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Aprender A Rezar para Aprender A Amar

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Aprender a Rezar para Aprender a Amar

Autor: Jacques Philippe

Sumário
1.Os ganhos da oração..........................................................................................................................2
1.1 A oração é uma resposta a um chamado..............................................................................2
1.2 Motivos para rezar...............................................................................................................4
1.2.1.O primado de Deus na nossa vida.............................................................................4
1.2.2.Amar gratuitamente..................................................................................................4
1.2.3.Antecipar o Reino.....................................................................................................4
1.2.4.Conhecimento de Deus e conhecimento de si..........................................................5
1.2.5.Da oração nasce a compaixão para com o próximo.................................................7
1.2.6.A oração, caminho de liberdade...............................................................................7
1.2.7.A oração faz a unidade de nossa vida.......................................................................8
2.As condições da oração fecunda........................................................................................................9
2.1 A oração como lugar de paz interior....................................................................................9
2.2 As disposições da vida de oração fecunda...........................................................................9
2.3 Uma oração animada pela fé, pela esperança e pela caridade............................................10
2.4 A porta da fé........................................................................................................................10
2.5 Qual é o papel da sensibilidade na vida de oração?............................................................10
2.6 Papel e limites da inteligência.............................................................................................11
2.7 Tocar Deus..........................................................................................................................12
2.8 A fé que abre todas as portas...............................................................................................13
2.9 A Oração e a Esperança......................................................................................................13
2.10 A força da humildade........................................................................................................14
2.11 Aprofundar em si mesmo..................................................................................................15
2.12 A oração, um ato de amor.................................................................................................16
2.13 Conclusão sobre as virtudes teologais na oração..............................................................17
3. A presença de Deus........................................................................................................................18
3.1 Presença de Deus na natureza.............................................................................................18
3.2. Deus se dá na humanidade de Cristo..................................................................................19
3.3 Deus presente no nosso coração..........................................................................................20
3.4 Rezar a Palavra....................................................................................................................21
3.5. Palavra de discernimento...................................................................................................22
3.6. A Palavra, arma no combate..............................................................................................23
4. Conselhos práticos para a oração pessoal.......................................................................................25
4.1 Fora do tempo de oração.....................................................................................................25
4.2 Ganhar ritmo.......................................................................................................................26
4.3 Início e fim da oração..........................................................................................................27
4.4 O tempo de oração propriamente dito.................................................................................28
4.5 Quando não perguntamos “o que fazer”.............................................................................30

1
1. Os ganhos da oração
1.1 A oração é uma resposta a um chamado
“Queridos filhos! Hoje eu os chamo para renovar a oração e o jejum com mais entusiasmo, até que
a oração se torne alegria para vocês. Filhinhos, aquele que ora não teme o futuro e quem jejua não
teme o mal. Repito: apenas através da oração e do jejum é possível interromper as guerras – as
guerras de sua descrença e de seu medo do futuro. Estou com vocês e ensino-lhes, filhinhos: sua
paz e sua esperança estão em Deus. Por isso, aproximem-se de Deus e coloquem-no como
prioridade em suas vidas. Agradeço por terem respondido ao meu chamado” (Nossa Senhora de
Medjugorje – 25/01/2001)

A Santa Mãe de Deus nos recorda é preciso rezar sem cessar sem nunca desanimar (Lc
18,1), e principalmente que a oração se torne a nossa alegria. “Na oração , a alma se purifica do
pecado, a caridade se alimenta, a fé se enraíza, a esperança se fortifica, o espírito jubila, a alma se
derrete de ternura, o coração se purifica, a verdade se revela, a tentação é vencida, a tristeza se
esvai, os sentidos se renovam, a indolência desaparece, a ferrugem dos vícios é consumida; desta
troca nascem também vivas centelhas, desejos ardentes do céu, e dentre estas centelhas a chama do
divino amor (S. Pedro de Alcantara)
Portanto, “é necessário aprender a rezar, voltando sempre de novo a conhecer esta arte dos
lábios do divino Mestre, como os primeiros discípulos: Senhor, ensina-nos a orar (Lc 11,1). Na
oração, desenrola-se aquele diálogo com Jesus que faz de nós seus amigos íntimos: Permanecei em
Mim e Eu permanecerei em vós (Jo 15,4). Esta reciprocidade constitui precisamente a substância,
da alma da vida cristã, e é condição de toda a vida pastoral autêntica. Obra do Espírito Santo em
nós, a oração abre-nos , por Cristo e em Cristo, à contemplação do rosto Pai. Aprender esta lógica
trinitária da oração cristã, vivendo-a plenamente sobretudo na liturgia, meta e fonte da vida eclesial,
mas também na experiência pessoal, é o segredo de um cristianismo verdadeiro vital, sem motivos
para temer o futuro porque volta continuamente ás fontes e aí se regenera” (S. João Paulo II).
A oração permite-nos extrair de Deus uma vida sempre nova, regenerar-nos, e renova-nos
permanentemente. Sejam lá quais forem as nossas provações, desilusões, fardos, fracassos e faltas,
ela nos leva a reencontrar a força e a esperança suficientes para assumir a existência com total
confiança no futuro. “As nossas comunidades, amados irmãos e irmãs, devem tornar-se autênticas
escolas de oração, onde o encontro com Cristo não se exprima apenas em pedidos de ajuda, mas
também de ação de graças, louvor, adoração e contemplação, escuta, afetos da alma, até se chegar a
um coração verdadeiramente apaixonado.
Uma oração intensa, mas sem afastar do compromisso da história: ao abrir o coração ao amor de
deus, aquele abre-o também ao amor dos irmãos, tornando-nos capazes de construir a história
segundo os desígnios de Deus.
Seria errado pensar que o comum dos cristãos possa contentar-se com uma oração
superficial, incapaz de preencher a sua vida. Sobretudo perante as numerosas provas que o mundo
atual põe à fé, eles seriam não apenas ‘cristãos medíocres’, mas ‘cristãos em perigo’: com sua fé

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cada vez mais debilitada, correriam o risco de acabar cedendo ao fascínio de sucedâneos, aceitando
propostas religiosas alternativas e acomodando-se até ás formas mais extravagantes de supertição ”
(São João Paulo II).
O homem busca a Deus , mas Deus o busca muito antes. Deus nos convoca a rezar, pois
desde sempre, e bem mais do que imaginamos, deseja ardentemente entrar em comunhão conosco.
‘Vou levar-te ao deserto e falar-te ao coração’ (Os 2, 14) O fundamento mais sólido da vida de
oração não é nossa própria busca, a nossa iniciativa pessoal, o nosso desejo ( eles tem seu valor,
mas podem vir a faltar), e sim o chamado de Deus: Orai sem cessar! (Lc 18,1); Vigiai e orai (Lc 21,
36); Vivei na oração! (Ef 6,18) Quem reza por causa dos benefícios que espera obter arrisca-se a
perder o entusiasmo cedo ou tarde. Esses benefícios não são nem imediatos nem mesuráveis. Quem
reza numa atitude de humilde submissão a Deus terá sempre a graça de perseverar. A nossa vida de
oração será mais rica e benéfica quando for animada, não pelo desejo de obter ou de ganhar o que
quer seja, mas por uma disposição de obediência confiante, de resposta ao chamado de Deus. Deus
sabe o que é bom para nós e isto deveria bastar-nos.

Não temos de justificar-nos aos olhos de ninguém quanto ao tempo de oração. Deus
convida-nos, se posso dizer assim, a “perder tempo” por Ele, e isso basta. Essa será uma “perda
fecunda”, como diz Santa Terezinha de Lisieux. Há uma dimensão de gratuidade que é
absolutamente fundamental na vida de oração. Paradoxalmente, quanto mais a oração é gratuita,
mas frutos traz. Trata-se de nos confiarmos a Deus de fazer aquilo que ele nos pede, sem
necessidade de outras justificativas: Fazei tudo o que Ele vos disser (Jo 2, 5), diz Maria aos servos
de Caná.
Peçamos a Deus a graça da obediência a sua Palavra que nos pede uma oração perseverante
e gratuita:
“Quero ser fiel, muito fiel à oração de cada dia apesar das securas, dos aborrecimentos, dos
desgostos que poderei a ter… Apesar das palavras maldizentes, desencorajadoras, ameaçadoras
que o demônio poderá repetir! Nos dias de confusão e de grandes tormentos, direi a mim mesma:
Deus assim, quer, minha vocação assim quer, isto me basta! Farei oração, permanecerei todo o
tempo que foi prescrito para a oração, farei o melhor que puder a minha oração e quando chegar a
hora de meretirar, ousarei dizer a Deus: meu Deus, não rezei o suficiente, não trabalhei o
suficiente, não o fiz o suficiente, mas te obedeci. Sofri, mas mostrei que Te amo e quero Te amar”.

(Marthe Robin, mística francesa que viveu entre 1902-1981, fundadora dos Foyers de Charité)

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1.2 Motivos para rezar
1.2.1.O primado de Deus na nossa vida
A existência humana não encontra a plenitude de equilibrio e a beleza se Deus não está no
centro. “Deus, o primeiro a ser servido!” dizia Santa Joana d’Arc. A fidelidade à oração permite
garantir, de maneira concreta e efetiva, o primado de Deus. Sem ela, a prioridade dada a Deus
arrisca-se a não ser mais que uma boa intenção, quando não uma ilusão.
Quem não reza, de maneira sutil mas certa, porá o próprio “ego” no centro da sua vida, e não
a pessoa viva de Deus. Ele será dispersado pela multidão dos desejos, de solicitações, de medos.
Quem reza, pelo contrário, mesmo se tiver de confrontar o peso de seu ego, as forças que o dobram
para si mesmo e o egoísmo que o habita, estará num movimento de descentralização de si e de
recentralização em Deus, permitindo que Ele assuma (ou reassuma) pouco a pouco o justo lugar na
sua vida: o primeiro. Ele encontrará assim a unidade e a coerência da sua vida. Quem não junta
comigo, dispersa, diz Jesus (Lc 11, 23). Quando Deus está no centro, tudo encontra o seu justo
lugar.
A oração nos ensina a enraizar-nos em Deus, a permanecer no seu amor (Jo 15, 9), a
encontrar nEle a força e a segurança, permitindo assim que nos tornemos um alicerce estável para
os outros. Acrescentemos que Deus é a única fonte de energia inesgotável. Pela oração, mesmo se
nosso homem exterior se arruína, nosso homem interior se renova dia após dia (2 Cor 4, 16; is 40,
30s).

1.2.2.Amar gratuitamente
A fidelidade à oração é preciosa, pois, nos ajuda a preservar o aspecto de gratuidade na
nossa vida. Orar é perder o tempo para Deus. Jesus escolheu os Doze para antes da missão (pregar,
expulsar demônios, etc), ficar na sua companhia. Não somos somente servos; somos chamados a ser
amigos (jo 15, 15), numa vida e numa intimidade compartilhadas além do utilitarismo. Como nas
origens, quando Deus passeava no jardim do Éden como Adão e Eva na brisa da tarde (Gn 3, 8).
Orar é passar gratuitamente algum tempo com Deus pela alegria de estar junto dEle. È amar,
pois, dar o tempo é dar a vida. O amor não é, em primeiro lugar, fazer qualquer coisa pelo outro: é
estar presente. A oração nos educa a estarmos presentes para Deus numa simples atenção amorosa.
A maravilha é que, aprendendo a estra presentes somente para Deus, aprendemos a estar
presentes para os outros. As pessoas com uma longa vida de oração demonstram uma qualidade de
atenção, de presença, escuta e disponibilidade de que nem sempre são capazes aqueles que se
deixam levar pelas atividades. Da oração nascem uma delicadeza e um respeito que são presentes
preciosos para aqueles que aparecem no caminho.

1.2.3.Antecipar o Reino
A oração nos faz antecipar o céu. Ela nos faz entrever e saborear uma felicidade que não é
deste mundo, que ninguém aqui embaixo poderia nos oferecer, uma alegria de Deus à qual estamos
todos destinados, para qual Ele nos criou. Na vida de oração encontramos combates, sofrimentos,

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aridez. Mas quem persevera fielmente, saboreia de tempos em tempos uma alegria indizivel, uma
paz e uma saciedade que são um antegosto do paraíso. Vereis os céus se abrirem, promete-nos Jesus
(Jo 1, 51) .
Santa Tereza de Ávila retorna a mesma ideia no Livro das Moradas: “Por isso, minhas
irmãs, agora é pedir ao Senhor, já que de alguma maneira podemos gozar do Céu na terra, que nos
dê seu favor para que não lhe falhemos por nossa culpa e nos mostre o caminho e dê forças na alma
para cavar até achar este tesouro escondido, pois, é verdade que está em nós mesmas”.
A oração permite aceder às realidades que ‘os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram,
nem o coração humano imaginou’(I Cor 2, 9; Is 64, 4), o que significa que na oração o homem
aprende desde esta terra qual será a sua atividade e a sua alegria durante toda a eternidade: extasiar-
se com a beleza divina e a glória do Reino. Ele exercita as suas faculdades mais belas e mais belas e
mais profundas, com frequencia inutilizadas: adoração, admiração, o louvor e a ação de graças.
Rezar significa, assim, nos realizarmos enquanto pessoas humanas, segundo as potencialidades mais
profundas da nossa natureza e as aspirações mais secretas do nosso coração.

1.2.4.Conhecimento de Deus e conhecimento de si


A oração introduz-nos pouco a pouco num verdadeiro conhecimento de Deus. Não um Deus
abstrato e distante. Nem mesmo o de uma teologia fria e cerebral. Mas o Deus pessoal, vivo e
verdadeiro, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não um
Deus que conhecemos por algumas ideias herdadas de nossa educação ou cultura, mas o Deus
verdadeiro.
A oração nos permite ir além das nossas ideias sobre Deus, das nossas representações
(sempre falsas ou demasiado estreitas), rumo a uma experiência de Deus: “Meus ouvidos tinham
escutado falar de ti, mas agora meus olhos te viram”(Jó 42,5).
O objeto principal dessa revelação pessoal de Deus, fruto essencial da oração, é que O
reconheçamos como Pai. Através de Cristo, na luz do Espírito Santo, Deus se revela como Pai (Lc
10, 22). Esse conhecimento de Deus Pai concedido a todos está associado a efusão de sua
misericórdia, do seu perdão (Jr 31, 31-34). Deus é conhecido na sua grandeza, transcedência,
majestade e potências infinitas, mas, ao mesmo tempo, na sua ternura, proximidade, doçura e
misericórdia inesgotáveis. Esse conhecimento de Deus concedido a todos nos tempos messiânicos é
também anunciado de maneira bastante sugestiva pelo profeta Isaías: A terra estará cheia de
ciência do Senhor, assim, como as águas recobrem o fundo do mar (Is 11,9).
O conhecimento de Deus dá também acesso ao verdadeiro conhecimento de si. O homem
não pode conhecer-se verdadeiramente senão a luz de Deus. Tudo aquilo que pode conhecer de si
mesmo pelos humanos (experiência da vida, psicologia, ciências humanas) não deve ser
desprezado, diga-se. Mas isso não lhe dá mais que um conhecimento limitado e parcial do seu
próprio ser. Ele não tem acesso à sua identidade profunda senão à luz de Deus, no olhar que o Pai
do Céu lança sobre ele.
Esse conhecimento tem dois aspectos: um a primeira vista negativo, mas que logo resulta em
algo extremamente positivo. O aspecto negativo concerne ao nosso pecado, à nossa miséria

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profunda. Só os conhecemos realmente à luz de Deus. Diante dEle já não há mentiras possíveis,
nem escapatórias ou justificativas, por mais máscaras que tenham. Somos completamente obrigados
a reconhecer quem somos, com as nossas feridas, fragilidades, incoerências, egoísmos, durezas de
coração, cumplicidades secretas com o mal, etc. Isso nada mais é que estar exposto a Palavra de
Deus (Hb 4, 12-13).
Deus só mostra o nosso pecado revelando simultaneamente o seu perdão e a sua miericórdia.
Descobrimos a tristeza da nossa condição de pecaadores, mas também a nossa pobreza absoluta
enquanto criaturas. Esse encontro com a verdade é necessário: não há cura sem o conhecimento da
doença. Somente a verdade nos torna livres. Deus nos ama tal como somos, com amor
absolutamente incondicional, e é esse amor que nos constitui na nossa identidade profunda.
Sou um ser contaminado, tenho necessidade urgente de purificação e de conversão. Contudo
há em mim algo absolutamente puro e intacto: o amor que Deus me oferece como Criador e Pai,
fundamento da minha identidade, da minha condição inaliável de filho amado. Acessá-lo na fé é
precisamente aquilo que abre e garante a possibilidade do caminho de conversão e de purificação
das quais não posso fazer economia.
Todo homem e mulher estão em busca da própria identidade, da sua personalidade profunda.
Quem sou? É uma questão que por vezes nos colocamos como angústia ao logo da vida. Busacamos
construir uma personalidade, realizarmo-nos segundo as nossas aspirações íntimas, assim como
segundo os critérios de sucesso do contexto cultural em que vivemos. Entregamo-nos ao trabalho, à
família, às relações sociais, às responsabilidades diversas, etc. Até o esgotamento, por vezes…
Ainda assim, permanecemos vazios em alguma parte, insatisfeitos, perplexos: Quem sou de
verdade? Tudo aquilo que vivi até hoje exprime realmente aquilo qu sou?
Há toda uma dimensão da minha identidade que deriva da minha história, da minha herança,
das coisas que sofri e das decisões que tomei, mas não é a mais profunda. Esta não se revela senão
no encontro com Deus, que descasca tudo aquilo que é artificial e construído na minha
personalidade.
A essência da minha personalidade consiste em duas realidades que sou chamado a
descobrir progressivamente; são realidades simples, mas de uma riqueza inesgotável: o amor único
que Deus tem por mim e o amor único que eu posso ter por Ele.
A oração e o encontro com Deus me fazem descobrir o amor único que Deus tem por mim.
Todo homem e mulher tem uma aspiração profunda de sentir-se amado de maneira única. Não de
ser amado de maniera geral, como um elemento entre outros de um grupo mais vasto, mas sim ser
apreciado, considerado de maneira única.
É isso que o amor do Pai concretiza. Sob seu olhar, cada um de nós pode experimentar que é
amado, escolhido por Deus, de uma maneira extremamente pessoal. Temos com frequência o
sentimento de que Deus ama de maneira geral: Ele ama todos os homens, dos quais faço parte,
então deve interessa-se pouco por im! Mas ser amado de maneira global, como um elemento d
conjunto não nos satisfaz. E não corresponde absolutamente à realidade do amor do Pai, que é
particular, único, por cada um de seus filhos. O amor de Deus é pessoal e personalizante. Cada de
um nós tem todo o direito de dizer: Deus me ama como ninguém mais nesse mundo! Deus não ama
duas pessoas do mesmo modo, porque seu amor é precisamente aquilo que cria a personalidade, que
é diferente para cada um.

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Esse amor único que Deus dá a cada um inclui em troca o dom de uma respota única. Em
muitos santos e santas, encontram-se palavras como estas:”Jesus, eu queria te amar como ninguém
jamais te amou! Fazer por ti loucuras que ninguém jamais fez!”
Ante essas palavras, sentimo-nos bem pobres, bem conscientes de que não poderemos
ultrapassar no amor todos aqueles que nos precederam. Ainda assim, este desejo não é vão, e que
pode concretizar-se na vida de qualquer pessoa: ainda que eu não seja Santa Tereza de Ávila nemm
São Francisco de Assis, posso dar a Deus um amor que ninguém jamais ainda deu. O amor que me
cabe oferecer, segundo minha personalidade, em reposta ao amor que Deus me revela e com a graça
que Ele me dá. Tenho, no coração de Deus e no mistério da Igreja, um lugar único e insubstituível,
uma fecundidade própria, que não pode ser assumida por mais ninguém. Essa verdade é
suficientemente real e certa para nos conferir a liberdade e a segurança interiores necessárias para
enfrentarmos a vida com confiança.

1.2.5.Da oração nasce a compaixão para com o próximo


Um dos mais belos frutos da oração ( e um critério de discernimento da sua autenticidade) é
o aumento do amor ao próximo. Se nossa oração é verdadeira, ela nos aproxima de Deus, nos une a
Ele e nos elva a compartilhar o amor infinito que Ele tem por cada uma de suas criaturas. A oração
dilata e enternece o coração. Onde falta oração, os corações endurecem e o amor esfria.
“É verdade evidente que a compaixão pelo próximo cresce na medida em que a alama se une
a Deus por amor. Porque, quanto mais ama, mais deseja que esse mesmo Deus seja amado e
honrado por todos. Antes, parecendo-lhes pouco irem para o céu sozinhos, procuram, com ânsias e
celestiais afetos, com engenhosas diligências, levar também consigo muito almas” (São João da
Cruz).

1.2.6.A oração, caminho de liberdade


A fidelidade à oração é um caminho de liberdade. Ela nos educa progressivamente a buscar
em Deus (e a encontrar, pois aquele que busca, encontra segundo Mt 7, 8) os bens essenciais aos
quais ansiamos: o amor infinito e eterno, a paz, a segurança, a felicidade…
Se não aprendermos a receber da mão de Deus estes bens que nos são necessários,
arriscamo-nos fortemente a buscá-los em outros lugares e a esperar das coisas deste mundo (as
riquezas materiais, o trabalho, as relações sociais…) aquilo que não podem nos dar.
As nossas relações com o próximo são frequentemente decepcionantes porque esperamos
deles, em geral sem o saber, coisas que não podem nos dar. De tais ou quais relações privilegiadas
espera-se uma felicidade absoluta, um pleno reconhecimento, uma segurança perfeita. Nenhuma
realidade criada, nenhuma pessoa humana, nenhuma atividade pode satisfazer plenamente esse
anseio. Como esperamos demais e não recebemos, tornamo-nos amargos, frustrados e acabamos por
querer terrivelmente mal àqueles que não corresponderam às nossas expectativas. Não é culpa
deles. As nossas expectativas é que são desmedidas: pretendemos obter de uma pessoa bens que
somente Deus pode nos garantir.
Mas é preciso que Deus permaneça no centro e que não exijamos de uma pobre criatura
humana, limitada, imperfeita, que nos dê aquilo que somente Deus pode nos dar. Quanto mais Deus

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estiver no centro de nossa vida, quanto mais esperarmos dEle e somente dEle, mas nossas relações
humanas terão chances de serem ajustada e felizes.
Esperar de uma realidade qualquer aquilo que somente Deus pode nos dar tem um nome na
tradição Bíblica: a idolatria. Podemos idolatrar, sem nos darmos conta, muits coisas: pessoas,
trabalho, diploma, desempenho em certas atividades, sucessos, amores, prazeres, etc. Tudo isso é
bom em si mesmo, mas sob condição de que não lhe demandemos mais do que é legítimo . A
idolatria nos faz sempre perder uma parte de nossa liberdade. Os ídolos decepcionam; com muita
frequencia, acabamos por destestar aquilo que antes adorávamos. Deus não nos decepcionará
jamais. Ele nos conduzirá por caminhos inesperados e por vezes dolorosos, mas satisfará nossas
expectativas. Somente em Deus minha alma repousa (Sl 62, 2).
A experiência comprova: a fidelidade à oração, mesmo que por vezes enfrente fases difíceis,
momentos aridez e prova, conduz-nos gradativamente a encontrar em Deus uma paz profunda, uma
segurança e uma felicidade que nos fazem livres com relação ao olhar dos outros. Se encontro
felicidade e a paz em Deus, serei capaz de dar muito ao meu próximo e capaz também de aceitá-lo
tal como é, sem lhe querer mal quando não corresponde às minhas expectativas. Deus basta.
Nosso mundo encontra-se num grande vazio espiritual, e espanta-me ver como esse vazio
interior nos impulsiona a uma busca frenética de satisfações sensíveis. Há por vezes no mundo um
desejo insaciável de sentir, de saborear, de experimentar emoções e sensações sempre novas e mais
intensas, que podem conduzir a comportamentos destrutivos como bem se vê nos campos da
sexualidade, da droga, etc. A busca por novas sensações sempre mais fortes muitas vezes
desemboca na violência.
A fidelidade à oração nos faz pouco a pouco experimentar que os verdadeiros tesouros são
interiores, que possuímos em nós o Reino e sua felicidade. Essa descoberta nos fará mais livres com
relação aos bens da terra; nos libertará pouco a pouco do anseio excessivo por posses, dessa
tendência atual a preencher a vida com uma multidão de coisas materiais que acabam por nos
sobrecarregar e endurecer o coração.

1.2.7.A oração faz a unidade de nossa vida


No encontro com Deus, na entrega confiante e constante nas suas mãos de Pai daquilo que
constitui a nossa existência – os eventos e circunstâncias que atravessamos – tudo é pouco a pouco
como que digerido, integrado, arrancado de caos, da dispersão, da incoerência. A vida encontra
então sua unidade profunda. Deus é Deus Uno e aquele que unifica nossa coração, a nossa
personalidade, toda a nossa existência. O Salmo 85 formula esta bela petição: Unficai meu coração
para que ele tema o teu nome.
Graças ao encontro regular com Deus na oração, tudo, no fim das contas, torna-se positivo:
os nossos desejos, a nossa boa vontade, os nossos esforços, mas também a nossa pobreza, os nossos
erros, os nossos pecados. As circunstâncias felizes ou infelizes, as escolhas boas ou más, tudo é
como que recapilado em Cristo e se torna graça. Tudo acaba tomando um novo sentido e se
integrando num caminho de crescimento no amor.’O amor é tão potente em obras que sabe tirar
proveito de tudo, do bem e do mal que ele encontra em mim’ (Sta Tereza de Lisieux).

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Nos relatos da infância de Jesus, tudo aquilo que Maria vivia, as graças recebidas, as
palavras ouvidas, os eventos por que passou, luminosos, mas também dolorosos ou
incompreensíveis (Lc, 2, 19; 51), tudo acabaria um dia por tomar sentido, não em virtude de uma
análise intelectual, mas graças à oração interior. Ela ruminava as coisas na cabeça, mas as guardava
num coração confiante e suplicante, no qual tudo acabou por encontrar seu lugar, por unificar-se e
simplificar-se.

2. As condições da oração fecunda


2.1 A oração como lugar de paz interior
É pelo fruto que se reconhece a árvore (Mt 12,33). Se nossa oração for autêntica, produzirá
frutos (Gl 5, 22-23): nos tornará mais humildes, mais doces, mais confiantes, etc. A oração nos
levará a amar a Deus e nosso pŕoximo. É possível afirmar que a vida de oração de uma pessoa está
‘em ordem’ quando ela vivenvia o seu diálogo com Deus como o lugar da pacificação. Se
pensarmos bem, não pode ser diferente: Deus é um oceno de paz. Se a minha oração é sincera e me
põe em verdadeira comunhão com Ele, uma parte dessa paz divina será forçosamente transmitida a
mim.
O dom da paz interior é precioso porque é nesse clima de paz que o amor pode crescer. Essa
paz nos torna disponíveis para o trabalho da graça e facilita nosso discernimento nas situações em
que nos encontremos e nas decisões que precisemos tomar. É claro que nem sempre a
experimentaremos do mesmo modo. É normal termos altos e baixos nesse campo, que atravessemos
momentos de prova em que acometidos por uma inquietude de que não conseguimos escapar
facilmente.
Um dos frutos preciosos da oração é a pureza de coração. A oração traz em si um grande
poder de purificação interior. Na oração, o coração se apazigua, se simplifica e se reorienta para
Deus. O que é um coração puro senão um coração inteiramente voltado para Deus, com confiança,
com desejo de O amar de verdade e de fazer em tudo a vontade dEle?

2.2 As disposições da vida de oração fecunda


A principal característica da nossa vida de oração deve ser a fidelidade. Jesus não nos pede
para rezar bem, mas para rezar sem cessar (Lc 18, 1)! Quando bem entendida (não encarada como
uma simpes rotina, mas animada por um desejo sincero de encontrar Deus, de O agradar e amar), a
fidelidade traz tudo consigo.
O principal combate na vida de oração é o da perseverança. O demônio faz de tudo para
desviar as almas do caminho dessa fidelidade; vale-se de pretextos possíveis e imagináveis. Fará
você pensar que não adianta, que não é digno de rezar, que é perda de tempo, que é melhor deixar
para amanhã, que tal ou qual urgência precisa da sua atenção, que será uma pena perder aquele
ótimo programa de TV, o que os outros vão achar de você, etc.
Santa Tereza de Ávila explica que é lógico que o demônio nos ataque com força nesse
campo, já que a alma fiel à oração está com certeza perdida para ele. A alma de oração pode cair
muitas vezes, claro, mas, depois de cada queda receberá a graça para se levantar mais alto.

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2.3 Uma oração animada pela fé, pela esperança e pela
caridade
Há diversas maneiras de se levar a cabo o propósito de consagrar uns momentos à oração
pessoal: meditar um texto da Sagrada Escritura, recitar um salmo lentamente, dialogar livremente
com o Senhor, deixar o caorção cantar, recitar o rosário ou outra forma de oração repetitiva,
permanecer caldo na presença de Deus numa atitude simples de disponibilidade ou adoração….
O essencial, contudo, não é empregar tal ou qual método, mas verificar as disposições
profundas do nosso coração quando nos pomos a rezar. São essas disposições íntimas, e não uma
técnica ou fórmula particular, que garantem fecundidade da vida de oração.
O que importa no final das contas é que a nossa oração – seja qual for o método de que
valermos – esteja fundamentadaem disposições interiores de fé, esperança e amor. Ou seja, a nossa
oração será boa e fecunda se estiver fundada na fé, na esperança e no amor.

2.4 A porta da fé
A oração é essencialmente um ato de fé. Aliás, é a primeira e mais natural expressão da
nossa fé. A uma pessoa que diga “Eu creio, mas não rezo”, poderíamos muito bem perguntar: ”Em
que Deus você crê? Se é o Deus da Bíblia, o Deus vivo, de Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus com
quem Jesus passava a noite em oração e chamada de Abba!, como é possível que você não tenha a
menor vontade de falar com Ele?”
A prática da oração exprime, renova, purifica e fortalece nossa fé. Ainda que não demos
conta, fazemos um ato de fé sempre que rezamos: cremos que Deus existe, que vale a pena lhe
dirigir a palavra e escutar o que tem a nos dizer, que Ele nos ama, que é bom dedicar-lhe uma parte
do nosso tempo, etc. Em toda oração, existe um ato de fé implícito mas fundamental.

2.5 Qual é o papel da sensibilidade na vida de oração?


O fato de poder sentir, comover-se, vibrar interiormente, é essencial à condição do homem.
Eu diria mesmo que é absolutamente indispensável que a sensibilidade e a afetividade façam parte
da vida espiritual. Se eu jamais provar sensivelmente a presença e a ternura de Deus, continuarei a
considerá-lO um estranho logínquo e abstrato, uma ideia pura. Muitas vezes na vida recente da
Igreja, os fiéis sofrem por causa da ausência da sensibilidade.
O salmista nos convida: Provai e vede como o Senhor é bom (Sl 34, 9). Temos o direito de
pedir graças sensíveis para sentir com o nosso corpo, os nossos senstidos e as nossas faculdades
emotivas, para provar algo do mistério de Deus e das verdades da fé. Do contrário, não
compreenderemos nem a integraremos à nossa vida de uma maneira dinâmica. Todos os métodos de
oração e meditação que mobilizam os sentidos e recorrem à capacidade humana de se emocionar
são perfeitamente legítimos.

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Dito isto, cabe a nós agora reconhecer os limites da sensibilidade. É indispensável “provar
Deus”, mas aquilo que provamos de Deus ainda não é Deus. Deus é infinitamente maior e está
infinitamente além de tudo o que nossa sensibilidade pode apreender. E a busca de experiências
sensíveis pode transformar-se num fim em si mesmo. Pode suscitar uma espécie de gula espiritual,
apegamento e falta de liberdade. A sensibilidade deve ser purificada. O objetivo da oração é
encontrar Deus, e não apenas os sentimentos que experimentamos na presença de Deus. É
necessário aceitar que às vezes nossa sensibilidade se encontra vazia e seca. E devemos nos lembrar
nesses momentos de que o importante não é o que sentirmos, mas o que cremos. O ato de fé
ultrapassa as emoções e nos leva a um verdadeiro encontro com Deus mesmo quando a nossa
sensibilidade está completemante vazia e o nosso coração parece as dunas do Saara. Mesmo quando
não temos o mínimo de fevor sensível.
A perseverança fiel na oração apesar de aridez conduz-nos gradativamente a uma liberdade
com relação à sensibilidade. A cultura moderna insiste em que as pessoas se deixem governar
unicamente pela sensibilidade, o que o conduz a bastante formas de imaturidade, ou seja, de
escravidão. Se a nossa relação com os outros baseia-se apenas no prazer que eles proporcionam, não
passa de puro infantilismo. A verdadeira liberdade consiste em amar o outro quer ele me agrade ou
não. A fidelidade à oração, custe o que custar, é uma educação valiosa para isso.

2.6 Papel e limites da inteligência


A fé não pode abrir mão da razão. Na medida do possível, devemos procurar compreender
as verdades em que cremos, pois é necessário que a inteligência possa apropriar-se do conteúdo da
fé. Esse é papel da teologia.
Na nossa oração muitas vezes recebermos luzes que iluminarão a nossa inteligência de
diversas maneiras: compreenderemos alguns aspectos do mistério de Deus, ganharemos uma
percepção mais vida da pessoa de Cristo, do sentido do destino humano, etc. Às vezes, receberemos
luzes belas e valiosas para entender o sentido profundo de uma passagem da Escritura. Além dessas
luzes gerais sobre o conteúdo da fé, a nossa inteligência também será iluminada em pontos
particulares que se referem à nossa existência concreta: que decisão tomar, como governar a própria
vida em determinadas circunstâncias, que conselho dar ao amigo que nos pede ajuda, etc.
Jamais progrediremos se desprezarmos essas luzes que iluminam a nossa inteligência;
precisamos pedi-las e buscá-las. A preguiça intelectual e a vitalidade espiritual não costumam andar
juntas.
A inteligência pode aproximar-nos de Deus, mas não consegue nos fazer aceder ao que Deus
é verdadeiramente em si mesmo. Só a fé faz isso. Há momentos na vida cristã em que a inteligência
pode apenas calar e reconhecer a própria incapacidade. O maior teólogo da história da Igreja, São
Tomás de Aquino, reconheceu no fim da vida que tudo o que tinha escrito não passava de palha.
Assim, é normal e até necessário que no nosso caminho cristão, na vida de oração em
particular, a inteligência passe momentos de escuridão. O que pode nos ajudar nessas situações é

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recordar que é a fé, e não a inteligência, que nos dá acesso a Deus e à verdade profunda sobre a
nossa vida; a fé nos basta, mesmo que a inteligência esteja em agonia. Com efeito, a inteligência
precisa de fases de trevas para se purificar e refinar, pois, o desejo de compreensão muitas vezes
vem acompanhados de muitas coisas de que devemos nos livrar: curiosidades más, orgulho, as
pretensões, a vontade de impor-se (compreender para dominar) e também a busca por seguranças
humanas (compreender para controlar).
Também é importante ter em conta que o pensamento e a reflexão podem nos aproximar de
Deus, constituir um caminho até Ele, mas não podem nos dar Deus em Pessoa. São a fé, o amor e a
adoração que nos põe em contato com Deus.
Em resumo, a sensibilidade e a inteligência são faculdades valiosas e úteis, mas não podem
ser o fundamento do nosso relacionamento com Deus nem a nossa vida de oração. O único
fundamento deve ser a fé. Quando a sensibilidade estiver árida ou a inteligência cega, a fé deve nos
bastar para seguir em frente. A fé é livre. Ela sabe se alimentar daquilo que toca a sensibilidade e
ilumina a inteligência, mas também pode passar sem isso.
A nossa vida de oração passa por momentos de tremenda pobreza. Apesar de nossa boa
vontade, dos nossos esforços, permanecemos áridos, frios, sem sentir nada, sem compreender nada,
sem nenhuma luz… Nesses momentos tendemos a desanimar e pensar que estamos muito longes de
Deus.
Mas, pouco importa o que você ou deixa de sentir e o que você entende e deixa de entender.
Se a sensibilidade ou a inteligência não lhe dão Deus, a fé dará. Basta fazer um ato de fé humilde e
sincero para entrar em contato com Deus de maneira imediata e certa. A fé, e apenas ela, estabelece
um contato real com a presença viva de Deus. Quando tudo falta, a fé basta. Se avançarmos com
coragem nessa direção, acabaremos por experimentar essa verdade e teremos certeza de que
recebemos verdadeiramente aquilo que pedirmos nos nossos atos de fé. Seja-te feito conforme a tua
fé, Jesus nos diz (Mt 8, 13).
As faculdades humanas conhecem momentos de ‘crise’ dolorosa ao longo de nosso
itinerário espiritual, não para que sejam destruídas, mas para que sejam purificadas e refinadas a fim
de que o seu exercício não constitua um obstáculo à nossa união com Deus. Elas devem passar por
trevas para se acostumar a uma percepção nova e mais profunda de Deus e da sua sabedoria. São
empobrecidas para logo serem enriquecidas.

2.7 Tocar Deus


É possível fazer uma analogia interessante entre o papel da fé na vida espiritual e o do tato
na vida sensível. O tato é o primeiro dos nossos cinco senstidos a se desenvolver, ainda no seio
materno, e é a origem dos demais. O tato é o mais primordial e o mais essencial à vida e à
comunicação por ter uma vantagem que os outros sentidos não tem: a reciprocidade. Com efeito,
ninguém pode tocar um objeto sem ser ao mesmo tempo tocado por ele, passo que é possível ver
sem ser visto e ouvir sem ser ouvido. O contato criado pelo tato é mais íntimo e imediato do que os
outros senstidos oferecem.

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De maneira análoga, a fé é caracterizada por uma certa pobreza (crer não é necessariamente
ver, nem compreender, nem sentir), mas é o que há mais de vital para a vida da alma. Pela fé,
podemos – de maneira misteriosa mais real - ‘tocar a Deus’ e nos deixar tocar por Ele, pôr-nos em
comunhão íntima com Ele e sermos aos poucos transformados pela graça.

2.8 A fé que abre todas as portas


A fé é uma realidade humilde, com frequencia oculta, uma disposição secreta do coração e
da vontade, uma simples adesão à palavra e às promessas de Deus numa atitude de submissão e
confiança. No entanto, é esse ato humilde, e apenas ele, que nos garante aos poucos o acesso a toda
riqueza do mistério de Deus. Todas as nossas faltas têm sua origem, de uma maneira ou de outra,
numa falta de fé, de modo que não há mais nada mais urgente nem mais fecundo que aumentar a
própria fé.
São Luis Grignion de Montfort nos propõe a consagração a Nossa Senhora como caminho
eficaz de santidade baseado na seguinte intuição: se nos entregarmos completamente a Maria, ela se
entregará inteiramente a nós e partilhará conosco as graças que recebeu do Todo-Poderoso, em
particular a sua fé:
“A Santíssima Virgem far-te-á participar da sua fé, que foi a maior que já houve na Terra, maior até
que a dos Patriarcas, Profetas, Apóstolos e todos os Santos. […] Uma fé firme e inquebrantável
como um rochedo, que te fará permanecer constante e firme no meio das tempestades e tormentas.
Uma fé ativa e penetrante que, como uma chave misteriosa ou gazua, te dará entrada em todos os
ministérios de Jesus Cristo, nos novíssimos dos homens, e no Coração do próprio Deus. Uma fé
reluzente, enfim que será o teu archote luminoso, a tua vida divina, o teu tesouro escondido da
divina Sabedoria, a tua arma onipotente de que te servirás para iluminar os que estão nas trevas e
sombras da morte, […] e finalmente, para resistir ao demônio e a todos os inimigos da salvação ”
(Tratado da verdadeira devoção à Santíssima Virgem Maria, n. 144 e 214).

2.9 A Oração e a Esperança


Rezar é um ato de esperança: é reconhecer que temos necessidade de Deus, que não
podemos enfrentar sozinhos os desafios da vida, que contamos mais com Deus do que com os
recursos e talentos próprios, e que esperamos com confiança receber dEle aquilo que nos é
necessário. O ato de esperança consiste fundamentalmente na seguinte atitude: eu me reconheço
pequeno e pobre diante de Deus, mas espero tudo dEle com plena confiança. Minha pobreza não é
um problema, mas uma oportunidade.
Vamos partir de nossa vivência. Quando decido fazer meia ou uma hora de oração pessoal
silenciosa, a sós numa sala ou numa igreja, posso até passar momentos belos e doces, em que o
gozo de uma paz e alegria mais valiosas do que qualquer coisa que o mundo possa oferecer. Só que
as coisas nem sempre são assim…

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Esse tempo de oração pode ser um tempo difícil. Precisamente por estar só, em silêncio e
fora das minhas ocupações habituais, às vezes sou confrotado por tudo aquilo que vai mal na minha
vida. Vêm à tona as minhas misérias, as minhas quedas e os meus erros, a minha dificuldade de
recolhimento, os remorsos do passado, as inquietações do futuro…
A lista poderia ser enorme! Longe de experimentar um tempo de oração como momento
positivo, acabo por encará-lo como um confronto doloroso com tudo o que há de negativo na minha
vida. E pode me levar ao desânimo, à tentação de abandonar a oração e retornar às ocupações mais
gratificantes ou divertidas. De fato, é preciso admitir que muitas pessoas renunciam a oraçãoe
fogem do silêncio e da solidão por temerem esse encontro inescapável consigo próprias a que a
oração obriga.
Não devemos temer essa experiência: ela é normal e até necessária. Jesus disse certa vez a
São Luís, Rei da França: ‘Tu gostarias de rezar como um santo, e eute convido a rezar como um
pobre!’ A oração nos pões inexoravelmente em contato com o que somos de verdade. Toda pessoa
carrega suas sombras, aquele pedaço de si que às vezes é pesado demais, uma fonte de vergonha, de
culpa, de inquietação: limitações, fragilidades, psicológicas, feridas afetivas, cumplicidades com o
mal, covardias, quedas diversas, etc. A oração se aproxima cada vez mais da luz de Deus, e esta nos
revela as nossas imperfeições e pecados, assim como o raio de sol que invade a janela de um quarto
escuro e põe em evidência até a menos partícula de pó suspensa no ar.
A oração intensifica a nossa consciência de nossa pobreza e nos obriga a enfrentá-la sem
escapatória. Mas apenas os doentes precisam de médico (Mc 2, 17). O caminho da nossa salvação
consiste em duas atitudes: a humildade e a esperança. Por um lado, precisamos aceitar plenamente
aquilo que somos, acolher a revelação cruel dos nossos limites e faltas. Por outro, devemos
aproveitar-nos disso para aprender a colocar toda a nossa confiança e esperança somente em Deus,
e não nas nossas qualidades e boas ações (Lc 18, 14).
Deus escuta somente a oração do pobre. Não a do fariseu – satisfeito consigo mesmo e com
suas ações, que agradece a Deus por ser melhor do que os outros - , mas do publicano, que se
mantém a distância e bate no peito dizendo: Ó Deus, tem piedade de mim que sou pecador! (Lc 18,
13). A oração que chega aos céus, que toca o coração de Deus e obtém a sua graça, é aquela que
brota do fundo da nossa miséria e do nosso pecado: Do fundo do abismo, clamo a vós, Senhor;
Senhor, ouvi minha oração (Sl 129, 1-2).

2.10 A força da humildade


A humildade consiste em reconhecer que tudo aquilo que somos e que possuímos é dom
totalmente gratuito do amor de Deus, que não podemos gabar-nos de nada: Que é que possuis que
não tenhas recebido? (I Cor 4, 7). A humildade também consiste em aceitar tranquilamente nossas
limitações e fraquezas: ‘Amar minha pequenez e a minha pobreza’, segundo a expressão de Santa
Tereza de Lisieux.

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É vital que compreendamos a força prodigiosa da humildade e da esperança. A esperança
não engana (Rm 5, 5). São João da Cruz afirma: ‘A alma alcança de Deus tanto quanto espera’. São
as palavras mais consoladoras que podemos ouvir: pela esperança podemos, com toda certeza, obter
tudo de Deus. A nossa pobreza radical faz-nos esperar tudo de Deus com plena confiança. E Ele nos
dará, não segundo as nossas virtudes, qualidades, méritos e boas obras, mas segundo a nossa
esperança. O mesmo vale para a humildade: Deus resiste aos soberbos, mas dá a sua graça aos
humildes (I Pd 5, 5); Porque o Senhora ama seu povo, e dá aos humildes honra e vitória (Sl 148, 9).
A humildade tem um poder absoluto sobre o coração de Deus e obtém a plenitude da sua graça.
Unida à esperança, ela ‘obriga’, por assim dizer, Deus a ocupar-se de nós.
Santa Tereza de Ávila diz que todo edifício da oração vai fundado em humildade e, quando
mais se abaixa uma alma na oração, mais a levanta Deus (Livro da Vida, Capítulo 22). Catherine de
Bar, fundadora de 10 mosteiros das Beneditinas, afirma: “Só se conhece e experimenta Deus
humildemente. Não esperai nada de vós, mas tudo de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Livro Adorer et
adhérer).
Santa Tereza de Lisieux também fala de como a humildade atrai a graça de Deus: “Ah!
Fiquemos muito longe de tudo que brilha, amemos nossa pequenez, gostemos de nada sentir; então,
seremos pobres de espírito e Jesus virá buscar-nos, por mais longe que estejamos. Ele nos
transformará em chamas de amor” (Carta 197).
“Deus não exige mais do que nos preencher de si mesmo e das suas graças, mas nos
encontra cheios de orgulho e estima por nós próprios e isso o impede de comunicar-se. Pois a alma
que não está assentada na verdadeira humildade e desprezo de si é incapaz de receber os dons de
Deus. O seu amor próprio os devoraria, e Deus é obrigado a deixá-la com suas pobrezas e
esterilidades para convecê-la do seu nada, tamanha é a importância dessa disposição da humildade.
A humildade não consiste em ter pensamentos humildes, mas em suportar o peso da verdade, que é
abismo da nossa extrema miséria, quando apraz a Deus que o sintamos” (Catherine de Bar).
Uma das experiâncias mais estranhas e belas da vida espiritual é: quando nos sentimos como
que esmagados pela nossa miséria, mas reconhecemos e aceitamos plenamente; quando
consentimos em ‘habitar no nosso nada’ - por assim dizer – e não sair dele (pois essa é a verdade
da nossa condição), Deus nos visita como uma consolação terna e sentimos claramente que todas as
riquezas do seu amor e da sua misericórdia nos pertecem. A nossa pobreza nos faz infinitamente
ricos: Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino de Deus! (Mt 5,3)
“Amar significa acolher sem reservas o outro que vem a nós; em contrapartida, temos
certeza de sermos plenamente acolhidos pelo outro sem sermos julgados, condenados ou
comparados” (cartuxo, Livro Paroles de Chartreaux).

2.11 Aprofundar em si mesmo


Quem persevera na oração dia após dia é como um homem que compra uma velha casa no
campo e encontra um poço no seu jardim. Esse poço já não é usado talvez há uns cem anos e está

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bloqueado. O homem então pensa consigo mesmo que seria bom colocar o poço em condições de
uso mais uma vez. Assim, desce até o fundo e começa a cavar. A tarafe não é muito agradável no
começo: ele encontra folhas mortas, pedras, lama, todo tipo de detrito, alguns bem asquerosos. Mas
ele não desiste e continua o penoso trabalho. No final, acabar por descobrir no fundo do poço água
límpida e pura, a mais refrescante que já provou.
O mesmo vale para nós: a fidelidade à oração nos obriga a um encontro penoso com que
habita nosso coração. Descobrimos muitas coisas pesadas, grossas e sujas. Mas chega o dia em que
mais ao fundo – além das nossas feridas psíquicas, além dos nossos pecados e manchas – atingimos
uma fonte bela e pura, a presença de Deus no fundo do nosso coração. Nele toda a nossa pessoa
pode purificar-se e renorvar-se. Quem crê em mim, do seu interior manarão rios de água viva (Jo 7,
38). O homem não se purifica a partir de fora, mas de dentro. Não por esforço moral, mas
descobrindo dentro de si uma Presença e deixando-a agir livremente.

2.12 A oração, um ato de amor


A oração é um espaço privilegiado para exercer, aprofundar e purificar o amor. É uma
escola maravilhosa e eficaz de amor. É uma escola de paciência, fidelidade, humildade e confiança:
atitudes que expressam o amor de maneira mais autêntica e verdadeira. É uma escola de amor a
Deus e aos próximo, bem como (o que não é coisa de boa importância) uma escola de caridade para
consigo próprio.
E qual o lugar do amor na vida de oração? Podemos afirmar que o amor é meta da oração,
mas que também é, com a fé e a esperança, o seu principal meio. Santa Tereza de Ávila insiste
nesse ponto nos seus ensinamentos sobre oração: não se trata de pensar muiro, mas de amar muito.
Felizmente, diz ela, embora todas as almas sejam dotadas de uma grande imaginação, todas são
dotadas de uma capacidade para amar.
A oração é um ato de amor a Deus. Rezar é acolher com confiança o amor de Deus. Para
começar, rezar não é fazer algo por Deus, mas receber dEle, deixar-se amar por Ele. Custa-nos viver
isso: não cremos o bastante nesse amor; muitas vezes nos sentimos indignos dele; e centramos-nos
mais em nós mesmos do que nEle. Com um orgulho sutil, procuramos fazer coisas belas por Deus
em vez de cuidar primeiro do que Deus quer fazer por nós gratuitamente. O essencial é colocar-nos
na presença de Deus, pequenos e pobres, mas abertos e receptivos ao seu amor. Permitir que Ele nos
ame, por assim dizer, em vez de agir por iniciativa própria. A atividade que mais conta na ração não
é nossa, mas a de Deus. A nós cabe receber!
Na sua autobiografia, Santa Tereza de Lisieux conta que tinha o defeito de adormecer com
frequência durante a oração (não por má vontade, mas por uma fraqueza da sua juventude e falta de
sono), diz: “Estou verdadeiramente longe de ser santa, e isto é uma prova: em vez de me alegrar da
minha aridez, deveria atribuí-la ao meu pouco fevor e fidelidade; deveria ficar desolada de dormir
(após sete anos) durante minhas orações e ações de graças. E, bom, não fico desolada… Penso que
as crianças agradam os seus pais quer durmam, quer despertas”.

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Certamente que a oração também é a nossa resposta ao amor que Deus tem por nós. Orar é
dar-lhe o nosso tempo, e o nosso tempo é a nossa vida! Além disso, na oração, oferecemos nós
mesmos a Deus, entregamos a Ele o nosso coração a toda a nossa vida. Para pertencermos a Ele por
inteiro, fazemo-nos disponíveis à sua vontade, expressamos o nosso amor, fazemos propósitos nesse
sentido, etc.
A oração também é uma ato de amor ao próximo. Às vezes, de maneira explícita e
consciente, quando intercedemos por ele. Mas mesmo durante uma simples oração de adoração,
quando o próximo não ocupa os nossos pensamentos, vivemos um verdadeiro amor de caridade
para com ele. Com efeito, a oração nos pacifica, nos suaviza, nos faz mais humildes e
misericordiosos, e as pessoas que Deus põe no nosso caminho com certeza beneficiam-se disso.
Às vezes tendemos a considerar a oração como um ‘dever’. Não temos suficientemente em
conta que ela é uma oportunidade: ela nos permite estar unidos de maneira certa a todas as pessoas,
nas suas necessidades e nos seus sofrimentos.
A orção, é, enfim, um ato de amor a si mesmo. Amar traz-nos o maior dos benefícios. Dá-
nos o bem mais essencial, que é Deus em pessoa e tudo o que encontramos nEle: confiança, paz,
luz, força, crescimento… Como já vimos anteriormente, a oração é uma escola de reconciliação
consigo mesmo, de aceitação da própria fraqueza. Ela nos leva aos poucos a descobrir a nossa
verdadeira identidade, a graça de sermos filhos de Deus. Existe um amor-próprio mau, feito de
egoísmo, orgulho, narcisismo, mas também um amor-próprio do bom e necessário, que nos leva a
buscar o bem para a nossa alma. A oração é uma das fontes primordiais desse justo amor de si
mesmo.

2.13 Conclusão sobre as virtudes teologais na oração


Ainda que não sintamos, nada de especial, ainda que a imaginação e a inteligẽncia estejam
vazias ou um pouco distraídas, uma vez que nos ponhamos diante de Deus com nossas disposições
no coração, tavez reduzidas apenas a uma simples atitude de confiança amorosa, a nossa oração será
fecunda. Deus se comunicará conosco em segredo, independentemente de toda percepção sensível e
de toda luz intelectual, e depositará no nosso coração tesouros de que aos poucos ganharemos
consciência. Talvez nossa oração saia muito árida e pobre, mas ainda assim, se formos fiéis, Deus
nos instruirá secretamente, sem o percebermos. E, no momento de agir, quando se trata de fazer
uma escolha, de aconselhar alguém, recebos uma luz imediata.
“Jesus não precisa de livros nem doutores para instruir as almas. Ele é o doutor dos
Doutores, ensina sem o ruído das palavras… Nunca o ouvi falar, mas, a cada momento, sinto que
está em mim. Guia-me, inspira o que devo dizer ou fazer. Bem no momento em que eu preciso,
descubro luzes que nunca tinha visto antes; na maioria das vezes, não é durante as minhas orações
que elas surgem abundantemente, é no meio das ocupações diária.” (Santa Tereza de Lisieux,
Manuscrito A, 83 v.)

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3. A presença de Deus

Onde quer que Deus esteja presente, Ele está ao mesmo tempo escondido. Seja na natureza,
na Eucaristia, no fundo de nossa alma, Deus está realmente presente, mas com uma presença que
não é acessível pelos meios habituais da percepção humana. Nenhuma observação, nenhuma
psicanálise, nenhum experimento científico, nenhum microscópio ou scanner pode decretar em
nenhuma parte a presença divina. O único ‘instrumento’, se posso dizer assim, que pode conferir
acesso a essa presença, revelá-la é a ‘fé embebida de amor’ para retomar a expressão de Santa
Eleizabeth da Trindade.
“Na verdade, tu és um Deus que se esconde, Deus de Israel, Salvador” (Is 45,15). O único
meio de levá-lO a sair do seu esconderijo é a busca amorosa. A fé e o amor O ‘desentocam’ quando
todos os outros meios são ineficazes. Deus não pode ser encontrado e possuído senão pela fé e pelo
amor, pois, Ele não quer se unir a nós de outro modo que não em um econtro amoroso. Deus não
quer que estejamos ligados a Ele por outros laços que não o do amor. Deus se revela a nós, não por
manifestações ou provas constrigentes, mas por sinais com frequência discretos, por indícios, por
chamados, suscitando de nossa parte uma livre adesão de fé. Não somos nunca dispensados d euma
ato de fé para chegar à presença divina.

3.1 Presença de Deus na natureza


A primeira palavra de Deus é a sua criação. Ele exprime sua bondade, sua potência, sua
sabedoria por meio do mundo que nos rodeia. Não se trata evidentemente de cair num pateísmo
(Deus e sua criação são bem distintos) nem numa sacralização da natureza, mas de reconhecer nela
o sinal do amor divino. É tocante ver o quanto todos os santos se maravilham ante a beleza do
mundo e como souberam perceber o amor e a sabedoria de Deus nas coisas criadas. Conhecemos o
Cântico das criaturas de São Franciso de Assis e os poemas místicos de São João da Cruz que,
contemplando a natureza, veem nela traços da divina beleza.
“Ó bosque e espessuras,
Plantados pelas mãos de meu Amado!
Ó prado de verduras,
De flores esmaltado,
Dizei-me se por vós Ele há passado!

Mil graças derramando,


Passou por estes soutos com presteza,
E, enquanto os ia olhando,

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Só com sua figura
A todos revestiu de formosura”
(São João da Cruz, Cântico Espiritual, estrofes 4 e 5)

O homem conteporâneo se vê com frequência alijado da natureza; o mundo no qual ele vive
se reduz a um universo de asfalto de concreto e de telas de todos os tipos. Prisioneiro de um mundo
fabricado, virtual, projeção de seus fantamas, ao invés de estar com contato com a criação. Ele se vê
por vezes alijado de Deus (e de si mesmo) em razão disso.
O Salmo 18 nos diz: Os céus cantam a glória de Deus. Desde os tempos bíblicos, os crentes
sempre contemplaram na beleza da criação um reflexo da glória de Deus. O racionalismo moderno
nos tornou incapazes disso. É uma pena, porque o desenvolvimento dos conhecimentos científicos,
temos mil vezes mais razões que o homem da Bíblia ou da Idade Média para nos maravilharmos
ante a sabedoria e o poder de Deus. As imagens das galáxias distantes enviadas pelo telescópio
Hubble, as visões do mundo submarino, os conhecimentos estupefacientes de que dispomos a
propósito do código genético, do Big Bang e da estrutura do átomo, dão ao crente motivos para se
maravilhar, sabendo que tudo isso não é produto do acaso e da necessidade, mas do fruto de uma
amor criador.
Passear numa bela paisagem, acolher com todos os sentidos o mundo tal qual ele se dá a nós,
dar graças pela beleza da terra e do céu: tudo isso pode com frequência alimentar nossa oração.
Saimaos tirar proveito! O contato com a natureza pode se tornar facilmente o acolhimento da
presença sábia e amorosa de Deus na nossa vida e alimentar nosso amor e nossa confiança.

3.2. Deus se dá na humanidade de Cristo


É pela Encarnação do seu Filho que Deus se fez, de modo mais forte, o Emanoel, o Deus
conosco (Col 2, 9). Tudo aquilo que nos põe, de um modo ou de outro, em contato com a
humanidade de Cristo, faz com que acolhamos a presença de Deus. A humilde invocação do nome
de Jesus, a contemplação dos eventos de sua vida, desde a Encarnação até a sua Ascensão em
glória, a meditação dos seus gestos e palavras, o olhar pousado sobre um ícone ou um crucifixo, o
diálogo de amizade com Jesus, que imaginamos presente ao nosso lado, como o melhor e mais fiel
de nossos amigos, a adoração eucarística, a recitação do Rosário, etc.
Desde os tempos evangélicos até hoje, o povo cristão, guiado pelo Espírito Santo e pela
inventividade do amor, soube se apropriar da vida e da pessoa de Jesus de mil maneiras diferentes, e
assim acolher o mistério de Deus. Essa convicção está na origem de muitas das diversas formas de
oração e de devoção que alimentam a vida da Igreja.
A humanidade de Jesus é a porta, humilde e infelizmente ainda escondida para muitos, que
nos dá acesso a toda riqueza do mistério de Deus, a toda profundidade da vida trinitária. Haveria
uma infinidade de coisas a dizer sobre isso, e a Igreja jamais acabará de sondar todos os tesouros de

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luz e graças contido em Jesus, e de se apropriar deles pela fé e pelo amor (Col 2, 3). Tudo aquilo
que nos liga a Jesus de maneira ou de outra, pelo corpo, pelos sentidos, pelo coração, pela
inteligência e pela vontade, nos faz comungar com a presença e a vida de Deus. É uma dimensão
fundamental da oração cristã.

3.3 Deus presente no nosso coração


É uma verdade de fé que Deus mora em nós, com uma presença escondida porém real. “O
Reino de Deus está dentro de vós”, afirma Jesus (Lc 17, 21). Paulo diz que “o Cristo habita em
nossos corações pela fé” (Ef 3, 17) e que “nosso corpo é templo do Espírito Santo” (I Cor 6, 19).
Deus está presente em nós enquanto nosso Criador, que nos dá a vida, o movimento e o ser
(At 17, 28), mas também na presença de graça de amor, tanto mais intensa quanto mais o amor
engrandece o nosso coração. Se alguém me ama, guardará a minha palavra e meu Pai o amará, e nós
viremos e faremos nele nossa morada (Jo 14, 23). Através do batismo, a trindade inteira vem habitar
em nós, e a sua presença se revela e se intensifica com o crescimento da fé e do amor.
A consequência pura e simples, mas absolutamente fundamental, dessa verdade é que uma
das dimensões essenciais de oração consiste no movimento de recolhimento, de interiorização, pelo
qual nos retiramos para dentro de nós mesmos a fim de nos reunirmos à presença que nos habita.
Essa presença não é objeto de experiência, de sensação, é antes de tudo objeto de fé. Mas, se
afirmamos esse ato de fé e, em coerência com essa fé, fazemos um esforço de nos recolhermos com
frequência dentro de nós para nos reunirmos Àquele que nos espera lá, essa fé nos conduzirá pouco
a pouco a uma verdadeira experiência: verificamos que somos verdadeiramente habitados no mais
íntimo de nós mesmos por uma força inesgotável de paz, de santidade, de pureza, de felicidade… O
próprio Deus, com toda a plenitude da sua vida e dos seus dons.
“Vede que Santo Agostinho diz que O buscava em muitas partes e O veio encontrar dentro
de si mesmo. Pensais que importa pouco a uma alma distraída entender esta verdade e ver que, para
falar a seu Eterno Pai, não precisa ir ao Céu, nem para se consolar com Ele é mister falar em voz
alta? Por muito baixo que fale, está tão perto que nos ouvirá; nem é preciso asas para ir em busca
dEle; basta pôr-se em recolhimento e olhá-lO dentro de si mesma, e não se estranhar de tão bom
Hóspede; mas falar-lhe com grande humildade, como a um pai; pedir-lhe como a um pai, contar-lhe
os seus trabalhos, pedir-lhe remédio para eles, entendendo que não é digna de ser sua filha”.
(Caminho da Perfeição, cap. 28)
“Já te foi dito que és tu mesma o aposento onde Ele mora, e o recôndito e esconderijo em
que se oculta. Nisto tens motivo de grande contentamento e alegria, vendo de ti, a ponto de estar
dentro de ti; ou, por melhor dizer não podes estar sem Ele. Vede, diz o Esposo, que o reino de Deus
estás dentro de vós (Lc 17, 21). E o seu servo, o Apóstolo São Paulo, o confirma: Vós sois o templo
vivo de Deus (2 Cor 5, 16).
Grande consolação traz à alma o entender que jamais lhe falta Deus, mesmo quando se
achasse (ela, a alma) em pecado mortal; quanto mais estará presente naquela que se acha em estado

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de graça! Que mais queres, ó alma, e que mais buscas fora de ti, se tens dentro de ti tuas riquezas,
teus deleites, tua satisfação, tua fartura e teu reino, que é teu Amado a quem procuras e desejas?
Alegra-te em teu interior recolhimento com Ele, pois O tens tão próximo. Aí O deseja, aí O adora, e
não vás buscá-lO fora de ti, porque te distrairás e cansarás.”(São João da cruz, Cântico Espiritual,
Canção I, 6-8)
Há na vida momentos para a ação exterior, para a relação interpessoal, mas é preciso
também saber reservar momentos nos quais nos separamos de tudo para buscar a Deus em nós, num
caminhar totalmente simples, feito de silêncio, de recolhimento, de atenção interior à presença que
nos habita. Se cultivamos o hábito (de maneira prolongada no tempo de oração, mas também de
maneira breve porém recorrente no curso dos nossos dias). Veremos que pouco a pouco. Mesmo no
fogo da ação, permanecemos unidos a Deus, e que nós extraímos dessa presença íntima toda
energia, toda sabedoria, toda paz. Já não vivemos de maneira superficial, agitada, desordenada,
impulsiva, mas a partir do nosso verdadeiro centro: o nosso coração habitado por Deus.
É sabendo de tempos em tempos nos separar de tudo e de todos para encontrar Deus em nós
que seremos unidos a tudo e a todos da maneira mais afetiva. Notemos, para concluir, que o
verdadeiro tesouro é interior. Descobrir em nós as verdadeiras riquezas nos fará mais livres ante os
bens da terra.

3.4 Rezar a Palavra


Deus se comunica através das palavras da Bíblia. Deus habita a sua palavra: recebê-la e
meditá-la no coração nos faz acolher o dom da sua presença e do seu amor. Se uma pessoa se coloca
a questão: ”Que devo fazer para utilizar bem o tempo que decidi consagrar à oração? ”, pemso que a
melhor resposta é aconselhar-lhe a começar a meditação na Escritura. Isso não exclui,
evidentemente, outras formas de oração. Mas é bom que o alimento essencial da nossa vida de
oração seja a Palavra de Deus.
Uma das belas coisas da Bíblia é que Deus não apenas se dirige a nós, fala ao nosso coração,
como também nos dá palavras com que lhe responder. Os salmos, por exemplo, são de uma riqueza
inesgotável para exprimir a nossa oração e nos ajudar a apresentar-nos diante de Deus com a atitude
adequada. A Escritura é também a base de todo diálogo autêntico com Deus. Quanto mais a nossa
vida de oração se alimentar da Escritura, mais será justa e profunda, mais nos fará encontrar Deus
de verdade.
“A Igreja venerou sempre as divinas Escrituras como venera o próprio Corpo do Senhor, não
deixando jamais, sobretudo na sagrada Liturgia, de tomar e distribuir aos fiéis o pão da vida, quer
da mesa da palavra de Deus quer da mesa do Corpo de Cristo. Sempre as considerou, e continua a
considerar, juntamente com a sagrada Tradição, como regra suprema da sua fé; elas, com efeito,
inspiradas como são por Deus, e exaradas por escritor duma vez para sempre, continuam a dar-nos
imutavelmente a palavra do próprio Deus, e fazem ouvir a voz do Espírito Santo através dessas
palavras dos profetas e dos Apóstolos. É tão grande a força e a virtude da palavra de Deus que se
torna o apoio vigoroso da Igreja, solidez da fé para os filhos da Igreja, alimento da alma, fonte pura

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e perene da vida espiritual. Por isso devem aplicar por excelência à Sagrada Escritura as palavras: A
palavra de Deus é viva e eficaz (Hb 4, 12), capaz de edificar e dar a herança a todos os santificados
(At 20, 32; Its 2, 13)” (Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina, n.21)
A linguagem da Bíblia é uma linguagem humana, por vezes com suas pobrezas, seus limites,
obscuridades, mas através dela, Deus se comunica realmente a nós. Meditar a Escritura é muito
mais que refletir sobre um texto e extrair ideias: é, num caminhar da oração e da fé, acolher uma
Presença que se doa a nós. A simples ruminação de certos versículos, se feita com fé e amor, pode
nos introduzir em uma profunda comunhão com Deus. Como na hóstia, Deus se doa a nós como
alimento por meio de sua Palavra.
Ouvir a palavra de Deus nos faz entrar na intimidade de Deus. Na vida de um casal que se
ama, o diálogo e as palavras trocadas criam intimidade, um espaço de comunhão, de dom mútuo,
por vezes coroado pelo dom recíproco dos corpos. Do mesmo modo, ouvir a Palavra, o eco que ela
desperta em nosso coração, a resposta da oração que jorra, ela mesma alimentada pela Escritura,
permite que se crie entre Deus e cada um dos fiéis um verdadeiro espaço de intimidade e de dom
mútuo.
Todo cristão que lê a Escritura buscando Deus, num humilde e sincero caminhar na fé,
viverá, de tempos em tempos, esta belíssima experiência: tal passagem, ainda que escrita há séculos,
num contexto histórico muito diferente do meu, me toca e me fala com precisão extraordinária, me
atinge exatamente naquilo que vivo hoje e me diz com clareza aquilo que preciso ouvir da parte de
Deus. O mais simples e inculto dos crentes pode descobrir na Bíblia tesouros de luz e de sabedoria
que ninguém nos apresentou antes. Ela fala ao coração de cada um de modo único e pessoal.
Um breve testemunho do autor: há alguns anos atravessei um período difícil: cansaço,
desencorajamento, sentimento doloroso de minha miséria… Fui passar uns dias num mosteiro
beneditino para levar a Deus a minha agonia, as minhas questões sem resposta, etc. Participando
dos ofícios, deixei-me balançar pelo ritmo dos salmos. E eis que no desenrolar da salmodia, se
apresenta o verso seguinte: Volta, minha alma à serenidade, pois, o Senhor foi bom para contigo!
(Sl 114, 7) Senti então que, através daquelas palavras extremamente simples, Deus se dirigia
diretamente ao meu coração e encontri nEle grande reconforto.

3.5. Palavra de discernimento


Tua palavra, Senhor, é uma lâmpada para os meus passos, diz o Salmo 118. O confronto
com a Palavra de Deus é vital, porque somente ela pode iluminar a verdade de nossa vida. Porque
a palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes e atinge até a
divisão da alma e do corpo...(Hb 4, 12-13).
A Escritura é como um espelho que permite ao homem conhecer-se tal como é, tanto no
bem, quanto no mal: ela denuncia as nossas conivências com o pecado, ambiguidades, atitude não
evangélicas, mas faz jorrar também aquilo que existe de melhor em nós, libertando-o e estimulando-
o. Ela atinge o ponto de divisão entre a alma e o espírito, ou dito de outro modo diferente, permite

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discernir aquilo que é construção psíquica (aquilo que decorre de nossa humanidade ferida) e aquilo
que é espiritual (que procede do dinamismo do amor). Utilizando essa imagem de espelho, São
Tiago nos convida a nos inclinarmos à Palavra, que chama lei perfeita de liberdade, para nos
mantermos unidos a ela a fim de, praticando-a, encontremos a felicidade (Tg 1, 25).
É bom para nós que nos exponhamos regularmente à Palavra de Deus. Somente ela pode
operar em profundo trabalho de discernimento, de verdade na nossa existência. Não é o homem que
se ocupa da Bíblia, é a Bíblia que se ocupa dele. É preciso que, dia após dia, nos deixemos trabalhar
e modelar por ela, por esta ou aquela passagem específica. Isso significa assumir um risco, porque a
Palavra pode, por muitas vezes, dizer coisas que não queremos ouvir. Mas ela opera, no fim das
contas, um trabalho de vida, de liberdade, de paz. Seja corrigindo, seja consolando, comunicando-
nos vida.
Na Escritura, nem tudo é imediatamente compreensível; certas passagens nos parecem
obscuras e mesmo chocantes. Mas se a nossa busca é sincera logo recebemos uma luz: tal ou qual
versículo ficará claro e falará ao nosso coração de uma bela maneira. O Cristo ressuscitado nos
dará, através do seu Espírito Santo, como aos discípulos, a inteligência das Escrituras (Lc 24, 45).
Essa iluminação vem necessariamente aos poucos, mas é uma experiência real.
O que é que permite esta iluminação interior que nos dá acesso à riqueza da Palavra? Penso
que o essencial é um desejo verdadeiro de conversão. Se lemos a Escritura na nossa oração, com a
confiança de que Deus nos ouve, e com um sincero desejo de que a sua Palavra toque o nosso
coração, revele os nossos pecados, nos leve a uma conversão autêntica, se estivermos decididos a
pôr em prática aquilo que ela nos disser, então a Escritura se esclarecerá a nós.

3.6. A Palavra, arma no combate


A familiaridade com a Palavra de Deus é tanto mais necessária na medida em que é uma
arma essencial do combate espiritual. Paulo exorta os Efésios a assumirem com confiança e
coragem o combate que é parte integrante de toda vida cristã autêntica: Irmãos, fortalecei-vos no
Senhor, pelo su soberano poder. Revestir-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às
ciladas do demônio (Ef 6, 10-11).
Mais adiante nessa passagem, Paulo descreve as peças desse arsenal do qual precisamos nos
apropriar para resistirmos nos dias maus. A última peça é a espada do espírito, ou seja, a Palavra
de Deus. Isso nos convida a ter mais em conta a Sagrada Escritura como ajuda indispensável para
atravessar os combates e provas desta vida.
É vital podermos nos apoiar na Sagrada Escritura nas nossas lutas pessoais. O Papa João
Paulo II dizia que um cristão que não reza é um cristão em perigo. Em outras palavras, um cristão
que não lê regularmente a Palavra de Deus é um cristão em perigo. O homem não vive só de pão,
mas de tudo o que sai da boca do Senhor (Dt 8, 3).
Os evangelhos sinóticos, em particular o de Marcos, indicam o impacto que a autoridade da
palavra de Jesus causava nas pessoas (Mc 1, 22;27). Essa autoridade que tanto marcou os que

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ouviam tem dois aspectos. O primeiro aspecto desta autoridade é o fato de que Jesus fala em seu
próprio nome, sem apoiar sobre a autoridade de outra pessoa. Ele mesmo é a Palavra, na sua fonte e
na sua abundância.
O outro aspecto dessa autoridade da Palavra de Jesus é a sua força e eficácia. Os demônios
que Ele explusa fogem sem poderem resistir. Ele ordena ao mar convulso: Silêncio! Cala-te, faz-se
grande calmaria (não somente nas águas, mas também o coração agitado dos discípulos!) Quando
diz a uma pobre pecadora: Teus pecados estão perdoados!, a mulher se sente imediatamente outra
pessoa, purificada e reconciliada em profundidade com Deus e consigo mesma, revestida de uma
dignidade nova, feliz de ser quem é.
Essa autoridade não existe para nos esmagar, bem ao contrário. É uma autoridade contra o
mal, contra os inimigos, contra o Acusador. Uma autoridade a nosso favor, para nossa edificação e
consolação. É indispensável que aprendamos a nos apoiar sobre essa autoridade da Palavra de Deus,
que contém uma força que nenhuma palavra humana possui.
Viveremos momentos que essa autoridade benevolente da Palavra de Deus será tábua de
nossa salvação. Em certos, períodos de provação, a única maneira de nos mantermos firmes será nos
apoiando, não sobre os nossos pensamentos e raciocínios (que manifestarão nossa radical
fragilidade), mas numa palavra da Escritura. O próprio Jesus serviu-se da Escritura para resistir à
tentação do diabo no deserto. Se ficarmos somente no plano dos raciocínios e das considerações
humanas, o Tentador será um dia astuto e forte do que nós. Somente a Palavra de Deus é capaz de
desarmá-lo.
A verdadeira paz não deriva da conclusão de um raciocínio humano. Ela só pode vir de uma
adesão do coração às promessas de Deus, que nos comunica a Palavra. Quando, num momento de
dúvida ou de confusão, aderimos por um ato de fé a uma palavra da Escritura, a autoridade própria
dessa palavra torna-se alicerce e força para nós. Não se trata de uma varinha mágica que nos
imunizaria contra toda perplexidade e angústia. Mas na adesão confiante à Palavra de Deus,
encontramos misteriosamente uma força que nada mais poderia nos dar. Ela tem um poder
particular para nos estabelecer na esperança e na paz, para o que der e vier. A epístola aos Hebreus
diz, a propósito da promessa de Deus a Abraão, que o juramento serve de garantia e põe fim a toda
controvérsia (Hb 6, 16). A Palavra de Deus, lacançada na fé, tem o poder de pôr termo às nossas
irresoluções e ao vaivém dos nossos raciocínios incertos, de nos estabelecer na verdade e na paz. A
esperança que nos dá esta Palavra é âncora de nossa alma, firme e sólida (Hb 6, 19).
Inumeráveis são os exemplos de palavras da Escritura que podem ser para nós um ponto de
apoio precioso nas nossas lutas. Se me sinto demasiado abandonado, a Escritura me grita: Pode uma
mulher esquecer-se daquele que amamenta? Não ter ternura pelo fruto de suas entranhas? E
mesmo que ela o esquecesse, eu não te esqueceria nunca (Is 49, 15). Se sinto Deus distante, ela me
diz: Eis que estou convosco até o fim do mundo (Mt 28, 20). Se me sinto esmagado pelo meu
pecado, ela me responde: Sempre sou eu quem deve apagar tuas faltas, e não mais me lembrar de
teus pecados (Is 43, 25). Se tenho a impressão de não dispor daquilo que me seria necessário para
avançar na minha vida, o salmo me convida a realizar o ato de fé: O Senhor é meu pastor, e nada
me faltará (Sl 22, 1).

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4. Conselhos práticos para a oração pessoal
O importante é lançar-se, jogar-se na água, por assim dizer, e descobrir aos poucos a que
maneira de oração o Espírito Santo nos conduz. Há chamados e graças bem diversas nesse domínio,
e cabe a cada um abrir-se a um dom particular que lhe é feito. Comecemos por algumas
considerações entre os momentos de oração e o resto da vida.

4.1 Fora do tempo de oração


A qualidade da oração pessoal também é evidente condicionada por aquilo que se vive fora
dos momentos de oração. Não é possível unir-se a Deus na hora da oração se não buscamos nos unir
a Ele em todas as demais atividades: levá-las à sua presença, buscando agradá-lO e fazer a sua
vontade, confiar-lhe as escolhas e decisões, deixar-se guiar pela luz do Evangelho nas decisões da
vida, agir com um amor desinteressado, etc.
Por outro lado, como vimos, o fato de reservarmos tempos regulares de oração leva à
intensificação das disposições de fé, de esperança e de amor, preciosas não só no momento
específico da oração, mas no sustento e orientação de toda a nossa existência e de cada uma das
nossas atividades.
Esforcemo-nos pouco a pouco por fazer da nossa existência um diálogo com Deus, isto é,
viver na sua presença. Na simplicidade, na flexibilidade, sem tensões, mas numa busca de
comunhão constante com Ele. Não necessariamente num sentimento particular, mas levando a cabo
atitudes simples de fé, de esperança e de amor das quais falamos anteriormente.
Tudo o que constitui a nossa vida, sem exceção, pode alimentar o diálogo com Deus: as
belas coisas, para uma breve ação de graças; as preocupações, para pedir auxílio; as decisões
difíceis, para invocar a luz do seu Espírito… Mesmo os pecados, para lhe pedir perdão! É preciso
fazer fogo com qualquer tipo de lenha. A primeira coisa que Deus nos pede não é que sejamos
perfeitos, mas que vivamos com Ele.
“Não é necessário estar sempre na Igreja para estar com Deus. Podemos fazer do nosso
coração um oratório no qual nos retiramos de tempos em tempos para conversar com Ele. Todo
mundo é capaz de ter conversas familiares com Deus” (Lourenço da Ressureição, Máximas, cap. 2,
1).
Outro ponto que devemos insistir, além de vivermos na presença de Deus, é a importância
do exercício concreto da caridade como condição indispensável do crescimento na vida de oração.
Como querer encontrar a Deus e unir-nos a Ele na oração se somos indiferentes às necessidades do
nosso próximo? Como pretender amar a Deus se não amamos nosso irmão?
A falta de amor ao próximo, a dureza do nosso coração ante suas necessidades, o fato de
guardar voluntariamente rancores e amarguras para com alguém, a de perdoar, tudo isso pode
esterelizar a nossa vida de oração. É preciso que tenhamos consciência.

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Por outro lado, os gestos de misericórdia e bondade para com nossos semelhantes reefluem
para o nosso relacionamento com Deus, em especial na oração. Não esqueçamos as magníficas do
capítulo 58 (6-11) de Isaías àqueles que praticam o amor ao próximo. Sobretudo no pobre, naquele
que precisa de mim. Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus
irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes (Mt 25, 40). Se sabemos discernir a
presença de Jesus nos nossos irmãos, será mais fácil descobri-lO também na oração. E vice-versa…
Há momentos áridos na oração, uma ausência de alegria sensível enquanto rezamos, que
podem por vezes ser um chamado a procurar em outra parte a presença divina, em particular nos
atos de caridade. Isso não quer dizer que se deva abandonar a oração, mas que Jesus nos espera
também em outros lugares e que nós devemos estar mais atentos à sua presença naqueles que
precisam do nosso amor: os pobres e especialmente as crianças. Não nos esqueçamos que muitas
vezes há ilusões na oração, mas que não as há na caridade. Encontramos Deus de maneira certa ao
dar atenção ao próximo.

4.2 Ganhar ritmo


A existência humana é feita de ritmos: o da respiração, o dos dias e noites, das semanas e
dos anos… Se quisermos ser fiéis à oração, ela deverá encontrar o seu lugar nos nossos ritmos da
vida. Precisamos nos habituar a rezar tal ou qual hora do dia, separar um tempo particular reservado
a Deus em algum momento da semana, etc. Os hábitos podem converter-se em rotina ou preguiça,
mas podem também ser uma força. Evitam que recoloquemos as coisas em discussão ou que, a cada
vez, tenhamos de nos perguntar sobre o que estamos ou não estamos fazendo…
Se a oração é uma atividade ocasional, se esperamos ter tempo para rezar, só rezaremos de
maneira ocasional e superficial. É preciso reservar o tempo da oração e inscrevê-lo no ritmo da
nossa existência, como fazemos com todas as atividades que consideramos essenciais á vida:
alimentação, sono, etc. Ninguém jamais morreu de fome por falta de tempo para comer! Dizer que
não temos tempo para rezar significa simplesmente que a oração não faz parte das nossas
prioridades.
Cada um deve, portanto, sem rigidez e sempre reservando à urgência da caridade a sua
prerrogativa, estabelecer na sua vida cotidiana um certo tipo de ritmo de oração. Um ritmo
satisfatório, perfeitamente compatível com as responsabilidades familiares e profissionais. Por
exemplo, vinte minutos de meditação a cada manhã ou cada noite, uma hora de adoração na
paróquia às quintas-feiras no fim da tarde, uma tarde mensal de “deserto”, etc.
Nem todos temos, evidentemente, as mesmas possibilidades; é mais fácil para um
aposentado do que para alguém com a vida cheia de ocupações. Façamos o possível: como está
acima, Deus pode dar tanto a uma pessoa que, assoberbada por todas as suas atividades, não pode
consagrar mais que dez minutos por dia à oração, quanto ao monge que reza cinco horas todos os
dias. Mas saibamos, de todo modo, o momento de fazermos escolhas corajosas.

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Em 2011, as estatísticas diziam que em média um francês passa 3h 32 por dia diante da
televisão! Esse tempo pode sem dúvida nenhuma, ser reduzido em favor de alguns instantes para o
nosso Deus, sem que isso ponha a nossa vida em risco! Não nos deixemos enredar pelo demônio,
que sempre fará tudo, com mil boas razões, para nos afastar da oração… E saibamos que aquilo que
damos a Deus nos será devolvido em cêntuplo!

4.3 Início e fim da oração


Como administrar o tempo consagrado a oração? Em primeiro lugar, é preciso cuidar bem
do começo, cuidar bem do fim, e entre um e outro, fazer o possível! O começo é importante. O mais
importante é colocar-se verdadeiramente na presença de Deus. De acordo com o caso, podemos
pensar em Deus presente no nosso coração, ou imaginar Cristo como um amigo que está na nossa
frente, ou então nos colocarmos sob o olhar amoroso do nosso Pai do Céu, ou dirigir um olhar pleno
de fé para a Eucaristia (se caso estivermos num momento de adoração eucarística)…
Essa determinação de “pôr-se em presença” requer por vezes um esforço: é preciso deixar de
lado as preocupações, tudo o que está dentro de nossa cabeça, que ocupa a nossa imaginação, para
nos voltarmos resolutamente a Deus, orientando a Ele toda a nossa atenção e o nosso amor. Às
vezes, uma certa “escotilha” que nos permita abandonar a agitação precedente para entrar na oração,
para descarregar um pouco a cabeça, pode ser por vezes útil: uma caminhada de cinco minutos,
alguns momentos de relaxamento ou de respiração profunda, beber calmamente um chá… âs vezes
precisamos preceder o tempo de oração com uma certa antecâmara psicológica que permita a
transição entre estresse cotidiano e essa atividade de natureza bem diferente que é a nossa oração,
que é feita de receptividade.
O ato de colocar-se na presença de Deus ao início da oração será muitas vezes facilitado por
algumas práticas habituais, um pequeno “rito” que conferimos a nós mesmos e pelo qual
inauguramos o tempo de oração: acender uma vela ante um ícone, uns instantes de joelho, uma
invocação ao Espírito Santo, a recitação de um salmo que amamos, uma oração à Virgem Maria
para confiar-lhe o momento de oração…. De acordo com o que Deus inspirar a cada um e que lhe
for útil…
Sobre o término da oração, o primeiro conselho é, de um modo geral, cumprir fielmente
todo o tempo que se decidiu consagrar à oração. Se decidi, por exemplo, reservar meia hora à
oração todos os dias, não devo encurtar esse tempo. Salvo, evidentemente, num caso excepcional de
grande fadiga ou de alguma urgência à caridade. Em primeiro lugar, por uma questão de fidelidade:
não posso dar a Deus e depois pedir de volta.
Além disso, encurtar a oração sempre que ela nos aborrece pode às vezes nos privar daquilo
que há de melhor nela; seria como abandonar o jantar antes da sobremesa. Não se trata
evidentemente de uma regra absoluta, mas a experiência nos mostra que por vezes é nos últimos
minutos do tempo de oração que Deus nos visita. Ele viu a nossa fidelidade, e mesmo se a oração
foi pobre e difícil durante quase todo o tempo, eis que nos últimos instantes há como que uma visita

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de Deus, que nos dá uma graça simples de paz, de ânimo, de satisfação do coração. Seria uma pena
nos privarmos disso.
Outro conselho: jamais se deve sair descontente da oração. Mesmo que ela tenha sido dificil,
mesmo que eu não senti nada, porque passei todo o tempo distraído, porque adormeci, etc., é
preciso sair contente. Passei um momento com Deus, e isso basta. Não fiz nada da minha parte, mas
Ele certamente fez alguma coisa em mim e, num ato de humildade e de fé, eu O agradeço por isso.
Qualquer que tenha sido a minha oração, a última palavra deverá ser sempre a ação de graças. E
verei pouco a pouco que não me enganei ao agie assim.
Não é má ideia, ao fim da oração e antes do último agradecimento, tomar certas resoluções.
É possível que durante o tempo de oração, tal versículo da Escritura me tenha tocado, tal ou qual
verdade se tenha imposto a mim , tal ou qual chamado se tenha feito a ouvir. É importante nesse
momento tomar a resolução de viver com base naquilo que percebi e confiar-me a Deus para que
Ele me ajude a seguir o convite que o momento de oração despertou no meu coração. Não
desanimemos se depois não formos totalmente fiéis a essa resolução. Deus vê o nosso desejo, e isso
é o mais importante. As boas resoluções não são feitas tanto para serem mantidas, num esforço
voluntarista, quanto para exprimirem um desejo, uma sede, que o próprio Deus, no tempo certo
cuidará de satisfazer plenamente.
Santa Tereza de Lisieux se deparava frequentemente com problemas de aridez ou sono
durante a oração, em especial, no momento da ação de graças após a Eucaristia, ainda que buscasse
fazer o seu melhor para acolher bem Jesus na sua alma, invocando ao auxílio de Maria. Eis como
ela reagia: “Tudo isso não impede as distrações e o sono de virem visitar-me. Mas ao terminar a
ação de graças, vendo que a fiz tão mal, tomo a resolução de passar o resto do dia em ação de
graças… Estais vendo, Madre querida, que estou muito longe de ser levada pelo temor; sempre
encontro meio de ser feliz e tirar proveito das minhas misérias… Sem dúvida, isso não desagrada a
Jesus, pois Ele parece encorajar-me nesse caminho” (Santa Terinha do Meninoo Jesus, Manuscrito
A, 80 r.)

4.4 O tempo de oração propriamente dito


Como nos ocupar do tempo entre o começo e o fim da oração? A resposta pode ser muito
diferente para cada pessoa, de acordo com as etapas de vida e as solicitações do Espírito Santo. O
essencial é lançar-se e perseverar. Se nós o fizermos com boa vontade e fidelidade, Deus saberá
nos conduzir; entreguemos-lhe toda a nossa confiança.
No plano humano e psíquico, é preciso utilizar aquilo que favorece o recolhimento. Como
definir recolhimento? Poderíamos dizer que é a mistura de duas coisas: por uma lado, um estado de
distensão, relaxamento, receptividade; por outro, um estado de atenção a uma realidade rumo à qual
estou totalmente orientado.
Para recolher-se ma oração, é preciso estar calmo, abandonado, mas também atento a
presença divina, numa das modalidades que tratamos acima. Por exemplo, sentro numa igreja, fico

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calmo e tranquilo e me volto inteiramente, pela atenção do meu coração, ao Santo Sacramento em
exposição. Ou ainda, sentado no canto do meu quarto, leio traquila e serenamente uma passagem do
Evangelho, dou-me conta do que me diz aquele texto e guardo na memória.
Salvo por alguma graça, particular, um recolhimento total não costuma ser possível. Mas é
necessário buscá-lo naquilo que depende de nós. Há um recolhimento ativo: fazer aquilo que me
cabe, conforme as minhas capacidades no momento, para estar calmo – fisicamente (relaxado, sem
tensões nem crispações do corpo), psicologicamente (deixar de lado as preocupações e
inquietações) e espiritualmente (abandonar-se em Deus) – e centrar-me na presença divina, na
Palavra que medito, na Eucaristia que adoro, no meu próprio coração onde entro, e assim por diante,
como vimos acima, segundo a orientação da minha oração.
Nessa busca de recolhimento ativo, não podemos desprezar aquilo que favorece a
tranquilidade física e psíquica. Não é preciso focar tanto nisso a ponto de transformar o tempo de
oração numa técnica psicofísica. Seria um erro grave da qual tomamos consciência, uma maneira de
postar-se bem no momento presente, de habitar o nosso corpo, pode facilitar a oração. A chave de
tudo está em atender a um estado de receptividade.
Podemos gradativamente receber a graça de um recolhimento que eu chamaria de “passivo”,
pois, não depende daquilo que fazemos, mas que é um dom de Deus, uma graça sobrenatural. Trata-
se de um estado de paz profunda, de abandono, de intensa atenção a alguma coisa que Ele nos faz
perceber sobre si, que pode ter sobre nós uma influênciade profundidade viável. Podemos ser
levemente tocados, acariciados pela graça, ou completamente “arrebatados”, com todas as
gradações possíveis. Tenhamos presente que a atenção a Deus que falamos aqui é muito mais um
ato da vontade, do coração, do amor, do que um ato de inteligência. Pois, é mais fácil ao coração
centrar-se em Deus através do amor que da inteligência, que é mais volúvel e tem mais dificuldade
em fixar-se, estando quase sempre sujeita às distrações.
No plano espiritual, é preciso lembra-se sempre de que o essencial não é tal ou qual método,
tal ou qual maneira de proceder, mas as disposições interiores do coração: fé, confiança, humildade,
aceitação da própria fraqueza, desejo de amar… As múltiplas maneiras de “conjugar” a fé, a
esperança e o amor. A finalidade de todo procedimento na oração é alimentar, manter e expressar
essas atitudes fundamentais. Supondo-se – se vez por outra recebemos tal graça (pois se trata de
uma graça, e como tal ultrapassao exercício das faculdades humanas) – que alguém se mantivesse
diante de Deus no silêncio e na calma, sem ideias particulares, sem qualquer estado emocional
especial, mas em uma atitude de profunda e simples orientação do coração a Deus num único ato
que combina fé, esperança e amor, isso bastaria. Não há mais nada a buscar: isso basta para que se
tenha uma comunicação real com Deus e para que os frutos apareçam mais cedo ou mais tarde…
Uma palavrinha sobre as atitudes corporais. A oração não é exercício de penitência corporal.
Posturas desconfortáveis, em que o corpo se faz lembrar o tempo todo, obviamente não são
desejáveis; é preciso posições em que se possa permanecer com certa estabilidade, a fim de
favorecer o estado de recolhimento falado anteriormente. Dito isto, pode ser que durante a oração
queiramos – seja para despertar a nossa atenção, expressar um desejo amoroso, formular uma
súplica, ou por quaisquer outras disposições interiores – fortalecer a nossa atitude interior e

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exteriorizá-la em posições ou gestos particulares: ajoelhar-se, prostrar-se, unir as mãos, abri-las ou
erguê-las, beijar a nossa Bíblia, etc.
Com discernimento e sabedoria, as tentativas nesses sentido podem ser benéficas. O espírito
se fortalece quando se exprime pelo corpo. Existe uma “linguagem do corpo” que tem espaço de
oração, sobretudo na oração litúrgica, mas também na pessoal. Precisamos redescobri-la, onde com
demasiada frequencia se fez da oração um exercício puramante intelectual, alheio aos recursos do
corpo. Uma justa atitude do corpo induz a uma justa atitude do coração.
No regime próprio do cristianismo, ser espiritual não significa evadir-se ou desapegar-se do
corpo, mas, pelo contrário habitá-lo plenamente. É o corpo que nos põe em relação ao real que nos
envolve e o nosso primeiro meio de comunicação. O nosso corpo tem suas carências, pesares,
restrições, mas também a grande vantagem de estar postono real, no instante presente. Ele permite,
por assim dizer, “lastrear” o espírito, obrigando-o a habitar o presente. Só se pode encontrar com
Deus na oração situando-se no instante presente, e o corpo é uma ajuda preciosa nesse sentido. Para
rezar precisamos estar no nosso coração e para isso precisamos estar no nosso corpo.

4.5 Quando não perguntamos “o que fazer”


Quanto mais cresce o nosso amor para com Deus, menos nos perguntamos o que fazer
durante o tempo de oração. Quando duas pessoas se amam com amor intenso, não se têm em geral
maiores dificuldades para saber como ocupar o tempo que passam juntas. O amor resolve muitas
questões! É preciso, portanto, que peçamos sem cessar para amar sempre mais, “clamar a Deus dia
e noite para que nos faça justiça” (Lc 18, 7), ou dito de outra forma, para que nos dê um coração
novo. Feliz aquele que pode dizer: na minha oração “agora, minha única preocupação é amar”,
como o esposo na estrofe 20 do Cântico Espiritual de São João da Cruz. Esse amor tem mais valor
e rende mais à Igreja do que todas as obras do mundo, acrescenta ele.
Há momentos, em que a oração se dá espontâneamente, por razões diversas. Ficamos num
estado de grande fervor sensível (é com frequência o caso após uma forte graça de conversão ou
efusão do Espírito), ficamos felizes por rezar, temos mil coisas a dizer ao Senhor, etc. Por vezes,
também a oração acontece naturalmente, porque nos encontramos num tal estado de aflição que a
nossa vida inteira se torna uma súplica incessante! No fim das contas, também isso é uma graça!
Existe ainda uma outra circunstância em que não cabe perguntar-se “o que fazer na oração”:
quando Deus começa a introduzir-nos numa certa graça de oração contemplativa. Será preciso dizer
algumas palavras a respeito, pois essa graça é por vezes bastante imperceptível no início e podemos
ter mais escrúpulos em permanecer em uma atitude que é mais passiva que ativa. Atitude, que não
obstante, é aquela que Deus nos pede e que nos une mais profundamente e realmente a Ele.
Não é muito fácil achar palavras para descrever isso, mas poderíamos dizer o seguinte: estou
num estado de pobreza, de grande secura, não tenho emoções espirituais, nem necessariamente
luzes particulares que me afetam a inteligência. Não obstante, sinto uma certa inclinação em
permanecer pacificamente e em repouso diante de Deus sem fazer grandes coisas, mas com uma

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certa satisfação de manter-me na sua presença. A inteligência e a imaginação divagam com o
hábito um pouco à direita e à esquerda em vez de estarem plenamente fixadas, mas no que diz
respeito ao meo coração, sinto-o como que tomado por uma certa orientação, uma atenção amorosa
a Deus, bem geral, que não se fixa num ponto em particular (uma verdade, um aspecto do mistério
cristão). Uma atenção amorosa e geral a Deus, além das ideias precisas, das imagens ou dos
raciocínios discursivos.
Se por acaso nesse estado, devo permanecer nele. A única atividade será, talvez, mantê-lo
suave e traquilamente, como um pequeno gesto de tempos em tempos para reorientar o coração a
Deus, ou uma breve consideração para avivar a fé, a esperança ou o amor, ou ainda palavras simples
para manifestar a Deus aquilo que está no coração. Um pouco como um passáro que alterna entre
bater as asas e deixar-se planar… Ou ainda: a minha atividade será somente seguir os movimentos
específicos do Espírito que eventualmente venham a produzir-se sobre essa base de oração
receptiva.
Há momentos na oração em que precisamos ser ativos e alimentá-la – do contrário
cederíamos a uma certa preguiça espiritual - mas, há também momentos, e precisamos saber
reconhecê-los, em que o Espírito Santo nos convida a abandonar toda atividade e estarmos de
maneira ,ais passiva sob unção, numa simples atitude de disponibilidade interior. Trata-se de um
convite a “uma doce respiração de amor”, segundo a expressão de João da Cruz. “Senhor, meu
coração não se enche de orgulho, meu olhar não se levanta arrogante. Não procuro grandezas, nem
coisas superiores a mim. Ao contrário, mantenho em calma e sossego a minha alma, tal como uma
criança no seio materno, assim minha alma em mim mesmo” (Salmo 131).

4.6 Quando é preciso ser ativo na oração


Quando não estamos numa das situações que acabo de descrever, em que a oração jorra por
si só – seja sob uma forma de diálogo espontẽneo, seja porque somos favorecidos por uma graça de
recolhimento contemplativo – então precisaremos ser mais ativos, sob pena de preguiça espiritual e
de desperdício do tempo de oração. Vou ater-me a duas “vias” que a tradição da Igreja nos oferece e
que me parecem na prática as mais indicadas.
Podemos utilizar as duas, segundo nossa inclinação e segunda as circunstância ou os
momentos aos quais elas e mostrarem mais adequadas. Trata-se da meditação da Escritura e das
diferentes formas de oração repetitiva.

4.7 A meditação da Escritura


Chegamos aqui à antiquíssima tradição lectio divina, ou seja, de uma leitura da Escritura
com o fim de encontrar Deus e de nos abrimos àquilo que Ele quer nos dizer através dela hoje.
Tempos e momentos

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O melhor momento, sempre que nos é possǘel, é de manhã. A cabeça está mais lúcida e mais bem
disposta, geralmente menos carregada de preocupações do que no fim do dia (Sl 90,14; Is 50, 6).
Outra vantagem: dedicar à lectio divina um tempo de manhã demonstra que a coisa mais urgente na
nossa vida é pôr-nos à escuta de Deus. Feita logo de manhã, permite-nos também conservar mais
facilmente em atitude de escuta ao longo do dia e, portanto, captar as chamadas que Deus nos
dirige.
Mas não se deve tomar ao pé da letra este conselho. Se não se dispõe desse tempo matinal,
quaisquer outros momentos do dia são bons, porque Deus fala a qualquer momento a quem tem
sede dEle.

Que texto meditar?


As possibilidades são muitas. Pode-se meditar um texto e em sequência (um dos
Evangelhos, uma epístola de São Paulo ou qualquer outro texto da Bíblia), dia após dia. Mas o
conselho que dou aos principiantes nesta matéria é que se sirvam dos textos que a Igreja propõe
para a missa do dia. Tem a vantagem de pôr-nos em sintonia com a vida da Igreja universal e com
os tempos litúrgicos, e de preparar-nos para a Eucaristia, se participarmos dela.
Além disso, desse modo dispomos de três textos bem selecionados e diferentes (a primeira
leitura, salmo responsorial e o Evangelho), o que oferece menos risco de cairmos em passagens
demasiado áridas ou difíceis de interpretar. E também é uma boa ocasião para entrevernos a
profunda unidade da Escritura. Causa uma grande alegria de verificar com textos muito diferentes
entre si pelo estilo, pela época em que foram redigidos e pelo conteúdo revelam harmonias novas e
se iluminam mutuamente.

Como proceder corretamente?


1ª etapa. Tal como de cada vez que se trata de fazer a oração, é preciso começar por recolher-se,
deixar de lado os problemas e as preocupações e pôr-se na presença de Deus: a única coisa
necessária, como Maria de Betânia, é sentar-se aos pés do Senhor a fim de escutar a sua palavra(Lc
10, 38-42). Para isso, é necessário situar-se no momento presente.
Embora possa parecer estranho, costuma ser necessário, antes de começar a leitura, fechar os
olhos, relaxar o corpo (distender os ombros, os músculos…) , respirar suave e profundamente, sentir
o contato do corpo com o mundo material que nos rodeio: contato dos pés com o chão, do corpo na
cadeira, das mãos com a Bíblia ou com o missal. O primeiro contato com a palavra deve ser um
contato físico. O tato é já uma escuta. Não diz São João: “O que as nossas mãos apalparam acerca
do Verbo da vida…?” (1 Jo 1, 1).
2ª etapa. É preciso que orientemos o nosso coração para Deus, a fim de agradecer-lhe
antecipadamente esse momento em que vai unir-se a nós por meio da Palavra e pedir-lhe luzes para
compreendê-la: que nos conceda a compreensão das Escrituras (Lc 24, 44), como aos seus
discípulos. Sobretudo pediremos que essa palavra possa penetrar-nos em profundidade, converter o

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nosso coração, denunciar os nossos compromissos com o pecado, iluminar-nos e transformar-nos
onde for necessário para estarmos mais de acordo com o projeto divino sobre a nossa vida.
Devemos estimular o nosso desejo e a nossa vontade neste sentido.
3ª etapa. Logo que estivermos com essa boa disposição - não hesitemos em demorar o tempo que
for necessário, porque é essencial! - , podemos abrir os olhos e começar a ler atentamente,
aplicando a nossa inteligência e o nosso coração ao que lemos, e meditando-o.
É a princípio uma atividade mais física que intelectual. Não devemos ter receio de repetir
muitas vezes um versículo que nos prenda a atenção, porque é frequente seja à base de lhe dar
voltas que destila o seu sentido profundo, isto é, aquilo que Deus quer dizer-nos hoje e agora.
É evidente que a inteligência reflexiva também tem um papel a desempenhar. O que é que
este texto me diz sobre Deus? O que é que me diz sobre mim mesmo? Que boa notícia contém? Que
convite para a minha vida concreta posso descobrir nele? Se um versículo nos parece obscuro,
podemos sevir-nos de notas ou de uma explicação, mas evitando transformar o tempo de leitura
num tempo de estudo intelectual. Não devemos hesitar eme deter-nos muito tempo num versículo
que tenha para nós um sabor especial e, a partir do que nos faz sentir, entrar em diálogo com Deus.
O fim último da lectio não é ler quilômetros de texto, mas introduzir-nos o mais possível
nessa atitude de contemplação maravilhada, que alimenta em profundidade a nossa fé, a nossa
esperança e o nosso amor. Nem sempre o conseguimos, mas quando isso se verifica, é preciso saber
interromper a leitura e contentar-se com uma simples presença amorosa no mistério que o texto
descobre.
Do que acabamos de ver, podemos deduzir que há quatro estapas da lectio divina segundo a
tradição da Idade Média: lectio (leitura), meditatio (meditação), oratio (oração) e contemplatio
(contemplação). Não são etapas sucessivas que se devam percorrer obrigatoriamente por essa
ordem, mas modalidades particulares que podemos viver. Tanto mais que, se as três primeiras
procedem da atividade do homem, a quarta não está nas nossa mãos: é dom de graça que devemos
desejar e acolher, mas que nem sempre nos é concedido. Aliás, como já dissemos, pode haver
momentos de aridez, de secura, como em qualquer tempo de oração. Não é caso para desanimar,
porque quem procura acaba por encontrar.
Outro conselho: ao longo da leitura, é bom anotar num caderno algumas palavras que nos
toquem especialmente. O ato de escrever ajuda a fazer com que a Palavra penetre mais
profundamente na memória e no coração.
Uma vez terminado o tempo da lectio, é preciso dar graças a Deus por esses momentos
passados com Ele, pedir-lhe a graça de podermos guardar a palavra no nosso coração, como fez a
Virgem Maria, e decidir-nos a pôr em prática as luzes que recebemos.
Última consideração a esse respeito: ao invés da Escritura, é possível por vezes tomar como
base da oração a meditação de uma obra espiritual ou do escrito de algum santo que nos toca
particularmente em dado momento de nossa vida. Isso é absolutamente legítimo. Mas não nos
privemos de um contato direto e concomitante com a Sagrada Escritura. Ela por vezes mais difícil,
mas nos traz uma unção e nos revela tesouros bem mais ricos do que qualquer obra humana.

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