio com sua
empresa. Beijou-me em público e se declarou de forma
apaixonada. Se isso não é amor, eu não sei o que seria. Em tão
pouco tempo, Daniel conseguiu o que Adam tentou por anos.
Ele me faz feliz. Como não amar este homem? Impossível. Não
existe outro lugar no mundo em que eu queira estar senão aqui,
ao lado dele.
Foram tantos acontecimentos em um só dia que, quando
finalmente conseguimos relaxar e voltar para nossa mesa, Simon
e a acompanhante de Aaron já haviam desaparecido.
Minha amiga tem uma conversa descontraída com
Aaron, que parece "magicamente" encantado por ela. Surpresa
não definiria o meu estado neste momento, mas não quero
pensar sobre isso agora. Hoje, definitivamente, foi um dia cheio
de surpresas.
Estou sentada ao lado de Daniel, e somos alvo de alguns
fotógrafos, mas, mesmo que estejamos rodeados por muitos
curiosos, fico feliz em saber que agora somos um casal de
verdade. Sem mentiras, sem farsa. Não posso estar louca. Ele se
declarou e meu coração diz que é real. Estou muito feliz por
ouvir da boca dele o que seu coração sente de verdade.
— Parece que Aaron e Anne estão se dando bem —
Daniel comenta de repente, trazendo-me de volta de meus
pensamentos.
— Aposto que você também não está entendendo nada
— digo e ele solta uma risada.
Acho que nunca o vi rindo dessa forma tão descontraída.
Daniel tem esse jeito sempre fechado, mas a condição de saúde
do pai o deixou ainda mais taciturno.
— Aaron não me engana. Ele se interessou pela sua
amiga desde o primeiro momento, mas não quer acreditar nisso
porque sempre fugiu de relacionamentos. Talvez ele tenha se
surpreendido e esteja com medo de se envolver.
— Tão clichê! Homem lindo que ama a vida de solteiro.
Por que Aaron não quer namorar?
— Talvez tenha passado por algum problema no Canadá,
mas não sei o que pode ser. Não posso julgar, tive um péssimo
casamento e não pensava em me relacionar de novo. Quando
pergunto sobre a vida amorosa dele, Aaron diz que se separou de
alguém naquele país. Enfim, não parece se sentir confortável em
me contar e eu não costumo insistir com as pessoas.
Concordo com a cabeça, mas não comento sobre o
assunto quando percebo que Daniel me observa pensativo.
— O que foi?
— Meu pai — responde e em seguida faz uma linha com
os dedos, na minha mandíbula. Ele analisa meu rosto, mas
continua absorto, aparentemente perdido em pensamentos. —
Meu pai sempre está certo sobre tudo. Lembro que, desde
criança, quando eu não fazia o que ele aconselhava, eu me dava
mal.
— Sua mãe, ela também lhe dava conselhos? —
questiono curiosa.
Ele sorri.
— Ela me aconselhava, sim. Meu pai a amava muito.
— Posso imaginar. Seu pai é um homem muito
romântico. Sempre me falou do amor que sentia por sua mãe. É
uma pena que ela não esteja mais aqui.
Daniel compõe uma expressão de pesar, mas sorri em
seguida.
— Desde o primeiro jantar na casa dele, meu pai estava
certo, antes de qualquer um de nós. Ele sabia que você era a
pessoa por quem eu me apaixonaria — suas palavras, carregadas
de sentimentos, me deixam um pouco perplexa.
Quem é este homem e o que fizeram com o Daniel mal-
humorado?
— Então é verdade? Você está mesmo apaixonado por
mim? — provoco-o.
Daniel inspira profundamente e depois libera o ar dos
pulmões.
— Completamente. — Segura meu queixo, inclinando
meu rosto, obrigando-me a olhá-lo. — Tudo em você me atrai.
Absolutamente tudo — confessa e em seguida me beija. Quando
nos separamos, sinto sua mão segurar minha nuca suavemente.
— Quero ir embora daqui. Vamos ficar apenas mais alguns
minutos e depois vou precisar estar dentro de você, como tenho
estado nos últimos dias. Hoje eu quero mostrar o que um homem
de verdade faz quando precisa desesperadamente de uma
mulher, e não de um enfeite. Preciso de você, Sophia. Meus dias
só se completam quando estou conectado a você. Literalmente.
— Ele me beija e depois se ergue.
Daniel estende a mão e me leva para dançar.

O tempo passou rápido e fiquei feliz porque, depois de


tudo, não havia nenhum sinal de Adam ou daquela mulher na
festa. Aaron levou minha amiga para casa e eu já estou no
banheiro, olhando-me pelo reflexo do gigante espelho. Daniel
está atrás de mim. Ele me ajuda a me livrar do vestido com
gestos solenes, como que em um ritual. Quando estou apenas de
calcinha, observo seu olhar faminto sobre mim.
— Eu nunca quis uma mulher como quero você, Sophia.
Nunca. Confesso que me questiono sobre esses sentimentos que
me dominaram. Olho para você e tudo parece fazer mais sentido.
Minha respiração torna-se cada vez mais difícil quando o
vejo se afastar. Observo-o pelo reflexo e Daniel começa a tirar a
roupa. Meu namorado desabotoa a camisa branca, fitando-me
intensamente. Sinto meu corpo tremer com expectativa pelas
coisas que vamos fazer agora.
Quando está nu, ele me abraça por trás, duro e
completamente pronto para mim. Retira minha calcinha
lentamente e, em seguida, com brusquidão, empurra meu corpo
para a frente, sobre a bancada de mármore do banheiro. Estou
exposta e de costas para ele. Sinto suas mãos deslizarem em
minhas costas, até alcançarem minha bunda empinada. Ouço sua
respiração pesada e, através do reflexo do espelho, vejo-o
absorto, completamente perdido em minhas curvas.
— Quero te foder assim, Sophia. Desse jeito. Você não
faz ideia da visão que tenho agora.
Quando menos espero, sinto-o me penetrar. Solto um
gemido alto, tamanho o prazer que isso me traz. Ele se
movimenta lentamente e meu corpo obedece a cada estímulo.
— Tão apertada e tão molhada — diz entre gemidos, que
aumentam a cada segundo.
— Mais forte, Daniel — imploro desesperada, minha
bunda indo em direção ao seu pau.
Ele me penetra cada vez mais forte, rápido e áspero. Suas
mãos tocam meus seios, enquanto sinto sua boca e língua
deslizarem em minha nuca, na mandíbula.
— Eu te amo... — sussurro, as palavras fogem sem que
eu consiga impedi-las.
Ele mete ainda mais forte, como se minhas palavras o
tivessem estimulado. Os tremores de seu corpo indicam que ele
está chegando a um orgasmo e eu rebolo contra ele em busca do
meu.
Seus dedos tocam meu clitóris, e eu levo a bunda até seu
pau muitas vezes. Ficamos incoerentes, cada pedaço nosso
parece a ponto de se fundir. De repente, os movimentos
aceleram, ouço seus gemidos e então um rugido explode de sua
boca, transformando-se em um orgasmo intenso. Seus dedos não
param de me tocar até meus gritos ecoarem e minhas pernas
enfraquecerem. Quando os movimentos acabam, o silêncio é
substituído pelo som de nossa respiração pesada.
Não sei precisar quanto tempo se passou, mas de repente
me dou conta de que estamos no chão do banheiro, e eu, deitada
sobre o peito dele. Daniel se senta e se apoia na banheira.
— Venha, vou dar um banho em você — sua voz grave
me traz de volta do mundo dos exaustos.
Daniel praticamente me ergue sozinho e logo me conduz
para o chuveiro.
Estou cansada e com as pernas bambas, enquanto ele
lava meu cabelo e limpa cada parte do meu corpo. Percebendo
minha letargia, Daniel me tira do chuveiro e me seca
pacientemente, com uma toalha macia. Quando termina de
enxugar meus cabelos, sinto sua respiração tocar suavemente
meu rosto.
— Você me ama? — pergunta de repente, e é provável
que esteja se referindo a minha declaração, há pouco, quando ele
estava dentro de mim.
— As palavras saíram e...
— Só quero saber se você me ama como disse enquanto
eu estava te fodendo — ele me interrompe e eu engulo em seco.
— Não sei como, mas isso só pode ser amor, Daniel.
Eu... eu te amo.
Ele inspira devagar, como se estivesse absorvendo cada
palavra.
— Nós dois sabemos o que é isso, Sophia. Eu sei o que
sinto e, a cada dia, esse sentimento parece mais claro para mim.
Não quero que vá embora desta casa. Quero você na minha vida
sem prazo, sem pensar no futuro. Quero você hoje, agora.
— Tenho as minhas coisas no loft. Como posso
simplesmente largar tudo...
— Você já largou e nem se deu conta disso. É
oficialmente minha mulher e amanhã vou resolver toda a
burocracia do loft. Não esqueça que posso fazer isso, Sophia. A
partir de agora, não quero que você tenha qualquer ligação com
aquele homem. Nada. Quero formalizar nossa relação e quero
conhecer sua família. É importante pra mim.
— Quer conhecer meus pais?
Acho que ele percebeu o tom perplexo na minha voz.
— Sim, mas antes precisamos fazer uma coisa.
— O quê? — pergunto, preocupada com o que ele vai
dizer.
— Amanhã vamos contar sobre a farsa para o meu pai.
Se vamos viver da verdade, ele precisa saber que apenas agora
oficializamos nosso relacionamento.
Comovida, eu sorrio. Daniel se transformou por causa da
doença do pai e é muito justo que eu faça tudo por ele.
— Estou orgulhosa de você por isso. Ele merece saber a
verdade.
— Ele vai saber. Agora vamos para a cama. —
Inesperadamente, Daniel me carrega em seus braços e me leva
até a grandiosa cama de casal.
Retira a toalha macia do meu corpo e me cobre com o
edredom branco e quente. Ainda nu, deita-se ao meu lado, puxa
meu corpo, e minha cabeça se apoia sobre seu peito. É assim que
eu me mantenho. Meus olhos se fecham e o sono está cada vez
mais próximo, enquanto sinto as batidas do coração de Daniel.
29

"Ele se foi."
Tudo parece me sufocar, à medida que o carro se
aproxima do hospital. É difícil de explicar. Os minutos parecem
se transformar em horas, enquanto as lembranças tornam-se cada
vez mais fortes. Passamos tanto tempo juntos, criamos tantas
afinidades, que eu já me sentia parte da sua família. Sabíamos o
que iria acontecer, mas minha dor não diminui por isso. Dentro
de mim, eu tinha a certeza de que, em algum momento, ele diria
que não estava doente. Que não era verdade. Meu querido
amigo, pai do homem da minha vida, se foi... Ele se foi.
— Chegamos, senhorita — a voz do motorista me traz de
volta das profundezas de meus pensamentos.
Eu o observo, mas minha visão está embaçada por causa
das lágrimas.
— Quer que eu a leve até a recepção do hospital?
Limpo as lágrimas com o dorso da mão e, com uma
inspiração, tento suprimir outras.
— Eu consigo ir. Obrigada. — Ele acena, o rosto
claramente triste pela perda de seu chefe de anos.
Na entrada principal, explico quem sou e o que vim fazer
aqui. A mulher, muito gentil, notando que não paro de chorar
decide me acompanhar até o elevador. Ela pressiona o botão e
em algum momento eu agradeço, quando as portas já estão se
fechando. Sou levada para o andar indicado, mas a imagem que
sempre vem a minha mente é dele, do sorriso dele. O homem
mais positivo que conheci. O homem que jamais teve medo da
morte.
Sigo pelo longo corredor. Olho para meu crachá, onde
consta o número do quarto, e começo a busca observando
número a número. Aproximo-me de uma sala de estar e paro
quando vejo Daniel e Aaron, ambos sentados em poltronas
confortáveis. Nenhum dos dois nota minha presença de
imediato, já que cada um está perdido nos próprios
pensamentos. Daniel, diferentemente do amigo, está de cabeça
baixa. Aaron se levanta quando me vê, mas meus olhos ainda
estão sobre aquele homem quebrado.
— Sophia. — Recebo um abraço apertado.
Quando nos afastamos, vejo que Daniel continua de
cabeça baixa. Ele não se move um centímetro sequer.
— Sophia... Daniel está na mesma posição há um
tempão. Ele está muito abalado — Aaron diz e eu concordo com
a cabeça; as lágrimas voltam a cair incessantemente.
— O que aconteceu com o Senhor Wallner, Aaron? —
sussurro enquanto analiso Daniel, que nem sequer me olha,
mesmo ouvindo minha voz.
— Infarto.
Encaro-o, perplexa com o que acabo de ouvir.
— O quê?
— O câncer lhe daria mais alguns meses de vida, mas
inexplicavelmente o Senhor Wallner teve um mal súbito e não
conseguiram trazê-lo de volta...
Engulo em seco, aturdida. Tínhamos tanto que falar,
estávamos tão preocupados com aquele maldito câncer e, de
repente, ele se foi por outra razão.
— Meu Deus... — sussurro enquanto caminho
lentamente, até me aproximar de Daniel.
Abaixo-me devagar e me ajoelho em sua frente. Ele
continua com a cabeça baixa, ignorando minha presença.
— Daniel... — sussurro, seu rosto ainda voltado para o
chão. — Ei... — Seguro seus braços e, de repente, como se
tivesse acordado de um pesadelo, Daniel ergue a cabeça e olha
para mim.
Ele não está chorando, parece apático. Seus olhos estão
gélidos quando encaram os meus. Isso me atinge com força.
— Você não me deixou contar. Você não... — ele diz e
de repente vejo as lágrimas inundarem seus olhos até torná-los
azul-piscina. — Eu acreditei em você, Sophia... Ele não soube
sobre essa farsa.
— Eu não podia imaginar que ele...
— Ele morreu enganado. Ele morreu, Sophia.
— Meu amor... — Tento tocar seu rosto, mas sou
repelida por suas mãos, que seguram meus pulsos.
— Não. — Daniel está com raiva de mim.
Ele se ergue e se afasta, deixando-me ajoelhada no chão
frio. Ouço o barulho de seus sapatos batendo, com força, contra
o chão e, quando olho para trás, vejo-o caminhar para longe, até
desaparecer de minhas vistas.
— Venha, Sophia. Eu a ajudo. — Aaron segura meu
braço e em seguida sou conduzida até a poltrona.
— Ele me odeia. Meu Deus... — Choro
compulsivamente, sentindo o corpo tremer; a acusação do
homem que amo me enche de desespero.
— Sinto muito — Aaron sussurra ao se sentar ao meu
lado. — Daniel está profundamente magoado com essa situação,
Sophia. Ele está com raiva e vai precisar de um tempo.
— Por isso foi você quem me deu a notícia, e não ele?
Aaron exala em resignação.
— Sim. Ele não queria conversar com ninguém. Daniel
havia desligado o telefone, mas fiz questão de ligar para você.
— Então ele não me quer aqui?
— Ele só está muito chateado. Você sabe que o pai foi
tudo para ele e, de repente...
— Vou esperar — digo em meio às lágrimas.
— Ele não quer falar agora. Apenas dê um tempo para
que ele entenda que isso não foi culpa de ninguém, okay?
Concordo com a cabeça, mas suas palavras não
diminuem o medo e a tristeza pela perda de um dos homens
mais incríveis que conheci.
30

Dizem que a dor do luto é a pior que existe. Não vou


julgá-lo, mesmo que ele tenha deixado claro que me considera
culpada por não termos dito a verdade antes da morte de
Franklin. Embora eu não imaginasse que isso poderia acontecer,
ele não está errado. Eu pedi a Daniel que esperasse com a
melhor das intenções, mas agora vejo que foi o maior erro que
cometi.
— Tem certeza de que não quer ir para o triplex? Fique
lá até Daniel aparecer.
Desvio a atenção da rua movimentada, para o homem
preocupado ao meu lado. Enquanto o carro segue pela Sétima
Avenida, Aaron parece triste, mas não posso voltar para aquela
cobertura sozinha.
— Não posso. Deixe-me em uma cafeteria qualquer,
depois eu me hospedo em um hotel, até amanhã.
— Hotel? Sophia, isso não é necessário. Daniel não vai
gostar de saber que você vai para um hotel. Ele só está triste,
mas sei que a ama. Ele ama você...
— Não me sinto bem em voltar neste momento. Aquilo
me magoou e agora eu também preciso de tempo.
— Posso ligar para Anne. Você pode ir para a casa dela.
Não fique sozinha.
— Não quero ver ninguém hoje, Aaron. Não insista, por
favor.
— Não posso deixá-la sozinha. Daniel pode ficar com
raiva e...
— Você não é responsável por mim e já está me fazendo
um grande favor ao me dar carona. Tenho dinheiro, cartão e vou
para um lugar seguro. Não se preocupe.
— Merda. — Ele sopra o ar em frustração. — Tudo bem.
Se precisar de algo, é só ligar. Não desapareça. Você sabe que
Daniel vai precisar de você na cerimônia de despedida, não
sabe?
— E eu, dele... — Enxugo as lágrimas que ainda
escorrem pelo meu rosto. — Vou ficar bem. Vamos ficar bem.
Minutos depois já me encontro em uma cafeteria que fica
no Chelsea. Tento não pensar em nada, mas as últimas palavras
de Daniel, cheias de ódio, me trazem ainda mais tristeza. Mesmo
que tenha perdido o pai, acho que eu merecia mais que palavras
cortantes, principalmente em um momento tão triste. Tudo bem
que ele tem seus motivos, mas não consigo entender a razão de
tanta rispidez.
— Posso lhe oferecer um café?
Viro-me repentinamente, ao notar que Adam está aqui.
Eu o encaro perplexa. Ele é a última pessoa que eu gostaria de
ver hoje.
Está dentro de um terno, como habitual, mas suas roupas
estão amassadas e seu cabelo, que sempre está impecável, parece
que não vê um pente há dias. Ele sorri, aparentemente
desconcertado. Parece estranho vê-lo nesta situação,
principalmente no dia de hoje. Logo hoje ele aparece.
— Você está me seguindo? — questiono-o e ele ergue as
sobrancelhas.
— Eu moro perto daqui, Sophia. Confesso que a vi entrar
na cafeteria e...
— Acha mesmo que vou acreditar nessa história
ridícula? — corto-o. — Quando começou a me seguir, Adam?
Ele abaixa os olhos e, pela expressão de arrependimento,
noto que estava certa. Ele estava me seguindo.
— Eu soube da morte do Senhor Wallner. Imaginei que
estivesse no hospital e então decidi ir até lá para confirmar se
você estava mesmo com aquele homem e...
— Confirmar? Você está louco?
— Não. Sei que vocês tiveram um rolo. Eu só queria
saber se era sério tudo que vi.
— Você só pode estar brincando! — digo estarrecida.
— Não estou. Quando vi que você realmente apareceu
por lá, tive medo de perdê-la e a certeza de que não existia a
possibilidade de nós...
— Nós?
Adam faz um barulho estranho com a garganta. Ele
parece tímido de repente.
— Eu... Eu não paro de pensar em você, Sophia. — Ele
se aproxima de mim, mas eu me afasto. Adam para quando
percebe meu medo, mas sorri, embora não demonstre humor. —
Eu sou o homem mais idiota do mundo. Sou um imbecil. Daniel
Wallner estava certo, deixei a mulher mais incrível ir embora da
minha vida.
— Adam, não estou entendendo isso agora. Não tenho a
menor condição de discutir nossa antiga relação. Vá embora.
— Eu te amo — meu ex-noivo solta de uma vez, mas
não sei o que responder.
Tudo o que quero neste momento é ficar sozinha, no
entanto ele parece obstinado em falar sobre o passado. Não
duvido que tenha bebido alguma coisa.
— Adam, você precisa ir embora, entendeu? Não quero
ter qualquer tipo de contato com você. Nunca mais!
— Não faça isso, Sophia! Você não ficou no hospital.
Por quê? — questiona, aparentemente confuso sobre minha
saída sem meu namorado. Está especulando.
— Não é da sua conta.
— Ele a mandou embora logo no dia da morte do pai? O
que houve?
— Saia daqui.
Adam esfrega o rosto exaustivamente com as mãos
— Não vou a lugar nenhum, Sophia. Não vou deixá-la
sozinha aqui.
— Não faça isso... — As lágrimas retornam, deixando-
me vulnerável diante deste homem.
— Vou ao banheiro — informo, na tentativa de manter
distância dele.
Preciso respirar e este homem parece roubar todo o meu
oxigênio. Adam respeita meu espaço e não me segue.
Lavo o rosto algumas vezes e respiro fundo, na tentativa
de resgatar o autocontrole. Rezo internamente para que Adam
tenha ido embora, mas, assim que retorno, vejo-o segurando
meu copo de chá. Desistindo de discutir, eu me sento no banco
alto do balcão, de frente para a rua.
— Sente-se melhor? — pergunta, mas eu o ignoro. —
Tudo bem. Sei que sou a última pessoa que você gostaria de ver
e, juro por Deus, não sei como deixei isso acontecer. — Adam
se senta ao meu lado, junto ao balcão.
Eu continuo ignorando-o, enquanto tomo meu chá.
Observo, através da vidraça, os carros passando, mas, mesmo
que Adam não pare de falar, tudo que vejo é o olhar triste e a
raiva de Daniel.
— Não vim brigar, Sophia. Depois daquele dia da festa
no museu, o arrependimento bateu muito forte em mim e tudo
que eu pensava era em como iria pedir perdão a você.
— Volte para sua noiva, Adam. Não quero conversar
com você. Vá embora, ou vou chamar a polícia, entendeu? —
Encaro-o com raiva.
— Não estou mais com ela. Amo apenas uma mulher e é
com você que quero ficar.
— Meu Deus! Pare com isso. Eu não tenho a intenção de
voltar para você, e menos ainda de ser sua amiga. — Eu me
levanto e tento me afastar, mas ele segura meu rosto com as
duas mãos.
— Não existe outra mulher. Nunca existiu. — Seus olhos
se enchem de lágrimas, mas não me importo com ele. Não o
quero perto de mim.
— Preciso ir... Não me siga, ou vou chamar a polícia. —
Desvencilho-me e saio do café quase correndo.
Adam não me segue e sinto o alívio me atingir.

Os últimos dias foram os piores da minha vida. Estive no


hotel, e Daniel não retorna minhas ligações. Aaron me liga todos
os dias, para saber como estou. Diz que o amigo continua muito
abalado. Confesso que não esperava tal atitude por tanto tempo.
Conversei com meus pais e já avisei que vou me mudar para a
casa deles, assim que terminar a cerimônia de despedida. Não
faz mais sentido esperar. Daniel vai me culpar para sempre e não
estou disposta a passar por isso.
Anne segura minha mão, enquanto o táxi se aproxima do
grandioso cemitério em Long Island. Descemos do veículo
amarelo e caminhamos sobre o imenso gramado, em direção ao
aglomerado de pessoas. Meu coração bate acelerado, à medida
que nos aproximamos. Sinto as lágrimas verterem dos meus
olhos e minha garganta se contrai.
— Vai ficar tudo bem, amiga. Força — Anne sussurra.
Não consigo responder, mas tiro os óculos para limpar as
lágrimas com o dedo indicador. No momento em que me
aproximo, decido me sentar em uma cadeira, do lado oposto ao
de Daniel. Ele veste um terno preto e está na mesma posição em
que o vi da última vez, sentado, com os cotovelos apoiados nos
joelhos. Sua cabeça está baixa e ele continua na mesma apatia de
antes.
Meu coração dói ao vê-lo assim, mas não posso negar
que ainda sinto mágoa por ele não ter me procurado durante os
últimos sete dias. Daniel não precisou de mim. Isso é o que mais
me machuca.
A cerimônia se inicia. O caixão do Senhor Wallner está
posicionado próximo a sua lápide. Lindo, coberto de flores e
pela bandeira americana. Há uma bela foto dele, sorrindo para a
pequena multidão de pessoas que nunca vi, exceto por algumas
do asilo e funcionários. Jonathan parece devastado.
A atmosfera é muito triste, mais do que poderia ser em
uma cerimônia como esta. No fim, quando o caixão está no
fundo da cova, decido me aproximar, segurando flores e o
pingente que Daniel me deu antes de tudo isso acontecer. Dessa
vez não consigo controlar o choro compulsivo e não escondo
isso dos demais.
Mesmo que ele esteja de óculos escuros, sei que Daniel
não tira os olhos de mim. Jogo as flores sobre o caixão e deixo
minha despedida em uma oração silenciosa. Olho para Daniel,
que ainda tem sua atenção sobre mim. Sei que ele não me quer
por perto, mas preciso ir até ele. Preciso, mesmo que
silenciosamente, demostrar que me importo com sua dor, que
sinto um buraco dentro de mim.
Aproximo-me e, quando meu corpo está de frente para o
dele, vejo suas lágrimas descerem pela primeira vez. A surpresa
me faz engolir em seco, enquanto deixo a emoção tomar conta
de mim.
Não digo nada, mas, inesperadamente, Daniel me puxa
para seus braços. Sinto seu abraço muito apertado e desesperado
em volta de mim. Seu corpo parece se contorcer enquanto me
mantém em seus braços. Neste momento não existe ninguém ao
nosso redor. Somente eu e ele. Sinto seu rosto junto ao meu
pescoço, enquanto deixamos a emoção se libertar. Não sei
quanto tempo ficamos abraçados, mas, quando nos separamos,
Daniel retira um lenço do bolso do paletó e limpa as lágrimas.
Ele volta a colocar os óculos de sol e respira fundo algumas
vezes, olhando para um ponto fixo atrás de mim. Dá um passo
para trás e então retorna à "persona" anterior, aquela que não se
importa mais comigo. Isso me deixa confusa, mas logo percebo
que ele só queria se despedir de mim. Uma dor dilacerante
atravessa meu coração, mas me mantenho firme no que vim
fazer aqui. Se ele não me quer mais, não tenho por que ficar com
o pingente que me deu.
— Isso não me pertence mais...
Daniel olha para o pingente em minhas mãos.
— É seu. Fique com ele — sua voz grave e gélida só
demonstra que Daniel não pretende mais me ver; essa dor parece
não acabar nunca.
Em vez de responder, coloco o pingente em um bolso de
sua calça e me afasto para longe dele.
Ao menos fiz o que deveria fazer. A vida precisa seguir,
mesmo que ele tenha decidido não estar mais ao meu lado.
31

Tem sido difícil enfrentar os dias quando não consigo


deixar de pensar nele. Minhas emoções oscilaram em muitos
momentos, enquanto estive na casa dos meus pais. Hoje retornei
a Nova York e cheguei à conclusão de que preciso pensar mais
sobre o que devo fazer com a minha vida. Estive na cobertura do
Senhor Wallner há muitos dias, para pegar minhas coisas. Pedi a
Jonathan que me acompanhasse e só então descobri que Daniel
nunca retornou para o apartamento do pai. Segundo o assistente,
o homem que pensei estar apaixonado por mim decidiu viajar.
Daniel não tem data para voltar de sua viagem à Europa. Isso me
fez tão mal que voltei para a casa dos meus pais e somente hoje
estou aqui.
O Senhor Wallner confiou em mim a ponto de me dar
uma participação na empresa. Tudo o que ele fez foi por causa
da minha relação de mentira com seu filho, então não seria justo
aceitar, principalmente sabendo que Daniel ainda me culpa.
Enviei um pedido para que prolongassem o prazo da minha
entrada na empresa. Não quero lidar com isso agora. Estava tão
mal que tive que fingir um problema de saúde só para não ter
que sair de casa. Hoje Anne me ajudou. Ela, obviamente, usou o
seu jeitinho nada fofo, e, neste instante, acabamos de visitar
espaços e quartos para alugar. Parece estranho, mas não posso
ser uma empresária bem-sucedida de uma hora para outra.
Preciso me obrigar a me levantar, já que não quero me vitimizar,
como fiz da última vez. Não aceito isso, não posso me entregar.
Sofri quando fui abandonada pelo Adam, mas isso que
estou sentindo agora é um tipo diferente de dor, algo que não
consigo mensurar. Tenho me alimentado muito pouco e sei que
preciso cuidar disso. Apenas estou triste, não sinto vontade de
comer, mas gostaria que essa dor fosse embora. Eu adoraria
extirpar esse sentimento de uma vez por todas, mas parece
impossível.
— Okay. Hoje saí com você à procura de quartos para
distraí-la, amiga. Você insiste nessa ideia absurda — Anne diz
enquanto nos sentamos à mesa de um restaurante. — Mas, agora
que você parece melhor, preciso dizer que não vou aceitar isso.
Você tem uma empresa agora e não precisa morar com ninguém,
muito menos em um pequeno espaço. Isso é loucura, Sophia!
— O Senhor Wallner só me incluiu no inventário por
causa de uma mentira. Não pretendo aceitar...
— Isso é ridículo! Ele era seu amigo antes de qualquer
coisa!
— Eu sei. Vou pensar sobre tudo. Não posso fazer nada
hoje. Ainda não me sinto bem em ter que trabalhar lá.
— Sophia, quando você foi abandonada praticamente no
altar, eu lhe dei toda a força para se separar daquele merda, mas
alguma coisa me diz que com Daniel é diferente. Eu vi como
vocês dois são juntos, e é diferente. Era nítido o amor dele por
você.
— Anne, ele desistiu de mim, e não o contrário.
— Não está fazendo sentido, amiga. Algo deve ter
acontecido. Perguntei ao Aaron, mas ele não consegue falar com
Daniel desde o dia do enterro e...
— Ele fugiu, Anne. Daniel está na Europa e não me ama.
Fim.
— Tente entender o que se passa na cabeça dele, Sophia.
Ele está de luto e, talvez, se vocês conversarem...
— Ele teria que me dar um bom motivo, porque a mágoa
que sinto não foi embora. Preciso reagir, mas... — de repente
sinto uma tontura anormal, um mal-estar me pega totalmente de
surpresa.
Anne se ergue, diz alguma coisa, mas não consigo
entender. Tudo parece girar a minha volta.
— Não estou me sentindo bem, Anne... Eu...
— Sophia... — ouço meu nome reverberando, como um
eco, em meus ouvidos.
Não consigo controlar meu corpo e, de repente, sou
invadida pela escuridão, que logo é substituída por imagens de
rostos desconhecidos.
— A ambulância está a caminho, amiga.
Tento falar, mas, em vez disso, só consigo ouvir ruídos
indistintos e prolongados, vindos de muitas pessoas. Sinto que
estou deitada; a confusão de imagens, sirenes e o que está
acontecendo ao meu redor parecem um borrão. De repente, não
sei onde estou, quem são essas pessoas e o que está
acontecendo.
Entre idas e vindas, sinto algo espetar meus pulsos, mas
não me importo. Não consigo distinguir realidade de sonho e,
depois do que parecem horas, meu corpo relaxa e tudo se
escurece.

Sou acordada pela claridade que vem de uma luz acesa


bem em cima do meu rosto. Estou confusa, mas em poucos
minutos me lembro do que aconteceu. Eu estava no restaurante
quando me senti muito mal. Sinto a boca seca e, quando tento
erguer o corpo, sou impedida por mãos delicadas.
— Amiga, você precisa descansar.
Ajusto a visão para encontrar Anne sentada em uma
cadeira, ao meu lado.
— O que aconteceu?
— Já chamei a médica que a atendeu. Você teve uma
queda de pressão e desmaiou. Estamos em um hospital. Você
não comeu o dia todo, Sophia. Quer se matar? — adverte com o
olhar duro sobre mim.
— Não. Eu só estava sem fome.
— Isso poderia ter prejudicado...
— Que bom que acordou! — Uma mulher de jaleco
branco entra no quarto.
Ela segura uma prancheta e analisa algo nela.
— Sophia Collins. Sua amiga me disse que você não está
ciente sobre o que está acontecendo, certo? Sabe por que
desmaiou?
— Não. — A médica se aproxima, pressiona um botão
ao lado da cama, inclinando-a, e então meu corpo se eleva
lentamente.
— Você precisa saber que, a partir de agora, terá que se
alimentar de três em três horas.
— Eu estou doente?
Ela sorri.
— Não. Pelos exames, você está muito saudável. Agora
você carrega um ser aí dentro de você.
— Como assim? — Meu coração acelera quando
entendo exatamente o que ela está querendo me dizer.
— Grávida. Você está grávida, querida.
Meus olhos encontram um ponto fixo e ali permanecem
por um tempo.
— Tem certeza disso? Eu menstruei mês passado e este
mês... — Tento me lembrar da última menstruação, mas me dou
conta de que estou alguns dias atrasada.
— Você está grávida há mais de nove semanas. Durante
a gravidez, podem acontecer sangramentos que não têm relação
alguma com menstruação. Você teve muita sorte de que isso não
tenha sido nada. Seu bebê está bem.
Anne e eu nos encaramos, mas agora ela está com um
sorriso no rosto, como se tivesse ganhado na loteria.
— Eu disse, amiga. Não acabou. Você está grávida do
homem da sua vida.
— Não, Anne. Eu estou grávida do homem que não me
quer ao seu lado. Ele vai odiar isso...
— Ele a ama e tenho certeza de que existe alguma
explicação. Se tiver e ele não quiser estar ao seu lado, você tem
amigos e sua família, que irão apoiá-la. Se Daniel não quiser um
filho que já foi concebido, ele não merece você e nem essa
criança.
As lágrimas começam a inundar meus olhos. Um misto
de medo e felicidade me atinge de uma só vez.
32

Eu não imaginava que fosse possível sentir uma dor tão


dilacerante. Meu pai não está mais aqui.
A morte é muito cruel, ela não avisa. Mesmo que todos
finjam esperar, ela nunca avisa. O pior é saber que ele não
morreu por causa da doença. A notícia inesperada de sua morte
atuou como se alguém tivesse feito um buraco dentro de mim.
Estive forte durante todos os dias em que cuidava de
tudo para que meu pai tivesse uma cerimônia digna da pessoa
incrível que ele foi. Agora estou aqui, despedindo-me e incapaz
de acreditar em tudo que está acontecendo.
Não preciso que Sophia tire os óculos escuros para que
eu tenha a certeza de que ela está sofrendo muito. Não duvido
disso um só segundo. Seu abraço me trouxe o conforto de que eu
tanto precisava e somente sua presença levou-me às lágrimas, as
mesmas que detive durante os últimos dias. Essa mulher é a
única pessoa capaz de trazer à tona minhas emoções mais
profundas. Não sei como ela faz isso.
Quando a vi tão quebrada quanto eu, orando baixinho ao
se despedir do meu pai, a única coisa que senti foi uma vontade
irresistível de tê-la em meus braços, mesmo que fosse pela
última vez. Sei que meu pai não deve estar feliz por isso, mas
também sei que não deve estar contente por não ter sabido de
toda a verdade sobre mim e Sophia. Entretanto eu poderia lidar
com isso. Por ela e pelo seu amor, eu poderia. Não a culpo como
insinuei no hospital. Depois daquele rompante impensado, não
demorei muito para entender seu lado. Sophia não sabia que
tudo que mais temíamos aconteceria tão prematuramente e não
deve ser julgada por isso. Jamais.
Quando termino de limpar as lágrimas, volto a colocar os
óculos de sol. Sophia parece esperar que eu diga algo, mas,
quando ergo a cabeça, eu o vejo, bem atrás dela. Adam está
aqui, e não consigo disfarçar a raiva. Como ela teve a coragem
de trazê-lo? Imediatamente dou um passo para trás, sentindo-me
traído, como se uma faca tivesse sido enfiada nas minhas costas.
Ele não deveria ter vindo. Agora é difícil olhá-la.
Mesmo que eu tenha dito a Sophia que ficasse com o
pingente, ela o coloca em meu bolso e se afasta, praticamente
correndo para longe. Observo Adam a seguindo, mas ela o
ignora e segue para longe de meu campo de visão. Hoje, sinto
dores diferentes. Perdi duas vezes. Perdi as duas pessoas que
mais amei na vida e não sei como vou lidar com isso.
Espero a cerimônia terminar, cumprimento algumas
pessoas, mas decido ir em direção ao meu carro o mais rápido
possível. Aaron me segue calado, mas, quando estou prestes a
entrar no veículo, ele me puxa pelo braço.
— O que foi aquilo? — questiona expressando
insatisfação. — Você a abraça e depois ela corre de você? O que
aconteceu, cara?
Encosto-me no carro e encaro meu amigo. Ele não irá
embora enquanto não receber uma resposta.
— Eu a vi com Adam no dia em que meu pai morreu.
— O quê? — Aaron questiona ainda mais confuso.
— Naquele dia você me disse onde a havia deixado,
lembra? — recordo-o e ele acena com a cabeça.
— Claro! Estava preocupado com ela, sozinha, naquele
café. Depois você sumiu...
— Fui até a lanchonete e ela estava com ele.
— Então você foi atrás dela?
— Claro que fui. Eu a tratei mal e precisava me
desculpar. O problema é que, antes mesmo de estacionar o carro,
eu os vi, juntos, através da vidraça. Ela estava emotiva, e Adam,
segurando seu rosto. Eu me tornei o homem mau que a destratou
e ele se aproveitou da ocasião. Tive a impressão de que ela
estava gostando da presença dele. Talvez nunca o tivesse
esquecido como imaginei. Pareciam se dar bem e hoje ele estava
aqui, com ela.
— Ele estava aqui? — Aaron questiona incrédulo. — Eu
a vi chegando com a amiga, Daniel. Elas não estavam...
— Adam me encarou de longe e não respeitou o meu
luto. Isso significa que eles voltaram. O idiota estava esperando
que ela saísse de perto de mim para irem embora juntos, ou...
não sei.
— Que merda você está falando, cara? Acho que vocês
precisam conversar. Isso não faz sentido.
— Sophia me devolveu o pingente que eu havia dado a
ela. Quer sinal maior que esse? Não precisamos conversar,
Aaron. Acabou.

Quase um mês desde a morte do meu pai, e eu decidi


fugir.
Acabei de voltar da Europa, onde estive por todo esse
tempo. Hoje estou de volta à vida normal. Aqueles momentos de
raiva e negação acabaram e decidi me enfiar de cabeça no
trabalho. O luto ainda está muito presente na empresa, tamanha
a falta que meu pai faz. Ainda não pude ir ao apartamento dele,
mas sei que Sophia esteve lá. Deve ter ido buscar seus pertences,
já que pediu ao Jonathan que fosse com ela. O que me intriga é
saber que ela ainda não voltou à empresa onde deveria ter
começado a trabalhar. Segundo Jonathan, Sophia pediu um
tempo, mas ainda não sabemos o que de fato vai fazer com a
parte que herdou do meu pai.
Parece que se passaram anos desde o dia em que a vi
pela última vez. Eu me pergunto todos os dias se ela está bem,
mas logo imagino aquele homem ao seu lado. Será que estão
juntos? Não tive contato com ninguém. Eu me fechei para o
mundo e nem mesmo Aaron soube de meu paradeiro.
Meu celular vibra, o nome de Jonathan brilha na tela e eu
atendo rapidamente.
— Oi, Jonathan.
— Bem-vindo de volta, senhor. Espero que tenha feito
uma boa viagem.
— Obrigado, Jonathan. Demorei mais que deveria, mas
estou aqui. Precisava de um tempo.
— Fico feliz que tenha voltado. — Ele faz um barulho
com a garganta. — O advogado do seu pai quer se encontrar
com o senhor o mais rápido possível. Há muitos documentos
para preencher e assinar. Isso é muito importante, senhor.
— Tinha me esquecido disso. Ele pode vir à empresa
daqui a uma hora?
— Ele está à disposição. Vou ligar agora.
— Ótimo. Espero-o na sala de reuniões, providencie
café. — Encerro a ligação e volto a me enfiar no trabalho;
muitos projetos e um turbilhão de e-mails esperando resposta.
Quando faltam alguns minutos para a reunião, eu me
levanto. Pego o paletó do terno e sigo em direção à porta. Passo
pela nova secretária e a cumprimento com educação. Dou ordens
para que não me passe nenhuma ligação e sigo para a sala de
reuniões que fica no extremo oposto do corredor. Espero pelo
advogado, que chega antes do horário combinado. O senhor de
idade, amigo do meu pai, sorri quando me vê.
— Daniel, meu filho. Você nos pegou de surpresa com
essa viagem à Europa. Que bom vê-lo. Não pude falar com você
no enterro do seu pai, mas espero que esteja melhor agora.
Minha esposa e eu lamentamos muito. Seu pai era um grande
amigo e uma pessoa extraordinária.
— Obrigado. Estou superando.
— Ótimo. — O homem de cabelos brancos se senta à
mesa, acompanhado por um jovem assistente.
Eu o observo retirar um monte de papéis de sua maleta.
O assistente separa os documentos, enquanto espero tomando
meu café, pacientemente.
— Você precisa assinar alguns papéis, mas antes tenho
uma coisa importante guardada comigo. Seu pai pediu que eu
lhe entregasse somente depois que ele fosse embora.
— Coisa? Que tipo de coisa? — questiono com
curiosidade.
— Certo. Eu sou o homem de confiança dele e me
sentirei honrado ao ler uma carta, em voz alta, para você.
— Carta? — Eu me ajeito na cadeira e o observo com
um olhar curioso, talvez até um pouco perplexo.
— Sim. Preciso ler em voz alta, Daniel. Seu pai quis
garantir que você ouviria até o fim. Foi um pedido dele, e isso é
importante.
Demoro alguns segundos para assimilar o que ele diz.
— Tudo bem. — Sinto o coração acelerar com muita
força. — Leia, por favor...
— Certo. Ótimo. — O homem olha para o assistente, que
entende o recado e sai da sala de imediato.
Confesso que meu coração, agora, espanca o peito, pela
ansiedade que essa nova notícia me traz. Nada podia ser tão
reconfortante como uma carta escrita pelo meu pai e endereçada
a mim.
— Bom, vou ler... — Ele faz um barulho com a garganta,
indicando que vai começar:
"Não se assuste, filho.
Eu me preparei para este dia. Vocês não fazem ideia das
coisas que planejei quando descobri essa maldita doença. É
meio mórbido, eu sei, mas era preciso deixar as emoções de
lado para que as coisas caminhassem bem quando eu não
estivesse mais aí. Eu me fui, mas queria esclarecer tudo, para
que não haja nenhum mal-entendido.
Daniel, meu filho, não se culpe. Eu sei que você está
fazendo isso agora. Não faça. Eu estou bem. As dores que sentia
não sinto mais. A vida continua, linda como sempre foi. Não a
desperdice com preocupações ou com "e ses".
Não vale a pena pensar nas coisas que você poderia ter
evitado se não as evitou. Não temos controle sobre nossa vida.
Eu vivi muito bem e feliz durante todos esses anos. Sou grato
por isso. Sou grato por ter tido um filho como você.
Sabe, filho, eu preciso contar uma coisa. Não fui honesto
com você e a Sophia.
Tudo que queria era que meu filho se casasse e
construísse uma família. Mas sou um homem que acredita
apenas no amor. Não permitiria que você entrasse em outro
problema por causa de relacionamentos tóxicos. Não se
espante. Foi tudo que você teve em anos. Sempre se envolveu
com mulheres que não mereciam o homem que você é. Tudo
bem, você é adulto, mas eu estava morrendo, sabe como é. Eu
decidi agir. Uma relação não se constrói em cima de interesses
financeiros. Uma relação se constrói com amor.
Meu filho, eu precisava tê-los juntos naquele primeiro
jantar. Eu menti. Sabia que Sophia era sua secretária há muito
tempo. E sabia, no momento em que vi seus olhos sobre ela, que
ali havia a possibilidade de nascer algo mais forte; por que não
o amor? Você ainda não tinha a mínima noção de que aquela
mulher estava despertando algo em você, mas Jonathan foi
capaz de me deixar a par de tudo. Tudo mesmo. Ele contou a
você sobre minha doença porque eu permiti que ele fizesse isso.
Eu lhe pedi. Sim, eu usei a minha doença para convencer você.
Foi uma atitude baixa, eu sei. Mas também sei que funcionou.
Não fique bravo.
Quando percebi que não poderia ver meu sonho
realizado, cuidei de tudo, garantindo que estaria vivo para ver
meu filho se apaixonando. Precisava ter a certeza de que você
estava gostando dela de verdade e, quando soube do acidente de
Sophia, achei que isso seria um ótimo pretexto para que ela
morasse conosco. Eu sabia que vocês não eram namorados,
filho. Eu soube desde o primeiro momento. Estava preparado.
Tinha a certeza de que vocês tentariam me convencer, porque
eu joguei com você. Afinal, eu estava doente. E um doente tem
suas vantagens. Será que o conheço mais que você mesmo?
Achei que essa coisa de namorada de mentira seria
perfeita para os meus planos. Eu os manipulei e fingi acreditar
em tudo. Deixá-los mais próximos era a minha única meta. Não
precisei me esforçar muito, não é, filho? Naquele dia em que a
vi nos seus braços, eu confirmei o que havia imaginado. O amor
tinha chegado, puro e simples como ele é. Meu filho estava
finalmente amando.
É uma pena que não vou ver meu netinho, mas fique
sabendo que ele vai ser muito amado por vocês. Ah, esqueci de
mencionar... A esta altura, Sophia deve estar grávida. Se meus
cálculos, desde que ela fez alguns exames na clínica, estiverem
certos, ela está muito grávida. Talvez por isso eu tenha ficado
no pé dela, pedindo que não tomasse vinho. Não a culpe por
isso, filho. Eu nunca contei a ela sobre esses exames. Uma
mulher saudável tomando remédios fortes... Obviamente, isso
cortaria o efeito do contraceptivo que ela estava tomando.
Como sei disso? A enfermeira me contou. Sim, ela fazia parte do
plano. Sua namorada e, brevemente, noiva esteve vulnerável
todas as noites, ao lado do meu filho. O trabalho foi feito e eu só
peço que você cuide bem do meu neto ou neta.
Bom, com muitos suspiros eu digo que é isso, meus
filhos. Não fiquem tristes. Eu não estou. Não lamente, não diga
meu nome em tom solene e, menos ainda, não me coloquem em
um altar. Por tudo que contei, santo é a última coisa que eu
seria.
Não deixe aquela mulher ir embora da sua vida. Ela o
ama bem mais do que você imagina. Talvez o ame mais do que
você merece. Sim. Ela revelou algumas vezes o amor por você e,
sabe como foi isso? Pelo olhar. Não jogue fora a única
oportunidade de amá-la.
Amo vocês e espero encontrá-los daqui a uns... cento e
cinquenta anos."
Não sei em que momento as lágrimas inundaram meus
olhos, mas agora não consigo parar de chorar. O advogado
parece igualmente emocionado, mas respeita meu momento.
Ficamos os dois calados, ele me entrega a carta e eu a releio em
silêncio, sem disfarçar a emoção que a visão da letra marcante,
em uma folha de caderno, me provoca.
É isso. De repente meu pai me mostra, mais uma vez, o
quão idiota eu fui por tê-la deixado. A única mulher que amei, e
que ainda amo de verdade. Não sou digno do amor daquela
mulher.
Final

Acabei de receber alta do hospital com a certeza de que


agora preciso cuidar mais da minha saúde. Minha cabeça parece
ter dado um nó depois dos últimos acontecimentos. Agora
somos dois. Parece inacreditável que algo do tamanho de uma
cereja, de repente, tenha se transformado na coisa mais
importante da minha vida. Estão explicados todo o choro e os
dramas constantes nas últimas semanas. Não tive sinais comuns
de gravidez, não houve enjoos, mas minhas emoções estão
sempre à flor da pele.
Anne parece estranha desde que fui liberada. Ela estava
no celular e desconfio que conversava com Aaron todo esse
tempo.
— Aconteceu alguma coisa? — questiono-a enquanto
esperamos o táxi, na entrada principal do hospital.
Estou sentada em uma cadeira de rodas, seguindo todas
as normas de segurança.
— Eu estava falando com seus pais e... Aaron.
— Você contou a ele que estou aqui e grávida? —
pergunto em tom elevado, e minha amiga me encara com as
sobrancelhas erguidas.
— Antes me agradeça por eu ter convencido seus pais a
não virem.
— Não mude de assunto, Anne. Meus pais sabem que
estou bem.
— Ok. — Ela bufa. — Eu contei a ele que estamos aqui,
mas é óbvio que não falaria sobre a gravidez. Enquanto você
estava apagada, estávamos conversando e não vi problema em
contar.
— Anne... Não me diga que ele vem nos buscar.
Ela parece sem graça, mas sua falta de resposta já é um
sim.
— Merda! — Tento me levantar da cadeira, mas Anne e
a enfermeira que me acompanha seguram meus ombros,
impedindo-me de me erguer.
— Normas do hospital, senhorita. Precisa esperar — a
enfermeira diz.
Elas não vão me deixar sair.
— Aaron vai nos dar apenas uma carona, só isso. Relaxa.
— Ele pode ter falado com o Daniel e...
— Daniel não vem, Aaron me prometeu.
Concordo com a cabeça, mas desvio o olhar quando me
deparo com um carro estacionando na porta do hospital. É um
dos carros de Daniel, tenho certeza.
Os vidros escuros me impedem de ver quem está lá
dentro. Observo o veículo e vejo que Aaron desce sozinho.
Desconfiada, eu ainda analiso o carro parado, com medo de que
Daniel esteja lá dentro.
— Você está bem, Sophia? — Aaron pergunta quando se
aproxima.
Ele se abaixa para me dar um beijo na bochecha e parece
genuinamente preocupado.
— Sim. Apenas um pequeno mal-estar. Nada de mais.
Aaron olha algumas vezes para minha barriga e isso me
deixa desconfiada. Ele parece saber que estou grávida, mas
como? Tenho certeza de que minha amiga não contaria.
— Por que está com o carro do Daniel? — pergunto
curiosa; sei que Aaron tem os próprios carros e que não precisa
de carona.
— Eu estava com ele no momento em que falava com
Anne. Meu amigo fez questão de enviar o carro com motorista.
Daniel ficou preocupado com você. — Sem saber o que
responder, decido ficar calada. — Venha. Vamos levá-la para
casa. — Contrariada, eu me levanto da cadeira, com sua ajuda, e
me aproximo do Escalade preto.
Por mais que eu não possa ver quem está, ou se há
alguém, do lado de dentro, meu coração acelera apenas em
cogitar a presença de Daniel.
Aaron se apressa para abrir a porta, e, por alguma razão,
sinto certa frustração quando vejo que apenas o motorista está lá
dentro. Experimento um misto de sentimentos que não condiz
com o que quero de verdade. Depois de ter desaparecido por
quase um mês, Daniel não pode simplesmente voltar do nada,
mas saber que não está aqui me deixou, de certa forma, triste.
Grávida e contraditória, é assim que me encontro hoje.
Ocupamos os bancos traseiros. Anne e Aaron se sentam
perto um do outro e engatam uma conversa quando percebem
que não estou com vontade de falar. Decido apenas me manter
calada e observar a vista de Manhattan pela janela. Mesmo que
Daniel tenha ficado preocupado, eu me pergunto qual a razão
para a presença do motorista. Não posso negar que isso tenha me
deixado intrigada, já que ele se tornou distante quando o vi pela
última vez. Sinto tanto a falta dele, mas, ao mesmo tempo, sei
que não merece isso. Sua atitude me magoou muito.
Estava tão absorta que não reparei quando o carro parou.
Eu me surpreendo quando noto que estou em frente ao edifício
onde morei nos últimos meses. A cobertura do Senhor Wallner.
— Por que paramos aqui? — questiono, e Aaron me
lança um olhar de desculpas.
— Se eu tivesse dito a verdade, talvez você não aceitasse
vir. Daniel está aqui, Sophia. Ele quer falar com você.
Encaro-o perplexa.
— Você disse que ia me levar para casa.
— Aqui é sua casa. Ninguém vai obrigá-la a ficar, mas
ouça o que Daniel tem a dizer.
Tudo que faço é encarar minha amiga, que parece fingir
não ter nada a ver com isso. De repente, ambos descem do carro,
mas eu permaneço imóvel.
Meu peito parece querer expulsar o coração quando vejo
Daniel em frente à entrada. Está parado, com as mãos nos bolsos
da calça, ainda mais lindo que da última vez que o vi. Ele me
olha como se pudesse me ver através do vidro escuro. Sabe
exatamente onde estou sentada quando se aproxima e abre a
porta. No segundo em que seus olhos me encaram, consigo notar
sua expressão de tristeza, e até mesmo certo desespero. O
homem imponente a minha frente está mudo enquanto seus
olhos passeiam por todo meu corpo. Daniel, lentamente, se
aproxima de mim.
Não consigo impedir que meu coração acelere tão rápido
com sua proximidade. Seu cheiro imediatamente invade todos os
meus sentidos. Eu estava com saudade. Impossível, em tão
pouco tempo, conseguir esquecer tudo que vivemos.
— Sophia... — Percebo que Daniel faz um movimento
com a garganta, aparentemente engolindo em seco. Não
respondo, mas meus olhos não deixam os dele. — Sinto muito
por tê-la abandonado em um dos momentos mais difíceis...
— Por que isso agora, Daniel? — interrompo-o, na
tentativa de entender o que ele quer depois de ter sumido por
quase um mês.
Daniel mantém um espaço entre nós, embora ainda esteja
perto demais. Ele fecha os olhos e esfrega o rosto com as duas
mãos.
— Eu estava pensando em um modo de procurá-la, mas
Aaron me alertou sobre você não querer me ver. — Ele puxa o
ar, soltando-o pesadamente em seguida. — Então ele me ligou
dizendo que você foi parar no hospital e... — Daniel olha em
direção a minha barriga e isso me deixa intrigada.
É como se ele soubesse que estou grávida, mas Anne não
pode ter contado. Ela não faria isso.
— Não estou entendendo, Daniel. No enterro você
deixou claro, com sua atitude, que não queria mais me ver.
Aquilo era uma despedida e agora...
— Você está grávida? — sua pergunta repentina me
deixa muda.
Claro que Anne acabou contando para Aaron. Como, de
outra maneira, Daniel estaria tão certo de que estou grávida?
— Aaron contou? — questiono-o, mas Daniel nega com
a cabeça.
Seus olhos se enchem de lágrimas como se tivesse
acabado de entender alguma coisa. Ele parece ter constatado
algo.
— Meu Deus... Meu pai estava certo!
Com as sobrancelhas unidas, expresso minha confusão.
Não consigo entender sua resposta. Então, Daniel tira um papel
dobrado de um bolso da calça, abre-o com cuidado e estende a
mão.
— Leia isso e vai entender.
Pego o papel e, hesitante, começo a ler.
Nas primeiras linhas, meus olhos se enchem de água,
quando vejo do que se trata. À medida que vou lendo, milhares
de coisas passam pela minha cabeça. As lágrimas se misturam a
risadas. No fim, eu me sinto aliviada em saber que ele nos
enganou, e não o contrário.
— E a gente se achava esperto — digo e Daniel sorri
com os olhos inundados.
— O único esperto era ele. Meu pai nos quer juntos,
Sophia...
— Foi por isso que você mudou de ideia e quis me
encontrar? Pela carta e pela minha... gravidez?
— Não. Droga, não! — responde de imediato. — Houve
uma confusão. Eu vi você com Adam na lanchonete, no dia em
que a tratei daquele jeito. Depois ele estava no enterro do meu
pai e eu imaginei...
— Espera aí... Você pensou que eu estava com aquele
homem?
Com uma expressão triste, Daniel acena com a cabeça.
Ele confirma o que pergunto e parece arrependido, mas estou
com raiva agora.
— Eu sei... Meu pai tem toda razão. Eu não mereço seu
amor, mas, por favor, Sophia...
— Não, Daniel. Não consigo entender o fato de que se
afastou de mim por causa de suposições, por um mal-entendido.
Merda! — digo furiosa, minhas mãos esfregando o rosto.
— Fui imaturo. Acho que nunca amei alguém como amo
você. Agi feito um adolescente impulsivo e não medi as
consequências. Sinceramente, não sei o que houve. Talvez a
raiva por ter perdido meu pai tenha se misturado com outros
sentimentos. Eu te amo desesperadamente e peço que me
perdoe... Preciso do seu perdão. — Daniel me encara, na
expectativa de que eu diga algo.
Correspondo ao seu olhar com estarrecimento, as
lágrimas deslizando sobre meu rosto.
— Não — sussurro.
Daniel fecha os olhos como se minhas palavras tivessem
cortado seu coração em pedaços. Ele se aproxima de mim e
apoia as mãos em cada lado de meu rosto.
— Só me deixe cuidar de você. Prometo nunca mais agir
de maneira impensada. Só preciso do seu...
— Eu não posso, Daniel. Não consigo entender sua
atitude agora. Preciso de um tempo... — digo aos prantos,
enquanto seus lábios tocam os meus, as emoções completamente
fora de controle.
Daniel inspira meu cheiro como se estivesse se
alimentando dele.
— Só preciso de uma chance, Sophia. Deixe-me cuidar
de você. — Ele me abraça cada vez mais apertado, tentando
levar meu corpo para mais perto dele, mas, de repente, em um
ato impulsivo, eu o empurro com força.
Daniel se desequilibra e cai sentado. Eu o observo sem
acreditar no que acabei de fazer. Ele parece atordoado quando
finalmente entende o que aconteceu. Vejo-o se erguer, mas, em
vez de pedir para voltar, ele me encara.
— Tudo bem, acho que recebi o seu recado. Vou dar o
que tanto quer, você venceu — ele diz, mas a tristeza não
abandona seu rosto.
Visivelmente relutante, ele fecha a porta do Escalade e se
afasta, retornando para dentro do edifício.
Fecho os olhos, e o ardor das lágrimas é proporcional à
dor dilacerante que sinto. Alguns minutos depois, Aaron retorna
com Anne, mas somente ela entra no carro. Minha amiga se
senta ao meu lado, apoiando minha cabeça em seu ombro.
— Vamos para a casa da sua mãe, amiga. — Ela me
abraça, enquanto eu deixo as lágrimas tomarem conta de mim.

Tenho tentado me alimentar e cuidado mais da saúde


desde que saí do hospital, quando vi Daniel pela última vez. Eu
vi em seus olhos, ele parecia tão sincero quando pediu perdão. O
problema é que eu não podia simplesmente tê-lo de volta, depois
de tudo o que aconteceu. Ele disse que me ama e eu me afastei;
era difícil aceitar o fato de que aquele homem não havia
confiado em mim.
Agora, três semanas depois, não tive nenhum contato
com ele. Eu precisava de um tempo para pensar, depois de
descobrir essa gravidez. O tempo passou, mas ele não me
procurou.
Não vou negar que agora sinto certo medo e até
arrependimento. Sei que fiz bem em apenas pedir um tempo, já
que estava confusa, mas ainda assim tenho receios. Eu o
empurrei. Agora não dá para arrancar esse sentimento tão forte
de dentro de mim. Mesmo negando o seu pedido, eu amo aquele
homem e hoje parece insuportável essa distância. Agora não
posso simplesmente pedir que ele volte para mim. Não tenho
mais esse direito. Se ele não se importou, que seja feita sua
vontade.
Meu celular toca trazendo-me de volta à realidade. Vejo
que o nome da minha amiga brilha na tela. Atendo.
— Anne...
— Estou ligando para convidar você para uma festa, será
amanhã à tarde.
— Não estou com clima para festas.
— Mas, se você souber o motivo da celebração, acho que
vai querer ir.
— Ah é? — pergunto curiosa.
— Aaron me ligou contando que vão fazer uma
homenagem ao Senhor Wallner, em um grande evento.
Meu coração dispara.
— Sério? Daniel pediu a ele que nos convidasse? — De
repente me pego sorrindo com a possibilidade.
— Na verdade, Aaron pediu que eu a chamasse e não
falou sobre Daniel. Eu só pensei que isso lhe faria bem. Afinal
de contas, aquele homem foi seu amigo, seu grande amigo.
Não consigo esconder a frustração ao saber que Daniel
não me convidou. De qualquer maneira, estamos falando de uma
homenagem.
— Por que Aaron não falou antes?
— Parece que decidiram no início da semana. O que
importa? Vamos, Sophia. É uma homenagem!
Preencho os pulmões com uma longa inspiração,
comovida.
— Tudo bem. Não posso recusar, devo muito ao Senhor
Wallner.
— Maravilha. Vista seu melhor vestido. Acho que
aquele, rosa, longo, que você me mostrou. Aquele que o Senhor
Wallner deu a você, lembra? Acho que será perfeito. Vou
chamar um ótimo maquiador. Não se preocupe com o valor, ele
me deve alguns favores.
— Eu posso me maquiar, Anne.
— Amanhã discutiremos isso, Sophia. É um grande
evento. Será em uma mansão em Long Island. Parece que tudo
foi decidido de última hora. — Ouço-a suspirar. — Estou tão
feliz que topou. Aposto que será uma linda homenagem para o
Senhor Wallner.
— Sim, ele merece muitas homenagens.
— Então está combinado. Amanhã cedo estarei na sua
casa com o maquiador.
— Se você acha necessário... Até amanhã. —
Encerramos a ligação, mas não consigo disfarçar a tristeza que
sinto por Daniel não ter me convidado.
É contraditório, eu sei, mas juro que imaginei que ele
fosse entender que eu precisava apenas de um tempo. Eu só
precisava dar a ele o que ele me deu, mas parece que Daniel não
se importa, ou teria me ligado.
O vestido rosa-nude, um dos presentes do Senhor
Wallner no dia do evento do museu, alongou minha silhueta,
mas não esconde minha pequena barriga, que começa a
despontar. Ele quase não serviu em mim, mas, por sorte, não
estou engordando muito. O caimento do vestido ficou perfeito.
A cauda transparente se espalha pelo chão, tão linda e
esvoaçante que, depois de tanto tempo, consigo me sentir bonita
de novo.
Não estou usando saltos muito altos, a sandália branca
que Anne trouxe é extremamente confortável. A maquiagem
leve deixou-me com uma aparência mais jovem e saudável. Um
belo arranjo, simples, coberto com pequenas pérolas, que caem
como cascatas, contrasta com o a cor escura dos meus cabelos
soltos. Anne trouxe um cabeleireiro e um maquiador. No fim das
contas, eles sempre fazem um trabalho incrível.
— Como estou? — Anne pergunta, dentro de um vestido
azul vibrante, perfeito para suas curvas.
— Você está linda.
— Estamos lindas, minha amiga. Está pronta? Já falou
para sua mãe que ficaremos fora o dia todo?
— Sim. Ela precisou sair com meu pai bem cedo. Parece
que foram resolver um problema com a empresa dele. —
Respiro fundo. — Mesmo que Daniel não tenha me convidado,
ficarei feliz em ver o que fizeram para homenagear meu amigo.
— Você sente falta dele, não é? — Ela me olha com uma
expressão triste, parece pena.
— Sim. Muita.
— Ainda acho que ele vai falar com você na festa.
Daniel a ama e, agora que você está esperando um filho dele...
— Por favor, Anne. Não quero chorar agora.
Ela prensa os lábios indicando que não vai mais falar.
— Tudo bem, vamos logo. Estamos atrasadas.
Dessa vez não me importei quando um Bentley preto
estacionou na porta da casa dos meus pais. Anne disse que
Aaron enviou o carro com motorista. Não reconheci o homem
na direção, mas achei exagerado o luxuoso veículo. Às vezes
esqueço que Aaron também é rico. Sei que ele está tentando
impressionar minha amiga.
O trânsito em New Jersey e em Nova York é caótico
como sempre, mas, uma hora e meia depois, o carro finalmente
estaciona em um lugar privilegiado, em frente a uma luxuosa
mansão, em uma área nobre de Long Island. Não vejo muitas
pessoas, do lado de fora, como esperava. Sinto que estamos mais
que atrasadas, mas não digo nada para Anne. Secretamente,
desejo ver Daniel, mesmo que seja de longe.
Minha amiga segura a minha mão, enquanto subimos
uma bela escadaria de mármore e entramos na mansão.
Passamos por alguns funcionários uniformizados, em uma sala
de decoração cinematográfica. Todos nos observam, certamente
sabem quem eu sou. De repente eu paro, medo e ansiedade me
invadem.
— O que foi, Sophia? — Anne questiona com
preocupação.
— E se ele estiver acompanhado? Não sei se estou
preparada para vê-lo com outra mulher...
— Não pense nisso, amiga. Você veio pela homenagem
e sei que é forte.
Engulo em seco e puxo uma respiração profunda.
— Tudo bem, vamos.
Um dos funcionários nos leva até os fundos, onde está
sendo realizada a tal homenagem.
Quando chegamos ao lugar, ouço os burburinhos e paro,
completamente confusa, tentando entender a incrível decoração.
A impressão é de que estou no lugar errado. Na festa errada.
— Tem certeza de que estamos no lugar certo? — Olho
para minha amiga, que abre um sorriso enorme para mim; ela
parece emocionada, mas não diz nada.
Volto a atenção para o aglomerado de pessoas no pátio.
Um belo gramado, de um verde vibrante, o contorna de ponta a
ponta. A decoração é extraordinária, salpicada de rosas
vermelhas. Ao fundo, a imensidão do oceano perfaz um cenário
magnífico. Difícil de explicar.
Com as sobrancelhas unidas, analiso o tapete branco que
segue até parar em um... altar? Um altar maravilhoso.
— Estou em um casamento? — sussurro, completamente
confusa.
Meus olhos acompanham todas aquelas rosas, são
milhares delas, e eu paro de respirar, sem acreditar no que estou
vendo. Não estou na festa errada quando vejo Daniel surgindo
no altar. Parece nervoso e minhas lágrimas estão deslizando
enquanto assimilo o que está havendo. Anne me puxa em
direção ao tapete repleto de pétalas. A impressão é de que estou
dentro de um sonho quando, no altar, o homem da minha vida
me observa.
Anne me entrega um pequeno buquê composto de
variados tipos de flores. Ela beija a minha testa e então o vejo
caminhar lentamente em minha direção. A emoção não me deixa
falar. Tudo que consigo fazer é sentir. Meus olhos se inundam
quando me dou conta de que tudo foi preparado somente para
mim. Observo, sem piscar, o homem da minha vida caminhando
ao som de uma música instrumental. Ele para diante de mim e
sorri com lágrimas nos olhos. Alguém coloca um microfone em
suas mãos, e tudo que consigo fazer é observar, tentando
convencer minha mente de que isso é real.
— Sophia... — ele diz, a voz branda, mas vejo que está
nervoso e emocionado. Inúmeras pessoas e fotógrafos nos
observam. — Casa comigo?
É praticamente impossível segurar as lágrimas quando
tudo que vejo é amor.
Epílogo

Cinco anos depois.


A casa de veraneio, em Long Island, tem uma vista
impressionante da imensidão do oceano. Eu deveria saber, no
dia em que coloquei meus pés neste lugar pela primeira vez, que
não conseguiria mais deixá-la. A mansão que figura nas
melhores lembranças do meu casamento. O casamento surpresa.
Meu sogro também teve muito a ver com isso. Pensei
que aquela carta que ele tinha deixado para o filho seria a única,
mas não foi. Ele escreveu cartas para todos, inclusive para a
neta, que ainda nem sabe ler. É claro que ela saberá um dia e
faremos questão de falar muito sobre quem foi o seu avô.
Todos os sumiços esporádicos do meu querido sogro
tinham uma única razão. Ele estava ocupado escrevendo cartas.
Hoje faz exatamente cinco anos que me casei e este é o dia que
ele escolheu. Franklin tinha convicção de que faríamos cinco
anos de casados, porque ele acreditava em mim e Daniel mais
que nós mesmos.
Sentar nesta varanda e olhar para o sol que reflete na
água e faz o oceano brilhar é, no mínimo, inspirador. Meu sogro
não especificou como ou onde eu teria que ler, mas escolhi o fim
de tarde. Escolhi o agora.
"Querida nora,
Mal consigo acreditar que, hoje, você e meu filho estão
fazendo cinco anos de casados. Estão na casa onde se casaram.
A casa que eu escolhi. A casa da borboleta. Não lhe contei? Eu
a comprei por causa de uma única borboleta. Ela parecia
querer se comunicar comigo. Parece loucura, eu sei, mas... é
real. Talvez eu nunca tivesse visto algo tão extraordinário
quanto ela. A borboleta. Asas grandes, azul-turquesa, não tinha
medo de se aproximar. Ela queria me impressionar e conseguiu.
A grande borboleta azul era diferente e me rodeava, como se
quisesse falar comigo. Isso me encantou de tal forma que
naquele instante percebi que estava no lugar certo, a casa de
vocês. Sabia que não poderia fazer parte do dia a dia, mas os
conheço o suficiente para saber que é o lugar ideal.
Cinco anos. Repararam em como o tempo passou
rápido? Sim, eu sei... É difícil acreditar que todos esses anos
tenham passado. As coisas parecem ir mais rápido na era da
tecnologia, mas o tempo também tende a voar quando estamos
com pessoas que amamos e vivendo momentos marcantes. Por
essa razão, minha querida nora, quero que viva cada momento
como se fosse o último. É piegas e clichê, eu sei, mas não há
verdade maior.
Não temos a noção do quão felizes fomos até que, anos
depois, olhamos para trás e percebemos que a felicidade estava
o tempo todo ali, no simples. Tendemos a achar que aqueles
momentos triviais não farão diferença em nossa vida, mas
estamos enganados. Quando olhamos para o passado buscando
as melhores recordações, as primeiras que vêm a nossa mente
são esses pequenos momentos. As fraldas, a mudança de humor
repentina, a briga que terminou em reconciliação e aquela
comida ruim que você fez para tentar impressionar. Tudo,
absolutamente tudo, vale a pena. Então, minha filha, vou lhe dar
meu último conselho:
Aproveite ainda mais cada um desses pequenos
momentos. Beije seus filhos o máximo que puder e permita que
eles durmam com você de vez em quando. Ame dias de chuva,
respire fundo quando algo der errado e agradeça. A gratidão
pode fazer milagres e transformar vidas. Portanto, a partir de
agora, quando meu neto, ou neta, der uma gargalhada por um
motivo bobo, memorize-a, mas não deixe de memorizar as
lágrimas também. Elas fazem parte do processo. Só assim vai
entender que, quando os anos passarem, você vai olhar para
todos esses pequenos momentos sem lamentar. Sabe por quê?
Porque você viu, você prestou atenção nos detalhes, nos
pássaros... Nas borboletas.
Não seríamos passageiros desse trem da vida se não
prestássemos atenção em cada paisagem. Viaje, mas não deixe
de reparar em todos os pequenos detalhes; assim você terá a
certeza de que tudo, absolutamente tudo... valeu a pena.
Amo vocês.
Limpo as lágrimas que descem timidamente dos meus
olhos. Sinto-me como se um estado de paz tivesse me atingido e
tudo que consigo fazer é sorrir e chorar ao mesmo tempo.
Respiro fundo algumas vezes e observo o tom alaranjado nas
nuvens; faz parecer que estou diante de uma pintura feita por
Deus.
Ouço passos e então observo meu marido caminhar, com
minha filha dormindo em seus braços. Sorrio limpando as
lágrimas com o dorso das mãos. A varanda é longa, ocupa todo
o comprimento da mansão. Meu marido demora alguns
segundos para chegar até aqui.
— Como conseguiu fazê-la dormir tão rápido?
Ele sorri.
— Parece que alguém andou chorando por aqui...
— Seu pai conseguiu se fazer presente até hoje. Ele é tão
sábio que nem consigo pensar em um agradecimento à altura.
— Ele só quer que sejamos felizes, amor — Daniel diz
enquanto balança o corpo de um lado para o outro, para que
nossa filha não acorde.
Ela está com a cabeça apoiada no ombro dele, os cabelos
escuros amarrados, com muitos fios soltos. Seus olhos fechados
escondem duas joias azuis iguais às do pai.
— Amanda está exausta — sussurro para não a acordar.
— É verão. Nossa filha está aproveitando — Daniel
brinca.
— E eu estou feliz porque tiramos férias para estar aqui
com nossa filha.
Daniel abaixa os olhos para minha barriga.
— Daqui a dois meses, você vai tirar férias para ter uma
gravidez mais tranquila. Não vou admitir que minha esposa
arrisque...
— Eu não vou — interrompo-o. — Se prometo uma
coisa, eu cumpro. A empresa está indo bem e não há por que me
preocupar. Você me ajudou nisso, lembra?
— Eu sei... — ele sussurra e se aproxima de mim. Daniel
me beija nos lábios com carinho. — Tenho um jantar para você,
está no andar de baixo.
— Então coloque nossa filha na cama, que vou descer
em alguns minutos.
Meu marido sorri e então caminha de volta para dentro
da casa, nossa filha completamente apagada em seus braços.
Ela esteve o dia inteiro pulando e nadando com o pai,
agora está exausta.
Vou para o quarto, guardo a carta em uma gaveta e visto
um vestido solto, simples.
Assim que desço as escadarias de mármore, eu me
deparo com meu marido, sem camisa, sorrindo para mim.
Aproximo-me dele com um sorriso nos lábios. Daniel segura
uma rosa vermelha, postado próximo à grande porta de vidro
que leva ao jardim; a porta e o jardim que sempre vão me
lembrar do dia em que me casei.
Entrega-me a flor e segura meu rosto com as duas mãos.
Seus intensos olhos azuis me examinam.
— O tempo e a gravidez deixaram você ainda mais linda.
A mulher mais linda do mundo.
— Eu o amo tanto por me achar linda mesmo depois das
celulites e estrias... — brinco e ele beija a ponta do meu nariz.
— Quem se importa com essas coisas são as mulheres.
Homem que é homem não liga pra isso. De qualquer forma,
você está exagerando. Eu te amo do jeito que você é, pela
família que você me deu, por tudo que tem sido na minha vida...
— Ele inspira e solta o ar devagar. — Se você não tivesse me
perdoado no dia em que fiz aquele casamento surpresa...
— Seu pai o havia instruído. Ele o ajudou.
— Ele me encorajou a fazer algo diferente. Meu pai
deixou outra carta relatando a vida com minha mãe e, em um
dos conselhos, disse que eu deveria arriscar, mas que não
poderia perdê-la em hipótese alguma se algo não desse certo. Ele
deu um empurrão, mas a ideia foi minha porque... porque eu te
amo, Sophia. Eu te amo mais que tudo nesta vida.
— Como poderia dizer não a você, Daniel? Como
poderia dizer não a nossa família? — Enrolo meus braços em
seu pescoço. — Você me magoou, sim, mas olha só o que
somos hoje! Aprendemos com os erros. Você aprendeu, e eu,
também. Somos uma família que está crescendo, em constante
aprendizado.
— Não posso reclamar. No dia em que você me
empurrou, eu quis dar aquele tempo para que pudesse preparar
tudo. Nunca me senti tão vulnerável e nervoso em toda minha
vida. Hoje, no nosso aniversário de casamento, temos uma casa
que foi comprada por meu pai com o intuito de resgatar aquela
sensação de paz e de família. — Ele beija a minha testa com
carinho. — Venha.
Daniel me puxa pelo braço e me leva para o jardim.
Caminhamos de mãos dadas pelo gramado, à direita da casa.
Lâmpadas pendem sobre uma pequena mesa, que ampara um
banquete incrível. A brisa leve e o pôr do Sol compõem um
cenário inacreditável.
Daniel puxa minha cadeira e eu me sento. Ele ocupa a
outra, de frente para mim, e então saboreamos um delicioso
jantar regado a vinho e risadas. Prometemos um ao outro não
fazer nada extravagante hoje; que seríamos apenas eu e ele. Meu
marido tem estado mais engraçadinho nos últimos anos. Tenho
gostado dessa nova versão, romântica e mais alegre, dele,
principalmente quando recebemos nossos amigos, Anne e
Aaron, que se casaram há um ano. Minha amiga está grávida do
primeiro filho, que está prestes a nascer. Ela está radiante e
Aaron não poderia estar mais feliz.
Claro que passamos por altos e baixos, mas sabemos
lidar bem com os problemas, seguindo um dos conselhos do
homem mais sábio que conheci: “Não alimente coisas ruins,
alimente-se de tudo que lhe faz bem e tente abstrair, evitar ao
máximo que as coisas cheguem a um ponto que sua mente não
possa controlar”.
Assim que terminamos o jantar, tomamos uma última
taça de vinho branco e Daniel se levanta. Ele me puxa pela mão
e leva meu corpo em sua direção. Enlaça os braços em minha
cintura e encosta a testa na minha.
— Sophia... — ele sussurra. — Obrigado por esses cinco
anos, pela família e por não ter desistido de mim.
Meus olhos se enchem de lágrimas, acho que os
hormônios da gravidez estão me deixando ainda mais emotiva.
— Se você se sente agradecido, eu só quero dizer que
não há lugar no mundo que me faria tão feliz quanto este aqui...
com você.
Ele me beija e em seguida caminhamos descalços pelo
gramado, até chegar à areia. O barulho das pequenas ondas é um
calmante da natureza. Daniel e eu nos sentamos e observamos o
Sol desaparecer lentamente na linha do horizonte.
Com os braços apoiados nos joelhos, sinto algo me tocar
o braço e, quando me dou conta de que é uma grande borboleta
azul, eu me arrepio dos pés à cabeça. Essa, sem dúvida, é a
borboleta mais linda que já vi em toda minha vida.
Daniel a observa maravilhado. Ela está no meu braço,
mas não consigo disfarçar a emoção; é como se eu a visse pela
segunda vez.
— Que borboleta linda. Parece que ela gostou de você.
— Sim. Ela gostou...
A borboleta permanece por um bom tempo e então segue
seu rumo. Arrepios ainda percorrem meu corpo, enquanto tento
assimilar o que acabou de acontecer.
— Você está bem?
Sorrio quando noto a preocupação de meu marido.
— Depois eu explico... — Deito-me em seu colo,
aconchegando-me em seu abraço, e deixo as lágrimas de
felicidade caírem sobre meu rosto.
Hoje é o dia mais simples que ficará guardado em minha
memória para o resto da minha vida.

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